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A CONVENÇÃO DE ANTIBES

«EFEITO DE RETORNO SOBRE A PSICOSE ORDINÁRIA))


(JACQUES-ALAIN MILLER)
perguntando: "como chamaremos o
No primeiro tempo, em Angers,
livro que poderá resultar desta
começamos... por surpresas, pelas
jornada"? Não será
nossas surpresas. Foi uma forma de
neodesencadeamento, neoconversão,
dizer, implicitamente, que nos
neotransferência. Será neopsicose?
confrontávamos com certa rotina ou
Será que realmente queremos ligar
nossa elaboração à neopsicose? Não
com certo classicismo e que
queríamos distinguir momentos ou
me agrada nem um pouco a
casos que se subtraíam a uma ordem,
neopsicose. E me dizia: "no fim das
causando nossa surpresa. (...).
contas, falamos de psicose ordinária".
Perseveramos, e, no segundo tempo
Na história da psicanálise,
[em Arcachon], escolhemos como
interessamo-nos naturalmente pela
tema �casos raros". Quisemos, talvez
: psicose extraordinária, por aqueles
conceituar nossas surpresas. O fato e
que realmente "arrebentavam". Há
que fomos levados a explicitar nossa
quanto tempo Schreber é referência?
referência à norma clássica das
Ao passo que temos aqui psicóticos
psicoses e, desse modo, colocá-la
mais modestos, que nos reservam
mais radicalmente em questão.
surpresas, mas que podem, como
Hoje, nos reencontramos, na
veremos, se fundir num tipo de média:
Convenção [de Antibes], no tempo a psicose compensada, a psicose
três. Lendo a coletânea, tive o
suplementada, a psicose não
sentimento de que aquilo que
desencadeada, a psicose medicada, a
tínhamos abordado sob a perspectiva
psicose em terapia, a psicose em
de casos raros, abordávamos, agora,
análise, a psicose que evolui, a
sob a perspectiva de casos frequentes.
psicose sintomatizada, por assim dizer.
Demo-nos conta de que o que.
A psicose joyceana é, diferentemente
designávamos como casos raros, em
da obra de Joyce, discreta. (. .)
relação à nossa norma de referência, à
. .

Tanto o franco psicótico quanto o


nossa medida de base ... eram -
psicótico normal são variações... da
sabíamos muito bem disto, por meio
situação humana, da nossa posição de
da nossa prática quotidiana - casos
falante no ser, da existência do
frequentes. Neste volume da
falasser.
Convenção {de Antibes], assumimos
seu estatuto de casos frequentes.
Foi deste modo que, a posteriori,
imaginei nosso caminho. Passamos da
Jacques-Aiain Miller
surpresa à raridade e da raridade à
(A psicose ordinária, p. 241-242)
frequência. Estava, ontem à noite, me
1J P!iiCD!iE
DRDinJIRilJ
A CONVENÇÃO DE ANTIBES

"EFEITO DE RETORNO SOBRE A PSICOSE ORDINÁRIA"


(JACQUES·ALAIN MILLER)

T@íbhoteta jf reullíana
�.EscolaBwileira
'4-'de Psí�
© Copyright Editora Scriptum 2012

Edição e organização:
Maria do Carmo Dias Batista e Sérgio Laia

Tradutores:
José Luiz Gaglianoni, Lourenço Astúa de Moraes, Maria da Glória Magalhães e
Sandra Arruda Grostein

Revisão da Tradução:
Daniela de Camargo Barros Affonso (coordenadora), Ana Venite Fuzatto de Oliveira,
Antonia Claudete Amaral Livramento Prado, Kátia Ribeiro, Maria Noemi de Araújo,
Márcia Aparecida Barbeito e Marizilda Paulino

Revisão Final da Tradução e Estabelecimento do texto em português:


Frederico Zeymer Feu de Carvalho e Yolanda Vilela

Revisão da Língua Portuguesa:


Neyse de Castro Sanguinetto

Produção:
Silvano Moreira

Capa, Projeto Gráfico e Diagramação:


Fernanda Moraes
ooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooouooooooooooooooooooooooooooo

� Batista, Maria do Carmo Dias; Laia, Sérgio (Organizadores) �


� A Psicose Ordinária I Maria do Canno Dias Batista e �
� Sérgio Laia. i
� Belo Horizonte. Scriptum Livros, 2012. i
i 432p . i
i I. Psicanálise. i

I I
ISBN 978-85-89044-48-6

i CDU: 616.89 i

!..=���.�����.:.�:....................................................................!
Livraria e Editora Scriptum Escola Brasileira de Psicanálise
Rua Fernandes Tourinho, 99 Rua Felipe dos Santos, 588
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SUMÁRIO

PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA 7


(Sandra Arruda Grostein)

NOTA DOS EDITORES BRASILEIROS 11


(Maria do Carmo Dias Batista e Sérgio laia)

PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA 15

PRIMEIRA PARTE: OS TEXTOS


O NEODESENCADEAMENTO
Seção Clínica de Aix-Marseille e Antenne Clinique de Nice:
ligamentos, desligamentos e religamentos 21
Seção Clínica de Clermont-Ferrand, Antenne Cln
i ique de Dijon
e Seção Clinica de lyon: Clínica da suspensão 53
Seção Clinica de lille:
Investigações sobre o início da psicose 77

A NEOCONVERSÃO
Seção Clínica de Bordeaux:
Usos do corpo e sintomas 99
Antennes Cliniques de Chauny-Prémontré e de Rouen:
Fenômenos de corpo e estruturas 119
Antenne Clinique de Nantes e Seção Clínica de Rennes:
Fenômenos corporais em pacientes masculinos 129

A NEOTRANSFERÊNCIA
Seção Clínica de Angers:
lalíngua da transferência nas psicoses 155
Seção Clínica de Bruxelas:
Transferência e psicose .nos limites 187
Antenne Clinique de Tottlouse:
O psicanalista como ajuda-contra 203

AUTORES DOS TEXTOS DA PRIMEIRA PARTE 227


SEGUNDA PARTE: A CONVENÇÃO

ABERTURA
1. Tríptico 235
2. A Convenção, modo de uso 239
3. Clínica fluida {f/oue) 241

DO PATOLÓGICO AO NORMAL
4. Perturbações da linguagem 249
5. Gozar da linguagem 263
6. Apfuit! do sentido 271
7. Continuidade-descontinuidade 277
8. Psicoses carvalho e junco 291

DA ÓPERA AO TEATRO DE BOLSO


9. O desejo é sua máscara 295
1 O. Fenômenos de ordem metonímica 303
11. Invenção sob medida e prêt·à·porter 309
12. Conversão do significante e localização da libido 319
13. Conft!rsão do simbólico ao real 325
14. A hiância mortífera 329
15. Corpo, carne, cadáver 333

DO PSICÓTICO AO ANALISTA
16. Do saber suposto à lalíngua exposta 345
17. A língua e o laço social 349
18. Decomposição espectral da linguagem 357
19. Word and object 361
20. Língua pública e língua privada 367
21. Como pode o sujeito psicótico servir-se de nós? 375
22. As condições da conversação com um psicótico 383

SUPLEMENTO
Efeito do retorno à psicose ordinária (Jacques-Aiain Miller) 399
PREF Á CIO DA EDIÇ Ã O BRASILEIRA

O fazer da clínica nos obriga a sempre inovar e inventar


em face dos sintomas que, por sua plasticidade, se renovam.
Entre 1 996 e 1 999 houve na França uma série de
Conversações no âmbito das Seções Clínicas do Campo Freudiano,
visando questionar a psicose a partir dos manejos clínicos e das
manifestações sintomáticas travestidas de ineditismos.
O objetivo do livro A Psicose Ordinária - A Convenção de
Antibes é estabelecer novas convenções sobre a psicose, recuperan­
do alguns conceitos clássicos da clínica lacaniana e reformulando­
os, para apresentar alternativas ao estabelecimento do diagnóstico
diferencial entre neurose e psicose, na discussão de casos em
atendimento.
Para organizar a tradução da edição brasileira, e sua poste­
rior publicação, foi necessário o envolvimento de algumas institui­
ções e o trabalho de muitos.
Em um feliz encontro, a CLIPP - Clínica Lacaniana de
Atendimento e Pesquisas em Psicanálise e o Colégio Franco­
Brasileiro, que na mesma época, em São Paulo e Paris, respectiva­
mente, trabalhavam o livro "La Prychose Ordinaire", concluíram pela
necessidade de uma versão em português do texto. Estabeleceram,
então, uma parceria para tal finalidade, agradeceram a J acques-Alain
Miller por gentilmente autorizar o projeto.
O livro foi dividido em suas duas partes "naturais": os
casos clínicos e a conversação. A tradução da primeira parte ficou
sob a responsabilidade da CLIPP e a da segunda, com o Colégio, à
época sob a coordenação de José Luiz Gaglianone. No que se refe-

7
re ao título, pensou-se, num primeiro momento, em traduzir "La
P!Jchose Ordinaire" por Psicose Comum, mas optou-se por manter a
pluralidade de sentidos que "ordinária" comporta, exprimindo
melhor o que se busca no desenvolvimento das discussões presen­
tes no livro.
No contexto da discussão clínica, cuja série de conversa­
ções Antibes finaliza, o debate visava encontrar meios de aproxi­
mação da questão da psicose por meio de novas proposições con­
ceituais. Já no campo editorial, a versão brasileira, diferentemente
da francesa, cuja inclusão na série das três conversações já estava
dada a priori, buscava um lugar onde pudesse ter seu valor reco­
nhecido. Decidiu-se então, numa segunda parceria entre a Escola
Brasileira de Psicanálise e uma das editoras que já publicavam o
Campo Freudiano no Brasil, incluí-la na série das revistas dos
Institutos do Campo Freudiano no Brasil, iniciada com os dois
volumes da revista Clique. Projeto esse que foi posteriormente
descartado.
Finalmente, numa terceira parceria entre a Escola
Brasileira de Psicanálise (EBP) e a Editora Scriptum, decidiu-se que
a coleção que teria o melhor perfll para acolher o livro A Psicose
Ordinária seria a própria coleção da EBP.
Foi imperiosa uma revisão criteriosa da tradução, visando
principalmente à uniformização dos termos, trabalho do qual nova­
mente a CLIPP participou ativamente, em conjunto com colegas da
EBP.
O longo caminho percorrido para chegar à publicação
permitiu que o termo psicose ordinária fosse apresentado ao públi­
co brasileiro amplamente validado. Embora desde 1 999 muito se
tenha discutido sobre a importância de incluir um diferencial entre
as psicoses, que as aproximassem da neurose, a flexibilidade com
que a expressão "psicose ordinária" é'utilizada permite que se man­
tenha como um termo comum e não seja elevada à categoria de
conceito.

8
Em seu texto "Efeito de retorno sobre a psicose ordiná­
ria", Jacques-Alain Miller retoma a discussão sobre o termo psico­
se ordinária, dizendo que este não se encaixa em uma definição rígi­
da conceitual, e que foi proposto para que cada um pudesse utilizá­
lo quando necessário. Trata-se mais de uma palavra, uma expressão,
um significante, do que propriamente um conceito.

Neste volume, o leitor brasileiro terá acesso ao texto acima


citado, conjuntamente com a tradução da Convenção de Antibes,
graças à generosidade de Miller em permitir que este fosse incluído
nesta publicação. Trata-se de outro diferencial fundamental e, por­
que não dizer, um ganho importante em relação ao original.
A questão central debatida durante a Conversação girava
em torno da necessidade de se estabelecer um novo termo - psico­
se ordinária - pois, se consideramos que psicose quer dizer foraclu­
são do significante do Nome-do-Pai, tanto a ordinária quanto a
extraordinária se submeteriam a essa condição. Contudo, a impor­
tância da psicose ordinária cresce na medida em que este diagnósti­
co é cada vez mais constante, confirmando que os casos apresenta­
dos nesta conversação e a maneira como a discussão é conduzida,
contribuem para manter vivo o debate sobre o tratamento da psico­
se que até os dias de hoje se encontra na categoria do possível.

Sandra Arruda Grostein


Diretora Geral da CLIPP
AME da EBP e da
Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

9
NOTA DOS EDITORES BRASILEIROS

Com satisfação, na Coleção EB� produto da parceria da


Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) com a editora Scriptum, lan­
çamos no Brasil este livro A psicose ordinária. Publicado original­
-

mente na França em 1999, já pode ser considerado um clássico,


tendo em vista a reorientação que nos tem permitido operar no tra­
tamento das psicoses e suas incidências na clínica psicanalítica em
geral.
"Psicose ordinária", como se verá a seguir, não é um novo
diagnóstico de psicose, mas um modo de diagnosticar e tratar as
psicoses mesmo quando elas não se apresentam claramente como
tais. Por isso, a reorientação clínica efetivada com este livro nos
autoriza, ao mesmo tempo, a dar conta do que pode atravessar as
diferentes categorias que classicamente chamamos de "neuroses",
"psicoses" e "perversões" sem, no entanto, resvalarmos para diag­
nósticos pouco precisos como "borderline", "casos-limite", "casos
fronteiriços" e "transtornos mentais ... sem nenhuma outra especifi­
cação". Nesse contexto, quatorze (14) anos antes do lançamento da
quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-V), prometida para 201 3, este livro que editamos agora no
Brasil vem possibilitando - aos psicanalistas de orientação lacania­
na e aos profissionai� do âmbito da saúde mental que os acompa­
nham - diagnosticar sem fazer proliferar "comorbidades" (atribui­
ção de vários e até contraditórios tipos de transtornos mentais a um
mesmo paciente), sem aumentar a quantidade, em uma mesma cate­
goria, de diagnósticos pouco precisos por se "caracterizarem"
como sendo "sem nenhuma outra especificação". Assim, lançar a

11
tradução deste livro no ano anterior à publicação do DSM-V é ofe­
recer àqueles que se interessam pelas psicoses e pelo que se conven­
cionou a chamar de "saúde mental", um instrumento clínico preci­
so e prectoso.
Outra mostra da atualidade deste livro é que, em 201 1 , por
ocasião de um encontro com vários psicanalistas de língua inglesa
em Paris, Jacques-Alain Miller apresentou a conferência "Efeito de
retorno sobre a psicose ordinária". Neste "retorno" - que conside­
ramos fundamental publicar nesta edição brasileira - a noção de
"psicose ordinária" ganha em precisão e clareza, assim como suas
ressonâncias sobre a experiência psicanalítica com relação à satisfa­
ção pulsional, ao significante fundamental que Lacan designou
como Nome-do-Pai e aos modos como o termo "sintoma" é lapi­
dado ao longo do ensino de Lacan.
Esta tradução brasileira, como poderemos ler no Prefácio
aqui assinado por nossa colega Sandra Grostein, foi um trabalho
feito por muitos, uma efetiva pratique à piusieurs que, por sua vez, é
consonante com a própria montagem do livro original, baseada nos
trabalhos e na conversação que ganharam corpo em uma
Convenção, sustentada por vários psicanalistas de orientação laca­
niana e animada por Jacques-Alain Miller, em Antibes. A esses cole­
gas de língua francesa, bem como à Sandra Grostein, Angelina
Harari, Elisa Alvarenga e Leonardo Gorostiza, que foram decisivos
para a retomada de alguns contatos e a efetivação de iniciativas que
tornaram esta edição possível, nossos agradecimentos. Para fazer
ressoar pluralidade da tradução para o português em um mesmo
diapasão, contamos com o inestimável trabalho de nossos colegas
Frederico Zeymer Feu de Carvalho e Yolanda Vilela, a quem tam­
bém agradecemos imensamente.
Como editores brasileiros deste A psicose ordinária, cabe
agora também destacar que iniciamos nosso trabalho no âmbito da
gestão de Rômulo Ferreira da Silva, Luiz Fernando Carrijo da
Cunha e Simone Souto na Diretoria da EBP, mas o prosseguimos,

12
devido à extensão que ele tomou, graças à acolhida que tivemos da
atual Diretoria da EBP, composta por Cristina Drummond, Lilany
Vieira Pacheco e Ondina Machado. Somos gratos à confiança depo­
sitada em nós por esses colegas, bem como aos que compõem a
maquinaria editorial da Scriptum. Considerando que este é nosso
último trabalho conjunto na Equipe de Publicação da EBP, bem
como a magnitude deste livro, podemos dizer que fechamos este
nosso percurso "com chave de ouro". É esta chave que entregamos,
agora, na forma deste livro, aos leitores brasileiros.

Maria do Carmo Dias Batista


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP),
Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP);
Redatora da Correio- Revista da EBP.

Sérgio Laia
Analista Membro da Escola (AME) pela EBP e pela AMP;
Professor do Curso de Psicologia da
Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura);
Pesquisador do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da
Universidade FUMEC (ProPIC), com Bolsa de Produtividade
Nível 2 do Cons�lho Nacional de Desenvolvimento
Tecnológico e Científico (CNPq) e em cujas atividades está
incluído o processo de edição deste livro.

13
PREF Á CIO

Dois livros em um: a primeira parte é composta por nove


relatórios, que foram elaborados de forma coletiva pelas Seções
Clínicas do Campo Freudiano; a segunda uma longa conversação
sobre esses textos, que se estende por três meias jornadas, nos dias
1 9 e 20 de setembro de 1 998.
Os textos estão divididos em três capítulos: o neodesencadeamento
(aquelas formas de "desligamento" que se distinguem do desenca­
deamento clássico), a neoconversão (fenômenos de corpo não inter­
pretáveis de maneira clássica) e a neotran.iferência (a manobra da trans­
ferência nas neopsicoses). Tudo se simplificou então, na conversa­
ção, para dar lugar a um título único: a psicose ordinária.
Com esse volume, chamado de A Convenção de Antibes (que
aconteceu em Cannes), encerra-se um ternário iniciado com o Conciliábulo
de Angers (1 996) e seguido pela Conversação de Arcachon (1997), que já foram
objeto de uma publicação na mesma coleção (IRMA). São três momen­
tos de uma mesma investigação da psicose. Mesmo sendo cedo demais
para se fazer um balanço, já se pode dizer que o estilo agradou, que foi
transmitido, que o esforço prosseguiu diversificando-se: os Institutos
brasileiros do Campo Freudiano fizeram em 1998 sua primeira conversa­
ção clínica, em Campos do Jordão, no estado de São Paulo; a Seção de
Bordeaux reuniu-se em. conversação no mês de janeiro de 1999; as Seções
francófonas se encontraram em Paris no começo do mês de julho do
mesmo ano para uma conversação sobre a estilística das psicoses.
Um movimento está lançado.

27 de julho de 1 999.

15
PRIMEIRA PARTE
OS TEXTOS
O NEO DESEN CADEA MENTO
Seção Clínica de Aix-Marseille e Antenne Clinique de Nice*

LIGAMENTOS, DESLIGAMENTOS, RELIGAMENTOS

L INTRODUÇ Ã O

A comunidade analitica foi convocada, neste encontro de


Antibes, para um aggiornamento de sua elaboração teórica da clinica.
Jacques-Alain Miller1 empreendeu esse trabalho em várias oportuni­
dades, dando lugar de destaque ao estudo da psicose, aos elementos
que Lacan forjou a partir do Seminário III, e que devem nos servir
de suporte neste registro de nossa prática.
A participação que o encontro das Seções Clinicas pode
ter nesse aggiornamento se baseia na dialética entre a experiência cli­
nica e os quadros conceituais.
O que nos propusemos a estudar, com o termo "neode­
sencadeamento", é a atualização necessária do conceito de desenca­
deamento, tal como é enunciado em sua forma canônica, por
Lacan, em sua "Questão preliminar"2•
Essa atualização se escora na experiência analitica acumu­
lada desde então, tal como foi esclarecida pelo ensino de Lacan. Tal
experiência leva a integrar às nossas ferramentas conceituais os
desenvolvimentos posteriores de Lacan, concernentes à psicose.
Estes consistem essencialmente em tomar em consideração a "pola­
ridade"3 entre "sujeito do gozo" e "sujeito do significante". Assim
se encontrou definida a orientação crescente da clínica pela questão
do real e do aparelhamento do gozo. Lacan insiste particularmente
nesta mudança de perspectiva em sua ''Alocução sobre as psicoses

21
da criança"4• Essa via leva a dar todo o lugar à clínica "borromea­
na", contemporânea dos Seminários RSI e O Sinthoma, além da clí­
nica estrutural que distingue entre neurose e psicose em função da
presença ou da ausência do operador que é o N orne-do-Pai.
Parece-nos mais fácil, graças a essas ferramentas, dar conta
de numerosos casos clínicos e de suas possibilidades de tratamento,
perguntando-nos o que faz manter juntos os três registros R, S e I
da estrutura, ou o que poderia fazê-los ficar juntos, em vez de nos
orientarmos somente pela questão da foraclusão.
De um modo empírico, o que orienta a clínica consiste em
identificar o que, em um dado momento, para um sujeito, faz "desli­
gamento" em relação ao Outro. Essa identificação esclarece retros­
pectivamente o elemento que fazia "ligamento" para esse sujeito, e
permite dirigir o tratamento no sentido de um eventual "religamen­
to". Essa noção, estritamente empírica, pode, portanto, revelar-se
operatória para a direção do tratamento.
A clínica à qual nos referimos dá lugar a casos que pode­
mos qualificar - segundo o modelo da nosologia médica - de "for­
mas clínicas", no sentido de variantes, e até mesmo de modos atípi­
cos, em relação à "forma tipo" do desencadeamento pinçado por
Lacan em sua "Questão preliminar". Notamos que, desde essa
época, Lacan fazia de sua forma paradigmática um modelo suscetí­
vel de ser declinado segundo diversas variáveis. Na literatura pulu­
lam entidades como mania, melancolia, erotomania, autismo infan­
til, etc., nas quais, por exemplo, a eclosão dos fenômenos elementa­
res não acompanha o encontro de Um-pai ou obedece a uma tem­
poralidade diferente. Os novos sintomas, a evolução da patologia ao
sabor das mudanças do Outro, são igualmente ocasiões para obser­
var formas clínicas mais ou menos inéditas.
Parece-nos que, dentre essas "formas clínicas", pode-se propor
uma classificação na medida em que as variações em relação ao para­
digma envolvam a temporalidade (diacronia) ou a estrutura do próprio
desencadeamento, sua "conjuntura", como dizia Lacan (sincronia).

22
A. Formas clínicas segundo a diacronia

Em Arcachon, Éric Laurent lembrava uma fórmula de


François Leguil que faz do desencadeamento5 um "momento de
concluir". Mesmo que o desencadeamento não seja senão o tempo
zero de um processo evolutivo em cujo curso se coloca a questão,
crucial para nós, sobre as organizações e suplências possíveis (o
tempo da certeza a advir), ele é, de fato, o termo ao qual chega uma
história que não pode sempre ser descrita como "um céu sereno"
no qual irromperia um raio. Pode-se, a posteriori, depois da revelação
da psicose, identificar, em bom número de casos, premissas, sinais
precursores e perturbações de evolução progressiva, seja ela contí­
nua ou descontínua. Entre esses casos, Lacan tinha descrito os
"fenômenos de franja" e os estados que não hesitava em qualificar
de "pré-psicóticos". Alguns de nossos colegas, Pauline BernardS,
por exemplo, descreveram recentemente o aparecimento ou a reve­
lação de fenômenos elementares e de psicoses confirmadas em pes­
soas que foram privadas por tratamentos de substituição, depois de
anos ou décadas de prática toxicomaníaca. Esses sujeitos testemu­
nharam, então, que essa prática encobria dificuldades concernentes
ao campo da psicose, sem desencadeamento típico. Em termos de
sintomatologia, esses sujeitos haviam permanecido "assintomáti­
cos" durante toda duração de sua toxicomania. Além dos efeitos
ansiolíticos e neurolépticos da substância, é clássico descrever o
tamponamento que a droga pode colocar na divisão subjetiva e a
solução identificatória que ela autoriza pela pregnância do signifi­
cante "toxicômano" no campo social. A posterion� esses sujeitos,
novamente confrontados com suas interrogações e com sua divisão
subjetiva, podem, por exemplo, alegar distúrbios alucinatórios
remontando à infância, com uma vivência de despersonalização e
de descorporificação, experimentada nos momentos de derrelição e
de grande solidão. Esses fenômenos - que marcaram esses sujeitos
pela sua intensidade emocional, a perda das referências corporais e

23
identificatórias, sua estranheza e a impossibilidade de comunicá-la a
alguém e de tirar disso uma significação - são às vezes reinterpreta­
dos, a posteriori, em termos de experiência parapsicológica, de "via­
gem cósmica" ou de vivência mística inefável. A convicção dos
sujeitos sobre o sentido sinestésico de uma abolição dos limites da
realidade sensível só se equipara ao caráter enigmático e angustian­
te desse gozo.
Eles alegam em seguida um empobrecimento de suas tro­
cas e dos laços afetivos e sociais, e uma marginalização crescente,
escandida por tempos de rupturas progressivas, repetitivas e de
intensidade crescente do laço social.
Esse percurso evoca para nós o que Éric Laurent definia,
em Arcachon, como "desligamento progressivo do Outro".
Daremos, mais adiante, vinhetas clínicas que nos parecem ilustrar
esse caso.

B. Formas clínicas segundo a sincronia

Em alguns casos, é a estrutura do momento de concluir


que se revela atípica. Os efeitos do desencadeamento parecem cer­
tos e habituais, com a regressão especular, a invasão de um gozo
deslocalizado, os remanejamentos posteriores pelo delírio e a busca
de uma solução pessoal.
O que domina o quadro no momento mesmo do desenca­
deamento é o encontro fortuito com um gozo - gozo do Outro
e/ ou Outro gozo - e a impossibilidade, com a qual o sujeito se
encontra confrontado, de simbolizá-lo e de encontrar para ele um
modo de subjetivação.
Diante da irrupção desse gozo, o tecido simbólico apare­
ce esfarrapado - podemos pensar no que Lacan fala a propósito de
Schreber quanto ao "texto esfarrapado em que ele mesmo se
torna". O sujeito parece experimentar o buraco como tal, e o que

24
se manifesta é o desfalecimento radical de todo aparelhamento sig­
nificante do gozo. Freud notava, à sua maneira, esse traço na melan­
colia, distinguindo nela o modo de identificação ao objeto perdido
- poderíamos falar da "realização" dele - com relação ao que se
observa na histeria, na qual a identificação ao objeto é amenizada
pelo fato de que o sujeito dispõe daquilo que ele chama de uma
"relação de objeto", como meio de mediação, isto é, uma possibili­
dade de aparelhamento pela fantasia.
Referindo-se à "Questão preliminar"7 e ao esquema I de
Lacan, o que é patente nesses casos é <!>o. Toda significação fálica
parece abolida. Mas não parece legítimo supor Po, principalmente
na ausência de encontro com Um-pai e de triangulação da situação,
e tampouco em presença, por outro lado, de uma aparente eficiên­
cia da figura paterna. Quando muito, poder-se-ia deduzir Po a par­
tir da suposição teórica, que é a condição lógica e necessária da
ausência da significação fálica.
Grivois8 descrevia a psicose como articulada em torno de
um "ponto central", que consiste em uma "experiência vivida pelo
sujeito fora de toda possibilidade de comunicá-la". Os casos dos
quais falamos aqui, em que não predominam os distúrbios da relação
com o simbólico, são assim centrados em uma experiência que devemos
entender como confrontação a um gozo do Outro, que o sujeito
sente como totalmente enigmático, não lhe atribuindo outro lugar
senão o de objeto e colocando-o em perigo extremo. A posteriori, o
sujeito poderá dizer que é a sua vida psíquica, a sua "própria exis­
tência" - como diz um de nossos analisantes - que se encontrava
ameaçada, mais do que a vida propriamente dita. Nesse ponto, nos­
sos sujeitos são bastante "Schreberianos".
Conhecemos pelo menos três casos de jovens mulheres
em que o neodesencadeamento consiste em uma vivência apocalíp­
tica por ocasião de sua primeira relação sexual, em um contexto, a
priori, não traumático. O trauma só é constituído nesses casos com
a condição de que seja dado um sentido amplo ao termo, a saber, o

25
encontro com um real sem ordenação simbólica possível. Os efei­
tos puderam ser de aparência melancólica, até mesmo catatônica.
Imediatamente, aparece o desarranjo do laço do sujeito com o seu
ser vivente. A impossibilidade de produzir uma significação fálica
para dar conta da situação vivenciada deixa o sujeito diante de um
desespero "que não tem mais nada a ver com nenhum sujeito",
como diz Lacan sobre os urros de Schreber. Po é aqui uma simples
hipótese que só se sustenta pelo sentimento de ausência de todo
fundamento de seu ser com o qual o sujeito está às voltas, e com a
ausência de qualquer chave que permitiria uma simbolização e um
aparelhamento desse gozo enigmático e sem limite.
A hipótese que sustentamos é que tal desencadeamento
pode ser lido em uma clínica borromeana como um desenodamen­
to da estrutura ocasionado pelo esmorecimento da relação imaginá­
ria com o corpo, expondo a impossibilidade de limitar o gozo, assim
como o seu caráter totalmente xenopático.

11. VINHETAS CL ÍNICAS

A. Desligamentos sucessivos: dois exemplos

1 . Primeiro caso

A perspectiva de ter que interromper o curso de sua aná­


lise levou um homem a consultar outro analista para avaliar a legiti­
midade de sua intenção. Experimentava, contudo, as maiores difi­
culdades para formular os motivos de sua desconfiança em relação
ao analista.
Parecia-lhe ter percebido nele movimentos de hostilidade
que explicariam desencadeamentos de angústias catastróficas, ime­
diatamente após alguns encerramentos de sessões. No entanto, o
que detinha seu desenvolvimento é que ele tinha a experiência de ter

26
interrompido outros tratamentos, ou tentativas, de um modo simi­
lar. Por isso, embora não pudesse subjetivar a repetição, não deseja­
va que isso se reproduzisse.
O que nos leva a apreender a posição desse sujeito, consi­
derando a clínica sob a ótica do "desligamento" do Outro em pon­
tos diversificados da estrutura, é o fato de ele, no mesmo instante
em que se aproxima de uma ruptura reiterada do laço com o analis­
ta, tentar religá-lo pela via de um subterfúgio, que mantém o signi­
ficante da análise. Em suma, ele tenta, em um mesmo movimento
de denúncia e de identificação, dar nome às irrupções de gozo ino­
mináveis.
Poderíamos dizer, desse sujeito, que ele não deixou de
obter um saber sobre suas diversas iniciativas analíticas, mas que
esse saber nunca lhe permitiu situar o gozo devastador, com o qual
ele lida periodicamente. A solução que se mostra cada vez mais pre­
sente em suas invasões catastróficas consiste em produzir, no plano
da realidade, condutas em que paira a iminência de um ato de cará­
ter médico-legal que tornaria irreversível a recusa de sua posição no
laço social.
Em sua análise, dava crédito às construções que articula­
vam os pontos candentes de sua infância, particularmente os que
indicavam o caráter "sem recurso" do surgimento do real a partir de
certos acontecimentos. Mesmo sem chegar a reconhecê-la, pode-se
dizer que validava, que adotava a ideia de uma problemática organi­
zada em três tempos: o luto impossível de sua mãe em relação a seu
exílio de uma terra marcada pela solidão dos marinheiros, a inexis­
tência da palavra do pai em qualquer ocasião e as tentativas preco­
ces para encontrar uma solução sexual para a perplexidade provo­
cada pelos mal-entendidos. Três episódios são incansavelmente
lembrados como as marcas de seu destino: na primeira infância, a
recusa absoluta de sua mãe em deixá-lo se isolar para fazer suas
necessidades, ligada à compacidade gozante de seu olhar quando
essas necessidades se efetivavam; na adolescência, a petrificação

27
estranha do pai quando o chamou para protegê-lo de uma sedução
homossexual e, para terminar, no momento de ele mesmo se tornar
pai, a irrupção mortificante de uma compulsão pedófila.
Esses traços clínicos, distintos no tempo, nos dão a ideia
de um desligamento escalonado na história do sujeito, incidindo em
diferentes lugares. A tentativa de resistir à captura do olhar mater­
no cedeu posteriormente diante do desmoronamento do apelo ao
pal.

2. Estudo do caso de uma jovem anoréxica

Mais que relatar em detalhe o caso desta moça de vinte e


cinco anos, vamos isolar alguns momentos de seu tratamento e ana­
lisá-los.

a) Os desligamentos sucessivos
O termo "neodesencadeamento" não designa somente o
desencadeamento psicótico; permite-nos interrogar como o sujeito
se desliga do laço social. Ele se desliga do laço social, caso nos colo­
quemos na posição de outro, de alter ego, para se ligar - podería­
mos dizer, reforçando essa mesma metáfora de ligamento-desliga­
mento - ao seu gozo.
Eis um exemplo paradigmático. Esse sujeito, às voltas com
sua anorexia, desenvolve um sintoma de cleptomania que ele inter­
roga durante o tratamento. Confidencia suas diferentes vertentes:

_Trata-se de roubar, ou coisas que não servem para nada,


ou "substitutos de alimentos", a fim de constituir estoques. Esses
estoques não devem diminuir, "por medo que isso falte". Na vertente
significante, nota-se esse deslocamento entre comer nada e roubar
substitutos de alimentos.
- o ato se declina em termos de "provocação". ·�s veze�
quando roubo e passo no caixa com uma sacola um pouco transparente, aspes-

28
soas_, atrás, podem ver alguma coisa. Se me denunciassem, isso não me impedi­
ria de fazer de novo. É um descifio: vocês podem me pegar uma ve:v mas não
todas". É uma maneira de provocar o Outro e de questionar a lei.
Na vertente pulsional, o que impele ao ato se sustenta não
somente pelo dizer "é maisforte do que eu", mas também por um "é
uma bulimia-cleptomania ". Há um "nunca é suficiente. Quando volto para
casa, constato: só roubei isso?!", mas, no processo anoréxico, o que é cui­
dadosamente pesado e repesado, na previsão da refeição, é sempre
reduzido e considerado como excessivo.
Um excesso marca a falta da simbolização. Com relação à
oralidade, à pulsão oral, a demanda ao Outro não está simbolizada.
Alguma coisa se desligou, se reportamos essa sequência à própria
estrutura.

b) "O malabarismo"
O que acontece quando isso responde no Outro do lado
da lei?
"Por mais que meuspais me digam que, se euforpega, sereipriva­
da da liberdade, eu não a tenho atualmente". A evocação da lei e dos ris­
cos corridos fracassa em apaziguar "a deriva". "Na prisão, não estarei
pior do que no hospitalpsiquiátrico, onde me obrigariam a me privar de meus
sintomas. Na prisão, por sua ve:v não poderiam me obrigar a comer".
Por ocasião de uma primeira interpelação em que os vigias
fazem uma ameaça: "Na próxima ve:v mandamos os cachorros!", a
paciente revela a resposta que lhe atravessou a mente: "Eles só terão
um osso para roer".
Enfim, durante uma segunda vez, quando foi levada à
delegacia e interrogada, ela disse: "Nunca fiquei empânico por causa dos
policiais_, sentia-me em segurança, isso não me atingia. O que me contrariava
era ter de chegar mais tarde em casa para comer".
Nessas três evocações, assiste-se a uma inversão da posi­
ção do sujeito que, de acordo com os termos utilizados anterior­
mente, se desliga do laço social para se ligar naquilo que cifra em

29
segredo o gozo. O sujeito escapa da lei em um movimento de pên­
dulo, tal como os malabaristas.

c) Clínica do real e clínica do gozo

A anorexia se constitui verdadeiramente como um parceiro­


sintoma, a tal ponto que o sujeito interroga: "Eu me pergunto às vezes o
que me restaria se eu retirasse esse sintoma}}. Retirar o que encerra esse
nada, nessa busca na qual ela se esforça em comer nada, é encon­
trar-se confrontada ao real. A anorexia faz borda a esse buraco do
real. Uma borda em relação ao que se inscreve como pulsão de
morte. É no momento de uma "confissão" que tomamos a medida
do que está em causa. Essa confissão, ela a enuncia assim: "Soufas­
cinada pela violência!" Uma fascinação pela violência que é dirigida
contra inocentes, vítimas, ao acaso. Essas vítimas não deixam de lhe
lembrar sua própria posição vitimada quando se deixa pegar, no
decorrer de suas passagens ao ato cleptomaníacas. Ver cenas de vio­
lência serve-lhe para "exorcizar a (sua) própria violência": "O que me
fascina são os dramas ao vivo na televisão; eu gostaria de ver isso, o desmoronamento
do estádio de Heize4 ou ainda os terremotos nos quais eles mostram um monte
de imagens de mortos e deferidos. Acho que nunca há mortos o bastante. }}
Ela testemunha aquilo que a rói por dentro: a pulsão de
morte. O que a invade é esse "nunca o bastante}} da pulsão de morte.
Isso dá a medida do que se trata para ela nessa anorexia. Assiste-se
a um desligamento do laço social e a um ligamento com a pulsão.
Da mesma forma que, no tratamento do neurótico, sinto­
ma e fantasia mantêm uma relação de proximidade (o sintoma só
tem sentido se é reportado à clínica da fantasia), na psicose existe
uma relação entre sintoma e delírio. É precisamente o gozo que
constitui a articulação entre esses diferentes termos.

30
B. Formas atípicas da conjuntura de desencadeamento

Quatro casos clínicos vão nos permitir questionar a exis­


tência de desencadeamentos nos quais o momento fecundo não
parece depender do encontr.o com Um-pai.

1 . Uma doença da mentalidade

Mediante os meandros da queixa de um sujeito, as dificul­


dades encontradas na localização estrutural, a condução do trata­
mento e o manejo da transferência, o analista é levado a evocar o
caso em termos de "doença da mentalidade". Essa expressão de
Lacan nos é reportada por Jacques-Alain Miller em suas reflexões
sobre a apresentação de pacientes9•
Essa moça viera para a análise depois de dezessete anos de
cuidados psiquiátricos que lançaram mão de todo o arsenal antide­
pressivo, dezessete anos escandidos por longas hospitalizações.
Cada uma delas correspondia a um paroxismo do que marcava a
tonalidade geral de sua existência: seu sentimento de estar ausente
dela mesma, de "desabitar sua vida". Tentava, em vão, representar
papéis "normais", responder ao que se esperava dela, fazer o que
era conveniente fazer. Mas fracassava sempre quando percebia que
esses papéis eram perfeitos empréstimos, que não os endossava
senão como roupas estranhas a ela, puros semblantes. A identifica­
ção comum a abandonava então, como sendo imprópria: quer ela
tentasse ser "esposa, irmã, amante, mãe", como diria Apollinaire.
Se a análise lhe parecia ser sua última chance, é porque o
retorno inexorável desses estados depressivos lhe parecia, ao
mesmo tempo, como a escolha de um refúgio quanto ao caráter
insustentável de sua relação com o mundo e como uma descida para
o reino da morte. Ela fala, por exemplo, de sua primeira hospitali­
zação, aos dezessete anos, como um retorno à matriz, percebendo,
ao mesmo tempo, a natureza mortífera desse retorno: "Quando

31
minha mãe vinha me visitar, via minha morte avançar em minha direção ". Ela
circunscreve frequentemente, assim, a superposição das figuras do
mesmo, da mãe e da morte.
Seu percurso levou a uma dessocialização profunda, mas­
carada por sua dependência em relação ao meio familiar: vive em
um apartamento que pertence a seus pais, no mesmo andar em que
eles moram. Eles asseguram sua sobrevivência, auxiliados pelo
benefício para adultos incapacitados que seu psiquiatra ajudou a
obter. Cuidam de seu fllho, que ela vê somente alguns minutos por
dia. Queixou-se muito dessa despossessão, e os pais são de fato
muito ativos nesse ponto. Mas ela chega a dizer que ficou alheia ao
nascimento de seu filho, como se fosse sua própria mãe que o tives­
se colocado no mundo.
Entre as crises, sua vida é ritmada por tentativas de enfren­
tar a própria situação que está na origem de sua primeira descompen­
sação: a relação com os homens. Sente a cada vez como a engrenagem
vai conduzir aos mesmos efeitos, mas vai nessa direção, como a mari­
posa vai para a luz. Não cessa de se confrontar com a não-relação
sexual e a sua impossibilidade de inventar uma solução que possa fazer
suplência a isso. Ela topa a cada vez com a ausência de uma fantasia
que possa enquadrar sua relação com o real e tamponar seus efeitos.
No tratamento, tenta construir algo que faça função de
fantasia, de um modo que permanece estritamente imaginário.
Trata-se, nos roteiros que ela produz, de recuperar um poder relati­
vo sobre o outro, uma presença de si, e de assumir certa "masculi­
nidade" ou o que chama de "feminilidade transfigurada". Esses
roteiros só se mantêm ao preço de um apagamento de fato de qual­
quer parceiro, de qualquer homem, a não ser em filigrana, a título
de espera. Trata-se de tentativas de restaurar a imagem do corpo
próprio, erigir uma figura narcisicamente investida, coroada pela
aura fálica de lembranças nas quais ela se vê menininha, radiante na
luz do deserto. Para isso, ela joga com os semblantes da mascarada
e com aqueles da "natureza".

32
Ela se descreve assim como 'Jora da civilização, lá onde as rife­
rências do masculino e dofeminino se apagam, mas onde a feminilidade verda­
deira pode, de repente, resplandecer: seria mulher, sem maquiagem, sem sapa­
tos, sem homem, distante, sozinha, única em meu gênero, feliz em sê-lo, mulher
de corpo com um corpo de mulher, sem necessidades de 'mais'para exprimi-lo ".
Apesar da solidez dos episódios melancoliformes, seu
engajamento na análise me levou a pensar em uma neurose severa.
Seu discurso, ao longo das sessões, reveste-se de todas as aparências
do discurso de um sujeito histérico tomado no enigma do que é
uma mulher para um homem. Coloca muito humor para dizer: "os
homens são bonitos, como mestres! Eles não são verdadeiramente os mestres,
mas é tão divertido vê-los acreditar nisso!" Ou ainda: "De qualquer maneira,
não quero, apesar de tudo, me deitar com um cara que não me dá tesão!"
As circunstâncias da descompensação inicial, mesmo
clássicas na clínica psiquiátrica, não fazem aparecer um desenca­
deamento típico, no sentido do encontro com Um-pai. Todavia, a
"conjuntura dramática" vai mostrá-la subitamente como estranha
à sua vida, dessubjetivada. O momento de báscula ocorre na oca­
sião da sua primeira relação sexual com um rapaz pelo qual acre­
ditava estar apaixonada, pois é isso o que os outros lhe diziam. Era
preciso logicamente passar por isso, com esse parceiro ideal, visto
que era o verdadeiro duplo de seu próprio irmão. É o instante da
penetração que corresponde a uma báscula no nada. Muitas vezes
ela retomou a análise desse momento crucial e de suas repetições.
Adotava um estilo clínico, ora horrorizado, ora irônico, para des­
crever, como observadora, as manobras que os homens fazem
com seu corpo, sua relação tão estranhamente interessada pelos
pedaços de sua anatomia que parecem soltos uns dos outros. O
que sente é, ao mesmo tempo, uma desfalicização radical e uma
insustentável depreciação. Fica subitamente fora de um corpo
estatuificado. O que faz desta cena um desencadeamento, precisa­
mente, é seu caráter de cataclismo inicial, que leva a uma regres­
são especular maciça.

33
Uma fórmula, que apareceu em uma sessão de supervisão,
define muito bem a figura paterna: "O pai é insignificante. " Essa in­
significância seria a forma mínima que toma aqui Po, se quisermos
a qualquer custo aplicar a lógica do esquema I. Aqui, Po só poderia
ser deduzido como estando no princípio daquilo que se dá a ver. O
que se vê, é a elisão do falo, a ausência de significação fálica, tal
como se revela subitamente na ocasião de cada penetração.
Segundo Lacan é essa elisão que é propriamente responsável pela
"regressão à hiância mortífera do estágio do espelho"10• Pode-se ver
aqui, na petrificação de Marie-Pierre, um puro efeito de <l>o11• É ela
mesma que ressalta o "como uma pedra " anunciado pelo seu primeiro
nome, assim como as identificações à Virgem santa e mãe que a sus­
tentava até seu mal encontro com o órgão masculino.
O que dá a esse trabalho analítico um tom de perigo cons­
tante é ela se colocar com o seu "o que sou ali?" - Lacan diz que,
nessa pergunta, o sujeito se formula "concernente a seu sexo e sua
contingência no ser"12 sempre à beira do abismo, sem que seus ditos
encontrem arrimo em um referente fora do significante, em um
objeto que lhe dê lastro. Ela fala de seu "ser desertado", de sua
"pura ausência" e termina se definindo assim: "Sou uma meia revira­
da ao avesso ".
É nesse sentido que ela faz pensar no caso da apresenta­
ção de pacientes em que Lacan falava da "excelência da doença
mental". Tratava-se de uma pessoa que se dizia "interina de si
mesma" e afirmava que gostaria de "viver como uma vestimenta".
Lacan disse então: "Não há ninguém para habitar a vestimenta", e
Jacques-Alain Miller ressaltou esse "ser de puro semblante", sem
"significante-mestre e, ao mesmo tempo, sem que nenhuma subs­
tância venha lhe dar lastro'm.
O pouco dessa identificação - uma meia revirada ao aves­
so - ilustra, ao contrario, que é o falo que constitui o termo "no qual
o sujeito se identifica com seu ser vivente". A doença da mentalida­
de, se retivermos aqui essa indicação, e a elisão do falo, fazem da

34
patologia de Marie-Pierre um abalo "na junção mais íntima do sen­
timento da vida no sujeito"14•

2. Encontro com um gozo enigmático

Há vários anos, uma moça foi atendida no momento de


uma hospitalização que se seguiu a um acesso delirante. O acompa­
nhamento foi interrompido prematuramente. Esse caso não pode­
rá, portanto, ser o objeto de uma elaboração detalhada. Contudo,
ele nos interessa devido às circunstâncias particulares do desenca­
deamento psicótico. Não havia antecedentes psiquiátricos.
Nas entrevistas ocorridas durante a hospitalização e
naquelas subsequentes, não havia sido possível determinar as cir­
cunstâncias exatas da eclosão do delírio. Tratava-se de um delírio de
influência. Ela se dizia fisicamente manipulada por seus vizinhos da
cidade universitária.
O episódio psicótico começa logo depois de uma primei­
ra relação sexual. Ela descreve então uma invasão do corpo por uma
sensação estranha. O orgasmo, assim descrito, não é reconhecido
como tal. Parece que essa forma de desencadeamento não respon­
de à configuração clássica do encontro com Um-pai, tal como é
evocada em "De uma questão preliminar a todo tratamento possí­
vel da psicose". Parece tratar-se, antes, do encontro com um gozo
enigmático, na falta da significação fálica. Isso quer dizer que se
trata muito mais do encontro com <Do, do que com Po. Certamente,
é possível referir <Do a Po; é precisamente a foraclusão do Nome-do­
Pai que é a condição da ausência de significação fálica. No entanto,
a modalidade de desencadeamento é, aqui, o encontro com o gozo.
A questão que esse caso coloca diz respeito ao modo de
resposta do sujeito a esse encontro.
De fato, poderíamos evocar o Outro gozo, tal qual uma
mulher pode encontrá-lo sem poder dizer nada a respeito. Aqui,
trata-se antes da experiência de um real que deixa o sujeito despro-

35
vida quanto a suas possibilidades de resposta simbólica. O desen­
cadeamento pode ser aqui - é uma hipótese - referido a esse encon­
tro que desmascara os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai, ou
seja, a ausência de significação fálica. O que o sujeito produz como
resposta é uma nova realidade delirante: uma manipulação corporal
persecutória.
Essa modalidade de desencadeamento não é nova no sen­
tido da clínica psiquiátrica, que já considerava essa forma de desen­
cadeamento do delírio. Sua leitura é que é nova, e acentua o encon­
tro com um gozo. Essa abordagem tem a vantagem de acentuar o
modo generalizado do tratamento do gozo pelo falasser. O modo de
resposta indica aqui a estrutura: o sujeito dispõe ou não do Nome­
do-Pai como significante para articular sua resposta.

3. O caso seguinte está igualmente sujeito à discussão

Trata-se de uma moça enviada por um psiquiatra. Ela


havia tido um episódio delirante que se conteve logo após a admi­
nistração de neurolépticos. A demanda formulada por ela era de
franquear a barreira de uma inibição nas relações sociais que reapa­
receu após o episódio delirante. Deve-se notar que esse tratamento
será marcado, desde o começo, pela extrema defesa da paciente. Ela
manifestava pouca curiosidade pelas produções do tratamento; não
estava em relação com um sujeito suposto saber. Sua certeza tinha
como corolário uma grande indiferença relativa às produções do
tratamento. Afirmava, já de início, que não queria evocar as ideias
ridículas que a assaltaram durante o episódio delirante, considerado
como um parêntese em sua vida. Durante o ano e meio que se
seguiu, tratar-se-á pouco de um primeiro desencadeamento que
apresenta, contudo, características interessantes. Estava apaixonada
por um rapaz com o qual tinha estabelecido relações ao mesmo
tempo banais e passionais. A paixão, nesse caso, é definida por ela
da maneira que se segue: Essa moça provinha de um meio modes-

36
to, mas muito conformista. Não tinha, até então, nem depois, aliás,
questionado os valores familiares. Tivera duas ligações oficiais ante­
riores, que haviam terminado de maneira anódina. Não fora marca­
da por essas duas relações. Essa terceira relação apresentava um
caráter estranho, segundo seus próprios termos. A estranheza resi­
dia, para ela, no fato de que esse rapaz não lhe correspondia. Era
um marginal que encontrara em uma festa. A expressão que usava
para designá-lo era: 'Não era um rapaz como convém ".
A paciente nada produziu quanto às razões dessa afeição
que a ligava a esse homem que ela imaginava ser um "traficante ".
Entretanto, a ligação transcorre na clandestinidade e, para a pacien­
te, em um mal-estar crescente. Ao mesmo tempo, desenvolve-se um
sentimento de desconfiança em relação a ele. Não sabia o que esse
homem queria dela. A resposta que elabora, de um modo delirante,
ao enigma de seu desejo, é que ele estava envolvido com a máfia e
que ele não queria o seu bem. Ela não dizia nada de preciso sobre
esse ponto. Nada nos atos dele demonstrava qualquer hostilidade.
Muito pelo contrário, era a insistência dele em continuar a relação e
tentar revê-la na saida de seu trabalho, depois que ela decidira pela
ruptura, que haviam reforçado o sentimento de um complô que se
tramava contra ela. Percebia o caráter delirante dessa construção
que ela qualificava de ridícula e da qual tinha profunda vergonha.
Nada podia demovê-la do caráter de evidência que isso tomava para
ela. No mesmo período, aparecem alucinações verbais nas quais ela
ouve comentários de uma voz feminina que lhe pressagia um desti­
no funesto. A elaboração delirante dá lugar aqui a uma figura femi­
nina, que é a rainha de um mundo paralelo ao nosso, e a condena à
dominação desse homem que se torna o instrumento de uma per­
seguição organizada.
As duas elaborações delirantes contraditórias, da máfia e
da rainha do mundo paralelo, coexistiam. Desde então, muito
embora esse homem desaparecesse completamente de seu horizon­
te, permanece a preocupação inconfessável de que ele ressurja desse

37
passado, que ela pretende apagar tanto quanto puder. O delírio é
aqui marcado com o mesmo cunho da fantasia neurótica. Longe de
querer desenvolver essa construção, ela só consentirá com dificul­
dade em revelar, eventualmente, alguns elementos delirantes prece­
dentes. Foi preciso, aqui, utilizar uma discreta insistência. O trata­
mento se tornará o lugar de restauração que ela esperava: uma pos­
sibilidade de relação social. O tratamento é o elemento pacificador
de uma relação delirante com o mundo.
Depois de alguns meses em que foi possível a retomada do
trabalho, um novo desencadeamento se produziu. Desta vez, ele acon­
teceu durante o tratamento e estava ligado a uma observação fortuita.
Em um ônibus que a levava para casa, na saída do trabalho, encontrou
uma antiga colega que lhe perguntou pelas novidades. Ela se mostrou
satisfeita com a normalização esperada. Estava bem, mudou-se do
domicilio familiar para um pequeno apartamento que ela arrumou ao
seu gosto, e seu trabalho caminha bem, a tal ponto que acabara de se
beneficiar de um reconhecimento profissional e de um aumento de
salário. O que não cai bem é a pergunta que lhe é dirigida por essa
amiga demasiadamente atenciosa: "Então) quando você vai se apaixonar?"
A pergunta coloca um problema. Ela pôde responder que a constitui­
ção de um casal é a etapa normativa esperada do seu restabelecimen­
to. Contudo, essa frase é situada de imediato como destoante com o
propósito apaziguador mantido até então. Algo não vai bem. Um
segundo episódio delirante se inicia, com um tom persecutório, no
local de trabalho, onde a supervisara de seu setor se mostra mal-inten­
cionada em relação a ela. A queixa não mostrava nenhuma modalida­
de francamente delirante. Mas a relação até então confortável torna-se
intolerável. A relação com a analista torna-se igualmente suspeita. Não
há aí tampouco uma fala delirante, mas há, contudo, uma hostilidade
muito perceptível. O tratamento se interrompe bruscamente. Ela rei­
vindica liberdade para conduzir sua vida que revela todo o contexto de
sugestão potencial que a situação analítica encerra. A certeza presente
ao longo desse trabalho se manifesta de novo nessa decisão sem apelo.

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Nesse caso, é o enigma do desejo do Outro que parece
confrontar o sujeito com uma dimensão à qual ele não pode res­
ponder. Em um primeiro momento, o enigma do desejo de um
homem suscita o delírio de uma malevolência organizada em um
mundo-Outro no qual reina uma figura feminina toda-poderosa.
No segundo momento da retomada delirante, é a pergunta da amiga
que desperta a questão adormecida. A pergunta da amiga desperta
o caráter real, impossível de dizer, do desejo do Outro. Nos dois
casos, é o encontro com um real que constitui a modalidade de
desencadeamento de uma resposta psicótica.

4. "Sobretudo, que nada se mexa"

Apresentamos aqui algumas decorrências de um tratamen­


to que começou sem surpresas e para o qual a questão da estrutura
apareceu rapidamente. O problema não estava no que era dito, mas
no que não era dito e na forma como se desenrolava o tratamento.
A história de Sra. P. pode se resumir em um momento de
sessão em que ela conta seu primeiro encontro com um terapeuta:
"Foi quando vi o filme 'As palavras para dizê-lo' [Les mots pour le dire];
me reconheci e isso desencadeou tudo ". Pode-se já apontar aí uma primei­
ra identificação que será o modelo sobre o qual ela irá construir
todo seu trabalho posterior. Inicia então entrevistas com uma psi­
quiatra, que prosseguirá por vários anos. Posteriormente, pensa ter
atingido os limites que podia alcançar com essa terapeuta e pede
para ir mais longe com uma outra mulher. Sua terapeuta a encami­
nha a uma analista. Nesse momento não se coloca a questão da
estrutura; ela é encaminhada como histérica e a analista adere ime­
diatamente ao que é anunciado.
Há quatro anos ela vem regularmente às suas sessões, que
acontecem sempre da mesma maneira. Começa com 'Tudo Bem. "
Ou, "Não estou nada bem'� seguido de uma explicação desse estado
em função dos acontecimentos dos dias que se passaram desde a

39
última sessão; depois, um grande silêncio que só cede sob interven­
ção, interpelação, ruído, interrupção, etc.
A variabilidade de seu estado se deve sempre às suas difi­
culdades com os outros e, em primeiro lugar, com sua mãe. "Elafaz
tudo para me alienar, não consigo relativizar, estouro ". Sua vida é pontua­
da por contrariedades ou brigas com sua mãe ou com os próximos:
"Estou malporque estou no pós-contrariedade com minha mãe é o pós-briga
-

que é o problema. Fico repetindo isso com as pessoas. Eu as pego, eu as largo;


eu aspego, eu as largo". Sua posição no trabalho é calcada nesse mode­
lo; sente-se ao mesmo tempo manipulada e manipuladora com seus
chefes e colegas. Ela diz o mesmo de seu entorno: seus vizinhos
fazem barulho. Isso seria para ela, ou é ela que não o suporta? A
questão permanece. Acaba se mudando para deixar o lugar onde
vivia, pois ali não se é anônimo. Veremos depois o que este último
termo representa para ela.
Vai morar em um apartamento, mas depois de algum
tempo a vizinha substitui os antigos vizinhos. Ela é barulhenta.
"Não suporto barulho; ela jaz de propósito? Não entendo por que ouço tudo;
estou sempre alerta, à espreita". Ouvindo essa frase, poder-se-ia questio­
nar sobre o que há ou o que não há para ouvir e, efetivamente,
encontra-se em sua história um acontecimento traumático que
poderia estar em relação com isso.
Ela foi uma criança não desejada; um menino já havia nas­
cido e ela chega quinze anos depois. Sobre sua vinda ao mundo, sua
mãe lhe dirá: "Você, você tem sorte, vocêpâde escolher" - isso por ocasião
de um aborto feito pela paciente. Seus pais têm um bar-mercearia
em um vilarejo. Tinha quinze anos quando seu irmão deixou a casa
dos pais, ficando sozinha com eles. Uma noite, ouviram barulho
embaixo na loja. Seu pai desceu, e a lembrança que ela guarda do
que aconteceu depois é de um grande grito. Seu pai acabara de ser
assassinado pelo homem que fora descoberto roubando. Esse
período permanece confuso para ela; tem até mesmo dificuldade
para situá-lo no tempo, alternando-o em vários anos de acordo com

40
os relatos, e foi somente por recortes que esse período pôde ser
situado por volta de seus quinze anos.
Diante da confusão e das dificuldades para situar esse acon­
tecimento no tempo, poder-se-ia pensar nos esquecimentos da histé­
rica; mas não é com um traumatismo - que poderia posteriormente
dar lugar à neurose - com o que nos deparamos, pois o modo como
ela continua, a partir desse dia, faz pensar mais em uma psicose.
Trata-se de um neodesencadeamento, quer dizer, de uma forma par­
ticular de entrada na psicose? De fato, nada se desencadeia, nada se
mexe; ao contrário, tudo se petrifica tão bem que a partir daí ela con­
tinua a construir sua vida de forma muito normativa.
As relações com sua mãe tornam-se insuportáveis. Sua
mãe, ao mesmo tempo em que a rejeita, lhe pede um apoio.
Termina o ensino médio e a única solução que encontra é ir embo­
ra o mais rapidamente possível. Passa em um concurso administra­
tivo e parte para Paris. Sente sua mãe e seu irmão aliviados com sua
partida. A partir desse dia, ela se dedica o mínimo ao seu trabalho;
tudo vai bem, encontra um companheiro com o qual ainda vive e
tem um filho. Nada emerge no nível de seu ser, nenhum desejo,
somente a angústia. "O que faz com que em determinado momento minha
cabeça caiafora... Pfuit... No entanto, tenho possibilidades, mas não as contro­
lo... falta-mejeito para administrá-las".
. O que se encontra sempre em sua posição em relação ao
Outro é uma identificação-alienação completamente situada no
imaginário; o outro lhe permite viver: sua mãe, a primeira terapeu­
ta, a analista; muitas vezes, ela quis diminuir o número de sessões
vindo somente uma vez por semana, mas quase imediatamente se
depara com uma angústia indescritível.
Se por acaso a analista se recusa a recebê-la de novo, mais
frequentemente, revolta-se e torna-se extremamente agressiva, ao
passo que normalmente apresenta-se sempre muito sorridente, com
um sorriso muito petrificado. Essa atitude tão extremada surpreen­
de e faz compreender que não era preciso mudar nada no ritual das

41
sessões, que a analista não tinha muita importância, e expressa que,
se tudo não voltar para o lugar, como antes, ela será obrigada a
encontrar uma outra pessoa que aceite reconstruir esse enquadre o
mais rapidamente possível.
Voltemos ao que significa ser anônima: ':feria necessário, para
poder viver, que eufosse anônima; a solução seria talvez que eu morasse na casa
de meu marido ". Vive há muitos anos com seu companheiro, mas, o
que ela indica com essa frase, é que a solução seria se fazer desapa­
recer atrás desse homem do qual ela não carrega o sobrenome e do
qual o único elemento conhecido é que ele é um eurasiano. A sexua­
lidade nunca é evocada como um problema; deseja por vezes ter
relações sexuais com alguns de seus colegas, sem nenhum drama de
consciência. Sua posição em relação às palavras é acentuada de
novo (As palavras para dizê-lo), após ter visto um ftlme que, segundo
ela, provocou-lhe um desejo. Trata-se de Pour le meilleur etpour /e pire,
ou seja "Para o melhor e para o pior" e que, na versão brasileira é
conhecido como 1\tfelhor impossível, com Jack Nicholson: "É um escri­
tor, isso fica rodando na minha cabeça, isso me deu ânimo, um sopro de vida;
da minha história eu farei um romance, adoro as palavras, elas aliviam, gosto
muito delas; as palavras me acalmam".
Mas essas palavras não permitem a metaforização.
Operam de maneira metonímica, fluindo sem parar, sem pausa pos­
sível. Ela não faz apelo a uma resposta que venha do lugar do
Outro, a um saber suposto que lhe permitiria colocar-se a trabalho
na via do significante. Não há exclusão da genitalidade, mas foraclu­
são da significação fática.
Qual atitude possível pode sustentar o analista diante
desse discurso? Parece - e por isso o título desta parte do texto:
"sobretudo, que nada se mexa " - que se trata de ser o receptáculo com­
placente de seus males e palavras, de suas queixas. Essa é a única ati­
tude que ela aceita, até agora, da analista, ao mesmo tempo em que
ela inventa soluções que lhe permitem se manter no dia a dia.

42
C. O caso particular da clínica do autismo

1 . O pequeno Noel

A criança que chamaremos de Noel foi um bebê normal


até a idade de seis meses, quando apareceram até mesmo sílabas
redob�adas, dentre elas "mama". Depois veio o silêncio, a lingua­
gem que parecia a caminho para e o olhar se perde. Ele parece não
perceber a presença da mãe, mas urra, por outro lado, de maneira
paradoxal, nas suas ausências. Há desencadeamento de uma psico­
se cuja expressão sintomática é autística. Esse momento é classica­
mente identificado na clínica da criança entre seis e dezoito meses.
Situa-se no tempo em que a mãe teria podido articular suas respos­
tas ao primeiro "mama", no tempo em que a experiência do espe­
lho deveria ter-se constituído, depois das primeiras trocas de olha­
res, no tempo em que o desejo deveria ter se orientado. A recusa da
voz e do olhar pode nos fazer evocar um desligamento do Outro
do significante, e do Outro do corpo e da imagem. Os primeiros
sinais patológicos de Noel, que ignora a presença, mas urra na
ausência, nos orientam quanto à ideia de que o que está em causa
concerne ao primeiro batimento simbólico da presença e da ausên­
cia da mãe. A psicose se inicia por uma falta radical de qualquer
"processo primário" de simbolização. É a falha da B�jahung primor­
dial que poderia corresponder ao desencadeamento.
A criança encontra um analista pela primeira vez aos seis
anos de idade. Não olhava, emite grunhidos, de tempos em tempos,
à meia voz. Padece de alucinações, mas fazia desenhos. Duas
sequências identificadas na transferência permitiram que saísse de
seu recolhimento autístico. No decorrer de uma das numerosas ses­
sões, vazias, sem apelo de sua parte, o analista saiu do consultório
para ir buscar, em um cômodo ao lado, uma caneta que estava lhe
faltando. Na saída da sessão, Noel quis se precipitar para dentro
desse cômodo com grande jubilação. No encontro seguinte, a ses-

43
são não pôde acontecer devido a um atraso. O analista recebeu
Noel para lhe comunicar isso. Uma certa preocupação o levou a
observá-lo pela janela indo embora com sua mãe pela rua. É com
grande surpresa que o analista vê Noel pela primeira vez olhar para
ele. Em seguida, o olhar se torna por vezes intencional e a criança
observará sua imagem na vidraça, na sessão da noite. O grunhido
dá lugar a uma linguagem esquizofrênica e usará a caneta para se
dedicar a um trabalho de escrita e demarcação de tipo geográfico:
traçava incansavelmente um contorno que se podia supor ser tanto
o do litoral da região, quanto o de partes do corpo.
Pode-se formular a hipótese de que essas sessões colocam,
mediante uma certa transferência, a criança às voltas com uma falta
que percebe no analista e que ela refere a um objeto, a caneta, na
qual vai então investir. Esta se torna a ferramenta de um trabalho
de logificação da sua psicose. Presença e ausência parecem então
não serem mais experimentadas como um puro real insubjetivável.

2. Mickael

O neodesencadeamento, abordado a partir do desligamen­


to, nos conduz a uma clínica do funcionamento. O caso Joey, de
Bettelheim, já nos convidava a considerar a abordagem da psicose
nesse sentido. O interesse do uso do termo "desligamento" nos
permite, já em um primeiro tempo, recolher casos clínicos que sus­
tentam essa orientação, sem tropeçar, imediatamente, nas dificulda­
des inerentes ao emaranhado das modalidades do enodamento da
clínica borromeana. Somos, no entanto, levados a nos perguntar se
não se deve abordar esse desligamento de duas maneiras. A primei­
ra consiste em identificar o desligamento a partir do religamento
que se opera ou que se operou a posteriori. A segunda recolhe esta­
dos de desligamento sem que, todavia, um desligamento tenha sido
realizado. Um caso de autismo, aliás, clássico nesta clínica, ilustrará
este segundo ponto.

44
Mickael tem oito anos. Ele não fala e apresenta alguns tra­
ços clássicos de autismo. É capaz de aproximar-se com os olhos
como se fosse para ficar grudado, tampar as orelhas e agitar-se, des­
locando-se do espelho para a janela antes de ficar prostrado em um
canto do cômodo. Sua história comporta uma data que constitui um
antes e um depois, um ato, portanto. Ele tem uma evolução normal,
segundo os pais. Começa a dizer algumas palavras. Mas toda sua
evolução se interrompe no dia em que sua mãe o deixa pela primei­
ra vez na escola maternal por volta dos dois anos e meio. Ali, cho­
rará durante toda a manhã, durante quatro horas, a ponto de as pro­
fessoras ficarem surpresas e não conseguirem consolá-lo. Quando
sua mãe volta ao meio-dia para buscá-lo, manifesta sua cólera em
relação a ela e depois disso não fala mais. Todas as tentativas de
identificar outras coordenadas dessa história conduzem sempre a
esse relato minimalista, com um pequeno detalhe: sua mãe dirá, com
efeito, um dia, depois desse relato tantas vezes repetido, que foi a
primeira vez que o deixou por tanto tempo. Esclarece que nunca,
anteriormente, o deixara mais do que cinco minutos em tempo real.
É então nessa experiência desproporcional de abandono que uma
insondável decisão desse ser se opera. Seu desligamento deve, por­
tanto, ser colocado na conta de uma escolha da psicose em seu pólo
extremo, o autismo. Não existe nesse caso um mutismo. O mutis­
mo consistiria em uma fala reservada. Há aqui uma detenção no
funcionamento da fala expressa em uma lingua.
O desligamento incide, portanto, precisamente, sobre o
uso da lingua e da fala que a ela se liga para fazer laço social. Esses
casos frequentes de autismo podem, de fato, enfatizar a observação
de Jacques-Alain Miller que indicava que a psicose nos permite
designar o verdadeiro núcleo traumático na relação com a lingua.
Não somente Joyce pode nos fazer entender isso, mas igualmente
os casos que recusam o núcleo traumático da lingua na medida em
que, pela sua recusa, tentam se desligar das consequências que o
funcionamento da lingua acarreta.

45
Poder-se-ia, para neste caso, formulá-lo assim: Sefalar a lín­
gua materna conduz necessariamente a ir à escola, e se a escola me separa tanto
tempo de minha mãe para me ligar a desconhecidos, prefiro me desligar da lín­
gua materna para evitar suas consequências. A mãe afirma, aliás, que,
ainda muito tempo depois, ele manifestava sinais de agitação quan­
do passava diante do prédio da escola. Se ele não está na língua, ele
está, no entanto, na linguagem, como indica o fato de que tampe os
ouvidos. Testemunha, por outro lado, alguns efeitos da linguagem
em seu corpo, como o interesse que demonstra pelos buracos das
narinas, que tampa com um movimento complicado dos dedos. A
questão para esse sujeito é saber como poderia se operar uma ten­
tativa de ligamento, sabendo que, de qualquer forma, esse tratamen­
to consistiria em introduzi-lo no núcleo do traumatismo do qual ele
quis se liberar.

D. A melancolia

Nem toda psicose implica um desencadeamento irreversí­


vel, como no caso do presidente Schreber. Em relação à melanco­
lia, adiantaremos o termo suplência intercrítica. A questão é saber quais
tratamentos do nome nas estruturas psicóticas vão prevenir o
desencadeamento e inscrever a posição do sujeito.
Não há resposta unívoca e, sem dúvida, cada caso deve ser
considerado em sua singularidade. No entanto, nos sujeitos propen­
sos à melancolia, parece que se trata não de transformar a carência
simbólica relativa ao nome em prol da função do enigma, como em
Joyce, mas de camuflar esse não-apagamento do nome no simbóli­
co. A superidentificação intercrítica com os papéis sociais - ampla­
mente demonstrada por Tellenbach com a descrição dos traços do
Tjpus Melancolicus15 e retomada nos trabalhos de Alfred Kraus16 -,
traduz, ao contrário, uma vontade de apagamento, de tamponamen­
to do buraco da foraclusão que o nome próprio não metaforizado

46
pelo falo simbólico vem presentificar. "Ser ninguém'� ou ser um "Sem­
nome" sob a forma da função fálica, lhe é estruturalmente recusado no
simbólico. É antes um "se querer ser ninguém'� na falta de "ser ninguém'�
que leva o melancólico a elaborar essa "superidentificação'� muito
tempo confundida com os traços compulsivos dos obsessivos.
O termo "superidentificação", distinto do que seria a iden­
tificação no registro simbólico, poderia se conceber assim:

�_
o _ função de suplência à - Superidentificação ao papel social
Nome próprio NeRiepFIÍpFie

Como escrever na estrutura essa estabilização intercrítica


reversível? Propomos a seguinte escrita17: imaginário bem-sucedido
e eficácia do significante não encadeado. Isto é, a inscrição direta, a
captura no imaginário de uma série de traços - S', S", S"', ... , cole­
ção de sentenças do supereu - que dão uma coesão imaginária ao
sujeito pré-melancólico. A captura desses traços no imaginário (e
isso é um fato clínico verificado) é suscetível de conter o transbor­
damento de gozo inerente a não-falicização do nome. Essa inscri­
ção, se é linguageira no sentido de uma escrita, nem por isso é sim­
bólica, não sendo sustentada pela função do ideal do eu, I(A), dife­
rentemente do que elabora - simbolicamente - o neurótico. Em
certo sentido, essa fórmula de suplência traduz que ''a sombra do
oijetojá estava sobre o Eu18 ".

1 . Superidentificação e ideal do eu

O que distingue essa superidentificação - termo utilizado


por Tellenbach e desenvolvido por Kraus - do ideal do eu é:
_ De um lado, seu caráter constelar - há toda uma série de
traços distintos aos quais o pré-melancólico deve se conformar, sem
esquecer "o céu estrelado " das identificações do sujeito japonês descri-

47
to por Lacan em "Lituraterra"19 e que torna este último, segundo
ele, inanalisável. Esses traços são, antes, normativos. Não têm o
caráter de exceção do ideal do eu e, daí, a ausência de orgulho no
sujeito pré-melancólico, ao contrário do que se pode constatar no
paranoico. Uma contradição entre dois desses traços é, muitas
vezes, causa de desencadeamento da crise.
_ De outro fado, seu caráter não dialético: esses traços são,
para o sujeito, não relativizáveis na elaboração simbólica e, daí, a
atração pelo que é sério e a relativa incapacidade para o humor do
sujeito pré-melancólicd0, humor que implicaria a possibilidade de
uma mediação, de um distanciamento em relação a esses valores
pré-dados. São traços marcados pelo rigor psicótico. É uma identi­
ficação com o ser literal do traço significante e não com a sua fun­
ção de representação. Digamos que o sujeito pré-melancólico deve
preencher suas identificações "ao pé da letra".
Notemos, por outro lado, que esses traços são empresta­
dos do Outro; eles traduzem a cópia de um tipo de ideal, não do eu,
mas de uma norma social. Concebe-se desde então que as persona­
lidades pré-melancólicas sejam mais facilmente tipificadas e reco­
nhecíveis nas culturas em que as normas sociais são mais claramen­
te definidas, até mesmo impostas, como é o caso do Japão e da
Alemanha.

2. O desencadeamento da crise

Basta que um único desses traços deixe de ser executado


imaginariamente pelo sujeito para que se tenha uma conjuntura de
desencadeamento da crise de melancolia (psicótica). Falar-se-á aqui
de execução imaginária para dizer que não é, de forma alguma, no
nível do discurso, como elaboração simbólica, que o sujeito deve
responder com esses traços, mas no nível de seus atos na vida coti­
diana, na realidade.

48
Não é uma articulação identificatória diferencial, no senti­
do da identificação simbólica que implica o valor diferencial do sig­
nificante. É uma realização de identidade, na qual o sujeito equiva­
le a cada um desses traços, compatíveis com o registro imaginário
no qual a correspondência biunívoca do sujeito e de sua imagem é
possível. Tal é a condição do ''Ijpus': em que a condição de suplên­
cia não é simbólica, mas se situa na junção do imaginário e do real;
daí sua possibilidade de montagem, desmontagem e a instabilidade
relativa dessa forma de suplência; daí, igualmente, o desencadea­
mento da crise cujas causas podem parecer estritamente menores
ou serem ditas, com razão, ''insignificantes': no sentido das "life-events"
dos anglo-saxões.
Daí, também, a possibilidade de desencadeamento por
razões que se encontram no imaginário e não no simbólico. Um
abalo no campo imaginário pode descompensar a estrutura e deixar
"se exprimir" no real essa coleção relativa ao supereu e que antes
estava bem encapsulada. Por isso, não é obrigatoriamente encontra­
da a conjuntura de desencadeamento das psicoses descrita por
Lacan em sua "Questão preliminar". Uma simples gripe está, à
vezes, na origem de uma nova crise. A perda da cobertura imaginá­
ria torna a desencadear o processo simbólico, sempre latente.
A cura da crise não depende de um processo simbólico -
do qual conhecemos o caráter grave na crise e o caráter latente fora
dela, - mas, antes, da restauração desse cataplasma imaginário.
Trata-se de deixar o sujeito reconstruir identificações de objeto sus­
cetíveis de mascarar suficientemente a abjeção de seu nome próprio
sem transbordá-lo.

49
111. CONCLUS Ã O

Podemos agora propor uma definição do que fomos leva­


dos a qualificar de "neodesencadeamento": convém agrupar sob
esse título as formas clínicas variadas que se distinguem da forma
típica de desencadeamento cujo paradigma é, na psicose schreberia­
na, o encontro com Um-pai. Esses "neodesencadeamentos" corres­
pondero à soltura do grampo2\ seja ele qual for, na ausência do que
fazia antes ponto de basta para um sujeito. Para além mesmo da plu­
ralização do Nome-do-Pai, o que está em causa aqui, com o nome
de grampo, é o que Lacan qualifica de sintoma, no sentido em que
o N orne-do-Pai é uma forma tradicional e herdada do sintoma e,
sem dúvida, particularmente adequada à neurose. Nos casos que
nos concernem, uma clínica dos nós contorna a impossibilidade de
decidir entre Po ou <l>o. Ela convida a privilegiar, certamente, a loca­
lização clínica da relação com o real e com o gozo. Mas a aborda­
gem da estrutura joyceana, que a clínica dos nós permite a Lacan,
convida também a estudar sem hierarquização a função de cada um
dos três registros - Real, Simbólico e Imaginário, R, S e I - para o
sujeito, e a parte que cada um toma no enodamento sintomático.

50
Notas

* Relatores: Hervé Castanet e Philippe De Georges.


1 MILLER, J.-A. (1 979) "Suplemento topológico a 'Uma questão preliminar..."'.
In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.1 1 9.
2 LACAN, J. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das
psicoses". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.537-590.
3 LACAN, J. (1 973) "Apresentação das Memórias de um doente dos nervos". In:
Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.221 .
4 LACAN, ]. (1 968) ''Alocução sobre as psicoses da criança". In: Outros Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.359-368.
5 LEGUIL, F. "Le déclenchement d'une psychose", Ornicar?, n.41, 1 987.
6 BERNARD, P. Colloque de I'ACF Estérel-Côte d'Azur, abril 1998.
7 LACAN, J. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.577.
8 Cf. MALEVAL, J.-C. Logique du défire, Masson, 1 996, p.1 02.
9 HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.) (1 977) "Lições sobre a
apresentação de doentes". In: Os casos raros, inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica:
A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1 998,
p.20 1 .
1 O LACAN, J. (1 9 58) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.577.
1 1 LYSY-STEVENS, A. ''Articulation cliniques de <1>0", Feuillets du Courtil.

1 2 LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psi­


cose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.SSS.
13 HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER,J.-A. (ed.) (1 977) "Lições sobre a apre­
sentação de doentes". In: Os casos raros, inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A
Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1 998, p.20 1 .
1 4 LACAN, J. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.565.
1 5 TELLENBACH, H. La Méfancofie, Paris, PUF, 1 979.
1 6 KRAUS, A. Identity and P.rychosis of the maniac-depressive, "O delírio melancólico
do ponto de vista da teoria da identidade", "Terapia da identidade", três suple­
mentos a parte.

51
1 7 A escrita dessas fórmulas foi inspirada pela leitura do curso de Colette Soler,
não publicado, "Os poderes do simbólico", 1 989, do qual as primeiras aulas são
consagradas à melancolia:
i (S, S', S", S"', ... )
Nel!'lepFIÍpFie
Trata-se aqui de um "cataplasma" - expressão que tomo de Jacques-Alain Miller
(entrevista particular).
1 8 FREUD, S. (1 9 1 7) "Luto e melancolia". In: Sigmund Freud - Obras Completas,
v. 1 2, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.1 8 1 .
1 9 LACAN, ]. "Lituraterra" (1973) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.1 5.
20 TATOSSIAN, A. Phénoménologie des p.rychoses, relatório para o congresso de
Neurologia e Psiquiatria de língua francesa. Paris: Masson, 1 979.
2 1 HENY, H., JOUBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.) (1 997) Os casos raros, inclassi­
ficáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1 998.

52
Seção Clínica de Clermont-Ferrand,
Antenne Clinique de Dijon e Seção Clínica de Lyon*

CL ÍNICA DA SUSPENSÃ O

L OS LIMITES DA TEORIA CLÁ SSICA DO DESENCADEAMENTO

Lacan elabora a chamada doutrina clássica do desencadea­


mento das psicoses no Seminário 3 e no texto "De uma questão pre­
liminar a todo tratamento possível da psicose", isto é, no âmbito de
seu retorno a Freud (feito a partir do ponto de Arquimedes "o
inconsciente estruturado como uma linguagem") e da colocação em
primeiro plano da função do Nome-do-Pai como garantia da lei no
Outro. É uma retomada do Édipo freudiano, uma ordenação da dis­
tinção neurose-psicose em relação a essa norma edipiana. A referên­
cia a essa norma como critério estrutural vem esclarecer as classifi­
cações psiquiátricas, propondq um sólido princípio de distinção e de
repartição das patologias, mas sem se diferenciar verdadeiramente
delas, já que a questão da causa sexual não está inclusa nessa lógica.
Desde o debate de Freud com os psiquiatras suíços (prin­
cipalmente Bleuler) e Jung sobre autismo ou autoerotismo, sabemos
que a consideração da causalidade como sexual ou não-sexual é o
que permite traçar uma linha de divisão radical entre clínica psiquiá­
trica e clínica psicanalítica. Se Bleuler, desde 1906 (e, depois, a psi­
quiatria em geral), admite a significação freudiana das psicoses, pois
ela dá um modelo do normal e do patológico, isso não acontece
sem a foraclusão da questão da causalidade sexual - da escolha
segundo o modo de gozo.

53
Teorizar o desencadeamento das psicoses no âmbito da
foraclusão do Nome�do-Pai permite, contudo, dar conta estrutural­
mente do que os psiquiatras clássicos identificam com o termo
"descompensação", com seus fenômenos súbitos e radicais:
"Trovoadas em um céu sereno." Essa conceitualizacão introduz
igualmente uma diferença entre estrutura psicótica e fenômenos
psicóticos que se apresentam mais manifestos clinicamente no
momento do desencadeamento.

A paranoia, psicose de defesa

É no âmbito da paranoia que essa teoria encontra sua per­


tinência máxima. Desde a abertura do Seminário 3, Lacan lembra que
a paranoia era a psicose de referência para Freud, seguindo
Kraepelin. Para Lacan, ela é especialmente adequada para destacar
a função do Outro e dos mecanismos - foraclusão, metáfora deli­
rante - que ele situa aí para dar conta da psicose nesse momento de
seu ensmo.
O lugar central da questão paterna na paranoia é verifica­
do tanto no determinismo simbólico do desencadeamento - a
falta de um significante no Outro - como nas modalidades de
reconstrução do mundo pelo sujeito na metáfora delirante. Nesta
reconstrução, o sujeito vai até o ponto de se fazer o garantidor de
uma figura do pai bem mais radical - Deus, a ordem do universo,
etc. - do que aquela do neurótico. Não estando o ponto de basta
do discurso assegurado pela significação fálica comum, o sujeito
faz aí suplência por meio de uma construção muito mais imperio­
sa, radicalizando a consistência e a exigência do Outro, ressaltan­
do mais a vertente real do pai do que a sua dimensão de semblan­
te e de uso.
À luz dessa inclinação do paranoico para dar consistência
ao Outro e ao pai, pode-se perguntar se a mudança do modo de dis-

54
curso dominante, ou seja, a passagem do discurso do mestre ao dis­
curso da ciência, tem consequências sobre o tipo de soluções que os
sujeitos psicóticos encontram para fazer suplência à foraclusão.
Pode-se dizer que o neo em questão concerne primeiramente à nossa
época? Ou ele concerne a uma simples mudança conceitual no ensi­
no · de Lacan? Sem dúvida, as duas coisas, pois pensamos que a últi­
ma axiomática lacaniana - centrada na inexistência do Outro - per­
mite justamente circunscrever com mais rigor os fenômenos clínicos
de nosso tempo e a expressão contemporânea do sintoma. Ao dis­
curso do mestre responde a prevalência de uma solução psicótica
pela metáfora e pelo delírio; ao discurso da ciência, que pulveriza as
figuras do Outro em uma abundância de insígnias, corresponderia
outro tratamento do gozo, mais pela letra do que pela significação.

limites do modelo paranoico

É um fato incontestável que cada vez mais encontramos


psicóticos em análise e que seus sintomas estão cada vez menos
marcados pela predominância dos grandes delírios de estilo schre­
beriano. Sem dúvida, isso se deve, em parte, aos tratamentos medi­
camentosos; mas o aumento, reconhecido por todos os profissio­
nais, dos casos inclassificáveis segundo a lógica clássica - e que
começamos a estudar a partir da Conversação de Arcachon sob o
título de "Casos raros" - nos leva a considerar um grande número
de sujeitos nos quais o desencadeamento é muito discreto, até
mesmo imperceptível, e nos quais os fenômenos elementares -
neologismos, alucinações, etc. - estão completamente ausentes. É o
que ocorre regularmente na esquizofrenia, assim como na clínica
das crianças, para as quais a própria hipótese de um desencadea­
mento muito precoce é com muita frequência inverificável. Não é,
portanto, um acaso se Lacan toma a referência de Joyce, psicótico,
mas não louco, para dar conta dessas neopsicoses.

55
O caráter radical da teoria "clássica" do desencadeamento
explica-se por sua dependência em relação a uma lógica do significan­
te concebida em termos de tudo ou nada. Puramente binária, ela faz
com que o conjunto dos fenômenos clínicos dependa de uma consi­
deração exclusiva: a função dominante de um único significante, o
Nome-do-Pai, o que supõe que a extrema variedade dos fenômenos
corporais ou imaginários seja referida a uma única norma, sem levar
em conta sua relativa autonomia em relação à função do Outro. É
uma lógica mecanicista, que enfatiza mais a ação da estrutura - a falta
do significante que indexa a falta no Outro - do que a posição do
sujeito como resposta do real e como escolha segundo o modo de
gozo. Essa clínica é estruturada em torno do Outro e de sua dimen­
são pacificadora, em relação à qual o gozo só pode ser legalizado,
aquela que o sujeito herda do pai como transmissor do falo. Por isso,
quando surgem fenômenos de gozo não-fálicos, eles só podem ser
tratados pelo delírio pensado como uma metáfora de substituição,
destinado a tratar a disseminação desses fenômenos por um princípio
de significação que reunifica o sujeito a partir de um novo modo de
laço com o Outro, fundado sobre o significante articulado tal como,
por exemplo, a ordem do universo para Schreber. Como resultado,
oculta-se a posição ética do psicótico, muitas vezes ressaltada por
Lacan em termos como "escolha da liberdade", "insondável decisão
do ser", etc., que podemos resumir assim: o psicótico é aquele que se
recusa a trocar o gozo pela significação. A consequência é que, pela
promoção da relação do sujeito psicótico com lalíngua, com o signifi­
cante assemântico, e não com a articulação [significante], podemos
tratar com mais eficiência os fenômenos psicóticos contemporâneos
muitas vezes fragmentados, dispersos, pluralizados, já que estão
menos referidos à figura unificadora do mestre. Além disso, os fenô­
menos de gozo - pensados, em princípio, como redutíveis pela meta­
forização delirante ou como simples resto da articulação significante
- podem ser doravante abordados como parte integrante de lalíngua,
aparelhagem mista do real com o simbólico.

56
A cadeia rompida e o significante no real

Não seria justo considerar o ensino clássico de Lacan


sobre o desencadeamento como pura e simplesmente ultrapassado.
Como Jacques-Alain Miller ensina em seu curso A Orientação
Lacaniana, convém, ao mesmo tempo, apreender como Lacan chega
a pensar contra Lacan, mas também como algumas de suas elabo­
rações mais avançadas já estão esboçadas nos momentos mais clás­
sicos de seu ensino.
Assim, a propósito do estatuto do imaginário, situado nos
anos 1 950 como uma instância de registro inferior em relação ao
simbólico, Lacan assinala, entretanto, sua função compensatória em
relação à falta no simbólico. Ele a situa inicialmente no momento
pré-psicótico do sujeito, antes do desencadeamento, observando
seu valor para um jovem - que está "por intermédio de uma imita­
ção, de um atrelamento, na esteira de um de seus companheiros"22
-, esclarecendo que o sujeito "nunca entra no jogo dos significan­
tes senão por um tipo de imitação externa", mas também como
uma forma de estabilização após o desencadeamento, quando evoca
a maneira como Schreber se reconstitui na alusão imaginária23•
Sem dúvida, essa clínica abre a via que consistirá em situar
o imaginário não mais como determinado pelo simbólico, mas
como lhe sendo equivalente no nó borromeano.
É na consideração mesma do estatuto do significante no
momento do desencadeamento que é possível localizar uma incidên­
cia do significante no real e não só no registro do Outro simbólico.
Lacan diz isso claramente em "De uma questão preliminar...", quan­
do extrai do famoso "venho do salsicheiro..." de sua paciente a
seguinte conclusão: "Esse exemplo é aqui destacado apenas para
captar no ponto essencial que a função de irrealização não é tudo no
símbolo. Pois, para que sua irrupção no real seja indubitável, basta
que ele se apresente, como é comum, sob a forma de cadeia rompi­
dam4. Essa valorização do significante sozinho, não articulado, signi-

57
ficante no real, abre a via para a consideração das neopsicoses. Nelas,
o tratamento do gozo não se faz pela reconstituição da cadeia S1-S2,
ou pela metáfora delirante, mas por um tratamento a partir da letra,
ou seja, do significante como o que não significa nada. Lacan vai,
aliás, retomar esse ponto em "O aturdito", em torno da nova defini­
ção que será dada ao Um-pai de "De uma questão Preliminar..." em
sua relação com o desencadeamento. Nos Escritos, o encontro com
um significante foracluído remete o sujeito a um buraco; o Nome­
do-Pai ausente não dá acesso à significação fálica do desejo da mãe,
que permanece enigmático. O que se apresenta no lugar é Um-pai
como significante no real, sem par. Em "O aturditom5, Lacan dá a
seguinte forma lógica ao momento do desencadeamento: "É pela
irrupção de Um-pai como sem razão, que se precipita aqui o efeito
sentido como de forçamento, no campo de um Outro a ser pensado
como o mais alheio a todo sentido". Aqui, "como sem razão" indi­
ca que, como o sujeito não se exclui do que enuncia, não é possível
qualquer separação entre enunciado e enunciação.
Pierre Naveau, em um excelente artigo publicado em
Ornicar? n.44, resume muito bem essa nova lógica centrada na fun­
ção da exceção:

A irrupção de Um-pai evidencia, no momento do desencadeamento


da psicose, o que não tinha aparecido até então; a saber, que a exceção
paterna é colocada em funcionamento apesar de sua inexistência, mas
ao preço de um deslocamento de registro: o que deveria tomar lugar
no simbólico surge no reaF6•

Essa maneira de colocar o problema permite sair da lógi­


ca deficitária da psicose - foraclusão de um significante no Outro -
para acentuar a conexão do significante com o real, e, portanto, uma
impostura do pai como garantia do Outro. A norma edipiana mos­
tra seu caráter não essencial, sua impotência para regular o gozo
pela lei e pelo ideal.

58
A consequência recai não só sobre a clínica das psicoses,
mas também sobre a orientação possível do tratamento. Nos anos
1950, a posição bastante prudente de Lacan sobre esse ponto é soli­
dária de uma concepção do analista que opera a partir do Outro e
que visa refrear os efeitos de gozo produzidos no sujeito psicótico
pela falha do Nome-do-Pai. A famosa posição do secretário do alie­
nado, as advertências contra os riscos da erotomania ou de empuxo
ao desencadeamento pela transferência acentuam uma posição pas­
siva do analista, um certo "fazer-se de morto", pois tratava-se de
opor à efervescência imaginária do psicótico o poder mortal do
símbolo.
Se considerarmos que as neopsicoses valorizam o signifi­
cante no real e não sua articulação na cadeia, o enodamento dos três
registros do sujeito e não sua subordinação à única instância do sim­
bólico, o caráter criativo da psicose e não sua dimensão deficitária,
o lugar do analista poderá ser definido de uma maneira diferente
daquela do lado da morte e da lei, isto é, do universal. O que nos
guia é menos a consideração de uma clínica da estrutura do que a
sustentação da invenção do sujeito em seu trabalho sobre lalíngua,
sua capacidade de encontrar uma solução singular que concilie o
vivo e o laço social. É por isso que nosso trabalho de pesquisa
apoia-se na variedade dos casos, mais por estarmos atentos à forma
singular como cada um trata o impasse de seu gozo de maneira iné­
dita do que para verificar como cada um se acomodaria a nosso
modelo da psicose.

11. OS CASOS CL ÍNICOS

Apresentaremos cinco casos clínicos selecionados dentre


os muitos estudados em nossos seminários.

59
Primeiro caso

O esclarecimento dado por esse caso à questão do neode­


sencadeamento deve-se a uma dupla conjuntura: a dificuldade para
estabelecer o diagnóstico entre neurose e psicose e a precocidade
do desencadeamento. Tal precocidade aparece aqui em diferentes
níveis: em primeiro, o do desencadeamento; mas também o do tra­
tamento, pois nos referimos aqui ao tratamento de um menino,
retomado após a interrupção de um tratamento anterior devido à
mudança na situação profissional do pai.
Este caso clinico de desencadeamento precoce enfatiza
como, diante do real encontrado por esse sujeito, um real intrusivo,
fraterno, e não dispondo do apoio significante do Nome-do-Pai,
tenta-se suprir sua ausência pelo viés de uma identificação imaginá­
ria marcada pelo selo da rivalidade e do ciúme. Essa identificação
garante-lhe uma apresentação inicial ilusória, mediante um recobri­
mento que não protege o sujeito contra a vertigem da desagregação
de seu ser nas proximidades do buraco. Nesse ponto, o sujeito se
precipita de equívoco em equívoco, no real, indo do consultório ao
banheiro, desenhando toaletes, indicando com isso com qual esta­
tuto do significante ele está lidando: o do significante sozinho, o do
significante no real.
Em certo momento, pareceu que o desencadeamento pre­
coce comprometia a teoria clássica do desencadeamento ou, pelo
menos, era seu limite. Mas, a partir da consideração da relação trau­
mática com lalíngua, temos uma apresentação que permite conser­
var todo o valor da noção de desencadeamento: "É a partir da con­
tingência dos encontros que o destino se enlaça", diz Jacques-Alain
Miller27•

60
Segundo caso

Neste caso, o que se localiza é a presença, desde o início,


da relação imaginária com o outro, não sustentada pelo registro
especular e sim por aquele do objeto.
Para esse sujeito, não há o objeto, mas um certo número
de objetos, uma variedade de objetos que permite efetuar um enla­
çamento. Essa sucessão de objetos não forma uma série no sentido
de uma convergência da qual se poderia deduzir a constituição de
uma articulação.
Assim, este caso clinico mostra uma sucessão de enlaçamen­
tos em relação ao objeto, a partir dos quais se constitui uma alteridade.
A série dos diferentes tratamentos do objeto não produz um traçado,
um gargalo, uma travessia, uma passagem delimitando um antes e um
depois. Esse sujeito encontra-se mais em uma invenção perpétua.
A estabilização que se opera, cujos efeitos são observáveis
no nível do comportamento, particularmente no que concerne ao
apaziguamento e à relação com o semelhante, não provém de uma
estase em um ponto de equilibrio, mas necessita de uma invenção
contínua de sua parte. Os objetos são deixados sem que a dimensão
da perda se estabeleça. Ela passa de uma forma a outra com uma
preocupação estética que é preciso levar em consideração na psicose28,
como instauração de um laço.
Finalmente, deve-se destacar que esse tratamento passa
pelo outro, o outro que constrói o caso, que o escreve, que lhe dá
forma. Essa invenção não se produz sem a colocação em ato de um
desejo que permite que se efetue o ligamento.
Cabe acrescentar que esse outro muda, é plural, é múltiplo.
E é a partir desse plural mesmo que alguma coisa cessa de não se
escrever, ou melhor, não cessa de se escrever.
Este caso é, certamente, exemplar de uma clinica do
"Outro que não existe", mas, sobretudo, de um tratamento a partir
do "Outro que não existe".

61
Diz respeito a alguém que não se constrange com suas
construções, pois o que conta é o uso que se faz disso.

Terceiro caso

Um rapaz de dezoito anos, no terceiro ano do ensino


médio, é encaminhado com urgência por seu médico particular. O
paciente vai a sua primeira consulta acompanhado por seu pai e sua
mãe, muito preocupados com a saúde do filho.
Na primeira entrevista, seus pais expõem a situação em
um relato que ele segue atentamente. O rapaz acompanha com
grande atenção, com o olhar fixo no chão, intervindo aqui e ali para
retificar, para trazer alguma precisão ao discurso dos pais, aparente­
mente de forma pertinente, ou pelo menos nunca contestada por
eles. Assim que seus pais saem do consultório, o paciente se preo­
cupa em fazer uma exposição rigorosa. Seu discurso começa assim:
"Tudo parecia relativamente bem, mas defato não estava".
O sujeito mostra-se muito tomado em seu exame, na ava­
liação que faz de si mesmo, em primeiro lugar, pelo que constitui a
sua urgência subjetiva, a saber: o surgimento de pensamentos com­
pulsivos sobre os quais ele se pergunta se o levarão à sua realização
em ato. Esses pensamentos compulsivos assumem várias formas:
cortar os próprios cabelos, raspar a cabeça, cortar a garganta, furar
o coração, furar os olhos.
O sujeito descreve com precisão de detalhes suas fobias de
facas, corta-papéis, canetas e outros objetos pontiagudos, cuja pre­
sença em sua proximidade imediata desencadeia crises de angústia das
quais só pode defender-se eliminando esses objetos frequentemente
encontrados no seu ambiente escolar, até o momento em que se vê
obrigado a interromper seus estudos por causa da pressão das crises.
Esses pensamentos, embora muito desagradáveis, eram
suportáveis enquanto o visavam como objeto. Foi somente quando
visaram como objeto seus colegas de classe, sua mãe e também

62
outros familiares, que eles se tornaram insuportáveis; então, procu­
rou uma consulta.
A primeira entrevista termina com esta conclusão: "É como
se a ideia de ser criminoso de mim mesmo me fosse mais suportável do que a
ideia de ser criminoso de um outro!", disse ele.
Diante da angústia, a demanda de medicamentos "para
deter isso", sustentada pelos pais, é o que está em primeiro plano.
Contudo, o analista aposta no rigor que o sujeito demonstra e pro­
põe-lhe a ideia, que ele terminará aceitando, de experimentar um
tratamento-teste pela fala durante algumas semanas. Concede-lhe,
de sua parte, uma prescrição de ansiolíticos; posteriormente, fica
sabendo que o paciente tomara só a metade.
Durante as entrevistas seguintes, as angústias deslocam-se,
uma forma tomando o lugar da outra. Rapidamente desaparece a
angústia de cortar os próprios cabelos, de raspar a cabeça. Esse
ponto é interpretado para o paciente como um sinal de que seus
sintomas são acessíveis ao tratamento pela fala.
A situação parece ajustar-se. A angústia é controlada a
ponto de ele poder retornar aos estudos. O sujeito vem com regu­
laridade às entrevistas. Surpreende o uso que ele faz do dispositivo.
Esse sujeito, pouco inclinado a atribuir ao Outro a causa de seus
sintomas, é, entretanto, capaz de utilizar rapidamente as entrevistas
para iniciar, na presença do analista, um trabalho fora do sentido, do
pensamento.
Durante as entrevistas, impressiona a sua fixação do olhar
e uma atenção exagerada ao que se desenrola diante dele e que des­
creve com grande rigor. Essa posição de espectador, à distância, do
automaton de seus pensamentos compulsivos é o que há de mais
característico no paciente, evidentemente em um transe, mas muito
diferente daquele do Homem dos Ratos de Freud, o qual se apre­
senta como um pseudodelírio.
Aqui, não ocorre nada disso. Ao contrário de um delírio,
trata-se de uma descrição à distância do processo que o invade e de

63
suas variações, em uma atenção intensa, uma atitude de verdadeira
busca dos meios a serem mobilizados para limitar essa invasão.
Embora os pensamentos relativos aos cabelos tenham cedi­
do rapidamente, os que se referem aos olhos, à garganta e ao coração
continuam causando-lhe embaraços, mas permitem, por sua evolução
rebelde, uma atitude experimental por parte do paciente. O meio de
defesa que esse sujeito encontra lembra o procedimento schreberiano:
"Posso combater minhas ideias ocupando-me do espírito ", diz ele.
Teme períodos de inatividade, de férias, ou simplesmente
de volta para casa depois das aulas. A presença de seus colegas e o
barulho que fazem à sua volta preenchem de maneira defensiva um
silêncio que, de outra forma, o invadiria com o surgimento de seus
pensamentos compulsivos.
Dessa maneira, ele encontra soluções: efeitos sonoros,
rádio, fonte sonora que coloca atrás de si; ou ainda, uma atividade
automática: pequenos trabalhos que faz para seus pais, leituras -
com a condição de não seguir a significação. Em resumo, uma ati­
vidade de defesa, fora do sentido, para poder contornar o buraco
por meio de um manejo, no real, da letra.
Assim, o sujeito abandona completamente a vertente da
significação para tratar o que o invade. Essa vertente não o impede,
no entanto, de trazer elementos determinantes na anamnese. Isso,
contudo, não é o mais importante neste caso.
A questão da psicose coloca-se para esse sujeito em rela­
ção à fixidez do olhar, em relação à busca de uma castração no real,
em relação à posição do sujeito como espectador, à distância, do
automaton de seus pensamentos compulsivos - em um contexto
diferente do Homem dos Ratos - dando lugar a uma descrição do
processo invasor e de suas variações. Enfim, a questão da psicose se
coloca para esse sujeito em relação a um pôr-se a trabalho para con­
tornar o buraco central, à maneira de Schreber, mobilizando uma
atividade de pensamento fora do sentido, com efeitos sonoros, um
burburinho no real.

64
Quarto caso ...

"O idólatra" é um homem de vinte e cinco anos que está


no quarto ano do Seminário Maior, que se converteu recentemente
ao catolicismo e desejava entrevistar-se com um psicanalista católi­
co para falar do acontecimento que dera um novo rumo a sua vida.
Uma observação, sobre o fato de saber se ele pensava que
Deus seria obrigado a cuidar de tantas coisas assim, permite-lhe ini­
ciar um trabalho, separando-se de um Outro que cuida das coisas
do mundo.
Aos dezessete anos teve um sonho em que Deus o convi­
dava para sua Igreja, sendo que tinha sido batizado na religião orto­
doxa porque sua mãe, católica, queria que ele pudesse um dia fazer
a sua própria escolha. O pai, indiferente às questões religiosas, não
interveio.
Quer ser padre, mas surgem dificuldades que tinham sido
aplacadas durante um tempo devido à sua conversão. Ele quer se
certificar, por meio de uma análise de sua vida, de que não prejudi­
cará a causa a que pretende servir. Não tem certeza se Deus espera
que ele seja religioso por ofício.
Diz-se incapaz de escrever desde a infância. Não pode
mais acompanhar suas aulas. Sente-se agredido pelos outros e, ao
mesmo tempo, os aterroriza. Tem uma estatura imponente e uma
voz grossa. Um elemento discreto marca o estilo de suas relações
com os outros: sente-se obrigado a dizer, nas conversas, que há
sempre mal-entendidos entre as pessoas. A materialidade das pala­
vras o fere como se elas o penetrassem.
Essa intrusão da linguagem opera-se nos momentos em
que o olhar se desprende como órgão. Na análise de sua vida, loca­
liza sua exclusão da comunidade dos homens na idade de seis anos:
uEu poderia ter sido autista ".
O desencadeamento ocorre na época do pré-primário,
quando seu pai, que normalmente se dirige com mais facilidade a

65
sua irmã ou ao cachorro, pede-lhe para conjugar o verbo "ser":
incapaz de responder, vê nisso a prova de sua loucura e desmoro­
na. "O que mefalta é a base. " Encontra a solução em uma história em
quadrinhos que lhe fornece um modelo: nela, viam-se homens
guerreiros enfrentando mulheres guerreiras. Quando os homens
eram atingidos, morriam, ao passo que os corpos das mulheres
desapareciam, dando lugar ao vazio que a roupa envelopava.
Pede então à mãe uma roupa emprestada, a qual lhe servi­
rá de invólucro; uma meia-calça (collan� é o suficiente para, dentro
dela, deslizar o seu ser.
Na adolescência, as meias-calças que comprava davam
um aspecto pseudoperverso às suas práticas masturbatórias. O
caráter a�tocentrado desse gozo reunia seu corpo a partir do obje­
to, concentrando-o em torno de seu pênis. Esses momentos
faziam parar a sua dor, mas, pouco a pouco, a meia-calça deixava
de contornar esse gozo invasor que o despertar da primavera fize­
ra aparecer.
Aos quinze anos, quis morrer, já que, como existente, não
tinha mais nenhuma razão de ser. Desalojado de seu isolamento
pelo ritual familiar das refeições, fez da comida uma fonte de hor­
ror, equivalente ao verbo cuja conjugação tinha visto, estranha, na
página do livro de seus seis anos.
Para se proteger desse real, tomou um produto feito por
ele, fabricado a partir de produtos domésticos usados por sua mãe.
Deitou-se para dormir. No dia seguinte, o copo estava vazio, nada
ocorrera; então foi comer.
O efeito apaziguador da conversão relacionava-se com um
significante novo, uma significação dada ao gozo que lhe permitira
abandonar a meia-calça: fora um idólatra. Era o que dizia ter sido,
um idólatra, o que poderia representá-lo aos olhos dos cristãos, e se
sentia para sempre tendo que responder por essa marca. "Quero crer
que no dia de meu batismo1 ele [esse significante] entrou em mim para que
eu não fosse entregue à morte e à minhafamília. "

66
Desse modo, apresentou ao bispo seu pedido para ser
admitido no Seminário. Mas estava exposto à tentação de voltar
atrás. Fazia disso a marca singular de seu compromisso 'religioso, o
que também lhe permitia protelar o compromisso de votos perpé­
tuos e manter-se distante do sacerdócio.

... dois momentos

Durante uma viagem ao Sinai, diante do perigo de que


Deus falasse, pudera conversar com uma garota que não ouvia.
Longe de fazer disso um milagre, pôde "religar-se" e chegar à con­
clusão de que era um idólatra como todos os adoradores do
Bezerro de Ouro, mas que devia construir sua humanidade a partir
desse objeto singular que era a meia-calça. Para os outros, tratava­
se de algo natural, mas ele tivera que construir sua humanidade a
partir da meia-calça, portanto, da mulher. Por isso, não era obriga­
do a ocupar a posição de Moisés, a de tornar-se padre. Mas não era
casto, já que, apesar de sua renúncia à meia-calça, continuava ado­
rando essa outra face de Deus, seu gozo mudo, este que Santo
Inácio convidava o penitente a rejeitar como gozo do corpo em
ligação com a prece. Esse é seu argumento para adiar os votos.
Tendo-se tornado um excelente especialista em informáti­
ca, o tratamento de texto tinha regulado seu problema com a escri­
ta. Sua relação com a língua vacila quando vai aos Estados Unidos
para aprender inglês, durante um ano: fenômenos elementares sur­
gem, sente-se tentado a se isolar no burburinho de uma língua des­
conhecida. "No começo era terríve� aspalavras se despregavam, estrangeiras.
Comecei a me autosati.ifazer. Era cerebral". Graças ao afeto de sua tia,
que se tornou norte-americana ao se casar com um norte-america­
no, esse sujeito pôde, como ele mesmo disse, entrar em uma nova
língua, uma nova família. Hoje, diz não ter mais uma relação cons­
tante com o corpo. Adora inglês e informática, o que lhe permite
retificar, segundo suas palavras, suas pulsões e seus sentidos.

67
Mas o regresso é difícil. Sua comunidade tolera seu estado
de confusão e aceita que continue como especialista em informáti­
ca, que viva como religioso e que adie a ordenação. Pode transmitir
o que sabe, mas não se deve esperar muito dele.
Comunica-se em inglês com interlocutores, mas sem que
o vejam. Faz circular a voz, "rápido, não lentamente", pela escrita
na Internet. "Gnotiff" - nome composto com as letras do nome de
seu cachorro, ao qual se endereçava seu pai - é seu nome no ciberes­
paço. Substituiu o de idólatra. A solução não está do lado da metáfo­
ra delirante. Ela está, antes, do lado da escrita de um ponto de não­
sentido no qual seu ser pode ser identificado. A idolatria continua
sendo seu problema, a marca do que ele foi e que ainda hoje lhe per­
mite nomear as sensações corporais que o invadem.
Ele consulta o analista uma ou duas vezes por ano e con­
sidera que este o está acompanhando. Encontra soluções particula­
res para inscrever uma falta no campo do Outro sem ter que ser o
seu garantidor.
Por enquanto, distancia-se da tentação de reconstruir o
mundo e usa a religião para criar para si uma nova relação com
lalíngua, o que não é sem consequências sobre seu gozo transexual,
que consegue assim limitar.

Quinto caso: um momento de desligamento

Quanto a Jean, o desencadeamento ocorreu há muito


tempo. Agora, ele tem trinta e três anos e consulta o analista há dez
anos. Sua família vive em Luxemburgo, onde nasceu. Fala fluente­
mente o francês e o alemão e considera o luxemburguês um dialeto.
Depois de uma intervenção infeliz que tornou inoperante
o uso da gramática que inventara para si próprio, permitindo-lhe
manter-se em lalíngua, Jean é impelido, obrigado a uma resposta no
real que ele tenta colocar em ato assim: tem que se fotografar intei­
ramente nu, depois raspar todos os pelos do corpo, fotografar-se

68
novamente e expor essas fotos como uma peiformance. No momen­
to da sessão em que fala desse "projeto", se expressa tanto em ale­
mão como em francês. A fórmula "eu nack!' detém o analista, que
não sabe se deve ouvir essa palavra em francês ou em alemão, pois
acter, em francês, é um verbo que Jean utiliza.
Ao preparar este texto, o analista deu-se conta de que
nunca perguntava em que idioma o paciente falava, mas apenas
como se escrevia o que dizia. O sujeito desdobra o conjunto dos
significantes convocados para o seu achado, cuja chave só ele terá.
Nacken é um verbo alemão que significa "extenuar-se", que Jean já
tinha usado porque é muito próximo a die Nacke (a nuca).
O adjetivo nackt significa "nu", "em pelo", "desprovido".
Akt significa um "nu", no sentido acadêmico, e é também um "ato"
teatral. Diferentes traduções se superpõem entre "nu" e "Akt ",
"nack!' e "ato". Poderíamos estabelecer um continuum de significa­
ções entre esses significantes.
O achado gramatical de Jean consiste em fazer uma brico­
lagem com uma palavra utilizada entre as duas línguas, que queira
dizer "ato" e "nu", ao mesmo tempo, nas duas línguas. Estanca de
maneira singular a espiral da metonímia. Vetorializa as línguas para
encontrar a palavra correta que o separe da obrigação de colocar
realmente em jogo o seu corpo. Será que se trata de uma tentativa
de inventar "um Outro da gramática", como propunha Jacques­
Alain Miller em Angers29, para que o real da língua já não lhe faça
signo e, assim, forjar a palavra que cura, e que o livraria de passar
ao ato?
Concebe a análise como um lugar para elaborar algo sobre
o irreconciliável que ele situa entre "localização (repere) e orgânico".
Esse sujeito tenta na análise um enodamento entre o que expressa pelo
binário ''iiocalizávei/ irreparável" (irrepérable/ irréparabie) onde "corte" e
"sutura" tentam se enodar.
Ele tenta entregar-se a uma língua na qual o corpo possa
se sustentar. É obrigado a tratar do real da língua para enodar o

69
corpo. É o ponto de religamento. Inventa uma gramática que lhe
permite neologizar gramaticalmente. Quando isso se solta, porque
esse uso é precário, ele delira seu corpo. No momento em que o
enodamento na língua não dá mais abrigo ao corpo, ele utiliza real­
mente seu corpo.
A análise é para ele um lugar de criação de referências que
lhe permitem suportar uma relação com o mundo. "Saí do autismo
por milagre e traumatismo, e aqui pode haver suspensão", disse.

111. QUE ENSINAMENTOS TIRAR DOS CASOS CL ÍNICOS?

O desligamento, como expressão maior do neodesenca­


deamento, opõe-se ao desencadeamento clássico. Relacionamos o
neodesencadeamento-desligamento à metonímia, opondo-o, assim,
ao desencadeamento clássico, relacionado à metáfora.
O que está em jogo nessa questão do neodesencadeamento /
desencadeamento clássico, relaciona-se à maneira segundo a qual
explicaremos esses diversos modos de instalação das psicoses.
Explicamos a instalação classicamente súbita de um delírio pela
metáfora delirante, ou seja, pela substituição metafórica, que obede­
ce à lei do tudo ou nada. Explicamos outros modos de instalação,
progressivos, precoces, até mesmo precocíssimos a ponto de apare­
cerem logo de início (o que contradiz a própria noção de desenca­
deamento), ou ainda modos alternativamente progressivos e regres­
sivos, pela substituição parcial (não pela lei do tudo ou nada), pelos
desligamentos e religamentos que a metonímia delirante evidencia.
É a clínica que nos conduz ao Outro primordial, por ter
que considerar uma estrutura clínica de partida, neurose ou psico­
se, e considerar como um dado prévio a escolha do sujeito de se ins­
crever em uma estrutura clínica. A isso nos conduz nossa posição
de clínicos. A noção de desencadeamento vem enfatizar a passagem
do estrutural ao clinicamente manifesto.

70
Ao contrário desse ponto de partida com base no Outro,
existe o ponto de partida com base no gozo, com o Outro que não
existe. Aqui, é a própria escolha do engajamento do sujeito na estrutu­
ra clínica que se encontra problematizada. Então, temos que lidar
menos com a oposição desencadeamento/desligamento que com a
questão dos desligamentos e religamentos, inclusive com a problemá­
tica do ligamento com o Outro. Essa é uma perspectiva comandada
mais pela consideração do tratamento que pela consideração da clínica.
Haveria clínica psicanalítica concebível somente com base
no Outro primordial?
O último ensino de Lacan convida a um novo exame do
estatuto a ser dado ao sintoma. Considerar o Outro primordial leva
a estimar que o Outro é o melhor meio para se tratar o gozo.
No que diz respeito ao tratamento do gozo, duas vias
devem então ser distinguidas:
_ Passarpelo Outro para o tratamento do gozo evidencia o esta­
tuto predominante da fantasia, isto é, o valor de localização, de con­
densação, de recuperação do gozo, correlato à mortificação signifi­
cante do sujeito. Trata-se, por essa via, de um tratamento do gozo
pelo objeto como resto.
_ Sem passar pelo Outro para o tratamento do gozo evidencia o
estatuto do significante sozinho, o laço do simbólico com o real, e
não mais uma apresentação do sintoma na vertente deficitária em
relação a uma norma - mesmo que seja a norma-do-macho (má/e­
norme) - e sim uma apresentação do sintoma na vertente que faz
valer a invenção do sujeito, a função L: (x), ou seja, a versão do sin­
toma que convém ao Outro que não existe. Esta versão adquire
toda sua dimensão com a clínica borromeana, na qual o Outro é
substituído pelo enodamento, que equivale, em uma estrutura ter­
nária, ao ponto de basta na articulação em uma estrutura binária.
O neodesencadeamento se esclarece, assim, por meio do
nó borromeano, do Outro que não existe e do registro do signifi­
cante sozinho, S t .

71
IV. CONCLUAMOS

Embora esclarecida pela oposição da metáfora e da metoní­


mia, a oposição desencadeamento clássico versus neodesencadeamento­
desligamento permanece no sistema de oposição binária, com sua
estrutura hierárquica. A estrutura binária de oposição conduz imedia­
tamente a uma hierarquia. Assim, o binário simbólico e imaginário
faz prevalecer o símbolo sobre o imaginário. Da mesma forma, o
binário da articulação significante S1-Sz, o binário da estrutura de lin­
guagem, introduz uma hierarquia do Um em relação ao Outro.
Assim, a atualidade de nosso trabalho levou-nos a consi­
derar dois destinos do Um:
_ o destino do Um em direção ao dois, na oposição signi-
ficante;
_ o destino do Um em direção ao três, no enodamento.
Se, no primeiro Lacan, a metáfora delirante aparece no
lugar da metáfora paterna, que está ausente, no segundo Lacan, o
psicótico tem, como o neurótico, uma relação com o sintoma como
modalidade de tratamento do real pelo simbólico. Encontramos aí
a noção de aparelhamento, que anuncia aquela do enodamento. A
consideração desse tratamento do gozo - da causa sexual - é o que
diferencia a clínica psicanalítica do campo psiquiátrico, de onde ela
está excluída.
O conceito de aparelho pode dar um nome à série de
ligamentos?
O primeiro desses aparelhos, que Jacques-Alain Miller vai
desenvolver em seu curso "Do sintoma à fantasia e retorno", é o
estádio do espelho. É um aparelho que trata o gozo. Permite seriar
os ligamentos nos quais uma formação imaginária vem flXar o sujeito:
fenômeno psicossomático (FPS), prática artística, perversão, gemi­
nação particular de um casal.
Mas a solução imaginária é sempre aleatória pela ausência
de um distanciamento do corpo e sempre é possível um retorno

72
libidinal. Pode-se notar, então, em todos esses casos que privilegiam
um enlaçamento imaginário, a importância de uma inscrição da cas­
tração no real, como o "cílio" de Pierre Naveau30•
O sintoma é um aparelho que permite colocar em série os
ligamentos em que um uso particular do simbólico - por meio de
um médium, da informática, de uma prática artística, de um empre­
go da língua-lalíngua - fixa o sujeito.
O aparelho da linguagem é outro aparelho.
Falar de enodamento remete a uma clínica borromeana na
qual, como observa Jacques-Alain Miller no final do Seminário das
sete sessões: ''A equivalência entre os três registros tem como efeito
considerar que um registro pode se substituir a uma falha surgida
em outro [...] o imaginário pode se transformar em significante",
uma prática do objeto pode se contrapor à falta simbólica. Nos
casos comprovados de psicose, observa-se uma remissão à imagem,
na qual o imaginário se fixa em determinado momento e, a esse
preço, o sujeito sustenta-se no mundo. Assim, uma mulher se faz
tatuar uma maquiagem permanente nos olhos para poder levantar­
se de manhã diante de um homem. No caso de Jean, a "performance"
faz pensar em uma afinidade com a perversão. Há um elemento
notável: trata-se de traços de perversão, traços que se repetem iden­
ticamente.
Por outro lado, há enlaçamentos "autossimbólicos" devi­
do a um funcionamento em dois níveis, internos ao simbólico. Essa
problemática do neodesencadeamento mostra-nos a passagem de
uma clínica da contiguidade, cuja referência é linguística, a uma clí­
nica da continuidade e sua incidência na condução do tratamento.
O conjunto dos casos leva-nos a indicações precisas sobre
a posição do analista. Se o esquizofrênico denuncia pela ironia a ine­
xistência do Outro, é melhor não levá-lo a esse ponto de inexistên­
cia do Outro no tratamento. Por exemplo, quando ele é recoberto
por um remendo imaginário: FPS (Fenômeno Psicossomático), prá­
tica artística, escolha do objeto amoroso especularizado.

73
Somos, portanto, levados a colocar em questão a posição
do secretário do alienado, em prol da sustentação para a criação
quanto ao objeto e, também, na escrita do caso. Éric Laurent, em
Arcachon, detalhou a maneira pela qual o analista se faz destinatá­
rio do signo ínfimo do paciente. Com esses signos sustenta-se seu
trabalho de construção, e não se desvia disso.
A manobra analítica não consiste, portanto, em um mero
registro, em um secretariado; tampouco se trata de "socializar". O
reenlaçamento, que está a cargo do sujeito, se ele é uma alternativa
para a metáfora delirante, não é uma reinscrição do sujeito sob os
significantes ideais anteriores ao desligamento. Ele supõe uma
invenção particular e um destinatário atento, como testemunham os
casos.

74
Notas


Relatores: Jacques Borie, Jean-Robert Rabanel e Claude Viret.
1 LACAN, J. (1955-1956) "Do significante e do significado". In: O Seminário, livro
3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 985, p.220.

2 Ibid., p. 1 87.
3 LACAN, J. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.542.
4 LACAN, J. (1 973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.466.
5 NAVEAU, P. (1 988). Sur le déclenchement de la psychose, Ornicar? Paris, n.44,
p.79.
6 MILLER, J.-A. (1 996) "Lacan com Joyce". In: Correio n.65. São Paulo: Escola
Brasileira de Psicanálise, 201 0, p.33.
7 Tal como acontece com James Joyce.
8 HENRY, F.,JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.). Le conciabule d'Angers: effets de
surprise dans les p.rychoses. Paris: Agalma/Seuil, 1 997.
9 N.E.: NAVEAU, P. História d'olho. In: HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER,
J.-A. (ed.) (1 997) Os Casos Raros, Inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação
de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1 998, p.59-61 .

75
Seção Clínica de Lille*

INVESTIGAÇÕES SOBRE O INÍCIO DA PSICOSE

I. ENTRADAS NA PSICOSE1

Não encontramos nenhum caso que questione a estrutura


da psicose desenvolvida por Lacan na "Questão preliminar"2: fora­
clusão do Nome-do-Pai e ausência da significação fálica. Essa estru­
tura tem, contudo, manifestações clinicas diversas. Po e <Do desig­
nam aqui, como no texto de Lacan, os "abismos"3 que podem ser
cavados, no simbólico e no imaginário respectivamente, por essa
foraclusão e essa ausência. Trata-se, portanto, de "abismos" locali­
záveis clinicamente pela emergência de fenômenos precisos.
Os fenômenos que designamos por Po são as alucinações
e as perturbações da linguagem. Estas últimas, descritas no Seminário 3,
vão do eco do pensamento à língua fundamental, passando pelas
diversas formas de automatismo mental4• Incluímos aí, portanto, as
perturbações da fala e da enunciação, as alucinações verbais e os
fenômenos de pensamento imposto. Caracterizamo-las por meio
do termo "anideico", emprestado de De Clérambault, para excluir­
lhes as ideias delirantes, consideradas aqui de um ponto de vista
"ideico", ou seja, semântico.
A "imagem da criatura"5 beira, para Lacan, o "abismo" <Do.
O falo é o significante do sexo, portanto as ideias delirantes ligadas
à sexualidade e ao corpo atestam a presença de <Do, assim como
algumas passagens ao ato (automutilações) e alguns tipos de disfun­
ções corporais. O falo é o médium entre os sexos; portanto, as ideias

77
delirantes relativas ao amor e às relações sexuais devem ser
igualmente referidas a <I>o. O falo é o significante da vida ou da ani­
mação do gozo. Portanto, a perda enigmática do sentimento da
vida, chegando às vezes até ao suicídio, e a mortificação do gozo,
dizem respeito a <I>o. Somente as perturbações da linguagem pro­
vam "automaticamente" a foraclusão do Nome-do-Pai. Os fenôme­
nos que acabamos de descrever, assim como as alucinações visuais
e sinestésicas, têm um estatuto muitas vezes difícil de determinar na
prática. Na ausência de perturbações da linguagem, a psicose deve,
portanto, ser demonstrada de outra maneira, por um estudo do
conjunto do quadro clínico a partir da articulação detalhada de seus
elementos.
Da "Questão preliminar" deduzimos um esquema de
desencadeamento6 da psicose relativo à segunda "doença" de
Schrebee, que se traduz pelo seguinte encadeamento temporal: 1 )
apelo ao significante foracluído do Nome-do-Pai (por Um-pai); 2)
formação de Po; 3) formação de <I>o.
Mas, há entradas na psicose que se ordenam de acordo
com outras sequências temporais.

A. Entradas na psicose, sem perturbações da linguagem

Um primeiro tipo de entrada na psicose é caracterizado


pela ausência de perturbações da linguagem, o que, lembremos, é
compatível com a foraclusão do Nome-do-Pai.

1 . Um-pai � <I>o

Nesses casos, há um encadeamento direto entre o surgi­


mento de Um-pai e uma manifestação proveniente de <I>o.

78
Exemplo 1 : Um transexualismo feminino1

Uma moça, Ven, vestida com roupas masculinas, quer


operar os seios e o sexo para ser "transformada" em um rapaz. Seu
pai foi enviado ao campo de concentração, no Camboja, quando ela
tinha três anos. A mãe decidiu ficar com o ftlho de dois anos e
enviou sua ftlha para longe, com sua família. Quando a menina fez
seis anos, o pai fugiu e imediatamente chamou a filha de volta. A
família reunida passou então um ano em um campo de refugiados
antes de chegar à França. As lembranças de Ven datam da volta de
seu pai. Antes, é o nada. Justamente à mesma época, assistiu a uma
cena que foi a matriz de seu transexualismo: seu irmão urina em pé.
Sentiu desde então que ela era (e devia ser) um menino. Essa ideia
não a abandonou mais. A volta do pai precipitou, portanto, a for­
mação de uma ideia delirante incidindo sobre o corpo e o sexo.
Adulta, Ven não apresenta nenhuma perturbação de linguagem. A
psicose só é localizável mediante um exame muito atento. É perse­
guida pelos olhares femininos que atravessam suas roupas e advi­
nham que ela não tem pênis. Tem, por outro lado, uma ideia deli­
rante discreta sobre a determinação da anatomia pelo desejo pater­
no. Sua concepção do amor por uma mulher é inteiramente deter­
minada pela cena inicial que fez do pênis a insígnia real do amor da
mãe pelo filho.

Exemplo 2: Um heroinômano

Um rapaz de trinta anos, drogado desde a adolescência,


vem falar de seus problemas de impotência em um Centro para
toxicômanos. Sua história é escandida por três momentos cruciais.
Aos quatro anos, a criança viu o pai, que voltava do "futebol", apa­
recer no vão da porta com uma cabeça de lobo. Aos oito anos, ten­
tou fazer amor com uma garotinha e não conseguiu, o que sente
ainda hoje como um fracasso doloroso. Aos quinze anos, a cena se

79
repetiu. Desde então, drogava-se para "ficar de pau duro", e conse­
gue fazer amor sob efeito da heroína. Esse primeiro ato sexual teria
causado "hemorragias intestinais" e teria sido então operado para
"retirar pedaços do intestino". Desde então, sofre "dores de barri­
ga" inexplicáveis. Leva uma vida errante e tenta trabalhar no campo
do esporte (ideal paterno). De fato, é sustentado por sua família e
sua companheira. Ela está atualmente grávida e ele, muito angustia­
do. Acabou de perceber, embaixo do pé, uma "bola" de carne que
aumenta quando faz amor e que viria geneticamente de um avô.
Constata-se, portanto, nessa psicose que data da infância, a emer­
gência de um delírio, até mesmo alucinações sinestésicas, na aproxi­
mação da paternidade.
Os pontos comuns a esses dois casos são a ausência de
perturbação de linguagem e uma priorização do corpo e do sexo. Se
por um lado o quadro clínico pendeu para a psicose, por outro lado
esses casos suscitaram hesitações: em relação à histeria, no primei­
ro; em relação à fobia ou à neurose obsessiva, no segundo. Tudo
começa pelo encontro com Um-pai na infância, ora dedutível do
relato do sujeito (exemplo 1), ora marcado por uma cena inesquecí­
vel (exemplo 2). Esse encontro precipita uma significação delirante
"monomaníaca" sexual ("mudar de sexo", "fazer amor"). Nos dois
casos, não há nenhum deslocamento - signo da ausência do recal­
que - entre a matriz infantil imaginária da ideia delirante e a busca
ininterrupta desde a infância de sua realização sintomática.
O mesmo tipo de sequência pode se desenvolver com o
encontro de Um-pai acontecendo somente na idade adulta. Foi o
caso de Schreber, quando de sua primeira doença (1 884) , ocasiona­
da por sua candidatura ao Reichstag. Durou um ano "sem que ocor­
resse um único desses episódios que tocam o domínio do sobrena­
tural"9. De acordo com seu testemunho, os primeiros fenômenos
elementares começaram por um estalo em outubro de 1 893, ou seja,
apenas nove anos depois. Quando da sua primeira doença, Schreber
sofreu de ideias hipocondríacas e de uma obsessão de emagreci-

80
menta. Teria sido curado e levado em seguida uma vida tranquila,
apesar de sua decepção renovada quanto à paternidade. Esse pri­
meiro episódio pode então ser escrito: "Um-pai" � <l>o, sendo <l>o
caracterizado, ainda aqui, por ideias delirantes sobre o corpo.

2. <l>o sem "Um·pai"

Outras entradas na psicose são análogas às anteriores, sem


que se encontre aí, entretanto, a condição inicial do "Um-pai". É
por exemplo o caso de transexualismos ditos "primários" por
Stoller10• Esses sujeitos, nascidos machos, sempre se sentiram femi­
ninos, às vezes desde a idade de um ano. Tratar-se-ia de uma forma
"originária" de empuxo-à-mulher, devido à identificação imaginária
com a mãe11•

Exemplo 3: A moça "dragão"

Uma moça vem consultar um analista, pois não consegue


trabalhar. 'Trabalhar éperder a vida!", diz ela. Essa frase é tomada ao
pé da letra. É assolada por ideias mortíferas: vai desaparecer sem
deixar rastros, exceto se ela tiver talento ou filhos. Além disso, pro­
gramou uma operação plástica no maxilar. Ela teria perdido sua
beleza aos três anos de idade, quando um menino jogou uma bola
em seu rosto. É sua lembrança mais antiga. Sua mãe, uma bela
mulher, diz sem parar que sua filha é feia. Ela adere incondicional­
mente a esse discurso: "Sou um dragão", diz ela. Ela "sabe" como
se tornou feia e como reparar isso por intermédio de uma interven­
ção real no corpo. A operação lhe devolverá sua beleza e lhe trará,
além disso, o amor dos meninos. De fato, ela transformou, por
inversão e permutação, a frase que enuncia o acidente de seus três
.anos, em uma outra frase que a leva à cirurgia: "menino -golpe no rosto
-feia" transforma-se em "operação no rosto - bonita - menino ". Ela se
reflete em sua mãe: "Minha mãe não pode me ver'� diz; em seguida, diz:

81
"quero mudar de rosto, pois não consigo me olhar no espelho ". Uma data é
destacada: aos seis anos, a mãe que a superprotegia a "abandonou"
para ir trabalhar. O trabalho, portanto, foi associado a perder, não a
vida, mas a mãe. Tem-se a impressão de uma evolução progressiva
para uma cirurgia inelutável, castração no real que lhe aparece como
uma solução em uma relação amorosa por vir. Essa "solução" evoca
a eviração schreberiana na via da transformação em mulher; a apro­
ximação da cirurgia é acompanhada do sentimento de "segunda
morte" que assombra o sujeito: fenômenos imputáveis à <Do.

Exemplo 4: o alcoólatra incestuoso

Um rapaz de vinte e sete anos é hospitalizado depois de


uma errância alcoólica de oito dias, acompanhada por ideias suici­
das após ter sido abandonado por sua companheira. Começou a
beber no seu aniversário de quatorze anos, com um amigo. No ano
seguinte, teve relações sexuais com garotas e sofreu uma queda no
desempenho escolar. Seus pais se separaram quando tinha um ano.
Foi então deixado por sua mãe com a avó materna, que impediu que
o pai entrasse em sua casa. Com a idade de dois anos, voltou para a
casa de sua mãe, que havia se casado novamente. Diz nunca ter con­
seguido reconhecer seu pai, que parece, contudo, ter feito muitos
esforços em relação a ele. Por outro lado, esteve sempre em asma­
se com sua mãe: descreve relações íntimas que teriam passado "do
corpo à linguagem". É o único que sabe "levá-la" [ ''la prendre'r2 em
casa e seu padrasto deve passar por ele para ter acesso a sua mulher.
Sua mãe o conhece melhor que ele mesmo, e tudo o que ele nos diz
vem dela. É como se ele falasse no discurso indireto: "Minha mãe diz
de mim que... ", em vez de dizer: "Eu me acho... ". Dessa relação de con­
fidência com sua mãe, tira o poder de falar com as mulheres.
Consequentemente, aparece como o "líder" de uma pequena turma.
Mas lhe é difícil ficar ao lado de outros homens. Nas reuniões da
turma, bebe para poder falar com eles. Quando não bebe, fica ini-

82
bido, sem ideias. Se beber, pode até dizer maldades: sua mãe o
chama de "o cobra". Pouco antes de ser internado, soube que sua
mãe se encontrava com seu padrasto antes do divórcio. Ele desmo­
ronou: '3'ou filho de quem?". O diagnóstico não era evidente.
Inclinamo-nos pela psicose devido à sua relação com o pai. Este é
rejeitado, não reconhecido, e o sujeito diz nunca ter tido o menor
conflito com um personagem paterno, nem, aliás, a menor dificul­
dade em sua vida. Por outro lado, tanto a relação com o álcool e a
inibição para falar com os homens, quanto sua facilidade grande
demais para conversar com as mulheres, é um pouco o inverso do
que encontramos habitualmente na neurose. Se o diagnóstico está
correto, a entrada na psicose se faz pela alcoolização massiva no dia
de seu aniversário. A partir daí, o álcool ajuda-o a suportar os outros
rapazes, pois o modelo da relação com a mãe não funciona com
eles. Não encontramos alteração simbólica manifesta, mas a acen­
tuação, a cada vez que é "largado" (laisser-tomber) por uma mulher,
de um "se deixar morrer". Não se trataria, sob o pano de fundo da
ausência do falo como médium entre os sexos e significante-mestre
da virilidade, de um duplo fracasso? Fracasso de uma tentativa de
constituir um sintoma (o alcoolismo) que faça laço social com os
homens e fracasso da relação "incestuosa" que possa lhe garantir
um laço que se mantenha com uma mulher.
Os traços comuns desses casos de psicose são a ausência
de perturbações de linguagem e a inexistência de uma condição ini­
cial do tipo "Um-pai". No primeiro caso, o sujeito é progressiva­
mente obnubilado por uma cirurgia; no segundo, o alcoolismo se
instala brutalmente na puberdade e toma pouco a pouco um con­
torno suicida. Essas perturbações são a manifestação de uma ausên­
cia da significação fálica, que escava lentamente <l>o. Nada garante,
contudo, que essas entradas precoces na psicose não serão seguidas
um dia por um desencadeamento (Po). A foraclusão do Nome-do­
Pai torna sempre possível uma desestabilização da ordem simbólica
que formará Po.

83
3 <l>o, e mais tarde Po
.

Schreber está neste caso, se considerarmos a sucessão de


suas duas "doenças", com nove anos de diferença. É somente
durante a segunda doença que Po se constitui ("estalo" de origem
divina). <l>o, já formado quando da primeira doença, aprofunda-se
ainda mais. Alguns sujeitos testemunham assim o que aconteceu
antes do desencadeamento, se reservarmos esse termo para a for­
mação de Po.

Exemplo 5: A moça assediada sexualmente

Uma moça de 25 anos é hospitalizada repetidas vezes em


alguns meses. É perseguida por seu marido, a quem ela acusa de
cometer assédio sexual. Adere, contudo, ao discurso de seu mari­
do, que a chama de "puta". Vozes riem dela e a insultam, repreen­
dendo-a por ter feito mal a seu marido. Sua mãe a teria renegado.
No trabalho, zombam de seu nome. Sofre de alucinações visuais,
de suas "presenças": "coisas negras" caem sobre ela. Uma forma
vaga a fixa e a acompanha: são os mortos da família. Tem certeza
que vai se suicidar. Faz o relato do processo psicótico desde sua
tenra infância.
Aos dois anos e meio, feriu-se caindo, quebrou o braço e
seu pai ainda lhe bateu. Os primeiros fenômenos psicóticos apare­
ceram por volta dos sete anos. Primos mais velhos lhe fizeram carí­
cias sexuais. Sentiu-se então dividida e anestesiada, como em uma
nuvem. Rezava para que Deus a fizesse morrer. Desde essa época,
idealiza a morte. Quando as "presenças" surgiram, pensou que era
sua avó, recentemente falecida. Uma única vez ouviu uma voz (pro­
vavelmente ligada a seu pai) dizer: "Estou bravo com você". Aos
onze anos, seu irmão a violentou. Sentiu então uma "quebra". Isso
ocorreu na puberdade e ela desenvolveu um delírio de filiação. Foi
verificar sua certidão de nascimento. Acusou seus pais de a terem

84
oferecido como isca a seus primos. Aos vinte e um, o noivado e,
logo em seguida, o casamento fizeram de seu marido o perseguidor.
O automatismo mental então se desencadeou.
Trata-se de um sujeito que se situa desde sempre como o
objeto de gozo de um parceiro masculino (pai, primos, irmão, mari­
do) . Na época de uma tentativa de sedução - ou talvez simplesmen­
te por causa da sexualidade infantil -, <t>o se constitui (gozo morti­
ficante, presença de um duplo). Desde essa época um fenômeno
elementar demonstra a falha da ordem simbólica. Aos onze anos, Po
se aprofunda: um delírio de filiação acompanha a ideia de um estu­
pro pelo irmão - será a ideia do incesto fraterno que a leva a elabo­
rar o seu pertencimento a uma outra família? Depois, o casamento
faz realmente com que apareça a decomposição avançada da ordem
simbólica, que acarreta, como em Schreber, remanejamentos imagi­
nários.
Esses exemplos, como muitos outros, mostram que o tra­
balho delirante é um Work in progress que pode durar toda uma vida.
Há, contudo, casos (cf. I.A. l e I.A.2) em que a evolução delirante
para depois da constituição de <t>o ou se estabiliza durante longos
períodos, sem decomposição da ordem simbólica. Nesses casos,
apesar da ausência de perturbações de linguagem, pode-se identifi­
car a foraclusão do Nome-do-Pai por alguns signos, como a ausên­
cia simbólica do pai no exemplo 4. Esse é evidentemente o ponto
delicado. A entrada na psicose se manifesta minimamente por uma
ideia delirante sobre o corpo (exemplos 1 , 2, 3), ou mais intensiva­
mente por uma significação mortífera in,vasiva. Esta pode ser asso­
ciada ao trabalho (exemplo 3), aos laços com os outros (exemplo 4)
ou à sexualidade (exemplo 5) . Aqui se demonstra a dificuldade do
laço social na psicose. Um "produto" (álcool, droga) pode ajudar a
estabelecer esse laço, ali onde o falo teria sido necessário (exemplos
2 e 4), e onde o sujeito não consegue construir um sinthoma (cf. I.B.) .
O imaginário é acometido no nível da imagem do corpo, ou pela
alteração do sentimento da vida, e até mesmo pela perda do senti-

85
do ou do valor atribuído a esta. Os atos se seguem. O início pode
ser brutal (cf. I.A. 1 e I.A.2 exemplo 4), ou muito progressivo (exem­
plo 3), com agravações nos momentos do desenvolvimento em que
a pulsão solicita mais o corpo (primeira infância, puberdade, primei­
ros encontros sexuais). O apelo, por intermédio de Um-pai, ao sig­
nificante foracluído do Nome-do-Pai, não é sempre o que precede
esse tipo de entrada na psicose (cf. I.A.2) . Contrariamente ao desen­
cadeamento-tipo da segunda doença de Schreber, a descontinuida­
de ou a "quebra" - de acordo com a expressão da paciente do
exemplo 5 - não é sempre sentida pelo sujeito. Este diz às vezes que
sempre esteve mal, mas que ninguém nunca percebera...
Essas entradas na psicose (<l>o) , que são muito mais
"variações"13 da relação do sujeito com o gozo e com o imaginá­
rio do que desencadeamentos (Po), acentuam a importância da
função fálica como função de gozo. O desencadeamento (Po) é o
modo de entrada na psicose que Lacan enfatiza no momento em
que afirma a primazia do simbólico sobre o imaginário e o real. A
entrada na psicose (<l>o) se percebe talvez melhor a partir do seu
ensino nos anos 1 97014• A última parte do ensino de Lacan, que
incide sobre o sinthoma, oferece ainda novas perspectivas sobre o
processo psicótico.

B. A função do sintoma

O sinthoma é um sintoma que tem como função fazer com


que as coisas fiquem juntas, enlaçando o real, o simbólico e o ima­
ginário15. Jacques-Alain Miller propôs chamar de "desligamentos"
as crises suscitadas por certas disfunções do "aparelho do sinto­
ma"16: ora é um desencadeamento (Po), ou uma entrada na psicose
(<l>o), ora é um momento de desestabilização17 que anuncia uma res­
tauração ou uma reelaboração do sintoma anterior.

86
Exemplo 6: Missão cumprida

Filho espiritual de sua tia e da Igreja, os quais ele chamava


de seus verdadeiros pais, este homem de cinquenta anos constituíra
muito cedo um ideal para si. Queria realizar as "palavras em ade":
castidade, honestidade, fidelidade. Sua prática de coroinha era o sin­
toma em que o ideal das "palavras em ade" tornava-se missão. Da
tutela de sua tia, passou diretamente à de sua esposa: a paternidade
foi acrescentada à lista das "palavras em ade". De sua filha, decidiu
ser o educador exclusivo. Quando seu filho nasceu, sentiu-se dividi­
do quanto à sua missão: como cuidar exclusiva e totalmente de duas
crianças ao mesmo tempo? Dores apareceram pelo corpo e, duran­
te quinze anos, procurou conhecer a doença mortal que o minava
(<Do) . Sua nomeação para um cargo importante, que confirmava a
envergadura universal de sua missão educativa, fez desaparecer
todos esses males. Mas, um ano depois, sua filha passou brilhante­
mente em um concurso, colocando fim a uma parte essencial de sua
missão de pai. Um sentimento de indignidade acompanhou então a
sensação brutal de ter o sexo cortado. Estava se restabelecendo
quando seu fllho, por seu próprio sucesso, lhe causou uma recaída.
Desmoronou em um estado melancoliforme antes de encontrar sua
posição paranoica apoiada em sua missão educativa social. As peri­
pécias de sua vida fazem com que a missão de educador da qual ele
se sentiu investido, e que constitui seu sinthoma, oscile. No caso dela
o abandonar, o sujeito torna-se vítima de fenômenos hipocondría­
cos e de distúrbios de humor, sem que se tenha, por enquanto,
detectado perturbações da linguagem.

Exemplo 7: O caça-níquel

Um rapaz de vinte e dois anos de idade vem consultar um


analista há nove anos para se livrar de uma obsessão de jogo que o
arruinava. Fora iniciado no caça-níqueis por um irmão mais velho

87
após um episódio doloroso de sua adolescência. Agredido por um
colega do colégio em presença de um disciplinário, lera no olhar
deste que era um "maricas". Aos vinte e dois anos, a pedido de seu
pai, falecido pouco depois por conta de um alcoolismo patológico,
substituiu seu irmão à frente da loja paterna. Sua mãe era de uma
família rica e seu pai, de origem modesta, dedicara-se a fazer fruti­
ficar o dinheiro de sua esposa, trabalhando como um escravo. O
paciente jogava e perdia dinheiro líquido de origem duvidosa que
sua mãe lhe dava. Devolvia à sua mãe uma parte do que ganhava na
loja, a fim de cobrir déficits obscuros. "Ser o caça-níqueis de sua mãe"
poderia ser a escrita de um sinthoma que constitui sua mãe como sua
parceira, permitindo-lhe suceder a seu pai. De fato, o caça-níqueis é
um aparelho que pega seu dinheiro e que, nos raros casos em que
você ganha, lhe devolve um pouco. Da mesma forma, o sujeito fazia
desaparecer nele o dinheiro "sujo" de sua mãe; depois, transforma­
do ele mesmo em caça-níqueis vivo, produzia dinheiro "limpo" que
voltava a ser "sujo" e materno. Assim, estabelecia-se uma circulação
entre o dinheiro "limpo" do sujeito e o dinheiro "sujo" da mãe que
continuou funcionando depois que interrompeu o jogo. Um conta­
dor sugeriu-lhe separar as contas e os circuitos em jogo, uma vez
que essas trocas beiravam à ilegalidade. Era necessário que ele reto­
masse a loja em seu nome, já que até então era chamado de "o filho
de Nicole" (sua mãe). Uma série de distúrbios corporais imputáveis
à <!>o apareceram então: placas de calor se deslocavam dentro de seu
corpo, suas veias se comprimiam. Convencido de estar acometido
por doença incurável e abatido por uma fraqueza sexual que via
refletir-se nos olhos de sua mulher, começou a tratar seu mal-estar
com máquinas de botjy building e um treinamento intensivo de power­
training. Ideias insistentes de ciúmes começaram a persegui-lo. Por
enquanto, o analista não identificou perturbação de linguagem.
Outros casos evidenciaram momentos de decomposição
simbólica ou imaginária, quando o sinthoma, previamente construí­
do pelo sujeito, ameaçava não mais poder se escrever. Esse sinthoma

88
pode, muitas vezes, ser apreendido por um conjunto de relações
constantes na vida do sujeito, como uma missão (exemplo 6), uma
relação dual (exemplo 7), ou uma relação implicando três termos ou
maiS.

11. INVESTIGAÇ Ã O SOBRE UM CONCEIT018

O que é um desencadeamento para a psiquiatria clássica?


Haveria para ela outros desencadeamentos, além da paranoia?

A. Uma invenção de lacan

Na "Questão preliminar", o desencadeamento parece cor­


responder a "esse mecanismo coerente das eclosões delirantes" que
Lacan almejava desde 1 931 19• Ele acrescentava a isso: uma causa aci­
dental (o encontro de Um-pai); a dissolução de um elemento esta­
bilizador (uma identificação); e a operatividade de uma causa espe­
cífica (a foraclusão do significante paterno). Algumas citações da
tese de Lacan fazem pensar que ele tomou emprestado o termo de
Kraepelin. De fato, seu equivalente germânico, Ausliisung, raro em
Kraepelin, mais frequente em Bleuler, designa em ambos o efeito de
uma causa acidental. Aliás, é nesse sentido que Lacan o usava em
sua tese para observar, por exemplo, a ação dos tóxicos, ou da emo­
ção, ou da menopausa, na emergência de uma psicose.
Descobrimos que o desencadeamento, como conceito da
teoria analítica da psicose, é um termo lacaniano. Hoje, ele designa
correntemente o início clinico de uma psicose. Entretanto, está
ausente do glossário tradicional da psiquiatria francesa convidada,
desde Philippe Pinel, a aplicar à alienação mental o esquema médi­
co e seu vocabulário. ''A marcha da loucura é ( ) a mesma que a de
...

todas as outras doenças do corpo humano", escreve Georget, um

89
aluno de Pinel. E reconhecia nela pródromos, um tempo de incu­
bação, um período de invasão, um estado de excitação - em que a
loucura está no summum de sua intensidade - e modos de resolução.
Nada de traços de desencadeamento, portanto, no corpus psiquiátri­
co antes de Lacan.

B. Nos clássicos

Os psiquiatras se interessaram evidentemente pelo início


da doença mental. O início se inscreve na evolução, mas é em parte
ligado à causa. Isso permanece verdadeiro para o desencadeamen­
to, em que se unem início clínico e foraclusão estrutural.
Dois modelos, que permitem estudar os diferentes inícios,
organizam, desde Pinel, o campo das doenças mentais: o dos con­
juntos sintomáticos, constituído pela coleta dos signos manifestos,
e o das entidades clínicas, que procedem de causas subjacentes e
dependem das teorias causais elaboradas a seu propósitd0•
No cerne dessas classificações opera o binário das causas
predisponentes (ou endógenas, próprias do indivíduo) e das causas
determinantes (ou exógenas, acidentais), das quais se avalia a impor­
tância respectiva. O esforço da psiquiatria para circunscrever cada
vez melhor as causas predisponentes, conduziu ao abandono das
classificações sintomáticas em proveito das classificações etiológi­
cas, modificando ao mesmo tempo a questão do início da psicose.

1 . Para a psiquiatria dos conjuntos sintomáticos (Pinel e


seus alunos), a causa tem uma incidência sobre o inicio da doença.
O início está próximo da causa: um abalo moral poderoso determi­
na uma explosão imediata do delírio. O início leva à causa: quando
a causa age mais lentamente, a eclosão do delírio é precedida por
um período de incubação insidioso que aproxima o clínico adverti­
do da "fonte" da doença.

90
A facticidade dos agrupamentos de sintomas conduzirá
alguns praticantes a "deixar os doentes se mostrarem livremente", a
fim de melhor discernir os "tipos patológicos". Pouco a pouco,
impôs-se a eles regularidades evolutivas, tais como "o delírio de per­
seguição" em três tempos (Lasegue), "o delírio de perseguição de
evolução sistemática" em quatro períodos O· Falret), "a loucura de
dupla forma" e "a loucura circular" O· Baillarger e J.-P. Falret), que
pleiteavam um princípio organizador. Passava-se das classificações
sintomáticas aos "estados psíquicos tais como existem na nature­
za". Mas, ao passo que Falret recusava-se a insistir sobre esse "grave
acidente" que é "a explosão do delírio" e desviava sua atenção para
o discreto período de incubação, Lasegue, ao contrário, privilegiava
a "floração" do período de estado, porque a considerava como o
melhor período de observação de um delírio de perseguição. Um
pensava que os pródromos da alienação mental eram muito próxi­
mos dos signos da predisposição; o outro, que o delírio de persegui­
ção não era "a exacerbação de uma forma natural".

2. Na psiquiatria das entidades, é a causa, hipotética, que


determina a �ncepção que se faz do início da psicose.
Degenerescência, constituição, processo mórbido, são causas que se
mostram de forma diferente no início das formas mórbidas que
foram construídas a partir delas.
a) A degenerescência (uma transformação patológica her­
dada que atinge o tecido nervoso) imprime cedo sua marca na evo­
lução da psicose: mais no corpo, para alguns; mais no intelecto, para
outros. Bénédict-Augustin Morei, o inventor dessa degenerescência
(1 857), observa que os fenômenos hipocondríacos do período de
incubação, que vão das sensações indefiníveis e das cefalalgias ao
sofrimento geral, são apenas a acentuação dos "fenômenos neuro­
páticos bizarros" precoces nos quais já se mostrava a predisposição.
Para Magnan, a degenerescência é responsável pela desordem súbi­
ta de uma irrupção delirante, de um "delírio escancarado". O "delí-

91
rio dos degenerados" carrega a marca do desequihbrio psíquico
constitucional. O menor pretexto o faz eclodir, e ele pode desapa­
recer como aparecera. O "delírio crônico", ao contrário, desenvol­
ve-se em uma ordem determinada, de quatro períodos: o doente,
entregue as suas interpretações delirantes, fica inquieto no primeiro,
alucinado e perseguido no segundo, ambicioso no terceiro, demen­
te no quarto.
O modo de entrada na psicose adquire um valor preditivo.
A acuidade do início faz esperar a curabilidade, uma instalação deli­
rante lenta e progressiva anuncia a cronicidade. Para Kraepelin, que
havia isolado algumas entidades psiquiátricas ao final de uma longa
evolução, quando as mesmas doenças têm o mesmo estado termi­
nal, o diagnóstico dos sintomas iniciais adquirem um valor prognós­
tico considerável.
b) O lugar dado à constituição tem abordagens diversas. Se
a singularidade pessoal (persiinliche Eigenarf), isolada por Kraepelin
como o signo de uma predisposição, aparece aumentada na para­
noia, a demência precoce só é raramente a amplificação de um traço
de singularidade observado na infância.
As psicoses constitucionais - que se opõem às psicoses aci­
dentais - desenvolvem-se em um terreno preparado pela hereditarie­
dade, mas também pela degenerescência, pelos acidentes da gravidez
e pelas doenças infantis (o indivíduo herda dele mesmo, dizia
Lasegue), e até mesmo pela educação. O peso da predisposição
reduz, às vezes, a nada, a parte das causas coadjuvantes na eclosão
psicótica. Um doente que, por uma constituição "paranoiana"
(Régis), recebeu no nascimento o germe da "loucura verdadeira",
pode desenvolver em um determinado momento, e à menor ocasião,
uma psicose sistematizada progressiva. E lembrar-nos-emos do
lugar concedido pelo mesmo Régis aos fenômenos hipocondríacos
no momento inaugural dessa psicose sistematizada (e alucinatória).
Para Genil-Perrin, seria vão querer delimitar o período de
incubação de um delírio de interpretação, pois o doente, que "car-

92
rega seu delírio latente desde a mais tenra idade", não faz senão exa­
gerar as suas tendências paranoicas constitucionais.
Nessas concepções organicistas, há uma continuidade
entre a causa e os efeitos, muitas vezes precoces, da doença mental:
a "propensão congênita da constituição" (Séglas) se prolonga na
doença e nela se lê precocemente, ora na desordem intelectual, ora
nos fenômenos corporais.
c) O processo mórbido na esquizofrenia designa, para
Bleuler, a afecção cerebral da qual depende a perda das associações.
Esse processo cria uma predisposição para reagir a causas ocasio­
nais, que estão na origem de uma sintomatologia contingente. Esses
fatores ocasionais desencadeiam sintomas, mas não a doença, cuja
evolução, habitualmente insidiosa, pode permanecer muito tempo
assintomática. A anamnese dificilmente identifica se modificações
do caráter ou de outros fenômenos indicam o verdadeiro início ou
se elas pertencem à predisposição. Um episódio psicótico agudo se
confunde facilmente com a exacerbação de uma sintomatologia
antiga que passou despercebida. Ele indica, em todo caso, a esqui­
zofrenia, e não a paranoia, que é um sistema de ideias delirantes
logicamente ligadas e que toma seu ponto de partida de falsas pre­
missas.

C. Rupturas epistemológicas

O processo mórbido, como as outras causalidades orgâni­


cas, concebe a entrada na doença como o efeito direto da causa pre­
disponente.
O processo psíquico Qaspers) é, por outro lado, disrupti­
vo; ele introduz na personalidade um elemento estrangeiro que a
modifica em definitivo. É um "enxerto parasitáriom\ um elemento
novo, heterogêneo, cuja expressão clínica é a experiência de signifi­
cação pessoal (Neisser). Parece, de fato, que é a distinção de Jaspers

93
entre os fenômenos ligados às relações de compreensão - em que
a causa e o efeito são contíguos -, e os fenômenos devidos ao hiato
da intrusão parasitária - em que a causa desenvolve efeitos irredu­
tíveis à compreensão -, que conduziu Lacan a privilegiar, em 1 958,
um modo de entrada na psicose por um fenômeno agudo em que
se atesta a irrupção de uma causa.
Em sua tese de 1 932, centrada na entidade "paranoia", a
partir do caso Aimée, Lacan isola uma causa específica: a fixação
libidinal, que dá a chave do processo. Inclui essa psicose, por deten­
ção (arrêl) da personalidade (fixação libidinal), nas psicoses paranoi­
cas, contentando-se com uma enumeração das outras formas de
ps1cose.
Sua escolha pela paranoia testemunhava, no mínimo, seu
apego ao texto de Freud. Sabemos que Freud era pouco entusiasta
da esquizofrenia, ao passo que a paranoia respondia a sua teoria da
libido. Mas foram necessários Clérambault e seu "anideísmo", assim
como a teoria do significante, para que a ruptura inaugurada a par­
tir de Jaspers fosse fundada teoricamente. Foi o triunfo do paradig­
ma schreberiano.

D. O que há de novo?

Do lado da Associação Internacional de Psicanálise (IPA),


um sobrevoo incipiente na literatura mostra que a psicose não é
mais assunto de psicanalistas. Do lado dos psiquiatras, um novo
impulso, do qual a psicanálise está decididamente excluída, motiva
os defensores de uma corrente que se apoia em Kraepelin para uma
vasta pesquisa sobre as fases mais precoces da esquizofrenia22• Do
lado dos que seguem Lacan, desde o momento em que o conceito
de foraclusão rompeu definitivamente com a psiquiatria, a psicaná­
lise das psicoses não cessa de suscitar novas elaborações.

94
Notas

*
Relatores: Genevieve Morel e Herbert Wachsberger
1 Parte I: redigida por Genevieve Morel.
2 LACAN, ]. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.581.
3 Ibid., p.577.
4 LACAN, J. (1 955-1 956) "As imediações do buraco". In: O Seminário, livro 3: as
psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 985, p.284, 349.
5 LACAN, ]. (19 58) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.577. No caso de
Schreber, em que "a elisão do falo" é trazida "para resolvê-la na hiância mortífe­
ra do estágio do espelho". O laço entre <l>o e a imagem do corpo é frequente na
psicose.
6 LACAN, ]. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.564. "No
ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois
responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito
metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica".
Ver também p.577, a discussão sobre a anterioridade de Po em relação a <l>o;
p.578 e 583, a relação dialética entre Po e <l>o; p.583-584, as conjunturas de
desencadeamento.
7 SCHREBER, D. P. (1 905) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1 984, capítulos 2 e 3: 1" Junho de 1 893, nomeação de Presidente
da Câmara do Tribunal de Apelação do Land de Dresden; zo) outubro 1 893,
"estalos" sobrenaturais; 3°) março 1 894, elaboração do "assassinato de almas".
8 Os exemplos são publicados in extenso no Hors-série n.3 dos Cahiers de Lille: ex.
2 de Vincent Calais, ex. 4 de Brigitte Duquesne e Emmanuel Fleury, ex. 5 de
Carine Decool, ex. 6 de Brigitte Lemonnier, ex. 7 de Philippe Bouillot.
9 SCHREBER, D. P., Op. cit., p.44.
1 0 STOLLER, R. ]. Masculin ouféminin? Paris: PUF, Le ftl rouge, 1 989, p.44-45.
1 1 MOREL, G. "Identifications et sexuation", La Causefreudienne, n.37, outubro
de 1 997, p.72 para o caso de Ives; "Un cas de transvestisme féminin", La Cause
freudienne, n.30, maio 1 995, p.20 para o caso de Ven.
1 2 N.R.: o verbo "prendre" em francês tem, igualmente, o sentido de "tomar ou
pegar sexualmente" quando referido a uma mulher.

95
1 3 Inspiramo-nos em F. Jullien para opor a "variação" (evolução contínua) e a
diferença ligada à descontinuidade significante. Un sage est sans idée. Paris: Seuil,
1 998, p. 1 82 e 212.
1 4 LACAN,J. (1973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.466. Assim, uma frase coloca em série "a irrupção de Um-pai" e
"o efeito de empuxo-à-mulher". Mas, em "Questão preliminar", a frase "esse
outro abismo foi formado pelo simples efeito no imaginário pelo apelo vão feito
no simbólico à metáfora paterna?", mostra que, desde 1 958, Lacan considerava
entradas na psicose do tipo "Um-pai ---+ <1>0" (cf. A).
1 5 LACAN, J. (1 975-1 976) "Do uso lógico do sinthoma ou Freud com Joyce" e
"Joyce e as falas impostas". In: O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2007, p.21 e 9 1 .
1 6 HENY, H., JO�IBOIS, M . e MILLER, J.-A. (ed.) (1 997) Os Casos Raros,
Inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo:
Biblioteca Freudiana Brasileira, 1 998, p. 1 09, 1 1 7 e 1 06.
17 LACAN, J. (1946) "Formulações sobre a causalidade psíquica". In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p. 1 8 1 e 1 85. Em certos casos, poder-se-ia
talvez reintroduzir o termo "momento fecundo".
1 8 Parte 11: redigida por Hcrbert Wachsberger.
1 9 LACAN,J. "Structure des psychoses paranoi'aques", LA Semaine des Hópitaux de
Paris, n. 1 4, 1931 . Retomado em Ornicar? n.44, 1 988, p.5- 1 8.
20 HACKING, I. L'âme réécrite. Étude sur la personnalité multiple et les
sciences de la mémoire (1995), traduzido do inglês por Julie Brumberg­
Chaumont e Bertrand Revol, com a colaboração de André Leblanc e de
Christophe Dabitch, Institut Synthélabo para o progresso do conhecimento, Le
Plessis-Robinson, 1 998.
2 1 JASPERS, K. "Eifersuchtswahn", Zeitschrift der gesamten Neurologie und
P.rychiatrie, 1 9 1 0, 1 : 567-637. Citado por Lacan em sua tese, p.1 44.
22 Ver a Schizophrenia Bulletin, 1 996, volume 22, n.2: Ear!J Detection and Intervention
in Schizophrenia.

96
A NEO C ONVERSÃO
Seção Clínica de Bordeaux*

USOS DO CORPO E SINTOMAS

Foi no curso de Jacques-Alain Miller de 1 987-1 988, Ce qui


fait insigne1, que a Seção Clínica de Bordeaux, criada dois anos
depois, se inspirou para considerar em seus ensinamentos e em seus
trabalhos a dimensão fora do discurso do sintoma. Interessou-nos
"a referência à insígnia Joyce, manejando a letra fora dos efeitos de
significado, com fins de gozo purom. A partir daí, há um interesse
sempre renovado tanto pelas psicoses clássicas quanto pelas psico­
ses não desencadeadas: era preciso atualizar a estrutura, extrair dela
a sua lógica. O resultado foi que essa parte do ensinamento de
Lacan, por mais teórica e até mesmo literária que pareça, não se
mostra menos clínica.
O diagnóstico de histeria, no discurso corrente, repousa
frequentemente em alguns sintomas típicos: acometimento de uma
função, teatralismo, aversão na relação com o objeto, prevalência
dos atos sobre o discurso.
Freud opõe em seu artigo princeps sobre "O sentido dos
sintomas"3, sintomas típicos e sintomas individuais: "Se for possível
obter uma explicação satisfatória do sentido dos sintomas neuróti­
cos individuais à luz dos fatos e acontecimentos vividos pelo doen­
te, nossa arte não é suficiente para encontrar o sentido dos sinto­
mas típicos, muito mais frequentes".
Se os sintomas individuais têm uma relação com a história
do paciente e os acontecimentos vividos, "os sintomas típicos
podem ser remetidos a acontecimentos igualmente típicos, isto é,

99
comuns a todos os homens". Mas o questionamento radical de
Lacan, a partir dos anos 1 970, vai acentuar mais o real incluído no
sintoma do que seu sentido. Essa "reviravolta", assim produzida,
abala a concepção de "sintomas típicos".
A conversão é um sintoma que se inscreve no rúvel do
corpo, como decifrável pelo saber inconsciente. É conhecida por
tornar-se cada vez mais rara na clínica das neuroses. Por outro lado,
os fenômenos de corpo que são susceptíveis de ressoar com a lin­
guagem e de modificação pela palavra, se multiplicam.
Apresentamos aqui alguns casos com sintomas típicos, em
que o corpo é concernido de maneira diferente e original.
No caso n. 1 , Sylvie, trata-se de um uso do corpo que visa
inscrever um gozo que não pode ser decifrado. Os laços desse uso
do corpo com o sintoma, a função da letra e da escrita, são aí estu­
dados.
No caso n. 2, da senhorita Anna, evidencia-se um uso dife­
rente do corpo que coloca em jogo um manejo da imagem, que não
é sem relação com a conversão, mas que dela se difere fundamen­
talmente. O sintoma de corpo é aqui um ciframento que não pode
se situar em relação ao deciframento inconsciente, mas apoia-se na
1magem.
No caso n. 3, Murielle, a dor é, de alguma forma, o ponto
de origem de uma prótese corporal real que faz suplência à psicose.
A dor real é a premissa desse aparelhamento do gozo.
Enfim, a pequena nota sobre a oposição Fenômeno
Psicossomático (FPS) /Conversão, mostra o papel prevalente da sig­
nificação fálica, ausente aqui e presente ali, para "fixar" o modo e a
própria possibilidade de "leitura" do sintoma.
Se é necessário um corpo para apresentar um sintoma de
conversão, vê-se aqui que uma neoconversão pode permitir a um
sujeito se fazer um corpo a partir de seu sintoma. A questão será,
então, a que tipo de tratamento pela palavra essas neoconversões se
articulam.

100
I FAZER-SE UM NOME - FAZER-SE UM CORPO
.

Quando é internada pela primeira vez aos vinte e oito


anos, Sylvie já tem um longo passado de tentativas de suicídio e de
marcas feitas em seu corpo.

Fazer-se um corpo

Esses distúrbios apareceram quando tinha quinze anos e


persistem por períodos aproximados: Sylvie escarifica o rosto e os
antebraços com lâminas de barbear. Às vezes também engole doses
maciças de comprimidos. Não tem nada a dizer a respeito disso e
não sabe por que o faz. Sylvie não consegue pensar nada sobre esse
assunto. Pode apenas trazer alguns detalhes sobre as circunstâncias
de desencadeamento das primeiras passagens ao ato: acabara de ser
reprovada em um exame de admissão e um garoto de sua classe
zombava dela e repetia que ela era um zero a esquerda (nulleJ. "Isso
se tornara insuportável".
Sylvie continuou, contudo, seus estudos e conseguiu um
diploma universitário. Foi esse o momento da primeira internação,
em razão da violência da passagem ao ato e dos riscos que ela corria.
Durante o período de internação, no final de alguns meses,
as mesmas sequências se reproduzem. Quando passa ao lado de um
grupo, se as pessoas riem, sente que zombam dela e essa certeza
desencadeia a mesma resposta: marcas feitas com lâmina de barbear
nas faces, diante de um espelho, desenhando uma espécie de máscara,
com traços oblíquos, sempre a mesma. Faz isso "para ver o sangue
escorrer, para que o mal saia". Experimenta então um alívio muito
nítido de uma angústia que descreve como intolerável. Pode então se
olhar e suportar o olhar dos outros: ela tem um corpo, é o seu corpo.
As outras conjunturas do desencadeamento são essencialmente liga­
das a sua confrontação com o "trabalho", que ela busca e teme.

101
Depois de circunstâncias particulares, Sylvie coloca um
termo às internações e pede um analista. O tratamento medicamen­
toso continua.

A transferência e as cartas

O movimento que então se operou sob transferência é


muito interessante. Ele pode ser esclarecido pela última parte do
ensinamento de Lacan sobre o sintoma e a questão do sinthomd'.
Desde os primeiros encontros, Sylvie traz cadernos, alguns
datando de mais de dez anos, outros recentes, escritos durante sua
internação. Adquirira o hábito de anotar seus pensamentos e tam­
bém o que fazia, os livros que lia. Era uma espécie de diário.
Logo depois, Sylvie passa a enviar cartas a seu analista,
demonstrando uma conotação erotomaníaca da transferência: '54mo
você" se alterna com "Odeio vocêporque você me despreza) vou me suicidafj
não virei maisn. Sylvie vem sempre a suas sessões - não faltou a
nenhuma em dez anos. Certifica-se simplesmente de que suas car­
tas sejam efetivamente recebidas.
Um verdadeiro roteiro preside a escrita dessas cartas.
Todos os dias, Sylvie se levanta às sete horas e vai tomar seu café da
manhã em uma cafeteria da cidade. Instala-se lá, sempre na mesma
mesa, diante de um espelho, olha-se, acende um cigarro e escreve.
Há um detalhe complementar: ela mesma coloca suas cartas no cor­
reio; sente uma grande angústia antes de largar a carta na fenda da
caixa e, quando consegue se decidir, obtém um alívio de sua angús­
tia. Esse alívio obtido é idêntico ao que, anteriormente, seguia o
corte na pele. É o ponto crucial: o efeito de cessão da carta pode
ser assimilado a uma cessão de gozo e tem como correlato a seda­
ção da angústia.
As escarificações do rosto, desde esse episódio agora anti­
go, nunca mais se reproduzem. Ali onde havia um corte marcando
diretamente a pele e o próprio corpo do sujeito, apresenta-se um

1 02
fenômeno de duas vertentes: por um lado, imaginária, sob a forma
da imagem no espelho, que deve estar presente; por outro lado, sim­
bólica, pela escrita da carta.
O que permitiu esse movimento? É a própria transferên­
cia delirante que autoriza outra entrada em jogo do real nesse caso
particular. O analista ocupa aqui o lugar do Outro real, real no sen­
tido do que volta sempre ao mesmo lugar, lugar em torno do qual
ela faz girar seu uso do tempo, seus deslocamentos, até mesmo suas
viagens e a rede de amigos.
Nos últimos anos de seu ensino, Lacan isola o real como
o que permite enodar simbólico e imaginário. A transferência per­
mite esse enodamento tornando caduca a necessidade das passa­
gens ao ato.
Com a entrada na transferência, assistimos a uma substi­
tuição: a transferência permite que não seja mais o masoquismo
como tal o que opera esse nó, mas é a transferência como real que
vem efetuar essa operação. A introdução do Outro real da transfe­
rência abre uma outra possibilidade diferente da repetição da passa­
gem ao ato.
É preciso retomar aqui um ponto, desenvolvido por
Jacques-Alain Miller em seu curso de 1 987-88, Ce qui fait insigne.
Existem, a partir do significante S1, duas vias. Uma é a via simbóli­
ca propriamente dita, com a série: palavra, discurso, saber, incons­
ciente. A outra é a via do real, que é também a da letra, fundamen­
talmente não interpretável. É nessa segunda vertente, fora do efei­
to de significação, fora da elaboração de saber, fora do discurso, que
se situa o tratamento de Sylvie. Ela não suporta tomar minimamen­
te a palavra, nem a menor significação.
Ela se diz incapaz de falar, de pensar, de refletir, e se sente
perseguida pelo menor comentário. Progressivamente, o envio de
cartas para. Inaugura-se então o segundo momento do tratamento.

1 03
Fazer-se um nome

Ela vai, então, encontrar outra solução para "apoiar seu


pensamento": retoma a redação de seu diário. Esse diário - um
caderno de notas - é trazido por ela a cada sessão. A sessão propria­
mente dita consiste na leitura declamatória do que escreveu.
Contudo, esse diário é profundamente diferente do que era antes do
tratamento: é preciso distinguir um diário n. 1 , escrito antes do tra­
tamento, e um diário n. 2, escrito após o início do tratamento. No
diário n. 2, cada texto, redigido em forma de cartas, é emoldurado
por dois nomes próprios: o do destinatário das cartas e o seu.
Isso quer dizer que o diário inclui o endereçamento ao
Outro e a função do nome próprio. ''A característica do nome pró­
prio está sempre associada à sua ligação com uma escrita". A escri­
ta hieroglífica emoldurava os nomes próprios com um cartucho. No
caso de Sylvie, o nome próprio é o próprio cartucho. Pode-se esta­
belecer uma relação com a prática da escrita de Joyce, ressaltada por
Lacan6: cada capítulo de Ulisses é apoiado por um certo tipo de mol­
dura, ligado ao próprio estofo do conteúdo.
Eis seu sintoma atual: a escrita lhe permite religar uma
letra a um nome próprio. Aí está sua pequena invenção: uma escri­
ta como "fazer que dá apoio ao seu pensamento".
Sylvie passou a uma escrita outra (autre) com um peque­
-

no a - , que inclui, circunscreve um gozo, um sinthoma que reúne


sintoma e fantasia. Além disso, assim bordejada pela escrita, a ses­
são recitativa é possível, suportável, sem que o ato de tomar a pala­
vra remeta o sujeito a um puro risco, sem limite.
Algumas observações da relação de Joyce com seu corpo
ressoam com as passagens ao ato de Sylvie em seu rosto. A ausên­
cia de afeto com relação à dor e à violência, uma certa aversão pelo
saco depele. Mas, para o ego de Sylvie, os espelhos são sempre neces­
sários: olha-se neles com frequência. (j'e os tirassem de mim, eu teria
uma crise do espelho'� diz ironicamente. Sylvie se separa de um gozo

1 04
incluso no corpo, pela criação de seus cadernos de notas, verdadei­
ro fora-do-corpo que concentra e circunscreve o gozo a mais. Mas,
se esses escritos se enodam à imagem especular, é preciso, contudo,
que Sylvie dê voz na sessão, para que a cessão dessa carta, o seu
depósito, se opere e se constitua também um laço com o Outro,
diferente do seu corpo. Uma nota biográfica toma aqui seu valor: o
grande homem da família de Sylvie é o avô materno, herói nacional,
que ela não conheceu. Contudo, sempre ouviu contar que, no
momento de seu enterro, as maiores personagens do Estado deslo­
caram-se para ler, no cemitério, seu panegírico.

11. SENHORITA ANNA E O DISCURSO IMITATIVO

A senhorita Anna procura uma consulta devido a crises de


angústia aguda com choros, acompanhadas, às vezes, de desmaios.

A. Uma moça bem comportada

Ela se apresenta com um ar de eterna mocinha recatada e


ligeiramente antiquada. Na verdade, a senhorita Anna fez estudos
superiores com sucesso, fala várias línguas, o que torna muito estra­
nha a sua apresentação. Nunca exerceu atividade profissional nor­
mal, apesar de numerosas tentativas de inserção social.
Fala com afetação, como uma garotinha, e evoca seus con­
flitos de infância com seus irmãos, pelos quais experimenta uma
profunda afeição. Preocupava-se, em particular, com que eles não
apanhassem do pai severo e fazia tudo para defendê-los.
O avô paterno, oriundo de uma excelente família, fizera
maus negócios e a avó paterna, tendo perdido a visão, não podia
sustentar seu filho. Assim, o pai de Anna foi confiado, ainda crian­
ça, à assistência pública, e as relações familiares foram totalmente
interrompidas.

105
A senhorita Anna é muito apegada ao passado glorioso de
sua família, sobre a qual fez numerosas pesquisas históricas e genea­
lógicas. Interessa-se pelas grandes famílias e pelo papel destas na
história. Interessa-se também pelo aspecto misterioso do abandono
do qual seu pai foi objeto.

B. Crises passionais

Rapidamente, a paciente evoca a severidade desse pai e


chega à ideia de que ele teria exercido uma sedução violenta sobre
ela, o que parece ser, ao que tudo indica, uma versão delirante do
Édipo. É nesse momento que começa a acompanhar seu discurso
com gestos, evocando as atitudes teatrais e passionais descritas por
Charcot na histeria.
Esconde o rosto, torce as mãos, imitando as brigas com
seus irmãos menores que lhe torciam os dedos, empurra um agres­
sor fictício. Rapidamente, seus gestos vão se separar de seu discur­
so. Embora ela possa muito bem traduzi-los nos significantes de
sua história, não se pode dizer que os decifre. Muito ao contrário,
essas estereotipias gestuais resumem a "gesta" de uma história
petrificada em sua encenação. Simula um discurso sem palavras,
que não é mais a ilustração do que ela pode dizer. Esses gestos tra­
duzem uma violência punitiva centrada nela mesma (ao se estapear,
por exemplo) .

C. O olhar da ancestral

Ela evoca, então, a figura misteriosa de sua avó paterna


cega e, imediatamente, as cenas imitadas vão figurar o fato de que
ela fura os próprios olhos. Isso vai constituir uma virada no trata­
mento. Desenvolve, então, uma transferência erotomaníaca típica
que confirma sua psicose e passa por um período depressivo evo­
cando ideias de suicídio e de danações delirantes.

1 06
Uma lembrança de infância lhe retoma: um ftlme que a
apavorava terrivelmente. Nele, uma moça tem seu rosto destruído
pelo fogo em um acidente, restando-lhe somente os olhos. Seu pai,
um cirurgião, assassinava moças para retirar seus rostos e enxertá­
los no de sua filha. Assim se opõe o olhar morto da avó e o rosto
providenciado pelo pai que vem emoldurá-lo.
A senhorita Anna vai, então, durante o tempo das sessões,
imitar os gestos de um cirurgião praticando essa operação, dese­
nhando um rosto sobre seu rosto. E isso, qualquer que seja o dis­
curso que mantenha. A linguagem sem fala vem de alguma forma
encarnar um complexo, separado do discurso articulado nas falas.
Esses gestos só aparecem nas sessões; em sua vida cotidiana, são
apenas esboçados de forma imperceptível.
Sua construção imitativa e silenciosa é, ela mesma, uma
espécie de véu enxertado que faz existir, para além do que ela dá a
ver, o objeto olhar como ausente. A cena faz dela um quadro vivo
que doma o olhar do Outro.
Esse nó sintomático na esfera gestual vai pacificar o
humor e o delírio. O estado da senhorita Anna melhora. As tempes­
tades transferenciais ligadas à erotomania atenuam-se.
A senhorita Anna pode, a partir daí, exercer uma atividade
profissional que consiste em mostrar quadros (pinturas) às pessoas.

D. Conversão e usos do corpo

Bleuler observara, em 1 9 1 1 7, que os complexos sintomáti­


cos catatônicos eram particularmente clivados na esquizofrenia. O
paciente funciona como um terceiro em relação a gestos automáti­
cos que lhe parecem estranhos. Nas estereotipias, os complexos não
são clivados, mas permanentemente presentes: ''A solteirona que
imita o movimento de um sapateiro amou um deles por mais de
trinta anos. Aquela que está se balançando conheceu seu amado
durante uma quadrilha".

1 07
Esse caso da senhorita Anna difere do que traz Freud no
fim de seu artigo sobre "O inconsciente"8, isto é, casos de lingua­
gem de órgãos, em que a linguagem se passa no corpo: alguém
que deve "mudar de posição" se vê impelido a mudar seu corpo
de lugar. São fenômenos que Freud distingue das conversões na
neurose.
Ora, a senhorita Anna não traduz seu sintoma, que fica no
registro visual. E se pode comentá-lo, observamos que o essencial
para ela se situa em uma cena, mais do que na literalidade de uma
palavra. É como se o discurso verbal se apoiasse sobre a mímica
silenciosa que lhe restituísse uma enunciação. Freud, no mesmo
artigo, ressalta que os pacientes esquizofrênicos compensam o
desinvestimento dos objetos pelo superinvestimento das palavras,
como se a palavra permitisse ser substituída pela coisa. A cena da
senhorita Anna é, de fato, um meio de reencontrar a função do
objeto pelo viés de um uso original de sua imagem. Essa cena cons­
titui um enodamento sintomático, já que reúne um pedaço simbóli­
co de sua história, a imagem de seu corpo que se presta a dar corpo
a essa história e o real não simbolizável do olhar de sua avó. Se, na
conversão, o corpo serve de suporte aos significantes recalcados do
sujeito, aqui é a imagem da cena imitada que restitui um corpo à
paciente. O que constitui esse corpo é a imagem e o pequeno rela­
to que o anima. Ele serve de égide à paciente para entrar no discur­
so e, a partir daí, na vida. Como Jacques-Alain Miller ressaltou, em
seu curso de 1 1 de junho de 1 9979, há duas coisas com as quais nos
embaraçamos: o imaginário (sua imagem, portanto) e o real. O uso
do sintoma consiste em aprendermos, a partir daí, a nos virar com
o destino que nos preparam os discursos que nos precederam; é o
que faz a senhorita Anna no tratamento. Ela usa o que a embaraça
para converter as palavras discordantes de sua história familiar em
uma "cena de família" reduzida e aceitável.

1 08
UI. CONVERS Ã O

Murielle é uma moça de vinte anos que foi encaminhada a


um serviço de psiquiatria com um diagnóstico que hesitava entre
uma etiologia orgânica e uma conversão histérica. Na carta de
admissão, pode-se ler o seguinte: "Apresentou artralgias dos punhos
e calcanhares, de ritmo inflamatório, causando intensas queixas... O
desencadeamento é brutal: em plena noite, apresentou dores inten­
sas nas quatro extremidades, sem deformação, sem aumento de
calor local; chamou várias vezes os médicos de plantão nas noites
seguintes, depois acabou sendo internada para um check-up orgânico
que se verificou negativo".
O diagnóstico de conversão histérica é então colocado
"em relação com a labilidade emocional e o teatralismo no quadro
de uma depressão".

A. Quero sarar

No momento de sua entrada no serviço médico, pede


imediatamente uma cadeira de rodas para se deslocar. Com
nossa ajuda, termina descendo muito lentamente da ambulância
e leva cinco minutos percorrendo a pé os vinte metros que a
separam do consultório médico. Seu sofrimento é aparentemen­
te muito grande, mas, de imediato, anuncia: "Quero sarar". O
diagnóstico de estrutura deve, portanto, ser estabelecido o mais
cedo possível.
Entrevistas densas e uma investigação difícil, no período
de mais de uma semana, vão, no final das contas, levar a recusar o
diagnóstico presumido de conversão histérica e a orientá-lo para
uma hipocondria, isto é, um retorno de gozo no corpo, situado no
quadro de uma estrutura psicótica de tipo paranoica.
As entrevistas são difíceis, pois Murielle está totalmente
presa em seu sofrimento e é preciso, a cada vez, tirá-la desse ema-

1 09
ranhado para poder levá-la a dizer algumas palavras sobre o que
pôde causar o desencadeamento desse episódio. Nos primeiros dias,
diante da eritrodermia que apresenta, da leve febrícula e da ampli­
tude de seu sofrimento, uma consulta é solicitada a um especialista
em processos inflamatórios para afastar qualquer síndrome orgâni­
ca rara que pudesse ter escapado. Qualquer processo orgânico é
então definitivamente eliminado.

B. O desencadeamento do episódio: o outro paterno

Pouco a pouco, Murielle aceita falar de sua história e dos


acontecimentos recentes, mas seu discurso é constantemente inter­
rompido por queixas, até mesmo gritos de sofrimento.
Apesar de ser muito boa aluna, foi reprovada por poucos
pontos, alguns meses antes, no exame para obtenção do diploma de
turismo. Na volta às aulas, 'Jõi o abismo, eu não tinha mais nada". Acaba
dizendo que o diploma de turismo representava para ela um ideal:
ser aeromoça. Ideal que parece, agora, completamente abandonado,
na opinião dessa jovem com aparência de criança comportada pré­
púbere e que nunca pôde se distanciar de seus pais. Um primeiro
apoio imaginário desmoronava.
Detivemo-nos em seguida, nas entrevistas, em precisar o
estatuto do forte laço que mantinha com seu pai, para finalmente
afastar o que poderia ser tomado como uma fixação edipiana ao pai,
ao amor do pai ao modo histérico. O que aparece, então, é que ela
se encontrava presa a uma identificação especular ao pai, despren­
dida de qualquer estruturação ternária simbólica, vindo se colocar
no lugar da estrutura edipiana que falhou.
Pouco antes do desencadeamento do episódio, seu pai foi
internado, pela primeira vez, para uma intervenção cirúrgica. Esse
enfraquecimento do pai é para ela insuportável: ((Fiquei transtornada,
chocada; quando fui ver meu pai no hospita� ele acabara de acordar; parecia
muito mais velho e sofria muito ".

110
Alguns dias mais tarde, depois de ter se ausentado, encon­
tra seu pai de novo em um grande sofrimento e ele é internado
novamente.
Os "sintomas" de Murielle começam na noite seguinte.
No dia do aniversário de seu pai, alguns dias mais tarde,
suas dores chegam ao paroxismo e é a sua vez de ser internada no
serviço médico.
Observamos que nos primeiros dias de sua internação,
toda vez que lhe faziam perguntas sobre seu pai, contorcia-se de
dor; ela mesma acabou constatando essa ligação imediata entre a
evocação do pai e suas crises paroxísticas.
Não deixamos de notar essa colagem identificatória e a
importância que tomou para ela a deterioração da imagem desse
pai e seu sofrimento, quando vai vê-lo no hospital. O pai que pas­
sou toda sua infância, desde seu nascimento até a idade de treze
anos, em famílias de adoção, sofre há muitos anos de crises de
"espasmofilia" durante as quais fica oprimido, treme, chora e pre­
cisa se deitar.
Pode-se pensar que a estruturação edipiana desse homem
foi, no mínimo, conturbada, o que não é sem ligação com a relação
de grande proximidade que mantém com sua ftlha: eles têm, aliás,
sempre funcionado em sintonia, o humor de um, seguindo o humor
do outro.
Murielle é, então, levada a desvelar "a história" de sua esco­
liose. Aos onze anos, um médico escolar descobre uma escoliose que
requer o uso de um colete. O pai é acometido de uma escoliose com
deformação. Uma irmã mais velha foi operada de escoliose.
Dos onze aos dezoito anos, Murielle usou um colete todas
as noites: o colete é composto por duas conchas de gesso fixadas
entre elas e renovadas a cada dois meses. É o pai que, todas as noi­
tes, "a coloca" em seu colete e amarra nas costas os cadarços que o
mantém. Seu corpo é, portanto, mantido em uma concha; só os
membros ficam livres.

111
Aos dezoito anos, é tomada uma decisão médica para tirar
definitivamente o colete de gesso. Ela suporta mal essa decisão: "Eu
me sentia mais apoiada'� diz ela.

C. Uma mobilidade de gozo

Três meses depois da retirada do colete, Murielle apresen­


ta um episódio de interpretação persecutória.
Começa então seu curso de turismo. N o dia de uma prova,
"uma garota disse que eu tinha colado; eu tinha só levantado a minha pasta
para pegar umas folha� ela achou que eu estava lendo as anotações... A partir
desse dia, todo mundo se afastou de mim na sala de aula, ninguém maisfala­
va comigo; no dia seguinte, quando entrei na sala de aula, ouvi comentários,
cochichos: "olhe, é ela ". Não havia mais ninguém do meu lado. Todo mundo
acreditou nela. Eu deixei para lá. Eles me rejeitaram o resto do ano".
No ano seguinte, época em que morava sozinha em um
pequeno apartamento durante o período escolar, seu pai foi buscá­
la para as férias: ''Quando voltei deférias, minha bicicleta havia desapareci­
do. Havia um código para abrir a garagem, pensei que tinham me espionado.
Algumas vezes quando eu passava no ponto de ônibus, havia uns homens que
conversavam no ponto, mas não pegavam o ônibus... Não é normal conversar
em um ponto de ônibus sem entrar no ônibus... Eles observavam as pessoas.
Pensei que estavam me vigiando e tinha medo, sozinha no meu quarto ".
No momento dos resultados do exame final, três meses
antes do episódio que a levou para a clínica, manifestara ainda
alguns elementos interpretativos: "Houve o exame, não conseguipassar,
eu tirei 9,8 em 20. Pedi revisão de prova, não havia praticamente nenhuma
correção, riscos, nenhuma explicação. Não quis repetir o ano porque, o que
teriam pensado de mim? A diretora tinha dito: 'há alguns que têm um histó­
rico ruim e que conseguirão o diploma, outros que têm um bom histórico e não
conseguirão '". Seu discurso permanece alusivo, mas sua interpretação
é precisa: ela foi vítima de uma injustiça, e a diretora é a causa do
seu fracasso.

112
Observamos assim, no decorrer de nossas entrevistas com
Murielle, que ela é visada pelo Outro, e em particular pelo olhar,
desde a infância. Precisemos que alguns elementos persecutórios
teriam passado completamente despercebidos se as entrevistas não
tivessem sido guiada:s, por meio de um trabalho de poda, para o des­
velamento pelo sujeito de sua tendência interpretativa.
Em quais referências teóricas do ensino de Lacan nos
apoiamos?
Parece que, para Murielle, o nó triangular é defeituoso. A
questão nunca é referida ao casal parenta!. Ela permanece às voltas
com o laço dual com o pai, em espelho. O gozo, por esse fato, não
é separado nem do Outro nem do corpo, e oscila entre um e outro.
Foi o pai que, "na realidade", se esforçou, mediante atos
cotidianos repetidos, para lhe "fazer um corpo", pela aparelhagem
do colete. Assim, por meio da construção desse corpo-concha, o
gozo fica contido, o que não acontece sem dor.
Não é evidente que um sujeito se atribua um corpo. Murielle
nos indica isso mais de uma maneira. Aos quinze anos, apesar de sua
"prótese" corporal, ela perde, em alguns meses, mais de dez quilos,
que recupera muito rapidamente sem que ela nem sua família possam
desvendar a causa. Vê-se muito frequentemente isso na psicose de
adolescentes, como se o corpo não concernisse ao sujeito.
Desde que o corpo de Murielle deixou de ser contido pelo
colete, surgiu, então, uma série interpretativa. O gozo, que não é
mais circunscrito pelo colete, encontrou uma nova localização no
Outro e, mais precisamente, no olhar do Outro.
Em um segundo tempo, no momento do desencadeamen­
to do episódio que a levou à internação, ocorre o desmoronamen­
to de seus dois apoios imaginários: o ideal profissional (aeromoça)
e a doença do pai, provocando uma nova invasão de gozo, mas,

desta vez, com um retorno no corpo. Observamos, aliás, que esse


retorno se opera fora do espaço corporal antes contido pelo colete
(os quatro membros) .

113
É interessante observar, neste caso, essa mobilidade do
gozo que passa do corpo aparelhado, com seu cortejo de sofrimen­
to, à interpretação delirante do olhar do Outro e, em seguida, retor­
na no corpo pelo viés da hipocondria.
Murielle se faz um corpo doente, em espelho com o corpo
doente do pai, em uma identificação imediata e não dialetizada. É
por isso que não se pode confundir hipocondria com conversão
histérica. Nesta, é o inconsciente que fala por meio do corpo, com
toda a dialética simbólica da constituição do sintoma.

IV. CONVERS Ã O HIST É RICA E FENÔMENO PSICOSSOM Á TICO

A distinção entre sintoma de conversão histérica e fenôme­


no psicossomático (FPS) não coloca, a priori, nenhuma dificuldade.
A conversão histérica é a prova viva de que o corpo não se
confunde com a anatomia e que sua imersão na linguagem o mor­
tifica e o erotiza, ao mesmo tempo.
O FPS prova, ao contrário, que um curto-circuito do sim­
bólico, uma evasiva quanto à estrutura da linguagem, não é sem
consequência anatômica, sem consequência para a realidade do
corpo.
Essa oposição demanda ser relativizada, contudo, conside­
rando que nos dois casos o sujeito está concernido, tanto no nível
do seu desejo quanto do seu ser de gozo.

A. A conversão freudiana

Vejamos primeiramente como Freud concebeu a conver­


são histérica. Teorizando, em 1 896, a conversão histérica como o
efeito de um processo de defesa diante de um excedente sexual
incompatível, Freud a distinguiu da "conversão" linguageira do
corpo que anima todo ser falante. A conversão histérica não é o

1 14
resultado de um efeito de linguagem, de uma sugestão hipnótica,
mas um modo de resposta complexa do sujeito a um resto não tra­
duzido do sexual, em conexão com uma representação e um afeto.
A defesa, via recalque, tenta transpor e fixar esse resto no corpo de
uma forma figurada. Esse "salto do psiquismo à inervação somática'�
como Freud o designa em seu prefácio ao 'Homem dos ratos'� esca­
pou à sua conceitualização enquanto ele não esclareceu o papel da
pulsão. Em relação a isso, o artigo de 1 91 0, ''A concepção psicana­
litica da perturbação psicogênica da visão", é decisivo. Freud
demonstra nesse texto como a conversão histérica testemunha a
interferência da significação da pulsão (die Bedeutung der Triebe) na
vida da representação (Vorstellungsleben).
A conversão apenas em aparência escapa à exigência pul­
sional. Ela é, na realidade, a colocação em ato de uma satisfação pul­
sional clandestina que se opera apesar dos ideais do eu. Isso está
ligado ao fracasso do recalcamento que, longe de refrear a ativida­
de pulsional, somente a favorece, repelindo-a cada vez mais para o
inconsciente, onde encontra todas as condições para persistir e pro­
liferar.
O reforço da pulsão ligado ao fracasso do recalque prefi­
gura o paradoxo do supereu. Em relação a isso, o caso da conver­
são histérica de órgãos é significativo. Quálquer órgão dos sentidos
tem uma dupla função, a de manter a vida e a de desempenhar um
papel erógeno; o órgão serve às pulsões do eu e às pulsões sexuais.
Ora, "não éfácil servir a dois senhores ao mesmo tempo ", nos diz Freud.
Quanto mais a erogeneidade do órgão é reprimida, mais sua ativi­
dade pulsional cresce no inconsciente. Se um vqyeur histérico fica
cego de tanto olhar, sua cegueira demonstra um gozo escópico exa­
cerbado.
No fim de seu artigo, Freud se interroga sobre as conse­
quências desse gozo do órgão. Considera a possibilidade de uma
alteração orgânica decorrente da ''intensificação da significação erógena"
(der gesteigerten erogenen BedeutuniJ . Tais sintomas, que ele qualifica de

115
"neuróticos", são desconhecidos tanto porque não são diretamente
acessíveis à psicanálise quanto porque os clínicos se enganam ao
deixar de lado o ponto de vista da sexualidade.

B. Superpulsão

Freud emite a hipótese segundo a qual certas condições


particulares deveriam estar presentes, de início, para que houvesse
"um exagero do papel erógeno do órgão ". A tradução para o português,
"exagero do papel erógeno do órgão", não traduz fielmente o
termo freudiano Übertreibung, literalmente "superpulsão, superativi­
dade pulsional". Esse Übertreibung do órgão é ainda o que Freud
chama somatisches Entgegenkommen do órgão, literalmente "encontro
somático do órgão", que é traduzido geralmente por "complacên­
cia somática do órgão".
Colocar o Überlreibung como um denominador comum
constitui, certamente, um avanço, mas não explica por que um sujei­
to fará uma conversão histérica e não uma doença orgânica.
Ao situar o FPS em relação à estrutura de linguagem,
Lacan aparta um novo esclarecimento concernente à clínica dife­
rencial dessas duas manifestações somáticas.
Afirmando a significação do falo como a ação e a paixão
do significante no corpo, assim mortificado em seu gozo, Lacan nos
permite situar a conversão histérica no registro de um gozo fálico
fora do corpo. Isso é claro tanto nas manifestações deficitárias
como nas pantomimas fantasmáticas que as conversões histéricas
evidenciam.
O FPS, por outro lado, escapa à regulação fálica, muito
embora não seja sem relação com a ação do significante. É preciso
conceber para isso uma causalidade que participe da linguagem,
mas sem ter a sua estrutura. Lacan emite a hipótese de uma indu­
ção significante, um S1, ou seu equivalente, na forma de uma solda­
gero do intervalo entre dois significantes na holófrase. Esse fenô-

1 16
meno de linguagem não permite o livre jogo da afânise do sujeito.
Tudo acontece como se, tal como um selo, uma espécie de escrita
ilegível viesse se inscrever no corpo como um tipo de enquadra­
mento do nome próprio, no lugar mesmo do que deveria ter sido
um sintoma.
Como conceber o Übertreibung em questão se ele não é
regido pelo operador fálico e se ele não procede de um mais-de­
gozar que implicaria, ao contrário, a oposição de dois significantes?
O sujeito é responsável por esse tipo de gozo? Baseados em quê
estamos autorizados, se não for para deslocar, pelo menos para tra­
zer à baila, o gozo em jogo nesses FPS pelo efeito da fala?
Tudo depende da estrutura clínica. Um FPS não tem a
mesma função na neurose e na psicose. Na neurose, o FPS pode
fazer signo de um déficit momentâneo da defesa do sujeito no
encontro com um acontecimento, uma lembrança insuportável, um
traumatismo ou um segredo até então intransmissível, por exemplo.
Na psicose, o FPS, em sua função de enquadramento do nome pró­
prio, vem circunscrever, no lugar do corpo, um espaço delimitado e
separado, permitindo a um sujeito se fazer um nome sem passar
pelo Nome-do-Pai.
Quando não se trata de psicose, mas de neurose, pode-se
considerar a escrita psicossomática como o índice de um modo de
gozo ilícito que escapa à castração e que se relaciona, mais frequen­
temente, com um traço de perversão que vem desmenti-la. Somente
a invenção do inconsciente, via transferência, tem chance de des­
compactar a soldagem significante e revelar ao sujeito a fixação de
gozo que ele se recusava a ceder, esse excesso de gozo, Übertreibung,
de cuja responsabilidade ele se esquiva por meio de seu estatuto de
doente.
Cabe ao desejo do analista extrair o sujeito desse querer
gozar em que seu corpo o mantém fascinado, em uma trapaça sem
nome, mesmo que esta tome o nome de uma doença.

117
Notas

* Relatores: Carole Dewambrechies-La Sagna e Jean-Pierre Deffieux.


1 MILLER, J.-A. (1986-1 987) Los signos de!goce. Buenos Aires: Paidós, 1 998.
2 MILLER J.-A. (1987) "Lacan com Joyce". In: Correio n.65. São Paulo: Escola
Brasileira de Psicanálise, 201 O, p.33.
3 FREUD, S. (1 9 1 6-1 917) "O Sentido dos Sintomas". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.XVI, Rio de Janeiro:
Imago, 1 976, p.305-322.
4 De fato, nu!fe, nesse contexto, poderia ser traduzido de modo mais preciso por
"uma boba". Entretanto, considerando que essa zombaria evidencia, para Sylvie,
uma ausência de corpo, a expressão "zero à esquerda", por designar um "nada",
pareceu-nos mais interessante.
5 LACAN, J. (1 975) "Joyce, o sintoma". In: O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
6 LACAN, ]. Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent, inédito.
7 BLEULER, E. Démentia Praecox ou groupe des schizophrénies, Paris, 1 993,
p.559-561.
8 FREUD, S.(1 9 1 5) "O Inconsciente". In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud (Edição Standard Brasileira), v.XIV, Rio de Janeiro: Imago, 197 4, p.207-224.
9 MILLER, J.-A. en colaboración con Éric LAURENT (1 996-1 997) El Otro que
no existey sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2006.

118
Antennes Cliniques de Chauny-Prémontré e de Rouen*

FENÔMENOS DE CORPO E ESTRUTURAS

O presente relatório tomou como ponto de partida "a


neoconversão" anunciada como "os fenômenos de corpo não-his­
téricos, não-interpretáveis ao modo freudiano".
Comecemos com alguns esclarecimentos. Para os fenômenos
de corpo remetemos à etimologia: em grego, "fenômeno" é aquilo
que aparece. O seu sentido ampliado designa "aquilo que é sur­
preendente", podendo ser tomado como o que faz sintoma para um
sujeito. Trata-se, portanto, daqueles fenômenos que aparecem
tendo como suporte o corpo e que fazem sintoma para o sujeito
sem que haja aí uma lesão. Este último esclarecimento nos permite
distinguir esses fenômenos de corpo dos fenômenos ditos psicos­
somáticos.

I. COM FREUD

Os termos neoconversão e não-histérico exigem outras obser­


vações. Se deles separarmos os prefixos, obteremos conversão e his­
térico, termos da elaboração freudiana. Podemos extrair da contri­
buição de Éric Blumel os seguintes pontos: Ele lembrava esta
frase de Freud: "Tratamento psíquico significa (... ): tratamento -
de perturbações psíquicas ou corporais - com a ajuda de meios
que agem primeira e imediatamente na alma do homem. Tal meio
é, antes de tudo, a palavra, e as palavras são efetivamente a ferra-

119
menta essencial do tratamento psíquico"1 • Tese: as palavras têm
uma ação nas perturbações psíquicas ou corporais. Corolário:
essas perturbações têm uma estrutura que deve ser análoga a das
palavras. Tese e corolário fixam o âmbito do que está em jogo na
psicanálise: a articulação da perturbação e da palavra, do sintoma
e do significante. E o primeiro nome que a psicanálise dá a essa
articulação é conversão.
Ainda citando Freud: ''A histeria se comporta em suas
paralisias e outras manifestações como se a anatomia não existisse
(...). Toma os órgãos no sentido vulgar e popular do nome que car­
regam; a perna é a perna até a inserção do quadril"2• A perturbação
se produz quando o nome, a representação de um órgão, é investi­
da de um valor afetivo muito grande. O que confere um valor afe­
tivo por demais intenso a uma representação é o acontecimento
traumático. Mas, a perturbação não se reduz a ser apenas a cicatriz
de um ferimento, a marca de sua causa. A perturbação tem com
causa uma relação simbólica, isto é, uma relação que repousa sobre
o princípio da substituição, substituição arbitrária. Essa indicação é
preciosa; nela percebemos a entrada em cena da função significan­
te. É exatamente porque há uma primeira substituição, que consis­
te em substituir o braço anatômico real pelo significante braço, que,
em seguida, outras substituições significantes são possíveis.
Mas, não existe somente a vertente "significante". Da
mesma forma que a angústia resulta de uma transformação da ten­
são sexual não satisfeita, a histeria resulta "de uma espécie de con­
versão de uma excitação psíquica que toma uma falsa via levando a
reações somáticas"3• Assim, Freud propõe o nome de conversão
na histeria para designar a "soma de excitação (...) remetida ao cor­
poral"4. Para fazer um sintoma histérico é preciso, portanto, o
concurso de uma representação que sofre o recalque e de um
afeto separado dessa representação e transformado em manifesta­
ção corporal. Esses dois registros são reunidos nos Estudos sobre a
histeria pela fórmula: "Conversão simbólica"5•

1 20
Contudo, o sintoma só é conversão na histeria? Ou pode­
se abordar a clínica com a fórmula: se conversão, logo histeria?
É surpreendente constatar que as referências à conversão,
assim como à "complacência somática", tenham aparentemente
desaparecido dos trabalhos de Freud posteriores a 1 9 1 O. Tal obser­
vação deve ser completada por uma nota que figura em uma carta
de 1 91 7, endereçada a Groddeck: "O ato inconsciente exerce nos
processos somáticos uma ação plástica intensa, que o ato conscien­
te nunca obtém"6• Parece que o mecanismo de conversão ainda per­
manece válido, mas ele não é mais considerado como traço distinti­
vo da histeria. A conversão não é mais um domínio reservado
somente à histeria; torna-se o domínio do inconsciente. Isso tem
duas consequências: por um lado, a necessidade de renunciar à
abrangência do diagnóstico diferencial da conversão, que não é mais
patognomônica da histeria; por outro lado, a estrutura da conver­
são, não sendo mais apenas a do sintoma histérico é, portanto,
capaz de dar conta da estrutura do sintoma em sua generalidade.

11. COM LACAN

Pode-se notar que no índex dos termos de Freud em ale­


mão, nos Escritos) não se encontra o termo Konvertion. "Conversão"
tampouco aparece no "índice ponderado dos principais conceitos",
realizado por Jacques-Alain Miller nesse mesmo volume. Restaria
desenvolver como se articulam histeria e conversão no texto dos
Escritos. Pode-se supor, entretanto, que Lacan tenha sido pouco elo­
quente sobre o termo conversão porque este dá nome a um proces­
so que é pouco explicável; Lacan se detém mais sobre os elementos
estruturais.
No entanto, graças à contribuição de Bernard Lecreur,
podemos abordar outras incidências do termo conversão no ensino
de Lacan. Na lição do dia 23 de abril de 1 958 do Seminário

121
Formações do inconsciente, Lacan diz: "No sintoma, e é isso o que quer
dizer conversão, o desejo é idêntico à manifestação somática, assim
como o direito está para o seu avesso". Nesta mesma lição, Lacan
estuda o caso Elizabeth, transmitido por Freud, ressaltando a iden­
tidade que há entre a dor - no alto da coxa - e o desejo - pelo pai.
A dor é o desejo, a conversão o mostra.
Diferentemente de Freud, pode-se afirmar que Lacan
enfatiza a continuidade entre o psíquico e o somático. A relação que
existe entre o desejo e a manifestação somática é um continuum. Um
é o avesso do outro, ainda que um se prolongue no outro. A con­
versão é, portanto, o que identifica o desejo - considerado a partir
de sua causa, o objeto a com a inscrição corporal de uma falta -
-

a castração, tp. Mas, ao mesmo tempo em que a conversão coloca


-

a identificação de a e de - tp, ela mostra também que essa identifi­


cação é impossível; aí está sua dimensão propriamente sintomática.
Ora, para encarnar a impossibilidade de reunir o objeto a e a
castração, - tp, a conversão supõe um Outro, ele mesmo marcado
pela falta, um Outro dividido. O exemplo de Elizabeth é instrutivo
em relação a isso. Quando ela sofre com sua perna, a dor só vale
como equivalente do desejo se essa dor estiver relacionada a um
ideal: ser uma garota capaz de se colocar à altura de um pai acome­
tido por uma doença cujo destino, marcado pela impotência, não é
sem grandeza em relação ao sacrifício que ele implica.
Consequentemente, Bernard Lecreur propõe escrever a conversão
ass1m:

A.

122
A. Sobre a neoconversão

Se a observação de certos fenômenos nos leva a constatar


que a parte subjetiva da conversão (identificação do desejo com a
manifestação corporal, a = - <p) não se coloca mais sob a dependên­
cia de um Outro marcado por uma falta, mas de um Outro não-bar­
rado, então poderemos, talvez, considerar o que é a neoconversão.
Tomemos como argumento da mudança de estatuto do
Outro, certas práticas para as quais se acha valorizado um saber
"sem limites": o Outro da ciência, no caso do toxicômano, e o
Outro da mostração, um "imaginário" tendo função de agente, no
caso da anorexia. Nesses dois tipos de práticas que determinam
comportamentos e cujo estatuto de sintoma é problemático, o uso
que é feito do corpo não é mais marcado pela castração do Outro.
A neoconversão poderia logicamente se escrever:

(a = - <p)

Ressaltamos a diferença de que a passagem de A para A


modifica o conjunto. De fato, a ausência da castração no Outro não
permite mais fazer a leitura da parte subjetiva que se origina da con­
versão. Em outras palavras, é a barra de fração que separa o Outro
da linha do sujeito que se encontra tocada. A condição primeira que
torna possível essa leitura é a de reconhecer o texto como Outro.
Quando essa condição falta, o uso - no sentido do "fazer" - substi­
tui a leitura. O uso, assim considerado, não implica mais um Outro
furado, mas um Outro da imagem, ou um Outro do saber, não
suposto. O corpo, nesses casos, mostra como um sujeito lida com
seu desejo para poder gozar.

123
1. Anorexia

No curso que ministrou com Éric Laurent, O Outro que não


existe e seus comitês de ética, Jacques-Alain Miller nos convida a consi­
derar a anorexia como aquilo que mostra a estrutura do desejo.
Como consequência, acentua-se a dimensão da mostração, de
forma a situar a pulsão, não mais do lado do objeto oral, mas em
ligação com o objeto escópico. Tal mudança de perspectiva implica
a magreza como uma encarnação do falo e visa uma satisfação da
pulsão que passa pelas vias de uma imagem sem falhas, uma ima­
gem toda. O Outro é assim um olho que envelopa e dá consistên­
cia à imagem em detrimento da significação fálica.
Podemos acrescentar a essa contribuição de Bernard
Leccrur, uma observação de Marie-Claude Sureau sobre um caso
em que a anorexia como sintoma faz signo a um Outro que é obri­
gado a ver, pois não quer ouvir nada.

2. Toxicomania

O que mostra o toxicômano? Mostra que é suficiente


tomar o corpo a partir do mais-de-gozar obtido pela droga para
resolver a questão da satisfação do desejo. Essa pergunta é feita a
partir dos termos que a dimensão do uso, e até mesmo do empre­
go, supõe. O recurso a um certo fazer vem suspender a incidência
da castração. Esse fazer se apoia em uma identificação que, contra­
riamente ao sintoma, não se encontra nunca recolocada em causa
pelo gozo que ele propicia. Considerado a partir do uso - a partir
do mais-de-gozar - o corpo torna-se idêntico ao desejo.

1 24
8. Outros horizontes sobre a neoconversão

O termo "neoconversão"7 pode ser situado em relação a


uma problemática mais abrangente. Tentemos distinguir seus vários
niveis: em primeiro lugar, a clínica que o ensino de Lacan, principal­
mente à luz de suas últimas elaborações, torna possível; em seguida,
a presença da psicanálise no aqui e agora e as demandas que lhe são
encaminhadas; e, enfim, as modificações estruturais da civilização
no período atual.
Da clínica elaborada por Jacques Lacan, extraímos esque­
maticamente:
- uma abordagem do sintoma desenvolvida segundo duas
vertentes: aquela do gozo autista e aquela do Outro e suas relações
com a civilização;
- os três registros - real, simbólico e imaginário - coloca­
dos como solidários e sem supremacia do simbólico, seu enoda­
mento supletivo, configurando uma clínica borromeana amplamen­
te abordada em A conversação de Arcachon;
- uma conceitualização complexa dos gozos;
- remanejamentos na teoria das psicoses que franqueiam o
"tratamento possível" e que, levando em conta as experiências e ela­
borações dos alunos de Lacan, permitem acolher numerosas
demandas de sujeitos psicóticos.
Alguns aspectos da civilização contemporânea e suas inci­
dências para a psicanálise foram abordados por Éric Laurent e
Jacques-Alain Miller em seu curso de 1 997-1 998. Eles assinalavam
o enfraquecimento e até mesmo a queda dos ideais, paralelamente à
promoção do mais-de-gozar reacfy made, que talvez deva ser associa­
do a uma maior presença dos "fenômenos de corpo".
Mais especificamente, em relação ao nosso tema, enfatiza­
mos o deslocamento da figura de mestria do médico e os efeitos do
"progresso da ciência na relação da medicina com o corpo"8•

1 25
111. U M CASO COMO FORMA DE IlUSTRAÇ Ã O

Um homem que se aproximava dos cinquenta anos foi


aconselhado a consultar um psicanalista em razão de um sintoma
que persistia há cerca de vinte anos. Trata-se de um enrijecimento
dos músculos mandibulares e de um adormecimento do braço
esquerdo. O sintoma apareceu no momento do despertar difícil de
uma anestesia geral em razão de uma cirurgia. Nesse período, o
paciente submeteu-se a inúmeros exames médicos e tratamentos
farmacológicos, sem maiores alívios.
As entrevistas analíticas permitiram desdobramentos signifi­
cantes: ''Ali onde estava um gozo autístico, a análise fez advir os efei­
tos de significado", como mostra Jacques-Alain Miller no prefácio de
jqyce com Lacan. Nesse sujeito, o sintoma se conectava a um enxame de
significantes referidos à morte e ao cadáver. O sintoma desaparecia.
Esses significantes veiculavam um gozo ttJ que se dissociou do gozo
-

petrificado no corpo? Pode-se, por causa disso, considerar que esse


fenômeno de corpo é interpretável ao modo freudiano?
Resta decifrar o que conduziu a conversão a se localizar
nesses lugares do corpo, ainda mais porque o sintoma retoma e
varia em função dos acontecimentos da vida do sujeito e dos avata­
res da transferência. O paciente evoca os restos de líquido anestési­
co que seriam ainda atuantes - "essa porcaria" que, como ele suge­
re, lhe teria sido administrada em quantidade excessiva. Várias figu­
ras de um Outro comilão do gozo9 aparecem em suas falas, sem
poupar a transferência.
A partir dos elementos apresentados, parece difícil decidir
entre a alternativa da análise do sintoma até o real da pulsão e o tra­
tamento pelo sintoma, conforme resumido por Jean-Louis Gault.
Deparamo-nos assim com uma vasta problemática, a dos casos em
que a fronteira neurose-psicose não é fácil de ser estabelecida, ainda
mais que o dispositivo analítico parece embaralhar, às vezes, esta
grande divisão de águas.

1 26
Notas

*
Relator: José-Luis Garcia Castellano.
1 FREUD, S. (1 905) "Tratamento Psíquico (ou Anímico)". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.VII, Rio de Janeiro:
Imago, 1 989, p.276.
2 FREUD, S. (1 888-1 893) "Algumas Considerações para um Estudo
Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.I, Rio de Janeiro: Imago,
1 990, p.240.
3 FREUD, S. (1 894) "Rascunho E: Como se origina a angústia". In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.I, Rio de
Janeiro: Imago, 1 990, p.276.
4 FREUD, S. (1 894) "As neuropsicoses de defesa". In: Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.III, Rio de Janeiro: Imago, 1 987,
p.56.
5 FREUD, S. (1 893-1 895) "Estudos sobre a Histeria". In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.II, Rio de Janeiro:
Imago, 1 988, p. 1 85.
6 FREUD, S. Correspondance 1873- 1939.Paris: Gallimard, 1 979, p.345.
7 Não seria mais adequado no lugar do termo neoconversão falar de sintoma
corporal?
8 LACAN, ]. "O lugar da psicanálise na medicina". In: Opção Lacaniana n.32.
Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia,
dez/2001 , p. l l .
9 MILLER, J.-A. (1 993) "Clínica irônica". In: Matemas I. Rio de Janeiro: Zorge
Zahar Editor, 1 996, p. 1 97.

1 27
Antenne Clinique de Nantes e Seção Clínica de Rennes*

FENÔMENOS CORPORAIS EM PACIENTES MASCULINOS

A Seção Clínica de Rennes e a Antenne Clinique de Nantes


escolheram expor quatro casos de homens, nos quais o esforço para
se defenderem do real levaram os sujeitos a eleger uma parte do
corpo como dolorosa e a elevar essa dor ao estatuto de um sintoma
endereçado a um analista. Embora se trate de fenômenos puramen­
te ligados ao efeito do significante no corpo como vivo, essas "neo­
conversões" não pertencem, em nossa opinião, ao registro da estru­
tura histérica. Apresentaremos estes casos em sequência e propore­
mos, depois, uma perspectiva dessas vinhetas clínicas como tentati­
vas para construir, graças à ética do dizer, modos de enodamentos
psicóticos que tomam apoio em fenômenos localizados no corpo.

I. O HOMEM DOS CEM MIL CABELOS1

No ano passado, em A conversação em Arcachon, foi o cílio;


este ano, será o cabelo. O lugar dos fâneros em nossa clínica encon­
tra sua justificativa na interpretação do falo, dada por Lacan. Ele
colocou esse elemento decrépito na série dos fâneros, como
Jacques-Alain Miller sublinhara. O falo é um fânero e reciproca­
mente o fânero - o cílio, o cabelo - é suscetível de tomar a signifi­
cação do falo.
Um homem se queixa de calvície. Encaminhara-se ao ana­
lista em um momento de grande desamparo subjetivo. No decorrer

1 29
dos dez últimos anos, seu estado se deteriorara progressivamente.
Os obstáculos surgiram desde o início de sua vida profissional de
engenheiro. Entediava-se e descobrira que, fundamentalmente, não
era feito para essa profissão. Uma exigência subjetiva à qual, confor­
me lhe parecia, deveria corresponder, impunha-se a ele: era músico
e devia responder a esse chamado. Abandonou, portanto, uma car­
reira bem definida como técnico, em troca de uma existência mais
precária como artista.
No momento da consulta, aos trinta e cinco anos, leva
uma vida miserável. Corre atrás de míseros cachês, cada vez mais
raros, e é reduzido a viver do RMF. Entretanto, o que motiva a
grande desordem desse sujeito é de uma outra natureza. Ele amou
uma mulher com a qual teve um relacionamento durante dois anos.
No início, ela estava ligada a um outro homem e essa situação se
manteve durante algum tempo, período em que ele se tornara o
amante dessa mulher. Nossos três protagonistas faziam parte de
uma mesma pequena formação orquestral na qual a mulher ocupa­
va o posto de cantora. Enquanto houve lugar para o segundo
homem na vida dessa mulher, nosso paciente pôde gozar disso sem
maiores problemas. Um dia, como ele mesmo desejara, tornou-se o
seu único eleito. Escolheu viver com ela, com toda legitimidade;
então, as primeiras perturbações apareceram. Primeiramente, uma
ansiedade difusa; depois um abatimento progressivo e, subitamen­
te, começou a perder cabelo aos tufos. Como esse estado persistia
e agravava-se, acabou concluindo que a causa disso era essa mulher.
Fazia a seguinte interpretação: a mulher que ele amava e desejava,
com a qual tinha prazer de viver e que lhe correspondia, represen­
tava para ele um perigo. Decidiu abandoná-la e consultar um médi­
co. Pôde constatar imediatamente uma melhora de seu estado e a
interrupção da queda de cabelos. Entretanto, ficou marcado por
essa experiência e desejava encontrar um analista.
No início, não falara da calvície. Mencionou, na ocasião,
um episódio de queda de cabelos que ocorreu no decorrer da aná-

1 30
lise. Ele levava a existência aleatória de um artista intermitente e
juntara-se a uma pequena orquestra. Teve então que viver um con­
flito interno doloroso. Um dos músicos o aterrorizara querendo
fazê-lo beber. Ele deveria ter abandonado essas más companhias;
entretanto, escolhera permanecer no grupo por amor à música.
Essa decisão, que ia contra seu desejo profundo, deixava­
o mortificado. Constatou o efeito nefasto disso em seu corpo.
Começou de novo a perder cabelos, centenas de fios por dia.
Foi nesse momento que começou a falar sobre sua teoria
da calvície. Há algum tempo, debruçara-se sobre esse fenômeno e
dedicara-se a encontrar uma explicação. Conduzia essa reflexão
com método e escrevia regularmente, em um caderno, o fruto de
suas cogitações ou o resultado de suas pesquisas.
Ele tem uma concepção unívoca do distúrbio: perde o
cabelo quando não é mais ele mesmo, isto é, quando faz algo que
não está em conformidade com seu verdadeiro desejo. Para usar
uma de suas fórmulas, é quando não está "inteiro" que os cabelos
caem.
Lembra-se que ele mesmo não se dera conta disso; foram
os amigos que o fizeram notar. Constataram a presença de cabelo
em abundância no box do chuveiro depois de sua passagem por ele.
Então, compararam fotos e notaram uma calvície nascente.
Consultou um acupunturista que lhe explicara o mecanismo. O
cabelo morre, mas só cai depois de três meses. Notara que as coi­
sas se passavam diferentemente em seu caso. Perdia os cabelos ins­
tantaneamente. Quando não fazia o que correspondia a seus dese­
jos, quando obedecia ao desejo dos outros, ou a convenções, ele
sentia o efeito disso no nível dos cabelos.
Conhecia, claro, as expressões "arrancar os cabelos" ou
"ficar de cabelos brancos", mas não é disso que se trata. O que
acontece com ele se situa no nível do próprio cabelo. Consultou
várias enciclopédias e descobriu algo interessante na anatomia do
sistema piloso. Notou que na base de cada fio de cabelo há um mús-

131
culo eretor, cuja contração faz eriçar o cabelo. Em seu caderno,
reproduziu o esquema que mostra como o cabelo se ergue quando
o músculo se contrai. Acrescentou que um adulto possui de cem a
cento e cinquenta mil fios de cabelo e, portanto, a mesma quantida­
de de músculos eretores no crânio.
Quando todos esses músculos se contraem, os fios de
cabelo se levantam na cabeça. Era o que ele sentia. Um grande arre­
pio percorria a superfície de seu crânio de frente para trás e perdia
seus cabelos. Explicava: "É o que acontecia quando eu nãofazia o que cor­
respondia ao que era realmente eu} e ao que era meu caminho de vida n.
Leu que existia a expressão "arrepiar os cabelos", reação
provocada pelo medo, que correspondia exatamente ao que ele sen­
tia. Há ainda uma outra expressão por ele anotada: "à tous crins'3•
Por exemplo, um "homme à tous crins" ("homem a todo vapor") é um
homem inteiro. Quando não queria se afastar de seu caminho de
vida, era para ficar inteiro. Inversamente, quando perdia cabelos,
não estava inteiro, isso porque fazia algo que não queria realmente.
Certamente, quando o cabelo se levanta, ele sai ligeiramen­
te de seu lugar, mas não cai. Para que ele caia, é preciso que a ação
se repita. Aqui, voltaram-lhe seus conhecimentos de mecânica. Não
se consegue de uma só vez desatarraxar um parafuso fortemente
apertado. Para conseguir isso é preferível proceder por pequenos
esforços sucessivos com uma chave de fendas. Foi o que aconteceu
no nível do cabelo. A repetição das contrações acaba fazendo com
que caiam. A queda dos cabelos se produz quando os músculos ere­
tores são excitados de maneira prolongada.
Ele verificou essa hipótese. Já lhe aconteceu de sentir seus
cabelos se erguerem na cabeça de forma intensa, mas pontual. Em
seguida dessa situação, que durou só um instante, ele não perdeu
cabelo. Por outro lado, em circunstâncias em que se deixara levar
contra sua vontade - como na orquestra -, tivera a sensação de
cabelos eriçados na cabeça durante várias semanas. Essa grande ten­
são era dolorosa; à noite, o couro cabeludo lhe queimava e percebia

1 32
que os músculos eretores ficavam paralisados. Então, os cabelos
caíam aos tufos. Desde que decidira abandonar os músicos com os
quais tocava a contragosto, parou de perder cabelos. Não tinha mais
essa sensação de eriçamento no vértice do crânio. Sentia-se nova­
mente inteiro.
Esse sujeito sintomatiza o real ao seu modo. Responde ao
terror que experimenta diante do enigma do desejo do Outro, e sua
vontade de gozo, dando corpo a essa angústia. Aparelha-se com um
sistema piloso suportado por cem mil músculos eretores, para loca­
lizar, na superfície do crânio, o arrepio que então o invade.
Elaborou assim o complexo do cabelo: com seus cabelos erguidos
sobre a cabeça, é o homem apavorado diante do abismo da foraclu­
são da significação fálica. O órgão piloso se ergue, então, como um
ponto de detenção (point d'arrê�, e torna-se o gnomon que lhe desig­
na a toda hora o ponto de verdade de seu desejo.

11. O HOMEM DOS POLEGARES QUE ESTALAM4

Há dezoito anos, M. vem me consultar quando se encon­


tra "entre duas mulheres". Queixa-se da primeira quando a separa­
ção se mostra provável, me deixa assim que recruta a segunda, e vai
viver na casa desta última alguns dias mais tarde.
Muito depressivo, transpirando de ansiedade, considera-se,
toda vez, "colocado para fora" pela mulher na qual acaba de bater.
Deleita-se ao indexar com um vocabulário injurioso seus
caprichos, seus modos de gozo, sexuais, financeiros, seu modo de
apropriação do bebê que fez nelas. Procura provocar divisão e
angústia nessas mulheres.
Entre duas mulheres, vive na casa de seus pais; relaciona­
se com sua mãe da mesma maneira.
Quando da primeira entrevista, evoca seu medo de que, no
final do ato sexual, seu pênis fique na vagina de sua parceira.

1 33
No final de cinco anos, o quadro inicial se modifica: muito
angustiado, queixa-se de estalos no polegar da mão direita. Diz: "É
como uma mutilação, poderia me conformar se me dissessem que é de nascença ";
e explica todas as suas dificuldades dessa forma: ''É meu dedo que me
angustia", concluindo: "Não posso viver com uma mulhe!j é complexo
demais".
O desencadeamento do sintoma ocorreu da seguinte
maneira: invocando uma dor no joelho, M. recusa, um dia, ter rela­
ções sexuais com sua companheira, que exprime sua grande decep­
ção; de forma súbita, ele desfere-lhe um violento soco nas costas.
No dia seguinte, sobrevém seu sintoma.
Cinco anos mais tarde, após o rompimento com essa
mulher, o quadro apresenta um aspecto diferente: uma queixa sem
limites satura completamente as sessões. M. lista diferentes tipos de
estalos de seu polegar e enumera sua combinação com certas ações:
cortar a carne, acender um cigarro, lavar-se, assoar-se, pentear-se,
tocar a braguilha, escrever e, principalmente, assinar. Desenvolve,
então, uma prática que só encontra seu limite no esgotamento, quer
se trate, por exemplo, de ascender um isqueiro até que se esvazie de
todo gás ou de preencher páginas inteiras com assinaturas. Uma
sequência se impõe: estalo inaugural profundo e explosivo; sensa­
ção intolerável de que o polegar cai no vazio; finalmente, prática de
"verificação" até que os estalos secundários criados pelas flexões
sob a superfície da pele parem. "Vão cortá-lo '� exclama; "mas, e então,
o outro?". Notemos aqui o efeito de bilateralização.
Como pano de fundo, há queixas que dizem respeito a sua
vestimenta fálica: rugas em volta dos olhos, queda de cabelos, cor­
pulência, etc. Teme não poder mais seduzir.
Uma série de fenômenos de corpo pôde se construir:
estrabismo divergente no momento de seu primeiro relacionamen­
to; dores resistentes no joelho direito que se tornam bilaterais na
véspera de um exame exploratório, o que faz com que ele diga: "é
psicológico '�· rigidez da nuca e das costas. Cada sintoma apoia-se em

1 34
uma "sugestão": fala brutal, tapa ofensivo, pequeno choque. Na clí­
nica, uma perfusão de antidepressivos não funciona: "meu braço vai
apodrecer, vai serpreciso amputá-lo ".
Encontra em seus pais explicações para sua tendência em
bater nas mulheres: "Dê o fora!, dizia minha mãe para meu pai; eu repro­
duzo isso ". "Bato porque meu pai deveria ter lhe dado um tapa para fazê-la
parar. Ela o rebaixava e ameaçava ir embora". A mãe de M. é apresenta­
da como uma personagem autoritária e infiel, que rejeita e depois
quer de volta, como todas essas mulheres das quais ele se separou;
o pai é apresentado como impotente e deprimido: "É a minha vin-
gança, nao quero ser corno manso ".
-

Sua adolescência foi marcada por um acontecimento:


fora surpreendido por sua mãe com um terço enrolado em volta
do pênis. Ela lhe disse: "Se você continuarfazendo isso, vai ficar doente ".
Na noite seguinte, ocorreram poluções noturnas acompanhadas
por rituais obsessivos e angústias muito vivas. Desapareceram aos
vinte e um anos com a primeira relação sexual e a retomada da
masturbação.
"É psicológico, doutor? Ai, ai, ai!". Esse enunciado em forma
de questão é repetido sem cessar pelo paciente, seja durante as ses­
sões, seja ao telefone. É conveniente responder a isso com um "cer­
tamente!'� para evitar sua reiteração imediata. Nenhuma vacilação,
nenhum apelo ao sentido.
A temática fálica apresenta um caráter não dialético, não
correlato à função paterna. Em dezoito anos de encontros, as
associações foram raríssimas; nada de sonhos, nem de lapsos, nem
de esquecimentos. Nenhuma perturbação de linguagem.
Nenhuma teoria delirante. Um eixo imaginário preservado permi­
tiu-lhe trabalhar e suportar uma relação terapêutica de preferência
amigável. Vem, entre duas mulheres, me tomar como testemunha
de seus gozos desregrados, do poder delas para aceitá-lo ou rejei­
tá-lo, e de fenômenos de corpo intoleráveis. Fica nisso. Sustenta­
se nesse duplo imaginário que eu encarno e que ele abandona

1 35
quando o encontra em uma mulher, o que desmorona quando as
experiências sexuais com ela o confrontam com o insuportável;
nesse momento, a violência predomina. A duração sem preceden­
tes de seu último concubinato, seis anos, foi acompanhada de
fenômenos de corpo invasivos e duráveis. A ruptura dessa relação
radicalizou o quadro correlativamente a um empobrecimento de
seu laço social. Sua busca por uma mulher lhe parece desde então
ainda mais destinada ao fracasso, enquanto sua "vestimenta fálica"
se deteriora.
Não há subversão da função de órgão pela função fálica
como no sintoma de conversão histérica. O esquizofrênico tem que
lidar com <l>o; seus fenômenos de corpo, de coloração hipocondría­
ca, são acompanhados por uma grande angústia. Ele tenta localizar
o gozo em um órgão, suas práticas de verificação para cifrá-lo não
fazem realmente limite. Ele tenta construir um sintoma.
Atualmente, deve-se temer a automutilação ou o suicídio.

111. VITOR, O ENRIJECID05

Victor tem dezenove anos. É um rapaz frágil com um


andar completamente particular, de aparência robótica. Mantém-se
muito reto, a testa inclinada, a cabeça ligeiramente reclinada para o
lado. Anda de maneira sincopada, dobrando muito pouco os joe­
lhos, jogando as pernas para frente esboçando deslizamentos para
os lados dos pés ligeiramente descolados do chão.
Quando fala, olha frequentemente de viés para o interlo­
cutor. Na maior parte do tempo, não o olha de forma alguma. Sua
história patológica começa na infância, por volta de dez anos. A
família vivia há muitos anos no estrangeiro, onde o pai ocupava a
função de diretor de uma fábrica. Viviam separados da população
local, protegidos por guarda-costas que acompanhavam o jovem
Victor e sua irmã à escola.

136
Victor, totalmente isolado de seus colegas de classe e
quase mudo em casa, manifestava-se por meio de crises de violên­
cia destruidora dirigida aos objetos de seu quarto. Uma recusa obs­
tinada em continuar a frequentar a escola acarretou a decisão do
retorno da família para a França, onde retomou a escolaridade.
Seus estudos secundários ocorrem, então, com resultados
bastante bons, contrastando com seu isolamento persistente. Não
fez amigos. Falava pouco em casa e ainda menos no colégio.
Psiquiatras são consultados repetidas vezes. Seus pais se
opõem a que tome remédios. Por volta de quatorze anos e de novo
aos dezoito, queixa-se de ser objeto de zombarias da parte de seus
colegas do colégio.
Repete o terceiro ano do ensino médio, sua escolaridade
tendo sido interrompida repetidas vezes por sua recusa em ir às
aulas. As ideias de perseguição concernindo a seus colegas de colé­
gio não parecem ser organizadas em um delírio sistematizado:
pensa que todos zombam dele.
Um tratamento de curta duração é então realizado com
um terapeuta behaviorista que tenta reeducar os distúrbios da mar­
cha; depois, começa uma terapia familiar reunindo Victor, seus pais
e sua irmã mais velha. Os sentimentos de perseguição de Victor se

amenizam, com a paranoia de seu pai ocupando o primeiro plano


das sessões. Victor, tomando cada vez mais a palavra para participar
das críticas ao comportamento de seu pai, é então encaminhado a
uma psicanalista. Espera das entrevistas um apaziguamento de suas
dificuldades relacionais. Explica que tem, de fato, demasiada ten­
dência a pensar que seus colegas zombam dele, "ao passo que talvez se
trate de uma simples brincadeira ".
Durante suas primeiras sessões, dedica-se a fazer um resu­
mo mecânico de suas atividades dos dias anteriores, ressaltando
seus bons resultados escolares e suas preocupações quando suas
notas são ruins. Insiste sobre suas performances relacionais. Quer
mostrar os progressos de sua capacidade em fazer trocas com seu

1 37
próximo: refeição feita em comum no restaurante universitário, tro­
cas de brincadeiras, exposições orais no anfiteatro, trabalhos em
grupo. Tenta fazer amigos. Trata-se sempre de amigos de seu sexo.
Victor não fala com as garotas e nunca evoca sua existência.
O computador ocupa todo seu lazer. Aparelhagem ade­
quada para evitar o uso da fala, a internet lhe permite enviar, ao
outro lado do mundo, mensagens das quais só a comunicação o fas­
cina, pois o conteúdo parece lhe ser indiferente.
Evoca muito pouco seus sentimentos, exceto sua raiva em
relação a seu pai, que "se arrasta pela casa em vez deprocurar trabalho} que
amola todo mundo com sua perseguição que é insuportável". De fato, o pai
}
pediu demissão de seu trabalho no momento de um conflito com a
direção geral de sua empresa, durante o qual parece ter se mostra­
do muito rígido, tornando a ruptura irremediável. Acredita ser,
desde então, perseguido, vigiado, seguido e até mesmo ameaçado
por capangas dessa empresa. Victor se gaba de lhe dizer tudo o que
pensa e de apoiar sua mãe quando o casal briga. "É um vagabundo n.
O desemprego do pai e suas reações depressivas transformaram o
equilíbrio familiar e o destituíram de sua posição de tirano. Uma
crise, durante as férias no campo, deixa Victor muito impressiona­
do: o pai, acreditando que a casa estivesse cercada e a família em
perigo, tentou proibir qualquer saída de casa durante vários dias. '54
perseguição é a doença dafamília} mas eu estou tentando me corrigir}}.
Durante várias semanas, Victor teve, repetidas vezes, aces­
sos de raiva durante a refeição no restaurante universitário: não
aceita as brincadeiras dos colegas e derruba alguns objetos.
Uma queixa - teve um problema nas pernas depois de um
longo passeio em família - permite que eu me informe sobre suas
dificuldades para andar. Ele me tranquiliza: seu terapeuta (behavio­
rista) o ajudara muito mandando-o fazer exercícios, "voltas em torno
do hospital obrigando-se a dobrar osjoelhos}}. Antes, andava "com as pernas
completamente duras}}. De fato, ele as dobra, nesse momento, muito
ligeiramente.

138
Começou a ficar assim por volta dos quatorze anos;
depois de alguns meses, seu andar suavizara-se, mas no último ano
do colegial ele havia novamente "se tornado muito duro". Fiz com
que observasse que essa dificuldade para andar ocorrera em um
momento em que estava mal; ele concordou: ((Foi quando eu me
sentia perseguido ".
Começou a sessão seguinte declarando: ((Eu andava assim
porque tinha medo que me chamassem de bicha ". Não disse mais nada
sobre isso, exceto que a ideia lhe viera sem que ninguém o tivesse
assim insultado. ((Presto muita atenção quando ando, penso nisso o tempo
todo ". Evocou novamente esse andar nas sessões seguintes, entran­
do no consultório com um andar cada vez mais flexível, depois
quase normal, mantendo, contudo, uma certa rigidez do tronco.
Foi na idade em que a puberdade transforma o corpo que
Victor apresentou esse andar de autômato. Podemos supor que, em
resposta às excitações sexuais, no lugar da significação fática - não
permitida pela ausência do enodamento edipiano de sua psicose
infantil, Po -, a rigidez do corpo tentou fazer limite à desagregação
do imaginário, ao abismo de <l>o.
Victor luta contra o empuxo-à-mulher. Teme que o
tomem por homossexual. Por intermédio dessa ereção de todo o
corpo, sustentada por uma atenção estafante, ele se endireita para se
opor à feminização.
O fato de Victor ter podido dizer algumas palavras sobre
essa feminização e que isso tenha bastado para que sua dolorosa
mostração fática cedesse, não significa que a significantização faça
barragem à invasão de gozo; isso significa que, se uma estabilização
provisória tornou-se possível atualmente, foi porque o pai, até
então presente e absoluto demais, foi destituído de sua autoridade
pelo desemprego e pela evidência de seu delírio. É isso que permi­
te a Victor ocupar o lugar do único indivíduo cujo espírito é racio­
nal e, a esse título, beneficiar a família com seus conselhos pautados
na lógica, situando-se assim mais perto de seu ideal de técnico em

1 39
informática - situação fortalecida pelos estudos que empreende
nessa especialidade. Ele pode, então, renunciar a essa contração
voluntária de seus músculos e ao seu andar "viril", não sendo mais
assolado por invasões do gozo deslocalizado.

IV. O INVENTOR DO M É TOD06

Aos quarenta e oito anos, um professor de ginástica, que


exerce sua profissão com interesse e prazer, foi levado a tirar uma
longa licença por doença após um episódio de dores que se torna­
ram mais agudas desde o que ele chama de "o incidente" ou "o aci­
dente". Este incidente consistiu em uma queda, sem gravidade, no
decorrer da qual ele caiu para trás arrastando consigo um de seus
alunos, sobre o corpo do qual ele aterrissou.
Essa não é, entretanto, a razão que o levou à consulta.
Queixa-se, em primeiro lugar, ao enfermeiro que recebeu seu pedi­
do por telefone, de uma retomada importante de uma atividade oní­
rica que lhe parecia, ao mesmo tempo, preocupante e insuportável.
Tinha a ideia que seu inconsciente tinha algo a lhe dizer, mas não
conseguia saber o quê sem a ajuda de um analista.
Desta vez, decidira encaminhar-se a um analista freudiano,
resultando em sua escolha de se dirigir à Escola da Causa Freudiana.
Já fizera, de fato, uma análise de oito anos com um analista junguia­
no. Esse tratamento interrompera-se com a morte do terapeuta.
Tentara, em seguida, por dois anos, continuá-lo com uma mulher,
mas parecera-lhe que com ela esta iniciativa não poderia chegar a
nada.
Pelo primeiro terapeuta devotava uma grande admiração,
observando, apesar disso, uma certa insatisfação quanto à sua
maneira de interpretar os sonhos. Sobre os outros resultados obti­
dos pela análise, não consegui obter outras informações além da
contribuição de um bem-estar que o satisfazia.

140
Vive sozinho. Mantém relações sociais regulares com sua
irmã gêmea e seu cunhado, e sempre se deu bem com essa irmã.
Tem também um irmão dez anos mais velho, com quem tem pou­
cas oportunidades de encontro.
Não tem laço afetivo durável com uma mulher. Teve opor­
tunidades de encontrar algumas delas e de manter relações sexuais,
mas estas não lhe fazem falta; declara não ter tempo para isso.
Suas outras relações são com colegas, esportistas como
ele, em particular um casal de jovens professores com quem se dá
bem e a quem ele dá conselhos. Pratica dança com eles, e treina para
o esporte com o homem. É muito expansivo e relaciona-se facil­

mente - ultimamente com padres de sua paróquia, com os quais


discute a Bíblia -, mas suas relações são, na maior parte do tempo,
tanto superficiais quanto ocasionais.
Dentre os acontecimentos notáveis de sua vida figura o
falecimento de sua mãe, quando tinha onze anos. Diz nunca ter
feito o luto, apesar de sua terapia. O falecimento acidental recente
de seu sobrinho adolescente - o ftlho de sua irmã - também o
tocou muito. Ao ponto que fez disso o início de suas preocupações
corporais e de suas dores. Não falou disso com ninguém, pois,
nesse momento, interrompera suas entrevistas com sua terapeuta.
No momento de nosso primeiro encontro, as dores cor­
porais são imediatamente evocadas: ele me assinala de cara que
não posso apertar sua mão muito forte, pois com isso corro o
risco de lhe ocasionar dores em todos os músculos dos braços e
peitorais. Faz questão de que eu saiba disso e me lembrará disso
eventualmente.
Essas dores são sempre descritas muito precisamente nos
termos da anatomia; concernem principalmente aos músculos das
costas, dos membros ou aos músculos pélvicos. São também
nevralgias diversas ou dores articulares. O paciente consulta nume­
rosos osteopatas ou fisioterapeutas que nunca o satisfazem, mas
cujos nomes circulam nos meios do esporte.

1 41
Muito embora não acredite na origem médica dessas
dores, tem uma teoria precisa no que diz respeito a sua ocorrência.
Tem a ideia muito precisa de que essas dores se desenvolveram por
causa do fracasso de sua "pesquisa". Não está longe de pensar que
são os "sonhos" que perturbam o que ele chama de sua "obra".
Começara, de fato, desde a morte de seu analista junguia­
no, a desenvolver o que chama de um treinamento, um método, ou
ainda uma pesquisa. Tal pesquisa veio na sequência de sua "análise".
Trata-se de uma sequência de movimentos que inventou e
que pode fazer a qualquer hora do dia ou da noite - isso pode durar
de uma a duas horas e apresenta, para ele, uma virtude de alivio e
de contenção das dores.
Ora, há algum tempo, essa pesquisa não dá mais resulta­
dos e é aí que reaparecem as dores. Retoma então para a análise,
invadido por sonhos que são essencialmente pesadelos ou que com­
preendem fantasias de exibição de caráter homossexual.
Retoma a análise com a ideia de encontrar nela o que ele
chama de uma "conversão", isto é, poder produzir aí o equivalente
de suas práticas corporais a partir do saber contido em seus sonhos.
Espera poder fazer com isso a invenção certa, e não duvida de que
eu saberei me manter no lugar que ele me indicará. Comunica-me
qual deve ser a posição do analista e insiste, particularmente, no fato
de querer um analista que não hesite em infringir as regras.
Asseguro-lhe que ele veio ao lugar certo. Tratar-se-ia de um caso de
histeria? Ou de uma psicose tamponada sucessivamente por uma
prática de terapia e depois por uma invenção do sujeito destinada a
localizar o gozo sobre o corpo - apoiando-se sobre o imaginário
desse corpo e em uma simbolização escorada pelo reconhecimento
social do exercício da profissão de professor de ginástica? A segun­
da hipótese tem nossa preferência, ainda que esse homem esteja
perfeitamente integrado no tecido social.

142
Notas

*
Relatores: Roger Cassin, Jean-Louis Gault, Pierre-Gilles Guéguen, Bernard
Porcheret e François Sauvagnat.
1 Parte redigida por Jean-Louis Gault.
2 N.R.: RMI (Revenu minimum d'insertion). Trata-se de um benefício oferecido
pelo estado francês às pessoas sem recursos. Foi substituído em 2009 pelo RSA
(Revenu de solidarité active), de caráter mais amplo.
3 N.R.: ao pé da letra "a toda crina", com toda energia, a todo vapor. Podemos
observar ainda a homofonia existente entre "crinl' e o verbo "craindre" (temer).
4 Parte redigida por Bernard Porcheret.
5 Parte redigida por Roger Cassin.
6 Parte redigida por Pierre-Gilles Guéguen.

143
FENÔMENOS CORPORAIS PSICÓTICOS:
AS TRADIÇ Õ ES PSIQUI ÁTRICAS E
SUAS PROBLEMATIZAÇ Õ ES POR LACAN *

De algum modo, a questão das neoconversões é uma ques­


tão clássica, na medida em que se colocou progressivamente no fim
do século XIX para diferenciar distúrbios histéricos puros e diver­
sas somatizações ligadas a um quadro psicótico - excluímos aqui os
eventuais fenômenos psicossomáticos dos quais se sabe, no entanto,
que não são raros. A noção freudiana de conversão histérica desta­
cou-se, de um lado, a partir dos avanços neurológicos da escola de
Charcot - possibilidade de diagnosticar lesões neurológicas a partir
de sinais; por exemplo, o sinal de Babinsky, etc. - e, por outro lado, a
partir da limitação da entidade histérica exigida pela corrente kraepe­
liniana, colocando fora do jogo a noção de psicose histérica desenvol­
vida no fim do século XIX, que incluía a paranoia histérica, a demên­
cia histérica, a melancolia histérica, a histero-epilepsia, etc.

A. Hipocondria delirante mal localizada como testemunho de Po

A questão da diferenciação entre hipocondria psicótica e


sintoma histérico de conversão foi levantada, repetidas vezes, por
colegas 1• Parece útil distinguir aqui os casos de hipocondria mal
localizada, e diferenciá-los dos casos em que o órgão aparece como
um verdadeiro alvo imutável (ver rubrica seguinte: <l>o).
A hipocondria "indeterminada" - que vai de um senti­
mento de mal-estar a uma sensação dolorosa, mas sempre associa-

145
do a uma indeterminação intolerável - era considerada por um dos
maiores teóricos dos delírios crônicos, Bénédict Motel (1 850),
como o fenômeno elementar psicótico por excelência, que determi­
nava secretamente o conjunto dos distúrbios delirantes. Essa con­
cepção foi retomada como um dos dois tipos de distúrbios - afeto
de perplexidade ou hipocondria - anteriores ao aparecimento do
delírio de relação para os autores germanófonos, que tentaram deli­
mitar a paranoia a partir de mecanismos elementares mínimos - iní­
cio dos anos 1 890. Freud a evoca repetidas vezes, principalmente a
propósito de Schreber - "parece-me que a hipocondria tem a
mesma relação com a paranoia que a neurose de angústia tem com
a histeria" -, e Lacan debaterá isso com Macalpine. Essa noção é
ainda completamente familiar a alguns psiquiatras contemporâneos
- nos "pródromos" e nos "vanguardistas" da Escola de Bonn, por
exemplo. Parece razoável colocar os fenômenos corporais descritos
em relação aos efeitos catastróficos da incursão de Um-pai.

B. Dismorfofobia psicótica: <l>o

Ao contrário da rubrica anterior, constata-se nesses casos


uma focalização "precisa" em um ou vários órgãos, dado como des­
truído, morto, monstruoso, etc. Foi apenas em um segundo
momento que a dismorfofobia, termo forjado por Morselli (1 886)
- que pensava integrá-lo na série das fobias - deixou de ser consi­
derada no caso de adolescentes neurastênicos e perfeccionistas,
para ser considerada no caso de sujeitos claramente psicóticos, que
pode ser comparada, ademais, com fenômenos de negação de
órgãos. Digamos que, bastante frequentemente, o fracasso da cas­
tração simbólica se manifesta aqui de forma bruta, o que tende a
fazer considerar esse tipo de fenômeno sob o ângulo do <f>o descri­
to por Lacan e, principalmente, do empuxo-à-mulher: "Na falta de
poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher

146
que falta aos homens", o que Lacan descreveu em 1 9733 como uma
espécie de movimento de retorno: <l>o --+ A Mulher.
Toda uma série de fenômenos pode ser descrita aqui,
fenômenos em relação aos quais o problema é saber, como observa
Lacan:
- se <l>o é o efeito (em primeiro grau), no imaginário, do
apelo vão feito no simbólico à metáfora paterna;
- ou se <l>o é o produto (em segundo grau) da elisão do falo
reduzida à hiância mortífera do estádio do espelho, a fim de resol­
vê-la.
Neste último caso, tratar-se-ia (novamente) de uma solu­
ção que retomaria a simbolização primordial efetuada pela mãe
(Desejo da Mãe/sujeito).
Deve-se constatar que, longe de conceber o "empuxo-à­
mulher" como uma feminização automática, os resultados são
variados, indo do sentimento delirante de ser acusado de homosse­
xualidade a um franco "tornar-se mulher" transexualista, passando
por tentativas da ordem de uma supercompensação delirante - caso
de Otto Gross, em que a hipersexualidade "genital" apoia-se na
veneração do culto de Ishtar, e das diversas elaborações "genitais"
de Wilhelm Reich - às vezes bem tamponadas por elaborações do
tipo aparelhamento do corpo.
A segunda eventualidade descrita por Lacan - resolver a
elisão do Nome-do-Pai em posição fálica pelo <l>o - deve também,
em nossa opinião, ser compreendida como uma tentativa de suplên­
cia - "a fim de resolvê-la" - centrada na função de um órgão como
"tapa-buraco" da foraclusão.

147
C. Fenômenos corporais esquizofrênicos: R/ /S/ /1 (Real // Simbólico // Imaginário)

Uma das autonomizações mais "brutas" das dimensões


imaginária, real e simbólica é provavelmente a catatonia, com os
fenômenos motores de catalepsia, flexibilidade cerosa, impulsões
motoras, estereotipias e, quanto a eventuais proferições verbais, a
verbigeração ou salada de palavras. O diagnóstico diferencial histe­
ria/catatonia é uma questão clássica que foi objeto de um debate
em torno da síndrome de Ganser, a partir de 1 898. A fixidez dos
distúrbios, seu caráter não mobilizável, sua ocorrência segundo um
"processo", são classicamente evocados como características da
catatonia, mas os autores variam consideravelmente quanto à dura­
bilidade dos distúrbios4• Lacan dá conta disso, em 1 959, em termos
de regressão tópica ao estádio do espelho; os termos "deixar cair"
ou "largar", "abandonar" (laisser-tomber) foram também evocados.
Tais sintomas indicam que a cadeia significante praticamente não
toca o gozo. No entanto, essa ausência de enodamento "neurótico"
entre S (Simbólico) e I (Imaginário) não impede que modos parti­
culares de suplência sejam possíveis. Fenomenologicamente, isso
vai do "está tudo bom" característico da paciente descrita por Karl
Landauer5 às personalidades "as if" de Helene Deutsch, nas quais as
identificações não encontram nenhuma escora da ordem da fanta­
sia, passando pela equivalência esquizofrênica entre representações
de coisas e representações de palavras, em Freud.

D. Neoconversão e problemática RSI

Discutir a questão das neoconversões "não redutíveis pela


interpretação freudiana clássica" implica, por um lado, discutir
modos de formação sintomáticos, isto é, tentativas de solução à ine­
xistência do Outro6 da parte de sujeitos psicóticos; implica, por
outro lado, discutir sintomas que colocam em jogo o corpo.

148
Pode-se acrescentar que os modos de formação de sinto­
mas aqui considerados devem ser distinguidos do sintoma de con­
versão freudiano como "condensação", enquanto metáfora, isto é,
operação de imposição de sentido - f (S' /S) S = S (+)s - operada
pelo significante, subentendida por uma subtração de gozo ( tp).
-

De acordo com os termos de � terceira ", "o sintoma é irrupção


dessa anomalia na qual consiste o gozo fálico, na medida em que aí
se mostra e desabrocha essa falta fundamental que qualifico de não­
relação sexual". Ali onde, como escreve Lacan em RSf, diante do
embaraço que tem com o falo, o pequeno Hans inventa para si
"toda uma série de equivalentes para esse falo (...) diversamente
ostensivos", é forçoso constatar que tal recurso ao efeito de senti­
do não é possível para o sujeito psicótico. No entanto, em vez de
supor (como faz Freud) as dimensões do Real, do Simbólico e do
Imaginário enlaçadas pela "realidade psíquica"8, Lacan propôs, no
final de RSI, "pluralizar" os Nomes-do-pai: "Nomeação do imagi­
nário como inibição, nominação do real como angústia, nominação
do simbólico, flor do próprio simbólico, como sintoma."9 A etapa
seguinte, com o sinthoma, permitiu-lhe colocar a questão dos modos
pelos quais, nos sujeitos psicóticos, suplências ao Nome-do-Pai
podem estar articuladas e enlaçadas. Os casos apresentados permi­
tem colocar em série a maneira pela qual, diante do abismo de sig­
nificação que se abre, convocando aí o corpo, diferentes respostas
são tentadas.
Todos são confrontados em alguma medida a <Do, porém
com variações quanto à severidade dessa confrontação. Assim, ao
passo que o complexo do cabelo é a ocasião, para o paciente, de se
entregar a uma elaboração significante que parece ter-lhe fornecido
uma espécie de gnomon de seu desejo, ali onde seu ideal musical o
abandona, o homem dos polegares que estalam parece entregue ao
insondável de um gozo que retorna sem mediação. O inventor do
método de ginástica parece, graças a isso, tamponar muito bem as
inquietudes que seu corpo lhe causa; contudo, efeitos de significa-

1 49
ção sobrevêm - por meio de sonhos - e temperam as entrevistas.
Quanto a Victor, o enrijecido, ele consegue fazer com que seu sin­
toma de rigidez ceda frente à oferta da palavra, seja colocando-se
sob o significante ideal da "conduta sensata", seja descompletando
o pai gozador.

1 50
Notas

*
Parte redigida por François Sauvagnat.
1 DEFFIEUX, J.-P. "La conversion d'un siecle à l'autre". In: La Causefreudienne,
n.38. Revue de psychanalyse. Paris: École de la Cause freudienne, p.27.
2 FREUD, S. (1 91 1) "O Caso Schreber". In: Obras Completas, v.10, São Paulo:
Companhia das Letras, 201 0, p.13.
3 LACAN, ]. (1 973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.467.
4 A versão muito deficitária que Henri Ey dá disso ("hebefreno-catatonia") não é,
de forma alguma, objeto de um consenso.
5 LANDAUER, K. "Spontanheilung einer Katatonie", Int. Zj Ps., 1 926.
6 MILLER, J.-A. (1 997-1 998) "Equívocos sobre el Otro". In: Elpartenaire-sínto­
ma. Buenos Aires: Paidós, 2008, p.235.
7 Cf. Ornicar?, n.2, p.1 04.
8 FREUD, S. (1 924) "A perda da realidade na Neurose e na Psicose". In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.XIX, Rio de
Janeiro: Imago, 1 976, p.229.
9 Cf. Ornicar?, n.S, p.66.

151
A NEOTRANSFER Ê N C I A
Seção Clínica de Angers*

lAlÍNGUA DA TRANSFERÊNCIA NAS PSICOSES

Por que "neotransferência"? Seria o neométodo do qual fala­


va Freud para as psicoses? "É preciso desistir de tentar com os psi­
cóticos nosso método terapêutico", dizia em 1 938, "até o momen­
to em que descobrirmos, para esse tipo de doentes, um método
mais adaptado"1•
Em 1 958, Lacan estava no seguinte ponto: "Dizer o que
podemos fazer nesse terreno, seria prematuro, porque seria ir,
agora, 'além de Freud"'2• Em 1 977, Jacques-Alain Miller lançava
novamente a questão: "Quem explicará a transferência do psicó­
tico?"3.
Então, por que "neo"? O que há de novo em 1 998?
Certamente, a questão não é mais essa de recuar diante da
psicose. Depois das escansões das Jornadas da Escola, em 1 983 e
1 987, e do Encontro Internacional de Buenos Aires, em 1 988,
alguns efeitos da prática com as psicoses foram publicados em Le
conciliabule d'Angers, e uma nova clínica, uma clínica continuísta das
"neopsicoses", em A Conversação de Arcachon.
É preciso entender que a clínica das neopsicoses criou
uma "neoposição" do analista? Ou foi a neoposição do analista que
criou uma "neotransferência" nas psicoses?
Partamos do princípio de que a oferta dá forma à deman­
da, e que a oferta do psicanalista ao psicótico - nova ou não -
pode instituir uma nova forma de demanda e, portanto, uma neo­
transferência.

1 55
I. HIPÓTESE DE LALÍNGUA DA TRANSFERÊNCIA

Façamos a seguinte hipótese: a criação e o uso de uma


"lalíngua da transferência" como neotransferência nas psicoses.
Tal hipótese parte da constatação de que o par s'!}eito
suposto saber - transferência funcionaria de outra maneira nas psico­
ses. Lacan explicita, de fato, em seu Seminário Mais, ainda: "Se
enunciei que, a transferência, é o sujeito suposto saber que a moti­
va, isto não é senão aplicação particular, especificada, do que está
aí por experiência"4• Ora, o sujeito suposto saber não pode ser,
aqui, o que motiva a transferência, já que o saber já está ali, do
lado do psicótico.
Propomos, então, examinar o par lalíngua-transferência,
enunciando, à maneira de Lacan que, se é lalíngua que motiva a neo­
transferência, [isso] seria apenas aplicação particular, especificada,
da prática com as psicoses, onde lalíngua da transferência aparece
como novo artefato para tecer o laço social.
Partamos de uma sequência extraída do caso de uma psi­
cose mascarada por uma deficiência intelectual leve, que Jean
Lelievre expôs em seu Mémoiré da Seção Clínica de Angers:
'Você sabefalar em Donald?'� perguntou a garotinha. "Não!'� res­
pondeu ele. Cuspindo e babando cada vez mais, ela começou, então, a matra­
quear: "Quack! quack, quack! quack-quack-quack! '� "O que tenho que
escutar?" perguntava-se ele, desapontado. Continuando a matraquear, a crian­
ça apontava o relógio de pulso com o dedo. "São quacktro e dez" surpreendeu­
se ele ao dizer, matraqueando por sua vez. Issofez com que ela risse. A língua
Donald acabava de ser inventada.
Desde essa sessão, raros eram os momentos não consagrados à práti­
ca e à aprendizagem dessa língua. O Donald tornara-se a língua da transferên­
cia. Seu uso ultrapassava, aliás, o âmbito das sessões, invadindo a casa dafamí­
lia e a instituição onde a garotinha crescia.
Façamos aqui duas observações preliminares: por um lado,
a língua Donald aparece como uma criação linguageira da garotinha

1 56
- uma coisa muito dela, diria Michel Leiris6 - e encarna "laiíngua"
que Lacan escreve em uma única palavra; por outro lado, a apren­
dizagem e a prática da língua Donald pelo par criança-terapeuta
introduzem a necessidade de "lalíngua da transferência" para forjar
o laço social.
Mas, a prática com as psicoses deve, necessariamente, pas­
sar pela criação e pela prática de uma lalíngua da transferência?
Mesmo em se tratando de psicoses, nada impede de acre­
ditar no inconsciente. Como ressalta Lacan: "É porque há o incons­
ciente, isto é, lalíngua, no que é por coabitação com ela que se defi­
ne um ser chamado falante, que o significante pode ser chamado a
fazer sinal, a constituir signo. Entendam esse signo como lhes agra­
dar, inclusive o thing do inglês, a coisa"7•
Aproximemos esse uso de lalíngua da transferência ao uso
da língua estrangeira, fora de sentido, utilizado por Daniele Rouillon
no caso intitulado "Les bienjaits du hors-sens''6 (Os benefícios do fora
de sentido), do Conciliabule d'Angers. Em resposta à língua das cifras
praticada por seu paciente: "Saint Gobain 60 1 + 0,2; Saint Louis 60 1
+ 2 '� o analista pratica a língua estrangeira: '!.4nd what doyou SC!J now?
_ Wel� I SC!J that white is not black. " Aqui, a prática de lalíngua não pro­
voca o riso do paciente, mas certo apaziguamento.
Aproximemos também esse uso de lalíngua da transferên­
cia da língua às cegas, utilizada por Gabriel Lombardi em sua notá­
vel contribuição intitulada "Cure d'un mutique"9, do mesmo volume.
Diante do silêncio do paciente, entrecortado por um "eu vejo pon­
tinhos", o analista pratica, sem o travessão da réplica, a língua às
cegas: 'Decidi, então, falar com ele, eu mesmo, às cegas, (. . ) sem o horizonte
.

de uma resposta".
Em todos esses casos clinicas, vê-se bem que o que moti­
va a neotransferência não é o sujeito suposto saber, mas lalíngua
como o que permite a um significante poder fazer signo. E fazer
signo de quê? - fazer signo de algo que está fora do sentido: ono­
matopeia, algarismos, traço.

1 57
Afirmaremos, portanto, que é pelo significante enquanto o
que pode fazer signo, e não pelo sentido, que se joga a partida da
neotransferência como vetor do tratamento.

11. TEORIA DE LALÍNGUA

Evoquemos agora o artigo intitulado "Teoria d'alíngua"1 0,


de 1 974, em que Jacques-Alain Miller explora a palavra iaiíngua cria­
da por Lacan dois anos antes. Nesse artigo, a psicanálise é um modo
de abordagem de iaiíngua, e ialíngua seria inaugural, da mesma
maneira que o inconsciente estruturado como uma linguagem.
Em um artigo mais antigo, intitulado "U ou 'não há meta­
linguagem"'11, Jacques-Alain Miller já desenvolvia o termo precur­
sor de ialíngua: a língua U - língua única e última. Nesse artigo, a psi­
canálise não é, senão, a travessia da língua única.
Poder-se-ia dizer que Freud toma seu ponto de partida via
pulsão, Lacan via linguagem e Jacques-Alain Miller via iaiíngua.

A. O que é lalíngua?

"Laiíngua é feita de qualquer coisa, do que está por ai,


tanto nas áreas de serviço quanto nos salões", explicita Miller em
1 97 4. Nesse sentido, temos ialíngua Donald de Ophélie, feita de
onomatopeias que estão por ai nos desenhos animados, e iaiíngua
dos algarismos, do paciente de Daniele Rouillon, feita da cotação da
bolsa que ele ouve no rádio.
''A língua é essencialmente aluvial, feita dos aluviões que se
acumulam a partir dos mal-entendidos e das criações linguageiras de
cada um'm, acrescentará Miller, em 1 996, em A fuga do sentido. Tal
sedimentação se faz sobre as marcas deixadas pelos outros sujeitos.

1 58
1 . Un beau gazouillis (Um belo gorjeio)13

Para tomar um exemplo literário, citemos "presbitério", de


Colette1\ palavra que passeava pelo jardim de sua infância e da qual
ela faz o nome científico de um pequeno caracol. A criança se cha­
mava "Bel-Gazou", como Un beau gazouillis, belo gorjeio. Não será
isso lalíngua? Vejamos o exemplo:

A palavra "presbitério" acabava de cair em meus ouvidos sensíveis e


causar aí uma devastação. "É, certamente, o presbitério mais alegre
que já conheci", dissera alguém. Eu recolhera em mim a palavra mis­
teriosa, como se bordada com um relevo áspero, no começo, termi­
nando em uma longa e sonhadora sílaba.
Ornada por um segredo e uma dúvida, eu dormia com a palavra e a
levava para o meu muro. "Presbitério!" Jogava-a, por cima do teto do
galinheiro e do jardim de Miron, para o horizonte enevoado de
Moutiers. De cima do muro, a palavra soava em anátema: "Vamos!
Todos vocês são presbitérios!", gritava eu aos banidos invisíveis.
Um pouco mais tarde, a palavra perdeu seu veneno, e percebi que
"presbitério" podia bem ser o nome científico do pequeno caracol lis­
trado de amarelo e preto.
Uma imprudência pôs tudo a perder _"Mamãe! Olhe o lindo peque­
no presbitério que encontrei!" Calei-me tarde demais. Tive que apren­
der o que fazia tanta questão de ignorar, e chamar "as coisas pelo seu
nome" _"Um presbitério, veja só, é a casa do padre".
Lutei contra a violação, abracei os farrapos de minha extravagância,
quis obrigar o padre a morar na concha vazia do caracolzinho chama­
do "presbitério". E depois, cedi. Rejeitando os fragmentos do caracol­
zinho esmagado, recolhi a bela palavra, subi até meu terraço estreito
sombreado pelos velhos lilases. Batizei-o de "Presbitério", e fiz-me
padre sobre o muro.

2. A integral dos equívocos

"Uma língua entre outras não é nada além do que a inte­


gral dos equívocos que sua história deixou persistir"15, escreve
I ,acan em "O aturdido". Depois, acrescenta em Mais, ainda:

1 59
"Lalíngua é o que me permitiu, ainda há pouco, fazer de meu Sz uma
questão e me perguntar - será que é bem deles (d'euxys que se trata
na linguagem?"17 O que Jacques-Alain Miller traduz em 1 974 por:
''A homofonia é o motor da lalíngua"18•
E, de fato, é pela homofonia entre "quack" e "quatro" que
o "quacktro e de:( do terapeuta aparece de surpresa, no caso de
Ophélie, e que lalíngua Donald, lalíngua do som, encontra-se inven­
tada como lalíngua da transferência. É uma operação ao modo de
Michel Leirís e, como diz Jacques-Alaín Miller em 1 996, "integral­
mente sujeita ao equívoco"19•

B. Que relação lalíngua mantém com a linguagem?

Lacan distingue em O Seminário Mais, aindd-0, um saber sobre


lalíngua que cabe à linguagem, e um saber-fazer com lalíngua testemu­
nhado pelo inconsciente. É o que Jacques-Alain Miller1 traduz em
1 974 por: "a linguagem não é lalíngua, ( ) ela é secundária em rela­
...

ção à lalíngua, ( ) ela é o resultado de um trabalho sobre lalíngua" e


...

também por: "não há sujeito suposto saber na lingua, não há cata­


lepse da lingua, não há domínio da lingua".

1 . lalíngua rebelde e indomável

Lalíngua não é domável porque não há em lalíngua dois ditos


que sejam parecidos, "só há diferenças". Essa é uma forma de levar
a sério a tese de Saussure, isto é, que o sentido primeiro do significan­
te está perdido para sempre: pequeno s desaparece sob grande S.
Bel-Gazou experimenta isso depois de ter brincado com a
palavra "presbitério '� insere-a no discurso da ciência e depois no dis­
curso comum: '/1 palavra perdeu seu veneno ".
Como fazer valer essas diferenças? No campo da lingua­
gem, a articulação significante St-Sz desencadeia os efeitos de sen-

160
tido, há significação aos borbotões. O sujeito é identificável. No
campo de lalíngua, antes, portanto, de colocar ordem nos significan­
tes, tem-se uma cadeia significante sem efeito de sentido. É o mate­
ma SI I s de A fuga do sentido22•
É a experiência que faz o paciente de Daniele Rouillon
quando os números da bolsa se alinham uns ao lado dos outros,
sem efeito de sentido. O sujeito se encontra separado da cadeia sig­
nificante, fora da cadeia. Há um saber-fazer com lalíngua, mas não
um saber sobre lalíngua.

2. lalíngua inaugural e o
inconsciente estruturado como uma linguagem

É aqui que aparece a falsa separação da qual fala Jacques­


Alain Miller em "Produzir o sujeito?"23: o sujeito está fora do sen­
tido, separado da cadeia significante, ele surge do nada, é uma cria­
tura de significante; mas o sujeito deve também emergir do ser
vivo, ele surge de seu primeiro estatuto de objeto, do objeto
"causo" (causette/4 do desejo da mãe.
Esta é a constatação que faz, por exemplo, certa educado­
ra, a propósito de um autista. "Em que língua épreciso falar com ele?'�
perguntava-se. 'Vsei minha língua materna, sem me preocupar em saber se
ele compreendia e sem esperar resposta. Isso durou dois anos. Seu olhar não cru­
zava o meu. Quando lhe jogava uma bola, ele não a devolvia. Uma manhã,
enquanto eu lhe virava as costas, pediu-me uma bala, isso me causou o mesmo
efeito que aquele que me causaria se o meu gato começasse a falar".
Talvez seja preciso ouvir, nesse sentido, o que Lacan enun­
cia em o Seminário Mais, ainda: "Lalíngua nos afeta, primeiro, por
tudo o que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode
dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no
que os efeitos de lalíngua, que já estão lá como saber, vão bem além
de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar.m5

161
C. Qual relação mantém lalíngua com a pulsão?

Voltemos a Freud e à articulação que faz Lacan no


Seminário 1 1 entre a pulsão e a cadeia significante.
Para Freud, diz ele, a pulsão funciona como uma cadeia
significante, ordenada pela gramática. Essa cadeia contorna o obje­
to pulsional, mas não o atinge. A pulsão se caracteriza como sendo
acéfala, diz-nos Lacan26• É, portanto, "um ser do tipo quod, cujo quid
permanece misterioso, velado", explicita Jacques-Alain Miller7 em
Le Conciliabule d'Angers o quod quer dizer algo, mas não se sabe o
-

que isso quer dizer.


Em seu curso intitulado Silet, Jacques-Alain Miller faz da
pulsão uma articulação entre a repetição e a transferência, isto é,
uma repetição significante cujo produto é um gozo: ''A repetição
como automatismo é equivalente a uma cadeia significante que, ao
mesmo tempo, elude e designa o lugar central do real, que a trans­
ferência coloca em atom8• E ele propõe o seguinte esquema:

oc automática

transferência

Portanto, se existe uma relação entre lalíngua e a pulsão, é


via repetição e transferência: um gozo produzido pela cadeia signi­
ficante. Temos aí um esboço de lalíngua da transferência: uma cadeia
significante de lalíngua, fora de sentido, que aparelha o gozo, dese­
nhando o percurso que vai do simbólico ao real.

1 62
1 . A verdade em ato, livre, desencadeada

Se a cadeia significante de lalíngua produz um efeito de ver­


dade, é em ato. Como escreve Jacques-Alain Miller29, em 1 974: sem
essa lalíngua, não haveria verdade; e a verdade nessa lalíngua não
pode ser definida - ela está aí presente em ato, livre, desencadeada.
Basta nos lembrarmos da raiva do Homem dos Ratos con­
tra seu pai e da cadeia significante que ele usa naquele momento -
"Du, Lampe, Tasche (lâmpada, toalha, prato) (... )"30 - para nos dar­
mos conta disso que ela visa, sem, no entanto, atingir: o lugar cen­
tral do real. Isso que faz com que o pai diga que ele é um futuro cri­
nunoso.
Daí a palavra "ir-a-sível (ire-a-cible)'"30, escrita em 1 989 por
Jacques-Alain Miller em O banquete dos analistas: a raiva visa o objeto a.
Da mesma forma, a repetição do ''V!j'o pontinhos" do
paciente de Lombardi, sempre acompanhada de excitação, parece
indicar o lugar de um real inacessível: "Ele não podia descrever nada des­
ses pontos, nem quantidade nem qualidade, somente a pequenez indescritível
deles. Nada. Nenhuma palavra'JJ2•

2. O insulto e o nome próprio de gozo

Portanto, os efeitos de lalíngua vão bem além de tudo o que


o ser que fala é suscetível de enunciar. E um dos primeiros efeitos
de lalíngua é o afeto, em particular, a cólera. Ora, se a pulsão tem
uma coloração vazia, é porque ela não atinge o objeto, ao passo que
o afeto toma, aqui, a cor do objeto.
Basta abrir um álbum de Tintiff3 para perceber que assim
que o capitão Haddock entra em cena, animado pela cólera, jorran­
do uma série de insultos: "Vagabundo! Mercenário! Ectoplasma!",
na realidade, todos os significantes falham ao tentar dizê-lo.
Como diz Jacques-Alain Miller: "É, então, que se pode
dizer qualquer significante, qualquer um que, na queda, na anulação

1 63
de todos os significantes - A barrado -, qualquer um que, ao esca­
par do desastre possa vir aí, como uma flecha, tentar ser o signifi­
cante do ser do Outro, ou seja, o significante do Outro como obje­
to pequeno a."34
A fórmula do insulto que ele propõe pode, então, ser escrita:

s {�}
Enquanto o cap1tao Haddock, como bom neurótico,
busca ainda seu nome de insulto depois da morte de Hergé,
Ophélie, por sua vez, como psicótica, acerta na mosca: seu nome de
insulto está ali desde o início. Desde a primeira sessão, ela cospe um
insulto: "Parece uma lebre!", um nome de animal que produz um equí­
voco em lalíngua com o nome próprio do terapeuta, "Lelievre"
["Alebre'l "Não estou contente de ter vindo vê-lo! Com o seu corte de cabelo1
vocêparece uma lebre!".
Ophélie faz sua entrada na cena analítica pelo ódio. Pelo
insulto, ela atinge o kakon de seu ser no Outro.
O ódio "é uma das vias para o ser", explicita Jacques-Alain
Miller. Ele afirma igualmente: "o insulto vem quando não há mais
palavra para dizê-lo, quando não se pode mais raciocinar, e quando
se está sufocado pela cólera"35•
É assim que se poderia ouvir também o "el Doctor esta
cachuso "J6, que fazia rir o paciente de Gabriel Lombardi. Desta
vez, não é de ódio que se trata, mas de ironia. É a função do sem­
blante que está aí desnudada: não-tola.

1 64
111. ALGORITMOISl DA TRANSFERÊNCIA

Se Freud concebeu a ideia de um método mais adaptado


às psicoses, Lacan, contudo, não nos deu sua fórmula.
O algoritmo da transferência, proposto por Lacan37 em
1 967, retoma a fórmula do inconsciente estruturado como uma lin­
guagem. Essa fórmula é apenas uma aplicação particular da expe­
riência.

St Sq
s(S1, Sz, ... , Sn)

Qual seria, então, a fórmula da neotransferência como


aplicação particular da prática com as psicoses?

A. O significante da transferência e o Um encarnado em lalíngua

O significante da transferência, ST, formalizado por Lacan


na escrita do sujeito suposto saber, não é um significante qualquer.
Seria o significante Um, ou significante-mestre, tal como Lacan o
definiu no Seminário Mais, ainda: "Ele é a ordem significante, no
que ela se instaura pelo envolvimento pelo qual toda a cadeia sub­
siste"38.
Pode-se fazer referência, aqui, ao artigo de Jacques-Alain
Miller intitulado "Matrice"39, que distingue a marca e o lugar do
Tudo e do Nada, com um esquema da estratificação que ele comen­
ta assim: ''A marca como unidade é apenas a totalidade concentra­
da. E a totalidade é a marca dilatada, multiplicada". Dai o esquema:

R) ) ) ) )

1 65
Poder-se-ia aproximar essa estratificação do que Lacan
chama "a unidade da copulação do sujeito com o saber" no
Seminário Mais, ainda: "O S1, esse um, o enxame, significante-mestre,
é o que garante a unidade, a unidade de copulação do sujeito com
o saber"40. Assim, tem-se o esquema:

S1 (S1 (S1 (S1 Sz)))

"O Um encarnado na lalíngua é algo que resta indeciso entre o fone­


ma, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento. É o do que se trata
no que chamo de significante-mestre"41•

Considerando o Eu-vrjo-pontinhos como o Um encarnado


em lalíngua, o significante-mestre que se instaura a partir do envelo­
pamento por onde toda a cadeia subsiste, isto é, a marca, como uni­
dade, mas também como totalidade concentrada, o que o paciente
de Lombardi grita seria, então, todo seu pensamento.

1 . O imperativo do significante e a alta tensão do significante

"O significante é inicialmente imperativo"42, diz Lacan em


1 972. Mas será que há uma diferença entre o significante Um encar­
nado em lalíngua, esse significante-mestre que comanda toda a
cadeia, e o que Lacan chama em 1 958 de "a alta tensão do signifi­
cante"43?
A língua fundamental de Schreber44 é feita de neologismos,
que constituem o que Lacan45 chama de um neocódigo.
O imperativo, ou a alta tensão do significante, pode se
escrever ass1m:

1 66
Quanto às mensagens interrompidas, como diz Jacques­
Alain Miller em A fuga do sentido46, isso funcionaria um pouco como
um Witz: na cadeia significante, uma parte permanece vazia e à

espera do que viria à cabeça, para dar o sentido.

o
Quer se trate do "Eu v�jo pontinhos'� quer se trate do "Saint
Gobain 60 1 + 0,2 " ou do "Quack-quack-quack!", em cada caso, o sen­
tido está em suspenso.
Mas, trata-se de neologismos ou de ritornelos?
Lacan observa, de fato, que, assim que essa alta tensão do
significante cai, as alucinações se reduzem a ritornelos ou a ladai­
nhas, vazias de significação.
Jacques-Alain Miller faz dessas ladainhas uma espécie de
círculo sobre si mesmo do significante, sem o lastro do significado.
O que pode se escrever assim:

2. A solidão semântica

A propósito da voluptuosidade da alma de Schreber,


Seelenwollust, Lacan observa que "o inconsciente se preocupa mais
com o significante do que com o significado" e que "a dimensão em
que a letra se manifesta no inconsciente (...) é bem menos etimoló­
gica (precisamente, diacrônica) do que homofônica (precisamente,
sincrônica)"47• O sentido de mortificação viria da homofonia entre

1 67
Seelen, as almas, e Seen, os lagos onde as almas permaneceram algum
tempo.
No caso de Ophélie, é porque o terapeuta e a criança zom­
bam do significado que a língua Donald pode ser inventada como
lalíngua da transferência.
Uma vez desprovido do significado, o significante funcio­
na sozinho, voltando-se sobre si mesmo em círculos, mas como sig­
nificante Um, envelopando toda a cadeia significante e fazendo
apelo ao efeito de sentido apenas de forma alusiva, sem intenção de
significação.
Obtém-se, assim, a fórmula de Jacques-Alain Miller48:

S // s oo

Aqui, os efeitos de sentido são infinitos e completamente


separados do significante. Tudo pode ser dito sem que uma signifi­
cação seja retida.

B. O saber suposto e o saber já-posto nas psicoses

Lacan49 distingue, no Seminário Mais, ainda, dois saberes


inconscientes: o saber sobre lalíngua, que é apanágio da linguagem, e
o saber-fazer com lalíngua, que é apanágio do inconsciente.
Como esses dois saberes se articulam na psicose?

1 . Saber sobre lalíngua e saber-fazer com lalíngua

"Todo amor se apoia em alguma relação entre dois sabe­


res inconscientes"50, explícita Lacan. E, se há relação, é porque há
distinção: o inconsciente é um saber-fazer com lalíngua; ao passo que
a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua.

1 68
Fazer essa distinção é também fazer a distinção entre
inconsciente e linguagem. A linguagem seria apenas uma hipótese
ou uma suposição de saber sobre lalíngua: ''A linguagem, de come­
ço, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernente­
mente à função de lalíngua"51• Enquanto o inconsciente é o testemu­
nho de um saber-fazer com lalíngua que escapa ao ser falante.
Nos três casos clínicos tomados como exemplos, os de
Gabriel Lombardi, de Daniele Rouillon e de Jean Lelievre, o tera­
peuta testemunha a cada vez de um saber-fazer com lalíngua, que, ao
mesmo tempo, lhe escapa. Os três apostam, portanto, nos efeitos de
lalíngua, isto é, sobre um saber já-posto, mas que vai bem além do
que pode ser enunciado.
Poder-se-ia mesmo dizer, nos três casos, que o terapeuta
se comporta como o rato no labirinto52 de Lacan: faz signo ao
paciente de sua própria presença como unidade, até mesmo como
unidade-ratoeira, isto é, capaz de aprendizagem de lalíngua.

2. A aprendizagem de lalíngua e o sujeito suposto saber

Pela analogia entre a unidade-ratoeira e o ser analista, a


questão do saber se transforma na questão de um aprender: ''A ques­
tão ( ..) é de saber se a unidade-ratoeira vai aprender a aprender"53•
.

É o que fazem nossos três terapeutas: aprendem a apren­


der. Comportam-se, no labirinto de lalíngua, nessa montagem feita
de lalíngua da transferência, de certo modo, como analistas-ratos.
E, como diz Lacan, o experimentador, "aquele que, nesse
negócio, sabe alguma coisa"5\ seria, então, o psicótico, "alguém para
quem a relação com o saber é fundada em uma relação com lalíngua,
na habitação de lalíngua, ou na coabitação com ela".
É porque o analista supõe ao psicótico um saber-fazer com
a língua que ele se presta à sua aprendizagem, e que, graças ao dese­
jo do analista, esse saber já-posto no psicótico poderia se elaborar,
então, como elucubração de saber sobre lalíngua.

1 69
C. A transferência e o amor do Outro

Se for verdade que um casal fala a mesma língua e que ela


é estranha a um terceiro, lalíngua da transferência poderia bem ser
essa do amor: entre psicótico e analista não há encontro sem o
amor do Outro. A experiência do labirinto interrompe-se neste
ponto: não é pedido ao experimentador para amar seu rato e vice­
versa.
No casal Ophélie-Lelievre, trata-se realmente de um amódio:
a garotinha entra pelo ódio, e lalíngua da transferência se estabelece
no amor do Outro.

1 . O algoritmo de Gabriel Lombardi

Na "Cure d'un mutique", Gabriel Lombardi está, inicialmen­


te, como o rato perdido no labirinto. A única coisa da qual ele tem
certeza é que o inconsciente do paciente é feito de lalíngua. O "Eu
vo/o pontinhos" lhe indica essa coabitação com lalíngua.
O paciente indica ao terapeuta uma relação com o saber­
fazer com lalíngua, que podemos escrever assim:

a paciente terapeuta
Sz saber-fazer
com lalíngua

O terapeuta faz signo de sua presença produzindo, antes


de tudo, lalíngua às cegas, fundada sobre a mesma relação com o
saber-fazer com lalíngua: lalíngua fora de sentido, às cegas, como St.

Por meio dessa operação, ele se presta à aprendizagem de


lalíngua, como sujeito vazio, posto a trabalho pelo saber do pacien­
te, ao qual ele supõe alguma coisa para além do que é enunciado.

1 70
a paciente terapeuta
Sz saber-fazer lalíngua
com lalíngua às cegas

Toda a questão é de saber por que, certo dia, o paciente


aceita a montagem e se volta dizendo: "Eu escrevo poemas".
Insondável decisão do ser, talvez, mas é aqui que se invertem as
posições e se situa o encontro, ou seja: ''A ilusão de que alguma
coisa não somente se articula, mas se inscreve"5\ diz Lacan.
O "Eu escrevo poemas" produzido pelo paciente em uma lín­
gua anasalada, quase inaudível, não é, evidentemente, para ser lido,
mas traduz o cessa de não se escrever de uma "relação de sujeito a sujei­
to, sujeito enquanto ele é apenas o efeito do saber inconsciente".
Tanto o paciente quanto o terapeuta se reconhecem,
então, como sujeito, enquanto efeito do saber inconsciente.
Escrevamos a inversão e a relação de sujeito a sujeito
assim:

paciente ..1L

Sz ><0
• terapeuta

terapeuta ..1L

Sz
• 0 paciente

Haveria, portanto, produção do sujeito e captura da trans­


ferência em um efeito de cristalização massiva de lalíngua como rede
do gozo.

2. A erotomania delirante

Toda a questão é, então, saber como evitar a erotomania


delirante, que Jacques-Alain Miller56 formula assim:

171
...1L
Sz

Daí o drama do amor do qual fala Lacan57•


Que diferença há entre o ''K!einer F!echsig" de Schreber e o
"E! doutor esta cachuso" do paciente de Lombardi? A transferência
para com Flechsig e a transferência para com Lombardi têm o
mesmo estatuto?
Nos dois casos, o sujeito acredita no amor do Outro.
Nos dois casos, uma metáfora delirante se instala: ser a mulher de
Deus para Schreber, ser o filho de Deus para o paciente de
Lombardi. Mas, se as Memórias de Schreber constituem uma res­
posta metafórica a esse amor do Outro, a leitura da Bíblia pelo
paciente de Lombardi adia essa resposta, ela favorece a metoní­
mia e põe o sujeito a trabalho mediante um novo artefato para
tecer o laço com o Outro social, muito mais do que com o Outro
do delírio.
A obstinação de Lombardi em se fazer o ponto de basta e
o destinatário do "Eu escrevo poemas" orienta em direção a um novo
laço social.

IV. LALÍNGUA DA TRANSFERÊNCIA:


UM ARTEFATO PARA TECER O LAÇO SOCIAL

Portanto, "Eu escrevo poemas ", diz o paciente de


Lombardi com uma voz anasalada, muito pouco compreensível.
Mas este Screvopoemas - que poderíamos escrever em uma só
palavra - permanece puro significante de !a!íngua, separado do
significado. Isso pode querer dizer qualquer coisa. É o que cons­
tata de Lombardi quando o paciente lhe estende, primeiro, "um
papel amassado e sujo em que havia duas linhas de uma escrita
ilegível".

172
Contudo, não há ainda diálogo. E Lacan precisa a propó­
sito de lalíngua: "Mas lalíngua serve em primeiro lugar ao diálogo?
Como articulei outrora, nada é menos certo"58•
Como fazer limite ao monólogo autista do gozo?

A. Do nenhum-diálogo (pas-de-dialogue) ao laço social

Lacan propõe a solução da interpretação em seu


Seminário oupire: "não há diálogo, eu disse, mas esse nenhum-diá­
...

logo (pas-de-dialogue) tem seu limite na interpretação, por onde se


assegura, como para o número, o real"59• O que Jacques-Alain Miller
traduz por "a interpretação analítica faz limite" na medida em que,
"como a formalização matemática, ela atinge um real", passa por
um "isso não quer dizer nada", vai "ao contrário do sentido", e
"supõe o escrito"60• É o que propõe Éric Laurent em A conversação
de Arcachon: "É preciso entrar na matriz do discurso pelo signo, e
não pelo sentido"61 •
É , de fato, pelo signo, ou melhor, pelo thing, que os três
pacientes podem entrar em um laço social: onomatopeia, algarismo,
ou traço escrito. Trata-se de alguma coisa que vai na contramão do
sentido.

1 . Lalíngua da transferência e o discurso analítico

No caso de Ophélie, bem antes da aprendizagem da língua


Donald, o thing do qual o terapeuta se faz inicialmente o destinatá­
rio poderia bem ser a massa-de-modelar-massa-de-mastigar.
Desde a primeira sessão, de fato, Ophélie pedira massa de
modelar. Ela a amassara durante um longo tempo, comendo regular­
mente pequenos pedaços. Usou-a, em seguida, regularmente, para
jogá-la no rosto do terapeuta como a injúria - ''parece uma lebre"- da
primeira sessão. O terapeuta devia curvar-se à modelagem dos ani-

173
mais que ela pedia, e nenhuma outra criança podia mexer neles. A
massa-de-modelar-massa-de-mastigar tornara-se uma coisa só dela.
É passando da massa-de-modelar-massa-de-mastigar à criação
do Donald - lalíngua, também ela mastigada - que Ophélie pode
entrar em um laço social e, portanto, na matriz de um discurso. A
aprendizagem de lalíngua da transferência, como aparelhamento do
gozo, torna-se, então, um verdadeiro artefato para tecer o laço
social.
Como diz Jacques-Alain Miller: ''A única coisa que volta a
colocar ordem nessa semântica absoluta, paralela à solidão do gozo,
é ser tomado em um discurso, isto é, como diz Lacan, em um laço
social"62• Segundo Lacan: "No final das contas, só existe isso, o laço
social. Represento-o com o termo de discurso."63
Para a pequena Ophélie, que ensinava a língua Donald a
seu terapeuta, lalíngua da transferência servia, primeiramente, de
barreira a uma elucubração de saber sobre lalíngua; esta perdeu
pouco a pouco seu veneno, e a criança acabou chamando as coisas
pelos seus nomes.
Da mesma forma, os traços escritos do paciente de
Lombardi, inicialmente ilegíveis, tornam-se pouco � pouco legíveis:
"Outros poemas vêm em seguida, poemas de um amor abstrato,
cada vez mais claramente escritos".

2. Lalíngua da transferência e a função do Witz

"Pelo contrário, é somente por um laço social típico que se


tem uma chance de poder ler, de poder interpretar, de poder fazer
limite ao nenhum-diálogo (pas-de-dialogue) . E é por isso que é pelo
laço social que, definitivamente, o significado é suscetível de man­
ter o mesmo sentido"64, explícita Jacques-Alain Miller.
Lalíngua da transferência leva o paciente de Lombardi, ini­
cialmente, a escrever, depois a ler e, finalmente, a evocar lembran­
ças de infância. Finalmente, ele irá elaborar um certo saber sobre

1 74
lalíngua, que utilizará em um Witz: 'Trata-se de uma propaganda na tevê.
Vê-se a imagem da cruz vazia, sem Cristo e sem pregos. Uma voz em off di:r
'�e tivessem usado pregos Goldstein, as coisas seriam diferentes".
Um outro psicótico brincava de charadinhas com o tera­
peuta: "você sabe o que dizia a mulher de A/thusser antes de morrer? Ela
dizia: Alto-cê aperta forte demais" (Halte! Tu serres trop for!). Ou ainda:
'Você sabe o que dizia um árabe ao dentista? Ele dizia: Estou cheio do meu
dente! ( 'J'en ai ras ma dent - ramadan/'}65 Você entendeu?"
A presença do analista é essencial, até mesmo decisiva, já
que seu riso decide se o Witz cumpriu sua missão, se a cessão de
gozo ao Outro do laço social funcionou.

8. Os impasses de lalíngua da transferência

Lalíngua da transferência tem seus limites. Vimos lalíngua


da erotomania, mas há também essa do semblante e aquela do sin­
toma.

1. lalíngua da transferência em suas relações com o semblante

Como diz Lacan: "Um discurso analítico visa o sentido" e


faz surgir "a ideia de que esse sentido é semblante"66•
É a experiência do paciente de Lombardi, cujo Witz não
fornece o sentido e indica somente a sua direção.
Nos exemplos precedentes, percebe-se que o Witz é usado
de forma alusiva, indicando a direção do sentido e ridicularizando a
significação fática: o filho de Deus, sem pregos Goldstein, não existe;
a morte, como a religião, é apenas uma história de jogo de palavras.
É aqui que se pode distinguir a alusão com tendência alu­
cinatória, mas que não é da ordem do semblante, e o Witz com ten­
dência socializante, e que é da ordem do semblante. De fato, não se
vê o presidente Schreber utilizar Witz a propósito de Deus. Por

175
outro lado, as vozes podem ridicularizar e até mesmo insultar Deus:
"Die Sonne ist eine Uhre".

2. lalíngua da transferência em suas relações com o sintoma

Na neurose, a análise começa pela precipitação do sinto­


ma, com um enlace do sujeito suposto saber ao desejo do analista.
Na psicose, seria mais uma cristalização do sintoma, com captura
do gozo por lalíngua da transferência.
Mas deixemos essa questão e lembremos somente que é
porque o psicanalista insiste em se fazer o destinatário dos signos
ínfimos do real de lalíngua, sem se preocupar com o sentido, que ele
pode ter uma chance de se tornar o parceiro do psicótico na lalíngua
da transferência. Assim, ele pode permitir que o sujeito psicótico se
engaje em um laço social na direção de uma elaboração de saber.
É o que faz Lombardi com seu paciente, levando-o a
escrever poemas, a ler a Bíblia e, finalmente, a pintar. É talvez tam­
bém o que faz Lelievre com Ophélie, levando-a primeiro a passar
da massa-de-modelar-massa-de-mastigar à língua Donald.

C. Uma prática no plural

Escolhemos lalíngua da transferência como neotransferên­


cia. Restam ainda duas perguntas: Há uma ou várias neotransferên­
cias? Há uma ou várias lalínguas da transferência?

1 . Uma ou várias neotransferências?

Depois de lalíngua, seria preciso retomar a letra e a aparolrP


como outros aparelhamentos de gozo. Deixaremos isso de lado.

176
2. Uma ou várias lalínguas da transferência?

Os três casos clínicos tomados como exemplos mostram


que lalíngua da transferência é, a cada vez, diferente.
Além disso, se prosseguissemos com a analogia entre lalín­
gua da transferência e a composição labiríntica haveria, para cada psi­
cótico, a sua lalíngua da transferência, assim como para cada experi­
mentador a sua composição labiríntica: "Não se inventa não importa
qual composição labiríntica e, se isso sai do mesmo experimentador
ou de dois experimentadores diferentes, é algo que merece ser inter­
rogado"68. Portanto, não há uma) mas várias lalínguas da transferência.
E Lacan acrescenta: "O que pertence ao saber coloca uma
outra questão, por exemplo, a questão de como isso se ensina".
Gabriel Lombardi lembrava, de fato, em seu artigo sobre
a "Cure d)un mutique", que o mundo terapêutico irá sempre esperar
pelo "como fazer" com um psicótico. Ele explicita que não se tem
acesso à posição de analista a partir da posição de analista, mas a par­
tir de uma destituição do sujeito que deve ser a cada vez renovada.
E é o psicótico quem renova o convite.
Para ascender a essa posição tratar-se-ia, então, de passar da
posição de sujeito à posição de objeto, ou ainda, como salienta
Lacan, passar da unidade ratoeira para a sua rasura. Obter-se-ia,
assim, o objeto "cachuso" do caso de Gabriel Lombardi, o objeto
"lebre" do caso de Ophélie e, talvez, o objeto "amorrern (Fammourir)
do caso de Daniele Rouillon.

V. CONCLUS Ã O: O ANALISTA FERREIRO

Depois de A conversação de Arcachon) vimos que a questão


girava em torno do aparelhamento que permitiria lutar contra os
desligamentos sucessivos nas neopsicoses. É segundo essa perspec­
tiva que retomaremos, aqui, o caso de Ophélie.

177
A. De que psicose se trata?

Ophélie encontra seu terapeuta aos onze anos de idade.


Colocada em um instituto por causa de distúrbios psicomotores,
andando mal e caindo frequentemente, falando mal e babando
muito, a criança apresenta um retardo mental e estaturo-ponderal
que a classifica como criança deficiente.
Trata-se de uma psicose? Qual?
Como assinala Jacques-Alain Miller em seu artigo "Lições
sobre a apresentação de doentes", a doença da mentalidade decor­
re da emancipação da relação imaginária e toma o estilo de uma
errância, ao passo que a doença do Outro procede da crença em um
Outro não barrado e toma o estilo de uma consistência. Nos dois
casos, o gozo é desregulado: em um caso, ele é flutuante e aparece
por toda parte; no outro caso, é invasivo e do Outro.
O caso de Ophélie seria da alçada de uma doença da men­
talidade: o Outro é deficitário, as identificações não estão cristaliza­
das em Um, a relação imaginária prevalece e o gozo é flutuante.
Acrescentemos simplesmente que não houve desencadea­
mento no sentido lacaniano do encontro com Um-pai. Por outro
lado, falta à Ophélie a ferramenta necessária para tamponar o gozo.

8. A classificação opheliana: um enlaçamento inacabado

De que se queixa a garotinha?


Não é, certamente, de sua deficiência. Quer se trate de
suas dificuldades para dormir, de seu retardo psicomotor, de sua
falta de jeito, de sua hipersialorreia, de seus momentos de introver­
são ou de excitação, todos esses fenômenos incomodam apenas os
que a rodeiam. Aliás, essa foi a primeira resposta que ela deu ao seu
terapeuta: "Esses problemas para dormir a incomodam? _ Não!".
Ela se queixa, primeiramente, de sua relação com o outro
imaginário, seu semelhante. O jardim de sua infância não é povoa-

178
do de caraco1s, como para Bel-Gazou, mas de pequenos outros,
doentes como ela.
Desde as primeiras sessões aparece uma espécie de classi­
ficação: os verdadeiros e os falsos de um lado, os bons e os maus
de outro.
Na primeira categoria, os verdadeiros e osfalsos, Ophélie colo­
ca sua irmã gêmea, uma "falsa" gêmea, que não é doente: 'Tenho
uma irmãgêmea, mas éfalsa!" _ E você se dá bem com ela? _ Não, ela manda
sempre em mim!': No par especular que forma com sua irmã, m - i(a),
ela está às voltas com uma imagem do outro separada de sua pró­
pria imagem, i(a), mas esse par lhe permite também investir o outro
como imagem de si, o mesmo, m. É por isso que ela não poderá
conceber a sua terapia sem a presença de sua irmã: "Quero que minha
irmã venha também! Ah! É mesmo? Ela nunca acredita em mim! O
que isso quer dizer? _ Ela nunca acredita quando digo que ela também preci­
sa consultar alguém!". Na ausência da irmã, um colega de classe a
acompanhará até a porta do consultório na sessão seguinte.
Aqui, é o sentido-gozado que é interrogado via a verdade
da filiação: que sentido pode ter, efetivamente, um laço fraterno se
não for sustentado por nenhum Nome-do-Pai? Por meio dessa
categoria do "verdadeiro-falso", construída sobre a imagem, ela
constrói uma espécie de remendo entre imaginário e simbólico
onde se alojam os efeitos de sentido entre o que ela experimenta ser,
m, e uma imagem falsa dela mesma, i(a).
Na segunda categoria dos pequenos outros, os bons e os
maus, Ophélie coloca seu terapeuta entre os maus, os que não têm
as mesmas pernas que ela: 'Você é médico, não quero ver você! _ Não sou
médico. _ É sim! _ Como você sabe? _ Pelas suas pernas, você tem pernas de
médico _ Eu não tenho as mesmas pernas que você? _ Não, você não anda
como eu!".
Aqui, é o gozo do Outro que é interrogado via a realidade
de seu corpo: há os bonzinhos, enfermos como ela, cujo gozo está
subordinado a uma deficiência física, um gozo conhecido, circuns-

179
crito, bordejado pelo imaginário; e há os maus, os saudáveis que não
andam como ela, cujo gozo é estrangeiro, até mesmo ameaçador,
real. Pela categoria do "bom-mau", construída sobre a imagem, ela
fabrica, então, uma espécie de remendo entre imaginário e real.
Ophélie teria, portanto, fabricado um enodamento centra­
do na prevalência do imaginário: o imaginário se dobra, articulan­
do-se de um lado com o simbólico e, de outro, com o real. Isso
pode ser ilustrado pelo nó borromeano da figura 5 da página 1 69
do Seminário Mais) ainda, colocando o imaginário no centro do nó
como uma orelha dobrada:

@ 0
Por outro lado, simbólico e real não mantêm nenhuma
relação entre eles, a não ser via o imaginário. Aqui, o gozo fálico não
pode se inscrever e a função do semblante é evacuada.
Com efeito, se Ophélie mastiga massa de modelar, por
outro lado ela não "mastiga" suas palavras. Quando o Outro se dis­
tancia e a deixa, ela se fecha em um autoerotismo: é então que come
sistematicamente dejetos, cascas, pequenos pedaços de massa de
modelar, babando cada vez mais, sem se preocupar nem um pouco
com as reações das pessoas à sua volta. Quando o Outro se aproxi­
ma novamente ou faz intrusão, as injúrias e os golpes são então lan­
çados contra o intruso.
No fundo, o problema de Ophélie é ter construído uma
estrutura certamente borromeana baseada, porém, em uma relação
binária. Daí a sua fragilização quanto à intrusão de um terceiro.
Trata-se, portanto, de um nó flutuante, em que o simbólico e o real
podem se recobrir sem, contudo, jamais se articularem um ao outro.

1 80
C. lalíngua Donald como instrumento de forja

Vimos anteriormente como Ophélie fazia sua entrada na


cena analítica: surpresa de Ophélie primeiramente diante da produ­
ção de seu equívoco, "parece uma lebre", sobre o nome próprio do
terapeuta, o que demonstra um saberfazer com lalíngua; depois, sur­
presa, ao mesmo tempo do terapeuta e da criança, diante do lapso
"quacktro e dez" do terapeuta, o que demonstra, dessa vez, um saber
sobre a língua. Finalmente, aprendizagem e elaboração da língua
Donald como lalíngua da transferência, enlaçando saber-fazer com e
saber sobre lalíngua.
No decorrer dessa longa aprendizagem, uma fobia se
esclarecerá.
Poder-se-ia dizer que lalíngua Donald usada pelo casal
Ophélie-Lelievre é o que permite à criança e ao terapeuta forjarem,
sessão após sessão, os elos faltantes da cadeia significante, elos que
permitiriam, talvez, grampear aqui o simbólico e o real, cristalizan­
do o enodamento que a criança fabricara sozinha a partir da preva­
lência do anel imaginário dobrado.
Esse novo enlaçamento poderia ser representado pela
figura 6 que encontramos na página 1 69 do Seminário Mais, ainda, e
que simplificamos aqui:

181
Vã esperança, provavelmente, visto que lalíngua da transfe­
rência tomaria o lugar do semblante. Mas nada nos impede de acre­
ditar que, se o analista for suficientemente dócil à aprendizagem de
lalíngua da transferência, a cadeia poderá um dia se fechar por um
Witz, como no caso do paciente de Lombardi.
Se a estrutura do Witz se parece com aquela das mensa­
gens interrompidas de Schreber, vê-se, nesse caso, que, na operação
da transferência que articula simbólico e real, o sentido é remetido
ao Outro do laço social via o semblante, ao passo que, para
Schreber, o sentido é remetido ao Outro do delírio via o imaginário.
Terminemos com o que nos inspira a olhadela no
esquema acima: não se vê ali a figura do Mickey, com suas duas
orelhas redondas, substituir as orelhas de uma lebre? Isso não foi
premeditado.

182
Notas

*
Relatora: Fabienne Henry
1 FREUD, S. (1 938) ''A Técnica da Psicanálise". In: Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.XXIII, Rio de Janeiro: Imago, 1 975,
p. 1 99.
2 LACAN, ]. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.589.
3 HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed.) (1 977) "Lições sobre a
apresentação de doentes". In: Os casos raros, inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica:
A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998,
p.202.
4 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p.1 97.
5 LELIEVRE, J. "Le cas Ophélie", Déficience intellectuelle légere - Un mode d'être au
monde, Mémoire n.3 da Seção Clínica de Angers, Grammatica, inverno 1997,
Número suplementar de L'Archive n.4.
6 LEIRIS, M. "Biffures", La reg/e dujeu, p.9-21 .
7 LACAN, J. (1972-1 973) "Rodinhas de barbante". In: Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p. 1 8 1 .
8 ROUILLON, D. "Les bienfaits du hors-sens", Le Conciliabule d'Angers, Paris,
Agalma-Le Seuil, Le Paon, 1 997, p.1 63.
9 LOMBARDI, G. "Cure d'un mutique", Le Conciliabule d'Angers, op. cit., p. 1 35.
1 0 MILLER, J.-A. (1 975) "Teoria d'alíngua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55. Dirigido ao congresso da Escola
Freudiana e pronunciado em Roma, esse discurso parece constituir o "Relatório
de Roma" de Miller.
1 1 MILLER, J.-A. "U ou 'i! n'y a pas de méta-langage", Reduction linguarum ad
unam, Leibniz: a língua U, derivada do termo de Haskel B. Curry de "U-langua­
ge"- The Language being used.
1 2 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula VII do dia 31/01/1996.
1 3 N.T.: Em francês Un beau gazouliis significa Um belo gorjeio; em dialeto pro­
vença!: Uma bela linguagem.
1 4 COLETTE, S.D. "Le curé sur le mur". La maison de Claudine, Livre de poche,
1 922.

1 83
1 5 LACAN, J. (1 973) "O aturdito". In: Outros Esm"tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.492.
1 6 N.E.: Em francês, d'eux evoca, homofonicamente, tanto "deles" (d'eux), quan­
to "dois" (deux).
1 7 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
1 8 MILLER, J.-A. (1 975) "Teoria d'alingua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55.
1 9 MILLER J.-A. "La fuite du sens", aula VI do dia 1 7/01 / 1 996.
20 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
2 1 MILLER, J.-A. (1975) "Teoria d'alingua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55.
22 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/ 1 996.
23 MILLER, J.-A. (1983) "Produzir o sujeito?". In: Matemas I. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1 996, p.1 55.
24 N.R.: mantivemos aqui a tradução proposta por Sérgio Laia em "Produzir o
sujeito?" In: Matemas I (cf. MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1 996, p.1 57. Trad. Sérgio Laia).
25 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
26 LACAN, J. (1964) "A pulsão parcial e seu circuito". In: O Seminário, livro 1 1: Os
quatros concet"tosfundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 988,
p. 1 71 .
2 7 MILLER, J.-A. "Clôture", Le Conciliabule d'Angers, p.229.
28 MILLER, J.-A. (1 994-1 995) "O nó da repetição e da pulsão". In: Silet: Ospara­
doxos da ptilsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 1 68.
29 MILLER, J.-A. (1 975) "Teoria d'alingua (rudimento)". In: Matemas I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p.55.
3 0 FREUD, S. (1 909) "Notas sobre um caso de neurose obsessiva". In: Obra.r
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v.X, Rio de
Janeiro: Imago, 1 976, p.208.
3 1 MILLER, J.-A. (1989-1 990) "El deseo dei padre". In: E/ banquete de los analis­
tas. Buenos Aires: Paidós, 2000, p. 1 07. N.T.: Em francês, no termo "ira-a-cible",
encontramos as palavras "ira", a letra a (de objeto a e a palavra "cible" ("alvo") .

1 84
Na transposição desse termo para o português - "ir-a-scível", perde-se a referên­
cia ao "alvo", embora o sentido de uma direção não deixa de ser aludido por "ir
a . ..".

32 LOMBARDI, G. "Cure d'un mutique", Le conciliabule d'Angers, op. cit., p.1 35.
33 HERGÉ, Albums de Tintin.
34 MILLER, J.-A. (1 989-1 990) "El deseo dei padre". In: E/ banquete de los analis­
Buenos Aires: Paidós, 2000, p.107.
tas.

35 Ibid.
36 LOMBARDI, G. "Cure d'un mutique". In: Le conciliabule d'Angers, op. cit., p
1 35.
37 LACAN, J. (1 973) "Proposição de 9 de outubro de 1 967 sobre o psicanalista
da Escola". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.253.
38 LACAN, J. (1972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 96.
39 MILLER, J.-A. "Matrice", Ornicar?, n.4.
40 LACAN, J. (1972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p 1 95.
4 1 Ibid, p.1 96.
42 Ibid, p.45.
43 LACAN, J. (1 9 58) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.545.
44 SCHREBER, D. P. (1 905) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1 984.
45 LACAN, J. (1958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.544.
46 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula XIII do dia 27/03/ 1 996.
47 LACAN, J. (1 958) "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p.576.
48 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula XIV do dia 3/04/1996.
49 LACAN, J. (1972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 90.
50 Ibid, p.1 96.
51 Ibid, p.1 89.

1 85
52 Ibid., p. 1 93.
53 Ibid.
54 Ibid.
55 Ibid., p. 1 98.
56 MILLER, J.-A. (1 983) "Produzir o sujeito?". In: Matemas I. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1 996, p.1 55.
57 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 99.
5 8 Ibid, p.1 90.
59 LACAN, J. (1971-1 972) O Seminário, livro 19.... ou pior. Rio de Janeiro: Zahar,
201 2.
60 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/1996.
6 1 Cf.: HENY, H., JOLIBOIS, M. e MILLER, J.-A. (ed) (1 997) Os casos raros,
inclassificáveis, da Clínica Psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1 998, p.1 25.
62 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/ 1 996.
63 LACAN, J. (1 972-1 973) ''Aristóteles e Freud: A Outra Satisfação". In: O
Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p.74.
64 MILLER, J.-A. "La fuite du sens", aula IX do dia 1 4/02/1 996.
65 N.R.: A expressão: J'en ai ras ma dent, que significa literalmente "Estou cheio
do meu dente", apresenta homofonia com o termo Ramadan, mês durante o qual
os mulçumanos devem se impor a abstinência (comida, bebida, tabaco, sexo)
entre o nascer e o pôr do sol.
66 LACAN, J. (1 972-1 973) "Letra de uma carta de almor". In: O Seminário, livro
20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p.1 06.

67 N.E.: no original, apparofe, termo criado por Lacan e no qual encontramos uma
referência à fala (paro/e) como aparelho (apparei� de gozo. A tradução aparo/a é
aquela adotada por Vera Ribeiro, Angelina Harari e Marcus André Vieira nos tex­
tos de: LACAN, Jacques. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003, p.395 e 602.
68 LACAN, J. (1 972-1 973) "O rato no labirinto". In: O Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 982, p. 1 93 (trad. mod.).

1 86
Seção Clínica de Bruxelas*

TRANSFERÊNCIA E PSICOSE NOS LIMITES

Queremos relatar aqui, para a reflexão na Convenção de


Antibes, três casos clinicas de psicoses que apresentam particulari­
dades quanto à transferência.
Em dois textos, publicados em 1 9881 e 1 9892, É ric Laurent
refletia sobre a mudança operada na IPA durante os anos 1 960. De
fato, antes dessa data, encontramos numerosos estudos sobre a psi­
cose, ao passo que, depois disso, os autores passaram a orientar suas
questões para os estados limites, incluindo os casos de desencadea­
mento sob transferência. É igualmente a partir desse período que
floresce a noção de holding como modo particular da transferência a
ser sustentado pelo analista nos estados limites e frente às persona­
lidades nardsicas, conceito que recobre o de borderline, menos grave.
O holding é uma técnica que pretende orientar a escuta analítica visan­
do o apoio da personalidade, muito mais do que a análise do mate­
rial sintomático. Grosso modo, embora haja vários usos e modalida­
des do holding, pode-se dizer que todos se ligam a uma corrente
oriunda do último desvio de Ferenczi, sobre a análise mútua.
Queremos, portanto, nos perguntar sobre o que pode ser
uma prática da transferência nesses casos, quando somos orienta­
dos pelo ensino de Lacan. Nossa resposta permanecerá parcial,
visto que é formulada a partir de três casos particulares. Esses casos
colocam a questão dos limites da transferência e da psicose.
O primeiro é um caso clássico de esquizofrenia acompa­
nhado em instituição. Nele, a transferência se organiza em torno de

1 87
muitos, mas também com uma analista em particular. Pode-se ler aí
como o trabalho feito por muitos sustenta a imagem corporal não
investida narcisicamente, mas é na transferência particular que
surge, para essa paciente, a possibilidade de se sustentar a partir de
uma nomeação.
O segundo caso é tipicamente um caso que seria chama­
do, por outros, um estado limite. Trata-se, com efeito, de um sujei­
to ligado ao Outro por uma suplência que nomeia a sua relação com
o mundo: o tumor, significante assemântico. No decorrer do trata­
mento, mas por uma razão independente deste - a cura do tumor -
produz-se um desligamento pela perda dessa suplência. A posição
do analista na transferência encontra-se, então, modificada.
No terceiro caso, trata-se de uma perturbação do humor.
A transferência é o lugar do suporte de sua historização, mas tam­
bém de seu invólucro narcísico.
Observemos que, nos três casos, a tônica maior incide, a
cada vez, sobre a elaboração significante. Que esta seja um proces­
so de organização do delírio ou, mais simplesmente, de historização
ou, ainda, uma tentativa de nomeação, trata-se sempre de tentar
organizar uma suplência de tipo sintomático, o que é muito diferen­
te de querer sustentar ou organizar a personalidade.
Observemos ainda que um desses casos coloca a questão
da transferência múltipla. Isso se produz na instituição. Mas, nem
por isso a posição da transferência no tratamento analítico com um
certo número de sujeitos é menos interessante. Lembremos que um
de nós apresentou em Angers um caso de tratamento realizado
junto a três psicanalistas, paralelamente - essa intervenção foi publi­
cada sob um pseudônimo4•
Finalmente, em alguns sujeitos, é o caso do primeiro e do
terceiro dos nossos casos, a manobra da transferência serve de
suporte ao narcisismo abalado ou inexistente do sujeito.

1 88
I. PRIMEIRO CASO

Eva tem onze anos e sempre foi esquizofrênica. Vive em


um real no qual as referências temporais, a escrita e o cálculo não
puderam se inscrever, nem mesmo o valor do dinheiro. Para ela, dez
moedas de um franco valem sempre mais do que uma moeda de
vinte; ter tomado uma vez seu remédio em casa, pela manhã, não a
impedirá de voltar a tomá-lo no Courtil, pois, uma vez mais uma
vez não é igual a duas vezes, mas uma só a cada vez.
O tema favorito de Eva é sua família. Fala disso longamen­
te e de forma muito coerente. Notemos que, para ela, sua interna­
ção no Courtil é uma exclusão da família, uma vez que é a única a
não dormir em casa, como observa.
Eva tem, de certa forma, duas faces que convivem uma
com a outra. É uma garota encantadora, extremamente educada,
que abraça e oferece balas. Consola as amigas, as acaricia e as defen­
de quando tem oportunidade. Mas, em um segundo, torna-se inju­
riosa, bate e agride o outro, pequeno ou grande, em um furor que
dá a impressão de que só se interromperá com o aniquilamento.
Uma única certeza vale, então: "o outro a chateou, xingou ou
bateu", e o que quer que lhe digamos, é ainda pior, pois se sente, de
novo, injustamente agredida. Esse furor de golpes parece não ter
encontrado, até o momento, nenhuma cessação.
Quando surgem os golpes? Quando se sente excluída da rela­
ção com outras crianças e tem a impressão de que falam dela; quando
uma criança toma um objeto que ela cobiça; quando um recém chega­
do toma um novo lugar no grupo; quando uma criança com quem ela
se encontra é agredida ou, ocupada com outra coisa, a deixa de lado;
quando se sente ofendida, às vezes sem razão aparente, alucinatoria­
mente. Portanto, tudo o que irrompe entre ela e o outro, seja uma pes­
soa ou um objeto a que está imaginariamente ligada, provoca uma ten­
são agressiva que pode chegar à destruição do intruso, até mesmo a
própria criança a quem estava ligada, se esta romper a ligação.

1 89
Levantamos a hipótese de que os golpes são a realização
da figura paterna do gozo, essa dos chutes "na bunda". Para fazer
um pai edipiano que introduz a lei e o desejo, são necessárias duas
figuras paternas: o pai do gozo e o pai proibidor. No caso de Eva,
somente o pai do gozo funciona. No momento em que o eixo ima­
ginário que a sustenta é rompido, ali onde o pai proibidor deveria
vir regular o mundo sustentando a lei, há apenas o pai feroz que
surge em seu furor sem limites. Não é de uma identificação com o
pai que se trata, mas de um retorno da ferocidade do pai no real.
Nenhum apelo à lei, portanto, surte efeito nesses momentos, nem a
interdição, a punição ou o diretor da instituição interrompem o pro­
cesso; até mesmo ao contrário, sustentam-no e o reforçam. Em sua
última visita ao diretor, que a repreendeu s eriamente, Eva disse à
atendente que a acompanhava durante a advertência: "Esse aí é
louco!", posição eminentemente irônica que mostra claramente a ine­
xistência do Outro ao denunciar o semblante. Ela está às voltas
somente com um Outro louco, desregrado, um Outro real, aquele
do gozo.
O que pode vir, então, tamponar isso? Algumas mulheres
da equipe investidas por Eva podem limitar as irrupções de golpes,
muito embora não o consigam sempre. Com elas é um verdadeiro
enrosco físico, um agarramento ao corpo do Outro. Ela se joga nos
braços, se faz envolver e acarinhar. Fora da instituição, anda ao lado
da atendente apoiando-se em seu braço, fingindo cair para ser
levantada. Pede que a vistam e lavem o s eu cabelo no banho. É
encantadora e cooperativa. Eva se sustenta numa figura materna, e
esse enrosco a envelopa, a segura, a constitui. Pode, então, passar
noites tranquilas, desapegar-se do apoio imaginário que encontrava
junto dos outros e evitar o insuportável que a precipitaria nos gol­
pes. Mas, mesmo que se conseguisse fortalec er esse agarramento e
o seu consequente apaziguamento, conseguiríamos generalizá-lo em
outros momentos e lugares? Dessa bengala imaginária de que Eva
se serve atualmente para revestir seu corpo e fazê-lo se sustentar,

1 90
podemos esperar fazer suplência? No entanto, parece que contra a
ferocidade do pai a única arma possível é um furor de ternuras.
O lugar que Eva pede para a atendente ocupar é justamen­
te esse que vai ajudá-la a se constituir enquanto ser vestido, paliati­
vo ao corpo despedaçado, introduzindo um obstáculo ao surgimen­
to do gozo desenfreado. Isso possibilita que Eva constitua para si
um novo lugar no mundo que não seja mais aquele do ser de deje­
to, que sempre toma golpes dos outros, que é excluída da família ou
do grupo, objeto dejeto do Outro.
O que se relatou até aqui diz respeito a uma posição trans­
ferencial que pode ser ocupada por vários atendentes da equipe.
Abordemos agora a especificidade da transferência que
Eva estabeleceu com uma atendente da instituição, que chamare­
mos de K., e as condições que nortearam sua instalação.
Primeiro momento: em uma noite de confusão no grupo,
K. toma a decisão de restabelecer a ordem energicamente. Pune
uma criança e depois outra, mas não pune Eva. Toda vez que Eva
se sente visada, K. responde que não está lhe dando uma bronca. K.
a deixa em crise no chão, deitada, chorando e batendo os pés. Volta,

em seguida, para perto dela, preocupada com seu estado. Em pran­


tos, Eva explica que em casa ela também tem crises, que os outros
a aborrecem, mas é ela quem leva a pior.

Segundo momento: depois de ter dado vários golpes vio­


lentos em diversas pessoas, Eva é levada ao diretor para ser reenvia­
da à sua casa. K. a encontra na recepção para acompanhá-la, e ela,
então, chora em seus braços, desculpando-se.
Terceiro momento: durante um passeio, Eva passará todo
o tempo de braços dados com K., deixando-se às vezes despencar

no chão, com o pretexto de dor nos pés. K. a levanta a cada vez,


garantindo-lhe que não a abandonará (laisser tomber) .
Quarto momento: Eva pede que K. seja sua "fiadora" e
escreve uma carta endereçada à reunião que oficializará, em segui­
da, seu pedido.

191
Quinto momento: Eva diz, agora, a cada encontro com
K.: "Você é minha fiadora". Fala disso aos outros, atribuindo gran­
de importância ao fato. Quando uma criança maltrata K., ela adver­
te: "Não toque em minha fiadora". Um enunciado ainda mais sur­
preendente foi dito a uma terceira pessoa ao designar K.: "Eu sou
a sua fiadora", enunciado inicialmente taxado de transitivista, mas
do qual, a posteriori, pode-se perguntar se não é muito mais uma ten­
tativa de nomeação de sua posição em referência ao Outro. Esse
lugar de fiadora, que não atribui ao outro diretamente uma identifi­
cação permitirá, talvez, a abertura suficiente sobre um "x" que
poderia, então, tentar nomear-se, circunscrever-se em uma constru­
ção identificatória que viria revestir o objeto e barrar o gozo - não
mais pontualmente, na presença do Outro, mas que se inscreveria e
funcionaria fora dessa presença. Se, apesar da falta de inscrição sim­
bólica tão patente nessa criança, a função de fiadora, que ela mesma
solicitou, pôde se inscrever, não é impensável que uma identificação
possa, em compensação, se construir e operar como suplência, e
não mais como bengala imaginária, na falta do simbólico.
O dizer não ao gozo não seria aqui gritar mais forte que o
supereu - figura do gozo paterno - mas proteger, envolver, reves­
tir, erguer muralhas de amabilidades contra essa ferocidade.

11. SEGUNDO CASO

Trata-se do tratamento de uma mulher psicótica que con­


duz seu analista de surpresa em surpresa, ao ritmo das surpresas
que ela mesma encontra. A palavra "tratamento" deve ser tomada
aqui entre aspas: os encontros com esse sujeito situam-se ora do
lado das preliminares a qualquer tratamento da psicose, ora do
lado das soluções que ele mesmo encontra na medida em que
caminha. Nesse ponto, ele converge para a via que Lacan nos indi­
ca. A moça, que consulta seu analista há mais ou menos dez anos,

1 92
introduz uma curiosa distorção na maneira de tratar aquilo que a
surpreende.
O significante assemântico é um significante sozinho.
Poderia ser, por exemplo, para a paciente em questão, a palavra
"tumor", tal como se inscreve em uma série sem fim, onde "tu mor­
res (tu meurs), tu mentes (tu mens); eu me minto (je me mens), eu me
mato (je me tue), tu me matas (tu me tues)", só valem por sua materia­
lidade sonora como restos não simbolizados da língua materna. O
significante assemântico vale como instrumento de gozo. Vem, por
esse fato, no lugar do que falta no Outro.
Essa moça, de aproximadamente trinta anos de idade, fora
operada de um tumor maligno no cérebro. Os médicos lhe disseram
que era preciso esperar cinco anos para que pudesse se considerar fora
de perigo. Angústias de morte e afetos depressivos levaram-na a con­
sultar um psiquiatra, que lhe prescreveu uma psicanálise. Essa pacien­
te havia acabado de ler Mars, de Fritz Horn. É a história de um pacien­
te acometido por um câncer que o leva à morte, e que tenta, com a
ajuda de sua biografia, delinear as causas psicológicas de sua doença.
Essa mulher enuncia, logo de saída, que espera de uma
psicanálise que esta lhe confirme a origem psicológica de seu tumor,
e que isso a torne imune contra uma recaída. A certeza dessa alega­

ção leva o analista a acolher essa demanda com muita reserva.


Foram necessários anos de reconstrução de sua história para que
aparecesse a dimensão delirante dessa alegação. O conteúdo das
sessões revelou-se muito diferente conforme estivéssemos antes ou
depois da data fatídica. Antes, é a reconstrução de sua história em
torno do significante "tumor" que domina e polariza seus dizeres.
Depois dessa data limite, a coisa será completamente diferente: a
paciente desenvolve, a partir daí, uma série de fenômenos elemen­
tares que farão aparecer em quê esse tumor lhe servira.
Ela situa seu primeiro mal encontro com o Outro no
momento de uma morte da qual é testemunha. Sua profissão leva­
ra-a a assistir a uma operação médica que terminara com a morte

1 93
do paciente. 'Poder-se-ia pensar quefoipor minha causa, disse ela, porque a
pessoa responsável tem a mesma cor de cabelo que eu, e um nome que se parece
com o meu. É como meu pai. O destino dele também é marcado por uma his­
tória de nome. O segundo nome de meu pai é Anastase, que quer dizer imor­
tal. Ele era dono de umafunerária. O primeiro nome de meu pai é "Léopold'�·
ele preferia que o chamassem Pol. Paul é o ex-namorado de minha mãe; Léa, é
a ex-namorada de meu pai. Eles se casaram no momento em que ambos esta­
vam no luto de uma relação anterior. Pedindo para que o chamassem de Po�
meu pai abandonou Léa. " Essa analisante fazia frequentemente varia­
ções dessa ordem, colocando em primeiro lugar o que o sentido
deve à materialidade sonora dos significantes.
Esse episódio antecede um outro acontecimento que
duplica a impressão que ela tem de ser culpada. Um de seus
irmãos havia se suicidado depois de uma briga com ela. Sente-se
responsável por esse suicídio, exatamente como se sentira respon­
sável por não ter podido salvar, alguns anos antes, uma de suas
irmãs que acabara igualmente de se suicidar. Descobriu-.se, pouco
tempo depois, que ela tinha um tumor no cérebro, do qual foi
operada com urgência.
Essa mulher irá explorar obstinadamente os determinan­
tes simbólicos de seu tumor, ao ponto de descobrir o que se apre­
senta a ela como uma certeza. Seu tumor decorre do lugar que sua
mãe lhe deu: ocupar o lugar de um morto. Ela passou muito tempo
a desdobrar essa certeza referindo-a a sua história, a seus sonhos e
aos dizeres de sua mãe. Antes de seu nascimento, sua mãe perdeu
gêmeos dos quais estava grávida. Esse aborto espontâneo teria sido
causado por uma queda da escada provocada por uma criança, ou
por uma bola que um de seus ftlhos teria jogado acidentalmente.
Ela nasceu dez meses mais tarde e recebeu um nome duplo, que
retoma os nomes dos gêmeos. Acredita ter tido, ela mesma, uma
irmã gêmea que teria morrido ao nascer, mas não encontrou traços
disso nos registros de nascimento. Aproxima, finalmente, as cir­
cunstâncias de seu nascimento com o que se passara com sua mãe.

1 94
''M.inha mãe me disse que eía mesma fora concebida no caso de que sua irmã
viesse a morrer. Ela era como eu, uma criança reserva".
Estávamos nesse momento de sua análise em um univer­
so sem surpresas. Tudo aí já estava determinado. Mas, então, que
estatuto dar a esses cinco anos passados na reconstrução de uma
história? O tumor cerebral e sua recuperação por meio de uma
reconstrução histórica parecem ter-lhe permitido tomar alguma dis­
tância em relação a um Outro bastante inquietante, a menos que
essa reconstrução fosse, ela mesma, delirante.
A questão que tudo isso colocou foi de saber se convinha
ou não seguir no sentido dessa construção. Reconstruir a história
equivale a atribuir a cada um o lugar que ele ocupa. Em que lugar
convinha ao psicanalista se colocar, e, sobretudo, em que lugar con­
vinha a ele não se colocar? O que regia esse momento dos encon­
tros era uma certeza. ''M.inha mãe sabe. Ela não suportava a mentira. Ela
sabe e eu não sei". O tumor não faz enigma para essa analisante.
A paciente se casa depois de alguns anos de análise e dá à
luz a um menino. Sua mãe morre no dia seguinte, depois de ter visto
a fotografia do neto. ''M.inha mãe me deixou seu lugar. É como se eu pen­
sasse que ainda não nasci". É nessa época que ela fica sabendo, pelos
médicos, que não corre mais risco de recidiva.
Até esse momento, as coisas iam bem para ela, apesar de
todo o contexto dramático com o qual envolve seu tumor. Casou­
se, é mãe de uma criança, renuncia a uma atividade profissional
muito ligada à morte para dedicar-se a um trabalho de tradutora e
documentalista. Inegavelmente, o fato de ter reconstruído sua his­
tória em torno de uma certeza, "Ocupo o lugar de um morto ", a apazi­
guara. Porém, o nascimento de seu filho, a morte de sua mãe, jun­
tamente com o comunicado de sua cura, inauguram um quadro clí­
nico completamente diferente. O que acelerou a regressão imaginá­
ria? Será a palavra do médico anunciando-lhe, após cinco anos, que
o risco de recidiva estava afastado? Ou será o acontecimento que
une o nascimento de seu filho e a morte de sua mãe?

195
O apoio que ela encontrava no significante "tumor" de
repente lhe falta, revelando, ao mesmo tempo, em quê ele lhe ser­
via. Esse tumor tinha, para ela, valor de ponto de basta. Esse tumor
parece ter tido para ela o mesmo estatuto de uma metáfora deliran­
te, com a diferença que ela teria se passado no real do corpo. Esse
tumor lhe assegurava um ponto de ancoragem no campo do Outro,
que ela não parou de consolidar fazendo referência à sua história. A
cura do tumor lhe tirou esse ponto de ancoragem. Ela se viu, de
repente, confrontada com um Outro gozador.
Este se apresenta, desde então, sob as mais diversas for­
mas. Ouve vozes que a xingam de safada, que lhe dizem "tu men­
tes", ou ainda, que deve se matar (se tuer). Sente-se espionada. As
pessoas lhe fazem sinais que não entende e que lhe amedrontam.
Constata que objetos desaparecem de sua casa, ou ainda que a qui­
lometragem de seu carro mudou. Tem a impressão de que alguém
está entrando em sua casa ou andando com o seu carro. Encontra
comprimidos em sua casa e teme que um estranho tente fazer de
seu filho de quatro anos um drogado.
A intrusão do Outro é onipresente em seu universo. O que
domina o quadro nesse caso é uma total incompreensão do que lhe
acontece. A perplexidade e também a angústia que acompanham
todos esses fenômenos fazem com que ela pense nisso continua­
mente. Essa figura do Outro toma na transferência uma forma
inversa, oferecendo, ao mesmo tempo, ao analista uma estreita, mas
real, margem de manobra: '3'e não acreditarem em mim} eu me mato (je
me tue) J� diz repetidamente. Não acreditar nela equivale, para ela, a
uma condenação à morte. Da letra "tumor" (tumeur) ao significante
"matar" (tuer) se traça toda uma série de signos que só tem sentido
pela proximidade sonora: tu morres (tu meurs), tu mentes (tu mens),
eu me mato (je me tue), tu me matas (tu me tues), etc.
A clinica do desligamento também se manifesta, por
exemplo, nesses sujeitos que não podem terminar uma frase ou que
não conseguem encerrar a sessão. Isso é particularmente patente

1 96
nesta paciente. Os finais de sessão lhe colocam tanta dificuldade
que ela continua falando mesmo depois que o analista se levanta, e
depois na soleira da porta e ainda no corredor. O abandono do
Outro, ou ainda, a perda de um bom uso do ponto de basta, é mar­
cado por uma dificuldade e até mesmo uma recusa em concluir.
Jacques-Alain Miller chegou a se perguntar, em Arcachon, se não
podíamos considerar essa dificuldade com o ponto de basta como
um fenômeno elementar, tal qual as alucinações, os neologismos e
a certeza psicótica.
Buscar o que há de mais singular nas pequenas invenções
de um sujeito coloca-nos na via do tratamento que ele já encontrou.
Na presente situação clínica, tratava-se principalmente de levar a
sério uma indicação que ela dava ao analista: '�e não acreditarem em
mim, eu me mato ". Acompanhá-la na via da reconstrução de um
mundo habitável passa por levar em conta seu delírio. O verdadei­
ro leitmotiv de sua vida deve ser tomado como um apelo de que exis­
tam pequenos outros que levem a sério seu delírio, seus fenômenos
psicóticos, que são a solução que ela encontrou para não morrer. A
posição do psicanalista é, nesse caso, bastante reduzida. De supor­
te passivo do saber que ela supunha ao seu tumor, o psicanalista
viu-se reduzido a ter que sustentar a posição de ao-menos-um a
acreditar nela, nem demais nem muito pouco.
Dois tipos de intervenções se deduzem daí, segundo ela se dê
no nível do significante ou no nível do gozo. No nível do significante,
ali onde o psicótico solicita um Outro que sabe, um Outro a partir de
então persecutório, o psicanalista poderia ficar tentado a tomar a des­
completude do Outro sobre si. Poderia ficar tentado, como alguns sus­
tentaram, a operar sobre a falta no Outro se apresentando, ele mesmo,
como faltoso. O que surge, de imediato, é que tal manobra não pode
ser feita nem pensada senão a partir de um lugar de exceção, de um
lugar onde o Outro não seria, justamente, faltoso. Tomar a falta sobre
si só é possível a partir de um lugar em que o Outro sabe, pois é pre­
cisamente isso que é patogênico para o psicótico.

1 97
Se o sujeito suposto saber é patogênico para o sujeito psi­
cótico, importa que o analista possa, sobre esse ponto, optar por
uma posição de abstenção. Descompletar o O utro é, em primeiro
lugar, intervir de um lugar onde isso não se sabe. Isso pode tomar
uma forma muito concreta. É, por exemplo, recusar toda mensa­
gem de esperança, toda forma de promessa. Prometer a um sujeito
psicótico dias futuros mais felizes pode, eventualmente, precipitá-lo
em uma passagem ao ato para desmenti-lo.
Descompletar o Outro pode ser também introduzir sua
divisão no real. Não se dirigir diretamente ao psicótico pode ser
uma forma concreta de introduzir no real uma falta no Outro5•
Desdobrar o interlocutor ali onde o psicótico situa o Outro de seu
delírio, constitui uma outra maneira de intervir6•
Colette Soler propõe um tipo de intervenção que procede
do que ela chama "orientação do gozo"7• Tratar-se-ia, nesse caso,
por um lado, de introduzir um limite ao gozo quando este se faz
invasivo e destrutivo, e, por outro lado, sustentar o gozo quando
este se abre no sentido de uma realização efetiva do sujeito.
O que quer dizer limitar o gozo? Essa paciente construiu
para si, por meio de seu delírio, um Outro que quer a sua morte. É,
portanto, esse Outro que deve ser destituído. Destituir o Outro do
gozo pode tomar formas muito concretas. Pode tomar a forma de
uma lenta restauração do Outro da alienação a partir da localização
dos signos e das marcas que esse Outro deixou na história do sujei­
to. Isso consiste também em sustentar o sujeito nas pequenas inven­
ções que ele instaura para se defender desse Outro gozador: assoar
o nariz para não ouvir vozes, substituir o telefone com fio por um
celular, menos propício ao transporte de vozes, ensinar seu filho a
fazer tranças com pedaços de corda que um desconhecido teria
usado para tentar enforcá-lo, delimitar a função dos diferentes
cômodos da casa a partir de um jogo de construção, etc. Uma
forma de destituir o Outro poderia ser, aqui, trazê-lo de volta para
o terreno dos jogos infantis.

1 98
111. TERCEIRO CASO

Quando o senhor B., um maníaco-depressivo, encontra


sua analista pela primeira vez, ele está à procura de alguém "que escu­
te suas construções e que não tenha medo ". Tem trinta e dois anos e vive
em um abrigo de pós-tratamento há três meses.
Foi hospitalizado pela primeira vez aos dezessete anos.
Seus pais haviam se recusado a comprar para ele um par de sapatos
igual ao do namorado. A perda dessa relação especular com o
namorado levou-o ao hospital. Ele descreve tal hospitalização como
um inferno, um campo de concentração. Sua vida é, em seguida,
pontuada por tentativas de volta à vida social (trabalho, vida comum
com um homem, etc.), tentativas que terminam todas em fracassos
e em novas hospitalizações.
No início de sua análise perde dois empregos, pois fica
nervoso com os clientes e responde-lhes rispidamente. Fica um ano
sem trabalho, abandona o abrigo de pós-tratamento e se inscreve
para obter um apartamento supervisionado. Duas coisas o susten­
tam durante esse momento difícil: o pagamento de suas dívidas a
terceiros e o relato, ao longo das sessões, de suas dificuldades de
viver, da vida pobre que leva por causa de sua falta de dinheiro e do
vazio de sua vida afetiva.
Em seguida, encontra um trabalho e se instala em um apar­
tamento. Leva adiante seu trabalho há mais de três anos, o que nunca
lhe acontecera, e não é hospitalizado há cinco anos, o que também
nunca lhe acontecera desde sua primeira hospitalização. Isso se deve,
parece, a três elementos: a uma construção subjetiva, a sua homos­
sexualidade como sintoma e às modalidades da transferência.
Ele dá início a uma construção do manejo do dinheiro que
alterna entre gastos em momentos de excitação e pagamentos em
seguida. Os pagamentos são momentos difíceis que ocupam todo
seu tempo e sua mente. Para sua analista está também sempre
devendo algumas sessões, que são pagas rigorosamente.

1 99
A homossexualidade como sintoma forma um ponto de
tensão entre seus ideais (família, ftlhos, mulher, etc.) e sua vida nas
saunas, nos parques e bares em uma busca declarada, mas não assu­
mida, de uma relação afetiva estável.
Sua transferência à psicanálise toma um lugar estabiliza­
dor. Ele trabalha em sua análise. Uma intervenção de sua analista:
'Venha, faço questão que o trabalho continue", faz com que retome as
consultas: �h! Então eu irei". Ressaltemos que é ele quem conduz
essa análise: "Hqje, será uma análisefreudiana", diz; ou então: "hqje, será
uma análise psicometaftsica ". No entanto, a psicanalista e stá ali e o
enquadre se mantém; este enquadre é flexível, mas não cede a seus
"caprichos". Como ele mesmo diz, ele "não poderá comprar sua psica­
nálise como se compra uma cadeira ".
O psiquiatra trata sua psicose maníaco-depressiva com
medicamentos. O paciente considera que é uma doença, como a
diabetes, por exemplo, mas que não o define, não é um "você é
isso". A psicanálise, ao contrário, permite-lhe buscar quem ele é e
como se arranjar com suas tensões.
A psicanalista faz poucas interpretações e propõe, sobre­
tudo, uma escuta dessa palavra endereçada. Ela intervém oportuna­
mente para esvaziar um cenário como esse que ele elaborara ao
começar seu novo trabalho: �credito que estou me tornando o filho espi­
ritual de meupatrão!". Ela fez, então, com que ele observasse que fora
contratado somente para trabalhar.
Esse trabalho de análise é, em parte, a oferta de um supor­
te narcísico na busca de um laço social desse paciente.

200
Notas


Relator: Alexandre Stevens
1 LAURENT, É. "Limites de la psychose", Lesp�chiatres et la p�chana!Jse al!fourd'hui,
GRAPP, 1 988.
2 LAURENT, É. "Aux limites de la psychose: discussion de trois cas", Les Feuillets
du Courtil, n. l .
3 Ver: ASSOCIATION MUNDIAL D E PSYCHANALYSE (ed.). Les pouvoirs de
Le Seuil, 1 996.
la paro/e,

4 ZERGHEM, M. "La pratique à plusieurs - Dédoublements de l'analyste", Le


conciliabule d'Angers, Agalma-Le Seuil, Le Paon, 1 997.
5 ZENONI, A. "Clinique d'un enfant psychotique", Préliminaire, n.4.
6 KUSNIEREK, M. "lntroduction aux Journées du RP".
7 SOLER, C. "Quelle place pour l'analyste ?", Actes de ECF, XIII, p.30.

Z0 1
Antenne Clin(que de Toulouse*

O PSICANALISTA COMO AJUDA-CONTRA

O que é um percurso analítico? Poder-se-ia descrevê-lo,


com Lacan, partindo do destino do sintoma no tratamento, do
complemento de saber à função de enodamento, ou seja, do "sinto­
ma patológico" - aquele do qual o sujeito se queixa e pelo qual sofre
- até a sua armadura - o sinthoma, o resíduo que sobrevive a seu
deciframento e à interpretação.
Se essa perspectiva pode ser tida como invariável em
Lacan, ela coloca, contudo, três questões:
1 . Como e em que condições se efetua essa passagem do
sintoma ao sinthoma?
2. Qual é a função e qual é o destino do agente dessa ope­
ração, o analista?
3. Esse processo é rigorosamente o mesmo, e o analista
mantém o mesmo lugar de acordo com a estrutura do sujeito, seja
ela a neurose ou a psicose?
Desejamos trazer uma contribuição para a solução da ter­
ceira questão.

I. DO COMPLEMENTO DE SABER À FUNÇ Ã O DE ENODAMENTO

Tomemos como ponto de partida o que propõe Lacan,


em 1 966, no relatório de seu Seminário Prob/emes cruciaux pour la
p.rychanafyse:

203
''Adificuldade de ser do psicanalista decorre daquilo que ele encontra
como ser do sujeito: a saber, o sintoma.
Que o sintoma seja ser-da-verdade, é nisso que todos consentem, por
sabermos o que quer dizer psicanálise, não importa o que se faça para
embaralhá-la.
Donde vemos o que custa, para o ser-do-saber, reconhecer as for­
mas afortunadas daquilo com que ele só se acopla sob o signo do
infortúnio.
Que esse ser-do-saber tenha que se reduzir a ser apenas o complemen­
to do sintoma, eis o que o horroriza e aquilo que, ao elidi-lo, ele faz
funcionar no sentido de um adiamento indefinido do estatuto da psi­
canálise como científica, entenda-se"'.

Salientemos simplesmente aqui o lugar e a função inaugu­


rais do analista. É como ser-do-saber que ele entra no processo ana­
lítico para completar o ser-de-verdade do sintoma. É essa comple­
mentação, portanto, que enlaça sintoma e transferência, fazendo do
sintoma inicialmente incompleto um sintoma sob transferência. O
fato de que o analista venha a ocupar, em seguida, a função de sem­
blante do objeto a, não desenlaça ipsofacto aquilo que estava enlaça­
do. É porque a complementação do sintoma pelo ser-de-saber do
analista vai colocar o sintoma na dependência direta da transferên­
cia. No processo assim iniciado, o sintoma pode ser decifrado e
reduzido, mas não poderia atingir sua função de sinthoma senão com
a condição de que seu deciframento seja "concomitante a um pro­
cesso de resolução da transferência"2•
Assim, esvaziado de seu sentido, seu gozo sendo desvalo­
rizado, o sintoma torna-se sinthoma, ou seja, um sintoma que acome­
te o fora-do-discurso - um sintoma que vira as costas e dispensa
todo ser-de-saber, um sintoma fechado ao artifício psicanalítico e
reduzido a uma dupla função: função topológica - de enodamento
-, e função de gozo - da letra. Mas, para esta última, deciframento
e resolução da transferência permanecem insuficientes. É preciso aí
uma outra condição que Lacan enuncia em "Lituraterra": "... só se
goza com isso ao chover aí a fala de interpretaçãom.

204
Pode-se considerar, no caso da neurose, que o psicanalista
que foi complemento do sintoma no início da experiência assim
permaneça ao seu término, uma vez que o sintoma se reduz à sua
armadura?
Parece antes que a noção de sinthoma objeta a qualquer
ideia de complemento - em particular complemento de saber -, e
que a resolução da transferência fecha definitivamente o
sintoma/ sinthoma ao acesso do Outro, estabelecendo uma nova
forma de autismo do gozo, aquele da letra que satura a função do
sintoma: I: (x).
No entanto, isso se coloca diferentemente nos casos de
psicoses, desencadeadas ou não.
É notável que seja em seu seminário sobre Joyce que
Lacan tenha estabelecido mais claramente a função do analista não
mais como "complemento" do sintoma, mas como sinthoma.
Lacan considera que o psicanalista só pode se conceber
como sintoma, ou seja, no final das contas, "uma ajuda da qual, nos
termos do Gênesis, pode-se dizer que é uma reviravolta". Uma revi­
ravolta em relação ao sintoma analítico, ao sintoma do analisante
completado pelo sujeito suposto saber. Aí, o analista, como sinto­
ma, faz ex-sistir aquilo contra o que o inconsciente do sujeito ana­
lisante possa se apoiar. Apoio que Lacan faz jogar com pensar, falan­
do de appensamento. Apoia-se contra um significante para pensar. Para
Lacan, o nó borromeano é apoio para o appensamento de quê? Do
furo freudiano, do qual a hipótese do inconsciente toma seu supor­
te. Que esse furo - por onde se revela que não há Outro do Outro
- possa fornecer uma ajuda, uma ajuda contra o inconsciente
homossexual, tal é a reviravolta lacaniana do analista-sinthoma.
Essa afirmação, se ela é generalizável a toda psicanálise,
vale mais particularmente para a clínica da psicose, mas com a con­
dição de definir topologicamente as psicoses como falta ou dificul­
dade de enodamento dos elementos da estrutura - psicoses da
infância -, ou como acidente de desenodamento - psicoses adultas.

205
Parece claro, a partir daí, que a perspectiva borromeana da psicose
exclui a hipótese de uma complementação do sintoma psicótico
pelo ser-de-saber do psicanalista. Para isso há, pelo menos, duas
razões. Por um lado, contrariamente ao sintoma neurótico, o sinto­
ma psicótico é menos um ser-de-verdade do que um ser-de-gozo.
De fato, o ser-de-verdade é o outro nome da metáfora do sintoma
na medida em que a metáfora do recalque é constitutiva do campo
da verdade. Se o sintoma neurótico é um ser-de-verdade, é na estri­
ta medida em que é um retorno do recalcado e tem a estrutura de
metáfora. Sabe-se que não acontece o mesmo para o sintoma psi­
cótico que procede da foraclusão. O que faz retorno no real pode
ser nomeado de outro modo senão como ser-de-gozo?
É, portanto, pela mesma razão que o sintoma psicótico
não se interpreta, que ele não se complementa. Por outro lado, nas
psicoses, trata-se quase sempre de obter um enodamento ali onde
ele tem dificuldade de se efetuar, de evitar um desenodamento ali
onde o sujeito corre um risco ou de ajudar a refazer um nó ali
onde o anterior se desenodou - como nas psicoses adultas desen­
cadeadas.
Na neurose, a operação do analista visa obter a correção
do nó que se realiza com a passagem do sintoma ao sinthoma. Na
psicose, porque não há análise - não há deciframento do sintoma,
não há construção da fantasia, não há resolução da transferência,
não há interpretação -, é o próprio analista que é convocado no
lugar do sintoma. De fato, nenhuma elaboração significante, nenhu­
ma pacificação do gozo, nenhuma estabilização é suficiente para
fazer passar o sintoma psicótico ao sinthoma. Se, na neurose, o ana­
lista satura a função do sujeito suposto saber, não seria o caso de
dizer que, na clínica das psicoses, é a função de sinthoma que ele é
convocado a suportar?
É preciso ressaltar que essa posição do analista-sinthoma
que Lacan define na lição do dia 1 3 de abril de 1 976 não é especifi­
camente reservada à análise do sujeito psicótico. No entanto, não

206
podemos senão ficar surpreendidos pelo fato de que sua lógica não
contradiga isso, muito pelo contrário. É como se Lacan tivesse se
servido da psicose, em seus últimos Seminários, para redefinir os
conceitos da psicanálise. Assim, a posição do analista-sinthoma vale
tanto para a neurose quanto para a psicose. Aí, há continuidade; não
da neurose à psicose, mas, antes, continuidade na posição do analis­
ta, pois ela é fundada a partir da psicose tomada como modelo das
relações do sujeito com o Outro e com o gozo.
Ali onde Freud só sustenta sua hipótese do inconsciente
supondo o Nome-do-Pai - a pessoa suposta ao recalcamento, o
recalque em pessoa -, Lacan faz do sinthoma uma resposta que vale
como uma ajuda contra o complexo de Édipo. Ajuda contra pela
qual "a psicanálise, por ser bem sucedida, prova que podemos
muito bem prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de nos ser­
virmos dele".
Eis aqui o axioma lacaniano que deveria ser colocado à
prova da análise com o psicótico, que é muito mais desprovido do
que o neurótico do Nome-do-Pai. Ao neurótico, pouco importa
servir-se do Nome-do-Pai, pois prescindir dele quase não lhe faz
diferença. Mas o psicótico, como fazer para que ele se sirva disso de
que ele poderia prescindir, se isso não lhe faltasse cruelmente?
Seria necessário, então, que o analista fosse, como sinthoma,
uma ajuda contra o que o impele na direção d'A mulher em seu
encontro com Um-pai, uma ajuda contra seu "sem razão" que lhe
serve de apoio contra o significante do Outro que não existe, S (A).
Dois casos clínicos examinados do ponto de vista da dinâ­
mica transferencial nos ensinam que, a partir do momento em que
se considera o final da análise, pode-se concernir um para além do
Édipo.

207
11. "N Ã O SOU MAIS UMA MULHER"

Vários tempos escandem o modo de aproximação da Sra.


A. em direção à psicanálise. No primeiro momento, ela encontra a
psicanálise por ocasião de um sintoma de seu filho pequeno.
Percebe que está implicada no sintoma desta criança, que nasceu
pouco tempo após a morte de seu marido, e que reage ao luto no
qual ela se mantém. O sintoma do filho, embora bastante espetacu­
lar, cedeu rapidamente, criando na mãe um certo encantamento
face ao poder da palavra.
O analista não vê utilidade em prolongar as entrevistas,
pois parece que a criança não tem mais grande coisa a dizer, fican­
do aliviada somente pelo fato de que sua mãe encontrou um início
de solução para além dela. Portanto, não tem mais necessidade de
levar adiante seu sintoma para sustentar essa mãe.
Um pouco depois, a mãe retomará o contato, desta vez
para ela mesma, pois não precisa mais usar a questão de seu filho
como sintoma. Sente, contudo, necessidade de falar: as entrevistas
enfatizaram a hiância criada pelo falecimento de seu marido. Evoca
os despertares penosos que vêm escandir o desaparecimento desse
homem que encontra em seus sonhos cotidianamente. É com muita
dificuldade que confia o teor desses sonhos, como se, falando deles,
ela traísse o falecido. Instala-se, então, uma certa reticência em se
engajar na relação transferencial porque ela vem em concorrência a
esse luto impossível de fazer.
Um momento crucial marca a entrada da Sra. A. no pro­
cesso transferencial. Está claro, então, que a Sra. A. vem por ela
mesma, seu filho não lhe coloca mais problemas e a morte do mari­
do não aparece mais como a única origem de seus males. Nesse dia,
a Sra. A. fala de um mal-estar que carrega desde a adolescência e do
qual nunca havia falado.
Tinha então dezoito anos e acabara de passar no vestibu­
lar. Era verão, seu pai e sua mãe se reuniram após muito tempo de

208
separação devido à profissão do pai, que trabalhava no estrangeiro
(en expatrie). A família alugou uma casa de campo de uma proprietá­
ria que, ouviu-se dizer, acabara de morrer de um tumor no cérebro,
sendo essa a única sombra no quadro desse verão que poderia ser
idílico. A moça está, portanto, na praia, aproveitando o sol e, de
repente, sente algo indefinível: o mundo lhe parece estranho, e ime­
diatamente sente-se estranha a ela mesma. Não fala a ninguém
sobre o episódio do qual leva dois anos para se recuperar sem a
ajuda de ninguém. Diz, então, nunca ter sofrido tanto na vida.
Conclui essa sessão dizendo que tinha claramente a impressão de
que tudo isso era da ordem da loucura e, sobretudo, que sempre
havia pensado em nunca contar isso a um especialista, que poderia
etiquetá-la.
Percebe que essa angústia nunca a abandonou completa­
mente, sempre está ali, pronta para surgir, precisamente nos
momentos em que, por conta de sua profissão, é levada a tomar a
palavra em público. Fica, em alguns momentos, à beira do desliga­
mento, e teme ser desvelada em uma posição de impostura.
O relato de sua angústia de adolescente marca, portanto,
uma virada no tratamento. A Sra. A. vai desdobrar a partir daí algu­
mas das identificações que prevaleceram em seu ambiente familiar,
até chegar a seu irmão mais velho natimorto que teria sido necessá­
rio substituir no desejo de sua mãe.
A liberação desse ponto faz com que recue. Por que razão
remoer essas velhas histórias? Viera pela saúde de seu ftlho, ele está
bem agora. Pode ir embora.
Apesar de tudo, ela volta, mas de novo acompanhada de
seu ftlho e por uma razão bastante banal: ninguém podia tomar
conta do garoto naquele dia.
O analista escolhe deixar de lado o garoto e a Sra. A. não
pode mais recuar em relação a falar do segredo de família que pro­
cura calar, já há algum tempo, e que diz respeito à vida íntima do
avô paterno que teve o papel de patriarca. Este segredo desvelado

209
sublinha a impostura dessa figura patriarcal e a dificuldade da Sra.
A. em se localizar na questão: o que é uma mulher? Faltou pouco,
nesse dia, para que a presença do garoto impedisse a Sra. A. de che­
gar a esse indizível.
A Sra. A. fica aliviada de ter podido colocar uma palavra
sobre essa situação familiar do avô. Mas pouco depois dessa sessão,
ela volta a desaparecer.
Voltará, muito angustiada, seis meses mais tarde. Um
acontecimento de sua vida de mulher acaba de lembrar-lhe a angús­
tia sentida frente a sua mãe, que acabara de ser submetida a uma his­
terectomia: 'Tiraram-me tudo) não sou mais uma mulher)), dissera ela a
sua ftlha. Ora, a Sra. A. fora ·tomada por essa frase sem compreen­
der seu sentido. Lembra-se que após esse episódio tivera o que cha­
mam de "crise de nervos"; depois, que uma angústia surgira alguns
dias mais tarde: a impressão súbita de ser masculina. Essa sensação
sinestésica angustiante voltou regularmente, sendo acompanhada
por um sentimento de vergonha. Era preciso esconder isso de qual­
quer jeito.
Permaneceu, portanto, sozinha com essa sensação, que
voltava de vez em quando e que desencadeava muita angústia. Hoje,
faz o laço entre essa sensação corporal e a frase de sua mãe que
havia desencadeado sua perplexidade: "Não sou mais uma mulher)� É
como se essa sensação corporal viesse assinalar, em eco com a frase
da mãe, que ela também não era mais uma mulher.
É importante notar que essa angústia desapareceu duran­
te toda sua vida conjugal, mas que ressurgiu no momento em que
ficou viúva. A Sra. A. pode agora reconhecer que é disso que se
trata nessa angústia do despertar de todas as manhãs quando seu
novo companheiro passa a noite com ela.
Poder-se-ia, portanto, supor que o casamento conseguiu
manter algum ponto de basta, algum enodamento, devido talvez ao
aspecto muito narcísico desse amor que lhe permitia encontrar no
corpo do outro uma metáfora para fazer calar esse gozo impossível.

210
Nesse amor fusional, ela podia se imaginar sendo o outro masculi­
no, sem problemas. Por outro lado, quando ele morre, o luto torna­
se particularmente impossível e, no atual momento, pode-se com­
preender por quê: ela não só perde seu marido, mas também o que
tinha para ela valor de sintoma, ou seja, o que lhe permitia metafo­
rizar esse gozo transexual. Então, são essas sensações no limite da
alucinação que a espreitam ao despertar quando ela tem a quase cer­
teza de que esse homem está ali. Sim, ele está realmente ali, mas
nela, como na época de suas angústias adolescentes.
Essas angústias precederam o momento de despersonali­
zação que sobreveio no verão do vestibular. É preciso assinalar que
esse momento corresponde a uma degradação da posição social do
pai, revelando uma falha da função paterna.
Por esse fato, pareceria difícil para essa paciente encontrar
a solução do sintoma para remediar a não-relação sexual e inscre­
ver, assim, alguma ordem na copulação significante.
A relação dessa paciente com o significante é marcada por
uma espécie de espontaneidade que lhe vale efeitos de surpresa e
sideração, o que poderia fazer dela uma campeã da associação livre,
mas que revela, antes, que em certos momentos ela está às voltas
com o deslizamento metonímico. Isso a angustia e impõe rupturas
no laço analítico.
Na rubrica das relações dessa paciente com o significante,
é preciso situar a impressão angustiante de masculinidade. O efeito
sentido em seu corpo pela via sinestésica - e não pela via sintomá­
tica - em resposta à frase do Outro materno, "Não sou mais uma
mulher, tiraram-me tudo '� indica que ela está presa na rede do que ela
entende como uma injunção, o que coloca seu corpo em uma com­
pleta dependência em relação ao Outro; e é nessa submissão, e não
fora dela, que ela goza. O sujeito se encontra reduzido ao ser de seu
corpo, o que está na estrutura da experiência de despersonalização.
No entanto, vemos que essa paciente tem o recurso de
poder escapar por alguns momentos dessa captura. Durante a vida

211
de seu marido, parece que não teve episódios angustiantes. Mas,
desde seu falecimento, as angústias reapareceram. É preciso dizer
que o marido morto é realmente uma figura emblemática do mes­
tre hegeliano. Ora, vê-se bem que é então seu filho que vai atraí-la
para fora dessa relação, na medida em que ele se obstina a não res­
ponder à sua demanda, encarnando, assim, o ponto de gozo à deriva.
Por seu sintoma, ele serve de sintoma a sua mãe.
O fato de privar essa mãe de seu sintoma poderia ter feito
com que vacilasse e revelasse sua estrutura; em casos semelhantes,
isso pode sempre acontecer. Ora, isso não acontece aqui. Parece
que a transferência lhe permite encontrar o apoio que lhe falta.
Porém, essa relação transferencial parece constituir tam­
bém uma ameaça. E por isso, espontaneamente, no momento do
surgimento do que nós estaríamos tentados a chamar de um fenô­
meno elementar, ela escolhera calar-se por temor de uma resposta
do Outro. Nessa época, evitara cuidadosamente ir buscar do lado
do Outro um "ser-de-saber" para completar seu "ser-de-verdade".

111. EM QUE CONSISTE SER UM HOMEM NORMAL?

O Sr. D. dá testemunho nas primeiras entrevistas do que


ele nomeia de uma "angústia existencial", concernente às suas difi­
culdades de investir seus estudos universitários e o fracasso de suas
relações sociais e afetivas com as mulheres.
É um rapaz de vinte e quatro anos, brilhante, culto, estu­
dante de ciências, que, no entanto, fracassou em todos os exames
desde seu sucesso no vestibular, "em razão de suas dificuldades psi­
cológicas", diz. É, portanto, essa série de fracassos e maus resulta­
dos que o leva a encontrar um ''psl' para lhe apontar uma causa.
O analista logo observa a discordância existente entre, de
um lado, uma apresentação controlada de si mesmo e das circuns­
tâncias históricas desses "fracassos" e, de outro lado, uma enuncia-

212
ção "flutuante" de suas dificuldades. Oscila, de fato, entre dizeres
em que surgem interrogações angustiadas sobre as perturbações
que o afetam e comentários irônicos e agressivos sobre o enquadre
proposto pelo analista ou sobre as suas intervenções.
Sofre, diz ele, por não poder sair de casa, por medo de
enfrentar o olhar dos outros. Quando está em um anfiteatro, é obri­
gado a se posicionar de uma maneira tal que os outros estudantes
fiquem atrás de si e que ele fique perto de uma saída para poder ir
embora caso sinta um mal-estar. Se o olhar dos outros se coloca
sobre ele, é invadido por sensações corporais desagradáveis, que ele
chama de "descargas", uma espécie de formigamento que enrubes­
ce e invade seu rosto. Pode, também, sentir suas mãos dormentes,
como se não fizessem mais parte de seu corpo. Não suporta essa
sensação de desprendimento de seu corpo. Sente se predispor men­
talmente a essas descargas, enrijecendo seu corpo, mas é impotente
para controlá-las, apesar dos estratagemas que emprega: se fixa em
uma ideia, ou olha para seus interlocutores nos olhos para lhes fazer
abaixar o olhar. Esses fenômenos o invadem, e ele mobiliza uma tal
energia para neutralizá-los que não consegue mais se concentrar em
seu trabalho, desabando em prantos, com a vontade de se aniquilar
para fazer com que o sofrimento pare.
Foi em seu primeiro ano de faculdade que sentiu pela pri­
meira vez essas descargas, no exato momento em que devia fazer
uma demonstração no quadro negro. Acreditava-se "inspecionado"
pelo olhar inquisidor de seus colegas e de seus professores. Ele, que
fora sempre um aluno brilhante, no momento mesmo em que lhe
pedem para se mostrar à altura disso, falha, é invadido por esses
fenômenos "sinestésicos" de desprendimento de seu corpo.
Interpreta esse episódio e seus fracassos como o cumprimento da
predição de uma professora em cuja casa sua mãe era empregada, e
que lhe dissera que "o êxito escolar de seu fllho não duraria!". As
afirmações dessa mulher, desprezando-o socialmente e desvalori­
zando, assim, seu êxito escolar, eram comprovadas - acreditava com

213
convicção - por seus fracassos posteriores, como se ele estivesse se
colocando, em seguida, em posição de obedecer a essa injunção de
gozo de um Outro arrogante. Na certeza dos efeitos dessa predição
ele não estaria atribuindo ao Outro uma autodifamação?
Em um escrito que endereçará ao analista, tenta apreender
esses fenômenos de descargas. Elas ocorrem em um contexto de
luta contra suas ideias megalomaníacas, para escapar do olhar de
desprezo de seus colegas. Suas "descargas" são, nesse momento,
como manifestações de invasão de um gozo em ser o objeto do
olhar de desprezo dos outros.
Da mesma maneira com que se queixa das "descargas"
que o submergem, e das tensões que elas provocam nos laços
sociais, diz também ser invadido, às vezes, por acessos aniquilado­
res de angústia, e isso desde que efetuou o serviço militar com os
caçadores alpinos. Desabava quando tinha que ser submetido a
provas físicas (tais como ser enterrado na neve) . Ficava petrifica­
do, pensava estar morrendo. Não pôde pedir uma dispensa, por
causa de seus fracassos nos exames, mas, também, porque em sua
família "não se pode livrar-se do serviço militar" - seu tio-avô
"era coronel".
O que o preocupa atualmente é a solidão amorosa, não
consegue encontrar mulheres que correspondam a seu ideal femini­
no, mas, sobretudo, teve experiências sexuais desastrosas que teme
ver se renovarem quando encontra uma mulher. É, de fato, tomado
por uma angústia-pânico no momento de penetrar uma mulher. Só
de pensar que seu sexo poderia estar nas mãos de uma mulher, diz
ele, desaba, e não pode suportar a relação sexual.
Existe, com certeza, no Sr. D., um apelo à mediação de um
saber para explicar a si próprio a significação das perturbações que
o afetam e o sentimento de sua própria estranheza. Mas é o estatu­
to desse saber esperado que faz problema, haja visto as reações sus­
citadas pelas intervenções do analista. Estas visavam relançar suas
falas, mas eram interpretadas tão logo emitidas e ele acrescentava aí

214
novos significantes que atribuía ao analista deformando, assim, seus
dizeres, a ponto de torná-los incompreensíveis. Frente ao "é o que
você acredita!", dito pelo analista, mostrava-se desestabilizado, mas
continuava a lhe atribuir dizeres e os seus próprios pensamentos. A
voz ouvida era o eco de seus pensamentos interiores. Ele instituía o
analista como parceiro de suas interpretações delirantes. Protegia-se
também do surgimento de um dizer inédito ou da confrontação
com o vazio de seu silêncio repassando o texto de suas sessões
antes de vir. Foi o que admitiu, com muita agressividade, quando o
analista o questionou a respeito de um pedido de mudança de horá­
rio de uma das sessões, interrogando-o sobre "o que elefazia que não
podia vir direto ". Ele ouviu ainda: "Como um adulto!". Atribuíra uma
resposta à questão, interpretando em sua alucinação auditiva que o
analista o tratava como uma criança. A voz sonorizava assim o olhar
infantilizante que ele imaginava voltado sobre ele.
Nesse período, inunda o analista com seus escritos e lhe
traz uma fita cassete na qual gravou sua voz. Em seus escritos, tenta
apreender, localizar o gozo de suas descargas. O fato de trazer essa
fita faz do analista o depositário desse objeto-voz que o estorva. Ele
não mais lhe atribui sua voz na alucinação auditiva: ele lhe dá o obje­
to-voz! Tenta assim despregar, exteriorizar entre-dois, esse objeto­
voz, em um lugar terceiro que a transferência o permitiu instituir.
Ao devolver-lhe a fita algumas semanas depois sem tê-la
ouvido, o analista lhe faz saber que o que mais importava era o que
ele podia dizer durante as suas sessões. O que motivou esse ato foi
o desejo de não dar consistência ao "tudo faz sentido " que o paciente
esperava do Outro do "saber absoluto" da psicanálise. Se ele se
mostrou espantado com isso, houve, a partir de então, uma mudan­
ça em sua implicação na transferência e um apaziguamento de sua
interpretação delirante.
Vai trazer uma série de situações em torno de sua interro­
gação sobre sua identidade sexual: "Será que sou um homem normal?",
perguntava ele.

215
"Quando vim pela primeira ve� vi seu nomejunto ao de sua colega;
pensei que vocês fossem um casai homossexua4 e que vocês iam fazer com que
eu me tornasse homossexual!" De fato, no decorrer de uma conferência
do antropólogo Coppens sobre a origem do homo sapiens, ele o ouviu
dizer para si: "É uma mulher!" Foi então tomado por um tal mal­
estar, que teve que se retirar; tais palavras o atingiram como se fos­
sem dirigidas a ele. Já sentira essa alusão a sua identidade sexual
durante uma situação de inspeção; pensou que o inspetor queria
"inspecionar seu sexo " e aí, também, foi tomado por um tal mal-estar
que acabou abandonando o anfiteatro. É do Outro que ele ouve a
resposta ao que ele é como ser sexuado, mas isso desencadeia sua
angústia, como se não pudesse sustentar essa questão.
Também encontra-se confrontado a uma parasitagem do
significante sexual masculino, que se impõe a ele toda vez que lê a
sigla informática Bit ("bite" = pênis), em um texto, ou quando o pro­
fessor de física desenha no quadro a rede magnética cujo contorno
forma os órgãos genitais. Ele não pode brincar com isso, como
fazem seus colegas, ou se contentar em pensar no valor metafórico
desses signos.
O que surge com essa parasitagem é o "real" do sexo,
como se o significante sexual não estivesse naquele momento meta­
forizado.
Vai, repetidas vezes, evocar uma lembrança infantil trau­
mática que o marcou. Aos seis anos de idade submeteu-se a uma
operação por causa de uma fimose. Sua mãe não soube limpar seu
sexo corretamente, o que se reproduziu em seguida com seu irmão
mais novo, também operado. Depois da cirurgia, acordou com o
sexo ensanguentado e não entendeu o que estava acontecendo;
acreditou que não tinha mais sexo, que se tornara uma menina.
Ainda revê a mãe refazendo os curativos, em cima da mesa da cozi­
nha, ali onde, habitualmente, ela pelava os coelhos. Ela convidava
sua avó e suas tias para verem esse estranho espetáculo, diz ele, com
emoção. Ele se lembra de seus gritos de dor.

216
Há uma fixação de gozo do Outro sobre seu pênis reduzi­
do à carne. É, aliás, nessa sessão que ele vai falar de sua angústia­
pânico de ter que colocar seu sexo nas mãos das mulheres.
Irá então elaborar, durante várias sessões, essa versão trau­
mática de uma cena de castração vivida como real. A subtração de
seu pênis - caído nas mãos de sua mãe - serve para dar um sentido
à elisão do falo, pelo fato de a castração simbólica não ter podido
operar: o desejo da mãe não pôde ser localizado como suficiente­
mente orientado para o pai.
Uma vez que o malogro da metáfora paterna não permitiu
a introdução da significação fálica, o significante fálico não pôde
operar.
Apoiando-se na presença "real" do analista, na transferên­
cia, ele vai organizar suas experiências de despedaçamento, tentan­
do encontrar para elas um sentido unificador. Diante dessa presen­
ça tão "reduzida" quanto possível, diante das manifestações tão ver­
tiginosas quanto reversíveis de seu amor de transferência se trans­
formando em ódio, o Senhor D. pôde trazer o caráter destrutivo de
seu ódio pelas mulheres, esse que ele provocava na transferência,
posicionando-se assim como objeto do gozo do Outro: "Faço tudo
para provocar sua cólera, esse ódio que tenho de você me impede de trabalhar
aqui".
Algumas sessões mais tarde, diz ter pensado estar nesse
lugar da mulher, gozando de ser uma mulher penetrada por uma
outra mulher, com um sexo masculino postiço. Acrescenta que não
gostaria de ter prazer em ser uma mulher penetrada por um homem.
Quando se imaginou nesse lugar, teve medo de ser transformado,
sentiu em seus membros alguma coisa como se eles se reduzissem a
uma linha. Será uma defesa contra o "empuxo-à-mulher"?
Esperava que a resposta que construiu para si na transfe­
rência, sobre sua identidade sexual, lhe fosse fornecida pelo analis­
ta e se impacientava com a retenção desse saber quando pergunta­
va se era um homem normal ou um homossexual.

217
Pode-se também pensar que a parasitagem do "tudo faz
sentido sexual", que perturba sua visão dos símbolos fálicos ou sua
leitura das siglas informáticas, é o retorno no real do significante de
seu sexo que foi foracluído do simbólico. É um dos efeitos da fora­
clusão do Nome-do-Pai.
Na sessão seguinte, anuncia que teve um sonho. "Sonhei que
estava em cima de uma ponte como aquela em que se passa para vir
aqui; estava com um amigo, com quem tinha brincadeiras sexuais
quando criança. Queria apresentá-lo para você, você estava com a sua
amiga do outro lado. A ponte se fendia, eu mergulhava, voava e che­
gava à outra margem. Na fenda, havia um homenzinho dourado, pare­
cendo um Buda, que fazia rodar um CD ROM. Não conseguia ler o
que ele tinha na memória, não conseguia inseri-lo no computador".
Interpreta-o como um signo de seu desejo de suspender
sua análise: ''A fenda da ponte indica que não vale mais a pena vir.
Penso que está na hora, para mim, de escolher entre a psicanálise e
o budismo, já que você não quer dizer o que você sabe sobre mim
e não me guia suficientemente".
Ele voltará quando conseguir decidir se quer ou não se
engajar nesse trabalho analítico. Esse desejo de deixar a análise
ocorreu em um momento crucial e delicado, momento em que se
queixava de estar desestabilizado pelo fato de o analista se furtar a
ocupar o lugar do saber absoluto do Outro que ele viera procurar
na teoria psicanalítica e porque ele não podia fazer disso o que pre­
tendia. Ao mesmo tempo, a presença do analista na transferência o
levava a construir para si esboços de respostas ao vazio enigmático
com o qual o confrontavam esses fenômenos de descargas e essa
parasitagem do sentido sexual. Teria que, de fato, fazer uma esco­
lha. Mas poderia fazê-la diante da necessidade de fazer existir um
Outro do saber em relação ao gozo ao qual ele se consagrava?
O cartão postal recebido seis meses depois desta interrup­
ção, em que agradecia pelo prazer que tinha na companhia das mulhe­
res, mostra que o analista ocupa ainda esse lugar de endereçamento.

218
IV. O PSICANAliSTA COMO AJUDA·CONTRA

Os dois casos examinados do ponto de vista da dinâmica


transferencial indicam-nos que o analista pôde encontrar uma
maneira de entrar em jogo sem despertar o gozo do Outro, mas
mantendo precisamente fora de suas significações devastadoras um
objeto que ele soube acolher.
Com o Senhor D., por exemplo, o analista evita encarnar
o parceiro que teria o ser de saber apto a fazer consistir o saber abso­
luto do Mestre hegeliano, figura emblemática do Supereu do psicó­
tico. Bem ao contrário, o fato de acolher a voz de seu paciente, tal
como ele a oferece, isto é, em fitas cassete e sem nada dizer sobre
isso, nos parece ter mantido fora de qualquer significante uma parte
de ser sobre a qual o sujeito vai poder se apoiar para evitar a solu­
ção do empuxo-à-mulher. É, parece-nos, o analista que se encarre­
ga dessa função, sendo o lugar em que um gozo à deriva pode
sobreviver à injunção , do "tudo faz sentido".
De uma forma bastante similar, a transferência se enoda
no caso da Sra. A. em torno desse ftlho que ela traz como sintoma
e que o analista acolhe. Mas, contrariamente ao que essa mãe espe­
rava, ele o deixa de lado, ou seja, não faz disso nem um ser-de-ver­
dade nem um ser-de-saber para a mãe. No entanto, ele o acolhe e a
coisa se renova, pois, repetidas vezes, em momentos cruciais, a Sra.
A. teve necessidade de ser acompanhada por seu filho. Fazendo-se
lugar de acolhimento para esse objeto fora da injunção do supereu
onde tudo deve fazer sentido, ainda aí o analista é levado a repre­
sentar o lugar de um gozo à deriva. É nisso que ele toma ao seu encar­
go a posição feminina podendo, assim, servir de sintoma para o
sujeito analisante.
Um ponto essencial foi o foco de nossas pesquisas. Trata­
se da questão ressaltada pelo famoso gozo à deriva que destacamos no
Seminário A Lógica da fantasia. Lembremos que, para Lacan, esse
ponto de gozo à deriva da metáfora do gozo do Mestre permite ao

219
escravo suportar sua postçao, pois ela lhe torna sustentável uma
posição de sujeito à distância de seu corpo como metáfora do gozo
do Outro.
Esse gozo à deriva faz pensar nessa parte de gozo que exce­
de ao gozo fálico, isto é, no gozo feminino. A lógica da experiência
clínica nos conduz muito naturalmente a pensar que essa parte de
gozo que escapa ao ideal do todo fálico pode, em certos casos, fun­
cionar como um limite e notadamente oferecer um refúgio ao ser
do sujeito que não tem como argumentar quanto à função fálica.
O que coloca o corpo à distância do gozo do Outro é o
sujeito - muito embora só haja gozo do corpo, como Lacan ressal­
ta nas últimas lições de seu Seminário sobre A Lógica dafantasia. "O
sujeito dilacera o corpo do gozo", diz Lacan no dia 30 de maio de
1 967. Quando Lacan evoca essa posição do sujeito em relação ao
seu corpo e ao seu gozo, recorre à metáfora hegeliana do mestre e
do escravo.
Para Lacan, o escravo aliena seu corpo no corpo do mes­
tre, ou seja, do Outro, na medida em que seu corpo serve de metá­
fora de gozo para o mestre; mas não todo o seu corpo entra nessa
metáfora, há alguma coisa que fica à margem. É essa "alguma coisa"
que permite ao escravo, como sujeito, não se confundir com a posi­
ção de objeto de seu corpo que metaforiza o gozo do mestre. Como
sujeito, o escravo goza, mas, à margem da alienação; há para ele um
gozo "à deriva"\ esse de um objeto que escapa ao corpo do Outro.
É nisso que ele é fora-do-corpo.

Mestre � Corpo do escravo I I Escravo � objeto fora do corpo


S I (a) do Mestre I I Sujeito I Gozo à deriva

o corpo como outro II o sujeito o gozo à deriva

220
O gozo do escravo não é de se fazer o objeto do gozo do
mestre, o gozo do escravo está à deriva e é o que o salva do aprisio­
namento na fantasia do mestre hegeliano.
Poder-se-ia, sem dúvida, considerar a estrutura das rela­
ções do sujeito psicótico com o Outro segundo o modelo das rela­
ções do escravo totalmente dependente do mestre hegeliano\ sem
possibilidade de gozo à deriva, um escravo, portanto, cujo gozo se
igualaria ao gozo do Outro que devastaria seu corpo.
Dessa forma, portanto, chegamos à conclusão de que o
analista-sintoma preenche sua função abrigando o gozo à deriva e
nisso ele garante a função não-todo (pas tout). É inegável, na perspec­
tiva da clínica que examinamos, que essa função faz limite. É esse
ponto que desenvolveremos agora.
Isso nos remeteu a uma leitura minuciosa das fórmulas da
sexuação. Essas fórmulas aparecem pela primeira vez em 1 97 1 ;
explicitam-se, em 1 972, no Seminário ... oupior, são desenvolvidas no
Seminário Mais, ainda; encontramos um comentário muito preciso
desse famoso não-todo (pas tout) em "O aturdito ". Finalmente, encon­
tramos em 'Televisão " observações precisas sobre a posição femini­
na em relação à loucura e ao não-todo (pas tout)
Na leitura desses textos, torna-se evidente que essas fór­
mulas da sexuação não devem ser manejadas como ferramentas
matemáticas, pois Lacan introduz novos quantificadores que a
matemática não conhece. É, portanto, vão, tentar se situar aí com a
lógica matemática. Além do mais, Lacan joga muito frequentemen­
te com o equívoco e, assim, os enunciados se entrechocam.
Seja como for, há um certo número de enunciados que
vão no sentido de descrever o primeiro quantificador da sexualida­
de feminina como: não há x que diga não à função fálica, ou seja,
não há A Mulher. Mas esse enunciado é imediatamente correlacio­
nado ao fato do não-todo, ou seja, ao segundo quantificador, pois,
para Lacan, é a mesma coisa dizer que não há A Mulher e dizer que
a mulher é não-toda. Os dois quantificadores estão, portanto, ligados.

221
É apenas em "O aturdito" que Lacan considera que os dois quanti­
ficadores possam funcionar separadamente, mas, então, é para
designar muito explicitamente o empuxo-à-mulher na psicose:

"O sujeito, na metade em que se determina pelos quantificadores


negados, vem de que nada existente constitui um limite da função, que
não pode certificar-se de coisa alguma que seja de um universo. Assim,
por se fundarem nessa metade, "elas" são não-todas, o que tem também
como consequência, e pela mesma razão, que tampouco nenhuma
delas é toda. Desenvolvendo a inscrição que fi:r. da psicose de Schreber
por uma função hiperbólica, poderia demonstrar, no que ele tem de
sarcástico, o efeito de empuxo-à-mulher que se especifica pelo primei­
ro quantificador (...)"6•

Isso diz, claramente, que na psicose há foraclusão da exce­


ção e que, por esse fato, a função fálica amputada de sua exceção,
por querer tudo dizer, já não poderia dizer mais nada. O primeiro
quantificador sozinho descreve, portanto, o empuxo-à-mulher. É
um enunciado desse gênero que encontramos em Televisão quando
Lacan diz sobre as mulheres que "o universal do que elas desejam é
a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É por isso
mesmo que não são todas, isto é, não loucas-de-todo... (pasfolles-du­
tout...)"7. A frase é e quívoca. As mulheres são loucas por serem não­
todas, ou seriam elas loucas se fossem todas? Parece que o final da
frase é sem equívoco: elas são não-todas, portanto, nada loucas jpas
folles du tou� . Pode-s e deduzir daí que a loucura feminina seria a ten­
dência ao universal fálico que nas mulheres é sem limite devido à
ausência de exceção e que o não-todo viria, portanto, como limite ­
certamente, dificilmente considerável de um ponto de vista mate­
mático, mas muito mais eficaz para se sustentar na vida quando se
está inscrito desse lado como ser falante.
É preciso considerar esse não-todo em sua relação com o
Outro. É o que Lacan ressalta em seu Seminário A angústia.
Diferentemente do mestre hegeliano que é, antes de tudo, uma
consciência, uma pura consciência de si, o Outro da teoria lacaniana é

222
inconsciente, ele não sabe. Ele não sabe que o escravo representa o
objeto de seu desejo e é o que torna sustentável a posição do escra­
vo. Não tudo da realidade desse objeto é apreensível pelo Outro
que é o lugar onde se aliena o saber do objeto; é o que torna a alie­
nação suportável. "Por causa do inconsciente podemos ser esse
objeto"8•
Ora, podemos dizer que o que caracteriza o Outro do psi­
cótico é que ele não é inconsciente, mas, antes, onisciente. A mano­
bra do analista na transferência deve, portanto, opor-se a essa ins­
tância e visar à regulação do espaço do "não-sábio-de-tudo"9•
Essa ideia de manejar o não-todo para se opor à devasta­
ção do supereu psicótico está implicitamente no centro da tese que
Lacan desenvolve em seu Seminário O sinthoma a propósito do ana­
lista-sinthoma. Ele enuncia aí que "não se pode conceber o psicana­
lista de outra forma senão como um sinthoma". Acrescenta que é
preciso concebê-lo, no final das contas, como "uma ajuda da qual
podemos dizer que é uma inversão dos termos do Gênesis"10• Lacan
responde aí a uma questão que fazia alusão a uma nova tradução do
Gênesis que enuncia que "Deus criou para o homem uma ajuda
contra ele". Então, trata-se de ir contra o quê se não for à consis­
tência do Outro? "Evidentemente", a tendência do sujeito é de sub­
jetivar esse ponto, a fim, não somente de garantir a consistência do
Outro, mas, também, de se servir de seus significantes para tentar
reduzir aí o seu ser. Donde a aproximação operada por Lacan entre
esse ponto, A mulher, Deus ... e o Outro do Outro. O analista-sintho­
ma opera uma inversão propondo o não-todo no lugar do Outro do
Outro, "posto que, assim como o Outro do Outro, é o que acabo
por definir há um instante como esse furinho aí. A hipótese do
inconsciente tem seu suporte justamente na medida em que esse
furinho possa, por si só, fornecer uma ajuda"11•

223
Notas

Relator: Bernard Nominé


1 LACAN, ). (1 973) "Problemas cruciais para a psicanálise". In: Outros Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.208-209.
2 BRUNO, P. "L'identification au symptôme", 6/4/2, n.7, p.1 1 7.
3 LACAN, ). (1 973) "Lituraterra". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.23.
4 LACAN, J. Le Séminaire XIV, "La logique du fantasme", sessão do dia
1 7/06/1 967: "Eu, eu gozo do seu corpo, isso significa que o seu corpo se torna
a metáfora do meu gozo. Hegel, de qualquer maneira, não esquece que isso é
somente uma metáfora do servo, e resta que, para ele, como para o que eu inter­
rogo no ato sexual, há um outro gozo que está à deriva".
5 Os maternas dos discursos devem ser meticulosamente lidos. O discurso do
mestre fornece, certamente, a matriz do inconsciente. Ele significa que o sujeito
é irredutível ao significante - que há, portanto, um furo originário no saber. Mas,
não basta concluir daí que o que ele é como objeto é o que escapa à representa­
ção significante e o torna desejante. Pois essa conclusão, pelo menos em sua pri­
meira parte, vale igualmente em linguística onde o teórico sabe do fracasso estru­
tural da representação. Poderíamos, então, colocar uma equivalência entre o $, o
S1, que o representa, e o objeto a rebelde à representação. É o que compreendeu
perfeitamente o capitalista. Em todo caso ele tira daí uma justa consequência ao
identificar a mais-valia com a espécie de objeto que lhe falta: riferir-se ao materna do
discurso capitalista. S /Sl � S2/ a (Lacan, Milão, 1 2.05.72). Esse discurso é uma
versão do mestre e do escravo. Se substituirmos o escravo pelo proletário, com­
preende-se um pouco o que está em jogo. Lacan explica-nos, de fato, que o pro­
letário é privado de qualquer objeto pelo capitalista. Nisso, o proletário prefigura
a saída do capitalismo, na qual Max apostou. O proletário é um elemento ao
mesmo tempo incluído e excluído do capitalismo: ele é um sintoma social. A psi­
canálise inscreve o sintoma no particular. Ela objeta à confusão entre mais-valia
e mais-de-gozar - esse gozo cuja deriva é mascarada enquanto o sujeito o con­
fundir com a mais valia, ou enquanto o sujeito pensar que é despossuído dele
pelo Outro (o capitalista, por exemplo). É também essa não confusão que pare­
ce visada no que Lacan qualifica de "saída do capitalismo"; dessa vez, devido ao
consentimento do sujeito, no momento mesmo em que ele descobre que o gozo
que ele atribuía ao Outro (que ele supunha subtraído pelo Outro) era seu gozo
de neurótico. Para dizer a verdade, o final de uma análise revelaria desse ponto de
vista a estrutura: "Sl / S � S2/ a I Gozo à deriva." Não há sujeito sem signifi-

224
cante. Mas, se há significante, então, o sujeito se reduz a termo a esse gozo irre­
dutível que ele deve ao fato de portar o significante no real - identificação com
o sintoma. Inscrever um sujeito em um discurso - sujeito, aqui, psicótico já que
fora do discurso - implica em dividi-lo como falante desse objeto que dá teste­
munho de sua irredutibilidade ao saber do Outro.
6 LACAN, ]. (1 973) "O aturdito". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.466.
7 A construção "pas folles-du-touf' admite também os sentidos de "nada têm de
loucas" e de "não loucas pelo todo". Cf. nota 1 2 p.538 de Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003.
8 LACAN, ]. (1 962-1 963) "Angústia, signo do desejo". In: O Seminário, livro 10: a
angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p.35.
9 LACAN, ]. (1 975) Le savoir et la vérité ". In: Le Seminaire, livre 20: Encore, p.90:
"Au niveau de ce pas-tout, il n'y a que l'Autre à ne pas savoir. C'est l'Autre qui fait
le pas-tout, justement en ce qu'il est la part du pas-savant-du-tout dans ce pas­
tout". N.R.: Na tradução brasileira de. "O saber e a verdade", temos: "No nível
desse não-todo, há somente o Outro a não saber. É o Outro que faz o não-todo,
justamente por ele ser a parte que não-sabe-de-tudo neste não-todo"(LACAN, ].
(1972-1 973). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1 982, p. 1 33.
1 0 LACAN, ]. (1 975-1 976) "Do inconsciente ao real". In: O Seminário, livro 23: o
sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p.13 1
1 1 lbid.

225
AUTORES DOS TEXTOS DA PRIMEIRA PARTE

Seção Clínica de Aix-Marseille e Antenne Clinique de Nice


Relatores: Hervé Castanet e Philippe De Georges.
Hervé Castanet. Christine De Georges, Philippe De Georges, Nicole Guey,
Monique Guillot-Chevalier, David Halfon, Gilbert Jannot, François Morei,
Sylvette Perazzi, Jacques Ruff.

Seção Clínica de Clermont-Ferrand, Antenne Clinique de Dijon


e Seção Clinica de Lyon
Relatores: Jacques Borie, Jean-Robert Rabanel e Claude Viret.
Michele Astier, Marie-Frédérique Attali-Doineau, Barbara Bonneau, Jacques Borie,
Nicole Borie, Pierre Bosson, Jean-Frédéric Bouchet. Aline Bouhey, Jean-Pierre Brunhes,
François Caron, Christine Cartéron, Gabriel Chantelauze, Laurence Charmont,
Claude Claverie, Marie-Hélêne Couloumy, Jean-François Cottes, Hervé Damase,
Jacqueline Dhéret, Francis Felzine, Christian Fontvieille, Pierre Forestier,
Christine Guillet-Cuénot, Françoise Héraud, Michel Héraud, Marga Karsz-Mendelenko,
Jacques Lacourt. Yves Le Bon, Dany Lots, Jacques Marblé, Patrice Margot,
Maria Lucia Martin, Didier Mathey, Gilles Mochicourt, Jean-Pierre Mordier,
Lisa Muller, Gérard Querré, Simone Rabanel, Jean-Robert Rabanel,
Richard Rebibou, Jean-Pierre Rouillon, Jean-Louis Soyer, Délia Steinmann,
Claudine Valette, Thierry Vigneron, Claude Viret, Alain Vivier,
Nicole Virat-Tréglia, Wanda Wlodarczyk.

Seção Clínica de Lille


Relatores: Geneviêve Morei e Herbert Wachsberger.
Sylvie Boudailliez, Philippe Bouillot, Annick Brauman, Vincent Calais, Carine Decool,
Hélêne Deltombe, Brigitte Duquesne, Emmanuel Fleury, Dominique Holvoet,
Nadia Jambart, Franz Kaltenbeck, Diana Kamienny-Boczkowski, Brigitte Lemonnier,
Geneviêve Loison, Geneviêve Morei, Bernard Seynhaeve, Herbert Wachsberger.

227
Seçio Clínica de Bordeaux
Relatores: Carole Dewambrechies-La Sagna e Jean-Pierre Deffieux.
Marie-Françoise Bahans, Florence Bonichon, Annick Boucheny, Geneviêve Bouquier,
Marie-Ciaire Bouter, Anne-Marie Brossier, Chantal Cabot, Camille Cambron,
Claudine Casanova, Marianne Caussêque-Portillo, lsabelle Cordier, Mireille Dargelas,
Rigo De Bortoli, Jean-Pierre Deffieux, Marguerite Derrien,
Carole Dewambrechies-La Sagna, Viviane Durand, Michêle Fourton, Paul Gil,
Anne-Marie Girardeau, Dominique Jammet, Françoise Kovache-Serrec, Philippe Lacadée,
Catherine Lacanze-Paule, É veline Lachaux, Philippe La Sagna, É dith Magnin
Alain Merlet, Albert N'Guyen, Ghislaine Panetta, Marie-France Prémon, Daniel Roy,
Daniel Sallenave, Hélêne Seyrat, Annie Smadja, Catherine Vacher.

Antenne Clinique de Chauny-Prémontré e Antenne Clinique de Rouen


Relator: José-Luis Garcia Castellano.
É ric Blumel, Corinne Bognar, Roland Broca, Christophe Delcourt, Marie-Hélêne Doguet,
Jean-Michel Dutilloy, José-Luis Castellano, É ric Guillot, Raymonde Jdanoff,
Françoise Koehler, Bernard Lecoeur, Nicole Maisonneuve, Claude Parchliniak,
Jean-Pierre Parchliniak, Marie-Ciaude Sureau, Valéria Pera-Guillot, Jean-Louis Woerle.

Antenne Clinique de Nantes e Seção Clínica de Rennes


Relatores: Roger Cassin, Jean-Louis Gault, Pierre-Gilles Guéguen,
Bernard Porcheret e François Sauvagnat.
Josienne Cassin, Roger Cassin, Gilles Chatenay, Claudette Damas, Sophie Duportail,
Mareei Eydoux, Jean-Louis Gault, Pierre-Gilles Guéguen, Jacques Guihard,
Françoise Hamon, Hervé Hubert, Jean-Ciaude Maleval, Roger Merien, Michêle Miech,
Jean-Loup Morin, Bernard Porcheret. Marie-Paule Rabiller, François Sauvagnat,
Pierre Stréliski.

Seçio Clínica de Angers


Relator: Fabienne Henry.
Jean-Yves Beillevaire, Mireille Boisselier-Nédelec, Ghislaine Boucasse, Annie Cariou,
Alain Cochard, Solange David, Catherine Dubois, Dominique Fraboulet, Françoise Frank,
Guilaine Guilaumé, Fabienne Henry, Raymond Lamboley, Marie-Françoise Lamoine,
Jean Leliêvre, lsabelle Lesage, Monique Marcelon, Vincent Moreau, Marie-Odile Nicolas,
Claudine Nollet, Anne Paillé, Hega Rosenkranz, Jean-René Savary, Gérard Seyeux,
Marc Soria, Pierre Stréliski, Bertrand Tricoire.

228
Seção CUnica de Bruxelas
RtJitJtor: Alexandre Stevens.
léonce Boigelot, Katty langelez, Anne lysy-Stevens, Pierre M alengreau,
Alexandre Stevens, Guy de Villers Grand-Champs, Alfredo Zenoni.

Ant11nn• CliniqutJ de Toulouse


RllltJtor: Bernard Nominé.
Sidi Asko Faré, Michel Bousseyroux, Anne Castelbou, Fabienne Guillen, Bernard Nominé,
Michel lapeyre, Pierre Rogar, Maria-Jean Sauret, André Soueix, Christiane Terrisse.

229
SEG U N DA PARTE
A CONVEN ÇÃO
ABERTURA
1 . TR ÍPTICO

Philippe De Georges Ao acolhê-los, nesta Convenção, tenho


-

o privilégio de dizer-lhes algumas palavras. A primeira será: "Bem­


vindos!" Bem-vindos a todos e a cada um. Eis o que tenho o pra­
zer de dizer-lhes "de viva voz". Insisto nesse "de viva voz", pois é
bem diferente de nos comunicarmos por fax ou internet. Vocês
estão aqui presentes, com sua presença real, com essa presença real
tão essencial à análise, análise que não se concebe in absentia.
Presença que dá corpo, que encarna a palavra, que implica o regis­
tro pulsional, que constitui a enunciação. Bem-vindos, em nome da
Antenne Clinique de Nice, de seus participantes, daqueles que nela
ensinam e de seus conferencistas.
Minha primeira saudação será especialmente para aqueles
cuja vinda assegura o enlaçamento desse encontro com nossa
comunidade internacional. Penso em Jorge Forbes, conduzido aqui
por uma corrente da América; Antonio Di Ciaccia, trazido por um
vento transalpino; Hebe Tizio e Rosa Calvet, a quem devemos os
momentos tão intensos vividos, ainda há pouco, em Barcelona.
Durante os preparativos de Barcelona, nossos anfitriões
catalães evocaram Amphitryon. Tomarei emprestada a referência
como modo de me colocar sob seus auspícios: que possamos ser
tão acolhedores quanto eles, que possamos assegurar como eles o
sucesso de nossos trabalhos.
Amphitryon me lembrou a frase do falso Sósia: "O verda­
deiro Amphitryon é aquele em cuja casa jantamos!". Pois bem! Aqui,
como na peça de Moliere, a frase é falsa: são os que ensinam na
Antenne Clinique de Nice que, de fato, recebem vocês na Côte d'Azur,

235
mas seu mento é pequeno. Os verdadeiros organizadores desse
encontro, aqueles graças aos quais vocês são tão numerosos, são de
Bordeaux e de Angers. É, com efeito, a Fabienne Henry e Michel
Jolibois a quem devemos o volume preparatório, no qual sei que
muitos mergulharam com ardor. Foram eles que, com seu reconhe­
cido savoirfaire, nos trouxeram essa ferramenta indispensável aos
nossos trabalhos. E é, sobretudo, a Carole Dewambrechies-La
Sagna e a Jean-Pierre Deffieux a quem devemos a realização do
encontro. Eis, portanto, nossos verdadeiros anfitriões.
Esse primeiro esclarecimento requer um segundo. Nossa
Convenção de hoje é a terceira parte de um tríptico. Tudo começou
em Angers, com o Conciliábulo. Em seguida, tivemos a
Conversação de Arcachon. Finalmente, desde que muitos colegas
viram com bons olhos a aliança entre um trabalho decidido e o sol
da Côte d'Azur, a escolha por Antibes se confirmou. Se me mostrei,
na época de Arcachon, decidido a que as coisas fossem assim, é por­
que tive a possibilidade de manifestar o lugar que nossa pequena
comunidade, imprensada entre o Estérel e a costa, pretende ter no
Campo Freudiano. Nosso desejo é, de fato, o de ocupar um bom
lugar nesse turbilhão. É a nossa primeira oportunidade de receber­
mos em casa tantos colegas: alguns de vocês j á vieram animar nos­
sas conferências e nossas trocas, mas nunca tantos, e, sobretudo,
nunca juntos.
Lamentamos ter sido impossível encontrar em Antibes um
lugar que correspondesse às exigências de uma tal conversação. É
por isso que estamos em Cannes, neste palácio prestigioso, conhe­
cido, sobretudo, por suas lentejoulas, seus strass e suas estrelas: trou­
xemos à Croisette1 nossa paixão de lavradores do Campo Freudiano.
Estamos, aqui, com efeito, para lavrar, semear, cultivar o Campo
cuja reconquista está sempre na ordem do dia.
O programa de nossa Convenção está marcado pelo triplo.
Não é, sem dúvida, por acaso, mas estrutural. Não estamos, desde
Arcachon, sob o signo da clínica borromeana? A triplicidade de RSI

236
- real, simbólico, imaginário - corresponde, em Cannes, às três par­
tes de nossa reflexão: neodesencadeamento, neoconversão, neotran.iferência.
Desse modo, somos convidados a um aggiornamento da clínica, da
construção empírica da clínica. Trata-se, indubitavelmente, de um
índice da parte a ser tomada pelas Antennes e Seções Clínicas no seio
do Instituto do Campo Freudiano, nos novos desenvolvimentos
que esta refundação impõe.
Minha fala está escandida por "um, dois, três", como se
procurasse indicar o tempo - vocês certamente o perceberam.
Visto que o termo "convenção" não pode deixar de reme­
ter a algo da Revolução, pensei em algumas frases de Victor Hugo,
em Os Miseráveis. Durante os funerais do general Lamarque, Hugo
nos faz ouvir o discurso do insurgente Enjolras. Este passa pelas
três consistências que são, para ele, "liberdade, igualdade, fraterni­
dade". Eu o cito: "O ponto de interseção dessas soberanias que se
agregam se chama sociedade. Sendo essa interseção uma junção,
esse ponto é um nó. Daí o que chamamos de laço social".
Qual a junção, qual nó nos diz respeito hoje? Na interse­
ção da clínica com a teoria, não estaríamos às voltas com o que o
"Relatório de Barcelona" chamou de "a Conversação continuada
com os textos fundadores do acontecimento Freud, um perpétuo
Midrash que confronta incessantemente a experiência com a trama
significante que a estrutura"2?
Desejo a todos, portanto, um excelente trabalho e passo a
palavra a Jacques-Alain Miller.

237
2. A CONVENÇ Ã O, MODO DE USO

Jacques·Aiain Miller Está previsto que esta seja uma con­


-

venção. Trata-se de convergir para um acordo: acordo sobre o uso


das palavras, acordo sobre a descrição, acordo sobre a classificação.
Logo, convenção sim, concílio não. Talvez seja também uma recrea­
ção, como me dizia Gilbert Jannot. Como temos um certo número
de horas a passar juntos, debruçados sobre trabalhos bastante sérios
que iremos ler e discutir, tomemos a Convenção como um vasto
comitê de leitura.
Como preâmbulo, direi algumas palavras que poderíamos
colocar sob o título ''A Convenção, modo de uso".
O aparelho que constituímos aqui é idêntico àquele da
Conversação do ano passado: falamos com base no escrito, sobre a
coletânea de nove textos. Ao mesmo tempo, a diferença entre a
coletânea anterior e a de hoje é clara: os textos de Arcachon foram
apresentados a título individual, enquanto os trabalhos dessa con­
venção são relatórios oriundos de uma elaboração coletiva. Além
disso, o caso é sempre colocado em série, tomado em cadeia, ao
passo que nos dois anos anteriores era apreendido em sua particu­
laridade disjunta e a classificação era produto de um esforço ulte­
rior, talvez até mesmo do esforço que então fazíamos. Sendo o caso
colocado em série, qual a sua função? A de ilustrar, a de corroborar
teses. O caso serve à tese ou permite induzi-la.
O fato é que muitos me disseram: "Nossa! Como é pesa­
do este volume! Como faremos para falar disso tudo em tão pouco
tempo?" Não dizíamos isso em Arcachon. Isso se deve ao fato de
que, aqui, o suporte da palavra é muito elaborado, é um produto já

239
tecido, tramado, o que, sem dúvida, levará a uma outra espécie de
comentário que ainda está para ser encontrada. Conto, para isso,
com as trocas entre os redatores. Seremos, sem dúvida, levados a
reconceitualizar, a superconceitualizar, não sem voltar ao detalhe
dos casos.
Se eu tomo mais precauções que nas duas reuniões prece­
dentes - o Conciliábulo e a Conversação - é porque a presente
Convenção me parece destinada a ser muito menos espontânea,
sobretudo pela seguinte razão: agora, dois livros já foram lançados.
Eles estão nas livrarias e tiveram suas repercussões. Falávamos a
fundo perdido, como sempre, sem nos preocupar com a forma que
isso tomaria. Esse não é mais o caso, e esses cálculos afetarão nos­
sas trocas. Segundo alguns, isso pode ter um efeito de incitação exa­
gerada a falar ou de excessiva moderação para se expressar. É o que
me leva a fazer um pequeno anúncio para tranquilizar a todos: não
é certo que tenhamos, desta vez, que publicar nossas discussões.
Após essas precauções, vamos aos fatos.

240
3. CL ÍNICA FLUIDA IFLOUEJ

No primeiro tempo, em Angers, começamos - aleatoria­


mente, em desespero de causa - por surpresas, pelas nossas surpre­
sas. Foi uma forma de dizer, implicitamente, que nos confrontáva­
mos com certa rotina ou com certo classicismo e que queríamos
distinguir momentos ou casos que se subtraíam a uma ordem, cau­
sando nossa surpresa. Situamo-nos, logo de saída, até mesmo sem
sabê-lo, em relação a uma rotina ou a uma norma, uma ordem pré­
via, para isolar surpresas.
Perseveramos, e, no segundo tempo, escolhemos como
tema "Casos raros". Quisemos, talvez, conceituar nossas surpresas.
O fato é que fomos levados a explicitar nossa referência à norma
clássica das psicoses e, desse modo, colocá-la mais radicalmente em
questão.
Hoje, nos reencontramos, na Convenção, no tempo três.
Lendo a coletânea, tive o sentimento de que aquilo que tínhamos
abordado sob a perspectiva de casos raros, abordávamos, agora, sob
a perspectiva de casos frequentes. Demo-nos conta de que o que
designávamos como casos raros, em relação à nossa norma de refe­
rência, à nossa medida de base, ou seja, a "Questão preliminar... ",
eram - sabíamos muito bem disto, por meio da nossa prática quo­
tidiana - casos frequentes. Nesse volume da Convenção, assumimos
seu estatuto de casos frequentes.
Foi deste modo que, a posteriori, imaginei nosso caminho.
Passamos da surpresa à raridade e da raridade à frequência. Estava,
ontem à noite, me perguntando: "como chamaremos o livro que
poderá resultar desta jornada"? Não será neodesencadeamento, neoconver-

241
são, neotransferência. Será neopsicose? Será que realmente queremos ligar
nossa elaboração à neopsicose? Não me agrada nem um pouco a
neopsicose. E me dizia: "no fim das contas, falamos de psicose
ordinária".
Na história da psicanálise, interessamo-nos naturalmente
pela psicose extraordinária, por aqueles que realmente "arrebenta­
vam". Há quanto tempo Schreber é referência? Ao passo que temos
aqui psicóticos mais modestos, que nos reservam surpresas, mas
que podem, como veremos, se fundir num tipo de média: a psicose
compensada, a psicose suplementada, a psicose não desencadeada,
a psicose medicada, a psicose em terapia, a psicose em análise, a psi­
cose que evolui, a psicose sintomatizada, por assim dizer. A psico­
se joyceana é, diferentemente da obra de Joyce, discreta.
Estamos divididos entre dois pontos de vista contrastan­
tes, que não se excluem mutuamente.
Em uma primeira aproximação, há uma descontinuidade
entre psicose e neurose, duas classes bem separadas. É a norma, o
'bê-á-bá' do que é ensinado a partir de Lacan. O segundo ponto de
vista aponta para uma continuidade, duas saídas diferentes para a
mesma dificuldade de ser. É o que justifica o fato de Genevieve
Morei ter ido procurar, na sabedoria asiática revista por François
Julien, o "variacional". Tanto o franco psicótico quanto o psicótico
normal são variações - o que dizer? - da situação humana, da nossa
posição de falante no ser, da existência do falasser.
A vantagem deste ponto de vista - sabemos disso, e
Lacan o explorou, pois ele apresenta muitas vantagens para tratar
a neurose - é a de estabelecer um certo "todos iguais"; todos
iguais na condição humana. O psicótico não é uma exceção; o
normal tampouco o é. Essa igualdade foi acentuada por Lacan na
sua época existencialista, em "Formulações sobre a causalidade
psíquica", lembrando ao psiquiatra que ele não é, em essência,
diferente do louco - ele apontou isso de novo no final de seu
ensmo.

242
É precisamente essa igualdade que nos leva a falar de
modos e, particularmente, de modos de gozo. Mais precisamente,
falamos de modos uma vez que fizemos desaparecer a descontinuida­
de das classes. Todos iguais frente ao gozo, todos iguais frente à
morte, etc. Nós não distinguimos classes, mas modos, que são varia­
ções. A partir daí, dá-se lugar à aproximação.
Se o Outro existe, podemos escolher pelo sim ou pelo não.
Nas situações em que o Outro existe, há critérios, "repartidores"
[répartitoires] segundo a expressão de Damourette e Pichon, que
-

Lacan usa uma ou duas vezes, e da qual gosto muito. Mas quando
o Outro não existe, não estamos simplesmente no sim ou não, mas
no mats ou menos.
Aliás, é a verdade. Perguntava-me: qual a verdade das coi­
sas humanas? No fim das contas, é a curva de Gauss. Aonde quer
que formos, onde quer que estivermos, tudo se apresenta como
uma curva de Gauss. Nas extremidades, há o radicalmente oposto;
no meio, sob forma de um sino, há o mais ou menos. É sempre
assim, aonde quer que se vá e seja lá o que consideremos. Dizia-me
que era a solução para todos os nossos males: o real das coisas
humanas se apresenta sob a forma da curva de Gauss.
Aqui entre nós, por exemplo, a curva de Gauss está com
certeza presente. Sabemos, logo de início, que se formos testados
sobre algo, obteremos uma curva de Gauss.
É em uma das pontas desta linha mágica que está, como
costumamos dizer, o "seguro e certo". Vamos decompor um pouco
o "seguro e certo": Há o certo. O certo é muito raro. É realmente
um caso raro, sobretudo em nosso campo. Lacan reservava a certe­
za para seu materna da histeria. Há, em seguida, o "seguro mas não
certo", como diz Lacan. É um outro grau: sabemos que é assim,
mas não podemos demonstrá-lo, colocá-lo numa fórmula. Enfim,
há o "não seguro". Nós trabalhamos no não seguro. Não somente
não é certo, como também não é seguro. Nadamos no não seguro.
É o nosso pasto, se me permitem, é a nossa pastagem.

243
Podemos ler nosso volume - talvez não todo o volume,
mas mais ou menos todo o volume - e dizer: "Puxa! Pois bem! Não
é seguro. No fim das contas, não é seguro".
Com Lacan, estamos sempre dizendo: "seguramente,
seguramente". Mas como, em seguida, ele não diz exatamente a mesma
coisa, fica-se um pouco embaraçado com esse "seguramente".
Portanto, finalmente, não é seguro. "Não é seguro" é a
reposta universal. Em nosso campo, podemos sempre levantar a
mão e dizer "isso não é seguro". Tudo depende do tom com o qual
vamos dizê-lo, a convicção, enfim, o objeto a que vamos alojar
nesse significante. "Não é seguro. Não. Realmente, não é".
Sem dúvida, é também por esta razão que começamos
pelas surpresas, pois podemos dizer: "Isso seguramente me sur­
preendeu".
Então, aproximemo-nos daquilo que somos e do que dize­
mos. Ontem à noite, por exemplo, na Croisette, conversava com cole­
gas durante o jantar. Um deles, muito eminente, versado em teoria
e tudo mais, dizia: "eu chamei sua atenção quanto a isso - tenho
uma paciente um pouco psicótica". Efetivamente falamos assim. É
da ordem do mais ou menos.
Um matemático da equipe de apoio de Lacan, do seu SOS­
matemática, Guilbaud, se interessou muitíssimo por esse mais ou
menos. Ele fez um livro a partir de suas aulas sobre o mais ou menos,
na Maison des Sciences de I'Homme, as quais cheguei a frequentar.
Uma versão muito operatória e de fácil manejo, que foi
muito mencionada, é a teoria dos conjuntos fuzzy (jlous) de Zadeh,
da qual falei à época. Ela permite distinguir graus de pertencimen­
to a um conjunto. Na língua, ela abrange as modalizações que pode­
mos sempre fazer.
A Croisette, assim como La promenade des Anglais, em Nice,
ou as Planches de Deauville, não são somente lugares onde nos damos
a ver, mas lugares onde se conversa fiado. É em razão do pensa­
mento aproximativo. Não é preciso que façamos disso um deleite.

244
É justamente porque estamos condenados, na prática, ao pensa­
mento aproximativo, que devemos manter nossa postulação em
direção ao materna. É precisamente por estarmos no mais ou
menos que Lacan nos disse: "Olhem para lá, olhem em direção ao
materna". Ainda que possamos somente fazer quase-maternas,
vamos, ainda assim, continuar a olhar nessa direção.
O próprio pensamento aproximativo tem seus maternas.
E, por outro lado, a conversação é necessária até mesmo para os
matemáticos. Não pode existir matemática se os matemáticos não
conversarem entre si. A conversação é necessária para saber o que
procurar, quais os maternas interessantes, os promissores, os que
estão fora de moda. Em suma, é preciso uma Croisette dos maternas.
Não pensem que estou exagerando. É preciso saber que,
na França - descobri isto durante as férias -, existe uma rede de
cidades de veraneio absolutamente deliciosas, mas que só acolhem
as ciências "duras". Eu disse: "Será que um dia não poderíamos
penetrar aí?" _ ''Ah, sim, a psicanálise, hum . . . ". Os físicos e mate­
máticos são acolhidos e tratados como os reis da cocada preta, mas
nós, não.

245
DO PATOlÓGICO AO NORMAl

Jacques-Aiain Miller Alguém gostaria, para começar a


-

primeira parte, de assinalar algum ponto,


seja este um detalhe ou algo mais geral?
4. PERTURBAÇ Õ ES DA LINGUAGEM

Hélêne Mniestris Minha questão se refere à indicação clíni­


-

ca feita na Seção Clínica de Lille, a partir de Po e <I>o, que me permi­


tiu ver como poderíamos usar a deformação do esquema L, adap­
tada ao caso de Schreber, em outros casos clínicos. Achei essa clíni­
ca fina e preciosa. Vocês poderiam precisar quais são os fenômenos
ligados ao <I>o? Mais especificamente, vocês classificariam sistemati­
camente o delírio entre esses fenômenos, ou somente as ideias deli­
rantes que dizem respeito ao corpo?

Serge Cottet Intervenho a respeito desse mesmo relatório,


-

o de Lille, para uma questão geral que se refere às perturbações da


linguagem. Esse relatório, em sua primeira parte, coloca em evidên­
cia casos que comportam sinais comprovados de psicose, mas nos
quais faltam as manifestações clássicas da foraclusão, sobretudo, e
frequentemente, perturbações da linguagem. Acrescentemos que
esta ausência é compatível com a foraclusão. Apresentam-se, assim,
psicóticos que têm uma relação normal com a linguagem.
Gostaria, então, de obter algumas precisões: sobre o uso
do significante "dragão" no exemplo 3; sobre aquilo que o sujeito,
no exemplo 4, chama de "relações íntimas passadas do corpo à lin­
guagem": ele apresentou alguma tese ou teoria da linguagem?
Elementos de automatismo mental são observados: gostaria de
saber a relação destes com eventuais perturbações da linguagem
mais clássica. A respeito do educador que se sentiu incumbido de
uma missão, gostaria de obter precisões sobre as modalidades dessa
vivência de "se sentir incumbido"; e saber que uso o jovem do caça-

249
níqueis faz do significante "maricas", que acha que lê nos olhos de
um colega, e do binário "dinheiro limpo-dinheiro sujo".
Não seria o caso de trazermos, hoje, precisões a respeito
do que entendemos por perturbações da linguagem? Seria possível
distinguir, por um lado, a decomposição clássica do significante,
como no Seminário 3 e, por outro, fenômenos de despedaçamento
do significante? Não poderíamos precisar o que se pode entender
como perturbação da significação, ou ainda, a relação normal do
sujeito com a linguagem como sintoma? Inspiro-me em uma breve
discussão sobre o exemplo de Jean-Pierre Deffieux, em Arcachon.
Trata-se do enunciado "falta-me energia", a propósito do qual
Carole Dewambrechies observou que poderíamos, eventualmente,
considerar como uma perturbação da linguagem. Jacques-Alain
Miller havia proposto a categoria de "neossemantema". Teríamos,
assim, mais um neo e, talvez, fosse melhor não multiplicá-los. Porém,
isso assinala uma relação com a linguagem na qual a perturbação
seria comprovada. Esse enunciado colocava um ponto de basta no
discurso do sujeito, sua relação com a energia - afinal de contas, tal­
vez não seja uma metáfora; a questão é saber se ele fazia disso um
uso corrente ou privado.

Jacques-Aiain Miller Tratar-se-ia, então, de estender o con­


-

ceito de perturbação de linguagem para além do franco neologismo,


indo até o ponto de nele incluir o uso paranormal da linguagem, o
uso levemente deslocado, a perturbação intersticial. A partir disso,
seria possível estender ainda mais o conceito de perturbação da lin­
guagem. Poderíamos até dizer que falar é uma perturbação da lin­
guagem. Eu estou convencido disso.

Sylvette Perazzi Mas quais as diferenças que vocês fariam


-

entre o neologismo propriamente dito e o neologismo tomado em


seu sentido ampliado, no qual um psicótico toma uma palavra de
acepção corrente e a utiliza como neologismo?

250
Jean-Pierre Deffieux Sempre fiquei surpreso com o fato de
-

que tivéssemos, durante muitos anos, retido essencialmente o neo­


logismo entre as perturbações da linguagem. De fato, é o que
encontramos no Seminário 3. Mas, em "Formulações sobre a causa­
lidade psíquica", Lacan faz uma longa lista, fina e diversificada, das
perturbações da linguagem. Nunca realmente interessou-nos a pre­
cisão disso que, neste texto, ele define como perturbações da lingua­
gem. Lacan fala do toque de singularidade que marca as perturba­
ções da linguagem.

Genevieve Morei O ponto de vista adotado na primeira


-

parte do relatório de Lille corresponde ao que Jacques-Alain Miller


disse a respeito da clínica aproximativa, ou seja, não considerar as
diferentes partes do ensino de Lacan como pontos de vista exclusi­
vos: tudo pode ser usado; podemos trabalhar em um caso tanto
com a "Questão preliminar", com a função fálica dos anos 1 970,
quanto com a função sintoma, de 1 97 5. Esse ponto de vista expli­
ca nossa classificação dos casos. Parece-me que encontramos, na
"Questão preliminar", muitas coisas que poderíamos estender em
todos os sentidos, com as quais podemos até mesmo ultrapassar o
enquadre estrito que ela parece ter, ou que teve para nós. Para as
perturbações da linguagem e os delírios, me baseei neste texto:
tomei o que Lacan chamou de abismos Po e <I>o. Diferenciei o abis­
mo Po, a foraclusão do Nome-do-Pai.
No abismo Po, classifiquei tudo aquilo que é alucinatório e
as perturbações da linguagem. O próprio Lacan coloca os pássaros
que aparecem no parque do lado do abismo Po, quando, na verda­
de, trata-se de algo puramente visual. Mas existe aí uma dificuldade.
As alucinações visuais e sinestésicas, a meu ver, têm, na prática, um
estatuto difícil de determinar: quando alguém diz que sente dor na
perna, é muito difícil saber se é ou não uma alucinação, enquanto
que quando alguém diz que ouve vozes, a questão está resolvida.
Esta é uma diferença prática que se apresentou a mim.

251
Nas perturbações da linguagem, tomei tudo o que pode­
ria remeter a essa categoria, ou seja: palavra, enunciação, tudo o
que diz respeito à escuta, tudo o que De Clérambault aí coloca, o
que é muito vasto, indo do eco do pensamento ao diálogo das
vozes. O neologismo, é claro, aparece nesta série; concordo em
dizer que alguns empregos de palavras de uso corrente são neo­
lógicos.
Para a moça "dragão", por exemplo, um caso que acompa­
nhei, "dragão" não é um neologismo: é bizarrice local. Eu mesmo
não conhecia a expressão. Fiz então a pergunta para vários adoles­
centes: isso corresponde ao que, em Marselha, onde fui criada, cha­
mamos "tribufu". Pode se dizer de uma menina que ela é um "dra­
gão", pois o dragão é um bicho feio. Perguntei, então, à jovem, por­
que dizia "dragão" e ela me respondeu que se dizia "dragão" do
mesmo modo que se diria "mocreia". Verifiquei com outras pessoas
que me confirmaram ser a coisa mais banal do mundo dizer "eu não
sairia com este dragão". Isso me pareceu engraçado o bastante para
colocá-lo como titulo, e não é contraditório com o fato de que isso
possa ser um neologismo. Nesse relatório, quisemos trabalhar o
máximo possível do lado da prova, mesmo sabendo que as coisas
são aproximativas. Tentamos, por um lado, classificar e, por outro,
pôr em evidência as coisas mais importantes de um caso. No caso
do "dragão", por exemplo, não foi esse o ponto que me pareceu o
mais psicótico.
No caso do rapaz que dizia que a relação com a mãe tinha
passado "do corpo à linguagem" - era uma apresentação de pacien­
tes -, ficamos impressionados com a precisão dessa fórmula e a
colocamos em evidência. Mas, não é por que alguém faz uma teo­
ria sobre si mesmo que isso configura uma perturbação da lingua­
gem, senão estaríamos todos nós, analisandos e analistas, perpetua­
mente condenados às perturbações da linguagem. Logo, para mim,
isso não constituía uma verdadeira perturbação da linguagem, tal
como normalmente o atestamos.

252
A propósito do automatismo mental, ele é inteiramente
reconhecido como perturbação da linguagem, visto que se encon­
tra na rubrica dos sujeitos para os quais a entrada na psicose se dá
sem perturbações da linguagem - o que chamamos <l>o - mas que
apresentam, em seguida, perturbações dessa ordem. Há, portanto,
neste caso, perturbação da linguagem: há um automatismo mental
que serve justamente para demonstrar que ele vem em segundo
lugar em relação à outra coisa que o precede - o que encontramos
em De Clérambault.
Philippe Bouillot poderá responder à pergunta que diz res­
peito ao "jovem do caça-níqueis", já que se trata de um de seus
casos, e Brigitte Lemonnier poderá responder à questão que diz res­
peito à "missão". Isso é tudo sobre a pergunta a respeito das per­
turbações da linguagem.
Quanto à questão do delírio, quis seguir De Clérambault.
Já que Lacan dizia que ele foi seu mestre, disse a mim mesma: no
fim das contas, o mestre do mestre é sempre um mestre. De
Clérambault diferencia o que é automatismo daquilo que é deliran­
te. Fiz a mesma coisa, ou seja, considerei que uma ideia delirante a
respeito do corpo não era, a priori, algo ligado ao Po, mas sim algo
a ser incluído em <l>o.
Evidentemente, isso se complexifica, pois o próprio De
Clérambault não fala somente de automatismo mental; fala de auto­
matismo sinestésico e de automatismo motor. É difícil, até mesmo
em sua obra, ver exatamente como o automatismo sinestésico se
diferencia de outros fenômenos corporais. Cada vez que se faz
menção a "alguém me fez levantar a perna" ou "alguém me causou
uma dor", a questão não se coloca, mas quando se trata de uma sim­
ples dor, isso se torna mais complexo. Falaremos disso, sem dúvida,
esta tarde.
Parece-me que a questão se complica no que concerne aos
delírios de filiação. A dificuldade não aparece no que vimos, já que,
de maneira geral, quando tínhamos grandes delírios de filiação,

253
tínhamos também um automatismo mental ou, pelo menos, pertur­
bações da linguagem. Mas, de fato, a classificação é um pouco defi­
ciente no que diz respeito aos delírios que giram, por exemplo, em
torno da paternidade ela mesma: porque não colocá-los em Po?
Neste ponto, não me parece que tenhamos resolvido a questão.

. Alexandre Stevens - Enquanto falamos, sobretudo, da últi­


ma clínica de Lacan, o relatório de Lille tem o mérito de restituir à
"Questão preliminar" um verdadeiro frescor. Estaria mais de acor­
do com as repartições propostas, mas colocar do lado de Po tudo o
que é alucinação, inclusive os pássaros que surgem no caso
Schreber...

Geneviêve Morei - É Lacan quem o faz.

Alexandre Stevens - Isso não é difícil de ser considerado do


lado linguageiro, isto é, do lado de Po, na medida em que, se isso
aparece no campo do olhar, o essencial, por sua vez, é que os pás­
saros façam signo e, por isto, podemos dizer que falam. É assim que
entendo. Em contrapartida, você colocaria do lado das perturba­
ções da linguagem essas espécies de bricolagens com !alíngua, men­
cionadas em vários trabalhos? Penso especialmente no trabalho do
grupo de Angers: eles evocam um sujeito - trata-se de uma criança
- que não é de forma alguma delirante, no qual não há perturbações
da linguagem, mas um tipo de invenção de uma pequena língua pes­
soal, chamada linguagem Donald, que enlaça uma transferência
com o analista. Temos aí um tipo de invenção linguageira que não
tem um estatuto neológico, mas sim o estatuto de dar nome e per­
mitir enlaçar algo com o outro, um outro particular.

Geneviêve Morei - Inventar uma linguagem privada tal como


esta, faz, para mim, parte das perturbações da linguagem.

254
Alexandre Stevens - Existem diferentes usos de "linguagem
privada". Conhecemos crianças psicóticas cujas mães podem dizer:
"Eu entendo perfeitamente o que ele diz", e mais ninguém enten­
de. Há aí o que chamamos de uma linguagem privada. No caso de
Angers, não o interpreto completamente dessa forma: não coloco
no mesmo plano essa invenção da língua Donald, pois se trata de
uma pequena invenção compreensível pelo outro. É uma criança
que, resumindo, inventa falar usando uns quack-quack-quack com seu
analista. O próprio analista faz, a partir disso, um lapso: "São quack­
tro e dez", diz ele sem querer, o que faz a criança morrer de rir, e
que capta como o outro é tomado na transferência. Logo, não é
realmente uma língua privada, no primeiro sentido que estávamos
usando.

Geneviàve Morei - Não, e é verdade que, às vezes, as crian­


ças fazem isso de maneira espontânea entre elas, até mesmo fora de
um quadro analítico.

Alexandre Stevens - Como, então, você situaria, em relação


às perturbações da linguagem, essas criações que se colocariam do
lado da lalíngua?

Geneviàve Morei - Já não tenho mais o caso na memória,


mas me parece que, em se tratando da invenção de uma nova lín­
gua, mesmo sendo ela feita com significantes de todo mundo, eu
colocaria isso do lado das perturbações da linguagem.

Pierre Stréliski - Na linha do que Alexandre acaba de dizer,


qual o estatuto do lapso? Podemos considerá-lo uma perturbação
da linguagem?

Geneviàve Morei - Psiquiatricamente, não; e, em minha prá­


tica, não o considero uma perturbação da linguagem. Parece-me

255
que conseguimos diferenciar clinicamente essas palavras que têm
para o sujeito um valor especial - tal como "falta-me energia" - a
maneira como são ditas, a enunciação que aí desempenha um papel,
e o lapso, seja em um caso de neurose ou de psicose, já que ele tam­
bém se produz aí. Parece-me que se trata mais de interrogar a prá­
tica que de fazer uma classificação. Se fizermos uma classificação,
acredito que vamos, obrigatoriamente, nos equivocar.

Yasmine Grasser - O relatório de Lille recolocou, de manei­


ra central, a questão da conjuntura. Fiquei surpresa em ver que o
<l>o, as variações da psicose, vêm antes e que, talvez em seguida, virá
ou não um desencadeamento. Considero isso bastante convincente
na clínica com crianças: frequentemente procuramos localizar o
desencadeamento nos autistas e nas crianças psicóticas e sempre
temos dificuldades em fazê-lo. Então, me perguntei se poderíamos
generalizar essa divisão que vocês fazem. A outra pergunta diz res­
peito aos fenômenos de linguagem. É somente após um desenca­
deamento, localizado como tal, que um testemunho do sujeito pode
aparecer? Nessa mesma linha, pensei que quando recebemos uma
criança psicótica, "bricolamos" algo, mas não temos testemunho
algum.

François Sauvagnat - Tenho simplesmente uma reflexão a


respeito das perturbações da linguagem, que há tempos usamos,
com o privilégio dado ao neologismo. De qualquer maneira, é desse
modo que Lacan frequentemente foi lido: há ou não neologismos?
Caso não existam, não pode se tratar, então, verdadeiramente, de
psicose. Mas, é certo que foi isso mesmo o que Lacan tentou fazer?
É assim que ele entendia o termo "perturbações da linguagem"?
Não tenho tanta certeza disso, não há textos em que isso seja dito.

Jacques-Aiain Miller - Quem leu isso assim, se não há neolo­


gismo, não há psicose?

256
françois Sauvagnat - Parece-me que é algo que se diz fre­
quentemente.

Genevieve Morei - Veio do exemplo ''galopiner', do Seminário 3.


Desde então, todos acham que se trata de uma regra.

Jacques·Aiain Miller - Veio de ''galopiner', que é justamente


um exemplo ruim, já que a palavra não é um neologismo, mas sim um

termo regional, que encontramos em Zola. Não é certamente o caso


de reduzir as perturbações da linguagem a um simples neologismo.

François Sauvagnat - Apesar de tudo, são coisas que se


ouvem.

Jacques-Aiain Miller Concordo. A respeito disso, nossa


-

convenção pode se pronunciar, rejeitando a tese errônea.

François Sauvagnat Sim. Parece-me também que a referên­


-

cia a De Clérambault deve ser revista. Quando Lacan diz "De


Clérambault, meu único mestre", em que medida não é para apor­
rinhar Henry Ey? É claro que ele o repete, mas, de qualquer manei­
ra, ele tem uma leitura muito própria de De Clérambauldt. No
Seminário 3, a questão é, antes, aquela sobre as perturbações da sig­
nificação: tudo pode advir, quer seja visual ou verbal; o que impor­
ta é que haja essa coisa "perplexificante".
O segundo ponto incide sobre uma outra questão. Fiquei
surpreso por não encontrar, na questão do neodesencadeamento,
algo como uma decisão do sujeito, particularmente na passagem
sobre a melancolia. Fazer referência aos trabalhos de Kraus, que,
aliás, é um rapaz muito simpático, ou à escola de Heidelberg, é uma
coisa boa, mas corre-se o risco de ficarmos com uma visão da
melancolia demasiadamente caracterológica, de não ver o aspecto
bastante complicado das suplências e do não apagamento do nome-

257
próprio. Parece-me que isso poderia, em certo número de casos,
opor-se a algo mais marúaco como "fazer-se um nome", no estilo de
Joyce. É preciso notar o aspecto da tristeza, um tipo de decisão em
deixar de lado as suplências, o que chamei de "traição" nos peque­
nos trabalhos que fiz a respeito. Parece-me que existe aí algo que
sentimos perfilar-se em sujeitos que podemos ter em tratamento.

Jacques-Aiain Miller Não podemos reservar a qualificação


-

das perturbações da linguagem somente às perturbações do signifi­


cante, aos únicos casos em que a forma significante é tocada; ela se
estende às perturbações da significação. É o que confirma a passa­
gem de "Formulações sobre a causalidade psíquica", na página 1 68
de Escrito� evocada por Deffieux e que Carole Dewambrechies me
põe frente aos olhos. Trata-se da passagem que Lacan, nesse escri­
to de 1 946, extrai de um texto Guiraud, intitulado "Formas verbais
da interpretação delirante":

Enveredemos por esse caminho para estudar as significações da lou­


cura, tal como nos convidam a fazer as modalidades originais que
nela mostra a linguagem: as alusões verbais, as relações cabalísticas,
os jogos de homonímia e os trocadilhos que cativaram o exame de
um Guiraud - e, direi eu, o toque de singularidade em cuja ressonân­
cia é preciso saber ouvir numa palavra para detectar o delírio, a trans­
figuração do termo na intenção inefável, a fixação da ideia no
semantema ( ), os híbridos do vocabulário, o câncer verbal do neo­
...

logismo, o enviscamento da sintaxe, a duplicidade da enunciação, e


também a coerência que equivale a uma lógica, a característica que,
pela unidade de um estilo nas estereotipias, marca cada forma de
delírio: tudo isso pelo qual o alienado, através da fala ou da pena,
comunica-se conosco.

É uma belíssima passagem, que propõe uma concepção


muito ampliada da perturbação da linguagem, incluindo significan­
te e significado.

258
lilia Mahjoub À pergunta feita, "seria o lapso uma pertur­
-

bação da linguagem?" podemos responder que sim; mas, justamen­


te, seria no sentido da metáfora ou da metonímia? Não podemos
esquecer que o que desempenha papel central no significante são
suas leis metafóricas e metonímicas. No caso das psicoses, por
exemplo - eu vejo isso com bastante frequência nas crianças -, há,
de fato, uma ausência de metáfora, e tudo vai conduzir ao esforço
do sujeito psicótico para conseguir metaforizar. Existem casos do
relatório de Aix-Marseille e Nice que o demonstram. Por exemplo,
essa mulher que diz "sou uma meia virada ao avesso"; vemos que
foi, para ela, um esforço envelopar esse vazio, essa ausência radical
que ela é. Podemos dizer que esta frase, "sou uma meia virada ao
avesso", é com efeito algo da ordem de um esforço em produzir
uma metáfora que, na verdade, não é uma metáfora, mas algo que
está mais do lado do eu delirante. Contudo, isso permite-lhe apre­
sentar-se como tal, aí onde ela não tem envelope. Penso, então, que
toda perturbação da linguagem pede um exame: do que se trata? De
uma metáfora ou de um esforço de metáfora?

Philippe De Georges É justamente sobre esse caso que que­


-

ria chamar atenção; na verdade, chamarei atenção para dois casos que
estão em série no relatório de Aix-Marseille e Nice, apontando o fato
de que existe aí um diálogo entre os relatórios das diferentes Seções
a respeito do problema dos fenômenos que Geneviêve Morei designa
como perturbações de <l>o. Em nosso relatório, sobretudo no caso
trazido por David Halfon, trata-se, a cada vez, de sujeitos nos quais o
clinico não notou perturbações ligadas ao encontro com Um-pai,
nem desencadeamento segundo uma forma típica; em contrapartida,
como nota Geneviêve Morei, algo acontece na relação do sujeito com
o gozo e com o imaginário, com esse abismo ligado a uma total
impossibilidade de subjetivar seja lá o que for dessa experiência. Isso
explica tentativas tais como as que Lilia Mahjoub acaba de citar, ten­
tativas extremas de metaforizar, sem consegui-lo verdadeiramente.

259
Francesca Biagi Na clínica das psicoses não desencadea­
-

das, me sirvo de uma palavra que tomo emprestada de Lacan e que


ele usa a respeito de Joyce: a palavra "heresia". Esta palavra lança
luz sobre o que poderia ser uma perturbação da linguagem do lado
da significação. Quando funciona, o Nome-do-Pai dá ao sujeito um
sentido comum sobre o sexual, mesmo que esse sentido não seja
capturado e permaneça enigmático. É o que permite compreender
e suportar as alusões. Quando olhamos alguém de modo um pouco
intenso, trata-se de uma alusão, sem que isso, no entanto, resulte em
um delírio persecutório. A alusão supõe que existe um sentido com­
partilhado. Isso nos faz pensar na palavra de Bergson, destacada por
Lacan, em Asformações do inconsciente, e retomada por Jacques-Alain
Miller, a saber, "ser da paróquia". Quando se é um neurótico, dize­
mos que se é da paróquia no sentido sexual, no sentido do Nome­
do-Pai. O delírio de filiação vem romper com essa paróquia.
Nas psicoses não desencadeadas pode ser interessante
acolher a heresia, procurar saber de que heresia se trata em relação
à paróquia comum. Poderia tratar-se, talvez, de uma heresia que o
sujeito não tivesse realmente desejado, que ele não promoveu. A
ciência pôde ser considerada como herética em um dado momento.
Aliás, há muitos neologismos na ciência, mas o sujeito da ciência os
explica, para não cometer uma heresia. É interessante, então, ver em
que ponto um paciente psicótico pode ser um herege no que diz
respeito ao Nome-do-Pai, o que seria uma forma mínima de pertur­
bação da linguagem. Se o analista é capaz de acolhê-lo, isso pode,
com efeito, promover um nome próprio do ser, que não tenha obri­
gatoriamente relação com o objeto a, um sentido privado, um falo
que é <I>o na medida em que ele não comunitariza [communautarise] -

fazendo, eu mesma, um neologismo.

Brigitte lemonnier - Serge Cottet evocou o caso clínico apre­


sentado sob o título de "Missão Cumprida". Este homem não diz
estar incumbido de uma missão. Ele não está incumbido de uma

260
missão; ele inventou uma missão para si mesmo. Encontrou os pre­
ceitos da Igreja, este tripé: pureza, honestidade, fidelidade - e acha
ter encarnado essas palavras até o momento de seu desencadeamen­
to. Sua missão não lhe vem de um outro, nem da Igreja. Enquanto
nunca estamos à altura do ideal, ele, por sua vez, sempre está. Ele
tem a absoluta certeza de ter encarnado esse ideal, assim como tem
certeza, no momento de seu desencadeamento, de estar na posição
absolutamente contrária, de ser um indigno, de que essas palavras
que constituíram para ele seu ideal o largaram, de que ele se tornou
um assassino, etc.

Z61
5. GOZAR DA LINGUAGEM

Franz Kaltenbeck - Gostaria de assinalar a Sauvagnat que


encontramos essa decisão do ser, ou melhor, do sujeito, no relató­
rio de Aix-Marseille e Nice: um menino, de um dia para o outro,
resolve deixar de falar porque sua mãe deixou que ele fosse à esco­
la, ao passo que, antes, era muito agarrada a ele. Se a observação
estiver correta, e eu penso que ela é totalmente digna de crédito,
teríamos aí uma decisão do ser. Por outro lado, gostaria de respon­
der a Cottet sobre a questão da perturbação da linguagem. A estra­
tégia do relatório de Lille foi dizer: quando existirem traços clínicos
mais importantes que as perturbações da linguagem, devemos insis­
tir, antes de qualquer coisa, sobre esses traços - por exemplo, as
perturbações do corpo. Cottet usou um termo que muito me agra­
da, o de "relação do psicótico com a linguagem". Não é necessaria­
mente uma perturbação da linguagem ou algo que aconteça em
falíngua. Pode tratar-se de uma bizarrice sintática ou de um proble­
ma de enunciação; e isso nem sempre é assinalável em uma defor­
mação de lalíngua. Por exemplo, um paciente recentemente hospita­
lizado me liga para dar seu número de telefone na clínica; neste,
temos duas vezes o número 7 1 ; ele me diz: "a polissemia da palavra
'vezes'3 me faz gozar". Temos aí uma relação muito particular com
a linguagem.

Jacques·Aiain Miller - De fato. É precisamente esse ponto que


faz com que não estejamos tão certos quanto ao interesse de uma
classificação fundada sobre a bipartição Po - <l>o. O ponto em ques­
tão, a saber, que há um "gozar da linguagem", mostra de maneira pre-

263
cisa por onde a coisa se desfaz. A construção da "Questão prelimi­
nar" é fundada sobre uma grande bipartição: por um lado, o grande
Outro, o Nome-do-Pai, a linguagem, os fenômenos significantes, de
ordem lógica, se desdobrando em um deserto de gozo; por outro, o
imaginário, o especular, o corpo, o gozo. As perturbações da lingua­
gem, assim como a linguagem, procedem da estrutura linguística, o
resto se enraiza no estádio do espelho. As perturbações linguísticas
não são ditos anideicos, como se expressa De Clérambault, mas são
concebidas, enquanto tais, como agozantes [qjouissijS], fora-do-gozo, já
que é do lado do imaginário corporal que circula a libido. Essa con­
ceitualização teve uma importância histórica capital e permanece
sendo uma referência indispensável; mas, se a adotarmos sem ver os
limites vistos e ultrapassados por Lacan, perdemos isso que faz o
vigor da clínica borromeana: uma conexão bem mais estreita do gozo
e do significante, a colocação dos dois campos em continuidade.
Podemos dizer que, na clínica borromeana, o <l>o e o Po são as duas
extremidades da curva de Gauss, o que é apenas uma distinção de
razão e não uma distinção fundada na coisa. Existem perturbações
nas quais não é a forma significante que é atingida, mas sim a signifi­
cação: a palavra é normal, a frase é normal e, no entanto, há, por
detrás da palavra ou da frase, uma "intenção inefável". Pois bem, não
saberíamos esclarecer isso melhor do que levando em consideração o
"gozar da linguagem". Em suma, "a polissemia da palavra me faz
gozar" - não se poderia dizer melhor.

Geneviêve Morei Em "Questão Preliminar", o que proce­


-

de do "gozar da linguagem" parece-me colocado em Po, e não eli­


minado do quadro. Tudo o que é língua fundamental. . .

Jacques-Aiain Miller - ... não é tomado como gozo.

Geneviêve Morei - Não é tomado como gozo, mas podemos


restabelecê-lo como tal. Quando o relemos, como, aliás, fizemos

264
junto com o senhor há dez anos, no seminário de D.E.A.\ podemos
tomar o que Lacan chama de Po como um gozo da linguagem, ao
menos no que diz respeito à Iingua fundamental. Em relação à ques­
tão das perturbações da linguagem, outra dificuldade vem, a meu
ver, do fato de os conceitos se estenderem e se inflarem, de manei­
ra que, no fim das contas, eles acabam por abarcar quase tudo. Foi
aí que muito frequentemente nos perdemos. Se tomarmos, na
"Questão preliminar", a análise da alucinação, o significante estru­
tura a percepção, o que quer dizer, portanto, que uma alucinação
visual é uma perturbação da linguagem.

Jacques-Aiain Miller - Exatamente, essa é a tese de Lacan.

Genevieve Morei É a tese de Lacan e quase está em De


-

Clérambault, quando este relaciona os três automatismos entre si.


Os próprios fenômenos de corpo - se considerarmos a tese de
"Radiofonia", segundo a qual o corpo é estruturado pela linguagem
- também são perturbações da linguagem. Chega-se a um "tudo
está em tudo" e é aí que se encontra a dificuldade.
Gostaria, por minha vez, de interrogar os colegas de
Clermont-Ferrand, Dijon e Lyon, sobre o caso intitulado "o idóla­
tra", que muito me interessou, a partir do qual podemos trabalhar
com os dois pontos de vista, o da "Questão preliminar" e o do últi­
mo Lacan. Trata-se de um menino que, aos seis anos, tem um primei­
ro desencadeamento após uma palavra do pai; nesse momento, ele se
sente excluído da comunidade dos homens, coloca-se do lado das
mulheres e engrena uma espécie de fetichismo da meia-calça, que, de
qualquer maneira, é um esboço transexualista. Há, portanto, uma
espécie de gozo transexualista. Depois, há como uma colagem à mãe,
o que o leva a uma tentativa de suicídio com seus produtos de limpe­
za doméstica, tudo o que, na classificação que fizemos em Lille,
ficaria do lado de <l>o; ou seja, teríamos: Um-pai leva a <l>o. Tudo isso
dura muito tempo, até que, aos dezessete anos, ele volta a entrar na

265
comunidade dos homens, da qual tinha sido expulso aos seis anos; ele
volta à comunidade dos homens... só que agora esta aparece sob a
forma de um monastério. Há essa conversão à religião e é a partir daí
que ele nomeia toda a sua trajetória precedente, tudo o que fazia com
sua meia-calça, o "idólatra". É, de fato, interessante, já que a mãe, que
também devia ser um pouco bizarra, o tinha batizado na igreja orto­
doxa de maneira que, mais tarde, ele pudesse fazer uma escolha - o
que é um detalhe bastante curioso do caso. No fim das contas, ele era
de fato um idólatra, visto que tinha sido batizado na religião errada.
E ele mesmo batiza de idólatra o fato de ter usado a meia-calça da
mãe para suas práticas transexualistas; tudo o que lhe tinha aconteci­
do antes, ele também rebatiza dessa forma.
Há, em seguida, uma espécie de segundo desencadea­
mento. Ele vai para os Estados Unidos. Até aí, no relato que nos
é feito, na leitura que fiz do caso, não tivemos muitas perturbações
da linguagem; mas, a partir do momento em que é enviado aos
Estados Unidos, estamos visivelmente em pleno Po: os computa­
dores começam a falar por todos os lados; é o mesmo que dizer
que, nesse dado momento, ele sai novamente da comunidade dos
homens. Tinha entrado nesta comunidade, dela sai quando se
encontra nos Estados Unidos, e há perturbações da linguagem
que aparecem de forma muito importante. Volta a encontrar um
novo lugar na comunidade religiosa, tornando-se o especialista da
informática; ele tem um lugar particular, mas que é, com efeito,
associado a um tipo de sinthoma, que é o de exercer a informática
para todo o mundo, de fazê-lo verdadeiramente: pode-se dizer que
se trata de um tipo de sinthoma.
Finalmente, a maior parte do caso é compreensível a par­
tir da "Questão preliminar" como única referência; é somente ao
final - se quisermos levar a sério o especialista em informática, que
é associado a um tratamento da língua, o que, aliás, no relatório foi
perfeitamente posto em evidência - que o último Lacan nos serve
e nos acrescenta algo.

266
A única coisa que não entendi no relatório de Clermont, é
por que nossos colegas consideraram que o Édipo não tratava a
causa sexual. Isso está no primeiro parágrafo do relatório. Há uma
oposição entre o primeiro e o segundo Lacan que perpassa todo o
texto. É dito que a metáfora paterna é uma retomada do Édipo
freudiano; e, no fim, é dito que "a questão da causa sexual não se
encontra incluída nessa lógica", a lógica da "Questão preliminar".
Queria perguntar-lhes se, para eles, o Édipo também não era um
tratamento da causa sexual.

Jean-Robert Rabanel Essa frase vem da ideia de diferenciar


-

a clínica psiquiátrica da clínica analítica. A lógica que preside a


"Questão preliminar", ou seja, a da prevalência do Outro, logo, do
pai e do Édipo, deve muito à concepção psiquiátrica na medida em
que o modelo psiquiátrico faz referência a uma norma, a uma dis­
tinção muito clara entre o que é normal e o que não o é, enquanto
que, mais tarde, a teoria da psicose de Lacan vai se distanciar consi­
deravelmente dessa distinção radical.
A "Causalidade psíquica" foi uma conferência dada em
Bonneval, em um colóquio, e há todo um debate - François
Sauvagnat fazia, ainda há pouco, alusão a ele - entre Henri Ey e
Jacques Lacan a respeito desta questão: será que é preciso distinguir
radicalmente o normal e o patológico, a psique normal e a psicose?
A crítica essencial de Henri Ey é a seguinte: "Se nós escutamos o
doutor Lacan em seu relatório, não há mais distinção entre a psico­
se e a normalidade". O que Genevieve dizia ainda há pouco me fez
pensar no seguinte: a clínica psiquiátrica força-nos a operar de
maneira decidida com a distinção entre o normal e o patológico; ao
contrário, o próprio da clínica analítica, como evocava Jacques­
Alain Miller na introdução, conduz a uma espécie de igualdade de
todos frente à morte e ao gozo.
Em suma, o ponto que todos compartilhamos no que se
refere ao gozo é a relação com o significante, com o significante

267
Um, com o significante sozinho. É a partir desse ponto, comum a
todos, em que o significante nos coloca em relação com o gozo, que
vamos nos distinguir por uma série de escolhas, de engajamento em
um determinado modo de gozo, mais que em outro.

Philippe De Georges Encontramos no relatório de Clermont


-

a seguinte frase: "Se Bleuler admite a significação freudiana das psi­


coses, é a custa de foracluir a questão da causalidade sexual". Esta
frase diz respeito ao famoso momento em que Bleuler diz que usará
a teoria freudiana, falando, porém, em autismo, a fim de evitar o
termo autoerotismo.

Geneviêve Morei Estou de acordo com esse ponto. O que


-

não vejo é em que o Édipo freudiano não seria um tratamento da


causa sexual, como foi dito no parágrafo anterior.

Jacques Borie Quisemos indicar o seguinte: o Édipo freu­


-

diano é certamente um tratamento do sexual. Ele trata o sexual pela


interdição e pela identificação. Mas existe um ponto da causalidade
sexual que não é tratada pelo Édipo. Senão, qual o motivo para se
ter tentado fazer uma clínica para além do Édipo? Não vejo interes­
se em enfatizar o fato de que, em referência à norma, há perturba­
ções da linguagem nos psicóticos - pois isso sempre acaba por
colocar a psicose novamente do lado do déficit. É mais fecundo
retomar a questão a partir da tese tão bem demonstrada pelas psi­
coses de hoje, que são as psicoses nas quais a relação com o Outro
ou não está bem constituída ou está reconstituída pelo delírio, per­
manecendo, contudo, problemática. Podemos então mostrar que é
a partir de um tratamento da língua enquanto tal, do St da língua,
que algo do laço social pode se reconstituir, e não o contrário.
É o que nos ensinam os casos que trouxemos e, dentre
estes, o do "idólatra": a norma é a maneira pela qual o sujeito cons­
trói sua relação com a língua, relação esta em que ele também está

268
imerso, fazendo disto um ponto de apoio em sua relação com o
Outro. É bem diferente dizer: a norma já está aí presente sob a
forma da coerência da cadeia significante, isto é, da existência do
Outro; em relação a isso, o sujeito se mostra em déficit. Essa é a
nossa maneira habitual de raciocinar, maneira cuja lógica é paranoi­
ca, já que a paranoia visa reconstruir a cadeia significante de um
modo ainda mais radical, dando consistência à ordem do universo.
A lição que devemos tirar das neopsicoses é que a norma
não existe apriori, mas se constitui a partir da cadeia rompida. A res­
posta paranoica é a de reconstruir a cadeia a partir de Sz no delírio.
Ao contrário, a resposta do sujeito psicótico contemporâneo, se
assim posso dizer, é tratar esse S1 sozinho, em seus efeitos de gozo
do ser.

Carole Dewambrechies·La Sagna - Podemos confrontar a cita­


ção das "Formulações sobre a causalidade psíquica" com a reflexão
de Lacan em seu Seminário, quanto a saber se Joyce é ou não psi­
cótico. Vê-se como Lacan raciocina a respeito da questão. É a rela­
ção com a linguagem e com a língua que Lacan coloca em primeiro
plano: que tipo de relação com a linguagem tinha Joyce? É aí que
ele lembra que a filha de Joyce é telepata. Lacan traz certo número
de informações sobre a constelação familiar de Joyce. É também aí
que ele dá valor à crença, como no início de seu ensino: Joyce se
acreditava encarregado de uma missão em relação à desconstrução
da língua? Eis os elementos que, segundo Lacan, são determinantes
para o diagnóstico.

Pierre Naveau - Minha reflexão incide sobre a psicose ordi­


nária hoje. O que desfaz a descontinuidade entre a psicose e a nor­
malidade é isso que, ainda há pouco, foi chamado de língua privada.
Cada um fala sua iaiíngua, teria dito Lacan nos anos 1 970. É o que
me leva a fazer um lembrete, referindo-me à tese de medicina de
Lacan, na qual ele valoriza a expressão psiquiátrica "significação

269
pessoal". A perturbação da linguagem pode ser apreendida a partir
do significante ou da significação; o que nos mostra Lacan é que,
quanto mais a significação se torna pessoal, mais ela se torna enig­
mática, o que é uma espécie de paradoxo. Aliás, falamos disso em
Angers. O exemplo que dá o relatório de Lille, "trabalhar é perder
a vida", é dessa ordem. É uma frase muito simples, mas é tomada
ao pé da letra pelo sujeito, o que quer dizer que ele lhe confere um
significado muito pessoal, muito íntimo. Ainda mais por perceber­
mos o que ele quis dizer com isso: que trabalhar é perder a mãe.

Jacques-Aiain Miller Faço, de passagem, uma observação de


-

vocabulário. O uso clássico da expressão "significação pessoal" é o


seguinte: algo acontece no mundo - o exemplo de Lacan é 'um carro
vermelho passa na rua' - e penso que isso é pessoalmente direciona­
do a mim, que o sinal ou que a mensagem é para mim. A expressão
a ser empregada para se referir à "significação íntima, particular a
alguém" é, antes, "toque de singularidade", é o idioleto delirante.

Nicole Guey A partir do momento em que abandonamos


-

a referência exclusiva aos neologismos para nos interessarmos mais


pelo enlaçamento entre o significante e o gozo em uma perspectiva
de continuidade neurose-psicose, não chegamos a uma nova divi­
são, mas a uma localização efetiva da relação do sujeito com o gozo
em seus balanceamentos. Podemos, talvez, considerar o que ocorre
com o tratamento desse gozo.

Jacques-Aiain Miller Lacan jogou com a decomposição da


-

palavrajouissance (gozo) que faz ouvir que é essencialmente um sens­


joui (sentido gozado). Os fenômenos de significação pessoal, o
toque de singularidade, etc., devem, certamente, ser inscritos nesta
rubrica. Dizemos os fenômenos do corpo, as perturbações do
corpo, etc. Do que se trata? São também fenômenos de sens-joui
(sentido gozado) . O que ocorre é que se localizam em outro lugar.

270
6. A PFUIT!' DO SENTIDO

É ric Laurent
- No espmto da Conversação, poderíamos
abordar a própria ideia de perturbação da linguagem: a perturbação
da linguagem depende da ideia que fizermos da linguagem. A per­
turbação da linguagem segundo Saussure, Jakobson, Hejmslev,
Locke, Malebranche, é bastante diferente.
Se formos saussurianos, diremos que a perturbação da lin­
guagem se passa entre o significante e o significado. Se formos
jakobsonianos, diremos que a perturbação se passa entre a metáfo­
ra e a metonímia ou que está ligada à questão do shifter. Se seguir­
mos Locke, vamos nos interrogar a respeito da linguagem privada,
das ideias que nos vêm, das ideias claras que, segundo Locke, não
são aquelas de Descartes. Se nos inspirarmos em Malebranche,
vamos nos interessar pelas ideias que nos chegam, não de nós mes­
mos, mas do criador que mantém a criação. Entre Locke e
Malebranche, quem é o mais esperto, quem é o mais maluco? Esta,
evidentemente, é uma pergunta que Lacan se coloca.
Se você for um neurologista, irá, antes de tudo, se conten­
tar com a concepção espontânea que os neurologistas sempre tive­
ram da linguagem; a concepção de Broca e Wernicke, que tanto
serviu a Freud na elaboração de sua teoria sobre as afasias. Broca
e Wernicke eram muito bons em fazer atas de observação: quando
tal paciente não tem mais à sua disposição uma tal parte de um
órgão, produz-se tal déficit funcional. Deve ser, portanto, por ali
que tal função se localiza. Conhecemos, assim, toda uma geração
de enunciados de localização: primeiro, as zonas especializadas; em
seguida, a lateralização estrita do cérebro; até que, recentemente,

271
deram-se conta de que a localização foi, sem dúvida, muito exage­
rada. Foi preciso, ao invés disto, pensar em termos de tratamento
da informação por um sistema. É a contribuição dinâmica das neu­
rociências.
A teoria das afasias, o tratamento das imagens de palavras
e das imagens de coisas pela máquina inconsciente, é uma bricola­
gem sobre uma perturbação da linguagem à qual Freud se entregou,
a partir de uma concepção da linguagem dos neurologistas anterio­
res às neurociências. As próprias neurociências procedem, em gran­
de medida, de uma conversação entre a teoria da linguagem dos
neurologistas, formada a partir de uma prática cada vez mais fina da
lesão e de sua recuperação, com alguns outros praticantes de abor­
dagens mais técnicas da língua, como especialistas em computação
que se interessam pelas línguas naturais e alguns filósofos da lingua­
gem. Com isso, geramos uma nova conversação que chamamos de
neurociências. A perturbação da linguagem, considerada a partir
desse ponto, é muito particular.
Se fôssemos Chomsky, que ideia teríamos da perturbação
da linguagem? Poderíamos pensar que, se fôssemos chomskyanos,
iríamos buscar, a fim de dar conta da perturbação, a regra de rees­
crita que não funciona. Alguns chomskyanos ficaram muito surpre­
sos que este mesmo autor tenha, em seguida, apresentado a partir
dessa teoria uma concepção política da linguagem, toda ela atraves­
sada pela ideia de complô. Esta concepção o levou a posicionamen­
tos muito radicais dentro da política universitária americana. O
complô generalizado desenha uma teoria compatível com a ambi­
ção de dar conta da linguagem a partir de regras exaustivas. É uma
maneira de integrar, no sistema, seu limite. As regras não bastam
para dar conta da produção de sentido com base nos equivocas
subsistentes. Será necessário, então, uma grande conversação políti­
ca para saber o que diz a linguagem. Chomsky insiste em uma ampla
interpretação da primeira emenda da constituição americana, segun­
do a qual deve ser absolutamente permitido dizer tudo, inclusive

272
horrores. É porque tudo isso não quer dizer nada e não tem efeito
algum fora da conversação que isso vai fixar o sentido. A conversa­
ção é organizada pelos poderosos que querem significar a lingua­
gem em um sentido que lhes seja favorável. Logo, é necessário
opor-se a isso. A perturbação fundamental da linguagem é, no fim
das contas, a conversação dos poderosos.
Isto nos leva a ligar a perturbação da linguagem, em sua
concepção mais geral, a um estabelecimento do sentido pelo "dis­
curso concreto", como diz Lacan, pela própria conversação, demo­
crática, generalizada. É por isso que considerei notável a redefini­
ção que fazia Jacques-Alain Miller, no inicio desta jornada, ao con­
siderar este volume como tratando da psicose ordinária. É a psico­
se na época da democracia, a consideração da psicose de massa. Na
época anterior à clínica, Pascal evocava a loucura do mundo. Isto
ressoava de uma outra maneira. Quando dizemos "a psicose ordi­
nária", não nos prendemos mais somente às grandes exceções que
constituíram a clínica do olhar e a primeira clínica psicanalítica.
Não se trata mais de nos apegarmos apenas aos gigantes do pensa­
mento psicótico, que são Schreber, Newton, Godel, etc. - dos
quais alguns são mais doentes que os outros. Nosso objetivo é
fazer entrar, na conversação clínica, todo o leque da psicose, pela
abordagem geral do que é a linguagem. Como disse uma paciente
no volume em questão: "O que faz com que em um dado momen­
to minha cabeça dê o fora . . . Pfuit. . . no entanto, é que tenho possi­
bilidades . . . ". Pfuit. O pfuit do sentido. É o pfuit do sentido, neologi­
sando o título que Jacques-Alain Miller tinha escolhido para um
curso. É magnificamente recolhido.
Há o pfuit do sentido e, depois, há todas as tentativas do
ponto de basta para agarrar isso de novo. A própria paciente diz:
"Tenho possibilidades, mas eu não as controlo . . . falta-me o jeito
[truc] para administrar". Ela fala a língua normal, a nossa. Todo
mundo procura o jeito para administrar. A questão sobre o ponto
de basta é a questão mais bem compartilhada que há.

273
Por exemplo, os mercados mundiais flutuam de modo
aberrante. Fazemos, então, uma conversação de 7, fazemos um G7,
e tentamos estabelecer um ponto de basta. Isso não funciona; faze­
mos então um G8. Em seguida, alguém escreve um artigo no qual
opina que o ponto de basta não pode mais vir de um FMI ou de um
G8; tem que vir do presidente dos Estados Unidos. Mesmo com o
presidente dos Estados Unidos encurralado pela causa sexual, ele
continua sendo a último bastião por ter o jeito para administrar.
Como a sua posição permanece frágil, é finalmente a opinião públi­
ca americana que, por sua própria força, segura o mundo inteiro, já
que 62% das pessoas não querem o impeachment de Clinton. Pois
bem, eis aí em que consiste o jeito para administrar: a medida ansio­
sa e permanente da opinião pública. Este estado de civilização é
compatível com a abordagem geral da psicose ordinária. A época é
efetivamente muito consoante com esta constatação de que nin­
guém tem mais o jeito para administrar. É o pfuit do sentido e a
busca dos pontos de basta.

Jacques-Aiain Miller Quanto a isso, gostaria de trazer uma


-

referência ao trabalho de Aix-Marseille e Nice, no qual encontra­


mos uma nota sobre a melancolia que nossos colegas tomaram
emprestado, talvez, de Tellenbach e Kraus falando da "cópia de um
tipo de ideal, não do eu, mas de uma norma social" ( ...) . "Concebe­
se desde então que as personalidades pré-melancólicas sejam mais
facilmente tipificadas e reconhecíveis nas culturas em que as nor­
mas sociais são mais claramente definidas, até mesmo impostas,
como é o caso do Japão e da Alemanha". É uma anotação muito
útil: a partir do momento em que as normas se diversificam esta­
mos, evidentemente, na época da psicose ordinária. O que é coeren­
te com a época do Outro que não existe é a psicose ordinária.

É ric Laurent Estou de acordo com Sauvagnat ao dizer que


-

não se deve reduzir os trabalhos de Tellenbach e Kraus à aborda-

274
gem fenomenológica e caracterológica. Considero fecundo tomar a
noção de superidentificação no quadro geral da psicose ordinária.
Em certo sentido, esses trabalhos comportam a ideia de que a iden­
tificação na melancolia é abordada da mesma maneira que nas
outras psicoses, com superidentificação de traços perfeitamente
normais. Em um outro sentido, a superidentificação normal apon­
ta para o fato de que a norma de identificação é louca.

Jacques-Aiain Miller De qualquer forma, sempre seremos


-

super ou subidentificados. A identificação obedece à curva de Gauss,


não há a justa medida.

É ric Laurent A nova abordagem tem isto de paradoxal:


-

nela, reencontramos todas as antigas abordagens. Por exemplo,


dizemos, por um lado, que é difícil encontrar nas crianças os
desencadeamentos que encontramos na clínica do adulto. No
entanto, encontramos neste volume três desencadeamentos admi­
ravelmente claros. Eles dizem respeito ao surgimento de uma per­
turbação que é signo de autismo aos seis meses, um ano e meio e
dois anos e meio. Por um lado, são modalidades de desencadea­
mento do autismo estatisticamente localizáveis. São fenômenos de
travessia de fases do desenvolvimento. Por outro lado, há o que é
da ordem da contingência do acontecimento, diferente segundo os
casos. Essas desconexões são perfeitamente localizáveis.
Consideremos ainda o caso citado por Genevieve Morel, da crian­
ça de seis anos que, ao conjugar o verbo ser frente a seu pai con­
sidera que o mundo mudou de sentido para ela. É uma conjuntu­
ra de desencadeamento que merece ser acrescentada à série daque­
las que aparecem na "Questão preliminar". Quando se conjuga o
verbo ser frente ao pai é preciso ter muito cuidado! É uma ques­
tão de pragmática, é preciso certo número de condições de con­
texto para que isso não seja a ocasião do aparecimento de fenô­
menos estranhos.

275
A inclusão dessas desconexões na série dos desencadea­
mentos permite generalizar o fenômeno em uma teoria produtiva.
A polissemia semântica que faz gozar vem, em um dado momento,
ao encontro da criança autista que joga com um botão elétrico e que
faz mais-menos, mais-menos, habitado pela pura oposição formal. Não
é a repetição do semantema que faz gozar, é a repetição da pura
diferença do mais-menos, mais-menos que faz gozar. De um ao outro,
reencontramos a razão pela qual um linguista húngaro, tocado pela
psicanálise, dedicou seus trabalhos a demonstrar o investimento
sádico-anal nas mais sutis oposições fonéticas. Seus trabalhos mos­
tram, finalmente, como a menor diferença do sistema da Jingua
pode ser investida de gozo. E, se estivermos atentos a esses deta­
lhes, podemos de fato ir bem longe neste imenso arco que vai do
mais-menos ao semantema que faz gozar, da fuga do sentido às res­
taurações do ponto de basta, conforme vimos a propósito do pfuit.

276
7. CONTINUIDADE·DESCONTINUIDADE

Hervé Castanet Gostaria de lembrar o que está na origem


-

do nosso relatório Aix-Marseille e Nice quanto à problemática dos


neodesencadeamentos. Havíamos partido da ideia de que conhecía­
mos a modalidade clássica, até mesmo típica do desencadeamento,
com o paradigma schreberiano do encontro com Um-pai, o que faz
com que no Outro simbólico nada responda no momento desse
encontro; daí o desencadeamento, o desabamento do sujeito e, em
seguida, os remanejamentos significantes. Isso era uma parte da
curva de Gauss, uma das extremidades, o que Lacan inscreve como
Po. Do outro lado, tínhamos <l>o que, na concepção clássica do
desencadeamento, é uma consequência de Po; é por haver, de fato,
Po, que efetivamente a significação fálica como modalidade tampo­
nada deste real que surge se reduz a zero.
Tentamos trabalhar sobre a "barriga flácida" da curva de
Gauss e ver como poderíamos construir uma clínica que não fosse
necessariamente regida por "Po implica <l>o", pela descontinuidade
neurose/psicose. Consideramos a possibilidade de continuidade.
Há, no texto - creio que seja Philippe De Georges quem escreveu
essa passagem -, referência a uma nova temporalidade.
Parece-me que os casos clínicos trazidos se estruturam em
torno de três aspectos: a) em torno de quê houve enlaçamento; b)
como o grampo se solta, como a modalidade do ponto de basta,
que mantém juntos R, 5 e I se desfaz - e com isso teríamos o des­
ligamento; c) finalmente, como localizar no caso a caso, as modali­
dades de religamentos, de novas invenções, nas quais, no fundo e

277
apesar de tudo, o sujeito se vira ou não para administrar o gozo.
Tínhamos uma clínica um pouco diferente, na qual tentamos loca­
lizar os termos em uma diacronia, a diacronia ligamento-desliga­
mento-religamento, diferente da sincronia do encontro com Um-pai,
com seus efeitos imediatos, até mesmo teatrais, de desabamento
subjetivo; tratava-se de ver como o sujeito se virava, inclusive com
as noções que comportam uma escolha. Em pelo menos um texto,
o caso Mickael - do qual falávamos ainda há pouco - escrito por
Jacques Ruff, aparece efetivamente uma vontade, um sim ou um
não, frente a essa possibilidade de desligamento ou de religamento.

Philippe La Sagna Gostaria de articular continuidade e des­


-

continuidade. Poderíamos muito bem imaginar que existam modos


de relação com a linguagem que possam ser calcados nas variações
fornecidas pela genética, ou seja, a curva de Gauss. Mas, se pensar­
mos na biologia, o que mais nos interessa são os momentos catas­
tróficos, os momentos de descontinuidade radical. Em relação à
psicose, há duas escolas clínicas: os que pensam que o fundo do
problema é o estudo da continuidade, isto é, os delírios estáveis ou
o estado do sujeito pré-psicótico; e os que dizem que o essencial é
o momento do desencadeamento. Lacan trabalha, ao mesmo
tempo, essas duas maneiras de estabelecer as coisas: ele localiza o
desencadeamento, mas estuda de preferência, servindo-se de
Schreber, o estado estável do delírio organizado.
Seria interessante ver, na relação com a linguagem, as
variações catastróficas. Isto é, por meio dos modos contínuos e
muito privados da relação de cada um com a linguagem, como para
alguém, de repente, toda a relação com a linguagem se desequilibra.
Existe algo que responde à teoria das catástrofes, a essas variações
biológicas que não se devem à genética, como as que, por exemplo,
observamos na população animal. Quando três espécies coexistem,
ao mudar uma pequena coisa no modo de vida de uma delas, a
variação é imediatamente catastrófica: uma espécie desaparece e as

278
duas restantes se desenvolvem de tal maneira que estorvam todo o
ecossistema.
Existem modos que têm, no desencadeamento, esta lógi­
ca, ou seja, nos quais vemos que a relação dos sujeitos com a signi­
ficação se desequilibra completamente e que conhecem, aliás, varia­
ções semanais. Vi pessoas cuja relação com a significação variava
inacreditavelmente de uma sessão para outra e que, em seguida, vol­
tavam a modos estáveis. Ao invés de pensar a questão unicamente
pela causa, ou seja, pela estrutura, não seria o caso de estudar tam­
bém as modalidades dos fenômenos? Acabaríamos por ver que, nas
consequências dos desencadeamentos, há modos extremamente
variados.

Jacqueline Dhéret Intervenho a respeito do caso do idóla­


-

tra, cujo tratamento eu conduzi. É , para mim, um caso muito pre­


cioso, pois se trata de alguém que se empenhou cuidadosamente em
enumerar, em sua análise, as diferentes soluções que havia inventa­
do para tentar sustentar sua relação com o mundo. Ele também se
dedicou a descrever com grande precisão os momentos de catástro­
fe, de desabamento, como os que acabam de ser evocados, já que
veio a mim a fim de fazer o que ele mesmo nomeou "o exame de
sua vida", distinguindo-o cuidadosamente do exame de sua fé, o
que fazia com os religiosos que o acompanhavam. É algué� que
nunca teve perturbações da linguagem; eu estava à espreita e jamais
ouvi um único neologismo sequer. Por outro lado, as perturbações
da linguagem eram localizadas de forma grosseira em relação à
escrita, o que é um problema para um religioso, devido à relação
que este tem com o texto.
Após ter encontrado esta solução do lado da nomeação,
ser um idólatra, ele acabou encontrando uma segunda solução, do
lado da informática, mediante uma outra nomeação, visto que
inventou para si um nome que lhe permitia circular no ciberespaço;
ele bricolou este nome a partir das letras do cachorro ao qual seu

279
pai se endereçava, já que o pai havia compreendido que não devia
se endereçar diretamente a ele. Nesse ponto, havia algo de irônico
nele.
O que me pareceu totalmente importante é que essa
segunda solução não invalidou de forma alguma a primeira: ser um
idólatra continua sendo, para ele, algo que o sustenta e do qual ele
faz questão. É o que lhe permite, por exemplo, dar conta desses
momentos, tal como aquele em que foi para os Estados Unidos,
onde lhe aconteceram coisas graves - por ter sentido que se isolava
nessa língua que inicialmente ele não entendia. Para ele, é sempre a
sua idolatria que, conforme suas palavras, o levava a "se autossatis­
fazer na língua". Tanto é assim que, ser um idólatra, mesmo tendo
largado a meia-calça, é algo que considera como a marca do que ele
é para sempre: o que lhe permite ter um lugar como religioso e, ao
mesmo tempo, evitar ser padre, o que o recolocaria em uma posi­
ção de exceção.

Herbert Wachsberger A questão inicial de Cottet me deu a


-

sensação de que sua leitura visava apagar a barreira levantada entre


as psicoses com perturbações da linguagem e as psicoses sem per­
turbações da linguagem - ainda mais que é, com efeito, bastante fre­
quente em nosso meio dizer "não há psicose sem perturbações da
linguagem". Parece-me, no entanto, que isso permite situar as per­
turbações da linguagem com relação à estrutura de forma bastante
astuciosa.
Por outro lado, parece-me que, aos poucos, chegamos à
constatação de que é difícil conceber a psicose e a questão da fora­
clusão sem uma relação perturbada com a linguagem. Daí, a dificul­
dade com a psicose não desencadeada seria a de fazer um diagnós­
tico na ausência de perturbações absolutamente evidentes.
Penso que há um elemento clinico do qual não falamos.
Eu o proponho então. Ele é extraído de um paciente que não tinha
estritamente a menor perturbação da linguagem, embora apresen-

280
tasse uma psicose de "competição". E foi ele mesmo quem um dia
se queixou de ter uma perturbação da linguagem. Sua perturbação,
no fim das contas, é o que o levava a interpretar a fala dos outros.
Já falei desse caso uma vez e gostaria de voltar a ele: "quando
alguém me diz alguma coisa e fico me perguntando se é gato ou
lebre e isto dura o dia inteiro, provocando angústias absolutamente
inacreditáveis...", me diz ele, "tenho realmente uma enorme pertur­
bação da linguagem".

Sylvette Perazzi - A reflexão de Pierre Naveau me fez tra­


balhar sobre o fato de tomar algo ao pé da letra. Tomar algo ao pé
da letra não é lhe dar seu peso de gozo particular. É tomá-lo como
uma letra. Nesse caso, dar ao estatuto do que é dito um peso de
gozo particular, que remete à pessoa que o ouve nesse momento,
não teria uma especificidade própria na psicose?

Philippe Bouillot - Respondo à pergunta de Serge Cottet


sobre as perturbações da linguagem a propósito do caso número 7,
"O caça-níqueis". Ele interrogava o estatuto das palavras "maricas"
e "dinheiro sujo", palavras do paciente. Do lado do significante,
esses dois termos não se isolam de maneira particular; nem esses
termos, nem outros, apareceram, seja em francês, seja na sua língua
materna, como termos arrancados da cadeia. De forma alguma. No
plano do significado, são dois termos, dentre toda uma série, que
lhe servem para expor sua perturbação da significação fálica, a difi­
culdade de sua relação com as mulheres. Queria também acrescen­
tar que há certa particularidade em um fato que me parece muito
importante neste caso: é alguém que faz questão de falar de tudo
isso em uma língua que não é a sua língua materna. Mas, nem em
sua língua materna, que ele pode usar de tempos em tempos, nem
em francês, podemos isolar esses termos que estão entre aspas no
texto como fenômenos ou perturbações extremas da linguagem.

281
Emmanuel Fleury - Retomo a observação de La Sagna sobre
as variações catastróficas, já que Genevieve Motel citava no relató­
rio a referência a Julien para a noção de variação; é talvez um meio
de abordar a "barriga flácida" da psicose cotidiana e uma possibili­
dade de ir novamente do efeito à causa. O relatório tentava situar o
que podem dizer os pacientes em relação aos casos de desencadea­
mento típico, como mostra Lacan em 1 958, ou nos casos que esta­
mos chamando de neodesencadeamento.
Lembrava-me de uma pessoa que nos explicou sua situa­
ção durante uma apresentação de doentes conduzida por
Genevieve Morel e que tinha reconstruido completamente o
mundo a partir da palavra "disfuncionamento". Este é, de fato, um
paralogismo; não se trata de neologismo, pois a palavra existe, mas
o sujeito reordenara tudo em torno dessa palavra. Havia, por exem­
plo, localizado disfuncionamentos no hospital, os quais ele denun­
ciava; queria acionar as instâncias capazes de corrigir esses disfun­
cionamentos. Não eram as palavras que esse paciente utilizava que
permitiram fazer um diagnóstico de estrutura, mas as modalidades
do desencadeamento, as variações de sua posição na sua história e
seu tratamento da linguagem. Podemos colocar esse caso em opo­
sição ao de Brigitte Duquesne, daquele paciente que não pode sus­
tentar um discurso em público, frente às mulheres, se não for com
a ajuda do álcool. A apresentação permitiu mostrar que o conjunto
do seu discurso era importado a partir do discurso de sua mãe.

Marie-Hélene Brousse - A fórmula "psicose ordinária", com


a qual Jacques-Alain Miller começou, agradou, pois os textos deste
volume apresentam, de fato, variações sobre a psicose ordinária.
Eles testemunham um duplo esforço: um esforço de classificação,
do qual o relatório de Lille é um exemplo, e um esforço que se des­
dobra em sentido contrário, em direção a um certo "tudo está em
tudo". Ora, essas duas orientações têm o mesmo embasamento,
constituído pela lógica do discurso analítico. A transferência é a

282
condição de produção de todos os enunciados reunidos por esses
textos. Daí nos perguntamos: qual o lugar que damos, em nossa
abordagem da psicose ordinária, à transferência, que também é um
fenômeno de linguagem?

lilia Mahjoub Éric Laurent falava, há pouco, das diversas


-

concepções existentes a respeito da linguagem, as quais podemos


fazer coexistir; elas não se excluem e nos permitem, hoje, ver a clí­
nica de maneira mais aberta. Em Lacan, podemos fazer coexistir
duas concepções da linguagem.
Há, primeiramente, a concepção da linguagem como
campo: é o Outro prévio, o simbólico. E isso vai até a época de "O
aturdito", no qual Lacan fala do fato de habitar a linguagem; ele
joga, · aliás, com o termo habitar e, de fato, entramos na linguagem
segundo as leis da metáfora e da metonímia; depois, na outra extre­
midade, diremos que o psicótico é habitado pela linguagem. Para
ilustrar esta abordagem, temos todos os grandes casos, as psicoses
extraordinárias, nas quais, com efeito, o psicótico é habitado pela
linguagem, como pode sê-lo Schreber.
Mas há outra concepção da linguagem, que surge perto do
fim do ensino de Lacan, que é a linguagem como parasita. É o que
ele diz a propósito de Joyce. Ali, com efeito, o gozo está concerni­
do e a linguagem é parasitária para todos. Há uma decisão do ser,
ser ou não ser parasitado pela linguagem. Aí não se trata mais, de
forma alguma, de um Outro simbólico; trata-se de uma concepção
em que um outro efeito da linguagem está concernido, a saber, a
letra. É o que Lacan desenvolve em seu seminário sobre Joyce: per­
turbações da linguagem que efetivamente podemos encontrar na
escrita, como foi observado a propósito do idólatra. Tomar a lin­
guagem como parasita permite-nos, de fato, ver como são feitos os
ligamentos, os desligamentos e os rearranjos, o que foi destacado
no relatório de Aix-Marseille e Nice. Isso nos dá uma clínica da psi­
cose ordinária.

283
A propósito desse sentido gozado, já que se trata de ver
como o gozo está concernido pela linguagem, poderíamos dizer
que, nessa concepção, o sentido é gozado de maneira radical. Até
mesmo a letra é gozada. Vou dar um exemplo disso. Artaud, ainda
pequeno - ele fala disso em suas obras -, avista um vendedor
ambulante que vende o que chamamos ''glace"' [gelado] , uma espé­
cie de biscoito recheado com sorvete; ele avança para pegar esse
glacê e, nesse momento, fica petrificado, congelado. Em sua obra,
Artaud escreve ''glad', isola suas letras, as coloca em maiúsculas e
fica petrificad? pela própria escrita. Fala disso como de alguma
coisa que para ele foi um desencadeamento. Nesse caso, não há
"Um-pai", é o biscoito que o congela e um sentimento de estranhe­
za se produz; todos em sua volta são estranhos e o que o salva é o
anjo exterminador.

Franz Kaltenbeck Gostaria de perguntar algo aos autores


-

do relatório de Aix-Marseille e Nice a propósito dos ligamentos,


desligamentos e desligamentos. Esse relatório tem o grande mérito
de aplicar um conceito lançado por Jacques-Alain Miller, mas este
conceito, o de desligamento, parece-me problemático. Seria possível
pensar que o psicótico se desliga mesmo do Outro? É claro, há um
desligamento social, mas, ainda assim, poderíamos argumentar:
trata-se de um abandono (laisser-tomber) pelo Outro social ou isso se
passa do lado do sujeito? Tenho a intuição de que os psicóticos são
muito ligados no Outro da linguagem. Por exemplo, quando Lacan
aponta para a falha do nó em Joyce, se bem me lembro, ele deixa o
real e o simbólico atados, enquanto que o imaginário é desligado.
Essa intuição vem de uma observação, isto é, os psicóticos se diri­
gem muito mais a nós que nós a eles. Eles nos olham, nos obser­
vam, colocam verdadeiras questões sobre nosso funcionamento,
que são quase questões de etnólogos.
Enfim, Naveau cita esta bela frase "trabalhar é perder a
vida". Pois bem, é verdade. Reli alguns escritos do jovem Marx, a

284
partir do comentano de Jacques-Alain Miller sobre a Sagrada
Família, e Marx diz a mesma coisa.

Jacques·Aiain Miller Isso é do mesmo registro que a ironia


-

do esquizofrênico evocada por Lacan: é cheio de bom senso, de um


bom senso superior.

François Morei Gostaria de responder em vários pontos às


-

observações que foram feitas sobre a melancolia no relatório de


Aix-Marseille e Nice. O interesse pela melancolia é grande, na medi­
da em que se trata, como diz Jacques-Alain Miller, de uma psicose
ordinária de pessoas ordinárias, comuns, que se opõe completamen­
te à psicose extraordinária de pessoas extraordinárias, como é
Schreber. Partindo desse ponto, é muito interessante testar o mode­
lo lacaniano das psicoses com a melancolia porque, se não encon­
trarmos contradições fundamentais neste nível, isto confirma de
alguma forma o que Lacan diz sobre a psicose. Ainda mais se con­
siderarmos que não encontrei muita coisa escrita por Lacan sobre a
melancolia: este permanece, então, um campo em aberto.
Os melancólicos também são interessantes em relação à
questão do desencadeamento, pois, mesmo tratando-se de psicoses
- o conjunto dos psiquiatras é, quanto a isto, praticamente unânime
-, portam-se muito bem em determinados momentos e durante
muito tempo, para, em seguida, desencadearem alguma coisa, um
acesso de melancolia - é assim que se chama -, para depois se cura­
rem. Isso pode durar dez ou vinte anos; pode haver somente um
acesso durante toda uma vida; podem haver vários. Enfim, há várias
possibilidades. Logo, levanta-se a questão de saber o que é o desen­
cadeamento propriamente dito na melancolia e se o desencadea­
mento do acesso melancólico responde ao desencadeamento da
psicose schreberiana. Voltarei a esse ponto.
François Sauvagnat falou da questão do nome próprio.
Será que ela é pertinente no que concerne à melancolia? Diria que

285
há dois pontos que me orientaram em direção a esta questão. Por
um lado, ''A instância da letra", texto no qual Lacan . descreve a
metáfora do sujeito a partir do exemplo de Booz adormecido, "seu
feixe não era nem avaro nem odioso", que apaga o nome próprio
de Booz. Há, portanto, esse aspecto fundamental do esquecimento
do nome próprio na metáfora do sujeito. Eu me perguntava como
nas psicoses não desencadeadas - todas essas psicoses que cami­
nham bem - os sujeitos se comportam em relação ao nome próprio.
É um primeiro ponto de tensão teórica.
O outro ponto é um caso clínico que acompanhei duran­
te minha residência, que me marcou muito e que se chamava, diga­
mos, "Girador" [Tourneu� . É um sujeito cujo pai tivera um papel
nada brilhante durante a Segunda Guerra Mundial e que tinha uma
atitude habitual muito longe daquela de um pai pacificador - nota­
damente um alcoolismo e uma violência exacerbados. Parece-me
que este sujeito havia extraído, muito cedo, alguma coisa que talvez
estivesse do lado do sentido gozado: algo como "fazer girar" [tour­
ner rondj a vida. Com efeito, durante toda a sua vida, ele se esforçou
para que as coisas girassem, funcionassem. Logo, frente a Um-pai,
sua resposta foi a de que tudo girasse, que caminhasse bem. Deduzi
disto que o sujeito havia, de fato, sido confrontado a Um-pai, não
havia desencadeado uma psicose, mas havia produzido uma respos­
ta. Esta resposta, a de "fazer girar" [tourner rondj , era uma significa­
ção fundamental da existência. Por exemplo: seu trabalho era o de
inspecionar obras que foram concluídas; também gostava de ir a
bailes, nos quais adorava dançar em círculos [en tournant en rondj.
Esse "fazer girar" [tourner rondj funcionava constantemente como
resposta do sujeito. Seu acesso desencadeou-se bem tarde em sua
vida, aos quarenta e cinco anos, quando seu padrasto precisou vir
morar em sua casa, o que era bastante frequente e já havia aconte­
cido anteriormente. Nesse momento, aquilo que não funcionou foi
que, estando em um supermercado para comprar uma poltrona
para seu padrasto, ao ter que sair do supermercado foi preciso fazer

286
um giro para um determinado lado [tourner d'un côte] . Ao fazê-lo, vie­
ram chamar-lhe a atenção, dizendo que a manobra era proibida. Ele
se viu, na sua solução de "fazer girar", em uma grande autocontra­
dição. Foi esta autocontradição que desencadeou um delírio inteira­
mente centrado no movimento circular, delírio que teve um perío­
do de florescência extremamente breve a partir do momento em
que saiu do estupor e que, em seguida, desapareceu rapidamente.
Parece-me que havia uma questão relacionada ao nome próprio, a
ser colocada em relação com a ausência de metáfora do sujeito.
O outro ponto assinalado na melancolia é o de saber como
se portam os melancólicos entre os acessos. Esse ponto foi, de fato,
muito bem trabalhado por Tellenbach e seu aluno Kraus. É verda­
de que a análise feita por eles da personalidade dos sujeitos pré­
melancólicos é, por excelência, uma análise não caracterológica. É
um estudo muito profundo, muito atento, referente a um corpus filo­
sófico, particularmente o Anafytic Existential du Dasein de Heidegger,
que determina o Tipus melancolicus, cujos traços são descritos, por
exemplo, para a Alemanha. Observou-se o seguinte: são efetiva­
mente os pacientes de Tellenbach que forneceram o conjunto des­
ses traços, que têm, portanto, uma validade limitada. Enfim, a carac­
terística existencial essencial é que os sujeitos pré-melancólicos
estão constantemente lutando contra o ressurgimento de seu "ser­
ejetado"; eles estão sempre próximos da derrelição, sem "pro-jeto".
A partir disto, Tellenbach propôs o termo "superidentifi­
cação", mas não no sentido do "mais ou menos identificação"; é
mais uma diferença qualitativa que Kraus continuou a estudar de
maneira extremamente séria e sobre a qual, me parece, é preciso
insistir: quando usamos, na psicose, o termo identificação, não esta­
mos falando da mesma identificação do sujeito neurótico. Por
exemplo, se tomarmos como identificação as noções de "hábito" e
"monge", o hábito não faz o monge; a identificação está do lado do
hábito e a superidentificação do lado do monge. É a leitura que
poderia ser feita da superidentificação.

287
Em termos lacanianos, a identificação está, todavia, do
lado do significante: ela seria flutuante, sempre em devir, deixando
ao sujeito a possibilidade de se apagar sob ela, sempre em projeto;
ao passo que a superidentificação é extremamente fixa, do lado da
letra, atribuindo ao sujeito uma posição, um papel imutável. Na
identificação, o sujeito desempenha um papel e sabe que o desem­
penha, podendo, portanto, se distanciar, se apagar quanto a este
papel. Na superidentificação, o sujeito é esse papel; e se ele deixar
de ser esse papel, se entrar em contradição com esse papel, ele então
não é mais nada e, com efeito, desencadeia um acesso.
Poderíamos igualmente tomar o exemplo de Ulisses na
gruta de Polifemo. A identificação seria dizer "eu me chamo
Ninguém". A superidentificação seria discutir as receitas de cozinha
com Polifemo, ajudá-lo a esquentar o fogo, preparar os molhos para
os espetinhos, etc.

Michàle Miech O que me surpreendeu, no decorrer de


-

nossa conversação, foi o seguinte: as perturbações da linguagem se


referem à linguagem e, evidentemente, temos que nos lembrar que
a linguagem é apenas uma elucubração de saber. De certa maneira,
a linguagem não existe, assim como o Outro. O que acho interes­
sante no relatório de Aix-Marseille e Nice é que ele mostra clara­
mente que a clínica do desligamento é muito mais regida pelo fora­
do-discurso da psicose que pelas perturbações da linguagem. Há
uma diferença a ser desenvolvida entre perturbação da linguagem e
fora-do-discurso, pois partir da linguagem ou partir do discurso
implica ênfases diferentes, na medida em que Lacan define o discur­
so como laço social. A clínica do desencadeamento concerne
menos à relação com a linguagem do que à inserção ou a desinser­
ção do sujeito em um discurso.

Philippe De Georges Uma palavra para responder ao


-

comentário de Franz Kaltenbeck sobre o relatório de Aix-Marseille

288
e Nice. Fizemos, no início de nosso trabalho, um recenseamento de
casos, da prática de cada um de nós, que se apresentavam como for­
mas atípicas de desencadeamento, com a ideia de que, depois de
Arcachon, poderíamos, talvez, progredir na via de uma clínica bor­
romeana. Acontece que, na realidade, assim que conversamos sobre
isso entre nós, especialmente em um encontro entre Nice e Aix­
Marseille, nos demos conta de que, de fato, nos limitávamos a algo
muito empírico, que era o manejo dos termos ligamento-desliga­
mento-religamento. Isso nos pareceu fecundo, mas, ao mesmo
tempo, foi um ponto em que nos detivemos na pesquisa para
podermos avançar em direção a uma clínica borromeana.
Essa noção de ligamento-desligamento-religamento nos
pareceu oportuna; mas é verdade que, em nossa conclusão, demos
uma versão ligeiramente diferente de seu uso ao falarmos do liga­
mento do Outro, com o Outro, etc. É isso que nos leva a falar de
neodesencadeamento para todas as situações de desprendimento do
grampo, qualquer que seja ele, para todas as falhas do que antes fun­
cionava para um sujeito como ponto de basta. No fim das contas,
nos colocamos sob o signo de uma espécie de clínica do ponto de
basta generalizado. O que constitui ponto de basta para um sujeito?
O que faz com que algo se desprenda; o que é que, de repente, se
rompe; o que poderia ser reatado?

219
8. PSICOSES CARVALHO E JUNCO

Jacques·Aiain Miller
- Duas palavrinhas antes de irmos
comer algo. Primeiro, a tese da "bricolagem". Não somos obrigados
a ter uma clínica homogênea. Pelo contrário, existem certos
momentos das diferentes clínicas de Lacan, ou de outros clínicos,
que se adaptam melhor que outros a determinados casos. É por isso
que falamos de "psicose schreberiana", de "psicose lacaniana", de
"psicose joyceana". Pode ocorrer de o particular do caso estar em
consonância especial com uma determinada construção teórica ou,
até mesmo, com determinada parte de alguma construção.
Em seguida, farei algumas observações sobre esta manhã
de trabalho. Primeiro, a questão dos desencadeamentos ficou eludi­
da. Falamos de desencadeamento quando há um contraste marcado
entre um antes e um depois. Não é sempre o caso. Há aí matéria
para se construir uma oposição do tipo carvalho ejunco. Quando há
foraclusão e o sujeito elabora um pseudo-Nome-do-Pai e um pseu­
dofalo, de tal maneira que o caso se apresenta como normal, quan­
do isso se rompe verdadeiramente, temos os abismos e todos os
abalos, etc. Digamos que, quando o sintoma é do tipo carvalho e a
tempestade chega, o desencadeamento é patente. Quando a estru­
tura se situa mais sob o aspecto do junco, na qual o sujeito elabora
um sintoma mais maleável, "deslizante", o caso não se presta a um
franco desencadeamento.
É uma hipótese. Outra hipótese é dizer o contrário: sem­
pre há desencadeamento, simplesmente não o vimos, ele é muito
precoce. Ele se produziu e houve restituição da estrutura imaginá­
ria, para falar nos termos da "Questão preliminar".

291
Acontece que as psicoses ordinárias são quase sempre do
tipo junco. Pelo menos, o contraste entre o antes e o depois não é,
nestes casos, tão acentuado.
Em segundo lugar, não podemos esquecer que o estádio
do espelho da "Questão preliminar" não é aquele inicialmente des­
crito por Lacan. É um estádio do espelho quase psicótico. Quando
ele não é organizado pelo simbólico, é um estado de ordem psicó­
tica, habitado por um sofrimento primordial kleinoide. Quando
regressamos topicamente ao estádio do espelho, é a psicose. Em
outras palavras, este estádio ilustra a tese da psicose originária.
Em terceiro lugar, acho a observação de Michele Miech
muito justa. Na época da "Questão preliminar", o que, para Lacan,
efetivamente põe o mundo em ordem? O que faz com que o pen­
samento de vocês ocorra em sua mente e não em outro lugar? O
que faz com que estejam mais ou menos bem em sua mente e em
seu corpo? O que faz com que cada coisa tenha seu lugar? É o
Nome-do-Pai - o Nome-do-Pai concebido como significante do
Outro, S(A), isto é, como Outro do Outro. Em seguida, Lacan ela­
bora o contrário disso: que não há Outro do Outro - podemos
supor que o teorema de Gõdel lhe inspirou. O que se torna, então,
o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai? De alguma maneira, ele
é substituído pelo conceito defora-do-discurso. De fato, o que opera a
classificação, a repartição é o discurso e a rotina das conversações
determinadas pela estrutura de discurso.
São 1 2h e 35 minutos. Retomaremos às 1 5h.

292
DA Ó P E R A A O TEATRO D E BOLSO
Jacques-Aiain Miller Abordaremos a segunda parte, o que
-

não exclui que voltemos à primeira ou que se evoque a terceira. Ela


é consagrada à neoconversão, que foi definida de maneira sumária,
porém sólida; conversão não-interpretável, pelo menos não inter­
pretável como a conversão histérica. Que a neoconversão não seja
absolutame�te interpretável, é algo que nossos estudos questionam.
O texto de Bordeaux aborda o seguinte aspecto:
"Colocamos aqui, em série, um certo número de casos que apresen­
tam sintomas típicos nos quais o corpo é, a cada vez, implicado de
maneira diferente e original". O corpo está implicado em diferentes
registros, já que, para o primeiro, trata-se de escarificação; para o
segundo, da imagem; para o terceiro, tratar-se-ia da dor. O texto de
Chauny e Rouen, "Fenômenos de corpo e estruturas", nos propõe
um materna da conversão e Um materna da neoconversão concebi­
dos por Bernard Lecoeur. O relatório de Nantes e Rennes,
"Fenômenos corporais em pacientes masculinos", apresenta, em
sequência, quatro casos: o homem dos cem mil cabelos, o homem
dos polegares que estalam, o homem enrijecido e o inventor do
método. O relatório de Bordeaux é acrescido de um capítulo sobre
o fenômeno psicossomático e o relatório de Nantes e Rennes por
um estudo de François Sauvagnat.
· Tomemos de início o que aparece formalizado. Será que
Bernard Lecoeur gostaria de comentar seus próprios maternas?
9. O DESEJO É SUA M Á SCARA

A A
(a = - <p) (a = - <p)

Bernard Lecoeur - Em Chauny-Prémontré, o termo neocon­


versão deixou-nos embaraçados. O embaraço se devia ao fato de
que não queríamos, a todo custo, tomar o "neo" do lado do novo.
Foi preciso se render à evidência de que "neo" também podia ser
tomado no sentido de atualização, ou seja: como pode a conversão,
nos dias de hoje, tomar outras formas, não somente em relação aos
fenômenos, mas talvez também a partir de certas modificações de
elementos da estrutura? Tratava-se, portanto, de começar por um
remanejamento da noção de conversão e, assim, retomar o que era
a conversão.
Foi necessário, antes de qualquer coisa, constatar que a
conversão é um termo raro em Lacan. No Seminário 51 Asformações
do inconsciente, encontramos, no entanto, a seguinte definição da con­
versão: "No sintoma - e é isso o que quer dizer conversão -, o dese­
jo é idêntico à manifestação somática. Ela é seu direito assim como
ele é seu avesso".
Essa citação é inicialmente tomada em um contexto no
qual Lacan tenta formular uma distinção entre demanda e desejo; ele
vai finalmente designar a conversão como uma localização do dese­
jo no corpo por meio do sintoma. Isto me pareceu uma abordagem
da conversão que não era completamente idêntica ao que podíamos
pensar a partir de Freud e de suas definições da conversão.
Nessa passagem, Lacan retoma o caso de Elizabeth Von
R. e diz que a dor, que Elizabeth sente no alto da coxa direita, é o
desejo. A dor se encontra diretamente articulada com o desejo -

Z95
como um ponto de gozo. Mas, sempre na linha da apre s entação que
Lacan faz disso, esta articulação, esta equivalência, esta continuida­
de mesma do ponto de dor com o desejo, é colocada sob a rubrica
de um Outro, que é o pai doente - é o desejo do pai doente, isto é,
um Outro que se encontra marcado pelo selo da divisão. O que a
perversão6 tenderia a mostrar - no sentido de uma mostração -, é
que há um fracasso do sujeito em estar à altura de satisfazer a
demanda desse Outro dividido, ou seja, aliviá-lo de sua divisão. É
nessa passagem que Lacan situa o sintoma como uma tensão do
sujeito em querer satisfazer a demanda.
Essa conversão, no sentido proposto por Lacan, vem mar­
car o fracasso do sujeito em estar à altura de um certo ideal. Eis como,
forçando um pouco a barra, retomamos a questão da conversão.
Em que ponto estamos hoje - ou seja, na época em que o
estatuto do Outro é aquele do Outro que não existe? Poderíamos
dizer, talvez, que o Outro que não existe é um Outro que não exis­
te com relação à divisão, ou seja, um Outro para quem a divisão não
opera para o sujeito. Este Outro que não existe poderia, então, ser
um Outro que não é tocado por este limite interno que é a divisão.
Logo, o Outro é, antes, um Outro que prolifera, um Outro que se
estende, um Outro que, no fim das contas, não é atingido por um
limite.
Nesse caso, o desejo e o gozo, sendo equivalentes, não
estariam confrontados a este ponto de apoio representado pela divi­
são que, "normalmente", incide sobre o Outro. Esta conversão, esta
conversão "neo", valorizaria - era o ponto que pareceu ser interes­
sante enfatizar - certo uso do corpo que implica e comporta uma
dimensão do não limitado, do não delimitado. É um tipo de conver­
são que não diz mais respeito ao corpo tomado a partir de um
recorte ou de um fragmento, mas sim de um corpo tomado como
um todo. Não se trata mais de um corpo abordado pela superfície,
mas de um corpo considerado como algo móvel, como um corpo
que se mexe.

296
Essa seria, talvez, a saída para a dificuldade extrema de se
pensar a neoconversão como podendo se atualizar de outro modo
que não seja como um deslocamento das figuras da conversão. Isso
implica levar em conta a mudança do estatuto do Outro e, correla­
tivamente, do corpo como o ponto crucial da conversão.

Jacques·Aiain Miller Gostaria de que você pudesse comen­


-

tar os termos que usou: o A e o A barrado em cima de uma barra


sob a qual temos o a equivalente ao - tp.

Bernard Lecoeur Trata-se, na verdade, de uma tentativa de


-

escrever essa definição de conversão que Lacan dá quando diz exis­


tir uma equivalência entre o desejo e a manifestação somática. A
manifestação somática estaria na vertente do pequeno a como
ponto de concentração de gozo; e o desejo, poderia ser apreendido
a partir da escrita do - tp. O Outro sobre o qual incide a barra, no
exemplo que Lacan retoma de Freud, seria esse pai que se encontra
doente e que, portanto, se encontra atingido pela divisão; a partir
desse ponto, o sujeito extrai, se assim posso dizer, uma função de
idealização, isto é, se encontra em condições de incidir sobre essa
barra, sobre essa divisão do Outro. A conversão marcaria o fracas­
so de se estar à altura de tal ideal.
A escrita da neoconversão teria que ser tomada a partir de
um Outro livre de toda divisão. É um Outro que se apresenta na
vertente do todo, como, por exemplo, em certos casos de toxicoma­
nia. Ou seja, um todo no qual, no arsenal do saber científico, há
uma possibilidade - desde que se tenha um uso do corpo - de rea­
lizar completamente o desejo. A droga aparece como esse meio de
fazer certo uso do corpo, que se encontra posto em equivalência
com o desejo: usar do corpo por meio de uma droga, de certa
forma, é equivalente ao desejo. Mas, para isso, é preciso afirmar que
o Outro não é acometido pela divisão.

297
Jacques-Aiain Miller- No semmano das Formações do
Inconsciente, a passagem para a qual você chama atenção encontra-se
no capítulo XIX, na página 348. Nela, Lacan resume o que disse, no
capítulo anterior, sobre o caso de Elizabeth Von R. Fala da dor, da
famosa dor na perna, como máscara e explica o sintoma como aqui­
lo que se apresenta sob a forma de uma máscara. Em seu comentá­
rio, uma semana mais tarde, lembra o que havia dito, que o sintoma
é inseparável da máscara, mas, a meu ver, ele já desloca essa afirma­
ção. De fato, a temática da máscara parece implicar que há, sob o
que aparece na superfície, algo diferente. Mas, nessa semana seguin­
te, ao retomar o termo máscara, Lacan insiste tanto sobre a identi­
dade entre sintoma e desejo que a dicotomia entre eles parece, no
final das contas, desaparecer.
Não sei se estou sendo claro. Primeiramente, Lacan comen­
ta a passagem de Freud dizendo que isso mostra bem que o sintoma

é uma máscara do desejo, que o desejo está sempre ligado a uma más­
cara, que ele é mascarado e, portanto, deve ser interpretado.
Na semana seguinte, insiste sobre a identidade entre a dor,
que é o sintoma, e o desejo. Isso o obriga a modificar ligeiramente
o que o termo máscara implicava. É o que faz no início da página
348: "No que concerne ao desejo, enfatizei que ele é inseparável da
máscara, e lhes ilustrei isso, muito especialmente, com o lembrete
de que..." - o que não encontramos necessariamente no capítulo
anterior - " ... é por demais precipitado fazer do sintoma um sim­
ples interior em relação a um exterior". Talvez seja, de fato, o que
ele mesmo tenha feito na semana precedente.
Naquele momento, Lacan insiste sobre a identidade: "[ .. ]
.

à simples leitura do texto de Freud, podemos formular, pois ele


mesmo o articulou, que a dor no alto de sua coxa direita era o dese­
jo de seu pai e de seu amigo de infância". É um eco do que já havia
escrito no fim de ''A instância da letra", nos Escritos.
A passagem que você evoca, que, de fato, trata da questão
da conversão, é a seguinte: ''Além dessa observação, o que convém

298
considerarmos antes de compreender o que significa nossa inter­
pretação do desejo é que, no sintoma - e é isso que quer dizer con­
versão -, o desejo é idêntico à manifestação somática".

Bernard Lecoeur - Uma reflexão que fiz é que, se uma é o


direito e a outra é o avesso, poderia tratar-se de uma topologia moe­
biana. Logo, a dimensão da máscara desaparece.

Jacques·Aiain Miller - É uma máscara que deve ser repensa­


da, que pede uma nova definição. É coerente com o interesse que
Lacan manifesta a respeito das máscaras em seu texto sobre Gide e,
especialmente, a respeito das máscaras de Lévi-Strauss.

Jean·Louis Gault - A problemática da máscara deve ser apro­


ximada do que Lacan diz sobre a identidade entre o recalque e o
retorno do recalcado. Ele tenta se desprender de uma concepção
tradicional do inconsciente como aquilo que está escondido. Em
1 958 ainda, em ''A direção do tratamento" (Escritos), Lacan usa a
metáfora das manchas sobre o rosto para indicar que isso é visível:
o que é recalcado, escondido, se vê sobre o rosto. Consequente­
mente, o que na histeria aparece como um sintoma, como um incô­
modo, como um freio à ação do sujeito é, ao mesmo tempo, a
marca positiva do desejo.

Alain Merlet - Fiz uma pergunta a respeito da conversão que


ia nesse sentido. Parece-me que o que faz a descompletude do
Outro é o sexual. Creio que, se não introduzirmos a noção de defe­
sa, fica difícil falar de conversão. Vocês falam, no relatório, de con­
versão simbólica, mas curto-circuitando a noção de defesa.
Eis a minha questão: o que vocês entendem por "ao modo
freudiano", quando falam dos fenômenos de corpo não-interpretá­
veis "ao modo freudiano"? Seria preciso ratificar a ideia segundo a
qual Freud teria concebido a conversão simbólica na histeria - é um

299
termo de Freud que encontramos nos Estudos sobre a histeria - como
um simples processo de simbolização? Parece-me que Freud, pelo
contrário, com sua noção de defesa e sua referência à "primeira
mentira histérica", enfatiza uma simbolização que, frente ao sexual,
é apenas máscara ou tela. Em outros termos, é uma simbolização da
coisa que não há. Desse modo, em Asformações do inconsciente, Lacan
fala da conversão como o que identifica o desejo, mas para além da
satisfação e do sentido.

José-Luis Garcia Castellano - À luz dos outros relatórios


sobre a neoconversão, especialmente o de Bordeaux, me pareceu
ser preciso fazer uma retificação em nosso texto quanto ao modo
pelo qual apresentamos a teoria da conversão em Freud. Uma leitu­
ra influenciada pelo primeiro ensino de Lacan fez com que consi­
derássemos apenas a dimensão significante do procedimento freu­
diano, enquanto que, em seu relatório, vocês trazem o texto de
Freud de 1 9 1 0 para ressaltar a importância da dimensão pulsional.

Jean Louis Gault Gostaria de prolongar a observação que


-

fiz a respeito do texto de Bernard Lecoeur, retornando à questão do


recalque, pois a conversão histérica implica que examinemos essa
questão. Para a preparação deste relatório, me referi ao texto de
Freud intitulado "O inconsciente", no qual ele examina os fenôme­
nos de corpo na esquizofrenia, na histeria e até mesmo na neurose
obsessiva. Sua interrogação se refere justamente ao recalque. Em
um dado momento, Freud se pergunta como considerar o fenôme­
no do recalque na esquizofrenia: ele teria o mesmo sentido que tem
na histeria e nas neuroses em geral? Sua interrogação incide exata­
mente, portanto, sobre o fenômeno do recalque.
Gostaria de esclarecer esse aspecto do problema segundo
a perspectiva da discussão dessa manhã a respeito da relação com a
linguagem. Após uma discussão sobre "o que interpretamos como
perturbação da linguagem?", o que aparecia, no fim das contas, é

300
que se trata de considerar diferentes tipos de relação com a lingua­
gem sobre um fundo comum: todo sujeito, seja ele quem for, tem
uma relação com o significante. Faz-se, em seguida, uma distribui­
ção que exige um exame, distribuição na qual teremos que situar os
casos de neurose, de psicose, etc. No caso dos fenômenos de corpo,
parece-me necessário considerar que um sujeito - um ser falante,
um falasser tem sempre que lidar com o corpo e que se trata de
-

considerar modos particulares de aparelhamento do corpo, de apa­


relhamento do real ou da realidade dos órgãos como, por exemplo,
Lacan formula a respeito da esquizofrenia. É possível, então, consi­
derar tipos diferentes de enodamento, se tomamos como referência
a clínica borromeana, ou tipos diferentes de relação com o corpo,
se tomamos como referência a relação com a significação fálica no
primeiro ensino de Lacan.
A partir daí, somos levados a definir a conversão como
indexada pela significação fálica ou, também, por certo tipo de rela­
ção com a linguagem. Evidentemente, poderíamos considerar que o
recalque é uma perturbação da linguagem e que existem outras que
devem ser diferenciadas. Nos casos que estudamos em Nantes ou
em Rennes, havia certos tipos de fenômenos corporais que eram
acompanhados por determinadas formas de relação com a lingua­
gem. Esses dois fenômenos, o corporal e o linguageiro, não se dei­
xam tratar com o operador do recalque. É preciso, então, conside­
rá-los de outra forma. Os exemplos que utilizamos convidam a pen­
sar diversas construções, na tentativa de conceber o tipo de enoda­
mento entre o imaginário do corpo, a linguagem e os fenômenos de
gozo - por exemplo, no caso que eu mesmo expus, tudo aquilo que
o sujeito podia sentir como frisson, como terror, como angústia, em
certas circunstâncias.

Jacques-Aiain Miller A máscara é a emergência da verdade


-

na superfície. Por que não formular a tese: "o desejo é sua própria
máscara"? Seria coerente com a noção de que "o desejo é sua pró-

301
pria interpretação". Significa a mesma coisa que "o desejo é defesa
contra o desejo".
Eis a passagem sobre a máscara em ''Juventude de Gide".
Lacan pede que os analistas se deem conta do verdadeiro sentido da
Spaltung freudiana e diz, na página 763 dos Escritos: "Será preciso
para lhes despertar a atenção, mostrar-lhes o manuseio de uma más­
cara (...)?" É a máscara lévi-straussiana, a máscara lacaniana e não a
máscara que se tira e o outro diz "Opa! É ele". "Será preciso para
lhes despertar a atenção, mostrar-lhes o manuseio de uma máscara
que só desmascara a figura que ela representa ao se desdobrar, e que
só a representa ao tornar a mascará-la? E com isso lhes explicar que
é quando está fechada que ela a compõe" - a máscara fechada não
mascara o rosto; pelo contrário, ela o representa - "e que é quando
está aberta que a desdobra?". Em uma nota: "essa máscara está à
disposição deles no capítulo 'Arte' da Antropologia Estrutural de
nosso amigo Claude Lévi-Strauss". Este texto é exatamente con­
temporâneo ao Seminário das Formações do Inconsciente.
Complementando: "O ideal do eu, de Freud, pinta-se sobre
esta máscara complexa e se forma, com o recalque de um desejo do
sujeito, pela adoção inconsciente da imagem mesma do Outro que
desse desejo detém o gozo, juntamente com o direito e os meios".
O que, aos nossos olhos, constitui nosso eu mesmo mais verdadei­
ro, é a máscara que obtemos de nossa identificação simbólica com
o Outro - estou simplificando.

302
1 O. FENÔMENOS DE ORDEM METON ÍMICA

Pierre·Gilles Guégen - Fui seduzido pelas formulações de


Bernard Lecoeur na perspectiva do Outro que não existe, e que
valeria tanto para o neurótico quanto para o psicótico. Em contra­
partida, em cada caso, mesmo em se tratando de uma mesma orien­
tação, existe uma relação com o Outro que não é exatamente da
mesma ordem. Pensei que poderíamos reduzir essa diferença à
questão da crença. Não falamos muito disso hoje pela manhã, mas
a perturbação da linguagem parece ligada a um modo de crença no
Outro, diferente no neurótico e no psicótico. Para o neurótico,
trata-se da subtração possível do domínio do Outro, do modo de
gozo do Outro, enquanto que, no psicótico, haveria uma infinitiza­
ção em um modo de gozo que sempre busca se estabilizar. Logo,
permanecemos no contexto do Outro que não existe, mas, no
entanto, a relação com o Outro não é a mesma, já que o sujeito
pode tanto se apoiar em uma convicção, quanto, como dizia Alain
Merlet, encontrar uma defesa frente ao gozo sexual.

François Sauvagnat - Percebi, a posteriori, que o que havía­


mos desenvolvido em Rennes era múltiplo. O termo neoconversão
serviu para designar os fenômenos corporais nos casos de psicose
e de forma alguma sob uma ótica continuísta.

Jacques·Aiain Miller - "Neodesencadeamento" visa isolar, na


psicose, uma evolução ou desligamento, que não é o tipo canônico
- schreberiano - de desencadeamento psicótico. "Neoconversão" é
feito para opor psicose e histeria. Trata-se, então, de uma falsa sime-

303
tria: em "neodesencadeamento", o "neo" não tem o mesmo valor
que em "neoconversão". No "neodesencadeamento", trata-se de
uma oposição interna à psicose, enquanto que, na "neoconversão",
a ideia é opor os fenômenos do corpo na histeria e na psicose.

François Sauvagnat Fiquei muito surpreso com um artigo


-

a respeito da conversão histérica, publicado em uma revista anglo­


saxônica ou alemã, no qual se dizia que Freud deixou de tratar da
histeria, que parou de teorizar a respeito do sentido sexual da histe­
ria, a partir do momento em que encontrou a noção de conversão,
"conversão" no sentido militar, se não me engano, ou seja, "a mis­
teriosa passagem do psíquico para o somático". Quando olhamos
bem todos esses trabalhos mais ou menos místicos a respeito da
psicossomática - estamos na tradição suíço-alemã -, vemos que
esses autores hesitam entre a categoria do psíquico e aquela do
somático e buscam alguma coisa em Freud. Alguns até tentaram
saber se a teoria da pulsão de morte era continuísta, dizendo: há
casos em que há uma pequena somatização histérica que logo
desemboca em fenômenos psicossomáticos; temos, posteriormen­
te, o delírio e isso vai até o suicídio. Dizemos, então: "espera aí!
Vamos nos ater à questão da simbolização e ao que Freud traz com
sua questão do afeto, que passa do psíquico ao corporal". No
fundo, quanto à histeria, a metáfora paterna respeita bastante bem
esta barreira. De resto, há uma interrogação, um tipo de no man 's
land declarado como tal por Freud.

Jacques-Aiain Miller A relação da alma com o corpo, do


-

psíquico com o somático, não é um problema para Lacan: ele con­


sidera que ambos são da mesma natureza. Isto supõe que não se
confunda o pensamento e o psíquico. Vejam, quanto a isso, o escri­
to "Televisão": o pensamento é desarmônico, tanto em relação ao
psíquico quanto em relação ao somático, ele é de outra ordem; pode
fazer intrusão no psíquico - são os fenômenos de obsessão ou até

304
mesmo de automatismo mental -, pode fazer intrusão no corpo -
vejam a histeria. O corte não se dá entre o psíquico e o somático,
mas entre o pensamento e a formação alma-corpo. Uma diferença
severa deve ser feita entre o pensamento e o psíquico.

Philippe La Sagna - Poderíamos talvez responder a esta


questão da conversão a partir da oposição introduzida em
Arcachon, por Jacques-Alain Miller, entre uma clínica da metáfora
e uma clínica da conexão. Parece-me que pensamos habitualmente
a conversão como sendo legível e, logo, como uma metáfora; no
fundo, vemos que existem, em Freud e na clínica, indícios de que a
conexão corpo-linguagem não deve ser necessariamente colocada
na ordem da metáfora. O que, aliás, introduz a mesma lógica que a
questão da máscara: a máscara não é uma metáfora, ela não masca­
ra nada, não há revelação a desmascarar; mas conecta um enigma,
põe significantes em conexão, que permanecem, de algum jeito, sol­
dados à máscara. Na conversão, há um efeito transestrutural que
reencontramos nos fenômenos de neoconversão psicossomáticos
ou psicóticos ou, talvez, até mesmo na neurose, e que não são da
ordem do legível.

Jacques-Aiain Miller - Em todo caso, não é de ordem meta­


fórica. Uma vez, contei que tinha curado uma paralisia histérica. A
senhora chegava com suas muletas e, dois anos mais tarde, estava
sem elas. A porteira de meu prédio entendeu que eu realmente
fazia alguma coisa na vida e devo dizer que isso foi bonito. O que
fiz foi mais de ordem metonímica. Não lhe disse "você é isso" e
as bengalas caíram e ela começou a saltitar. Ela recuperou o equi­
líbrio aos poucos. Foi fio por fio: um fio era seguido, encontráva­
mos algo, depois um outro fio e havia como que pequenos filetes
que caíam um após o outro. Aos poucos, a paralisia tornou-se inú­
til para ela. Poderíamos dizer que parou de fazer uso dela. Ela
pôde se servir de outras coisas, coisas das quais, até então, não

305
tinha falado. Aos poucos, não precisou mais de suas bengalas - e
olha que esta história já durava dez anos e havia mobilizado à sua
volta um número fabuloso de pessoas. Era funcionária pública e
era servida por uma multidão de pessoas pagas pela Seguridade
Social. Ela renunciou a uma vida de rainha. Eu não vi a grande
interpretação, seja minha ou dela, que teria suspendido a paralisia;
foi um processo contínuo.

Philippe la Sagna - Em um dos casos do relatório da Seção


Clínica de Bordeaux, o caso de psicose chamado "Srta. Anna", o
sujeito constrói para si mesmo uma máscara e, a partir desta másca­
ra, poderá falar e suportar efeitos de sujeito. Podemos observar que
certo número de sintomas de neoconversão serve, aos sujeitos psi­
cóticos, de identidade material; eles se apoiam sobre algo que cons­
tituíram e que, às vezes, é "decifrado", porém sem efeito de verda­
de, ou seja, isso tem um lado ilegível. É uma escrita que não se pres­
ta à leitura. Por outro lado, a partir daí, poderão introduzir vários
fenômenos metafóricos, uma espécie de contrapartida, assim como
há uma contrapartida para o dinheiro, de valor significativo, que não
é da ordem do falo e que está incluída em seu sintoma.

Alain Merlet - Gostaria apenas de fazer uma pequena obser­


vação. Quando fazia residência em Strasbourg com Jean-Louis
Gault, reduzíamos, sem interpretar, simplesmente sob hipnose,
fenômenos de conversão maciços. Nós os reduzíamos. Participávamos
de um seminário sobre a hipnose - do qual, aliás, Gerard Miller par­
ticipou - e, quando estávamos de plantão, nos divertíamos reduzin­
do as paralisias maciças, torcicolos, etc. Na Alsácia, a hipnose é his­
tórica. Está na mesma linha que os reis taumaturgos: os reis da
França curavam as escrófulas com uma simples imposição das
mãos. Mas, antes de pensar em curar, podemos nos perguntar para
que serve uma neoconversão. Se nos limitarmos ao sintoma como
metáfora, certamente deixaremos algo escapar. Há, nas histéricas,

306
uma evolução da conversão: são cada vez menos frequentes
porém, há, também, uma evolução do discurso médico.

Carole Dewambrechies·La Sagna É interessante tomar, no


-

relatório de Bordeaux, o termo "máscara" para ordenar a série dos


casos. A primeira constrói para si mesma uma máscara - é uma
expressão que ela usa - com escarificações. A segunda também
constrói para si uma máscara e chega até a imitar a máscara: ela tem
um discurso arremedado que vem desdobrar o que diz, um discur­
so escrito de algum modo, uma pantomima que faz uma espécie de
escrita que, em relação ao discurso falado, vem em segundo plano.
A terceira carrega a máscara da dor, que é o que lhe permite se rela­
cionar com o Outro. As três construções podem passar por sinto­
mas tipicamente histéricos. Frequentemente, quando pensamos
rápido demais, temos tendência a raciocinar em termos de sintoma
típico. É preciso reler esse artigo de Freud, o qual, aliás, Jacques­
Alain Miller destacou em seu curso, para tomar o cuidado de bem
referir o sintoma à estrutura inteira da linguagem, para ver se o caso
é de neurose ou de psicose. Os três casos apresentados não são his­
terias de conversão, mas apresentam uma máscara que pode, se sim­
plesmente pensamos em termos de tipicidade, passar por algo dessa
ordem. Aliás, cada uma, em um ou outro momento de sua história,
recebeu um diagnóstico categórico de histeria feito por esse ou
aquele clinico. Em função de quê? Em função de teatralismo, clau­
dicação funcional, passagem ao ato, marca na pele e, no primeiro
caso, um interesse muito marcado pela vestimenta.

Jacques·Aiain Miller- Consideremos o segundo sujeito.


"Uma lembrança de infância lhe retoma: um filme assustou-a terri­
velmente. Uma jovem perdeu o rosto, durante um acidente, destruí­
do pelo fogo. Seu pai, cirurgião, assassinava jovens mulheres para
retirar-lhes o rosto e enxertá-los em sua fllha". Com isso, durante o
tempo das sessões, ela imitava os gestos de um cirurgião pratican-

307
do essa operação, desenhando um rosto sobre seu rosto. Temos o
fenômeno, temos sua raiz infantil e, no entanto, não se trata do
recalque como segredo, segredo para ela mesma, segredo finalmen­
te sabido; é uma outra relação, da qual o materna de Lecoeur tenta
dar conta.

Roger Cassin - No caso clinico "O homem enrijecido", de


Nantes e Rennes, o desaparecimento do sintoma se produz em uma
só sessão, por uma palavra dita. É o rapaz que anda sem dobrar os
joelhos. Ele é acompanhado há três anos e, durante uma sessão, ele
diz: "eu andava assim porque tinha medo que me chamassem de
veado." A partir desse momento, ele dobra os joelhos. O desapare­
cimento do sintoma vem, é claro, no auge de uma fala na qual ele
explica que seu pai, que antes tiranizava toda a família, passou a deli­
rar a partir do momento em que ficou desempregado; o filho ocu­
pou um lugar na família, ou seja, se identificou com aquele que sus­
tenta - sua mãe, suas irmãs - e que, além disso, faz com que todos
andem na linha.

Jean-louis Woerlé Bernard Lecoeur diz que a barra de A é


-

tocada, assim como a barra que separa A e o sujeito. Teria a con­


cepção do recalque sofrido algumas modificações? Minha pergunta
é geral, na medida em que o interesse incide sobre as psicoses
desencadeadas e não-desencadeadas: será que podemos distinguir
os fenômenos de corpo a partir de fenômenos psicossomáticos
muito mais que a partir da conversão histérica? Será que passar pelo
fenômeno psicossomático ao invés de passar pelo fenômeno histé­
rico nos faria avançar na questão da neoconversão?

308
1 1 . INVENÇ Ã O SOB MEDIDA E PRÊT·À·PORTER

É ric laurent Continuarei com prazer o que Woerlé trouxe.


-

Hoje pela manhã, falávamos de psicose ordinária. Poderíamos,


agora, dizer que abordamos a relação normal com o corpo. A neu­
rose não é uma relação normal com um corpo. Ela apresenta o que
se produz de anormal quando o pensamento irrompe no corpo.
Dizer que o sujeito psicótico tem uma relação normal com seu
corpo é dizer, de uma outra maneira, que o psicótico é ameaçado
pela regressão tópica ao estádio do espelho. O corpo -sofre, perma­
nentemente, a ameaça de despedaçamento; ele não se sustenta e é
preciso grandes esforços para manter o corpo como um.
Para um sujeito como Schreber, uma vez atravessado o
momento mais agudo, é preciso que se tenha permanentemente uma
imagem diante de si. Existem, porém, muitos outros meios de fazer
um com o corpo, o que esquecemos de colocar em série. Muito daqui­
lo que faz parte da chamada higiene de vida é exatamente da mesma
ordem do que Schreber tem que fazer. A verificação do peso, da
forma da alma, da forma do corpo, etc., não é da alçada do pensa­
mento, mas sim de esforços para manter tudo isso no lugar.
Nesta relação normal com o corpo, há irrupções que não
são da ordem do pensamento. O fenômeno psicossomático é dessa
ordem, não é da ordem do pensamento no sentido do "pensamen­
to-desejo", segundo a famosa passagem de Asformações do inconscien­
te} na qual o desejo irrompe no corpo. O "pensamento-desejo" que
irrompe no corpo é do campo da neurose.
Para que a relação normal com o corpo se mantenha, são
necessários esforços de localização do gozo neste corpo. Há os

309
órgãos para os quais é preciso encontrar uma função de localização
do gozo. Quando o esquizofrênico não encontra isso, ele se encon­
tra às voltas com os seus órgãos que fazem irrupção. Nos casos que
ouvimos aqui, encontramos fenômenos que se inscrevem nessa
série. Quando a significação fálica é ausente, no "homem enrijeci­
do", quando "o homem do polegar" bate em uma mulher por ser
essa a única coisa que sabe fazer, trata-se de esforços de localização;
isso vale também para "o inventor do método".
Assim, poderíamos destacar a relação normal com o corpo
e as localizações do gozo. A função de deslocamento, apontada por
Alain Merlet, vem funcionar como o contrário da localização.
Podemos, de fato, fazer cessar a paralisia e outros fenômenos desse
tipo, sem que o sujeito diga algo a respeito. Uma outra parte do
corpo pode imediatamente começar a servir de substituto para
designar o lugar do gozo. Tudo pode acontecer ai.

Jacques·Aiain Miller- Não poderíamos nos servir, aqui,


dessa indicação de Jacques Lacan a respeito do esquizofrênico que,
estando fora-do-discurso, deve encontrar um uso para seus órgãos
- ao passo que, para o neurótico, há sempre um discurso que lhe diz
o que fazer de seu corpo? Poderíamos fazer uma tipologia e dizer:
na histérica, o corpo é feito para servir ao desejo - tanto como para
servir à defesa contra o desejo; porém, é em torno do desejo que
isso gira. No obsessivo, o corpo é feito para servir à demanda e à
recusa da demanda. Em contrapartida, para se servir de seu corpo,
o esquizofrênico deve empreender um esforço considerável de
invenção e se ocupar com extrema atenção de partes do corpo que
são normalmente negligenciadas. Eu não tenho os polegares que
estalam, mas, às vezes, estalo um dedo sem prestar atenção. Pois
bem, desde que li o texto "O homem dos polegares que estalam",
sei que isto poderia servir para uma série de coisas.
No psicótico, o uso do corpo pode, às vezes, convergir
com um uso aparentemente normal, ordinário. Acontece que, para

310
poder chegar a isso, ele tem que empregar um esforço extremo. Às
vezes, a única coisa que indica em qual registro ele se encontra é o
extremo esforço de invenção que há por trás disso, esforço de
invenção sob medida, quando, para o neurótico, é um prêt-à-porter.
Isso faz uma diferença.
Em "O homem dos cem mil cabelos", o cabelo passa a
sustentar uma significação fálica. Isso não é comum. No entanto,
dizemos, de bom grado, que os carecas são particularmente interes­
sados pelo sexo ou que a beleza de uma cabeleira tem um sex-appeal
Resumindo, a significação fálica ronda, de fato, o fenômeno capilar.
Mas, nesse caso, é no real. Há uma significação fálica delirante do
cabelo. A neoconversão se transforma, aqui, em franco delírio sobre
o corpo.

François Sauvagnat Como você diferencia os dois? Seria o


-

delírio sobre o corpo aquilo que permitiria fabricar uma espécie de


pseudossignificação fálica?

Jacques-Aiain Miller Pois bem, aqui, com a tese sobre os


-

cem mil cabelos, o moço prova que o cabelo é um neofalo.


Normalmente, embora digamos "ficar com os cabelos em pé", não
nos damos conta de que o cabelo é uma parte do corpo capaz de
ereção e que há, portanto, um músculo eretor cuja contração faz
com que ele se levante.

François Sauvagnat - Como você diferencia a neoconversão


e esta construção?

Jacques-Aiain Miller A proposição "a cada vez que não


-

estou no caminho certo, meus cabelos caem" é coerente com o


princípio que Lacan retoma de Freud: ''A única coisa da qual pode­
mos ser culpados, é de ter cedido quanto ao desejo". A cada vez que
o moço cede quanto ao seu desejo, ele perde seus cabelos. A calví-

311
cie é a punição por ter cedido quanto ao desejo. Isso não é inven­
ção minha, eu cito: "Ele perde seus cabelos quando não é mais ele
mesmo, isto é, quando não faz algo conforme seu verdadeiro dese­
jo". Há um Outro, este Outro não barrado do qual falava Lecoeur,
que conta as vezes em que o sujeito cede quanto a seu desejo, e que,
a cada vez, envia-lhe, no real, uma queda de cabelos. O sujeito é
punido pela neocastração do cabelo.

É ric Laurent Esse homem havia encontrado uma mulher


-

com a qual se dava muito bem. A coisa ia muito bem; ele perde seus
cabelos e logo deduz que deve imediatamente deixá-la. Mesmo que
contrário a todas as aparências, ele aceita que seu desejo esteja para
além da satisfação. Ainda que esteja satisfeito, é punido. Sabe que
seu desejo não está no caminho certo, que deve ir para um outro
lugar e, dessa forma, as coisas melhoram.

Jacques·Aiain Miller Quando se delira assim, não há neces­


-

sidade de míseras e alusivas interpretações, que jamais dizem as coi­


sas claramente. Esse delírio bem constituído lhe dá um Outro cuja
mensagem é indubitável e ele sabe perfeitamente quando peca con­
tra seu desejo.

É ric Laurent François Sauvagnat pergunta como diferen­


-

ciar isso. Se partirmos da relação normal que o sujeito psicótico


mantém com seu corpo, poderíamos dizer que é como nos delírios.
O esquizofrênico não precisa de um delírio enorme; é preciso que
ele encontre uma função para um órgão. O paranoico, por sua vez,
tem que mobilizar muito mais um sistema delirante. Pode haver,
nessa relação normal com o corpo, mínimas invenções, encontrar
uma função para um órgão, ou então mobilizar todo o saber. "O
homem dos cem mil cabelos" mobiliza enciclopédias, todo um
saber. Ele consegue, assim, fazer com que todas as funções que evo­
cávamos desempenhem um papel: função de neocastração, de puni-

312
ção, de intervenção do pai, etc., e tudo isso sobre seu órgão, com a
ajuda dessa cumplicidade somática. Poderíamos, assim, fazer séries
com diferentes tipos de fenômenos que procedem, todos eles, dessa
relação normal com o corpo, dessa relação de invenção necessária.

Philippe la Sagna - Há, na Metapsicologia1 uma passagem na


qual Freud distingue a esquizofrenia da neurose, evocando um
paciente que pensava que seus cravos e espinhas eram falos. Freud
diz que isso não é neurose, pois o sujeito dispõe da significação sem
trabalho analítico. E acrescenta isso que sempre me intrigou muito:
o que deve nos incitar a pensar que se trata de uma psicose é a mul­
tiplicidade da significação fática. Creio que é a mesma coisa para os
cem mil cabelos: são órgãos que não são um; eles estão na multipli­
cidade e se tornam praticamente incontáveis. Deparei-me com isso
na minha prática, com alguém que arrancava seus cabelos ao invés
de perdê-los.
Gostaria de fazer uma pergunta aos colegas de Nantes e
Rennes. Observamos dois fenômenos distintos em "O homem dos
cem mil cabelos". Poderia ser uma conversão psicossomática: já que
ele realmente perde seus cabelos, ele poderia parar por aí; podería­
mos pensar que isso bastaria para fazer suplência à função fática.
Mas, o que faz com que, além disso - digamos que ele tenha o cinto
e os suspensórios -, ele precise elaborar um delírio em torno dessa
perda?

Daniel Roy - Vou, de certa maneira, redirecionar a pergun­


ta à Bordeaux, já que gostaria de ligar a questão do desencadeamen­
to àquela dos fenômenos de corpo. Faria essa pergunta para os
casos clínicos dessa série, particularmente o caso da "Srta. Anna",
já que o fenômeno de corpo é desencadeado quando ela evoca a
misteriosa figura da avó paterna cega. Foi dito que existe, ao mesmo
tempo, um fenômeno de corpo e uma transferência erotomaníaca.
Localizamos, então, dois modos particulares de resposta. Que esta-

313
tuto do Outro está implicado no desencadeamento desse fenôme­
no de corpo?

Jacques-Aiain Miller Trata-se, afinal, de um "fenômeno de


-

corpo"? Imitar os gestos de um cirurgião realizando a operação


poderia realmente ser classificado como "fenômeno de corpo"?

Daniel Roy Como essa categoria é talvez demasiado ampla


-

para classificar esse tipo de coisa, será que não recairíamos nos mes­
mos problemas que as perturbações de linguagem?

Jacques-Aiain Miller Há fenômenos que nos são descritos


-

como ocorrendo no corpo do sujeito: deslocamentos de sensações,


queimaduras, o tumor da paciente do relatório de Bruxelas, pertur­
bações da visão, etc. A imitação seria da mesma ordem desses
fenômenos?

Philippe la Sagna É o observador que o define como uma


-

imitação. Para a paciente, era um fenômeno como uma "paralisia


agitante", isso é, algo que ela não podia evitar e não sabia o porquê.
Para ela, é algo real. É por isso que foi tomada como histérica. Ela
o apresentava como um fenômeno que lhe escapava totalmente. O
que, aliás, é verdade, no sentido em que não era subjetivado.

Jacques-Aiain Miller - Era um mimé-tic.

Philippe la Sagna Exatamente. Como uma síndrome de La


-

Tourette. Existem doenças neurológicas em pessoas que têm tiques


extremamente complexos. Era análogo, mas não era isso.

Bernard Porcheret A respeito do "Homem dos polegares


-

que estalam", Éric Laurent fez um comentário que me interessou


muito, a partir da noção de "esforço extremo". Trata-se de alguém

314
que acompanho há dezoito anos. Logo de início, o recebi como um
psicótico, mas, devido à sua própria estrutura psicótica, não me dei
conta disso, até que, há cinco anos, o quadro sofreu uma reviravol­
ta; muitas coisas cederam para ele, do ponto de vista do laço social,
mas foi, sobretudo, sua relação com as mulheres o que realmente
desmoronou.
Enquanto os fenômenos que ele apresentava poderiam
muito bem ser tomados como conversões histéricas - no sentido
amplo do termo - o que apareceu foi esse "esforço extremo", com
toda essa prática no nível dos polegares, respondendo ao fato de
que tem medo de perder seus polegares. Tenta construir um corpo
para si e, nesse momento, isso se estende no nível dos joelhos e em
cima dos pés; o que faz com que, aos poucos, se estabeleça uma car­
tografia. A única coisa que tenho que fazer - três vezes ao dia, even­
tualmente ao telefone, e é claro, quando o recebo em sessão - é,
quando me pergunta: "é psicológico doutor?", responder-lhe: "sim,
absolutamente". Ele não pede mais nada e não preciso fazer mais
nada, no sentido em que não há nada de interpretável; ele realmen­
te não associa nada. Estamos verdadeiramente do lado de uma
esquizofrenia.

Jacques·Aiain Miller Posso ler esta página, pois ela é muito


-

esclarecedora: "o desencadeamento do sintoma ocorreu da seguin­


te maneira: invocando uma dor no joelho, M. recusa, um dia, ter
relações sexuais com sua companheira, que exprime sua viva decep­
ção; de forma súbita, desfere-lhe um violento soco nas costas. No
dia seguinte sobrevém seu sintoma. Há cinco anos, depois do rom­
pimento com essa mulher, uma queixa sem limites satura completa­
mente as sessões. M. lista diferentes tipos de estalos de seu polegar
e enumera sua combinação com certas ações. Desenvolve, então,
uma prática que só encontra limite no esgotamento" - logo, tudo o
que ele não pode fazer, o faz repetitivamente até o esgotamento.
"Uma sequência se impõe: estalo inaugural profundo e explosivo;

315
sensação intolerável de que o polegar cai no vazio". Toda a psicose
de Schreber está, aí, concentrada no polegar. "Prática de verificação
até que os estalos secundários criados pelas flexões sob a superfície
da pele parem. Vão cortá-lo, exclama; mas, e então, o outro?'.

Bernard Porcheret E, em seguida, há o fenômeno da bila­


-

teralização que sempre intervém e que o deixa pasmo.

Jacques-Aiain Miller Afora isso, ele é invadido por fenôme­


-

nos: estrabismo divergente, fortes dores no joelho direito que se


tornam bilaterais, rigidez do pescoço e das costas. "Cada sintoma
apoia-se em uma 'sugestão': fala brutal, tapa ofensivo, pequeno cho­
que". É uma tradução direta, que não passa por um mecanismo
profundo de deslocamento, pela metonímia ou pela metáfora; está,
aí, em curto-circuito. É assim: "na clínica, uma perfusão de antide­
pressivos não funciona: meu braço vai apodrecer, vai ser preciso amputá­
lo", etc. Essa descrição constitui um verdadeiro paradigma.

Marga Mendelenko O que dizíamos, ainda há pouco, me


-

fez pensar que seria necessário abandonar o termo conversão, liga­


do à histeria e à dialética do desejo em relação ao uso do corpo, c
falar, de preferência, e m neolocalização.

Jacques-Aiain Miller Vamos comparar o caso de Elizabeth


-

Von R. com o caso do "Homem dos polegares que estalam". 1\


identidade entre a manifestação somática e o desejo na histeria
supõe a metáfora e a metonímia, enquanto que nada parecido est;'l
em jogo para dar conta do superinvestimento do polegar, nem das
alucinações que o afetam.

François Sauvagnat É a pergunta lexicológica que eu faú1


-

ainda há pouco: que termo é melhor empregar? O termo neocon


versão nos faz, de fato, pensar: 'Atenção! Isto se parece com histc

316
ria, mas será que é verdadeiramente isso?'. O exemplo da hipocon­
dria é frequentemente esquecido; há dois séculos existem trabalhos
sobre a hipocondria delirante, mas isso é frequentemente esquecido
e depois retomado, etc. Acontece que nos quatro casos de psicose
que tivemos, a problemática fática intervinha.
Pensei em acrescentar um parágrafo sobre a psicossomáti­
ca, mas disse a mim mesmo: não, deixemos isso assim. É por isso
que tentei desenvolver as coisas segundo quatro tipos de configura­
ções: ai uma hipocondria não localizada, correspondendo a <Do; b l o
que chamei "dismorfofobia localizada", correspondendo a Po; cl a
problemática catatônica, com a questão de um enlaçamento corpo­
ral que visivelmente não se faz naturalmente em casos mais ou
menos graves (acho interessante lembrar que existem casos mais ou
menos graves de catatonia, em particular nas crianças e, eventual­
mente, casos em que, de um dia para o outro, isso desaparece - o
que está descrito na literatura); dl tudo o que está ligado à fabrica­
ção do sintoma e que, frequentemente, diz respeito ao corpo.
No fundo, a questão é terminológica. Interessa-nos falar
de neoconversão? Interessa-nos falar de fenômenos corporais?

Carole Dewanbrechies·la Sagna - Vamos interromper nessas


questões, para retornarmos às 1 7h.

317
1 2. CONVERS Ã O DO SIGNIFICANTE
E LOCALIZAÇ Ã O DA LIBIDO

Jacques·Aiain Miller Retomemos a discussão sobre a "neo­


-

conversão". Poderíamos, talvez, generalizar a questão. A conversão


é a suposta passagem do psíquico ao somático. Mas poderíamos tra­
tar o problema geral da localização significante, tomando o seguin­
te ponto de vista.
Primeiro tempo: há significante no mundo; um certo
número de objetos, de elementos, de coisas, quer dizer alguma
coisa. Segundo tempo: a questão da localização desse significante se
coloca. "Pensar" quer dizer localizar o significante em nossa cabe­
ça. Podemos localizá-lo na cabeça do Outro. É melhor fazer isso
corretamente, sem misturar tudo. O significante localiza-se no
rádio, no telefone, no computador, em outros objetos, e fabricamos
cada vez mais objetos para fazer circular o significante cada vez
mais rápido e para ser capaz de recebê-lo permanentemente.
Em outros termos, há significante, ele se localiza em dife­
rentes lugares, é passível de ir de um lugar ao outro e é particular­
mente suscetível de passar para o corpo. Desse modo, a conversão
somática procederia do problema geral da localização do significan­
te. Definitivamente, não há nada nesse mundo, nem nas esferas
superiores, em que o significante não possa se sustentar. Podería­
mos dar uma visão cósmica, se assim posso dizer, da localização do
significante.
É fato que o significante se converte em diferentes espé­
cies. Digitalizamos, hoje, tanto elementos visuais quanto elementos
fônicos e os colocamos em discos. Transmitimos eletronicamente

319
imagens e sons, como fazemos com textos; amanhã, teremos isso
em nossos telefones celulares, enviaremos trechos de música ao
vizinho e receberemos ftlmes. A técnica está aí, só resta definir os
padrões e baixar os custos de produção. A conversão do significan­
te está em toda parte. O corpo também é passível de servir de
suporte ao significante. Tudo no corpo se presta a isso: a pele, os
órgãos, os humores, os fluidos do corpo, seus dejetos, etc. Por que
diabos o corpo escaparia à conversão geral? Por que pedimos que
seja feita uma exceção para o corpo? Assim como o resto, o corpo
é suscetível de suportar o significante. Resumindo, trata-se de inver­
ter o ponto de vista habitual. Isso é convincente? Talvez apenas
moderadamente, mas é um exercício mental.
Retomemos, agora, o caso do tumor do relatório de
Bruxelas. As coisas vão bem, o sujeito sente paixão pelo tumor
que tem, mas a paciente esmorece quando a questão é curar esse
tumor: "Descobriu-se que ela tinha um tumor no cérebro, do qual
foi operada com urgência. Essa mulher irá explorar obstinada­
mente os determinantes simbólicos de seu tumor. Seu tumor
decorre do lugar que sua mãe lhe deu: ocupar o lugar de um
morto". Em seguida: "O apoio que ela encontrava no significante
tumor de repente lhe falta" - no momento em que o médico a tran­
quiliza quanto à recidiva - "revelando, ao mesmo tempo, em quê
ele lhe servia. Esse tumor tinha, para ela, valor de ponto de basta.
Esse tumor parece ter tido para ela o mesmo estatuto de uma
metáfora delirante".
Ouvi falar recentemente de um caso parecido, de um sujei­
to que tinha uma dor delirante e não se podia, de maneira alguma,
dar-lhe esperanças de cura, pois toda a sua vida estava organizada
em torno desse delírio. Do que se trata? Trata-se de uma parte do
corpo, mas é, sobretudo, uma palavra. "Tenho um tumor" é, sobre­
tudo, um sentido gozado que constitui um neo-Nome-do-Pai e um
neofalo. Somos, de fato, obrigados a dizer que isso vem no lugar do
que distinguíamos como Po e <l>o.

320
Os dois casos, "O Homem dos cem mil cabelos" e "O
Homem do polegar" se ordenam. De um lado, temos cem mil cabe­
los, do outro, temos um polegar, no singular. Uma parte do corpo
é investida de maneira especial e sua unicidade é tanto mais marcan­
te na medida em que temos dois polegares - ele poderia fazer o
esforço de investir os dois polegares, mas não; só um é investido; o
outro é posto sob ameaça, mas, enfim, não é investido da mesma
forma.

Bernard Porcheret Em certos momentos, isso flutua: exis­


-

te essa famosa bilaterização e o outro polegar também é investido,


mas não de maneira tão fixa quanto o primeiro, que é o polegar
direito. No nivel do joelho, é a mesma coisa. O outro joelho lhe
serve de algum jeito para reforçar seu "é psicológico", essa espécie
de frase bastante particular.

Jacques-Aiain Miller Os cabelos, isso é o múltiplo. O pole­


-

gar, é o único - podemos multiplicar o um e ele continua sendo um;


é um, mas um duplo. Nos dois casos, há um investimento de senti­
do, de sentido gozado, que nos dá uma neoformação, a qual vale, ao
mesmo tempo, como neo-Nome-do-Pai e como neofalo. A cena de
castração é representada a cada vez no real a propósito de cada
cabelo que cai e a partir do polegar, do qual se tem a impressão de
que ele cai no buraco. É o teatro de bolso. Schreber mobiliza a
ópera, Arihman, OrmUiJ' é um cataclisma, todo mundo está no cama­
rote. Os outros dois casos representam a mesma cena no teatro de
bolso, com polegar e cabelos. O tumor é, de certa forma, o polegar
invisível. Quando dizemos ao sujeito "seu tumor não volta mais", é
uma castração no real.

Bernard Lecoeur - Será que não poderíamos nos apoiar


nessa distinção dizendo que, na conversão, o que serve como ponto
de localização é o recalque? Lê-se, na conversão, que existe recalque.

321
Do lado da neoconversão, o recalque não se presta à leitura como
na conversão. O que parece se esboçar é a importância particular da
identificação, o que, pela manhã, já foi mencionado a respeito da
melancolia. Mas teríamos todo o interesse em repensar essa questão
por outro viés que não aquele da máscara, pois a identificação, colo­
cada a partir da máscara, joga com a abertura e o fechamento: é a
máscara com portinhola, isto é, uma solução de descontinuidade.
Essa questão é considerada de uma nova maneira por Lacan, quan­
do situa a identificação em relação ao nó borromeano, colocando-a
em termos de reviravolta, ou seja, em um registro de continuidade.
A vantagem de abordar as coisas por este viés é que a identificação
permanece como o que está sempre a trabalho, não sendo mais
concebida a partir de uma referência de fixidez.
Lembrei-me, hoje de manhã, do caso de um sujeito psicó­
tico que diz que sua linguagem modificou-se a partir do momento
em que lhe colocaram, aos doze ou treze anos de idade, um apare­
lho dentário na boca. Esse aparelho foi retirado e, desde então, a
linguagem que ele usa não é mais a sua: é a linguagem do Outro.
Essa questão de aparelho, de uma identificação que aparelharia o
sujeito à linguagem, pode ser, a meu ver, repensada.

Jacques-Aiain Miller - Em que sentido isso seria uma identi-


ficação?

Bernard lecoeur É uma identificação no sentido em que


-

agora ele se tornou esse aparelho, quando fala. Mesmo que esse
aparelho lhe tenha sido retirado, seu efeito, sua consequência, con­
tinua. Ele fala a língua do Outro, se assim posso dizer. Em minha
opinião, isso nos conduz a abordar a identificação não mais a partir
de figuras imaginárias, mas a partir de uma encarnação, uma presen­
ça permanente do Outro. Há uma distância entre o sujeito e o
Outro, mas o Outro está aí, em um trabalho permanente.

322
Jean-louis Gault Gostaria de dizer uma palavra a respeito
-

da barreira entre o corpo e o psíquico, a barreira somatopsíquica.


Lacan aborda a questão em "Televisão", deslocando-a um pouco, j á
que considera que a histeria traz o testemunho d e que a linguagem
recorta o corpo. Interrogar-se infinitamente a respeito da suposta
barreira é um pouco inútil, uma vez que encontramos o sujeito his­
térico. A descoberta freudiana traz a prova de que, efetivamente, a
linguagem recorta o corpo. Lacan desloca as coisas da conversão
para a cisalha.

323
1 3. CONVERSÃ O DO SIMB Ó LICO AO REAL

Jacques·Aiain Miller O problema da passagem do psíquico


-

ao somático torna-se mais geral: por que um elemento simbólico


reaparece no real? Se "o que é abolido no simbólico reaparece no
real", é que, no lugar da conversão do psíquico ao somático, temos
a conversão do simbólico ao real. É o que observamos. Os sujeitos
dos quais falamos, "O homem dos cem mil cabelos" e "O homem
do polegar", representam a cena da castração, porém em outro
registro. Isso desloca o conceito de conversão: a conversão somáti­
ca é a conversão ao real. Certamente, se consideramos que tudo que
se refere ao corpo é imaginário, assim como Lacan chegou a dizer,
em um dado momento, em sua clínica borromeana, pode-se dizer
que é uma conversão ao imaginário. Em todo caso, isso não perma­
nece no registro simbólico.

Jean·Louis Gault Gostaria de responder à pergunta que me


-

fez Philippe La Sagna. A maneira pela qual as coisas apareceram


para o sujeito é bastante complexa. Ele não se deu conta imediata­
mente do fenômeno da calvície. Alguns amigos lhe chamaram a
atenção para o fato de que ele perdia muito cabelo após uma chu­
veirada. Logo, isso chamou sua atenção.

Jacques-Aiain Miller - Há, na origem, a palavra do Outro:


fala-se dele.

Jean-Louis Gault A partir disso, ele foi ver fotos mais anti­
-

gas e outras mais recentes. Comparando-as, constatou que, de fato,

325
tinha um início de calvície. Trata-se, na verdade, de um fenômeno
banal: como muitas outras pessoas, ele vem se tornando calvo.
Porém, apropria-se da calvície e lhe dá uma grande importância,
sobretudo na relação com a mulher, da qual falava Éric Laurent.
Tinha uma relação absolutamente satisfatória com essa mulher e,
posteriormente, começou a experimentar fenômenos de angústia;
ele não se sentia muito à vontade com ela. A calvície veio em seu
auxílio, foi o sinal de que as coisas não iam nada bem, de que era
preciso não continuar por essa via. Então, ele usou a calvície, se
apoderou desse pequeno fenômeno discreto para fazer dele um
signo. Isso o mobilizou muito: ele começou a escrever e a se inter­
rogar sobre as causas dessa calvície; recorreu às enciclopédias, à
retórica, etc., foi colocar tudo isto em ordem.

Jacques·Aiain Miller - Ele movimentou o saber universal em


torno do cabelo que cai.

Jean-louis Gault Achei absolutamente pertinente a obser­


-

vação que o senhor fez de que, no fim das contas, mais que ao
corpo, isso dizia respeito ao sentido gozado; no caso, os fenômenos
corporais são extremamente discretos e o que vai ocupá-lo muito
são as expressões que contém a palavra cabelo, a palavra crina, etc.,
que ele tenta situar graças ao saber enciclopédico da anatomia. É
barroco em relação ao caso freudiano da histeria, que se separa da
anatomia e recorta o corpo conforme a linguagem; ele acaba voltan­
do à anatomia e tenta mobilizar seus recursos. O que se torna muito
importante é o músculo eretor. E, mesmo depois que os cabelos já
caíram, ele ainda experimenta fenômenos na superfície do crânio,
fenômenos dolorosos, pois o músculo eretor continua a se contrair;
ele sente ardências, etc.

Jacques-Aiain Miller Como dizia alguém, o mundo é feito


-

para acabar em um cabelo - que cai.

326
Genevieve Morei Minha pergunta diz respeito à parte V do
-

relatório de Nantes e Rennes, redigido por François Sauvagnat.


Pareceu-me que vocês distinguiram, por um lado, a hipocondria mal
localizada como uma espécie de desencadeamento e, por outro, o
órgão escolhido como alvo imutável que seria, naquele momento,
como uma tentativa de suplência, uma resolução. Isso nos conduziria
a distinguir, por um lado, a indeterminação e o desencadeamento e,
por outro, a determinação e a suplência? Isso conduziria à tese de que
haveria sempre uma fase de indeterminação hipocondríaca antes de
uma localização precisa em um órgão, como se houvesse um tipo de
progressão de um desencadeamento em direção a uma suplência ou de
um fenômeno elementar em direção a uma estabilização? Isso conduzi­
ria a tomar como ponto de referência a localização corporal da dor e
seu grau de determinação. Vocês poderiam comentar mais esta parte?

François Sauvagnat No que diz respeito à hipocondria


-

delirante, eu não fazia mais do que recordar - Wachsberger também


o localizou - que Benedict Morei, no século XIX, se interessou
muito pela hipocondria, fazendo dela o fenômeno elementar das
psicoses e, além do mais, com uma teoria das psicoses baseada na
degenerescência. Acho que podemos nos permitir separar as coisas
dessa forma, na medida em que essa hipocondria mal localizada -
quem diz isso sou eu, mas é essencialmente o que encontramos nos
textos clássicos e também em textos recentes; enfim, há toda uma
teoria psiquiátrica que chamamos Escola de Bonn, na Alemanha,
que desenvolve a ideia segundo a qual . os verdadeiros fenômenos
elementares seriam da ordem de um mal estar difuso no corpo e
teriam uma causa cognitiva...

Jacques·Aiain Miller É o que Lacan expressa designando o


-

que acontece "na junção mais íntima do sentimento de vida no


sujeito". Dando a isso uma forma um pouco mesquinha, o designa­
mos como hipocondria.

327
François Sauvagnat Sim, trata-se, simplesmente, de apon­
-

tar para algo que é conhecido na clínica e mostrar que há algo que
corresponde. Se isso me interessou, é porque havia uma espécie de
equivalência de enigma; há um certo número de autores que disse­
ram que, no fundo, enigma e hipocondria, no sentido de enigma
psicótico...

Jacques-Aiain Miller - O enigma do corpo.

François Sauvagnat Isso mesmo: a hipocondria é o enigma


-

do corpo, o enigma no rúvel do corpo. Há sujeitos que durante anos


vão se apresentar com um mal-estar, com um aspecto mais ou
menos depressivo, sem que vejamos muito bem de onde isso vem,
com problemas de diagnóstico e, eventualmente, problemas iatro­
gênicos. Será que, em todos os casos de dismorfofobia, havia antes
uma hipocondria? Não é certo. No caso de Gault, por exemplo, será
que no irúcio havia sentimentos hipocondríacos? Não creio que isso
esteja necessariamente e regularmente presente. Não sou mordia­
no, no sentido de Benedict Morel, mas no sentido de Morelli, tal­
vez. Podemos dizer que tudo isso se situa na junção entre o pensa­
mento e o corpo. Um sujeito pode, em um dado momento, ficar em
um estado de perplexidade ou de enigma e encontrar, em seguida,
uma resposta somática - ou ao contrário: alguém que, durante anos,
tem uma espécie de mal-estar físico e, em seguida, de uma só vez,
surge um delírio e o mal-estar desaparece.

328
1 4. A HI Â NCIA MORTÍ FERA

Marie·Hélêne Brousse Encontramos, em alguns suJeitos


-

histéricos, fenômenos corporais que não procedem dos mecanis­


mos metafóricos da conversão e que poderíamos imputar ao narci­
sismo. O estatuto singular do narcisismo, na histeria, é objeto de um
comentário de Lacan nos Escrito� a propósito de Dora, narcisismo
ao qual Freud não prestou suficiente atenção, pois força o apelo da
identificação na transferência em direção à masculinidade. Trata-se,
então, para Lacan, de um narcisismo ordenado e submetido ao sim­
bólico, enquanto que a clínica borromeana reconsidera o imaginá­
rio não hierarquizado pela dominância do simbólico. Minha ideia é
que os fenômenos corporais da histeria que não são do campo da
conversão poderiam ser situados a partir do narcisismo reavaliado
com base no novo estatuto dado ao imaginário.

Jacques·Aiain Miller Eis que o polegar do sujeito é investi­


-

do libidinalmente, mobiliza todo o seu interesse intelectual e apaga


os outros objetos do mundo. Ou, pelo menos, em certos momen­
tos, ele só se interessa por seu polegar. Ao invés de espalhar-se de
maneira fluida pelo mundo e promover diversos interesses intelec­
tuais, amorosos, etc., a libido se reúne apenas nele mesmo, em seu
polegar, ou no tumor. Podemos, com efeito, falar de um fenômeno
narcísico.
Quanto a isto, uma precisão. Na "Questão preliminar...",
Lacan faz do estádio do espelho um estado de ordem psicótica. É
preciso que isso seja levado em consideração, quando tratamos do
famoso abismo que seria aberto em um segundo grau. A questão é

329
saber se a perturbação do imaginário é um efeito direto da foraclu­
são ou se é um efeito que passa pela elisão do falo, consequência
direta da foraclusão, e que, a fim de resolvê-la, o sujeito a reduz à
hiância morúfera do estádio do espelho. Essa alternativa supõe a
descrição renovada que dá Lacan do estádio do espelho como o que
comporta, de maneira essencial, uma hiância morúfera.
Interrogamo-nos, desde sempre, sobre a famosa passa­
gem: "Terá esse outro abismo sido formado pelo simples efeito,
no imaginário, do vão apelo feito no simbólico à metáfora pater­
na?" - seria ele um efeito direto da foraclusão? - "ou deveremos
concebê-lo como produzido num segundo grau pela elisão do
falo, que o sujeito reduziria, para resolvê-la, à hiância morúfera de
estádio do espelho?"7 Tratar-se-ia, nesse caso, de uma regressão
tópica, o que supõe que tenhamos previamente definido o estádio
do espelho incluindo uma hiância morúfera. Para poder dizer isso,
Lacan tomou o cuidado de apresentar previamente o estádio do
espelho da seguinte maneira: "O par imaginário do estádio do
espelho, pelo que manifesta de contranatureza"- logo, o estádio
do espelho seria impensável no animal, impossível de se encontrar
na etologia - "se convém relacioná-lo com uma prematuração
específica ( . ), é, com efeito, pela hiância que essa prematuração
. .

abre no imaginário, e onde pululam os efeitos do estádio do espe­


lho que o animal humano é capaz de se imaginar mortal". É uma
descrição do estádio do espelho que faz da psicose o estado nati­
vo do sujeito. A metáfora paterna viria resolver essa hiância do
estádio do espelho pela significação fática. E, quando a metáfora
paterna não funciona, haveria uma elisão da significação fática e
um retorno à hiância morúfera.
Além do mais, o par mãe-criança é, aqui, localizado no par
imaginário do estádio do espelho. Desde Asformações do inconsciente,
Lacan restitui à mãe seu estatuto no simbólico como Outro da
demanda.

330
Philippe La Sagna - A respeito das questões de localização,
não haveria uma forma de considerar as coisas em relação ao últi­
mo Lacan? Ele faz do corpo, que sempre designou como o lugar do
Outro, um lugar um pouco fictício, um pouco determinado por um
dito, por alguma coisa da ordem de uma ficção e, mais tarde, ele diz
que o lugar do Outro é o corpo. Ele reafirma, em particular no
Seminário 20, o corpo como localizando algo do que pode ser o
Outro. Não seria isso esclarecedor em relação aos fenômenos do
corpo na psicose? A partir do momento em que concebemos as coi­
sas dessa maneira, não há mais diferença entre o significante e o
corpo, isso é, a oposição cai. Só temos um corpo porque o signifi­
cante também é capturado, ou seja, existe a ficção do Outro, há um
lugar no qual os significantes se localizam. E são duas coisas que tal­
vez ele torne indissociáveis.

Jacques-Aiain Miller - É , de fato, o que sobrepuja a oposição


Po-<t>o. O corpo como carne, substância gozante, encontra-se afe­
tado pela linguagem e é, com isso, esvaziado de libido. A libido pre­
cisa ser localizada, senão ela se desloca à deriva. Escapamos, aí, da
clivagem que separa, de um lado, as perturbações da linguagem e,
do outro, as perturbações do corpo. Essa tese é a própria base da
clínica borromeana.

Pierre-Gilles Guéguen Foi isso o que me impressionou no


-

caso do "inventor do método": face à desorientação que experi­


menta em diferentes momentos de sua vida, ele começa a inventar
um método. É uma prática que diz respeito ao corpo, mas que é, ao
mesmo tempo, regulada por um uso do significante, já que introduz
certo número de regras para localizar o gozo de seu corpo e que o
apaziguam. Mas, por outro lado, o que vem atrapalhar a ordenação
que ele tenta estabelecer são seus sonhos, que lhe apresentam algo
da ordem do empuxo-à-mulher: há uma parte do gozo que ele não
consegue localizar. Sua ideia de procurar um psicanalista é para

331
"converter" - é o termo que ele utiliza, o que me impressionou
muito - as regras de seu método em um discurso que, assim como
uma teoria dos tipos, lhe permitiria regular o que ele não conse­
gue regular com o método em si. Reencontro, aqui, o que disse
Philippe La Sagna: vemos, claramente, nesse exemplo, como o
simbólico e o imaginário, a linguagem e o corpo, se correspon­
dem, estão ligados, estão articulados. Não há, de um lado, o ima­
ginário e as práticas e, do outro, o simbólico. Há, entre os dois,
uma espécie de conversão, não no sentido da conversão histérica
- de maneira alguma, jamais -, mas talvez como camadas sucessi­
vas, que permitiria regular melhor o gozo que tem lugar no corpo,
assim como no pensamento.

Jacques·Aiain Miller É um sujeito que está consciente da


-

invenção que ele tem que fazer e que, de certa forma, se dedica a
isso de maneira cartesiana.

332
1 5. CORPO, CARNE, CAD ÁVER

É ric Laurent Partindo da conversão histérica e de seu limi­


-

te, como modelo, vemos surgir um obstáculo para pensar a clínica


borromeana. É o último problema que acaba de ser levantado na
conversação entre Philippe La Sagna e Jacques-Alain Miller. A con­
versão histérica funciona, no fim das contas, como obstáculo ao
bom entendimento dessa declaração: o corpo é o lugar do Outro.
Há uma etapa intermediária entre as duas clinicas do corpo: é a pas­
sagem de "Radiofonia", na qual Lacan fala do incorporai, do incor­
porai estoico. Se Lacan é aristotélico ao adotar a forma de relação
da alma e do corpo, ele não é aristotélico na medida em que não
tenta pôr em série as relações do corpo e da linguagem como séries
de atributos.
O que permitiu a Aristóteles fazer zoologia foi a classifica­
ção dos corpos pelos atributos, logo, por sistemas linguageiros. Os
aristotélicos, em seguida, estenderam esse esforço de classificação
aos humanos, com o mesmo método. Os caracteres, de Teofrastos,
são uma forma de classificação dos humanos a partir de uma zoo­
logia humana. Isso se choca com a singularidade do acontecimento
de gozo, que não se resolve em atributos significantes distintivos
muito claros. Ao contrário, a teoria dos estoicos, sua invenção do
significante, a ênfase que eles põem nos verbos, construiu toda uma
categoria de acontecimentos, indistinta do corpo ao qual se aplica­
vam. Isso não permitia uma zoologia, mas uma distribuição dos
incorporais. Toda a passagem de "Radiofonia" sobre os incorporais
permite uma melhor compreensão disso que Philippe La . Sagna
lembrava: o corpo é o lugar do Outro.

333
É uma outra forma de dizer: a linguagem é indissociável
de um tipo de relação com o corpo que foi, primeiramente, apreen­
dido na história pelo incorporai.

Jean-louis Gault Gostaria de retomar o problema do nar­


-

cisismo, levantado por Marie-Hélene Brousse. Lembrei-me de que,


no exame do caso de Joyce, Lacan dá um destino ao episódio da
surra que ele levou; o fato de Joyce não ter sido tão afetado por este
atentado ao seu corpo é interpretado por Lacan como uma fragili­
dade do narcisismo. E quando tenta dar conta dessa fragilidade do
narcisismo em Joyce, ele a articula a partir de uma clínica borromea­
na: considera que há um enlaçamento direto do simbólico e do real
e que, então, a imagem do corpo se destaca de Joyce.
O que ele, então, ressalta em Joyce - esse enlaçamento
direto do simbólico e do real, que leva a interpretar um certo núme­
ro de fenômenos linguageiros em Joyce, tal como as epifanias -, me
leva a outra observação a respeito do lugar dos fenômenos lingua­
geiros nesses fenômenos de corpo dos quais tratamos, na histeria e
na psicose. É preciso, antes de qualquer coisa, observar que, quan­
do Freud examina esse problema no artigo "O inconsciente", em
sua Metapsicologia, ele fala de fenômenos clínicos no corpo, tenta
ordená-los e chega a examinar o estatuto do recalque e a considerar
que o recalque não é, na esquizofrenia, igual ao recalque na neuro­
se. E, pouco a pouco, ele é finalmente levado a levantar uma hipó­
tese sobre a linguagem e a distinguir a representação de coisa da
representação de palavra. No fim das contas, ele acaba examinando
o estatuto da linguagem no esquizofrênico e, correlativamente, na
histeria, para tentar explicar os fenômenos corporais observados.
Podemos notar, em certo número de casos que tratamos,
a particularidade do significante nos fenômenos de corpo. Por
exemplo, no caso "O homem dos cem mil cabelos", temos expres­
sões como "sefaire des cheveux [arrancar os cabelos], sefaire des cheveux
blancs [ficar de cabelos brancos], um homme à tout crins'' [um homem

334
a todo vapor� , etc., que são locuções da lingua francesa que mobi­
lizam uma referência ao cabelo, ao fânero, ao pelo, etc. Para ele,
essas expressões e locuções francesas não se inscrevem em um dis­
curso e o fenômeno corporal não aparece, tal como na histeria,
como um pedaço de discurso o qual se trataria de fazer emergir, de
situar, como uma metonímia ou como uma metáfora; pelo contrá­
rio, a expressão, o pedaço de lingua, é completamente isolado e liga­
do diretamente à anatomia. Ele vai procurar a anatomia para expli­
car exatamente a significação dessas expressões francesas.

Carole Dewambrechies·La Sagna Françoise Labridy nos pro­


-

pôs reformular a pergunta escrita que nos havia endereçado.

Françoise Labridy Esta pergunta se refere ao trabalho de


-

Bordeaux, que começa com uma referência a Freud no que concer­


ne à diferença entre sintomas típicos e sintomas pessoais.
Perguntava-me se o questionamento de Lacan a respeito do real per­
mitiria abordar, na clínica, a dificuldade de deciframento - em ter­
mos metafóricos e em termos de conversão - do que ele chama de
acontecimentos comuns aos homens. Perguntava-me se alguma
coisa não deveria ser inventada do lado do corpo, tal como a letra do
lado do inconsciente; isto é, algo que escapa à leitura significante,
mas que permanece na mostração, a mostração da castração. Parece­
me que isso vai no sentido do que tenta dizer Bernard Lecoeur.
Somos levados a renovar o conceito de identificação e isso permite
colocar em série a anorexia, as passagens ao ato violentas, tudo que
é marcação sobre o corpo e que ainda há pouco foi chamado de cas­
tração real. Teríamos que distinguir um corpo-metáfora de um
corpo-memorial, um corpo que diria respeito aos acontecimentos
que seriam comuns aos homens. É o que parece dizer Freud.

Franz Kaltenbeck Gostaria de dizer algo sobre Joyce quan­


-

to à questão do corpo como lugar do Outro, pois há, de fato, uma

335
vertente deficitária do corpo: é quando, por exemplo, o narrador
repete várias vezes que Stephen Dedalus, "o jovem herói", não tem
corpo; que, por exemplo, o nascimento não tem nada de simples, o
que Beckett vai explicar a respeito de Joyce; e há um capítulo que
trata especialmente do parto e do desenvolvimento do embrião e da
língua inglesa. Há essa vertente, mas, por outro lado, o próprio
Joyce compara seu livro a um corpo: ele diz que os capítulos são
órgãos e, quando ele fornece esquemas aos comentadores, há, em
todo esquema, um órgão coordenado a um capítulo. Vemos, então,
perfeitamente bem, que o corpo tem, aí, uma função como lugar do
Outro.

Carole Dewambrechies-la Sagna Retomo as observações de


-

Françoise Labridy a respeito dos diferentes modos do corpo signi­


ficar: há uma mostração no corpo que está no limite do simbólico;
os fenômenos psicossomáticos não procedem do sintoma como
tendo a estrutura de uma metáfora. Lacan diz que essa mostração é
uma pura linguagem binária: zero-um, presença-ausência, isso mos­
tra-isso não mostra mais. Tudo isso acontece fora da estrutura do
inconsciente, mas quando o sujeito é convidado a falar disso, ele
pode precisar os momentos de sua história onde isso aparece, etc.
Ao ouvir essas duas últimas perguntas com a tônica colo­
cada sobre o aspecto mortífero do estádio do espelho, pensei no
caso "Sylvie", que faz dois usos do estádio do espelho. No primei­
ro tempo, pré-analítico ou psiquiátrico, ela inventa uma máscara
para si mesma e se machuca em frente ao espelho. Pode-se dizer
que se abre um abismo justamente porque ela está diante do espe­
lho; naquele momento, o corte na pele tenta restituir algo do Um,
mesmo que seja múltiplo nos traços. Mas, em um segundo tempo,
quando ela está sob transferência, encontrará um artifício que con­
siste em desdobrar o estádio do espelho: por um lado, é preciso que
ela tenha, concretamente, espelhos em sua vida, nos quais possa se
refletir; por outro lado, precisa de uma folha de papel sobre a qual

336
escreverá suas ideias de morte. Ou seja, a folha vai recolher o mor­
tífero que antes se marcava na pele. Ela tem sempre um pequeno
espelho em sua bolsa, sabe quais são as cafeterias em que as pare­
des são cobertas de espelhos, para instalar-se diante deles, com uma
função que é mais de apaziguamento e de unificação que qualquer
outra coisa.

Jacques-Aiain Miller Ela conseguiu destacar a significação


-

mortal da imagem, lhe conferir uma função pacificadora e unifican­


te. É preciso supor que, ao escrever, ela deposita, no papel, essa sig­
nificação mortal. Seria preciso enquadrar esse conceito de corpo,
pois ele está ligeiramente frouxo. Há, primeiro, a imagem do corpo,
abordada pelo estádio do espelho: logo, o corpo imaginário. Lacan
chegará a dizer: o corpo é imaginário. Reservemos, então, o nome
"corpo" à imagem do corpo. Em segundo lugar, há o corpo de
gozo e nós o chamamos de "carne". Ele não é necessariamente
dotado de uma forma; é a substância gozante do corpo. E, em ter­
ceiro lugar, chamaremos de cadáver o corpo simbolizado, o corpse,
como diz Lacan. É preciso, sem dúvida, jogar com os três registros:
o corpo como imaginário; a carne como real; e o cadáver como sim­
bólico.

Philippe De Georges Convém distribuir os fenômenos de


-

corpo entre esses três registros?

Jacques-Aiain Miller O que evocamos como fenômeno de


-

corpo não se apresenta da mesma maneira conforme isso afete a


imagem do corpo ou a substância gozante do corpo ou o simbóli­
co do corpo. Em todo caso, não podemos ficar apenas com um
conceito de corpo; isso não casa com a experiência da qual tenta­
mos dar conta. Temos, aí, casos probatórios, bem descritos e esta­
mos penando para organizá-los. Eles merecem uma linguagem
melhor. Devemos, sem dúvida, enriquecer nosso vocabulário.

337
Vejamos se conseguiremos, amanhã, ser um pouco mais convencio­
nais e extrair, de nossas falações, algumas teses.

338
D O PSI C ÓT I C O A O ANALISTA
Jacques-Aiain Miller Abordaremos nesta manhã a terceira
-

parte e, ao mesmo tempo, procederemos a uma discussão geral


sobre o que representa a experiência desse volume de textos. Essa
terceira parte é, talvez, mais heterogênea que as outras duas.
Para as necessidades da causa, para estabelecermos um
contraste, como qualificar o primeiro texto, que versa sobre
"Lalíngua da transferência nas psicoses"? Trata-se de teoria harrl, se
assim posso dizê-lo. Traz referências clinicas, mas se reporta a tex­
tos já publicados; mesmo em suas referências clinicas, é um texto
essencialmente teórico, com muitas citações, que propõe uma hipó­
tese claramente formulada, única, nova, prestando-se, portanto, a
um questionamento: isso vale para todos os casos? Como vocês o
articulam? Etc.
O texto de Bruxelas traz um contraste. Ele me pareceu
light do ponto de vista teórico; não foi aí que o esforço incidiu, mas
sim sobre os casos. O título "Transferência e psicose nos limites"
indica que não há uma tese propriamente dita - pelo menos, a meu
ver, ela não apareceu. Trata-se, portanto, do agrupamento de três
relatos de casos que podem certamente ser cotejados uns com os
outros. O contraste é muito acentuado em relação ao texto anterior.
Quanto ao texto de Toulouse, ele é mais equilibrado em sua
composição, comportando uma reflexão teórica simultânea ao relato
de dois casos. Teremos dificuldades em discutir esses casos: o reda­
tor do relatório está ausente e um dos dois casos é de sua prática; o
outro caso é da prática de um colega que tampouco está presente.
A questão trazida pela expressão neotransferência é a
seguinte: como qualificar, teorizar, conceitualizar o par psicótico­
terapeuta quando este terapeuta é um analista? O que é esse par?
Quais são os termos a serem usados para pensar o estatuto desses
dois elementos, um em relação ao outro?

341
Para responder a isso, Toulouse se refere à conceitualiza­
ção que Lacan nos legou em um pequeno texto, sobrepondo ao
par analista-analisando o par verdade-saber. O analista comple­
mentaria o analisando de modo análogo ao modo pelo qual o
saber complementa a verdade, na medida em que um saber res­
ponde a uma verdade, desenvolve, desdobra, explica o que nela
está implicado. O relatório de Toulouse considera que essa concei­
tualização não convém ao par que se forma quando o analisando
é um sujeito psicótico. Ele indica que é preciso levar em conta o
gozo, pois se trata mais de gozo do que de verdade, mais do sint­
homa do que do sintoma, e que o analista é, antes, o parceiro-sin­
toma do que o parceiro-saber - eu estou resumindo. Será que os
dois casos vêm verdadeiramente apoiar essa tese? Isso não me
pareceu totalmente evidente. Mesmo porque o caso da Senhora A,
o primeiro do relatório, é o único caso da compilação sobre o qual
gostaríamos de ter mais detalhes para estarmos convencidos de
que se trata de um caso de psicose.
A tentativa de Angers - audaciosa, precisa - é de pensar a
relação psicótico-terapeuta a partir da lalíngua. Há um problema:
lalíngua não é um instrumento de comunicação. Portanto, como um
diálogo pode ser estabelecido, ainda assim, a partir de lalíngua? É a
aposta da demonstração. O primeiro caso para apoiá-la é aquele que
Daniele Rouillon já havia apresentado no Conciliábulo de Angers, no
qual o paciente pratica uma língua especial que a terapeuta repro­
duz. O caso de Lombardi, apresentado na mesma ocasião, é utiliza­
do no mesmo sentido. O par analista-analisando é, então, apresen­
tado nos seguintes termos: o analista se coloca na posição de apren­
der a lalíngua do paciente. Essa língua, quando ela se apresenta
fechada sobre si mesma, implica que o analista pague com sua pes­
soa para demonstrar que um outro pode aí se insinuar, ceder a ela e
esboçar, senão um diálogo, pelo menos uma forma de resposta. O
analista se coloca na posição de aluno daquele que elaborou essa lín­
gua especial.

342
Talvez nossos colegas de Bruxelas queiram ordenar seus
casos a partir dessa questão. Ao menos o primeiro caso se prestaria
bem a isso. É o caso de Eva, que se mostra afetuosa, gentil com seus
coleguinhas, até que um obstáculo se apresente no eixo imaginário;
segue-se então, forte agitação, golpes, raiva, etc. A questão que se
coloca, portanto, é: como pode o analista se inserir nesse eixo sem
ser rejeitado como um objeto intruso? Há dois tempos: no primei­
ro tempo, a analista se insere como um bom objeto, ela se faz de
boa mãe, oferta muitos carinhos à sua paciente e, então, tampona
essa hostilidade agressiva imaginária, simplesmente acentuando sua
benevoientia. Isso é se inscrever no eixo imaginário, mas tomando
todo o cuidado para ser um bom objeto. No segundo tempo da
operação, a paciente qualifica sua terapeuta de "fiadora" [garante], o
que tenderia a mostrar que, pouco a pouco, a analista consegue se
inscrever em outro lugar que não o de bom objeto, que ela se ins­
creveu como Outro em relação ao eixo imaginário.

343
1 6. DO SABER SUPOSTO À LALÍNGUA EXPOSTA

Fabienne Henry Se meus colegas de Angers estiverem de


-

acordo, diria que nosso trabalho teve como eixo principal as pertur­
bações do laço social que um sujeito psicótico pode apresentar e os
meios que são colocados à disposição do analista para ajudar esse
sujeito a se inserir em um discurso. Esse eixo de trabalho se encon­
tra delimitado por um duplo vetor.
Temos um primeiro movimento proveniente do próprio
sujeito psicótico, seu extremo esforço de invenção de uma la!íngua
própria. É uma lalíngua íntima, mas é, sobretudo, um achado, uma
bricolagem que permitiria ao sujeito psicótico localizar o gozo, não no
nível do polegar ou do cabelo, como nos relatórios de Nantes e
Rennes, não no nível de uma palavra como "tumor", como no rela­
tório de Bruxelas, mas na criação de uma língua particular: a língua
Donald de Ophélie; a língua dos números, no caso de Daniele
Rouillon. Também acrescentaria, com prazer, a língua San Antonio,
que passou para o discurso comum: é o que testemunham as
expressões "ter um pé sobre uma casca de banana e o outro na
cova" e todos os tipos de aforismos que passaram para o discurso
corrente. Frédéric Dard faz esse esforço de invenção de forma
muito repetitiva, já que chegou ao seu 201 o livro.
Temos, portanto, esse primeiro vetor, proveniente do psi­
cótico. Em seguida, temos outro vetor que, por sua vez, provém do
psicanalista. Ele provém não de um esforço de invenção, mas,
sobretudo, de um esforço de aprendizagem; ou, ainda, da sua extre­
ma docilidade em aprender a lalíngua particular do sujeito. Retomo
aqui um termo de Lacan que Pierre-Gilles Guéguen utilizou em

345
Angers durante uma apresentação de pacientes: "Fui dócil o bastan­
te?", dizia ele no fim de uma entrevista que havia conduzido com
uma histérica. Tratar-se-ia então de ser dócil, não em relação à his­
térica, mas em relação à invenção do sujeito psicótico. É o que tam­
bém retomou Alexandre Stevens em seu relatório, por meio de dife­
rentes fórmulas que ressaltei e que achei notáveis. Ele diz que se
trata, para o analista, de "intervir do lugar onde isso não se sabe",
ou de "sustentar o sujeito nas invenções que ele estabelece para se
defender do Outro gozador", e até mesmo, dizia ele ainda, de "tra­
zer o Outro para o terreno das brincadeiras infantis". Considero
essa expressão muito útil para nós, já que, de fato, me parece que é
o que Jean Lelievre tentou fazer no caso de Ophélie, quando tenta­
va brincar com ela de massa de modelar ou quando se deixou cap­
turar pela língua Donald. Seu "quacktro e dez" seria, com efeito, a
prova de sua docilidade, e a menininha ri do fato de que ele inter­
venha justamente desde esse lugar onde não se sabe.
Temos, então, nesse relatório, dois vetores para um único
eixo de trabalho, o que é ambicioso, pois tal trabalho deveria resul­
tar na restauração de um laço social, seja ele um laço social ainda
não existente, seja um laço que estivesse perturbado.
Para entrar um pouco mais nos casos clínicos propriamen­
te ditos, parece-me que temos, em relação à neotransferência, dois
casos que poderíamos aproximar: o caso Eva, da Sessão Clínica de
Bruxelas, e o caso de Ophélie, de Angers. De fato, trata-se de duas
meninas da mesma idade - se bem entendi, ambas têm onze anos,
ambas são tratadas em uma instituição, ambas estão às voltas com
um gozo flutuante, invasivo e não localizável. Esse gozo se traduz,
aliás, por fenômenos do mesmo tipo, com fases de agitação mistu­
radas com agressividade: Eva se debate, grita, chora, dá pontapés, e
Ophélie cospe pedaços de massa de modelar, lança injúrias e bate.
As duas também ocupam, na família, o lugar de dejeto. Ambas
fazem apelo à nomeação, por intermédio da "fiadora" [garante], no
caso de Eva, e o nome próprio de "Lelievre", para Ophélie. Não sei

346
se poderíamos aprofundar as comparações, mas, enfim, eis alguns
elementos que me pareceram possíveis de serem aproximados.
Para terminar e relançar a questão do sentido gozado, que
foi abordada ontem, retomaria com prazer uma expressão usada
por Jacques-Alain Miller. Ele disse que o investimento libidinal de
Ophélie sobre a língua Donald permite a ela, em determinado
momento, apagar todos os outros objetos do mundo, já que essa
língua Donald chega até a invadir a própria instituição, a família e
tudo ao seu redor. Seria uma tentativa da menina de fazer a língua
Donald passar para o discurso comum.

Pierre Stréliski Posso explicar qual foi o nosso ponto de


-

partida: partimos do algoritmo da transferência, mas retomando-o


a partir de uma leitura de Mais, ainda.

s (S1 , S2, . . . , Sn )

Eis o algoritmo da transferência tal como aparece na


"Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola". Mas, no
seminário Mais, ainda, Lacan assinala: "Se enunciei que a transferên­
cia é o sujeito suposto saber que a motiva, isso não é senão a aplica­
ção particular, especificada, do que é aí a experiência". Partimos disso
para tentar generalizar essa escrita do algoritmo da transferência a um
mundo que não seja simplesmente o mundo do significante, mas
aquele de la/íngua. E Fabienne Henry teve a boa ideia de substituir o
sujeito suposto saber, das considerações de Lacan sobre a transferên­
cia com os neuróticos, por "fafíngua da transferência".

Jacques-Aiain Miller Lacan tentou escrever, com esse algo­


-

ritmo, o par analista-analisando a partir do par significante. A arti­


culação do significante da transferência com o significante qualquer

347
(Sq) anuncia a escrita S1-S2. O par é localizado na célula mínima da
cadeia significante e a transferência é concebida como o efeito de
significação dessa articulação significante mínima. O que se coloca
sob a linha inferior, a saber, o s minúsculo que antecede o parênte­
sis, designa uma significação de saber. Foi o que deu origem à ideia
do saber suposto. O suposto saber não é um saber exposto, não é
nem mesmo um saber posto, não é um saber desenvolvido, não é
um saber explícito; é uma simples significação de saber. O Outro
sabe, o saber é seu atributo sem que disso ele tenha que dar provas;
é sem demonstração, sem mostração. O ponto de partida é, portan­
to, muito simples. Temos aqui um esboço da construção dos quatro
discursos. Há o S1, Sz, o s minúsculo, bastaria acrescentar embaixo,
à direita, o pequeno a e teríamos o discurso do inconsciente. O
objeto já está presente no texto da "Proposição", uma vez que é
dito que, durante o tratamento, o objeto ainda latente virá no lugar
que, de início, é aquele do saber suposto.
Vocês também tiveram uma ideia simples: já que se trata de
definir um tipo especial de transferência, que modifica a transferên­
cia normal, tomemos o algoritmo de Lacan e o modifiquemos. Com
isso, vocês pensaram em inscrever lalíngua no lugar em que estão S1,
Sz, S3 do saber suposto. Há uma dificuldade: a transferência é abor­
dada nesse algoritmo como uma espécie de artefato, um efeito da
relação S1--S2, enquanto que lalíngua antecede o estabelecimento da
relação - não é lalíngua da transferência, é a língua do sujeito. Se ela
funciona como um saber suposto é muito mais para o terapeuta que
para o paciente, visto que é o terapeuta que deve aprendê-la.
Podemos até mesmo nos perguntar: em relação a quê ela
é suposta - quando é justamente a sua manifestação primordial que
temos à nossa disposição? Poderíamos também dizer que não é
uma língua suposta, mas uma língua exposta, e que o sujeito se
sente, nessa ocasião, exposto com ela, exposto especialmente à
intrusão do outro. Suposição na neurose, exposição na psicose. Vai­
se do suposto saber à lalíngua exposta.

348
1 7. A L ÍNGUA E O LAÇO SOCIAL

Helga Rosenkranz A partir do caso de Lombardi, tocamos


-

em um outro ponto de partida, mais próximo do gozo. Esse pacien­


te, absolutamente só em sua instituição, que não se dirigia a pratica­
mente ninguém, foi visitado por Lombardi, que conseguiu final­
mente que ele o olhasse e lhe falasse minimamente de pequenos
pontos alucinatórios. De uma espécie de gozo autístico, solitário,
podemos seguir seu trajeto até o Witz, pela entrada em lalíngua. O
que se poderia qualificar inicialmente de cessação de gozo vai cul­
minar na entrada, se não no discurso, ao menos em um laço social
mínimo.

Alexandre Stevens O relatório de Angers, efetivamente de


-

leitura hard, é, ao mesmo tempo, extremamente precioso. É uma


novidade em relação ao que estamos acostumados a ler, em nosso
campo, a respeito da transferência nas psicoses, em que tudo está
ordinariamente conceitualizado em torno da ideia de limitação do
gozo, seja do ponto de vista de sua cessação ou de sua localização.
Costumamos considerar que o analista vai limitar o gozo ou estabe­
lecer um ponto de localização possível para o gozo.
Tomemos, por exemplo, o segundo e o terceiro caso do
relatório de Bruxelas. Vemos a palavra "tumor" no segundo caso,
que é um caso de Pierre Malengreau: a palavra "tumor" é um termo
que, para a paciente, localiza o seu gozo. No momento em que esse
termo perde seu valor para ela, o analista deve mudar de lugar.
Antes, ele simplesmente o aceitava, era um apoio passivo para o
saber suposto que ela encontra nessa palavra.

349
No terceiro caso, que é um caso de Léonce Boigelot,
vemos o analista trabalhar no sentido de limitar o gozo. Há uma
dupla posição do analista. O paciente é tratado com medicamentos
por um psiquiatra, que considera tratar-se de uma doença tal como
a diabetes, por exemplo. O que ele vem procurar no analista é outra
coisa: trata-se, por um lado, de encontrar quem ele é; por outro, de
como lidar com suas tensões. Quanto ao "quem ele é", eu diria o
seguinte: ele é um trabalhador para a psicanálise, para a sua própria
psicanálise. É o paciente que pode dizer, quando chega às sessões:
"hoje vai ser uma análise freudiana", "hoje vai ser uma análise psi­
cometafísica", etc. É o plano do "quem ele é". No plano de "como
lidar com suas tensões", vemos o analista, na transferência, no lugar
daquele que permite limitar o gozo: calmamente, vejamos como
você vai se arranjar com todas essas despesas financeiras lá fora e
pagar aqui a sua sessão. É a teoria clássica da posição do analista em
relação à psicose.
A definição do analista como descompletando o Outro é
também retomada no relatório de Toulouse: "Dessa forma, portan­
to, chegamos à conclusão de que o analista-sintoma preenche sua
função abrigando o gozo à deriva e nisso ele garante a função não­
todo (pas tout)".
Ora, em relação ao que habitualmente dizíamos, o relató­
rio de Angers nos propõe um novo modo de conceitualização da
transferência na psicose, que é a relação com lalíngua.
Vocês queriam aproximar o primeiro caso de Bruxelas, o
caso Eva, do caso Ophélie, de Angers, no qual se trata da língua
Donald: parece-me, de fato, que isso é precioso, mas, ao mesmo
tempo, eles vão em direções contrárias. No caso Donald, vemos o
analista imiscuir-se na lafíngua da criança, enquanto que, no caso
Eva, é o inverso: a menina Eva se imiscui no que poderíamos cha­
mar a lalíngua da instituição, recolhe uma palavra que faz parte da
língua da instituição, a "fiadora" [la garante] . É uma função, aliás,
mínima na instituição, mas cada criança tem alguém que é assim

350
designado. Ela recolhe, portanto, esse termo e começa a se servir
dele para falar; em seguida, ela tenta encontrar com esse termo um
modo de identidade, aliás, complexo.

É lisabeth Geblesco - Gostaria de citar uma nota do


Seminário que não foi explicitamente utilizada. Lacan diz: "Com
frequência, fui mal compreendido, o sujeito suposto saber não é o
analista, mas sim o analisando". É disso que se trata na tentativa de
aceder ao saber - com dificuldade, pois é verdadeiramente difícil
com os psicóticos -, no caso da menina que forjou a língua Donald.

Christiane Terrisse - Parece-me que encontramos nesses três


relatórios, seja explicitamente ou em filigrana, uma ponte entre as
fórmulas da sexuação e a escrita dos discursos. Quando se diz que
o analista deveria estar em uma posição feminina, do lado do não­
todo, é uma referência à escrita das fórmulas da sexuação. No rela­
tório de Angers, assim como no relatório de Toulouse, encontra­
mos a escrita do discurso do analista e a escrita do discurso do mes­
tre, do discurso do inconsciente. Talvez estejamos tropeçando nas
dificuldades trazidas por essa ponte, essa aproximação que o pró­
prio Lacan fez em RSI. A questão da linguagem ou da relação com
la/íngua pode também ser tratada a partir das fórmulas da sexuação.
Com o "para todo x, phi de x", entramos na linguagem; quando não
há esse universal, há uma relação com lalíngua que é diferente e nos
encontramos do lado dito feminino, ou seja, não do lado das mulhe­
res, mas do lado não-todo das fórmulas da sexuação. Poderíamos ten­
tar trabalhar em torno disso para compreender alguma coisa sobre
o modo como os discursos e as fórmulas da sexuação estão ligados.

Helga Rosenkranz Eu responderia a Alexandre Stevens que


-

não tenho certeza de que os dois casos se opõem; ou então seria


preciso deixar claro em que ponto eles se opõem. Ophélie também
recolhe um termo, "Lelievre" - de fato, ele se chama Lelievre. Isso

351
nos levaria de volta à questão das perturbações da linguagem que
evocamos ontem, nas quais o sujeito toma um enunciado ao pé da
letra. Para mim, a questão é: o que de fato o sujeito recolhe com
esses termos?

André Soueix Voltemos à questão do discurso. Ontem,


-

Jacques-Alain Miller acentuou a homogeneidade do pai e do discur­


so. Creio que a "Questão preliminar..." vale até o momento da teo­
ria dos discursos. Vemos bem nesse caso que, com lalíngua, não seria
preciso sair dessa noção rígida que é o laço social, não confundir
socialização e entrada no laço social. O laço social é uma relação
precisa com o significante: S1, S2, que produz a e que tem como res­
posta o $. Isso traz, de início, uma dificuldade para o psicótico, a
mesma que se encontra na "Questão preliminar...", ou seja, o psicó­
tico não pode, não poderia se situar nesse discurso. A ideia que
quero enfatizar é a de que é preciso tomar cuidado para não con­
fundir atos de socialização do sujeito com a entrada no discurso. Ser
socializado ou ter uma vida social e entrar no laço social, tal como
Lacan o define, não é a mesma coisa.

Genevieve Morei Gostaria de propor três pontos à discussão.


-

Primeiro, a definição de lalíngua. Lembro-me da definição de "O


aturdito", de lalíngua como a "integral dos equivocas". É uma definição
que se refere ao sentido, na medida em que ela implica o equivoco. Isso
me leva ao relatório de Angers, a respeito da frase: "Mas deixemos
essa questão e lembremos somente que é porque o psicanalista
insiste em se fazer o destinatário dos signos ínfimos do real de lalín­
gua, sem se preocupar com o sentido, que ele pode ter uma chance
de se tornar o parceiro do psicótico na lalíngua da transferência.
Assim, ele pode permitir que o sujeito psicótico se engaje em um
laço social na direção de uma elaboração de saber". Temos aí essa
oposição do signo e do sentido, à qual gostaria que voltássemos:
não estou certa de que não deveríamos nos ocupar do sentido.

352
Gostaria que discutíssemos a direção da cura com os psi­
cóticos. Imaginemos que tivéssemos Schreber em análise. Será que
a tese que o relatório de Angers sustenta implica que deveríamos ter
aprendido a falar com ele a língua fundamental, ou seja, esse vigo­
roso e rebuscado alemão um pouco arcaico, ou teria o analista
tomado a posição de falar com ele a respeito dessa língua e com ele
comentá-la em alemão normal?
Que diferença há entre essa concepção de se pôr a falar a
lalíngua do paciente e o que Lacan chamou delirar com o paciente?
Minha tendência até hoje, no tratamento com psicóticos, foi mais
de induzir no sujeito um esforço de tradução; fazer com que o sujei­
to se canse de ter que traduzir para mim essa língua - enfim, não sei
como chamar essa língua fundamental, essa lalíngua -, para efetiva­
mente fazer com que eu a aprenda, mas que eu a aprenda em fran­
cês, na língua que considero comum. Isso me leva a uma pergunta:
realmente temos, cada um, uma língua? Essa concepção teórica é
sustentável? E de que maneira?
Apresentarei rapidamente uma vinheta. Tenho em análise
um inspetor de impostos paranoico que desencadeou sua psicose
no dia em que se instalou no apartamento de seu sogro. Neste dia,
ouviu vozes que lhe diziam que todos os seus dossiês secretos - os
dossiês secretos dos impostos - dos quais cuidava, tinham caído nas
mãos dos inimigos do Estado. Na manhã do dia seguinte, ele foi ver
seu chefe e lhe disse: "Escute, é uma catástrofe, eu traí o senhor,
todos os dossiês estão com os inimigos". Ele desencadeou, portan­
to, uma paranoia sob essa modalidade e com isso começou seu tra­
tamento. Tinha diálogos de vozes que se falavam e para mim era
muito difícil entender do que essas vozes tratavam: era incompreen­
sível, uma verdadeira cacofonia. Tentei durante um tempo pegar a
coisa por aí, mas não consegui; deixei de lado o diálogo das vozes e
passamos para outra coisa. Finalmente, depois de muitas peripécias,
o sujeito se identificou com o escritor americano James Ellroy, que
considerava ter tido a mesma experiência de loucura que ele. A par-

353
tir desse ponto, começamos um diálogo - me parece que pela pri­
meira vez - nesse tratamento: tínhamos uma conversa corriqueira
sobre a literatura americana. No fundo, poderíamos dizer que sua
língua era a literatura americana. Conversamos e o tratamento
seguiu assim. Eu me dizia que poderíamos opor seu gosto pela lite­
ratura americana à língua das vozes, na qual não consegui entrar.
Será que eu deveria ter insistido nessa via? É esta a tese que vocês
sustentam?

Pierre Stréliski Temos, portanto, duas teses que se opo­


-

riam: pedir ao sujeito um esforço de tradução ou tentar aprender


sua língua, correndo o risco de delirar com ele.

Geneviêve Morei Isso não foi uma crítica. Lacan diz que
-

não é preciso ter medo de delirar com o paciente.

Pierre Stréliski - Não sei se essas duas teses são tão contra­
ditórias assim, já que tanto em um caso como em outro o terapeu­
ta faz um esforço para encontrar um laço de conversação com o
sujeito psicótico.

É lisabeth Geblesco Isso não teria relação com a nota evo­


-

cada ainda há pouco e com a escolha misteriosa do ser? Não pode­


mos comparar um sujeito criança, como a pequena Ophélie, ao ins­
petor de impostos ou a Schreber. Se tivéssemos Schreber em análi­
se, caberia a ele - sujeito suposto saber - nos mostrar como proce­
der, e nós teríamos que fazer um esforço imenso para tentar com­
preender o que ele quer. Talvez ele não fizesse, de forma alguma,
questão de se ater ao seu alemão rebuscado e ficasse muito feliz em
abandoná-lo.

Jean-Robert Rabanel O que entendemos por lalíngua? Em


-

Clermont Ferrand e em Lyon partimos da leitura do 5eminário 20

354
apoiando-nos sobre uma distinção introduzida por Jacques-Alain
Miller, em 1 987, entre o significante articulado e o significante sozi­
nho. Pensamos então em encontrar, nesse Seminário, os alicerces da
teoria de lalíngua articulada sobre a base do significante sozinho.
Isso nos levou a colocar em série - trabalho que expus durante uma
jornada do CIEN - certo número de tentativas de Lacan para defi­
nir o estatuto do significante sozinho. Antes de tudo, ele é o signi­
ficante St como produto do discurso analítico, disjunto de S2. Em
seguida, ele é a substância gozante como significante St, ou seja,
como real, enfim, a letra. A função proposicional de Frege servirá,
mais tarde, para indicar a relação do simbólico com o real. Ela está
desenvolvida de modo eminente nas fórmulas da sexuação e,
depois, na função I: (x), a função do sintoma. Por fim, St será apre­
sentado como nó borromeano, como a origem do nó borromeano.
Pareceu-nos mais simples partir do significante sozinho
que do nó borromeano. De um modo geral, constatamos que os
trabalhos apresentados nessa Convenção estavam aquém na
Conversação de Arcachon, na qual houve uma abertura maior para
a clínica borromeana.

355
1 8. DECOMPOSIÇ Ã O ESPECTRAL DA LINGUAGEM

Jacques·Aiain Miller Uma palavra sobre lalíngua em sua


-

relação com o laço social, tal como evocou André Soueix. Partamos
do conceito de linguagem. A partir do Seminário 20, o conceito de
linguagem em Lacan se decompõe, assiste-se à sua decomposição
espectral. Ele se decompõe em duas partes, lalíngua e o laço social,
que são correlativas. Quando refletimos sobre esse Seminário, nos
damos conta de que o conceito estruturalista da linguagem unifica­
va, condensava lalíngua e laço social.

Linguagem

/�
Lalíngua O Laço social

A linguagem é uma estrutura cujas leis de compos1çao


podemos estudar. Chegou-se a logificá-la no nível fonemático, nos
anos 1 950, com o Fundamentais of Language, de Hall e Jakobson.
Tínhamos para cada língua uma matriz fonemática - alegria, choros
de alegria - onde havia real, posto que havia impossível. Contudo,
a estrutura veiculava de forma invisível a norma social. Por exem­
plo, a referência ao dicionário, ao Littré, aos grandes autores mestres
da língua, é onipresente nesse período, especialmente em Lacan.
Com lalíngua, passamos por debaixo da norma social. Lacan intro­
duziu a palavra após maio de 1 968, uma vez que o movimento
social havia enfatizado o caráter de semblante das normas sociais. É
o momento em que se percebe que o dicionário é uma superestru-

357
tura que submete o uso de lalíngua, que a linguagem é o produto de
uma operação de domínio que vai desde a nota baixa dada ao aluno
até o lansquenê de Luís XIV e a cruzada dos Albigenses. O mestre
força as populações oprimidas a falar outra língua, diferente da que
eles falam - temos aqui nossos colegas de Barcelona, para quem
isso é uma referência bastante presente, pois não faz muito tempo
que efetivamente o modo espontâneo com o qual costumavam se
endereçar uns aos outros, baseado no catalão, foi reprimido, pros­
crito, considerado um crime. Barthes exagerou ao dizer que a lin­
guagem era fascista, e foi tomado ao pé da letra nos Estados
Unidos, onde nasceu, nas universidades, essa tentativa ubuesca9 de
reforma autoritária da linguagem chamada PC,political!J correct [poli­
ticamente correto] .
Desde então, começamos a estudar melhor a história da
gramática: como nasceu a ideia da gramática, como nos debatemos
em torno das gramáticas - nas últimas férias, li um belíssimo livro
a respeito dos gramáticos romanos, do qual gostaria de falar. Os
estudos históricos sobre os aparelhos de normatização da língua se
multiplicaram.
Sob a linguagem normatizada, que passa essencialmente
pela escrita, há o que é ouvido, lalíngua à deriva, como diz o relató­
rio de Toulouse, lalíngua "em liberdade", os mal-entendidos infantis
sobre lalíngua, as homofonias, as significações investidas, os sentidos
gozados, que imantam lalíngua. O mestre se empenha em normati­
zar lalíngua. Nessa última volta às aulas, ouvi minha neta, muito
orgulhosa de passar da creche ao maternal, dizendo: '']'ai allé à l'éco­
le". Entende-se bem por que ela vai à escola: ela vai à escola justa­
mente porque diz: '']'ai allé a l'école"10• Aparentemente, lalíngua, tal
como é falada à sua volta, não lhe ensinou que "avoir allé'' não é uma
forma aceita. Por que não diríamos '']'ai allé à l'école'? Não é nada
mal - simplesmente, isso não se diz. Por isso lalíngua se distingue da
linguagem. O que chamamos de linguagem é feito de lalíngua mais
o elemento social que a normatiza. De onde surge o significante-

358
mestre? Da rotina própria à relação social? Da conversação? Do
laço social? Mas, e se não existir laço social sem o significante-mes­
tre? É um círculo.
Observemos que o psicótico, acometido no nível do laço
social, do Outro, do Nome-do-Pai, mais ou menos desligado, per­
manece correlativamente mais conectado à sua lalíngua. Laço social
e lalíngua são dois termos correlativos.

Geneviêve Morei - Gostaria de mais uma explicação.


Primeiramente, compreendemos perfeitamente a criança que diz
''j 'ai allé à l'école"; em segundo lugar, imagino que esse laço social ela
o tenha aprendido com sua mãe.

Jacques-Aiain Miller A mãe! Por que a mãe? Por que não o


-

avô?

Geneviêve Morei Em todo caso, ela o aprendeu em um


-

laço. Eu compreendo a oposição laço social/ lalíngua, mas me inco­


moda o fato de considerar os psicóticos e as crianças como se esti­
vessem em uma espécie de linguagem originária um pouco mágica.
Não há algo aí que nos leva ao que Lacan criticou quando dizia que
não se devia colocar em série a criança, o selvagem, o primitivo?
Com efeito, o professor vai dizer que ")'ai allé à !'eco/e" é um erro de
francês; ela fala francês, ela fala a mesma língua que a sua.

Jacques-Aiain Miller - Ah, mas é claro!

Geneviêve Morei Não entendo, portanto, porque teríamos


-

cada um de nós a própria língua.

É lisabeth Geblesco É preciso levar em conta que existem


-

estados de língua. Por que ela não poderia falar o francês rebusca­
do, romanesco? É preciso, apesar de tudo, que a pobre criança, um

359
dia, seJa compreendida, e que ela escreva a instância da letra no
inconsciente.

Jacques·Aiain Miller O conceito de lalíngua apreende o


-

fenômeno linguístico no nível em que ninguém compreende nin­


guém, ninguém dá a uma palavra o mesmo sentido que outro daria,
em que cada um tem sua língua, na medida em que o investimento
libidinal da língua é próprio a cada um, etc. Ao mesmo tempo, exis­
te, é claro, uma objetividade do significante; encontramos signifi­
cante no mundo, existe a linguagem, existe a gramática, o dicioná­
rio, as normas, nós nos entendemos - mal, mas nos entendemos.
Isso não é, de forma alguma, incompatível. É a partir da linguagem
que cada um faz sua lalíngua. É a partir do significante tal como ele
é, já aí, antes do aparecimento do sujeito, a partir do significante
falado pelos outros, normatizado pelo Outro, etc., que há investi­
mentos singulares, apreensões particulares, deslizes de pronúncia
também. O Bei-Gazou de Colette, o . flizmente (reusement) de Leiris1\
..

são forjados a partir do que é ouvido, a partir da linguagem conven­


cional. O aprendizado da escrita é feito para nos expulsar desse
verde paraíso das homofonias infantis. O alfabeto emburrece; con­
firam quanto a isso o posfácio do Seminário 1 1. Não emburrece
completamente - é uma esperança.

360
1 9. WORD ANO OBJECT

Alexandre Stevens Gostaria de retomar a questão de


-

Genevieve Morei a propósito de Schreber: deveria o analista ter


entrado na lalíngua?

Jacques-Aiain Miller Ora ... ! Teríamos um dia que fazer a


-

psicanálise-ficção de Schreber em análise, como os diálogos nos


infernos. Tudo dependeria, evidentemente, do momento em que o
tomássemos em análise!

Alexandre Stevens É preciso entrar na lalíngua ou traduzir


-

sua língua? Considero muito pertinente induzir no sujeito psicótico


a ideia de que ele precisa traduzir sua língua. Isto dito, não seria do
interesse dessa discussão separar de forma bem clara os casos de
psicose como não sendo todos iguais? A separação entre doença do
Outro e doença da mentalidade me parece muito pertinente, sob
esse ponto de vista. Ela é, aliás, evocada no relatório de Angers.
Parece-me que o que é dito quanto à entrada na lalíngua só pode
dizer respeito às doenças da mentalidade. Em outros termos, não se
imagina de fato fazer isso com um paranoico. Eu queria fazer essa
retificação, pois me parece que, se respondermos ao relatório de
Angers com Schreber, desloca-se algo que imediatamente torna não
pertinente essa entrada na laiíngua. Vejo claramente como, com as
crianças desfavorecidas que podemos encontrar em uma instituição
para crianças psicóticas, por exemplo, esse jogo de entrar nos jogos
de significantes que esse relatório propõe é uma via espontânea pela
qual é possível enganchar algo que possa fazer com que uma posi-

361
ção se modifique. O que é precioso no relatório de Angers é que ele
procura formalizar isso.

É ric laurent - Parece-me que tocamos aí em um ponto cru­


cial nos desenvolvimentos de nossa reflexão sobre a articulação da
transferência, do que se transfere em torno dessa questão de lalín­
gua. Com relação ao funcionamento da lalíngua na psicose, pode-se
opor aprendizagem e tradução? Esta é wna questão muito geral
sobre a linguagem. Pode-se mesmo dizer que os psicolinguistas e
todos aqueles que tentam apreender como se aprende a língua estão
o tempo todo em torno desses fenômenos.
A aprendizagem de uma língua consiste em produzir ocor­
rências apoiando-se no sistema código-mensagem com as dimen­
sões do código e da mensagem separadas? Lacan, servindo-se de
Jakobson em "Questão preliminar... ", mostra que o sistema segun­
do o qual se aprenderia a língua pelo dicionário é absurdo, que há
códigos de mensagem na língua, mensagens de código, e que não
há língua sem esses fenômenos. Nas mensagens, decifra-se o códi­
go, verificam-se os elementos antigos, aprendem-se novos códigos,
enunciam-se então novas mensagens, etc. Não seria preciso supor,
de início, uma espécie de mecanismo de tradução permanente? No
fundo, não se aprende jamais a língua de outro modo senão por
uma tradução permanente e constante, ou seja, pelo uso, por usos
mais ou menos regrados, mais ou menos adequados.
Para a psicose, o estado de funcionamento de lalíngua é,
inicialmente, desconectado de todas as ilusões do funcionamento
normatizado, comum, padronizado. O laço social foi tocado e tem­
se sempre wna dimensão de língua privada. Tem-se uma língua que
tem ressonâncias particulares: vimos isso ontem, em nossas conver­
sações, até os níveis mais profundos, os mais insuspeitos, desde o
componente fonemático até a pragmática mais refinada, passando
pelo componente semântico, o componente sintático, etc. Tudo é
tocado, em níveis às vezes inimagináveis fora da própria experiên-

362
cia, em todo o lugar onde a particularidade incide. Informar-se
quanto a essa particularidade é, ao mesmo tempo, entregar-se à tra­
dução.
Em nossa abordagem geral de hoje, começamos a nos
habituar a ver lalíngua e todo o conjunto desses fenômenos a partir
da psicose, e não da neurose, onde tudo está mais normatizado.
Pode-se dizer que a relação normal com lafíngua é muito mais aque­
la do psicotizado, que uma língua está sempre infectada por mensa­
gens de código, por códigos de mensagem, de informações sobre o
uso de lalíngua, e que é impossível atingir o nível de uma separação
simples do tipo: qual o sentido dessa palavra?
Tomemos o exemplo da utopia Quine. Partamos de gava­
gai; o coelho, e estabeleçamos um sistema de tradução. Ele irá se
deparar sempre com o princípio de indeterminação. Sempre haverá
numerosos meios de dizer o que quer dizer gavagai" em seu contexto
de enunciação. Há hipóteses de traduções equivalentes e jamais
saberemos o que isso quer dizer de modo unívoco. Para além das
ciências duras, que isolarão a natureza do coelho, será necessária
uma prática social para colocar-se de acordo quanto a uma tradu­
ção. Somos então levados a uma prática generalizada da tradução. A
ideia quineana pode, sob certos aspectos, ser aproximada daquela de
Wittgenstein. Só se sabe o sentido de uma língua a partir de sua prá­
tica, pela determinação de certo número de coisas que suspendem
parcialmente as indeterminações de traduções equivalentes.
Estamos, portanto, às voltas com a questão de saber como
compreender o que nos é dito, como compreender a lalíngua do
outro, que é tocada por uma significação pessoal em níveis não ima­
gináveis. Metodicamente, tentamos compreender onde está essa
modificação, em que nível ela se produz, por meio de uma prática
de bricolagem generalizada. Nós nos viramos com um princípio de
tradução generalizada, na qual sulcamos nosso caminho.
Lacan, no momento em que refaz toda a sua teoria, obser­
va, sobrevoando a Sibéria, a sulcagem. Ele não observa o arbitrário

363
do signo e do mapa, os códigos, as mensagens. Ele observa mais as
[curvas] isóbaras12 e os sulcos do significante. Aliás, observei que
Jacques-Alain utilizava, há dois dias, a expressão la routine des prati­
ques (a rotina das práticas), que é uma expressão esclarecedora para
designar a sulcagem.

Jacques·Aiain Miller Éric Laurent mencionou o exemplo


-

de Quine. É um exemplo que este último deu em Word and Oiject,


em 1 960, e que se tornou tradicional na filosofia anglo-saxônica.
Trata-se de um explorador que não conhece a língua de uma tribo.
Na tribo se usa a palavra gavagai" e o explorador dá a entender que
ele não sabe o que isso quer dizer. Mostram-lhe o que aqui chama­
mos coelho. Mas como saber o que do coelho gavagai" designa?
Trata-se da cabeça do coelho, do gosto do coelho, de um pedaço de
coelho? Talvez quisessem lhe dizer que ele é bobo ou louco feito
um coelho. O que é coelho para eles? Etc. Definitivamente, isso fica
indeterminado, pelo menos no nível ostensivo. Disso, Quine deduz,
mais adiante, a impossibilidade da tradução.
No fundo, como isso aos pouco poderia se resolver? Ele
teria que viver muito tempo com a tribo para saber o que quer
dizer gavagai" e, além disso, penetrar o sentido, o profundo senti­
mento do coelho para a tribo. Se estivesse no meio dos hindus e
estes lhe dissessem "isto é uma vaca", seria isso o suficiente para
que conhecesse o valor emocional profundo ligado à vaca? É pre­
ciso que se viva com eles para que se tenha uma pequena ideia
disso. Seria preciso, no limite, tornar-se hindu, tornar-se um outro
- ou se tornar persa, senão jamais compreenderíamos como pode-
na ser ass1m.
. .

Daí a importância das conversações: é preciso conversar


por muito tempo. E a conversação é quando somos, uns para os
outros, como os selvagens e os exploradores, se assim posso dizer.
Então, é claro que somos ora exploradores, ora selvagens e, quan­
do se é selvagem, a coisa vai mal. É isso.

364
Não podemos nos reconhecer no código, nem mesmo em
um código de boas maneiras; é preciso se encontrar. E se não nos
encontramos o bastante, não se sabe mais, no fim das contas, o que
queremos dizer uns aos outros. Percebe-se a necessidade da conver­
sação a partir do momento em que nos damos conta de que o
Outro não existe, que o Outro é uma ficção do laço social. Nesse
momento, começa a era dos colóquios, indústria mundial em pleno
desenvolvimento e que resiste a tudo.
Nós, nós tentamos estabelecer as condições da conversa­
ção com o psicótico e nos oferecemos para que ele se sirva de nós.
Existe uma situação analitica normatizada em direção à qual tenta­
mos conduzir o sujeito neurótico. Ao mesmo tempo, nos oferece­
mos no mercado como uma espécie de instrumento e, às vezes, as
pessoas se servem de nós de um modo que não está normatizado,
nem previsto pelos modos de uso. Frequentemente, coloca-se a ques­
tão se isso deve ser acolhido. Mas, ao mesmo tempo, há sempre o
outro lado a se considerar: devemos impor rigorosamente nosso
ideal de tratamento a um sujeito que se serve de nós ao seu modo
e que encontra aí a sua satisfação? Existem usos mais elevados, gos­
taríamos que o paciente se servisse de nós da melhor maneira e,
com efeito, não devemos nos resignar, mas considerar igualmente o
outro lado. "Freud dócil para com a histérica", dizia Lacan, e
Guéguen, assim como Fabienne Henry, nos convidam a estender
nossa docilidade ao psicótico. Sejamos, de fato, objetos bastante fle­
xíveis e tolerantes, bastante masoquistas, se me permitem dizer,
para que se façam usos de nós, usos que não sejam normatizados,
nem inteiramente previsíveis.

365
20. LÍNGUA P Ú BLICA E L ÍNGUA PRIVADA

É ric Laurent Gostaria de retomar a conversação em torno


-

da língua privada e da língua pública: será que haveria línguas, tan­


tas línguas quanto sujeitos, e uma língua pública? Este é um debate
que atravessa todo o movimento de reflexão sobre a linguística, a
ftlosofia da linguagem, e que se articula de modo distinto em dife­
rentes quadros conceituais.
Se partirmos de Locke e da tradição inglesa, os mal-enten­
didos e os equívocos reduzem-se quando se têm ideias claras. A lín­
gua é feita de equívocos e são as ideias que permitem, grosso modo,
simplificar certo número de mal-entendidos. Para nosso enfoque
moderno, que parte da língua natural, existe uma língua pública e
não existe língua privada. Em um caso, partimos da língua privada
e a melhoramos para um uso compartilhado; no outro, partimos do
uso da língua pública. Quando, além disso, se é psicótico, como
Wittgenstein, insiste-se muito no fato de que não há língua privada.
Há somente a língua pública e seus usos.
Os teóricos da língua no mundo anglo-saxão são decidida­
mente contra toda língua privada, no sentido que eles dão a este
termo. Isso quer dizer, sobretudo, que eles são contra a teoria de
Locke e seu correlato, sua teoria das ideias claras. Para nós, continua
sendo difícil eliminar a noção de língua privada. Pode-se dizer que
o sujeito psicótico é o sujeito que mostra que se pode construir uma
língua atravessada, em todos os seus componentes, por uma signi­
ficação particular. A língua fundamental do sujeito psicótico é uma
língua privada. O paradoxo é que o sujeito que faz essa experiência
tão particular pode perfeitamente agir, falar e manter um laço, o

367
mais social possível: são os paradoxos de Rousseau ou de
Wittgenstein. O primeiro, que fez a experiência mais particular de
invasão de gozo no caminho que conduz a Diderot, retoma dessa
experiência e faz dela um livro que revoluciona a Europa. Ele con­
segue, então, falar com todos, em uma língua que é perfeitamente
pública. No entanto, até o fim de sua vida, em Rêveries du promeneur
so!itaire (Devaneios do caminhante solitário), vai tentar escrever a particu­
laridade inusitada dessa experiência, que as palavras não consegui­
rão circunscrever.

Genevieve Morei - Ele escreve em francês.

É ric laurent Ele escreve em um francês que se tornou a


-

língua de Rousseau, na qual tenta alojar a particularidade de suas


experiências. Por mais que ele seja fascinado pela botânica, pelos
atributos estáveis dessa língua classificatória que o século XVIII
desenvolve e, com isso, assegure-se de que a natureza está em seu
devido lugar, a experiência inefável desloca-se. É também o parado­
xo de Wittgenstein. Wittgenstein, mais isolado, acaba inventando
uma filosofia que interessa a mais pessoas que seu mestre Russell,
muito mais socializado.
Partamos, então, desse ponto para radicalizar a perspecti­
va. Falamos francês? Falamos uma língua que se reconhece como
francesa por certo número de procedimentos de reconhecimento,
mas que está constantemente sendo expandida. Haveria um "esta­
do" do francês? Isso foge, vacila, e houve, na história, várias tenta­
tivas para fixar a língua, para suturá-la. Existe a tentativa da
Academia Francesa: eis o que é o francês que nós falamos. As limi­
tações trazidas por esse corpo emérito são levadas cada vez menos
a sério.
Há tentativas mais importantes de fixar o uso de línguas
públicas. Li, por exemplo, um livro muito interessante que explica a
diferença entre o nacionalismo catalão e o nacionalismo basco. Na

368
reconstituição da língua que havia desaparecido como língua de cul­
tura, na virada de nosso século, o caráter pragmático dos catalães os
fez escolher uma via que tomava partido dos literatos. Eles proce­
deram a uma reconstituição da língua a partir de uma prática literá­
ria que não havia deixado o terreno do sentido gozado e iniciaram
uma conversação geral sobre a literatura, sobre a beleza da língua.
Os bascos agiram de maneira completamente diferente, ou pelo
menos o fundador do movimento nacional basco que veio a ter
mais sucesso, HB. Este fundador, um psicótico, constituiu uma lín­
gua artificial, extraída com um esforço considerável, misturando
três unidades linguísticas distintas que, juntas, nunca haviam forma­
do uma língua. Ele as misturou, desenvolvendo um denominador
comum que seria a língua basca ideal. Propôs essa solução para
superar a histórica divisão das províncias bascas e afirmar a unida­
de da nação. É esta língua ideal que se ensina nas escolas bascas,
uma pura criação que ninguém nunca falou. O autor destacava quão
suicida era essa atitude. Existe, aliás, toda uma corrente de estudos
do nacionalismo basco que aponta para esse perigo suicida, "o cír­
culo melancólico", no qual pode se encerrar esse ideal.

É lisabeth Geblesco Mas o basco foi falado durante décadas,


-

durante séculos.

É ric Laurent -De forma pluralizada. O basco unificado


atualmente ensinado não é uma língua obtida a partir das práticas
dos discursos; é uma língua ideal.

É lisabeth Geblesco - A língua ensinada, talvez. O gaélico


também.

É ric Laurent Nesses esforços para normatizar a língua,


-

sempre encontramos a dificuldade quanto ao ponto de basta para


saber do que se está falando. A :visão de "Lituraterra" é outra; nela

369
prevalece a ideia de sulco, das rotinas, das práticas. Isso não nos dá
a ideia de uma bela paisagem, com uma lingua que se distribui, mas
sim a dos sulcos. O único meio de nos assegurarmos de que fala­
mos uma lingua, que falamos um francês adaptado em um procedi­
mento de tradução geral, é fazer chover a chuva de interpretações,
como aponta um dos textos, o que permite sulcar ainda mais.
O uso que o psicótico faz de nossa presença é o de esca­
var alguns sulcos mais do que outros. Cabe a nós ajudá-lo, com
método. Genevieve Morei dizia que ela poderia ter falado dos dos­
siês com seu paciente; em um dado momento, eles falam de litera­
tura norte-americana, o dossiê se torna a literatura norte-americana
- abrimos o dossiê, o comentamos, etc. A prática de sulcagem
começa a partir daí. O método não consiste em partir do mais
secreto, do mais profundo, do mais escondido, mas procede por
uma sulcagem operada pela prática.
Gostaria de voltar à oposição entre lingua privada e lingua
pública. Lembro-me de uma vez ter visto Wilfred Bion dar supervi­
são para um grande grupo de pessoas. Ele tinha idade avançada,
oitenta anos, e supervisionava psiquiatras formados por seus alu­
nos. Eles falavam "bioniano" e diziam coisas como: "o sujeito inter­
nalizou seu objeto externo mau. Ele está clivado e, portanto, ende­
reço-me ao objeto bizarro assim formado", etc. Bion ouvia um
jovem psiquiatra que se orientava perfeitamente bem nessa clinica,
no "bioniano", e falava do caso de um sujeito feminino. Bion repe­
tia sem parar: "Mas que lingua ela fala?" O outro fazia uma grande
explanação: "Então, nessa hora, interpretei o objeto mau". "Muito
bem, mas que lingua ela fala?", diz Bion. Depois da décima vez, o
jovem psiquiatra já não sabia direito o que devia dizer. Nessa hora,
Bion toma a palavra: "Que lingua ela fala? Pois o que é a lingua efe­
tivamente?" E ele cita de cor, sem anotações, em francês, uma pas­
sagem de Valéry sobre os construtores de catedral. O que ele esta­
va fazendo não era simplesmente uma declamação de memória; ele
explicava, assim, a construção de uma lingua. Uma lingua é como as

370
catedrais, um ajuntamento de pedras feito por mestres de obras
anônimos, tudo isso movido por uma grande fé. Há uma longa pas­
sagem de Valéry sobre esse tema, o anonimato e a obra coletiva.
Tudo isso escandido, consegue, como uma invectiva, desorganizar a
bela língua interpretativa demasiadamente petrificada. É preciso,
sem dúvida, se perguntar sempre que língua fala o sujeito, sabendo
que se trata de uma bricolagem particular.
Voltemos à oposição língua pública/língua privada.
Certamente há sempre uma língua pública que j á está ali presente,
mas não podemos adotar literalmente a oposição admitida pelos
filósofos anglo-saxões da linguagem. Precisamos encontrar em nos­
sos debates as nossas próprias conclusões, pois somos, ao mesmo
tempo, partidários da língua pública, sempre já ali presente, e da lín­
gua privada, com seus sulcos próprios. É claro que não há língua
privada, no sentido anglo-saxão, se ela for feita a partir dos sense
data, uma língua que seria dada a partir das sensações, isso não é
possível. Mas, se tomarmos os non-sense data, o gozo, o sentido goza­
do como non-sense, é preciso, nesse momento, admitir que temos
uma língua, uma língua privada composta a partir dos non-sense data,
a soma dos equívocos aceitáveis para cada um, a integral aceitável
para cada um. No que diz respeito ao conjunto de uma língua, nesse
caso, o francês, ela é a integral de todos os equívocos que circulam.

Geneviàve Morei - Por que você diz que se trata de non-sense?

É ric Laurent Porque o sentido gozado não é um sentido


-

comum. Em última instância, o sentido gozado tem um lado non­


sense: é como o "presbitério" [de Sidonie Gabrielle Colette] , o " .. jliz­
mente" [de Leiris], etc., a dimensão tocada é aquela do non-sense.

É lisabeth Geblesco Mas há, ainda assim, o elemento pulsio­


-

nal, a língua atravessada pela pulsão. Isso foi dito no relatório de


Angers.

371
Jacques Borie Retomo o que dizia Jean-Robert Rabanel,
-

ainda há pouco, a respeito do significante sozinho. Não se trata


somente de levar em consideração o último ensino de Lacan; trata­
se igualmente de levar em consideração os sujeitos com os quais
estamos lidando e articular os dois. Ontem, insistia-se sobre o fato
de que esse novo estilo de sujeitos psicóticos enfatiza, especialmen­
te, a dificuldade de se criar um laço entre o significante sozinho e o
Outro. É por isso que a referência aos discursos não me parece
muito pertinente, já que temos, nos discursos, a articulação prévia
que é dada. Aqui, temos uma objeção, a partir da relevância dada ao
significante sozinho.
Vou apresentar uma pequena vinheta a respeito de um
sujeito que encontrei na apresentação de pacientes da Seção Clínica
de Lyon. Ele certamente era psicótico e tinha o projeto de fazer
uma tese de linguística, o que o ocupava muito. Trabalhava na com­
paração entre cinco línguas diferentes. Tinha com o quê trabalhar
durante muito tempo, o que era uma coisa boa. Depois de ter me
explicado o sentido de suas pesquisas - que eram muito consisten­
tes e provavelmente a tese seria validada pela Universidade -, ele me
diz que, no fundo, mesmo que isso o ocupasse muito, isso não era
o essencial; interessava-lhe muito mais uma outra de suas invenções
que seus trabalhos linguísticos. Acontece que, me dizia ele, "eu não
posso transmitir essa invenção à Universidade, sou obrigado a guar­
dá-la; eu me apego a ela mais que a qualquer outra coisa, é quase
como meu nome". Ele havia escrito uma fórmula matemática -
"materna", dizia ele - cujo propósito era escrever a relação entre o
acontecimento e o tempo. Tinha obviamente compreendido que
não podia transcrevê-la como tal à Universidade: era preciso que a
guardasse para si, mas, ao mesmo tempo, sabia que isso era o que
lhe interessava, o que dava um nome a seu ser. Era sua própria cria­
ção, com um lado absolutamente intraduzível.
Logo, não precisamos necessariamente opor a língua pri­
vada à língua do Outro, mas sim ver como a determinação de algum

372
ponto fixo na lingua, tendo valor de non-sense, é necessária ao sujei­
to. É a condição para que haja uma articulação possível, em outro
plano, na relação com o Outro. É isso que se trata de circunscrever:
qual é, para o sujeito, o ponto de gozo na lalíngua que lhe assegura
um espaço de non-sense e que, justamente, permite que um sentido
se desenvolva, assim como um certo modo de relação com o
Outro?

373
2 1 . COMO PODE O SUJEITO PSIC Ó TICO
SERVIR-SE DE N Ó S?

Michêle Miech Gostaria de intervir sobre a docilidade do


-

psicanalista, a docilidade em geral do parceiro do psicótico, como


condição de sua inserção no discurso. Trata-se de um discurso ou
de um pseudodiscurso? Poder-se-ia precisar as condições de inser­
ção do psicótico no laço social? Qual o estatuto desse laço social
como discurso? Podemos escrevê-lo como um dos quatro discursos
de Lacan?
O que me levou a reagir à leitura do caso Donald é o fato
de que conheço bem a língua Donald por tê-la ouvido de um meni­
no com quem tenho muita proximidade: meu filho, que fala muito
bem o Donald. Parece-me que o Donald é uma língua que existe: é
uma língua que saiu dos estúdios Walt Disney, já que é o jeito de
falar do Pato Donald nos desenhos animados. Também é uma lín­
gua que verdadeiramente podemos ver nascer, se assim posso dizê­
lo, quando as pessoas que mergulham saem dos tanques de descom­
pressão: durante alguns instantes eles naturalmente falam como
Pato Donald.
Questiono-me a respeito da eficácia da inserção em um
laço social a partir de uma língua como esta, pois meu filho fracas­
sou: contrariamente à Ophélie, ele não pôde ensinar a língua
Donald a ninguém, nem à sua família, nem ao seu entorno - ele ten­
tou com a irmã, mas não deu certo - e isso se tornou um mero
talento social, não se tornou uma criação a partir da qual ele se con­
duziu no mundo. Foi algo que se perdeu depois de alguns anos -
mesmo que de tempos em tempos isso volte. Em contrapartida,

375
para Ophélie ou para o inspetor de impostos, paciente de
Genevieve Morei, pode parecer que a docilidade do parceiro seja
crucial. Há também as instituições - pensei no Courtil - onde pra­
ticamos essa docilidade com o paciente para deixá-lo reconstruir
um discurso do qual somos os instrumentos, como Jacques-Alain
Miller dizia ainda há pouco.

Philippe La Sagna Quanto à questão do laço social, há uma


-

observação de Lacan no Seminário 20 que afirma que a escrita supõe


previamente o laço social e que a língua normatizada supõe a escri­
ta. Quando fazemos existir uma língua, trata-se de uma instituição
social que parte sempre de uma realidade politica; isso pode ser dito
para todas as línguas, inclusive a língua francesa. Isso nos interroga,
pois temos sempre a tendência a pensar inversamente, ou seja, pen­
sar primeiramente a lingua e em seguida o laço social. Nesse senti­
do, há talvez revisões a serem feitas.
No nível clinico, alguma coisa me interroga: a hipótese da
transferência - que é tradução, já que até mesmo em alemão, nos
textos de Freud, a transferência é de algum modo uma tradução - é
a própria hipótese do sujeito suposto saber. O que notamos nos
casos de psicose é que um encontro com um psicanalista pode ser
o suficiente para que se comece a delirar. À s vezes, é um "progres­
so"; às vezes, de modo algum. Isso quer dizer que existe aí uma res­
ponsabilidade enorme. Poderia existir algo que permitisse manejar
esses efeitos, quando o saber começa a se tornar real? Frequente­
mente, uma vez que é real, ele não é suposto - é o caso de dizê-lo
- e tem sua vida própria, o que, às vezes, é dramática. É uma pri­
meira pergunta sobre a transferência na psicose.
Segunda pergunta: isso coloca em questão a hipótese da
tradução. O que observei no nível clinico é que as pessoas, com fre­
quência, chegam com uma lingua privada e pensamos que somos
nós que devemos nos virar para introduzir um laço nas relações
socais, ou seja, fazer com que suas linguas privadas possam tornar-

376
se públicas. Esse esforço de tradução esbarra frequentemente em
um obstáculo: é que, em um dado momento, isso dá consistência e
faz ressurgir um intraduzível especialmente embaraçoso. Seria pre­
ciso ver em que momentos são possíveis soluções tais como a trans­
formação do saber na forma de lalíngua, ou seja, soluções em que os
sujeitos se tornam um pouco mais pulverulentos e se reportam a
uma forma de linguagem extremamente equívoca, ou, então, a
transformação do saber em uma forma reduzida de linguagem, que
é a interpretação paranoica e que, pelo contrário, não é nada pulve­
rulenta.
Tenho um exemplo muito breve a respeito dessa ideia do
saber exposto, que acho muito eloquente. Trata-se de alguém que
vem fazer uma análise absolutamente clássica e todos os anos,
quando nos separamos para as férias, me traz um relatório datilo­
grafado e in extenso de todas as sessões. É, para ela, um saber expos­
to, depositado como uma tese, in extenso e feito de cor, ainda que as
sessões não sejam muito curtas; ela não tem gravador e estou certo
de que esse relatório é absolutamente perfeito. É uma solução ele­
gante, mas, outras vezes, o que aparece no real não é um texto, é
outra coisa que não cessa de se escrever.

Franz Kaltenbeck Quanto à menina que diz )"


- ' 'ai ai/é à l'éco­
le'� Chomsky diria: em uma determinada idade, as crianças come­
tem erros gramaticais, mas dispõem de uma gramática que lhes é
própria, que talvez compartilhem com crianças da mesma idade, e a
imposição dos adultos · de falar corretamente vai fazer a criança
entrar aos poucos em uma gramática normatizada. Do ponto de
vista do ·linguista, as duas gramáticas são muito interessantes.
Isso nos leva a uma questão que nos é mais próxima.
Felicito a Élisabeth Geblesco por sua observação sobre o suposto
saber que, desde 1 96 7, está do lado do sujeito. Eu sempre afirmei
que não há linguagem privada, pela simples razão de que, se falamos
de linguagem, falamos de uma estrutura que contém um saber.

377
Quando alguma coisa contém um saber, pode se tratar de um saber
extremamente cifrado, mas deve, em algum lugar, ser transmissível;
se não é assim, nosso conceito de linguagem, de língua, e até
mesmo de lalíngua, torna-se absurdo. Por exemplo, o paciente de
Daniele Rouillon, que alinha cifras, também tem um saber. Do con­
trário, não falaríamos com ele, pareceria um deficitário. É um saber
que poderíamos eventualmente decifrar por meios modernos, ou
seja, o surgimento de certo número de signos que remetem a esse
ou àquele sentido gozado. Vemos o mesmo fenômeno em outros
esquizofrênicos. Quanto a isso, o relatório de Angers não é muito
claro. Vocês dizem: "Há um saber-fazer com lalíngua, mas não há
saber sobre lalíngua". Considero isso uma contradição.

Alfredo Zenoni Os desenvolvimentos que acabam de ser


-

feitos nesta manhã mereceriam ser articulados com a distinção que


utilizamos de dois modos de retorno do gozo. Isso pode ser muito
bem aplicado ao pequeno esquema da decomposição da linguagem.
Portanto, há dois modos de retorno: a identificação do gozo no
lugar do Outro e o retorno do gozo no próprio corpo, na vertente
esquizofrênica.
Essa distinção, essa articulação de dois modos, permite
tratar a questão formulada no início: como definir o par sujeito­
terapeuta quando se trata de um sujeito psicótico? Isso merece ser
modulado de acordo com o desenvolvimento que fizemos nesta
manhã e com a distinção entre esquizofrenia e paranoia, que, como
bem vemos aqui, não é uma distinção conclusiva, mas que deve ser
distribuída segundo esse módulo de decomposição da linguagem.
A partir daí, podemos colocar de uma outra maneira a
questão da inserção ou da não inserção no discurso: ali onde há
mais laço social, se assim posso dizer, ali onde há identificação do
gozo no lugar do Outro, é possível colocar a questão de saber se o
sujeito que vem nos procurar vai se inscrever em um laço social, se
vai se inscrever no discurso do analista, ou se ele está simplesmen-

378
te ligado a um discurso sem nele entrar. A questão que se coloca é
de saber que lugar ocupa o analista nesse momento. Eu proporia de
preferência "ligamento com o discurso" do que entrada no discur­
so, quando se trata do laço social, quando existe esse mínimo de
laço social na vertente paranoica.
Quanto a isso, a questão que se coloca é: como definir a
posição do analista? Quem a define? Primeiro, o sujeito, como
vimos nesta manhã. É o sujeito que diz para o terapeuta: "Você tem
que acreditar em mim" ou "busco alguém que acredite em mim".
No caso de Léonce Boigelot é: "hoje, será uma análise freudiana",
ou "hoje, será uma análise psicometafísica". É o sujeito que, de
certa forma, vem como mestre que prescreve a posição que deve­
mos ocupar. Toda a questão é de determinar qual será, então, nossa
docilidade. Trata-se de ser simplesmente dócil? Como se fazer usar
pelo sujeito que prescreve nossa posição?
Para terminar, observo que em um dos casos do relatório
de Nantes e Rennes evoca-se o eixo imaginário e uma posição mais
amigável, enquanto que o relatório de Bordeaux evoca a posição do
analista como Outro real. Eu gostaria de colocar essas duas formu­
lações em tensão com a noção de docilidade, com relação à posição
que o sujeito nos prescreve.

Philippe De Georges - Nesta manhã, tive a sensação de que


um certo número de fios que se desenrolaram durante o dia de
ontem começavam a se enlaçar com a questão estratégica que atra­
vessa todos os trabalhos contidos no volume preparatório, que é a
manobra da transferência, a direção do tratamento com o sujeitos
psicóticos. Há cinco ou seis anos, Hervé Castanet havia organizado
um debate sobre essa questão, em Marseille, do qual participei com
Jean-Claude Maleval. Um dos termos mais utilizados - e que faz
parte da doxa nesse assunto - era "limitação do gozo".
Percebi nos textos que muitos relatores perguntavam-se,
de preferência, como aparelhar o gozo. A tônica foi deslocada:

379
como o trabalho analisante de um sujeito psicótico pode tender a
um aparelhamento do gozo, ali onde faltam as ferramentas ordiná­
rias que o viabilizaria? Como reintroduzir algo da função do sinto­
ma? Em outras palavras, no plano da estratégia do analista, como se
pode sustentar o trabalho criativo do sujeito psicótico, como con­
tribuir com essa poiesis?
Eu me lembro que, em Arcachon, Éric Laurent havia feito
uma belíssima leitura da fórmula habitual do "secretário do aliena­
do". Ele disse que não se devia tomá-la em um sentido passivo, no
sentido em que alguém se contenta com tomar notas, mas no sen­
tido em que Hegel diz que o filósofo é "o secretário da história", ou
seja, que ele lhe faz escansões e lhe extrai a lógica. Existe aí uma
dimensão totalmente ativa do trabalho de secretário do alienado.
As discussões desta manhã levam a pensar que, dependen­
do dos casos, não estamos falando do mesmo tipo de sujeito psicó­
tico. Quando Genevieve Morei evoca Schreber ou fala da necessi­
dade de ajudar um paciente a traduzir seus termos na lingua corren­
te, podemos pensar que o trabalho não é, sem dúvida, o mesmo
com os sujeitos de estrutura schreberiana e os sujeitos da psicose
ordinária dos quais falamos neste fim de semana. Há, sem dúvida,
com os primeiros, um trabalho de sustentação da criação delirante,
ou seja, algo que é da ordem da busca de uma significação.
Ali onde a metáfora paterna está ausente, ali onde o sujei­
to não produz ou não se engancha a uma significação fálica, como
contribuir para que se estabeleça uma metáfora delirante que
venha a ser para ele uma substituição, que faça suplência e que
possa ter, para esse sujeito, uma significação singular na qual possa
sustentar-se?
O mesmo não acontece quando lidamos com uma criação
que gira em torno daquilo que Jean-Robert Rabanel colocou sob a
lógica do significante sozinho - em casos maravilhosos tal como o
de Daniele Rouillon que muitos citaram. Não se trata de produzir aí
uma metáfora delirante, mas uma metonímia literal.

380
François Sauvagnat A propósito do secretário do alienado,
-

gostaria de lembrar a interdição feita por Jean-Pierre Falret, em


1 850, quanto a levar a sério o que diz o paciente: "Eu os proíbo de
tomar ao pé da letra o que dizem os pacientes. O que se deve levar
em consideração é o processo". Quando Lacan fala do secretário do
alienado, de certo modo diz: "Eu os ordeno a levar a sério os fenô­
menos elementares dos pacientes e suas inscrições literais". Seria
ativo ou passivo, mais ou menos ativo ou mais ou menos passivo?
É precisamente o que teríamos que verificar.
A discussão sobre lalíngua nos leva há vinte e cinco anos
atrás, quando todo mundo estava interessadíssimo na crítica de
Saussure. Havia a aula de Jean-Claude Milner, havia o que escrevia
Jacques-Alain Miller sobre a noção de metalinguagem, havia esses
trabalhos sociolinguísticos aos quais foram feitas alusões. Estou
surpreso de que um outro fato tenha sido tão pouco discutido: é
que lalíngua é também lalação. Jacques-Alain Miller falou a respeito
disso em seu curso há um ou dois anos. Esse paradoxo é desenvol­
vido por Jakobson, que diz: de início, temos a impressão de que a
criança pode desenvolver todos os fenômenos possíveis e de repen­
te, bum!, só restam três, só restam três consoantes, há aí uma morte
da linguagem.
Talvez valha a pena observar que, na mesma época, perce­
beu-se que os recém-nascidos são capazes de discriminar os fone­
mas. Existem pesquisas um pouco abomináveis, nas quais se mos­
tra que os recém-nascidos japoneses são capazes de diferenciar o f
do p e o r do L Eu lhes lembro que um jovem japonês morreu nos
Estados Unidos quando, ao tocar uma campainha, ouviu da pessoa
que lhe abriu a porta um "Freeze!", ou seja, "Mãos ao alto!". O japo­
nês, sendo japonês, confundiu freeze com please; então, não levantou
as mãos e levou um tiro. Ora, os recém-nascidos japoneses são
capazes de diferenciar entre freeze e please.
A questão de lalíngua coloca, de imediato, a questão do
saber potencial. Isso deixa claro que não há, de saída, saber na lín-

381
gua, que a linguagem é uma elucubração de saber sobre a língua,
mas que, no fundo, a questão do saber se coloca, desde o começo,
para os recém-nascidos: eles sabem fazer diferença entre freeze e
please.
Como assinalava Rabanel, isso nos conduz a ver que a
questão de lalíngua também é a questão do nó borromeano. Em uma
prática que aparece como autística, a questão do Outro se coloca já
de entrada.

Pierre Stréliski Era uma tentativa de Witz, mas como se


-

aplicava ao que foi dito ainda há pouco, não vai mais ter graça. Era
a propósito do que se dizia de Quine e do gavagai: Pensei - foi o que
Helga Rosenkranz cochichou comigo - que, no caso de Ophélie, do
relatório de Angers, gavagai" teria sido Lelievre.

382
22. AS CONDIÇ Õ ES DA CONVERSAÇ Ã O
COM UM PSIC Ó TICO

Marie-Hélàne Brousse Li com atenção os três relatórios da


-

terceira parte, perguntando-me como eles formulavam a especifici­


dade da transferência na psicose, pois minha intuição radical era a
de que não havia transferência na psicose. A decomposição da lin­
guagem entre lalíngua e laço social, que Jacques-Alain acaba de colo­
car no quadro, permite�me ser mais razoável. Quanto à lalíngua, é
muito difícil mostrar a diferença entre a transferência de um psicó­
tico e a transferência de um neurótico, visto que lalíngua tanto do
neurótico quanto do psicótico é feita de condensação de gozo. Em
contrapartida, o laço social vela na neurose o que se desvela na pala­
vra psicótica. A diferença entre as duas transferências deve ser bus­
cada do lado do laço social e da sulcagem de lalíngua.
Muitas exposições desenvolveram a mesma ideia. Quando,
por exemplo, Genevieve Morei dizia que fala demoradamente com
seu paciente a respeito da literatura norte-americana, de James
Ellroy, lembrei-me de um paciente com quem falei durante três
anos sobre arte clássica do século XVII, em duas cidades da França.
Falamos disso o tempo todo e isso teve o mesmo efeito, ou seja, um
efeito de apaziguamento, de tradução. Poderíamos dizer - trata-se,
talvez, de uma imprudência - que, na transferência com um psicó­
tico, construimos, de fato, uma sulcagem, um laço social, o que não
fazemos com um paciente neurótico. É uma solução mais razoável
do que a solução radical que consistiria em dizer, sob forma de pos­
tulado, que não há diferença alguma entre a transferência na psico­
se e a transferência na neurose. O que continua valendo, parece-me,

383
para fafíngua, pois existem na neurose condensações de gozo em sig­
nificantes que não se deixam ver da mesma maneira, que são muito
mais escondidos. Freud já coloca isso em evidência: podemos
tomar, nessa vertente, as formações do inconsciente, alguns lapsos
como condensação de gozo.

Philippe De Georges Ficaria surpreso se muitos dos colegas


-

presentes estivessem de acordo com Marie-Hélene Brousse sobre


esse ponto. Para mim, existem especificidades evidentes da transfe­
rência psicótica. Farei pequenas observações que me ocorrem: em
primeiro lugar, existe mais do que uma nuance entre o amor de
transferência e a erotomania; em segundo lugar, na transferência
neurótica o saber é suposto, enquanto que na psicose ele procede
não de uma suposição, mas de uma certeza. O terceiro ponto foi
assinalado por algumas exposições: o que é suposto na neurose é
situado do lado do analista e o que é certeza na psicose é situado do
lado do paciente. Esses pontos de especificidade condicionam
maneJOS da transferência radicalmente diferentes. Enfim, é um
debate.

Marie-Hélene Brousse Estava sendo radical e provocadora,


-

mas, ao mesmo tempo, os elementos que você acaba de mencionar


me parecem ser modalidades e não diferenças de estrutura. De
maneira mais específica, qual a natureza da diferença entre erotoma­
nia e amor de transferência na neurose? Seria preciso ver isso.

Pierre Malengreau Parece-me que algumas das fórmulas


-

desta manhã podem esclarecer um ponto que foi levantado ontem.


Demo-nos conta, desde Arcachon, de que a diferença proposta
entre desencadeamento e desligamento é manifestamente fecunda.
Tentei demonstrá-la no caso da senhora que tem um tumor. Essa
paciente ensina-nos que há dois tipos possíveis de docilidade.
Podemos considerar as coisas a partir do lado do sentido, tal como

384
ela mostra durante muitos anos, ou considerá-las do lado da signifi­
cação, após o momento do desligamento.
A pergunta que eu queria fazer é a seguinte: será que a fór­
mula que Jacques-Alain Miller utilizou ainda há pouco, "a partir da
linguagem, cada um faz sua lalíngud', não poderia ser usada para
definir o desligamento? Em outras palavras, o tempo do desliga­
mento - que não é o desencadeamento, o momento em que essa
pessoa perde o recurso que havia encontrado em sua construção -
seria um momento em que lalíngua se desarrima da linguagem. Esse
sujeito parece dar provas disso. A partir desse momento, ela tem
uma grande dificuldade em aceitar qualquer forma de conclusão. Se
retomarmos a ideia, que foi levantada em Arcachon, de que a difi­
culdade de concluir seria um fenômeno elementar, teríamos, no
fundo, uma prova clínica de que o desligamento seria um momen­
to no qual lalíngua se desarrima da linguagem.

laure Naveau Entre Arcachon e Antibes, passamos do


-

enlaçamento RSI - sobre o qual a Conversação de Arcachon trou­


xe muitos esclarecimentos - à lalíngua. Trata-se, agora, de precisar as
consequências disso quanto à direção do tratamento com o psicóti­
co. O que faz o psicanalista da lalíngua do sujeito psicótico?

André Soueix - Queria enfatizar a diferença entre o discur­


so e o laço social. De fato, nem todo discurso faz laço social. Há
mais discursos do que laços: há quatro laços sociais e há pelo menos
seis discursos, já que podemos acrescentar aos quatro discursos o
discurso da ciência e o discurso do capitalismo. Acrescento isso
para enriquecer a alternativa de Zenoni: ligar-se ou entrar no discur­
so. Poderíamos dizer que entramos mais facilmente nos discursos
que não fazem laço. Podemos ser tomados no discurso do capitalis­
mo e no discurso da ciência sem, no entanto, sermos tomados em
um laço social.

385
Daniele Rouillon Fiquei muito interessada pelo que estava
-

sendo dito sobre a linguagem. Seria preciso, talvez, inventar um


termo, que não fosse língua privada, para designar esse dialeto que
não faz referência a nenhuma língua conhecida - a língua Donald,
que faz quack-quack, ou a língua dos números. Trata-se de uma lín­
gua que é criação do sujeito. Isso é muito desnorteador. Em
Nonette, em uma situação não analítica, há sujeitos constantemen­
te desligados, ou que ficam ligados por, no máximo, trinta segundos
ou um minuto. Nesses casos, como ligá-los, como arrimá-los, o que
fazer para que fiquem sentados durante um minuto, escrevendo,
sem passar ao ato, sem fugir? Parece-me que é preciso, a cada vez,
recomeçar do inicio, um pouco como um etnólogo diante de um
povo reduzido a uma só pessoa, que é o sujeito. É preciso explorar
como, a partir de elementos sonoros e melódicos do significante,
poderíamos fazer laço social com o psicótico, ser uma pessoa amá­
vel, afável, ao lado de quem ele se sinta à vontade para sentar-se por
um minuto - nem que seja só isso. Isso implica em fazer de si uma
massa de modelagem, dócil diante desse sujeito, para levá-lo a repe­
tir seus significantes preferidos, seus quack-quack, a bolsa; a partir de
um significante primitivo bruto, chegar a um S1 civilizado, simpáti­
co, que, então, poderia ser talvez uma metonímia literal.
Em relação à significação, gostaria de testemunhar que, às
vezes, diante de um sujeito que à noite não consegue ficar na cama
- isso dura uma hora, duas horas e nem os remédios fazem efeito
-, eu leio para ele uma história, com a mesma voz que usamos para
ler um conto de fadas, mas dizendo as frases ao contrário. Uso a
entonação do "conto de fadas", sem significação alguma, já que a
frase está ao contrário, e ele fica na cama.

Fabienne Henry Tentarei dar alguns elementos de conclu­


-

são que me ocorrem após essa conversação. Creio que vamos per­
manecer modestos, humildes, mas, ainda assim, dóceis diante da
invenção do psicótico. É necessário distinguir, como lembrava

386
Alexandre Stevens ainda há pouco, a doença da mentalidade e a
doença do Outro; não é a mesma coisa dirigir o tratamento em um
caso ou em outro. Para responder a Genevieve Morei, não me ocor­
reria aprender a língua fundamental com Schreber e usá-la.
A importância do relatório de Angers está essencialmente
baseada no fato de que pode haver uma mudança de posição do
analista em função daquilo que o sujeito psicótico oferece, a partir
de suas invenções, para que o analista não seja demasiadamente
canalha com ele; ela está em dizer que a questão essencial é o trata­
mento do gozo invasivo, flutuante, que é especialmente insuportá­
vel. Por isso, portanto, fomos seduzidos pelos casos clínicos de
Daniele Rouillon e de Gabriel Lombardi. O de Gabriel Lombardi,
devido a esse movimento, como lembrava Helga Rosenkranz ainda
há pouco, esse movimento lento - foi um tratamento que durou
dezessete anos - de um sujeito inicialmente catatônico que, aos
poucos, começa a falar, a escrever poemas e até a fazer Witz.
Para retomar o que me inspira o esquema no quadro, eu
diria que lalíngua da transferência busca fazer um laço entre lalín­
gua e o laço social. Isso permanece em aberto, enquanto pergun­
ta. É uma pista para ajudar os sujeitos psicóticos. Lalíngua não é
senão uma ferramenta, o importante é tratar o gozo. Lalíngua da
transferência seria, então, uma ferramenta que permitiria tratar o
que nós chamamos de malha do gozo: tentar fazer, entre o analis­
ta e o psicótico, um tipo de malha, de cristalização, de /a/íngua na
transferência.

Carole Dewambrechies·La Sagna Essa discussão parece-me


-

estar no cerne do que discutimos durante o fim de semana. Estou


tentada a dizer que o delírio é da ordem de lalíngua - se ele for
essencialmente uma intuição delirante ao invés de um delírio fecha­
do sobre uma significação, o que não desejamos muito, antes, por­
tanto, que ele se feche sobre uma significação. Sabemos muito bem
que não é a mesma coisa receber um paciente sabendo que ele está

387
delirando ou não o sabendo. Pensamos de preferência que é melhor
sabê-lo logo, desde as primeiras sessões. Acreditamos, pois, que é
preciso levar o paciente a ceder algo de seu delírio, a dizer-nos uma
coisinha qualquer sobre isso, o suficiente para que nós o saibamos.
Isso não significa que todo o tratamento prossiga dessa maneira, já
que, em geral, uma vez que algo nos é dado, ele não falará mais
sobre isso, será eventualmente uma referência à qual ele fará alusão
apenas de tempos em tempos. Quando os casos se desenvolvem
bem, é geralmente assim que as coisas se passam. Deve-se, então,
obter algo de seu delírio ou acolhê-lo, como dizia Fabienne.
Acolher algo de ialíngua é também acolher algo dessa significação
delirante. O paciente precisa verificar que não iremos desaparecer
quando ele nos disser alguma coisa dessa ordem.
De fato, a psiquiatria clássica observou, desde sempre, que
a tendência do delírio não é ir em direção a sua própria confissão -
não estou falando das psicoses hospitalizadas, dissociadas -, que
um delírio paranoico não tende a se explicitar. Isso fez com que
grandes autores clássicos dissessem: se o paciente não lhes contar
seu delírio, dê-lhe um pedaço de papel, e ele o escreverá para você.
O que equivale a dizer que o delírio está, ao mesmo tempo, bem
mais do lado da escrita.
Uma palavra a respeito da pergunta que fazia Alfredo
Zenoni ainda há pouco: evoquei no relatório de Bordeaux o valor
de transferência real que a presença do analista pode ter para alguns
psicóticos. Trata-se de um sujeito que parou de se automutilar a par­
tir do momento em que encontrou um analista, sendo que ele era
tratado há dez anos e as mutilações jamais haviam cessado. A partir
do momento em que ele começa a usar as referências psicanalíticas,
em seu encontro regular com um psicanalista, esse sujeito feminino
não precisa mais das marcas sobre o corpo e das automutilações. Eu
questionava, então, a transferência como real, sendo dado que ela
tinha uma transferência . que oscilava entre transferência erotoma­
níaca e persecutória. Essa transferência limitava-se a cartas que ela

388
escrevia à analista, ou seja, a conotação persecutória e erotomania­
ca da transferência não invadia o conteúdo das sessões, mas era sim­
plesmente objeto de pequenas cartas persecutórias ou amorosas
endereçadas à analista e que permaneciam fora das sessões. A
paciente simplesmente me perguntava se eu continuava recebendo
suas cartas e, em seguida, não falava mais sobre o assunto; falava de
sua vida, de suas identificações, enfim, de tudo que lhe interessava.
Eu tinha a impressão de que, para essa paciente, essa transferência,
como real, enlaçava imaginário e simbólico.

Yasmine Grasser - Não deveríamos mais falar de linguagem


privada ou pública, que é uma perspectiva de linguista, que toma a
lingua como objeto. A partir do momento em que a lingua é consi­
derada um tratamento para o gozo, não temos mais que levar em
consideração, como dizia Alfredo Zenoni, seu caráter um pouco
mais privado ou um pouco mais público. Quanto à posição do ana­
lista, eu diria que o analista deve devolver ao sujeito psicótico a lógi­
ca de sua invenção. Isso prolonga um pouco o circuito, evitando
que ele passe ao ato e permitindo-lhe, finalmente, entrar em um
laço social, primeiramente com o analista, eventualmente com
outros, quando houver sublimações ou outros fenômenos que per­
mitam entrar em uma comunidade maior. Com o neurótico - estou
me referindo ao que disse Lacan -, trata-se de levá-lo a fazer de sua
análise um Witz. O Witz não se aprende, é uma criação em lalíngua.

Philippe Hellebois - Uma observação no sentido do que disse


Marie-Hélene Brousse. A propósito da transferência, Lacan pôde,
no fim de seu ensino, definir o discurso como um dizer que (se)
corre [se-courtJ . Jacques-Alain Miller escreveu, em um artigo na revis­
ta Mental, que, se considerarmos a transferência a partir dessa pers­
pectiva, esse dizer que socorre [secourtJ pode ter várias funções: ele
deve estreitar os laços, o enlaçamento do significante frente ao
gozo, fazer ponto de basta quando isso é insuficiente; ou, ao con-

389
trário, afrouxá-lo quando está demasiadamente apertado. Essa opo­
sição vale no caso a caso e é transestrutural. Podemos pensar que,
em um delírio paranoico, é preciso afrouxar as coisas e, na esquizo­
frenia, fazer o contrário.

Bernard Porcheret Para responder a Alfredo Zenoni quan­


-

to à direção do tratamento - a propósito de "o homem dos polega­


res que estalam" - posso precisar que houve, de fato, três tempos.
Há um primeiro tempo, durando mais ou menos doze anos, que eu
poderia chamar de um tempo de contraste: mesmo que não seja um
homem muito simpático no dia a dia, é possível também notar - já
que episodicamente vem à consulta e, sobretudo, no intervalo entre
duas mulheres, quando ele está sem uma mulher - uma relação rela­
tivamente amigável, extremamente estável, que testemunha um eixo
imaginário notavelmente conservado nesse lugar analítico. Há um
segundo tempo, que poderia chamar de surpresa: tive pela primeira
vez a impressão de que um sintoma se construía; ele me colocou a
par de um sintoma que foi construído, no sentido daquilo que per­
dura. Aliás, aparece uma série de sintomas dos quais ele nunca havia
falado anteriormente. Finalmente, depois de um ano, quando o qua­
dro se tornou muito difícil devido à perda da última mulher com
quem ele viveu, eu estou do lado daquele que passa um recibo, ou
seja, do lado da validação muito ativa de seu esforço em fazer ponto
de basta com relação a um sentido gozado. O notável é que esse sin­
toma que apareceu, há cinco anos, ainda perdura.

Nicole Guey Como considerar o final do tratamento com


-

o psicótico? Trata-se de um final, uma parada, um momento em que


o sujeito pode se situar no laço social, fazer sintoma?

É ric laurent Voltemos à questão da transferência. Não


-

podemos admitir o conceito de língua privada, tal como circula no


pensamento contemporâneo sobre a língua, como dizia Franz

390
Kaltenbeck. Pela nossa própria pratica, colocamo-nos como o
Outro daquele que chega com sua língua privada. A psicanálise é
uma prática que subverte a ideia de língua. Colocamo-nos como o
Outro dessa língua atravessada pela pulsão, pelo sentido gozado,
como dizia Élisabeth Geblesco. Por intermédio da transferência,
segundo a expressão de Carole Dewambrechies-La Sagna, o sujeito
nos cede algo de seu sentido gozado. Ele nos arrasta por esse movi­
mento de cessão, o que dá o estilo do amor de transferência que
então se instala. Isso supõe a crença de que o Outro de fato nos
compreende, no sentido do amor, no sentido em que há essa cren­
ça compartilhada. Como dizia Zenoni, é preciso que essa crença se
instale.
Mas, então, como evitar que esse conto de fadas acabe
mal? São os aspectos que Philippe La Sagna mencionava. Não se
trata de se ter dessa história uma versão de conto de fadas: uma
maravilhosa história de tradução mútua instala-se e eles viveram
felizes o tempo que foi preciso. Isso seria esquecer que a nomeação
que está em jogo inclui as passagens ao ato, que são maneiras de
nomear - era o que Jacques-Alain Miller havia desenvolvido em sua
contribuição sobre esse tema. A passagem ao ato não é uma dimen­
são estranha à dimensão da nomeação, é também um modo de
amarrar o sentido que escapa. Não é sempre que a relação com o
pfuit do sentido é feliz. Este é o desafio enfatizado por Lacan com
sua expressão erotomania mortifera, usada a propósito de Schreber, e
que designa ao mesmo tempo algo de muito particular da transfe­
rência schreberiana e alguma coisa que aparece sempre na psicose.
Isso decorre do exame crítico da noção, proposta por Karl
Abraham, de "amor parcial de objeto" e das ambiguidades que cir­
culavam no movimento analítico quanto a esse ponto. Lacan escla­
rece que há o amor e há o objeto parcial. São duas coisas distintas.
Não podemos amar no Outro a zona onde, justamente, está o obje­
to, a coisa. A imagem do espelho unifica um corpo despedaçado no
qual ronda a hiância mortífera.

391
Quando há uma regressão tópica ao estádio do espelho, é
possível que haja contato com essa zona. Passamos, então, do amor
limitado por essa zona pulsional à paixão amorosa, que está em
contato com essa hiância mortífera. Isso pode se produzir e desen­
cadear estados de pânico, estados em que o sujeito quer nomear a
qualquer preço e demanda ao Outro fazê-lo com uma insistência tal
que provoca a passagem ao ato.
O que fazer com esse amor lancinante? Trata-se de favo­
recer todas as práticas que funcionem como borda: há a tradução,
digamos, a tradução generalizada, essa prática que desenvolvemos;
mas há também o exame de toda a pragmática da língua, que faz
parte dessa conversação com o psicanalista, o exame do que o sujei­
to faz. Não estamos só falando do delírio, como vocês diziam. O
delírio pode ser escrito, o que ajuda a traçar uma borda, a depositar
algo. Afora isso, podemos nos interessar por coisas como a arte
clássica do século XVII, ou então pela prática de como se levantar
pela manhã e de como o cigarro deve ser fumado antes, depois do
café, etc. Falar dessas miudezas mobiliza toda a significação. Vemos
isso claramente quando, nas crises da significação em literatura, se
recorre às miudezas. Georges Perec, em As coisas, criou um choque
com sua paródia irônica do Nouveau Roman. Atualmente se tenta
repetir o efeito Perec com romances consagrados às miudezas,
como La premiere gorgée de biere (O primeiro gole de cerveja) 13• Trata -se de
mobilizar toda a estrutura a partir daí.
Um dos casos clínicos de nosso volume preparatório dá
testemunho disso: o caso do nackt4• O sujeito traz para a análise sua
prática, que consiste em se fotografar de uma determinada manei­
ra, e descreve para o analista essa prática. O trabalho se faz em
torno de uma palavra - ele usa uma palavra entre o luxemburguês,
o francês e o alemão. Nesse trabalho se desdobram os sentidos do
termo, que designa, ao mesmo tempo, a nuca e o fato de estar nu.
Ao mesmo tempo, ele designa a impossibilidade de ver-se ver.
Falando dessa prática do impossível, o sujeito se reconstitui. Nesses

392
tipos de praticas, aparentemente centradas sobre a imagem do
corpo, não se trata simplesmente de se constituir uma imagem. Um
ponto de impossível é cingido. Isso também serve para estabilizar o
sentido e faz parte da pragmática da conversação com o analista.
Há o belíssimo caso da pessoa que diz: "sou fascinado pela
violência", e que queria constantemente assistir a catástrofes na
televisão. Trata-se, aí, de fixar pelo imaginário o ponto exato antes
que o corpo se estilhace, exatamente antes do corpo despedaçado.
Há aquele que se reconstitui como um, com sua prática de se foto­
grafar em diferentes posições, e há esse que vai até o momento que
antecede o estilhaçamento. "Um minuto depois e a bomba teria
estourado".
Como, então, sustentar o sujeito na construção de um
saber não padronizado sem que, no entanto, isso adquira o sentido
de uma autorização da passagem ao ato? Como manter um movi­
mento metonímico contínuo? Entre os kleinianos, que foram os
primeiros a receber em análise sujeitos psicóticos, Rosenfeld consi­
derava, em seus P!]tothic states, que era preciso manter as análises de
sujeitos psicóticos o tempo que fosse necessário. Elas acabavam
sempre terminando antes do desejado, mas ele dizia nunca haver
motivo para interrompê-las.
Será que dizemos a mesma coisa? Talvez não. O problema
de um fim de análise com um sujeito psicótico consiste em separar
o que é obtido da elucubração de saber e a sua significação de ver­
dade. Trata-se, talvez, de evitar que se atravesse a superfície na qual
se inscrevem o saber e a verdade. Tratar-se-ia de se apoiar sobre o
que faz sinthoma para o sujeito, aproveitando tudo o que se construiu
durante essa conversação. O sinthoma está, nesse sentido, do lado da
elaboração de saber, desabonado da verdade do inconsciente. É
nesse sentido que podemos falar deliberadamente de outra coisa
que não da verdade inconsciente; falar, se for preciso, de literatura
ou da história do mundo.

393
AT É LOGO

Philippe De Georges Chegou, então, a hora de nos separar­


-

mos. Perguntei-me o que foi nosso encontro. Com certeza, não foi
um concílio: não decidimos sobre dogmas nem sobre o sexo dos
anjos, nem sobre a infalibilidade do pontífice. Não foi verdadeira­
mente uma convenção, embora tenhamos preparado um pouco o
terreno. Logo, a terceira conversação segue a linha do que foram os
encontros de Angers e de Arcachon. Em minha opinião, será preci­
so inventar uma continuação. Assim sendo, até logo e obrigado a
todos.

394
Notas

1 La Croisette: célebre boulevard de Cannes, lugar de passeio em frente ao mar. La


Croisette é sobretudo conhecida graças ao Festival de Cinema de Cannes e ao Palais
desfestivais, cujos degraus descem até ele.
2 N.R.: Midrash (do hebraico TJTl iV) é uma forma narrativa criada por volta
do século I a.C. em Israel pelo povo judeu. Esta forma narrativa desenvol­
veu-se através da tradição oral (ver Talmud) até ter a sua primeira compila­
ção por volta do ano 500 d.C. no livro Midrash Rabbah. O texto tem caráter
pluriautoral e não linear, se assemelhando um pouco a uma conversa infor­
mal com diversos rabinos, mas na realidade os compiladores é que davam
vida em seu texto a diversos personagens das épocas mais distintas (Fonte:
Wikipédia) .
3 N.R.: em francês, a palavrafois significa "vez"; a palavra homófona "foi" signi­
fica "fé" e a palavrafoie significa "fígado".
4 N.R.: D.E.A: Diplome d'études approfondies (literalmente: Diploma de Estudos
Aprofundados) .
5 N.E.: no original pfui't, onomatopeia que evoca o barulho de um fluido que foge.
6 N.R.: Mantivemos aqui o termo "perversão", de acordo com o original, mas
vale lembrar a homofonia existente na língua francesa entre "perversion" e "pere­
version" (pai-versão ou versão-do-pai), explorada por Lacan.
7 N.R.: Conf.: Escritos, p.577.
8 N.R.: ao pé da letra "a toda crina", com toda energia, a todo vapor. Podemos
observar ainda a homofonia existente entre crins e o verbo craindre (temer) .
9 N.T.: Referência à personagem de Alfred Jarry, o Rei Ubu, cuja forma de gover­
nar era absurdamente autoritária, grotesca e violenta.
1 O N.R.: em francês, a maneira normatizada de se empregar o verbo ir (a/ler) exige
no passado do indicativo o verbo auxiliar "ser" (étre); no exemplo citado, o verbo
utilizado foi o auxiliar "ter" (avoir).
11
N.E.: trata-se de uma palavra, derivada de heureusement (felizmente), que apare­
ce no primeiro texto do livro Bifures, escrito por Michel Leiris e publicado pela
Gallimard.
1 2 N.R.: Diz-se de processo de transformação de um sistema efetuado à pressão
constante. Conf.: Dicionário Houaiss da Ungua Portuguesa.
1 3 N.R.: La Premiere Gorgée de biere et autresplaisirs minuscules. Paris: Gallimard, 1 997:
romance de Philippe Delerm.

395
1 4 N.R.: Trata-se do "quinto caso" do relatório da Seção Clínica de Clermont­
Ferrand, Antena Clínica de Dijon e Seção Clínica de Lyon, intitulado "Clínica da
Suspensão".

396
S U PLEMENTO
EFEITO DO RETORNO À PSICOSE ORDIN Á RIA*
Jacques-Aiain Miller

Primeiramente, gostaria de parabenizar Marie-Hélene


Brousse pela organização desse seminário anglófono em Paris. Estou
verdadeiramente surpreso e muito contente de ver aqui quase cem
pessoas de diferentes países, pois desejava que esse seminário angló­
fono fosse retomado. Há muito anos houve uma série em Paris que
posteriormente foi interrompida, o que me causava certa preocupação
e, por isso, pedi a Marie-Hélene Brousse que relançasse o seminário.
É uma ocasião, importante para mim, de constatar que a audiência do
Campo Freudiano nos países anglófonos, longe de ter diminuído,
aumentou em número e em importância de dez anos para cá. O Campo
Freudiano não é, a meu ver, suficientemente representado no mundo
anglófono - o que temos a intenção de mudar. O Campo Freudiano
deseja se promover com vigor no mundo anglo-saxão - na Inglaterra,
nos Estados Unidos, na Austrália e em muitos outros países onde o
inglês é usado para transmitir o ensino de Lacan e nossa pesquisa.
Como título desse seminário, escolhi: "Psicose Ordinária".
Embora não seja uma categoria de Lacan, me parece que é uma
categoria lacaniana - uma categoria clínica lacaniana. É uma criação
que concebo como extraída do que chamamos "o último ensino de
Lacan", ele próprio um efeito do retorno ao desenvolvimento prag­
mático do seu ensino ao longo dos 30 anos do Seminário. Tenho a
intenção de lhes oferecer , nessa exposição informal sobre o con­
ceito de psicose ordinária, um eco um pouco mais amplo do uso
prático que faço desse termo há muitos anos com meus colegas,
que contribuíram bastante para lhe dar um contorno mais preciso.

399
AM É RICA DIVIDIDA

Freud se fez a famosa pergunta: "o que quer uma


mulher?". Ele a colocou como homem, talvez também como
mulher. Apesar dos trinta anos de ensino de Lacan, não temos a res­
posta, embora tenhamos tentando bastante. Não é então uma ques­
tão discriminadora.
Outra pergunta perturbou-me durante anos: "O que que­
rem os americanos?" Tenho a resposta! Uma resposta parcial. Eles
querem Slavoj Zizek. Querem o Lacan de Slavoj Zizek. Eles o pre­
ferem ao Lacan do Campo Freudiano, pelo menos no momento.
A questão é de fato a seguinte: eles querem conceitos
muito definidos? Ou querem espaço para discutir? Um espaço de
disputa? Este é o caso em relação aos conceitos da psicanálise.
Otto Kernberg, por exemplo, dizia que ficava muito inse­
guro pelo fato de não conseguir apreender a definição exata dos
conceitos lacanianos. "Eles mudam o tempo todo", dizia ele. Vocês
podem imaginar o caro Otto - que lia francês - buscando e queren­
do encontrar a definição do Nome-do-Pai, do significante... que não
se resume a uma, mas a uma pluralidade de definições. Ele se depa­
rava com definições contraditórias, ficando assim sempre perdido
em Lacan. É muito difícil dar sentido a essas mudanças constantes
nas significações dos conceitos de Lacan. Talvez seja porque Otto é
descendente de alemães. Sabemos que os prussianos querem defini­
ções muito rígidas, mas na verdade, isso também faz parte do espí­
rito americano. Lembro-me de Kernberg, quando terminei uma
conferência em Nova Iorque em 1 985 - a única que dei na IPA
(International P!Jchoana!Jtica!Association) - me dizendo, numa das per­
guntas que me fazia: "Mas cinquenta por cento da vida psíquica são
afetos". Como ele podia mensurar cinquenta por cento da vida psí­
quica? Isso diz bem de Otto Kernberg! Ele queria definições níti­
das. Também é o que, em parte, os americanos querem: um saber
bem definido, utilizável, com nomes. Por outro lado, tenho a

400
impressão de que os americanos reclamam espaço para transmitir
suas opiniões, para poder dizer: "Você pensa assim, eu penso assa­
do. Tenho minha própria concepção, uma outra ideia", sem, no
entanto, deixar de valorizar o prestígio e o saber. É uma maneira
muito democrática de questionar o saber do Outro.
Tenho a impressão de que a alma americana ou o espírito
americano está, se posso me permitir dizer, dividido entre um dese­
jo de extrema precisão e os números por um lado e, por outro, o
desejo de ser capaz de expressar seu próprio pensamento e seguir
suas próprias ideias.

A PSICOSE ORDIN Á RIA DEFINIDA A POSTERIOR/

A psicose ordinária se situa mais na segunda vertente. Esta


é a razão pela qual a escolhi para relançar esse seminário: a psicose
ordinária não tem definição rígida. Todo mundo é bem-vindo para
dar sua opinião e sua definição da psicose ordinária. Não inventei
um conceito com a psicose ordinária. Inventei uma palavra, inven­
tei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço
de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos
de sentido em torno desse significante. Não ofereci um saber-fazer
sobre a utilização desse significante. Fiz a aposta de que esse signi­
ficante poderia provocar um eco no clínico, no profissional. Queria
que ele ganhasse amplitude para ver até onde essa expressão pode­
na 1r.
Inspirei-me no que Lacan fez com o passe. Vocês sabem
que ele chamava o verdadeiro final de análise de "passe". Mas ele
apenas esboçou uma definição do passe, porque não queria que as
pessoas o imitassem. Se você diz que pode reconhecer o final de
análise quando o sujeito faz isso ou aquilo, ou diz isso ou aquilo,
todo mundo fará isso imediatamente. É o caso na universidade. Se
vocês precisam de uma nota, devem dizer as coisas de certa

401
maneira e num certo estilo. Então as pessoas se adaptam a isso e
vivem num mundo de sombras, numa "Cidade de Fantasmas",
como no artigo de Jean-Louis Gault1• Devo lhes confessar que a
universidade é uma cidade de fantasmas com pessoas que imitam
o que se supõe que elas são. Lacan deu apenas um esboço de defi­
nição do passe e propôs que ele fosse experimentado para ver, no
momento assim definido, o que surgiria, como as pessoas pode­
riam contribuir. Eu queria fazer algo desse tipo com a psicose
ordinária. Creio que isso atraiu o sentido em potência. Muitas pes­
soas vieram depois me dizer: "conheço um caso de psicose ordi­
nária!". Se tentamos agora lhe dar uma definição, trata-se de uma
definição a posteriori.

A CL ÍNICA BIN Á RIA E O TERCEIRO EXCLU ÍDO

Posso agora refletir sobre o motivo que me levou a sentir,


na época, a necessidade, a urgência e a utilidade de inventar este sin­
tagma - psicose ordinária. Diria que foi para driblar a rigidez de
uma clínica binária: neurose ou psicose.

N I P

Vocês sabem que cada significante é fundamentalmente


definido, na teoria de Roman Jakobson - que é, atualmente, uma
velha teoria - por sua posição em relação a outro significante ou a
uma falta de significante. A ideia de Jakobson é uma definição biná­
ria do significante. Acentuei, durante anos, que tínhamos basica­
mente uma clínica binária: neurose ou psicose. Um "ou isso ou
aquilo" absoluto. Tínhamos também a perversão, mas ela não pesa­
va da mesma maneira na balança, basicamente porque os verdadei­
ros perversos não se analisam de fato e, portanto, aqueles que estão
em análise são sujeitos que apresentam traços perversos. A perver-

402
são é um termo questionável que foi posto por terra pelo movimen­
to gcry. Essa categoria tende a ser abandonada.
Assim, nossa clínica tinha um caráter basicamente binário.
Resultado: durante anos, víamos clínicos, analistas, psicoterapeutas
se perguntarem se seu paciente era neurótico ou psicótico. Quando
vocês recebiam esses analistas em supervisão, podiam vê-los voltar,
ano após ano, a falar de seu paciente X, e se lhes perguntassem:
"Você concluiu se ele é neurótico ou psicótico?", eles respondiam:
"Não, até agora não conclui". E isso continuava assim durante
anos. Não era claramente uma maneira satisfatória de considerar as
coisas.
Era nitidamente uma dificuldade nos casos de histeria.
Quando não há, na histeria, uma identificação narcísica "suficiente­
mente boa" ao corpo próprio - "suficientemente boa" é um termo
winnicotiano do qual gosto muito - porque há frequentemente na
histeria alguns sinais de uma certa ausência do corpo, de uma certa
desordem do corpo, vocês podem se perguntar se essa desordem
vai a ponto de não mais concernir à histeria, mas efetivamente à
uma psicose. Vocês veem assim pessoas que tentam, durante anos,
decidir de que lado situar seu paciente. Ou então, ao encontrarem
sujeitos que testemunham um vazio que experimentam em si mes­
mos, podem se perguntar se esse vazio não é também histérico. É o
sujeito barrado que remete ao nada na neurose? Ou se trata do
vazio psicótico, do furo psicótico? Ano após ano, apesar da diferen­
ciação supostamente absoluta entre a neurose e a psicose funda­
mentada na foraclusão do Nome-do-Pai, verdadeiro credo lacania­
no - "eu te batizo neurótico se há o Nome-do-Pai, e eu te batizo
psicótico se ele não existe" - certos casos davam a impressão de se
situarem entre as duas. Com o passar do tempo, essa fronteira tor­
nou-se, na supervisão e na prática, espessa. Uma espessura crescen­
te como a que vocês constatam em volta da cintura!

N I P

403
Havia então algo que não andava bem, porque se era uma
neurose, não se tratava de uma psicose, ou se era psicose, não se tra­
tava de uma neurose.
A psicose ordinária era uma maneira de introduzir o ter­
ceiro excluído pela construção binária, religando-o simultaneamen­
te ao lado direito do binarismo.

Era uma maneira de dizer, por exemplo, que se vocês têm,


durante anos, razões para duvidar da neurose do sujeito, podem
apostar que é mais um psicótico ordinário. Quando é neurose,
vocês devem saber! A contribuição desse conceito era dizer que a
neurose não é um fundo de tela (wallpaper). A neurose é uma estru­
tura muito precisa. Se vocês não reconhecem a estrutura muito pre­
cisa da neurose do paciente, podem apostar ou devem tentar apos­
tar que se trata de uma psicose dissimulada, de uma psicose velada.
Não é seguro que a psicose ordinária seja uma categoria
objetiva. Vocês devem se perguntar se é uma categoria da coisa-em­
si. Podem dizer que a psicose ordinária existe objetivamente na clí­
nica? Não é seguro. A psicose ordinária interessa o saber de vocês,
sua possibilidade de conhecer alguma coisa do paciente. Vocês
dizem "psicose ordinária" quando não reconhecem sinal evidente
de neurose e, assim, são levados a dizer que é uma psicose dissimu­
lada, uma psicose velada. Uma psicose difícil de reconhecer como
tal, mas que deduzo de pequenos indícios variados. Trata-se de uma
categoria mais epistêmica do que objetiva. Isso concerne à nossa
maneira de conhecê-la.

404
A CONSTRUÇ Ã O LACANIANA DA PSICOSE NOS ESCRITOS

1 . O mundo imaginário instável

De qualquer forma, Lacan inicia com a neurose seu texto


clássico sobre a psicose nos Escrito� "De uma questão preliminar a
todo tratamento possível da psicosem. Ele pensa a psicose na pers­
pectiva da neurose. Deriva a estrutura da psicose daquela da neuro­
se, como uma variação da estrutura fundamental da neurose ou da
normalidade. Há uma conexão entre neurose e normalidade: o
complexo de É dipo. Em Lacan - e também em Freud - o comple­
xo de Édipo, traduzido por Lacan como metáfora paterna, é o fun­
damento tanto da realidade quanto da neurose. O complexo de
Édipo é o elo entre normalidade e neurose. É possível dizer que a
neurose é a normalidade. Uma pessoa supostamente normal é um
neurótico que não sofre de sua neurose ou que não sofre muito de
sua neurose, ou ainda que não trata sua neurose pela análise, que
trata sua neurose vivendo-a. É menos interessante! É mais interes­
sante cuidar de sua neurose pela análise, mas há pessoas que nem
sempre pensam nela e continuam a viver assim. Eu me sinto como
o doutor Knock, na famosa peça teatral francesa do início do sécu­
lo, que decidiu que todo mundo estava doente sem sabê-lo.
Qual é a base comum entre neurose e psicose do ponto de
vista de Lacan? Qual é o início da vida psíquica? No Lacan clássico,
o início da vida psíquica é o que ele chama de imaginário. Todo
mundo começa supostamente com o imaginário. Trata-se do Lacan
clássico. É duvidoso, porque isso remete à incidência da linguagem.
Efetivamente, desde o início, o sujeito está imerso na linguagem.
Mas, em seu texto clássico sobre a psicose, assim como em quase
todos os textos dos Escritos - com exceção dos últimos - ele cons­
trói a dimensão fundamental do sujeito como pertencendo à
dimensão imaginária. Trata-se, portanto, do nascimento suposta­
mente comum - seja um futuro neurótico, um futuro normal, um

405
futuro perverso, um futuro psicótico - daquele que habita, podería­
mos dizer, o estádio do espelho.
O estádio do espelho é a primeira estrutura do mundo pri­
mário do sujeito, o que significa que é um mundo muito instável. O
mundo estruturado pelo estádio do espelho é um mundo de transi­
tivismo. Transitivismo quer dizer que você não sabe se foi você ou
o outro que fez. Quando a criança bate na outra, diz: "Ele me
bateu". Há uma confusão: "fui eu ou foi ele?". É um bom exemplo
para compreender que se trata de um mundo de areias movediças.
É um mundo instável, um mundo sem consistência, um mundo de
sombras. Essa é a maneira como, em seu primeiro Seminário, Lacan
descreve o mundo primário ou, melhor, a maneira como ele o cons­
trói. Digo "constrói" porque é preciso começar fazendo a abstração
da linguagem que está presente desde o início. É a partir daí que ele
estrutura a psicose. Para ele, é também o mundo da mãe. É supos­
tamente um mundo cuja força pulsional é a do Desejo da Mãe, o
desejo desordenado da mãe em relação ao filho-sujeito. De certa
maneira, isso equivale a dizer que a loucura é o mundo primário. É
um mundo de loucura.

2. A ordem simbólica

A ordem simbólica vem no segundo tempo dessa constru­


ção. É no nível simbólico que vocês devem insistir na palavra
"ordem". Vocês seriam tentados a dizer "a ordem imaginária", "a
ordem real", mas é inexato. Na verdade, isso significa que a ordem
chega ao mundo imaginário com o simbólico. A estrutura lacaniana
introduz o simbólico - a linguagem, a metáfora paterna - como a
potência que impõe a ordem, que impõe a hierarquia, a estrutura, a
constância, que estabilizava o mundo imaginário instável. Lacan
condensa essa potência, essa força ordenadora do simbólico, no
Nome-do-Pai - utilizo a maiúscula P para representar a palavra
francesa Pere - que é um elemento a mais. É um mais ( +) que tem

406
como consequência um menos (-), um gozo a menos. O gozo ima­
ginário, que tornava possível o mundo imaginário, é extraído, sub­
traído. Vocês encontram, em todos os textos de Lacan, a ideia segun­
do a qual o gozo é evacuado pelo simbólico. Lacan utiliza essa
expressão de diferentes maneiras. É possível falar de extração, de
subtração, mas a ideia é sempre a mesma. Quando se introduz o ele­
mento ordenador do Nome-do-Pai, obtém-se uma subtração no
nível da libido, do gozo e das pulsões. Nos termos do falo, temos de
um lado, o falo completo (<1>) e, do outro, o menos-phi (-f.Jl) , que sig­

nifica "castração", termo freudiano para essa subtração de gozo (-J).

+NP <1>
-J (- f.Jl)

A partir desse momento, como sabem, Lacan constrói a


psicose como uma falta do Nome-do-Pai, Po, e a falta desse falo
castrado que ele escreve <l>o. Há dois buracos correlatos no esque­
ma I - devemos escrevê-los assim, com três setas - no nível do
gozo, que é de fato um "a mais".

O gozo imaginário, que é "a mais", continua a existir; o


Nome-do-Pai não é, então, operante. Isso que dizer que o menos-phi
não é operante, na verdade é menos-phi zero. Não vou explicar nova­
mente essa construção da psicose em Lacan. Mas o que ele intro­
duz simultaneamente, ao ler o Caso Schreber, é a ideia da metáfora
delirante. Em um momento preciso, nos é revelado o fato de que
ele não está articulado ao Nome-do-Pai, o que desencadeia sua psi-

407
cose extraordinária. Após um primeiro tempo de desordem total
do seu mundo - um mundo que era anteriormente estabilizado, ele
tinha de fato conseguido atingir uma posição bastante elevada
como juiz, seu mundo tinha, até então, sua maneira de se ordenar;
mas, ao ser solicitado a responder do ponto de vista do Nome-do­
Pai, ele não consegue, o que desencadeia sua psicose extraordiná­
ria - observa-se uma espécie de mundo ordenado que vai se reor­
ganizando. Schreber consegue, progressivamente, arranjar para si
um mundo onde é possível viver. Lacan diz então que, na verdade,
ele não tem uma metáfora paterna, mas bem mais uma metáfora
delirante.
De qualquer forma, um delirio é simbólico. Um delirio é
um conto simbólico. Um delírio é também capaz de ordenar um
mundo. Perguntem se o que ordena nosso mundo não é, em gran­
de parte, delirante. Se vocês relacionam isso ao saber científico, a
essas histórias de um Deus-todo-Poderoso, de mãe, de pai, etc.,
são levados a dizer que é em parte um delírio. Eu não diria isso -
não ousaria - mas as pessoas do Século XVIII ousavam dizer que
na verdade era, em parte, um delírio. O Campo Freudiano é um
delírio, não tem uma existência bem limitada. É alguma coisa para
alguns milhares de pessoas que no mundo falam do Campo
Freudiano, mas na verdade ele não tem existência precisa. Quando
vocês leem sobre Maomé - Deus proíbe que eu diga qualquer
coisa contra Maomé - que ele partiu sozinho, que trazia uma men­
sagem divina e a escrevia, esse discurso ordenou um milhão de
pessoas no mundo. Era um delírio divino. Na verdade, a hipótese
segundo a qual um delírio pode ordenar o mundo não é comple­
tamente forçada.
Schreber tinha um delírio privado. Ele não conseguiu fazer
do seu delírio um delírio para todos na Prússia do final do século
XIX. Precisou privatizar, montando um empreendimento delirante
apenas para si mesmo. Então, é possível ter uma ordem simbólica
delirante.

408
DO NOME PRÓPRIO AO PREDICADO

Devo falar que, em seu último ensino, Lacan chega a dizer


que toda a ordem simbólica é um delírio, incluindo sua própria
construção da ordem simbólica. A vida não tem nenhum sentido.
Atribuir sentido já é delirante. Trata-se de uma convicção profunda­
mente enraizada em Lacan. Na prática, quando você compreende o
que o paciente diz, está capturado por seu próprio delírio, pela sua
maneira de dar sentido. Seu trabalho como clínico não é compreen­
der o que ele diz. Assim, você não participa do delírio dele. Seu tra­
balho é apreender sua maneira particular, insólita de dar sentido às
coisas, de dar novamente sempre o mesmo sentido às coisas, de dar
sentido à repetição em sua vida.
Isso introduz uma mudança de estatuto no Nome-do-Pai.
Nos textos clássicos de Lacan, utiliza-se o Nome-do-Pai como
nome próprio. Quando se pergunta: "o sujeito tem o Nome-do-Pai
ou há foraclusão do Nome-do-Pai?", o Nome-do-Pai é usado logi­
camente como nome próprio, o nome próprio de um elemento par­
ticular chamado Nome-do-Pai. Seguindo a ideia da ordem simbóli­
ca delirante, é possível dizer que o Nome-do-Pai não é mais um
nome próprio, mas um predicado definido na lógica simbólica.

NP (X)

Tal elemento funciona como um Nome-do-Pai para um


sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena seu mundo. Isso
não é o Nome-do-Pai, mas tem a sua qualidade, a propriedade. É
também muito útil pensar no fato de que Schreber levou uma
vida aparentemente normal por cinquenta anos. Sua psicose ape­
nas se desencadeou quando ele tinha 51 anos, durante o que se
chama, em medicina, de climatério da vida do homem. Esta ideia
nos ajuda a compreender como seu mundo poderia funcionar. O
que teria acontecido se Schreber tivesse vindo à análise antes do

409
desencadeamento de sua psicose? Ainda não havia a psicanálise
naquela época, mas imaginem que ele tivesse sido tratado por
Freud. Talvez antes dos 51 anos, vocês já teriam podido observar
particularidades na construção de seu mundo, que os teria levado a
dizer que ele era um psicótico ordinário. Freud não conhecia a psi­
cose ordinária - é claro que ele conhecia muitas coisas bem mais
importantes -, mas talvez o que chamamos de psicose ordinária seja
uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento. Esta é,
por exemplo, uma das maneiras de apreender o conceito, sobre os
quais vocês debateram.
A questão incide então sobre o Nome-do-Pai como predi­
cado. Isso significa dizer que ele é um substituto substituído. O
Nome-do-Pai se substitui ao Desejo da Mãe, impõe sua ordem ao
Desejo da Mãe. E o que chamamos de predicado do Nome-do-Pai
é um elemento, uma espécie de make-believe do Nome-do-Pai, um
compensatory make-believe (um fazer-crer compensatório) do Nome­
do-Pai, um CMB. Vão fazer crer - make-believe - que estamos reali­
zando um estudo altamente científico! E que se deveria dizer que se
tem a intenção de observar e de fazer uma lista completa de todas
as formas possíveis de CMB na psicose! De fato, é mais difícil que
isso, é mais difícil que esse tipo de piada.

"UMA DESORDEM [. . . ) NA JUNÇ Ã O MAIS ÍNTIMA


DO SENTIMENTO DE VIDA NO SUJEIT0"3

O que se tenta pinçar falando da psicose ordinária? Ou


seja, quando a psicose não é evidente, não parece ser uma neurose,
não tem a assinatura da neurose, nem a estabilidade, nem a constân­
cia, nem a repetição da neurose. Uma neurose é algo estável, uma
formação estável. Quando vocês não constatam - esta é também
uma questão percebida pelo clínico - que há elementos bem defini­
dos, bem recortados da neurose, a repetição constante e regular do

410
mesmo, e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordi­
nária, tentam dizer então que é uma psicose, embora ela não seja
manifesta, mas ao contrário dissimulada.
Vocês devem pesquisar todos os pequenos indícios. É uma
clinica muito delicada. Frequentemente é uma questão de intensida­
de, uma questão de mais ou menos. Isso os orienta para o que
Lacan chamou de "uma desordem provocada na junção mais ínti­
ma do sentimento de vida no sujeito"4• Trata-se da frase, na qual
insisto há anos em meus cursos e nas discussões com meus colegas,
que está na página 565 dos Escritos. Na excelente edição anglófona
de Bruce Fink, esse termo é traduzido na página 466 como "a dis­
turbance", uma boa tradução de "désordre". Ele não usa "trouble", que
seria um termo do DSM, mas "disturbance": "a disturbance that occurred
at the inmostjuncture rf the suiject 's sense rf life"5• Pois bem, é isto que
buscamos na psicose ordinária, essa desordem na junção mais ínti­
ma do sentimento de vida no sujeito. "Sense rf life" se traduz como
"sentimento de vida". "Sentimento de vida" ou "como você vive
sua própria vida" é um termo muito sincrético. É muito difícil ana­
lisá-lo. Os psiquiatras tentaram delinear esse "sentimento de vida".
Eles falam de sinestesia, de sentimento geral do sujeito, de "ser-no­
mundo".
A desordem se situa na maneira como vocês experimen­
tam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu
corpo e no modo de se relacionarem com suas próprias ideias.
Mas qual é essa desordem, já que também os neuróticos a experi­
mentam? Um sujeito histérico experimenta essa desordem na rela­
ção com seu corpo, um sujeito obsessivo a experimenta em rela­
ção às suas ideias. Que desordem é essa que atinge "a junção mais
íntima do sentimento de vida no sujeito"? Ela é muito difícil de
formular.

41 1
UMA TRIPLA EXTERNALIDADE

Tentarei organizar essa desordem no sentimento da vida


em relação a uma tripla externalidade: uma externalidade social,
uma externalidade corporal e uma externalidade subjetiva.
Os indícios devem ser situados nos três registros.

1 . Uma externalidade social

A respeito da externalidade social, ou seja, a relação com


a realidade na psicose ordinária, a questão é a seguinte: qual é a
identificação do sujeito com uma função social, com uma profis­
são, com seu lugar ao sol, como se diz em inglês? Encontramos o
sinal mais claro na relação negativa do sujeito com sua identifica­
ção social. Quando se deve admitir que o sujeito é incapaz de con­
quistar seu lugar ao sol, de assumir sua função social? Quando
observam um desespero misterioso, uma impotência na relação
com essa função. Quando o sujeito não se ajusta, não no sentido
da revolta histérica ou da maneira autônoma do obsessivo, mas
quando existe uma espécie de fosso que constitui misteriosamen­
te uma barreira invisível. Quando observam o que chamo de desli­
gamento, uma desconexão. Vocês veem então, às vezes, sujeitos indo
de uma desconexão social à outra - desligando-se do mundo dos
negócios, desligando-se da família, etc. É um percurso frequente
nos esquizofrênicos.
Eu disse: esquizofrenia. Esta pode ser a realidade do sujei­
to, embora possa parecer uma psicose ordinária, porque isso não é
evidente. Na perspectiva de vocês, trata-se de uma psicose ordiná­
ria. Uma vez que disseram que é uma psicose ordinária, tentem clas­
sificá-la de uma maneira psiquiátrica. Não digam simplesmente que
é uma psicose ordinária; devem ir mais longe e reencontrar a clíni­
ca psiquiátrica e psicanalítica clássica. Se não fizerem isso - este é o
perigo do conceito de psicose ordinária - é o que se chama um

412
"asilo da ignorância". Ele se torna então um refúgio para não saber.
Ao falarmos de psicose ordinária, de qual psicose falamos?
Pudemos, por exemplo, constatar isso no último colóquio
das Seções Clínicas francófonas [o ciclo UFORCA, Conversations sur
des situations sui?Jectives de déprise sociale, na Maison de la Mutualité, em 28
e 29 de junho de 2008] quando, num caso de uma psicose ordiná­
ria, um colega - psicanalista e psiquiatra - disse: "É uma paranoia
sensitiva, no sentido de Kretschmer". Tratava-se de uma psicose
ordinária porque ela não era manifesta, mas uma vez que se diz que
é uma psicose ordinária, isso significa que é uma psicose. E se é uma
psicose, pode ser relacionada às categorias nosográficas clássicas.
Tive a impressão que meu colega tinha razão, que nesse caso era
uma paranoia sensitiva de Kretschmer. É um convite a ir mais
longe.
O que tenho a dizer sobre a identificação social negativa é
isso. Mas vocês também devem ficar atentos diante das identifica­
ções sociais positivas na psicose ordinária. Digamos, quando esses
sujeitos investem muito no seu trabalho, na sua posição social,
quando têm uma identificação bastante intensa com sua posição
social. Vocês podem ver então - e isso ocorre constantemente -
psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psico­
se, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem
mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse traba­
lho era seu Nome-do-Pai. Lacan diz que, em nossa época, o Nome­
do-Pai é o fato de ser nomeado, de ser atribuído a uma função, de
ser nomeado para. Atualmente, o Nome-do-Pai é aceder a uma posi­
ção social. Constata-se efetivamente que ser membro de uma orga­
nização, de uma administração, de um clube pode ser o único prin­
cípio do mundo de um psicótico ordinário. Por exemplo, ter um tra­
balho tem hoje um valor simbólico extremo. As pessoas estão pron­
tas a se estapear por empregos mal remunerados, justamente para
ter o valor simbólico de estarem empregadas. Os governos são sufi­
cientemente inteligentes para compreender isso claramente e para

413
lhes oferecer empregos irrisoriamente remunerados. O governo
francês quer, atualmente, estender isso aos psicólogos e psicotera­
peutas. Falamos sobre isso esses dias. Eles querem criar uma nova
profissão de psícoterapeutas que seria mais mal remunerada do que
a fisioterapia.
Era isso o que tinha a dizer em relação à externalidade
social com a vertente positiva e negativa de identificação social.

2. Uma externalidade corporal

A segunda externalidade diz respeito ao Outro corporal, o


corpo como Outro para o sujeito - partindo do princípio: "Você
não é um corpo, mas você tem um corpo", como diz Lacan. Na his­
teria, há a experiência de estranheza do corpo, o corpo só existe efe­
tivamente na sua cabeça. No corpo do macho há também pelo
menos uma parte do corpo que só existe na cabeça, o pênis. Isso é
bem conhecido.
Na psicose ordinária, vocês devem ter algo a mais, uma
brecha. A desordem mais íntima é essa brecha na qual o corpo se
desfaz e onde o sujeito é levado a inventar para si laços artificiais
para apropriar-se de seu corpo, para "prender" (serrer) seu corpo a
ele mesmo. Para dizê-lo num termo da mecânica, ele tem necessida­
de de um grampo para se sustentar com seu corpo.
A dificuldade reside no fato de que todos esses meios arti­
ficiais que pareciam anormais, são banalizados atualmente. Os pier­
cings de joias incrustadas estão na moda hoje em dia. As tatuagens
também. A moda é claramente inspirada na psicose ordinária.
Certos usos das tatuagens são um critério da psicose ordinária
quando vocês sentem que, para o sujeito, é uma maneira de prender
seu corpo a si mesmo. Esse elemento suplementar faz função de
Nome-do-Pai. Uma tatuagem pode ser um Nome-do-Pai na relação
que um sujeito tem com seu corpo. Como comparar isso à histeria?
Não podemos falar senão em termos de tonalidade - isso não tem

414
o mesmo tom - e em termos de excesso - isso excede as possibili­
dades da histeria. A histeria é restringida pelos limites da neurose,
ela é limitada pelo menos-phi. Apesar da revolta e do desespero, a his­
teria é sempre submetida à restrição, enquanto vocês sentem o infi­
nito na falha presente na relação do psicótico ordinário com seu
corpo.

3. Uma externalidade subjetiva

Não discutirei a vida sexual. Após a realidade social - o


Outro social - e o Outro corporal, falarei do Outro subjetivo. O
sinal mais frequente disso é observado na experiência do vazio, de
vacuidade, do vago no psicótico ordinário. Podemos encontrar isso
em diversos casos de neurose, mas, na psicose ordinária, busca-se
um índice do vazio e do vago de natureza não dialética. Nesse caso,
há uma fixidez especial desse índice. Gostaria também de desenvol­
ver aqui a relação com as ideias, mas deixo isso de lado para uma
próxima vez.
Vocês devem também procurar a fixidez da identificação
com o objeto a como dejeto. A identificação não é simbólica, mas
real, porque ultrapassa a metáfora. O sujeito pode se transformar
num rebotalho, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo.
Digo que é uma identificação real, pois o sujeito vai na direção de
realizar o dejeto sobre a sua pessoa. Finalmente, pode defender-se
disso por meio de um maneirismo extremo. Podemos ter então dois
extremos. Posso me referir aqui à exposição de Pierre-Gilles
Guéguen6 sobre Genet. Vocês se lembram que Pierre-Gilles
Guéguen falou da identificação não dialética de Genet ao dejeto. Eu
introduziria também uma referência à exposição de Jean-Louis
Gaule sobre o parceiro de seu analisando. Ele disse que o verdadei­
ro parceiro de vida desse sujeito não era na verdade uma pessoa,
mas bem mais a própria linguagem; vocês podem ver nesse sujeito
um eco especial da fala do Outro. Na neurose também encontra-

415
mos isso, mas no caso de Jean-Louis Gault, vemos uma espécie de
estigma produzido por cada enunciado desses outros. De fato, trata­
se de uma relação fundamental não com uma pessoa, mas com a
linguagem.
Eu poderia me referir ao caso de Julia Richards que vocês
ouvirão na sexta-feira: "Uma dialética capitalista no caso de uma
psicose ordinária"8• É um caso no qual o sujeito se apresenta com a
demanda de "recuperar os dez por cento que Uhe] faltam sempre
para poder ser novamente são". Nessa maneira de se apresentar,
podemos ver de entrada que há a sensação de não ser sadio. Ele diz
isso de início, pois o demanda com uma precisão kernberguiana -
Kernberg sabe que os afetos representam cinquenta por cento! Pois
bem, esse sujeito sabe que precisa de dez por cento a mais!
Suponho que ele é americano! Ele nos dá uma precisão com núme­
ros. Nessa primeira frase pela qual ele se apresenta, podemos ver
seu delírio. Os dez por cento de delírio. "Faltam-me dez por
cento!". Há alguma coisa desviada, que ele atribui a um número.
"Faltam-me dez por cento de castração" [risos] . Não é engraçado;
nas conferências clínicas, as pessoas riem muito de coisas que não
são engraçadas. Esse sujeito também diz isto: "Por que haveria um
Deus benévolo? Sou sortudo, e isso explica esse sudário funesto,
essa paranoia ... Eu não deveria me queixar tanto" - conectado à
referência a Deus. É também uma pequena chave que nos permite
entender que seu parceiro é Deus. Não importa que ele tenha dito
que sua vida está sob um "sudário funesto" - o que também pode
ser dito por um neurótico romântico - mas, clinicamente, isso
pende mais para a psicose. Quando diz adiante que "o centro não
se sustenta, tudo se desagrega, é científico", todos os seus labirin­
tos de frases parecem condensar a mesma ausência em seu centro.
Julia Richards acrescenta: "seu ponto mais sólido de identificação,
embora imaginário, é construido com cada fragmento de identifica­
ção paterna à sua disposição". Tudo isso assinala a psicose ordiná­
ria, as identificações são construídas com um bricabraque.

416
Perguntei como traduzir "bric-à-brac' em inglês antes da exposição.
Não conhecia esta tradução: ''jlotsam andjetsam". Gostei muito. Mr.
Flotsam and Dr. Jetsam!

AS CONSEOUÊNCIAS TEÓRICAS DA PSICOSE ORDIN Á RIA

Tenho a impressão de que as consequências teóricas da


psicose ordinária vão em direções opostas.
Uma direção nos conduz a uma afinação do conceito de
neurose. Como disse, a neurose é uma estrutura particular, não é
um fundo de tela (wallpaper). Vocês precisam de certos critérios para
dizer "é uma neurose": uma relação com o Nome-do-Pai, não um
Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do
menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impos­
sibilidade. Deve haver - para utilizar os termos freudianos da
segunda tópica - uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os
significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não
existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de
outra coisa.
Numa direção então somos levados a apurar o conceito de
neurose, mas em outra - essa é a consequência oposta - somos con­
duzidos a uma generalização do conceito de psicose. Lacan segue
essa direção. Essa generalização da psicose significa que não existe
na verdade o Nome-do-Pai. Ele não existe. O Nome-do-Pai é um
predicado, sempre é um predicado. Sempre é um elemento especí­
fico entre outros que, para um determinado sujeito, funciona como
um Nome-do-Pai. Ao dizerem isso, vocês apagam a diferença entre
neurose e psicose. É uma perspectiva consoante com "Todo mundo
é louco", com "Todo mundo delira à sua maneira". Lacan o escre­
ve em 1 978. Comentei essa frase nas últimas aulas do meu curso
desse ano, "Todo mundo é louco, ou seja, delirante". Esse não é o
único ponto de vista, mas num certo nível, a clínica é assim. Você

417
não pode funcionar como psicanalista se não está consciente de que
aquilo que sabe, seu mundo, é delirante - fantasístico, podemos
dizer, mas fantasístico significa justamente delirante. Ser psicanalis­
ta é saber que seu próprio mundo, sua própria fantasia, sua manei­
ra de fazer sentido é delirante. Essa é a razão pela qual vocês ten­
tam abandoná-la justamente para perceber o delírio próprio de seu
paciente) sua maneira de fazer sentido.
Bom, percebi ter sido seguido, durante uma hora e meia,
com atenção ao que digo.

418
PERGUNTAS DO P Ú BLICO

Roger Litten Acompanhei com grande interesse o que


-

você disse, particularmente o que pontuou: sua advertência contra


o "fazer-sentido". No entanto, há alguma coisa que não faz sentido
para mim. Há quase uma contradição entre os dois eixos diferentes
que você seguiu. Começando com a clínica binária inicial - a distin­
ção entre neurose e psicose - e com a emergência, podemos dizer,
da noção de psicose ordinária, conduzindo a uma ampliação ou a
um obscurecimento da distinção entre neurose e psicose. Em segui­
da, você tomou, por outro lado, bastante cuidado de voltar a situar
o conceito de psicose ordinária na clínica psiquiátrica e binária.

Jacques-Aiain Miller De fato, eu o fiz assim: disse


-

Neurose/Psicose com espessamento da fronteira...

N I P

E depois fiz isto...

N hP

... retorno às psicoses.

Roger litten Então, de certa maneira, pouco importa o


-

espessamento dessa fronteira, pois a psicose ordinária deve ser


situada no lado das psicoses. Desculpe-me obscurecer o que você

419
esclareceu. Então, a tendência quase oposta é aceitar a modificação
do conceito de neurose, na medida em que ela se tornaria uma
estrutura muito específica. Você disse isso de uma maneira diverti­
da: a neurose não é mais a tela de fundo (wallpaper). A psicose é o
fundo de tela (wallpaper), a neurose quase dá lugar a uma modifica­
ção específica do Nome-do-Pai contra a possibilidade de emergên­
cia da psicose. Tem-se quase simultaneamente a distinção da clínica
binária e o obscurecimento dessa distinção. Eu me pergunto se há
algo que eu não entendi.

Jacques·Aiain Miller - Na neurose, o Nome-do-Pai está em


seu lugar. O Nome-do-Pai tem seu lugar ao sol e o sol é uma repre­
sentação do Nome-do-Pai. Supõe-se que na psicose, quando ela é
detectada e construída à maneira lacaniana clássica, há um furo
nesse lugar. É uma diferença nítida.
O Nome-do-Pai está ali (na coluna à esquerda) enquanto
aqui (na coluna do meio), ele não está. Na psicose ordinária, não há
o Nome-do-Pai, mas há alguma coisa, um aparelho suplementar.

Neurose Psicose Psicose ordinária

É possível dizer então que é uma terceira estrutura. De


fato, existe na coluna à esquerda alguma coisa, enquanto que na do
centro, ela não existe. Já na psicose ordinária (coluna à direita) há
alguma coisa que se ajusta mais ou menos. Na realidade é a mesma
estrutura (da coluna central). No fim das contas, na psicose, quan­
do não se trata de uma catatonia completa, há sempre algo que
torna possível para o sujeito se virar ou continuar a sobreviver. De
certa maneira, o verdadeiro Nome-do-Pai não vale mais que isto, é
simplesmente um make-believe que funciona.

420
Então, consegui ter uma clínica binária, uma clínica terná­
na e uma clínica unitária, as três em uma. Como a Santíssima
Trindade!
Nem todas as psicoses assumem a forma de uma psicose
desencadeada, explodida. Existem psicóticos que poderão viver
toda a sua vida de psicótico tão calmamente quanto na psicose ordi­
nária. Há psicoses adormecidas, como existem espiões adormeci­
dos, que jamais acordarão. Há diferença entre as psicoses que
podem ser desencadeadas e as que não podem. A psicose é um
vasto continente, um continente imenso. Observem a diferença
entre um bom paranoico, requintado e forte que constrói de fato
um mundo para ele e para os outros, e um esquizofrênico que não
pode sair do seu quarto. Nomeamos tudo isso de psicose.
Quando se trata de uma paranoia, o make-be!ieve do
Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. Espera-se
que, ao receber um paranoico em seu consultório, você não o clas­
sifique como psicótico ordinário, pois a psicose é percebida. Mas
há alguns, do gênero paranoia sensitiva como mencionei anterior­
mente, que não são nítidos desde o começo. Somente após três
anos de análise, o analista percebeu algo estranho que indicava a
direção oposta, percebeu que o sujeito construía, a cada dia, sua
paranoia. Há esquizofrênicos socialmente desconectados, enquan­
to os paranoicos são totalmente conectados socialmente. Algumas
das grandes organizações são frequentemente dirigidas por pode­
rosos psicóticos, cuja identificação é supersocial. Portanto, o
campo das psicoses é imenso.
A referência do desencadeamento serve quando se trata
desse tipo de psicose compensado com um CMB. Em certo
momento, o make-believe, o "fazer-crer", cai, é cortado. O mundo do
sujeito é arruinado, o desencadeamento é então manifesto. Depois,
o sujeito pode se reorganizar tão bem quanto antes, ou seja, com
um dijicit - da ordem de um "não suficientemente bom" - que des­
conecta progressivamente o sujeito da realidade social.

421
Schreber apresentava isso claramente. Tinha uma identifi­
cação compensatória, mas, após ser ter atingido o ápice, seu mundo
se esmigalha. Depois, consegue ser um bom paciente, segundo os
relatórios médicos, consegue retomar suas conversas com sua
mulher e escrever seu livro. Ele se torna escritor. Após o desenca­
deamento, consegue se restabelecer numa espécie de atividade com­
pensatória.
A psicose ordinária evidencia a existência de "uma desor­
dem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito". Isso
significa que é possível conectar todos os pequenos detalhes, que
parecem distantes uns dos outros, a uma desordem central. Trata­
se então de ordenar o caso. Nos casos ditos borderline, se diz que
não parecem ser nem uma psicose nem uma neurose. Não cremos
nisso. A categoria da psicose ordinária se origina da prática, das
dificuldades práticas. Se vocês não reconhecem uma neurose e se
não há sinais evidentes de psicose, procurem os pequenos sinais.
É uma clínica dos pequenos indícios de foraclusão. Por exemplo,
na breve lista de pequenos sinais que apresentei, vimos que uma
identificação social ao trabalho é normal. Mas uma intensificação
da identificação com o trabalho pode indicar outra direção. É uma
clínica da tonalidade. É o uso disso. Mas a psicose ordinária deve
ser redutível a uma forma clássica de psicose ou a uma forma ori­
ginal de psicose.

Um participante vindo de Israel Essa concepção nos conduz


-

ao conceito do sujeito como defesa. Todas as estruturas são defe­


sas, mas defesas contra o quê? Qual é o estatuto disso contra o que
nos defendemos?

Jacques-Aiain Miller Mencionei a palavra "defesa" apenas


-

uma vez. Foi você quem escolheu fazer dela um Nome-do-Pai


dessa exposição! A ideia geral é que nos defendemos contra o real,
contra o que não podemos tornar sensato, ou contra o que nos

422
torna loucamente sensatos. Apenas em nossos sonhos ressurge o
que não tem sentido. Na verdade, os sonhos têm sentido, mas os
pesadelos que nos fazem acordar, geralmente o fazem partir de
um elemento fora-do-sentido. Neles se toca talvez mais de perto
a verdade. É claro que os delírios são construídos em torno desse
real que não tem sentido, e esse fora-do-sentido aparece e produz
furos no discurso do paciente. Mesmo na apresentação de pacien­
tes de uma hora, podemos ver essas setas que Lacan desenhou no
esquema I, transpassando o discurso do paciente. O discurso do
paciente é tecido em torno do real. Vocês podem mesmo nomeá­
lo uma defesa.

Vyacheslav Tsapkin - Pessoalmente, partindo da minha


experiência clínica, descobri que o conceito de psicose ordinária é
uma ideia brilhante, muito inventiva, mas gostaria justamente de
informá-lo da existência de certos precedentes pouco agradáveis a
esse respeito. Isso decorre do lugar comum do qual os psiquiatras
teriam seriamente abusado na União Soviética. Há nisso um pano­
de-fundo teórico. Na base, havia a teoria de Andrei Snezknevsky
que comportava a ideia de psicose de progressão lenta. Tal ideia
teve duas consequências sociais. Por um lado, durante esses anos
soviéticos, os psiquiatras buscavam encontrar indícios menores.
Eles perguntavam: "Qual é seu autor preferido?", e se a resposta
fosse: "Bem, gosto muito de Kafka", o psiquiatra não tinha a
menor dúvida sobre o diagnóstico. Desse modo, os dissidentes
eram considerados psicóticos por razões óbvias. Como segunda
consequência, ainda hoje - isso é específico da Escola de Psiquiatria
de Moscou, clínica psiquiátrica na qual trabalhei durante anos - eles
tratam os pacientes neuróticos como psicóticos, ministrando-lhes,
apesar de serem neuróticos, grandes doses de neurolépticos, porque
o diagnóstico preferido da Escola de Snezhnevsky, a Escola de
Psiquiatria de Moscou, era a esquizofrenia com aparência de neuro­
se, ou uma psicopatia com aparência de esquizofrenia.

423
Jacques-Aiain Miller Por anos, discordei da ideia de uma
-

psicose não desencadeada. Não gostava dessa ideia de psicose não


desencadeada por temer o abuso da noção de psicose adormecida.
Mas os fatos clínicos estão aí. Quando se tem uma psicose que se
desencadeia, o período que antecede ao desencadeamento é de psi­
cose não desencadeada. Eu era a favor do balizamento da psicose
adormecida que podia se desencadear. Era clinicamente necessário.
O passo a mais é compreender que certas psicoses não conduzem
a um desencadeamento: psicoses que apresentam uma desordem no
ponto de junção mais íntimo dos sujeitos que evoluem sem baru­
lho, sem explosão, mas com um furo, um desvio ou uma descone­
xão que se perpetua.
Eu me lembro bem do psiquiatra soviético que deu seu
diagnóstico ao leitor de Kafka, o que foi destacado em 1 992. A
União Soviética era em si um delírio! E de fato, isso desapareceu
completamente! Era uma realidade delirante. Foi o sonho de Lênin
durante setenta anos!

Thomas Svolos - Na clínica freudiana, pelo apego de Freud


ao Pai e ao complexo de Édipo, a neurose estava no centro da clí­
nica; quanto às psicoses extraordinárias podemos apenas ratear em
relação a elas. Creio que com a clínica da psicose ordinária, temos
uma verdadeira concepção lacaniana da psicose extraída do traba­
lho de Lacan, que nos deu uma clareza sobre a psicose. Podemos
ver atualmente as velhas fórmulas que havíamos adotado - esquizo­
frenia, mania, paranoia - como variantes da psicose ou como tipos
de psicose, mas a psicose ordinária elucidou algo mais básico sobre
as psicoses. Digo isso a partir do trabalho clinico. Tomando uma
categoria como esquizofrenia, devemos compreender os momentos
entre os episódios como sinais de uma esquizofrenia adormecida,
silenciosa ou latente, ou devemos tomá-los como uma psicose ordi­
nária? Em outras palavras, penso que se pode ter uma noção restri­
ta e específica da psicose ordinária, à qual Marie-Hélene Brousse9

424
fez alusão, ou seja, a psicose ordinária banal, muito estável e bem
delimitada - mas a noção de psicose ordinária abre para uma teoria
mais geral das psicoses, a partir da qual é possível articular a estru­
tura específica da esquizofrenia ou da paranoia. A utilidade do con­
ceito se situa na maneira com que amplia nossa capacidade de con­
ceituar a psicose e leva a refletir sobre as vias de estabilização de um
modo que não existia anteriormente na literatura. A literatura dos
anos 1 960 ou dos anos 1 970 sobre a psicose parece uma literatura
muito diferente daquela dos dez últimos anos. Penso que o projeto
de pesquisa desembocou numa noção mais geral das psicoses.

Jacques-Aiain Miller - Concordo. Em relação a Freud, ele


não era evidentemente psiquiatra. Estudou Schreber por meio de
suas obras. Mas teve um caso de psicose ordinária - O Homem dos
Lobos. Ele era psicótico, mas se tratava de uma psicose ordinária
porque apresentava muitos traços de neurose. Ele ajudou Freud a
esclarecer as neuroses. Ao lerem Freud, podem duvidar de sua psi­
cose, mas quando seguem o desenvolvimento de Ruth Mack
Brunswick é difícil duvidar disso. Há muito tempo, comentei, por
um ano, com meus colegas o caso do Homem dos Lobos. Alguns
diziam que ele era neurótico, outros que era psicótico, e meu prazer
era deixar isso em suspenso porque provocava grande interesse,
numerosas observações interessantes da parte de meus colegas. De
qualquer forma, o ponto de basta não está no livro de Freud, mas
no livro de Mack Brunswick10•

Penny Georgiou - Minha questão se relaciona à eventualida­


de de poder esclarecer ou não alguma coisa sobre o desencadea­
mento. Nessa segunda-feira, houve uma discussão a respeito dessas
psicoses sobre as quais nos perguntamos se eram ou não desenca­
deadas. Havia uma questão sobre a diferença entre os episódios de
descompensação, que são a erupção do fenômeno, e o desencadea­
mento estrutural da psicose.

425
Jacques-Aiain Miller Creio ter respondido à questão dizen­
-

do que quando se vai, pela primeira vez, de uma situação CMB à


abertura como um buraco, a um buraco, e isso continua sem parar,
vocês têm um desencadeamento. Há "descompensações múltiplas"
quando vocês têm um pattern repetitivo que é compensado ininter­
ruptamente. Não falamos então de desencadeamento. Diz-se
"desencadeada" quando isso se produz de uma vez. Por outro lado,
vocês têm o que pode ser chamado, em termos desenvolvimentis­
tas, de "psicose evolutiva". Vemos psicoses com um corte e psicoses
com um declínio, quando se trata de um processo contínuo, de uma
psicose evolutiva.

Manya Steinkoler Você evocou a sexualidade, mas não


-

falou dela. Falou do Outro corporal, do Outro social, etc. Qual é a


sexualidade de uma psicose não desencadeada?

Jacques·Aiain Miller A sexualidade não é típica. Não há


-

vida sexual típica. Vocês poderiam fazer uma lista de certas expe­
riências estranhas na vida sexual. Publicamos um livro sobre diver­
sos casos clínicos, intitulado L 'amour dans les psychosd\ em que
temos diferentes abordagens das maneiras de viver a sexualidade.
Nos homens há, às vezes, um empuxo-à-mulher pelo ato sexual. À s
vezes há, ao contrário, uma sexualidade que permite se reapropriar
do corpo. À s vezes, o corpo se fragmenta. Não há nada específico.
Busquem simplesmente uma desordem no ponto de junção mais
íntimo do ato sexual, pois geralmente a encontramos.

X Pergunto sobre o desencadeamento como encontro


-

com Um-Pai, e a generalização desse encontro na psicose ordinária


como sendo algo que vem interromper o CMB.

Jacques-Aiain Miller Quando falamos de CMB trata-se de


-

uma compensação da foraclusão do Nome-do-Pai. Então, suposta-

426
mente, para haver o desencadeamento dessa psicose, é preciso
haver um elemento que vem em terceiro lugar sob a modalidade de
Um-Pai. Quando supomos que há uma foraclusão do Nome-do­
Pai, supomos que não há necessariamente Um-Pai, mas alguma
coisa que ocupa o lugar ternário no laço com o sujeito.

427
Notas

N.E.: Este texto foi pronunciado originalmente em inglês em um Seminário


Anglófono realizado em Paris, em 2008, sobre a Psicose Ordinária. Sua transcri­
ção inicial em inglês foi realizada por Adrian Price, sendo também traduzido para
o francês por Maire Brémond e estabelecido por Yves Vanderveken; Miller,
então, o revisou, mas não o corrigiu. A tradução para o português foi primeira­
mente difundida na internet no número 3 da revista digital Opção Lacaniana online
(http: I I www.opcaolacaniana.com.brl nranteriorl numero3 I texto l .html) e ado­
tou a versão francesa, publicada em: Quarto, Retour sur la psychose ordinaire,
n.94/95, Bruxelles, École de la Cause freudienne, 2009, p.40-5 1 . Para este livro, a
tradução para o português passou por uma revisão. Tradução: Elisa Monteiro;
Revisão da Tradução: Sérgio Laia.
1 Gault, J.-L. L'envers de la famille. Quarto, Retour sur la psychose ordinaire,
n.94l95, Bruxelles, École de la Cause freudienne, 2009, p.66-7 1 .
2 Lacan, J. (1 957-1 958). D e uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p.537-590.
3 Idem. Ibidem, p.565.
4 Idem. Ibidem.
5 Idem. (1 957-1 958). Écrits: The First Complete Edition in English. Traduzido por
Bruce Fink: WW Norton & Company, 2007, p.466.
6 GUÉGUEN, P.-G. Psychose ordinaire: le cas extraordinaire de Jean Genet.
Quarto, Retour sur la psychose ordinaire, n.94l95, Bruxelles, École de la Cause
freudienne, 2009, p.29-33.
7 GAULT, J.-L. L'envers de la famille. Quarto, Retour sur la psychose ordinaire,
n.94/95, Bruxelles, École de la Cause freudienne, 2009, p.66-71 .
8 RICHARDS, J . Un dialecte capitaliste dans un cas d e psychose ordinaire.
Quarto, Retour sur la psychose ordinaire, n.94l95, Bruxelles, École de la Cause
freudienne, 2009, p.104-107.
9 BROUSSE, M.-H. La psychose ordinaire à la lumiére de la théorie lacanienne
du discours. Quarto, Retour sur la psychose ordinaire, n.94l95, Bruxelles, École
de la Cause freudienne, 2009, p. l 0-15.
1 0 Brunswick, R.M. (1 928). Supplément à 'Extrait de l 'histoire d'une névrose
infantile' de Freud. In: L 'Homme aux Loups par ses prychana!Jstes et par lui-même.
Paris: Gallimard, 1 981, p.268-31 3.
1 1 Miller, J.-A. [et. ai] . L 'amour dans les prychoses. Paris: Seuil, 2004.

428
"O que se tenta pinçar falando da psicose ordinária? Ou
seja, quando a psicose não é evidente, não parece ser
uma neurose, não tem a assinatura da neurose, nem a
estabilidade, nem a constância, nem a repetição da
neurose. Uma neurose é algo estável, uma formação
estável. Quando vocês não constatam - esta é também
uma questão percebida pelo clínico - que há elementos
bem deffnidos, bem recortados da neurose, a repetição
constante e regular do mesmo, e quando rião há nítidos
fenômenos de psicose extraordinária, tentam dizer então
que é uma psicose, embora ela não seja manifesta, mas
ao contrário dissimulada.
Vocês devem pesquisar todos os pequenos indícios. É
uma clínica muito delicada. Frequentemente é uma
questão de intensidade, uma questão de mais ou
menos".

(Jacques-Aiain Miller,
"Efeito de retorno sobre
a psicose ordinária",
p. 410-411)

9 788589 044486

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