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Introducäo a uma
C158i Calligaris, Contardo
Introduqäo a
garis. — Porto Alegre
uma clinica diferencial
:
das psicoses
Artes Médicas, 1989.
/ Contardo Calli- clinica diferencial
125p. : il. ; 23cm.
das psicoses
1.Psicoses. I. Titulo.
C.D.D. 157.1-.2
616.89
C.D.U. 616.895
Psicoses 616.895
NdÉs
SERIE
OiSCURSO
PSCANAUTCO PORTO ALEGRE / 1989
mas sem trama escrita. A revisäo respeitou a ordem e o estilo da improvisacäo.
Preferi conservar apresentaqöes, mesmo que fossem aproximativas, do que
mserir recursos teöricos que comprometeriam o que faz, para mim, o interesse
deste livro: uma reflexäo clinica sobre psicose assim como ela foi produzida
para e com uma platéia instigante.
Da discussäo —
que foi viva inclusive no meio das exposigöes — mante-
ve-seo essencial.
Por conseqüéncia, se resultou fåcil atribuir tftulos aos sete seminärios,
a divisäo em subtftulos introduzida é apenas indicativa.
SUMÅRIO
1 —e A estrutura psicötica fora de crise
O diagnöstico de estrutura psic6tica ....
Transferéncia diferencial .
84
5 — Discussäodeum caso ..... .. .
86
6 — Anålise com pacientes psicöticos .. .
100
Na crise .
102
Resisténcia ao delfrio 102
Um Iago eterno 104
Responsabilidade do analista na cura
Situagöes limites
com pacientes psicöticos 105
108
A ESTRUTURA PSICÖTICA FORA
Fim de anilise na psicose
O superego na psicose
111 DE CRISE
.
114
7 Viätico
117
O cåso da tela .
117
O caso do sangue 123
Conclusäo .
125
Göes auditivas, cenestésicas, visuais, enfim qualquer tipo de fenömeno psic6- O fim da hist6ria foi assim: um dia eu soube — porque fiquei um tempo
tico, segundo a clfnica clåssica. sem noticias dele, näo veio mais e eu näo sabia por que — que ele estava
Em outras palavras, a clinica psicanalftica,
por ser estrutural, quer dizer, num bar, num
bar qualquer e, näo sei como, alguns bandidos que aparente-
por ser fundada na transferéncia .com a hipötese que o Iago transferencial mente estavam preparando um assalto acharam que ele tinha a cara do neg6cio,
desdobre a estrutura mesma do paciente), permite um diagn6stico de psicose propuseram que ele participasse neste assalto, ele aceitou e foi com eles.
mesmo na auséncia de fenömenos classicamente psic6ticos. Mais precisamente , O assalto saiu mal, um morreu e ele foi preso. Nesta ocasiäo,
assaltante
a clinica psicanalftica pode falar de estrutura psic6tica, na auséncia de qualquer a mulher dele me ligou, e tudo isso acabou com uma expressäo juridica,
crise psic6tica e das suas manifestaqöes. pois escrevi um certo mimero de consideragöes sobre ele, por razöes judiciais.
Entäo, para introduzir algumas consideragöes sobre o que seria uma Tudo isso näo saiu muito mal para ele: um div6rcio e um tempo de prisäo
estruturagäo psic6tica fora de crise, lembrei-me de um exemplo. relativamente breve antes de uma expulsäo.
E o caso de um paciente, cuja anålise durou mais ou menos um ano. O que era extraordinårio nesta pessoa — e por isso resulta diffcil falar
Foi certamente a primeira vez em que cheguei —
e, tenho que dizer, cheguei dele — é que ele era disponfvel a qualquer coisa. Näo no sentido da docilidade,
com ajuda —
ao diagn6stico de psicose na auséncia de qualquer manifestagäo no sentido de que mas no sentido de que qualquer
teria Sido fåcil manipulå-lo,
fenoménica de psicose. estrada e qualquer diregäo eram para ele direqöes possfveis, estradas possfveis.
Tratava-se de um paciente norte-americano. Acontece que uma das mi- Isso traduz o que aconteceu no final de sua hist6ria e tabém o que aconteceu
nhas Ifnguas é o inglés e, em Paris, hå relativamente poucos psicanalistas no infcio de sua hist6ria francesa, por exemplo. O fato de ter Sido combatente
que podem trabalhar com pacientes ingleses ou norte-americanos. Este pa- no Vietnä, com uma hist6ria pesada, como a de qualquer combatente no
ciente chegou ao meu consult6rio mais ou menos trazido. Mas näo trazido Vietnä, de ter Sido depois hippie na India e chegar a Paris e inserir-se no
fisicamente por alguém, trazido no sentido de que a mulher dele, que freqüen- melhor da alta sociedade.
tava os meios analfticos, falara para ele que talvez ele devesse fazer uma Tudo isso ele fazia perfeitamente. Mas fazia perfeitamente, eu diria,
anålise. Entäo ele ligou, chegou e ficou "trabalhando" comigo mais ou menos sem nem mesmo medir a diferenga de valor e de significagäo que havia entre
um ano. essas coisas. Desde este ponto de vista, o fim da hist6ria é significativo.
Era um jovem de uns 30 e poucos anos, bonito, vagamente parecido Ele aceitou — e por que diabo aceitou — envolver-se em um assalto a uma
com James Dean e talvez näo s6 fisicamente. A sua hist6ria era bastante agéncia de banco, ele que nunca cometera um ato criminoso... e aceitou
extraordinåria.
porque eles pediram. A verdade é que ele aceitou porque "por que näo?".
Foi militar combatente no Vietnä, deixou o exército americano no fim Era também interessante que no quadro da sua atividade, como por exemplo
do seu perfodo, näo foi um desertor, nada disso. Decidiu voltar aos EUA dirigir o Departamento Administrativo de uma empresa importante, ele estava
do jeito mais interessante possfvel. Apesar do fato de que "interessante" perfeitamente no seu papel. Näo havia nada no seu comportamento que teste-
näo seja uma palavra que fazia parte do seu vocabulårio, vale a pena notar. munhasse uma impossibilidade ou uma dificuldade particular para funcionar
Ele voltava, mas näo tinha chegado aos EUA, porque voltara através da num registro fålico ordinårio. Era possfvel para ele referir-se a significagöes
Birmånia, India. Ficou na fndia por muito tempo. Tinha se relacionado com fålicas distribufdas num meio superfålico, como pode ser o meio social da
drogas nessa época e chegou finalmente Europa. Na Europa ele encontrou alta burguesia comercial de Paris.
uma mulher com a qual se casou. A mulher era herdeiia de uma empresa Ele falou-me um pouco da sua infåncia, que era uma infåncia particular,
importante em Paris. Permaneceu com ela na Franca ocupando um posto numa regiäo dos Estados Unidos, que por Sinal eu conheco bem, era uma
de diregäo na administragäo desta empresa. infåncia ligada a uma seita protestante bastante fechada. Näo vou entrar
O problema que levou sua mulher a enviå-lo, era o seguinte: ele era em detalhes porque nem precisa. Vou lembrar duas coisas principalmente:
casado com ela, sem filhos, e por outro lado, acabou sendo também o amante a primeira é uma sem efeito, o que achei interessante.
interpretagäo que foi
da sua sogra, o que, aparentemente trazia problemas å mulher, talvez sogra, Era uma interpretaqäo relacionada com o fato de que, entre os seus pais,
näo sei, mas näo colocava nenhum problema para ele. Porém ele chegou ele estava constantemente numa posicäo de mensageiro, como se fala em
e ficou no consult6rio mais ou menos um ano. O que era diffcil é que eu inglés, de "go-between". A
posigäo de alguém que estava carregando mensa-
näo tinha a menor idéia do por que ele vinha. Vinha regularmente, falava gens de um ao outro, ida e volta, naturalmente sem nada querer saber das
10 / Contardo Calligaris
Introdugäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / II
mensagens. Como se a tarefa fosse de manter, estabelecer, tecer a rede dos conhecido provérbio que diz "todos os caminhos levam å Roma" näo vale,
lagos, de percorré-la sem por isso ter que privilegiar uma direcäo, um sentido porque os caminhos väo de fato em diregöes pr6prias, e cada caminho vale
ou mesmo um dos p610s relacionados por ele. Havia algo disso também na a pena. Mas, por outro lado, por que errar? Por que ele näo poderia ter
circulagäo dele entre a sua esposa e a sua sogra. ficado numa posiqäo? Por que ele näo poderia, por exemplo, ter ficado no
A segunda é o sentimento que eu tinha, escutando o que ele contava, Exército Americano, na India, na alta sociedade de Paris? Porque escolhe
que essa infåncia estava situada num espago infinito, mas num espago infinito num momento qualquer, a diregäo de um assalto a um banco? Por que justa-
que näo era ideologizado. Quero dizer com isso que ele certamente näo mete hå alguma coisa a mais.
é o ünico jovem americano a ter feito, depois da safda da guerra do Vietnä, Trata-se de um horizonte
de significacöes que näo é organizado ao redor
uma excursäo para a india e experimentado algumas drogas mais ou menos de uma que organizaria todas as outras. E, como conse-
significagäo central
pesadas. O que era interessante, com respeito a esta experiéncia, é que ele qüéncia dessa posiqäo, o sujeito tem que errar. Mas errar näo na procura
näo expressava posigäo ide016gica sobre este assunto. Näo havia posigäo ideo- de algo que poderia ser encontrado como significagäo final, nada disso. Isso
seria mais o "erro neur6tico" do que o "errar psic6tico". Errar porque näo
16gica alguma relativa a qualquer tipo de libertaqäo, por exemplo, tfpica dos
jovens americanos dessa época. Nada se apresentava, no que ele falava, como existe um lugar a partir do qual podemos medir a significaqäo do que estamos
uma forma de significagäo eletiva, mas tudo tinha significaqäo. Tudo tinha fazendo. Nesta medida é evidente que a finica coisa que resta é percorrer
significagäo até o ponto que ele podia, em qualquer situaqäo, ser o homem todos os caminhos. O que resta é um percurso infinito, um percurso sem
da situaqäo. Ele, por outro lado, fora um militar exemplar, tinha medalhas parada. Vale a pena notar: um percurso infinito, mas um infinito näo idealizado
e tudo o que precisava. Isso esquecera de falar. como o infinito de uma procura. O infinito de um mapa, o que é bem diferente.
No comeqo da cura deste paciente, a questäo diagn6stica, na minha cabe- O infinito de um mapa que poderia ser o mapa, näo da terra, mas do céu,
ga, era diferencial entre perversäo e alguma coisa que talvez fosse psicose.
um mapa do infinito. Por isso o interesse para ele da anålise näo era diferente
Do lado da psicose era justamente o fato de que eu näo estava entendendo do interesse para ele de qualquer tipo de experiéncia. Digamos, era uma
nada sobre o que lhe colocava a necessidade de confrontar-se comigo duas experiéncia a mais,um caminho a mais no mapa.
vezes por semana, porque na verdade ele näo se confrontava comigo. Näo Apesar de tudo isso, era um homem viåvel socialmente, embora para
havia nada na sua relacäo comigo da ordem de uma cumplicidade, näo havia o neur6tico médio, bastante misterioso.
nada da ordem de um desafio, näo havia nada tampouco da ordem de uma A partir deste caso jå podemos pensar algumas coisas: por exemplo,
queixa neur6tica. A anålise era um percurso, como podia ter Sido o seu näo podemos concluir, de modo algum, que um sujeito desse tipo näo seja
percurso na India, ou o seu percurso na alta burguesia de Paris, no assalto sujeito. Näo podemos pensar que ele esteja tomado nos registros Imaginårio
ao banco ou na guerra do Vietnä. Deste ponto de vista, havia certa significagäo, e Real somente. Por que ele tem indubitavelmente uma significagäo de sujeito
mas uma significaqäo de forma alguma privilegiada. Näo sei se df para entender Ele estå tomado numa articulagäo simb61ica, chega a circular neste registro.
este tipo de pessoa, que talvez a psiquiatria clåssica chamasse de um psicopata
Mas, se estä tomado numa articulaqäo simb61ica, estå tomado certamente
logrado, perfeito. Näo sei se é possfvel, porque, normalmente, para o neur6-
de um jeito diferente do que um neur6tico.
tico, o tipo de escolhas que se produziram numa Vida como esta, säo escolhas
sempre eminentemente dramåticas. Neste caso, a dimensäo do drama era
ausente, porque todas as escolhas que ele fazia —
escolhas de gr.ande impor-
A ESTRUTURA PSICÖTICA
tåncia ou de grande conseqüéncia do ponto de vista de um neur6tico normal
eram para ele e no seu relato triviais. Aqui é necessårio um parénteses esquemåtico, que nos permita compar-
tilhar alguns conceitos båsicos.
Se tomei esse exemplo, que foi para mim, sob todos os aspectos, instrutivo,
foi para comeqar a pensar no que seria um sujeito cujo horizonte de significa- Qualquer tipo de estruturaqäo do ou psic6tica,
sujeito, seja neur6tica
Göes näo estaria organizado ao redor de uma unidade de medida possfvel. é uma estrutraqäo de defesa, no sentido freudiano, no sentido em que Freud
Um sujeito que estaria num mundo no qual existe significacäo. Mas, no final fala de psiconeurose de defesa. É uma estruturaqäo de defesa na medida
das contas, todas as significacöes säo significacöes em si mesmas, näo se em que se subjetivar, existir como sujeito (barrado pela castraqäo, como
medem a uma significacäo que
distribui as significacöes do mundo. na neurose, ou näo, como na psicose) obter algum estatuto simb61ico, alguma
,
näo do erro. Um sujeito que pode errar, errar no sentido de atravessar o seu corpo, algo Outro e mais do que alguns quilos de carne. Por isso o
mundo e seus caminhos. Entretanto, refere-se a um sujeito para o qual o sujeito se estrutura em uma operaqäo de defesa.
I
sujeito se defende, ao qual se refere, näo é o mesmo na neurose e na psicose.
Antes de mais nada, uma precisäo: näo se trata de acreditar na Demanda
imaginåria do Outro e no receio que produziria a constituigäo do sujeito
como defesa. Trata-se ao contrårio de constatar que o sujeito se constitui
numa operagäo de defesa, que implica a Demanda imaginåria contra a qual
ele se defende.
que diferem entäo o saber neur6tico e o saber psic6tico? A aposta
Em
neur6tica é que haja "ao menos um" que saiba Iidar com a Demanda do
Outro, entäo o •saber vai ter um sujeito suposto, e a problemåtica de defesa
vai se iogar na relagäo (dfvida, geralmente) de cada sujeito com o "ao menos
um" que sabe. E nesta relagäo que o sujeito se constitui e obtém uma signi-
ficagäo.
A escolha psic6tica aparentemente outra: ela näo passa pela referéncia
para indicar uma organizagäo na qual a referéncia a um centro decide do
aum sujeito suposto ao saber, embora passe certamente pela referéncia a
valor de cada ponto. Se para o sujeito psic6tico, e para o nosso paciente
um saber de que o psic6tico é sujeito. Tentemos considerar
defesa, se é
näo hå amarragem de um ponto de "capiton", tampouco haverå organizaqäo
as primeiras conseqüéncias desta diferenga. Por isso, tomemos um modelo,
centralizada do seu saber e do seu mundo. Ele estaria circulando em uma
certamente inadequado, mas talvez eficaz, um modelo de como se produziria
figura näo orientada, por exemplo, algo assim:
a significaqäo. Suponhamos uma rede de significantes e uma nebulosa de
significaqöes (de fato as coisas näo estäo assim, pois a significaqäo é um
efeito do significante, mas por interesse de causa vale a pena simplificar).
Rede e nebulosa deslizariam uma em Cima da outra se näo fossem amarradas
e amarradas com um ponto de "capiton", este ponto de costura pr6prio
ao trabalho do estofador.
s,
com uma significagäo, serå que hå significaqäo possfvel para o sujeito se funcionårio do correio, na triagem (näo por acaso, certo, na circulagäo) e
um ponto de "capiton" näo amarra o seu mundo, ou seja, se ele näo se passava cada fim de semana, cada feriado, e mesmo as férias, viajando. Mas
refere a uma funqäo central? Serå que o nosso paciente estå circulando em ele näo ia para lugar nenhum. Ele safa, por exemplo, sexta-feira de tarde
um mundo sem significagäo? Serå que ele é um sujeito sem significaqäo? e voltava para Paris segunda-feira pela manhä: nessas horas ele näo parava
Como conciliar o fato que näo haja amarragem central e, por outro lado, de circular na rede ferroviåria francesa. Nunca safa das estaqöes, s6 descia
a nossa dificuldade em considerar que o nosso paciente esteja circulando dos trens para esperar conexöes. Ele possufa um conhecimento extraordinårio
em uma rede de significantes que näo possuiria nenhuma articulagäo com da rede e dos horårios da estrada de ferro nacional, conhecimento que ele
uma significaqäo possfvel? Se pensarmos assim, terfamos que aceitar as conse- ia complementando, aperfeigoando e atualizando a cada viagem. E, voltando,
qüéncias, que säo problemåticas: seria entäo pensar que um sujeito como ele tinha a cada vez uma série de informacöes sobre atrasos, modificaqöes
este näo teria significagäo. Quando o que é certo é que ele näo estå medindo de horårios e de linhas, etc. Esta extraordinåria competéncia, que s6 podia
a sua significaqäo do mesmo modo que qualquer neur6tico mede continua- ser adquirida pessoalmente (certamente näo confiava no autor do horårio
mente a sua significaqäo, com respeito a um lugar central. oficial) näo estava a serviqo de nenhum projeto de deslocamento (visita turfs-
Vou propor pensar as coisas com a ajuda de um jogo, que vocés certamente tica, etc.). A
impressäo era que talvez a rede parasse de funcionar, se ele
conhecem e que consiste em colocar um imä embaixo de uma folha de papel parasse de circular e de conhecé-la perfeitamente, se ele näo a sustentasse.
e um pedacinho de ferro em cima. É s6 jogar com duas folhas. para imaginar Pergunta de X: O que då os rumos desta erråncia do sujeito seria algo
o que poderia ser um "capitonage" que ligue significante e significagäo sem que vem de fora, um estfmulo externo?
I
por isso produzir uma amarragem definitiva que se constituå como p610 central. Calligaris: A
idéia de um "estfmulo externo" merece ser interrogada,
porque podemos peguntar até que ponto tratava-se efetivamente de interven-
qöes de alguma coisa externa rede significante. Nessa diregäo, estarfamos
pensando numa intervenqäo quase de um Real, que funcionaria como um
"shifter", como um comutador na rede significante do sujeito. Uma coisa
chegaria do Real, fora da rede e a chegada desta coisa teria efeitos na rede
pr6pria de significantes na circulagäo do sujeito.
Tenderia a pensar que a rede de significantes dele deve ter uma forma
qualquer de 16gica circulat6ria, apesar do fato de que seja extremamente
diffcil pensar numa 16gica circulat6ria pr6pria a este tipo de saber. Muito
dificil, sobretudo para qualquer neur6tico, pensar numa organizaqäo que näo
seja centralizada. Para um psic6tico fora de crise, gostaria de apostar que
o que produz efeitos na sua erråncia estå ligado 16gica mesma desenvolvida
no seu percurso. Quero dizer que, por näo ser centralizado, näo por isso,
16 / Contardo Calligaris
Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 17
o mundo dele teria necessariamente que esperar intervenqöes externas que sustenta nos seus pr6prios percursos, e por isso s6 pode emanar da coisa
decidam da circulaqäo. Mas é uma resposta parcial.
mesma, como se aflorasse na superficie dela.
A hip6tese de que "estfmulos externos", propriamente reais, produzam Se tomarmos um exemplo clåssico, o caso de Jean-Jacques Rousseau,
efeitos sobre este tipo de erråncia é certamente pertinente, tanto mais que
concluir num diagn6stico habitual de psicose näo necessitaria passar por duvi-
veremos depois como o que desencadeia uma crise psic6tica pode ser conside- dosas dedugöes a partir da sua Vida. Considerar O
Emflio, por exemplo,
rado como uma intervengäo externa.
seria mais indicado, pois se trata de uma pedagogia idealmente sem mestre,
Agora, esta resposta, assim como imagino — a sua pergunta, concer- onde a natureza revelaria ela mesma os rumos do saber que a simboliza,
nem ås mudanqas de rumo na erråncia particularmente no nosso paciente
para quem se dispusesse a percorré-los. Mas, também, o Contrato Social
americano.
poderia servir, considerando que a questäo central é conceber uma origem
A questäo que estamos colocando neste momento é a seguinte: o que da autoridade que näo seja um efeito de transmissäo, como auto-engendrada.
produz a necessidade da erråncia enquanto tal? Voltemos ao nosso paralelo Poderfamos multiplicar os exemplos, desde a poética de uma auto-revelagäo
entre saber neur6tico e saber psic6tico. O neur6tico defende-se com um saber da natureza em Hölderlin, até a equivaléncia do mundo ao casulo das propo-
sobre a Demanda do Outro, que ele supöe a um sujeito, ao pai como detentor siqöes no primeiro Wittgenstein. S6 importa notar, com estas alusöes (cujo
suposto de um saber essencialmente sexual. O pai é quem sabe Iidar com alcance diagn6stico é, aliås, problemåtico), que a psicose deu contribuigöes
o desejo materno e por conseqüéncia quem pode decidir da significacäo sexua- essenciais e talvez se entenda porque freqüentemente inovadoras no campo
da dos filhos. Que esta posigäo näo seja confortåvel, pois é um saber sexual da cultura.
— entäo parcial —
que deveria defender o sujeito de uma Demanda do
Mas, voltemos ao que parece ser o essencial da diferenga entre psicose
Outro que é total, isso näo retira nada das possibilidades de descanso que e neurose, ou seja, o fato de que a metåfora neur6tica é paterna e a proble-
a neurose oferece. Pois defender-se é aqui confiar no dominio da Demanda
måtica "metåfora psic6tica" seria sem agente suposto.
do Outro pelo pai. O cuidado do sujeito näo vai ser do lado do seu saber,
mas do lado do seu valor nos olhos do pai. Se para o psic6tico o saber
de defesa é sem sujeito, entäo este saber näo pode ser parcial, pois ele näo A FORCLUSÄO COMO CONCEITO NEGATIVO
vale pelo dominio que um sujeito suposto exerceria sobre a Demanda do
Outro, mas deve —
por si mesmo —
tecer uma rede total e idealmente
Vocés conhecem certamente o texto de Lacan, que estå nos Escritos,
completa que proteja da Demanda o sujeito.
e se chama "Questäo preliminar a todo tratamento possfvel da psicose".
Além näo tem sujeito suposto em que confiar-, a
disso, se este saber I
O texto dos Escritos é um concentrado do seminårio Estruturas freudianas
tarefa de sustentar, ou mesmo
de produzir a rede, o tecido deste saber cabe das psicoses. E sabem que a questäo preliminar é, äs vezes, resumida assim:
ao sujeito mesmo. Daf a necessidade de uma erråncia infinita que é de fato que o proprio da psicose seria a forclusäo do nome-do-pai.
como a tarefa de uma aranha que teria de encasular preventivamente um
Esta afirmaqäo é impr6pria, pela razäo seguinte: que o pr6prio da psicose
perigoso inimigo do tamanho do mundo. O exemplo do viajante de trem
seja a forclusäo do nome-do-pai, é uma afirmagäo negativa, segundo a qual
é deste ponto de vista expressivo. Uma outra diferenqa significativa estå no
a psicose näo é a neurose, e s6. Deste ponto de vista é um conceito preliminar,
lugar onde se situa o saber de defesa. Para o neur6tico é um saber suposto
que permite uma abordagem da psicose, mas poderia dificilmente ser tomado
ao pai, para o psic6tico näo pode ser suposto (pois a quem?) e deve ser
como constituindo o "pr6prio", ou seja, a definiqäo pr6pria da psicose. Por
produzido (pelo menos pelas trilhas da sua erråncia), mas também s6 pode
outro lado, este conceito parece ser o finico jeito de se chegar a algum universal
ser produzido na superficie da coisa mesma, como um casulo ao redor da
I da psicose, porque permite falar da psicose como um conjunto. De fato haveria
coisa mesma. Com de onde pode se originar um saber que näo seja
efeito,
entäo um universal da psicose, a forclusäo do nome-do-pai, mas por que
suposto a um sujeito, que entäo näo possa ser transmitido, se näo na coisa
poderia haver um universal da psicose? Porque justamente é um universal
mesma que este saber tenta simbolizar? Para entender melhor, consideremos
negativo. O que permite este universal é a neurose, näo é a psicose enquanto
que a erråncia näo é necessariamente uma operaqäo motora. Pode
psic6tica
tal. O que funda este universal é o que hå de universal na neurose (a referéncia
ser uma erråncia intelectual.
Falar de erråncia intelectual nos levaria a pensar
paterna) enquanto faltando.
,
em um tipo de pensamento sem organizagäo, mas näo é disso que se trata. Por que Lacan fundou assim um universal da psicose? Acho que ele
Trata-se de um pensamento que tem um horizonte de totalidade, que näo
se interessava muito por um ponto particular e decisivo da clfnica, que é
se autoriza a partir de uma filiagäo, ou seja, de uma transmissäo, mas se
a questäo do desencadeamento da crise psic6tica. A partir da evidéncia clinica
do desencadeamento da crise, estå certo que a psicose aparece como um
18 / Contardo Calligaris Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 19
parte da sua erråncia. De fato, hå pouca razäo para que um anallsta se proponha
efeito No
desencadeamento da crise existe sempre alguma coisa
de forclusäo.
um alvo diferente do que estå sendo pedido, e näo hf nenhuma para que
como uma injunqäo feita ao sujeito psic6tico de referir-se a uma amarragem
ele recuse de acompanhar o seu paciente numa volta pela psicanålise.
central, paterna. Ele näo tem possibilidade de referir-se a esta amarragem,
Mas voltemos ao que poderia ser esta significagäo de um sujeito psic6tico
que näo foi simbolizada por ele, e a partir daf comeqa uma crise, com os num saber que näo estå organizado ao redor de uma significaqäo central
fenömenos que a psiquiatria clåssica descreveu, a saber, estado crepuscular, que distribui todas as significaqöes. Vocés sabem que Lacan fala, no seminårio
alucinagäo auditiva, tentativa de constituigäo de um delirio, alucinagöes cenes-
sobre psicoses, da hipertrofia eg6ica do psic6tico, o que no final das contas
tésicas, näo-auditivas, e assim por diante.
pode ficar bastante misterioso. Porque a dificuldade é a seguinte: como pensar
Voltaremos sobre a dinåmica da crise. O essencial aqui é entender que
alguma coisa que seja uma inståncia propriamente eg6ica no psic6tico?
a forclusäo do nome-do„pai aparece em quanto forclusäo no desencadeamento
Talvez uma Chave para poder pensar um pouco esta hipertrofia eg6ica
da crise e portanto a problemåtica da referéncia impossfvel a este nome näo
seja nos determos sobre algumas påginas que estäo mais ou menos no meio
simbolizado domina a psicose, qualquer psicose, depois da crise. Mas o con-
do seminårio (pp. 153-157 da tradugäo brasileira Zahar, Rio 1985). Nelas
ceitode forclusäo do nome-do-pai näo responde å questäo: o que seria positiva- Lacan fala do que chama de "discurso da liberdade" do neur6tico. Esse
mente a organizaqäo de um saber psic6tico fora da crise? O que é uma subjeti-
discurso é o que faz com que cada neur6tico se viva e se fale como um
vidade psic6tica? O que é um sujeito psic6tico fora da crise?
homem livre, como um homem podendo escolher.
Estamos no ano 55-56, e Lacan estå certamente •Iidando com a importåncia
do existencialismo na Franca nessa época, com uma presenga muito forte
SABER E SIGNIFICACÄO NA ESTRUTURA PSICÖTICA
de uma filosofia da liberdade, da liberdade de escolha, mas näo estå pensando
so nisso... E ele fala que o discurso da liberdade do neur6tico, esta idéia
Quando, por acaso, um analista encontra um paciente no caminho da
propriamente neurotica de ser um homem livre, é um delfrio.
erråncia (que seja a erråncia ffsica, como a erråncia do meu paciente, ou
a erråncia psfquica, como a um
paciente que estå escrevendo
erråncia de
Näo fala um delirio, fala que é um delirio mesmo
que é parecido com
e insiste sobre esse assunto. E chama isso de "delirio de autonomia". Por
ou expressando que ele "deve percorrer"), quando
este saber idealmente total
outro lado, essa ocasiäo é um dos raros momentos em que Lacan alude
ele se encontra interpelado desta forma, nunca é interpelado como sujeito
aqäo polftica. Expressa-se como se o curso das coisas fosse necessariamente
suposto ao saber do paciente, nunca é interpelado na mesma posiqäo na
o seguinte: que o discurso politico iria se reduzindo cada vez mais a um
qual o interpela um neur6tico. Ele é interpelado talvez como uma rede lateral
discurso sobre as liberdades fundamentais doser humano, o que é muito
do saber. Ele mesmo é um pedago do mapa. E, talvez, o que estå sendo
estranho em menos tem um
56, pelo caråter premonit6rio. Em 56 näo era
interpelado num analista é a psicanålise mesma, como um pedago de um
assim de jeito nenhum, o Marxismo era o discurso dominante no pensamento
saber total, através do qual ou pelo qual o psic6tico vai passar, como ele
politico Europeu, pelo menos na politica da esquerda européia. E ele afirma
vai passar em outros lugares, num caminho de erråncia do qual também
que haveria uma proporgäo inversa entre a eficiéncia possfvel da agäo politica
a psicanålise faz parte.
e o delirio de autonomia. Diz que quanto mais o discurso politico se reduz
Nesta situagäo o analista pode as vezes estar com a idéia de que o paciente
a uma reivindicagäo da liberdade como fundamental ao ser humano, tanto
com o qual ele estå Iidando seja um paciente perverso, o que é intuitivamente
mais a eficiéncia da agäo politica diminui.
compreensfvel porque, a partir do momento em que ele estå sendo interpelado
Como ele fundamenta ou como då para entender esse assunto estranho
como um saber e näo como um sujeito suposto a esse saber, ele pode achar
de que o discurso da liberdade no neur6tico seria um delfrio, quase propria-
que estå Iidando com um paciente perverso, ou seja, um paciente cujo proble- mente um delfrio? Pensamos na idéia de uma separaqäo do sujeito entre
ma é justamente a usurpagäo do saber dele. Ele pode pensar estar Iidando
o que seria, por um lado, o seu saber inconsciente e, do outro lado, algo
com um paciente perverso, que procura uma cumplicidade, na qual vai chegar
que vamos chamar provisoriamente o "eu'h Nesta separagäo colocamos do
a um tomando para o saber do para colocar-se
II
desafio possfvel,
mesmo na
si
algumas coisas sobre o que é a constituigäo de um delfrio. A constituicäo mesmo uma significagäo numa filiagäo que ele o "eu" — näo pode reconhe-
de um delfrio depois de uma crise psic6tica é uma metåfora, uma metåfora cer. Daf o neur6tico se fundaria ou se autofundaria numa metåfora na qual
delirante, na medida mesma em que é uma metåfora fracassada. Para que ele seria seu pr6prio pai.
o termo de metåfora näo apareqa aqui enigmåtico, lembremos que a metåfora O delirio de autonomia é o delirio de näo filiagäoa. "O que eu fago
é uma operagäo que supöe uma primazia da significagäo sobre o significante. é a minha escolha, eu posso escolher, posso fazer qualquer escolha". No
Daf aparece Claro que podemos chamar de metåfora paterna a operagäo pela delfrio de autonomia, que é o lugar comum de qualquer neur6tico e que
qual o neur6tico institui, no campo dos significantes do seu saber, uma refe- é uma posiqäo delirante de näo filiagäo, o neur6tico estå fundado em uma
réncia privilegiada que distribui neste campo as significacöes e ao mesmo metåfora na qual ele mesmo estå na posigäo de pai, como se ele fosse pai
tempo lhe promete uma significagäo. Esta significagäo que o sujeito neur6tico de si mesmo.
obtém da referéncia paterna é o ganho da sua filiagäo. O sujeito psic6tico, Marta Ped6: Isso tem algo a ver com a fascinaqäo neur6tica para a lou-
que nos interessa aqui, näo dispöe desta referéncia. Ele erra num saber metonf- cura?
mico, embora nessa erråncia tenha que se produzir algum efeito metaf6rico, Calligaris: Pelo menos no lamento neur6tico de näo ser louco hå alguma
se é que o psic6tico tem alguma significaqäo. Mas, de qualquer forma, quando coisa deste tipo, que o psic6tico seria um homem livre, o que num certo
o sujeito psic6tico encontra a necessidade ou, mais propriamente, uma injun- sentido seria verdade. Mas s6 se falåssemos de um psic6tico que nunca encon-
cäo a referir-se a uma metåfora paterna, que näo estå simbolizada por ele, trou uma crise. Um psic6tico que nunca encontrasse uma crise, seria um
que entäo é uma referéncia impossfvel, o que acontece é que um tal lugar sujeito livre, livre de filiagäo. Mas o problema fundamental da psicose é
organizador volta para ele mas näo volta no Simb61ico, porque nesse Simb61ico
, que infelizmente o sintoma social dominante é a neurose, e que entäo o
näo hå essa fungäo, entäo volta no Real. Confrontando-o com o qué? Com psic6tico encontra quase sempre a injunqäo a referir-se a uma inståncia paterna
a tarefa de construir uma metåfora hom610ga ao que é uma metåfora neurotica e por conseqüéncia uma servidäo paralela å do neur6tico, s6 que mais severa
de filiaqäo. Mas näo com uma fungäo paterna simbolizada e sim com uma por dever servir um mestre real. Os psic6ticos entäo, perderam a guerra.
fungäo paterna no Real. Um delirio é isso: o trabalho de constituir uma Numa outra estrutura do sintoma social, talvez continuariam sendo psic6ticos
metåfora paterna, entäo uma filiagäo e a sua relativa significagäo, Iidando porém näo estariam confrontados ao risco de uma crise ou entäo o seu destino
com uma fungäo paterna näo simbolizada, mas sim no Real. crftico seria diferente .
Isso traz uma série de conseqüéncias. Näo é preciso ter trabalhado muito Froemming: Quando falavas que a forclusäo do nome-do-pai é
Liliane
com pacientes paran6icos para saber que quase sempre o problema central pr6pria da psicose e que isto s6 quer dizer que ela näo é a neurose, que
de um delirio paran6ico é um problema de comunicaqöes. Qualquer paran6ico é um universal negativo, eu pensava ao que Freud coloca definindo a perversäo
II
estå sempre trabalhando sobre esse assunto das comunicagöes, as ondas magné- como negativa em relaqäo å neurose.
ticasque atravessam as paredes, raios divinos, para falar com Schreber, uma Calligaris: Mas näo
estou pensando a psicose como negativa da neurose.
variedade infinita de meios de comunicaqöes. Problemas de comunicagäo entre Estou dizendo que a forclusäo do nome-do-pai, se valesse como definigäo
o que e o qué? Entre, por um lado, o que seria uma amarragem central, da psicose, seria uma definiqäo logicamente negativa. A
neurose pode ser
um p610 a partir do qual uma metåfora seria possfvel, entäo entre alguma um conjunto. E näo s6 a neurose, porque deste ponto de vista a perversäo
coisa que possa amarrar a significagäo do sujeito, mas que estå no Real, faz parte do mesmo conjunto. A
perversäo é impensåvel sem a simbolizagäo
e por outro lado, a organizagäo de um saber que estå no Simb61ico. Para da fungäo paterna. Neurose e perversäo constituem o conjunto dos castrados,
que um saber (Simbölico) se organize ao redor de um p610 central Real, quer dizer, dos sujeitos individados å fungäo paterna. O que permite a consti-
como resolver a questäo da comunicagäo entre dois registros diferentes? Por- tuigäo de tal conjunto, deste universal da castragäo é que exista uma excegäo:
que é disso que se trata na constituigäo de um delfrio: de uma fungäo paterna o pai näo castrado. Esta excegäo, ou mesmo uma excegäo comparåvel näo
que volta no Real e com a qual o sujeito tem que organizar uma metåfora, existe na psicose: se existisse, o psic6tico disporia de um saber organizado
assim como qualquer neur6tico organiza uma metåfora com uma fungäo pater- ao redor de uma referéncia central. Entäo näo hi universal da psicose. Dizer
na simbolizada. Em outras palavras, é com um delirio que um sujeito psic6tico que o universal da psicose seria a forclusäo do nome-do-pai, näo é fundar
tenta de armar para ele mesmo uma significagäo que näo lhe seria garantida .i um universal da psicose, mas constituir o conjunto negativo da neurose e
por uma filiacäo simb61ica. da perversäo (é psicose o que näo é...). Isso näo nos diz o que é psicose.
No delfrio de autonomia do neur6tico tratar-se-ia de algo anålogo. Como Entäo, eu falava de definiqäo negativa num sentido bem diferente do sentido
se o efeito da repressäo da funqäo paterna do lado do saber inconsciente em que Freud pöde pensar na perversäo como negativa da neurose.
tico seria um animal. Imaginårio e Real, com exclusäo do Simbölico, isto Real ele existe. Ele estarå funcionando em vamos reconhecer como
algo que
define um animal. Lacan tampouco afirma isso, pois ele sempre lembra que parecido com uma metåfora paterna que sustenta o sujeito, safdo da crise,
o psic6tico pelo menos estå tomado na estrutura da linguagem. Mas a questäo numa significaqäo viåvel. Este sujeito que consegue se sustentar numa metåfora
é: o que isto quer dizer, que esteja tomado na estrutura da linguagem? É delirante é muito diferente do sujeito psic6tico que se sustenta, aquém de
.1
interessante levantar estas questöes porque mostra que Lacan estå Iidando qualquer crise, gragas å significagäo que ele tira da sua estruturagäo pr6pria.
com os mesmos problemas com os quais n6s vamos Iidar e com os quais E sobre este sujeito que estou, hoje, colocando a questäo: o que é o saber
jå estamos Iidando. psic6tico, aquém de qualquer tipo de confrontagäo com a existéncia de uma
Com o psic6tico näo estå referido
efeito: se fungäo paterna, näo por metåfora de tipo neur6tico, entäo, aquém de qualquer tipo de problemåtica
isso ele estå tomado s6 entre Imaginårio e Real. Mas qual é a sua amarragem delirante? Para este sujeito, que nos parece estar numa erråncia, näo hå
simb61ica, que tipo de significagäo subjetiva pode ter? Hå outra coisa que relaqäo fundante a um significante um (Sl) —
paterno. Mas, uma vez mais,
näo seja uma sustentaqäo Imaginåria do sujeito confrontado com o Real? este sujeito näo estå entre crises, mas bem aquém da crise.
Sim, certamente, porque o psic6tico estå tomado na linguagem. Mas estaria Ana Marta Meira: Esta distingäo valeria também para psicose infantil?
tomado na linguagem s6 metonimicamente, como se estivesse errando na Calligaris: A questäo da psicose infantil é um capftulo pane. Näo sei,
linguagem. Portanto, se se tratar de uma metonfmia sem nenhuma metåfora, por exemplo, se podemos falar de forclusäo do nome-do-pai numa crianga
entäo näo haveria significaqäo possfvel para o sujeito e para os seus percursos. em fase pré-edfpica ou edipica, até o perfodo de laténcia. Certamente podemos
A evidéncia é que existe significagäo no sujeito psic6tico, mas como esta falar disso, mas numa dinåmica que ainda estå para se estabelecer. Eu tenho
significaqäo se produz e se mantém eventualmente sem amarragem metaf6rica? a impressäo de que a situagäo näo estå decidida, o que näo quer dizer que
Tudo bem, o psic6tico é sujeito, tem uma significaqäo, mas, a medida o progn6stico seja necessariamente melhor ou otimista. A dimensäo temporal
em que näo disporia de uma metåfora fixa, este tipo de significaqäo é perfeita- que existe no termo "forclusäo" (que como vocés sabem é um termo jurfdico
mente singular (näo pode ser a mesma para todos os psic6ticos) e enigmåtica. que implica o fato de que alguma coisa estå forclufda, quer dizer, que näo
A esse enigma eu "respondi" com o modelo irris6rio do jogo com o imä. se pode mudar mais —preclusäo) eu entendo-a como alusäo ao fato de
Alfredo Jerusalinsky: O que falamos da fenomenologia da psicose e tam- que a forclusäo necessita de uma série de tempos diferentes. Tenderia a
bém o que no caso Schreber estava escrito, e estava escrito desde o momento pensar que propriamente de forclusäo s6 se trata depois do perfodo freudiano
da crise, é que hå uma oscilagäo da subjetividade psic6tica entre uma aderéncia de laténcia. É alguma coisa que, apesar de estar no Outro desde o comeqo,
a urn significante um (SD que permanece extremamente fixo na posigäo de espera uma confirmaqäo que é conclusiva neste momento. Nem por isso acho
um mandante ao redor do qual o sujeito se vé na necessidade de tentar que se deva deixar de trabalhar com o conceito de forclusäo na psicose da
construir uma rede de saber (entäo ali responde com o seu delfrio), ou bem infåncia, mas a questäo seria situå-lo e colocå-lo de um modo diferente.
um desligar-se desse SL e entäo partir para uma erråncia, no momento de A mesma questäo vale para a neurose infantil, apesar de aparentemente
näo-crise. Agora, me pergunto qual é o destino deste S 1 —
que jogou como ser menos dramåtica. Acho que geralmente trabalhamos com categorias da
mandato no momento da crise —
durante o tempo da näo-crise, em que clinica de adultos na infåncia. E que, apesar de Lacan ser estruturalista,
a estrutura psic6tica, porém, continua vigente. O que aconteceu com aquele näo seria inütil fazer um mfnimo de consideragöes genéticas e cosiderar que,
elemento? mesmo que a estrutura jå esteja no Outro, hå um sujeito se estruturando
Calligaris: O que estou chamando de estrutura
Cabe fazer uma distinqäo. talvez seja o meu passado piagetiano.
psic6tica "fora de crise", é a de um sujeito psic6tico que nunca enfrentou Anna Callegari: É mais diffcil fazer um diagn6stico de psicose infantil?
uma crise, nunca encontrou uma injungäo que o forgasse a referir-se a uma 1 Calligaris: Qualquer diagn6stico infantil é mais diffcil. Deverfamos, na
fungäo paterna e entäo a tentar construir uma metåfora delirante. sujeito Um clinica com crianqas, considerar que as nossas categorias nos016gicas que —
que jå atravessou pelo menos uma crise, a näo ser que esteja em crise ou vem da clinica com adultos — säo sempre de uma pertinéncia delicada. Além
que tenha-se instalado na crise como estado permanente, constituiu um delfrio disso, a questäo da dificuldade do diagn6stico infantil é relacionada com
para sair desta crise. Isso näo quer dizer que ele seja delirante no sentido o fato de que a grande maioria dos laws transferenciais com crianqas comeqam
comum da palavra, Ele pode parecer perfeitamente adaptado, mas, se ele com um Iago transferencial colocado pela demanda dos pais. Entäo, jå a
passou por uma crise e saiu dela, é que ele constituiu alguma coisa que situagäo transferencial é uma situaqäo que, desde o comego, se presta mal
cålculo possfvel do saber inconsciente do sujeito a partir da singularidade Falar em erråncia deve evocar, pelo menos em alguns, a categoria psiquiå-
dos desejos inconscientes dos membros da famflia. E sabemos que as coisas trica de psicopatia. O campo da psicopatia é geralmente compartilhado, na
näo säo bem assim. Por exemplo, cada vez que um paciente neur6tico fala nossa clfnica, entre psicose fora de crise (o nosso paciente americano talvez
de uma lembranga encobridora, nos dizendo "me lembro desta coisa que Alguém que esteja numa posigäo
teria Sido etiquetado psicopata) e perversäo.
o meu pai falou, neste sentido..." quando ele verifica isto, ou o pai falou uma inståncia de tipo paterna, com a Linica diferenga
perversa, estå referido a
sem qualquer intengäo ou nem foi o pai quem falou. Este tipo de experiéncia de que, enquanto perverso, ele mesmo estå colocado no lugar de legislador.
cotidiana permite pensar que o que é decisivo para o sujeito näo säo as Portanto ele faz o que ele quiser, no sentido de que ele mesmo é o pai,
relaqöes intersubjetivas, por exemplo familiares, mas os cålculos discursivos faz a lei. O que é muito diferente da posiqäo de alguém que estå numa
nos quais significantes se organizam sem respeitar o jogo das intenqöes ou espécie de indiferenqa da erråncia.
mesmo dos desejos singulares dos falantes. Roséli Cabistani: Pode-se dizer que o perverso realiza o delirio de auto-
O interesse do conceito lacaniano de Outro é este: chamar a atengäo nomia?
sobre o fato de que a determinaqäo de um sujeito se decide no campo da Calligaris: Sim. Realiza-o aparentemente na medida em que vai imagina-
linguagem e segundo cålculos que näo coincidem com lagos intersubjetivos. riamente usurpar o lugar mesmo do pai. Nesse lugar, estå mesmo num delfrio
E por isso que a psicanålise näo permite uma prevenqäo. Por pat6genas que de autonomia, é o pr6prio pai, e estå legislando. O psic6tico näo estå legislan-
nos aparegam algumas situagöes familiares, na realidade näo é possfvel deduzir, do. Entäo, se para ele näo hå lei, por exemplo, lei no sentido comum —
destas situagöes, coisa alguma sobre o destino do sujeito. um psicopata é facilmente delinqüente, e o nosso paciente também acabou
Alguém, na discussäo qual eu me referia antes, fazia a observaqäo sendo delinqüente —
a relagäo com essa lei é muito diferente, näo é uma
seguinte: "ås vezes parece, quando se fala com a familia de um psic6tico, relacäo conflitual. Para um psicopata psic6tico, estar preso por seis anos ou
que alguma coisa do seu destino de psic6tico estå efetivamente inscrito no estar fora, é sem importåncia. O crime é um percurso da erråncia: nem uma
discurso dos membros da famflia, e até com uma grande brutalidade". Isso transgressäo, nem uma afirmagäo filica.
é certo, mas com o corolårio seguinte: quando o que a famflia estå falando Hå um filme americano bonito que acaba com uma cena extraordinåria
aparece como um destino expressado com uma grande brutalidade, até com de um tipo chegando num
porto procurando o primeiro barco, e alguém
uma espécie de constrangimento corporal do sujeito pelo discurso, alguma pergunta para onde ele quer ir e ele responde que quer ir para qualquer
coisa estå testemunhando justamente dos efeitos de uma situagäo de crise. lugar, "I'm on permanent vacations" —
"Eu estou em férias permanentes".
Uma situagäo de crise na qual os significantes do quadro familiar, aos quais Para responder sua pergunta: de fato ninguém realiza o delfrio de autonomia.
o sujeito se encontra na necessidade de se referir, säo para ele significantes O psic6tico nem se interessa por enunciå-lo e o perverso deve o semblante
no Real, batendo direto nele ou mesmo no corpo dele. Entäo, o que aparece da sua liberdade a uma
usurpagäo que o liga definitivamente ao pai. Aqui
é isto: significantes de uma grande brutalidade, que estäo escrevendo o destino é interessante notar que os caminhos do delirio neur6tico de autonomia podem
28 / Contardo Calligaris
esquecer a fungäo paterna reprimida, para esquecer a 16gica mesma da dfvida, A psicanålise é uma clinica estrutural num sentido forte, na medida em
portanto a 16gica mesma que acabaria impondo uma diregäo ao percurso. que o diagn6stico é diretamente na estrutura mesma do sujeito. A hip6tese
Näo era tanto isso a relagäo deles com o ålcool e a droga. Justamente o é a seguinte: a partir do momento em que existe transferéncia, a fala de
recurso täo fåcil ao ålcool e ä droga näo era nada mais do que uma metåfora um sujeitodesdobra experimentalmente a sua estrutura, e nesta estrutura
pobre do fato de que a sociedade tinha logrado uma abundåncia, na qual o analista estå inclufdo. Ele encontra-se na estrutura do sujeito e, a partir
a relagäo mesma ao objeto aparecia como uma relagäo fåcil. Aliås este tipo desta posigäo na qual ele estå colocado pela fala do paciente na transferéncia,
de sonho s6 era possfvel nestes anos, e talvez s6 fosse possfvel nos Estados a partir daf, ele pode, eventualmente, formular uma idéia diagn6stica.
Unidos, ou na Europa, nos pafses capitalistas mais desenvolvidos. Os objetos O diagn6stico näo é estrutural s6 porque a categoria nosogråfica seria
estavam af, näo s6 nas vitrines das lojas, mas inclusive caindo das margens uma estrutura. Ele é propriamente estrutural, porque é um diagn6stico na
da producäo. Entäo esta relagäo fåcil com o objeto é também uma relaqäo estrutura, a partir da transferéncia e na transferéncia mesma. Näo se trata
forgada, pois o acesso aos objetos é o ideal fålico mesmo. Caindo fora ("drop- do fato de que o analista estaria olhando de um terceiro lugar, contemplando
ping out"), e especificamente fora do consumo como modelo da orientaqäo a transferéncia que organiza a fala do sujeito, e desde este terceiro lugar
fålica das vidas, estes sujeitos —
apesar do érrar, de circular "livremente" diria o que o sujeito é. Importa o lugar em que ele mesmo estå colocado
— reproduziam, na relagäo com a droga, o constrangimento mesmo do qual pela fala do paciente, na medida em que ele estå inclufdo na estrutura mesma
queriam se soltar. Com a diferenqa que —
ao catålogo dos objetos de consumo do paciente pela transferéncia. Fazer um diagn6stico, para um analista, é
— se substituia um objeto s6. o mesmo que reconhecer a posigäo em que ele é situado pela fala do paciente.
É por isso que o diagn6stico näo é diferente que o trabalho normal de uma
cura. Fazer um diagn6stico e saber mais ou menos o que estå acontecendo
O QUE SERIA UMA CLfNICA ESTRUTURAL na cura na qual o analista é tomado é a mesma coisa.
Mas para que tudo isso seja possfvel, é necessårio alguma coisa, porque
Carlos Kessler: Queria voltar å questäo da estrutura. Vocé lembrou que é evidente que a tendéncia da fala comum näo é que o sujeito que fala
Lacan é estruturalista. E vocé fala da estrutura psic6tica, neur6tica, etc. Como desdobre a sua estrutura experimentalmente. A tendéncia é encontrar um
uma clinica pode ser estrutural? semelhante imaginårio. A
procura comum quando se fala é a procura de
Calligaris: Sobre o estruturalismo de Lacan, efetivamente é impreciso uma tampa, ou seja, que o discurso esteja entre dois semelhantes. Dois seme-
chamar Lacan de estruturalista, apesar do contexto cultural... apesar do fato
, Ihantes com uma cumplicidade na suposiqäo comum da significagäo do que
que Lacan teria Sido impossfvel ou diferente, sem Saussure, sem Lévi-Strauss, eles estäo falando. Trata-se de evitar que aparega, no enunciado produzido,
por exemplo, portanto sem pensadores fundamentalmente estruturalistas. que o enunciado e o lugar do qual ele pode tirar sua significaqäo eventual
Apesar disso, e como sempre, este tipo de classificaqäo é imprecisa. Tanto estäo separados. Para evitar isto —
o que, é evidente, imediatamente implica
mais que a linguagem näo é uma estrutura muito satisfat6ria, näo responde a manifestaqäo do sujeito e näo s6 do semelhante na fala —
a maneira melhor
expectativa, porque näo é uma estrutura como as estruturas do parentesco, é encontrar um semelhante imaginårio. É uma coisa muito fåcil de entender,
näo é uma estrutura fechada, por exemplo. Entäo, Lacan é estruturalista, podemos tomar exemplos no cotidiano. Vocé entra num tåxi e fala com o
mas estruturalista na medida em que näo é historicista, até teve posigöes motorista: "Puxa que frio!". Vocé estå estå esperando que o motorista respon-
da: "E mesmo!". Estamos com dois semelhantes insatisfeitos com o frio em
Na medida em que aparentemente a psicanålise nunca vai se libertar o norte. Entäo, deste ponto de vista, o transito näo podia se cruzar, tinha
do Presidente Schreber, o melhor exemplo masculino permanece com ele. que ter uma mäo s6. Um
dado que näo havia mencionado até aqui: ela
Vocés se lembram de suas mem6rias, da importåncia na problemåtica schrebe- foi internada judicialmente porque estava parando o trånsito no meio da
riana do fato de se feminizar, até cenestesicamente, diria, o seu transformar-se cidade de Rosårio. Mas o interessante era que ela pudesse produzir uma
em mulher de Deus é alguma coisa que tem a ver justamente com a procura metåfora e uma atividade propriamente metaf6rica da sua pr6pria metåfora,
de uma significagäo sexuada, ou seja, com o que pode ser esperado, em ou seja, metaforizar, no transito ou no vestuårio, a sua metåfora primeira
primeiro lugar, da construgäo de uma metåfora paterna — que nunca serå que dava a ela e a todas as mulheres a significagäo de homens.
verdadeiramente uma metåfora paterna, que serå delirante na medida em A questäo da equipe deste hospital era a seguinte: esta mulher tinha
que a fungäo paterna sempre manter-se-å no Real. uma filha. Ela poderia sair porque apresentava um delirio constitufdo e um
Um exemplo, que acho bonito, é de uma paciente que encontrei em sujeito que tem uma significaqäo, por delirante que seja, näo se vé por que
uma apresentagäo de doentes, pouco tempo atrås, em Rosårio. Apresentava näo seria um sujeito viåvel. Mas qual seria o risco, por exemplo, desta mulher
um interesse extraordinårio por ser um caso de paran6ia feminina, com um tentar a transformaqäo do sexo de sua filha no Real? Este era o tipo de
delirio bem constitufdo. Era uma mulher, apesar de ser de um nfvel cultural questäo, que se entende perfeitamente, de alta responsabilidade no momento
do que ela chamava "a cura", o que na sua fala era um neologismo. A A minha opiniäo era que näo havia nenhuma possibilidade de que esta
cura consistia em certo numero de operagöes ligadas, particularmente a condu-
,
mulher passasse ao ato, å atuagäo da "cura", na medida em que acho que
tas alimentares, das quais se esperava o seguinte fato: que todas as mulheres temos que acreditar no pouco que sabemos. E, o pouco que sabemos é que,
se convertessem em homens, ou melhor, as mulheres säo homens, mas näo no caso de um delfrio constitufdo capaz de produzir uma metåfora desta
o sabem, porque tiveram um problema de reversäo, de invaginagäo do pénis. qualidade, näo hå porque recear que esta mulher se encontre na necessidade
Existiria uma cura, e sua significaqäo era a de ser efetivamente a terapeuta de passar ao ato uma transformaqäo no corpo de sua filha.
dessa cura, a qual passaria por uma série de condutas alimentares que permi- A. Jerusalinski: A menos que se veja impedida de exercer a conseqüéncia
tiriam a desvaginagäo do pénis. desse delfrio, dessa metåfora.
que depois do internamento judicial era a responsåvel juridica da filha da como testemunha de uma filiaqäo obtida ou construfda seja evidentemente
paciente. Esta estava de acordo em receber sua pr6pria irmä e viver com central, cabe lembrar-se que para o psic6tico fora de crise a significagäo
ela. O problema seria saber e isto é um
problema basicamente social sexuada näo é decisiva, se é verdade que ele näo se sustenta numa filiagäo.
— que tipo de servigo de seguimento pode propor uma assisténcia psiquiåtrica?
, Segundo sentido. Vocés sabem que vårios anos depois do caso Schreber,
E uma outra questäo, porque efetivamente acho que o momento desta apresen- nesse texto muito interessante que se chama "Uma crianga é espancada",
tagäo para a paciente foi importante, pois socializou seu delfrio. A questäo Freud faz uma alusäo esquisita, porque näo tem muito a ver com o que
é como ela vai poder seguir socializando esta atividade delirante sem encontrar vem antes nem depois. Ele fala: näo seria estranho se um dia chegåssemos
um muro. äs conseqüéncias seguintes: que esse tipo de fantasia, uma crianqa estå sendo
Sérgio Spritzer: Mas näo estaria jå socializado, antes que ela entrasse espancada, fosse uma fantasia central no mecanismo paran6ico. E s6 uma
no hospital, esse delfrio? Jå näo haveria, nesse sentido, uma receptividade frase. Freud näo vai retomar esta intuiqäo. Esta fantasia —
que é, como
por parte do meio social e da famflia? Freud fala, tipicamente feminina — seria, pelo menos na versäo ültima que
Calligaris: Acho que o delirio propriamente foi: construfdo no hospital, Freud vai dar sobre este assunto (que näo vai ser um texto em si mas, bem
1
o que acho elogioso, pelo menos do meu ponto de vista, para as pessoas depois, num artigo de 1929, que se chama O problemå econömico do maso-
que trabalharam com ela, o que näo que dizer que o psic6tico näo possa quismo), fundamentalmente, uma fantasia masoquista do tipo: "estou sendo
sair disso, isto é, de uma situaqäo de crise, sem recursos hospitalares. Por espancada pelo pai", e mais precisamente, "estou sendo sexualmente espan-
que näo? cada pelo pai". Por que Freud faria a alusäo citada å paran6ia, se näo por
O ponto sobre o qual queria colocar o acento era o seguinte: num delirio notar um certo paralelo entre a posigäo paterna na sexuagäo feminina e
constitufdo, logrado, a questäo da sexuaqäo é sempre uma questäo, acho, a posigäo paterna no quadro de uma crise psic6tica paran6ica?
presente. Por ser uma questäo central da metåfora paterna neur6tica. Af Essa analogia näo é pura analogia, é um pouco mais. Ela refere-se,
uma questäo que em si mesma mereceria um seminårio inteiro. Se trata de de certa forma, ao fato que a significagäo sexual do sujeito psic6tico, no
retomar o que Freud escreveu sobre Schreber, quando coloca o problema 1 seu delfrio, serå uma significaqäo com respeito a um pai no Real. E Freud
(e se o fantasma "uma crianqa é espancada" é especificamente feminino é A fenomenologia da injunqäo näo é sempre simples. Mas de qualquer
bem porque erotiza o que haveria de cruento na castracäo feminina). Analoga- forma, poder reconstituir com um paciente o que produziu para ele efeito
mente, no delirio paran6ico constitufdo, o sujeito obtém a sua significagäo de injungäo na medida em que isso seja possfvel, jå que näo é sempre o
de uma fungäo paterna no Real. A
alusäo paran6ia no meio deste pequeno caso, é muito importante para ajudå-lo na constituiqäo de uma metåfora
escrito de Freud é uma pérola. delirante. O paciente chegando, no momento da crise ou imediatamente ap6s
Retomemos os momentos relativos ao desencadeamento de uma crise. uma crise, em qualquer tipo de centro de orientaqäo, é importante e urgente
A questäo da injungäo é um assunto do qual Lacan fala. Fala que esta injungäo que a questäo do desencadeamento seja investigada, näo para armar a pretensa
produz a necessidade de um chamada ao nome do pai e que este nome do critica de um delfrio que ainda nem estaria constitufdo, mas para possibilitar
pai näo responde. O sujeito estå num saber no qual hå um tipo de amarragem a constituiqäo de uma metåfora delirante.
errante que é a do imä e do pedacinho de ferro, de repente se produz uma Entäo, a injungäo produz chamada funqäo paterna que näo responde
injuncäo a referir-se a alguma coisa que seja uma fungäo paterna. Verifica-se no Simb61ico. Daf crepüsculo, etc.
entäo um crepfisculo do saber e uma chamada a esta fungäo, que näo podendo Mas que quer dizer que nada responde no Simb61ico? Aqui hå um proble-
responder no Simb61ico responde no Real. ma importante sobre o qual, talvez, eu näo tenha insistido antes. A apresen-
tagäo que propus de um saber psic6tico aquém da crise é muito diferente
de um tipo de apresentaqäo do saber psic6tico como uma espécie de saber
INJUNCÄO E FORCLUSÄO "furado" pela forclusäo. Vocés lembram-se que apresentei a forclusäo da
funcäo paterna como definigäo negativa da psicose. Talvez agora dé para
Gostaria de deter-me um
pouco sobre a fenomenologia da injungäo. explicar melhor: o saber psic6tico é positivamente outro do que o saber neur6-
Acho que temos, freqüentemente, uma idéia simplificada do que pode ser, tico. A fungäo paterna falta, enquanto forclufda, a partir do momento em
e do que pode produzir esse tipo de injuncäo. Sempre estamos nos referindo que a injungäo forga o sujeito psic6tico a referir-se a uma fungäo da qual
a situagöes, digamos assim, fåceis, situagöes diretas, do tipo de uma carta ele näo dispöe. Isso näo quer dizer que o saber psic6tico seja furado. De
chegando, "volta, teu pai morreu e vocé é o finico homem da famflia...". um certo ponto de vista, é o delirio que pode ser considerado como furado,
Este tipo de situaqäo pode ser desencadeante, mas säo situaqöes que se enten- porque tenta organizar o saber, como um saber neur6tico, ao redor de um
dem imediatamente como injuncäo a produzir-se no registro de uma signifi- polo central que vai permanecer num registro Real, näo simbolizado. Falo
caqäo fålica impossfvel para o sujeito psic6tico. isso porque lacanianos, particularmente, nos anos 60, acabaram concluindo
Hå situaqöes mais indiretas. No caso desta paciente da qual acabo de que, se a psicose era a forclusäo do nome do pai, o saber psic6tico era um
falar, acho (é uma hip6tese, näo possuo dados para poder afirmar isso) que saber com um buraco. Estaria faltando neste saber alguma coisa da ordem
tudo comegou justamente com o nascimento da filha. Era uma situaqäo bem do pai, enquanto näo simbolizado. É evidente que isto coloca um problema
particular, porque ela ganhou esta filha sem saber quem era o pai. Confrontada imediato, porque um buraco no saber é algo cuja borda pelo menos seria
questäo (näo colocada por mim, mas por pessoas da equipe): "mas entäo, simbolizada. Se tivesse um buraco, seria uma amarragem. Num saber neur6-
se vocé é um homem, vocé é o pai ou a mäe?", ela respondia dizendo que tico, na medida em que a funqäo paterna é reprimida, se trata justamente
a filha näo tinha pai, que era uma filha de proveta e que ela era o pai de um buraco, de alguma coisa simbolizada como buraco, como auséncia.
da crianga. Näo estou pensando tanto do lado do que seria a questäo da Outra questäo, fenomen016gica. Quando falamos que num paciente psic6-
filha ser uma filha, no sentido de uma decepqäo, que ela näo seria o falo tico haveria forclusäo do nome do pai, isso é um efeito da injungäo, é algo
imaginårio possfvel da mäe, como um menino. Estou pensando na necessidade que aparece no momento da crise. Näo estamos falando do fato que os signifi-
para ela de fazer existir um pai para a sua filha, uma injungäo. Portanto, cantes paternos näo seriam simbolizados, que seu saber teria um limite, assim,
referéncia a uma funqäo que näo estava no seu sistema simb61ico e desencadea- quando se trata do pai, af, näo tem nada. Tanto que qualquer paciente psic6tico
mento da crise. na verdade pode perfeitamente reconstruir sua.hist6ria, até edfpica. Qualquer
psic6tico dispöe facilmente dos significantes de sua hist6ria edfpica. É impor-
paterno para obter uma certa forma de reconhecimento do delirio constitufdo, Pergunta de X: E possfvel, no quadro de neurose, manifestagöes psic6-
uma forma de validagäo da sua metåfora delirante. Acredito que recebi a ticas?
sua interpelagäo como desafio pela minha resisténcia subjetiva, pois reconhecer Calligaris: Uma crise psic6tica em um paciente neur6tico, näo. Mas exis-
o seu delirio era, acidentalmente, reconhecé-la como analista. tem epis6dios com uma fenomenologia psic6tica em quadros neur6ticos, esta-
Geralmente o que faz a dificuldade de uma clinica diferencial na transfe- dos pseudocrepusculares, alucinaqöes, particularmente auditivas, mas näo s6
I réncia, em situaqöes como esta, éque o lugar interpelado pelo paciente é auditivas. Isso mereceria um seminårio: epis6dios psic6ticos em uma estrutura
o lugar paterno mesmo. A distinqäo é de registros —
Simb61ico ou Real neur6tica.
Ill
—e é delicada. No quadro de uma estrutura solidamente neur6tica, pode acontecer que
Fi.V_
Um psic6tico construindo um delfrio chega interpelando um lugar paterno ,
alguns significantes do registro paterno, amarrados na metåfora, tenham pro-
com o qual ele tem que se relacionar, e colocando o analista nesta posiqäo duzido, pelo menos uma vez na hist6ria do paciente, um efeito traumåtico.
paterna. Daf o problema de determinar se ele estå colocando-nos nessa posigäo Traumåtico no sentido de que produziram um efeito diferente do que é espe-
no registro Real ou no registro Simb61ico. A
questäo poderia ser: como rado de um significante paterno numa neurose, ou seja, produziram outra
distinguir se a nossa fala estå sendo ou näo escutada como uma alucinagäo coisa que um efeito de significaqäo e filiacäo, um efeito propriamente traumå-
auditiva? I tico, por exemplo corporal. Daf quando o sujeito neur6tico, numa referéncia
Relativamente a esta dificuldade, cabe aqui uma observagäo sobre algo, qualquer fungäo paterna, evoca este significante especffico, que foi traumå-
as vezes imputado aos analistas, que
desencadeariam crises psic6ticas.
eles tico, acontece que este significante volte no Real. Com efeito, pode-se pensar
Acontece, com efeito, que um um paciente que parece
psicanalista receba que um significante paterno que näo produziu significagäo, que bateu traumati-
organizar uma transferéncia neur6tica, que desdobra a relagäo do paciente camente no sujeito, näo foi simbolizado. Näo por isso eu falaria de forclusäo,
com uma funqäo propriamente paterna. E que o analista näo consiga discernir
que é relativamente freqüente que jovens judeus fazendo a sua viagem inicia- dro da neurose, particularmente na fobia e na histeria. E existe a depressäo
t6ria a Israel, aos vinte anos, conhegam epis6dios confusionais, crepusculares psic6ticano quadro da psicose manfaco-depressiva. Uma entidade fenome-
graves. Isso acontece prevalentemente com jovens de famfliasjudias integradas n016gica comodepressäo näo s6 näo é pr6pria a tal ou tal estrutura. Mas,
e muito raramente com jovens de familia tradicionalista. A hip6tese mais sobretudo, nem é uma entidade: entre depressäo na neurose e na psicose
provåvel, e que se confirmou nos casos que eu conheci, é a seguinte: num näo tem, do meu ponto de vista, nenhuma continuidade, pois näo hi continui-
quadro neur6tico, um significante mestre da filiagäo, "judeu", outorgou os dade entre neurose e psicose. A
idéia de uma continuidade é pr6pria a uma
seus filhos a um destino de horror. Este destino, para os judeus integrados anålise do caråter, por exemplo, que poderia acreditar num molde comum
bem mais do que para os tradicionalistas, näo teve significaqäo que pudesse do mal humor até a melancolia. Para n6s as entidades estruturais säo discon-
I
ser elaborada. Para eles, um significante mestre da filiagäo ficou como propria- tfnuas, radicalmente.
ünico: o conceito de forclusäo. poder-se-ia pensar que, por exemplo, um caråter histérico, uma patologia
histérica neur6tica, uma patologia esquizofrénica psic6tica se sucederiam num
Jå falamos anteriormente que, para este conceito poder ser um conceito
universal da psicose, ele é necessariamente negativo. Isso que dizer que é
crescendum sem soluqäo de continuidade. Fica muito fåcil, tomando-se esse
II
um conceito que indica que psicose näo é neurose. Se näo fosse um conceito caminho, cair na anålise do caråter. Porém, näo é disso que se trata; näo
negativo, näo poderia ser um conceito universal, porque näo existe, aparente-
é, em absoluto, disso que estou tentando falar.
O ponto que queria retomar é o seguinte: falamos bastante sobre a questäo psicose.Estamos falando de estruturas completamente diferentes. E mantendo
da forclusäo; enfatizamos o fato de que o que estå forclufdo é a funqäo a hip6tese que näo haja transiqäo de uma estrutura outra. Esta é a hip6tese
paterna, näo os significantes relativos a esta fungäo. Se o que estå forclufdo com a qual todos estamos trabalhando e que, aparentemente, näo encontrou
é a fungäo, na organizagäo do saber estruturalmente psic6tico, falar "forclusäo
desmentido —
que näo hå passagem de uma estrutura å outra.
do nome-do-påi" näo quer dizer que estejam ausentes os significantes relativos, Mas, apesar disso, é certo que existe alguma evidéncia fenomen016gica
por exemplo, å constelagäo que n6s, enquanto neur6ticos, chamarfamos edfpi- de que tal paciente —
que podemos chamar de esquizofrénico se näo —
ca, mas significa que eles näo estäo na mesma funqäo. Quando falamos de fosse psic6tico seria histérico. O que isso pode querer dizer? Que tipo de
volta no Real do que esti forclufdo, estamos falando de volta no Real de conclusäo podemos tentar tirar a partir desta constataqäo fenomen016gica?
Vou introduzir agora diretamente a hip6tese com que estou trabalhando momento do desencadeamento de uma crise psic6tica, o que estava forclufdo
a respeito de uma clinica diferencial possfvel das psicoses. Vocés sabem que
Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 53
52 / Contardo Calligaris
voltano Real. Mas o que volta näo é Real mesmo, e sim uma constelaqäo Se imaginarmos o saber neur6tico assim:
fundamentalmente simb61ica, com seus corolårios imaginårios portanto —
uma constelagäo paterna, uma constelagäo edfpica. O que volta no Real,
entäo näo é uma fungäo abstrata, näo é o universal da funqäo paterna, mas
uma constelaqäo simb61ica e imaginåria paterna definida. Talvez esta conste-
no Real obedeqa aos mesmos tipos
lagäo simb61ica e imaginåria que volta organizado ao redor de um p610 central;
de diferentes estruturaqöes que podemos reconhecer do lado da neurose.
De novo; o que estå forclufdo é a fungäo paterna e näo os significantes
II
mesmos da constelagäo edfpica que preencheriam esta funqäo se o sujeito
fosse neur6tico. O sujeito sendo psic6tico, na crise, o que volta no Real
para ele säo os significantes singulares que preencheriam a funqäo paterna, e o saber psic6tico assim:
se ele fosse neur6tico. Porém näo säo significantes quaisquer, mas significantes
paternos que fazem parte do saber singular do sujeito, apesar de näo estarem
colocados num lugar central organizador do qual este saber näo dispöe. Desse
ponto de vista esta constelagäo significante que volta no Real poderia obedecer
aos tipos de diferentes estruturagöes que reconhecemos no campo da neurose.
Em outras palavras, para falar claro, embora aproximadamente, poderfamos
pensar que, numa esquizofrenia, o pai que volta no Real é um pai de histérico. como uma rede organizada sem referéncia central,
uma vez a mais, provisoriamente. pode apresentar-se como alguém perfeitamente "normal".
Pergunta de X: Esses significantes säo Sl? Retomemos. Se é plausfvel aceitar a hip6tese de que o que volta no
Calligaris: Säo significantes fazendo parte do seu S2 = da organizaqäo Real no momento do desencadeamento de uma crise psic6tica, é uma conste-
do seu saber. A partir do momento no qual esses significantes seriam convo- lagäo simb61ica e imaginåria especffica, uma constelaqäo edfpica especffica,
cados como significantes que devem produzir a subjetivagäo, devem produzir, —entäo, esta constelagäo que volta no real pode decidir de destinos psic6ticos
por exemplo, e sexuaqäo do sujeito, a sua filiaqäo, que devem presidir a diferentes.
56 / Contardo Calligaris
Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 57
CONSTELACÅO PATERNA NA HISTERIA E ESQUIZOFRENIA Retomando o mecanismo do desencadeamento desde o comeqo, temos:
estruturagäo de um saber diferente do saber neur6tico, depois, uma injunqäo
Antecipo o esquema que resultarå dos desenvolvimentos que seguem: a referir-se ao nome-do-pai, e logo o crepüsculo deste saber. No momento
crepuscular, o sujeito estå propriamente sem qualquer defesa estruturante,
quer dizer, numa posigäo na qual ele se encontra como objeto do gozo do
NEUROSE PSICOSE Outro. Hå nesse momento ao menos uma alucinagäo auditiva, no mfnimo
pai que retorna no Real — dificuldade de constituigäo uma fala do pai voltando no Real. O
delfrio é constitufdo a partir dessa
— abandono objetal
aqui o sujeito nem estå mais sustentado simbolicamente por um saber qualquer
Pai constitucionalmente
insuficiente Demanda do Outro (depressäo) que seja.
Fobia Näo podemos pensar no modelo de delirio constitufdo do Presidente
Pai terrificante — excesso de significagäo
Schreber, ou de qualquer outro paran6ico tratando-se de esquizofrénicos.
(mania) Na crise de um
paciente esquizofrénico existem tentativas de constituiqäo
de um que säo permanentes e descontfnuas: uma frase, duas frases.
delfrio
Existe permanentemente uma tentativa de constituigäo de uma metåfora deli-
N.B. Näo hå passagem da esquerda ä direita, mas sim retorno no Real, na psicose, de um rante, e uma alternåncia permanente entre esta tentativa, seu fracasso e o
II •
Pai cuja tipologia pode estar estabelecida do lado da neurose. surgimento de alucinagöes•näo auditivas. Tudo isso estå numa dialética contf-
nua. Oque estamos afirmando näo quer dizer que nunca o paciente esquizo-
frénico chegarå constituigäo de seu delfrio; a constituiqäo, a tentativa, o
Se esta constelaqäo é de tipo histérico, a psicose serå de tipo esquizo- esbogo de uma construqäo delirante pode acontecer dez vezes numa sessäo.
frénico. Por que? Tomemos o pai da histérica, näo o pai histérico, mas o O problema é que dificilmente constitui-se um delirio viåvel, um delirio com
pai da histérica, como, fundamentalmente, um pai castrado. Se ele volta o qual o sujeito possa sustentar-se em uma significagäo.
no Real, o agente da metåfora com a qual o paciente psic6tico terå que
constituir ou tentar constituir a parametåfora que serå o delfrio, é um agente
débil. Isso apresentarå certas conseqüéncias, tais como fracasso na constituigäo CONSTELACÄO PATERNA NA OBSESSÄO E PARANOIA
do delirio, ou pelo menos uma constituigäo bastante diffcil da metåfora deli-
rante; abundåncia de alucinagöes näo auditivas e escassez de alucinaqöes audi- Se, num segundo caso, a constelagäo paterna que volta no Real corres-
tivas. ponde, na tipologia neur6tica, ä constelagäo da estruturaqäo obsessiva, em
No campo das alucinagöes, cabe lembrar que a alucinagäo auditiva tem que o pai é näo-castrado, vamos encontrar uma situagäo oposta å precedente;
um estatuto particular. Ela tem uma origem diferente das outras. Uma vez ou seja, facilidade de constituiqäo do delfrio, riqueza de alucinagöes auditivas,
originada do p610 paterno mesmo, a alucinagäo auditiva é uma espressäo riqueza de manifestagöes desse pai no Real e ainda escassez de alucinagöes
no Real da voz do pai. Quanto is alucinaqöes näo auditivas, existe uma näo auditivas. O éxito da constituiqäo do delirio funciona como uma defesa
série de observaqöes, as quais seräo posteriormente colocadas. Falando-se efetiva do sujeito, sustenta-o numa significagäo. Evidentemente um paran6ico
genericamente, nas alucinagöes näo-auditivas o sujeito surge no Real perante é alguém que encontra muito mais facilmente um delfrio viåvel.
PMD que preserva entäo, mesmo na depressäo, a defesa adquirida na mania, a significagäo do sujeito psic6tico näo é fålica, é qualquer coisa: a vagina,
RETORNO QUESTÄO DA SIGNIFICACÅO DO psic6tica, para afirmar que o psic6tico fora de crise, aquém de qualquer
crise, apesar de errar na metonfmia, tem uma significagäo e é sujeito. Entäo
SUJEITO PSICÖTICO
algo deve funcionar para ele como metåfora. Mas ele näo tem referéncia
M. Ped6: Para que haja sujeito (f) é necessårio um significante Sl que a um agente suposto desta metåfora, porque um tal agente seria necessa-
o produza, que o represente, e um saber (S). Como isso funcionaria na riamente uma fungäo paterna. Entäo: Uma metåfora sem agente? Retomando,
se um psic6tico näo é um animal, entäo näo estå so entre o Imaginårio e
psicose?
Calligaris: No caso da metåfora delirante é certo que haveria um Sl, o Real, estå no Simb61ico também e tem uma significaqäo, uma metåfora
um saber e um que o Sl do qual se trata estå no Real. Portanto
sujeito, s6 pr6pria. Se essa metåfora tivesse uma determinagäo universal, seria uma metå-
xual seria "anåloga" å sexuagäo simb61ica. Que täo freqüentemente o sujeito que hå metåfora psic6tica, o que implica a existéncia de um saber e de uma
constitufdo na metåfora delirante indique a sua significagäo com um neolo- significagäo do sujeito. E manteria até uma distincäo entre Sl e S2, portanto
gismo, manifesta que se trata aqui de uma significagäo especial, que näo uma divisäo do sujeito. Mas o problema estå no fato de esse tipo de escritura
se confunde, como no caso da neurose, com a significagäo fålica que é o ser tomada para n6s, na perspectiva fålica neur6tica. Entäo hå um inconve-
universal neur6tico. Vale a pena notar que, quando falamos de neologismo niente no seu uso. Além disso, jå falamos que de uma certa forma o agente
näo se trata necessariamente de um neologismo morf016gico, de uma palavra desta problemåtica metåføra psic6tica seria o sujeito mesmo se sustentando
inventada; trata-se de uma metåfora original, viva, que testemunha do fato na sua certeza. Talvez fosse de inventarmos uma escritura diferente para
que — mesmo a significaqäo procurada sendo basicamente a significaqäo sexua- o agente e para o sujeito.
da —ela é uma trabalhosa invenqäo do sujeito Iidando com um agente Real
da metåfora. E o caso, exemplar, da vocaqäo terapéutica na "cura" da paciente
PSICOSES DIFERENTES AQUÉM DA CRISE
da qual jå falei.
Mas, evidentemente, é mais complicado responder sua pergunta no
Ill Queria agora retomar a questäo da Marta Conte, que respondi provisoria-
que concerne ao sujeito psic6tico fora de crise. O que seria uma significagäo
de um sujeito psic6tico enquanto sustentado por um saber propriamente psic6- mente. Se ficamos com a hip6tese que acabo de apresentar, finalmente haveria
tico, um sujeito fora de crise, fora da questäo de uma possfvel metåfora diferentes psicoses depois de uma crise, depois de uma volta do pai no Real.
delirante? Aparentemente, o que dissermos sobre ele serå sempre negativas Antes, s6 haveria genericamente psic6ticos. Sabemos que fenomenologica-
(como no caso da forclusäo). Por exemplo, podemos dizer: a significagäo mente näo é bem assim. Qualquer clfnico um pouco experiente poderia, de
desse sujeito näo vai ser uma significagäo fålica. Portanto näo é um sujeito uma certa forma, prever como seria o tipo de crise de um sujeito psic6tico
barrado ($). Certamente é um sujeito que possui uma significagäo, mas näo caso ele encontrasse uma injungäo desencadeante. Portanto näo é täo simples.
a fålica. Se pudéssemos dizer que tipo de Sl, qual seria o agente de uma Tentemos manter esta ültima constataqäo e também a nossa hipötese: a primei-
Ill metåfora propriamente psic6tica, aquém de qualquer tipo de crise, entäo ra idéia poderia ser que os significantes que voltam no Real, esta constelagäo
poderfamos dizer o que seria a significagäo do sujeito psic6tico aquém de simb61ico/imaginåria que volta no Real, näo sejam, no saber do sujeito antes
qualquer crise. Mas isso acho impossfvel na medida em que o pr6prio da da crise, significantes quaisquer. Eles jå estariam determinando de alguma
62 / Contardo Calligaris
Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 63
lijlif
forma que o sujeito mesmo antes da crise näo seja apenas um psic6tico, ESPECIFICIDADE DA PSICOSE INFANTIL
Ill mas jå um esquizofrénico, um paran6ico ou um manfaco-depressivo. Como
entender isso? Pensar num estatuto particular desses significantes, é proble- A. Jerusalinski: Parece-me uma resposta importante. A pråtica clinica
måtico. Qualquer coisa que possamos dizer sobre esse assunto levar-nos-å com criangas psic6ticas, a experiéncia com elas, levava-me a perguntar: que
Ill
novamente a um campo parecido com o campo da neurose. quer dizer psicose aquém da crise? Porque o momento da estruturagäo psic6tica
Com efeito, se no saber do sujeito psic6tico antes da crise, a constelaqäo é o momento, digamos, dos primeiros anos de Vida, ou seja, o momento
edfpica e paterna näo fosse um significante qualquer, no que o nosso •sujeito da constituiqäo fantasmåtica. Pode-se dizer, até o perfodo da entrada da latén-
seria diferente de um neur6tico, cujo saber justamente se define pela funqäo cia, aproximadamente. Ali se produz o tipo de articulagäo significante, do
excepcional desta constelaqäo? sujeito com o significante, que vai dar uma estruturagäo psic6tica ou näo.
Emoutras palavras, como, aquém da injungäo e da crise, a constelagäo Vemos na clinica que, quando
produz esse tipo de articulacäo psic6tica,
se
edfpica e paterna poderia ao mesmo tempo ser um significante qualquer e a crianga entra em crise. É da crianqa permanecer em crise,
caracterfstico
ter efeitos que jå permitem entrever uma tipologia idéntica tipologia que até que uma intervenqäo terapéutica a tire daf. O que talvez se poderia colocar
vai ser instaurada pela crise? como aquém da crise, é um perfodo bastante prolongado, podendo durar
até a adolescéncia, ou a Vida toda, se o sujeito tiver sorte de näo tropegar
A resposta poderia ser, paradoxalmente, que de fato, quase näo haveriam
,
psic6ticos "completamente" aquém da crise. Por que? A realidade é que com uma injunqäo que o coloque no "tour de force" de ter que se sair da
a significagäo socialmente dominante é a significaqäo fålica. O sintoma social sua articulaqäo de S2 particular. Por esta razäo, a crianqa que sai da crise
se refugia num certo elenco de atividades (e é muito diffcil tirå„la daf, aliås,
dominante, pelo menos até agora (talvez näo vå ser sempre assim, acho que
estå mudando), de acordo com a anålise Freudiana, é o sintoma neur6tico. penso que näo se deva tirå-la).
Deste ponto de vista, é muito diffcil pensar que um sujeito psic6tico organi-— Concordo com o que estås falando. Curiosamente, o destino
Calligaris:
de uma crianga que chamamos de psic6tica é um destino diferente, geralmente,
zado em um saber que näo aquele centralizado em torno da funqäo paterna
— näo fique exposto continuamente a uma injunqäo a referir-se a esta fungäo, do que serå o destino de um psic6tico adulto, até o ponto que diria que
e portanto ao risco de uma crise. Apesar de o sujeito psic6tico resistir ao um dito psic6tico adulto, na continuagäo da sua psicose infantil, näo é propria-
desencadeamento de uma crise, aos efeitos crepusculares desta injunqäo, é mente um psic6tico. Näo sei se chego a me fazer entender. Existe uma psicose
infantil, que chamamos assim apesar de ser diferente da psicose do adulto.
diffcil pensar que ele näo padega dos efeitos de estar a todo momento exposto
a uma injungäo do Outro que o solicita a constituir-se como neur6tico. E Outra seria, aparentemente, a psicose do adulto que é uma continuagäo de
dificil pensar que um sujeito psic6tico, estando num mundo dominado por
uma psicose infantil. Jå uma psicose adulta propriamente dita näo supöe
um sintoma neur6tico —
organizado ao redor de uma metåfora paterna, uma psicose infantil, mas a constituiqäo de uma estruturagäo psicötica na
e da significagäo fålica —
possa se organizar sem acertar contas de algum infåncia, a qual näo chega, necessariamente a fazer com que se possa falar
jeito com uma injungäo continua que pretende fazer valer como funqäo particu-
dessa crianqa como psic6tica.
Enfim, é essa a resposta que encontro questäo colocada. frase até terminå-la. Dois casos que me chamaram a atenqäo por serem exata-
é verdade que se encontram muitos adultos psic6ticos para os quais näo hå o que seria esperado dele é uma significacäo.
evidéncia de alguma crise ou dificuldade infantil. O contrårio também é verda- Nesta bateria minima de trés casos, näo incluo o autismo que me parece
de; existem muitos casos nos quais temos evidéncias de uma crise de estrutu- se situar de uma certa forma aquém da problemåtica psic6tica e, na verdade,
ragäo. Mas acho que uma estrutura psic6tica näo implica necessariamente de qualquer problemåtica de defesa. A psicose como a neurose procuram
uma crise quando de sua estruturagäo. responder å Demanda do Outro sustentando o sujeito na sua referéncia a
A. Callegari: Näo hå uma afirmaqäo de Lacan de que näo haveria psicose um saber que o defenda, constituindo-o como distinto do objeto. A escolha
infantil? do autismo me parece diferente: uma tentativa de apagar a Demanda do
Calligaris: Näo då para pensar a psicose infantil com os mesmos instru- Outro, se anulando, segundo a idéia que, se näo houvesse criatura, näo haveria
mentos que a psicose de adulto. A questäo mesma da forclusäo tem que falha na perfeigäo do criador e por conseqüéncia o criador näo queria nada.
ser abordada de um jeito diferente. O autista me parece ser um te610go. "As crises silenciosas", as quais fazia
A. Jerusalinsky: Concretamente, isso estaria em jogo. Além do mais, a alusäo Abräo, e que podem ser tanto crises das quais crianqa volta,
no Seminårio 11 versäo espanhol, na pågina 272, falando sobre a questäo como entradas num crepåsculo continuo säo, mesmo neste segundo caso,
da holofrase, Lacan mostra que justamente af hå instrumentos diferentes, bem distintas do destino autista.
de um modo positivo. É interessante porque é um dos poucos lugares da Mas, a da distingäo proposta, cabe fazer algumas observagöes.
partir
obra de Lacan onde ele se refere intervenqäo psicanalftica, consideragäo Quando falamos que a construgäo de uma estrutura precisa de um tempo,
psicanalftica da psicose na infåncia com instrumentos diferentes do que poderia de fato queremos dizer que precisa de tempos. Eu conto quatro pelo menos.
ser no caso dos adultos. Assim, o que ele disse é bem isso, que se trata Primeiro, uma disposigäo jå inscrita no Outro, e que por sua vez jå precisa
de questöes diferentes. De qualquer modo, estamos questionando se hå ou talvez de uma sucessäo de tempos 16gicos para ser eficiente. Segundo, algo
näo continuidade e identidade entre o que se estrutura como uma psicose relativo primeira relagäo com o Outro dito "materno". Terceiro, o tempo
aquém da crise e a psicose da infåncia. do édipo. Quarto, o perfodo de laténcia e a safda na puberdade. Eu näo
Calligaris: Vou ser mais explfcito. O que chamamos de psicose infantil falaria propriamente de estruturagäo, neur6tica ou psic6tica que seja, antes
me parece cobrir quadros diferentes dos quadros das psicoses adultas. Acredito deste quarto tempo. Portanto, quando falo de psic6tico fora de crise, que
que um bom caminho poderia ser destinguir pelo menos: nunca encontrou crise, quero dizer que nunca encontrou desde este quarto
1) A construqäo pr6pria de uma estruturagäo psic6tica —
Mesmo que esta tempo que sanciona a sua estrutura. Deste ponto de vista, poderfamos dizer
evolugäo näo encontre acidentes ou obståculos, ela näo deixa de poder ser que s6 se pode falar propriamente de forclusäo da funcäo paterna como
considerada pat016gica, porque näo responde å espera de uma referéncia efeito de uma crise depois do quarto tempo. Jä que o conceito mesmo de
fålicadominante. forclusäo conota um "tarde demais", que s6 valeria depois do quarto tempo.
2) Crises nesta construqäo — Muito freqüentemente a construqäo de uma Infelizmente, e apesar disso, näo me parece fåcil sustentar a idéia de
estruturaqäo psic6tica encontra uma injungäo que a obstaculiza, as vezes instau- uma mudanqa possivel da estruturagäo em curso, numa terapia de crianqa;
rando um estado crepuscular permanente. E um efeito bem conhecido por as tentativas de simbolizaqäo da fungäo paterna me parecem ainda mais proble-
fenomen016gicas imprecisas.
Ao fim da formulagäo de nossa hip6tese, essas mesmas categorias jå
comegam a ter um valor diferente; elas iräo se constituindo como categorias
nosogråficas definidas, näo mais fenomenologicamente, mas estruturalmente,
segundo a transferéncia que cada uma organiza.
Daqui em diante o uso dessas categorias no nosso trabalho vai poder Antes de abordar o nosso tema de hoje —
mas talvez jå seja o tema
ser relativo sua definigäo estrutural. mesmo — gostaria de responder a um comentårio que Abräo me colocou
sobre uma questäo que evoquei com ele. Ele me disse, amigavelmente, que
duvida que eu prefira trabalhar com pacientes psic6ticos do que com pacientes
neur6ticos. Evidentemente, a minha era uma afirmagäo provocante que vale
somente para os pacientes psic6ticos que näo estejam no tipo de processo,
diria, degenerativo, no qual eles acabam, particularmente quando näo encon-
tram um mfnimo de escuta que possibilite a constituigäo de uma metåfora
delirante no momento da crise ou, pior ainda, quando encontram uma verda-
deira recusa do seu trabalho de elaboragäo de um delfrio. Isso provoca um
empobrecimento no trabalho psfquico desses pacientes e a pråtica com eles
torna-se desesperadora.
Uma alternativa. Que eles tenham aceito de se contentar com uma metå-
foraminima que responde å exigéncia da inståncia terapéutica (sem esquecer
que, para um sujeito psic6tico, esta exigéncia é uma alucinagäo auditiva,
verdadeira voz do pai no Real). Neste caso, teremos sujeitos bem afiliados
ao hospital, para os quais a insergäo no universo hospitalar desdobra e segura
na realidade a metåfora que os sustenta. O hospital como realizagäo do delirio
tem o inconveniente terapéutico de viabilizar o sujeito s6 mantendo-o no
seu quadro efetivo.
—
Ou que eles tenham-se tornados "normais", no sentido que é o unico
sério desta palavra — de uma conformidade com os ideais fålicos mais elemen-
tares. Isso acontece quando o terapeuta explicita a sua paixäo normalizante
até o ponto que a conformidade com ela apareqa ao sujeito como o preco
com o terapeuta e o que sustenta o paciente segue sendo a sua filiagäo delirante delirante é a safda da crise. Uma posigäo psiquiåtrica caricatural seria supor
que a safda da crise é a critica do delfrio, näo a constituigäo do delfrio enquanto
åquele.
A pobreza da metåfora constitufda nestes casos é um mal menor, compa- tale
rada com os casos nos quais a finica resposta terapéutica crise é a inibiqäo Continuando, eu gostaria de fazer, pelo menos, duas observacöes. Hå
do delirio e o abandono. Pois aqui, o que se instaura é uma permanéncia uma primeira questäo que quero colocar. Voltemos ao esquema histeria/esqui-
do crepüsculo que se traveste de deméncia. zofrenia, obsessäo/paran6ia, fobia/psicose manfacoudepressiva. Cabe lembrar
A minha afirmagäo se referia a pacientes psic6ticos, ou fora de crise que é um esquema de descontinuidade radical. Segundo a nossa hip6tese,
ou no "frescor" da crise, no momento da crise. Prefiro trabalhar com estes o que voltaria no Real, em qualquer destes trés casos, seria a constelagäo
pacientes do que com pacientes neur6ticos porque acho que o pai, falando simb61ica/imaginåria paterna, pr6pria a cada uma das trés estruturagöes neur6-
genericamente, é um monumento extremamente incömodo para o sujeito ticas. Isso näo quer dizer que os psic6ticos até a crise sejam neur6ticos,
que escolheu orientar sua Vida, e näo errar nela. Isso implica limites na sua mas que no saber psic6tico, os significantes da constelaqäo paterna, com
vontade, na sua atividade psfquica, nas possibilidades do seu pensamento. seus corolårios imaginårios, estariam presentes embora näo exercendo a fungäo
Além disso, a psicanålise, inclusive a psicanålise com neuröticos, parece-me que exerceriam numa neurose. Entäo, a constelacäo paterna voltaria no Real,
ser algo mais do que uma tentativa de conciliar o neur6tico com a inståncia no momento da crise, respondendo injungäo que forga o sujeito a referir-se
paterna que o comanda. Isso é o que tem de propriamente terapéutico na fungäo paterna.
psicanålise, pois se conciliar com o pai implica uma certa economia no sintoma.
Mas a psicanålise talvez chegue a levar os sujeitos a fazer a experiéncia de
que a referéncia paterna näo era necessåria porque, substancialmente, é uma QUE NAO HÅ CAUSALIDADE LINEAR...
defesa contra uma Demanda do Outro, cuja realizaqäo é impossfvel por näo
existir este Outro. Se seguimos a nossa hip6tese de que o que volta no Real é a constelagäo
Entäo, uma vez que a psicanålise tenta ser algo mais que uma ortopedia simb61ico/imaginåria paterna pr6pria de uma das trés estruturas neur6ticas
—o que é uma hip6tese lacaniana cuja verificaqäo nos incumbe —, os psic6ticos que conhecemos, chegamos å conclusäo, talvez insatisfat6ria, mas consistente
säo interessantes para o psicanalista justamente porque fizeram a economia com o trabalho psicanalftico, de que uma anamnese näo pode responder
da referéncia paterna. Terminaremos o nosso seminårio falando sobre o que å questäo de saber se um sujeito é psic6tico ou näo. O que podemos saber
a psicanålise pode esperar do trabalho com psic6ticos. de um trabalho anamnésico sobre a constelagäo edfpica de um sujeito, é
M. Conte: Tu falavas do interesse para o paciente em estabelecer uma algo que vamos reconhecer eventualmente como ligado a uma das trés conste-
fecundos na crise, e, eventualmente, näo existem mil momentos. A tempora- mente diferentes psicoses. No "saber inconsciente" de um psic6tico, os traqos
que podemos encontrar säo pr6prios das constelagöes paternas das trés estrutu-
Iidade nisso é incerta porquepode ser algo muito råpido e näo é algo que
raqöes neur6ticas, e talvez näo exista um trago que nos permita pensar numa
obedega a uma temporalidade cron016gica, e sim, a uma temporalidade 16gica.
Depois de uma crise, —
mas é na crise mesma —
hå um momento no qual necessidade de escolha psic6tica para um sujeito.
Explico um pouco melhor o que estou querendo dizer. Tomando um
o sujeito pode produzir um trabalho de construqäo de uma metåfora delirante,
caso que todo mundo conhece, do Presidente Schreber. Existe uma bibliografia
uma situagäo crepuscular na qual ele se encontra.
metåfora alternativa
jå impressionante sobre a familia e o pai de Schreber, inclusive trabalhos
Normalmente, se constata que, se esta possibilidade é obstaculizada, esse
recentes e conclusivos sobre esse assunto.
momento fecundo näo se reproduz. O que se cronifica näo é, entäo, o delfrio
70 / Contardo Calligaris
Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 71
lil
O que é interessante nisso tudo é que se näo soubéssemos o que foi construgäo causal, sempre vai permanecer um indecidfvel: algo que acabamos
o destino do Presidente Schreber, um conhecimento täo profundo de tipo chamando, com Freud, de escolha. Se entende porque: se, por exemplo,
anamnésico do que foi o quadro familiar dele, nos levaria conclusäo de a nossa construgäo schreberiana, desde que interrogada como causalidade
que o filho desta famflia seria eventualmente —sempre eventualmente, porque linear, nos parece poder introduzir a uma obsessäo, estaremos tentados a
a psicanålise nunca é preventiva — obsessivo. Ficarfamos, pois, completamente deixar por conta do sujeito a "escolha" da psicose.
na ignoråncia quanto razäo do possfvel destino psic6tico do sujeito. —
A idéia de uma escolha é por freudiana que seja problemåtica. —
Quando estamos confrontados com uma crianqa ou um adulto psic6tico, Quem escolhe? Qual seria, na topica freudiana, o agente desta escolha? Mas
é certo que, no caso singular, podemos —
como sempre no trabalho analftico ao mesmo tempo a pråtica da psicanålise supöe uma responsabilidade radical
— construir algo como uma cadeia causal que leva ä necessidade de uma do sujeito, supöe uma escolha, embora esta escolha näo possa ser considerada
I psicose para esta crianga. Entretanto, a reconstituigäo de uma causalidade como livre.
que exclui a funcäo paterna. Se esta questäo surge freqüentemente nas formas notar com quanta freqüéncia encontramos sujeitos cuja psicose parece ligada
epistemologicamente mais ingénuas, é —
acredito — por duas razöes. A ao fato que toda uma linhagem jå matrilinear —
excluindo a necessidade
primeira concerne ånsia preventiva relativa a uma concepqäo da psicose
4.
de uma presenca simb61ica paterna —
é finalmente sancionada, o pai do
como fracasso. A segunda é a extrema fraqueza das nossas construgöes a sujeito exercendo uma profissäo que Iida com a paternidade como Real (gené-
ticade gado, por exemplo).
posteriori concernentes psicose.
Na maioria dos casos, as construqöesque articulamos nos permitem cons- Importa-me mais insistir sobre o segundo tempo, o da relacäo com a
truir uma da constelagäo paterna que, voltando
"hist6ria" da especificidade mäe como Outro primitivo. Jean Berges chamou vårias vezes a minha atenqäo
no Real, decide do tipo da psicose. Mas elas näo nos permitem nem construir sobre a necessidade —
para que uma escolha neur6tica seja possfvel que —
a posteriori uma razäo da psicose, da forclusäo da fungäo. Existem trabalhos a mäe do sujeito, no tempo mesmo do nascimento, possa deixar de ser filha.
interessantes, por exemplo, que propöem construqöes ligadas uma repetigäo Que ela possa, nesse momento, ser mulher, ou seja, situar a funcäo paterna
do apagamento da linhagem paterna nas geracöes. O problema é que sempre näo do lado do seu pai,mas do lado do seu homem. Classicamente, isso
hå contra-exemplos, quer dizer, sempre hå exemplos nos quais o mesmo é necessårio para que haja —
como se fala —
separagäo da crianqa e da
de uma causalidade linear, ela näo se sustenta. E ficamos com a impressäo do lado de uma prefiguragäo nesta relaqäo do que vai ser um saber psic6tico.
que faltam determinagöes na nossa construgäo, ou entäo que, além de qualquer Como se, o sujeito uma vez fundado como 6rgäo imaginårio da mäe, o saber
72 / Contardo Calligaris
Introduqäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 73
que o defenderia de um destino objetal s6 pudessse ser um saber fisi016gico, fato de que ele organiza a metåfora ao redor de um p610 central que estå
circulat6rio sobre um corpo acéfalo. A falta de referéncia terceira implica no näo estå simbolizado. Com isso surgirå
registro Real. Este p610 central
que a defesa do sujeito se sustenta num saber que näo estå num terceiro uma série de problemas com referéncia as comunicagöes. Geralmente, embora
intervindo, mas na coisa mesma e na coisa toda da qual se trata de se defender. näo universalmente, um delirio constitufdo acaba produzindo solucöes origi-
Como se 0 6rgäo se defendesse de se confundir no corpo ao qual pertence nais a estes problemas. Näo pensem s6 nas ondas magnéticas, radioativas,
pelo saber do funcionamento do corpo. raios de Deus, comunicaqöes de nervos, måquina de influenciar a diståncia,
O terceiro tempo, o do édipo, se conotaria näo pela falta de significantes, etc., que säo os exemplos mais evidentes. Consideraqöes genéticas sobre uma
mas por uma auséncia de pontuagäo. É notåvel que esta auséncia de pontuagäo doenga ou algo täo banal como um Sinal hereditårio podem jogar o mesmo
näo implica a auséncia do registro fraterno do ciüme, mas que de repente papel. Comportamentos perigosos para o paciente testemunham, ås vezes
este registro näo remete å competiqäo edfpica. Ele testemunha de uma agressi- também, da procura de uma marca no corpo que faga a transigäo do Real
vidade no eixo da confrontagäo imaginåria tanto mais aguda que a consisténcia ao Simb61ico. Encontrei um paciente hospitalar cujo pai tinha Sido ladräo.
do sujeito jå é hipertroficamente eg6ica. Esta observaqäo é essencial para Em francés "voler" é uma homofonia, significa "roubar" e "voar". Este
entender a complexidade da problemåtica persecut6ria paran6ica: ela näo paciente teria Sido um engenheiro aeronåutico eminente, se, sendo psic6tico,
se desdobra so na confrontaqäo com a exigéncia da inståncia paterna no ele näo que inventar o vöo desconhecendo qualquer filiagäo com toda
tivesse
Real, mas também na relagäo com o semelhante. O outro especular é tanto pesquisa antecedente na matéria, de Leonardo NASA. Ele Iidava com
mais ameagante que é so na relagäo imaginåria com ele que o sujeito se um pai voador no Real e as suas tentativas de voar se jogando no vazio,
sustenta como ego. E é como ego que ele sustenta o seu saber. s6 se acalmaram quando, evitando a contengäo habitual, ele conseguiu se
O quarto tempo, o da safda do perfodo de laténcia, fica como o mais jogar mesmo e contraiu uma enfermidade motora permanente que de repente
problemåtico. Pois, que tipo de sangäo, a näo ser que seja a sangäo de uma funcionava como marca simb61ica da presenqa Real do pai.
crise, o sujeito psic6tico pode encontrar na safda da laténcia se como — Entäo, hå mesmo um problema de comunicagäo, pois o saber e aquilo
parece —
a sua significagäo näo é prioritariamente sexual? A minha hip6tese que o organiza estäo em registros diferentes. Mas pode-se imaginar que uma
é que o sujeito psic6tico confirma a sua "escolha" estrutural neste tempo, metåfora delirante se constitua resolvendo este problema de comunicagäo
decidindo da significagäo singular que ele espera na sua erråncia. de forma que ela se apresente perfeitamente verossfmil para um neur6tico.
A partir daf, a questäo que surge, e que vocé colocou, seria: o que
faz, nesse caso, com que possamos reconhecer esse discurso como delirante?
O QUE É DELfRIO O que faz com que possamos reconhecer a presenqa Real do p610 paterno?
Eu acho que isso s6 é possfvel no quadro da transferéncia, na medida em
Angela Bulhöes: Eu gostaria que tu voltasses a falar do delfrio, näo que a transferéncia coloca a funqäo paterna numa posiqäo Real e näo Simb61ica.
definido fenomenologicamente. Falastes anteriormente, se me engano,
näo Como explicitar isso? No quadro da cura deveria ser possfvel ao analista,
que o delfrio seria caracterizado pelo agente estar no Real. Como é isso? passando por esta fungäo, se dar conta se as suas palavras estäo sendo recebidas
Calligaris: O que faz com que n6s reconheqamos um delfrio como delfrio? como alucinagöes auditivas pelo paciente ou como significantes. Mais propria-
Eu acho que näo pode ser um trago fenomen016gico. Sob o ångulo da verossimi- mente, se a fungäo paterna, para produzir significagäo para o sujeito, necessita
.1 Ihanga, o sistema schreberiano näo é melhor verossimilhante do que a religiäo ou näo de uma conversäo do Real ao Simb61ico. E evidente que trata-se
cat61ica. Em que a transubstanciaqäo seria menos inverossfmil do que a c6pula de algo muito delicado. Lembro-me de uma paciente que, cortada no meio
com raios divinos? de uma frase e protestando por isso de tal forma que eu acabei reivindicando
Portanto, eu falei que o que faz com que possamos decidir que algo a minha prerrogativa de poder cortar, acabou se cortando mesmo, num ato
seja um delfrio, uma
metåfora delirante, é o fato de o agente da metåfora
que pelo lugar que ocupava no seu discurso 0 6rgäo onde ela se cortou
estar no Real, e näo no Simb61ico. Uma metåfora pode ser delirante, com
sem ser, — — revelava que o preco da significagäo era para ela Real.
o agente no Real ser propriamente uma metåfora delirante Mas, frente a um delfrio constitufdo, que de uma certa forma jå resolveu
por isso, inverossfmil. Pode ser, inclusive, bem anåloga a uma metåfora neur6- esta dificuldade de comunicagäo, ainda mais fora do espaqo transferencial
tica. O fato de que um chegue a construir uma significagäo
sujeito psic6tico da cura, é muito diffcil decidir o que é delfrio ou näo. Invocar a fungäo
de uma hist6ria familiar parecida com um romance
viåvel a partir, por exemplo, especffica do neologismo na metåfora delirante é correto, mas näo suficiente.
neur6tico é perfeitamente possfvel. O que faz com que freqüentemente, mas Consideremos um instante so o caso da religiäo cristä, por exemplo, jå falei
näo sempre, um delirio seja "estranho", para näo dizer inverossfmil, é o que a transubstanciagäo näo é mais verossfmil do que a c6pula com os
Acho que jå podemos, a partir do que trabalhamos, articular as posigöes TRANSFERÉNCIA NO CREPÜSCULO
transferenciais possfveis num trabalho com paciente psic6tico.
Voltemos ao infcio, ou seja, questäo de uma estruturagäo psic6tica Oque acontece na transferéncia quando o analista recebe um paciente
hipoteticamente aquém de qualquer crise. Nessa posigäo, que tipo de transfe- em por exemplo, um esquizofrénico em crise, no momento em que
crise;
réncia pode organizar um psic6tico com um psicanalista? Quer dizer, em se verifica o crepüsculo do seu saber como efeito de uma injungäo? Nesta
que tipo de posigäo o seu discurso, o seu pedido, a sua demanda, podem situagäo, em que tipo de posigäo o analista vai encontrar-se colocado transfe-
colocar o analista na transferéncia? rencialmente? Se vocés lembram do que falåvamos sobre o desencadeamento
Parece-me que, nesse caso, a posigäo do analista é hom610ga ao que de uma crise, percebem, imediatamente, que um sujeito que estå numa situaqäo
formulamos a respeito do saber inconsciente de um psic6tico; o analista é crepuscular em que ainda näo deu infcio a um trabalho de possfvel constituiqäo
interpelado, diria,como um saber sem agente, sem sujeito suposto, portanto, de uma metåfora delirante, vai necessariamente organizar uma transferéncia
um sabermesmo. Geralmente, näo é qualquer saber. Um psic6tico fora de em relagäo å posigäo imaginåria de um grande Outro devorante. Assim, a
crise que consulta um psicanalista estå consultando a psicanålise mesma. Estå uma relacäo direta, mortal,
unica transferéncia que ele vai poder estabelecer é
consultando psicanålise näo como algo que poderia organizar o seu saber, com Demanda do Outro. Porque, numa situagäo crepuscular enquanto
a
mas como parte integrante de um saber total; ele pede uma relagäo com tal, näo hå nenhum tipo de defesa que possa segurar uma posiqäo subjetiva,
o saber analftico, e mais nada. uma significagäo subjetiva, seja ela qual for.
Esse tipo de pedido coloca um problema de diagn6stico diferencial, sobre- Um exemplo deste tipo de situagäo transferencial foi descrito por psiquia-
tudo, com a perversäo. Porque ser interpelado no seu saber (mas aqui propria- tras como "o saco de objetos": o paciente se apresenta efetivamente como
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Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 79
contra o muro de anos), era porque, se eu safsse do buraco, a
(tratava-se o paciente numa constelacäo que estå no Real, pode certamente modificar
sentinela teria-me matado. E quando de repente a sentinela se ausentava, alguma coisa nesta constelaqäo e, desse ponto de vista, facilitar ou näo o
É interessante notar que aqui, aparentemente, o delfrio constitufdo, devol- Depois do desencadeamento de uma crise, essas duas posiqöes transfe-
vendo ao sujeito uma significaqäo, impunha também uma postura corporal renclals• —a da Demanda imaginåria e devorante do Outro e a do p610
como preco desta significagäo. Poderfamos pensar nesta postura como equiva- paterno no Real —
säo, num trabalho com pacientes esquizofrénicos em
lente å sexuagäo ou marca corporal, como algo que permite ao agente crise, assiduamente dialéticas. E bem diferente do que acontece numa cura
Real da metåfora produzir, inscrever no sujeito uma significaqäo. Também de neur6tico, na qual a transferéncia, uma vez estabelecida, pode continuar
vale a pena considerar o fato que, se o crepüsculo atinge a fungäo do "eu" na mesma distribuigäo durante anos até que algo finalmente mude no sintoma
e com ela a unidade corporal, o delfrio certamente a reconstitui e talvez do paciente. A transferéncia neur6tica é täo consolidada que, quando ela
de formas especfficas (por exemplo, em uma postura, com uma marca, etc.). muda, o analista pode até imaginar que a anålise acabou. Aliås, freqüente-
mente, quando um analista pensa que a anålise acabou, isso traduz e testemu-
nha o fato de que, na hist6ria da transferéncia, acabou a posigäo em que
POLO PATERNO NO REAL E DEMANDA DO OUTRO
ele estava colocado desde hi muito tempo. Portanto, talvez ele devesse come-
Continuando a nossa apresentaqäo da transferéncia psic6tica: sabemos gar a escutar as coisas de uma posigäo diferente. A
exigéncia do paciente
que, associada injungäo, sempre hå, pelo menos uma alucinaqäo auditiva. de que a anålise estå acabando pode ser escutada como uma contestaqäo
Esta "ao menos uma" alucinagäo auditiva manifesta uma outra posiqäo transfe- legitima ao fato de que ele estå recebendo reSpostas de para o
rencial possfvel: o lugar do qual fala esta alucinaqäo auditiva é o lugar da qual näo estå mais falando. De fato a anålise estå acabada, na medida em
inståncia paterna que voltou no Real. Este lugar é crucial na cura. E importa que o paciente näo estå mais falando com um p610 que lhe responda. Ou
entender que se trata de Real, quer dizer que falar deste lugar implica ser o analista muda de escuta, de lugar de escuta, de lugar do qual ele pode
escutado pelo paciente como uma alucinaqäo auditiva. responder, ou a anålise vai se interromper mesmo. Mas isso é algo relativo
.1
O que falåvamos antes a respeito do delirio também vale para a alucinagäo, ao tipo de, eu diria, tranqüilidade, para näo dizer de suficiéncia, de sono
ou seja: näo hå critério fenomen016gico da alucinaqäo, jå que pode-se perfeita- que a anålise de um neur6tico pode produzir no analista.
mente alucinar algo que estå na realidade. O que faz com que haja alucinaqäo Com pacientes esquizofrénicos em crise, as duas posigöes transferenciais
näo é o fato de alguém estar ouvindo, vendo ou experimentando algo que das quais estamos falando, esse p610 da Demanda do Outro e esse p610
näo estå presente na realidade. Uma alucinagäo pode ser de alguma coisa paterno, estäo numa dialética continua. Quer dizer que, no espaqo de uma
que esteja no campo da percepqäo de todos. O problema, uma vez mais, sessäo, um analista pode estar as vezes aqui, ås vezes ali. Isso com referéncia
é do registro em que se situa a presenga da coisa alucinada, e näo uma a pacientes esquizofrénicos, porque evidentemente um paciente paran6ico
questäo de presenca ou auséncia no campo da percepqäo. Para entender bem constitufdo vai rapidamente construir um delfrio. Logo, a sua confron-
isso melhor, podemos tomar um fenömeno que todos n6s jå experimentamos, taqäo com a Demanda imaginåria do Outro vai ceder rapidamente, jå que
pelo menos uma vez, o "déjä vu", onde um pedago de realidade comum a metåfora delirante o sustenta como Outras questöes sérias väo
sujeito.
surge num registro diferente, num registro Real. A
estranheza da percepgäo surgir eventualmente com relaqäo do analista com o perse-
identificaqäo
do "déjå vu" testemunha a irrupqäo da coisa vista num registro que näo guidor. A
dimensäo perseguidora da funqäo paterna näo surpreende, com
é mais o registro fantasmåtico —
imaginårio e simb61ico da nossa realidade— efeito, pois —
mesmo se a constituiqäo do delirio resolve a questäo de uma
cotidiana. O esforqo de mem6ria que acaba dando o seu nome ao fenömeno possfvel filiagäo —
a exigéncia paterna continua se formulando no Real e
("mas eu jå vi isso..."), se entende como tentativa —
que poderia ser dita confrontando o sujeito a uma divida que foi inventada para poder pagar
delirante de —
recolocar o "visto" alucinado no registro fantasmåtico da em moeda simb61ica, mas que näo pira de ser cobrada —
por assim dizer
realidade. em ouro. Contudo isso é outro assunto.
Portanto, esta posiGäo transferencial — a posigäo do pai voltando no Na anålise de um paciente esquizofrénico em crise —
uma crise que
Real é, como jå falamos, uma posiqäo ocupada por uma constelagäo simb6- se eterniza facilmente, na medida em que a dificuldade maior para o sujeito
lica e imaginåria, apesar de estar no Real. É evidente que é um lugar estratégico vai ser justamente chegar å constituigäo de uma metåfora delirante viåvel
importante, pois a constituiqäo do delirio e da metåfora delirante dependeräo — a oscilagäo entre esses dois p610s da transferéncia é continua. Para o
das possibilidades do sujeito Iidar com este lugar. A do analista, numa
fala o que ele pode falar desde o lugar paterno
analista isto é problemåtico, pois
ill t operagäo que ele pode considerar como simb61ica, apesar de se efetuar para no Real, por exemplo, é algo que certamente näo se aventuraria a falar
80 / Contardo Calligaris
Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 81
de outro lugar, jå que as conseqüéncias näo seriam as mesmas. corte Um té-lo colocado numa situagäo de crise mesmo. Falou de um assunto particular
produzido a partir da posigäo paterna no Real pode ter um efeito decisivo que estava no final do texto, algo como uma utopia, onde näo haveria mais
na constelaqäo simb61ica que ocupa esta posicäo paterna. Entretanto, a mesma circulagäo de dinheiro, e disse: "Vocé se då conta, numa sociedade assim
intervengäo de corte produzida a partir da Demanda imaginåria do Outro näo haveria mais prostituiqäo". Fiquei calado. Acredito que, se eu me jogasse
pode ser recebida como o simples pedido de se cortar. Assim, o trabalho vorazmente sobre esta abertura no sexual, acabaria levantando uma questäo
neste tipo de situaqäo —
que é a mais freqüente com pacientes esquizofrénicos de sexuagäo cujas conseqüéncias do lado do desencadeamento da crise eram
— é mesmo o fio de uma navalha. Säo situagöes nas quais o analista estå incalculåveis. E possfvel, aliås, que esta questäo jå tivesse Sido levantada
permanentemente confrontado com algo que, no trabalho com pacientes neu- irrevogavelmente para ele e que me consultasse para acompanhå-lo numa
r6ticos, se perde continuamente e que Lacan chama de caråter de risco absoluto crise jå desencadeada. Mas nem por isso parece-me que o analista tenha
da palavra do analista. Talvez isso responda å questäo de Abräo sobre o que provocar a crise.
motivo pelo qual gosto de trabalhar com psic6ticos. O que ele pedia de fato? A minha leitura do texto e os adendos que
O trabalho com pacientes neur6ticos leva facilmente o analista
armadilha um psicanalista poderia sugerir, digamos assim, para ele completar e continuar
de pensar que as palavras näo tem conseqüéncias, leva ele a uma banalizaqäo o seu trabalho. Assim, fiquei com o livro, porque näo tinha razäo para recusar
da fala que transforma a cura num trabalho de manutenqäo do sintoma do essa leitura. E, como por razöes acidentais eu näo podia me ocupar dele,
sujeito. Porém no trabalho com pacientes psic6ticos em crise a coisa aparece disse-lhe que achava que devia continuar, que näo tinha muito para dizer,
imediatamente como é: a palavra é algo que comporta um risco absoluto, mas que podia dar-lhe o endereqo de outro analista —
que escolhi por ser
qualquer singificante tem dt ser cuidadosamente pesado. alguém que näo forgaria uma anålise e que saberia se limitar, eventualmente,
a oferecer a interlocugäo que ele pedia sobre o seu texto.
Por outro lado, no trabalho que ele deixou comigo havia, na frente,
ENTRE PERVERSÅO E PSICOSE FORA DE CRISE pois ele enviara a obra para diferentes editoras, uma carta de apresentagäo
do autor e no currfculo, junto com vårios outros qualificativos, havia também
L Froemming: Se pudesses falar um pouco mais sobre o diagn6stico "psicanalista". Contudo ele tinha barrado "psicanalista". Portanto eu poderia
diferencial com a perversäo em relagäo ao psic6tico fora de crise. Fizeste ter tomado isso como uma forma de desafio. De fato acredito que "psicana-
II
menqäo de que é possfvel que seja estabelecida uma posigäo de desafio... lista" era um elemento do catålogo de significagöes obtidas na sua erråncia.
Calligaris: Pode parecer bastante fenomen016gico, mas hå dois tragos E acredito isso porque, no saber que estava por ele exposto verbalmente
fundamentais da transferéncia perversa: e cympL4@e. No pedido e no texto que deixou comigo, näo havia o menor testemunho de qualquer
de um psic6tico aquém da crise näo hå cumplicidade nem desafio. O fato tipo de usurpagäo.
de um paciente psic6tico interpelar um saber é algo que pode levar o analista Pergunta de X: E por que näo de cumplicidade?
a pensar que se trata de uma situaqäo de desafio. Calligaris: Näo forma alguma.
tratava-se disso de A
cumplicidade é algo
Um
exemplo: um paciente que chegou com um texto que era o resultado muito de ser imediatamente captada. Eu estava exclufdo. Ele näo estava
fåcil
de uns dez anos de trabalho. Ele estava mais ou menos na 6a. ou T. versäo interpelando um semelhante. E bem por isso, acredito, e näo por alguma
1 i
modéstia, que ele barrara o "psicanalista": para evitar uma cumplicidade.
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do seu que tratava do sistema do mundo. Mais do que isso, era uma
texto,
descrigäo total do mundo, organizado segundo os Cinco sentidos do homem. Encontrar um semelhante, um rival, näo era o que ele queria, era mesmo
Esse texto comportava um exercfcio notåvel de inteligéncia, que era uma o que ele queria evitar. Näo que seja impossfvel que um sujeito psic6tico
classificaqäo universal dos objetos. Fiquei com esse texto algum tempo, li-o faca uma rivalidade de saber com um semelhante, mas näo era isso que
muito atentamente e achei interessante. E perguntei-me o que fazia com ele estava procurando. Dizendo que näo havia trago de usurpaqäo, quero
que estivesse tomando esse texto como um texto louco. Coloquei-me essa dizer que era um saber que näo se autorizava a partir de nenhuma referéncia.
questäo porque na verdade esse texto näo era mais louco do que muitos Näo havia no texto referéncia a uma subjetivagäo possfvel em um lugar de
outros que jå li. O que ele pedia? Pedia que eu lesse o texto e dissesse-lhe saber (nenhuma citaqäo, nem argumentos de autoridade). A sua questäo
o que pensava sobre o mesmo. Na verdade, ele falou um pouco sobre o era outra, e isso ficou bem Claro quando ele falou-me: "Vocé se då conta
texto. Eu näo o empurrei, de forma alguma, deixei que ele falasse o mfnimo. do que aconteceria se esse texto fosse publicado?" É evidente, näo aconteceria
Com isso, deu-me uma entrada possfvel, indicou-me a partir do que eu poderia absolutamente nada, bem como, quando qualquer texto é publicado, näo
armar uma intervengäo. Ele indicava-me justamente o lugar do seu receio, acontece nada. Mas esta confianga no poder do saber, por exemplo, da sua
o lugar do qual ele estava esperando uma injungäo. E acho que poderia difusäo, e näo no poder que vem do saber é pr6pria å psicose fora de crise.
82 / Contardo Calligaris
Introdugäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 83
A questäo era ver se haveria algo que o saber psicanalftico pudesse acrescentar que faz a economia da referéncia paterna. E radicalmente, qualitativamente
ao seu texto — saber que dez anos, saber sustentado
ele elaborara durante diferente, por exemplo, näo orientar a pr6pria Vida pelo pagamento da divida
apenas pela sua certeza e que ele näo queria expor nem a um desafio — paterna — pois näo hå divida se a castragäo acabou sendo uma privaqäo
que teria produzido uma injungäo catastr6fica —
nem a uma rivalidade mesmo e, por outro lado, circular num saber que näo se organiza ao
na qual a sua elaboraqäo näo teria ganho coisa alguma. redor da metåfora paterna.
TRANSFERÉNCIA DIFERENCIAL
Märio Corso — Para hoje havfamos previsto examinar um caso escolhido diagnostica de neurose obsessiva que näo durou o primeiro embate transfe-
rencial. Como a hist6ria de um caso é a historia da transferéncia näo vou
pela Clinica de Atendimento Psic016gico da UFRGS. Coube-me esta tarefa.
mais chateå-los com detalhes e entrar direto em como esse se desenrola.
Comegamos com um erro, digamos assim, porque a rigor a clinica da
Ele comeqou perguntando qual era o meu nome, meu nome ele sabia,
Universidade näo atende pacientes psic6ticos. A
menos que combinado algum ,
mas queria saber o meu sobrenome, qual era a minha famflia, qual era minha
caso para estudo, mas näo foi o caso pois o paciente entrou como neur6tico.
ascendéncia. Questöes a respeito de por que isso o preocupava näo surtiam
I
Um erro entäo nas entrevistas iniciais, na triagem, mas näo posso reclamar
efeito, apenas o remetiam mesma insistente pergunta. Como, paralelamente,
porque fui quem as fiz.
havia uma questäo de um livro que ele lera, sobre o holocausto, algo como
Trata-se de um estudante da UFRGS, de 24 anos; a primeira entrevista
ser de familia alemä, cat61ica e estar bastante preocupado com a questäo
foino ültimo dia de margo, dia do aniversårio da redentora, jå é uma marca!
da guerra, com tudo o que implicasse em ser alemäo e arcar com a culpa
Reclama de que as coisas näo andam muito bem com ele, principalmente
da guerra e além disso sentia-se culpado pelo massacre dos judeus. Eu inter-
agora que tinha entrado no curso, depois de ter passado no vestibular da
pretei que ele estava muito preocupado se eu era ou näo judeu, se ele podia
Universidade, O que jå näo vinha bem piorou, e que näo conseguia relacio-
ou näo confiar em mim. Também näo surtiu efeito nenhum, ele continuou
nar-se com ninguém fora de sua famflia, ficava s6 restrito famflia. Dizia
querendo saber qual era o meu nome. Inclusive telefonou para minha casa
näo conseguir desejar as coisas como todo mundo, que näo conseguia ser
nesses dias perguntando, perguntando o meu sobrenome.
como todo mundo, algo mais ou menos assim. E que vinha procurar-nos
Pensei, a questäo é dar meu nome e ver que efeito daf vai surgir. Dei
porque um amigo indicou.
meu sobrenome, Corso e disse-lhe que é um nome italiano. No mesmo mo-
Ele vinha de dois tratamentos, o primeiro foi com um psiquiatra ap6s
mento ele atirou-se para trås na cadeira, disse que estava extremamente alivia-
uma internaqäo breve que ele teve num serviqo de urgéncia psiquiåtrica,
do porque se eu fosse judeu ele teria que sair porta a fora. Acredito que
3 a 4 dias, näo houve uma escuta, apenas recebia medicagäo, no caso, Lexotan,
ele sairia porta a fora mesmo, se eu tivesse dito que era judeu. Näo sei
que näo é antipsic6tico, é um calmante, Ele tinha muita raiva deste psiquiatra
como transmitir-lhe o alfvio que isso causou em meu paciente e em contra-
e como o psiquiatra nunca conseguiu Iidar com essa transferéncia, o paciente
partida o meu mal-estar. Sem experiéncias com ocupar um lugar Real na
s6 ia ao psiquiatra para buscar remédio, näo se pode dizer que foi um trata-
transferéncia, num primeiro momento, fui ocupado mais por uma estranheza
mento.
do que por um discernimento que me permitisse operar. Muito embora um
ser alemäo e o que o judafsmo implica, decorrente de uma leitura que fazia Também de entrar em contato com o psiquiatra que fornecia a medicagäo
do livro neonazista Holocausto, judeu ou alemäo comegou a ganhar corpo para ver o que ele pensava disso. Esperei o momento, um dia ele perguntou
como aspecto delirante. Paralelo a isto havia o fato que todo mundo estava se eu queria conhecer sua famflia, disse que sim, ele escolheu que viesse
percebendo ele diferente, sabia que havia algo, mas näo sabia o que era. uma irmä mais velha. Marquei e veio, ele näo quiz vir junto. Falei para
Todo mundo olhava ele de maneira diferente. Ele estava desconfiado, tinha essa irmä que ele estava em tratamento, que veio nos procurar e perguntei
quase certeza que fizeram um programa de televisäo onde contavam a sua o que ela pensava disso. Ela revelou ter uma boa idéia do que passava,
Vida. Por isso os colegas de curso estariam sabendo do que se passava com sabia que seu irmäo estava mal, que em casa näo falava com ninguém, que
ele. Deve ter safdo no jornal, talvez no rådio, mas ele näo sabia bem quando ele estava se isolando, e que quase näo respondia as perguntas que lhe eram
e como. feitas. Se alguém falasse com ele, fizesse uma pergunta, ele demorava quase
Mais adiante isso se junta mais ou menos assim: os meios de comunicagäo um minuto para responder, qualquer assunto que fosse. Possufa uma genuina
säo dominados pelos judeus. E Claro que o Sirotsky, uma figura bastante preocupagäo por ter tido uma amiga que comegou assim e depois foi internada.
importante, tem o seu papel. Perseguiriam-lhe porque possufa um saber sobre Com o psiquiatra nunca consegui entrar em contato porque o paciente o
uma coisa que se ele revelasse mudaria o rumo de tudo e os meios de comuni- odiava, näo queria saber de nada com ele.
caqäo näo queriam que fosse divulgado. Tratava-se justamente da questäo A familia depois veio procurar-me, porque eles queriam saber qual era
da guerra. Tudo o que se conta da guerra é uma mentira, uma farsa. Quem a melhor forma de ajudå-lo. Eu disse para eles que se eles queriam ajudar,
realmente morreu na guerra foram os alemäes, näo os judeus. E os judeus perfeito, mas que eu näo seria a pessoa mais indicada, para poder resguardar
se fazem de vitima para passar bem. Entäo para eles interessa a mentira. o tratamento jå em curso, e que eles deveriam procurar outra pessoa. Encami-
Mas, como agora ele sabe disto, comeqou a ser perseguido pela Policia Federal, nhei a uma terapia de famflia, mas eles näo foram.
e por uma organizaqäo sionista internacional. Os meios de comunicacäo tentam Retomando, neste dia que eles vem, a mäe pede para falar uma coisa
desmoralizå-lo fazendo estes programas, gozam dele, repetem frases que ele que o paciente pedira para ela falar para mim. Quando eu perguntara sobre
disse durante o dia. Braum o paciente fora perguntar para os pais. E a mäe sabia o que era:
Mas este delirio era para consumo interno, s6 falava comigo, ele sabia conta que havia um advogado que ajudou o cunhado dela a sair da cadeia
perfeitamente que se falasse para outras pessoas näo ia se dar bem; ele tinha quando esteve preso por propaganda nazista durante a 2! guerra, e foi parar
uma que isto era fruto de uma imaginagäo doentia, por outro
crftica, dizia na ilha do presidio. O advogado que intermediou isto chamava-se Braum.
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lado, ele sabiaque tudo era verdade. Ela disse que näo sabia porque estava me contando isto, mas jå que ele
Esta questäo do nazismo foi evoluindo até que, além de ser portador pediu,uma hist6ria täo adormecida como esta, jå estavam todos mortos.
de uma verdade ele era a reencarnaqäo mesma de uma figura muito importante Na sessäo seguinte ele vem e diz que entendeu o que eu queria dizer
do Ill Reich. Perguntei quem era a pessoa, ele respondeu que eu saberia. com professor Braum. Eu näo entendi o que ele quis dizer com que ele
No auge disso tudo procurou um professor seu da faculdade, professor entendeu, mas com isso esta questäo do nazismo caducou a partir desse
Braum, para entrar em contato com "eles", näo agüentava mais aquela perse- momento e nunca mais voltou. O delirio ficou s6 com os meios de comunicaqäo,
de que lado eu estava. soubera até entäo dizer-me o que tinha acontecido aos 13 anos. Agora lembra
Em julho eu tirei uma semana de férias. Avisei para ele com 3 semanas que a sua irmä fora professora dele no colégio, e diz que aos 13 anos ele
de antecedéncia que iria viajar e ele iria ficar uma semana sem atendimento. foi eleito chefe de turma mas que näo pöde aceitar porque a irmä era professora
Ele tudo bem, mas comeqou a faltar. Faltava e vinha, pedia sessöes
disse.• e que pensou ter Sido uma tentativa da turma puxar o saco dela, entäo ele
extras e näo vinha ou vinha no final da tarde para me pagar, ou ainda vinha näo poderia aceitar este cargo.
para dizer que näo tinha podido comparecer. Teria tido um problema, iria Outro momento aconteceu quando
.11
entra em tratamento e ele me é reenviado a tratamento individual. Como Bebia antes de ir para a aula de manhä cedo. Seu pai era dono de bar o
o paciente queria tomar medicagäo fica acertado que ele se trataria comigo que tornava as coisas mais fåceis. Ele ia para o bar e tomava dois conhaques,
uma cerveja e ia para aula. Fez todo 0 2! grau assim, sem isso diz ser impossfvel
e näo voltou. Ele jå tinha me dito que se ele voltasse ia acontecer tudo
A leitura do livro sobre o Holocausto é recente, ela é feita depois da entrada
1
na Universidade e antes do atendimento com releituras durante, isso nos
outra vez. Como ele trazia a questäo que ele näo podia trabalhar com o
separa de poucos meses, como uns quatro ou cinco.
pfiblico, uma pessoa tudo bem, duas jå é mais diffcil, conversar com trés
Calligaris: Entäo terfamos primeiro este epis6dio dos treze anos, a crise
é uma multidäo, jå entäo näo fala mais, fica s6 imaginando o que estariam
do servigo militar, a internaqäo, a leitura de Holocausto etc. e finalmente
pensando sobre a situagäo torna-se impossfvel. Eu perguntei porque
ele e
a sua chegada na consulta.
este emprego do que ele disse que ia procurar.
se é exatamente o contrårio
Ele responde que foi procurar por que estava no jornal e näo tinha nada
Uma eoisa surpreende-me. Além do fato que o enunciado da queixa
a mais. Procurou porque estava no jornal e ponto. Isso veio como um Real,
de um paciente chegando, por banal que seja, sempre deve reter a nossa
atenqäo, além disso a queixa do nosso paciente parece-me extraordinåria.
como um imperativo categ6rico, näo pode näo procurar e ele foi procurar.
Ele queixa-se de näo conseguir ligar-se fora da sua famflia. Se aceitar-mos
Ele tem uma teoria sobre si bem interessante. Versa sobre quando ele
estå bem ou mal. Quando estå mal é porque estå muito egofsta e muito
a idéia — aliås pouco discutfvel da — sua psicose, temos que reconhecer
que a queixa é inesperada. Esperarfamos mais bem a queixa de näo conseguir
orgulhoso e que ele s6 quer atengäo. Quando estå bem é quando ele pode
ligar-se dentro da sua famflia.
se escapar disso e amar os outros, prestar atengäo nos outros. Uma teoria
interessante, me recordou imediatamente Freud, quando fala, na "Introdugäo
— —
No mfnimo, esta queixa num quadro psic6tico poderia nos assinalar
que estamos na problemåtica de um "entre crises". Ou seja, que näo s6
ao Narcisismo", sobre libido objetal e libido do ego, parece que tem bem
jå teve uma crise, mas que ela jå foi resolvida, certamente pelo lado de
Claro esta noqäo, esta divisäo.
alguma metåfora delirante e que, agora, esta metffora estå de certa forma
Hå um detalhe que eu acho importante, com respeito a algo
s6 mais
entrando em crise. O paciente nos diz também de que forma: se ele quer
que mencionado, uma passagem em "Bate-se em uma Crianga"
foi antes
ligar-se fora da sua famflia, é que a metåfora constitufda deve estar cobrando
sobre a relagäo que teria essa articulaqäo com o tema da paran6ia. Ele me
P diz, logo depois da tentativa de suicfdio, que todo mundo goza dele. Diz:
demais. Ele quer sair fora.
Tentamos entäo reconstruir. Do epis6dio dos 13 anos näo sabemos sufi-
"quando gozam de mim é como se me batessem". Inverti a frase "gozam
ciente para considerar que tenha Sido uma
Mas o epis6dio do servico
crise.
batendo em ti", como que é isso? Ele då um pulo para trås e diz: "näo
militar é com certeza a confrontaqäo com algo bem distinto de um desejo
sou bixa" e continua falando outras coisas. Mas hå uma repetigäo nesta ligagäo
homossexual recalcado. Ele estå de repente confrontado com a necessidade
associativa de ser gozado e ser batido.
de encontrar uma sexuaqäo, ou mais propriamente de recebé-la. A forclusäo
M. Conte: O que que a familia falava, que expectativas tinham? da funqäo paterna aparece no receio de dever submeter-se uma sexuacäo
92 / Contardo Calligaris Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 93
Real, no medo de ser a vftima, näo tanto homossexual, quanto feminina Näo acredito que seja por acaso que um passeio noturno o leve a perder-se
da exigéncia paterna. Precisa apenas insistir sobre a impossibilidade de eva- no meio do aeroporto. E mesmo o que ele estå querendo dizer: ser filho
cuar, de abrir em suma o oriffcio anal a um transito perigoso, no banheiro é Salgado demais (NdR: o aeroporto de Porto Alegre chama-se Salgado Filho).
masculino (dos outros, entäo) e sobre a conclusäo de näo comer mais — A. Jerusalinsky: Me chama a atenqäo no caso, e eu perguntava-me porque
para näo ser comido talvez. se då assim, que hå um argumento que se desenrola. Tem um ponto referencial
Acredito, mas é s6 uma hip6tese, que, apavorado pelos riscos da sexuaqäo, que é o assunto da filiagäo alemä. Ou seja que näo é uma constelagäo onde
ele tenha tentado compor uma metåfora por um lado aparentemente mais todos os significantes säo equivalentes, hå alguns que tem mais peso. Bem,
seguro. Pelo lado da origem alemä, por exemplo, e acredito também que qual é a diferenga entre este ter mais peso e funcäo paterna?
ele chegou ao tratamento quando manter essa filiagäo estava tornando-se Calligaris: Sim, mas estamos entre crises. Jä tem uma fungäo paterna
algo acima das suas forqas. funcionando, hom610ga å metåfora paterna neur6tica. Com a diferenga que
Dispomos de uma série de indfcios sobre o que foi a sua dificuldade. esta funqäo estå no Real. O problema do paciente näo é a constituigäo de
O alcoolismo dele, por exemplo, nos faz pensar, classicamente, na relagäo uma metåfora delirante sobre fundo de crepüsculo. E que a filiaqäo delirante,
do sujeito com um gozo do qual ele estå sendo certo privado. Mas qual que ele jå conseguiu armar, estå cobrando demais.
seria entäo este gozo "outro" de um pai com o qual ele tenta recompor A. Slavutzky: Qual seria a importåncia do nome que ele leva pela impli-
uma metåfora? Talvez tenha uma chave significante. Mårio lembrou-nos que caqäo com a promessa da mäe diretamente ligada aos irmäos mortos. psicogé- A
o pai era dono de bar. Com
o que jå suspeitamos sobre a inversäo possfvel nese näo estå dada desde este momento por esta filiaqäo particular?
do näo ouvir o palindromo e, de repente, completå-lo
trånsito anal, é dificil Calligaris: Com
os elementos dos quais dispomos, é uma construcäo que
com um diminutivo que nos colocaria no centro da questäo. Pois é certo se impöe. Esta nominagäo bem particular, ligada a uma promessa materna,
que, para ele, a vftima judia do alemäo é uma figura da vftima sexual que testemunharia de um fracasso do discurso materno em situar o lugar paterno
ele seria se se submetesse sexuagäo no Real. E bem esta a diferenqa de do lado do marido da mäe. Mas isso é uma construqäo que daria conta da
filiagäo Simb61ica e Real. Numa filiagäo simb61ica ele seria alemäo também, psicose do sujeito enquanto tal. Responderia a: porque o nosso sujeito é
tendo eventualmente que Iidar com a culpa relativa. Numa filiagäo Real as psic6tico. Näo nos diz nada sobre o que a sua psicose acabou dando, nem
coisas complicam-se e confundem-se: para ser algo na sexuagäo, näo é sufi- sobre a sua situagäo no momento da consulta.
ciente que o pai me diga homem ou mulher, precisa que ele me faga... mulher. Além disso, esta construgäo näo nos autoriza a nenhuma reconstrucäo
causal linear.
Ou seja, que goze de mim como de uma mulher. Esta constataqäo, que
a sexuagäo (fundamento da filiaqäo) exige que ele seja a vftima sexual do Qualquer um de n6s vai encontrar pacientes neur6ticos com hist6rias
pai, leva-o a privilegiaruma filiagäo alemä, mas a sexuaqäo encontra um parecidas e até piores do ponto de vista da nominaqäo, ou de ter chegado
eco do lado do fato que os alemäes foram autores de um genocfdio. depois de irmäos mortos.
O
gozo paterno do qual o sujeito é privado —.aparece como um A. Slavutzky: Também sobre o suicidio eu lembraria que ele teve dois
gozo sådico. E o prego na filiaqäo confunde-se entre fazer-se de mulher e irmäos mortos que foram amados; poderia ter pensado: "quem sabe enquanto
ser o judeu do alemäo. morto". Um sacriffcio de seu corpo, näo hå ato maior de amor que um
"Se me querem em casa, por que näo me empalham? Se é a carcaga suicfdio num certo sentido.
que eles querem", fala o paciente. Estar em casa, se ligar nesta metåfora Calligaris: O proprio paciente diz que foi por amor.
parece exigir este preco. E notåvel que a tentativa de suicfdio vai ser na M. Corso: Eu faria uma precisäo, penso que ele näo entrega a Vida
safda de Mårio, confirmada por ele näo caber no carro da famflia. Se matar e sim o corpo.
talvez seja o jeito mais seguro de ser reintegrado, pois é a vftima que consegue Calligaris: Mas é bem o que estamos discutindo, sobre este suicfdio:
a filiagäo. Diffcil também näo considerar que ele se suicida inscrevendo uma ele entrega o corpo para salvar a "vida", quero dizer como preco da sua
marca num lugar de triste mem6ria, o lugar da marca nos campos de concen- filiagäo, para näo cair fora. E um "quem sabe, enquanto morto" que concerne
tragäo.
a filiagäo. Näo me parece que as circunståncias da tentativa nos autorizem
A mesma coisa aparece quando Mårio intervém para dizer "gozam baten- a pensar numa remincia å filiagäo que seria entrega de Vida e corpo ao Outro
do em que é verdadeiro demais para o paciente. Ele responde "näo
ti", materno.
Ill
sou bixa" do lado do "gozam", e poderia ter respondido "näo sou judeu" M. Corso: Ele tinha fantasias de entrega do corpo aos pais, se imolar
do lado do "batendo". Ele estå sendo perseguido por uma exigéncia paterna em praqa püblica para resolver o problema do pais e a questäo de se empalhar.
que cobra, para a filiagäo, um prego exorbitante, que o quer mulher e vftima.
100 / Contardo Calligaris Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 101
NA CRISE essa urgéncia de normalizaqäo dirige a aqäo e os atos dos terapeutas com
tamanha forga.
O que acontece na relagäo com paciente psic6tico cuja crise jå estå desen- Entäo, o que deve ser täo intoleråvel na relagäo com um paciente que
cadeada? Aqui temos, fundamentalmente, duas posigöes transferenciais possf- estå Iidando com o p610 paterno no Real, que estå tentando construir uma
veis; posicöes estas näo exclusivas. metåfora paterna, apesar desta metåfora ser delirante? Por que o trabalho
Uma primeira posigäo é o lugar paterno que, para o paciente em crise, de constituigäo do delirio é um trabalho täo diffcil de agüentar para o terapeuta?
.11 • .
voltou no Real. Falamos bastante sobre o fato de que o que estå forclufdo, E uma questäo que surge porque, no final das contas, em um trabalho psiquiå-
para o paciente psic6tico, é a fungäo paterna, mas que o tecido do que vai trico particularmente, seja qual for a preparagäo, inclusive analftica dos psi-
voltar no Real é um tecido simb61ico e imaginårio; certamente, hå uma possibi- quiatras, é dificil para eles aceitarem que hå outra coisa para fazer com o
Iidade de trabalhar analiticamente nesse tecido. Vamos voltar sobre esse lugar delirio do que tentar suprimi-lo, tentar parå-lo, inibi-lo. Em geral, a interven-
porque é af que, geralmente, os analistas trabalham. gäo medicamentosa, em relaqäo ao delfrio, é uma tentativa de inibigäo. Entäo,
A segunda posiqäo transferencial é a encarnaqäo do Outro imaginårio, o que é que se trata de inibir, o que é täo diffcil de agüentar?
enquanto sendo o Outro ao qual o paciente vai ser entregue na medida em O pr6prio da posigäo neur6tica é que o sujeito estå constitufdo em uma
que a constituigäo da metåfora delirante näo lograr. Como essas duas posigöes metåfora paterna, fundamentalmente reprimida. Para um neur6tico, a fungäo
näo säo exclusivas, o analista pode, continuamente, encontrar-se oscilando paterna estå simbolizada, o que é equivalente a dizer que, para ele, a funqäo
paterna estå reprimida; mais propriamente recalcada. Entäo, o que faz com
de uma posiqäo outra. Conforme jå havia comentado, isso constitui o tipo
de risco absoluto no trabalho com paciente psic6tico, sobretudo com esquizo- que o trabalho de constituiqäo do delfrio, no paciente psic6tico, seja inagüen-
tåvel para a maioria dos neur6ticos, näo necessariamente para todos, é o
frénicos.
fato de que o trabalho de constituigäo do delirio é uma apresentagäo quase
Para pacientes esquizofrénicos, o tecido simb61ico/imaginårio desse lugar
especular do que efetivamente comanda a estrutura neur6tica, uma metåfora
paterno que volta no Real é do mesmo tipo que o de um pai de histérica,
da qual um neur6tico nada quer saber.
ou seja, um pai castrado. É a hip6tese que explicaria por que a constituigäo
Acredito que um neur6tico nada queira saber a respeito do que funda
de uma metåfora paterna alternativa, de uma metåfora paterna delirante,
a sua subjetividade. Apesar de falar sobre isso, como podemos fazer cada
é muito mais diffcil do que no caso da volta no Real do tecido simb61ico
vez que falamos de castragäo, do nosso relacionamento com uma inståncia
de um pai de obsessivo, por exemplo.
paterna, o que constitui, enquanto neur6ticos, o nosso eu é o delirio de
Particularmente no trabalho com pacientes esquizofrénicos, esse lugar
autonomia fundado no recalque da inståncia paterna. Quando um neur6tico
—
paterno e o outro lugar jå mencionado encarnaqäo do Outro imaginårio
estå confrontado com um psic6tico que trabalha na constituiqäo de uma metå-
— säo lugares que se substituem um ao outro; até o ponto que o analista
fora paterna delirante, hå algo inagüentåvel, täo inagüentåvel quanto a verda-
nunca sabe se quando fala, o que ele estå dizendo vai ser escutado desse
de. Quer dizer, inagüentåvel no mesmo sentido em que o recalcado é inagüen-
lugar paterno ou do lugar imaginårio de um pedido total do Outro. É isso
tåvel.
que faz o caråter de risco absoluto de qualquer tipo de intervenqäo, qualquer
tipo de fala, no quadro de uma cura, principalmente, de um paciente esquizo-
Para um neur6tico, assistir construgäo de um delfrio é como assistir
frénico.
a uma feira teatral que coloca em jogo osmesmos elementos que fundam
a sua subjetividade e dos quais ele nada quer saber. Jsso faz com que a
psicose e, particularmente, o trabalho do delirio seja algo diffcil, para um
RESISTÉNCIA AO DELfRIO terapeuta, de suportar; ocasionando um tipo de escolha terapéutica que quase
sempre acaba sendo do lado da inibigäo, quer seja uma inibigäo farmac016gica
Vamos determos um pouco sobre o interesse do trabalho com o tecido ou uma inibigäo terapéutica. O que pode se apresentar como a tentativa
terapéutica de permitir ao psic6tico fundar-se sem metåfora delirante, na
simb61ico/imaginårio de uma posiqäo paterna no Real. Falando a respeito
verdade é muito mais, para um terapeuta neur6tico, a tentativa de reprimir
disso, surge uma pergunta que considero importante: porque, trabalhando
o que ele estå aprendendo sobre o que funda a sua pr6pria subjetividade.
com paciente psic6tico, parece que ninguém escapa å tentaqäo de normalizagäo
do paciente? Por que é täo diffcil escapar, fugir, desta tentacäo? Pois, apesar
Os apelos "terapéuticos" razäo do sujeito psic6tico, säo apelos å autonomia
de tudo, poderfamos pensar, que tanto os analistas, quanto os psiquiatras, do seu eu que o terapeuta quer suscitar para confirmar a sua pr6pria.
Insisto sobre esse assunto tanto mais que seria fåcil mostrar que o caråter
normalmente, näo säo policiais e säo pessoas tolerantes; näo se vC por que
"fantåstico" de um delirio näo apareceria, de jeito nenhum, como fantåstico,
102 / Contardo Calligaris Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 103
extravagante, se o neur6tico que estå considerando a extravagåncia desse fungäo terapéutica; que a sociedade e as famflias näo tenham topado, deu
delfrio pudesse considerar a extravagåncia da metåfora recalcada que o susten- a situacäo catastr6fica atual.
ta. Entäo, o ideal de normalizagäo, que täo freqüentemente o terapeuta Falo isso porque me parece que o desmentido da psicose do movimento
persegue no trabalho com pacientes psic6ticos, na verdade talvez seja um antipsiquiåtrico italiano, tinha sua origem na angüstia dos terapeutas confron-
ideal de repressäo da sua pr6pria metåfora paterna; näo querer saber nada tados com a impossibilidade de morrer. Vocés sabem que, se näo tivéssemos
do que o sustenta como sujeito. a certeza de morrer um dia, seria impossfvel viver.
Encarnar o p610 paterno no Real que o terapeuta acredita ter simbolizado
para o paciente, mas que, na verdade ele terå de encarnar para sempre,
UM LACO ETERNO é algo que pode produzir resultados terapéuticos interessantes. Se o terapeuta
acaba encarnando este p610 para o paciente, evidentemente ele tem uma
Passemos a uma outra observagäo sobre o trabalho com uma posigäo chance grande de dirigir a Vida do paciente, de normalizå-lo.
paterna no Real. O terapeuta, tentando inibir o que o seu paciente estå O que faz, eventualmente, com que uma terapia da psicose nesta diregäo
lhe apresentando da sua pr6pria constituiqäo de neur6tico, persegue um ideal seja possfvel é que a instituiqäo terapéutica responde ou assegura a perma-
I
de normalizagäo. Um
ideal de normalizagäo é tentar "permitir" o que — néncia do terapeuta. A
instituigäo psiquiåtrica näo morre, apesar dos psiquia-
é, aliås, impossfvel —
ao paciente construir uma metåfora como se ele pudesse tras morrerem ou safrem da instituiqäo, assegurando entäo uma permanéncia.
recalcaro p610 paterno cuja injunqäo desencadeou a crise como se esse— Sob esse ponto de vista, a instituigäo tem uma fungäo especffica importante.
p610 paterno, que para o paciente estå no Real, estivesse no Simb61ico. É Näo podemos subestimar este tipo de posigäo terapéutica normalizadora,
evidente que este p610 paterno sempre permanecerå no Real, sejam quais nem os seus sucessos terapéuticos: que o sujeito possa deixar o hospital,
forem as modificagöes possfveis do seu tecido simb61ico/imaginårio. Se o vivernum apartamento terapéutico, conviver com outros pacientes, acabar
trabalho do terapeuta vai no sentido de uma normalizagäo que de fato — encontrando um trabalho, sustentar o trabalho numa relaqäo "normal", etc...
é —
uma neurotizaqäo e se o terapeuta conseguir näo fazer da dita normalizagäo O problema é que isso s6 é possfvel na medida em que alguém, quer seja
uma injunqäo a mais .com as conseqüéncias previsfveis do lado da crise), a instituiqäo ou o terapeuta, esteja assegurando no Real a presenga de um
onde voltarå a questäo fundamental, a questäo de que para o paciente a p610 paterno que näo estå simbolizado.
funqäo paterna estå no Real? Voltarå com evidéncia, contrariando a idéia
do terapeuta de que ele estå simbolizando esta funqäo para o paciente, pois
o terapeuta vai encarnar no Real esta fungäo para o paciente, com a conse- RESPONSABILIDADE DO ANALISTA NA CURA
qüéncia de que se estabelega, necessariamente, um Iago que näo pode ter COM PACIENTES PSICÖTICOS
fim. Um agente real tem que assegurar uma presenga real. Um agente real,
contrariamente a um agente simb61ico, näo pode ser suposto, e näo pode Entretanto, seguir um ideal de normalizagäo e Iidar assim com o problema
morrer. Para os terapeutas de psic6ticos, que perseguem a neurotizagäo de do seu pr6prio recalque da metåfora paterna —
Iidar com a sua pr6pria
seus pacientes, isto é angustiante, pois a partir desta posiqäo, eles tém que angüstia —, talvez näo seja a finica coisa que o analista possa fazer quando
assegurar a Vida eterna, ou entäo assegurar sua presenga real até e além tomado na transferéncia de um paciente psic6tico que encara a inståncia
da cadaverizagäo. paterna no Real. Mas o que, além disso, ele pode fazer a partir desta posiGäo
Tålvez fosse interessante pensar, sob esse ponto de vista, no movimento imposta pelo discurso do paciente? O que fazer neste Iago aparentemente
antipsiqüiåtrico e, particularmente, no movimento antipsiquiåtrico italiano. parecido ao Iago transferencial com neur6ticos e no qual também vai se tratar
Este acaböu, como vocés sabem, com a supressäo dos hospitais psiquiåtricos de umas modificaqöes possfveis no tecido do p610 paterno?
— o que de um ponto de vista ide016gico, pode parecer excelente. Se entende A primeira idéia é a seguinte: se o psicanalista se encontra nesta posigäo,
o que, nesta supressäo, testemunha de um apelo å autonomia dos pacientes. entäo ele vai poder mudar alguma coisa no tecido simb61ico/imaginårio com
De fato este apelo libertador (para os psiquiatras particularmente) s6 é praticå- o qual o paciente Iida. Mudanga, que terå conseqüéncias importantes,
esta,
vel, como jå vimos, se é assegurada uma presenga efetiva — e Real para pois vai, eventualmente, modificar as exigéncias do pai no Real e assim permitir
os pacientes — do p610 paterno. Mas justamente, a supressäo dos hospitais ou näo, facilitar ou näo, a construcäo da metåfora delirante necessåria ao
era supressäo desta presenga. E é notåvel que omovimento antipsiquiåtrico sujeito. Entäo, por que näo concluir que o analista de psic6tico deveria ser
tenha imediatamente promovido (deste ponto de vista o Manual pråtico de um analista dirigista, hiperintervencionista? Por que ele näo deveria intervir
antipsiquiatria de Giovanni Jervis foi exemplar) uma distribuigäo social da e chegar a reconstituir o tecido simb61ico/imaginårio deste p610 parterno
104 / Contardo Calligaris Introducäo a ulna Clinica Diferencial das Psicoses / 105
para facilitar a constituiqäo do delfrio? O problema é que produzir injungöes da neurose. Desta forma, näo hå diferenga, fundamentalmente, de posiqäo
a partir do lugar paterno, acaba seguidamente anulando os esforgos do sujeito éticano trabalho de um analista com psic6tico e com neur6tico.
para compor uma metåfora delirante. É um fatoque pode parecer evidente, mas que tem uma grande impor-
Facilitar a constituiqäo desta, tem mais a ver com prestar-se aos rodeios tåncia, porque é freqüente ouvir analistas falarem que na neurose pode-se
pelos quais o paciente tenta negociar com as exigéncias as vezes excessivas, pensar na produgäo possfvel de um fim de anålise —
desse tipo de destituiqäo
äs vezes insuficientes da inståncia paterna. A posiqäo de Mårio na cura que — mas que a anålise na psicose seria outra coisa, ou seja, necessariamente,
ele nos relatou a ültima vez é exemplar; desde a resposta outorgada ao pedido algo viciado por uma necessidade terapéutica primeira. A conseqüéncia ime-
do paciente que queria saber o seu sobrenome (mas, com um nome como diata é que, eticamente, a posigäo do psicanalista com psic6ticos seria mais
Mårio, o paciente näo sabia jå que ele era "italiano"?), até a aceitagäo da uma posiqäo de homem de bem do que uma posiqäo de analista. Jå discutimos
mediagäo materna para introduzir Braum, ele deixa ao paciente a escolha dos riscos e dos limites de uma posiqäo terapéutica na psicose.
dos caminhos que poderiam levar, e levaräo a uma acalmia da exigéncia Acredito que a posiqäo analftica é a mesma, quer com psic6ticos, quer
paterna. com neur6ticos, porque o que um analisante, seja neur6tico ou psic6tico,
Confiaf no esforgo do paciente, näo aparecerå täo estranho se lembrarmos pode esperar de uma anålise, no fundo é a mesma coisa. Ele pode esperar
que a constituigäo da metåfora delirante é —
como Freud mesmo o faz notar a destituiqäo da Demanda imaginåria do Outro.
a prop6sito de Schreber — um trabalho autoterapéutico. Se isso é assim, e se um sujeito psic6tico pode fazer a experiéncia desta
Além da simplificaqäo da inståncia Simb61ica no Real, além de mexer destituigäo, entäo ele pode terminar a sua anålise, o que tem como conse-
1 neste tecido simb61ico/imaginårio para facilitar a constituiqäo da metåfora qüéncia que um sujeito psic6tico pode, perfeitamente, ser psicanalista. A
delirante, qual é a responsabilidade do analistana direqäo da cura de um conseqüéncia é imediata: desde que ele possa se analisar, evidentemente,
paciente psic6tico em crise? Aqui o que o analistapode fazer näo é, em pode ser analista.
principio, muito diferente do que um analista pode esperar produzir na cura Lendo os documentos que fizeram o essencial das razöes das cisöes das
de um neur6tico.Por qué? sociedades psicanalfticas francesas dos anos 50/60 aparece que era impossfvel
Aquestäo é a seguinte: a exigéncia do p610 paterno exigéncia de — pensar que um psic6tico fosse recebido como psicanalista na IPA. Esta seguia
constituiqäo de uma metåfora, que serf delirante jå que este p610 estå no uma série critérios engraqados, havia um ideal de como deveria ser um
de
Real —
é uma exigéncia de defesa contra a Demanda do Outro, å qual psicanalista, havia até um ideal estético, pois, segundo os estatutos da IPA,
o crepisculo do saber expös o sujeito. Deste ponto de vista, näo hå diferenga näo era possfvel ser psicanalista quem possufsse uma deformidade ffsica. Ha-
entre neurose e psicose, na medida em que se trata em ambos os casos, viam uma série de razöes te6ricas que justificavam isso. Particularmente,
de uma operagäo de defesa. No caso de uma psicose em crise, trata-se de a idéia do fim de anålise como identificagäo ao analista e, certamente como
uma operaqäo secundåria de defesa, porque a primeira defesa se crepuscu- identificaqäo imaginåria, o que justificaria o cuidado com a aparéncia do
larizou, digamos assim. De qualquer jeito, trata-se de uma operagäo de defesa analista como suporte desta identificagäo.
contra algo que é impossfvel. Com efeito, que o gozo de Outro, a satisfacäo A. Jerusalinsky: No texto de Greenstein sobre teoria e técnica da psica-
de sua Demanda imaginåria, seja impossfvel é uma conseqüéncia deste Outro nålise — um texto universalmente adotado na formagäo dos analistas na IPA
näo ter estatuto real nenhum, ser apenas um efeito imaginårio da estrutura —, nos capftulos finais, hå vårios parågrafos destinados a analisar as caracte-
da linguagem. Mas nem por isso o gozo do Outro deixa de ser o horizonte rfsticas de caråter de um analista: tem que ser um homem de boas intenqöes,
angustiante do neur6tico e uma exigéncia de sacriffcio carnal que concerne de caråter afåvel, sensfvel, amåvel, muito bem educado...
ao psic6tico. Calligaris: ... Falaram-me de uma hist6ria— näo vou dar os nomes
Entäo, deste ponto de vista — um ponto de vista geral,sem conseqüéncias — que é quase uma piada. Alguém viajou da Franca para dar uma conferéncia
técnicas deduzfveis —
se o analista tem uma tarefa, ela é a mesma no caso em Säo Paulo sobre a hist6ria da psicanålise contemporånea e, falando de
da neurose e no caso da psicose: ele tem que destituir esta Demanda (o um dos analistas significativos na hist6ria recente da psicanålise lacaniana
que näo quer dizer destituir-se desta Demanda, caso ele esteja encarnando-a na Franca, disse isso: "Näo, mas ele näo era bem da banda, porque nem
na transferéncia). Destituir esta Demanda e, entäo, garantir que o paciente era da melhor burguesia". Bom isso näo estå no artigo de Greenstein, mas
faca a experiéncia de que a defesa que o sustenta (e cuja construgäo e manu- até poderia estar. Enfim, näo hå critérios para a formaqäo de um analista,
tengäo säo a obra do sintoma) —
que seja defesa neur6tica ou que seja fora da anålise dele. Se considerarmos que a anålise de um sujeito psic6tico
trabalho de elaboragäo de uma metåfora delirante é uma defesa contra pode ser levada até o seu fim, entäo esta anålise pode produzir um analista.
106 / Contardo Calligaris Introduۊo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 107
Deixando provisoriamente de lado a questäo do efeito subjetivo que remete å analise do analista, nada mais do que isso. E justamente o que
produzirianum sujeito psic6tico a experiéncia da destituigäo da Demanda constitui toda a dificuldade da psicanålise, porque näo hå aprendizagem da
do Outro, poderfamos jå pensar que de uma certa forma um sujeito psic6tico psicanålise, näo hf aprendizagem da técnica. Que um analista se pergunte
seria um analista ideal. Com efeito, poderiamos imaginar que um analista se o que ele esta fazendo é anålise ou näo, é uma questäo que traduz a
psic6tico seria bem vindo para confrontar um neur6tico tanto ao excesso questäo seguinte: a minha anålise foi anålise ou näo? Ou entäo em tal cura
quanto å inadequaqäo da defesa paterna. estäo surgindo minhas resisténcias que anulam o efeito da minha anålise?
Mas isso talvez näo deixe de ser parte do sonho de cada neur6tico e Ea finica questäo.
da sua idealizaqäo de uma "liberdade" psic6tica. E uma ética diffcil de se manter, jå que, certamente, näo é da subjetividade
psic016gica que estamos falando. "Ser" analista näo é uma dimensäo psicologi-
camente subjetiva do ser, näo é uma identificagäo, mas bem um efeito subjetivo
SITUACÖES LIMITES ($) da anålise. Tanto assim que certamente hå analistas que nunca ousariam
se dizer tais —
e o inverso também é verdade.
A. Jerusalinsky: Quanto equivaléncia da posiqäo ética do analista diante A. Jerusalinsky: Entäo uma internagäo pode ser uma intervenqäo analf-
do neur6tico e diante do psic6tico, existem pontos limites, algumas situaqöes depende da significaqäo que isto ativa no discurso do paciente.
tica,
limites. Pergunto-me se é sustentåvel uma ética exatamente igual, por exemplo: Calligaris: Eu diria mais: depende da posigäo a partir da qual o analista
a questäo da internagäo. A internagäo tem um certo caråter de proteqäo toma a decisäo de internagäo.
durante um periodo no qual a metåfora delirante seja ineficaz para Iidar A. Jerusalinsky: Eu estava sublinhando näo o ato técnico, senäo, por
com a Demanda do Outro. Em que consiste essa protegäo? Seria ou näo exemplo, as contencöes de passagens ao ato de psic6ticos em crise. Ali eu
compatfvel com a ética psicanalftica? acredito que näo é täo fåcil, porque é verdade que a psicanålise se faz na
A ética psicanalftica consiste em poucas palavras. E näo tem
Calligaris: medida em
que haja um analista. S6 näo sei se isto pode ser sustentado
implicaqäo técnica. A ética psicanalftica é uma posiqäo subjetiva, subjetiva em cada ato. Quando algo da ordem do Real, como uma catåstrofe, invade,
num sentido pr6prio, näo no sentido psic016gico. Um psicanalista é alguém, nem um analista pode ser um analista.
fundamentalmente, que "sabe" por experiéncia, que näo é necessårio se defen- Calligaris: Tomemos um exemplo, para responder esta pergunta, que
der contra algo que é impossfvel, porque näo hå Outro para fazer gozar. é freqüente e angustiante: o caso do suicfdio. Af, aparentemente haveria
I
Considero engraqadas as questöes que surgem continuamente, como, por algo que necessitaria de um de intervenqäo que näo seria dirigida pela
tipo
exemplo: eu estou atendendo esse paciente sentado, entäo, serå que é anålise? ética psicanalftica. A Vida, fundamentalmente, éum valor paterno, o que
Essa questäo näo tem pertinéncia. A
questäo näo é técnica. E anålise, se faz da Vida um valor é a inståncia paterna. Entäo, aparentemente, fazer
é com um analista. Entäo, nesta perspectiva, trazer questöes técnicas como a escolha da contenqäo, para evitar o suicfdio, poderia parecer como uma
questöes éticas, näo é pertinente. escolha paterna. Logo, algo que, aparentemente, seria bem distante da ética
Anos atrås, a Escola Freudiana de Paris organizou um Congresso, em do Mas a questäo talvez seja mais complicada do que isso.
analista.
Strasbourg, sobre Psicanålise e Psicoterapia. Pelo menos duas observaqöes. Primeiro: Lacan falou uma vez que o
No Congresso, as pessoas colocavam questöes como: onde comega a suicfdio talvez fosse o ünico ato que pudesse ser logrado, e se entende o
psicoterapia? Onde acaba a psicoterapia? Onde comeqa a psicanålise? A ques- porqué: seria o finico ato que conseguiria sair do semblante, que prometeria
täo do deitado, sentado; a questäo do quadro institucional, dos seus efeitos. um encontro com o Real. Esta observagäo verdadeira no seu principio
É notåvel que nesse quadro atrapalhado, Lacan interveio com uma frase, — näo deixa de ser problemåtica, porque o ato suicida é um ato que sempre
onde dava, acredito, a melhor definigäo possfvel do que é uma psicanålise: tem sentido em referéncia inståncia paterna como inståncia fazendo da
"Uma psicanålise é a cura que um paciente tem direito de esperar de um Vida um valor. O ato suicida é sempre uma forma de obediéncia paterna.
psicanalista". Isso acaba com a discussäo. Quer dizer que o que faz com Mesmo quando ele parece ser um abandono sacrificial Demanda do Outro,
que haja psicanålise é que haja um psicanalista. Além disso é uma casuistica. jå que s6 hå uma erotizaqäo possfvel da morte em referéncia Vida como
Os efeitos e as dificuldades que uma instituiqäo possa colocar na pråtica valor. Pensem no exemplo trazido por Mårio Corso, e pensem também ao
fazem parte das dificuldades acidentais. Mesma coisa para o fato de que, por qué a problemåtica suicida näo é nunca uma problemåtica autistica. O
no meio de uma cura (e ås vezes näo so de psic6tico), apareqa necessidade, suicfdio é algo que s6 interessa quem Iida com a inståncia paterna: neur6ticos,
por exemplo, de uma internagäo. Contudo, o que faz com que uma cura perversos e psic6ticos depois da injunqäo e da crise. No fundo, do ponto
seja uma cura psicanalftica é a posigäo ética do analista, ou Seja, algo que de vista da psicanålise, a Vida enquanto tal näo é um valor, e de repente
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a morte tampouco é um valor. Aliås, se hf uma diferenqa entre psicanålise e mesmo acrescentado). Parou, acredito, pela erotizagäo da sua morte näo
e medicina, af estå: para a psicanålise, a Vida é um valor fålico como qualquer ser recebida no lugar paterno ao qual a dita erotizagäo se endereqava.
outro. Desse ponto de vista, a preservaqäo da Vida enquanto tal näo dirige
a ética psicanalftica, e tampouco a dirige qualquer tipo de erotizaqäo da morte.
Freud, embora ele tenha tentado, como vocés sabem, manter um tempo FIM DE ANÅLISE NA PSICOSE
a idéia de uma "pulsäo de autoconservaqäo" distintas das pulsöes sexuais,
acaba afirmando claramente, em InibiGäo, sintoma e angüstia, que a angüstia Voltemos ao nosso tema. Se a posigäo ética do psicanalista é a mesma
de morte näo é mais do que uma forma de angåstia de castragäo. E bem tanto com pacientes neur6ticos como com psic6ticos, podemos perguntar-
por af a respostada psicanålise problemåtica suicidåria, a erotizaqäo da mo-nos o que pode ser uma cura de psic6tico terminada? E o tipo de efeito
Vida e da morte é um epifenömeno da castragäo e mais geralmente da confron- que pode produzir, é anålogo ao que podemos esperar do fim de uma anålise
tagäo com a inståncia paterna. de neur6tico? Mais propriamente: se considerarmos como pr6pria ao fim
Um paréntese: que a Vida seja um valor paterno, que o querer viver de anålise a experiéncia de destituigäo da Demanda imaginåria do Outro,
se transmita normalmente na filiaqäo, e que portanto, ele näo seja um valor quais seriam as condigöes e os efeitos desta experiéncia na psicose?
da ética psicanalftica, isso näo implica que, para a psicanålise, a Vida seja Fagamos aqui um paréntese. A questäo é a seguinte: s6 se pode falar
um valor transcuråvel. O problema é justamente que, por ser um valor paterno, "idealmente" sobre o fim de anålise, jå que näo é de jeito nenhum um aconteci-
viver pode vir a ser um mandamento supereg6ico, o que abre espago a uma mento pontual dos åltimos minutos da anålise. Considerando a freqüente
possfvel erotizagäo da morte, por exemplo, como gozo proibido. idealizaqäo que se faz do fim de anålise, que näo deixa de ser ridfcula, vale
Contudo é importante considerar que um analista pode, perfeitamente, a pena mencionar que o fim de anålise é algo presente desde o comego
tentar conter ou mesmo impedir um ato suicida, sem invocar a Vida como da anålise, algo que estå inscrito em qualquer momento da anålise. Se falamos
um valor, mas muito mais recusando a erotizaqäo da morte. de fim de anålise como destituiqäo da Demanda do Outro, é algo que estå
Em pacientes cuja mäe morreu de parto, hå um trago que encontrei
sendo trabalhado sempre numa anålise. Näo é a chegada final. Isso decide
vårias vezes: uma relagäo problemåtica com o direito Vida, ou entäo com de questöes que, ås vezes, surgem e que säo efeitos da idealizacäo do fim
a vontade de viver. Em dois casos se expressava na necessidade de ter, em de anålise, por exemplo: como um analista poderia estar em anålise? Se
a sua anålise näo acabou, como poderia ser analista? Paréntese fechado.
cada momento, a possibilidade de se suicidar. Quero dizer sujeitos que precisa-
,
vam ter no bolso, ao alcance da mäo o necessårio para se matar, a qualquer Na neurose, apesar deste enunciado poder parecer algo enigmåtico, diria
hora, imediatamente.
que a posigäo paterna, enquanto simb61ica, sempre tem um umbigo no —
Parece-me que esta extraordinåria erotizaqäo da morte näo era nada sentido em que Freud falava de umbigo do sonho. Sempre hå um umbigo
identificat6ria com o destino materno, e o que se apresentåva eventualmente significante da posigäo paterna que, quando encontrado no discurso, normal-
como culpabilidade, era de fato uma tentaqäo de saldar com a oferenda da mente pode levar o paciente neur6tico experiéncia de que a posieäo paterna
pr6pria Vida a divida paterna. Mais precisamente: uma problemåtica neur6tica,
que estå dirigindo a sua Vida é contingente. Contingente quer dizer aqui
geralmente obsessiva, fazia com que, a posteriori, este nascimento traumåtico que a constelagäo paterna aparece como efeito de um cålculo acidental na
linguagem. Descobrir esta contingéncia leva o neur6tico a interrogar a necessi-
(a crianqa tendo privado o pai de mulher) erotizasse quanto mais possfvel
a questäo do saldo da divida paterna ao redor da alternativa: viver o morrer
dade da defesa mesma na qual ele se constitui. Em outras palavras: se os
significantes da funqäo paterna säo contingentes, serå que a funqäo é neces-
para pagar.
såria? Ou, mais propriamente: serå que ela pode justificar a sua necessidade
Uma mulher, que se analisou comigo uns 3 anos, durante os dois primeiros
anos, manteve um discurso horrfvel sobre a sua falta de direito de viver a partir de uma defesa, quando os significantes que a segurariam säo contin-
efeito. Até o dia que lhe falei que a questäo que ela estava trazendo näo
O que eventualmente permite ao sujeito de fazer algo interessante com o
seu sintoma, quer dizer com o que ele é.
tinha, para mim, nenhum interesse. Ela objetou: "Mas para mim é central"
E respondi que entendia, mas para mim, näo tinha nenhum interesse. E Na psicose (se entende, depois da crise) as coisas näo säo bem assim,
pois a posigäo paterna com a qual o sujeito Iida estå no Real. Apesar disso,
ela parou de falar nisso, o que näo é evidente (uma histérica teria continuado
se uma anålise é possfvel, ela deve passar por alguma experiéncia da contin-
I lilt
pode dificilmente ser considerado como um puro acaso. Pois como o paciente Aliås, é por uma razäo implfcita no que acabo de dizer que é muito
näo saberia que, ap6s dois anos, eu näo estaria esperando-o? Tudo deixa diffcil para mim pensar o que poderia ser uma anålise e ainda mais uma
pensar que ele mesmo armou a situagäo necessåria para a sua cura. anålise acabada de um psic6tico fora de crise. Com efeito, so a experiéncia
Este caso que apenas esbocei levou-me a conseqüéncias técnicas no traba- poderia dizer como confrontar um de crise com a contingéncia
psic6tico fora
lho com pacientes psic6ticos. Particularmente o seguinte: evito marcar hora do seu saber de defesa, sem produzir automaticamente um crepüsculo do
com pacientes psic6ticos, s6 marco espagos de disponibilidade. E os pacientes sujeito que o sustenta.
vém quando querem. E, ds vezes, vém também fora dos meus espagos de Estava pensando no caso clfnico que vocé trouxe. Ele chega
S. Spritzer:
disponibilidade. Näo acredito que isso tenha de ser uma consigna técnica, no horårio da no momento em que vocé enquanto analista, menos
sessäo,
ill
estou falando de uma conseqüéncia que tirei a partir deste acontecimento. esperava; ele esperava. Depois vocé traz uma reflexäo, em termos técnicos:
ill E uma maneira de Iidar com a encarnagäo transferencial da Demanda do atender psic6ticos sem hora marcada. Mas o paciente que vem a qualquer
Outro, ou da exigéncia paterna: ser disponfvel sem esperar. O "ser disponfvel" hora, näo estå na mesma posigäo do paciente que vem com essa certeza,
estå do lado de aceitar o lugar no qual, de qualquer jeito, o paciente coloca de 2 anos, de te encontrar; é uma situagäo diferente.
transferencialmente o analista; e o "sem esperar" estå para impor o maior Calligaris: Certo. É uma situaqäo contingente, que näo posso reproduzir
siléncio possfvel aos imperativos supereg6icos que emanam tanto da exigéncia uma situagäo que näo då para esperar enquanto tal. Logo, me pergunto:
paterna quanto da Demanda imaginåria do Outro. o que operou? O que trouxe conseqüéncias nesse acontecimento? O fato
que ele estava efetivamente com a certeza de me achar, que ele me achou,
mas sem que eu estivesse manifestamente esperando-o. Por conseguinte, pen-
O SUPEREGO NA PSICOSE sei que o efeito estivesse relacionado com essa decalagem, com essa diferenca
entre a certeza de que eu estaria disponfvel e o fato que näo o estava esperando.
Näo falamos, até agora, do superego na psicose: talvez seja a ocasiäo. A conclusäo técnica é relacionada com isso, com "näo esperando". Me parece
Normalmente, podemos chamar de superego, na psicose, o que, na volta — é assim que entendo a sua chegada —
que ele precisava encontrar-me
no Real da fungäo paterna, tem dimensäo de exigéncia. Trata-se de uma sem que pudesse haver uma exigéncia da sua presenqa formulada por mim.
manifestaqäo supereg6ica que, apesar de ressoar no Real, mantém as caracte- A. Jerusalinsky: No caso de um paciente psic6tico depressivo, que vocé
rfsticas do superego neur6tico: uma exigéncia de filiaqäo que se formula como situou relativamente inconsisténcia do lugar paterno inconsisténcia da fungäo
,
um imperativo de gozo, mais propriamente um imperativo a gozar nos limites paterna no Real, como operaria este "näo o estar esperando"?
propostos e impostos pela filiagäo. E aqui surge uma primeira diferenga: Calligaris: Poderia te responder reconhecendo que näo estå certo que
na neurose o imperativo supereg6ico convida o sujeito ao gozo fålico; que em qualquer tipo de psicose esta escolha técnica seja indicada e particularmente
este gozo seja relativo defesa paterna contra o gozo do Outro, é suficiente no caso de uma psicose manfaco-depressiva. Porém, vou defender a minha
para que ele se mantenha numa insatisfagäo que implica o horizonte de um hip6tese um pouco além do que eu gostaria porque na verdade näo gosto
gozo proibido além do fålico. Lembro isso para que se entenda que, na neurose, de receitas técnicas.
näo hå um imperativo que empurra o sujeito ao sacriffcio ao gozo do Outro; Vocé se lembra da correspondéncia que eu fiz entre estruturagäo f6bica
o apelo de um tal gozo é uma implicagäo do gozo fålico-enquanto insatisfat6rio. na neurose e estruturaqäo manfaco-depressiva na psicose: a insuficiéncia consti-
Na psicose, e particularmente na crise, um imperativo especffico de gozo tutiva da metåfora paterna leva o f6bico a querer encontrar um espantalho
emana, além da exigéncia paterna, da Demanda imaginåria do Outro. Mais e o manfaco-depressivo a querer encontrar, numa filiacäo improvisada, um
propriamente, até que a metåfora delirante seja constitufda, a Demanda do excesso da significaqäo.
Outro parece se enunciar como um apelo ao sacriffcio do sujeito. Mais de uma vez encontrei pacientes manfacos se propondo como guarda-
Estas reflexöes näo acabam com a questäo do superego na psicose, pois costas do seu terapeuta, numa aceleracäo que chegava rapidamente a um
terfamos que nos perguntar qual manifestagäo supereg6ica empurra o psic6tico pedido de adogäo e encontrava o seu limite numa queda angustiante-depressiva
fora de crise na sua erråncia. É certo que algo o empurra no seu caminho, ou agressiva —
comparåvel ao medo e angüstia relativos ao encontro do
mas é problemåtico situar (mesmo topicamente) este "algo", pois o saber f6bico com um brasäo paterno invocado.
que ele percorre aparentemente näo tem sujeito ou —
em outra palavras Portanto, acho que a escolha técnica da qual falamos pode ser interessante
que jå usamos — a metåfora que lhe då significagäo seria sem agente. Talvez com um paciente depressivo, do lado da manipulagäo possfvel do p610 paterno.
114 / Contardo Calligaris Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 115
Com efeito, uma conduta dirigista (da qual fazem parte as imposicöes de
horårios), com paciente depressivo, pode perfeitamente produzir viragens
manfacas, encontros com um excesso de resposta do p610 paterno.
Deste ponto de vista, ficar na disponibilidade, sem espera, permite algo
hom610go ao que eu chamaria, na cura de uma fobia, de "humanizacäo"
da posiqäo paterna; quer dizer que o p610 paterno possa se manifestar de
uma forma que näo seja horrorosa, que näo seja pelo excesso.
VIATICO
Talvez isso por um lado permita ao paciente articular algo de uma relaqäo
possfvel com a fungäo
paterna que näo seja do registro da mania e, por
outro lado, näo o force a tomar, desgastado, o caminho da identificaqäo
com o objeto.
Esta "humanizaqäo" da referéncia paterna — e no caso da mania, deverfa-
mos dizer da presenga paterna —é o que faz o eventual sucesso das terapias
behavioristas, especialmente com pacientes f6bicos. Os sucessos säo certos,
s6 que, diversamente do que acham os behavioristas, eles säo devidos ao
que acontece transferencialmente, por exemplo, na relagäo paciente-acom-
panhante.
O CASO DA TELA
116 / Contardo Calligaris Introducäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 117
cante que sustenta, ou melhor, que reserva no simb61ico um lugar onde o cacäo. Era certamente a manifestaqäo de um crepüsculo, no qual ainda näo
sujeito possa constituir o seu "eu". Jå lembramos que, no estådio do espelho, havia para ela significaqäo possfvel. Nesta situaqäo crepuscular, na qual o
o lugar onde o "eu" se constitui especularmente tem que ser indicado, desig- esforgo de constituigäo de uma metåfora delirante que defenda o sujeito
nado, por algum significante vindo do Outro. É essa uma das funcöes do ainda é sem de fato s6 agitava pedaqos da sua hist6ria desligados
efeito, ela
nome, acredito. Por isso parece-me fazer sentido a coincidéncia de um siléncio entre eles e dela. Como
entäo, nesta situaqäo, ela parecia manter-se fora
sobre o nome e de um desprezo do pr6prio corpo. Mas esta coincidéncia do alcance da Demanda imaginåria do Outro?
testemunha de uma decomposigäo (a palavra, como veremos, näo é escolhida A questäo é interessante além do caso, pois poderfamos perguntar-nos
toa) do sujeito, do seu "eu", que estå além do quadro da angüstia f6bica o que permite que, na fase depressiva de uma psicose maniaco-depressiva,
de ser reduzido a objeto do Outro. Ela parece mais ligada a uma verdadeira o sujeito näo se entregue sacrificialmente ao gozo do Outro. A resposta,
identificagäo depressiva ao objeto.
inesperada, poderia ser que a autodepreciaqäo que ele produz é justamente
Na época na qual a paciente consultava, ela acabava de conseguir o aqui a ültima barreira que defende o sujeito. Desprovido de uma referéncia
seu primeiro emprego e talvez fosse o elemento desencadeante. Era um empre- paterna, que seja maniaca ou delirante, o sujeito resiste numa filtima signifi-
cagäo. Que esta Ultima significagäo seja o desprezo poderia ser mesmo uma
go de pedagoga, um tipo de emprego que supunha ocupar uma fungäo que
tåtica: pois como o Outro me comeria se me defino como näo comestfvel?
dificilmente ela poderia ocupar simbolicamente.
O comego de sua anålise é marcado por siléncios muito grandes, e uma Deste ponto de vista, o suicfdio possfvel do depressivo näo seria tanto uma
fala extremamente curiosa: ela falava pedagos de sua hist6ria familiar, pedaqos entrega ao Outro quanto uma defesa, algo parecido ao suicfdio do condenado
desligados um do outro, como se fossem contos dos quais ela näo fizesse a morte. No caso da nossa paciente, eu acredito que a sua autodepreciaqäo
parte. Um exemplo: os trés irmäos näo gostavam da irmäzinha, a mäe tinha era mesmo o que a defendia num deserto crepuscular onde poderia entregar
se casado com outro homem e näo com o pai. No seu discurso näo havia o seu corpo ao Outro: ela näo merecia tanto apetite do Outro. A descoberta
era ela, podia-se entender, mas nunca a relagäo era enunciada. Tudo isso a solugäo depressiva.
durou um certo mimero de meses, ao final dos quais aconteceu um acidente. Que tipo de Iago transferencial permitiu a sua fala no comeqo näo sei.
Nessa época eu tinha decidido que a parede que estava ao lado do meu Sei que a tomei em anålise sem certeza diagnostica e que, a posteriori, me
divä era sem graga e comprei um quadro de um tamanho que ocupasse mais felicito do meu siléncio, pois acho que, neste primeiro tempo, ela Iidava,
na transferéncia, com uma Demanda imaginåria na frente da qual ela vinha
ou menos o comprimento do divä. Comprei o quadro e coloquei„o na parede
reivindicar a sua insignificåncia, mais do que isso, a sua "repulsividade".
ao lado do divä. Um quadro, em Francés, chama-se também, "une toile",
uma tela. O que havia no quadro tenha talvez uma certa importåncia: eram Que eu a achasse invisfvel, testemunha bem disso: que ela vinha ver-me
rufnas de uma cidade deserta. para assegurar-se que näo era vista.
Desde que a tela foi colocada, ela chegou e perguntou se eu via a enorme A aparigäo do quadro introduziu uma mudanga decisiva. Os pedagos
aranha que estava no meu consult6rio (cabe notar que "toile", em francés, de conto que ela estava enunciando encontraram uma "tela" (de fundo).
vale "tela" e "teia"). A partir desta pergunta, que ficou sem resposta, o
Uma "tela" ("teia") que implicava uma organizagäo, pois a aranha tecedora
apareceu, e a paciente conseguiu se relacionar com o que ela estava falando,
seu conto se transformou, adquiriu personagens diferentes: anöes, carpideiras,
a aranha, bruxas, etc. Esses personagens chegavam no consult6rio com ela.
por exemplo, as carpideiras falavam-lhe, mesmo que ela continuasse a falar
Os anöes e as carpideiras falavam, e ela relatava o que eles falavam. A de si na terceira pessoa.
aranha näo falava, mexia-se ou ficava parada em algum lugar do consult6rio, Num primeiro momento pensei que a aranha fosse uma imagem perfeita
as vezes no chäo, ås vezes no teto ou nas paredes. Era uma aranha enorme,
— aranha näo tem dentes, chupa as vftimas —
duma Demanda Outra imagi-
nåria. Na verdade, nada disso, a aranha tece a teia/tela e é o p610 central
feia e peluda. É certo que tudo
a presenga da aranha, das carpideiras
isso,
e silencioso (curiosamente a aranha näo falava nunca) da tela, ou seja, do
e dos anöes näo estava num
propriamente alucinat6rio, embora ela
registro
tecido que ela ia organizando sem chegar constituiqäo de uma metåfora
testemunhasse desta presenga como de uma evidéncia.
delirante eståvel, mas conseguindo encontrar para ela um mfnimo de signi-
O que estava acontecendo? Ela estava elaborando, num primeiro momen-
to, o tecido simb61ico e imaginårio relativo å sua hist6ria familiar. E nesse ficaqäo.
primeiro momento ela estava elaborando este tecido como um conto, näo
A. Vocé falou que anöes e carpideiras, näo eram alucina-
Jerusalinsky:
göes, pelo menos, näo eram alucinaqöes visuais. Hå alucinaqäo auditiva? Estes
relacionado com ela. Fornecia, enunciava pedagos desse tecido numa situaqäo
na qual esse tecido näo estava produzindo ainda nenhuma forma de signifi- significantes, a que constelaqäo pertencem?
Introdugäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 119
118 / Contardo Calligaris
Eu näo diria que anöes e carpideiras sejam significantes alucina-
Calligaris: fazer isso, etc.". Parece-me que a tela sugeriu uma especffica encenagäo da
dose Nem que o que eles falam é alucinado. Anöes e carpideiras säo denomi- metåfora delirante.
nagöeS dos lugares da tela organizada pela aranha, denominagöes dos lugares A. Jerusalinsky: Entäo a coincidéncia da presega da tela com a produgäo
de uma historia que poderia ter Sido a historia edfpica da paciente, por exemplo , de uma significaqäo leva a perguntar-me se essa tela, que é uma cidade deserta,
acho que anöes e carpideiras säo metåforas. Na tentativa de construqäo do ou seja, algo a ser imaginariamente povoado, näo implicou uma injuncäo.
delfrio, eles significam as personagens da historia de sua Vida. Poderfamos Se a tela mesma näo entra na série das injungöes. Uma especulaqäo no campo
pensar, por exemplo, que os anöes tem que ver com os seus irmäos, e as da ficqäo clfnica: que aconteceria se retiråssemos a tela? Até que ponto esta
carpideiras com as mulheres da casa, a mäe e duas tias. Mas isso evidentemente tela que aparece como injungäo, a provocar uma significaqäo ali onde ela
näo tem interesse e a intervengäo mais mal-vinda teria Sido fazer estas ligagöes. näo pode colocå-la, tem que vir do Outro no Real, como numa alucinaqäo
O fato notåvel é que, desde a aparigäo da tela/teia e da aranha, se abre auditiva. Pergunto-me se a introdugäo desse elemento näo faz com que ela
um espaqo metaf6rico que permite a constituiqäo de algo que tenta ser uma tenha que produzir uma significagäo näo ligada constelagäo significante
metåfora delirante. Que este "algo" näo fale dos irmäos e das tias, mas que lhe é pr6pria.
sim de anöes e carpideiras, é um efeito da possibilidade metaf6rica introduzida Até que ponto a retirada dos elementos que suportam na anålise a produ-
pela aranha que funciona como metåfora paterna. qäo desta significagäo näo poderia obrigå-la, diante do vazio, a produzir uma
Deste ponto de vista também o que falam anöes e carpideiras näo pare- busca de uma articulaqäo significante, que permita-lhe armar um suporte
ce-me ser da ordem da alucinagäo auditiva, säo metåforas, fragmentos da de um saber pr6prio, de um saber que näo dependa do Real do Outro.
metåfora delirante que ela estå constituindo. Porque o que deixa enganchado incessantemente o psic6tico é que o saber
Se estes elementos se apresentam num discurso que alega a presenca tem que do Outro, e s6 pode ser produzido no suporte do Outro, suporte
vir
efetiva deles, isso parece-me um efeito, que näo sei explicar, do fato que Real da A retirada da tela ficaria muito parecida com o que fazemos,
tela.
a possibilidade metaf6rica se abre para ela com a tela. a certa altura da anålise do neur6tico, quando retira-se qualquer suporte
A. Jerusalinsky: Justamente o aparecimento da tela ou da teia vindo imaginårio, ou seja, deixa-se o semblante puro.
num processo de cura, näo é uma certa injungäo, a obrigatoriedade de produzir Calligaris: Entendo. Mas acredito que retirar a tela (evidentemente näo
uma significaqäo? Ela imediatamente traz a aranha. falamos de retirar o quadro que, por sinal, por causa de uma mudanqa foi
Calligaris: É exatamente a pergunta que me coloco. Ou seja: que efeito retirado sem que o discurso dela se alterasse por isso), entäo retirar a tela
produziu a chegada desta tela, ainda mais que ela representava de uma certa seria, por exemplo, contrariar, interpretar esta metåfora teatralizada que ela
forma o crepüsculo mesmo do sujeito? estå construindo. Isso parece-me perigoso, pois poderia funcionar mesmo
O certo é que a partir daf a significagäo funciona no eixo tela/teia, ou como uma injunqäo desencadeante que a jogaria de volta para um crepfisculo
em francés na sinonfmia de "tela", e aparece a aranha que tece e ocupa desolado. Entendo que a proposta acidental da tela é algo que vem do Outro,
o centro. Em francés, por sinal, é diffcil näo pensar numa piada de crianga mas näo sei se esta proposta deixa o saber do lado do Outro.
que joga com homofonia: "O papa morreu, um novo papa é chamado a A pergunta que coloco-me, em outras palavras, e que acho importante
reinar.". Resposta: "A reinar? Que nome engragado!". "Å reigner" (a reinar) clinicamente, é a seguinte: como é que a tela näo funcionou como uma simples
é hom6fono de "araignée" (aranha). Talvez a aranha chegue no discurso injunqäo, que so teria devolvido a paciente ao seu crepüsculo, mas tornou
da paciente por outro caminho, mas é engragado mesmo pensar neste nome possfvel a abertura de um campo metaf6rico onde a metåfora central —
estranho de um novo papa, tratando-se do surgimento de algo que tenta aranha surgiu?
funcionar como metåfora paterna sobre o fundo (sobre a tela) do crepusculo A tela teve uma fungäo parecida ao efeito
minha impressäo é que a
do sujeito. ås vezes milagroso da proposta da "art-therapy". Propor ao sujeito em crise
Um da tela é que, curiosamente, as carpideiras e os
efeito constatado uma folha branca —
e as rufnas da tela eram para a nossa paciente a folha
anöes, tudo isso é, de uma certa maneira, teatral. Um
conto altamente metaf6- branca do seu crepüsculo —
parece funcionar como a proposta de uma super-
rico da Vida dela coloca-se em cena, na tela. Näo trata-se de alucinagöes, ffcie de inscriqäo indispensåvel para que a metåfora delirante possa comegar
mas tampouco de algo contado, mais propriamente parece tratar-se de uma a se organizar.
pega qual estarfamos assistindo. Ela falava assim: "Hoje os anöes näo vieram, Jå falamos da necessidade de uma escuta näo critica para que o trabalho
a aranha esti af no canto, vocé vé? Espero que näo atrapalhe, as carpideiras autoterapéutico do delirio possa se manifestar. A folha branca é algo a mais,
nem vieram todas, s6 duas, elas estäo falando que ela (a paciente) näo deveria näo é uma injunqäo e é mais do que uma disponibilidade. Poderia valer
a pena pensar nos numerosos casos nos quais a pintura e mesmo a escritura
120 / Contardo Calligaris Introdugäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 121
abriram, para sujeitos psic6ticos, o espago de uma metåfora delirante viåvel.
mente a Vida. A impressäo entäo é que a tela permite um esforgo metaf6rico,
Também na importåncia para paran6icos de escrever o delfrio constitufdo mas ao mesmo tempo mediatiza o encontro com a inståncia paterna no Real
que os sustenta, até o ponto que se poderia pensar que um dos efeitos autotera- de tal forma que a constituigäo de uma metåfora delirante viåvel é barrada.
péuticos do delirio acaba sendo a significaqäo de escritor, de autor que o
Mas, na verdade, acredito que, sem a tela, nada teria Sido possfvel, que
sujeito se constr6e.
a paciente teria errado no deserto se protegendo s6 com a sua repugnåncia.
De fato, no caso da nossa paciente é importante notar näo s6 que a O meu diagn6stico é pelo lado do que chamamos de esquizofrenia, com
tela abriu um
espaqo metaf6rico possfvel, no qual, por outro lado, a riqueza alguns traqos notåveis. Primeiro, esta defesa de tipo autodepreciativo que
de produgöes neologfsticas testemunhava da significaqäo que a paciente conse- protege o sujeito de um sacriffcio carnal å Demanda do Outro, e que continua
guia graqas ao seu contar. Mas que, além disso, rapidamente a fala autodepre-
na alucinaqäo olfativa do seu cheiro podre. Segundo, a invengäo da tela que
ciativa, dismorfof6bica sumindo, confirmando a idéia que esta autodepre-
foi
permite que —sem que possa se constituir uma metåfora delirante viåvel
ciagäo era uma um destino objetal. Entäo, a metåfora
defesa ültima contra
delirante se enunciando, a paciente näo precisava mais se defender da Deman-
— o sujeito consiga uma significaqäo pelo menos de contista.
Nesta 6tica, o acidente da tela foi bem-vindo, embora me deixe perplexo
da do Outro a forga de desprezo, pois ela ia adquirindo alguma significagäo o futuro da cura. Pois tudo acontece como se a cena analftica fosse a folha
como sujeito. Da sua autodepreciagäo s6 permaneceu uma alucinaqäo peri6-
Real necessåria a uma inscrigäo infinita. E näo vejo por onde uma intervencäo,
dica de um cheiro de podre como sendo o seu cheiro. Nos interstfcios da
I que näo seja perniciosa para a paciente, poderia alterar a situagäo. Como
metåfora delirante, quando a significagäo a abandonava, ela se alucinava intervir no tecido simb61ico/imaginårio sem destruir a metåfora da aranha,
como objeto, o que é normal. Mas seguia resistindo ameaqa de um destino a significagäo de contista e desencadear uma nova crise?
objetal se alucinando como podre. Quem pegaria?
A
Hå um fato que ainda näo relatei. cada sessäo, poucos minutos depois
Se eu fiz alusäo antes possfvel significagäo como escritor ou pintor de ter safdo, ela me liga e pede desculpas, näo sei de qué. Eu respondo
do sujeito que encontra uma superficie de inscrigäo para o seu delfrio, é que estå certo e que nos reencontraremos normalmente. Ela pede desculpas
porque acredito que algo disso aconteceu com a nossa paciente. De fato, de qué, e a quem? Talvez ela peqa desculpas do seu, diria, atraso na construgäo
aos poucos, eu me dei conta que a sua Vida estava se normalizando, e que
da metåfora delirante, da sua falta de significagäo. Como um neur6tico poderia
a sua metåfora delirante s6 se desdobrava no espaqo do meu consult6rio,
pedir desculpas por näo chegar a ser o que um pai pode querer que ele
como se a tela fosse a cortina. De um teatro particular. seja. Mas peca desculpas ao Outro, de tudo o que ainda a sustenta,
talvez, ela
na qual a metåfora delirante é circunscrita ao espago
Alfas, esta situagäo de continuar contando e de cheirar podre.
da cura, näo é rara e — acho —
quando verifica-se, deve ser protegida.
Trata-se de proteger, por exemplo, a significaqäo de contista da qual certa-
mente a paciente gozava, o seu delfrio se elaborando cada vez mais. E de O CASO DO SANGUE
aceitar que o consult6rio mesmo se transforme em tela, ou seja, oferega
a presenqa Real de uma superficie de inscrigäo que permite ao sujeito elaborar Este impasse da cura, pelo menos momentåneo, leva-me a falar com
uma metåfora. De certa forma, a tela fez com que a transferéncia da paciente vocés, brevemente, de mais uma paciente que também apresenta um impasse
Iidasse näo com uma injunqäo, mas com um espago, uma espécie de teatro
particular. Trata-se de um caso que a psiquiatria chama de "Lasténie de
no qual e pelo qual se tornava possfvel a tentativa de uma metåfora delirante. Ferjol". A entidade clfnica é designada por um nome pr6prio, uma personagem
Se o consult6rio funciona como quadro/tela Real necessåria å elaboraqäo de um conto de um escritor francés, Barbey d'Aurevilly. Na verdade quem
delirante, a situaqäo pode tornar-se eterna. Tanto mais que parece diffcil construiu esta entidade nosogråfica, näo foram psiquiatras, foram hemat6-
que a metåfora delirante da paciente se constitua como uma metåfora viåvel logos. Trata-sede casos de anemia grave, onde os hemat610gos näo encon-
e eståvel; e a elaboragäo näo se faria sem o quadro Real que a permite.
travam nenhuma razäo fisi016gica. Finalmente, eles descobriram que esses
Por que acredito que seja diffcil a constituiqäo de uma metåfora viåvel? anémicos, ou mais propriamente, essas anémicas, pois trata-se geralmente
Porque tenho a impressäo também que a tela encobre o que deveria ser de mulheres, säo pessoas que se auto-retiram sangue. Prevalentemente, de
mais abrangente, mais vivo na problemåtica da metåfora. A paciente se apre-
dois modos. Uma primeira categoria chupam as gengivas (pode parecer estra-
senta como um efebo, andr6gina, e é curioso que o conto das carpideiras,
nho, mas chupando muito as gengivas podem-se perder 20, 30cc de sangue
bruxas, anöes e companhia evite cuidadosamente a questäo da diferenqa sexual por dia). Uma segunda categoria: enfermeiras ou técnicas de laborat6rios,
e da significaqäo sexuada do sujeito. A aranha, colocada como metåfora que sabem perfeitamente fazer uma endovenosa e retirar-se sangue direta-
paterna, como se sabe, evoca uma reproduqäo na qual o macho perde geral- mente. A
minha paciente era dessa segunda categoria.
122 / Contardo Calligaris
Introdugäo a uma Clinica Diferencial das Psicoses / 123
Ela, evidentemente, tinha toda a aparéncia desse tipo de patologia: era CONCLUSÄO
branca como um lengo, tanto mais que acentuava a sua brancura pintando-se
com vermelho muito forte, e os olhos muito pretos. O resultado era mesmo
Pensando numa palavra de conclusäo, gostaria de lembrar algo que ji
uma cara de vampiro, de autovampiro. falei e que acho um viåtico interessante —- um viåtico é o que precisa para
Colocando as coisas de uma maneira que quero råpida e aproximativa,
uma viagem, que s6 pode continuar, pois percorremos apenas o espaqo de
mas que tem sentido na conceitualidade com a qual estamos Iidando, ela
uma introdugäo.
retirava-se sangue. Poderfamos entäo pensar que o vampiro estivesse do lado
Paradoxal, e contrariamente partilha mais corriqueira (os psic6ticos
da Demanda imaginåria do Outro. S6 que, com o sangue de cada dia, ela
aos psiquiatras e os neur6ticos aos analistas), parece-me que, para trabalhar
fazia algo: pegava folhas de desenho muito grandes, jogava diretamente o
com pacientes psic6ticos é preferfvel, senäo necessårio, ser analisado.
sangue com a seringa na folha, dobrava-a e chegava para mim com esses
Com efeito, se a constituicäo de uma metåfora delirante é, para o neur6-
desenhos estranhamente parecidos com as imagens do "Rorschach"
tico, um espelho do tipo de recalcamento constitutivo de sua subjetividade,
Qual é o impasse pr6prio a esse tipo de situagäo? O impasse estå na näo se vé como um neur6tico, sem o auxilio da sua pr6pria anålise, poderia
dialética entre os dois p610s de transferéncia. Ela estava trazendo-me, propon-
agüentar o mfnimo exigido, näo digo de um analista, mas de um terapeuta
do-me algo, estes desenhos, näo s6 para que eu reconhecesse neles uma de psic6ticos, ou seja: permitir a constituiqäo de uma metåfora delirante
significagäo, mas como se eles fossem a sua significagäo. No entanto ela viåvel.
tragava o hier6glifo da sua significagäo com a subståncia vital mesma que
O segundo viåtico, um sempre tem päo e vinho, é o seguinte:
viåtico
ela parecia oferecer ao gozo do Outro. Nem é täo simples, porque näo podemos
a psicose, e a crise psic6tica ainda mais, é um fenömeno, de uma certa maneira,
esquecer o alto valor metaf6rico do sangue, que sempre significa a linhagem relativo ao fato que a neurose é o sintoma social dominante. Se a injuncäo
paterna. Entäo o seu sacriffcio talvez valesse como uma tentativa de responder
social, mais do que social, cultural, inscrita no Outro, se esta injungäo recebida
å injungäo paterna, fazendo-se puro sangue, pura filiaqäo, e deixando que pelo psic6tico näo fosse a injuncäo a organizar-se numa metåfora paterna,
se apagasse o corpo que o Outro reclamava. a psicose certamente existiria, mas seria outra coisa.
Se menciono este caso é porque ele fornece, pelo menos, uma amostra Por outro lado, o sintoma social dominante estå transformando-se. As
que o tipo de dialética entre os dois p610s transferenciais dos quais falamos
vezes imagino que somos dinossauros por pensar ainda que o sintoma social
pode ser tal que a cura é levada a um impasse. Se tivesse fornecido um dominante seja o neur6tico.
tipo qualquer de ajuda, de assisténcia na elaboragäo de uma significaqäo
Como reescreverfamos hoje Mal-estar na Civilizacäo?
viåvel para ela, ao que eu teria dado singificaqäo? Exatamente ao pedago
Se esse texto, reescrito por n6s, afirmasse, por exemplo, que o sintoma
do corpo que ela tirava de si, sacrificando-se ao lugar que a queria como
— social dominante é o perverso e näo o neur6tico —
o que talvez jå seja
objeto. Mas se tivesse recusado esse tipo de montagem por exemplo recu- o caso — se fosse assim, a psicanålise teria que ser revisitada, e a nossa
sando que ela me apresentasse os desenhos —- teria ao mesmo tempo recusado
clinica transformada, a clinica da neurose, e a clinica da psicose. Se as coisas
o que parecia ser a finica maneira dela tentar construir uma significagäo e
estiverem mudando assim, e acredito que estejam, os psicanalistas que ficarem
tomar o caminho de elaboragäo de uma metåfora delirante.
surdos a esse aspecto ficariam surdos aos pacientes que os interpelam. A
Aligäo que tirei desses dois casos é uma ligäo de modéstia. Näo tanto
questäo com a qual deixo vocés seria entäo: a psicose, a estrutura psic6tica,
por serem casos em impasse. Sobretudo por serem casos nos quais a cura como sofre do mundo que nos espreita?
e a transferéncia impöem ao analista a aceitagäo de uma situagäo que näo
satisfaz o ideal de uma cura acabada. Falar da possibilidade do fim da anålise,
e mesmo conceber que experiéncia poderia ser esta, näo significa em absoluto
praticar a psicanålisecomo animada por uma causa final. A pråtica é antes
de tudo submissäo ao quadro transferencial que o paciente impöe, é por
isso que ela supöe a anålise do analista, porque so a anålise do analista
I
lhe permitiria a dessubjetivagäo necessåria para aceitar esta submissäo. Enten-
de-se que a ambigäo, a procura do fim da anålise como alvo acaba sendo
uma resisténcia psic016gica do analista, e —
para o paciente psic6tico —
pode acabar sendo a catåstrofe esperada de uma injunqäo a mais.