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SELEÇÃO DE TEXTOS

Seduzidos pela Memória


Heloisa Buarque de Hollanda
Andreas Huyssen

Instituto do Pluralismo Cultural


Univcmdadc Candido Mendes - UCAM
Coleção Agmd4 do Milinio.
Dirigida por Candido Me.odes e
Enriquc Rodriguez Larreta

A coleção Agm4a do Milênio, publicada em co-edição


com a Aeroplano Ed,itora e o MAM-RJ, explora
nosso presente cultural, publicando significativas
interprcc:açóes cc:6,ricas, ecoá.dos e estudos de caso
sobre as transformações do mundo contemporâneo
nesta virada de milênio.
Copyright © by Andreas Huyssen

Catalogação na fonte Departamento Nacional do livro

H998s Huyssen, Andreas.

Seduzidos pela memória: arqtúterura, monumentos,


mfdia / Andreas Huyssen - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
116p., l2x2lcm.

ISBN 85-86579-15-7

1. Memória - Aspectos sociais. 2. Memória (Filosofia).


3. Holocausto íudeu (1939-1945). 4. Civilização moderna
- Séc. XX. 5. Alemanha - Civil ização - S~c. XX. I. Tírulo.

CDD-909.82

Capa

Victor Burton

Projeto gráfico e Editoração eletrônica

Adriana Moreno

Coordenação e ditorial

Lucia Lambert

Assistente editorial
Ana Carolina Kapp

Revisão
Andréia do Espírito Santo

Apoio CNPq

lª ed- 2000
2ª ed - 2004
Direitos reservados
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Av. Acaulfo de Paiva, 658 s/402
Leblon - Rio de Janeiro - RJ - 22440-030
T elefax: (2 1) 2239-7399 aeroplano@aeroplanoed.itora.com.br
Os ensaios reunid os ne l1vr o
apontam o surpro( ti 1c 11l1 n ci
men ta de uma C lJll u 1c1 e: 1, 11ma

política da memórit.1 u 1 oxpan


sã o g Ioba I a p a r l 11 c.L 1 1u E d a d o
Muro de Berlim, do li m c1ns cl1loclu-
ras latino -americanas e do "apar
t heid na África do Su l.
11

Observando as t ransfo rmações


de Berl im, Huyssen explora as cons-
truções de cenários urbanos, es-
paços virtua is e os novos senti-
dos da memória histó ri ca . Juntos,
estes ensaios sugerem que o ima-
ginário urbano e as memórias trau-
máticas têm um papel -chave na
atual transformação na nossa ex-
periência de espaço e tempo e
nos co nduzem mu i to além do le-
gado da modernidade e d o co lo
nialismo .
Pas~a,dos pre,entes:
m1d1a, polittca, m aésla

1 ,J.Ú-
~N--6
Um dos fenômenos culturais e políticos mais surprccn-
dentes dos anos recentes é a emergência da memória como t J.d);.'-
uma das preocupações culturais e políticas centrais das so- t~
ciedades ocidentais. Esse fenômeno caracteriza uma volta tJi,..
ao passado que contrasta totalmente com o privilégio da-
do ao futuro, gue tanto caracterizou as _primeiras décad~s
da modernidade do século XX. Desde os mitos apocalípti-
cos de ruptura radical do começo do século XX e a emer-
gência do "homem novo" na Europa, através das fantasma-
gorias assassinas de purificação racial ou de classe, no Na-
cional Socialismo e no stalinismo, ao paradigma de moder-
nização norte-americano, a cultura modernista foi energi-
zada por aquilo que poderia ser chamado de "futuros pre-
sentes"1. No entanto, a partir da década de 1980 o foco pare-
ce ter-se deslocado dos futuros presentes para os passados pre-
sentes; este deslocamento na experiência e na sensibilidade do
tempo precisa ser explicado histórica e fenomenologicament:
Mas o foco contemporâneo na memória e na tempora-
lidade também contrasta totalmente com muitos outros
trabalhos inovadores sobre categorias de espaço, mapas, geo-
grafias, fronteiras, rotas de comércio, migrações, desloca-
mentos e diásporas, no contexto dos estudos culturais e
pós-coloniais. De fato, não faz muito tempo havia nos Es-
tados Unidos um amplo consenso de que para entender a
cultura pós-moderna o foco devia ser deslocado da pro-
"!,,
"'o,,.. ,,, 11
1 Mem6rí3 Soduzldo11 p ' M m 11
1,,-,..,.,

blemática do tempo e da memória, vinculada à forma an- nados, então, primeiramence pdo d<:b,11,· l .11la vt•1. mais
terior do alto modernismo, para uma outra na qual o espa- amplo sobre o Holocausto (iniciado com ,1 M'ttt' dt· IV
3
ço é uma peça-chave do momento pós-moderno • Mas, como "Holocausto" e, um pouco mai.s ~tdi.mtl', ,0111 11 movimen-
tem mostrado o trabalho de geógrafos como David Har- to testemunhal bem como por toJ;1 11111;1 ,érit· dt· eventos
vey", a própria separação entre tempo e espaço representa relacionados à história do Terceiro Rdd1 (lmc,·rncnte poli-
um grande risco para o entendimento completo das cultu- tizada e cobrindo quadragésimos e qüim1ua~ésimos aniver-
ras moderna e pós-moderna. Tempo e espaço, como cate- sários): a ascensão de Hitler ao poder cm 19.B ,.•1 infame
gorias fundamentalmente contingentes de percepção his- queima de livros, relembrada em 1983; a Kris1til/11,1rht, o
toricamente enraizadas, estão sempre intimamente ligadas pogrom organizado em 1938 contra os judeus alemães, obje-
entre si de maneiras complexas, e a intensidade dos desbor- to de uma manifestação pública em 1988; a conferência de
dantes discursos de memória, que caracteriza grande parte Wannsee, de 1942, que iniciou a "Solução Final", relem-
da cultura contemporânea em diversas partes do mundo de brada em 1992 com a abertura de um museu na vila de
hoje, prova o argumento. De fato, questões de temporali- Wansee onde a conferência tinha sido realizada; a invasão
dades diferentes e modernidades em estágios distintos da Normandia em 1944, relembrada com um grande espe-
emergiram como peças-chaves para um novo entendimen- táculo realizado pelos aliados, mas sem qualquer presença rus-
to rigoroso dos processos de globalização a longo praw que sa, em 1994; o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945,
procLLrem ser algo mais do que apenas uma atualização dos relembrada em 1985 com um emocionado discurso do
paradigmas ocidentais de modernização5• presidente da Alemanha e, de novo, em 1995 com uma sé-
Discursos de memória de um novo tipo emergiram pela ' rie de eventos internacionais na Europa e no Japão. Estes
primeira vez no ocidente depois na década de 1960, no ! ' eventos - a maioria deles "efemérides alemãs", às quais se
rastro da descolonização e dos novos movimentos so- pode acrescentar a querela dos historiadores em 1986, a
ciais em sua busca por histórias alternativas e revisionistas. 1 queda do muro de Berlim em 1989 e a unificação nacional
A procura por outras tradições e pela tradição dos "outros" 1 da Alemanha em 1990 7 - receberam intensa cobertura da
foi acompanhada por múltiplas declarações de fim: o fim da mídia internacional, remexendo as codificações da história
história, a morte do sujeito, o fim da obra de arte, o fim nacional posteriores à Segunda Guerra Mundial_da história
das metanarrativas6 • Tais declarações eram freqüentemente nacional na França, na Áustria, na Itália, no Japão e~até nos
entendidas literalmente, mas, no seu impulso polêmico e Estados Unidos e, mais recentemente, na Suíça. O Holocaust
na replicação do ethos do vanguardismo, elas apontam di- Memorial Museum em Washington, planejado durante a
retan1ente para a presente recodificação do passado, que se década de 1980 e inaugurado em 199J, estimulou o deba-
iniciou depois do modernismo. te sobre a an1ericanização do Holocausto8• Mas as resso-
Os discursos de memória aceleraram-se na Europa e nos nâncias da memória do Holoca~to não pararam a{, levan~
Estados Unidos no começo da década de 1980, impulsio- do a que, no final da década de 1990, sejamos obrigados a
f

i;. la Memó

perguntar: em que medida pode-se, agora, falar de uma mo uma prova da incapacidade da civilização 01.:idcntal dt
globalização do discurso do Holocausto? praticar a anamnese, de refletir sobre sua inabilidade cons·
É evidente que a recorrência de políticas genocidas em titutiva para viver em paz com diferenças e alteridades e de
Ruanda, na Bósnia e em Kossovo, em uma década consi- tirar as conseqüências das relações insidiosas entre a moder-
derada pós-histórica (1990), tem mantido vivo o discurso nidade iluminista, a opressão racial e a violência organiza-
da memória do Holocausto, contaminando-o e estenden- da 10. Por outro lado, esta dimensão mais totalizante do dis-
do-o para antes de seu ponto de referência original. É real- curso do Holocausto, tão dominante em boa parte do pen-
mente interessante notar como, no caso dos massacres or- samento pós-moderno, é acompanhada por uma dimensão
ganizados em Ruanda e na Bósnia, no início da década de que ela particulariza e localiza. É precisamente a emer-
1990, as comparações com o Holocausto foram, inicialmen- gência do Holocausto como uma figura de linguagem uni-
te, fortemente rejeitadas pelos políticos, pela mídia e por versal que permite à memória do Holocausto começar a ·A

grande parte do público, não por causa das inquestionáveis entender situações locais específicas, historicamente dis- J }#'it
r~ i; ,1,.,,,.
referências históricas, mas sobretudo devido a um desejo tantes e politicamente distintas do evento original. No mo- J fl
1
J,i
de resisàr à imervenção 9
• Por outro lado, a intervenção "hu- vimento transnacional dos discursos de memória, o Holo- ' "' ~/ 1 tJ
manitária" da OTAN em Kossovo e a sua legitimação têm causto perde sua qualidade de índice do evento histórico ) 1 t .J.'r
J {IY'
sido largamente dependentes da memória do Holocausto. específico e começa a funcionar como uma metáfora para l •
Fluxos de refugiados através das fronteiras, mulheres e crian- outras histórias e memórias. O Holocausto, como lugar-
ças jogadas em trens para deportação, relatos de atrocida- comum universal, é o pré-requisito para seu descentramen-
des, estupros sistemáticos e destruições brutais, tudo isto to e seu uso como um poderoso prisma através do qual po-
mobilizou uma política de culpa na Europa e nos Estados demos olhar outros exemplos de genocídio. O global e o
Unidos associada à não-intervenção nas décadas de 1930 e local da memória do Holocausto têm entrado em novas
r constelações que pedem para ser analisadas caso a caso. As-
1940 e ao fracasso da intervenção na guerra da Bósnia em
1992. A guerra em Kossovo confirma, portanto, o crescen- sim como pode energizar retoricamente alguns discursos
te poder da cultura da memória no final da década de 1990, de memória traumática, a comp~ração com o Hol<2_causto 1 • W A ,e

mas ela também levanta questões difíceis sobre o uso do também pode servir como uma falsa memória~~im_cles- '
\ Holocausto como um lugar-comum universal para os trau- mente bloquear a percepção de histórias específicas.
mas históricos. ·' 1
' , '" " r Em se tratando de passados presentes, no entanto, a
ti" ' , - /
A globalização da memória funciona também em dois memória do Holocausto e seu lugar na reavaliação da mo~
outros senàdos relacionados, que ilustram o que eu cha- dernidade ocidental não contam toda a história. Há tam-
maria de paradoxo da globalização. Por um lado, o Holo- bém muitas tramas secundárias, que constroem a me-
causto se transformou numa cifra para o século XX como um mória narrativa acuai no seu escopo mais amplo, dis
todo e para a falência do projeto iluminista. Ele serve co- tinguindo de forma bastante clara o nosso tempo das pri -

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14 1'..
meiras décadas deste século. Permitam-me apenas listar mórias de lllna modernidade que deu c11,1do 011 w d,• .111 j.
uns poucos fenômenos mais destacados. Desde a década de cula as próprias ansiedades da metrópole sobre o fut u1 o dn-
1970, pode-se observar, na Europa e nos Estados Unidos, a locado para o passado. Não há dúvida de que o mundo e~ .J>1,11>
1
restauração hiscoricizante de velhos centros urbanos, cida- tá sendo musealizado e que todos nós representamos os nos- , Ô,r,,d""
des-museus e paisagens inteiras, empreendimentos pacri- sos papéis neste processo. É como se o objetivo fosse con- \ ,,.
moniais e heranças nacionais, a onda da nova arquitetura de
museus (que não mostra sinais de esgotamento), o boom
seguir a recordação total. Trata-se então da fantasia de um /!~b
arquivista maluco? Ou há, talvez, algo mais para ser dis- ut-"·
,das modas retrô e dos utensílios reprô, a comercialização
\ - cucido neste desejo de puxar todos esses vários passados para ffJ Ll'ffe.
?J.r; ,' 'em massa da nostalgia, a obsessiva automusealização aua- o presente? Algo que seja, de faro, específico à estruturação f'~"'
11
ef' ...1' Jés da câmera de vídeo, a literatura memorialística e con- da memória e da temporalidade de hoje e que não tenha si-
t( \) • fessional, o crescimento dos romances autobiográficos e his- do experimentado do mesmo modo nas épocas passadas. J
r)>Y, .. tóricos pós-modernos (com as suas difíceis negociaçóes Freqü~ntem~nte tais obsessóes com a ~emória e com o J_
v.,v)<Jll'\

/ ,J{ J entre futo e ficção), a difusão das práticas memorialí~i9-5 nas passado sao explicadas em função do finde stêcle, mas eu pen- ri.._,{' I
r/ artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, so que é preciso ir mais Ílll1do para dar conta daquilo que ,,. L'/.. 1
e o aumento
---- do--número de documentários
- - -- na televisão,
- in- se pode chamar agora de uma cultura da memória, na me- 1
cluindo, nos Estados Unidos, um canal totalmente voltado ' dida em que se disseminou nas sociedades do Atlântico-
para história: o ljistory ChanneL No lado traumático da cul- Norte a partir dos últimos anos da década de 1970. O que
tura da memória, e junto ao cada vez mais onipresente dis- aí aparece, agora, em grande parte como uma comerciali-
curso do Holocausto, temos a vasta literatura psicanalítica zação crescentemente bem-sucedida da memória pela in-
sobre o trauma; a controvérsia sobre a síndrome da me- dústria cultural do ocidente, no contexto daquilo que aso-
mória recuperada; os trabalhos de história ou sobre temas ciologia alemã chamou de blebnisgesellschaft 11 , asswne uma
atuais relacionados a genocídio, aids, escravidão, abuso se- inflexão política mais explícita em outras partes do mun-
xual; as cada vez mais numerosas controvérsias públicas so- do. Especialmente desde 1989, as questóes sobre memória
bre efemérides politicamente dolorosas, comemoraçóes e e o esquecimento têm emergido como preocupações domi-
memoriais; a mais recente pletora de pedidos de desculpas nantes nos países pós-comunistas do leste emopeu e da an-
pelo passado, feitos por líderes religiosos e políticos da Fran- tiga União Soviética; elas permanecem como peças-chaves
-ça, do Japão e dos Estados Unidos; e, finalmente, trazendo na política no Oriente Médio; dominam o discurso públi-
juntos o emreteni~en~o memor~a!íscico e o trawna, temos co na África do Sul p6s-apartheid com a sua Truth and Re-
obsessão mundial com naufrágio de um navio a vapoi; conciliation Commission ("Comissão de Verdade e Recon-
supostamente não-naufragável, que marcou o fim de uma ciliação") e são também onipresentes em Ruanda e na Ni-
outra época dourada. De furo, não se pode ter certeza se o géria; energizam o debate racial que explodiu na Austrália
sucesso internacional do Titanic é uma metáfora de me- em torno da questão da stolen gemmttion ("gcraçao rouba
"111,1'0 17
Seduzidos pola M m6rln
"·~'"'¾,.,,

dà'); pesam sobre as relações entre Japão, China e Coréia rar a legitimidade e o futuro d as suas políc1cas <' IIH'tgcntcs,
e determinam, em grau variado, o debate cultural e políti- buscando maneiras de com emorai r ,1val1a1 0 1. l' tros do p ,ls
co em torno dos presos políticos desaparecidos e seus filhos sado. Quaisquer que possam ser as difl·rt·11i,;1s cnrrc a. Ale-
nos países latino-americanos, levantando questões funda- manha do pós-guerra e a África. do "111I. ., Argcncina ou o
mentais sobre violação de direitos humanos, justiça e res- C hile, o lugar politíco das prát icas de mrn16ri.1 é ainda na-
ponsabilidade coletiva. cional e não pós-nacional o u global. b to tr.11. implicações
A disseminação geográfica da cultura da memória é tão para o trabalho interpretativo. Embora o l lo lrn.:au~to, como
~mpla quanto é variado o uso político da memória, indo lugar-comum universal da história traumática, tenha mi-
~sde a mobilização de passados míticos para apoiar expli- grado para outros contextos não relaciona.dos, deve-se sem-
citam ente políticas chauvinistas ou fundamentalistas (por pre perguntar se e como ele reforça ou limita as práticas de
exemplo: a Sérvia pós-comunista e o o populismo hindu memória e as lutas locais, ou se e como ele pode executar
na Índia) até as tentativas que estão sendo realizadas, na Ar- ambas funções ao mesmo tempo. É claro que os debates
gentina e no Chile, para criar esferas públicas de memória sbbre a memória nacional estão sempre imbricados com os
"real" contra as políticas do esquecimento, promovidas pe- efeitos da mídia global e seu foco em cernas tais como ge-
los regimes pós-ditatoriais, seja através de reconciliações nocídio e limpeza étnica, migração e direitos das minorias,
nacionais e anistias oficiais, seja at ravés do silêncio repres- vitimização e responsabilização. Quaisquer que possam ser
,;( fsivo 12• Mas ao mesmo tempo, é claro, nem sempre é fácil as diferenças e especificidades locais das causas, elas suge-
,; r.J-t)- traçar uma linha de separação entre passado mítico e pas- rem que a globalização e a forte reavaliação do respectivo
i, l~ sado real, um dos nós de qualquer política de memória em passado nacional, regional ou local deverão ser pensados
~1U:, '
r :v<
qualquer lugar. O real pode ser mitologizado tanto quanto juntas. Isto, por seu turno, faz perguntar se as culturas de
~,'~ o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade. Em m em ória contemporâneas em geral podem ser lidas como
fp suma, a memória se tornou uma obsessão cultural de pro- formações reativas à globalização da economia. Este é um
porções monwnentais em t0dos os pontos do planeta. terreno no qual se poderia tentar alguns novos trabalhos

'•1.,
Ao mesmo tempo, é importante reconhecer que e~b..9.:
ra os discursos de memória possam parecer, de certo mo-
comparativos sobre mecanismos e lugares-comuns de trau-
mas históricos e práticas de memória nacional.
do, um fenômeno global, no seu núcleo eles permanecem
ligad os às histórias de nações e estados específicos. Na me-
d ida em q ue as nações lutam para criar políticas democrá-
2
ticas no rastro de histórias de extermínios em massa, apar- Se a consciência temporal da alta modernidade no oci-
theids, ditaduras militares e totalitarismo, elas se defrontam, dente procurou garantir o futuro, então pode-se argumen-
como foi e ainda é o caso da Alemanha desde a Segunda tar que a consciência temporal do final do século XX
Guerra Mundial, com a tarefa sem precedentes de assegu- envolve a não menos perigosa tarefa de assumir a rcsponsa-
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' bilidade pelo passado. Inevitavelmente, ambas as tentativas Para onde quer que se olhe, a obw\.,;io ,11111t•111pm:111l"a

são assombradas pelo fracasso. Portanto um segundo pon- pela memória nos debarc:. püblirn~ Sl d111l,1 lm1111111 1ntl'll

co deve ser tratado imediatamente. O enfoque sobre a me- so pânico público frente ao nq11l·t 1111c1110, t ' pmlt'.1 -se ia
\\
mória e o passado u-az consigo um grande paradoxo. Com perfeitamente perguntar qu,11 dus doí~ l·m primeiro
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freqüência crescente, os críticos acusam a própria cultura lugar. É o medo do esquecimento q11, di,p.tra o desejo de
da memória contemporânea de amnésia, apatia ou embo- lembrar ou é, calvez, o contrário? I~ possivd tJlH.' o excesso
tamento. Eles destacam sua incapacidade e falta de vonta- de memória nessa cultura saturada de míd1.1 uil· uma tal
de de lembrar, lamentando a perda da consciência histórica. sobrecarga que o próprio sistema de memórias filJlH. cm
A acusação de amnésia é feita invariavelmente através de perigo constante de implosão, disparando, portanto, o me
uma crítica à mídia, a despeito do faro de que é pre- do do esquecimento? Qualquer que seja a resposta para es-
cisamente esta - desde a imprensa e a televisão até os CD- tas questões, fica claro que velhas abordagens sociológicas
Roms e a Internet - que faz a memória ficar cada vez mais da memória coletiva - tal como a de Marnice Halbwachs,
disponível para nós a cada dia. Mas e se ambas as observa- que pressupõe formações de memórias sociais e de grupos
ções forem verdadeiras, se o aumento explosivo de memó- relativamente estáveis - não são adequadas para dar conta
ria for inevitavelmente acompanhado de um aumento ex- da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da me-
plosivo de esquecimento? E se as relações entre memória e mória, do tempo vivido e do esquecimento. As contrastan-
esquecimento estiverem realmente sendo transformadas, tes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de
sob pressões nas quais as novas tecnologias da informação, grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se
as políticas midiácicas e o consumismo desenfreado estive- ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de
, rem começando a cobrar o seu preço? Afinal, e para co- memória consensual coletiva e, em caso negativo, se e de
meçar, muitas das memórias comercializadas em massa que que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem
consumimos são "memórias imaginadas" e, portanto, mui- ela. Está claro que a memória da mídia sozinha não será su-
to mais facilmente esquecíveis do que as memórias vivi- ficiente, a despeito de a mídia ocupar sempre maiores por-
das'~. Mas Freud já nos ensinou que a memória e o es- ç9es da percepção social e política do mundo.
quecimento estão indissolúvel e mutuamente ligados; que As próprias estruturas da memória pública midiatizada
a memória é apenas uma outra forma de esquecimento e ajudam a compreender que, hoje, a nossa cultura secular,
\
que o esquecimento é uma forma de memória escondida. obcecada com a memória, tal como ela é, está também de
Mas o que Freud descreveu como os processos psíquicos da alguma maneira tomada por um medo, um terror mesmo,
recordação, recalque e esquecimento em um indivíduo vale do esquecimento. Este medo do esquecimento articula-se
também para as sociedades de consumo contemporâneas paradigmaticamente em torno de questões do Holocausto,
como um fenômeno público de proporções sem prece- na Europa e nos Estados Unidos, ou dos presos polh Íl.:os
dentes que pede para ser interpretado historicamente. desaparecidos na América Latina. Ambos, é d.iro, com par·
s Mom

tilham a crucial ausência de um espaço fúnebre tão neces- de mídia como veículos para todas as formas dt mcmóna. (
sário para alimentar a memória humana, fato que ajuda a Portanto, não é mais possível, pm cxc111plo, pt 11, .11 11 0 l lo
explicar a forte presença do Holocausto na Argentina. Mas locausto ou em outro traum.1 hist óm o ~0 1110 um,1 qucsriio
o medo do esquecimento do desaparecimento opera tam- ética e política séria, sem lcv;ir cm rn11111 o~ múltiplos mo-
' bém em uma outra escala. Quanto mais nos pedem para dos em que ele está agora ligado m eru tloril.lÇ,IO e à espe-
lembrar, no rastro da explosão da informação e da comer- tacularização em filmes, museus, Jocud1.1m,1s, H l t's na In-
cialização da memória, mais nos sentimos no perigo do es_/ ternet, livros de fotografia, histórias crn quadrinhos, fi cção, t

quecimento e mais forte é a necessidade de esquece:. Um até contos de fadas (La vita é bel/a, de Benigni) e música
ponto em questão é a distinção entre passados usáveis e da- ,. . popular. Mas mesmo se o Holocausto tem sido mcrcadori-
dos disponíveis. A minha hipótese aqui é que nós tentamos zado interminavelmente, isto~ significa que toda e qual-
combater este medo e o perigo do esquecimento com es- quer mercadorização inevitavelmente banalize-o como
tratégias de sobrevivência de rememoração pública e priva- l evento histórico. Não há nenhum espaço puro fora da cul-
da. O enfoque sobre a memória é energizado ~ub~inar- i tura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal
mente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracteri- espaço. Depende muito, portanto, das estratégias específicas
zado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fra- de representação e de mercadorização e do contexto no
turamento do espaço vivido. Ao mesmo tempo, sabemos qual elas são representadas. Da mesma forma, a suposta-
que tais estratégias de rememoração podem afinal ser, elas mente trivial Erfebnisgesellschaft dos estilos de vida comer-
mesmas, transitórias e incompletas. Devo então voltar à cializados em massa, espetáculos e eventos fugazes tem uma
questão: por quê? E especialmente: por que agora? Por que realidade vivida significativa, subjacente às suas manifesta-
esta obsessão pela memória e pelo passado e por que este ções superficiais. Meu argumento aqui é o seguinte: o pro-
medo do esquecimento? Por que estamos construindo mu- blema não é resolvido pela simples oposição da memória
seus como se não houvesse mais amanhã? E por que só séria à memória trivial, do modo como os historiadores al-
agora o Holocausto passou a ser algo como uma cifra oni- gumas vezes opõem história e memória tout court, memó-
presente para as nossas memórias do século XX, por cami- ria como uma coisa subjetiva e trivial, fora da qual o his-
nhos inimagináveis vinte anos atrás? toriador constrói a realidade. Não podemos simplesm~nte
contrapor o museu sério do Holocausto a um parque te-
3 mático "Disneyficado". Porque isto iria apenas reproduzir a
Quaisquer que tenham sido as causas sociais e polícicas velha dicotomia alta/baixa da cultura modernista sob uma no-
do crescimento explosivo da memória nas suas várias sub- va aparência, como ocorreu no debate caloroso que situou
tramas, geografias e setorializações, uma coisa é certa: não o filme Shoah, de Claude Lanzmann, como uma rcpr(·scn ,
podemos discutir memória pessoal, geracional ou pública ração adequada (isto é, uma não represcntaçao) da 111c11H\ -
sem considerar a enorme influência das novas tecnologias ria do Holocausto, por oposição à Lista dt Schinrlfa, dt· ~ptd
berg, como uma trivialízação comercial. Se reconhecemos forma. E aqui - seguindo o M11r.1do ,11gu111l' lll11 dl' Mr.-
a distância constitutiva entre a realidade e a sua representa- Luhan de que O meio é a JnCIIS,l!l,l'lll C li.,~1.1111(' ,iw1mr.11 i-
ção em linguagem ou imagem, devemos, em princípio, estar vo que o poder da nossa cl l.1ru111l..1 111,,i, 1v,1111,.1d.1 dcpl'll
abertos para as mtútas possibilidades diferentes de repre- da inteiramente de quantid:,dl·s dl· 111c111n11,1: Bill Gates
sentação do real e de suas memórias. Isto não quer dizer talvez seja a mais recencc encarnação do vt·llw itk·al ameri-
que vale tudo. A qualidade permanece como uma questão cano - mais é melhor. Mas "mais" é rm:clido ,11;ora t·m bites
a ser decidida caso a caso. Mas a distância semiótica não de mem6ria e no poder de reciclar o pas~:1do. Qu1.: o diga
pode ser encurtada por uma e única representação correta. a divulgadíssima compra da maior coleção <.h.: originab fo-
Tal argumento equivaleria a uma concepção modernista tográficos feita por Bill Gates: com a mudança da foto-
do Holocausto14• De fato, fenômenos como a Lista de Schin- grafia para a sua reciclagem digital, a arte de reprodução
dlere o arquivo visual de Spielberg dos testemunhos de so- mecânica de Benjamin (fotografia) recuperou a aura da
brcvivemcs do Holocausto nos compelem a pensar a me- originalidade·. O que mostra que o famoso argumento de
mória traumática e a memória visual corno ocupando jun- Benjamin sobre a perda ou o declínio da aura na moder-
tas o mesmo espaço público, em vez de vê-las como fenô- nidade era apenas uma parte da história; esqueceu-se que a
menos mutuamente excludentes. Questões cruciais da cul- modernização, para começar, criou ela mesma a sua aura.
tura contemporânea estão precisamente localizadas no limi- Hoje, é a digitalização que dá aura à fotografia "original".
ar entre a memória dramática e a mídia comercial. É muito Afinal, como Benjamin também sabia, a própria indústria
fácil argumentar que os eventos de entretenimento e os es- cultural da Alemanha de Weimar precisou lançar mão da
petáculos das sociedades contemporâneas midiatizadas exis- aura como uma estratégia de marketing.
cem apenas para proporcionar alívio ao corpo político e so- Então, permitam-me por um momento condescender
cial angustiado por profundas memórias de atos de violên- com o velho argumento sobre a velha indústria cultural, tal
cia e genocídio perpetrados em seu nome, ou que eles são como Adorno o propôs contra a posição de Benjamim so-
montados apenas para reprimir tais memórias. O trauma é bre a mídia tecnológica, por ele considerada excessivamente
comercializado tanto quanto o divertimento e nem mesmo otimista. Se hoje a idéia de arquivo total leva os triunfalis-
para diferentes consumidores de memórias. É também mui- tas do ciberespaço a abraçar as fantasias globais à la Mc-
/ co fácil sugerir que os espectros do passado que assombram Luhan, os interesses de lucro dos comerciantes de memória
as sociedades modernas, com uma força nunca antes conhe-
'Nora do craducor: para Benjamin, a fotografia é o primeiro meio de
cida, articulam realmente, pela via do deslocamento, um
reprodução verdadeirameme revolucioná.rio. Para mais detalhes, indu
,,, t' crescente medo do futuro, num tempo em que a crença no sivc sobre a questão da aura. ver Walter Benjamin, Magia e trmk,1. ,11'/t'
progresso da modernidade está profundamente abalada. e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, especialmente os cnMm,
Sabemos que a mídia não transporta a memória pública "'A obra de arte na era da sua reproducibilidadc técnid', "l',·q11c11.1 1ti~
inocentemente; ela a condiciona na sua própria estrutura e tória da fotografia" e "Sobre o conceiro da Histót ,a".
de massa parecem ser mais pertinentes para explicar o su-
,r:p-
presente da reciclagem a curto pr.uo. p ,11,1 o lm 111, n pn:·
' cesso da síndrome da memória. Trocando em miúdos: o pas- sente da produção na hora, do cnt1cll' IIÍt11t•11111 i11st.1111:111rn
sado está vendendo mais do que o futuro. Mas por quanto e dos paliativos para a no~sJ. 11c11s.1e;ii11 lk ,11m::u1 .1 e inscl'\ll·
tempo, ninguém sabe. rança, imediatamente subjncencc :1 :,iqwd k il· dl·sta nova
Tome-se a chamada de um falso anúncio colocado na In- era dourada, em mais um Jin rlt .1i,\rf,:; ( h rn111p111,1dores,
ternet: "O Departamento de Recrô dos Estados Unidos Alerta: dizem, poderão não saber reconhcc.;c1 il dil i. rcn,.1 <. ntrc o
Poderá Haver uma Escassez de Pas.53.do." O primeiro parágrafo ano 2000 e o ano 1900 - mas nós sabemos?
diz: "Numa entrevista coletiva na segunda-feira, o Secretário
de Retrô, Anson Williams, emitiu um importante comunica-
do sobre uma iminente 'crise nacional de retrô', alertando que
4
'se os níveis atuais do consumo retrô nos Estados Unidos con- Os críticos da amnésia do capitalismo tardio duvidam
tinuarem fora de controle, as reservas de passado poderão ser que a cultura ocidental da mídia tenha deixado algo pare-
exauridas já em 2005'. Mas não se preocupem. Nós já estamos cido com memória "real" ou com um force sentido de his-
comercializando passados que nunca existiram: a prova disso é tória. Partindo do argumento padrão de Adorno, segundo
a recente introdução da linha de produtos Aerobku, nostalgias o qual a mercadorização é o mesmo que esquecimento, eles
dos anos 1940 e 50 inteligentemente organizadas em torno de argumentam que a comercialização de memórias gera ape-
um fictício clube de jazz de Paris que nw1ca existiu, mas onde nas amnésia. Em última instância, não acho este argumen-
teriam tocado todos os grandes nomes do jazz da época do be- to convincente porque ele deixa muita coisa de fora. É
bop, uma linha de producos repleta de recordações originais, muito fácil atribuir o dilema em que vivemos a maqui-
gravações originais em CD e peças originais, todas disponíveis nações da indústria da cultura e à proliferação da nova mí-
nos Estados Unidos em qualquer filial da Barnes&Noble." 15 dia. Algo mais deve estar em causa, algo que produz o de-
Os "remakes originais" estão na moda e, assim como os teóri- sejo de privilegiar o passado e que nos fa:l responder cão fa-
cos culturais e os críticos, nós estamos obcecados com re-re- voravelmente aos mercados de memória: este algo, eu su-
presentação, repetição, replicação e com a cultura da cópia, geri ria, é uma lenta mas palpável transfomação da tempo-
com ou sem o original. ralidade nas nossas vidas, provocada pela complexa inter-
Do jeito como as coisas estão acontecendo, parece plau- seção de mudança tecnológica, mídia de massa e novos
sível perguntar: dado que o crescimento explosivo da me- padrões de consumo, trabalho e mobilidade global. Pode
mória é história, como não resta dúvida de que será, terá haver, de fato, boas razões para pensar que a força da re-
alguém realmente se lembrado de alguma coisa? Se todo o memoração tem igualmente uma dimensão mais benéfkn
passado pode acabar, não estamos apenas criando nossas e produtiva. No entanto, muito disso é o deslocJnH·nto de
próprias ilusões de passado, na medida em que somos mar- um medo do futuro nas nossas preocupações com ., 111l·~

cados por um presente que se encolhe cada vez mais - o mória e, por mais dúbia que hoje nos parcç;i ,1 .1flr1n,1t,,10

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16. Falo aqui somente do prédio enquanco arquicetura. Suas funções de
museu e curadoria ainda estão muito instáveis para que eu possa tecer Andreas Huyssen é professor de literatura comparadtt r
comentários, com algum grau de certeza, sobre a maneira como os es-
germânica, cátedra Villard, na Universidade de Columbi1t,
paços de exposição serão usados, ou mesmo sobre quem remo concrole
da curadoria do anexo. em Nova York, onde também dirige o Centro de Estudos
de Literatura Comparada.

É autor de inúmeros ensaios e entre os seus livros mais


conhecidos estão After the Great divide: modernism, mass
culture, postmodernism (1986), Twilight Memories:
marketing time in a culture ofamnesia (1995) e Memórias
do modernismo (1996). Ele é também co-editor do New
German Critique: an interdisciplinary journal
ofgerman studies.

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