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a psicanálise, como em qualquer outro lugar,

a institucionalização não encoraja o pensamento. Se


a sentença proferida por Bernfeld é verdadeira,
quais as conseqüências concretas para os destinos
da psicanálise e dos psicanalistas?
Ao se comemorar os cem anos de existência da
psicanálise, e utilizando-se das próprias
ferramentas conceituais psicanalíticas,
Transferências Cruzadas historia e questiona esta
importante problemática, reconstituindo
criticamente o processo de institucionalização da
psicanálise ao longo do século, desde a sua
origem com Freud até o "corte transferencial"
provocado por Jacques Lacan. Analisa também,
à guisa de caso exemplar, o ainda polêmico e
incômodo episódio da psicanálise no Brasil
referente ao envolvimento de um candidato em
formação psicanalítica com as práticas de tortura
durante o regime militar - o caso Amílcar Lobo
-, e conclui com uma provocante hipótese sobre
a atualidade do campo psicanalítico.
O fio condutor que tece o argumento deste
livro é a constatação de que há uma tensão
irredutível entre o que a psicanálise se propõe
enquanto processo terapêutico e as vicissitudes de
sua institucionalização, isto é, entre a experiência
singular do inconsciente e as formas pelas quais a
psicanálise vai se organizar, manter e perpetuar na
cultura. Os esforços em levar esta tensão ao limite
permitem extrair daí todas as conseqüências.
Assim, através de um olhar marcadamente
excêntrico, à margem das versões das histórias
oficiais presentes em todas as tendências, Daniel
Kupermann desnaturaliza instituições como a
formação do analista, sua suposta neutralidade e
mesmo o caráter subversivo tradicionalmente
atribuído à psicanálise, revelando as estratégias de
poder que as constituem.
DANIEL KUPERMANN

Uma História da Psicanálise


e suas Instituições

Leitura crítica
Joel Birman

Editora Revan
Copyright© 1996 by Editora Revan Llda.

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Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por
meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica sem a
autorização prévia da editora.

Coordenação editorial
Patricia Riani Grecco
Revisão de provas
Dalva Maria da Silveira
Capa
Olive & Ristow
Comunicação Integrada

Foto do autor
Rosane Bekierman
Impressão
(em papel off-set 75g lipo)
Graphos

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

K981 Kupermann, Daniel, 1963-


Transferências Cruzadas-uma história da
psicanálise e suas instituições/Daniel Kupermann;
leitura crítica Joel Birman. -Rio de Janeiro:
Revan, 1996.
256p.-(Série Anima)
ISBN 85-7106-103-3

l . Freud, Sigm1md, 1856-1939. 2. Lacan,


Jacques,190 l -1981. 3. Transferência (Psicologia).
4. Psicanálise-História. 1. Título. li. Título: Uma
história da psicanálise e suas instituições. Ili. Série para Mitizy
CDD-150.195
96-1149 CDU-l 50.964.2

1996
Editora Revan
Av. Paulo de Frontin, 163
PBX: (021) 293-4495 Fax: (021) 273-6873
20260-01O-Rio de Janeiro -RJ
-,.n,; '.J: reva.;eôi,or. "':'ax i'l,c.org
Sumário

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 9
Essas complicadas transferências cruzadas ...
Uma passagem quase despretensiosa de Michael
Balint inspirou o título deste livro, que é uma versão de I. FREUD E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PSICANÁLISE
minha dissertação de mestrado defendida junto ao 1. TEMPOS DE GUERRA ...................................................................... 19
Departamento de Psicologia da PUC-R]. Como todo 2. LA THÉORIE, c'EST BON, MAIS ......................................................... 2 7
trabalho acadêmico, este é devedor de múltiplas influên­ A teoria como proibição do pensamento ............................. 31
cias e do apoio de várias amizades, intelectuais e vitais, às 3. FREUD E O MOVIMENTO PSICANALÍTICO ...................................... , ..... 39

quais reconheço e agradeço. Na impossibilidade de ser O convite à transferência .................................................... 39


infinitamente justo na tarefa de indicá-las, ficarei hu­ A sociedade psicológica das quartasjeiras ............... 42
manamente restrito àquelas que estiveram mais próximas A transferência das transferências . :..................................... 4 7
A criação da IPA ................................................... 49
da sua elaboração e, posteriormente, desta edição. Freud e o retorno a Freud .................................................. 54
Agradeço particularmente a Angela Baraf A recusa da amizade ............................................... 55
Podkameni, orientadora desta pesquisa, o incentivo e o O comitê secreto ...................................................... 64
reconhecimento constantes. A]oel Birman, que apontou A "bomba" .......................................................... 68
novos horizontes em momentos decisivos deste percurso, Dura !ex, sed !ex: o assassinato do pai ................................ 72
e contribuiu generosamente para a edição com um belo A formação superegóica ........................................ 7 6
ensaio crítico. A]unia de Vilhena, a leitura carinhosa e O assassinato do pai .............................................. 79
os valiosos comentários. A Isidoro Eduardo Americano
do Brasil, o acolhimento junto às idéias de Lacan. E a II. A PSICANÁLISE EM MEADOS DO SÉCULO
Andréa Albuquerque, o rigor amigo e as sugestões
sempre precisas na leitura dos originais. 4. PROBLEMAS EM FORMAÇÃO ............................................................. 91
A Helena Besserman Vianna e Paulo Sternick , Os sintomas de uma cultura psicanalítica ........................... 91
O candidato "norma!" e sua ecologia ................................. 95
agradeço especialmente a interlocução e a iniciativa em As vicissitudes da transferência na formação psicanalítica ... 103
tornar público o trabalho. Semper reformari debet ....................................... 11 7
A Ely e Dave, meus pais, o holding e a con­
fiança incondicionais.
A Chaim Samuel Katz, a amizade que o faz III. LACAN E O CORTE TRANSFERENCIAL
tornar a psicanálise tão próxima. 5. DoRETORNO AFREUD AOÚLTIMOFREUDIAN0 ............................... 143
Lacan e o retorno a Freud ................................................ 144
Transmissão e transferência .............................................. 14 7
O último freudiano .......................................................... 157
6. "Novos" PROBLEMAS EMFORMAÇÃO ............................................. 165
IV. EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
7. UM ENSAIO ANTROPOFÁGICO: O CASOÂMÍLCARLOBO ...................... 179
A hora do Carneiro ........................................................... l 80
A hora do Lobo ................................................................ 186

V. EPÍLOGO
8. UMA HIPÓTESE SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA PSICANÁLISE ............... 203
CONCLUSÃO ..................................................................................... 211

LEITURA CRÍTICA
A INVENÇÃO DESEJANTE DA PSICANÁLISE
Introdução
porloe/Birman ............................................................................ 217

BIBLIOGRAFIA GERAL ........................................................................... 242


O relato de um sonho - o sonho da injeção de Irma -
apresentado por Freud no segundo capítulo de A Interpre­
tação de Sonhos, é o marco inaugural de nossa história. A análise
PEQUENO GLOSSÁRIO DE CONCEITOS PSICANALÍTICOS ............................. 251 do "sonho modelo", ilustrativo de seu método de interpretação,
funda a transmissão da experiência psicanalítica e estabelece, a
um só tempo, a condição básica segundo a qual a psicanálise se
institucionalizará: a transferência a Freud. Mostramos na pri­
meira parte que em A Interpretação de Sonhos é formulado um
convite à transferência a partir do qual forma-se, em tomo de
Freud, o grupo que daria início ao movimento psicanalítico. A
Interpretação de Sonhos coloca-se, portanto, como texto funda­
dor da transmissão da experiência psicanalítica e de sua institu­
cionalização, e vem apontar que, entre sonhos e utopias, uma e
outra são reguladas pela transferência.
Etimologicamente, como sublinha Lapassade 1 , o sentido
ativo de instituição diz "fazer com que se mantenha de pé".
Freud, em relação à psicanálise, tinha desejo de instituição. Ao
incentivar a criação da Associação Psicanalítica Internacional
(IPA), pretendia organizar o movimento psicanalítico,
condensando os esforços de desenvolvimento e difusão, preser­
vando, ao mesmo tempo, a especificidade da psicanálise da po­
pularidade crescente. Tratar-se-ia de um centro com autorida­
de para estabelecer os limites entre o fora e o dentro, entre o que
é e o que não é psicanálise. Nesse momento histórico, a refe-
9
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

rência predominante na institucionalização da psicanálise é o e desmistificar o processo de institucionalização da


registro teórico-clínico. analisando- em momentos históricos que nos serviram como
Durante sua vida, Freud buscou realizar dois desejos relati­ marcos- as relações dos psicanalistas com a própria psicanáli­
vos à psicanálise de difícil conciliação: promover sua difusão social se como produto e produtoras desse mesmo processo.
e manter a força e o vigor originais; institucionalizá-la, sem perder Assim, a partir dos anos 20, com a sistematização e padroni­
seu caráter transgressivo, o que significava não ceder às deforma­ zação da formação psicanalítica, a IPA passou a ter como função
ções exigidas pelas resistências da cultura que a própria difusão primordial gerir a formação dos futuros psicanalistas, atuando não
da psicanálise incita. A psicanálise "farà da se"2 (se fará por si). mais apenas no registro teórico-clínico, mas também no registro
Essas resistências - e a história, apoiando a teoria, vem da autorização e habilitação de uma prática social. Como, desde
testemunhar- se apresentam nas tentativas de captura da psi­ então, o aspecto privilegiado da formação psicanalítica é a análise
canálise por uma lógica da ilusão, tornando-a uma Wel­ pessoal do candidato, a experiência psicanalítica da formação pas­
tanschauung*, um ideal que vem atender ao desejo e a satisfa­ saria a ser regulamentada pela Associação. Portanto, a experiência
ções narcísicas. Assim, a psicanálise, de terceiro grande golpe transgressora do inconsciente- que é do que se trata numa aná­
no narcisismo humano, como queria Freud, tomar-se-ia pana­ lise- era atravessada pela própria institucionalização da psicaná­
céia da modernidade: ora pela tentativa de captura pelo discur­ lise. Esse atravessamento se refere ao estabelecimento de regras
so religioso (ideal de salvação), ora pelo discurso médico-psi­ (escolha do analista, tempo e freqüência das sessões, duração do
quiátrico (ideal de cura), ora pelo discurso político (ideal freudo­ trat�mento etc.), bem como ao papel desempenhado por mestres,
marxista). O combate freudiano tinha por objetivo evitar que a teonas e, em termos gerais, ao imaginário produzido nesse pro­
psicanálise se cristalizasse em uma Weltanschauung, reafirman­ cesso de institucionalização, exercendo efeitos sobre a análise.
do seu caráter underground. A idéia que atravessa a totalidade dessa pesquisa - seu
Sabe-se, porém (é o que ensina a noção de projeção), que fio condutor- é a de que há uma tensão irredutível entre o que
há uma tendência maior para se combater fora do que dentro, e, a psicanálise se propõe enquanto processo terapêutico e as vi­
desde o início de seu processo de institucionalização, a psicaná­ cissitudes de sua institucionalização, isto é, entre a investigação
lise passou a viver e produzir resistências e impasses em seu in­ do inconsciente e as formas pelas quais a psicanálise vai se orga­
terior, inerentes ao seu modo de transmissão e aos destinos apon­ nizar, se manter e se perpetuar na cultura. Assim, o locus privi­
tados por sua institucionalização. legiado onde essa tensão produz efeitos é a análise que tem lugar
A institucionalização da psicanálise é entendida como na formação psicanalítica, a didática, ponto de articulação entre
processo, devir sobredeterminado por forças díspares- contex­ esses dois registros. O objetivo específico dessa pesquisa é in­
to cultural, Zeitgeist, desenvolvimento teórico das disciplinas vestigar, através de um olhar que privilegia a formação psicana­
vizinhas, mas também desejos, transferências e resistências pre­ lítica, as relações estabelecidas entre a transferência e o proces­
sentes no movimento psicanalítico- dentre as quais privilegi­ so histórico de institucionalização da psicanálise, isto é, detec­
amos, na primeira parte dessa investigação, Freud e o Movimen­ tar os efeitos de transferência produzidos por esse processo e,
to Psicanalítico, as transferências a Freud e as transferências de reciprocamente, apontar as determinações transferenciais nos
Freud. Pretende-se assim, durante toda a pesquisa, desnaturalizar destinos da institucionalização da psicanálise.
Recorrendo à história da psicanálise, percebe-se que nem
(*) "Visão de mundo", Mantemos o termo alemão, tal qual as edições inglesa e brasileira das obras de Freud.
a institucionalização é um processo linear e "natural", nem o lu-

10 11
DANIEL KUPERMANN TRANSFERftNCIAS CRUZADAS

gar que as instituições ocupam na formação psicanalítica - e os renczi e depois Balint, como um verdadeiro analista
correspondentes investimentos transferenciais para com elas - nal da psicanálise, denunciando a cumplicidade de uma deriva­
mantêm a mesma economia. Assim, consideramos que só é pos­ ção esterilizante da teoria e da prática psicanalíticas com um modo
sível investigar os efeitos da transferência na institucionalização de exercício e de transmissão dos poderes. Porém, ao fundar em
da psicanálise através de uma contextualização histórica, sendo 1964 a sua própria Escola, após o rompimento definitivo com a
necessário precisar os períodos sobre os quais incide a pesquisa. IPA, tomando-se a primeira dissensão freudiana da história da psi­
O conceito de transferência é utilizado lato sensu em seu canálise, Lacan realiza um corte transferencial inédito, cujos efeitos
sentido freudiano, como processo pelo qual o inconsciente se rapidamente tornar-se-ão visíveis. Buscamos acompanhar, na ter­
atualiza sobre determinados objetos3 , não se tratando de um ceira parte, Lacan e o Corte Transferencial, as contribuições teóri­
fenômeno exclusivo da situação analítica, mas relativo à expe­ co-institucionais de Lacan, junto à análise do lugar transferencial
riênda humana em geral. Buscamos explorar os limites defini­ por ele ocupado na psicanálise francesa e mundial. Mostramos
dos classicamente entre "transferências analíticas" e "transfe­ que, a partir de seu projeto de retorno a Freud, e atráves do corte
rências extra-analíticas" ou "laterais", apontando as implica­ transferencial inédito efetuado, Lacan tornou-se o último freudiano
ções existentes entre esses registros4• em sua Escola. A questão colocada no decorrer dessa análise foi
Na segunda parte, A Psicanálise em Meados do Século, a de saber, de fato, se foi possível ao modelo de formação pro­
dedicamo-nos ao pensamento que vinha sendo produzido so­ posto por Lacan evitar o que havia denunciado anteriormente.
bre os "problemas" da análise na formação. Os efeitos Apoiamo-nos, para isto, na literatura psicanalítica fran­
transferenciais da padronização e sistematização da formação cesa do final dos anos 60, onde se encontra uma ampla teorização
aliados aos efeitos de retorno da difusão da sobre si sobre as implicações da transferência na institucionalização da
mesma tornavam-se visíveis, apontando sintomas no psi- psicanálise, derivada, por um lado, das críticas suscitadas pela
canalítico. Assim, a tendência dos candidatos a serem "submis­ proposição lacaniana do passe7, e por outro, do questionamento
sos" e "excessivamente respeitosos aos seus analistas", sintoma geral das instituições provocado em toda a sociedade francesa
ressaltado por Balint5 como sendo produzido pelo próprio siste­ pelos eventos de maio de 68. importância dessas contribui­
ma de formação vigente, não encontrou ressonância no pensa­ ções é maior se considerarmos que o momento atual da psica­
mento da época, sendo ofuscado pela formulação, por Gitelson6, nálise no Brasil sofre a herança e os efeitos dessas transforma­
do surgimento do candidato "normal" nos institutos psicanalí­ ções na psicanálise francesa, principalmente pela difusão do
ticos, produto de seu meio cultural. Candidato "normal" ou pro­ movimento lacaniano entre nós. Mas, se hoje o movimento
dução de "normalidade" excessiva pela manipulação da trans­ lacaniano está incorporado à psicanálise no Brasil, a agudez das
ferência nas análises didáticas? No vácuo deste e de outros críticas com que foram, naquela época, abordadas as questões
questionamentos referentes aos "problemas" da análise na for­ referentes à institucionalização da psicanálise e aos destinos da
mação, inicia-se a saga institucional de Jacques Lacan - até transferência na formação psicanalítica· parece estar adormeci­
então, analista didata reconhecido pela IPA. da em nosso processo de institucionalização.
A força da crítica lacaniana reside no fato de propor, em Finalmente, na quarta parte - Em Busca do Tempo Perdi­
seu olhar sobre os problemas da formação, uma relação intrín­ do - aplicamos, em um ensaio "antropofágico", as "ferramen­
seca entre concepção teórica da psicanálise e sua estrutura tas" saber conquistadas ao longo da pesquisa na análise de
institucional. Lacan se inscreve assim, na trilha aberta por Fe- um sombrio episódio da história recente da psicanálise brasilei-
12 13
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

ra: trata-se do caso de um médico em formação na tradicional


Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), envolvido com
Notas
as práticas de tortura em presos políticos durante o regime mili­ 1. Lapassade, O. Socíoanálisis y potencial humano. Madrid, Gedisa, 1980, cap. II.
tar ditatorial - o caso Amílcar Lobo. O material privilegiado 2. Freud, S. & Jung, C.G. Freud/Jung - correspondência completa. Rio de Janeiro,
para a análise desse caso foi o depoimento publicado em forma Imago, 1976, carta de 30/11/1911.
3. Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins
de livro pelo próprio envolvido. A pertinência dessa investiga­ Fontes, 1983, p. 668.
ção para a nossa problemática está na similitude, apontada nes­ 4. Cf. Lagache, D. A transferência. São Paulo, Martins Fontes, 1990. Se esta ampli­
se relato, entre a sua experiência enquanto candidato em for­ ação aponta para possíveis problemas epistemológicos na definição do con­
mação psicanalítica e a sua experiência enquanto médico mili­ ceito, indica, por outro lado, para os limites da transferência e para sua
incômoda origem na hipnose e na sugestão, problema que de resto ainda
tar frente às práticas de tortura. Enfocando as transferências faz por merecer a atenção dos psicanalistas. Referindo-se aos objetos da
em jogo, fomos guiados nessa análise pelo questionamento das transferência, diz Lagache (p.113): "é clássico assinalar que elas (as trans­
condições produzidas - naquele contexto - no processo de ferências) utilizam como matéria não só o analista mas também o ambiente
e a técnica psicanalíticos, e não só a relação psicanalítica mas também a
formação psicanalítica, de forma a que a SPRJ colaborasse ati­ vida corrente (transferência extrapsicanalítica ou lateral)". Por que não
vamente para produzir uma situação na qual um de seus candi­ incluir a teoria, o sistema de formação ou as representações dos destinos da
datos em formação participasse de uma equipe de tortura. psicanálise como objetos da transferência? Estaríamos então no registro
Nostalgia do não-vivido? De algo que a psicanálise teria das relações dos psicanalistas com a própria psicanálise e suas instituições,
ou seja, da transferência no âmbito institucional da psicanálise. Lagache
perdido? Essas questões se impuseram no início do trabalho de sublinha também a importância de se averiguar como as transferências
construção histórica. Nostalgia que se fazia ver na busca das ori­ extrapsicanalíticas constituem uma forma de atuação por referência às
gens (D próprio recurso à história): os "tempos heróicos" da cria­ motivações conflitantes nascidas das transferências analíticas.
5 . Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Intemational journal of
ção da psicanálise, a luta por sua aceitação social e os riscos aí psychoanalysis. 29. London, 1948.
envolvidos, os seminários explosivos de um Lacan ainda vivo, os 6. Gitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
psicanalistas na rua em 68 e a repercussão daqueles eventos para International journal of psychoanalysis. 35. London, 1954.
a própria psicanálise, a tentativa de resgate de um episódio da 7. Lacan, J. "Proposição de 9 de outubro de 1967". Letra Freudiana. Ano I, nº. O.
psicanálise brasileira envolvida pelos ares de um governo ditato­
rial. Ao final do percurso, de volta do "flash-back", deparamo­
nos mais uma vez com o presente, porém agora modificado, mais
pleno de sentido. É a partir desse olhar "modificado" que se cons­
trói o epílogo dessa pesquisa - hipóteses sobre o presente: a pos­
sibilidade cada vez maior no horizonte da psicanálise de se esta­
belecer novas transferências e para elas buscar adequadas disso­
luções. A promessa de novos agendamentos, o desejo de fazer a
história. Tempo vivido, história contada.
Citando Goethe, o que se trata sempre de uma homena­
gem a Freud:
O que hás herdado de teus pais,
adquire, para que o possuas (.,.)
14 15
Parte I

FREUD E A
INSTITUCIONALIZAÇÃO
DA PSICANÁLISE

Provocar e /Incho,"'""" rancor


é o destino inevitável da psicanálise.
SlGMUND FREUD, 1914
1. Tempos de guerra
N o início do ano de 1914, os ânimos na Mítteleuropa anda­
vam exaltados. Movimentos de independência nacional
numa região que ainda hoje ocupa a atenção mundial, a Sérvia e
a Croácia, criavam um estado de tensão direta com o Império
Austro-Húngaro. Com o assassinato do arquiduque Francisco
Ferdinando, os impérios austríaco e alemão tiveram o álibi sufici­
ente para expressar seu desejo de guerra aplicando a máxima
militarista si vis pacem, para bellum*. A primeira guerra mundial,
iniciada a 29 de julho de 1914 com a invasão da Sérvia pela Áus­
tria, seguida do rápido envolvimento das potências européias,
eternizou a ideologia guerreira em uma pistola automática que
foi o símbolo da tecnologia militar, a parabellum, curioso nome
de arma que vem expressar as contradições da guerra e da paz.
Nessa época, Freud redigia um texto de tom franca­
mente beligerante, que veio a ser apelidado de "bomba". Um
texto onde termos como deserção, inimigos, adversários, ar­
mas, resistência e oposição aparecem repetidamente. Trata­
se de A História do Movimento Psicanalítico 1• A "bomba" ti­
nha como alvos principais Adler e Jung, então recentes dis­
sensões do movimento psicanalítico. A psicanálise vivia "tem­
pos de guerra"2, e Freud, contrariado, dizia-se "forçado a pe­
gar em armas"3, situação que era obviamente incômoda

(•) Se queres a paz, prepara a guerra.

19
TRANSFER�NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

e desgostosa, o que foi expresso através dos versos utilizados A opção por Zurique como sede da IPA e a esc olha de
de forma auto-irônica como epígrafe ao terceiro e último Jung como novo líder do movimento psicanalítico indicam po ­
capítulo de sua História: rém que, em outro registro, o que Freud desejava que fosse
organizado era a economia e a dinâmica transferencial do mun­
Mach es Kurz! do psicanalítico de então, que girava em tomo dele. Viena
Am ]üngten Tag ist's nur ein Furz! *4 não era uma cidade muito recomendável aos olhos do Oci­
(Goethe) dente, e quanto a si próprio, diz Freud:
Afora seu caráter polêmico, longe de qualquer intuito Via também uma segunda desvantagem em minha pró­
iconoclasta deliberado ao se fazer uma análise mais minuciosa pria pessoa, sobre a qual era difícil formar uma opinião
desse texto (ao contrário, uma psicanálise que se envergonha por causa das manifestações de admiração e de ódio
d� suas paixões é exatamente o que Freud combaterá aqui), A provenientes das diferentes facções7.
_
Histór�a do Movimento Psicanalítico é considerado o texto "pivô"
a partir do qual serão desenvolvidas as idéias trabalhadas nes­ Nessa época, Freud não tinha dificuldades em reconhe­
8
sa �rimeira parte: o processo de institucionalização da psica­ cer o aspecto ambivalente da transferência • Pretendia assim
náhse, o lugar transferencial ocupado por Freud na economia e resolver essa transferência maciça para com ele "transferindo"
dinâmica desse processo, e as vicissitudes da transferência face o centro do movimento psicanalítico de Viena para Zurique,
a essa institucionalização. fazendo de Jung- o "príncipe herdeiro"- seu novo líder.
Criada em março de 1910, no 2 º Con gresso de Psicanáli­ Essa posição, que fora de inicio ocupada por mim, dado o
se, realizado em Nuremberg, a Associação Psicanalítica Inter­ meu acervo de quinze anos de experiências, devia ser agora
nacional (IPA) fazia quatro anos de vida, O projeto de Freud, que TRANSFERIDA* para um homem mais jovem, que então,
9
contou com a ajuda de Ferenczi, pretendia "organizar o movimen ­ naturalmente, ocuparia meu lugar após a minha morte •
to psicanalítico, transferir o seu centro para Zurique e dotá-lo de
um chefe que cuidasse de seu futuro"5. Há quase uma década a Além disso, elegendo um sucessor que não fosse judeu,
psicanálise vinha sendo difundida e popularizada, mobilizando ou­ Freud resolvia outro problema que o angustiava, o reconheci­
tros campos de conhecimento. Foi no sentido de promover o de ­ mento da psicanálise enquanto ciência universal, cosmopolita,
senvolvimento da psicanálise preservando a sua especificidade- e não restrita ao meio judaico.
suas descobertas, sua linguagem, seu método de investigação- A escolha de Jun g como presidente da Associação In­
dos abusos da popularidade, que Freud imaginou a Internacional. ternacional rapidamente mostrou-se desacertada, em função
Uma sede que pudesse organizar o que é psicanalítico, com autori­ de suas divergências e seu afastamento em relação a Freud e à
dade para declar�r o que é psicanálise e o que são "tolices" que com teoria freudiana. Freud faz então uso de sua pena, reivindi­
ela nada têm a ver- "isto não é psicanálise"6• Nesse registro, a cando seu lugar de mestre fundador, "aquele que sabe", para
IPA teria a função (organizadora) de dar os contornos e as ga­ separar o que é psicanálise do que não é, e deixar claro quem
. é e quem não é psicanalista:
rantias ao corpo do saber teórico e da prática psicanalítica**.
(*) "Seja breve! No Dia do Juízo isso não passa de um peido !"
(''*) Quant? ª )sso, º temor de Adl er de que se prctendcuc exercer "c ensura e restrições sobre a liber­
, .
d de c1 ntífica (op.crt.,p.57) vem mostrar que o qu e é garantia para alguns pode ser consid erado r e stri­ (*) "Es lag mir also daran, diese Autoritilt auf einem jüngeren Mann zu übertragen... "(in Gesammelte Werke.
� � Vol. X, p. 85. Imago Publishing, London, 1946).
çao de libe rdade para outros. O destino das funções institucionais da !PA será analisado no capítulo 3.

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20
DANIEL KUPERMANN
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribui­ mão de "conhecimentos psicanalíticos"12 no exame dessas duas
ção que me proponho trazer à história do movimento psi­ dissensões- conhecimentos referentes às resistências e às trans­
canalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela de­ ferências em jogo no afastamento de Adler e Jung da psicanáli­
sempenho, pois a psicanálise é CRIAÇÃO MINHA; durante se. Assim, Freud coloca os dois teóricos no lugar reservado aos
dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo "pacientes", sem, no entanto, o consentimento deles. Isso vai
o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus con­ apontar algo que é específico à psicanálise, mas abre preceden­
temporâneos desabou sobre a minha cabeça em forma de tes para uma prática duvidosa, que ficou conhecida como aná­
críticas. Embora há muito tempo eu tenha deixado de ser o lise "selvagem'', no interior do próprio campo psicanalítico.
único psicanalista existente, ACHO JUSTO CONTINUAR "O desapontamento que (essas dissensões) causaram tal­
AFIRMANDO QUE AINDA HOJE NINGUÉM PODE SABER ME­
vez tivesse sido evitado se eu tivesse prestado mais atenção às
LHOR DO QUE EU o QUE É A PSICANÁLISE, em que ela
reações de pacientes sob tratamento ana1,1t1co " " , J·1z Freud13. A
difere de outras formas de investigação da vida mental, idéia freudiana é a de que, em contato com a "coisa" psicanalíti­
o que deve precisamente ser denominado de psicanálise ca, tanto os psicanalistas-teorizadores quanto os pacientes estão
e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer 10• sujeitos às limitações provocadas pelas resistências suscitadas pela
própria psicanálise. Isso não é novidade para Freud. Se A Inter­
E o que é a psicanálise? Um pouco adiante Freud dará pretação de sonhos é considerado o marco do advento da teoria do
uma definição que se tornou clássica: inconsciente, ali Freud nos mostra como a sua teoria é construída
Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é também de seus sonhos e a partir deles, através de sua auto-aná­
uma tentativa de explicar tais fatos surpreendentes e lise, estabelecendo de forma inédita enquanto teórico a relação
inesperados que se observam sempre que se tenta re­ entre sua teoria e seu fantasma14• A surpresa de Freud está no
montar os sintomas de um neurótico a suas fontes no fato de que alguém que tenha alcançado certa profundidade na
passado: A TRANSFERÊNCIA E A RESISTÊNCIA. Qualquer compreensão da psicanálise (os casos de Adler e Jung) pudesse
linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os renunciar a essa compreensão e perdê-la, sob o domínio de uma
tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direi­ nova resistência. Para Freud, a negação da sexualidade em suas
to de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resul­ teorias, dando espaço a uma "elaboração secundária" egóica e à
tados diferentes dos meus11• "racionalização" no caso de Adler 15 e a uma nova Weltanschauung
na forma de ideais de salvação no caso de Jung16, é o resultado,
A partir dessa concepção, a psicanálise seria, antes de na forma de teoria, das resistências à psicanálise.
tudo, o conhecimento dos fenômenos da transferência e da
Junto às resistências dos dois ex-discípulos, Freud irá ana­
resistência, e a aplicação clínica desse conhecimento no de­
lisar as motivações inconscientes de seu afastamento a partir da
correr do tratamento.
relação transferencial que estes estabeleceram com ele próprio,
Ao analisar, no terceiro capítulo de sua História, as dis­ criador e pai da psicanálise.
sensões de Adler e Jung, Freud o faz em dois registros: o teórico Assim, Adler teria um "anseio desenfreado de priorida­
ou epistemológico, voltado para a análise conceitual de suas
de", e teria dito a Freud, num encontro do Círculo de Viena:
teorias, no intuito de mostrar onde estas contrariam os princí­
"O senhor pensa que é um grande prazer para mim ficar a
pios básicos da psicanálise, e o psicanalítico, isto é, Freud lança
vida inteira à sua sombra?"17, ambição que, segundo Freud,
22 23
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

DANIEL KUPERMANN
ferências de seus adversários. No que se refere à luta contra as
rapidamente escorregou para o unfair. Jung teria "preconcei­ resistências, aliás, Freud segue a linha belicista do si vis pacem,
tos raciais", seria incapaz de tolerar a autoridade de outra para bellum. Já que não se pode escapar das resistências, melhor
pessoa e mais ainda de exercê-la ele próprio18, e sofreria de provocá-las de uma vezl
rebeldia juvenil19• Tanto um como o outro tinham uma ten­ A partir da tradição encontrada em A História do Movimento
dência "especulativa", onde a "pré-história teológica", no caso Psicanalítico, o confronto em psicanálise traz, até nossos dias, duas
de Jung, bem como a "socialista", no caso de Adler, seriam marcas25 : a primeira diz respeito ao tom beligerante e passional
um indicativo do desenvolvimento de suas teorias20• Em re­ desse confronto, com o uso de "conhecimentos psicanalíticos" en­
sumo, ambos são infantis, têm resistência à psicanálise e que­ tre as armas de acusação mútua, caracterizando um abuso da psi­
rem tomar o lugar que é de Freud. canálise, uma análise "selvagem" praticada no interior do próprio
Convém indicar aqui a leitura que Roustang faz desse meio psicanalítica26; a segunda diz respeito ao próprio objetivo do
debate. Ao lembrar a crítica feita por Jung a Freud "de abusar confronto, a redefinição do que é e do que não é psicanálise, que,
da psicanálise para manter seus alunos numa dependência in­ com a morte de Freud - aquele que sabia a psicanálise - pas­
fantil e ser, por este fato, responsável pela conduta infantil deles sará a ser a luta pelo status de herdeiro legítimo de seu legado.
para com ele"21, Roustang apresenta a outra versão dos fatos, Freud observava que poucas pessoas conseguem "manter
mostrando o quanto Freud também estava envolvido a linha" numa discussão científica, principalmente no que se
transferencialmente (ou contratransferencialmente) com seus refere à discussão psicanalítica, "tendo em vista a peculiaridade
discípulos e, onde estava apontada a resistência à psicanálise, da controvérsia sobre a psicanálise"27• Essa peculiaridade, junto
pode-se levantar a hipótese de uma resistência à mestria. às "dificuldades particularmente grandes ligadas ao ensino da
Se Jung e também Adler não deixam de retribuir "home- psicanálise"28, é devida ao fato de a psicanálise ser um saber
nagens" ao velho mestre, isso estava previsto por Freud: cuja transmissão é regulada pela transferência. Assim na base
da institucionalização da psicanálise está a transferência, apontando
A análise, entretanto, não se presta a uso polêmico; pressu­ os impasses e impossibilidades desta institucionalização.
põe o consentimento da pessoa que está sendo analisada e Analisamos, no capítulo 3, as características transferen­
uma situação na qual existam um superior e um subordina­ ciais da institucionalização da psicanálise no período freudiano.
do. Daí, quem quer que empreenda uma análise com fins Antes, porém, de avançar pelos caminhos e descaminhos des­
polêmicos pode esperar que a pessoa analisada utilize, por sa história, faremos um breve desvio metodológico, de forma
sua vez, a análise contra ela, de modo que a discussão atin­ a apreender de que modo a própria teoria psicanalítica pode
girá um ponto que exclui inteiramente a possibilidade de con­ servir aos propósitos das resistências à psicanálise, tornando­
vencer qualquer outra pessoa imparcial22• se uma Weltanschauung.
Assim, fora da situação transferencial desejada (o "con­
sentimento"), a análise se transformará no que Freud definiu
em outro lugar como análise "selvagem"23• Mesmo contra a sua
vontade - "a análise não se presta a uso polêmico" - Freud
acaba por dar o tom, ditado pelas transferências em jogo. Quando
se diz "forçado a pegar em armas"24, as armas são os "conheci­
mentos psicanalíticos", ou seja, o exame das resistências ·e trans-
25
24
DANIEL KUPERMANN

Notas
1.Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". In Edição Standard
Brasileira (E.S.B). Vol.XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1980.
2. Freud, S. Idem, p.51.
3. Freud, S. Idem, p.63.
4. Freud, S. Idem, p.55.
5. Freud, S. Idem.
6. Freud, S. Idem, 57.
7. Freud, S. Idem, 56.

2. La théorie, ces't bon, mais...


8. Freud, S. (1912) "A dinâmica da transferência". ln E.S.B. Op. cit., Vol. XII.
9. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.56.
10. Freud, S. Idem, p.16, grifos nossos.
11. Freud, S. Idem, p.26, grifo nosso.
12. Freud, S. Idem, p.63.
13. Freud, S. Idem, p.62.
' '/'Y ompreendi que daquele momento em diante eu passara a
14. Granoff, W. Fi!iations. Paris, Les Editions de Minuit, 1975, p.32. Ü fazer parte do grupo daqueles que perturbaram o sono do
15. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., pp. 66-67. mundo", nos diz Freud 1 , referindo-se às resistências com que foi
16. Freud, S. Idem, p.75. recebida sua teoria da etiologia sexual das neuroses. Assim, o
17. Apud Freud, S. Idem, p.65.
18. Freud, S. Idem, p.56. homem que se dedicou aos sonhos afirmando serem realização
19. Freud, S. Idem, p.73. de desejos com a função de proteger o sono, ao interpretá-los,
20. Freud, S. Idem, p.76. teve como destino paradoxal não mais deixar a humanidade
21. Roustang, F. Um destino tão funesto. Rio de Janeiro, T imbre-Taurus, 1987, p.32.
22. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.63.
dormir - e sonhar - em paz.
23. Freud, S. (1910a) "Psicanálise Silvestre". In E.S.B. Op.cit., Vol. XI. Outros dois homens citados por Freud em Uma Dificuldade
24. Freud, S. (1914) "À história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.63. no Caminho da Psicanálise2 podem ser considerados "perturbadores
25. Cf. Birman, J. "Freud e os destinos da psicanálise". In Birman, J. e Damião, do sono do mundo", em função de suas descobertas científicas.
M.M. (orgs.) Psicanálise - Oficio Impossível? Rio de Janeiro, Campus, 1991.
26. Cf. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. São Paulo, Companhia das São eles Copérnico e Darwin. Nesse texto, Freud analisa a re­
Letras, 1989, parte II. sistência com que uma descoberta científica é recebida a partir
27. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.51. das dificuldades afetivas de origem narcísica por ela suscitadas.
28. Freud, S. Idem, p.37.
O narcisismo, definido aqui como investimento libidinal
sobre o próprio ego, em excesso tanto na criança quanto no
homem primitivo*, é responsável nesse último pela "crença na
onipotência das suas idéias e as conseqüentes tentativas de in­
fluenciar o curso dos acontecimentos do mundo exterior pela
técnica da magia"3• Nesse sentido, o narcisismo, junto ao dese-
(*) A analogia entre a criança, o primitivo e o neurótico, presente no decorrer de toda a obra freudiana, é
devedora da teoria embriológica de Ernst Haeckel, onde a dimensão filogenética aparece correlacionada ao
desenvolvimento ontogenétíco, isto é, o indivíduo no seu desenvolvimento reproduz as etapas do desenvol.­
vimento de toda a espécie. Por isso, a criança pode ser comparada ao primitivo, e hipóteses sobre o desenvol­
vimento filogenético da humanidade podem ser levantadas a partir do desenvolvimento do individuo.

26 27
TRANSFER.ll:NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

jo, é responsável pela construção das ilusões humanas, ilusões dos acima (acreditar que a Terra é o centro do universo era uma
que a ciência vem combater. ilusão, considerando a realização de desejo contida nesse erro).
Freud descreve três severos golpes sofridos pelo narcisismo A noção de ilusão aproxima-se também da noção de delí­
universal dos homens (seu amor-próprio) através da ciência: o rio, diferenciando-se dessa pelo fato de que, estando ambas ins­
golpe cosmológico, atribuído a Copérnico; o golpe biológico, atri­ critas no campo do desejo, enquanto o delírio - para ser assim
buído a Darwin; e o golpe psicológico, atribuído ao próprio Freud. caracterizado - está necessariamente em contradição com a
A idéia de que a Terra é o centro do universo estava associa­ realidade, a ilusão não é necessariamente falsa, nem deve estar
da ao papel dominante que o homem atribuía a sí próprio enquanto em oposição à realidade. A ilusão é portanto uma crença situa­
"Senhor do Universo". A partir de Copérnico, no século XVI, da no campo do desejo e do narcisismo, desconsiderando o cam�
com o reconhecimento de que o Sol é o centro do sistema ao redor po da realidade como critério para sua constituição e validade:
do qual a Terra gira, esta ilusão narcísica de foi destruída, sofren­ Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quan­
do a humanidade seu primeiro golpe desferido pela ciência. do uma realização de desejo constitui fator proeminente
Com Darwin, a ilusão humana da posse de uma alma trans­ em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos
cendente divina e imortal, marco da diferença entre o mundo suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão
humano e o mundo animal, teve fim. Com a teoria evolucionista, não dá valor à verificação6 •
Darwin demonstrou a ascendência animal do homem, diminu­
indo consideravelmente a distância antes colocada entre o Assim como um sonho acordado... do qual não se quer
mundo humano e o animal, sendo responsável pelo segundo despertar! E contra aquele que provoca o despertar, são dirigidas
golpe no narcisismo da humanidade. as mais fortes reações emocionais de resistência.
O terceiro golpe narcísico foi dirigido à ilusão de que a cons­ Em As Resistências à Psicanálise (1925), Freud resume os
ciência tem o conhecimento e o controle sobre o conjunto da "bons" motivos para a reação emocional contrária à psicanálise:
vida mental. Com a formulação do inconsciente e da atividade 1. Considerando que a civilização humana repousa
psíquica das pulsões sexuais, Freud demonstrou que "o ego não é sobre dois pilares - o controle das forças naturais e
senhor da sua própria casa"4, uma vez que o psíquico não se reduz a repressão pulsional - ao trazer à luz a qualidade
ao consciente e que o homem é regido por forças (sexuais) que das pulsões sexuais reprimidas em seus fins na cons­
desconhece, caracterizando o chamado golpe psicológico. tituição da cultura, a psicanálise atinge o "elevado
Se esses homens, a partir de suas descobertas, "perturbaram ideal de moralidade" sustentado socialmente, e apon­
o sono do mundo", é porque denunciaram o caráter ilusório das ta o que Freud chamou de "hipocrisia cultural"7: o
grandes crenças humanas, como se dissessem: "acordem, isso é ape­ preço a ser pago para a manutenção dos ideais de
nas um sonho", para aquilo que se acreditava ser realidade. Nesse moralidade é tão oneroso em termos de insatisfação
sentido, pode-se dizer que a ilusão é estruturada como um sonho. pulsional, que a sociedade vive um sentimento de
Para Freud, o que caracteriza a ilusão é o fato de ela estar insegurança e uma necessidade de preservar essa si­
referida ao campo do desejo e do narcisismo, e não ao campo da tuação precária através da proibição da crítica e da
realidade5 • Assim, a ilusão não se confunde com o erro, estando discussão - A PROIBIÇÃO DO PENSAMENTO, tema im­
este referido à ordem do entendimento da realidade. Isso não portante ao qual voltaremos mais à frente.
impede que o erro seja um efeito da ilusão, como nos casos ilustra-
29
28
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

2. No rastro da teorização sobre a sexualidade infan­ A TEORlA COMO PROIBIÇÃO DO PENSAMENTO


til, a psicanálise levantou o "véu de amnésia" dos anos
É em A Questão de uma Weltanschauung (1933) que Freud
de infância do homem, da qual restou "um horror
ao incesto e um sentimento enorme de culpa"8• analisa mais detidamente o risco de captura da psicanálise pela
lógica da ilusão. Seu ponto de partida é o questionamento da
É portanto em reação a esses efeitos - a quebra de ilu­ possibilidade de a psicanálise conduzir a uma determinada Wel­
sões narcísicas, o questionamento dos mais elevados ideais soci­ tanschauung, e em caso afirmativo, a qual. No decorrer do seu
ais e as formulações sobre a sexualidade infantil- que são pro­ desenvolvimento, Freud irá colocar a psicanálise ao lado da ciên­
duzidas as várias formas de resistência à psicanálise. cia, contrapondo a Weltanschauung científica às outras Wel­
No capítulo anterior, vimos como Freud considerou as for­ tanschauungen- trata aqui da religião, artes, filosofia, anarquis­
mulações teóricas de Adler e Jung produto de resistência à psi­ mo teórico e do marxismo. A Weltanschauung é definida como
canálise. Sua tendência "especulativa" bem como a. mútua ne­ (... ) uma construção intelectual que soluciona todos
gação da sexualidade teriam produzido teorias que estariam mais os problemas de nossa existência, uniformemente, com
de acordo com uma lógica da ilusão do que réferidas à realida­ base em uma hipótese superior dominante, a qual, por
d�. N� caso de Adler, uma elaboração secundária egóica que conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta
vmha mclus1ve .
responder a seus anseios socialistas, e no caso e na qual tudo que nos interessa encontra seu lugar
de Jung, a criação de uma nova Weltanschauung que tinha raízes fixo. Facilmente se compreenderá que a posse de uma
e m sua "pré-história teológica". Weltanschauung desse tipo situa-se entre os desejos
lição que Freud tirou daquele episódio é que uma ideais dos seres humanos. Acreditando-se nela, pode­
das formas mais correntes de resistência à psicanálise é a se sentir segurança na vida 13.
s ua captura por uma lógica da ilusão. Seja a ilusão de pana­
c éia da modernidade, inserindo a psicanálise no campo O problema que se coloca de imediato na questão da
médico9 , seja a ilusão de salvação, fazendo da psicanálise Weltanschauung é seu caráter de ilusão, estando referida ao campo
um substituto da religião 10 , seja a ilusão política, transfor­ do desejo e do narcisismo, oferecendo uma "segurança na vida"
mando a psicanálise em um ideal revolucionário - como que não necessariamente confere com a realidade.
na forma freudo-marxista. 11 Por outro lado, a Weltanschauung da ciência diferiria
Que a teoria pode muito facilmente pender para o re­ da própria definição de Weltanschauung. Apesar de também
gistro da ilusão, colocando a realidade de lado, foi a lição supor uma uniformidade na explicação do universo, a ciên­
Parisiense que Freud guardou do mestre Charcot. "Isso não cia o faz apenas na qualidade de projeto, relegando sua re­
Pode ser verdade", contestou um aluno, também educado alização sempre para o futuro. Atém-se ao que é cognoscível
na tradição da fisiologia acadêmica alemã, "pois contradiz no presente, rejeitando os elementos que lhe são estranhos.
a teoria de Young-Helmho ltz", ao que Charcot respondeu, Privilegia a elaboração intelectual e a pesquisa como úni­
exercendo forte impressão sobre Freud: "la théorie, c'est bon' cas fontes válidas de conhecimento, desconsiderando a in­
rnais ça n'empêche pas d'exister"* 12• tuição e a adivinhação.
Concluindo no mais puro espírito iluminista, a ciência-
(*) "Teoria é bom, mas isso não impede (os fatos) de existir".
e a psicanálise como parte desta - não caracteriza, segundo

3Q 31
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊ:NCIAS CRUZADAS

Freud, uma Weltanschauung, pois está referida à realidade e não O consolo é a função religiosa que traz maiores problemas
à realização de desejos humanos na forma de ilusão. no confronto com a ciência, que "não pode competir com a reli­
A questão freudiana é menos destituir o valor das Wel­ gião quando esta acalma o medo que o homem sente em relação
tanschauungen do que afirmar um caráter científico para a psi­ aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe garante um fim feliz
canálise, marcando sua diferença. Freud destaca, portanto, seu e lhe oferece conforto na desventura" 16• A ciência, apesar de per­
valor nos produtos da arte, nos sistemas religiosos e na filosofia, mitir o conhecimento de certos perigos, em algumas situações
mas adverte: nada mais tem a fazer que "deixar o homem entregue ao sofri­
mento, e apenas pode aconselhá-lo a resignar-se" 17• Assim, en­
(...) nao podemos desprezar o fato de que seria ilícito e quanto a ciência caminha vagarosamente na busca da supera­
muito impróprio permitir que fossem essas exigências ção dos limites do conhecimento e do poder humanos, a ilu­
transferidas para a esfera do conhecimento. Pois isto equiva­ são religiosa oferece "segurança na vida" para aquele que, desde
leria a deixar abertos os caminhos que levam à psicose, seja a situação infantil, conhece e sofre as agruras do "estado de
psicose individual, seja grupal, e retiraria valiosas somas de desamparo" (Hilflosigkeit) característico do humano. É nessa
energia de empreendimentos voltados para a realidade, com linha de pensamento que Freud faz a analogia entre Deus e o
a finalidade de, na medida do possível, nela encontrar Pai - a fé religiosa sendo uma reedição da situação infantil.
satisfação para os desejos e para as necessidades14• A terceira função da religião é estabelecer preceitos, proi­
Assim, Freud busca demarcar claramente os limites ( tê­ bições e restrições. Sua função ética.
nues) entre conhecimento e ilusão, bem como entre Relacionando estas três funções, percebe-se que as ga­
conhecimento e delírio, afirmando a psicanálise no terreno do rantias de proteção e felicidade (o consolo) estão reservadas
conhecimento. àqueles que obedecem aos preceitos ético-religiosos, cuja arti­
Entre os domínios da arte, filosofia e religião, apenas a culação final é uma "teoria" das origens, remetendo a um Deus­
última é considerada adversária da ciência. Em períodos anteri­ Criador, o "pai". Diz Freud: "Um homem religioso imagina a
ores da história, a religião assumiu um lugar próximo ao da ci­ criação do Universo assim como imagina sua própria origem" 18•
ência - uma vez que abrangia tudo o que desempenhava um Assim, a ilusão religiosa extrai sua força do complexo parental­
papel intelectual na vida do homem - construindo uma Wél­ patemo. A mesma pessoa à qual a criança deve a sua existência, o
tanschauung coerente e auto-suficiente num grau sem paralelo pai*, também a protegeu e cuidou em seu desamparo constitucio­
de influência sobre a cultura (que, aliás, persiste ainda hoje). nal. "Sob a proteção do pai, a criança sentiu-se segura". O adulto
Convém aprofundar a leitura freudiana da religião, de forma a "fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e despro­
compreender a freqüente analogia utilizada na própria literatu­ tegido como era na infância", evocando a "imagem mnêmica do
ra psicanalítica, entre a psicanálise e a Igreja. pai"- o pai idealizado- na forma de Deus19• Ainda que de forma
A religião, segundo Freud, preenche três funções na cul­ excessivamente simplificada - uma vez que nos poupamos de um
tura: ensino, consolo e exigências 15• O ensino se refere às infor­
mações a respeito da origem.e da existência do universo - a (*) Freud diz que poderia tratar-se da instância parental composta do pai e da mãe. Como lembra Assoun
cosmogonia -, presentes em todo sistema religioso. Assim, a (1991, p.83), esse "diagnóstico" não deve ser entendido como uma psícologização sumária da crença
religipsa, mas em sua dimensão metapsicológica, apontando a religião como herança do assassinato do
"sede de conhecimento" do homem é satisfeita, e nesse ponto a pai. E com referência a Totem e Tabu (Freud, 1913) que se pode apreender a relação da que,tão paterna
com a religião. A ontogênese do sentimento religioso em Freud é devedora da herança filogenética do
religião tem seu primeiro choque com a ciência. assassinato do pai apresentado no mito parricida de Totem e Tabu.

32 33
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

longo desvio por Totem e Tabu - essa exposição sobre a gênese da proibição do pensamento, que pode tanto se dar pela associação/
constituição da ilusão religiosa através do complexo paterno nos captura dessa teoria a sistemas religiosos, quanto pela sacralização
interessa na medida da ampliação proposta por Paul-Laurent Assoun: de um autor (Deus-Pai-Totem) e de uma obra, cuja crítica se
torna tabu. Freud corria esses dois riscos: além de assistir à tenta­
é "religiosa", no fundo, toda configuração em que se tiva de captura da psicanálise por uma lógica da ilusão, toman­
mostra ativo esse "complexo do pai"20•
do-a uma Weltanschauung, era, de fato e de direito, o pai da psica­
Assim, é o complexo paterno, constituinte da religião, a nálise, colocando aqueles que dela se aproximavam frente a um
matriz de toda e qualquer ilusão, entendida como uma crença "complexo paterno" quando da relação com a sua palavra, o seu
na qual, em sua motivação, prevalece a realização de desejo. A texto, a sua criação. O texto de Freud referente ao marxismo
religião é, portanto, a Weltanschauung por excelência, o que faz pode, sem causar muita perplexidade, ser aplicado à própria psi­
Assoun identificar como religiosa toda Weltanschauung, mesmo canálise em algumas de suas formas atuais, em função da
as de cunho materialista. sacralização de determinados autores - tanto Freud como os
Esta é a visão freudiana do marxismo, que na época (1929- novos "pais". Causaria espanto, quando nos refe.rimos a certos
193 2) dava sua guinada do marxismo-leninismo para o stalinismo, meios psicanalíticos, dizer que "os escritos de (Freud-Melanie
além de surgirem as primeiras tentativas de associação entre o Klein-Lacan) assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como
pensamento de Freud e de Marx, através do freudo-marxismo de fonte de revelação, embora não parecessem estar mais isentos de
Wilhelm Reich (se A questão de uma Weltanschauung tem um des­ contradições e obscuridades do que esses antigos livros sagrados"?
tinatário privilegiado, pode-se dizer que se trata de Reich): Assim, o que Freud parece ainda não saber é que o desti­
no provável daquele que destrói a ilusão alheia é ser, ele pró­
O marxismo teórico, tal como foi concebido no bolchevis­
prio, investido da mesma forma que a ilusão anterior. Portanto,
mo russo, adquiriu a energia e o caráter auto-suficiente de
se Freud "perturba o sono" (e os sonhos) do mundo, não se
uma WELTANSCHAUUNG; contudo, adquiriu ao mesmo tem­
deixará de sonhar; passar-se-á a sonhar com Freud e com a psi­
po uma sinistra semelhança com aquilo contra o que está
canálise. Afinal, é possível viver sem o sonho da ilusão?
lutando. Embora sendo originalmente uma parcela da ci­
A problemática paterna está no centro do objeto deste
ência, e construído, em sua implementação, sobre a ciên­
trabalho, remetendo por um lado à questão da institucio­
cia e a tecnologia, criou uma PROIBIÇÃO PARA o PENS.AMEN­
nalização da psicanálise, e por outro à questão da transferência,
m que é exatamente tão intolerante como o era a religião,
o que passaremos a demonstrar a partir do próximo capítulo,
no passado. Qualquer exame crítico do marxismo está proi­
onde examinamos as vicissitudes e implicações da transferência
bido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do
frente à institucionalização da psicanálise. Afinal, são também
mesmo modo que uma heresia, em outras épocas, era pu­
(e sobretudo) as razões transferenciais que irão aproximar a psi­
nida pela Igreja Católica. Os escritos de Marx assumiram
o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação,
canálise da lógica da ilusão, fazendo com que a questão da
Weltanschauung mereça uma atenção constante.
embora não parecessem estar mais isentos de contradições
e obscuridades do que esses antigos livros sagrados21 •
A história da institucionalização da psicanálise é tradicio­
nalmente entendida como um jogo de forças que oscila apenas
Ou seja, o que faz de uma teoria (mesmo que de base cien entre dois extremos possíveis: a afirmação da sua "autentici­
tífica e materialista) uma Weltanschauung é a imposição de uma dade" versus a denúncia da sua captura ou "recuperação" pelas
34 35
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

forças de resistência maniqueísmo simplista que já


22• Tentaremos seguir pelos cami-
Notas
mereceu a Castel
nhos dessa história como quem segue o curso de um rio de mon­
tanha, sobre suas pedras mais firmes, evitando afundar 1. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., Vol. XIV, p.
32.
de forma ingênua ora numa ora noutra dessas tendências, até 2. Freud, S. (1917) "Uma dificuldade no caminho da psicanálise". In E.S.B. Op.cit.,
onde o equilíbrio do nosso pensamento crítico permitir. Vol. XV.
Avancemos, então, pelos caminhos dessa história, de pe­ 3. Freud, S. Idem, p.174.
4. Freud, S. Idem, p.178.
dra em pedra ... 5. Freud, S. (1927) "O futuro de uma ilusão". In E.S.B. Op.cit., Vol. XXI.
6. Freud, S. Idem, p.44.
7. Freud, S. (1925) "As resistências à psicanálise". In E.S.B. Op.cit., Vol. XIX,
p.272.
8. Freud, S. Idem, p.273.
9. Freud, S. (1926) "A questão da análise leiga". Idem.
10. Freud, S. (1927) "O futuro de uma ilusão". Idem.
11. Freud, S. (1933) "A questão de uma Weltanschauung". Idem.
12. Freud, S. (1893) "Charcot". Idem, Vol. III, p.23.
13. Freud, S. (1933) "A questão de uma Weltanschauung". Op.cit., Vol. XXII,
p.193.
14. Freud, S. Idem, p.195.
15. Freud, S. Idem, p.198.
16. Freud, S. Idem, p.197.
17. Freud, S. Idem.
18. Freud, S. Idem, p.198.
19. Freud, S. Idem, p.199.
20. Assoun, P-L. O freudismo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991, p. 84.
21. Freud, S. (1933) "A questão de uma Weltanschauung". Op.cit., Vol. XXII, p.
218, grifo nosso.
22. Castel, R. O Psicanalismo, Rio de Janeiro, Graal, 1978.

36 37
3. Freud e o movimento psicanalítico
D ie Bewegung- o Movimento. Assim Freud designava, nas
circulares destinadas aos membros do Comitê Secreto, a
ação de preservação, difusão, desenvolvimento e proteção da
"causa" analítica. Em Bewegung há um Weg, um caminho1• O tra­
çàdo desse caminho exigia dos pioneiros o empenho de uma guerra
permanente. Veremos, nesse capítulo, que, atravessando os ca­
minhos do movimento psicanalítico, estão as transferências a
Freud e as transferências de Freud - mas não só. Nele estão
presentes também, de forma ativa, os sonhos, as utopias e a
política que, desde então, marcam a história da psicanálise.

0 CONVITE ÀTRANSFERÊNCIA

Se fosse preciso concentrar toda a obra freudiana em


um único livro, este seria incontestavelmente A Interpretaçao
de Sonhos (1900). Nele, os princípios e os fundamentos da psi­
canálise são estabelecidos e apresentados ao público pela pri­
meira vez de forma sistemática. No prefácio à terceira edição
inglesa, escrito em 1931, quando a quase-totalidade de sua
obra já havia sido elaborada, Freud escreve: "contém ele, mes­
mo de acordo com meu julgamento dos dias que correm, a
mais valiosa de todas as descobertas que tive a felicidade de
fazer. Compreensão (insight) dessa espécie só ocorre a alguém
39
DANIEL KUPERMANN

TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
uma vez na vida" 2• A interpretação dos sonhos era considera­
da por Freud a chave de sua obra, "a via real que leva ao co­ com suas peculiaridades, detalhes, indiscrições, brincadeiras de
nhecimento das atividades inconscientes da mente" 3• mau-gosto, e então, de súbito, o topo, a vista e a pergunta: Por
A Traumdeutung é, sobretudo, produto da auto-análise de favor, para onde o senhor quer ir agora?" 7• Trata-se de um con­
Freud*. Esta intensificou-se desde a morte de seu pai, em 1896, vite a uma viagem em busca do sentido, cujo guia é Freud.
culminando na publicação do livro. A interpretação de seus pró­ Para além do aspecto formal, o que está apontado desde
prios sonhos era o principal recurso utilizado por Freud em sua A Interpretação de Sonhos é que a transmissão da psicanálise tem
auto-análise, e grande parte do material empregado na Traum­ como característica o fato de ser regida pela transferência. Freud
deutung provém daí. Assim, A Interpretação de Sonhos é o maior tem absoluta clareza disso, o que revela numa passagem decisi­
exemplo do "emaranhamento entre autobiografia e ciência" que, va onde formula um convite "muito especial" ao leitor, antes de
nas palavras de Peter Gay4, marca desde o início a psicanálise. introduzir a análise de seu sonho-modelo, o sonho da injeção
Nesse sentido, além de texto fundamental (em termos de Irma, no segundo capítulo da Traumdeutung:
dos fundamentos conceituais), a A Interpretação de Sonhos é
também o texto fundador da transmissão da experiência analí­ ( ...) TouT PSYCHOLOGISTE, escreve Delboeuf [ 1885], EST
OBUGÉ DE PAIRE L'AVEU MÊME DE SES FAIBLESSES S'IL CROIT
tica. O saber nele descrito é o saber obtido por Freud não ape­
PAR LÀJETER DU JOUR SUR QUELQUE PRÓBLElvfE OBSCUR (...) *
nas a partir da clínica da histeria, mas também, e principal­
mente, através de sua auto-análise, considerada o ato funda­ Em conseqüência, passarei a escolher um de meus pró­
prios sonhos e demonstrarei, à base dele, meu método
dor da psicanálise, a experiência psicanalítica originária. Por­
tanto, para ter acesso ao inconsciente, Freud inaugura uma de interpretação (...) - Agora devo pedir ao leitor que
experiência, e a transmissão do saber do inconsciente implica faça dos meus interesses os seus próprios por um perío­
a transmissão dessa experiência. Ou seja, se a interpretação do bastante longo, e mergulhe, juntamente comigo, nos
de sonhos aponta para a questão do sentido inconsciente, para menores detalhes de minha vida, porquanto uma TRANS­
FERÊNCIA** dessa natureza é peremptoriamente exigida
apreender este sentido é preciso seguir com Freud.
O próprio estilo literário empregado na construção do por nosso interesse no significado oculto dos sonhos8 •
texto sugere uma "viagem com guia"5• Freud conduz o leitor ó convite especial formulado por Freud é um convite à
entre exemplos de sonhos que se adiantam ao argumento, an­ transferência. Se a transferência nos remete aqui, em grande
tecipa as possíveis objeções, desarmando a crítica, alterna o parte, à identificação- fazer dos interesses (leia-se desejos) de
emprego do tom coloquial com citações literárias e canções Freud os seus próprios, mergulhar nos menores detalhes de sua
populares, aliviando o peso da leitura6• Ao descrever o livro a vida- não se reduz a ela. Há na estrutura deste convite à trans­
Fliess, pouco antes da publicação, ilustra Freud: "o conjunto é ferência um guia, aquele que conhece o método (caminho, em
apresentado como a fantasia de um passeio. No começo, a ne­ grego) de interpretação. Há um saber em jogo, e um mestre, na
gra floresta de autores (que não enxergam as árvores), irreme­ fundação inaugural desse saber.
diável, repleta de trilhas enganosas. A seguir, uma estreita pas­ A importância dessa breve incursão por A Interpretação
sagem oculta por onde conduzo o leitor - meu sonho-modelo de Sonhos em nosso percurso reside no fato de que esse livro
(•) Em francês, no original. Todo psicólogo está obrigado a confessar mesmo suas próprias fraquezas, se
11

(*) Sobre a auto-análise de Freud, consultar Didier Anzieu (1989). ele julga que pode lançar luz sobre algum problema obscuro",
( .. ) No original: "denn solche Übertragung fordert gebieterisch das Interesse für die versteckte Bedeutung der
Traume" (Gesammelte Werke, vol.ll/lll, p.l 10, Imago Publishing, London, 1942).
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TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

funda não apenas a transmissão da experiência psicanalítica então a criação do grupo, estimulando Freud a formular o con­
como também oferece as bases para a institucionalização da vite. Em A História do Movimento Psicanalítico, Freud escreve:
psicanálise. O convite à transferência formulado por Freud marca A partir do ano de 1902, certo número de jovens médicos
o declínio do período de seu "esplêndido isolamento"*, cultiva­ reuniu-se em tomo de mim com a intenção expressa de
do por q�ase dez anos, e aponta para um novo período, no qual
. aprender, praticar e difundir o conhecimento da psicanáli­
Freud ira congregar em torno de si discípulos dispostos a fazer se. O estimulo proveio de um colega que experimentara ,
11•
do seu interesse o próprio, em nome da causa psicanalítica. É ele próprio, os efeitos benéficos da terapêutica analítica
ainda ao convite à transferência que irá retornar algumas vezes
d�rante períodos de crise do processo de institucionalização da Portanto, o primeiro grupo psicanalítico foi a concretização
ps1canáhse, mesmo que na sua forma inversa, a da exclusão. em ato do convite à transferência que Freud havia formulado
em A Interpretação de Sonhos.
A Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras Apesar do caráter pouco institucionalizado do grupo, o que
a diversidade de autodenominações vem apontar, as reuniões
. O ano de 1902 trouxe reconhecimentos importantes para obedeciam a um modo de funcionamento com características bem
Freud. Em fevereiro, foi promovido ao título acadêmico de Pro ­
fessor Extraordindrio. Essa promoção era esperada desde 1885, definidas. O encontro tinha início com a apresentação, por um
-:1.uando Freud havia sido nomeado Privatdozent, e representava dos membros, de um texto escolhido, um caso clínico ou uma
grande prestígio para um médico na sociedade vienense da épo­ questão teórica, após o que abria;se a discussão. Nesse início, o
ca. E, no outono deste ano, um pequeno grupo de médicos mais grupo, que crescia rapidamente, era marcado pela hetero;
jovens passa a reunir-se em torno de Freud, tendo em comum 0 geneidade, contando com a participação de médicos, educadores
intere�se �ela psicanálise. As reuniões aconteciam nas quartas­ e escritores que partilhavam uma insatisfação frente à psiquia­12
.
feiras a noite, em sua casa, e os encontros foram autodenominados tria, à educação e às ciências humanas em geral. Roudinesco
"noitadas psicológicas das quartas-feiras", "sessões das noites de ressalta que esses homens traziam em si o reflexo do mundo con­
quarta-feira"9 e "Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras", de- flituado em que viviam - marcado pela influência do darwinismo
.
nommação que se tornou a mais conhecida 10. Era o início da tri- no pensamento científico, pela filosofia de Nietzsche no pensa­
lha que faria de Berggasse 19 o endereço mais famoso de Viena. mento ético e moral, pela nosologia de Kraepelin e pelas idéias de
Os encontros tiveram início a partir de um convite pesso­ Charcot na psiquiatria, pelos movimentos culturais e literários de
al de Freud, que enviou cartões-postais a quatro médicos vanguarda louvando o século da eletricidade, pelo socialismo
vienenses - Max Kahane, Rudolf Reitler, Alfred Adler e na esfera política e, enfim, pela própria psicanálise - e mostra­
Wilhelm Stekel. Em 1901, Kahane, que junto a Reitler assistia vam;se dispostos a discutir e expor seus próprios conflitos.
à� conferências de Freud na Universidade, sugere a Stekel, que Em 1906, Otto Rank foi contratado como secretário da So­
vmha sofrendo de uma impotência psíquica, que procurasse 0 ciedade Psicológica das Quartas-Feiras. O grupo contava então com
auxílio de Freud. Stekel submeteu-se a uma breve análise com membros, e Rank passou a redigir detalhadamente as atas das
Freud, que se mostrou bem sucedida. O próprio Stekel sugeriu sessões. As discussões tinham três características principais:
1) obrigatoriedade da fala - toda pessoa presente às sessões era obri­
(�) Freud (1914, p.33) utílizou a expressão splendid isolation para referir-se ao período de solidão intelectual
,
vw1da entre o afastamento de Breuer e o início do reconhecimento obtido pelo movimento psicanalítico. a participar das discussões; 2) auto-exposição científica - havia
Jo?:s 0989, P, 22) comenta que a expressão, usada por Lorde Salisbury para designar a política externa
_
bntamca na epoca, foi sugerida por Fliess como forma de consolo para a solidão de Freud,
um incentivo para expor no grupo, com :fins de ilustração e u,w,..,.,...
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DANIEL KUPERMANN
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

os próprios problemas, fracassos, questões sexuais, enfim, "dis­ Esta passagem não teria maior relevância não fosse o fato de
túrbios neuróticos"13; 3 )a palavra final e decisiva era de Freud14. que, neste mesmo dia, uma importante notícia era veiculada por
Gay nos oferece alguns exemplos de auto-exposição cien­ Freud na "praça" psicanalítica: a dissolução, seguida de imedia­
tífica freqüentes nos encontros. Rudolf von Urbantschitsch, ta reorganização, da Sociedade Psicológica das Quartas-Ft .,.as.
médico diretor de um sanatório em Viena, expôs, durante uma A notícia da dissolução do grupo foi comunicada 1.it ·r
reunião em 1908, trechos de um diário sobre o seu desenvolvi­ Freud aos membros em uma carta-circular datada de Rom:
mento sexual até o casamento. Nestes, confessava a masturbação do mesmo 22 de setembro de 1907. O objetivo assumido p01
precoce junto a tendências sadomasoquistas. O comentário de Freud para a dissolução/reconstituição da Sociedade era o de
Freud ao encerrar o encontro foi de que Urbantschitsch havia restabelecer a "íiberdade pessoal" de cada membro, possibili­
oferecido uma espécie de "presente" ao grupo15• tando seu afastamento da Sociedade, sem que as relações com
Quanto ao fato de a palavra final ser sempre proferida por os outros membros fossem prejudicadas. Freud pretendia con­
Freud, é ilustrativo do lugar que ocupava na dinâmica trans­ siderar as "mudanças naturais" nas relações humanas, supon­
ferencial do grupo. Max Graf, que acabaria se afastando das do que, para alguns membros do grupo, "pertencer a ele já
reuniões, comenta que a atmosfera era a da fundação de uma não significa o que significou anos atrás", em função da perda
religião. A metáfora religiosa reaparece em Stekel, que ao se do interesse pelo assunto, da falta de tempo disponível, ou
referir a esses primeiros anos iria reconhecer-se como "o após­ mesmo porque "relações pessoais ameaçam mantê-lo afasta­
tolo de Freud, que era meu Cristo!"16• do"18. Aqueles que quisessem renovar sua participação no gru­
A história da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras é po deveriam notificar Rank até 1 º de outubro. A carta-circu­
interrompida em setembro de 1907. Freud foi a Roma, de fé­ lar termina com a proposta de que o expediente da dissolu­
rias, em uma viagem solitária. Em 22 de setembro escreve uma ção/reorganização fosse repetido a cada três anos.
carta para a família, citada por Jones como exemplo típico de Em associação com a carta familiar, o ato de Freud -sem
suas cartas de viagem. Sua narrativa é a da descrição de um dúvida a grande notícia do dia no universo psicanalítico -pre-
"
observador, tanto no que se refere aos hábitos e à paisagem ex­ tendia o valor de um ac1'dente , com mortos e L1en'dos" . Neste
li "

terior de Roma, quanto em relação aos seus próprios sentimen­ sentido, o fôlego para com a "maratona" do movimento psicana­
tos. Realidade externa e realidade psíquica se influenciam mu­ lítico pareda já faltar a Freud, que com a notícia estaria "alivian­
tuamente, chegando mesmo à fusão, no universo da escrita de do uma tensao quase insuportável" no grupo. O alívio viria com o
Freud. Em uma passagem, Freud relata: afastamento de alguns participantes com os quais Freud estava
De tempos em tempos, gritos horrfveis são ouvidos no em conflito. Através deste dispositivo, Freud voltaria a se sentir
meio da multidão, em geral quieta e bem distinta; esse "dono da situação", porém de uma forma bastante singular.
barulho é causado por cerca de meia dúzia de jornaleiros Gay aponta que as reuniões foram adquirindo, com o tem­
que, sem fôlego como o arauto da maratona, se atiram po, um caráter competitivo entre os participantes, criando um
na praça com as edições da noite, ACHANDO QUE COMAS clima de hostilidade. Disputavam-se posições dentro do grupo,
NOTÍOAS ESTAO A11VIANIX) UMA TE.\/SÃO QUASE WSUPOR­ bem como os direitos sobre determinadas idéias. Em 1908, quan­
TÁVEL. Quando t€m um acidente a oferecer, com mortos do o grupo manteve discussões sobre mudanças no seu funcio­
ou feridos, realmente se sentem donos da situação 17• namento, foi proposta a abolição do "comunismo intelectual"
-a partir de então, cada idéia passaria a ser identificada como
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TRANSFERÍtNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

propriedade privada de seu criador-preocupação que come­ nheceu o grupo em 1908 e também não se impressionou. Em
ça a distanciar-se da concepção psicanalítica de uma produção 1911, Freud escreveu a Abraham: "Todos os meus vienenses
23
de saber dada a partir da interação de inconsciente a inconsci­ não vão chegar a nada, exceto o pequeno Rank" •
ente. Para Gay, o que sucedia ao grupo eram os efeitos da pró­ Portanto, com a dissolução/reconstituição da Sociedade
pria investigação psicanalítica, que estava "cobrando seus tri­ Psicológica das Quartas-Feiras, e a subseqüente criação da So­
butos" e gerando a agressividade difusa. Afinal, recorda, ne­ ciedade Psicanalítica de Viena, em 15 de abril de 1908, Freud
nhum dos participantes que "invadiam atrevidamente e sem estava dando início a uma desejada internacionalização da psi­
tato os mais íntimos santuários próprios e de terceiros" havia canálise, ensaiando o primeiro passo em direção a um movi­
sido analisado, exceto Stekel, que submeteu-se a uma breve e mento de descentramento transferencial que teria na criação da
"incompleta" experiência analítica, e o próprio Freud em sua IPA a sua efetivação.
auto-análise, por definição irreprodutível 19• Assim, ao analisar
os motivos da dissolução da Sociedade, Gay segue o argumento
que se tornou tradicional na História da Psicanálise sempre que A "TRANSFERÊNCIA" DAS TRANSFERÊNCIAS
surgem problemas no funcionamento institucional e nas rela­
ções interpessoais: análise insuficiente da parte de alguns. A criação da Sociedade Psicanalítica de Viena veio não
Ernest Jones20 considera que a carta-circular de dissolu­ apenas estabelecer um estatuto mais formui ao grupo que se
ção da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras é um exem­ reunia em torno de Freud, mas também lançar as bases para a
plo da "delicadeza de sentimentos" e da "consideração" de internacionalização do movimento psicanalítico. Em 26 de abril
Freud com relação a seus discípulos. Da mesma maneira, Gay 21 de 1908, apenas onze dias após a sua criação, acontecia o pri­
considera a dissolução um "expediente polido, nada mais". Para meiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg, com
isso, tomam o conteúdo manifesto da carta-circular de Freud a presença de quarenta e dois participantes, representando seis
em sua total literalidade, "nada mais", atitude raramente as­ países -Áustria, Inglaterra, Alemanha, Hungria, Suíça e Es­
sumida, principalmente no que se refere à análise dos movi­ tados Unidos24• A nova denominação-Sociedade Psicanalíti­
mentos de dissensão. No extremo oposto, Phy llis Grosskurth22 ca de Viena-aponta para duas importantes transformações: a
considera que Freud - para quem o grupo não era mais do afirmação da psicanálise enquanto disciplina autônoma por re­
que uma tábua de ressonância para as próprias idéias - im­ ferência à psicologia; e a localização nacional desta Sociedade
põe a dissolução incomodado pela "desordem democrática" Psicanalítica-Viena d'Áustria-o que indica a possibilidade
que passou a reger seu funcionamento. (e o desejo) da criação de outras sociedades em outros países,
Fato é que Freud não estava satisfeito com o grupo que afirmando o caráter universal da psicanálise.
se reunia a seu redor. Binswanger conta que, após uma sessão A partir de 1907, Freud iniciara os contatos com os es­
das quartas-feiras em 1907, Freud comentou desencantado: trangeiros que deram um novo rumo ao movimento psicanalíti­
"então, agora o senhor viu a turma!". A impressão que o gru­ co. Neste ano, recebeu três visitantes de Zurique, ligados à Clí­
po vienense causava aos estrangeiros que iam visitá-lo tam­ nica de Burgholzli, instituição de vanguarda nas pesquisas so­
bém não era animadora. Em dezembro de 1907, por ocasião bre doenças mentais, internacionalmente conhecida, dirigida
de sua primeira visita à Sociedade, Karl Abraham criticou o por Eugen Bleuler. Seus visitantes foram Max Eitingon, Ludwig
grupo de modo irônico em carta a Max Eitingon. Jones co- Binswanger e Carl Jung.
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

Eitingon procurou Freud em busca de orientação para um O primeiro encontro de Ernest Jones com Freud ocor­
caso grave do qual vinha tratando. Permaneceu em Viena por cer­ reu no Congresso de Salzburg, em 1908. Jones foi responsável
ca de duas semanas, assistiu às reuniões das quartas-feiras e termi­ pelo início da difusão da psicanálise em língua inglesa, fun­
nou por fazer, ele próprio, algumas sessões psicanalíticas. Estas se dando a Sociedade Psicanalítica de Londres, em 1913.
deram durante três ou quatro noites, em passeios pela cidade, nos Idealizador do "Comitê Secreto", correspondente de Freud
quais Freud o analisava enquanto andavam. Jones classificou a durante toda a vida, foi o primeiro grande historiador da psi­
análise de Eitingon como a primeira análise didática da história do canálise, autor de A Vida e a Obra de Sigmund Freud.
movimento psicanalítica25 *. Estabeleceu-se em Berlim, onde desem­ Esses encontros e esses homens inauguraram um impor­
penhou um papel decisivo na fundação da "Policlínica", e na estru­ tante capítulo na história do movimento psicanalítico*.
turação do processo de formação psicanalítica adotado pela IPA
Binswanger acompanhou Jung a uma reunião das quar­ A criaçao da IPA
tas-feiras, iniciando uma relação com Freud marcada pelo res­ O 2 º Congresso de Psicanálise, realizado na primavera
peito e por sua independência frente à política do movimento de 1910, em Nuremberg, foi um fórum marcado pela utopia,
psicanalítico. Quanto a Jung, mantinha uma correspondência com grandes planos para o futuro e esperança de um destino
com Freud desde o ano anterior, tendo seu primeiro encontro florido para a psicanálise. Freud apresentou um trabalho, As
com o "professor" em fevereiro de 1907. Devido à importância Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica (191O), carac­
fundamental da relação entre Jung e Freud para os destinos do terizado por um otimismo nunca mais encontrado em sua obra.
movimento psicanalítico, analisamos adiante, de forma mais Previa o aumento do poder terapêutico da psicanálise decor­
detalhada, as circunstâncias desse relacionamento. rente do ganhei de autoridade e reconhecimento social, che­
Em dezembro foi a vez de Karl Abraham. Trabalhara por gando a sugerir a erradicação da neurose na sociedade como
três anos na Clínica Burgholzli, mas, por falta de perspectivas efeito profilático da psicanálise. Paralelamente, amadurecia a
em Zurique, havia decidido estabelecer-se em Berlim para pra­ idéia de uma instância internacional centralizadora e regula­
ticar a psicanálise. Enviara seus trabalhos a Freud, que o convi­ dora das atividades psicanalíticas, o meio para atingir a utopia
dou para um encontro em Viena. Desse encontro teve início de uma psicanálise difundida e influente mundialmente. Cou­
uma sólida amizade, que durou até a morte de Abraham. Em be a Ferenczi elaborar e propor, durante o Congresso, o proje­
1908, fundou a Sociedade Psicanalítica de Berlim, e foi um dos to da Associação Psicanalítica Internacional - a IPA.
analistas de maior destaque da primeira geração. Se por um lado a proposta apresentada por Ferenczi pos­
Sándor Ferenczi visitou Freud em fevereiro de 1908. Ra­ sui um tom utópico, é também bastante pragmática e crua no
pidamente tornaram-se íntimos. Ferenczi submeteu-se a uma
análise com Freud que veio a ser paradigmática dos problemas (*) A dissolução, seguida de imediata reconstituição, da Sociedade Psicanalítica das Quartas-Feiras, foi
interpretada como uma tentativa de aliviar "tensões" no grupo. Como fontes destas tensões, foram
encontrados nas análises didáticas. Em 1913, fundou a Socie­ apontados os conflitos surgidos em seu interior, em função das mudanças naturais nas relações huma­
nas, e o próprio descontentamento de Freud com os vienenses. Porém ! para aprofundar a compreensão
dade Psicanalítica Húngara. Autor de uma obra original e polê­ dos rumos tomados pelo movimento psicanalítico, considerando o lugar de Freud em sua determinação,
mica, foi um explorador incansável dos limites da psicanálise. cabe indagar sobre a relação de Freud com o próprio lugar por ele assumido frente ao movimento, bem
como sobre a sua concepção das modalidades de poder implicadas nas formas de organização social da
psicanâlise. Encontramos um interessante ensaio neste sentido em Roudinesco (1989), que, através do
(*) Roudinesco Jembr quc Ste� l foi o primeiro "doente" de Freud a se tornar conceito de polítka da psicanálise 1 aliado a uma ({psicologia do líder n tendo Freud como objeto ) busca
11

�_ . _ � psicanalista, ocupando
esse 1mportante mgar , ,nmbohco
',

1 e fazendo o testemunho antecipado do que seria no malogro crônico da determinar os conflitos (e as tensões) em torno dos quais o movimento psicanalítico se institucionalizai
transmissão e da formação didática" nas instituições psicanalíticas (1989, p. 97), Provavelmen apontando a fórmula do exercício do poder em Freud: líder descentrado e "mestre sem mando", Con­
te devido
ao destmo de Stekel no movimento psicanalítico, Jones desconsidera este fato, vém remeter o leitor a essa análise.

48 49
TRANSFERÊ:NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

sem sufocadas ainda no ovo e, também, pela ausência de uma


qu� se refere às suas intenções, o que faz dela um valioso (e
autoridade central, favorecer o desenvolvimento do amor-pró­
curioso) documento histórico, publicada como De I.:,Histoíre
du Mouvement Psychanalytique (1911). Dois pontos centrais são
prio indispensável a todo trabalho de vanguarda. Mas havia
abordados por Ferenczi: questionamento dos meios de luta em­ produzido os inconvenientes da proliferação excessiva de ten­
dências individuais e de posições científicas personalizadas e
pregados na difusão e proteção da "causa" psicanalítica e exa­
isoladas, às custas do interesse comum e das "teses centrais".
me crític? d� pat�logia das associações, contraposta ao �rojeto
Ferenczi aponta ainda que apenas uma minoria é capaz de,
da Associaçao Psicanalítica.
sem ajuda externa, reconhecer seus instintos e tendências
Ferenczi propunha que um Congresso de Psicanálise de­
desadaptadas e refreá-los em nome do interesse comum. "O
veria ser dedicado não apenas às discussões sobre o método
nome de Freud inscrito em nossa bandeira", diz, "não é senão
analític�, mas também à crítica aos "meios de luta" empregados
um nome"27,"sem condições de garantir os praticantes e as prá­
para a difusão cultural da psicanálise. "Como todos os inovado­
ticas exercidas em seu nome. Daí a proposta de organizar a
res e pioneiros", diz, "devemos não somente trabalhar, mas tam­
atividade e a luta psicanalítica sob a égide da Associação.
bém lutar por nossa causa"26• O destino dos psicanalistas é com­
parado ao dos apóstolos da paz eterna, obrigados, por seu ideal, Antes, porém, de propor o modelo de funcionamento da
a fazer a ��e�ra (uma vez mais, si vis pacem... ). Percebe-se que, Associação, Ferenczi faz uma análise edipiana das "patologias
das associações", onde freqüentemente reina a "megalomania
desde o ,1�1e10, a metáfora da guerra está presente no campo
_ pueril", a "futilidade", a "obediência cega", e o interesse pessoal
ps1canaht1co, e que o tom bélico assumido por Freud em 1914
em lugar do trabalho consciencioso para o bem comum. A es­
já se encontrava na origem da fundação da IPA.
trutura das associações é comparada à da família, com um presi­
A história do movimento psicanalítico é dividida por
Ferenczi em duas épocas. A "época heróica", referente aos anos dente no lugar de pai e hierarquia entre os membros reprodu­
da luta solitária de Freud pelo reconhecimento da psicanálise zindo a hierarquia entre irmãos. "Amor e ódio pelo pai, afeição
e inveja entre irmãos"28, resume Ferenczi, profetizando com dois
e a segunda época, marcada pela entrada em cena de Jung'.
anos de antecedência Totem e Tabu. Para comprovar que sua
Uma das funções políticas da proposta de Ferenczi, em acordo
com os desejos de Freud, era fazer de Jung o presidente da analogia não é forçada, Ferenczi exemplifica:
As:ociação. Daí a importância, certamente exagerada, atri­ Uma prova disso, entre outras, é fornecida pela regula­
bmda a Jung nessa versão histórica. Seu mérito teria sido tor­ ridade com a qual até mesmo nós, analistas selvagens e
nar as idéias freudianas acessíveis aos espíritos mais científi­ desorganizados, condensamos em nossos sonhos a figu­
cos d � época, através do emprego dos métodos da psicologia ra paterna com a do nosso chefe espiritual29•
experimental na sua demonstração. Jung é exaltado como 0
Assim, segundo este testemunho, além de chefe espiritu­
Américo Vespúcio da psicanálise, que conduziu os colonos ao
continente descoberto por Freud/Colombo. al, Freud ocupa o lugar de pai no registro inconsciente dos ana­
Assim como os primeiros imigrantes do novo continen­ listas da primeira década, condição transferencial suficiente para
te, Ferenczi considera que, até então, os psicanalistas haviam fazer da psicanálise uma instituição30•
operado nos moldes de uma "guerra de guerrilha" - sem dire­ No projeto utópico da Associação, Ferenczi pretendia que
a vigilância mútua dos analistas permitisse reunir as vantagens
ção espiritual e unidade tática. A tática de guerrilha teria ofe­
da organização familiar a um máximo de liberdade individual.
recido as suas vantagens, como evitar que as novas idéias fos-
S1
50
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

A Associação deveria ser uma família onde o pai não detivesse Por um lado, é explícito o desconforto de Freud com
uma autoridade dogmática e onde reinasse uma atmosfera de seu lugar transferencial. Alvo da ambivalência proveniente
confiança mútua, com o reconhecimento das capacidades de das várias facções, ora comparado a Colombo e Darwin, ora
cada um, o controle da inveja e a divisão do trabalho. Referin­ taxado de PGP ("paralisia geral progressiva"), Freud acredi­
do-se às fases de desenvolvimento libidinal, Ferenczi aponta a tava tratar-se de uma desvantagem centralizar as atividades
substituição da fase "auto-erótica" vivida até então nos grupos psicanalíticas em Viena. Por outro lado, confessa: "me opri­
psicanalíticos, quando a satisfação era obtida pela excitação de mia a idéia de que o dever de ser um líder tivesse recaído em
zonas erógenas psíquicas (futilidade, ambição), pela fase do mim tão tarde na vida. Sentia, porém, que deveria haver al­
"amor objetal", quando a busca de satisfação recai sobre o pró­ guém na liderança". A solução proposta é a de que a sua
prio objeto do estudo psicanalítico31• Ironicamente, o mesmo "posição" deveria ser "transferida" (übertragen) para um ho­
Ferenczi irá tornar-se, em um futuro breve, um dos maiores crí­ mem mais jovem: Carl Jung34•
ticos dos destin�2 da IPA e das práticas de formação psicanalíti­ A questão judaica aparece de forma mais velada. Uma car­
ca ali exercidas.!Marginalizado, morrerá maldito, em função das ta de Freud a Abraham, escrita logo após o 1º Congresso de Psi­
, inovações teórfto-técnicas por ele introduzidas e, em termos canálise, em 1908, é reveladora da importância atribuída a Jung
político-institucionais, por suas denúncias da mediocrização na. para o futuro da psicanálise. Nela, Freud escreve: "A adesão dele
transmissão da psicanálise produzida tanto pela estrutura hie­ (Jung), portanto, é sobremodo valiosa. Eu já estava quase dizen­
rárquica das associações quanto pela qualidade das análises que do que foi apenas o surgimento dele na cena que removeu da
tinham lugar na formação psicanalítica. f psicanálise o perigo de se tornar uma questão nacional judaica"35•
A versão freudiana para a criaçãÕ da IPA encontrada Em sua História, Freud sugere que as acusações de que a
em A História do Movimento Psicanalítico aponta, como vimos teoria da etiologia sexual das neuroses só poderia ter surgido na
no primeiro capítulo, três finalidades gerais: "organizar o mo­ "atmosfera de sensualidade e imoralidades" de Viena são um
vimento psicanalítico, transferir o seu centro para Zurique, e "substitutivo eufemístico de outra acusação que ninguém ousa
dotá-lo de um chefe que cuidasse do seu futuro"32• Organizar falar abertamente"36 - a origem judaica de Freud. Nesse senti­
o movimento psicanalítico significava proteger a psicanálise do, Jung - filho de pastor protestante e psiquiatra promissor
dos abusos da popularidade e cuidar de sua transmissão e en­ - na liderança do movimento, afirmaria o caráter universal e
sino. Quanto a Zurique e ao papel de Jung na Associação, é cosmopolita da psicanálise.
preciso ver mais detidamente. Assim, a "opressão" vivida por Freud frente ao dever de
Que Zurique fosse o centro mais indicado para sede da ser um líder, aliada à idéia da necessidade de liderança, e a
Associação é razoável, principalmente considerando a impor­ solução encontrada no descentramento para Zurique, colo­
tância da Clínica de Burgholzli para a difusão da psicanálise. cam-se como as figuras mais ilustrativas da fórmula do exercí­
Mas Freud aponta outros motivos de compreensão mais sutil cio do poder em Freud: líder descentrado e mestre sem man­
para "retirar para o segundo plano tanto a mim (Freud) como do37. Além disso, sem dificuldades em reconhecer o aspecto
a cidade onde nasceu a psicanálise"33• Esses motivos, que apa­ ambivalente da transferência, Freud pretendia resolver a trans­
recem emaranhados, se referem ao lugar transferencial' ocu­ ferência maciça para consigo "transferindo" a liderança do
pado por Freud no movimento psicanalítico, às suas relações movimento psicanalítico - e as transferências que a acompa­
com esse lugar e à questão judaica. nham - para Jung. Como se dissesse: "a partir de agora, não
52 53
DANIEL KUPERMANN TRANSFERftNCIAS CRUZADAS

transfiram mais a mim. Transfiram a Jung". Esta "transferên­ doxia, seja ela religiosa, política ou psicanalítica. A diferen­
cia" das transferências, que marca a criação da IPA, irá mos­ ça é que aqui Freud reivindica a palavra e o saber sobre a sua
trar-se logo fracassada, exigindo de Freud um movimento de própria criação. Com a sua morte, a disputa pela ortodoxia
retomo, que analisaremos a seguir. Mas, apesar do fracasso, a no campo psicanalítico será pelo status de herdeiro legítimo
tentativa de controle (indicando um certo temor) das transfe­ do legado (também transferencial) freudiano.
rências no campo psicanalítico é uma tendência que nunca O movimento freudiano de retomo a Freud será marca­
abandonou de todo a história da psicanálise. É a marca da do por dois momentos: a formação de um Comitê Secreto ao
padronização da formação psicanalítica que teve lugar nos anos redor de Freud, em 1912, e o lançamento de A História do
20, e a questão central que culminou no rompimento de Lacan Movimento Psicanalítico - a "bomba" - em 1914. Conside­
com a IPA e na criação de sua própria escola. rando porém a importância do lugar de Jung - e de seu rom­
Com a criação da IPA, que jamais poderia dissolver-se, pimento com Freud - tanto para a formação do Comitê quan­
a psicanálise deixava de ser um movimento de vanguarda para to para a elaboração da História, convém analisar algumas ca­
tornar-se uma instituição, na concepção de Roudinesco38• Ou­ racterísticas da relação entre Freud e Jung.
tros autores apontam essa transformação em um momento pos­
terior, quando da padronização e codificação em normas rígidas A Recusa da Amizade
das formas de transmissão da psicanálise39• Ao contrário, preten­ A análise do relacionamento estabelecido entre Freud e
demos que as bases sobre as quais a psicanálise se institucionaliza Jung nos remete à questão da amizade em Freud, ou, melhor
estão dadas desde A Interpretação de Sonhos, sendo a criação da dizendo, da sua recusa. Peter Gay e Phyllis Grosskurth dedi­
IPA uma etapa desse processo. Para Freud, o Congresso de cam-se ao tema da amizade em Freud para lançar luz sobre a
Nuremberg significou o fim da infância do movimento psicanalí­ relação estabelecida com Jung e, no caso de Grosskurth, tam­
tico. Em carta a Ferenczi, ele escreve: "Com o Reichstag de bém com os membros do Comitê.
Nuremberg encerra-se a infância de nosso movimento (... ) Es­ Gay considera que o envolvimento de Freud com Jung
pero agora por um rico e promissor período de juventude"40• mostra-se uma "reedição de antigas e decisivas amizades" 42• O
"fantasma" de Fliess43 , que aparece na correspondência dos
dois, confirmaria esta leitura. O processo repetido por Freud
FREUD E O RETORNO A FREUD em suas amizades seria o de investir seus afetos de forma rápi­
da e precipitada, avançando até um nível de sinceridade qua­
A tentativa de solucionar os impasses do movimento se irrestrito e terminando com um rompimento irreparável.
psicanalítico transferindo seu centro e sua liderança para Jung São os casos de Fliess, Jung, e também, de modo menos inten­
mostrou-se logo desacertada, o que exigiu de Freud um mo­ so, Breuer, Stekel e Adler.
vimento transferencial de retorno à sua posição de mestre Phyllis Grosskurth ressalta a importância da correspon­
fundador, aquele "que sabe o que é a psicanálise" 41, para re­ dência nas amizades de Freud, apontando a evidência de que,
organizar o campo psicanalítico. A expressão retorno a Freud para Freud, as cartas eram mais importantes que os encontros
remete propositalmente ao projeto de Lacan. Pretende-se pessoais. A autora sugere como explicação o fato de as cartas
assim ressaltar o caráter transferencial decisivo presente em serem um meio de acesso à alma sem os inconvenientes da
todo movimento com pretensões de "retorno" a uma orto- presença do outro, e sem a possibilidade de ver interrompida
54 55
TRANSFERl,;NCIAS CRUZADAS

DANIEL KUPERMANN
Seus sentimentos por Fliess e Silberstein foram largamente
TRANSFERIDOS para outros homens como Jung e os mem­
sua (de Freud) seqüência de pensamento. Propomos portanto
que, através das cartas, Freud se aproxima da situação analíti­ bros do Comitê. Seus antigos amigos estavam agora
ca - acesso à "alma", associação livre. Se, através da corres­ apagados da versão de Freud de sua história pessoal46 •
pondência com Fliess, Freud pôde fazer sua auto-análise, co­
locando Fliess na posição do analista, um dos motivos do rom­ A versão de Gay é menos radical. Nela, é ressaltado o fato
pimento de Jung foi a não-aceitação deste de pontuações e de que Freud soube manter também longas e imperturbadas
interpretações por parte de Freud em suas cartas. amizades, e não apenas com pessoas que não o ameaçavam no
Ao analisar as relações de Freud com seu amigo de juven­ movimento psicanalítico. Gay cita os exemplos de Paul Fedem,
tude, Eduard Silberstein, e depois com Fliess, Grosskurth aponta Ernest Jones, Binswanger e o pastor Pfister. Mesmo assim, a
a ambivalência vivida por Freud. Por um lado, inveja do sucesso questão que merece ser aqui colocada é se estamos tratando
mesmo de amizade, ou se seria melhor falar em transferência.
�aterial dos dois amigos e, por outro, tendência à idealização É o próprio Freud quem, numa das raras alusões ao tema,
mtensa. Quanto a Fliess, a intensidade com a qual Freud iniciou
o relacionamento é entendida como um reflexo de seu desaponta­ propõe a distinção. Trata-se da passagem de Análise Terminável
mento com a realidade do casamento (Freud casou-se em 1886, e Interminável (1937) em que comenta a crítica feita por um
e iniciou a correspondência com Fliess em 1887), e um indica­ analisando ao seu analista de ter falhado em lhe proporcionar
dor da necessidade de procurar um amigo idealizado que exis­ uma análise completa, por não ter dado atenção à transferência
te apenas enquanto projeção de suas próprias necessidades. O negativa - sabemos hoje que o analisando em questão é
amigo ideal para Freud, diz Grosskurth44, "tem que ser uma Ferenczi, e o analista, Freud (retomaremos este caso adiante).
extensão de si mesmo". Nesse nível de idealização narcísica, Dentre os argumentos utilizados por Freud em defesa própria,
os amores e as amizades só podem acabar em desencanto. um, sobretudo, nos interessa. Diz Freud:
O desencanto com Fliess se dá em dois momentos: o de­ Ademais (...) nem toda boa relação entre um analista e
sastre provocado na operação de Emma Eckstein, que Freud só seu paciente, durante e após a análise, devia ser encarada
pode aceitar culpando-se também; e a "traição" de Freud ao como transferência; havia também relações amistosas que
revelar, através de um paciente, a teoria da bissexualidade de se baseavam na realidade e que provavam ser viáveis47•
Fliess, que acabou incorporada por Otto Weininger em Sexo e
Caráter. Segundo Grosskurth, a culpa da traição a Fliess foi pro­ Freud diferencia assim amizade de transferência. Enquanto
jetada sobre o ex-amigo como a "paranóia de Fliess", e em suas a primeira está baseada na realidade, a segunda, considerando
relações futuras Freud irá suspeitar a traição de todo aquele com toda a sua obra, está baseada em outros princípios, sendo o seu
quem estabelecer um contato mais íntimo. Somente com Anna caráter de repetição o mais significativo para essa problemática.
filha solteira e por ele analisada, encontraria segurança45• Portanto, pensar uma amizade como "reedição de antigas e de­
As cartas de Silberstein foram destruídas por Freud. Em cisivas amizades", ou uma amizade baseada na idealização nar­
dezembro de 1928, pouco depois da morte de Fliess, sua esposa císica e, portanto, na negação da diferença, parece um equívo­
escreveu a Freud pedindo a parte da correspondência escrita co. Melhor seria falar em transferência.
pelo marido. Freud respondeu que precisaria procurar, mas dis­ A análise de trabalhos que tratam da relação entre Freud
se nunca ter encontrado. Levanta-se a possibilidade de que fo­ e Jung48 é ilustrativa do jogo transferencial/contratransferencial
ram destruídas após o Natal. Grosskurth conclui: 57
56
DANIEL KUPERMANN TRANSFER�NCIAS CRUZADAS

por eles estabelecido, cuja marca maior foi a recusa da amiza­ Assim, alguns meses após o encontro com Freud, Jung jus­
de, entendendo por amizade a "recusa do servir", a igualdade tificava por um "complexo de autopreservação"(o termo foi su­
na diferença49 • Freud procurava em Jung um aluno brilhante gerido por Freud) sua demora em escrever. Confessava a admira­
que perpetuasse a sua obra, e não um brilhante chefe de esco­ ção ilimitada pelo"professor", como homem e como pesquisador,
la responsável por uma obra singular. Jung buscava em Freud e atribuía seu"complexo" a uma veneração por Freud que se apro­
um pai compreensivo, não um mestre preocupado em encon­ ximava do embevecimento"religioso":"Se bem que a coisa real­
trar um sucessor que preservasse seu legado, tampouco um mente não me aflija", escreve Jung, "ainda a considero repulsiva
igual, mantendo -se na posição impossível de aluno indepen­ e ridícula devido a seu inegável fundo erótico". Refere-se então a
dente e, ao mesmo tempo, dócil. um ataque homossexual sofrido na infância por um homem a
Desde o início da correspondência, em abril de 1906, as quem também adorara, e conclui: "Tenho portanto medo da sua
cartas já estavam "marcadas". Em sua primeira carta a Jung, confiança" (49J, p. _137, 28/10/1907). Na carta seguinte, !�ng
como indica Roustang50, Freud já o coloca no lugar de "aluno relata estar sofrendo todas as agonias de um paciente em anahse,
útil para justificar as teses já estabelecidas pelo mestre". O pri­ temendo as conseqüências de sua confissão, e analisa um sonho
meiro encontro entre os dois ocorreu apenas a 27 de fevereiro que havia tido com Freud. Após uma resposta presumivelmente
de 1907. O encanto foi mútuo, e falaram durante treze horas acolhedora de Freud - a carta foi perdida - Jung escreve:
praticamente ininterruptas51• Jung, por muito tempo, encarou "(...) minha velha religiosidade havia encontrado no senhor
o encontro com Freud como o acontecimento mais importante um fator compensatório( ...)"(51J, p. 139, 08/11/1907).
de sua vida. Freud, por sua vez, tinha encontrado seu "filho e A resposta de Freud é o mais forte indício da presença do
herdeiro", e considerava Jung o "Josué destinado a explorar a fantasma de um rompimento à la Fliess na sua relação com Jung.
terra prometida da psiquiatria que(ele) Freud, como Moisés, só Freud escreve:"( ...) uma transferência de base religiosa... seria
teve a permissão de ver à distância"52 (cf. 125F) *. absolutamente funesta e só poderia terminar em apostasia, gra­
Mas é também desde cedo que os impasses surgiram. Se ças à universal tendência humana de �e _ater a s�cessiv�s
na esfera teórica Jung sempre se mostrou reticente quanto à reimpressões dos clichês que trazemos no mt1mo. Farei o p�ss1-
aceitação da teoria da sexualidade e do conceito de libido sexu­ vel para lhe mostrar que não estou talhado para ser um obJeto
al53, na esfera do relacionamento pessoal, refletida na corres­ de adoração"(52F, p. 141, 15/11/1907).
pondência, os impasses logo aparecem. Freud responde às car­ .
Roustang atribui a uma outra carta, escnta meses mais
tas sempre de imediato, enquanto Jung é irregular, levando às tarde, a chave para o entendimento do tom empregado por Freud
vezes vários dias para responder, o que para Freud é uma prova - "funesta", "apostasia", "reimpressões dos clichês". Ao con­
de resistência54• De fato, Jung se sente pressionado e reticente cluir um relato sobre a diferença entre a paranóia e a demência
em responder às demandas transferenciais de Freud. Porém, os precoce, Freud escreve: "Meu ex-amigo Flies� �esenvolv_eu uma
dois homens se recusam a enxergar os impasses - tanto teóri­ paranóia horrível depois de se livrar da afe1çao por m1m, que
cos quanto afetivos. As cartas de Jung estão repletas de era sem dúvida considerável. Devo essa idéia a ele(...)"(70F, P·
denegações; as de Freud, de esperança55• 163, 17/2/1908). O clichê que Jung corre o risco de reimprimi�
portanto, é o de Fliess, "que trabalha na paranóia e que esta
ligado à ruptura"56• No dia seguinte, Freud escreve novam,�nte,
(*) As referências à correspondência entre Freud e Jung virão com o número da carta e inicial do autor, acres­
cidas da data em que foi escrita e número da página, quando julgarmos pertinente. A fonte utilizada foi Freud,
S. &Jung, C.G. Freud/Jung- Correspondência Completa, Imago, Rio de Janeiro, 1976.
como post-scriptum à carta anterior, na qual tratou Jung por caro
58 59
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

amigo" pela primeira vez. A mensagem é direta: "Não se assus­ simo aniversário da Universidade Clark. Freud entusiasmou-se com
te: prometo, depois dessa, uma longa pausa" (71F). a viagem à América e chamou Ferenczi para acompanhá-los*.
Jung parece compreender bem a ameaça embutida na alu- Dois eventos ocorridos nesta viagem marcam o relaciona­
são a Fliess, e reage: mento de Freud e Jung: No dia anterior ao embarque, em Bremen,
durante o almoço, Jung dissertava insistentemente sobre acha­
Agradeço-lhe do fundo do coração essa prova de confian­ dos pré-históricos que estavam sendo desenterrados no norte da
ça. A imerecida honra de sua amizade é um dos pontos Alemanha. Freud interpretou o assunto, bem como a insistência
altos de minha vida que não consigo expressar com pala­ de Jung, como desejo de morte contra ele, Freud, e desmaiou •
57
vras. A referência a Fliess - decerto não acidental- e Grosskurth58 conta que após o primeiro encontro com Jung, Freud
seu relacionamento com ele impelem-me a solicitar que teve um sonho de angústia no qual Jung iria "substituí-lo".
me permita desfrutar de sua amizade noutros termos, não O segundo episódio, conta Jung, teria acontecido duran­
como se fosse uma amizade entre iguais, mas sim entre te a travessia do Atlântico. Tinham o hábito de interpretar os
pai e filho. Essa distância me parece adequada e natural sonhos uns dos outros. Um sonho de Freud foi por ele interpre­
(...) haveria de prevenir mal-entendidos e capacitar duas tado até onde pôde, sendo que, para prosseguir, seria preciso
pessoas teimosas a existir lado a lado num relacionamen­ entrar em maiores detalhes da vida íntima de Freud. Freud ne­
to fácil e livre de tensões (72], p. 166, 20/2/1908). gou-se a revelar sua intimidade, objetando que ele próprio não
59
A transcrição desse longo diálogo postal vem ilustrar o poderia ser analisado. Isto poria "sua autoridade em risco" •
impasse criado na relação: Jung transfere com altíssimo grau de Retrospectivamente, Jung retoma esse episódio numa car­
idealização (religiosamente) a Freud no plano afetivo, mas preten­ ta que iria desencadear o processo de ruptura pessoal com Freud.
dendo sustentar as diferenças no plano teórico. Freud transfere a Em dezembro de 1912, escreve: "Esta carta é uma tentativa
Jung a desilusão vivida com Fliess, incapaz de enxergá-lo sem as atrevida de acostumá-lo ao meu estilo. Portanto, cuidado!" O
lentes narcísicas que fazem de Jung o herdeiro de sua obra. Jung, ao novo estilo inaugurado por Jung é definido mais adiante:
perceber o risco da associação com Fliess, tenta escapar da armadi­ A nossa análise, o senhor deve lembrar-se, chegou ao
lha a que ambos estão submetidos propondo substituir uma "ami­ fim com a observação feita pelo senhor de que "não po­
zade entre iguais" por uma entre pai e filho. Ora, Jung parecia ter deria submeter-se a análise SEM PERDER A SUA AUTORI­
elementos suficientes para avaliar a relação entre Freud e Fliess DADE". Essas palavras estão gravadas na minha memó­
não como amizade entre iguais, mas como um confronto dual cujo ria como um símbolo de tudo o que acontecer (...)
rompimento culminou em paranóia. Assim, se tinha razões de so­ Estou lhe escrevendo agora como escreveria a um ami­
bra para evitar uma reedição desse tipo, acaba, no entanto, optan­
go - este é o nosso estilo ... considere estas afirmações
do pelo modelo pai-filho. Dificilmente em outra situação um psica­
como um ESFORÇO PARA SER HONESTO e não aplique o
nalista avaliaria o relacionamento entre pai e filho como "fácil e
depreciativo critério vienense de luta egoísta pelo poder
livre de tensões". Jung queria uma distância "adequada e natural",
ou Deus sabe que outras insinuações do mundo do com­
mas, sem conseguir enxergar além de sua posição filial, não conce­
plexo paterno (330},p.595,3/12/1912).
be a possibilidade real de uma amizade entre iguais com Freud.
Em 1909, Freud e Jung são convidados por Stanley Hall para
(*) Curiosamente esta viagem acabou por originar uma das lendas mais difundidas no universo psicanalítico
participar, com uma série de conferências, das comemorações do vigé- francês e, por exte�são1 como de pra-xe 1 também no brasileiro: a parábola da "peste", desenvolvida no capítulo 5.

60 61
TRANSFER1':NCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

(...) em caráter privado, vou começar a dizer-lhe,


Assim, quando Jung decide por uma amizade entre iguais
nas minhas cartas, o que realmente penso do
com Freud, o tom é de ameaça - "cuidado!". A seqüência é uma
(...) Não há dúvida que o senhor se sentirá ultrajado
sér�e de indicações do caráter neurótico de Freud. Mais uma vez, a
por esta pequena prova de amizade, mas pode fazer­
amizade se apresenta como impossível, e a relação entre iguais terá
lhe bem assim mesmo (338], p.606, 18/12/1912).
de advir, paradoxalmente, da ruptura de toda e qualquer relação.
Nesta mesma carta, Jung dirige uma dura crítica ao cam­
po �sican�líti�o como um todo: "O lamentável é que os psica­ A primeira resposta de Freud sugere uma tentativa de
nalistas sao tao dependentes da psicanálise como os nossos amort ecer o impacto das palavras de Jung. Freud limita-se
adversários o são da sua crença na autoridade. Qualquer coisa a argumentar que em Viena ele é acusado justamente do
que possa fazê-los pensar é imediatamente descrita como com­ contrá rio, isto é, de se preocu par muito pouco com a análi­
plexo". Jung refere-se aqui à tendência entre os psicanalistas se de seus alunos (340F, 22/12/1912), o que só faz aumen­
que já se apresentava de forma bastante ampla, de analisa; tar o equívoco. Sem aguardar outros comentários de Jung,
Freud redige uma nova carta oficializando o do relacio­
toda produção teórica divergente do estabelecido por Freud
pelo prisma da neurose pessoal. namento pessoal:
Freud responde de forma contida, aconselhando que cada De outra forma sua carta não pode ser respondida.
um dê mais atenção à sua neurose que à do outro (332F,5/ Ela cria uma situação que será difícil de tratar numa
12/1912). 7 de y.-.,.,-.,u.,u, informa que pretendia fazer conversa pessoal e totalmente impossível por corres­
uma resenha crítica do último livro de Adler, que no ano anterior pondência (.. .) Portanto, proponho que abandone­
hav�a ro�pido com a psicanálise. Freud aprova suas intenções, sem mos inteiramente as nossas relações pessoais (...) e
porem deixar de comentar que esta atitude contribuiria para um poupe-me das suas supostas "provas de amizade"
esclarecimento político, pondo fim aos rumores de que Jung esta- (342F, p. 610, 3/1/1913).
"virando a casaca" para o lado de Adler (334F, 09/12/1912).
A réplica de Jung sela o rompimento: "Acedo ao seu
A resposta indignada de Jung, acompanhada de um ato fa­
lho, deu origem, defato, ao último ato do relacionamento. Jung desejo de que abandonemos as nossas relações pessoais, pois
_
pretendia escrever: Nem mesmo os amigos de Adler consideram­ eu nunca forcei amizade com ninguém" (344}, p. 612, 6/1/
1913). Se no plano teórico é legítimo supor uma resistência
me um deles (ihrigen)", mas o escrito foi: "Nem mesmo os amigos
_
deAdlercons1deram-me um dos seus (Ihrigen)" (335J, p. 604). Freud de Jung à psicanálise, no plano transferencial transparece uma
apontou o lapso (337F, 16/12/1912), e a reação de Jung foi furiosa: resistência à mestria. Um pouco antes do impasse final, Jung
citava Nietzsche numa carta a Freud: "Paga-se mal a um
Admito a ambivalência dos meus sentimentos em relação mestre se se permanece apenas como discípulo" (303}, p. 559,
ao senhor (...) mostraria, contudo, que a sua técnica de 3/3/1912). Assim, a relação, que se iniciou com um mal-en­
tratar os discípulos como pacientes é uma asneira. Desse tendido, tem seu desfecho a partir de um lapso. Sob a corti­
modo o senhor produz ou filhos servis ou fedelhos impu­ na de fumaça da transferência, o pano de fundo da recusa da
dentes (...) sou objetivo o bastante para perceber o seu amizade. A opção pela amizade implicaria, por um lado, a
pequeno truque (...) Enquanto isso o senhor permanece aceitação da realidade no lugar da ilusão neurótica; por ou-
no alto, como o pai, em situação privilegiada. a recusa do poder, a recusa do servir.
63
62
DANIEL KUPERMANN
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

O Comitê Secreto
miriam entre si, além da função de defesa da "causa", o com­
O principal responsável pela criação do Comitê Secreto, promisso de não se afastar dos princípios fundamentais da te­
ainda que pelo negativo, foiJung. A idéia deJones em formar um oria psicanalítica sem antes submeter seus pontos de vista aos
grupo de homens de confiança que constituíssem uma "velha membros restantes do grupo62 •
guarda" em torno de Freud foi concebida no auge do atrito e da Em 30 de julho, Jones escreveu a Freud, em Karlsbad,
iminência de uma ruptura nas relações de Freud com Jung. Em expondo o projeto do Comitê. Freud entusiasmou-se, e respon­
maio de 1912, um episódio decisivo veio estremecer o relaciona­ deu imediatamente:
mento: a chamada "atitude de Kreuzlingen"6º. Perplexo com a
dimensão do mal-entendido provocado por um acontecimento O que logo tomou conta da minha imaginação foi sua
menor, Freud começava a perceber que a sua relação com Jung idéia de um conselho secreto (.. .) para cuidar do desen­
estava condenada, o que seria confirmado no decorrer do ano. volvimento posterior e defender a causa contra personali­
Em julho, Jones e Ferenczi encontraram-se em Viena, e, dentes dades e acidentes quando eu não existir mais. Você diz
do impasse e de sua ameaça para o movimento psicanalítico, uma que foi Ferenczi quem expressou essa idéia, no entanto
vez que Jung era o presidente da IPA, discutiram a situação. poderia ter sido minha em tempos melhores, quando tive
Ferenczi idealizou uma solução protetora para a "causa" esperanças de que Jung agregasse ao seu redor um círculo
psicanalítica bastante reveladora. Propôs que um pequeno grupo desse tipo, composto pelos líderes autorizados das asso­
fosse analisado pessoalmente por Freud, e assim pudesse repre­ ciações locais. Sinto-me agora penalizado em dizer que
sentar a "teoria pura não-adulterada por complexos pessoais"6 1• esta união deve formar-se independentemente de Jung e
Esses homens de confiança seriam estabelecidos em diferentes dos presidentes eleitos. Ouso afirmar que a vida e a morte
centros onde os iniciantes iriam aprender o ofício. A proposta de me seriam mais fáceis se eu soubesse da existência dessa
Ferenczi revela, in status nascendi e a um só tempo, o que se torna­ associação para velar por MINHA CRIAÇÃ063 •
ria o paradigma da formação analítica, bem como a origem de seu Freud sugeriu que Abraham e Sachs, além de Rank, que
próprio malogro: o saber psicanalítico só pode ser transmitido a já havia sido contactado por Ferenczi, fossem chamados para
partir da experiência de uma análise pessoal, o que vincula saber compor o Comitê, que teria, portanto, nessa fase inicial, seis
e prática; como conseqüência, está embutida nessa proposta a membros representativos dos mais importantes centros de psi�
idéia de que a transmissão da psicanálise é regulada pela transfe­ canálise da Europa. Em 25 de maio de 1913, os membros do
rência, e que a transferência (a Freud) seria o melhor instrumen Comitê tiveram sua primeira reunião em Viena. Discutiram uma
to para evitar "adulterações teóricas" com base em complexo: crítica de Ferenczi sobre a teoria da libido deJung, e, ao final da
pessoais. O malogro que se tornaria crônico num futuro próxi reunião, Freud presenteou a cada um com um entalhe grego de
mo, quando da padronização da formação psicanalítica em insti sua coleção de antiguidades, que a seguir foi adaptado a um
tutos, seria a utilização da transferência necessária a toda análise anel de ouro. Freud também usou um anel desses, que tinha a
como instrumento alienante para doutrinação teórica e política. cabeça de Júpiter como entalhe.
Apesar de considerada ideal, a proposta de Ferenczi mos­ A formação do Comitê Secreto caracteriza assim o primei­
trou� se impossível de ser praticada. Como alternativa, Jones ro momento de um movimento de retorno transferencial a Freud.
idealizou o Comitê: uma "Guarda Pretoriana" ao redor de Freud Em sua resposta aJones, Freud admite o fracasso da sua tentativa
formada por um grupo de analistas dignos de confiança. Assu- de "transferir" o centro do movimento psicanalítico. A "esperan-
64
65
'J'R/\NSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

A��mpanhando as correspondências trocadas na época do Co­


ça de que Jung agregasse ao seu redor um círculo desse tipo" deu m1te, com suas querelas, disputas, tentativas de "assassinato" sim­
lugar à constatação de que "esta união deve formar-se indepen­ bólico dos rivais, e a análise "selvagem" praticada entre os mem­
dentemente de Jung". No centro do círculo secreto incumbido bros, pode-se supor que na horda selvagem reinava uma transfe­
de velar pela sua criação, reencontramos portanto o próprio cria­ rência "selvagem" para com Freud. Somente com a sua morte e
dor, que nunca deixou de ocupar esse lugar frente aos seus discí­ com a ?urocratização da esta transferência "selvagem" seria
pulos. Os anéis selavam a nova/antiga aliança: domesticada. Como em Totem e Tabu, após a morte do pai, os filhos
Tradicionalmente, entalhes eram usados como carim­ se entendem entre si para evitar a carnificina.
bo em contratos, antes que assinaturas escritas fossem O Congresso de Munique, em setembro de 1913, é o maior
usadas para atestar documentos importantes. Os anéis exemplo da estratégia de atuação política do Comitê. Haveria
eram a promessa de união eterna, simbolizando a fi­ nov.a eleição . para a presidência da IPA e, com o contingente de
delidade de um bando de irmãos para o seu pai simbó­ z unque apmando-o, Jung seria reeleito. Abraham propôs en­
_
lico, Freud THE RING-GIVER* 64• tao que os membros do Comitê, bem como seus respectivos gru­
pos, expressassem sua desaprovação por Jung formando um bloco
O título do livro de Phyllis Grosskurth, T he Secret Ring, de abstenção. Como resultado dessa pressão, 22 dos 52 partici­
um extenso trabalho histórico a respeito do Comitê Secreto, pantes do Congresso não votaram. Além disso, todos os mem­
permite uma série de articulações, que só podem ser feitas em bros do Comitê apresentaram trabalhos contendo críticas às teo­
inglês, ilustrando algumas características simbólicas desse gru­ rias d� Jun�. !'1esmo reeleito, Jung saiu do Congresso enfraqueci­
po. Ring pode significar anel, círculo, aliança entre pessoas em do, seJa politicamente, seja no registro teórico. Logo após o Con­
ação conjunta, uma identificação e também área de luta (rin­ gresso, Jones escreveu uma carta, esperançoso de que Freud esti­
gue, em português). Um ringleader é a pessoa que lidera outras vesse gratificado em "ver que dessa vez teve uma guarda-pessoal
numa ação contrária à autoridade - o chefe do bando. Assim, ª tiva para �s�isti-lo"66• partir desse Congresso, enquanto exis­
o jogo dessas articulações em relação aos anéis identificatórios .
tlu, o Com1te escolheria os futuros presidentes da IPA.
dos membros do Comitê inaugura o período da história da psi­ Em 1920, após o 6 º Congresso Internacional em Haia 0
canálise que será governado secretamente pelo que podemos Comitê reuniu-se com nova formação. Eram agora sete me:n­
chamar de uma verdadeira cosa nostra psicanalítica. bros, com a entrada de Eitingon no círculo secreto. Termina­
Roustang recorda que o próprio Freud utiliza o termo "horda do o "caso Jung", o Comitê passou a supervisionar o anda­
selvagem" para caracterizar o grupo ao seu redor, e interpreta a mento da IPA, exercendo um verdadeiro poder paralelo. Nes­
dinâmica desta "horda" nos termos de Totem e Tabu: o objetivo sa reunião, o Comitê estruturou-se mais formalmente: Jones
comum de expulsar ("assassinar") Jung - que tocou na imago .
fm nomeado secretário, e Freud propôs o intercâmbio regular
de mestre inconteste sustentada por Freud - vem unir o grupo, de cartas-circulares (Rundbriefe) entre os membros. Nessa cor­
uma vez que "nada, com efeito, sela melhor que o crime, perpe­ respondência secreta, os cargos de direção e presidência da
trado por todos e por cada um, a coesão de uma horda" • Por
65
IPA eram escolhidos, e as grandes questões institucionais da
outro lado, com a saída de cena de Jung, o lugar de "herdeiro" psica��lise - como a questão efervescente da formação psi­
fica vago, e os membros do Comitê lutam entre si por esse lugar. canaht1ca - eram tratadas. Nas Rundbriefe, portanto, eram
traçados os destinos da psicanálise.
(*) N a falta de uma tradução adequada, decidimos manter a expressão original em inglês.

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66
DAl'-"lEL KUPERMANN rrRAKSFERf,:NCIAS CRUZADAS

No ano seguinte, os membros do Comítê decidem adiar Apesar das articulações do Comitê, Jung continuou a pre­
um congresso que teria lugar em Berlim para que pudessem des­ sidir a IPA após o Congresso de Munique, em setembro de 1913.
frutar de um encontro reservado. O comentário de Grosskurth Divergindo teoricamente e tendo suas relações com Freud rom­
indica o poder do Comitê no movimento psicanalítico: pidas, constituía ainda uma ameaça para o movimento. Cogi­
tou-se então, no interior do Comitê, a idéia de dissolver a Asso­
Todos os membros do Comitê viam sentido nesse arranjo, ciação, com a formação posterior de um novo grupo ao redor de
porque o verdadeiro gerenciamento do movimento Psi­ Freud, mas a proposta foi considerada arriscada. O melhor seria
canalítico era conduzido de forma privada pelo Co�itê, que Jung renunciasse à presidência e se afastasse definitivamente
e não nos grandes e mais democráticos congressos67• do movimento psicanalítico.
A partir de meados da década de 20, entretanto, o Comi­ Em outubro, Jung renunciou ao cargo de editor do
tê inicia seu ocaso. A publicação de O Trauma do Nascimento, Jahrbuch*. Escreveu a Freud uma última carta dizendo que sou­
em 1924, é o primeiro passo para o rompimento de Rank. No be, através de Maeder, que Freud duvidava da sua bana fides,
mesmo ano, Ferenczi, que junto a Rank publica O Desenvolvi­ tornando impossível qualquer colaboração futura (357J,p.624),
mento da Psicanálise, começa a ter atritos com o establishment psi­ mas não fez referência à presidência da Internacional.
canalítico. Com a morte precoce de Abraham, então presidente da Em janeiro de 1914, Freud começou a trabalhar em.A His-.
IPA, em dezembro de 1925, a composição inicial do Comitê fica tória. do.Mavirne:nto Psicanalítico, "um útil repositório para a S.Jil�.
descaracterizada. Ferenczi afasta-se cada vez mais de Freud, en­ va,'.:, segundo Gay68 • O texto teria as características de um panfleto
quanto Jones persiste liderando a política psicanalítica, e Anna Freud no qual Freud apresentaria a sua versão sobre as dissensões de Adler
aumep.ta gradualmente sua influência. Em 1927, no 10º Congres­ e Jung, e, principalmente, reivindicaria o saber sobre a psicanálise.
so Internacional de Psicanálise, em Innsbruck, os membros deci­ O tom bélico e passional empregado por Freud na elaboração da
dem que, com o firme estabelecimento do movimento em escala História fez com que ele a chamasse de "bomba". Era na verdade
internacional, não havia mais necessidade de o Comitê continuar uma declaração de guerra contra Jung, e também Adler. Surpreen­
secreto, passando a co�sJJtuir-se pela liderança oficial da Asso­ dentemente, em 20 de abril de 1914, Jung renunciava à presidên­
ciação lnternacionaLAssim, o Comitê deixa de existir justa­ cia da IPA: "Os mais recentes acontecimentos", escreve Jung, "con­
mente quando não é mais necessário, pois, com apur.çcraJizg��o .. venceram-me que as minhas concepções estão em tão acentuado
da IPA e a p�r9nização e instítucionaJização da formação psi­ contraste com as idéias da maioria dos membros da nossa Asso­
canalítica, a'i)foteção da "causa" passaria a ter outras garantias. ciação que não posso mais considerar-me uma pessoa adequada
para ser presidente" (358J,p.625). Ainda assim, em meados de
A "Bomba" julho de 1914, poucos dias antes do início da primeira guerra,
O segundo momento do movimento transferencial de re­ Freud publicava a sua "bomba". "Forçado a pegar em armas",
torno a Freud será representado pela publicação de A História declarava que a psicanálise vivia tempos de guerra.
do Movimento Psicanalítico, em jµlho de 1914. Se o Comitê vi­ A guerra na psicanálise era combatida em duas frentes: a
nha recolocar Freud no centro do movimento psicanalítico atra­ teórica e a psicanalítica propriamente dita. O confronto teórico
vés de uma operação de bastidores, secretamente, a História veio consistia nas críticas dirigidas por Freud às teorias psicológicas
a público declarar, e num tom que não deixa margem a dúvidas, (*) Jahrbuch für Psychoanalytische und Psychopathologische Forschungen, primeiro periódico psicanalítico,
quem detém a última palavra na psicanálise. lançado em 1909.

68 69
DANIEL KCPERMANN
'TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

de Adler e Jung, apontando onde elas contrariavam os princí­


pios fundamentais da psicanálise, diferenciando-se, portanto, rência é que, desde a Traumdeutung, Freud mostra como a psi­
desta69 • O confronto psicanalítico se daria em outro registro. canálise é construída a partir de seus sonhos - através de sua
A idéia veiculada por Freud na sua História é que, no con­ auto-análise - o que articula de forma inédita no campo do
tato com o inconsciente, não apenas os pacientes estão sujeitos saber a relação entre teoria e fantasma do teorizador. A psica­
à resistência, mas também os psicanalistas. Nesse sentido, Freud nálise guarda portanto uma distância do registro da ciência e
lança mão de "conhecimentos psicanalíticos" na análise das dis­ a aquisição e transmissão do saber psicanalítico têm carac;e,
sensões de Adler e Jung, conhecimentos referentes ao exame rísticas próprias. O postulado de que é preciso passar pela ex­
das resistências e das transferências dos ex-discípulos. Assim, grosso periência analítica para se ter acesso ao saber psicanalítico é a
modo, suas teorias seriam o efeito das resistências à psicanálise e contramedida da noção de resistência, e aponta a transferên-
da transferência para com Freud. Mesmo considerando que a como o modus operandi do processo. Ao retomar a p alavra
análise não se presta a uso polêmico, pressupondo que para ha­ Freud está convicto do engodo a que Adler e Jung estão sub�
ver análise é preciso o consentimento da pessoa analisada e uma metidos, e o primeiro parágrafo da História ilustra os termos
situação marcada pela assimetria, com um superior e um subor­ pelos quais o movimento psicanalítico será reconduzido ao seu
dinado70, Freud não pôde evitar de empregar seus "conhecimen­ caminho. Trata-se de um retorno transferencial a Freud-"(...)
tos psicanalíticos" no conflito. Também da sua parte, o tom é ne� dev: .causar .surpres� o papel �ue nela desempenho, pois
, � ,
ditado pelas transferências em jogo. a ps1canahse e cnaçao mmha (...) -, onde o criador reivin­
Essa atitude, que tornou-se tradição no campo psicanalí­ dica o saber sobre a sua obra - "(...) acho justo continuar
tico sempre que surge alguma divergência teórica ou institucional, afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que
caracteriza o que Freud chamou de análise "selvagem". Laplanche eu o que é a psicanálise (...)" - e condena as usurpações _
e Pontalis ressaltam: "O que efetivamente Freud denuncia na aná­ "( ...) o que deve ser precisamente denominado de psicanálise
lise selvagem é menos a ignorância do que uma certa atitude do e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer" 73,
analista que encontraria na sua 'ciência' a justificação do seu po­ Nessa época, enquanto o império psicanalítico era cons­
der"7 1. Desde então, o estilo empregado por Freud na História, que truído, Freud acreditava ainda que "provocar oposição e des­
encontrava justificativas bem marcadas pelo seu contexto, passaria pertar rancor é o destino inevitável da psicanálise"74, e no últi­
a ser utilizado pelos psicanalistas em qualquer contexto. Freud apon­ mo parágrafo da História afirma o caráter underground da psica­
tava a dificuldade em "manter a linha" numa discussão científica' nálise, indicando o lugar dos dissidentes:
principalmente considerando a "peculiaridade da controvérsia so- Os homens são fortes enquanto representam uma idéia forte;
bre a psicanálise"72• Essa peculiaridade, que diz respeito ao caráter se enfraquecem quando se opõem a ela. A psicanálise so"bre­
passional no confronto entre os diferentes discursos, é devida ao viverá a essa perda e a compensará com a conquista de
fato de que a transmissão da psicanálise é regulada pela transferên­ novos partidários. Para concluir quero expressar o desejo
cia. A elucidação dessas transferências no contexto contempo­ de que a sorte proporcione um caminho de elevação muito
râneo poderia facilitar o acesso dos psicanalistas às verdadeiras agradável a todos aqueles que acharam a estada no
questões e impasses com que a psicanálise se defronta. SUBMUNDO DA PSICANÁLISE desagradável demais para o seu
O problema que se coloca para a psicanálise a partir do gosto. E possamos nós, os que ficamos, desenvolver até
enlace proposto por Freud entre teoria, resistência e transfe- o fim, sem atropelos, nosso trabalho nas profundezas1s.
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71
DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

DURA LEX, SED LEX*: O ASSASSINATO DO PAI as massas. Para isso, seria preciso repensar a técnica, bem como
formar analistas suficientes para a tarefa. Anton von Freund, que
O processo de institucionalização da psicanálise compre­ vinha desenvolvendo o projeto de um instituto de psicanálise, ofe­
ende, no esquema proposto por Elisabeth Roudinesco, quatro receu a Freud uma quantia considerável para a sua realização. O
etapas principais: 1) de 1902 a 1906, o reinado da horda selva­ instituto teria originalmente três funções: psicoterapia para as mas­
gem; 2) de 1906 a 1912, assistiu-se à expansão para o exterior, à sas, formação de analistas e pesquisa psicanalítica. Ainda durante
criação das primeiras sociedades de psicanálise e à criação da o congresso, Nunberg sugeriu que, dali em diante, só deveria ser
IPA; 3) de 1912 a 1927, com a formação do Comitê, desenvol­ autorizado a analisar aquele que fosse previamente analisado78•
veu-se um mecanismo duplo de poder: A IPA dando continui­ Em 1919, durante a revolução húngara, Ferenczi fun­
dade ao seu trabalho unificador em meio às dissensões e à difu­ dou em Budapeste um primeiro instituto com estas finalida­
são crescente da psicanálise, e o Comitê gerindo secretamente des, liquidado meses depois pela contra-revolução.�o.ano
os assuntos do movimento. Organizaram-se numerosos congres­ s�gJJinte,..J920,Abraham, Eitingon e Simmel fundaram a p;:
sos e foram lançadas novas publicações; e 4)de 1926 a 1939, a liclínica e. o Instüuto Psicanalítico de Berlim, que veio a se
quarta e última etapa. O congresso de Bad Homburg, em 1926, tornar paradigma de todos os institutos psicanalíticos subse­
selou a profissionalização do métier com a obrigatoriedade da �: Apesar da proposta inicial idealizada por Freud e
análise didática aos analistas. O Comitê dissolveu-se, e Freud Anton von Freund, Balint nota que, desde Berlim, os institu­
perdeu gradualmente a influência até sua morte, em 1939. A tos de psicanálise só tiveram sucesso no que se refere à imple­
profissionalização marca, para Roudinesco, o advento da "psi­ mentação de um sistema de formação, sendo que a psicoterapia
canálise moderna", com suas "sociedades rivais, seus rituais de para as massas e a pesquisa foram relegadas. Cabe aqui uma
formação, sua burocracia, suas filiações transferenciais organi­ primeira indagação: por que os institutos psicanalíticos
zadas, seu culto aos executivos e aos chefetes etc." 76• supervalorizaram a questão da formação?
Nota-se que, na elaboração de seu esquema, Roudinesco Em 1922, um relatório de Eitingon postulava a análise
privilegia as formas de organização institucional como marcos pessoJ�'�parte do currículo da formação em Berlim. Em
divisores das diferentes etapas. Assim, o marco do advento da 1924, o Instituto de Berlim publicou o primeiro regulamento
psicanálise moderna, última etapa do processo de institucio­ sobre a formação79• Es.taconsi�ia.emtrês..par.tes: formação teó­
nalização da psicanálise durante o seu período freudiano pro­ rica, trabalho clínico supervisionado (análise de controle), e
priamente dito, foi a padronização e sistematização da formação análise pessoal. O tempo mínimo estipulado para a análise era
analítica. São as razões que levaram a esta padronização e suas de seis meses, dois anos para a análise de controle e dois perío­
conseqüências para o campo psicanalítico - tendo a transfe­ dos de estudo teórico, a formação durando em média três anos.
rência no centro da questão - que analisamos aqui. Esse modelo "tripartido" de formação, que acabou adotado em
Foi no congresso de Budapeste, em 1918, que se cogitou todos os institutos, encontrou forte resistência na época, prin­
pela primeira vez da criação de um instituto para a formação de cipalmente de Budapeste e Viena. As divergências incidiam sobre
psicanalistas. Freud77 sugeriu que a psicanálise deveria se preparar dois pontos principais: a duração da análise-da-formação* e a
para, num futuro próximo, atender à demanda de psicoterapia para
(•)1raining analysis. Adotaremos daqui por diante esta tradução por considerá-la mais ampla e adequada
(Jo que análioe didática, por exemplo, expressão demasiadamente vinculada às análises da JPA) à idéia de
(*) A lei é dura, mas é a lei. uma análise feita durante o processo de formação psicanalítica com fins de reconhecimento institucional.

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ÜAKTEL KUPERIVIAKK
TRANSFERÊNCIAS CRCZADAS

inter-relação das partes entre si, especialmente no que se refe­ gerador de polêmica, que a análise de controle, entendida como
ria ao papel da análise de controle. análise da contratransferência, seria mais bem realizada se fosse
A posição húngaro-vienense frente à questão da dura­ feita pelo próprio analista, pelo menos no primeiro caso clínico
ção da análise foi estabelecida por Ferenczi em 1923: "análi­ assumido pelo candidato. Balint aponta que, apesar do impacto
se-da-formação é simplesmente psicanálise"80, ou seja, não deve inicial, a proposição de que o trabalho clínico sob controle de­
haver diferença entre a análise-da-formação e a análise tera­ veria ser iniciado durante a análise-da-formação foi rapidamente
pêutica. Nesse sentido, assim como na análise terapêutica, não aceita, mas a recomendação de que a análise de controle fosse
se deveria estabelecer a priori a duração da análise-da-forma­ com o próprio analista suscitou maiores resistências.
ção. Balint observa que, apesar de esta questão nunca ter sido 1925, no congresso de Homburg, foi criado o Comitê
suficientemente esclarecida, desde então todos os institutos Internacional de Formação, com o objetivo de homogeneizar a
de formação continuam a estabelecer a duração desejada da formação psicanalítica entre os diversos países. Eitingon apresen­
análise, "erro pelo qual qualquer iniciante seria severamente tou três propostas preliminares: a)a formação deveria escapar às
criticado por seu supervisor"81• iniciativas individuais; b)cada sociedade deveria responder pela acei­
A questão da análise de controle vem apontar a oposi­ tação ou recusa de um candidato perante a IPA, que teria de rati­
ção das duas tendências (Berlim e BudapesteNiena) quanto à ficar a decisão; e c)regulamentação da noção de análise de contro-
compreensão geral do processo de formação. A prática da aná­ A proposta de Berlim foi defendida pela alegação de fornecer ao
lise de controle teve início em Berlim, em 1920, quando da futuro analista uma dupla referência - o analista didata e o analis­
fundação da Policlínica. Com a obrigatoriedade de análise na ta de controle - e um aval mais forte. As propostas foram aprova­
formação, estabeleceu-se a separação entre a análise de con­ das por unanimidade, e o projeto foi definitivamente adotado
trole e a análise-da-formação. O analista supervisor deveria no ano seguinte, no congresso de Bad Homburg83•
ser outro, diferente do analista didata. A partir de então, o procedimento de formação, espelhado
A proposta de Berlim, representada por Eitingon, foi es­ no modelo de Berlim, funcionaria da seguinte maneira:
tabelecer um sistema de formação psicanalítica inspirado no sis­
tema universitário alemão, onde o aluno era encorajado a pas­ A comissão (de ensino) admite ou rejeita irrevogavel­
sar alguns períodos em universidades diferentes. Assim, a for­ mente o candidato segundo a impressão obtida no de­
mação psicanalítica poderia ser iniciada em um instituto e con­ correr de três entrevistas preliminares; o candidato sub­
cluída em outro. Nesse sentido, Eitingon concebia que cada mete-se inicialmente a uma análise pessoal de seis me­
parte da formação deveria ser concluída antes do início da pró­ ses de duração pelo menos; compete à comissão desig­
xima etapa82• Trata-se do modelo "uma coisa de cada vez". nar o analista didata; a partir do parecer do didata, a
As escolas húngara e vienense entendiam a formação de comissão decide o momento em que a análise pode ser
outra maneira, e a ênfase dessa diferença recaía sobre a análise considerada suficientemente avançada para que o can­
de controle. Nesta linha, o trabalho clínico sob controle deveria didato participe das etapas ulteriores da formação; pos­
começar enquanto o candidato estivesse ainda em análise, para teriormente, a comissão decide também quando a sua
que ele pudesse analisar analiticamente a sua contratransferência. análise pode ser considerada como terminada. O can­
As conseqüências dessa idéia implicavam que o estudo teórico didato deve engajar-se, por escrito, a não se denominar
também deveria começar durante a análise do candidato e, ponto analista antes de sua admissão formal à sociedade84•

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'TRANSFERf�NCIAS CRUZADAS
DANTEL KUPERMANN

Se hoje o modelo de formação "tripartido", bem como A autoconfiança de trabalhadores intdectuais, sua indepen­
o papel decisivo das sociedades psicanalíticas na formação, dência prematura do mestre, é sempre gratificante de um
podem parecer naturais em função do hábito, sua implemen­ ponto de vista psicológico, mas só traz vantagens para a
tação caracterizou na época uma verdadeira revolução. Ape­ ciência se esses trabalhadores preencherem certas condi­
sar das reações contrárias à sua tendência padronizadora e ções pessoais que não são, de maneira nenhuma, comuns85•
sua rigidez autoritária, o modelo de Berlim foi vitorioso. Cabe
portanto aqui uma segunda indagação: por que a política de Para prevenir a recorrência de eventos traumáticos da
formação proposta por Berlim foi adotada, encontrando ade­ mesma natureza, aponta Balint, Freud propôs algumas medi­
são tanto por parte dos analistas como daqueles que queriam das: "Para a psicanálise, em particular", escreve Freud, "uma
se tornar analistas? longa e severa disciplina, além de treinamento na autodisciplina,
Acompanharemos, então, as tentativas esboçadas por teria sido necessária"86• E mais adiante, referindo-se à criação
Balint e Safouan para responder a estas indagações. da IPA e à "transferência" do centro psicanalítico para Jung,
em Zurique:
A Formação Superegóica Sentia, porém, que deveria haver alguém na liderança.
�alJl},t,. em um artigo que se tornou çL�.§ico*, diferencia Conhecia muito bem as armadilhas que aguardam quem
duas ''Fiistórías" da constituição da formação psicanalítica: a his­ quer que comece a exercer a psicanálise e esperava po­
tória exotérica ou oficial, que descreve e explica os "sucessos glo­ der evitá-las delegando poderes a uma autoridade que
riosos do sistema", e a história esotérica, menos difundida, que estivesse preparada para ACONSELHAR E ORIENTAR87 •
analisa o curso dos conflitos e das dores inevitavelmente vincu­
lados à criação dos institutos de formação, na linha assumida Recorrendo ao original em alemão, Balint ressalta que
por Freud em 1914. Na elaboração de sua versão "esotérica", disciplina (discipline na edição inglesa) é um termo demasiado
Balint realiza uma das primeiras tentativas, depois de Freud, de suave para o sentido de Zucht, como foi empregado por Freud.
um entendimento psicanalítico da história da psicanálise. E orientar (admonish na edição inglesa) não corresponde à pala­
A versão "esotérica" freudiana de 1914, abordando os vra utilizada por Freud Abmahnung que seria melhor
conflitos internos ao campo psicanalítico, já é conhecida. A traduzida por repreender. Nesse sentido, conclui:
hipótese de Balint é que a padronização da formação psica­ De acordo com Freud, se a psicanálise queria evitar su­
nalítica tem uma estreita ligação com os acontecimentos re­ cessivas dissensões, teria de cuidar para que a nova ge­
feridos por Freud em sua História, mais especificamente ao ração aprendesse a renunciar a parte de sua
trauma sofrido pela psicanálise com as dissensões de Adler e autoconfiança e independência, que fosse educada para
Jung. O diagnóstico de Freud, na ocasião, era de que fortes a disciplina e autodisciplina e para aceitar uma autori­
motivos pessoais associados às "dificuldades particularmen­ dade com o direito e o dever de INSTRUIR E REPREENDER.
te grandes ligadas ao ensino da psicanálise" - transferênci­ Alcançar tudo isso tornou-se o objetivo esotérico de nosso
as e resistências - estavam entre as causas das dissensões. sistema de formação, e o caminho era levar a nova ge­
Freud escrevia: ração a identificar-se com seus iniciadores, e especial­
mente com as idéias analíticas destes88 •
(*) Balint,M. "On The Psycho-Analytic Training System". Intemationaljoumal ofpsychoanalysis. 29. London, 1948.

76 77
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

Ora, o objetivo "esotérico" da formação psicanalítica


real, com convicções, pontos de vista e preferências teóricas.
Além disso, o candidato encontra-se numa posição mais frá­
assim indicado é o contrário do que se espera de uma análise
gil, já que não dispõe do privilégio de fazer uso de suas asso�
e, conseqüentemente, o contrário do que se deveria esperar
dações livres - "sua defesa mais · .e1orte " 9° . Cna-se
. assim um
da própria formação psicanalítica! Para Balint, a formação
espaço propício para o ensino, o controle, e a formação de
foi estruturada de forma comparável aos rituais iniciáticos,
um novo e perene superego psicanalítico.
produzindo a identificação do candidato aos seus iniciado­
res, a introjeção de seus ideais e a construção, a partir des­
O Assassinato do Pai
sas identificações, de um poderoso superego que irá
Moustapha Safouan91, apoiado em artigo/depoimen­
influenciá-lo por toda a vida. A lógica de sua argumenta­
to de Sigfried Bemfeld *, analisa a institucionalização da
ção é que, para controlar as transferências e as resistências
formação psicanalítica por um viés que pode ser conside­
no interior do campo psicanalítico, de forma a evitar a
rado complementar ao de Balint. Também em sua leitura,
recorrência de rupturas como as de Adler e Jung, fez-se uso
a formação teria se estruturado como resultado de um
- de forma "inconsciente" e "incontrolável" - da própria
recalque; nesse caso, porém, provocado pela iminência da
transferência para produzir uma "intropressão de um
morte de Freud.
superego". Neste sentido, a formação psicanalítica é consi-
Bernfeld ressalta o impacto da descoberta do câncer
derada uma "í1 ormaçao - sup eregoica
' · "89
de Freud, em 1923, sobre os analistas da época. Todos, in�
Assim, não é de espantar que os institutos psicanalíti­
clusive Freud e seus médicos, acreditavam que a doença fos­
cos tenham supervalorizado a formação em detrimento do
se fatal, e esperavam sua morte em poucos meses. Apenas no
atendimento das massas e da pesquisa, uma vez que o
ano seguinte descobriu-se que o câncer era controlável, e
recalcado (o "inconsciente" e "incontrolável") de sua cria­
que Freud poderia viver por vários anos mais. "A morte e a
ção era a evitação de novas rupturas e a produção superegóica
ressurreição" de Freud, diz Bernfeld, provocaram intensas
de uma geração de analistas ·"obedientes", como demonstra­
reações afetivas por parte dos antigos analistas, para quem
mos no próximo capítulo; ou seja, a sistematização e a pa­
Freud era não apenas o líder incomparável, mas também,
dronização da formação psicanalítica.
inconscientemente, "pai e Deus, ambivalentemente amado
Quanto às razões do predomínio do modelo de forma­
e odiado"92• Assim, forças oriundas de uma "explosão do isso"
ção adotado por Berlim, a análise de Balint recai sobre o pa­
foram liberadas, junto às respectivas formações reativas con­
pel da supervisão (análise de controle). Se o objetivo
trárias a elas. Grosskurth93 conta que se criou, no Comitê
"esotérico" da formação psicanalítica era o de produzir pro­
Secreto, uma situação de tensão "quase" insuportável, pro�
sélitos, a análise de controle, separada e diferenciada da aná­
vocando um comportamento infantil e violento com brigas
lise pessoal, apresenta-se como um instrumento mais efici­
entre os membros. A reação geral entre os psicanalistas é
ente. Em toda análise há um período de introjeção imaginá­
descrita por Bernfeld:
ria do analista como núcleo formador de um novo superego.
No entanto, esse processo sofre correção durante a fase de
elaboração. Na análise de controle, porém, a situação é dife­ (•) Cf. Bernfeld, S. (1962). Artigo baseado em uma conferência pronunciada perant� o Instituto Psi:ana•
lítico de São Francisco, em 1952 ) poucos meses antes de sua morte. Bernfcld participou da Com1ssao de
rente. O analista supervisor não está implicado pela situação Formação do Jnsrituro, da qual demitiu-se a fim de poder expressar publicamente, sem as pressões do
cargo, suas críticas ao sistema de formação ali adotado.
analítica propriamente dita, colocando-se como uma pessoa
79
78
DA:-�JEL KUPERMAKN 'rRM<SFERÊNCIAS CRüZADAS

(.. ,) ficaram intensamente angustiados em razão da se, para Safouan, como um reforço da cumplicidade sobre a
perda ameaçadora, querendo estabelecer a todo cus­ qual repousa o laço social, e um álibi para a delinqüência co­
to uma barreira contra a heterodoxia, tendo em vista metida por cada um e por todos: agir, de fato, como se a psica­
que eles se sentiam, naquele momento, responsáveis nálise jamais tivesse existido. Somente assim entende-se por
pelo futuro da psicanálise, Decidiram limitar, atra­ que "ocupar o lugar de Freud" transformou-se, de um dever
vés de uma seleção rígida dos recém- chegados e de que permitiria a cada um servir melhor à psicanálise, numa
uma formação coercitiva, autoritária e que se demo­ "operação policial"98•
ra com fins de provas, toda admissão final às suas A questão da a11álíse leiga99 veio à tona a partir do fi­
sociedades. Na realidade, eles puniam seus alunos nal da priméira guerra, com a crescente difusão da psicanáli­
por sua própria ambivalência. Ao mesmo tempo eles se na Inglaterra e, principalmente, nos Estados Unidos, onde
consolidaram a única tendência que Freud sempre os analistas se defrontavam com o crescimento proporcional
quis evitar: restringir a análise, até fazer dela um do problema do charlatanismo. Nos jornais, eram publica­
anexo da psiquiatria94 • dos anúncios do tipo: "Quer ganhar mil libras anuais tor­
nando-se psicanalista? Podemos permitir-lhe chegar a isso.
Baseado nesse relato, Safouan entende a instituciona­ Tome oito aulas conosco por correspondência, ao preço de
lização da formação como "um acting out que punha em cena quatro guinéus por aula"* 100• O combate ao charlatanismo
o que, de seu desejo, não se significava de outro modo, a sa­ tomou a forma de um combate aos analistas não-médicos
ber: o vínculo essencial (para não dizer a identidade efetiva) a ("leigos") e, durante todo o período da implementação da
este desejo de uma defesa que interdiz a todos uma certa idéia formação, a questão da análise leiga foi discutida. Parado­
de gozo, aquele que prometeria o lugar do mestre "95• Se, como xalmente, quanto mais se rejeitava a análise leiga, mais a
diz Grosskurth96, a pergunta geral formulada pelos psicanalis­ necessidade de análise didática era afirmada, o que aponta a
tas ao saberem da doença de Freud - "como ele poderia ser, alienação que permeava os discursos 1º1 • Afinal, ou os médi­
algum dia, substituído?" -- é suficiente para produzir uma cos são aptos a exercer a psicanálise ou, para ser psicanalis­
angústia "quase" insuportável, esta, conjugada a uma outra ta, é preciso uma formação específica, e isto se aplica tanto
pergunta e ao desejo aí embutido - "quem irá substituí-lo?", aos médicos quanto aos não-médicos.
tornou-se excessivamente ameaçadora. A posição de Freud era a de que restringir a análise aos
Nesse sentido, Safouan considera a padronização da for­ médicos como forma de protegê-la do charlatanismo, equivalia
mação uma repetição do mito freudiano de Totem e Tabu, um a uma "tentativa de recalque" (Versuches zur Verdrangung) * *
arranjo dos irmãos parricidas ditado pelo crime comum. Assim, pela qual a questão crucial o que é específico da psicanálise
sentimentos de culpa introduziram traços melancólicos na for­ - ficava ocultada. Em 1929, no congresso de Oxford, a tenta­
mação, fazendo com que o vazio que Freud deixaria se tornasse tiva de uma solução internacional para a questão da análise
"um lugar falsa e neuroticamente proibitivo"97• leiga foi abolida, e a Sociedade de Nova York decidiu admitir
Da mesma maneira, o desejo de respeitabilidade e de não-médicos para formação. Roudinesco considera que:
reconhecimento social expresso pela legalização da profissão {"'� Impossível de1xm de notar a semelhança com o que encontramos hoje ) em nossos classificados, princi�
paimente cm termm de u psicanálise aplicacia)) e terapias 8lternativas11
de psicanalista -- sinônimo da integração da psicanálise pela 11

("'*) Freud (1926). i'Die Frage der Laicnar:alyse ' ln Schr(ften zur Behandlungstechnik. Fischer Toschcnbuch1
1
,

ordem médica, ilustrada nos ataques à análise leiga - coloca- Frankfurt em Main, !982, p. 349.

80 81
� 7r-- - --

DANIEL KUPERMANN 'I'RANSFERÊNCIAS CRlJZADi\S

...essa aparente vitória da posição leiga foi conseqüência � vestia-se como Freud, fumava charutos e aparava a bar­
direta da padronização de 1926, que começava a dar _ .
ba à moda do mestre, sendo apelidado no meio psicanaht1co
frutos, mas, na realidade, os ideais médicos domina­ de "Freud�sí:p:üle"1º5• Este exemplo vem apontar o que ocorria
ram o movimento e serviram para assegurar o triunfo com âtt��ência no processo de institucionalização da psi­
de uma psicanálise adaptada aos códigos da moral so­ canálise: "quanto mais ela era teorizada na doutrina, mais era
cial. A legalização da farmação foi o meio pelo qual o desconhecida na situação analítica"1º6• O próprio inventor do
próprio movimento liquidou os "RESTOS ANIBALIANOS" conceito de transferência parecia não mais reconhecê-la quan­
DA PRÁTICA E DA TEORIA FREUDIANAS 1º2 • do ela se apresentava na prática.
Com a padronização da formação e conseqüentemente
A sistematização e padronização da formação psicanalí­ a regulamentação das análises por uma instância superior, ten­
tica, promovida a partir de Berlim, não fez mais, como subli­ .
tou-se resolver o impasse colocado pelo não-resolvido da rela­
nha Bernfeld, do que transformar em obrigação o que era do ção transferencial, tirando-a de cena. Por falta de respostas,
domínio da escolha. No entanto, essa transformação irá mos­ encontraremos regulamentos, sublinha Safouan 107• Criaram­
trar-se plena de conseqüências. A partir de então, a análise se leis que, de tão "duras", não eram mais nada senão leis,
tornou-se uma análise a "tomar" (to take), no sentido em que com um consolo: dura lex, sed lex - e que não haja exceções.
um estudante de medicina toma um curso preparatório de ana­ As sociedades psicanalíticas "evoluíam" do barbarismo de Totem
tomia 103, e os efeitos transferenciais de uma análise deste tipo, e Tabu para a bem comportada "psicologia de grupo", pagando
com fins didáticos, já se faziam ver, mesmo antes da legaliza­ o preço do recalque.
ção da formação. No último parágrafo de A Questão da Análise Leiga (1926),
Em 1921, Freud dedicava-se apenas a análises com Freud comete uma das raras passagens de sua obra que iriam
fins didáticos, ou seja, todos os seus analisandos eram alu­ mostrar-se francamente equivocadas no futuro. Ela diz:
nos em formação. Abram Kardiner, que veio a ser um dos
maiores representantes da linha culturalista norte-ameri­ Mas de uma coisa eu sei. De forma alguma é tão impor­
cana, havia iniciado sua análise com Freud em outubro da­ tante qual a decisão que o senhor possa adotar no tocante
quele ano. No início de março de 1922, Freud anunciou à questão da análise leiga. Isso poderá ter um efeito local.
que a análise terminaria em 1 º de abril. Kardiner revoltou­ Mas as coisas que realmente importam - as possibilida­
se, mas Freud limitou-se a lembrá-lo de que havia fixado des de desenvolvimento INTERNO - JAMAIS PODERÃO
em seis meses o prazo para a sua análise 104• SER AFETADAS POR REGULAMENTOS E PROIBIÇÕES 1º8 .
Numa ocasião durante a análise, Kardiner perguntou a No próximo capítulo, mostramos como o desenvolvimento
Freud o que pensava sobre a psicanálise e sobre si próprio. interno da psicanálise foi afetado por regulamentos e proibições.
Freud confessou que lhe faltava paciência para lidar com os O que chama a atenção nesta passagem é que a avaliação de
problemas terapêuticos, que o desenvolvimento teórico ocu­ Freud, datada de 1926 - ou seja, quando a padronização (re­
pava a maior parte de seu interesse, e que se portava excessi­ gulamentação, proibições e injunções) da formação era já fato
vamente como pai para com seus analisandos e alunos. Nessa consumado - incide apenas sobre a questão da análise leiga,
época, Freud era alvo de um culto extraordinário. Roudinesco poupando qualquer referência à formação. Decerto não se trata
relata o exemplo de TJl�qçlot"R�ik para ilustrar o que ocorria: de esquecimento, senão de recalque.
82 83
DANIEL KlJPERMANN 'l'RANSFERÊNCIAS CRUZADAS

A idéia de que a institucionalização da formação está fim­ silêncio sobre as questões transferenciais e o advento da buro­
dada em um recalque aparece em Balint, Safouan e também em cracia e das normas rígidas nas sociedades psicanalíticas.
Freud, considerando que algumas de suas assertivas referentes "Na psicanálise, como em qualquer outro lugar", diz
à questão da análise leiga (como "tentativa de recalque") po­ Bernfeld110, "a institucionalização não encoraja o pensamento".
dem (e devem) ser aplicadas à formação. Durante toda a sua Com a institucionalização da formação, a psicanálise abando­
"conversação com a pessoa imparcial" realizada no texto, Freud nava o status underground cultivado anteriormente para tornar­
desloca a questão para o que é específico da psicanálise, que se "respeitável" e "normal", como veremos a seguir.
vinha sendo recalcado: o inconsciente e a sexualidade.
O recalcado da formação psicanalítica, tanto na ve.rsão.de
Balint - trauma das antigas dissensões - quanto na de Safouan
- assassinato do pai - incide sobre as transferências no campo
psicanalítico, pelas quais o inconsciente e a sexualidade se atuali­
zªJ!l-• Assim, em última instância, a formação se configura c�mo
uma das formas mais complexas e sutís das resistências à psicaná­
lise. "É por causa do silêncio sobre as questões transferenciais que
nunca houve uma sociedade de psicanálise que psicanalisasse as
crises que a dividiram", diz Octave Mannoni 109•
A aventura freudiana no movimento psicanalítico encer­
ra-se em 23 de setembro de 1939, em Londres - berço da po­
lítica do "esplêndido isolamento" - onde Freud havia se exila­
do do nazismo, no ano anterior, para morrer em liberdade.
Resumindo conclusivamente o capítulo, a história da
transferência na institucionalização do movimento psicanalfti­
co, em seu período freudiano, compreende, em termos
esquemáticos, quatro etapas principais: l)de 1900 a 190,8, Freud
formula em A Interpretação de Sonhos o "convite à transferên­
cia" que culminou na fundação da Sociedade Psicológica das
Quartas-Feiras e no início do movimento psicanalítico; 2)de
1908 a 1912, assistíu-se à tentativa de Freud em solucionar os
impasses que surgiam no movimento por uma "transferência"
das transferências para Jung, e pela cnação da IPA; 3)de 1912 a
1920, o movimento de retorno transferencíal a Freud, com a
formação do Comitê Secreto e a publicação de A História do
Movimento Psicanalítico; e 4)de 1920 a 1939, a última etapa,
tendo como.marco inicial a fundação do instituto de Berlim e a
padronização da formação, selando, pelo "assassinato do pai", o

84 85
TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

34. Freud, S. (1914) Idem.


Notas 35. Apud Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., p.61.
36. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.52.
37. Cf. Roudinesco, E. História da psicanálise na França • Vol. I. Op.cit., parte II.
38. Roudinesco, E. Idem, p.109.
1. Grannoff, W Filiations. Paris, Les Editions de Minuit, 1975, p.13. 39. Birman, J. Freud e a experiência psicanalítica. Rio de Janeiro, T imbre -
2. Freud, S. (1900) "A interpretação de sonhos". In E.S.B., Op.cit., Vols. IV Taurus, 1989.
e V. p. XLI. 40. Apud Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., p.84.
3. Freud, S. (1900) Idem, p.647. 41. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.16.
4. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 42. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p. 230,
1989, p.97. 43. Cf. Masson, J.M. (ed.) A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm
5. Gay, P. Idem, p.111. Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro, Imago, 1986.
6. Cf. Albuquerque, A. "Sobre o estilo de Freud". In Figueira, S.A. (org.) A palavra 44. Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.30.
e o silêncio. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993. 45. Grosskurth, P. Idem, p.35.
7. Gay. P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.111. 46. Grosskurth, P. Idem, grifo nosso.
8. Freud, S. (1900) "A interpretação de sonhos". Op.cit., p.113, grifo nosso. 47. Freud, S. (1937) "Análise terminável e interminável". In E.S.B. Op.cit., Vol.
9. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Rio de Janeiro, XXIII, p.253.
Jorge Zahar, 1989, p. 100. 48. Cf. Roustang, F. Um destino tão funesto. Rio de Janeiro, Timbre-Taurus, 1987;
10. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro, Imago, Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., cap.5; Mezan, R. Freud
1989, p. 24. pensador da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1990, cap.3; Grosskurth, P. The
11. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". In E.S.B. secret ring. Op.cit., cap.2.
Op.cit., p. 36. 49. Chauí, M. "Amizade, recusa do servir". ln La Boétie, E. Discurso da servidão
12. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.98. voluntária. São Paulo, Brasiliense, 1987.
13. Roudinesco, E. Idem. 50. Roustang, F. Um destino tão funesto. Op.cit., p.63.
14. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.171. 51. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.195.
15. Gay, P. Idem, p.172. 52. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., p.47.
16. Gay, P. Idem, pp.170-171. 53. Cf. Birman, J. Freud e a experiência psicana!ítica. Op.cit., cap. IV.
17. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., p.51, grifo nosso. 54. Roustang, F. Um destino tão funesto. Op.cit.
18. Jones, E. Idem, p.25. 55. Cf. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit.; Cf. Roustang, F. Um
19. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., pp. 173 - 174. destino tão funesto. Op.cit.
20. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., p.25. 56. Roustang, F. Um destino tão funesto. Op.cit., p.76.
21. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.174. 57. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.201.
22. Grosskurth, P. The secret ring. Adisson-Wesley, 1991, p.36. 58. Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.37.
23. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.175. 59. Apud Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.215.
24. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., pp. 54-55. 60. Cf. Gay, P. Idem, p. 219; Cf. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II.
25. Jones, E. Idem, p.46. Op.cit., p.153.
26. Ferenczi, S. (1911) "De l'histoire du mouvement psychanalytique". In 61. Apud Grosskurth, P. The secret ring Op.cit., p.46.
Pychanalyse I. Paris, Payot, 1968, p. 1. 62. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Op.cit., p. 161.
27. Ferenczi, S. (1911) Idem, p.165. 63. ln Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.47, grifo nosso.
28. Ferenczi, S. (1911) Idem, p.167. 64. Grosskurth, P. Idem, p.57.
29. Ferenczi, S. (1911) Idem, p. 166. 65. Roustang, F. Um destino tão funesto. Op.cit., p.13.
30. Enriquez, M. & Enriquez, E. "Le psychanalyste et son institution". Topique - 66. ln Grosskurth, P. The secret ring Op.cit., p.62.
revue freudienne 6. Paris, PUF, 1971. 67. Grosskurth, P. Idem, p.107.
31. Ferenczi, S. (1911) "De l'histoire du mouvement psychanalytique". 68. Gay, P. Freud - uma vida para o nosso tempo. Op.cit., p.229.
Op.cit., p. 168. 69. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., Vol.
32. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.55. XIV, Cap. III.
33. Freud, S. (1914) Idem, p.56.
87
86
DANIEL KUPERMANN

70. Freud, S. (1914) Idem, p.63.


71. Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins
Fontes, 1983, p.499.
72. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., Vol. XIV, p.15.
73. Freud, S. (1914) Idem, p.16.
74. Freud, S. (1914) Idem, p.17.
75. Freud, S. (1914) Idem, p.82, grifo nosso.
76. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., pp. 131-132.
77. Freud, S. (1919 [1918]) "Linha de progresso na terapia psicanalítica". In E.S.B.
Op.cit., Vol. XV.
78. Balint, M. "On the psycho-analytic training system''. International journal of

Parte
psychoanalysis. 29. London, 1948.
79. Balint, M. Idem, p.165.
80. Apud Balint, M. Idem.
81. Balint, M. Idem.
82. Balint, M. Idem.
83. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., pp. 152 - 153.
84. Bernfeld, S. "On psychoanalytic trainíng". The psychoanalytic quarterly 31. New
York, 1962, pp. 464-465.
85. Freud, S. (1914) "A história do movimento psicanalítico". Op.cit., p.37.
86. Freud, S. (1914) Idem, grifo nosso.
87. Freud, S. (1914) Idem, p.56, grifo nosso.
88. Balint, M. "On the psycho-analytic training system''. Op.cit., p.170, grifo nosso.
A PSICANÁLISE
89. Balint, M. Idem, pp. 167-171.
90. Balint, M. Idem, p.171. EM MEADOS DO SÉCULO
91. Safouan, M. Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Porto Alegre,
Artes Médicas, 1985.
92. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.467.
93. Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.132.
94. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.467. Quando examinamos as personalidades daqueles
95. Safouan, M. Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Op.cit., p.20. que por auto-seleção constituíram a primeira geração de analistas,
96. Grosskurth, P. The secret ring. Op.cit., p.132. suas caracterfsticas deixam pouca dúvida. Eram não­
97. Safouan, M. Idem, p.21. conformistas, questionadores, do tipo que não se satisfazia com os
98. Safouan, M. Idem, p.20. limites impostos ao conhecimento. Entre eles, se encontravam
99. Cf. Freud, S. (1926) "A Questão da análise leiga". In E.S.B., Op.cit., Vol. XIX. sonhadores e outros que conheciam o sofrimento neurótico por tê-lo
100. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.136.
101. Roudinesco, E. Idem, p.150. vivido. Este tipo de recrutamento transformou-se radicalmente
102. Roudinesco, E. Idem, p.159, grifo nosso. desde que a formação psicanalítica foi institucionalizada e que,
103. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.469. em contornos mais estritos, faz apelo a um tipo diferente de
104. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.148. personalidade. Além do mais, a auto-seleção cedeu lugar a um
105. Roudinesco, E. Idem. minucioso exame dos candidatos. Donde a exclusão daqueles que
106. Roudinesco, E. Idem, p.168. são suspeitos de alterações mentais, dos excêntricos, dos
107. Safouan, M. Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Op.cit., p.33. autodidatas, dos grandes imaginativos; em vantagem daqueles
108. Freud, S. (1926) "A Questão da análise leiga". Op.cit., p.283, nosso. que, acomodados e bem preparados, são trabalhadores o bastante
109. Apud Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Op.cit., p.168. para ambicionar uma maior eficácia profissional.
110. Bernfeld, S. "On psychoanalytic training". Op.cit., p.468.
ANNA FREUD, 1968

88
4. Problemas em formação
ÜS SINTOMAS DE UMA CULTURA PSICANALÍTICA

Londres, julho de 1953. A cidade que acolheu Freud


do nazismo é sede do 18 º Congresso Internacional de Psica­
nálise. A Inglaterra, que sempre mereceu admiração especi­
al de Freud, exercia também grande influência no mundo
psicanalítico - pela importância dos analistas que ali atua­
vam, pelo peso de suas instituições e por suas contribuições
teóricas. Um Congresso em Londres tendo a Sociedade Bri­
tânica de Psicanálise como anfitriã promovia um clima de
grandeza e tradicionalismo, e se, como tudo indica, tradição
era o que a IPA desejava resgatar para o mundo da psicaná­
lise, a escolha não podia ser mais acertada. Assim, no relató­
rio oficial do Congresso encontramos lado a lado, entre as
excursões planejadas para os horários livres dos participan­
tes, visitas a Windsor, Hampton Court e à Tavistock Clinic,
palácio real da psicanálise britânica.
A situação da psicanálise na época era marcada, porém,
por um aumento da importância e influência norte-americana,
onde desde o pós-guerra a psicanálise vinha encontrando um
grau de difusão cultural inédito, dando origem ao que alguns
autores chamam de "cultura psicanalítica". Apesar de ser mais
marcante nos Estados Unidos, esse quadro de difusão da psica­
nálise se fazia ver em escala mundial.
91
DANIEL KUPERMANN" TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

Sérvulo Augusto Figueira define cultura psicanalítica como Formação Psicanalítica", é o início da discussão sistemática sobre
um "padrão de presença da psicanálise"1 em um determinado con­ os efeitos de retomo da difusão cultural da psicanálise so"bre o próprio
texto cultural, que aparece quando a difusão da psicanálise atinge campo psicanalítico4. Esses efeitos, como veremos a seguir, tomam­
níveis nos quais dá origem a uma Weltanschauung partilhada por se visíveis principalmente na formação psicanalítica, que começa a
um número representativo de membros de uma sociedade. Associ­ apresentar novos "problemas". Assim, os problemas da formação
ada assim à produção de uma Weltanschauung, a cultura psicanalítica indicam problemas em formação no campo psicanalítico, sintomas,
pode ser decomposta em três dimensões: eidos, ethos e dialeto. O como efeito de retorno, de uma cultura psicanalítica sobre a pró­
eidos gera uma lógica para o pensamento e para a compreensão dos p ria psicanálise. Na sobredeterminação desses "sintomas", não é
fenômenos sociais e humanos; o ethos gera um código para o con­ possível deixar de incluir o pap el da p róp ria institucionalização
trole e expressão de emoções; e o dialeto, como forma de expressão da psicanálise, inseparável do processo histórico de sua difusão.
social e interpessoal, articula as duas dimensões anteriores no exer­ Para ilustrar a situação da psicanálise na é poca, guiar-nos­
cício e na circulação da cultura psicanalítica. Figueira conclui: emos pelo discurso de abertura do Congresso, proferido por
Heinz Hartmann5 , então p residente da IPA. Neste discurso, a
Toda cultura psicanalítica é, portanto, passível de ser en­
ênfase recai sobre três pontos: 1) o quadro de difusão da psica­
tendida como resultado de uma articulação complexa, e
nálise e as mudanças decorrentes nas relações entre a psicaná­
nem sempre harmônica, de um EIDOS e de um ETHOS psi­
lise e a cultura; 2) o surgimento de um tipo diferente de candi­
canalíticos que circulam através do dialeto do psicologismo2 •
dato à formação psicanalítica; 3) o aparecimento de "escolas" e
Trata-se, sem dúvida, de uma "articulação complexa", em "doutrinas" com referencial psicanalítico e a situação corres­
cuja trama se articulam e se influenciam mutuamente o tipo de pondente da IPA como centro organizador da psicanálise mun­
psicanálise que se apresenta, as formas de sua difusão e inserção dial. Passemos então à análise dos dois primeiros pontos.
social, os estágios de sua institucionalização e o contexto cultu­ Em 1953, a-difusão da psicanálise era evidente em vários
ral propriamente dito. A conseqüência é que as culturas psica­ países. Outra evidência é que essa difusão sempre foi um dos obje­
nalíticas irão variar, de acordo com os efeitos dessa articulação. tivos maiores da institucionalização da psicanálise, e um dos moti­
Guardando as devidas ressalvas no uso dessa noção, é vos principais p ara a criação e razão de ser da IPA. Diz Hartmann:
ilustrativo o fato de que nos Estados Unidos, onde a psicanálise Nos vários anos desde a sua fundação, a Associação Psi­
teve sua inserção social estreitamente ligada à medicina psiqui­ canalítica Internacional tem ajudado ativamente a análi­
átrica, sendo rapidamente difundida e articulada ao ideal adap­ se, formulando suas necessidades e dirigindo seu crescimen­
tativo do american way of life, encontremos uma cultura psica­ to. Nas cond�ões fawráveis criadas por esta Associação,
nalítica bastante diversa da francesa, onde a psicanálise teve a a análise cresceu e se propagou assim como uma coisa viva6•
sua penetração social fortemente marcada pela literatura e por
movimentos de vanguarda artística, como o surrealismo3 • A metáfora biologista/desenvolvimentista faz-se presente
O que se pode observar neste Congresso de 1953, a partir em todo o discurso, que trata o desenvolvimento da p sicanálise
das problemáticas que se apresentam para questionamento e em analogia ao desenvolvimento do ser vivo. Como veremos,
reflexão tanto no registro organizacional (no discurso de aber­ essa biologização dará origem a uma "naturalização" dos desti­
tura do Congresso e no business meeting) quanto nos encontros nos da p sicanálise que será resp onsável pela cristalização de
científicos, principalmente no simpósio intitulado "Problemas da vários "pontos cegos" na discussão dos problemas da formação.

92 93
DAl\'!EL KUPERMANN "I'RAl\'SFERÍÕ:NCIAS CRCZADAS

Prosseguindo com Hartmann, a difusão da psicanálise Daí a importância de recorrer à tradição, e em frisar que o
promoveu "mudanças" de vários tipos, e o mérito de seu dis­ papel pioneiro do psicanalista não havia sido superado. A psicanáli­
curso está em apontar alguns impasses e contradições surgi­ se como profissão tinha deixado de ser um risco pessoal, e isso
dos a partir dessas "mudanças". Assim, a psicanálise havia se coincide com o surgimento de um novo tipo de candidato a
"tornado adulta", e várias de suas descobertas eram aceitas e analista - o candidato "normal".
reconhecidas em muitas partes do mundo, ressaltando-se po­
rém que em outros lugares ainda havia psicanalistas trabalhan­
do em "esplêndido isolamento", na tentativa de criar espaços 0 CANDIDATO "NORMAL" E SUA ECOLOGIA
para o pensamento e a prática psicanalítica em meios desfavo­
ráveis. Com isso, Hartmann quer apontar que "o papel pio­ A questão do candidato "normal" está inserida no campo
neiro do analista ainda não havia sido superado"7• do que Maxwell Gitelson chama de "ecologia" do candidato.
Às mudanças advindas da difusão cultural da psicanálise Em Therapeutic Problems in the Analysis of the "Normal"
- seu reconhecimento como método terapêutico pelas profis­ Candidate9, Gitelson busca determinar as condições sócio-cul­
sões vizinhas, aumento das relações (tanto em intensidade quan­ turais para o surgimento do candidato "normal" e investigar os
to em extensão) com outras áreas do conhecimento, uso de problemas adicionais que aparecem em sua análise, enfatizando
descobertas e insights psicanalíticos em outras disciplinas, possi­ o estudo de "fatores ecológicos". Se a ecologia, nas ciências na­
bilidade de pesquisa interdisciplinar - corresponde uma inde­ turais, estuda as relações entre comunidades e indivíduos com
sejável mudança de atitude do psicanalista quanto ao seu papel o meio em que vivem e suas influências recíprocas, na ecologia
social. Para ilustrar essa mudança de atitude, Hartmann com­ do candidato a psicanalista Gitelson vai abordar as relações do
para a geração de candidatos à formação psicanalítica do pós­ candidato "normal" com o seu meio, privilegiando as influên­
guerra com as gerações anteriores, mostrando suas diferenças cias do meio sobre o seu caráter.
tanto em termos de "personalidade" quanto de "motivação": Arriscando uma leitura antropológica, Gitelson nota, em
Na época "heróica" da análise, tomar-se analista era uma primeiro lugar, que as neuroses que se apresentavam ao psica­
aventura do espírito; era aventura tanto por causa das nalista nos anos 50 eram diferentes daquelas do começo do sé­
incertezas relativas ao status econômico e social, quanto culo. Seu ponto de vista é o de que as mudanças da cultura
pelo isolamento espiritual, que era o destino do analista. acarretam mudanças na maneira pela qual o ego lida (admite,
Durante as duas primeiras gerações de psicanalistas, es­ repele ou modifica) com as exigências "instintuais", uma vez
colher essa profissão era uma decisão categórica e carre­ que a ação do ego depende de como ele foi "ensinado" a
gada de emoção. Essa é uma decisão difícil para alguns considerá-las pelo mundo exterior.
de nossos alunos hoje, mas certamente não é uma deci­ As mudanças culturais privilegiadas em sua análise são as
são duvidosa para todos, ou mesmo para muitos deles. ocorridas nas esferas da ética e da moral. Gitelson considera que
Há aqueles que escolhem a psicanálise apenas como uma os limites entre o permitido e o proibido haviam se tornado con­
especialidade. Sua ênfase reside mais na aquisição de uma fusos, o que se refletia na inconsistência das influências da edu­
habilidade técnica do que no engajamento à uma discipli­ cação primária na criança. As mudanças correspondentes ob­
na, no sentido amplo do modelo estabelecido por Freud8• servadas na forma das neuroses foram das neuroses de transfe­
rência - baseadas em conflitos entre ego e id - para as de tipo
94 95
DANIEL KUPERJVíANK 'TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

narcísico -- baseadas em conflitos entre ego e superego. Gitelson to, sinal da inadequação dos mecanismos de defesa, pode fa­
pretende que em uma cultura onde a Lei se relativiza excessivamen­ cilitar o aprofundamento do trabalho da análise, aproximan­
te, o superego se torna maleável, e o campo privilegiado para a do a análise didática da terapêutica, o que não se observa
ação conciliatória do ego passa a ser então a relação com a instân­ nos candidatos "normais".
cia superegóica e com a própria realidade. Assim, o ego encontra Paula Heimann, que nos apresenta um verdadeiro tratado
um vasto campo para evitar as rupturas e conflitos que caracteri­ das psicopatologias indicadas para a profissão de analista (rea­
zam as neuroses de transferência, e a aparente "personalidade ções depressivas são mais convenientes do que maníacas e
normal" resultante desse processo torna-se o próprio sintoma*. esquizóides etc.), coloca na categoria dos candidatos contra-in­
Como podemos constatar, Gitelson trata a "normalidade" dicados, lado a lado com os psicóticos, o candidato "normal", no
como sintoma (individual e cultural), e o surgimento do candi­ qual "realismo, adaptação e uma vida bem ordenada, incluindo
dato "normal" como conseqüência da mudança do tipo de neu­ gratificação sexual e uma capacidade de trabalho regular, são
rose predominante na cultura de sua época. Assim fazendo, po­ construídos sobre superficialidade e pobreza de personalidade"13•
rém, Gitelson considera o fenômeüo como externo ao campo Assim, a maioria dos psicanalistas da época limita-se a
psicanalítico. Essa perspectiva não é, portanto, suficiente para diagnosticar o candidato "normal", sem o questionamento das
transformar a maneira pela qual a discussão sobre o candidato condições históricas e institucionais de seu aparecimento.
"normal" vinha sendo conduzida, em termos de sua adequação Convém pontuar, entretanto, que não havia consenso nem
ou inadequação para a carreira analítica, sem promover um ques­ clareza entre os psicanalistas quanto à questão dos atributos do
tionamento maior sobre o próprio sistema de formação. Veíamos: candidato. Gitelson í4 refere-se criticamente à Associação Psi­
Hans Sachs 10 observava o surgimento de um grupo de can­ canalítica Americana, onde era desejável estabelecer a norma­
didatos com "QQ_':!�os sintomas neurgticos", bem adaptados e inte­ lidade como base para a seleção de candidatos, cuja formação,
grados socialmente�·mas cuja organização nardsica havia produzi­ presumia-se, não tomaria muito tempo.
do muito firmemente uma repressão do conflito. Para Sachs, ape­ Mesmo entre os descontentes com o candidato "normal" '
sar de poderem ter uma boa compreensão intelectual dos mecanis­ a falta de clareza quanto ao que se espera realmente de um fu-
mos psíquicos e de serem terapeutas entusiastas, esses candidatos turo analista faz com que apareçam contradições, e equilíbrio e
não eram indicados para a psicanálise, e deveriam ser encami­ adaptação são recomendados. Assim, Paula Heimann 15, ao listar
nhados para alguma das escolas de técnica psicoterapêutica. as qualidades esperadas em um candidato, inclui, entre outras,
Warburg refere-se a certas pessoas "conformadas" e a capacidade de estabelecer relações objetais em níveis profun­
"equilibradas" cujos horizontes são porém limitados, e questi­ dos e de mantê-las por um longo período, a capacidade de reco­
ona o quanto seu ponto 9e vista é amplo o suficiente para que nhecer as próprias limitações e de tolerar tensões advindas de
façam análise. Ele diz: "E questionável, mesmo se você os for­ problemas de difícil solução sem confusões ou ações precipita­
ma, o quanto eles não serão tão sem imaginação que não en­ das, enfim, equilíbrio, adaptação... e normalidade.
tenderão muitas coisas"11• Retornando a Gitelson 16 , sua segunda vertente de análise
Sacha Nacht 12 considera que a presença de conflitos da ecologia do candidato parte da consideração de que um im­
não resolvidos e mesmo de sintomas neuróticos no candida- portante fator cultural que influencia o caráter dos candidatos
a analista é a "atmosfera psicanalítica" na qual esses candidatos
(*) O fenômeno observado nos anos 50 por Gitelson mantém ainda hoje a sua atualidade. Para um
aprofundamento da questão na nossa contemporaneidade, reroeremos o leitor a Jurandir Freire Costa (1988).
cresceram e se desenvolveram.

96 97
DANIEL KCPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRCZADJ\S

A "atmosfera psicanalítica" é caracterizada pelo fato de que, a criação de novas resistências e para o desenvolvimento de
mesmo antes da formação propriamente dita, os candidatos vivam uma "fachada de pseudonormalidade" baseada em códigos (de
em um meio de psicanalistas e de colegas "orientados psicanalí­ pensamento, de controle de emoções e de linguagem) psicana­
ticamente", e sofram a influência de várias derivações e aplicações líticos, onde o próprio campo psicanalítico, agora respeitável e
da psicanálise, ou mesmo do próprio divã. Diz Gitelson: ''.A psi­ "normal", constitui uma imago da autoridade, ditando o que é
canálise tornou-se respeitável e "normal"; tornou-se parte do meio " 17• certo e o que é errado, permitido ou proibido, e passando a ser
As conseqüências de uma atmosfera psicanalítica sobre alvo de investimentos inconscientes.
o candidato são, por um lado, a criação de uma camada adici­ Articulando a noção de "atmosfera psicanalítica" com o
onal de resistências ego-sintônicas, e por outro o desapareci­ que sabemos a respeito da "cultura psicanalítica", considerando
mento do incógnito do analista, o que trará problemas para o tratar-se de noções correspondentes, referidas a um mesmo fenô­
curso da análise, desde a escolha do analista até o desenvolvi­ meno, porém formuladas em diferentes épocas, pode-se dizer que,
mento normal da transferência. segundo Gitelson, a psicanálise difundida e aceita culturalmente
A camada adicional de resistências ego-sintônicas é - "respeitável" e "normal", "part'e do meio" - é criadora de
criada pela influência de leituras, aulas ou análises "selva­ uma Weltanschauung poderosa, que influencia o candidato a pon­
gens" cometidas por colegas ou professores, que levam ao to de produzir uma camada adicional de resistências pela entrada
desenvolvimento de uma fachada de pseudonormalídade. Esta de uma série de "artefatos"19 na organização defensiva do ego.
é baseada em gratificações e repressões devidas a "inter­ A influência da Weltanschauung psicanalítica se exerce
pretações inexatas", no desenvolvimento de mecanismos através de uma lógica para o pensamento, um eidos ("leituras",
contra-fóbicos e de negação, e na intelectualização dos sin­ "aulas", colegas "orientados psicanaliticamente"); de um códi­
tomas. Como ilustração de intelectualização de sintomas, go para o controle e expressão de emoções, um ethos (análises
Gitelson registra a tendência de certos candidatos a valori­ "selvagens", "interpretações inexatas", sintomas neuróticos
zar ao máximo situações de tensão e reações depressivas "admissíveis" e "condenáveis"); e certamente de uma linguagem
moderadas, uma vez que a opinião corrente é a de que "está "psi" que articule essas duas dimensões, o dialeto, desenvolvendo
tudo bem" em se ter alguns problemas neuróticos, enquan­ uma "fachada de pseudonormalidade" no candidato "ecologica­
to "problemas de caráter" são suspeitos. Ele observa: mente" bem adaptado à "atmosfera" de seu tempo e lugar.
O que pode passar despercebido é que essa aparente acei­ A problemática de Gitelson era portanto, já no início
tação dos fatos da vida pode ser na verdade o sinal dos anos 50, a formação de sintomas no campo psicanalítico
indicativo dos efeitos de resistências de caráter baseados como efeito de retorno de uma cultura psicanalítica sobre este
na submissão e na aquiescência à autoridade. PARECE, próprio campo, mais especificamente sobre a análise da for­
DE FATO, QUE UMA DAS IMAGOS INCONSCIENTES DA AU­
mação psicanalítica. Um aspecto principal, porém, chama a
TORIDADE É AGORA O PRÓPRIO CAMPO PSICA/\JALÍTICO 18 •
atenção. Apesar de perceber que a psicanálise difundida cria
uma atmosfera ou cultura psicanalítica, Gitelson continua a
Assim, o circuito proposto por Gitelson é: a psicanálise tratar o fenômeno como algo exterior à psicanálise, como "ar­
difundida na cultura - aquiescente, por seu turno, com as de­ tefatos" (o que traz a idéia de artificialidade, algo contrário à
fesas de caráter narcísico - cria uma "atmosfera psicanalítica" natureza) que vêm trazer problemas para o campo psicanalíti­
que faz parte da ecologia do candidato, e que irá contribuir para co, de fora para dentro. Daí, ao tratar dos problemas da análi-
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DANIEL KUPERMANN 'rRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

se do candidato "normal", Gitelson aponta três registros onde ceba o "normal" de uma prática produzida pela instituição psica­
as condições básicas do trabalho do analista são alteradas, cau­ nalítica como produção histórica, ou mesmo como sintoma?
sando prejuízo ao tratamento: Assim é também com Hartmann21• Havíamos apontado
1) Normalidade, um sintoma, não é realmente senti­ anteriormente que, ao tratar o desenvolvimento da psicanálise
do como tal. Ao contrário, é capaz de promover re­
"biologicamente" em analogia ao desenvolvimento do ser vivo,
compensas sociais das quais a primeira é A ACEITAÇÃO Hartmann naturalizava os destinos da psicanálise promovendo
COMO CANDIDATO. Para nenhum outro sintoma é atri­
a cristalização de vários "pontos cegos" na discussão dos pro­
buída uma cota de ganho secundário tão ampla. 2) O blemas da formação. Retomando seu discurso de abertura do
sistema defensivo tem seu suporte na cultura em geral Congresso, Hartmann comenta a propósito da discussão sobre
e, paralelamente, é reforçado pela experiência profis­ a "crise" da psicanálise na época:
sional pré-analítica do candidato. 3) A SITUAÇÃO ANA­ (.,.) não devemos esquecer que a história da psicanálise
LÍTICA É CONTAMINADA E DISTORCIDA POR FATORES desde o seu início era abundante em crises deste tipo.
EXTERNOS ACIDENTAIS QUE INTERFEREM NO DESENVOL­ Como na história do indivíduo, para cada um dos está­
VIMENTO NOP,MAL DA TRANSFERÊNCIA2º. gios de desenvolvimento corresponde um conflito típico
- apesar de eu ser certamente o último a esquecer que
Assim, em termos de sistema de form3.ção, o máximo de
questionamento que Gitelson se permite é sobre a seleção de há também uma esfera livre de conflitos22 •
candidatos, uma vez que percebe que a própria seleção contribui Espirituosidade e auto-referências à parte, a analogia
com ganhos secundários para a manutenção do sintoma de nor­ desenvolvimentista parece ser confortadora, e permite inclu­
malidade. Mas ainda assim trata-se da manutenção de um fator sive a Hartmann considerar que a psicanálise havia se "torna­
externo. Nesse sentido, bastaria repensar os critérios de seleção do adulta"23• Mas no desenvolvimento do indivíduo os está­
e o problema estaria resolvido. gios estão dados psicogeneticamente desde sempre; o meio só
Por outro lado, encontramos um registro de normalidade pode promover ou inibir as potencialidades. Nessa concep­
que Gitelson não consegue perceber nem analisar. Trata-se da ção, a psicanálise ganha um destino psicogenético natural, com
idéia de um "desenvolvimento normal da transferência", que seus estágios de desenvolvimento pré-estabelecidos e com seus
seria prejudicado por "fatores externos acidentais" que conta­ "conflitos típicos" correspondentes, numa espécie de harmo­
minam e distorcem a situação analítica. Porém, para fazer essa nia "silvestre" onde pouco ou nada é questionado, e onde uma
análise, Gitelson necessitaria poder desnaturalizar e historicizar prática social e histórica é naturalizada.
o que chama de "desenvolvimento normal da transferência" ' Outro forte motivo que vem questionar a conveniência des­
considerando-o como uma produção contextualizada (poderí- sa analogia é que, no desenvolvimento do indivíduo, a morte tam­
amos falar aqui em "sintoma institucional"?) e não natural. bém está dada geneticamente - único estágio, aliás, para o qual
Se isso não lhe é possível, e a questão de um desenvolvimen­ não há "conflitos típicos" correspondentes. Mas Hartmann não
to normal da transferência não é tratada como produção/sintoma leva adiante essas conseqüências da sua analogia. Fica para o cam­
por Gitelson, seguindo seu próprio raciocínio quanto ao candidato po psicanalítico a questão de saber se onde há harmonia há vida.
"normal", podemas perguntar: quais· os ganhos secundários e re- Uma última consideração refere-se à observação de Gitelson
compensas sociais que impedem que Gitelson, analista didata, per- de que "uma das imagos inconscientes da autoridade é agora o
100 101
-rRANSFERÊNCIAS CRCZADAS
DANIEL Kt.:PERMANN

próprio campo psicanalítico"24• Em termos psicanalíticos, as imagos cesso de constituição do "superego psicanalítico". Porém, ao
inconscientes da autoridade são constituintes do superego, e as­ observá-lo, aproxima-se do autor que, na época, encontrou as
sim podemos entender que em uma "atmosfera (ou cultura) psi­ "ferramentas" necessárias para essa abordagem. Trata-se, como
canalítica" o campo psicanalítico toma-se superegóico. veremos mais adiante, de Michael Balint.
Primeiramente notamos a possibilidade de a psicanálise A análise-da-formação se apresenta assim como um es­
difundida criar uma Weltanschauung que influencia o candida­ paço privilegiado para observarmos o efeito dessa rede
to. Como vimos no capítulo 2, a matriz de toda Weltanschauung transferencial, uma vez que nela o analista (didata) é represen­
é o "complexo do pai", sendo esta constituída pela reedição de tante oficial da psicanálise enquanto saber e prática, da organiza­
investimentos de tipo infantil sobre um pai idealizado, investi­ ção psicanalítica enquanto formação social e também do incons­
mentos que são ao mesmo tempo a base das imagos da autori­ ciente atualizado de seu analisando, o candidato a psicanalista.
dade. Podemos assim considerar que toda Weltanschauung é
investida como imago inconsciente da autoridade, sendo toda
Weltanschauung "religiosa", formadora de ideais e proibitiva para As VICISSITUDES DA TRANSFERÊNCIA
NA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA
o pensamento. Ou seja, toda Weltanschauung é superegóica.
A reedição de investimentos de tipo infantil é, em termos
clínicos, a definição clássica para a transferência. Em todo tra­ (... ) O Rabino mirava-o com ternura
'ramento há um momento (principalmente em seu início) em e com algum horror. COMO (se disse)
PUDE ENGENDRAR ESSE PENOSO FILHO
que a transferência estabelecida para com o analista é de tipo
E DEIXEI A INAÇÃO, QUE É A CORDURA?
altamente idealizado, onde o analista ocupa· o lugar de imago
da autoridade, nas formas da onipotência e principalmente da
POR QUE FUI AGREGAR À INFINITA
onisciência. O que ocorre na formação das Weltanschauungen,
SÉRIE UM SÍMBOLO MAIS, E DEI ÀQUELA
segundo a elaboração freudiana de Psicologia das Massas e Aná­
MEADA VÃ QUE NO ETERNO SE ENOVELA
lise do Ego (1921), é que o lugar de imago da autoridade é ocu­
OUTRA CAUSA, OUTRO EFEITO E OUTRA CUITA?
pado não por uma pessoa, mas por uma idéia (Idee), que se faz
ideal. Assim, podemos falar em uma transferência de tipo alta­
mente idealizado a uma idéia ou sistema de idéias, da qual a fé Nessa hora de angústia e de luz vaga
religiosa é o exemplo mais ilustrativo. em seu Galem os olhos os prendia.
Na proposição de Gitelson, portanto, pode-se encontrar Quem nos dirá das coisas que sentia
formulada uma transferência para com o próprio campo psicanalí­ Deus, ao olhar o seu rabino em Praga?
tico, na qual este passa a ocupar uma das "imagos inconscientes
da autoridade", tornando-se superegóico. Transfere-se para a (Jorge Luís Borges, O Galem, 1958)
teoria, para sintomas "admissíveis" (psicopatologia), para cole­
gas "orientados psicanaliticamente". E os guardiões maiores dessa Vamos nos deter agora sobre as idéias veiculadas durante o
transferência são, sem dúvida, os próprios psicanalistas e, den­ simpósio Problemas da Formação Psicanalítica ocorrido neste 18º
tre eles, de acordo com a hierarquia de suas organizações. No Congresso Internacional de Psicanálise, em Londres. À guisa de
entanto, Gitelson não se propõe a aprofundar a análise do pro- contextualização, isto é, do entendimento do porquê deste simpósio

J(L'\
102
DANIEL KUPERMANN

TRANSFERll:NCIAS CRUZADAS

e da sua importância - afinal, em mais de quarenta anos de psi­


canálise institucionalizada é a primeira vez que se discute inten­ e Nils Nielsen26 consideram a quase inexistente literatura sobre
samente em um congresso internacional* a questão d�_formação o assunto um sinal dessa resistência.
psicanalítica - recapitulemos o que vimos até aqui: 1) desde o Balint aponta uma "inibição do pensamento" 2 7 em dis­
pós-guerra observava-se um grau de difusão inédito dà psicanáli­ cutir a formação, devida a dois fatores: em primeiro lugar, qual­
se, paralelamente a um aumento da demanda de análises e con­ quer crítica justificada sobre a formação implicaria a possibili­
seqüentemente de analistas (convém ressaltar que havia um au­ dade de que alguns analistas didatas, especialmente os da an­
mento da demanda de psicoterapias em geral, o que vai provocar tiga geração, não tenham sido formados de maneira apropria­
efeitos também na psicanálise); 2) aumento do número de candi­ da. Daí a dificuldade desses analistas em admitir correções ou
datos à formação psicanalítica; 3) surge um novo tipo de candi­ inovações experimentais em algumas das normas, o que faz
dato, diferente daquele das primeiras gerações, o candidato "nor­ com que a questão da formação torne-se uma espécie de tabu,
mal"; 4) as sociedades psicanalíticas, pressionadas por essa de­ onde predomina unia atitude dogmática raramente encontra­
manda, são colocadas frente às questões relativas à formação: os da em qualquer outra esfera da psicanálise. Além disso, a ques­
critérios de seleção, seu tempo de duração (uma vez que havia a tão da formação envolve a discussão geral sobre a eficiência e
urgência da demanda), a definição do que é uma análise didática validade do tratamento psicanalítico.
(as relações desta com a análise terapêutica), a discussão sobre o Nielsen considera ainda que a defasagem entre a forma­
programa de formação e seus momentos (quando iniciar o estu­ ção dos membros antigos e a dos novos pode promover senti­
do teórico e o atendimento clínico sob supervisão), a própria ques­ mentos inconscientes de culpa na antiga geração, com a conse­
tão da supervisão. Claro está que nenhuma dessas questões havia qüente tentativa de "reparação" através da imposição de medi­
sido antes resolvida- como até hoje não o foram- mas o ZeitgeisL das quantitativas à geração seguinte. A situação da defasagem
(e os "ventos do mercado") impõe suas urgências; g) novos pro­ no sistema de formação das várias gerações é ilustrada por
blemas surgem na análise-da-formação a partir da difusão cultu­ Nielsen a partir de uma associação que considera "típica" numa
ral da psicanálise e da criação de uma "atmosfera psicanalítica", análise-da-formação:
referindo-se principalmente às vicissitudes da transferência na "Você, meu analista, foi analis1.do durante 300 horas
formação psicanalítica; ,5) com a difusão da psicanálise, a IPA por um homem que foi analisado durante 150 horas
sofre um crescimento que a aproxima do gigantismo, e começa a por alguém que não foi de forma alguma analisado" 28•
surgir o pressentimento da ameaça de cisões no campo psicanalí­
tico. Este é o contexto no qual organizou-se o simpósio. É interessante notar, a partir dessa ilustração, que certos
Porém, a questão básica da formação psicanalítica - o assuntos que se referem à organização institucional da psicaná­
que faz de um analisando analista - é de tamanha complexidade lise acabam por ser abordados na "outra cena" - na sessão psi­
que historicamente aparece encoberta por resistências, como canalítica, sob controle da transferência - preservando assim
demonstrou Freud em A Questão da Andlise Leiga (1926). Au­ o registro organizacional. É sob efeito dessas resistências que os
tores do pós-guerra indicam também resistências por parte dos psicanalistas da terceira geração, a geração dos "notáveis" 29, irão
psicanalistas em discutir a questão da formação. Michael Balint25 discutir os problemas da formação psicanalítica, avaliando e
definindo os destinos da próxima. geração psicanalítica.
(*) Em 1946, realizou-se nos Estados Unidos a Conferência Nacional Sobre Problemas da Formação Psicana-
1/tica no Pós-Guerra, que precedeu ideologicamente este Congresso (cf. Gitelson, 1948). Dentre as questões discutidas no simpósio, enfocaremos
aquelas relativas aos problemas e vicissitudes da transferência e
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TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

da contratransferência na análise de formação. Apesar de não triangular, sendo que o analista condensaria o papel de ambos
haver consenso nas idéias dos vários autores, pode-se apontar os pais numa "figura parental combinada". Isso facilitaria o acesso
um eixo comum em tomo do qual giram estas questões: as rela­ às fantasias caóticas do início do complexo de Édipo durante o
ções transferencial e contratransferencial na análise-da-formação apre­ estágio polimorfo de desenvolvimento31•
sentam diferenças significativas quando comparadas à análise tera­ Os riscos da análise-da-formação são atribuídos por
pêutica. Essas diferenças são devidas a dois fatores principais: Heimann principalmente ao narcisismo do analista. Interesse co­
mum pela psicanálise, contatos extra-analíticos e antecipação de
1) Analista e analisando
CONVNEM EM OUTROS REGIS­ amizade futura podem promover fortemente a tendência identi­
TROS ALÉM DA SESSÃO ANAUTICA, como em aulas, dis­ ficatória entre os parceiros da análise. Essa tendência poderia se
cussões na sociedade psicanalítica etc. Assim,' o incóg­ expressar pela ambição do analista em provar sua competência
nito do analista, constituinte da concepção clássica da através do "brilhantismo" de seu candidato, ou então, no caso de
neutralidade do SETTING, deixa de existir. o analista ser um teórico, em querer que o candidato aceite e
2) O analista tem o poder e a função de JULGAR a apti­ desenvolva seus pontos de vista, numa espécie de paternidade in­
dão de seu analisando à carreira psicanalítica. telectual fantasmática. Da parte do candidato, o risco identificatório
Paula Heimann considera que todos os prgblemas espe­ residiria na aceitação passiva das interpretações do analista como
cíficos que possam surgir na análise-da�formação são prove­ defesa contra a hostilidade, o medo e a dúvida, fazendo preva­
nientes de fatores extra-analítkos e, se o analista não permitir lecer apenas a transferência positiva. O sucesso terapêutico es­
que estes fatores se tornem "santuários para a resistência"3º, taria assim baseado numa situação próxima da sugestão.
eles poderão ser férteis para a análise. Nesse sentido, toda a Martin Grotjahn32, ao contrário de Heimann, aponta o
questão da análise-da-formação é colocada em termos de o risco de uma redução da intensidade da transferência na análise­
analista poder reconhecer e lidar com seus próprios proble­ da-formação. Essa redução seria decorrente do fato de que aí
mas de forma a não obscurecer sua contratransferência, e utilizam-se regras e regulamentos ditados institucionalmente
manter assim um procedimento "puramente" analítico. A ên: por exigências acadêmicas, e não necessariamente por medi­
----- "-
fase recai portanto sobre a análise do analista. . das terapêuticas, como o tempo, o número das sessões e a du­
Por fatores extra-analíticos, Heimann entende o fato de o ração do tratamento. O autor enfatiza que essas regras são
analista determinar as etapas da formação de seu candidato, conhecidas e aceitas de antemão pelo candidato e, portanto,
influenciando seu progresso no estudo teórico, opinando na esco­ não são verdadeiramente analisadas.
lha do supervisor e tendo a palavra decisiva para sua habilitação. Grotjahn argumenta que se, de início, a formação se dava
Além disso, o analista deixa de ser anônimo, encontrando-se com exclusivamente entre analista e analisando, com a instituciona­
o analisando também fora da sessão analítica. Assim, os fatores lização da psicanálise essa relação é substituída por um sistema
extra-analíticos vêm incidir sobre a análise-da-formação. de formação onde a responsabilidade da Associação Psicanalítica
Esse quadro complexo que compõe a análise-da-forma­ desempenha um papel predominante. Essa "responsabilidade
ção pode servir, porém, para intensificar a transferência, permi­ grupal" vem reduzir a intensidade dos sentimentos transferendais
tindo um maior aprofundamento da análise. A idéia é a de que, e contratransferenciais. No que concerne ao analista e à
quando o analista atua como representante do Comitê de For­ contratransferência, a "responsabilidade grupal" o libera das im­
mação, a situação analítica adquire o caráter de uma situação plicações práticas da formação, o que acentua as diferenças entre
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DA1':!EL KUPERMANN TRAKSFERÍ':NCTAS CRUZADAS

a análise terapêutica e a análise-da-formação. No que concerne compararem o progresso e o crescimento de cada um, aumentan­
ao candidato, a conseqüência econômica deduzida é que a inten­ do o seu medo de serem rejeitados enquanto analistas. Bibring
sidade da transferência tende a diminuir quando a Associação aponta ainda a tendência a compararem seus respectivos analis­
Psicanalítica torna-se um "substituto do analista", isto é, quando tas, sob todos os ângulos (performance intelectual, aparência etl . ) .
uma parte da neurose de transferência é "atuada" em relação ao O somatório desses fatores e das angústias daí decorren
âmbito institucional da psicanálise. Diz Grotjahn: tes levaria à formação de um sistema defensivo que promove
ria a tendência nos candidatos a "cindir suas reações trans­
Na esperança de permanecer discípulo do analista ferenciais" e a deslocá-las para os outros instrutores analíti­
didata ou de seu substituto na forma do Instituto ou cos, "em favor ou contra seus próprios analistas"35• A tradu­
da Sociedade Psicanalítica, uma parte da neurose de ção em termos econômicos da idéia de Bibring é que disper­
transferência será levada à "atuação" (ACTING ouT) sando as reações transferenciais pelo estabelecimento de trans­
se não reconhecida e analisada apropriadamente. Mui­ ferências laterais36 , a intensidade dos afetos diminui, e o can­
to da frustração necessária provocada pelo término de didato mantém, de forma defensiva, a transferência na análi­
uma análise é reduzida pela esperança do aluno de se-da-formação em níveis controlados.
contato continuado com o analista33• Uma vez mais, a solução para os problemas aos quais a
Essa atuação, na forma de uma perpetuação da neurose de análise-da-formação está sujeita é colocada, tanto por Grotjahn
transferência para com o âmbito institucional da psicanálise, vem quanto por Bibring, na análise do analista. Assim, o narcisismo do
servir portanto a um último esforço da resistência do candidato analista e o domínio da contratransferência são as instâncias
contra a separação do analista, resistência encoberta pela espe­ determinantes do sucesso ou do fracasso da análise-da-formação.
rança de tornar-se membro do mesmo grupo psicanalítico e cole­ Grotjahn considera que a análise-da-formação exige al­
ga de seu psicanalista. Grotjahn alerta ainda para a tendência do gumas mudanças na técnica do analista de forma a manter a
candidato em resolver suas angústias e seu sofrimento frente às neurose de transferência o mais próximo possível de como ela
incertezas da vida e às "descontinuidades da existência humana" se apresenta na "relação terapêutica original", isto é, na análise
refugiando-se na identificação imaginária com o analista. terapêutica. Propõe para isso uma maior "liberdade", "flexibili­
Grete Bibring34 aproxima-se dessa posição ao apontar uma dade" e "espontaneidade" do analista na análise das defesas es­
tendência nos candidatos a cindir suas reações transferenciais nas pecíficas encontradas nos candidatos. Nesse sentido, aponta que
análises-da-formação, o que levaria também a uma redução da somente analistas "experientes" são indicados para exercer a
intensidade da transferência. Essa tendência é atribuída a alguns análise-da-formação, e que a "espontaneidade" do analista de­
fatores: em primeiro lugar, o analista, ao tomar a maioria das de­ pende não apenas do controle da contratransferência mas tam­
cisões relacionadas à formação de seu candidato, deixa de ser bém dos "laços emocionais" que o ligam ao seu "grupo de ami­
"neutro" para tornar-se o "juiz temido" com relação ao qual o gos psicanalistas", ao Instituto de Formação e à Sociedade Psi­
candid�to desenvolve uma suspeita constante de reações hostis. canalítica. Grotjahn pretende que a análise-da-formação de­
Além disso, o crescimento do número de candidatos, aliado a sua manda uma relação dupla por parte do analista -- para com seu
"motivação" para a formação (tornar-se analista ao invés de "mu- analisando mas também para com a Sociedade Psicanalítica ·­
dar " ou "curar-se'') , ena
· um grupo a1tamente competitivo, com o que provoca uma situação particular de "lealdade dividida".
uma tendência comum à "atuação" (acting out), no sentido de De forma a lidar com essa situação, o analista precisa ter desen-

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0AKIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

volvido um grau de liberdade interior suficiente para que possa ção de independência e interesse em promover o conhecimento
expressar sua "espontaneidade analítica"37• psicanalítico a qualquer preço, que caracterizaria o analista "ma­
Bibring ressalta as "pressões" que o analista sofre em uma duro". Apontamos que a noção de "superego psicanalítico"
análise-da-formação. Ao lado do caráter competitivo que a for­ sugerida por Bibring é bastante diferente do que pretendemos e
mação adquire para os candidatos, há o envolvimento do ana­ vimos até aqui. Se Bibring opta pela concepção de um superego
lista no processo. Assim, é ilustrada a "tarefa adicional" do ana­ como condição de maturidade e liberdade, parece-nos que os
lista nessas análises, quando, após um dia de trabalho seguido problemas da formação psicanalítica na sua época estão mais apro­
de uma discussão no Instituto, este se encontra perscrutado por priadamente referidos à concepção de um superego restritivo e
seus vários candidatos, "discutido por eles sob todos os ângulos, opressor, como veremos claramente com Balint.
como aparência, idade, performance intelectual, traços de per­ Em sua abordagem sobre os problemas da análise-da-for­
sonalidade (verdadeiros e projetados) - tudo colorido com mação, Niels Nilsen4 1 e Sacha Nacht42 atribuem uma princi­
adoração ilimitada ou amargo sarcasmo"38• palidade ao fato de, nessas análises, o analista deter um poder real
Os riscos dessa situação são uma "solução narcísica" por sobre o futuro profissional do candidato. Se esse poder real reper­
parte do analista - no sentido de aceitar a adoração como re­ cute de fato na relação transferencial (e contratransferencial), pa­
ferida a algum atributo real da sua pessoa - e o não-reconheci­ rece interferir também em outros registros - apontando para
mento da contratransferência, que podem levar à participação os limites da transferência - produzindo uma tensão entre pas­
do analista no processo de atuação dos candidatos, pela compe­ sado e presente, vivido e revivido, imaginário e real.
tição, parcialidade e, por exemplo, na expectativa de fidelidade Nacht aponta que, inconscientemente, em toda análise,
especial por parte de algum candidato. Quanto ao narcisismo o analista é colocado no lugar de pai idealizado de quem se
do analista, Grotjahn, numa posição idêntica à de Paula espera tudo. Espera-se inclusive a permissão e a força para
Heimann, aponta o risco de a análise do candidato passar a ser tornar-se igual a ele, similar à imagem do pai idealizado. Na
a prova do "bom trabalho" do analista. análise-da-formação, esse objetivo - tornar-se igual ao ana­
O remédio mais efetivo sugerido contra as pressões das "cor­ lista - é perfeitamente consciente, reconhecido e partilhado
rentes cruzadas patogênicas dos institutos de formação" é a aná­ com o analista como uma meta real. Assim, as determinações
lise pessoal (e, diríamos, "intransferível") do analista39 • É a reatua­ infantis dessa aspiração e o valor fantasmático desses movi­
lização, no campo psicanalítico, da máxima: medice, cura te ipsum! * mentos identificatórios tendem a ser excluídos do campo da
Uma última observação que ressaltamos em Bibring é a sua análise. A idéia de Nacht é que ideais partilhados entre analis­
concepção do término da análise-da-formação. Este autor consi­ ta e analisando dificilmente serão reconhecidos como tais, im­
dera como critérios para o término da análise a habilidade e o pedindo portanto a sua análise*.
preparo para a auto-análise e a constituição de um "superego A conseqüência principal indicada por N acht é que os
psicanalítico"40 no candidato. Por constituição de "superego psi­ mecanismos de defesa contra o medo e a culpa engendrados pelo
canalítico" Bibring entende a passagem da condição infantil, onde componente de agressividade que acompanha os sentimentos hostis
há necessidade da presença de um analista para haver compro­ (competição, rivalidade, inveja) para com o analista, presentes
misso com os processos psicológicos de outrem, para uma condi- em toda análise, ficam impedidos de serem trabalhados do mes-

(*) Médico, cura a ti mesmo".


11
(*) Idéia retomada por Conrad Stein (1968) ao formular um "setor reservado da transferência" (ver cap. 6).

110 l 11
DANIEL KUPERMi\NN TRANSFERÉtNClAS CRUZADAS

mo modo na análise-da-formação. Esta passa assim a constituir Nielsen, em uma leitura bastante próxima de Nacht,
uma situação favorável ao "rígido reforço do superego"43• aponta também a tensão criada na análise-da-formação entre
Um segundo registro em que Nacht aponta a tensão en­ o analista enquanto autoridade real e enquanto objeto da trans­
tre imaginário e real nas análises-da-formação é o que mais ra­ ferência. Vejamos:
dicalmente impõe a questão dos limites da transferência nessas
Esse problema não-resolvido (o desejo de tomar-se ana­
análises. Acompanhemos Nacht:
lista) sempre encobrirá a relação transferencial na análi­
O contraste entre aquilo que é acima de tudo REvivido se-da-formação, que, independentemente disso, não pode
pelo paciente durante o tratamento e o que é realmente ser considerada muito pura. O c.malista é uma autorida­
vivido durante o curso de uma análise-da-formação apa­ de bastante real, que tem o destino profissional do paci­
rece claramente em outra conexão: o candidato em uma ente em suas mãos. O paciente terá uma tendência bas­
análise-da-formação geralmente não a abandona. Lar­ tante forte em acalmá-lo, subordinar-se e em identificar­
gar o analista é impossível na prática. O estado de depen­ se com o analista. Podemos analisar isto como transfe­
dência do paciente ao seu analista é, nesse caso, uma vez rência tanto quanto quisermos, mas será sempre muito
mais um fato REAL, já que a carreira do candidato depen­ dificil convencer o paciente de que é apenas transferên­
derá largamente da opinião do analista sobre ele. cia. Ele deve ter escutado falar de outros analisandos que
O estado de dependência não é portanto REVIVIDO, recons­ foram recusados, deve saber por que razão, após o que
tituído subjetivamente na forma de uma regressão infantil: não poderá certamente evitar a tentativa de moldar seu
ele é vivido na realidade, na situação real. O analisando é comportamento. A arte de conquistar amigos e influenci­
envolvido aqui em uma situação comparável à da cri­ ar pessoas é extensamente praticada hoje em dia, e eu
ança ligada a seus pais pelas suas necessidades vitais: não penso que todos os analistas sejam imunes a isso46•
sair de forma a proteger--se ou vingar-se é impossível44 •
Tanto em Nacht quanto em Nielsen, percebemos portan­
Assim, o ponto principal que diferencia a análise-da­ to um questionamento sobre os limites da transferência na aná­
formação da análise terapêutica no que concerne à relação lise-da-formação*. Se a dependência do candidato ao analista
entre analista e analisando é que na análise-da-formação o é um fato real, se o analista é uma autoridade com poder de
analista é parte integral do princípio de realidade, enquanto que decisão sobre o futuro profissional do candidato, e se o analista
na análise terapêutica, ele apenas o representa4 5 *. O risco é parte integral do princípio de realidade, tudo indica que será
maior que advém daí é a impossibilidade de vivenciar o pro­ mesmo difícil convencer o candidato "submisso" e "bem-com­
cesso fundamental de integração da agressividade, uma vez portado" de que tudo não passa de transferência. Ao contrário,
que esta dificilmente encontrará expressão no curso da aná­ a conseqüência que podemos extrair das exposições de Nacht e
lise-da-formação. Aqui a dependência para com o analista é
real, o que aponta problemas para a percepção da transfe­ (*) Vejamos a questão em Daniel Lagache: "Essa tentativa de encontrar os limites da transferência na
relação paciente-psicanalista só seria pQllleÍvel, portanto1 especificando as diferenças entre transferência e
rência e de seus limites. neurose de transferência: a) A tren11ferência, em sentido amplo, é a aplicação à situação analítica de
hábitos apreendidos anteriormente; esses hábitos podem estar ou não a1ustados à situação real e presente;
é praticamente difícil e teoricamente imp01Jsível demonstrar a experiência de uma relação interpessoal sui
(•) A formulnção da irnpossibilidadc criacla1 nas análises;da;formação, em largar o analista, e dos efeitos generis que não faça uso de nenhum hábito anterior. b) A neurose de transferência implica, na relação
dessa impossibilidade na produção de dependência e submissão no candidato, nos será útil na amílisc de analítica, as condutas que usam hábitos e atitudes inadequados para a sit:uação real e presente1 atunlizoção
um caso brasileiro - o caso Amílcar Lobo (ver cap. 7). ecmnêmica (sic) dos conflitos inconscientes do paciente" (1990,p. l 12).

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DANIEL KtIPERMANN TRAKSFERÊNCIAS CRUZADAS

Nielsen é que, nas análises-da-formação, além da "produção da que a tarefa do analista seria "facilitada". Se na análise terapêu­
transferência"* presente em toda análise, parece haver uma pro­ tica o analista deve ser extremamente cuidadoso na dosagem
dução de dependência e de submissão. da frustração necessária para o tratamento, a fim de preservar
A insuficiência da leitura desses autores, porém, reside no sua continuação, na análise-da-formação poderia aplicar as re­
fato de apontarem o narcisismo do analista como principal respon­ gras clássicas sem temer sua interrupção. Em contrapartida,
sável por essa produção de submissão. Nielsen47 observa que "o aponta o fato de o candidato saber que também o analista não
desejo de moldar um homem a sua própria imagem é tão ubíquo pode abandoná-lo, exceto por razões excepcionais, o que leva­
que nem mesmo Deus está isento dele", considerando-o uma ria ao desenvolvimento de resistências de natureza bastante sutil.
manifestação do narcisismo primário. Para este autor, após vinte O que escapa a Nacht é que esse duelo narcísico contra
ou trinta anos de Escola, Universidade e Educação Hospitalar, a a angústia de morte representa a própria morte da psicanálise.
maioria dos candidatos só poderia chegar ao Instituto Psicanalíti­ Se a prática psicanalítica se desenvolve a partir da surpresa de
co com uma "esperada atitude de submissão". Ao analista cabe­ uma escuta, onde o analisando tem efetivamente uma verda­
ria o cuidado de resistir à tentação de manipular a submissão, de singular a dizer e a construir, essa verdade não pode ser
combatendo a "atitude de servidor" do candidato. imposta "à força", amparada em garantias exteriores. O que
Nacht alerta para a tentação narcísica do analista em ocu­ faz de uma análise uma terapêutica é exatamente o cuidado
par um lugar de mestre e modelo para o candidato, reivindican­ na dosagem da frustração, que, em termos gerais, é o cuidado
do uma paternidade intelectual fantasmática, nos moldes da na escuta. Não se trata aqui de preservar um tratamento, mas
relação pai-filho, e desejando um futuro de "brilhante sucesso" de preservar o que é psicanalítico, ou seja, o respeito ao tempo
para seu candidato - sua filiação imaginária48 • e à verdade do sujeito, em um processo mútuo de acesso ao
Em termos psicanalíticos, sabe-se que estes desejos vêm inconsciente, sem garantias exteriores*. É isso o que faz da
atender a satisfações narcísicas que servem como defesa contra psicanálise uma experiência trágica, que pode levar inclusive
a angústia de morte. Assim, a maior proteção contra essas "ten­ ao abandono do tratamento. Onde o abandono não pode ocor­
tações" seria, por um lado, a análise do analista, e por outro, as rer, a técnica se cristaliza, e a psicanálise enquanto saber e
próprias reações dos analisandos - na forma de uma positiva prática se estagna num mútuo reforço do superego do analista
resistência à mestria ou mesmo do abandono do tratamento. e do analisando.
Esse problema se agrava com o fato, apontado por Nacht, Para solucionar essas dificuldades, Nacht49 apresenta duas
da impossibilidade prática, criada na análise-da-formação, de propostas referentes às regras que regiam o sistema de formação
o candidato abandonar o tratamento, uma vez que o rompi­ de sua época. Porém, suas propostas apontam os impasses e im­
mento explícito com o analista comprometeria decisivamente possibilidades do próprio sistema e da organização das institui­
seu futuro profissional. ções psicanalíticas, chegando a beirar o absurdo. Nacht propõe:
A conseqüência mais ampla disso é a própria estagnação 1) que o analista deixe de influir na carreira do candidato, ca­
da psicanálise enquanto saber e prática. Nacht não o percebe. bendo aos supervisores a decisão sobre sua habilitação. Assim,
Analisa a impossibilidade do abandono do tratamento pelo ân­ o candidato seria julgado pelo seu trabalho e não pela sua aná­
gulo de suas vantagens e desvantagens: por um lado, considera lise; e 2) a obrigatoriedade de uma análise complementar subse-
(*) Na poesia de Maud Mannoni 1 "o saber nasce de uma verdaàe desconcertante que surge onde não a
(*) Sobre o conceito de "produção da transferência", ver Lagache ( l 990,p.121-133). esperamos" (1989,p.9).

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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

qüente para o analista reconhecido como membro da Socieda­ A dedicatória de Jones não poderia ser mais significati­
de Psicanalítica. Esta análise evitaria as dificuldades da primei­ va: "A Anna Freud, verdadeira filha de um pai imortal"5º. A
ra, uma vez que não estaria sujeita a sanções por parte do ana­ obra é um tributo magnífico a Freud, pai imortal ao qual con­
lista, e a situação transferencial seria "normalizada". verge a transferência última (e primeira) de todos os psicana­
Uma vez que a estrutura das sociedades psicanalíticas é listas, seus filhos e herdeiros, senão verdadeiros como Anna,
preservada por Nacht - manutenção da hierarquia (analis­ imaginários e simbólicos.
tas didatas, supervisores, candidatos) e obrigatoriedade e de­ Assim, os psicanalistas da terceira geração olham para seus
finição pela Sociedade do tempo da análise-as contradições candidatos e herdeiros - essa geração dos ''normais", "equili­
aparecem. Assim, a proposta de uma segunda análise obriga­ brados" e "conformistas" -com ternura, angústia e algum hor­
tória vem apontar a inconsistência de sua primeira proposta, ror. Quem nos dirá das coisas que sentiria Freud, ao olhar seus
uma vez que, mesmo cabendo aos supervisores a decisão sobre psicanalistas da terceira geração?
a habilitação, a análise-da-formação obrigatória continuará a
apresentar problemas específicos, como a impossibilidade de Semper Reformari Debet
sua interrupção segundo o desejo do candidato. Além disso, Dentre os psicanalistas da época, foi Michae_l Balint quem
agora, ao invés de uma teríamos duas análises obrigatórias, deu um "passo além" nas questões colocadas quanto aos pro­
com o que pergunta-se: qual o propósito, afinal, da primeira blemas da formação psicanalítica*. Ao invés de se deter sobre
análise, a "análise-da-formação"? um ou outro aspecto relativo à formação (os critérios de sele­
Parece, portanto, que ao analisar os problemas da forma­ ção, o tempo e a duração da análise, aspectos "circunstanci­
ção psicanalítica, os autores restringem-se ao nível de sua expe, ais" da transferência na análise-da-formação), Balint desloca
riência fenomênica, apontando e detectando problemas. Porém, a questão para o interior da instituição e daquilo que é perti­
à maneira de um ponto cego, a estrutura institucional fica nente à "coisa" psicanalítica, nos moldes do deslocamento
intocada e os princípios da formação psicanalítica recalcados. freudiano relativo à questão da análise leiga. Assim, Balint
Tudo indica que a tendência no campo psicanalítico era a cria­ promove, a partir do recurso à história da psicanálise, o ques­
ção cada vez maior de novas regras e proceclimentos para neu­ tionamento do próprio sistema de formação como um todo. O
tralizar os efeitos nocivos dos regulamentos anteriores, numa ponto de partida de seu pensamento é a questão: com tantos
espécie de moto-contínuo. Esse é o destino da burocracia, e, cuidados sobre a análise-da-formação, "quais são os resulta­
em outro registro, da doença do "bom" obsessivo. dos"? E indica, de forma provocadora: "os resultados são nos­
Uma curiosa coincidência vem coroar este 18º Congresso sas sociedades analíticas"51•
Internacional de Psicanálise de 1953. No mesmo ano do Congres, A provocação (no sentido de "chamar adiante") do pensa­
so no qual se discutem pela primeira vez de forma sistemática os mento de Balint está no fato de apontar que, para pensar os
problemas da formação psicanalítica, o que demonstra uma preo­ problemas da formação psicanalídca, é preciso lançar um olhar
cupação dos psicanalistas dessa geração com o futuro e os destinos crítico sobre a maneira como esta se estruturou e, conseqüen­
da psicanálise encarnada nos candidatos -seus analisandos, alu­ temente, sobre a própria institucionalização da psicanálise. A
nos e herdeiros imaginários e simbólicos-é publicado por Ernest perspectiva de Balint é genealógica e, portanto, desnatura-
Jones o clássico A Vida e a Obra de Sigmund Freud, referência (*) Na verdade, as idéias de Balint (1948) foram veiculadas antes do 18º Congresso de Psicanálise de Londres,
biográfica básica da literatura psicanalítica até os nossos dias. mas, ao que tudo indicai seus contemporâneos não puderam compreendê--lo em toda a sua extensão.

1
i
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DANIEL KUPERI\IANN TRAKSFERÊNCIAS CRUZADAS

lizadora. Não há um destino natural para a psicanálise - inclu­ utilizada por Freud ao analisar os efeitos da idealização promo­
indo aí o sistema de formação - que viria a ser perturbado por vidos pela Weltanschauung religiosa. Assim, o pensamento inibi­
fatores externos. A psicanálise é produto e produtora de si pró­ do apontado por Balint é o primeiro sintoma do campo psicana­
pria, de sua prática e de seus destinos. E, para Balint, os resulta­ lítico que vem aproximá-lo da religião.
dos (as sociedades analíticas) vão mal. A atitude dogmática dos analistas no que se refere ao es­
No contexto de sua época, Balint fala de um "outro tabelecimento e manutenção das regras da formação, o segun­
lugar" (se referirmos seu pensamento aos limites impostos a do sintoma apontado, não é encontrada com tamanha intensi­
Gitelson ou Hartmann, por exemplo). Discípulo e herdeiro dade em nenhuma outra esfera da psicanálise. Balint indica dois
simbólico de Ferenczi* - o enfant terrible da psicanálise - exemplos onde o dogmatismo é evidente: o regulamento sobre
parece reforçar a hipótese de que é preciso estar em um lu­ a duração da análise-da-formação e a questão da análise-de­
gar "à margem" para se ter acesso a determinadas questões**. controle, já desenvolvidos no capítulo 3.
É desse lugar "excêntrico" que Balint vai pensar a psicanáli­ O terceiro sintoma da formação psicanalítica postulado
se "normal", apontando os sintomas que o campo psicanalí­ por Balint - a tendência geral dos candidatos a serem exces­
tico não podia perceber: o pensamento inibido, o dogmatismo sivamente respeitosos aos seus analistas didatas - se, por um
e a tendência geral dos candidatos a serem excessivamente lado, apresenta problemas maiores quanto ao seu reconheci­
respeitosos aos seus analistas. mento como sintoma, uma vez que o próprio autor afirma es­
A inibição do pensamento é deduzida pela constatação tar baseado em seu julgamento subjetivo, não deixa de apon­
de que praticamente não havia, na literatura psicanalítica, publi­ tar evidências em seu favor (não bastasse o fato de que persis­
cações referentes à questão da formação. O levantamento feito te até os dias de hoje). A maior evidência surge quando se
por Balint até 1948 indica um artigo de Hans Sachs52 , umas relaciona esse candidato "obediente", apontado por Balint, com
poucas páginas de Freud em Análise Termindvel e Intermindvel o candidato "normal", discutido amplamente na literatura psi­
(1937), e sete relatórios de Eitingon (entre 1925 e 1938) encami­ canalítica da época. O candidato "obediente" aparece como
nhados ao Comitê Internacional de Formação. Alguns traba­ um deslocamento efetuado na questão do candidato "normal"
lhos haviam sido apresentados em congressos internacionais - tratada como exterior ao campo analítico - para o interi­
nesse período, mas não chegaram a ser publicados, nem na for­ or do campo e de suas produções. Assim, se recordarmos a
ma de sumários. Se considerarmos que desde 1924, em Berlim, análise de Gitelson da ecologia do candidato "normal", este
a experiência da formação psicanalítica sistematizada vinha ten­ aparece como efeito das características culturais da época -
do curso, é preciso concordar com Balint de que havia uma uma cultura narcísica - junto aos efeitos de uma "atmosfera
forte inibição do pensamento quanto à questão. psicanalítica" nesta cultura. Nesse sentido, o candidato "nor­
Os termos "inibição/pensamento inibido", empregados por mal" é considerado um produto externo que assim chega à
Balint, remetem-nos à "proibição do pensamento", expressão formação psicanalítica, criando seus impasses; a formação psi­
canalítica não estaria, portanto, implicada em sua produção.
(*) Nessa época, Balint guardava em seu poder o Dídrio Clínico de Ferenczi, que não era publicado cm Em Balint, a questão do candidato "normal" não é abordada,
função da situação marginal e desfavorável de Ferenczi junto ao pensamcntci psicanalítico dominante
(Balint, 1969). Quanto à herança simbólica, Balint recebeu de Ferenczi o anel que este havia por sua vez estando sua atenção dirigida para o candidato "obediente",
recebido de Freud como membro do Comitê Secreto (Grosskurth,1991). Assim, Balint não sô conhecia
como se identificava com o lugar de Ferenczi no movimento psicanalítico.
considerado um sintoma, ou seja, uma produção do próprio
{**) Ver o trabalho de Mezan sobre Freud, "três vezes apátrida" (Mezan,1990,p. 5 4-62 ). sistema de formação psicanalítica.
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rrRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

DANIEL KUPERMANN
psicanálise. Além disso, alguns autores apontavam que o próprio
Penso que nenhum analista terá muita dificuldade em di­ processo de seleção para a formação favorecia obviamente o can­
agnosticar a condição causadora desses sintomas. Toda a didato "normal", ou seja, outro tipo de candidato ("excêntrico",
atmosfera recorda fortemente as cerimônias primitivas de "excessivamente criativo", "exótico", "rebelde"?), considerando
iniciaçã.o. Do lado dos inicíadores - o comitê de formação que os jovens "não-normais" estivessem interessados na psicaná­
e os analistas didatas - constatamos segredo sobre nosso lise*, teria sua candidatura provavelmente rejeitada. Com Balint
saber esotérico, enunciação dogmática de nossas exi­ (que, na verdade, só analisa o processo a partir daí), mesmo se
gências e uso de técnicas autoritárias. Do lado dos candi­ esse candidato "não-normal" ingressasse na formação, sofreria
datos, isto é, aqueles que se devem iniciar, constatamos a uma intropressão do superego, tornando-se, enfim, "normal" -
aceitação imediata das fá-bulas exotéricas, SUBMISSÃO ao "obe d'1ente", "respeitoso
· ", "coniorma
e do". I sto, e, claro, se não
tratamento dogmático e autoritário sem muito protesto e abandonasse de vez a psicanálise, ou, numa hipótese mais oti­
CON!PORTAMENTO EXCESSNAMENTE RESPEITOSO. mista, o instituto de formação, tornando-se "independente", o
Sabemos que o objetivo geral de todos os rituais de inici­ que era bem mais difícil naquela época, em razão da hegemonia
ação é forçar o candidato a identificar-se com seu inici­ da IPA. Triste ironia para os herdeiros da peste.
ador, a introjetar o iniciador e seus ideais, e a construir Em Analytic Training and Training Analysis, Balint56 reto­
a partir dessas identificações um PODEROSO SUPEREGO ma a questão das análises-da-formação, centrando o problema
que irá influenciá-lo por toda a sua vida53 . nos destinos do componente agressivo da transferência nessas
análises. Para ilustrar como a questão da agressividade passou a
Vimos anteriormente que Balint recorre à história da psi­ ocupar o centro dos problemas na formação, o autor recorre,
canálise - estabelecendo uma diferença entre história exotérica mais uma vez, à história.
(das conquistas e glórias do sistema) e história esotérica (dos con­ Nos anos 20, percebendo as carências de sua formação (que
flitos e das crises) - para demonstrar como e porque essa "in­ até então não era sistematizada), vários analistas decidiram por
consciente e incontrolável intropressão do superego"54 tornou-se uma nova análise. Uma vez que as "complicadas transferências cru­
parte integral do sistema de formação. Convém ressaltar, no en­ zadas"57 em seus grupos de origem dificultavam a escolha de um
tanto, que se trata de algo específico das análises-da-formação, analista, iniciou-se um movimento migratório de analistas já es­
sendo que, nas análises terapêuticas, os analisandos não estão tabelecidos em busca de análise. O efeito desse movimento no
submetidos de forma sistemática à "intropressão do superego" pensamento e na formação psicanalíticos foi a produção de gran­
assim como os candidatos, que dificilmente dela escapam. de angústia- tanto pela expectativa criada com a migração quan­
Assim, na época em que se corµeçava a pensar no campo to pela perspectiva de futuro retorno ao lugar de origem - e de
psicanalítico a questão do candidato "normal", Balint aponta­ um clima geral de ressentimento, uma vez que apareceram críti­
va, na verdade, a produção de normalidade - na forma de con­ cas agudas em relação à técnica do primeiro analista, conjugadas
formismo, submissão, respeito excessivo e obediência - por ao envolvimento transferencial do atual analista nessa atmos-
parte do próprio sistema de formação psicanalítica. Vejamos:
Segundo Gitelson55, a "normalidade" era um sintoma cul­ (*) Em 1968, Anna Freud (1968) comentava que os jovens viam a psicanálise como representante do
poder parental. Pontalis (1979), dez anos depois, apontava a pergunta formulada em todos os institutos de
tural para o qual a psicanálise contribuía, em certos meios, pela formação: por que os espíritos curiosos, por que os jovens pesquisadores que querem aprender o novo
11

criação de uma atmosfera psicanalítica, favorecendo o surgimento (como dizia Freud de si mesmo) não vêm até nós?" (op.cit.,p.6).

de candidatos "normais" que já chegavam assim aos institutos de


12 l
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DANIEL KUPERMANN TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS

fera de hostilidade. O resultado foi o desenvolvimento de téc­ iniciante seria severamente repreendido se comunicasse ao seu
nicas que pudessem prevenir o exacerbamento desses senti­ supervisor que não encontrou nenhum sinal de uma transferência
mentos hostis e hipercríticos na análise, protegendo tanto o negativa" 61• O fato de esta ser uma das raras instâncias em que
analisando quanto o analista de um "sofrimento humano des­ Freud se posicionou em um sentido e a psicanálise desenvol­
necessário"58. Quando do declínio desse movimento, por vol­ veu-se exatamente no sentido oposto aponta a complexidade
ta de 1935, o aprofundamento do estudo dos aspectos sádico­ do manejo da transferência negativa na formação. Curiosamen­
agressivos da transferência já tinha se tornado capital. te, dentre os psicanalistas da primeira geração, Ferenczi foi o
Os riscos do manejo da transferência negativa nas análi­ único que pôde denunciar os efeitos não-analíticos produzidos,
ses-da-formação nos são indicados a partir da discussão tácita desde os seus primórdios, pela formação*.
estabelecida por Freud com Ferenczi em Análise Terminável e Nos casos em que é impossibilitado de elaborar a trans­
Interminável (1937). Freud se refere, nesse texto, ao caso de um ferência negativa, o candidato é obrigado a introjetar a ima­
analista (trata-se de Ferenczi) que, um longo período após o gem idealizada do analista "engolindo-a por inteiro", sem po­
término satisfatório de sua análise pessoal, tornou-se antago­ der "comê-lo aos pedacinhos" - aceitando algumas e rejei­
nista daquele que o analisara (Freud), censurando-o por não tando outras de suas qualidades, técnicas ou métodos - uma
"ter concedido atenção à possibilidade de uma transferência vez que todo ataque destrutivo é interpretado e impedido. A
negativa"59• A autodefesa de Freud baseou-se em três pontos: formação psicanalítica produz assim, na metáfora de Balint,
1) na época da análise, não havia sinal de transferência negati­ um certo tipo de "indigestão"62• Uma vez que a imagem
va, e mesmo se houvesse apenas débeis sinais dela, achava du­ ambivalentemente amada e idealizada do analista deve ser
vidoso poder interferir em um complexo que não estivesse"pre­ preservada a todo custo como um bom e total objeto interno, o
sentemente ativo" na ocasião - ou seja, interpretando-o cedo ódio e a agressividade só podem encontrar expressão quando
demais; 2) por outro lado, ativá-lo teria exigido um comporta­ dirigidos ao exterior. O resultado desse processo no campo
mento inamistoso por parte do analista, o que não considerava analítico é a "intolerância", o "sectarismo" e a "fúria apostóli­
indicado; e 3) nem toda relação entre analista e analisando ca", já que qualquer crítica (justificada ou não) envolvendo o
durante e após a análise devia ser considerada transferência. analista (ou sua linha teórica, método clínico, filiação
Acompanhando Freud, Balint sublinha que interpretar a institucional etc.) não pode ser suportada e elaborada63 •
transferência negativa cedo demais é impedir que ela se mani­ Lidar com o ódio e a agressividade sempre foi um dos gran­
feste de fato, o que faz com que o analisando passe a poupar e des problemas (talvez insolúvel) da humanidade. O perigo apon­
proteger o analista contra a sua real intensidade. "O ódio real e tado é que alguns analistas "orgulhosos" de suas inovações técni­
a hostilidade são apenas falados", diz, "nunca sentidos, sendo cas possam pensar ter alcançado a solução. Para estes, Balint re­
finalmente reprimidos pelo tabu da idealização"60• Além disso, corda uma advertência da Igreja Unitária da Hungria, que serve
a interpretação de sinais vagos da transferência negativa pode como ilustração das contribuições de Balint ao questionamento
parecer, para certos analisandos, um"comportamento inamistoso do sistema de formação psicanalítica: semper reforrnari debet** 64•
real". Por outro lado, numa crítica direta a Freud, Balint aponta
que interpretá-la tarde demais ou não interpretá-la implica o
(*) O que, ao menos em parte, depõe a favor de Freud e de sua análise (ver Ferenczi,!924;1927;1928;1933).
risco de provocar a atuação da agressividade fora do espaço (**) "Reformar incessantemente11 Percebe�se assim que a Igreja pode, às vezes, antecipar�se às institui�

analítico. Em relação a Freud, ele diz: "(...) hoje em dia, até um ções psicanalíticas. Se Balint não chegou a sugerir de fato reformas institucionais, as questões por de
levantadas serviram como suporte para o que viria a seguir, como veremos no próximo capítulo.

122 123
DAKIEL KlJPERMAKK TRANSFERJ'J:NC!AS CRUZADAS

Os sintomas produzidos no campo psicanalítico foram acen­ vam reconhecimento junto à IPA, sendo porém pressionados à
tuados após a morte de Freud. Segundo Balint, o sistema de for­ tutela da Sociedade Psicanalítica de São Paulo. Melanie Klein toma
mação "superegóica" só pôde funcionar a toda potência enquan­ a palavra para pedir que seja reconhecida, de antemão, a legitimi,
to Freud esteve ativo na liderança do movimento, e enquanto dade de uma futura cisão entre esse grupo e a Sociedade Psicana,
sua influência era suficientemente forte para decidir, quando ne­ lítica de São Paulo, o que provoca fortes reações. A teórica da
cessário e em termos definitivos, "quem" e o "que" estava certo65 • agressividade e do splitting promove assim, a partir de um caso
Com seu distanciamento gradual e com sua morte, a psicanálise brasileiro, a polêmica sobre as cisões no "seio" da IPA66 •
entrava em um período caracterizado pela ausência de controle A discussão é acirrada, e uma intervenção de Robert
central e competição entre os vários grupos locais e nacionais, Waelder merece destaque:
com a ameaça constante de cisões na IPA. Portanto, proporcio­ Quanto mais elasticidade a Internacional ou qualquer
nalmente ao enfraquecimento real do sistema, incrementavam­ outra organização garantir aos seus membros, mais
se a briga entre escolas, a supervalorização narcísica de pequenas ela viverá. Quanto mais insistir em forçar a unidade,
diferenças, o proselitismo e a atitude superdominadora da antiga mais cedo romperá67.
geração, reivindicando o legítimo legado de Freud. Em 1936, a
Associação Psicanalítica Americana passava a legislar, indepen­ Esta frase, que ganharia no futuro próximo o estatuto de
dentemente da IPA, a formação em seu território. Começavam a profecia, vem apontar a situação da IPA no início da década de
ser criadas, assim, as condições institucionais que culminaram no 50. Paralelamente ao gigantismo e crescente burocratização, vivia­
rompimento e posteriormente no corte transferencial de Lacan. se uma atmosfera proporcional de angústia de morte alimentada
pelo indício de cisões iminentes. A orientação da direção, no en,
tanto, era a de "forçar a unidade" e, estrategicamente, Hartmann
LACAN, ANALISTA DIDATA sugere uma moção para ser votada: a de que nenhuma dissensão
em sociedades reconhecidas deveria ser efetivada antes de uma
A reunião administrativa* que sucedeu o congresso de Lon­ consulta ao Executivo Central, para que este pudesse investigar
dres foi palco de uma curiosa discussão. Hartmann informou du­ suas razões. Gregory Zilboorg pergunta como esta moção afeta­
rante as comunicações sobre as várias sociedades a demissão, algu­ rá a situação de Paris. Hartmann retruca: "Não, isso é para o
mas semanas antes, de cinco membros da Sociedade Psicanalítica futuro. Temos uma moção em pauta. Todos aqueles favoráveis a
de Paris, o que mereceria discussão posterior. O assunto seguinte ela levantem as mãos, por favor" 68• A moção é aprovada por
em pauta passa a ser então a "tempestuosa" história do Instituto unanimidade. Nesse contexto, a situação francesa é discutida.
Brasileiro de Psicanálise, cuja rivalidade entre os diretores - Mark Um mês antes, em 16 de junho de 1953, Daniel Lagache,
Burke e Werner Kemper* * - havia levado a uma cisão em 1951. Françoise Dolto, Jacques Lacan, Favez-Boutonier e Reverchon­
Além disso, alguns analistas brasileiros que haviam terminado sua Jouve haviam se demitido da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP),
formação na Argentina regressavam ao Rio de Janeiro, e busca- formando um novo grupo. Ao retomar o caso parisiense, Hartmann
comunica que, por este ato, os cinco analistas perderam auto,
(*) Business meeting. Após cada congresso da IPA sucede�se uma reunião administrativa, da qual partici�
pam apenas os membros efetivos com direito a voto, onde são trnçados os destinos da Associação até o
maticamente sua pertença à IPA, uma vez que esta é obtida e
próximo congresso, incluindo a eleição da nova direção e o julgamento dos pedidos de reconhecimento de mantida através da sociedade filiada. Informa também que as de­
novas sociedades componentes.
(**) Ambos trazidos ao Brasil a partir dos esforços pioneiros de Domícío Arrnda Câmara. missões ocorreram após uma reunião na qual Lacan, então presi-

124 125
'TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS
DANIEL KUPERMANN

dente da SPP, recebeu um voto de desconfiança baseado na acusa­ gundo a noção do "tempo lógico"73, na qual não apenas a dura­
ção de "sérios desvios das práticas de formação"69• Os demissionários, ção das sessões variava, mas também sua freqüência. Vimos como
por sua vez, alegavam "incompatibilidades de caráter" como moti­ a padronização da formação surgiu de modo a preservar o lugar
vo da cisão, e pediam o reconhecimento da IPA para a nova socie­ proibido de mestre ocupado por Freud. Desde então, as dispu­
dade formada. Considerando que o Executivo precisaria de maio­ tas se dão em torno do papel de algum novo mestre pensante
res esclarecimentos antes de tomar qualquer decisão, Hartmann que. ven�a se opor à normalização que regula a paz da Interna­
propõe a criação de uma comissão para investigar a situação. Marie cional. E claro que, além das implicações teórico-técnicas, a
Bonaparte ressalta que a cisão foi motivada por divergências quan­ regulamentação da formação vinha atender a razões de merca­
to à técnica, e que será preciso um exame cuidadoso da técnica do. Assim, se por um lado ela favorece uma expansão controla­
utilizada pelos membros do novo grupo, "particularmente ten­ da da profissão, funcionando como um "verdadeiro controle de
do em vista o fato de que um desses membros prometeu, há dois natalidade"74, a igualdade entre os herdeiros de Freud - os
anos, mudar sua técnica, mas não manteve a promessa"7º. Tra­ didatas - implica também uma divisão equitativa dos candi­
ta-se de uma sutil referência a Lacan. Um dos participantes in­ datos em formação por seus divãs. Todo aquele que ameaçar
siste, perguntando pelo status dos colegas franceses durante as esse esquema, subvertendo a teoria e a técnica da formação e
investigações, e Anna encerra o assunto: "O status é o ameaçando a hierarquia estabelecida, será acusado de chefe
que eles criaram si mesmos com a demissão"71• carismático e considerado nefasto à instituição psicanalítica.
criação comissão de investigações foi aprovada por Com a técnica das sessões de "duração variável", além de
maioria, com dois votos contra. A partir de então, inicia-se um desrespeitar as normas institucionais que regiam as análises di­
processo de negociações que irá durar dez anos, tendo como dáticas, Lacan ameaçava em termos práticos a distribuição dos
pivô um personagem polêmico, amado e odiado, que vai inau­ candidatos em análise, uma vez que, subvertendo o tempo cro­
gurar uma nova era na história da psicanálise: Jacques Lacan. nológico, as relações "espaciais" também eram afetadas, e seu
Essa breve incursão pelos bastidores da Associação Psica­ divã passava a comportar mais analisandos, de forma que os
nalítica pretende ilustrar como, desde o início, não havia "von­ limites eram determinados apenas por si próprio. Isso fez com
tade política" para facilitar o reconhecimento do grupo francês que a questão do tempo lógico fosse considerada, em algumas
dissidente. Na heterogeneidade característica da IPA dos anos ocasiões, uma "questão de taxímetro"75• Na verdade, em março
50, tudo era permitido, sob a condição de que fossem respeita­ de 1953, um terço dos candidatos de toda a SPP analisava-se
dos e mantidos os princípios técnicos da formação, único lugar com Lacan. Este dado é cuidadosamente considerado pela dire-.
onde o poder centralizador podia ser de fato exercido, garantin­ ção da IPA no encaminhamento da questão francesa. Assim,
do a unidade do "império"72• Podia-se teorizar livremente, Lacan resolvia ser diferente quanto à técnica, única coisa proi­
contanto que os princípios da formação fossem poupados, ou bida na Associação Psicanalítica Internacional, tornando-se
seja, todos deviam ser iguais perante a técnica. Mas como inovar persona non grata quando começaram a vir à luz efeitos de trans­
na teoria sem que essa inovação afete as concepções da forma­ ferênc�a inéditos decorrentes de seu ensino e sua prática.
ção? O conflito manifestava-se, portanto, com respeito à técni­ E certo que a tradição tinha suas razões. O enquadre técni­
ca, referindo-se, de fato, à teoria que autorizava esta técnica. co e transferencial estabelecido pela IPA pretendia limitar a oni-
Lacan, desde o final da década de 40, utilizava com seus imaginária dos analistas em geral, e dos didatas em par-
.
analisandos uma técnica de sessões de '!duração variável", se- ticular, promovendo um melhor manejo da transferência. Porém,

126 127
DANIEL KUPERMANK
'I'RANSFERl,:NCIAS CRUZADAS

já foi suficientemente demonstrado que esse objetivo estava lon­ introjeção do "bom objeto" na transferência, é no lugar do Ou­
ge de ser alcançado, e, ao contrário, que os efeitos obtidos eram tro terceiro que o analista vai desempenhar suas funções. A
outros. Mais além da questão do enquadre, no entanto, havia a questão que vai se colocar, porém, é se a formulação de uma
questão teórica sobre a própria concepção do tratamento, na distinção entre Outro simbólico e outro imaginário é suficiente
qual os debates giravam em torno do primado do ego, tendên­ para evitar os efeitos especulares do real da prática clínica.
cia então predominante na psicanálise de língua inglesa. No que se refere às instituições psicanalíticas, Lacan cami­
Nesse contexto, quando as discussões sobre os problemas nha na esteira das idéias de Balint*, denunciando os sintomas
da formação beiravam um impasse que apontava para a esterili­ produzidos pela formação. Se é verdade, porém, que Balint já
dade, a força e a inovação da crítica de Lacan foi articular uma apontava a identificação imaginária ao analista didata como o
relação intrínseca entre a concepção teórica vigente e a estrutura maior entrave produzido na formação, o salto dado por Lacan foi
institucional decorrente e seus efeitos76• Em Situação da Psicanálise e ter ampliado a questão - apoiado na Psicologia de Grupo de Freud
Formação do Psicanalista em 1956, em meio às comemorações do - indicando, de forma decisiva, a articulação entre as institui­
centenário do nascimento de Freud, Lacan dispara: "Pois a au­ ções psicanalíticas, seus efeitos identificatórios, e a própria teoria
sência teórica que apontamos na doutrina nos põe em discordância do processo psicanalítico (e da didática) aí vigente: a psicologia
com o ensino, que reciprocamente a isso responde"77• A doutrina do ego. Levando o argumento de Lacan às últimas conseqüên­
em questão é a psicologia do ego norte-americana e, quando se cias, chega-se à formulação de que a teoria (psicologia do ego) é
refere ao ensino, Lacan trata da formação como um todo. produzida de forma a espelhar uma estrutura institucional e uma
Seu alvo é a concepção da cura psicanalítica enquanto prática (a didática), produzindo, por sua vez, a perpetuação desta
reforço do ego do analisando pela identificação com o ego "au­ estrutura e desta prática a partir dos efeitos por ela (teoria) enun­
tônomo" do analista, assim considerado o modelo de relação ciados - a identificação ao analista. Lacan diz:
com o real, modelo transmitido, por sua vez, pelo ego de seu
analista, e assim sucessivamente. A análise é conduzida a uma Para se transmitir (a posição de didata), na falta de dispor
relação dual que não tem outra saída senão "a dialética do da lei do sangue que implica a geração, ou mesmo a da
desconhecimento, de denegação e de alienação narcísica" 78, o adoção que supõe a aliança, resta-lhe a via da reprodução
que é próprio do ego, tratando-se de um total contra-senso imaginária que, por um modo de fac-símile análogo à im­
aos esforços de Freud em referir o ego ao narcisismo como pressão, permite, se se pode dizer, a tiragem em um certo
produto das identificações imaginárias do sujeito. Portanto, o número de exemplares, em que o único se pluraliza.
ego é tomado como constituinte e modelo do real, quando o Esse modo de multiplicação não vai sem encontrar na
registro aí predominante é o imaginário. situação afinidades favoráveis. Pois não esqueçamos que
Mesmo sem nos determos na tópica formulada por Lacan, a entrada na comunidade é submetida à condição da
convém indicar que, no que se refere à transferência e ao lugar psicanálise didática, e HÁ BEM ALGUMA RAZÃO PARA QUE
do analista, Lacan propõe desde essa época um "retorno ao sim­ SEJA NO CÍRCULO DOS DIDÁTICOS QUE A TEORIA QUE FAZ
bólico" a partir da noção de Outro, que irá, posteriormente, DA IDENTIFICAÇÃO COM O EGO DO ANALISTA O FIM DA
originar o conceito de sujeito suposto saber. Assim, ao invés de ANÁLISE TENHA SIDO DADA À LUZ79•
o analista se engajar numa relação dual na qual é guiado em
seus atos pela contratransferência, cabendo ao analisando a (*) O artigo capital ele Balint (l 948), criticando os institutos psicanalíticos e os sintomas aí produzidos,
não só foi lido como também divulgado por Lacan na SPP (Roudinesco,1988,p.271).

128
-rRAKSFERÊNCIAS CRCZADAS

tituto de Psicanálise, em 17 de junho de 1952; e O voto de


Lacan se coloca, assim, na trilha aberta por Ferenczi e desconfiança contra Lacan, que culminou na demissão em
depois Balint, como um verdadeiro analista institucional da grupo, em 16 de junho de 195383 •
psicanálise, denunciando a cumplicidade de uma derivação m 1 52, foi criado o Instituto de Psicanálise da SPP, que
esterilizante da teoria psicanalítica com os processos de natu­ . � ?
admm1strana a formação e o ensino, sendo autônomo em rela­
ralização e ausência crítica predominantes, não apenas no in­ ção à Sociedade. Em 17 de junho, Nacht coordena uma elei­
terior dos institutos psicanalíticos, mas da cultura em geral ,

ção, por cinco anos , da diretoria do novo Instituto. Elege-se
fazendo da teoria e da prática psicanalítica um modo de exer­ pre�idente, distribui novos estatutos e elabora um programa de
cício e de transmissão dos poderes. ensmo que provoca a reação das outras tendências. Este pro­
Assim, o "silêncio dos candidatos", a "desintelectua­ grama, além de reservar um lugar de destaque para o próprio
lização" e a "ignorância", sintomas incluídos entre os "fenôme­ Na�ht, em detrimento de Lagache e Lacan, propunha a legali­
nos de esterilização" produzidos pela formação, são relaciona­ .
zaçao de um diploma de psicanálise reservado aos médicos. Em
dos aos efeitos de identificação imaginária revelados por Freud ja?-eiro de 1953, Lacan é eleito presidente da SPP, o que reforça
em seus estudos sobre a psicologia dos grupos: um tipo de comu­ o impasse entre o Instituto, liderado por Nacht, e a ala "liberal"
nhão que exclui a comunicação articulada e a liberdade do pen­ representativa da Sociedade. Em fevereiro, a comissão de ensi­
samento, na qual a relação entre os indivíduos é constituída so­ no do Instituto recusa candidatos à formação analisados por
bre uma tensão hostil representada pelo narcisismo das pequenas Lacan, condenando sua técnica. No auge dos conflitos, o Insti­
diferenças, que Lacan vai chamar de "terror conformista"81• tuto inaugura suas atividades.
No início dos anos 50, três tendências coexistiam no in­ Os alunos logo iniciam um movimento de contestação
terior da SPP: uma "ortodoxia clássica", representada por Sacha contra as normas autoritárias do Instituto, refletindo a dis­
Nacht, favorável à vinculação da psicanálise aos ideais da me­ cór�ia entre os dirigentes. Lacan é acusado pela direção do
dicina, o que a aproximava teoricamente da corrente predomi­ Instituto de semear a revolta entre os alunos fazendo uso de
nante na época, a psicologia do ego, e institucionalmente da seu poder transferencial. Em 2 de junho realiza-se uma reu­
política vigente na IPA; uma "corrente liberal", representada nião administrativa onde é pleiteado um voto de confiança
por Daniel Lagache, que buscava a integração teórica da psica­ quanto ao mandato de Lacan. A ala "liberal" representada
nálise à psicologia pela via universitária e, em termos insti­ por Lagache aponta que o mal-estar institucional não tem
tucionais, uma adaptação dos padrões da IPA ao contexto fran­ relação direta com Lacan e suas sessões curtas mas com a
cês; e a "nova ortodoxia" preconizada por Lacan, que partia rigidez da direção do Instituto. Não obtém suce;so e a vota-
rumo a um "retorno a Freud", revalorizando, em termos teóri­ ção é marcada para 16 de junho.
cos, o primado do inconsciente, e buscando, em termos Considerando a ruptura inevitável, Lagache redige, às
institucionais, repensar a técnica e a formação no sentido de ,
vesperas da votação, os estatutos de uma nova sociedade 1 a
uma reaproximação dos princípios da psicanálise82• So�iedade Francesa de Psicanálise (SFP). Finalmente, em 16
As divergências teóricas entre essas tendências, parale­ de Junho d� 1953, Lacan perde a presidência da SPP por voto
lamente às disputas de poder no interior da SPP, tendo como de desconfiança da maioria. Lagache, vice-presidente, deve­
pano de fundo o problema dos "desvios técnicos" de Lacan, ria assumir em seu lugar, mas num gesto teatral lê uma carta
conduziram à cisão de 1953. Esta foi marcada por dois mo­ de demissão assinada por ele, Dolto e Favez-Boutonier. Lacan
mentos cruciais: a eleição da diretoria do recém-fundado Ins-
UI
130
DAKIEL KUPERMANN TRANSFERí1:NCIAS CRUZADAS

os acompanha. Tem início assim a conturbada história da So­ 1957, que tem lugar justamente em Paris, nenhuma referência
ciedade Francesa de Psicanálise em sua busca de reconheci­ é feita à SFP. No discurso de abertura, Hartmann diz: "Hoje
mento internacional. todos observamos com a maior satisfação o renascimento cheio
A comissão de inquérito criada no congresso de 1953 foi de promessas da psicanálise na França"86• Se as intenções estão
composta por quatro analistas: Winnicott, Greenacre, Hoffer e mais do que claras, a direção da IPA demonstra também um
Lampl-De Groot. Seu trabalho consistiu na avaliação, através alto grau de alienação quanto à situação da psicanálise francesa
de entrevistas com os membros analistas e candidatos, da estru­ e os traçados de seu destino.
tura da nova sociedade e dos motivos da cisão. A conclusão das Uma outra carta de Hartmann, desta vez a Favez-
investigações, anunciada no congresso de Genebra, em 1955, Boutonier, é ilustrativa:
foi de que o "grupo de Lagache" não deveria ser reconhecido (...) também a senhora volta a me falar em Lacan.
como sociedade componente da IPA, pelo desajustamento da Chego quase a temer que estejamos assistindo à cria­
formação e da capacidade de ensino ali encontrada. Ao mesmo ção de um mito. E espero que admita, a despeito da
tempo, Hartmann anunciava que as dificuldades conseqüentes admiração que tem por ele (bem sei que é um homem
da cisão na SPP haviam sido "elegantemente superadas", e que brilhante), que isso é mais do que ele merece (...) Será
o Instituto de Psicanálise estava consolidado84 . justo explicar que lhe queremos mal pelo fato de ter ele
A questão do reconhecimento da SFP ganhava contornos muita personalidade ? 87
definidos, apontando cada vez mais para o incômodo do ensino e
da prática de Lacan. Respondendo a uma indagação de Lagache A ironia vem apontar que é bem disso que se tratava -
sobre outras queixas que a IPA teria contra a SFP além das ses­ o temor de que, com seu ensino e seu "carisma", Lacan se
sões curtas de Lacan, Hartmann escreve, em março de 1955: tornasse um novo mito. Por seu turno, talvez prevendo o des­
• fecho da novela, Lacan não facilita as coisas, e o que escreve88
Que Lacan tem algo a ver com isso, como diz o senhor, decerto não melhora a sua situação perante a IPA.
é verdade. Mas Lacan não é um membro qualqu�r de Em 1959 é criada, durante o congresso de Copenhague,
sua sociedade. Ele está (...) em primeiro plano (... ). uma nova comissão para avaliar mais um pedido de reconheci­
Sei, por um número considerável de fontes, que seus mento da SFP. Paula Heimann, Use Hellman e Van der Leeuw
ensinamentos têm um peso enorme sobre os estudantes. compuseram a comissão que, dirigida por Pierre Turquet, ficou
Em que se transformarão os analistas formados por ele? 85 conhecida como "comissão Turquet". Esta comissão, a exemplo
Essa é a questão. Explodindo os regulamentos técnicos da anterior, "escuta" depoimentos dos membros e dos candida­
padronizados nas análises que conduzia, Lacan criava uma situ­ tos em formação na SFP. É inspirado na idéia dessa "escuta"
ação que escapava ao controle transferencial exercido por qua­ que, segundo Roudinesco89 , Lacan criará o mecanismo dopas­
se trinta anos, e o receio da IPA pode ser ilustrado como uma se, no qual o·analista testemunha, no "só depois" de sua análise,
"síndrome de Golem" - "que Golem psicanalítico será cria­ o que o fez passar da posição de analisando a analista, constitu­
do"?* As negociações são interrrompidas, e as posições se indo sua análise efetivamente como didática90•
radicalizam. No 20º Congresso Internacional de Psicanálise de O efeito decisivo da "escuta" da comissão Turquet foi a
revelação de que a maioria da SFP desaprovava a prática de
(*) Sobre o mito do Golem, criatura feita de barro presente em lendas judaicas, ver Wiesel,E. O Galem.
Rio de Janeiro, Imago, 1 986.
• Lacan, querendo, no entanto, preservar seu ensino, e que a

132 133
DANIEL KUPERMANN 'I'RANSFERÊNCIAS CRCZADAS

maior parte de seus analisandos considerava-se vítima de uma "Diretriz", excluindo Lacan de sua lista de didatas. A cisão que
técnica que não aceitava91 • fez um corte na história da psicanálise estava consumada.
A partir do relatório da comissão, o Executivo Central da Em maio de 1964 a SFP dá lugar a umFrench Study Group,
IPA apresentou, no congresso de Edimburgo, em 1961, a con­ composto pelos partidários da IPA, que logo assumiria o nome
clusão das negociações: a SFP deveria retirar seu pedido de re­ de Associação Psicanalítica da França (APF). Em 1965, no con­
conhecimento como sociedade em troca do status de Grupo de gresso de Amsterdã, a APF seria finalmente reconhecida como
Estudos. Uma comissão especial foi designada para supervisio­ sociedade componente da IPA, sob uma torrente de aplausos94•
nar suas atividades, particularmente no que se refere à forma­ Na "outra cena", em 21 de junho de 1964, Lacan lê pe­
ção. Além disso, uma lista de "recomendações" formulada pela rante seus discípulos reunidos na residência de François Perrier,
comissão Turquet deveria ser respeitada com vistas à normali­ a Ata de Fundação da Escola Francesa de Psicanálise, que poste­
zação. Entre as recomendações, a de que todas as análises de­ riormente receberia o nome definitivo de Escola Freudiana de
vem ser conduzidas nas bases mínimas de quatro sessões sema­ Paris (EFP): "Fundo - tão sozinho como sempre estive na mi­
nais de quarenta e cinco minutos cada... nha relação com a causa psicanalítica - a Escola Francesa de
William Gillespie, então presidente da IPA, transmite Psicanálise..."95• A fundação da EFP marca a história da psica­
durante a reunião administrativa um relato feito por Serge nálise como a primeira dissidência da IPA que reivindicou e
Lebovici em nome da rival SPP: "Após considerações cuidado­ sustentou o adjetivo "freudiana" para si. As conseqüências des­
sas e discussão privativa, eles (os membros da SPP) acreditam te marco são analisadas no próximo capítulo.
que a supervisão proposta fará todos os esforços para promover Roudinesco96 levanta a hipótese de que a busca efetuada
bons elementos na SFP, e eliminar, dentro do possível, os ele­ por Lacan, durante uma década, no sentido de integrar-se ao
mentos indesejáveis"92• império da IPA, funciona como "o sintoma de uma vontade do
A comissão Turquet retoma as investigações em janeiro mestre de não tornar-se um chefe de instituição". Em seu argu­
de 1963. Como nada mudou, Turquet redige um relatório que mento, Lacan teria ciência da incompatibilidade entre o exercí­
dará um fim à situação. Sublinha que os analisandos de Lacan cio real de um poder institucional e a posição de mestre pensante,
"permanecem passivos frente a um mestre que vê a si mesmo e a vinculação à IPA viria poupá-lo do destino de administrar
como fonte única de recompensas e punições"93, e solicita o corte uma política em nome próprio. Prova disso estaria no fato de que
de Lacan (e também de Dolto) da lista de didatas, exigindo que a parte essencial de sua obra foi elaborada durante o período de
seus candidatos fossem "transferidos" para outro analista. negociações. Porém, devido aos "paradoxos de seu temperamen­
No interior da SFP, a maioria dos membros efetivos consi­ to", Lacan não conseguiria evitar a fusão de sua pessoa com sua
derava que não havia contradição entre o ensino de Lacan e a doutrina, demandando de seus alunos amor e servidão.
normalização imposta pela IPA, dispondo-se a pagar o preço O retorno a Freud propagado por Lacan vem, neste senti­
exigido em troca do reconhecimento internacional. Após o con­ do, apontar um paradoxo: "o lacanismo existe na medida em
gresso de Estocolmo, o Executivo da IPA divulga, em agosto de que não existe"97• Existe enquanto movimento histórico pós­
1963, uma "Diretriz" exigindo o cumprimento das "Recomenda­ freudiano de reestruturação ortodoxa do freudismo; mas não
ções" de Edimburgo, acrescentando formalmente o não-reconhe­ existe exatamente por pensar a si mesmo como a saída teórica
cimento de Lacan como analista didata. Em 13 de outubro de para a realização do freudismo em sua época, o que fez com que
1963, a comissão de estudos da SFP vota pelo cumprimento da Lacan denominasse sua reformulação (e também sua escola) de

134 13S
ÜANIEL KUPERMANN TRANSFERftNCIAS CRUZADAS

"freudiana". Com a cisão, o destino do paradoxo será tornar-se


um impasse. O cômico dessa história é que, com o rompimento
Notas
final, os efeitos temidos pela IPA (e também por Lacan) não só 1. Figueira, S.A. "Notas sobre a história da psicanálise na França". ln Figueira,
não foram evitados, como acabaram por adquirir uma dimen­ S.A. Nos bastidores da psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, 1991, p.220.
são extraordinária. De fato, o que teria acontecido com a histó­ 2. Figueira, S.A. Idem.
ria da psicanálise se Lacan permanecesse nos quadros da IPA
3. Cf. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1988.
como o que sempre foi: analista didata? 4. Cf. Figueira S.A. "Notas sobre a cultura psicanalítica brasileira". In Figueira,
S.A. Nos bastidores da psicanálise. Op.cit.
5. Hartmann, H. "Opening address". International joumal of psychoanalysis. 35.
London, 1954.
6. Hartmann, H. Idem, p.268.
7. Hartmann, H. Idem.
8. Hartmann, H. Idem.
9. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
Intemationaljoumal ofpsychoanalysis. 35. London, 1954.
10. Sachs, H. "Observation of a training analyst". The psychoanalytic quarterly. 16.
New York, 1947.
11. Apud Oitelson, M. "Problems of psychoanalytic training". The psychoanalytic
quarterly. 17. New York, 1948, p.202.
12. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic
psycho-analysis". Internationaljournal ofpsychoanalysis. 35. London, 1954.
13. Heimann, P. "Problems of the training analysis". International journal of
psychoanalysis. 35. London, 1954, p.163.
14. Oitelson, M. "Problems of psychoanalytic training". Op.cit.
15. Heimann, P. "Problems of the training analysis". Op.cit.
16. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
Op.cit.
17. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
Idem, p.178, grifo nosso.
18. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
Idem, grifo nosso.
19. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate". Idem.
20. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
Idem, p.180, grifos nossos.
21. Hartmann, H. "Opening address". Op.cit.
22. Hartmann, H. Idem, p.269.
23. Hartmann, H. Idem.
24. Oitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' candidate".
Op.cit., p.178.
25. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Intemational journal of
psychoanalysis. 29. London, 1948; Balint, M, "Analytic training and training
analysis". Intemationaljoumal ofpsychoanalysis. 35, London, 1954.
26. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". International journal of
psychoanalysis. 35. London, 1954.

136 13 7
DANIEL KUPERMANN TRANSFERJê:NCIAS CRUZADAS

27. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cít., p.164. 64. Balint, M. Idem, p.162.
28. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". Op.cit., p.247. 65. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cit., p.170.
29. Cf. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. I. Rio de Janeiro, 66. 106th Bulletin of the Intemational Psycho-Analytical Association. International
Jorge Zahar, 1989. journal of psychoanalysis. 35. London, 1954, p.273.
30. Heimann, P. "Problems of the training analysis". Op.cit., p.165. 67. Idem, p.274.
31. Heimann, P. Idem. 68. Idem.
32. Grotjahn, M. "About the relation between psycho-analytic training and psycho­ 69. Idem, p.276.
analytic therapy". International journal of psychoanalysis. 35, London, 1954. 70. Idem.
33. Grotjahn, M. Idem, pp. 255-256. 71. Idem, p. 278.
34. Bibring, O. "The training analysis and its place in psycho-analytic training". 72. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.244.
International journal of psychoanalysis. 35. London, 1954. 73. Cf. Lacan, J. (1945) "Le temps logique et l'assertion de certitude antecipeé". In
35. Bibring, O. Idem, p.170. Ecrits. Paris, Seuil, 1966.
36. Cf. Lagache, D. A transferência. São Paulo, Martins Fontes, 1990. 74. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.247.
37. Grotjahn, M. "About the relation between psycho-analytic training and psycho­ 75. Roudinesco, E. Idem, p.357.
analytic therapy". Op.cit., p.255. 76. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálíse e formação do psicanalista em 1956".
38. Bibring, O. "The training analysis and its place in psycho-analytic training". In Escritos. São Paulo, Perspectiva, 1988; Lacan, J. (1957) "La psychanalyse
Op.cit., p.170. et son enseignement". ln Ecrits. Op.cit.
39. Bibring, O. Idem, p.171. 77. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
40. Bibring, O. Idem, p.173. ' Op.cit., p.203.
41. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". Op.cit. 78. Lacan, J. (1957) "La psychanalyse et son enseignement". Op.cit., p.454.
42. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic 79. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
psycho-analysis". Op.cit. Op.cit., p.207, parênteses e grifo nossos.
43. Nacht, S. Idem, p.251. 80. Lacan, J. (1957) "La psychanalyse et son enseignement". Op.cit., p.456.
44. Nacht, S. Idem. 81. Lacan, J, (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
45. Nacht, S. Idem. Op.cit., p.220.
46. Nielsen, N. "The dynamics of training analysis". Op.cit., p.248. 82. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., pp. 242 - 245.
47. Nielsen, N. Idem, p.249. 83. Roudinesco, E. Idem, pp. 255-272.
48. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic 84. 110th Bulletin of the Intemational Psycho-Analytical Association. International
psycho-analysis". Op.cit., p.252. journal of psychoanalysis. 37. London, 1956, p.122.
49. Nacht, S. Idem, p.253. 85. Apud Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.341.
50. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro, Imago, 1989. 86. 113th Bulletin of the lntemational Psycho-Analytical Association. International
51. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cit., p.164. joumal of psychoanalysis. 39. London, 1958.
52. Sachs, H. "Observations of a training analyst". Op.cit. 87. Apud Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit., p.342.
53. Balint, M. "On the psycho-analytic training system". Op.cit., p.167. 88. Lacan, J. (1956) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956".
54. Balint, M. Idem. Op.cit; Lacan, J. (1957) "La psychanalyse et son enseignement". Op.cit.
55. Gitelson, M. "Therapeutic problems in the analysis of the 'normal' 89. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit.
candidate". Op.cit. 90. Lacan, J. (1967) "Proposição de 9 de outubro de 1967". Letra Freudiana. Ano I, n2 O.
56. Balint, M. "Analytic training and training analysis". Op.cit. 91. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit. p.349.
57. Balint, M. Idem, p.159, grifo nosso. 92. 120th Bulletin of the Intemational Psycho-Analytical Association. Intemational
58. Balint, M. Idem. journal of psychoanalysis. 43. London, 1962.
59. Freud, S. "Análise terminável e interminável". In E.S.B. Op.cit., Vol. 93. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit. p,363.
XXIII, p.253. 94. Roudinesco, E. História da psicanálise na França. - Vol. II. Idem, p.392.
60. Balint, M. "Analytic training and training analysis". Op.cit., p.161. 95. Lacan, J. (1964) "Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris". Letra Freudiana.
61. Balint, M. Idem, p.160. Ano I, nº O.
62. Balint, M. Idem, p.161. 96. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Op.cit. p.317.
63. Balint, M. Idem. 97. Roudinesco, E. História da psicanálise na França - Vol. II. Idem, p.318.

138 139
Parte Ili

.LACAN
E O CORTE
TRANSFERENCIAL

Para onde foram as histéricas de antigamente,


aquelas mulheres maravilhosas, as Anna O., as
Emmy von N.? Elas não apenas desempenhavam um
certo papel, um papel social preciso, mas, quando
Fnud se pôs a escutá-las, foram elas que permitiram
o nascimento da psicanálise. Foi pela escuta delas que
Freud inaugurou um modo inteiramente novo da
relação humana. O que substituiu, hoje, os sintomas
histéricos de outrora? Será que a histeria não se
deslocou para o campo social, não terá sido
substituída pela doidice psicanalftica?
JACQUES LACAN, 1977
5.. Do retorno a Freud ao último.freudiano
A hipótese desenvolvida neste capítulo é a de que, a partir de
seu projeto de retorno a Freud, e através de um corte
transferencial inédito na história da psicanálise, Lacan tornou-
se, por um efeito de mal-entendido, o último freudiano em sua
Escola. Essa linha de pesquisa se inscreve assim no desafio ético
lançado pelo próprio Lacan no final da Proposiçao de 9 de Outu­
bro de 196 7 1: o estudo das instituições psicanalíticas, dos efeitos
transferenciais induzidos por sua estrutura de grupo, e da rela­
ção dos psicanalistas com as mesmas.
É digno de nota, porém, que Lacan se refere apenas ao
modelo institucional "freudiano" (IPA), aproximando-o da Igreja
e do Exército, onde prevalecem as identificações imaginárias
próprias da psicologia de grupo. Ele diz: "O efeito induzido da
estrutura assim privilegiada se esclarece ainda mais se acres­
centarmos a função, na Igreja e no Exército, do sujeito suposto
saber. Estudo para quem quiser empreendê-lo: iria longe" 2• Não
poderia ser diferente uma vez que, na Proposiçao, Lacan apenas
apresentava um modelo institucional que não tinha ainda feito
a sua história, e precisava ser posto em prática*. Mas nada jus-
(*) Deve-se advertir o leitor engajado no movimento institucional de lacaniano que o discurso histórico
aplicado a práticas institucionais concretas é sempre político, confrontando o discurso lógico matêmíco -
que se pretende a-histórico e a-político, Assim 1 pode .. se falar, por exemplo , no "funcionamento" do cartel
segundo uma 11estrutura matêmica,, definida conceitualmente por Lacan na "fórmula afinada" de 1980
(ver Jimenez, 1994), bem como no funcionamento" do passe, sendo que a correspondência com a expefi,.
11

ência histórica concreta desses dispositivos é sempre problemática. Trata�se de universos distintos, e a
opção pelo instrumento histórico é explícita no decorrer de toda a pesquisa.

143
no discípulo do analista transmissor, que ao longo de sua exis­ vivacidade, esta problemática ainda atual do campo psicanalíti­
tência vai repetir inapelavelmente os discursos do mestre, per­ co. Problemática fundamental, como dissemos acima, pois são os
dendo, com isso, a liberdade de dizer e de pensar. destinos e o futuro da psicanálise que estão aqui em questão. A
Neste contexto, o discurso analítico se transforma no dis­ obra nos indica com clareza como, ao longo da história da psica­
curso do mestre e no discurso universitário, para nos valermos nálise, os impasses do processo de formação psicanalítica foram se
dos conceitos de Lacan.16 Com isso, a histericização do sujeito constituindo e se cristalizando, até se transformarem decisivamen­
não se desenvolve na experiência transferencial, esvaindo-se te em impossibilidades reais para a transmissão da psicanálise. Além
pois as suas possibilidades desejantes, de forma a se delinear disso, nos mostra como a relação entre o analista e o analisante,
então as condições de instauração do masoquismo. marcada pela assimetria sacio-masoquista, pode até mesmo se
Em contrapartida, na fidelidade transferencial as coisas se transformar numa relação de tortura. Parece-nos que esta é a ou­
processam de maneira bem diferente. Nesta modalidade de trans­ sadia maior deste trabalho, que retira as conseqüências devidas
ferência o sujeito pode disferir golpes mortais na figura do analista, do caldo da cultura que alimenta as ditas análises de formação
de maneira a inscrever simbolicamente a castração no espaço psi­ psicanalíticas. Caldo de cultura sadomasoquista, evidentemente,
canalítico e no lugar do analista. Com isso, o sujeito pode afrontar que permite todos os usos e abusos do outro, em nome de supos­
a angústia e o desamparo que se colocam na cena psicanalítica, em tas verdades da psicanálise. Em verdade, estraté<;ias refinadas de
função da incerteza que se inscreve no processo analítico. Porém, é poder, que esterilizam a psicanálise por impedL :m efetivamente
justamente isso que permite ao sujeito lidar de uma outra maneira a sua transmissão, de maneira a cortar qualquer possibilidade in­
com a sua tradição teórica e clínica, assumindo uma liberdade de ventiva no campo psicanalítico. A história recente da psicanálise
dizer e de pensar, que renova o seu campo simbólico de filiação. no Brasil nos indica que este desdobramento, da transformação
A invenção se coloca pois como possível, indicando então que da assimetria presente na relação sadomasoquista em tortura, é
esta perspectiva ainda é viável na tradição da psicanálise. possível de acontecer no campo do real, não se restringindo pois
Ao que tudo indica, as análises que se mostram efetiva­ a uma simples metáfora e a uma figura de retórica.
mente produtivas para o sujeito são aquelas marcadas pela fide­ Poder-se-ia perguntar, neste momento de arremate deste
lidade transferencial, sejam aquelas análises de formação psica­ percurso teórico, se a fidelidade transferencial que enunciamos
nalítica ou não, pouco importa aqui esta distinção. Com isso, a não seria algo da ordem da utopia, isto é, algo que não tem lugar
psicanálise se transmite efetivamente, dando ao sujeito a possi­ possível no universo do real mas apenas no universo imaginá­
bilidade de invenção e de ruptura com as cadeias mortíferas da rio. Objeção válida, certamente, quando se pode constatar que
repetição. Porém, nas análises marcadas pela submissão o que se implantou de fato, no campo psicanalítico, foi a servi­
transferencial, a transmissão da psicanálise não se realiza, de dão transferencial. Não estamos convencidos disso. Pelo con­
maneira a se instaurar a esterilidade psíquica e o masoquismo. trário, parece-nos que a transmissão da psicanálise até hoje so­
mente foi possível em função da fidelidade transferencial. Vale
dizer, a produção de novas teorias e de novos conceitos na his­
UTOPIA? tória da psicanálise somente foi possível porque aconteceu a
fidelidade transferencial. A emergência de psicanalistas
Parece-nos que a obra de Daniel Kupermann é rica justa­ inventivos, como Ferenczi, M. Klein, Winnicott, Bion e Lacan,
mente porque nos permite relançar novamente, com agudeza e apenas foi possível porque aconteceu a fidelidade transferencial.

238 239
Porém, é bom que não se esqueça também que fidelidade
transferencial quer dizer também que o sujeito tem a possibili­
Notas
dade de ruptura e de transgressão com as verdades e os sistemas 1. Lacan, J. L'éthique de la psychanalyse. Le séminaire. Livre V II. Paris, Seuil, 1986.
instituídos. É isso que implica que a transferência de trabalho se 2. Freud, S. "Pulsions et destins des pulsions" (1915). In: Freud, S. Métapsychologie.
produza pela remodelação do trabalho da transferência, para Paris, Gallimard, 1968.
3. Freud, S. "La moral sexuelle "civilisée" et la maladie nerveuse des temps modernes"
nos valermos novamente dos conceitos forjados por Lacan. (1908). In: Freud, S. La vie sexuelle. Paris, Press Universitaires de France,
Contudo, isso pressupõe que o sujeito deve correr o risco de 1992, p. 33-34.
perder as insígnias da falicidade e de afrontar a angústia da cas­ 4. Freud, S. Nouvelles conférences d'introduction à la psychanalyse (1932). Paris,
Gallimard, 1984, p. 131.
tração, para romper com as identificações masoquistas e poder 5. Ferenczi, S. "Analyse d'enfant avec des adultes". ln: Ferenczi, S. Psychanalyse 4.
assumir então a liberdade erótica de pensar e de dizer. Oeuvres Completes. Paris, Payot, 1982.
Para isso, é preciso ousadia para experimentar a angústia 6. Balint, M. "On the psychoanalytic training system". In: International]ournal of
do desamparo e as incertezas do processo psicanalítico. Esta é a Psychoanalysis. Volume 20. Londres, 1947; Balint, M. "Analytic training
and training analysis". Idem. Volume 35. Londres, 1954.
utopia que a psicanálise torna possível no universo do real, ao 7. Gitelson, M. "Problems of psycho-analytic training". In: Psychoanalytic Quarterly.
promover a possibilidade do desejo para o sujeito pelo ato psica­ Volume 17. Número 2. New York, 1948; Gitelson, M. "Therapeutic problems
nalítico. Afora isso, fica apenas o resto da submissão transferencial, in the analysis of the "normal" candidate". In: International ]ournal of
Psychoanalysis. Volume 35. Londres, 1954.
maneira fácil de ganhar a vida sem precisar correr os riscos que 8. Nacht, S. "The difficulties of didatic psycho-analysis in relation to therapeutic
esta implica. Porém, devemos nos entender bem: o resto aqui psycho-analysis". Idem.
não indica o objeto a, o objeto causa do desejo de Lacan, mas o 9. Lacan, J. "Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956".
lixo, a posição antidesejante por excelência, a morte da possibili­ In: Lacan, J. Écrits. Paris, Seuil, 1956; Lacan, J. "La psychanalyse et son
enseignement" (1957). Idem.
dade de desejar pelo sujeito. Conseqüentemente, o resto vai para 10. Sobre isso, vide: Aulagnier, P. "Sociétés de psychanalyse et psychanalyste de
a lata do lixo, como sempre, não se inscrevendo pois nos circuitos société". ln: Topique. Número 1. Paris, Presses Universitaires de France,
fascinantes do desejo e do erotismo. Por isso mesmo, o resto lixento 1969; Perrier, F. "Sur la psychanalyse didactique". ln: Topique. Números 1 e
2. Idem, 1969-1970.
da submissão transferencial pode alimentar "belas" carreiras psi­ 11. Freud, A. "Difficultés survenant sur le chemin de la psychanalyse" (1968). In:
canalíticas, conferir grandes poderes institucionais, mas de nada Nouvelle Revue de Psychanalyse. Número 10. Paris, Gallimard, 1974.
serve para a transmissão da psicanálise. 12. Mannoni, O. "Je sais bien, mais quand même". ln: Mannoni, O. Clefs pour
Ufa! Que alívio! Ainda bem que o futuro da psicanálise l'imaginaire ou l'autre scene. Paris, Seuil, 1969.
13. Freud, S. "L'analyse avec fin et l'analyse sans fin" (1937). ln: Freud, S. Résultats,
não depende de seus funcionários e de seus burocratas idées, prob!êmes. Volume II. Paris, Presses Universitaires de France, 1992,
carreiristas! Porém, é preciso reconhecer que eles atrapalham p. 266-268.
bastante, pois impossibilitam a livre circulação libidinal e a cri­ 14. Idem, p. 267.
15. Idem.
ação. Livremo-nos deles, rapidamente, para não sermos sufoca­ 16. Lacan, J. L'envers de la psychanalyse. Le Séminaire. Livre XVII. Paris, Seuil, 1991.
dos pelo lixo e pelo resto, para continuarmos ainda a realizar a
utopia da invenção desejante da psicanálise.

Paris, l º de junho de 1995.

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248 249
Do editor

Pequeno glossário de
conceitos psicanalíticos
Complexo de Édipo
"Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a
criança experimenta em relação aos pais" (Laplanche & Pontalis,
1983, p.116), o qual, segundo algumas tendências psicanalíticas,
irá reeditar em suas relações ao longo da vida.

Contratransferência
Conceito pouco desenvolvido por Freud, que pôde ser
entendido como o "conjunto das reações inconscientes do ana­
lista à pessoa do analisando e mais particularmente à transfe­
rência deste" (Laplanche & Pontalis, op.cit., p.146), como tam­
bém o conjunto das transferências do próprio analista. Tanto
uma definição quanto a outra apontam para o problema da in­
terferência no curso da análise, ou seja, no acesso do analisan­
do ao seu próprio inconsciente, já que a análise só avança até
onde permitem os complexos e resistências do psicanalista
(Freud, 1910, p.130). Assim, a conceituação da contra­
transferência e seus efeitos implica na necessidade do analista
levar a bom termo a sua própria análise pessoal.

Ego
O eu como empregado originalmente por Freud).
Instância psíquica responsável, conforme a segunda teoria
251
metapsicológica apresentada por Freud, pela mediação dos in­ centrar numa palavra a descoberta freudiana, essa palavra seria
teresses contraditórios da vida psíquica, atendendo assim às rei­ incontestavelmente a de inconsciente" (op.cit., p. 307).
vindicações do id, aos imperativos do superego, bem como às
exigências da realidade. Recalque
Mecanismo defensivo próprio das neuroses, através do qual
Id 0 ego toma fraca uma representação incompatível com os seus
O isso (das Es). Instância que representa a sede das pulsões, interesses, privando-a de sua intensidade afetiva, mantendo-a
cujos conteúdos são sempre inconscientes, sendo também o reser­ assim inconsciente.
vatório primitivo da energia psíquica. Suas reivindicações à vida
mental entram em conflito com os interesses do ego e do superego Resistência
que, do ponto de vista genético, são derivações dele próprio. Considera-se resistência tudo o que, na vida psíquica do
analisando, se opõe ao trabalho da análise - em última instân­
Identificação cia, ao acesso ao seu inconsciente - interferindo no bom
Processo psíquico pelo qual o sujeito assimila atributos de funcionamento da regra fundamental da associação livre. Pode­
um outro, transformando-se e constituindo-se assim segundo se também postular uma resistência do analista, ao qual deve­
sucessivos modelos identificatórios. se estar atento. Enfim, Freud refere-se também a uma resistên­
cia por parte da cultura à psicanálise, pelo fato de esta revelar a
Imago qualidade das pulsões sexuais reprimidas em seus fins na consti­
Modelo inconsciente de personagens elaborados a partir tuição dos "elevados ideais de moralidade" sustentados social­
das primeiras relações intersubjetivas reais e fantasmáticas mente (Freud, 1925, p.272).
estabelecidas no meio familiar que vai determinar a forma como
o sujeito apreende o outro (cf. Laplanche & Pontalis, op.cit., Superego ..
p.295). Pode-se assim falar em imago paterna, materna etc. O supereu (das Uber-Ich). Instância que representa as
exigências e interdições parentais e culturais na vida psígu�ca.
Inconsciente Classicamente definido como herdeiro do complexo de Ed1po,
Inicialmente, o inconsciente designa para Freud um sis­ Freud nele reconhece as funções da consciência moral, da auto­
tema integrante e determinante da vida mental que é regido observação e da formação de ideais (cf. Laplanche & Pontalis,
por princípios e leis próprias (diferentes da consciência) e cons­ op.cit., p. 643).
tituído por conteúdos representacionais particulares. Com a
reformulação de sua �eoria do funcionamento psíquico, o in­ Transferência
consciente passa a ser empregado mais de forma adjetiva, uma Processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam
vez que tanto o id, como em parte o ego e o superego, são in­ sobre determinados objetos, principalmente através de uma
conscientes. Convém ressaltar que o essencial da descoberta reedição de protótipos infantis. Na maior parte das vezes em
freudiana está na constatação de que a maior parte de nossa que se referem à transferência, os psicanalistas estão tratando
vida mental não é regida pela consciência, e sim pelo inconsci­ do conjunto dos fenômenos afetivos que constituem a relação
ente. Laplanche e Pontalis sublinham que, "se fosse preciso con- do analisando com o analista. No entanto, a amplitude do con-
252 253
ceito transcende o espaço do setting analítico, podendo-se tam­
bém considerar a transferência presente e atuante nas circuns­
tâncias e nas relações da vida corrente (cf. Lagache, 1990;
Ferenczi, 1909). A própria definição dos limites do conceito é
problemática, persistindo como um desafio teórico e clínico para
o campo psicanalítico. "A transferência é classicamente reco­
nhecida como o terreno em que se joga a problemática de um
tratamento psicanalítico", ressaltam Laplanche & Pontalis, "pois
são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e
a sua resolução que caracterizam este" (op.cit., p.669).

Transferência positiva / Transferência negativa


Freud (1912) diferencia estas duas modalidades de trans­
ferência. A transferência positiva se refere tanto aos afetos ternos
(como confiança e amizade) quanto aos impulsos eróticos
(apaixonamento) dirigidos ao analista. Já a transferência negati­
va está referida à hostilidade e agressividade. Freud considera
apenas a primeira forma de transferência positiva favorável ao
tratamento, estando a transferência positiva de impulsos eróticos
e a transferência negativa a serviço das resistências à análise.

ABREVIATURAS

IPA - International Psychoanalytic Association

SPP -Societé Psychanalytique de Paris

APF -Association Psychanalytique de France

EFP -École Freudienne de Paris

SPRJ- Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro

SBPRJ -Sociedade de Psicanálise do Rio de


Janeiro
254
Transferências Cruzadas é uma obra de referência
não apenas para pesquisadores e aqueles que se
dedicam à clínica, mas também para todos os que
se interessam pelo impacto cultural das idéias e da
prática psicanalítica. Afinal, a psicanálise é um
assunto demasiadamente humano para ficar
restrito aos psicanalistas.

Daniel Kupermann é psicanalista, mestre em


psicologia clínica pela PUC!Rio, membro fundador
da Formação Freudiana e coordenador e professor do
curso de pós-graduação lato sensu em teoria
psicanalítica do Instituto Brasileiro de Medicina de
Reabilitação. Desde 1990 integra a seção de clínica do
Qualquer livro desta editora, não encontrado nas li­
vrarias, pode ser pedido por carta, fax ou telefone Instituto Estadual de Hematologia (IEHASC), onde
a: Editora Revan Av. P�o de exerceu o cargo de chefia do setor de psicoterapia. É
163 - 202©010 - Rio de Janeiro - RJ - também co-organizador do livro Universos da
PBX: (021) 293-4495 -Fax: (021) 273-6873. Psicanálise - desafios atuais da pesquisa
psicanalítica (Relume-Dumard/CCBB, 1995).
m Transferências Cruzadas, Daniel Kupermann relança, com
agudeza e vivacidade, como, ao longo da história da psicandlise, os
impasses do processo de formação psicanalítica foram se constituindo e se
cristalizando, até se transformarem decisivamente em impossibilidades
reais para a transmissão da psicandlise. Além disso, nos mostra como a
relação entre o analista e o analisante, marcada pela assimetria sado­
masoquista, pode até mesmo se transformar numa relaçao de tortura, o
que a história recente da psicandlise no Brasil nos indica que é possível
de acontecer no campo do real não se restringindo pois a uma simples
metdfora e a uma figura de retórica.

Desenvolver com clareza esta problemdtica fundamental para os


destinos e o futuro da psicandlise é a ousadia maior deste trabalho,
ousadia necessdria também para experimentar a angústia do desamparo
e as incertezas do processo psicanalítico.

Joel Birman

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