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LOUCH
ÜAMORLACAN
TRADUÇÃO
Procopio Abreu
EDITOR
José Nazar
Copyright © Epd, 2009
TÍTULO ÜRJGINAL
L'amour Laca11
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
FA - Editomçiio Eletrô11ica
TRADUÇÃO
Procopio Abreu
REVISÃO
Sa11dra Regi11a Felgueiras
EDITOR RESPONSÁVEL
JoslNazar
CONSELHO EDITORIAL
Bru110 Palauo Nazar
JoséNazar
joslMdrio Simil Corekiro
Maria Emília Lobato L11ci11do
Pedro Palauo Nazar
Teresa Palauo Nazar
Ruth Ferreira Bastos
A438s
Allouch, Jean
O amor Lacan / Jean Allouch; tradução Procópio Abreu. - Rio de
Janeiro; Companhia de Freud, 201O:
editora
PRÓLOGO ....•...•......•••••••..........•.............. 11
"Lacan mesmo" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
O amor sem aprisionamento ............................. 15
Fazer amor? .......................................... 19
O amor com e o amor sem teoria .......................... 21
Não há interpretação ................................... 24
Fora da fantasia ....................................... 26
Tampouco há materna .................................. 28
Promessas não cumpridas ................................ 31
Conquistas ........................................... 36
· Paixões do Ser ......................................... 42
Predileção ............................................ 49
O amor é coisa séria demais para ser deixada nas mãos unidas dos apai
xonados. Por isso, na Antiguidade grega, existiam várias práticas e
outros tantos atores a quem as pessoas recorriam para assegurar seu sucesso.
Hoje, por vezes apelamos não para um intermediário influente, nem para
um bruxo capaz de tornar mais segura a execução de um rito mágico pro
piciatório, nem sequer para um deus, mas para um psicanalista, quando
fica evidente demais que, em se tratando de amor... a coisa não funciona.
Um sintoma, um ato falho, um lapso acaba de fazer soar o alarme, ou
então ainda um mesmo e desastroso roteiro parece incansavelmente se
repetir de fracasso amoroso em fracasso amoroso. Assim se ·inicia uma
nova e singular ligação, cujo desfecho ninguém conhece. Em parte, esse
desfecho depende do psicanalista. Convém que, moderno Sócrates, ele
também seja sábio no amor?
Seja ela qual for, a experiência amorosa é aquela de seu próprio limite.
Não tanto que o amor tenha um fim, uma vez que a ligação se rompe ou
que a morte lhe dá um fim. Acontece, e vamos lançar na conta da contin
gência. É num outro sentido, necessário, que vamos entender esse traço
da experiência amorosa: por mais atual, por mais intensa, por mais talvez
até apaixonada que seja, ela permanece autolimitada. Vale dizer que esse
traço atinge igualmente o amor mais eterno. O amor eterno é uma figura
1 Baudelaire, "Choix de maximes consolantes sur l'amour", in CEuvres completes, Paris, Galli
mard, coll. "Bibliorheque de la Pléiade", 1975, p. 546.
12 0 AMOR LACAN
Efetivamente único e mesmo assim amado. Esse amor não unifica, não
fabrica "um", a despeito de desagradar a alma de Aristófanes; ele também
não permite "estar a dois". Então, o que acontece com o amado? Ele é ama
do, mas nem por isso com um amor que atacaria sua não menos preciosa
solidão. Amado, ele poderá sentir-se não amado. Não amado, ele poderá
sentir-se amado. O que se deixa abreviar assim: ele terá obtido o amor que
não se obtém.
"LACAN MESMO"
É não a Lacan mas a uma palavra de Philippe Sollers que devo o surgimento
dessa maneira de amar. Na primavera de 2002, a revista L'infini publicava
uma entrevista com Sollers, intitulada "Lacan mesmo2", cuja leitura me
impressionou de uma maneira que eu não saberia melhor dizer a não ser
contando o pensamento que me atravessou desde suas primeiras linhas e ao
longo de toda a sequência: já lá se vão agora quarenta anos que Lacan me
ocupa por um inverossímil número de horas, trinta anos que escrevo a seu
respeito, e eis que esse Philippe Sollers, levianamente, sem todo esse trabalho,
publica hoje um texto sobre Lacan que posso perfeitamente assinar também.
Eu estava siderado, blefado com certeza. Nossos julgamentos se cruzam.
Assim, quando Sollers declara que convém tomar Lacan "em suis hesitações,
seus arrependimentos, seus silêncios, seus berros... ", aquilo, precisamente, a
que vamos nos dedicar nesta obra; ou quando conta que Lacan lhe escreveu:
"Em suma, não estamos tão sós afinaP", um traço destinado a caracterizar o
amor Lacan, ainda que, considerando seu destinatário, também seja possível
ouvir "Não estamos tão 'sol', em suma não tão 'Sollers'"; ou ainda quando
ele nota que "O nome de Bataille era um problema considerável na região
2 Philippe Sollers, "Lacan même", entrevista com Sophie Barrau, L'infini, nº 78, Paris, Galli
mard, primavera de 2002, p. 10-23 (retomada com um posfácio de Jacques-Alain Miller
em Philippe Sollers, Lt1ct111 même, Paris, Navarin, 2005). Cf., igualmente, "Nature d'Éros",
L'infini, nº 80, outono de 2002.
3 P. Sollers, "Lacan même", are. citado, p. 12. Trata-se da dedicatória dos Escritos endereçada
a Sollers.
0 AMOR LACAN
Lacan", acrescentando: "É muito mal visto ser Bataille para as matriarcas da
região, não é, muito muito mal visto. Péssima reputação. [...] uma vida que
não é desejável, liberdade demais". Se devêssemos procurar o Lacan que teria
inovado em matéria de amor, é nesse próprio ponto que Sollers qualifica
com um "liberdade demais", nesse ponto que notadamente emergiu com
o livro de Sibylle Lacan sobre seu pai4 • Em que Lacan, no que se refere ao
amor, teria manifestado sua liberdade excessiva? Essa entrevista abre uma
porta à resposta. Sophie Barrau pergunta a Sollers:
em relação ao amor? Esse amor que se obtém como se não fosse obtido
não é o eco, a contrapartida dessa solidão, "não tão sós", que Lacan citava
junto a Sollers? Não se trata aí, precisamente, da solidão do psicanalista?
Aquela que encontramos abordada por Donald Winnicott que, num artigo
intitulado ''A capacidade de ser só 5 ", evoca o que seria uma feliz solidão em
presença de alguém?
Contam que Renoir dizia que "um quadro é a coisa que mais ouve bestei
ras" . Não é igualmente a experiência do pequeno deus Eros? O que com
tanta facilidade vira besteira tem um nome, "comentário", tão justamente
questionado por Michel Foucault bem no início de Nascimento da clínica.
Mostraremos que as palavras que Jacques Lacan pôde, não sem reticências,
dedicar ao amor decorrem de uma posição mantida permanentemente: um
comentário que queira ser de ordem teórica não convém ao amor. Aliás, não
se sabe muito o que lhe conviria. Lacan tampouco sabe muito, já que tenta
várias pistas e maneiras. Ao longo dos anos, ele às vezes lança enunciados
como quem não quer nada ... Em 30 de março de 1974, declarou na Itália
que "o amor só se escreve graças a uma abundância, a uma proliferação de
desvios, chicanas, elucubrações, delírios, loucuras - por que· não dizer a
palavra, não é? - que ocupam na vida de cada um um lugar enorme6 ". Essa
declaração diz respeito a ele, tanto quanto a qualquer um.
Uma vez excluída a iniciativa teórica, tudo se passa como se, tratando
se do amor, seu discurso quase se apagasse, deixando o lugar ao poeta mas
também, menos esperado, ao pintor. Seja, pois, o poeta. Não se dirá nada,
por enquanto, nem do mergulho lacaniano no fin'amor nem da abordagem
7 "Ah! nada é comparável a meu amor extremo, / E, no ardor que ele tem de se mostrar a
todos, / Chega até a formar desejos contra você. / Sim, eu queria que nenhum a achasse
amável, / Que você fosse reduzida a uma espécie miserável, / Que o céu, ao nascer, não lhe
tivesse dado nada . . . " .
8
D o qual s e pode ler, e m L'1111ebév11e, u m a notável análise: ver An nick Allaigre-Duny, "À
propos du sonnet de Lacan Hiatus irmtio nalis" , L'U11ebév11e, n º 1 7, primavera de 200 1 .
9 " I rmão, ó doce mendigo que canta em meio ao vento / Ama-te como o ar do céu ama o
vento / Irmão, empurrando os bois nos montes de terra / Ama-te como no campo a gleba
ama a terra / Irmão que faz o vinho do sangue das uvas douradas, / Ama-te como uma cepa
ama seu cacho dourado / [ . . . ] / Mas, em Deus, Irmão, sabe amar como tu mesmo teu irmão
/ E, seja ele como for, que seja como tu mesmo" (Jacques Lacan, Le triomphe de la religion.
Précédé de Discours aux catholiques, Paris, Le Seuil, 200 5 , p. 6 1 ; igualmente em PTL) .
10
Jean de la Croix, La vive flamme de l'a111011r, Paris, Cerf, 2002.
PRÓLOGO 17
u Jacques Roubaud, 'Tamour, l a poésie", in De l'amo11r, obra coletiva sob a direção d a École
de la cause freudienne, Paris, Flammarion, coll . "Champs", 1 999, p. 92.
1 4 Jacques Le Brun, Le p11r amour de Platon à Lacan, Paris, Le Seuil, 2002.
1 5 Roland Banhes, Fragmellts d'1111 disco11rs amo11re11x, Paris, Le Seuil, 1 977, p. 1 1 . Mais re
centemente: Le disco11rs amo11re11x, séminaire à l'Éco!e pratique des hautes études. 1974-1976,
Paris, Le Seuil, coll. "Traces écrites" , 2007.
1 6 Si vous aimez l'amou1: .. , Anthologie amoureuse du surréalisme, reunida por Vincent Gilles,
Paris, Syllepse, 2002, p. 5 .
PRÓLOGO 19
FAZ ER AMOR?
A teorização do amor é tal que permite discriminar duas feituras (ou duas
classes) de amor. Houve, historicamente identificáveis, o amor com e o
amor sem teoria. Lacan menciona várias vezes a distinção medieval amor
físico/amor extático, o primeiro não significando "corporal", mas "natural",
e servindo "para designar a doutrina daqueles que fundam todos os amores
reais ou possíveis na necessária propensão que têm os seres da natureza a
buscar seu próprio bem 1 9 " . Pierre Rousselot, em quem Lacan se baseia, nota
que, ao contrário do amor físico, o amor extático não deu lugar a "fórmulas
intelectuais nítidas". É, escreve ele ainda, "uma 'mentalidade' mais que uma
'teorià ", observando igualmente que, exposta "sob forma oratória e poéti
ca, ela não deixava muito de agradar", ao passo que, na "análise filosófica,
ela aparecia fugidia e inconsistente". Logo, duas feituras amorosas, Lacan
optando em favor do amor extático desprovido de teoria. Em 3 1 de maio
de 1956, ele declara, por exemplo, que na época em que ele fala "o acento
original da relação amorosa [id est-. o amor extático] está perdido". Há mais
nítido ainda. A teorização do amor cortês deu lugar a uma nova figura do
amor, e a análise dessa metamorfose permite apreciar até onde pode ir a
incidência do "não há teoria do amor". Não é só que esteja excluído um
discurso teórico que tomaria o amor como objeto, é também, e por isso, uma
certa figura do amor que é afastada. Vamos aqui recorrer a uma tese de Jean
Festugiere, segundo a qual o amor fenício veio enxertar-se no amor cortês
precisamente como uma teoria (uma filosofia) do amor cortês. Festugiere
parte da constatação da existência de uma religião do amor no Renascimento,
manifestada especialmente pelos poetas do século XVI (a poesia lionesa, a
Plêiade, Margarida de Navarra). Essa poesia amorosa provém notadamente
do amor cortês tal como foi teorizado por Ficino. Festugiere escreve que,
se os poetas do Renascimento "respeitam suas Damas, não é apenas para
obedecer ao costume que elas instituíram [o código cortês] , mas porque
19 Pierre Rousselot, Pour /'l,istoire du probleme de l'amour au Moyen Âge, Paris, Vrin, 198 1, p.
8 ( 1• ed., igualmente na editora Vrin, em 1933). As citações são retomadas das páginas 56
a 58 dessa obra. Lacan a elas se refere, sem no entanto mencioná-las, desde 1948 ("A agres
sividade em psicanálise").
22 0 A M O R LACA N
20
Jean Festugiere, La philosophie de l 'amo11r de Marsile Fiei 11, Paris, Vrin, 194 1, p. 3.
21
Citado ibid., p. 30.
22 Citado por Festugiere, La philosophie de l,1mo111· de Marsile Fiei11, op. cit., p. 25.
23
Cj René Nelli, Écrivains a11tico11Jor111istes d11 Moye11 Âge occita11. La femme et l 'a111011r, Paris,
Phébus, 1977, p. 2 1-22.
P RÓ LO G O 23
saber como ouvir essa derradeira satisfação). A objeção pode não ser atendida
pois, enquanto a escala (neo)platônica conduz o amante ao único objeto
imaginável do verdadeiro amor, a escala cortesã, esta, mantém o amante
fixado em sua Dama. Um belíssimo poema de Raimon de Miraval24 ( I 135-
12 16) enuncia essa focalização num objeto a um só tempo dado e preciso,
fora da qual o fin'amor não seria mais ele mesmo. Eis seus últimos versos:
24 Ibid. , p. 1 62- 1 69 .
2
� Marguerite de Navarre, L'heptaméron, é d . d e Nicole Cazauran, Paris, Galli mard, coll. " Folio
Toda sozinha
Sem falar por muito tempo estará
Descabelada
Desconsolada:
O estranho caso pensará
Seu pensar (por aventura)
Em monastério e clausura
No fim a conduzirá.
O que dirá ela, etc.
O teor dessa escolha pode ser precisado. Em Lacan, o amor bem cedo é
uma paixão, formando, com o ódio e a ignorância, o ternário das paixões
do ser 26 • Logo, não encontraremos nele teoria do ódio ou da ignorância,
26 A colocação em relevo de "paixão do ser", como quem não quer nada, traz consequência:
por aí é excl uída a disti nção de u m amor d i to "normal" e de um "amor-paixão" , ou "pato-
PRÓLOGO 25
tampouco teoria do amor, nem, em geral, teoria das paixões. Essas teorias
simplesmente não têm razão de ser. Uma das razões dessa abstenção é de
vida à simplicidade do amor, e convém, a esse respeito, retomar a questão
mais adiante.
Quanto às paixões, uma das primeiras e mais decisivas leituras de
Lacan foi A ética de Espinosa. Logo, em quem Espinosa se inspirou para
sua apresentação das paixões? Em Descartes, bem entendido, que, desde
aquela época, na Europa, provocou tantas reações quanto Freud em seu
tempo. Mas também em León Hebreu (Judá Abravanel, nascido entre 1460
e 1470), que foi para os judeus o que Ficino (nascido em 1433, tradutor do
Banquete, autor de De amore) foi para os cristãos: um notável continuador
de Platino. Não vamos nos deixar prender pelos doze séculos que separam
Platino desses dois epígonos27 • A continuidade é mais forte do que parece;
por exemplo, os banquetes que festejam Sócrates, que por vezes reproduzem
da maneira mais meticulosa a composição dos convivas do Banquete de
Platão, esses banquetes ainda encenados por Porfírio, desaparecem durante
esses doze séculos, depois são retomados, em Florença, por Ficino e seu
mentor Laurêncio de Médicis. É verdade que não houve razão, tanto as
variações são importantes de um a outro desses autores, para extrair dados
demais dessa genealogia que, desde Platino, através de Hebreu e Espinosa,
iria até Lacan; ela no entanto tem a vantagem de assinalar que a questão da
teorização do amor merece ser retomada a partir de Platino.
Pierre Hadot escreveu um belíssimo livro sobre Plotino28 que, longe
de mascarar uma das dificuldades maiores encontradas por Platino, ao
contrário a valoriza. Referia-se ao caráter eminentemente simples de sua
lógico", condenado por seu caráter excessivo. Em Lacan, não há amor paixão pela simples
razão de que o amor é uma paixão.
27 Lacan não deve ter lido Léon Hebreu, de quem ninguém, de seu tempo, falava na França
(Dialogues d'amour, trad. de Pontus de Tyard [ 155 1] , éd. de Tristan Dagron e Saverio An
saldi, Paris, Vrin, 2006). É muito mais espantoso ele nunca ter mencionado e menos ainda
discutido Ficino em sua leitura do Banquete, a obra maior de Ficino, seu comentário desse
mesmo Banquete sendo-lhe uma concorrência direta e prestigiosa. E ainda mais espantoso
já que Les Belles Lemes publicam esse comentário em 1956, poucos anos, portanto, antes
do seminário A tmnsferência . . .
2 8 Pierre Hadot, Plotin 011 la simplicité du regard, Paris, Gallimard, 1997. A obra retoma, com
mais que sensíveis mudanças, uma primei ra edição publicada por Plon em 1963.
26 0 AMOR LACAN
FORA DA FANTASIA
Já que Lacan a fez sua, o que entender por essa determinação? Admitiremos
que certos objetos que a análise distingue prestam-se à teoria, outros não.
Por exemplo, há em Lacan uma escrita (várias até) e uma lógica da fantasia,
ou ainda do sintoma e de muitos outros objetos. Nada igual para o amor:
nem conceito, nem escrita, nem lógica. No entanto, confrontar o amor e a
29 Ibid. , p. 87.
P RÓ LOG O 27
O homem não ama ficar consigo; entretanto, ele ama: logo, precisa buscar
em outro lugar o que amar. Só pode encontrar isso na beleza; mas, como ele
mesmo é a mais bela criatura que Deus jamais formou, ele precisa encontrar
em si mesmo o modelo dessa beleza que ele busca fora.
TAMPO U CO HÁ MATEMA
outro se engane ou que possa ser enganado já é suficiente para indicar que há
aí um problema, que esse outro não sabe supostamente tanto assim. A esse
problema Descartes, ao qual Lacan se refere, já deu sua solução. Como? Ao
não comprometer mais Deus em nossos cálculos (ao contrário de Kepler).
Deus poderia ter desejado um mundo diferente daquele que descrevem nos
sas pequenas letras; sua vontade permanece transcendente. Ora, o próprio
fato desse querer exige que Deus seja um sujeito. Deus, em Descartes, é
sujeito suposto saber (eis a teoria da criação das verdades eternas, tão bem
desdobrada por Jean-Luc Marion). Exit o Outro suposto saber, exit a religião.
Mas embora sem cair na intersubjetividade, e vai ser toda a dificuldade do
materna da transferência: flertar com ela, mas só isso.
De onde um sujeito se endereça a esse sujeito suposto saber? Uma vez
que se trata de um sujeito e de nada além, só pode ser a partir de um signi
ficante. Eis, pois, colocado o dito "significante da transferência", S (acima
da barra), e, s minúsculo em itálico, o sujeito suposto, colocado, como é
exig ível, em subposição (sob a barra). Notado como a sequência dos S 1 , S 2 ,
. . . S 11 , o saber insabido composto pelo grupo dos significantes inconscientes
vem então se inscrever em "atinência'' ao sujeito suposto, sob a barra.
Tudo isso é falante, talvez falante demais. Pois convém não perder
de vista que essa configuração como tal bem como todos os termos em jogo estão
viciados. Ou seja, primeiramente, o S, o significante da transferência. Ele só
por antecipação é designado como sendo um significante. Just�mente, ele
não representa o sujeito (o único sujeito em questão numa análise) junto a
outro significante. Se o fizesse, não haveria mais materna da transferência,
nada mais a colocar sob esse significante senão um S . Logo, trata-se de um
significante à espera de sua simbolização. Só pode chamar-se um signo. Pois
não há outra escolha: é ou bem de um significante ou bem de um signo
que se trata; e, uma vez que o significante da transferência permanece não
simbolizado, ele só pode ser aceito como um signo. Aplica-se a definição do
signo: o S representa o "significante da transferência" para Jacques Lacan. E
é por isso que ele chama "qualquer" o outro significante, o Sq. "Qualquer"
não enquanto tal mas por estar excluído poder escrever de outro modo
como, em cada transferência, ele é não qualquer, mas singular. Assim, por
No Brasil, Pamnoia: Marguerite 011 a ''Ai mée" de Lacan, Companhia de Freud, Rio, 1 997.
30 0 A M OR LACAN
* Jogo homofônico em francês: les fiem [os ligar] e les lira [os lerá] . (NT )
P R Ó LOGO 31
31 Exemplar a esse respeito aparece o relato de Apostolos Doxiadis, Onde Petros et ln co11ject11re
Três anos mais tarde, Lacan volta a esse amor anal, e até "analisa33 " .
Faz isso na conferência reconhecida inaugural de seu ensino, intitulada "O
simbólico, o imaginário e o real", de 8 de julho de 1953 34 • Tendo louvado
a audácia de Freud que soube não afastar o amor da transferência, de Freud
que teria bem percebido que "a transferência é a própria realização da relação
humana sob sua forma mais elevada", ele acaba por definir o amor como "a
conjunção total da realidade e do símbolo que fazem uma única e mesma
coisa". Mas eis que Françoise Dolto, sentindo passar um perigo, se mani
festa: "Realidade e símbolo, o que você entende por realidade? ". Resposta:
"Um exemplo: a encarnação do amor é o dom da criança, que, para um
ser humano, tem esse valor de algo mais real". Se lermos "dom da criança"
como genitivo subjetivo, a criança dá, é donatária. Ela dá... o excremento. A
intervenção de Dolto vem recobrir essa leitura. Ela opta pelo genitivo obje
tivo: a criança é "simbólica do dom", é um dom (do céu?). Não é de modo
algum necessário decidir, já que uma e outra leitura resultam dessa mesma
definição do amor que Lacan propunha três anos antes. Amar é dar um algo
que é a um só tempo um precioso objeto da realidade e um símbolo. Era
jogar pesado apresentar como uma revelação freudiana essa versão anal que
localizava no excremento a verdade do amor? Admiti-lo seria negligenciar as
repercussões e modulações dessa figura do amor no próprio Lacan: o nada
tomará mais tarde o lugar aqui dado ao excremento; o falo será interrogado
como depositário dessa mesma bivalência aqui dada ao excremento e será
também suscetível de ser oferecido (em homenagem à mulher); o objeto a
permitirá precisar aquilo que o analista tem no ventre.
Em 9 e 1 O de março de 1960, Lacan pronuncia duas conferências na
faculdade universitária Saint-Louis em Bruxelas35• Ao declarar a seus inter
locutores católicos que Freud "sabe superiormente" a importância do amor
de si mesmo, Lacan fala aqui de uma incidência do saber sobre o amor que
não é tão anódina quanto pode parecer à primeira vista. Por ter notado seu
·13 " Lisa" : sentido fisiológico: " Fusão, destruição de elementos orgânicos sob a ação de agentes
físicos, químicos ou biológicos" (Robert). Aqui, o agente seria o amor.
·1 4 Ela abriu as atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise. Existem várias versões, sensivel
mente diferentes, dentre elas uma publicada no B11/letin de l'Associntion .fi'eudienne, 1 982, n º 1 .
35 J . Lacan, Le triomphe de ln religion, op. cit.
P RÓ LO G O 35
Lemos bem: o analista cala o amor. E recusa passar por perito36 • Dois
anos antes, Lacan havia precisado a colocação em jogo desse nada no lugar
do psicanalista:
Pois se o amor é dar o que não se tem, é bem verdade que o sujeito pode
esperar que ele lhe seja dado, j á que o psicanalista nada mais tem a lhe dar.
Mas nem mesmo esse nada ele lhe dá, e é melhor [ ...] 37 •
CONQ!JISTAS
Em Bruxelas, logo depois de ter dito o que acaba de ser relatado, Lacan
prossegue: "Mas há algo que eu queria mostrar. Nesse lugar, desejo que
minha vida acabe de se consumir. . . " . A citação deve ser interrompida, uma
vez que os católicos viram bem a importância dessa declaração, ao ponto de
ter feito dela o título da primeira conferência. Lacan lhes anunciava nesse
dia que desejava morrer em sua poltrona de analista. Alguns, incentivados
por certas afirmações feitas em Televisão ( I 973), não terão muita dificuldade
para ressaltar essa consumição in loco de sua vida como sendo o ato de um
santo. Como não me identifico nem com o Vaticano nem com suas perícias,
nada sei disso. Será mais heurístico aproximar essa declaração do mito da
mão que põe fogo na lenha:
36 Sobre a questão psicanalítica da perícia e para uma abordagem menos abrupta do problema,
poderemos nos reportar ao excelente livro de Adam Phillips: Le pouvoirpsy, Paris, Hachette,
Littérature, 200 l .
37 Jacques Lacan, Écrits II, Paris, Le Seuil, coll. "Points", 1999, p. 95 .
P RÓ LO G O 37
Que estranho calor essa mão deveria trazer consigo para que o mito fosse
verdadeiro, para que, à sua aproximação, brotasse a chama pela qual o objeto
pega fogo, milagre puro [ . . . ] ela é a imagem mais ideal, é um fenômeno
sonhado como o do amor. Todos sabem que o fogo do amor só queima em
silêncio, todos sabem que a viga úmida pode por muito tempo contê-lo sem
que nada disso seja revelado fora, todos sabem, para tudo dizer, o que cabe
no Banquete ao boboca mais gentil articular de maneira quase irrisória, que
a natureza do amor é a natureza do úmido [ . . . ) 38 •
Uma lenha que se inflama flamba; ela não se consome "em fogo bran
do". " Consumir algo, destruí-lo progressivamente, notadamente pelo fogo"
(dicionário Robert). Segundo sentido: "consumir alguém, apossar-se de todo
seu ser, atormentá-lo" . Consumir (de cumsumere) e consumir (de consummare)
são dois termos diferentes. Cum "com", sus "si", emere "pegar, comprar" .
Literalmente, escreve o Dictionnaire historique de la langueftançaise: "tomar
inteiramente" e, "pego como mal", "destruir, notadamente pelo fogo" . Con
"com", summa, "soma": literalmente "fazer o total de", em língua clássica
"cumprir em seu termo, em seu acabamento". As duas palavras deram lugar
a um belo pas-de-deux ao longo dos séculos, por vezes misturando-lhes o
sentido, ou então um (consumação) expulsando o outro (consumição).
A lenha psicanalista não se inflama, seja qual for a intensidade. da chama
analisante que a solicite; em compensação, ela se consome, e até se tornar o
resto de si mesma. A erótica amorosa da consumição faz de Lacan vizinho
de Bataille, ao qual, aliás, devemos, e portanto ele deve, o uso moderno da
palavra "consumição39 " , presente por um tempo no século xv (com o sen
tido de "dissipar, esgotar"). Em Bataille, a consumição oferece uma saída ao
excesso de energia que está presente tanto na natureza (a energia solar, que
é abundante) quanto nele, Georges Bataille, como em qualquer um. Logo,
convém gastar essa energia em excesso, esbanjá-la de uma boa maneira (que,
38 J . Lacan, Le tramfert dam sa disparité subjective, sa prétendue sit11atio11, ses excursiom techni
ques, versão Stécriture (doravante: A tra nsferência . . . ) disponível no site da Escola Lacaniana
de Psicanálise, sessão de 28 de j unho de 1 962.
39 O texto de referência é de 1 943 (L'expérience i11térie11re), ao qual convém acrescentar La part
11u111dite, publicado por Minuit, em 1 967, editado por Jean Piei, cunhado de Lacan .
0 AMOR L A C A N
É essa interrogação, se posso dizer inocente, e até esse escândalo que, creio,
ficará a palpitar atrás de mim, como um dejeto, no lugar que terei ocupado
e que se formula mais ou menos assim: entre esses homens, esses vizinhos,
bons ou incômodos, que estão lançados nesse assunto aos quais a tradição
deu nomes diversos, dentre eles o de existência, é o último chegado na filo
sofia - nesse assunto, do qual diremos que o que ele tem de claudicante é
bem o que resta mais afigurado, como se explica que esses homens, suporte
todos e cada um de um certo saber ou suportado por ele, como se explica
que esses homens se abandonem uns aos outros, vítimas da captura dessas
miragens pelas quais a vida, jogando fora a oportunidade, deixa fugir sua
essência, pelas quais a paixão é jogada, pelas quais o ser, no melhor dos
casos, só atinge essa pouca realidade que só se afirma por nunca ter sido
decepcionada?
Estaríamos aqui às voltas com o que terá sido a única questão deste
homem, Jacques Lacan, que se fez, psicanalista, lenha não flamej ante (o que
seu flamej ante dandismo cobria) , amante úmido, amante silencioso? Essa
lenha que se consome sem se inflamar metaforiza (mas trata-se bem de uma
metáfora?) a j usta resposta analítica ao transmor? O analisando não obtém
assim o amor que não se obtém? Nenhuma dúvida que a existência de cada
um é claudicante, mas a questão de Lacan é mais precisa, e revela um for
midável espanto : embora cada um sej a depositário de um saber e suportado
por esse saber, eis com frequência perdida a oportunidade de esse saber se
saber. Questão : o amor que não se obtém, o amor Lacan, seria essa figura
do amor que deixaria aberta a possibilidade de esse saber se revelar? Como
seria possível? Decididamente sim, os católicos terão tido o dom de despertar
a verve de Lacan . . . até a confidência. A minima, essa confissão desvela de
onde o desej o do doutor Lacan de exercer a psicanálise alçou voo : de um
P RÓ LOG O 39
4 0 Lacan não rejeita o amor pelo próximo, mas o recoma a seu jeito e o subverte: "Consegui
apenas fazer entrar na mente de vocês as cadeias dessa topologia, que põe no coração de cada
um de nós esse lugar hiante de onde o nada nos interroga sobre nosso sexo e sobre nossa
existência? É esse o lugar onde temos de amar o próximo como a nós mesmos, porque nele
esse lugar é o mesmo".
41 J. Lacan, " Introdução de Scilicet ao título da revista da Escola Freudiana de Paris", Scilicet, n
1, Paris, Le Seuil, 1968, igualmente in PTL; Mais, nindn, sessão de 13 de março de 1973.
42 Já presente em Roma, em 1953 , onde sua origem búdica é afirmada O. Lacan, Écrits !, Paris,
Le Seuil, 1969, p. 192), vamos encontrá-lo em 1958, ou seja, dois anos antes das confe
rências na Bélgica. "A roda da vida" comporta, em seu centro, três figuras de animais liga
das entre si. Desses três venenos básicos da "vida humana" (Snmsnm) Lacan faz... paixões!
Dod-chngs (o galo) é não o amor, mas o desejo, a avidez, o apego; Zhe-sdnng (a serpente), a
aversão, o ódio, a agressividade; e g Ti-mug (o porco), a ilusão, a ignorância, a confusão.
40 0 AMOR LACAN
que é assim dado ao Outro para preencher e que é propriamente o que ele
não tem, já que a ele também o ser falta, é o que se chama o amor, mas
[sublinho] é também o ódio e a ignorância43 ". O "mas" assinala o compa
nheirismo do amor com o ódio (eis a ambivalência) e a ignorância. Esse
companheirismo é uma objeção suficiente à ideia de que o amor possa so
zinho regrar a questão da falta a ser, em outras palavras, do desejo. Algumas
linhas mais adiante, eis de novo o ternário das paixões do ser: " É a criança
que nutrimos com mais amor que recusa a comida e joga com sua recusa
como com um desejo (anorexia mental). Confins onde se entende como
em nenhum lugar que o ódio dá o troco do amor, mas onde é a ignorância
que não é perdoada". A anorexia é ter sido entupido por excesso de amor.
Talvez o ódio responda a esse excesso, mas a anorexia não se limita a esse
jogo amor ódio, e Lacan precisa o ponto onde o ódio pode encontrar sua
resolução, isto é, no terreno religioso44 , o do perdão das ofensas. O excesso
de amor não sabe o que ele ambiciona, o que ele realiza, o que ele força;
desconhece a ofensa que ele é. Para sair de seu martírio, o anoréxico deve
decidir perdoar uma ignorância para com o amor. Perdoar a quem? A um
personagem que, amando-o em excesso, não é, portanto, sábio em amor.
Vamos chamá-lo o contra-analista. Talvez seja conhecida a observação clíni
ca de Lacan: o anoréxico, longe de não comer, come o nada. Ao excesso de
amor encenado pelo contra-analista opõe-se a parcial abstenção quanto ao
amor de que dá prova o analista. O amor, no contra-analista, não é úmido
mas flamejante, não silencioso mas gritante. O contra-analista não sabe
"calar o amor". Calar o amor não é não amar, e Lacan pôde dizer, na opor
tunidade, que tinha uma má previsão para um psicanalista que não fosse
habitado por algum sentimento em relação ao analisando. O contra-analista
surge como o artesão determinado de um amor que é obtido, mediante
o qual só o extremo a que por vezes se dedica o anoréxico é suscetível de
fazer com que ele saiba que, ao se querer à toda força obter o amor, não se
o obtém, pode-se chegar a se tornar a si mesmo odioso.
Tanto que no Alea jacta est, que soa a todo instante, não são as palavras:
" Os dados rolam" , que é preciso ouvir, mas bem antes para novamente
dizê-lo com o humor que me liga ao mundo: "Tudo está dito. Chega de
falar de amor4 5 " .
sem reticências e dificuldades, quis fazer do par amor ódio uma pulsão. O
que não convém a Lacan, que faz da pulsão o que seremos levados a chamar
um "outro do amor" (houve vários, ao longo dos seminários). Rebater o
amor sobre a repetição deixa em suspenso o amor como paixão do ser (a ser
entendida também como paixão de ser... de ser isto ou aquilo, que agradaria)
ou, para dizer com as palavras do fim de Mais, ainda, "a verdadeira amor46 "
como abordagem do ser.
PAIXÕES DO SER
'16 "A abordagem do ser pelo amor, não é aí que surge o que faz do ser aquilo que só se sustenta
por se malograr?" (seminário de 26 de junho de 1973).
P R Ó LOG O 43
[ ... ] que só há comunicação na análise por uma via que transcende o sentido,
aquela que procede da suposição de um sujeito ao saber inconsciente, ou
seja, à cifração. O que articulei: do sujeito suposto saber.
É por isso que a transferência é amor, um sentimento q ue aí assume umtt
forma tão nova que nele introduz a subversão, não que seja menos ilusória,
mas que se dá um parceiro que tem a sorte de responder, o que não é o caso
44 0 AMOR LACAN
nas outras formas. Recoloco em jogo a boa felicidade, exceto que, essa sorte,
desta vez ela vem de mim e devo fornecê-la.
Insisto: é amor que se endereça ao saber. Não desejo [ . . . ] 47 •
Pode haver pela análise comunicação por uma via que transcenda o sentido,
que proceda da suposição de um sujeito ao saber inconsciente, isto é, à cifra
ção? É dali que surge o que articulei como fundamento de um novo amor:
o sujeito suposto a esse saber, saber inconsciente. [ . . . ] Eu disse que era amor
que se endereçava ao saber; eu não disse desejo, porque, no que se refere ao
Wisst rieb, embora seja Freud quem tenha feito a bobagem, podemos voltar.
47 Jacques Lacan, "Introdução à edição alemã dos Escritos". Os alunos, em Paris, só vão tomar
conhecimento dois anos mais tarde em Scilicet, nº 5.
* La Grande Motte: balneário do sul da França. Grande motte também quer dizer "grande
monte de terra". (NT )
48 Giorgio Agamben, Valeria Piazza, L'ombre de l'amo111: Le concept d'amour chez Heidegger,
Paris, Rivages/Payot, 2003, p. 12.
P R Ó LOGO 45
49 Pascal: "Vem daí que, falando das coisas humanas, diz-se que é preciso conhecê-las antes
de amá-las; a expressão passou a ser provérbio. Os santos, ao contrário, falando das coisas
divinas, dizem que é preciso amá-las para conhecê-las, e que só se entra na verdade pela ca
ridade, e disso fizeram uma das suas mais úteis sentenças". Santo Agostinho: "Non i11trat11r
i11 veritatem, 11isi per charitatem" .
5° Cuja originalidade não está portanto ali. Onde, pois, situá-la? No fato de que Marion res
ponde, em ato, à crítica que Karl Lõwith endereçava àqueles que notavam que não havia
amor em Heidegger. Lõwith dizia justamente (Agamben o relata na página 1 0 de seu texto)
que essa crítica permanece vá enquanto não for substituída a analítica do Dasei11 por uma
analítica centrada no amor. Exatamente o que fez Marion.
51 G. Agamben, V. Piazza, L'o mbre de l'nmo111; op. cit., p. 1 1 - 1 2.
52 Outra conclusão problemática (p. 40): "O ódio e o amor são assim [sublinho] as duas
Gm11dweisen, as duas guisas ou maneiras fundamentais nas quais o Dasein experimenta o
Da". Intempestiva, em quê? Agamben ressalta duas observações do Curso sobre Nietzsche,
em 1 936: 1 ) As paixões são as "maneiras fundamentais" ( Gmndweisen) como o homem
experimenta seu Da; 2) O amor e o ódio são paixões, e não afetos. Silogisticamente, a coo-
0 AMOR LACAN
clusáo tirada por Agamben se impõe. Pode-se, por isso, desprezar que Heidegger não tenha
precisamente concluído assim?
H ] . Lacan, Écrits, Paris, Éd. du Seuil, 1966, p. 358. Doravante: Écrits, 1966.
P R Ó LOGO 47
su p ost o. Logo, seria este o obj eto suscetível de suscitar o amor, a estranha
in te rs ubj etividade amorosa. E seria esta a novidade que a psicanálise teria
in tro duzid o em relação ao amor. Nem por isso é dizer que essa novidade
não p erm anece depositária de opacidade.
Quatro anos mais tarde, em 30 de março de 1 97 4, em Roma 54 , Lacan
lan ça um novo grito de conquista sobre o amor:
Oferecer-se como objeto de amor: pois é bem disso que se trata na análise,
não é? Perceber que, em nome disto, que você liga, que você cola à questão
do saber, isso desencadeia o amor. Nunca isso foi realmente elucidado.
l4 J. Lacan, "Alia scuola freudiana" , in PTL, igualmente in Lacan in ltalia 1953-1978, op. cit.
ll /d. , " Propos sur l'hystérie", in PTL, igualmente en Quarto, n º 2 , suplemento belga na Lettre
mensuelle de l'École de la cause jiwdienne, 1 98 1 .
0 AMOR LACAN
que refere o amor ao encontro de dois saberes inconscientes. Ela só pode ser
de outro modo abordada em seu lugar no estudo passo a passo que vamos
fazer das afirmações sobre o amor nos seminários. É possível, por enquanto,
ligar de certo modo a questão dessa relação àquela da posição que o analista
é levado a ter por e no transmor? Vamos tentar com a ajuda da afirmação
que introduz o ternário das paixões do ser.
Tendo admitido que o encanto pessoal do analista "permanece um
fator aleatório" nos sentimentos que o analista relaciona com a transferência,
que há, portanto, ali algum mistério, Lacan prossegue:
Basta recorrer aos dados tradicionais, que os budistas não serão os únicos a
nos fornecer, para reconhecer nessa forma da transferência o erro próprio
da existência, e sob três chefes que eles enumeram assim: o amor, o ódio e
a ignorância56 •
Ler esse "dá corpo" como uma metáfora seria um erro. A separação
que está em questão, fechamento da análise, é real. Entre o enfrentamento
corporal das entrevistas preliminares e seu corpo tornado objeto a, o que
será o modo de presença corporal do analista? Uma aparição (não faltam
58
referências literárias para apresentar o amado como uma aparição ) .
PREDILEÇÃO
58 Algumas delas estão repertoriadas em meu artigo " Do melhor amado", Paris, L'U11ebé1111e,
nº 2 1, inverno 2003-2004 (retomado em Contre l'éternité. Ogawa, Mal/armé, Lacan, Paris,
Epel, 2009, chap. 1v) .
50 0 AMOR LACA N
[ ... ] esse campo do ser que o amor só pode delimitar é aí algo do qual o
analista só pode pensar que qualquer objeto pode preenchê-lo, que somos
levados a vacilar sobre os limites em que se coloca esta questão: " O que és?"
com qualquer objeto que entrou uma vez no campo de nosso desejo, que
não há objeto que tenha mais ou menos preço que outro, e é aqui o luto
em torno do qual está centrado o desejo do analista59 •
Foi ao que eu quis conduzir, de uma erística da qual cada desvio foi objeto
de um cuidado delicado, de uma consumação de meus dias dos quais a pilha
de minhas afirmações é o monumento deserto, um círculo de sujeitos cuja
escolha me parecia a do amor de ser como ele: feito do acaso.
Oferecer-se como objeto de amor: pois é bem disso que se trata na análise,
não é?
• Homofonia: bête à deux dos [de duas costas] e à dodo [de dormir]. (NT )
0 A M OR LACA N
qual Lacan nunca faz questão de se demorar. Exit o amor louco surrealista,
exit o amor como "ser a dois". Exit o amor ilimitado e, última varrida, exit
o amor dantesco. Essa arrumação para quê? Para que, num tempo julgado
não comportar nenhuma válida, o amor possa receber sua regra do jogo60 ,
Explícito em Lacan, esse voto se prolonga neste outro: que assim "refloresça"
o amor, esse amor Lacan que, bem entendido, Lacan não podia dizer tal.
Logo, o que cabe à psicanálise?
62
J. Le Brun, Le pur amour de Platon à Lacan, op. cit. ; Pierre Daviot, Jacques Lacan et /e se n
timent religieux (Ramonville-Saince-Agne, Éres, 2006) ; Raymond Aron, fouir entre ciel et
terre. Les mystiques da ns l'ceuvre de J. Lacan (Paris, l.:Harmattan, 2003) ; Sean Wilder, Un
sujet sam moi (Paris, Epel, 2008).
CAP ÍTU LO 1
RU M O A U M A M O R S I M B Ó L I C O
Seria preciso ver abrir-se à dimensão da verdade como variável , vale dizer
daquilo que ao condensar assim duas palavras chamarei a varidade com um
e minúsculo engolido, a variedade 1 •
1
Jacques Lacan, 'Tinsu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre" , conforme o seminário de
Jacques Lacan, sessão de 1 9 de abril de 1 977, in L'Unebévue, n º 2 1 , Paris, I.:unebévue éd. ,
p. 1 1 6. Doravante: L'inm . . .
RU MO A U M
AMOR S I MBÓLICO 57
O AMOR DE TRANSFERÊNCIA
RECON HECIDO COMO AMOR VERDADEIRO
passional em seu sentido mais concreto, que chega até a dizer que não há,
entre a transferência e o que na vida chamamos o amor, nenhuma distinção
essencial. A estrutura desse fenômeno artificial que é a transferência e aquela
do fenômeno espontâneo que chamamos o amor, e muito precisamente o
amor-paixão, são, no plano psíquico, equivalentes 3 •
l Jacques Lacan, Les écrits teclmiques de Freud, sessão de 1O de março de 1954, Paris, Le Seuil,
1975, p. 106. Doravante: Les écrits tech11iq11es . . .
4 J. Lacan, Les écrits techniques . . . , p. 163 e 194 . Ao dizer "automática" a produção d a transfe
rência, Lacan acrescenta que não é o caso da Verliebtheid que, esta, reclama "certas condições
determinadas pela evolução do sujeito". Mas, se a transferência é o amor, essa diferença
desaparece, é até aí o enigma primeiro do surgimento do amor na análise. A Verliebtheit é
definida como "o amor-paixão" em 7 de julho de 1954 e vista, neste mesmo dia, como uma
miragem. Posteriormente, o caráter narcísico da Verliebtheit será sempre mais acentuado
(em 6 de fevereiro de 1957), isso até uma apresentação da Verliebtheit que aproxima o amor
da hipnose (7 de junho de 196 1 ).
60 O A M O R LACAN
7
S. Freud, "Observations sur l'amour de transfert", art. citado, p. 120. Na tradução do artigo
"Sobre o mais geral dos rebaixamentos da vida amorosa", "rebaixamento" responde a um
outro termo que, acima, Herabetz1111g, o abaixamento: Emiedrig1111g. Emiedrigen: "abaixar,
humilhar, degradar, aviltar, domar".
8 Jean Allouch, "Ou meilleur aimé", art. citado.
62 O A M OR L A C A N
Sabe, não há contradição alguma no fato de você fazer uma análise ali onde
você preferiria apenas amar. Fiz igual e, talvez por essa razão, as duas coisas
se tornaram para mim inextricavelmente ligadas. No fim, você vai perceber :
é a única maneira de entrar em análise. Por enquanto, você está perturbada
pelo sentimento de que ali onde você ama você gostaria particularmente
de ser [uma] boa [pessoa] . Você verá que ser boa e estar em análise corre s
pondem, afinal, ao mesmo9 •
9
Anna Freud, Lettres à Eva Rosenfe/d, 1919-1937, trad. do inglês e do alemão por Corine
Derblum, Paris, Hachette, Littérature, 2003, p. 144 .
10
A palavra é d e Ferenczi: a "fornalha d a transferência".
1 1 J. Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 129- 130.
RU M O A U M A M O
R S I M BÓLICO 63
O u ainda:
12 lbid. , p. 1 4 5 .
1 3 S igmund Freud, Résultats, idées, problemes II, traduzido d o alemão por u m coletivo, Paris,
PUF, 1 98 5 , p. 1 30.
14 S i gmund Freud, Essais de psychanalyse, traduzido do alemão por Pierre Cotet, And ré Bour
guignon e Alice Cherki, Payot, coll . " Petite biblioatheque Payot", 1 98 1 , p. 1 5 1 .
O AMOR LAC A N
tantivo; a libido é nele a energia não do amor, mas do desejo. E jam ais
tampouco do "amor entre os sexos" como de uma entidade regularmen te
constituída. Nessas sessões de março de 1954, Lacan joga Freud contra
Freud. Há, segundo ele, contradição "entre essa noção do amor e cer tas
concepções míticas da ascese libidinal da psicanálise" . Contradição: a
palavra é forte, ainda que a estenotipia, onde se lê "uma espécie de con
tradição", tenha mais nuanças.
Certo, algumas proposições dos Escritos técnicos parecem contravir a
essa leitura de Freud. Esta, por exemplo (12 de maio de 1954):
recal cad as, para, em nosso pavor, novamente provocar-lhes o recalque. [ ... ]
Os dis cursos sublimes, como todos sabem, não afetam muito as paixões 1 6 •
rem todos para cima e esquecem a corrida bem como a fieira de salsichas
destinada ao vencedor 1 8 •
18
lbid., p. 1 28 .
19
J. Allouch, Le sexe du maftre. L'érotisme d'ttpres Lacan, Paris, Exils, 2 0 0 l , p. 1 5 8- 1 6 1 .
AMOR S I MBÓL ICO
RU MO A U M
20
J. Lacan, Les écrits tech11iq11es ... , p. 1 30.
uo 0 A M OR L AC A N
21 Ibid. , p. 1 62- 1 63 .
RU MO A U M A M O R S I M B Ó L I CO
69
Com essa primeira varidade do amor, Lacan pode ter a sensação de ter
respondido à sua questão, de ter estabelecido o laço buscado entre amor e trans
ferência. Dizer que, na situação de transferência, "se trata do valor da fala22 "
(Lacan então não estica menos a transferência que estica o amor), acrescentar
22
J, Lacan, Les écrits techniq11es. . . , p. 2 5 5 .
0 A MO R LACA N
que o amor faz voltar o desejo "verbalizado" permite outorgar à fala uma posi
ção-chave.A fala plena, resolutória, toma patente a articulação da transferência
e do amor; vale como o acontecimento da fundamental comunidade dos dois.
Assim, munido desse comum lugar entre transferência e amor que é a fala,
Lacan pode propor uma explicação do surgimento quase automático do amor
na análise. Eis em que termos ele fez isso em 12 de maio de 1954:
ligar alguns termos ao amor, e assim dizer mais adiante seu teor, melhor
desenhar-lhe a figura. Quais? Serão, sucessivamente: o pacto, o ser, ponto de
fo calização do ternário lacaniano amor, ódio e ignorância (ao mesmo tempo)
e, /ast but not least, o dom. Vem em primeiro "pacto", o pacto amoroso. Eis
a frase que o introduz, em 5 de maio de 1954:
23
J. Lacan, Les écrits tech11iq11es . . . , p. 1 97.
72 O AMOR LACA N
Do amor vai-se dizer que ele toca no ser uma vez que foi reconhecido
participar do imaginário e do simbólico. Essas duas dimensões, já enquanto
tais, orientam o sujeito para o que seria seu ser. A fim de fazer entender essa
posição do amor entre imaginário e simbólico, Lacan constrói uma pirâ
mide dupla, que ele chama um "pequeno diamante". Essa pirâmide talvez
não mereça o nome "materna" (pode-se dificilmente chamar "materna" um
esquema formal ou uma escrita que só terá servido uma vez e que ninguém
nunca m ais vai utilizar); trata-se, antes, de um croqui que estenografa o
p osicionamento do amor por s. I. R. O amor, ao mesmo tempo, vê-se ridi
culamente acompanhado de seus dois acólitos, o ódio e a ignorância. Amor,
ódio e ignorância são três paixões orientadas para o ser, como o são (porque
0 são) os três registros lacanianos. Lacan desenha essa pirâmide dupla logo
dep ois de ter anunciado, a respeito do desejo, sua visada de seminarista,
a saber "esse registro [o simbólico] no qual estou, bem devagar, tentando
, ,,
fazê-los entrar, e o ser que espera revel ar-se :
Na época, Lacan não parece duvidar muito que o ser possa revelar-se
no simbólico. Que o ser seja dito "esperar", esperar o que quer que seja, ainda
que a própria revelação, é uma proposição filosoficamente, espiritualmente
carregada, e longe de ser evidente. Mas como funciona esse croqui? O ser
à espera de sua "revelação" é localizado na ponta da pirâmide de baixo,
que deve ser provavelmente olhada como virtual. Acrescentei . ao desenho
de Lacan a indicação do plano que separa as duas pirâmides de três faces e
coladas uma na outra pela base. Está dito desse plano que ele constitui "a
superfície do real" , mas, precisão decisiva e na falta da qual desaba o funcio
namento desse croqui, do real "simplesmente". O simbólico introduz um
furo nesse real, tornando assim possíveis "todas as espécies de transposições
e de coisas intercambiáveis" - o que estava excluído, portanto, só com o
"real simplesmente".
de uma maneira de certo modo virtual, o inocente, aquele que nunca entrou
em nenhuma dialética, não tem literalmente nenhuma espécie de presença
desse ser, ele se acha simplesmente no real27 •
A que intervenção Lacan faz aqui alusão? Ela parece perdida... A cisão
do amor é aqui efetiva, com a introdução do amor "no sentido do desejo
de ser amado". Será amar desejar ser amado por alguém, significar-lhe isso,
talvez até pedir-lhe isso? A coisa está longe de estar estabelecida. Lacan não
coloca explicitamente essa questão, mas insiste numa espécie de diatribe em
que se entende que ele não parece muito trazer esse desejo de ser amado
em seu coração:
por tudo; não só por seu eu [moz] , como diz Descartes, pela cor dos cabelos,
pelas manias, pelas fraquezas, por tudo.
ra. . . ". Pouco importa, esse dom cria dificuldade. Primeiramente porque o
amor como dom não pode se casar com o amor como pacto. O fato de se
com prometer com alguém poder ser conotado como dom (até o estranho e
obscuro "dar-se") em nada reduz a diferença notável entre acordar algo com
alguém e oferecer algo a alguém. Há mais. O amor como dom introduz uma
p erturbação bem grave naquilo que foi sustentado desde março de 1954.
Pois, como acabamos de ler coloca-se a questão de saber se Lacan não está
dizendo que o amor como dom não é o amor-paixão. Além disso, não é
apen as o amor-paixão que então arrisca ter chumbo nas asas, é também, já
que os dois traços estão ligados, o amor enquanto narcísico. Com efeito, o
am or como dom não visaria tanto o ser do sujeito, mas o ser do outro:
Mas, ao inverso, o que de fato é não menos evidente é que amar (e eu diria
correlativamente, e por causa disso mesmo) é justamente amar um ser para
além do que ele parece ser. O dom ativo do amor visa não o ser em sua
especificidade, mas em seu ser.
2) foi ele mesmo suplantado pouco depois por "capturar". E acrescenta: " O
sentido figurado de 'impressionar favoravelmente, seduzir' então se expan
diu, consumando a separação semântica de cativar e de cativo, cativeiro".
Daí se deduz que o neologismo "cativação" de certo modo retorna aquém
dessa separação semântica. Entretanto, reconheceremos nessa separação um a
virtude analítica, pois ela distingue duas situações: que um ser me cative
é uma coisa, que me capture é outra. "Cativação" conjuga os dois. Posso
ser cativado, no sentido de "fascinado por alguma coisa" embora nem por
isso haja, nessa coisa mesma, uma intenção de me capturar. Assim um a
paisagem. Aí, diferente de um sedutor, uma paisagem, enquanto paisagem,
não se serve de seu caráter cativante para me capturar. Poderíamos objetar
que o jardim, paisagem feita por mão humana, parece realizar tal captura.
O jardim japonês, especialmente em sua forma zen, é feito para que a cada
passo a visão e a impressão mudem, para que cada passo dê acesso a outro
lugar. Aquele que passeia não fica assim, não só cativado mas capturado?
Mas não se pode desprezar que o xintoísmo faz de uma árvore, de u m a
montanha, de um rochedo, de um pedacinho de folha outros tantos deu
ses. No Ocidente, continua sendo difícil admitir essa ausência de intenção
naquilo que me cativa, e talvez seja por essa razão que alguns, diante de
uma paisagem cativante, recorrem a um Criador. Essa convocação assinala
a dificuldade de pensar a captação sem a captura; ela assinala, em outras
palavras, a lacaniana "cativação". Um ser que me seduz tem a intenção de
me prender, de me fazer seu prisioneiro? Isso nada tem de necessário. Ele
pode, por exemplo, seduzir-me com a única visada de capturar não a mim,
mas um terceiro, primeiramente feito testemunha de a que ponto estou
cativado. Ou ainda, como Freud descreveu a respeito de um certo tipo de
sedução feminina, é a própria indiferença de que tal mulher dá prova para
comigo que me seduz; daí a imputar-lhe uma intenção de me capturar, de
abandonar sua indiferença...
O assunto fica mais complexo se o transpusermos para o registro
do amor. O cativante erômeno faz questão de capturar o eraste, de amá-lo
no sentido de se apropriar dele? É possível não supor isso e pensar que o
erômeno, como a rosa, é "sem porquê". Não é precisamente esse furo, que
nem mesmo é uma ausência, que cativa o eraste? Para falar a verdade, nada
em Lacan por enquanto permite responder, pois a resposta passará por um
RU M O A U M
AMOR S I M BÔLICO 81
O amor não mais como paixão mas como dom ativo sempre visa para além
da cativação imaginária o ser do sujeito amado, sua particularidade. É por
isso que ele pode aceitar muito longe suas fraquezas e desvios, pode até ad
mitir seus erros, mas há um ponto onde ele para, um ponto que só se situa
pelo ser - quando o ser amado vai longe demais na traição de si mesmo e
persevera na enganação de si, o amor não segue mais.
Lacan não diz nem sugere nada mais que isso, nesse 7 de julho de
1954, quanto ao que seria o objeto do dom de amor. Com certeza porque
lhe interessa, então, a visada do amor. Na sequência dos seminários, esse fio
da submissão amorosa não será nem absolutamente afastado nem levado
adiante tal qual. Uma vez introduzido o amor como dom, o se do "dar-se"
não resolverá a questão do que seria o objeto do dom de amor;
CA P ÍTU LO I I
RU M O A U M A M O R E X TÁT I C O
DA MIRAG EM AMORO SA
Seus olhos negros brilhavam e como eu então não sabia, nem fiquei sabendo
desde então, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão forte, como
eu não tinha, tal como dizem, "espírito de observação", para extrair a noç ão
da cor, durante muito tempo, sempre que eu pensava nela, a lembrança do
brilho de seus olhos logo se me apresentava como a de um azul vivo, jd que
ela era loura [sublinho] : de modo que, talvez se ela não tivesse tido olhos
tão negros - o que tanto impressionava na primeira vez que a viam -, eu
não teria ficado, como fiquei, mais particularmente apaixonado, nela, por
seus olhos azuis 1 •
1
Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, coll. "Bibliotheque de la
Pléiade", vol. I, p. 139. Devo esta citação a David Halperin.
A M O R E X T ÁT I C O
RU M O A U M
Parece ser preciso entender que não, ele não percebeu. No entanto,
u ma segunda frase contravém essa leitura:
Não sabemos mais dizer muito se, agora, Pontalis está indignado ou
aterrado:
PoNTALIS: Mas isso vai muito longe. Corresponde a dizer que não há nun
ca concepção verdadeira, que sempre se vai de correções em correções, de
miragens em miragens.
LAcAN: Com efeito, acho que é o caso nesse registro da intersubjetividade
no qual se situa toda nossa experiência.
2
Jacques Lacan, Le moi dam la théorie de Freud et dans la technique psychanalytique, Paris, Le
Seuil, 1 978, p. 254. Doravante: Le moi. . .
86 O A M OR LAC A N
DA F ID ELIDADE NO AMOR
3
Ovídio, L'art d'aimer, prefácio de Hubert Juin, texto estabelecido e traduzido por Henri
Bornecque, Paris, Gallimard, coll. " Folio classique" , 1 974, p. 4 8 . Uma nota da edição citada
precisa que esse riso divino a respeito das juras de amor era um topos da poesia grega mais
an tiga.
4 Jean Allouch, Sombra do teu cão. Disrnrso psicanalítico, discurso lésbico, Companhia de Freud
Editora, Rio de Janeiro, 200 5 .
U M A M O R E X TÁT I C O
RUMO A
Com efeito, se uma mulher vale por todas, se um homem vale por
todos, então sim, pode existir essa fidelidade leve que devia ser explicada.
Essa fidelidade não é especialmente virtuosa, nem meritória; não decorre
de uma exigência moral; seu único apoio é o próprio teor do amor. Mas,
sobretudo, não é uma fidelidade, já que cada um, tendo um parceiro,
possui ipso facto todos os parceiros possíveis. Logo, não há fidelidade, nem
tampouco infidelidade.
Aqui já se acha em ação, embora não problematizado, o quantificador
"não-todo" que só será explicitamente explorado dezessete anos mais tarde6 .
Com efeito, se "uma vale por todas", "um por todos" {mas precisamente
não no sentido guerreiro do "um por todos, todos por um"), um jogo está
instalado entre esse "um" e esse "todos", que implica o "não-todos", já que
está bem precisado que esse "um" não iguala o "todos" {como no slogan
guerreiro), mas o chama como seu para além. Descompletado desse "um",
o "todos" é um "não-todos" . Ora, esse "para além" vai se afigurar decisivo
6
Reportar-se a Guy Le Gaufey, Le pastout de Lacan. Consistance logique, conséquences clini
ques, Paris, Epel, 2006.
U M A M O R E X TÁT I C O 89
RU M O A
00 AMOR MO RTO
9 Uma observação de qualquer modo, nas "Conferências e entrevistas nas universidades nor
te-americanas", segundo a qual: "A psicose é uma espécie de falência no que se refere ao
cumprimento daquilo que é chamado 'amor"' (Scilicet, 6/7, Paris, Le Seuil, 1975, p. 16).
Bem antes, os escritos de Aimée tinham sido ditos exprimir "uma aspiração amorosa, cuja
expressão verbal é tanto mais tensa porquanto é na realidade discordante com a vida, mais
fadada ao fracasso" (De la psychose para11oiaq11e drms ses rapports avec la perso1111alité, 2' éd.,
Paris, Le Seuil, 1980, p. 179.
* O costume da "valentinagem", isto é, do namoro. Instituído por Valentim, sacerdote ca
tólico que decidiu casar em segredo os apaixonados. Daí a comemoração do dia de São
Valentim como dia dos namorados. (NT)
1 0 Texto em francês contemporâneo de Daniel Ménager, in Anthologie de la poésie .fi'fllzfnise d11
Moyen Âge nu xvf siecle (Paris, Gallimard, coll. "Bibliotheque de la Pléiade", 2000), citado
por Pierre Canavaggio, Les superstitions de l'amour, Paris, Éd. Ou Rocher, 2004, p. 13 .
U M A M O R E X TÁT I C O 91
RU MO A
Tomemos por ponto de referência a técnica, pois era uma, ou a arte de amar,
digamos a prática da relação de amor que durante certo tempo reinou do
lado da nossa Provença ou de nosso Languedoc. Há aí toda uma tradição
que prosseguiu pelo romance arcadiano do estilo Astrée, e pelo amor ro
mântico, e em que se observa uma degradação dos patterns amorosos, cada
vez mais incertos. [ . . . ] O tom caiu, a coisa caiu no irrisório. Jogamos, com
certeza, com esse processo alienado e alienante, mas de maneira cada vez
mais exterior, sustentada por uma miragem cada vez mais difusa [ . . . ] Essa
dimensão vai no sentido da loucura da pura miragem, na medida em que
o acento original da relação amorosa está perdido. [ ... ] Era uma técnica
espiritual, que tinha seus modos e seus registros [ . . . ] 1 1 •
[ ... ] esse Outro é todo em si, diz Freud, mas ao mesmo tempo todo inteiro
fora de si.
A relação extática com o Outro é uma questão que não data de ontem. [ ... ]
Fazia-se, na Idade Média, a diferença entre o que chamavam a teoria física
e a teoria extática do amor. Assim, colocava-se a questão da relação do su
jeito com o Outro absoluto. Digamos que, para compreender as psicoses,
devemos fazer com que se recubra, em nosso pequeno esquema da relação
amorosa com o Outro enquanto radicalmente Outro, com a situação em
espelho, com tudo o que é da ordem do imaginário, do animus � da anima,
que se situa conforme os sexos num lugar ou no outro.
[ . . . ] para o psicótico, é possível uma relação amorosa se o abolir como sujeito,
na medida em que ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas
esse amor também é um amor morto 1 2 •
12
J. Lacan, Les psychoses, op. cit. , p. 287.
94 O A MO R L A C A N
16 Como mostra a obra coletiva L'nmour dom les psychoses, dirigida por Jacques-Alain Miller,
Paris, Le Seuil, 2007.
17 P. Rousselot, Pour l'histoire du probleme de l'nmour 011 Moyen Âge, op. cit., p. 9.
18 lbid., p. 1 1.
96 O AMOR LAC A N
seu amor mesmo ? Daí este dito espirituoso que emprestam a Agostin ho :
"Meu Deus, se eu fosse Deus e o senhor fosse Agostinho, eu preferiria que
o senhor fosse Deus e eu Agostinho 1 9 " . Se fosse pensado, esse amor ex t át i
co acabaria aparecendo como se não distinguisse mais as pessoas em jogo ,
essas pessoas mesmo sem as quais ele no entanto não pode ficar. Trata- se de
um amor destruidor do s ujeito, sacrificial, louco. Como Lacan não teria aí
encontrado seus filhotes, ele que já ligou amor e ódio e tomou um disc re to
apoio no amor louco s urrealista20 ?
Restam dois problemas . Lacan pode sustentar ao mesmo tempo sua
preferência pelo amor extático e identificar esse amor como sendo o do
psicótico ? Não haveria outro amor verdadeiro senão o do psicótico ? Ou
então seria preciso dizer que o psicótico representa esse amor extático de
uma certa maneira, a ser distinguida de uma outra, que diria respeito a
qualquer um? Outro problema não abordado : o caráter narcísico do am or,
que não pode ser afastado com desprezo . Esse narcisismo encontra seu lu gar
do lado do amor físico e somente desse lado. É por isso que só se pode falar
de uma preferência dada por Lacan ao amor extático e não de uma pura e
simples eleição.
A indicação do "recobrimento" é interessante a um outro título. Com
efeito, aí se encontra a presença discreta da função do para além, que havi a
aparecido pela primeira vez um ano antes . Já estava explícita em Tomás,
logo , no amor físico, a respeito do qual Rousselot escreve: " Com efeito,
S. Tomás ensina que todo ser da criação , em cada uma de suas apetiçóes,
desej a Deus mais profundamente que o objeto particular que ele visa2 1 " .
O recobrimento , característico do amor físico, seria tal que, para além do
amado como pequeno o utro, seria visado o grande Outro, o Outro absoluto,
por conseguinte colocado , ali também, como existindo (mas abordado de
outra maneira) . Aqui ainda, a preferência dada por Lacan ao amor extático
19
Ibid. , p . 78.
20 A fim de dar alguma carne a esse amor extático, poderemos nos reportar ao poema que Paul
Eluard enviou a Joe Bousquet numa carta datada de 7 de dezembro de 1928 e que Bousquet
publicou em Chantiers, nº 7•, novembro de 1929. Eluard havia pescado esse soneto, escrito
por uma alienada, na tese de "um triste imbecil", mas cuja leitura ele no entanto aconselha
a Bousquet, "enquanto enormidade".
21 P. Rousselot, Po11r l'histoire du probleme de l'amo111: . . , op. cit., p. 15.
U M A M O R E X TÁT I C O 97
RU M O A
n ão pode valer de modo absoluto. Sem contar que não pode se satisfazer
com a distinção de duas figuras do amor - verdadeira serpente marítima
nos seminários. O importante, aqui, é que, posteriormente, essa função do
para além vai de certo modo se consolidar e assim participar da construção
do arcabouço do amor.
CAP ÍTU LO Ili
0 A RC A B O U Ç O D O A M O R
RE C USA C RÍ TICA
0 0 PAR NARC I S I SMO-ANAC LITI SMO
.freudianas, Lacan fosse levado a fazer uma limpeza geral. Do que se trata?
A teoria freudiana dita do "tubo em U " supostamente deve estabelecer a
relação em balança entre amor de si (narcisismo) e amor de objeto (anacli
tismo): todo investimento libidinal que não fosse lançado na conta de um
o seria na conta do outro, e vice versa. Freud não estava sem apoio de bom
senso para escorar sua "teoria anaclítica", como a nomeia Lacan. ·Não parece
empiricamente exato que amar carregue consigo um certo empobrecimento
do investimento do eu [mot] enquanto o amado, este, se beneficia de um
excesso de investimento (retomado desse próprio empobrecimento), de uma
superestimação que parece só ter pouco escoramento em seu valor próprio?
No entanto, Lacan vai se dedicar a, como mais tarde vai dizer, "esvaziar"
essa evidência. Essa tentativa não espanta muito: ele já não manifestou
que não se satisfaria com um amor unicamente localizado no imaginário?
Assim, as afirmações de 19 de dezembro de 1956 vão ser dedicadas a uma
dupla carga contra a teoria do tubo em U . A primeira o encara em seus dois
polos, a segunda se refere apenas ao anaclitismo. Primeira carga 1 : haveria
"contradição" em Freud pelo fato de que ele atribuiria a necessidade de ser
1
Jacques Lacan, La relation d 'objet, Paris, Le Seuil, 1 994, p . 83. Doravante: A relttçdo de objeto.
1 00 O A M O R LACA N
PAI
2 Ovide, Les amours, texto estabelecido e traduzido por Henri Bornecque, introdução e notas
de Jean-Pierre Néraudau, Paris, Les Belles Lettres, 2002, p. 1 5 1 - 1 57.
101
O A R C A B O U Ç O DO A M O R
1
J. Lacan , La relati011 d'objet, p. 85.
1 02 O AMO R LAC A N
A I N STITUIÇÃO DA FALTA
NA RELAÇÃO COM O OBJ ETO
mente erótico" que, para além da trepada, o amor visaria e atingiria? Várias
respostas vão se apresentar, desde 9 de janeiro de 1957, seis exatamente, a
quinta sendo chamada a se tornar, pelo menos por um tempo,_ canônica.
Primeira asserção, relativa ao amor "platônico [da Jovem Homossexual] no
que ele tem de mais exaltado":
''A instituição da falta" aqui está localizada "na relação com o objeto" .
Entretanto, logo depois, Lacan vai se corrigir: ela tem seu lugar não no sujeito
que ama mas no outro, o qual "dentro" também é um p ara além. Esses dois
termos localizadores são lidos em outra passagem, em que também transpa
rece uma alusão ao amor extático, esse amor que implica o "aniquilamento"
do sujeito que ama. Para ser lida, a afirmação pede que nos lembremos que,
segundo o que Freud concebeu, a Jovem Homossexual se precipita no amor
da dama depois de ter ficado decepcionada por não ter recebido um filho
de seu pai8 , pai este que, simplesmente, acaba de fazer esse filho não nela,
sua filha, mas em sua mãe (a mãe... dela):
[ . . . ] o que é desejado está para além da mulher amada. O amor que a j ovem
devota à dama visa algo que é outra coisa que ela. Esse amor que vive pura
e simplesmente na ordem do devotamento e que leva ao supremo grau o
apego do sujeito e seu aniquilamento na Sexualüberschatzung9, Freud pa
rece reservá-lo, e não é por nada, ao registro da experiência masculina. [ ... ]
A reflexão da decepção fundamental nesse nível, sua passagem ao plano do
amor cortês, a saída que o sujeito encontra nesse registro amoroso colocam
a questão de saber o que é, na mulher, amado para além dela mesma, e isso
questiona o que é realmente fundamental em tudo o que se refere ao amor
em seu acabamento i o .
7 Ibid., p. 109.
8
O que ela nunca admitiu, hoje sabemos, achando até extravagante essa "interpretação" de
Freud. Ver, de lnes Rieder e Diana Voigt, Sidonie Csillag, homosexuelle chez Freud, lesbienne
dans !e siecle, trad. do alemão por Thomas Gindele, Paris, Epel, 2003.
9 Überschiitzen: sobrestimar, supervalorizar, sobretaxar, superestimar, presumir demais; Übers
chiitzung;. sobrestimação, supervalorizaçáo.
10 J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 10. Sublinhei certos termos franceses usando itálicos.
O A RCA B O U Ç O D O A M O R 1 05
N ão é o que ele está fazendo ao dizer que o amor institui a falta na relação
com O objeto? Há aí um flerte com a possibilidade de conjugar amor e de
sej o. O ra, se existe alguém que os diferencia, é bem a Jovem Homossexual,
e até O ponto de fazer (segundo Lacan, tolo de Freud) de seu amor pela
dam a a "solução" da "decepção fundamental" de seu desejo de criança. Há
"p assagem ao plano do amor cortês"; ou ainda, outra palavra marcada em
Lacan, "reflexão" (não se trata do espelho mas, ao contrário, do deslizamento
d a problemática imaginária do desejo de criança para o plano simbólico do
amor); outra palavra utilizada: "inversão"; a Jovem Homossexual encontra
u ma "saída" nesse "registro amoroso". Essa mudança de registro basta para
resolver a questão amor desejo? Não parece, pois logo é precisado que " O
que é, propr iamente falando, desejado na mulher amada é justamente o
que lhe falta", esse objeto primordial (entender: o falo) do qual a criança
poderia ter sido um substituto imaginário e ao qual o sujeito volta. É esta a
flutuação do trilhamento antes que ele dê a fórmula. Assim, vamos ler, mais
adiante, uma frase em que esse mesmo objeto buscado, isto é, o "aquilo que
lhe falta", é posto na conta do amor e não mais do desejo. Por enquanto,
subsiste a flutuação.
Na Jovem Homossexual, o amor vem resolver um impasse do desejo
(sua decepção). Tal movimento subjetivo não recebe nome, ao contrário
do recalque, da renegação, da denegação, da foraclusão, etc. Várias palavras
designam essa operação (passagem, reflexão, inversão), sem que nenhuma,
jamais, seja elevada à dignidade de conceito. Essa operação, é verdade, é um
pouco complexa. Lacan usa a clássica equivalência freudiana criança/falo,
sugerindo que essa equivalência teria atuado na própria Jovem Homossexual.
Ela não terá recebido do pai, sob a forma da criança, o falo. E, aí também,
não é um conceito que Lacan use; ele não fala, por enquanto pelo menos,
nem de frustração, nem de privação, nem de castração (célebre ternário
lacaniano, é verdade ainda a vir), mas de uma "decepção". O assunto tem
sua lógica temporal: ela "ia encontrar" esse falo (Lacan gostava de sublinhar
a espécie de suspense que comporta, em francês, a afirmação "a bomba ia
estourar"). Como a mãe teve um filho, a Jovem Homossexual teria reco
nhecido que não foi ela a eleita do pai, de um pai que - isso vai contar -,
ao contrário do pai de Dora, não é impotente. Em outras palavras, por essa
1 06 O A M OR LAC A N
mudança de registro, essa passagem ao plano simbólico, nem tudo vai estar
inteiramente perdido para ela, no que se refere a esse falo. O fato é qu e
essa operação comporta um preço, isto é, não só uma renúncia à satisfação
(sexual e amorosa), mas uma visada como tal da "não-satisfação" . Esse falo
que é amado para além da dama não é um objeto do qual ela tiraria urn a
satisfação qualquer. O que deve ser entendido em função da insistência de
Lacan em referir todo o assunto ao registro simbólico, o do amor cortês.
O fato de esse falo ser simbólico implica que ele seja colocado em jogo
enquanto não satisfatório. Mas como esse falo pode ser amado para além
da amada, da dama? A resposta se lê nas duas próximas sessões e, com ela,
vão vir novas e importantes asserções a respeito do amor.
Com efeito, ela trata essa dama num estilo altamente elaborado de relações
cavalheirescas e propriamente masculinas, com uma paixão oferecida sem
exigência, desejo, nem sequer esperança de retribuição, com o caráter de
um dom, aquele que ama projetando-se para além até de toda espécie de
manifestação da amada 1 1 •
PRIMEIRA CONFIGURAÇÃO :
11
J. Lacan, Ln relation d'objet, p. 1 2 1 - 1 22.
O A RC A B O U Ç O D O A M O R
1 07
RA Ã
SEG UN DA CO NFI GU Ç O
Criança Dama real
Criança
Pai imaginário
S
a z à
A
Dama real
Pênis simbólico
12
J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 28.
ro8 O AMOR LAC A N
não tem, é dar o que não se tem a alguém que não o tem. Pouco importa, iss o
"nos coloca justamente no cerne da relação amorosa e do dom 1 3 " .
Não se trata apenas do amor mas do "ficar apaixonado". O amor
reconfigura certos dados presentes antes de sua ocorrência. Ele não nasce
de nada - já O banquete de Platão fazendo uma criança de Poros e Pên ia.
A bateria dos termos aqui é diferente, enquanto que o uso do esquem a L
oferece outra lição, mostrando que o amor não é assunto puramente dual.
Mas a marca mais sensível dessa relativa complexidade dos elementos em jogo
no amor está no fato de o pênis, não por certo como simbólico mas com o
instrumento da satisfação erótica, ficar fora do amor da Jovem Homossexual
por sua dama (esse traço foi confirmado pelo que se ficou sabendo depois
de sua vida). Ele permanece no pai, observa Lacan; assim, essa localização
do pênis fora do amor que se tem pela dama faz parte desse amor.
Antes da sessão de 23 de janeiro de 195 7, em que pela primeira vez
o amor aparece como dom daquilo que não se tem, toda uma série de pro
posições foram portanto levantadas: 1) o amor como instituição da falta
na relação de objeto; 2) o amor pelo falo para além do amado; 3) o amor
como dom; 4) o amor como dom ao amado daquilo que ele não tem. Uma
quinta proposição, esta, vai se basear no caso Dora, confrontado com o
da Jovem Homossexual. O que Dora traz a Lacan, que não seria acessível
apenas com o caso da Jovem Homossexual e que permitiria, depois de ter
abordado o amor em termos que acabam de ser lembrados, que ele encer
rasse seu percurso com a afirmação do amor como dom daquilo que não
se tem? Resposta: a impotência do pai. Dora está frustrada por não receber
simbolicamente do pai o "objeto faltante 1 4 ". Curiosamente, essa afirmação
introduz uma fórmula nos antípodas da definição futura do amor, fórmula
em que Lacan declara: " Eis agora o pai, que é feito para ser aquele que dá
simbolicamente esse objeto faltante. Aqui, no caso de Dora, ele não o dá
porque não o tem". Só se daria o que se tem? Lacan vai dever reposicionar
o dom, notadamente em relação a Marcel Mauss e a Claude Lévi-Strauss, a
fim de fazer entender que não. Ele vai dever, no mesmo passo, diferenciar
13
J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 29 .
14
Ibid. , p. 1 39 .
1 09
O A RC A B O U Ç O D O A M O R
Seja a troca tal como a usavam Marcel Mauss para analisar o potlatch
e Claude Lévi- Strauss, as estruturas elementares do parentesco: objetos
circulam, ou mulheres tomadas como objetos. A lei da troca é a recipro
cidade (até quando é posta em jogo uma lógica do suplemento, como no
potlatch). Ela se formula como: "Não se tem nada por nada". Lacan vai
to mar essa fórmula ao pé da letra e fazê-la assim ressoar de outro modo: não
se tem nada, mas também é por nada. Assim, a fórmula acaba enunciando
"a pura gratuidade 1 5 " , ou seja, uma nova dimensão do dom. Dito ainda de
outro modo, nunca é tanto um objeto que se dá quanto um signo. Daí o
primeiro aparecimento, nos seminários, do amor como dom daquilo que
não se tem:
O estreito foi cruzado. Lacan pode voltar a insistir e alojar suas pre
cedentes asserções nesse dom daquilo que não se tem: "Em outras palavras,
o que faz o dom é que um sujeito dá algo de maneira gratuita, na medida
15
J, Lacan, La relation d'objet, p. 140.
1 10 0 A M OR LACA N
em que por trás do que ele dá há tudo o que lhe falta, é o que o sujeito
sacrifica para além do que ele tem" . Depois, um pouco mais adiante: "O
que é amado num ser está para além do que ele é, a saber, no fim das con
tas, o que lhe falta" . Há quatro ocorrências do verbo "ser" nessa frase. A
estenotipia comporta sete!
Esse momento do percurso de Lacan é anterior à definição do sign ifi
cante enquanto diferente do signo, o primeiro representando o sujeito junto
a outro significante, o segundo representando algo para alguém. Entretanto,
notaremos que já aqui a linguagem do amor é feita de signos e não de sig
nificantes. Lemos bem: "Não há maior dom possível, maior signo de am or
que o dom daquilo que não se tem" . Há, estilisticamente, redundância: o
maior dom é o maior signo; o teor do dom é o do signo. Uma vez produzida,
a definição do signo vai se aplicar perfeitamente a esse propósito. O maior
signo/dom do amor representa algo para alguém. O quê? O falo, ele mesmo
tomado como um signo. Deseja-se com sign ificante, ama-se com sign os. Todo
amoroso pratica isso. O amor é fabricado como uma linguagem de signos.
Assim aparece, por exemplo, o estatuto da cançoneta que terá presidido ao
encontro amoroso, igualmente o dos dons de amor que, justamente, não
valem tanto como objetos quanto como signos do amor: digo-te novamente
meu amor usando hoje o vestido que me deste, ao oferecer a teu olhar, em
nosso presente, esse signo de meu e de teu amor. Língua de sign os, a língua
do amor é uma linguagem de surdos e mudos; de cegos igualmente, como se
diz comumente que ele é. Lacan não inventa essa conivência do amor e do
signo. Encontramo-la em Ovídio numa página feliz dos Amores: o marido,
a amante e o amante participam de um jantar, outros convivas igualmente.
O que propõe, o que ensina o amante à sua amante, numa carta que lhe
envia logo antes das festividades? Nada mais que o código da linguagem
privada dos dois:
Quando pensares no ardor de nossos amores, toca com teu dedo delicado
tuas faces rubras. Se, em ti mesma, tiveres queixas de mim, embaixo de
teu ouvido graciosamente para a tua mão. Quando meus gestos ou minhas
palavras te derem prazer, luz de minha vida, roda teu anel por muito tempo
111
O A RCA B O U Ç O D O A M O R
nos dedos.Toca a mesa com teus dedos como os suplicantes o altar, quando
desejares a teu marido todo s os males que ele merece 1 6 •
ESQYEMA D O VÉ U
Os elementos agora estão instalados para que Lacan entregue a seus ouvintes
seu arcabouço do amor. Ele faz isso, durante a sessão seguinte de seu semi
nário (3 0 de janeiro de 1957), ao trazer um chamado "esquema do véu" .
Vão voltar o fe tichismo, desta vez como terceiro pé clínico do arcabouço
do am or, assim como a função do para além e a distinção mantida do amor
e do desejo.
A fórmula "amor por nada" já ocorrera (23 de janeiro), a respeito da
Jovem Homossexual, maneira de dizer que seu amor pela dama era "absolu
tamente desinteressado 1 7 " . Oito dias mais tarde, esse "nadá' toma lugar no
arcabouço do amor, enquanto um novo elemento desse arcabouço, o véu, ofe
recerá alguma consistência à função, até então mais abstrata, do para além.
Bem no começo desse 30 de janeiro, Lacan tem o sentimento de ter
b em recentemente trazido o que ele chama então "esquemas fundamentais".
Ele o comunica lembrando "essas afirmações paradoxais - o que é amado
no objeto é aquilo que lhe falta, só se dá aquilo que não se tem 1 8 " . Quanto
ao "esquema", só agora ele o apresenta. Como? Aplicando-o ao fetiche.
Esse objeto importa, pois, como o objeto do dom amoroso, ele também é
simbólico. O objeto amado para além do amado "com certeza não é nada" ,
mas, mais ainda, deve "ser esse nada" 1 9 • Com efeito, se o símbolo é a morte
da coisa, como é dito já há um certo tempo, o dom simbólico de amor,
16
Ovide, Les amours, op. cit. , p. 1 3 .
17
J. Lacan, La relatio n d'objet, p. 1 45 .
18
Ibid. , p. 1 5 1 .
19
lbid. , p. 1 5 5 .
112 O AMOR LAC A N
•
Sujeito Objeto Nada
Cortina
ESQUEMA DO VÉU
Eis o sujeito e o objeto, e esse para além que é nada, ou ainda o símbolo ,
ou ainda o falo na medida em que falta à mulher. Mas tão logo se instala a
cortina sobre ela se pode pintar algo que diz - o objeto está para além. O
objeto pode então assumir o lugar da falta e ser também como tal o suporte
do amor, mas na medida em que não é, j ustamente, o ponto onde se amarra
o desejo. De certa maneira, o desejo aparece aqui como metáfora do amor,
mas o que o amarra, a saber, o objeto, aparece, este, enquanto ilusório, e
enquanto valorizado como ilusório.
20
J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 65 .
CAP ÍTU LO I V
0 AMO R É C Ô MI CO
Esse homem pronto para zombar não via portanto que ele pontificava, que
ele se levava a sério? Mas não, ele teria respondido que o fato de nada levar a
De onde vem a comédia? Dizem-nos [na verdade, Hegel] que ela sai do
banquete em que, em suma, o homem diz sim numa espécie de orgia - dei
xemos a essa palavra toda a sua imprecisão. O banquete é constituído pelas
oferendas aos deuses, isto é, aos Imortais da linguagem. No fim das contas,
todo o processo de elaboração do desejo na linguagem se resume e se conjuga
no consumo de um banquete. Todo esse desvio serve apenas para voltar ao
gozo, e ao mais elementar. Eis por que a comédia faz sua entrada naquilo
que é possível considerar, com Hegel, a face estética da religião7 •
8
Jean Hyppolice, Genese et structure de la Phénoménologie de l'esprit de Hegel, Paris, Aubier
Montaigne, coll. "Philosophie de l'esprit", 1 946, p. 5 1 1 .
9 Hegel, Phénoménologie de l'esprit, t. II, trad. Jean Hyppolite, Paris, Aubier Montaigne, 1 94 1,
p. 257.
10 Ibid., p. 2 5 5 .
MICO 1 19
O AMOR É CÔ
Pela primeiríssima vez ocorre aqui em Lacan um jogo entre amor e sexo
(uma substituição), um jogo prometido, anos mais tarde, a um consideráve l
mas provisório futuro . . .
Das análises então propostas, notadamente a de A escola de mulheres,
só reteremos um ponto, o da declaração de amor. De onde vem tal decla
ração? Obcecado pela paixão de não ser corno, Arnolfo fixou sua escolha
numa menina de quatro anos, um anjo, e decidiu que ela seria sua mulher.
A idiotice de Agnes lhe cai perfeitamente: ele poderá ser seu educador. Mas,
observa Lacan a um só tempo divertido e sério, Agnes fala e sua ingenuidade
torna sua fala bem mais perigosa que se ela fosse uma menina prevenida. A
menina raciocina, e até chegar a arrazoar com seu educador ancião, ao ponto
que, tendo as coisas mudado, ser ele, Arnolfo, quem se torna o ingênuo.
E é no momento preciso em que ele se vê à sua mercê, permitindo até que
ela conviva com o jovem Horácio (o "bobão" da citação acima), em que
chega a aceitar tornar-se corno, que ele lhe diz seu amor. Declaração essa
que, para qualquer um, parece de uma comicidade perfeita.
Isto dito, dois enunciados parecem não combinar nesse 18 de de
zembro de 1957: "Ora, o problema do Outro ["outro", na estenotipia] e
do amor esta, no centro do com1co
A • 16
", e
" O amor, e, esse o ponto no qual eu
15
lbid.
16
J . Laca n . /.,,, fn, ..,,,,,;,, .,, n 1 �6
CÔM I CO 121
O AMOR É
17
di go que se situa o auge da comédia clássica " . Dizer que o amor é "centro"
o u "auge" da comédia é uma coisa. Dizer que ele mesmo é cômico é outra.
Lacan dirá as duas, mas sem jamais se explicar sobre a passagem de uma à
o utra asserção, como se fosse evidente essa inferência que não é uma, pois
n ão h á razão alguma para admitir que essas paixões, sejam elas quais forem,
q ue a comédia presentifica, sejam em si mesmas cômicas. Lacan diria a mesma
coisa do ódio? Com certeza que não. Eis a passagem exata em que ele se
a utoriza essa transposição:
[ . . . ] e quando digo pivô [o papel do amor que une os jovens bobões] , é bem
porque o amor desempenha esse papel, não de ser ele mesmo cômico [sublinho]
mas de ser o eixo em torno do qual gira todo o cômico da situação, até uma
época que de modo bem nítido pode ser caracterizada pelo aparecimento
do romantismo, e que hoje deixaremos de lado.
O amor é um sentimento cômico.
Invertida, essa última frase diz a que Lacan se dedica. Ali onde vocês
choram, sugere ele aos ouvintes psicanalistas e outros, isto é, com as desgraÇas
do pequeno Édipo de cinco anos, ou ainda com a criança espancada, al i
mesmo seria o caso de rir. Pensamos em Final de partida de Beckett: " Nada
é mais engraçado que a desgraça" .
As últimas palavras dessa sessão condensam o conjunto da afirmação
com, mais uma vez, o problema isso/si. Além disso, como com bastante
frequência na transcrição dos seminários, uma dificuldade aflora relativa à
escrita de "otro", e escrevê-lo assim permitirá não decidir entre "Outro" e "ou
tro" quando parece excluído decidir. Partindo da estenotipia, proporei:
Essa conclusão está bem feita para introduzir o que será desdobrado
no seminário seguinte, a saber, o lugar do amor no ternário necessidade/de
manda/desejo. Rechaçado pelo "não" que o precede, o "na medida em que
o outro seria o objeto único" remete ao amor. Aliás, Lacan havia anunciado
como intervém o amor no que se refere ao desejo embora se aprestasse para
introduzir o amor como sentimento cômico, o amor enquanto instrumento
da satisfação da necessidade, do si:
só perm ite, de modo verossímil, uma única significância: a criança que é ali
espan cada, é por esse foto apreciada, nichts anderes sein, ais die Klitoris
s elb st, ela nada mais é que o próprio clitóris. Trata-se, nesse estudo, das
me ninas. Starrheit, a palavra é muito difícil de traduzir em francês por
ter u m sentido ambíguo em alemão. Quer a um só tempo dizer fixo, no
sen tido de um olhar fixo, e rígido22 •
Com efeito, sem o significante jamais uma criança pode valer como
u m clitóris; sem o duplo sentido de Starrheit, que permite o deslizamento
da fixidez à rigidez, Freud (lido por Lacan) não poderia ter reconhecido na
criança espancada um clitóris. Clássico nisso, Lacan em seguida identifica
ess e clitóris ao falo e encontra assim um terceiro traço do arcabouço do
amor, a função do para além do objeto amado.
O apego da menina ao clitóris não é menos cômico que o do pequeno
Édipo a seu peru. Num e noutro caso, está ganho o dia em que o analisando
que descobre isso ri.
22
J. Lacan. l.er fnrm11tinm. . . . n. �4<;- �4h. sf'ssfo ele 2� ele ahril de 1 9 5 8 .
126 0 AM O R Lo\ C >. �
elementos, é que o quarto deve ser situado em outro lugar que ali onde 05
três são tomados juntos; é que ele tem, além disso, um estatuto diferente
- o próprio amor pertencendo a outro ternário, o das paixões do ser: amor
ódio, ignorância, onde, ali, o solo comum é explícito, é a paixão.
Como Lacan chegou à ideia de que o amor, de que a demanda de
amor era o fundo de toda demanda? Tal observação nada tem de evid ente,
Todos aqueles que, todos os dias, formulam centenas de demandas nem p or
isso têm o sentimento de que sempre se trata de uma demanda de amor!
Que por um instante imaginemos qualquer um a quem essas demandas se
endereçam comportar-se como um psicanalista e não responder a elas . ..
a vida em sociedade ficaria impossível: o verdureiro não venderia m ai s
verduras, o cabeleireiro não cortaria mais cabelos, os impostos não seriam
mais pagos, andaríamos pela mão esquerda nas estradas, os guris não teriam
mais sua mamada preferida, etc. Assim, achamos que convém precisar: to da
demanda não trivial endereçada a um psicanalista é no seu fundo demanda
de amor - mesmo tendo de admitir que a coisa intervém ocasionalmente em
outro lugar que no consultório analítico. Questão: cada demanda enunciada
a partir do divã é endereçada ao psicanalista? Basta pronunciar a palavra
"transferência" para achar que não é tão simples. Ou ainda não desp rezar
a inserção social da psicanálise, como por vezes aconteceu a Lacan faze r ao
entregar um certificado de análise a um fulano que o brandia publicame n te
mais de trinta anos depois. Resta igualmente a demanda de análise, que o
psicanalista em geral não trata como as demandas que interviriam na análise.
O que aconteceria se ele a isso respondesse recusando satisfazê-la em nome
do fato de que essa demanda é, no fundo, não uma demanda de análise,
mas uma demanda de amor? Uma situação que, aliás, está longe de dever ser
excluída. De onde vem a ideia de que toda demanda é demanda de amor?
Já lemos (p. 122- 123) como, a respeito da comédia, o amor podia ser solu
ção à insatisfação dita "essencial" da demanda. Essa "solução" parece bem
se situar num registro diferente daquele da demanda. O sujeito "resolve" a
insatisfação própria à demanda ao agir de outro modo, ao amar, ao ter "um
outro só para si". Logo, ainda não existe em Lacan, nesse 18 de dezem bro
de 1957, essa concepção de um duplo fundo da demanda que quer que , sob
cada demanda, corre, insiste, está em ação uma demanda de amor. Ape n as
É CÓ M ICO 127
OR
O AM
1
·' J. Lacan, As fo rmações. . . , p. 38 1 . sessão de 7 de maio de 1 9 5 8 .
1 28
natureza, parece da mesma feitura que o amor Lacan, um amor que se ob tém
como se não fosse obtido; ele evoca A uma passante de Baudelaire.
A demanda de amor visa o ser do otro, "a obter do Outro essa presen .
tificação essencial - que o Outro dê o que está para além de toda satisfação
possível, seu ser mesmo, que é justamente o que é visado no amor 24 " . Fa.
zendo dom de seu ser, o otro por certo daria o que não tem. Ora, o assu n to
é diferente quando se trata do desejo. E aí, pelo menos nesse seminári o
Lacan não mede as palavras. Estas têm de fato um acento não sádico rn as
sadiano. O desejo "abole a dimensão do Outro" (sua "condição a b soluta" );
o otro só é desejado tornando-se "totalmente objeto2 5 " ; o desejo "compo rta
a destruição do otro", "nega o elemento de alteridade que está incluído n a
demanda de amor26 , e outras afirmações do mesmo nível. Lacan também
diz o que o habita embora situe a demanda em sua relação com o tern ário
necessidade/demanda/desejo. Nada mais que uma náusea:
Ali onde Freud fala de um amor sexual, Lacan agora ressalta uma
irredutível distância entre desejar e amar, uma distância que lhe dá náuseas.
Preenchida por ela? Está excluído pôr juntos desejar e amar pois desejar é
endereçar-se ao otro como objeto, ao passo que amar é apelar para o otro
em seu ser. O início do seminário seguinte, O desejo e sua interpretação, vai
mais uma vez pôr os pontos nos i:
24
Ibid. , p. 406, sessão de 2 1 de maio de 1 958.
zs J. Lacan, Les fa rmations. . . , p. 382 e 384, sessão de 7 de maio de 1 958.
26
Ibid. , p. 40 l e 400, sessão de 1 4 de maio de 1 958.
27
Jbid. , p. 384, sessão de 7 de maio de 1 958.
evidente que o desejo genital e sua maturação impliquem por si só essa
espécie de possibilidade, ou de abertura, ou de plenitude de realização no
amor, do qual parece que se tenha tornado assim doutrinal de uma certa
perspe ctiva da maturação da libido [ . . . ] que foi precisamente a primeira não
só a pôr em relevo, mas até em dar conta do fato daquilo que Freud classi
ficou sob o título do Rebaixamento da vida amorosa2 • [ . . . ] se, com efeito,
8
18 Sigmund Freud, ( 19 12) "Über die allgemeinste Erniedrigung des Liebeslebens", in Beitriige
zur Psychologie des Liebeslebens, segunda parte, G. W., VI II, p. 78-91. "Sobre o mais geral dos
rebaixamentos da vida amorosa", trad. de Jean Laplanche e colaboradores, in La vie sexuelle,
Paris, PuF, 1969, p. 55-65. A noção de um amor "rebaixado" caminha j unto com a de um
amor idealizado (em Freud: que reuniria a dita "corrente terna" e a "corrente sensual").
Freud pensava que uma mulher que aceita o leito é rebaixada. Era crer na Santa Virgem.
Em Lacan, em quem em vão se procuraria tal preconceito, a crença seria antes na santa verga
(ver, mais adiante, as coordenadas de sua invenção de <1>).
19 Jacques Lacan, Le désir et son interprétation, sessão de 12 de novembro de 1958, versão Afi.
Doravante: Le désir...
JO Nas páginas 23 1 (2 ocorrências), 232, 234, 236, 238 (4 ocorrências), 239, 243, 258, 259,
268, 269, 27 1, 273, 276.
3 1 J. Lacan, O desejo... , sessão de 12 de novembro de 1958.
1 30 O A M O R LACA�
Eis aqui mais uma vez o amor que não se obtém. Niás, não se vê corno
seria mais bem desenhada essa figura do amor a não ser situando- a corno
"horizonte de ser" . A questão de atingi-lo, que acabamos de ler, é retór ica ,
Se se tratar, na análise, da constituição do sujeito não no amor, mas em se u
desejo (o que sublinha o próprio título do seminário: O desejo e sua interp re
tação) , aparece mais que bem-vindo que o amor permaneça a um só tempo
no horizonte e um horizonte. Assim localizado, o amor abre um espaço , 0
espaço entre demanda e demanda de amor, de reconhecimento de ser, esse
espaço sendo aquele mesmo onde o desejo teria que se constituir.
Nguns poderiam julgar bem satisfatória essa bela partição em que está
em questão o ser do otro com o amor e do otro como objeto no desejo.
Lacan não ficou nisso e bem cedo dedicou-se a nuançá-la e, portanto, a
problematizá-la. Uma frase - que também assinala o que é introduzido de
discreta varidade no amor por O desejo e sua interpretação no que se refere
ao seminário precedente, As formações do inconsciente - pode alertar. De q ue
se trata? Daquilo que Lacan chama "a homenagem ao ser32 " e que ele vai
então espantosamente situar não, como se espera, do lado do amor, mas
do lado do desejo.
O problema posto em discussão em 17 de junho de 1959 é bem es
cabroso, um daqueles que, parece, fora do campo literário, só a psicanálise
aborda. O que faz que uma mulher não se contente em ser amada? Por q u e
quer ela também ser desejada? O que ela obtém de um homem, e que efeito
ela produz nele ao fazer questão disso? Apresentada a título de uma "verdade
primeira", a resposta vem como um Einfal/33 • Lacan inicia essa digress ão
lembrando a diferença amor desejo:
Pois, enfim, está bem claro que, na experiência, o amor e o desejo são duas
coisas diferentes, e que é preciso de qualquer modo falar claro e dizer que é
possível amar muito um ser e desejar um outro. É precisamente na medida
em que a mulher ocupa essa posição particular, e que sabe muito bem o
valor do desejo, a saber que, para além de todas as sublimações do amor, o
desejo tem uma relação com o ser [...] que, no fim das contas, a mulher dar á
0 valor de prova derradeira que é bem a ela que nos dirigimos. Amá-la, com
O amor, este, visa o ser, e deve-se bem dizer que, como muito bem disse,
acentuou, marcou Freud: "O amor é nardsico", porque não hd outro suporte
a ser dado ao termo ser [sublinho ] 3 4 •
Por outro lado, a relação da mulher com o homem, que todos têm prazer em
acreditar muito mais monogâmica, é algo que não apresenta menos a mesma
ambiguidade, exceto que o que a mulher encontra no homem é o falo real,
e portanto seu desejo ali encontra, como sempre, sua satisfação. [ . . . ] Mas é
35 Eis o texto (versão Afi): "( ...] na relação, ainda que a mais apaixonada, entre um homem e
uma mulher, na medida mesma em que o desejo prende [... ] . o desejo se acha para além da
relação amorosa por parte do homem. Entendo, na medida em que a mulher simboliza o
falo, que o homem ali encontre o complemento de seu ser; é a forma, se posso dizer, ideal.
É justamente na medida em que o homem, no amor, está verdadeiramente alienado a esse
falo, objeto de seu desejo que no entanto reduz no ato erótico a mulher a ser um objeto ima
ginário, que essa forma do desejo será realizada. E é bem por isso que é mantida, no próprio
seio da relação amorosa mais aprofundada, mais Íntima, essa duplicidade do objeto na qual
tantas vezes insisti a respeito da famosa relação genital. Volto à ideia de que, justamente, se
a relação amorosa está aqui acabada, é na medida em que o outro dará o que ele não tem,
que é a própria definição do amor".
M OR É CÔM I CO 1 33
O A
O A M O R N ÃO É U MA S U B L I MAÇ ÃO
1 André Moret, Anthologie du Minnesang, Paris, Aubier, 1949. No entanto, é possível ler em
francês algumas traduções do mais completo e celebrado (segundo Moret) dos Mi1111esii11ger,
a saber, Walter von der Vogelweide, na A nthologie bilingue de la poésie alle111a11de, edição
estabelecida por Jean-Pierre Lefebvre, Paris, Gallimard, 1995.
2 Jacques
Lacan, L'éthique de la psychanalyse, transcrição Afi, sessão de 27 de janeiro de l 960.
Doravante: L'éthique. . . (igualmente L'éthique de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1986, p. 150).
3 A. Moret, A,uhologie d11 Mi1111esa11g, op. cit. , p. 28.
4 A. Moret, Anthologie du Min nesang, op. cit. , p. 8.
1 36 O A MOR L A C A N
à elevação moral. Não é mais tanto a amiga (o mioto i que é cantada quan to
a dama. A Minne metamorfoseia a Liebe para suas virtudes "enobrecedora e
purificadora" (Moret). Sua concepção do amor é "imaterial" . Etimologica.
mente, Minne é a "lembrança" . Moret:
Vamos, diz ela, combata, e firme, não recuarei diante de ti, não te darei as
costas; ataque pela frente, se és um homem, avante, com ousadia, investe
para matar e lute por tua vida. O combate de hoje é sem trégua7 •
Pierre Grimal, que anota essa edição, observa que "toda a cena é fun
dada numa série de equívocos com o vocabulário da luta". Plutarco conta8
que Semíramis, serva e concubina de um escravo, foi amada pelo rei Ninas.
Ela se tornou sua amante no sentido próprio desse termo, adquiriu o trono
para, finalmente, mandar matar seu rei.
Às vezes é útil ler Lacan confrontando-o com suas próprias referên
cias, avaliar precisamente como ele delas se serve e como, quase sempre, as
desvia (o trabalho foi perfeitamente feito para Saussure). No entanto, não
é a questão aqui. Ela não é essencialmente de saber se Lacan de fato leu os
poetas corteses, seus comentadores e os historiadores da época; ela consiste
bem antes em identificar como, introduzindo o amor cortês (ainda que sua
versão do amor cortês), ele modifica ou não o que ele até ali havia proferido
em relação ao amor. Um primeiro traço surpreende: sua posição enuncia-
6
Le livre de Cntul!e de Wrone, bilíngue, traduzido do latino, apresentado e anotado por Da
niele Robert, Paris, Actes Sud, p. 16 1. (NT : tradução para o português de João Angelo Oliva
Neto.)
7
Romnns grecs et latins, textos apresentados, traduzidos e anotados por Pierre Grimal, Paris,
Gallimard, coll. "Bibliotheque de la Plêiade", 1958, p. 172.
8
Plutarque, Dialogue sur la111011r (Eroticns), traduzido do grego por Victor Bétolaud, Paris,
Mille et Une nuits, 2004, p. 27.
1 38 O AMO R LA C A N
dora. Nesse momento em que ele convida o amor cortês em seu semin ário
Lacan não está muito à vontade. Será a influência dos textos consultados ;
Ao lermos hoje essas passagens, ficamos surpresos de vê-lo muito "professo r"
Assim, nele coisa raríssima, ele dá a seus ouvintes uma série de referên cias
históricas mas também algumas de suas referências: em 1 O de fevereiro de
1960, ele lhes indica, com suas coordenadas bibliográficas, A alegria do amor
de Pierre Belperron, Antologia do amor sublime de Benjamin Perret, O am or
e os mitos do coração de René Nelli, ou ainda A imaginação criadora de Henry
Corbin. Na oportunidade, ele vai ainda assinalar outras obras, não men os
eruditas.Também se faz, nesse mesmo tom professoral, historiador do amor,
tentando puxar um fio (o do amor cortês) de Ovídio às Preciosas, passando
por Dante e até hoje, quando se manteriam alguns resquícios da descoberta
da cortesia pelos românticos. Ele se lança na discussão então em curso sobre
a origem da cortesia, parecendo optar pela influência dos cátaros. Tudo isso
não é muito sem objeto, nem muito de sua maneira, e deixa pensar que ali
há dente de coelho. Ao encargo de seu leitor tirar o coelho da toca.
De onde vem essa noção? Essa perspectiva do campo que chamo o campo
da Coisa? Esse campo onde se projeta algo para além, [ . . . ] esse lugar do ser
onde ocorre o que chamamos o lugar eleito da sublimação, do qual Freud,
9 Jacques
Roubaud, La fleur inverse. L'art des troubadours, Paris, Les Belles Lemes, 1 994.
10 J. Lacan, A ética. . . , sessão de 20 de janeiro de 1 960.
O A M O R L ACA N
13 J . Lacan, ética. . . , sessão de 9 de março de 1 960. Tal juízo hoje não é mais válido. Ver Pierre
A
Bec, Burlesque et obscé11ité chez les tro11b11do11rs. Pour 1111e approche du co11tre-texte médiéval,
Paris, Stock, 1 98 4 . Assi m como Jesus Marti nez Maio, "Cornatz lo com" , Li tom!, n º 36,
Mexico, Epeele, 200 5 ; "Lo tmuc de lo càmdllll 11ombre pam das DÍllg?'', Pági1111 Liteml, n º 5-
6, San José, Costa Rica, 2006; "Modi Amandi I nfidelium", Litoml, n º 4 1 , México, Epeele,
2008 .
14
A ética. . . , sessão de 1 0 de fevereiro de 1 960 . Essa característica é dita referi r-se aos dois
âmbitos, meridional e germânico, do amor cortês.
11
René Nelli, Écrivains 1111tico11fo rmistes du Moyen Âge occitan. La fomme et l'a111011r, Paris,
Phébus, 1 977 , p. 79 .
1 42 O A M O R LACAN
a prova. No sirvente de Truc Malet, ficamos sabendo que a dama tinha, ern
privado, mostrado seu "corno" a Beroart de Coroil e que este "com ete u a
loucura de desprezá-lo" : "Eu gostaria muito de ali ter coroado! / Eu teri a
feito isso de coração feliz e sem me zangar (E yeu lay volgr 'aver cornat /
Alegramen, ses cor irat) " . Raimon de Durfort também defende a dama. El e
censura Beroart de Coroil por ter-se feito de difícil e propõe, para puni-lo ,
que o obriguem a soprar a bunda de uma égua prenha. O pobre Beroart de
Cornil, pelo menos aquele apresentado por Raimon de Durfort, responde
que lhe agradaria coroar, mas que . . . lhe falta fôlego. Resultado: a dama lhe
replica da maneira mais impiedosa e pertinente poss ível, isto é, no nível d o
significante:
Nada mais sou, diz-lhe, que o vazio que existe em minha cloaca, para não
empregar outros termos. Sopre um pouco dentro para ver, e veremos se a
sua sublimação ainda se mantém 1 8 •
17 lbid. , sessão
de 1 0 de fevereiro de 1 960.
• La répome de la bergere a11 berger [lit. a resposta da pastora ao pastor] (NT) .
18 lbid. ,
sessão de 4 de maio de 1 960.
1 44 O AM O R LACAN
[ ...] ali onde o vacúolo está para nós verdadeiramente criado, ele é cri a do
no centro do sistema dos significantes na medida em que esse pedido der
radeiro de ser privado de algo real é o que está essencialmente ligado a essa
simbolização primitiva que está inteira na significação do dom de amor.
Não encontramos aqui, embora até parecesse aceito que o amor estava
em tudo isso ausentificado, o amor como dom daquilo que não se tem ?
Objeção à objeção: seria um bem curioso dom, de qualquer modo, aquele
que se faria a alguém que primeiro teria sido preso num círculo mais espesso
que muros de prisão! Seria o que pode se chamar, com Lacan, o dom do rico:
por não poder dar, o rico tranca seu objeto cobrindo-o com joias até que
o dito objeto não aguente mais e, jogando-lhe as joias na cara, parta pa ra
viver, enfim feliz, com um pobretão. Lacan terá percebido o problema, po is
prossegue assim:
Não se pode ser mais claro: não se trata de um dom de amor. O po
dá; "domnoyant" [dando] , ele acaricia e brinca em torno de
eta cortês não
impessoal objeto, da coisa. Depois, como que para ir mais
s e u inacessível e
fundo, é form ulada uma interpretação da origem do dom:
Se dar pudesse ser situado de uma maneira qualquer num sentido ou num
outro de um dos parceiros em relação ao outro, isso talvez não tenha outra
origem senão o que eu poderia aqui chamar a contaminação significante a
resp eito do termo domnei e do uso da palavra domnoye, 21 •
21 J . Lacan, A ética . . .
CA P ÍT U LO V I
O N D E U M FA L E C I M E N T O RE V E LA
C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R
Banquete pareça bem indicar isso) quanto o ... de uma homilia. Essa maneira
primeira vez bem no início da sessão de 30 de novembro de
transparece pela
volta regularmente à superfície, como se se tratasse de lembrar
1 9 60, depois
ermanentemente que a afirmação faz questão desse tom. Esse momento
� miná rio não é de ordem hermenêutica, nem sequer identificável como
o se
u m com entário do Ban q uete. Antes de mais nada um convite em forma de
voto: que o prob lema do amor esteja presente no "psicanalista como tal ".
5
Vo cês nunca entenderam que, num dado momento, no que vocês deram
_ àqueles, entendo, que lhes são mais próximos -, há algo que faltou 6 , e não
só que faltou, mas que os deixa, aqueles citados acima, os mais próximos,
es tes, para vocês irremediavelmente em falta? E o quê? É que justamente
esses próximos - com eles -, só fazemos girar em torno da fantasia cuja
satisfação vocês - neles - mais ou menos buscaram, que - a eles - mais ou
menos substituiu com suas imagens ou suas cores. Esse ser ao qual de repente
vocês podem ser levados por algum acidente, cuja morte é bem aq uele que
nos faz ouvir mais longe sua ressonância, esse ser verdadeiro, contanto que
vocês o evoquem , já se afasta e já está eternamente perdido.
Aos psicanalistas que vieram escutá-lo, Lacan fala não dos pacientes
deles, nem tampouco da experiência deles, mas daqueles que lhes são próxi
mos. Ele apela para o que poderia tê-los tocado em relação a esses próximos.
Não é estranho? O que estão fazendo afinal esses próximos no anfiteatro
Magnan do Hospital Sainte-Anne? Depois, como que para melhor acusar
o gesto, o objeto convocado passa ao singular: trata-se de um mais próximo
(cf. "esse ser"), e, encarado numa certa situação, nada menos que sua morte.
Se não fosse o palhaço Lacan, o ambiente seria um pathos. Eis uma corda
que em geral se faz vibrar para e pelas mais duvidosas intenções: persuadir,
convencer, converter. Uma corda que se endereça ao coração, ao estômago,
às tripas, bem pouco à razão. Então, por que essa evocação da morte de um
7
Ver Daniel Heller-Roazen, Écholalies. Essai mr !'011bli des lang11es, traduzido do inglês por
Justine Landau, Paris, Le Seuil, 2007, p. 99- 1 12.
8
J. Lacan, Le tmmfert. . . , sessão de 28 de junho de 196 1. A estenografia dá a referência em
Freud: Sigmund Freud, Malaise dans la civilisation, trad. do alemão por C. H. e J. Odier,
Paris, Pm, 197 1, p. 37 n. 3, p. 38.
U M F A L E C I M E N T O R E V E L A C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 151
ON D E
para aproximar mais nossas fórmulas e nossos enunciados 1 0 " . A morte torn a
um malogro patente e irrevocável; um tempo, acredita-se, terá faltado. Ela
se apresenta como a experiência privilegiada de uma chamada ao "ser verda.
deiro" daquele próximo dali por diante inatingível; seu próprio afastam e n to
fazendo advir a ideia de que ele "irremediavelmente nos terá faltado". Além
disso, é precisado o que se afigura, só depois e tarde demais, ser responsável
por esse malogro, a saber, a fantasia. A análise de "espanca-se uma crian ça"
havia encarado a fantasia do ponto de vista do amor. Aqui, a fantasia cri a
obstáculo. O que prova, caso fosse necessário, que, exceto seu estatuto de
obstáculo ao amor, a fantasia nada tem a ver com o amor, nem o amor co m
a fantasia. Logo, um emocionante lamento, mas também notável em seu
teor. Não que nada tenha sido dado a esse ser doravante perdido, mas te rá
faltado algo a esse dom, com o que é esse mais próximo que se acha, ele ,
não menos em falta. Teremos procurado, com esse mais próximo, satisfaze r
uma fantasia; esta será vestida com as imagens e as cores de uma fantasia .
E sua morte (só sua morte?) valerá como um chamada (lembrança) ao q u e
no entanto estava em questão e ao que a fantasia fazia tela, a saber, uma
lembrança do ser e ao ser desse próximo. Levemente velada, essa confissão
é tocante. Vibra e faz vibrar. Incita a que se vá manifestar a quem assim se
entregou a própria simpatia que ele chama. Pois o malogro do dom de am o r
não é menos irremediável que a própria perda. Lacan pronuncia em se u
seminário o discurso que ele terá (silenciosamente) feito durante o enterro
de seu pai. Ora, esse tom, essa "personalização" do dizer, não é um hápax.
Lacan, nessa mesma sessão, a isso voltará, falando do "que há de diferente
entre o objeto de nosso amor na medida em que ele recobre nossas fantasias,
e o que o amor interroga sobre si mesmo para saber se pode atingir esse ser
do outro 1 1 " . E ainda: bem no início da sessão seguinte:
E foi por isso que, na última vez, introduzi meu discurso com essas palavras
sobre o objeto, sobre esse ser do objeto que sempre podemos nos dizer [ . . . ] ter
perdi do: é, quero dizer, por lhe haver faltado que convinha que buscássemos
12
atingir, enquanto era tempo, esse ser do outro, vou voltar a isso [... ) •
iss o despreza o que pode resultar para a prática analítica. Com efeito, a pri
meira citação que mostra esse tom prossegue com uma frase que mistura o
endereçamen to ao sujeito e o endereçamento ao psicanalista. Vamos julgá-la
decisiva pois ela opera um salto que não é por certo evidente, um salto do
qual se pode imaginar que seria necessário a um metafísico um número con
siderável de horas de meditação para admitir ou refutar-lhe o fundamento,
um salto que Lacan dá graças a uma adversativa, "só que":
Ora, de qualquer modo, é bem esse ser que vocês tentam encontrar pelos
caminhos do desejo. Só que [sublinho] esse ser é o de vocês e isto, como
analistas, vocês sabem bem que é, mesmo assim, por não tê-lo querido que
ele também lhes faltou mais ou menos. Mas, pelo menos aqui, vocês são,
no nível do erro e do fracasso, a medida exatamente 1 4 •
E esses outros de quem vocês cuidaram tão mal, será por deles terem feito
como se diz, somente seus objetos? Quisesse o céu que vocês os tivesse �
tratado como objetos 1 5 dos quais apreciamos o peso, o gosto e a substância,
vocês hoje estariam menos perturbados pela memória deles, vocês lhes te-
riam feito justiça, prestado homenagem, amor, os teriam amado pelo me nos
como vocês mesmos, exceto que vocês se amam mal [ . . . ] , talvez tive sse rn
feito deles, como se diz, sujeitos - como se fosse ali o fim do respeito que
eles mereciam, respeito, como se diz, pela dignidade deles, respeito devido
a nossos semelhantes. Receio que esse emprego neutralizado do termo
nossos semelhantes seja bem outra coisa que o que está em jogo na questão
do amor e, desses semelhantes, que o respeito que vocês lhes prestavam vá
rápido demais ao respeito do que se assemelha, ao envio a seus caprichos de
resistência, às suas ideias teimosas, à burrice de nascimento, aos negócios
deles, ora! . . . que se virem! É bem aí, creio, o fundo desse deter-se diante d a
liberdade deles, que com frequência dirige a conduta de vocês, liberdade de
indiferença, diz-se, mas não da deles, antes da de vocês.
1 � A coisa será dita de novo em 7 de dezembro de 1 960: "O outro propriamen te, na medida
em que é visado no desejo, é visado, eu disse, como objeto amado. O que isso quer dizer? É
que o que podemos pensar ter faltado naquele que já está longe demais para que voltemos
a nossa fraqueza, é bem sua qualidade de objeto [ . . . ] " .
16 Que voltará à superfície, menos d e quatro meses depois, nos seguintes termos: "Com o se
explica que esses homens, suporte todos e cada um de um certo saber ou suportado por ele,
O R E V E LA C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 1 55
U M FA L E C I M E N T
0N D E
r
inJ i berdade de outrem é outra coisa; não é se limitar a "que ele se vire", o
ª al to m ado como regra, tornaria a análise simplesmente impraticável.
�ss ível agir de outro modo com essa liberdade de outrem? É a própria
! cão da análise na medida em que o analista se dá conta de que está às
q s
com nada mais que um ser.
voltas com um ser e
Jacques não está absolutamente só ao colocar essa questão, e nem
tam p ouco só em sua resposta. Essa suscitação da liberdade de outrem é posta
em p rática , hoje ainda, ali onde talvez seja menos esperada no Ocidente. O
mais resoluto dos textos de lmre Kertész, a saber, seu Kaddish para a criança
J7
que não vai nasce1 , dá a entender o que é um homem livre, isto é, que está
às voltas, de maneira decidida, com a liberdade de outrem. Outrem é aqui
pri meiramente encarnado por uma mulher que não quer de modo algum
sa b er de sua própria liberdade - mas permanece a solicitação em ato, atra
vés da escrita, daquela do leitor. Pensamos também em T homas Bernhard,
em seu texto endereçado aos austríacos; e, last but not least, em Moisés e o
monoteísmo de Freud, obra de incrível liberdade, que primeiro se endereça
à liberdade daqueles de seu povo e que se choca, como Kertész, com uma
recusa de assumir essa liberdade.
Tudo se passa como se a invenção do "desejo do psicanalista" , às
vezes reivindicado como um traço identitário lacaniano, viesse preencher o
b uraco desse erro [fàute] , viesse dizer: "Não , não, se erro [fàute] existe com
nossos próximos, pelo menos com nossos analisandos colocamos em ato o
desejo do psicanalista que, este, não tem a ver com esse erro [fàute] , já que é
precisamente seu ofício não cometê-lo" (a intempestiva promoção, por um
como se explica que esses homens se abandonem, vítimas da captura dessas miragens pela
qual a vida deles, desperdiçando a oportunidade, deixa fugir sua essência, pela qual a paixão
deles é jogada, pela qual o ser deles, no melhor dos casos, só atinge aquele pouco de realida
de que só se afirma por nunca ter sido desiludido ?" Q. Lacan, Le triomphe de la religion . . . ,
op. cit. , p. 1 8) .
17 elato
R traduzido d o húngaro por Natalia Zaremba-Huzsvai e Charles Zaremba, Paris, Actes
Sud, 1 99 5 (igualmente em edição de bolso) . Esse kaddish foi recentemente represen tado em
Paris, numa encenação de Joel Jouanneau, texto notavelmente dito e interpretado por Jean
Quentin Châtelain.
O A M O R L A C ,\ N
Isto, vocês verão, nos levará bem longe, precisamente a saber o que - se
posso me exprimir assim servindo-me de uma metáfora - está no Banquete
1 8 Jean Allouch, La psychanalyse: une érotologie de passage, Cahiers de L'U11ebév11e, Paris, Epel,
1 998.
1 9 Uma outra versão dá "aquém" (nota da estenotipia) .
M F A L E C I M E N TO R E V E L A C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 1 57
ON D E U
20
Primeira reivindicação de inovação, em 30 de novembro de 1 960. Ela se faz mais ambiciosa
°
em 1 de m arço de 1 96 1 , quando Lacan declara "nosso comen tário [ do Banquete] constitui
uma data" , pelo fato de que seria o único até então a não desprezar o caso Alcibíades .
CAP ÍTU LO V I I
O A M O R E N F I M D E T RA N S F E R Ê N C I A
UMA VIA?
1
J. Lacan, A tra11sferê11citt. . . , sessão de 23 de novembro de 1960.
2 lbid. ,
sessão de 30 de novembro de 1960.
1 60
3
J. Lacan, A tm11sferê11cia. . . , sessão de 28 de junho de 196 1.
" N I M D E T RA N S F E R Ê N C I A
O A tv• O R E F
161
tam bém "até amanhã" para o adiamento permanente que ele implica. Pois
dizer a última palavra, dizer a palavra, seria romper a cadeia. Pode-se por
isso concluir que, ao lhes falar, Lacan realiza seu mito da mão que se esten
de p ara a lenha de onde, miraculosamente, sai outra mão? Lacan ama seus
ouvintes? Sim e não. Sim, se levarmos em conta o jogo a duas mãos, isto é,
um jogo a três (é preciso ser três para amar, dirá ele). Não, no entanto, pois
0 entusiasmo veiculado pelo mito dos encontros manuais vai posteriormente
achar-se um pouco acalmado pela irrupção de que se falou, aquela de algo
um pouco rígido, a saber, uma mão, sempre ela, mas que, desta vez, segura
8
u ma arma, uma pedra •
Por isso parece apropriado iniciar aqui a leitura da leitura lacaniana do
Banquete a partir da última e relativamente inesperada declaração à qual ela
d eu lugar. Assim, ela se refere ao caso Alcibíades, mais exatamente ao caso
4 Ibid., sessão de 1 4 de j u n ho de 1 96 1 .
1 Wladimir Granoff, Le désir diwalyse, Paris, Aubier, 2004, p. 1 40 : " H avia algo que circulava
de Lacan até nós e de nós até Lacan e en tre nós, do qual dizer que era do registro da afeição
é provavelmente um 1111derstatement. Havia um certo amor. No momento em que a nego
ciação com a I n ternacional chegou a um estádio del icado, Lacan começou a ficar di ferente" .
Em outras palavras, a recusa da I nternacional também assinalou o fim desse mano a mano,
desse amor entre Lacan e seus alunos. Desse momento em diante, Lacan não teve mais
colegas.
6
J. Lacan , A tmnsferência... , sessão de 1 ° de março de 1 96 1 .
7 A cadeia não começa com Sócrates mas com Apolo, que se preocupou com Sócrates, que,
preocupando-se consigo mesmo, é levado a se preocupar com os o utros, o que Foucault
chama "a grande cadeia das p reocupações e das solici tudes" (Michel Foucault, Le coumge
de la vé rité, /e go1111ememe11t de soi et des nutres II, aula no College de France, 1 9 8 4 , Paris,
Gallimard/Le Seuil, coll. " Hautes écudes" , 2009, p. 8 3 ) .
8
J. Lacan , A tmnsferência. . . , sessão de 7 d e j unho de 1 96 1 .
a três, pelo menos: Alcibíades, Sócrates, Agatão. Só algumas lem bran ças
antes de chegar a isso:
Este último ponto será discutido com o caso Alcibíades. Tentare mos
apreciar em detalhe quais são as distâncias em relação ao que havia sido an
teriormente dito do amor. A resposta de Sócrates a Alcibíades tem o alcan ce
de um amor apresentado como dom daquilo que não se tem? Ou ainda: a
função de um para além do amado continua a atuar?
As últimas palavras proferidas no fim da Thmsferência podem ser
apresentadas sob forma de proposições sucessivas e numeradas:
9
Duas menções são encon tradas, amor e desej o , a esse respeito.
O R EN F I M D
E T RAN S F E R Ê N C I A 1 63
O AM
in tegral, e ele é que foi incumbido de dizer, sob uma forma ridícula, o que
há de m ais verdadeiro sobre o amor. Ele não sabe o que diz, vira um besta,
m as isso não tem importância alguma, e nem por isso deixa de ser o objeto
am ado. Sócrates diz a Alcibíades: tudo o que você aí me diz é para ele 1 0 •
O ponto 1/ não cria mais dificuldade hoje, tanto esse tema foi repetido
se m cessar: sim, a idealidade apodrece a vida. O ponto 3/ parece primeiro
uma exemplificação de 2/. Se qualquer objeto que entrou no campo de nosso
desejo ("desejo" e não "amor", como no entanto se poderia esperar com o
imediatamente e o que logo se segue, a saber, duas ocorrências
q ue precede
de "am or") vale tanto quanto qualquer outro, por que não "o mais babaca
de rodos", por que não Agatão? Agatão só estaria ali para ilustrar oportuna
men te a ideia segundo a qual perguntar ao amado "quem é você", ou, para
dizer de outro modo, colocar amando a questão "quem é você", ou, para
dizer ainda de outro modo, colocando com um amado a questão "quem é
você", questão que então começa a parecer seriamente com um "quem sou
eu", qualquer um, qualquer amado convém. Logo, se o ponto 3/ tem esse
estatuto de simples exemplo, e se o ponto 1 / pode ser afastado por ter-se
tornado quase trivial, resta o ponto 2/ que, este, cria dificuldade.
DO Q!JALQ!JER UM
O que diz ele de mais acessível? Que o psicanalista está (deveria estar) pre
venido da incidência desse qualquer um. Não é tanto que esteja prevenido
quanto a isso em pensamento, de modo intelectual, teórico. Ele só se revelaria
efetivamente prevenido de uma maneira das mais concretas: ao manifestar
ao analisando que ele, o psicanalista, só pode, nos limites da questão "quem
é você", "vacilar". "Vacilar", sim, mas como? Até cair? Se afirmativo, como?
Nessa vacilação, a eficiência do desejo do analista viria de um luto, do luto,
precisamente de ser alguém, quem quer que seja (celebridade do momento,
professor de universidade, diretor de uma escola ou de um serviço psiquiátri-
1 1 Dois ditos a esse respeito, um intitulado "Lacan diferindo de si mesmo", o outro "Esqueci
mento dos nomes próprios" Oean Allouch, Les impromptm de Lacan, Paris, Fayard/Mille et
Une Nuits, 2009, p. 124 e 2 1 3).
1 2 Michel Tournier, Le vent Paraclet, Paris, Gallimard, 1977, p. 245: "Quando se conheceu a
intimidade gemelar, qualquer outra intimidade só pode ser sentida como uma promiscui
dade nojenta".
,, R E N F I M D E T R A N S F E R Ê N C I A
o A IY• o
13
variações dessa mesma temática: Beckett, Blanchot, Foucault, Deleuze •
enet, que relata o seguinte encontro, que lhe foi dado pelo
I gualmente G
. em de trem:
acaso de um a viag
_ tanto quanto qualquer outro. "Qualquer um, penso, pode ser amado pa ra
além de sua feiura, sua estupidez, sua maldade 1 4 " .
1 3 Para uma notável apresentação das respectivas posições, a um só tempo próximas e dife ren
tes, de Deleuze et Foucault, vamos nos reportar com grande proveito à obra de Philippe
Artieres e Mathieu Potte-Bonneville, D'apres Fo11ca11lt: gestes, luttes, progmmmes, Paris, Les
Prairies ordinaires, 2007.
14 Jean Genet, L'atelier d'Alberto Giacometti, Paris, CArbalete, 2007 (nova edição sem número
de páginas).
1 5 Francis Wolff, Philosophie de ln corrida, Paris, Fayard, 2007, p. 168.
16 gualme
I nte minha leitura dessa obra (ver Jean Allouch, Contre l'étemité, Ogawa, Mallnrmé,
Lacan, capítulo 11, Paris, Epel, 2009).
166
Bersani, "será anônimo, o Texto ali falando dele mesmo e sem voz de
autor". Na língua alemã, qualquer um tem até recebido um nome eleva do
à dignidade de um topos literário: ]edermann, "Senhor todo mundo" , o u
ainda "o comum dos mortais". Kertész retoma esse topos por sua con ta:
"Sempre tive tendência, e hoje não menos que antes, a me considerar u rn
]edermann que, em todo caso de um certo ponto de vista, não poupou su a
pena, sobretudo no que se refere à lucidez 1 7 " . Uma nota dos tradutores de
Kertész assinala a peça de Hugo von Hofmannstal jedermann, ela m esm a
remetendo ao jedermann das danças macabras medievais. É, em suma, algo
próximo desse modo subjetivo anterior ao século XI ocidental, vizin h o
da iluminação budista, da realização de si como Brahma, do ]eder ma nn
germânico, da experiência mística plotiniana 1 8 , daquela, moderna, do
toureiro que o psicanalista deveria realizar no ponto de fechamento da
transferência. O que, segundo Lacan, exigiria um luto - não um luto de
algum objeto exterior a si, mas o luto daquilo mesmo que faz que cada um
é "si" e nenhum outro. Dito de outro modo: enquanto sujeito, não sou um
significante, não me caracterizo, como o significante saussuriano, pelo fato
de ser o que os outros não são. Com efeito, não há nenhuma razão para
colocar como necessário esse pretenso desejo que cada um teria de ser si,
talvez até si mesmo - esse desejo sobre o qual se baseia a psicologia . Para
muitos, um desejo assim pareceu de intolerável vaidade (nos dois sentidos
dessa palavra). Em outras palavras, o "conhece-te a ti mesmo" de Delfos
não é primeiro; e tampouco é o "cuida de tua alma" que, segundo Laca n
antecipando Foucault, seria aquilo que procurava dizer Sócrates àqueles
que ele encontrava nas ruas de Atenas. Justamente, se para isso é preciso
um mandamento, é bem que não há ali nada que vá... por si.
O gesto de Sócrates enviando Alcibíades para junto de Agatão é exem
plar do que poderia ser um fim de transferência? A posição de Lacan quanto
17 lmre Kertész, Un nutre. Chro11i 11e d'1111e 111étnmo1 hose, traduzido do húngaro por Natalia e
q p
Charles Zaremba, Paris, Actes Sud, 1999, p. 10.
18
Na obra referenciada, nota 13, Potte-Bonneville não hesita em discernir o elemento pro·
priamente fideísta incrustado nas posições de Foucault e Deleuze, diferente num e noutro
mas também distante um e outro dessa glorificação do rosto à qual Levinas dedicou seus
esforços.
O R E N F I M D E T RAN S F E R Ê N C I A
O AM
Lacan oferecendo o objeto a a seu público sob uma forma topológica das
20
mais materiais, com convite para que ele o receba "como uma hóstia " .
Ness e 9 de janeiro de 1963, fala e ato caminham juntos. Ora, essa mesma
convergência do gesto e da fala já acontecera no fim do seminário A trans
ferên cia (outras vezes ainda, com certeza). A última palavra desse seminário
é u m verbo: "desaparecer". Lacan o p ronuncia embora esteja a ponto de
desaparecer, tendo soltado a última palavra da última sessão desse ano.
Seria mostrar-se um pouco não tolo demais não levar a sério esse recorte
do enunciado e da enunciação, declarar, em nome da realidade: "Não, não,
todos sabem bem que ele vai retomar o seminário no ano que vem, ele aliás
an u nciou isso". Pois a mais mínima experiência, ainda que apenas de breves
férias de um psicanalista, basta para ensinar o pouco caso que pode ser feito,
na oportunidade, de tais juízos de realidade. "Desaparecer", fala e gesto, deve
aq ui ser entendido num sentido plenamente desdobrado, sentido esse que
co mporta o morrer. Confirmação: essa derradeira sessão põe em trabalho
a questão do luto, essa mesma questão que, com a morte de Alfred Lacan,
estava presente no luto da leitura do Ban q uete. Muito pouco tempo antes
de pronunciar seu "desaparecer" e fazê-lo agir, Lacan comenta um certo tipo
de remorso, desencadeado pelo suicídio do objeto:
19
G uy Le Gaufey não en tende ass i m , e o debate não está encerrado, quanto a esse ponto, no
próprio seio da escola à qual ambos pertencemos.
10
J. Allouch, Ln psychn nnlyse: 1111e érotologie de pnssnge, Cahiers de L'U11ebév11e, Paris, Epel,
1 998, p. 36-4 5 .
11 J . Lacan, A tm11sferê11cin. . . , sessão de 28 de j unho de 1 96 1 .
1 68 O AMOR L AcAN
16 Sappho, Poemes, traduzido do grego e apresentado por Jackie Pigeaud, Paris, Rivages Poche,
2004, p. 51.
27
lbid. , p. 39.
Cf "Une séance de supervision avec J. Lacan", in Nicos Nicola'idis, Alphabet et psycha11alyse,
28
Essa pas sagem é de pouco anterior ao que virá bem no fim desse se m i
nário. N ela vamos assinalar a presença da ilha que, já mencionada oito di as
antes, será retomada, justamente, bem no fim. Não sem criar dificuldade ,
pois será então associada não, como aqui, ao desejo, mas ao amor, sendo
então aprese ntada como "esse campo do ser que o amor só pode delimitar" .
Que ilha Laca n tem em mente? A das antigas cartas de geografia, aqu el a
que, ainda inexp lorada a pé e vista do mar, nada mais é que um contorn o,
um laço envolvendo um vazio.
Essa ilha também é aquela, famosa, do rastro de esperma no len çol .
Real, esse rastro será dito um "mapa da França", celebrado como tal. A
citação prossegue assim: "É a partir daí que se origina tudo o que vai ser a
sequência da relação do sujeito com o objeto do desejo. Se ele cativa pelo
que lhe falta ali, onde encontrar aquilo pelo que ele cativa? ". Em outras
palavras, seria o caso de explorar a ilha, seu suposto interior. Mais ainda ,
de tirar o agalma do ventre de Sócrates.
-' 5 Com certeza se trata de Vênus sai ndo da onda, que esteve em questão pouco antes como
imagem erigida "no auge da fasci nação do desejo" .
-' 6 J . Lacan, A transferência. . . , sessão d e 2 8 d e junho d e 1 96 1 .
MO
R E N F I M D E T RA N S F E R E N C I A 1 75
O A
a última falta a ser é revelada, até o ponto onde a questão se confunde com
37
a destruição do objeto •
Eis, p ois, o que, para o desej o , queria dizer possuir o obj eto : seria
a chegar ao que ele supostamente tem no ventre.
destr u í- lo, de maneira
ada por Raquel Capurro e Diego Nin, Eu o matei, diz ela,
Um a ob ra, assin
8
1 meu pai3 , oferece uma monstração exemplar dessa possessão destruição.
Lúm en Cabez udo, o homem, o pai que será morto, é um fanático pelo
desejo , p or um desejo por uma mulher que ele não cessa de assediar a fim
de o bter dela um algo perfeitamente precioso e que a torna, a seus olhos e
aos próp rios olhos dessa mulher (o que não resolve nada) , superior entre
ro das. O q uê? Seu saber em posição de agalma. E é no momento em que
el e ch egaria até a matá-los, ela e os filhos dos dois, que Íris, a mais velha,
intervém , preferindo matá-lo, ele, em vez de deixá-lo matar toda a família
(o ato de Íris é tão louco quanto racional) . O que resultaria se cada análise
devesse funcionar conforme essa lógica, ainda hegeliana, do desej o como
desejo do otro, do desejo destruidor de seu obj eto? Se fosse esse o caso, a
crônica dos crimes deveria regularmente anunciar um assassinato de analista
por um analisando. Sej a como for, a questão , para Lacan, continua sendo
a de outro desfecho, mais bem aj ustado. Assim, pois, não desprezando
nenhum dos dois dados que acabam de ser lembrados (o des �j o como
desejo do otro e como que visando, no último termo, a destruição de seu
objeto) , a observação a respeito do obj eto suicidado lê-se de outro modo
que o terá feito Miller. Como escreve a Estenotipia39 , trata-se de seu desej o
(o do objeto , aquele de quem se suicidou) e não do meu; de seu desej o na
medida em quem se apoia no meu, ele mesmo posicionado como desej o
do otro, como que regrado por seu desejo. A questão colocada é esta: por
que, então, ter regrado meu desej o por seu desej o, se seu desej o se afigura,
por seu suicídio, ter sido que o destruíssem? Por que, se era bem assim,
tê-lo tratado com precaução ? Há outra via, para o desej o , outro desfecho
0 CAS O A L C I B ÍA D E S
E toda a questão é perceber a relação que liga esse Outro ao qual é dirigida
a demanda de amor com o aparecimento do termo desejo na medida em
que ele não é mais nem um pouco esse Outro, nosso igual, esse Outro ao
qual aspiramos, esse Outro do amor, mas que é algo que, em relação a isso,
representa, propriamente falando, um decaimento disso - quero dizer algo
que é da natureza do objeto.
Tudo o que Agatão diz mais especialmente do amor, que o belo por exem
plo lhe pertence, é um de seus atributos, dizer tudo isso sucumbe diante
1 80 O A M O R LACAN
Nessa citação que, ela mesma, cita Platão, amor e desejo parecem
bem só fazer um em Platão, e Lacan nada tem aí a dizer3 • O que não pode
surpreender muito, uma vez que, com Lacan (e Freud), o amado seria en
carado como um objeto, e uma vez que o falo e o agalma têm igualm en te
interesse no amor. Nos primeiros seminários, o amor arriscava ser quebrad o
em dois entre imaginário e simbólico; ei-lo agora em via de ser absorvido
no desejo.
As duas cenas finais do Banquete não têm o mesmo estatuto, mas
mesmo assim estão ligadas. Aquela que ocorrera em segredo, a respeito
da qual Alcibíades declarava não ter chegado a obter de Sócrates o signo
que esperava, é relatada por Alcibíades. A outra cena também é relatad a,
via várias chicanas, mas como se tivesse ocorrido no próprio momento d o
banquete. Ela é atuada durante o banquete e parece constituir um novo ato
(no sentido teatral) do Banquete. Essas duas cenas estão incrustadas, já que
o relato da primeira é feito no próprio seio da segunda, já que esse relato é
um momento e até um episódio atuado dessa segunda cena em que, "se vai
se tratar do amor, é em ato4 " . Eis, pois, a transferência (o agieren do artigo
"Rememorar, repetir, perlaborar", escrito por Freud em 19 14) e, com ela, a
2
J. Lacan, A tra11sferê11cia. . . , sessão de 1 8 de janeiro de 1 96 1.
3
O problema aparece de imediato.Assim, enquanto a sessão de 30 de novembro é encerrada
com a observação que "aquilo de que se gosta em toda essa história do Banquete é o quê? É
algo que sempre se diz e muito frequentemente no neutro, é ta paidika", a sessão seguinte
dirá: "Esse ser do outro no desejo, penso já tê-lo indicado o bastante, não é um sujeito. O
erômeno é, eu diria erômenon igualmente ta paidika no neutro plural: as coisas da crianra
amada, pode-se traduzir" . A mesma afirmação relacionada oito dias antes ao amor desta vez
diz respeito ao desejo! Igualmente, sessão de 25 de janeiro de 1 96 1 : "Quando Sócrates, após
ter dado a virada decisiva ao produzir a falta no cerne da questão sobre o amor (o amor só
pode ser articulado em torno dessa falta pelo fato de que do que ele deseja ele só pode ter
falta}"; ou ainda, a respeito do discurso de Diotima: "Essa definição dialética do amor, tal
como é desenvolvida por Diotima, encontra o que tentamos definir como a função meto·
nímica no desejo".
J. Lacan, A tra11sferê11cia. . . , sessão de 1 ° de fevereiro de 1 96 1 .
C I B ÍA D ES
O CASO AL
entra nos maiores detalhes de sua aventura com Sócrates. O que ele ten to u ?
Que Sócrates, diremos, lhe manifestasse seu desejo; já que sabe que Sócrates
tem desejo por ele, o que ele quis foi um signo" . Uma semana m ais ta rde
(8 de fevereiro), Lacan volta a isso. O que ele chama a "determinação" de
Alcibíades vem do fato de que "lhe parece bastar que Sócrates se declare para
obter dele justamente tudo o que está em causa, isto é, o que ele próp rio
define como: tudo o que ele sabe" . Segundo essa lógica alcibiadesca, mas vista
por Sócrates, obter de Sócrates esse signo de seu desejo abriria a via para a
obtenção do saber em posição de agalma. Porém nem assim Lacan consi dera
resolvida a questão da determinação de Alcibíades e, portanto, nesse 8 de
fevereiro, volta em sua afirmação:
8
J. Lacan, A tmnsferêncin. . . , sessão de 8 de feverei ro de 1 96 1 : "( ... ] o que nos é mostrado
nesse nível é algo relativo ao mistério de amor".
LC I B ÍA D E S 1 83
O (A S O A
9 lbid.: "Mas essa temperança tampouco é no contexto algo que seja indicado como necessário".
1 0 Platão, O banquete, 220c (Alcibíades cita aqui um verso da Odisseia, IV, 242).
1 1 J. Lacan, A transferência... , sessão de 18 de janeiro de 196 1.
como sendo seu único saber, mas esse saber minimalista está em posição de
borda de um irredutível furo no saber. Assim, a asserção de Lacan deixa-se
suplementar: "E diremos que é porque Sócrates sabe que não sabe que el e
não amà' . E, mais adiante: "E diremos que é porque Sócrates sabe qu e não
sabe o que é o amor que ele não amà' . Afirmação decerto bem curiosa, que
só poderá ser esclarecida pela análise da maneira como Lacan toma distância
de Sócrates. Seria preciso saber o que é o amor para amar? Tematicamen te
vizinha, uma discussão agitou mui t as mentes: muito se perguntou se era
preciso conhecer o amado para amá-lo (senão ... que imprudência!), ou se, ao
contrário, o amor era primeiro e conduzia por si mesmo ao conhecimento
do amado (que esperança!). É preciso amar para conhecer ou conhecer para
amar? Aqui, a posição de Sócrates não se refere ao conhecimento do amado ,
mas ao conhecimento do próprio amor. Porém "a mensagem socrátic a, se
comporta algo que se refere ao amor, não é certamente em si mesma fun
damentalmente algo que parta, se podemos dizer, de um centro de amor.
[ ...] Nem efusão, nem dom, nem mística, nem êxtase, nem simplesmente
mandamento daí decorrem 1 2 " . Nem dom: não se pode desprezar esse fur tivo
indício do abandono provisório do amor como dom, no entanto já instala
do nessa data. Essa definição teve de ser deixada de lado para que pudesse
ser enunciado o comentário do Banquete. Há aí um notável chassé-croisé:
enquanto o saber e o objeto (o objeto no sentido novo trazido pelo agalma,
não ainda o objeto a) são introduzidos na questão do amor, o amor como dom
é evacuado. É a marca de uma irredutível antinomia? Mas talvez o fato de o
amor como dom ter sido posto de lado tenha ajudado Lacan a identifi car
por que razão ele não pode fazer totalmente sua a posição de Sócrates. Isso ,
desde sua leitura da cena em segredo, bem antiga no momento do banquete,
já que datando de antes da batalha de Potideu. Como Sócrates responde às
insinuações de Alcibíades? Lacan: "Mas! diz Sócrates - e aí convém tomar as
coisas como elas são ditas - não se iluda, examine as coisas com mais cuidado
de modo a não se engana,; isso não sendo eu - propriamente falando - nada 1 3 " .
Sócrates tem razão em recusar a Alcibíades o signo que sua "cobiça" (Lacan)
12
Ibid., Sessão de 8 de fevereiro de 1 96 1 .
13 J. Lacan, A transferência . . . Para uma discussão desse ponto, ver Danielle Arnoux, "Sur la
transcription", Littoml, n º 1 3, Éres, junho de 1 984, p. 8 1 -82.
LC I B ÍA D E S
O CASO A
Alcibíades não diz: "É por causa de meu bem ou de meu mal que quero
isco que não é comparável a nada e que é em ti agalma", mas: "Quero isso
porque quero, que seja meu bem ou que seja meu mal" - é j ustamente nisso
que Alcibíades revela a função central do objeto na articulação da relação
do amor, e é j ustamente nisso também que Sócrates recusa responder-lhe
nesse próprio plano .
Mas é mesmo seguro que não devamos, sobre esse "seu bem", deixar alguma
ambiguidade? Pois, afinal, justamente o que é questionado, desde que esse
diálogo de Platão repercutiu, é a identidade desse objeto do desejo com
"seu bem" . Será que não devemos traduzir "seu bem" pelo bem tal como
Sócrates o concebe, lhe traça a via para aqueles que o seguem, ele que traz
ao mundo um discurso novo?
você vai entrar na via das identificações superiores traçada pelo caminh o da
beleza". Sócrates insiste e se engana ao querer enganar um Alcibíades q ue
não se deixa enrolar. Entendemos que, segundo Lacan, o verdadeiro heró i
do Ban quete não é Sócrates, mas Alcibíades, "o homem do desejo",
por ele ser Alcibíades, aquele cujos desejos não conhecem limites, esse
campo preferencial no qual ele penetra que é, propriamente falando, para
ele, o campo do amor, é algo onde ele demonstra o que chamarei um caso
muito notável de ausência do medo de castração - em outras palavras, de
falta total dessa famosa A blehnung der Weiblichkeit1 4•
[ ... ] o que Alcibíades busca em Agacão, não duvidem, é esse mesmo ponto
supremo em que o sujeito se abole na fantasia, seus agalmata. Aqui, Sócrates,
ao trocar seu engodo pelo que chamarei o engodo dos deuses, faz isso com
toda autenticidade na medida em que, justamente, sabe o que é o amor e
que é justamente por saber que ele está destinado a ali se enganar [sublinho] ,
isto é, a desconhecer a função essencial do objeto de visada constituído
pelo agalma.
14 J. Lacan, A tmnsferência. . . Nota Estenotipia: "A tradução poderia ser recusa da feminidade".
A LC I B ÍA D E S
O CAS O
rn mais reduzido que seja, seu saber (do amor) cega Sócrates.
aga/ a " . Por
o, seu saber se referia ao fato de o amor não entrar no campo do
Até entã
r M esse saber, resta excluídofazê-lo saber, e mais excluído ainda tirar
sabe . as,
ncias interpretativas para uso de outrem. Prevenido de seu
dis so con sequê
nem por isso podia rejeitar como sendo sem alcance e sem
v azi o, Sócrates
de Alcibíades que o fazia, sileno, detentor dos
ensi nam ento a imputação
agalrnata . O saber de Sócrates o incita a fugir do problema. Sabendo-se não
a
dep ositário dos galmata (o que não é absolutamente verdadeiro, uma vez
vindica deter um saber sobre o amor, isso Alcibíades não inventa),
q ue ele rei
el e daí deduz que pode fazê-lo saber. Seu erro também é temporal: ele não
deixa tempo a Alcibíades para se dar conta por si mesmo de seu próprio vazio.
Teria ele amado Alcibíades se tivesse ousado dar-lhe esse tempo? Lacan tocou
de leve nessa questão quando, evocando o sintoma (uma dor lombar) que,
segu ndo o testemunho de Xenofon, um dia tomou conta de Sócrates por ter
tocado o ombro nu do jovem Critóbulo, ele nota que em Sócrates o amor
a pres enta um caráter um pouco instantâneo 1 5 • Com seu "não se iluda", com
seu envio de Alcibíades a Agatão, Sócrates impede Alcibíades de algum dia
o bter o amor que não se obtém. Em 1 ° de março, Lacan volta novamente
a essas duas cenas, precisando mais adiante em que a postura de Sócrates
l he permite dar um passo ao lado.
Esta última observação deve ser lida baseada numa definição do desejo
como desejo do Outro. Logo, que aí não nos enganemos, não se trata n essa
passagem do desejo de Sócrates, mas do desejo de Alcibíades colocado po r
Lacan como desejo do Outro, um Outro encarnado em Sócrates para u rn
Alcibíades que tenta seduzir Sócrates. Aqui, só o desejo está em questão ,
O qual, é ressaltado, visa obter "a queda do Outro, Outro [em fran cês
Autre] maiúsculo, em outro, o [em francês, a] minúsculo" . Assim, Alcib í-
ades fracassou em fazer decair Sócrates. O fato de Sócrates ter-se recusado
a esse decaimento serve de prova de que ele não jogou o jogo do desejo de
Alcibíades. Também é a razão disso. De novo, mas em outros termos, Lacan
recusa o envio de Alcibíades a Agatão.
p róprio desejo e que, no momento em que ele faz declarar-se seu incêndio,
nos deixa revelar por um instante essa resposta, essa outra mão, aquela que
se estende para nós como seu desejo.
Amor e desejo estão aqui antes mal distinguidos, exceto que o desejo
ap a rece, como na própria frase (ver a sucessão das ocorrências de "amor" e
"des ejo"), a um só tempo no início e na chegada. O espaço do desejo parece
englobar o do amor. Ora, signo da dificuldade, oito dias mais tarde, essa
configuração será invertida. Lacan, então, lembra
[ ... ] é preciso saber preencher seu lugar na medida em que o sujeito deve
poder aí identificar o significante faltante. E, portanto, por uma antinomia,
por um paradoxo que é o de nossa função, é no próprio lugar onde supos
tamente sabemos que somos chamados a ser e a não ser nada mais, nada
além da presença real e justamente na medida em que ela é inconsciente.
No último termo, digo no último termo, é claro, no horizonte do que é
nossa função na análise, estamos presentes enquanto isso, isso justamente
que se cala e que se cala naquilo que falta a ser.
ponto que o seminário não consegue alcançar? Duas citações, por enquan to
colocam um sério problema, ambas de 1 ° de março de 196 1:
E toda a questão é perceber a relação que liga esse Outro ao qual é dirigida
a demanda de amor com o aparecimento do termo desejo na medida etn
que não é mais nem um pouco, esse Outro, nosso igual, esse Outro ao q ual
aspiramos, esse Outro do amor, mas que ele é algo que, em relação a is so 1
dele representa propriamente falando um decaimento - quero dizer algo
que é da natureza do objeto 1 9 •
Eis a segunda:
Amor
Obrigação
L.t
Decaimento de dissimulação
1 9 A transcrição Seuil também escreve "Outro": "O Outro ao qual é endereçada a demanda de
amor [ ... ] . O Outro então não é mais nem um pouco nosso igual" (op. cit., p. 207).
O CAS O A LC I B i A D E S
193
io Sob
a direção de Bárbara Cassin, Vocabulaire européen des philosophies, Paris, Le Seuil/Le
Robert, 2004 , p. 48 1 -488.
1 94
E RO S E P S I QJ) E
sobre a criança. Esse efeito lhe parece duplo. Primeiramente, o objeto assirn
privilegiado torna-se agalma, "a pérola no seio do indivíduo". Recentemen te
um garoto de dez anos dava-me uma ilustração disso. Ele jogava corn a rnã;
o jogo do cúmulo, trazendo-lhe da escola alguns enigmas dessa espécie, is to
até que viesse à mente dessa mãe colocar-lhe, por sua vez, um enigma. " Você
sabe, disse-lhe ela, qual é o cúmulo do jardineiro? ". Diante da inesperada
incapacidade de seu moleque de responder, ela lhe dá a solução: "É fi c a r
pelado no jardim e conseguir enrubescer os tomates". Risos. Pouco im por ta ,
essa mãe, perfeitamente moderna, desvelava assim conforme qual viés oral
ela se achava por esse objeto interessada. Ao mesmo tempo, observa Lacan ,
esse objeto é depreciado como desejo; o sujeito é rebaixado, dispondo, a
partir daí, apenas de uma "promissória futura2" . Partindo dessa análise do
"drama fálico" , Lacan quer muito indicar duas coisas: primeiramente, 0
objeto falo, então notado cp, não deve ser situado como naturalmente na
sequência ordenada dos objetos parciais, seio depois fezes (após a inven ç ão
do objeto a, essa observação cai, como mostra a escrita do "grafo do amorrir
[amourir] " em A angústia3) : "O objeto em questão, disjunto do desejo, o
objeto falo, não é a simples especificação, o homólogo, o homônimo do
pequeno a imaginário em que decai a plenitude do Outro, do grande A".
Baseando-se nos trabalhos de Abraham, mas também nos de Melanie Klein,
que revelaram o encontro muito precoce, pela criança, do falo paterno no
ventre materno, Lacan transcreve-lhes os dados em sua álgebra (e portanto
os modifica). O cp vem simbolizar o que falta ao A "para ser o A noético, o A
de pleno exercício, o Outro na medida em que se pode dar fé à sua resposta
à demanda". Daí a escrita: a = A - cp. Outra precisão: se esse cp (ou [- cp]) não
pertence à lista dos objetos parciais, ele tampouco deve ser tomado como
o signo da falta de resposta do Outro (no caso em questão: para o menino
nessa fase fálica): "A função que vai assumir esse falo, na medida em que é
encontrado no campo do imaginário, não é de ser idêntico ao Outro com o
2
J . Lacan, A tmnsferência. . . , sessão de 22 de março de 1 96 1 .
·1 Um V invertido; nele são distinguidos três níveis em que vêm inscrever-se os cinco obj etos
pequeno a: no térreo, seio e voz (respectivamente à esquerda e à direita; vizinhos de andar,
eles se respondem) , no primeiro, excremento e olhar (que portanto se respondem) , no se
gundo andar (a ponta do esquema): - <p.
Os E rs I QUE 199
EP.
Comentário de Lacan
Desenho de Masson
Quadro de Zucchi
Texto de Apuleio
Essa análise, pela primeira vez nos seminários, vai dar lugar não só à
invenção de <l>, mas a um desenvolvimento relativo à alma - essa alma que,
no lugar do amor Lacan, é promessa, embora talvez efêmera, de belo futuro.
A análise procede em três tempos. Depois de indicar, primeiro momento,
os elementos que, nesse quadro, alimentariam sua interpretação como
ameaça de castração (o falo de Eros mascarado pelas flores e, ponto focal
ou, melhor, de irradiação da luz, o "facão" de Psique), Lacan vai propor,
segundo momento, o que ele chama sua "descoberta 5 " como um passo ao
6 Apulée, Les métamorphoses, in Romans grecs et latim, textos apresen tados, traduzidos e ano
tados por Pierre Grimal, Paris, Gallimard, coll. " Bibliotheque de la Pléiade" , 1 9 5 8 , p. 2 1 8-
25 5 .
7 " ( . . . ] u m a serpente enorme, um monstro dobrado e m m i l nós, c o m o pescoço cheio de u m
veneno sangrento, a goela hiante e profunda" (Apulée, Les métamorphoses, op. cit. , p. 232) .
8
Conjectura: não seria o croqui de Masson que teria introduzido para Lacan as asas de Psique?
9 J. Lacan, A tm11sferê11cia. . . , sessão de 1 2 de abril de 1 96 1 : "Para que não duvidem de que
Psique não é uma mulher, mas de fato a alma, que me baste dizer-lhes que [ . . . ] " .
202
fugir dela, abrindo assim a via para "o que se pode chamar as desgraças ou as
desventuras da alma". Desventuras, pois Psique tem, pelo menos, três sérios
problemas: 1) ter irmãs más muito invejosas de sua felicidade com Eros •
2) ser considerada por Vênus como a "cópia de [sua] beleza 1 0 " , em outr�
palavras, o ciúme de Vênus; 3) ter, por sua beleza, levado Eros a trair a mãe .
Conclusão: não se trata de um assunto de casal mas "de algo que [...] n ada
mais é que as relações entre a alma e o desejo". A interpretação em termos
de complexo de castração nem por isso é afastada por Lacan. Muito p elo
contrário, pois importa a superposição dessa interpretação primeira com seu
"achado". Seu verdadeiro achado parece assim, para acabar, ser o do "pon to
de concurso entre dois registros", o do complexo de castração e o da alma.
Eles têm "um centro comum". O quadro de Zucchi traz algo insubstituíve l ,
inacessível a uma análise estrutural do mito de Eros e Psique, nada mais que
esse ponto de cruzamento. Cruzamento, não harmonia. É até, no caso em
questão, bem o contrário, como assinala a história de Psique.
ALMA
r Metammío,e
DESEJO
1 3 Karl Abraham, Psychomut/ytische St11die11 z111· Chnnkterbild1111g 1111d nndere Schriften, Fran
cfort-sur-le-Main, S. Fischer Verlag, 1969. Tradução francesa, Développement de la libido,
em CEuvres completes li, chap. "Esquisse d'une histoire de la libido basée sur la psychanalyse
des troubles mentaux", trad. Ilse Barande, Paris, Payot, 1977.
14 J. Lacan, A trnnsferêncin. . . , sessão de 2 1 de junho de 196 1.
1 5 J . Lacan, A trn11sferê11cin... , sessão de 28 de junho de 196 1.
S E P S I QU E 205
f Jl O
M E TA F Í S I C A D O A M O R
1
1 . Lacan . A tm11sferê11cin. . . , sessão de 30 de novembro de 1 960.
208
DO AMOR LIBIDINAL
2
Jacques Lacan, L'ide11tifict1tio11, transcrição Afi, sessão de 2 1 de fevereiro de 196 1. Doravan
te: A identificnçiío.
AFÍS ICA DO
AMOR 209
MET
Funciona algo que se escreveria assim: " {seio, excremento, pênis) <I> " .
E m outras palavras, a castração nada mais é que a subjetivação como tal de
<I> . Entendemos que "castração oral" ou "anal" possa estar em questão, já
210
que, situado fora de parêntese, o fator comum <l> pode vir marcar cada urn
dos três objetos enfeixados no parêntese.
Logo, uma distância tomada em relação à lógica clássica. Distin ta
dela, Lacan vai fazer valer sua lógica elástica, a do significante. O Enheit
kantiano, fundamento de toda síntese a priori, "de fato parece bem impo r
se, desde o tempo de sua progressão a partir da mitologia platônica, como
a via necessária, o Um, o grande Um que domina todo o pensamento, de
Platão a Kant" . Logo, Lacan vai opor seu Einzigkeit (a unaridade, o traço
unário, retomado da identificação histérica, segunda forma de identificação
em Freud) a esse "grande" Um unificante, que faz círculo; e, no mesmo
rastro, opor às virtudes da norma as da exceção. Logo, a "inversão lógicà'
parece antes uma inversão de lógica, que, além disso, não é muito uma
inversão, exceto no sentido em que o empreendimento poderia ser julgado
"espantoso" .
Ora, esse passo ao lado para com o Um unificante também é um passo
ao lado no que se refere a esse amor que supostamente não só faz um, mas
ainda e mais precisamente esse Um3 • Ao se comprometer em dizer com o o
traço unário intervém no advento do sujeito, Lacan toma distância do am o r
unificante. Mas também, coisa mais surpreendente, do amor tal como dele
tinha falado em A ética e em A transferência.
Sendo assim, é evidente que o freudiano que Lacan pretende ser não
pode evitar a seguinte questão: a maneira como Freud fala do amor em sua
"Introdução ao narcisismo" (ele estivera em questão no fim da T,-ansferên
cia4) tem a ver com o Um? A resposta é dada na caracterização desse texto
de Freud: uma "metafísica do amor" (o próprio Freud referia a Platão as
descobertas psicanalíticas relativas ao amor). O problema pode ser encara
do mais de perto reformulando a questão de maneira menos abstrata: "a
equivalência [sublinho] trazida por Freud entre a libido narcísica e a libido
·1 "Amanhã, vamos nos reunir e fazer só um, na esplanada onde o sonho de Martin Luther
King continua a ressoar" (Barack Obama, 19 de janeiro de 2009, citado no artigo "Uma
promessa americana", Libémtio11 de 20 de janeiro de 2009. Ver igualmente seu discurso de
posse em Libémtion de 21 de janeiro). David Halperin, a quem eu relatava esse prolonga·
mento de Aristófanes, assinala-me que não há nada aí senão esperado, como se vê ao ler, nas
notas verdes americanas, o slogan e pluribus 1111 11111 .
1 J. Lacan, A tra11sferê11cin. . . , sessão de 2 1 de junho de 196 1.
ICA DO AMOR 211
METAFÍS
de objeto " pode ser pensada fora do quadro do um unificante? Ela tanto
5
Tratava-se daquilo de que nos fala Freud, nesse nível da Introdução ao nar
cisismo, a saber, que amamos o outro com a mesma substância úmida que é
aquela de que somos o reservatório, que se chama a libido, e que é na medida
em que ela está aqui, em l, que ela pode estar ali, em 2, isto é, cercando,
afogando, molhando o objeto em frente. A referência do amor ao úmido
não é minha, ela está em O banquete que comentamos no ano passado.
Sujeito 1 2
1 /d.. A identilic11ciío.
212
6
Karl Abraham, Psychoanalytische St11dien zur Chamkterbildtmg 11nd andere Schariften, Fran
cfort-sur-le-Main, S. Fischer Verlag, 1969. Tradução francesa, Développement de la libido,
em CE11vres completes II, chap. "Esquisse d'une histoire de la libido basée sur la psychanalyse
fíSICA DO AMOR 213
MET A
[ ...] propus-lhes definir em relação ao que amo em outrem[ ...] o que desejo
[o objeto de meu desejo]. É[ ...], sob forma do puro reflexo daquilo que resta
de mim investido [investido sobre mim] [ ...] o que falta ao corpo do outro,
[ ...]. No [ ...] nível do desejo, todo esse corpo do outro, pelo menos tão
pouco quanto o amo, só vale, justamente, pelo que lhe falta.
7
J. Lacan, A identijicnçdo.
* r r .. •
214 O AMOR LAc A
t-;
E isto também reencontra o que no ano passado acentuei como sendo esse
ponto visado desde sempre pela ética da paixão que é fazer, não digo essa
síntese, mas essa conjunção de que se trata de saber se, justamente, não é es-
FiSICA DO AMOR 215
MET A
8
J. Lacan, A identificação.
* Em francês: Q1umd /i'flppé Aphrodite, c'est l'affiwx dou ti'. (NT\
ÍSICA DO AMOR 217
METAF
em Lacan, de separar amor e desejo, como se ele tivesse farejado o per igo
incorrido durante os dois anos precedentes. Ora, esse acento decididamen.
te posto no desejo levanta um problema, hoje patente. Pois o amor (ma is
exatamente o amódio) fez um formidável retorno ao momento da dissolu
ção da EFP e, depois, da constituição in progress de grupos lacanianos. Ou
seja, a proposição: "O sujeito em questão, aquele cujo rastro seguim os, é 0
sujeito do desejo e não o sujeito do amor [ ... ]". A negligência na qual essa
proposição parece considerar o amor historicamente se voltou contra ela.
Expulso da análise, o amor ali volta a galope. Não sem consequências no
entanto, pois se "somos ordinariamente sua vítima" (sequência imediata
da citação), o psicanalista arrisca forte acabar sendo uma vítima do am or.
Uma vítima do amor de Freud, de Lacan, de tal outro psicanalista pode ser
psicanalista? Uma psicanálise com uma vítima do amor como psicanalista
pode produzir outra coisa que uma nova vítima desse amor sentido por
tal ou tal psicanalista do qual importa pouco que esteja morto ou vivo?
Decididamente sim, o apelo de Jacques Lacan à fundação de uma escol a
"daqueles que me amam" deverá ser questionado.
CAPÍTULO XI
HEGEL, LACAN:
DUAS IRRESISTÍVEIS RECEITAS
PARA OBTER O AMOR
Se isto pudesse ser dito, o que eu diria por aí? Diria ao outro que, desejan .
do-o com certeza sem saber, sempre sem saber, tomo-o pelo objeto de l11i
tn
mesmo desconhecido de meu desej o, isto é, em nossa concepção do desejo,
o identifico, te identifico, tu a quem falo, tu mesmo, com o objeto que falta
a ti mesmo, vale dizer que por esse circuito onde sou obrigado a passar para
atingir o objeto de meu desejo, cumpro justamente para ele o que e le busca.
É bem assim que, de modo inocente ou não, se tomo esse desvio, o ou tro
como tal, objeto aqui, observem, de meu amor, cairá forçosamente etn
minhas redes. Deixo-os aí, nessa receita, e digo-lhes até a próxima vez 1 •
u ma afi rmação cuja distância pode ser medida com o que, anos antes, era
apresentado como a fala plena, ilustrada pelo famoso "és minha mulher". •
c la nao e ·
� e' tanto p1 ena quanto perrormattva, e • prec1-
e perrormattva
Aqui, a ra
sa111ente porq,,ue não plena. Ela indica várias faltas- a primeira delas sendo
" �
meu nao sei. .
3) Falta no saber: "Te desejo, mesmo que não saiba". Esse dizer sig-
n ifi ca ao outro que me é possivelmente desconhecido (cf "mesmo que") o
objeto de meu desejo, que possivelmente me falta esse saber. Tal declaração
contrasta com outra, que não opera tanto quanto a de Hegel, a que diria:
"Te amo já que correspondes exatamente a meu tipo... de homem/de mu
lher" - o que um Pascal sustenta em termos, é verdade, mais refinados. Mas
p or que, partindo daí, acrescentar que assim identifico o outro ao objeto
que lhe falta, e não somente que me falta? E por que acrescentar que, assim
fazendo, cumpro "por ele" o que ele busca? Esse duplicado suplemento
parece forçado, ou então estar mais para um insondável milagre. O que
mesmo assim convém explicar. Lacan está dizendo que o objeto que me
falta é também o objeto que falta ao outro? Seria um único e mesmo objeto
faltante? Percorreremos no outro sentido o caminho dessa frase, partire
mo s do outro para ir até o declarante, assim denominado por prudência,
a fim de não cair nessa facilidade que consiste em usar a todo momento o
termo "sujeito". Esse declarante será mais bem designado ainda como o se
declarando(ante) 3 •
4) A frase propõe um nome para o que está combinado chamar, após
John Austin e os performers, uma pe,formance, um nome que traz a vantagem
de evocar o que Freud chamava: cumprimento (Erfüllung) . Conforme o que
reivindica a moderna pe,formance artística, a declaração cumpre (cumpriria)
algo não só em quem se declara, mas também no outro - com certeza não
a mesma coisa em um e no outro. Para além até desse "no outro", Lacan
diz pelo outro, no duplo sentido desse "pour"*: algo é realizado em favor do
o utro, mas também no lugar do outro. Esse "no lugar" permanece ambí-
·' Um número de Littoral foi dedicado a "A declaração de sexo" (Littoral, n º 23-24, Toulouse,
Éres, outubro de 1 987) . (NT) Déclarant tanto pode ser o declarante (substantivo) quanto o
particípio presen te, habitualmente traduzido no português pelo gerúndio declarando.
• A preposição pour tanto pode dizer aí por ou a fiwor de. (NT)
222 O AMOR LAc
AN
outro só pode ali se identificar. O que, então, faz essa incrível eficácia, no
outro, de minha declaração? Resposta: o possível não-saber, em mim, do
objeto de meu desejo; mas um não-saber sobre o qual me fundo, de certo
modo, para comprometer, em minha relação com o outro, o que de qual
quer modo resulta de um certo saber. Esse objeto de meu desejo, de mim
rnesmo desconhecido, e que, desconhecido, permanece, pois bem... sei de
qualquer modo que... é isso. Ora, esse "é isso" não pode perdurar, manter-se
no ser; ele só pode, uma vez advindo, logo se realizar ao se metamorfosear
(a gramática obriga) num "és tu". Eu te identifico como sendo o objeto de
rnim mesmo desconhecido de meu desejo. Avanço na tua direção como a
um só tempo sabendo e não sabendo, sabendo que és tu e não sabendo o
que és. Podemos pensar, para dar algum corpo a esse movimento na dire
ção do outro, no que o amor à primeira vista transporta a um só tempo de
certeza e ignorância.
Por que, então, Lacan pode aqui convocar o amor? Ele nada diz, o
que não impede propor uma resposta: porque esse cumprimento pelo outro
é um dom. Que dom? O dom de uma identificação, da identificação do
outro com seu objeto faltante. Que o outro se identifique com aquilo pelo
q ue é identificado, isso se concebe de duas maneiras. Pode-se dizer que é ao
se identificar assim que o outro acolhe, aceita o dom; mas também dizer; em
termos de hoje, que "ele não aguenta". Esse outro no qual intervém minha
declaração "cairá forçosamente em minhas redes". Seria, uma vez mais, ou
uma versão guerreira do amor e do desejo? Em 27 de fevereiro de 1963, Lacan
voltará a esse blefante fim de sessão de 2 1 de novembro precedente.
4 John J . Winkler, Désir et contraintes en Grece ancienne, préface de David Halperin, traduzido
do inglês (Estados Unidos) por Sandra Boehringer e Nadine Picard, Paris, Epel, 2005.
5 Ibid. , p. 1 64.
LAC A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S PA RA O B T E R O A M O R 225
ti E G E L
6 Certas demandas de análise parecem assim vestidas "à antiga" , aquele que se encon tra em
dificuldade no casal enviando o outro , que ficaria bem sem isso, mesmo que não saiba, ao
trabalho da análise; ou então ainda, outra configuração, o analisando dedicando sua a nálise
a "analisar" o objeto de seu amor.
7 "Os entrelaçamentos sistemáticos da violência e do encanto, se pode nos deixar perplexos,
e até nos encher de nojo, é apenas a forma necessária da aspiração ao êxito, nessa sociedade
em que reinam o conflito, a hipocrisia e a duplicidade" (J . J. Winkler, Désir et co11h'tti11tes
en Grece n11cie1111e, op. cit. , p. 1 57) . Ver também, página seguinte, o comentário do termo
226
8
J . J . Wi nkler, Désfr et co11h'(lÍlltes en
Grece nncienne, op. cit. , p. 1 9 5 .
9
lbid. A ci tação provém dos Pnpyri grttctt mngictt, o s famosos papiros mági cos encontrados no
Egi to , es cri tos em grego. " Essa frase" , escreve-me Sandra Boehri nger, "é bem representat iva
dos desejos formulados" . Ver Sandra Boehri nger, L'homosexunlité féminine dnns l'Antiquitt
grecque et romnine, Paris, Les Belles Lettres, 2007.
• LAC A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S PA RA O B T E R O A M O R 227
H EG E L
Para Lacan, porque Lacan é analista, o Outro está ali como inconsciência
constituída como tal, e ele interessa meu desejo na medida daquilo que lhe
falta e que ele não sabe. É no nível daquilo que lhe falta e que ele não sabe
que estou interessado da maneira mais pregnante, por não haver para mim
outro desvio, em encontrar o que me falta como objeto de meu desejo.
A fó rmula lacaniana do desejo "d(a) < i(a) : d(A)" deve ser con
frontada com a de Hegel: "d (a) : d(A) < a". Desta àquela, os dois pontos
que marcam a passagem do lado do outro deslocam-se de um grau. O
que pode ser assim transcrito: tem-se "X : Y < Z" em Hegel, e "X < Y :
"fe desejo, mesmo que eu não saiba". Ao te declarar isso, faço-te dom de
algo q ue não tenho, dom de tua identificação com o objeto que te falta; ao
ce declarar isso, te amo. Houve um tempo, antes feliz, em que era moda
questionar o outro com um por vezes cruel "de onde falas?". Não era mes-
.
mo assim tão bobo, exceto quando virou mama. · De onde, entao, o se r "
2 1 de novembro de 1962, Lacan liga amor e saber implica o amor como dom.
O utra diferença: Sócrates não ama Alcibíades, ao passo que o declarante,
este, ama esse outro ao qual ele se declara. Ora, apesar dessa dupla dispari
dade, uma constante perdura. Por duas vezes não é o saber que é articulado
ao amor (um saber que se saberia ele mesmo) mas sua folha, ao menos parcial.
Co m Sócrates, a fórmula era: "E diremos que é por saber que não s;i.be o que
é o amor que ele não ama". Com, agora, a supostamente irresistível receita
de Lacan, temos: "E diríamos que é porque o se declarando(ante) não sabe
possivelmente qual é o objeto de seu desejo que ele ama (e, em contrapartida,
é pago)" . Por duas vezes intervém um "não sabe" . Mas o assunto é por duas
vezes mais sutil, não jogando binariamente com a oposição saber/não-saber.
S ó crates sabe que não sabe, parecendo fazer desse não-saber a razão de um
não -amor. O fato é que ele está a par do saber desse não-saber. Quanto ao se
declarando(ante), não é exatamente que ele não sabe, é apenas que ele poderia
não saber - o que bastaria para que seu desejo apaixonado em contrapartida
fosse pago. Este sabe que poderia não saber. Por duas vezes o saber de certo
mo do parece estratificado, indo como que contra si mesmo. Logo, é esta a
espécie de saber bizarro que Lacan primeiramente ligou ao amor.
Qual é aqui a distância em relação a Hegel? Posteriormente à sua
invenção do objeto a, Lacan poderá precisar isso melhor (23 de fevereiro de
230
1 962). Com seu "mesmo que eu não saiba", com seu não-saber, Lacan d eix
a
de lado o desejo de reconhecimento e o que o acompanha de violên cia.
O
desejo do outro não me reconhece; ao causar meu desejo, ele me põ e elll
causa. Assim, é a angústia que é solicitada, não mais a violência. E é nesse
desejo que não me circunscreve como objeto que Lacan pendura seu desejo
do analista.
A fórmula "Te amo, mesmo que eu não saiba" prolonga um afeto já
assinalado por Lacan: sua aversão por essa preocupação falsamente altruíst a
com a liberdade do outro que é apenas indiferença por esse outro, que é só
pretexto para deixar o outro se enrolar. Ora, sua fórmula funciona bem como
uma intervenção no outro, e uma intervenção maior, já que faz com que ele
caia na armadilha de meu desejo. Entretanto, notamos que, ao desdobrar
o funcionamento dessa fórmula, Lacan parece não claramente distinguir
amor e desejo. Vem, então, uma nova promessa: "É preciso saber o que é 0
desejo, e ver sua função, não apenas no plano da luta, mas ali onde H egel ,
e por boas razões, não quis ir procurá-lo, no plano do amor" 1 1 •
S E G RE D I N H O
Lacan terá escondido d e seu público que ele havia tirado de Alexandr e
Kojeve essa dialética hegeliana do amor. Poderemos julgar idiotas e sses
segredinhos pois, cedo ou tarde, alguém levanta o véu de Maia. Assim,
Kojeve falou da "dialética do amor" em Hegel durante as "Conferências
de aulas" (como as chama Raymond Queneau), proferidas em 1 934-1 9 35 .
Lacan as assistia. A conferência em questão tem por título: ''A dialética
do real e o método fenomenológico". Foi acrescentada por Queneau
em apêndice à sua publicação das "Notas e estenografias" das aulas de
Kojeve 1 2 ( 1 947). A "mui, mui preciosa notinha" supostamente assinada
por Hegel, que Lacan menciona em 2 1 de novembro de 1 962, existe? É
13
A. Koieve. l11trod11ctio11 à la lecture de HeJ!el, op, cit. , p. 5 1 2-5 1 3 .
232
Comentário:
Logo, seria este, pelo menos até prova em contrário, o texto retomado ,
trinta anos mais tarde, por Lacan e apresentado como uma "notinha" do
próprio Hegel. Lacan:
[ . . . ] nessa teoria do desejo em sua relação com o Outro, vocês têm a chave
disto, é que, contrariamente à esperança que lhes poderia dar a perspectiva
hegeliana, o modo da conquista do outro é aquele, infelizmente, com de
masiada frequência adotado por um dos parceiros do "Te amo, mesmo que
não queiras" . Não acreditem que Hegel não percebeu esse prolongamento
de sua doutrina. Há uma mui, mui preciosa notinha em que ele indica
que é por aí que ele poderia ter feito passar toda a sua dialética. É a mesma
nota em que ele diz que, se não tomou essa via, foi porque ela lhe parecia
não ser muito séria. Como ele tem razão! Experimentem. Vocês me darão
notícias de seu sucesso 1 4 !
Não está dito que a fórmula "Te amo, mesmo que não queiras" é de
Hegel; o texto sugere, ao contrário, é verdade que de modo discreto, que
ela é de Lacan que, ao inventá-la, "prolonga" Hegel. A fórmula tampouco
se encontra em Kojeve. Em compensação, Kojeve desdobra, do modo mais
explícito possível, essa substituição/deslocamento que, para desenvolver a
dialética da existência, teria feito Hegel passar de uma dialética do amor
àquela do reconhecimento. Kojeve é tão preciso, ao apresentar essa substitui-
ão, que é possível retomar seu texto sob a forma de um quadro, os itens da
�é à esquerda transformando-se um a um naqueles da direita (não vamos
rie
esquecer q ue se trata de um Hegel à moda Kojeve).
1 1 Notadam ente em " Kant com Sade", Lacan, Écrits li, op. cit. , p. 2 59-260 .
2 34 O A M O R LAc
AN
um animal, uma planta, u m rochedo. Disso decorre, quarta obje ção , que
um homem feliz no amor não pode estar plenamente satisfeito. Só a lu t a
e o trabalho produzem uma realidade objetiva verdadeiramente humana .
Essas objeções, que terão levado Hegel a pôr de lado sua dialétic a do
amor, valem ser aqui relatadas igualmente por serem, para o movimen to
lacaniano, atuais. Lacan as havia feito suas em 1 938, ao escrever, em Os
complexos familiares: " Hegel formula que o indivíduo que não luta pa ra
ser reconhecido fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade
antes da morte. [ . . . ] No que se refere à dignidade pessoal, é só àquela da s
entidades nominais que a família promove o indivíduo e ela só c onse
gue isso na hora da sepultura 1 6 " . Ora, o que aconteceu ao termo de seu
percurso? Um movimento exatamente inverso, já que um amor e m que
uma parte de sua própria família figura em primeira linha foi então po r
Lacan proposto como sendo o próprio laço pelo qual cada aluno poderia
ter acesso à sua "dignidade pessoal". Um único título como O dia em que
Lacan me adotou 17 é límpido a esse respeito: trata-se de filiação, de uma
inscrição numa família. A enumeração de Kojeve/Hegel dá exatament e
o preço disso.
Enquanto Hegel deixava de lado a dialética do amor, Lacan, bem
antes desse problemático recurso a uma parte de sua família, e logo
antes de inventar o objeto a, volta a isso, mas para daí produzir outra
versão. Ele refaz ao avesso o percurso entre o Hegel de juventude e o da
maturidade a fim de desembocar numa outra figura do amor que aquel a
que Hegel teve de pôr de lado para escrever sua Fenomenologia. Seu "Te
amo, mesmo que eu não saiba" é por certo reconhecido indizível {só
isso o torna por um instant e sustentável), mas parece no entanto poder
atuar como o elemento essencial da posição e da ação do analista na
transferência. Bem entendido, ele nem por isso podia, o que de qualquer
modo decorre logicamente, pretender que, com essa declaração não dita,
o analista ama o analisando. Ora, ele procura precisar que não, o que,
O AM O R LACAN
AP Ó S O O B J E T O a
L ogo após sua disputa com Hegel, que devia determinar qual dos dois
detém a melhor fórmula para obter o amor com certeza, Lacan pro
cura trocar o agalma pelo objeto a. Em 1 6 de janeiro de 1 963, depois de
d iferenciar a transferência da repetição e observar que se trata de um amor
presente no real, é ainda trazida a questão central da transferência como
"a questão que o sujeito se coloca quanto ao agalma, isto é, o que lhe falta.
Pois é com essa falta que ele ama 1 " . Porém, uma semana mais tarde (23 de
janeiro de 1963), vem a troca do agalma pelo objeto a. O acontecimento
era previsível, após a oferenda por Lacan do objeto a a seu público em 9
de janeiro de 1963 . Por outro lado, era menos previsível que essa troca
viesse acompanhada de outra questão (nova nos seminários que, até ali, só
tinham feito tocá-la de leve) proposta sob o título de "A ambiguidade da
identificação e do amor", em outras palavras, a difícil questão freudiana da
identificação regressiva de luto.
"dar O que não se tem" assume aqui uma coloração particular, aquela que
as sinala um termo por duas vezes repetido: "instrumento". Lê-se, segunda
ocorrência: "nessa regressão em que a permanece o que é, instrumento".
fazer- se amante seria tomar o objeto a como um instrumento. O amor
ser ia assunto instrumental. No amor, o próprio amante se instrumentaliza
enquanto objeto a, usa de si mesmo, de seu próprio ser na medida em que
esse ser é o objeto a. Ora, o que pode querer dizer que um dom seja dom
de um instrumento? É tornar o dom intencional, fazer dele um dom que
vise algo (a desconfiança de um Bentham em relação ao altruísmo não está
longe); assim, o dom da pessoa de Cristo crucificado a visar a ressurreição
de rodos. Seria, de fato, um dom assim instrumentalizado que estivera pre
viamente em questão? Se o dom é intencional, suspeita-se que ele poderia
bem resultar da troca. Ora, é precisamente o que fora excluído no momento
em que Lacan inventava sua fórmula do amor como dom daquilo que não
se te m. O problema remete em linha direta à questão do puro amor.
Em 3 de julho de 1 963, derradeira sessão de A angústia, Lacan vai
novamente considerar o que a identificação regressiva de luto é suscetível de
indicar a respeito do amor. Está então em questão o amor de Hamlet por
seu pai, um amor cujo valor inibitório ninguém ignora e que Lacan, nesse
dia, afirma ser parente do amor cortês. Mas é para opor a esse amor cortês
um amor verídico, nada além do que já pode ser chamado "o amor Lacan".
O amor cortês "se endereça a outra coisa que à dama", ele é, ao contrário,
" o signo de sei lá que carência, de sei lá que álibi, diante dos difíceis cami
nhos que representa o acesso a um verídico amor". Eis, pois, o amor cortês
encarado como álibi, não é pouco.
Freud nos observa que o sujeito do luto está às voltas com uma tarefa que seria
de certo modo consumar uma segunda vez a perda provocada pelo acidente do
destino do objeto amado. O que isso quer dizer? Será que o trabalho do luto
não nos surge, numa luz a um só tempo idêntica e contrária, como o trabalho
que é feito para manter, para sustentar todos esse laços de detalhe?
4 A respeito do objeto a nesse nível quarto, pou co antes Lacan declarava: " É por isso que,
paradoxalmente, é no nível dito quarto, no nível do desejo escópico que, se a estrutura
do desejo é para nós a mais plenamente desenvolvida em sua alienação fu ndamental, é ali
também que o objeto a é mais mascarado e com ele o sujeito é, quanto à angústia, o mais
securizado" .
O R L ACA N A P Ó S O O B J E T O n
O AM
menos explícita, com o ideal do eu. Todo o apoio tomado na época sobre
0 ide al do eu, sobre "o outro enquanto falante", para parcialmente fazer
A s
s IA
a
lado do Outro lado do sujeito
1
J ean Allouch, Le désir de castration, seminário inédito, sessóes de 9 de fevereiro e 1 6 de
março de 1 999.
6
Esse esa uema é oroduzido desde a seeunda sessão de A anf/Ústia.
O A M O R L ACAN
Outra cifração:
Outro origi nário Sujeito não ainda existe nte X
Sujeito marcado com o traço u nário I nconsciente como lugar do Outro ANGÓST(A
desejo". É verdade que, para intervir assim, o amor deve ser encarado corno
"sublimação do desejo". Lacan dá-se conta da maneira como ressoa urn a
afirmação assim:
7
Cf sessão de 1 2 de maio de 1 965 do seminário Problemas cmciais para a psicanálise, transcri
ção Afi. Doravante: Problemas cmciais . . . Vamos nos reportar com grande proveito à versão
O A MO R. LA c
AN
0 AMO R E N GANAD O R
sua estrada bem para além dessa data e sofrer notáveis transform aç õ es. N a
linha "enganação", o amor é designado como uma "falsidade" em 1 7 de
junho de 1964, como uma "negação" em 7 de dezembro de 196 6, corn o
um "monstro" ou ainda como "importuno" em 1 8 de janeiro de 1 9 67
como um "melaço" em 2 1 de fevereiro de 1968. Em 9 de junho de 1 97 1 '
de maneira talvez mais neutra, ele é apresentado como uma máscara. N ã�
se imaginará, pelo menos a priori, que o amor assim colorido seja diferente
do amor como dom daquilo que não se tem que, este, ainda que por pura
cretinice, parece dar alguma esperança e satisfazer a ética. Ao contrário, ser ia
possível que o amor como dom daquilo que não se tem fosse ele m esrn o
enganação, falsidade, negação, monstro, melaço, máscara.
Os seminários "pós-objeto a" notam primeiramente que amor e
inconsciente não se dão bem - o que Mais, ainda vai contradizer. N u rn
primeiro momento, essa incompatibilidade entre o amor e o inconscie nte
não é muito desenvolvida, Lacan preferindo brigar em outro terreno. Ern
22 de janeiro de 1 964 , ele está, uma vez mais, ressaltando o interesse de
Freud pelo que ele mesmo terá nomeado as "formações do inconsciente".
Um lapso é um certo gênero de achado e até de reachado. Algo foi perdido,
ao qual remete o lapso, que portanto acha, mas à sua maneira, esse perdido;
ora, esse próprio reachado é chamado a ser perdido. Lacan então se lança
numa metáfora:
[ . . . ] Eurídice duas vezes perdida, eu lhes diria, é esta a imagem mais sensível
que possamos dar no mito, daquilo que é o mito, daquilo que é essa relação
do Orfeu analista em relação ao inconsciente . Com o que, se me permitem
aí acrescentar alguma ironia, o inconsciente está na borda estritamente
oposta daquilo que acontece com o amor, que todos sabem ser sempre
único, e que a fórmula "uma perdida, dez encontradas" é a que encontra
sua melhor aplicação 2 •
1
J . Lacan, Les quatre conceptsJondamentaux de la psychanalyse, transcrição Afi, sessão de 22 de
janeiro de 1 964. Doravante: Os quatro conceitos. . .
OR ENGANADOR 249
O AM
4 Eis uma frase característica do gê nero de torção que ele faz em Freud: "Encontro aquilo que ,
no ponto que lhes citei, o próprio Freud articula, ao dizer, ao distinguir os dois campos, o
campo pulsional , de um lado, e, do ou tro, o campo narcísico do amor" . Como se Freud
nunca tivesse falado de libido narcísica!
5 Claude Calame, L'éros d1111s /11 Grece 1111tiq11e, Paris, Belin, 1 996, p. 1 4 .
6 Ibid. . D. 32.
O AM O R E N G A N A D O R 251
7
(Winkler) o amante a "dizer 'vejo', depois 'amo . Logo, a incidência do
"'
7
lhid. . n. :,, :,,
252 O AMOR LAc
AN
particular, irreal mas não imaginário, que tem a propriedade de não exis ti
r
mas que, por exemplo, sai voando quando se rompem as membranas do
ovo. A placenta é aqui exemplar, pois pode simbolizar da melhor fo rrn a 0
objeto perdido. A lâmina é um órgão imortal, puro instinto de vida, al go
extraplano e que passa por toda parte, que tem relação com o que o ser vivo
perde por ser sexuado, e um órgão cujos representantes são os objetos a . A
lâmina é algo como o denominador comum libidinal de todos os objetos a,
Cada objeto a é lâmina... organizada. Logo, o olhar também pode representar
a lâmina, o olhar, sim, mas não o olho, que é outro gênero de órgão. Seja ,
agora, a seguinte passagem:
8
J . Lacan , Os quatro conceitos. . . , sessão de 4 de março de 1 964 .
9 Ver Jean Allouch, " Hommage rendu par Jacques Lacan à la femme castratrice" , L'é11olution
psychiatrique, n º 64 , 1 999.
10 Que transcrevo , a versão Afi não tendo sabido pon tuar a frase, ao passo que a da edição
Seuil elimina o pedido.
M OR ENGANADOR 2 53
O A
· nsa tisfa tório e que sempre falta é que 'você nunca me olha, ali onde eu o
1 ' .
vejo"'. Inversamente, "o que oIh o nunca e o que quero ver" . C orno a pmtura,
or si mesmo e em si mesmo insatisfatório. De que maneira? Para
0 amor é p
saber isso, suprimiremos as negações das duas frases-chave: no amor ou na
in tura você me olha ali onde eu o vejo, ou ainda, o que olho é o que vejo. O
; r como a pintura satisfazem o olho como órgão, não a pulsão escópica
rno
que é, no entanto, o que, através deles, busca sua satisfação. Dito ainda de
oucro modo, o amor não está às voltas com o olhar como faltante, como
objeto perdido. Ou ainda: o amor e a pintura viram as costas à castração
d a pulsão escópica. Ao aproximar amor e pintura, Lacan não pode ver o
amor em pintura. Daí a importância da enigmática e brevíssima observação
sobre o impressionista que atingiria de outra maneira o amante das artes,
o ferecendo-lhe essa própria satisfação pulsional que o olhar demanda.
De acordo com a leitura de Freud proposta por Arnold Davidson 1 1 , é
nos Três ensaios que é inventada a psicanálise, com a disjunção entre a pulsão
e seu objeto (o objeto sendo dito por Freud independente). Assim, Freud dá
0 passo decisivo que o distingue dessa sexualidade psiquiátrica que, ao ligar
a pulsão e seu objeto, era um apoio decisivo à normalidade heterossexual.
Assim, abordar o amor não enquanto pulsão mas referindo-o a uma pulsão
situa de outro modo o amor: o amor está às voltas com a disjunção. entre
a pulsão e seu objeto (no caso em questão, o olhar), pelo fato de que ele
recusa essa disjunção. Essa veia vai mostrar-se sólida. E, ao longo dos anos
que se seguem aos Quatro conceitos, Lacan vai escorá-la associando-lhe certos
dados. Entretanto, antes de percorrer a lista, não passaremos por cima de
uma afirmação do fim do seminário Os quatro conceitos que retoma, mas
de modo um pouco diferente, aqueles que acabam de estar em questão.
Nessa passagem, Lacan tenta dar outro sentido que hidráulico ao que fora
chamado "liquidação da transferência".
12 J. Lacan, Os quatro conceitos. . . , sessão de 24 de junho de 1 964. A versão Seuil, acima guar
dada, felizmente corrigiu a transcrição Afi: não "formação do inconsciente" mas, com efeito,
"fechamento do inconsciente". Mais uma vez aqui, a escrita de "Outro" cria problema: como
se poderia induzir o grande Outro numa relação de miragem, convencê-lo de ser amável?
13 lbid. , sessão de 1 7 de junho de 1 964: "Acho que sim, Freud aqui parou" .
14
Jbid. , sessão de 24 de junho de 1 964 . O que merece ser ressaltado, pois, na transferênc ia
psicótica, a identificação em questão não se superpõe precisamente àquela, ausente, do
estádio do esoelho. mas vem fazer-lhe as vezes.
MOR ENGANADOR 255
O A
11
Outra modalidade do dom é indicada bem no fim do seminário Os quatro conceitos . . . (ses
são de 24 de junho de 1 964) . Está en tão em questão a "lei moral que, exam i nada mais de
perto, nada mais é que o desej o e m estado puro, aquele mesmo que culmina no sacrifício,
propriamen te falando, de tudo o que é objeto do amor, em sua ter n u ra humana, na rejeição
nõn <I.. rln nhiP<n n � rnll..ai<"n . mas em seu sacrifício e em seu assassinato" .
na boca do paciente: " Dou-me a ti, diz ainda o paciente, mas esse do m. d
a
minha pessoa, como diz o outro, mistério, inexplicavelmente vira pres ent e
de uma merda [ ... ]". A coisa é sugerida: seria quando o dom do olhar se
revelasse dom de uma merda (é sabida a conivência desses dois objetos a)
que a pulsão escópica seria castrada e liquidado o amor de trans ferênc ia.
ESCORAMENTOS
Certas indicações vêm escorar esse amor enganador, que poderia, portan
to, ser também denominado o amor em pintura. Não sem algum arbítrio ,
contaremos cinco. Antes de mais nada Kierkegaard. O "Pascal do Nort e"
começa a ser conhecido em 1 933, no ano em que Paul-Henri Tisseau publica
na editora Alcan A repetição e Temor e tremor. Em 1938, publicação dos
Estudos kierkegaardianos de Jean Wahl. E Rodolphe Adam, que publicava
recentemente um Lacan e Kierkegaard principalmente dedicado a eliminar
os problemas aos quais esse título remete, deve ter razão de conjecturar que
Kierkegaard foi uma das leituras de juventude de Lacan. Assinado Constan
tin Constantius e com o subtítulo "Ensaios de psicologia experimental", A
repetição comporta vários relatos, notadamente este: um rapaz conhecido
seu vem visitar o narrador, seu confidente.
[ . . . ] ele subiu à minha casa fora de si. Seu ar era mais macho, seu físico,
mais belo; seus grandes olhos dilatados faiscavam; em suma, ele parecia
transfigurado. Contou-me então que amava e pensei sem querer que feliz
no entanto deve ser a jovem objeto de tal paixão 16 •
16 S0ren K.ierkegaard, <Euvres completes, traduções de Paul-Henri Tisseau e Else-M arie Jac
quet-Tisseau, t. 5 , Paris, Éd. de I.:Orante, 1 972, p. 6.
,, O R E N G A N A D O R 257
O A r"
que está expressamente formulado que o amor não poderia, de modo algum
na experiência, ser confundido, ser considerado o representante, o que se
poderia chamar Ganze, como o que ele chama, o que Freud articula questio
na sob o termo " die ganze Sexualstrebung" , isto é, a tendência, as formas, a
convergência do esforço do sexual, na medida em que terminaria em Ganze,
20 Por
que náo "o Outro" aqui, como outras vezes em outras partes no mesmo con texto ?
21 J . L
acan, Os q uatro conceitos, sessão de 2 1 de maio de 1 964 .
22
Título eleito por Lacan. Cf S . Freud, " Pulsions et destins des pulsions", i n Métnpsychologie,
op. cit. , p. 1 1 -44.
260 O A MOR L A C A N
E ai nd a em 2 1 de m aio:
Freud num lado põe as pulsões parciais e, no outro, o amor; ele diz: " Não
é igual ". As pulsões nos requerem na ordem sexual, isso vem do coração ,
Para nossa grande surpresa, ele nos diz que o amor, por outro lado, [ . . . ] [é]
algo como isto, isso "vem do ven t re, é o que dá água na boca" .
[ . . . ] quando se trata de objetos que não têm esse valor pulsional propria
mente falando, [ ... ] vocês dizem o quê, então, como Freud observa, "amo
isso, amo ensopado de carneiro". É exatamente a mesma coisa que quando
vocês dizem: ''Amo a Sra. fulana", exceto que "amo Sra. fulana" vocês dizem
a ela, o que muda rudo 24 •
A FORACLUSÃO AMOROSA
27
"Ao nível do amor, há reciprocidade do amar ao ser amado" ( id. , Os q uatro conceitos. . . , sessão
de 20 de maio de 1 964) .
28
"Amor, como em todo amor, é essencialmente querer ser amado" (ibid. , sessão de 1 7 de
junho de 1 964) .
19
lbid. , sessão de 1 7 de j u nho de 1 964.
'° lbid . sP«õn ri .. 70 ri .. m�in ,l,. 1 964 ícorri11i o ahsurclo "se ouerer seu bem" da transcricáo Afi).
O A M O R LACAN
gra ç as ao logo
não sou. Vem, então, uma quarta fórmula: "Assim, aqui es
tarn os suspensos, no nível dessa função, a um você não é logo eu não sou" .
Urn novo passo é dado, e vai imediatamente haver outros. O "nós" pode
ser tomado como sendo um "nós os psicanalistas". "Nós" estamos bem às
voltas com o logo não sou que, de certo modo, acompanha, embora não
fo rmulável, cada pensamento inconsciente do analisando e "nós" somos
portanto conduzidos a pensar nele em "nós" dizendo silenciosamente a
seu respeito: você não é. Mas o assunto se dialetiza, se podemos dizer, pois
se "nós" pensamos, para com o analisando, você não é, o que se segue, isto
é, a implicação logo não sou, não diz mais respeito apenas à função logo
não sou na medida em que ela acompanha cada pensamento inconsciente
do analisando, mas atinge o analista. Você não é (trata-se do analisando) ,
logo não sou (trata-se do analista) . Resulta uma nova tonteira, pois se o
logo não sou se refere ao analista, agora não é mais apenas a partir dos
pensamentos inconscientes indiciados do logo não sou, mas a partir da
não-existência do analista, mas desde seu não sou que ele, o analisando,
tampouco existe. Com efeito, não há analista enquanto um pensamento
inconsciente permanecer não subjetivado; e não há tampouco analisan
do. Ambos "inexistem". Mas como? O que indica a quase reciprocidade
instaurada por essa tonteira? E aí, um novo passo, não uma nova fórmula
mas, desta vez, uma alfinetada (palavra muito útil na época para evitar a
palavra identificação), em que desce rolando o amor: "Assim, aqui esta
mos suspensos, no nível dessa função, a um você não é logo não sou. Será
que isso não incomoda os seus ouvidos de um certo modo? Será que não
se trata aí da linguagem, eu diria a mais importuna, do próprio amor? ".
Talvez seja por ter reconhecido essa situação como aquela mesmo do amor
que Lacan pode de certo modo condensar a fórmula você não é logo não
sou nesta outra e quinta fórmula:
O que dizer? Deve-se levar-lhe o sentido mais longe, que aliás dá sua ver
dade: você não é senão o q ue sou. Todos sabem e podem reconhecer que,
se o sentido do amor é bem, com efeito, o dado por essa fórmula, o amor
igualmente, em sua emoção, em seu impulso ingênuo, como em muitos de
seus discursos, não se recomenda como função do pensamento.
O A M O R L A C ,\ N
Quero dizer que se, de uma tal fórmula: você não é logo não sou, sai o monstro
cujos efeitos conhecemos relativamente bem na vida de todos os dias, é m u ito
precisamente na medida em que essa verdade - aquela do você não é logo não
sou - é, no amor, rejeitada (verworfen) . As manifestações do amor, no real ,
é muito precisamente a característica, que é aquela que enuncio de to da
Verwerfung, a saber: os efeitos mais incômodos e mais deprimentes [ ... ].
amor aqui se permite formular - isto é: se você não é, eu morro, diz o amor,
esse grito é conhecido e vou traduzi-lo: você não é nada32, senão o que eu sou
-, não é estranho que tal fórmula ... que por certo vai além no que ela traça
de abertura ao amor, simplesmente pelo fato de ali indicar que a Verwerfimg
que ela constitui resulta precisamente disto: que o amor não pensa, mas
que ela não articula - como Freud, este, o faz, pura e simplesmente - que
o fundamento da Verliebtheit, do amor, é o Lust-lch e que ele nada mais é
(pois isto em Freud é afirmado) que o efeito do narcisismo.
32 A transcrição dita "esteno" , da qual disponho, aqui introduziu uma vírgula ausent e na pró
pria estenografia. Essa vírgula desmembra um pouco o "nada senão" e sublinha, assim , a
in trodu ção do nada como objeto. É legfrimo? Sim , pois, além das razões propostas acima (a
in trodução do nada a oito dias de distância, a fun ção já operan te desse nada no amor) , essa
vírgula, ou tro dado con textual, remete ao fosso que é instaurado pela pon tuação lacaniana
do cogito en tre o "penso" e o "sou" (isto até a fórmula? "Ali onde sou não penso, ali onde
penso não sou") . Arriscando descambar para o macabro, acrescen tarei que o desmembra
mento persisten te do cadáver de René Descar tes traz um apoio de porte a essa leitura do
cogito: o crânio, relíquia laica, é exposto no Museu do Homem, enquan to que a igreja Sain t
Germain-des-Prés acolhe o resto de seus ossos. I n tranquilidade da alma de Descartes (cf
Philipp e Comar, Mémoires de 111011 m111e. René Des-Cartes, Paris, Gallimard, 1 997) .
266
de Z ucchi não há nada. Ora, após a invenção de <I>, esse nada se tornara
compósito: não mais apenas pequeno a (pequeno a . . . não ainda pequeno a)
mas pequeno a com <I>. E concluiu-se que a leitura do Banquete e a análise
de Zucchi tinham feito passar o nada, primeiramente situado para além do
objeto amado no esquema do véu, no interior do objeto (Sócrates sileno).
O q ue acontece agora? Advém uma nova configuração do amor. Na frase
você não é NADA senão o que sou, o nada não está mais nem para além nem
interno ao objeto; ele é o amado enquanto objeto; ele é o objeto amado; ele
é aquilo que é objeto no lugar do amado. Talvez essa assinalação tenha sido
facilitada pelo acento colocado, graças ao objeto a, no caráter narcísico do
amor e na função de enganação de quê? Da imagem. Em outras palavras,
0 nada do amor agora é reconhecido como real. Para garantir isso, basta a
J º·
a ''Anfibologia dos conceitos da reflexão34 " ) : um conceito vazio sem ob ' et
Nem a aparição nem o nada são apreensíveis. O amante não tem nenhum a
influência nem ascendência* sobre eles ao passo que esse objeto com p ósito
o amado, de fato tem, ele, influência sobre o amante.
Talvez essa Verwerfung amorosa seja um efeito da leitura po r Lacan
do romance Lo/ V. Stein de Marguerite Duras. Em dezembro de 1965, ele
saudava esse romance com um texto em que é encontrada a ancoragem do
amor no olhar, "esse talismã de que todos se livram depressa como de urn
perigo35 " . Ou ainda: "Pelo olhar, isso se espalha com o pincel sobre a tela l
para lhes fazer baixar o seu diante da obra do pintor". Merece uma me nção
especial o que ele dizia em 23 de junho de 1 965 (Problemas crucia is. . . ) ,
arriscando notar que o traço que ele então sublinhava já fora ressaltado por
alguns comentaristas36:
Esse sujeito, nós o apreendemos, bem aquém do cogito. Nada dele jama i s é
formulado sob a forma do um do único . Eis o que diz disso seu amante [ o
amante de Lo!, Jacques Hold] : "Foi essa a minha primeira descoberta a seu
respeito, nada saber de Lo/ era jd conhecê-la. Era possível, pareceu-me, saber
menos ainda, cada vez menos sobre Lo/ V. Stein". Diga-se de passagem, essa
definição do amor não é tão ruim, parece-me .
34 Emmanuel Kant, Critique de /11 mison pure, trad. de Tremesaygues e Pacaud, Paris, P uF,
1 96 5 .
* Nem prise nem emprise. (NT)
.1 5 J . Lacan, " Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. S tein" , in Autm
écrits, Paris, Le Seuil , 200 1 , p. 1 94- 1 97.
36 Título do artigo de Matthieu Galey para a revista Arts ( 1 5-2 1 de abril de 1 964) : "En savoir
de moins en moins" ; o mesmo traço fora igualmente ressal tado por Pierre Demero n em
Candide (8- 1 5 de abril de 1 964) , e, pou co a ntes, por l'vladeleine Chapsal para L 'Express de
2 de abril de 1 964 (ver Dossier de presse. Le R11visseme11t de Lo! V. Stein, tex tos reu nidos e
aoresen t�OO< nor SnnhiP Rna�Prr P� ri < T m Pr ,. 1 íl / 1 li '} (1()1'.'.'
.i Q E NGANADOR 269
O A rn R
Era realmente um tipo encantador [esse?] Freud. Era realmente todo fogo,
todo chama. Também tinha suas fraquezas. A relação que ele tinha com a
mulher, por exemplo, é algo inimaginável. Ter tolerado tal vagabunda toda
a existência é chama atenção. Enfim, pensem bem nisto - se há algo que
lhes deve inspirar a verdade, caso queiram sustentar a Analysieren, não é
certamente o amor. Pois a verdade, na oportunidade, é ela quem faz surgir
esse significante, a morte.
RU M O A U M O U T RO A M O R
O fato de esse amor, que nos pareceu, aos olhos de alguns, ter de certo modo
procedido ao rebaixamento, de esse amor só poder se instituir, só poder se
colocar nesse para além onde primeiramente ele renuncia a seu objeto, é isto
também o que nos permite compreender que tudo o que pôde ser construído
de abrigo onde uma relação vivível de um sexo com o outro tivesse podido
instituir-se requer a intervenção [ . . . ] desse intermediário [ . . . ], a saber, a
metáfora paterna, com o que ela nos permite identificar daquilo que chamei
esse abrigo, esse abrigo em torno do qual se institui uma relação que seja
propriamente falando o que podemos imaginar da função da relação sexual
em formas que poderemos qualificar de temperadas. O desejo do analista
não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela
que vem quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem
pela primeira vez em posição de se sujeitar a ele. Somente aí pode surgir a
significação de um amor sem limites por estar fora dos limites da lei, em
que somente ele pode viver3 •
usando a metáfora p aterna e sim p lesmente desa p arece com a relação sexual tem p erada (op .
.. :� - "l '.l C \
2 74
sujeito se vê amável e aquele onde ele é constituído como falta pelo o bjeto
a. Duas forças opostas podem no entanto se estabelecer na estabilidade, e a
estabilidade das transferências... isso não falta na mais que centenária histór ia
da análise. Como resolver essa dificuldade? Como, pois, durante esses ano s
que precedem . . . ou pior, é pensada a curva possível da enganação am orosa,
da transferência, rumo a sua liquidação? Já em 13 de maio de 1964 (Os
quatro conceitos. . . ) , a questão é colocada:
Toda a questão é saber como esse objeto de amor pode querer p reench e r
um papel andlogo [sublinho] a esse objeto tal como acabo de lhes de fin ir [o
objeto da pulsão] , isto é, ao objeto do desejo . Sobre que equívoco s, so bre
que ambiguidades repousa a possibilidade, para o objeto de amor, de to r
nar-se objeto de prazer?
Por mais que o amor faça, por mais que faça das suas, por' mais que
dê lugar a poesias, a mil declarações, a tantas "provas", ele jamais consegui
rá que o objeto a seja um puro suporte da imagem amável; o amor jamais
vai reduzir esse objeto a estar apenas a seu serviço, a ser apenas, de pleno
emprego o suporte da amabilidade. O amor pode agir como for, a vai con
tinuar sendo "aquela parte, para sempre perdida de si mesmo no vivo, que
é constituída pelo fato de ele é apenas um vivente sexuado e não é mais
imortal". O objeto a permanece bipolar. Como Arlequim, ele serve a dois
"mestres": de um lado, ele conforta o amor, de outro, enquanto objeto sempre
já perdido, ele apela para a castração, em outras palavras, para advir como
o que ele é: perdido. E Lacan remete, para de modo mais preciso indicar
uma via possível que faria o amor de transferência virar desejo, à topologia
do seminário A identificação. Eis seu esquema:
PO NTUAÇÕES
6
Torm ,P< 1 .<ic:m . L'obiet de la psychana/yse, transcrição Afi . Doravante: O objeto. . .
O A M O R. L A c:
A�
7 J . Lacan , Mais, ainda, sessão de 1 3 de março de 1 97 3 . [A ortografia em francês com dois 111
remete a homme [homem] . (NT)]
8
AI-Jâhiz, Le livre des mérites respectifi des jo11ve11celles et des jo11ve11cea11x, traduzido do á rabe e
apresentado por Bernard Bouillon, Paris, Philippe Picquier, 2000. A generosidade do editor
ofecere nesse mesmo volume Les a1110111;, do Pseudo-Lucien de Samosate, assi m como o
Alcibiade enfant à l'école de Antonio Rocco. Como determinar, desses três textos, qual é o
mais delicioso? Tampouco vamos desprezar, de I b n Hazn , Le collier de la colombe, traduzido
do árabe oor Léon Bercher, Paris, Papyrus, 1 98 3 .
280 O A M O R LAc
AN
9
Sua datação e uma leitura são propostas em conclusão de minha obra A clín ica do escrito.
lhmscreve,; traduzi,; translitemr, Rio de Janeiro, Companhia de Freud.
AMOR 281
Jl LI M O A U M O U T R O
, rela ção sex ual? O plural se impõe, pois, aqui também, a variabilidade
ºªº
vai intervir.
Exceto uma única exceção'º, o borromeano não recolocará em ques-
cáo a i nexistência da relação sexual. O amor começa a ficar discretamente
reso no borromeano desde 1 1 de dezembro de 1 973 (Les non-dupes errent) ,
� ntecimento que é confirmado uma semana mais tarde. A sessão de 1 2 de
co
m arço de 197 4 {logo, três meses depois da tomada do amor no borromeano)
volta a esse acontecimento:
* Alusão à co nhecida frase de Rabelais: " Parti o osso e sugai a substantífica medula". (NT)
1 1 Musset, 011 ne badine pas avec ln111011r, Paris, Classiques Hachette. Quanto a ele pessoalmente,
Jacques Lacan desej ava o amor divertido. Ele co nfessa em 3 de fevereiro de 1 972: "Pois esse
(a)muro, tal como lhes apresento, nada tem de muito divertido. Ora, eu não posso me susten
tar de ou tro modo senão divertindo , divertimento sério ou cômico [ . . . ]". Com efeito, havia
isso, divertimento, em seu acolhimento da transferência amorosa. Logo, jogo.
1 2 J. Lacan, Les 11011-dupes. . . , sessão de 1 2 de março de 1 974 .
1 3 !d. , Le sinthome. transcricão Afi. sessão cl .. 1 1 ri .. m � i n ,.J,. 1 (}7/; nMnun � •-· n ,;., ,/.nu,,,
O A U M O U T RO A M O R
p. U M
ern que o amor seria enfim civilizado. "Civilização" deve ser entendida num
sentido pouco usual, embora repertoriado: não o fato de ser civilizado, mas
0 de civilizar-se, de "tornar-se civil". O desejo formulado por Lacan de ci
vilizar o amor implica ter sido colocado o diagnóstico segundo o qual esse
arn or é, na hora em que esse desejo se formula, selvagem, bárbaro - um
diagnóstico ao oposto daquele de um Stendhal que escrevia: "O amor é o
rnilagre da civilização. Só se encontra um amor físico e dos mais grosseiros
14
entre os povos selvagens ou bárbaros demais ". Em matéria de selvageria
do amor, pensamos, aliás erradamente, no escândalo que foi a publicação
de Lolita (com um processo no fim de tudo, como para Madame Bovary) .
Ovídio, dizem, teria escrito as regras do jogo de uma tal Arte de amar, mas
foi co m certeza utilizado mais como se propusesse um conjunto de receitas.
E é possível conceber que a "estética da existência" tentada por Foucault
não deixa de dizer respeito ao amor. David Halperin, também, visa uma
1
sa ída da selvageria amorosa, desejando o amor irônico 5 • Aliás, é mesmo
útil multiplicar as atestações?
0 ( a ) M U RO
,
O sortilégio "vês, minha mulher, o que fazemos com a sorce ,.,, te faz o m aior
pintor do universo inteiro, e, se és é daqueles que fazem: poeta em apuros não
responde mais, mas infelizmente! Ele está maduro [mur] no amuro [am ur]
do outro mundo, farás, creio em Jesus num outro mundo ainda, conta nto
que o pobre seja inundado com o hábito do monge que o fez 1 " ,
* Sorce não existe em francês. Pode remeter a sorcellerie [bruxaria) ou a de la sorte [dessa ma
neira) . (NT)
1
Jacques Lacan, " Écrits inspirés" . Assinado por três au tores, esse tex to é sem dúvida alguma
da pena de Lacan. Aí notaremos a vizinhança de "amuro" e de "mu ndo" , que vai estar em
questão mais adiante. Annalles médico-psychologiques, t. I I , 1 93 1 ; retomado após a segunda
edi ção da tese De la psychose pamnoi'aque dam ses mpports avec la personnalité em 1 975 .
Igualmente in PTL.
O (a) M U RO
2
de Roberto Harari , que teve além disso a felicidade de pôr a mão no
conjunto desse poema que Tudal escreveu na idade de quatorze anos e
foi publicado, em 1 9 5 0, num denominado Almanach de Paris, editado
or ocasião do segundo milésimo aniversário da cidade. Lê-se, pois, em
f.Fu nç ão e campo da fala e da linguagem":
2
Roberto Harari, " Un double lapsus de Lacan" , Revista de Psicotel'tlp ia psicot111t1litict1, s . l . n . d .
J J. Lacan , Écrits /, op. cit. , p. 1 70 . Respeitei, acima, a apresentação gráfica d o s Escritos.
4
lbid. , p. 1 9 1 .
1
lbid. , p. 200.
288
O bem e o mal
No entanto existem para eles
É um muro como o outro
Que lhes dá sua sombra.
Tudal terminava sua coisa numa porta aberta, Lacan, num muro.
Perdoaremos um garoto de quatorze anos por ter escrito essa continuaçã o,
ainda que a observação conclusiva esteja longe de faltar em pertinência,
notadamente no "campo paranoico das psicoses6 " . Mas, então, o que tanto
interessou Lacan nesses seis primeiros versos? Essa queda no muro basta
para responder a essa questão? A prova que não é fornecida, vinte anos após
Roma, pelo lapso de Lacan tentando, num lugar singularmente murado,
a saber, a capela Sainte-Anne, dizer mais uma vez esses seis versos. Ele já
se engana ao localizar mal o lugar que lhes havia atribuído. Acaba de se
perguntar como um analisando "pode alguma vez ter vontade de se tornar
psicanalista", acrescentando que "eles chegam a isso sem ter a mínima ideia
do que lhes acontece", algo só despertando, a esse respeito, quando lá estã o;
ele menciona, então, a escrita de "Função e campo... ", e, logo depois, o
poema de Tudal:
Com o se explica que aceitei isso, entre todas as espécies de coisas sensatas,
uma esp écie de epígrafe do gênero refrão, que vocês encontrarão em ... basta
vo cês olh arem no nível da parte quatro, tanto quanto [tottt atttant que] me
le m bro [ ... ] .
7
Talvez, como ele vai dizer logo depois, essa "poesia proverbial" ronro
na; em todo caso, com seus lapsos, isso não ronrona mais nem um pouco!
Estamos às voltas com um tipo específico de lapso, que chamarei lapso em
extensão, ou ainda lapso repercutente, a repercussão sendo aqui com certeza
suscitada pelo formalismo poético. O que nada tira de seu alcance doutrinal:
'a 'o
ao ter colocado mulher " no lugar de amor ': Lacan é levado a pôr o amor
no lugar da mulher. Embora ligadas, essas duas operações são diferentes, já
que a primeira em nada implica necessariamente a segunda. De mais a mais,
logo depois, ele reitera esse lapso decididamente em extensão. Ele o repete
produzindo então uma nova interposição:
E, em Lacan:
Não haveria uma situação em que a alteridade seria trazida por um ser de
título positivo como essência? Qual é a alteridade que não entra pura e
simplesmente na oposição das duas espécies do mesmo gênero? Penso que
o contrário absolutamente contrário, cuja contrariedade em nada é afetada
pela relação que pode se estabelecer entre ele e seu correlativo, a contrarie
dade que permite enfim que o termo permaneça absolutamente outro, é o
feminino. [... ] A alteridade se cumpre no feminino. Termo de mesmo nível,
mas de sentido oposto à consciência 9 •
8 Louis-Georges Tin, 'Tinvention de la cul ture hétérosexuelle" , Les temps modemes, nº 624 ,
maio-ju nho-j ulho de 2003 .
? Citado por Simone de Beauvoir, Le deuxieme sexe, t. I , Paris, Gallimard, coll . " Folio essais" ,
1 976 0" éd. 1 949) , p, 1 5- 1 6.
292
1 0 Michele Le Dreuff, " Pour u ne critique transatlantique du De11xie111e sexe", Les temps moder
nes, op. cit. , p. 1 68- 1 83.
11 Explicação de "suspensa numa garrafa" , dada em nota na edição francesa: "Contava-se qu e
a sibila de Cumes, sendo jovem , fora amada por Apolo e que, em contrapartida por seus
favores, o deus lhe concedera viver tantos anos quanto houvesse de grãos de areia na praia.
Mas a jovem esquecera de pedir a j uventude, por isso, ao envelhecer, foi secando, ao ponto
de ficar igual a uma cigarra" .
0 ( a ) M U RO 2 93
mencionado que "é por volta do ano 1 000 que essa cultura heterossexual
emergiu no Ocidente", mas sobretudo que essa fabricação nova foi o forte
da ética cortesã que, ao paradigma homem/homem, substituiu o paradig
ma homem/dama, uma cultura da heterossexualidade vindo no lugar de
uma cultura da homossocialidade. Essas duas veias deixam-se articular: o
ftn 'am o r produziu a heterossexualidade, não o inverso. A visada da mulher
vem historicamente em segundo no que se refere à visada do amor. O
ftn 'am or terá atuado como termo mediano, como passagem: ele havia posto
a mulher em lugar de erômeno, e o amante ali buscava o amor da mulher,
a qual continuava sendo seu objeto. Com a onda neoplatônica varrendo
r,
0 fin'am o essa "mesma" mulher (que, evidentemente, não é precisamente
mais a mesma) encarna a alteridade, mas por um tempo apenas, aquele
12
para o amante de enfim encontrar seu verdadeiro objeto • Então vai poder
surgir o que pode ser chamado uma terceira mulher, não mais a dama do
poeta cortês, nem tampouco a mulher-padrão do neoplatonismo, mas uma
mulher que, nesse terceiro momento, terá recebido a carga da alteridade
(fim do neoplatonismo) e terá tomado o lugar do amor (definitivo fim do
amor cortês). Não se espera mais o amor dessa terceira. Como se esperaria
dela isso se ela está no lugar do amor? Aliás, ela é "sem consciência". O
acento colocado na alteridade terá aberto a porta à heterossexualidade, em
que a mulher, de novo mas muito visada como último objeto, aparece como
" .
contmente negro .
,,
A / A/
S, < s, \ s,
ente, e sem muito discutir esse ponto, com o sujeito suposto saber.
simplesm
Assi m, vemos então ressurgir um personagem de aparições no entanto ex-
m raras após a "Proposição... ", a saber, o "significante qualquer",
crem a ente
da transferência (escrito, também, S/ O fato de o S 2 nunca
0 do materna
:1 cin gir o saber absoluto, de nunca ser localizável o sujeito suposto saber em
ualq uer S2 que seja, coloca sob novos aspectos a questão da transferência,
dqo amor de transrerenc1a, e pede tres ob servaçoes.
C A . A -
Primeiro ponto: a fantasia não tem a ver com o assunto. Em 13 de
novembro de 1 968 (primeira sessão de De um Outro ao outro) , Lacan trata
da fantasia para, de certo modo, não ter mais de voltar a isso naquele ano. A
fantasia se opõe à reiteração significante, razão pela qual o estudo desta exclui
que nos focalizemos naquele. A fantasia é feita da "reiteração do significante
13
que representa o sujeito em relação a si mesmo " . A fantasia permite que não
seja colocada a questão do outro significante - uma vez que a regra analítica
cem precisamente por função tentar "relaxar" essa corrente por demais blo
queada. A fantasia é uma escamoteação. É confundida com o amor porque
ele também cria dificuldade? Trata-se de uma ilusão. Por exemplo, quem
procura salvar uma mulher da perdição, ou salvar o pai, pode se imaginar
amá-lo. No entanto, fantasias assim nada têm a ver com o amor.
Segundo ponto: se nos limitarmos à reiteração significante e .ª trocar,
como então procura fazer Lacan, o par {S 1 S2 } pelo grande A, este aparece,
durante cada "golpe", como um "paredão" (4 de dezembro de 1 968) , como
um obstáculo. Em outras palavras, a estrutura formal do poema de Tudal é
isomorfa àquela da remodelagem do S 1 S2 em De um Outro ao outro. Essa
estrutura é independente dos termos primeiramente visados (a mulher ou
o amor). Da mesma fo rma que o termo visado nunca é alcançado, da mesma
fo rma nunca é alcançado o S2 do materna inaugural. O que se passa, durante
cada golpe, cada reiteração, cada relação estabelecida de um significante S 1
com o que é entrevisto como um S2 mas que vai se revelar não ser o S2 , aquele
que esperamos, o saber absoluto, o sujeito suposto saber? Tal fracasso tornará
possível um golpe seguinte. Logo, essa desilusão pode também facilmente
ser a do amor de transferência. Daí se deduz que a inte1pretação, longe de
1., J . Lacan, De 11111 Outro no outro, transcrição Afi (introduzo os itál icos) .
O AMO R LA C N
A
brus camente seu psicanalista no mesmo dia em que Freud "estivera a ponto
"'
de lhe dizer 'a palavra decisiva do segredo de sua doença . Eis o S2 : uma
"palavra decisiva", à qual em geral falta fineza, em outras palavras, espírito,
decorre mais daquilo que Lacan chamava a babaquice da verdade. Freud
não vê o problema, embora até o mostre. Essa ruptura estava no entanto
bem feita para lhe indicar que, palavra decisiva desse tipo, pois bem, não
há, 0 S2 se esquiva e acreditar poder pôr um saber, seja ele qual for, em
posição de verdade de uma análise está precisamente excluído, deve por
tanto ser excluído.
Logo, o que é desprezado quando um psicanalista acredita poder
reduzir um caso a um S/ Nada mais que o amor de transferência. Elfriede
H irsch feld leva Freud a soltar este grito do coração, enquanto escreve a
Jung a seu respeito: "Não permitamos nunca que os pobres neuróticos nos
deixem loucos". O que deixaria Freud louco é, como ele escreve a Binswan
ger em 24 de abril de 1915, que ela pretenda ainda depender dele. Ele
acres centa: "Na realidade, ela foge de mim desde que consegui lhe revelar
a palavra decisiva de sua doença". Essa dependência é de ordem amorosa:
uma transferência paterna, segundo Freud. E todo o conflito com Jung, no
qual Elfriede Hirschfeld é um protagonista maior, refere-se à respo�ta a ser
dada ao que também se nomeia, empregando um eufemismo, a busca de
uma "certa quantidade de compaixão". Jung seria levado a concordar, Freud
não. A tática dele, a resposta que ele dá ao amor de transferência consiste
sobretudo em permanecer dono da situação, e Falzeder faz a esse respeito
uma observação filológica das mais pertinentes quando aponta que sempre
que Freud fala de contratransferência, está em questão tornar-se o dono
dela, dominá-la. Mas por quê? E como? Tentando desviar o amor, fazê
lo passar, diz Freud, "do material ao psíquico". Ao dar sua explicação do
caso à paciente, Freud lhe faz dom, no plano do amor, de um "sucedâneo"
(Surrogat), de um detentor do lugar de S2 • Sucedâneo de amor, a palavra é
bem encontrada, pois Freud dá então à sua paciente o que ele tem, e até o
que ele construiu a seu respeito e não só para ela. Ora, Elfried Hirschfeld
não está nem um pouco interessada nesse sucedâneo e nessa mudança do
material em psíquico! E Freud simplesmente se mostra odioso ao destinar
O A M O R LA CAN
FIGURA I
O ( a ) M U RO 2 99
A garrafa de Klein importa por sua virada de direção , que por certo
está po r toda parte, como está o anel do amor, mas que não deixa de ser uma
vi rada de direção. Entre o homem e a mulher, o amor forma anel . Parte-se
daí, do heterossexismo 1 6 • A garrafa de Klein permite pensar a continuação
de man eira não geométrica. Permite entender que entre o homem e o amor
0 m un do só pode estar localizado no lugar da mulher, o mundo "recobre"
0 te rrit ório da mulher - a tal ponto que o homem imagina conhecer ("no
que está em j ogo no amor é a castração. Ora, essa conclusão que assinala
a possibilidade de uma perda efetiva e subjetivan te já era aquela para a
qual tendia o uso dos objetos topológicos de De um Outro ao outro, já era
a razão do recurso à topologia. A escrita (a)muro, de 6 de janeiro de 1 972,
corresponde ao "em forma" de pequeno a do grande A.
Logo, a impotência da interpretação em dar solução ao trahsmor não
é um dado acidental; o transmor é a um só tempo o que impede que o anali
s ando "repouse mais uma vez" como "eu" [je] e o que abre essa possibilidade.
Tudo acontece, em última análise, no lugar do analista; tudo depende da
maneira como o analista saberá ou não (com um saber prático) fazer um
resultado do fato de que o analisando lhe falte. Já se sabe a dificuldade que
o aguarda, já que esse resultado . . . é ele mesmo.
16 " Quando digo: "quando um homem encon tra uma mulher" hein, é porque so u modesto,
quero dizer por aí que náo pretendo chegar a falar do que acon tece quando uma mulher en
con t ra um homem . . . porque minha experiência é limitada, hein" (J . Lacan, Les 11011-dupes. . . ,
----• - .J _ 1 o .J_ ..l ---m '- •� rl� 1 Cl7'1)
CAPÍTULO XVI
0 AMOR ESCREVE,
NÃO RASURA
FIGURA II
302
FIGURA III
DA CARTA DE AMOR
1 Jacques
Lacan, . . . 011 pior, sessão de 3 de fevereiro de 1 972.
2 ean
J Allou ch. Les imfJromptus de Lacan, Paris, Fayard/Mille et Une Nuirs, 2009 .
Como saber a quem falo? Sobretudo porque, afinal, vocês contam no as
sunto, embora eu me esforce . . . Vocês contam ao menos pelo fato de que
não falo ali onde eu contava falar, já que eu contava falar no an fitea tro
Magnan e estou falando na capela. Que história! Vocês ouviram ? vo c ts
OUVIRAM? ESTOU FALANDO À* CAPELA! É a resposta. Estou falando à capela,
isto é, AOS MUROS!
Cada vez melhor o ato falho! Agora sei a quem 3 vim falar, àquilo a que sempre
falei em Sainte-Anne, aos muros! [ . . . ] De vez em quando, voltei com um
pequeno título de conferência, sobre o que ensino, por exemplo, e de po is
alguns outros, não vou fazer a lista. Ali sempre falei aos muros.
X - ...
LAcAN - Alguém tem algo a dizer?
X - Nós deveríamos todos sair já que o senhor está falando aos muros.
LAcAN - Quem . . . quem está me falando aí?
X - Os muros.
encontrou um viés mais eficaz que seu "Te amo mesmo que eu não saiba".
Com o " (a)muro", os apaixonados mu mú ios dos mu os fazem muro. As
r r r
sim conve rgem enunciado e enunciação: o diálogo amoroso de Lacan com
os m uros que falam confir ma, da melhor maneira possível, que o amor é
(a) m uro, car ta de (a)muro.
O ter mo (a)muro é como tal um escrito, como atesta o uso do pa
rêntese. Ora, ele dá lugar a uma outra escr ita no falar. Em 9 de fevereiro de
1 9 72 , Lacan está discutindo o binar ismo em linguística quando sobrevém,
tendo aparentemente o estatuto de um simples exemplo, uma proposição
sobre o amor:
Amar a alguém, isso sempre me maravilhou. Quero dizer que lamento falar
uma língua em que se diz amo uma mulher, como se diz eu a espanco. Amar a
uma mulher me pareceria mais congruente. É até ao ponto que um dia percebi
[ ... ] que estava escrevendo não saberás nunca como te amei. Não pus e no final *,
o que é um lapso, um erro ortográfico se quiserem, incontestavelmente. Mas
foi refletindo nisso justamente que pensei que, se eu estava escrevendo assim,
era porque eu devia sentir amo a você. Mas, enfim, é pessoal4 •
Deve ser pessoal, mas vai bem além de um "assunto pessoal",. ainda
ai
m s que quanto mais um assunto é decididamente pessoal, mais ele interessa
qualquer um. A expressão amo a uma mulher apresenta a mesma concate
nação liter al que a palavra (a)muro. Tudo se passa como se inter viesse aqui
um novo erro de or tografia, como se Lacan pensasse amo a uma mulher
1/ 'aíme a une femme] sem pôr acento algum no "a"** q ue, assim, torna-se
objeto a. Tudo se passa como se (a)muro esten ografasse a expr essão amo
tem uma mulher. O que conduz a um segundo indício, à inacessibilidade
da mulher.
• O certo seria { . . } combien je t'ai aimée, já que se trata de uma mulher e que, em francês,
se faz a concordância do par ticípio passado do verbo conj ugado com o objeto dire to ( no
caso, femi nino) colocado antes. Com a regência amar a, a concordância não se faz pois o
complemento passa a ser objeto indire to. (NT)
4 J. Lacan, . . . 011 pior, sessão de 9 de fevereiro de 1 972.
• • O acento distingue a preposição à de a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo
avoil' f terl (NT)
306
Mas, antes, uma palavra sobre a carta de amor. Alguns casos fo ralll
amplamente discutidos, a começar pelas célebres Cartas [Lettres] da religiosa
portuguesa, que constituíram, em 1 688, uma virada na história da carta de
amor, de imediato percebida pelos contemporâneos5 • Um muro tem U lll
grande papel no amor da Religiosa portuguesa, e antes espesso, já que se
trata daquele de seu convento. Mas há também uma sacada. Se o amor não
fosse (a)muro, não se veria por que a sacada aí é tão importante. O que lev a
centenas de milhares de pessoas a ir todo ano se pasmar, em Verona, di a nte
da sacada de Julieta, embora seja mais que duvidoso que Julieta lá tenha
alguma vez aparecido? A sacada é um falso foro no muro; ela é um furo que
permite que a amada apareça exatamente como se sua imagem surgisse na
superfície do muro. E esse furo é igualmente falso uma vez que não é a v ia
de passagem de um lado ao outro do muro. Com o que se tenta transfor
mar esse falso muro em verdadeiro furo, por exemplo com a ajuda de uma
cançoneta que viria furar o ouvido da amada e - quem sabe? - atingi-la no
coração. A sacada é a inacessibilidade da amada vista como aparição. Era esta
a posição da Religiosa portuguesa, que era portuguesa mas não religiosa,
somente uma viúva acolhida num convento. Ela de modo algum esconde
da madre superiora sua ligação com o oficial francês que viera combater os
espanhóis ao lado dos portugueses. A resposta da madre superiora é de uma
justeza que não pode deixar de ser saudada: ela lhe pede para, dali por diante,
ser... porteira, a do convento, o que, por parte das autoridades conventuais,
valia menos como uma punição de suas encartadas que como uma maneira
de terapia. Porteira: propõem a ela dominar a passagem pelo furo no muro;
fazem-na passar do falso ao verdadeiro furo! Quem não conhece a impor
tância da porta nos casos de amor? A importância, no limiar da porta, das
falsas saídas? Das portas batidas? Das portas entreabertas? Decididamente
sim, o amor, esse amor em todo caso, é (a)muro. O francês dispõe de uma
bela e falante expressão para designar uma certa transposição do muro: "pular
[em francês faire: lit. fazer] o muro". Para "possuir [em francês sefaire: lit.
5 Notadamente pelos anexos que ela nos oferece, a edição do livro de bolso (Paris, Librairie
gé nérale française, 1 993) é particularmente ú til, e notável o trabalho de Anne-Marie Clin
Lalande a quem é devida a int rodu ção, o estabelecimento dos textos e as notas.
O R E S C R E V E , N Ã O RA S U RA
O AM
[azer-se] a b ela"? Paire [pular] o muro fabrica o muro, e assim revela, nesse
rnesmo gesto de transposição do muro, o amor como (a)muro. Mas muito
l onge também, e em outras línguas, estamos prevenidos da importância do
rnuro no jogo do amor. Que nos reportemos, para a China, à belíssima obra
de Rainier Lanselle O sujeito por trds da muralha .
6
ces "e"? Essas questões não passam perto de Lacan. Muito pelo contrário,
el e parece, nesse momento, pensar (acreditar?) que o amor, na melhor das
hipóteses, é apenas carta, e isto ao ponto de logo procurar escrever, depois
ler, uma carta de amor ao público de seu seminário (voltaremos a isso).
O fato de o amor ser muro, ser separador torna seu objeto, no caso em ques
tão a mulher, inacessível. Há aí uma armadilha montada contra as mulheres,
canto mais perniciosa já que elas podem adorar ser assim tornadas fora de
al cance, mesmo que o preço, que elas não percebem necessariamente de ime
diato, no fim se revele elevado. E, se não apreciam, pelo menos podem jogar
0 jogo de sua (pretensa) inacessibilidade quando o parceiro vê aí um traço
de sedução. Ora, o que de melhor, numa disciplina que fez do complexo de
Édipo o nó subjetivo mais determinante, para significar essa inacessibilidade
da mulher do que fazer dela uma mãe? Em Lacan, o interdito do incesto não
é desses interditos que impedem a realização de um ato que poderia ocorrer
se não fosse proibido; ele vem atingir um ato impossível como tal. O que
dá seu peso ao gesto de elevar, ao mesmo tempo que sua afirmaçã<? que o
amor é muro, o amor materno à dignidade de um paradigma amoroso. Ele
a isso se dedica pela primeira vez na capela Sainte-Anne, em 6 de janeiro
de 1972, mas também, três meses mais tarde, precisamente em 1 0 de maio
de 1972, na faculdade de direito. O que é dito na capela Sainte-Anne só é
legível sobre o fundo de uma tese pouco articulada mas que o texto impõe.
Essa tese nomeia a operação realizada pelo (a)muro em quem se choca com
ele como o obstáculo que e l e é. Esse obstáculo é castrante, o amor "é o que
é c astrante9 " . Mas aí, prudência, não se trata tanto da castração simbólica,
aquela que torna desejante, quanto de uma castração aceita imaginariamente,
em outras palavras, de um impedimento (para usar aqui um termo que, no
seminário A angústia, teve provisoriamente um estatuto conceitual): se, no
momento de escrever, percebo que minha caneta não tem mais tinta, isso
não suscita nem aumenta de modo algum meu desejo de escrever. C astr a
ção, será bem o termo que aqui convém'º? Seja como for, a consequênc ia
,
esta, permanece sem ambiguidade: se o (a)muro é esse círculo de virada de
direção que está por toda parte na superfície de Klein, essa castração tam bém
vai estar por toda parte.
10 Um ano mais tarde, a castração será definida como "algo que diz não à fu nção fálica" (Mais,
ainda, sessão de 20 de fevereiro de 1 973). O que não resolve o problema acima colocado :
"algo" , sim , certo, mas o quê?
1 1 J . Lacan, . . . 011 pior, sessão de 6 de janeiro de 1 972.
1 2 Ibid. , sessão de 1 0 de maio de 1 972.
1 3 Jean Allouch , "Trois prélimi naires au non-rapport sexuel", in L'U11ebév11e, nº 1 8 , ou tono
200 1 .
O R E S C R E V E . N ÃO R A S U R A 311
0 AM
esse espanto não para aí. Pouco antes, nos seminários, estava-se às voltas
com O amor como narcísico e, por aí, enganador da pulsão. Eis que esse
a.m or (a) muro não é mais enganação mas obstáculo, e um obstáculo em
nad a enganador: diferente nisso do espelho, lugar de desconhecimento, o
inuro com o qual nos chocamos de modo algum engana, ele se contenta
e rn estar ali. Estávamos, além disso, às voltas, desde a invenção do objeto
a, co m um amor imaginário, e eis também, novo espanto, que, com a carta
de amor, o amor, renomeado (a)muro, parece descambar para o simbólico,
ern ro do caso dele se aproxima. Outro espanto, enfim, no que se refere aos
seminários precedentes: o (a)muro designa não o amor em si mas pensado
de maneira androcentrada, o amor na medida em que um homem ama (a)
uma mulher. Logo, vamos evitar generalizar a expressão "o amor é castrante",
que significa apenas que seu amor por uma mulher castra o homem, mas
com certez a não que seu amor por um homem castra uma mulher.
Abordar o amor de maneira androcentrada, o que fez também o
fin 'amor, leva a precisar como tal abordagem vem se referir à amada, como
essa amada pode jogar com isso. Lacan não deixa de se colocar essa questão.
Para ler sua resposta, convém tomar algum impulso, partir do novo Outro
que dissemos. A própria palavra que a assinala - "entra" - não era menos
decisiva no poema de Tudal e em sua análise. O Outro não será mais um
antro * (do latim antrum "cavidade", grego antron) , sua imaginarização
c omum, mas um entra. La Fontaine (citado pelo dicionário Le Robert) não
desprezou esse equívoco significante:
[ . . . ] nesse antro
Vejo muito bem como se entra,
E não vejo como se sai.
O Outro não permite a escrita da relação sexual. Entre homem e mulh er, e
Ie
deveria fornecer o conector lógico suscetível de criar relação e deveria be
ill
assim estar situado "entre*" os termos ligados por essa relação; m as, e rn V
ez
de esse "entre" fazer laço, ele se interpõe, ele se coloca nesse próprio lugar
e, portanto, no bom lugar, de modo diferente do previsto - o que Lacan
formula com um neologismo: ele "se outrocoloca". A sequência imediata
dessa citação resultaria da constatação empírica e, por parte de Lacan (varnos
lhe dar esse crédito), dessa modéstia que consiste em só acolher as cois as da
maneira como elas se apresentam.
Seu modo de presença está entre centro e ausência, entre a função fálica da
qual ela participa, singularmente, daquilo que o ao menos um que é s eu
parceiro, no amor, aí renuncia por ela . O que permite que ela deixe aquilo
* A preposição entre também faz homofonia com enh·e [verbo entrar) e mlh'e [antro) . (NT)
15 J. Lacan, ... ou pior, sessão de 8 de março de 1 972.
16
Paul Claudel, "Communion", in Bréviaire poétique, Paris, Gallimard, coll. "Poésie", 1 999,
p. 5 1 .
o ,. ,.. O
•• R E S C R E V E , N Ã O RAS U RA 313
por que ela não participa disso, na ausência que não é menos gozo, por ser
gozamenc1 a
A ' /7
Eis o amor castrador de seu parceiro, e o amor que é bem aqui o amor,
0 ,. não é nem o desejo nem a pulsão. Sua renúncia à função fálica (sua
�ca:tração") homologa, cauciona, talvez até legitime, em sua parceira, um
certo gozo, seu próprio gozo de ausentar-se da função fálica - aquela que
vale q ue seja inventado um outro neologismo: gozausência. O fato de um
homem preservar tal acolhida a esse gozausência não é por certo evidente
( definição da neurose: não pode ser questão disso) e eis, pois, a mínima, o
que indica que essa acolhida seja nomeada castração.
Do lado mulher, não se deixará de ressaltar que, após tal afirmação,
Lacan tentou responder às objeções, pelo menos aquelas que poderiam lhe
vir do feminismo:
E penso que ninguém dirá que o que enuncio da função fálica decorre de
um desconhecimento daquilo que acontece com o gozo feminino. É, ao
contrário, daquilo que o gozausência, se posso assim me exprimir, da mu
lher, dessa parte que não a faz toda aberta à função fálica, daquilo que, esse
gozausência, o ao men os um tenha pressa de habitá-lo, num contrassenso
radical sobre o que exige sua existência 1 8 •
Não achem, diz Lacan, que Ltí a mulher não convoca seu "homem
menos-um" [homofonia com "ao menos um"] a dar corpo à função fálica;
mas saibam que essa mais ou menos premente convocação pode valer con
trassenso se deixar crer que o gozopresença da mulher vai ser acompanhado
de seu gozausência. Não se pode admitir a justeza dessa descrição clínica
sem se explicar.
Ela permite dar conta de outro fato clínico jamais comentado nem
sequer formulado na psicanálise e que pode ser aceito a título de uma certa
dureza, feminina. Não se trata de um universal da mulher que não existe,
* L es chien11es de garde e Ni putes 11i soumises são movime ntos femi nistas franceses. (NT)
19 J . Lacan, " Hommage fait à Margueri te Duras, du ravissement de Lol V. Stein" , i n Autres
écrits, Paris, Le Seuil, 200 1 .
20 Um membro da Escola Lacaniana na Argenti na, Marta Mattoni , está i nvestigando essa oje
riza de Duras pela psi canálise e bem especialmente por Jacques Lacan, para o qual a querida
Margueri te nunca encontra palavras . . . duras o bastante.
0 A MOR
E S C R E V E , N ÃO RAS U RA 315
21
J. Lacan , 'TÉrourdi t" , Scilicet, nº 4 , Paris, Le Seui l , 1 973. Devo essa ci tação a Marie-Claire
Boons.
316
mulher. Não menos notável parece sua incidência na própria psican álise .
Nesse terreno, que conclusão Lacan tira disso? Ele acaba então falando de
um homem que ele aceitou tomar em análise na seguinte base: esse homern
pedia à análise o êxito a qualquer preço de seu conjúgio (há "jugo" em co n
júgia22) com a mulher de seu coração. As coisas se engancham assim, mas
também, e aí fica perigoso, pelo fato de que Lacan se colocava, aliás sern
acreditar muito nisso, a questão de saber se uma análise é suscetível de fazer
um amor conjugal dar certo. Ele não conhecia exemplo, mas de qualquer
modo tenta a coisa, o que vale a seu público ouvir esta autoapreciação:
"Vocês se dão conta do que posso fazer como sujeiras para verificar m in has
afirmações23 ! ". Esperamos a irônica e desiludida conclusão, e, com efeito,
ela vem: "Naturalmente, é claro, não deu certo, graças a Deus, nos prazos
mais curtos! ". Podemos lamentar que para o começo dessa análise tenha
intervindo uma demanda do analista. No entanto, vamos deixar de lado esse
juízo para melhor privilegiar a conclusão da confissão culpada desse cas o.
O que está em jogo quando se trata de sexo é o outro, o outro sexo, m esmo
quando se prefere o mesmo. Não é porque eu disse há pouco que, no que
se refere ao êxito de um amor, a ajuda da psicanálise é precária que se deve
crer que o psicanalista não está nem aí, se posso me exprimir assim. O fa to
de o parceiro em questão ser do outro sexo e de o que está em jogo se r algo
que tenha relação com seu gozo - falo do outro, do terceiro, a respeito do
qual é enunciada essa "falação" em torno do amor -, o psicanalista não
pode ser indiferente a isso, porque aquele que não está ali, para ele, é be m
isso, o real. Esse gozo, aquele que não está "em análise", se me permitem
exprimir-me assim, faz função para ele de real.
22
Daí este chiste: "- O que é a bigamia? - Uma mulher a mais. - E a monogamia? - É
igual".
23
J. Lacan, ... 011 pior, sessão de 4 de maio de 1 972.
O AM
O R E S C R E V E , N ÃO RAS U R A 31 7
h ipó teses, poderia ser o dele, o regime do não todo ao qual qualquer um,
homem ou mulher (mas diferentemente), é forçado.
Terceiro viés suscetível de tornar o objeto inacessível: o próprio
muro. Esse muro do amor é o personagem principal de ln the mood of
/ove, assinado por Wong Kar-Wai, lançado em 2000. No final desse filme,
embora o homem, Chow Mo-wan, tenha se declarado, não sem saber que
ela também o ama, mas à sua maneira, a do quizas de uma célebre canção
latino-americana, um muro, de verdade, separa a noite em comum dos dois,
um muro que nada vai derrubar. Os muros estão constantemente presentes
no filme, muros em geral em ruínas, mas também muros figurados pelos
movimentos da câmera cujo travelling atravessa várias vezes um espaço negro
(tela cheia) que os separa, ela, Su Li-zhen, e ele. O (a)muro, não o amor,
é aqui cumprido. E o abraço amoroso, como é o caso, só pode ser o das
mãos. Eles são, cada um, como atesta o próprio título do filme, de humor
adequado (in the moodfo r) ao amor.
AMOR E CALIGRAFIA
Nem tudo do que pouco antes fora revelado passa por lucros e perdas nessa
figura (a)murosa e murante. Com efeito, esse muro não é apenas feito de
letras [lettres] definidas como elementos discretos de um alfabeto ou de algum
outro modo de escrita, esse muro tem também a consistência do próprio
suporte desses elementos discretos; ele é folha de papel (a carta [lettre] como
objeto material), ou então ainda qualquer suporte sobre o qual seja possível
escrever palavras de amor (uma calçada, a areia da praia, um lenço, etc.).
E, portanto, em particular... um muro. Lembramos aqui a maneira como
La can apostrofava os ex-manifestantes de maio de 1 968 na França que o
ouviam, em 1 972, na capela Sainte-Anne. Ao escrever nos muros, ele lhes
dizia (subentendido: vocês que pretendem derrubá-los), vocês os reforçam24 •
Entretanto, há outra maneira de reforçar o muro, ela não simbólica, mas
imaginária. Nela encontraremos, mais uma vez, a colocação em ressonância,
p or Lacan, do amor e da pintura.
Resta que Lacan reteve bem o gesto, o apoio tomado pelo pintor sobre
0 que já de figuras lhe oferece o muro. Ele prossegue: "É muito importante
isso, perceber que há uma classe das coisas nos muros, que serve de figura,
de criação de arte, como se diz. É o próprio figurativo, aqui, a tarefa [em]
questão". O fato de a figura jd estar na mancha antes de a arte lhe dar sua
forma "distinta e bem concebida" (Da Vinci), eis o que faz melhor que
confirmar que o amado seja uma aparição, eis que revela o caráter compósito
dessa aparição: quem o percebe põe ali do seu ou, mais justamente, põe ali
0 que é do outro nele- como Lacan citando Da V inci. O conselho técnico
de Da Vinci acarreta uma questão:
É preciso de qualquer modo saber a relação que há entre isso [id est: o que
se encontra no muro, nas cartas, nas figuras] e o que quer que possa vir no
muro, a saber, os ravinamentos, não só da fala - ainda que isso aconteça,
é bem assim que isso sempre começa - mas do discurso, [saber] em outras
palavras, se é da mesma ordem, o mofo no muro ou na escrita. Isso deveria
interessar aqui certas pessoas que [ . . . ] se ocuparam muito de escrever coisas,
cartas de amor nos muros.
18 .
J Allou ch , Marguerite, 011 l'Aimée de Lacan, 2' éd. revista e aumentada, Paris, Epel , 1 994 .
(Paranoia: Marguerite 011 a Aimée de Lacan, 2 ª ed. Rio de Janeiro, Companhia de Freud,
1 997) .
320
O que posso dizer é que, em todo caso, a clivagem do muro, o fato de haver
algo instalado diante, que chamei fala e linguagem, e que é de um outro lado
que isso trabalha, talvez matematicamente, é bem certo que não podemos
ter disso outra ideia. [ . . . ] 3° .
29 Poderemos co nsul tar a impressio nante lis ta proposta pelo catálogo da exposição "Da esc rita
à pintura" , 4 de j ulho - 1 4 de novembro de 2004 (Fundação Maegh t) , ou ainda Ln révolu
tio11 s11rré11/iste ( 1 924) , Cnhiers d 'nrt ( 1 926) , Le mi11ota11re ( 1 933) , Derriere /e miroir ( 1 946) ,
que conjugam com uma paginação bem cuidadosa quadros e escritas.
30 J Lacan, . . . 011 pior, sessão de 3 de fevereiro de 1 972.
.
MOR ESCREVE. NÃO RASURA 321
O A
31 Cj Janes Giles, U11 c/11111t di11110111; Le ci11é111a de Jean Genet, Paris, Macula, 1993. Lê-se,
p. 44-45, esta citação de Notre-Da111e-des-Fle11rs (CEuvres completes, r. II, Paris, Gallimard,
1951, p. 42): "Ele apoia o rosto no muro. Com um beijo, lambe a superfície vertical e o ges
so guloso puxa sua saliva. Depois, beijos aos borbotóes. Todos seus movimentos desenham
os contornos de um invisível cavaleiro que o abraça e que o muro desumano sequestra"; ou
ainda, p. 45-46, esta outra, extraída de o Milagre da rosa (O. C., op. cit., p. 213-214): (Ge
net, depois da estada em Merrray, é enviado para a prisão de Fonrevraulc]: "À minha volta,
os muros do bairro de Mettray caíram; estes cresceram onde descubro, um pouco por roda
parte, as palavras de amor gravadas pelos punidos[ ...]". Visto como obstáculo, o (a)muro é
unlnPotln Pntolh,cln. nPnNrndn.
322 O AMO R. LAc
AN
mento não só da fala, mas do discurso. Como entender esses "ravin arn en to
s
do discurso"? Eis o que foi dito logo depois de a questão do ravinarn en to
ter sido colocada:
Quero simplesmente observar que seria muito melhor nunca ter hav ido nada
de escrito nos muros. [ ... ] Eu já disse há pouco para a carta de (a)m uro : tudo
o que se escreve reforça o muro. Não é forçosamente uma objeção. Mas O que
há de certo é que não se deve achar que isso seja absolutamente necessário '
mas serve mesmo assim, porque se nada tivesse sido escrito num muro, seja
ele qual for, este ou os outros, pois é! é um fato, não se teria dado u m p asso
no sentido daquilo que talvez deva ser olhado para além do muro 32 •
Logo, melhor seria se nada jamais tivesse sido escrito nos muros, m as
também: ainda bem que algo foi escrito nos muros (o muro provavelment e
é então pensado como quadro negro). Não é uma contradição, pois o que é
louvado como escrita no muro é uma escrita de discurso, diferente de um a
escrita de sentido. Questão: o "ravinamento do discurso" deve ser enten
dido no sentido de um genitivo subjetivo, no sentido em que o discurso
viria ravinar a indecente escrita mural de sentido? Ou, então, o contrário,
genitivo objetivo, seria o discurso que ficaria ravinado no muro, o discurso
e também o que o muro comporta de inscrições e figuras indecentes? N ão
está aqui decidido. Simplesmente, está e continua colocada a questão das
relações desses dois modos de escrita. Ora, ela é também a do (a)muro e do
outro do amor, que constatamos ser então pensado como discurso. Deci
didamente sim, não há discurso amoroso.
O termo "ravinamento" tem estatuto conceituai em "Lituraterre". "Li
turaterre", a palavra dá título a um artigo publicado em outubro de 197 l 33 •
É também, fato excepcional por parte de Lacan, o que ele põe como título
da sessão de 1 2 de maio de 1 97 1 do seminário De um discurso que não fosse
semblante, durante a qual ele lê esse escrito. Logo, essa sessão precede de
32
J. Lacan , . . . 011 pior, sessão de 3 de feverei ro de 1 972 .
.l.l J. Lacan, " Lituraterre" , in Littémt11re, n º 3 , Paris, Larousse, 1 97 1 , retomado em Auh-es écrits,
op. cit. , p. 1 1 -20.
O R E SCR E V E , N Ã O RAS U R A
O AM
Jl Henri Michaux, " Entre centre e absence" , Loi11tt1i11 i11térie11r, in CE11vres completes, t. I, Paris,
G allimard, coll . "Bibliotheque de la Pléiade" , 1 99 8 .
3s Jacques Lacan , D'1111 discours i 1 1 e semit pt1S se111b!t111t, versão Afi, Doravan te: De 11111 dismr
qu
so . . .
32 4
já esteja ali para que possa ser apagado, já que é com um mesmo movimento
que o gesto caligráfico produz, segundo Lacan, a um só tempo um ra stro
e sua rasura. Esse semblante terá feito litoral entre saber e gozo, em outras
palavras, terá sido uma linha de demarcação entre dois territórios n ão ho
mogêneos - ao passo que a fronteira, esta, distingue duas entidades h omo
gêneas, por exemplo dois estados. O que a ruptura de um semblante realiza ,
em outras palavras, sua viragem do litoral ao literal? Ela opera um a chuva
do significado que ali estava como que em suspensão, e assim realiza um
"ravinamento do significado". Ela "dissolve o que fazia forma, fenômeno'
meteoro". Salta aos olhos que esse significante nova maneira, que esse sem-
blante é bem próximo da carta de (a)muro, e isto tanto do ponto de vista
de seu teor quanto de sua função. Como a carta de (a)muro, o significante
é feito de formas, e transporta consigo todo um monte de significados,
eis para seu teor. Mas ele também tem essa mesma função de separar dois
territórios não homogêneos, aqueles respectivamente ditos "saber" e "gozo"
(para o significante) e (para o (a)muro) "o homem" e "Lti mulher". Logo, é
tentador outorgar ao significante/semblante o estatuto de um muro, ainda
mais por ter estado em questão o "muro da linguagem" desde 1 953. Ora,
sempre segundo Lacan, essa ruptura de um semblante não é sem valor, em
sua própria operatividade, como um gozo:
* P/11 é forma verbal tanto de pleuvoir (chover) quanto de plaire (agradar) . (NT)
O AM
O R E SC R E V E . N Ã O R AS U RA 3 25
amante. O que surge quase de modo tautológico, pois não se veria com o, se
não fosse este o caso, haveria uma saída possível do amor de transferên c ia.
Mas, sobretudo, o amor, provisória conclusão, transporta em si mesmo sua
própria rasura, seu próprio ravinamento, tal um "em potência" suscetível
de virar ato. E é agora, portanto, a caligrafia, não mais tanto o gozo, que
vem no lugar de outro do amor.
Antes de encerrar essa primeira análise da maneira como o amor jo g a
com o semblante (ela logo repercutirá), notaremos que Lacan, sobre esse
tema, já assinala que ele não deu aqui sua última palavra. Em 4 de maio
de 1 972, ele faz a seus ouvintes esta nova promessa: " Um dia, quando eu
estiver inspirado e me arriscar a fazer o gênero La Bruyere, tratarei a questão
das relações do amor com o semblante. Não estamos aqui, esta noite, para
perder tempo com essas bobagens36!". É uma pena! Como estaríamos felizes,
presentemente, se, naquele dia, ele tivesse se divertido com aquelas bobagens!
Mas, talvez, para acabar e sem dizer muito, ele tenha feito...
FAZ E R U M
da qual ele será a um só tempo um dos atores e o diretor - já era pos icio .
nando-se como tal que ele lia Hamlet1. Ei-lo, pois, nesse 2 1 de novembro
de 1972, a construir por sua fala uma situação, um pouco à maneir a do s
.
ce' l e b res cond'1c1ona1s .
. durassianos: "sena. ... ,, , " havena
. ... ,, , "venam
' os... , ', etc .
Ele antes de mais nada põe o público no leito "de pleno emprego", no leito
onde, a dois, "as pessoas se abraçam" (onde gozam?). Vamos de bom grado
deixar-lhe a responsabilidade das duvidosas afirmações segundo as quais
seria a dois que o leito se afiguraria de pleno emprego, igualmente aquela
outra segundo a qual de fato existiria um leito de pleno emprego (S ade
não acreditava em nada nisso, daí sua raiva). Vem, então, dita como que
de passagem, uma observação que reata com uma das teses mais decis ivas
de A ética . . . : "O gozo é o que não serve para nada". Eis, pois, o púb lico
do seminário espalhado dois a dois em algumas centenas de leitos ond e ,
acrescenta ele, "eu os deixo [ ... ] às suas inspirações". O que ele faz? Ele sa i,
deixa o quarto: "Saio, e uma vez mais vou escrever na porta2, no intuito
de que, na saída talvez, vocês possam se dar conta dos sonhos que vão ter
prosseguido nesse leito, a seguinte frase: [... ] " . É um senhor que já passou
dos setenta anos que prefere assim seu "saio", e havia por que se perguntar
se, com efeito, ele não ia definitivamente abandonar seu seminário, ai nd a
mais que depois de ... ou pior um título como Mais, ainda, acolhido sem
histeria, não era muito encorajador. O grito "Ainda! ", questão de tom,
taro b em , se ouve como "ch ega,, , " basta.1 " .
1 Jean Allou ch, Erótica do luto 110 tempo da morte seca, l ª edição, Rio de Janeiro, Companhia
de Freud, 2003, estudo b.
2 Pequena curiosidade cuja ide ntifi cação devo a Mayette Viltard: um "rascu nho" da situação
instalada nesse 2 1 de novembro de 1 972 fora tentado em 9 de j u nho de 1 96 1 e, da mesma
forma, bem no início de sessão. Já estavam presentes os dois seguintes traços: de dois seres
no leito e a escrita de Lacan, o primeiro chamando o outro. A articulação dos dois deve-se,
e ntão, ao grito [cri] , aquele do ente ndime nto no leito, e o de "escrito" [écrit] . Lacan tam
bém joga com "se e nt e nder" [s'entendre: em francês, também, ouvir (NT) ) , deslizando do
e ntendiment o à audição. Por não se ent e nderem [se ouvirem] . um homem e uma mulher
podem se ouvir gritar. Por isso, "eles se e ntenderiam" ou só se entenderiam calando-se? A
questão está colocada. A fim de evitar brincar com isso (mas por que não?) , Lacan anuncia
a seu público que ele vai ler um escrito. Tudo se passa como se seu escrito tomasse o lugar e
desse valor ao grito dos amant es. Pou co importa, a posição de Lacan é menos clara que em
2 1 de novembro de 1 972, isso se lê desde sua primeira frase: "Vou estender-me [sublinho] ,
hoje, sobre algo que fi z questão d e escrever" .
329
Roger Planchon ensinava que a saída do palco era um dos gestos mais
difíceis de encenar e, para o ator, de efetuar. Cada uma das saídas de cena
deve ser interpretada, deve ser teatralmente falante, deve valer como uma
regrada da tensão dramática. E essa "saída" de Lacan, imagina
pontuação
da, instalada por ele, estava, com efeito, regrada. Ela devia ser tal que ele
pudesse, uma vez saído, escrever na porta. Não há uma saída desordenada,
nem com certeza daquelas em que se bate a porta e em que, o gesto valendo
escrita, não há necessidade alguma de escrever na porta. A didascália pare
ce bem indicar que quem sai escreve uma vez fechada a porta: sai, depois
escreve. Eis prevenidos os dois seres postos no leito: uma leitura os espera
quando, cumpridas as efusões amorosas, eles por sua vez deixarem o quarto.
Nenhuma dúvida de que só esse saber de uma leitura que os espera pode
modificar essas efusões, ainda mais que esse saber é o de um saber insabido.
Preferirão eles se levantar, ir imediatamente ler a frase? A encenação não
prevê isso. Por enquanto, eles são, portanto, três no quarto, Lacan, de pé,
preparando-se para sair, e os dois ouvintes medianos do seminário, estes, no
leito, logo antes de lhes vir a inspiração erótica, a não ser que esta já esteja
ali e Lacan já seja um intruso. Em suma, essa primeira configuração é a de
uma cena primária, mas vista por ausência, somente enquadrada por um
antes (a cena a três) e um após (a saída leitura e após as efusões amorosas).
Em outras palavras, os dois seres postos no leito por Lacan são seus próprios
pa is. C om efeito, seria bem de sua maneira essa ativa encenação que viria
no lugar daquilo que ele não saberia sofrer passivamente, essa demiurgia
(latim dimiurgus, do grego dêmiourgos, "que trabalha para o público, arte
são", em particular "artesão do universo"). Realizar ele próprio aquilo de
que se padece mais que sofrê-lo, fazer-se disso o agente, é esta a definição do
masoquismo em Os complexos familiares. E, já que aqui estou a dar alguma
cor cênica a esse início de Mais, ainda, melhor acrescentar que o que fazem
então seus pais nesse leito nada mais é que essa irmãzinha Maneine que,
veremos, não teve um papel desprezível na articulação do amor e do saber.
Jacques tem dois anos.
Jacques Marie Lacan, o menino, o irmão, o seminarista, o ator, não se
limita, diretor de cena, a pôr os pais no leito e sair do quarto deles. Mesmo
assim, já era muito, e só o horizonte de uma sexualidade de visada procria-
330 O AMOR LAc N
A
dora permite que seja sustentada a afirmação segundo a qual a cri a nça õe
P
os pais no leito "de pleno emprego" (Lacan tendo declarado, em out ra P ar te
que a criança estava presente no horizonte de qualquer ato sexu al possível) :
Tudo se passa como se, pelas vias do teatro, a criança, superando seu des
peito, autorizasse o ato p rocriador: "Pois então, façam essa irm ã ! " . Alérn
disso, sua autorização vem acompanhada de uma advertência ao esc reve r
na porta a frase gritada que convirá decifrar, mas decifrá-la sem des p rezar
esse contexto teatral que, só ele, dá seu alcance. Também lembrare mos, para
contextualizar esse próprio contexto, que Lacan - ele lembra (cf "mais uma
vez vou escrever na porta") - no passado já escreveu pelo menos u m a vez
em portas e até fabricou essas portas conforme um esquema bem pessoal .
Tratava-se das portas da dita segregação urinária e, portanto, tam bém de
um muro, aquele que separa os sanitários HOMEM e MULHER3 • Também é
possível lembrar sua declaração de homem apressado segundo a qual, com
seu seminário, ele abria porta após porta, deixando a outros o cuidado de
explorar em detalhe os espaços assim oferecidos. O que será escrito na por ta
não é destinado a ser sem efeito sobre a inspiração dos dois seres deitados no
leito, muito pelo contrário. Uns cobrem os muros do quarto com q u adros
eróticos, outros com um retrato de Cristo na cruz, com uma Virgem pedó
fora ou uma Anunciação, outros ainda com seus mortos, fazendo assim do
quarto um túmulo; para eles, será a frase de Jacques, mas reservada à saída
deles. O que ele espera? Isso ele anunciou: ele deseja que nos demos conta
dos sonhos prosseguidos no leito embora pensássemos estar bem despertos.
Mas o que vão então ser essas efusões amorosas, doravante em ep ígrafe dessa
fórmula presente, embora ainda não lida?
O gozo do Outro, do Outro com. . . parece-me que com o tempo isso deve
bastar para que eu pare aqui, eu lhes enchi os ouvidos com esse grande Outro
que vem após, e que agora ele arrasta por toda parte, esse grande A posto
3 J . Allouch,
Le sexe d11 maítre. L'érotisme d'apres Lacan, Paris, Exils, 200 l , p. 1 06- 1 33. Um
dos fu ndadores do movimento q11eer também se i nteressou por essa segregação urinária . Ver
Lee Edelman, "Tearooms and Sympathy, or, The Epistemology of che Wacer C loset", in
Henry Abelove, Michele Ainda Barale, David Halperi n (éd.), lhe Lesbian and Gay Studies
Render, New York e Londres, Roucledge, 1 993, p. 5 53-574 .
fAZ E R U M 331
AMOR E GOZO
Uma primeira explicitação de imediato vem. Permite assinalar que uma das
questões da frase escrita na porta nada mais é que uma distinção radicalmente
sustentada entre amor e gozo - o que não seria o caso se o gozo do Outro
fosse o signo do amor. Entretanto, a disjunção amor gozo permanece sutil,
talvez até problemática se, como já se entreviu, o amor é depositário de
gozo. A afirmação continua:
outro não pode validam ente valer para o do grande Outro. Um a das di
ficuldades de trans crição - e, portanto, doutrinal - acima ressaltada vê-se
por aí resolvida. As flutuações (A/a) têm bem razão de ser: são m arcadores
da relativa incongruência em fazer o gozo do corpo de um pequen o o utro
ser suportado por aquele do grande Outro. Em seu êxtase, Santa Tereza de
Ávila, que Deus não queira, não abraça nenhum amigo, nenhum peq uen o
outro em seus braços , sequer seu querido João da Cruz. Além diss o, ter dis
tinguido o tipo de amor que Lacan tem aqui em mente permite es clarecer
um outro ponto que permaneceu opaco em sua frase, e permanece u o paco
até sem que se perceba. Esta frase não diz: " O gozo do Outro, [ . . . ] não é 0
signo de seu amor" . Se tivesse dito isso, estaríamos às voltas com um amor
recíproco: "Te amo, e o gozo de teu corpo, que recebo como gozo do Outro,
me toca como sendo o signo de teu amor" . Não se trata disso, desse amor
humano demasiado humano que pede o amor em resposta ao amor e q ue
não é, portanto, aquele puro amor cuj o fio histórico Jacques Le Bru n tão
precisamente revelou. Lacan diz bem: "o signo do amor", isto é, de um amor
que é o amor pelo fato de que, por ser o amor, não pode ser nem o meu nem
o teu. Em Plotino, tal amor só advém com a intransmissível experiência
da dissipação, eminente e necessariamente pontual, de toda entidade que
fosse amante ou amada. O amor que está em questão nessa frase avizinha as
águas, aquelas que, historicamente, foram postas em epigrafe do misticismo
ou do puro amor.
Uma resposta não é um signo, menos ainda o signo. Uma resposta
resolve uma questão que, assim tratada, não será mais colocada. Diferente
nisto de uma resposta, um signo, ainda que se aproxime de uma solução, vai
guardar sua parte de sombra, não vai dissolver a questão. Como a experiência
mística é excepcional, será heuristicamente útil reformular no condicional a
afirmação de Lacan: se houvesse uma resposta ao amor, essa resposta só poderia
ser o gozo do Outro. É verdade, estou muito errado em proceder assim, pois
é inegável a modalidade afirmativa do que é dito. Porém essa reformulação
(falsa, portanto) oferece a vantagem de indicar como o gozo do Outro como
resposta real ao amor, e talvez se possa precisar com Plotino como realização
do amor, permanece fora de alcance do comum dos mortais, permanece
pouco facilmente subjetivável. Ainda mais que, dixit Lacan, o amor t raz
335
Então, é claro que isso explica que o gozo do corpo do outro, ele, não seja
uma resposta necessária. Vai até mais longe, não é tampouco uma resposta
suficiente, porque o amor, este, pede o amor, não cessa de pedir isso, pede
ainda. "Mais, aindà' é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte
a demanda de amor7 •
Em outras palavras, ainda que o gozo do Outro viesse dar sua resposta
ao amor, uma resposta vinda de outro lu g ar que do amor, o amor ali não
se satisfaria, ele que não cessa de pedir mais e mais amor. Esse chassé-croisé
d as respostas ao amor em nada cria uma situação satisfatória:
336 O AMOR LAC A N
É até por isso que foi inventado o inconsciente, foi para que se perceb esse
que o desejo do homem é o desejo do Outro, e que o amor é um a P aixão
que pode ser a ignorância desse d e sejo, mas que não lhe deixa men os todo
seu alcance . Ao olharmos ali mais de perto, podemos ver as devastações
causadas .
Mas ele também traz uma questão: "Então, de onde parte isso, que é
capaz, decerto, mas de maneira não necessária, não suficiente, de respon der
pelo gozo, gozo do corpo, do corpo do outro? ". Talvez, a fim de im pedir
as devastações do amor, só possa estar em questão tomar o caminho que
desembocaria na verdadeira resposta ao amor, no gozo do Outro. Daí,
portanto, um caminho assim poderia iniciar sua partida? Sobre que apoio,
tomado no próprio amor, e que não pode ser localizado em outro lugar a
não ser no amor (caso contrário, o gozo do Outro não seria a resposta ao
amor) , iria se escorar essa resposta, sabendo que, nem necessária nem su
ficiente mas só efetiva resposta de qualquer modo, ela nada pode ser além
do gozo do Outro? Ao tentar responder a essa questão decisiva, Lacan vai
acabar operando um formidável movimento doutrinal. Uma nova porta
vai então se abrir, e surgir uma nova varidade do amor, ainda mais nova
porquanto recicla antigos elementos, alguns de fresca data quando se tratar
de uma retomada do (a)muro, outras de data imemorial quando for se
tratar do amor na medida em que visa fazer um (em que encontraremos o
amor místico).
A abertura de Mais, ainda merece que não se despreze ali nenhuma linha.
Eis, então, logo depois, em que palavras Lacan tenta responder à questão "de
onde isso parte? ": "É bem o que no ano passado, inspirado de certa maneira
pela capela de Sainte-Anne que me levava ao sistema, acabei chamando o
(a)muro. O (a)muro é o que aparece em signos bizarros no corpo [ ... ] ".
De imediato dois traços merecem ser ressaltados. O primeiro: a capela
Sainte-Anne, com a presentificação de seus muros que Lacan, para sua sur
presa, teve de situar como o próprio endereço de seu discurso. atin1Yiu seu
337
Mas não passa de um mito, um mito que vem convergir com o leito de há
pouco. Gozar de um corpo quando não há mais roupas é algo que deixa
intacta a questão sobre aquilo que faz o Um, isto é, sobre a identificação. A
periquita identificava-se com Picasso vestido.
Não é possível ser mais explícito: o que pode bem se passar no le ito
não é suscetível de responder ao amor. Desejo e gozo são uma coisa; outra
coisa é o amor. E é agora isso que pode enfim se entender na frase choque
que dava seu impulso a Mais, ainda. Como essa distinção vem marcar 0
amor? Num certo sentido, Lacan reata com antigas notações, especialment e
o caráter nardsico do amor. Entretanto, o fato de o gozo, e não mais apenas
o desejo, estar em lugar do outro do amor vai ter por corolário uma c en a
definição do amor, inédita em Lacan embora até se arraste pela cultura no
mínimo desde O banquete de Platão.
1 1 Genevieve Guitel, Histoire compttrée des numémtions écrites, prefácio d e Charles Morazé,
Paris, Flammarion, 1 97 5 .
C A P Í T U L O XV I 1 1
0 AMO R N O S T E M P O S
DA NÃO - RE LAÇÃO S E X UAL
E mbora seja costume reter apenas uma única, várias fórmulas, nos
seminários, vêm dizer o jogo do amor e da não-relação sexual, o teor
de cada uma devendo ser tanto mais experimentado na medida em que ela
tiver sido menos escorada por Lacan. A pluralidade dessas fórmulas também
cria problema: vão bem juntas? Ou há, de uma à outra, movimento, talvez
a té disparidade? A fim de começar a responder, vamos primeiro procurar
apresentá-las em lista de maneira simplesmente cronológica e sem por en
quanto entrar nas questões colocadas por cada uma. Assim, veremos essa
lista desenhar uma volta bem esperada.
Mais, ainda, sessão de 19 de dezembro de 1 972:
Somos apenas um. Todos sabem, é claro, que nunca aconteceu entre dois
que eles fizessem apenas um, não é? Mas, enfim, somos apenas um. É daí
que parte essa ideia do amor, é realmente a maneira mais grosseira de dar a
esse termo, a esse termo que se esquiva manifestamente, da relação sexual,
seu significado.
Logo, a existência da alma pode por certo ser questionada, é o termo próprio
a se perguntar se não é um efeito do amor. Com efeito, enquanto a alm a
a/mar a alma, não há sexo no caso, o sexo aí não conta.
E, com efeito, é este [trata-se do amor] o substituto que, pela via da existênci a
não da relação sexual, mas do inconsciente, que disso difere, que po r ess a
via faz o destino e também o drama do amor.
sobre o amor. Por um momento, o dos últimos seminários, o amor terá sido
tomado em outras coordenadas.
Ora, não contente de separar o amor e a não-relação sexual, La ca n
vai posteriormente ligar o amor... a quê? À relação sexual! Em 1 1 de a bril
de 1 978, temos isto:
Existem três, três gerações, entre as quais há relação sexual. Isso evide ntemen te
acarreta toda uma série de catástrofes e foi, em suma, o que Freud perce beu. Ele
percebeu, mas isso não se viu em sua vida familiar; porque ele havia to m ado
a precaução de ser louco de amor pelo que chamamos uma mulher, é prec iso
dizer, é uma bizarrice, é uma estranheza. Por que o desejo vira amor4 ?
O reconh ec1mento
. por Lacan do amor como "f:azer um" e ate' como «e.rusa� o"
salta aos olhos da forma mais surpreendente, se não inconveniente. Eis
al gué m que, por anos, visitou várias varidades do amor, que as desdobrou
e p roblematizou apelando para certos termos, ou freudianos, ou por ele
rnesm o inventados, que para isso se apoiou em certos textos e trabalhos
rnas ta m bém na poesia e, de maneira mais original, na pintura, e que, após
isso rudo, declara de chofre, em 2 1 de novembro de 1 972, esta perfeita
b an ali da de que o amor é fazer um 5 ! E como, além disso, as afirmações
anteriores parecem então amplamente esquecidas, pensamos: valia a pena
cer- se da do tanto trabalho? Por que razão essa degringolada naquilo que,
à pri m eira vista, tem a ver com um lugar comum dos mais usados? Mas
esse p róprio espanto vem sugerir que poderia bem se tratar, nesse início
de Ma is, ainda, de um acontecimento mais inovador do que se pensa,
pois estaria bem na moda de Lacan só cair no lugar comum modificando
a d istribuição de seu jogo.
Esse advento do amor como "fazer um" foi devido ao borromeano? O
borrom eano é constituído de umfato de três, de um um ternário, de um um
p ar a o qual três é primeiro. Será o acento colocado nessa contagem que, por
um efeito de contágio, teria levado Lacan a conceber o amor como "fazer
um"? Entretanto, se a descoberta do borromeano é anterior de alguns meses
ao a parecimento da problemática do "fazer um" nos seminários, sua explora
ç ão e sua exploração são, estas, amplamente posteriores. Em compensação,
é indubitável que a pegada do amor na contagem (como se diz de um gesso
que ele "pega"), uma contagem ela mesma problematizada e, de certo modo,
desestabilizada pela invenção recente do "há um6 " , deve-se à não-relação
sexual. Com efeito, nessa primeira sessão de Mais, ainda em que está muito
e m questão o amor e em que o amor como "fazer um" vai começar a tomar
impulso, é trilhada uma via que, tal como se apresenta, vai do amor à não
rela ção sexual: "A impotência do amor, embora ele seja recíproco, deve-se
a e ssa ignorância de ser o desejo de ser Um. E isto nos conduz [sublinho] ao
impossível de estabelecer a relação deles. A relação deles, quem? Os dois
1
Sobre o jogo do um e do " há um" , poderemos nos reportar ao texto " . . . 011 pior" (Autres
écrits, Paris, Le Seu il, 200 1 , p. 547- 5 5 2 ) . Ali é simultaneamente proposto à anál ise fazer a
crítica " da i nconsistência dos dizeres antigos do amor".
6
An edota divertida: nos Principia Mathematica de Whitehead e Russell, a defin ição do nú-
m "" rn 1 � rl ., rl ..., . ... .,, " � n- i n -,, 'l. «; .á � rl n n 1'1 m P rn ? ,, .l n � o i n � � 7 'l
sexos7 " . O que pede três observações. Primeiramente é reafirmado o laço
entre o amor e o saber, aquele mesmo que foi posto em ato com a fi cç ão
teatral do início dessa mesma sessão. Assim fazendo, agora o lemos, Lacan
tentava subir a ladeira dessa "impotência do amor", devida à "ignorância
de ser o desejo de ser um". Se isso se soubesse, é sugerido, estaria susp ensa
a impotência do amor. Que impotência? A do amor de transferência? C om
certeza, mesmo que isso não esteja dito. O que desemboca nessa consideração
pouco banal, um pouco sulfurosa e não menos heterodoxa, segundo a qual ,
sendo o amor de transferência recíproco, o analista ama o analisando, mas
estando ele, analista, prevenido do fato de que o amor é desejo de ser um; e
esse saber poderia tornar potente o amor de transferência. Bastaria que um
único dos dois amantes ligados pelo amor soubesse que o amor é fazer um
para que o amor desdobrasse sua enigmática potência? Na cena teatral, os
dois amantes eram bem solicitados por Lacan a saber. Seja como for, seria
esta uma das questões do caminho aqui mesmo percorrido (após ter sido 0
de Lacan): outorgar, enfim, sua potência ao amor.
Segunda observação: é aqui colocada uma equivalência entre relação
(sexual) e "relação dois". Se houvesse uma relação sexual, um certo conector
ligaria dois termos, a e p. Como esses dois termos são distintos, haveria bem
dois: eles {os sexos) seriam dois. Mas, relacionados um ao outro, esses dois
termos só fariam um, o um da própria relação: há uma relação sexual. Só que
esse um da relação não é o um do "fazer um" do amor, não é em nada fusional.
Logo, só se pode distinguir o 1 do amor, feito de 1 + 1 (a isso voltaremos),
e o da relação sexual {"o um da relação relação sexualª ") composto de três
termos, de duas variáveis distintas, a e p, e de um conector que, ao ligá-las,
faz o um da relação. O francês vem ajudar essa distinção: vamos chamar o
"um dois" de um do amor e "o um de três" de um da relação sexual.
Uma terceira observação vale questão: não convém percorrer esse
caminho no outro sentido? Não seria, como é dito aqui, a impotência desse
amor não prevenido do desejo que o carrega ("fazer um") que teria conduzido
Lacan à impossibilidade da relação sexual {nota-se o jogo entre impotência
7
J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 2 1 de novemb ro de 1 972.
8
J . Lacan, Mais, ainda, sessão de 2 1 de novembro de 1 972.
O A
M O R N O S T E M POS DA NÃO- RE LAÇÃO S E X UA L 3 49
9 Dou essa citação tal como foi publicada em Le Mo11de, depois em Omicar?. Para uma leitura
mais aplicada dessas duas frases, poderemos nos reportar à minha obra Co11tre l'étem ité.
Ogawa, Mallarmé, Lt1m11, Paris, Epel, 2009, cap. III.
10 Alain
Badiou , " La sce ne du deux" , in De lamour, obra coletiva, sob a direção da École de la
---- - - r J , _ _ _ _ n _ _ ,_ r' l. " m - • C l " m m � r õ � � 1 Cl () ()
350 O A M O R LAc
I\ N
amor em geral, mas d o amor cortês, sendo esse suplemento, além d isso
apresentado como um fingimento, um traço que Badiou não retém, c o lll�
se fosse possível dissociar a ideia de suplemento daquela de fingim ento,
Sobre essa precária base citacional, Badiou entra num desenvolvim ento
em que, quase imediatamente, ele introduz o que chama de sua pró pr ia
linguagem. Do amor como suplemento ele passa, sem encontrar a m enor
resistência, à fórmula segundo a qual "sendo o sexual da ordem do ser, é
no acontecimento que se deve registrar o amor". Nada sugere tal b ipartição
em Lacan, em quem numerosas observações indicam, ao contrár io, que 0
amor diz respeito ao ser do sujeito (ou do outro, ou do Outro) . Quanto
ao gesto pelo qual Lacan acaba afastando essa problemática, em vão se
buscaria sua consideração em Badiou.
A tese de um amor suplementando a não-relação sexual não m ante
ve, em Lacan, a distância. Mesmo assim, ela ainda hoje permanece eleita
por muitos comentadores. Essa eleição foi sugerida pela ideia, aceita como
prazerosa, de suplemento, aquela que dá o teor da primeiríssima articulação
explícita do amor e da não-relação sexual. Com efeito, na citação acima, só
estão em questão os "dois sexos", e será apenas três sessões mais tarde, em
1 6 de janeiro de 1973, que será encontrado um enunciado em que, desta
vez com todas as letras, o amor está articulado à não-relação sexual - mais
exatamente, à inexistência da relação sexual. O suplemento é então o nom e
dessa articulação. Suplementar significando "vir no lugar", imagina-se qu e
algo estava bem ali antes, ali em primeiro, que é preciso essa ocupação pri
meira e esse lugar já marcado para que haja suplemento. Esse " imagina-se"
vale alusão às análises de Jacques Derrida que desmantelaram a pretensa
necessidade de uma origem para que pudesse ser produzida uma cópia. Um
suplente* [suppléant] ocupa o lugar e faz o trabalho daquele que ele substi
tui. Segundo esse ponto de vista preguiçoso, concebe-se uma inexistência
primeira da relação sexual, no lugar da qual viria alojar-se o amor. Entre
tanto, o suplemento [le suppléant] também pode decorrer da insuficiênci a
da função e da suposição de que o suplemento, este, não será insuficiente.
Essa brecha na ideia comum de suplemento é confortada pela etimologi a:
A primeira vez que lhes falei, se não me engano, enunciei que o gozo , o gozo
do Outro, que eu já disse simbolizado pelo corpo, não é um signo do amor.
Naturalmente, isso passa. Passa porque sentimos que é do nível daquilo que
fez o precedente dizer [não há relação sexual] , que isso não se dobra 1 2 •
' E também suprir. Porém só s11plê11cin - e não suprimem to - daria, em português, a ideia de
substituição. (NT)
11 J . Lacan, Mnis, nindn, sessão de 1 6 de janeiro de 1 973.
1 1 lh:,I r ........ : .... : . " .-: mhnli"7 ... rln,, n-3n " ci m h n l i 7 "lrl,/ '
p
352 O A M O R LAc
AN
Em que pela primeira vez apoiamos que esse lugar do Outro não deve ser
tomado em outro lugar que no corpo, que ele não é intersubjetividade,
mas cicatrizes no corpo tegumentário, pedúnculos a serem pendurados
Assim , o Outro, depois de ter feito corpo em 1 967, advém cinco anos
m ais tarde como sexo. O Outro sexo só pode ser entendido como o Outro
feito sexo - necessário correlato da própria possibilidade do conceito de
gozo do Outro. Qualquer um está às voltas com esse Outro feito sexo, e isto
seja qual for o corpo que a esse Outrossexo (ele merece ser escrito assim)
dê seu suporte. Assim surge uma nova questão. Se o Outro é o Outrossexo,
como, então, vai ele atuar na relação sexual? "O que acontece com esse
Outro? Com sua posição no que se refere àquilo em torno do que se realiza
16
a relação sexual ?". Logo, em torno do que se realiza a relação sexual? Em
torno do falo. "Relação sexual" deve aqui ser entendida não no sentido
de Lacan, mas como o que deve de fato ser chamado a "trepada". Lacan
vai logo precisar isso, mas de uma maneira que comporta, alusivamente,
uma crítica da (se não de sua) psicanálise. "Isto é, um gozo que o discurso
analítico precipitou como aquela função do falo sobre a qual, em suma,
0 enigma permanece inteiro, já que ali só se articulam fatos de ausência".
Ressoa uma nova reserva: teria havido uma certa precipitação, por parte do
" d iscurso analítico", em afirmar que a relação sexual se realiza "em torno"
(em torno!) da função fálica. Lacan está se distanciando no que se refere a
afirmações que ele anteriormente fizera. Não, o gozo do Outrossexo não
pode ser reduzido ao gozo fálico. Logo, é precisamente o gozo desse Outros
sexo tal como acaba não de ser delimitado, longe disso, mas parcialmente
e pelo menos negativamente determinado, é, portanto, esse gozo do qual
nada por enquanto vem assegurar que seja masculino ou feminino (caso
contrário, por que ter sexuado seu grande Outro?) que deveria ser tomado
15 !d. , " Resumo do semi nário 1 966- 1 967" , Autres écrits, op. cit. , p. 327. Em 1 0 de maio de
1 967, ele fora mais explíci to: " [ . . . ] é an tes de mais nada o corpo, nossa presença de corpo
animal que é o primeiro lugar onde pôr inscri ções. O primei ro significan te, como mdo está
ali para nos sugerir isso em nossa experiência, [é a cica triz] - exce to que sempre damos pai
xão as coisas quando falamos da ferida, acrescen tamos narcísica e imedia tamen te pensamos
que isso deve bem chatear o sujeito que é na turalmen te um idiota - não vem à mente que o
in teresse da ferida é a cica triz" . Ver igualment e o início da sessão de 30 de maio de 1 967.
16 1 T � �� " 1.,r,,;, ,,;.,,1,, <P«iín rlP 1 6 rle ianeiro de 1 973.
354 O AMOR LAc
AN
como signo do amor - o que Lacan procuraria afastar. O que vai s er d '
lto
do amor poderá dar alguma consistência a essa junção falaciosa entre gozo
do Outro e o amor? "Signo" seria o nome dessa junção mal-vinda. E, da
mesma forma que acabamos de ver como a "frase inaugural" de Mais, ainda
terá apelado para uma sensível modificação do grande Outro, da rn esma
forma sua explicação do texto dessa frase virá modificar o amor.
Com que varidade do amor vamos estar às voltas? Para form ular
isso, Lacan vai buscar força bem longe: "Este ano, temos que artic ula r
aquilo que está em questão, que está bem ali como pivô de tudo o que se
instituiu da experiência analítica: o amor". Entretanto, não é a experiência
analítica do amor que primeiro vai estar em questão, mas o amor, por
estar "no cerne do discurso filosófico". Desse discurso Lacan desconfia. No
entanto, ele lhe fornece um escoramento da afirmação segundo a qual "o
amor visa o ser". Evidentemente não é falso, ainda que muitas restriçõ es
possam ser trazidas a um enunciado tão geral; e, aliás, mencionando Aris
tóteles, o próprio Lacan emite algumas reservas. Mas, sobretudo, trata-se
aí de palavras bem antigas nele, presentes já na construção da pirâmide
das paixões do ser. Só ficaremos mais espantados de vê-lo dizer, em todo
caso na versão Le Seuil de Mais, ainda, que essa visada do ser pelo amor
teria sido enunciada somente oito dias antes. Nada igual é formulado
na versão semicrítica que serve aqui de referência. O que diz ela ness e
lugar? Essa versão elegeu uma apresentação insatisfatória, cortando uma
frase é verdade bem longa, empilhando, com isso, frases interrompidas,
separando-as, e além do mais, por alíneas. Em suma, das duas versõ es
disponíveis, nenhuma é boa. Proponho o seguinte estabelecimento, sem
de modo algum pretendê-lo terminado, mas apenas por ter a vantagem d e
não mascarar as dificuldades textuais embora conserve a ossatura da frase.
Estamos às voltas com seis "se", mas não de mesmo nível:
daqu ele ser do significante mêtre* (m, apóstrofo e acento grave), se não for
0 se r no mandamento, se não há aí o mais estranho dos engodos, será que
[ . . . ] que aquilo que é preciso, aquilo com o que temos que nos aco stu mar '
[sublinho] , é com substituir essa imposição que é aquela que a l inguagem
provoca, imposição do ser, pel a tomada radical, a admissão de início de que
do ser não temos nada, nunca.
Ora, tão logo dita, eis a ordem executada. Como? Por uma passagem
ao grego, nomeando para esse "ao lado" , e afirmando, d a1,' que "o ser se
apresenta e só se apresenta de "pare-ser 1 9 " . A transcrição Seuil escreve "par
être", e ''pare-être" minha versão de referência. A despeito de seus esforços,
a musicalidade do francês antes serve mal Lacan. Ele precisaria escrever
''para-être" , que soa mal. Ao que se acrescenta uma dificuldade de ordem
,,
semant1ca, par-etre sendo um homorono
A • " A ,, ,e ,
de "para1tre [parecer] . Ora,
esse "paraítre" remete à oposição fenômeno/númeno que é precisam ent e
aquilo de que Lacan não quer saber, essa oposição dando todo seu lugar à
ontologia, à imposição da qual ele quer se desprender. A escrita ''pare-être"
também cria problema: esse " pare-être" estaria para o ser como para a brisa
está o para-brisa? Nada vem garantir, pelo menos nessa passagem do semi
nário, que essa significação está presente nesse neologismo. Se do ser "nunca
temos nada", de que adianta dele se esquivar [se parer] como de um golp e?
Quanto ao sentido ornamental de "parer" [paramentar] , é a ontologia qu e
disso se encarrega! O embaraço da transcrição mesmo assim está suspenso
graças a uma obra bem útil que recenseia 789 neologismos de Jacques Lacan
e, para acabar, por Lacan, que publica "O aturdito" em 1973. Ness e texto,
do mesmo período que Mais, ainda, encontramos escrito "para-ser" [pa-
* A tradu ção brasileira (Mais, nindn, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1 975) op tou pela tradução
literal , isto é, romper-se n [se rompre à] . (NT)
19 Ibid. , sessão de 1 6 de janeiro de 1 973. Conservo aqui muito provisoriamente a esc rica
"pnre-être" .
O R N OS T E M P OS D A N Ã O- R E L A Ç ÃO S E X U A L 357
O AM
n ão tem mais então o mesmo alcance, perde seu valor semântico para só
atuar como significante que remete não mais ao "para" grego, mas ao " par"
deparole [fàla] . O problema com "para-ser" também vinha do fato de que o
prefixo "para" , se marca bem a ideia de "ao lado", também significa "que está
próximo de, que é semelhante": "paramilitar", por exemplo, condensa esses
dois valores. Disso decorre que talvez não tenhamos acabado tanto quanto
pensamos com o ser quand o col ocamos "para-ser" no l ugar d e " ser". .
Logo, como vai se apresentar o jogo do amor e da não-relação sexual
uma vez que o ser está afastado, posto de lado e como tanto melhor parali
sado (grego paralusis, "relaxamento") porquanto um termo vem dizer com
o que vamos estar às voltas, com o para-ser? O deslizamento do ser para o
para-ser implica uma mudança de razão. Com efeito, é somente a partir
dessa sessão de 1 6 de janeiro de 1973 que pode ser situado o que fora dito
do amor pouco antes ( 1 9 de dezembro de 1972): mais uma vez, Lacan
abordava o amor recorrendo a uma poesia. É então convocado o poema de
Rimbaud intitulado "A uma razão 2 1 " . Ele dá lugar ao seguinte comentário:
• Condensação de parler [falar] e être [ser] . Também traduzido por fala-ser e folesser. (NT)
1° Ci tado em Marcel Bénabou ,
Laure n t Cornaz, Dominique de Liege, Ya n Pélissier, 189 11éo
logis111es de Jacq ues Laca 11, Paris, Epel , 2002 , p. 70.
1 1 " Um
toque de seus dedos no tambor desen cadeia todos os sons e dá início a uma nova
ho rmnn i � l Jm oasso teu recru ta novos homens, e os põe em marcha. Tua cabeça se vira: o
O AMOR LA C AN
[ . . . ] é bem no que se refere a esse para-ser que o que suplementa essa rela
ção [sexual] enquanto inexistente, é bem nessa relação com o ''para-ser que
devemos articular o que suplementa, isto é, precisamente, o amor 23 •
novo amor! Tua cabe ça se volta, - o novo amor! 'Muda nossos destinos, acaba com as cala
midades, a come çar pelo tempo' , cantam estas crian ças, diante de ti. 'Semeia não importa
onde a substân cia de nossas fortunas e desejos' , pedem- te. Chegada de sempre, que irás por
toda parte". (Tradu ção de Ângela Caval can ti Bernardes) .
22 J . Lacan , Mnis, nindn, sessão de 1 9 de dezembro de 1 972.
1.1 J. Lacan, Mnis, nindn, sessão de 16 de janeiro de 1 973.
O R NOS T E M POS DA N ÃO- RE LAÇÃO S E X U A L 359
O AM
METAMORFOSE DO AMOR
Somos apenas um. Todos sabem, é claro, que nunca aconteceu entre dois
que façam apenas um, não é? Mas, enfim, somos apenas um. É daí que
Ali onde não há relação sexual, ali onde, de mais a mais, o pró pr io
termo "relação sexual" se esquiva, ali tomaria sua partida o amor como "fazer
um". Há bem, se quisermos, suplemento, mas num sentido muito partic ular.
Para falar a verdade, parece difícil falar mais uma vez de um suplem ento
mesmo sabendo que Lacan mal acabava de fazê-lo. A operação ou a fu nçã�
do amor é outra. O amor, definido como "fazer um", ao se alojar no lug ar
que seria o do significado da relação sexual, passaria qualquer um para
trás com essa ilusão segundo a qual o termo "relação sexual" poderia bem
estar, como significante, no lugar de significante. Ora, ele ali não está, ele
se esquiva. O posicionamento do amor como significado da relação sexual
é uma "grosseria". Estaremos ainda menos às voltas com a escrita
Relação sexual
Amor
uma vez que o significado não está mais, então, sob o significante, mas
ao lado. Mais uma vez, Lacan toma distância do amor sexual, da libido. Essa
escrita é a da ilusão do amor que se vê, portanto, agora desdobrada. Por um
lado, o amor como "fazer um" é ilusório, uma "miragem"; por outro lado,
é ilusório esse envio do amor à relação sexual como um significado poderia
remeter a seu significante. Constatando o fato de que a relação sexual se
esquiva, poderíamos escrever assim sua situação efetiva:
Relação sexual
Amor
[ . . . ] é nisso que o velho pai Freud trilhou vias, mesmo assim [sublinho]. É
de qualquer modo muito bonito, muito impressionante, [ . . . ] perceber que
o fundamento do amor, se isso tem relação com o "um", isso tem muito
exatamente por resultado nunca fazer quem quer que seja sair de si mesmo.
[ . . . ] A partir do momento em que ele introduziu a função do amor narcísico,
ir, lbid. , sessão de 2 1 de novembro de 1 972. Ou ainda, pouco antes: " H á Um" , é com isso que
sustentei meu discurso do ano passado , e por certo não para confluir nessa confusão original
[o um como fusão, o eros como tensão rumo ao um] . . . a do desej o que só nos conduz à visa
da da falha em que se demonstra que um só vem da essência do significante. Se i n terroguei
Frege no i n ício, fo i para tentar demonstrar a h iância que há desse um a algo que tem relação
como o ser, e, por trás do ser, com o gozo" .
27 L l .� rn n . Mnis. ainda, sessão de 1 6 de janeiro de 1 97 3 .
O A M O R LACAN
todo mundo pôde sentir que o problema era como podia haver um am or
por um outro. E que é bem claro que esse "um", com o qual todo mu ndo
tem a boca cheia, é antes de mais nada e essencialmente da natureza d essa
miragem do "um" que se crê ser. Mas, enfim, isso não é mesmo assim para
dizer que esteja aí rodo o horizonte[ . . . ].
UM NOVO AMOR?
ao notar que, nesse momento de Mais, ainda, amor e amor deviam ser dis
tinguidos? Várias indicações a seguir mostram, ao contrário, que a própria
questão do amor, como em Kierkegaard, deve-se precisamente ao fato de
que há amor e amor. Assim, em 20 de fevereiro de 1 973, Lacan voltará à
distinção entre o amor físico e o amor extático. Assim, em 1 ° de março, ele
vai d istinguir o "falar de amor" e, mais séria a seus olhos, a carta de amor.
Da mesma forma, bem no fim de Mais, ainda (26 de junho de 1973), ele
falará de novo da abordagem do ser pela via do amor e, assim fazendo, da
"verd adeira amor" - o que sugere a possibilidade, pelo menos ela, de outra
modalidade do amor. Essa verdadeira amor, além da inabitual feminização
do amor, está associada ao ódio; aliás, de maneira mais consumada, encon
traremos em ação, nas últimas sessões de Mais, ainda, não só o amor como
narcísico, que estava ali bem no início e ao qual a invenção do objeto a havia
dad o um retorno de vitalidade, mas também o ternário amor/ódio/igno
rância, ele também muito cedo presente nos seminários. Há amor e amor.
O que lança nova luz sobre o toque de clarim na abertura de Mais, ainda,
sobre esta frase da qual Lacan deu posteriormente uma primeira explicação
de texto e que eis aqui surge agora novamente aliviada de seus incisos: "O
gozo do Outro, [ ... ] do corpo do outro que O [ . . . ] simboliza não .é o signo
do amor29 " . Já não havia ali uma indicação da possibilidade de um novo
amor? Haveria esse amor que daria ao gozo do Outro o valor e o alcance
de um signo. Signo de quê? De sua efetividade. Esse gozo valeria prova do
amor. Mas afirmar que não é nada disso, como fez teatralmente Lacan, já
não era discretamente indicar que um outro amor seria possível, e distinto
do amor unificante pelo menos por esse traço, que ele não esperaria que o
gozo do Outro valesse como signo de sua própria efetividade? Uma outra
maneira ainda de delimitar o lugar daquilo que seria esse novo amor pode
ser entrevista a partir daquilo que Lacan apresenta em Mais, ainda como
send o nada menos que "o fim de nosso ensino30 " . Improvisando, ele comenta
o esquema dito das fórmulas da sexuação, não essas próprias formas, mas o
que vem inscrever-se no que está por baixo delas. O conjunto se apresent a
assim (sessão de 1 3 de março de 1 973):
Hx <Dx
yx <I> x
Salta aos olhos que esse térreo, com seu lado homem e seu lado mulher,
representa algo como uma penetração. A qual, aliás, não penetra muito,
sendo realizada por aquele próprio pênis que Bataille chamava "o pequeno" .
Esse esquema ambiciona escrever como o homem univocamente se dirige
à mulher, que ele toma como causa de seu desejo (objeto a), e a mulher ao
homem, ela não unívoca em sua relação com o homem pois "nãotodà' nessa
relação, estando às voltas por um lado com o grande Outro barrado [o S(A)],
com um grande Outro para o qual não há Outro, mas também um grande
Outro sexuado (a partir de 1 2 de dezembro de 1972) e, por outro lado, no
homem, com o falo (o que é muito classicamente freudiano3 1 ) . Importa aqui
a observação a um só tempo mais precisa e mais útil que aquela da distância
mantida entre grande I e pequeno a, observação segundo a qual esse fim
do ensino de Lacan seria não tanto o afastamento dito acima quanto uma
dissociação, quanto uma cisão de a e do grande A.
Como, em suma, esse pequeno a, por se inscrever logo abaixo desse grande
S de A barrado, em nossa inscrição no quadro, tivesse podido até um certo
termo causar, em suma, confusão, e isto muito exatamente por intermédio
da função do ser, é seguramente aquilo em que algo, se posso dizer, resta a
descolar, resta a cindir, e precisamente nesse ponto onde a psicanálise é outra
32
coisa que uma psicologia. A psicologia é essa cisão ainda não feita •
S -----➔ Sq
s (S 1 , s 2 , ... S")
34 Lucien de Samosate,
Éloge du pamsite, traduzido do g re go e a p resen tado p or Claude Terre
� " v P� ,i• A rlé� . 200 1 .
370 O A M OR L A. e
AN
interposição, como quando, em Mais, ainda, salta aos olhos de Lacan o índice
1 , ele de fato situado entre S 1 e S 2 • Mas temporal e logicamente, h á, si m
interposição (por baixo), aquela mesma do sujeito suposto saber (o pequen�
s itálico) e dos significantes no inconsciente (a série, entre parênteses, dos si
S2 , • • • S0 ) ; logo, já havia ali alguma intersubjetividade. O materna dos quatr�
discursos, ele também escrito a partir do S 1 ---+ S 2 , ainda perturbava mui to
a relação intersignificante. O discurso do mestre o mantém, os três outro s
o maltratam. Em outras palavras, a novidade de Mais, ainda não se deve à
interferência da relação S 1 ---+ S2 (houve outras), mas ao fato de ser, então, 0
amor que, através do signo 1 , vem operar a não-realização da representação
do sujeito por um significante junto a outro significante. Não é notável
que, já, tal interposição tivesse sido escrita com o materna da transferênci a?
Com alguns anos de distância, transferência e amor terão sido posicionados
da mesma maneira no que se refere ao significante. A novidade de Mais,
ainda pode ser dita de outro jeito: o amor, de certo modo, vê chegar um S
1
e dele se apodera como de uma oportunidade inesperada, não do S 1 como
tal (que um único nome designa - significante mestre - e que é, assim to
mado, apenas uma única letra), mas apenas do 1 desse S 1 • Desse 1 , o amor,
maliciosamente e narcisismo ajudando, faz um signo, em consequência do
que o S 1 , como que desmembrado, vê-se bem em dificuldade de se referir
ao outro significante, ao S 2 • O amor bloqueia localmente a fimção simbólica.
Temos a í uma formalização inédita de algo muito bem percebido na análise
desde Freud, isto é, o amor de transferência como obstáculo ao Durchar
beit, ao que Jean Laplanche traduziu por "perlaboração". O amor deixa em
suspenso um significante. Qual significante? Se é verdade que, desde De um
Outro ao outro, o S2 está de qualquer modo fora de alcance, só pode ser um
S 1 • Conjectura: seria para não estar às voltas com essa radical escapada do S 2
que recorreríamos ao amor sem estarmos tampouco às voltas com esse S /
O agarramento do signo ao significante em Mais, ainda sugere que
há alguém ali onde um significante seria suscet ível de representar o sujeito
junto a outro significante. Esse agarramento introduz intersubjetividade,
fórmula que se preferirá a: "reintroduz a intersubjetividade", pois essa inter
subjetividade não é aquela, simbólica, de antes de A transferência . . . ) . Ora,
considerando que já essa intersubjetividade mal acabava de encontrar uma
M OR NOS T E M POS DA NÃO- RE LAÇÃO S E XUAL 371
O A
Um sujeito como tal não tem muito o que fazer com o gozo, mas, po r
outro lado, na medida em que seu signo, seu signo é algo que é suscetível
de provocar o desejo, aí está a força do amor, e por aí o caminho que tenta
remos continuar nas próximas vezes para lhes mostrar onde se reencontram
o amor e o gozo sexual.
Diremos que um sujeito faz signo? Haveria aí uma outra e nova defi
niç ã o do sujeito? Conjunta, sem chocá-la demais, àquela que conh ecemos?
N ão nos precipitaremos em concluir isso, ainda mais que subsistem pelo
menos quatro enigmas: 1 ) Há unicidade do signo? Ou ainda, esse signo
seria simplesmente o um, esse um com o qual se fabrica o amor? Mas não,
ficamos sabendo depois, esses signos são vários. 2) O teor desses signos, tal
que provocaria o desejo. 3) A intersubjetividade: esses signos se apresentam
a um outro sujeito no qual eles assumem esse alcance de provocar o desejo. 4)
O caminho que se traça, através do desejo, do amor ao gozo sexual. O amor
e o gozo do Outro tinham sido separados bem no início de Mais, ainda. O
]lj T T
372 O A M OR LAc
AN
0 A L M O R*
D EUS MULH E R
A mulher tomada como uma idealidade, se não divinizada, não é uma no
vi d ade de Mais, ainda. Mas, justamente, Lacan a ntes de mais nada procma
afa star mais uma vez o amor cortês:
O que é o amor cortês? Era aquela espécie, aquela maneira bem refinada
de suplementar a ausência de relação sexual fingindo que éramos nós que
a ela colocávamos obstáculo. Isso é realmente a coisa mais formidável que
jamais se tentou, mas como denunciar seu fingimento 1 ?
3 Charles Baladier, Eros t111 Moyen Age. Amo111; désir et ''delecftltio morosn", Paris, Cerf, 1 999, P·
16.
4 J. Lacan, Mnis, nindn, sessão d e 1 3 d e março d e 1 973.
5 Jbid. , sessão de 20 de fevereiro de 1 973 .
3 75
[ . . . ] o que busca Aristóteles, e que abriu a via para tudo o que em seguida
veio atrás dele, é [ . . . ] esse gozo do ser do qual um São Tomás em seguida
não terá nenhuma dificuldade em forjar a teoria, como a chamamos, como
a chama o abade Rousselot: a teoria física do amor. Vale dizer que, afinal, o
primeiro ser de que temos o sentimento, bem, é o nosso ser, e tudo o que é
para o bem de nosso ser será, por isso, gozo do Ser supremo, isto é, de Deus.
Que ao amarmos Deus, para dizer tudo, é a nós mesmos que amamos 6 •
É preciso bem partir disto, que esse há Um deve ser tomado do acento
que há Um, e j ustamente porque não há relação, que há Um e Um soúnho
[sublinho] , que é daí que se pega o nervo do que acontece relativo ao que,
afinal, precisamos bem chamar pelo nome com o qual a coisa ressoa ao
longo dos séculos, isto é, o do amor.
6
J. Lacan, Mais, ainda, transcrição mais leve.
Qualquer um não é UM um sozinho; qualquer um é, sozinho, no u m
[DE l'un] . E, portanto, será a partir dessa solidão, menor, que será abordada a
questão do amor. Por enquanto, é um outro assunto que Lacan desen vo lve
ainda que ele ali faça ressoar o nome amor. Se, com efeito, só existe ser de
significância e se esse ser tem por razão o gozo do corpo, como acabamo s por
gozar de outro corpo? Formalmente, essa questão é de aspecto tomista: co rno
conseguimos amar Deus se não cessamos nunca de amar a nós mesmos? Ela
se coloca uma vez recusado esse caminho tomista que, pelo amor, vai c ontra
o gozo do Outro. E Lacan a isso responderá apenas de maneira parcial, ba
seando-se na aproximação que ele havia operado entre Outro sexo e o utro
sexo (sabemos qual) , em outras palavras, tratando-o primeiramente apenas
de um ponto de vista androcentrado. O Outro pode não se interpor entre
o homem e a mulher, esta pode parecer poder vir ocupar o lugar de De us
no amor físico, mas as coordenadas do assunto, vimos, são diferentes.
[ . . . ] digo que, a não ser em caso de castração, isto é, de algo que diz não
a essa função fálica, e Deus sabe que não é muito simples, não há chance
alguma de que o homem tenha gozo do corpo da mulher, em outras pala
vras, faça amor [ . . . ]7 .
Há, aí, como que um golpe de mágica. Embora não diga nada, mas
isso se deduz do que vem depois, Lacan não desconhece que a expressão
"fazer amor" deixa escapar o amor, que seu propósito subrepticiamente
passou do amor ao desejo. Ele deve igualmente saber que não desenhou
seu caminho, diferente do caminho tomista, que iria do amor ao gozo. Por
isso, desde a sessão seguinte de Mais, ainda, vai de novo falar de amor a seu
público, ou, mais exatamente, novamente proceder de modo teatral com
seu público endereçando-lhe uma carta de amor. O amor recebe dele um
novo nome, aquele que o liga à alma: o almor.
O almor surge em 1 3 de março de 1 973. Não nos surpreende muito
ele tomar o lugar do {a)muro, expulsar o {a)muro e torná-lo caduco, destruir
o muro do {a)muro feito um desaparecido muro de Berlim, pois esse muro
7
J. Lacan, Mais, ainda.
0 A L M OR 377
j á não está mais no lugar, o Outro não se interpondo mais de modo tão
si mples entre o homem e a mulher - é todo o jogo entre Outro sexo e outro
sexo. Assim , todo o movimento dessa sessão de Mais, ainda e das sessões
seg uintes vai poder dirigir-se para um certo modo de reconhecimento amo
roso do qual deverá ser precisado o estatuto, o teor, talvez até os impasses.
Um a das grandes novidades de Mais, ainda, tratando-se do amor, parece
estar aí, nessa foraclusão (ouso o termo) do (a)muro, mas também do que se
elaborou durante anos sobre o amor e que foi figurado com o esquema do
véu. É o fim da interposição à maneira Tudal; e, portanto, correlativamente,
0 surgimento de questões inéditas e perigosas. Com efeito, o terreno está
mi nado: eis um analista em atividade, objeto de transferências amorosas, e
q ue parece bem então abrir amplamente as comportas do amor, de mais a
mais reatar com a alma! Era razoável? Por certo não.
Um novo nome esse almor. Será por isso uma nova varidade do amor?
Nova no que se refere a esse amor recentemente revelado e focalizado pelo
"acostumar-se com o para-ser"? Nova no que se refere a esse amor que não
vis aria mais o ser, mas um sujeito? Nova no que se refere a esse amor redutor
da função do ser? Parece que não, que o termo almor, muito pelo contrá
rio, vem dar seu nome a essa transformação que Mais, ainda já fez o amor
aguentar. Essa nomeação, certo, aí introduz algumas mudanças.
Nesse 1 3 de março de 1973 , Lacan traz suas fórmulas da sexuação mas
também, a elas coladas, "a indicação escandida daquilo que está em jogo"
- esse abaixo não sendo de outro modo designado (aqui mesmo, pág. 366) .
Comentário do vetor S -----+ a (que também vale como S O a):
Que sentido isso pode ter, que sentido existe no fato de eu vir a lhes falar
de amor? Devo dizer que é pouco compatível com a posição de onde aqui
lhes enuncio . . . [ . . . ] com o que se deve bem dizer que, há muito tempo, não
cesso de perseguir, isto é, essa direção de onde o discurso analítico pode
fazer semblante de algo que seria ciência .
• Em francês, "j amais j 'âmais" : jamais, amálgama de âme [alma] e Jnimais [eu amava] . Há
também homofo nia com jamais [jamais, n u nca] . (NT)
3 79
sa, 0 m a n tidas. Por um lado, não se mostrar puritano a seu respeito. A alma
é então definida como "o que permite que um ser, que o ser falante, para
ch amá- lo por seu nome, suporte o intolerável de seu mundo, o que a supõe
ali ser estranha, isto é, fantasmática". Mas também, segunda posição:
Logo, a existência da alma pode por certo ser questionada, é o termo próprio
a se perguntar se não é um efeito do amor. Com efeito, enquanto a alma
a/mar a alma, não há sexo no caso, o sexo ali não conta. A elaboração de
que ela resulta é hommo com dois m, hommossexual *, como é perfeitamente
leg ível na história.
O que pode bem ser essa alma que elas almam no parceiro, no entanto hommo
até o fundo, e da qual não sairão? Com efeito, isso só pode conduzi-las a
esse termo derradeiro, e não é por nada que a chamo assim usteron, como se
diz em grego, da histeria, ou seja, fazer o homem como eu disse, ser por esse
fato homossexuais [no feminino] , se posso assim me exprimir, ouforadessexo
elas também. Sendo para elas difícil não sentir, em consequência, o impasse
que consiste no fato de que elas se amam [se mêment]*** no outro [ . . . ] .
levados a essa confusão da mulher e de Deus. Ora, como Deus não co nhece
o ódio (o Deus de Empédocles, então convocado), o homem também arn ará
com um amor sem ódio, em outras palavras, não amará.
Por que, pois, esse a/mor? Trata-se de um hápax? De uma nova var idade
do amor? Muito pelo contrário, e ainda que Lacan não diga isso de tno d o
claro, o almor prolonga e vem dar alguma consistência, inclusive histó rica
à exigência recentemente formulada de um amor que saberia acostumar- s;
ao para-ser. O a/mor é um nome do amor redutor do ser. Isso é claramente
sugerido em 20 de março de 1973, quando Lacan volta ao que disse o ito
dias mais cedo:
8
J . Lacan , Mais, ainda, sessão d e 20 d e março d e 1 97 3 .
9
lbid. , p. 84.
. A a lugar o dandismo de Lacan. O dandismo é um para-ser não
SI, q ui tom
coberto mas aberto, tornado patente, do para-ser exposto. O dandismo de
Jacques Lacan marcava sua prática. Aqui toma lugar também a experiência
de qualquer um, a da sedução amorosa, do cuidado que tomamos com a
arência quando nos preparamos para cortejar. Jogamos bem (ou
p ró pria ap
m al) entã com o para-ser, com o semblante de ser, contamos com ele. Fora
o
de q uestão deixar-se levar. O dândi Jacques Lacan não se deixava levar, até
10
quando recebia seus analisandos de roupão • Até o fim, é como dândi que
ele se apresenta: em 1 98 1 , a capa do seminário As psicoses disso oferecia uma
im agem que vale ensinamento. Devo confessar? Essa capa me irritou. Por
que essa alegação de uma imagem de autor sobre uma temática que não
merece muito que alguém se faça de esperto? O dândi ali se mostra, faz
pose; o dinheiro também escorre. No entanto, é possível que meu desagrado
me tenha feito passar ao lado da lição dessa capa. Eu esquecia que, antes de
ser u ma prática de alguns milhares de pessoas na França, isto notadamente
graças a Lacan que amplamente a abriu ao não-médico, a psicanálise era
exercida por uma tribo médica que, graças a ela, ganhava bastante dinheiro.
As pessoas conviviam em noitadas, e os bailes de máscaras não eram raros.
O baile de máscaras vai bem com o objeto a, pois é uma prática do para-ser
ostensivo, do semblante, de uma apresentação de si num modo que zomba
daquilo que seria o verdadeiro si. O dândi mostra que o que o veste lhe cai
muito mal. Da mesma forma a alma ao corpo. Lacan pensava a alma como
um tal disfarce. Não necessária, mas possível, a alma vale como hábito. A
bela alma, extasiamo-nos. Tudo se passa como se a alma se oferecesse à visão
(na pintura sob o aspecto de uma borboleta) . Dizê-la bela em nada exclui
que seja uma imitação barata. Não era, também, um semblante a legendária
feiura de Sócrates?
Esse almor de alma a alma também dá a Lacan a apreciável vantagem
de poder reatar com o narcisismo. Pelo menos do lado mulheres que, dizia a
carta de amor, se enganam ao não ver que o parceiro é "hommo até o fun
do"; mas esse engano não as impede de amar narcisicamente esse parceiro,
rn Para
um esclarecimento insólito do dandismo, podemos nos reportar a Kuki Shuzô , La
O A M O R LAcA
N
talvez até ele sirva a esse amor. Que amor? Aquele em que, almorosas, e l
as
"se mement
" ,, [se amam, mas tamb em ' se " mesmam ") no outro. A al m a serv
e
ao narcisismo delas, dá a elas o intermediário graças ao qual elas podem de
liciosamente se "mêmer" [se amar, mas também se "mesmar"] "almando" seu
homem. Ora, não está tudo aí. Se há alguma ironia em jogar com a palavra
"almor", se a palavra faz rir, talvez seja também para afastá-la e preparar 0
terreno a outra maneira (ela mais diretamente analítica e que dispensar i a
a alma) de encarar um amor muito acostumado com o para-ser, bem mais
de acordo com o objeto a e com seus balangandãs. Lacan, conforme lemos
acima, admitia que a existência da alma podia ser questionada, encarada
como "um efeito do amor 1 1 " .
Com o almor, permanecem como que em suspensão duas questõ es
no entanto já colocadas: 1 ) o jogo do amor e do saber, e 2) a articulação
do amor e da inexistência da relação sexual. Com efeito, se o almor é sim
plesmente foradessexo, como pensar tal articulação? Convém até pensá-la
de outro modo que como simples exterioridade? Ora, nesse fim de Mais,
ainda, Lacan, que por enquanto não leu Queen Victoria, não está a ponto de
recusar essa questão. Em 26 de junho de 1 973, derradeira sessão de Mais,
ainda, ele vai enfim admitir que ele ali de fato falou um pouco de amor,
vai enviar seus ouvintes ao que ele pôde disso dizer no meio do ano, mas
sobretudo produzir essa outra modalidade do amor redutor do ser cujo
interesse teremos até ali somente percebido.
O fim de Mais, ainda faz pensar num buquê e num buquê não composto
de uma única espécie de flores, folhas e caules, mas reunindo várias espécies
de plantas. Ele oferece a harmoniosa delicadeza do ikebana? Vários termos
vão intervir para desenhar o amor, comparecer a seu convite: o inconsciente,
o sujeito, o saber, o signo, o ser, o gozo do Outro, o objeto a, o sintoma, o
afeto e, last but not least, a relação sexual.
de lhes enunciar hoje, é que saber o que o parceiro vai fazer não é uma prova
do amor". Não duvidamos, observava ele pouco antes, que prossiga... ainda .
Assim fazendo, o amor que se tem por ele vai para além de seu ser m o na}
mas também de seu estatuto de objeto a (como se tal estatuto pudesse se ;
dito, talvez até ser reivindicado!). Os dois estão ligados. E esse laço assinal a
mais que a armadilha, a miséria na qual ele se acha mergulhado, uma ve�
que dever falecer para realizar seu destino de objeto a valeria prova de qu e
ele não soube realizar esse destino em tal ou tal de suas análises. Por qu e
deixar entender que seu destino de analista estaria em jogo em outro l ug a r
que ali onde ele exerce a análise? Em seu seminário? Em sua vida m esm a ?
Mas também: não era exatamente a ambição do ato analítico, tal com o ele
mesmo o havia fabricado, tornar possível a redução do analista a objeto a
sem que por isso o analista disso morresse?
Essa sessão de Mais, ainda vai portanto juntar certos dados esparsos
nesse seminário a fim de valorizar um outro amor que aquele que encon
traria sua prova no saber que se teria daquilo que o parceiro vai fazer. Log o ,
Lacan retoma a coisa em seu início. Leitura feita, o que ele pôde dizer não
lhe parece tão mal, mas "um pouco estreito", e a problemática inaugurada
pela frase "o gozo do Outro não é o signo do amor", que era, diz ele agora,
apenas uma partida, vai poder ser encerrada. Pelo menos ele assim pretende.
Durante todo o ano, tinha havido uma certa flutuação. Tratava-se de um
seminário sobre o amor, como muito cedo lhe jogaram na cara, ou então
sobre o saber, como ele mesmo afirmava? Nesse 26 de junho de 1973, a
questão não se coloca mais, precisamente porque essa sessão reata com uma
possível articulação (deixada de lado durante anos) entre o amor e o saber. E
é portanto agora, após muitos desvios, que a análise vai enfim dar sua palavra
e até trazer sua revelação relativa ao amor. Lacan assinala explicitamente a
virada à qual vai imediatamente se dedicar.
Primeiro dado, analiticamente elementar: o ser falante "é afetado,
enquanto sujeito, por esse saber inconsciente". Não vamos desprezar a re
lativa bizarrice da expressão "ser afetado por... ". Um segundo dado é menos
evidente pois Lacan, embora conte com ele, não o formula explicitamente.
Diremos: a maneira como um ser é afetado pelo saber inconsciente é per
ceptível por outrem - e isto esteja ou não esse ser a par dessa possibilidade.
f,s se traço remete à espécie de provocação à qual se dedicou Lacan logo
antes de se entregar à teatralização da primeira sessão de Mais, ainda. São
até q uase as primeiras palavras dessa sessão.
Ném disso, percebi que o que constituía meu caminho era algo da ordem
do "não quero saber nada disso". [ ... ] Há algo, há algum tempo, que me
favorece, é que há também em vocês, na grande massa daqueles que estão
aqui, um mesmo, em aparência um mesmo "não quero saber nada disso".
Só que tudo está aí, é o mesmo?, o "não quero saber nada disso" de um
certo saber que a vocês é transmitido aos pedaços, será bem disso que se
trata [entendamos: no meu]? Não acredito. E até é bem porque vocês su
põem que eu parca de outro lugar nesse "não quero saber nada disso" que
esse suposto os liga a mim. De modo que se é verdade que eu diga que,
em relação a vocês, aqui só posso estar em posição de analisando de meu
"não quero saber nada disso", até que vocês alcancem o mesmo, haverá um
pagamento, e é bem o que faz que seja só quando o de vocês lhes parece
suficiente que vocês podem, se forem, ao contrário de meus analisandos,
vocês podem normalmente se desprender da análise 1 3 •
1 1 r r - - - - . ,, _ , _ _ ,,. ,/d eoee� n ,.jp 'J 1 ,l p nnvPmh rn ,l ,. 1 972. Pontuei de ou tro modo.
386 O A M O R LAc
A t,:
O que isso quer dizer? Só se pode responder optando por um certo sentid
, o
de "suficiente". E evidente que o termo não remete aqui àquela suficiência
estufada, tão belamente caricaturada muitos anos antes 1 4 • Ele pode nada
mais querer significar senão um ponto de parada definitivamente refer ido
ao "não quero saber nada disso": isso basta! Já é tempo de submeter à anál i se
esse "não quero saber nada disso" (as pessoas não se limitam a assistir ao se
minário, elas deitam no divã de Lacan). O fato é que, se tantas pessoas fi cam
tomadas pelo seminário (quantas o terão deixado de lado?), é na medida em
que essas pessoas entreveem essa relação analisante com o "não quero saber
nada disso" que é a de Lacan. Ele as liga a ela. Logo, estamos aí às voltas com
uma relação específica com o saber inconsciente, com uma relação diferente
de outras possíveis (para só mencionar ele: o "não quero saber nada disso"
referido ao ensino de Lacan), e não sem consequências sobre outrem, já que
esse "não quero saber nada disso" analisante gruda os ouvintes do seminár io
como o mel as moscas. Mas segundo que via se desvela a relação com o saber
inconsciente de que cada um se acha vestido? Terceiro dado: essa via é fei ta
de signos. Por mais enigmáticos que sejam, esses signos são suscetíveis d e
funcionar como veículos para um reconhecimento. Reconhecimento de quê?
Da maneira como cada um se situa quanto a esse saber inconsciente que ele
arrasta consigo como o embrião, sua placenta.
Pouco depois, esses signos vão receber seu estatuto. Entretanto, limi
tamo-nos a isso por enquanto, pois esse estatuto só advém uma vez após ter
sido colocado o outro pilar sobre o qual repousa o que chamei um edifício
a fim de melhor distinguir suas partes.
aristotélica. Já se notou que a obj eção maior a esse almor devia -se ao fa to d
e
as mulheres também serem almorosas e, portanto, o afastamento da co ra e
g
não surpreenderá muito - ao passo que Foucault, este, vai até seu ú lt i rn
rn
suspiro contar com essa coragem (sua última aula refere-se à parrhêsia). �
alma, como ele havia formulado em 1 3 de março de 1 973 , é "aqu ilo ue
q
permite que um ser, o ser falante para chamá-lo por seu nome, s u po rte
0
intolerável de seu mundo" . Ela vale por sua paciência e "sua corage m d e
enfrentamento 1 6 " . Essa coragem é capital na ética do bem que liga e n t re si
os philoi. No entanto, é com algo mais local e mais bem delimit ado que está
às voltas o ser falante segundo Lacan: com a ausência da relação sexual . A
afirmação permanece dramática, se não trágica:
Se é verdade que não há relação sexual [ ... ], será que não é por enfre ntar
esse impasse, essa impossibilidade que define como tal um real, que é posto
à prova o amor na medida em que do parceiro ele só pode realizar o que
chamei, por uma espécie de poesia para me fazer entender, o que chamei a
coragem quanto a esse destino fatal 1 7 ?
esse algo que, pelo encontro, o encontro deve-se bem dizer de sintomas,
de afetos, daquilo que em cada indivíduo marca o rastro de seu exílio, não
como sujeito mas como falante, de seu exílio dessa relação, será que não é
dizer que é apenas pelo afeto que resulta dessa hiância que algo em todo
caso onde ocorre o amor, que algo que pode variar infinitamente quanto ao
nível desse saber, que algo é encontrado que, por um instante, pode dar a
ilusão de cessar de não se escrever, a saber, que algo não só se articule mas se
inscreva, se inscreva no destino de cada um, pelo que, durante um tempo,
um tempo de suspensão, esse algo que seria a relação, esse algo encontra no
ser que fala, esse algo encontra seu rastro e sua via de miragem?
destino fatal partilhado. Esse amor é mais esperto que isso. Se vale co rno
ilusão e como suspensão do tempo, é na medida em que vem mono pol i r
2a
em seu proveito a impossibilidade da relação sexual, virá-la em seu provei.
to, permitir seu reconhecimento. Como pode fazer isso? Suprimin do u rn a
negação, deslizando do "NÃO cessa de não se escrever" (impossibilidade da
relação sexual) ao "cessa de não se escrever" (contingência do am or) . Ele
assim instaura, ali onde não há relação sexual homem/mulher, a mir agem
de uma relação de sujeito a sujeito (este ponto será em breve estudado ern
detalhe).
O reconhecimento amoroso acolhe vários traços do amor for m ul a
dos em Mais, ainda. Despreza outros. O amor conta com o signo. O amo r
suspende o tempo (é possível amar um mortal?). O amor vira as costas à
inexistência da relação sexual. O amor parte da dependência na qual cada
um se encontra quanto ao saber inconsciente. O amor não faz mais m u ro ,
mas ponte, ou antes passarela entre dois seres que ali negligenciam se u
sexo. Em compensação, o reconhecimento amoroso, justamente por faze r
passarela de um ao outro, parece bem deixar de lado o narcisismo do amo r.
O que acontece, então, com o amor como redutor do ser? A ideia não é
abandonada, mas parece ter perdido um pouco de seu lado mordaz. N ão
se trataria mais tanto de um amor acostumando-se com o para-ser (o q u al
não está mais muito em questão), mas de um amor que (como era o caso
antes que a perspectiva de reduzir o ser fosse ofertada ao amor) iria à frente
de um malogro: ''A abordagem do ser, será que não é aí que reside o q ue
em suma se afigura ser o extremo, o extremo do amor, o verdadeiro amor,
o verdadeiro amor desemboca no ódio [ ... ] 1 8 " . É esse o amor Lacan? O q ue
ocorre com a metamorfose do amor? E com o caminho anunciado que iri a
do amor ao gozo?
A E S T I M A A M O RO S A
que é bem obra de seu próprio sentido, pelo impossível do laço sexual co ni
o objeto, objeto seja qual for a origem, o objeto dessa impossibilidade"
"Levado à existêncià': a articulação parece menos precisamente deterrn in ad�
que aquelas com as quais estivemos às voltas até então. Estivera em qu estão
em 1 6 de janeiro de 1 973, suplemento; mas também, nesse mesmo dia, 0
amor como significado da relação sexual; estivera em questão, ern 2 6 de
junho de 1 973, o amor como enfrentamento da impossibilidade da re lação
sexual; depois, nesse mesmo dia, o amor como suspensão da relação sexu al
graças a essa espécie de transformação que, no reconhecimento amo roso ,
faria que uma relação de sujeito a sujeito afastasse essa outra relação, im
possível, que tem nome de relação sexual. Esse 8 de janeiro de 197 4 no
entanto se apresenta como uma retomada parcial da problemática final de
Mais, ainda. Com efeito, não estão mais em questão nem sintomas, nem
o reconhecimento amoroso, nem exílio da relação sexual. Lacan se limita
a encarar a articulação amor não-relação sexual nos termos que são os da
lógica modal, mais exatamente de sua lógica modal. Em outras palavras,
o momento entre o fim de Mais, ainda e 8 de janeiro de 1974 é dedi c ado
a uma tentativa de modalização de um amor articulado à inexistência d a
relação sexual. Nesse 8 de janeiro de 1 97 4, como se então tivesse percebido,
nesse registro modal, a presença de um ponto difícil na conclusão de Mais,
ainda, Lacan vai revisitar essa modalização.
No fim de Mais, ainda, o amor era visto como a ilusão segundo a qual
a impossibilidade da relação sexual, em outras palavras, o que "não cessa de
não se escrever" cessaria de não se escrever - a passagem da impossibilidade
(da relação sexual) à contingência (do amor) efetuando-se por supressão da
primeira negação. Vai se escrever:
çáo sex ual mas uma relação de sujeito a sujeito. Tomado eticamente, esse jogo
da contingência com a impossibilidade corresponderia a dizer que "ali onde
estava o amor deve advir a não-relação sexual"? Mas não é como moralista que
1,acan tenta escrever a articulação da impossibilidade da relação sexual com a
contingência do amor. Ele prolonga sua distribuição do jogo dizendo que
Este cessar de não se escrever, como veem, não é fórmula que p resc revi
. , . como no que
acaso. S e encontrei prazer no necessano não cess a de -
ªº
n
[Lacan entrevê q ue estd se enganan do, ele repete o erro, balbucia, gau,,�'
o�-J co,n 0
para ter tempo de se dar conta de que algo não vai bem] de não s e es cr
�
[pronto, ele sabe seu erro e corrige] que não cessa, não cessa de se esc reve
r na
oportunidade, o necessário não é o real, é o que não cessa de se es c rever.
Em vão se procuraria esse lapso na versão de Mais, ainda pub lic ada
pela editora Le Seuil. Ali não figura igualmente a frase na qual Lacan vo lta
a seu lapso, de maneira aliás insatisfatória pois anunciar que um lapso que
acaba de ser cometido é "bem significativo" corresponde a dele se livra r
fácil. Durante todo um momento, Lacan vai calar esse lapso, não notand o
sua efetividade. Mesmo assim, acabará por considerá-lo, talvez coloca ndo
em jogo, então, um novo lapso: "O deslocamento dessa negação, isto é, a
passagem ao que há pouco perdi [manquéJ como um lapso em si mes mo
bem significativo [ ... ] " . Lacan disse bem "perdi" com certeza no lugar de
"marquei"*, ou se trata de um erro de digitação? Leremos a hipótese que lhe
é a mais desfavorável - já que é este o alcance de um lapso, trazer um dizer
outro que o que se queria dizer. O primeiro lapso vem diretamente afirm a r
o contrário do que ele quer dizer. Ele quer dizer que "o necessário não é o
real"; mas o lapso diz o impossível (em outras palavras, diz o real) em vez
do necessário, diz "não cessa de não se escrever" em vez de "não cessa de se
escrever". Enquanto Lacan tenta posicionar a necessidade do amor do ponto
de vista da impossibilidade da não-relação sexual, eis que seu lapso vem
modalizar o amor não como necessário, mas como impossível. Segundo esse
lapso, a impossibilidade do amor resultaria daquilo que pode se apreender
como uma contaminação da impossibilidade da não-relação sexual. Ora,
se, pela graça de um segundo lapso, Lacan disse bem que ele "perdeu" essa
contaminação, surge em sua própria afirmação, lapso incluído, uma espécie
de suspensão para com o posicionamento do amor do ponto de vista da
não-relação sexual. O que há de suspendido, de colocação em suspensão, de
suspensão no amor (o jogo em II e III), isso mesmo orienta o amor para a
n ão-relação sexual. Isso ele disse querendo dizer. Mas o que viriam indicar
seus lapsos desenha como que um movimento recíproco, que iria da não
relação sexual para o amor e marcaria o amor como impossibilidade.
D aí pode diferencialmente ser apreciado o que traz, recusa ou modi
fi ca a sessão de 8 de janeiro de 1 974. Nesse dia, o jogo modal é diferente.
Como, pois, já que é esta, então, a nova fórmula da questão amor não-re
lação sexual, o amor seria "levado à existência" pelo impossível da relação
s exual? Segundo que jogo modal? Lacan parte de bem longe e é também
de lá que partiremos. Não nos espantaremos, uma vez que amor está em
questão, que seja preciso uma vez mais convocar a linguagem, mas, desta
vez, n ão só ela. Lacan menciona, então, o que ele chama uma "decantação
do sen tido". Em que consiste ela? Para precisar, ele distingue a linguagem
e "alíngua". A linguagem é feita de proposições, cujo modelo mínimo é:
sujeito/verbo/complemento. Esse modelo é ordenado. O discurso analítico
traz essa novidade, que a decantação do sentido das palavras "só faz aparelho
para [... ] o coito sexual". Esse discurso seria necessário, pois, isso, ele não
cessa de escrever. A linguagem, esta, é feita de unidades proposicionais tais
que a ruptura delas faz o sentido das palavras desaparecer. Ora, pelo fato
de que a proposição traz o sentido das palavras, daí se pode concluir que a
linguagem como tal não é feita de palavras. Por outro lado, para alíngua,
é diferente: feita da ambiguidade de cada palavra, o sentido ali "escorre"
e é preciso pequenas capelas para parar esse escorrimento, para suspender
o sentido. Esses desenvolvimentos vão permitir retomar de maneira fina a
lógica modal. Com efeito, essa parada do escorrimento, que é assunto de
alíngua e não da linguagem, "é aquilo em que possível emerge". Ele prosse
gue: "O fato de que, no fim das contas, algo que se disse cesse de se escrever
é bem o que mostra que, a rigor, tudo é possível pelas palavras, justamente
com essa condição que elas não tenham mais sentido". Esse possível, esse
"cessa de se escrever" (Lacan ainda não introduziu a vírgula que mudará sua
distribuição modal do jogo: "cessa, por se escrever"), da mesma forma que
as três outras modalidades clássicas, é feito de letras, não de palavras - o
que o "se escrever" quer dizer. Ora, pouco antes, o "cessar de se escrever" já
tinha sido ligado à literalidade, e justamente a respeito do amor. ''A palavra
existe", alusão à célebre observação de La Rochefoucauld,
3 96 0 A M O R L A C AN
E é em que a coisa, a coisa deve ser concebida como possível. O que se traduz
em meu dizer pelo fato que ela se funda, a coisa, a coisa amor, que ela não
se funda - já que se trata apenas de sua possibilidade - ela se funda como eu
disse de cessar de se escrever. Isto é, daquilo que resta disso que ela cessa de
se escrever. O que disso resta, articulei desde esse tempo, desde esse te m p o
quase infinito para mim, eu me repito, isto é, a carta de (a)muro. A carta de
(a)muro na medida em que, enfim, isso nada mais faz que um monte.
Se minha maneira de situar estiver correta, isto é, que o que não cessa de
se escrever, o necessário [... ] , é isso mesmo que necessita o encontro do im
possível, isto é, o que não cessa de não se escrever (que só pode ser abordado
pelas cartas) , está bem aí [... ] o que só permite abordar por algum dizer a
estrutura que designei por aquela do nó borromeano - é em que, na última
vez, o amor era um bom teste da precariedade desses modos 1 •
ei a traz à necessidade a negação que lhe falta para, ela também, advir como
i mpossibilidade. Há precariedade pois o amor nunca realiza essa tomada
conjunta, o amor permanece assediado, dilacerado entre contingência e
necessidade, no horizonte de impossibilidade da relação sexual. "É preciso
aí, se posso dizer [sublinho, pois Lacan justamente não pode dizer isso] , essa
raiz de impossível. E foi isto o que eu disse ao articular este princípio: que o
amor é o amor cortês". Uma raiz, realmente? Isso sugere uma efetiva conti
nuidade entre impossibilidade da relação sexual (a raiz) e o amor (o tronco,
os galhos, a folhagem) que não parece muito estabelecida, se é verdade que
0 amor permanece assediado entre contingência e necessidade, se o amor
permanece assim para sempre, experiência banal, não verificado. Não mais
que o (a)muro, a menção aqui do amor cortês não deve ser aceita como
a verdade lacaniana sobre o amor. E Lacan logo após convoca esse outro
amor, o amor pelo próximo, muito mais suscetível, este, de presentificar a
precária lógica modal do amor:
2 Constance de Salm, Vi11 - 11atre heures d'1111e femme sensible, publicado pela editora Phébu s
gt q
em 2007, é uma soberba coletânea de cartas de amor, escritas por uma mulher, Constance
de Sal m , que não pretende nada menos que desvelar "uma multidão de sensações que são
desco nhecidas da maioria dos homens" . Deve-se precisar que se trata, ao longo dessas vinte
e quatro horas, exceto o fim feliz como se deve, apenas do amor com n nm< i hi l irl�,l.,. �
A E ST IM A A MOROS A 401
Vamos concluir esta leitura com duas observações. Antes de mais nada,
0 que quer dizer que o amor seja "levado à existência pelo impossível do
laço sexual com o objeto"? Pois é, não muita coisa... , nada, em todo caso,
de necessário. O que, aliás, vemos agora, poderia ter sido lido na própria
expressão "levado à existêncià'. Um clima úmido e quente pode bem "levar
à ap atia" sem que por isso toda uma população fique apática; pode de fato
acontecer de "tudo levar a crer que... ", sem que ninguém, no entanto, adote
essa crença. É este, portanto, o valor que convém atribuir a essa fórmula. O
que, para acabar, parece ser evidente: se, com efeito, o amor fosse necessaria
mente levado à existência pela impossibilidade da relação sexual e estando
entendido que qualquer um está às voltas com essa impossibilidade, todo
mundo ficaria apaixon�do, e apaixonado sem descanso. Logo, que vidas ali
estariam em questão?
Uma segunda observação se refere ao afastamento aqui realizado em
relação ao fim de Mais, ainda. A tentativa de modalização da articulação
não-relação sexual/amor vem de certo modo curto-circuitar o que esse fim
tentava estabelecer, isto é, o amor como laço entre dois exilados da relação
sexual. Com efeito, se a não-relação sexual necessariamente levava o amor
à existência, o reconhecimento a signos do exílio, no outro, a relaç�o sexual
não seria mais o nervo do amor, mas, na melhor das hipóteses, seu viés;
seria a não-relação sexual que, por si mesma, em via direta, por assim dizer,
provocaria o amor e não a relação de cada um com a não-relação sexual.
A ESTIMA AMOROSA
fim dessa sessão, ele sublinha que ninguém jamais havia dito isso ain da .
O ponto de vista é, uma vez mais, androcentrado, mas não exatamente
androcentrado; é para "quem está saturado do falo3 " que uma mulher está
em função de sintoma, o que de modo algum impede Lacan, muito pelo
contrário, de se perguntar o que isso causa nela, o que suscita, nela, estar
assim "presa", e de se perguntar, igualmente, como ela vai fazer com esse
domínio, ainda que só esteja ocupada com isso. Como pôde despencar, no
seminário, essa "uma mulher" sintoma? Duas fontes são indicadas, uma
oriunda da prática analítica de Jacques Lacan, a outra literária. Primeira
fonte: alguém, que ele escuta, teria aproximado o sintoma das reticências.
Essa referência à pontuação combinava com Lacan. Ele a confirma falando
do caráter literal do sintoma: "O que é dizer o sintoma? [ ... ] É o que d o
inconsciente pode ser traduzido por uma letra, na medida em que somente
na letra a identidade de si a si está isolada de toda qualidade". O sintoma é
letra, letra fora de sentido e mantida em suspensão quanto ao que a um só
tempo ela traduz e seria suscetível de traduzir (pois a "tradução" permanec e
não efetuada, é esta a suspensão) e que teria a ver com o inconsciente. Não
nos satisfaremos com um tal uso metafórico, para não dizer frouxo, aqui
como em outra parte em Lacan (e em Freud), do conceito de tradução4 .
Diremos, mais justamente, que a letra em função de sintoma remete a algum
elemento inconsciente. Até aí, nada de muito novo relativo ao sintoma.
Vem então marcá-lo uma dupla novidade, ou quase novidade pois, já em
Roma, na conferência intitulada "A terceira", em 1 ° de novembro de 197 4,
Lacan havia localizado o ternário freudiano inibição/sintoma/angústia no
borromeano. Vamos apenas tocar de leve na questão desse posicionamento.
Ei-lo, primeiramente, retomado da versão Afi da sessão de 2 1 de janeiro de
1975 que aqui importa:
3 R. s. t. , sessão de 2 1 de janeiro de 1 97 5 .
4 Com Clínica do escrito (Rio d e Janeiro, Companhia d e Freud, 1 99 5 ) , eu tentava reduzir
um pouco as ambições desse i mperialismo da tradução. Em Écholalies. Essai sur l'oubli eks
tangues (traduzido do inglês por Justine Landau, Paris, Le Seuil, 2007) , Daniel Heller-Ro
azen demonstra que, no Freud de O esboço, o uso de Überzetzung não está rigorosamente
fundado.
A ESTIMA AMOROSA
ICS
I{
1 Jacques Lacan, "La troisieme", in PTL. A notável brochura difundida por Patrick Valas dá
exatamente o mesmo texto.
O A M O R. L A. e
... �
Há tão poucas relações sexuais que lhes recomendo para isso a le itu ra de
uma coisa que é um belíssimo romance, Ondine. Ondine manife st a O que
está em questão: uma mulher na vida do homem é algo em que ele cre'
,
ele crê que há uma, às vezes duas, ou três, e aliás é bem aí que é interes .
sante, é que ele só pode acreditar numa. Ele acredita que há uma e s pécie
,
no gênero das sílfides ou das ondinas. O que é acreditar em sílfi des o u
em ondinas7 ?
7
Deve se tratar do conto Ondina, de Friedrich de la Motte-Fouqué, publicado em 1 8 1 1
(indicação que devo a Mayette Vil tard, embora eu tivesse espontaneamente pensado em a
Ondine de Giraudoux) .
E S T I M A AMORO S A
A
Se ele nos pede nossa aj uda, nosso socorro, é porque crê que o sintoma
é capaz de dizer algo, que é preciso apenas decifrá-lo . É da mesma forma
para o que se passa com uma mulher, exceto que o que acontece, mas que
não é evidente, é que se crê que ela efetivamente diz algo, é aí que atua a
rolha . Por acreditar nisso, acreditamos nela. Acreditamos no que ela diz . É
o que se chama o amor. E é em que é um sentimento que na oportunidade
qualifiquei de cômico. É o cômico bem conhecido, o cômico da psicose: é
p or isso que costumam nos dizer que o amor é uma loucura8 •
Salta aos olhos uma diferença capital entre a MOS e o analista. Pois
se há uma coisa clara para quem tiver mergulhado um pouco na análise,
a qualquer título que seja, é que, naquilo que o analista pode dizer, e por
mais parcimoniosa que seja sua fala, o analisando não crê. Não que essa
fala de analista não tenha efeito algum, mas esse efeito não é da ordem da
crença - essa fala, aliás, não visa isso. Como atesta o próprio Freud que, se
tivesse pensado que o paciente acreditava no analista, não teria necessidade
algu ma de escrever "Construções em análise". Com efeito, esse artigo dá
c omo visada da intervenção do analista não a adesão fideísta do analisando
a essa intervenção, mas bem outra coisa, a saber, sua verdade. Segundo
Freud, toda intervenção do analista é uma fala tal que resta a confirmar e
que permanece, nessa espera, conjetural - exatamente como foi aceita por
Sócrates a fala do oráculo de Delfos segundo a leitura que disso fez Michel
Foucault9. Assim, o que vem indicar essa diferença entre a MOS e o analista?
Que esse amor louco que está aqui em questão, que dá fé à fala da MOS, não
é o transmor. A continuação da afirmação vai confirmar isso, mas também
fornecer a última maneira lacaniana de ligar o amor à não-relação sexual.
8
sessão de 2 1 de janeiro de 1 97 5 .
R S. t. ,
9
Michel Foucault, Le coumge d e la vérité, !e gouvemement d e si e t des nutres ll aula no Colle
ge de France, 1 984, Paris, Gallimard/Le Seuil, coll . "Hautes études", 2009, aula de 1 5 de
feve re i ro de 1 984.
4 06 O A M O R L A c:
AN
e isto por pelo menos três razões: 1 ) o analisando não crê no que lhe diz o
an alista e, aliás, não está de modo algum convidado a acreditar no analista.
2) A segunda razão está ligada à primeira: que a MOS seja reconhecida sa
bedora não deixa mais lugar algum ao sujeito suposto saber, ainda menos
lugar já que nesse saber não acreditamos. Com esse amor estima, sai fora o
"suposto"; ora, é essencial ele ser mantido como tal na análise, já que só seu
ser-ali permite sua destituição. 3) Se a MOS se caracteriza por nunca ter dado
prova de sua falta de autenticidade, não é evidentemente o caso do analista
(exceto o analista ferencziano). O analista, em posição de objeto a, a fim de
manter essa posição de semblante, deixa permanentemente pairar a suspeita
de que ele é suscetível de fazer o analisando cair feito um patinho. Ele se
acostuma com o para-ser e torna manifesto, junto ao analisando e para o
analisando, seu "acostumar-se com o para-ser" (foi evocado o dandismo de
L a can; outros vieses são possíveis). Sequência e fim da citação:
Mas este "acreditar nelà' é de qualquer modo esse algo sobre o qual ficamos
totalmente cegos, que serve de rolha, se posso dizer, é o que eu já disse, a crer
nisso, que é uma coisa que pode ser muito seriamente questionada. Pois acreditar
que há uma, Deus sabe aonde isso os leva, isso os leva a crer que há a A, A que
é uma crença inteiramente falaciosa. Ninguém diz a sílfide, ou a ondina, há
uma ondina, ou uma sílfide, há um espírito, há espíritos, para al gu ns. Mas tudo
isso sempre faz apenas um plural. Trata-se de saber qual é o sentido disso. Que
sentido tem acreditar nisso e se não há algo de inteiramente necessitado no fato
de que, para acreditar nisso, não há melhor meio que acreditar nela.
1 0 Ver meu capítulo " Marguerite sabedora", in Mt1rg11erite, 011 ti Aimée de Lt1ct111, 2' éd. revista
e aumentada, Paris, Epel , 1 994. No Brasil, Pm'fmoÍtl: Mm-guerite 011 ti "Aimée" de Lt1ct111 ,
r'.nm nanhia de Freud, Rio, 1 997.
CAP ÍTU LO XX I
E VICÇ ÕES
caro Albert surge como que entre parênteses: a questão colocada n o iníc io
dessa sessão de 1 1 de fevereiro de 1 97 5 é a do efeito de sentido, e é ta rn bé
rn
no efeito de sentido que Lacan prosseguirá, deixando definitivam ente de
lado V ictoria e Albert. Qual pode ter sido a incidência da problernát ica
"efeito de sentido" sobre as observações entre parênteses?
Em início de sessão, Lacan constata que seu dizer tem efe itos de
sentido, anunciando então que "aquilo de que me ocupo este ano é ten tar
seguir mais de perto qual pode ser o real de um efeito de sentido". A coisa
não é dita, mas sugerida: ele de certo modo teria conseguido segui r mais de
perto esse sentido, como constatava em Nice mas também em Estrasb ur go.
Toda uma geografia é então convocada, já que a essas duas cidades vão se
acrescentar Londres e o Japão. Em cada um desses lugares a questão do
efeito de sentido coloca-se de modo diferente, ainda mais que a um lugar
pode corresponder uma língua. Se seguir mais de perto o efeito de sentido
se obtém por um certo manejo do inconsciente, certas línguas, é dito, a isso
se prestam melhor que outras. Notadamente o inglês a isso faz obstáculo,
há "resistência de alíngua inglesa ao inconsciente", o que esclarece com
luz nova as observações sobre a rainha V ictoria. Uma dimensão histórica
é então invocada, a oposição do inglês e do inconsciente duplicando-se de
outra oposição, ela dialética, a da ação da rainha V ictoria e da descoberta
do inconsciente:
ICS
Outro mas o do sujeito que, do Outro, goza. Essa manipulação (que ign0 •
ramos se Lacan a tinha na mente nesse dia, a coisa permanecendo provável
pois ele a isso se dedicou, em outra parte, abertamente) esclarece o que el e
designa como "uma especial acentuação" do furo JA. E prossegue:
[ . . . ] e sublinhei que é ali que se situa bem especialmente isto que, cre io, de
modo legítimo, salutar, corrige a noção que Freud tem do Eros como u ma
fusão, como uma união . Pus o acento, a esse respeito, assim incidentemente ,
mais ou menos antes de ter tirado esse nó borromeano, pus o acento n is to ,
é que é muito difícil que dois corpos se fundam. Não só é muito di fícil
mas é uni obstáculo de experiência corrente; e que se encontramos o lu gar
dele bem indicado num esquema, é de qualquer modo de natureza a no s
incentivar quanto ao valor daquilo que chamo o esquema .
1
R S. l. . , sessão de 2 1 de j aneiro de 1 975.
EViCÇÕES 413
Acho que este livro me parece dever tornar-lhes sensível o fato, enfim sensível
com um particular relevo, o fato de que o amor nada tem a ver com a relação
sexual; e confirmar que isso parte, não, vou dizer, da mulher [ . . . ] mas de uma
mulher, uma mulher entre outras, uma mulher bem isolada no contexto inglês
por essa espécie de prodigiosa seleção que nada tem a ver com o discurso do
mestre - não é porque há uma aristocracia que há um discurso do mestre.
Não vamos tentar esclarecer desde agora e tão longe quanto possível
esse pedaço de frase; reteremos dele somente esse reaparecimento do suple
mento e, mais inesperado, o lado pelo avesso do suplemento, pois, enquanto
era o amor que estava em função de suplemento , eis que aqui é ele qu e,
agora, é suplementado, ele enquanto portador do "mistério do dois" .
Outro ponto de referência: quantitativamente, ainda está muito em
questão o amor no início do seminário que vem após Mais, ainda, nos me
ses de novembro-dezembro de 1 973 e em j aneiro de 1 974. Tudo se pass a
como se o choque de Mais, ainda, talvez até sua possível disparidade n a
série dos seminários (já evocada) , continuasse a agir, depois se acalmasse
um pouco.
Terceiro ponto de referência, o gesto pelo qual Lacan, no início do
seminário Les non-dupes. . . , vai, aliás sem dizê-lo explicitamente, afastar as
afirmações do fim de Mais, ainda que situavam o amor como se instaurasse
relação de suj eito a suj eito através do reconhecimento amoroso. Esse gesto
cai com um cutelo :
Mas é o que há de mais concebível que, com uma pessoa que amamos, te
nhamos com ela algumas relações inconscientes. Mas não é, não é na medida
em que a amamos [sublinho] , porque na medida em que a amamos, é bem
conhecido, não é, nós a perdemos. Não conseguimos3 •
4 Jean Allouch, Mnrguerite, 011 l'Aimée de Lncnn, 2' éd. revista e aumentada, Paris, Epel, 1994,
n .á<;<; w A«im rnmn ;,/ h"P11d. Pt h11i, f.11r1111. P�ri�. F.nel. 1993. O. 106-111.
CAPÍTULO XXII
0 AMOR
NOS TEMPOS DO BORROMEANO
DO DOIS DO AMOR
Embora interessado pelo Japão de uma maneira que terá deixado consequ
ências, Lacan nada terá sabido do amor iki, que se praticava na época de
Edo no mundo dos bairros de prazer para em seguida aparecer na literatura
popular. O iki é um laço social de ordem principalmente estética entre
aqueles que frequentam esses bairros e as "cortesãs". Tomando distância da
ética confucionista, o iki é uma arte de viver, uma colocação em forma da
atração, do coquetismo, da bravata igualmente, mas também uma atitude
nobre e corajosa que deixa transparecer tanto o desencanto quanto a recusa
das ilusões da existência. Na relação homem/mulher, o amor iki limita-se à
realização dessa atitude. Camille Loivier, a tradutora de Kuki Shuzô, a quem
O AMOR LACAN
1 Kuki Shuzô, La stmcture de l'iki, Paris, PUF, 2004. O autor escreveu uma primeira versão de
.
sua obra em Paris e a publicou, após transformação, em 1930, no Japão, na revista Shizô (O
pensamento).
2 Ibid.. D. 68.
0 AMOR NOS TEMPOS DO BORROME ANO 419
3 lhid. n h'i-h6.
420
[...] há mesmo assim algo diferente, hein, que tomamos pelo volume. E,
justamente, é o nó. Hein? Fazemos dele... metáforas - não infundadas_ "os
nós da amizade", "os nós do amor". Pois é, limita-se a isso, enfim: é nossa
única maneira de abordar o volume. Quando abraçamos, assim, alguém
- também acontece comigo, sim - mas... será que estamos tão seguros dess es
nós? Ficamos nisso para a adoração, não é4 ?
* lncm hnmnfônico entre deux [dois], d'eux [deles] Dieu [Deus]. (NT)
422
[ ... ] quanto mais vou mais estou convencido de que só contamos até três. E,
ainda, que seja apenas porque contamos três que podemos chegar a contar
dois - ainda a verdadeira religião, hein, já que é bem o cristianismo de que
falo, ela ali olhou por duas vezes. O ortodoxo, notadamente, que não quer
saber do jilioque5.
Você me lembra aqueles que traduzem Numero Deus impare gaudet por: "O
número Dois se regozija por ser ímpar" e que acham que ele tem bem razão.
- Ora, sefosse verdade que a imparidade traz em si alguma essência defelicidade
- digo de liberdade, deveríamos dizer ao número Dois: ''Mas, pobre amigo, você
não é ímpa,�· para satisfazê-lo de ser isso, procure pelo menos se tornar ele'°".
9 "Música antes de tudo, e para isso prefira o Ímpar, mais vago e mais solúvel no ar, sem nada
nele que pese ou que pose".
10 André Gide, Paludes, Paris, Gallimard, 1920, reed. "Folio", 1973, p. 70.
11 Duas vezes no "Seminário da carta roubada", (Écrits, op. cit., p. 23 e 29), mas também na
"Observação sobre o relatório de Daniel Lagache", em que se lê (Écrits, p. 663): "Como se
sabe, as partículas tão diferenciadas em todas as línguas que matizam a negação oferecem à
lógica formal oportunidades ímpares (oddities ) que comprovam que elas participam de uma
distorção essencial [...]".
* i:;_ ·M�rAe ,.,,..,..,Plh'P 1111 im/Jair [lit. Cometer um Ímpar]. (NT)
É assim que a fala que se oferece à adesão de vocês num lugar comu m , e c om
uma evidência tão capciosa quanto é atraente sua verdade, por só se entregar
num segundo tempo - como em: o número dois se regozija em ser ím pa r (e
tem razão o número dois de se regozijar por sê-lo, embora esteja errado e m
não ser capaz de dizer por quê) - encontrará no nível do inconscie nte seu
alcance mais significativo, purificado de seus equívocos ao se traduzir po r:
números, são dois, que não têm igual, ficam esperando Godot 1 2 •
11 J. Lacan, Écrits, 1 966, p. 47 1 . Gide é mencionado em nota como predecessor: " O nonsens
sobre o qual ap6s ele especulamos".
l.l /d., Les 11011-dupes... , sessão de 20 de novembro de 1 973 (no n m �r�n mn,l : 1: -- ..l - \
O AMO ll NOS T E M POS DO BO ll R O M E ANO
...
c6)
Não seria isso o amor, esses dois anéis incrustados (talvez até o ca
samento) ? Nem um só segundo Lacan encara essa possibilidade. Por quê?
Porque real, simbólico e imaginário são de estrutura, o que exige que nenhum
desses três, sejam quais forem suas relações, possa ser posto de lado. Logo,
será necessariamente com essas três inelimináveis dimensões que se fará a
abordagem borromeana do amor como dois. Em outras palavras: a adoração
não é o amor; e bem mais decisiva que a adoração parecerá a abordagem cristã
do amor, ela também baseada numa ternaridade fundamental e primeira .
E é portanto com isso que vamos estar às voltas, com um dois ou, se
preferirmos, com um símile dois engendrado pelos dois ímpares que são o
um e o três:
De que modo o amor como fazer dois poderá, então, ser cifrado por
uma cadeia borromeana que necessariamente comporta pelo menos três
elementos? À primeira vista, isso parece impossível, e de fato seria se não
fosse que o borromeano dá lugar a um grande número de apresentações.
Uma delas oferece o nó achatado, mas de maneira tal que um dos anéis está
à esq uerda, um outro à direita (nos "extremos") , ao passo que o terceiro,
li gan do esses dois, está "no meio" - Lacan o chamará "o médio*" . Talvez
es tej a aí o que o borromeano pode oferecer de melhor em maneira de im
paridade do dois: o dois dos extremos, tornados dois pelo médio. Isso pode
parecer um truque e, com efeito, isso é um truque, na melhor das hipóteses
um a convenção, mas que coloca interessantes questões, algumas de ordem
topológica, outras ligadas às operações, notadamente de nomeação - o
borromeano valendo como suporte de certos termos. É tão verdade que
Lacan recorre ao borromeano para seu questionamento do amor que até
lhe aconteceu dizer que é pelo próprio fato desse questionamento que ele
se pôs a estudar o borromeano. Essa afirmação está na linha daquelas que,
em 1 1 de dezembro de 1 973, dizem respeito à silhueta e ao volume.
O dois nada mais pode ser que o que cai junto do três. E é por isso que este
ano tomo como assunto [ . . . ] o nó borromeano. [ . . . ] É de qualquer modo
em razão de algo da ordem dessa debilidade que se chama o amor, em que
não se pode muito fazer melhor que . . . que se virar [ . . . ] 1 5 •
00 AMOR C RI STÃO
De onde vem essa ideia de um "o que cai j unto" ? De uma irritação, expressa
logo antes : " [ . . . ] obrigam-me a suar um pouco ao sempre me responderem
com um dois eterno. Embora eu sempre o tenha produzido como índice
[alusão ao S) , isto é, como sintoma" . Como reduzir essa irritação ? O amor
eterno é o amor cristão, do ponto de vista do qual a posição de Lacan será
a um só tempo de proximidade e de distância. Várias vezes ele convida seu
auditório a ler os autores cristãos a respeito do amor. Lembramos que ele
já mencionou e utilizou várias vezes Denis de Rougemont, Anders Nygren
* Moyen tanto pode ser médio, isto é, situado entre extremos, quanto meio, no sentido de
intermedidrio. O emprego de médio vai, portanto, ser ambíguo. (NT)
15 T T �r� n . l.es non-duo es ... , sessão de 11 de dezembro de 1973 (pontuação modificada) .
0 AMO R L AC A N
[ ... ] um dia eu disse isso de maneira bem direta, assim, bem clara, eu disse
que o efeito da interpretação [é incalculável] - para me limitar àquilo a
que, não é, devo ficar colado, devo permanecer tolo, e mais ainda tolo sem
me forçar, porque se sou tolo forçando-me, pois bem, escreverei o Discu rso
sobre as paixões do amor, justamente, vale dizer o que escreveu Pascal; e com o
vemos que ele se força, hein? [ ... ] É absolutamente magnífico; enfim, ao nos
forçarmos, conseguimos dizer. . . conseguimos realmente não errar 1 6 •
Seja tolo, você não errará, devo dizer. Porque não se pode dizer que religião
igual não seja nada. Já que eu lhes disse na última vez, é a verdadeira, é a
16 J. Lacan, Les 11011-dupes ... , sessão de 20 de novembro de 1 973 (o acréscimo entre colch etes,
que torna gramatical a frase, provém, com certeza possível quanto a seu teor, do con texto) .
Pontuação modificada.
1 7 O uvido em France Culture e lido no n º 463 do Mflvnzine littémire / a h r i l cJ,. 7007) n 'i 1 .
O A MOR NOS TEM P OS DO BORROMEANO 429
verdadeira já que ela inventou essa coisa - essa coisa sublime - da Trinda
de. Ela viu que era preciso três. Que era preciso três anéis de barbante de
consistência estritamente igual para que nada [nada?] funcione. [ ... ] Mas
leiam Vida e reinado do amor em Kierkegaard [ ... ] Leiam isso, porque não
há lógica mais implacável, nunca se articulou nada melhor sobre o amor,
entenda-se o amor divino 1 8 •
Sei bem que vocês não creem, não é? Mas vocês são ainda mais babacas,
como já tive a oportunidade de lhes dizer na última vez, porque, ainda que
vocês não creiam, nessa aspiração [a do amor divino] , vou mostrar-lhes isso
ao longo daquilo que vou lhes dizer hoje, nessa aspiração, vocês creem. Não
direi que vocês a supõem: ela supõe vocês.
Que efeito isso lhes faz se o enuncio "Amarás tua próxima como a ti mes
mo" ? Isso faz de qualquer modo sentir algo, hein, é que esse preceito funda
a abolição da diferença dos sexos. Quando lhes digo que não há relação
sexual, eu não disse que os sexos se confundem, bem longe disso!
Mas com certeza se trata de outra coisa ainda que marcar uma di�tân
cia. Lacan vai atacar o amor cristão ao desenvolver suas consequências, e isto
pelo viés de uma apresentação borromeana do amor cristão. Ela se anuncia
de maneira bem violenta: "Vou lhes dizer coisas de vomitar". O que, então?
Coisas que vão mostrar as consequências desagradáveis do dois do amor.
O francês vem em ajuda a Lacan: o fazer dois dos amantes é o que os põe
"fora deles* ". Fora de quê? Aqui intervém o borromeano. O enodamento
borromeano de s.R. I. oferece três e apenas três apresentações em que uma
das consistências pode ser tomada como médio: esse médio será s, ou então
r, ou então R. Vem, então, uma das mais explícitas mostrações do fato de
o amor Lacan não ser o amor cristão. Poderíamos nos espantar com o fato
de o simbólico funcionar como médio para o amor cristão. Seria desprezar
que os Evangelhos fazem de Cristo a própria palavra.
Daí, vai ser operada uma distribuição das cartas (sequência da afirmação):
Para que ele conjugue algo enquanto ser e enquanto amor, essas duas coisas
só podem ser ditas suportando o real por um lado, o imaginário por outro,
respectivamente começando pelo último, do corpo e do outro, o real, da
morte. É bem aí que se situa o nervo da religião na medida em que ela
prega o amor divino.
É bem aí também que se realiza essa coisa louca, esse esvaziamento do que
acontece com o amor sexual na viagem. Essa perversão do Outro como tal
instaura na histórica sádica da culpa original, e em tudo o que se segue (por
ter adotado, é claro, esse mito pré-cristão, por que não, talvez seja tão bom
quanto outro), instaura no imaginário, no corpo, justamente, essa espécie
de levitação, de insensibilização do que lhe diz respeito, que é afinal, não
preciso insistir mais nisso, toda a história do que foi chamado o arian i smo,
talvez até o marcionismo.
Seria esse o "truque" divino: batizar "amor" esse desejo de Deus {ge
nitivo subjetivo e objetivo) que leva o cristão ao fim, ao fim dos tempos,
que faz desse fim seu meio. Lacan convida a ler "desejo de Deus" ali onde
o simbólico, tomado como meio, situa o amor divino. Em 12 de março de
1974, ou seja, a própria sessão em que é formulado o voto de dar sua regra
do jogo ao amor, retoma essa apresentação crítica do amor divino: "Em que o
simbólico, o imaginário e o real, será algo que, pelo menos, teria a pretensão,
enfim de ir um pouco mais longe que... que essa girada em círculos do gozo,
do corpo e da morte22?". No entanto, apresenta-se outra possibilidade, que
situaria de outro modo o amor nos tempos do borromeano.
Nessa mesma sessão de 18 de dezembro de 1973 em que esteve em
questão o amor divino, segundo a lógica das três únicas possibilidades ofe-
Esse "desde sempre" é bem feito para chocar, como sempre o in
tempestivo "sempre", ainda mais que não cessamos de estar às voltas com
diferentes figuras do amor, inclusive no próprio Lacan. E compor, a partir
dessas diferentes figuras, uma espécie de pedestal comum abstrato que seria
0 amor de sempre não parece muito heurístico. Outra objeção ainda, desta
E para tudo dizer, peço-lhes que verifiquem, não vejo distinção alguma
quanto ao acento, quanto ao sentido do amor, entre o que nos resta das
teorias, bem elegantes, do amor cortês e todo o romance que se desenvolve
em torno, não vejo diferença alguma entre isso e o que nos mostra a literatura
de Catulo e a homenagem a Lésbia, por mais prostituída que fosse. Penso
daquilo que ele tece e que ele fia, esse saber sem o que não há justa situação
do amor se [sublinho] aquilo em que consiste o amor for precisamente esse
dizer, esse dizer que parte, notem, do imaginário tomado como médio.
26 Lacan havia dito: "[ . . . ] se tomarmos esse simbólico [ . . . ] como se desempenhasse o papel de
__ 1 _J ! _ r 1 - - - - - - ___ , - .... =---: .... .! .. : .... " / ,.� ,. ; ,. \
4 38
n ão é tão ruim assim: para s, o gozo seria o da Fala (de Cristo) e, para 1 ,
0 corpo imaginário seria o corpo glorioso que o cristianismo agita como
um chocalho para incitar cada um a orientar a vida para um outro mundo.
Logo, a psicanálise teria deslizado nessa configuração (s.R.1.):
[ ... ] o fato de ser o masoquismo que ali os [os psicanalistas] tivesse suscitado
não deixa dúvida alguma; a j unção, o emprego como médio, como médio
para unir o gozo e o corpo, dessa perversão, é decerto o que os liga. O que
os liga, se posso dizer, por um tempo, enfim, irremediavelmente, aquilo
sobre o que uma parte da teoria deles é construída27 •
Muitas coisas aqui são ditas em duas frases.A começar por uma analo
gia: da mesma forma que o amor divino expulsava o desejo, da mesma forma,
embora contra a corrente, ali onde se mantém o amor de transferência, ali
mesmo deve vir alojar-se o que ele expulsa, a saber, a análise. Quando lemos
que a análise fica no lugar onde ela aloja o amor, podemos simplesmente
pensar na descoberta da transferência como obstáculo à análise. Entretanto,
logo segue uma declaração em que o amor se vê configurado como aquele
amor que se obtém, sim, mas não se obtendo, em outras palavras, como
um amor que estd às voltas com seu próprio limite. Essa declaração realiza
um passo ao lado em relação ao amor de sempre, o que é bem-vindo; não
E que a face, a face equivalente daquilo que situei do amor como sendo esse
laço essencial do real e do simbólico, é que, tomado como meio, isso tem
todas as chances de ser o que isso é também no nível da finalidade, a saber,
o que chamamos um puro malogro.
divino), e eis que a queda dessa sessão vem desmentir essa leitura talvez
satisfatória demais. Ou seja, a seguinte afirmação: "Se o amor realmente
se torna o meio pelo qual a morte se une ao gozo, o homem e a mulher, o
ser ao saber, se ele se torna realmente o meio, o amor não se define mais
[senão] como malogro". Breve vamos encará-lo. Importa por enquanto a
série dos termos acoplados (dos dois) sem no entanto rejeitar essa primeira
impressão de que o número deles traz primeiramente mais confusão que
clareza. Tem-se: morte/gozo; homem/mulher; ser/saber. Onde distribuí-los?
Numa cadeia R.s.1? Como com bastante frequência quando tenta basear seu
dizer num materna, Lacan, por um tempo, se enrola. E será somente em 12
de março de 1974, ou seja, três meses mais tarde, que um enunciado virá
dissipar essa flutuação. Sua importância e sua novidade se devem, então, ao
passo efetuado, a saber, a definição do corpo como substância gozosa, mas
uma definição que não pode se manter sozinha:
Um corpo goza de si mesmo, goza bem ou mal, mas está claro que esse gozo
o introduz numa dialética em que, incontestavelmente, é preciso outros
termos para que isso fique de pé, a saber, nada menos que esse nó que lhes
sirvo em fatias. ..
Vem o amor:
[ ... ] o amor, enfim, não é feito para ser abordado pelo imaginário. Porque o
simples fato de que quando ele resmunga, não é, por não conhece r a re gra
do jogo, ele articula os nós do amor, hein... é mesmo assim engraça do que
isso permaneça na metáfora [... ] .
28 "Mais luz!" teria proferido Gcethe, ao passo que o gramático Vaugelas, não menos na simu
lação, declarava num último suspiro: "Vou-me embora ou vais-me embora, um ou outro se
..J : _ � , , ,. � ,.l i ..u::1 m,,
4 44 O A M O R LACAN
qu e aquele que poderíamos ter tentado escrever com os três pares, qu e su
postamente são ligados pelo amor: morte/gozo; homem/mulher; ser/sabe r,
Ele assim se apresenta:
O gozo com certeza deverá "ser punido" pela realização dessa cadeia
borromeana; mas em vão se buscaria aqui essa condenação moral do gozo de
que certos psicanalistas hoje se fazem os cantadores, depois de o narcisismo
ter sido, ele também e não menos intempestivamente, banido.
29 O amor "é um dizer que, como cal, implica em si mesmo uma regra. Já que dizer que algo
é apaixonante [Lacan acaba de dizer isso do amor], pois bem, é falar disso como de um
jogo, em que só se está em suma ativo a partir das regras. Há mesmo assim algumas pessoas
que perceberam isso há muito tempo. A respeito de tudo o que se diz, há um nomeado
Wittgenscein, particularmente, que nisso se distinguiu" . Publicada pela editora Ellipses,
em 2005, a obra de Philippe de Lara, A experiência da linguagem: Wittgemtein filósofo da
subjetividade, trata do que seria aplicar uma regra com tanto fineza quanto ali punha Wit
tegenstein. Aí também é encontrada uma ajuda preciosa, no que se refere ao acolhimento
do afeto na análise, com a observação segundo a qual "os vividos não se identificam eles
mesmos" . Não se pode melhor articular resposta dirimente àqueles que censuram Lacan por
não ter sabido tratar o afeto.
0 A M O R N O S T E M P O S D O B O R RO M E A N O 445
sujeito suposto saber. Ela é esperada, uma vez que sabemos Lacan ocupado
em fazer o amor reflorescer a partir da experiência analítica.
Nessa mesma sessão ( 18 de dezembro de 1973) em que é encetado
0 reflorescimento do amor também está em questão seu malogro. Não se
espera menos de Jacques Lacan.
Pareci lhes cantar o louvor do amor, sim. . . há um inverso, é que vocês vão
ver como, se o amor se torna realmente o meio pelo qual a morte se une
ao gozo, o homem e a mulher, o ser ao saber, se ele se torna realmente o
meio, o amor não se define mais [senão] como malogro. Por que não há
mais senão realmente o meio que possa desatar um do outro.
PARTIDA:
com o tal nada mais é que o da realização do borromeano que, após as opera
ções de tecedura e as junções ditas acima, não aconteceu. Mas o importante
é que essa realização poderia ter acontecido. Para isso teria sido preciso, em
vez de juntar os pedacinhos após apenas três passagens acima-abaixo, pros
seguir a tecedura até seis "movimentos" como Lacan os chama • Ao tecer
30
30
J. Lacan, Les 11011-dupes... , sessão de 2 1 de maio de 1 974. Ele já voltou, por diversas vezes
e a cada vez espantado, a essa tecedura: em 8 e 1 5 de janeiro de 1 97 4, em 1 2 de março de
1 974.
amor". Esse momento será tanto mais analiticamente crítico porquanto,
então, os sintomas se esvaecem e parece, portanto, não haver mais nenhurn a
razão de prosseguir a análise. Esse ponto pode ser dito "obter o amor". Ao
passo que, se a junção não se efetuar, se esse amor médio não se cristalizar,
se prosseguir a tecedura com pelo menos três cruzamentos suplementares,
a frase poderá ser suplementada: "obter o amor... que não se obtém". A tra
vessia ou não desse momento crítico é o que decide a posteriori que alguérn
num divã terá feito uma análise ou então uma psicoterapia. Sob uma forma
pública já que publicada pelo interessado, dispomos de um belo exemplo de
psicoterapia realizada num divã, o de Lacan. A se crer nele, Gérard Haddad
teria obtido o amor de seu psicanalista, Jacques Lacan, por ter sido "adotado"
por Lacan3 1 (outros igualmente pretenderam ser seus "filhos").
Entendemos agora que não decorria de um puro efeito retórico a
colocação no condicional da frase que, pelo amor, unia a morte ao gozo, o
homem à mulher, o ser ao saber; esse condicional se impunha, indicando
que a esse amor que valia como um tempo de parada na subjetivação podia
ser oposto um outro amor, aquele que liga borromeanamente o real do gozo
ao gozo do real, o amor Lacan. O simbólico aí está em lugar de médio. A
cadeia é R. S . I . Mas o corte de um qualquer anel de barbante, e não somente
o do médio, rompe o nó subjetivo. Num certo sentido, o amor está menos
pesadamente carregado, ele não tem, sozinho, o encargo de manter juntos
os dois outros, de fazer três com eles dois. O fato de ele estar em posição
de médio é então apenas assunto de apresentação. Essa apresentação sendo
modificável sem desenlace do nó, o amor é também suscetível de usufruir
dessa maleabilidade. Questão: como a análise poderá vir no lugar desse amor?
O que advirá dele, uma vez que a análise terá vindo em seu lugar?
Les non-dupes. . . nada mais oferecerá sobre esse "real do gozo" que o
amor ligaria borromeanamente ao gozo do real. Em compensação, toma
consistência, nas últimas sessões desse seminário, uma problemática que
pode nos espantar por ter sido por tanto tempo deixada de lado: a articu
lação do amor e do saber. Dando sequência ao dois de dimensão, depois
·1 1 G érard Haddad, O dia em que Lacan me adotou, Rio de Janeiro, Companhia de Freud,
2004.
0 AMO R NO S T EMPO S DO ll O R ROM E A NO 449
a o dois do amor divino (corpo morte / morte corpo), depois ao dois desse
amor construído como uma alternativa ao amor divino (gozo do real / real
do gozo), um novo dois do amor surge, o dois de saber. O real do gozo
a cabará esclarecido? O amor Lacan vai encontrar aí sua regra do jogo? A
frase mais clara, relativa a esse dois de saber, é de 15 de janeiro de 1974,
a nterior, portanto, à alegação de 12 de março de 1974 que fará do amor
um laço entre gozo do real e real do gozo. Assim, ela deve ser lida sobre
fu ndo desse reconhecimento amoroso que havia constituído um momento
d e Mais, ainda. Bem no fim de Mais, ainda, o amor era apresentado como
reconhecimento da maneira como um ser é afetado por um saber incons
ciente. Também estava situado do ponto de vista da não-relação sexual,
o que teve igualmente um fim. E o amor reconhecimento também será
destituído em 12 de março de 1974. Logo, a frase que agora importa vale
como um entre-dois, um momento de passagem, um primeiro passo rumo
à destituição do amor reconhecimento.
P RO P OS I Ç ÃO D E 1 1 D E
J UNHO DE 1 9 7 4
Pela primeira vez na história, vocês podem errar, isto é, recusar amar o in
consciente, já que enfim sabem o que é: um saber, um saber chato 1 •
É nada menos que uma regra de vida que é proposta a cada um. E
que ressoa de modo ainda mais forte como tal já que remete ao próp rio
título desse seminário: Les non-dupes errent. Esse título havia operado uma
inversão. Se, parece, nenhum ser sensato acha bom errar, e a errância é
comumente conotada de modo negativo (isso desde a Nave dos Louco s até
a pretensa "viagem patológica" em psiquiatria), achamos mesmo assim que
não errar exige não ser tolo, que, portanto, les dupes errent, precisament e
porque são enganados [dupés] ou se enganam [se dupent] eles mesmos.
Pois bem não, dizia o título, é, ao contrário, o não-tolo que erra - logo ,
uma inversão. Ora, eis que, em conclusão do seminário assim intitulado ,
uma proposição vem suplementar essa inversão, tirar daí a consequência.
Até então, a questão da errância era abordada de maneira supostamen t e
descritiva, a inversão só fazendo descrever de outro modo. E eis que agora
a descrição se faz prescrição. Como? Abrindo uma alternativa, propondo
uma solução. Alternativa: ou então, não tolo, erra-se, ou então, tolo... e
então o quê, tolo? E tolo de quê? Resposta em fim de seminário: tolo de um
saber chato denominado inconsciente. A regra de vida ataca cada um por
dois lados. A qualquer um é proposto ou errar, ou passar a vida num laço
determinado, resolvido, sustentado, numa certa chateação, preço a ser pago
para não errar. "Chato"* deve ser tomado ao pé da letra. Lacan poderia ter
dito "incômodo", "perturbador", "tedioso", etc., mas não, é bem de uma
chateação que se trata, à qual só a morte porá um termo.
Há aí eleição de uma erótica específica. E deveremos portanto precisar,
para quem teria feito sua essa erótica, o que seria amar um outro objeto que
seu inconsciente. A questão também vai se colocar para o amado: o que é,
então, ser amado por um ser que ama seu inconsciente? Ou ainda: o que é,
então, amar um ser chateado por seu inconsciente e que, no entanto, ama
seu inconsciente, que ama "suas chateações" (Charles Aznavour: "Meus
amigos, meus amores, minhas chateações")? Estaríamos às voltas com uma
bem estranha triangulação, talvez até com um vaudeville do qual um dos
personagens (a amante? a outra mulher? o amante? o marido?) seria o in
consciente (qualificado de "parceiro" em 16 de março de 1976). A menos
que cada um dos apaixonados tenha adotado a regra lacaniana, caso este
ern que o jogo seria jogado não mais a três, mas a quatro. Uma vez que se
trataria de amar o inconsciente, este se vê personificado, e Lacan acabará
pura e simplesmente identificando o inconsciente ao que parece com um
personagem, ainda que um tigre de papel: ao sujeito suposto saber.
O analista tem a ver com isso? Teria ele, deveria ele, ele em todo caso,
e scolher não errar amando seu inconsciente? E Lacan não sugere que seria,
pelo menos, seu próprio caso? Essa regra se endereçaria especialmente àqueles
que, sentados no anfiteatro, praticavam a análise em outro lugar? Certo.
Mas, então, como essa posição de analista intervém no acolhimento que o
analista reserva ao amor de transferência? Que incidência pode bem ter sobre
o analisando que seu transmor tenha elegido como objeto um personagem
que resolutamente escolheu ser chateado por seu próprio inconsciente? E
ainda: não é aí entreabrir, se não abrir, a porta à contratransferência, da qual
se diz, um pouco rápido demais, que Lacan não teria querido saber 2? Com
certeza não necessariamente.
Colocar essas questões faz advir uma outra. Com efeito, se nos lem
brarmos que, em 12 de março de 1974, fora formulado o voto de que ao
amor fosse dada sua regra do jogo e que o discurso analítico poderia, talvez
até devesse, produzir o saber dessa regra, acabamos nos perguntan4o: não
é exatamente o que faz Lacan dois meses mais tarde ao propor essa inédita
regra de vida? O amor Lacan encontra aí uma de suas determinações, a regra
de vida proposta a cada um deixa-se inscrever como um dos componentes da
nova regra do jogo amoroso. Visto a partir da experiência da análise, o amor
Lacan é amar alguém que ama seu inconsciente a despeito das chateações
que daí lhe vêm, que portanto ama em outro lugar que ali onde é amado.
E vamos com certeza encontrar aqui outra determinação do amor Lacan
com a qual já estivemos às voltas, isto é, que esse amor é um amor limitado,
limitado por esse outro amor ao qual o amado não vai renunciar.
Pouco depois, em R. S. I. , Lacan vai tentar escrever o limite do amor. Se
o amor, como se viu, oferece um acesso ao saber inconsciente, ainda que a
1 Cf. Gloria Leff, Portraits de Jemmes en 111111/yse. Jacques Lacan et /e contre-tmnsfert, traduzido
do espanhol por Béatrice Cano, Paris, Epel, 2009.
título de uma abertura, nos perguntaremos: o analisando também acabará
como seu analista, amando seu inconsciente? Teríamos aí uma notável e
estranha retomada (e versão) da reciprocidade amorosa. E ao limite corn
o qual se choca o transmor elegendo como seu objeto um personagem ( o
analista) que ama seu inconsciente viria se acrescentar esse outro limite ,
ele devido ao fato de que doravante ele também, o analisando, ama seu
inconsciente. O amor passaria de três a quatro. Amar corresponde, então,
a amar dois objetos simultaneamente e dois objetos díspares: o objeto eleito
do amor, mas também um saber chato. É possível amar ao mesmo tempo
esses dois objetos sem que nenhuma incompatibilidade ocorra entre ele s ?
Implícita em Lacan, a resposta é sim, caso contrário não teria sentido algurn
a perspectiva de dar ao amor sua regra do jogo.
Se não fosse o humor, o "pela primeira vez na história" mostraria
uma impressionante visão ampla. Teríamos quase vontade de transcreve r
"História", tratando-se daquilo cujo fim se deplorou, isto é, a História
como lugar de um Grande Relato - o relato desse fim não sendo menos
um Grande Relato, como foi observado. A afirmação é solene. Aliás, ela
está longe de ser a única a dar ao ensino de Lacan um alcance mais próximo
daquele de Sócrates, de Diógenes o Cínico, de Cristo ou de Buda que do
universitário moderno. Resumindo seu ensino, Buda, por exemplo, poderia
ter dito, condoído: "Pela primeira vez na História, vocês podem não so
frer mais". A fórmula cria paradigma, e poderíamos, a título de um desses
exercícios espirituais ao gosto de Wittgenstein, tentar produzir uma para
cada grande pensador ou cada artista que tivesse deixado nome na história.
Entretanto, é responsabilidade de um analista, mesmo um Jacques Lacan,
oferecer a quem quer que seja uma regra de vida? Freud afirmava que não,
mesmo arriscando que sua prática desmentisse sua declaração. Freud dizia,
ao contrário, que uma condição necessária para que alguém valesse como
analista era dispensar-se de fornecer ao paciente qualquer regra de vida que
fosse, menos ainda sua própria regra de vida. Além disso, não é estúpido
prescrever o amor? Mais que isso, indicar um certo objeto a ser amado? Mais
que isso, um objeto chato? É verdade que não se tratava exatamente de uma
prescrição do gênero "Amarás teu inconsciente como a ti mesmo", mas a
questão no entanto se coloca com o "vocês podem": sua própria enunciação
não vai contra sua visada? Assim, vamos tentar determinar como a enuncia-
p RO P O S I Ç Ã
O D E 1 1 D E J U N H O D E 1 9 74 457
ção de uma tal regra pôde ser tornada possível, ou ainda quais foram seus
considerandos. É possível distinguir dois: primeiro Aristóteles, depois uma
retomada da questão da transferência.
[... ] o real é o que se determina pelo fato de que não possa de modo algum
ali se escrever a relação sexual. E é daí que resulta o que acontece com o
dizer verdadeiro, pelo menos o que nos demonstra a prática do disc urso
analítico, é que é dizendo verdade - isto é, babaquices, aquelas que nos vê
lll
aquelas que nos babam assim - que conseguimos trilhar a via rumo a al �
g
do qual só é muito contingente que algumas vezes, e por erro, isso cessa de
não se escrever, como defino o contingente, isto é, que isso leva, entre dois
sujeitos, a estabelecer algo que parece se escrever assim: daí a importânc ia
que dou ao que eu disse da carta de (a)muro.
4 Aristóteles, Organon IIl Les remie,, analytiques, tradução nova e notas por Jules Tricoe,
p
nnu� Pcl ir ão. Paris, Vrin, 1 97 1 , p. 3 1 0-3 1 1 .
O A M O R LACAN
lher entre A ou B por um lado, r ou !J.. por outro). Lacan não s e pergun ta,
e eu não posso dizer se Aristóteles pensou nisso, mas isso não impede de se
interrogar: com essas quatro possibilidades, Aristóteles está introduzindo
cálculo na famosa cena secreta entre Sócrates e Alcibíades? Sócrates aí não
realizou a configuração eleita por Aristóteles, isto é, A r, em que o am ado
está disposto a conceder seus favores mas não os concede? Lacan acrescen ta
quatro linhas a esse esquema que, parece, nunca recebeu nome. O que elas
desenham? Isso parece quase trivial, como com frequência quando ele produz
uma escrita e não lhe resta mais senão ser tolo dela.
5 As escolas fi losóficas antigas foram, desde a An tiguidade, classificadas em função desse telos.
Assi m , foram disti nguidas até noventa e seis (quarenta e oito exatamente, mas o número foi
dupl icado já que se podia ser o u não ser cínico em cada uma das quarenta e oito escolas) .
Não encontramos hoje essa bela pe,formance com a multiplicacão das P<rn l � • l � r� " : " " " " '
p R O POS I Ç Ã O DE 1 1 DE J U N H O DE 1 9 7 4
mas também, e por isso, um juízo de valor que Lacan formula nos seguintes
termos: "Dela resulta [da demonstração] , o que, com efeito, parece inevitável
admitir, que o suneinai vale menos que o kharizesthai, isto é, a boa disposição
6
que mostra ser amado " . Suneinai é "estar junto", Lacan traduz: "deitar"*, o
que não há nenhuma razão de invalidar. Em compensação, tratando-se de
kharizesthai, o grego de Lacan afigura-se flutuante. Não se trata apenas da
boa disposição a ser amado mas do fato de ceder, de conceder seus favores
a um eraste. Homossexualidade grega, de K.J. Dover, hoje ainda uma obra de
referência, ressalta que kharizesthai costuma ser empregado no discurso de Pau
sânias ( O banquete) com essa significação. Dover nota ainda que kharizesthai é
igualmente empregado a respeito de uma mulher que cede a um homem. Em
suma, o uso, aqui, de kharizesthai vem desmentir a afirmação! É philia que
Aristóteles opõe a suneinai. Lacan nota bem que amar "é, portanto, philein"
e talvez seu tropeção no grego seja imputável à sua reticência para com esse
philein que, historicamente, terá por demais feito cair o amor na idealidade.
PorémAristóteles oferece mais ainda a Lacan. Já aconteceu a este último notar
que os exemplos inventados pelo discurso dos lógicos dizem mais que o que
esse discurso pretende significar ao forjá-los; mas ele aqui se mostra fascinado,
talvez até maravilhado, pelo que ele chama a "irrupção do verdadeiro" no
próprio seio desse discurso que terá estabelecido as bases de uma ciência do
real. De que verdade se trata? Da verdade da não-relação sexual. Aristóteles
teria nesse texto dado um passo no reconhecimento da inexistência da rela
ção sexual. Como? Por seu afastamento do suneinai - que Lacan diz até não
suneinai, como para melhor aproximar Aristóteles da não-relação sexual.
6
J. Lacan, Les no11-d11pes..., sessão de 1 2 de fevereiro de 1 974.
• Em francês co11cher, no sentido de deitar com alg11ém, ter relações sexuais. (NT)
O A M O R L ACAN
Logo, essa é uma primeira conclusão dessa leitura: Lacan encontra ern
Aristóteles uma confirmação da teoria do amor como suplemento à não
relação sexual. O que deverá no entanto ser abandonado ao "se aposentar" a
teoria do suplemento. Em compensação, algo mais precioso pode ser retido
dessa retomada de Aristóteles, e que Aristóteles de certo modo confirma
igualmente. Na sessão seguinte ( 12 de março de 1974), é evocada a possi
bilidade de "o gozo poder ser punido a partir do momento em que o amor
for algo um pouco civilizado, isto é, em que se souber que isso é jogado
como um jogo [ . . . ] " . Lida com o comentário de Aristóteles, essa frase fala
do gozo fálico como devendo ser subordinado ao desejo do ser querido. Ele
seria punida no sentido de que não pode valer como um fim.
Outra conclusão, ela orientada para a continuação do trilhamento
de Lacan, diz respeito à espécie de antecipação do borromeano que Lacan
atribui a Aristóteles. Mas, sobretudo, embora isso não seja dito, pode-se
admitir que o interesse desse texto a seus olhos se deve à regra do jogo que
ele oferece ao amor. Já na sessão seguinte desse seminário, ele formulará
o voto de dar ao amor sua regra do jogo não mais a partir de Aristótele s
mas a partir da análise. Com efeito, ele já sublinhou que, em Aristóteles, a
problematização do amor diz respeito ao amor homossexual, ao passo que
ele deverá procurar diferenciar, quanto ao amor, as respectivas posições do
homem (tomado em geral) e de uma mulher (bem entendido, ele não diz
de "a mulher").
DO AMÓD I O
Assim, vai-se assistir, depois de ter sido formulado esse desejo de dar ao
amor sua regra do jogo, a um retorno forte da transferência. Ele ocorre
imediatamente após a escrita do amor com o borromeano, depois de o amor
ter sido dito fazer laço entre o gozo do real e o real do gozo. Desde 19 de
março de 1974, diz-se que a transferência realiza a entrada da verdade, o
que remete ao dizer verdadeiro, à veridição, "mas a verdade da qual justa
mente a transferência é a descoberta, a verdade do amor". Consideraremos
o diagnóstico a seguir como amplamente verdadeiro hoje ainda:
o r OS I Ç Ã O DE 1 1 DE J U N H O DE 1 9 7 4
p ll
8
]. Lacan, Les 11011-d11pes... , sessão de 23 de abril de 1 974 .
9 J . Lacan, Les 11011-dupes ... , sessão de 1 1 de junho de 1 974.
O AMOR L A C A r,.:
Não é porque eu disse que os sentimentos sempre são recíprocos [... ], não
é porque se ama que se é amado, nunca ousei dizer coisa igual. A essê nci a
da relação, se de fato algum efeito volta ao ponto de partida, isso que r
simplesmente dizer que quando se ama se está feito enamorado. E quand o
o primeiro termo é o saber? Aí, temos uma surpresa, é que o saber é perfei
tamente idêntico, no nível do saber inconsciente, ao fato de que o suje ito
é sabido.
10
Precisamente em Deauville, em 8 de janeiro de 1978, durante o congresso da Escola Freu
diana sobre o passe. Lemos, em sua exposição conclusiva dessas duas jornadas (PTL) : "Mas
é preciso dizer que para se constituir como analista é preciso estar apaixonado [em francês:
mo1d11, lit.: mordido) ; apaixonado [ 11101d11] por Freud principalmente, isto é, acreditar nessa
coisa absolutamente louca que se chama o inconsciente e que tentei traduzir pelo 'sujeito
"'
suposto saber . Para uma problematização dessa "mordida", poderemos nos reportar a meu
artigo "Perturbação em pernépsy" [ neologismo criado por Jean Allouch a partir de perver
sion, névrose et psychose. (NT)), Littom!, nº 26, novembro de 1 9 88 n t: � Ili'.
pRO P O S I Ç ÃO D E l i D E J U N H O D E 1 9 7 4
um saber sabido, não mais suposto sabido. Uma análise pode assim ter um
fi m, que não é outro senão esse próprio deslizamento. Ele assinala a termi
nação da "atribuição" (Lacan dirá isso mais tarde) do sujeito suposto saber
ao a nalista e aloja esse sujeito suposto saber em seu verdadeiro lugar, em
outra s palavras, no inconsciente. Assim, o amor Lacan terá tomado corpo,
cerá encontrado, Aristóteles ajudando, sua regra do jogo.
A preocupação lacaniana de dar ao amor sua regra do jogo não cessará
de estar ativa nos seminários, até aparecer em título de um deles, em que o
jogo do amor se escreverá: jogo "da mo urre"*. Vale por isso dizer que esse
amor lúdico que parece bem ter adquirido alguma consistência ao ponto
de se ter podido denominar "amor Lacan" e cujas raízes mergulham até
Aristóteles, que esse amor que terá sabido desprender-se do amor guerreiro,
calvez até se construir contra esse amor guerreiro num debate várias vezes
retomado com Hegel, que um tal amor poderia doravante ser reconhecido
pacificado? Já não era o que anunciava sua qualificação como sentimento
cômico, jamais desmentida? Ou ainda que tivesse sido colocado em epígrafe
de um "acostumar-se com o para-ser"? Longe de ter desenhado uma figura
pacificada do amor, a invenção de uma regra do jogo amoroso terá, ao
contrário, permitido que Lacan reatasse com um fio que pode nos espantar
por ter sido por tanto tempo deixado de lado, a saber, a conivência dó amor
com o ódio. Lembramos a pirâmide das paixões do ser, produzida em 30 de
junho de 1954. O amor ali figurava em igualdade estatutária com o ódio
e a ignorância. Se é possível admitir que a problematização da articulação
entre amor e o saber era uma maneira indireta, embora parcial, de tratar
de sua relação com a ignorância, em compensação não encontramos quase
nada, nos seminários, sobre sua relação com o ódio, até essa data de 20 de
março de 1 973 (Mais, ainda) em que o amor é renomeado "amódio", um
neologismo que ainda vai esperar dois anos ( 15 de abril de 1975, R. S. I. ) para
ser estudado em razão - em razão borromeana. Vinte anos de um silêncio
quase absoluto! E tanto mais gritante porquanto aconteceu a Lacan indicar
que uma psicanálise começa com a transferência negativa. Assim, acaba-se
pensando, a contracorrente daquilo que se poderia ter acreditado (desejado?)
poder concluir, que ter dado alguma regra do jogo ao amor, longe de ter
afastado o ódio do amor, terá sido como que uma condição de possibilida
de para um questionamento renovado da conivência do amor com o ódio,
Era preciso essa segurança tomada no lugar do amor para enfim poder se
perguntar como ele caminhava junto com o ódio?
Tese: tendo revelado a correlação do amor e do ódio, a análise no
entanto se terá impedido de dar a essa descoberta toda sua ressonância.
Como? Inventando a ambivalência. A ambivalência terá atuado como virtude
dormitiva a atenuar o caráter mordaz dessa correlação amor ódio que, no
entanto, a análise (a começar por Freud) havia justamente distinguido. Logo,
o gesto não será sem alcance, inclusive prático, por indeferir a ambivalência
para, em seu lugar, inscrever o amódio. Bem no início da sessão de 20 d e
março de 1973, Lacan retoma esse fio nos seguintes termos:
l i J. L ::1 c: ::1 n _ Mni, ,i i u AA L" Q r r ;;; ..... ,1 .,. 'l f\ .J _ - - --- J 1 n,...,. ... I
p RO P O S I ÇÀ O D E l i D E J U N H O D E 1 9 7 4
Lacan a isso se dedica ao justapô-lo ao amor. Nenhuma dúvida que ele daí
espera uma saída do impasse quanto ao saber em que se encontra o deus
de Empédocles. Seu caso parece exemplar da articulação do ternário amor,
6dio, ignorância. Lacan tenta fazê-los atuar de outro modo, não, aliás, sem
subverter esse ternário que, com a nomeação "amódio", doravante não é
mais um. O deus de Empédocles vale contraexemplo.
Menos longínquo talvez, um outro contraexemplo diz respeito à
relação homem mulher. Um repetindo o outro, esses dois contraexemplos
estão ligados, e feitos da mesma madeira. A sessão precedente (em que foi
lida por Lacan sua carta de amor) se concluíra pela formulação daquilo que
talvez mereça o nome de "lei do espírito", a esse título siderante:
Se Deus não conhece o ódio, está claro para Empédocles que ele disso sabe
menos que os mortais. De modo que se poderia dizer que quanto mais o ho
mem pode causar confusão na mulher com Deus, isto é, aquilo de que ela goza,
menos ele odeia, as duas ortografias odeia [h-a-i-t] e é [e-s-t] *, e nesse assunto
também, já que afinal não há amor sem ódio, menos ele ama bem 1 2 •
Um amor primeiramente dito "não sem ódio" torna-se, oito dias mais
tarde, "amódio": o "não sem" pulou fora. E essa modificação provavelmente
contribuiu para baixar o tom da acima citada lei do espírito. Ela é então
dita novamente quase que palavra por palavra, oportunidade para Lacan
de manifestar uma certa insatisfação: "Eu não estava muito feliz por ter
terminado nisso, que no entanto é uma verdade. É bem o que hoje me fará
interrogar-me mais uma vez sobre o que se confunde aparentemente do
verdadeiro e do real [ ... ] ". Certo, mas também se pode pensar que, tendo
tido o sentimento de ter ido longe demais, Lacan realiza tão logo que possível
um recuo estratégico... embora não pensando menos. Esse movimento é
várias vezes observável nos seminários, e com frequência segundo a mesma
temporalidade que aqui, entre o fim de uma sessão e o início da seguinte.
Com o nó borromeano, o que temos a nosso alcance é isto para nós essencial,
crucial para nossa prática, que não temos necessidade alguma do microscópio
para que surj a a razão, a razão daquilo que enunciei como verdade primeira,
isto é, que o amor é amódio [hain(e)amoration, h-a-i-n-a-m-o-r-a-t-i-o-n.].
Por que o amor não é velle bonum alicui, como enuncia Santo Agostinho,
se a palavra bonum tem o menor suporte, isto é, se ela quer dizer o bem
estar? Não por certo que, na oportunidade, o amor não se preocupe um
pouquinho, o mínimo, com o bem-estar do outro, mas está claro que ele
só o faz até um certo limite [ ... ] 1 3 •
• Amor à primeira vista, em francês, !e coup de foudre [lit. o golpe de raio]. (NT)
14 Reportar-se às sessões seguintes de seu seminário: 8 de junho de 195 5 ; 31 de maio de 1956;
23 de janeiro de 1957; 11 de junho de 195 8 ; 8 de fevereiro de 1961; 31 de maio de 1961.
1 5 Não "ali mesmo" [là-même] das transcrições Seuil e Afi.
,,. ' • - - - , -- ,_ .. , •. •--L - , �···· .,. .. ;;n ,l,. 7 ,l,. ; . , J hn ,l,. 1 CJ'i4_ Pontuacáo modificada.
470
17 Esse desenho não é comentado nem na obra de Jeanne Granon-Lafont ( Topologie lacanienne
et cliniq11e psychanalytiq11e, Paris, Point hors ligne, 1 990), nem na de Alain Cochet (Nodolo
gie lacanienne, Paris, l'Harmattan, 2002) que no entanto dedica um capítulo a R S. I. , e nem
na de Marc Darmon (Essais s11r la topologie lacanienne, op. cit. ) .
p 11- 0 P O S I Ç Ã O D E 1 1 DE JUNHO DE 1 974 471
18 Verifiquei , com Michel Thomé a quem aqui agradeço, senão a j usteza, pelo menos a pos
sibilidade das segui n tes considerações: mesmo que o borromeano comece a três, dois anéis
i ncrustados podem ser ditos borromeanos uma vez que cortar um os torne todos (dois)
livres. Assi m , John Willard Milnor (que classificou as cadeias, notadamente borromeanas,
em 1 9 5 4 , depois em 1 9 57) incluiu esse nó de dois enlaçamen tos em sua classificação dos
borromeanos. Thomé e Soury o chamaram " borromeano degenerado" . Quanto ao si mples
anel de barbante, d i to "trivial", um equivalente de certo modo do zero , nada proíbe enca
rá-lo como o menor nó possível ao menos pelo fato de que se, tomado em si mesmo, ele
permanece mudo, ele "esconde seu jogo" (Thomé) , sua exploração exige passar pelo borro
meano a três - a fim, por exemplo, de se perguntar se ele localiza um verdadei ro furo.
472 O AMO R L A C A N
19 Ainda mais que uma outra versão de R S. I. não oferece nenhum avesso do avesso e poderia
bem estar mais próxima do que teria desenhado, se não rabiscado Lacan - o caráter capri
chado dos desenhos da versão aqui eleita como de referência tornando-os relativame nte
suspeitos, suscetíveis de apagar enrolos interessan te.�.
P RO P O S I ÇÃO D E l i D E J U N H O D E 1 9 74 4 73
Até onde vai, se posso dizer, a pere-version? Como sabem, desde o tempo
que o escrevo, o nó bo, é isso. É a sanção pelo fato de que Freud faz tudo
caber na função do pai. O nó bo é apenas a tradução disto, é que, como
me lembravam ontem à noite, o amor e, mais que isso, o amor que pode
10 O que
toma um regime quase matemático com a observação que o cruzamento de duas
lin has não basta para localizar um ponto, essas duas linhas sendo suscetíveis de deslizar uma
�nh. r..,. ,., ,,. , , .. .. ,. .... .., ..., , , ,.. ... ....... , , .,_ ..._ .. .,. .. ,.. ,,. • .. ,.. .... - � • - .. ... ... . • ... .. ._ _ __ L I - � . . ....... .. .,..,..,..,, ,...1. ,,.,.J • ., ..,, r,,-o ..., ...,. ,-,,._
474
Da mesma veia, uma segunda afirmação vem logo após, bem no início
do seminário seguinte:
[... ] para Freud, há pelo menos três modos de identificação, a saber, a iden
tificação à qual ele reserva, não sei bem por quê, a qualificação de amor,
amor, é a qualificação que ele dá à identificação com o pai. O que é que,
por outro lado, ele formula de uma identificação feita de participação, ele
chama isso, ele ressalta isso da identificação histérica. Além disso, há u ma
terceira identificação que é aquela que ele fabrica com um traço, com um
traço [... ] que chamei unário. Esse traço unário nos interessa porque, como
Freud sublinha, não é algo que tem especialmente negócio com uma pessoa
amada, uma pessoa pode ser indiferente e um traço unário escolhido como
se constituísse a base de uma identificação 22 •
Vários discretos indícios assinalam que esse amor só adviria pelo viés
de uma "identificação relativa a esse quarto termo", a saber, o Nome-do
Pai, que "faz círculo entre os três do tríscele" (primeira citação, R. S. I. ) , "que
se refere à função do pai" (segunda citação, O sinthoma) , que "qualifica a
identificação com o pai" (terceira citação, L'insu...) , não é o amor Lacan.
Vamos encará-los na ordem. Sobre o que, perguntaremos antes de mais nada,
desembocam as afirmações feitas no fim de R. S. I. ? Lacan prossegue assim:
E onde é que lhes marquei que já se situa o desejo, o desejo que também é
uma possibilidade de identificação? É aqui, a saber, ali, onde lhes situei o
lugar do objeto a como sendo aquele que domina aquilo de que Freud faz
a terceira possibilidade de identificação, o desejo da histérica.
Jacaniano muito decidido a fazer saber que as afirmações de seu mestre são
permanentemente de um rigor a toda prova poderia, mediante, é verdade,
alguma acrobacia, encontrar aí seu alimento: o amor do pai por identificação
com o pai permitiria a realização do nó que, tendo alojado o objeto a em
seu lugar, faria o sujeito desejante. Do amor ele teria passado ao desejo; por
amor, ele teria advindo como desejante. Entretanto, não vemos por qual
al quimia o Nome-do-Pai (encarado como quarto anel de barbante) cessaria
de ser objeto dessa identificação com o pai na qual se aloja o amor. E nem
tampouco como adviria um desengajamento da histeria se, uma vez feito
o nó, o sujeito se identificasse, como é sugerido, com o objeto a.23. Logo,
leremos antes esse fim de sessão como um certo golpe de mágica quanto à
questão do amor. Houve bem outros... Mas se ainda nos perguntássemos se
o amor Lacan devia ou não ser relacionado à "função do pai", essa dúvida
acabaria com a citação do seminário O sinthoma em que esse amor é, "de
mais a mais", qualificado de eterno. O argumento é decisivo: de um amor
eterno Lacan não terá querido saber. Aliás, ele de novo ressalta isso, pouco
antes de ter dito a frase acima citada:
Philia, dissera ele pouco antes, "pode ganhar peso. É o tempo enquan
to passado - passado, não o pensamento, mas o tempo passado. O tempo
passado é a philia". Assim, o próprio nome philia se apresenta como o desse
amor que Lacan procura referir ao pai. Só é possível indicar melhor isso por
uma nomeação e por esta, além do mais: não se trata do amor Lacan. O am or
Lacan não é filosófico. E mais uma vez pensamos na distinção kierkegaardia
na entre o amor conforme a reminiscência e o amor conforme a repetição.
Assim, Lacan poderia acabar tendo de admitir na terceira citação ( L'insu.. . )
que poderia ter sido utilizada contra essa distinção de dois amores (o arnor
Lacan, o amor philia) e que, ela também, lida de perto, a confirma. Freud
reserva a qualificação de amor à identificação com o pai, "não sei bem por
quê", confessa então Lacan.
Ainda não teremos lido, na citação acima do seminário O sintho ma,
o que, segundo Lacan, motiva esse amor eterno relacionado com a função
do pai. Endereçamo-nos a ele, é precisado, "em nome do fato de o pai ser
portador da castração". Não está dito aqui que o pai é portador da castração,
só que nos endereçamos a ele ao considerá-lo tal. E, aí ainda, seria errô neo
tomar essa observação como certa. A sequência indica isso:
DAN T E VE R S US LACAN
OS NOMES E AS COISAS
1 Dante foi convocado, em 8 de fevereiro de 1 96 1 , para lembrar que ele situa o amor eterno
nas portas do inferno. Essa referência isolada não pode ser considerada uma leitura de
Dante; ela é, por parte de Lacan, um viés para ajudar seus ouvintes a pensar o amor eterno
de uma maneira que não lhes seja pesada demais. Dante ainda esteve em questão em "O
aturdito" ( 1 972), mas se trata, aí ainda, de pinceladas, não desenvolvidas.
1 "Ou", não "e", como deve ter dito Lacan ao citar falsamente esse título. Ele também se
engana quanto à data: 1 857 e não 1 854 ou 1 964 (transcrições L'Unebévue ou Afi) . O nome
do autor está mal ortografado nesta última. Pequena diversão: esta traduz o título da obra
por: Mante e a poesia amorosa. Por que não, já que ali se estava: Mante e a poesia religiosa?
Publicada por Adolphe Delahais, livreiro, na " Biblioteca de um homem de gosto", coleção a
1 franco o volume (Lacan terá com certeza pago mais caro), a obra comporta dois tomos.
0 AMO R L AC A N
É da ordem da comédia e... isso me fez, isso me induziu a... isso me empurrou
para Dante. Essa comédia, essa comédia é divina, é claro, mas isso só quer dizer
uma coisa, é que ela é bufona. Falo de, do bufão em O aturdito. [...] Isso q u er
dizer que é possível bufonar sobre a pretensa obra divina. Não há a menor obra
divina a não ser que queiramos identificá-la com o que chamo o real3 •
O que é, então, que Lacan entende por " bufonar" ? Em que, po is,
o bufonar pode bem dizer respeito ao amor4 ? E que amor? O que liga 0
bufonar ao divino? A remissão a " O aturdi to" fornece um início de resposta .
Chamada pela consideração (discutível) segundo a qual o matemático tem
o mesmo embaraço, com sua linguagem, que o analista com o inconsciente,
uma nota de pé de página convoca, com efeito, o personagem do bufão.
Como o conj unto de " O aturdito" , ela permanece dificilmente legível, tanto
ali abundam equívocos e duplos e triplos sentidos. Porém acreditamos poder
ali notar a distinção de dois personagens, o louco e o bufão. O louco é o
filósofo, "ocupando lugar da verdade" no discurso do mestre em que importa
que o papel seja mantido. Kojeve, que Lacan lembra, aparentemente sem rir,
que foi "seu mestre" por tê-lo "iniciado em Hegel", tratava o assunto de outro
modo, e não é possível, considerando o que é dito de Koj eve, impedir-se de
pensar que seria bem possível tratar-se também de Lacan. Kojeve
1 5 Um nome próprio não se traduz mas se translitera, especificidade que esteve no início de sua
virtude para a decifração dos hieróglifos egípcios Oean Allouch, Letra a letra. Transcrever,
tmd11zi1; tmnslitemr, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1995) .
D A N T E VERS US L A C A N
deverá ser dito manter um sentido no real. Ele tem que admitir que existem
"efeitos de sentido 1 6 " . As palavras têm um alcance: "Se os nomina, de uma
maneira qualquer, não se ligam às coisas, como a psicanálise é possível 1 7 ?".
E então cita como exemplo o neto Luc, que se esforça para dizer as palavras
que não entende, e que tira dessa experiência a teoria segundo a qual ele
tinha uma cabeça especial, teoria confirmada pelo avô que a relaciona à sua,
à sua. . . de cabeça, mas também à sua teoria. O que diz ela? Que, longe de
estar harmonizada às coisas, a linguagem é parasitária. Daí pode ser mais
bem circunscrita a bufonaria da poesia amorosa. Ela é violência feita à lín
gua. Mas de que maneira? Teremos amplamente começado a dizê-lo com
Pézard comentando o nomina sunt consequentia rerum. Em 15 de março de
1977, Lacan leva mais adiante sua análise da violenta bufonaria dantesca.
Mais uma vez, é então colocada à questão a fórmula S 1 � S2 •
E o significante, deve-se mesmo assim notar bem que ele é algo bem especial.
Ele tem o que é chamado efeitos de sentido, e bastaria eu conotar o S 2 não
por ser o segundo no tempo, mas por ter um sentido duplo, para que S 1
tome seu lugar, e seu lugar corretamente.
1 6 Lembramos que isso esteve em questão aqui mesmo a respeito da ação da rainha Victoria,
e, j á, em relação com considerações sobre as línguas.
17 1 T oro n f ';., ,,, <P«Ón ,jp 1 'i ,l,. m � rro cl .. 1 97 7 .
O A M O R L A C I\ N
Como o poeta pode realizar essa prova de força de fazer com que um sentido
esteja ausente é, bem entendido, substituindo esse sentido ausente pelo que
chamei a significação. A significação não é nem um pouco o que ... o que um
frívolo povo acredita, se posso dizer. A significação é uma palavra vazia, é,
em outras palavras, o que, a respeito de Dante, se exprime no qualificativo
colocado sobre sua poesia, isto é, que ela seja amorosa.
O amor nada é senão uma significação, vale dizer que ele é vazio, e vemos
bem a maneira como, como Dante encarna essa significação, o desejo tem
um sentido mas o amor tal como dele já falei em meu seminário sobre a
ética, tal como o amor cortês o suporta, é apenas uma significação.
18 Sobre a função em Lacan do "não é isso" , poderemos consultar o início de minha obra
• • ,. ...... • T'"" 1 1 " " ,,
O A M O R LACAN
algum de ali ser legível. A consideração de Dante permite di zê-la ainda com
outras palavras: um amor que não seria pura significação, em outras pal a
vras, vazio de sentido, é possível? Não vamos excluir que essa questão tenh a
permanecido sem resposta clara e como que definitiva em L'i nsu...
A última indicação que fornecem os seminários sobre o que foi cha
mado o amor Lacan é lida na sessão de 1O de maio de 1977. Ela novamente
encara o amor como jogo, precisamente como jogo da mourre. Esse jogo
vai esclarecer com nova luz o amor Lacan? A fim de tentar responder, exa
minaremos a primeira formulação da questão que Dante coloca a Lacan, a
da manutenção possível do duplo sentido do S2 no amor. Aqui importa um
lapso de Lacan, que diz respeito a, modifica e esclarece o estatuto do S2 " Ele
ocorre, precisamente, em 8 de março de 1977, enquanto ele constatava que
a psicanálise só era possível se Dante não estivesse absolutamente errado
em considerar que os nomes se prendem às coisas. Sem isso, "a psicanálise
seria, de certa forma, o que se poderia chamar blefe, quero dizer semblante".
E ele prossegue:
Foi de qualquer modo assim [o anúncio vai se afigurar falso] que situei
no enunciado de meus diferentes discursos a única maneira pensável [ele
ainda não sabe que vai escrever uma outra] de articular o que é chamado
o discurso psicanalítico. Lembro a vocês (ele vai ao quadro) que o lugar do
semblante onde pus o objeto a . . .
- Mais alto!
que (volta) articulei da verdade. Como é que um sujeito, já que é assim que,
que eu designo o S com a barra, como é que um sujeito, um sujeito com
toda a sua fraqueza, sua debilidade, pode ocupar o lugar da verdade, e até
( vai de novo) fazer que isso tenha resultados?
Ele ali se coloca dessa maneira, a saber que ( volta) um saber, hein?
Voz de jacques-Alain Mille,; inaudível.
Depois, segundo a versão Afi desse seminário, assim teria sido corrigido:
Isso no lugar daquilo que até ali sempre fora a escrita do discurso
psicanalítico (que ele queria escrever):
s a Discurso do mestre
Terá sido preciso uma consideração das mais sérias para assim derrubar
de modo meio silencioso a doutrina da discursividade. Lacan ainda não está
disposto a admitir, mas está perto, seu lapso o antecipa. Oual? Nada menos
D A N T E VE R S US L A C A N
que a da falha em questão que, dita com todas as letras, se enuncia assim
(sequência da citação acima):
19 Em Bruxelas, em 26 de fevereiro de 1977, Lacan havia dito isto: "O real está no extremo
oposto de nossa prática. É uma ideia, uma ideia limite daquilo que não tem sentido. O sen
tido é aquilo através do qual operamos em nossa prática: a interpretação. O real é o ponto
de fuga como o objeto da ciência (e não do conhecimento que, este, é mais que criticável), o
real é o objeto da ciência. Nossa prática é uma escroqueria, pelo menos considerada a partir
do momento em que partimos desse ponto de fuga" (" Propos sur l'h ystérie", in PTL; igual
mente em Quarto, nº 2, suplemento belga à Lettre menmelle de l 'École de la causefi-eudienne,
1981) ,
4 90 O A M O R LAcAN
veram que ele havia cometido um lapso. Entretanto, ele ainda não concorda,
preferindo falar de um erro, o que lhe permite afirmar que acredita saber 0
que queria dizer ao subverter a ordem das letras, suporte da escrita dos quatro
discursos. Ele parece, então, até se safar bem ao notar que o S 1 e o S2 estão
separados na escrita do discurso analítico - aquilo mesmo que manifestava
o lapsus calami. Mesmo assim não se acabou com um lapso ao trazê-lo a um
déjà vu, e isso se manifesta aqui com a ocorrência do novo valor do S2 , aquele
que vê aí um sentido duplo. Agora se entende melhor a afirmação segundo
a qual "bastaria que eu conotasse o S2 não por ser o segundo no tempo, mas
por ter um sentido duplo para que o S1 assumisse seu lugar". Esse lugar se
afigura aquele que ele tem na escrita do discurso analítico, ele é o da verdad e.
Com efeito, os lugares na doutrina da discursividade são assim configurados
e fixados, quaisquer que sejam as letras que vêm ocupá-los:
o agente o outro
a verdade a produção
o que marquei é que, desse tetraedro, há semp re uma de suas ligações que
está rompida, é, a saber, que o S índice 1 não representa o sujeito junco ao S
índice 2, isto é, junco ao Outro. [... ] e o que a psicanálise enuncia é, muito
precisamente, o fato de que [o inconsciente] é apenas uma, digo, dedução
suposta nada mais, aquilo com o que tentei lhe dar corpo com a criação do
492 0 AMO R L A C A N
simbólico tem muito precisamente esse destino, que isso não chega a seu
destinatário. Como, no entanto, se explica que isso se enuncie?
A MOURRE E O AMOR
Chegou agora o tempo das vacas magras. Só é encontrada uma única citação,
em L'i nsu... , ligando o amor e o jogo da mourre:
21 Transcrição modificada num pomo: não "Um", mas "um", o "um" minorado, reduzido a
um traço, o um do "há um".
DANTE VE R S US L A C A N 493
* J ogo homofônico com l'apres [o após] e lã peu pres [o mais ou meno s] . (NT)
•• Em francês: les à-peu-pres [nota acima] nã o e stã o si pres [tã o perto, tão próxim os]. (NT)
*** Alar-se, no sentido de criar asas, sair vo ando, elevar-s e . (NT)
**** Sel ar, no sentido, evidentemente, de marcar, cerrar, fechar. (NT)
***** O Ou l ipo [Ouvro i de l ittérature potentielle] é um atel iê de l iteratura, inspirado pelo
escriror Ravmoncl Ouenea11. (NT) .
494 0 AMO R L AC A N
22 Mayette Viltard generosamente me deu o conjunto do dossiê ue ela havia composto para
q
uma intervenção durante meu seminário. Aqui meus agradecimentos.
2 3 Georges Ifrah, Hístoíre 1111íverselle des chí/fi-es, Paris, See:hers. 1 98 1 . n. 7C:.,
D A N TE \I E R S U S L A C AN 495
Sempre lidei com a consciência mas sob uma forma que fazia parte do in
consciente, já que é uma pessoa, uma ela na oportunidade, uma ela já que
a pessoa em questão colocou-se na terceira pessoa ao se nomear Maneine,
sob uma forma que fazia parte do inconsciente, digo, já que é uma ela
que, como em meu título deste ano, uma ela que s'ailait* à mourre, que se
mostrava depositária de saber.
sabe?". Ou, antes, traz a isso uma resposta: é o um que sabe, este, "e não o
sujeito suposto saber".
Esse um só pode ser outro que aquele do "há um", repetido duas vezes
com algumas linhas de intervalo, enquanto que é igualmente martelado que
não há nada mais. Muitos anos antes, a ascese aqui proposta já fora como
que iniciada com a distinção do unário (o traço) e do uniano (a unificação).
Lacan toma ciência e conclui essa passagem neste ponto: "Nada mais difícil
de entender que esse traço de l'une-bévue". O um de l'une-bévue é aquele
mesmo do "há um". Ele dialoga sozinho. O oximoro remete à inacessibili
dade do S2 , doravante pensado como fora de alcance do S 1 e até da série dos
S 1 • Assim se esclarece um pouco a reescrita acima do título: "l'insu que sait
de l'une-bévue mostra-se sabedora". Lacan se perguntou: ''l'insu que sait,
o quê? de l'une-bévue". O estranho "o quê?" se dirige ao objeto do saber,
mas qual pode de fato ser o sujeito do verbo? Nada menos que o um do "há
um". Assim, podemos escrever: "L'insu que sait l'un [O insabido que sabe o
um] * de l'une-bévue mostra-se sabedor". Ou ainda: "O um de l'une-bévue
sait que l'insu [sabe que o insabido] mostra-se sabedor". Eis aqui de novo
Maneine, a irmã pequena. Enquanto ela leva sua reivindicação de saber
ao ponto de pretender igualar-se a uma máquina, o irmão, diante de tal
atrevimento e como que empurrado num entrincheiramento heurístico, é
levado a saber que nunca se atinge o saber que Maneine pretende deter, que
só o um de l'une-bévue sabe.
Porém há um "mas", há " mesmo assim sentimento", ódio, "parente do
amor". Em sua posição, Maneine é odiosa - proposição que queremos bem
ler, bem como as seguintes, como fora do campo psicobiográfico, como que
resultando de uma análise do sentimento. Ela é odiosa porque odiante. Com
efeito, é este o sentimento que seu dizer veicula; sua reivindicação de saber
chega até a devastar o ser ao qual ela o endereçà. O que resta a esse ser, como
lugar, se ela sabe? O que pode ele ainda desejar saber se todo o saber já está
* Em francês, o relativo que [há também o relativo qui com antecedente sujeito] refere-se a
um objeto direto anteposto; ora, o estranho o quê? [quoi?], introduzido por Lacan ao dizer
L'insu que sait quoi? de /'une bévue s'ai/e amourre de fato só pode interrogar o verbo saber
[sait] . O um também passa a ser a solução para a frase que não tinha sujeito para o verbo
--L-- /1'J'T\
O A MO R LA C AN
ali, presente em alguém que é audacioso o bastante para lhe fazer saber isso ?
Maneine deteria o S 2 • Se nela tivesse acreditado, Lacan teria entrado numa
loucura a dois com Maneine (lembramos seu interesse pelas irmãs Papin,
igualmente sua questão sobre "acreditar nisso" ou "acreditá-la"). Resta que a
postura de Maneine é mais frágil do que parece, da mesma forma seu ódio.
Com efeito, bastaria forçá-la a dizer o que ela sabe ou, mais simplesment e,
o que quer que seja, um único algo que ela saberia, para que fosse depor
tada para um S1 e outros S1 em sequência, o que tornaria imediatamente
insustentável sua pretensa detenção do S2 • Maneine nada mais pode dizer
que "Maneine sabe". T ão logo se pusesse a dizer o que sabe, Maneine não
saberia mais, e o um do "há um" se poria, este, em marcha na direção do
saber. O saber de Maneine é feito de uma absoluta ignorância.
E o amor? Vimos que era imaginável colocar o "é o amor" [c'est
lamour] no lugar de "s'aile à mourre". Essa troca possibilita uma outra
escrita interpretativa do título desse seminário: 'Tinsu que sait l'un [o um]
de l'une-bévue c'est l'amour". Em outras palavras: o um de l'une-bévue
sabe o amor insabido. Há aí um certo regime do saber, diferente desse saber
do ódio que acabamos de dizer com Maneine, a um só tempo absoluto e
inarticulável. Um certo saber se sabe furado, vestido de um insabido que
nada mais é que o amor. De um certo amor que não é nem o amor do saber
nem o saber do amor. Regime do amor e regime do saber caminham juntos
embora nem por isso formem um par. Enquanto o amor Lacan é obtenção
do amor que não se obtém, o saber do um de l'une-bévue é obtenção do
saber que não se obtém.
Voltando aos jogos homofônicos do título desse seminário, é possível
ler aí: "o insucesso de l'une-bévue é o amor"? Certo, mas com essa precisão,
doravante formulável, que não estamos aí às voltas com uma alternativa
que convidaria a optar ou por l'une-bévue (o que se dizia antes: amar o
inconsciente"), ou pelo amor, mas que, ao contrário, obter o amor que não
se obtém advém com o insucesso de l'une-bévue, considerando que todo
equívoco [bévue] está fadado ao insucesso, a nunca atingir o saber. Logo, é
possível também escrever: "O um (o um do "há um") sucesso de l'une-bévue
é o amor". Como sublinhou o ensino tirado da p intura chinesa, tanto no
que se refere ao amor quanto ao saber, há vazio.
C O N C L U S ÃO
O mundo {é]
como o mais belo dos amontoados,
espalhado ao acaso.
Heráclito
1 Vamos nos reportar com grande proveito às páginas que Jacques Lacan dedica à figura O. Le
Brun, Le pur amour de P!aton à Lacan, Paris, Le Seuil, 2002, p. 13 sq. ) . Se devêssemos nos
interrogar sobre a ordem de racionalidade posta em prática ao longo da presente obra, estas
páginas estariam entre as mais preciosas e as mais bem ajustadas.
2
Raymond Queneau, Bo,ds, Paris, Hermann, 1963 (ilustrado com numerosas composições,
fora e no texto, de Georges Mathieu).
o A M o R L A e A N : QU E B R A eA B EçAs 501
Obter o amor que não se obtém, existe uma melhor, isto é, uma maneira
mais simples de fazer do amor uma experiência claramente limitada? Não,
pois, antes de mais nada, esse limite não lhe é dado de um exterior, seja uma
realidade material que o tornaria parcialmente irrealizável, uma exigência
ética à qual ele contraviria, ou ainda a incidência de outro compo!1ente do
nó subjetivo que, em razão do amor, não tiraria proveito nem satisfação.
Livre desses constrangimentos que são outras tantas heterolimitações e de
finido como obtenção de um amor que não se obtém, o amor Lacan é amor
interruptus: ele detém em si mesmo seu próprio limite, limite esse que torna
possível seu fim. Não há aí nada de ordem sintomática; aliás, foi ress altado
o amor não é um sintoma. A obtenção do amor é sua não obtenção; s ua n ão
obtenção é sua obtenção. Além disso, sua limitação interna não é devida
a sabe-se lá que traço que lhe seria específico mas apenas à sua realiza ção.
Mais simples, impossível.
Esse amor não é a menor de suas virtudes, não reduz a nada a preciosa
solidão dos amantes, não alimenta até a absurda ilusão que a dissolveria, e
no entanto a isso contravém de alguma maneira. Assim, a fórmula escrita
por Philippe Sollers que ele de imediato considerou é transponível numa
outra: "Não se é tão amado, em suma". Caminhando juntos, solidão e amor
resultam do mesmo simili-paradoxo. Num tempo, o nosso, em que não
tem muito peso subjetivo o memento mori, o amor Lacan não espera que a
doença ou a morte mergulhe brutalmente o amante em sua solidão, tendo-o
até ali afastado disso. O regime do amor não é intensivo: "ser tão amado" ; o
excesso de amor ofende o amor, não é o amor. Uma de suas figuras é o amor
incondicional, uma outra o amor eterno, do qual Lacan não quis saber.
Como esse amor pôde surgir na experiência analítica? Ou, pelo menos,
na de Jacques Lacan, sobre a qual nos perguntamos (sem evidentemente
poder decidir - é uma das questões decisivas da escola possfve� se era singular
ou, então, igualmente exemplar. Penderão para a exemplaridade aqueles
que tiverem admitido com Lacan que "se oferecer com objeto de amor"
é constitutivo da posição analista. Exemplar lhes parecerá igualmente sua
resposta: a lenha analítica não se inflama, que queima no entanto - não
menos que o amor eterno, Lacan também recusava esse ideal de analista, em
outros lugares denominado ataraxia4 , que seria feito de insensibilidade aos
sentimentos que se têm por ele. Ele augurava mal de um analista que nunca
tivesse vontade de abraçar tal ou tal analisando ou de matá-lo. Essa lenha
que se "consome", que permanece úmida embora queime, é uma metáfora
apropriada para dizer a bivalência (não a ambivalência) do amor que se
4 Um psicanalista kleiniano elevou-a até a caricatura com seu cuidado de sempre usar exa
tamente a mesma roupa. Outra versão dessa crispação: a ordem de nunca mudar nada na
configuração do consultório ("crispação", aqui, remete a Winnicott que, médico, dizia de
um psicanalista que recusava absolutamente tocar seus pacientes que ele era vítima de uma
"ligeira crispação") .
O A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S 503
obtém não se obtendo. Mas é de fato uma simples metáfora, pelo menos
para Jacques Lacan? Pode dela duvidar quem tiver tomado ciência de sua
declaração a seus interlocutores católicos bruxelenses, quando ele confessava
que, nesse lugar de analista, ele desejava que acabasse de se "consumir" sua
vida; na Itália, falando de "consumição", ele insiste mais nisso.
Dessas confissões Lacan fez doutrina, a qual, em contrapartida, es
clarece essas confissões. Oferecer-se como objeto de amor passa por uma
ascese: tornar-se lenha úmida consumindo-se; assim surge o ponto em que
a experiência analítica intervém sobre o amor, forçando-o a se metamorfo
sear, ele que, visitante não convidado, veio forçar a porta dessa experiência.
Pois o analista não se oferece ele mesmo, se por "ele mesmo" entendemos
a inefável e amplamente superestimada singularidade com que cada um se
considera vestido e que, fora de análise, é pensada como aquilo mesmo que
ama e deseja ser amado. Freud, já, deu esse passo ao lado ao não atribuir
a seus encantos pessoais o amor do qual, psicanalista, ele foi objeto: ele
inventa a transferência (transmor), embora um número não desprezível de
testemunhos atestem que, pai demais5 , ele soube antes mal se livrar disso
(ele se recusa como encantador, não como pai, parecendo esquecer que um
pai pode encantar).
Se Freud foi pai demais, o que foi, então, Lacan? O que ele foi de
mais? Quanto ao transmor, ele inovou, embora o que acaba de ser dito de
Freud já se afigure, mutatis mutandis, poder ser bem amplamente referido a
Lacan - pois forjar uma posição, considerá-la desejável, é uma coisa, outra
coisa é limitar-se a ela, sustentá-la, já que a ascese esperada do psicanalista
é precisamente o que seria suscetível de operar a passagem de uma borda
à outra dessa ravina. Ao constatar tanto a descoberta da transferência por
Freud quanto a dificuldade que ela obstinadamente mostrava, inclusive
entre seus sucessores, Lacan percebe que sua solução, longe de poder ser
encarada de maneira temperada, reclama, mais ainda que o reconhecimento
da pregnância do transmor, uma mudança de registro amoroso. Foi esta a
5 Sobre esse tropismo "trop pere", ressaltado por Lacan, poderemos consultar minha obra
Sombm de te11 cão. Disc11rso psicanalítico disrnrso lésbico, Rio de Janeiro, Companhia de
Freud, 2006, em que são retomadas as observações de Lacan a discu tir o caso freudiano dito
da " Jovem homossexual" .
O AMO R L AC A N
realização, sobre esse ponto, de seu excesso de liberdade. Mais que ao amor
físico, ele dá sua preferência ao amor extático (Rousselot) - aquele do qual
não há teoria. Entretanto, não está dito que todo transmor se apresenta
nesse registro. É bem antes à sua acolhida pelo analista que caberá operar,
se convier, essa mudança de registro, essa deportação de qualquer amor
que seja até seu coração místico (Kierkegaard gostava muito de alface, mas
nunca comia o coração). Esse transmor pode bem tem a ver com um regime
tomista, a análise nem por isso vai se privar de acolhê-lo à moda de Madame
Guyon. À lenha não ardente vai caber essa operação que não é, com certeza,
exatamente o que a mística moderna denominou "ato passivo6 " mas que
é vizinha dessa modalidade do ato. O amor aí se faz úmido.
Há ainda outra maneira de dizer esse novo amor: se só há amor do
nome, o analista, este, não se nomeia. Ele só está ali (pois, sim, ele estd ali),
dissemos, "no último termo" como "aquilo que se cala na medida em que
ele falta a ser". Um intransponível limiar não é transposto, aquele mesmo
que faz que o amor seja obtido não sendo obtido. Jacques Lacan pôde, na
oportunidade, prevenir seu público: "Só a minha presença, em meu dis
curso, é minha burrice"; a indicação pode ser relacionada à sua presença
no consultório. Isso o analisando pode acabar percebendo, analisando cujo
amor não é de modo algum recusado, menos ainda interpretado, mas posto
à prova assídua de seu objeto inesperado (a lenha úmida). Presente, seu
analista é burro, burro por estar presente. E também é ao um belo dia virar
as costas a essa burrice, a ela não voltando, ao cessar de não voltar dela, que
o analisando vai mais diretamente estar às voltas com essa silenciosa falta a
ser cuja incidência acentua ainda mais o amor Lacan: "de obter o amor" o
cursor se desloca sobre o "que não se obtém". O analisando deixa ficar "só,
6 Ver ]. Le Brun, Le p11r 111110111: . . , op. cit., p. 31-32. Esse texto estabelece claramente a não
reciprocidade desse ato e do ato que dele resulta e que não volta ao ato primeiro: "[ . . . ]
abordado pelo desejo do amante, o amado não dá a este último o 'objeto' desconhecido
que ele buscava no amado, ele só lhe apresenta uma mudança de lugar, um nada que deixa
totalmente desinteressado o movimento de ' resposta' e só preenche o amante ao lhe roubar
o objeto fascinante, tornando-se ele mesmo de amado amante". Ver igualmente p. 87 onde,
a respeito da posição de Fénelon, Jacques Le Brun escreve: "Aquele que ama vê-se numa
posição onde, longe de "se servir de" (11ti) o objeto de seu amor, ele de certa forma passa a
ser 'coisa' de que se 'serve' o amado".
0 A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S
não tão só" o analista; o analista deixa ficar "só, não tão só" o analisando.
Fim da análise, cujo mistério nem por isso está inteiramente dissipado se for
exato, mas isso permanece não assegurado, que essa mesma falta a ser também
é aquela pela qual advém o desejo. Notou-se, igualmente, o esclarecimento
desse mistério, em que o jogo do amor, mais exatamente desse amor, seria
colocado a serviço do desejo, não ao alcance de um seminário, mesmo o de
Jacques Lacan. Ele estava prevenido disso e esperava de sua " Proposição de
outubro de 1967 sobre o psicanalista da escolà' que ela trouxesse essa luz se
não fora de alcance. Mais tarde ainda ( 1 1 de junho de 1974), ele lhe baliza
o caminho ao propor a qualquer um que ame seu inconsciente.
Um estranho acontecimento, absolutamente inesperado e não ainda
assinalado, parece, deixou sua marca no campo freudiano, acontecimento
que convoca o nome completo de Jacques Marie Lacan (Marie conta, que
é igualmente o segundo prenome de sua irmãzinha Madeleine). Admitire
mos que Jacques Marie Lacan não esperou a análise, nem sua análise, para
ocupar em sua vida e em relação ao amor a posição que ele ia dizer longe
de seu seminário e que acabamos de lembrar. Disso queremos por prova
que seu temor, manifestado em seminário ( 15 de fevereiro de 1977), diante
da posição de Madeleine reivindicando-se sabedora: "Maneine sabe", ela
lhe afirma, solidamente pousada sobre as duas pernas (seu saber para uma,
para a outra a ignorância: elas não se misturam como no conceito da douta
ignorância). Ela sabe, ponto. Sem evidentemente apoiar demais, ele então
sugere esse temor, mas também sua cólera diante desse saber pretendido que
não pode se articular por pouco que seja sem perder seu caráter absoluto7 •
Dessa cólera Jacques Marie Lacan fez virtude, prática e ensinamento - seu
nome "Marie" tendo inscrito, de maneira antecipada, sua própria antecipa
ção nessa posição. Vamos ler, num e noutro prenome da irmã e do irmão,
o Ma . . . , sílaba que, no hinduísmo, designa a maternal e feroz deusa Cali8 ,
7 Temor e cólera não estão no texto de seu relato. Eu no entanto os infiro, a partir de certas
declarações com as quais já estivemos às voltas aqui mesmo, notadamente aquela em que
Lacan se diz "escandalizado" com o esbanjamento do saber do qual qualquer um se acha
portador (Jacques Lacan, Le triomphe de ln religion. Précédé de Discou,, t111x ct1tholiq 11es, Pa
ris, Le Seuil, 2005, p. 1 8).
8
Ver o filme A de11st1, de Satyajit Ray.
506 O AMOR LACAN
9 Ver meu capítulo "Marguerite sachante", in Marguerite, 011 l'Aimée de Lacan, 2' éd. revista e
aumentada, Paris, Epel, 1994, p. 439-503.
w Cf Littoral, nº 34-35, "La part du secrétaire", Paris, Epel, a vril 1992. Igualmente, de Mi
chele Benvenga e Tomaso Costo, La main d11 prince. Petits traités d11 secrétail'e dans l'Italie
baroque, prefácio de Salvatore S. Nigro, tradução de Mireille Blanc-Sanchez, Paris, Epel,
1992.
11 Ver L'Unebévue, nº 21, "Psychanalystes sous la pluie de feu", Paris, Unebévue éd. 2004.
12 Michel Foucault, L'hermé11e11tiq11e du sujet, Cours au College de France, Paris, Gallimard, Le
Seuil, coll. "Les Hautes Études", 2001.
O AMO R L A C AN : QU E BRA C A B E Ç AS
sem que ele soubesse, dava seu solo à invenção da psicanálise. Este partido
é o de Jacques Lacan, seu nome de psicanalista. Eis, pois, o acontecimento
anunciado; Jacques Lacan foi o único psicanalista que jamais existiu13 - isto,
bem entendido, até prova em contrário - no qual o desejo de ser psicanalista
em nada foi diferente daquilo que ele chamou, depois dos sessenta anos,
"desejo do analista". Em todos os outros, a começar por seus alunos entre os
quais eu de bom grado me incluiria caso fosse possível incluir a si mesmo,
existe uma distância de início entre desejo de ser psicanalista (com os mais
variados e tendenciosos motivos, mas que podem ser absorvidos pela análise
didática) e desejo do analista.Aqui novamente a questão da exemplaridade.
A figura e a função do analista de imediato convieram a Lacan. Bem antes
de ele avançar como analista, seu nome sofreu uma fragmentação que distri
buiu as posições: Jacques Lacan, o analista, a ele a poltrona, o divã estando
então oferecido a Marie (seu nome de analisando), a Maneine (que não
tem nenhuma necessidade disso), a Marguerite e a todos aqueles, homens
e mulheres, que, após eles, lá se deitaram e que, por esse gesto mesmo,
acabaram feminizados 1 4 •
Ainda em 1976, uma analista em supervisão com ele pensará: "Não
podemos de qualquer modo brincar o tempo todo de Sócrates e Diotima 1 5 !".
Na desconfortável poltrona cujos braços são como os batentes de uma
chaminé 1 6 , eis o amante lenha úmida e ardente; no divã, a amante, da qual
1 3 A posição de Sigmund Freud também foi excepcional, e reconhecida cal. E sabemos a que
ponto a questão de sua "aucoanálise", ou ainda a de seu amigo Wilhelm Fliess em função de
analista ocupou os espíritos. Porém não podemos, sem forçar, aplicar a Freud as categorias aci
ma que, em compensação, convêm a Lacan: "desejo de ser psicanalista", "desejo do analista".
14 Já é possível ouvir o implicante: "Não, não, Marguerite Anzieu não foi uma analisanda de
Lacan". Certo. Vamos no encanto convidá-lo a se reportar às páginas dedicadas à questão
da transferência em ação no encontro que tiveram (referenciadas nota 9). O capítulo em
questão, que aqui acima recebe seu prolongamento, comporta, em epígrafe, uma citação de
Lacan em que se lê que ele foi levado a Freud por Marguerice Anzieu com esta questão: "O
que é o saber? " O prolongamento dito acima consiste em remontar de Marguerite Anzieu
a Maneine, um pouco como o filósofo se alegra ao pôr a mão numa ocorrência mais antiga
de um termo cuja primeira menção na língua ele até ali acreditara ter notado.
15 Élisabech Geblesco, Un amo11r de transfert. Joumal de 111011 contrôle avec Laca11 (J 974- 1981),
Paris, Epel, 2008, p. 120.
16 "Vejam! entre os batentes da chaminé, eis o objeto ao alcance da mão que o sequestrador só
•�m nup P < tP nrln __ _" ( T . Lacan, Écrits, 1966, p. 36) .
508 O AMOR LACAN
é sabido, ainda que por ali estar deitada, que ela não ocupa mais a posição
estrita de Maneine, que ela está inscrita na linha espiritual das Diotima,
Laura, Santa Mônica, Beatriz, Margarida de Navarra (Mar. . . ainda, como
Lacan não deixou de dizer sua importância para ele) e outras Tereza de Ávila,
sem esquecer aqui uma outra Mar. . . ainda, Marguerite Duras, lista à qual
vamos acrescentar 1 7 essas mulheres de saber que compunham os tribunais
de amor nos tempos da cortesia, e ainda, a despeito de sua mudança de
estatuto, essas pretensas alienadas da modernidade 1 8 que uma atividade
diagnóstica tenta, em vão, desapossar de seu saber ao fazer como se o saber
do ser delas fosse detido pelo médico. " Homenagem" é o nome da relação
que o amante mantém com elas, essas inspiradoras inspiradas19 ; "secretário",
o da encenação dessa relação ; "lenha" , a desse objeto que ele aceita ser para
que a homenagem tome corpo, que saúda, nelas, não só a incidência de um
(( ,. . )) . .
gozausenc1a mas a msp1raçao.
-
17
Ver igualmente a lista estabelecida por Jacques Le Brun p. 131 de sua obra Le pur amo111: . . ,
op. cit. Não se pode muito desprezar a análise que se segue relativa a esses "pares com ft.m
ções diferenciadas" , "desiguais", em que "uma hierarquia de inspiração e uma hierarquia de
jurisdição se articulam entre si". Jacques Le Brun identifica aí "um esquema para o historia
dor tornado um lugar comum, como se a inversão ou a subversão da ordem institucional
constituísse uma suficiente garantia de fidelidade a uma ordem originária ou primitiva, a
uma ordem oculta, isto é, "m ística".
18 Denominadas "doentes mentais" posteriormente e, hoje, "usuárias da psiquiatria". Prova de
que não se para o progresso.
19 CJ. Marianne Massin, La pemée vive Essai sur l'impiration philosophique, Paris, Armand
.
Colin, 2007.
20
Ver as belas páginas que Paul Veyne dedica ao tema "despersonalizar a vida interior" em seu
Fo11ca11/t. Sa pensée, sa perso1111e, Paris, Albin Michel, 2008, p. 191 sq.
0 AMOR L A C AN : QU E BRA C A BEÇ AS 509
Um limite não é apenas um obstáculo, mas também um algo que pode não
ser alcançado, em relação ao qual é possível ficar à ("boa") distância.
Em seu acolhimento do amor que tem por ele Alcibíades, Sócrates
está próximo de se realizar como qualquer um, ele que se sabe e sustenta
não deter os preciosos agalmata cobiçados porAlcibíades. Ele no entanto se
esquiva infine, enviando Alcibíades ao que ele pretende ser seu verdadeiro
objeto de amor, isto é, Agatão. Ao desiludir Alcibíades, Sócrates fica tal como
o oráculo de Delfos o fez, aquele alguém*, e até aquele único que recebeu
de Apolo uma missão. A ascese esperada do psicanalista é outra, pois, não
mais que Alcibíades, uma vez que o homem do desejo se volta para Sócrates,
o analisando não erra o caminho ao se dirigir a seu psicanalista conforme
a via eleita do transmor. E o analisa não o engana nem o desilude. Como
Sócrates na cena clandestina com Alcibíades, ele não se inflama, fica úmido;
no entanto arde, o que só pode ser tornado sensível ao analisando à condição
de nunca formular um "não é nada disso". Seja a observação: "Quando se
ama, está-se feito enamorado" . A ascese do psicanalista é regrada por esse
"estar feito enamorado", ela está a serviço desse "estar feito enamorado" que
ela permite que o analisando realize nos dois sentidos de "tornar efetivo"
(francês) e de "dar-se conta" (anglicismo). Aristóteles escreveu-lhe a fórmula
ao falar de sua preferência pela postura em que, sendo amados, nem por
isso concedemos nossos favores. Já era dar seu limite "lacaniano" ao amor,
já se dirigir, se ousamos assim dizer, rumo ao amor Lacan definido como
obtenção de um amor que não se obtém.
Lacan sentiu a que ponto era árduo colocar em prática essa ascese?
Com certeza. E é possível conceber, daí, o alcance estratégico de sua pro
posição de 1 1 de junho de 197 4 convidando todos a amar o inconsciente.
Não era dar corpo a esse limite do amor, que ele quis constitutivo do amor,
oferecer-lhe outro objeto que aquele para o qual o analista se faz lenha
úmida e ardente? Mesmo assim nos interrogamos: dar-lhe corpo já não era
reduzir-lhe a incidência?
Mas que valor dar à afirmação acima? A julgar pela ausência, nos dias
de hoje, de arquivos Lacan, tenho pouca chance, e meu leitor não muito
mais, por mais jovem que eu possa imaginá-lo, de ver publicados vários
espessos volumes que contariam a correspondência de Jacques Lacan2 1 • No
entanto, seria ali sobretudo que poderiam ser postas à prova as considerações
precedentes que levam a sério certas afirmações de Lacan até então mantidas
afastadas daquilo que se ensina sob seu nome. Uma porta foi aberta, uma
negligência acaba de ser suspensa, a que pretendia manter fora do campo de
sua doutrina a pessoa de Jacques Marie Lacan. Certo, seu fantasma [fàntôme]
por enquanto permanece, e com certeza por algum tempo ainda, silencioso,
em todo caso nesse ponto preciso de autorizar a constituição de arquivos
públicos (pois, no que se refere aos sonhos dos lacanianos e de outros ain
da. . . ). Alguém, entretanto, um dia acolherá seus dizeres hoje guardados nos
armários, a quem caberá, então, avaliar os meus. Por enquanto, estamos sob
a lei de uma universal afirmativa: todos mal servidos.
Esse amor Lacan, é possível a ele associar, sem muita ginástica intelectual,
certos traços que foram enunciados como que de passagem em tal ou tal
momento dos seminários, embora até nem sempre tenha sido possível
determinar até ali se aquelas observações eram mantidas ou, então, ao con
trário, tênues*, talvez até fadadas a apagamento? Quanto a algumas delas,
forjadas por Lacan ou simplesmente recolhidas por ele, a questão de fato
foi resolvida. Assim acontece com o pacto amoroso, o suicídio amoroso,
o amor libidinal, a oposição narcisismo-anaclitismo, o amor como "fazer
21 A publicação de sua correspondência com Marie de la Trinité é anunciada para 2020 (Le
11011vel âne, nº 9, setembro de 2008, p. 14, onde no entanto é ofertado um "bilhete" de
19 de setembro de 1950 de Lacan a: "Minha querida irmã") . Ver Marie de la Trinité, De
l'angoisse à ln pnix. Relntion écrite pour Jacques Lacnn, texto apresentado e comentado pela
Ora. Jacqueline Renaud, médica de Marie de la Trinité, Orbey, Arfuyen, 2003; bem como
" Cansem à n'être rien'; Cnmets 1936- 1942, Orbey, Arfuyen, 2006; igualmente, de Chris
tiane Sanson, Marie de ln Trinité. De l'angoisse à ln pnix, Paris, Cerf, 2005 (especialmente
nas p. 133-156, onde são narradas as desilusões de Marie de la Trinité entre psicopatologia
(incluindo quatro anos de análise com Lacan} e es piritualidade.
* Homofonia: . . . étaient tenues [eram mantidas] ou bien au contraire ténues [tênues]. (NT)
0 A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S 51 1
22
Em /e t'aime, 1111 peu, bea11co11p, passio1111é111e11t. . . Petite conférence mr litmo111·, Paris, Ba yard,
2008.
512 0 A M OR L A C AN
que é, pois, colar no saber? Não é evidentemente saber, menos ainda saber
que se sabe. É bem antes uma posição que evoca a douta ignorância do
Cusain, bem cedo saudada por Lacan; é, mais precisamente, estar a par do
fato que, para acabar, o saber não se alcança, mas, nesse ínterim, se obtém
de qualquer modo de maneira local e parcial. O que, longe de convidar a
renunciar a saber, incita a, ao contrário, talvez até dê raiva de saber2 3 • Scilicet,
"Você pode saber", foi o título escolhido por Lacan para a revista da Escola
Freudiana24 , uma revista em que ele quis - piscadela de olho para o qualquer
um - que os artigos não fossem assinados, exceto os dele, infelizmente fáceis
de identificar. Colar no saber é limitar-se a essa modalidade do saber em
que a figura do sujeito suposto saber é reconhecida vir ocupar, feito uma
miragem, o espaço desértico deixado vago entre o pedacinho de saber que
se obtém e o inacessível saber absoluto, verdadeiro de verdadeiro. Parecidas,
duas peças do quebra-cabeças se encaixam, portanto, segundo uma borda
denominada "sujeito suposto saber": da mesma forma que o saber, o amor
se obtém como que não se obtendo. Da mesma forma que o amor, o saber
não se obtém quando é exigido como se devesse ser obtido seja como for.
Varias vezes e sob diferentes ângulos, vamos estar às voltas com esse
isomorfismo do amor e do saber. Ele surge agora como a razão do "não há
teoria do amor". Ele foi primeiro encontrado com a leitura do Banquete de
Platão, depois a respeito do O deslumbramento* de Lol V. Stein, depois no
lapso ocasionado pela citação do poema de Tudal, depois no agarramento
do amor ao um do S 1 e, enfim, na leitura da poesia amorosa de Dante. De
um lado dessa borda fadada ao apagamento pela junção dessas duas peças, o
sujeito suposto saber sobrevém na medida mesma em que a aquisição de um
23 Segundo Boris Vian, a iniciativa do sábio é dita nos seguintes termos: "Tem algo aí que está
soando mal, volto imediatamente". Esse dito espirituoso dá a razão da volta do analisando
à sua próxima sessão de análise, igualmente da assiduidade de Lacan a seu seminário, e isto
até perceber que o "que está soando mal" nada mais é que o objeto a definido como "não é
isso" {ver meu comentário dessa incidência do objeto a em Freud et p11is Laca11, op. cit.).
24 Em "A quem se endereça Scilicet" (Scilicet, nº 1, 1968, p. 3-13), Lacan escreve: "Scilicet:
você pode saber, é este o sentido desse título" (primeira frase) . O sentido, talvez, mas não
aquele que uma exata tradução desse advérbio daria: "é evidente que . . . ", "desnecessário dizer
que . . . ", "com certeza", "a saber".
• Também traduzido por O a/'/'ebatamento de Lol V. Stein. (NT)
0 A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S 513
25 A lnn n < r� lriados. não hesitam em ali alojar o que Freud chamou "recalque primário".
51 4 O A M O R LACA N
na ordem do dia. E o ódio pode encontrar aí seu alimento, uma vez que
continua colocada a questão de saber que determinações permitem outra
saída, outro fim do transmor.
O cômico amoroso é uma dessas determinações. Uma outra ainda é
o amor pensado como dom (nova peça). "Consumo" é o nome desse dom,
que não é portanto um dom daquilo que não se tem, nem tampouco um
dom daquilo que se é, mas dom não sacrifical de um des-ser ("não sacrifical"
pois nada daí é esperado em contrapartida, ele simplesmente caminha junto
com um efeito de destituição subjetiva). Esse dom é suscetível de impedir
a virada do amor em ódio? Se o for, e ele o é, só pode ser deixando aberta a
possibilidade dessa virada, não sendo por ela obcecado. Daí, contrastando
com suas afirmações sobre o amor, a discrição de Lacan quanto ao ódio.
É possível pendurar nesse conjunto agora em via de acabamento, em
outras palavras, de incompletude, a noção de uma reciprocidade amorosa?
Já o caráter insustentável e não sustentado do mito do encontro das duas
mãos assinalava que isso não é possível. Acrescentaremos que a homenagem
amorosa que a consumição presta ao transmor instaura, entre esses dois,
uma dissimetria.
Mais árdua surge a questão do limite do amor e de seu eventual para
além, aquele, em outras palavras, do malogro (décima peça). De imediato
temos aqui recusado esse para além do amor. Mas era, sem muito saber
então, entrar em dificuldades, era ir contra afirmações que soavam bem
diferentes, que até objetavam à posição eleita. Porém não convém evocar
aqui a maneira como o amor, pendurado no 1 do S 1 , bloqueava a função
simbólica, pois esse amor, a ressaltar o "fazer um", não é o amor Lacan. Não
há por que se emocionar tampouco com a constatação de que a realização do
borromeano pode mudar bruscamente de direção em razão até da realização
do amor (capítulo XXII), pois o prosseguimento da tecedura é precisamente
o que permite pensar as duas proposições axiais do amor Lacan. Primeira
tecedura: obter o amor; segunda tecedura: o amor que não se obtém. Em
compensação, há de fato um problema uma vez que é admitido que se o
amor escreve, ele não rasura, que, portanto, o gesto caligráfico lhe é subje
tivamente superior. O passo suplementar na subjetivação/dessubjetivação
vale como um para além do amor? Formalmente, essa questão parece da
O AMOR L A C AN : QU E B RA C A B E Ç AS 51 7
26 Entenderemos aqui "discurso místico" num sentido simplesmente descritivo, sem portanto
entrar no debate suscetível de decidir a questão de saber se as afirmações que ressaltam o
misticismo fazem ou não "discurso" .
2 7 "Einen gemdez11 mystischen Eindmck macht" (Sigmund Freud, A11-delà du principe de plaisir,
Paris, Payot, 1987, p. 102; citado por J. Le Brun, in Le p11r amo11r. . . , op. cit., p. 301) .
28
Sigm11nd Fre11d and the jewish Mystical Thtdition teve, em inglês, vários editores: Schocken
Books em 1965, Free Assn Books em 1990; Dover Publications em 2005 . A tradução em
francês de que disponho, de 1977, assinala uma primeira publicação na coleção "Science de
l'homme" na editora Payot, mas sem menção de data. O autor do prefácio assassino dessa
edição era um membro dos mais eminentes da ortodoxia freudiana internacional .
'" " ' º - - - = - - · · = •� '-�m �rnl h irl� ,.m littnml n ° 9 (iunho de 1983), que a obra de Bakan pelo
518 O A MO R LACAN
clicava mais de trinta páginas à relação entre Freud e a mística em seu livro
O entendimento freudianrr0; em 2002, as edições Le Seuil publicam a obra
de Jacques Le Brun já mencionada; mais recentemente ainda, depois de
François Balmes publicar ainda vivo (I 999, Presses universitaires de France}
seu mui notável O que Lacan diz do ser, pudemos ler outra obra desse autor:
Deus, o sexo e a verdade (Éres, 2007). Devemos também a Catherine Millot
dois livros importantes: Abismos comuns, em 200 1, e A vida perfeita, Jeanne
Guyon, Simone Weil, Etty Hillesum, em 2006 (ambos na editora Gallimard)
e a Sean Wilder, bem recentemente, a obra Um sujeito sem eu [ mot1 . Psi
candlise e experiência mística (Epel, 2008). Essa lista não é nem exaustiva
nem fechada mas suficiente, com certeza, para que hoje se possa falar de um
frêmito místico do campo freudiano. Para elucidar o que ali se passa, seria
preciso todo um estudo que aqui deve apenas ser esboçado.
Conjectura: a despeito de milhares de artigos e obras escritas há um
século sobre esse tema, a persistência de uma dificuldade, do lado psicana
lista, em acolher o amódio de transferência de modo que possa encontrar
sua feliz solução não se deve a uma timidez mal colocada, a uma falsa
prudência, talvez a uma falta de audácia, de coragem e de liberdade? O
que cobre a noção de "neutralidade benevolente" que, tal como notavam
autor de seu prefácio: ver os artigos de Alain de Libera e Frédéric Nef, de Guy Le Gaufey,
aos quais responde uma breve missiva de M. de Certeau, seguida de outro artigo ainda,
assinado por Philippe Julien. Não se pode recusar a justeza histórica e "científica" dessas lei
turas críticas que só têm, portanto, um erro : permanecem sem alcance sobre seu objeto. Só
queremos por prova a retomada por Jacques Le Brun, decerto num modo sensivelmente di
ferente, daquilo mesmo que era recusado em M. de Certeau, a saber, sua própria implicação
em seu objeto de estudo. Metodologicamente, a iniciativa deles é também a mesma, pois,
enquanto Certeau escolhe "instalar-se primeiramente no centro desse campo de fronteiras
históricas moventes", da mesma forma Le Brun escolhe um ponto de observação (as crises
do fim do século xvn) para, dali, reportar-se mais acima depois mais abaixo. Mais acima
onde "o historiador desce de novo até si mesmo, perdendo sua posição privilegiada para
não ser mais senão um provisório ponto culminante do destino dos objetos cujas formas sucessivas
ele estuda" 0- Le Brun, Le pur amou,: .. , op. cit., p. 22 - sublinho) . Assim, é possível, em
resposta a seus críticos, pôr na boca de M . de Certeau a frase que Fénelon endereçava aos
seus: "Vocês só se salvam não se explicando nunca sobre minhas questões" (citado por J . Le
Brun, Le pur amour... , op. cit. , p. 123).
-1 0 Um primeiro artigo do mesmo autor sobre "Freud e a mística" era publicado na Nouvelle
revue de psychannlyse, nº 22, outono de 1 980
0 AMOR L A C AN : QU E BRA C A BE Ç AS 519
Laplanche e Pontalis, não é "em geral contestada pelos analistas 31 " ? J á não
é desprezar o registro e o teor do transmor acolhê-lo como um p roble
ma "técnico" que deve ser resolvido pela dita neutralidade benevolente?
Igual mente citada no Vocabuldrio dapsicandlise, uma declaração de Freud
feita em 1 9 1 8 permanece por certo de grande j usteza: " Recusamos cate
goricamente considerar como nosso bem próprio o paciente que requer
nossa aj uda e se coloca em nossas mãos . Não buscamos nem fo rmar para
ele seu destino, nem inculcar-lhe nossos ideais, nem modelá-lo à nossa
imagem com o orgulho de um criador" . Podemos duvidar que o "paciente"
se recupere "inteiramente em nossas mãos" . Por mais longe que estej a o
caso, ele liga o psicanalista, exercendo sobre ele um domínio que tem nome
"transmor" . Por isso, essa recusa de toda imiscuição moralizante regra a
questão colocada pelo transmor? O sin tagma "neutralidade benevolente"
não figura no corpus freudiano, isolados nele se encontram, dispersos,
raros, os termos "neutralidade" e " benevolência 3 2 " . En tretanto, em 1 9 1 7 ,
a pena de Freud havia soltado "simpatia compreensiva" . É o mínimo q ue
se pode esperar de um médico o u de um sacerdote, os dois personagens
que Freud afastava para extrair uma posição que seria propriamente de
analista. Daí, talvez, o s ucesso de "neutralidade benevolente" que, além
disso , faz figura de oximoro e veicula suas virtudes . Os lacartianos, tanto
quanto sei, não estão muito i nteressados nisso. Em vez de desdobrar-lhe
as aporias, vamos colocar em seu lugar o amor Lacan, que apresenta a
mesma tensão, mas , desta vez, enfim, num registro que convém ao trans-
mor: no l ugar d e " b enevo l ente " co l ocaremos " o b ter o amor " , e no d e
"neutralidade" , "que não se obtém" . Terá sido este, então , o passo efetuado
por Lacan, cuj a prática sabia na oportunidade não ser em nada "neu tra" ,
pelo menos no sentido em que o analista se quereria não implicado, e não
tampouco, " benevolente" , pelo menos no sen tido usual, pastoral , desse
termo. Veremos nisso uma consequência do desej o que o animava e que
o fazia ir à frente da liberdade de outrem.
31 Jean Laplanche, J .-B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse, Paris, PuF, 1967, p. 266-
267.
32 Este último termo em Le moí et /e ça (Paris, Payot, 1987, p. 109) em que está em questão
' ... • ,, ' • L•: /. 1-_ t V/... J,. J. . . ,. /1.,,.,) - n n t::1 m os o o ximo ro .
520 O A M O R LACAN
M me Guyon está mais próxima de sua realização que seu mestre Fé
nelon, a quem ela escreve, repreendendo-o: "Não, você nunca será próprio
a ser feito um homem novo a não ser quando tiver se tornado lama3 5 ".
Ela sabe, ela, que o puro amor não vem da ciência mas da experiência. E,
revelado por Le Brun 36 , o fracasso de Fénelon em pensar o puro amor não
o desaprova. Michel de Certeau dizia o "privilégio da relação sobre a pro
posição 3 7" . Assim fica claro que a recusa, de imediato, de teorizar o amor já
situava o amor Lacan numa proximidade com o amor místico. A ordem de
racionalidade das afirmações de Lacan sobre o amor os torna primos dessa
"ciência dos santos 38 " posta em prática no século XVII e que nunca adquiriu
o rigor dos enunciados teológicos. O que acontece exatamente? Se não é
por certo possível identificá-los como tais, pelo menos p.;irece espantoso o
"ar de famílià' (Wittgenstein).
Um de seus traços comuns entre os mais nítidos é o reconhecimento
de uma deiscência estritamente interna ao amor. Outros vêm junto: a an
coragem, no próprio seio do amor, da possibilidade do ódio;• o luto de si
mesmo; o ato passivo (denominado "inação", diremos em que sentido).
Ou seja, pois, a primeira formulação da suposição impossível tal como
a escreve Fénelon a M me Guyon, em 28 de março de 1689:
O cristão, que se abandona sem reserva, pode bem consentir em ser eter
namente punido e infeliz, se for a vontade de Deus, mas parece-me que
ele não pode nunca consentir em odiar Deus no inferno; caso contrário,
aconteceria, em conformidade com a vontade de Deus, de ele querer ser
contrário a essa mesma vontade, o que seria uma contradição39 •
1
·
9
J. Le Brun, Le p 11r nmo11r. . . , op. cit. , p. 1 49 .
40
Jbid. , p. 1 6 1 .
.t 1 11- : J _ 1 t.: n
522 0 AMOR L A C A N
42 Ibid. , p. 1 64 .
43 J. Lacan, Le moi. . . , op. cit., p. 287.
4 4 J. Le Brun, Le p 11r amo111: .. , op. cit., p. 1 52- 1 53 .
45 Ibid. , p. 1 88 .
O AMOR L AC AN : QU E B RA C A BEÇAS 523
Por isso, essas aproximações que podem chegar a valer como efetivos
cruzamentos não autorizam a desprezar em que e como diferem o puro amor
e o amor Lacan. A esse respeito, exceto o amor unitivo que acaba de estar
em questão e que não é por certo o amor Lacan, o outro traço diferencial
principal é este: o puro amor elege um objeto - Deus - cujo estatuto é
claramente aquele de um mestre, e de um mestre que o puro amor cuida
bem de manter em Sua posição de mestre, em Sua liberdade, em nada
ligando, absolutamente nada, Sua vontade. Isso ao ponto de excluir que
seja excluído que essa vontade seja ruim: Deus pode me querer no inferno,
não o amarei menos. ''A vontade de Deus, escreve Le Brun, está no cerne
da famosa suposição impossível46 " . Quanto a ela, Marie de la Trinité, que
se tornará terapeuta no hospital de Vaugirard, conclui assim (num registro
bem próximo do puro amor) o fim de seus sofrimentos depositados nas
mãos de psiquiatras (o primeiro deles propondo-lhe com insistência uma
lobotomia, depois eletrochoques), de psicanalistas, de diretores espirituais,
de autoridades conventuais:
Meu Deus, estou à vossa mercê. Se fiz mal e desejais me castigar, fazei-o; se
quereis me perdoar, fazei-o; se quereis me preencher, fazei-o; e se quereis que
eu vos adore, criai o louvor em meus lábios (como diz Isaías) [suas obsessões,
cujo conteúdo ignoramos mas não a violência, a impediam de orar] . Orei
com todo o meu coração essas poucas palavras; depois, o silêncio de ferro
caiu. Ele não se levantou47 •
48
J. Le Brun, Le p11r 111110111: . . , op. cit., p. 1 59.
RE F E RÊ N C IA S B I B L I O G RÁ F I CA S
D E JAC Q!J E S LACAN
1 . E S C RITO S
I I . TRANS CRIÇÕES
I I I . S EMINÁRIO S
Q
uero expressar minha imensa gratidão a Daniel/eArnoux, Isabel/e Châte
let, Guy Le Gaufey, Thierry Marchaise e Mayette Viltard que, cada um
à sua maneira, leram atentamente o manuscrito desta obra e, de modo gentil
mas firme, obrigaram-se a numerosas modificações. Meus agradecimentos vão
tambémpara os participantes de meu semindrio na França, na América Latina
e na Austrdlia que, com suas intervenções, contribuírampara as afirmações que
acabamos de ler fossem mais exatamente aquelas que eu acreditava formular.
Devo a David Halperin a composição ''em pórticos " do conjunto deste texto e
aqui lhe agradeço por isso.
1 5 de agosto de 2009
] EAN ALLOUCH
Definição: o amor é aquilo que põe o narcisismo a
serviço de uma enga nação. Qual é ela? Quais são
as vias? Suas consequências? O que ali é passado
para trás? Como o psicanalista pode jogar com
isso? " Enganação": se essa palavra por um tempo
ressoou em Lacan como associada ao simbólico
(a enganação valendo como dêitico de que de
fato se estava às voltas com um sujeito), é bem
num outro sentido que ela aqui intervém. A en
ganação do amor, a enganação que é o amor, sur
ge nos seminários em 1 2 de fevereiro de 1 964.
Neles reaparecerá, algumas vezes, pelo menos
em fevereiro de 1 966. Mas o próprio fato vai
continuar sua estrada bem para além dessa data
e sofrer notáveis transformações. Na linha "en
ganação", o amor é designado como uma "falsi
dade" em 1 7 de j u nho de 1 964, como uma "ne
gação" em 7 de dezembro de 1 966, como um
"monstro" ou ainda como "importuno" em 18
de janeiro de 1967, como um "melaço" em 2 1
de fevereiro de 1 968 . Em 9 de junho de 1 97 1 ,
de maneira talvez mais neutra, ele é apresenta
do como uma máscara. Não se imaginará, pelo
menos a priori, que o amor assim colorido seja
diferen te do amor como dom daquilo que não
se tem que, este, ainda que por pura cretinice,
parece dar alguma esperança e satisfazer a ética.
Ao contrário, seria possível que o amor como
dom daquilo que não se tem fosse ele mesmo
enganação, falsidade, negação, monstro, mela-