Quando Freud desembarcou na América, em 1909, para fazer uma série de
conferências – hoje célebres – sobre psicanálise, virou-se para Jung, que o acompanhava, e disse: “Venho trazer-lhes a peste”. Em verdade, e num certo sentido, a psicanálise é a peste, ou melhor: ela representa a antiutopia mais radical até hoje concebida pelo espirito humano, chegando mesmo a constituir-se como uma utopia às avessas. A psicanálise pretende curar o ser humano de suas ilusões. Ela não acredita na bondade fundamental do homem, nem parte do princípio de que o processo civilizatório é uma rampa ascendente de sucessivas vitórias que chegarão, necessariamente, à plenitude do amor de todos por todos. A luta entre Eros e Tanatos – vida e morte – se decide dentro de cada um de nós, a cada instante. Por nascermos prematurados, incompletos, sem equipamento instintivo capaz de nos costurar com solidez ao mundo, sofremos a permanente saudade de ser pedra, a nostalgia de um sono sem retorno, regido por estatuto que nos transcenda e que não possamos desobedecer – ou transgredir. O ser humano é ruptura com a natureza e a ordem cósmica, salto para a cultura, a linguagem e a lei, por cujo intermédio tenta assumir o rombo de indeterminação e liberdade que o constitui em seu centro. A psicanálise é a ciência desse salto e do processo pelo qual, gradativamente, nos tornamos humanos, através de dolorosas lutas e renúncias. Num luminoso artigo sobre Lacan, afirma Althusser que todo ser humano é num certo sentido, um mutilado de guerra, alguém que, para tornar-se sócio da sociedade humana, tem que pagar o preço de uma tragédia surda, cheia de som e fúria. Isto é perfeitamente justo e exato. Somos humanos na medida de renúncias decisivas, de recalques e exílios amargos, de perdas e danos que ferem de morte nossas exigências originárias. A neurose, por exemplo, faz ressoar, no adulto, o rumor das antigas lutas, de alguma coisa que não ficou, nem esquecida – nem resolvida. A neurose é uma falha no processo de anistia pelo qual devemos olvidar conflitos e desejos arcaicos, para olhar adiante: na direção da realidade e do Outro. A psicanálise é a ciência do desejo humano – ou da sexualidade humana. Ela nos mostra que através de duras vicissitudes a pulsão sexual caminha no sentido do amor, que constitui, fundamentalmente, a possibilidade de desejar o Outro na sua alteridade carnal, na sua peculiaridade e diferença. O amor é o desejo em conformidade com a lei. Esta, por sua vez, representa o limite imposto à onipotência do desejo, pelo qual irá abrir-se o lugar do Outro – e para o Outro –, na sua liberdade e dignidade de pessoa. O desejo humano, a princípio, é infenso ao Outro e carece, nesta medida, de dimensão alteritária. Ele é, nos seus primeiros estágios, fechadamente narcísico, auto erótico. A criança, nos primórdios de sua evolução libidinal, investe a sexualidade em seu próprio corpo ou nas representações alucinatórias que lhe povoam a mente. Através desse refluxo, que refuga a realidade, tenta ela proteger-se, criando um sleeping-bag de prazer que a isole do mundo exterior. Para a criança, em seus começos, a realidade é intolerável e persecutória, no mais alto grau, uma vez que, como dado real, lhe escapa. O infante, no início da vida, não suporta a sua condição de ser separado. Em consequência, procura sentir-se absolutamente autônomo, autárquico, suficiente. Para isto, não se diferencia, do ponto de vista psíquico, do corpo da mãe, de tal maneira que o autoerotismo, pode, afinal, ser considerado como uma forma de identificação absoluta ao organismo materno. Nesse estágio de narcisismo primário, a criança recém-nascida procura restaurar, regressivamente, a situação intrauterina, anterior ao nascimento. Depois, na medida de sua evolução, a criança acaba por descobrir a imagem corporal que lhe corresponde. A princípio se vê refletiva no espelho ou na figura do Outro, e passa a amar como própria essa imagem que antecipa a unidade de seu esquema corporal. E a fase narcísica, em sentido estrito, ou fase do espelho, de que fala Lacan. Antes de ser si mesma, a criança é a imagem que reflete no espelho ou esfígie do Outro, com as quais se identifica, já agora dentro de uma perspectivação separadora. No começo a criança é a mãe. Depois é a figura da mãe ou daqueles que a rodeiam, além de identificar-se com sua imagem especular. Ela se aliena nessas esfígies e, através delas, organiza o seu prestígio e grandeza. A criança aí torna-se ex-cêntrica, alienada na própria imagem, ou na figura do Outro, que lhe aparecem cheia de graça e de potência. Narciso, enamorado de si, no espelho das águas, é o mito que resume essa fase da evolução humana. A perdição de Narciso reside em que quer possuir sua imagem, agarrá-la, fundir-se a ela, para restaurar a primitiva unidade onipotente com a mãe, já perdida nesta etapa. Narciso tende para o Um, para o Único, para a indiferenciação – para a morte. Ele acaba escravizado à imagem do eu ideal por quem se apaixona e, no seu afã de encarná-lo, se destrói. O impasse letal de Narciso é sua ex-centricidade alienadora, que o torna estruturalmente perdido de si. Entregue a um projeto impossível, busca seu centro fora de si, sem perceber que a dilaceração que o corrói reside no fato de, estando fora de si, desejar ser si mesmo, através da própria imagem. O extravio de Narciso é querer preencher-se consigo próprio, repelindo a abertura ao Outro. Ele acredita que o rombo de nada – de liberdade –, que carrega no coração de seu ser, deva albergar, não o rosto da diferença, mas a mesmidade do idêntico. Nesta medida, carente de consistência alteritária, persegue a miragem de um duplo esplêndido achatado no espelho, sangrando o corpo no afã – insensato – de fundir-se a ele. O drama da homossexualidade pode servir de ilustração às peripécias do narcisismo. A libido narcísica é homoerótica, isto é: o homossexual elege como objeto de desejo alguém que se lhe iguale, alguém que é seu duplo perfeito, imagem radiosa de si, pela qual se apaixona. A tensão das relações narcisadas ao extremo é que, elas tendem, por sua estrutura, para o entredevoramento. Cada um vê no Outro o seu próprio retrato idealizado ou deificado, e isto rarefaz, ou mesmo impede, a possibilidade do encontro autêntico. A paixão narcísica não aceita diferença, limite ou separação. Ela é exclusiva e excludente, possessiva, devoradora e, em última análise, mortífera. O desejo narcísico é insaciável porque pretende transfigurar a imperfeição do ser que sou através da ilusória radiância da imagem, mais que perfeita, que quero ser e penso possuir. Somos imperfeitos, incompletos, separados – exilados. Temos que perder os primeiros, e mais absolutamente cobiçados, objetos do nosso desejo. O corte separador do nascimento, que marca biologicamente nossa expulsão do corpo da mãe, tem que ser depois reeditado, elaborado e construído, em termos psíquico- existenciais. Nascemos uma vez, quando somos expulsos do organismo materno. E, pela Lei do Pai, que interdita o incesto e instaura o primado da linguagem e da ordem simbólica, nascemos uma segunda vez. A interdição do incesto, fundadora da cultura, inscreve no plano da sexualidade e do desejo a cárie de incompletude que constitui o nosso centro, e nos permite emergir enquanto sujeitos. A vicissitude edípica, ao barrar a onipotência do desejo, quebra o labirinto de espelhos onde se açoita a arrogância narcísica e, introduzindo-nos à modéstia nos condena à perigosa vertigem da liberdade.
Helio Pelegrino, 61. É psiquiatra,
psicanalista, escritor e autor de “Revisão do Complexo de Édipo”.
Resposta À Intervenção de Paul B. Preciado - Jean-Claude Maleval Resposta À Intervenção de Paul B. Preciado Na 49 Jornada Da Escola Da Causa Freudiana Jean - Claude Maleval