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© Copyright Editora Scriptum 2012
Edição e organização:
Maria do Carmo Dias Batista e Sérgio Laia
Tradutores:
José Luiz Gaglianoni, Lourenço Astúa de Moraes, Maria da Glória Magalhães e
Sandra Arruda Grostein
Revisão da Tradução:
Daniela de Camargo Barros Affonso (coordenadora), Ana Venite Fuzatto de Oliveira,
Antonia Claudete Amaral Livramento Prado, Kátia Ribeiro, Maria Noemi de Araújo,
Márcia Aparecida Barbeito e Marizilda Paulino
Produção:
Silvano Moreira
I I
ISBN 978-85-89044-48-6
i CDU: 616.89 i
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Livraria e Editora Scriptum Escola Brasileira de Psicanálise
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SUMÁRIO
A NEOCONVERSÃO
Seção Clínica de Bordeaux:
Usos do corpo e sintomas 99
Antennes Cliniques de Chauny-Prémontré e de Rouen:
Fenômenos de corpo e estruturas 119
Antenne Clinique de Nantes e Seção Clínica de Rennes:
Fenômenos corporais em pacientes masculinos 129
A NEOTRANSFERÊNCIA
Seção Clínica de Angers:
lalíngua da transferência nas psicoses 155
Seção Clínica de Bruxelas:
Transferência e psicose .nos limites 187
Antenne Clinique de Tottlouse:
O psicanalista como ajuda-contra 203
ABERTURA
1. Tríptico 235
2. A Convenção, modo de uso 239
3. Clínica fluida {f/oue) 241
DO PATOLÓGICO AO NORMAL
4. Perturbações da linguagem 249
5. Gozar da linguagem 263
6. Apfuit! do sentido 271
7. Continuidade-descontinuidade 277
8. Psicoses carvalho e junco 291
DO PSICÓTICO AO ANALISTA
16. Do saber suposto à lalíngua exposta 345
17. A língua e o laço social 349
18. Decomposição espectral da linguagem 357
19. Word and object 361
20. Língua pública e língua privada 367
21. Como pode o sujeito psicótico servir-se de nós? 375
22. As condições da conversação com um psicótico 383
SUPLEMENTO
Efeito do retorno à psicose ordinária (Jacques-Aiain Miller) 399
PREF Á CIO DA EDIÇ Ã O BRASILEIRA
7
re ao título, pensou-se, num primeiro momento, em traduzir "La
P!Jchose Ordinaire" por Psicose Comum, mas optou-se por manter a
pluralidade de sentidos que "ordinária" comporta, exprimindo
melhor o que se busca no desenvolvimento das discussões presen
tes no livro.
No contexto da discussão clínica, cuja série de conversa
ções Antibes finaliza, o debate visava encontrar meios de aproxi
mação da questão da psicose por meio de novas proposições con
ceituais. Já no campo editorial, a versão brasileira, diferentemente
da francesa, cuja inclusão na série das três conversações já estava
dada a priori, buscava um lugar onde pudesse ter seu valor reco
nhecido. Decidiu-se então, numa segunda parceria entre a Escola
Brasileira de Psicanálise e uma das editoras que já publicavam o
Campo Freudiano no Brasil, incluí-la na série das revistas dos
Institutos do Campo Freudiano no Brasil, iniciada com os dois
volumes da revista Clique. Projeto esse que foi posteriormente
descartado.
Finalmente, numa terceira parceria entre a Escola
Brasileira de Psicanálise (EBP) e a Editora Scriptum, decidiu-se que
a coleção que teria o melhor perfll para acolher o livro A Psicose
Ordinária seria a própria coleção da EBP.
Foi imperiosa uma revisão criteriosa da tradução, visando
principalmente à uniformização dos termos, trabalho do qual nova
mente a CLIPP participou ativamente, em conjunto com colegas da
EBP.
O longo caminho percorrido para chegar à publicação
permitiu que o termo psicose ordinária fosse apresentado ao públi
co brasileiro amplamente validado. Embora desde 1 999 muito se
tenha discutido sobre a importância de incluir um diferencial entre
as psicoses, que as aproximassem da neurose, a flexibilidade com
que a expressão "psicose ordinária" é'utilizada permite que se man
tenha como um termo comum e não seja elevada à categoria de
conceito.
8
Em seu texto "Efeito de retorno sobre a psicose ordiná
ria", Jacques-Alain Miller retoma a discussão sobre o termo psico
se ordinária, dizendo que este não se encaixa em uma definição rígi
da conceitual, e que foi proposto para que cada um pudesse utilizá
lo quando necessário. Trata-se mais de uma palavra, uma expressão,
um significante, do que propriamente um conceito.
9
NOTA DOS EDITORES BRASILEIROS
11
tradução deste livro no ano anterior à publicação do DSM-V é ofe
recer àqueles que se interessam pelas psicoses e pelo que se conven
cionou a chamar de "saúde mental", um instrumento clínico preci
so e prectoso.
Outra mostra da atualidade deste livro é que, em 201 1 , por
ocasião de um encontro com vários psicanalistas de língua inglesa
em Paris, Jacques-Alain Miller apresentou a conferência "Efeito de
retorno sobre a psicose ordinária". Neste "retorno" - que conside
ramos fundamental publicar nesta edição brasileira - a noção de
"psicose ordinária" ganha em precisão e clareza, assim como suas
ressonâncias sobre a experiência psicanalítica com relação à satisfa
ção pulsional, ao significante fundamental que Lacan designou
como Nome-do-Pai e aos modos como o termo "sintoma" é lapi
dado ao longo do ensino de Lacan.
Esta tradução brasileira, como poderemos ler no Prefácio
aqui assinado por nossa colega Sandra Grostein, foi um trabalho
feito por muitos, uma efetiva pratique à piusieurs que, por sua vez, é
consonante com a própria montagem do livro original, baseada nos
trabalhos e na conversação que ganharam corpo em uma
Convenção, sustentada por vários psicanalistas de orientação laca
niana e animada por Jacques-Alain Miller, em Antibes. A esses cole
gas de língua francesa, bem como à Sandra Grostein, Angelina
Harari, Elisa Alvarenga e Leonardo Gorostiza, que foram decisivos
para a retomada de alguns contatos e a efetivação de iniciativas que
tornaram esta edição possível, nossos agradecimentos. Para fazer
ressoar pluralidade da tradução para o português em um mesmo
diapasão, contamos com o inestimável trabalho de nossos colegas
Frederico Zeymer Feu de Carvalho e Yolanda Vilela, a quem tam
bém agradecemos imensamente.
Como editores brasileiros deste A psicose ordinária, cabe
agora também destacar que iniciamos nosso trabalho no âmbito da
gestão de Rômulo Ferreira da Silva, Luiz Fernando Carrijo da
Cunha e Simone Souto na Diretoria da EBP, mas o prosseguimos,
12
devido à extensão que ele tomou, graças à acolhida que tivemos da
atual Diretoria da EBP, composta por Cristina Drummond, Lilany
Vieira Pacheco e Ondina Machado. Somos gratos à confiança depo
sitada em nós por esses colegas, bem como aos que compõem a
maquinaria editorial da Scriptum. Considerando que este é nosso
último trabalho conjunto na Equipe de Publicação da EBP, bem
como a magnitude deste livro, podemos dizer que fechamos este
nosso percurso "com chave de ouro". É esta chave que entregamos,
agora, na forma deste livro, aos leitores brasileiros.
Sérgio Laia
Analista Membro da Escola (AME) pela EBP e pela AMP;
Professor do Curso de Psicologia da
Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura);
Pesquisador do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da
Universidade FUMEC (ProPIC), com Bolsa de Produtividade
Nível 2 do Cons�lho Nacional de Desenvolvimento
Tecnológico e Científico (CNPq) e em cujas atividades está
incluído o processo de edição deste livro.
13
PREF Á CIO
27 de julho de 1 999.
15
PRIMEIRA PARTE
OS TEXTOS
O NEO DESEN CADEA MENTO
Seção Clínica de Aix-Marseille e Antenne Clinique de Nice*
L INTRODUÇ Ã O
21
da criança"4• Essa via leva a dar todo o lugar à clínica "borromea
na", contemporânea dos Seminários RSI e O Sinthoma, além da clí
nica estrutural que distingue entre neurose e psicose em função da
presença ou da ausência do operador que é o N orne-do-Pai.
Parece-nos mais fácil, graças a essas ferramentas, dar conta
de numerosos casos clínicos e de suas possibilidades de tratamento,
perguntando-nos o que faz manter juntos os três registros R, S e I
da estrutura, ou o que poderia fazê-los ficar juntos, em vez de nos
orientarmos somente pela questão da foraclusão.
De um modo empírico, o que orienta a clínica consiste em
identificar o que, em um dado momento, para um sujeito, faz "desli
gamento" em relação ao Outro. Essa identificação esclarece retros
pectivamente o elemento que fazia "ligamento" para esse sujeito, e
permite dirigir o tratamento no sentido de um eventual "religamen
to". Essa noção, estritamente empírica, pode, portanto, revelar-se
operatória para a direção do tratamento.
A clínica à qual nos referimos dá lugar a casos que pode
mos qualificar - segundo o modelo da nosologia médica - de "for
mas clínicas", no sentido de variantes, e até mesmo de modos atípi
cos, em relação à "forma tipo" do desencadeamento pinçado por
Lacan em sua "Questão preliminar". Notamos que, desde essa
época, Lacan fazia de sua forma paradigmática um modelo suscetí
vel de ser declinado segundo diversas variáveis. Na literatura pulu
lam entidades como mania, melancolia, erotomania, autismo infan
til, etc., nas quais, por exemplo, a eclosão dos fenômenos elementa
res não acompanha o encontro de Um-pai ou obedece a uma tem
poralidade diferente. Os novos sintomas, a evolução da patologia ao
sabor das mudanças do Outro, são igualmente ocasiões para obser
var formas clínicas mais ou menos inéditas.
Parece-nos que, dentre essas "formas clínicas", pode-se propor
uma classificação na medida em que as variações em relação ao para
digma envolvam a temporalidade (diacronia) ou a estrutura do próprio
desencadeamento, sua "conjuntura", como dizia Lacan (sincronia).
22
A. Formas clínicas segundo a diacronia
23
identificatórias, sua estranheza e a impossibilidade de comunicá-la a
alguém e de tirar disso uma significação - são às vezes reinterpreta
dos, a posteriori, em termos de experiência parapsicológica, de "via
gem cósmica" ou de vivência mística inefável. A convicção dos
sujeitos sobre o sentido sinestésico de uma abolição dos limites da
realidade sensível só se equipara ao caráter enigmático e angustian
te desse gozo.
Eles alegam em seguida um empobrecimento de suas tro
cas e dos laços afetivos e sociais, e uma marginalização crescente,
escandida por tempos de rupturas progressivas, repetitivas e de
intensidade crescente do laço social.
Esse percurso evoca para nós o que Éric Laurent definia,
em Arcachon, como "desligamento progressivo do Outro".
Daremos, mais adiante, vinhetas clínicas que nos parecem ilustrar
esse caso.
24
se manifesta é o desfalecimento radical de todo aparelhamento sig
nificante do gozo. Freud notava, à sua maneira, esse traço na melan
colia, distinguindo nela o modo de identificação ao objeto perdido
- poderíamos falar da "realização" dele - com relação ao que se
observa na histeria, na qual a identificação ao objeto é amenizada
pelo fato de que o sujeito dispõe daquilo que ele chama de uma
"relação de objeto", como meio de mediação, isto é, uma possibili
dade de aparelhamento pela fantasia.
Referindo-se à "Questão preliminar"7 e ao esquema I de
Lacan, o que é patente nesses casos é <!>o. Toda significação fálica
parece abolida. Mas não parece legítimo supor Po, principalmente
na ausência de encontro com Um-pai e de triangulação da situação,
e tampouco em presença, por outro lado, de uma aparente eficiên
cia da figura paterna. Quando muito, poder-se-ia deduzir Po a par
tir da suposição teórica, que é a condição lógica e necessária da
ausência da significação fálica.
Grivois8 descrevia a psicose como articulada em torno de
um "ponto central", que consiste em uma "experiência vivida pelo
sujeito fora de toda possibilidade de comunicá-la". Os casos dos
quais falamos aqui, em que não predominam os distúrbios da relação
com o simbólico, são assim centrados em uma experiência que devemos
entender como confrontação a um gozo do Outro, que o sujeito
sente como totalmente enigmático, não lhe atribuindo outro lugar
senão o de objeto e colocando-o em perigo extremo. A posteriori, o
sujeito poderá dizer que é a sua vida psíquica, a sua "própria exis
tência" - como diz um de nossos analisantes - que se encontrava
ameaçada, mais do que a vida propriamente dita. Nesse ponto, nos
sos sujeitos são bastante "Schreberianos".
Conhecemos pelo menos três casos de jovens mulheres
em que o neodesencadeamento consiste em uma vivência apocalíp
tica por ocasião de sua primeira relação sexual, em um contexto, a
priori, não traumático. O trauma só é constituído nesses casos com
a condição de que seja dado um sentido amplo ao termo, a saber, o
25
encontro com um real sem ordenação simbólica possível. Os efei
tos puderam ser de aparência melancólica, até mesmo catatônica.
Imediatamente, aparece o desarranjo do laço do sujeito com o seu
ser vivente. A impossibilidade de produzir uma significação fálica
para dar conta da situação vivenciada deixa o sujeito diante de um
desespero "que não tem mais nada a ver com nenhum sujeito",
como diz Lacan sobre os urros de Schreber. Po é aqui uma simples
hipótese que só se sustenta pelo sentimento de ausência de todo
fundamento de seu ser com o qual o sujeito está às voltas, e com a
ausência de qualquer chave que permitiria uma simbolização e um
aparelhamento desse gozo enigmático e sem limite.
A hipótese que sustentamos é que tal desencadeamento
pode ser lido em uma clínica borromeana como um desenodamen
to da estrutura ocasionado pelo esmorecimento da relação imaginá
ria com o corpo, expondo a impossibilidade de limitar o gozo, assim
como o seu caráter totalmente xenopático.
1 . Primeiro caso
26
interrompido outros tratamentos, ou tentativas, de um modo simi
lar. Por isso, embora não pudesse subjetivar a repetição, não deseja
va que isso se reproduzisse.
O que nos leva a apreender a posição desse sujeito, consi
derando a clínica sob a ótica do "desligamento" do Outro em pon
tos diversificados da estrutura, é o fato de ele, no mesmo instante
em que se aproxima de uma ruptura reiterada do laço com o analis
ta, tentar religá-lo pela via de um subterfúgio, que mantém o signi
ficante da análise. Em suma, ele tenta, em um mesmo movimento
de denúncia e de identificação, dar nome às irrupções de gozo ino
mináveis.
Poderíamos dizer, desse sujeito, que ele não deixou de
obter um saber sobre suas diversas iniciativas analíticas, mas que
esse saber nunca lhe permitiu situar o gozo devastador, com o qual
ele lida periodicamente. A solução que se mostra cada vez mais pre
sente em suas invasões catastróficas consiste em produzir, no plano
da realidade, condutas em que paira a iminência de um ato de cará
ter médico-legal que tornaria irreversível a recusa de sua posição no
laço social.
Em sua análise, dava crédito às construções que articula
vam os pontos candentes de sua infância, particularmente os que
indicavam o caráter "sem recurso" do surgimento do real a partir de
certos acontecimentos. Mesmo sem chegar a reconhecê-la, pode-se
dizer que validava, que adotava a ideia de uma problemática organi
zada em três tempos: o luto impossível de sua mãe em relação a seu
exílio de uma terra marcada pela solidão dos marinheiros, a inexis
tência da palavra do pai em qualquer ocasião e as tentativas preco
ces para encontrar uma solução sexual para a perplexidade provo
cada pelos mal-entendidos. Três episódios são incansavelmente
lembrados como as marcas de seu destino: na primeira infância, a
recusa absoluta de sua mãe em deixá-lo se isolar para fazer suas
necessidades, ligada à compacidade gozante de seu olhar quando
essas necessidades se efetivavam; na adolescência, a petrificação
27
estranha do pai quando o chamou para protegê-lo de uma sedução
homossexual e, para terminar, no momento de ele mesmo se tornar
pai, a irrupção mortificante de uma compulsão pedófila.
Esses traços clínicos, distintos no tempo, nos dão a ideia
de um desligamento escalonado na história do sujeito, incidindo em
diferentes lugares. A tentativa de resistir à captura do olhar mater
no cedeu posteriormente diante do desmoronamento do apelo ao
pal.
a) Os desligamentos sucessivos
O termo "neodesencadeamento" não designa somente o
desencadeamento psicótico; permite-nos interrogar como o sujeito
se desliga do laço social. Ele se desliga do laço social, caso nos colo
quemos na posição de outro, de alter ego, para se ligar - podería
mos dizer, reforçando essa mesma metáfora de ligamento-desliga
mento - ao seu gozo.
Eis um exemplo paradigmático. Esse sujeito, às voltas com
sua anorexia, desenvolve um sintoma de cleptomania que ele inter
roga durante o tratamento. Confidencia suas diferentes vertentes:
28
soas_, atrás, podem ver alguma coisa. Se me denunciassem, isso não me impedi
ria de fazer de novo. É um descifio: vocês podem me pegar uma ve:v mas não
todas". É uma maneira de provocar o Outro e de questionar a lei.
Na vertente pulsional, o que impele ao ato se sustenta não
somente pelo dizer "é maisforte do que eu", mas também por um "é
uma bulimia-cleptomania ". Há um "nunca é suficiente. Quando volto para
casa, constato: só roubei isso?!", mas, no processo anoréxico, o que é cui
dadosamente pesado e repesado, na previsão da refeição, é sempre
reduzido e considerado como excessivo.
Um excesso marca a falta da simbolização. Com relação à
oralidade, à pulsão oral, a demanda ao Outro não está simbolizada.
Alguma coisa se desligou, se reportamos essa sequência à própria
estrutura.
b) "O malabarismo"
O que acontece quando isso responde no Outro do lado
da lei?
"Por mais que meuspais me digam que, se euforpega, sereipriva
da da liberdade, eu não a tenho atualmente". A evocação da lei e dos ris
cos corridos fracassa em apaziguar "a deriva". "Na prisão, não estarei
pior do que no hospitalpsiquiátrico, onde me obrigariam a me privar de meus
sintomas. Na prisão, por sua ve:v não poderiam me obrigar a comer".
Por ocasião de uma primeira interpelação em que os vigias
fazem uma ameaça: "Na próxima ve:v mandamos os cachorros!", a
paciente revela a resposta que lhe atravessou a mente: "Eles só terão
um osso para roer".
Enfim, durante uma segunda vez, quando foi levada à
delegacia e interrogada, ela disse: "Nunca fiquei empânico por causa dos
policiais_, sentia-me em segurança, isso não me atingia. O que me contrariava
era ter de chegar mais tarde em casa para comer".
Nessas três evocações, assiste-se a uma inversão da posi
ção do sujeito que, de acordo com os termos utilizados anterior
mente, se desliga do laço social para se ligar naquilo que cifra em
29
segredo o gozo. O sujeito escapa da lei em um movimento de pên
dulo, tal como os malabaristas.
30
B. Formas atípicas da conjuntura de desencadeamento
31
minha mãe vinha me visitar, via minha morte avançar em minha direção ". Ela
circunscreve frequentemente, assim, a superposição das figuras do
mesmo, da mãe e da morte.
Seu percurso levou a uma dessocialização profunda, mas
carada por sua dependência em relação ao meio familiar: vive em
um apartamento que pertence a seus pais, no mesmo andar em que
eles moram. Eles asseguram sua sobrevivência, auxiliados pelo
benefício para adultos incapacitados que seu psiquiatra ajudou a
obter. Cuidam de seu fllho, que ela vê somente alguns minutos por
dia. Queixou-se muito dessa despossessão, e os pais são de fato
muito ativos nesse ponto. Mas ela chega a dizer que ficou alheia ao
nascimento de seu filho, como se fosse sua própria mãe que o tives
se colocado no mundo.
Entre as crises, sua vida é ritmada por tentativas de enfren
tar a própria situação que está na origem de sua primeira descompen
sação: a relação com os homens. Sente a cada vez como a engrenagem
vai conduzir aos mesmos efeitos, mas vai nessa direção, como a mari
posa vai para a luz. Não cessa de se confrontar com a não-relação
sexual e a sua impossibilidade de inventar uma solução que possa fazer
suplência a isso. Ela topa a cada vez com a ausência de uma fantasia
que possa enquadrar sua relação com o real e tamponar seus efeitos.
No tratamento, tenta construir algo que faça função de
fantasia, de um modo que permanece estritamente imaginário.
Trata-se, nos roteiros que ela produz, de recuperar um poder relati
vo sobre o outro, uma presença de si, e de assumir certa "masculi
nidade" ou o que chama de "feminilidade transfigurada". Esses
roteiros só se mantêm ao preço de um apagamento de fato de qual
quer parceiro, de qualquer homem, a não ser em filigrana, a título
de espera. Trata-se de tentativas de restaurar a imagem do corpo
próprio, erigir uma figura narcisicamente investida, coroada pela
aura fálica de lembranças nas quais ela se vê menininha, radiante na
luz do deserto. Para isso, ela joga com os semblantes da mascarada
e com aqueles da "natureza".
32
Ela se descreve assim como 'Jora da civilização, lá onde as rife
rências do masculino e dofeminino se apagam, mas onde a feminilidade verda
deira pode, de repente, resplandecer: seria mulher, sem maquiagem, sem sapa
tos, sem homem, distante, sozinha, única em meu gênero, feliz em sê-lo, mulher
de corpo com um corpo de mulher, sem necessidades de 'mais'para exprimi-lo ".
Apesar da solidez dos episódios melancoliformes, seu
engajamento na análise me levou a pensar em uma neurose severa.
Seu discurso, ao longo das sessões, reveste-se de todas as aparências
do discurso de um sujeito histérico tomado no enigma do que é
uma mulher para um homem. Coloca muito humor para dizer: "os
homens são bonitos, como mestres! Eles não são verdadeiramente os mestres,
mas é tão divertido vê-los acreditar nisso!" Ou ainda: "De qualquer maneira,
não quero, apesar de tudo, me deitar com um cara que não me dá tesão!"
As circunstâncias da descompensação inicial, mesmo
clássicas na clínica psiquiátrica, não fazem aparecer um desenca
deamento típico, no sentido do encontro com Um-pai. Todavia, a
"conjuntura dramática" vai mostrá-la subitamente como estranha
à sua vida, dessubjetivada. O momento de báscula ocorre na oca
sião da sua primeira relação sexual com um rapaz pelo qual acre
ditava estar apaixonada, pois é isso o que os outros lhe diziam. Era
preciso logicamente passar por isso, com esse parceiro ideal, visto
que era o verdadeiro duplo de seu próprio irmão. É o instante da
penetração que corresponde a uma báscula no nada. Muitas vezes
ela retomou a análise desse momento crucial e de suas repetições.
Adotava um estilo clínico, ora horrorizado, ora irônico, para des
crever, como observadora, as manobras que os homens fazem
com seu corpo, sua relação tão estranhamente interessada pelos
pedaços de sua anatomia que parecem soltos uns dos outros. O
que sente é, ao mesmo tempo, uma desfalicização radical e uma
insustentável depreciação. Fica subitamente fora de um corpo
estatuificado. O que faz desta cena um desencadeamento, precisa
mente, é seu caráter de cataclismo inicial, que leva a uma regres
são especular maciça.
33
Uma fórmula, que apareceu em uma sessão de supervisão,
define muito bem a figura paterna: "O pai é insignificante. " Essa in
significância seria a forma mínima que toma aqui Po, se quisermos
a qualquer custo aplicar a lógica do esquema I. Aqui, Po só poderia
ser deduzido como estando no princípio daquilo que se dá a ver. O
que se vê, é a elisão do falo, a ausência de significação fálica, tal
como se revela subitamente na ocasião de cada penetração.
Segundo Lacan é essa elisão que é propriamente responsável pela
"regressão à hiância mortífera do estágio do espelho"10• Pode-se ver
aqui, na petrificação de Marie-Pierre, um puro efeito de <l>o11• É ela
mesma que ressalta o "como uma pedra " anunciado pelo seu primeiro
nome, assim como as identificações à Virgem santa e mãe que a sus
tentava até seu mal encontro com o órgão masculino.
O que dá a esse trabalho analítico um tom de perigo cons
tante é ela se colocar com o seu "o que sou ali?" - Lacan diz que,
nessa pergunta, o sujeito se formula "concernente a seu sexo e sua
contingência no ser"12 sempre à beira do abismo, sem que seus ditos
encontrem arrimo em um referente fora do significante, em um
objeto que lhe dê lastro. Ela fala de seu "ser desertado", de sua
"pura ausência" e termina se definindo assim: "Sou uma meia revira
da ao avesso ".
É nesse sentido que ela faz pensar no caso da apresenta
ção de pacientes em que Lacan falava da "excelência da doença
mental". Tratava-se de uma pessoa que se dizia "interina de si
mesma" e afirmava que gostaria de "viver como uma vestimenta".
Lacan disse então: "Não há ninguém para habitar a vestimenta", e
Jacques-Alain Miller ressaltou esse "ser de puro semblante", sem
"significante-mestre e, ao mesmo tempo, sem que nenhuma subs
tância venha lhe dar lastro'm.
O pouco dessa identificação - uma meia revirada ao aves
so - ilustra, ao contrario, que é o falo que constitui o termo "no qual
o sujeito se identifica com seu ser vivente". A doença da mentalida
de, se retivermos aqui essa indicação, e a elisão do falo, fazem da
34
patologia de Marie-Pierre um abalo "na junção mais íntima do sen
timento da vida no sujeito"14•
35
vida quanto a suas possibilidades de resposta simbólica. O desen
cadeamento pode ser aqui - é uma hipótese - referido a esse encon
tro que desmascara os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai, ou
seja, a ausência de significação fálica. O que o sujeito produz como
resposta é uma nova realidade delirante: uma manipulação corporal
persecutória.
Essa modalidade de desencadeamento não é nova no sen
tido da clínica psiquiátrica, que já considerava essa forma de desen
cadeamento do delírio. Sua leitura é que é nova, e acentua o encon
tro com um gozo. Essa abordagem tem a vantagem de acentuar o
modo generalizado do tratamento do gozo pelo falasser. O modo de
resposta indica aqui a estrutura: o sujeito dispõe ou não do Nome
do-Pai como significante para articular sua resposta.
36
to, mas muito conformista. Não tinha, até então, nem depois, aliás,
questionado os valores familiares. Tivera duas ligações oficiais ante
riores, que haviam terminado de maneira anódina. Não fora marca
da por essas duas relações. Essa terceira relação apresentava um
caráter estranho, segundo seus próprios termos. A estranheza resi
dia, para ela, no fato de que esse rapaz não lhe correspondia. Era
um marginal que encontrara em uma festa. A expressão que usava
para designá-lo era: 'Não era um rapaz como convém ".
A paciente nada produziu quanto às razões dessa afeição
que a ligava a esse homem que ela imaginava ser um "traficante ".
Entretanto, a ligação transcorre na clandestinidade e, para a pacien
te, em um mal-estar crescente. Ao mesmo tempo, desenvolve-se um
sentimento de desconfiança em relação a ele. Não sabia o que esse
homem queria dela. A resposta que elabora, de um modo delirante,
ao enigma de seu desejo, é que ele estava envolvido com a máfia e
que ele não queria o seu bem. Ela não dizia nada de preciso sobre
esse ponto. Nada nos atos dele demonstrava qualquer hostilidade.
Muito pelo contrário, era a insistência dele em continuar a relação e
tentar revê-la na saida de seu trabalho, depois que ela decidira pela
ruptura, que haviam reforçado o sentimento de um complô que se
tramava contra ela. Percebia o caráter delirante dessa construção
que ela qualificava de ridícula e da qual tinha profunda vergonha.
Nada podia demovê-la do caráter de evidência que isso tomava para
ela. No mesmo período, aparecem alucinações verbais nas quais ela
ouve comentários de uma voz feminina que lhe pressagia um desti
no funesto. A elaboração delirante dá lugar aqui a uma figura femi
nina, que é a rainha de um mundo paralelo ao nosso, e a condena à
dominação desse homem que se torna o instrumento de uma per
seguição organizada.
As duas elaborações delirantes contraditórias, da máfia e
da rainha do mundo paralelo, coexistiam. Desde então, muito
embora esse homem desaparecesse completamente de seu horizon
te, permanece a preocupação inconfessável de que ele ressurja desse
37
passado, que ela pretende apagar tanto quanto puder. O delírio é
aqui marcado com o mesmo cunho da fantasia neurótica. Longe de
querer desenvolver essa construção, ela só consentirá com dificul
dade em revelar, eventualmente, alguns elementos delirantes prece
dentes. Foi preciso, aqui, utilizar uma discreta insistência. O trata
mento se tornará o lugar de restauração que ela esperava: uma pos
sibilidade de relação social. O tratamento é o elemento pacificador
de uma relação delirante com o mundo.
Depois de alguns meses em que foi possível a retomada do
trabalho, um novo desencadeamento se produziu. Desta vez, ele acon
teceu durante o tratamento e estava ligado a uma observação fortuita.
Em um ônibus que a levava para casa, na saída do trabalho, encontrou
uma antiga colega que lhe perguntou pelas novidades. Ela se mostrou
satisfeita com a normalização esperada. Estava bem, mudou-se do
domicilio familiar para um pequeno apartamento que ela arrumou ao
seu gosto, e seu trabalho caminha bem, a tal ponto que acabara de se
beneficiar de um reconhecimento profissional e de um aumento de
salário. O que não cai bem é a pergunta que lhe é dirigida por essa
amiga demasiadamente atenciosa: "Então) quando você vai se apaixonar?"
A pergunta coloca um problema. Ela pôde responder que a constitui
ção de um casal é a etapa normativa esperada do seu restabelecimen
to. Contudo, essa frase é situada de imediato como destoante com o
propósito apaziguador mantido até então. Algo não vai bem. Um
segundo episódio delirante se inicia, com um tom persecutório, no
local de trabalho, onde a supervisara de seu setor se mostra mal-inten
cionada em relação a ela. A queixa não mostrava nenhuma modalida
de francamente delirante. Mas a relação até então confortável torna-se
intolerável. A relação com a analista torna-se igualmente suspeita. Não
há aí tampouco uma fala delirante, mas há, contudo, uma hostilidade
muito perceptível. O tratamento se interrompe bruscamente. Ela rei
vindica liberdade para conduzir sua vida que revela todo o contexto de
sugestão potencial que a situação analítica encerra. A certeza presente
ao longo desse trabalho se manifesta de novo nessa decisão sem apelo.
38
Nesse caso, é o enigma do desejo do Outro que parece
confrontar o sujeito com uma dimensão à qual ele não pode res
ponder. Em um primeiro momento, o enigma do desejo de um
homem suscita o delírio de uma malevolência organizada em um
mundo-Outro no qual reina uma figura feminina toda-poderosa.
No segundo momento da retomada delirante, é a pergunta da amiga
que desperta a questão adormecida. A pergunta da amiga desperta
o caráter real, impossível de dizer, do desejo do Outro. Nos dois
casos, é o encontro com um real que constitui a modalidade de
desencadeamento de uma resposta psicótica.
39
última sessão; depois, um grande silêncio que só cede sob interven
ção, interpelação, ruído, interrupção, etc.
A variabilidade de seu estado se deve sempre às suas difi
culdades com os outros e, em primeiro lugar, com sua mãe. "Elafaz
tudo para me alienar, não consigo relativizar, estouro ". Sua vida é pontua
da por contrariedades ou brigas com sua mãe ou com os próximos:
"Estou malporque estou no pós-contrariedade com minha mãe é o pós-briga
-
40
os relatos, e foi somente por recortes que esse período pôde ser
situado por volta de seus quinze anos.
Diante da confusão e das dificuldades para situar esse acon
tecimento no tempo, poder-se-ia pensar nos esquecimentos da histé
rica; mas não é com um traumatismo - que poderia posteriormente
dar lugar à neurose - com o que nos deparamos, pois o modo como
ela continua, a partir desse dia, faz pensar mais em uma psicose.
Trata-se de um neodesencadeamento, quer dizer, de uma forma par
ticular de entrada na psicose? De fato, nada se desencadeia, nada se
mexe; ao contrário, tudo se petrifica tão bem que a partir daí ela con
tinua a construir sua vida de forma muito normativa.
As relações com sua mãe tornam-se insuportáveis. Sua
mãe, ao mesmo tempo em que a rejeita, lhe pede um apoio.
Termina o ensino médio e a única solução que encontra é ir embo
ra o mais rapidamente possível. Passa em um concurso administra
tivo e parte para Paris. Sente sua mãe e seu irmão aliviados com sua
partida. A partir desse dia, ela se dedica o mínimo ao seu trabalho;
tudo vai bem, encontra um companheiro com o qual ainda vive e
tem um filho. Nada emerge no nível de seu ser, nenhum desejo,
somente a angústia. "O que faz com que em determinado momento minha
cabeça caiafora... Pfuit... No entanto, tenho possibilidades, mas não as contro
lo... falta-mejeito para administrá-las".
. O que se encontra sempre em sua posição em relação ao
Outro é uma identificação-alienação completamente situada no
imaginário; o outro lhe permite viver: sua mãe, a primeira terapeu
ta, a analista; muitas vezes, ela quis diminuir o número de sessões
vindo somente uma vez por semana, mas quase imediatamente se
depara com uma angústia indescritível.
Se por acaso a analista se recusa a recebê-la de novo, mais
frequentemente, revolta-se e torna-se extremamente agressiva, ao
passo que normalmente apresenta-se sempre muito sorridente, com
um sorriso muito petrificado. Essa atitude tão extremada surpreen
de e faz compreender que não era preciso mudar nada no ritual das
41
sessões, que a analista não tinha muita importância, e expressa que,
se tudo não voltar para o lugar, como antes, ela será obrigada a
encontrar uma outra pessoa que aceite reconstruir esse enquadre o
mais rapidamente possível.
Voltemos ao que significa ser anônima: ':feria necessário, para
poder viver, que eufosse anônima; a solução seria talvez que eu morasse na casa
de meu marido ". Vive há muitos anos com seu companheiro, mas, o
que ela indica com essa frase, é que a solução seria se fazer desapa
recer atrás desse homem do qual ela não carrega o sobrenome e do
qual o único elemento conhecido é que ele é um eurasiano. A sexua
lidade nunca é evocada como um problema; deseja por vezes ter
relações sexuais com alguns de seus colegas, sem nenhum drama de
consciência. Sua posição em relação às palavras é acentuada de
novo (As palavras para dizê-lo), após ter visto um ftlme que, segundo
ela, provocou-lhe um desejo. Trata-se de Pour le meilleur etpour /e pire,
ou seja "Para o melhor e para o pior" e que, na versão brasileira é
conhecido como 1\tfelhor impossível, com Jack Nicholson: "É um escri
tor, isso fica rodando na minha cabeça, isso me deu ânimo, um sopro de vida;
da minha história eu farei um romance, adoro as palavras, elas aliviam, gosto
muito delas; as palavras me acalmam".
Mas essas palavras não permitem a metaforização.
Operam de maneira metonímica, fluindo sem parar, sem pausa pos
sível. Ela não faz apelo a uma resposta que venha do lugar do
Outro, a um saber suposto que lhe permitiria colocar-se a trabalho
na via do significante. Não há exclusão da genitalidade, mas foraclu
são da significação fática.
Qual atitude possível pode sustentar o analista diante
desse discurso? Parece - e por isso o título desta parte do texto:
"sobretudo, que nada se mexa " - que se trata de ser o receptáculo com
placente de seus males e palavras, de suas queixas. Essa é a única ati
tude que ela aceita, até agora, da analista, ao mesmo tempo em que
ela inventa soluções que lhe permitem se manter no dia a dia.
42
C. O caso particular da clínica do autismo
1 . O pequeno Noel
43
são não pôde acontecer devido a um atraso. O analista recebeu
Noel para lhe comunicar isso. Uma certa preocupação o levou a
observá-lo pela janela indo embora com sua mãe pela rua. É com
grande surpresa que o analista vê Noel pela primeira vez olhar para
ele. Em seguida, o olhar se torna por vezes intencional e a criança
observará sua imagem na vidraça, na sessão da noite. O grunhido
dá lugar a uma linguagem esquizofrênica e usará a caneta para se
dedicar a um trabalho de escrita e demarcação de tipo geográfico:
traçava incansavelmente um contorno que se podia supor ser tanto
o do litoral da região, quanto o de partes do corpo.
Pode-se formular a hipótese de que essas sessões colocam,
mediante uma certa transferência, a criança às voltas com uma falta
que percebe no analista e que ela refere a um objeto, a caneta, na
qual vai então investir. Esta se torna a ferramenta de um trabalho
de logificação da sua psicose. Presença e ausência parecem então
não serem mais experimentadas como um puro real insubjetivável.
2. Mickael
44
Mickael tem oito anos. Ele não fala e apresenta alguns tra
ços clássicos de autismo. É capaz de aproximar-se com os olhos
como se fosse para ficar grudado, tampar as orelhas e agitar-se, des
locando-se do espelho para a janela antes de ficar prostrado em um
canto do cômodo. Sua história comporta uma data que constitui um
antes e um depois, um ato, portanto. Ele tem uma evolução normal,
segundo os pais. Começa a dizer algumas palavras. Mas toda sua
evolução se interrompe no dia em que sua mãe o deixa pela primei
ra vez na escola maternal por volta dos dois anos e meio. Ali, cho
rará durante toda a manhã, durante quatro horas, a ponto de as pro
fessoras ficarem surpresas e não conseguirem consolá-lo. Quando
sua mãe volta ao meio-dia para buscá-lo, manifesta sua cólera em
relação a ela e depois disso não fala mais. Todas as tentativas de
identificar outras coordenadas dessa história conduzem sempre a
esse relato minimalista, com um pequeno detalhe: sua mãe dirá, com
efeito, um dia, depois desse relato tantas vezes repetido, que foi a
primeira vez que o deixou por tanto tempo. Esclarece que nunca,
anteriormente, o deixara mais do que cinco minutos em tempo real.
É então nessa experiência desproporcional de abandono que uma
insondável decisão desse ser se opera. Seu desligamento deve, por
tanto, ser colocado na conta de uma escolha da psicose em seu pólo
extremo, o autismo. Não existe nesse caso um mutismo. O mutis
mo consistiria em uma fala reservada. Há aqui uma detenção no
funcionamento da fala expressa em uma lingua.
O desligamento incide, portanto, precisamente, sobre o
uso da lingua e da fala que a ela se liga para fazer laço social. Esses
casos frequentes de autismo podem, de fato, enfatizar a observação
de Jacques-Alain Miller que indicava que a psicose nos permite
designar o verdadeiro núcleo traumático na relação com a lingua.
Não somente Joyce pode nos fazer entender isso, mas igualmente
os casos que recusam o núcleo traumático da lingua na medida em
que, pela sua recusa, tentam se desligar das consequências que o
funcionamento da lingua acarreta.
45
Poder-se-ia, para neste caso, formulá-lo assim: Sefalar a lín
gua materna conduz necessariamente a ir à escola, e se a escola me separa tanto
tempo de minha mãe para me ligar a desconhecidos, prefiro me desligar da lín
gua materna para evitar suas consequências. A mãe afirma, aliás, que,
ainda muito tempo depois, ele manifestava sinais de agitação quan
do passava diante do prédio da escola. Se ele não está na língua, ele
está, no entanto, na linguagem, como indica o fato de que tampe os
ouvidos. Testemunha, por outro lado, alguns efeitos da linguagem
em seu corpo, como o interesse que demonstra pelos buracos das
narinas, que tampa com um movimento complicado dos dedos. A
questão para esse sujeito é saber como poderia se operar uma ten
tativa de ligamento, sabendo que, de qualquer forma, esse tratamen
to consistiria em introduzi-lo no núcleo do traumatismo do qual ele
quis se liberar.
D. A melancolia
46
pelo falo simbólico vem presentificar. "Ser ninguém'� ou ser um "Sem
nome" sob a forma da função fálica, lhe é estruturalmente recusado no
simbólico. É antes um "se querer ser ninguém'� na falta de "ser ninguém'�
que leva o melancólico a elaborar essa "superidentificação'� muito
tempo confundida com os traços compulsivos dos obsessivos.
O termo "superidentificação", distinto do que seria a iden
tificação no registro simbólico, poderia se conceber assim:
�_
o _ função de suplência à - Superidentificação ao papel social
Nome próprio NeRiepFIÍpFie
1 . Superidentificação e ideal do eu
47
to por Lacan em "Lituraterra"19 e que torna este último, segundo
ele, inanalisável. Esses traços são, antes, normativos. Não têm o
caráter de exceção do ideal do eu e, daí, a ausência de orgulho no
sujeito pré-melancólico, ao contrário do que se pode constatar no
paranoico. Uma contradição entre dois desses traços é, muitas
vezes, causa de desencadeamento da crise.
_ De outro fado, seu caráter não dialético: esses traços são,
para o sujeito, não relativizáveis na elaboração simbólica e, daí, a
atração pelo que é sério e a relativa incapacidade para o humor do
sujeito pré-melancólicd0, humor que implicaria a possibilidade de
uma mediação, de um distanciamento em relação a esses valores
pré-dados. São traços marcados pelo rigor psicótico. É uma identi
ficação com o ser literal do traço significante e não com a sua fun
ção de representação. Digamos que o sujeito pré-melancólico deve
preencher suas identificações "ao pé da letra".
Notemos, por outro lado, que esses traços são empresta
dos do Outro; eles traduzem a cópia de um tipo de ideal, não do eu,
mas de uma norma social. Concebe-se desde então que as persona
lidades pré-melancólicas sejam mais facilmente tipificadas e reco
nhecíveis nas culturas em que as normas sociais são mais claramen
te definidas, até mesmo impostas, como é o caso do Japão e da
Alemanha.
2. O desencadeamento da crise
48
Não é uma articulação identificatória diferencial, no senti
do da identificação simbólica que implica o valor diferencial do sig
nificante. É uma realização de identidade, na qual o sujeito equiva
le a cada um desses traços, compatíveis com o registro imaginário
no qual a correspondência biunívoca do sujeito e de sua imagem é
possível. Tal é a condição do ''Ijpus': em que a condição de suplên
cia não é simbólica, mas se situa na junção do imaginário e do real;
daí sua possibilidade de montagem, desmontagem e a instabilidade
relativa dessa forma de suplência; daí, igualmente, o desencadea
mento da crise cujas causas podem parecer estritamente menores
ou serem ditas, com razão, ''insignificantes': no sentido das "life-events"
dos anglo-saxões.
Daí, também, a possibilidade de desencadeamento por
razões que se encontram no imaginário e não no simbólico. Um
abalo no campo imaginário pode descompensar a estrutura e deixar
"se exprimir" no real essa coleção relativa ao supereu e que antes
estava bem encapsulada. Por isso, não é obrigatoriamente encontra
da a conjuntura de desencadeamento das psicoses descrita por
Lacan em sua "Questão preliminar". Uma simples gripe está, à
vezes, na origem de uma nova crise. A perda da cobertura imaginá
ria torna a desencadear o processo simbólico, sempre latente.
A cura da crise não depende de um processo simbólico -
do qual conhecemos o caráter grave na crise e o caráter latente fora
dela, - mas, antes, da restauração desse cataplasma imaginário.
Trata-se de deixar o sujeito reconstruir identificações de objeto sus
cetíveis de mascarar suficientemente a abjeção de seu nome próprio
sem transbordá-lo.
49
111. CONCLUS Ã O
50
Notas
51
1 7 A escrita dessas fórmulas foi inspirada pela leitura do curso de Colette Soler,
não publicado, "Os poderes do simbólico", 1 989, do qual as primeiras aulas são
consagradas à melancolia:
i (S, S', S", S"', ... )
Nel!'lepFIÍpFie
Trata-se aqui de um "cataplasma" - expressão que tomo de Jacques-Alain Miller
(entrevista particular).
1 8 FREUD, S. (1 9 1 7) "Luto e melancolia". In: Sigmund Freud - Obras Completas,
v. 1 2, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.1 8 1 .
1 9 LACAN, ]. "Lituraterra" (1973) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.1 5.
20 TATOSSIAN, A. Phénoménologie des p.rychoses, relatório para o congresso de
Neurologia e Psiquiatria de língua francesa. Paris: Masson, 1 979.
2 1 HENY, H., JOUBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.) (1 997) Os casos raros, inclassi
ficáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1 998.
52
Seção Clínica de Clermont-Ferrand,
Antenne Clinique de Dijon e Seção Clínica de Lyon*
CL ÍNICA DA SUSPENSÃ O
53
Teorizar o desencadeamento das psicoses no âmbito da
foraclusão do Nome�do-Pai permite, contudo, dar conta estrutural
mente do que os psiquiatras clássicos identificam com o termo
"descompensação", com seus fenômenos súbitos e radicais:
"Trovoadas em um céu sereno." Essa conceitualizacão introduz
igualmente uma diferença entre estrutura psicótica e fenômenos
psicóticos que se apresentam mais manifestos clinicamente no
momento do desencadeamento.
54
curso dominante, ou seja, a passagem do discurso do mestre ao dis
curso da ciência, tem consequências sobre o tipo de soluções que os
sujeitos psicóticos encontram para fazer suplência à foraclusão.
Pode-se dizer que o neo em questão concerne primeiramente à nossa
época? Ou ele concerne a uma simples mudança conceitual no ensi
no · de Lacan? Sem dúvida, as duas coisas, pois pensamos que a últi
ma axiomática lacaniana - centrada na inexistência do Outro - per
mite justamente circunscrever com mais rigor os fenômenos clínicos
de nosso tempo e a expressão contemporânea do sintoma. Ao dis
curso do mestre responde a prevalência de uma solução psicótica
pela metáfora e pelo delírio; ao discurso da ciência, que pulveriza as
figuras do Outro em uma abundância de insígnias, corresponderia
outro tratamento do gozo, mais pela letra do que pela significação.
55
O caráter radical da teoria "clássica" do desencadeamento
explica-se por sua dependência em relação a uma lógica do significan
te concebida em termos de tudo ou nada. Puramente binária, ela faz
com que o conjunto dos fenômenos clínicos dependa de uma consi
deração exclusiva: a função dominante de um único significante, o
Nome-do-Pai, o que supõe que a extrema variedade dos fenômenos
corporais ou imaginários seja referida a uma única norma, sem levar
em conta sua relativa autonomia em relação à função do Outro. É
uma lógica mecanicista, que enfatiza mais a ação da estrutura - a falta
do significante que indexa a falta no Outro - do que a posição do
sujeito como resposta do real e como escolha segundo o modo de
gozo. Essa clínica é estruturada em torno do Outro e de sua dimen
são pacificadora, em relação à qual o gozo só pode ser legalizado,
aquela que o sujeito herda do pai como transmissor do falo. Por isso,
quando surgem fenômenos de gozo não-fálicos, eles só podem ser
tratados pelo delírio pensado como uma metáfora de substituição,
destinado a tratar a disseminação desses fenômenos por um princípio
de significação que reunifica o sujeito a partir de um novo modo de
laço com o Outro, fundado sobre o significante articulado tal como,
por exemplo, a ordem do universo para Schreber. Como resultado,
oculta-se a posição ética do psicótico, muitas vezes ressaltada por
Lacan em termos como "escolha da liberdade", "insondável decisão
do ser", etc., que podemos resumir assim: o psicótico é aquele que se
recusa a trocar o gozo pela significação. A consequência é que, pela
promoção da relação do sujeito psicótico com lalíngua, com o signifi
cante assemântico, e não com a articulação [significante], podemos
tratar com mais eficiência os fenômenos psicóticos contemporâneos
muitas vezes fragmentados, dispersos, pluralizados, já que estão
menos referidos à figura unificadora do mestre. Além disso, os fenô
menos de gozo - pensados, em princípio, como redutíveis pela meta
forização delirante ou como simples resto da articulação significante
- podem ser doravante abordados como parte integrante de lalíngua,
aparelhagem mista do real com o simbólico.
56
A cadeia rompida e o significante no real
57
ficante no real, abre a via para a consideração das neopsicoses. Nelas,
o tratamento do gozo não se faz pela reconstituição da cadeia S1-S2,
ou pela metáfora delirante, mas por um tratamento a partir da letra,
ou seja, do significante como o que não significa nada. Lacan vai,
aliás, retomar esse ponto em "O aturdito", em torno da nova defini
ção que será dada ao Um-pai de "De uma questão Preliminar..." em
sua relação com o desencadeamento. Nos Escritos, o encontro com
um significante foracluído remete o sujeito a um buraco; o Nome
do-Pai ausente não dá acesso à significação fálica do desejo da mãe,
que permanece enigmático. O que se apresenta no lugar é Um-pai
como significante no real, sem par. Em "O aturditom5, Lacan dá a
seguinte forma lógica ao momento do desencadeamento: "É pela
irrupção de Um-pai como sem razão, que se precipita aqui o efeito
sentido como de forçamento, no campo de um Outro a ser pensado
como o mais alheio a todo sentido". Aqui, "como sem razão" indi
ca que, como o sujeito não se exclui do que enuncia, não é possível
qualquer separação entre enunciado e enunciação.
Pierre Naveau, em um excelente artigo publicado em
Ornicar? n.44, resume muito bem essa nova lógica centrada na fun
ção da exceção:
58
A consequência recai não só sobre a clínica das psicoses,
mas também sobre a orientação possível do tratamento. Nos anos
1950, a posição bastante prudente de Lacan sobre esse ponto é soli
dária de uma concepção do analista que opera a partir do Outro e
que visa refrear os efeitos de gozo produzidos no sujeito psicótico
pela falha do Nome-do-Pai. A famosa posição do secretário do alie
nado, as advertências contra os riscos da erotomania ou de empuxo
ao desencadeamento pela transferência acentuam uma posição pas
siva do analista, um certo "fazer-se de morto", pois tratava-se de
opor à efervescência imaginária do psicótico o poder mortal do
símbolo.
Se considerarmos que as neopsicoses valorizam o signifi
cante no real e não sua articulação na cadeia, o enodamento dos três
registros do sujeito e não sua subordinação à única instância do sim
bólico, o caráter criativo da psicose e não sua dimensão deficitária,
o lugar do analista poderá ser definido de uma maneira diferente
daquela do lado da morte e da lei, isto é, do universal. O que nos
guia é menos a consideração de uma clínica da estrutura do que a
sustentação da invenção do sujeito em seu trabalho sobre lalíngua,
sua capacidade de encontrar uma solução singular que concilie o
vivo e o laço social. É por isso que nosso trabalho de pesquisa
apoia-se na variedade dos casos, mais por estarmos atentos à forma
singular como cada um trata o impasse de seu gozo de maneira iné
dita do que para verificar como cada um se acomodaria a nosso
modelo da psicose.
59
Primeiro caso
60
Segundo caso
61
Diz respeito a alguém que não se constrange com suas
construções, pois o que conta é o uso que se faz disso.
Terceiro caso
62
outros familiares, que eles se tornaram insuportáveis; então, procu
rou uma consulta.
A primeira entrevista termina com esta conclusão: "É como
se a ideia de ser criminoso de mim mesmo me fosse mais suportável do que a
ideia de ser criminoso de um outro!", disse ele.
Diante da angústia, a demanda de medicamentos "para
deter isso", sustentada pelos pais, é o que está em primeiro plano.
Contudo, o analista aposta no rigor que o sujeito demonstra e pro
põe-lhe a ideia, que ele terminará aceitando, de experimentar um
tratamento-teste pela fala durante algumas semanas. Concede-lhe,
de sua parte, uma prescrição de ansiolíticos; posteriormente, fica
sabendo que o paciente tomara só a metade.
Durante as entrevistas seguintes, as angústias deslocam-se,
uma forma tomando o lugar da outra. Rapidamente desaparece a
angústia de cortar os próprios cabelos, de raspar a cabeça. Esse
ponto é interpretado para o paciente como um sinal de que seus
sintomas são acessíveis ao tratamento pela fala.
A situação parece ajustar-se. A angústia é controlada a
ponto de ele poder retornar aos estudos. O sujeito vem com regu
laridade às entrevistas. Surpreende o uso que ele faz do dispositivo.
Esse sujeito, pouco inclinado a atribuir ao Outro a causa de seus
sintomas, é, entretanto, capaz de utilizar rapidamente as entrevistas
para iniciar, na presença do analista, um trabalho fora do sentido, do
pensamento.
Durante as entrevistas, impressiona a sua fixação do olhar
e uma atenção exagerada ao que se desenrola diante dele e que des
creve com grande rigor. Essa posição de espectador, à distância, do
automaton de seus pensamentos compulsivos é o que há de mais
característico no paciente, evidentemente em um transe, mas muito
diferente daquele do Homem dos Ratos de Freud, o qual se apre
senta como um pseudodelírio.
Aqui, não ocorre nada disso. Ao contrário de um delírio,
trata-se de uma descrição à distância do processo que o invade e de
63
suas variações, em uma atenção intensa, uma atitude de verdadeira
busca dos meios a serem mobilizados para limitar essa invasão.
Embora os pensamentos relativos aos cabelos tenham cedi
do rapidamente, os que se referem aos olhos, à garganta e ao coração
continuam causando-lhe embaraços, mas permitem, por sua evolução
rebelde, uma atitude experimental por parte do paciente. O meio de
defesa que esse sujeito encontra lembra o procedimento schreberiano:
"Posso combater minhas ideias ocupando-me do espírito ", diz ele.
Teme períodos de inatividade, de férias, ou simplesmente
de volta para casa depois das aulas. A presença de seus colegas e o
barulho que fazem à sua volta preenchem de maneira defensiva um
silêncio que, de outra forma, o invadiria com o surgimento de seus
pensamentos compulsivos.
Dessa maneira, ele encontra soluções: efeitos sonoros,
rádio, fonte sonora que coloca atrás de si; ou ainda, uma atividade
automática: pequenos trabalhos que faz para seus pais, leituras -
com a condição de não seguir a significação. Em resumo, uma ati
vidade de defesa, fora do sentido, para poder contornar o buraco
por meio de um manejo, no real, da letra.
Assim, o sujeito abandona completamente a vertente da
significação para tratar o que o invade. Essa vertente não o impede,
no entanto, de trazer elementos determinantes na anamnese. Isso,
contudo, não é o mais importante neste caso.
A questão da psicose coloca-se para esse sujeito em rela
ção à fixidez do olhar, em relação à busca de uma castração no real,
em relação à posição do sujeito como espectador, à distância, do
automaton de seus pensamentos compulsivos - em um contexto
diferente do Homem dos Ratos - dando lugar a uma descrição do
processo invasor e de suas variações. Enfim, a questão da psicose se
coloca para esse sujeito em relação a um pôr-se a trabalho para con
tornar o buraco central, à maneira de Schreber, mobilizando uma
atividade de pensamento fora do sentido, com efeitos sonoros, um
burburinho no real.
64
Quarto caso ...
65
sua irmã ou ao cachorro, pede-lhe para conjugar o verbo "ser":
incapaz de responder, vê nisso a prova de sua loucura e desmoro
na. "O que mefalta é a base. " Encontra a solução em uma história em
quadrinhos que lhe fornece um modelo: nela, viam-se homens
guerreiros enfrentando mulheres guerreiras. Quando os homens
eram atingidos, morriam, ao passo que os corpos das mulheres
desapareciam, dando lugar ao vazio que a roupa envelopava.
Pede então à mãe uma roupa emprestada, a qual lhe servi
rá de invólucro; uma meia-calça (collan� é o suficiente para, dentro
dela, deslizar o seu ser.
Na adolescência, as meias-calças que comprava davam
um aspecto pseudoperverso às suas práticas masturbatórias. O
caráter a�tocentrado desse gozo reunia seu corpo a partir do obje
to, concentrando-o em torno de seu pênis. Esses momentos
faziam parar a sua dor, mas, pouco a pouco, a meia-calça deixava
de contornar esse gozo invasor que o despertar da primavera fize
ra aparecer.
Aos quinze anos, quis morrer, já que, como existente, não
tinha mais nenhuma razão de ser. Desalojado de seu isolamento
pelo ritual familiar das refeições, fez da comida uma fonte de hor
ror, equivalente ao verbo cuja conjugação tinha visto, estranha, na
página do livro de seus seis anos.
Para se proteger desse real, tomou um produto feito por
ele, fabricado a partir de produtos domésticos usados por sua mãe.
Deitou-se para dormir. No dia seguinte, o copo estava vazio, nada
ocorrera; então foi comer.
O efeito apaziguador da conversão relacionava-se com um
significante novo, uma significação dada ao gozo que lhe permitira
abandonar a meia-calça: fora um idólatra. Era o que dizia ter sido,
um idólatra, o que poderia representá-lo aos olhos dos cristãos, e se
sentia para sempre tendo que responder por essa marca. "Quero crer
que no dia de meu batismo1 ele [esse significante] entrou em mim para que
eu não fosse entregue à morte e à minhafamília. "
66
Desse modo, apresentou ao bispo seu pedido para ser
admitido no Seminário. Mas estava exposto à tentação de voltar
atrás. Fazia disso a marca singular de seu compromisso 'religioso, o
que também lhe permitia protelar o compromisso de votos perpé
tuos e manter-se distante do sacerdócio.
67
Mas o regresso é difícil. Sua comunidade tolera seu estado
de confusão e aceita que continue como especialista em informáti
ca, que viva como religioso e que adie a ordenação. Pode transmitir
o que sabe, mas não se deve esperar muito dele.
Comunica-se em inglês com interlocutores, mas sem que
o vejam. Faz circular a voz, "rápido, não lentamente", pela escrita
na Internet. "Gnotiff" - nome composto com as letras do nome de
seu cachorro, ao qual se endereçava seu pai - é seu nome no ciberes
paço. Substituiu o de idólatra. A solução não está do lado da metáfo
ra delirante. Ela está, antes, do lado da escrita de um ponto de não
sentido no qual seu ser pode ser identificado. A idolatria continua
sendo seu problema, a marca do que ele foi e que ainda hoje lhe per
mite nomear as sensações corporais que o invadem.
Ele consulta o analista uma ou duas vezes por ano e con
sidera que este o está acompanhando. Encontra soluções particula
res para inscrever uma falta no campo do Outro sem ter que ser o
seu garantidor.
Por enquanto, distancia-se da tentação de reconstruir o
mundo e usa a religião para criar para si uma nova relação com
lalíngua, o que não é sem consequências sobre seu gozo transexual,
que consegue assim limitar.
68
novamente e expor essas fotos como uma peiformance. No momen
to da sessão em que fala desse "projeto", se expressa tanto em ale
mão como em francês. A fórmula "eu nack!' detém o analista, que
não sabe se deve ouvir essa palavra em francês ou em alemão, pois
acter, em francês, é um verbo que Jean utiliza.
Ao preparar este texto, o analista deu-se conta de que
nunca perguntava em que idioma o paciente falava, mas apenas
como se escrevia o que dizia. O sujeito desdobra o conjunto dos
significantes convocados para o seu achado, cuja chave só ele terá.
Nacken é um verbo alemão que significa "extenuar-se", que Jean já
tinha usado porque é muito próximo a die Nacke (a nuca).
O adjetivo nackt significa "nu", "em pelo", "desprovido".
Akt significa um "nu", no sentido acadêmico, e é também um "ato"
teatral. Diferentes traduções se superpõem entre "nu" e "Akt ",
"nack!' e "ato". Poderíamos estabelecer um continuum de significa
ções entre esses significantes.
O achado gramatical de Jean consiste em fazer uma brico
lagem com uma palavra utilizada entre as duas línguas, que queira
dizer "ato" e "nu", ao mesmo tempo, nas duas línguas. Estanca de
maneira singular a espiral da metonímia. Vetorializa as línguas para
encontrar a palavra correta que o separe da obrigação de colocar
realmente em jogo o seu corpo. Será que se trata de uma tentativa
de inventar "um Outro da gramática", como propunha Jacques
Alain Miller em Angers29, para que o real da língua já não lhe faça
signo e, assim, forjar a palavra que cura, e que o livraria de passar
ao ato?
Concebe a análise como um lugar para elaborar algo sobre
o irreconciliável que ele situa entre "localização (repere) e orgânico".
Esse sujeito tenta na análise um enodamento entre o que expressa pelo
binário ''iiocalizávei/ irreparável" (irrepérable/ irréparabie) onde "corte" e
"sutura" tentam se enodar.
Ele tenta entregar-se a uma língua na qual o corpo possa
se sustentar. É obrigado a tratar do real da língua para enodar o
69
corpo. É o ponto de religamento. Inventa uma gramática que lhe
permite neologizar gramaticalmente. Quando isso se solta, porque
esse uso é precário, ele delira seu corpo. No momento em que o
enodamento na língua não dá mais abrigo ao corpo, ele utiliza real
mente seu corpo.
A análise é para ele um lugar de criação de referências que
lhe permitem suportar uma relação com o mundo. "Saí do autismo
por milagre e traumatismo, e aqui pode haver suspensão", disse.
70
Ao contrário desse ponto de partida com base no Outro,
existe o ponto de partida com base no gozo, com o Outro que não
existe. Aqui, é a própria escolha do engajamento do sujeito na estrutu
ra clínica que se encontra problematizada. Então, temos que lidar
menos com a oposição desencadeamento/desligamento que com a
questão dos desligamentos e religamentos, inclusive com a problemá
tica do ligamento com o Outro. Essa é uma perspectiva comandada
mais pela consideração do tratamento que pela consideração da clínica.
Haveria clínica psicanalítica concebível somente com base
no Outro primordial?
O último ensino de Lacan convida a um novo exame do
estatuto a ser dado ao sintoma. Considerar o Outro primordial leva
a estimar que o Outro é o melhor meio para se tratar o gozo.
No que diz respeito ao tratamento do gozo, duas vias
devem então ser distinguidas:
_ Passarpelo Outro para o tratamento do gozo evidencia o esta
tuto predominante da fantasia, isto é, o valor de localização, de con
densação, de recuperação do gozo, correlato à mortificação signifi
cante do sujeito. Trata-se, por essa via, de um tratamento do gozo
pelo objeto como resto.
_ Sem passar pelo Outro para o tratamento do gozo evidencia o
estatuto do significante sozinho, o laço do simbólico com o real, e
não mais uma apresentação do sintoma na vertente deficitária em
relação a uma norma - mesmo que seja a norma-do-macho (má/e
norme) - e sim uma apresentação do sintoma na vertente que faz
valer a invenção do sujeito, a função L: (x), ou seja, a versão do sin
toma que convém ao Outro que não existe. Esta versão adquire
toda sua dimensão com a clínica borromeana, na qual o Outro é
substituído pelo enodamento, que equivale, em uma estrutura ter
nária, ao ponto de basta na articulação em uma estrutura binária.
O neodesencadeamento se esclarece, assim, por meio do
nó borromeano, do Outro que não existe e do registro do signifi
cante sozinho, S t .
71
IV. CONCLUAMOS
72
libidinal. Pode-se notar, então, em todos esses casos que privilegiam
um enlaçamento imaginário, a importância de uma inscrição da cas
tração no real, como o "cílio" de Pierre Naveau30•
O sintoma é um aparelho que permite colocar em série os
ligamentos em que um uso particular do simbólico - por meio de
um médium, da informática, de uma prática artística, de um empre
go da língua-lalíngua - fixa o sujeito.
O aparelho da linguagem é outro aparelho.
Falar de enodamento remete a uma clínica borromeana na
qual, como observa Jacques-Alain Miller no final do Seminário das
sete sessões: ''A equivalência entre os três registros tem como efeito
considerar que um registro pode se substituir a uma falha surgida
em outro [...] o imaginário pode se transformar em significante",
uma prática do objeto pode se contrapor à falta simbólica. Nos
casos comprovados de psicose, observa-se uma remissão à imagem,
na qual o imaginário se fixa em determinado momento e, a esse
preço, o sujeito sustenta-se no mundo. Assim, uma mulher se faz
tatuar uma maquiagem permanente nos olhos para poder levantar
se de manhã diante de um homem. No caso de Jean, a "performance"
faz pensar em uma afinidade com a perversão. Há um elemento
notável: trata-se de traços de perversão, traços que se repetem iden
ticamente.
Por outro lado, há enlaçamentos "autossimbólicos" devi
do a um funcionamento em dois níveis, internos ao simbólico. Essa
problemática do neodesencadeamento mostra-nos a passagem de
uma clínica da contiguidade, cuja referência é linguística, a uma clí
nica da continuidade e sua incidência na condução do tratamento.
O conjunto dos casos leva-nos a indicações precisas sobre
a posição do analista. Se o esquizofrênico denuncia pela ironia a ine
xistência do Outro, é melhor não levá-lo a esse ponto de inexistên
cia do Outro no tratamento. Por exemplo, quando ele é recoberto
por um remendo imaginário: FPS (Fenômeno Psicossomático), prá
tica artística, escolha do objeto amoroso especularizado.
73
Somos, portanto, levados a colocar em questão a posição
do secretário do alienado, em prol da sustentação para a criação
quanto ao objeto e, também, na escrita do caso. Éric Laurent, em
Arcachon, detalhou a maneira pela qual o analista se faz destinatá
rio do signo ínfimo do paciente. Com esses signos sustenta-se seu
trabalho de construção, e não se desvia disso.
A manobra analítica não consiste, portanto, em um mero
registro, em um secretariado; tampouco se trata de "socializar". O
reenlaçamento, que está a cargo do sujeito, se ele é uma alternativa
para a metáfora delirante, não é uma reinscrição do sujeito sob os
significantes ideais anteriores ao desligamento. Ele supõe uma
invenção particular e um destinatário atento, como testemunham os
casos.
74
Notas
•
Relatores: Jacques Borie, Jean-Robert Rabanel e Claude Viret.
1 LACAN, J. (1955-1956) "Do significante e do significado". In: O Seminário, livro
3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 985, p.220.
2 Ibid., p. 1 87.
3 LACAN, J. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.542.
4 LACAN, J. (1 973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.466.
5 NAVEAU, P. (1 988). Sur le déclenchement de la psychose, Ornicar? Paris, n.44,
p.79.
6 MILLER, J.-A. (1 996) "Lacan com Joyce". In: Correio n.65. São Paulo: Escola
Brasileira de Psicanálise, 201 0, p.33.
7 Tal como acontece com James Joyce.
8 HENRY, F.,JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.). Le conciabule d'Angers: effets de
surprise dans les p.rychoses. Paris: Agalma/Seuil, 1 997.
9 N.E.: NAVEAU, P. História d'olho. In: HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER,
J.-A. (ed.) (1 997) Os Casos Raros, Inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação
de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1 998, p.59-61 .
75
Seção Clínica de Lille*
I. ENTRADAS NA PSICOSE1
77
delirantes relativas ao amor e às relações sexuais devem ser
igualmente referidas a <I>o. O falo é o significante da vida ou da ani
mação do gozo. Portanto, a perda enigmática do sentimento da
vida, chegando às vezes até ao suicídio, e a mortificação do gozo,
dizem respeito a <I>o. Somente as perturbações da linguagem pro
vam "automaticamente" a foraclusão do Nome-do-Pai. Os fenôme
nos que acabamos de descrever, assim como as alucinações visuais
e sinestésicas, têm um estatuto muitas vezes difícil de determinar na
prática. Na ausência de perturbações da linguagem, a psicose deve,
portanto, ser demonstrada de outra maneira, por um estudo do
conjunto do quadro clínico a partir da articulação detalhada de seus
elementos.
Da "Questão preliminar" deduzimos um esquema de
desencadeamento6 da psicose relativo à segunda "doença" de
Schrebee, que se traduz pelo seguinte encadeamento temporal: 1 )
apelo ao significante foracluído do Nome-do-Pai (por Um-pai); 2)
formação de Po; 3) formação de <I>o.
Mas, há entradas na psicose que se ordenam de acordo
com outras sequências temporais.
1 . Um-pai � <I>o
78
Exemplo 1 : Um transexualismo feminino1
Exemplo 2: Um heroinômano
79
repetiu. Desde então, drogava-se para "ficar de pau duro", e conse
gue fazer amor sob efeito da heroína. Esse primeiro ato sexual teria
causado "hemorragias intestinais" e teria sido então operado para
"retirar pedaços do intestino". Desde então, sofre "dores de barri
ga" inexplicáveis. Leva uma vida errante e tenta trabalhar no campo
do esporte (ideal paterno). De fato, é sustentado por sua família e
sua companheira. Ela está atualmente grávida e ele, muito angustia
do. Acabou de perceber, embaixo do pé, uma "bola" de carne que
aumenta quando faz amor e que viria geneticamente de um avô.
Constata-se, portanto, nessa psicose que data da infância, a emer
gência de um delírio, até mesmo alucinações sinestésicas, na aproxi
mação da paternidade.
Os pontos comuns a esses dois casos são a ausência de
perturbação de linguagem e uma priorização do corpo e do sexo. Se
por um lado o quadro clínico pendeu para a psicose, por outro lado
esses casos suscitaram hesitações: em relação à histeria, no primei
ro; em relação à fobia ou à neurose obsessiva, no segundo. Tudo
começa pelo encontro com Um-pai na infância, ora dedutível do
relato do sujeito (exemplo 1), ora marcado por uma cena inesquecí
vel (exemplo 2). Esse encontro precipita uma significação delirante
"monomaníaca" sexual ("mudar de sexo", "fazer amor"). Nos dois
casos, não há nenhum deslocamento - signo da ausência do recal
que - entre a matriz infantil imaginária da ideia delirante e a busca
ininterrupta desde a infância de sua realização sintomática.
O mesmo tipo de sequência pode se desenvolver com o
encontro de Um-pai acontecendo somente na idade adulta. Foi o
caso de Schreber, quando de sua primeira doença (1 884) , ocasiona
da por sua candidatura ao Reichstag. Durou um ano "sem que ocor
resse um único desses episódios que tocam o domínio do sobrena
tural"9. De acordo com seu testemunho, os primeiros fenômenos
elementares começaram por um estalo em outubro de 1 893, ou seja,
apenas nove anos depois. Quando da sua primeira doença, Schreber
sofreu de ideias hipocondríacas e de uma obsessão de emagreci-
80
menta. Teria sido curado e levado em seguida uma vida tranquila,
apesar de sua decepção renovada quanto à paternidade. Esse pri
meiro episódio pode então ser escrito: "Um-pai" � <l>o, sendo <l>o
caracterizado, ainda aqui, por ideias delirantes sobre o corpo.
81
"quero mudar de rosto, pois não consigo me olhar no espelho ". Uma data é
destacada: aos seis anos, a mãe que a superprotegia a "abandonou"
para ir trabalhar. O trabalho, portanto, foi associado a perder, não a
vida, mas a mãe. Tem-se a impressão de uma evolução progressiva
para uma cirurgia inelutável, castração no real que lhe aparece como
uma solução em uma relação amorosa por vir. Essa "solução" evoca
a eviração schreberiana na via da transformação em mulher; a apro
ximação da cirurgia é acompanhada do sentimento de "segunda
morte" que assombra o sujeito: fenômenos imputáveis à <Do.
82
bido, sem ideias. Se beber, pode até dizer maldades: sua mãe o
chama de "o cobra". Pouco antes de ser internado, soube que sua
mãe se encontrava com seu padrasto antes do divórcio. Ele desmo
ronou: '3'ou filho de quem?". O diagnóstico não era evidente.
Inclinamo-nos pela psicose devido à sua relação com o pai. Este é
rejeitado, não reconhecido, e o sujeito diz nunca ter tido o menor
conflito com um personagem paterno, nem, aliás, a menor dificul
dade em sua vida. Por outro lado, tanto a relação com o álcool e a
inibição para falar com os homens, quanto sua facilidade grande
demais para conversar com as mulheres, é um pouco o inverso do
que encontramos habitualmente na neurose. Se o diagnóstico está
correto, a entrada na psicose se faz pela alcoolização massiva no dia
de seu aniversário. A partir daí, o álcool ajuda-o a suportar os outros
rapazes, pois o modelo da relação com a mãe não funciona com
eles. Não encontramos alteração simbólica manifesta, mas a acen
tuação, a cada vez que é "largado" (laisser-tomber) por uma mulher,
de um "se deixar morrer". Não se trataria, sob o pano de fundo da
ausência do falo como médium entre os sexos e significante-mestre
da virilidade, de um duplo fracasso? Fracasso de uma tentativa de
constituir um sintoma (o alcoolismo) que faça laço social com os
homens e fracasso da relação "incestuosa" que possa lhe garantir
um laço que se mantenha com uma mulher.
Os traços comuns desses casos de psicose são a ausência
de perturbações de linguagem e a inexistência de uma condição ini
cial do tipo "Um-pai". No primeiro caso, o sujeito é progressiva
mente obnubilado por uma cirurgia; no segundo, o alcoolismo se
instala brutalmente na puberdade e toma pouco a pouco um con
torno suicida. Essas perturbações são a manifestação de uma ausên
cia da significação fálica, que escava lentamente <l>o. Nada garante,
contudo, que essas entradas precoces na psicose não serão seguidas
um dia por um desencadeamento (Po). A foraclusão do Nome-do
Pai torna sempre possível uma desestabilização da ordem simbólica
que formará Po.
83
3 <l>o, e mais tarde Po
.
84
oferecido como isca a seus primos. Aos vinte e um, o noivado e,
logo em seguida, o casamento fizeram de seu marido o perseguidor.
O automatismo mental então se desencadeou.
Trata-se de um sujeito que se situa desde sempre como o
objeto de gozo de um parceiro masculino (pai, primos, irmão, mari
do) . Na época de uma tentativa de sedução - ou talvez simplesmen
te por causa da sexualidade infantil -, <t>o se constitui (gozo morti
ficante, presença de um duplo). Desde essa época um fenômeno
elementar demonstra a falha da ordem simbólica. Aos onze anos, Po
se aprofunda: um delírio de filiação acompanha a ideia de um estu
pro pelo irmão - será a ideia do incesto fraterno que a leva a elabo
rar o seu pertencimento a uma outra família? Depois, o casamento
faz realmente com que apareça a decomposição avançada da ordem
simbólica, que acarreta, como em Schreber, remanejamentos imagi
nários.
Esses exemplos, como muitos outros, mostram que o tra
balho delirante é um Work in progress que pode durar toda uma vida.
Há, contudo, casos (cf. I.A. l e I.A.2) em que a evolução delirante
para depois da constituição de <t>o ou se estabiliza durante longos
períodos, sem decomposição da ordem simbólica. Nesses casos,
apesar da ausência de perturbações de linguagem, pode-se identifi
car a foraclusão do Nome-do-Pai por alguns signos, como a ausên
cia simbólica do pai no exemplo 4. Esse é evidentemente o ponto
delicado. A entrada na psicose se manifesta minimamente por uma
ideia delirante sobre o corpo (exemplos 1 , 2, 3), ou mais intensiva
mente por uma significação mortífera in,vasiva. Esta pode ser asso
ciada ao trabalho (exemplo 3), aos laços com os outros (exemplo 4)
ou à sexualidade (exemplo 5) . Aqui se demonstra a dificuldade do
laço social na psicose. Um "produto" (álcool, droga) pode ajudar a
estabelecer esse laço, ali onde o falo teria sido necessário (exemplos
2 e 4), e onde o sujeito não consegue construir um sinthoma (cf. I.B.) .
O imaginário é acometido no nível da imagem do corpo, ou pela
alteração do sentimento da vida, e até mesmo pela perda do senti-
85
do ou do valor atribuído a esta. Os atos se seguem. O início pode
ser brutal (cf. I.A. 1 e I.A.2 exemplo 4), ou muito progressivo (exem
plo 3), com agravações nos momentos do desenvolvimento em que
a pulsão solicita mais o corpo (primeira infância, puberdade, primei
ros encontros sexuais). O apelo, por intermédio de Um-pai, ao sig
nificante foracluído do Nome-do-Pai, não é sempre o que precede
esse tipo de entrada na psicose (cf. I.A.2) . Contrariamente ao desen
cadeamento-tipo da segunda doença de Schreber, a descontinuida
de ou a "quebra" - de acordo com a expressão da paciente do
exemplo 5 - não é sempre sentida pelo sujeito. Este diz às vezes que
sempre esteve mal, mas que ninguém nunca percebera...
Essas entradas na psicose (<l>o) , que são muito mais
"variações"13 da relação do sujeito com o gozo e com o imaginá
rio do que desencadeamentos (Po), acentuam a importância da
função fálica como função de gozo. O desencadeamento (Po) é o
modo de entrada na psicose que Lacan enfatiza no momento em
que afirma a primazia do simbólico sobre o imaginário e o real. A
entrada na psicose (<l>o) se percebe talvez melhor a partir do seu
ensino nos anos 1 97014• A última parte do ensino de Lacan, que
incide sobre o sinthoma, oferece ainda novas perspectivas sobre o
processo psicótico.
B. A função do sintoma
86
Exemplo 6: Missão cumprida
Exemplo 7: O caça-níquel
87
após um episódio doloroso de sua adolescência. Agredido por um
colega do colégio em presença de um disciplinário, lera no olhar
deste que era um "maricas". Aos vinte e dois anos, a pedido de seu
pai, falecido pouco depois por conta de um alcoolismo patológico,
substituiu seu irmão à frente da loja paterna. Sua mãe era de uma
família rica e seu pai, de origem modesta, dedicara-se a fazer fruti
ficar o dinheiro de sua esposa, trabalhando como um escravo. O
paciente jogava e perdia dinheiro líquido de origem duvidosa que
sua mãe lhe dava. Devolvia à sua mãe uma parte do que ganhava na
loja, a fim de cobrir déficits obscuros. "Ser o caça-níqueis de sua mãe"
poderia ser a escrita de um sinthoma que constitui sua mãe como sua
parceira, permitindo-lhe suceder a seu pai. De fato, o caça-níqueis é
um aparelho que pega seu dinheiro e que, nos raros casos em que
você ganha, lhe devolve um pouco. Da mesma forma, o sujeito fazia
desaparecer nele o dinheiro "sujo" de sua mãe; depois, transforma
do ele mesmo em caça-níqueis vivo, produzia dinheiro "limpo" que
voltava a ser "sujo" e materno. Assim, estabelecia-se uma circulação
entre o dinheiro "limpo" do sujeito e o dinheiro "sujo" da mãe que
continuou funcionando depois que interrompeu o jogo. Um conta
dor sugeriu-lhe separar as contas e os circuitos em jogo, uma vez
que essas trocas beiravam à ilegalidade. Era necessário que ele reto
masse a loja em seu nome, já que até então era chamado de "o filho
de Nicole" (sua mãe). Uma série de distúrbios corporais imputáveis
à <!>o apareceram então: placas de calor se deslocavam dentro de seu
corpo, suas veias se comprimiam. Convencido de estar acometido
por doença incurável e abatido por uma fraqueza sexual que via
refletir-se nos olhos de sua mulher, começou a tratar seu mal-estar
com máquinas de botjy building e um treinamento intensivo de power
training. Ideias insistentes de ciúmes começaram a persegui-lo. Por
enquanto, o analista não identificou perturbação de linguagem.
Outros casos evidenciaram momentos de decomposição
simbólica ou imaginária, quando o sinthoma, previamente construí
do pelo sujeito, ameaçava não mais poder se escrever. Esse sinthoma
88
pode, muitas vezes, ser apreendido por um conjunto de relações
constantes na vida do sujeito, como uma missão (exemplo 6), uma
relação dual (exemplo 7), ou uma relação implicando três termos ou
maiS.
89
aluno de Pinel. E reconhecia nela pródromos, um tempo de incu
bação, um período de invasão, um estado de excitação - em que a
loucura está no summum de sua intensidade - e modos de resolução.
Nada de traços de desencadeamento, portanto, no corpus psiquiátri
co antes de Lacan.
B. Nos clássicos
90
A facticidade dos agrupamentos de sintomas conduzirá
alguns praticantes a "deixar os doentes se mostrarem livremente", a
fim de melhor discernir os "tipos patológicos". Pouco a pouco,
impôs-se a eles regularidades evolutivas, tais como "o delírio de per
seguição" em três tempos (Lasegue), "o delírio de perseguição de
evolução sistemática" em quatro períodos O· Falret), "a loucura de
dupla forma" e "a loucura circular" O· Baillarger e J.-P. Falret), que
pleiteavam um princípio organizador. Passava-se das classificações
sintomáticas aos "estados psíquicos tais como existem na nature
za". Mas, ao passo que Falret recusava-se a insistir sobre esse "grave
acidente" que é "a explosão do delírio" e desviava sua atenção para
o discreto período de incubação, Lasegue, ao contrário, privilegiava
a "floração" do período de estado, porque a considerava como o
melhor período de observação de um delírio de perseguição. Um
pensava que os pródromos da alienação mental eram muito próxi
mos dos signos da predisposição; o outro, que o delírio de persegui
ção não era "a exacerbação de uma forma natural".
91
rio dos degenerados" carrega a marca do desequihbrio psíquico
constitucional. O menor pretexto o faz eclodir, e ele pode desapa
recer como aparecera. O "delírio crônico", ao contrário, desenvol
ve-se em uma ordem determinada, de quatro períodos: o doente,
entregue as suas interpretações delirantes, fica inquieto no primeiro,
alucinado e perseguido no segundo, ambicioso no terceiro, demen
te no quarto.
O modo de entrada na psicose adquire um valor preditivo.
A acuidade do início faz esperar a curabilidade, uma instalação deli
rante lenta e progressiva anuncia a cronicidade. Para Kraepelin, que
havia isolado algumas entidades psiquiátricas ao final de uma longa
evolução, quando as mesmas doenças têm o mesmo estado termi
nal, o diagnóstico dos sintomas iniciais adquirem um valor prognós
tico considerável.
b) O lugar dado à constituição tem abordagens diversas. Se
a singularidade pessoal (persiinliche Eigenarf), isolada por Kraepelin
como o signo de uma predisposição, aparece aumentada na para
noia, a demência precoce só é raramente a amplificação de um traço
de singularidade observado na infância.
As psicoses constitucionais - que se opõem às psicoses aci
dentais - desenvolvem-se em um terreno preparado pela hereditarie
dade, mas também pela degenerescência, pelos acidentes da gravidez
e pelas doenças infantis (o indivíduo herda dele mesmo, dizia
Lasegue), e até mesmo pela educação. O peso da predisposição
reduz, às vezes, a nada, a parte das causas coadjuvantes na eclosão
psicótica. Um doente que, por uma constituição "paranoiana"
(Régis), recebeu no nascimento o germe da "loucura verdadeira",
pode desenvolver em um determinado momento, e à menor ocasião,
uma psicose sistematizada progressiva. E lembrar-nos-emos do
lugar concedido pelo mesmo Régis aos fenômenos hipocondríacos
no momento inaugural dessa psicose sistematizada (e alucinatória).
Para Genil-Perrin, seria vão querer delimitar o período de
incubação de um delírio de interpretação, pois o doente, que "car-
92
rega seu delírio latente desde a mais tenra idade", não faz senão exa
gerar as suas tendências paranoicas constitucionais.
Nessas concepções organicistas, há uma continuidade
entre a causa e os efeitos, muitas vezes precoces, da doença mental:
a "propensão congênita da constituição" (Séglas) se prolonga na
doença e nela se lê precocemente, ora na desordem intelectual, ora
nos fenômenos corporais.
c) O processo mórbido na esquizofrenia designa, para
Bleuler, a afecção cerebral da qual depende a perda das associações.
Esse processo cria uma predisposição para reagir a causas ocasio
nais, que estão na origem de uma sintomatologia contingente. Esses
fatores ocasionais desencadeiam sintomas, mas não a doença, cuja
evolução, habitualmente insidiosa, pode permanecer muito tempo
assintomática. A anamnese dificilmente identifica se modificações
do caráter ou de outros fenômenos indicam o verdadeiro início ou
se elas pertencem à predisposição. Um episódio psicótico agudo se
confunde facilmente com a exacerbação de uma sintomatologia
antiga que passou despercebida. Ele indica, em todo caso, a esqui
zofrenia, e não a paranoia, que é um sistema de ideias delirantes
logicamente ligadas e que toma seu ponto de partida de falsas pre
missas.
C. Rupturas epistemológicas
93
entre os fenômenos ligados às relações de compreensão - em que
a causa e o efeito são contíguos -, e os fenômenos devidos ao hiato
da intrusão parasitária - em que a causa desenvolve efeitos irredu
tíveis à compreensão -, que conduziu Lacan a privilegiar, em 1 958,
um modo de entrada na psicose por um fenômeno agudo em que
se atesta a irrupção de uma causa.
Em sua tese de 1 932, centrada na entidade "paranoia", a
partir do caso Aimée, Lacan isola uma causa específica: a fixação
libidinal, que dá a chave do processo. Inclui essa psicose, por deten
ção (arrêl) da personalidade (fixação libidinal), nas psicoses paranoi
cas, contentando-se com uma enumeração das outras formas de
ps1cose.
Sua escolha pela paranoia testemunhava, no mínimo, seu
apego ao texto de Freud. Sabemos que Freud era pouco entusiasta
da esquizofrenia, ao passo que a paranoia respondia a sua teoria da
libido. Mas foram necessários Clérambault e seu "anideísmo", assim
como a teoria do significante, para que a ruptura inaugurada a par
tir de Jaspers fosse fundada teoricamente. Foi o triunfo do paradig
ma schreberiano.
D. O que há de novo?
94
Notas
*
Relatores: Genevieve Morel e Herbert Wachsberger
1 Parte I: redigida por Genevieve Morel.
2 LACAN, ]. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.581.
3 Ibid., p.577.
4 LACAN, J. (1 955-1 956) "As imediações do buraco". In: O Seminário, livro 3: as
psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 985, p.284, 349.
5 LACAN, ]. (19 58) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.577. No caso de
Schreber, em que "a elisão do falo" é trazida "para resolvê-la na hiância mortífe
ra do estágio do espelho". O laço entre <l>o e a imagem do corpo é frequente na
psicose.
6 LACAN, ]. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.564. "No
ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois
responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito
metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica".
Ver também p.577, a discussão sobre a anterioridade de Po em relação a <l>o;
p.578 e 583, a relação dialética entre Po e <l>o; p.583-584, as conjunturas de
desencadeamento.
7 SCHREBER, D. P. (1 905) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1 984, capítulos 2 e 3: 1" Junho de 1 893, nomeação de Presidente
da Câmara do Tribunal de Apelação do Land de Dresden; zo) outubro 1 893,
"estalos" sobrenaturais; 3°) março 1 894, elaboração do "assassinato de almas".
8 Os exemplos são publicados in extenso no Hors-série n.3 dos Cahiers de Lille: ex.
2 de Vincent Calais, ex. 4 de Brigitte Duquesne e Emmanuel Fleury, ex. 5 de
Carine Decool, ex. 6 de Brigitte Lemonnier, ex. 7 de Philippe Bouillot.
9 SCHREBER, D. P., Op. cit., p.44.
1 0 STOLLER, R. ]. Masculin ouféminin? Paris: PUF, Le ftl rouge, 1 989, p.44-45.
1 1 MOREL, G. "Identifications et sexuation", La Causefreudienne, n.37, outubro
de 1 997, p.72 para o caso de Ives; "Un cas de transvestisme féminin", La Cause
freudienne, n.30, maio 1 995, p.20 para o caso de Ven.
1 2 N.R.: o verbo "prendre" em francês tem, igualmente, o sentido de "tomar ou
pegar sexualmente" quando referido a uma mulher.
95
1 3 Inspiramo-nos em F. Jullien para opor a "variação" (evolução contínua) e a
diferença ligada à descontinuidade significante. Un sage est sans idée. Paris: Seuil,
1 998, p. 1 82 e 212.
1 4 LACAN,J. (1973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.466. Assim, uma frase coloca em série "a irrupção de Um-pai" e
"o efeito de empuxo-à-mulher". Mas, em "Questão preliminar", a frase "esse
outro abismo foi formado pelo simples efeito no imaginário pelo apelo vão feito
no simbólico à metáfora paterna?", mostra que, desde 1 958, Lacan considerava
entradas na psicose do tipo "Um-pai ---+ <1>0" (cf. A).
1 5 LACAN, J. (1 975-1 976) "Do uso lógico do sinthoma ou Freud com Joyce" e
"Joyce e as falas impostas". In: O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2007, p.21 e 9 1 .
1 6 HENY, H., JO�IBOIS, M . e MILLER, J.-A. (ed.) (1 997) Os Casos Raros,
Inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo:
Biblioteca Freudiana Brasileira, 1 998, p. 1 09, 1 1 7 e 1 06.
17 LACAN, J. (1946) "Formulações sobre a causalidade psíquica". In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p. 1 8 1 e 1 85. Em certos casos, poder-se-ia
talvez reintroduzir o termo "momento fecundo".
1 8 Parte 11: redigida por Hcrbert Wachsberger.
1 9 LACAN,J. "Structure des psychoses paranoi'aques", LA Semaine des Hópitaux de
Paris, n. 1 4, 1931 . Retomado em Ornicar? n.44, 1 988, p.5- 1 8.
20 HACKING, I. L'âme réécrite. Étude sur la personnalité multiple et les
sciences de la mémoire (1995), traduzido do inglês por Julie Brumberg
Chaumont e Bertrand Revol, com a colaboração de André Leblanc e de
Christophe Dabitch, Institut Synthélabo para o progresso do conhecimento, Le
Plessis-Robinson, 1 998.
2 1 JASPERS, K. "Eifersuchtswahn", Zeitschrift der gesamten Neurologie und
P.rychiatrie, 1 9 1 0, 1 : 567-637. Citado por Lacan em sua tese, p.1 44.
22 Ver a Schizophrenia Bulletin, 1 996, volume 22, n.2: Ear!J Detection and Intervention
in Schizophrenia.
96
A NEO C ONVERSÃO
Seção Clínica de Bordeaux*
99
comuns a todos os homens". Mas o questionamento radical de
Lacan, a partir dos anos 1 970, vai acentuar mais o real incluído no
sintoma do que seu sentido. Essa "reviravolta", assim produzida,
abala a concepção de "sintomas típicos".
A conversão é um sintoma que se inscreve no rúvel do
corpo, como decifrável pelo saber inconsciente. É conhecida por
tornar-se cada vez mais rara na clínica das neuroses. Por outro lado,
os fenômenos de corpo que são susceptíveis de ressoar com a lin
guagem e de modificação pela palavra, se multiplicam.
Apresentamos aqui alguns casos com sintomas típicos, em
que o corpo é concernido de maneira diferente e original.
No caso n. 1 , Sylvie, trata-se de um uso do corpo que visa
inscrever um gozo que não pode ser decifrado. Os laços desse uso
do corpo com o sintoma, a função da letra e da escrita, são aí estu
dados.
No caso n. 2, da senhorita Anna, evidencia-se um uso dife
rente do corpo que coloca em jogo um manejo da imagem, que não
é sem relação com a conversão, mas que dela se difere fundamen
talmente. O sintoma de corpo é aqui um ciframento que não pode
se situar em relação ao deciframento inconsciente, mas apoia-se na
1magem.
No caso n. 3, Murielle, a dor é, de alguma forma, o ponto
de origem de uma prótese corporal real que faz suplência à psicose.
A dor real é a premissa desse aparelhamento do gozo.
Enfim, a pequena nota sobre a oposição Fenômeno
Psicossomático (FPS) /Conversão, mostra o papel prevalente da sig
nificação fálica, ausente aqui e presente ali, para "fixar" o modo e a
própria possibilidade de "leitura" do sintoma.
Se é necessário um corpo para apresentar um sintoma de
conversão, vê-se aqui que uma neoconversão pode permitir a um
sujeito se fazer um corpo a partir de seu sintoma. A questão será,
então, a que tipo de tratamento pela palavra essas neoconversões se
articulam.
100
I FAZER-SE UM NOME - FAZER-SE UM CORPO
.
Fazer-se um corpo
101
Depois de circunstâncias particulares, Sylvie coloca um
termo às internações e pede um analista. O tratamento medicamen
toso continua.
A transferência e as cartas
1 02
fenômeno de duas vertentes: por um lado, imaginária, sob a forma
da imagem no espelho, que deve estar presente; por outro lado, sim
bólica, pela escrita da carta.
O que permitiu esse movimento? É a própria transferên
cia delirante que autoriza outra entrada em jogo do real nesse caso
particular. O analista ocupa aqui o lugar do Outro real, real no sen
tido do que volta sempre ao mesmo lugar, lugar em torno do qual
ela faz girar seu uso do tempo, seus deslocamentos, até mesmo suas
viagens e a rede de amigos.
Nos últimos anos de seu ensino, Lacan isola o real como
o que permite enodar simbólico e imaginário. A transferência per
mite esse enodamento tornando caduca a necessidade das passa
gens ao ato.
Com a entrada na transferência, assistimos a uma substi
tuição: a transferência permite que não seja mais o masoquismo
como tal o que opera esse nó, mas é a transferência como real que
vem efetuar essa operação. A introdução do Outro real da transfe
rência abre uma outra possibilidade diferente da repetição da passa
gem ao ato.
É preciso retomar aqui um ponto, desenvolvido por
Jacques-Alain Miller em seu curso de 1 987-88, Ce qui fait insigne.
Existem, a partir do significante S1, duas vias. Uma é a via simbóli
ca propriamente dita, com a série: palavra, discurso, saber, incons
ciente. A outra é a via do real, que é também a da letra, fundamen
talmente não interpretável. É nessa segunda vertente, fora do efei
to de significação, fora da elaboração de saber, fora do discurso, que
se situa o tratamento de Sylvie. Ela não suporta tomar minimamen
te a palavra, nem a menor significação.
Ela se diz incapaz de falar, de pensar, de refletir, e se sente
perseguida pelo menor comentário. Progressivamente, o envio de
cartas para. Inaugura-se então o segundo momento do tratamento.
1 03
Fazer-se um nome
1 04
incluso no corpo, pela criação de seus cadernos de notas, verdadei
ro fora-do-corpo que concentra e circunscreve o gozo a mais. Mas,
se esses escritos se enodam à imagem especular, é preciso, contudo,
que Sylvie dê voz na sessão, para que a cessão dessa carta, o seu
depósito, se opere e se constitua também um laço com o Outro,
diferente do seu corpo. Uma nota biográfica toma aqui seu valor: o
grande homem da família de Sylvie é o avô materno, herói nacional,
que ela não conheceu. Contudo, sempre ouviu contar que, no
momento de seu enterro, as maiores personagens do Estado deslo
caram-se para ler, no cemitério, seu panegírico.
105
A senhorita Anna é muito apegada ao passado glorioso de
sua família, sobre a qual fez numerosas pesquisas históricas e genea
lógicas. Interessa-se pelas grandes famílias e pelo papel destas na
história. Interessa-se também pelo aspecto misterioso do abandono
do qual seu pai foi objeto.
B. Crises passionais
C. O olhar da ancestral
1 06
Uma lembrança de infância lhe retoma: um ftlme que a
apavorava terrivelmente. Nele, uma moça tem seu rosto destruído
pelo fogo em um acidente, restando-lhe somente os olhos. Seu pai,
um cirurgião, assassinava moças para retirar seus rostos e enxertá
los no de sua filha. Assim se opõe o olhar morto da avó e o rosto
providenciado pelo pai que vem emoldurá-lo.
A senhorita Anna vai, então, durante o tempo das sessões,
imitar os gestos de um cirurgião praticando essa operação, dese
nhando um rosto sobre seu rosto. E isso, qualquer que seja o dis
curso que mantenha. A linguagem sem fala vem de alguma forma
encarnar um complexo, separado do discurso articulado nas falas.
Esses gestos só aparecem nas sessões; em sua vida cotidiana, são
apenas esboçados de forma imperceptível.
Sua construção imitativa e silenciosa é, ela mesma, uma
espécie de véu enxertado que faz existir, para além do que ela dá a
ver, o objeto olhar como ausente. A cena faz dela um quadro vivo
que doma o olhar do Outro.
Esse nó sintomático na esfera gestual vai pacificar o
humor e o delírio. O estado da senhorita Anna melhora. As tempes
tades transferenciais ligadas à erotomania atenuam-se.
A senhorita Anna pode, a partir daí, exercer uma atividade
profissional que consiste em mostrar quadros (pinturas) às pessoas.
1 07
Esse caso da senhorita Anna difere do que traz Freud no
fim de seu artigo sobre "O inconsciente"8, isto é, casos de lingua
gem de órgãos, em que a linguagem se passa no corpo: alguém
que deve "mudar de posição" se vê impelido a mudar seu corpo
de lugar. São fenômenos que Freud distingue das conversões na
neurose.
Ora, a senhorita Anna não traduz seu sintoma, que fica no
registro visual. E se pode comentá-lo, observamos que o essencial
para ela se situa em uma cena, mais do que na literalidade de uma
palavra. É como se o discurso verbal se apoiasse sobre a mímica
silenciosa que lhe restituísse uma enunciação. Freud, no mesmo
artigo, ressalta que os pacientes esquizofrênicos compensam o
desinvestimento dos objetos pelo superinvestimento das palavras,
como se a palavra permitisse ser substituída pela coisa. A cena da
senhorita Anna é, de fato, um meio de reencontrar a função do
objeto pelo viés de um uso original de sua imagem. Essa cena cons
titui um enodamento sintomático, já que reúne um pedaço simbóli
co de sua história, a imagem de seu corpo que se presta a dar corpo
a essa história e o real não simbolizável do olhar de sua avó. Se, na
conversão, o corpo serve de suporte aos significantes recalcados do
sujeito, aqui é a imagem da cena imitada que restitui um corpo à
paciente. O que constitui esse corpo é a imagem e o pequeno rela
to que o anima. Ele serve de égide à paciente para entrar no discur
so e, a partir daí, na vida. Como Jacques-Alain Miller ressaltou, em
seu curso de 1 1 de junho de 1 9979, há duas coisas com as quais nos
embaraçamos: o imaginário (sua imagem, portanto) e o real. O uso
do sintoma consiste em aprendermos, a partir daí, a nos virar com
o destino que nos preparam os discursos que nos precederam; é o
que faz a senhorita Anna no tratamento. Ela usa o que a embaraça
para converter as palavras discordantes de sua história familiar em
uma "cena de família" reduzida e aceitável.
1 08
UI. CONVERS Ã O
A. Quero sarar
1 09
ranhado para poder levá-la a dizer algumas palavras sobre o que
pôde causar o desencadeamento desse episódio. Nos primeiros dias,
diante da eritrodermia que apresenta, da leve febrícula e da ampli
tude de seu sofrimento, uma consulta é solicitada a um especialista
em processos inflamatórios para afastar qualquer síndrome orgâni
ca rara que pudesse ter escapado. Qualquer processo orgânico é
então definitivamente eliminado.
110
Alguns dias mais tarde, depois de ter se ausentado, encon
tra seu pai de novo em um grande sofrimento e ele é internado
novamente.
Os "sintomas" de Murielle começam na noite seguinte.
No dia do aniversário de seu pai, alguns dias mais tarde,
suas dores chegam ao paroxismo e é a sua vez de ser internada no
serviço médico.
Observamos que nos primeiros dias de sua internação,
toda vez que lhe faziam perguntas sobre seu pai, contorcia-se de
dor; ela mesma acabou constatando essa ligação imediata entre a
evocação do pai e suas crises paroxísticas.
Não deixamos de notar essa colagem identificatória e a
importância que tomou para ela a deterioração da imagem desse
pai e seu sofrimento, quando vai vê-lo no hospital. O pai que pas
sou toda sua infância, desde seu nascimento até a idade de treze
anos, em famílias de adoção, sofre há muitos anos de crises de
"espasmofilia" durante as quais fica oprimido, treme, chora e pre
cisa se deitar.
Pode-se pensar que a estruturação edipiana desse homem
foi, no mínimo, conturbada, o que não é sem ligação com a relação
de grande proximidade que mantém com sua ftlha: eles têm, aliás,
sempre funcionado em sintonia, o humor de um, seguindo o humor
do outro.
Murielle é, então, levada a desvelar "a história" de sua esco
liose. Aos onze anos, um médico escolar descobre uma escoliose que
requer o uso de um colete. O pai é acometido de uma escoliose com
deformação. Uma irmã mais velha foi operada de escoliose.
Dos onze aos dezoito anos, Murielle usou um colete todas
as noites: o colete é composto por duas conchas de gesso fixadas
entre elas e renovadas a cada dois meses. É o pai que, todas as noi
tes, "a coloca" em seu colete e amarra nas costas os cadarços que o
mantém. Seu corpo é, portanto, mantido em uma concha; só os
membros ficam livres.
111
Aos dezoito anos, é tomada uma decisão médica para tirar
definitivamente o colete de gesso. Ela suporta mal essa decisão: "Eu
me sentia mais apoiada'� diz ela.
112
Observamos assim, no decorrer de nossas entrevistas com
Murielle, que ela é visada pelo Outro, e em particular pelo olhar,
desde a infância. Precisemos que alguns elementos persecutórios
teriam passado completamente despercebidos se as entrevistas não
tivessem sido guiada:s, por meio de um trabalho de poda, para o des
velamento pelo sujeito de sua tendência interpretativa.
Em quais referências teóricas do ensino de Lacan nos
apoiamos?
Parece que, para Murielle, o nó triangular é defeituoso. A
questão nunca é referida ao casal parenta!. Ela permanece às voltas
com o laço dual com o pai, em espelho. O gozo, por esse fato, não
é separado nem do Outro nem do corpo, e oscila entre um e outro.
Foi o pai que, "na realidade", se esforçou, mediante atos
cotidianos repetidos, para lhe "fazer um corpo", pela aparelhagem
do colete. Assim, por meio da construção desse corpo-concha, o
gozo fica contido, o que não acontece sem dor.
Não é evidente que um sujeito se atribua um corpo. Murielle
nos indica isso mais de uma maneira. Aos quinze anos, apesar de sua
"prótese" corporal, ela perde, em alguns meses, mais de dez quilos,
que recupera muito rapidamente sem que ela nem sua família possam
desvendar a causa. Vê-se muito frequentemente isso na psicose de
adolescentes, como se o corpo não concernisse ao sujeito.
Desde que o corpo de Murielle deixou de ser contido pelo
colete, surgiu, então, uma série interpretativa. O gozo, que não é
mais circunscrito pelo colete, encontrou uma nova localização no
Outro e, mais precisamente, no olhar do Outro.
Em um segundo tempo, no momento do desencadeamen
to do episódio que a levou à internação, ocorre o desmoronamen
to de seus dois apoios imaginários: o ideal profissional (aeromoça)
e a doença do pai, provocando uma nova invasão de gozo, mas,
113
É interessante observar, neste caso, essa mobilidade do
gozo que passa do corpo aparelhado, com seu cortejo de sofrimen
to, à interpretação delirante do olhar do Outro e, em seguida, retor
na no corpo pelo viés da hipocondria.
Murielle se faz um corpo doente, em espelho com o corpo
doente do pai, em uma identificação imediata e não dialetizada. É
por isso que não se pode confundir hipocondria com conversão
histérica. Nesta, é o inconsciente que fala por meio do corpo, com
toda a dialética simbólica da constituição do sintoma.
A. A conversão freudiana
1 14
resultado de um efeito de linguagem, de uma sugestão hipnótica,
mas um modo de resposta complexa do sujeito a um resto não tra
duzido do sexual, em conexão com uma representação e um afeto.
A defesa, via recalque, tenta transpor e fixar esse resto no corpo de
uma forma figurada. Esse "salto do psiquismo à inervação somática'�
como Freud o designa em seu prefácio ao 'Homem dos ratos'� esca
pou à sua conceitualização enquanto ele não esclareceu o papel da
pulsão. Em relação a isso, o artigo de 1 91 0, ''A concepção psicana
litica da perturbação psicogênica da visão", é decisivo. Freud
demonstra nesse texto como a conversão histérica testemunha a
interferência da significação da pulsão (die Bedeutung der Triebe) na
vida da representação (Vorstellungsleben).
A conversão apenas em aparência escapa à exigência pul
sional. Ela é, na realidade, a colocação em ato de uma satisfação pul
sional clandestina que se opera apesar dos ideais do eu. Isso está
ligado ao fracasso do recalcamento que, longe de refrear a ativida
de pulsional, somente a favorece, repelindo-a cada vez mais para o
inconsciente, onde encontra todas as condições para persistir e pro
liferar.
O reforço da pulsão ligado ao fracasso do recalque prefi
gura o paradoxo do supereu. Em relação a isso, o caso da conver
são histérica de órgãos é significativo. Quálquer órgão dos sentidos
tem uma dupla função, a de manter a vida e a de desempenhar um
papel erógeno; o órgão serve às pulsões do eu e às pulsões sexuais.
Ora, "não éfácil servir a dois senhores ao mesmo tempo ", nos diz Freud.
Quanto mais a erogeneidade do órgão é reprimida, mais sua ativi
dade pulsional cresce no inconsciente. Se um vqyeur histérico fica
cego de tanto olhar, sua cegueira demonstra um gozo escópico exa
cerbado.
No fim de seu artigo, Freud se interroga sobre as conse
quências desse gozo do órgão. Considera a possibilidade de uma
alteração orgânica decorrente da ''intensificação da significação erógena"
(der gesteigerten erogenen BedeutuniJ . Tais sintomas, que ele qualifica de
115
"neuróticos", são desconhecidos tanto porque não são diretamente
acessíveis à psicanálise quanto porque os clínicos se enganam ao
deixar de lado o ponto de vista da sexualidade.
B. Superpulsão
1 16
meno de linguagem não permite o livre jogo da afânise do sujeito.
Tudo acontece como se, tal como um selo, uma espécie de escrita
ilegível viesse se inscrever no corpo como um tipo de enquadra
mento do nome próprio, no lugar mesmo do que deveria ter sido
um sintoma.
Como conceber o Übertreibung em questão se ele não é
regido pelo operador fálico e se ele não procede de um mais-de
gozar que implicaria, ao contrário, a oposição de dois significantes?
O sujeito é responsável por esse tipo de gozo? Baseados em quê
estamos autorizados, se não for para deslocar, pelo menos para tra
zer à baila, o gozo em jogo nesses FPS pelo efeito da fala?
Tudo depende da estrutura clínica. Um FPS não tem a
mesma função na neurose e na psicose. Na neurose, o FPS pode
fazer signo de um déficit momentâneo da defesa do sujeito no
encontro com um acontecimento, uma lembrança insuportável, um
traumatismo ou um segredo até então intransmissível, por exemplo.
Na psicose, o FPS, em sua função de enquadramento do nome pró
prio, vem circunscrever, no lugar do corpo, um espaço delimitado e
separado, permitindo a um sujeito se fazer um nome sem passar
pelo Nome-do-Pai.
Quando não se trata de psicose, mas de neurose, pode-se
considerar a escrita psicossomática como o índice de um modo de
gozo ilícito que escapa à castração e que se relaciona, mais frequen
temente, com um traço de perversão que vem desmenti-la. Somente
a invenção do inconsciente, via transferência, tem chance de des
compactar a soldagem significante e revelar ao sujeito a fixação de
gozo que ele se recusava a ceder, esse excesso de gozo, Übertreibung,
de cuja responsabilidade ele se esquiva por meio de seu estatuto de
doente.
Cabe ao desejo do analista extrair o sujeito desse querer
gozar em que seu corpo o mantém fascinado, em uma trapaça sem
nome, mesmo que esta tome o nome de uma doença.
117
Notas
118
Antennes Cliniques de Chauny-Prémontré e de Rouen*
I. COM FREUD
119
menta essencial do tratamento psíquico"1 • Tese: as palavras têm
uma ação nas perturbações psíquicas ou corporais. Corolário:
essas perturbações têm uma estrutura que deve ser análoga a das
palavras. Tese e corolário fixam o âmbito do que está em jogo na
psicanálise: a articulação da perturbação e da palavra, do sintoma
e do significante. E o primeiro nome que a psicanálise dá a essa
articulação é conversão.
Ainda citando Freud: ''A histeria se comporta em suas
paralisias e outras manifestações como se a anatomia não existisse
(...). Toma os órgãos no sentido vulgar e popular do nome que car
regam; a perna é a perna até a inserção do quadril"2• A perturbação
se produz quando o nome, a representação de um órgão, é investi
da de um valor afetivo muito grande. O que confere um valor afe
tivo por demais intenso a uma representação é o acontecimento
traumático. Mas, a perturbação não se reduz a ser apenas a cicatriz
de um ferimento, a marca de sua causa. A perturbação tem com
causa uma relação simbólica, isto é, uma relação que repousa sobre
o princípio da substituição, substituição arbitrária. Essa indicação é
preciosa; nela percebemos a entrada em cena da função significan
te. É exatamente porque há uma primeira substituição, que consis
te em substituir o braço anatômico real pelo significante braço, que,
em seguida, outras substituições significantes são possíveis.
Mas, não existe somente a vertente "significante". Da
mesma forma que a angústia resulta de uma transformação da ten
são sexual não satisfeita, a histeria resulta "de uma espécie de con
versão de uma excitação psíquica que toma uma falsa via levando a
reações somáticas"3• Assim, Freud propõe o nome de conversão
na histeria para designar a "soma de excitação (...) remetida ao cor
poral"4. Para fazer um sintoma histérico é preciso, portanto, o
concurso de uma representação que sofre o recalque e de um
afeto separado dessa representação e transformado em manifesta
ção corporal. Esses dois registros são reunidos nos Estudos sobre a
histeria pela fórmula: "Conversão simbólica"5•
1 20
Contudo, o sintoma só é conversão na histeria? Ou pode
se abordar a clínica com a fórmula: se conversão, logo histeria?
É surpreendente constatar que as referências à conversão,
assim como à "complacência somática", tenham aparentemente
desaparecido dos trabalhos de Freud posteriores a 1 9 1 O. Tal obser
vação deve ser completada por uma nota que figura em uma carta
de 1 91 7, endereçada a Groddeck: "O ato inconsciente exerce nos
processos somáticos uma ação plástica intensa, que o ato conscien
te nunca obtém"6• Parece que o mecanismo de conversão ainda per
manece válido, mas ele não é mais considerado como traço distinti
vo da histeria. A conversão não é mais um domínio reservado
somente à histeria; torna-se o domínio do inconsciente. Isso tem
duas consequências: por um lado, a necessidade de renunciar à
abrangência do diagnóstico diferencial da conversão, que não é mais
patognomônica da histeria; por outro lado, a estrutura da conver
são, não sendo mais apenas a do sintoma histérico é, portanto,
capaz de dar conta da estrutura do sintoma em sua generalidade.
121
Formações do inconsciente, Lacan diz: "No sintoma, e é isso o que quer
dizer conversão, o desejo é idêntico à manifestação somática, assim
como o direito está para o seu avesso". Nesta mesma lição, Lacan
estuda o caso Elizabeth, transmitido por Freud, ressaltando a iden
tidade que há entre a dor - no alto da coxa - e o desejo - pelo pai.
A dor é o desejo, a conversão o mostra.
Diferentemente de Freud, pode-se afirmar que Lacan
enfatiza a continuidade entre o psíquico e o somático. A relação que
existe entre o desejo e a manifestação somática é um continuum. Um
é o avesso do outro, ainda que um se prolongue no outro. A con
versão é, portanto, o que identifica o desejo - considerado a partir
de sua causa, o objeto a com a inscrição corporal de uma falta -
-
A.
122
A. Sobre a neoconversão
(a = - <p)
123
1. Anorexia
2. Toxicomania
1 24
8. Outros horizontes sobre a neoconversão
1 25
111. U M CASO COMO FORMA DE IlUSTRAÇ Ã O
1 26
Notas
*
Relator: José-Luis Garcia Castellano.
1 FREUD, S. (1 905) "Tratamento Psíquico (ou Anímico)". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.VII, Rio de Janeiro:
Imago, 1 989, p.276.
2 FREUD, S. (1 888-1 893) "Algumas Considerações para um Estudo
Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.I, Rio de Janeiro: Imago,
1 990, p.240.
3 FREUD, S. (1 894) "Rascunho E: Como se origina a angústia". In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.I, Rio de
Janeiro: Imago, 1 990, p.276.
4 FREUD, S. (1 894) "As neuropsicoses de defesa". In: Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.III, Rio de Janeiro: Imago, 1 987,
p.56.
5 FREUD, S. (1 893-1 895) "Estudos sobre a Histeria". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.II, Rio de Janeiro:
Imago, 1 988, p. 1 85.
6 FREUD, S. Correspondance 1873- 1939.Paris: Gallimard, 1 979, p.345.
7 Não seria mais adequado no lugar do termo neoconversão falar de sintoma
corporal?
8 LACAN, ]. "O lugar da psicanálise na medicina". In: Opção Lacaniana n.32.
Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia,
dez/2001 , p. l l .
9 MILLER, J.-A. (1 993) "Clínica irônica". In: Matemas I. Rio de Janeiro: Zorge
Zahar Editor, 1 996, p. 1 97.
1 27
Antenne Clinique de Nantes e Seção Clínica de Rennes*
1 29
dos dez últimos anos, seu estado se deteriorara progressivamente.
Os obstáculos surgiram desde o início de sua vida profissional de
engenheiro. Entediava-se e descobrira que, fundamentalmente, não
era feito para essa profissão. Uma exigência subjetiva à qual, confor
me lhe parecia, deveria corresponder, impunha-se a ele: era músico
e devia responder a esse chamado. Abandonou, portanto, uma car
reira bem definida como técnico, em troca de uma existência mais
precária como artista.
No momento da consulta, aos trinta e cinco anos, leva
uma vida miserável. Corre atrás de míseros cachês, cada vez mais
raros, e é reduzido a viver do RMF. Entretanto, o que motiva a
grande desordem desse sujeito é de uma outra natureza. Ele amou
uma mulher com a qual teve um relacionamento durante dois anos.
No início, ela estava ligada a um outro homem e essa situação se
manteve durante algum tempo, período em que ele se tornara o
amante dessa mulher. Nossos três protagonistas faziam parte de
uma mesma pequena formação orquestral na qual a mulher ocupa
va o posto de cantora. Enquanto houve lugar para o segundo
homem na vida dessa mulher, nosso paciente pôde gozar disso sem
maiores problemas. Um dia, como ele mesmo desejara, tornou-se o
seu único eleito. Escolheu viver com ela, com toda legitimidade;
então, as primeiras perturbações apareceram. Primeiramente, uma
ansiedade difusa; depois um abatimento progressivo e, subitamen
te, começou a perder cabelo aos tufos. Como esse estado persistia
e agravava-se, acabou concluindo que a causa disso era essa mulher.
Fazia a seguinte interpretação: a mulher que ele amava e desejava,
com a qual tinha prazer de viver e que lhe correspondia, represen
tava para ele um perigo. Decidiu abandoná-la e consultar um médi
co. Pôde constatar imediatamente uma melhora de seu estado e a
interrupção da queda de cabelos. Entretanto, ficou marcado por
essa experiência e desejava encontrar um analista.
No início, não falara da calvície. Mencionou, na ocasião,
um episódio de queda de cabelos que ocorreu no decorrer da aná-
1 30
lise. Ele levava a existência aleatória de um artista intermitente e
juntara-se a uma pequena orquestra. Teve então que viver um con
flito interno doloroso. Um dos músicos o aterrorizara querendo
fazê-lo beber. Ele deveria ter abandonado essas más companhias;
entretanto, escolhera permanecer no grupo por amor à música.
Essa decisão, que ia contra seu desejo profundo, deixava
o mortificado. Constatou o efeito nefasto disso em seu corpo.
Começou de novo a perder cabelos, centenas de fios por dia.
Foi nesse momento que começou a falar sobre sua teoria
da calvície. Há algum tempo, debruçara-se sobre esse fenômeno e
dedicara-se a encontrar uma explicação. Conduzia essa reflexão
com método e escrevia regularmente, em um caderno, o fruto de
suas cogitações ou o resultado de suas pesquisas.
Ele tem uma concepção unívoca do distúrbio: perde o
cabelo quando não é mais ele mesmo, isto é, quando faz algo que
não está em conformidade com seu verdadeiro desejo. Para usar
uma de suas fórmulas, é quando não está "inteiro" que os cabelos
caem.
Lembra-se que ele mesmo não se dera conta disso; foram
os amigos que o fizeram notar. Constataram a presença de cabelo
em abundância no box do chuveiro depois de sua passagem por ele.
Então, compararam fotos e notaram uma calvície nascente.
Consultou um acupunturista que lhe explicara o mecanismo. O
cabelo morre, mas só cai depois de três meses. Notara que as coi
sas se passavam diferentemente em seu caso. Perdia os cabelos ins
tantaneamente. Quando não fazia o que correspondia a seus dese
jos, quando obedecia ao desejo dos outros, ou a convenções, ele
sentia o efeito disso no nível dos cabelos.
Conhecia, claro, as expressões "arrancar os cabelos" ou
"ficar de cabelos brancos", mas não é disso que se trata. O que
acontece com ele se situa no nível do próprio cabelo. Consultou
várias enciclopédias e descobriu algo interessante na anatomia do
sistema piloso. Notou que na base de cada fio de cabelo há um mús-
131
culo eretor, cuja contração faz eriçar o cabelo. Em seu caderno,
reproduziu o esquema que mostra como o cabelo se ergue quando
o músculo se contrai. Acrescentou que um adulto possui de cem a
cento e cinquenta mil fios de cabelo e, portanto, a mesma quantida
de de músculos eretores no crânio.
Quando todos esses músculos se contraem, os fios de
cabelo se levantam na cabeça. Era o que ele sentia. Um grande arre
pio percorria a superfície de seu crânio de frente para trás e perdia
seus cabelos. Explicava: "É o que acontecia quando eu nãofazia o que cor
respondia ao que era realmente eu} e ao que era meu caminho de vida n.
Leu que existia a expressão "arrepiar os cabelos", reação
provocada pelo medo, que correspondia exatamente ao que ele sen
tia. Há ainda uma outra expressão por ele anotada: "à tous crins'3•
Por exemplo, um "homme à tous crins" ("homem a todo vapor") é um
homem inteiro. Quando não queria se afastar de seu caminho de
vida, era para ficar inteiro. Inversamente, quando perdia cabelos,
não estava inteiro, isso porque fazia algo que não queria realmente.
Certamente, quando o cabelo se levanta, ele sai ligeiramen
te de seu lugar, mas não cai. Para que ele caia, é preciso que a ação
se repita. Aqui, voltaram-lhe seus conhecimentos de mecânica. Não
se consegue de uma só vez desatarraxar um parafuso fortemente
apertado. Para conseguir isso é preferível proceder por pequenos
esforços sucessivos com uma chave de fendas. Foi o que aconteceu
no nível do cabelo. A repetição das contrações acaba fazendo com
que caiam. A queda dos cabelos se produz quando os músculos ere
tores são excitados de maneira prolongada.
Ele verificou essa hipótese. Já lhe aconteceu de sentir seus
cabelos se erguerem na cabeça de forma intensa, mas pontual. Em
seguida dessa situação, que durou só um instante, ele não perdeu
cabelo. Por outro lado, em circunstâncias em que se deixara levar
contra sua vontade - como na orquestra -, tivera a sensação de
cabelos eriçados na cabeça durante várias semanas. Essa grande ten
são era dolorosa; à noite, o couro cabeludo lhe queimava e percebia
1 32
que os músculos eretores ficavam paralisados. Então, os cabelos
caíam aos tufos. Desde que decidira abandonar os músicos com os
quais tocava a contragosto, parou de perder cabelos. Não tinha mais
essa sensação de eriçamento no vértice do crânio. Sentia-se nova
mente inteiro.
Esse sujeito sintomatiza o real ao seu modo. Responde ao
terror que experimenta diante do enigma do desejo do Outro, e sua
vontade de gozo, dando corpo a essa angústia. Aparelha-se com um
sistema piloso suportado por cem mil músculos eretores, para loca
lizar, na superfície do crânio, o arrepio que então o invade.
Elaborou assim o complexo do cabelo: com seus cabelos erguidos
sobre a cabeça, é o homem apavorado diante do abismo da foraclu
são da significação fálica. O órgão piloso se ergue, então, como um
ponto de detenção (point d'arrê�, e torna-se o gnomon que lhe desig
na a toda hora o ponto de verdade de seu desejo.
1 33
No final de cinco anos, o quadro inicial se modifica: muito
angustiado, queixa-se de estalos no polegar da mão direita. Diz: "É
como uma mutilação, poderia me conformar se me dissessem que é de nascença ";
e explica todas as suas dificuldades dessa forma: ''É meu dedo que me
angustia", concluindo: "Não posso viver com uma mulhe!j é complexo
demais".
O desencadeamento do sintoma ocorreu da seguinte
maneira: invocando uma dor no joelho, M. recusa, um dia, ter rela
ções sexuais com sua companheira, que exprime sua grande decep
ção; de forma súbita, ele desfere-lhe um violento soco nas costas.
No dia seguinte, sobrevém seu sintoma.
Cinco anos mais tarde, após o rompimento com essa
mulher, o quadro apresenta um aspecto diferente: uma queixa sem
limites satura completamente as sessões. M. lista diferentes tipos de
estalos de seu polegar e enumera sua combinação com certas ações:
cortar a carne, acender um cigarro, lavar-se, assoar-se, pentear-se,
tocar a braguilha, escrever e, principalmente, assinar. Desenvolve,
então, uma prática que só encontra seu limite no esgotamento, quer
se trate, por exemplo, de ascender um isqueiro até que se esvazie de
todo gás ou de preencher páginas inteiras com assinaturas. Uma
sequência se impõe: estalo inaugural profundo e explosivo; sensa
ção intolerável de que o polegar cai no vazio; finalmente, prática de
"verificação" até que os estalos secundários criados pelas flexões
sob a superfície da pele parem. "Vão cortá-lo '� exclama; "mas, e então,
o outro?". Notemos aqui o efeito de bilateralização.
Como pano de fundo, há queixas que dizem respeito a sua
vestimenta fálica: rugas em volta dos olhos, queda de cabelos, cor
pulência, etc. Teme não poder mais seduzir.
Uma série de fenômenos de corpo pôde se construir:
estrabismo divergente no momento de seu primeiro relacionamen
to; dores resistentes no joelho direito que se tornam bilaterais na
véspera de um exame exploratório, o que faz com que ele diga: "é
psicológico '�· rigidez da nuca e das costas. Cada sintoma apoia-se em
1 34
uma "sugestão": fala brutal, tapa ofensivo, pequeno choque. Na clí
nica, uma perfusão de antidepressivos não funciona: "meu braço vai
apodrecer, vai serpreciso amputá-lo ".
Encontra em seus pais explicações para sua tendência em
bater nas mulheres: "Dê o fora!, dizia minha mãe para meu pai; eu repro
duzo isso ". "Bato porque meu pai deveria ter lhe dado um tapa para fazê-la
parar. Ela o rebaixava e ameaçava ir embora". A mãe de M. é apresenta
da como uma personagem autoritária e infiel, que rejeita e depois
quer de volta, como todas essas mulheres das quais ele se separou;
o pai é apresentado como impotente e deprimido: "É a minha vin-
gança, nao quero ser corno manso ".
-
1 35
quando o encontra em uma mulher, o que desmorona quando as
experiências sexuais com ela o confrontam com o insuportável;
nesse momento, a violência predomina. A duração sem preceden
tes de seu último concubinato, seis anos, foi acompanhada de
fenômenos de corpo invasivos e duráveis. A ruptura dessa relação
radicalizou o quadro correlativamente a um empobrecimento de
seu laço social. Sua busca por uma mulher lhe parece desde então
ainda mais destinada ao fracasso, enquanto sua "vestimenta fálica"
se deteriora.
Não há subversão da função de órgão pela função fálica
como no sintoma de conversão histérica. O esquizofrênico tem que
lidar com <l>o; seus fenômenos de corpo, de coloração hipocondría
ca, são acompanhados por uma grande angústia. Ele tenta localizar
o gozo em um órgão, suas práticas de verificação para cifrá-lo não
fazem realmente limite. Ele tenta construir um sintoma.
Atualmente, deve-se temer a automutilação ou o suicídio.
136
Victor, totalmente isolado de seus colegas de classe e
quase mudo em casa, manifestava-se por meio de crises de violên
cia destruidora dirigida aos objetos de seu quarto. Uma recusa obs
tinada em continuar a frequentar a escola acarretou a decisão do
retorno da família para a França, onde retomou a escolaridade.
Seus estudos secundários ocorrem, então, com resultados
bastante bons, contrastando com seu isolamento persistente. Não
fez amigos. Falava pouco em casa e ainda menos no colégio.
Psiquiatras são consultados repetidas vezes. Seus pais se
opõem a que tome remédios. Por volta de quatorze anos e de novo
aos dezoito, queixa-se de ser objeto de zombarias da parte de seus
colegas do colégio.
Repete o terceiro ano do ensino médio, sua escolaridade
tendo sido interrompida repetidas vezes por sua recusa em ir às
aulas. As ideias de perseguição concernindo a seus colegas de colé
gio não parecem ser organizadas em um delírio sistematizado:
pensa que todos zombam dele.
Um tratamento de curta duração é então realizado com
um terapeuta behaviorista que tenta reeducar os distúrbios da mar
cha; depois, começa uma terapia familiar reunindo Victor, seus pais
e sua irmã mais velha. Os sentimentos de perseguição de Victor se
1 37
próximo: refeição feita em comum no restaurante universitário, tro
cas de brincadeiras, exposições orais no anfiteatro, trabalhos em
grupo. Tenta fazer amigos. Trata-se sempre de amigos de seu sexo.
Victor não fala com as garotas e nunca evoca sua existência.
O computador ocupa todo seu lazer. Aparelhagem ade
quada para evitar o uso da fala, a internet lhe permite enviar, ao
outro lado do mundo, mensagens das quais só a comunicação o fas
cina, pois o conteúdo parece lhe ser indiferente.
Evoca muito pouco seus sentimentos, exceto sua raiva em
relação a seu pai, que "se arrasta pela casa em vez deprocurar trabalho} que
amola todo mundo com sua perseguição que é insuportável". De fato, o pai
}
pediu demissão de seu trabalho no momento de um conflito com a
direção geral de sua empresa, durante o qual parece ter se mostra
do muito rígido, tornando a ruptura irremediável. Acredita ser,
desde então, perseguido, vigiado, seguido e até mesmo ameaçado
por capangas dessa empresa. Victor se gaba de lhe dizer tudo o que
pensa e de apoiar sua mãe quando o casal briga. "É um vagabundo n.
O desemprego do pai e suas reações depressivas transformaram o
equilíbrio familiar e o destituíram de sua posição de tirano. Uma
crise, durante as férias no campo, deixa Victor muito impressiona
do: o pai, acreditando que a casa estivesse cercada e a família em
perigo, tentou proibir qualquer saída de casa durante vários dias. '54
perseguição é a doença dafamília} mas eu estou tentando me corrigir}}.
Durante várias semanas, Victor teve, repetidas vezes, aces
sos de raiva durante a refeição no restaurante universitário: não
aceita as brincadeiras dos colegas e derruba alguns objetos.
Uma queixa - teve um problema nas pernas depois de um
longo passeio em família - permite que eu me informe sobre suas
dificuldades para andar. Ele me tranquiliza: seu terapeuta (behavio
rista) o ajudara muito mandando-o fazer exercícios, "voltas em torno
do hospital obrigando-se a dobrar osjoelhos}}. Antes, andava "com as pernas
completamente duras}}. De fato, ele as dobra, nesse momento, muito
ligeiramente.
138
Começou a ficar assim por volta dos quatorze anos;
depois de alguns meses, seu andar suavizara-se, mas no último ano
do colegial ele havia novamente "se tornado muito duro". Fiz com
que observasse que essa dificuldade para andar ocorrera em um
momento em que estava mal; ele concordou: ((Foi quando eu me
sentia perseguido ".
Começou a sessão seguinte declarando: ((Eu andava assim
porque tinha medo que me chamassem de bicha ". Não disse mais nada
sobre isso, exceto que a ideia lhe viera sem que ninguém o tivesse
assim insultado. ((Presto muita atenção quando ando, penso nisso o tempo
todo ". Evocou novamente esse andar nas sessões seguintes, entran
do no consultório com um andar cada vez mais flexível, depois
quase normal, mantendo, contudo, uma certa rigidez do tronco.
Foi na idade em que a puberdade transforma o corpo que
Victor apresentou esse andar de autômato. Podemos supor que, em
resposta às excitações sexuais, no lugar da significação fática - não
permitida pela ausência do enodamento edipiano de sua psicose
infantil, Po -, a rigidez do corpo tentou fazer limite à desagregação
do imaginário, ao abismo de <l>o.
Victor luta contra o empuxo-à-mulher. Teme que o
tomem por homossexual. Por intermédio dessa ereção de todo o
corpo, sustentada por uma atenção estafante, ele se endireita para se
opor à feminização.
O fato de Victor ter podido dizer algumas palavras sobre
essa feminização e que isso tenha bastado para que sua dolorosa
mostração fática cedesse, não significa que a significantização faça
barragem à invasão de gozo; isso significa que, se uma estabilização
provisória tornou-se possível atualmente, foi porque o pai, até
então presente e absoluto demais, foi destituído de sua autoridade
pelo desemprego e pela evidência de seu delírio. É isso que permi
te a Victor ocupar o lugar do único indivíduo cujo espírito é racio
nal e, a esse título, beneficiar a família com seus conselhos pautados
na lógica, situando-se assim mais perto de seu ideal de técnico em
1 39
informática - situação fortalecida pelos estudos que empreende
nessa especialidade. Ele pode, então, renunciar a essa contração
voluntária de seus músculos e ao seu andar "viril", não sendo mais
assolado por invasões do gozo deslocalizado.
140
Vive sozinho. Mantém relações sociais regulares com sua
irmã gêmea e seu cunhado, e sempre se deu bem com essa irmã.
Tem também um irmão dez anos mais velho, com quem tem pou
cas oportunidades de encontro.
Não tem laço afetivo durável com uma mulher. Teve opor
tunidades de encontrar algumas delas e de manter relações sexuais,
mas estas não lhe fazem falta; declara não ter tempo para isso.
Suas outras relações são com colegas, esportistas como
ele, em particular um casal de jovens professores com quem se dá
bem e a quem ele dá conselhos. Pratica dança com eles, e treina para
o esporte com o homem. É muito expansivo e relaciona-se facil
1 41
Muito embora não acredite na origem médica dessas
dores, tem uma teoria precisa no que diz respeito a sua ocorrência.
Tem a ideia muito precisa de que essas dores se desenvolveram por
causa do fracasso de sua "pesquisa". Não está longe de pensar que
são os "sonhos" que perturbam o que ele chama de sua "obra".
Começara, de fato, desde a morte de seu analista junguia
no, a desenvolver o que chama de um treinamento, um método, ou
ainda uma pesquisa. Tal pesquisa veio na sequência de sua "análise".
Trata-se de uma sequência de movimentos que inventou e
que pode fazer a qualquer hora do dia ou da noite - isso pode durar
de uma a duas horas e apresenta, para ele, uma virtude de alivio e
de contenção das dores.
Ora, há algum tempo, essa pesquisa não dá mais resulta
dos e é aí que reaparecem as dores. Retoma então para a análise,
invadido por sonhos que são essencialmente pesadelos ou que com
preendem fantasias de exibição de caráter homossexual.
Retoma a análise com a ideia de encontrar nela o que ele
chama de uma "conversão", isto é, poder produzir aí o equivalente
de suas práticas corporais a partir do saber contido em seus sonhos.
Espera poder fazer com isso a invenção certa, e não duvida de que
eu saberei me manter no lugar que ele me indicará. Comunica-me
qual deve ser a posição do analista e insiste, particularmente, no fato
de querer um analista que não hesite em infringir as regras.
Asseguro-lhe que ele veio ao lugar certo. Tratar-se-ia de um caso de
histeria? Ou de uma psicose tamponada sucessivamente por uma
prática de terapia e depois por uma invenção do sujeito destinada a
localizar o gozo sobre o corpo - apoiando-se sobre o imaginário
desse corpo e em uma simbolização escorada pelo reconhecimento
social do exercício da profissão de professor de ginástica? A segun
da hipótese tem nossa preferência, ainda que esse homem esteja
perfeitamente integrado no tecido social.
142
Notas
*
Relatores: Roger Cassin, Jean-Louis Gault, Pierre-Gilles Guéguen, Bernard
Porcheret e François Sauvagnat.
1 Parte redigida por Jean-Louis Gault.
2 N.R.: RMI (Revenu minimum d'insertion). Trata-se de um benefício oferecido
pelo estado francês às pessoas sem recursos. Foi substituído em 2009 pelo RSA
(Revenu de solidarité active), de caráter mais amplo.
3 N.R.: ao pé da letra "a toda crina", com toda energia, a todo vapor. Podemos
observar ainda a homofonia existente entre "crinl' e o verbo "craindre" (temer).
4 Parte redigida por Bernard Porcheret.
5 Parte redigida por Roger Cassin.
6 Parte redigida por Pierre-Gilles Guéguen.
143
FENÔMENOS CORPORAIS PSICÓTICOS:
AS TRADIÇ Õ ES PSIQUI ÁTRICAS E
SUAS PROBLEMATIZAÇ Õ ES POR LACAN *
145
do a uma indeterminação intolerável - era considerada por um dos
maiores teóricos dos delírios crônicos, Bénédict Motel (1 850),
como o fenômeno elementar psicótico por excelência, que determi
nava secretamente o conjunto dos distúrbios delirantes. Essa con
cepção foi retomada como um dos dois tipos de distúrbios - afeto
de perplexidade ou hipocondria - anteriores ao aparecimento do
delírio de relação para os autores germanófonos, que tentaram deli
mitar a paranoia a partir de mecanismos elementares mínimos - iní
cio dos anos 1 890. Freud a evoca repetidas vezes, principalmente a
propósito de Schreber - "parece-me que a hipocondria tem a
mesma relação com a paranoia que a neurose de angústia tem com
a histeria" -, e Lacan debaterá isso com Macalpine. Essa noção é
ainda completamente familiar a alguns psiquiatras contemporâneos
- nos "pródromos" e nos "vanguardistas" da Escola de Bonn, por
exemplo. Parece razoável colocar os fenômenos corporais descritos
em relação aos efeitos catastróficos da incursão de Um-pai.
146
que falta aos homens", o que Lacan descreveu em 1 9733 como uma
espécie de movimento de retorno: <l>o --+ A Mulher.
Toda uma série de fenômenos pode ser descrita aqui,
fenômenos em relação aos quais o problema é saber, como observa
Lacan:
- se <l>o é o efeito (em primeiro grau), no imaginário, do
apelo vão feito no simbólico à metáfora paterna;
- ou se <l>o é o produto (em segundo grau) da elisão do falo
reduzida à hiância mortífera do estádio do espelho, a fim de resol
vê-la.
Neste último caso, tratar-se-ia (novamente) de uma solu
ção que retomaria a simbolização primordial efetuada pela mãe
(Desejo da Mãe/sujeito).
Deve-se constatar que, longe de conceber o "empuxo-à
mulher" como uma feminização automática, os resultados são
variados, indo do sentimento delirante de ser acusado de homosse
xualidade a um franco "tornar-se mulher" transexualista, passando
por tentativas da ordem de uma supercompensação delirante - caso
de Otto Gross, em que a hipersexualidade "genital" apoia-se na
veneração do culto de Ishtar, e das diversas elaborações "genitais"
de Wilhelm Reich - às vezes bem tamponadas por elaborações do
tipo aparelhamento do corpo.
A segunda eventualidade descrita por Lacan - resolver a
elisão do Nome-do-Pai em posição fálica pelo <l>o - deve também,
em nossa opinião, ser compreendida como uma tentativa de suplên
cia - "a fim de resolvê-la" - centrada na função de um órgão como
"tapa-buraco" da foraclusão.
147
C. Fenômenos corporais esquizofrênicos: R/ /S/ /1 (Real // Simbólico // Imaginário)
148
Pode-se acrescentar que os modos de formação de sinto
mas aqui considerados devem ser distinguidos do sintoma de con
versão freudiano como "condensação", enquanto metáfora, isto é,
operação de imposição de sentido - f (S' /S) S = S (+)s - operada
pelo significante, subentendida por uma subtração de gozo ( tp).
-
1 49
ção sobrevêm - por meio de sonhos - e temperam as entrevistas.
Quanto a Victor, o enrijecido, ele consegue fazer com que seu sin
toma de rigidez ceda frente à oferta da palavra, seja colocando-se
sob o significante ideal da "conduta sensata", seja descompletando
o pai gozador.
1 50
Notas
*
Parte redigida por François Sauvagnat.
1 DEFFIEUX, J.-P. "La conversion d'un siecle à l'autre". In: La Causefreudienne,
n.38. Revue de psychanalyse. Paris: École de la Cause freudienne, p.27.
2 FREUD, S. (1 91 1) "O Caso Schreber". In: Obras Completas, v.10, São Paulo:
Companhia das Letras, 201 0, p.13.
3 LACAN, ]. (1 973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.467.
4 A versão muito deficitária que Henri Ey dá disso ("hebefreno-catatonia") não é,
de forma alguma, objeto de um consenso.
5 LANDAUER, K. "Spontanheilung einer Katatonie", Int. Zj Ps., 1 926.
6 MILLER, J.-A. (1 997-1 998) "Equívocos sobre el Otro". In: Elpartenaire-sínto
ma. Buenos Aires: Paidós, 2008, p.235.
7 Cf. Ornicar?, n.2, p.1 04.
8 FREUD, S. (1 924) "A perda da realidade na Neurose e na Psicose". In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.XIX, Rio de
Janeiro: Imago, 1 976, p.229.
9 Cf. Ornicar?, n.S, p.66.
151
A NEOTRANSFER Ê N C I A
Seção Clínica de Angers*
1 55
I. HIPÓTESE DE LALÍNGUA DA TRANSFERÊNCIA
1 56
- uma coisa muito dela, diria Michel Leiris6 - e encarna "laiíngua"
que Lacan escreve em uma única palavra; por outro lado, a apren
dizagem e a prática da língua Donald pelo par criança-terapeuta
introduzem a necessidade de "lalíngua da transferência" para forjar
o laço social.
Mas, a prática com as psicoses deve, necessariamente, pas
sar pela criação e pela prática de uma lalíngua da transferência?
Mesmo em se tratando de psicoses, nada impede de acre
ditar no inconsciente. Como ressalta Lacan: "É porque há o incons
ciente, isto é, lalíngua, no que é por coabitação com ela que se defi
ne um ser chamado falante, que o significante pode ser chamado a
fazer sinal, a constituir signo. Entendam esse signo como lhes agra
dar, inclusive o thing do inglês, a coisa"7•
Aproximemos esse uso de lalíngua da transferência ao uso
da língua estrangeira, fora de sentido, utilizado por Daniele Rouillon
no caso intitulado "Les bienjaits du hors-sens''6 (Os benefícios do fora
de sentido), do Conciliabule d'Angers. Em resposta à língua das cifras
praticada por seu paciente: "Saint Gobain 60 1 + 0,2; Saint Louis 60 1
+ 2 '� o analista pratica a língua estrangeira: '!.4nd what doyou SC!J now?
_ Wel� I SC!J that white is not black. " Aqui, a prática de lalíngua não pro
voca o riso do paciente, mas certo apaziguamento.
Aproximemos também esse uso de lalíngua da transferên
cia da língua às cegas, utilizada por Gabriel Lombardi em sua notá
vel contribuição intitulada "Cure d'un mutique"9, do mesmo volume.
Diante do silêncio do paciente, entrecortado por um "eu vejo pon
tinhos", o analista pratica, sem o travessão da réplica, a língua às
cegas: 'Decidi, então, falar com ele, eu mesmo, às cegas, (. . ) sem o horizonte
.
de uma resposta".
Em todos esses casos clinicas, vê-se bem que o que moti
va a neotransferência não é o sujeito suposto saber, mas lalíngua
como o que permite a um significante poder fazer signo. E fazer
signo de quê? - fazer signo de algo que está fora do sentido: ono
matopeia, algarismos, traço.
1 57
Afirmaremos, portanto, que é pelo significante enquanto o
que pode fazer signo, e não pelo sentido, que se joga a partida da
neotransferência como vetor do tratamento.
A. O que é lalíngua?
1 58
1 . Un beau gazouillis (Um belo gorjeio)13
1 59
"Lalíngua é o que me permitiu, ainda há pouco, fazer de meu Sz uma
questão e me perguntar - será que é bem deles (d'euxys que se trata
na linguagem?"17 O que Jacques-Alain Miller traduz em 1 974 por:
''A homofonia é o motor da lalíngua"18•
E, de fato, é pela homofonia entre "quack" e "quatro" que
o "quacktro e de:( do terapeuta aparece de surpresa, no caso de
Ophélie, e que lalíngua Donald, lalíngua do som, encontra-se inven
tada como lalíngua da transferência. É uma operação ao modo de
Michel Leirís e, como diz Jacques-Alaín Miller em 1 996, "integral
mente sujeita ao equívoco"19•
160
tido, há significação aos borbotões. O sujeito é identificável. No
campo de lalíngua, antes, portanto, de colocar ordem nos significan
tes, tem-se uma cadeia significante sem efeito de sentido. É o mate
ma SI I s de A fuga do sentido22•
É a experiência que faz o paciente de Daniele Rouillon
quando os números da bolsa se alinham uns ao lado dos outros,
sem efeito de sentido. O sujeito se encontra separado da cadeia sig
nificante, fora da cadeia. Há um saber-fazer com lalíngua, mas não
um saber sobre lalíngua.
2. lalíngua inaugural e o
inconsciente estruturado como uma linguagem
161
C. Qual relação mantém lalíngua com a pulsão?
oc automática
transferência
1 62
1 . A verdade em ato, livre, desencadeada
1 63
de todos os significantes - A barrado -, qualquer um que, ao esca
par do desastre possa vir aí, como uma flecha, tentar ser o signifi
cante do ser do Outro, ou seja, o significante do Outro como obje
to pequeno a."34
A fórmula do insulto que ele propõe pode, então, ser escrita:
s {�}
Enquanto o cap1tao Haddock, como bom neurótico,
busca ainda seu nome de insulto depois da morte de Hergé,
Ophélie, por sua vez, como psicótica, acerta na mosca: seu nome de
insulto está ali desde o início. Desde a primeira sessão, ela cospe um
insulto: "Parece uma lebre!", um nome de animal que produz um equí
voco em lalíngua com o nome próprio do terapeuta, "Lelievre"
["Alebre'l "Não estou contente de ter vindo vê-lo! Com o seu corte de cabelo1
vocêparece uma lebre!".
Ophélie faz sua entrada na cena analítica pelo ódio. Pelo
insulto, ela atinge o kakon de seu ser no Outro.
O ódio "é uma das vias para o ser", explicita Jacques-Alain
Miller. Ele afirma igualmente: "o insulto vem quando não há mais
palavra para dizê-lo, quando não se pode mais raciocinar, e quando
se está sufocado pela cólera"35•
É assim que se poderia ouvir também o "el Doctor esta
cachuso "J6, que fazia rir o paciente de Gabriel Lombardi. Desta
vez, não é de ódio que se trata, mas de ironia. É a função do sem
blante que está aí desnudada: não-tola.
1 64
111. ALGORITMOISl DA TRANSFERÊNCIA
St Sq
s(S1, Sz, ... , Sn)
R) ) ) ) )
1 65
Poder-se-ia aproximar essa estratificação do que Lacan
chama "a unidade da copulação do sujeito com o saber" no
Seminário Mais, ainda: "O S1, esse um, o enxame, significante-mestre,
é o que garante a unidade, a unidade de copulação do sujeito com
o saber"40. Assim, tem-se o esquema:
1 66
Quanto às mensagens interrompidas, como diz Jacques
Alain Miller em A fuga do sentido46, isso funcionaria um pouco como
um Witz: na cadeia significante, uma parte permanece vazia e à
o
Quer se trate do "Eu v�jo pontinhos'� quer se trate do "Saint
Gobain 60 1 + 0,2 " ou do "Quack-quack-quack!", em cada caso, o sen
tido está em suspenso.
Mas, trata-se de neologismos ou de ritornelos?
Lacan observa, de fato, que, assim que essa alta tensão do
significante cai, as alucinações se reduzem a ritornelos ou a ladai
nhas, vazias de significação.
Jacques-Alain Miller faz dessas ladainhas uma espécie de
círculo sobre si mesmo do significante, sem o lastro do significado.
O que pode se escrever assim:
2. A solidão semântica
1 67
Seelen, as almas, e Seen, os lagos onde as almas permaneceram algum
tempo.
No caso de Ophélie, é porque o terapeuta e a criança zom
bam do significado que a língua Donald pode ser inventada como
lalíngua da transferência.
Uma vez desprovido do significado, o significante funcio
na sozinho, voltando-se sobre si mesmo em círculos, mas como sig
nificante Um, envelopando toda a cadeia significante e fazendo
apelo ao efeito de sentido apenas de forma alusiva, sem intenção de
significação.
Obtém-se, assim, a fórmula de Jacques-Alain Miller48:
S // s oo
1 68
Fazer essa distinção é também fazer a distinção entre
inconsciente e linguagem. A linguagem seria apenas uma hipótese
ou uma suposição de saber sobre lalíngua: ''A linguagem, de come
ço, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernente
mente à função de lalíngua"51• Enquanto o inconsciente é o testemu
nho de um saber-fazer com lalíngua que escapa ao ser falante.
Nos três casos clínicos tomados como exemplos, os de
Gabriel Lombardi, de Daniele Rouillon e de Jean Lelievre, o tera
peuta testemunha a cada vez de um saber-fazer com lalíngua, que, ao
mesmo tempo, lhe escapa. Os três apostam, portanto, nos efeitos de
lalíngua, isto é, sobre um saber já-posto, mas que vai bem além do
que pode ser enunciado.
Poder-se-ia mesmo dizer, nos três casos, que o terapeuta
se comporta como o rato no labirinto52 de Lacan: faz signo ao
paciente de sua própria presença como unidade, até mesmo como
unidade-ratoeira, isto é, capaz de aprendizagem de lalíngua.
1 69
C. A transferência e o amor do Outro
a paciente terapeuta
Sz saber-fazer
com lalíngua
1 70
a paciente terapeuta
Sz saber-fazer lalíngua
com lalíngua às cegas
paciente ..1L
Sz ><0
• terapeuta
terapeuta ..1L
Sz
• 0 paciente
2. A erotomania delirante
171
...1L
Sz
172
Contudo, não há ainda diálogo. E Lacan precisa a propó
sito de lalíngua: "Mas lalíngua serve em primeiro lugar ao diálogo?
Como articulei outrora, nada é menos certo"58•
Como fazer limite ao monólogo autista do gozo?
173
mais que ela pedia, e nenhuma outra criança podia mexer neles. A
massa-de-modelar-massa-de-mastigar tornara-se uma coisa só dela.
É passando da massa-de-modelar-massa-de-mastigar à criação
do Donald - lalíngua, também ela mastigada - que Ophélie pode
entrar em um laço social e, portanto, na matriz de um discurso. A
aprendizagem de lalíngua da transferência, como aparelhamento do
gozo, torna-se, então, um verdadeiro artefato para tecer o laço
social.
Como diz Jacques-Alain Miller: ''A única coisa que volta a
colocar ordem nessa semântica absoluta, paralela à solidão do gozo,
é ser tomado em um discurso, isto é, como diz Lacan, em um laço
social"62• Segundo Lacan: "No final das contas, só existe isso, o laço
social. Represento-o com o termo de discurso."63
Para a pequena Ophélie, que ensinava a língua Donald a
seu terapeuta, lalíngua da transferência servia, primeiramente, de
barreira a uma elucubração de saber sobre lalíngua; esta perdeu
pouco a pouco seu veneno, e a criança acabou chamando as coisas
pelos seus nomes.
Da mesma forma, os traços escritos do paciente de
Lombardi, inicialmente ilegíveis, tornam-se pouco � pouco legíveis:
"Outros poemas vêm em seguida, poemas de um amor abstrato,
cada vez mais claramente escritos".
1 74
lalíngua, que utilizará em um Witz: 'Trata-se de uma propaganda na tevê.
Vê-se a imagem da cruz vazia, sem Cristo e sem pregos. Uma voz em off di:r
'�e tivessem usado pregos Goldstein, as coisas seriam diferentes".
Um outro psicótico brincava de charadinhas com o tera
peuta: "você sabe o que dizia a mulher de A/thusser antes de morrer? Ela
dizia: Alto-cê aperta forte demais" (Halte! Tu serres trop for!). Ou ainda:
'Você sabe o que dizia um árabe ao dentista? Ele dizia: Estou cheio do meu
dente! ( 'J'en ai ras ma dent - ramadan/'}65 Você entendeu?"
A presença do analista é essencial, até mesmo decisiva, já
que seu riso decide se o Witz cumpriu sua missão, se a cessão de
gozo ao Outro do laço social funcionou.
175
outro lado, as vozes podem ridicularizar e até mesmo insultar Deus:
"Die Sonne ist eine Uhre".
176
2. Uma ou várias lalínguas da transferência?
177
A. De que psicose se trata?
178
do de caraco1s, como para Bel-Gazou, mas de pequenos outros,
doentes como ela.
Desde as primeiras sessões aparece uma espécie de classi
ficação: os verdadeiros e os falsos de um lado, os bons e os maus
de outro.
Na primeira categoria, os verdadeiros e osfalsos, Ophélie colo
ca sua irmã gêmea, uma "falsa" gêmea, que não é doente: 'Tenho
uma irmãgêmea, mas éfalsa!" _ E você se dá bem com ela? _ Não, ela manda
sempre em mim!': No par especular que forma com sua irmã, m - i(a),
ela está às voltas com uma imagem do outro separada de sua pró
pria imagem, i(a), mas esse par lhe permite também investir o outro
como imagem de si, o mesmo, m. É por isso que ela não poderá
conceber a sua terapia sem a presença de sua irmã: "Quero que minha
irmã venha também! Ah! É mesmo? Ela nunca acredita em mim! O
que isso quer dizer? _ Ela nunca acredita quando digo que ela também preci
sa consultar alguém!". Na ausência da irmã, um colega de classe a
acompanhará até a porta do consultório na sessão seguinte.
Aqui, é o sentido-gozado que é interrogado via a verdade
da filiação: que sentido pode ter, efetivamente, um laço fraterno se
não for sustentado por nenhum Nome-do-Pai? Por meio dessa
categoria do "verdadeiro-falso", construída sobre a imagem, ela
constrói uma espécie de remendo entre imaginário e simbólico
onde se alojam os efeitos de sentido entre o que ela experimenta ser,
m, e uma imagem falsa dela mesma, i(a).
Na segunda categoria dos pequenos outros, os bons e os
maus, Ophélie coloca seu terapeuta entre os maus, os que não têm
as mesmas pernas que ela: 'Você é médico, não quero ver você! _ Não sou
médico. _ É sim! _ Como você sabe? _ Pelas suas pernas, você tem pernas de
médico _ Eu não tenho as mesmas pernas que você? _ Não, você não anda
como eu!".
Aqui, é o gozo do Outro que é interrogado via a realidade
de seu corpo: há os bonzinhos, enfermos como ela, cujo gozo está
subordinado a uma deficiência física, um gozo conhecido, circuns-
179
crito, bordejado pelo imaginário; e há os maus, os saudáveis que não
andam como ela, cujo gozo é estrangeiro, até mesmo ameaçador,
real. Pela categoria do "bom-mau", construída sobre a imagem, ela
fabrica, então, uma espécie de remendo entre imaginário e real.
Ophélie teria, portanto, fabricado um enodamento centra
do na prevalência do imaginário: o imaginário se dobra, articulan
do-se de um lado com o simbólico e, de outro, com o real. Isso
pode ser ilustrado pelo nó borromeano da figura 5 da página 1 69
do Seminário Mais) ainda, colocando o imaginário no centro do nó
como uma orelha dobrada:
@ 0
Por outro lado, simbólico e real não mantêm nenhuma
relação entre eles, a não ser via o imaginário. Aqui, o gozo fálico não
pode se inscrever e a função do semblante é evacuada.
Com efeito, se Ophélie mastiga massa de modelar, por
outro lado ela não "mastiga" suas palavras. Quando o Outro se dis
tancia e a deixa, ela se fecha em um autoerotismo: é então que come
sistematicamente dejetos, cascas, pequenos pedaços de massa de
modelar, babando cada vez mais, sem se preocupar nem um pouco
com as reações das pessoas à sua volta. Quando o Outro se aproxi
ma novamente ou faz intrusão, as injúrias e os golpes são então lan
çados contra o intruso.
No fundo, o problema de Ophélie é ter construído uma
estrutura certamente borromeana baseada, porém, em uma relação
binária. Daí a sua fragilização quanto à intrusão de um terceiro.
Trata-se, portanto, de um nó flutuante, em que o simbólico e o real
podem se recobrir sem, contudo, jamais se articularem um ao outro.
1 80
C. lalíngua Donald como instrumento de forja
181
Vã esperança, provavelmente, visto que lalíngua da transfe
rência tomaria o lugar do semblante. Mas nada nos impede de acre
ditar que, se o analista for suficientemente dócil à aprendizagem de
lalíngua da transferência, a cadeia poderá um dia se fechar por um
Witz, como no caso do paciente de Lombardi.
Se a estrutura do Witz se parece com aquela das mensa
gens interrompidas de Schreber, vê-se, nesse caso, que, na operação
da transferência que articula simbólico e real, o sentido é remetido
ao Outro do laço social via o semblante, ao passo que, para
Schreber, o sentido é remetido ao Outro do delírio via o imaginário.
Terminemos com o que nos inspira a olhadela no
esquema acima: não se vê ali a figura do Mickey, com suas duas
orelhas redondas, substituir as orelhas de uma lebre? Isso não foi
premeditado.
182
Notas
*
Relatora: Fabienne Henry
1 FREUD, S. (1 938) ''A Técnica da Psicanálise". In: Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.XXIII, Rio de Janeiro: Imago, 1 975,
p. 1 99.
2 LACAN, ]. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.589.
3 HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.) (1 977) "Lições sobre a
apresentação de doentes". In: Os casos raros, inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica:
A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998,
p.202.
4 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p.1 97.
5 LELIEVRE, J. "Le cas Ophélie", Déficience intellectuelle légere - Un mode d'être au
monde, Mémoire n.3 da Seção Clínica de Angers, Grammatica, inverno 1997,
Número suplementar de L'Archive n.4.
6 LEIRIS, M. "Biffures", La reg/e dujeu, p.9-21 .
7 LACAN, J. (1972-1 973) "Rodinhas de barbante". In: Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p. 1 8 1 .
8 ROUILLON, D. "Les bienfaits du hors-sens", Le Conciliabule d'Angers, Paris,
Agalma-Le Seuil, Le Paon, 1 997, p.1 63.
9 LOMBARDI, G. "Cure d'un mutique", Le Conciliabule d'Angers, op. cit., p. 1 35.
1 0 MILLER, J.-A. (1 975) "Teoria d'alíngua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55. Dirigido ao congresso da Escola
Freudiana e pronunciado em Roma, esse discurso parece constituir o "Relatório
de Roma" de Miller.
1 1 MILLER, J.-A. "U ou 'i! n'y a pas de méta-langage", Reduction linguarum ad
unam, Leibniz: a língua U, derivada do termo de Haskel B. Curry de "U-langua
ge"- The Language being used.
1 2 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula VII do dia 31/01/1996.
1 3 N.T.: Em francês Un beau gazouliis significa Um belo gorjeio; em dialeto pro
vença!: Uma bela linguagem.
1 4 COLETTE, S.D. "Le curé sur le mur". La maison de Claudine, Livre de poche,
1 922.
1 83
1 5 LACAN, J. (1 973) "O aturdito". In: Outros Esm"tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.492.
1 6 N.E.: Em francês, d'eux evoca, homofonicamente, tanto "deles" (d'eux), quan
to "dois" (deux).
1 7 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
1 8 MILLER, J.-A. (1 975) "Teoria d'alingua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55.
1 9 MILLER J.-A. "La fuite du sens", aula VI do dia 1 7/01 / 1 996.
20 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
2 1 MILLER, J.-A. (1975) "Teoria d'alingua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55.
22 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/ 1 996.
23 MILLER, J.-A. (1983) "Produzir o sujeito?". In: Matemas I. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1 996, p.1 55.
24 N.R.: mantivemos aqui a tradução proposta por Sérgio Laia em "Produzir o
sujeito?" In: Matemas I (cf. MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1 996, p.1 57. Trad. Sérgio Laia).
25 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
26 LACAN, J. (1964) "A pulsão parcial e seu circuito". In: O Seminário, livro 1 1: Os
quatros concet"tosfundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 988,
p. 1 71 .
2 7 MILLER, J.-A. "Clôture", Le Conciliabule d'Angers, p.229.
28 MILLER, J.-A. (1 994-1 995) "O nó da repetição e da pulsão". In: Silet: Ospara
doxos da ptilsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 1 68.
29 MILLER, J.-A. (1 975) "Teoria d'alingua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55.
3 0 FREUD, S. (1 909) "Notas sobre um caso de neurose obsessiva". In: Obra.r
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.X, Rio de
Janeiro: Imago, 1 976, p.208.
3 1 MILLER, J.-A. (1989-1 990) "El deseo dei padre". In: E/ banquete de los analis
tas. Buenos Aires: Paidós, 2000, p. 1 07. N.T.: Em francês, no termo "ira-a-cible",
encontramos as palavras "ira", a letra a (de objeto a e a palavra "cible" ("alvo") .
1 84
Na transposição desse termo para o português - "ir-a-scível", perde-se a referên
cia ao "alvo", embora o sentido de uma direção não deixa de ser aludido por "ir
a . ..".
32 LOMBARDI, G. "Cure d'un mutique", Le conciliabule d'Angers, op. cit., p.1 35.
33 HERGÉ, Albums de Tintin.
34 MILLER, J.-A. (1 989-1 990) "El deseo dei padre". In: E/ banquete de los analis
Buenos Aires: Paidós, 2000, p.107.
tas.
35 Ibid.
36 LOMBARDI, G. "Cure d'un mutique". In: Le conciliabule d'Angers, op. cit., p
1 35.
37 LACAN, J. (1 973) "Proposição de 9 de outubro de 1 967 sobre o psicanalista
da Escola". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.253.
38 LACAN, J. (1972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 96.
39 MILLER, J.-A. "Matrice", Ornicar?, n.4.
40 LACAN, J. (1972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p 1 95.
4 1 Ibid, p.1 96.
42 Ibid, p.45.
43 LACAN, J. (1 9 58) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.545.
44 SCHREBER, D. P. (1 905) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1 984.
45 LACAN, J. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.544.
46 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula XIII do dia 27/03/ 1 996.
47 LACAN, J. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.576.
48 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula XIV do dia 3/04/1996.
49 LACAN, J. (1972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
50 Ibid, p.1 96.
51 Ibid, p.1 89.
1 85
52 Ibid., p. 1 93.
53 Ibid.
54 Ibid.
55 Ibid., p. 1 98.
56 MILLER, J.-A. (1 983) "Produzir o sujeito?". In: Matemas I. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1 996, p.1 55.
57 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 99.
5 8 Ibid, p.1 90.
59 LACAN, J. (1971-1 972) O Seminário, livro 19.... ou pior. Rio de Janeiro: Zahar,
201 2.
60 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/1996.
6 1 Cf.: HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed) (1 997) Os casos raros,
inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1 998, p.1 25.
62 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/ 1 996.
63 LACAN, J. (1 972-1 973) ''Aristóteles e Freud: A Outra Satisfação". In: O
Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p.74.
64 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/1 996.
65 N.R.: A expressão: J'en ai ras ma dent, que significa literalmente "Estou cheio
do meu dente", apresenta homofonia com o termo Ramadan, mês durante o qual
os mulçumanos devem se impor a abstinência (comida, bebida, tabaco, sexo)
entre o nascer e o pôr do sol.
66 LACAN, J. (1 972-1 973) "Letra de uma carta de almor". In: O Seminário, livro
20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p.1 06.
67 N.E.: no original, apparofe, termo criado por Lacan e no qual encontramos uma
referência à fala (paro/e) como aparelho (apparei� de gozo. A tradução aparo/a é
aquela adotada por Vera Ribeiro, Angelina Harari e Marcus André Vieira nos tex
tos de: LACAN, Jacques. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003, p.395 e 602.
68 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 93 (trad. mod.).
1 86
Seção Clínica de Bruxelas*
1 87
muitos, mas também com uma analista em particular. Pode-se ler aí
como o trabalho feito por muitos sustenta a imagem corporal não
investida narcisicamente, mas é na transferência particular que
surge, para essa paciente, a possibilidade de se sustentar a partir de
uma nomeação.
O segundo caso é tipicamente um caso que seria chama
do, por outros, um estado limite. Trata-se, com efeito, de um sujei
to ligado ao Outro por uma suplência que nomeia a sua relação com
o mundo: o tumor, significante assemântico. No decorrer do trata
mento, mas por uma razão independente deste - a cura do tumor -
produz-se um desligamento pela perda dessa suplência. A posição
do analista na transferência encontra-se, então, modificada.
No terceiro caso, trata-se de uma perturbação do humor.
A transferência é o lugar do suporte de sua historização, mas tam
bém de seu invólucro narcísico.
Observemos que, nos três casos, a tônica maior incide, a
cada vez, sobre a elaboração significante. Que esta seja um proces
so de organização do delírio ou, mais simplesmente, de historização
ou, ainda, uma tentativa de nomeação, trata-se sempre de tentar
organizar uma suplência de tipo sintomático, o que é muito diferen
te de querer sustentar ou organizar a personalidade.
Observemos ainda que um desses casos coloca a questão
da transferência múltipla. Isso se produz na instituição. Mas, nem
por isso a posição da transferência no tratamento analítico com um
certo número de sujeitos é menos interessante. Lembremos que um
de nós apresentou em Angers um caso de tratamento realizado
junto a três psicanalistas, paralelamente - essa intervenção foi publi
cada sob um pseudônimo4•
Finalmente, em alguns sujeitos, é o caso do primeiro e do
terceiro dos nossos casos, a manobra da transferência serve de
suporte ao narcisismo abalado ou inexistente do sujeito.
1 88
I. PRIMEIRO CASO
1 89
Levantamos a hipótese de que os golpes são a realização
da figura paterna do gozo, essa dos chutes "na bunda". Para fazer
um pai edipiano que introduz a lei e o desejo, são necessárias duas
figuras paternas: o pai do gozo e o pai proibidor. No caso de Eva,
somente o pai do gozo funciona. No momento em que o eixo ima
ginário que a sustenta é rompido, ali onde o pai proibidor deveria
vir regular o mundo sustentando a lei, há apenas o pai feroz que
surge em seu furor sem limites. Não é de uma identificação com o
pai que se trata, mas de um retorno da ferocidade do pai no real.
Nenhum apelo à lei, portanto, surte efeito nesses momentos, nem a
interdição, a punição ou o diretor da instituição interrompem o pro
cesso; até mesmo ao contrário, sustentam-no e o reforçam. Em sua
última visita ao diretor, que a repreendeu s eriamente, Eva disse à
atendente que a acompanhava durante a advertência: "Esse aí é
louco!", posição eminentemente irônica que mostra claramente a ine
xistência do Outro ao denunciar o semblante. Ela está às voltas
somente com um Outro louco, desregrado, um Outro real, aquele
do gozo.
O que pode vir, então, tamponar isso? Algumas mulheres
da equipe investidas por Eva podem limitar as irrupções de golpes,
muito embora não o consigam sempre. Com elas é um verdadeiro
enrosco físico, um agarramento ao corpo do Outro. Ela se joga nos
braços, se faz envolver e acarinhar. Fora da instituição, anda ao lado
da atendente apoiando-se em seu braço, fingindo cair para ser
levantada. Pede que a vistam e lavem o s eu cabelo no banho. É
encantadora e cooperativa. Eva se sustenta numa figura materna, e
esse enrosco a envelopa, a segura, a constitui. Pode, então, passar
noites tranquilas, desapegar-se do apoio imaginário que encontrava
junto dos outros e evitar o insuportável que a precipitaria nos gol
pes. Mas, mesmo que se conseguisse fortalec er esse agarramento e
o seu consequente apaziguamento, conseguiríamos generalizá-lo em
outros momentos e lugares? Dessa bengala imaginária de que Eva
se serve atualmente para revestir seu corpo e fazê-lo se sustentar,
1 90
podemos esperar fazer suplência? No entanto, parece que contra a
ferocidade do pai a única arma possível é um furor de ternuras.
O lugar que Eva pede para a atendente ocupar é justamen
te esse que vai ajudá-la a se constituir enquanto ser vestido, paliati
vo ao corpo despedaçado, introduzindo um obstáculo ao surgimen
to do gozo desenfreado. Isso possibilita que Eva constitua para si
um novo lugar no mundo que não seja mais aquele do ser de deje
to, que sempre toma golpes dos outros, que é excluída da família ou
do grupo, objeto dejeto do Outro.
O que se relatou até aqui diz respeito a uma posição trans
ferencial que pode ser ocupada por vários atendentes da equipe.
Abordemos agora a especificidade da transferência que
Eva estabeleceu com uma atendente da instituição, que chamare
mos de K., e as condições que nortearam sua instalação.
Primeiro momento: em uma noite de confusão no grupo,
K. toma a decisão de restabelecer a ordem energicamente. Pune
uma criança e depois outra, mas não pune Eva. Toda vez que Eva
se sente visada, K. responde que não está lhe dando uma bronca. K.
a deixa em crise no chão, deitada, chorando e batendo os pés. Volta,
191
Quinto momento: Eva diz, agora, a cada encontro com
K.: "Você é minha fiadora". Fala disso aos outros, atribuindo gran
de importância ao fato. Quando uma criança maltrata K., ela adver
te: "Não toque em minha fiadora". Um enunciado ainda mais sur
preendente foi dito a uma terceira pessoa ao designar K.: "Eu sou
a sua fiadora", enunciado inicialmente taxado de transitivista, mas
do qual, a posteriori, pode-se perguntar se não é muito mais uma ten
tativa de nomeação de sua posição em referência ao Outro. Esse
lugar de fiadora, que não atribui ao outro diretamente uma identifi
cação permitirá, talvez, a abertura suficiente sobre um "x" que
poderia, então, tentar nomear-se, circunscrever-se em uma constru
ção identificatória que viria revestir o objeto e barrar o gozo - não
mais pontualmente, na presença do Outro, mas que se inscreveria e
funcionaria fora dessa presença. Se, apesar da falta de inscrição sim
bólica tão patente nessa criança, a função de fiadora, que ela mesma
solicitou, pôde se inscrever, não é impensável que uma identificação
possa, em compensação, se construir e operar como suplência, e
não mais como bengala imaginária, na falta do simbólico.
O dizer não ao gozo não seria aqui gritar mais forte que o
supereu - figura do gozo paterno - mas proteger, envolver, reves
tir, erguer muralhas de amabilidades contra essa ferocidade.
1 92
introduz uma curiosa distorção na maneira de tratar aquilo que a
surpreende.
O significante assemântico é um significante sozinho.
Poderia ser, por exemplo, para a paciente em questão, a palavra
"tumor", tal como se inscreve em uma série sem fim, onde "tu mor
res (tu meurs), tu mentes (tu mens); eu me minto (je me mens), eu me
mato (je me tue), tu me matas (tu me tues)", só valem por sua materia
lidade sonora como restos não simbolizados da língua materna. O
significante assemântico vale como instrumento de gozo. Vem, por
esse fato, no lugar do que falta no Outro.
Essa moça, de aproximadamente trinta anos de idade, fora
operada de um tumor maligno no cérebro. Os médicos lhe disseram
que era preciso esperar cinco anos para que pudesse se considerar fora
de perigo. Angústias de morte e afetos depressivos levaram-na a con
sultar um psiquiatra, que lhe prescreveu uma psicanálise. Essa pacien
te havia acabado de ler Mars, de Fritz Horn. É a história de um pacien
te acometido por um câncer que o leva à morte, e que tenta, com a
ajuda de sua biografia, delinear as causas psicológicas de sua doença.
Essa mulher enuncia, logo de saída, que espera de uma
psicanálise que esta lhe confirme a origem psicológica de seu tumor,
e que isso a torne imune contra uma recaída. A certeza dessa alega
1 93
do paciente. 'Poder-se-ia pensar quefoipor minha causa, disse ela, porque a
pessoa responsável tem a mesma cor de cabelo que eu, e um nome que se parece
com o meu. É como meu pai. O destino dele também é marcado por uma his
tória de nome. O segundo nome de meu pai é Anastase, que quer dizer imor
tal. Ele era dono de umafunerária. O primeiro nome de meu pai é "Léopold'�·
ele preferia que o chamassem Pol. Paul é o ex-namorado de minha mãe; Léa, é
a ex-namorada de meu pai. Eles se casaram no momento em que ambos esta
vam no luto de uma relação anterior. Pedindo para que o chamassem de Po�
meu pai abandonou Léa. " Essa analisante fazia frequentemente varia
ções dessa ordem, colocando em primeiro lugar o que o sentido
deve à materialidade sonora dos significantes.
Esse episódio antecede um outro acontecimento que
duplica a impressão que ela tem de ser culpada. Um de seus
irmãos havia se suicidado depois de uma briga com ela. Sente-se
responsável por esse suicídio, exatamente como se sentira respon
sável por não ter podido salvar, alguns anos antes, uma de suas
irmãs que acabara igualmente de se suicidar. Descobriu-.se, pouco
tempo depois, que ela tinha um tumor no cérebro, do qual foi
operada com urgência.
Essa mulher irá explorar obstinadamente os determinan
tes simbólicos de seu tumor, ao ponto de descobrir o que se apre
senta a ela como uma certeza. Seu tumor decorre do lugar que sua
mãe lhe deu: ocupar o lugar de um morto. Ela passou muito tempo
a desdobrar essa certeza referindo-a a sua história, a seus sonhos e
aos dizeres de sua mãe. Antes de seu nascimento, sua mãe perdeu
gêmeos dos quais estava grávida. Esse aborto espontâneo teria sido
causado por uma queda da escada provocada por uma criança, ou
por uma bola que um de seus ftlhos teria jogado acidentalmente.
Ela nasceu dez meses mais tarde e recebeu um nome duplo, que
retoma os nomes dos gêmeos. Acredita ter tido, ela mesma, uma
irmã gêmea que teria morrido ao nascer, mas não encontrou traços
disso nos registros de nascimento. Aproxima, finalmente, as cir
cunstâncias de seu nascimento com o que se passara com sua mãe.
1 94
''M.inha mãe me disse que eía mesma fora concebida no caso de que sua irmã
viesse a morrer. Ela era como eu, uma criança reserva".
Estávamos nesse momento de sua análise em um univer
so sem surpresas. Tudo aí já estava determinado. Mas, então, que
estatuto dar a esses cinco anos passados na reconstrução de uma
história? O tumor cerebral e sua recuperação por meio de uma
reconstrução histórica parecem ter-lhe permitido tomar alguma dis
tância em relação a um Outro bastante inquietante, a menos que
essa reconstrução fosse, ela mesma, delirante.
A questão que tudo isso colocou foi de saber se convinha
ou não seguir no sentido dessa construção. Reconstruir a história
equivale a atribuir a cada um o lugar que ele ocupa. Em que lugar
convinha ao psicanalista se colocar, e, sobretudo, em que lugar con
vinha a ele não se colocar? O que regia esse momento dos encon
tros era uma certeza. ''M.inha mãe sabe. Ela não suportava a mentira. Ela
sabe e eu não sei". O tumor não faz enigma para essa analisante.
A paciente se casa depois de alguns anos de análise e dá à
luz a um menino. Sua mãe morre no dia seguinte, depois de ter visto
a fotografia do neto. ''M.inha mãe me deixou seu lugar. É como se eu pen
sasse que ainda não nasci". É nessa época que ela fica sabendo, pelos
médicos, que não corre mais risco de recidiva.
Até esse momento, as coisas iam bem para ela, apesar de
todo o contexto dramático com o qual envolve seu tumor. Casou
se, é mãe de uma criança, renuncia a uma atividade profissional
muito ligada à morte para dedicar-se a um trabalho de tradutora e
documentalista. Inegavelmente, o fato de ter reconstruído sua his
tória em torno de uma certeza, "Ocupo o lugar de um morto ", a apazi
guara. Porém, o nascimento de seu filho, a morte de sua mãe, jun
tamente com o comunicado de sua cura, inauguram um quadro clí
nico completamente diferente. O que acelerou a regressão imaginá
ria? Será a palavra do médico anunciando-lhe, após cinco anos, que
o risco de recidiva estava afastado? Ou será o acontecimento que
une o nascimento de seu filho e a morte de sua mãe?
195
O apoio que ela encontrava no significante "tumor" de
repente lhe falta, revelando, ao mesmo tempo, em quê ele lhe ser
via. Esse tumor tinha, para ela, valor de ponto de basta. Esse tumor
parece ter tido para ela o mesmo estatuto de uma metáfora deliran
te, com a diferença que ela teria se passado no real do corpo. Esse
tumor lhe assegurava um ponto de ancoragem no campo do Outro,
que ela não parou de consolidar fazendo referência à sua história. A
cura do tumor lhe tirou esse ponto de ancoragem. Ela se viu, de
repente, confrontada com um Outro gozador.
Este se apresenta, desde então, sob as mais diversas for
mas. Ouve vozes que a xingam de safada, que lhe dizem "tu men
tes", ou ainda, que deve se matar (se tuer). Sente-se espionada. As
pessoas lhe fazem sinais que não entende e que lhe amedrontam.
Constata que objetos desaparecem de sua casa, ou ainda que a qui
lometragem de seu carro mudou. Tem a impressão de que alguém
está entrando em sua casa ou andando com o seu carro. Encontra
comprimidos em sua casa e teme que um estranho tente fazer de
seu filho de quatro anos um drogado.
A intrusão do Outro é onipresente em seu universo. O que
domina o quadro nesse caso é uma total incompreensão do que lhe
acontece. A perplexidade e também a angústia que acompanham
todos esses fenômenos fazem com que ela pense nisso continua
mente. Essa figura do Outro toma na transferência uma forma
inversa, oferecendo, ao mesmo tempo, ao analista uma estreita, mas
real, margem de manobra: '3'e não acreditarem em mim} eu me mato (je
me tue) J� diz repetidamente. Não acreditar nela equivale, para ela, a
uma condenação à morte. Da letra "tumor" (tumeur) ao significante
"matar" (tuer) se traça toda uma série de signos que só tem sentido
pela proximidade sonora: tu morres (tu meurs), tu mentes (tu mens),
eu me mato (je me tue), tu me matas (tu me tues), etc.
A clinica do desligamento também se manifesta, por
exemplo, nesses sujeitos que não podem terminar uma frase ou que
não conseguem encerrar a sessão. Isso é particularmente patente
1 96
nesta paciente. Os finais de sessão lhe colocam tanta dificuldade
que ela continua falando mesmo depois que o analista se levanta, e
depois na soleira da porta e ainda no corredor. O abandono do
Outro, ou ainda, a perda de um bom uso do ponto de basta, é mar
cado por uma dificuldade e até mesmo uma recusa em concluir.
Jacques-Alain Miller chegou a se perguntar, em Arcachon, se não
podíamos considerar essa dificuldade com o ponto de basta como
um fenômeno elementar, tal qual as alucinações, os neologismos e
a certeza psicótica.
Buscar o que há de mais singular nas pequenas invenções
de um sujeito coloca-nos na via do tratamento que ele já encontrou.
Na presente situação clínica, tratava-se principalmente de levar a
sério uma indicação que ela dava ao analista: '�e não acreditarem em
mim, eu me mato ". Acompanhá-la na via da reconstrução de um
mundo habitável passa por levar em conta seu delírio. O verdadei
ro leitmotiv de sua vida deve ser tomado como um apelo de que exis
tam pequenos outros que levem a sério seu delírio, seus fenômenos
psicóticos, que são a solução que ela encontrou para não morrer. A
posição do psicanalista é, nesse caso, bastante reduzida. De supor
te passivo do saber que ela supunha ao seu tumor, o psicanalista
viu-se reduzido a ter que sustentar a posição de ao-menos-um a
acreditar nela, nem demais nem muito pouco.
Dois tipos de intervenções se deduzem daí, segundo ela se dê
no nível do significante ou no nível do gozo. No nível do significante,
ali onde o psicótico solicita um Outro que sabe, um Outro a partir de
então persecutório, o psicanalista poderia ficar tentado a tomar a des
completude do Outro sobre si. Poderia ficar tentado, como alguns sus
tentaram, a operar sobre a falta no Outro se apresentando, ele mesmo,
como faltoso. O que surge, de imediato, é que tal manobra não pode
ser feita nem pensada senão a partir de um lugar de exceção, de um
lugar onde o Outro não seria, justamente, faltoso. Tomar a falta sobre
si só é possível a partir de um lugar em que o Outro sabe, pois é pre
cisamente isso que é patogênico para o psicótico.
1 97
Se o sujeito suposto saber é patogênico para o sujeito psi
cótico, importa que o analista possa, sobre esse ponto, optar por
uma posição de abstenção. Descompletar o O utro é, em primeiro
lugar, intervir de um lugar onde isso não se sabe. Isso pode tomar
uma forma muito concreta. É, por exemplo, recusar toda mensa
gem de esperança, toda forma de promessa. Prometer a um sujeito
psicótico dias futuros mais felizes pode, eventualmente, precipitá-lo
em uma passagem ao ato para desmenti-lo.
Descompletar o Outro pode ser também introduzir sua
divisão no real. Não se dirigir diretamente ao psicótico pode ser
uma forma concreta de introduzir no real uma falta no Outro5•
Desdobrar o interlocutor ali onde o psicótico situa o Outro de seu
delírio, constitui uma outra maneira de intervir6•
Colette Soler propõe um tipo de intervenção que procede
do que ela chama "orientação do gozo"7• Tratar-se-ia, nesse caso,
por um lado, de introduzir um limite ao gozo quando este se faz
invasivo e destrutivo, e, por outro lado, sustentar o gozo quando
este se abre no sentido de uma realização efetiva do sujeito.
O que quer dizer limitar o gozo? Essa paciente construiu
para si, por meio de seu delírio, um Outro que quer a sua morte. É,
portanto, esse Outro que deve ser destituído. Destituir o Outro do
gozo pode tomar formas muito concretas. Pode tomar a forma de
uma lenta restauração do Outro da alienação a partir da localização
dos signos e das marcas que esse Outro deixou na história do sujei
to. Isso consiste também em sustentar o sujeito nas pequenas inven
ções que ele instaura para se defender desse Outro gozador: assoar
o nariz para não ouvir vozes, substituir o telefone com fio por um
celular, menos propício ao transporte de vozes, ensinar seu filho a
fazer tranças com pedaços de corda que um desconhecido teria
usado para tentar enforcá-lo, delimitar a função dos diferentes
cômodos da casa a partir de um jogo de construção, etc. Uma
forma de destituir o Outro poderia ser, aqui, trazê-lo de volta para
o terreno dos jogos infantis.
1 98
111. TERCEIRO CASO
1 99
A homossexualidade como sintoma forma um ponto de
tensão entre seus ideais (família, ftlhos, mulher, etc.) e sua vida nas
saunas, nos parques e bares em uma busca declarada, mas não assu
mida, de uma relação afetiva estável.
Sua transferência à psicanálise toma um lugar estabiliza
dor. Ele trabalha em sua análise. Uma intervenção de sua analista:
'Venha, faço questão que o trabalho continue", faz com que retome as
consultas: �h! Então eu irei". Ressaltemos que é ele quem conduz
essa análise: "Hqje, será uma análisefreudiana", diz; ou então: "hqje, será
uma análise psicometaftsica ". No entanto, a psicanalista e stá ali e o
enquadre se mantém; este enquadre é flexível, mas não cede a seus
"caprichos". Como ele mesmo diz, ele "não poderá comprar sua psica
nálise como se compra uma cadeira ".
O psiquiatra trata sua psicose maníaco-depressiva com
medicamentos. O paciente considera que é uma doença, como a
diabetes, por exemplo, mas que não o define, não é um "você é
isso". A psicanálise, ao contrário, permite-lhe buscar quem ele é e
como se arranjar com suas tensões.
A psicanalista faz poucas interpretações e propõe, sobre
tudo, uma escuta dessa palavra endereçada. Ela intervém oportuna
mente para esvaziar um cenário como esse que ele elaborara ao
começar seu novo trabalho: �credito que estou me tornando o filho espi
ritual de meupatrão!". Ela fez, então, com que ele observasse que fora
contratado somente para trabalhar.
Esse trabalho de análise é, em parte, a oferta de um supor
te narcísico na busca de um laço social desse paciente.
200
Notas
•
Relator: Alexandre Stevens
1 LAURENT, É. "Limites de la psychose", Lesp�chiatres et la p�chana!Jse al!fourd'hui,
GRAPP, 1 988.
2 LAURENT, É. "Aux limites de la psychose: discussion de trois cas", Les Feuillets
du Courtil, n. l .
3 Ver: ASSOCIATION MUNDIAL D E PSYCHANALYSE (ed.). Les pouvoirs de
Le Seuil, 1 996.
la paro/e,
Z0 1
Antenne Clin(que de Toulouse*
203
''Adificuldade de ser do psicanalista decorre daquilo que ele encontra
como ser do sujeito: a saber, o sintoma.
Que o sintoma seja ser-da-verdade, é nisso que todos consentem, por
sabermos o que quer dizer psicanálise, não importa o que se faça para
embaralhá-la.
Donde vemos o que custa, para o ser-do-saber, reconhecer as for
mas afortunadas daquilo com que ele só se acopla sob o signo do
infortúnio.
Que esse ser-do-saber tenha que se reduzir a ser apenas o complemen
to do sintoma, eis o que o horroriza e aquilo que, ao elidi-lo, ele faz
funcionar no sentido de um adiamento indefinido do estatuto da psi
canálise como científica, entenda-se"'.
204
Pode-se considerar, no caso da neurose, que o psicanalista
que foi complemento do sintoma no início da experiência assim
permaneça ao seu término, uma vez que o sintoma se reduz à sua
armadura?
Parece antes que a noção de sinthoma objeta a qualquer
ideia de complemento - em particular complemento de saber -, e
que a resolução da transferência fecha definitivamente o
sintoma/ sinthoma ao acesso do Outro, estabelecendo uma nova
forma de autismo do gozo, aquele da letra que satura a função do
sintoma: I: (x).
No entanto, isso se coloca diferentemente nos casos de
psicoses, desencadeadas ou não.
É notável que seja em seu seminário sobre Joyce que
Lacan tenha estabelecido mais claramente a função do analista não
mais como "complemento" do sintoma, mas como sinthoma.
Lacan considera que o psicanalista só pode se conceber
como sintoma, ou seja, no final das contas, "uma ajuda da qual, nos
termos do Gênesis, pode-se dizer que é uma reviravolta". Uma revi
ravolta em relação ao sintoma analítico, ao sintoma do analisante
completado pelo sujeito suposto saber. Aí, o analista, como sinto
ma, faz ex-sistir aquilo contra o que o inconsciente do sujeito ana
lisante possa se apoiar. Apoio que Lacan faz jogar com pensar, falan
do de appensamento. Apoia-se contra um significante para pensar. Para
Lacan, o nó borromeano é apoio para o appensamento de quê? Do
furo freudiano, do qual a hipótese do inconsciente toma seu supor
te. Que esse furo - por onde se revela que não há Outro do Outro
- possa fornecer uma ajuda, uma ajuda contra o inconsciente
homossexual, tal é a reviravolta lacaniana do analista-sinthoma.
Essa afirmação, se ela é generalizável a toda psicanálise,
vale mais particularmente para a clínica da psicose, mas com a con
dição de definir topologicamente as psicoses como falta ou dificul
dade de enodamento dos elementos da estrutura - psicoses da
infância -, ou como acidente de desenodamento - psicoses adultas.
205
Parece claro, a partir daí, que a perspectiva borromeana da psicose
exclui a hipótese de uma complementação do sintoma psicótico
pelo ser-de-saber do psicanalista. Para isso há, pelo menos, duas
razões. Por um lado, contrariamente ao sintoma neurótico, o sinto
ma psicótico é menos um ser-de-verdade do que um ser-de-gozo.
De fato, o ser-de-verdade é o outro nome da metáfora do sintoma
na medida em que a metáfora do recalque é constitutiva do campo
da verdade. Se o sintoma neurótico é um ser-de-verdade, é na estri
ta medida em que é um retorno do recalcado e tem a estrutura de
metáfora. Sabe-se que não acontece o mesmo para o sintoma psi
cótico que procede da foraclusão. O que faz retorno no real pode
ser nomeado de outro modo senão como ser-de-gozo?
É, portanto, pela mesma razão que o sintoma psicótico
não se interpreta, que ele não se complementa. Por outro lado, nas
psicoses, trata-se quase sempre de obter um enodamento ali onde
ele tem dificuldade de se efetuar, de evitar um desenodamento ali
onde o sujeito corre um risco ou de ajudar a refazer um nó ali
onde o anterior se desenodou - como nas psicoses adultas desen
cadeadas.
Na neurose, a operação do analista visa obter a correção
do nó que se realiza com a passagem do sintoma ao sinthoma. Na
psicose, porque não há análise - não há deciframento do sintoma,
não há construção da fantasia, não há resolução da transferência,
não há interpretação -, é o próprio analista que é convocado no
lugar do sintoma. De fato, nenhuma elaboração significante, nenhu
ma pacificação do gozo, nenhuma estabilização é suficiente para
fazer passar o sintoma psicótico ao sinthoma. Se, na neurose, o ana
lista satura a função do sujeito suposto saber, não seria o caso de
dizer que, na clínica das psicoses, é a função de sinthoma que ele é
convocado a suportar?
É preciso ressaltar que essa posição do analista-sinthoma
que Lacan define na lição do dia 1 3 de abril de 1 976 não é especifi
camente reservada à análise do sujeito psicótico. No entanto, não
206
podemos senão ficar surpreendidos pelo fato de que sua lógica não
contradiga isso, muito pelo contrário. É como se Lacan tivesse se
servido da psicose, em seus últimos Seminários, para redefinir os
conceitos da psicanálise. Assim, a posição do analista-sinthoma vale
tanto para a neurose quanto para a psicose. Aí, há continuidade; não
da neurose à psicose, mas, antes, continuidade na posição do analis
ta, pois ela é fundada a partir da psicose tomada como modelo das
relações do sujeito com o Outro e com o gozo.
Ali onde Freud só sustenta sua hipótese do inconsciente
supondo o Nome-do-Pai - a pessoa suposta ao recalcamento, o
recalque em pessoa -, Lacan faz do sinthoma uma resposta que vale
como uma ajuda contra o complexo de Édipo. Ajuda contra pela
qual "a psicanálise, por ser bem sucedida, prova que podemos
muito bem prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de nos ser
virmos dele".
Eis aqui o axioma lacaniano que deveria ser colocado à
prova da análise com o psicótico, que é muito mais desprovido do
que o neurótico do Nome-do-Pai. Ao neurótico, pouco importa
servir-se do Nome-do-Pai, pois prescindir dele quase não lhe faz
diferença. Mas o psicótico, como fazer para que ele se sirva disso de
que ele poderia prescindir, se isso não lhe faltasse cruelmente?
Seria necessário, então, que o analista fosse, como sinthoma,
uma ajuda contra o que o impele na direção d'A mulher em seu
encontro com Um-pai, uma ajuda contra seu "sem razão" que lhe
serve de apoio contra o significante do Outro que não existe, S (A).
Dois casos clínicos examinados do ponto de vista da dinâ
mica transferencial nos ensinam que, a partir do momento em que
se considera o final da análise, pode-se concernir um para além do
Édipo.
207
11. "N Ã O SOU MAIS UMA MULHER"
208
separação devido à profissão do pai, que trabalhava no estrangeiro
(en expatrie). A família alugou uma casa de campo de uma proprietá
ria que, ouviu-se dizer, acabara de morrer de um tumor no cérebro,
sendo essa a única sombra no quadro desse verão que poderia ser
idílico. A moça está, portanto, na praia, aproveitando o sol e, de
repente, sente algo indefinível: o mundo lhe parece estranho, e ime
diatamente sente-se estranha a ela mesma. Não fala a ninguém
sobre o episódio do qual leva dois anos para se recuperar sem a
ajuda de ninguém. Diz, então, nunca ter sofrido tanto na vida.
Conclui essa sessão dizendo que tinha claramente a impressão de
que tudo isso era da ordem da loucura e, sobretudo, que sempre
havia pensado em nunca contar isso a um especialista, que poderia
etiquetá-la.
Percebe que essa angústia nunca a abandonou completa
mente, sempre está ali, pronta para surgir, precisamente nos
momentos em que, por conta de sua profissão, é levada a tomar a
palavra em público. Fica, em alguns momentos, à beira do desliga
mento, e teme ser desvelada em uma posição de impostura.
O relato de sua angústia de adolescente marca, portanto,
uma virada no tratamento. A Sra. A. vai desdobrar a partir daí algu
mas das identificações que prevaleceram em seu ambiente familiar,
até chegar a seu irmão mais velho natimorto que teria sido necessá
rio substituir no desejo de sua mãe.
A liberação desse ponto faz com que recue. Por que razão
remoer essas velhas histórias? Viera pela saúde de seu ftlho, ele está
bem agora. Pode ir embora.
Apesar de tudo, ela volta, mas de novo acompanhada de
seu ftlho e por uma razão bastante banal: ninguém podia tomar
conta do garoto naquele dia.
O analista escolhe deixar de lado o garoto e a Sra. A. não
pode mais recuar em relação a falar do segredo de família que pro
cura calar, já há algum tempo, e que diz respeito à vida íntima do
avô paterno que teve o papel de patriarca. Este segredo desvelado
209
sublinha a impostura dessa figura patriarcal e a dificuldade da Sra.
A. em se localizar na questão: o que é uma mulher? Faltou pouco,
nesse dia, para que a presença do garoto impedisse a Sra. A. de che
gar a esse indizível.
A Sra. A. fica aliviada de ter podido colocar uma palavra
sobre essa situação familiar do avô. Mas pouco depois dessa sessão,
ela volta a desaparecer.
Voltará, muito angustiada, seis meses mais tarde. Um
acontecimento de sua vida de mulher acaba de lembrar-lhe a angús
tia sentida frente a sua mãe, que acabara de ser submetida a uma his
terectomia: 'Tiraram-me tudo) não sou mais uma mulher)), dissera ela a
sua ftlha. Ora, a Sra. A. fora ·tomada por essa frase sem compreen
der seu sentido. Lembra-se que após esse episódio tivera o que cha
mam de "crise de nervos"; depois, que uma angústia surgira alguns
dias mais tarde: a impressão súbita de ser masculina. Essa sensação
sinestésica angustiante voltou regularmente, sendo acompanhada
por um sentimento de vergonha. Era preciso esconder isso de qual
quer jeito.
Permaneceu, portanto, sozinha com essa sensação, que
voltava de vez em quando e que desencadeava muita angústia. Hoje,
faz o laço entre essa sensação corporal e a frase de sua mãe que
havia desencadeado sua perplexidade: "Não sou mais uma mulher)� É
como se essa sensação corporal viesse assinalar, em eco com a frase
da mãe, que ela também não era mais uma mulher.
É importante notar que essa angústia desapareceu duran
te toda sua vida conjugal, mas que ressurgiu no momento em que
ficou viúva. A Sra. A. pode agora reconhecer que é disso que se
trata nessa angústia do despertar de todas as manhãs quando seu
novo companheiro passa a noite com ela.
Poder-se-ia, portanto, supor que o casamento conseguiu
manter algum ponto de basta, algum enodamento, devido talvez ao
aspecto muito narcísico desse amor que lhe permitia encontrar no
corpo do outro uma metáfora para fazer calar esse gozo impossível.
210
Nesse amor fusional, ela podia se imaginar sendo o outro masculi
no, sem problemas. Por outro lado, quando ele morre, o luto torna
se particularmente impossível e, no atual momento, pode-se com
preender por quê: ela não só perde seu marido, mas também o que
tinha para ela valor de sintoma, ou seja, o que lhe permitia metafo
rizar esse gozo transexual. Então, são essas sensações no limite da
alucinação que a espreitam ao despertar quando ela tem a quase cer
teza de que esse homem está ali. Sim, ele está realmente ali, mas
nela, como na época de suas angústias adolescentes.
Essas angústias precederam o momento de despersonali
zação que sobreveio no verão do vestibular. É preciso assinalar que
esse momento corresponde a uma degradação da posição social do
pai, revelando uma falha da função paterna.
Por esse fato, pareceria difícil para essa paciente encontrar
a solução do sintoma para remediar a não-relação sexual e inscre
ver, assim, alguma ordem na copulação significante.
A relação dessa paciente com o significante é marcada por
uma espécie de espontaneidade que lhe vale efeitos de surpresa e
sideração, o que poderia fazer dela uma campeã da associação livre,
mas que revela, antes, que em certos momentos ela está às voltas
com o deslizamento metonímico. Isso a angustia e impõe rupturas
no laço analítico.
Na rubrica das relações dessa paciente com o significante,
é preciso situar a impressão angustiante de masculinidade. O efeito
sentido em seu corpo pela via sinestésica - e não pela via sintomá
tica - em resposta à frase do Outro materno, "Não sou mais uma
mulher, tiraram-me tudo '� indica que ela está presa na rede do que ela
entende como uma injunção, o que coloca seu corpo em uma com
pleta dependência em relação ao Outro; e é nessa submissão, e não
fora dela, que ela goza. O sujeito se encontra reduzido ao ser de seu
corpo, o que está na estrutura da experiência de despersonalização.
No entanto, vemos que essa paciente tem o recurso de
poder escapar por alguns momentos dessa captura. Durante a vida
211
de seu marido, parece que não teve episódios angustiantes. Mas,
desde seu falecimento, as angústias reapareceram. É preciso dizer
que o marido morto é realmente uma figura emblemática do mes
tre hegeliano. Ora, vê-se bem que é então seu filho que vai atraí-la
para fora dessa relação, na medida em que ele se obstina a não res
ponder à sua demanda, encarnando, assim, o ponto de gozo à deriva.
Por seu sintoma, ele serve de sintoma a sua mãe.
O fato de privar essa mãe de seu sintoma poderia ter feito
com que vacilasse e revelasse sua estrutura; em casos semelhantes,
isso pode sempre acontecer. Ora, isso não acontece aqui. Parece
que a transferência lhe permite encontrar o apoio que lhe falta.
Porém, essa relação transferencial parece constituir tam
bém uma ameaça. E por isso, espontaneamente, no momento do
surgimento do que nós estaríamos tentados a chamar de um fenô
meno elementar, ela escolhera calar-se por temor de uma resposta
do Outro. Nessa época, evitara cuidadosamente ir buscar do lado
do Outro um "ser-de-saber" para completar seu "ser-de-verdade".
212
ção "flutuante" de suas dificuldades. Oscila, de fato, entre dizeres
em que surgem interrogações angustiadas sobre as perturbações
que o afetam e comentários irônicos e agressivos sobre o enquadre
proposto pelo analista ou sobre as suas intervenções.
Sofre, diz ele, por não poder sair de casa, por medo de
enfrentar o olhar dos outros. Quando está em um anfiteatro, é obri
gado a se posicionar de uma maneira tal que os outros estudantes
fiquem atrás de si e que ele fique perto de uma saída para poder ir
embora caso sinta um mal-estar. Se o olhar dos outros se coloca
sobre ele, é invadido por sensações corporais desagradáveis, que ele
chama de "descargas", uma espécie de formigamento que enrubes
ce e invade seu rosto. Pode, também, sentir suas mãos dormentes,
como se não fizessem mais parte de seu corpo. Não suporta essa
sensação de desprendimento de seu corpo. Sente se predispor men
talmente a essas descargas, enrijecendo seu corpo, mas é impotente
para controlá-las, apesar dos estratagemas que emprega: se fixa em
uma ideia, ou olha para seus interlocutores nos olhos para lhes fazer
abaixar o olhar. Esses fenômenos o invadem, e ele mobiliza uma tal
energia para neutralizá-los que não consegue mais se concentrar em
seu trabalho, desabando em prantos, com a vontade de se aniquilar
para fazer com que o sofrimento pare.
Foi em seu primeiro ano de faculdade que sentiu pela pri
meira vez essas descargas, no exato momento em que devia fazer
uma demonstração no quadro negro. Acreditava-se "inspecionado"
pelo olhar inquisidor de seus colegas e de seus professores. Ele, que
fora sempre um aluno brilhante, no momento mesmo em que lhe
pedem para se mostrar à altura disso, falha, é invadido por esses
fenômenos "sinestésicos" de desprendimento de seu corpo.
Interpreta esse episódio e seus fracassos como o cumprimento da
predição de uma professora em cuja casa sua mãe era empregada, e
que lhe dissera que "o êxito escolar de seu fllho não duraria!". As
afirmações dessa mulher, desprezando-o socialmente e desvalori
zando, assim, seu êxito escolar, eram comprovadas - acreditava com
213
convicção - por seus fracassos posteriores, como se ele estivesse se
colocando, em seguida, em posição de obedecer a essa injunção de
gozo de um Outro arrogante. Na certeza dos efeitos dessa predição
ele não estaria atribuindo ao Outro uma autodifamação?
Em um escrito que endereçará ao analista, tenta apreender
esses fenômenos de descargas. Elas ocorrem em um contexto de
luta contra suas ideias megalomaníacas, para escapar do olhar de
desprezo de seus colegas. Suas "descargas" são, nesse momento,
como manifestações de invasão de um gozo em ser o objeto do
olhar de desprezo dos outros.
Da mesma maneira com que se queixa das "descargas"
que o submergem, e das tensões que elas provocam nos laços
sociais, diz também ser invadido, às vezes, por acessos aniquilado
res de angústia, e isso desde que efetuou o serviço militar com os
caçadores alpinos. Desabava quando tinha que ser submetido a
provas físicas (tais como ser enterrado na neve) . Ficava petrifica
do, pensava estar morrendo. Não pôde pedir uma dispensa, por
causa de seus fracassos nos exames, mas, também, porque em sua
família "não se pode livrar-se do serviço militar" - seu tio-avô
"era coronel".
O que o preocupa atualmente é a solidão amorosa, não
consegue encontrar mulheres que correspondam a seu ideal femini
no, mas, sobretudo, teve experiências sexuais desastrosas que teme
ver se renovarem quando encontra uma mulher. É, de fato, tomado
por uma angústia-pânico no momento de penetrar uma mulher. Só
de pensar que seu sexo poderia estar nas mãos de uma mulher, diz
ele, desaba, e não pode suportar a relação sexual.
Existe, com certeza, no Sr. D., um apelo à mediação de um
saber para explicar a si próprio a significação das perturbações que
o afetam e o sentimento de sua própria estranheza. Mas é o estatu
to desse saber esperado que faz problema, haja visto as reações sus
citadas pelas intervenções do analista. Estas visavam relançar suas
falas, mas eram interpretadas tão logo emitidas e ele acrescentava aí
214
novos significantes que atribuía ao analista deformando, assim, seus
dizeres, a ponto de torná-los incompreensíveis. Frente ao "é o que
você acredita!", dito pelo analista, mostrava-se desestabilizado, mas
continuava a lhe atribuir dizeres e os seus próprios pensamentos. A
voz ouvida era o eco de seus pensamentos interiores. Ele instituía o
analista como parceiro de suas interpretações delirantes. Protegia-se
também do surgimento de um dizer inédito ou da confrontação
com o vazio de seu silêncio repassando o texto de suas sessões
antes de vir. Foi o que admitiu, com muita agressividade, quando o
analista o questionou a respeito de um pedido de mudança de horá
rio de uma das sessões, interrogando-o sobre "o que elefazia que não
podia vir direto ". Ele ouviu ainda: "Como um adulto!". Atribuíra uma
resposta à questão, interpretando em sua alucinação auditiva que o
analista o tratava como uma criança. A voz sonorizava assim o olhar
infantilizante que ele imaginava voltado sobre ele.
Nesse período, inunda o analista com seus escritos e lhe
traz uma fita cassete na qual gravou sua voz. Em seus escritos, tenta
apreender, localizar o gozo de suas descargas. O fato de trazer essa
fita faz do analista o depositário desse objeto-voz que o estorva. Ele
não mais lhe atribui sua voz na alucinação auditiva: ele lhe dá o obje
to-voz! Tenta assim despregar, exteriorizar entre-dois, esse objeto
voz, em um lugar terceiro que a transferência o permitiu instituir.
Ao devolver-lhe a fita algumas semanas depois sem tê-la
ouvido, o analista lhe faz saber que o que mais importava era o que
ele podia dizer durante as suas sessões. O que motivou esse ato foi
o desejo de não dar consistência ao "tudo faz sentido " que o paciente
esperava do Outro do "saber absoluto" da psicanálise. Se ele se
mostrou espantado com isso, houve, a partir de então, uma mudan
ça em sua implicação na transferência e um apaziguamento de sua
interpretação delirante.
Vai trazer uma série de situações em torno de sua interro
gação sobre sua identidade sexual: "Será que sou um homem normal?",
perguntava ele.
215
"Quando vim pela primeira ve� vi seu nomejunto ao de sua colega;
pensei que vocês fossem um casai homossexua4 e que vocês iam fazer com que
eu me tornasse homossexual!" De fato, no decorrer de uma conferência
do antropólogo Coppens sobre a origem do homo sapiens, ele o ouviu
dizer para si: "É uma mulher!" Foi então tomado por um tal mal
estar, que teve que se retirar; tais palavras o atingiram como se fos
sem dirigidas a ele. Já sentira essa alusão a sua identidade sexual
durante uma situação de inspeção; pensou que o inspetor queria
"inspecionar seu sexo " e aí, também, foi tomado por um tal mal-estar
que acabou abandonando o anfiteatro. É do Outro que ele ouve a
resposta ao que ele é como ser sexuado, mas isso desencadeia sua
angústia, como se não pudesse sustentar essa questão.
Também encontra-se confrontado a uma parasitagem do
significante sexual masculino, que se impõe a ele toda vez que lê a
sigla informática Bit ("bite" = pênis), em um texto, ou quando o pro
fessor de física desenha no quadro a rede magnética cujo contorno
forma os órgãos genitais. Ele não pode brincar com isso, como
fazem seus colegas, ou se contentar em pensar no valor metafórico
desses signos.
O que surge com essa parasitagem é o "real" do sexo,
como se o significante sexual não estivesse naquele momento meta
forizado.
Vai, repetidas vezes, evocar uma lembrança infantil trau
mática que o marcou. Aos seis anos de idade submeteu-se a uma
operação por causa de uma fimose. Sua mãe não soube limpar seu
sexo corretamente, o que se reproduziu em seguida com seu irmão
mais novo, também operado. Depois da cirurgia, acordou com o
sexo ensanguentado e não entendeu o que estava acontecendo;
acreditou que não tinha mais sexo, que se tornara uma menina.
Ainda revê a mãe refazendo os curativos, em cima da mesa da cozi
nha, ali onde, habitualmente, ela pelava os coelhos. Ela convidava
sua avó e suas tias para verem esse estranho espetáculo, diz ele, com
emoção. Ele se lembra de seus gritos de dor.
216
Há uma fixação de gozo do Outro sobre seu pênis reduzi
do à carne. É, aliás, nessa sessão que ele vai falar de sua angústia
pânico de ter que colocar seu sexo nas mãos das mulheres.
Irá então elaborar, durante várias sessões, essa versão trau
mática de uma cena de castração vivida como real. A subtração de
seu pênis - caído nas mãos de sua mãe - serve para dar um sentido
à elisão do falo, pelo fato de a castração simbólica não ter podido
operar: o desejo da mãe não pôde ser localizado como suficiente
mente orientado para o pai.
Uma vez que o malogro da metáfora paterna não permitiu
a introdução da significação fálica, o significante fálico não pôde
operar.
Apoiando-se na presença "real" do analista, na transferên
cia, ele vai organizar suas experiências de despedaçamento, tentan
do encontrar para elas um sentido unificador. Diante dessa presen
ça tão "reduzida" quanto possível, diante das manifestações tão ver
tiginosas quanto reversíveis de seu amor de transferência se trans
formando em ódio, o Senhor D. pôde trazer o caráter destrutivo de
seu ódio pelas mulheres, esse que ele provocava na transferência,
posicionando-se assim como objeto do gozo do Outro: "Faço tudo
para provocar sua cólera, esse ódio que tenho de você me impede de trabalhar
aqui".
Algumas sessões mais tarde, diz ter pensado estar nesse
lugar da mulher, gozando de ser uma mulher penetrada por uma
outra mulher, com um sexo masculino postiço. Acrescenta que não
gostaria de ter prazer em ser uma mulher penetrada por um homem.
Quando se imaginou nesse lugar, teve medo de ser transformado,
sentiu em seus membros alguma coisa como se eles se reduzissem a
uma linha. Será uma defesa contra o "empuxo-à-mulher"?
Esperava que a resposta que construiu para si na transfe
rência, sobre sua identidade sexual, lhe fosse fornecida pelo analis
ta e se impacientava com a retenção desse saber quando pergunta
va se era um homem normal ou um homossexual.
217
Pode-se também pensar que a parasitagem do "tudo faz
sentido sexual", que perturba sua visão dos símbolos fálicos ou sua
leitura das siglas informáticas, é o retorno no real do significante de
seu sexo que foi foracluído do simbólico. É um dos efeitos da fora
clusão do Nome-do-Pai.
Na sessão seguinte, anuncia que teve um sonho. "Sonhei que
estava em cima de uma ponte como aquela em que se passa para vir
aqui; estava com um amigo, com quem tinha brincadeiras sexuais
quando criança. Queria apresentá-lo para você, você estava com a sua
amiga do outro lado. A ponte se fendia, eu mergulhava, voava e che
gava à outra margem. Na fenda, havia um homenzinho dourado, pare
cendo um Buda, que fazia rodar um CD ROM. Não conseguia ler o
que ele tinha na memória, não conseguia inseri-lo no computador".
Interpreta-o como um signo de seu desejo de suspender
sua análise: ''A fenda da ponte indica que não vale mais a pena vir.
Penso que está na hora, para mim, de escolher entre a psicanálise e
o budismo, já que você não quer dizer o que você sabe sobre mim
e não me guia suficientemente".
Ele voltará quando conseguir decidir se quer ou não se
engajar nesse trabalho analítico. Esse desejo de deixar a análise
ocorreu em um momento crucial e delicado, momento em que se
queixava de estar desestabilizado pelo fato de o analista se furtar a
ocupar o lugar do saber absoluto do Outro que ele viera procurar
na teoria psicanalítica e porque ele não podia fazer disso o que pre
tendia. Ao mesmo tempo, a presença do analista na transferência o
levava a construir para si esboços de respostas ao vazio enigmático
com o qual o confrontavam esses fenômenos de descargas e essa
parasitagem do sentido sexual. Teria que, de fato, fazer uma esco
lha. Mas poderia fazê-la diante da necessidade de fazer existir um
Outro do saber em relação ao gozo ao qual ele se consagrava?
O cartão postal recebido seis meses depois desta interrup
ção, em que agradecia pelo prazer que tinha na companhia das mulhe
res, mostra que o analista ocupa ainda esse lugar de endereçamento.
218
IV. O PSICANAliSTA COMO AJUDA·CONTRA
219
escravo suportar sua postçao, pois ela lhe torna sustentável uma
posição de sujeito à distância de seu corpo como metáfora do gozo
do Outro.
Esse gozo à deriva faz pensar nessa parte de gozo que exce
de ao gozo fálico, isto é, no gozo feminino. A lógica da experiência
clínica nos conduz muito naturalmente a pensar que essa parte de
gozo que escapa ao ideal do todo fálico pode, em certos casos, fun
cionar como um limite e notadamente oferecer um refúgio ao ser
do sujeito que não tem como argumentar quanto à função fálica.
O que coloca o corpo à distância do gozo do Outro é o
sujeito - muito embora só haja gozo do corpo, como Lacan ressal
ta nas últimas lições de seu Seminário sobre A Lógica dafantasia. "O
sujeito dilacera o corpo do gozo", diz Lacan no dia 30 de maio de
1 967. Quando Lacan evoca essa posição do sujeito em relação ao
seu corpo e ao seu gozo, recorre à metáfora hegeliana do mestre e
do escravo.
Para Lacan, o escravo aliena seu corpo no corpo do mes
tre, ou seja, do Outro, na medida em que seu corpo serve de metá
fora de gozo para o mestre; mas não todo o seu corpo entra nessa
metáfora, há alguma coisa que fica à margem. É essa "alguma coisa"
que permite ao escravo, como sujeito, não se confundir com a posi
ção de objeto de seu corpo que metaforiza o gozo do mestre. Como
sujeito, o escravo goza, mas, à margem da alienação; há para ele um
gozo "à deriva"\ esse de um objeto que escapa ao corpo do Outro.
É nisso que ele é fora-do-corpo.
220
O gozo do escravo não é de se fazer o objeto do gozo do
mestre, o gozo do escravo está à deriva e é o que o salva do aprisio
namento na fantasia do mestre hegeliano.
Poder-se-ia, sem dúvida, considerar a estrutura das rela
ções do sujeito psicótico com o Outro segundo o modelo das rela
ções do escravo totalmente dependente do mestre hegeliano\ sem
possibilidade de gozo à deriva, um escravo, portanto, cujo gozo se
igualaria ao gozo do Outro que devastaria seu corpo.
Dessa forma, portanto, chegamos à conclusão de que o
analista-sintoma preenche sua função abrigando o gozo à deriva e
nisso ele garante a função não-todo (pas tout). É inegável, na perspec
tiva da clínica que examinamos, que essa função faz limite. É esse
ponto que desenvolveremos agora.
Isso nos remeteu a uma leitura minuciosa das fórmulas da
sexuação. Essas fórmulas aparecem pela primeira vez em 1 97 1 ;
explicitam-se, em 1 972, no Seminário ... oupior, são desenvolvidas no
Seminário Mais, ainda; encontramos um comentário muito preciso
desse famoso não-todo (pas tout) em "O aturdito ". Finalmente, encon
tramos em 'Televisão " observações precisas sobre a posição femini
na em relação à loucura e ao não-todo (pas tout)
Na leitura desses textos, torna-se evidente que essas fór
mulas da sexuação não devem ser manejadas como ferramentas
matemáticas, pois Lacan introduz novos quantificadores que a
matemática não conhece. É, portanto, vão, tentar se situar aí com a
lógica matemática. Além do mais, Lacan joga muito frequentemen
te com o equívoco e, assim, os enunciados se entrechocam.
Seja como for, há um certo número de enunciados que
vão no sentido de descrever o primeiro quantificador da sexualida
de feminina como: não há x que diga não à função fálica, ou seja,
não há A Mulher. Mas esse enunciado é imediatamente correlacio
nado ao fato do não-todo, ou seja, ao segundo quantificador, pois,
para Lacan, é a mesma coisa dizer que não há A Mulher e dizer que
a mulher é não-toda. Os dois quantificadores estão, portanto, ligados.
221
É apenas em "O aturdito" que Lacan considera que os dois quanti
ficadores possam funcionar separadamente, mas, então, é para
designar muito explicitamente o empuxo-à-mulher na psicose:
222
inconsciente, ele não sabe. Ele não sabe que o escravo representa o
objeto de seu desejo e é o que torna sustentável a posição do escra
vo. Não tudo da realidade desse objeto é apreensível pelo Outro
que é o lugar onde se aliena o saber do objeto; é o que torna a alie
nação suportável. "Por causa do inconsciente podemos ser esse
objeto"8•
Ora, podemos dizer que o que caracteriza o Outro do psi
cótico é que ele não é inconsciente, mas, antes, onisciente. A mano
bra do analista na transferência deve, portanto, opor-se a essa ins
tância e visar à regulação do espaço do "não-sábio-de-tudo"9•
Essa ideia de manejar o não-todo para se opor à devasta
ção do supereu psicótico está implicitamente no centro da tese que
Lacan desenvolve em seu Seminário O sinthoma a propósito do ana
lista-sinthoma. Ele enuncia aí que "não se pode conceber o psicana
lista de outra forma senão como um sinthoma". Acrescenta que é
preciso concebê-lo, no final das contas, como "uma ajuda da qual
podemos dizer que é uma inversão dos termos do Gênesis"10• Lacan
responde aí a uma questão que fazia alusão a uma nova tradução do
Gênesis que enuncia que "Deus criou para o homem uma ajuda
contra ele". Então, trata-se de ir contra o quê se não for à consis
tência do Outro? "Evidentemente", a tendência do sujeito é de sub
jetivar esse ponto, a fim, não somente de garantir a consistência do
Outro, mas, também, de se servir de seus significantes para tentar
reduzir aí o seu ser. Donde a aproximação operada por Lacan entre
esse ponto, A mulher, Deus ... e o Outro do Outro. O analista-sintho
ma opera uma inversão propondo o não-todo no lugar do Outro do
Outro, "posto que, assim como o Outro do Outro, é o que acabo
por definir há um instante como esse furinho aí. A hipótese do
inconsciente tem seu suporte justamente na medida em que esse
furinho possa, por si só, fornecer uma ajuda"11•
223
Notas
224
cante. Mas, se há significante, então, o sujeito se reduz a termo a esse gozo irre
dutível que ele deve ao fato de portar o significante no real - identificação com
o sintoma. Inscrever um sujeito em um discurso - sujeito, aqui, psicótico já que
fora do discurso - implica em dividi-lo como falante desse objeto que dá teste
munho de sua irredutibilidade ao saber do Outro.
6 LACAN, ]. (1 973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.466.
7 A construção "pas folles-du-touf' admite também os sentidos de "nada têm de
loucas" e de "não loucas pelo todo". Cf. nota 1 2 p.538 de Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003.
8 LACAN, ]. (1 962-1 963) "Angústia, signo do desejo". In: O Seminário, livro 10: a
angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p.35.
9 LACAN, ]. (1 975) Le savoir et la vérité ". In: Le Seminaire, livre 20: Encore, p.90:
"Au niveau de ce pas-tout, il n'y a que l'Autre à ne pas savoir. C'est l'Autre qui fait
le pas-tout, justement en ce qu'il est la part du pas-savant-du-tout dans ce pas
tout". N.R.: Na tradução brasileira de. "O saber e a verdade", temos: "No nível
desse não-todo, há somente o Outro a não saber. É o Outro que faz o não-todo,
justamente por ele ser a parte que não-sabe-de-tudo neste não-todo"(LACAN, ].
(1972-1 973). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1 982, p. 1 33.
1 0 LACAN, ]. (1 975-1 976) "Do inconsciente ao real". In: O Seminário, livro 23: o
sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p.13 1
1 1 lbid.
225
AUTORES DOS TEXTOS DA PRIMEIRA PARTE
227
Seçio Clínica de Bordeaux
Relatores: Carole Dewambrechies-La Sagna e Jean-Pierre Deffieux.
Marie-Françoise Bahans, Florence Bonichon, Annick Boucheny, Geneviêve Bouquier,
Marie-Ciaire Bouter, Anne-Marie Brossier, Chantal Cabot, Camille Cambron,
Claudine Casanova, Marianne Caussêque-Portillo, lsabelle Cordier, Mireille Dargelas,
Rigo De Bortoli, Jean-Pierre Deffieux, Marguerite Derrien,
Carole Dewambrechies-La Sagna, Viviane Durand, Michêle Fourton, Paul Gil,
Anne-Marie Girardeau, Dominique Jammet, Françoise Kovache-Serrec, Philippe Lacadée,
Catherine Lacanze-Paule, É veline Lachaux, Philippe La Sagna, É dith Magnin
Alain Merlet, Albert N'Guyen, Ghislaine Panetta, Marie-France Prémon, Daniel Roy,
Daniel Sallenave, Hélêne Seyrat, Annie Smadja, Catherine Vacher.
228
Seção CUnica de Bruxelas
RtJitJtor: Alexandre Stevens.
léonce Boigelot, Katty langelez, Anne lysy-Stevens, Pierre M alengreau,
Alexandre Stevens, Guy de Villers Grand-Champs, Alfredo Zenoni.
229
SEG U N DA PARTE
A CONVEN ÇÃO
ABERTURA
1 . TR ÍPTICO
235
mas seu mento é pequeno. Os verdadeiros organizadores desse
encontro, aqueles graças aos quais vocês são tão numerosos, são de
Bordeaux e de Angers. É, com efeito, a Fabienne Henry e Michel
Jolibois a quem devemos o volume preparatório, no qual sei que
muitos mergulharam com ardor. Foram eles que, com seu reconhe
cido savoirfaire, nos trouxeram essa ferramenta indispensável aos
nossos trabalhos. E é, sobretudo, a Carole Dewambrechies-La
Sagna e a Jean-Pierre Deffieux a quem devemos a realização do
encontro. Eis, portanto, nossos verdadeiros anfitriões.
Esse primeiro esclarecimento requer um segundo. Nossa
Convenção de hoje é a terceira parte de um tríptico. Tudo começou
em Angers, com o Conciliábulo. Em seguida, tivemos a
Conversação de Arcachon. Finalmente, desde que muitos colegas
viram com bons olhos a aliança entre um trabalho decidido e o sol
da Côte d'Azur, a escolha por Antibes se confirmou. Se me mostrei,
na época de Arcachon, decidido a que as coisas fossem assim, é por
que tive a possibilidade de manifestar o lugar que nossa pequena
comunidade, imprensada entre o Estérel e a costa, pretende ter no
Campo Freudiano. Nosso desejo é, de fato, o de ocupar um bom
lugar nesse turbilhão. É a nossa primeira oportunidade de receber
mos em casa tantos colegas: alguns de vocês j á vieram animar nos
sas conferências e nossas trocas, mas nunca tantos, e, sobretudo,
nunca juntos.
Lamentamos ter sido impossível encontrar em Antibes um
lugar que correspondesse às exigências de uma tal conversação. É
por isso que estamos em Cannes, neste palácio prestigioso, conhe
cido, sobretudo, por suas lentejoulas, seus strass e suas estrelas: trou
xemos à Croisette1 nossa paixão de lavradores do Campo Freudiano.
Estamos, aqui, com efeito, para lavrar, semear, cultivar o Campo
cuja reconquista está sempre na ordem do dia.
O programa de nossa Convenção está marcado pelo triplo.
Não é, sem dúvida, por acaso, mas estrutural. Não estamos, desde
Arcachon, sob o signo da clínica borromeana? A triplicidade de RSI
236
- real, simbólico, imaginário - corresponde, em Cannes, às três par
tes de nossa reflexão: neodesencadeamento, neoconversão, neotran.iferência.
Desse modo, somos convidados a um aggiornamento da clínica, da
construção empírica da clínica. Trata-se, indubitavelmente, de um
índice da parte a ser tomada pelas Antennes e Seções Clínicas no seio
do Instituto do Campo Freudiano, nos novos desenvolvimentos
que esta refundação impõe.
Minha fala está escandida por "um, dois, três", como se
procurasse indicar o tempo - vocês certamente o perceberam.
Visto que o termo "convenção" não pode deixar de reme
ter a algo da Revolução, pensei em algumas frases de Victor Hugo,
em Os Miseráveis. Durante os funerais do general Lamarque, Hugo
nos faz ouvir o discurso do insurgente Enjolras. Este passa pelas
três consistências que são, para ele, "liberdade, igualdade, fraterni
dade". Eu o cito: "O ponto de interseção dessas soberanias que se
agregam se chama sociedade. Sendo essa interseção uma junção,
esse ponto é um nó. Daí o que chamamos de laço social".
Qual a junção, qual nó nos diz respeito hoje? Na interse
ção da clínica com a teoria, não estaríamos às voltas com o que o
"Relatório de Barcelona" chamou de "a Conversação continuada
com os textos fundadores do acontecimento Freud, um perpétuo
Midrash que confronta incessantemente a experiência com a trama
significante que a estrutura"2?
Desejo a todos, portanto, um excelente trabalho e passo a
palavra a Jacques-Alain Miller.
237
2. A CONVENÇ Ã O, MODO DE USO
239
tecido, tramado, o que, sem dúvida, levará a uma outra espécie de
comentário que ainda está para ser encontrada. Conto, para isso,
com as trocas entre os redatores. Seremos, sem dúvida, levados a
reconceitualizar, a superconceitualizar, não sem voltar ao detalhe
dos casos.
Se eu tomo mais precauções que nas duas reuniões prece
dentes - o Conciliábulo e a Conversação - é porque a presente
Convenção me parece destinada a ser muito menos espontânea,
sobretudo pela seguinte razão: agora, dois livros já foram lançados.
Eles estão nas livrarias e tiveram suas repercussões. Falávamos a
fundo perdido, como sempre, sem nos preocupar com a forma que
isso tomaria. Esse não é mais o caso, e esses cálculos afetarão nos
sas trocas. Segundo alguns, isso pode ter um efeito de incitação exa
gerada a falar ou de excessiva moderação para se expressar. É o que
me leva a fazer um pequeno anúncio para tranquilizar a todos: não
é certo que tenhamos, desta vez, que publicar nossas discussões.
Após essas precauções, vamos aos fatos.
240
3. CL ÍNICA FLUIDA IFLOUEJ
241
são, neotransferência. Será neopsicose? Será que realmente queremos ligar
nossa elaboração à neopsicose? Não me agrada nem um pouco a
neopsicose. E me dizia: "no fim das contas, falamos de psicose
ordinária".
Na história da psicanálise, interessamo-nos naturalmente
pela psicose extraordinária, por aqueles que realmente "arrebenta
vam". Há quanto tempo Schreber é referência? Ao passo que temos
aqui psicóticos mais modestos, que nos reservam surpresas, mas
que podem, como veremos, se fundir num tipo de média: a psicose
compensada, a psicose suplementada, a psicose não desencadeada,
a psicose medicada, a psicose em terapia, a psicose em análise, a psi
cose que evolui, a psicose sintomatizada, por assim dizer. A psico
se joyceana é, diferentemente da obra de Joyce, discreta.
Estamos divididos entre dois pontos de vista contrastan
tes, que não se excluem mutuamente.
Em uma primeira aproximação, há uma descontinuidade
entre psicose e neurose, duas classes bem separadas. É a norma, o
'bê-á-bá' do que é ensinado a partir de Lacan. O segundo ponto de
vista aponta para uma continuidade, duas saídas diferentes para a
mesma dificuldade de ser. É o que justifica o fato de Genevieve
Morei ter ido procurar, na sabedoria asiática revista por François
Julien, o "variacional". Tanto o franco psicótico quanto o psicótico
normal são variações - o que dizer? - da situação humana, da nossa
posição de falante no ser, da existência do falasser.
A vantagem deste ponto de vista - sabemos disso, e
Lacan o explorou, pois ele apresenta muitas vantagens para tratar
a neurose - é a de estabelecer um certo "todos iguais"; todos
iguais na condição humana. O psicótico não é uma exceção; o
normal tampouco o é. Essa igualdade foi acentuada por Lacan na
sua época existencialista, em "Formulações sobre a causalidade
psíquica", lembrando ao psiquiatra que ele não é, em essência,
diferente do louco - ele apontou isso de novo no final de seu
ensmo.
242
É precisamente essa igualdade que nos leva a falar de
modos e, particularmente, de modos de gozo. Mais precisamente,
falamos de modos uma vez que fizemos desaparecer a descontinuida
de das classes. Todos iguais frente ao gozo, todos iguais frente à
morte, etc. Nós não distinguimos classes, mas modos, que são varia
ções. A partir daí, dá-se lugar à aproximação.
Se o Outro existe, podemos escolher pelo sim ou pelo não.
Nas situações em que o Outro existe, há critérios, "repartidores"
[répartitoires] segundo a expressão de Damourette e Pichon, que
-
Lacan usa uma ou duas vezes, e da qual gosto muito. Mas quando
o Outro não existe, não estamos simplesmente no sim ou não, mas
no mats ou menos.
Aliás, é a verdade. Perguntava-me: qual a verdade das coi
sas humanas? No fim das contas, é a curva de Gauss. Aonde quer
que formos, onde quer que estivermos, tudo se apresenta como
uma curva de Gauss. Nas extremidades, há o radicalmente oposto;
no meio, sob forma de um sino, há o mais ou menos. É sempre
assim, aonde quer que se vá e seja lá o que consideremos. Dizia-me
que era a solução para todos os nossos males: o real das coisas
humanas se apresenta sob a forma da curva de Gauss.
Aqui entre nós, por exemplo, a curva de Gauss está com
certeza presente. Sabemos, logo de início, que se formos testados
sobre algo, obteremos uma curva de Gauss.
É em uma das pontas desta linha mágica que está, como
costumamos dizer, o "seguro e certo". Vamos decompor um pouco
o "seguro e certo": Há o certo. O certo é muito raro. É realmente
um caso raro, sobretudo em nosso campo. Lacan reservava a certe
za para seu materna da histeria. Há, em seguida, o "seguro mas não
certo", como diz Lacan. É um outro grau: sabemos que é assim,
mas não podemos demonstrá-lo, colocá-lo numa fórmula. Enfim,
há o "não seguro". Nós trabalhamos no não seguro. Não somente
não é certo, como também não é seguro. Nadamos no não seguro.
É o nosso pasto, se me permitem, é a nossa pastagem.
243
Podemos ler nosso volume - talvez não todo o volume,
mas mais ou menos todo o volume - e dizer: "Puxa! Pois bem! Não
é seguro. No fim das contas, não é seguro".
Com Lacan, estamos sempre dizendo: "seguramente,
seguramente". Mas como, em seguida, ele não diz exatamente a mesma
coisa, fica-se um pouco embaraçado com esse "seguramente".
Portanto, finalmente, não é seguro. "Não é seguro" é a
reposta universal. Em nosso campo, podemos sempre levantar a
mão e dizer "isso não é seguro". Tudo depende do tom com o qual
vamos dizê-lo, a convicção, enfim, o objeto a que vamos alojar
nesse significante. "Não é seguro. Não. Realmente, não é".
Sem dúvida, é também por esta razão que começamos
pelas surpresas, pois podemos dizer: "Isso seguramente me sur
preendeu".
Então, aproximemo-nos daquilo que somos e do que dize
mos. Ontem à noite, por exemplo, na Croisette, conversava com cole
gas durante o jantar. Um deles, muito eminente, versado em teoria
e tudo mais, dizia: "eu chamei sua atenção quanto a isso - tenho
uma paciente um pouco psicótica". Efetivamente falamos assim. É
da ordem do mais ou menos.
Um matemático da equipe de apoio de Lacan, do seu SOS
matemática, Guilbaud, se interessou muitíssimo por esse mais ou
menos. Ele fez um livro a partir de suas aulas sobre o mais ou menos,
na Maison des Sciences de I'Homme, as quais cheguei a frequentar.
Uma versão muito operatória e de fácil manejo, que foi
muito mencionada, é a teoria dos conjuntos fuzzy (jlous) de Zadeh,
da qual falei à época. Ela permite distinguir graus de pertencimen
to a um conjunto. Na língua, ela abrange as modalizações que pode
mos sempre fazer.
A Croisette, assim como La promenade des Anglais, em Nice,
ou as Planches de Deauville, não são somente lugares onde nos damos
a ver, mas lugares onde se conversa fiado. É em razão do pensa
mento aproximativo. Não é preciso que façamos disso um deleite.
244
É justamente porque estamos condenados, na prática, ao pensa
mento aproximativo, que devemos manter nossa postulação em
direção ao materna. É precisamente por estarmos no mais ou
menos que Lacan nos disse: "Olhem para lá, olhem em direção ao
materna". Ainda que possamos somente fazer quase-maternas,
vamos, ainda assim, continuar a olhar nessa direção.
O próprio pensamento aproximativo tem seus maternas.
E, por outro lado, a conversação é necessária até mesmo para os
matemáticos. Não pode existir matemática se os matemáticos não
conversarem entre si. A conversação é necessária para saber o que
procurar, quais os maternas interessantes, os promissores, os que
estão fora de moda. Em suma, é preciso uma Croisette dos maternas.
Não pensem que estou exagerando. É preciso saber que,
na França - descobri isto durante as férias -, existe uma rede de
cidades de veraneio absolutamente deliciosas, mas que só acolhem
as ciências "duras". Eu disse: "Será que um dia não poderíamos
penetrar aí?" _ ''Ah, sim, a psicanálise, hum . . . ". Os físicos e mate
máticos são acolhidos e tratados como os reis da cocada preta, mas
nós, não.
245
DO PATOlÓGICO AO NORMAl
249
níqueis faz do significante "maricas", que acha que lê nos olhos de
um colega, e do binário "dinheiro limpo-dinheiro sujo".
Não seria o caso de trazermos, hoje, precisões a respeito
do que entendemos por perturbações da linguagem? Seria possível
distinguir, por um lado, a decomposição clássica do significante,
como no Seminário 3 e, por outro, fenômenos de despedaçamento
do significante? Não poderíamos precisar o que se pode entender
como perturbação da significação, ou ainda, a relação normal do
sujeito com a linguagem como sintoma? Inspiro-me em uma breve
discussão sobre o exemplo de Jean-Pierre Deffieux, em Arcachon.
Trata-se do enunciado "falta-me energia", a propósito do qual
Carole Dewambrechies observou que poderíamos, eventualmente,
considerar como uma perturbação da linguagem. Jacques-Alain
Miller havia proposto a categoria de "neossemantema". Teríamos,
assim, mais um neo e, talvez, fosse melhor não multiplicá-los. Porém,
isso assinala uma relação com a linguagem na qual a perturbação
seria comprovada. Esse enunciado colocava um ponto de basta no
discurso do sujeito, sua relação com a energia - afinal de contas, tal
vez não seja uma metáfora; a questão é saber se ele fazia disso um
uso corrente ou privado.
250
Jean-Pierre Deffieux Sempre fiquei surpreso com o fato de
-
251
Nas perturbações da linguagem, tomei tudo o que pode
ria remeter a essa categoria, ou seja: palavra, enunciação, tudo o
que diz respeito à escuta, tudo o que De Clérambault aí coloca, o
que é muito vasto, indo do eco do pensamento ao diálogo das
vozes. O neologismo, é claro, aparece nesta série; concordo em
dizer que alguns empregos de palavras de uso corrente são neo
lógicos.
Para a moça "dragão", por exemplo, um caso que acompa
nhei, "dragão" não é um neologismo: é bizarrice local. Eu mesmo
não conhecia a expressão. Fiz então a pergunta para vários adoles
centes: isso corresponde ao que, em Marselha, onde fui criada, cha
mamos "tribufu". Pode se dizer de uma menina que ela é um "dra
gão", pois o dragão é um bicho feio. Perguntei, então, à jovem, por
que dizia "dragão" e ela me respondeu que se dizia "dragão" do
mesmo modo que se diria "mocreia". Verifiquei com outras pessoas
que me confirmaram ser a coisa mais banal do mundo dizer "eu não
sairia com este dragão". Isso me pareceu engraçado o bastante para
colocá-lo como titulo, e não é contraditório com o fato de que isso
possa ser um neologismo. Nesse relatório, quisemos trabalhar o
máximo possível do lado da prova, mesmo sabendo que as coisas
são aproximativas. Tentamos, por um lado, classificar e, por outro,
pôr em evidência as coisas mais importantes de um caso. No caso
do "dragão", por exemplo, não foi esse o ponto que me pareceu o
mais psicótico.
No caso do rapaz que dizia que a relação com a mãe tinha
passado "do corpo à linguagem" - era uma apresentação de pacien
tes -, ficamos impressionados com a precisão dessa fórmula e a
colocamos em evidência. Mas, não é por que alguém faz uma teo
ria sobre si mesmo que isso configura uma perturbação da lingua
gem, senão estaríamos todos nós, analisandos e analistas, perpetua
mente condenados às perturbações da linguagem. Logo, para mim,
isso não constituía uma verdadeira perturbação da linguagem, tal
como normalmente o atestamos.
252
A propósito do automatismo mental, ele é inteiramente
reconhecido como perturbação da linguagem, visto que se encon
tra na rubrica dos sujeitos para os quais a entrada na psicose se dá
sem perturbações da linguagem - o que chamamos <l>o - mas que
apresentam, em seguida, perturbações dessa ordem. Há, portanto,
neste caso, perturbação da linguagem: há um automatismo mental
que serve justamente para demonstrar que ele vem em segundo
lugar em relação à outra coisa que o precede - o que encontramos
em De Clérambault.
Philippe Bouillot poderá responder à pergunta que diz res
peito ao "jovem do caça-níqueis", já que se trata de um de seus
casos, e Brigitte Lemonnier poderá responder à questão que diz res
peito à "missão". Isso é tudo sobre a pergunta a respeito das per
turbações da linguagem.
Quanto à questão do delírio, quis seguir De Clérambault.
Já que Lacan dizia que ele foi seu mestre, disse a mim mesma: no
fim das contas, o mestre do mestre é sempre um mestre. De
Clérambault diferencia o que é automatismo daquilo que é deliran
te. Fiz a mesma coisa, ou seja, considerei que uma ideia delirante a
respeito do corpo não era, a priori, algo ligado ao Po, mas sim algo
a ser incluído em <l>o.
Evidentemente, isso se complexifica, pois o próprio De
Clérambault não fala somente de automatismo mental; fala de auto
matismo sinestésico e de automatismo motor. É difícil, até mesmo
em sua obra, ver exatamente como o automatismo sinestésico se
diferencia de outros fenômenos corporais. Cada vez que se faz
menção a "alguém me fez levantar a perna" ou "alguém me causou
uma dor", a questão não se coloca, mas quando se trata de uma sim
ples dor, isso se torna mais complexo. Falaremos disso, sem dúvida,
esta tarde.
Parece-me que a questão se complica no que concerne aos
delírios de filiação. A dificuldade não aparece no que vimos, já que,
de maneira geral, quando tínhamos grandes delírios de filiação,
253
tínhamos também um automatismo mental ou, pelo menos, pertur
bações da linguagem. Mas, de fato, a classificação é um pouco defi
ciente no que diz respeito aos delírios que giram, por exemplo, em
torno da paternidade ela mesma: porque não colocá-los em Po?
Neste ponto, não me parece que tenhamos resolvido a questão.
254
Alexandre Stevens - Existem diferentes usos de "linguagem
privada". Conhecemos crianças psicóticas cujas mães podem dizer:
"Eu entendo perfeitamente o que ele diz", e mais ninguém enten
de. Há aí o que chamamos de uma linguagem privada. No caso de
Angers, não o interpreto completamente dessa forma: não coloco
no mesmo plano essa invenção da língua Donald, pois se trata de
uma pequena invenção compreensível pelo outro. É uma criança
que, resumindo, inventa falar usando uns quack-quack-quack com seu
analista. O próprio analista faz, a partir disso, um lapso: "São quack
tro e dez", diz ele sem querer, o que faz a criança morrer de rir, e
que capta como o outro é tomado na transferência. Logo, não é
realmente uma língua privada, no primeiro sentido que estávamos
usando.
255
que conseguimos diferenciar clinicamente essas palavras que têm
para o sujeito um valor especial - tal como "falta-me energia" - a
maneira como são ditas, a enunciação que aí desempenha um papel,
e o lapso, seja em um caso de neurose ou de psicose, já que ele tam
bém se produz aí. Parece-me que se trata mais de interrogar a prá
tica que de fazer uma classificação. Se fizermos uma classificação,
acredito que vamos, obrigatoriamente, nos equivocar.
256
françois Sauvagnat - Parece-me que é algo que se diz fre
quentemente.
257
próprio. Parece-me que isso poderia, em certo número de casos,
opor-se a algo mais marúaco como "fazer-se um nome", no estilo de
Joyce. É preciso notar o aspecto da tristeza, um tipo de decisão em
deixar de lado as suplências, o que chamei de "traição" nos peque
nos trabalhos que fiz a respeito. Parece-me que existe aí algo que
sentimos perfilar-se em sujeitos que podemos ter em tratamento.
258
lilia Mahjoub À pergunta feita, "seria o lapso uma pertur
-
ria chamar atenção; na verdade, chamarei atenção para dois casos que
estão em série no relatório de Aix-Marseille e Nice, apontando o fato
de que existe aí um diálogo entre os relatórios das diferentes Seções
a respeito do problema dos fenômenos que Geneviêve Morei designa
como perturbações de <l>o. Em nosso relatório, sobretudo no caso
trazido por David Halfon, trata-se, a cada vez, de sujeitos nos quais o
clinico não notou perturbações ligadas ao encontro com Um-pai,
nem desencadeamento segundo uma forma típica; em contrapartida,
como nota Geneviêve Morei, algo acontece na relação do sujeito com
o gozo e com o imaginário, com esse abismo ligado a uma total
impossibilidade de subjetivar seja lá o que for dessa experiência. Isso
explica tentativas tais como as que Lilia Mahjoub acaba de citar, ten
tativas extremas de metaforizar, sem consegui-lo verdadeiramente.
259
Francesca Biagi Na clínica das psicoses não desencadea
-
260
missão; ele inventou uma missão para si mesmo. Encontrou os pre
ceitos da Igreja, este tripé: pureza, honestidade, fidelidade - e acha
ter encarnado essas palavras até o momento de seu desencadeamen
to. Sua missão não lhe vem de um outro, nem da Igreja. Enquanto
nunca estamos à altura do ideal, ele, por sua vez, sempre está. Ele
tem a absoluta certeza de ter encarnado esse ideal, assim como tem
certeza, no momento de seu desencadeamento, de estar na posição
absolutamente contrária, de ser um indigno, de que essas palavras
que constituíram para ele seu ideal o largaram, de que ele se tornou
um assassino, etc.
Z61
5. GOZAR DA LINGUAGEM
263
cisa por onde a coisa se desfaz. A construção da "Questão prelimi
nar" é fundada sobre uma grande bipartição: por um lado, o grande
Outro, o Nome-do-Pai, a linguagem, os fenômenos significantes, de
ordem lógica, se desdobrando em um deserto de gozo; por outro, o
imaginário, o especular, o corpo, o gozo. As perturbações da lingua
gem, assim como a linguagem, procedem da estrutura linguística, o
resto se enraiza no estádio do espelho. As perturbações linguísticas
não são ditos anideicos, como se expressa De Clérambault, mas são
concebidas, enquanto tais, como agozantes [qjouissijS], fora-do-gozo, já
que é do lado do imaginário corporal que circula a libido. Essa con
ceitualização teve uma importância histórica capital e permanece
sendo uma referência indispensável; mas, se a adotarmos sem ver os
limites vistos e ultrapassados por Lacan, perdemos isso que faz o
vigor da clínica borromeana: uma conexão bem mais estreita do gozo
e do significante, a colocação dos dois campos em continuidade.
Podemos dizer que, na clínica borromeana, o <l>o e o Po são as duas
extremidades da curva de Gauss, o que é apenas uma distinção de
razão e não uma distinção fundada na coisa. Existem perturbações
nas quais não é a forma significante que é atingida, mas sim a signifi
cação: a palavra é normal, a frase é normal e, no entanto, há, por
detrás da palavra ou da frase, uma "intenção inefável". Pois bem, não
saberíamos esclarecer isso melhor do que levando em consideração o
"gozar da linguagem". Em suma, "a polissemia da palavra me faz
gozar" - não se poderia dizer melhor.
264
junto com o senhor há dez anos, no seminário de D.E.A.\ podemos
tomar o que Lacan chama de Po como um gozo da linguagem, ao
menos no que diz respeito à Iingua fundamental. Em relação à ques
tão das perturbações da linguagem, outra dificuldade vem, a meu
ver, do fato de os conceitos se estenderem e se inflarem, de manei
ra que, no fim das contas, eles acabam por abarcar quase tudo. Foi
aí que muito frequentemente nos perdemos. Se tomarmos, na
"Questão preliminar", a análise da alucinação, o significante estru
tura a percepção, o que quer dizer, portanto, que uma alucinação
visual é uma perturbação da linguagem.
265
comunidade dos homens, da qual tinha sido expulso aos seis anos; ele
volta à comunidade dos homens... só que agora esta aparece sob a
forma de um monastério. Há essa conversão à religião e é a partir daí
que ele nomeia toda a sua trajetória precedente, tudo o que fazia com
sua meia-calça, o "idólatra". É, de fato, interessante, já que a mãe, que
também devia ser um pouco bizarra, o tinha batizado na igreja orto
doxa de maneira que, mais tarde, ele pudesse fazer uma escolha - o
que é um detalhe bastante curioso do caso. No fim das contas, ele era
de fato um idólatra, visto que tinha sido batizado na religião errada.
E ele mesmo batiza de idólatra o fato de ter usado a meia-calça da
mãe para suas práticas transexualistas; tudo o que lhe tinha aconteci
do antes, ele também rebatiza dessa forma.
Há, em seguida, uma espécie de segundo desencadea
mento. Ele vai para os Estados Unidos. Até aí, no relato que nos
é feito, na leitura que fiz do caso, não tivemos muitas perturbações
da linguagem; mas, a partir do momento em que é enviado aos
Estados Unidos, estamos visivelmente em pleno Po: os computa
dores começam a falar por todos os lados; é o mesmo que dizer
que, nesse dado momento, ele sai novamente da comunidade dos
homens. Tinha entrado nesta comunidade, dela sai quando se
encontra nos Estados Unidos, e há perturbações da linguagem
que aparecem de forma muito importante. Volta a encontrar um
novo lugar na comunidade religiosa, tornando-se o especialista da
informática; ele tem um lugar particular, mas que é, com efeito,
associado a um tipo de sinthoma, que é o de exercer a informática
para todo o mundo, de fazê-lo verdadeiramente: pode-se dizer que
se trata de um tipo de sinthoma.
Finalmente, a maior parte do caso é compreensível a par
tir da "Questão preliminar" como única referência; é somente ao
final - se quisermos levar a sério o especialista em informática, que
é associado a um tratamento da língua, o que, aliás, no relatório foi
perfeitamente posto em evidência - que o último Lacan nos serve
e nos acrescenta algo.
266
A única coisa que não entendi no relatório de Clermont, é
por que nossos colegas consideraram que o Édipo não tratava a
causa sexual. Isso está no primeiro parágrafo do relatório. Há uma
oposição entre o primeiro e o segundo Lacan que perpassa todo o
texto. É dito que a metáfora paterna é uma retomada do Édipo
freudiano; e, no fim, é dito que "a questão da causa sexual não se
encontra incluída nessa lógica", a lógica da "Questão preliminar".
Queria perguntar-lhes se, para eles, o Édipo também não era um
tratamento da causa sexual.
267
Um, com o significante sozinho. É a partir desse ponto, comum a
todos, em que o significante nos coloca em relação com o gozo, que
vamos nos distinguir por uma série de escolhas, de engajamento em
um determinado modo de gozo, mais que em outro.
268
imerso, fazendo disto um ponto de apoio em sua relação com o
Outro. É bem diferente dizer: a norma já está aí presente sob a
forma da coerência da cadeia significante, isto é, da existência do
Outro; em relação a isso, o sujeito se mostra em déficit. Essa é a
nossa maneira habitual de raciocinar, maneira cuja lógica é paranoi
ca, já que a paranoia visa reconstruir a cadeia significante de um
modo ainda mais radical, dando consistência à ordem do universo.
A lição que devemos tirar das neopsicoses é que a norma
não existe apriori, mas se constitui a partir da cadeia rompida. A res
posta paranoica é a de reconstruir a cadeia a partir de Sz no delírio.
Ao contrário, a resposta do sujeito psicótico contemporâneo, se
assim posso dizer, é tratar esse S1 sozinho, em seus efeitos de gozo
do ser.
269
pessoal". A perturbação da linguagem pode ser apreendida a partir
do significante ou da significação; o que nos mostra Lacan é que,
quanto mais a significação se torna pessoal, mais ela se torna enig
mática, o que é uma espécie de paradoxo. Aliás, falamos disso em
Angers. O exemplo que dá o relatório de Lille, "trabalhar é perder
a vida", é dessa ordem. É uma frase muito simples, mas é tomada
ao pé da letra pelo sujeito, o que quer dizer que ele lhe confere um
significado muito pessoal, muito íntimo. Ainda mais por perceber
mos o que ele quis dizer com isso: que trabalhar é perder a mãe.
270
6. A PFUIT!' DO SENTIDO
É ric Laurent
- No espmto da Conversação, poderíamos
abordar a própria ideia de perturbação da linguagem: a perturbação
da linguagem depende da ideia que fizermos da linguagem. A per
turbação da linguagem segundo Saussure, Jakobson, Hejmslev,
Locke, Malebranche, é bastante diferente.
Se formos saussurianos, diremos que a perturbação da lin
guagem se passa entre o significante e o significado. Se formos
jakobsonianos, diremos que a perturbação se passa entre a metáfo
ra e a metonímia ou que está ligada à questão do shifter. Se seguir
mos Locke, vamos nos interrogar a respeito da linguagem privada,
das ideias que nos vêm, das ideias claras que, segundo Locke, não
são aquelas de Descartes. Se nos inspirarmos em Malebranche,
vamos nos interessar pelas ideias que nos chegam, não de nós mes
mos, mas do criador que mantém a criação. Entre Locke e
Malebranche, quem é o mais esperto, quem é o mais maluco? Esta,
evidentemente, é uma pergunta que Lacan se coloca.
Se você for um neurologista, irá, antes de tudo, se conten
tar com a concepção espontânea que os neurologistas sempre tive
ram da linguagem; a concepção de Broca e Wernicke, que tanto
serviu a Freud na elaboração de sua teoria sobre as afasias. Broca
e Wernicke eram muito bons em fazer atas de observação: quando
tal paciente não tem mais à sua disposição uma tal parte de um
órgão, produz-se tal déficit funcional. Deve ser, portanto, por ali
que tal função se localiza. Conhecemos, assim, toda uma geração
de enunciados de localização: primeiro, as zonas especializadas; em
seguida, a lateralização estrita do cérebro; até que, recentemente,
271
deram-se conta de que a localização foi, sem dúvida, muito exage
rada. Foi preciso, ao invés disto, pensar em termos de tratamento
da informação por um sistema. É a contribuição dinâmica das neu
rociências.
A teoria das afasias, o tratamento das imagens de palavras
e das imagens de coisas pela máquina inconsciente, é uma bricola
gem sobre uma perturbação da linguagem à qual Freud se entregou,
a partir de uma concepção da linguagem dos neurologistas anterio
res às neurociências. As próprias neurociências procedem, em gran
de medida, de uma conversação entre a teoria da linguagem dos
neurologistas, formada a partir de uma prática cada vez mais fina da
lesão e de sua recuperação, com alguns outros praticantes de abor
dagens mais técnicas da língua, como especialistas em computação
que se interessam pelas línguas naturais e alguns filósofos da lingua
gem. Com isso, geramos uma nova conversação que chamamos de
neurociências. A perturbação da linguagem, considerada a partir
desse ponto, é muito particular.
Se fôssemos Chomsky, que ideia teríamos da perturbação
da linguagem? Poderíamos pensar que, se fôssemos chomskyanos,
iríamos buscar, a fim de dar conta da perturbação, a regra de rees
crita que não funciona. Alguns chomskyanos ficaram muito surpre
sos que este mesmo autor tenha, em seguida, apresentado a partir
dessa teoria uma concepção política da linguagem, toda ela atraves
sada pela ideia de complô. Esta concepção o levou a posicionamen
tos muito radicais dentro da política universitária americana. O
complô generalizado desenha uma teoria compatível com a ambi
ção de dar conta da linguagem a partir de regras exaustivas. É uma
maneira de integrar, no sistema, seu limite. As regras não bastam
para dar conta da produção de sentido com base nos equivocas
subsistentes. Será necessário, então, uma grande conversação políti
ca para saber o que diz a linguagem. Chomsky insiste em uma ampla
interpretação da primeira emenda da constituição americana, segun
do a qual deve ser absolutamente permitido dizer tudo, inclusive
272
horrores. É porque tudo isso não quer dizer nada e não tem efeito
algum fora da conversação que isso vai fixar o sentido. A conversa
ção é organizada pelos poderosos que querem significar a lingua
gem em um sentido que lhes seja favorável. Logo, é necessário
opor-se a isso. A perturbação fundamental da linguagem é, no fim
das contas, a conversação dos poderosos.
Isto nos leva a ligar a perturbação da linguagem, em sua
concepção mais geral, a um estabelecimento do sentido pelo "dis
curso concreto", como diz Lacan, pela própria conversação, demo
crática, generalizada. É por isso que considerei notável a redefini
ção que fazia Jacques-Alain Miller, no inicio desta jornada, ao con
siderar este volume como tratando da psicose ordinária. É a psico
se na época da democracia, a consideração da psicose de massa. Na
época anterior à clínica, Pascal evocava a loucura do mundo. Isto
ressoava de uma outra maneira. Quando dizemos "a psicose ordi
nária", não nos prendemos mais somente às grandes exceções que
constituíram a clínica do olhar e a primeira clínica psicanalítica.
Não se trata mais de nos apegarmos apenas aos gigantes do pensa
mento psicótico, que são Schreber, Newton, Godel, etc. - dos
quais alguns são mais doentes que os outros. Nosso objetivo é
fazer entrar, na conversação clínica, todo o leque da psicose, pela
abordagem geral do que é a linguagem. Como disse uma paciente
no volume em questão: "O que faz com que em um dado momen
to minha cabeça dê o fora . . . Pfuit. . . no entanto, é que tenho possi
bilidades . . . ". Pfuit. O pfuit do sentido. É o pfuit do sentido, neologi
sando o título que Jacques-Alain Miller tinha escolhido para um
curso. É magnificamente recolhido.
Há o pfuit do sentido e, depois, há todas as tentativas do
ponto de basta para agarrar isso de novo. A própria paciente diz:
"Tenho possibilidades, mas eu não as controlo . . . falta-me o jeito
[truc] para administrar". Ela fala a língua normal, a nossa. Todo
mundo procura o jeito para administrar. A questão sobre o ponto
de basta é a questão mais bem compartilhada que há.
273
Por exemplo, os mercados mundiais flutuam de modo
aberrante. Fazemos, então, uma conversação de 7, fazemos um G7,
e tentamos estabelecer um ponto de basta. Isso não funciona; faze
mos então um G8. Em seguida, alguém escreve um artigo no qual
opina que o ponto de basta não pode mais vir de um FMI ou de um
G8; tem que vir do presidente dos Estados Unidos. Mesmo com o
presidente dos Estados Unidos encurralado pela causa sexual, ele
continua sendo a último bastião por ter o jeito para administrar.
Como a sua posição permanece frágil, é finalmente a opinião públi
ca americana que, por sua própria força, segura o mundo inteiro, já
que 62% das pessoas não querem o impeachment de Clinton. Pois
bem, eis aí em que consiste o jeito para administrar: a medida ansio
sa e permanente da opinião pública. Este estado de civilização é
compatível com a abordagem geral da psicose ordinária. A época é
efetivamente muito consoante com esta constatação de que nin
guém tem mais o jeito para administrar. É o pfuit do sentido e a
busca dos pontos de basta.
274
gem fenomenológica e caracterológica. Considero fecundo tomar a
noção de superidentificação no quadro geral da psicose ordinária.
Em certo sentido, esses trabalhos comportam a ideia de que a iden
tificação na melancolia é abordada da mesma maneira que nas
outras psicoses, com superidentificação de traços perfeitamente
normais. Em um outro sentido, a superidentificação normal apon
ta para o fato de que a norma de identificação é louca.
275
A inclusão dessas desconexões na série dos desencadea
mentos permite generalizar o fenômeno em uma teoria produtiva.
A polissemia semântica que faz gozar vem, em um dado momento,
ao encontro da criança autista que joga com um botão elétrico e que
faz mais-menos, mais-menos, habitado pela pura oposição formal. Não
é a repetição do semantema que faz gozar, é a repetição da pura
diferença do mais-menos, mais-menos que faz gozar. De um ao outro,
reencontramos a razão pela qual um linguista húngaro, tocado pela
psicanálise, dedicou seus trabalhos a demonstrar o investimento
sádico-anal nas mais sutis oposições fonéticas. Seus trabalhos mos
tram, finalmente, como a menor diferença do sistema da Jingua
pode ser investida de gozo. E, se estivermos atentos a esses deta
lhes, podemos de fato ir bem longe neste imenso arco que vai do
mais-menos ao semantema que faz gozar, da fuga do sentido às res
taurações do ponto de basta, conforme vimos a propósito do pfuit.
276
7. CONTINUIDADE·DESCONTINUIDADE
277
apesar de tudo, o sujeito se vira ou não para administrar o gozo.
Tínhamos uma clínica um pouco diferente, na qual tentamos loca
lizar os termos em uma diacronia, a diacronia ligamento-desliga
mento-religamento, diferente da sincronia do encontro com Um-pai,
com seus efeitos imediatos, até mesmo teatrais, de desabamento
subjetivo; tratava-se de ver como o sujeito se virava, inclusive com
as noções que comportam uma escolha. Em pelo menos um texto,
o caso Mickael - do qual falávamos ainda há pouco - escrito por
Jacques Ruff, aparece efetivamente uma vontade, um sim ou um
não, frente a essa possibilidade de desligamento ou de religamento.
278
duas restantes se desenvolvem de tal maneira que estorvam todo o
ecossistema.
Existem modos que têm, no desencadeamento, esta lógi
ca, ou seja, nos quais vemos que a relação dos sujeitos com a signi
ficação se desequilibra completamente e que conhecem, aliás, varia
ções semanais. Vi pessoas cuja relação com a significação variava
inacreditavelmente de uma sessão para outra e que, em seguida, vol
tavam a modos estáveis. Ao invés de pensar a questão unicamente
pela causa, ou seja, pela estrutura, não seria o caso de estudar tam
bém as modalidades dos fenômenos? Acabaríamos por ver que, nas
consequências dos desencadeamentos, há modos extremamente
variados.
279
pai se endereçava, já que o pai havia compreendido que não devia
se endereçar diretamente a ele. Nesse ponto, havia algo de irônico
nele.
O que me pareceu totalmente importante é que essa
segunda solução não invalidou de forma alguma a primeira: ser um
idólatra continua sendo, para ele, algo que o sustenta e do qual ele
faz questão. É o que lhe permite, por exemplo, dar conta desses
momentos, tal como aquele em que foi para os Estados Unidos,
onde lhe aconteceram coisas graves - por ter sentido que se isolava
nessa língua que inicialmente ele não entendia. Para ele, é sempre a
sua idolatria que, conforme suas palavras, o levava a "se autossatis
fazer na língua". Tanto é assim que, ser um idólatra, mesmo tendo
largado a meia-calça, é algo que considera como a marca do que ele
é para sempre: o que lhe permite ter um lugar como religioso e, ao
mesmo tempo, evitar ser padre, o que o recolocaria em uma posi
ção de exceção.
280
tasse uma psicose de "competição". E foi ele mesmo quem um dia
se queixou de ter uma perturbação da linguagem. Sua perturbação,
no fim das contas, é o que o levava a interpretar a fala dos outros.
Já falei desse caso uma vez e gostaria de voltar a ele: "quando
alguém me diz alguma coisa e fico me perguntando se é gato ou
lebre e isto dura o dia inteiro, provocando angústias absolutamente
inacreditáveis...", me diz ele, "tenho realmente uma enorme pertur
bação da linguagem".
281
Emmanuel Fleury - Retomo a observação de La Sagna sobre
as variações catastróficas, já que Genevieve Motel citava no relató
rio a referência a Julien para a noção de variação; é talvez um meio
de abordar a "barriga flácida" da psicose cotidiana e uma possibili
dade de ir novamente do efeito à causa. O relatório tentava situar o
que podem dizer os pacientes em relação aos casos de desencadea
mento típico, como mostra Lacan em 1 958, ou nos casos que esta
mos chamando de neodesencadeamento.
Lembrava-me de uma pessoa que nos explicou sua situa
ção durante uma apresentação de doentes conduzida por
Genevieve Morel e que tinha reconstruido completamente o
mundo a partir da palavra "disfuncionamento". Este é, de fato, um
paralogismo; não se trata de neologismo, pois a palavra existe, mas
o sujeito reordenara tudo em torno dessa palavra. Havia, por exem
plo, localizado disfuncionamentos no hospital, os quais ele denun
ciava; queria acionar as instâncias capazes de corrigir esses disfun
cionamentos. Não eram as palavras que esse paciente utilizava que
permitiram fazer um diagnóstico de estrutura, mas as modalidades
do desencadeamento, as variações de sua posição na sua história e
seu tratamento da linguagem. Podemos colocar esse caso em opo
sição ao de Brigitte Duquesne, daquele paciente que não pode sus
tentar um discurso em público, frente às mulheres, se não for com
a ajuda do álcool. A apresentação permitiu mostrar que o conjunto
do seu discurso era importado a partir do discurso de sua mãe.
282
condição de produção de todos os enunciados reunidos por esses
textos. Daí nos perguntamos: qual o lugar que damos, em nossa
abordagem da psicose ordinária, à transferência, que também é um
fenômeno de linguagem?
283
A propósito desse sentido gozado, já que se trata de ver
como o gozo está concernido pela linguagem, poderíamos dizer
que, nessa concepção, o sentido é gozado de maneira radical. Até
mesmo a letra é gozada. Vou dar um exemplo disso. Artaud, ainda
pequeno - ele fala disso em suas obras -, avista um vendedor
ambulante que vende o que chamamos ''glace"' [gelado] , uma espé
cie de biscoito recheado com sorvete; ele avança para pegar esse
glacê e, nesse momento, fica petrificado, congelado. Em sua obra,
Artaud escreve ''glad', isola suas letras, as coloca em maiúsculas e
fica petrificad? pela própria escrita. Fala disso como de alguma
coisa que para ele foi um desencadeamento. Nesse caso, não há
"Um-pai", é o biscoito que o congela e um sentimento de estranhe
za se produz; todos em sua volta são estranhos e o que o salva é o
anjo exterminador.
284
partir do comentano de Jacques-Alain Miller sobre a Sagrada
Família, e Marx diz a mesma coisa.
285
há dois pontos que me orientaram em direção a esta questão. Por
um lado, ''A instância da letra", texto no qual Lacan . descreve a
metáfora do sujeito a partir do exemplo de Booz adormecido, "seu
feixe não era nem avaro nem odioso", que apaga o nome próprio
de Booz. Há, portanto, esse aspecto fundamental do esquecimento
do nome próprio na metáfora do sujeito. Eu me perguntava como
nas psicoses não desencadeadas - todas essas psicoses que cami
nham bem - os sujeitos se comportam em relação ao nome próprio.
É um primeiro ponto de tensão teórica.
O outro ponto é um caso clínico que acompanhei duran
te minha residência, que me marcou muito e que se chamava, diga
mos, "Girador" [Tourneu� . É um sujeito cujo pai tivera um papel
nada brilhante durante a Segunda Guerra Mundial e que tinha uma
atitude habitual muito longe daquela de um pai pacificador - nota
damente um alcoolismo e uma violência exacerbados. Parece-me
que este sujeito havia extraído, muito cedo, alguma coisa que talvez
estivesse do lado do sentido gozado: algo como "fazer girar" [tour
ner rondj a vida. Com efeito, durante toda a sua vida, ele se esforçou
para que as coisas girassem, funcionassem. Logo, frente a Um-pai,
sua resposta foi a de que tudo girasse, que caminhasse bem. Deduzi
disto que o sujeito havia, de fato, sido confrontado a Um-pai, não
havia desencadeado uma psicose, mas havia produzido uma respos
ta. Esta resposta, a de "fazer girar" [tourner rondj , era uma significa
ção fundamental da existência. Por exemplo: seu trabalho era o de
inspecionar obras que foram concluídas; também gostava de ir a
bailes, nos quais adorava dançar em círculos [en tournant en rondj.
Esse "fazer girar" [tourner rondj funcionava constantemente como
resposta do sujeito. Seu acesso desencadeou-se bem tarde em sua
vida, aos quarenta e cinco anos, quando seu padrasto precisou vir
morar em sua casa, o que era bastante frequente e já havia aconte
cido anteriormente. Nesse momento, aquilo que não funcionou foi
que, estando em um supermercado para comprar uma poltrona
para seu padrasto, ao ter que sair do supermercado foi preciso fazer
286
um giro para um determinado lado [tourner d'un côte] . Ao fazê-lo, vie
ram chamar-lhe a atenção, dizendo que a manobra era proibida. Ele
se viu, na sua solução de "fazer girar", em uma grande autocontra
dição. Foi esta autocontradição que desencadeou um delírio inteira
mente centrado no movimento circular, delírio que teve um perío
do de florescência extremamente breve a partir do momento em
que saiu do estupor e que, em seguida, desapareceu rapidamente.
Parece-me que havia uma questão relacionada ao nome próprio, a
ser colocada em relação com a ausência de metáfora do sujeito.
O outro ponto assinalado na melancolia é o de saber como
se portam os melancólicos entre os acessos. Esse ponto foi, de fato,
muito bem trabalhado por Tellenbach e seu aluno Kraus. É verda
de que a análise feita por eles da personalidade dos sujeitos pré
melancólicos é, por excelência, uma análise não caracterológica. É
um estudo muito profundo, muito atento, referente a um corpus filo
sófico, particularmente o Anafytic Existential du Dasein de Heidegger,
que determina o Tipus melancolicus, cujos traços são descritos, por
exemplo, para a Alemanha. Observou-se o seguinte: são efetiva
mente os pacientes de Tellenbach que forneceram o conjunto des
ses traços, que têm, portanto, uma validade limitada. Enfim, a carac
terística existencial essencial é que os sujeitos pré-melancólicos
estão constantemente lutando contra o ressurgimento de seu "ser
ejetado"; eles estão sempre próximos da derrelição, sem "pro-jeto".
A partir disto, Tellenbach propôs o termo "superidentifi
cação", mas não no sentido do "mais ou menos identificação"; é
mais uma diferença qualitativa que Kraus continuou a estudar de
maneira extremamente séria e sobre a qual, me parece, é preciso
insistir: quando usamos, na psicose, o termo identificação, não esta
mos falando da mesma identificação do sujeito neurótico. Por
exemplo, se tomarmos como identificação as noções de "hábito" e
"monge", o hábito não faz o monge; a identificação está do lado do
hábito e a superidentificação do lado do monge. É a leitura que
poderia ser feita da superidentificação.
287
Em termos lacanianos, a identificação está, todavia, do
lado do significante: ela seria flutuante, sempre em devir, deixando
ao sujeito a possibilidade de se apagar sob ela, sempre em projeto;
ao passo que a superidentificação é extremamente fixa, do lado da
letra, atribuindo ao sujeito uma posição, um papel imutável. Na
identificação, o sujeito desempenha um papel e sabe que o desem
penha, podendo, portanto, se distanciar, se apagar quanto a este
papel. Na superidentificação, o sujeito é esse papel; e se ele deixar
de ser esse papel, se entrar em contradição com esse papel, ele então
não é mais nada e, com efeito, desencadeia um acesso.
Poderíamos igualmente tomar o exemplo de Ulisses na
gruta de Polifemo. A identificação seria dizer "eu me chamo
Ninguém". A superidentificação seria discutir as receitas de cozinha
com Polifemo, ajudá-lo a esquentar o fogo, preparar os molhos para
os espetinhos, etc.
288
e Nice. Fizemos, no início de nosso trabalho, um recenseamento de
casos, da prática de cada um de nós, que se apresentavam como for
mas atípicas de desencadeamento, com a ideia de que, depois de
Arcachon, poderíamos, talvez, progredir na via de uma clínica bor
romeana. Acontece que, na realidade, assim que conversamos sobre
isso entre nós, especialmente em um encontro entre Nice e Aix
Marseille, nos demos conta de que, de fato, nos limitávamos a algo
muito empírico, que era o manejo dos termos ligamento-desliga
mento-religamento. Isso nos pareceu fecundo, mas, ao mesmo
tempo, foi um ponto em que nos detivemos na pesquisa para
podermos avançar em direção a uma clínica borromeana.
Essa noção de ligamento-desligamento-religamento nos
pareceu oportuna; mas é verdade que, em nossa conclusão, demos
uma versão ligeiramente diferente de seu uso ao falarmos do liga
mento do Outro, com o Outro, etc. É isso que nos leva a falar de
neodesencadeamento para todas as situações de desprendimento do
grampo, qualquer que seja ele, para todas as falhas do que antes fun
cionava para um sujeito como ponto de basta. No fim das contas,
nos colocamos sob o signo de uma espécie de clínica do ponto de
basta generalizado. O que constitui ponto de basta para um sujeito?
O que faz com que algo se desprenda; o que é que, de repente, se
rompe; o que poderia ser reatado?
219
8. PSICOSES CARVALHO E JUNCO
Jacques·Aiain Miller
- Duas palavrinhas antes de irmos
comer algo. Primeiro, a tese da "bricolagem". Não somos obrigados
a ter uma clínica homogênea. Pelo contrário, existem certos
momentos das diferentes clínicas de Lacan, ou de outros clínicos,
que se adaptam melhor que outros a determinados casos. É por isso
que falamos de "psicose schreberiana", de "psicose lacaniana", de
"psicose joyceana". Pode ocorrer de o particular do caso estar em
consonância especial com uma determinada construção teórica ou,
até mesmo, com determinada parte de alguma construção.
Em seguida, farei algumas observações sobre esta manhã
de trabalho. Primeiro, a questão dos desencadeamentos ficou eludi
da. Falamos de desencadeamento quando há um contraste marcado
entre um antes e um depois. Não é sempre o caso. Há aí matéria
para se construir uma oposição do tipo carvalho ejunco. Quando há
foraclusão e o sujeito elabora um pseudo-Nome-do-Pai e um pseu
dofalo, de tal maneira que o caso se apresenta como normal, quan
do isso se rompe verdadeiramente, temos os abismos e todos os
abalos, etc. Digamos que, quando o sintoma é do tipo carvalho e a
tempestade chega, o desencadeamento é patente. Quando a estru
tura se situa mais sob o aspecto do junco, na qual o sujeito elabora
um sintoma mais maleável, "deslizante", o caso não se presta a um
franco desencadeamento.
É uma hipótese. Outra hipótese é dizer o contrário: sem
pre há desencadeamento, simplesmente não o vimos, ele é muito
precoce. Ele se produziu e houve restituição da estrutura imaginá
ria, para falar nos termos da "Questão preliminar".
291
Acontece que as psicoses ordinárias são quase sempre do
tipo junco. Pelo menos, o contraste entre o antes e o depois não é,
nestes casos, tão acentuado.
Em segundo lugar, não podemos esquecer que o estádio
do espelho da "Questão preliminar" não é aquele inicialmente des
crito por Lacan. É um estádio do espelho quase psicótico. Quando
ele não é organizado pelo simbólico, é um estado de ordem psicó
tica, habitado por um sofrimento primordial kleinoide. Quando
regressamos topicamente ao estádio do espelho, é a psicose. Em
outras palavras, este estádio ilustra a tese da psicose originária.
Em terceiro lugar, acho a observação de Michele Miech
muito justa. Na época da "Questão preliminar", o que, para Lacan,
efetivamente põe o mundo em ordem? O que faz com que o pen
samento de vocês ocorra em sua mente e não em outro lugar? O
que faz com que estejam mais ou menos bem em sua mente e em
seu corpo? O que faz com que cada coisa tenha seu lugar? É o
Nome-do-Pai - o Nome-do-Pai concebido como significante do
Outro, S(A), isto é, como Outro do Outro. Em seguida, Lacan ela
bora o contrário disso: que não há Outro do Outro - podemos
supor que o teorema de Gõdel lhe inspirou. O que se torna, então,
o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai? De alguma maneira, ele
é substituído pelo conceito defora-do-discurso. De fato, o que opera a
classificação, a repartição é o discurso e a rotina das conversações
determinadas pela estrutura de discurso.
São 1 2h e 35 minutos. Retomaremos às 1 5h.
292
DA Ó P E R A A O TEATRO D E BOLSO
Jacques-Aiain Miller Abordaremos a segunda parte, o que
-
A A
(a = - <p) (a = - <p)
Z95
como um ponto de gozo. Mas, sempre na linha da apre s entação que
Lacan faz disso, esta articulação, esta equivalência, esta continuida
de mesma do ponto de dor com o desejo, é colocada sob a rubrica
de um Outro, que é o pai doente - é o desejo do pai doente, isto é,
um Outro que se encontra marcado pelo selo da divisão. O que a
perversão6 tenderia a mostrar - no sentido de uma mostração -, é
que há um fracasso do sujeito em estar à altura de satisfazer a
demanda desse Outro dividido, ou seja, aliviá-lo de sua divisão. É
nessa passagem que Lacan situa o sintoma como uma tensão do
sujeito em querer satisfazer a demanda.
Essa conversão, no sentido proposto por Lacan, vem mar
car o fracasso do sujeito em estar à altura de um certo ideal. Eis como,
forçando um pouco a barra, retomamos a questão da conversão.
Em que ponto estamos hoje - ou seja, na época em que o
estatuto do Outro é aquele do Outro que não existe? Poderíamos
dizer, talvez, que o Outro que não existe é um Outro que não exis
te com relação à divisão, ou seja, um Outro para quem a divisão não
opera para o sujeito. Este Outro que não existe poderia, então, ser
um Outro que não é tocado por este limite interno que é a divisão.
Logo, o Outro é, antes, um Outro que prolifera, um Outro que se
estende, um Outro que, no fim das contas, não é atingido por um
limite.
Nesse caso, o desejo e o gozo, sendo equivalentes, não
estariam confrontados a este ponto de apoio representado pela divi
são que, "normalmente", incide sobre o Outro. Esta conversão, esta
conversão "neo", valorizaria - era o ponto que pareceu ser interes
sante enfatizar - certo uso do corpo que implica e comporta uma
dimensão do não limitado, do não delimitado. É um tipo de conver
são que não diz mais respeito ao corpo tomado a partir de um
recorte ou de um fragmento, mas sim de um corpo tomado como
um todo. Não se trata mais de um corpo abordado pela superfície,
mas de um corpo considerado como algo móvel, como um corpo
que se mexe.
296
Essa seria, talvez, a saída para a dificuldade extrema de se
pensar a neoconversão como podendo se atualizar de outro modo
que não seja como um deslocamento das figuras da conversão. Isso
implica levar em conta a mudança do estatuto do Outro e, correla
tivamente, do corpo como o ponto crucial da conversão.
297
Jacques-Aiain Miller- No semmano das Formações do
Inconsciente, a passagem para a qual você chama atenção encontra-se
no capítulo XIX, na página 348. Nela, Lacan resume o que disse, no
capítulo anterior, sobre o caso de Elizabeth Von R. Fala da dor, da
famosa dor na perna, como máscara e explica o sintoma como aqui
lo que se apresenta sob a forma de uma máscara. Em seu comentá
rio, uma semana mais tarde, lembra o que havia dito, que o sintoma
é inseparável da máscara, mas, a meu ver, ele já desloca essa afirma
ção. De fato, a temática da máscara parece implicar que há, sob o
que aparece na superfície, algo diferente. Mas, nessa semana seguin
te, ao retomar o termo máscara, Lacan insiste tanto sobre a identi
dade entre sintoma e desejo que a dicotomia entre eles parece, no
final das contas, desaparecer.
Não sei se estou sendo claro. Primeiramente, Lacan comen
ta a passagem de Freud dizendo que isso mostra bem que o sintoma
é uma máscara do desejo, que o desejo está sempre ligado a uma más
cara, que ele é mascarado e, portanto, deve ser interpretado.
Na semana seguinte, insiste sobre a identidade entre a dor,
que é o sintoma, e o desejo. Isso o obriga a modificar ligeiramente
o que o termo máscara implicava. É o que faz no início da página
348: "No que concerne ao desejo, enfatizei que ele é inseparável da
máscara, e lhes ilustrei isso, muito especialmente, com o lembrete
de que..." - o que não encontramos necessariamente no capítulo
anterior - " ... é por demais precipitado fazer do sintoma um sim
ples interior em relação a um exterior". Talvez seja, de fato, o que
ele mesmo tenha feito na semana precedente.
Naquele momento, Lacan insiste sobre a identidade: "[ .. ]
.
298
considerarmos antes de compreender o que significa nossa inter
pretação do desejo é que, no sintoma - e é isso que quer dizer con
versão -, o desejo é idêntico à manifestação somática".
299
termo de Freud que encontramos nos Estudos sobre a histeria - como
um simples processo de simbolização? Parece-me que Freud, pelo
contrário, com sua noção de defesa e sua referência à "primeira
mentira histérica", enfatiza uma simbolização que, frente ao sexual,
é apenas máscara ou tela. Em outros termos, é uma simbolização da
coisa que não há. Desse modo, em Asformações do inconsciente, Lacan
fala da conversão como o que identifica o desejo, mas para além da
satisfação e do sentido.
300
que se trata de considerar diferentes tipos de relação com a lingua
gem sobre um fundo comum: todo sujeito, seja ele quem for, tem
uma relação com o significante. Faz-se, em seguida, uma distribui
ção que exige um exame, distribuição na qual teremos que situar os
casos de neurose, de psicose, etc. No caso dos fenômenos de corpo,
parece-me necessário considerar que um sujeito - um ser falante,
um falasser tem sempre que lidar com o corpo e que se trata de
-
na superfície. Por que não formular a tese: "o desejo é sua própria
máscara"? Seria coerente com a noção de que "o desejo é sua pró-
301
pria interpretação". Significa a mesma coisa que "o desejo é defesa
contra o desejo".
Eis a passagem sobre a máscara em ''Juventude de Gide".
Lacan pede que os analistas se deem conta do verdadeiro sentido da
Spaltung freudiana e diz, na página 763 dos Escritos: "Será preciso
para lhes despertar a atenção, mostrar-lhes o manuseio de uma más
cara (...)?" É a máscara lévi-straussiana, a máscara lacaniana e não a
máscara que se tira e o outro diz "Opa! É ele". "Será preciso para
lhes despertar a atenção, mostrar-lhes o manuseio de uma máscara
que só desmascara a figura que ela representa ao se desdobrar, e que
só a representa ao tornar a mascará-la? E com isso lhes explicar que
é quando está fechada que ela a compõe" - a máscara fechada não
mascara o rosto; pelo contrário, ela o representa - "e que é quando
está aberta que a desdobra?". Em uma nota: "essa máscara está à
disposição deles no capítulo 'Arte' da Antropologia Estrutural de
nosso amigo Claude Lévi-Strauss". Este texto é exatamente con
temporâneo ao Seminário das Formações do Inconsciente.
Complementando: "O ideal do eu, de Freud, pinta-se sobre
esta máscara complexa e se forma, com o recalque de um desejo do
sujeito, pela adoção inconsciente da imagem mesma do Outro que
desse desejo detém o gozo, juntamente com o direito e os meios".
O que, aos nossos olhos, constitui nosso eu mesmo mais verdadei
ro, é a máscara que obtemos de nossa identificação simbólica com
o Outro - estou simplificando.
302
1 O. FENÔMENOS DE ORDEM METON ÍMICA
303
tria: em "neodesencadeamento", o "neo" não tem o mesmo valor
que em "neoconversão". No "neodesencadeamento", trata-se de
uma oposição interna à psicose, enquanto que, na "neoconversão",
a ideia é opor os fenômenos do corpo na histeria e na psicose.
304
mesmo de automatismo mental -, pode fazer intrusão no corpo -
vejam a histeria. O corte não se dá entre o psíquico e o somático,
mas entre o pensamento e a formação alma-corpo. Uma diferença
severa deve ser feita entre o pensamento e o psíquico.
305
tinha falado. Aos poucos, não precisou mais de suas bengalas - e
olha que esta história já durava dez anos e havia mobilizado à sua
volta um número fabuloso de pessoas. Era funcionária pública e
era servida por uma multidão de pessoas pagas pela Seguridade
Social. Ela renunciou a uma vida de rainha. Eu não vi a grande
interpretação, seja minha ou dela, que teria suspendido a paralisia;
foi um processo contínuo.
306
uma evolução da conversão: são cada vez menos frequentes
porém, há, também, uma evolução do discurso médico.
307
do essa operação, desenhando um rosto sobre seu rosto. Temos o
fenômeno, temos sua raiz infantil e, no entanto, não se trata do
recalque como segredo, segredo para ela mesma, segredo finalmen
te sabido; é uma outra relação, da qual o materna de Lecoeur tenta
dar conta.
308
1 1 . INVENÇ Ã O SOB MEDIDA E PRÊT·À·PORTER
309
órgãos para os quais é preciso encontrar uma função de localização
do gozo. Quando o esquizofrênico não encontra isso, ele se encon
tra às voltas com os seus órgãos que fazem irrupção. Nos casos que
ouvimos aqui, encontramos fenômenos que se inscrevem nessa
série. Quando a significação fálica é ausente, no "homem enrijeci
do", quando "o homem do polegar" bate em uma mulher por ser
essa a única coisa que sabe fazer, trata-se de esforços de localização;
isso vale também para "o inventor do método".
Assim, poderíamos destacar a relação normal com o corpo
e as localizações do gozo. A função de deslocamento, apontada por
Alain Merlet, vem funcionar como o contrário da localização.
Podemos, de fato, fazer cessar a paralisia e outros fenômenos desse
tipo, sem que o sujeito diga algo a respeito. Uma outra parte do
corpo pode imediatamente começar a servir de substituto para
designar o lugar do gozo. Tudo pode acontecer ai.
310
poder chegar a isso, ele tem que empregar um esforço extremo. Às
vezes, a única coisa que indica em qual registro ele se encontra é o
extremo esforço de invenção que há por trás disso, esforço de
invenção sob medida, quando, para o neurótico, é um prêt-à-porter.
Isso faz uma diferença.
Em "O homem dos cem mil cabelos", o cabelo passa a
sustentar uma significação fálica. Isso não é comum. No entanto,
dizemos, de bom grado, que os carecas são particularmente interes
sados pelo sexo ou que a beleza de uma cabeleira tem um sex-appeal
Resumindo, a significação fálica ronda, de fato, o fenômeno capilar.
Mas, nesse caso, é no real. Há uma significação fálica delirante do
cabelo. A neoconversão se transforma, aqui, em franco delírio sobre
o corpo.
311
cie é a punição por ter cedido quanto ao desejo. Isso não é inven
ção minha, eu cito: "Ele perde seus cabelos quando não é mais ele
mesmo, isto é, quando não faz algo conforme seu verdadeiro dese
jo". Há um Outro, este Outro não barrado do qual falava Lecoeur,
que conta as vezes em que o sujeito cede quanto a seu desejo, e que,
a cada vez, envia-lhe, no real, uma queda de cabelos. O sujeito é
punido pela neocastração do cabelo.
com a qual se dava muito bem. A coisa ia muito bem; ele perde seus
cabelos e logo deduz que deve imediatamente deixá-la. Mesmo que
contrário a todas as aparências, ele aceita que seu desejo esteja para
além da satisfação. Ainda que esteja satisfeito, é punido. Sabe que
seu desejo não está no caminho certo, que deve ir para um outro
lugar e, dessa forma, as coisas melhoram.
312
ção, de intervenção do pai, etc., e tudo isso sobre seu órgão, com a
ajuda dessa cumplicidade somática. Poderíamos, assim, fazer séries
com diferentes tipos de fenômenos que procedem, todos eles, dessa
relação normal com o corpo, dessa relação de invenção necessária.
313
tuto do Outro está implicado no desencadeamento desse fenôme
no de corpo?
para classificar esse tipo de coisa, será que não recairíamos nos mes
mos problemas que as perturbações de linguagem?
314
que acompanho há dezoito anos. Logo de início, o recebi como um
psicótico, mas, devido à sua própria estrutura psicótica, não me dei
conta disso, até que, há cinco anos, o quadro sofreu uma reviravol
ta; muitas coisas cederam para ele, do ponto de vista do laço social,
mas foi, sobretudo, sua relação com as mulheres o que realmente
desmoronou.
Enquanto os fenômenos que ele apresentava poderiam
muito bem ser tomados como conversões histéricas - no sentido
amplo do termo - o que apareceu foi esse "esforço extremo", com
toda essa prática no nível dos polegares, respondendo ao fato de
que tem medo de perder seus polegares. Tenta construir um corpo
para si e, nesse momento, isso se estende no nível dos joelhos e em
cima dos pés; o que faz com que, aos poucos, se estabeleça uma car
tografia. A única coisa que tenho que fazer - três vezes ao dia, even
tualmente ao telefone, e é claro, quando o recebo em sessão - é,
quando me pergunta: "é psicológico doutor?", responder-lhe: "sim,
absolutamente". Ele não pede mais nada e não preciso fazer mais
nada, no sentido em que não há nada de interpretável; ele realmen
te não associa nada. Estamos verdadeiramente do lado de uma
esquizofrenia.
315
sensação intolerável de que o polegar cai no vazio". Toda a psicose
de Schreber está, aí, concentrada no polegar. "Prática de verificação
até que os estalos secundários criados pelas flexões sob a superfície
da pele parem. Vão cortá-lo, exclama; mas, e então, o outro?'.
316
ria, mas será que é verdadeiramente isso?'. O exemplo da hipocon
dria é frequentemente esquecido; há dois séculos existem trabalhos
sobre a hipocondria delirante, mas isso é frequentemente esquecido
e depois retomado, etc. Acontece que nos quatro casos de psicose
que tivemos, a problemática fática intervinha.
Pensei em acrescentar um parágrafo sobre a psicossomáti
ca, mas disse a mim mesmo: não, deixemos isso assim. É por isso
que tentei desenvolver as coisas segundo quatro tipos de configura
ções: ai uma hipocondria não localizada, correspondendo a <Do; b l o
que chamei "dismorfofobia localizada", correspondendo a Po; cl a
problemática catatônica, com a questão de um enlaçamento corpo
ral que visivelmente não se faz naturalmente em casos mais ou
menos graves (acho interessante lembrar que existem casos mais ou
menos graves de catatonia, em particular nas crianças e, eventual
mente, casos em que, de um dia para o outro, isso desaparece - o
que está descrito na literatura); dl tudo o que está ligado à fabrica
ção do sintoma e que, frequentemente, diz respeito ao corpo.
No fundo, a questão é terminológica. Interessa-nos falar
de neoconversão? Interessa-nos falar de fenômenos corporais?
317
1 2. CONVERS Ã O DO SIGNIFICANTE
E LOCALIZAÇ Ã O DA LIBIDO
319
imagens e sons, como fazemos com textos; amanhã, teremos isso
em nossos telefones celulares, enviaremos trechos de música ao
vizinho e receberemos ftlmes. A técnica está aí, só resta definir os
padrões e baixar os custos de produção. A conversão do significan
te está em toda parte. O corpo também é passível de servir de
suporte ao significante. Tudo no corpo se presta a isso: a pele, os
órgãos, os humores, os fluidos do corpo, seus dejetos, etc. Por que
diabos o corpo escaparia à conversão geral? Por que pedimos que
seja feita uma exceção para o corpo? Assim como o resto, o corpo
é suscetível de suportar o significante. Resumindo, trata-se de inver
ter o ponto de vista habitual. Isso é convincente? Talvez apenas
moderadamente, mas é um exercício mental.
Retomemos, agora, o caso do tumor do relatório de
Bruxelas. As coisas vão bem, o sujeito sente paixão pelo tumor
que tem, mas a paciente esmorece quando a questão é curar esse
tumor: "Descobriu-se que ela tinha um tumor no cérebro, do qual
foi operada com urgência. Essa mulher irá explorar obstinada
mente os determinantes simbólicos de seu tumor. Seu tumor
decorre do lugar que sua mãe lhe deu: ocupar o lugar de um
morto". Em seguida: "O apoio que ela encontrava no significante
tumor de repente lhe falta" - no momento em que o médico a tran
quiliza quanto à recidiva - "revelando, ao mesmo tempo, em quê
ele lhe servia. Esse tumor tinha, para ela, valor de ponto de basta.
Esse tumor parece ter tido para ela o mesmo estatuto de uma
metáfora delirante".
Ouvi falar recentemente de um caso parecido, de um sujei
to que tinha uma dor delirante e não se podia, de maneira alguma,
dar-lhe esperanças de cura, pois toda a sua vida estava organizada
em torno desse delírio. Do que se trata? Trata-se de uma parte do
corpo, mas é, sobretudo, uma palavra. "Tenho um tumor" é, sobre
tudo, um sentido gozado que constitui um neo-Nome-do-Pai e um
neofalo. Somos, de fato, obrigados a dizer que isso vem no lugar do
que distinguíamos como Po e <l>o.
320
Os dois casos, "O Homem dos cem mil cabelos" e "O
Homem do polegar" se ordenam. De um lado, temos cem mil cabe
los, do outro, temos um polegar, no singular. Uma parte do corpo
é investida de maneira especial e sua unicidade é tanto mais marcan
te na medida em que temos dois polegares - ele poderia fazer o
esforço de investir os dois polegares, mas não; só um é investido; o
outro é posto sob ameaça, mas, enfim, não é investido da mesma
forma.
321
Do lado da neoconversão, o recalque não se presta à leitura como
na conversão. O que parece se esboçar é a importância particular da
identificação, o que, pela manhã, já foi mencionado a respeito da
melancolia. Mas teríamos todo o interesse em repensar essa questão
por outro viés que não aquele da máscara, pois a identificação, colo
cada a partir da máscara, joga com a abertura e o fechamento: é a
máscara com portinhola, isto é, uma solução de descontinuidade.
Essa questão é considerada de uma nova maneira por Lacan, quan
do situa a identificação em relação ao nó borromeano, colocando-a
em termos de reviravolta, ou seja, em um registro de continuidade.
A vantagem de abordar as coisas por este viés é que a identificação
permanece como o que está sempre a trabalho, não sendo mais
concebida a partir de uma referência de fixidez.
Lembrei-me, hoje de manhã, do caso de um sujeito psicó
tico que diz que sua linguagem modificou-se a partir do momento
em que lhe colocaram, aos doze ou treze anos de idade, um apare
lho dentário na boca. Esse aparelho foi retirado e, desde então, a
linguagem que ele usa não é mais a sua: é a linguagem do Outro.
Essa questão de aparelho, de uma identificação que aparelharia o
sujeito à linguagem, pode ser, a meu ver, repensada.
agora ele se tornou esse aparelho, quando fala. Mesmo que esse
aparelho lhe tenha sido retirado, seu efeito, sua consequência, con
tinua. Ele fala a língua do Outro, se assim posso dizer. Em minha
opinião, isso nos conduz a abordar a identificação não mais a partir
de figuras imaginárias, mas a partir de uma encarnação, uma presen
ça permanente do Outro. Há uma distância entre o sujeito e o
Outro, mas o Outro está aí, em um trabalho permanente.
322
Jean-louis Gault Gostaria de dizer uma palavra a respeito
-
323
1 3. CONVERSÃ O DO SIMB Ó LICO AO REAL
Jean-Louis Gault A partir disso, ele foi ver fotos mais anti
-
325
tinha um início de calvície. Trata-se, na verdade, de um fenômeno
banal: como muitas outras pessoas, ele vem se tornando calvo.
Porém, apropria-se da calvície e lhe dá uma grande importância,
sobretudo na relação com a mulher, da qual falava Éric Laurent.
Tinha uma relação absolutamente satisfatória com essa mulher e,
posteriormente, começou a experimentar fenômenos de angústia;
ele não se sentia muito à vontade com ela. A calvície veio em seu
auxílio, foi o sinal de que as coisas não iam nada bem, de que era
preciso não continuar por essa via. Então, ele usou a calvície, se
apoderou desse pequeno fenômeno discreto para fazer dele um
signo. Isso o mobilizou muito: ele começou a escrever e a se inter
rogar sobre as causas dessa calvície; recorreu às enciclopédias, à
retórica, etc., foi colocar tudo isto em ordem.
vação que o senhor fez de que, no fim das contas, mais que ao
corpo, isso dizia respeito ao sentido gozado; no caso, os fenômenos
corporais são extremamente discretos e o que vai ocupá-lo muito
são as expressões que contém a palavra cabelo, a palavra crina, etc.,
que ele tenta situar graças ao saber enciclopédico da anatomia. É
barroco em relação ao caso freudiano da histeria, que se separa da
anatomia e recorta o corpo conforme a linguagem; ele acaba voltan
do à anatomia e tenta mobilizar seus recursos. O que se torna muito
importante é o músculo eretor. E, mesmo depois que os cabelos já
caíram, ele ainda experimenta fenômenos na superfície do crânio,
fenômenos dolorosos, pois o músculo eretor continua a se contrair;
ele sente ardências, etc.
326
Genevieve Morei Minha pergunta diz respeito à parte V do
-
327
François Sauvagnat Sim, trata-se, simplesmente, de apon
-
tar para algo que é conhecido na clínica e mostrar que há algo que
corresponde. Se isso me interessou, é porque havia uma espécie de
equivalência de enigma; há um certo número de autores que disse
ram que, no fundo, enigma e hipocondria, no sentido de enigma
psicótico...
328
1 4. A HI Â NCIA MORTÍ FERA
329
saber se a perturbação do imaginário é um efeito direto da foraclu
são ou se é um efeito que passa pela elisão do falo, consequência
direta da foraclusão, e que, a fim de resolvê-la, o sujeito a reduz à
hiância morúfera do estádio do espelho. Essa alternativa supõe a
descrição renovada que dá Lacan do estádio do espelho como o que
comporta, de maneira essencial, uma hiância morúfera.
Interrogamo-nos, desde sempre, sobre a famosa passa
gem: "Terá esse outro abismo sido formado pelo simples efeito,
no imaginário, do vão apelo feito no simbólico à metáfora pater
na?" - seria ele um efeito direto da foraclusão? - "ou deveremos
concebê-lo como produzido num segundo grau pela elisão do
falo, que o sujeito reduziria, para resolvê-la, à hiância morúfera de
estádio do espelho?"7 Tratar-se-ia, nesse caso, de uma regressão
tópica, o que supõe que tenhamos previamente definido o estádio
do espelho incluindo uma hiância morúfera. Para poder dizer isso,
Lacan tomou o cuidado de apresentar previamente o estádio do
espelho da seguinte maneira: "O par imaginário do estádio do
espelho, pelo que manifesta de contranatureza"- logo, o estádio
do espelho seria impensável no animal, impossível de se encontrar
na etologia - "se convém relacioná-lo com uma prematuração
específica ( . ), é, com efeito, pela hiância que essa prematuração
. .
330
Philippe La Sagna - A respeito das questões de localização,
não haveria uma forma de considerar as coisas em relação ao últi
mo Lacan? Ele faz do corpo, que sempre designou como o lugar do
Outro, um lugar um pouco fictício, um pouco determinado por um
dito, por alguma coisa da ordem de uma ficção e, mais tarde, ele diz
que o lugar do Outro é o corpo. Ele reafirma, em particular no
Seminário 20, o corpo como localizando algo do que pode ser o
Outro. Não seria isso esclarecedor em relação aos fenômenos do
corpo na psicose? A partir do momento em que concebemos as coi
sas dessa maneira, não há mais diferença entre o significante e o
corpo, isso é, a oposição cai. Só temos um corpo porque o signifi
cante também é capturado, ou seja, existe a ficção do Outro, há um
lugar no qual os significantes se localizam. E são duas coisas que tal
vez ele torne indissociáveis.
331
"converter" - é o termo que ele utiliza, o que me impressionou
muito - as regras de seu método em um discurso que, assim como
uma teoria dos tipos, lhe permitiria regular o que ele não conse
gue regular com o método em si. Reencontro, aqui, o que disse
Philippe La Sagna: vemos, claramente, nesse exemplo, como o
simbólico e o imaginário, a linguagem e o corpo, se correspon
dem, estão ligados, estão articulados. Não há, de um lado, o ima
ginário e as práticas e, do outro, o simbólico. Há, entre os dois,
uma espécie de conversão, não no sentido da conversão histérica
- de maneira alguma, jamais -, mas talvez como camadas sucessi
vas, que permitiria regular melhor o gozo que tem lugar no corpo,
assim como no pensamento.
invenção que ele tem que fazer e que, de certa forma, se dedica a
isso de maneira cartesiana.
332
1 5. CORPO, CARNE, CAD ÁVER
333
É uma outra forma de dizer: a linguagem é indissociável
de um tipo de relação com o corpo que foi, primeiramente, apreen
dido na história pelo incorporai.
334
a todo vapor� , etc., que são locuções da lingua francesa que mobi
lizam uma referência ao cabelo, ao fânero, ao pelo, etc. Para ele,
essas expressões e locuções francesas não se inscrevem em um dis
curso e o fenômeno corporal não aparece, tal como na histeria,
como um pedaço de discurso o qual se trataria de fazer emergir, de
situar, como uma metonímia ou como uma metáfora; pelo contrá
rio, a expressão, o pedaço de lingua, é completamente isolado e liga
do diretamente à anatomia. Ele vai procurar a anatomia para expli
car exatamente a significação dessas expressões francesas.
335
vertente deficitária do corpo: é quando, por exemplo, o narrador
repete várias vezes que Stephen Dedalus, "o jovem herói", não tem
corpo; que, por exemplo, o nascimento não tem nada de simples, o
que Beckett vai explicar a respeito de Joyce; e há um capítulo que
trata especialmente do parto e do desenvolvimento do embrião e da
língua inglesa. Há essa vertente, mas, por outro lado, o próprio
Joyce compara seu livro a um corpo: ele diz que os capítulos são
órgãos e, quando ele fornece esquemas aos comentadores, há, em
todo esquema, um órgão coordenado a um capítulo. Vemos, então,
perfeitamente bem, que o corpo tem, aí, uma função como lugar do
Outro.
336
escreverá suas ideias de morte. Ou seja, a folha vai recolher o mor
tífero que antes se marcava na pele. Ela tem sempre um pequeno
espelho em sua bolsa, sabe quais são as cafeterias em que as pare
des são cobertas de espelhos, para instalar-se diante deles, com uma
função que é mais de apaziguamento e de unificação que qualquer
outra coisa.
337
Vejamos se conseguiremos, amanhã, ser um pouco mais convencio
nais e extrair, de nossas falações, algumas teses.
338
D O PSI C ÓT I C O A O ANALISTA
Jacques-Aiain Miller Abordaremos nesta manhã a terceira
-
341
Para responder a isso, Toulouse se refere à conceitualiza
ção que Lacan nos legou em um pequeno texto, sobrepondo ao
par analista-analisando o par verdade-saber. O analista comple
mentaria o analisando de modo análogo ao modo pelo qual o
saber complementa a verdade, na medida em que um saber res
ponde a uma verdade, desenvolve, desdobra, explica o que nela
está implicado. O relatório de Toulouse considera que essa concei
tualização não convém ao par que se forma quando o analisando
é um sujeito psicótico. Ele indica que é preciso levar em conta o
gozo, pois se trata mais de gozo do que de verdade, mais do sint
homa do que do sintoma, e que o analista é, antes, o parceiro-sin
toma do que o parceiro-saber - eu estou resumindo. Será que os
dois casos vêm verdadeiramente apoiar essa tese? Isso não me
pareceu totalmente evidente. Mesmo porque o caso da Senhora A,
o primeiro do relatório, é o único caso da compilação sobre o qual
gostaríamos de ter mais detalhes para estarmos convencidos de
que se trata de um caso de psicose.
A tentativa de Angers - audaciosa, precisa - é de pensar a
relação psicótico-terapeuta a partir da lalíngua. Há um problema:
lalíngua não é um instrumento de comunicação. Portanto, como um
diálogo pode ser estabelecido, ainda assim, a partir de lalíngua? É a
aposta da demonstração. O primeiro caso para apoiá-la é aquele que
Daniele Rouillon já havia apresentado no Conciliábulo de Angers, no
qual o paciente pratica uma língua especial que a terapeuta repro
duz. O caso de Lombardi, apresentado na mesma ocasião, é utiliza
do no mesmo sentido. O par analista-analisando é, então, apresen
tado nos seguintes termos: o analista se coloca na posição de apren
der a lalíngua do paciente. Essa língua, quando ela se apresenta
fechada sobre si mesma, implica que o analista pague com sua pes
soa para demonstrar que um outro pode aí se insinuar, ceder a ela e
esboçar, senão um diálogo, pelo menos uma forma de resposta. O
analista se coloca na posição de aluno daquele que elaborou essa lín
gua especial.
342
Talvez nossos colegas de Bruxelas queiram ordenar seus
casos a partir dessa questão. Ao menos o primeiro caso se prestaria
bem a isso. É o caso de Eva, que se mostra afetuosa, gentil com seus
coleguinhas, até que um obstáculo se apresente no eixo imaginário;
segue-se então, forte agitação, golpes, raiva, etc. A questão que se
coloca, portanto, é: como pode o analista se inserir nesse eixo sem
ser rejeitado como um objeto intruso? Há dois tempos: no primei
ro tempo, a analista se insere como um bom objeto, ela se faz de
boa mãe, oferta muitos carinhos à sua paciente e, então, tampona
essa hostilidade agressiva imaginária, simplesmente acentuando sua
benevoientia. Isso é se inscrever no eixo imaginário, mas tomando
todo o cuidado para ser um bom objeto. No segundo tempo da
operação, a paciente qualifica sua terapeuta de "fiadora" [garante], o
que tenderia a mostrar que, pouco a pouco, a analista consegue se
inscrever em outro lugar que não o de bom objeto, que ela se ins
creveu como Outro em relação ao eixo imaginário.
343
1 6. DO SABER SUPOSTO À LALÍNGUA EXPOSTA
acordo, diria que nosso trabalho teve como eixo principal as pertur
bações do laço social que um sujeito psicótico pode apresentar e os
meios que são colocados à disposição do analista para ajudar esse
sujeito a se inserir em um discurso. Esse eixo de trabalho se encon
tra delimitado por um duplo vetor.
Temos um primeiro movimento proveniente do próprio
sujeito psicótico, seu extremo esforço de invenção de uma la!íngua
própria. É uma lalíngua íntima, mas é, sobretudo, um achado, uma
bricolagem que permitiria ao sujeito psicótico localizar o gozo, não no
nível do polegar ou do cabelo, como nos relatórios de Nantes e
Rennes, não no nível de uma palavra como "tumor", como no rela
tório de Bruxelas, mas na criação de uma língua particular: a língua
Donald de Ophélie; a língua dos números, no caso de Daniele
Rouillon. Também acrescentaria, com prazer, a língua San Antonio,
que passou para o discurso comum: é o que testemunham as
expressões "ter um pé sobre uma casca de banana e o outro na
cova" e todos os tipos de aforismos que passaram para o discurso
corrente. Frédéric Dard faz esse esforço de invenção de forma
muito repetitiva, já que chegou ao seu 201 o livro.
Temos, portanto, esse primeiro vetor, proveniente do psi
cótico. Em seguida, temos outro vetor que, por sua vez, provém do
psicanalista. Ele provém não de um esforço de invenção, mas,
sobretudo, de um esforço de aprendizagem; ou, ainda, da sua extre
ma docilidade em aprender a lalíngua particular do sujeito. Retomo
aqui um termo de Lacan que Pierre-Gilles Guéguen utilizou em
345
Angers durante uma apresentação de pacientes: "Fui dócil o bastan
te?", dizia ele no fim de uma entrevista que havia conduzido com
uma histérica. Tratar-se-ia então de ser dócil, não em relação à his
térica, mas em relação à invenção do sujeito psicótico. É o que tam
bém retomou Alexandre Stevens em seu relatório, por meio de dife
rentes fórmulas que ressaltei e que achei notáveis. Ele diz que se
trata, para o analista, de "intervir do lugar onde isso não se sabe",
ou de "sustentar o sujeito nas invenções que ele estabelece para se
defender do Outro gozador", e até mesmo, dizia ele ainda, de "tra
zer o Outro para o terreno das brincadeiras infantis". Considero
essa expressão muito útil para nós, já que, de fato, me parece que é
o que Jean Lelievre tentou fazer no caso de Ophélie, quando tenta
va brincar com ela de massa de modelar ou quando se deixou cap
turar pela língua Donald. Seu "quacktro e dez" seria, com efeito, a
prova de sua docilidade, e a menininha ri do fato de que ele inter
venha justamente desde esse lugar onde não se sabe.
Temos, então, nesse relatório, dois vetores para um único
eixo de trabalho, o que é ambicioso, pois tal trabalho deveria resul
tar na restauração de um laço social, seja ele um laço social ainda
não existente, seja um laço que estivesse perturbado.
Para entrar um pouco mais nos casos clínicos propriamen
te ditos, parece-me que temos, em relação à neotransferência, dois
casos que poderíamos aproximar: o caso Eva, da Sessão Clínica de
Bruxelas, e o caso de Ophélie, de Angers. De fato, trata-se de duas
meninas da mesma idade - se bem entendi, ambas têm onze anos,
ambas são tratadas em uma instituição, ambas estão às voltas com
um gozo flutuante, invasivo e não localizável. Esse gozo se traduz,
aliás, por fenômenos do mesmo tipo, com fases de agitação mistu
radas com agressividade: Eva se debate, grita, chora, dá pontapés, e
Ophélie cospe pedaços de massa de modelar, lança injúrias e bate.
As duas também ocupam, na família, o lugar de dejeto. Ambas
fazem apelo à nomeação, por intermédio da "fiadora" [garante], no
caso de Eva, e o nome próprio de "Lelievre", para Ophélie. Não sei
346
se poderíamos aprofundar as comparações, mas, enfim, eis alguns
elementos que me pareceram possíveis de serem aproximados.
Para terminar e relançar a questão do sentido gozado, que
foi abordada ontem, retomaria com prazer uma expressão usada
por Jacques-Alain Miller. Ele disse que o investimento libidinal de
Ophélie sobre a língua Donald permite a ela, em determinado
momento, apagar todos os outros objetos do mundo, já que essa
língua Donald chega até a invadir a própria instituição, a família e
tudo ao seu redor. Seria uma tentativa da menina de fazer a língua
Donald passar para o discurso comum.
s (S1 , S2, . . . , Sn )
347
(Sq) anuncia a escrita S1-S2. O par é localizado na célula mínima da
cadeia significante e a transferência é concebida como o efeito de
significação dessa articulação significante mínima. O que se coloca
sob a linha inferior, a saber, o s minúsculo que antecede o parênte
sis, designa uma significação de saber. Foi o que deu origem à ideia
do saber suposto. O suposto saber não é um saber exposto, não é
nem mesmo um saber posto, não é um saber desenvolvido, não é
um saber explícito; é uma simples significação de saber. O Outro
sabe, o saber é seu atributo sem que disso ele tenha que dar provas;
é sem demonstração, sem mostração. O ponto de partida é, portan
to, muito simples. Temos aqui um esboço da construção dos quatro
discursos. Há o S1, Sz, o s minúsculo, bastaria acrescentar embaixo,
à direita, o pequeno a e teríamos o discurso do inconsciente. O
objeto já está presente no texto da "Proposição", uma vez que é
dito que, durante o tratamento, o objeto ainda latente virá no lugar
que, de início, é aquele do saber suposto.
Vocês também tiveram uma ideia simples: já que se trata de
definir um tipo especial de transferência, que modifica a transferên
cia normal, tomemos o algoritmo de Lacan e o modifiquemos. Com
isso, vocês pensaram em inscrever lalíngua no lugar em que estão S1,
Sz, S3 do saber suposto. Há uma dificuldade: a transferência é abor
dada nesse algoritmo como uma espécie de artefato, um efeito da
relação S1--S2, enquanto que lalíngua antecede o estabelecimento da
relação - não é lalíngua da transferência, é a língua do sujeito. Se ela
funciona como um saber suposto é muito mais para o terapeuta que
para o paciente, visto que é o terapeuta que deve aprendê-la.
Podemos até mesmo nos perguntar: em relação a quê ela
é suposta - quando é justamente a sua manifestação primordial que
temos à nossa disposição? Poderíamos também dizer que não é
uma língua suposta, mas uma língua exposta, e que o sujeito se
sente, nessa ocasião, exposto com ela, exposto especialmente à
intrusão do outro. Suposição na neurose, exposição na psicose. Vai
se do suposto saber à lalíngua exposta.
348
1 7. A L ÍNGUA E O LAÇO SOCIAL
349
No terceiro caso, que é um caso de Léonce Boigelot,
vemos o analista trabalhar no sentido de limitar o gozo. Há uma
dupla posição do analista. O paciente é tratado com medicamentos
por um psiquiatra, que considera tratar-se de uma doença tal como
a diabetes, por exemplo. O que ele vem procurar no analista é outra
coisa: trata-se, por um lado, de encontrar quem ele é; por outro, de
como lidar com suas tensões. Quanto ao "quem ele é", eu diria o
seguinte: ele é um trabalhador para a psicanálise, para a sua própria
psicanálise. É o paciente que pode dizer, quando chega às sessões:
"hoje vai ser uma análise freudiana", "hoje vai ser uma análise psi
cometafísica", etc. É o plano do "quem ele é". No plano de "como
lidar com suas tensões", vemos o analista, na transferência, no lugar
daquele que permite limitar o gozo: calmamente, vejamos como
você vai se arranjar com todas essas despesas financeiras lá fora e
pagar aqui a sua sessão. É a teoria clássica da posição do analista em
relação à psicose.
A definição do analista como descompletando o Outro é
também retomada no relatório de Toulouse: "Dessa forma, portan
to, chegamos à conclusão de que o analista-sintoma preenche sua
função abrigando o gozo à deriva e nisso ele garante a função não
todo (pas tout)".
Ora, em relação ao que habitualmente dizíamos, o relató
rio de Angers nos propõe um novo modo de conceitualização da
transferência na psicose, que é a relação com lalíngua.
Vocês queriam aproximar o primeiro caso de Bruxelas, o
caso Eva, do caso Ophélie, de Angers, no qual se trata da língua
Donald: parece-me, de fato, que isso é precioso, mas, ao mesmo
tempo, eles vão em direções contrárias. No caso Donald, vemos o
analista imiscuir-se na lafíngua da criança, enquanto que, no caso
Eva, é o inverso: a menina Eva se imiscui no que poderíamos cha
mar a lalíngua da instituição, recolhe uma palavra que faz parte da
língua da instituição, a "fiadora" [la garante] . É uma função, aliás,
mínima na instituição, mas cada criança tem alguém que é assim
350
designado. Ela recolhe, portanto, esse termo e começa a se servir
dele para falar; em seguida, ela tenta encontrar com esse termo um
modo de identidade, aliás, complexo.
351
nos levaria de volta à questão das perturbações da linguagem que
evocamos ontem, nas quais o sujeito toma um enunciado ao pé da
letra. Para mim, a questão é: o que de fato o sujeito recolhe com
esses termos?
352
Gostaria que discutíssemos a direção da cura com os psi
cóticos. Imaginemos que tivéssemos Schreber em análise. Será que
a tese que o relatório de Angers sustenta implica que deveríamos ter
aprendido a falar com ele a língua fundamental, ou seja, esse vigo
roso e rebuscado alemão um pouco arcaico, ou teria o analista
tomado a posição de falar com ele a respeito dessa língua e com ele
comentá-la em alemão normal?
Que diferença há entre essa concepção de se pôr a falar a
lalíngua do paciente e o que Lacan chamou delirar com o paciente?
Minha tendência até hoje, no tratamento com psicóticos, foi mais
de induzir no sujeito um esforço de tradução; fazer com que o sujei
to se canse de ter que traduzir para mim essa língua - enfim, não sei
como chamar essa língua fundamental, essa lalíngua -, para efetiva
mente fazer com que eu a aprenda, mas que eu a aprenda em fran
cês, na língua que considero comum. Isso me leva a uma pergunta:
realmente temos, cada um, uma língua? Essa concepção teórica é
sustentável? E de que maneira?
Apresentarei rapidamente uma vinheta. Tenho em análise
um inspetor de impostos paranoico que desencadeou sua psicose
no dia em que se instalou no apartamento de seu sogro. Neste dia,
ouviu vozes que lhe diziam que todos os seus dossiês secretos - os
dossiês secretos dos impostos - dos quais cuidava, tinham caído nas
mãos dos inimigos do Estado. Na manhã do dia seguinte, ele foi ver
seu chefe e lhe disse: "Escute, é uma catástrofe, eu traí o senhor,
todos os dossiês estão com os inimigos". Ele desencadeou, portan
to, uma paranoia sob essa modalidade e com isso começou seu tra
tamento. Tinha diálogos de vozes que se falavam e para mim era
muito difícil entender do que essas vozes tratavam: era incompreen
sível, uma verdadeira cacofonia. Tentei durante um tempo pegar a
coisa por aí, mas não consegui; deixei de lado o diálogo das vozes e
passamos para outra coisa. Finalmente, depois de muitas peripécias,
o sujeito se identificou com o escritor americano James Ellroy, que
considerava ter tido a mesma experiência de loucura que ele. A par-
353
tir desse ponto, começamos um diálogo - me parece que pela pri
meira vez - nesse tratamento: tínhamos uma conversa corriqueira
sobre a literatura americana. No fundo, poderíamos dizer que sua
língua era a literatura americana. Conversamos e o tratamento
seguiu assim. Eu me dizia que poderíamos opor seu gosto pela lite
ratura americana à língua das vozes, na qual não consegui entrar.
Será que eu deveria ter insistido nessa via? É esta a tese que vocês
sustentam?
Geneviêve Morei Isso não foi uma crítica. Lacan diz que
-
Pierre Stréliski - Não sei se essas duas teses são tão contra
ditórias assim, já que tanto em um caso como em outro o terapeu
ta faz um esforço para encontrar um laço de conversação com o
sujeito psicótico.
354
apoiando-nos sobre uma distinção introduzida por Jacques-Alain
Miller, em 1 987, entre o significante articulado e o significante sozi
nho. Pensamos então em encontrar, nesse Seminário, os alicerces da
teoria de lalíngua articulada sobre a base do significante sozinho.
Isso nos levou a colocar em série - trabalho que expus durante uma
jornada do CIEN - certo número de tentativas de Lacan para defi
nir o estatuto do significante sozinho. Antes de tudo, ele é o signi
ficante St como produto do discurso analítico, disjunto de S2. Em
seguida, ele é a substância gozante como significante St, ou seja,
como real, enfim, a letra. A função proposicional de Frege servirá,
mais tarde, para indicar a relação do simbólico com o real. Ela está
desenvolvida de modo eminente nas fórmulas da sexuação e,
depois, na função I: (x), a função do sintoma. Por fim, St será apre
sentado como nó borromeano, como a origem do nó borromeano.
Pareceu-nos mais simples partir do significante sozinho
que do nó borromeano. De um modo geral, constatamos que os
trabalhos apresentados nessa Convenção estavam aquém na
Conversação de Arcachon, na qual houve uma abertura maior para
a clínica borromeana.
355
1 8. DECOMPOSIÇ Ã O ESPECTRAL DA LINGUAGEM
relação com o laço social, tal como evocou André Soueix. Partamos
do conceito de linguagem. A partir do Seminário 20, o conceito de
linguagem em Lacan se decompõe, assiste-se à sua decomposição
espectral. Ele se decompõe em duas partes, lalíngua e o laço social,
que são correlativas. Quando refletimos sobre esse Seminário, nos
damos conta de que o conceito estruturalista da linguagem unifica
va, condensava lalíngua e laço social.
Linguagem
/�
Lalíngua O Laço social
357
tura que submete o uso de lalíngua, que a linguagem é o produto de
uma operação de domínio que vai desde a nota baixa dada ao aluno
até o lansquenê de Luís XIV e a cruzada dos Albigenses. O mestre
força as populações oprimidas a falar outra língua, diferente da que
eles falam - temos aqui nossos colegas de Barcelona, para quem
isso é uma referência bastante presente, pois não faz muito tempo
que efetivamente o modo espontâneo com o qual costumavam se
endereçar uns aos outros, baseado no catalão, foi reprimido, pros
crito, considerado um crime. Barthes exagerou ao dizer que a lin
guagem era fascista, e foi tomado ao pé da letra nos Estados
Unidos, onde nasceu, nas universidades, essa tentativa ubuesca9 de
reforma autoritária da linguagem chamada PC,political!J correct [poli
ticamente correto] .
Desde então, começamos a estudar melhor a história da
gramática: como nasceu a ideia da gramática, como nos debatemos
em torno das gramáticas - nas últimas férias, li um belíssimo livro
a respeito dos gramáticos romanos, do qual gostaria de falar. Os
estudos históricos sobre os aparelhos de normatização da língua se
multiplicaram.
Sob a linguagem normatizada, que passa essencialmente
pela escrita, há o que é ouvido, lalíngua à deriva, como diz o relató
rio de Toulouse, lalíngua "em liberdade", os mal-entendidos infantis
sobre lalíngua, as homofonias, as significações investidas, os sentidos
gozados, que imantam lalíngua. O mestre se empenha em normati
zar lalíngua. Nessa última volta às aulas, ouvi minha neta, muito
orgulhosa de passar da creche ao maternal, dizendo: '']'ai allé à l'éco
le". Entende-se bem por que ela vai à escola: ela vai à escola justa
mente porque diz: '']'ai allé a l'école"10• Aparentemente, lalíngua, tal
como é falada à sua volta, não lhe ensinou que "avoir allé'' não é uma
forma aceita. Por que não diríamos '']'ai allé à l'école'? Não é nada
mal - simplesmente, isso não se diz. Por isso lalíngua se distingue da
linguagem. O que chamamos de linguagem é feito de lalíngua mais
o elemento social que a normatiza. De onde surge o significante-
358
mestre? Da rotina própria à relação social? Da conversação? Do
laço social? Mas, e se não existir laço social sem o significante-mes
tre? É um círculo.
Observemos que o psicótico, acometido no nível do laço
social, do Outro, do Nome-do-Pai, mais ou menos desligado, per
manece correlativamente mais conectado à sua lalíngua. Laço social
e lalíngua são dois termos correlativos.
avô?
estados de língua. Por que ela não poderia falar o francês rebusca
do, romanesco? É preciso, apesar de tudo, que a pobre criança, um
359
dia, seJa compreendida, e que ela escreva a instância da letra no
inconsciente.
360
1 9. WORD ANO OBJECT
361
ção se modifique. O que é precioso no relatório de Angers é que ele
procura formalizar isso.
362
cia, em todo o lugar onde a particularidade incide. Informar-se
quanto a essa particularidade é, ao mesmo tempo, entregar-se à tra
dução.
Em nossa abordagem geral de hoje, começamos a nos
habituar a ver lalíngua e todo o conjunto desses fenômenos a partir
da psicose, e não da neurose, onde tudo está mais normatizado.
Pode-se dizer que a relação normal com lafíngua é muito mais aque
la do psicotizado, que uma língua está sempre infectada por mensa
gens de código, por códigos de mensagem, de informações sobre o
uso de lalíngua, e que é impossível atingir o nível de uma separação
simples do tipo: qual o sentido dessa palavra?
Tomemos o exemplo da utopia Quine. Partamos de gava
gai; o coelho, e estabeleçamos um sistema de tradução. Ele irá se
deparar sempre com o princípio de indeterminação. Sempre haverá
numerosos meios de dizer o que quer dizer gavagai" em seu contexto
de enunciação. Há hipóteses de traduções equivalentes e jamais
saberemos o que isso quer dizer de modo unívoco. Para além das
ciências duras, que isolarão a natureza do coelho, será necessária
uma prática social para colocar-se de acordo quanto a uma tradu
ção. Somos então levados a uma prática generalizada da tradução. A
ideia quineana pode, sob certos aspectos, ser aproximada daquela de
Wittgenstein. Só se sabe o sentido de uma língua a partir de sua prá
tica, pela determinação de certo número de coisas que suspendem
parcialmente as indeterminações de traduções equivalentes.
Estamos, portanto, às voltas com a questão de saber como
compreender o que nos é dito, como compreender a lalíngua do
outro, que é tocada por uma significação pessoal em níveis não ima
gináveis. Metodicamente, tentamos compreender onde está essa
modificação, em que nível ela se produz, por meio de uma prática
de bricolagem generalizada. Nós nos viramos com um princípio de
tradução generalizada, na qual sulcamos nosso caminho.
Lacan, no momento em que refaz toda a sua teoria, obser
va, sobrevoando a Sibéria, a sulcagem. Ele não observa o arbitrário
363
do signo e do mapa, os códigos, as mensagens. Ele observa mais as
[curvas] isóbaras12 e os sulcos do significante. Aliás, observei que
Jacques-Alain utilizava, há dois dias, a expressão la routine des prati
ques (a rotina das práticas), que é uma expressão esclarecedora para
designar a sulcagem.
364
Não podemos nos reconhecer no código, nem mesmo em
um código de boas maneiras; é preciso se encontrar. E se não nos
encontramos o bastante, não se sabe mais, no fim das contas, o que
queremos dizer uns aos outros. Percebe-se a necessidade da conver
sação a partir do momento em que nos damos conta de que o
Outro não existe, que o Outro é uma ficção do laço social. Nesse
momento, começa a era dos colóquios, indústria mundial em pleno
desenvolvimento e que resiste a tudo.
Nós, nós tentamos estabelecer as condições da conversa
ção com o psicótico e nos oferecemos para que ele se sirva de nós.
Existe uma situação analitica normatizada em direção à qual tenta
mos conduzir o sujeito neurótico. Ao mesmo tempo, nos oferece
mos no mercado como uma espécie de instrumento e, às vezes, as
pessoas se servem de nós de um modo que não está normatizado,
nem previsto pelos modos de uso. Frequentemente, coloca-se a ques
tão se isso deve ser acolhido. Mas, ao mesmo tempo, há sempre o
outro lado a se considerar: devemos impor rigorosamente nosso
ideal de tratamento a um sujeito que se serve de nós ao seu modo
e que encontra aí a sua satisfação? Existem usos mais elevados, gos
taríamos que o paciente se servisse de nós da melhor maneira e,
com efeito, não devemos nos resignar, mas considerar igualmente o
outro lado. "Freud dócil para com a histérica", dizia Lacan, e
Guéguen, assim como Fabienne Henry, nos convidam a estender
nossa docilidade ao psicótico. Sejamos, de fato, objetos bastante fle
xíveis e tolerantes, bastante masoquistas, se me permitem dizer,
para que se façam usos de nós, usos que não sejam normatizados,
nem inteiramente previsíveis.
365
20. LÍNGUA P Ú BLICA E L ÍNGUA PRIVADA
367
mais social possível: são os paradoxos de Rousseau ou de
Wittgenstein. O primeiro, que fez a experiência mais particular de
invasão de gozo no caminho que conduz a Diderot, retoma dessa
experiência e faz dela um livro que revoluciona a Europa. Ele con
segue, então, falar com todos, em uma língua que é perfeitamente
pública. No entanto, até o fim de sua vida, em Rêveries du promeneur
so!itaire (Devaneios do caminhante solitário), vai tentar escrever a particu
laridade inusitada dessa experiência, que as palavras não consegui
rão circunscrever.
368
reconstituição da língua que havia desaparecido como língua de cul
tura, na virada de nosso século, o caráter pragmático dos catalães os
fez escolher uma via que tomava partido dos literatos. Eles proce
deram a uma reconstituição da língua a partir de uma prática literá
ria que não havia deixado o terreno do sentido gozado e iniciaram
uma conversação geral sobre a literatura, sobre a beleza da língua.
Os bascos agiram de maneira completamente diferente, ou pelo
menos o fundador do movimento nacional basco que veio a ter
mais sucesso, HB. Este fundador, um psicótico, constituiu uma lín
gua artificial, extraída com um esforço considerável, misturando
três unidades linguísticas distintas que, juntas, nunca haviam forma
do uma língua. Ele as misturou, desenvolvendo um denominador
comum que seria a língua basca ideal. Propôs essa solução para
superar a histórica divisão das províncias bascas e afirmar a unida
de da nação. É esta língua ideal que se ensina nas escolas bascas,
uma pura criação que ninguém nunca falou. O autor destacava quão
suicida era essa atitude. Existe, aliás, toda uma corrente de estudos
do nacionalismo basco que aponta para esse perigo suicida, "o cír
culo melancólico", no qual pode se encerrar esse ideal.
durante séculos.
369
prevalece a ideia de sulco, das rotinas, das práticas. Isso não nos dá
a ideia de uma bela paisagem, com uma lingua que se distribui, mas
sim a dos sulcos. O único meio de nos assegurarmos de que fala
mos uma lingua, que falamos um francês adaptado em um procedi
mento de tradução geral, é fazer chover a chuva de interpretações,
como aponta um dos textos, o que permite sulcar ainda mais.
O uso que o psicótico faz de nossa presença é o de esca
var alguns sulcos mais do que outros. Cabe a nós ajudá-lo, com
método. Genevieve Morei dizia que ela poderia ter falado dos dos
siês com seu paciente; em um dado momento, eles falam de litera
tura norte-americana, o dossiê se torna a literatura norte-americana
- abrimos o dossiê, o comentamos, etc. A prática de sulcagem
começa a partir daí. O método não consiste em partir do mais
secreto, do mais profundo, do mais escondido, mas procede por
uma sulcagem operada pela prática.
Gostaria de voltar à oposição entre lingua privada e lingua
pública. Lembro-me de uma vez ter visto Wilfred Bion dar supervi
são para um grande grupo de pessoas. Ele tinha idade avançada,
oitenta anos, e supervisionava psiquiatras formados por seus alu
nos. Eles falavam "bioniano" e diziam coisas como: "o sujeito inter
nalizou seu objeto externo mau. Ele está clivado e, portanto, ende
reço-me ao objeto bizarro assim formado", etc. Bion ouvia um
jovem psiquiatra que se orientava perfeitamente bem nessa clinica,
no "bioniano", e falava do caso de um sujeito feminino. Bion repe
tia sem parar: "Mas que lingua ela fala?" O outro fazia uma grande
explanação: "Então, nessa hora, interpretei o objeto mau". "Muito
bem, mas que lingua ela fala?", diz Bion. Depois da décima vez, o
jovem psiquiatra já não sabia direito o que devia dizer. Nessa hora,
Bion toma a palavra: "Que lingua ela fala? Pois o que é a lingua efe
tivamente?" E ele cita de cor, sem anotações, em francês, uma pas
sagem de Valéry sobre os construtores de catedral. O que ele esta
va fazendo não era simplesmente uma declamação de memória; ele
explicava, assim, a construção de uma lingua. Uma lingua é como as
370
catedrais, um ajuntamento de pedras feito por mestres de obras
anônimos, tudo isso movido por uma grande fé. Há uma longa pas
sagem de Valéry sobre esse tema, o anonimato e a obra coletiva.
Tudo isso escandido, consegue, como uma invectiva, desorganizar a
bela língua interpretativa demasiadamente petrificada. É preciso,
sem dúvida, se perguntar sempre que língua fala o sujeito, sabendo
que se trata de uma bricolagem particular.
Voltemos à oposição língua pública/língua privada.
Certamente há sempre uma língua pública que j á está ali presente,
mas não podemos adotar literalmente a oposição admitida pelos
filósofos anglo-saxões da linguagem. Precisamos encontrar em nos
sos debates as nossas próprias conclusões, pois somos, ao mesmo
tempo, partidários da língua pública, sempre já ali presente, e da lín
gua privada, com seus sulcos próprios. É claro que não há língua
privada, no sentido anglo-saxão, se ela for feita a partir dos sense
data, uma língua que seria dada a partir das sensações, isso não é
possível. Mas, se tomarmos os non-sense data, o gozo, o sentido goza
do como non-sense, é preciso, nesse momento, admitir que temos
uma língua, uma língua privada composta a partir dos non-sense data,
a soma dos equívocos aceitáveis para cada um, a integral aceitável
para cada um. No que diz respeito ao conjunto de uma língua, nesse
caso, o francês, ela é a integral de todos os equívocos que circulam.
371
Jacques Borie Retomo o que dizia Jean-Robert Rabanel,
-
372
ponto fixo na lingua, tendo valor de non-sense, é necessária ao sujei
to. É a condição para que haja uma articulação possível, em outro
plano, na relação com o Outro. É isso que se trata de circunscrever:
qual é, para o sujeito, o ponto de gozo na lalíngua que lhe assegura
um espaço de non-sense e que, justamente, permite que um sentido
se desenvolva, assim como um certo modo de relação com o
Outro?
373
2 1 . COMO PODE O SUJEITO PSIC Ó TICO
SERVIR-SE DE N Ó S?
375
para Ophélie ou para o inspetor de impostos, paciente de
Genevieve Morei, pode parecer que a docilidade do parceiro seja
crucial. Há também as instituições - pensei no Courtil - onde pra
ticamos essa docilidade com o paciente para deixá-lo reconstruir
um discurso do qual somos os instrumentos, como Jacques-Alain
Miller dizia ainda há pouco.
376
se públicas. Esse esforço de tradução esbarra frequentemente em
um obstáculo: é que, em um dado momento, isso dá consistência e
faz ressurgir um intraduzível especialmente embaraçoso. Seria pre
ciso ver em que momentos são possíveis soluções tais como a trans
formação do saber na forma de lalíngua, ou seja, soluções em que os
sujeitos se tornam um pouco mais pulverulentos e se reportam a
uma forma de linguagem extremamente equívoca, ou, então, a
transformação do saber em uma forma reduzida de linguagem, que
é a interpretação paranoica e que, pelo contrário, não é nada pulve
rulenta.
Tenho um exemplo muito breve a respeito dessa ideia do
saber exposto, que acho muito eloquente. Trata-se de alguém que
vem fazer uma análise absolutamente clássica e todos os anos,
quando nos separamos para as férias, me traz um relatório datilo
grafado e in extenso de todas as sessões. É, para ela, um saber expos
to, depositado como uma tese, in extenso e feito de cor, ainda que as
sessões não sejam muito curtas; ela não tem gravador e estou certo
de que esse relatório é absolutamente perfeito. É uma solução ele
gante, mas, outras vezes, o que aparece no real não é um texto, é
outra coisa que não cessa de se escrever.
377
Quando alguma coisa contém um saber, pode se tratar de um saber
extremamente cifrado, mas deve, em algum lugar, ser transmissível;
se não é assim, nosso conceito de linguagem, de língua, e até
mesmo de lalíngua, torna-se absurdo. Por exemplo, o paciente de
Daniele Rouillon, que alinha cifras, também tem um saber. Do con
trário, não falaríamos com ele, pareceria um deficitário. É um saber
que poderíamos eventualmente decifrar por meios modernos, ou
seja, o surgimento de certo número de signos que remetem a esse
ou àquele sentido gozado. Vemos o mesmo fenômeno em outros
esquizofrênicos. Quanto a isso, o relatório de Angers não é muito
claro. Vocês dizem: "Há um saber-fazer com lalíngua, mas não há
saber sobre lalíngua". Considero isso uma contradição.
378
te ligado a um discurso sem nele entrar. A questão que se coloca é
de saber que lugar ocupa o analista nesse momento. Eu proporia de
preferência "ligamento com o discurso" do que entrada no discur
so, quando se trata do laço social, quando existe esse mínimo de
laço social na vertente paranoica.
Quanto a isso, a questão que se coloca é: como definir a
posição do analista? Quem a define? Primeiro, o sujeito, como
vimos nesta manhã. É o sujeito que diz para o terapeuta: "Você tem
que acreditar em mim" ou "busco alguém que acredite em mim".
No caso de Léonce Boigelot é: "hoje, será uma análise freudiana",
ou "hoje, será uma análise psicometafísica". É o sujeito que, de
certa forma, vem como mestre que prescreve a posição que deve
mos ocupar. Toda a questão é de determinar qual será, então, nossa
docilidade. Trata-se de ser simplesmente dócil? Como se fazer usar
pelo sujeito que prescreve nossa posição?
Para terminar, observo que em um dos casos do relatório
de Nantes e Rennes evoca-se o eixo imaginário e uma posição mais
amigável, enquanto que o relatório de Bordeaux evoca a posição do
analista como Outro real. Eu gostaria de colocar essas duas formu
lações em tensão com a noção de docilidade, com relação à posição
que o sujeito nos prescreve.
379
como o trabalho analisante de um sujeito psicótico pode tender a
um aparelhamento do gozo, ali onde faltam as ferramentas ordiná
rias que o viabilizaria? Como reintroduzir algo da função do sinto
ma? Em outras palavras, no plano da estratégia do analista, como se
pode sustentar o trabalho criativo do sujeito psicótico, como con
tribuir com essa poiesis?
Eu me lembro que, em Arcachon, Éric Laurent havia feito
uma belíssima leitura da fórmula habitual do "secretário do aliena
do". Ele disse que não se devia tomá-la em um sentido passivo, no
sentido em que alguém se contenta com tomar notas, mas no sen
tido em que Hegel diz que o filósofo é "o secretário da história", ou
seja, que ele lhe faz escansões e lhe extrai a lógica. Existe aí uma
dimensão totalmente ativa do trabalho de secretário do alienado.
As discussões desta manhã levam a pensar que, dependen
do dos casos, não estamos falando do mesmo tipo de sujeito psicó
tico. Quando Genevieve Morei evoca Schreber ou fala da necessi
dade de ajudar um paciente a traduzir seus termos na lingua corren
te, podemos pensar que o trabalho não é, sem dúvida, o mesmo
com os sujeitos de estrutura schreberiana e os sujeitos da psicose
ordinária dos quais falamos neste fim de semana. Há, sem dúvida,
com os primeiros, um trabalho de sustentação da criação delirante,
ou seja, algo que é da ordem da busca de uma significação.
Ali onde a metáfora paterna está ausente, ali onde o sujei
to não produz ou não se engancha a uma significação fálica, como
contribuir para que se estabeleça uma metáfora delirante que
venha a ser para ele uma substituição, que faça suplência e que
possa ter, para esse sujeito, uma significação singular na qual possa
sustentar-se?
O mesmo não acontece quando lidamos com uma criação
que gira em torno daquilo que Jean-Robert Rabanel colocou sob a
lógica do significante sozinho - em casos maravilhosos tal como o
de Daniele Rouillon que muitos citaram. Não se trata de produzir aí
uma metáfora delirante, mas uma metonímia literal.
380
François Sauvagnat A propósito do secretário do alienado,
-
381
gua, que a linguagem é uma elucubração de saber sobre a língua,
mas que, no fundo, a questão do saber se coloca, desde o começo,
para os recém-nascidos: eles sabem fazer diferença entre freeze e
please.
Como assinalava Rabanel, isso nos conduz a ver que a
questão de lalíngua também é a questão do nó borromeano. Em uma
prática que aparece como autística, a questão do Outro se coloca já
de entrada.
aplicava ao que foi dito ainda há pouco, não vai mais ter graça. Era
a propósito do que se dizia de Quine e do gavagai: Pensei - foi o que
Helga Rosenkranz cochichou comigo - que, no caso de Ophélie, do
relatório de Angers, gavagai" teria sido Lelievre.
382
22. AS CONDIÇ Õ ES DA CONVERSAÇ Ã O
COM UM PSIC Ó TICO
383
para fafíngua, pois existem na neurose condensações de gozo em sig
nificantes que não se deixam ver da mesma maneira, que são muito
mais escondidos. Freud já coloca isso em evidência: podemos
tomar, nessa vertente, as formações do inconsciente, alguns lapsos
como condensação de gozo.
384
ela mostra durante muitos anos, ou considerá-las do lado da signifi
cação, após o momento do desligamento.
A pergunta que eu queria fazer é a seguinte: será que a fór
mula que Jacques-Alain Miller utilizou ainda há pouco, "a partir da
linguagem, cada um faz sua lalíngud', não poderia ser usada para
definir o desligamento? Em outras palavras, o tempo do desliga
mento - que não é o desencadeamento, o momento em que essa
pessoa perde o recurso que havia encontrado em sua construção -
seria um momento em que lalíngua se desarrima da linguagem. Esse
sujeito parece dar provas disso. A partir desse momento, ela tem
uma grande dificuldade em aceitar qualquer forma de conclusão. Se
retomarmos a ideia, que foi levantada em Arcachon, de que a difi
culdade de concluir seria um fenômeno elementar, teríamos, no
fundo, uma prova clínica de que o desligamento seria um momen
to no qual lalíngua se desarrima da linguagem.
385
Daniele Rouillon Fiquei muito interessada pelo que estava
-
são que me ocorrem após essa conversação. Creio que vamos per
manecer modestos, humildes, mas, ainda assim, dóceis diante da
invenção do psicótico. É necessário distinguir, como lembrava
386
Alexandre Stevens ainda há pouco, a doença da mentalidade e a
doença do Outro; não é a mesma coisa dirigir o tratamento em um
caso ou em outro. Para responder a Genevieve Morei, não me ocor
reria aprender a língua fundamental com Schreber e usá-la.
A importância do relatório de Angers está essencialmente
baseada no fato de que pode haver uma mudança de posição do
analista em função daquilo que o sujeito psicótico oferece, a partir
de suas invenções, para que o analista não seja demasiadamente
canalha com ele; ela está em dizer que a questão essencial é o trata
mento do gozo invasivo, flutuante, que é especialmente insuportá
vel. Por isso, portanto, fomos seduzidos pelos casos clínicos de
Daniele Rouillon e de Gabriel Lombardi. O de Gabriel Lombardi,
devido a esse movimento, como lembrava Helga Rosenkranz ainda
há pouco, esse movimento lento - foi um tratamento que durou
dezessete anos - de um sujeito inicialmente catatônico que, aos
poucos, começa a falar, a escrever poemas e até a fazer Witz.
Para retomar o que me inspira o esquema no quadro, eu
diria que lalíngua da transferência busca fazer um laço entre lalín
gua e o laço social. Isso permanece em aberto, enquanto pergun
ta. É uma pista para ajudar os sujeitos psicóticos. Lalíngua não é
senão uma ferramenta, o importante é tratar o gozo. Lalíngua da
transferência seria, então, uma ferramenta que permitiria tratar o
que nós chamamos de malha do gozo: tentar fazer, entre o analis
ta e o psicótico, um tipo de malha, de cristalização, de /a/íngua na
transferência.
387
delirando ou não o sabendo. Pensamos de preferência que é melhor
sabê-lo logo, desde as primeiras sessões. Acreditamos, pois, que é
preciso levar o paciente a ceder algo de seu delírio, a dizer-nos uma
coisinha qualquer sobre isso, o suficiente para que nós o saibamos.
Isso não significa que todo o tratamento prossiga dessa maneira, já
que, em geral, uma vez que algo nos é dado, ele não falará mais
sobre isso, será eventualmente uma referência à qual ele fará alusão
apenas de tempos em tempos. Quando os casos se desenvolvem
bem, é geralmente assim que as coisas se passam. Deve-se, então,
obter algo de seu delírio ou acolhê-lo, como dizia Fabienne.
Acolher algo de ialíngua é também acolher algo dessa significação
delirante. O paciente precisa verificar que não iremos desaparecer
quando ele nos disser alguma coisa dessa ordem.
De fato, a psiquiatria clássica observou, desde sempre, que
a tendência do delírio não é ir em direção a sua própria confissão -
não estou falando das psicoses hospitalizadas, dissociadas -, que
um delírio paranoico não tende a se explicitar. Isso fez com que
grandes autores clássicos dissessem: se o paciente não lhes contar
seu delírio, dê-lhe um pedaço de papel, e ele o escreverá para você.
O que equivale a dizer que o delírio está, ao mesmo tempo, bem
mais do lado da escrita.
Uma palavra a respeito da pergunta que fazia Alfredo
Zenoni ainda há pouco: evoquei no relatório de Bordeaux o valor
de transferência real que a presença do analista pode ter para alguns
psicóticos. Trata-se de um sujeito que parou de se automutilar a par
tir do momento em que encontrou um analista, sendo que ele era
tratado há dez anos e as mutilações jamais haviam cessado. A partir
do momento em que ele começa a usar as referências psicanalíticas,
em seu encontro regular com um psicanalista, esse sujeito feminino
não precisa mais das marcas sobre o corpo e das automutilações. Eu
questionava, então, a transferência como real, sendo dado que ela
tinha uma transferência . que oscilava entre transferência erotoma
níaca e persecutória. Essa transferência limitava-se a cartas que ela
388
escrevia à analista, ou seja, a conotação persecutória e erotomania
ca da transferência não invadia o conteúdo das sessões, mas era sim
plesmente objeto de pequenas cartas persecutórias ou amorosas
endereçadas à analista e que permaneciam fora das sessões. A
paciente simplesmente me perguntava se eu continuava recebendo
suas cartas e, em seguida, não falava mais sobre o assunto; falava de
sua vida, de suas identificações, enfim, de tudo que lhe interessava.
Eu tinha a impressão de que, para essa paciente, essa transferência,
como real, enlaçava imaginário e simbólico.
389
trário, afrouxá-lo quando está demasiadamente apertado. Essa opo
sição vale no caso a caso e é transestrutural. Podemos pensar que,
em um delírio paranoico, é preciso afrouxar as coisas e, na esquizo
frenia, fazer o contrário.
390
Kaltenbeck. Pela nossa própria pratica, colocamo-nos como o
Outro daquele que chega com sua língua privada. A psicanálise é
uma prática que subverte a ideia de língua. Colocamo-nos como o
Outro dessa língua atravessada pela pulsão, pelo sentido gozado,
como dizia Élisabeth Geblesco. Por intermédio da transferência,
segundo a expressão de Carole Dewambrechies-La Sagna, o sujeito
nos cede algo de seu sentido gozado. Ele nos arrasta por esse movi
mento de cessão, o que dá o estilo do amor de transferência que
então se instala. Isso supõe a crença de que o Outro de fato nos
compreende, no sentido do amor, no sentido em que há essa cren
ça compartilhada. Como dizia Zenoni, é preciso que essa crença se
instale.
Mas, então, como evitar que esse conto de fadas acabe
mal? São os aspectos que Philippe La Sagna mencionava. Não se
trata de se ter dessa história uma versão de conto de fadas: uma
maravilhosa história de tradução mútua instala-se e eles viveram
felizes o tempo que foi preciso. Isso seria esquecer que a nomeação
que está em jogo inclui as passagens ao ato, que são maneiras de
nomear - era o que Jacques-Alain Miller havia desenvolvido em sua
contribuição sobre esse tema. A passagem ao ato não é uma dimen
são estranha à dimensão da nomeação, é também um modo de
amarrar o sentido que escapa. Não é sempre que a relação com o
pfuit do sentido é feliz. Este é o desafio enfatizado por Lacan com
sua expressão erotomania mortifera, usada a propósito de Schreber, e
que designa ao mesmo tempo algo de muito particular da transfe
rência schreberiana e alguma coisa que aparece sempre na psicose.
Isso decorre do exame crítico da noção, proposta por Karl
Abraham, de "amor parcial de objeto" e das ambiguidades que cir
culavam no movimento analítico quanto a esse ponto. Lacan escla
rece que há o amor e há o objeto parcial. São duas coisas distintas.
Não podemos amar no Outro a zona onde, justamente, está o obje
to, a coisa. A imagem do espelho unifica um corpo despedaçado no
qual ronda a hiância mortífera.
391
Quando há uma regressão tópica ao estádio do espelho, é
possível que haja contato com essa zona. Passamos, então, do amor
limitado por essa zona pulsional à paixão amorosa, que está em
contato com essa hiância mortífera. Isso pode se produzir e desen
cadear estados de pânico, estados em que o sujeito quer nomear a
qualquer preço e demanda ao Outro fazê-lo com uma insistência tal
que provoca a passagem ao ato.
O que fazer com esse amor lancinante? Trata-se de favo
recer todas as práticas que funcionem como borda: há a tradução,
digamos, a tradução generalizada, essa prática que desenvolvemos;
mas há também o exame de toda a pragmática da língua, que faz
parte dessa conversação com o psicanalista, o exame do que o sujei
to faz. Não estamos só falando do delírio, como vocês diziam. O
delírio pode ser escrito, o que ajuda a traçar uma borda, a depositar
algo. Afora isso, podemos nos interessar por coisas como a arte
clássica do século XVII, ou então pela prática de como se levantar
pela manhã e de como o cigarro deve ser fumado antes, depois do
café, etc. Falar dessas miudezas mobiliza toda a significação. Vemos
isso claramente quando, nas crises da significação em literatura, se
recorre às miudezas. Georges Perec, em As coisas, criou um choque
com sua paródia irônica do Nouveau Roman. Atualmente se tenta
repetir o efeito Perec com romances consagrados às miudezas,
como La premiere gorgée de biere (O primeiro gole de cerveja) 13• Trata -se de
mobilizar toda a estrutura a partir daí.
Um dos casos clínicos de nosso volume preparatório dá
testemunho disso: o caso do nackt4• O sujeito traz para a análise sua
prática, que consiste em se fotografar de uma determinada manei
ra, e descreve para o analista essa prática. O trabalho se faz em
torno de uma palavra - ele usa uma palavra entre o luxemburguês,
o francês e o alemão. Nesse trabalho se desdobram os sentidos do
termo, que designa, ao mesmo tempo, a nuca e o fato de estar nu.
Ao mesmo tempo, ele designa a impossibilidade de ver-se ver.
Falando dessa prática do impossível, o sujeito se reconstitui. Nesses
392
tipos de praticas, aparentemente centradas sobre a imagem do
corpo, não se trata simplesmente de se constituir uma imagem. Um
ponto de impossível é cingido. Isso também serve para estabilizar o
sentido e faz parte da pragmática da conversação com o analista.
Há o belíssimo caso da pessoa que diz: "sou fascinado pela
violência", e que queria constantemente assistir a catástrofes na
televisão. Trata-se, aí, de fixar pelo imaginário o ponto exato antes
que o corpo se estilhace, exatamente antes do corpo despedaçado.
Há aquele que se reconstitui como um, com sua prática de se foto
grafar em diferentes posições, e há esse que vai até o momento que
antecede o estilhaçamento. "Um minuto depois e a bomba teria
estourado".
Como, então, sustentar o sujeito na construção de um
saber não padronizado sem que, no entanto, isso adquira o sentido
de uma autorização da passagem ao ato? Como manter um movi
mento metonímico contínuo? Entre os kleinianos, que foram os
primeiros a receber em análise sujeitos psicóticos, Rosenfeld consi
derava, em seus P!]tothic states, que era preciso manter as análises de
sujeitos psicóticos o tempo que fosse necessário. Elas acabavam
sempre terminando antes do desejado, mas ele dizia nunca haver
motivo para interrompê-las.
Será que dizemos a mesma coisa? Talvez não. O problema
de um fim de análise com um sujeito psicótico consiste em separar
o que é obtido da elucubração de saber e a sua significação de ver
dade. Trata-se, talvez, de evitar que se atravesse a superfície na qual
se inscrevem o saber e a verdade. Tratar-se-ia de se apoiar sobre o
que faz sinthoma para o sujeito, aproveitando tudo o que se construiu
durante essa conversação. O sinthoma está, nesse sentido, do lado da
elaboração de saber, desabonado da verdade do inconsciente. É
nesse sentido que podemos falar deliberadamente de outra coisa
que não da verdade inconsciente; falar, se for preciso, de literatura
ou da história do mundo.
393
AT É LOGO
mos. Perguntei-me o que foi nosso encontro. Com certeza, não foi
um concílio: não decidimos sobre dogmas nem sobre o sexo dos
anjos, nem sobre a infalibilidade do pontífice. Não foi verdadeira
mente uma convenção, embora tenhamos preparado um pouco o
terreno. Logo, a terceira conversação segue a linha do que foram os
encontros de Angers e de Arcachon. Em minha opinião, será preci
so inventar uma continuação. Assim sendo, até logo e obrigado a
todos.
394
Notas
395
1 4 N.R.: Trata-se do "quinto caso" do relatório da Seção Clínica de Clermont
Ferrand, Antena Clínica de Dijon e Seção Clínica de Lyon, intitulado "Clínica da
Suspensão".
396
S U PLEMENTO
EFEITO DO RETORNO À PSICOSE ORDIN Á RIA*
Jacques-Aiain Miller
399
AM É RICA DIVIDIDA
400
impressão de que os americanos reclamam espaço para transmitir
suas opiniões, para poder dizer: "Você pensa assim, eu penso assa
do. Tenho minha própria concepção, uma outra ideia", sem, no
entanto, deixar de valorizar o prestígio e o saber. É uma maneira
muito democrática de questionar o saber do Outro.
Tenho a impressão de que a alma americana ou o espírito
americano está, se posso me permitir dizer, dividido entre um dese
jo de extrema precisão e os números por um lado e, por outro, o
desejo de ser capaz de expressar seu próprio pensamento e seguir
suas próprias ideias.
401
maneira e num certo estilo. Então as pessoas se adaptam a isso e
vivem num mundo de sombras, numa "Cidade de Fantasmas",
como no artigo de Jean-Louis Gault1• Devo lhes confessar que a
universidade é uma cidade de fantasmas com pessoas que imitam
o que se supõe que elas são. Lacan deu apenas um esboço de defi
nição do passe e propôs que ele fosse experimentado para ver, no
momento assim definido, o que surgiria, como as pessoas pode
riam contribuir. Eu queria fazer algo desse tipo com a psicose
ordinária. Creio que isso atraiu o sentido em potência. Muitas pes
soas vieram depois me dizer: "conheço um caso de psicose ordi
nária!". Se tentamos agora lhe dar uma definição, trata-se de uma
definição a posteriori.
N I P
402
são é um termo questionável que foi posto por terra pelo movimen
to gcry. Essa categoria tende a ser abandonada.
Assim, nossa clínica tinha um caráter basicamente binário.
Resultado: durante anos, víamos clínicos, analistas, psicoterapeutas
se perguntarem se seu paciente era neurótico ou psicótico. Quando
vocês recebiam esses analistas em supervisão, podiam vê-los voltar,
ano após ano, a falar de seu paciente X, e se lhes perguntassem:
"Você concluiu se ele é neurótico ou psicótico?", eles respondiam:
"Não, até agora não conclui". E isso continuava assim durante
anos. Não era claramente uma maneira satisfatória de considerar as
coisas.
Era nitidamente uma dificuldade nos casos de histeria.
Quando não há, na histeria, uma identificação narcísica "suficiente
mente boa" ao corpo próprio - "suficientemente boa" é um termo
winnicotiano do qual gosto muito - porque há frequentemente na
histeria alguns sinais de uma certa ausência do corpo, de uma certa
desordem do corpo, vocês podem se perguntar se essa desordem
vai a ponto de não mais concernir à histeria, mas efetivamente à
uma psicose. Vocês veem assim pessoas que tentam, durante anos,
decidir de que lado situar seu paciente. Ou então, ao encontrarem
sujeitos que testemunham um vazio que experimentam em si mes
mos, podem se perguntar se esse vazio não é também histérico. É o
sujeito barrado que remete ao nada na neurose? Ou se trata do
vazio psicótico, do furo psicótico? Ano após ano, apesar da diferen
ciação supostamente absoluta entre a neurose e a psicose funda
mentada na foraclusão do Nome-do-Pai, verdadeiro credo lacania
no - "eu te batizo neurótico se há o Nome-do-Pai, e eu te batizo
psicótico se ele não existe" - certos casos davam a impressão de se
situarem entre as duas. Com o passar do tempo, essa fronteira tor
nou-se, na supervisão e na prática, espessa. Uma espessura crescen
te como a que vocês constatam em volta da cintura!
N I P
403
Havia então algo que não andava bem, porque se era uma
neurose, não se tratava de uma psicose, ou se era psicose, não se tra
tava de uma neurose.
A psicose ordinária era uma maneira de introduzir o ter
ceiro excluído pela construção binária, religando-o simultaneamen
te ao lado direito do binarismo.
404
A CONSTRUÇ Ã O LACANIANA DA PSICOSE NOS ESCRITOS
405
futuro perverso, um futuro psicótico - daquele que habita, podería
mos dizer, o estádio do espelho.
O estádio do espelho é a primeira estrutura do mundo pri
mário do sujeito, o que significa que é um mundo muito instável. O
mundo estruturado pelo estádio do espelho é um mundo de transi
tivismo. Transitivismo quer dizer que você não sabe se foi você ou
o outro que fez. Quando a criança bate na outra, diz: "Ele me
bateu". Há uma confusão: "fui eu ou foi ele?". É um bom exemplo
para compreender que se trata de um mundo de areias movediças.
É um mundo instável, um mundo sem consistência, um mundo de
sombras. Essa é a maneira como, em seu primeiro Seminário, Lacan
descreve o mundo primário ou, melhor, a maneira como ele o cons
trói. Digo "constrói" porque é preciso começar fazendo a abstração
da linguagem que está presente desde o início. É a partir daí que ele
estrutura a psicose. Para ele, é também o mundo da mãe. É supos
tamente um mundo cuja força pulsional é a do Desejo da Mãe, o
desejo desordenado da mãe em relação ao filho-sujeito. De certa
maneira, isso equivale a dizer que a loucura é o mundo primário. É
um mundo de loucura.
2. A ordem simbólica
406
como consequência um menos (-), um gozo a menos. O gozo ima
ginário, que tornava possível o mundo imaginário, é extraído, sub
traído. Vocês encontram, em todos os textos de Lacan, a ideia segun
do a qual o gozo é evacuado pelo simbólico. Lacan utiliza essa
expressão de diferentes maneiras. É possível falar de extração, de
subtração, mas a ideia é sempre a mesma. Quando se introduz o ele
mento ordenador do Nome-do-Pai, obtém-se uma subtração no
nível da libido, do gozo e das pulsões. Nos termos do falo, temos de
um lado, o falo completo (<1>) e, do outro, o menos-phi (-f.Jl) , que sig
+NP <1>
-J (- f.Jl)
407
cose extraordinária. Após um primeiro tempo de desordem total
do seu mundo - um mundo que era anteriormente estabilizado, ele
tinha de fato conseguido atingir uma posição bastante elevada
como juiz, seu mundo tinha, até então, sua maneira de se ordenar;
mas, ao ser solicitado a responder do ponto de vista do Nome-do
Pai, ele não consegue, o que desencadeia sua psicose extraordiná
ria - observa-se uma espécie de mundo ordenado que vai se reor
ganizando. Schreber consegue, progressivamente, arranjar para si
um mundo onde é possível viver. Lacan diz então que, na verdade,
ele não tem uma metáfora paterna, mas bem mais uma metáfora
delirante.
De qualquer forma, um delirio é simbólico. Um delirio é
um conto simbólico. Um delírio é também capaz de ordenar um
mundo. Perguntem se o que ordena nosso mundo não é, em gran
de parte, delirante. Se vocês relacionam isso ao saber científico, a
essas histórias de um Deus-todo-Poderoso, de mãe, de pai, etc.,
são levados a dizer que é em parte um delírio. Eu não diria isso -
não ousaria - mas as pessoas do Século XVIII ousavam dizer que
na verdade era, em parte, um delírio. O Campo Freudiano é um
delírio, não tem uma existência bem limitada. É alguma coisa para
alguns milhares de pessoas que no mundo falam do Campo
Freudiano, mas na verdade ele não tem existência precisa. Quando
vocês leem sobre Maomé - Deus proíbe que eu diga qualquer
coisa contra Maomé - que ele partiu sozinho, que trazia uma men
sagem divina e a escrevia, esse discurso ordenou um milhão de
pessoas no mundo. Era um delírio divino. Na verdade, a hipótese
segundo a qual um delírio pode ordenar o mundo não é comple
tamente forçada.
Schreber tinha um delírio privado. Ele não conseguiu fazer
do seu delírio um delírio para todos na Prússia do final do século
XIX. Precisou privatizar, montando um empreendimento delirante
apenas para si mesmo. Então, é possível ter uma ordem simbólica
delirante.
408
DO NOME PRÓPRIO AO PREDICADO
NP (X)
409
desencadeamento de sua psicose? Ainda não havia a psicanálise
naquela época, mas imaginem que ele tivesse sido tratado por
Freud. Talvez antes dos 51 anos, vocês já teriam podido observar
particularidades na construção de seu mundo, que os teria levado a
dizer que ele era um psicótico ordinário. Freud não conhecia a psi
cose ordinária - é claro que ele conhecia muitas coisas bem mais
importantes -, mas talvez o que chamamos de psicose ordinária seja
uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento. Esta é,
por exemplo, uma das maneiras de apreender o conceito, sobre os
quais vocês debateram.
A questão incide então sobre o Nome-do-Pai como predi
cado. Isso significa dizer que ele é um substituto substituído. O
Nome-do-Pai se substitui ao Desejo da Mãe, impõe sua ordem ao
Desejo da Mãe. E o que chamamos de predicado do Nome-do-Pai
é um elemento, uma espécie de make-believe do Nome-do-Pai, um
compensatory make-believe (um fazer-crer compensatório) do Nome
do-Pai, um CMB. Vão fazer crer - make-believe - que estamos reali
zando um estudo altamente científico! E que se deveria dizer que se
tem a intenção de observar e de fazer uma lista completa de todas
as formas possíveis de CMB na psicose! De fato, é mais difícil que
isso, é mais difícil que esse tipo de piada.
410
mesmo, e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordi
nária, tentam dizer então que é uma psicose, embora ela não seja
manifesta, mas ao contrário dissimulada.
Vocês devem pesquisar todos os pequenos indícios. É uma
clinica muito delicada. Frequentemente é uma questão de intensida
de, uma questão de mais ou menos. Isso os orienta para o que
Lacan chamou de "uma desordem provocada na junção mais ínti
ma do sentimento de vida no sujeito"4• Trata-se da frase, na qual
insisto há anos em meus cursos e nas discussões com meus colegas,
que está na página 565 dos Escritos. Na excelente edição anglófona
de Bruce Fink, esse termo é traduzido na página 466 como "a dis
turbance", uma boa tradução de "désordre". Ele não usa "trouble", que
seria um termo do DSM, mas "disturbance": "a disturbance that occurred
at the inmostjuncture rf the suiject 's sense rf life"5• Pois bem, é isto que
buscamos na psicose ordinária, essa desordem na junção mais ínti
ma do sentimento de vida no sujeito. "Sense rf life" se traduz como
"sentimento de vida". "Sentimento de vida" ou "como você vive
sua própria vida" é um termo muito sincrético. É muito difícil ana
lisá-lo. Os psiquiatras tentaram delinear esse "sentimento de vida".
Eles falam de sinestesia, de sentimento geral do sujeito, de "ser-no
mundo".
A desordem se situa na maneira como vocês experimen
tam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu
corpo e no modo de se relacionarem com suas próprias ideias.
Mas qual é essa desordem, já que também os neuróticos a experi
mentam? Um sujeito histérico experimenta essa desordem na rela
ção com seu corpo, um sujeito obsessivo a experimenta em rela
ção às suas ideias. Que desordem é essa que atinge "a junção mais
íntima do sentimento de vida no sujeito"? Ela é muito difícil de
formular.
41 1
UMA TRIPLA EXTERNALIDADE
412
"asilo da ignorância". Ele se torna então um refúgio para não saber.
Ao falarmos de psicose ordinária, de qual psicose falamos?
Pudemos, por exemplo, constatar isso no último colóquio
das Seções Clínicas francófonas [o ciclo UFORCA, Conversations sur
des situations sui?Jectives de déprise sociale, na Maison de la Mutualité, em 28
e 29 de junho de 2008] quando, num caso de uma psicose ordiná
ria, um colega - psicanalista e psiquiatra - disse: "É uma paranoia
sensitiva, no sentido de Kretschmer". Tratava-se de uma psicose
ordinária porque ela não era manifesta, mas uma vez que se diz que
é uma psicose ordinária, isso significa que é uma psicose. E se é uma
psicose, pode ser relacionada às categorias nosográficas clássicas.
Tive a impressão que meu colega tinha razão, que nesse caso era
uma paranoia sensitiva de Kretschmer. É um convite a ir mais
longe.
O que tenho a dizer sobre a identificação social negativa é
isso. Mas vocês também devem ficar atentos diante das identifica
ções sociais positivas na psicose ordinária. Digamos, quando esses
sujeitos investem muito no seu trabalho, na sua posição social,
quando têm uma identificação bastante intensa com sua posição
social. Vocês podem ver então - e isso ocorre constantemente -
psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psico
se, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem
mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse traba
lho era seu Nome-do-Pai. Lacan diz que, em nossa época, o Nome
do-Pai é o fato de ser nomeado, de ser atribuído a uma função, de
ser nomeado para. Atualmente, o Nome-do-Pai é aceder a uma posi
ção social. Constata-se efetivamente que ser membro de uma orga
nização, de uma administração, de um clube pode ser o único prin
cípio do mundo de um psicótico ordinário. Por exemplo, ter um tra
balho tem hoje um valor simbólico extremo. As pessoas estão pron
tas a se estapear por empregos mal remunerados, justamente para
ter o valor simbólico de estarem empregadas. Os governos são sufi
cientemente inteligentes para compreender isso claramente e para
413
lhes oferecer empregos irrisoriamente remunerados. O governo
francês quer, atualmente, estender isso aos psicólogos e psicotera
peutas. Falamos sobre isso esses dias. Eles querem criar uma nova
profissão de psícoterapeutas que seria mais mal remunerada do que
a fisioterapia.
Era isso o que tinha a dizer em relação à externalidade
social com a vertente positiva e negativa de identificação social.
414
o mesmo tom - e em termos de excesso - isso excede as possibili
dades da histeria. A histeria é restringida pelos limites da neurose,
ela é limitada pelo menos-phi. Apesar da revolta e do desespero, a his
teria é sempre submetida à restrição, enquanto vocês sentem o infi
nito na falha presente na relação do psicótico ordinário com seu
corpo.
415
mos isso, mas no caso de Jean-Louis Gault, vemos uma espécie de
estigma produzido por cada enunciado desses outros. De fato, trata
se de uma relação fundamental não com uma pessoa, mas com a
linguagem.
Eu poderia me referir ao caso de Julia Richards que vocês
ouvirão na sexta-feira: "Uma dialética capitalista no caso de uma
psicose ordinária"8• É um caso no qual o sujeito se apresenta com a
demanda de "recuperar os dez por cento que Uhe] faltam sempre
para poder ser novamente são". Nessa maneira de se apresentar,
podemos ver de entrada que há a sensação de não ser sadio. Ele diz
isso de início, pois o demanda com uma precisão kernberguiana -
Kernberg sabe que os afetos representam cinquenta por cento! Pois
bem, esse sujeito sabe que precisa de dez por cento a mais!
Suponho que ele é americano! Ele nos dá uma precisão com núme
ros. Nessa primeira frase pela qual ele se apresenta, podemos ver
seu delírio. Os dez por cento de delírio. "Faltam-me dez por
cento!". Há alguma coisa desviada, que ele atribui a um número.
"Faltam-me dez por cento de castração" [risos] . Não é engraçado;
nas conferências clínicas, as pessoas riem muito de coisas que não
são engraçadas. Esse sujeito também diz isto: "Por que haveria um
Deus benévolo? Sou sortudo, e isso explica esse sudário funesto,
essa paranoia ... Eu não deveria me queixar tanto" - conectado à
referência a Deus. É também uma pequena chave que nos permite
entender que seu parceiro é Deus. Não importa que ele tenha dito
que sua vida está sob um "sudário funesto" - o que também pode
ser dito por um neurótico romântico - mas, clinicamente, isso
pende mais para a psicose. Quando diz adiante que "o centro não
se sustenta, tudo se desagrega, é científico", todos os seus labirin
tos de frases parecem condensar a mesma ausência em seu centro.
Julia Richards acrescenta: "seu ponto mais sólido de identificação,
embora imaginário, é construido com cada fragmento de identifica
ção paterna à sua disposição". Tudo isso assinala a psicose ordiná
ria, as identificações são construídas com um bricabraque.
416
Perguntei como traduzir "bric-à-brac' em inglês antes da exposição.
Não conhecia esta tradução: ''jlotsam andjetsam". Gostei muito. Mr.
Flotsam and Dr. Jetsam!
417
não pode funcionar como psicanalista se não está consciente de que
aquilo que sabe, seu mundo, é delirante - fantasístico, podemos
dizer, mas fantasístico significa justamente delirante. Ser psicanalis
ta é saber que seu próprio mundo, sua própria fantasia, sua manei
ra de fazer sentido é delirante. Essa é a razão pela qual vocês ten
tam abandoná-la justamente para perceber o delírio próprio de seu
paciente) sua maneira de fazer sentido.
Bom, percebi ter sido seguido, durante uma hora e meia,
com atenção ao que digo.
418
PERGUNTAS DO P Ú BLICO
N I P
N hP
419
esclareceu. Então, a tendência quase oposta é aceitar a modificação
do conceito de neurose, na medida em que ela se tornaria uma
estrutura muito específica. Você disse isso de uma maneira diverti
da: a neurose não é mais a tela de fundo (wallpaper). A psicose é o
fundo de tela (wallpaper), a neurose quase dá lugar a uma modifica
ção específica do Nome-do-Pai contra a possibilidade de emergên
cia da psicose. Tem-se quase simultaneamente a distinção da clínica
binária e o obscurecimento dessa distinção. Eu me pergunto se há
algo que eu não entendi.
420
Então, consegui ter uma clínica binária, uma clínica terná
na e uma clínica unitária, as três em uma. Como a Santíssima
Trindade!
Nem todas as psicoses assumem a forma de uma psicose
desencadeada, explodida. Existem psicóticos que poderão viver
toda a sua vida de psicótico tão calmamente quanto na psicose ordi
nária. Há psicoses adormecidas, como existem espiões adormeci
dos, que jamais acordarão. Há diferença entre as psicoses que
podem ser desencadeadas e as que não podem. A psicose é um
vasto continente, um continente imenso. Observem a diferença
entre um bom paranoico, requintado e forte que constrói de fato
um mundo para ele e para os outros, e um esquizofrênico que não
pode sair do seu quarto. Nomeamos tudo isso de psicose.
Quando se trata de uma paranoia, o make-be!ieve do
Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. Espera-se
que, ao receber um paranoico em seu consultório, você não o clas
sifique como psicótico ordinário, pois a psicose é percebida. Mas
há alguns, do gênero paranoia sensitiva como mencionei anterior
mente, que não são nítidos desde o começo. Somente após três
anos de análise, o analista percebeu algo estranho que indicava a
direção oposta, percebeu que o sujeito construía, a cada dia, sua
paranoia. Há esquizofrênicos socialmente desconectados, enquan
to os paranoicos são totalmente conectados socialmente. Algumas
das grandes organizações são frequentemente dirigidas por pode
rosos psicóticos, cuja identificação é supersocial. Portanto, o
campo das psicoses é imenso.
A referência do desencadeamento serve quando se trata
desse tipo de psicose compensado com um CMB. Em certo
momento, o make-believe, o "fazer-crer", cai, é cortado. O mundo do
sujeito é arruinado, o desencadeamento é então manifesto. Depois,
o sujeito pode se reorganizar tão bem quanto antes, ou seja, com
um dijicit - da ordem de um "não suficientemente bom" - que des
conecta progressivamente o sujeito da realidade social.
421
Schreber apresentava isso claramente. Tinha uma identifi
cação compensatória, mas, após ser ter atingido o ápice, seu mundo
se esmigalha. Depois, consegue ser um bom paciente, segundo os
relatórios médicos, consegue retomar suas conversas com sua
mulher e escrever seu livro. Ele se torna escritor. Após o desenca
deamento, consegue se restabelecer numa espécie de atividade com
pensatória.
A psicose ordinária evidencia a existência de "uma desor
dem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito". Isso
significa que é possível conectar todos os pequenos detalhes, que
parecem distantes uns dos outros, a uma desordem central. Trata
se então de ordenar o caso. Nos casos ditos borderline, se diz que
não parecem ser nem uma psicose nem uma neurose. Não cremos
nisso. A categoria da psicose ordinária se origina da prática, das
dificuldades práticas. Se vocês não reconhecem uma neurose e se
não há sinais evidentes de psicose, procurem os pequenos sinais.
É uma clínica dos pequenos indícios de foraclusão. Por exemplo,
na breve lista de pequenos sinais que apresentei, vimos que uma
identificação social ao trabalho é normal. Mas uma intensificação
da identificação com o trabalho pode indicar outra direção. É uma
clínica da tonalidade. É o uso disso. Mas a psicose ordinária deve
ser redutível a uma forma clássica de psicose ou a uma forma ori
ginal de psicose.
422
torna loucamente sensatos. Apenas em nossos sonhos ressurge o
que não tem sentido. Na verdade, os sonhos têm sentido, mas os
pesadelos que nos fazem acordar, geralmente o fazem partir de
um elemento fora-do-sentido. Neles se toca talvez mais de perto
a verdade. É claro que os delírios são construídos em torno desse
real que não tem sentido, e esse fora-do-sentido aparece e produz
furos no discurso do paciente. Mesmo na apresentação de pacien
tes de uma hora, podemos ver essas setas que Lacan desenhou no
esquema I, transpassando o discurso do paciente. O discurso do
paciente é tecido em torno do real. Vocês podem mesmo nomeá
lo uma defesa.
423
Jacques-Aiain Miller Por anos, discordei da ideia de uma
-
424
fez alusão, ou seja, a psicose ordinária banal, muito estável e bem
delimitada - mas a noção de psicose ordinária abre para uma teoria
mais geral das psicoses, a partir da qual é possível articular a estru
tura específica da esquizofrenia ou da paranoia. A utilidade do con
ceito se situa na maneira com que amplia nossa capacidade de con
ceituar a psicose e leva a refletir sobre as vias de estabilização de um
modo que não existia anteriormente na literatura. A literatura dos
anos 1 960 ou dos anos 1 970 sobre a psicose parece uma literatura
muito diferente daquela dos dez últimos anos. Penso que o projeto
de pesquisa desembocou numa noção mais geral das psicoses.
425
Jacques-Aiain Miller Creio ter respondido à questão dizen
-
vida sexual típica. Vocês poderiam fazer uma lista de certas expe
riências estranhas na vida sexual. Publicamos um livro sobre diver
sos casos clínicos, intitulado L 'amour dans les psychosd\ em que
temos diferentes abordagens das maneiras de viver a sexualidade.
Nos homens há, às vezes, um empuxo-à-mulher pelo ato sexual. À s
vezes há, ao contrário, uma sexualidade que permite se reapropriar
do corpo. À s vezes, o corpo se fragmenta. Não há nada específico.
Busquem simplesmente uma desordem no ponto de junção mais
íntimo do ato sexual, pois geralmente a encontramos.
426
mente, para haver o desencadeamento dessa psicose, é preciso
haver um elemento que vem em terceiro lugar sob a modalidade de
Um-Pai. Quando supomos que há uma foraclusão do Nome-do
Pai, supomos que não há necessariamente Um-Pai, mas alguma
coisa que ocupa o lugar ternário no laço com o sujeito.
427
Notas
428
"O que se tenta pinçar falando da psicose ordinária? Ou
seja, quando a psicose não é evidente, não parece ser
uma neurose, não tem a assinatura da neurose, nem a
estabilidade, nem a constância, nem a repetição da
neurose. Uma neurose é algo estável, uma formação
estável. Quando vocês não constatam - esta é também
uma questão percebida pelo clínico - que há elementos
bem deffnidos, bem recortados da neurose, a repetição
constante e regular do mesmo, e quando rião há nítidos
fenômenos de psicose extraordinária, tentam dizer então
que é uma psicose, embora ela não seja manifesta, mas
ao contrário dissimulada.
Vocês devem pesquisar todos os pequenos indícios. É
uma clínica muito delicada. Frequentemente é uma
questão de intensidade, uma questão de mais ou
menos".
(Jacques-Aiain Miller,
"Efeito de retorno sobre
a psicose ordinária",
p. 410-411)
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