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Leitura crítica
Joel Birman
Editora Revan
Copyright© 1996 by Editora Revan Llda.
Coordenação editorial
Patricia Riani Grecco
Revisão de provas
Dalva Maria da Silveira
Capa
Olive & Ristow
Comunicação Integrada
Foto do autor
Rosane Bekierman
Impressão
(em papel off-set 75g lipo)
Graphos
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
1996
Editora Revan
Av. Paulo de Frontin, 163
PBX: (021) 293-4495 Fax: (021) 273-6873
20260-01O-Rio de Janeiro -RJ
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Sumário
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 9
Essas complicadas transferências cruzadas ...
Uma passagem quase despretensiosa de Michael
Balint inspirou o título deste livro, que é uma versão de I. FREUD E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PSICANÁLISE
minha dissertação de mestrado defendida junto ao 1. TEMPOS DE GUERRA ...................................................................... 19
Departamento de Psicologia da PUC-R]. Como todo 2. LA THÉORIE, c'EST BON, MAIS ......................................................... 2 7
trabalho acadêmico, este é devedor de múltiplas influên A teoria como proibição do pensamento ............................. 31
cias e do apoio de várias amizades, intelectuais e vitais, às 3. FREUD E O MOVIMENTO PSICANALÍTICO ...................................... , ..... 39
V. EPÍLOGO
8. UMA HIPÓTESE SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA PSICANÁLISE ............... 203
CONCLUSÃO ..................................................................................... 211
LEITURA CRÍTICA
A INVENÇÃO DESEJANTE DA PSICANÁLISE
Introdução
porloe/Birman ............................................................................ 217
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERftNCIAS CRUZADAS
gar que as instituições ocupam na formação psicanalítica - e os renczi e depois Balint, como um verdadeiro analista
correspondentes investimentos transferenciais para com elas - nal da psicanálise, denunciando a cumplicidade de uma deriva
mantêm a mesma economia. Assim, consideramos que só é pos ção esterilizante da teoria e da prática psicanalíticas com um modo
sível investigar os efeitos da transferência na institucionalização de exercício e de transmissão dos poderes. Porém, ao fundar em
da psicanálise através de uma contextualização histórica, sendo 1964 a sua própria Escola, após o rompimento definitivo com a
necessário precisar os períodos sobre os quais incide a pesquisa. IPA, tomando-se a primeira dissensão freudiana da história da psi
O conceito de transferência é utilizado lato sensu em seu canálise, Lacan realiza um corte transferencial inédito, cujos efeitos
sentido freudiano, como processo pelo qual o inconsciente se rapidamente tornar-se-ão visíveis. Buscamos acompanhar, na ter
atualiza sobre determinados objetos3 , não se tratando de um ceira parte, Lacan e o Corte Transferencial, as contribuições teóri
fenômeno exclusivo da situação analítica, mas relativo à expe co-institucionais de Lacan, junto à análise do lugar transferencial
riênda humana em geral. Buscamos explorar os limites defini por ele ocupado na psicanálise francesa e mundial. Mostramos
dos classicamente entre "transferências analíticas" e "transfe que, a partir de seu projeto de retorno a Freud, e atráves do corte
rências extra-analíticas" ou "laterais", apontando as implica transferencial inédito efetuado, Lacan tornou-se o último freudiano
ções existentes entre esses registros4• em sua Escola. A questão colocada no decorrer dessa análise foi
Na segunda parte, A Psicanálise em Meados do Século, a de saber, de fato, se foi possível ao modelo de formação pro
dedicamo-nos ao pensamento que vinha sendo produzido so posto por Lacan evitar o que havia denunciado anteriormente.
bre os "problemas" da análise na formação. Os efeitos Apoiamo-nos, para isto, na literatura psicanalítica fran
transferenciais da padronização e sistematização da formação cesa do final dos anos 60, onde se encontra uma ampla teorização
aliados aos efeitos de retorno da difusão da sobre si sobre as implicações da transferência na institucionalização da
mesma tornavam-se visíveis, apontando sintomas no psi- psicanálise, derivada, por um lado, das críticas suscitadas pela
canalítico. Assim, a tendência dos candidatos a serem "submis proposição lacaniana do passe7, e por outro, do questionamento
sos" e "excessivamente respeitosos aos seus analistas", sintoma geral das instituições provocado em toda a sociedade francesa
ressaltado por Balint5 como sendo produzido pelo próprio siste pelos eventos de maio de 68. importância dessas contribui
ma de formação vigente, não encontrou ressonância no pensa ções é maior se considerarmos que o momento atual da psica
mento da época, sendo ofuscado pela formulação, por Gitelson6, nálise no Brasil sofre a herança e os efeitos dessas transforma
do surgimento do candidato "normal" nos institutos psicanalí ções na psicanálise francesa, principalmente pela difusão do
ticos, produto de seu meio cultural. Candidato "normal" ou pro movimento lacaniano entre nós. Mas, se hoje o movimento
dução de "normalidade" excessiva pela manipulação da trans lacaniano está incorporado à psicanálise no Brasil, a agudez das
ferência nas análises didáticas? No vácuo deste e de outros críticas com que foram, naquela época, abordadas as questões
questionamentos referentes aos "problemas" da análise na for referentes à institucionalização da psicanálise e aos destinos da
mação, inicia-se a saga institucional de Jacques Lacan - até transferência na formação psicanalítica· parece estar adormeci
então, analista didata reconhecido pela IPA. da em nosso processo de institucionalização.
A força da crítica lacaniana reside no fato de propor, em Finalmente, na quarta parte - Em Busca do Tempo Perdi
seu olhar sobre os problemas da formação, uma relação intrín do - aplicamos, em um ensaio "antropofágico", as "ferramen
seca entre concepção teórica da psicanálise e sua estrutura tas" saber conquistadas ao longo da pesquisa na análise de
institucional. Lacan se inscreve assim, na trilha aberta por Fe- um sombrio episódio da história recente da psicanálise brasilei-
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
FREUD E A
INSTITUCIONALIZAÇÃO
DA PSICANÁLISE
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TRANSFER�NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
e desgostosa, o que foi expresso através dos versos utilizados A opção por Zurique como sede da IPA e a esc olha de
de forma auto-irônica como epígrafe ao terceiro e último Jung como novo líder do movimento psicanalítico indicam po
capítulo de sua História: rém que, em outro registro, o que Freud desejava que fosse
organizado era a economia e a dinâmica transferencial do mun
Mach es Kurz! do psicanalítico de então, que girava em tomo dele. Viena
Am ]üngten Tag ist's nur ein Furz! *4 não era uma cidade muito recomendável aos olhos do Oci
(Goethe) dente, e quanto a si próprio, diz Freud:
Afora seu caráter polêmico, longe de qualquer intuito Via também uma segunda desvantagem em minha pró
iconoclasta deliberado ao se fazer uma análise mais minuciosa pria pessoa, sobre a qual era difícil formar uma opinião
desse texto (ao contrário, uma psicanálise que se envergonha por causa das manifestações de admiração e de ódio
d� suas paixões é exatamente o que Freud combaterá aqui), A provenientes das diferentes facções7.
_
Histór�a do Movimento Psicanalítico é considerado o texto "pivô"
a partir do qual serão desenvolvidas as idéias trabalhadas nes Nessa época, Freud não tinha dificuldades em reconhe
8
sa �rimeira parte: o processo de institucionalização da psica cer o aspecto ambivalente da transferência • Pretendia assim
náhse, o lugar transferencial ocupado por Freud na economia e resolver essa transferência maciça para com ele "transferindo"
dinâmica desse processo, e as vicissitudes da transferência face o centro do movimento psicanalítico de Viena para Zurique,
a essa institucionalização. fazendo de Jung- o "príncipe herdeiro"- seu novo líder.
Criada em março de 1910, no 2 º Con gresso de Psicanáli Essa posição, que fora de inicio ocupada por mim, dado o
se, realizado em Nuremberg, a Associação Psicanalítica Inter meu acervo de quinze anos de experiências, devia ser agora
nacional (IPA) fazia quatro anos de vida, O projeto de Freud, que TRANSFERIDA* para um homem mais jovem, que então,
9
contou com a ajuda de Ferenczi, pretendia "organizar o movimen naturalmente, ocuparia meu lugar após a minha morte •
to psicanalítico, transferir o seu centro para Zurique e dotá-lo de
um chefe que cuidasse de seu futuro"5. Há quase uma década a Além disso, elegendo um sucessor que não fosse judeu,
psicanálise vinha sendo difundida e popularizada, mobilizando ou Freud resolvia outro problema que o angustiava, o reconheci
tros campos de conhecimento. Foi no sentido de promover o de mento da psicanálise enquanto ciência universal, cosmopolita,
senvolvimento da psicanálise preservando a sua especificidade- e não restrita ao meio judaico.
suas descobertas, sua linguagem, seu método de investigação- A escolha de Jun g como presidente da Associação In
dos abusos da popularidade, que Freud imaginou a Internacional. ternacional rapidamente mostrou-se desacertada, em função
Uma sede que pudesse organizar o que é psicanalítico, com autori de suas divergências e seu afastamento em relação a Freud e à
dade para declar�r o que é psicanálise e o que são "tolices" que com teoria freudiana. Freud faz então uso de sua pena, reivindi
ela nada têm a ver- "isto não é psicanálise"6• Nesse registro, a cando seu lugar de mestre fundador, "aquele que sabe", para
IPA teria a função (organizadora) de dar os contornos e as ga separar o que é psicanálise do que não é, e deixar claro quem
. é e quem não é psicanalista:
rantias ao corpo do saber teórico e da prática psicanalítica**.
(*) "Seja breve! No Dia do Juízo isso não passa de um peido !"
(''*) Quant? ª )sso, º temor de Adl er de que se prctendcuc exercer "c ensura e restrições sobre a liber
, .
d de c1 ntífica (op.crt.,p.57) vem mostrar que o qu e é garantia para alguns pode ser consid erado r e stri (*) "Es lag mir also daran, diese Autoritilt auf einem jüngeren Mann zu übertragen... "(in Gesammelte Werke.
� � Vol. X, p. 85. Imago Publishing, London, 1946).
çao de libe rdade para outros. O destino das funções institucionais da !PA será analisado no capítulo 3.
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DANIEL KUPERMANN
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribui mão de "conhecimentos psicanalíticos"12 no exame dessas duas
ção que me proponho trazer à história do movimento psi dissensões- conhecimentos referentes às resistências e às trans
canalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela de ferências em jogo no afastamento de Adler e Jung da psicanáli
sempenho, pois a psicanálise é CRIAÇÃO MINHA; durante se. Assim, Freud coloca os dois teóricos no lugar reservado aos
dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo "pacientes", sem, no entanto, o consentimento deles. Isso vai
o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus con apontar algo que é específico à psicanálise, mas abre preceden
temporâneos desabou sobre a minha cabeça em forma de tes para uma prática duvidosa, que ficou conhecida como aná
críticas. Embora há muito tempo eu tenha deixado de ser o lise "selvagem'', no interior do próprio campo psicanalítico.
único psicanalista existente, ACHO JUSTO CONTINUAR "O desapontamento que (essas dissensões) causaram tal
AFIRMANDO QUE AINDA HOJE NINGUÉM PODE SABER ME
vez tivesse sido evitado se eu tivesse prestado mais atenção às
LHOR DO QUE EU o QUE É A PSICANÁLISE, em que ela
reações de pacientes sob tratamento ana1,1t1co " " , J·1z Freud13. A
difere de outras formas de investigação da vida mental, idéia freudiana é a de que, em contato com a "coisa" psicanalíti
o que deve precisamente ser denominado de psicanálise ca, tanto os psicanalistas-teorizadores quanto os pacientes estão
e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer 10• sujeitos às limitações provocadas pelas resistências suscitadas pela
própria psicanálise. Isso não é novidade para Freud. Se A Inter
E o que é a psicanálise? Um pouco adiante Freud dará pretação de sonhos é considerado o marco do advento da teoria do
uma definição que se tornou clássica: inconsciente, ali Freud nos mostra como a sua teoria é construída
Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é também de seus sonhos e a partir deles, através de sua auto-aná
uma tentativa de explicar tais fatos surpreendentes e lise, estabelecendo de forma inédita enquanto teórico a relação
inesperados que se observam sempre que se tenta re entre sua teoria e seu fantasma14• A surpresa de Freud está no
montar os sintomas de um neurótico a suas fontes no fato de que alguém que tenha alcançado certa profundidade na
passado: A TRANSFERÊNCIA E A RESISTÊNCIA. Qualquer compreensão da psicanálise (os casos de Adler e Jung) pudesse
linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os renunciar a essa compreensão e perdê-la, sob o domínio de uma
tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direi nova resistência. Para Freud, a negação da sexualidade em suas
to de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resul teorias, dando espaço a uma "elaboração secundária" egóica e à
tados diferentes dos meus11• "racionalização" no caso de Adler 15 e a uma nova Weltanschauung
na forma de ideais de salvação no caso de Jung16, é o resultado,
A partir dessa concepção, a psicanálise seria, antes de na forma de teoria, das resistências à psicanálise.
tudo, o conhecimento dos fenômenos da transferência e da
Junto às resistências dos dois ex-discípulos, Freud irá ana
resistência, e a aplicação clínica desse conhecimento no de
lisar as motivações inconscientes de seu afastamento a partir da
correr do tratamento.
relação transferencial que estes estabeleceram com ele próprio,
Ao analisar, no terceiro capítulo de sua História, as dis criador e pai da psicanálise.
sensões de Adler e Jung, Freud o faz em dois registros: o teórico Assim, Adler teria um "anseio desenfreado de priorida
ou epistemológico, voltado para a análise conceitual de suas
de", e teria dito a Freud, num encontro do Círculo de Viena:
teorias, no intuito de mostrar onde estas contrariam os princí
"O senhor pensa que é um grande prazer para mim ficar a
pios básicos da psicanálise, e o psicanalítico, isto é, Freud lança
vida inteira à sua sombra?"17, ambição que, segundo Freud,
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TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
ferências de seus adversários. No que se refere à luta contra as
rapidamente escorregou para o unfair. Jung teria "preconcei resistências, aliás, Freud segue a linha belicista do si vis pacem,
tos raciais", seria incapaz de tolerar a autoridade de outra para bellum. Já que não se pode escapar das resistências, melhor
pessoa e mais ainda de exercê-la ele próprio18, e sofreria de provocá-las de uma vezl
rebeldia juvenil19• Tanto um como o outro tinham uma ten A partir da tradição encontrada em A História do Movimento
dência "especulativa", onde a "pré-história teológica", no caso Psicanalítico, o confronto em psicanálise traz, até nossos dias, duas
de Jung, bem como a "socialista", no caso de Adler, seriam marcas25 : a primeira diz respeito ao tom beligerante e passional
um indicativo do desenvolvimento de suas teorias20• Em re desse confronto, com o uso de "conhecimentos psicanalíticos" en
sumo, ambos são infantis, têm resistência à psicanálise e que tre as armas de acusação mútua, caracterizando um abuso da psi
rem tomar o lugar que é de Freud. canálise, uma análise "selvagem" praticada no interior do próprio
Convém indicar aqui a leitura que Roustang faz desse meio psicanalítica26; a segunda diz respeito ao próprio objetivo do
debate. Ao lembrar a crítica feita por Jung a Freud "de abusar confronto, a redefinição do que é e do que não é psicanálise, que,
da psicanálise para manter seus alunos numa dependência in com a morte de Freud - aquele que sabia a psicanálise - pas
fantil e ser, por este fato, responsável pela conduta infantil deles sará a ser a luta pelo status de herdeiro legítimo de seu legado.
para com ele"21, Roustang apresenta a outra versão dos fatos, Freud observava que poucas pessoas conseguem "manter
mostrando o quanto Freud também estava envolvido a linha" numa discussão científica, principalmente no que se
transferencialmente (ou contratransferencialmente) com seus refere à discussão psicanalítica, "tendo em vista a peculiaridade
discípulos e, onde estava apontada a resistência à psicanálise, da controvérsia sobre a psicanálise"27• Essa peculiaridade, junto
pode-se levantar a hipótese de uma resistência à mestria. às "dificuldades particularmente grandes ligadas ao ensino da
Se Jung e também Adler não deixam de retribuir "home- psicanálise"28, é devida ao fato de a psicanálise ser um saber
nagens" ao velho mestre, isso estava previsto por Freud: cuja transmissão é regulada pela transferência. Assim na base
da institucionalização da psicanálise está a transferência, apontando
A análise, entretanto, não se presta a uso polêmico; pressu os impasses e impossibilidades desta institucionalização.
põe o consentimento da pessoa que está sendo analisada e Analisamos, no capítulo 3, as características transferen
uma situação na qual existam um superior e um subordina ciais da institucionalização da psicanálise no período freudiano.
do. Daí, quem quer que empreenda uma análise com fins Antes, porém, de avançar pelos caminhos e descaminhos des
polêmicos pode esperar que a pessoa analisada utilize, por sa história, faremos um breve desvio metodológico, de forma
sua vez, a análise contra ela, de modo que a discussão atin a apreender de que modo a própria teoria psicanalítica pode
girá um ponto que exclui inteiramente a possibilidade de con servir aos propósitos das resistências à psicanálise, tornando
vencer qualquer outra pessoa imparcial22• se uma Weltanschauung.
Assim, fora da situação transferencial desejada (o "con
sentimento"), a análise se transformará no que Freud definiu
em outro lugar como análise "selvagem"23• Mesmo contra a sua
vontade - "a análise não se presta a uso polêmico" - Freud
acaba por dar o tom, ditado pelas transferências em jogo. Quando
se diz "forçado a pegar em armas"24, as armas são os "conheci
mentos psicanalíticos", ou seja, o exame das resistências ·e trans-
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DANIEL KUPERMANN
Notas
1.Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". In Edição Standard
Brasileira (E.S.B). Vol.XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1980.
2. Freud, S. Idem, p.51.
3. Freud, S. Idem, p.63.
4. Freud, S. Idem, p.55.
5. Freud, S. Idem.
6. Freud, S. Idem, 57.
7. Freud, S. Idem, 56.
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TRANSFER.ll:NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
jo, é responsável pela construção das ilusões humanas, ilusões dos acima (acreditar que a Terra é o centro do universo era uma
que a ciência vem combater. ilusão, considerando a realização de desejo contida nesse erro).
Freud descreve três severos golpes sofridos pelo narcisismo A noção de ilusão aproxima-se também da noção de delí
universal dos homens (seu amor-próprio) através da ciência: o rio, diferenciando-se dessa pelo fato de que, estando ambas ins
golpe cosmológico, atribuído a Copérnico; o golpe biológico, atri critas no campo do desejo, enquanto o delírio - para ser assim
buído a Darwin; e o golpe psicológico, atribuído ao próprio Freud. caracterizado - está necessariamente em contradição com a
A idéia de que a Terra é o centro do universo estava associa realidade, a ilusão não é necessariamente falsa, nem deve estar
da ao papel dominante que o homem atribuía a sí próprio enquanto em oposição à realidade. A ilusão é portanto uma crença situa
"Senhor do Universo". A partir de Copérnico, no século XVI, da no campo do desejo e do narcisismo, desconsiderando o cam�
com o reconhecimento de que o Sol é o centro do sistema ao redor po da realidade como critério para sua constituição e validade:
do qual a Terra gira, esta ilusão narcísica de foi destruída, sofren Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quan
do a humanidade seu primeiro golpe desferido pela ciência. do uma realização de desejo constitui fator proeminente
Com Darwin, a ilusão humana da posse de uma alma trans em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos
cendente divina e imortal, marco da diferença entre o mundo suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão
humano e o mundo animal, teve fim. Com a teoria evolucionista, não dá valor à verificação6 •
Darwin demonstrou a ascendência animal do homem, diminu
indo consideravelmente a distância antes colocada entre o Assim como um sonho acordado... do qual não se quer
mundo humano e o animal, sendo responsável pelo segundo despertar! E contra aquele que provoca o despertar, são dirigidas
golpe no narcisismo da humanidade. as mais fortes reações emocionais de resistência.
O terceiro golpe narcísico foi dirigido à ilusão de que a cons Em As Resistências à Psicanálise (1925), Freud resume os
ciência tem o conhecimento e o controle sobre o conjunto da "bons" motivos para a reação emocional contrária à psicanálise:
vida mental. Com a formulação do inconsciente e da atividade 1. Considerando que a civilização humana repousa
psíquica das pulsões sexuais, Freud demonstrou que "o ego não é sobre dois pilares - o controle das forças naturais e
senhor da sua própria casa"4, uma vez que o psíquico não se reduz a repressão pulsional - ao trazer à luz a qualidade
ao consciente e que o homem é regido por forças (sexuais) que das pulsões sexuais reprimidas em seus fins na cons
desconhece, caracterizando o chamado golpe psicológico. tituição da cultura, a psicanálise atinge o "elevado
Se esses homens, a partir de suas descobertas, "perturbaram ideal de moralidade" sustentado socialmente, e apon
o sono do mundo", é porque denunciaram o caráter ilusório das ta o que Freud chamou de "hipocrisia cultural"7: o
grandes crenças humanas, como se dissessem: "acordem, isso é ape preço a ser pago para a manutenção dos ideais de
nas um sonho", para aquilo que se acreditava ser realidade. Nesse moralidade é tão oneroso em termos de insatisfação
sentido, pode-se dizer que a ilusão é estruturada como um sonho. pulsional, que a sociedade vive um sentimento de
Para Freud, o que caracteriza a ilusão é o fato de ela estar insegurança e uma necessidade de preservar essa si
referida ao campo do desejo e do narcisismo, e não ao campo da tuação precária através da proibição da crítica e da
realidade5 • Assim, a ilusão não se confunde com o erro, estando discussão - A PROIBIÇÃO DO PENSAMENTO, tema im
este referido à ordem do entendimento da realidade. Isso não portante ao qual voltaremos mais à frente.
impede que o erro seja um efeito da ilusão, como nos casos ilustra-
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DANIEL KUPERMANN
3Q 31
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊ:NCIAS CRUZADAS
Freud, uma Weltanschauung, pois está referida à realidade e não O consolo é a função religiosa que traz maiores problemas
à realização de desejos humanos na forma de ilusão. no confronto com a ciência, que "não pode competir com a reli
A questão freudiana é menos destituir o valor das Wel gião quando esta acalma o medo que o homem sente em relação
tanschauungen do que afirmar um caráter científico para a psi aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe garante um fim feliz
canálise, marcando sua diferença. Freud destaca, portanto, seu e lhe oferece conforto na desventura" 16• A ciência, apesar de per
valor nos produtos da arte, nos sistemas religiosos e na filosofia, mitir o conhecimento de certos perigos, em algumas situações
mas adverte: nada mais tem a fazer que "deixar o homem entregue ao sofri
mento, e apenas pode aconselhá-lo a resignar-se" 17• Assim, en
(...) nao podemos desprezar o fato de que seria ilícito e quanto a ciência caminha vagarosamente na busca da supera
muito impróprio permitir que fossem essas exigências ção dos limites do conhecimento e do poder humanos, a ilu
transferidas para a esfera do conhecimento. Pois isto equiva são religiosa oferece "segurança na vida" para aquele que, desde
leria a deixar abertos os caminhos que levam à psicose, seja a situação infantil, conhece e sofre as agruras do "estado de
psicose individual, seja grupal, e retiraria valiosas somas de desamparo" (Hilflosigkeit) característico do humano. É nessa
energia de empreendimentos voltados para a realidade, com linha de pensamento que Freud faz a analogia entre Deus e o
a finalidade de, na medida do possível, nela encontrar Pai - a fé religiosa sendo uma reedição da situação infantil.
satisfação para os desejos e para as necessidades14• A terceira função da religião é estabelecer preceitos, proi
Assim, Freud busca demarcar claramente os limites ( tê bições e restrições. Sua função ética.
nues) entre conhecimento e ilusão, bem como entre Relacionando estas três funções, percebe-se que as ga
conhecimento e delírio, afirmando a psicanálise no terreno do rantias de proteção e felicidade (o consolo) estão reservadas
conhecimento. àqueles que obedecem aos preceitos ético-religiosos, cuja arti
Entre os domínios da arte, filosofia e religião, apenas a culação final é uma "teoria" das origens, remetendo a um Deus
última é considerada adversária da ciência. Em períodos anteri Criador, o "pai". Diz Freud: "Um homem religioso imagina a
ores da história, a religião assumiu um lugar próximo ao da ci criação do Universo assim como imagina sua própria origem" 18•
ência - uma vez que abrangia tudo o que desempenhava um Assim, a ilusão religiosa extrai sua força do complexo parental
papel intelectual na vida do homem - construindo uma Wél patemo. A mesma pessoa à qual a criança deve a sua existência, o
tanschauung coerente e auto-suficiente num grau sem paralelo pai*, também a protegeu e cuidou em seu desamparo constitucio
de influência sobre a cultura (que, aliás, persiste ainda hoje). nal. "Sob a proteção do pai, a criança sentiu-se segura". O adulto
Convém aprofundar a leitura freudiana da religião, de forma a "fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e despro
compreender a freqüente analogia utilizada na própria literatu tegido como era na infância", evocando a "imagem mnêmica do
ra psicanalítica, entre a psicanálise e a Igreja. pai"- o pai idealizado- na forma de Deus19• Ainda que de forma
A religião, segundo Freud, preenche três funções na cul excessivamente simplificada - uma vez que nos poupamos de um
tura: ensino, consolo e exigências 15• O ensino se refere às infor
mações a respeito da origem.e da existência do universo - a (*) Freud diz que poderia tratar-se da instância parental composta do pai e da mãe. Como lembra Assoun
cosmogonia -, presentes em todo sistema religioso. Assim, a (1991, p.83), esse "diagnóstico" não deve ser entendido como uma psícologização sumária da crença
religipsa, mas em sua dimensão metapsicológica, apontando a religião como herança do assassinato do
"sede de conhecimento" do homem é satisfeita, e nesse ponto a pai. E com referência a Totem e Tabu (Freud, 1913) que se pode apreender a relação da que,tão paterna
com a religião. A ontogênese do sentimento religioso em Freud é devedora da herança filogenética do
religião tem seu primeiro choque com a ciência. assassinato do pai apresentado no mito parricida de Totem e Tabu.
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
longo desvio por Totem e Tabu - essa exposição sobre a gênese da proibição do pensamento, que pode tanto se dar pela associação/
constituição da ilusão religiosa através do complexo paterno nos captura dessa teoria a sistemas religiosos, quanto pela sacralização
interessa na medida da ampliação proposta por Paul-Laurent Assoun: de um autor (Deus-Pai-Totem) e de uma obra, cuja crítica se
torna tabu. Freud corria esses dois riscos: além de assistir à tenta
é "religiosa", no fundo, toda configuração em que se tiva de captura da psicanálise por uma lógica da ilusão, toman
mostra ativo esse "complexo do pai"20•
do-a uma Weltanschauung, era, de fato e de direito, o pai da psica
Assim, é o complexo paterno, constituinte da religião, a nálise, colocando aqueles que dela se aproximavam frente a um
matriz de toda e qualquer ilusão, entendida como uma crença "complexo paterno" quando da relação com a sua palavra, o seu
na qual, em sua motivação, prevalece a realização de desejo. A texto, a sua criação. O texto de Freud referente ao marxismo
religião é, portanto, a Weltanschauung por excelência, o que faz pode, sem causar muita perplexidade, ser aplicado à própria psi
Assoun identificar como religiosa toda Weltanschauung, mesmo canálise em algumas de suas formas atuais, em função da
as de cunho materialista. sacralização de determinados autores - tanto Freud como os
Esta é a visão freudiana do marxismo, que na época (1929- novos "pais". Causaria espanto, quando nos refe.rimos a certos
193 2) dava sua guinada do marxismo-leninismo para o stalinismo, meios psicanalíticos, dizer que "os escritos de (Freud-Melanie
além de surgirem as primeiras tentativas de associação entre o Klein-Lacan) assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como
pensamento de Freud e de Marx, através do freudo-marxismo de fonte de revelação, embora não parecessem estar mais isentos de
Wilhelm Reich (se A questão de uma Weltanschauung tem um des contradições e obscuridades do que esses antigos livros sagrados"?
tinatário privilegiado, pode-se dizer que se trata de Reich): Assim, o que Freud parece ainda não saber é que o desti
no provável daquele que destrói a ilusão alheia é ser, ele pró
O marxismo teórico, tal como foi concebido no bolchevis
prio, investido da mesma forma que a ilusão anterior. Portanto,
mo russo, adquiriu a energia e o caráter auto-suficiente de
se Freud "perturba o sono" (e os sonhos) do mundo, não se
uma WELTANSCHAUUNG; contudo, adquiriu ao mesmo tem
deixará de sonhar; passar-se-á a sonhar com Freud e com a psi
po uma sinistra semelhança com aquilo contra o que está
canálise. Afinal, é possível viver sem o sonho da ilusão?
lutando. Embora sendo originalmente uma parcela da ci
A problemática paterna está no centro do objeto deste
ência, e construído, em sua implementação, sobre a ciên
trabalho, remetendo por um lado à questão da institucio
cia e a tecnologia, criou uma PROIBIÇÃO PARA o PENS.AMEN
nalização da psicanálise, e por outro à questão da transferência,
m que é exatamente tão intolerante como o era a religião,
o que passaremos a demonstrar a partir do próximo capítulo,
no passado. Qualquer exame crítico do marxismo está proi
onde examinamos as vicissitudes e implicações da transferência
bido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do
frente à institucionalização da psicanálise. Afinal, são também
mesmo modo que uma heresia, em outras épocas, era pu
(e sobretudo) as razões transferenciais que irão aproximar a psi
nida pela Igreja Católica. Os escritos de Marx assumiram
o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação,
canálise da lógica da ilusão, fazendo com que a questão da
Weltanschauung mereça uma atenção constante.
embora não parecessem estar mais isentos de contradições
e obscuridades do que esses antigos livros sagrados21 •
A história da institucionalização da psicanálise é tradicio
nalmente entendida como um jogo de forças que oscila apenas
Ou seja, o que faz de uma teoria (mesmo que de base cien entre dois extremos possíveis: a afirmação da sua "autentici
tífica e materialista) uma Weltanschauung é a imposição de uma dade" versus a denúncia da sua captura ou "recuperação" pelas
34 35
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
36 37
3. Freud e o movimento psicanalítico
D ie Bewegung- o Movimento. Assim Freud designava, nas
circulares destinadas aos membros do Comitê Secreto, a
ação de preservação, difusão, desenvolvimento e proteção da
"causa" analítica. Em Bewegung há um Weg, um caminho1• O tra
çàdo desse caminho exigia dos pioneiros o empenho de uma guerra
permanente. Veremos, nesse capítulo, que, atravessando os ca
minhos do movimento psicanalítico, estão as transferências a
Freud e as transferências de Freud - mas não só. Nele estão
presentes também, de forma ativa, os sonhos, as utopias e a
política que, desde então, marcam a história da psicanálise.
0 CONVITE ÀTRANSFERÊNCIA
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
uma vez na vida" 2• A interpretação dos sonhos era considera
da por Freud a chave de sua obra, "a via real que leva ao co com suas peculiaridades, detalhes, indiscrições, brincadeiras de
nhecimento das atividades inconscientes da mente" 3• mau-gosto, e então, de súbito, o topo, a vista e a pergunta: Por
A Traumdeutung é, sobretudo, produto da auto-análise de favor, para onde o senhor quer ir agora?" 7• Trata-se de um con
Freud*. Esta intensificou-se desde a morte de seu pai, em 1896, vite a uma viagem em busca do sentido, cujo guia é Freud.
culminando na publicação do livro. A interpretação de seus pró Para além do aspecto formal, o que está apontado desde
prios sonhos era o principal recurso utilizado por Freud em sua A Interpretação de Sonhos é que a transmissão da psicanálise tem
auto-análise, e grande parte do material empregado na Traum como característica o fato de ser regida pela transferência. Freud
deutung provém daí. Assim, A Interpretação de Sonhos é o maior tem absoluta clareza disso, o que revela numa passagem decisi
exemplo do "emaranhamento entre autobiografia e ciência" que, va onde formula um convite "muito especial" ao leitor, antes de
nas palavras de Peter Gay4, marca desde o início a psicanálise. introduzir a análise de seu sonho-modelo, o sonho da injeção
Nesse sentido, além de texto fundamental (em termos de Irma, no segundo capítulo da Traumdeutung:
dos fundamentos conceituais), a A Interpretação de Sonhos é
também o texto fundador da transmissão da experiência analí ( ...) TouT PSYCHOLOGISTE, escreve Delboeuf [ 1885], EST
OBUGÉ DE PAIRE L'AVEU MÊME DE SES FAIBLESSES S'IL CROIT
tica. O saber nele descrito é o saber obtido por Freud não ape
PAR LÀJETER DU JOUR SUR QUELQUE PRÓBLElvfE OBSCUR (...) *
nas a partir da clínica da histeria, mas também, e principal
mente, através de sua auto-análise, considerada o ato funda Em conseqüência, passarei a escolher um de meus pró
prios sonhos e demonstrarei, à base dele, meu método
dor da psicanálise, a experiência psicanalítica originária. Por
tanto, para ter acesso ao inconsciente, Freud inaugura uma de interpretação (...) - Agora devo pedir ao leitor que
experiência, e a transmissão do saber do inconsciente implica faça dos meus interesses os seus próprios por um perío
a transmissão dessa experiência. Ou seja, se a interpretação do bastante longo, e mergulhe, juntamente comigo, nos
de sonhos aponta para a questão do sentido inconsciente, para menores detalhes de minha vida, porquanto uma TRANS
FERÊNCIA** dessa natureza é peremptoriamente exigida
apreender este sentido é preciso seguir com Freud.
O próprio estilo literário empregado na construção do por nosso interesse no significado oculto dos sonhos8 •
texto sugere uma "viagem com guia"5• Freud conduz o leitor ó convite especial formulado por Freud é um convite à
entre exemplos de sonhos que se adiantam ao argumento, an transferência. Se a transferência nos remete aqui, em grande
tecipa as possíveis objeções, desarmando a crítica, alterna o parte, à identificação- fazer dos interesses (leia-se desejos) de
emprego do tom coloquial com citações literárias e canções Freud os seus próprios, mergulhar nos menores detalhes de sua
populares, aliviando o peso da leitura6• Ao descrever o livro a vida- não se reduz a ela. Há na estrutura deste convite à trans
Fliess, pouco antes da publicação, ilustra Freud: "o conjunto é ferência um guia, aquele que conhece o método (caminho, em
apresentado como a fantasia de um passeio. No começo, a ne grego) de interpretação. Há um saber em jogo, e um mestre, na
gra floresta de autores (que não enxergam as árvores), irreme fundação inaugural desse saber.
diável, repleta de trilhas enganosas. A seguir, uma estreita pas A importância dessa breve incursão por A Interpretação
sagem oculta por onde conduzo o leitor - meu sonho-modelo de Sonhos em nosso percurso reside no fato de que esse livro
(•) Em francês, no original. Todo psicólogo está obrigado a confessar mesmo suas próprias fraquezas, se
11
(*) Sobre a auto-análise de Freud, consultar Didier Anzieu (1989). ele julga que pode lançar luz sobre algum problema obscuro",
( .. ) No original: "denn solche Übertragung fordert gebieterisch das Interesse für die versteckte Bedeutung der
Traume" (Gesammelte Werke, vol.ll/lll, p.l 10, Imago Publishing, London, 1942).
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41
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
funda não apenas a transmissão da experiência psicanalítica então a criação do grupo, estimulando Freud a formular o con
como também oferece as bases para a institucionalização da vite. Em A História do Movimento Psicanalítico, Freud escreve:
psicanálise. O convite à transferência formulado por Freud marca A partir do ano de 1902, certo número de jovens médicos
o declínio do período de seu "esplêndido isolamento"*, cultiva reuniu-se em tomo de mim com a intenção expressa de
do por q�ase dez anos, e aponta para um novo período, no qual
. aprender, praticar e difundir o conhecimento da psicanáli
Freud ira congregar em torno de si discípulos dispostos a fazer se. O estimulo proveio de um colega que experimentara ,
11•
do seu interesse o próprio, em nome da causa psicanalítica. É ele próprio, os efeitos benéficos da terapêutica analítica
ainda ao convite à transferência que irá retornar algumas vezes
d�rante períodos de crise do processo de institucionalização da Portanto, o primeiro grupo psicanalítico foi a concretização
ps1canáhse, mesmo que na sua forma inversa, a da exclusão. em ato do convite à transferência que Freud havia formulado
em A Interpretação de Sonhos.
A Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras Apesar do caráter pouco institucionalizado do grupo, o que
a diversidade de autodenominações vem apontar, as reuniões
. O ano de 1902 trouxe reconhecimentos importantes para obedeciam a um modo de funcionamento com características bem
Freud. Em fevereiro, foi promovido ao título acadêmico de Pro
fessor Extraordindrio. Essa promoção era esperada desde 1885, definidas. O encontro tinha início com a apresentação, por um
-:1.uando Freud havia sido nomeado Privatdozent, e representava dos membros, de um texto escolhido, um caso clínico ou uma
grande prestígio para um médico na sociedade vienense da épo questão teórica, após o que abria;se a discussão. Nesse início, o
ca. E, no outono deste ano, um pequeno grupo de médicos mais grupo, que crescia rapidamente, era marcado pela hetero;
jovens passa a reunir-se em torno de Freud, tendo em comum 0 geneidade, contando com a participação de médicos, educadores
intere�se �ela psicanálise. As reuniões aconteciam nas quartas e escritores que partilhavam uma insatisfação frente à psiquia12
.
feiras a noite, em sua casa, e os encontros foram autodenominados tria, à educação e às ciências humanas em geral. Roudinesco
"noitadas psicológicas das quartas-feiras", "sessões das noites de ressalta que esses homens traziam em si o reflexo do mundo con
quarta-feira"9 e "Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras", de- flituado em que viviam - marcado pela influência do darwinismo
.
nommação que se tornou a mais conhecida 10. Era o início da tri- no pensamento científico, pela filosofia de Nietzsche no pensa
lha que faria de Berggasse 19 o endereço mais famoso de Viena. mento ético e moral, pela nosologia de Kraepelin e pelas idéias de
Os encontros tiveram início a partir de um convite pesso Charcot na psiquiatria, pelos movimentos culturais e literários de
al de Freud, que enviou cartões-postais a quatro médicos vanguarda louvando o século da eletricidade, pelo socialismo
vienenses - Max Kahane, Rudolf Reitler, Alfred Adler e na esfera política e, enfim, pela própria psicanálise - e mostra
Wilhelm Stekel. Em 1901, Kahane, que junto a Reitler assistia vam;se dispostos a discutir e expor seus próprios conflitos.
à� conferências de Freud na Universidade, sugere a Stekel, que Em 1906, Otto Rank foi contratado como secretário da So
vmha sofrendo de uma impotência psíquica, que procurasse 0 ciedade Psicológica das Quartas-Feiras. O grupo contava então com
auxílio de Freud. Stekel submeteu-se a uma breve análise com membros, e Rank passou a redigir detalhadamente as atas das
Freud, que se mostrou bem sucedida. O próprio Stekel sugeriu sessões. As discussões tinham três características principais:
1) obrigatoriedade da fala - toda pessoa presente às sessões era obri
(�) Freud (1914, p.33) utílizou a expressão splendid isolation para referir-se ao período de solidão intelectual
,
vw1da entre o afastamento de Breuer e o início do reconhecimento obtido pelo movimento psicanalítico. a participar das discussões; 2) auto-exposição científica - havia
Jo?:s 0989, P, 22) comenta que a expressão, usada por Lorde Salisbury para designar a política externa
_
bntamca na epoca, foi sugerida por Fliess como forma de consolo para a solidão de Freud,
um incentivo para expor no grupo, com :fins de ilustração e u,w,..,.,...
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DANIEL KUPERMANN
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
os próprios problemas, fracassos, questões sexuais, enfim, "dis Esta passagem não teria maior relevância não fosse o fato de
túrbios neuróticos"13; 3 )a palavra final e decisiva era de Freud14. que, neste mesmo dia, uma importante notícia era veiculada por
Gay nos oferece alguns exemplos de auto-exposição cien Freud na "praça" psicanalítica: a dissolução, seguida de imedia
tífica freqüentes nos encontros. Rudolf von Urbantschitsch, ta reorganização, da Sociedade Psicológica das Quartas-Ft .,.as.
médico diretor de um sanatório em Viena, expôs, durante uma A notícia da dissolução do grupo foi comunicada 1.it ·r
reunião em 1908, trechos de um diário sobre o seu desenvolvi Freud aos membros em uma carta-circular datada de Rom:
mento sexual até o casamento. Nestes, confessava a masturbação do mesmo 22 de setembro de 1907. O objetivo assumido p01
precoce junto a tendências sadomasoquistas. O comentário de Freud para a dissolução/reconstituição da Sociedade era o de
Freud ao encerrar o encontro foi de que Urbantschitsch havia restabelecer a "íiberdade pessoal" de cada membro, possibili
oferecido uma espécie de "presente" ao grupo15• tando seu afastamento da Sociedade, sem que as relações com
Quanto ao fato de a palavra final ser sempre proferida por os outros membros fossem prejudicadas. Freud pretendia con
Freud, é ilustrativo do lugar que ocupava na dinâmica trans siderar as "mudanças naturais" nas relações humanas, supon
ferencial do grupo. Max Graf, que acabaria se afastando das do que, para alguns membros do grupo, "pertencer a ele já
reuniões, comenta que a atmosfera era a da fundação de uma não significa o que significou anos atrás", em função da perda
religião. A metáfora religiosa reaparece em Stekel, que ao se do interesse pelo assunto, da falta de tempo disponível, ou
referir a esses primeiros anos iria reconhecer-se como "o após mesmo porque "relações pessoais ameaçam mantê-lo afasta
tolo de Freud, que era meu Cristo!"16• do"18. Aqueles que quisessem renovar sua participação no gru
A história da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras é po deveriam notificar Rank até 1 º de outubro. A carta-circu
interrompida em setembro de 1907. Freud foi a Roma, de fé lar termina com a proposta de que o expediente da dissolu
rias, em uma viagem solitária. Em 22 de setembro escreve uma ção/reorganização fosse repetido a cada três anos.
carta para a família, citada por Jones como exemplo típico de Em associação com a carta familiar, o ato de Freud -sem
suas cartas de viagem. Sua narrativa é a da descrição de um dúvida a grande notícia do dia no universo psicanalítico -pre-
"
observador, tanto no que se refere aos hábitos e à paisagem ex tendia o valor de um ac1'dente , com mortos e L1en'dos" . Neste
li "
terior de Roma, quanto em relação aos seus próprios sentimen sentido, o fôlego para com a "maratona" do movimento psicana
tos. Realidade externa e realidade psíquica se influenciam mu lítico pareda já faltar a Freud, que com a notícia estaria "alivian
tuamente, chegando mesmo à fusão, no universo da escrita de do uma tensao quase insuportável" no grupo. O alívio viria com o
Freud. Em uma passagem, Freud relata: afastamento de alguns participantes com os quais Freud estava
De tempos em tempos, gritos horrfveis são ouvidos no em conflito. Através deste dispositivo, Freud voltaria a se sentir
meio da multidão, em geral quieta e bem distinta; esse "dono da situação", porém de uma forma bastante singular.
barulho é causado por cerca de meia dúzia de jornaleiros Gay aponta que as reuniões foram adquirindo, com o tem
que, sem fôlego como o arauto da maratona, se atiram po, um caráter competitivo entre os participantes, criando um
na praça com as edições da noite, ACHANDO QUE COMAS clima de hostilidade. Disputavam-se posições dentro do grupo,
NOTÍOAS ESTAO A11VIANIX) UMA TE.\/SÃO QUASE WSUPOR bem como os direitos sobre determinadas idéias. Em 1908, quan
TÁVEL. Quando t€m um acidente a oferecer, com mortos do o grupo manteve discussões sobre mudanças no seu funcio
ou feridos, realmente se sentem donos da situação 17• namento, foi proposta a abolição do "comunismo intelectual"
-a partir de então, cada idéia passaria a ser identificada como
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TRANSFERÍtNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
propriedade privada de seu criador-preocupação que come nheceu o grupo em 1908 e também não se impressionou. Em
ça a distanciar-se da concepção psicanalítica de uma produção 1911, Freud escreveu a Abraham: "Todos os meus vienenses
23
de saber dada a partir da interação de inconsciente a inconsci não vão chegar a nada, exceto o pequeno Rank" •
ente. Para Gay, o que sucedia ao grupo eram os efeitos da pró Portanto, com a dissolução/reconstituição da Sociedade
pria investigação psicanalítica, que estava "cobrando seus tri Psicológica das Quartas-Feiras, e a subseqüente criação da So
butos" e gerando a agressividade difusa. Afinal, recorda, ne ciedade Psicanalítica de Viena, em 15 de abril de 1908, Freud
nhum dos participantes que "invadiam atrevidamente e sem estava dando início a uma desejada internacionalização da psi
tato os mais íntimos santuários próprios e de terceiros" havia canálise, ensaiando o primeiro passo em direção a um movi
sido analisado, exceto Stekel, que submeteu-se a uma breve e mento de descentramento transferencial que teria na criação da
"incompleta" experiência analítica, e o próprio Freud em sua IPA a sua efetivação.
auto-análise, por definição irreprodutível 19• Assim, ao analisar
os motivos da dissolução da Sociedade, Gay segue o argumento
que se tornou tradicional na História da Psicanálise sempre que A "TRANSFERÊNCIA" DAS TRANSFERÊNCIAS
surgem problemas no funcionamento institucional e nas rela
ções interpessoais: análise insuficiente da parte de alguns. A criação da Sociedade Psicanalítica de Viena veio não
Ernest Jones20 considera que a carta-circular de dissolu apenas estabelecer um estatuto mais formui ao grupo que se
ção da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras é um exem reunia em torno de Freud, mas também lançar as bases para a
plo da "delicadeza de sentimentos" e da "consideração" de internacionalização do movimento psicanalítico. Em 26 de abril
Freud com relação a seus discípulos. Da mesma maneira, Gay 21 de 1908, apenas onze dias após a sua criação, acontecia o pri
considera a dissolução um "expediente polido, nada mais". Para meiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg, com
isso, tomam o conteúdo manifesto da carta-circular de Freud a presença de quarenta e dois participantes, representando seis
em sua total literalidade, "nada mais", atitude raramente as países -Áustria, Inglaterra, Alemanha, Hungria, Suíça e Es
sumida, principalmente no que se refere à análise dos movi tados Unidos24• A nova denominação-Sociedade Psicanalíti
mentos de dissensão. No extremo oposto, Phy llis Grosskurth22 ca de Viena-aponta para duas importantes transformações: a
considera que Freud - para quem o grupo não era mais do afirmação da psicanálise enquanto disciplina autônoma por re
que uma tábua de ressonância para as próprias idéias - im ferência à psicologia; e a localização nacional desta Sociedade
põe a dissolução incomodado pela "desordem democrática" Psicanalítica-Viena d'Áustria-o que indica a possibilidade
que passou a reger seu funcionamento. (e o desejo) da criação de outras sociedades em outros países,
Fato é que Freud não estava satisfeito com o grupo que afirmando o caráter universal da psicanálise.
se reunia a seu redor. Binswanger conta que, após uma sessão A partir de 1907, Freud iniciara os contatos com os es
das quartas-feiras em 1907, Freud comentou desencantado: trangeiros que deram um novo rumo ao movimento psicanalíti
"então, agora o senhor viu a turma!". A impressão que o gru co. Neste ano, recebeu três visitantes de Zurique, ligados à Clí
po vienense causava aos estrangeiros que iam visitá-lo tam nica de Burgholzli, instituição de vanguarda nas pesquisas so
bém não era animadora. Em dezembro de 1907, por ocasião bre doenças mentais, internacionalmente conhecida, dirigida
de sua primeira visita à Sociedade, Karl Abraham criticou o por Eugen Bleuler. Seus visitantes foram Max Eitingon, Ludwig
grupo de modo irônico em carta a Max Eitingon. Jones co- Binswanger e Carl Jung.
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
Eitingon procurou Freud em busca de orientação para um O primeiro encontro de Ernest Jones com Freud ocor
caso grave do qual vinha tratando. Permaneceu em Viena por cer reu no Congresso de Salzburg, em 1908. Jones foi responsável
ca de duas semanas, assistiu às reuniões das quartas-feiras e termi pelo início da difusão da psicanálise em língua inglesa, fun
nou por fazer, ele próprio, algumas sessões psicanalíticas. Estas se dando a Sociedade Psicanalítica de Londres, em 1913.
deram durante três ou quatro noites, em passeios pela cidade, nos Idealizador do "Comitê Secreto", correspondente de Freud
quais Freud o analisava enquanto andavam. Jones classificou a durante toda a vida, foi o primeiro grande historiador da psi
análise de Eitingon como a primeira análise didática da história do canálise, autor de A Vida e a Obra de Sigmund Freud.
movimento psicanalítica25 *. Estabeleceu-se em Berlim, onde desem Esses encontros e esses homens inauguraram um impor
penhou um papel decisivo na fundação da "Policlínica", e na estru tante capítulo na história do movimento psicanalítico*.
turação do processo de formação psicanalítica adotado pela IPA
Binswanger acompanhou Jung a uma reunião das quar A criaçao da IPA
tas-feiras, iniciando uma relação com Freud marcada pelo res O 2 º Congresso de Psicanálise, realizado na primavera
peito e por sua independência frente à política do movimento de 1910, em Nuremberg, foi um fórum marcado pela utopia,
psicanalítico. Quanto a Jung, mantinha uma correspondência com grandes planos para o futuro e esperança de um destino
com Freud desde o ano anterior, tendo seu primeiro encontro florido para a psicanálise. Freud apresentou um trabalho, As
com o "professor" em fevereiro de 1907. Devido à importância Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica (191O), carac
fundamental da relação entre Jung e Freud para os destinos do terizado por um otimismo nunca mais encontrado em sua obra.
movimento psicanalítico, analisamos adiante, de forma mais Previa o aumento do poder terapêutico da psicanálise decor
detalhada, as circunstâncias desse relacionamento. rente do ganhei de autoridade e reconhecimento social, che
Em dezembro foi a vez de Karl Abraham. Trabalhara por gando a sugerir a erradicação da neurose na sociedade como
três anos na Clínica Burgholzli, mas, por falta de perspectivas efeito profilático da psicanálise. Paralelamente, amadurecia a
em Zurique, havia decidido estabelecer-se em Berlim para pra idéia de uma instância internacional centralizadora e regula
ticar a psicanálise. Enviara seus trabalhos a Freud, que o convi dora das atividades psicanalíticas, o meio para atingir a utopia
dou para um encontro em Viena. Desse encontro teve início de uma psicanálise difundida e influente mundialmente. Cou
uma sólida amizade, que durou até a morte de Abraham. Em be a Ferenczi elaborar e propor, durante o Congresso, o proje
1908, fundou a Sociedade Psicanalítica de Berlim, e foi um dos to da Associação Psicanalítica Internacional - a IPA.
analistas de maior destaque da primeira geração. Se por um lado a proposta apresentada por Ferenczi pos
Sándor Ferenczi visitou Freud em fevereiro de 1908. Ra sui um tom utópico, é também bastante pragmática e crua no
pidamente tornaram-se íntimos. Ferenczi submeteu-se a uma
análise com Freud que veio a ser paradigmática dos problemas (*) A dissolução, seguida de imediata reconstituição, da Sociedade Psicanalítica das Quartas-Feiras, foi
interpretada como uma tentativa de aliviar "tensões" no grupo. Como fontes destas tensões, foram
encontrados nas análises didáticas. Em 1913, fundou a Socie apontados os conflitos surgidos em seu interior, em função das mudanças naturais nas relações huma
nas, e o próprio descontentamento de Freud com os vienenses. Porém ! para aprofundar a compreensão
dade Psicanalítica Húngara. Autor de uma obra original e polê dos rumos tomados pelo movimento psicanalítico, considerando o lugar de Freud em sua determinação,
mica, foi um explorador incansável dos limites da psicanálise. cabe indagar sobre a relação de Freud com o próprio lugar por ele assumido frente ao movimento, bem
como sobre a sua concepção das modalidades de poder implicadas nas formas de organização social da
psicanâlise. Encontramos um interessante ensaio neste sentido em Roudinesco (1989), que, através do
(*) Roudinesco Jembr quc Ste� l foi o primeiro "doente" de Freud a se tornar conceito de polítka da psicanálise 1 aliado a uma ({psicologia do líder n tendo Freud como objeto ) busca
11
�_ . _ � psicanalista, ocupando
esse 1mportante mgar , ,nmbohco
',
1 e fazendo o testemunho antecipado do que seria no malogro crônico da determinar os conflitos (e as tensões) em torno dos quais o movimento psicanalítico se institucionalizai
transmissão e da formação didática" nas instituições psicanalíticas (1989, p. 97), Provavelmen apontando a fórmula do exercício do poder em Freud: líder descentrado e "mestre sem mando", Con
te devido
ao destmo de Stekel no movimento psicanalítico, Jones desconsidera este fato, vém remeter o leitor a essa análise.
48 49
TRANSFERÊ:NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
A Associação deveria ser uma família onde o pai não detivesse Por um lado, é explícito o desconforto de Freud com
uma autoridade dogmática e onde reinasse uma atmosfera de seu lugar transferencial. Alvo da ambivalência proveniente
confiança mútua, com o reconhecimento das capacidades de das várias facções, ora comparado a Colombo e Darwin, ora
cada um, o controle da inveja e a divisão do trabalho. Referin taxado de PGP ("paralisia geral progressiva"), Freud acredi
do-se às fases de desenvolvimento libidinal, Ferenczi aponta a tava tratar-se de uma desvantagem centralizar as atividades
substituição da fase "auto-erótica" vivida até então nos grupos psicanalíticas em Viena. Por outro lado, confessa: "me opri
psicanalíticos, quando a satisfação era obtida pela excitação de mia a idéia de que o dever de ser um líder tivesse recaído em
zonas erógenas psíquicas (futilidade, ambição), pela fase do mim tão tarde na vida. Sentia, porém, que deveria haver al
"amor objetal", quando a busca de satisfação recai sobre o pró guém na liderança". A solução proposta é a de que a sua
prio objeto do estudo psicanalítico31• Ironicamente, o mesmo "posição" deveria ser "transferida" (übertragen) para um ho
Ferenczi irá tornar-se, em um futuro breve, um dos maiores crí mem mais jovem: Carl Jung34•
ticos dos destin�2 da IPA e das práticas de formação psicanalíti A questão judaica aparece de forma mais velada. Uma car
ca ali exercidas.!Marginalizado, morrerá maldito, em função das ta de Freud a Abraham, escrita logo após o 1º Congresso de Psi
, inovações teórfto-técnicas por ele introduzidas e, em termos canálise, em 1908, é reveladora da importância atribuída a Jung
político-institucionais, por suas denúncias da mediocrização na. para o futuro da psicanálise. Nela, Freud escreve: "A adesão dele
transmissão da psicanálise produzida tanto pela estrutura hie (Jung), portanto, é sobremodo valiosa. Eu já estava quase dizen
rárquica das associações quanto pela qualidade das análises que do que foi apenas o surgimento dele na cena que removeu da
tinham lugar na formação psicanalítica. f psicanálise o perigo de se tornar uma questão nacional judaica"35•
A versão freudiana para a criaçãÕ da IPA encontrada Em sua História, Freud sugere que as acusações de que a
em A História do Movimento Psicanalítico aponta, como vimos teoria da etiologia sexual das neuroses só poderia ter surgido na
no primeiro capítulo, três finalidades gerais: "organizar o mo "atmosfera de sensualidade e imoralidades" de Viena são um
vimento psicanalítico, transferir o seu centro para Zurique, e "substitutivo eufemístico de outra acusação que ninguém ousa
dotá-lo de um chefe que cuidasse do seu futuro"32• Organizar falar abertamente"36 - a origem judaica de Freud. Nesse senti
o movimento psicanalítico significava proteger a psicanálise do, Jung - filho de pastor protestante e psiquiatra promissor
dos abusos da popularidade e cuidar de sua transmissão e en - na liderança do movimento, afirmaria o caráter universal e
sino. Quanto a Zurique e ao papel de Jung na Associação, é cosmopolita da psicanálise.
preciso ver mais detidamente. Assim, a "opressão" vivida por Freud frente ao dever de
Que Zurique fosse o centro mais indicado para sede da ser um líder, aliada à idéia da necessidade de liderança, e a
Associação é razoável, principalmente considerando a impor solução encontrada no descentramento para Zurique, colo
tância da Clínica de Burgholzli para a difusão da psicanálise. cam-se como as figuras mais ilustrativas da fórmula do exercí
Mas Freud aponta outros motivos de compreensão mais sutil cio do poder em Freud: líder descentrado e mestre sem man
para "retirar para o segundo plano tanto a mim (Freud) como do37. Além disso, sem dificuldades em reconhecer o aspecto
a cidade onde nasceu a psicanálise"33• Esses motivos, que apa ambivalente da transferência, Freud pretendia resolver a trans
recem emaranhados, se referem ao lugar transferencial' ocu ferência maciça para consigo "transferindo" a liderança do
pado por Freud no movimento psicanalítico, às suas relações movimento psicanalítico - e as transferências que a acompa
com esse lugar e à questão judaica. nham - para Jung. Como se dissesse: "a partir de agora, não
52 53
DANIEL KUPERMANN TRANSFERftNCIAS CRUZADAS
transfiram mais a mim. Transfiram a Jung". Esta "transferên doxia, seja ela religiosa, política ou psicanalítica. A diferen
cia" das transferências, que marca a criação da IPA, irá mos ça é que aqui Freud reivindica a palavra e o saber sobre a sua
trar-se logo fracassada, exigindo de Freud um movimento de própria criação. Com a sua morte, a disputa pela ortodoxia
retomo, que analisaremos a seguir. Mas, apesar do fracasso, a no campo psicanalítico será pelo status de herdeiro legítimo
tentativa de controle (indicando um certo temor) das transfe do legado (também transferencial) freudiano.
rências no campo psicanalítico é uma tendência que nunca O movimento freudiano de retomo a Freud será marca
abandonou de todo a história da psicanálise. É a marca da do por dois momentos: a formação de um Comitê Secreto ao
padronização da formação psicanalítica que teve lugar nos anos redor de Freud, em 1912, e o lançamento de A História do
20, e a questão central que culminou no rompimento de Lacan Movimento Psicanalítico - a "bomba" - em 1914. Conside
com a IPA e na criação de sua própria escola. rando porém a importância do lugar de Jung - e de seu rom
Com a criação da IPA, que jamais poderia dissolver-se, pimento com Freud - tanto para a formação do Comitê quan
a psicanálise deixava de ser um movimento de vanguarda para to para a elaboração da História, convém analisar algumas ca
tornar-se uma instituição, na concepção de Roudinesco38• Ou racterísticas da relação entre Freud e Jung.
tros autores apontam essa transformação em um momento pos
terior, quando da padronização e codificação em normas rígidas A Recusa da Amizade
das formas de transmissão da psicanálise39• Ao contrário, preten A análise do relacionamento estabelecido entre Freud e
demos que as bases sobre as quais a psicanálise se institucionaliza Jung nos remete à questão da amizade em Freud, ou, melhor
estão dadas desde A Interpretação de Sonhos, sendo a criação da dizendo, da sua recusa. Peter Gay e Phyllis Grosskurth dedi
IPA uma etapa desse processo. Para Freud, o Congresso de cam-se ao tema da amizade em Freud para lançar luz sobre a
Nuremberg significou o fim da infância do movimento psicanalí relação estabelecida com Jung e, no caso de Grosskurth, tam
tico. Em carta a Ferenczi, ele escreve: "Com o Reichstag de bém com os membros do Comitê.
Nuremberg encerra-se a infância de nosso movimento (... ) Es Gay considera que o envolvimento de Freud com Jung
pero agora por um rico e promissor período de juventude"40• mostra-se uma "reedição de antigas e decisivas amizades" 42• O
"fantasma" de Fliess43 , que aparece na correspondência dos
dois, confirmaria esta leitura. O processo repetido por Freud
FREUD E O RETORNO A FREUD em suas amizades seria o de investir seus afetos de forma rápi
da e precipitada, avançando até um nível de sinceridade qua
A tentativa de solucionar os impasses do movimento se irrestrito e terminando com um rompimento irreparável.
psicanalítico transferindo seu centro e sua liderança para Jung São os casos de Fliess, Jung, e também, de modo menos inten
mostrou-se logo desacertada, o que exigiu de Freud um mo so, Breuer, Stekel e Adler.
vimento transferencial de retorno à sua posição de mestre Phyllis Grosskurth ressalta a importância da correspon
fundador, aquele "que sabe o que é a psicanálise" 41, para re dência nas amizades de Freud, apontando a evidência de que,
organizar o campo psicanalítico. A expressão retorno a Freud para Freud, as cartas eram mais importantes que os encontros
remete propositalmente ao projeto de Lacan. Pretende-se pessoais. A autora sugere como explicação o fato de as cartas
assim ressaltar o caráter transferencial decisivo presente em serem um meio de acesso à alma sem os inconvenientes da
todo movimento com pretensões de "retorno" a uma orto- presença do outro, e sem a possibilidade de ver interrompida
54 55
TRANSFERl,;NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
Seus sentimentos por Fliess e Silberstein foram largamente
TRANSFERIDOS para outros homens como Jung e os mem
sua (de Freud) seqüência de pensamento. Propomos portanto
que, através das cartas, Freud se aproxima da situação analíti bros do Comitê. Seus antigos amigos estavam agora
ca - acesso à "alma", associação livre. Se, através da corres apagados da versão de Freud de sua história pessoal46 •
pondência com Fliess, Freud pôde fazer sua auto-análise, co
locando Fliess na posição do analista, um dos motivos do rom A versão de Gay é menos radical. Nela, é ressaltado o fato
pimento de Jung foi a não-aceitação deste de pontuações e de que Freud soube manter também longas e imperturbadas
interpretações por parte de Freud em suas cartas. amizades, e não apenas com pessoas que não o ameaçavam no
Ao analisar as relações de Freud com seu amigo de juven movimento psicanalítico. Gay cita os exemplos de Paul Fedem,
tude, Eduard Silberstein, e depois com Fliess, Grosskurth aponta Ernest Jones, Binswanger e o pastor Pfister. Mesmo assim, a
a ambivalência vivida por Freud. Por um lado, inveja do sucesso questão que merece ser aqui colocada é se estamos tratando
mesmo de amizade, ou se seria melhor falar em transferência.
�aterial dos dois amigos e, por outro, tendência à idealização É o próprio Freud quem, numa das raras alusões ao tema,
mtensa. Quanto a Fliess, a intensidade com a qual Freud iniciou
o relacionamento é entendida como um reflexo de seu desaponta propõe a distinção. Trata-se da passagem de Análise Terminável
mento com a realidade do casamento (Freud casou-se em 1886, e Interminável (1937) em que comenta a crítica feita por um
e iniciou a correspondência com Fliess em 1887), e um indica analisando ao seu analista de ter falhado em lhe proporcionar
dor da necessidade de procurar um amigo idealizado que exis uma análise completa, por não ter dado atenção à transferência
te apenas enquanto projeção de suas próprias necessidades. O negativa - sabemos hoje que o analisando em questão é
amigo ideal para Freud, diz Grosskurth44, "tem que ser uma Ferenczi, e o analista, Freud (retomaremos este caso adiante).
extensão de si mesmo". Nesse nível de idealização narcísica, Dentre os argumentos utilizados por Freud em defesa própria,
os amores e as amizades só podem acabar em desencanto. um, sobretudo, nos interessa. Diz Freud:
O desencanto com Fliess se dá em dois momentos: o de Ademais (...) nem toda boa relação entre um analista e
sastre provocado na operação de Emma Eckstein, que Freud só seu paciente, durante e após a análise, devia ser encarada
pode aceitar culpando-se também; e a "traição" de Freud ao como transferência; havia também relações amistosas que
revelar, através de um paciente, a teoria da bissexualidade de se baseavam na realidade e que provavam ser viáveis47•
Fliess, que acabou incorporada por Otto Weininger em Sexo e
Caráter. Segundo Grosskurth, a culpa da traição a Fliess foi pro Freud diferencia assim amizade de transferência. Enquanto
jetada sobre o ex-amigo como a "paranóia de Fliess", e em suas a primeira está baseada na realidade, a segunda, considerando
relações futuras Freud irá suspeitar a traição de todo aquele com toda a sua obra, está baseada em outros princípios, sendo o seu
quem estabelecer um contato mais íntimo. Somente com Anna caráter de repetição o mais significativo para essa problemática.
filha solteira e por ele analisada, encontraria segurança45• Portanto, pensar uma amizade como "reedição de antigas e de
As cartas de Silberstein foram destruídas por Freud. Em cisivas amizades", ou uma amizade baseada na idealização nar
dezembro de 1928, pouco depois da morte de Fliess, sua esposa císica e, portanto, na negação da diferença, parece um equívo
escreveu a Freud pedindo a parte da correspondência escrita co. Melhor seria falar em transferência.
pelo marido. Freud respondeu que precisaria procurar, mas dis A análise de trabalhos que tratam da relação entre Freud
se nunca ter encontrado. Levanta-se a possibilidade de que fo e Jung48 é ilustrativa do jogo transferencial/contratransferencial
ram destruídas após o Natal. Grosskurth conclui: 57
56
DANIEL KUPERMANN TRANSFER�NCIAS CRUZADAS
por eles estabelecido, cuja marca maior foi a recusa da amiza Assim, alguns meses após o encontro com Freud, Jung jus
de, entendendo por amizade a "recusa do servir", a igualdade tificava por um "complexo de autopreservação"(o termo foi su
na diferença49 • Freud procurava em Jung um aluno brilhante gerido por Freud) sua demora em escrever. Confessava a admira
que perpetuasse a sua obra, e não um brilhante chefe de esco ção ilimitada pelo"professor", como homem e como pesquisador,
la responsável por uma obra singular. Jung buscava em Freud e atribuía seu"complexo" a uma veneração por Freud que se apro
um pai compreensivo, não um mestre preocupado em encon ximava do embevecimento"religioso":"Se bem que a coisa real
trar um sucessor que preservasse seu legado, tampouco um mente não me aflija", escreve Jung, "ainda a considero repulsiva
igual, mantendo -se na posição impossível de aluno indepen e ridícula devido a seu inegável fundo erótico". Refere-se então a
dente e, ao mesmo tempo, dócil. um ataque homossexual sofrido na infância por um homem a
Desde o início da correspondência, em abril de 1906, as quem também adorara, e conclui: "Tenho portanto medo da sua
cartas já estavam "marcadas". Em sua primeira carta a Jung, confiança" (49J, p. _137, 28/10/1907). Na carta seguinte, !�ng
como indica Roustang50, Freud já o coloca no lugar de "aluno relata estar sofrendo todas as agonias de um paciente em anahse,
útil para justificar as teses já estabelecidas pelo mestre". O pri temendo as conseqüências de sua confissão, e analisa um sonho
meiro encontro entre os dois ocorreu apenas a 27 de fevereiro que havia tido com Freud. Após uma resposta presumivelmente
de 1907. O encanto foi mútuo, e falaram durante treze horas acolhedora de Freud - a carta foi perdida - Jung escreve:
praticamente ininterruptas51• Jung, por muito tempo, encarou "(...) minha velha religiosidade havia encontrado no senhor
o encontro com Freud como o acontecimento mais importante um fator compensatório( ...)"(51J, p. 139, 08/11/1907).
de sua vida. Freud, por sua vez, tinha encontrado seu "filho e A resposta de Freud é o mais forte indício da presença do
herdeiro", e considerava Jung o "Josué destinado a explorar a fantasma de um rompimento à la Fliess na sua relação com Jung.
terra prometida da psiquiatria que(ele) Freud, como Moisés, só Freud escreve:"( ...) uma transferência de base religiosa... seria
teve a permissão de ver à distância"52 (cf. 125F) *. absolutamente funesta e só poderia terminar em apostasia, gra
Mas é também desde cedo que os impasses surgiram. Se ças à universal tendência humana de �e _ater a s�cessiv�s
na esfera teórica Jung sempre se mostrou reticente quanto à reimpressões dos clichês que trazemos no mt1mo. Farei o p�ss1-
aceitação da teoria da sexualidade e do conceito de libido sexu vel para lhe mostrar que não estou talhado para ser um obJeto
al53, na esfera do relacionamento pessoal, refletida na corres de adoração"(52F, p. 141, 15/11/1907).
pondência, os impasses logo aparecem. Freud responde às car .
Roustang atribui a uma outra carta, escnta meses mais
tas sempre de imediato, enquanto Jung é irregular, levando às tarde, a chave para o entendimento do tom empregado por Freud
vezes vários dias para responder, o que para Freud é uma prova - "funesta", "apostasia", "reimpressões dos clichês". Ao con
de resistência54• De fato, Jung se sente pressionado e reticente cluir um relato sobre a diferença entre a paranóia e a demência
em responder às demandas transferenciais de Freud. Porém, os precoce, Freud escreve: "Meu ex-amigo Flies� �esenvolv_eu uma
dois homens se recusam a enxergar os impasses - tanto teóri paranóia horrível depois de se livrar da afe1çao por m1m, que
cos quanto afetivos. As cartas de Jung estão repletas de era sem dúvida considerável. Devo essa idéia a ele(...)"(70F, P·
denegações; as de Freud, de esperança55• 163, 17/2/1908). O clichê que Jung corre o risco de reimprimi�
portanto, é o de Fliess, "que trabalha na paranóia e que esta
ligado à ruptura"56• No dia seguinte, Freud escreve novam,�nte,
(*) As referências à correspondência entre Freud e Jung virão com o número da carta e inicial do autor, acres
cidas da data em que foi escrita e número da página, quando julgarmos pertinente. A fonte utilizada foi Freud,
S. &Jung, C.G. Freud/Jung- Correspondência Completa, Imago, Rio de Janeiro, 1976.
como post-scriptum à carta anterior, na qual tratou Jung por caro
58 59
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
amigo" pela primeira vez. A mensagem é direta: "Não se assus simo aniversário da Universidade Clark. Freud entusiasmou-se com
te: prometo, depois dessa, uma longa pausa" (71F). a viagem à América e chamou Ferenczi para acompanhá-los*.
Jung parece compreender bem a ameaça embutida na alu- Dois eventos ocorridos nesta viagem marcam o relaciona
são a Fliess, e reage: mento de Freud e Jung: No dia anterior ao embarque, em Bremen,
durante o almoço, Jung dissertava insistentemente sobre acha
Agradeço-lhe do fundo do coração essa prova de confian dos pré-históricos que estavam sendo desenterrados no norte da
ça. A imerecida honra de sua amizade é um dos pontos Alemanha. Freud interpretou o assunto, bem como a insistência
altos de minha vida que não consigo expressar com pala de Jung, como desejo de morte contra ele, Freud, e desmaiou •
57
vras. A referência a Fliess - decerto não acidental- e Grosskurth58 conta que após o primeiro encontro com Jung, Freud
seu relacionamento com ele impelem-me a solicitar que teve um sonho de angústia no qual Jung iria "substituí-lo".
me permita desfrutar de sua amizade noutros termos, não O segundo episódio, conta Jung, teria acontecido duran
como se fosse uma amizade entre iguais, mas sim entre te a travessia do Atlântico. Tinham o hábito de interpretar os
pai e filho. Essa distância me parece adequada e natural sonhos uns dos outros. Um sonho de Freud foi por ele interpre
(...) haveria de prevenir mal-entendidos e capacitar duas tado até onde pôde, sendo que, para prosseguir, seria preciso
pessoas teimosas a existir lado a lado num relacionamen entrar em maiores detalhes da vida íntima de Freud. Freud ne
to fácil e livre de tensões (72], p. 166, 20/2/1908). gou-se a revelar sua intimidade, objetando que ele próprio não
59
A transcrição desse longo diálogo postal vem ilustrar o poderia ser analisado. Isto poria "sua autoridade em risco" •
impasse criado na relação: Jung transfere com altíssimo grau de Retrospectivamente, Jung retoma esse episódio numa car
idealização (religiosamente) a Freud no plano afetivo, mas preten ta que iria desencadear o processo de ruptura pessoal com Freud.
dendo sustentar as diferenças no plano teórico. Freud transfere a Em dezembro de 1912, escreve: "Esta carta é uma tentativa
Jung a desilusão vivida com Fliess, incapaz de enxergá-lo sem as atrevida de acostumá-lo ao meu estilo. Portanto, cuidado!" O
lentes narcísicas que fazem de Jung o herdeiro de sua obra. Jung, ao novo estilo inaugurado por Jung é definido mais adiante:
perceber o risco da associação com Fliess, tenta escapar da armadi A nossa análise, o senhor deve lembrar-se, chegou ao
lha a que ambos estão submetidos propondo substituir uma "ami fim com a observação feita pelo senhor de que "não po
zade entre iguais" por uma entre pai e filho. Ora, Jung parecia ter deria submeter-se a análise SEM PERDER A SUA AUTORI
elementos suficientes para avaliar a relação entre Freud e Fliess DADE". Essas palavras estão gravadas na minha memó
não como amizade entre iguais, mas como um confronto dual cujo ria como um símbolo de tudo o que acontecer (...)
rompimento culminou em paranóia. Assim, se tinha razões de so Estou lhe escrevendo agora como escreveria a um ami
bra para evitar uma reedição desse tipo, acaba, no entanto, optan
go - este é o nosso estilo ... considere estas afirmações
do pelo modelo pai-filho. Dificilmente em outra situação um psica
como um ESFORÇO PARA SER HONESTO e não aplique o
nalista avaliaria o relacionamento entre pai e filho como "fácil e
depreciativo critério vienense de luta egoísta pelo poder
livre de tensões". Jung queria uma distância "adequada e natural",
ou Deus sabe que outras insinuações do mundo do com
mas, sem conseguir enxergar além de sua posição filial, não conce
plexo paterno (330},p.595,3/12/1912).
be a possibilidade real de uma amizade entre iguais com Freud.
Em 1909, Freud e Jung são convidados por Stanley Hall para
(*) Curiosamente esta viagem acabou por originar uma das lendas mais difundidas no universo psicanalítico
participar, com uma série de conferências, das comemorações do vigé- francês e, por exte�são1 como de pra-xe 1 também no brasileiro: a parábola da "peste", desenvolvida no capítulo 5.
60 61
TRANSFER1':NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
O Comitê Secreto
miriam entre si, além da função de defesa da "causa", o com
O principal responsável pela criação do Comitê Secreto, promisso de não se afastar dos princípios fundamentais da te
ainda que pelo negativo, foiJung. A idéia deJones em formar um oria psicanalítica sem antes submeter seus pontos de vista aos
grupo de homens de confiança que constituíssem uma "velha membros restantes do grupo62 •
guarda" em torno de Freud foi concebida no auge do atrito e da Em 30 de julho, Jones escreveu a Freud, em Karlsbad,
iminência de uma ruptura nas relações de Freud com Jung. Em expondo o projeto do Comitê. Freud entusiasmou-se, e respon
maio de 1912, um episódio decisivo veio estremecer o relaciona deu imediatamente:
mento: a chamada "atitude de Kreuzlingen"6º. Perplexo com a
dimensão do mal-entendido provocado por um acontecimento O que logo tomou conta da minha imaginação foi sua
menor, Freud começava a perceber que a sua relação com Jung idéia de um conselho secreto (.. .) para cuidar do desen
estava condenada, o que seria confirmado no decorrer do ano. volvimento posterior e defender a causa contra personali
Em julho, Jones e Ferenczi encontraram-se em Viena, e, dentes dades e acidentes quando eu não existir mais. Você diz
do impasse e de sua ameaça para o movimento psicanalítico, uma que foi Ferenczi quem expressou essa idéia, no entanto
vez que Jung era o presidente da IPA, discutiram a situação. poderia ter sido minha em tempos melhores, quando tive
Ferenczi idealizou uma solução protetora para a "causa" esperanças de que Jung agregasse ao seu redor um círculo
psicanalítica bastante reveladora. Propôs que um pequeno grupo desse tipo, composto pelos líderes autorizados das asso
fosse analisado pessoalmente por Freud, e assim pudesse repre ciações locais. Sinto-me agora penalizado em dizer que
sentar a "teoria pura não-adulterada por complexos pessoais"6 1• esta união deve formar-se independentemente de Jung e
Esses homens de confiança seriam estabelecidos em diferentes dos presidentes eleitos. Ouso afirmar que a vida e a morte
centros onde os iniciantes iriam aprender o ofício. A proposta de me seriam mais fáceis se eu soubesse da existência dessa
Ferenczi revela, in status nascendi e a um só tempo, o que se torna associação para velar por MINHA CRIAÇÃ063 •
ria o paradigma da formação analítica, bem como a origem de seu Freud sugeriu que Abraham e Sachs, além de Rank, que
próprio malogro: o saber psicanalítico só pode ser transmitido a já havia sido contactado por Ferenczi, fossem chamados para
partir da experiência de uma análise pessoal, o que vincula saber compor o Comitê, que teria, portanto, nessa fase inicial, seis
e prática; como conseqüência, está embutida nessa proposta a membros representativos dos mais importantes centros de psi�
idéia de que a transmissão da psicanálise é regulada pela transfe canálise da Europa. Em 25 de maio de 1913, os membros do
rência, e que a transferência (a Freud) seria o melhor instrumen Comitê tiveram sua primeira reunião em Viena. Discutiram uma
to para evitar "adulterações teóricas" com base em complexo: crítica de Ferenczi sobre a teoria da libido deJung, e, ao final da
pessoais. O malogro que se tornaria crônico num futuro próxi reunião, Freud presenteou a cada um com um entalhe grego de
mo, quando da padronização da formação psicanalítica em insti sua coleção de antiguidades, que a seguir foi adaptado a um
tutos, seria a utilização da transferência necessária a toda análise anel de ouro. Freud também usou um anel desses, que tinha a
como instrumento alienante para doutrinação teórica e política. cabeça de Júpiter como entalhe.
Apesar de considerada ideal, a proposta de Ferenczi mos A formação do Comitê Secreto caracteriza assim o primei
trou� se impossível de ser praticada. Como alternativa, Jones ro momento de um movimento de retorno transferencial a Freud.
idealizou o Comitê: uma "Guarda Pretoriana" ao redor de Freud Em sua resposta aJones, Freud admite o fracasso da sua tentativa
formada por um grupo de analistas dignos de confiança. Assu- de "transferir" o centro do movimento psicanalítico. A "esperan-
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'J'R/\NSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
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DAl'-"lEL KUPERMANN rrRAKSFERf,:NCIAS CRUZADAS
No ano seguinte, os membros do Comítê decidem adiar Apesar das articulações do Comitê, Jung continuou a pre
um congresso que teria lugar em Berlim para que pudessem des sidir a IPA após o Congresso de Munique, em setembro de 1913.
frutar de um encontro reservado. O comentário de Grosskurth Divergindo teoricamente e tendo suas relações com Freud rom
indica o poder do Comitê no movimento psicanalítico: pidas, constituía ainda uma ameaça para o movimento. Cogi
tou-se então, no interior do Comitê, a idéia de dissolver a Asso
Todos os membros do Comitê viam sentido nesse arranjo, ciação, com a formação posterior de um novo grupo ao redor de
porque o verdadeiro gerenciamento do movimento Psi Freud, mas a proposta foi considerada arriscada. O melhor seria
canalítico era conduzido de forma privada pelo Co�itê, que Jung renunciasse à presidência e se afastasse definitivamente
e não nos grandes e mais democráticos congressos67• do movimento psicanalítico.
A partir de meados da década de 20, entretanto, o Comi Em outubro, Jung renunciou ao cargo de editor do
tê inicia seu ocaso. A publicação de O Trauma do Nascimento, Jahrbuch*. Escreveu a Freud uma última carta dizendo que sou
em 1924, é o primeiro passo para o rompimento de Rank. No be, através de Maeder, que Freud duvidava da sua bana fides,
mesmo ano, Ferenczi, que junto a Rank publica O Desenvolvi tornando impossível qualquer colaboração futura (357J,p.624),
mento da Psicanálise, começa a ter atritos com o establishment psi mas não fez referência à presidência da Internacional.
canalítico. Com a morte precoce de Abraham, então presidente da Em janeiro de 1914, Freud começou a trabalhar em.A His-.
IPA, em dezembro de 1925, a composição inicial do Comitê fica tória. do.Mavirne:nto Psicanalítico, "um útil repositório para a S.Jil�.
descaracterizada. Ferenczi afasta-se cada vez mais de Freud, en va,'.:, segundo Gay68 • O texto teria as características de um panfleto
quanto Jones persiste liderando a política psicanalítica, e Anna Freud no qual Freud apresentaria a sua versão sobre as dissensões de Adler
aumep.ta gradualmente sua influência. Em 1927, no 10º Congres e Jung, e, principalmente, reivindicaria o saber sobre a psicanálise.
so Internacional de Psicanálise, em Innsbruck, os membros deci O tom bélico e passional empregado por Freud na elaboração da
dem que, com o firme estabelecimento do movimento em escala História fez com que ele a chamasse de "bomba". Era na verdade
internacional, não havia mais necessidade de o Comitê continuar uma declaração de guerra contra Jung, e também Adler. Surpreen
secreto, passando a co�sJJtuir-se pela liderança oficial da Asso dentemente, em 20 de abril de 1914, Jung renunciava à presidên
ciação lnternacionaLAssim, o Comitê deixa de existir justa cia da IPA: "Os mais recentes acontecimentos", escreve Jung, "con
mente quando não é mais necessário, pois, com apur.çcraJizg��o .. venceram-me que as minhas concepções estão em tão acentuado
da IPA e a p�r9nização e instítucionaJização da formação psi contraste com as idéias da maioria dos membros da nossa Asso
canalítica, a'i)foteção da "causa" passaria a ter outras garantias. ciação que não posso mais considerar-me uma pessoa adequada
para ser presidente" (358J,p.625). Ainda assim, em meados de
A "Bomba" julho de 1914, poucos dias antes do início da primeira guerra,
O segundo momento do movimento transferencial de re Freud publicava a sua "bomba". "Forçado a pegar em armas",
torno a Freud será representado pela publicação de A História declarava que a psicanálise vivia tempos de guerra.
do Movimento Psicanalítico, em jµlho de 1914. Se o Comitê vi A guerra na psicanálise era combatida em duas frentes: a
nha recolocar Freud no centro do movimento psicanalítico atra teórica e a psicanalítica propriamente dita. O confronto teórico
vés de uma operação de bastidores, secretamente, a História veio consistia nas críticas dirigidas por Freud às teorias psicológicas
a público declarar, e num tom que não deixa margem a dúvidas, (*) Jahrbuch für Psychoanalytische und Psychopathologische Forschungen, primeiro periódico psicanalítico,
quem detém a última palavra na psicanálise. lançado em 1909.
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DANIEL KCPERMANN
'TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DURA LEX, SED LEX*: O ASSASSINATO DO PAI as massas. Para isso, seria preciso repensar a técnica, bem como
formar analistas suficientes para a tarefa. Anton von Freund, que
O processo de institucionalização da psicanálise compre vinha desenvolvendo o projeto de um instituto de psicanálise, ofe
ende, no esquema proposto por Elisabeth Roudinesco, quatro receu a Freud uma quantia considerável para a sua realização. O
etapas principais: 1) de 1902 a 1906, o reinado da horda selva instituto teria originalmente três funções: psicoterapia para as mas
gem; 2) de 1906 a 1912, assistiu-se à expansão para o exterior, à sas, formação de analistas e pesquisa psicanalítica. Ainda durante
criação das primeiras sociedades de psicanálise e à criação da o congresso, Nunberg sugeriu que, dali em diante, só deveria ser
IPA; 3) de 1912 a 1927, com a formação do Comitê, desenvol autorizado a analisar aquele que fosse previamente analisado78•
veu-se um mecanismo duplo de poder: A IPA dando continui Em 1919, durante a revolução húngara, Ferenczi fun
dade ao seu trabalho unificador em meio às dissensões e à difu dou em Budapeste um primeiro instituto com estas finalida
são crescente da psicanálise, e o Comitê gerindo secretamente des, liquidado meses depois pela contra-revolução.�o.ano
os assuntos do movimento. Organizaram-se numerosos congres s�gJJinte,..J920,Abraham, Eitingon e Simmel fundaram a p;:
sos e foram lançadas novas publicações; e 4)de 1926 a 1939, a liclínica e. o Instüuto Psicanalítico de Berlim, que veio a se
quarta e última etapa. O congresso de Bad Homburg, em 1926, tornar paradigma de todos os institutos psicanalíticos subse
selou a profissionalização do métier com a obrigatoriedade da �: Apesar da proposta inicial idealizada por Freud e
análise didática aos analistas. O Comitê dissolveu-se, e Freud Anton von Freund, Balint nota que, desde Berlim, os institu
perdeu gradualmente a influência até sua morte, em 1939. A tos de psicanálise só tiveram sucesso no que se refere à imple
profissionalização marca, para Roudinesco, o advento da "psi mentação de um sistema de formação, sendo que a psicoterapia
canálise moderna", com suas "sociedades rivais, seus rituais de para as massas e a pesquisa foram relegadas. Cabe aqui uma
formação, sua burocracia, suas filiações transferenciais organi primeira indagação: por que os institutos psicanalíticos
zadas, seu culto aos executivos e aos chefetes etc." 76• supervalorizaram a questão da formação?
Nota-se que, na elaboração de seu esquema, Roudinesco Em 1922, um relatório de Eitingon postulava a análise
privilegia as formas de organização institucional como marcos pessoJ�'�parte do currículo da formação em Berlim. Em
divisores das diferentes etapas. Assim, o marco do advento da 1924, o Instituto de Berlim publicou o primeiro regulamento
psicanálise moderna, última etapa do processo de institucio sobre a formação79• Es.taconsi�ia.emtrês..par.tes: formação teó
nalização da psicanálise durante o seu período freudiano pro rica, trabalho clínico supervisionado (análise de controle), e
priamente dito, foi a padronização e sistematização da formação análise pessoal. O tempo mínimo estipulado para a análise era
analítica. São as razões que levaram a esta padronização e suas de seis meses, dois anos para a análise de controle e dois perío
conseqüências para o campo psicanalítico - tendo a transfe dos de estudo teórico, a formação durando em média três anos.
rência no centro da questão - que analisamos aqui. Esse modelo "tripartido" de formação, que acabou adotado em
Foi no congresso de Budapeste, em 1918, que se cogitou todos os institutos, encontrou forte resistência na época, prin
pela primeira vez da criação de um instituto para a formação de cipalmente de Budapeste e Viena. As divergências incidiam sobre
psicanalistas. Freud77 sugeriu que a psicanálise deveria se preparar dois pontos principais: a duração da análise-da-formação* e a
para, num futuro próximo, atender à demanda de psicoterapia para
(•)1raining analysis. Adotaremos daqui por diante esta tradução por considerá-la mais ampla e adequada
(Jo que análioe didática, por exemplo, expressão demasiadamente vinculada às análises da JPA) à idéia de
(*) A lei é dura, mas é a lei. uma análise feita durante o processo de formação psicanalítica com fins de reconhecimento institucional.
72 73
ÜAKTEL KUPERIVIAKK
TRANSFERÊNCIAS CRCZADAS
inter-relação das partes entre si, especialmente no que se refe gerador de polêmica, que a análise de controle, entendida como
ria ao papel da análise de controle. análise da contratransferência, seria mais bem realizada se fosse
A posição húngaro-vienense frente à questão da dura feita pelo próprio analista, pelo menos no primeiro caso clínico
ção da análise foi estabelecida por Ferenczi em 1923: "análi assumido pelo candidato. Balint aponta que, apesar do impacto
se-da-formação é simplesmente psicanálise"80, ou seja, não deve inicial, a proposição de que o trabalho clínico sob controle de
haver diferença entre a análise-da-formação e a análise tera veria ser iniciado durante a análise-da-formação foi rapidamente
pêutica. Nesse sentido, assim como na análise terapêutica, não aceita, mas a recomendação de que a análise de controle fosse
se deveria estabelecer a priori a duração da análise-da-forma com o próprio analista suscitou maiores resistências.
ção. Balint observa que, apesar de esta questão nunca ter sido 1925, no congresso de Homburg, foi criado o Comitê
suficientemente esclarecida, desde então todos os institutos Internacional de Formação, com o objetivo de homogeneizar a
de formação continuam a estabelecer a duração desejada da formação psicanalítica entre os diversos países. Eitingon apresen
análise, "erro pelo qual qualquer iniciante seria severamente tou três propostas preliminares: a)a formação deveria escapar às
criticado por seu supervisor"81• iniciativas individuais; b)cada sociedade deveria responder pela acei
A questão da análise de controle vem apontar a oposi tação ou recusa de um candidato perante a IPA, que teria de rati
ção das duas tendências (Berlim e BudapesteNiena) quanto à ficar a decisão; e c)regulamentação da noção de análise de contro-
compreensão geral do processo de formação. A prática da aná A proposta de Berlim foi defendida pela alegação de fornecer ao
lise de controle teve início em Berlim, em 1920, quando da futuro analista uma dupla referência - o analista didata e o analis
fundação da Policlínica. Com a obrigatoriedade de análise na ta de controle - e um aval mais forte. As propostas foram aprova
formação, estabeleceu-se a separação entre a análise de con das por unanimidade, e o projeto foi definitivamente adotado
trole e a análise-da-formação. O analista supervisor deveria no ano seguinte, no congresso de Bad Homburg83•
ser outro, diferente do analista didata. A partir de então, o procedimento de formação, espelhado
A proposta de Berlim, representada por Eitingon, foi es no modelo de Berlim, funcionaria da seguinte maneira:
tabelecer um sistema de formação psicanalítica inspirado no sis
tema universitário alemão, onde o aluno era encorajado a pas A comissão (de ensino) admite ou rejeita irrevogavel
sar alguns períodos em universidades diferentes. Assim, a for mente o candidato segundo a impressão obtida no de
mação psicanalítica poderia ser iniciada em um instituto e con correr de três entrevistas preliminares; o candidato sub
cluída em outro. Nesse sentido, Eitingon concebia que cada mete-se inicialmente a uma análise pessoal de seis me
parte da formação deveria ser concluída antes do início da pró ses de duração pelo menos; compete à comissão desig
xima etapa82• Trata-se do modelo "uma coisa de cada vez". nar o analista didata; a partir do parecer do didata, a
As escolas húngara e vienense entendiam a formação de comissão decide o momento em que a análise pode ser
outra maneira, e a ênfase dessa diferença recaía sobre a análise considerada suficientemente avançada para que o can
de controle. Nesta linha, o trabalho clínico sob controle deveria didato participe das etapas ulteriores da formação; pos
começar enquanto o candidato estivesse ainda em análise, para teriormente, a comissão decide também quando a sua
que ele pudesse analisar analiticamente a sua contratransferência. análise pode ser considerada como terminada. O can
As conseqüências dessa idéia implicavam que o estudo teórico didato deve engajar-se, por escrito, a não se denominar
também deveria começar durante a análise do candidato e, ponto analista antes de sua admissão formal à sociedade84•
74 75
'TRANSFERf�NCIAS CRUZADAS
DANTEL KUPERMANN
Se hoje o modelo de formação "tripartido", bem como A autoconfiança de trabalhadores intdectuais, sua indepen
o papel decisivo das sociedades psicanalíticas na formação, dência prematura do mestre, é sempre gratificante de um
podem parecer naturais em função do hábito, sua implemen ponto de vista psicológico, mas só traz vantagens para a
tação caracterizou na época uma verdadeira revolução. Ape ciência se esses trabalhadores preencherem certas condi
sar das reações contrárias à sua tendência padronizadora e ções pessoais que não são, de maneira nenhuma, comuns85•
sua rigidez autoritária, o modelo de Berlim foi vitorioso. Cabe
portanto aqui uma segunda indagação: por que a política de Para prevenir a recorrência de eventos traumáticos da
formação proposta por Berlim foi adotada, encontrando ade mesma natureza, aponta Balint, Freud propôs algumas medi
são tanto por parte dos analistas como daqueles que queriam das: "Para a psicanálise, em particular", escreve Freud, "uma
se tornar analistas? longa e severa disciplina, além de treinamento na autodisciplina,
Acompanharemos, então, as tentativas esboçadas por teria sido necessária"86• E mais adiante, referindo-se à criação
Balint e Safouan para responder a estas indagações. da IPA e à "transferência" do centro psicanalítico para Jung,
em Zurique:
A Formação Superegóica Sentia, porém, que deveria haver alguém na liderança.
�alJl},t,. em um artigo que se tornou çL�.§ico*, diferencia Conhecia muito bem as armadilhas que aguardam quem
duas ''Fiistórías" da constituição da formação psicanalítica: a his quer que comece a exercer a psicanálise e esperava po
tória exotérica ou oficial, que descreve e explica os "sucessos glo der evitá-las delegando poderes a uma autoridade que
riosos do sistema", e a história esotérica, menos difundida, que estivesse preparada para ACONSELHAR E ORIENTAR87 •
analisa o curso dos conflitos e das dores inevitavelmente vincu
lados à criação dos institutos de formação, na linha assumida Recorrendo ao original em alemão, Balint ressalta que
por Freud em 1914. Na elaboração de sua versão "esotérica", disciplina (discipline na edição inglesa) é um termo demasiado
Balint realiza uma das primeiras tentativas, depois de Freud, de suave para o sentido de Zucht, como foi empregado por Freud.
um entendimento psicanalítico da história da psicanálise. E orientar (admonish na edição inglesa) não corresponde à pala
A versão "esotérica" freudiana de 1914, abordando os vra utilizada por Freud Abmahnung que seria melhor
conflitos internos ao campo psicanalítico, já é conhecida. A traduzida por repreender. Nesse sentido, conclui:
hipótese de Balint é que a padronização da formação psica De acordo com Freud, se a psicanálise queria evitar su
nalítica tem uma estreita ligação com os acontecimentos re cessivas dissensões, teria de cuidar para que a nova ge
feridos por Freud em sua História, mais especificamente ao ração aprendesse a renunciar a parte de sua
trauma sofrido pela psicanálise com as dissensões de Adler e autoconfiança e independência, que fosse educada para
Jung. O diagnóstico de Freud, na ocasião, era de que fortes a disciplina e autodisciplina e para aceitar uma autori
motivos pessoais associados às "dificuldades particularmen dade com o direito e o dever de INSTRUIR E REPREENDER.
te grandes ligadas ao ensino da psicanálise" - transferênci Alcançar tudo isso tornou-se o objetivo esotérico de nosso
as e resistências - estavam entre as causas das dissensões. sistema de formação, e o caminho era levar a nova ge
Freud escrevia: ração a identificar-se com seus iniciadores, e especial
mente com as idéias analíticas destes88 •
(*) Balint,M. "On The Psycho-Analytic Training System". Intemationaljoumal ofpsychoanalysis. 29. London, 1948.
76 77
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
(.. ,) ficaram intensamente angustiados em razão da se, para Safouan, como um reforço da cumplicidade sobre a
perda ameaçadora, querendo estabelecer a todo cus qual repousa o laço social, e um álibi para a delinqüência co
to uma barreira contra a heterodoxia, tendo em vista metida por cada um e por todos: agir, de fato, como se a psica
que eles se sentiam, naquele momento, responsáveis nálise jamais tivesse existido. Somente assim entende-se por
pelo futuro da psicanálise, Decidiram limitar, atra que "ocupar o lugar de Freud" transformou-se, de um dever
vés de uma seleção rígida dos recém- chegados e de que permitiria a cada um servir melhor à psicanálise, numa
uma formação coercitiva, autoritária e que se demo "operação policial"98•
ra com fins de provas, toda admissão final às suas A questão da a11álíse leiga99 veio à tona a partir do fi
sociedades. Na realidade, eles puniam seus alunos nal da priméira guerra, com a crescente difusão da psicanáli
por sua própria ambivalência. Ao mesmo tempo eles se na Inglaterra e, principalmente, nos Estados Unidos, onde
consolidaram a única tendência que Freud sempre os analistas se defrontavam com o crescimento proporcional
quis evitar: restringir a análise, até fazer dela um do problema do charlatanismo. Nos jornais, eram publica
anexo da psiquiatria94 • dos anúncios do tipo: "Quer ganhar mil libras anuais tor
nando-se psicanalista? Podemos permitir-lhe chegar a isso.
Baseado nesse relato, Safouan entende a instituciona Tome oito aulas conosco por correspondência, ao preço de
lização da formação como "um acting out que punha em cena quatro guinéus por aula"* 100• O combate ao charlatanismo
o que, de seu desejo, não se significava de outro modo, a sa tomou a forma de um combate aos analistas não-médicos
ber: o vínculo essencial (para não dizer a identidade efetiva) a ("leigos") e, durante todo o período da implementação da
este desejo de uma defesa que interdiz a todos uma certa idéia formação, a questão da análise leiga foi discutida. Parado
de gozo, aquele que prometeria o lugar do mestre "95• Se, como xalmente, quanto mais se rejeitava a análise leiga, mais a
diz Grosskurth96, a pergunta geral formulada pelos psicanalis necessidade de análise didática era afirmada, o que aponta a
tas ao saberem da doença de Freud - "como ele poderia ser, alienação que permeava os discursos 1º1 • Afinal, ou os médi
algum dia, substituído?" -- é suficiente para produzir uma cos são aptos a exercer a psicanálise ou, para ser psicanalis
angústia "quase" insuportável, esta, conjugada a uma outra ta, é preciso uma formação específica, e isto se aplica tanto
pergunta e ao desejo aí embutido - "quem irá substituí-lo?", aos médicos quanto aos não-médicos.
tornou-se excessivamente ameaçadora. A posição de Freud era a de que restringir a análise aos
Nesse sentido, Safouan considera a padronização da for médicos como forma de protegê-la do charlatanismo, equivalia
mação uma repetição do mito freudiano de Totem e Tabu, um a uma "tentativa de recalque" (Versuches zur Verdrangung) * *
arranjo dos irmãos parricidas ditado pelo crime comum. Assim, pela qual a questão crucial o que é específico da psicanálise
sentimentos de culpa introduziram traços melancólicos na for - ficava ocultada. Em 1929, no congresso de Oxford, a tenta
mação, fazendo com que o vazio que Freud deixaria se tornasse tiva de uma solução internacional para a questão da análise
"um lugar falsa e neuroticamente proibitivo"97• leiga foi abolida, e a Sociedade de Nova York decidiu admitir
Da mesma maneira, o desejo de respeitabilidade e de não-médicos para formação. Roudinesco considera que:
reconhecimento social expresso pela legalização da profissão {"'� Impossível de1xm de notar a semelhança com o que encontramos hoje ) em nossos classificados, princi�
paimente cm termm de u psicanálise aplicacia)) e terapias 8lternativas11
de psicanalista -- sinônimo da integração da psicanálise pela 11
("'*) Freud (1926). i'Die Frage der Laicnar:alyse ' ln Schr(ften zur Behandlungstechnik. Fischer Toschcnbuch1
1
,
ordem médica, ilustrada nos ataques à análise leiga - coloca- Frankfurt em Main, !982, p. 349.
80 81
� 7r-- - --
...essa aparente vitória da posição leiga foi conseqüência � vestia-se como Freud, fumava charutos e aparava a bar
direta da padronização de 1926, que começava a dar _ .
ba à moda do mestre, sendo apelidado no meio psicanaht1co
frutos, mas, na realidade, os ideais médicos domina de "Freud�sí:p:üle"1º5• Este exemplo vem apontar o que ocorria
ram o movimento e serviram para assegurar o triunfo com âtt��ência no processo de institucionalização da psi
de uma psicanálise adaptada aos códigos da moral so canálise: "quanto mais ela era teorizada na doutrina, mais era
cial. A legalização da farmação foi o meio pelo qual o desconhecida na situação analítica"1º6• O próprio inventor do
próprio movimento liquidou os "RESTOS ANIBALIANOS" conceito de transferência parecia não mais reconhecê-la quan
DA PRÁTICA E DA TEORIA FREUDIANAS 1º2 • do ela se apresentava na prática.
Com a padronização da formação e conseqüentemente
A sistematização e padronização da formação psicanalí a regulamentação das análises por uma instância superior, ten
tica, promovida a partir de Berlim, não fez mais, como subli .
tou-se resolver o impasse colocado pelo não-resolvido da rela
nha Bernfeld, do que transformar em obrigação o que era do ção transferencial, tirando-a de cena. Por falta de respostas,
domínio da escolha. No entanto, essa transformação irá mos encontraremos regulamentos, sublinha Safouan 107• Criaram
trar-se plena de conseqüências. A partir de então, a análise se leis que, de tão "duras", não eram mais nada senão leis,
tornou-se uma análise a "tomar" (to take), no sentido em que com um consolo: dura lex, sed lex - e que não haja exceções.
um estudante de medicina toma um curso preparatório de ana As sociedades psicanalíticas "evoluíam" do barbarismo de Totem
tomia 103, e os efeitos transferenciais de uma análise deste tipo, e Tabu para a bem comportada "psicologia de grupo", pagando
com fins didáticos, já se faziam ver, mesmo antes da legaliza o preço do recalque.
ção da formação. No último parágrafo de A Questão da Análise Leiga (1926),
Em 1921, Freud dedicava-se apenas a análises com Freud comete uma das raras passagens de sua obra que iriam
fins didáticos, ou seja, todos os seus analisandos eram alu mostrar-se francamente equivocadas no futuro. Ela diz:
nos em formação. Abram Kardiner, que veio a ser um dos
maiores representantes da linha culturalista norte-ameri Mas de uma coisa eu sei. De forma alguma é tão impor
cana, havia iniciado sua análise com Freud em outubro da tante qual a decisão que o senhor possa adotar no tocante
quele ano. No início de março de 1922, Freud anunciou à questão da análise leiga. Isso poderá ter um efeito local.
que a análise terminaria em 1 º de abril. Kardiner revoltou Mas as coisas que realmente importam - as possibilida
se, mas Freud limitou-se a lembrá-lo de que havia fixado des de desenvolvimento INTERNO - JAMAIS PODERÃO
em seis meses o prazo para a sua análise 104• SER AFETADAS POR REGULAMENTOS E PROIBIÇÕES 1º8 .
Numa ocasião durante a análise, Kardiner perguntou a No próximo capítulo, mostramos como o desenvolvimento
Freud o que pensava sobre a psicanálise e sobre si próprio. interno da psicanálise foi afetado por regulamentos e proibições.
Freud confessou que lhe faltava paciência para lidar com os O que chama a atenção nesta passagem é que a avaliação de
problemas terapêuticos, que o desenvolvimento teórico ocu Freud, datada de 1926 - ou seja, quando a padronização (re
pava a maior parte de seu interesse, e que se portava excessi gulamentação, proibições e injunções) da formação era já fato
vamente como pai para com seus analisandos e alunos. Nessa consumado - incide apenas sobre a questão da análise leiga,
época, Freud era alvo de um culto extraordinário. Roudinesco poupando qualquer referência à formação. Decerto não se trata
relata o exemplo de TJl�qçlot"R�ik para ilustrar o que ocorria: de esquecimento, senão de recalque.
82 83
DANIEL KlJPERMANN 'l'RANSFERÊNCIAS CRUZADAS
A idéia de que a institucionalização da formação está fim silêncio sobre as questões transferenciais e o advento da buro
dada em um recalque aparece em Balint, Safouan e também em cracia e das normas rígidas nas sociedades psicanalíticas.
Freud, considerando que algumas de suas assertivas referentes "Na psicanálise, como em qualquer outro lugar", diz
à questão da análise leiga (como "tentativa de recalque") po Bernfeld110, "a institucionalização não encoraja o pensamento".
dem (e devem) ser aplicadas à formação. Durante toda a sua Com a institucionalização da formação, a psicanálise abando
"conversação com a pessoa imparcial" realizada no texto, Freud nava o status underground cultivado anteriormente para tornar
desloca a questão para o que é específico da psicanálise, que se "respeitável" e "normal", como veremos a seguir.
vinha sendo recalcado: o inconsciente e a sexualidade.
O recalcado da formação psicanalítica, tanto na ve.rsão.de
Balint - trauma das antigas dissensões - quanto na de Safouan
- assassinato do pai - incide sobre as transferências no campo
psicanalítico, pelas quais o inconsciente e a sexualidade se atuali
zªJ!l-• Assim, em última instância, a formação se configura c�mo
uma das formas mais complexas e sutís das resistências à psicaná
lise. "É por causa do silêncio sobre as questões transferenciais que
nunca houve uma sociedade de psicanálise que psicanalisasse as
crises que a dividiram", diz Octave Mannoni 109•
A aventura freudiana no movimento psicanalítico encer
ra-se em 23 de setembro de 1939, em Londres - berço da po
lítica do "esplêndido isolamento" - onde Freud havia se exila
do do nazismo, no ano anterior, para morrer em liberdade.
Resumindo conclusivamente o capítulo, a história da
transferência na institucionalização do movimento psicanalfti
co, em seu período freudiano, compreende, em termos
esquemáticos, quatro etapas principais: l)de 1900 a 190,8, Freud
formula em A Interpretação de Sonhos o "convite à transferên
cia" que culminou na fundação da Sociedade Psicológica das
Quartas-Feiras e no início do movimento psicanalítico; 2)de
1908 a 1912, assistíu-se à tentativa de Freud em solucionar os
impasses que surgiam no movimento por uma "transferência"
das transferências para Jung, e pela cnação da IPA; 3)de 1912 a
1920, o movimento de retorno transferencíal a Freud, com a
formação do Comitê Secreto e a publicação de A História do
Movimento Psicanalítico; e 4)de 1920 a 1939, a última etapa,
tendo como.marco inicial a fundação do instituto de Berlim e a
padronização da formação, selando, pelo "assassinato do pai", o
84 85
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
Parte
psychoanalysis. 29. London, 1948.
79. Balint, M. Idem, p.165.
80. Apud Balint, M. Idem.
81. Balint, M. Idem.
82. Balint, M. Idem.
83. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., pp. 152 - 153.
84. Bernfeld, S. "On psychoanalytic trainíng". The psychoanalytic quarterly 31. New
York, 1962, pp. 464-465.
85. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.37.
86. Freud, S. (1914) Idem, grifo nosso.
87. Freud, S. (1914) Idem, p.56, grifo nosso.
88. Balint, M. "On the psycho-analytic training system''. Op.cit., p.170, grifo nosso.
A PSICANÁLISE
89. Balint, M. Idem, pp. 167-171.
90. Balint, M. Idem, p.171. EM MEADOS DO SÉCULO
91. Safouan, M. Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Porto Alegre,
Artes Médicas, 1985.
92. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.467.
93. Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.132.
94. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.467. Quando examinamos as personalidades daqueles
95. Safouan, M. Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Op.cit., p.20. que por auto-seleção constituíram a primeira geração de analistas,
96. Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.132. suas caracterfsticas deixam pouca dúvida. Eram não
97. Safouan, M. Idem, p.21. conformistas, questionadores, do tipo que não se satisfazia com os
98. Safouan, M. Idem, p.20. limites impostos ao conhecimento. Entre eles, se encontravam
99. Cf. Freud, S. (1926) "A Questão da análise leiga". In E.S.B., Op.cit., Vol. XIX. sonhadores e outros que conheciam o sofrimento neurótico por tê-lo
100. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.136.
101. Roudinesco, E. Idem, p.150. vivido. Este tipo de recrutamento transformou-se radicalmente
102. Roudinesco, E. Idem, p.159, grifo nosso. desde que a formação psicanalítica foi institucionalizada e que,
103. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.469. em contornos mais estritos, faz apelo a um tipo diferente de
104. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.148. personalidade. Além do mais, a auto-seleção cedeu lugar a um
105. Roudinesco, E. Idem. minucioso exame dos candidatos. Donde a exclusão daqueles que
106. Roudinesco, E. Idem, p.168. são suspeitos de alterações mentais, dos excêntricos, dos
107. Safouan, M. Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Op.cit., p.33. autodidatas, dos grandes imaginativos; em vantagem daqueles
108. Freud, S. (1926) "A Questão da análise leiga". Op.cit., p.283, nosso. que, acomodados e bem preparados, são trabalhadores o bastante
109. Apud Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.168. para ambicionar uma maior eficácia profissional.
110. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.468.
ANNA FREUD, 1968
88
4. Problemas em formação
ÜS SINTOMAS DE UMA CULTURA PSICANALÍTICA
Sérvulo Augusto Figueira define cultura psicanalítica como Formação Psicanalítica", é o início da discussão sistemática sobre
um "padrão de presença da psicanálise"1 em um determinado con os efeitos de retomo da difusão cultural da psicanálise so"bre o próprio
texto cultural, que aparece quando a difusão da psicanálise atinge campo psicanalítico4. Esses efeitos, como veremos a seguir, tomam
níveis nos quais dá origem a uma Weltanschauung partilhada por se visíveis principalmente na formação psicanalítica, que começa a
um número representativo de membros de uma sociedade. Associ apresentar novos "problemas". Assim, os problemas da formação
ada assim à produção de uma Weltanschauung, a cultura psicanalítica indicam problemas em formação no campo psicanalítico, sintomas,
pode ser decomposta em três dimensões: eidos, ethos e dialeto. O como efeito de retorno, de uma cultura psicanalítica sobre a pró
eidos gera uma lógica para o pensamento e para a compreensão dos p ria psicanálise. Na sobredeterminação desses "sintomas", não é
fenômenos sociais e humanos; o ethos gera um código para o con possível deixar de incluir o pap el da p róp ria institucionalização
trole e expressão de emoções; e o dialeto, como forma de expressão da psicanálise, inseparável do processo histórico de sua difusão.
social e interpessoal, articula as duas dimensões anteriores no exer Para ilustrar a situação da psicanálise na é poca, guiar-nos
cício e na circulação da cultura psicanalítica. Figueira conclui: emos pelo discurso de abertura do Congresso, proferido por
Heinz Hartmann5 , então p residente da IPA. Neste discurso, a
Toda cultura psicanalítica é, portanto, passível de ser en
ênfase recai sobre três pontos: 1) o quadro de difusão da psica
tendida como resultado de uma articulação complexa, e
nálise e as mudanças decorrentes nas relações entre a psicaná
nem sempre harmônica, de um EIDOS e de um ETHOS psi
lise e a cultura; 2) o surgimento de um tipo diferente de candi
canalíticos que circulam através do dialeto do psicologismo2 •
dato à formação psicanalítica; 3) o aparecimento de "escolas" e
Trata-se, sem dúvida, de uma "articulação complexa", em "doutrinas" com referencial psicanalítico e a situação corres
cuja trama se articulam e se influenciam mutuamente o tipo de pondente da IPA como centro organizador da psicanálise mun
psicanálise que se apresenta, as formas de sua difusão e inserção dial. Passemos então à análise dos dois primeiros pontos.
social, os estágios de sua institucionalização e o contexto cultu Em 1953, a-difusão da psicanálise era evidente em vários
ral propriamente dito. A conseqüência é que as culturas psica países. Outra evidência é que essa difusão sempre foi um dos obje
nalíticas irão variar, de acordo com os efeitos dessa articulação. tivos maiores da institucionalização da psicanálise, e um dos moti
Guardando as devidas ressalvas no uso dessa noção, é vos principais p ara a criação e razão de ser da IPA. Diz Hartmann:
ilustrativo o fato de que nos Estados Unidos, onde a psicanálise Nos vários anos desde a sua fundação, a Associação Psi
teve sua inserção social estreitamente ligada à medicina psiqui canalítica Internacional tem ajudado ativamente a análi
átrica, sendo rapidamente difundida e articulada ao ideal adap se, formulando suas necessidades e dirigindo seu crescimen
tativo do american way of life, encontremos uma cultura psica to. Nas cond�ões fawráveis criadas por esta Associação,
nalítica bastante diversa da francesa, onde a psicanálise teve a a análise cresceu e se propagou assim como uma coisa viva6•
sua penetração social fortemente marcada pela literatura e por
movimentos de vanguarda artística, como o surrealismo3 • A metáfora biologista/desenvolvimentista faz-se presente
O que se pode observar neste Congresso de 1953, a partir em todo o discurso, que trata o desenvolvimento da p sicanálise
das problemáticas que se apresentam para questionamento e em analogia ao desenvolvimento do ser vivo. Como veremos,
reflexão tanto no registro organizacional (no discurso de aber essa biologização dará origem a uma "naturalização" dos desti
tura do Congresso e no business meeting) quanto nos encontros nos da p sicanálise que será resp onsável pela cristalização de
científicos, principalmente no simpósio intitulado "Problemas da vários "pontos cegos" na discussão dos problemas da formação.
92 93
DAl\'!EL KUPERMANN "I'RAl\'SFERÍÕ:NCIAS CRCZADAS
Prosseguindo com Hartmann, a difusão da psicanálise Daí a importância de recorrer à tradição, e em frisar que o
promoveu "mudanças" de vários tipos, e o mérito de seu dis papel pioneiro do psicanalista não havia sido superado. A psicanáli
curso está em apontar alguns impasses e contradições surgi se como profissão tinha deixado de ser um risco pessoal, e isso
dos a partir dessas "mudanças". Assim, a psicanálise havia se coincide com o surgimento de um novo tipo de candidato a
"tornado adulta", e várias de suas descobertas eram aceitas e analista - o candidato "normal".
reconhecidas em muitas partes do mundo, ressaltando-se po
rém que em outros lugares ainda havia psicanalistas trabalhan
do em "esplêndido isolamento", na tentativa de criar espaços 0 CANDIDATO "NORMAL" E SUA ECOLOGIA
para o pensamento e a prática psicanalítica em meios desfavo
ráveis. Com isso, Hartmann quer apontar que "o papel pio A questão do candidato "normal" está inserida no campo
neiro do analista ainda não havia sido superado"7• do que Maxwell Gitelson chama de "ecologia" do candidato.
Às mudanças advindas da difusão cultural da psicanálise Em Therapeutic Problems in the Analysis of the "Normal"
- seu reconhecimento como método terapêutico pelas profis Candidate9, Gitelson busca determinar as condições sócio-cul
sões vizinhas, aumento das relações (tanto em intensidade quan turais para o surgimento do candidato "normal" e investigar os
to em extensão) com outras áreas do conhecimento, uso de problemas adicionais que aparecem em sua análise, enfatizando
descobertas e insights psicanalíticos em outras disciplinas, possi o estudo de "fatores ecológicos". Se a ecologia, nas ciências na
bilidade de pesquisa interdisciplinar - corresponde uma inde turais, estuda as relações entre comunidades e indivíduos com
sejável mudança de atitude do psicanalista quanto ao seu papel o meio em que vivem e suas influências recíprocas, na ecologia
social. Para ilustrar essa mudança de atitude, Hartmann com do candidato a psicanalista Gitelson vai abordar as relações do
para a geração de candidatos à formação psicanalítica do pós candidato "normal" com o seu meio, privilegiando as influên
guerra com as gerações anteriores, mostrando suas diferenças cias do meio sobre o seu caráter.
tanto em termos de "personalidade" quanto de "motivação": Arriscando uma leitura antropológica, Gitelson nota, em
Na época "heróica" da análise, tomar-se analista era uma primeiro lugar, que as neuroses que se apresentavam ao psica
aventura do espírito; era aventura tanto por causa das nalista nos anos 50 eram diferentes daquelas do começo do sé
incertezas relativas ao status econômico e social, quanto culo. Seu ponto de vista é o de que as mudanças da cultura
pelo isolamento espiritual, que era o destino do analista. acarretam mudanças na maneira pela qual o ego lida (admite,
Durante as duas primeiras gerações de psicanalistas, es repele ou modifica) com as exigências "instintuais", uma vez
colher essa profissão era uma decisão categórica e carre que a ação do ego depende de como ele foi "ensinado" a
gada de emoção. Essa é uma decisão difícil para alguns considerá-las pelo mundo exterior.
de nossos alunos hoje, mas certamente não é uma deci As mudanças culturais privilegiadas em sua análise são as
são duvidosa para todos, ou mesmo para muitos deles. ocorridas nas esferas da ética e da moral. Gitelson considera que
Há aqueles que escolhem a psicanálise apenas como uma os limites entre o permitido e o proibido haviam se tornado con
especialidade. Sua ênfase reside mais na aquisição de uma fusos, o que se refletia na inconsistência das influências da edu
habilidade técnica do que no engajamento à uma discipli cação primária na criança. As mudanças correspondentes ob
na, no sentido amplo do modelo estabelecido por Freud8• servadas na forma das neuroses foram das neuroses de transfe
rência - baseadas em conflitos entre ego e id - para as de tipo
94 95
DANIEL KUPERJVíANK 'TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
narcísico -- baseadas em conflitos entre ego e superego. Gitelson to, sinal da inadequação dos mecanismos de defesa, pode fa
pretende que em uma cultura onde a Lei se relativiza excessivamen cilitar o aprofundamento do trabalho da análise, aproximan
te, o superego se torna maleável, e o campo privilegiado para a do a análise didática da terapêutica, o que não se observa
ação conciliatória do ego passa a ser então a relação com a instân nos candidatos "normais".
cia superegóica e com a própria realidade. Assim, o ego encontra Paula Heimann, que nos apresenta um verdadeiro tratado
um vasto campo para evitar as rupturas e conflitos que caracteri das psicopatologias indicadas para a profissão de analista (rea
zam as neuroses de transferência, e a aparente "personalidade ções depressivas são mais convenientes do que maníacas e
normal" resultante desse processo torna-se o próprio sintoma*. esquizóides etc.), coloca na categoria dos candidatos contra-in
Como podemos constatar, Gitelson trata a "normalidade" dicados, lado a lado com os psicóticos, o candidato "normal", no
como sintoma (individual e cultural), e o surgimento do candi qual "realismo, adaptação e uma vida bem ordenada, incluindo
dato "normal" como conseqüência da mudança do tipo de neu gratificação sexual e uma capacidade de trabalho regular, são
rose predominante na cultura de sua época. Assim fazendo, po construídos sobre superficialidade e pobreza de personalidade"13•
rém, Gitelson considera o fenômeüo como externo ao campo Assim, a maioria dos psicanalistas da época limita-se a
psicanalítico. Essa perspectiva não é, portanto, suficiente para diagnosticar o candidato "normal", sem o questionamento das
transformar a maneira pela qual a discussão sobre o candidato condições históricas e institucionais de seu aparecimento.
"normal" vinha sendo conduzida, em termos de sua adequação Convém pontuar, entretanto, que não havia consenso nem
ou inadequação para a carreira analítica, sem promover um ques clareza entre os psicanalistas quanto à questão dos atributos do
tionamento maior sobre o próprio sistema de formação. Veíamos: candidato. Gitelson í4 refere-se criticamente à Associação Psi
Hans Sachs 10 observava o surgimento de um grupo de can canalítica Americana, onde era desejável estabelecer a norma
didatos com "QQ_':!�os sintomas neurgticos", bem adaptados e inte lidade como base para a seleção de candidatos, cuja formação,
grados socialmente�·mas cuja organização nardsica havia produzi presumia-se, não tomaria muito tempo.
do muito firmemente uma repressão do conflito. Para Sachs, ape Mesmo entre os descontentes com o candidato "normal" '
sar de poderem ter uma boa compreensão intelectual dos mecanis a falta de clareza quanto ao que se espera realmente de um fu-
mos psíquicos e de serem terapeutas entusiastas, esses candidatos turo analista faz com que apareçam contradições, e equilíbrio e
não eram indicados para a psicanálise, e deveriam ser encami adaptação são recomendados. Assim, Paula Heimann 15, ao listar
nhados para alguma das escolas de técnica psicoterapêutica. as qualidades esperadas em um candidato, inclui, entre outras,
Warburg refere-se a certas pessoas "conformadas" e a capacidade de estabelecer relações objetais em níveis profun
"equilibradas" cujos horizontes são porém limitados, e questi dos e de mantê-las por um longo período, a capacidade de reco
ona o quanto seu ponto 9e vista é amplo o suficiente para que nhecer as próprias limitações e de tolerar tensões advindas de
façam análise. Ele diz: "E questionável, mesmo se você os for problemas de difícil solução sem confusões ou ações precipita
ma, o quanto eles não serão tão sem imaginação que não en das, enfim, equilíbrio, adaptação... e normalidade.
tenderão muitas coisas"11• Retornando a Gitelson 16 , sua segunda vertente de análise
Sacha Nacht 12 considera que a presença de conflitos da ecologia do candidato parte da consideração de que um im
não resolvidos e mesmo de sintomas neuróticos no candida- portante fator cultural que influencia o caráter dos candidatos
a analista é a "atmosfera psicanalítica" na qual esses candidatos
(*) O fenômeno observado nos anos 50 por Gitelson mantém ainda hoje a sua atualidade. Para um
aprofundamento da questão na nossa contemporaneidade, reroeremos o leitor a Jurandir Freire Costa (1988).
cresceram e se desenvolveram.
96 97
DANIEL KCPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRCZADJ\S
A "atmosfera psicanalítica" é caracterizada pelo fato de que, a criação de novas resistências e para o desenvolvimento de
mesmo antes da formação propriamente dita, os candidatos vivam uma "fachada de pseudonormalidade" baseada em códigos (de
em um meio de psicanalistas e de colegas "orientados psicanalí pensamento, de controle de emoções e de linguagem) psicana
ticamente", e sofram a influência de várias derivações e aplicações líticos, onde o próprio campo psicanalítico, agora respeitável e
da psicanálise, ou mesmo do próprio divã. Diz Gitelson: ''.A psi "normal", constitui uma imago da autoridade, ditando o que é
canálise tornou-se respeitável e "normal"; tornou-se parte do meio " 17• certo e o que é errado, permitido ou proibido, e passando a ser
As conseqüências de uma atmosfera psicanalítica sobre alvo de investimentos inconscientes.
o candidato são, por um lado, a criação de uma camada adici Articulando a noção de "atmosfera psicanalítica" com o
onal de resistências ego-sintônicas, e por outro o desapareci que sabemos a respeito da "cultura psicanalítica", considerando
mento do incógnito do analista, o que trará problemas para o tratar-se de noções correspondentes, referidas a um mesmo fenô
curso da análise, desde a escolha do analista até o desenvolvi meno, porém formuladas em diferentes épocas, pode-se dizer que,
mento normal da transferência. segundo Gitelson, a psicanálise difundida e aceita culturalmente
A camada adicional de resistências ego-sintônicas é - "respeitável" e "normal", "part'e do meio" - é criadora de
criada pela influência de leituras, aulas ou análises "selva uma Weltanschauung poderosa, que influencia o candidato a pon
gens" cometidas por colegas ou professores, que levam ao to de produzir uma camada adicional de resistências pela entrada
desenvolvimento de uma fachada de pseudonormalídade. Esta de uma série de "artefatos"19 na organização defensiva do ego.
é baseada em gratificações e repressões devidas a "inter A influência da Weltanschauung psicanalítica se exerce
pretações inexatas", no desenvolvimento de mecanismos através de uma lógica para o pensamento, um eidos ("leituras",
contra-fóbicos e de negação, e na intelectualização dos sin "aulas", colegas "orientados psicanaliticamente"); de um códi
tomas. Como ilustração de intelectualização de sintomas, go para o controle e expressão de emoções, um ethos (análises
Gitelson registra a tendência de certos candidatos a valori "selvagens", "interpretações inexatas", sintomas neuróticos
zar ao máximo situações de tensão e reações depressivas "admissíveis" e "condenáveis"); e certamente de uma linguagem
moderadas, uma vez que a opinião corrente é a de que "está "psi" que articule essas duas dimensões, o dialeto, desenvolvendo
tudo bem" em se ter alguns problemas neuróticos, enquan uma "fachada de pseudonormalidade" no candidato "ecologica
to "problemas de caráter" são suspeitos. Ele observa: mente" bem adaptado à "atmosfera" de seu tempo e lugar.
O que pode passar despercebido é que essa aparente acei A problemática de Gitelson era portanto, já no início
tação dos fatos da vida pode ser na verdade o sinal dos anos 50, a formação de sintomas no campo psicanalítico
indicativo dos efeitos de resistências de caráter baseados como efeito de retorno de uma cultura psicanalítica sobre este
na submissão e na aquiescência à autoridade. PARECE, próprio campo, mais especificamente sobre a análise da for
DE FATO, QUE UMA DAS IMAGOS INCONSCIENTES DA AU
mação psicanalítica. Um aspecto principal, porém, chama a
TORIDADE É AGORA O PRÓPRIO CAMPO PSICA/\JALÍTICO 18 •
atenção. Apesar de perceber que a psicanálise difundida cria
uma atmosfera ou cultura psicanalítica, Gitelson continua a
Assim, o circuito proposto por Gitelson é: a psicanálise tratar o fenômeno como algo exterior à psicanálise, como "ar
difundida na cultura - aquiescente, por seu turno, com as de tefatos" (o que traz a idéia de artificialidade, algo contrário à
fesas de caráter narcísico - cria uma "atmosfera psicanalítica" natureza) que vêm trazer problemas para o campo psicanalíti
que faz parte da ecologia do candidato, e que irá contribuir para co, de fora para dentro. Daí, ao tratar dos problemas da análi-
98 99
DANIEL KUPERMANN 'rRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
se do candidato "normal", Gitelson aponta três registros onde ceba o "normal" de uma prática produzida pela instituição psica
as condições básicas do trabalho do analista são alteradas, cau nalítica como produção histórica, ou mesmo como sintoma?
sando prejuízo ao tratamento: Assim é também com Hartmann21• Havíamos apontado
1) Normalidade, um sintoma, não é realmente senti anteriormente que, ao tratar o desenvolvimento da psicanálise
do como tal. Ao contrário, é capaz de promover re
"biologicamente" em analogia ao desenvolvimento do ser vivo,
compensas sociais das quais a primeira é A ACEITAÇÃO Hartmann naturalizava os destinos da psicanálise promovendo
COMO CANDIDATO. Para nenhum outro sintoma é atri
a cristalização de vários "pontos cegos" na discussão dos pro
buída uma cota de ganho secundário tão ampla. 2) O blemas da formação. Retomando seu discurso de abertura do
sistema defensivo tem seu suporte na cultura em geral Congresso, Hartmann comenta a propósito da discussão sobre
e, paralelamente, é reforçado pela experiência profis a "crise" da psicanálise na época:
sional pré-analítica do candidato. 3) A SITUAÇÃO ANA (.,.) não devemos esquecer que a história da psicanálise
LÍTICA É CONTAMINADA E DISTORCIDA POR FATORES desde o seu início era abundante em crises deste tipo.
EXTERNOS ACIDENTAIS QUE INTERFEREM NO DESENVOL Como na história do indivíduo, para cada um dos está
VIMENTO NOP,MAL DA TRANSFERÊNCIA2º. gios de desenvolvimento corresponde um conflito típico
- apesar de eu ser certamente o último a esquecer que
Assim, em termos de sistema de form3.ção, o máximo de
questionamento que Gitelson se permite é sobre a seleção de há também uma esfera livre de conflitos22 •
candidatos, uma vez que percebe que a própria seleção contribui Espirituosidade e auto-referências à parte, a analogia
com ganhos secundários para a manutenção do sintoma de nor desenvolvimentista parece ser confortadora, e permite inclu
malidade. Mas ainda assim trata-se da manutenção de um fator sive a Hartmann considerar que a psicanálise havia se "torna
externo. Nesse sentido, bastaria repensar os critérios de seleção do adulta"23• Mas no desenvolvimento do indivíduo os está
e o problema estaria resolvido. gios estão dados psicogeneticamente desde sempre; o meio só
Por outro lado, encontramos um registro de normalidade pode promover ou inibir as potencialidades. Nessa concep
que Gitelson não consegue perceber nem analisar. Trata-se da ção, a psicanálise ganha um destino psicogenético natural, com
idéia de um "desenvolvimento normal da transferência", que seus estágios de desenvolvimento pré-estabelecidos e com seus
seria prejudicado por "fatores externos acidentais" que conta "conflitos típicos" correspondentes, numa espécie de harmo
minam e distorcem a situação analítica. Porém, para fazer essa nia "silvestre" onde pouco ou nada é questionado, e onde uma
análise, Gitelson necessitaria poder desnaturalizar e historicizar prática social e histórica é naturalizada.
o que chama de "desenvolvimento normal da transferência" ' Outro forte motivo que vem questionar a conveniência des
considerando-o como uma produção contextualizada (poderí- sa analogia é que, no desenvolvimento do indivíduo, a morte tam
amos falar aqui em "sintoma institucional"?) e não natural. bém está dada geneticamente - único estágio, aliás, para o qual
Se isso não lhe é possível, e a questão de um desenvolvimen não há "conflitos típicos" correspondentes. Mas Hartmann não
to normal da transferência não é tratada como produção/sintoma leva adiante essas conseqüências da sua analogia. Fica para o cam
por Gitelson, seguindo seu próprio raciocínio quanto ao candidato po psicanalítico a questão de saber se onde há harmonia há vida.
"normal", podemas perguntar: quais· os ganhos secundários e re- Uma última consideração refere-se à observação de Gitelson
compensas sociais que impedem que Gitelson, analista didata, per- de que "uma das imagos inconscientes da autoridade é agora o
100 101
-rRANSFERÊNCIAS CRCZADAS
DANIEL Kt.:PERMANN
próprio campo psicanalítico"24• Em termos psicanalíticos, as imagos cesso de constituição do "superego psicanalítico". Porém, ao
inconscientes da autoridade são constituintes do superego, e as observá-lo, aproxima-se do autor que, na época, encontrou as
sim podemos entender que em uma "atmosfera (ou cultura) psi "ferramentas" necessárias para essa abordagem. Trata-se, como
canalítica" o campo psicanalítico toma-se superegóico. veremos mais adiante, de Michael Balint.
Primeiramente notamos a possibilidade de a psicanálise A análise-da-formação se apresenta assim como um es
difundida criar uma Weltanschauung que influencia o candida paço privilegiado para observarmos o efeito dessa rede
to. Como vimos no capítulo 2, a matriz de toda Weltanschauung transferencial, uma vez que nela o analista (didata) é represen
é o "complexo do pai", sendo esta constituída pela reedição de tante oficial da psicanálise enquanto saber e prática, da organiza
investimentos de tipo infantil sobre um pai idealizado, investi ção psicanalítica enquanto formação social e também do incons
mentos que são ao mesmo tempo a base das imagos da autori ciente atualizado de seu analisando, o candidato a psicanalista.
dade. Podemos assim considerar que toda Weltanschauung é
investida como imago inconsciente da autoridade, sendo toda
Weltanschauung "religiosa", formadora de ideais e proibitiva para As VICISSITUDES DA TRANSFERÊNCIA
NA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA
o pensamento. Ou seja, toda Weltanschauung é superegóica.
A reedição de investimentos de tipo infantil é, em termos
clínicos, a definição clássica para a transferência. Em todo tra (... ) O Rabino mirava-o com ternura
'ramento há um momento (principalmente em seu início) em e com algum horror. COMO (se disse)
PUDE ENGENDRAR ESSE PENOSO FILHO
que a transferência estabelecida para com o analista é de tipo
E DEIXEI A INAÇÃO, QUE É A CORDURA?
altamente idealizado, onde o analista ocupa· o lugar de imago
da autoridade, nas formas da onipotência e principalmente da
POR QUE FUI AGREGAR À INFINITA
onisciência. O que ocorre na formação das Weltanschauungen,
SÉRIE UM SÍMBOLO MAIS, E DEI ÀQUELA
segundo a elaboração freudiana de Psicologia das Massas e Aná
MEADA VÃ QUE NO ETERNO SE ENOVELA
lise do Ego (1921), é que o lugar de imago da autoridade é ocu
OUTRA CAUSA, OUTRO EFEITO E OUTRA CUITA?
pado não por uma pessoa, mas por uma idéia (Idee), que se faz
ideal. Assim, podemos falar em uma transferência de tipo alta
mente idealizado a uma idéia ou sistema de idéias, da qual a fé Nessa hora de angústia e de luz vaga
religiosa é o exemplo mais ilustrativo. em seu Galem os olhos os prendia.
Na proposição de Gitelson, portanto, pode-se encontrar Quem nos dirá das coisas que sentia
formulada uma transferência para com o próprio campo psicanalí Deus, ao olhar o seu rabino em Praga?
tico, na qual este passa a ocupar uma das "imagos inconscientes
da autoridade", tornando-se superegóico. Transfere-se para a (Jorge Luís Borges, O Galem, 1958)
teoria, para sintomas "admissíveis" (psicopatologia), para cole
gas "orientados psicanaliticamente". E os guardiões maiores dessa Vamos nos deter agora sobre as idéias veiculadas durante o
transferência são, sem dúvida, os próprios psicanalistas e, den simpósio Problemas da Formação Psicanalítica ocorrido neste 18º
tre eles, de acordo com a hierarquia de suas organizações. No Congresso Internacional de Psicanálise, em Londres. À guisa de
entanto, Gitelson não se propõe a aprofundar a análise do pro- contextualização, isto é, do entendimento do porquê deste simpósio
J(L'\
102
DANIEL KUPERMANN
TRANSFERll:NCIAS CRUZADAS
da contratransferência na análise de formação. Apesar de não triangular, sendo que o analista condensaria o papel de ambos
haver consenso nas idéias dos vários autores, pode-se apontar os pais numa "figura parental combinada". Isso facilitaria o acesso
um eixo comum em tomo do qual giram estas questões: as rela às fantasias caóticas do início do complexo de Édipo durante o
ções transferencial e contratransferencial na análise-da-formação apre estágio polimorfo de desenvolvimento31•
sentam diferenças significativas quando comparadas à análise tera Os riscos da análise-da-formação são atribuídos por
pêutica. Essas diferenças são devidas a dois fatores principais: Heimann principalmente ao narcisismo do analista. Interesse co
mum pela psicanálise, contatos extra-analíticos e antecipação de
1) Analista e analisando
CONVNEM EM OUTROS REGIS amizade futura podem promover fortemente a tendência identi
TROS ALÉM DA SESSÃO ANAUTICA, como em aulas, dis ficatória entre os parceiros da análise. Essa tendência poderia se
cussões na sociedade psicanalítica etc. Assim,' o incóg expressar pela ambição do analista em provar sua competência
nito do analista, constituinte da concepção clássica da através do "brilhantismo" de seu candidato, ou então, no caso de
neutralidade do SETTING, deixa de existir. o analista ser um teórico, em querer que o candidato aceite e
2) O analista tem o poder e a função de JULGAR a apti desenvolva seus pontos de vista, numa espécie de paternidade in
dão de seu analisando à carreira psicanalítica. telectual fantasmática. Da parte do candidato, o risco identificatório
Paula Heimann considera que todos os prgblemas espe residiria na aceitação passiva das interpretações do analista como
cíficos que possam surgir na análise-da�formação são prove defesa contra a hostilidade, o medo e a dúvida, fazendo preva
nientes de fatores extra-analítkos e, se o analista não permitir lecer apenas a transferência positiva. O sucesso terapêutico es
que estes fatores se tornem "santuários para a resistência"3º, taria assim baseado numa situação próxima da sugestão.
eles poderão ser férteis para a análise. Nesse sentido, toda a Martin Grotjahn32, ao contrário de Heimann, aponta o
questão da análise-da-formação é colocada em termos de o risco de uma redução da intensidade da transferência na análise
analista poder reconhecer e lidar com seus próprios proble da-formação. Essa redução seria decorrente do fato de que aí
mas de forma a não obscurecer sua contratransferência, e utilizam-se regras e regulamentos ditados institucionalmente
manter assim um procedimento "puramente" analítico. A ên: por exigências acadêmicas, e não necessariamente por medi
----- "-
fase recai portanto sobre a análise do analista. . das terapêuticas, como o tempo, o número das sessões e a du
Por fatores extra-analíticos, Heimann entende o fato de o ração do tratamento. O autor enfatiza que essas regras são
analista determinar as etapas da formação de seu candidato, conhecidas e aceitas de antemão pelo candidato e, portanto,
influenciando seu progresso no estudo teórico, opinando na esco não são verdadeiramente analisadas.
lha do supervisor e tendo a palavra decisiva para sua habilitação. Grotjahn argumenta que se, de início, a formação se dava
Além disso, o analista deixa de ser anônimo, encontrando-se com exclusivamente entre analista e analisando, com a instituciona
o analisando também fora da sessão analítica. Assim, os fatores lização da psicanálise essa relação é substituída por um sistema
extra-analíticos vêm incidir sobre a análise-da-formação. de formação onde a responsabilidade da Associação Psicanalítica
Esse quadro complexo que compõe a análise-da-forma desempenha um papel predominante. Essa "responsabilidade
ção pode servir, porém, para intensificar a transferência, permi grupal" vem reduzir a intensidade dos sentimentos transferendais
tindo um maior aprofundamento da análise. A idéia é a de que, e contratransferenciais. No que concerne ao analista e à
quando o analista atua como representante do Comitê de For contratransferência, a "responsabilidade grupal" o libera das im
mação, a situação analítica adquire o caráter de uma situação plicações práticas da formação, o que acentua as diferenças entre
107
106
DA1':!EL KUPERMANN TRAKSFERÍ':NCTAS CRUZADAS
a análise terapêutica e a análise-da-formação. No que concerne compararem o progresso e o crescimento de cada um, aumentan
ao candidato, a conseqüência econômica deduzida é que a inten do o seu medo de serem rejeitados enquanto analistas. Bibring
sidade da transferência tende a diminuir quando a Associação aponta ainda a tendência a compararem seus respectivos analis
Psicanalítica torna-se um "substituto do analista", isto é, quando tas, sob todos os ângulos (performance intelectual, aparência etl . ) .
uma parte da neurose de transferência é "atuada" em relação ao O somatório desses fatores e das angústias daí decorren
âmbito institucional da psicanálise. Diz Grotjahn: tes levaria à formação de um sistema defensivo que promove
ria a tendência nos candidatos a "cindir suas reações trans
Na esperança de permanecer discípulo do analista ferenciais" e a deslocá-las para os outros instrutores analíti
didata ou de seu substituto na forma do Instituto ou cos, "em favor ou contra seus próprios analistas"35• A tradu
da Sociedade Psicanalítica, uma parte da neurose de ção em termos econômicos da idéia de Bibring é que disper
transferência será levada à "atuação" (ACTING ouT) sando as reações transferenciais pelo estabelecimento de trans
se não reconhecida e analisada apropriadamente. Mui ferências laterais36 , a intensidade dos afetos diminui, e o can
to da frustração necessária provocada pelo término de didato mantém, de forma defensiva, a transferência na análi
uma análise é reduzida pela esperança do aluno de se-da-formação em níveis controlados.
contato continuado com o analista33• Uma vez mais, a solução para os problemas aos quais a
Essa atuação, na forma de uma perpetuação da neurose de análise-da-formação está sujeita é colocada, tanto por Grotjahn
transferência para com o âmbito institucional da psicanálise, vem quanto por Bibring, na análise do analista. Assim, o narcisismo do
servir portanto a um último esforço da resistência do candidato analista e o domínio da contratransferência são as instâncias
contra a separação do analista, resistência encoberta pela espe determinantes do sucesso ou do fracasso da análise-da-formação.
rança de tornar-se membro do mesmo grupo psicanalítico e cole Grotjahn considera que a análise-da-formação exige al
ga de seu psicanalista. Grotjahn alerta ainda para a tendência do gumas mudanças na técnica do analista de forma a manter a
candidato em resolver suas angústias e seu sofrimento frente às neurose de transferência o mais próximo possível de como ela
incertezas da vida e às "descontinuidades da existência humana" se apresenta na "relação terapêutica original", isto é, na análise
refugiando-se na identificação imaginária com o analista. terapêutica. Propõe para isso uma maior "liberdade", "flexibili
Grete Bibring34 aproxima-se dessa posição ao apontar uma dade" e "espontaneidade" do analista na análise das defesas es
tendência nos candidatos a cindir suas reações transferenciais nas pecíficas encontradas nos candidatos. Nesse sentido, aponta que
análises-da-formação, o que levaria também a uma redução da somente analistas "experientes" são indicados para exercer a
intensidade da transferência. Essa tendência é atribuída a alguns análise-da-formação, e que a "espontaneidade" do analista de
fatores: em primeiro lugar, o analista, ao tomar a maioria das de pende não apenas do controle da contratransferência mas tam
cisões relacionadas à formação de seu candidato, deixa de ser bém dos "laços emocionais" que o ligam ao seu "grupo de ami
"neutro" para tornar-se o "juiz temido" com relação ao qual o gos psicanalistas", ao Instituto de Formação e à Sociedade Psi
candid�to desenvolve uma suspeita constante de reações hostis. canalítica. Grotjahn pretende que a análise-da-formação de
Além disso, o crescimento do número de candidatos, aliado a sua manda uma relação dupla por parte do analista -- para com seu
"motivação" para a formação (tornar-se analista ao invés de "mu- analisando mas também para com a Sociedade Psicanalítica ·
dar " ou "curar-se'') , ena
· um grupo a1tamente competitivo, com o que provoca uma situação particular de "lealdade dividida".
uma tendência comum à "atuação" (acting out), no sentido de De forma a lidar com essa situação, o analista precisa ter desen-
108 109
0AKIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
volvido um grau de liberdade interior suficiente para que possa ção de independência e interesse em promover o conhecimento
expressar sua "espontaneidade analítica"37• psicanalítico a qualquer preço, que caracterizaria o analista "ma
Bibring ressalta as "pressões" que o analista sofre em uma duro". Apontamos que a noção de "superego psicanalítico"
análise-da-formação. Ao lado do caráter competitivo que a for sugerida por Bibring é bastante diferente do que pretendemos e
mação adquire para os candidatos, há o envolvimento do ana vimos até aqui. Se Bibring opta pela concepção de um superego
lista no processo. Assim, é ilustrada a "tarefa adicional" do ana como condição de maturidade e liberdade, parece-nos que os
lista nessas análises, quando, após um dia de trabalho seguido problemas da formação psicanalítica na sua época estão mais apro
de uma discussão no Instituto, este se encontra perscrutado por priadamente referidos à concepção de um superego restritivo e
seus vários candidatos, "discutido por eles sob todos os ângulos, opressor, como veremos claramente com Balint.
como aparência, idade, performance intelectual, traços de per Em sua abordagem sobre os problemas da análise-da-for
sonalidade (verdadeiros e projetados) - tudo colorido com mação, Niels Nilsen4 1 e Sacha Nacht42 atribuem uma princi
adoração ilimitada ou amargo sarcasmo"38• palidade ao fato de, nessas análises, o analista deter um poder real
Os riscos dessa situação são uma "solução narcísica" por sobre o futuro profissional do candidato. Se esse poder real reper
parte do analista - no sentido de aceitar a adoração como re cute de fato na relação transferencial (e contratransferencial), pa
ferida a algum atributo real da sua pessoa - e o não-reconheci rece interferir também em outros registros - apontando para
mento da contratransferência, que podem levar à participação os limites da transferência - produzindo uma tensão entre pas
do analista no processo de atuação dos candidatos, pela compe sado e presente, vivido e revivido, imaginário e real.
tição, parcialidade e, por exemplo, na expectativa de fidelidade Nacht aponta que, inconscientemente, em toda análise,
especial por parte de algum candidato. Quanto ao narcisismo o analista é colocado no lugar de pai idealizado de quem se
do analista, Grotjahn, numa posição idêntica à de Paula espera tudo. Espera-se inclusive a permissão e a força para
Heimann, aponta o risco de a análise do candidato passar a ser tornar-se igual a ele, similar à imagem do pai idealizado. Na
a prova do "bom trabalho" do analista. análise-da-formação, esse objetivo - tornar-se igual ao ana
O remédio mais efetivo sugerido contra as pressões das "cor lista - é perfeitamente consciente, reconhecido e partilhado
rentes cruzadas patogênicas dos institutos de formação" é a aná com o analista como uma meta real. Assim, as determinações
lise pessoal (e, diríamos, "intransferível") do analista39 • É a reatua infantis dessa aspiração e o valor fantasmático desses movi
lização, no campo psicanalítico, da máxima: medice, cura te ipsum! * mentos identificatórios tendem a ser excluídos do campo da
Uma última observação que ressaltamos em Bibring é a sua análise. A idéia de Nacht é que ideais partilhados entre analis
concepção do término da análise-da-formação. Este autor consi ta e analisando dificilmente serão reconhecidos como tais, im
dera como critérios para o término da análise a habilidade e o pedindo portanto a sua análise*.
preparo para a auto-análise e a constituição de um "superego A conseqüência principal indicada por N acht é que os
psicanalítico"40 no candidato. Por constituição de "superego psi mecanismos de defesa contra o medo e a culpa engendrados pelo
canalítico" Bibring entende a passagem da condição infantil, onde componente de agressividade que acompanha os sentimentos hostis
há necessidade da presença de um analista para haver compro (competição, rivalidade, inveja) para com o analista, presentes
misso com os processos psicológicos de outrem, para uma condi- em toda análise, ficam impedidos de serem trabalhados do mes-
110 l 11
DANIEL KUPERMi\NN TRANSFERÉtNClAS CRUZADAS
mo modo na análise-da-formação. Esta passa assim a constituir Nielsen, em uma leitura bastante próxima de Nacht,
uma situação favorável ao "rígido reforço do superego"43• aponta também a tensão criada na análise-da-formação entre
Um segundo registro em que Nacht aponta a tensão en o analista enquanto autoridade real e enquanto objeto da trans
tre imaginário e real nas análises-da-formação é o que mais ra ferência. Vejamos:
dicalmente impõe a questão dos limites da transferência nessas
Esse problema não-resolvido (o desejo de tomar-se ana
análises. Acompanhemos Nacht:
lista) sempre encobrirá a relação transferencial na análi
O contraste entre aquilo que é acima de tudo REvivido se-da-formação, que, independentemente disso, não pode
pelo paciente durante o tratamento e o que é realmente ser considerada muito pura. O c.malista é uma autorida
vivido durante o curso de uma análise-da-formação apa de bastante real, que tem o destino profissional do paci
rece claramente em outra conexão: o candidato em uma ente em suas mãos. O paciente terá uma tendência bas
análise-da-formação geralmente não a abandona. Lar tante forte em acalmá-lo, subordinar-se e em identificar
gar o analista é impossível na prática. O estado de depen se com o analista. Podemos analisar isto como transfe
dência do paciente ao seu analista é, nesse caso, uma vez rência tanto quanto quisermos, mas será sempre muito
mais um fato REAL, já que a carreira do candidato depen dificil convencer o paciente de que é apenas transferên
derá largamente da opinião do analista sobre ele. cia. Ele deve ter escutado falar de outros analisandos que
O estado de dependência não é portanto REVIVIDO, recons foram recusados, deve saber por que razão, após o que
tituído subjetivamente na forma de uma regressão infantil: não poderá certamente evitar a tentativa de moldar seu
ele é vivido na realidade, na situação real. O analisando é comportamento. A arte de conquistar amigos e influenci
envolvido aqui em uma situação comparável à da cri ar pessoas é extensamente praticada hoje em dia, e eu
ança ligada a seus pais pelas suas necessidades vitais: não penso que todos os analistas sejam imunes a isso46•
sair de forma a proteger--se ou vingar-se é impossível44 •
Tanto em Nacht quanto em Nielsen, percebemos portan
Assim, o ponto principal que diferencia a análise-da to um questionamento sobre os limites da transferência na aná
formação da análise terapêutica no que concerne à relação lise-da-formação*. Se a dependência do candidato ao analista
entre analista e analisando é que na análise-da-formação o é um fato real, se o analista é uma autoridade com poder de
analista é parte integral do princípio de realidade, enquanto que decisão sobre o futuro profissional do candidato, e se o analista
na análise terapêutica, ele apenas o representa4 5 *. O risco é parte integral do princípio de realidade, tudo indica que será
maior que advém daí é a impossibilidade de vivenciar o pro mesmo difícil convencer o candidato "submisso" e "bem-com
cesso fundamental de integração da agressividade, uma vez portado" de que tudo não passa de transferência. Ao contrário,
que esta dificilmente encontrará expressão no curso da aná a conseqüência que podemos extrair das exposições de Nacht e
lise-da-formação. Aqui a dependência para com o analista é
real, o que aponta problemas para a percepção da transfe (*) Vejamos a questão em Daniel Lagache: "Essa tentativa de encontrar os limites da transferência na
relação paciente-psicanalista só seria pQllleÍvel, portanto1 especificando as diferenças entre transferência e
rência e de seus limites. neurose de transferência: a) A tren11ferência, em sentido amplo, é a aplicação à situação analítica de
hábitos apreendidos anteriormente; esses hábitos podem estar ou não a1ustados à situação real e presente;
é praticamente difícil e teoricamente imp01Jsível demonstrar a experiência de uma relação interpessoal sui
(•) A formulnção da irnpossibilidadc criacla1 nas análises;da;formação, em largar o analista, e dos efeitos generis que não faça uso de nenhum hábito anterior. b) A neurose de transferência implica, na relação
dessa impossibilidade na produção de dependência e submissão no candidato, nos será útil na amílisc de analítica, as condutas que usam hábitos e atitudes inadequados para a sit:uação real e presente1 atunlizoção
um caso brasileiro - o caso Amílcar Lobo (ver cap. 7). ecmnêmica (sic) dos conflitos inconscientes do paciente" (1990,p. l 12).
112 113
DANIEL KtIPERMANN TRAKSFERÊNCIAS CRUZADAS
Nielsen é que, nas análises-da-formação, além da "produção da que a tarefa do analista seria "facilitada". Se na análise terapêu
transferência"* presente em toda análise, parece haver uma pro tica o analista deve ser extremamente cuidadoso na dosagem
dução de dependência e de submissão. da frustração necessária para o tratamento, a fim de preservar
A insuficiência da leitura desses autores, porém, reside no sua continuação, na análise-da-formação poderia aplicar as re
fato de apontarem o narcisismo do analista como principal respon gras clássicas sem temer sua interrupção. Em contrapartida,
sável por essa produção de submissão. Nielsen47 observa que "o aponta o fato de o candidato saber que também o analista não
desejo de moldar um homem a sua própria imagem é tão ubíquo pode abandoná-lo, exceto por razões excepcionais, o que leva
que nem mesmo Deus está isento dele", considerando-o uma ria ao desenvolvimento de resistências de natureza bastante sutil.
manifestação do narcisismo primário. Para este autor, após vinte O que escapa a Nacht é que esse duelo narcísico contra
ou trinta anos de Escola, Universidade e Educação Hospitalar, a a angústia de morte representa a própria morte da psicanálise.
maioria dos candidatos só poderia chegar ao Instituto Psicanalíti Se a prática psicanalítica se desenvolve a partir da surpresa de
co com uma "esperada atitude de submissão". Ao analista cabe uma escuta, onde o analisando tem efetivamente uma verda
ria o cuidado de resistir à tentação de manipular a submissão, de singular a dizer e a construir, essa verdade não pode ser
combatendo a "atitude de servidor" do candidato. imposta "à força", amparada em garantias exteriores. O que
Nacht alerta para a tentação narcísica do analista em ocu faz de uma análise uma terapêutica é exatamente o cuidado
par um lugar de mestre e modelo para o candidato, reivindican na dosagem da frustração, que, em termos gerais, é o cuidado
do uma paternidade intelectual fantasmática, nos moldes da na escuta. Não se trata aqui de preservar um tratamento, mas
relação pai-filho, e desejando um futuro de "brilhante sucesso" de preservar o que é psicanalítico, ou seja, o respeito ao tempo
para seu candidato - sua filiação imaginária48 • e à verdade do sujeito, em um processo mútuo de acesso ao
Em termos psicanalíticos, sabe-se que estes desejos vêm inconsciente, sem garantias exteriores*. É isso o que faz da
atender a satisfações narcísicas que servem como defesa contra psicanálise uma experiência trágica, que pode levar inclusive
a angústia de morte. Assim, a maior proteção contra essas "ten ao abandono do tratamento. Onde o abandono não pode ocor
tações" seria, por um lado, a análise do analista, e por outro, as rer, a técnica se cristaliza, e a psicanálise enquanto saber e
próprias reações dos analisandos - na forma de uma positiva prática se estagna num mútuo reforço do superego do analista
resistência à mestria ou mesmo do abandono do tratamento. e do analisando.
Esse problema se agrava com o fato, apontado por Nacht, Para solucionar essas dificuldades, Nacht49 apresenta duas
da impossibilidade prática, criada na análise-da-formação, de propostas referentes às regras que regiam o sistema de formação
o candidato abandonar o tratamento, uma vez que o rompi de sua época. Porém, suas propostas apontam os impasses e im
mento explícito com o analista comprometeria decisivamente possibilidades do próprio sistema e da organização das institui
seu futuro profissional. ções psicanalíticas, chegando a beirar o absurdo. Nacht propõe:
A conseqüência mais ampla disso é a própria estagnação 1) que o analista deixe de influir na carreira do candidato, ca
da psicanálise enquanto saber e prática. Nacht não o percebe. bendo aos supervisores a decisão sobre sua habilitação. Assim,
Analisa a impossibilidade do abandono do tratamento pelo ân o candidato seria julgado pelo seu trabalho e não pela sua aná
gulo de suas vantagens e desvantagens: por um lado, considera lise; e 2) a obrigatoriedade de uma análise complementar subse-
(*) Na poesia de Maud Mannoni 1 "o saber nasce de uma verdaàe desconcertante que surge onde não a
(*) Sobre o conceito de "produção da transferência", ver Lagache ( l 990,p.121-133). esperamos" (1989,p.9).
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
qüente para o analista reconhecido como membro da Socieda A dedicatória de Jones não poderia ser mais significati
de Psicanalítica. Esta análise evitaria as dificuldades da primei va: "A Anna Freud, verdadeira filha de um pai imortal"5º. A
ra, uma vez que não estaria sujeita a sanções por parte do ana obra é um tributo magnífico a Freud, pai imortal ao qual con
lista, e a situação transferencial seria "normalizada". verge a transferência última (e primeira) de todos os psicana
Uma vez que a estrutura das sociedades psicanalíticas é listas, seus filhos e herdeiros, senão verdadeiros como Anna,
preservada por Nacht - manutenção da hierarquia (analis imaginários e simbólicos.
tas didatas, supervisores, candidatos) e obrigatoriedade e de Assim, os psicanalistas da terceira geração olham para seus
finição pela Sociedade do tempo da análise-as contradições candidatos e herdeiros - essa geração dos ''normais", "equili
aparecem. Assim, a proposta de uma segunda análise obriga brados" e "conformistas" -com ternura, angústia e algum hor
tória vem apontar a inconsistência de sua primeira proposta, ror. Quem nos dirá das coisas que sentiria Freud, ao olhar seus
uma vez que, mesmo cabendo aos supervisores a decisão sobre psicanalistas da terceira geração?
a habilitação, a análise-da-formação obrigatória continuará a
apresentar problemas específicos, como a impossibilidade de Semper Reformari Debet
sua interrupção segundo o desejo do candidato. Além disso, Dentre os psicanalistas da época, foi Michae_l Balint quem
agora, ao invés de uma teríamos duas análises obrigatórias, deu um "passo além" nas questões colocadas quanto aos pro
com o que pergunta-se: qual o propósito, afinal, da primeira blemas da formação psicanalítica*. Ao invés de se deter sobre
análise, a "análise-da-formação"? um ou outro aspecto relativo à formação (os critérios de sele
Parece, portanto, que ao analisar os problemas da forma ção, o tempo e a duração da análise, aspectos "circunstanci
ção psicanalítica, os autores restringem-se ao nível de sua expe, ais" da transferência na análise-da-formação), Balint desloca
riência fenomênica, apontando e detectando problemas. Porém, a questão para o interior da instituição e daquilo que é perti
à maneira de um ponto cego, a estrutura institucional fica nente à "coisa" psicanalítica, nos moldes do deslocamento
intocada e os princípios da formação psicanalítica recalcados. freudiano relativo à questão da análise leiga. Assim, Balint
Tudo indica que a tendência no campo psicanalítico era a cria promove, a partir do recurso à história da psicanálise, o ques
ção cada vez maior de novas regras e proceclimentos para neu tionamento do próprio sistema de formação como um todo. O
tralizar os efeitos nocivos dos regulamentos anteriores, numa ponto de partida de seu pensamento é a questão: com tantos
espécie de moto-contínuo. Esse é o destino da burocracia, e, cuidados sobre a análise-da-formação, "quais são os resulta
em outro registro, da doença do "bom" obsessivo. dos"? E indica, de forma provocadora: "os resultados são nos
Uma curiosa coincidência vem coroar este 18º Congresso sas sociedades analíticas"51•
Internacional de Psicanálise de 1953. No mesmo ano do Congres, A provocação (no sentido de "chamar adiante") do pensa
so no qual se discutem pela primeira vez de forma sistemática os mento de Balint está no fato de apontar que, para pensar os
problemas da formação psicanalítica, o que demonstra uma preo problemas da formação psicanalídca, é preciso lançar um olhar
cupação dos psicanalistas dessa geração com o futuro e os destinos crítico sobre a maneira como esta se estruturou e, conseqüen
da psicanálise encarnada nos candidatos -seus analisandos, alu temente, sobre a própria institucionalização da psicanálise. A
nos e herdeiros imaginários e simbólicos-é publicado por Ernest perspectiva de Balint é genealógica e, portanto, desnatura-
Jones o clássico A Vida e a Obra de Sigmund Freud, referência (*) Na verdade, as idéias de Balint (1948) foram veiculadas antes do 18º Congresso de Psicanálise de Londres,
biográfica básica da literatura psicanalítica até os nossos dias. mas, ao que tudo indicai seus contemporâneos não puderam compreendê--lo em toda a sua extensão.
1
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DANIEL KUPERI\IANN TRAKSFERÊNCIAS CRUZADAS
lizadora. Não há um destino natural para a psicanálise - inclu utilizada por Freud ao analisar os efeitos da idealização promo
indo aí o sistema de formação - que viria a ser perturbado por vidos pela Weltanschauung religiosa. Assim, o pensamento inibi
fatores externos. A psicanálise é produto e produtora de si pró do apontado por Balint é o primeiro sintoma do campo psicana
pria, de sua prática e de seus destinos. E, para Balint, os resulta lítico que vem aproximá-lo da religião.
dos (as sociedades analíticas) vão mal. A atitude dogmática dos analistas no que se refere ao es
No contexto de sua época, Balint fala de um "outro tabelecimento e manutenção das regras da formação, o segun
lugar" (se referirmos seu pensamento aos limites impostos a do sintoma apontado, não é encontrada com tamanha intensi
Gitelson ou Hartmann, por exemplo). Discípulo e herdeiro dade em nenhuma outra esfera da psicanálise. Balint indica dois
simbólico de Ferenczi* - o enfant terrible da psicanálise - exemplos onde o dogmatismo é evidente: o regulamento sobre
parece reforçar a hipótese de que é preciso estar em um lu a duração da análise-da-formação e a questão da análise-de
gar "à margem" para se ter acesso a determinadas questões**. controle, já desenvolvidos no capítulo 3.
É desse lugar "excêntrico" que Balint vai pensar a psicanáli O terceiro sintoma da formação psicanalítica postulado
se "normal", apontando os sintomas que o campo psicanalí por Balint - a tendência geral dos candidatos a serem exces
tico não podia perceber: o pensamento inibido, o dogmatismo sivamente respeitosos aos seus analistas didatas - se, por um
e a tendência geral dos candidatos a serem excessivamente lado, apresenta problemas maiores quanto ao seu reconheci
respeitosos aos seus analistas. mento como sintoma, uma vez que o próprio autor afirma es
A inibição do pensamento é deduzida pela constatação tar baseado em seu julgamento subjetivo, não deixa de apon
de que praticamente não havia, na literatura psicanalítica, publi tar evidências em seu favor (não bastasse o fato de que persis
cações referentes à questão da formação. O levantamento feito te até os dias de hoje). A maior evidência surge quando se
por Balint até 1948 indica um artigo de Hans Sachs52 , umas relaciona esse candidato "obediente", apontado por Balint, com
poucas páginas de Freud em Análise Termindvel e Intermindvel o candidato "normal", discutido amplamente na literatura psi
(1937), e sete relatórios de Eitingon (entre 1925 e 1938) encami canalítica da época. O candidato "obediente" aparece como
nhados ao Comitê Internacional de Formação. Alguns traba um deslocamento efetuado na questão do candidato "normal"
lhos haviam sido apresentados em congressos internacionais - tratada como exterior ao campo analítico - para o interi
nesse período, mas não chegaram a ser publicados, nem na for or do campo e de suas produções. Assim, se recordarmos a
ma de sumários. Se considerarmos que desde 1924, em Berlim, análise de Gitelson da ecologia do candidato "normal", este
a experiência da formação psicanalítica sistematizada vinha ten aparece como efeito das características culturais da época -
do curso, é preciso concordar com Balint de que havia uma uma cultura narcísica - junto aos efeitos de uma "atmosfera
forte inibição do pensamento quanto à questão. psicanalítica" nesta cultura. Nesse sentido, o candidato "nor
Os termos "inibição/pensamento inibido", empregados por mal" é considerado um produto externo que assim chega à
Balint, remetem-nos à "proibição do pensamento", expressão formação psicanalítica, criando seus impasses; a formação psi
canalítica não estaria, portanto, implicada em sua produção.
(*) Nessa época, Balint guardava em seu poder o Dídrio Clínico de Ferenczi, que não era publicado cm Em Balint, a questão do candidato "normal" não é abordada,
função da situação marginal e desfavorável de Ferenczi junto ao pensamcntci psicanalítico dominante
(Balint, 1969). Quanto à herança simbólica, Balint recebeu de Ferenczi o anel que este havia por sua vez estando sua atenção dirigida para o candidato "obediente",
recebido de Freud como membro do Comitê Secreto (Grosskurth,1991). Assim, Balint não sô conhecia
como se identificava com o lugar de Ferenczi no movimento psicanalítico.
considerado um sintoma, ou seja, uma produção do próprio
{**) Ver o trabalho de Mezan sobre Freud, "três vezes apátrida" (Mezan,1990,p. 5 4-62 ). sistema de formação psicanalítica.
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rrRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
psicanálise. Além disso, alguns autores apontavam que o próprio
Penso que nenhum analista terá muita dificuldade em di processo de seleção para a formação favorecia obviamente o can
agnosticar a condição causadora desses sintomas. Toda a didato "normal", ou seja, outro tipo de candidato ("excêntrico",
atmosfera recorda fortemente as cerimônias primitivas de "excessivamente criativo", "exótico", "rebelde"?), considerando
iniciaçã.o. Do lado dos inicíadores - o comitê de formação que os jovens "não-normais" estivessem interessados na psicaná
e os analistas didatas - constatamos segredo sobre nosso lise*, teria sua candidatura provavelmente rejeitada. Com Balint
saber esotérico, enunciação dogmática de nossas exi (que, na verdade, só analisa o processo a partir daí), mesmo se
gências e uso de técnicas autoritárias. Do lado dos candi esse candidato "não-normal" ingressasse na formação, sofreria
datos, isto é, aqueles que se devem iniciar, constatamos a uma intropressão do superego, tornando-se, enfim, "normal" -
aceitação imediata das fá-bulas exotéricas, SUBMISSÃO ao "obe d'1ente", "respeitoso
· ", "coniorma
e do". I sto, e, claro, se não
tratamento dogmático e autoritário sem muito protesto e abandonasse de vez a psicanálise, ou, numa hipótese mais oti
CON!PORTAMENTO EXCESSNAMENTE RESPEITOSO. mista, o instituto de formação, tornando-se "independente", o
Sabemos que o objetivo geral de todos os rituais de inici que era bem mais difícil naquela época, em razão da hegemonia
ação é forçar o candidato a identificar-se com seu inici da IPA. Triste ironia para os herdeiros da peste.
ador, a introjetar o iniciador e seus ideais, e a construir Em Analytic Training and Training Analysis, Balint56 reto
a partir dessas identificações um PODEROSO SUPEREGO ma a questão das análises-da-formação, centrando o problema
que irá influenciá-lo por toda a sua vida53 . nos destinos do componente agressivo da transferência nessas
análises. Para ilustrar como a questão da agressividade passou a
Vimos anteriormente que Balint recorre à história da psi ocupar o centro dos problemas na formação, o autor recorre,
canálise - estabelecendo uma diferença entre história exotérica mais uma vez, à história.
(das conquistas e glórias do sistema) e história esotérica (dos con Nos anos 20, percebendo as carências de sua formação (que
flitos e das crises) - para demonstrar como e porque essa "in até então não era sistematizada), vários analistas decidiram por
consciente e incontrolável intropressão do superego"54 tornou-se uma nova análise. Uma vez que as "complicadas transferências cru
parte integral do sistema de formação. Convém ressaltar, no en zadas"57 em seus grupos de origem dificultavam a escolha de um
tanto, que se trata de algo específico das análises-da-formação, analista, iniciou-se um movimento migratório de analistas já es
sendo que, nas análises terapêuticas, os analisandos não estão tabelecidos em busca de análise. O efeito desse movimento no
submetidos de forma sistemática à "intropressão do superego" pensamento e na formação psicanalíticos foi a produção de gran
assim como os candidatos, que dificilmente dela escapam. de angústia- tanto pela expectativa criada com a migração quan
Assim, na época em que se corµeçava a pensar no campo to pela perspectiva de futuro retorno ao lugar de origem - e de
psicanalítico a questão do candidato "normal", Balint aponta um clima geral de ressentimento, uma vez que apareceram críti
va, na verdade, a produção de normalidade - na forma de con cas agudas em relação à técnica do primeiro analista, conjugadas
formismo, submissão, respeito excessivo e obediência - por ao envolvimento transferencial do atual analista nessa atmos-
parte do próprio sistema de formação psicanalítica. Vejamos:
Segundo Gitelson55, a "normalidade" era um sintoma cul (*) Em 1968, Anna Freud (1968) comentava que os jovens viam a psicanálise como representante do
poder parental. Pontalis (1979), dez anos depois, apontava a pergunta formulada em todos os institutos de
tural para o qual a psicanálise contribuía, em certos meios, pela formação: por que os espíritos curiosos, por que os jovens pesquisadores que querem aprender o novo
11
criação de uma atmosfera psicanalítica, favorecendo o surgimento (como dizia Freud de si mesmo) não vêm até nós?" (op.cit.,p.6).
fera de hostilidade. O resultado foi o desenvolvimento de téc iniciante seria severamente repreendido se comunicasse ao seu
nicas que pudessem prevenir o exacerbamento desses senti supervisor que não encontrou nenhum sinal de uma transferência
mentos hostis e hipercríticos na análise, protegendo tanto o negativa" 61• O fato de esta ser uma das raras instâncias em que
analisando quanto o analista de um "sofrimento humano des Freud se posicionou em um sentido e a psicanálise desenvol
necessário"58. Quando do declínio desse movimento, por vol veu-se exatamente no sentido oposto aponta a complexidade
ta de 1935, o aprofundamento do estudo dos aspectos sádico do manejo da transferência negativa na formação. Curiosamen
agressivos da transferência já tinha se tornado capital. te, dentre os psicanalistas da primeira geração, Ferenczi foi o
Os riscos do manejo da transferência negativa nas análi único que pôde denunciar os efeitos não-analíticos produzidos,
ses-da-formação nos são indicados a partir da discussão tácita desde os seus primórdios, pela formação*.
estabelecida por Freud com Ferenczi em Análise Terminável e Nos casos em que é impossibilitado de elaborar a trans
Interminável (1937). Freud se refere, nesse texto, ao caso de um ferência negativa, o candidato é obrigado a introjetar a ima
analista (trata-se de Ferenczi) que, um longo período após o gem idealizada do analista "engolindo-a por inteiro", sem po
término satisfatório de sua análise pessoal, tornou-se antago der "comê-lo aos pedacinhos" - aceitando algumas e rejei
nista daquele que o analisara (Freud), censurando-o por não tando outras de suas qualidades, técnicas ou métodos - uma
"ter concedido atenção à possibilidade de uma transferência vez que todo ataque destrutivo é interpretado e impedido. A
negativa"59• A autodefesa de Freud baseou-se em três pontos: formação psicanalítica produz assim, na metáfora de Balint,
1) na época da análise, não havia sinal de transferência negati um certo tipo de "indigestão"62• Uma vez que a imagem
va, e mesmo se houvesse apenas débeis sinais dela, achava du ambivalentemente amada e idealizada do analista deve ser
vidoso poder interferir em um complexo que não estivesse"pre preservada a todo custo como um bom e total objeto interno, o
sentemente ativo" na ocasião - ou seja, interpretando-o cedo ódio e a agressividade só podem encontrar expressão quando
demais; 2) por outro lado, ativá-lo teria exigido um comporta dirigidos ao exterior. O resultado desse processo no campo
mento inamistoso por parte do analista, o que não considerava analítico é a "intolerância", o "sectarismo" e a "fúria apostóli
indicado; e 3) nem toda relação entre analista e analisando ca", já que qualquer crítica (justificada ou não) envolvendo o
durante e após a análise devia ser considerada transferência. analista (ou sua linha teórica, método clínico, filiação
Acompanhando Freud, Balint sublinha que interpretar a institucional etc.) não pode ser suportada e elaborada63 •
transferência negativa cedo demais é impedir que ela se mani Lidar com o ódio e a agressividade sempre foi um dos gran
feste de fato, o que faz com que o analisando passe a poupar e des problemas (talvez insolúvel) da humanidade. O perigo apon
proteger o analista contra a sua real intensidade. "O ódio real e tado é que alguns analistas "orgulhosos" de suas inovações técni
a hostilidade são apenas falados", diz, "nunca sentidos, sendo cas possam pensar ter alcançado a solução. Para estes, Balint re
finalmente reprimidos pelo tabu da idealização"60• Além disso, corda uma advertência da Igreja Unitária da Hungria, que serve
a interpretação de sinais vagos da transferência negativa pode como ilustração das contribuições de Balint ao questionamento
parecer, para certos analisandos, um"comportamento inamistoso do sistema de formação psicanalítica: semper reforrnari debet** 64•
real". Por outro lado, numa crítica direta a Freud, Balint aponta
que interpretá-la tarde demais ou não interpretá-la implica o
(*) O que, ao menos em parte, depõe a favor de Freud e de sua análise (ver Ferenczi,!924;1927;1928;1933).
risco de provocar a atuação da agressividade fora do espaço (**) "Reformar incessantemente11 Percebe�se assim que a Igreja pode, às vezes, antecipar�se às institui�
•
analítico. Em relação a Freud, ele diz: "(...) hoje em dia, até um ções psicanalíticas. Se Balint não chegou a sugerir de fato reformas institucionais, as questões por de
levantadas serviram como suporte para o que viria a seguir, como veremos no próximo capítulo.
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DAKIEL KlJPERMAKK TRANSFERJ'J:NC!AS CRUZADAS
Os sintomas produzidos no campo psicanalítico foram acen vam reconhecimento junto à IPA, sendo porém pressionados à
tuados após a morte de Freud. Segundo Balint, o sistema de for tutela da Sociedade Psicanalítica de São Paulo. Melanie Klein toma
mação "superegóica" só pôde funcionar a toda potência enquan a palavra para pedir que seja reconhecida, de antemão, a legitimi,
to Freud esteve ativo na liderança do movimento, e enquanto dade de uma futura cisão entre esse grupo e a Sociedade Psicana,
sua influência era suficientemente forte para decidir, quando ne lítica de São Paulo, o que provoca fortes reações. A teórica da
cessário e em termos definitivos, "quem" e o "que" estava certo65 • agressividade e do splitting promove assim, a partir de um caso
Com seu distanciamento gradual e com sua morte, a psicanálise brasileiro, a polêmica sobre as cisões no "seio" da IPA66 •
entrava em um período caracterizado pela ausência de controle A discussão é acirrada, e uma intervenção de Robert
central e competição entre os vários grupos locais e nacionais, Waelder merece destaque:
com a ameaça constante de cisões na IPA. Portanto, proporcio Quanto mais elasticidade a Internacional ou qualquer
nalmente ao enfraquecimento real do sistema, incrementavam outra organização garantir aos seus membros, mais
se a briga entre escolas, a supervalorização narcísica de pequenas ela viverá. Quanto mais insistir em forçar a unidade,
diferenças, o proselitismo e a atitude superdominadora da antiga mais cedo romperá67.
geração, reivindicando o legítimo legado de Freud. Em 1936, a
Associação Psicanalítica Americana passava a legislar, indepen Esta frase, que ganharia no futuro próximo o estatuto de
dentemente da IPA, a formação em seu território. Começavam a profecia, vem apontar a situação da IPA no início da década de
ser criadas, assim, as condições institucionais que culminaram no 50. Paralelamente ao gigantismo e crescente burocratização, vivia
rompimento e posteriormente no corte transferencial de Lacan. se uma atmosfera proporcional de angústia de morte alimentada
pelo indício de cisões iminentes. A orientação da direção, no en,
tanto, era a de "forçar a unidade" e, estrategicamente, Hartmann
LACAN, ANALISTA DIDATA sugere uma moção para ser votada: a de que nenhuma dissensão
em sociedades reconhecidas deveria ser efetivada antes de uma
A reunião administrativa* que sucedeu o congresso de Lon consulta ao Executivo Central, para que este pudesse investigar
dres foi palco de uma curiosa discussão. Hartmann informou du suas razões. Gregory Zilboorg pergunta como esta moção afeta
rante as comunicações sobre as várias sociedades a demissão, algu rá a situação de Paris. Hartmann retruca: "Não, isso é para o
mas semanas antes, de cinco membros da Sociedade Psicanalítica futuro. Temos uma moção em pauta. Todos aqueles favoráveis a
de Paris, o que mereceria discussão posterior. O assunto seguinte ela levantem as mãos, por favor" 68• A moção é aprovada por
em pauta passa a ser então a "tempestuosa" história do Instituto unanimidade. Nesse contexto, a situação francesa é discutida.
Brasileiro de Psicanálise, cuja rivalidade entre os diretores - Mark Um mês antes, em 16 de junho de 1953, Daniel Lagache,
Burke e Werner Kemper* * - havia levado a uma cisão em 1951. Françoise Dolto, Jacques Lacan, Favez-Boutonier e Reverchon
Além disso, alguns analistas brasileiros que haviam terminado sua Jouve haviam se demitido da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP),
formação na Argentina regressavam ao Rio de Janeiro, e busca- formando um novo grupo. Ao retomar o caso parisiense, Hartmann
comunica que, por este ato, os cinco analistas perderam auto,
(*) Business meeting. Após cada congresso da IPA sucede�se uma reunião administrativa, da qual partici�
pam apenas os membros efetivos com direito a voto, onde são trnçados os destinos da Associação até o
maticamente sua pertença à IPA, uma vez que esta é obtida e
próximo congresso, incluindo a eleição da nova direção e o julgamento dos pedidos de reconhecimento de mantida através da sociedade filiada. Informa também que as de
novas sociedades componentes.
(**) Ambos trazidos ao Brasil a partir dos esforços pioneiros de Domícío Arrnda Câmara. missões ocorreram após uma reunião na qual Lacan, então presi-
124 125
'TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN
dente da SPP, recebeu um voto de desconfiança baseado na acusa gundo a noção do "tempo lógico"73, na qual não apenas a dura
ção de "sérios desvios das práticas de formação"69• Os demissionários, ção das sessões variava, mas também sua freqüência. Vimos como
por sua vez, alegavam "incompatibilidades de caráter" como moti a padronização da formação surgiu de modo a preservar o lugar
vo da cisão, e pediam o reconhecimento da IPA para a nova socie proibido de mestre ocupado por Freud. Desde então, as dispu
dade formada. Considerando que o Executivo precisaria de maio tas se dão em torno do papel de algum novo mestre pensante
res esclarecimentos antes de tomar qualquer decisão, Hartmann que. ven�a se opor à normalização que regula a paz da Interna
propõe a criação de uma comissão para investigar a situação. Marie cional. E claro que, além das implicações teórico-técnicas, a
Bonaparte ressalta que a cisão foi motivada por divergências quan regulamentação da formação vinha atender a razões de merca
to à técnica, e que será preciso um exame cuidadoso da técnica do. Assim, se por um lado ela favorece uma expansão controla
utilizada pelos membros do novo grupo, "particularmente ten da da profissão, funcionando como um "verdadeiro controle de
do em vista o fato de que um desses membros prometeu, há dois natalidade"74, a igualdade entre os herdeiros de Freud - os
anos, mudar sua técnica, mas não manteve a promessa"7º. Tra didatas - implica também uma divisão equitativa dos candi
ta-se de uma sutil referência a Lacan. Um dos participantes in datos em formação por seus divãs. Todo aquele que ameaçar
siste, perguntando pelo status dos colegas franceses durante as esse esquema, subvertendo a teoria e a técnica da formação e
investigações, e Anna encerra o assunto: "O status é o ameaçando a hierarquia estabelecida, será acusado de chefe
que eles criaram si mesmos com a demissão"71• carismático e considerado nefasto à instituição psicanalítica.
criação comissão de investigações foi aprovada por Com a técnica das sessões de "duração variável", além de
maioria, com dois votos contra. A partir de então, inicia-se um desrespeitar as normas institucionais que regiam as análises di
processo de negociações que irá durar dez anos, tendo como dáticas, Lacan ameaçava em termos práticos a distribuição dos
pivô um personagem polêmico, amado e odiado, que vai inau candidatos em análise, uma vez que, subvertendo o tempo cro
gurar uma nova era na história da psicanálise: Jacques Lacan. nológico, as relações "espaciais" também eram afetadas, e seu
Essa breve incursão pelos bastidores da Associação Psica divã passava a comportar mais analisandos, de forma que os
nalítica pretende ilustrar como, desde o início, não havia "von limites eram determinados apenas por si próprio. Isso fez com
tade política" para facilitar o reconhecimento do grupo francês que a questão do tempo lógico fosse considerada, em algumas
dissidente. Na heterogeneidade característica da IPA dos anos ocasiões, uma "questão de taxímetro"75• Na verdade, em março
50, tudo era permitido, sob a condição de que fossem respeita de 1953, um terço dos candidatos de toda a SPP analisava-se
dos e mantidos os princípios técnicos da formação, único lugar com Lacan. Este dado é cuidadosamente considerado pela dire-.
onde o poder centralizador podia ser de fato exercido, garantin ção da IPA no encaminhamento da questão francesa. Assim,
do a unidade do "império"72• Podia-se teorizar livremente, Lacan resolvia ser diferente quanto à técnica, única coisa proi
contanto que os princípios da formação fossem poupados, ou bida na Associação Psicanalítica Internacional, tornando-se
seja, todos deviam ser iguais perante a técnica. Mas como inovar persona non grata quando começaram a vir à luz efeitos de trans
na teoria sem que essa inovação afete as concepções da forma ferênc�a inéditos decorrentes de seu ensino e sua prática.
ção? O conflito manifestava-se, portanto, com respeito à técni E certo que a tradição tinha suas razões. O enquadre técni
ca, referindo-se, de fato, à teoria que autorizava esta técnica. co e transferencial estabelecido pela IPA pretendia limitar a oni-
Lacan, desde o final da década de 40, utilizava com seus imaginária dos analistas em geral, e dos didatas em par-
.
analisandos uma técnica de sessões de '!duração variável", se- ticular, promovendo um melhor manejo da transferência. Porém,
126 127
DANIEL KUPERMANK
'I'RANSFERl,:NCIAS CRUZADAS
já foi suficientemente demonstrado que esse objetivo estava lon introjeção do "bom objeto" na transferência, é no lugar do Ou
ge de ser alcançado, e, ao contrário, que os efeitos obtidos eram tro terceiro que o analista vai desempenhar suas funções. A
outros. Mais além da questão do enquadre, no entanto, havia a questão que vai se colocar, porém, é se a formulação de uma
questão teórica sobre a própria concepção do tratamento, na distinção entre Outro simbólico e outro imaginário é suficiente
qual os debates giravam em torno do primado do ego, tendên para evitar os efeitos especulares do real da prática clínica.
cia então predominante na psicanálise de língua inglesa. No que se refere às instituições psicanalíticas, Lacan cami
Nesse contexto, quando as discussões sobre os problemas nha na esteira das idéias de Balint*, denunciando os sintomas
da formação beiravam um impasse que apontava para a esterili produzidos pela formação. Se é verdade, porém, que Balint já
dade, a força e a inovação da crítica de Lacan foi articular uma apontava a identificação imaginária ao analista didata como o
relação intrínseca entre a concepção teórica vigente e a estrutura maior entrave produzido na formação, o salto dado por Lacan foi
institucional decorrente e seus efeitos76• Em Situação da Psicanálise e ter ampliado a questão - apoiado na Psicologia de Grupo de Freud
Formação do Psicanalista em 1956, em meio às comemorações do - indicando, de forma decisiva, a articulação entre as institui
centenário do nascimento de Freud, Lacan dispara: "Pois a au ções psicanalíticas, seus efeitos identificatórios, e a própria teoria
sência teórica que apontamos na doutrina nos põe em discordância do processo psicanalítico (e da didática) aí vigente: a psicologia
com o ensino, que reciprocamente a isso responde"77• A doutrina do ego. Levando o argumento de Lacan às últimas conseqüên
em questão é a psicologia do ego norte-americana e, quando se cias, chega-se à formulação de que a teoria (psicologia do ego) é
refere ao ensino, Lacan trata da formação como um todo. produzida de forma a espelhar uma estrutura institucional e uma
Seu alvo é a concepção da cura psicanalítica enquanto prática (a didática), produzindo, por sua vez, a perpetuação desta
reforço do ego do analisando pela identificação com o ego "au estrutura e desta prática a partir dos efeitos por ela (teoria) enun
tônomo" do analista, assim considerado o modelo de relação ciados - a identificação ao analista. Lacan diz:
com o real, modelo transmitido, por sua vez, pelo ego de seu
analista, e assim sucessivamente. A análise é conduzida a uma Para se transmitir (a posição de didata), na falta de dispor
relação dual que não tem outra saída senão "a dialética do da lei do sangue que implica a geração, ou mesmo a da
desconhecimento, de denegação e de alienação narcísica" 78, o adoção que supõe a aliança, resta-lhe a via da reprodução
que é próprio do ego, tratando-se de um total contra-senso imaginária que, por um modo de fac-símile análogo à im
aos esforços de Freud em referir o ego ao narcisismo como pressão, permite, se se pode dizer, a tiragem em um certo
produto das identificações imaginárias do sujeito. Portanto, o número de exemplares, em que o único se pluraliza.
ego é tomado como constituinte e modelo do real, quando o Esse modo de multiplicação não vai sem encontrar na
registro aí predominante é o imaginário. situação afinidades favoráveis. Pois não esqueçamos que
Mesmo sem nos determos na tópica formulada por Lacan, a entrada na comunidade é submetida à condição da
convém indicar que, no que se refere à transferência e ao lugar psicanálise didática, e HÁ BEM ALGUMA RAZÃO PARA QUE
do analista, Lacan propõe desde essa época um "retorno ao sim SEJA NO CÍRCULO DOS DIDÁTICOS QUE A TEORIA QUE FAZ
bólico" a partir da noção de Outro, que irá, posteriormente, DA IDENTIFICAÇÃO COM O EGO DO ANALISTA O FIM DA
originar o conceito de sujeito suposto saber. Assim, ao invés de ANÁLISE TENHA SIDO DADA À LUZ79•
o analista se engajar numa relação dual na qual é guiado em
seus atos pela contratransferência, cabendo ao analisando a (*) O artigo capital ele Balint (l 948), criticando os institutos psicanalíticos e os sintomas aí produzidos,
não só foi lido como também divulgado por Lacan na SPP (Roudinesco,1988,p.271).
128
-rRAKSFERÊNCIAS CRCZADAS
os acompanha. Tem início assim a conturbada história da So 1957, que tem lugar justamente em Paris, nenhuma referência
ciedade Francesa de Psicanálise em sua busca de reconheci é feita à SFP. No discurso de abertura, Hartmann diz: "Hoje
mento internacional. todos observamos com a maior satisfação o renascimento cheio
A comissão de inquérito criada no congresso de 1953 foi de promessas da psicanálise na França"86• Se as intenções estão
composta por quatro analistas: Winnicott, Greenacre, Hoffer e mais do que claras, a direção da IPA demonstra também um
Lampl-De Groot. Seu trabalho consistiu na avaliação, através alto grau de alienação quanto à situação da psicanálise francesa
de entrevistas com os membros analistas e candidatos, da estru e os traçados de seu destino.
tura da nova sociedade e dos motivos da cisão. A conclusão das Uma outra carta de Hartmann, desta vez a Favez-
investigações, anunciada no congresso de Genebra, em 1955, Boutonier, é ilustrativa:
foi de que o "grupo de Lagache" não deveria ser reconhecido (...) também a senhora volta a me falar em Lacan.
como sociedade componente da IPA, pelo desajustamento da Chego quase a temer que estejamos assistindo à cria
formação e da capacidade de ensino ali encontrada. Ao mesmo ção de um mito. E espero que admita, a despeito da
tempo, Hartmann anunciava que as dificuldades conseqüentes admiração que tem por ele (bem sei que é um homem
da cisão na SPP haviam sido "elegantemente superadas", e que brilhante), que isso é mais do que ele merece (...) Será
o Instituto de Psicanálise estava consolidado84 . justo explicar que lhe queremos mal pelo fato de ter ele
A questão do reconhecimento da SFP ganhava contornos muita personalidade ? 87
definidos, apontando cada vez mais para o incômodo do ensino e
da prática de Lacan. Respondendo a uma indagação de Lagache A ironia vem apontar que é bem disso que se tratava -
sobre outras queixas que a IPA teria contra a SFP além das ses o temor de que, com seu ensino e seu "carisma", Lacan se
sões curtas de Lacan, Hartmann escreve, em março de 1955: tornasse um novo mito. Por seu turno, talvez prevendo o des
• fecho da novela, Lacan não facilita as coisas, e o que escreve88
Que Lacan tem algo a ver com isso, como diz o senhor, decerto não melhora a sua situação perante a IPA.
é verdade. Mas Lacan não é um membro qualqu�r de Em 1959 é criada, durante o congresso de Copenhague,
sua sociedade. Ele está (...) em primeiro plano (... ). uma nova comissão para avaliar mais um pedido de reconheci
Sei, por um número considerável de fontes, que seus mento da SFP. Paula Heimann, Use Hellman e Van der Leeuw
ensinamentos têm um peso enorme sobre os estudantes. compuseram a comissão que, dirigida por Pierre Turquet, ficou
Em que se transformarão os analistas formados por ele? 85 conhecida como "comissão Turquet". Esta comissão, a exemplo
Essa é a questão. Explodindo os regulamentos técnicos da anterior, "escuta" depoimentos dos membros e dos candida
padronizados nas análises que conduzia, Lacan criava uma situ tos em formação na SFP. É inspirado na idéia dessa "escuta"
ação que escapava ao controle transferencial exercido por qua que, segundo Roudinesco89 , Lacan criará o mecanismo dopas
se trinta anos, e o receio da IPA pode ser ilustrado como uma se, no qual o·analista testemunha, no "só depois" de sua análise,
"síndrome de Golem" - "que Golem psicanalítico será cria o que o fez passar da posição de analisando a analista, constitu
do"?* As negociações são interrrompidas, e as posições se indo sua análise efetivamente como didática90•
radicalizam. No 20º Congresso Internacional de Psicanálise de O efeito decisivo da "escuta" da comissão Turquet foi a
revelação de que a maioria da SFP desaprovava a prática de
(*) Sobre o mito do Golem, criatura feita de barro presente em lendas judaicas, ver Wiesel,E. O Galem.
Rio de Janeiro, Imago, 1 986.
• Lacan, querendo, no entanto, preservar seu ensino, e que a
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DANIEL KUPERMANN 'I'RANSFERÊNCIAS CRCZADAS
maior parte de seus analisandos considerava-se vítima de uma "Diretriz", excluindo Lacan de sua lista de didatas. A cisão que
técnica que não aceitava91 • fez um corte na história da psicanálise estava consumada.
A partir do relatório da comissão, o Executivo Central da Em maio de 1964 a SFP dá lugar a umFrench Study Group,
IPA apresentou, no congresso de Edimburgo, em 1961, a con composto pelos partidários da IPA, que logo assumiria o nome
clusão das negociações: a SFP deveria retirar seu pedido de re de Associação Psicanalítica da França (APF). Em 1965, no con
conhecimento como sociedade em troca do status de Grupo de gresso de Amsterdã, a APF seria finalmente reconhecida como
Estudos. Uma comissão especial foi designada para supervisio sociedade componente da IPA, sob uma torrente de aplausos94•
nar suas atividades, particularmente no que se refere à forma Na "outra cena", em 21 de junho de 1964, Lacan lê pe
ção. Além disso, uma lista de "recomendações" formulada pela rante seus discípulos reunidos na residência de François Perrier,
comissão Turquet deveria ser respeitada com vistas à normali a Ata de Fundação da Escola Francesa de Psicanálise, que poste
zação. Entre as recomendações, a de que todas as análises de riormente receberia o nome definitivo de Escola Freudiana de
vem ser conduzidas nas bases mínimas de quatro sessões sema Paris (EFP): "Fundo - tão sozinho como sempre estive na mi
nais de quarenta e cinco minutos cada... nha relação com a causa psicanalítica - a Escola Francesa de
William Gillespie, então presidente da IPA, transmite Psicanálise..."95• A fundação da EFP marca a história da psica
durante a reunião administrativa um relato feito por Serge nálise como a primeira dissidência da IPA que reivindicou e
Lebovici em nome da rival SPP: "Após considerações cuidado sustentou o adjetivo "freudiana" para si. As conseqüências des
sas e discussão privativa, eles (os membros da SPP) acreditam te marco são analisadas no próximo capítulo.
que a supervisão proposta fará todos os esforços para promover Roudinesco96 levanta a hipótese de que a busca efetuada
bons elementos na SFP, e eliminar, dentro do possível, os ele por Lacan, durante uma década, no sentido de integrar-se ao
mentos indesejáveis"92• império da IPA, funciona como "o sintoma de uma vontade do
A comissão Turquet retoma as investigações em janeiro mestre de não tornar-se um chefe de instituição". Em seu argu
de 1963. Como nada mudou, Turquet redige um relatório que mento, Lacan teria ciência da incompatibilidade entre o exercí
dará um fim à situação. Sublinha que os analisandos de Lacan cio real de um poder institucional e a posição de mestre pensante,
"permanecem passivos frente a um mestre que vê a si mesmo e a vinculação à IPA viria poupá-lo do destino de administrar
como fonte única de recompensas e punições"93, e solicita o corte uma política em nome próprio. Prova disso estaria no fato de que
de Lacan (e também de Dolto) da lista de didatas, exigindo que a parte essencial de sua obra foi elaborada durante o período de
seus candidatos fossem "transferidos" para outro analista. negociações. Porém, devido aos "paradoxos de seu temperamen
No interior da SFP, a maioria dos membros efetivos consi to", Lacan não conseguiria evitar a fusão de sua pessoa com sua
derava que não havia contradição entre o ensino de Lacan e a doutrina, demandando de seus alunos amor e servidão.
normalização imposta pela IPA, dispondo-se a pagar o preço O retorno a Freud propagado por Lacan vem, neste senti
exigido em troca do reconhecimento internacional. Após o con do, apontar um paradoxo: "o lacanismo existe na medida em
gresso de Estocolmo, o Executivo da IPA divulga, em agosto de que não existe"97• Existe enquanto movimento histórico pós
1963, uma "Diretriz" exigindo o cumprimento das "Recomenda freudiano de reestruturação ortodoxa do freudismo; mas não
ções" de Edimburgo, acrescentando formalmente o não-reconhe existe exatamente por pensar a si mesmo como a saída teórica
cimento de Lacan como analista didata. Em 13 de outubro de para a realização do freudismo em sua época, o que fez com que
1963, a comissão de estudos da SFP vota pelo cumprimento da Lacan denominasse sua reformulação (e também sua escola) de
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ÜANIEL KUPERMANN TRANSFERftNCIAS CRUZADAS
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERJê:NCIAS CRUZADAS
27. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cít., p.164. 64. Balint, M. Idem, p.162.
28. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". Op.cit., p.247. 65. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cit., p.170.
29. Cf. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Rio de Janeiro, 66. 106th Bulletin of the Intemational Psycho-Analytical Association. International
Jorge Zahar, 1989. journal of psychoanalysis. 35. London, 1954, p.273.
30. Heimann, P. "Problems of the training analysis". Op.cit., p.165. 67. Idem, p.274.
31. Heimann, P. Idem. 68. Idem.
32. Grotjahn, M. "About the relation between psycho-analytic training and psycho 69. Idem, p.276.
analytic therapy". International journal of psychoanalysis. 35, London, 1954. 70. Idem.
33. Grotjahn, M. Idem, pp. 255-256. 71. Idem, p. 278.
34. Bibring, O. "The training analysis and its place in psycho-analytic training". 72. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.244.
International journal of psychoanalysis. 35. London, 1954. 73. Cf. Lacan, J. (1945) "Le temps logique et l'assertion de certitude antecipeé". In
35. Bibring, O. Idem, p.170. Ecrits. Paris, Seuil, 1966.
36. Cf. Lagache, D. A transferência. São Paulo, Martins Fontes, 1990. 74. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.247.
37. Grotjahn, M. "About the relation between psycho-analytic training and psycho 75. Roudinesco, E. Idem, p.357.
analytic therapy". Op.cit., p.255. 76. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálíse e formação do psicanalista em 1956".
38. Bibring, O. "The training analysis and its place in psycho-analytic training". In Escritos. São Paulo, Perspectiva, 1988; Lacan, J. (1957) "La psychanalyse
Op.cit., p.170. et son enseignement". ln Ecrits. Op.cit.
39. Bibring, O. Idem, p.171. 77. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
40. Bibring, O. Idem, p.173. ' Op.cit., p.203.
41. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". Op.cit. 78. Lacan, J. (1957) "La psychanalyse et son enseignement". Op.cit., p.454.
42. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic 79. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
psycho-analysis". Op.cit. Op.cit., p.207, parênteses e grifo nossos.
43. Nacht, S. Idem, p.251. 80. Lacan, J. (1957) "La psychanalyse et son enseignement". Op.cit., p.456.
44. Nacht, S. Idem. 81. Lacan, J, (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
45. Nacht, S. Idem. Op.cit., p.220.
46. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". Op.cit., p.248. 82. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., pp. 242 - 245.
47. Nielsen, N. Idem, p.249. 83. Roudinesco, E. Idem, pp. 255-272.
48. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic 84. 110th Bulletin of the Intemational Psycho-Analytical Association. International
psycho-analysis". Op.cit., p.252. journal of psychoanalysis. 37. London, 1956, p.122.
49. Nacht, S. Idem, p.253. 85. Apud Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.341.
50. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro, Imago, 1989. 86. 113th Bulletin of the lntemational Psycho-Analytical Association. International
51. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cit., p.164. joumal of psychoanalysis. 39. London, 1958.
52. Sachs, H. "Observations of a training analyst". Op.cit. 87. Apud Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.342.
53. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cit., p.167. 88. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
54. Balint, M. Idem. Op.cit; Lacan, J. (1957) "La psychanalyse et son enseignement". Op.cit.
55. Gitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' 89. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit.
candidate". Op.cit. 90. Lacan, J. (1967) "Proposição de 9 de outubro de 1967". Letra Freudiana. Ano I, n2 O.
56. Balint, M. "Analytic training and training analysis". Op.cit. 91. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit. p.349.
57. Balint, M. Idem, p.159, grifo nosso. 92. 120th Bulletin of the Intemational Psycho-Analytical Association. Intemational
58. Balint, M. Idem. journal of psychoanalysis. 43. London, 1962.
59. Freud, S. "Análise terminável e interminável". In E.S.B. Op.cit., Vol. 93. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit. p,363.
XXIII, p.253. 94. Roudinesco, E. História da psicanálise na França. - Vol. II. Idem, p.392.
60. Balint, M. "Analytic training and training analysis". Op.cit., p.161. 95. Lacan, J. (1964) "Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris". Letra Freudiana.
61. Balint, M. Idem, p.160. Ano I, nº O.
62. Balint, M. Idem, p.161. 96. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit. p.317.
63. Balint, M. Idem. 97. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Idem, p.318.
138 139
Parte Ili
.LACAN
E O CORTE
TRANSFERENCIAL
ência histórica concreta desses dispositivos é sempre problemática. Trata�se de universos distintos, e a
opção pelo instrumento histórico é explícita no decorrer de toda a pesquisa.
143
no discípulo do analista transmissor, que ao longo de sua exis vivacidade, esta problemática ainda atual do campo psicanalíti
tência vai repetir inapelavelmente os discursos do mestre, per co. Problemática fundamental, como dissemos acima, pois são os
dendo, com isso, a liberdade de dizer e de pensar. destinos e o futuro da psicanálise que estão aqui em questão. A
Neste contexto, o discurso analítico se transforma no dis obra nos indica com clareza como, ao longo da história da psica
curso do mestre e no discurso universitário, para nos valermos nálise, os impasses do processo de formação psicanalítica foram se
dos conceitos de Lacan.16 Com isso, a histericização do sujeito constituindo e se cristalizando, até se transformarem decisivamen
não se desenvolve na experiência transferencial, esvaindo-se te em impossibilidades reais para a transmissão da psicanálise. Além
pois as suas possibilidades desejantes, de forma a se delinear disso, nos mostra como a relação entre o analista e o analisante,
então as condições de instauração do masoquismo. marcada pela assimetria sacio-masoquista, pode até mesmo se
Em contrapartida, na fidelidade transferencial as coisas se transformar numa relação de tortura. Parece-nos que esta é a ou
processam de maneira bem diferente. Nesta modalidade de trans sadia maior deste trabalho, que retira as conseqüências devidas
ferência o sujeito pode disferir golpes mortais na figura do analista, do caldo da cultura que alimenta as ditas análises de formação
de maneira a inscrever simbolicamente a castração no espaço psi psicanalíticas. Caldo de cultura sadomasoquista, evidentemente,
canalítico e no lugar do analista. Com isso, o sujeito pode afrontar que permite todos os usos e abusos do outro, em nome de supos
a angústia e o desamparo que se colocam na cena psicanalítica, em tas verdades da psicanálise. Em verdade, estraté<;ias refinadas de
função da incerteza que se inscreve no processo analítico. Porém, é poder, que esterilizam a psicanálise por impedL :m efetivamente
justamente isso que permite ao sujeito lidar de uma outra maneira a sua transmissão, de maneira a cortar qualquer possibilidade in
com a sua tradição teórica e clínica, assumindo uma liberdade de ventiva no campo psicanalítico. A história recente da psicanálise
dizer e de pensar, que renova o seu campo simbólico de filiação. no Brasil nos indica que este desdobramento, da transformação
A invenção se coloca pois como possível, indicando então que da assimetria presente na relação sadomasoquista em tortura, é
esta perspectiva ainda é viável na tradição da psicanálise. possível de acontecer no campo do real, não se restringindo pois
Ao que tudo indica, as análises que se mostram efetiva a uma simples metáfora e a uma figura de retórica.
mente produtivas para o sujeito são aquelas marcadas pela fide Poder-se-ia perguntar, neste momento de arremate deste
lidade transferencial, sejam aquelas análises de formação psica percurso teórico, se a fidelidade transferencial que enunciamos
nalítica ou não, pouco importa aqui esta distinção. Com isso, a não seria algo da ordem da utopia, isto é, algo que não tem lugar
psicanálise se transmite efetivamente, dando ao sujeito a possi possível no universo do real mas apenas no universo imaginá
bilidade de invenção e de ruptura com as cadeias mortíferas da rio. Objeção válida, certamente, quando se pode constatar que
repetição. Porém, nas análises marcadas pela submissão o que se implantou de fato, no campo psicanalítico, foi a servi
transferencial, a transmissão da psicanálise não se realiza, de dão transferencial. Não estamos convencidos disso. Pelo con
maneira a se instaurar a esterilidade psíquica e o masoquismo. trário, parece-nos que a transmissão da psicanálise até hoje so
mente foi possível em função da fidelidade transferencial. Vale
dizer, a produção de novas teorias e de novos conceitos na his
UTOPIA? tória da psicanálise somente foi possível porque aconteceu a
fidelidade transferencial. A emergência de psicanalistas
Parece-nos que a obra de Daniel Kupermann é rica justa inventivos, como Ferenczi, M. Klein, Winnicott, Bion e Lacan,
mente porque nos permite relançar novamente, com agudeza e apenas foi possível porque aconteceu a fidelidade transferencial.
238 239
Porém, é bom que não se esqueça também que fidelidade
transferencial quer dizer também que o sujeito tem a possibili
Notas
dade de ruptura e de transgressão com as verdades e os sistemas 1. Lacan, J. L'éthique de la psychanalyse. Le séminaire. Livre V II. Paris, Seuil, 1986.
instituídos. É isso que implica que a transferência de trabalho se 2. Freud, S. "Pulsions et destins des pulsions" (1915). In: Freud, S. Métapsychologie.
produza pela remodelação do trabalho da transferência, para Paris, Gallimard, 1968.
3. Freud, S. "La moral sexuelle "civilisée" et la maladie nerveuse des temps modernes"
nos valermos novamente dos conceitos forjados por Lacan. (1908). In: Freud, S. La vie sexuelle. Paris, Press Universitaires de France,
Contudo, isso pressupõe que o sujeito deve correr o risco de 1992, p. 33-34.
perder as insígnias da falicidade e de afrontar a angústia da cas 4. Freud, S. Nouvelles conférences d'introduction à la psychanalyse (1932). Paris,
Gallimard, 1984, p. 131.
tração, para romper com as identificações masoquistas e poder 5. Ferenczi, S. "Analyse d'enfant avec des adultes". ln: Ferenczi, S. Psychanalyse 4.
assumir então a liberdade erótica de pensar e de dizer. Oeuvres Completes. Paris, Payot, 1982.
Para isso, é preciso ousadia para experimentar a angústia 6. Balint, M. "On the psychoanalytic training system". In: International]ournal of
do desamparo e as incertezas do processo psicanalítico. Esta é a Psychoanalysis. Volume 20. Londres, 1947; Balint, M. "Analytic training
and training analysis". Idem. Volume 35. Londres, 1954.
utopia que a psicanálise torna possível no universo do real, ao 7. Gitelson, M. "Problems of psycho-analytic training". In: Psychoanalytic Quarterly.
promover a possibilidade do desejo para o sujeito pelo ato psica Volume 17. Número 2. New York, 1948; Gitelson, M. "Therapeutic problems
nalítico. Afora isso, fica apenas o resto da submissão transferencial, in the analysis of the "normal" candidate". In: International ]ournal of
Psychoanalysis. Volume 35. Londres, 1954.
maneira fácil de ganhar a vida sem precisar correr os riscos que 8. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic
esta implica. Porém, devemos nos entender bem: o resto aqui psycho-analysis". Idem.
não indica o objeto a, o objeto causa do desejo de Lacan, mas o 9. Lacan, J. "Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956".
lixo, a posição antidesejante por excelência, a morte da possibili In: Lacan, J. Écrits. Paris, Seuil, 1956; Lacan, J. "La psychanalyse et son
enseignement" (1957). Idem.
dade de desejar pelo sujeito. Conseqüentemente, o resto vai para 10. Sobre isso, vide: Aulagnier, P. "Sociétés de psychanalyse et psychanalyste de
a lata do lixo, como sempre, não se inscrevendo pois nos circuitos société". ln: Topique. Número 1. Paris, Presses Universitaires de France,
fascinantes do desejo e do erotismo. Por isso mesmo, o resto lixento 1969; Perrier, F. "Sur la psychanalyse didactique". ln: Topique. Números 1 e
2. Idem, 1969-1970.
da submissão transferencial pode alimentar "belas" carreiras psi 11. Freud, A. "Difficultés survenant sur le chemin de la psychanalyse" (1968). In:
canalíticas, conferir grandes poderes institucionais, mas de nada Nouvelle Revue de Psychanalyse. Número 10. Paris, Gallimard, 1974.
serve para a transmissão da psicanálise. 12. Mannoni, O. "Je sais bien, mais quand même". ln: Mannoni, O. Clefs pour
Ufa! Que alívio! Ainda bem que o futuro da psicanálise l'imaginaire ou l'autre scene. Paris, Seuil, 1969.
13. Freud, S. "L'analyse avec fin et l'analyse sans fin" (1937). ln: Freud, S. Résultats,
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carreiristas! Porém, é preciso reconhecer que eles atrapalham p. 266-268.
bastante, pois impossibilitam a livre circulação libidinal e a cri 14. Idem, p. 267.
15. Idem.
ação. Livremo-nos deles, rapidamente, para não sermos sufoca 16. Lacan, J. L'envers de la psychanalyse. Le Séminaire. Livre XVII. Paris, Seuil, 1991.
dos pelo lixo e pelo resto, para continuarmos ainda a realizar a
utopia da invenção desejante da psicanálise.
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248 249
Do editor
Pequeno glossário de
conceitos psicanalíticos
Complexo de Édipo
"Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a
criança experimenta em relação aos pais" (Laplanche & Pontalis,
1983, p.116), o qual, segundo algumas tendências psicanalíticas,
irá reeditar em suas relações ao longo da vida.
Contratransferência
Conceito pouco desenvolvido por Freud, que pôde ser
entendido como o "conjunto das reações inconscientes do ana
lista à pessoa do analisando e mais particularmente à transfe
rência deste" (Laplanche & Pontalis, op.cit., p.146), como tam
bém o conjunto das transferências do próprio analista. Tanto
uma definição quanto a outra apontam para o problema da in
terferência no curso da análise, ou seja, no acesso do analisan
do ao seu próprio inconsciente, já que a análise só avança até
onde permitem os complexos e resistências do psicanalista
(Freud, 1910, p.130). Assim, a conceituação da contra
transferência e seus efeitos implica na necessidade do analista
levar a bom termo a sua própria análise pessoal.
Ego
O eu como empregado originalmente por Freud).
Instância psíquica responsável, conforme a segunda teoria
251
metapsicológica apresentada por Freud, pela mediação dos in centrar numa palavra a descoberta freudiana, essa palavra seria
teresses contraditórios da vida psíquica, atendendo assim às rei incontestavelmente a de inconsciente" (op.cit., p. 307).
vindicações do id, aos imperativos do superego, bem como às
exigências da realidade. Recalque
Mecanismo defensivo próprio das neuroses, através do qual
Id 0 ego toma fraca uma representação incompatível com os seus
O isso (das Es). Instância que representa a sede das pulsões, interesses, privando-a de sua intensidade afetiva, mantendo-a
cujos conteúdos são sempre inconscientes, sendo também o reser assim inconsciente.
vatório primitivo da energia psíquica. Suas reivindicações à vida
mental entram em conflito com os interesses do ego e do superego Resistência
que, do ponto de vista genético, são derivações dele próprio. Considera-se resistência tudo o que, na vida psíquica do
analisando, se opõe ao trabalho da análise - em última instân
Identificação cia, ao acesso ao seu inconsciente - interferindo no bom
Processo psíquico pelo qual o sujeito assimila atributos de funcionamento da regra fundamental da associação livre. Pode
um outro, transformando-se e constituindo-se assim segundo se também postular uma resistência do analista, ao qual deve
sucessivos modelos identificatórios. se estar atento. Enfim, Freud refere-se também a uma resistên
cia por parte da cultura à psicanálise, pelo fato de esta revelar a
Imago qualidade das pulsões sexuais reprimidas em seus fins na consti
Modelo inconsciente de personagens elaborados a partir tuição dos "elevados ideais de moralidade" sustentados social
das primeiras relações intersubjetivas reais e fantasmáticas mente (Freud, 1925, p.272).
estabelecidas no meio familiar que vai determinar a forma como
o sujeito apreende o outro (cf. Laplanche & Pontalis, op.cit., Superego ..
p.295). Pode-se assim falar em imago paterna, materna etc. O supereu (das Uber-Ich). Instância que representa as
exigências e interdições parentais e culturais na vida psígu�ca.
Inconsciente Classicamente definido como herdeiro do complexo de Ed1po,
Inicialmente, o inconsciente designa para Freud um sis Freud nele reconhece as funções da consciência moral, da auto
tema integrante e determinante da vida mental que é regido observação e da formação de ideais (cf. Laplanche & Pontalis,
por princípios e leis próprias (diferentes da consciência) e cons op.cit., p. 643).
tituído por conteúdos representacionais particulares. Com a
reformulação de sua �eoria do funcionamento psíquico, o in Transferência
consciente passa a ser empregado mais de forma adjetiva, uma Processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam
vez que tanto o id, como em parte o ego e o superego, são in sobre determinados objetos, principalmente através de uma
conscientes. Convém ressaltar que o essencial da descoberta reedição de protótipos infantis. Na maior parte das vezes em
freudiana está na constatação de que a maior parte de nossa que se referem à transferência, os psicanalistas estão tratando
vida mental não é regida pela consciência, e sim pelo inconsci do conjunto dos fenômenos afetivos que constituem a relação
ente. Laplanche e Pontalis sublinham que, "se fosse preciso con- do analisando com o analista. No entanto, a amplitude do con-
252 253
ceito transcende o espaço do setting analítico, podendo-se tam
bém considerar a transferência presente e atuante nas circuns
tâncias e nas relações da vida corrente (cf. Lagache, 1990;
Ferenczi, 1909). A própria definição dos limites do conceito é
problemática, persistindo como um desafio teórico e clínico para
o campo psicanalítico. "A transferência é classicamente reco
nhecida como o terreno em que se joga a problemática de um
tratamento psicanalítico", ressaltam Laplanche & Pontalis, "pois
são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e
a sua resolução que caracterizam este" (op.cit., p.669).
ABREVIATURAS
Joel Birman