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JEAN Al.

LOUCH

ÜAMORLACAN

TRADUÇÃO
Procopio Abreu

EDITOR
José Nazar
Copyright © Epd, 2009

TÍTULO ÜRJGINAL
L'amour Laca11

Direitos de edição em 1/ngua portuguesa adquiridos pela


EDITORA CAMPO MAT!MICO
Proibida a reprodução total ou parcial

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
FA - Editomçiio Eletrô11ica

TRADUÇÃO
Procopio Abreu

REVISÃO
Sa11dra Regi11a Felgueiras

EDITOR RESPONSÁVEL
JoslNazar

CONSELHO EDITORIAL
Bru110 Palauo Nazar
JoséNazar
joslMdrio Simil Corekiro
Maria Emília Lobato L11ci11do
Pedro Palauo Nazar
Teresa Palauo Nazar
Ruth Ferreira Bastos

Rio de Janeiro, 2010

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO SINDICATO NACIONAL


DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A438s

Allouch, Jean
O amor Lacan / Jean Allouch; tradução Procópio Abreu. - Rio de
Janeiro; Companhia de Freud, 201O:

Tradução de: L"amour Lacan au remps du borromén


Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7724-082-I

1. amor. 2. relação humana. 3. psicanálise - congresso . I rímlo

07-3219. COO: 150.195


CDU: 159.964.2

editora

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Tel.: (21) 2273-9357 • (21) 2293-5863
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e-mail: ciadefreud@gmail.com
Por favor, não me responda,
a primavera não nos agradece porque a amamos.
MARCEL PROUST

Então, fiquemos felizes por minha voz ser baixa...


JACQUES Ll.CAN
SUMÁRIO

PRÓLOGO ....•...•......•••••••..........•.............. 11
"Lacan mesmo" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
O amor sem aprisionamento ............................. 15
Fazer amor? .......................................... 19
O amor com e o amor sem teoria .......................... 21
Não há interpretação ................................... 24
Fora da fantasia ....................................... 26
Tampouco há materna .................................. 28
Promessas não cumpridas ................................ 31
Conquistas ........................................... 36
· Paixões do Ser ......................................... 42
Predileção ............................................ 49

CAPÍTULO 1 - RUMO A UM AMOR SIMBÓLICO••••...............•.• 55


O amor de transferência reconhecido como amor verdadeiro ..... 58
Escoramentos e perigos de um amor quase simbólico ........... 70
Da escravidão amorosa .................................. 78

CAPÍTULO II - RUMO A UM AMOR EXTÁTICO ..•................... 83


Da miragem amorosa ................................... 83
Da fidelidade no amor .................................. 86
Do amor morto ....................................... 89

CAPÍTULO III - Ü ARCABOUÇO DO AMOR ........................ 99


Recusa crítica do par narcisismo-anaclitismo ................. 99
A instituição da falta na relação com o objeto ................ 102
Do amor como dom ................................... 106
Esquema do véu ...................................... 111

CAPÍTULO IV - O AMOR í CÔMICO .•......................... 115


Do cômico como registro do amor ........................ 116
Do amor como horizonte: necessidade, demanda, desejo ....... 125
Da homenagem ao ser e de dois amores .................... 130
CAPÍTULO V - Ü AMOR NÃO É UMA SUBLIMAÇÃO ..........•.••... 135
Uma regressão? ....................................... 138
Uma escolha bem singular .............................. 141
Uma outra versão do dom? .............................. 143

CAPÍTULO VI - ÜNDE UM FALECIMENTO REVELA COMO O AMOR


PODE FRACASSAR .................................•....... 147

CAPÍTULOVII - Ü AMOR ENFIM DE TRANSFE!lÍ.NCIA ........•••.•.. 159


Uma via? ........................................... 159
Do qualquer um ...................................... 163

CAPÍTULOVIII - O CASO ALcrnfADES . . ...•................... 177


Rumo a uma antinomia ................................ 189

CAPÍTULO IX - EROS E PSIQUE ... . .......................•.. 197

X - METAFÍSICA DO AMOR .........•............... 207


CAPÍTULO
Do amor libidinal ..................................... 208
Um duplo passo ao lado ................................ 214

CAPÍTULO XI - HEGEL, LACAN: DUAS IRRESISTfvEIS RECEITAS PARA


OBTER O AMOR
Do constrangimento amoroso ........................... 219
Amor e saber: o segundo encontro ........................ 229
Segredinho .......................................... 230

CAPÍTULO XII - Ü AMOR lACAN APÓS O OBJETO a . . . . . . . . . . . . . . . 237

CAPÍTULO XIII - Ü AMOR ENGANADOR ...•...........•....... 247


Dialética do olho e do olhar ............................. 250
Escoramentos ........................................ 256
A foraclusão amorosa .................................. 261

CAPÍTULO XIV - RUMO A UM OUTRO AMOR .................... 271


A alternativa: um outro amor, ou então uma virada da
enganação amorosa? ................................. 271
Pontuações .......................................... 277
CAPÍTULO XV - O (a)MURO ................................ 285

CAPÍTULO XVI- Ü AMOR ESCREVE, NÁO RASURA ................. 301


Da carta de amor ..................................... 303
Homem, mulher ..................................... 309
Amor e caligrafia ..................................... 317

CAPÍTULO XVII- FAZER UM ............................... 327


Uma encenação primitiva ............................... 327
Amor e gozo ......................................... 333
Quando amar conta ................................... 336

CAPÍTULO XVIII- Ü AMOR NOS TEMPOS DA NÃO-RELAÇÁO SEXUAL ... 343


Para um amor acostumado com o para-ser .................. 346
Metamorfose do amor ................................. 359
Um novo amor? ...................................... 364

CAPÍTULO XIX- O ALMOR ................................ 373


Deus mulher ........................................... 373
O reconhecimento amoroso ............................... 382

CAPÍTULO XX- A ESTIMA AMOROSA .......................... 391


Precariedade modal do amor ............................... 391
A estima amorosa ....................................... 401

CAPÍTULO XXI- EVICÇÔES ................................ 409

CAPÍTULO XXII- Ü AMOR NOS TEMPOS DO BORROMEANO .......... 417


Do dois do amor ........................................ 417
Do amor cristão ........................................ 427
Amor, gozo, subjetivação . ................................. 444

CAPÍTULO XXIII- PROPOSIÇÁO DE 11 DE JUNHO DE 1974 ......... 453


A escolha de Aristóteles ................................ 457
Do amódio .......................................... 462
Paternidade, eternidade ................................ 472
CAPÍTULO XXIV - DANTE VERSUS LACAN ..•...........••••••.. 477
Os nomes e as coisas ................................... 477
A mourre e o amor .................................... 492

CONCLUSÃO - Ü AMOR LACAN: QUEBRA-CABEÇAS ........••••••••• 499


Escoramento do amor Lacan . .. .. . . .. . .. . .. . . . . . . . .. . . . . 501
Configuração do amor Lacan . .. . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . 51O
Amor Lacan e puro amor . . .. .. . . . .. .. .. . . . . . . . . . . .. . . . . 517

BIBLIOGRAFIA ..••............•••.•........•........•... 525

AGRADECIMENTOS .......•..•.•.....•••.......••••.•••••. 529


PRÓLOGO

Se começo pelo amor,


é que o amor é, pam todos
- por mais que o neguem -,
a grande coisa da vida'
BAUDELAIRE

O amor é coisa séria demais para ser deixada nas mãos unidas dos apai­
xonados. Por isso, na Antiguidade grega, existiam várias práticas e
outros tantos atores a quem as pessoas recorriam para assegurar seu sucesso.
Hoje, por vezes apelamos não para um intermediário influente, nem para
um bruxo capaz de tornar mais segura a execução de um rito mágico pro­
piciatório, nem sequer para um deus, mas para um psicanalista, quando
fica evidente demais que, em se tratando de amor... a coisa não funciona.
Um sintoma, um ato falho, um lapso acaba de fazer soar o alarme, ou
então ainda um mesmo e desastroso roteiro parece incansavelmente se
repetir de fracasso amoroso em fracasso amoroso. Assim se ·inicia uma
nova e singular ligação, cujo desfecho ninguém conhece. Em parte, esse
desfecho depende do psicanalista. Convém que, moderno Sócrates, ele
também seja sábio no amor?
Seja ela qual for, a experiência amorosa é aquela de seu próprio limite.
Não tanto que o amor tenha um fim, uma vez que a ligação se rompe ou
que a morte lhe dá um fim. Acontece, e vamos lançar na conta da contin­
gência. É num outro sentido, necessário, que vamos entender esse traço
da experiência amorosa: por mais atual, por mais intensa, por mais talvez
até apaixonada que seja, ela permanece autolimitada. Vale dizer que esse
traço atinge igualmente o amor mais eterno. O amor eterno é uma figura

1 Baudelaire, "Choix de maximes consolantes sur l'amour", in CEuvres completes, Paris, Galli­
mard, coll. "Bibliorheque de la Pléiade", 1975, p. 546.
12 0 AMOR LACAN

do amor; houve outras, que Lacan visitou e afastou para, discretamente,


trazer à luz a experiência amorosa tal como a psicanálise lhe oferecia: é da
ordem ou da desordem amorosa configurar um limite e nele se manter. Seu
avanço o traça, o torna efetivo. O que seria um amor que não desprezasse
o que é o amor? A questão não é tão trivial quanto parece.
Mas, então, o que ali determina, o que, por vezes, absorve uma vida
no reduto da experiência amorosa, mesmo que essa vida seja regrada pelo
sentimento oceânico? E como saber isso, se não for por essa própria experi­
ência? Como é sabido, o amor não se manteve fora do campo do exercício
psicanalítico. Dele recebeu um novo nome: transferência. Já era notar,
mesmó que numa certa escuridão mantida, que ela ali jogava uma partida
inédita,.que, portanto, podia dali receber uma luz, também inédita. Tam­
bém era, em relação ao amor e notadamente do lado do psicanalista, criar
um embaraço. Desse embaraço Lacan quis fazer virtude analítica. Não lhe
restou outra solução senão seguir a experiência, tanto transferencial quanto
amorosa. Com efeito, nenhuma diferença, tanto que se usará um neologismo
- transmor - para melhor dizer a estrita identidade deles. O transmor não é
a análise, como atesta nela ter-se introduzido sem ter sido convidado. Ines­
perada, ainda menos imaginada, sua irrupção na análise terá sido tornada
possível pelo dispositivo analítico. O que, então, nesse dispositivo, permitiu
essa intrusão? O fato é que uma vez ali instalado, ali quase à vontade, o
amor se achava em curiosa postura. Ei-lo coabitando, gostando ou não,
com o que, igualmente, é experiência, a experiência analítica. Nada igual
jamais lhe acontecera. Como um animal darwiniano vindo do continente
até as ilhas Galápagos, a experiência amorosa foi levada a se transformar,
embora permanecesse ela mesma, a fim de se inserir na experiência analítica.
Assim, teremos distinguido um de seus traços até ali se não absolutamente
mascarado, pelo menos negligenciado: sua autolimitação.
Chamaremos "amor Lacan" essa figura do amor na qual se manifestou
o caráter limitado da experiência amorosa. Assim, amar vale como uma figura
inédita do amor. Ela merece um nome. Se não há nenhum para além desse
amor (a análise não é um), há, em compensação, um novo amor, aquele
que saberia jogar plenamente o jogo de seu próprio limite. Uma palavra,
bem simples, poderia abordar esse jogo: amar é deixar o outro ser único.
PRÓLOGO 13

Efetivamente único e mesmo assim amado. Esse amor não unifica, não
fabrica "um", a despeito de desagradar a alma de Aristófanes; ele também
não permite "estar a dois". Então, o que acontece com o amado? Ele é ama­
do, mas nem por isso com um amor que atacaria sua não menos preciosa
solidão. Amado, ele poderá sentir-se não amado. Não amado, ele poderá
sentir-se amado. O que se deixa abreviar assim: ele terá obtido o amor que
não se obtém.

"LACAN MESMO"

É não a Lacan mas a uma palavra de Philippe Sollers que devo o surgimento
dessa maneira de amar. Na primavera de 2002, a revista L'infini publicava
uma entrevista com Sollers, intitulada "Lacan mesmo2", cuja leitura me
impressionou de uma maneira que eu não saberia melhor dizer a não ser
contando o pensamento que me atravessou desde suas primeiras linhas e ao
longo de toda a sequência: já lá se vão agora quarenta anos que Lacan me
ocupa por um inverossímil número de horas, trinta anos que escrevo a seu
respeito, e eis que esse Philippe Sollers, levianamente, sem todo esse trabalho,
publica hoje um texto sobre Lacan que posso perfeitamente assinar também.
Eu estava siderado, blefado com certeza. Nossos julgamentos se cruzam.
Assim, quando Sollers declara que convém tomar Lacan "em suis hesitações,
seus arrependimentos, seus silêncios, seus berros... ", aquilo, precisamente, a
que vamos nos dedicar nesta obra; ou quando conta que Lacan lhe escreveu:
"Em suma, não estamos tão sós afinaP", um traço destinado a caracterizar o
amor Lacan, ainda que, considerando seu destinatário, também seja possível
ouvir "Não estamos tão 'sol', em suma não tão 'Sollers'"; ou ainda quando
ele nota que "O nome de Bataille era um problema considerável na região

2 Philippe Sollers, "Lacan même", entrevista com Sophie Barrau, L'infini, nº 78, Paris, Galli­
mard, primavera de 2002, p. 10-23 (retomada com um posfácio de Jacques-Alain Miller
em Philippe Sollers, Lt1ct111 même, Paris, Navarin, 2005). Cf., igualmente, "Nature d'Éros",
L'infini, nº 80, outono de 2002.
3 P. Sollers, "Lacan même", are. citado, p. 12. Trata-se da dedicatória dos Escritos endereçada
a Sollers.
0 AMOR LACAN

Lacan", acrescentando: "É muito mal visto ser Bataille para as matriarcas da
região, não é, muito muito mal visto. Péssima reputação. [...] uma vida que
não é desejável, liberdade demais". Se devêssemos procurar o Lacan que teria
inovado em matéria de amor, é nesse próprio ponto que Sollers qualifica
com um "liberdade demais", nesse ponto que notadamente emergiu com
o livro de Sibylle Lacan sobre seu pai4 • Em que Lacan, no que se refere ao
amor, teria manifestado sua liberdade excessiva? Essa entrevista abre uma
porta à resposta. Sophie Barrau pergunta a Sollers:

Afinal o que buscava Lacan... na sua opinião... o que ele buscava?


(Ele reflete) O amor que ele não obteve.
Que ele não obteve... ?
Ele não foi amado.
.. . Que ele não obteve quando?
Nunca.
O senhor querfalar da vida dele, da infância dele?
Sim. De tudo. De sua constituição. Ele não foi amado. Há com o que ficar
furioso. E acho que isso o atormentava muito. E acho que ele gostaria de ter
tido um reconhecimento muito mais amplo, a submissão da universidade,
a realização de um sonho megalomaníaco, uma vontade generalizada de
poder, ser sagrado. Acho que ele teve esse sonho de todo-poder.
Para ter o amor que, na sua opinião, ele nunca teria obtido?
Sempre tive a impressão de que ele nunca se curara de um dodói de amor.
De um enorme dodói. A coisa não funcionava.

É possível entender essa conversa de duas maneiras. A primeira: La­


can buscava o amor, e não o obteve. A segunda: Lacan buscava uma certa
espécie de amor, o amor que não se obtém. Não era essa própria busca que
fazia de Lacan um psicanalista? A coisa vale só para ele, ou para todo psi­
canalista? Trata-se aí da "excessiva liberdade" que Lacan se teria outorgado

4 Sibylle Lacan, Un pere. Puzzle, Paris, Gallimard, 1994.


PRÓLOGO 15

em relação ao amor? Esse amor que se obtém como se não fosse obtido
não é o eco, a contrapartida dessa solidão, "não tão sós", que Lacan citava
junto a Sollers? Não se trata aí, precisamente, da solidão do psicanalista?
Aquela que encontramos abordada por Donald Winnicott que, num artigo
intitulado ''A capacidade de ser só 5 ", evoca o que seria uma feliz solidão em
presença de alguém?

O AMOR SEM APRISIONAMENTO

Contam que Renoir dizia que "um quadro é a coisa que mais ouve bestei­
ras" . Não é igualmente a experiência do pequeno deus Eros? O que com
tanta facilidade vira besteira tem um nome, "comentário", tão justamente
questionado por Michel Foucault bem no início de Nascimento da clínica.
Mostraremos que as palavras que Jacques Lacan pôde, não sem reticências,
dedicar ao amor decorrem de uma posição mantida permanentemente: um
comentário que queira ser de ordem teórica não convém ao amor. Aliás, não
se sabe muito o que lhe conviria. Lacan tampouco sabe muito, já que tenta
várias pistas e maneiras. Ao longo dos anos, ele às vezes lança enunciados
como quem não quer nada ... Em 30 de março de 1974, declarou na Itália
que "o amor só se escreve graças a uma abundância, a uma proliferação de
desvios, chicanas, elucubrações, delírios, loucuras - por que· não dizer a
palavra, não é? - que ocupam na vida de cada um um lugar enorme6 ". Essa
declaração diz respeito a ele, tanto quanto a qualquer um.
Uma vez excluída a iniciativa teórica, tudo se passa como se, tratando­
se do amor, seu discurso quase se apagasse, deixando o lugar ao poeta mas
também, menos esperado, ao pintor. Seja, pois, o poeta. Não se dirá nada,
por enquanto, nem do mergulho lacaniano no fin'amor nem da abordagem

5 ln Donald D. Winnicott, De la pédintrie à ln psychnnnlyse, traduzido do inglês por Jeannine


Kalmanovitch, Paris, Payot, 1969, p. 325-333 (o artigo retoma uma conferência dada na
Sociedade Britânica de Psicanálise em 1957).
6 "Aliá Scuola Freudiana", in "Pas tout Lacan". Trata-se da coletânea de quase todos os textos
e intervenções de Lacan, acessível no site da Escola Lacaniana de Psicanálise: http://W\V\V.
ecole-lacanienne.net/ (doravante: PTL), igualmente na obra bilíngue: Lncnn in ltnlin 1953-
1978. Nn Itália Lncnn, Milão, La Salamandra, 1978.
16 O AMOR LACAN

final de Dante. Em 1946, Lacan cita o Alceste de Moliere7 • Muitos anos


antes, através de sua tese, havia mostrado aos surrealistas textos poéticos
daquela que ele chamou ''Aimée" para que eles opinassem sobre seu valor
literário. No mesmo período, publicou um poema de sua lavra8 • Em segui­
da, houve um breve poema de Antoine Tudal, citado em 195 3 e que, mais
tarde, fez com que tropeçasse sério. Em 1957, eis o bretoniano "O amor é
um seixo rindo ao sol", igualmente Booz adormecido de Victor Hugo. Em
1960, ele "toma emprestada a voz" de um poema de Germain Nouveau9 •
Tampouco falta o famoso grito surrealista: ''As palavras fazem amor", e cita
duas estrofes do poema de Aragon "Contracanto" em 1964. Quanto ao
poema de Rimbaud ''A uma razão", ele não devia ter um papel pequeno na
dissolução da Escola Freudiana de Paris.
Esses poemas não são aqui trazidos a título de materiais e apoios
para elaborar uma teoria do amor. Disso estaremos seguros se notarmos
que Lacan inventa certos mitos, um dos quais ambiciona simplesmente
tomar o lugar do de Aristófanes em O banquete de Platão - trabalho inútil,
imaginamos. Em 1961, ele forja o da mão que avança na direção do fogo,
surpresa, espantada, maravilhada por ver surgir do fogo uma outra mão.
Presente em Hiatus irrationalis, o fogo reaparece aqui. Lacan não inventa
a expressão do amor pela chama (esse chavão já está na Bíblia, e uma de
suas mais notáveis realizações cabe a João da Cruz com Oh Llama de amor
viva, esse primeiro verso que dá seu título a um dos mais famosos poemas
do doutor místico 1 0 ) , mas leva essa metáfora ao estatuto de mito. Platão já

7 "Ah! nada é comparável a meu amor extremo, / E, no ardor que ele tem de se mostrar a
todos, / Chega até a formar desejos contra você. / Sim, eu queria que nenhum a achasse
amável, / Que você fosse reduzida a uma espécie miserável, / Que o céu, ao nascer, não lhe
tivesse dado nada . . . " .
8
D o qual s e pode ler, e m L'1111ebév11e, u m a notável análise: ver An nick Allaigre-Duny, "À
propos du sonnet de Lacan Hiatus irmtio nalis" , L'U11ebév11e, n º 1 7, primavera de 200 1 .
9 " I rmão, ó doce mendigo que canta em meio ao vento / Ama-te como o ar do céu ama o
vento / Irmão, empurrando os bois nos montes de terra / Ama-te como no campo a gleba
ama a terra / Irmão que faz o vinho do sangue das uvas douradas, / Ama-te como uma cepa
ama seu cacho dourado / [ . . . ] / Mas, em Deus, Irmão, sabe amar como tu mesmo teu irmão
/ E, seja ele como for, que seja como tu mesmo" (Jacques Lacan, Le triomphe de la religion.
Précédé de Discours aux catholiques, Paris, Le Seuil, 200 5 , p. 6 1 ; igualmente em PTL) .
10
Jean de la Croix, La vive flamme de l'a111011r, Paris, Cerf, 2002.
PRÓLOGO 17

mostrava que só é possível falar do amor muthous legein, em outras palavras,


contando histórias. Platão inventa dois mitos em seu Banquete, o do bicho
de duas costas, posto na boca de Aristófanes e o de Poros e Pênia, contado
por Diotima 1 1 • Após ler linha após linha O banquete, Lacan vai demorar-se
ainda um momento num outro mito, desta vez latino, a história de Eros e
Psique contada em O asno de ouro de Apuleio. Em 1964, a fim de escorar
a analogia então construída entre relação pictórica e relação amorosa, ele
inventa um mito, chamado "da lamela". Mais tarde ainda, eis o mito do
passeio, com seu periquito apaixonado por Picasso •
12

A pintura também desempenha um grande papel, amplamente


insuspeito, naquilo que seríamos quase levados a chamar a meditação
lacaniana sobre o amor. Psique sorprende Amore, de Iacopo Zucchi, longa­
mente analisado, dará lugar a uma das mais decisivas observações sobre o
amor. A utilização por Leonardo da Vinci das manchas nas paredes servirá
de lição para descrever o amado como aparecimento compósito. A pintura
japonesa também será objeto de uma instrutiva análise, prolongada pela
da caligrafia.
Poesias, mitos, pinturas escoram a colocação no mercado de fór­
mulas bem cunhadas e logo convertidas em slogans. A colocação delas em
lista bastará para que mais nenhuma seja doravante suscetível de valer
como A fórmula lacaniana do amor. "O amor é dar o que � ão se tem"
aparece em 195 7 (se não for antes); encontramos essa fórmula, depois de
ter sido completada por "a alguém que não quer saber disso", ainda vinte
anos mais tarde, em 1975. "O amor é um sentimento cômico" constitui
com o "dar o que não se tem" dois traços que Lacan apresenta, em 23 de
novembro de 1960, como seus primeiros passos nesse assunto do amor
(o que é inexato). Em 1972, uma espantosa encenação leva mais adiante
uma nova fórmula: "O gozo do Outro [...] não é o signo do amor". Em
20 de março de 1 973, é introduzido o "amódio" (a palavra sozinha serve
de fórmula). Em 1974, o amor é dito "dois semidizeres que não se reco-

1 1 Devo a Danielle Arnoux essas observações sobre o recurso ao m i to em Platão.


12 Jacques Lacan , Mais, ainda, versão semicrítica assinada VRMNAG RI S O FABYPM B , sessão
de 2 1 de novembro de 1 972 . Doravante: Mais, ainda.
18 0 AMOR LACAN

brem", enquanto, nesse mesmo ano, vem também a afirmação segundo a


qual "os sentimentos sempre são recíprocos". Outras expressões criaram
igualmente fórmula e fortuna: o amor como presente quando há mudança
de discurso, o amor como sendo "nada mais que uma significação", o que
deve bem ter algum laço com, mais outra fórmula, o amor como metáfora,
devida ao comentário do Banquete. É possível que, estrategicamente, dife­
rentemente de outros enunciados, essas fórmulas tenham sido produzidas
a fim de afastar uma abordagem simplesmente explicativa demais do amor.
Nesse sentido, o fato de terem criado slogan assinalaria bem mais o êxito
que o fracasso delas.
Poesias, mitos, pinturas, fórmulas vêm marcar que, em Lacan como
em Sócrates, o amor é daimôn, metaxu, um intermediário entre saber e
ignorância. Construir uma teoria do amor corresponde a colocar-se numa
postura chamada a malograr o amor. Lacan não subscreve ao projeto, con­
fessado por Freud, de encarar o amor de um ponto de vista científico.
Essa recusa em nada é original, nem tampouco aceita. Ativa em Sócra­
tes, não é menos notória no jin'amor, sobre o qual escreve Jacques Roubaud:
"O amor é colocado pelos trovadores no começo de tudo. Daí vem que ele
é, por natureza, uma explicação inexplicável 1 3 " . Jacques Le Brun também
afasta a possibilidade de uma tomada que pretenderia ser de ordem teórica
sobre o puro amor 1 4 • Escrevendo seu discurso amoroso, Roland Banhes
limita-se a fragmentos, julgando até necessário oferecê-los em "uma ordem
absolutamente insign ificante 15 " . Mais recentemente, Annie Le Brun iniciava
sua introdução à Antologia amorosa do surrealismo dizendo, a respeito do
que ela chama, não sem um justo equívoco, "a roda do amor", que "nada
faz tão nitidamente ver a inutilidade de todo comentário 1 6 " .

u Jacques Roubaud, 'Tamour, l a poésie", in De l'amo11r, obra coletiva sob a direção d a École
de la cause freudienne, Paris, Flammarion, coll . "Champs", 1 999, p. 92.
1 4 Jacques Le Brun, Le p11r amour de Platon à Lacan, Paris, Le Seuil, 2002.
1 5 Roland Banhes, Fragmellts d'1111 disco11rs amo11re11x, Paris, Le Seuil, 1 977, p. 1 1 . Mais re­
centemente: Le disco11rs amo11re11x, séminaire à l'Éco!e pratique des hautes études. 1974-1976,
Paris, Le Seuil, coll. "Traces écrites" , 2007.
1 6 Si vous aimez l'amou1: .. , Anthologie amoureuse du surréalisme, reunida por Vincent Gilles,
Paris, Syllepse, 2002, p. 5 .
PRÓLOGO 19

FAZ ER AMOR?

No entanto, e para antes de mais nada limitarem-se à modernidade, outras


posições foram rigorosamente mantidas e, entre elas, aquela, exemplar, de
Jean-Luc Marion. Seu Fenômeno erótico 17 objeta, em ato, ao "não há teoria
do amor" e permite também, como que por um efeito de contraponto,
notar como, em Lacan, a recusa de teorizar o amor não se funda num
posicionamento do amor "no começo de tudo". Trata-se de uma fenome­
nologia da consciência amorosa, da constituição do sujeito pelo amor, o
que exige nada menos que pôr um termo na "afasia erótica" constitutiva
da metafísica, suspender o esquecimento no qual foi mantido o amor
(philein) em filosofia. Sempre segundo Marion, esse esquecimento foi mais
que nunca efetivo com Descartes, que colocou todo o acento na busca
de um saber que pretende ser certo. Marion repete um gesto que foi o de
Heidegger para com o Ser, mas subordinando a questão do Ser àquela do
amor. Ele recusa a ideia segundo a qual para amar seria preciso primeiro
ser, ser alguém, e sua erotologia mantém essa aposta. Sua maneira se afasta
daquilo que ele até ali oferecia a seus leitores, ou seja, pelo menos que eu
saiba, as mais pertinentes leituras de Descartes escritas em francês nestes
últimos anos. Dessa vez, é obra de um caminhante, que não esquece,
ao assim fazer, seu saber. Sua marcha resoluta diz o amor de .modo bem
diferente de Lacan. De um a outro, há antinomia não só sobre o caráter
desejável de uma teorização do amor, mas também sobre a abordagem do
amor, pensado de maneira unitária em Marion, fragmentada em Lacan.
Essa unidade é a de um desenvolvimento. Os conceitos sobrevêm, um após
o outro, com frequência inesperados. O que acontece com esse avanço? Ele
acaba por apagar a impressão primeira do caráter arbitrário de cada um
dos passos. A introdução do amor pareceu forçada? Uma vez percorrido
o caminho, essa impressão fraqueja, e o leitor começa a admitir que "a
fala 'me amam?', eu não a digo tanto como uma questão que eu poderia
escolher entre mil outras". O fenômeno erótico, longe de ser um comentário
sobre o amor, performa o amor ou ainda, como diz Marion brincando,

17 Jean-Luc Marion, Le phénomene érotique, Paris, Grasset, 2003 .


20 0 AMOR LACAN

"faz amor" . Não se trata tanto de um livro quanto de um ato. Encarado


como fenômeno, o amor é indissociavelmente ato e teoria.
Ele não é ato nem teoria em Lacan. Formular em que, vista de Lacan,
essa performance permanece problemática exige um breve desvio por uma
das mais sensíveis disparidades entre Freud e Lacan. Enquanto Freud se dá,
no início do processo de subjetivação (sem chamá-lo assim), algo como um
narcisismo do qual vão se diferenciar as instâncias psíquicas, Lacan, por
ter sido posto em movimento pelo que ele nomeou "campo paranoico das
psicoses", situa no começo não o narcisismo, mas a alteridade (ele assim
redefine o autoerotismo como "falta de si"). Daí, é possível se perguntar
se a maneira como começa a redução erótica não deve ser situada do lado
de Freud. Ou seja, a função dada à vaidade no início da redução erótica.
Marion escreve: " [ ...] para ser aquele que sou, preciso, ao inverso, abrir
uma possibilidade de me tornar outro que não sou, de me distinguir no
futuro, de não persistir em meu estado atual de ser, mas de me alterar
num outro estado de ser [ ...] 1 8 " . Lido com os óculos de Lacan, o "alterar­
me" cria problema. Não supõe ele um sujeito decerto já complexo visto
que desejoso de correr o risco de uma saída de sua vaidade, mas que,
como indica a espécie de complacência por si mesmo que o habita e que
é designada pela palavra "vaidade", estaria próximo daquilo que Freud de
imediato se dá? Não é igualmente o que implica a necessidade afirmada
de fazer seu luto da autonomia? Evocando a necessária exposição desse
sujeito ao alhures, Marion escreve: "Meu caráter doravante determinante
- amado ou odiado - nunca mais pertencerá só a mim" . Não se trata aí
de dar muito a esse "só a mim"? Assim, O fenômeno erótico mostra como,
na modernidade, um amor teorizado deve ser desdobrado a partir de uma
hecceidade colocada a priori. O que Lacan não pode admitir. " Para fazer
amor", ele irá dizer em 3 de dezembro de 1 969 na Universidade de Vin­
cennes, "é melhor esperar sentado" . Como seu sujeito nunca foi aquela
espécie de mônada chamada a se realizar conforme a via conceitualmente
regrada de uma redução erótica, Lacan não estava exposto àquele "todo
erótico" mostrado por essa redução.

18 J . -L . Marion, Le phénomene érotique, op. cit., p. 38.


PRÓLOGO 21

0 AMOR C O M E O AMOR SEM TEORIA

A teorização do amor é tal que permite discriminar duas feituras (ou duas
classes) de amor. Houve, historicamente identificáveis, o amor com e o
amor sem teoria. Lacan menciona várias vezes a distinção medieval amor
físico/amor extático, o primeiro não significando "corporal", mas "natural",
e servindo "para designar a doutrina daqueles que fundam todos os amores
reais ou possíveis na necessária propensão que têm os seres da natureza a
buscar seu próprio bem 1 9 " . Pierre Rousselot, em quem Lacan se baseia, nota
que, ao contrário do amor físico, o amor extático não deu lugar a "fórmulas
intelectuais nítidas". É, escreve ele ainda, "uma 'mentalidade' mais que uma
'teorià ", observando igualmente que, exposta "sob forma oratória e poéti­
ca, ela não deixava muito de agradar", ao passo que, na "análise filosófica,
ela aparecia fugidia e inconsistente". Logo, duas feituras amorosas, Lacan
optando em favor do amor extático desprovido de teoria. Em 3 1 de maio
de 1956, ele declara, por exemplo, que na época em que ele fala "o acento
original da relação amorosa [id est-. o amor extático] está perdido". Há mais
nítido ainda. A teorização do amor cortês deu lugar a uma nova figura do
amor, e a análise dessa metamorfose permite apreciar até onde pode ir a
incidência do "não há teoria do amor". Não é só que esteja excluído um
discurso teórico que tomaria o amor como objeto, é também, e por isso, uma
certa figura do amor que é afastada. Vamos aqui recorrer a uma tese de Jean
Festugiere, segundo a qual o amor fenício veio enxertar-se no amor cortês
precisamente como uma teoria (uma filosofia) do amor cortês. Festugiere
parte da constatação da existência de uma religião do amor no Renascimento,
manifestada especialmente pelos poetas do século XVI (a poesia lionesa, a
Plêiade, Margarida de Navarra). Essa poesia amorosa provém notadamente
do amor cortês tal como foi teorizado por Ficino. Festugiere escreve que,
se os poetas do Renascimento "respeitam suas Damas, não é apenas para
obedecer ao costume que elas instituíram [o código cortês] , mas porque

19 Pierre Rousselot, Pour /'l,istoire du probleme de l'amour au Moyen Âge, Paris, Vrin, 198 1, p.
8 ( 1• ed., igualmente na editora Vrin, em 1933). As citações são retomadas das páginas 56
a 58 dessa obra. Lacan a elas se refere, sem no entanto mencioná-las, desde 1948 ("A agres­
sividade em psicanálise").
22 0 A M O R LACA N

sabem [sublinho] que a beleza efêmera delas é apenas o reflexo da Beleza


eterna20 " . Esse saber não é exterior à ligação amorosa do poeta com a Dama,
ele desempenha, ao contrário, seu papel nessa ligação, e isto até forjar a figura
de um "puro amor" (Festugiere) tão distante do amor cortês que deveremos
ver aí uma outra e nova figura do amor. Por isso, é possível ser tão decidido,
embora certas práticas amorosas permaneçam semelhantes e comuns certos
traços? Devemos, sim, também pelo fato de que esse saber do amor compõe
um outro objeto de amor. A nova figura é a de um amor divino, "verdadeiro
amor" opondo-se como tal a um "amor vulgar", e cujo objeto não será mais
a Dama, mesmo que seja atingido por seu intermédio. Essa metamorfose
se deve apenas a um deslizamento metonímico, mas esse pouco é decisivo.
" O amor é dito ser digno de admiração, porque cada um ama a coisa, com
cuja beleza ele se maravilha", escreve Ficino21 • O objeto de amor oferece,
por sua beleza, a possibilidade ao amante de amá-lo não mais ele mesmo
mas sua beleza e, a termo, a beleza como tal. A amada não sendo a fonte de
sua própria beleza, o amante acabará por amar a beleza em sua fonte, ela
mesma bela, que é o divino. Ficino: "Quando dizemos amor, entendam o
desejo de beleza". Essa definição do amor divino reata com Platão, segun­
do o qual o amor é desejo de novamente contemplar a beleza divina22 • "A
admirável utilidade da Beleza" permitiria ao amante deslizar, segundo a via
preestabelecida da "escala maravilhosa23 " , do amor da Dama apenas para o
amor verdadeiramente nobre, o da imutável e divina beleza.
Seria esta a metamorfose do fin'amor. Mas, objetaremos, o fin'amor
também tinha sua escala. Houve variantes, que no entanto não impedem
René Nelli de distinguir quatro principais etapas do cursus cortês: primeira­
mente ofeign edor, o amante tímido e hesitante, depois o prejador, em que o
amante toma coragem para suplicar, seguido do entendedor, estado em que
sua Dama consente em ouvi-lo, e que pode desembocar no drutz, em que
o amante é escutado e satisfeito (os debates não estão encerrados quanto a

20
Jean Festugiere, La philosophie de l 'amo11r de Marsile Fiei 11, Paris, Vrin, 194 1, p. 3.
21
Citado ibid., p. 30.
22 Citado por Festugiere, La philosophie de l,1mo111· de Marsile Fiei11, op. cit., p. 25.
23
Cj René Nelli, Écrivains a11tico11Jor111istes d11 Moye11 Âge occita11. La femme et l 'a111011r, Paris,
Phébus, 1977, p. 2 1-22.
P RÓ LO G O 23

saber como ouvir essa derradeira satisfação). A objeção pode não ser atendida
pois, enquanto a escala (neo)platônica conduz o amante ao único objeto
imaginável do verdadeiro amor, a escala cortesã, esta, mantém o amante
fixado em sua Dama. Um belíssimo poema de Raimon de Miraval24 ( I 135-
12 16) enuncia essa focalização num objeto a um só tempo dado e preciso,
fora da qual o fin'amor não seria mais ele mesmo. Eis seus últimos versos:

Quar etz de pretz ai sim Pois você está no ápice do Preço,


En la plus alta cima Sobre o mais alto cimo,
E de valor ai prim E em termo de Valor, na primeira fila,
Que part las valens prima Aquele que entre as nobres damas prevalece [ . . . ]
[ ... ] [. . .]
Vas vos mon cor a-ym É por você, minha dama, que meu coração tem
am or
Que rent tant non s'a-yma Pois não se pode amar nada tanto quanto você;

Um Ficino, uma Margarida de Navarra não poderiam pronunciar


tais palavras. O poeta cortês diz à sua dama: "Não desejo outra coisa a não
ser você", servindo até de argumento para que ela lhe ofereça enfim, ainda
que por piedade por ele, o jazer, a prova da cama. Por outro lado, com o
amor neoplatônico, a amada mundana não pode de modo alg1.,1m estar "na
primeira fila", o amante sendo de certo modo solicitado a ir amar em outro
lugar, ali onde o amor encontrará um objeto verdadeiramente digno dele,
seu objeto. Assim, é possível confrontar o poema de Raimon de Miraval
com este outro, situado no décimo nono conto do L'heptameron25 :

O que dirá ela


O que fará ela
Quando me vir com seus olhos
Religiosos?
Ai! a pobrezinha

24 Ibid. , p. 1 62- 1 69 .
2
� Marguerite de Navarre, L'heptaméron, é d . d e Nicole Cazauran, Paris, Galli mard, coll. " Folio

dassique", 2000, p. 236 sq.


O A M OR LACAN

Toda sozinha
Sem falar por muito tempo estará
Descabelada
Desconsolada:
O estranho caso pensará
Seu pensar (por aventura)
Em monastério e clausura
No fim a conduzirá.
O que dirá ela, etc.

Há alternativa: ou seja, e é o fin'amor, a mulher se vê como que di­


vinizada, idealizada ao ponto de ser apenas, então, a figura a um só tempo
abstrata e convencional, sem singularidade; ou seja, e é o amor neoplatônico,
a mulher é o lugar de um provisório mal-entendido e, neste caso, uma vez
suspenso o mal-entendido, ei-la solicitada a tomar o mesmo caminho que
seu amante, caso contrário ela voltaria à estaca zero. Pois o que acontece
com uma barra de escala uma vez transposta?
Assim, teorizar o amor cortês equivale a construir uma nova figura do
amor e, notadamente, a lhe oferecer um novo objeto. É também a economia
do gozo que fica fortemente abalada. O amor divino descentraliza o gozo da
relação com a Dama. Nem por isso o gozo é erradicado. Ele é recuperado
in fine, transcendido, sublimado, na relação do amante com o divino. Fica
claro que o interesse manifestado por Lacan pelo amor cortês era da mesma
têmpera que sua preferência dada ao amor extático: nos dois casos a eleição
é a de um amor não teorizado.

NÃO HÁ INTERP RETAÇÃO

O teor dessa escolha pode ser precisado. Em Lacan, o amor bem cedo é
uma paixão, formando, com o ódio e a ignorância, o ternário das paixões
do ser 26 • Logo, não encontraremos nele teoria do ódio ou da ignorância,

26 A colocação em relevo de "paixão do ser", como quem não quer nada, traz consequência:
por aí é excl uída a disti nção de u m amor d i to "normal" e de um "amor-paixão" , ou "pato-
PRÓLOGO 25

tampouco teoria do amor, nem, em geral, teoria das paixões. Essas teorias
simplesmente não têm razão de ser. Uma das razões dessa abstenção é de­
vida à simplicidade do amor, e convém, a esse respeito, retomar a questão
mais adiante.
Quanto às paixões, uma das primeiras e mais decisivas leituras de
Lacan foi A ética de Espinosa. Logo, em quem Espinosa se inspirou para
sua apresentação das paixões? Em Descartes, bem entendido, que, desde
aquela época, na Europa, provocou tantas reações quanto Freud em seu
tempo. Mas também em León Hebreu (Judá Abravanel, nascido entre 1460
e 1470), que foi para os judeus o que Ficino (nascido em 1433, tradutor do
Banquete, autor de De amore) foi para os cristãos: um notável continuador
de Platino. Não vamos nos deixar prender pelos doze séculos que separam
Platino desses dois epígonos27 • A continuidade é mais forte do que parece;
por exemplo, os banquetes que festejam Sócrates, que por vezes reproduzem
da maneira mais meticulosa a composição dos convivas do Banquete de
Platão, esses banquetes ainda encenados por Porfírio, desaparecem durante
esses doze séculos, depois são retomados, em Florença, por Ficino e seu
mentor Laurêncio de Médicis. É verdade que não houve razão, tanto as
variações são importantes de um a outro desses autores, para extrair dados
demais dessa genealogia que, desde Platino, através de Hebreu e Espinosa,
iria até Lacan; ela no entanto tem a vantagem de assinalar que a questão da
teorização do amor merece ser retomada a partir de Platino.
Pierre Hadot escreveu um belíssimo livro sobre Plotino28 que, longe
de mascarar uma das dificuldades maiores encontradas por Platino, ao
contrário a valoriza. Referia-se ao caráter eminentemente simples de sua

lógico", condenado por seu caráter excessivo. Em Lacan, não há amor paixão pela simples
razão de que o amor é uma paixão.
27 Lacan não deve ter lido Léon Hebreu, de quem ninguém, de seu tempo, falava na França
(Dialogues d'amour, trad. de Pontus de Tyard [ 155 1] , éd. de Tristan Dagron e Saverio An­
saldi, Paris, Vrin, 2006). É muito mais espantoso ele nunca ter mencionado e menos ainda
discutido Ficino em sua leitura do Banquete, a obra maior de Ficino, seu comentário desse
mesmo Banquete sendo-lhe uma concorrência direta e prestigiosa. E ainda mais espantoso
já que Les Belles Lemes publicam esse comentário em 1956, poucos anos, portanto, antes
do seminário A tmnsferência . . .
2 8 Pierre Hadot, Plotin 011 la simplicité du regard, Paris, Gallimard, 1997. A obra retoma, com
mais que sensíveis mudanças, uma primei ra edição publicada por Plon em 1963.
26 0 AMOR LACAN

experiência ontológica. A união amorosa com o Bem é a experiência femi­


nina (ressalta Hadot, distinguindo-a assim do amor platônico homófilo),
"na alma, da irrupção de uma presença que não deixa mais lugar para outra
coisa a não ser si mesma29 " . Ora, Plotino sabia muito bem que a transmissão
de sua experiência "místicà' exigia um certo percurso, que ela só podia só
ser analítica. Logo, ele considerava que havia ali uma antinomia. Pois essa
"presença que não deixa mais lugar para outra coisa a não ser si mesma"
expulsa até a consciência que se poderia ter disso. A experiência vivida
por Plotino subverteu radicalmente a distinção entre o sujeito e o objeto.
Descrever, analisar a experiência ontológica, ou apenas indicá-la já era tê-la
perdido. Nenhum percurso analítico pode jamais alcançá-la. A simplicidade
do amor é isso mesmo que o deixa fora de captura por qualquer iniciativa
teórica. Assim, a dicotomia que pôde ser identificada entre amor físico e
amor extático, depois entre amor cortês e amor divino, encontra-se aqui
presente, mas de maneira interna à experiência plotiniana.
Não é de algo dessa ordem que são testemunhas os psicanalistas
ao afirmarem que a interpretação permanece sem contato com a transfe­
rência amorosa? Ainda mais sem contato já que, acrescentam, longe de a
interpretação apagar a transferência, é a transferência que dá seu impacto
à interpretação. Não estão eles à volta, ao dizerem isso, com uma nova ma­
nifestação da antinomia plotiniana dita acima? Parece bem que sim. Não
há, não pode haver interpretação do amor; e, portanto, a fortiori, não há
teoria do amor.

FORA DA FANTASIA

Já que Lacan a fez sua, o que entender por essa determinação? Admitiremos
que certos objetos que a análise distingue prestam-se à teoria, outros não.
Por exemplo, há em Lacan uma escrita (várias até) e uma lógica da fantasia,
ou ainda do sintoma e de muitos outros objetos. Nada igual para o amor:
nem conceito, nem escrita, nem lógica. No entanto, confrontar o amor e a

29 Ibid. , p. 87.
P RÓ LOG O 27

fantasia, do ponto de vista de uma possível ou inconveniente teorização, é


preferível a qualquer outra confrontação. Pois, enquanto que com o sintoma
não há dificuldade (ninguém jamais pensou a transferência amorosa como
um sintoma), em compensação apresentou-se a questão de saber se o amor
tinha a ver com a fantasia. E, ainda que a palavra não estivesse presente,
ninguém esperou a psicanálise para a isso se dedicar. Ninguém esperou, no
indefinido, já que permanece não estabelecido que o Discurso sobre as paixões
do amor seja de Pascal. No parágrafo 1 1 desse escrito que alguns datam de
1 653 (um ano antes da "noite mística" de Pascal, em 23 de novembro de
1654), está dito:

O homem não ama ficar consigo; entretanto, ele ama: logo, precisa buscar
em outro lugar o que amar. Só pode encontrar isso na beleza; mas, como ele
mesmo é a mais bela criatura que Deus jamais formou, ele precisa encontrar
em si mesmo o modelo dessa beleza que ele busca fora.

Depois, um pouco mais adiante (§ 13), "cada um tem o original de


sua beleza, cuja cópia ele busca na aristocracia". Por vezes ouvimos, esponta­
neamente retomada, essa teoria quando uma declaração de amor se enuncia
assim: "Você é exatamente meu tipo de mulher, de homem" . Podemos
duvidar que qualquer pessoa responda por amor a tal frase. Pois é possível
amar uma representação? Exemplar a esse respeito surge a lição do filme
Todos dizem Eu te amo. Nessa comédia musical, o personagem masculino, já
envelhecido, representado por Woody Allen, seduz uma mulher graças a um
artifício. Vendo-o infeliz no amor, a filha decide tirá-lo da depressão usando
uma terapêutica conhecida desde os gregos: fazer com que ele se apaixone
novamente. Ela vem a ser amiga de uma psicanalista gênero fofoqueira, que
portanto lhe narra as fantasias eróticas de uma de suas pacientes. Assim,
ela conta os mínimos detalhes ao pai que, incentivado pela filha, vai poder
lançar-se na conquista da analisanda munido de um trunfo julgado decisivo.
Sabendo, por exemplo, que ela é muito sensível a isso, ele logo encontra a
oportunidade de se aproximar dela e lhe soprar no pescoço, o que a deixa
extasiada: como aquele homem que ela mal acaba de encontrar conhece o
segredo de seu tão delicioso gozo? Petrificada, maravilhada, ela logo fica
28 O A M OR L A C A N

apaixonada por um amante tão sábio. A esperteza funcionou! E a terapia


deu certo! Só que eis que esse amor aborta. Por quê? Porque, revelando-se o
fio grosso demais à medida que o amante mostra-se cada vez mais a par de
seus pequenos gozos corporais, ela acaba reconhecendo suas fantasias como
fantasias e se dá conta, com isso, de que não é muito divertido. Só lhes resta
então voltarem, ela a seu marido, ele à sua depressão. O amor, como um
Plotino percebeu com certeza melhor que muitos outros, nada tem a ver com
a fantasia. Em 20 de novembro de 1973, Lacan vai se afastar do Discurso
sobre as paixões do amor vendo nele um forçamento. Que ele se proíbe.
Outros dados mais, em Lacan, virão escorar a proposição "não há
teoria do amor". Vai estar notadamente em questão uma foraclusão do
pensamento pelo amor. Não se pode mais radicalmente aprovar o "não há
teoria do amor" que, naquele momento do seminário, não é mais simples­
mente assunto de inconveniência, mas de impossibilidade.

TAMPO U CO HÁ MATEMA

Entretanto, uma objeção à recusa lacaniana de teorizar o amor deve ser


suspensa, e tanto mais séria porquanto é interna ao trilhamento de Lacan.
Se, com efeito, a transferência é amor e se há um materna da transferência,
não se vê por que razão esse materna não seria igualmente um materna do
amor. Eis o materna:
S ----- Sq
s (S 1 , S 2 , . . . S 11
)

Ele foi escrito como um desenvolvimento da definição: o significante


representa o sujeito junto a outro significante (S / S 1 ➔ S2 ) . Ele prolonga
essa definição a partir disto: na análise, alguém se endereça a um outro, que
supostamente sabe. Ora, notável passo ao lado, vai estar em questão um
sujeito, e não um outro que supostamente sabe30 • O fato de temermos que o

30 Para um estudo dessa ruptura [décrochage] , poderemos nos reportar às páginas 5 1 1 e 5 1 8 de


minha obra Marguerite, ou l'aimée de Lacan, 2' éd. revista e aumentada, Paris, Epel, 1 994.
P R Ó LOGO 29

outro se engane ou que possa ser enganado já é suficiente para indicar que há
aí um problema, que esse outro não sabe supostamente tanto assim. A esse
problema Descartes, ao qual Lacan se refere, já deu sua solução. Como? Ao
não comprometer mais Deus em nossos cálculos (ao contrário de Kepler).
Deus poderia ter desejado um mundo diferente daquele que descrevem nos­
sas pequenas letras; sua vontade permanece transcendente. Ora, o próprio
fato desse querer exige que Deus seja um sujeito. Deus, em Descartes, é
sujeito suposto saber (eis a teoria da criação das verdades eternas, tão bem
desdobrada por Jean-Luc Marion). Exit o Outro suposto saber, exit a religião.
Mas embora sem cair na intersubjetividade, e vai ser toda a dificuldade do
materna da transferência: flertar com ela, mas só isso.
De onde um sujeito se endereça a esse sujeito suposto saber? Uma vez
que se trata de um sujeito e de nada além, só pode ser a partir de um signi­
ficante. Eis, pois, colocado o dito "significante da transferência", S (acima
da barra), e, s minúsculo em itálico, o sujeito suposto, colocado, como é
exig ível, em subposição (sob a barra). Notado como a sequência dos S 1 , S 2 ,
. . . S 11 , o saber insabido composto pelo grupo dos significantes inconscientes
vem então se inscrever em "atinência'' ao sujeito suposto, sob a barra.
Tudo isso é falante, talvez falante demais. Pois convém não perder
de vista que essa configuração como tal bem como todos os termos em jogo estão
viciados. Ou seja, primeiramente, o S, o significante da transferência. Ele só
por antecipação é designado como sendo um significante. Just�mente, ele
não representa o sujeito (o único sujeito em questão numa análise) junto a
outro significante. Se o fizesse, não haveria mais materna da transferência,
nada mais a colocar sob esse significante senão um S . Logo, trata-se de um
significante à espera de sua simbolização. Só pode chamar-se um signo. Pois
não há outra escolha: é ou bem de um significante ou bem de um signo
que se trata; e, uma vez que o significante da transferência permanece não
simbolizado, ele só pode ser aceito como um signo. Aplica-se a definição do
signo: o S representa o "significante da transferência" para Jacques Lacan. E
é por isso que ele chama "qualquer" o outro significante, o Sq. "Qualquer"
não enquanto tal mas por estar excluído poder escrever de outro modo
como, em cada transferência, ele é não qualquer, mas singular. Assim, por

No Brasil, Pamnoia: Marguerite 011 a ''Ai mée" de Lacan, Companhia de Freud, Rio, 1 997.
30 0 A M OR LACAN

exemplo, propus a seguinte conjectura para o "caso Aimée": "Aimée" seria


o significante a partir do qual Lacan se endereça a Marguerite Anzieu en­
quanto "sabedora [sachante] " . Eu jogava, ostensivamente, com a homofonia
"ça chante" [canta] , isto em referência à relação singular de Marguerite com
o que Lacan, falando de seus escritos, qualifica de "marqueteria verbal" .
"Marqueteria" {um quase anagrama de "Marguerite"), conforme essa con­
jectura, teria sido o outro significante, junto ao qual ''Aimée" poderia ter
representado Lacan enquanto S . O que nunca aconteceu, uma vez que a
transferência de Lacan a Marguerite permaneceu indefinida. O s minúsculo
em itálico também soa falso. Não é um sujeito propriamente falando, o que,
aliás, implicaria que dois sujeitos estão em jogo numa análise (ele mesmo
e aquele que coloca o significante da transferência) enquanto que, em sua
" Proposição. . . ", Lacan escreve que a transferência "faz sozinha obstáculo à
intersubjetividade" . Assim, esse s é a marca de um espantalho de sujeito,
à espera de sua própria deliquescência. Quanto ao grupo dos significantes
inconscientes, eles tampouco são simbolizados, só o serão quando uma
interpretação como acontecimento os ligar {os lerá)*.
Em outras palavras, esse materna da transferência não pode ser lido
na ignorância não só de sua instabilidade profunda mas de sua pouca
consistência. Tudo está escrito ali para ser reconsiderado, cada elemento
literal se oferece para ser de outro modo posicionado, isso até esse materna
tomado como um todo, que se dirige assim direto para sua desarticulação
- é o sentido da flecha do alto e o alcance a ser dado ao desequilíbrio que
ela assinala ao ultrapassar amplamente, na direita, o traço horizontal da
subposição. Essa desarticulação advirá quando o significante da transferência
for produzido como representante de um sujeito junto a outro significante
(que não será mais qualquer). Não se pode ficar escandalizado com a ins­
tabilidade do materna da transferência. Escrito por alguém que sustentava
que a transferência tinha um fim, ele só podia comportar em si mesmo seu
próprio fim. Trata-se de um pseudomatema.
O amor não figura aqui. É rigoroso, se a transferência for o amor?
Um sintagma, retomado da primeira versão da "Proposição . . . ", permite res-

* Jogo homofônico em francês: les fiem [os ligar] e les lira [os lerá] . (NT )
P R Ó LOGO 31

ponder. Lá está em questão "a função do agaima do sujeito suposto saber" .


Seja qual for sua graça ou desgraça, é ao agaima, que ele sabe não deter mas
cuja imputação aceita, que o analista deve o fato de ser colocado em posição
a um só tempo de sujeito suposto saber e de objeto amado. Logo, se pode
haver identidade, como está dito na segunda versão, entre o algoritmo da
transferência e o agaima do Ban q uete, ou seja, aquilo que suscita o amor,
não é de modo algum necessário inscrever o amor no algoritmo da transfe­
rência. O que lhe confirma o caráter evanescente. Por um tempo, o sujeito
suposto saber "usufrui" do brilho do agaima. Mas o invólucro está vazio, o
analista a isso se dedica.
Assim é suspensa a única objeção imaginável, em Lacan mesmo, ao
"não há teoria do amor" .

PROMESSAS NÃO CUMPRI DAS

Enquanto a recusa lacaniana de teorizar o amor (que também é recusa


de um amor teorizado) afasta o amor de um certo modo de racionalidade,
promessas reiteradas também afastam o império que se poderia adquirir
sobre ele, mas de outro modo, projetando-o no futuro. Ora, na falta de
uma eternidade de que Lacan não quis saber, o futuro não dura muito
tempo. Em consequência, quando o próprio presente vem a faÍhar, seu fim
anunciando-se próximo, novas promessas não podem mais estar na ordem
do dia. Quando chega esse momento, não há outro futuro senão presente.
Desaba, então, toda uma política de seminarista feita de colocações em
suspenso, anúncios, chamadas à paciência do público, à sua assiduidade,
até mesmo à sua fidelidade. E é revelada a pouca regozijante perspectiva
segundo a qual muitas promessas feitas não serão cumpridas. O que, aliás,
não se pode censurar num pesquisador, mesmo inscrito numa disciplina
entre as mais bem formalizadas que sejam3 1 • Assim, um pesquisador vai
morrer tendo entrevisto, às vezes distintamente, certos problemas que nem
ele nem nenhum de seus colegas terão sabido resolver enquanto vivos. Ele

31 Exemplar a esse respeito aparece o relato de Apostolos Doxiadis, Onde Petros et ln co11ject11re

de Goldbnch (Paris, Le Seuil, coll . " Points" , 2002) .


32 O AMO R LACA N

poderá, na oportunidade, ter deixado entender que detinha soluções, e


isso só poderá ser lamentado por um espírito chicaneiro, mas não que esses
problemas tenham ficado sem resposta. Por que se exigiria mais de Jacques
Lacan? Suas promessas não foram todas cumpridas? Nem por isso valem
nada. Tal promessa terá sido deixada de lado, tal outra terá visto seu teor
modificado, a formulação de tal outra terá sido recusada, tal outra ainda terá
sido reiterada, o que confirma assim o interesse, se não a justeza, do problema
colocado, tal outra, mesmo não satisfeita, terá provocado uma mudança de
percurso, etc. Em suma, essas promessas merecem ser consideradas, ainda
mais porque às vezes se acompanham de declarações de conquista obtidas
sobre o amor.
Melhor admiti-lo desde já: uma questão pelo menos, embora articu­
lada, será, para acabar, deixada sem resposta definitiva. Como o amor pode
ser uma via (analítica) pela qual um sujeito adviria como desejante? Certo,
aqui e ali, na oportunidade, Lacan dá algumas indicações. No entanto, nada
garante, longe disso, que o que foi dito possa ser considerado A resposta,
aquela que ele teria estabelecido pelos séculos dos séculos. Nem sequer que
a pertinência dessa questão tenha perdurado ao longo do percurso de Lacan.
Nessa falha vem discretamente se alojar o amor Lacan. Ele não a preenche.
Bem antes a acusa, manifestando assim localmente que está excluído dar
conta por completo da prática analítica. Não há teoria da prática analítica,
mesmo que essa teoria desejasse ser uma prática. Ou, mais exatamente, se
uma produção puder de fato chegar ao fim, que teorize certos dados oriundos
dessa prática (sim, há bem aí resultados, oferecidos à crítica do não-analista),
e se outra espécie de esforços puder ser cumprida uma vez que é reconhecida
a inconveniência de toda teorização, tais esforços, seja qual for a maneira
deles (o registro, a ordem de racionalidade), só terão validade na medida
em que souberem manter um certo branco, suscetível de acolher o que a
prática puder a cada vez oferecer de inaudito. Assim, Lacan não se limitou
a teorizar: aconteceu-lhe propor, ali mesmo onde julgava que sua ação de
seminarista só podia ser inoperante e sem pertinência suas escritas. Isso foi
feito para o que ele chamou o passe. Sabe-se menos que foi este igualmente
o caso para o amor.
Logo, aconteceu várias vezes a Lacan declarar que a psicanálise tinha
trazido algo decisivo a respeito do amor. Como imaginamos, ele não falava,
P R ÓLOGO 33

a cada vez, da mesma coisa. Ou seja, portanto, essas declarações de con­


quista, retomadas de "Não todo Lacan", aqui eleito como primeiro corpus
de referência.
Em 1950, ele declarava:

[...] a sexualidade, entendemos, é uma forma específica de descarga para


todas as tensões psicológicas em excesso. Assim, a dialética freudiana que
revelou a verdade do amor no presente excrementício da criança ou em suas
exibições motoras [...] 32 •

Uma coisa é dizer que o dom do excremento à mãe é reconhecido por


Freud como um ato de amor, outra coisa é dizer que Freud assim "revelou
a verdade do amor". Se as "exibições motoras" permanecem da ordem da
"amabilidade" ("Veja como sou bonito! ", "Sorria para minhas cômicas
gesticulações! "), em compensação o presente excrementício introduz um
objeto antes inesperado na "verdadeira" relação amorosa. Em Bela do senhor,
de Albert Cohen, os amantes, a fim de não sujar o pensamento que cada
um tem do corpo do outro imaginando-o entregue a certas atividades tão
cotidianas quanto pouco apetitosas, tomam enorme cuidado para evitar que
cada um ouça os ruídos emitidos pelo outro quando frequenta os sanitários
de seu domicílio comum. Não se pode dizer melhor o centramento do amor
deles sobre o excremento. Amar, segundo Freud retomado aqui por Lacan,
é dar, e dar aquilo que se tem. "Esse precioso objeto que detenho, por amor
por você, a teu pedido, eu te cedo". Amar é satisfazer um pedido e a ele
responder por outro pedido: " Peço-te que aceites o que te ofereço, porque
é bem isso que tu me pedes". Amar é se sacrificar, "se", pois o excremento,
nesse dom de amor e por amor, tem o valor de uma parte de si que, como
tal, é si. Amar é separar-se daquilo que se é como objeto, aceitar que esse
objeto-si desapareça na fossa comum, o amor recebido em troca (Pausânias,
em O banquete, faz o elogio do amor troca) oferecendo ao donatário a pro­
messa de que pode ser amável sem isso, de que portanto não é, ao contrário
do que sente, redutível a isso ou à posse disso.

32 J. Lacan, "Incervention au prem ier congres mondial de psychiatrie" ( 1 950) , in PTL.


0 AMO R LACAN

Três anos mais tarde, Lacan volta a esse amor anal, e até "analisa33 " .
Faz isso na conferência reconhecida inaugural de seu ensino, intitulada "O
simbólico, o imaginário e o real", de 8 de julho de 1953 34 • Tendo louvado
a audácia de Freud que soube não afastar o amor da transferência, de Freud
que teria bem percebido que "a transferência é a própria realização da relação
humana sob sua forma mais elevada", ele acaba por definir o amor como "a
conjunção total da realidade e do símbolo que fazem uma única e mesma
coisa". Mas eis que Françoise Dolto, sentindo passar um perigo, se mani­
festa: "Realidade e símbolo, o que você entende por realidade? ". Resposta:
"Um exemplo: a encarnação do amor é o dom da criança, que, para um
ser humano, tem esse valor de algo mais real". Se lermos "dom da criança"
como genitivo subjetivo, a criança dá, é donatária. Ela dá... o excremento. A
intervenção de Dolto vem recobrir essa leitura. Ela opta pelo genitivo obje­
tivo: a criança é "simbólica do dom", é um dom (do céu?). Não é de modo
algum necessário decidir, já que uma e outra leitura resultam dessa mesma
definição do amor que Lacan propunha três anos antes. Amar é dar um algo
que é a um só tempo um precioso objeto da realidade e um símbolo. Era
jogar pesado apresentar como uma revelação freudiana essa versão anal que
localizava no excremento a verdade do amor? Admiti-lo seria negligenciar as
repercussões e modulações dessa figura do amor no próprio Lacan: o nada
tomará mais tarde o lugar aqui dado ao excremento; o falo será interrogado
como depositário dessa mesma bivalência aqui dada ao excremento e será
também suscetível de ser oferecido (em homenagem à mulher); o objeto a
permitirá precisar aquilo que o analista tem no ventre.
Em 9 e 1 O de março de 1960, Lacan pronuncia duas conferências na
faculdade universitária Saint-Louis em Bruxelas35• Ao declarar a seus inter­
locutores católicos que Freud "sabe superiormente" a importância do amor
de si mesmo, Lacan fala aqui de uma incidência do saber sobre o amor que
não é tão anódina quanto pode parecer à primeira vista. Por ter notado seu

·13 " Lisa" : sentido fisiológico: " Fusão, destruição de elementos orgânicos sob a ação de agentes
físicos, químicos ou biológicos" (Robert). Aqui, o agente seria o amor.
·1 4 Ela abriu as atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise. Existem várias versões, sensivel­
mente diferentes, dentre elas uma publicada no B11/letin de l'Associntion .fi'eudienne, 1 982, n º 1 .
35 J . Lacan, Le triomphe de ln religion, op. cit.
P RÓ LO G O 35

componente narcísico, Freud era sábio em amor. A proposição se inverte: o


amor é suscetível de ser sabido "superiormente". De onde o amor é sabido?
E como? É sabido à maneira de um Clérambault a elaborar, em sua forja
da erotomania, um saber de segundo grau? Se sabe ele num discurso que
seria o da ciência, como Freud acreditava poder imaginar? Lacan pode se
posicionar de outro modo, principalmente graças a seu estádio do espelho.
Com efeito, é a partir desse achado do espelho que ele está em condição
de dizer, em Bruxelas, nesse dia: "Eu amo a mim mesmo na medida em
que me reconheço essencialmente. Só amo um outro. Um outro com um
a minúsculo inicial [...]".
Consequência: esse caráter narcísico faz do amor uma "enganação".
O saber do amor como narcísico torna-se, com Lacan sábio em amor, saber
da enganação do amor. O fato de o amante saber que ama não impede de
modo algum que ele desconheça o que ele ama. O quê? Um ele mesmo
que não é ele. Logo, o saber da enganação do amor está em outro lugar
que no amante. Não nos precipitaremos para dizer que esse outro lugar é
aquele "terceiro" tão caro a um lacanismo banalizado. Para falar a verdade,
a localização, se não a identificação desse lugar onde se sabe a enganação
amorosa, e a determinação da maneira desse saber são uma única e mes­
ma questão. Para entendê-la, não desprezaremos o caráter confi_dencial da
afirmação de Lacan. Num momento de sua conferência, ei-lo a falar de si
na terceira pessoa:

Mas, enfim, ele [Lacan, portanto] já está na psicanálise há quase o tempo


bastante para poder dizer que logo terá passado a metade da vida a escutar. . .
vidas, que se contam, que se confessam. Ele escuta. [Depois: passagem ao
"eu" (je] vindo tardiamente pois um pouco impudico. ] Escuto. Dessas vidas
que, portanto, há quase quatro septênios escuto se confessarem à minha
frente, não sou nada para pesar o mérito [sublinho] . E um dos fins do silêncio
que constitui a regra de minha escuta é justamente calar o amor. Assim, não
trairei seus segredos triviais e sem iguais.
36 0 AMOR LACAN

Lemos bem: o analista cala o amor. E recusa passar por perito36 • Dois
anos antes, Lacan havia precisado a colocação em jogo desse nada no lugar
do psicanalista:

Pois se o amor é dar o que não se tem, é bem verdade que o sujeito pode
esperar que ele lhe seja dado, j á que o psicanalista nada mais tem a lhe dar.
Mas nem mesmo esse nada ele lhe dá, e é melhor [ ...] 37 •

Entre 1950 e 1960, a afirmação mudou um pouco em relação à "ver­


dade revelada" do amor no presente excremencial. O amor não é mais dom
de um objeto símbolo, mas dom daquilo que não se tem. E o psicanalista
reserva a esse dom um acolhimento diferente daquele da mãe. Ali onde esta
felicita a criança, mostrando-lhe ludicamente que fica feliz com tão mara­
vilhoso presente (em outras palavras, ali onde ela faz intervir a balança), o
psicanalista por sua vez se abstém.

CONQ!JISTAS

Em Bruxelas, logo depois de ter dito o que acaba de ser relatado, Lacan
prossegue: "Mas há algo que eu queria mostrar. Nesse lugar, desejo que
minha vida acabe de se consumir. . . " . A citação deve ser interrompida, uma
vez que os católicos viram bem a importância dessa declaração, ao ponto de
ter feito dela o título da primeira conferência. Lacan lhes anunciava nesse
dia que desejava morrer em sua poltrona de analista. Alguns, incentivados
por certas afirmações feitas em Televisão ( I 973), não terão muita dificuldade
para ressaltar essa consumição in loco de sua vida como sendo o ato de um
santo. Como não me identifico nem com o Vaticano nem com suas perícias,
nada sei disso. Será mais heurístico aproximar essa declaração do mito da
mão que põe fogo na lenha:

36 Sobre a questão psicanalítica da perícia e para uma abordagem menos abrupta do problema,
poderemos nos reportar ao excelente livro de Adam Phillips: Le pouvoirpsy, Paris, Hachette,
Littérature, 200 l .
37 Jacques Lacan, Écrits II, Paris, Le Seuil, coll. "Points", 1999, p. 95 .
P RÓ LO G O 37

Que estranho calor essa mão deveria trazer consigo para que o mito fosse
verdadeiro, para que, à sua aproximação, brotasse a chama pela qual o objeto
pega fogo, milagre puro [ . . . ] ela é a imagem mais ideal, é um fenômeno
sonhado como o do amor. Todos sabem que o fogo do amor só queima em
silêncio, todos sabem que a viga úmida pode por muito tempo contê-lo sem
que nada disso seja revelado fora, todos sabem, para tudo dizer, o que cabe
no Banquete ao boboca mais gentil articular de maneira quase irrisória, que
a natureza do amor é a natureza do úmido [ . . . ) 38 •

Uma lenha que se inflama flamba; ela não se consome "em fogo bran­
do". " Consumir algo, destruí-lo progressivamente, notadamente pelo fogo"
(dicionário Robert). Segundo sentido: "consumir alguém, apossar-se de todo
seu ser, atormentá-lo" . Consumir (de cumsumere) e consumir (de consummare)
são dois termos diferentes. Cum "com", sus "si", emere "pegar, comprar" .
Literalmente, escreve o Dictionnaire historique de la langueftançaise: "tomar
inteiramente" e, "pego como mal", "destruir, notadamente pelo fogo" . Con
"com", summa, "soma": literalmente "fazer o total de", em língua clássica
"cumprir em seu termo, em seu acabamento". As duas palavras deram lugar
a um belo pas-de-deux ao longo dos séculos, por vezes misturando-lhes o
sentido, ou então um (consumação) expulsando o outro (consumição).
A lenha psicanalista não se inflama, seja qual for a intensidade. da chama
analisante que a solicite; em compensação, ela se consome, e até se tornar o
resto de si mesma. A erótica amorosa da consumição faz de Lacan vizinho
de Bataille, ao qual, aliás, devemos, e portanto ele deve, o uso moderno da
palavra "consumição39 " , presente por um tempo no século xv (com o sen­
tido de "dissipar, esgotar"). Em Bataille, a consumição oferece uma saída ao
excesso de energia que está presente tanto na natureza (a energia solar, que
é abundante) quanto nele, Georges Bataille, como em qualquer um. Logo,
convém gastar essa energia em excesso, esbanjá-la de uma boa maneira (que,

38 J . Lacan, Le tramfert dam sa disparité subjective, sa prétendue sit11atio11, ses excursiom techni­
ques, versão Stécriture (doravante: A tra nsferência . . . ) disponível no site da Escola Lacaniana
de Psicanálise, sessão de 28 de j unho de 1 962.
39 O texto de referência é de 1 943 (L'expérience i11térie11re), ao qual convém acrescentar La part
11u111dite, publicado por Minuit, em 1 967, editado por Jean Piei, cunhado de Lacan .
0 AMOR L A C A N

por exemplo, não sej a a guerra) . Lacan entende "consumição" no sentido


de Bataille? Essa questão por si só mereceria um estudo.
Em Bruxelas, Lacan sublinhou o caráter excepcional de sua declaração,
tendo em vista o silêncio em que ele havia decidido se manter. O que ele
guarda de seus vinte e oito anos de prática?

É essa interrogação, se posso dizer inocente, e até esse escândalo que, creio,
ficará a palpitar atrás de mim, como um dejeto, no lugar que terei ocupado
e que se formula mais ou menos assim: entre esses homens, esses vizinhos,
bons ou incômodos, que estão lançados nesse assunto aos quais a tradição
deu nomes diversos, dentre eles o de existência, é o último chegado na filo­
sofia - nesse assunto, do qual diremos que o que ele tem de claudicante é
bem o que resta mais afigurado, como se explica que esses homens, suporte
todos e cada um de um certo saber ou suportado por ele, como se explica
que esses homens se abandonem uns aos outros, vítimas da captura dessas
miragens pelas quais a vida, jogando fora a oportunidade, deixa fugir sua
essência, pelas quais a paixão é jogada, pelas quais o ser, no melhor dos
casos, só atinge essa pouca realidade que só se afirma por nunca ter sido
decepcionada?

Estaríamos aqui às voltas com o que terá sido a única questão deste
homem, Jacques Lacan, que se fez, psicanalista, lenha não flamej ante (o que
seu flamej ante dandismo cobria) , amante úmido, amante silencioso? Essa
lenha que se consome sem se inflamar metaforiza (mas trata-se bem de uma
metáfora?) a j usta resposta analítica ao transmor? O analisando não obtém
assim o amor que não se obtém? Nenhuma dúvida que a existência de cada
um é claudicante, mas a questão de Lacan é mais precisa, e revela um for­
midável espanto : embora cada um sej a depositário de um saber e suportado
por esse saber, eis com frequência perdida a oportunidade de esse saber se
saber. Questão : o amor que não se obtém, o amor Lacan, seria essa figura
do amor que deixaria aberta a possibilidade de esse saber se revelar? Como
seria possível? Decididamente sim, os católicos terão tido o dom de despertar
a verve de Lacan . . . até a confidência. A minima, essa confissão desvela de
onde o desej o do doutor Lacan de exercer a psicanálise alçou voo : de um
P RÓ LOG O 39

p etardo, diríamos, se a expressão estar em cólera [em francês, "em petardo"]


assim permitisse. Desejo de ser analista, igualmente desejo do analista, pois
os dois, veremos, nele são apenas um único e mesmo desejo.
Aos católicos Lacan anunciou outra conquista, a não ser que seja
m elhor dizer que ele lhes jogou na cara outra vitória da psicanálise sobre o
am or: não mais a revelação de seu caráter narcísico, pois a essa descoberta
(não exatamente ela) eles podiam se acomodar e seus teólogos a isso quase
tinham se dedicado, mas outro e mais dificilmente católico-solúvel achado,
o da ambivalência.

É este o mandamento do amor pelo próximo40 e contra o qual Freud tem


razão de parar, desconcertado por sua invocação por aquilo que a experi­
ência mostra: o que a análise articulou como um momento decisivo de sua
descoberta é a ambivalência pela qual o ódio segue como sua sombra todo
amor por esse próximo que é também de nós o que é o mais estranho.

Lacan vai acabar zombando da ambivalência4 1 , remetendo esse ter­


mo à "boa educação psicanalítica" e trocando-o pelo termo "amódio". Por
enquanto, ele só diz a verdade pela metade; não assinala aos ouvintes que
amor e ódio só funcionam juntos com a ignorância, que esses três termos
são indissociáveis e formam o que chamarei aqui, condensando ·várias afir­
mações e a despeito de algumas reservas4 2 , seu ternário búdico das paixões
do ser. Lemos, em "A direção da cura e os princípios de seu poder": "O

4 0 Lacan não rejeita o amor pelo próximo, mas o recoma a seu jeito e o subverte: "Consegui
apenas fazer entrar na mente de vocês as cadeias dessa topologia, que põe no coração de cada
um de nós esse lugar hiante de onde o nada nos interroga sobre nosso sexo e sobre nossa
existência? É esse o lugar onde temos de amar o próximo como a nós mesmos, porque nele
esse lugar é o mesmo".
41 J. Lacan, " Introdução de Scilicet ao título da revista da Escola Freudiana de Paris", Scilicet, n
1, Paris, Le Seuil, 1968, igualmente in PTL; Mais, nindn, sessão de 13 de março de 1973.
42 Já presente em Roma, em 1953 , onde sua origem búdica é afirmada O. Lacan, Écrits !, Paris,
Le Seuil, 1969, p. 192), vamos encontrá-lo em 1958, ou seja, dois anos antes das confe­
rências na Bélgica. "A roda da vida" comporta, em seu centro, três figuras de animais liga­
das entre si. Desses três venenos básicos da "vida humana" (Snmsnm) Lacan faz... paixões!
Dod-chngs (o galo) é não o amor, mas o desejo, a avidez, o apego; Zhe-sdnng (a serpente), a
aversão, o ódio, a agressividade; e g Ti-mug (o porco), a ilusão, a ignorância, a confusão.
40 0 AMOR LACAN

que é assim dado ao Outro para preencher e que é propriamente o que ele
não tem, já que a ele também o ser falta, é o que se chama o amor, mas
[sublinho] é também o ódio e a ignorância43 ". O "mas" assinala o compa­
nheirismo do amor com o ódio (eis a ambivalência) e a ignorância. Esse
companheirismo é uma objeção suficiente à ideia de que o amor possa so­
zinho regrar a questão da falta a ser, em outras palavras, do desejo. Algumas
linhas mais adiante, eis de novo o ternário das paixões do ser: " É a criança
que nutrimos com mais amor que recusa a comida e joga com sua recusa
como com um desejo (anorexia mental). Confins onde se entende como
em nenhum lugar que o ódio dá o troco do amor, mas onde é a ignorância
que não é perdoada". A anorexia é ter sido entupido por excesso de amor.
Talvez o ódio responda a esse excesso, mas a anorexia não se limita a esse
jogo amor ódio, e Lacan precisa o ponto onde o ódio pode encontrar sua
resolução, isto é, no terreno religioso44 , o do perdão das ofensas. O excesso
de amor não sabe o que ele ambiciona, o que ele realiza, o que ele força;
desconhece a ofensa que ele é. Para sair de seu martírio, o anoréxico deve
decidir perdoar uma ignorância para com o amor. Perdoar a quem? A um
personagem que, amando-o em excesso, não é, portanto, sábio em amor.
Vamos chamá-lo o contra-analista. Talvez seja conhecida a observação clíni­
ca de Lacan: o anoréxico, longe de não comer, come o nada. Ao excesso de
amor encenado pelo contra-analista opõe-se a parcial abstenção quanto ao
amor de que dá prova o analista. O amor, no contra-analista, não é úmido
mas flamejante, não silencioso mas gritante. O contra-analista não sabe
"calar o amor". Calar o amor não é não amar, e Lacan pôde dizer, na opor­
tunidade, que tinha uma má previsão para um psicanalista que não fosse
habitado por algum sentimento em relação ao analisando. O contra-analista
surge como o artesão determinado de um amor que é obtido, mediante
o qual só o extremo a que por vezes se dedica o anoréxico é suscetível de
fazer com que ele saiba que, ao se querer à toda força obter o amor, não se
o obtém, pode-se chegar a se tornar a si mesmo odioso.

43 J. Lacan, Écrits II, op. cit., p.


1 04- 1 05 .
44
Ver Rudolph Bell, L'ttnorexie sainte. ]elÍne e t mysticisme du Moyen Âge à nos jours, Paris, PuF,
1 994 .
PR Ó LOGO 41

As duas reivindicações de conquista da análise no terreno do amor,


en un ciadas na Universidade Saint-Louis, deixam-se articular. Se o amor
como nardsico veicula uma enganação, a abstenção ativa e relativa do
psicanalista para com o amor encontra algum motivo, se não sua razão,
no saber dessa enganação; assim, ela pode permitir que esse saber surja da
anál ise, da mesma forma que a conivência do amor e do ódio (este último
sendo abordado de outro modo que a partir do excesso de amor). Lacan não
reservava essa abstenção apenas à sua prática de analista. Encontramo-la, não
menos em ação, em suas afirmações públicas. Acontecia-lhe até assinalá-la,
por exemplo no " Discurso de Roma, resposta às intervenções":

Tanto que no Alea jacta est, que soa a todo instante, não são as palavras:
" Os dados rolam" , que é preciso ouvir, mas bem antes para novamente
dizê-lo com o humor que me liga ao mundo: "Tudo está dito. Chega de
falar de amor4 5 " .

É evidente que nem tudo está dito, em 1953, e calá-lo é apenas um


semidizer. É que convém, como Lacan vai escrever vinte anos mais tarde
em sua "Carta aos italianos", "fazer o amor mais digno que a falação em
profusão que ele constitui nestes dias".
Outro grito de conquista diz respeito não ao amor de transferência,
mas ao amor como transferência. A dissociação da transferência e da repeti­
ção terá permitido encarar a transferência, e portanto igualmente o amor,
como um fenômeno específico e referi-lo ao sujeito suposto saber. Se aqui há
conquista, o que afirma Lacan sem dizer demais seu teor, ela dirá respeito à
articulação do amor e do sujeito suposto saber.A dissociação da transferência
e da repetição parece ir contra a observação. No entanto, o rebatimento da
experiência da transferência sobre a repetição inevitavelmente mergulha essa
experiência na problemática de uma primeira satisfação em busca da qual se
devota o sujeito sem aliás jamais obtê-la, e com razão {nunca se encontra,
pura lógica contábil, a primeira vez como primeira vez). Essa problemática
é aquela, freudiana, do objeto de amor como objeto substitutivo. Freud, não

45 J acques Lacan , Autres écrits, Paris, Le Seuil, 200 1 , p. 1 64 .


42 0 AMOR LACAN

sem reticências e dificuldades, quis fazer do par amor ódio uma pulsão. O
que não convém a Lacan, que faz da pulsão o que seremos levados a chamar
um "outro do amor" (houve vários, ao longo dos seminários). Rebater o
amor sobre a repetição deixa em suspenso o amor como paixão do ser (a ser
entendida também como paixão de ser... de ser isto ou aquilo, que agradaria)
ou, para dizer com as palavras do fim de Mais, ainda, "a verdadeira amor46 "
como abordagem do ser.

PAIXÕES DO SER

Em "O aturdito" ( 14 de julho de 1972), as observações sobre o amor vêm


após a definição do heterossexual como "aq uilo [sublinho] que ama as mu­
lheres, seja qual for seu sexo próprio" e são talvez trazidas pela incidência do
amor nesta definição - do amor e não do desejo, nem tampouco do gozo:

Vivemos o reinado do discurso científico e vou fazê-lo sentir. Sentir dali


onde se confirma minha crítica, mais acima, do universal do fato de "o
homem ser mortal".
Sua tradução no discurso científico é o seguro de vida. A morte, no dizer
científico, é assunto de cálculo das probabilidades. É, nesse discurso, o que
ela tem de verdadeiro.
Entretanto, em nosso tempo, existem pessoas que recusam fazer um segu­
ro de vida. É que querem da morte outra verdade que outros discursos já
asseguram. O do mestre, por exemplo, que, segundo Hegel, seria fundado
na morte tomada como risco; o do universitário, que jogaria com memória
"eterna" do saber.
Essas verdades, como esses discursos, são contestadas, por serem contes­
táveis eminentemente. Outro discurso se revelou, o de Freud, para o qual
[sublinho] a morte é o amor.

'16 "A abordagem do ser pelo amor, não é aí que surge o que faz do ser aquilo que só se sustenta
por se malograr?" (seminário de 26 de junho de 1973).
P R Ó LOG O 43

Temos aí uma classificação de quatro relações possíveis com a morte:


ao discurso da ciência correspondem uma morte provável e uma vida "asse­
gurada"; o discurso do mestre (Hegel) joga a morte como risco; o discurso
universitário ignora a morte graças à eternização do saber; para o discurso
analítico, a morte é o amor. ''A morte é o amor": não há, em todo caso a
priori, nenhuma razão para aceitar como verdadeira a proposição recíproca:
" O amor é a morte" . Podemos duvidar que o Freud da segunda teoria das
pulsões (pulsão de vida/pulsão de morte) tivesse oferecido sua caução ao
enunciado que lhe é passado por Lacan. Mas, justamente, a problemática
em causa se desdobra sobre fundo de clivagem: de um lado, a questão do
gozo, do outro a questão ontológica. O discurso emprestado a Freud está
marcado por um insólito "para o qual" (esperaríamos antes "segundo o qual",
ou "para quem"). É para o discurso psicanalítico que a morte é o amor. Um
"para" que portanto não quer tanto dizer "segundo" quanto afirmaria algo
como uma intenção e até um serviço: a morte é o amor, ela serve assim
ao discurso psicanalítico, ela assim contribui para sua instauração. Essa
classificação vai em seguida dar seu quadro a um novo grito de conquista
sobre o amor. Os analistas são tomados à parte, eles que rejeitam o fardo
do inconsciente e a decadência que ele lhes anuncia: "Que seja sentido pela
lavagem das mãos pela qual afastam deles a dita transferência, ao recusar
o surpreendente acesso que ela oferece sobre o amor". Que acesso? . Não é pre­
cisado. Em que tomar o partido de identificar a morte ao amor, o partido
desse discurso que suporta sozinho a hipótese do inconsciente, ofereceria
um acesso surpreendente "sobre,, o amor.�
Outros gritos de conquista, eles também ligando amor e transferência,
vão um pouco suspender o enigma. Em 7 de outubro de 1973, quase um
ano depois de " O aturdito", Lacan escreve

[ ... ] que só há comunicação na análise por uma via que transcende o sentido,
aquela que procede da suposição de um sujeito ao saber inconsciente, ou
seja, à cifração. O que articulei: do sujeito suposto saber.
É por isso que a transferência é amor, um sentimento q ue aí assume umtt
forma tão nova que nele introduz a subversão, não que seja menos ilusória,
mas que se dá um parceiro que tem a sorte de responder, o que não é o caso
44 0 AMOR LACAN

nas outras formas. Recoloco em jogo a boa felicidade, exceto que, essa sorte,
desta vez ela vem de mim e devo fornecê-la.
Insisto: é amor que se endereça ao saber. Não desejo [ . . . ] 47 •

Há novidade no sentimento amoroso uma vez que ele se constitui


como transferência. Desdobrada em cinco pontos, a tese seria a seguinte:
1) há diferentes formas do sentimento amoroso; 2) sua forma é nova quando
ocorre como transferência; 3) por ser nova, nem por isso é menos ilusória
que as outras formas possíveis; 4) sua novidade, sua originalidade, sua
singularidade se devem ao parceiro que ela se dá; 5) há aí uma sorte, que
depende desse parceiro, de sua resposta.
Menos de um mês depois (2 de novembro de 1973), Lacan retomará
essa afirmação numa intervenção no dito congresso, aparentemente sem
humor, "da Grande Motte*":

Pode haver pela análise comunicação por uma via que transcenda o sentido,
que proceda da suposição de um sujeito ao saber inconsciente, isto é, à cifra­
ção? É dali que surge o que articulei como fundamento de um novo amor:
o sujeito suposto a esse saber, saber inconsciente. [ . . . ] Eu disse que era amor
que se endereçava ao saber; eu não disse desejo, porque, no que se refere ao
Wisst rieb, embora seja Freud quem tenha feito a bobagem, podemos voltar.

A ausência de desejo de saber é aqui afirmada. Para entender-lhe a


originalidade e a atualidade, vamos nos reportar a certas indicações retoma­
das de uma obra assinada por Giorgio Agamben e Valeria Piazza, mesmo
arriscando julgar intempestivas certas afirmações feitas. Assim, lemos que,
contra a opinião de Koepps, Binswanger e Jaspers, Heidegger estava "per­
feitamente consciente da importância fundadora do amor48 ". Mas no que

47 Jacques Lacan, "Introdução à edição alemã dos Escritos". Os alunos, em Paris, só vão tomar
conhecimento dois anos mais tarde em Scilicet, nº 5.
* La Grande Motte: balneário do sul da França. Grande motte também quer dizer "grande
monte de terra". (NT )
48 Giorgio Agamben, Valeria Piazza, L'ombre de l'amo111: Le concept d'amour chez Heidegger,
Paris, Rivages/Payot, 2003, p. 12.
P R Ó LOGO 45

nos baseamos para concluir assim? Em dois enunciados: primeiramente,


uma nota de Ser e tempo, em que Heidegger faz sem comentário duas cita­
ções de fato notáveis de Pascal e Santo Agostinho 49 , ambas considerando
0 am or como fundador (da mesma forma que em Marion ) . Em seguida,
50

um a con versa de Heidegger com Scheler, que Heidegger relata em 1 928,


do is anos após sua separação de Hannah Arendt, a grande paixão de sua
vida (dies nun einmal die Passion seines Lebens geweses sei) . Que uma paixão
amorosa surja assim entre um professor e uma de suas alunas vale indício
de que o saber intervém no amor. Eis o que dizia Heidegger, após suas
conversas com Scheler:

Scheler foi o primeiro a mostrar, em particular no ensaio Liebe und Erkenn­


tnis, que os comportamentos intencionais são de diferentes naturezas, e que,
por exemplo, o amor e o ódio fundam o conhecimento (Liebe und Hass
das Erkennen fundieren) . Scheler retoma aqui motivos presentes em Pascal
e Santo Agostinho 5 1 •

Nada proíbe ler nessa afirmação um distanciamento: "Scheler nada


inventou, e tudo isso não é muito assunto meu" . Daí a supor Heidegger
"perfeitamente consciente da importância fundadora do amor" há um
fosso que evitaremos transpor 5 2 • Por outro lado, a indicação aqui fornecida

49 Pascal: "Vem daí que, falando das coisas humanas, diz-se que é preciso conhecê-las antes
de amá-las; a expressão passou a ser provérbio. Os santos, ao contrário, falando das coisas
divinas, dizem que é preciso amá-las para conhecê-las, e que só se entra na verdade pela ca­
ridade, e disso fizeram uma das suas mais úteis sentenças". Santo Agostinho: "Non i11trat11r
i11 veritatem, 11isi per charitatem" .
5° Cuja originalidade não está portanto ali. Onde, pois, situá-la? No fato de que Marion res­
ponde, em ato, à crítica que Karl Lõwith endereçava àqueles que notavam que não havia
amor em Heidegger. Lõwith dizia justamente (Agamben o relata na página 1 0 de seu texto)
que essa crítica permanece vá enquanto não for substituída a analítica do Dasei11 por uma
analítica centrada no amor. Exatamente o que fez Marion.
51 G. Agamben, V. Piazza, L'o mbre de l'nmo111; op. cit., p. 1 1 - 1 2.
52 Outra conclusão problemática (p. 40): "O ódio e o amor são assim [sublinho] as duas
Gm11dweisen, as duas guisas ou maneiras fundamentais nas quais o Dasein experimenta o
Da". Intempestiva, em quê? Agamben ressalta duas observações do Curso sobre Nietzsche,
em 1 936: 1 ) As paixões são as "maneiras fundamentais" ( Gmndweisen) como o homem
experimenta seu Da; 2) O amor e o ódio são paixões, e não afetos. Silogisticamente, a coo-
0 AMOR LACAN

é preciosa para entender a originalidade do passo efetuado por Lacan ao ir


buscar no budismo seu ternário das paixões do ser. Enquanto em Agosti­
nho, Pascal e hoje Marion o amor está no fundamento do conhecimento,
enquanto com Scheler o amor não é mais o único a exercer essa função,
mas se vê enfeitado de seu comparsa, o ódio, Lacan rompe com essa proble­
mática acrescentando um terceiro termo, a saber, a ignorância. Ele escreve:
"Com efeito, a ignorância não deve ser entendida aqui enquanto ausência
de saber, mas, em igualdade com o amor e o ódio, como uma paixão do ser;
pois pode ser, a exemplo deles, uma via onde o ser se forma 53 " . Seu ternário
impede fazer apenas do amor (e do ódio) um caminho do conhecimento.
Nenhum caminho leva do conhecimento ao ser, e especialmente não o do
amor. No lugar do conhecimento vem um branco:

SANTO AGOSTINHO, Amor ➔ conhecimento ➔ Ser


Pascal
SCHELER Amor, ódio ➔ conhecimento ➔ Ser
LACAN Amor, ódio, ignorância ➔ Ser

A negativação do conhecimento (por assim dizer) rompe sua pretensa


conivência com o Ser. Que haja, no ser falante, uma paixão pela ignorância,
companheira do amor e do ódio, assinala por si só que a questão ontológica
(a do "quem sou? ", que é, em e segundo a análise, a própria questão do
narcisismo) não pode ser resolvida pelo saber, por aquilo que seria um mais
de saber ou um saber mais bem ajustado. O assunto não é saber, mas ser e,
paixão pela ignorância obriga, saber... suposto. Em outras palavras, é uma
mesma veia que Lacan segue quando acrescenta a ignorância à dualidade
scheleriana do amor e do ódio e quando dá esse passo ao lado em relação
ao saber quando diz que não se trata, para a questão ontológica, de um
saber que valeria por seu conteúdo, talvez até que se saberia ele mesmo,
mas de uma suposição de saber, da suposição de um sujeito a esse saber

clusáo tirada por Agamben se impõe. Pode-se, por isso, desprezar que Heidegger não tenha
precisamente concluído assim?
H ] . Lacan, Écrits, Paris, Éd. du Seuil, 1966, p. 358. Doravante: Écrits, 1966.
P R Ó LOGO 47

su p ost o. Logo, seria este o obj eto suscetível de suscitar o amor, a estranha
in te rs ubj etividade amorosa. E seria esta a novidade que a psicanálise teria
in tro duzid o em relação ao amor. Nem por isso é dizer que essa novidade
não p erm anece depositária de opacidade.
Quatro anos mais tarde, em 30 de março de 1 97 4, em Roma 54 , Lacan
lan ça um novo grito de conquista sobre o amor:

O que ressaltei na função da transferência é isso, é isso a verdade, a razão do


amor transferencial, é que o analista é suposto saber. [ . . . ] e, sem a análise,
não se saberia o que o amor deve a essa suposição. Graças à andlise sabemos
- é um p equeno passo, hem? (sublinho) .

Mesma observação que preceden temente. O que se sabe? Não é


dito! De mais a mais, Lacan, logo antes , mencionou ele mesmo a falta de
elucidação a esse respeito:

Oferecer-se como objeto de amor: pois é bem disso que se trata na análise,
não é? Perceber que, em nome disto, que você liga, que você cola à questão
do saber, isso desencadeia o amor. Nunca isso foi realmente elucidado.

E a sequência do texto não acabará com o mistério. Que verdade


sobre o amor vem a transferência, pois, trazer? O ouvinte italiano de Lacan
terá apenas aprendido que o saber está metido no assunto. Mais atento,
terá notado que se trata não tanto do saber quanto do suj eito suposto saber.
Ainda mais atento, terá entendido que esse suj eito suposto saber deve bem
ter algum laço, no exercício analítico, com o fato de que o analista colaria
ao saber. O que é, pois, "colar ao saber" ? Não é precisado.
Em 1 977, um derradeiro grito de conquista desloca um pouco a
questão e coloca uma nova embora deixe no mistério sua espessura: " O que
nossa prática revela, nos revela, é que o saber, saber inconsciente, tem uma
relação com o amor 5 5 " . Que relação ? Outra problemática é aqui evocada,

l4 J. Lacan, "Alia scuola freudiana" , in PTL, igualmente in Lacan in ltalia 1953-1978, op. cit.
ll /d. , " Propos sur l'hystérie", in PTL, igualmente en Quarto, n º 2 , suplemento belga na Lettre
mensuelle de l'École de la cause jiwdienne, 1 98 1 .
0 AMOR LACAN

que refere o amor ao encontro de dois saberes inconscientes. Ela só pode ser
de outro modo abordada em seu lugar no estudo passo a passo que vamos
fazer das afirmações sobre o amor nos seminários. É possível, por enquanto,
ligar de certo modo a questão dessa relação àquela da posição que o analista
é levado a ter por e no transmor? Vamos tentar com a ajuda da afirmação
que introduz o ternário das paixões do ser.
Tendo admitido que o encanto pessoal do analista "permanece um
fator aleatório" nos sentimentos que o analista relaciona com a transferência,
que há, portanto, ali algum mistério, Lacan prossegue:

Basta recorrer aos dados tradicionais, que os budistas não serão os únicos a
nos fornecer, para reconhecer nessa forma da transferência o erro próprio
da existência, e sob três chefes que eles enumeram assim: o amor, o ódio e
a ignorância56 •

Seria a tensão, tornada clássica, entre transferência e análise, se não


fossem dois traços importantes: 1) essa tensão, aqui, faz-se carne com
essas três paixões; 2) ela encara essas três paixões como se colocassem
uma questão ontológica. O analista está às voltas com elas, embora até a
interpretação lhe ofereça poucos recursos; ele pode e deve, segundo Lacan,
calar o amor - o ódio igualmente, acrescentaremos, um duplo silêncio que
supostamente permite a suspensão da ignorância. Como o analista pode
posicionar-se como um melhor amado que, por exemplo e para chegar
a um extremo, o contra-analista? Dispomos de várias indicações a esse
respeito, uma delas, notadamente, que diz respeito a seu corpo. Durante
a análise, o analista, dizem, se exclui como corpo; não é tão simples as­
sim, ainda que esse gesto participe de seu "calar o amor". Com efeito, as
entrevistas ditas preliminares são próximas de um "confronto" e até de
um "encontro de corpos", que não vai mais estar em questão depois 57,
sim, exceto... no fim:

16 J. Lacan, Écrits !, op. cit., p. 19 1- 192.


'
7
!d. , . . . 011 pior, transcrição Afi, sessão de 21 de junho de 1972.
P RÓ LOG O 49

É na medida em que aquele que dá o suporte à transferência, que, ele,


sabe de onde ele está partindo (não que lá esteja, ele sabe bem demais
que não está ali, que ele não é o sujeito suposto saber) mas que é alcan­
çado pelo des-ser sofrido pelo sujeito suposto saber, que no fim é ele, o
analista, que dd corpo [sublinho] ao que esse sujeito se torna sob a forma
do objeto pequeno a.

Ler esse "dá corpo" como uma metáfora seria um erro. A separação
que está em questão, fechamento da análise, é real. Entre o enfrentamento
corporal das entrevistas preliminares e seu corpo tornado objeto a, o que
será o modo de presença corporal do analista? Uma aparição (não faltam
58
referências literárias para apresentar o amado como uma aparição ) .

PREDILEÇÃO

Esse percurso das promessas e declarações de conquista que pôde enunciar


Lacan quanto ao amor deixa consigo diversas impressões . A mais imedia­
tamente sensível diz respeito à fragilidade de tais afirmações. A segunda é a
surpresa de ter encontrado, no caminho, algumas confidências que compro­
metem a própria pessoa de Jacques Lacan. Prolongando essa segunda, a ter­
ceira se apresenta como uma intuição. Entrevejo aí, discretamente em ação,
um certo pendor, uma certa preferência, a eleição de um certo amor.
A fragilidade, antes de mais nada, que não é por certo um pecado
em quem inventou o objeto a. Ela pode ser escorada. 1) A verdade do
amor no presente excremencial não será confirmada: o amor encarado
com dom daquilo que não se tem subverterá a pretensa "verdade" de
um amor anal. 2) A afirmação do caráter narcísico do amor é portadora
de um notável equívoco, já que "narcisismo" não tem o mesmo sentido
em Freud e Lacan. 3) A ambivalência, como dissemos, será formalmente
recusada. O amódio [hainamoration] por certo retomará por sua conta

58 Algumas delas estão repertoriadas em meu artigo " Do melhor amado", Paris, L'U11ebé1111e,
nº 2 1, inverno 2003-2004 (retomado em Contre l'éternité. Ogawa, Mal/armé, Lacan, Paris,
Epel, 2009, chap. 1v) .
50 0 AMOR LACA N

o companheirismo do amor e do ódio, mas, como já o indica aquilo


que, nesse neologismo, pede o "enamoramento" [énamoration] *, o amor
ali permanecerá bem amplamente privilegiado, o ódio sendo objeto de
menos atenções que o amor. 4) O amor como transferência parece, este,
assegurado. Mas permanece problemático aquilo que essa identificação
no entanto pede, ou seja: determinar a maneira como o sujeito suposto
saber intervém nesse transmor, sua partida, seu {longo) curso, seu fim. 5)
Mesma observação quanto à relação, apresentada como uma revelação,
do amor com o inconsciente.
Entretanto, essas frágeis reivindicações de conquistas sobre o amor dão
lugar ao que se reconheceu ser da ordem da confissão. Essas confissões, por
mais pessoais que tenham sido, não estavam fora do campo do trilhamento
de Jacques Lacan. Daí resulta uma certa orientação lacaniana. Fazer-se lenha
úmida que se consome e levar essa consumição até valer como a insígnia e a
obra de toda uma vida, admitir-se como não sendo nada, retirar-se deixando
para trás, sob a forma de um dejeto, a questão a um só tempo palpitante e
escandalosa que animou toda uma vida, escolher calar o amor numa prática
ela também eleita, esses traços encontram eco num ensino aparentemente
deixado ao abrigo de toda consideração pessoal. Assim acontece com o
privilégio dado ao amor extático às custas do amor físico. Ou ainda essa
indicação sobre o que deve ser a resposta do psicanalista ao transmor, cuja
convergência se percebe com a confissão desse nada que Lacan diz pessoal­
mente ser a seus anfitriões católicos:

[ ... ] esse campo do ser que o amor só pode delimitar é aí algo do qual o
analista só pode pensar que qualquer objeto pode preenchê-lo, que somos
levados a vacilar sobre os limites em que se coloca esta questão: " O que és?"
com qualquer objeto que entrou uma vez no campo de nosso desejo, que
não há objeto que tenha mais ou menos preço que outro, e é aqui o luto
em torno do qual está centrado o desejo do analista59 •

* Há, em francês, homofonia entre os dois neologismos. (NT )


59 J. Lacan, A transferência. . . , sessão de 28 de junho de 196 1.
P RÓ L O G O 51

O pessoal faz eco ao ensino; o ensino veicula uma distribuição pes­


soal do jogo. O que Lacan foi dizer na Itália uma primeira vez em 15 de
dezembro de 1967 oferece um novo testemunho:

Foi ao que eu quis conduzir, de uma erística da qual cada desvio foi objeto
de um cuidado delicado, de uma consumação de meus dias dos quais a pilha
de minhas afirmações é o monumento deserto, um círculo de sujeitos cuja
escolha me parecia a do amor de ser como ele: feito do acaso.

Depois, uma outra vez, em 1974:

Oferecer-se como objeto de amor: pois é bem disso que se trata na análise,
não é?

A predileção dada a uma certa figura do amor dá conta de um fato


que salta aos olhos à leitura de seus seminários. Com efeito, não se pode
entender, exceto admitindo uma determinação intensa em dar lugar nítido,
por que Lacan, durante vinte e sete anos, procurou afastar de seu trilha­
mento um número bem considerável de maneiras de amar. Cada uma foi
convocada, situada, estudada, com, para acabar e a cada vez, esse resultado
de que ela não podia corresponder à experiência psicanalítica ·do amor (a
dele, em todo caso). Essa varredura (no sentido do analista de sistemas, mas
também da empregada doméstica) foi considerável, e a lixeira ficou bem
cheia. Enquanto Freud remetia suas próprias considerações sobre o amor
a Platão, é o amor no sentido platônico que também vai ser posto de lado.
Exit o amor como fazer um, o amor bicho de duas costas (de dormir*), exit
o amor sexual, exit o amor como troca, exit também o amor platônico tal
como Lacan o construiu ao inventar, leitor do Banquete, sua "metáfora do
amor". Lacan não terá mais querido saber do amor cortês, nem desse amor
guerreiro que fez na história tão constante carreira. Exit o amor eterno, exit
o amor divino, exit - mas é mesmo necessário dizer? - o amor romântico, no

• Homofonia: bête à deux dos [de duas costas] e à dodo [de dormir]. (NT )
0 A M OR LACA N

qual Lacan nunca faz questão de se demorar. Exit o amor louco surrealista,
exit o amor como "ser a dois". Exit o amor ilimitado e, última varrida, exit
o amor dantesco. Essa arrumação para quê? Para que, num tempo julgado
não comportar nenhuma válida, o amor possa receber sua regra do jogo60 ,
Explícito em Lacan, esse voto se prolonga neste outro: que assim "refloresça"
o amor, esse amor Lacan que, bem entendido, Lacan não podia dizer tal.
Logo, o que cabe à psicanálise?

É o imaginário do belo que ela tem de enfrentar, e é em abrir a via para


um reflorescimento do amor enquanto (a)muro, como eu disse um dia,
escrevendo-o o objeto pequeno a entre parênteses mais a palavra "muro"
- já que o (a)muro [ (a)mur] é o que o limita6 1 •

É um senhor que passou dos setenta anos que assim se exprime


publicamente. Passaram-se mais de trinta anos hoje, que não diminuem
muito a espécie de medo e tremor que me habita no momento de escrever
as últimas linhas deste prólogo, nem o sentimento, não menos presente, de
abrir a caixa de Pandora. No entanto, uma questão se impõe, quaisquer que
possam ter sido no passado e quaisquer que sejam no instante ainda meus
esforços para afastá-la. Vou calá-la? Devo prolongar o gesto de Lacan, sua
discrição, seu silêncio em relação ao amor? Mas já circula, ainda que num
círculo restrito, minha nomeação "o amor Lacan". Por isso não resta mais
senão ir atrás das consequências. Esse pendor, essa preferência dada por
Lacan a um certo amor não têm a ver com o misticismo? O amor Lacan, do
qual um dos traços marcantes é dado pela fórmula "obter o amor que não
se obtém", seria uma nova e inédita versão do amor tal como mostram, em
termos por vezes menos velados, certos místicos? Se Jacques Lacan psicana­
lista tinha silenciosa e ludicamente dado acolhida às transferências de que
era e se fazia objeto, ali ocupando um certo lugar que resta definir, mas ao
qual só o misticismo ofereceria seu lugar, mil questões novas se colocariam,

60 Se acontecesse, se acontecesse de o amor se tornar um jogo cujas... cujas regras saberíamos


[ ... ]" 0 - Lacan, Les non-dupes errent, transcrição Afi, sessão de 12 de março de 1974. Dora­
vante: Les non-dupes...).
6 1 Ibid. , sessão de 18 de dezembro de 1973.
P R Ó LOGO 53

inconvenientes ou absurdas, que só serão bem parcialmente abordadas


62
pela presente obra, felizmente precedida pela de Jacques Le Brun e de
alguns outros. Outros trabalhos, talvez, seguirão, que disporão de novos
meios e materiais, notadamente da correspondência de Jacques Lacan, por
enquanto não publicada. Montaigne: "Escrevo para poucas pessoas e para
p ouco tempo".

62
J. Le Brun, Le pur amour de Platon à Lacan, op. cit. ; Pierre Daviot, Jacques Lacan et /e se n­
timent religieux (Ramonville-Saince-Agne, Éres, 2006) ; Raymond Aron, fouir entre ciel et
terre. Les mystiques da ns l'ceuvre de J. Lacan (Paris, l.:Harmattan, 2003) ; Sean Wilder, Un
sujet sam moi (Paris, Epel, 2008).
CAP ÍTU LO 1

RU M O A U M A M O R S I M B Ó L I C O

M ais de vinte anos após o falecimento de Jacques Lacan, nada parece


mais justo ao leitor de seus seminários que a virada que ele enfim
im primiu à verdade ao renomeá-la "varidade". De bom grado lhe dão razão:
ele de fato, tal como reivindicava, trouxe algo de novo a cada uma das ses­
sões de seu seminário. Mas, sobretudo, só se poderá melhor saudar a pouco
comum pe,formance tomando a medida da enrascada na qual ela mergulha
0 leitor. Pois, quase sempre, a novidade não é composta de empilhamentos
de enunciados relativos a objetos sempre diferentes, um pouco como o ape­
ritivo, com suas degustações, é seguido da entrada, depois pelo prato dito
"de resistência" (a quê?), depois pelo queijo, depois a sobremesa. Não, essa
medíocre metáfora, mas que modula aquela, nutridora, de Lacan dizendo a
seu público que ele lhe trazia feno, só convém muito parcialmente. Certas
vezes, a novidade surge, sim, como sem precedente, e esses momentos dão
ao percurso de Lacan seus pontos decisivos, daqui por diante relativamente
bem identificados. Quase sempre, no entanto, ela tem o alcance de uma
variação, como que musical, sobre um dado tema. Não é dizer que essas
variações devam ser consideradas menos decisivas que as invenções que vêm
inflectir quase o conjunto das afirmações {exemplo princeps: o ternário sim­
bólico imaginário real, inventado em 1953 e mantido até o fim). Mas elas
colocam um problema específico, a um só tempo fácil de assinalar e difícil
de tratar. Fácil de assinalar, principalmente porque a citação é tornada quase
impossível ao leitor apressado: a afirmação variou tanto que está excluído
formular qualquer enunciado que pretenda dizer exatamente o pensamento
de Lacan. Nenhum é verdadeiro, tanto menos verdadeiro ainda porquanto o
fio do discurso está povoado de antorismos e epanortoses. Difícil de tratar,
pois a que, então, recorrer?
0 A MOR L A C A N

Foi bem tardiamente que Lacan ressaltou a incidência dessa variabi­


lidade. Ele assim fez inventando um neologismo que subvertia seu próprio
conceito de verdade, aquele mesmo ao qual, no entanto, ele já havia feito
sérias restrições à verdade (entendida como "semidizer"). Assim, vemos, com
"varidade", a variabilidade marcar não mais apenas a verdade dos enunciados,
mas a própria verdade:

Seria preciso ver abrir-se à dimensão da verdade como variável , vale dizer
daquilo que ao condensar assim duas palavras chamarei a varidade com um
e minúsculo engolido, a variedade 1 •

Assim, vai se tratar não tanto da verdade quanto da varidade do amor.


Mas como? A questão pode ser encarada de um modo pouco formal. Ou seja,
quanto a uma dada temática, duas proposições sucessivas: A e B. Recolhê-las
poderá produzir um enunciado que anota a passagem de uma à outra. Tal
enunciado dirá, a minima: " Entre A e B, tal traço variou (foi suprimido, foi
acrescentado, foi modificado, foi mais acentuado, foi mais ligado a tal outro
traço, etc.)". Esse novo enunciado de passagem, J3, não está em Lacan; não é
tampouco de Lacan no sentido em que Lacan o teria proferido ou escrito.
Entretanto, não é tampouco da ordem do comentário: nada nele que, num
outro sentido que acima, não esteja em Lacan ou não seja de Lacan.
Nenhuma leitura, nem que seja pouco aplicada, dos seminários, das
transcrições de conferências ou de outras intervenções, ou ainda dos escritos,
pode ficar sem tais enunciados de passagem. De mais a mais, a importância
deles é aumentada por uma situação específica à qual Lacan destinou seu
futuro leitor (sua "enrascada") ao quase sempre se dispensar de assinalar ele
mesmo as transformações que ele permanentemente dava às suas afirma­
ções. Se não se privou muito de anunciar uma novidade, de acompanhar
com um toque de clarim sua chegada, de redizê-la ainda a posteriori, não
se encontram muito nele enunciados de passagem - tais anúncios não os

1
Jacques Lacan, 'Tinsu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre" , conforme o seminário de
Jacques Lacan, sessão de 1 9 de abril de 1 977, in L'Unebévue, n º 2 1 , Paris, I.:unebévue éd. ,
p. 1 1 6. Doravante: L'inm . . .
RU MO A U M
AMOR S I MBÓLICO 57

s ubstit uindo. Além disso, as transformações que valem autocorreções são


silenciosamente trazidas. Daí, para o leitor, uma dificuldade, a mesma,
aliás, que foi ressaltada em Karl Popper, a de que uma culpa mal colocada
2
reria levado a calar suas mudanças de opinião • De sua parte, Lacan teria
tido como que necessidade de fabricar ouvintes colados à atualidade de sua
afirm ação, sem cessar e dessa maneira impedidos de exercer sua atividade
crítica. Sem cessar, ele terá encenado o adágio: "Quem quer ser seguido deve
correr m ais rápido que os outros". Esse tempo passou.
Seja, pois, � o enunciado que anota a transformação do enunciado
A em B. A operação vai se reiterar: a análise da passagem de B a C trará o
enunciado y, depois, a de C a D, Õ, e assim por diante. O que acontece? Um
surfe lacaniano sobre Lacan. Um trajeto se desenha, feito de uma sequência
de enunciados que são "dele" tal como em si mesmo a leitura o fabrica. Não
"verdadeiramente dele" mas "varidademente dele". Há mais. Com efeito, só
é possível empurrar para mais longe essa mínima formalização da varidade
escrevendo uma nova linha acima daquela que está em cima, em outras
palavras, formulando a série das proposições que transcrevem a passagem
entre enunciados que, eles mesmos, já transcrevem uma passagem. O surfe
se faz mais leve, mais aéreo. Entretanto, um obstáculo empírico o espera,
já que, num dado momento, o do fim dos seminários, o dizer terá cessado
de varitar.
Eis, por enquanto, Lacan seminarista, num lugar situado primeira­
mente em sua casa, depois no hospital psiquiátrico, depois em algum canto
oferecido pela universidade. O amor ali ocorre de maneira não regular mas
que comporta, ao contrário, certos tempos fortes, os quais supõem outros
momentos em que, às vezes de maneira espantosa, isso não está em questão
- assim, em 195 8- 1959, em O desejo e sua interpretação.
Os momentos em que o amor ocupa a frente da cena saltam aos olhos
do mais rápido leitor: a apresentação do amor cortês em A ética da psicandlise
(1959- 1960), a leitura do Banquete de Platão em A transferência. . . ( 1960-
196 1), seguido de um terceiro momento mais dificilmente qualificável,
pouco identificável por um nome mas temporalmente situado a cavalo

2 George Steiner, Maftres et disci les, Paris, Gallimard, 2003, p. 174.


p
0 AMOR LACAN

sobre os seminários . . . ou pior (1971-1972) e Mais, ainda (1972-1973), e,


enfim, talvez, um quarto momento em que o amor, graças a um jogo de
palavras, pela primeira vez vem como título de um seminário: L'insu que
sait de l'unebévue s'aile à mourre (1976-1977). Quatro tempos marcados,
portanto, pelo menos à primeira vista, mas cuja situação será modificada por
uma leitura mais aplicada - a "boa lentidão" do topologista Pierre Soury.
Além disso, nada diz que essa afirmação sobre o amor, presente à maneira
de um hápax em tal seminário, não seja tão decisiva quanto os desenvolvi­
mentos mais escorados.
Primeira surpresa, primeiro espanto, primeira mudança radical dessa
leitura sem reticências: esteve decisivamente em questão o amor nos se­
minários bem antes que neles surgisse o amor cortês. Logo, uma primeira
varidade do amor, que vamos descobrir diferente em relação a quê? Ao amor
segundo Freud.

O AMOR DE TRANSFERÊNCIA
RECON HECIDO COMO AMOR VERDADEIRO

Constatar a variabilidade das afirmações de Lacan sobre o amor de modo


algum proíbe o reconhecimento de certas constâncias locais. Dois traços
apresentam esse caráter. O primeiro é freudiano, o segundo contesta, antes
em silêncio mas de modo claro, Freud num ponto capital de sua teoria (pois
em Freud, sim, há uma teoria do amor, pelo menos a afirmação de que tal
teoria é possível e desejável). Primeira constância: a transferência é o amor
- .o que se condensou em "transmor"; a segunda admite que esse amor é o
amor-paixão. Essas duas constâncias implicam uma terceira, cujo teor logo
será precisado.
Seja a primeiríssima evocação do amor nos seminários. Ela se encontra
em Os escritos técnicos. Ali já estão indicadas as duas constâncias ditas acima.
Depois de ter dito "a transferência, isto é, o amor", Lacan prossegue:

Nas Observações sobre o amor de transferência, Freud não hesita em chamar a


transferência pelo nome amor. Freud elude tão pouco o fenômeno amoroso,
RU M O A U M A M O R S I M B Ó L I C O 59

passional em seu sentido mais concreto, que chega até a dizer que não há,
entre a transferência e o que na vida chamamos o amor, nenhuma distinção
essencial. A estrutura desse fenômeno artificial que é a transferência e aquela
do fenômeno espontâneo que chamamos o amor, e muito precisamente o
amor-paixão, são, no plano psíquico, equivalentes 3 •

Publicado em 19 15, "Observações sobre o amor de transferência" vale


como um dos elementos sobre os quais a abordagem lacaniana do amor
toma um apoio decisivo. Freud ali discute o caso, particular mas julgado
típico, de uma paciente apaixonada pelo psicanalista, macho evidentemente.
Freud de imediato reconhece a coisa "inevitável" e esse traço nada menos
constituiu que o primeiro espanto dos psicanalistas suscitado pelo amor.
Como esse dispositivo combinado que é o dispositivo psicanalítico pode,
de maneira tão "inevitável", tão automática dirá até Lacan4 , dar lugar ao
amor de transferência reconhecido por Freud, depois por Lacan, como
amor verdadeiro? Aliás, é essa própria automaticidade do surgimento do
amor na análise que terá primeiramente trazido a questão: trata-se bem de
um amor verdadeiro? Logo, o que é o amor verdadeiro para poder assim ser
automaticamente produzido pelo dispositivo analítico? A questão é nova, e
os primeiros psicanalistas sentiram que uma luz inédita era lançada sobre o
amor, notadamente sobre suas condições de possibilidade.
Como fazer com a apaixonada paciente? Freud, não sem humor, e
até com um efeito cômico que chega ao lado bonitinho, evoca de entrada,
mas para em seguida afastá-las, três soluções possíveis: 1) o casamento,
2) a ruptura, ou 3) o estabelecimento de relações ilegítimas. Não sendo

l Jacques Lacan, Les écrits teclmiques de Freud, sessão de 1O de março de 1954, Paris, Le Seuil,
1975, p. 106. Doravante: Les écrits tech11iq11es . . .
4 J. Lacan, Les écrits techniques . . . , p. 163 e 194 . Ao dizer "automática" a produção d a transfe­
rência, Lacan acrescenta que não é o caso da Verliebtheid que, esta, reclama "certas condições
determinadas pela evolução do sujeito". Mas, se a transferência é o amor, essa diferença
desaparece, é até aí o enigma primeiro do surgimento do amor na análise. A Verliebtheit é
definida como "o amor-paixão" em 7 de julho de 1954 e vista, neste mesmo dia, como uma
miragem. Posteriormente, o caráter narcísico da Verliebtheit será sempre mais acentuado
(em 6 de fevereiro de 1957), isso até uma apresentação da Verliebtheit que aproxima o amor
da hipnose (7 de junho de 196 1 ).
60 O A M O R LACAN

recatado, ele diz simplesmente essa terceira solução "compatível corn


o prosseguimento do tratamento" e só a afasta ao apelar para a "moral
burguesa" (o que não é uma razão muito válida, inclusive a seus próprios
olhos), ou ainda para a "dignidade médica" (o que não o é muito mais,
uma vez que o amor está às voltas, pelo menos em sua figura cristã, bern
mais com a indignidade que com a dignidade - logo antes do sacramento
da comunhão: "Senhor, eu não sou digno de ..., mas basta você dizer uma
palavra e..."). Mas, sobretudo, Freud menciona essas três soluções corn
o único fim de convidar o psicanalista a encarar essa escabrosa situação
"sob um aspecto bem diferente". Ele sabe estar inovando ao escrever esse
artigo, e chega até a declarar que essa situação de transferência fez o de­
senvolvimento da teoria analítica perder dez anos. Como ele inova? Ao
considerar que "o amor da paciente é determinado pela situação analítica
e não pelas vantagens pessoais de que ele [o psicanalista] possa se van­
gloriar 5 ". Assim surge a imprevista e incômoda novidade: uma situação
precisa, que desencadeia "com certeza" o amor. Não se pode duvidar que
haja aí um fio a ser agarrado, historicamente inédito. A paciente ama, e,
no entanto, o psicanalista (pelo menos pretende) nada fez para seduzi-la,
para sua "conquista" - uma palavra que, precisa Freud, não convém, no
caso em questão. Mais exatamente, corrige-se, o psicanalista nada fez além
de empreender o tratamento. E isso basta!
A resposta do psicanalista então proposta por Freud tem a ver com a
santidade. A santidade evoca, por certo, Televisão, em que Lacan apresenta o
psicanalista como um santo, mas remete aqui mais precisamente a um chiste
de Michel Foucault relatado por Mathieu Lindon: "Michel me disse um dia
que o santo não é aquele que estende a face direita após a esquerda ter sido
esbofeteada mas aquele que suporta um apaixonado quando ele mesmo não
está apaixonado6 " . Michel se lembrava, então, de que assim dava novamente
vida a uma problemática já presente em Aristóteles (voltaremos a isso)?
Seja como for, é também o que vai propor Freud nesse artigo. Esse amor

� Sigmund Freud, "Observations sur l'amour de transfere", in La techniq11e psychanalytiq11e,


trad. do alemão por Anne Berman, Paris, PUF, 1953, p. 1 18.
6 Machieu Lindon, Ma catastrophe adorée, Paris, PoL, 2004, p. 68.
M OR S I M BÓLICO 61
RU M O A U M A

de transferência, de que ordem é, segundo ele? Relacionado à resistência ao


tra tamento, ele joga de duas maneiras opostas. Leve, contribui para que a
p aciente aceite o tratamento, favorece sua colaboração, sua "docilidade", sua
aceitação das explicações que lhe são fornecidas. Mas vem inevitavelmente
0 mom ento em que o amor adota outro regime, mutação que Freud torna
sensível pela imagem de um incêndio que ocorre durante uma representação
teatral. O amor então é utilizado pela resistência, posto a seu serviço embora
não sendo (Freud faz questão de precisar) uma criação da resistência. Eis,
então, o analista "em desagradável postura", tanto são insistentes "os esforços
da doente para se assegurar de que é irresistível, para quebrar a autoridade
do médico ao abaixar este ao nível de um amado (durch seine Herabetzung
zum geliebaten7) " . Podemos medir o caminho percorrido durante quase um
século, notadamente após Lacan, até a repugnância hoje suscitada por esse
detestável "abaixamento" do psicanalista "ao nível do amado". O analista,
nessa situação, não deve bem antes elevar-se à dignidade de uma certa figura
do amado8 ? E com certeza esse caminho percorrido permite hoje ler esse
artigo de 1915 como um texto cômico.
Logo, Lacan tem boas razões para afirmar, por um lado, que Freud
confirma o amor de transferência com sendo um verdadeiro amor e, por
outro lado, que esse amor é o amor-paixão (não que esse amor-paixão deva,
a seu ver, ser oposto a um amor dito "normal" - dito por quem? -, muito
pelo contrário; ao ocupar todo o campo, ele recusa a distinção de um amor
normal e um amor patológico). Para falar a verdade, uma reserva poderia
ser emitida sobre esse segundo traço, já que Freud, antes que intervenha o
incêndio amoroso, menciona a incidência de um amor menos ruidoso, não
exigindo a reciprocidade e... benéfico para a análise uma vez que apaziguado.
No momento em que sua amiga Eva Rosenfeld pensava empreender sua
análise com Freud, Anna Freud a previne:

7
S. Freud, "Observations sur l'amour de transfert", art. citado, p. 120. Na tradução do artigo
"Sobre o mais geral dos rebaixamentos da vida amorosa", "rebaixamento" responde a um
outro termo que, acima, Herabetz1111g, o abaixamento: Emiedrig1111g. Emiedrigen: "abaixar,
humilhar, degradar, aviltar, domar".
8 Jean Allouch, "Ou meilleur aimé", art. citado.
62 O A M OR L A C A N

Sabe, não há contradição alguma no fato de você fazer uma análise ali onde
você preferiria apenas amar. Fiz igual e, talvez por essa razão, as duas coisas
se tornaram para mim inextricavelmente ligadas. No fim, você vai perceber :
é a única maneira de entrar em análise. Por enquanto, você está perturbada
pelo sentimento de que ali onde você ama você gostaria particularmente
de ser [uma] boa [pessoa] . Você verá que ser boa e estar em análise corre s­
pondem, afinal, ao mesmo9 •

Uma psicanálise, tão logo a começamos, por vezes surge de imediato


como uma tal fornalha 1 0 (ela abre aqui a possibilidade - infantil - de ser
md com papai) que não nos espanta muito que sejam postas em ação certas
disposições suscetíveis de prevenir o incêndio. Eis, pois, Eva Rosenfeld
rogada a considerá-lo como dito: não há contradição alguma, nem sequer
tensão alguma entre amar Freud (como pai) e analisar-se com ele {versão
hispanizante), ou ser analisada por ele {versão francesa). O que, segundo
alguns, teria ocorrido com Anna Freud: em análise com seu pai, ela tinha
a segurança prévia (Lou Andreas-Salomé lhe confirma isso, prova de sua
não-evidência) de que essa análise não colocaria em questão o amor que ela
tinha por ele. Está claro que, com Lacan, tais precauções estavam excluídas.
Porém outra coisa ainda não convém a Lacan nesse artigo. Mais uma vez,
embora até pareça se alojar sob o teto de Freud, Lacan está dizendo "sim e
não" a Freud. Sempre em Os escritos técnicos, lemos:

Da mesma forma, desde sempre a questão do amor de transferência esteve


ligada, de modo estreito demais, à elaboração analítica da noção de amor.
Não se trata do amor enquanto Eros - presença universal de um poder de
ligação entre os sujeitos, subjacente a toda realidade na qual se desloca a
análise - mas do amor-paixão, tal como é concretamente vivido pelo sujeito
como uma espécie de catástrofe psicológica 1 1 •

9
Anna Freud, Lettres à Eva Rosenfe/d, 1919-1937, trad. do inglês e do alemão por Corine
Derblum, Paris, Hachette, Littérature, 2003, p. 144 .
10
A palavra é d e Ferenczi: a "fornalha d a transferência".
1 1 J. Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 129- 130.
RU M O A U M A M O
R S I M BÓLICO 63

O u ainda:

Vocês conhecem essa psicologia da vida amorosa já tão finamente desenvol­


vida por Freud. [ . . . ] Pois bem, vocês não podem deixar de ver a contradição
que existe entre essa noção do amor e certas concepções míticas da ascese
libidinal da psicanálise 1 2 •

Não se trata da "elaboração analítica da noção de amor" ou de "con­


cepções míticas [ . . . ] da psicanálise", mas de fato de Freud. Com efeito, este
reconheceu que sua teoria das pulsões era de ordem mítica. Mas encontramos
nele igualmente a tentativa reiterada de um entendimento, sob um mesmo
conceito, do registro pulsional e do fenômeno amoroso (o par amor/ódio
encarado como pulsional nos Três ensaios sobre a teoria do sexual, depois a
segunda teoria pulsional opondo Eros e T ânatos). Freud toma esse conjunto
num bloco e o refere a Platão. No prefácio à quarta edição ( 1920) dos Três
ensaios, ele escreve o quanto "a sexualidade ampliada da psicanálise se apro­
xima do Eros do divino Platão" . Cinco anos mais tarde, em " Resistências
à psicanálise", ele reitera:

O que a psicanálise chama sexualidade não é de modo algum idêntico ao


impulso que aproxima os sexos e tende a produzir a volúpia nas· partes geni­
tais, mas antes ao que é exprimido pelo termo geral e compreensivo [sublinho]
de Eros em O banquete de Platão 1 3 •

Ou ainda, em seus Ensaios de psicandlise: " O 'Eros' do filósofo


Platão coincide perfeitamente, em sua origem, suas realizações e sua
relação com o amor entre os sexos, com a energia amorosa, a libido da
psicanálise 1 4 " . Medimos a distância: Lacan jamais poderia ter falado de
"energia amorosa" (liebes Kraft) , ter ligado esse qualificativo a esse subs-

12 lbid. , p. 1 4 5 .
1 3 S igmund Freud, Résultats, idées, problemes II, traduzido d o alemão por u m coletivo, Paris,
PUF, 1 98 5 , p. 1 30.
14 S i gmund Freud, Essais de psychanalyse, traduzido do alemão por Pierre Cotet, And ré Bour­
guignon e Alice Cherki, Payot, coll . " Petite biblioatheque Payot", 1 98 1 , p. 1 5 1 .
O AMOR LAC A N

tantivo; a libido é nele a energia não do amor, mas do desejo. E jam ais
tampouco do "amor entre os sexos" como de uma entidade regularmen te
constituída. Nessas sessões de março de 1954, Lacan joga Freud contra
Freud. Há, segundo ele, contradição "entre essa noção do amor e cer tas
concepções míticas da ascese libidinal da psicanálise" . Contradição: a
palavra é forte, ainda que a estenotipia, onde se lê "uma espécie de con­
tradição", tenha mais nuanças.
Certo, algumas proposições dos Escritos técnicos parecem contravir a
essa leitura de Freud. Esta, por exemplo (12 de maio de 1954):

A libido aqui questionada é aquela cujas ressonâncias vocês conhecem, e que


é da ordem da Liebe, do amor. É o grande X de toda a teoria analítica 1 5 •

Lacan não está aqui, muito freudianamente, misturando libido e


amor, libido e Liebe? Pode parecer; porém, concluí-lo seria errôneo, pois essa
operação combina com a distinção não só de dois "níveis da libido", mas,
pior ainda, de duas libidos, uma "libido primitiva" e uma "libido segunda" .
Ora, Freud jamais terá sequer imaginado distinguir duas libidos.
Logo, essa contradição que Lacan descobre nele, Freud nunca a viu.
Em " Observações sobre o amor de transferêncià', os dois registros são ao
contrário alegremente misturados - o que anuncia a dependência fiel, alguns
anos mais tarde, da libido freudiana ao Eros platônico. Assim, evocando para
recusar essa resposta do psicanalista que consistiria em colocar-se diante da
paciente apaixonada como "campeão da pureza dos modos e da necessidade
da renúncià', Freud escreve:

Convidar a paciente, tão logo tiver feito a confissão de sua transferência


amorosa, a sufocar sua pulsão, a renunciar e a sublimar não seria agir segundo
o modo analítico, mas comportar-se de maneira insensata. Tudo então se
passaria como se, depois de ter, com a aj uda de certas hábeis conj urações,
forçado um espírito a sair dos infernos, nós lá o deixássemos de novo des­
cer sem tê-lo interrogado. Teríamos assim trazido à consciência as pulsões

15 J. Lacan, Les écrits tech11iq11es. . . , p. 203.


A UM AMO R S I M B Ó L I CO
RU MO

recal cad as, para, em nosso pavor, novamente provocar-lhes o recalque. [ ... ]
Os dis cursos sublimes, como todos sabem, não afetam muito as paixões 1 6 •

Não se entende em que esse flamejar do amor de transferência cor­


respon de ria a uma tomada de consciência das pulsões recalcadas! Ao amor,
de reputação comum (é chamado cego), não é dada muita clarividência - é
preciso nada me nos que o misticismo de um Platino para que igual virtude
lhe seja outorgada. Freud se explica um pouco, mas à custa de um paradoxo.
Ele in dica um dos vieses suscetíveis de comprometer a dissolução do amor
de transfe rência, não, aliás, sem assinalar-lhe o limite e até a inconveniên­
cia. Seria valorizar, junto à paciente, como seu amor "não passa de uma
reedição de fatos antigos, uma repetição das reações infantis". Mas, ele logo
acrescenta, "é isso que é próprio mesmo de todo amor, e não existe amor
que não tenha seu protótipo na infância 1 7 " . Se todo amor é uma reedição
de um amor de criança, o que será, então, o amor de uma criança? Ou há
paradoxo, ou será conveniente, a fim de evitá-lo, distinguir duas categorias
de amores; mas, neste último caso, o amor de um grande (se tal coisa tem
0 menor sentido) não pode mais ser uma reedição idêntica de um amor

de criança. E podemos aqui lembrar uma preocupação que teve Lacan de


indicar que o amor de transferência é um fenômeno novo, sem equivalente
no passado do analisando, traço que converge com sua recusa de encarar a
transferência como repetição.
N ão deixaremos esse texto de Freud sem ter assinalado um de seus
elementos não levados em conta por Lacan, um detalhe também cômico,
mas ostensivamente. Trata-se da metáfora da corrida de galgos, que Freud
usa para indicar que o psicanalista não deve ceder aos convites amorosos
da paciente:

O analista não deve reproduzir a cena da corrida de galgos cujo prêmio


consiste numa fieira de salsichas. Um espertinho, de brincadeira, bagunça
tudo jogando no meio da pista de corridas uma única salsicha; os cães cor-

16 S. Freud, "Observations sur l'amour de transfere", are. citado, p. 12 1.


17 lbid. , p. 126- 127.
óo O A M OR LACA N

rem todos para cima e esquecem a corrida bem como a fieira de salsichas
destinada ao vencedor 1 8 •

Assim, esse "espertinho" é o psicanalista que responde ao amor pelo


amor. A colocação em jogo aqui de sua salsicha é conforme ao conceito de
energia amorosa que mistura o amor e a libido. Ora, seguir essa metáfora
leva a curiosas paragens. Os galgos sendo as pacientes, duas situações se
apresentam. Ou o analista se terá feito espertinho, pondo em jogo su a
salsicha além disso, em cujo caso nenhuma paciente terá acesso às salsichas
da fieira e não sabemos muito qual delas (ou quais) devorará (devorarão)
a perturbadora salsicha - a não ser que, na luta, elas acabem esquecendo a
própria existência dessa salsicha que, pobrezinha, vai ficar à espera de um
apreciador. Ou o analista se terá "comportado bem", mas, neste caso, uma
única delas, ao sair de sua análise, poderia gozar de todas as salsichas da
fieira. Brincadeira? Sim, mas que evoca certas práticas. E que, além disso,
ressoará em Lacan quando este procurar situar o falo como o objeto amado
para além até do objeto amado.
Importa, por enquanto, a operação à qual se entrega Lacan. Falar de
"contradição" corresponde a quebrar o belo conjunto da "energia amorosà',
a afastar, desmembrando-o, o platonismo de Freud. O amor-paixão inter­
vém como operador desse gesto. É verdade que Freud o indica por certos
traços, emprega até a palavra, mas nem por isso chega a identificar o amor de
transferência ao amor-paixão. O que não deixava de ter lógica, uma vez que
esse amor-paixão não é inscritível no eras platônico, o qual se limita a uma
certa medida, exclui até, como se pode ler no Fedra 19 com a figura repelente
do marinheiro, a concepção de um amor que passaria da medida.
De onde vem para Lacan esse amor-paixão? Foram propostas, em
introdução, algumas pistas. Entretanto, a questão se coloca: de sua própria
experiência da transferência? Como analisando? Como psicanalista? Quem
poderia dizer? Que perícia? Seja como for, não se pode aqui desprezar que
essa experiência veio cruzar o amor tal como o viveram e o cantaram os

18
lbid., p. 1 28 .
19
J. Allouch, Le sexe du maftre. L'érotisme d'ttpres Lacan, Paris, Exils, 2 0 0 l , p. 1 5 8- 1 6 1 .
AMOR S I MBÓL ICO
RU MO A U M

s urrealistas. É nítida demais a proximidade entre o "amor louco" surrealista


e esse amo r-paixão introduzido por Lacan em Freud como uma marca num
tronco de madeira para que se possa passar ao lado. Há, entre o amor louco
s urrealista e o amor de transferência versão Lacan, primeiramente esse traço
comum do amor-paixão, mas também essa semelhança, que já foi ressalta­
da, entre a Aimée da tese de Lacan e Nadja; e ainda esta questão de André
Breton que veremos ressurgir tardiamente em Lacan, a de saber que papel
desempenha o acaso no encontro amoroso.
Mas a história das influências sofridas ou buscadas por Lacan não é aqui
decisiva. Restam estes dois traços: 1) a transferência é amor; 2) o amor é uma
p aixão. Resulta da articulação dos dois que a referência freudiana ao amor
platônico não pode ser retida. Logo, terceiro traço: a recusa do amor platônico,
supostamente provedor de unidade (mito de Aristófanes em O banquete) .
Ao reconhecer, com Freud, o caráter verídico (echte) do amor de
transferência, Lacan vai encontrar em Freud outro apoio ainda. Dos Escri­
tos técnicos de Freud (cuja tradução em francês acaba de ser publicada em
1953), ele retém o caráter narcísico do amor, o que, tendo em vista seu
ternário s. 1. R., corresponde a situar o amor no imaginário. No entanto,
desde esse primeiro seminário, ele procura esticar o amor entre imagindrio
e simbólico. É esta a primeira varidade do amor em Lacan; ela de imediato
acarreta certas consequências.
Em 17 de março de 1954, Lacan se propõe a identificar "a estrutura
que articula a relação narcísica, a função do amor em toda sua generalidade
e a transferência em sua eficiência prática20 " . Em 24 de março - citação que
também mostra a recusa lacaniana do amor platônico - ele dirá: "Ou o amor
é o que Freud descreveu, função imaginária em seu fundamento, ou então
é o fundamento e a base do mundo". E, na semana seguinte, ele emite esta
outra afirmação não menos clara e que dá o ponto a partir do qual ele vai
aos poucos esticar o amor, desencravá-lo do imaginário:

O amor é um fenômeno que acontece no nível do imaginário e que provo­


ca uma verdadeira subducção do simbólico, uma espécie de anulação, de

20
J. Lacan, Les écrits tech11iq11es ... , p. 1 30.
uo 0 A M OR L AC A N

perturbação da função do ideal do eu. O amor abre a porta - como escreve


Freud, que carrega nas tintas - à perfeição2 1 •

"Subducção", o termo designa o "mergulho da crosta oceânica sob


uma placa litosférica adjacente" (Larousse). A etimologia é mais divertida,
que confirma que não nos perdemos no caminho ao associar, à "subducção",
"seduçao s
� ,, . u bauctto,
J
. � de puxar,,, no figurado: "arrebatamento, extase .
"açao A ,,

O francês antigo dispõe da palavra suduction, no sentido de "enganação",


"ação de seduzir", eliminada, em seguida, em proveito de sedução. Lacan usa
"subducção" no sentido geológico, moderno. O simbólico passa embaixo
do imaginário quando, no imaginário, ocorre o fenômeno amoroso. Vem,
em seguida, nessa mesma sessão, esta pascaliana observação:

Essa coincidência do objeto com a imagem fundamental para o herói de


Gcethe [trata-se dos Sofrimentos do jovem Werther, e lembraremos aqui a
epidemia de suicídios à qual deu lugar a publicação desse relato] é o que
desencadeia seu apego mortal. [ . . . ] É seu próprio eu [moz] que é amado no
amor, seu próprio eu [mot] realizado no nível imaginário.

A afirmação anuncia o que será enunciado alto e forte em 7 de abril:


"Estamos bem todos de acordo que o amor é uma forma de suicídio" . Com
o que é possível conceber, ainda que não seja esta a visada, que retirar par­
cialmente o amor do registro imaginário terá por efeito colocá-lo a alguma
distância do suicídio.
Essas declarações criam dificuldade. Por que, então, em 3 1 de março
de 1954 (citado acima), Lacan não convoca o eu ideal? Se for exato que
amamos narcisicamente o próprio eu idealizado, não é essa instância que se
impõe? Pois nada disso, é o ideal do eu, instância simbólica, que é requerido,
e não o eu ideal, instância imaginária. Isso é que é decisivo, pois esse ideal
do eu vai funcionar como o ponto pivô no qual poderá se apoiar o estica­
mento do amor, sua báscula parcial rumo ao simbólico. Dois enunciados

21 Ibid. , p. 1 62- 1 63 .
RU MO A U M A M O R S I M B Ó L I CO
69

dizem essa posição estratégica do ideal do eu. O primeiro também é de 3 1


de março de 1954:

O Ich-ldeal, o ideal do eu é o outro na medida em que falante, o outro na


medida em que tem comigo uma relação simbólica, sublimada [...]. O lch­
Jdeal, na medida em que falante, pode vir situar-se no mundo dos objetos
no nível do Jdeal-Ich, ou seja, no nível em que pode ocorrer essa captação
nardsica com a qual Freud nos enche os ouvidos ao longo desse texto. Pensem
que, no momento em que essa confusão acontece, não há mais nenhuma
espécie de regulação possível do aparelho. Em outras palavras, quem está
apaixonado está louco, como diz a linguagem popular.

O segundo enunciado, de 5 de maio de 1954, dirá, ao inverso, como


0 ideal do eu, não rebatido sobre o eu ideal, pode dar lugar a um amor
vertendo no simbólico:

Inversamente, sempre que, no fenômeno do outro, surge algo que nova­


mente permite ao sujeito re-projetar, re-completar, nutrir, como diz Freud
em algum lugar, a imagem do Jdeal-Ich, sempre que se refaz, de maneira
analógica, a assunção j ubilatória do estádio do espelho, sempre que o su­
jeito é cativado por um de seus semelhantes, pois bem, o desejo volta no
sujeito. Mas volta verbalizado. Em outras palavras, sempre que ocorrem as
identificações objetais do Jdeal-lch, surge esse fenômeno para o qual chamei
a atenção de vocês desde o início, a Verliebtheit.

Lembrança: de acordo com a lógica da varidade, que deixa aberta


a possibilidade de "aquisições" serem posteriormente questionadas, nada
assegura que Lacan, após certos passos, não tenha voltado a situar o amor
I
como narc1s1co. •

Com essa primeira varidade do amor, Lacan pode ter a sensação de ter
respondido à sua questão, de ter estabelecido o laço buscado entre amor e trans­
ferência. Dizer que, na situação de transferência, "se trata do valor da fala22 "
(Lacan então não estica menos a transferência que estica o amor), acrescentar

22
J, Lacan, Les écrits techniq11es. . . , p. 2 5 5 .
0 A MO R LACA N

que o amor faz voltar o desejo "verbalizado" permite outorgar à fala uma posi­
ção-chave.A fala plena, resolutória, toma patente a articulação da transferência
e do amor; vale como o acontecimento da fundamental comunidade dos dois.
Assim, munido desse comum lugar entre transferência e amor que é a fala,
Lacan pode propor uma explicação do surgimento quase automático do amor
na análise. Eis em que termos ele fez isso em 12 de maio de 1954:

A relação falada, flutuante, com o analista tende a produzir na imagem de


si variações bem repetidas, bem amplas, ainda que sejam infinitesimais e
limitadas, para que o sujeito perceba as imagens captadoras que estão no
fundamento da constituição de seu eu [moi] . [ . . . ] Uma técnica assim produz
no sujeito uma relação de miragem imaginária com ele mesmo para além
daquilo que o vivido cotidiano lhe permite obter. Ela tende a criar artificial­
mente, em miragem, a condição fundamental de toda Verliebtheit. [ . . . ]
O estado amoroso, quando acontece, é de modo bem diferente. Para isso é
preciso uma coincidência surpreendente, pois ele não intervém por qualquer
parceiro ou por qualquer imagem. Já aludi às condições máximas da paixão
fulminante de Werther.
Na análise, o ponto onde se focaliza a identificação do sujeito no nível da
imagem narcísica é o que chamamos transferência.

Assim, é a própria regra fundamental que, ao fazer flutuar a fala ana­


lisante, convoca certas "imagens captadoras" no fundamento do eu [mot]
do sujeito e, portanto, estádio do espelho obriga, "uma relação de miragem
imaginária consigo mesmo" que seria como que um ponto de chamada
para a Verliebtheit. E já é possível convocar aqui o apagamento do eu [mot]
do psicanalista que, ele também, favorece o surgimento dessa "relação de
miragem" do sujeito consigo mesmo, muito embora só vá estar em questão
um ano mais tarde (25 de maio de 195 5).

E S CORAMENTOS E PERIGOS DE UM AMOR Q!)AS E S IMBÓLICO

O esticamento do amor na direção do simbólico e o estabelecimento de


uma articulação compreensível do amor e da transferência vão permitir
RU MO A U M A M O R S I M B Ó L I CO
71

ligar alguns termos ao amor, e assim dizer mais adiante seu teor, melhor
desenhar-lhe a figura. Quais? Serão, sucessivamente: o pacto, o ser, ponto de
fo calização do ternário lacaniano amor, ódio e ignorância (ao mesmo tempo)
e, /ast but not least, o dom. Vem em primeiro "pacto", o pacto amoroso. Eis
a frase que o introduz, em 5 de maio de 1954:

A relação objetal deve sempre se submeter ao quadro narcísico e nele se


inscrever. Ela certamente o transcende, mas de uma maneira impossível de
ser realizada no plano imaginário. É o que faz para o sujeito a necessidade
daquilo que chamarei amor. [...] Não há amor funcionalmente realizável na
com unidade humana se não for por intermédio de um certo pacto [...] 23 •

Salta aos olhos a inconveniência desse amor "empactado" . A espécie


de segurança, de estabilidade, de quietude, talvez até de garantia, oferecida
pelo pacto não convém muito ao amor, menos ainda a esse amor que Lacan
acabará chamando "amódio" . Que se saiba, nenhum pacto amoroso vem
selar o transmor. E se, portanto, o amor devesse sustentar esse pacto, não se
pode falar, como fazem Freud e Lacan, de um amor verdadeiro a respeito da
transferência. O cômico é que, querendo dar um pouco de conteúdo a seu
pacto amoroso, Lacan apela para a fala plena: "Você é minha mulher", em
outras palavras, para o casamento no qual, com efeito, há pacto - se é que
alguém, que se saiba, identifica o casamento e o amor. Quanto à declaração
"eu te amo" , am. da que venha em resposta um "eu tam b em' te amo" , el a de
modo algum constitui um pacto; da mesma forma com a frase "sinto falta
de você", tão notável em sua equivocidade - o sentido "você me perde",
"você passa ao lado de mim" não sendo em geral aquele que é alegado.
Sem parecer tomar cuidado com essa objeção, Lacan desenvolve sua
ideia de um pacto amoroso. Em 2 de junho de 1954, ele apela para Sartre
e, uma vez não é costume, em termos elogiosos. Desejar ser amado é dese­
jar alienar para si a liberdade do outro, não só que o outro se comprometa
livremente, mas, mais ainda, que sua própria liberdade "aceite renunciar-se" .
Daí esta declaração:

23
J. Lacan, Les écrits tech11iq11es . . . , p. 1 97.
72 O AMOR LACA N

Se o amor estiver bem preso e enviscado nessa intersubjetividade imaginária,


[ . . . ] , ele exige em sua forma acabada a participação no registro do simbólico,
a troca liberdade-pacto, que se encarna na fala dada24 .

Objeção: o problema da alienação da liberdade no amor caracteriza-se


por não ter precisamente nenhuma contrapartida num pacto, caso contrário
não se entenderia em que o amor fica permanentemente marcado por essa
inquietude que o segue como sua sombra. Ovídio: Res est solliciti plena timoris
amor, "o amor é coisa cheia de terror inquieto" (trad. J. Pigeaud) .
Em 30 de junho de 1954, o ser entra na roda, mas tomado como a
ponta do ternário amor, ódio, ignorância. Essa articulação (opaca) do amor
e do ser com certeza não é novidade, no Ocidente, é bem mais um topos.
Em 1926, José Ortega y Gasset, meditando sobre o que seria "estar [être]
verdadeiramente com o outro", precisava que "a palavra mais exata, mas
técnica demais, seria: estar ontologicamente com o amado, fiel a seu destino,
seja ele qual for 2 5 " . Por distinguir ser e estar, o espanhol [e o português] traz
uma luz ausente no francês* . O estar em jogo no amor é aqui pensado como
uma questão ôntica (esta,1 , e não ontológica (ser). Lacan:

É na dimensão do ser que se situa a tripartição do simbólico do imaginário


e do real, categorias elementares sem as quais não podemos distinguir nada
em nossa experiência26 •

Do amor vai-se dizer que ele toca no ser uma vez que foi reconhecido
participar do imaginário e do simbólico. Essas duas dimensões, já enquanto
tais, orientam o sujeito para o que seria seu ser. A fim de fazer entender essa
posição do amor entre imaginário e simbólico, Lacan constrói uma pirâ­
mide dupla, que ele chama um "pequeno diamante". Essa pirâmide talvez
não mereça o nome "materna" (pode-se dificilmente chamar "materna" um

24 ] . Lacan, Les écrits teclmiques. . . , p. 242.


25 José Ortega y Gasset, Études mr l'nmour, prefácio de Bernard Pautrat, traduzido do espa­
nhol por Christian Pierre, Paris, Rivages poche, 2004 , p. 56.
* Em francês, só existe o verbo être. (NT )
26 ] . Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 297.
O
RUMO A U M A M R S I M BÓ L I CO 73

esquema formal ou uma escrita que só terá servido uma vez e que ninguém
nunca m ais vai utilizar); trata-se, antes, de um croqui que estenografa o
p osicionamento do amor por s. I. R. O amor, ao mesmo tempo, vê-se ridi­
culamente acompanhado de seus dois acólitos, o ódio e a ignorância. Amor,
ódio e ignorância são três paixões orientadas para o ser, como o são (porque
0 são) os três registros lacanianos. Lacan desenha essa pirâmide dupla logo
dep ois de ter anunciado, a respeito do desejo, sua visada de seminarista,
a saber "esse registro [o simbólico] no qual estou, bem devagar, tentando
, ,,
fazê-los entrar, e o ser que espera revel ar-se :

Na época, Lacan não parece duvidar muito que o ser possa revelar-se
no simbólico. Que o ser seja dito "esperar", esperar o que quer que seja, ainda
que a própria revelação, é uma proposição filosoficamente, espiritualmente
carregada, e longe de ser evidente. Mas como funciona esse croqui? O ser
à espera de sua "revelação" é localizado na ponta da pirâmide de baixo,
que deve ser provavelmente olhada como virtual. Acrescentei . ao desenho
de Lacan a indicação do plano que separa as duas pirâmides de três faces e
coladas uma na outra pela base. Está dito desse plano que ele constitui "a
superfície do real" , mas, precisão decisiva e na falta da qual desaba o funcio­
namento desse croqui, do real "simplesmente". O simbólico introduz um
furo nesse real, tornando assim possíveis "todas as espécies de transposições
e de coisas intercambiáveis" - o que estava excluído, portanto, só com o
"real simplesmente".

É exatamente na medida em que a fala progride, i sto é, em que esse algo


que é a pirâmide superior se edifica, [ . . . ] em que se realiza esse ser, bem
entendido absolutamente não realizado no início da análise, como no início
de toda dialética, pois está bem claro que se esse ser existe implicitamente
[acreditamos entender que essa existência é cifrada pela pirâmide de baixo] , e
74 0 A M O R LACAN

de uma maneira de certo modo virtual, o inocente, aquele que nunca entrou
em nenhuma dialética, não tem literalmente nenhuma espécie de presença
desse ser, ele se acha simplesmente no real27 •

Assim, a realização do ser é figurada pela dinâmica que supostamente


anima esse croqui, a pirâmide de baixo transformando-se na de cima. As três
faces (repetidas, portanto, mas não é precisado) representam respectivamente
o simbólico, o imaginário e o real; assim podem ser situadas as três paixões
do ser: o amor na aresta ligando/separando o imaginário do simbólico, o ódio
naquela ligando/separando o imaginário do real e a ignorância na junção do
real e do simbólico. Lacan fala do interesse de seu croqui, precisando que
"é apenas na dimensão do ser, e não na do real, que podem se inscrever as
três paixões fundamentais". Mas ocorre então um outro termo, prometido
a um belo futuro: o dom.
Dois ouvintes, Jenny Aubry e Serge Leclaire, ficam um pouco inco­
modados com essas "arestas", esses "pontos de ruptura", essas "cristas" que
seriam as três "paixões do ser inscritas" na pirâmide do ser realizando-se. Eles
interrogam Lacan. E este lhes explica menos o que ele acaba de dizer do que
o modifica. Observa-lhes, antes de mais nada, que outra coisa vem com essa
visada do ser que caracterizaria o amor, isto é, uma distinção nítida entre
amor e desejo (em que encontramos a recusa do platonismo):

O amor se distingue do desejo, considerado a relação limite que se estabe­


lece de todo organismo com o objeto que o satisfaz. Pois sua visada não é a
satisfação, mas o ser [sublinho] . É por isso que só se pode falar de amor ali
onde a relação simbólica existe como tal 28 •

E encadeia, pelo menos na versão Seuil desse seminário, com uma


frase jamais dita e cuja enunciação ressoa como um toque de clarim ou
uma chibatada, feito um mestre seguro de seu saber e que dá uma ordem:

27 J. Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 298.


28 Ibid. , p. 304-305. ESTENOTIPIA: " [ . . . ] só se pode falar de amor a partir do momento em que
a relação simbólica existe como tal, em que a visada é não da satisfação, mas do ser" .
O
RU M O A U M A M R S I M B Ó L I C O 75

"Aprendam a distinguir agora o amor como paixão imaginária do dom ativo


q ue ele constitui no plano simbólico". A estenotipia apresenta um discurso
menos imperativo.
Era de se prever que esse posicionamento do amor dividido entre ima­
ginário e simbólico trouxesse o risco de quebrar o amor em dois - um risco
reiterado, na sequência dos seminários. Por enquanto, a rachadura está bem
ali. Ao lembrar as "arestas passionais" de seu pequeno esquema piramidal,
Lacan vai distinguir o amor-paixão, assimilado à Verliebtheit, e Liebe. Trata-se
de "ver como em seu fenômeno o amor-paixão [...] é cativado (se podemos
dizer), capturado essencialmente no ser humano por uma relação narcísica
[estenotipia]". Entendemos que perigo está presente, aqui marcado pelo advér­
bio "essencialmente": nada menos que voltar aquém da observação freudiana,
no entanto homologada, segundo a qual o amor de transferência é um amor
verdadeiro. Distinguir Verliebtheit e Liebe não é tirar uma grande parte da
pertinência dessa observação, no mínimo torná-la problemática?

A experiência analítica e o ensino de Freud [ . . . ] fazem do amor enquanto


paixão esse algo que é essencialmente do plano imaginário [ . . . ] . O amor
no sentido do desejo de ser amado [sublinho] é essencialmente tentativa de
captura do outro em si mesmo objeto, tomado enquanto objeto. Insisti
nisso na medida em que, se disso falei longamente, pela primeira vez,
desse fenômeno do amor narcísico, foi no prolongamento da dialética da
perversão [ estenotipia] .

A que intervenção Lacan faz aqui alusão? Ela parece perdida... A cisão
do amor é aqui efetiva, com a introdução do amor "no sentido do desejo
de ser amado". Será amar desejar ser amado por alguém, significar-lhe isso,
talvez até pedir-lhe isso? A coisa está longe de estar estabelecida. Lacan não
coloca explicitamente essa questão, mas insiste numa espécie de diatribe em
que se entende que ele não parece muito trazer esse desejo de ser amado
em seu coração:

O que há no desejo de ser amado é essencialmente esse fato de que o ob­


jeto amante seja de certo modo tomado como tal, enviscado, sujeitado na
particularidade absoluta de si mesmo como objeto. [ . ..] Quer-se ser amado
O A M O R LACAN

por tudo; não só por seu eu [moz] , como diz Descartes, pela cor dos cabelos,
pelas manias, pelas fraquezas, por tudo.

"Preso", "enviscado", "sujeitado", poderíamos ouvir alguém aprestan­


do-se, a despeito de culpa ou por culpa, a deixar o domicílio comum, essa
prisão onde, diz-se, ele sufoca. Mas é importante aqui a ruptura do amor,
sublinhada pelo que vem imediatamente após essa diatribe.

Mas, inversamente [sublinho] , o que é inteiramente não menos evidente, é


que amar (e eu diria correlativamente, e por causa disso mesmo) é justamente
amar um ser para além daquilo que ele parece ser. O dom ativo do amor
visa não o ser em sua especificidade, mas em seu ser.

Lacan joga aí com a oposição filosófica do ser e do fenômeno, do ser


e do parecer. Sobrevém, então, um outro perigo, nada menos que o pla­
tonismo. Lacan dá um passo na direção de Platão, mas não mais que um
passo. Para falar a verdade, a última frase acima, tirada de seu contexto, frase
em que vemos pela primeiríssima vez aparecer, em Lacan, o amor como dom,
poderia ser tomada como tendo a ver com o platonismo: "O dom ativo do
amor visa não o ser em sua especificidade, mas em seu ser". Só que há uma
d 1rerenç
·c a notave
"' A '" "
' ". O ra, e' cl aramente "o
' l entre isto que voce e e o ser d isto
ser disto" que é aqui visado. Pois bastaria escrever, o que é quase equivalente
do ponto de vista da significação: "O dom ativo do amor visa não o ser em
sua especificidade, mas enquanto ser" para cair na bitola (neo)platônica. Um
passo que Lacan portanto não dá, já que devemos bem antes ler: "O dom
ativo do amor visa não o ser do objeto amado em sua especificidade, mas
em seu ser". Há barragem contra o Pacífico da via platônica. Lacan precisa
isso logo depois: "O amor, em seu dom ativo, visa para além dessa cativação
imaginária, sempre o ser, essa particularidade [sublinho] do sujeito amado" .
Em outras palavras, o amor visa não o ser enquanto ser mas um ser em sua
particularidade que diremos, portanto, ôntica. O ser enquanto ser não pode,
este, depender do particular.
Eis, então, o amor como dom. Ao transcrever a afirmação, Jacques­
Alain Miller terá visto a novidade já que faz Lacan dizer: "Aprendam ago-
RU MO A U M A M O R S I M BÓ L I CO 77

ra. . . ". Pouco importa, esse dom cria dificuldade. Primeiramente porque o
amor como dom não pode se casar com o amor como pacto. O fato de se
com prometer com alguém poder ser conotado como dom (até o estranho e
obscuro "dar-se") em nada reduz a diferença notável entre acordar algo com
alguém e oferecer algo a alguém. Há mais. O amor como dom introduz uma
p erturbação bem grave naquilo que foi sustentado desde março de 1954.
Pois, como acabamos de ler coloca-se a questão de saber se Lacan não está
dizendo que o amor como dom não é o amor-paixão. Além disso, não é
apen as o amor-paixão que então arrisca ter chumbo nas asas, é também, já
que os dois traços estão ligados, o amor enquanto narcísico. Com efeito, o
am or como dom não visaria tanto o ser do sujeito, mas o ser do outro:

[... ] é na dimensão do ser do outro, isto é, de um certo para além do outro,


de um certo desenvolvimento do outro em seu ser que se dirige o amor; não
na medida em que aceito, mas muito precisamente na medida em que é uma
dessas três essenciais linhas de partilha na qual penetra o sujeito quando se
realiza simbolicamente na fala. Sem essa dimensão da fala na medida em que
ela afirma o ser, há tudo o que quiserem; Verliebtheit, fascinação imaginária,
mas não há a dimensão do amor.

A perturbação introduzida pelo surgimento do amor corp.o dom iria


até distinguir dois amores, um dos dois, a Verliebtheit (o amor-paixão) não
sendo um verdadeiro? Esses dois amores se repartiriam entre o do amado
(aquele que deseja ser amado) e o daquele que ama? Não teriam eles quase
nada a ver um com o outro? Não é exatamente isso que é dito, e até nem
um pouco isso. Ou seja, de novo, a citação que introduzia o amor como um
dom, mas, desta vez, sem passar por cima do parêntese que ela comporta:

Mas, ao inverso, o que de fato é não menos evidente é que amar (e eu diria
correlativamente, e por causa disso mesmo) é justamente amar um ser para
além do que ele parece ser. O dom ativo do amor visa não o ser em sua
especificidade, mas em seu ser.

Esse "correlativamente" vem indicar que essas duas palavras estão


ligadas, articuladas. O amor do amado, de quem deseja ser amado, seria o
0 AMOR LACAN

amor paixão, um amor capturante; e lhe responderia o amor como dom,


visando o ser amado para além daquilo que ele parece ser. Curiosa resposta,
de qualquer modo, esse dom, como é percebido na dissonância, na discor­
dância entre essa afirmação de um amor dom-resposta e a pouca estima que
Lacan parece ter pelo desejo de ser amado. Mesmo levando em conta esse
"correlativamente", resta um certo través na articulação desses dois amores
a um só tempo não recíprocos e diferentes até no teor (um imaginário, o
outro simbólico). Assim, podemos nos perguntar se é possível, como Lacan
parece aqui admitir, identificar o amado "àquele que deseja ser amado",
àquele que não cessa de capturar o outro em si mesmo. E como entender
essa articulação, essa "correlação", a qual é, além disso, apresentada co m o
uma relação causal? O surgimento do amor como dom, esticando o amor
entre imaginário e simbólico, coloca um estranho problema: o que é que,
no amado que se dedica à captura do amante, à sua incorporação em si
mesmo, poderia atuar como causa do dom de amor? Amaria eu um outro
contanto que ele não cessasse de me submeter, de me enviscar nele mesmo?
Amá-lo seria oferecer-me à sua captura, à sua submissão? Seria esse o dom
de amor? Nesse caso, eu me veria como sendo tanto doador quanto objeto
do dom. Tratando-se do amor dito verdadeiro, esse pendor dá a entender
que os termos "masoquismo" ou "servidão voluntária" não pareceriam ina­
propriados. Pensamos em História d 'O. Esse amor escravo, seria esse o amor
verdadeiro, o dom de amor?

DA ESCRAVI DÃO AMORO SA

O escravagismo amoroso bem cedo foi notado na Grécia antiga: como


mostra, notadamente, em O banquete de Platão, o discurso de Pausânias.
Só podemos ficar impressionados, considerando o contexto de uma época
em que ser escravo era uma das piores coisas que poderiam acontecer a um
cidadão, com a grande liberdade de espírito de Pausânias a esse respeito.
Ele apresenta a escravidão amorosa sob duas formas, uma vergonhosa,
outra não. Pausânias cobre de vergonha o amante que se entrega a todas
as manobras degradantes da sedução (suplicar, pronunciar juramentos que
RU M O A U M A M O R S I M B Ó L I C O 79

n ão se po deria manter depois, deitar-se à porta do amado, etc.) mas se e


som en te se esse amante for mal-intencionado, se ele buscar seduzir a fim
de ob ter algum a vantagem (dinheiro, uma magistratura, uma influência
polí tica , etc. ) . Pausânias vai muito longe, falando a respeito da sedução de
29
"u m a fo rma de escravidão que nenhum escravo aceitaria " . Ainda mais
longe po rquanto admite, e é a segunda forma da escravidão amorosa, que
ess a "es cravidão consentidora" é perfeitamente legítima, "escapa à censur à',
deve até ser louvada na cidade, uma vez que o amante aspira à virtude e a
co n duzir seu amado à virtude. Ser escravo do amor é, então, uma qualidade
preciosa, como, diz ele, fazer-se escravo da virtude.
O que Lacan compromete com o dom de amor difere das palavras de
Pausâni as: não se encontra em Pausânias a ideia de que o amado (que deve
ser um rapaz para que o amor venha da Afrodite celeste) deseja submeter
se u am ante. Aliás, em nenhuma parte é evocado, na pederastia grega, o
desejo do amado como tal, o desejo de ser amado. No Fedra, de fato está
em questão o que acontece com o amado em razão de ser um amado, de
ter consentido nisso 30 ; mas não o seu desej o na medida em que estaria na
origem da aventura amorosa e, menos ainda, como em Lacan, uma inten­
ção que seria sua e para com a qual seu comprometimento no amor seria
apenas um meio de submeter o amante. Entre os gregos da época clássica
e o Ocidente contemporâneo, a ética virou de cabeça para baixo - o que
Lacan não deixou de notar.
É possível que esses desenvolvimentos tão sofridos sobre a escravidão
amorosa se devam a um significante, um significante que, curiosamente, não
foi retido pelos coletores aplicados dos neologismos de Lacan 3 1 : "cativação" ,
que nenhum dicionário oferece* . "Captação" existe, provém de captare,
"procurar prender" , derivado iterativo de capere, "pegar" ; existe também
"cativar", que deu "cativante" e que provém do latim captivare. O dicionário
Le Robert observa que I ) "cativar" suplantou no antigo francês "chaitiver" , e

29 Platão, Le ba11q11et, trad. de Luc Brisson, Paris, GF Flammarion, 1998, p. 104.


30 Tratei esse ponto em detalhe em O sexo do mestre, op. cit.
31 Marcel Bénabou, Laurent Cornaz, Dominique de Liege, Yan Pélissier, 789 néologismes de
Jacques L,1ca11, Paris, Epel, 2002.
• O dicionário Houaiss registra o termo como "ato ou efeito de cativar". (NT)
80 0 AMOR LACAN

2) foi ele mesmo suplantado pouco depois por "capturar". E acrescenta: " O
sentido figurado de 'impressionar favoravelmente, seduzir' então se expan­
diu, consumando a separação semântica de cativar e de cativo, cativeiro".
Daí se deduz que o neologismo "cativação" de certo modo retorna aquém
dessa separação semântica. Entretanto, reconheceremos nessa separação um a
virtude analítica, pois ela distingue duas situações: que um ser me cative
é uma coisa, que me capture é outra. "Cativação" conjuga os dois. Posso
ser cativado, no sentido de "fascinado por alguma coisa" embora nem por
isso haja, nessa coisa mesma, uma intenção de me capturar. Assim um a
paisagem. Aí, diferente de um sedutor, uma paisagem, enquanto paisagem,
não se serve de seu caráter cativante para me capturar. Poderíamos objetar
que o jardim, paisagem feita por mão humana, parece realizar tal captura.
O jardim japonês, especialmente em sua forma zen, é feito para que a cada
passo a visão e a impressão mudem, para que cada passo dê acesso a outro
lugar. Aquele que passeia não fica assim, não só cativado mas capturado?
Mas não se pode desprezar que o xintoísmo faz de uma árvore, de u m a
montanha, de um rochedo, de um pedacinho de folha outros tantos deu­
ses. No Ocidente, continua sendo difícil admitir essa ausência de intenção
naquilo que me cativa, e talvez seja por essa razão que alguns, diante de
uma paisagem cativante, recorrem a um Criador. Essa convocação assinala
a dificuldade de pensar a captação sem a captura; ela assinala, em outras
palavras, a lacaniana "cativação". Um ser que me seduz tem a intenção de
me prender, de me fazer seu prisioneiro? Isso nada tem de necessário. Ele
pode, por exemplo, seduzir-me com a única visada de capturar não a mim,
mas um terceiro, primeiramente feito testemunha de a que ponto estou
cativado. Ou ainda, como Freud descreveu a respeito de um certo tipo de
sedução feminina, é a própria indiferença de que tal mulher dá prova para
comigo que me seduz; daí a imputar-lhe uma intenção de me capturar, de
abandonar sua indiferença...
O assunto fica mais complexo se o transpusermos para o registro
do amor. O cativante erômeno faz questão de capturar o eraste, de amá-lo
no sentido de se apropriar dele? É possível não supor isso e pensar que o
erômeno, como a rosa, é "sem porquê". Não é precisamente esse furo, que
nem mesmo é uma ausência, que cativa o eraste? Para falar a verdade, nada
em Lacan por enquanto permite responder, pois a resposta passará por um
RU M O A U M
AMOR S I M BÔLICO 81

cer to desdobramento do objeto: haverá o objeto amado e, ligado ao objeto,


0 q ue Lacan
vai chamar seu "para além" - a questão do dom tomando en tão
ou tro regime. "Cativação" funciona ao oposto desse "sem porquê". Lacan
deve ter entrevisto a armadilha, a do amor de escravo, pois, comprometido
nessa abordagem singular do amado, ele sente a necessidade de logo dar
u m limite a essa captura que o amado exerceria. Logo depois de ter falado
de "cativação", ele acrescenta:

O amor não mais como paixão mas como dom ativo sempre visa para além
da cativação imaginária o ser do sujeito amado, sua particularidade. É por
isso que ele pode aceitar muito longe suas fraquezas e desvios, pode até ad­
mitir seus erros, mas há um ponto onde ele para, um ponto que só se situa
pelo ser - quando o ser amado vai longe demais na traição de si mesmo e
persevera na enganação de si, o amor não segue mais.

Lacan não diz nem sugere nada mais que isso, nesse 7 de julho de
1954, quanto ao que seria o objeto do dom de amor. Com certeza porque
lhe interessa, então, a visada do amor. Na sequência dos seminários, esse fio
da submissão amorosa não será nem absolutamente afastado nem levado
adiante tal qual. Uma vez introduzido o amor como dom, o se do "dar-se"
não resolverá a questão do que seria o objeto do dom de amor;
CA P ÍTU LO I I

RU M O A U M A M O R E X TÁT I C O

º que se passa entre esse momento em que, sem desprender absolu­


tamente o amor do imaginário, Lacan procura inscrevê-lo também
como simbólico ( Os escritos técnicos) , extraí-lo do imaginário para levá-lo
ao simbólico, e esse outro momento em que o fin'amor intervém a um só
tempo como referência e como questão (A ética da psicandlise) ? Por mais
inédito que tenha sido no campo freudiano, o fato de se levar em conta o
amor cortês não pode ser considerado inaugural do amor Lacan. Algo de
novo precede e supera em importância esse fato. Não ainda exatamente o
amor Lacan mas um arcabouço, que parecerá tão crucial quanto aquilo que
examinamos mais comumente, isto é, a maneira como Lacan vai falar do
a mor cortês e, pouco depois, do Ban quete de Platão.
O amor não vai estar muito presente durante o período dos seminários
que vai dos Escritos técnicos ( 195 3- 1954) até A relação de objeto e -as estruturas
freudianas ( 1956- 1957), em que vai ser produzido o arcabouço do amor.
Três traços, porém, merecem ser notados, ainda mais que alguns deles serão
retomados para a construção do arcabouço do amor: o amor como miragem;
a fidelidade amorosa; e, terceiro traço, o amor nas psicoses.

DA MIRAG EM AMORO SA

Quase um chiste. Em 12 de maio de 195 5 , enquanto em fim de sessão o


seminário discute, Lacan responde a um de seus ouvintes, Jean-Bertrand
Pontalis, que se inquieta com o fato de que se tenha "perdido o sentido do
real". "Não, não, não", parece dizer Pontalis, "a realidade não é o conjunto
do símbolo". Muitos outros vão reagir do mesmo modo, não vão admitir
O AMOR LAC A N

a espécie de desvalorização da realidade que, segundo eles, a invenção do


ternário s. 1. R. implica. O problema será abordado na descrição de Gilberta
(trata-se de amor) feita pelo narrador de Em busca do tempo perdido:

Seus olhos negros brilhavam e como eu então não sabia, nem fiquei sabendo
desde então, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão forte, como
eu não tinha, tal como dizem, "espírito de observação", para extrair a noç ão
da cor, durante muito tempo, sempre que eu pensava nela, a lembrança do
brilho de seus olhos logo se me apresentava como a de um azul vivo, jd que
ela era loura [sublinho] : de modo que, talvez se ela não tivesse tido olhos
tão negros - o que tanto impressionava na primeira vez que a viam -, eu
não teria ficado, como fiquei, mais particularmente apaixonado, nela, por
seus olhos azuis 1 •

Não há realidade (uma realidade distinguida por Lacan do real), há


apenas julgamentos de realidade, os quais às vezes jogam com a implicação.
Aqui: "seus olhos são azuis, jd que ela é lourà', em outras palavras, "que ela
seja loura implica que ela tenha ["na realidade") olhos azuis" . O que reen­
contra o sentido primeiro, em Freud, da palavra Übertragung (transferência) :
"falsa ligação" . O exemplo dado por Freud vem a ser da mesma veia que essa
implicação proustiana. Trata-se de uma sessão na câmara dos deputados; de
repente, ouve-se uma explosão. O narrador, que não era um frequentador
do local, pensa que é assim que é assinalado o fim da sessão; ora, tratava-se
de um ato terrorista. Lacan designava a realidade como uma montagem de
imaginário e simbólico. Um juízo de realidade, a um só tempo de exis­
tência e atribuição, é um juízo que apela para a realidade a fim de não ser
questionado enquanto juízo de realidade. Assim aparece o lado "grosseiro"
da realidade, uma coloração que não é encontrada no fantástico, já que ali,
ao contrário, tanto existência quanto atribuição espantam, surpreendem,
não são evidentes.

1
Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, coll. "Bibliotheque de la
Pléiade", vol. I, p. 139. Devo esta citação a David Halperin.
A M O R E X T ÁT I C O
RU M O A U M

Assim, pouco proustiano na oportunidade, Pontalis se inquieta com


a p erda da realidade naquilo que o seminário fomenta. Lacan lhe responde,
m as com uma questão:
[...] você percebeu a que ponto é raro um amor fracassar nas qualidades e
nos defeitos reais da pessoa amada2?
PoNTALIS: não estou seguro de poder responder não.

Parece ser preciso entender que não, ele não percebeu. No entanto,
u ma segunda frase contravém essa leitura:

Não estou seguro de que seja uma ilusão retrospectiva.


LAcAN: Eu disse que era raro. E, na verdade, quando se chega ali, parece
ser bem antes da ordem dos pretextos. Quer-se crer que essa realidade foi
alcançada.

Não sabemos mais dizer muito se, agora, Pontalis está indignado ou
aterrado:

PoNTALIS: Mas isso vai muito longe. Corresponde a dizer que não há nun­
ca concepção verdadeira, que sempre se vai de correções em correções, de
miragens em miragens.
LAcAN: Com efeito, acho que é o caso nesse registro da intersubjetividade
no qual se situa toda nossa experiência.

Em outras palavras: no amor de transferência. Este é assunto de mi­


ragem, não de realidade no sentido de Pontalis, razão pela qual a resposta
na realidade (ou da realidade), a saber, "não sou aquele ou aquela que você
diz" ("loura, no entanto não tenho olhos azuis") não tem outro alcance
senão mostrar e fazer saber ao analisando que o analista nada entende em
matéria de amor - o que, aliás, em tal análise e na oportunidade, pode trazer
alguma tranquilidade.

2
Jacques Lacan, Le moi dam la théorie de Freud et dans la technique psychanalytique, Paris, Le
Seuil, 1 978, p. 254. Doravante: Le moi. . .
86 O A M OR LAC A N

Logo, um primeiro traço: a intersubjetividade dá lugar ao amor corn o


miragem.

DA F ID ELIDADE NO AMOR

Em 8 de junho de 195 5, menos de um mês após essa conversa, a fidelidad e


no amor vai estar em questão. Perfeita questão escabrosa, uma vez que não
se ignora que a infidelidade, pois bem, simplesmente... isso não existe, que
ninguém nunca é infiel a ninguém. Quando acontece o que chamamos urn a
infidelidade num casal (e com certeza é igualmente verdade com aqueles que
alguns chamam os "infiéis"), as condições exigidas da fidelidade não estão
mais reunidas. A infidelidade de modo algum é o que vem romper o laço;
ao contrário, é porque algo do laço amoroso já está quebrado que a pretensa
infidelidade se torna possível. A infidelidade pode na oportunidade tornar
manifesta a ruptura do amor; ela não a efetua. Logo, o que terá sido rompido?
Não se pode responder "o pacto amoroso", ainda que, nesse 8 de junho de
195 5, Lacan fale de novo de "pacto simbólico" a respeito do amor. Ovídio,
por sua vez, dá prova de bela prudência quando escrevia que a traição das
juras de amor era perdoada: "Júpiter, do alto dos céus, vê rindo os perjúrios
dos amantes e ordena aos ventos, súditos de Eole, que os carreguem e os
anulem3 " . Como se chega a desprezar que o ser mais fiel que seja, isto é, o
cão4 , pelo menos se acreditarmos em alguns, não pronuncie precisamente
tais juras? Aliás, nada garante que uma jura de amor valha como ato de
amor, nem sequer como declaração de amor. Entende-se a diferença de
posição subjetiva: dizer a alguém "te amo" é sensivelmente menos suspeito,
do ponto de vista da veracidade, que proferir um "vou te amar para sempre".
Por que razão? Porque o "vou te amar para sempre" introduz no amor um

3
Ovídio, L'art d'aimer, prefácio de Hubert Juin, texto estabelecido e traduzido por Henri
Bornecque, Paris, Gallimard, coll. " Folio classique" , 1 974, p. 4 8 . Uma nota da edição citada
precisa que esse riso divino a respeito das juras de amor era um topos da poesia grega mais
an tiga.
4 Jean Allouch, Sombra do teu cão. Disrnrso psicanalítico, discurso lésbico, Companhia de Freud
Editora, Rio de Janeiro, 200 5 .
U M A M O R E X TÁT I C O
RUMO A

ingrediente que o faz virar vinagre, a saber, a incondicionalidade. A coisa é


p atente qua ndo o amor se refere à criança. Quando um dos pais se imagina
ob rigado a amar incondicionalmente sua prole, regularmente aconte�e de,
em reação, essa prole se comportar de maneira sempre mais tirânica. E que
convém pôr um termo não no amor, mas em sua incondicionalidade. Ser
amado inco ndicionalmente é sê-lo bem mal.
Em que termos o problema da fidelidade amorosa é colocado por
Lacan? Falando da fidelidade à palavra dada, ele se pergunta: "Como jus­
tificar essa palavra tão imprudentemente dada e, propriamente falando,
co m o todos os espíritos sérios disso nunca duvidaram, insustentável 5 ? " Em
outras palavras, não é o pacto, nem a jura que pode explicar a fidelidade
e m amor.
Lacan não busca aqui dar conta do que pode se designar como uma
fidelidade obrigada, essa modalidade da fidelidade que se deve a outra coisa
q ue ao próprio laço amoroso, por exemplo ao fato de que um casal heteros­
sexual terá i nscrito seu amor na ordem católica apostólica e romana, caso no
q ual o amor, ao se duplicar na forma sacramental do casamento, ao se querer
análogo ao amor de Cristo por sua Igreja, não pode ser infiel. Uma versão
leiga dessa sobredeterminação do amor se instala quando o amor mantém
um olho voltado para "o que vão dizer", quando a fidelidade só se mantém
pelo medo da vergonha que sua ruptura provocaria via "o que vão dizer" .
Ali tampouco a fidelidade não é intrínseca ao laço amoroso. Por contraste a
essa fidelidade obrigada, chamaremosfidelidade leve aquela devida apenas ao
amor. Essa fidelidade é evidente; ela não pesa; vivida como uma felicidade,
ela quase não se sabe. Ora, é ela que deve ser explicada. Para fazê-lo, Lacan
antes de mais nada vai afastar uma primeira e falsa explicação: "Tentemos
superar a ilusão romântica, que é o amor perfeito, o valor ideal que assume
cada um dos parceiros para o outro, que sustenta o comprometimento
humano" . Não mais que no pacto, a fidelidade não pode dever-se ao fato
de o parceiro encarnar a figura ideal do amado. Essa observação é de puro
bom senso psicanalítico. A psicanálise mantém-se afastada desse idealismo
(ativo em Ortega y Gasset, o amado devendo ser portador de pelo menos um

) J, Lacan, Le moi . . . , p. 302.


88 O A MOR L A C A N

traço de excelência). E Lacan propõe outra explicação da fidelidade, que nã o


caberá ao amado, às suas maravilhosas qualidades, mesmo supervalorizadas
pelo amor, mas ao amante. Vai por certo reaparecer aqui o pacto simbólico ,
mas um pacto bem estranho, um "pacto" que não liga apenas dois sujeitos .
Como, então, em psicanálise, explicar a fidelidade no amor? Resposta:

Proudhon [...] encontra a solução em algo que só pode ser reconhecido p or


um pacto simbólico. Ponhamo-nos na perspectiva da mulher. O amor que a
mulher dá a seu esposo não visa o indivíduo, mesmo idealizado [...] mas um
serpara além [sublinho]. O amor propriamente falando sagrado, aquele que
constitui o laço do casamento, vai da mulher àquilo que Proudhon chama
todos os homens. Da mesma forma, através da mulher, são todas as mulheres
que a fidelidade do esposo visa. [ . . . ] não é uma quantidade, é uma fun ção
universal [sublinho]. É o homem universal, a mulher universal, o símbolo,
a encarnação do parceiro do casal humano.

Com efeito, se uma mulher vale por todas, se um homem vale por
todos, então sim, pode existir essa fidelidade leve que devia ser explicada.
Essa fidelidade não é especialmente virtuosa, nem meritória; não decorre
de uma exigência moral; seu único apoio é o próprio teor do amor. Mas,
sobretudo, não é uma fidelidade, já que cada um, tendo um parceiro,
possui ipso facto todos os parceiros possíveis. Logo, não há fidelidade, nem
tampouco infidelidade.
Aqui já se acha em ação, embora não problematizado, o quantificador
"não-todo" que só será explicitamente explorado dezessete anos mais tarde6 .
Com efeito, se "uma vale por todas", "um por todos" {mas precisamente
não no sentido guerreiro do "um por todos, todos por um"), um jogo está
instalado entre esse "um" e esse "todos", que implica o "não-todos", já que
está bem precisado que esse "um" não iguala o "todos" {como no slogan
guerreiro), mas o chama como seu para além. Descompletado desse "um",
o "todos" é um "não-todos" . Ora, esse "para além" vai se afigurar decisivo

6
Reportar-se a Guy Le Gaufey, Le pastout de Lacan. Consistance logique, conséquences clini­
ques, Paris, Epel, 2006.
U M A M O R E X TÁT I C O 89
RU M O A

a curtíssimo prazo. Com efeito, estamos aqui às voltas com o primeiríssimo


um para além do amado na figura lacaniana do amor7 •
apa recim ento de
A.mando uma mulher, amo, para além dela, todas as mulheres. Amando
u m homem, amo, para além dele, todos os homens. Questão (que Lacan
não coloca): qual é, então, o objeto de meu amor? E como não se espantar
(La can não se espanta com isso) que o amado pareça aí tirar vantagem?
Certo, ele pode buscar alguma satisfação narcísica nesse valor que lhe é dado
de contar, ele, ela, por todos, por todas. Pouco importa, se, por acaso, sua
exigência fosse ser amado "por ele mesmo", não dá certo! Eis um estorvo no
q ual, para a perseverança do amor, parece preferível não se demorar muito
(e Lacan não se demora nele). Rápido esse para além vai ser ainda mais en­
carnado, ao ponto de valer comofunção (a palavra já está na citação) de para
além, função que receberá outros argumentos que esse "todos os homens" ou
"todas as mulheres", e que vai assim atuar como um elemento fundamental
do arcabouço do amor.

00 AMOR MO RTO

Tratando das psicoses durante um seminário, Lacan não podia desprezar a


afirmação de Freud segundo a qual o psicótico ama seu delírio como ama
a si mesmo. Como ele vai tratá-la? Talvez não tivesse, na época, os meios
nem os instrumentos que lhe permitiriam extrair todo seu suco dessa tão
justa anotação. Notadamente porque, em 1956- 195 7, ele ainda não está
em condição de colocar a questão da articulação do amor com o saber,
daquilo que o amor deve, para seu próprio surgimento, a um certo posi­
cionamento do saber. É verdade que ter eleito "Aimée" como significante
de sua transferência com relação a Marguerite Anzieu8 , que ter em seguida
cometido o erro "técnico" de ter tomado Didier Anzieu em análise não era

7 É verdade que já esteve em questão um "para além" na derradeira sessão do seminário Os


escritos técnicos. Mas Lacan logo precisava que esse "para além" era "um certo desenvolvimen­
to [sublinho] do outro" . Em Lacan, só há "para além" quando ele for claramente diferente
daquilo em relação ao que ele está "para além" . É aqui o caso.
" ]. Allouch, Marguerite, ou l'Aimée de Lacan, Paris, Epel, 1 994 (2' éd . ) .
90 O AMOR L AC A N

muito suscetível de esclarecê-lo sobre o estatuto do amor nas psicoses. Mas


o que diz ele disso, nesse ano, mesmo que essas afirmações tenham ficado
sem continuação9?
A observação de Freud dá lugar à ocorrência, nos seminários, do
amor cortês. Lacan pouca coisa diz então sobre isso, considerando-o antes
de longe, como uma "arte de amar" (piscadela de olho a Ovídio) que te­
ria reinado por um tempo antes de se prolongar, mas de maneira sempre
mais degradada, até no amor romântico. A ideia de uma tal "degradação",
a ideia de que os "patterns amorosos", como ele ironicamente os cha ma,
"tornaram-se cada vez mais incertos" poderia ser contestada. Entretanto,
lançaremos no dossiê dessa "degradação" a "valentinagem* ", que foi insti­
tuída bem cedo, na Inglaterra, pouco depois do fin'amor (no século XIV, o
texto de referência sendo The Parliament ofBirds, de Chaucer), e que foi,
dois séculos mais tarde, trazido para a França por Charles d'Orléans, poeta
duas vezes viúvo e feito prisioneiro na batalha de Azincourt, ao voltar a
seu país após vinte e cinco anos de cativeiro na Inglaterra. Lemos, em sua
balada LXXVI, estes versos:

[ . . . ] Que eles marquem o dia de São Valentim este ano


Aqueles e aquelas do partido amoroso:
Só, permanecerei viúvo de reconforto,
No mau leito do pensamento magoado 1 0 •

9 Uma observação de qualquer modo, nas "Conferências e entrevistas nas universidades nor­
te-americanas", segundo a qual: "A psicose é uma espécie de falência no que se refere ao
cumprimento daquilo que é chamado 'amor"' (Scilicet, 6/7, Paris, Le Seuil, 1975, p. 16).
Bem antes, os escritos de Aimée tinham sido ditos exprimir "uma aspiração amorosa, cuja
expressão verbal é tanto mais tensa porquanto é na realidade discordante com a vida, mais
fadada ao fracasso" (De la psychose para11oiaq11e drms ses rapports avec la perso1111alité, 2' éd.,
Paris, Le Seuil, 1980, p. 179.
* O costume da "valentinagem", isto é, do namoro. Instituído por Valentim, sacerdote ca­
tólico que decidiu casar em segredo os apaixonados. Daí a comemoração do dia de São
Valentim como dia dos namorados. (NT)
1 0 Texto em francês contemporâneo de Daniel Ménager, in Anthologie de la poésie .fi'fllzfnise d11
Moyen Âge nu xvf siecle (Paris, Gallimard, coll. "Bibliotheque de la Pléiade", 2000), citado
por Pierre Canavaggio, Les superstitions de l'amour, Paris, Éd. Ou Rocher, 2004, p. 13 .
U M A M O R E X TÁT I C O 91
RU MO A

Francisco de Sales em vão tentou recuperar a valentinagem em pro­


veito da Igreja . Não foi um pequeno acontecimento essa resistência dos
valentinos e valentinas (mais amplamente, das populações) a serem afasta­
dos em proveito de santos e santas. O universo da valentinagem é mágico
e supersticioso, não religioso. Como os pássaros na primavera, valentinos
e valentinas cantam o amor já em 14 de fevereiro*, confiantes que amar
é portar-se bem ("Valentim": de valere, portar-se bem). Do divertimento
aristocrático que assumiu o lugar do jin'amor ao parodiar a publicação dos
banhos do casamento, passando pelo ritual da eleição das valentinas depois,
ainda no século passado, o mercado das moças de Camblain-Châtelain
( Pas- de- Calais), e até os classificados gratuitos do jornal Libération no dia
de aniversário da morte do santo, parece bem, com efeito, haver degradação.
Mas escrever uma história do sentimento amoroso não é aqui o propósito.
Eis os de Lacan, em 3 1 de maio de 1956:

Tomemos por ponto de referência a técnica, pois era uma, ou a arte de amar,
digamos a prática da relação de amor que durante certo tempo reinou do
lado da nossa Provença ou de nosso Languedoc. Há aí toda uma tradição
que prosseguiu pelo romance arcadiano do estilo Astrée, e pelo amor ro­
mântico, e em que se observa uma degradação dos patterns amorosos, cada
vez mais incertos. [ . . . ] O tom caiu, a coisa caiu no irrisório. Jogamos, com
certeza, com esse processo alienado e alienante, mas de maneira cada vez
mais exterior, sustentada por uma miragem cada vez mais difusa [ . . . ] Essa
dimensão vai no sentido da loucura da pura miragem, na medida em que
o acento original da relação amorosa está perdido. [ ... ] Era uma técnica
espiritual, que tinha seus modos e seus registros [ . . . ] 1 1 •

Volta aqui a miragem da discussão com Pontalis. Entretanto, na pri­


meira ocorrência, Lacan parece indicar que à degradação do pattern amoroso
corresponde uma miragem "cada vez mais difusa", em outras palavras, que
quase não seria mais uma, e a falta da miragem faria a degradação. Ora, a

• Dia de São Valentim, dia dos namorados, na Europa. (NT )


1 1 J. Lacan, Les ps chom, Paris, Le Seuil, 198 1, p. 288.
y
92 O AMOR LAC A N

segunda ocorrência, em que está em questão "a loucura da pura miragem",


parece ao contrário indicar que, tornada pura, a miragem seria mais ativa
uma vez que essa degradação produziu seus efeitos. Não é garantido que
haja aí uma contradição. Mas o importante é, então, o paralelo aqui tenta­
do entre o fato sociocultural da dita degradação do amor (de seu ponto de
culminância) e o estatuto do amor nas psicoses:

O caráter de degradação alienante, de loucura, que os dejetos dessa práti ca ,


perdidos no plano sociológico , conotam nos apresenta a analogia do que
acontece no psicótico, e dá seu sentido à frase de Freud [...] que o psicótico
ama seu delírio como a si mesmo. O psicótico só pode entender o Outro
na relação com o significante, ele só se demora numa casca, num invólu cro ,
uma sombra, a forma da fala. Ali onde a fala está ausente, ali se situa o Eros
do psicosado , é ali que ele encontra seu supremo amor.

Não se trata de modo algum de declarar que o psicosado (aceitemos


essa palavra, que cria assonância com "gaseado") não ama, é incapaz de amar,
que sua doença é uma "neurose narcísica" (Freud), que ela o torna, portanto,
mas somente para quem o terá assim designado, incapaz de transferência;
trata-se bem antes de dizer de que maneira ele ama. E, portanto, de indi­
car lateralmente o lugar onde seu psicanalista, quando acontece de ele ter
elegido um, terá de se manter na transferência psicótica. Essa apresentação
do amor do psicosado deve ser entendida levando em conta o fato de que,
então, Lacan pensa o amor em referência à fala plena. Logo, trata-se de um
contraste, e entre os mais bem acentuados, já que o amor do psicosado é
dito ter lugar, ao oposto, "ali onde a fala está ausente".
Entretanto, está excluído afirmar que o delírio corresponde a uma
radical ausência de fala; não vemos, se fosse esse o caso, por que Lacan se
teria dado tanto trabalho para decifrar a configuração complexa dos delírios
sistematizados de Marguerite Anzieu, ou teria dedicado tantas reflexões a
Schreber. Ele não sustenta que o psicótico ama seu delírio como a si mesmo,
mas anuncia algo mais sutil: considerando essa relação com o significante,
identificável notadamente no delírio (mas também na alucinação e no fe­
nômeno elementar), considerando o apego do psicótico apenas à forma da
RU M
O A U M A M OR E X T Á T I C O 93

fala, ao significante "como tal", o psicótico só pode amar alhures, amar em


o utro lugar. Qual é seu objeto? O que, pois, o psicótico ama e que seria,
seguindo Freud embora corrigindo-o com Lacan, nada menos que "a si
mesmo" ? Resposta: o Outro absoluto. Para falar a verdade, todo esse desen­
volvimento era feito para dar corpo a uma afirmação que lhe era anterior
mas que ele torna a um só tempo menos abrupta e mais acessível. O que
ela dizia? Lacan está defendendo uma vez mais sua distinção do pequeno
o utro e do grande Outro. Ele ousa dizer, então, que esse grande Outro é
aq uilo que visava Freud quando este falava, na origem, da não-existência
de nenhum Outro (emprestando seus próprios conceitos a Freud, o qual
não pode mais):

[ ... ] esse Outro é todo em si, diz Freud, mas ao mesmo tempo todo inteiro
fora de si.
A relação extática com o Outro é uma questão que não data de ontem. [ ... ]
Fazia-se, na Idade Média, a diferença entre o que chamavam a teoria física
e a teoria extática do amor. Assim, colocava-se a questão da relação do su­
jeito com o Outro absoluto. Digamos que, para compreender as psicoses,
devemos fazer com que se recubra, em nosso pequeno esquema da relação
amorosa com o Outro enquanto radicalmente Outro, com a situação em
espelho, com tudo o que é da ordem do imaginário, do animus � da anima,
que se situa conforme os sexos num lugar ou no outro.
[ . . . ] para o psicótico, é possível uma relação amorosa se o abolir como sujeito,
na medida em que ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas
esse amor também é um amor morto 1 2 •

Primeiramente uma precisão: sob a pena de Rousselot (que Lacan


não menciona aqui, mas a quem ele deve a distinção das duas formas de
amor, físico e extático), "amor físico" não quer absolutamente dizer o que
hoje se entende espontaneamente por aí. Rousselot precisa isso já em sua
introdução:

12
J. Lacan, Les psychoses, op. cit. , p. 287.
94 O A MO R L A C A N

[ ... ] duas concepções do amor dividem os espíritos na Idade Média; podemos


chamá-las a concepção flsica e a concepção extdtica. Física, é evidente, n ão
significa aqui c01poral: os partidários mais decididos dessa maneira de ver só
olham o amor sensível como um reflexo, uma fraca imagem do amor espiri­
tual. Físico significa natural, e serve aqui para designar a doutrina daq ueles
que fundam todos os amores reais ou possíveis na necessária propensão que
têm os seres da natureza em busca de seu próprio bem 1 3 •

Confrontada com a estenotipia 1 4 , a transcrição da editora Le Seuil


acima reproduzida parece falha em certos pontos, ao ponto de atribuir a
Lacan uma afirmação diferente da que foi feita. 1) Desaparece a indicação
segundo a qual o verdadeiro amor seria o amor extático 1 5 • 2) É evacuada
a indicação corolário segundo a qual esse amor estaria às voltas co m a
verdadeira existência do Outro. O objetivo teria sido recuar diante da afir­
mação, aqui tão crua, de uma existência do Outro? Teria sido apagar o que
se designa de um possível misticismo nesse "amor verdadeiro"? 3) Lendo
essa transcrição, deveríamos admitir que o amor nas psicoses faz com que
se recubram a relação imaginária e a relação simbólica. É precisamente o
que o psicótico, em seu amor extático, não faz. Se houvesse uma dúvid a
na leitura dessa passagem da estenotipia, essa dúvida seria posteriormente
suspensa, quando, depois de falar da degradação do amor, Lacan conclui: "O
psicótico só pode entender o Outro na relação com o significante, ele só se
demora numa casca, num invólucro, numa sombra, na forma da fala" . Logo,
o contrassenso aqui se refere ao amor extático. Como o amor psicótico, o
amor extático coloca a existência de um Outro radicalmente Outro, mas à
custa da abolição do sujeito. 4) Lemos: "Mas esse amor é também um amor
morto". Lacan certamente não diz que o amor extático do psicótico pelo
Outro absoluto é um amor morto. Ao contrário, ele fala claramente a esse
respeito de uma "possibilidade da relação amorosa", referindo-se, além disso,

1 3 P. Rousselot, Pour l'histoire du probleme de t:1111011r au Moyen Âge, op. cit., p. 8 .


1 4 Hoje facilmente acessível no site d a École lacan ienne d e psychanalyse.
1 5 Na citação referenciada aci ma, logo depois de " Outro absoluto" , buscaríamos em vão a pro­
posição seguinte, separada por uma simples vírgula de "Outro absoluto" : "No lugar do qual
pode se situar na teoria extática o verdadeiro amor, a verdadeira existência do O utro [ . . . )".
RU M O A U M
A M O R E X TÁT I C O 95

a u m objeto bem definido, a "heterogeneidade radical do Outro". Em outras


palavras, o psicótico ama o Outro enquanto Outro. Esse amor está vivo.
· "na med'd
A sequênc ia 1 a em que esse amor tam bem ' esta' morto" quer d'1zer,
de acordo com a análise de Rousselot, que esse amor vivo, precisamente na
medida em que se realiza, implica, exige o desaparecimento do sujeito, que
ele é de ordem sacrificial. Terá bastado suprimir o "também" para fabricar
a tese segundo a qual o amor do psicótico é um amor morto. Como, além
disso, ela converge com aquela, freudiana, de uma pretensa incapacidade
de amar (e portanto de transferência) imputada ao psicótico, ela terá belos
dias pela frente, e bem recentemente ainda
16•

É possível esclarecer mais adiante a preferência dada por Lacan ao


amor extático? Três razões correlatas escoram essa preferência. Primeira ra­
zão: o amor físico foi, este, teorizado bem longe, sobretudo por São Tomás.
Part indo da ideia de que amar é buscar o próprio bem ou felicidade, que
1
"o amor de si é a medida de todos os outros amores e os supera todos 7 " ,
Tom ás usou todo seu arsenal teórico para tornar compatível essa ideia do
amor com o amor de um Deus que deve ser amado "mais que a si mesmo".
Sua demonstração dessa compatibilidade é sutil, brilhante, apaixonante. Se
a coisa só for amada "na medida em que é uma com o sujeito que ama 1 8 " ,
será possível, mediante notáveis reconsiderações relativas à unidade, não
só amar a si mesmo mas também amar Deus de modo altruísta. Esse
amor físico é um amor de unidade; ele se opõe ao amor extático, que é
de dualidade, de pessoa a pessoa. O amor extático distingue o amante do
amado, e este deve ser um traço que convém a Lacan. Segunda razão de sua
escolha: há dom no amor extático, ao passo que uma suspeita pesa sobre
o caráter gracioso do dom no amor físico, na medida em que, até em seu
amor altruísta por Deus, o sujeito busca seu próprio bem. Terceira razão,
o amor extático, lançando o sujeito fora de si mesmo, é feito de violência
e se apresenta como irracional (ausência de teoria). O que resta da pessoa
que ama enquanto pessoa, se ficar despojada de tudo o que faz seu ser por

16 Como mostra a obra coletiva L'nmour dom les psychoses, dirigida por Jacques-Alain Miller,
Paris, Le Seuil, 2007.
17 P. Rousselot, Pour l'histoire du probleme de l'nmour 011 Moyen Âge, op. cit., p. 9.
18 lbid., p. 1 1.
96 O AMOR LAC A N

seu amor mesmo ? Daí este dito espirituoso que emprestam a Agostin ho :
"Meu Deus, se eu fosse Deus e o senhor fosse Agostinho, eu preferiria que
o senhor fosse Deus e eu Agostinho 1 9 " . Se fosse pensado, esse amor ex t át i­
co acabaria aparecendo como se não distinguisse mais as pessoas em jogo ,
essas pessoas mesmo sem as quais ele no entanto não pode ficar. Trata- se de
um amor destruidor do s ujeito, sacrificial, louco. Como Lacan não teria aí
encontrado seus filhotes, ele que já ligou amor e ódio e tomou um disc re to
apoio no amor louco s urrealista20 ?
Restam dois problemas . Lacan pode sustentar ao mesmo tempo sua
preferência pelo amor extático e identificar esse amor como sendo o do
psicótico ? Não haveria outro amor verdadeiro senão o do psicótico ? Ou
então seria preciso dizer que o psicótico representa esse amor extático de
uma certa maneira, a ser distinguida de uma outra, que diria respeito a
qualquer um? Outro problema não abordado : o caráter narcísico do am or,
que não pode ser afastado com desprezo . Esse narcisismo encontra seu lu gar
do lado do amor físico e somente desse lado. É por isso que só se pode falar
de uma preferência dada por Lacan ao amor extático e não de uma pura e
simples eleição.
A indicação do "recobrimento" é interessante a um outro título. Com
efeito, aí se encontra a presença discreta da função do para além, que havi a
aparecido pela primeira vez um ano antes . Já estava explícita em Tomás,
logo , no amor físico, a respeito do qual Rousselot escreve: " Com efeito,
S. Tomás ensina que todo ser da criação , em cada uma de suas apetiçóes,
desej a Deus mais profundamente que o objeto particular que ele visa2 1 " .
O recobrimento , característico do amor físico, seria tal que, para além do
amado como pequeno o utro, seria visado o grande Outro, o Outro absoluto,
por conseguinte colocado , ali também, como existindo (mas abordado de
outra maneira) . Aqui ainda, a preferência dada por Lacan ao amor extático

19
Ibid. , p . 78.
20 A fim de dar alguma carne a esse amor extático, poderemos nos reportar ao poema que Paul
Eluard enviou a Joe Bousquet numa carta datada de 7 de dezembro de 1928 e que Bousquet
publicou em Chantiers, nº 7•, novembro de 1929. Eluard havia pescado esse soneto, escrito
por uma alienada, na tese de "um triste imbecil", mas cuja leitura ele no entanto aconselha
a Bousquet, "enquanto enormidade".
21 P. Rousselot, Po11r l'histoire du probleme de l'amo111: . . , op. cit., p. 15.
U M A M O R E X TÁT I C O 97
RU M O A

n ão pode valer de modo absoluto. Sem contar que não pode se satisfazer
com a distinção de duas figuras do amor - verdadeira serpente marítima
nos seminários. O importante, aqui, é que, posteriormente, essa função do
para além vai de certo modo se consolidar e assim participar da construção
do arcabouço do amor.
CAP ÍTU LO Ili

0 A RC A B O U Ç O D O A M O R

RE C USA C RÍ TICA
0 0 PAR NARC I S I SMO-ANAC LITI SMO

Dezembro de 1956 é notadamente dedicado a criticar e a pôr de lado o que


alguns dos ouvintes de Lacan haviam aprendido de Freud em matéria de
amor. Tudo se passa como se, aprestando-se para trazer certas novidades nas
sessões de janeiro de 1957 do seminário A relação de objeto e as est uturas
r

.freudianas, Lacan fosse levado a fazer uma limpeza geral. Do que se trata?
A teoria freudiana dita do "tubo em U " supostamente deve estabelecer a
relação em balança entre amor de si (narcisismo) e amor de objeto (anacli­
tismo): todo investimento libidinal que não fosse lançado na conta de um
o seria na conta do outro, e vice versa. Freud não estava sem apoio de bom
senso para escorar sua "teoria anaclítica", como a nomeia Lacan. ·Não parece
empiricamente exato que amar carregue consigo um certo empobrecimento
do investimento do eu [mot] enquanto o amado, este, se beneficia de um
excesso de investimento (retomado desse próprio empobrecimento), de uma
superestimação que parece só ter pouco escoramento em seu valor próprio?
No entanto, Lacan vai se dedicar a, como mais tarde vai dizer, "esvaziar"
essa evidência. Essa tentativa não espanta muito: ele já não manifestou
que não se satisfaria com um amor unicamente localizado no imaginário?
Assim, as afirmações de 19 de dezembro de 1956 vão ser dedicadas a uma
dupla carga contra a teoria do tubo em U . A primeira o encara em seus dois
polos, a segunda se refere apenas ao anaclitismo. Primeira carga 1 : haveria
"contradição" em Freud pelo fato de que ele atribuiria a necessidade de ser

1
Jacques Lacan, La relation d 'objet, Paris, Le Seuil, 1 994, p . 83. Doravante: A relttçdo de objeto.
1 00 O A M O R LACA N

amado ao lado anaclítico e a necessidade de amar ao lado narcísico. Lac a n


não cita nenhum texto de Freud, mas precisa em que, desse lado, narcísico,
a coisa é mais sensível: o tipo de atividade própria ao narcisismo implicando
o desconhecimento do outro (narcisismo... segundo Lacan) não pode vale r
como uma oblativa necessidade de amar.
A segunda carga diz respeito ao anaclitismo. Já se deplorou, a expo­
sição em que, pela primeiríssima vez, Lacan teria falado do amor ligando- o
à perversão (fazendo do amor uma perversão?) não está acessível em lugar
algum. Mas parece bem que esse 19 de dezembro de 1956 valha como um a
sessão de recuperação - ainda que, do texto perdido àquele dessa sessão,
as coisas possam ter variado. Esse jogo perversão/amor é tanto menos des ­
prezível porquanto a perversão vai intervir como um dos três elementos do
tripé clínico sobre o qual será fabricado o arcabouço do amor. Nesse 19 de
dezembro de 1956, Lacan toma suas referências num chamado "esquema
do fetichismo", que aqui está:

PAI

A relação anaclftica é uma persistência, no adulto, de uma relação


infantil. Duas páginas precisam essa relaç ã o. O homem adveio como fa­
lóforo, e até "mestre" do falo (nada menos evidente, no entanto, que nos
lembremos apenas de Ovídio a se desesperar com a inércia persistente d e
seu pênis2); e é a esse homem prevenido, único a poder satisfazê-la, que
a mulher se endereça (não se discutirá aqui esse "fato"). Essa configuração

2 Ovide, Les amours, texto estabelecido e traduzido por Henri Bornecque, introdução e notas
de Jean-Pierre Néraudau, Paris, Les Belles Lettres, 2002, p. 1 5 1 - 1 57.
101
O A R C A B O U Ç O DO A M O R

o d eria ser qualificada de "ótima" se não se tratasse da "mulher materna",


; relação mulher homem escorando-se na relação mãe criança.
O esquema do fetichismo é produzido num contexto que ressalta
q u e chegar à falta de objeto já é um jogo no plano imaginário - o que vai
se afigurar precioso, quando se tratar do amor.

Com efeito, a perversão tem a propriedade de realizar um modo de acesso a


esse para além da imagem do outro que caracteriza a dimensão humana. Mas
[sublinho] ela só se realiza em momentos como os que sempre produzem
os paroxismos das perversões, momentos sincopados no interior da história
do sujeito [ . . . ] . Durante essa passagem ao ato, algo é realizado, que é fusão,
e acesso a esse para além.
A teoria anaclítica freudiana formula como tal essa dimensão transindivi­
dual, e chama Eros a união de dois indivíduos [ . . . ] . Essa unidade é realizada
em certos momentos da perversão, mas [sublinho] o próprio da perversão
é precisamente que essa unidade só possa ser realizada em momentos que
não são ordenados simbolicamente3 •

Podemos encontrar nessas observações com o que esclarecer o feti­


chismo, mas também ver nisso um viés eleito para tomar distância, a partir
do fetichismo, em relação ao eros freudiano. De que maneira? b fetichista
se identifica com o objeto, com a criança do esquema. Sua prática erótica,
a que lhe permite ter acesso à falta de objeto no plano imaginário, lhe dá
o acesso, para além do objeto, ao falo (exemplo canônico: o sapato é falo
fetichizado). Entretanto, o fetichismo ensina que isso só se dará no "curto
instante" de uma "iluminação fascinante" (o próprio momento da satisfação
erótica) e à custa de uma perda do "objeto primitivo", a saber, a mãe. Nesse
esquema, o traço criança falo, que seu redobramento sublinha, transcreve
a prática fetichista. A relação mãe falo por certo faz parte disso, mas na
medida em que o acesso ao falo equivale, não menos pontualmente, a uma
destruição da mãe. Quanto às três linhas centrais, elas desenham a relação
primitiva na qual se apoia a satisfação anaclítica do fetichista.

1
J. Lacan , La relati011 d'objet, p. 85.
1 02 O AMO R LAC A N

Uma reserva importante é aqui trazida ao Eros freudiano unificador. Cer­


to, Eros é reconhecido suscetível de unificar, mas pontualmente. Nada convida
a ler essa reserva como própria à perversão. Muito pelo contrário, a perversão,
como com frequência quando Lacan apela para uma entidade clínica, ou até
lhe redesenha o teor, aí é convocada por seu caráter exemplar. Em matéria de
unificação erótica, ninguém faz melhor que o perverso, ao passo que ele mesmo
exemplifica melhor que qualquer um o que acontece em qualquer pessoa.
Logo, a dualidade narcisismo-anaclitismo não pode de modo algum
valer como a última palavra sobre o amor. Lacan abre lugar. Não menos
importante de reter, um outro traço diz respeito ao para além do objeto .
Lembrança: essa função do para além recebeu primeiramente como argu­
mento o "todos os homens" para além de um homem, o "todas as mulheres"
para além de uma mulher; em seguida foi, com o amor extático, o Outro
absoluto, em que o para além vem ao primeiro plano. Eis agora, terceiro
argumento, o falo. Ofetichismo escora em Lacan o primeiríssimo aparecimento
do falo nesse lugar de para além do objeto amado.

A I N STITUIÇÃO DA FALTA
NA RELAÇÃO COM O OBJ ETO

Um arcabouço [um bâtt] (de bastjan, "montar ou construir com a casca da


árvore, bast") , em costura, já é uma montagem das peças da roupa futura,
a qual, no entanto, ainda não está cosida nem pode ser usada. Além do fe­
tichismo, dois outros dados clínicos, tomados em Freud, vão permitir que
Lacan construa o que chamo seu arcabouço do amor: a Jovem Homossexual
(e portanto, uma segunda vez, a perversão) e Dora. A Jovem Homossexual,
mais precisamente sua maneira de amar a dama, leva Lacan a afastar uma
afirmação que decerto não se encontra tal qual em seu texto, mas que alguns
poderiam ler, na sessão de 19 de dezembro de 1956 de seu seminário, a
partir da seguinte afirmação:

Tudo o que sabemos da prática do amor cortês e da esfera na qual ele se


localizou na Idade Média implica uma rigorosíssima elaboração técnica
A 1 03
O A RC B O U Ç O DO A MO R

da abordagem amorosa, que comportava longos estágios de contenção na


presença do objeto amado, tendo em vista a realização desse para além que
é buscado no amor, o para além propriamente erótico4 •

Poder íamos entender nesse "para além propriamente erótico" uma


referên cia ao ato sexual, o amor sendo então apresentado como uma es­
p é cie de estribo para a realização desse ato. Sem se confundirem, amor e
gozo sexual de qualquer modo andariam de mãos dadas - assim como,
5"
e m Ovídio, em quem "o fogo do amor é alimentado pelo desejo físico .
No entanto, outra frase dessa mesma sessão vem afastar essa leitura:

O que é aqui visado e efetivamente atingido é, sem dúvida alguma, um para


além do curto-circuito fisiológico, se assim podemos nos exprimir. Para
atingi-lo, é feito um uso deliberado da relação imaginária como tal6 •

A trepada, aqui qualificada de "curto-circuito fisiológico", não é o que


0 amor visa, nem o que o amor alcança. Qual é, pois, esse "para além propria­

mente erótico" que, para além da trepada, o amor visaria e atingiria? Várias
respostas vão se apresentar, desde 9 de janeiro de 1957, seis exatamente, a
quinta sendo chamada a se tornar, pelo menos por um tempo,_ canônica.
Primeira asserção, relativa ao amor "platônico [da Jovem Homossexual] no
que ele tem de mais exaltado":

É realmente o amor sagrado, se podemos dizer, ou o amor cortês no que ele


tem de mais devoto. [ . . . ] Em suma, ele [Freud] situa a relação da jovem com
a dama no mais alto grau da relação amorosa simbolizada, colocada como
serviço, como instituição, como referência. [ . . . ] é um amor que, em si, não
só dispensa a satisfação, mas visa muito precisamente a não-satisfação. É a

4 J. Lacan, La relation d'objet, p. 8 8 .


s Jean-Pierre Néraudau , Prefácio a Lettres d'amo111; Les Héroiâes, edição apresen tada e ano­
tada por Jean-Pierre Néraudau, tradução de Théophile Baudement, Paris, Gallimard,
1 999 , p. 3 5 .
6
J. Lacan , La relation d'objet, p. 88 .
1 04 O AMOR LAC A N

própria ordem na qual um amor ideal pode desabrochar - a instituição da


falta na relação com o objeto [sublinho] 7 .

''A instituição da falta" aqui está localizada "na relação com o objeto" .
Entretanto, logo depois, Lacan vai se corrigir: ela tem seu lugar não no sujeito
que ama mas no outro, o qual "dentro" também é um p ara além. Esses dois
termos localizadores são lidos em outra passagem, em que também transpa­
rece uma alusão ao amor extático, esse amor que implica o "aniquilamento"
do sujeito que ama. Para ser lida, a afirmação pede que nos lembremos que,
segundo o que Freud concebeu, a Jovem Homossexual se precipita no amor
da dama depois de ter ficado decepcionada por não ter recebido um filho
de seu pai8 , pai este que, simplesmente, acaba de fazer esse filho não nela,
sua filha, mas em sua mãe (a mãe... dela):

[ . . . ] o que é desejado está para além da mulher amada. O amor que a j ovem
devota à dama visa algo que é outra coisa que ela. Esse amor que vive pura
e simplesmente na ordem do devotamento e que leva ao supremo grau o
apego do sujeito e seu aniquilamento na Sexualüberschatzung9, Freud pa­
rece reservá-lo, e não é por nada, ao registro da experiência masculina. [ ... ]
A reflexão da decepção fundamental nesse nível, sua passagem ao plano do
amor cortês, a saída que o sujeito encontra nesse registro amoroso colocam
a questão de saber o que é, na mulher, amado para além dela mesma, e isso
questiona o que é realmente fundamental em tudo o que se refere ao amor
em seu acabamento i o .

Antes de mais nada é convocado "o que é desejado" para além da


mulher amada, desejado, não amado. Lacan colocaria juntos desejo e amor?

7 Ibid., p. 109.
8
O que ela nunca admitiu, hoje sabemos, achando até extravagante essa "interpretação" de
Freud. Ver, de lnes Rieder e Diana Voigt, Sidonie Csillag, homosexuelle chez Freud, lesbienne
dans !e siecle, trad. do alemão por Thomas Gindele, Paris, Epel, 2003.
9 Überschiitzen: sobrestimar, supervalorizar, sobretaxar, superestimar, presumir demais; Übers­
chiitzung;. sobrestimação, supervalorizaçáo.
10 J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 10. Sublinhei certos termos franceses usando itálicos.
O A RCA B O U Ç O D O A M O R 1 05

N ão é o que ele está fazendo ao dizer que o amor institui a falta na relação
com O objeto? Há aí um flerte com a possibilidade de conjugar amor e de­
sej o. O ra, se existe alguém que os diferencia, é bem a Jovem Homossexual,
e até O ponto de fazer (segundo Lacan, tolo de Freud) de seu amor pela
dam a a "solução" da "decepção fundamental" de seu desejo de criança. Há
"p assagem ao plano do amor cortês"; ou ainda, outra palavra marcada em
Lacan, "reflexão" (não se trata do espelho mas, ao contrário, do deslizamento
d a problemática imaginária do desejo de criança para o plano simbólico do
amor); outra palavra utilizada: "inversão"; a Jovem Homossexual encontra
u ma "saída" nesse "registro amoroso". Essa mudança de registro basta para
resolver a questão amor desejo? Não parece, pois logo é precisado que " O
que é, propr iamente falando, desejado na mulher amada é justamente o
que lhe falta", esse objeto primordial (entender: o falo) do qual a criança
poderia ter sido um substituto imaginário e ao qual o sujeito volta. É esta a
flutuação do trilhamento antes que ele dê a fórmula. Assim, vamos ler, mais
adiante, uma frase em que esse mesmo objeto buscado, isto é, o "aquilo que
lhe falta", é posto na conta do amor e não mais do desejo. Por enquanto,
subsiste a flutuação.
Na Jovem Homossexual, o amor vem resolver um impasse do desejo
(sua decepção). Tal movimento subjetivo não recebe nome, ao contrário
do recalque, da renegação, da denegação, da foraclusão, etc. Várias palavras
designam essa operação (passagem, reflexão, inversão), sem que nenhuma,
jamais, seja elevada à dignidade de conceito. Essa operação, é verdade, é um
pouco complexa. Lacan usa a clássica equivalência freudiana criança/falo,
sugerindo que essa equivalência teria atuado na própria Jovem Homossexual.
Ela não terá recebido do pai, sob a forma da criança, o falo. E, aí também,
não é um conceito que Lacan use; ele não fala, por enquanto pelo menos,
nem de frustração, nem de privação, nem de castração (célebre ternário
lacaniano, é verdade ainda a vir), mas de uma "decepção". O assunto tem
sua lógica temporal: ela "ia encontrar" esse falo (Lacan gostava de sublinhar
a espécie de suspense que comporta, em francês, a afirmação "a bomba ia
estourar"). Como a mãe teve um filho, a Jovem Homossexual teria reco­
nhecido que não foi ela a eleita do pai, de um pai que - isso vai contar -,
ao contrário do pai de Dora, não é impotente. Em outras palavras, por essa
1 06 O A M OR LAC A N

mudança de registro, essa passagem ao plano simbólico, nem tudo vai estar
inteiramente perdido para ela, no que se refere a esse falo. O fato é qu e
essa operação comporta um preço, isto é, não só uma renúncia à satisfação
(sexual e amorosa), mas uma visada como tal da "não-satisfação" . Esse falo
que é amado para além da dama não é um objeto do qual ela tiraria urn a
satisfação qualquer. O que deve ser entendido em função da insistência de
Lacan em referir todo o assunto ao registro simbólico, o do amor cortês.
O fato de esse falo ser simbólico implica que ele seja colocado em jogo
enquanto não satisfatório. Mas como esse falo pode ser amado para além
da amada, da dama? A resposta se lê nas duas próximas sessões e, com ela,
vão vir novas e importantes asserções a respeito do amor.

DO AMOR COMO DOM

Seja, portanto, a afirmação do dom ( 16 de janeiro de 195 7):

Com efeito, ela trata essa dama num estilo altamente elaborado de relações
cavalheirescas e propriamente masculinas, com uma paixão oferecida sem
exigência, desejo, nem sequer esperança de retribuição, com o caráter de
um dom, aquele que ama projetando-se para além até de toda espécie de
manifestação da amada 1 1 •

Usando seu esquema L, Lacan vai escrever as duas posições subjeti­


vas da Jovem Homossexual, a que precede o amor da dama, depois a desse
amor realizado.

PRIMEIRA CONFIGURAÇÃO :

Mãe imaginária Criança real

Pênis imaginário Pai simbólico

11
J. Lacan, Ln relation d'objet, p. 1 2 1 - 1 22.
O A RC A B O U Ç O D O A M O R
1 07

RA Ã
SEG UN DA CO NFI GU Ç O
Criança Dama real

Pai imaginário pênis simbólico

Bastaria jogar com o esquema L como com um bom velho metro


de m arceneiro que desdobraríamos ainda mais para que surgissse, vista
a partir de S , a função do para além: A para além de a (completamente
desdobrado, teríamos a sequência S , a' , a, A)

Criança

Pai imaginário
S

a z à

A
Dama real

Pênis simbólico

De acordo com essa segunda configuração do esquema L, a dama,


em a', assumiu o lugar da criança como objeto de amor. Em a, o pai ima­
ginário com o qual se identifica a Jovem Homossexual (assim tornada ao
realizar, se ouso dizer, esse segundo esquema), amando a dama conforme
u m miinnliches 1j,pus (Freud, citado por Lacan). Ora, o comentário desse
esquema dará lugar à quarta e importante asserção anunciada:

Se a dama é amada, é precisamente na medida em que ela não tem o pênis


simbólico, mas tem tudo para tê-lo, pois [sublinho] ela é o objeto eleito de
todas as adorações do sujeito 1 2 •

O espantoso "pois" poderia ser assim desenvolvido: "Eu te ofereço


isso mesmo que, ao acolhê-lo, tu me indicas que te falta" . Estamos quentes!
Lacan ainda não disse sua fórmula do amor, pelo menos aquela que se tornará
célebre e que só será produzida na sessão seguinte. Por enquanto, atuam
dois "ele não tem" : o sujeito que ama ama o que ele não tem; e a mulher
amada é amada por não ter (o falo). Ainda não está feita a junção que vai
ligar esses dois "ele não tem" . Por enquanto, amar é dar ao amado o que ele

12
J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 28.
ro8 O AMOR LAC A N

não tem, é dar o que não se tem a alguém que não o tem. Pouco importa, iss o
"nos coloca justamente no cerne da relação amorosa e do dom 1 3 " .
Não se trata apenas do amor mas do "ficar apaixonado". O amor
reconfigura certos dados presentes antes de sua ocorrência. Ele não nasce
de nada - já O banquete de Platão fazendo uma criança de Poros e Pên ia.
A bateria dos termos aqui é diferente, enquanto que o uso do esquem a L
oferece outra lição, mostrando que o amor não é assunto puramente dual.
Mas a marca mais sensível dessa relativa complexidade dos elementos em jogo
no amor está no fato de o pênis, não por certo como simbólico mas com o
instrumento da satisfação erótica, ficar fora do amor da Jovem Homossexual
por sua dama (esse traço foi confirmado pelo que se ficou sabendo depois
de sua vida). Ele permanece no pai, observa Lacan; assim, essa localização
do pênis fora do amor que se tem pela dama faz parte desse amor.
Antes da sessão de 23 de janeiro de 195 7, em que pela primeira vez
o amor aparece como dom daquilo que não se tem, toda uma série de pro­
posições foram portanto levantadas: 1) o amor como instituição da falta
na relação de objeto; 2) o amor pelo falo para além do amado; 3) o amor
como dom; 4) o amor como dom ao amado daquilo que ele não tem. Uma
quinta proposição, esta, vai se basear no caso Dora, confrontado com o
da Jovem Homossexual. O que Dora traz a Lacan, que não seria acessível
apenas com o caso da Jovem Homossexual e que permitiria, depois de ter
abordado o amor em termos que acabam de ser lembrados, que ele encer­
rasse seu percurso com a afirmação do amor como dom daquilo que não
se tem? Resposta: a impotência do pai. Dora está frustrada por não receber
simbolicamente do pai o "objeto faltante 1 4 ". Curiosamente, essa afirmação
introduz uma fórmula nos antípodas da definição futura do amor, fórmula
em que Lacan declara: " Eis agora o pai, que é feito para ser aquele que dá
simbolicamente esse objeto faltante. Aqui, no caso de Dora, ele não o dá
porque não o tem". Só se daria o que se tem? Lacan vai dever reposicionar
o dom, notadamente em relação a Marcel Mauss e a Claude Lévi-Strauss, a
fim de fazer entender que não. Ele vai dever, no mesmo passo, diferenciar

13
J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 29 .
14
Ibid. , p. 1 39 .
1 09
O A RC A B O U Ç O D O A M O R

am or e desejo. Em outras palavras, a nova definição do dom é a um só tempo


iso mor fa e correlativa de sua distinção do amor e do desejo:

O que é dar? Não há outra dimensão introduzida na relação de objeto no


nível em que ela é levada ao grau simbólico pelo fato de o objeto poder ser
dado ou não? Em outros termos, é sempre o objeto que é dado?

Seja a troca tal como a usavam Marcel Mauss para analisar o potlatch
e Claude Lévi- Strauss, as estruturas elementares do parentesco: objetos
circulam, ou mulheres tomadas como objetos. A lei da troca é a recipro­
cidade (até quando é posta em jogo uma lógica do suplemento, como no
potlatch). Ela se formula como: "Não se tem nada por nada". Lacan vai
to mar essa fórmula ao pé da letra e fazê-la assim ressoar de outro modo: não
se tem nada, mas também é por nada. Assim, a fórmula acaba enunciando
"a pura gratuidade 1 5 " , ou seja, uma nova dimensão do dom. Dito ainda de
outro modo, nunca é tanto um objeto que se dá quanto um signo. Daí o
primeiro aparecimento, nos seminários, do amor como dom daquilo que
não se tem:

O que intervém na relação de amor, o que é pedido como signo de amor,


é sempre algo que vale apenas como signo. Ou para ir ainda· mais longe,
não há maior dom possível, maior signo de amor, que o dom daquilo que
não se tem. Mas observemos bem que a dimensão do dom só existe com a
introdução da lei. Como nos afirma toda a meditação sociológica, o dom
é algo que circula, o dom que você faz sempre é o dom que você recebeu.
Mas quando se trata do dom entre dois sujeitos, o ciclo dos dons vem ainda
de outro lugar, pois o que estabelece a relação de amor é que o dom é dado,
se podemos dizer, por nada.

O estreito foi cruzado. Lacan pode voltar a insistir e alojar suas pre­
cedentes asserções nesse dom daquilo que não se tem: "Em outras palavras,
o que faz o dom é que um sujeito dá algo de maneira gratuita, na medida

15
J, Lacan, La relation d'objet, p. 140.
1 10 0 A M OR LACA N

em que por trás do que ele dá há tudo o que lhe falta, é o que o sujeito
sacrifica para além do que ele tem" . Depois, um pouco mais adiante: "O
que é amado num ser está para além do que ele é, a saber, no fim das con ­
tas, o que lhe falta" . Há quatro ocorrências do verbo "ser" nessa frase. A
estenotipia comporta sete!
Esse momento do percurso de Lacan é anterior à definição do sign ifi­
cante enquanto diferente do signo, o primeiro representando o sujeito junto
a outro significante, o segundo representando algo para alguém. Entretanto,
notaremos que já aqui a linguagem do amor é feita de signos e não de sig­
nificantes. Lemos bem: "Não há maior dom possível, maior signo de am or
que o dom daquilo que não se tem" . Há, estilisticamente, redundância: o
maior dom é o maior signo; o teor do dom é o do signo. Uma vez produzida,
a definição do signo vai se aplicar perfeitamente a esse propósito. O maior
signo/dom do amor representa algo para alguém. O quê? O falo, ele mesmo
tomado como um signo. Deseja-se com sign ificante, ama-se com sign os. Todo
amoroso pratica isso. O amor é fabricado como uma linguagem de signos.
Assim aparece, por exemplo, o estatuto da cançoneta que terá presidido ao
encontro amoroso, igualmente o dos dons de amor que, justamente, não
valem tanto como objetos quanto como signos do amor: digo-te novamente
meu amor usando hoje o vestido que me deste, ao oferecer a teu olhar, em
nosso presente, esse signo de meu e de teu amor. Língua de sign os, a língua
do amor é uma linguagem de surdos e mudos; de cegos igualmente, como se
diz comumente que ele é. Lacan não inventa essa conivência do amor e do
signo. Encontramo-la em Ovídio numa página feliz dos Amores: o marido,
a amante e o amante participam de um jantar, outros convivas igualmente.
O que propõe, o que ensina o amante à sua amante, numa carta que lhe
envia logo antes das festividades? Nada mais que o código da linguagem
privada dos dois:

Quando pensares no ardor de nossos amores, toca com teu dedo delicado
tuas faces rubras. Se, em ti mesma, tiveres queixas de mim, embaixo de
teu ouvido graciosamente para a tua mão. Quando meus gestos ou minhas
palavras te derem prazer, luz de minha vida, roda teu anel por muito tempo
111
O A RCA B O U Ç O D O A M O R

nos dedos.Toca a mesa com teus dedos como os suplicantes o altar, quando
desejares a teu marido todo s os males que ele merece 1 6 •

O amor é feito de signos; o dom de amor é dom de signos, dom de


u m signo (mas aí deixamos Ovídio para nos vermos em Lacan) que não se
tem, do falo.

ESQYEMA D O VÉ U

Os elementos agora estão instalados para que Lacan entregue a seus ouvintes
seu arcabouço do amor. Ele faz isso, durante a sessão seguinte de seu semi­
nário (3 0 de janeiro de 1957), ao trazer um chamado "esquema do véu" .
Vão voltar o fe tichismo, desta vez como terceiro pé clínico do arcabouço
do am or, assim como a função do para além e a distinção mantida do amor
e do desejo.
A fórmula "amor por nada" já ocorrera (23 de janeiro), a respeito da
Jovem Homossexual, maneira de dizer que seu amor pela dama era "absolu­
tamente desinteressado 1 7 " . Oito dias mais tarde, esse "nadá' toma lugar no
arcabouço do amor, enquanto um novo elemento desse arcabouço, o véu, ofe­
recerá alguma consistência à função, até então mais abstrata, do para além.
Bem no começo desse 30 de janeiro, Lacan tem o sentimento de ter
b em recentemente trazido o que ele chama então "esquemas fundamentais".
Ele o comunica lembrando "essas afirmações paradoxais - o que é amado
no objeto é aquilo que lhe falta, só se dá aquilo que não se tem 1 8 " . Quanto
ao "esquema", só agora ele o apresenta. Como? Aplicando-o ao fetiche.
Esse objeto importa, pois, como o objeto do dom amoroso, ele também é
simbólico. O objeto amado para além do amado "com certeza não é nada" ,
mas, mais ainda, deve "ser esse nada" 1 9 • Com efeito, se o símbolo é a morte
da coisa, como é dito já há um certo tempo, o dom simbólico de amor,

16
Ovide, Les amours, op. cit. , p. 1 3 .
17
J. Lacan, La relatio n d'objet, p. 1 45 .
18
Ibid. , p. 1 5 1 .
19
lbid. , p. 1 5 5 .
112 O AMOR LAC A N

dom de um símbolo (o falo), só pode ser dom de nada. O dom do falo é


insepardvel do dom de nada, é necessariamente dom de nada. Mas como, em
relação ao amado, situar esse nada que lhe é oferecido? Como esse nada se
"materializa"?

O véu, a cortina diante de algo, é ainda o que melhor permite imaj ar a


situação fundamental do amor. Pode-se até dizer que, com a presença da
cortina, o que está para além como falta tende a se realizar como imagem .
Sobre o véu se pinta a ausência. [ . . . ] A cortina é, se podemos dizer, o ídolo
da ausência.

Referência é feita, então, ao véu de Maya, "metáfora mais comumente


em uso para exprimir a relação do homem com tudo o que o cativa". Depois
vêm o "esquema do véu" (esquema tanto do fetichismo quanto do amor: o
flerte prossegue entre amor e perversão) e seu comentário:


Sujeito Objeto Nada

Cortina
ESQUEMA DO VÉU

Eis o sujeito e o objeto, e esse para além que é nada, ou ainda o símbolo ,
ou ainda o falo na medida em que falta à mulher. Mas tão logo se instala a
cortina sobre ela se pode pintar algo que diz - o objeto está para além. O
objeto pode então assumir o lugar da falta e ser também como tal o suporte
do amor, mas na medida em que não é, j ustamente, o ponto onde se amarra
o desejo. De certa maneira, o desejo aparece aqui como metáfora do amor,
mas o que o amarra, a saber, o objeto, aparece, este, enquanto ilusório, e
enquanto valorizado como ilusório.

Véu ou cortina? Mas não é essa a própria inquietude do amor e


igualmente a dificuldade do fetichismo, cuja ilusão sem cessar é ameaçada
"pelo desabamento ou o levantar de cortina"?
1 13
O A R C A B O U Ç O D O A M OR

O início da sessão de 6 de fevereiro de 1953 recapitula o recente


avanço sobre o amor que surpreendeu alguns. Já tornado mais complexo
co m a introdução do para além e da falta, a relação sujeito-objeto sofreu
u ma complicação suplementar com a introdução do véu, colocado antes
do objeto e onde "vem figurar precisamente aquilo que falta para além do
. 20
o bJeto "
Duas observações provisoriamente conclusivas: antes de mais nada,
essa fo calização do amor sobre a falta no outro prolonga o amor como uma
q uestão de ser (ôntica), e não, como para o desejo, de satisfação. Lacan
lembra isso ainda em 6 de março de 1957: o amor visa não o objeto legal
(o da união consagrada), tampouco o objeto de satisfação, mas o ser.
Segunda observação: a aceitação do simbólico que vemos aqui operar
é anterior à definição acasalada do significante e do signo. A nova definição
do significante virá modificar a abordagem do amor? Vemos mal que pudesse
ter sido de outro modo - razão, também, pela qual essa configuração do
am or acaba de ser apresentada como um arcabouço. Seu teor depende muito
estreitamente do símbolo, precisamente, do falo como símbolo no sentido
da ausência do objeto. Entrevemos que as peças da roupa assim dispostas
p uderam jamais ter sido cosidas.

20
J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 65 .
CAP ÍTU LO I V

0 AMO R É C Ô MI CO

A ética da psicandlise vai introduzir o fin'amor no campo freudiano, não


sem a intenção precisa e confessada de colocá-lo a serviço de uma
nova teoria da sublimação - o que, aliás, estava explícito nos Minnesiin­
ger1. Entretanto, o amor é objeto de observações não desprezíveis nos dois
seminários que precedem A ética, a saber, principalmente, As formações do
inconsciente, mas também O desejo e sua intetpretação.
As formações do inconsciente vão dar ao amor nada menos que seu
registro. Não que o arcabouço tenha realmente mudado; aqui e ali vão
reaparecer tal ou tal de seus elementos: 1) o amor como dom daquilo que
não se tem volta com alguma insistência; 2) a problemática distinção amor
desejo é escorada; 3) a função do para além vai ver seu âmbito ampliar-se.
Logo, esse arcabouço continua mantido tal qual. Entretanto, como uma
variação mínima da iluminação modifica uma cena, o amor será colorido de
uma certa maneira ao longo desse seminário. Com efeito, nele bem cedo é
afirmado que o amor é um sentimento cômico, primeiro ponto a ser discu­
tido antes de encarar suas consequências primeiramente sobre o complexo
de Édipo, mas também, e de maneira mais espantosa, sobre a paradigmática
fantasia "espanca-se uma criança". Outra determinação do amor, introduzida
com As formações do inconsciente e O desejo e sua interpretação, diz respeito
ao lugar e à incidência do amor do ponto de vista de um ternário hoje um
pouco esquecido, parece: o ternário necessidade/demanda/desejo. O amor
ali encontra um novo lugar. Mas não sem levantar, terceira determinação

1 Mais exatamente em André Moret, na introdução de sua Anthologie du Mi1111esa11g, Paris,


Aubier, coll. "Bibliotheque de philologie germanique", 1 949, p. 29.
1 16 O A M O R LACAN

dessa época dos seminários, a possibilidade problemática de dois amores, 0


do homem pela mulher, o da mulher pelo homem.

DO CÔMICO COMO REG I STRO DO AMOR

Lacan havia introduzido o amor como dom ao se afastar da perspectiva "de


troca" do dom; da mesma forma, ele vai ressaltar o amor como sentimento
cômico ao desenvolver uma inédita versão do que seria o cômico (da mesma
forma, ainda, o posicionamento do amor como sublimação exigirá uma
remodelagem desta).
Em que base(s) foi portanto formulado o cômico do amor? Questão
ainda mais importante porquanto o amor encarado como sentimento
cômico foi mantido quase até o fim do percurso de Lacan. Aliás, não po­
deria ter sido diferente por parte de alguém que escreveu, é verdade que
bem mais tarde: "Nada pode ser dito 'a sério' (ou seja, para formar série
limite) a não ser tomando sentido da ordem cômica 2 " . O próprio Lacan
foi publicamente declarado "palhaço" enquanto vivo, e não é seguro que
a coisa lhe tenha desagradado. Uma testemunha escrevia recentemente
que ele imprimiu "na história da psicanálise na França, muito terna antes
dele, o ar, um pouco frívolo talvez mas jamais fastidioso, de uma comédia
de Sacha Guitry cheia de brigas, surpresas e repercussões3 " . O mesmo, a
saber, Maurice Pinguet, não hesita em falar das "más maneiras" (à moda
surrealista?), com efeito patentes em Lacan, ao passo que são latentes em
Freud4 • Ele escreve ainda:

Esse homem pronto para zombar não via portanto que ele pontificava, que
ele se levava a sério? Mas não, ele teria respondido que o fato de nada levar a

2 Jacques Lacan, 'Tétourdit", Scilicet, nº 4, Paris, Le Seuil, 1973, p. 44.


3 Maurice Pinguet, "Stele pour Jacques Lacan", L'infini, nº 88, outono de 2004, 1 16.
4 Ver, por exemplo, suas maneiras duvidosas (no sentido das Ligações perigosas) com Ferenczi
Oean Allouch, La psychanalyse: 1111e érotologie de passage, Cahiers de L'Unebévue, Paris, Epel,
1998, p. 69 sq.) .
É CÔM I CO 117
O AMO R

sério o impedia de ser paranoico: por trás de momentos de ênfase, orgulho,


violência, sentia-se passar o riso e a paródia5 .

O saber maneira Lacan é barroco, alegre, vivo; ele se abre amplamente


para O que Pinguet lembra de Mallarmé, para "a iniciativa deixada às pala­
vras" ("alínguà' é o conceito dessa iniciativa). Mesmo quando não conseguia
avançar, Lacan não dava essa impressão. Lacan talvez seja unicamente isso:
u m tom na psicanálise. Logo, o fato de o amor ser um sentimento cômico
será dito por um personagem ele mesmo amplamente situado na vertente
cô m ica. O que teria acontecido se ele tivesse declarado isso num tom trágico?
S ua p roposta simplesmente não teria valido nada.
Costuma ser de feliz estratégia, quando é possível, ler Lacan a partir
daquilo que, no que ele trilhava, chocava seus ouvintes. Em 29 de janeiro
de 1958, voltando à sessão de 1 8 de dezembro de 1957 e confrontado com
0 fato de que sua proposta não fora "bem engolida", ele lhes confiava que
a tirara de Hegel6 • Com efeito, Hegel fora discretamente mencionado em
1 8 de dezembro, mas antes de modo evasivo:

De onde vem a comédia? Dizem-nos [na verdade, Hegel] que ela sai do
banquete em que, em suma, o homem diz sim numa espécie de orgia - dei­
xemos a essa palavra toda a sua imprecisão. O banquete é constituído pelas
oferendas aos deuses, isto é, aos Imortais da linguagem. No fim das contas,
todo o processo de elaboração do desejo na linguagem se resume e se conjuga
no consumo de um banquete. Todo esse desvio serve apenas para voltar ao
gozo, e ao mais elementar. Eis por que a comédia faz sua entrada naquilo
que é possível considerar, com Hegel, a face estética da religião7 •

A religião estética (Kunstreligion) intervém bem no fim da Fenome­


nologia do espírito, logo antes do saber absoluto. Ao contrário de Kant, que
reduz a religião a uma pura fé moral, Hegel ressalta seu valor especulativo.

1 M. Pinguet, "Stele pour Jacques Lacan", are. citado, p. 1 18.


6
J. Lacan, Les.fomU1tions de l'inconscient, Paris, Le Seuil, 1998, p. 212. Doravante: As.formações...
7 lbid. , p. 1 34.
1 18

Em sua explicação de texto, Jean Hyppolite escreve que, em Hegel, a religião


''jd [sublinho] é a apresentação da verdade especulativa mas num elemen to
particular, o da representação ( Vorstellunf) " . No movimento de realização
da consciência de si, Hegel distingue três sucessivas modalidades da religião:
religião natural, religião estética e religião manifesta (ou revelada) . Ora ,
nesse mesmo movimento, no seio da religião estética, o trágico precede 0
cômico. Logo, o cômico lhe é superior, notadamente porque ali é dissolvida
a efetividade do terror. O terror, tal como Foucault sublinha em seu curso
Segurança, território, população, não é alguém a aterrorizar um outro, mas
o fato de que quem aterroriza é ele mesmo aterrorizado. A comédia - assirn
se encerram as páginas relativas à religião estética - "é o retorno de tudo 0
que é universal na certeza de si mesmo, e essa certeza é, por conseguinte, a
ausência completa de terror, a ausência completa de essência de tudo o que
é estranho, um bem-estar e um relaxamento da consciência tal como não se
encontra mais fora dessa comédia9 " . Uma afirmação para não ser lida como
psicólogo. A passagem a que Lacan recorre sem citá-la dizia isto:

No que se refere ao elemento natural, a consciência de si, efetiva já na


utilização desse elemento para seu ornamento, sua morada, etc., depois
no consumo no festim de sua própria oferenda, mostra-se como o destino
ao qual é desvelado o segredo da essencialidade autônoma da natureza; no
mistério do pão e do vinho, ela se apropria deles, com a significação da
essência interior e na comédia ela é em geral consciente da ironia de tal
significação 1 0 •

Logo, Lacan se baseia em Hegel, usando, se quisermos, o argumento


de autoridade - um gesto que nem sempre merece a habitual depreciação
que o atinge. No entanto, ele retoma a proposta hegeliana em seus próprios
termos. Com efeito, ele define a comédia como se ela instaurasse uma certa

8
Jean Hyppolice, Genese et structure de la Phénoménologie de l'esprit de Hegel, Paris, Aubier
Montaigne, coll. "Philosophie de l'esprit", 1 946, p. 5 1 1 .
9 Hegel, Phénoménologie de l'esprit, t. II, trad. Jean Hyppolite, Paris, Aubier Montaigne, 1 94 1,
p. 257.
10 Ibid., p. 2 5 5 .
MICO 1 19
O AMOR É CÔ

com a linguagem (talvez o que Hegel chamava "a essencialidade


relaç ão do si
natureza") . Certo, "esse si só pode ser entendido para além de
autô n oma da
linguagem 1 1 " ; pouco importa, ele
ro da a elaboração do desejo na rede da
"veicula e conserva a existência primeira da tendência" . Lacan lê como um
"re torno da necessidade sob sua forma mais elementar" a maneira como
Aristófanes, em As nuvens, ridiculariza Sócrates: um ancião a usar de toda
u ma série de truques para satisfazer suas vontades, escapar aos credores,
12
re ceber dinheiro, etc. ''A coisa vai longe", diz ele • O cômico consistiria
nesse rebatimento do desejo sobre a tendência, o que advém na medida em
q ue se está "comprometido da maneira mais fascinada e mais obstinada em
13
alg um objeto metonímico " . Definição:

O princípio da comédia é expô-las [trata-se das paixões] como tais, isto é,


centrar a atenção num isso [sublinho] que crê inteiramente em seu objeto
metonímico. Confia nele, o não quer dizer que a ele esteja ligado, pois tam­
bém é uma das características da comédia que o isso [sublinho] de qualquer
sujeito cômico dela saia sempre ileso 1 4.

Tal como nos é apresentada na transcrição da editora Le Seuil, essa


defi nição da comédia assinala silenciosa e oportunamente um problema, na
medida mesma em que é inexata. Reportemo-nos à estenotipia: Lacan não
havia falado de um isso mas de um si, e não nos espantamos muito com isso,
haja vista que Hegel funciona aqui escondido. Por que ter virado para Freud
uma afirmação informada por Hegel? Porque esse si, diferentemente do isso,
n ão deve ser uma categoria psicanalítica? Porque Lacan não era um partidário
do se/fl Permitimo-nos igual correção na medida em que está em questão a
necessidade ou ainda o gozo elementar? Mas, justamente, essa necessidade
elementar não é, como sugere o uso do termo "isso", da ordem da pulsão,
que, esta, é uma montagem complexa (fonte, objeto, alvo, impulso) . Em

11 J. Lacan, Les formatiollS de l'inco11Scient, estenotipia, sessão de 1 8 de dezembro de 1 9 57.


Logo veremos por que não cito aqui a versão Seuil .
12 lbid. , p. 1 3 5 .
13 lbid. , p . 1 3 5- 1 36 .
14 J . Lacan, Les formatiollS... , p, 1 36.
1 20 0 A M O R LACAN

toda essa passagem, a pulsão, de modo preciso e legítimo, nunca está em


questão. A comédia revela a necessidade na medida em que aí responde 0
puro consumo, o gozo "mais elementar" . Como, então, aí intervém o amor ?
Lacan: "enquanto instrumento da satisfação" . Uma nova emboscada ali
deve ser evitada: trata-se da satisfação a um só tempo da demanda teimosa ,
rígida, e da necessidade, não da satisfação do desejo.

Algo ocupou o lugar da irrupção do sexo, e foi o amor - o amor chamado


como tal, o amor que chamaremos o amor naif, o amor ingênuo, o amor
que une dois jovens em geral bem bobões 1 5 •

Pela primeiríssima vez ocorre aqui em Lacan um jogo entre amor e sexo
(uma substituição), um jogo prometido, anos mais tarde, a um consideráve l
mas provisório futuro . . .
Das análises então propostas, notadamente a de A escola de mulheres,
só reteremos um ponto, o da declaração de amor. De onde vem tal decla­
ração? Obcecado pela paixão de não ser corno, Arnolfo fixou sua escolha
numa menina de quatro anos, um anjo, e decidiu que ela seria sua mulher.
A idiotice de Agnes lhe cai perfeitamente: ele poderá ser seu educador. Mas,
observa Lacan a um só tempo divertido e sério, Agnes fala e sua ingenuidade
torna sua fala bem mais perigosa que se ela fosse uma menina prevenida. A
menina raciocina, e até chegar a arrazoar com seu educador ancião, ao ponto
que, tendo as coisas mudado, ser ele, Arnolfo, quem se torna o ingênuo.
E é no momento preciso em que ele se vê à sua mercê, permitindo até que
ela conviva com o jovem Horácio (o "bobão" da citação acima), em que
chega a aceitar tornar-se corno, que ele lhe diz seu amor. Declaração essa
que, para qualquer um, parece de uma comicidade perfeita.
Isto dito, dois enunciados parecem não combinar nesse 18 de de­
zembro de 1957: "Ora, o problema do Outro ["outro", na estenotipia] e
do amor esta, no centro do com1co
A • 16
", e
" O amor, e, esse o ponto no qual eu

15
lbid.
16
J . Laca n . /.,,, fn, ..,,,,,;,, .,, n 1 �6
CÔM I CO 121
O AMOR É

17
di go que se situa o auge da comédia clássica " . Dizer que o amor é "centro"
o u "auge" da comédia é uma coisa. Dizer que ele mesmo é cômico é outra.
Lacan dirá as duas, mas sem jamais se explicar sobre a passagem de uma à
o utra asserção, como se fosse evidente essa inferência que não é uma, pois
n ão h á razão alguma para admitir que essas paixões, sejam elas quais forem,
q ue a comédia presentifica, sejam em si mesmas cômicas. Lacan diria a mesma
coisa do ódio? Com certeza que não. Eis a passagem exata em que ele se
a utoriza essa transposição:

[ . . . ] e quando digo pivô [o papel do amor que une os jovens bobões] , é bem
porque o amor desempenha esse papel, não de ser ele mesmo cômico [sublinho]
mas de ser o eixo em torno do qual gira todo o cômico da situação, até uma
época que de modo bem nítido pode ser caracterizada pelo aparecimento
do romantismo, e que hoje deixaremos de lado.
O amor é um sentimento cômico.

O salto é patente, valorizado pela alínea da estenotipia. Logo, não será


u
inj stificado, considerando essa intempestiva inferência, afirmar que se, em
Lacan, o amor é um sentimento cômico, isso se deve. . . a ele. É assunto dele
pensar isso e assunto dele ainda fazer com que seus ouvintes o admitam,
embora até não consiga fundar a observação em razão. E talvez convenha
entender seu apelo a Hegel como fundado nesse defeito lógico. Quais são
as consequências disso? Ele obriga, assim, qualquer um a se pronunciar. De
certo modo, seria um sentimento no sentido em que se diz que se tem o
sentimento de que . . . isto, ou aquilo - o que não tem muito valor do ponto
de vista da racionalidade, mas mesmo assim tem seus inconvenientes. La­
can vai tentar que seus ouvintes consintam em seu sentimento pela paixão
amorosa. Nesse intuito, ele precisa afastar uma incômoda figura do amor,
a do amor romântico:

É curioso ver a que ponto só percebemos agora o amor através de todas


as espécies de paredes que o sufocam, paredes românticas, embora o amor
122

seja uma força essencialmente cômica. É precisamente nisso que Arnolfo é


um verdadeiro apaixonado [ . . . ] . É um fato - quanto mais a peça é en ce n a.
da, mais Arnolfo é encenado em sua nota de Arnolfo, e mais as pessoas se
curvam e dizem - Esse Moliere, tão nobre e tão profundo, mal acabamos de
ri1; deveríamos chorar.

Invertida, essa última frase diz a que Lacan se dedica. Ali onde vocês
choram, sugere ele aos ouvintes psicanalistas e outros, isto é, com as desgraÇas
do pequeno Édipo de cinco anos, ou ainda com a criança espancada, al i
mesmo seria o caso de rir. Pensamos em Final de partida de Beckett: " Nada
é mais engraçado que a desgraça" .
As últimas palavras dessa sessão condensam o conjunto da afirmação
com, mais uma vez, o problema isso/si. Além disso, como com bastante
frequência na transcrição dos seminários, uma dificuldade aflora relativa à
escrita de "otro", e escrevê-lo assim permitirá não decidir entre "Outro" e "ou­
tro" quando parece excluído decidir. Partindo da estenotipia, proporei:

O si está por natureza para além da tomada do desejo na linguagem. A re­


lação com o otro é essencial na medida em que o caminho do desejo passa
necessariamente por ele, não na medida em que o outro seria o objeto único,
mas na medida em que o Outro é o respondente da linguagem, e por si
mesmo o submete a toda sua dialética.

Essa conclusão está bem feita para introduzir o que será desdobrado
no seminário seguinte, a saber, o lugar do amor no ternário necessidade/de­
manda/desejo. Rechaçado pelo "não" que o precede, o "na medida em que
o outro seria o objeto único" remete ao amor. Aliás, Lacan havia anunciado
como intervém o amor no que se refere ao desejo embora se aprestasse para
introduzir o amor como sentimento cômico, o amor enquanto instrumento
da satisfação da necessidade, do si:

Ora, se encontramos nas subjacências do chiste essa estrutura essencial da


demanda segundo a qual, na medida em que é retomada pelo Outro, deve
permanecer essencialmente insatisfeita, de qualquer modo há uma solução,
côM I CO 1 23
OR É
O AM

a solução fu ndamental, aquela que todos os seres humanos buscam desde


0 i n íc io da
vida até o fim da existência. Já que tudo depende do Outro, a
8
s oluç ão é ter um Outro só para si. É o que se chama amor 1 •

Escreveremos antes: "Já que tudo depende do otro, a solução é ter


ra si. É o que se chama amor".
um o utro só pa
Em seus dois primeiros seminários, Lacan desenviscava o amor do
ora sem desprendê-lo) para levá-lo ao simbólico. Ora,
i maginário (emb
como sentimento cômico, ele procura, ao
com O reconhecimento do amor
ao imaginário. O fato de o eu [mot] ,
i nverso, levar novamente o amor rumo
e nq uanto imagem narcísica, encontrar sua unidade fora de si mesmo tem
p or resultado que esse mesmo eu [mot] tem função de defesa. E é, acres­
ce nta ele, no campo desse ser enquanto ser narcísico que o fenômeno do
ris o deve ser situado: liberada, a imagem não constrange mais e vai passear
sozinha • O amor como sentimento cômico rebaixa (uma palavra de Freud)
19

0 O utro que de "respondente da linguagem" vira "objeto único" . Sentimento


cô mico, o amor serve à necessidade e ilude o desejo. A afirmação admite
s ua recíproca: servindo à necessidade, desprezando o desejo, o amor, p or aí
mesmo, é cômico.
Não se pode duvidar que a prática analítica esteja em jogo. Talvez
seja para indicar isso que Lacan, três meses mais tarde, convoca o grito de
horror de André Gide ao tomar conhecimento de que sua mulher e querida
prima, que ele ama com um amor "supremo" e não deseja, ao saber que ele
fora para Londres com o Antinoüs Marc Allégret, acabara de queimar suas
cartas20 • Um drama absoluto para um autor que considerava que até suas
notas fiscais de lavanderia faziam parte de suas obras. Como Lacan ouve
esse grito, resposta ao ato de uma "verdadeira mulher"? Ele o identifica ao
de Harpagão: "Minha caixinha! Minha querida caixinha! " que, este, incon­
testavelmente, faz rir. Em outras palavras, o que para Gide é uma perda a
mais trágica possível tem a ver com o cômico, é cômico. Assim, teríamos a

18 J. Lacan, Les fo rmatiom. . . , p.


1 33. Aqui, de qualquer modo, não era possível colocar o isso
no lugar do si.
19 lbid. , p. 1 3 1 .
20
lbid. , p. 26 1 , sessão de 5 de março de 1 958.
1 24 O A MOR L A C A N

indicação de que o que é da ordem do trágico é cometido a partir do cômi­


co. O cômico ali assume um compromisso, se compromete, se refugia n o
trágico, um registro com o qual ele não teria necessariamente que conviver,
O trágico é o cômico que funcionou mal. Reencontrar, tornar sensível 0
cômico do trágico, seria esse o caso no exercício analítico. Assim aparece a
lição clínica a ser tirada da translação do grito trágico de André Gide para
o plano cômico do grito de Harpagão.
Ora, Lacan vai repetir essa mesma operação, ressaltando de novo e po r
duas vezes o cômico sob o vivido trágico, isto não só a respeito do complexo
de Édipo, o que não é muito surpreendente visto que se trata de amor entre
a criança, mamãe e papai, mas também, o que pode espantar mais, em re­
lação à fantasia "espanca-se uma criança" - que ele lê igualmente como um
assunto de amor, aliás em conformidade com a análise de Freud.
O complexo de Édipo é um assunto de briga amorosa. Logo, resulta
do cômico. O que há de mais cômico que o menino que, em nome do
investimento libidinal de seu piruzinho, renuncia a amar a mãe uma vez
que esse amor implicaria o castigo que conhecemos por parte de seu pai?
Mais espantosa é a retomada da fantasia "espanca-se uma criança" . Lacan
aí sublinha que se trata de amor. Primeiro tempo dessa fantasia, a própria
cena, observada pelo irmão, é lida pela criança como signo. Eis aqui de novo
a linguagem do amor, uma linguagem de signos. Como funciona o signo na
construção de "espanca-se uma criança"? A cena observada vale primeira ­
mente como signo do "rebaixamento do irmão odiado2 1 " . Em compensação,
no segundo tempo, esse mesmo signo "torna-se, ao contrário, signo do
amor" . Essa mudança de valor tem importância, pois suporta nada men os
que o jogo do amor com o ódio. Não deixa de espantar Lacan, para o qual,
"propriamente falando, isso só é concebível pela função de significante". A
explicitação vem a seguir:

É tudo o que está em causa na dialética do reconhecimento do para além


do desejo. Abrevio-lhes o que ele [Freud] diz - Essa bem particular fixi­
dez, Starrheit, que se lê na fórmula monótona "uma criança é espancada';

11 J. Lacan, Les fa rmatíons. . . , p. 345, sessão de 23 de abril de 1 95 8 .


MOR É CÔM ICO 1 25
O A

só perm ite, de modo verossímil, uma única significância: a criança que é ali
espan cada, é por esse foto apreciada, nichts anderes sein, ais die Klitoris
s elb st, ela nada mais é que o próprio clitóris. Trata-se, nesse estudo, das
me ninas. Starrheit, a palavra é muito difícil de traduzir em francês por
ter u m sentido ambíguo em alemão. Quer a um só tempo dizer fixo, no
sen tido de um olhar fixo, e rígido22 •

Com efeito, sem o significante jamais uma criança pode valer como
u m clitóris; sem o duplo sentido de Starrheit, que permite o deslizamento
da fixidez à rigidez, Freud (lido por Lacan) não poderia ter reconhecido na
criança espancada um clitóris. Clássico nisso, Lacan em seguida identifica
ess e clitóris ao falo e encontra assim um terceiro traço do arcabouço do
amor, a função do para além do objeto amado.
O apego da menina ao clitóris não é menos cômico que o do pequeno
Édipo a seu peru. Num e noutro caso, está ganho o dia em que o analisando
que descobre isso ri.

0 0 AMOR COMO HORI ZONTE:


NECESS I DADE, DEMAN DA, DESEJO

Lacan procurou situar o amor, no que se refere ao ternário necessidade/de­


manda/desejo, num certo lugar, com uma certa função e não sem certas
consequências, pois a prática analítica está aqui abertamente em questão.
Não se está aqui às voltas com uma oposição binária amor desejo, como
em muitas outras afirmações. Não dois, mas também um para além de três,
já que o amor de certo modo interviria a título de um outro elemento no
ternário necessidade/demanda/desejo. Nem por isso admitiremos a pseu­
dofacilidade sugerida pelo borromeano, isto é, fazer desse quarto elemento
um anel de barbante e oferecer-lhe assim o mesmo estatuto dos três outros.
Elegeremos, ao contrário, a dificuldade maior (lectio dificilior) , considerando
que se há bem, para acabar, um ternário e não uma maquininha de quatro

22
J. Lacan. l.er fnrm11tinm. . . . n. �4<;- �4h. sf'ssfo ele 2� ele ahril de 1 9 5 8 .
126 0 AM O R Lo\ C >. �

elementos, é que o quarto deve ser situado em outro lugar que ali onde 05
três são tomados juntos; é que ele tem, além disso, um estatuto diferente
- o próprio amor pertencendo a outro ternário, o das paixões do ser: amor
ódio, ignorância, onde, ali, o solo comum é explícito, é a paixão.
Como Lacan chegou à ideia de que o amor, de que a demanda de
amor era o fundo de toda demanda? Tal observação nada tem de evid ente,
Todos aqueles que, todos os dias, formulam centenas de demandas nem p or
isso têm o sentimento de que sempre se trata de uma demanda de amor!
Que por um instante imaginemos qualquer um a quem essas demandas se
endereçam comportar-se como um psicanalista e não responder a elas . ..
a vida em sociedade ficaria impossível: o verdureiro não venderia m ai s
verduras, o cabeleireiro não cortaria mais cabelos, os impostos não seriam
mais pagos, andaríamos pela mão esquerda nas estradas, os guris não teriam
mais sua mamada preferida, etc. Assim, achamos que convém precisar: to da
demanda não trivial endereçada a um psicanalista é no seu fundo demanda
de amor - mesmo tendo de admitir que a coisa intervém ocasionalmente em
outro lugar que no consultório analítico. Questão: cada demanda enunciada
a partir do divã é endereçada ao psicanalista? Basta pronunciar a palavra
"transferência" para achar que não é tão simples. Ou ainda não desp rezar
a inserção social da psicanálise, como por vezes aconteceu a Lacan faze r ao
entregar um certificado de análise a um fulano que o brandia publicame n te
mais de trinta anos depois. Resta igualmente a demanda de análise, que o
psicanalista em geral não trata como as demandas que interviriam na análise.
O que aconteceria se ele a isso respondesse recusando satisfazê-la em nome
do fato de que essa demanda é, no fundo, não uma demanda de análise,
mas uma demanda de amor? Uma situação que, aliás, está longe de dever ser
excluída. De onde vem a ideia de que toda demanda é demanda de amor?
Já lemos (p. 122- 123) como, a respeito da comédia, o amor podia ser solu­
ção à insatisfação dita "essencial" da demanda. Essa "solução" parece bem
se situar num registro diferente daquele da demanda. O sujeito "resolve" a
insatisfação própria à demanda ao agir de outro modo, ao amar, ao ter "um
outro só para si". Logo, ainda não existe em Lacan, nesse 18 de dezem bro
de 1957, essa concepção de um duplo fundo da demanda que quer que , sob
cada demanda, corre, insiste, está em ação uma demanda de amor. Ape n as
É CÓ M ICO 127
OR
O AM

. is tarde será claramente afirmada a subjacência da demanda


s eis meses ma . . . . . .
am a demanda, por mais tnv1a1, cruc1a1 ou vlta 1 que seJa:
de or em cad

A demanda, pelo simples fato de se articular como demanda, coloca expres­


samente, ainda que não o demande, o Outro como ausente ou presente, e
como se desse ou não essa presença. Vale dizer que a demanda é, no fundo,
demanda de amor- demanda do que não é nada, nenhuma satisfação par­
tic ular, demanda daquilo que o sujeito traz por sua pura e simples resposta
à dem anda23 .

Há a resposta à demanda, há também, e é diferente, o fato de que o


o rro a ela responde, o que ele pode fazer ou não fazer, e portanto uma questão
colocada a seu poder, esse poder que o neurótico evita tanto quanto pode,
ao ponto de impedir-se de demandar (esta é com certeza uma feliz defini­
ção da neurose, mas também a astúcia da pulsão, que é uma demanda não
articulada como tal: S ◊ D do "grafo do desejo"). Demandar é demandar
algo e, por aí, alguma satisfação; mas é também, ipso facto, demandar essa
presença do otro e assim demandar o dom de sua presença. Se respondesse
a uma demanda, o analista responderia por certo "presente", mas feito uma
mamãe dando o seio ou um tapa, ou o verdureiro enfiando a verdura no
cesto da dona de casa. Ao não responder a isso, ele está mais presente. Como
ele manifesta sua presença? Ela também é de fundo duplo! Ele se faz então
presente por sua recusa de satisfazer a demanda e, daí, toma posição como
d ando ou não sua presença. Ele assim desvia a demanda que lhe é endereçada
até em seu fundo; ele a revela, talvez até a faça virar o que ela talvez não fosse
no início (pois como se saberia?), uma potencial demanda de amor. Ele não
escamoteia o duplo fundo da demanda. Ao não responder, ele faz advir a
demanda sob a demanda, faz advir o que demanda a demanda, faz advir
a demanda de amor. Em sua própria abstenção, ele coloca ao analisando e
em ato a questão da presença dele, analista; ele torna assim manifesto que
toda demanda é demanda dessa presença, de seu ser-ali, e, por aí, demanda
de amor. O través de tal presença, que suscita uma interrogação sobre sua

1
·' J. Lacan, As fo rmações. . . , p. 38 1 . sessão de 7 de maio de 1 9 5 8 .
1 28

natureza, parece da mesma feitura que o amor Lacan, um amor que se ob tém
como se não fosse obtido; ele evoca A uma passante de Baudelaire.
A demanda de amor visa o ser do otro, "a obter do Outro essa presen .
tificação essencial - que o Outro dê o que está para além de toda satisfação
possível, seu ser mesmo, que é justamente o que é visado no amor 24 " . Fa.
zendo dom de seu ser, o otro por certo daria o que não tem. Ora, o assu n to
é diferente quando se trata do desejo. E aí, pelo menos nesse seminári o
Lacan não mede as palavras. Estas têm de fato um acento não sádico rn as
sadiano. O desejo "abole a dimensão do Outro" (sua "condição a b soluta" );
o otro só é desejado tornando-se "totalmente objeto2 5 " ; o desejo "compo rta
a destruição do otro", "nega o elemento de alteridade que está incluído n a
demanda de amor26 , e outras afirmações do mesmo nível. Lacan também
diz o que o habita embora situe a demanda em sua relação com o tern ário
necessidade/demanda/desejo. Nada mais que uma náusea:

Mas há discordância entre o que há de absoluto na subjetividade do Ou tro


que dá ou não o amor, e o fato de que, para haver acesso a ele como objeto
de desejo, é necessário que ele se faça totalmente objeto. É nessa distância
vertiginosa, nauseante para chamá-la por seu nome, que se situa a dificuldade
de acesso na abordagem do desejo sexual27 •

Ali onde Freud fala de um amor sexual, Lacan agora ressalta uma
irredutível distância entre desejar e amar, uma distância que lhe dá náuseas.
Preenchida por ela? Está excluído pôr juntos desejar e amar pois desejar é
endereçar-se ao otro como objeto, ao passo que amar é apelar para o otro
em seu ser. O início do seminário seguinte, O desejo e sua interpretação, vai
mais uma vez pôr os pontos nos i:

[ . . . ] [se] em vez de falar de libido ou de objeto genital, falarmos de desejo


genital, talvez fique para nós imediatamente muito mais difícil considerar

24
Ibid. , p. 406, sessão de 2 1 de maio de 1 958.
zs J. Lacan, Les fa rmations. . . , p. 382 e 384, sessão de 7 de maio de 1 958.
26
Ibid. , p. 40 l e 400, sessão de 1 4 de maio de 1 958.
27
Jbid. , p. 384, sessão de 7 de maio de 1 958.
evidente que o desejo genital e sua maturação impliquem por si só essa
espécie de possibilidade, ou de abertura, ou de plenitude de realização no
amor, do qual parece que se tenha tornado assim doutrinal de uma certa
perspe ctiva da maturação da libido [ . . . ] que foi precisamente a primeira não
só a pôr em relevo, mas até em dar conta do fato daquilo que Freud classi­
ficou sob o título do Rebaixamento da vida amorosa2 • [ . . . ] se, com efeito,
8

0 desejo parece arrastar consigo um certo quantum, com efeito, de amor,

é [ . . . ] com muita frequência de um amor que se apresenta à personalidade


como conflituoso, de um amor que não se confessa, de um amor que recusa
29
até confessar-se •

Logo, onde situar o amor no que se refere ao ternário necessidade/de­


manda/desejo? Um termo, que volta várias vezes nesse seminário (dezoito
vezes exatamente30 ) , vem dizer esse lugar: horizonte. Por certo inatingível,
como todo horizonte, um lugar não-lugar. Nesse 12 de novembro de 19 5 8,
Lacan vai novamente falar desse horizonte da demanda:

É entre os avatares de sua demanda [a do sujeito] e o que esses avatares o


fizeram tornar-se, e por outro lado essa exigência de reconhecimento pelo
Outro, que se pode chamar exigência de amor na oportunidade, que se situa
um horizonte de ser para o sujeito, do qual se trata de saber se o sujeito,
sim ou não, pode atingi-lo3 1 •

18 Sigmund Freud, ( 19 12) "Über die allgemeinste Erniedrigung des Liebeslebens", in Beitriige
zur Psychologie des Liebeslebens, segunda parte, G. W., VI II, p. 78-91. "Sobre o mais geral dos
rebaixamentos da vida amorosa", trad. de Jean Laplanche e colaboradores, in La vie sexuelle,
Paris, PuF, 1969, p. 55-65. A noção de um amor "rebaixado" caminha j unto com a de um
amor idealizado (em Freud: que reuniria a dita "corrente terna" e a "corrente sensual").
Freud pensava que uma mulher que aceita o leito é rebaixada. Era crer na Santa Virgem.
Em Lacan, em quem em vão se procuraria tal preconceito, a crença seria antes na santa verga
(ver, mais adiante, as coordenadas de sua invenção de <1>).
19 Jacques Lacan, Le désir et son interprétation, sessão de 12 de novembro de 1958, versão Afi.
Doravante: Le désir...
JO Nas páginas 23 1 (2 ocorrências), 232, 234, 236, 238 (4 ocorrências), 239, 243, 258, 259,
268, 269, 27 1, 273, 276.
3 1 J. Lacan, O desejo... , sessão de 12 de novembro de 1958.
1 30 O A M O R LACA�

Eis aqui mais uma vez o amor que não se obtém. Niás, não se vê corno
seria mais bem desenhada essa figura do amor a não ser situando- a corno
"horizonte de ser" . A questão de atingi-lo, que acabamos de ler, é retór ica ,
Se se tratar, na análise, da constituição do sujeito não no amor, mas em se u
desejo (o que sublinha o próprio título do seminário: O desejo e sua interp re­
tação) , aparece mais que bem-vindo que o amor permaneça a um só tempo
no horizonte e um horizonte. Assim localizado, o amor abre um espaço , 0
espaço entre demanda e demanda de amor, de reconhecimento de ser, esse
espaço sendo aquele mesmo onde o desejo teria que se constituir.

DA HOMENAGEM AO S E R E DE DOIS AMORE S

Nguns poderiam julgar bem satisfatória essa bela partição em que está
em questão o ser do otro com o amor e do otro como objeto no desejo.
Lacan não ficou nisso e bem cedo dedicou-se a nuançá-la e, portanto, a
problematizá-la. Uma frase - que também assinala o que é introduzido de
discreta varidade no amor por O desejo e sua interpretação no que se refere
ao seminário precedente, As formações do inconsciente - pode alertar. De q ue
se trata? Daquilo que Lacan chama "a homenagem ao ser32 " e que ele vai
então espantosamente situar não, como se espera, do lado do amor, mas
do lado do desejo.
O problema posto em discussão em 17 de junho de 1959 é bem es­
cabroso, um daqueles que, parece, fora do campo literário, só a psicanálise
aborda. O que faz que uma mulher não se contente em ser amada? Por q u e
quer ela também ser desejada? O que ela obtém de um homem, e que efeito
ela produz nele ao fazer questão disso? Apresentada a título de uma "verdade
primeira", a resposta vem como um Einfal/33 • Lacan inicia essa digress ão
lembrando a diferença amor desejo:

32 J. Lacan, Le désir. . . , sessão de


1 7 de j unho de 1 9 59 .
·1 3 CEinfall não é tanto o q u e se apresenta ao espírito quanto u m "pensamento i nvoluntário",
diz Freud, fora de con texto, e que perturba o d iscurso intencional ( Unfall: acidente; Fali:
queda, caso) .
OR É CÔM ICO 131
O AM

Pois, enfim, está bem claro que, na experiência, o amor e o desejo são duas
coisas diferentes, e que é preciso de qualquer modo falar claro e dizer que é
possível amar muito um ser e desejar um outro. É precisamente na medida
em que a mulher ocupa essa posição particular, e que sabe muito bem o
valor do desejo, a saber que, para além de todas as sublimações do amor, o
desejo tem uma relação com o ser [...] que, no fim das contas, a mulher dar á
0 valor de prova derradeira que é bem a ela que nos dirigimos. Amá-la, com

toda a ternura e o devotamento que se pode imaginar, o fato é que se um


homem deseja outra mulher, ela sabe que, ainda que o que o homem ame
seja seu sapato ou a barra de seu vestido ou a pintura que ela tem no rosto,
é no entanto desse lado que a homenagem ao ser acontece.

Surpreende a afirmação segundo a qual, "para além de todas as su­


b limações do amor, o desejo tem uma relação com o ser" . Não estivemos
às voltas com numerosas observações em que, desejante, o sujeito tomava
0 otro como objeto, embora amando ele colocasse, no lugar do outro, a
questão de seu ser? Já com a pirâmide das paixões do ser, em 30 de junho
de 1954, o ser, situado na ponta, só é atingido por uma ou outra, ou uma
e outra, das três paixões - notadamente pelo amor, não pelo desejo? Igual­
mente esta explícita declaração de 7 de julho de 1954:

O amor se distingue do desejo, considerada a relação limite estabelecida


por todo organismo com o objeto que o satisfaz. Pois sua visada não é de
satisfação, mas de ser.

Mesmo só considerando o amor nardsico, também está aí colocada a


q uestão ôntica. Como mostra esta declaração capital (é verdade que tardia
em relação aos textos presentemente discutidos):

O amor, este, visa o ser, e deve-se bem dizer que, como muito bem disse,
acentuou, marcou Freud: "O amor é nardsico", porque não hd outro suporte
a ser dado ao termo ser [sublinho ] 3 4 •

34 J . Lacan, "Excursus", intervenção durante uma reunião da Scuola fi'eudiana em Milão, em


4 de fevereiro de 1973, in PTL, igualmente in Lacan in Itália, op. cit. , p. 78-97.
1 32 O AMO R LA C A N

Se não há outro suporte, como compreender essa inesperada relaç ão


do desejo com o ser, essa "homenagem ao ser" que a mulher conheceria e
da qual Lacan indica, para explicar o ciúme feminino, que a mulher faria
muita questão de receber, de que não fosse levada a outro lugar, não fo sse
oferecida a outra mulher? Responder exige um desvio, passa por uma questão
mais escabrosa ainda, a saber, a distinção de dois amores, um masculino, 0
outro feminino, e a tentativa, se ousamos assim dizer, de casá-los.
Assim, para situar essa "homenagem ao ser", essa relação do desejo
com o ser, vamos nos reportar a 7 de janeiro de 1959, ou seja, cinco meses
antes. Já uma primeira afirmação só parcialmente concorda com o que se
pode crer ter sido adquirido: no amor, o homem é alienado ao falo, a esse
falo imaginário simbolizado pela mulher. Disso resultará que seu desejo
terá de acontecer para além da relação amorosa. Logo, essa topografia difere
daquela em que o espaço do desejo estava entre a demanda e o amor como
horizonte da demanda. Aqui, o desejo (masculino) é situado para além e não
aquém do amor. Trata-se de indicar a duplicidade da relação do homem com
a mulher. E Lacan qualifica isso de "forma ideal", não menos35 • Quanto
à mulher, ela dará ao homem o que ela não tem, esse objeto imaginário,
precisamente:

Por outro lado, a relação da mulher com o homem, que todos têm prazer em
acreditar muito mais monogâmica, é algo que não apresenta menos a mesma
ambiguidade, exceto que o que a mulher encontra no homem é o falo real,
e portanto seu desejo ali encontra, como sempre, sua satisfação. [ . . . ] Mas é

35 Eis o texto (versão Afi): "( ...] na relação, ainda que a mais apaixonada, entre um homem e
uma mulher, na medida mesma em que o desejo prende [... ] . o desejo se acha para além da
relação amorosa por parte do homem. Entendo, na medida em que a mulher simboliza o
falo, que o homem ali encontre o complemento de seu ser; é a forma, se posso dizer, ideal.
É justamente na medida em que o homem, no amor, está verdadeiramente alienado a esse
falo, objeto de seu desejo que no entanto reduz no ato erótico a mulher a ser um objeto ima­
ginário, que essa forma do desejo será realizada. E é bem por isso que é mantida, no próprio
seio da relação amorosa mais aprofundada, mais Íntima, essa duplicidade do objeto na qual
tantas vezes insisti a respeito da famosa relação genital. Volto à ideia de que, justamente, se
a relação amorosa está aqui acabada, é na medida em que o outro dará o que ele não tem,
que é a própria definição do amor".
M OR É CÔM I CO 1 33
O A

justamente na medida em que a satisfação do desejo ocorre no plano real que


0 que a mulher efetivamente ama, e não deseja, é esse ser que, ele, está para

além do encontro do desejo e que é j ustamente o outro, isto é, o homem


na medida em que está privado do falo, na medida, precisamente, em que,
36
por sua natureza de ser acabado, de ser falante, ele está castrado •

Nisso diferente do amor do homem, o amor da mulher está situado


para além do desejo e, portanto, em lugar de horizonte, de certo modo em
seu lugar. Falóforo, o homem satisfaz o desejo feminino; em contrapartida,
a mulher só pode amá-lo castrado, faltante. Por aí conflui a homenagem
do desejo ao ser. "Homenagem" é um termo marcado no dândi Lacan •
37

Com efeito, se o homem só é amado pela mulher como castrado, coloca-se


a questão, para a mulher, de saber onde irá se alojar sua falta a ser, id est a do
hom em. É evidente que só há homenagem ao ser a partir dessa falta a ser.
Se amar, a mulher fará questão de que essa falta a ser seja, por assim dizer,
lançada em sua própria conta, que lhe seja doada. É por aí que ela castra o
homem. Recusa, mais uma vez, da escala platônica; ao passo que aqui, ainda,
e em razão da mulher, o amor permanece colocado como questão ôntica
e não ontológica. Em outras palavras, quando o homem deseja em outra
parte, não é o desejo da mulher que é atingido, mas seu amor na medida
em que ele exige um homem castrado.
A homenagem prestada à mulher castradora confirma o amor como
sentimento cômico. Isso se deve ao próprio gesto da homenagem que basta
im aginar a minima como um beija-mão para perceber seu caráter cômico.
Com, de um lado o rebaixamento, a vassalagem, do outro a lisonja acolhida
com o um elogio mesmo que pese sobre ela uma suspeita de hipocrisia, a cena
é de um lado ao outro representada como uma comédia. O cômico é até
o que faz que a suspeita de hipocrisia ali fique relegada num reduto. E isso
chega até a relação sexual, mesmo que hoje pareça amplamente esquecida
uma significação de "homenagem" ainda presente no dicionário Le Robert'.
"Fato para um homem de ter relações sexuais".

¼ J. Lacan, O desejo. . . , sessão de 7 de janeiro de 1969.


37
Jean Allouch, "Hommage rendu par Jacques Lacan à la femme castratrice", L'évolution
psychiatrique, n º 64, 1999, p. 83- 100.
CA P Í T U LO V

O A M O R N ÃO É U MA S U B L I MAÇ ÃO

E m geral não se imagina qual ruptura em relação ao amor, tal como


Freud a cita sob o nome de Liebe, de "libido", realiza a ocorrência do
amor cortês no campo freudiano. Freud evoca isso, antes discretamente, é ver­
dade, em seu artigo sobre a Jovem Homossexual, mas essa menção permanece
bem longe da ampla operação de Lacan ao introduzir o amor cortês numa
problem ática libidinal em que não está aceito que ele possa encontrar lugar.
Pode ela acolhê-lo sem ficar seriamente mexida (no artigo evocado, Freud
não se coloca essa questão e Lacan, com certeza, a evita)? A fim de melhor
entender a estranheza da coisa, iremos por um instante consultar a versão
germ ânica do amor cortês, a saber, a Minne e seus cantores, os Minnesanger.
Para a Minne, Lacan, prudentemente, judiciosamente, recorre notadamen­
te ao Dr. André Moret, que havia publicado, em 1949, uma obr� erudita,
acompanhada de canções por ele escolhidas embora não traduzidas 1 • Ele faz
silenciosamente sua uma palavra de Moret, sublinhando a diferença entre a
Minne e a Liebe. ''Aqui", observava ele em seguida, "a mesma palavra amor
nos serve2 " (o que dizia o próprio Moret3 ) . Moret precisa que "Minnesang"
não quer dizer "canção de amor" mas "canto dedicado à Minne, isto é, a uma
concepção quintessenciada, sublimada do amor4 ". Canto do amor, portanto,
mais que canto de amor. A palavra nova, concepção nova.A Minne leva a Liebe

1 André Moret, Anthologie du Minnesang, Paris, Aubier, 1949. No entanto, é possível ler em
francês algumas traduções do mais completo e celebrado (segundo Moret) dos Mi1111esii11ger,
a saber, Walter von der Vogelweide, na A nthologie bilingue de la poésie alle111a11de, edição
estabelecida por Jean-Pierre Lefebvre, Paris, Gallimard, 1995.
2 Jacques
Lacan, L'éthique de la psychanalyse, transcrição Afi, sessão de 27 de janeiro de l 960.
Doravante: L'éthique. . . (igualmente L'éthique de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1986, p. 150).
3 A. Moret, A,uhologie d11 Mi1111esa11g, op. cit. , p. 28.
4 A. Moret, Anthologie du Min nesang, op. cit. , p. 8.
1 36 O A MOR L A C A N

à elevação moral. Não é mais tanto a amiga (o mioto i que é cantada quan to
a dama. A Minne metamorfoseia a Liebe para suas virtudes "enobrecedora e
purificadora" (Moret). Sua concepção do amor é "imaterial" . Etimologica.
mente, Minne é a "lembrança" . Moret:

Mas no apogeu do Minnesang distingue-se Liebe, paix ão elementar sem


incertezas, sutilezas nem tormentos, e Minne, sentimento nobre, despre n­
dido - pelo menos teoricamente - das preocupações sensuais, que são ao
contrário unminne5.

Assim, já na segunda página da introdução de Moret, Lacan vai le r


que o amor cortês é uma sublimação. Resta saber o que ele faz com isso.
O que ocorreu com a invenção do amor cortês, se todavia encara r­
mos seu aparecimento tomando por base os clássicos gregos e latinos q u e
servem de pano de fundo daquilo que Lacan articula sobre o amor? O q u e
aconteceu com o amor para que a Minne, depois Lacan pudessem fazer
dele uma sublimação? O amor cortês é o fim (momentâneo?) da guerra
dos sexos (uma trégua?), o fim do amor como empreendimento militar,
do amor conquista, do amor tomada de posse do amado - aliás, um a
curiosa posse, pois, a se crer em certos autores, com frequência resultava
que, uma (única) vez conquistada, a mulher fosse abandonada sob um
pretexto qualquer. Como mostram As heroidas, cartas de lamentaçõ es
de mulheres largadas. Medimos a mudança trazida pelo amor cortês,
a báscula que ele realizou, por exemplo em relação a Ovídio, ao notar
que são os homens, e não mais as mulheres que, então, passam o tempo
a se lamentar. Um slogan de maio de 1968 na França enunciava: "Faç a
amor, não faça guerra" . Um quadro de Veronese mostra Marte seguro
por Eros e pela Paz. Só que fazer amor pode perfeitamente constituir
uma modalidade de fazer a guerra, o que se deixa ler, de maneira regular,
reiterada, em gregos e latinos. Exceto Ovídio, muitos outros poderiam

* J ogo homofônico: !'amie [a amiga) e la mie [o miolo do pão) . (NT)


5 Ibid. , p. 28-29.
O AMOR
NÃO É U M A S U B L I MAÇÃO 1 37

cados. Assim, Catulo:


ser con vo
Moças, olhai os moços? Também erguei-vos;
Pois que a estrela da tarde as luzes no Eta estende.
É sim. Não vistes levantarem-se ligeiros?
E não à-toa; é justo que vença o que entoem.
H ímen, ó Himeneu, vem Hímen, Himeneu6 !

Ou ai nda, em As metamorfoses de Apuleio, esta passagem entre cem


em que Fotis se dirige a quem se apresta a beijá-la:

Vamos, diz ela, combata, e firme, não recuarei diante de ti, não te darei as
costas; ataque pela frente, se és um homem, avante, com ousadia, investe
para matar e lute por tua vida. O combate de hoje é sem trégua7 •

Pierre Grimal, que anota essa edição, observa que "toda a cena é fun­
dada numa série de equívocos com o vocabulário da luta". Plutarco conta8
que Semíramis, serva e concubina de um escravo, foi amada pelo rei Ninas.
Ela se tornou sua amante no sentido próprio desse termo, adquiriu o trono
para, finalmente, mandar matar seu rei.
Às vezes é útil ler Lacan confrontando-o com suas próprias referên­
cias, avaliar precisamente como ele delas se serve e como, quase sempre, as
desvia (o trabalho foi perfeitamente feito para Saussure). No entanto, não
é a questão aqui. Ela não é essencialmente de saber se Lacan de fato leu os
poetas corteses, seus comentadores e os historiadores da época; ela consiste
bem antes em identificar como, introduzindo o amor cortês (ainda que sua
versão do amor cortês), ele modifica ou não o que ele até ali havia proferido
em relação ao amor. Um primeiro traço surpreende: sua posição enuncia-

6
Le livre de Cntul!e de Wrone, bilíngue, traduzido do latino, apresentado e anotado por Da­
niele Robert, Paris, Actes Sud, p. 16 1. (NT : tradução para o português de João Angelo Oliva
Neto.)
7
Romnns grecs et latins, textos apresentados, traduzidos e anotados por Pierre Grimal, Paris,
Gallimard, coll. "Bibliotheque de la Plêiade", 1958, p. 172.
8
Plutarque, Dialogue sur la111011r (Eroticns), traduzido do grego por Victor Bétolaud, Paris,
Mille et Une nuits, 2004, p. 27.
1 38 O AMO R LA C A N

dora. Nesse momento em que ele convida o amor cortês em seu semin ário
Lacan não está muito à vontade. Será a influência dos textos consultados ;
Ao lermos hoje essas passagens, ficamos surpresos de vê-lo muito "professo r"
Assim, nele coisa raríssima, ele dá a seus ouvintes uma série de referên cias
históricas mas também algumas de suas referências: em 1 O de fevereiro de
1960, ele lhes indica, com suas coordenadas bibliográficas, A alegria do amor
de Pierre Belperron, Antologia do amor sublime de Benjamin Perret, O am or
e os mitos do coração de René Nelli, ou ainda A imaginação criadora de Henry
Corbin. Na oportunidade, ele vai ainda assinalar outras obras, não men os
eruditas.Também se faz, nesse mesmo tom professoral, historiador do amor,
tentando puxar um fio (o do amor cortês) de Ovídio às Preciosas, passando
por Dante e até hoje, quando se manteriam alguns resquícios da descoberta
da cortesia pelos românticos. Ele se lança na discussão então em curso sobre
a origem da cortesia, parecendo optar pela influência dos cátaros. Tudo isso
não é muito sem objeto, nem muito de sua maneira, e deixa pensar que ali
há dente de coelho. Ao encargo de seu leitor tirar o coelho da toca.

UMA REG RESSÃO?

O que manifestam as passagens de A ética em que Lacan apresenta o am or


cortês, uma vez lidas na linha do que ele disse antes sobre o amor? Uma
regressão, termo a ser aqui entendido não numa das acepções que Freud lhe
outorga, mas, mais simplesmente, como o que iria à contracorrente daquilo
que está tão constantemente presente e anunciado nos seminários, a saber, a
ideia de dar um passo adiante. Não que nada avance quando Lacan introduz
a cortesia em A ética. Mas o que é novo, isto é, a apresentação de "a coisa"
(aqui escrita sem sua penosa maiúscula), bem como a doutrina da subli­
mação, advém às custas do questionamento do amor. Em outras palavras,
quando o amor cortês está em questão, não se trata muito, para Lacan, do
amor, de situar o amor conforme suas próprias coordenadas (R. S. I. ) ; trata-se
da coisa e da sublimação, e o amor cortês só intervém ali a título de meio.
Ainda em outras palavras, quando "a arte de amar" está em questão nesse
seminário, o acento deve ser colocado na "arte", muito pouco em "amar".
O amor cortês é principalmente encarado como um caso paradigmático
A M OR N Ã O É U M A S U B L I M A Ç Ã O 1 39
O

de s u blimaç ão, uma perspectiva que com certeza não desagradaria a um


ud, para o qual ofin'amor não se encontra em nenhum outro
Jacq ues Rou ba
nas produções literárias que circularam sob esse nome9 (a
lu ga r a não ser
deno minaç ão "amor cortês" é tardia) . E talvez seja a razão pela qual, já no
an o s e g uinte, o amor vai voltar de modo notável com o comentário quase
li nh a por lin ha do Banquete de Platão.
N ão é preciso ir longe para estar seguro de que o amor serve para
insta urar a coisa ao mesmo tempo que uma doutrina da sublimação. Está
exp lícito, não só antes mas depois de estar ou ter estado em questão o amor
co rtês. Prim eiramente, em 20 de janeiro de 1 960, data na qual também é
p roposta u ma interpretação (discutível) da famosa supervalorização freudiana
do obj eto ( Uberschatzung) :

[ . . . ] é o que desde já vou chamar sublimação do objeto - quero dizer nessa


condição, e desde agora, em que o objeto da paixão amorosa assume uma
certa significação, e é nesse sentido que tenho a intenção de introduzir a dia­
lética em que pretendo lhes ensinar a situar o que é realmente a sublimação,
em certas condições de sublimação do objeto feminino, em outras palavras,
de exaltação do amor, de exaltação historicamente datável [.. . ] 1 0 •

A intenção é ensinar a sublimação. Lê-se igualmente que não .é tanto


o amor que está em questão quanto "uma certa significação" de certo modo
outorgada ao objeto. Trata-se bem do objeto amado? No fim dessa mesma
sessão, Lacan dirá, a respeito da Minne, que "é preciso, em último termo,
que algo tenha acontecido quanto à relação do objeto com o desejo [sublinho] ,
pois é bem isso naturalmente que nos interessa" . Depois, bem no fim de
percurso desse seminário, ele se pergunta (4 de maio de 1 960) :

De onde vem essa noção? Essa perspectiva do campo que chamo o campo
da Coisa? Esse campo onde se projeta algo para além, [ . . . ] esse lugar do ser
onde ocorre o que chamamos o lugar eleito da sublimação, do qual Freud,

9 Jacques
Roubaud, La fleur inverse. L'art des troubadours, Paris, Les Belles Lemes, 1 994.
10 J. Lacan, A ética. . . , sessão de 20 de janeiro de 1 960.
O A M O R L ACA N

no máximo, nos apresenta o exemplo mais maciço? Esse lugar da obra q ue


o homem singularmente se põe a cortejar? E foi por isso que o primeiro
exemplo que eu lhes dei em meu enunciado este ano foi um empréstirno
que fiz ao que chamam essa elaboração do amor cortês. Confessem q ue
colocar nesse ponto de para além uma criatura como a mulher é realmen te
uma ideia incrível! [ . . . ] Se essa ideia incrível com efeito pôde vir, de p ôr
a mulher nesse lugar, no lugar do ser, isso evidentemente não é enquan to
mulher mas enquanto objeto do desejo 1 1 •

O assunto está entendido: não se trata do amor na apresentação laca­


niana do amor cortês, mas do desejo, ou, mais exatamente, de um desejo. E de
um desejo que, assim, ao colocar a mulher (não uma mulher particular, mas
uma mulher bem característica, construída, sempre idêntica a si mesma, um
"ser de significante") "no lugar do ser", está às voltas com o ser, o que não
se harmoniza muito com a distinção (problemática, isso se confirma) ent re
o amor e o desejo, e tampouco com a função de para além do amado, pois
outorgar-lhe uma significação não é a mesma operação que amar um objeto
para além dele mesmo. No entanto, num certo sentido, a distinção amor
desejo é aqui confirmada pelo fato de o amor ser mantido fora do campo
da problematização lacaniana do amor cortês. Questão "homenagem do
desejo ao ser" (da mulher), o amor cortês não fica devendo.
É apenas porque se trata de um desejo que "o caráter bem desumano
do objeto do amor cortês explode, salta aos olhos" . E somente daí que Lacan
pode indicar outra via possível, outra "solução", a de Sade enfrentando o "Ser
supremo em maldade" . Exit o amor cortês (vai de novo estar em questão
o amor cortês muitos anos mais tarde e em termos que o deixam de lado ).
Tratando-se do ser, encarnando-o, de certo modo, no significante, na obra
poética, não nos espantará o objeto só poder ser inacessível. Por isso Lacan
qualifica esse amor de amor interruptus 12 • Dito ainda de outra maneira: com
esse apoio tomado no amor cortês e o questionamento do amor proviso­
riamente abandonado, a mulher é posta a serviço da coisa, mas a coisa não

1 1 Jbid. , sessão de 4 de maio de 1 960.


12 J . Lacan, A ética ... , sessão de 10 de fevereiro de 1 960.
ÃO É U MA S U B L I MAÇÃO 141
O AMOR N

A querer pensar o amor como uma sublimação (a dama


serve muito à mulher.
no lugar da coisa), o amor fa lta ao encontro.
Dupla conclusão dessa espécie de demonstração mediante o absurdo:
1) 0 am or não é uma sublimação, e 2) referir o amor à coisa parece ser uma
via de pouco interesse no que diz respeito ao amor.

UMA ES COLHA BEM S I N G ULAR

A vantagem aqui tomada pelo desejo sobre o amor e o afastamento do


q uestionamento do amor também explicam que, entre todas as canções que
el e pôde ler, Lacan tenha elegido uma, a seus olhos não muito mais repre­
13
s entativa (mal informado, ele diz que ela é um hápax ) , mas que mesmo
assi m permanece a única a ter provocado nele uma longa citação acom­
panhada de um comentário detalhado. Esse sirvente está muito longe das
lamentações dos Minnesanger, daquilo que Lacan chamava "uma escolástica
do amor infeliz 1 4 " . Trata-se de um poema de Arnaut Daniel, que Dante
considerava um de seus mais ilustres precursores, e que Petrarca chamava "o
grande mestre de amor 1 5 " . Esse sirvente toma posição no famoso caso de
Cornil, discutido no mundo dos cavaleiros e dos trovadores e recebendo seu
nome de Bernart de Cornil, um trovador que recusou submeter-se à prova
imaginada por sua dama, uma certa Ayma (ou Aina). Que prova? A de lhe
"coroar", de lhe soprar no traseiro. Bernart de Comi!, portanto, recusou.
Nelli publica generosamente os sirventes de Truc Malec e de Raimon de
Durfort que, ambos, condenam Bernart de Cornil por sua recusa de assumir

13 J . Lacan, ética. . . , sessão de 9 de março de 1 960. Tal juízo hoje não é mais válido. Ver Pierre
A
Bec, Burlesque et obscé11ité chez les tro11b11do11rs. Pour 1111e approche du co11tre-texte médiéval,
Paris, Stock, 1 98 4 . Assi m como Jesus Marti nez Maio, "Cornatz lo com" , Li tom!, n º 36,
Mexico, Epeele, 200 5 ; "Lo tmuc de lo càmdllll 11ombre pam das DÍllg?'', Pági1111 Liteml, n º 5-
6, San José, Costa Rica, 2006; "Modi Amandi I nfidelium", Litoml, n º 4 1 , México, Epeele,
2008 .
14
A ética. . . , sessão de 1 0 de fevereiro de 1 960 . Essa característica é dita referi r-se aos dois
âmbitos, meridional e germânico, do amor cortês.
11
René Nelli, Écrivains 1111tico11fo rmistes du Moyen Âge occitan. La fomme et l'a111011r, Paris,
Phébus, 1 977 , p. 79 .
1 42 O A M O R LACAN

a prova. No sirvente de Truc Malet, ficamos sabendo que a dama tinha, ern
privado, mostrado seu "corno" a Beroart de Coroil e que este "com ete u a
loucura de desprezá-lo" : "Eu gostaria muito de ali ter coroado! / Eu teri a
feito isso de coração feliz e sem me zangar (E yeu lay volgr 'aver cornat /
Alegramen, ses cor irat) " . Raimon de Durfort também defende a dama. El e
censura Beroart de Coroil por ter-se feito de difícil e propõe, para puni-lo ,
que o obriguem a soprar a bunda de uma égua prenha. O pobre Beroart de
Cornil, pelo menos aquele apresentado por Raimon de Durfort, responde
que lhe agradaria coroar, mas que . . . lhe falta fôlego. Resultado: a dama lhe
replica da maneira mais impiedosa e pertinente poss ível, isto é, no nível d o
significante:

Senhor, já que sois de Cornil Senher, pus de Corni/h etz,


É que tendes o hábito de cornar E say que cornar soletz,
Toque, então, esse corno que aqui vedes Cornatz lo corn, qu'ayssi vezetz

Logo, Lacan não privilegia (é o m ínimo que se possa dizer. . . ) a mais


etérea das canções cortesãs. Volta a ela por duas vezes. Na primeira vez, a fim
de indicar que "a sublimação de fato não é o que um leviano povo pensa e,
vocês vão ver, nem sempre se exerce obrigatoriamente no sentido do sublime.
[ . . . ] O objeto sexual pode surgir acentuado como tal na sublimação 1 6 ". O
que terá feito, segundo Lacan, Dama Ayma?

[ . . . ] essa Dama, a que está na posição do Outro e do objeto, acaba bru­


talmente colocando em sua crueza o vazio de uma Coisa que parece em
sua nudez ser a Coisa, a dela, aquela que está no cerne dela mesma em
seu vazio cruel. Essa Coisa- alguns de vocês viram, pressentiram a função
e a direção, a perspectiva nessa relação com a sublimação - essa Coisa,
aqui, está de certo modo desvelada com uma força bem particularmente
insistente e cruel.

16 J. Lacan, A ética. . . , sessão de 9 de março de 1960.


O AMOR N ÃO É U M A S U B L I MAÇÃO 1 43

Ei s a sublimação, eis o que exemplarmente pode ser uma homena­


o ao ser, ao vazio da coisa. Uma frase condensa o conj unto
gem do d esej
da anális e:

o q ue pede o homem, o que ele só pedir, é ser, propriamente falando,


17
privado de algo real •

Em 4 de maio de 1 960, Lacan ainda vai voltar ao que ele considera


um " tex to sen sacional " , sublinhando , então, "a resposta feminina que não
ad m ite répl icas ' , a mulher que, de seu lugar, por uma vez responde e, em
vez de se guir o j ogo, adverte o poeta - nesse grau extremo de sua i nvocação
ao si gn ifi can te - da forma que ela pode assumir enquanto significante" .
Acabando j ustam ente de repetir que o ser ao qual o desej o se dirige é um
ser de signi ficante , ele prossegue:

Nada mais sou, diz-lhe, que o vazio que existe em minha cloaca, para não
empregar outros termos. Sopre um pouco dentro para ver, e veremos se a
sua sublimação ainda se mantém 1 8 •

Admitiremos s e m contestação q u e s e trata d o desej o e não _do amor


na consideração do amor cortês por Lacan . Uma breve passagem, no en­
tanto, vem cruzar e talvez modificar a apresen tação do amor nos seminários
precedentes.

UMA OUTRA VERSÃO DO DOM?

Trata-se do significante "dom" . Primeira observação , em 1 O de feverei ro de


1 960, relativa à dama: ela é, na poesia, tornada inacessível, uma barreira a
cerca e a isola. Outro traço lhe diz respeito : ela frequentemente é mascu-

17 lbid. , sessão
de 1 0 de fevereiro de 1 960.
• La répome de la bergere a11 berger [lit. a resposta da pastora ao pastor] (NT) .
18 lbid. ,
sessão de 4 de maio de 1 960.
1 44 O AM O R LACAN

linizada, "chamam-na, na oportunidade, mi Dom, isto é, meu senhor 1 9 " .


A sequência faz eco a um interlocutor que, a respeito da coisa (das Ding)
,
evocou o vacúolo (uma referência "quase histológica" a um espaço vazio ) ,
com o que Lacan concorda, mas de maneira crítica. Ele conclui:

[ ...] ali onde o vacúolo está para nós verdadeiramente criado, ele é cri a do
no centro do sistema dos significantes na medida em que esse pedido der­
radeiro de ser privado de algo real é o que está essencialmente ligado a essa
simbolização primitiva que está inteira na significação do dom de amor.

Não encontramos aqui, embora até parecesse aceito que o amor estava
em tudo isso ausentificado, o amor como dom daquilo que não se tem ?
Objeção à objeção: seria um bem curioso dom, de qualquer modo, aquele
que se faria a alguém que primeiro teria sido preso num círculo mais espesso
que muros de prisão! Seria o que pode se chamar, com Lacan, o dom do rico:
por não poder dar, o rico tranca seu objeto cobrindo-o com joias até que
o dito objeto não aguente mais e, jogando-lhe as joias na cara, parta pa ra
viver, enfim feliz, com um pobretão. Lacan terá percebido o problema, po is
prossegue assim:

A esse respeito, não pude, ao passar, deixar de ficar impressionado com o


fato de que, na terminologia do amor cortês, o termo domnei é empregado,
cujo verbo vem fazer domnoyer, que tem sentido bem diferente daquele de
esse [ver nota] dar, que quer dizer algo como acariciar, brincar, e que é algo
que, no vocabulário do amor cortês, representa propriamente falando essa
relação de quê? Domnei, apesar da espécie de eco significante que faz com
dom, nada tem a ver com essa palavra, visa essencialmente a mesma coisa
que a Domna, a Dama, isto é, aquela que, na oportunidade, domina20 •

19 J . Lacan, A ética. . . , sessão de l O de fevereiro de 1960.


20 Jbid. Não "se dar". (se pronome pessoal e ce [esse] pronome demonstrativo têm a mesma
pronúncia em francês. NT ) O "esse dar" [ce donner] da estenotipista deve ser mantido como
mais justo. Com efeito, não está aqui em questão qualquer dom de si.
O AMOR NÃO É UMA S U B L I MAÇÃO 1 45

Não se pode ser mais claro: não se trata de um dom de amor. O po­
dá; "domnoyant" [dando] , ele acaricia e brinca em torno de
eta cortês não
impessoal objeto, da coisa. Depois, como que para ir mais
s e u inacessível e
fundo, é form ulada uma interpretação da origem do dom:

Se dar pudesse ser situado de uma maneira qualquer num sentido ou num
outro de um dos parceiros em relação ao outro, isso talvez não tenha outra
origem senão o que eu poderia aqui chamar a contaminação significante a
resp eito do termo domnei e do uso da palavra domnoye, 21 •

Se no entanto fosse possível falar de um dom ali onde se trata de uma


dominação, de uma dominação construída pelo próprio poema, isso se
deveria unicamente a essa contaminação significante, ao significante como
tal, que é patente funcionar aqui fora de sentido, como pura sílaba "dom". A
origem do dom de amor residiria, segundo a via dessa contaminação signifi­
cante, no domnoyer, em outras palavras, na dominação? Dar seria dominar?
Não se pode aqui deixar de evocar a Jovem Homossexual, para a qual Lacan
havia apelado ao amor cortês, e que, ela também, obriga a colocar a questão:
o domínio [la maítrise] é a origem ou o fundo do dom de amor?

21 J . Lacan, A ética . . .
CA P ÍT U LO V I

O N D E U M FA L E C I M E N T O RE V E LA
C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R

Existe um modo do conhecimento, denominado por Lacan "conheci­


mento paranoico" , segundo o qual identificamos tanto mais pertinen­
temente uma verdade num outro quanto mais desconhecemos essa mesma
verdade em nós mesmos. Essa lembrança vem aqui - ou seja: no momento
de iniciar o estudo da varidade do amor no seminário A transferência - pela
razão que, caindo numa certa passagem desse texto, acabamos nos pergun­
tando se o que Lacan diz ali de Platão pode, por acaso, lhe dizer respeito.
Aplicada a Lacan, essa passagem abre um abismo. O que diz ele? Bem no
fim da sessão de 14 de dezembro de 1960, ele anuncia que vai agora abordar
0 discurso de Aristófanes em O ban q uete.

[ ... ] vou mostrar-lhes a abertura surpreendente que daí resulta, abertura


deixada hiante quanto à ideia que Platão podia ter do amor, chego lá
- quanto à derrisão radical que apenas a abordagem dos problemas do amor
trazia a essa ordem incorruptível, material, superessencial, puramente ideal,
participatória eterna e incriada que é aquela, ironicamente talvez, que toda
a sua obra nos descobre 1 •

Em Platão, o amor tal como o promove Aristófanes, torna radicalmen­


te irrisórios a um só tempo a obra e o que a obra descobre. A observação se
aplicaria a Lacan, que, dizendo-a, também ali estaria? Suas anotações sobre
o amor tornariam irrisória sua obra? Mais ainda: estariam elas ali para tornar
irrisória sua obra? Lacan pôde dizer, na oportunidade, que não dava a essa

1 J. Lacan, Le tmnsfert. . . , sessão de 1 4 de dezembro de l 960.


obra tanta importância assim - o que, em geral, nos apressamos em não
levar a sério. Essas questões parecem aqui ainda mais legítimas porquanto fo i
primeiramente afastada toda ideia de uma teoria do amor. Falar de antinomia
entre o amor e a obra já é excessivo, inscreve as "notas" a respeito do amo r
num mesmo registro que aquele dos enunciados da obra. É melhor falar de
um desligamento, homólogo, aliás, a esse outro desligamento ressaltado po r
Lacan ao discutir a razão pela qual Sócrates, num dado momento do syrnpo ­
sion, dá a palavra a Diotima, a estrangeira: "Se ele [Sócrates] passa a palavra
a Diotima, por que não seria que, quanto ao amor, as coisas não podem ,
com o método propriamente socrático, ir mais longe2?". O discurso do am o r
passa em outro lugar e de outro modo que pelas leis - socráticas e lacanian as
(primeiro período) - do significante. Somos então incentivados a atribui r
a Lacan o que ele empresta a Platão. Com efeito, ele mesmo imaginou tal
deslocamento. Querendo ilustrar o que acontece quando Sócrates joga a
responsabilidade sobre Diotima, ele evoca a situação em que se encontrari a
seu público caso ele passasse a palavra a Françoise Dolto. Perguntaríamos:
"Por que ele está fazendo isso3? ".
Outra coisa ainda, nesse seminário, impede o amor de pertencer à obra
e, potencialmente, o faz varrer a obra. O que, então? Um tom. Lacan centrou
o bastante sua leitura do Banquete nas maneiras enunciativas características
de cada um dos protagonistas (uma leitura de diretor de teatro, que evoca a
de Hamlet4) para que fosse legítimo que da mesma forma o (mal) tratemos.
Tanto Lacan se fez professor para abordar o amor cortês, tanto surpreen ­
demo-lo, a respeito do Banquete, a empregar outra maneira de enunciaç ão
que, ela também, parece desnivelada em relação à enunciação característica
de seu seminário - aquela que de modo banal seria possível designar com o
um modo sábio de endereçamento a colegas. Desta vez, o tom não é mais
tanto o de um seminário de textos (embora até a aplicação dada à leitura do

2 J. Lacan, A tmnsferência. . . , sessão de 18 de janeiro de 196 1.


3
lbid. Exceto o gênero da pessoa convidada a tomar a palavra no lugar de Lacan, a cena aqui
imaginada teria sido realizada para a criação da Escola Francesa de Psicanálise (EFP) , se não
tivesse sido a recusa de François Perrier de ler publicamente o texto escrito para essa opor­
tunidade por Lacan (o famoso " Fundo... ").
4 Ver minha apresentação dessa leitura em A erótica do luto 1 1 0 tempo da morte seca, Rio de
Janeiro, Companhia de Freud, 2003 , estudo b.
U M FA L E C I M E N TO R E V E LA C O M O O A M O R P O D E F RA C AS S A R 1 49
ONDE

Banquete pareça bem indicar isso) quanto o ... de uma homilia. Essa maneira
primeira vez bem no início da sessão de 30 de novembro de
transparece pela
volta regularmente à superfície, como se se tratasse de lembrar
1 9 60, depois
ermanentemente que a afirmação faz questão desse tom. Esse momento
� miná rio não é de ordem hermenêutica, nem sequer identificável como
o se
u m com entário do Ban q uete. Antes de mais nada um convite em forma de
voto: que o prob lema do amor esteja presente no "psicanalista como tal ".
5

Vem em seguida um desligamento da enunciação:

Vo cês nunca entenderam que, num dado momento, no que vocês deram
_ àqueles, entendo, que lhes são mais próximos -, há algo que faltou 6 , e não
só que faltou, mas que os deixa, aqueles citados acima, os mais próximos,
es tes, para vocês irremediavelmente em falta? E o quê? É que justamente
esses próximos - com eles -, só fazemos girar em torno da fantasia cuja
satisfação vocês - neles - mais ou menos buscaram, que - a eles - mais ou
menos substituiu com suas imagens ou suas cores. Esse ser ao qual de repente
vocês podem ser levados por algum acidente, cuja morte é bem aq uele que
nos faz ouvir mais longe sua ressonância, esse ser verdadeiro, contanto que
vocês o evoquem , já se afasta e já está eternamente perdido.

Aos psicanalistas que vieram escutá-lo, Lacan fala não dos pacientes
deles, nem tampouco da experiência deles, mas daqueles que lhes são próxi­
mos. Ele apela para o que poderia tê-los tocado em relação a esses próximos.
Não é estranho? O que estão fazendo afinal esses próximos no anfiteatro
Magnan do Hospital Sainte-Anne? Depois, como que para melhor acusar
o gesto, o objeto convocado passa ao singular: trata-se de um mais próximo
(cf. "esse ser"), e, encarado numa certa situação, nada menos que sua morte.
Se não fosse o palhaço Lacan, o ambiente seria um pathos. Eis uma corda
que em geral se faz vibrar para e pelas mais duvidosas intenções: persuadir,
convencer, converter. Uma corda que se endereça ao coração, ao estômago,
às tripas, bem pouco à razão. Então, por que essa evocação da morte de um

1 J. Lacan, A transferência. . . , sessão de 30 de novembro de


1 960.
6
Uma outra versão dá: "que lhes faltou" (nota Estenodatilografia) .
próximo? Não se duvida muito que Lacan relata aqui em meias palavras
uma experiência sua. E o que restaria de dúvida logo desaparece se sirn.
plesmente notarmos que, em 1 5 de outubro de 1960, falecia Alfred Lacan ,
pai de Jacques - Alfred Lacan que teve por um tempo Marguerite Anzie u
a seu serviço, Alfred Lacan cujo endereço postal, com o de Jacques, fi g u ra
na lacônica resposta que Freud endereçou a Lacan para acusar a recepção
de sua tese. É à morte desse pai que remete a declaração que acabamos de
ler, dita um pouco mais de um mês após esse falecimento. Quatro dias ap ós
esse falecimento, indo ao enterro, Lacan avança um sinal de trânsito [e m
francês feu: fogo] e é preso. Alfred Lacan com certeza não foi incinerado ,
não era nem moda na época nem uso em seu meio. No entanto, um laço ,
que outros dados escoram, entre a morte (do pai) e o fogo é aí estabelecido :
1) O último verso do poema Hiatus irrationalis: depois de ter por duas vezes
mencionado a forja (o fogo) e o sangue (aquele, também, do parentesco) ,
Lacan, endereçando-se às coisas, conclui: "É o fogo que me faz seu imortal
amante" . 2) O sonho freudiano " Pai não vês que estou queimando" q ue
muito reteve Lacan. 3) Mas também o mito da mão que, saindo do fogo, se
estende na direção da mão que se estende na direção do fogo. "Fogo", cuja
forma antiga, "fou" ou "foc" (do latim focus, foco), serve para dizer o ardor
· .
dos sentimentos; os «e1ogos do amor " , ou "da co' lera" (mmto corrente no
século XVII). Os latinos aproximavam focus da raiz indo-europeia de onde
viria (pois essas "raízes" são construções7) o sânscrito ddhati: "ele queima",
que de fato remete, considerando o rito da morte na Índia, à cremação. Na
expressão "falecido x" [em francês, feu (fogo] , que marca o recente faleci­
mento de x, o adjetivo "falecido(a) [feu, feue] vem do latim fatatus: "q ue
cumpriu seu destino" . De origem diferente, os dois termos são homófonos.
4) E ainda a insistência que Lacan vai colocar no caráter úmido do amor
(o úmido, é o "a fogo brando" bem no fim do seminário A transferência
(nessa mesma sessão, ele dirá a "relação profunda do uro, eu queimo, com
a urina: mijo em cimaª ")).

7
Ver Daniel Heller-Roazen, Écholalies. Essai mr !'011bli des lang11es, traduzido do inglês por
Justine Landau, Paris, Le Seuil, 2007, p. 99- 1 12.
8
J. Lacan, Le tmmfert. . . , sessão de 28 de junho de 196 1. A estenografia dá a referência em
Freud: Sigmund Freud, Malaise dans la civilisation, trad. do alemão por C. H. e J. Odier,
Paris, Pm, 197 1, p. 37 n. 3, p. 38.
U M F A L E C I M E N T O R E V E L A C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 151
ON D E

Esses elementos parecem suficientes para que deles se tirem duas


co nclusões. Primeiramente, essa passagem de Lacan deve ser lida como
levemente velada, de um amor por seu pai, confissão, mais
u ma confissão,
exatamente, de um malogro desse amor na medida em que a morte desse pai
re ria chamado a ele, Jacques, ao ser verdadeiro desse pai, a esse ser ao qual
el e não teria tido acesso enquanto vivo. Uma segunda conclusão vale inter­
p retação do mito da mão estendida, suporte do amor, mito aliás formulado
(e m 7 de dezembro de 1960) logo depois de ter sido lembrada a declaração
sob re o malogro do outro: essa mão, imaginariamente surgida do fogo, é
a de um morto. Em outras palavras, uma aparição metonímica. E, pelo
menos parcialmente, poderíamos apreciar o caminho subjetivo percorrido
p or Jacques Lacan durante os poucos meses que se seguiram ao falecimento
de seu pai (meses em que está em questão a trilogia de Claudel, com seu
p ai hu milhado) confrontando o primeiro enunciado de seu mito com este
o utro, de 2 8 de junho de 196 1, em que essa mão estendida vinda do fogo
"é a imagem bem ideal, é um fenômeno sonhado como o do amor". O que
diz esse sonho? Não: " Pai, não vês que estou queimando? " mas: "Filho, não
vês que, para além da minha morte, eu te estendo a mão? " " Queimar"", no
jogo bem conhecido, é aproximar-se bem perto, sem no entanto alcançar.
O encontro do filho com essa mão ilustra, de modo bem exato, a.figura de
u m amor que é obtido não sendo obtido.
Ao notar que, em seu seminário, Lacan "não fez nenhuma alusão à
morte de seu pai* 9 " , Élisabeth Roudinesco terá desprezado a passagem acima
citada. E leremos não tanto como um deslocamento (o que ela sugere) quanto
como uma reiteração aquilo que dirá Lacan em 10 de maio de 196 1 ao evocar
a morte de Maurice Merleau-Ponty (que, dois dias antes de morrer, colhera
lírios-do-vale em Gritrancourt, onde Lacan tinha sua casa de campo). Essa
morte, diz ele, "nós a recebemos bem no coração". E, ali também, o lamento
está presente: "O tempo nos terá faltado, em razão dessa fatalidade mortal,

• Em português se diz "estar quente". (NT )


9
Elisabeth Roudinesco, Jacques Laca 11. Esq11isse d'rme vie, histoire d'rm systeme de pemée, Paris,
Fayard, 1993, p . 368.
1 52 O AM O R L A C A r-;

para aproximar mais nossas fórmulas e nossos enunciados 1 0 " . A morte torn a
um malogro patente e irrevocável; um tempo, acredita-se, terá faltado. Ela
se apresenta como a experiência privilegiada de uma chamada ao "ser verda.
deiro" daquele próximo dali por diante inatingível; seu próprio afastam e n to
fazendo advir a ideia de que ele "irremediavelmente nos terá faltado". Além
disso, é precisado o que se afigura, só depois e tarde demais, ser responsável
por esse malogro, a saber, a fantasia. A análise de "espanca-se uma crian ça"
havia encarado a fantasia do ponto de vista do amor. Aqui, a fantasia cri a
obstáculo. O que prova, caso fosse necessário, que, exceto seu estatuto de
obstáculo ao amor, a fantasia nada tem a ver com o amor, nem o amor co m
a fantasia. Logo, um emocionante lamento, mas também notável em seu
teor. Não que nada tenha sido dado a esse ser doravante perdido, mas te rá
faltado algo a esse dom, com o que é esse mais próximo que se acha, ele ,
não menos em falta. Teremos procurado, com esse mais próximo, satisfaze r
uma fantasia; esta será vestida com as imagens e as cores de uma fantasia .
E sua morte (só sua morte?) valerá como um chamada (lembrança) ao q u e
no entanto estava em questão e ao que a fantasia fazia tela, a saber, uma
lembrança do ser e ao ser desse próximo. Levemente velada, essa confissão
é tocante. Vibra e faz vibrar. Incita a que se vá manifestar a quem assim se
entregou a própria simpatia que ele chama. Pois o malogro do dom de am o r
não é menos irremediável que a própria perda. Lacan pronuncia em se u
seminário o discurso que ele terá (silenciosamente) feito durante o enterro
de seu pai. Ora, esse tom, essa "personalização" do dizer, não é um hápax.
Lacan, nessa mesma sessão, a isso voltará, falando do "que há de diferente
entre o objeto de nosso amor na medida em que ele recobre nossas fantasias,
e o que o amor interroga sobre si mesmo para saber se pode atingir esse ser
do outro 1 1 " . E ainda: bem no início da sessão seguinte:

E foi por isso que, na última vez, introduzi meu discurso com essas palavras
sobre o objeto, sobre esse ser do objeto que sempre podemos nos dizer [ . . . ] ter

10 J. Lacan, A h'ftnsjerência. . . , sessão de 1O de maio de 196 1.


11 J. Lacan, A transferência. . . , sessão de 30 de novembro de1960. "Na medida em que ele
recobre nossas fantasias", não é antes o inverso que Lacan quis dizer?
F A L E C I M E N T O R E V E L A C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 153
ONDE UM

perdi do: é, quero dizer, por lhe haver faltado que convinha que buscássemos
12
atingir, enquanto era tempo, esse ser do outro, vou voltar a isso [... ) •

Depois, uma última e breve citação, quase no fim do comentário do


Banquete, em que ainda ressoa a homilia: " Para tudo dizer, se esse objeto
os [s ublin ho] apaixona é porque ali dentro, escondido nele, há o objeto do
des ejo, agalma [...] " . Endereçando-se assim a cada um, Lacan nem por
13

iss o despreza o que pode resultar para a prática analítica. Com efeito, a pri­
meira citação que mostra esse tom prossegue com uma frase que mistura o
endereçamen to ao sujeito e o endereçamento ao psicanalista. Vamos julgá-la
decisiva pois ela opera um salto que não é por certo evidente, um salto do
qual se pode imaginar que seria necessário a um metafísico um número con­
siderável de horas de meditação para admitir ou refutar-lhe o fundamento,
um salto que Lacan dá graças a uma adversativa, "só que":

Ora, de qualquer modo, é bem esse ser que vocês tentam encontrar pelos
caminhos do desejo. Só que [sublinho] esse ser é o de vocês e isto, como
analistas, vocês sabem bem que é, mesmo assim, por não tê-lo querido que
ele também lhes faltou mais ou menos. Mas, pelo menos aqui, vocês são,
no nível do erro e do fracasso, a medida exatamente 1 4 •

O ser verdadeiro desse próximo que irremediavelmente faltou nada


mais seria que m e u ser. Seria o meu ser que o caminho de meu desejo ten­
taria encontrar quando meu desejo se dirigisse para o ser de um próximo.
A questão dessa identificação do ser do outro com meu ser talvez não possa
ser tratada frontalmente, pelo menos reconheceremos. Escolheremos antes
delinear-lhe as consequências na análise - o que será uma maneira de discuti­
la. O que saberia o psicanalista a esse respeito? A resposta não parece menos
homílica que a maneira dita acima. É preciso saber que nesse lugar pode
haver erro [fàute] . Erro [fàute] nos dois sentidos dessa palavra e, portanto,

12 lbid., sessão de 7 de dezembro de l 960.


ll lbid., sessão de l O de fevereiro de 1 96 1 .
14 J . Lacan, A tmmftrência. . . , sessão de 3 0 de novembro de 1960.
1 54

igualmente (primeiramente?)foute no sentido de uma falta [manque] de u rn a


suficiente vontade. Uma falta [fàute] , portanto (mas não está dito), n o lu ga r
do pai - ainda que Lacan reencontre aqui seu plural de partida.

E esses outros de quem vocês cuidaram tão mal, será por deles terem feito
como se diz, somente seus objetos? Quisesse o céu que vocês os tivesse �
tratado como objetos 1 5 dos quais apreciamos o peso, o gosto e a substância,
vocês hoje estariam menos perturbados pela memória deles, vocês lhes te-
riam feito justiça, prestado homenagem, amor, os teriam amado pelo me nos
como vocês mesmos, exceto que vocês se amam mal [ . . . ] , talvez tive sse rn
feito deles, como se diz, sujeitos - como se fosse ali o fim do respeito que
eles mereciam, respeito, como se diz, pela dignidade deles, respeito devido
a nossos semelhantes. Receio que esse emprego neutralizado do termo
nossos semelhantes seja bem outra coisa que o que está em jogo na questão
do amor e, desses semelhantes, que o respeito que vocês lhes prestavam vá
rápido demais ao respeito do que se assemelha, ao envio a seus caprichos de
resistência, às suas ideias teimosas, à burrice de nascimento, aos negócios
deles, ora! . . . que se virem! É bem aí, creio, o fundo desse deter-se diante d a
liberdade deles, que com frequência dirige a conduta de vocês, liberdade de
indiferença, diz-se, mas não da deles, antes da de vocês.

O erro [la foute] em questão toma corpo, com essas afirmações q u e


poderiam ser ditas de teologia moral (cf o "vocês se amam mal", ou ainda o
"quisesse o céu"). Ele [la foute] se realiza como deter-se diante da liberdade
de outrem, de um outrem degradado de semelhante em assemelhado - o
respeito do semelhante não tendo mais outra encarnação a não ser o do
assemelhado. Trata-se apenas, afirma Lacan, de nossa própria indiferença
por outrem. Embora formulado num tom leve, o fato permanece sensível:
Lacan está habitado por uma divina cólera 1 6, por uma cólera de luto. Uma

1 � A coisa será dita de novo em 7 de dezembro de 1 960: "O outro propriamen te, na medida
em que é visado no desejo, é visado, eu disse, como objeto amado. O que isso quer dizer? É
que o que podemos pensar ter faltado naquele que já está longe demais para que voltemos
a nossa fraqueza, é bem sua qualidade de objeto [ . . . ] " .
16 Que voltará à superfície, menos d e quatro meses depois, nos seguintes termos: "Com o se
explica que esses homens, suporte todos e cada um de um certo saber ou suportado por ele,
O R E V E LA C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 1 55
U M FA L E C I M E N T
0N D E

eira de argumentar que a liberdade de outrem não passa de uma


certa man . .
,
ani fescação de nossa propna m d'1rerença
e por outrem. Estar as' vo1 tas com

r
inJ i berdade de outrem é outra coisa; não é se limitar a "que ele se vire", o
ª al to m ado como regra, tornaria a análise simplesmente impraticável.
�ss ível agir de outro modo com essa liberdade de outrem? É a própria
! cão da análise na medida em que o analista se dá conta de que está às
q s
com nada mais que um ser.
voltas com um ser e
Jacques não está absolutamente só ao colocar essa questão, e nem
tam p ouco só em sua resposta. Essa suscitação da liberdade de outrem é posta
em p rática , hoje ainda, ali onde talvez seja menos esperada no Ocidente. O
mais resoluto dos textos de lmre Kertész, a saber, seu Kaddish para a criança
J7
que não vai nasce1 , dá a entender o que é um homem livre, isto é, que está
às voltas, de maneira decidida, com a liberdade de outrem. Outrem é aqui
pri meiramente encarnado por uma mulher que não quer de modo algum
sa b er de sua própria liberdade - mas permanece a solicitação em ato, atra­
vés da escrita, daquela do leitor. Pensamos também em T homas Bernhard,
em seu texto endereçado aos austríacos; e, last but not least, em Moisés e o
monoteísmo de Freud, obra de incrível liberdade, que primeiro se endereça
à liberdade daqueles de seu povo e que se choca, como Kertész, com uma
recusa de assumir essa liberdade.
Tudo se passa como se a invenção do "desejo do psicanalista" , às
vezes reivindicado como um traço identitário lacaniano, viesse preencher o
b uraco desse erro [fàute] , viesse dizer: "Não , não, se erro [fàute] existe com
nossos próximos, pelo menos com nossos analisandos colocamos em ato o
desejo do psicanalista que, este, não tem a ver com esse erro [fàute] , já que é
precisamente seu ofício não cometê-lo" (a intempestiva promoção, por um

como se explica que esses homens se abandonem, vítimas da captura dessas miragens pela
qual a vida deles, desperdiçando a oportunidade, deixa fugir sua essência, pela qual a paixão
deles é jogada, pela qual o ser deles, no melhor dos casos, só atinge aquele pouco de realida­
de que só se afirma por nunca ter sido desiludido ?" Q. Lacan, Le triomphe de la religion . . . ,
op. cit. , p. 1 8) .
17 elato
R traduzido d o húngaro por Natalia Zaremba-Huzsvai e Charles Zaremba, Paris, Actes
Sud, 1 99 5 (igualmente em edição de bolso) . Esse kaddish foi recentemente represen tado em
Paris, numa encenação de Joel Jouanneau, texto notavelmente dito e interpretado por Jean­
Quentin Châtelain.
O A M O R L A C ,\ N

tempo, de uma pretensa "travessia da fantasiá' nada mais sugeria 1 8) . Essa


posição por certo foi tornada possível por Lacan, que portanto introduzi u
esse desejo do psicanalista precisamente nesse seminário A transferência. S 6 há
um problema, mas de porte, formulável como uma questão não explicitada
por Lacan mas que, no entanto, sua afirmação implica: no fim das con tas
estando até admitida a colocação em prática do desejo do psicanalista , �
psicanalista atingiria outra coisa que seu próprio ser (o psicanalista) , não 0
do psicanalisando? Com efeito, se nos limitarmos ao salto acima sublinhado ,
fica claro que nenhum outro ser que seu ser próprio pode jamais por q u em
quer que seja ser atingido. Pode haver exceção? No entanto, é de uma exceção
assim que deveria se tratar na análise. Lacan diz em seguida:

E é bem nisso 1 9 que a questão se coloca para um analista, é de saber qual é


nossa relação com esse ser de nosso paciente? [ . ..] Nosso acesso a esse ser é
ou não o do amor?

Com o que está às voltas o analista no analisando? Vista a partir de A


transferência, a resposta só pode ser esta: não com um indivíduo, não co m
um organismo sexuado, não com uma carne, não com um cliente, não
tampouco com um sujeito, mas com um ser. Com um ser ao qual se deve,
portanto, ter acesso, já que, nesse próprio acesso, e não na indiferença p ara
com ele, reside sua liberdade (e a de seu analista). Logo, melhor seria fala r,
mais que de seu desejo, da liberdade do psicanalista, ainda que nenh um
colóquio jamais tenha ainda se aventurado a isso.
E aí - outra virada dialética - uma curiosa resposta, que efetua uma
inversão (tornada possível pela "identificação" dita acima) já que o ser do an a­
lisando vai estar alojado (é esta a resposta)... no psicanalista, vai ser dada.

Isto, vocês verão, nos levará bem longe, precisamente a saber o que - se
posso me exprimir assim servindo-me de uma metáfora - está no Banquete

1 8 Jean Allouch, La psychanalyse: une érotologie de passage, Cahiers de L'U11ebév11e, Paris, Epel,
1 998.
1 9 Uma outra versão dá "aquém" (nota da estenotipia) .
M F A L E C I M E N TO R E V E L A C O M O O A M O R P O D E F RA C A S S A R 1 57
ON D E U

quando Alcibíades compara Sócrates a alguns desses pequenos objetos que,


parece, realmente existiram na época, semelhantes às bonecas russas, por
exemplo, essas coisas que se encaixavam umas nas outras; parece que havia
imagens cujo exterior representava um sátiro ou um sileno, e no interior
não sabemos muito o que mas seguramente coisas preciosas. O que deve
haver, o que pode haver, o que supostamente ali está desse algo, no analista,
é bem ao que tenderá nossa questão, mas bem no fim.

Essa afirmação dá uma orientação para a leitura desse seminário:


0 questi onam ento do amor em A transferência deverá centrar-se no caso
Alcibíades, mesmo arriscando convocar, para dar-lhe todo seu caldo, o que
fo i di to anteriormente do amor. Aliás, é com o caso Alcibíades que Lacan
i na ugura e conclui suas observações sobre O banquete, sugerindo até que
só ele terá sabido levá-lo em conta. Mais que em qualquer outro, é nesse
ponto que ele pretende inovar na leitura do Banquete.
20

20
Primeira reivindicação de inovação, em 30 de novembro de 1 960. Ela se faz mais ambiciosa
°
em 1 de m arço de 1 96 1 , quando Lacan declara "nosso comen tário [ do Banquete] constitui
uma data" , pelo fato de que seria o único até então a não desprezar o caso Alcibíades .
CAP ÍTU LO V I I

O A M O R E N F I M D E T RA N S F E R Ê N C I A

UMA VIA?

Em 1 6 de novembro de 1960, Lacan se aproxima dos sessenta anos. Depois


de p ublicar sua tese e numerosos artigos, ele havia aberto seu seminário,
em casa, desde 195 1. Existe uma idade, dizem, em que acabamos nos in­
terrogando mais de perto sobre o amor. Ora, considerando esse passado já
fr utuoso e essa idade, eis que algo no entanto se inaugura naquele dia: p ela
primeiríssima vez Lacan liga a questão do amor à quela da transferência. Ele
está consciente da novidade; disse isso em termos em que volta o acento
colocado no caso Alcibíades em sua leitura do Ban quete 1 • Depois de lembrar
como a análise é posicionada por Freud, tendo, na partida, um sujeito que
"não sabe o que tem" e, na chegada, revelação de uma falta (castração ou
Penisneid) , ele explicita, em 30 de novembro de 1960, em que esse seminário
é inaugural a um só tempo em seu encaminhamento e do ponto de vista da
maneira como o amor nunca foi problematizado por quem quer que seja:
isso é devido à colocação em jogo dos termos "érastes, o amante, ou ainda
erôn, o amante e erômeno, aquele que é amado2 " . Em 1 ° de março de 196 1,
depois de percorrer passo a passo os momentos sucessivos do Banquete, de
reivindicar a originalidade de seu comentário que "constitui uma data" , ele
ainda fala da novidade daquilo que ele traz, sublinhando ter abordado a
t ransferência conforme um viés que não é nem "o pendor clássico" e "que
n ão é aquele pelo qual até então mesmo eu tinha diante de vocês abordado

1
J. Lacan, A tra11sferê11citt. . . , sessão de 23 de novembro de 1960.
2 lbid. ,
sessão de 30 de novembro de 1960.
1 60

essa questão de transferência". Logo, o que está em questão ao longo desse


seminário foi anunciado desde sua primeira sessão:

[...] entendo partir do extremo daquilo que suponho: isolar-se com um


outro para lhe ensinar o quê? o que lhe falta! Situação ainda mais tem ível
)

se pensarmos j ustamente que, em razão da natureza da transferên cia, esse


"o que lhe falta" ele vai aprendê-lo enquanto amante.

Só ficaremos mais irritados por não encontrarmos em seguida nenh u­


ma resposta à questão no entanto colocada por esse anúncio, a do "como".
Como o amor de transferência pode ser a via segundo a qual o analisando
(não ainda nomeado tal) encontraria, uma vez chegado ao termo de s ua
análise, o que lhe falta, em outras palavras, seu desejo? Para falar a verdade,
é preciso chegar às derradeiras linhas desse texto para estar às voltas co m
o que seria uma resposta explícita a esse "como". Tudo se passa como se
Lacan só tivesse aberto a boca forçado pelo calendário, porque não pod ia
deixar de se decidir após tantos e tantos anúncios, promessas, mas tam b ém
adiamentos e desvios - sua leitura do Banquete, depois da trilogia de Cla u­
del, sua apresentação do esquema ótico, sua crítica da contratransferênci a .
Evidentemente, cada um desses desvios não deixa de trazer sua pedra ao
que virá bem no fim. Em 24 de maio de 196 1, sete meses após sua primeira
sessão, Lacan constata que "o tempo não nos é mais agora ainda amplo para
formular o que temos a dizer sobre a transferêncià', o que é de qualquer
modo exagerado: " Por que não fizeram isso mais cedo! ". Em 7 de junho,
uma segunda vez: "Vamos prosseguir nossa afirmação a fim de conseguir
formular nosso objetivo, talvez ousado, deste ano, formular o que o analista
deve ser realmente para responder à transferência [...]" . E, no entanto, logo
antes de soltar sua última palavra nesse ano, ainda um suspense, derradeiro:
"Mas há mais uma coisa que só posso, chegando aqui ao termo de meu dis­
curso, indicar e que diz respeito à função do a minúsculo [...] 3 ". Em outras
palavras, essa última palavra não será inteiramente última. O que ocorre

3
J. Lacan, A tm11sferê11cia. . . , sessão de 28 de junho de 196 1.
" N I M D E T RA N S F E R Ê N C I A
O A tv• O R E F
161

q ue o dizer, explicitamente anunciado, seja permanentemente deixado


para · " l � 4"
a r a mais tard er' Lacan conduz seus ouvmtes pe a mao .
P
Wl adimir Granoff mostra isso 5 : o amor estava ali, ativo, quando
1,acan assim conduzia seus ouvintes. Mas uma outra mão igualmente está
resente, uma suposta mão estendida pela última cena do Banquete, de que se
6
� ossa Lacan • Não é inocentemente infantil essa cadeia enunciativa, Lacan
c!mando a mão de Sócrates (de um Sócrates que volta) e segurando seus
ouvintes pela mão ? Esse jogo, para ele a duas mãos, pode portanto dizer-se
7

tam bém "até amanhã" para o adiamento permanente que ele implica. Pois
dizer a última palavra, dizer a palavra, seria romper a cadeia. Pode-se por
isso concluir que, ao lhes falar, Lacan realiza seu mito da mão que se esten­
de p ara a lenha de onde, miraculosamente, sai outra mão? Lacan ama seus
ouvintes? Sim e não. Sim, se levarmos em conta o jogo a duas mãos, isto é,
um jogo a três (é preciso ser três para amar, dirá ele). Não, no entanto, pois
0 entusiasmo veiculado pelo mito dos encontros manuais vai posteriormente
achar-se um pouco acalmado pela irrupção de que se falou, aquela de algo
um pouco rígido, a saber, uma mão, sempre ela, mas que, desta vez, segura
8
u ma arma, uma pedra •
Por isso parece apropriado iniciar aqui a leitura da leitura lacaniana do
Banquete a partir da última e relativamente inesperada declaração à qual ela
d eu lugar. Assim, ela se refere ao caso Alcibíades, mais exatamente ao caso

4 Ibid., sessão de 1 4 de j u n ho de 1 96 1 .
1 Wladimir Granoff, Le désir diwalyse, Paris, Aubier, 2004, p. 1 40 : " H avia algo que circulava
de Lacan até nós e de nós até Lacan e en tre nós, do qual dizer que era do registro da afeição
é provavelmente um 1111derstatement. Havia um certo amor. No momento em que a nego­
ciação com a I n ternacional chegou a um estádio del icado, Lacan começou a ficar di ferente" .
Em outras palavras, a recusa da I nternacional também assinalou o fim desse mano a mano,
desse amor entre Lacan e seus alunos. Desse momento em diante, Lacan não teve mais
colegas.
6
J. Lacan , A tmnsferência... , sessão de 1 ° de março de 1 96 1 .
7 A cadeia não começa com Sócrates mas com Apolo, que se preocupou com Sócrates, que,
preocupando-se consigo mesmo, é levado a se preocupar com os o utros, o que Foucault
chama "a grande cadeia das p reocupações e das solici tudes" (Michel Foucault, Le coumge
de la vé rité, /e go1111ememe11t de soi et des nutres II, aula no College de France, 1 9 8 4 , Paris,
Gallimard/Le Seuil, coll. " Hautes écudes" , 2009, p. 8 3 ) .
8
J. Lacan , A tmnsferência. . . , sessão de 7 d e j unho de 1 96 1 .
a três, pelo menos: Alcibíades, Sócrates, Agatão. Só algumas lem bran ças
antes de chegar a isso:

1) a disparidade do amor e da obra, esta sendo varrida por aquele;


2) o irremediável malogro do ser do outro (devido à fantasia). Corolário :
tentar alcançar o ser do outro abordando esse outro enquanto objeto ;
3) a liberdade de outrem reclama essa abordagem para que outrem chegue
a ela;
4) o ser do outro, visado no desejo {ou no amor9), é o ser próprio do des e­
jante {do amante);
5) o ser do outro está localizado... no psicanalista.

Este último ponto será discutido com o caso Alcibíades. Tentare mos
apreciar em detalhe quais são as distâncias em relação ao que havia sido an ­
teriormente dito do amor. A resposta de Sócrates a Alcibíades tem o alcan ce
de um amor apresentado como dom daquilo que não se tem? Ou ainda: a
função de um para além do amado continua a atuar?
As últimas palavras proferidas no fim da Thmsferência podem ser
apresentadas sob forma de proposições sucessivas e numeradas:

1 / [ . . . ] o que Sócrates sabe, e o analista deve pelo menos entrever, é que,


com o pequeno a, a questão é bem outra em seu fundo que a do acesso a
nenhum ideal.
2 / O que está aqui em jogo, o que acontece nessa ilha, nesse campo do ser
que o amor só pode delimitar, é algo de que o analista só pode pensar que
qualquer objeto pode preenchê-lo, que somos levados a vacilar nos limites
em que se coloca esta questão: "O que você é?" com qualquer objeto que
entrou por uma vez no campo de nosso desejo, que não há objeto que te­
nha mais ou menos preço que outro, e é aqui o luto em torno do qu al está
centrado o desejo do analista.
3 / Agatão para o qual, no limite do Banquete, vai dirigir-se o elogio de S6-
crates, é o maior dos babacas. É o mais babaca de todos, é até o único babaca

9
Duas menções são encon tradas, amor e desej o , a esse respeito.
O R EN F I M D
E T RAN S F E R Ê N C I A 1 63
O AM

in tegral, e ele é que foi incumbido de dizer, sob uma forma ridícula, o que
há de m ais verdadeiro sobre o amor. Ele não sabe o que diz, vira um besta,
m as isso não tem importância alguma, e nem por isso deixa de ser o objeto
am ado. Sócrates diz a Alcibíades: tudo o que você aí me diz é para ele 1 0 •

O ponto 1/ não cria mais dificuldade hoje, tanto esse tema foi repetido
se m cessar: sim, a idealidade apodrece a vida. O ponto 3/ parece primeiro
uma exemplificação de 2/. Se qualquer objeto que entrou no campo de nosso
desejo ("desejo" e não "amor", como no entanto se poderia esperar com o
imediatamente e o que logo se segue, a saber, duas ocorrências
q ue precede
de "am or") vale tanto quanto qualquer outro, por que não "o mais babaca
de rodos", por que não Agatão? Agatão só estaria ali para ilustrar oportuna­
men te a ideia segundo a qual perguntar ao amado "quem é você", ou, para
dizer de outro modo, colocar amando a questão "quem é você", ou, para
dizer ainda de outro modo, colocando com um amado a questão "quem é
você", questão que então começa a parecer seriamente com um "quem sou
eu", qualquer um, qualquer amado convém. Logo, se o ponto 3/ tem esse
estatuto de simples exemplo, e se o ponto 1 / pode ser afastado por ter-se
tornado quase trivial, resta o ponto 2/ que, este, cria dificuldade.

DO Q!JALQ!JER UM

O que diz ele de mais acessível? Que o psicanalista está (deveria estar) pre­
venido da incidência desse qualquer um. Não é tanto que esteja prevenido
quanto a isso em pensamento, de modo intelectual, teórico. Ele só se revelaria
efetivamente prevenido de uma maneira das mais concretas: ao manifestar
ao analisando que ele, o psicanalista, só pode, nos limites da questão "quem
é você", "vacilar". "Vacilar", sim, mas como? Até cair? Se afirmativo, como?
Nessa vacilação, a eficiência do desejo do analista viria de um luto, do luto,
precisamente de ser alguém, quem quer que seja (celebridade do momento,
professor de universidade, diretor de uma escola ou de um serviço psiquiátri-

io J . Lacan, A tmnsferência... , sessão de 28 de junho de 1 96 1 .


co, clínico cuja fineza um boato exalta, personagem carregado de diplom as
grande teórico, homem de poder, pequeno outro na transferência, etc.).
Esse luto seria tal que permitiria que o desejo do psicanalista operasse. N ão
recusar ser qualquer um, vacilar enquanto singular 1 1 , seria essa a pe,for mance
desse luto que ofereceria, assim, ao desejo do analista, sua condição de efe­
tividade. Lacan não pronuncia a palavra suscetível de dizer bem de perto 0
estatuto dessa pe,formance: uma ascese.
Uma questão se acha assim colocada, embora levemente desen ­
volvida, a de saber se por acaso um luto pode dar acesso a essa posiç ã o
subjetiva. Como conceber esse qualquer um, a espécie de acolhimento
e de envio que ele supostamente deveria permitir? Às vezes ouvimo s :
" Faço minha análise com Freud, com Lacan, com Klein, com x, e n ã o
é qualquer um! ". Eis a transferência, pelo menos uma de suas verten ­
tes; e eis também, regrado pelo qualquer um, aquilo de que o desejo
do psicanalista permitiria que o analisando se desprendesse. Fim d a
transferência, iluminação: " Era qualquer um! ". Breve digressão: esse
qualquer um deve ser, em Lacan, a primeiríssima figura daquilo que va i
se chamar o des-ser. O psicanalista "des-seria algum um" naquilo que
esse algum um não qualquer pode comportar de inefável, eterna, sublime
e estúpida singularidade. O qualquer um lacaniano está nos antíp o das
daquilo que, em Os meteoros, Michel Tournier chama por uma bonita
palavra: os singulares (aqueles que não têm gêmeo e em quem o amor,
por isso, é nojento 1 2 ) .
Lacan não inventa a possibilidade de uma tal subjetivação/desubjeti­
vação. Encontramo-la, decerto diferentemente modulada, no hinduísmo,
no budismo, na filosofia antiga, igualmente no cristianismo. Mais perto
dele, certos nomes podem ser convocados, pois remetem a outras tantas

1 1 Dois ditos a esse respeito, um intitulado "Lacan diferindo de si mesmo", o outro "Esqueci­
mento dos nomes próprios" Oean Allouch, Les impromptm de Lacan, Paris, Fayard/Mille et
Une Nuits, 2009, p. 124 e 2 1 3).
1 2 Michel Tournier, Le vent Paraclet, Paris, Gallimard, 1977, p. 245: "Quando se conheceu a
intimidade gemelar, qualquer outra intimidade só pode ser sentida como uma promiscui­
dade nojenta".
,, R E N F I M D E T R A N S F E R Ê N C I A
o A IY• o

13
variações dessa mesma temática: Beckett, Blanchot, Foucault, Deleuze •
enet, que relata o seguinte encontro, que lhe foi dado pelo
I gualmente G
. em de trem:
acaso de um a viag

Diante de mim, no compartimento, um velhinho assustador estava sentado.


Sujo e, manifestamente, mau, algumas de suas reflexões me provaram isso.
Recusando prosseguir com ele uma conversa infeliz, eu quis ler, mas não
conseguia tirar os olhos do velhinho. [ ... ] [Eu] conheci de repente o doloroso
_ sim, doloroso - sentimento de que qualquer homem "valia" exatamente
_ que me d escu l pem, mas e, so b re "exatamente ,, que quero por o acentoA

_ tanto quanto qualquer outro. "Qualquer um, penso, pode ser amado pa ra
além de sua feiura, sua estupidez, sua maldade 1 4 " .

Logo, esse qualquer um não é tão atópico, o que quer primeiramente


dizer que não há nenhuma razão válida para acená-lo como próprio ao
psicanalista, como acessível apenas à sua experiência, como um ponto de
subjetivação reservado só a ele por ele ter sido o ponto de culminância de
s u a análise. A prática e a ética do toureiro, próximas da ascese e da ética
estoica, podem igualmente ser evocadas; Francis Wolff diz ser "uma ética
da encenação de seu próprio desligamento para com a acidentalidade e
a morte (em oposição às morais da autenticidade) 1 5 ". Mencion�remos
também o estudo de Leo Bersani 1 6 sobre A morte perfeita de Stéphane
Mallarmé, sublinhando o que já indica o título, esse movimento subje­
tivo de abolição de si exigido, em Mallarmé, pela criação estética como
"correlação íntima da Poesia com o Universo". "O trabalho 'pessoal' do
poeta, como o chama Mallarmé de modo um pouco bizarro", observa

1 3 Para uma notável apresentação das respectivas posições, a um só tempo próximas e dife ren ­
tes, de Deleuze et Foucault, vamos nos reportar com grande proveito à obra de Philippe
Artieres e Mathieu Potte-Bonneville, D'apres Fo11ca11lt: gestes, luttes, progmmmes, Paris, Les
Prairies ordinaires, 2007.
14 Jean Genet, L'atelier d'Alberto Giacometti, Paris, CArbalete, 2007 (nova edição sem número
de páginas).
1 5 Francis Wolff, Philosophie de ln corrida, Paris, Fayard, 2007, p. 168.
16 gualme
I nte minha leitura dessa obra (ver Jean Allouch, Contre l'étemité, Ogawa, Mallnrmé,
Lacan, capítulo 11, Paris, Epel, 2009).
166

Bersani, "será anônimo, o Texto ali falando dele mesmo e sem voz de
autor". Na língua alemã, qualquer um tem até recebido um nome eleva do
à dignidade de um topos literário: ]edermann, "Senhor todo mundo" , o u
ainda "o comum dos mortais". Kertész retoma esse topos por sua con ta:
"Sempre tive tendência, e hoje não menos que antes, a me considerar u rn
]edermann que, em todo caso de um certo ponto de vista, não poupou su a
pena, sobretudo no que se refere à lucidez 1 7 " . Uma nota dos tradutores de
Kertész assinala a peça de Hugo von Hofmannstal jedermann, ela m esm a
remetendo ao jedermann das danças macabras medievais. É, em suma, algo
próximo desse modo subjetivo anterior ao século XI ocidental, vizin h o
da iluminação budista, da realização de si como Brahma, do ]eder ma nn
germânico, da experiência mística plotiniana 1 8 , daquela, moderna, do
toureiro que o psicanalista deveria realizar no ponto de fechamento da
transferência. O que, segundo Lacan, exigiria um luto - não um luto de
algum objeto exterior a si, mas o luto daquilo mesmo que faz que cada um
é "si" e nenhum outro. Dito de outro modo: enquanto sujeito, não sou um
significante, não me caracterizo, como o significante saussuriano, pelo fato
de ser o que os outros não são. Com efeito, não há nenhuma razão para
colocar como necessário esse pretenso desejo que cada um teria de ser si,
talvez até si mesmo - esse desejo sobre o qual se baseia a psicologia . Para
muitos, um desejo assim pareceu de intolerável vaidade (nos dois sentidos
dessa palavra). Em outras palavras, o "conhece-te a ti mesmo" de Delfos
não é primeiro; e tampouco é o "cuida de tua alma" que, segundo Laca n
antecipando Foucault, seria aquilo que procurava dizer Sócrates àqueles
que ele encontrava nas ruas de Atenas. Justamente, se para isso é preciso
um mandamento, é bem que não há ali nada que vá... por si.
O gesto de Sócrates enviando Alcibíades para junto de Agatão é exem­
plar do que poderia ser um fim de transferência? A posição de Lacan quanto

17 lmre Kertész, Un nutre. Chro11i 11e d'1111e 111étnmo1 hose, traduzido do húngaro por Natalia e
q p
Charles Zaremba, Paris, Actes Sud, 1999, p. 10.
18
Na obra referenciada, nota 13, Potte-Bonneville não hesita em discernir o elemento pro·
priamente fideísta incrustado nas posições de Foucault e Deleuze, diferente num e noutro
mas também distante um e outro dessa glorificação do rosto à qual Levinas dedicou seus
esforços.
O R E N F I M D E T RAN S F E R Ê N C I A
O AM

a es s e p roblema é delicada, nuançada, sutil. De que maneira ele analisa esse


es to de Sócrates? E como liga essa análise à análise? Primeira observação,
;s tamos às voltas com algo homólogo ao que adveio com a invenção do
o bje to a e que vale, pelo menos a meu ver , como prova dessa invenção:
19

Lacan oferecendo o objeto a a seu público sob uma forma topológica das
20
mais materiais, com convite para que ele o receba "como uma hóstia " .
Ness e 9 de janeiro de 1963, fala e ato caminham juntos. Ora, essa mesma
convergência do gesto e da fala já acontecera no fim do seminário A trans­
ferên cia (outras vezes ainda, com certeza). A última palavra desse seminário
é u m verbo: "desaparecer". Lacan o p ronuncia embora esteja a ponto de
desaparecer, tendo soltado a última palavra da última sessão desse ano.
Seria mostrar-se um pouco não tolo demais não levar a sério esse recorte
do enunciado e da enunciação, declarar, em nome da realidade: "Não, não,
todos sabem bem que ele vai retomar o seminário no ano que vem, ele aliás
an u nciou isso". Pois a mais mínima experiência, ainda que apenas de breves
férias de um psicanalista, basta para ensinar o pouco caso que pode ser feito,
na oportunidade, de tais juízos de realidade. "Desaparecer", fala e gesto, deve
aq ui ser entendido num sentido plenamente desdobrado, sentido esse que
co mporta o morrer. Confirmação: essa derradeira sessão põe em trabalho
a questão do luto, essa mesma questão que, com a morte de Alfred Lacan,
estava presente no luto da leitura do Ban q uete. Muito pouco tempo antes
de pronunciar seu "desaparecer" e fazê-lo agir, Lacan comenta um certo tipo
de remorso, desencadeado pelo suicídio do objeto:

[ . . . ] Sondem esses remorsos dramáticos nos casos em que eles advêm. [ . . . ]


Encontrarão a fonte no fato de que com esse objeto, que assim se esquivou,
não valia muito portanto ter tomado, se ouso dizer, tantas precauções. Logo,
não valia muito ter-se desviado de seu verdadeiro desejo se o desejo do objeto
foi, como parece, que chegássemos a destruí-lo2 1 •

19
G uy Le Gaufey não en tende ass i m , e o debate não está encerrado, quanto a esse ponto, no
próprio seio da escola à qual ambos pertencemos.
10
J. Allouch, Ln psychn nnlyse: 1111e érotologie de pnssnge, Cahiers de L'U11ebév11e, Paris, Epel,
1 998, p. 36-4 5 .
11 J . Lacan, A tm11sferê11cin. . . , sessão de 28 de j unho de 1 96 1 .
1 68 O AMOR L AcAN

Essa afirmação poderia ser a do analisando ao sair de sua análise? Lacan


não levanta essa questão. O qualquer um do psicanalista tal como se realizaria
no momento conclusivo de cada análise teria o valor de um suicídio, u m
suicídio no sentido forte da palavra, um homicídio de si? "No sentido forte
dessa palavrà' pois muitos pretensos "suicídios" são, ao contrário, gestos
pelos quais o "suicidado", nesse próprio ato, preserva seu si para alérn até
de sua vida, o preserva à custa de sua vida (é, exemplarmente, o caso das
pretensas passagens ao ato de Sidonie Csillag, mas não a de Christine Pap i n
nem a do suicídio estoico). Ou seja, portanto, a conjectura segundo a q ual
a realização do qualquer um teria esse valor de autólise. O que resulta ria
disso? Seria então imaginável o analisando se colocar a questão levan tada
por essa passagem de Lacan. Ora, a ideia segundo a qual o analisando se
teria desviado de seu verdadeiro desejo em proveito, se ousamos dizer, de
seu analista não é por um único instante sustentável em Lacan. O q ue
mesmo assim não resolve inteiramente a dificuldade, como mostra o fato
de o problema ter dado lugar a um erro de transcrição.
Lacan apresenta esses casos como extremos, sugerindo assim q ue
haveria outros que não o seriam, o que não é falso. Pode-se mesmo assim
nuançar, talvez até contestar, essa distinção clínica, admitir que, aqui como
em outro lugar, esse extremo só faz caricaturar e assim dizer a verdade do
caso comum, já que todo morto é, no inconsciente, pensado como um
suicidado ou um assassinado. Embora até ainda não esteja explicitamen te
em questão, temos aí uma primeira exemplificação do qualquer um. Terá
sido amado o objeto que se esquivou (não é inconveniente convocar aqu i
o amor, mesmo que não esteja no texto), terá sido protegido (Alcibíades
ébrio tendo chegado ao ponto em que ele não tem mais razão alguma pa ra
tomar qualquer precaução que seja com Sócrates), tudo isso para, graças à
sua morte, acabar por perceber.. o quê? Aqui, a reescrita de Jacques-Ala i n
Miller resolve um equívoco mantido na versão Estenotipia. Miller escreve:
" Esse objeto, se assim se esquivou, se chegou a se destruir, não valia, por­
tanto, muito se ter tomado com ele tantas precauções, não valia portanto
a pena ter-me desviado por causa dele de meu verdadeiro desejo22" . Nada ,

22 /d., Le transfert, Paris, Le Seuil, j u n ho de 200 1 , p. 464 {introduzo os itálicos) .


M O R E N F I M D E T RA N S F E R Ê N C I A 1 69
0 A

na a fi rmação de Lacan, vem escorar a ideia de que eu teria desejado em


o utro lugar, que nesse outro lugar teria estado meu verdadeiro desejo e
ele me teria no entanto desviado em proveito desse objeto que acaba
q ue d . ' d
de se su1 c1 ar.
Para não perder o fio do que terá sido dito, lembraremos duas carac-
terísticas do desejo, nessa época, em Lacan, duas características mantidas
23
e nq uanto ele começa a tomar distância de Hegel , mas embora até que o
cor te com Hegel esteja plenamente realizado: 1) o desejo do sujeito é desejo
do Outra24• Lido após a invenção do objeto a em 1963, esse enunciado
parece flutuante: durante anos, Lacan nunca pôde decidir entre genitivo
ob jetivo e genitivo subjetivo, e isto até o momento em que o objeto a tiver
p or efeito que a questão, simplesmente, não se colocará mais. 2) O desejo
não tem outro fim, outra satisfação verdadeira, se deve chegar a alguma
satisfação que seja, a não ser a destruição sadiana de seu objeto. Menos
rep etido pela doxa, esse segundo ponto é suscetível de chocar, mas sua elu­
cidação vai permitir começar a responder à questão de saber se se pode, se
se deve verdadeiramente distinguir amor e desejo no fim desse seminário
_ distinção que não estava sempre presente, nem sempre clara nos seminá­
rios, notadamente a partir do momento em que foi afirmado que o desejo
também tinha relação com o ser.
Seja, primeiramente, o efeito da ocorrência do falo na subjetivação das
"formas primeiras do objeto enquanto separado2 5 " . A essa afirmação vai ser
trazido algo importante para a discriminação amor desejo: "É a partir do falo,
de seu advento nessa dialética, que se abre, justamente, por ter sido reunida
nele, a distinção entre o ser e o ter". O falo é aqui apresentado como singular
pelo fato de ser o que ele tem e que ele tem o que ele é; o falo é esse ponto
de "assunção subjetiva entre o ser e o ter" que diria a fórmula "ele não é sem
o ter" (12 de abril de 196 1). É tão estranho? É tão... inapreensível? Nesse
mesmo dia, o falo é apresentado com sendo um significante, mas também

ll O que ten ta a i n tervenção em Royaumont em setembro de 1 960: "Subversion du sujet et


dialectique du désir dans l'inconscient freudien" , i11 J. Lacan, Écrits li, op. cit., p. 273-308.
i4 Cj, sempre nesse 28 de j unho de 1 96 1 : "Somos portan to levados ao sujeito. Como, pois, é
do sujeito que pode ser levada toda essa dialética do desejo, se ele não é nada a não ser um
apóstrofo inscrito numa relação que é an tes de tudo a relação com o desejo do Outro ? " .
lj lbid.
1 70 O A M O R L A c l\ N

como signo da falta de significante no Outro. O falo é uma "presença re al "


(conceito teológico); como a eucaristia, ele "reúne em si mesmo o sign o e
o meio de ação" ( 19 de abril de 196 I ). Notavelmente, ao discriminar, elll
Safo, o que ele chama uma "anatomia de poetà', um "corpo constitu ído
do poema", diferente da anatomia médica, Jackie Pigeaud encontra essa
mesma convergência do ser e do ter que Lacan dizia, então, característica
do falo, de um falo com efeito situável no registro dessa anatomia poéti ca .
Tudo o que diz Pigeaud da kardia pode ser posto na conta do falo. P i ge­
aud fala da "troca inextricável, à primeira vista, entre o coração órgão e 0
coração metafórico26 " , de "algo que é a um só tempo conceito e sensaçã0 21».
O falo, em Lacan, apresenta essa mesma bivalência que a kardia em Safo
(lida por Pigeaud). Sua mais justa definição, entretanto, Lacan foi dizê- la
em Genebra, muitos anos mais tarde (em 1975), durante a única s uper­
visão pública realizada por ele. Falando da paciente que foi objeto dessa
excepcional supervisão, ele declarava que: "O falo não é isso [um enorme
órgão] , o falo é seu acolhimento, sua abertura, sua capacidade de admit ir
outra coisa que a autonomia à qual ele se agarra, e não precisamente um
órgão macho28 " . Quinze anos antes, a afirmação não é muito diferente . A
não ser que ele inaugurava. Com efeito, além do agalma, uma das grandes
novidades do seminário A transferência, aliás explicitamente alegada como
tal, consiste na invenção do fi maiúsculo: <l> . Em conclusão de sua sessão de
2 1 de dezembro de 1960, lemos, a respeito da prestação de Aristófanes em
O banquete, que pela primeira e única vez Platão "faz entrar em jogo n um
discurso, e um discurso relativo a um caso que é um caso grave, o do am or,
o órgão genital como tal". Quatro meses mais tarde ( 1 9 de abril de 196 1),
depois ainda em 26 de abril, Lacan também vai introduzir um certo fal o
no grande caso do amor e do desejo.
Esse certo falo tem um estatuto dos mais singulares, que cria dificulda­
de, uma vez que Lacan ainda não construiu sua diferença entre o significante
e o signo - mesmo que dela se aproxime balbuciando que o significante

16 Sappho, Poemes, traduzido do grego e apresentado por Jackie Pigeaud, Paris, Rivages Poche,
2004, p. 51.
27
lbid. , p. 39.
Cf "Une séance de supervision avec J. Lacan", in Nicos Nicola'idis, Alphabet et psycha11alyse,
28

Le Bouscat, Lesprit du temps, 200 1.


M O R E N F I M D E T RA N S F E R Ê N C I A 1 71
O A

m lesmente fazer signo a alguém mas fazer signo de alguém29 • Ele


n ão é si p
muito como nomear esse <I>. Tenta caracterizá-lo como "o único
n ão sabe
si nifican te que merece, em nosso registro e de maneira absoluta, o título de
sí bolo ". Por que razão? Porque ele intervém quando falta o significante.
� 3º

Quando, então, falta o significante? Quando, notadamente, é colocada a


ues tão "quem sou? ", ou então esta outra: "o que você quer?". Não há mais
�esp osta pela via do significante ou do signo (nessa época, Lacan ainda fala da
cadeia inconsciente como feita de signos), mas apenas a intervenção de algo
(no meem o-lo <I>, propõe ele) que vem marcar uma presença real, "a própria
presença do desejo". Lacan não ignora que esse <I> não entra em nenhuma de
suas categorias: nem significante, nem signo, nem sequer símbolo, pois <I>
n ão pode ser nomeado. Nomeá-lo o malogra. Por isso fala dele como "um
s ímbolo inominável" - uma designação perfeitamente atravessada. O que
n ão im pede assinalar seu registro clínico, aquele que é esperado: a perversão.
Co m efeito, se <I> só aparece "nos intervalos daquilo que o significante cobre",
0 fetiche vai afigurar-se encarná-lo especialmente bem. Esse mesmo fetiche
q ue trouxe sua contribuição para a construção do arcabouço desse amor que,
nu m primeiro gesto, teria estado ligado à perversão, esse fetiche também,
da mesma forma que <I>, "reúne o signo e o meio da ação". Assim, o falo
s urge "preso no mecanismo perverso como taP' ". Mas, mais q�e lembrar
aqui os dados cl ínicos que, na época, escoram esse enunciado, dados que
poderemos examinar, é melhor trazer a esse dossiê uma nova peça.
Duas obras bem recentes visitam novamente uma das histórias de amor
mais célebres e mais celebradas no Ocidente, a de Abelardo e Heloísa32 • É
conhecido, o amor deles terá assumido um outro regime, já que um certo
Fulbert, tio de Heloísa, depois de ter imprudentemente empregado e alojado
Abelardo em morada eclesiástica a fim de que ele dê à já sábia jovem aulas
particulares, ao saber que o mestre havia engravidado a aluna, manda dois

19 J . Lacan, A tm11 rênci11. . . , sessão de 26 de abril de 1 96 1 .


sfe
30 J . Lacan, A tmnsferê11ci11. . . , sessão de 1 9 de abril de 1 96 1 .
3 1 lbid. , sessão de 26 de abril de 1 96 1 .
'2 G uy Lobrichon , Héloi'se, l'nmour et /e snvoir, Paris, Gallimard, 200 5 . Lettres des deux 111111111ts
atrib uídas a Heloísa e Abelardo, traduzidas e apresen tadas por Sylvain Piron, Paris, Galli­
mard, 2005 .
1 72

comparsas castrá-lo. É menos conhecida a relação que liga essa castração


e a fundação da ordem do Paracleto pelos dois amantes. O Paracleto é 0
Espírito Santo aceito enquanto consolador. " Consolador" , em espanh ol
[consolo, em português] , é o falo artificial [em francês, o godemiche1 , o falo
artificial que, até recentemente, deu lugar à falsa mas engraçada eti mologia
gaude mihi, "dê-me prazer", cuja etimologia verdadeira parece antes ser
gaudameci, "couro de Gadames". Como Abelardo e Heloísa terão reagido
à castração física de Abelardo? Eles terão jogado com a ubiquidade do fal o,
apostado no falo como presença real, ao reafirmar essa presença real para
além da castração física de Abelardo (que é também, num outro sentido,
uma castração de Heloísa33 ) . Em outras palavras, a fundação do Paracleto
atesta que uma faca não pode vencer essa presença real. Abelardo não terá
sido castrado, Abelardo terá ficado falóforo. Crer que a castração de Abelardo
ficara sem remédio corresponde a desprezar "essa função <I> (grande fi) do falo
na medida em que ela é aquela que está escondida atrás de sua moedagem
no nível da função cp 34 " . Dando, também neste ponto, sequência a Freud,
Lacan, por sua vez, procura generalizar a perversão: hd perversão tão logo há
presença real do falo (bem mais tarde, voltaremos a isso, o cristianismo será
dito uma perversão). O amor de Abelardo e Heloísa afigura-se exemplar do
flerte entre o amor e a perversão.
Esse inominável <I> ainda reserva uma surpresa. Seja, pois, a observação
clínica, várias vezes meditada por Lacan e que vale, na análise, como a primei­
ra ofuscação manifesta da transferência já notada por Freud: quando parecem
esgotar-se as associações do paciente, o analista ganha quase sempre quando
intervém dizendo: ''Afinal, o que vocês estão pensando a meu respeito?". Em
196 1, essa situação é relacionada por Lacan à falta de significante, essa falta
deixando lugar ao sentimento de uma presença real, no caso em questão a
do analista. Lacan procura situá-la num outro registro que imaginário (a
presença é real) pelo fato de que ela corresponde à ocorrência do <I>. Mas a

33 Cj a instrutiva historieta relatada por Lobrichon. Um cavaleiro que voltasse vencido da


guerra incorria na castração. Mas sua mulher interveio, ressaltou junto aos juízes "que não
se podia privar a inocente de um bem que o culpado não possuía" (D11111 eos e11n11chiazitiJ,
11011 quod illomm sed quod 11ostm111 est tollitis, ibid. , p. 2 19).
34 J . Lacan, A transfe rência. . . , sessão de 26 de abril de 196 1.
1 73
o ,.. ,.••, O R E N F I M D E T RAN S F E R Ê N C I A

ue tende ela? Resposta no fim da sessão de 26 de abril de 196 1: " Pois, se o


� que se mostra tem por efeito produzir no sujeito a quem ele é mostrado
o
tam bém a ereção do falo, não é isso condição que satisfaça no que quer que
exigência natural". Assim, a homossexualidade masculina
seja a alguma
arece para Lacan uma realização falante dessa aparente reciprocidade, e é
� ela que ele se apoia notadamente para identificar a intervenção do <I> como
um "momento perverso". Ora, não fica claro que a configuração desenhada
recorte exatamente a do mito da mão que se estende na direção da lenha de
on de surge miraculosamente outra mão como, aqui, a ereção do <I> surge
daquela de um outro <I>? Parece não haver muita dúvida a esse respeito. Daí
se deduz que essas mãos são fálicas. Daí se confirma que <I> está em jogo no
amor. O que vai tornar singularmente complexa a tentativa de situar como
se enodam o amar e o desejar no caso Alcibíades e, daí, no fim de partida
analítica. Enquanto Alcibíades se esforça para obter de Sócrates um signo
de seu desejo mas também, já que se trata de <I> e não de <p, um signo de sua
presença real, pois bem, esse signo inominável, Sócrates não lhe dá. Aqui
inte rvém a atopia de Sócrates, a respeito da qual Lacan se pergunta se a do
psicanalista pode e deve ser a mesma.
Lembramos, é porque <I> é a um só tempo ser e ter que só sua inter­
venção pode abrir a distinção entre o ser e o ter. O que se pode declinar de
várias maneiras. Pode-se dizer que o Eros freudiano, na medida em q�e não
distingue amor e desejo, é dito verdadeiro por Lacan até a fase fálica não
incluída. A criança no seio, a criança em seu peniquinho ama, pelo menos
ama em Freud. Em Lacan, ela não ama o seio, ela não ama o excremento
ou a pessoa a quem ela o entrega, uma vez que amar supõe estabelecida
a distinção entre o ser e o ter. Amar é assunto, é questão de ser; desejar é
assunto, é questão de ter. Logo, não pode se tratar de amar propriamente
falando enquanto o próprio registro do ser não estiver de certo modo aberto
pela entrada em luta do falo como tal. Interrogamo-nos: o que é ter, ter um
objeto?

Para além do objeto fálico , a questão - é bem o caso de dizer - se abre no


lugar do objeto de outra maneira. O que ele apresenta aqui, nessa emer­
gência de ilha [sublinho] , essa fantasia, esse reflexo em que justamente ele
1 74 O A M O R LACAN

se encarna como objeto d o desejo, manifesta-se precisamente na im a ge lll


eu dir ia quase a mais sublime na qual ele pode se encarnar, aquela que h;
pouco ressaltei como objeto de desejo3 5 , ele se encarna justamente naq uilo
que lhe falta36 •

Essa pas sagem é de pouco anterior ao que virá bem no fim desse se m i­
nário. N ela vamos assinalar a presença da ilha que, já mencionada oito di as
antes, será retomada, justamente, bem no fim. Não sem criar dificuldade ,
pois será então associada não, como aqui, ao desejo, mas ao amor, sendo
então aprese ntada como "esse campo do ser que o amor só pode delimitar" .
Que ilha Laca n tem em mente? A das antigas cartas de geografia, aqu el a
que, ainda inexp lorada a pé e vista do mar, nada mais é que um contorn o,
um laço envolvendo um vazio.
Essa ilha também é aquela, famosa, do rastro de esperma no len çol .
Real, esse rastro será dito um "mapa da França", celebrado como tal. A
citação prossegue assim: "É a partir daí que se origina tudo o que vai ser a
sequência da relação do sujeito com o objeto do desejo. Se ele cativa pelo
que lhe falta ali, onde encontrar aquilo pelo que ele cativa? ". Em outras
palavras, seria o caso de explorar a ilha, seu suposto interior. Mais ainda ,
de tirar o agalma do ventre de Sócrates.

A sequência e o horizonte da relação com o objeto, se não for antes de tudo


uma relação conservadora, é, se posso dizer, interrogá-lo sobre o que ele tem
no ventre ou que prossegue na linha em que tentamos isolar a função do
pequeno a, é a l i nha propriamente sadiana pela qual o objeto é interrogado
até as p rofundidades de seu ser, pela qual ele é sol i citado a voltar ao que
ele além disso escondeu para vir a preencher essa forma vazia na medida
em que ela é forma fascinante. O que é pedido ao objeto é até onde pode
suportar essa questão, e, afinal, ele só pode suportá-la bem até o ponto onde

-' 5 Com certeza se trata de Vênus sai ndo da onda, que esteve em questão pouco antes como
imagem erigida "no auge da fasci nação do desejo" .
-' 6 J . Lacan, A transferência. . . , sessão d e 2 8 d e junho d e 1 96 1 .
MO
R E N F I M D E T RA N S F E R E N C I A 1 75
O A

a última falta a ser é revelada, até o ponto onde a questão se confunde com
37
a destruição do objeto •

Eis, p ois, o que, para o desej o , queria dizer possuir o obj eto : seria
a chegar ao que ele supostamente tem no ventre.
destr u í- lo, de maneira
ada por Raquel Capurro e Diego Nin, Eu o matei, diz ela,
Um a ob ra, assin
8
1 meu pai3 , oferece uma monstração exemplar dessa possessão destruição.
Lúm en Cabez udo, o homem, o pai que será morto, é um fanático pelo
desejo , p or um desejo por uma mulher que ele não cessa de assediar a fim
de o bter dela um algo perfeitamente precioso e que a torna, a seus olhos e
aos próp rios olhos dessa mulher (o que não resolve nada) , superior entre
ro das. O q uê? Seu saber em posição de agalma. E é no momento em que
el e ch egaria até a matá-los, ela e os filhos dos dois, que Íris, a mais velha,
intervém , preferindo matá-lo, ele, em vez de deixá-lo matar toda a família
(o ato de Íris é tão louco quanto racional) . O que resultaria se cada análise
devesse funcionar conforme essa lógica, ainda hegeliana, do desej o como
desejo do otro, do desejo destruidor de seu obj eto? Se fosse esse o caso, a
crônica dos crimes deveria regularmente anunciar um assassinato de analista
por um analisando. Sej a como for, a questão , para Lacan, continua sendo
a de outro desfecho, mais bem aj ustado. Assim, pois, não desprezando
nenhum dos dois dados que acabam de ser lembrados (o des �j o como
desejo do otro e como que visando, no último termo, a destruição de seu
objeto) , a observação a respeito do obj eto suicidado lê-se de outro modo
que o terá feito Miller. Como escreve a Estenotipia39 , trata-se de seu desej o
(o do objeto , aquele de quem se suicidou) e não do meu; de seu desej o na
medida em quem se apoia no meu, ele mesmo posicionado como desej o
do otro, como que regrado por seu desejo. A questão colocada é esta: por
que, então, ter regrado meu desej o por seu desej o, se seu desej o se afigura,
por seu suicídio, ter sido que o destruíssem? Por que, se era bem assim,
tê-lo tratado com precaução ? Há outra via, para o desej o , outro desfecho

37 J . Lacan, A tmnsferêncin. . . , sessão de 28 de junho de 196 1.


38 Traduzido do espanhol (Uruguay) por Françoise Bem Kemoun, envio de Christine Angot,
Paris, Eppel, 2005.
39 J . Lacan, A tmnsferêncin . . . , sessão de 28 de junho de 196 1.
1 76

que essa autodestruição do desejo do sujeito e, ao mesmo tempo, do desej o


do otro? A análise do caso Alcibíades virá responder. Mas uma outra aí se
acrescenta: se o desejo é suscetível de se vestir de outro modo, como o amo r
pode intervir num desfecho menos devastador?
CA P Í T U LO V I I I

0 CAS O A L C I B ÍA D E S

E nquanto Lacan se prepara para desaparecer, ei-lo a confirmar a res­


p osta de Sócrates a Alcibíades, mas apenas até certo ponto, aliás difícil
de p recisar. Para além desse ponto, a resposta de Sócrates não lhe parece
transponível, não pode valer como modelo para o analista preso por e em
u ma transferência. Lacan segue Sócrates em segredo na cena, mas dele toma
dis tância na resposta dada a Alcibíades no fim do banquete. Por que esse
passo ao lado em relação a Sócrates?· Por que razão ter feito passar sua navalha
ent re uma e outra das duas cenas de Sócrates com Alcibíades, aprovando a
primeira e recusando a segunda? A irrupção de Alcibíades em O banquete
e a desordem que se segue (que nem por isso é anarquia) retiveram Lacan.
Ele ataca o Banquete com uma questão assim introduzida:

É nesse tempo, nessa eclosão do amor de transferência, nesse tempo definido


no duplo sentido cronológico e topológico que deve ser lida essa inversão,
se podemos dizer, da posição que, da busca de um bem faz, propriamente
falando, a realização do desejo.
Vocês entendem bem que esse discurso supõe que realização do desejo não
é justamente posse de um objeto, trata-se de emergência à realidade do
desejo como tal 1 •

O que poderia bem ser essa "emergência à realidade do desejo como


tal', diferente em algum aspecto da "realização do desejo", embora sendo
"realização do desejo"? Duas observações a esse respeito: 1) estamos aí às
voltas com um esquema próximo daquele, pseudoparadoxal, da fórmula

1 J . Lacan, A mmsferência. . . , sessão de 14 de dezembro de 1960.


"obter o amor que não se obtém"; 2) "topológico" vem indicar de q ue
maneira seria tornada efetiva uma solução para esse pseudoparadoxo. S eria
um lugar emergente, e não o objeto que, vindo ocupar esse lugar, seria 0
objeto do desejo realizado.
Assim formulada, a questão permanece bem opaca, razão pela q u al
Lacan, em busca de uma "bússola", tenta ler esse diálogo: " Pareceu-me que O
ban quete era, por mais longe de nós que estivesse, o lugar onde se agitar a d a
maneira mais vibrante o sentido dessa questão. Ele ali se agita propriame n te
falando nesse momento que o conclui em que Alcibíades [...) ". Logo, a cena
final do Ban quete de imediato é convocada para esclarecer essa "emer gên cia
à realidade do desejo como tal". Mantendo o público em suspense, Lacan
lhe anuncia que seu percurso passo a passo desse texto não tem outro fi m
senão esclarecer essa cena final. Em 1 ° de março de 1 96 1 , esse suspense é
relançado; mas, como esse percurso foi amplamente efetuado, referência é
agora feita ao objeto. Seria "reconhecer naquilo que Alcibíades articula em
torno do tema do agalma o tema do objeto escondido no interior do sujeito
Sócrates", admitir "que ali se revela uma estrutura na qual podemos encontrar
o que somos, nós, capazes de articular como inteiramente fundamental no
que chamarei a posição do desejo". Em seguida, pouco depois:

E toda a questão é perceber a relação que liga esse Outro ao qual é dirigida
a demanda de amor com o aparecimento do termo desejo na medida em
que ele não é mais nem um pouco esse Outro, nosso igual, esse Outro ao
qual aspiramos, esse Outro do amor, mas que é algo que, em relação a isso,
representa, propriamente falando, um decaimento disso - quero dizer algo
que é da natureza do objeto.

No próprio termo da leitura do Ban q uete, essa "relação" continu a


sendo uma questão! Mas que, agora, comporta o termo "decaimento", cuja
ocorrência foi possível graças ao achado do agalma. Entendemos que há
ressonância, senão identidade, entre esse movimento pelo qual o Out ro da
demanda de amor decai em objeto do desejo e a transformação do psicana­
lista que, de alguém, se torna toda pessoa, qualquer um. Essa ressonância é
prometida a um belo futuro em Lacan: a " Proposição de outubro de 1 9 67
LC I B Í A D E S 1 79
O CASO A

so bre O psicanalista da escola", para aqui só mencionar ela, só é abordável


se n ão dermos importância ao fato de ela vir de longe, em particular da
anos antes, da última cena do Banquete. O que acontece com
l ei t ura, seis
e Por enquanto, a despeito do que acaba de ser lido e que
es s e d caim ento?
arecia límp ido, sua atribuição ao amor ou então antes ao desejo permanece
� uc uante. Com efeito, Lacan prossegue sua afirmação convocando o amor
do p róximo:

O que está em questão no desejo é um objeto, não um sujeito. É justamente


aqui que jaz o que se pode chamar esse mandamento espantoso do deus
do amor que é justamente fazer do objeto que ele nos designa [o próximo,
portanto] algo que, em primeiro lugar, é um objeto e, em segundo lugar,
aquilo diante do que fraquejamos, vacilamos, desaparecemos como sujeito.
Pois esse decaimento, essa depreciação que está em questão, somos nós como
sujeito que a recebemos. E o que acontece com o objeto é justamente o
contrário, vale dizer [ . . . ] que esse objeto é supervalorizado e é na medida
em que é supervalorizado que ele tem essa função de salvar nossa dignidade
de sujeito [ . . . ] .

A alusão à observação de Freud sobre a supervalorização d9 objeto


de amor surge indubitável, uma vez que o termo "decaimento" encontra-se
como que repetido pelo termo "depreciação". Por isso, a dificuldade está
em outra parte: após ter sido posta na conta do desejo, de um desejo cujo
ob jeto seria precisamente constituído como decaimento do objeto da de­
manda de amor, eis que o decaimento agora é dito ser o do sujeito que ama.
Ele recebe esse decaimento e, recebendo, dele no entanto obtém um ganho
em dignidade. A vacilação do decaimento entre desejo e amor é patente.
Muitas outras afirmações, nesse ano, assinalam essa mesma flutuação entre
amor e desejo. Poderíamos estabelecer a lista {ela seria paralela a esse outra
que poria em série os enunciados em que, ao contrário, amor e desejo são
distinguidos). Só um exemplo:

Tudo o que Agatão diz mais especialmente do amor, que o belo por exem­
plo lhe pertence, é um de seus atributos, dizer tudo isso sucumbe diante
1 80 O A M O R LACAN

da interrogação, esta observação de Sócrates: Esse amor de que vocêfala, e/e


é ou não amor de algo? ''Amar e desejar algo é tê-lo ou não tê-lo? Pode -se
desejar o que já se tem2 ?".

Nessa citação que, ela mesma, cita Platão, amor e desejo parecem
bem só fazer um em Platão, e Lacan nada tem aí a dizer3 • O que não pode
surpreender muito, uma vez que, com Lacan (e Freud), o amado seria en ­
carado como um objeto, e uma vez que o falo e o agalma têm igualm en te
interesse no amor. Nos primeiros seminários, o amor arriscava ser quebrad o
em dois entre imaginário e simbólico; ei-lo agora em via de ser absorvido
no desejo.
As duas cenas finais do Banquete não têm o mesmo estatuto, mas
mesmo assim estão ligadas. Aquela que ocorrera em segredo, a respeito
da qual Alcibíades declarava não ter chegado a obter de Sócrates o signo
que esperava, é relatada por Alcibíades. A outra cena também é relatad a,
via várias chicanas, mas como se tivesse ocorrido no próprio momento d o
banquete. Ela é atuada durante o banquete e parece constituir um novo ato
(no sentido teatral) do Banquete. Essas duas cenas estão incrustadas, já que
o relato da primeira é feito no próprio seio da segunda, já que esse relato é
um momento e até um episódio atuado dessa segunda cena em que, "se vai
se tratar do amor, é em ato4 " . Eis, pois, a transferência (o agieren do artigo
"Rememorar, repetir, perlaborar", escrito por Freud em 19 14) e, com ela, a

2
J. Lacan, A tra11sferê11cia. . . , sessão de 1 8 de janeiro de 1 96 1.
3
O problema aparece de imediato.Assim, enquanto a sessão de 30 de novembro é encerrada
com a observação que "aquilo de que se gosta em toda essa história do Banquete é o quê? É
algo que sempre se diz e muito frequentemente no neutro, é ta paidika", a sessão seguinte
dirá: "Esse ser do outro no desejo, penso já tê-lo indicado o bastante, não é um sujeito. O
erômeno é, eu diria erômenon igualmente ta paidika no neutro plural: as coisas da crianra
amada, pode-se traduzir" . A mesma afirmação relacionada oito dias antes ao amor desta vez
diz respeito ao desejo! Igualmente, sessão de 25 de janeiro de 1 96 1 : "Quando Sócrates, após
ter dado a virada decisiva ao produzir a falta no cerne da questão sobre o amor (o amor só
pode ser articulado em torno dessa falta pelo fato de que do que ele deseja ele só pode ter
falta}"; ou ainda, a respeito do discurso de Diotima: "Essa definição dialética do amor, tal
como é desenvolvida por Diotima, encontra o que tentamos definir como a função meto·
nímica no desejo".
J. Lacan, A tra11sferê11cia. . . , sessão de 1 ° de fevereiro de 1 96 1 .
C I B ÍA D ES
O CASO AL

ão de sua possível efetuação.Três traços, correlatos, sobressaem do relato


q uest � . .
da cena em segredo: uma recusa, uma 1"d entt"ficaçao, uma mter fierenc1a.
"
1) A recusa socrática do amor encarado como troca, como escambo,
em outras pal avras, um abandono da teoria pausaniana do amor, daquilo
e L n ressalta como sendo "o amor pelo bem, pela aquisição de um
q u aca
5
maior bem "
2) A identificação de Sócrates como Sileno, como depositário dos
aga lmata que, precisamente, ele teria recusado trocar com Alcibíades por
que fosse - mesmo que fosse esse objeto tão culturalmente
q ualquer objeto
estimado quanto a beleza de Alcibíades. Sócrates não aprova essa identifica­
ç ão, cuidando bem de atribuir a Alcibíades o "drama silênico e satírico" (no
texto grego os substantivos são adjetivados) trazido por seu discurso •
6

3) O baralhamento do jogo socialmente regrado entre eraste e erô­


meno. Erômeno reputado (mas de qualquer modo envelhecido na época do
banquete), Alcibíades, nessa cena, é levado a se comportar como um eraste.
Eraste reputado, Sócrates está antes em posição de erômeno. Donde pode
se concluir, donde já podiam concluir os primeiros ouvintes desse relato (a
co meçar pelos participantes do banquete), que esse par de termos e com­
portamentos codificados não pode permitir cifrar as respectivas posições de
Sócrates e Alcibíades nessa cena, que esse binômio também deve, p_ortanto,
como a teoria pausaniana do amor, ser afastado. Assim, a "metáfora do
amor", aquela pela qual o erômeno adviria como eraste, não convém. Igual
conclusão não pode espantar muito quem tiver notado que, nos dois casos
dados por Lacan como exemplo do êxito dessa metáfora - o de Alceste e
de Admeto e, mais prestigioso aos olhos dos deuses, o de Aquiles e Pátro­
clo, em que "a metáfora do amor é realizada" -, essa realização do amor só
advém na morte.
Que leitura Lacan propõe dessa cena? Ele dá ao próprio ato de sua
narração por Alcibíades o valor de um algo "que está entre a declaração de
amor e, quase se diria, a maldição, a difamação de Sócrates 7 " . "Alcibíades

1 lbid. , sessão de 7 de dezembro de 1960.


6 Platão, O banquete, 222d.
7
J. Lacan, A tm11sfe rê11cia. . . , sessão de 1° de fevereiro de 196 1.
O A M O R LAcAN

entra nos maiores detalhes de sua aventura com Sócrates. O que ele ten to u ?
Que Sócrates, diremos, lhe manifestasse seu desejo; já que sabe que Sócrates
tem desejo por ele, o que ele quis foi um signo" . Uma semana m ais ta rde
(8 de fevereiro), Lacan volta a isso. O que ele chama a "determinação" de
Alcibíades vem do fato de que "lhe parece bastar que Sócrates se declare para
obter dele justamente tudo o que está em causa, isto é, o que ele próp rio
define como: tudo o que ele sabe" . Segundo essa lógica alcibiadesca, mas vista
por Sócrates, obter de Sócrates esse signo de seu desejo abriria a via para a
obtenção do saber em posição de agalma. Porém nem assim Lacan consi dera
resolvida a questão da determinação de Alcibíades e, portanto, nesse 8 de
fevereiro, volta em sua afirmação:

[ . . . ] para Sócrates ele é um amado, um erômeno, que necessidade tem ele,


nesse assunto, de receber de Sócrates o signo de um desejo? Já que esse
desejo é de certo modo reconhecido (Sócrates nunca fez mistério disso nos
momentos passados), reconhecido e, por esse fato, conhecido e, portanto,
seria possível pensar, já confessado, que querem dizer essas manobras de
sedução desenvolvidas com um detalhe, uma arte e ao mesmo tempo uma
impudência, um desafio aos ouvintes?

De novo encontramos aqui a proximidade, se não o puro e simples


recobrimento do amor e do desejo. Alcibíades é dito tão amado quanto de­
sejado por Sócrates. Sua "exigência" só se torna mais misteriosa. E Lacan vai
tentar encontrar, na resposta de Sócrates, o esclarecimento desse mistério que
ele então apresenta, exagerando um pouquinho, como "o próprio mistério
do amor 8 " . O próprio Sócrates "recusa entrar no jogo do amor" por "saber
o que está em jogo nas coisas do amor". Vem então a afirmação franca: "E
diremos que é porque Sócrates sabe que ele não ama". Estamos aí às voltas,
ainda que sob uma forma intempestivamente assertiva, com a primeiríssima
problematização, em Lacan, dojogo do amor e do saber. Com efeito, até então ,
nada nos seminários viera ligar o amor e o saber. De mais a mais, o saber
ocorre no amor ao mesmo tempo que um certo objeto, o agalma, e até em

8
J. Lacan, A tmnsferêncin. . . , sessão de 8 de feverei ro de 1 96 1 : "( ... ] o que nos é mostrado
nesse nível é algo relativo ao mistério de amor".
LC I B ÍA D E S 1 83
O (A S O A

os ição de objeto, de agalma. O acontecimento é duplamente inaugural. O


: ue sabe, então, Sócrates? Se nos limitarmos a esse momento do comentário
de Lacan, ignoramos; mas vemos que consequência resulta desse saber que
do (não suposto). Do fato de que Sócrates sabe o que acontece
lh e é im puta
n o amor decorre que Sócrates de modo algum pode se posicionar como
erômeno. Sócrates "só pode recusar, porque, para ele, não há nada nele que
seja am ável, porque sua essência é o oúõév, o vazio, o oco [...] , essa kenôsis
q ue representa a posição central de Sócrates". Não convém psicologizar essa
a utoaprec iação de Sócrates (como se pôde fazer para Freud), por exemplo
9
l o uvan do sua temperança ou ainda identificando-o (assim Jones para Freud)
co mo um "herói intrépido' º ". Então, o que malogra essa identificação
tanto m ais perniciosa porquanto não é absolutamente falsa? Ela malogra
a própria lição de Sócrates, sua lição de amor, sua lição atuada relativa ao
amor. Pois não está só em jogo aqui a da Jovem Homossexual a contar sua
lição de amor. Trata-se, de fato, num e noutro caso, do amor. Não parece
q ue, em 196 0- 1961, Lacan tenha formulado a coisa que vou procurar fazer,
ainda que ele então forneça todos os elementos para isso. Vou me limitar
a aproximar dois momentos do comentário lacaniano do Ban q uete: o que
é dito nesse 8 de fevereiro de 1961 e o que já foi dito em 18 de janeiro de
1 961 quando está em questão a razão pela qual Sócrates passa a palavra a
Oiotima. Ele faz isso por saber que o amor não se deixa prender nas redes de
um saber transparente a si mesmo, em outras palavras, do saber socrático 1 1 •
Corolário: esse saber do amor deve ser estreito, mas sobretudo furado. Do
amor, Sócrates sabe que seu saber está furado. Topologicamente, esse saber
é uma borda. Em outras palavras, esse vazio do qual Sócrates está prevenido
q ue ele também o habita é, para além de sua pessoa, um vazio do saber. O
amor está às voltas com um furo no saber. Não há teoria do amor.
A partir daí, o duplo engano entre Sócrates e Alcibíades fica incrivel­
mente claro. Enquanto Alcibíades quer a qualquer preço obter esse saber
q ue ele imagina que Sócrates detém, este, com efeito, de fato detém algo
dessa ordem, que ele reivindica como sendo um saber sobre o amor e até

9 lbid.: "Mas essa temperança tampouco é no contexto algo que seja indicado como necessário".
1 0 Platão, O banquete, 220c (Alcibíades cita aqui um verso da Odisseia, IV, 242).
1 1 J. Lacan, A transferência... , sessão de 18 de janeiro de 196 1.
como sendo seu único saber, mas esse saber minimalista está em posição de
borda de um irredutível furo no saber. Assim, a asserção de Lacan deixa-se
suplementar: "E diremos que é porque Sócrates sabe que não sabe que el e
não amà' . E, mais adiante: "E diremos que é porque Sócrates sabe qu e não
sabe o que é o amor que ele não amà' . Afirmação decerto bem curiosa, que
só poderá ser esclarecida pela análise da maneira como Lacan toma distância
de Sócrates. Seria preciso saber o que é o amor para amar? Tematicamen te
vizinha, uma discussão agitou mui t as mentes: muito se perguntou se era
preciso conhecer o amado para amá-lo (senão ... que imprudência!), ou se, ao
contrário, o amor era primeiro e conduzia por si mesmo ao conhecimento
do amado (que esperança!). É preciso amar para conhecer ou conhecer para
amar? Aqui, a posição de Sócrates não se refere ao conhecimento do amado ,
mas ao conhecimento do próprio amor. Porém "a mensagem socrátic a, se
comporta algo que se refere ao amor, não é certamente em si mesma fun­
damentalmente algo que parta, se podemos dizer, de um centro de amor.
[ ...] Nem efusão, nem dom, nem mística, nem êxtase, nem simplesmente
mandamento daí decorrem 1 2 " . Nem dom: não se pode desprezar esse fur tivo
indício do abandono provisório do amor como dom, no entanto já instala­
do nessa data. Essa definição teve de ser deixada de lado para que pudesse
ser enunciado o comentário do Banquete. Há aí um notável chassé-croisé:
enquanto o saber e o objeto (o objeto no sentido novo trazido pelo agalma,
não ainda o objeto a) são introduzidos na questão do amor, o amor como dom
é evacuado. É a marca de uma irredutível antinomia? Mas talvez o fato de o
amor como dom ter sido posto de lado tenha ajudado Lacan a identifi car
por que razão ele não pode fazer totalmente sua a posição de Sócrates. Isso ,
desde sua leitura da cena em segredo, bem antiga no momento do banquete,
já que datando de antes da batalha de Potideu. Como Sócrates responde às
insinuações de Alcibíades? Lacan: "Mas! diz Sócrates - e aí convém tomar as
coisas como elas são ditas - não se iluda, examine as coisas com mais cuidado
de modo a não se engana,; isso não sendo eu - propriamente falando - nada 1 3 " .
Sócrates tem razão em recusar a Alcibíades o signo que sua "cobiça" (Lacan)

12
Ibid., Sessão de 8 de fevereiro de 1 96 1 .
13 J. Lacan, A transferência . . . Para uma discussão desse ponto, ver Danielle Arnoux, "Sur la
transcription", Littoml, n º 1 3, Éres, junho de 1 984, p. 8 1 -82.
LC I B ÍA D E S
O CASO A

ão se pode daí deduzir que Alcibíades está se enganando, ainda


esp era, mas n
preveni-lo disso. Muito pelo contrário,
rn enos que conviria

Alcibíades não diz: "É por causa de meu bem ou de meu mal que quero
isco que não é comparável a nada e que é em ti agalma", mas: "Quero isso
porque quero, que seja meu bem ou que seja meu mal" - é j ustamente nisso
que Alcibíades revela a função central do objeto na articulação da relação
do amor, e é j ustamente nisso também que Sócrates recusa responder-lhe
nesse próprio plano .

É sua própria missão que, de acordo com o ponto de vista de Lacan,


desorienta Sócrates, aquela que lhe foi destinada pelo oráculo de Delfos,
aquela que lhe faz pedir, se não mandar, cada um cuidar da alma; ela o con­
duz, ao se fazer pedagogo, "velho resmungão", exorcista, ferrão ou mutuca,
arraia, sileno, ou ainda semelhante ao Aurélio Marsias (mas tendo apenas,
diferentemente deste último, sua fala para encantar e despertar), a interpelar
outrem no modo de um "não se iluda" . Tendo notado que Sócrates deseja
p ô r Alcibíades no caminho de seu bem, Lacan toma distância:

Mas é mesmo seguro que não devamos, sobre esse "seu bem", deixar alguma
ambiguidade? Pois, afinal, justamente o que é questionado, desde que esse
diálogo de Platão repercutiu, é a identidade desse objeto do desejo com
"seu bem" . Será que não devemos traduzir "seu bem" pelo bem tal como
Sócrates o concebe, lhe traça a via para aqueles que o seguem, ele que traz
ao mundo um discurso novo?

Essa afirmação reitera (a posição já foi tomada no seminário A ética)


a recusa lacaniana de uma psicanálise de ordem pastoral. Logo, há todas
as chances de que a intervenção de Sócrates que faz sequência àquela de
Alcibíades, isto é, seu envio de Alcibíades a Agatão, depois seu elogio de
Agatão resulte da mesma visada que seu "não se iluda". Lacan empresta a
S ócrates dirigindo-se a Alcibíades a seguinte afirmação: "Você pode amar
aquele que vou louvar porque, louvando-o, saberei fazer passar, eu Sócrates,
a imagem de você amando enquanto imagem de você amando; é por aí que
186

você vai entrar na via das identificações superiores traçada pelo caminh o da
beleza". Sócrates insiste e se engana ao querer enganar um Alcibíades q ue
não se deixa enrolar. Entendemos que, segundo Lacan, o verdadeiro heró i
do Ban quete não é Sócrates, mas Alcibíades, "o homem do desejo",

por ele ser Alcibíades, aquele cujos desejos não conhecem limites, esse
campo preferencial no qual ele penetra que é, propriamente falando, para
ele, o campo do amor, é algo onde ele demonstra o que chamarei um caso
muito notável de ausência do medo de castração - em outras palavras, de
falta total dessa famosa A blehnung der Weiblichkeit1 4•

Que Alcibíades (e não Sócrates) seja, segundo Lacan, o homem do


desejo, um indício disso já estava dado quando, comentando esse momento
do Banquete em que Alcibíades assegura que Sócrates lhe cairá em cima se
ele tentar fazer o elogio de um outro que ele, Lacan entende a resposta de
Sócrates como um '"cale-se' quase pânico". E talvez seja isso que, no Ban­
quete, é justificado de modo mais claro quando ele declara que "o demôn i o
de Sócrates é Alcibíades". Em que consiste o desvario de Sócrates, aqui
percebido em suas respostas capengas a Alcibíades?

[ ... ] o que Alcibíades busca em Agacão, não duvidem, é esse mesmo ponto
supremo em que o sujeito se abole na fantasia, seus agalmata. Aqui, Sócrates,
ao trocar seu engodo pelo que chamarei o engodo dos deuses, faz isso com
toda autenticidade na medida em que, justamente, sabe o que é o amor e
que é justamente por saber que ele está destinado a ali se enganar [sublinho] ,
isto é, a desconhecer a função essencial do objeto de visada constituído
pelo agalma.

Conclusão (que antecipa as afirmações posteriores sobre a universali­


dade do mal-entendido): "O engodo é recíproco" . Quanto a Sócrates, onde
está? Em seu próprio saber. É por saber seu vazio que "ele está destinado
a ali se enganar, a desconhecer a função do objeto visado constituído pel o

14 J. Lacan, A tmnsferência. . . Nota Estenotipia: "A tradução poderia ser recusa da feminidade".
A LC I B ÍA D E S
O CAS O

rn mais reduzido que seja, seu saber (do amor) cega Sócrates.
aga/ a " . Por
o, seu saber se referia ao fato de o amor não entrar no campo do
Até entã
r M esse saber, resta excluídofazê-lo saber, e mais excluído ainda tirar
sabe . as,
ncias interpretativas para uso de outrem. Prevenido de seu
dis so con sequê
nem por isso podia rejeitar como sendo sem alcance e sem
v azi o, Sócrates
de Alcibíades que o fazia, sileno, detentor dos
ensi nam ento a imputação
agalrnata . O saber de Sócrates o incita a fugir do problema. Sabendo-se não
a
dep ositário dos galmata (o que não é absolutamente verdadeiro, uma vez
vindica deter um saber sobre o amor, isso Alcibíades não inventa),
q ue ele rei
el e daí deduz que pode fazê-lo saber. Seu erro também é temporal: ele não
deixa tempo a Alcibíades para se dar conta por si mesmo de seu próprio vazio.
Teria ele amado Alcibíades se tivesse ousado dar-lhe esse tempo? Lacan tocou
de leve nessa questão quando, evocando o sintoma (uma dor lombar) que,
segu ndo o testemunho de Xenofon, um dia tomou conta de Sócrates por ter
tocado o ombro nu do jovem Critóbulo, ele nota que em Sócrates o amor
a pres enta um caráter um pouco instantâneo 1 5 • Com seu "não se iluda", com
seu envio de Alcibíades a Agatão, Sócrates impede Alcibíades de algum dia
o bter o amor que não se obtém. Em 1 ° de março, Lacan volta novamente
a essas duas cenas, precisando mais adiante em que a postura de Sócrates
l he permite dar um passo ao lado.

Em relação a Sócrates, [Alcibíades] manifestou uma tentativa de sedução,


em que o que ele quis fazer de Sócrates, e da maneira mais confessada, é
alguém instrumental, subordinado a quê? Ao objeto de seu desejo, a ele
Alcibíades, que é agalma, o bom objeto. [ ...] Sócrates não é mais ali senão
o invólucro daquilo que é o objeto do desejo. E foi para bem marcar que é
apenas esse invólucro, foi por isso que ele quis manifestar que Sócrates é,
comparado a ele, o servo do desejo [ ... ] , e que o desejo de Sócrates, ainda
que ele o conhecesse, ele quis vê-lo manifestar-se em seu signo para saber
que o outro objeto, agalma, estava à sua mercê.

ll J. Lacan, A tmnsferê11cit1. . . , sessão de 2 1


de dezembro de 1 960. Xénophon, Le bt111q11et, trad.
Pierre Chambry, Paris, Garnier-Flammarion, 1 967, chap. 1v, p. 27-28.
188

Esta última observação deve ser lida baseada numa definição do desejo
como desejo do Outro. Logo, que aí não nos enganemos, não se trata n essa
passagem do desejo de Sócrates, mas do desejo de Alcibíades colocado po r
Lacan como desejo do Outro, um Outro encarnado em Sócrates para u rn
Alcibíades que tenta seduzir Sócrates. Aqui, só o desejo está em questão ,
O qual, é ressaltado, visa obter "a queda do Outro, Outro [em fran cês
Autre] maiúsculo, em outro, o [em francês, a] minúsculo" . Assim, Alcib í-
ades fracassou em fazer decair Sócrates. O fato de Sócrates ter-se recusado
a esse decaimento serve de prova de que ele não jogou o jogo do desejo de
Alcibíades. Também é a razão disso. De novo, mas em outros termos, Lacan
recusa o envio de Alcibíades a Agatão.

[...] é de fato a realidade - no entender de Sócrates - que faria o papel do


que chamaríamos uma transferência no processo da busca da verdade.
Em outros termos, para que me entendam bem, era como se alguém viesse
dizer durante o processo de Édipo: "Édipo só prossegue de maneira tão
ofegante essa busca da verdade que deve levá-lo à sua perda porque só tem
um fim, é partir, ir embora, escapar com Antígona... ".

Em suma, Lacan ri dessa resposta de Sócrates, que agora parece do


mesmo gênero na cena narrada e na cena atuada: o recurso de Sócrates à
"realidade" e o "não se iludà' se equivalem. Sócrates recusa ser considerado
enamorado. Há aí um ponto de bifurcação: se Lacan não tivesse desenha ­
do outra possibilidade de resposta a Alcibíades a não ser de Sócrates, ele
simplesmente teria inscrito o amor na grande descendência do amor pl a­
tônico. Ele não faz isso - ainda que o amor sexual obceque, nesse ano, seu
seminário. Por isso, ele fica em dificuldade com o amor, dificuldade q u e se
assinala por uma pouco clara distinção entre o amor e o desejo. Eis outro
indício, retirado no momento em que se encerra a leitura do Banquete. Na
sessão de 1 ° de março, lê-se:

Pois se o desejo em sua raiz, em sua essência, é o desejo do Outro, é aqui,


propriamente falando, que está a força do nascimento do amor, se o amor
for o que acontece nesse objeto para o qual estendemos a mão por nosso
D S 1 89
O CA S O A LC I B Í A E

p róprio desejo e que, no momento em que ele faz declarar-se seu incêndio,
nos deixa revelar por um instante essa resposta, essa outra mão, aquela que
se estende para nós como seu desejo.

Amor e desejo estão aqui antes mal distinguidos, exceto que o desejo
ap a rece, como na própria frase (ver a sucessão das ocorrências de "amor" e
"des ejo"), a um só tempo no início e na chegada. O espaço do desejo parece
englobar o do amor. Ora, signo da dificuldade, oito dias mais tarde, essa
configuração será invertida. Lacan, então, lembra

0 registro daquilo que apontei como sendo o lugar de a, o objeto parcial,


0 agalma na relação de desejo na medida em que ela mesma é determinada

no interior de uma relação mais vasta, a da exigência de amor 1 6 •

O amor desta vez é o englobante do desejo; oito dias antes, parecia


e nglobado na relação de desejo.

RUMO A UMA ANTINOMIA

Em 23 de novembro de 1960, Lacan dizia esperar de sua leitura do Banquete


uma luz sobre a relação entre o amor e a transferência. Terá sido o caso? Sim
e não. Não, primeiramente. Se, ao lermos hoje esse seminário, esperamos
que ele responda à questão de saber como um sujeito em análise vai ficar
sabendo o que lhe falta enquanto amante, essa espera será uma decepção.
Decepção, igualmente, de um discurso claro e distinto sobre o que deve
ser o psicanalista para responder à transferência. E decepção ainda da es­
perança de encontrar na derradeira resposta de Sócrates a Ncibíades um
possível modelo para aquela do psicanalista ao psicanalisando. A despeito
de promessas feitas e mesmo arriscando decepcioná-las, Lacan terá sabido
n ão forçar as coisas - o que acolheremos como um signo de sua seriedade.
Assim, o "desaparecer" final, dito e atuado, parece resultar desse mesmo

16 J. Lacan, A tl'tlnsferência... , sessão de 8 de março de 1 96 1 .


1 90

espírito de fineza, que pode igualmente ser dito um espírito de finitude . O


fato é que, no que se refere ao amor de transferência, esse seminário de fa to
colocou algumas balizas. Estas terão ficado discerníveis graças à introd u ção
do agalma e à invenção de <I>. Aqui estão eles, sob as três denominações do
psicanalisando, do psicanalista e da psicanálise.

1) O PSICANALISANDO, como Alcibíades com Sócrates, situa os agal­


mata em jogo em sua análise no psicanalista; de modo mais metafórico, e rn
seu ventre. Trata-se de um saber <I> agalmatizado (como se diz de um cor p o
que ele está irradiado).
2) O PSICANALISTA, como Sócrates, é convidado a não dar ao analisan­
do nenhum signo dessa presença nele dos agalmata. Com a invenção de
essa recusa ativa, essa abstenção vai encontrar sua fórmula, que serve corno
homenagem a Sócrates como a alguém que soube localmente encarna r 0
q ualq uer um, mas também alguém que indica como, precisamente, po de
se manifestar esse q ualq uer um. É preciso, dirá então Lacan,

que, de alguma maneira, possamos por um tempo representar não o obj e to


como acreditamos [ . . . ] , não o objeto visado pelo desejo mas o significan te. É
a um só tempo bem menos mas também bem mais pensar que é p reciso que
ocupemos esse lugar vazio onde é chamado esse significante q ue só p ode ser para
anular todos os outros [sublinho] , esse <l> (fi maiúsculo) cuja posição te nto
mostrar para vocês, a condição central em nossa experiência 1 7 •

Entretanto, Sócrates também dava a Lacan o que pode ser chamado


uma lição negativa: ao enviar Alcibíades a Agatão, Sócrates traçava u ma
via que ao psicanalista se pede que não tome. Por que razão? Porque essa
via, que o dispensava, ele, Sócrates, de ter de decair de A em a minúsc ulo ,
não deixava mais outra escolha a Alcibíades a não ser voltar-se para Agatão
para simplesmente reiterar seu pedido junto a ele. A ponta top ológica desse
pedido não é alcançada. Sem saber, Sócrates poupa a Alcibíades o acesso

17 J. Lacan, A tmmferê11ci11. . . , sessão de 3 de maio de 1 96 1 .


O CAS O A LC I B ÍAD E S 191

ao ponto onde ele ,


teria estado às voltas com a "emergência da realidade do
1 ,
desejo como ta .
3) A ANÁLISE. Uma vez afastado esse "curto-circuito", como o chama
1 8 , a análise estaria condenada a só permitir ao analisando o acesso a
Lacan
se u desejo sob esse modo sadiano em que o desejo só se realiza como desejo
do otro ao abrir o ventre desse otro? Outra possibilidade se apresentaria,
outra saída (a afirmação abaixo dá sequência àquela que acabamos de ler):

[ ... ] é preciso saber preencher seu lugar na medida em que o sujeito deve
poder aí identificar o significante faltante. E, portanto, por uma antinomia,
por um paradoxo que é o de nossa função, é no próprio lugar onde supos­
tamente sabemos que somos chamados a ser e a não ser nada mais, nada
além da presença real e justamente na medida em que ela é inconsciente.
No último termo, digo no último termo, é claro, no horizonte do que é
nossa função na análise, estamos presentes enquanto isso, isso justamente
que se cala e que se cala naquilo que falta a ser.

Em outras palavras, ali onde o analisando recorre a um saber suposto,


o analista responde por sua falta a ser. Seria que ele dá assim ao analisando o
que ele não tem? Que ele ama o analisando no sentido em que o amor seria
dar o que não se tem? Justamente, já notamos, Lacan não engata aqui o seu
vagão e é possível ver aí uma nova fineza, se não for uma escamoteação. Faz
ele sua a observação segundo a qual a mensagem socrática não parte de um
centro de amor? Ele se abstém de dizer, mas também de afastar isso. Pode-se
imaginar ressaltar como um dom (não uma troca) o desnudamento para o
analisando da falta a ser no analista? Não é possível responder com o nariz
colado no comentário lacaniano do Banquete. Por enquanto, Lacan avisa
seus ouvintes: não acreditem, diz-lhes ao concluir sua prestação de 1 2 de
abril de 1 96 1 , que Afrodite seja uma deusa que sorri.
Delinear mais adiante essa outra via, Lacan, nesse ano, não conseguiu.
Algum dia conseguiu? Ou então deve-se pensar que esse defeito - se é um
- dali por diante só vai se aprofundar e até dar lugar à " Proposição de ou­
tu bro de 1 967" que, pelo simples fato de ser uma proposição, assinala um

18 lbid. , sessão de 12 de abril de 196 1.


1 92

ponto que o seminário não consegue alcançar? Duas citações, por enquan to
colocam um sério problema, ambas de 1 ° de março de 196 1:

E toda a questão é perceber a relação que liga esse Outro ao qual é dirigida
a demanda de amor com o aparecimento do termo desejo na medida etn
que não é mais nem um pouco, esse Outro, nosso igual, esse Outro ao q ual
aspiramos, esse Outro do amor, mas que ele é algo que, em relação a is so 1
dele representa propriamente falando um decaimento - quero dizer algo
que é da natureza do objeto 1 9 •

Eis a segunda:

É que diante de vocês é desvelado em seu traço, em seu segredo, o mais


chocante, o último recurso do desejo, esse algo que sempre obriga m ais
ou menos no amor a dissimulá-lo, é que sua visada é a queda do Outro,
Outro maiúsculo, em outro, a minúsculo, e que, mais do que isso nessa
oportunidade, fica claro que Alcibíades fracassou em seu empreendimen to,
na medida em que esse empreendimento era especialmente fazer, desse
escalão, Sócrates decair.

Quanto às relações problemáticas entre o desejo e o amor, essas du as


citações indicam duas operações que talvez sejam apenas uma. Da primeira
reteremos o decaimento, da segunda uma certa obrigação de dissimulação.
Um esquema pode assim ser desenhado, posicionando o amor sobre o desejo
pois 1) o de cima decai, imagem banal de queda, e 2) o de cima dissimula
o que está debaixo, imagem banal da cobertura:

Amor
Obrigação

L.t
Decaimento de dissimulação

1 9 A transcrição Seuil também escreve "Outro": "O Outro ao qual é endereçada a demanda de
amor [ ... ] . O Outro então não é mais nem um pouco nosso igual" (op. cit., p. 207).
O CAS O A LC I B i A D E S
193

O po nto de queda assim designado o é sem muita ambiguidade


_ exceto, nesse ano, o estatuto ainda flutuante do objeto a. O desejo visa
a o btenção sadiana do objeto, do pequeno outro, do a minúsculo, desse
ades imagina que Sócrates detém e que portanto recebeu
obj eto que Alcibí
um novo nome, que portanto foi modificado em seu conceito (se concei­
to p o de haver, o que, breve, não será claramente mais o caso): o agalma.
Um novo nome que não toma o lugar do antigo (pequeno a) mas coabita
co m ele. Com efeito, nada indica que, nesse seminário, Lacan pense esse
o bj eto de outro modo que "classicamente", como um Gegenstand: termo
introd uzido pela filosofia alemã {Kant, Husserl) para, ao lado de Objekt,
trad u zir o latim objectum (de objicio, "jogar adiante", "expor"), ele mesmo
op osto a subjectum. Não se trata apenas de um problema de tradução, em
Kant e Husserl, mas de construções críticas. Do artigo que Dominique
°
Pradelle dedica a Gegenstand no notável Vocabuldrio europeu das filosofias2
guardaremos duas observações, a primeira, de vocabulário, a segunda de
ordem teórica: 1) Gegen acrescenta à ideia de manifestação, de exposição,
as de "direção rumo a", mas também a ideia de "resistência" ; ao passo que
Stand, do latim stans, é "o que se mantém"; 2) essa problematização do
o bjeto diz respeito não só a seu estatuto, mas também ao da objetividade
e ao da causalidade. Da mesma forma, em Lacan, a invenção do objeto a
em janeiro de 1 963 como um objeto que não é mais um objeto de desejo
para o qual nos dirigimos, que não é mais um objeto adiante, exigirá um
remanejamento substancial não só da objetividade mas da causalidade. Não
se está nesse ponto em 1960- 1 96 1, ainda que, como dizem as crianças, já
estejamos um pouco "quentes" com o achado do agalma. Ainda nesse ano,
o desejo é pensado como indo na frente de um objeto (cf o mito da mão
q ue se estende para a lenha), de um objeto que estaria na frente dele, como
o braço que se estende para frente na direção da maçã, como a boca da
criança na direção do seio.
Certo, a psicanálise já tornou sensivelmente mais complexo o estatuto
do objeto do desejo, esse objeto não sendo pura materialidade física mas

io Sob
a direção de Bárbara Cassin, Vocabulaire européen des philosophies, Paris, Le Seuil/Le
Robert, 2004 , p. 48 1 -488.
1 94

elevado ao nível de objeto do desejo por um conjunto de determ in açõ es


simbólicas e imaginárias (Lacan, na oportunidade, tendo-se baseado em
Lévi-Strauss para afirmar que o homem não come moléculas, mas pratos
preparados conforme rituais que, eles mesmos, têm uma significação).Além
disso, esse objeto está preso no jogo, este mesmo complexo e movente , das
pulsões. No entanto, o agalma introduz um novo traço que embaralh a u m
pouco a Gegenstandlichkeit. Como? Ao introduzir a faria, e até o porte no
interior (que portanto favorece o objeto anal): o objeto do desejo de Alcibí­
ades está no interior de Sócrates. Enquanto Sócrates desfila sua feiura pel as
ruas de Atenas e muitos cidadãos só a ela veem, Alcibíades, este, declara ter
percebido os agalmata de que Sócrates era depositário, um Sócrates, que
ele, Alcibíades, soube surpreender "entreaberto". Pensamos no apaixonante
Abrir Vênus de Georges Didi-Huberman, ainda que não seja dito, em o
banq uete, que Alcibíades tenha aberto Sócrates (o gesto é sugerido por Lacan
ao alojar esses agalmata no ventre de Sócrates). Seja como for, Alcibíades vi u
esses agalmata em Sócrates. Eles no entanto não se deixam muito localiza r
no campo do visível. A coragem de Sócrates, sua ironia, seu pensamento,
seu saber (tantos agalmata) são suscetíveis de ser vistos?
Como Lacan interpreta o movimento de Alcibíades em direção a
esses agalmata? Não há muito problema em entender o que seria o termo,
nem sequer a operação, o decaimento, a queda do grande Outro em pe­
queno outro. Em compensação, sua partida, a saber, esse próprio gran de
Outro, cria dificuldade. A esse Outro A maiúsculo, que Lacan chama aq u i
curiosamente "o Outro do amor", seria endereçada a demanda de amor. O
que pode ser entendido a partir de afirmações anteriores: se a demanda de
amor é demanda de uma presença, demanda de que o otro "dê o que está
para além de toda satisfação possível, seu próprio ser", não fica exclu ído
que esse otro possa se escrever "Outro". Ainda que essa escrita permaneça
estranha. A demanda de amor esperaria a presença de um ser que seria pura
e simplesmente o grande Outro? O objeto dessa demanda seria a alteridade
como tal, uma alteridade que em nada seria da ordem de um semelhante?
Não há aí, pelo menos no horizonte da afirmação, algo excessivo e que ,
mesmo assim, Lacan não diz? Outra dificuldade: esse "Outro" ao qual se
dirige essa demanda seria o amado? A primeira citação sugere isso ao falar
O C A S O A LC I B Í A D
ES 195

de u m " Outro ao qual aspiramos" e a segunda parece confirmar. Esse Outro


seria, portanto, "nosso igual"; ora, não vemos que possamos jamais inscre­
ver O grande Outro nessa igualdade, isso não teria sentido algum. Assim,
estamos às voltas com algo como uma antinomia: ou seja, esse Outro de
infcio, grande Outro, em nada é um igual, e dificilmente pode se tratar de
amor (exceto o caso do amor extático que não está aqui em questão); ou
seja, trata-se do pequeno outro, e a ideia de decaimento não fica mais de
p é. Talvez seja possível conjecturar que Lacan, em suas afirmações, puxou
0 amor quase que por inteiro para o lado do simbólico; resta que esse gesto
deixa para trás um certo mal-estar: a distinção Outro/outro, pela qual ele
can to batalhou, não está aqui conceitualmente mantida.
CAP ÍTU LO I X

E RO S E P S I QJ) E

A invenção de <D em 19 de abril de 196 1 permite melhor delimitar a


in cidência do agalma no amor de transferência? A questão depende
des ta outra: como se acham posicionados, para além dessa invenção, um
em rela ção ao outro, agalma e <D?
Foi i nstalado pouco antes (em 8 de março) algo que Lacan parece
bem considerar um único e mesmo objeto designado sob nada menos que
cinco nomes diferentes: agalma, pequeno outro, objeto do desejo, objeto
da fantasia, aos quais convém acrescentar (via Karl Abraham) "objeto par­
cial". Numa citação de 8 de março, já encontrada (p. 189), vem como que
espontaneamente a equivalência de pequeno a (o pequeno outro), do agalma
e do objeto parcial. Logo depois, o objeto da fantasia vem suplementar essa
lista 1 • Logo, tem-se:

OBJETO PEQUENO A (PEQUENO OUTRO) = OBJETO DO DESEJO = OBJETO

DA FANTASIA = AGALMA = OBJETO PARCIAL

Em 22 de março de 196 1, Lacan se lança numa apresentação à sua


maneira da fase fálica (baseado em sua paciente leitura do texto de Freud
so b re a fobia do pequeno Hans) a partir dessa situação escabrosa, mas nem
por isso menos real, que vê as mães (todas as mães!) reagirem aos tremores da
torneirinha do querido ou desprezado menino. Que essa reação seja: " Que
po uca vergonha", ou, mais positivo em aparência: "O meu menino é bem
dotado" [dotéJ (A estenotipia havia escrito "douê'!) , ou ainda: "Você vai ter
muitos filhos" importa menos a seus olhos que o efeito de tais afirmações

1 J. Lacan, A transferência. . . , sessão de 8 de março de 196 1.


O A M O R LACAN

sobre a criança. Esse efeito lhe parece duplo. Primeiramente, o objeto assirn
privilegiado torna-se agalma, "a pérola no seio do indivíduo". Recentemen te
um garoto de dez anos dava-me uma ilustração disso. Ele jogava corn a rnã;
o jogo do cúmulo, trazendo-lhe da escola alguns enigmas dessa espécie, is to
até que viesse à mente dessa mãe colocar-lhe, por sua vez, um enigma. " Você
sabe, disse-lhe ela, qual é o cúmulo do jardineiro? ". Diante da inesperada
incapacidade de seu moleque de responder, ela lhe dá a solução: "É fi c a r
pelado no jardim e conseguir enrubescer os tomates". Risos. Pouco im por ta ,
essa mãe, perfeitamente moderna, desvelava assim conforme qual viés oral
ela se achava por esse objeto interessada. Ao mesmo tempo, observa Lacan ,
esse objeto é depreciado como desejo; o sujeito é rebaixado, dispondo, a
partir daí, apenas de uma "promissória futura2" . Partindo dessa análise do
"drama fálico" , Lacan quer muito indicar duas coisas: primeiramente, 0
objeto falo, então notado cp, não deve ser situado como naturalmente na
sequência ordenada dos objetos parciais, seio depois fezes (após a inven ç ão
do objeto a, essa observação cai, como mostra a escrita do "grafo do amorrir
[amourir] " em A angústia3) : "O objeto em questão, disjunto do desejo, o
objeto falo, não é a simples especificação, o homólogo, o homônimo do
pequeno a imaginário em que decai a plenitude do Outro, do grande A".
Baseando-se nos trabalhos de Abraham, mas também nos de Melanie Klein,
que revelaram o encontro muito precoce, pela criança, do falo paterno no
ventre materno, Lacan transcreve-lhes os dados em sua álgebra (e portanto
os modifica). O cp vem simbolizar o que falta ao A "para ser o A noético, o A
de pleno exercício, o Outro na medida em que se pode dar fé à sua resposta
à demanda". Daí a escrita: a = A - cp. Outra precisão: se esse cp (ou [- cp]) não
pertence à lista dos objetos parciais, ele tampouco deve ser tomado como
o signo da falta de resposta do Outro (no caso em questão: para o menino
nessa fase fálica): "A função que vai assumir esse falo, na medida em que é
encontrado no campo do imaginário, não é de ser idêntico ao Outro com o

2
J . Lacan, A tmnsferência. . . , sessão de 22 de março de 1 96 1 .
·1 Um V invertido; nele são distinguidos três níveis em que vêm inscrever-se os cinco obj etos
pequeno a: no térreo, seio e voz (respectivamente à esquerda e à direita; vizinhos de andar,
eles se respondem) , no primeiro, excremento e olhar (que portanto se respondem) , no se­
gundo andar (a ponta do esquema): - <p.
Os E rs I QUE 199
EP.

designado pela falta de um significante, mas de ser a raiz dessa falta".


Por que essa precisão, essa profundidade de campo? Lacan (identi­
fica o ao garoto de cinco anos) quer então conservar uma certa espessura,
d
uem sabe um certo mistério, na relação do Outro (materno) com o <p. O
:!.!jeito entrevê bem que o Outro (o otro) mantém uma relação privilegia­
da com esse <p, que interessa à mãe, esse tremor do piruzinho, que ela não
está absolutamente à vontade com isso; mas esse <p não pode valer como
sign o da falta de significante no Outro já que, pode-se interpretar, esse sig­
c
no lo alizaria com muita certeza essa falta que, por isso, não faltaria mais
canto. Ora, uma vez inventado <l>, o caso vai se apresentar de outro modo.
Interveio, então, inesperado ponto de partida dessa invenção, o quadro
de Zucchi (que Lacan deve ter visto durante as férias de Páscoa na Galeria
Borghese) Psiche s01prende Amore. Lacan relaciona esse quadro a uma pas­
sagem de O asno de ouro de Apuleio, único texto antigo em que essa cena
está em questão. Como Freud com o Moisés de Michelangelo, o objetivo vai
ser entender a tensão específica de um momento preciso da narração, mas
também valorizar o que está em jogo no quadro de Zucchi, sua novidade
em relação ao relato de Apuleio.
200 O A M O R L A. e
A. N

Como Lacan procede? Colocando em jogo se não outro quadro, el o


P
menos um desenho, um desenho que, infelizmente, permanece inacessível a
seus leitores. Lacan, ficamos sabendo por sua boca, pediu a André M asso n
que "duplicasse" com um esboço as fotocópias que ele faz circular desse
Zucchi. Não é pouco. Esse gesto evoca seu tratamento, com o mesrno
Masson, de A origem do mundo de Courbet. A própria existência do croqu i
relacionado ao quadro de Zucchi convida a considerar de um modo que em
geral não se faz (encarando-o como uma cobertura) o quadro de M asso n
que recobria A origem do mundo. Acolher a pretensa "cobertura" de M asso n
mais como um analisador de A origem do mundo seria uma pista bem mais
frutuosa. Aliás, em nada seria um hápax, na história da pintura, esse uso
de um quadro em função de analisador de outro quadro (Picasso pintando
As meninas4, Dali "reproduzindo" A Gioconda). Um quadro responde a u m
quadro, não é isso infinitamente menos suspeito de metalinguagem que
um discurso, por mais erudito e sensível que seja, comentando um quadro?
Quatro elementos empilhados vão assim contribuir para a análise do Psiche
sorprende Amore:

Comentário de Lacan
Desenho de Masson
Quadro de Zucchi
Texto de Apuleio

Essa análise, pela primeira vez nos seminários, vai dar lugar não só à
invenção de <l>, mas a um desenvolvimento relativo à alma - essa alma que,
no lugar do amor Lacan, é promessa, embora talvez efêmera, de belo futuro.
A análise procede em três tempos. Depois de indicar, primeiro momento,
os elementos que, nesse quadro, alimentariam sua interpretação como
ameaça de castração (o falo de Eros mascarado pelas flores e, ponto focal
ou, melhor, de irradiação da luz, o "facão" de Psique), Lacan vai propor,
segundo momento, o que ele chama sua "descoberta 5 " como um passo ao

4 Claustre Rafart I Planas Las Meninas de Picasso, Barcelona, Meteora, 200 l .


,
5 J. Lacan, A tmnsfe rência. . . , sessão de 12 de abril de 196 1.
UE 201
E ll o s E P S I Q

! ado em relação a essa interpretação de fato um pouco esperada demais. O


uleio6 lhe permite observar que, se Psique se arma, é no caso
relato de Ap
que ela quer ver apesar da interdição que lhe é feita, se
em q ue seu amante,
7
revelaria o monstro que as irmãs lhe anunciaram • Logo, um deslocamento
e m relação à interpretação pretensamente "psicanalítica" . A nova e origi­
n al interp retação é introduzida a partir das asas de Psique, ausentes nesse
zucchi, mas que Lacan introduz ao se armar com outras referências. Com
efe ito, ele acredita dever trazer muitos dados (corroborados pelos estudos
antiguizantes) para escorar a intempestiva operação à qual se entrega, a
saber, tirar uma lição de um quadro ao nele acrescentar um elemento que
dele manifestamente não faz parte: ele assinala que um grupo, no Museu
dos Ofícios de Florença, "representa um Eros com uma Psique, desta vez
amb os alados", ou ainda que ele possui "objetos alexandrinos nos quais a
Psiq ue é representada sob diversos aspectos e frequentemente provida de
asas de borboleta", as asas da borboleta sendo, "nessa oportunidade [ . . . ] , o
signo da imortalidade da alma" . Ele acrescenta que "a temática da borboleta,
signi ficativa da imortalidade da alma, aparecera já na Antiguidade, e não só
em religiões diversamente periféricas, mas [ . . . ] foi utilizada e ainda o é na
religião cristã como simbólica da imortalidade da alma"; ele encontra a razão
disso nas "fases da metamorfose que ela sofre, isto é, nascida primdro em
estado de bicho-da-seda, de larva, ela se envolve nessa espécie de túmulo,
de sarcófago, envolvida de maneira até a lembrar a múmia, onde ela fica até
reaparecer à luz do dia sob uma forma glori fi cada8 " . Assim, admitiremos,
essas asas de borboleta são um signo convencional da imortalidade da alma.
E eis essa Psique metamorfoseada, tornada a própria alma após ter sido,
bicho-da-seda, a parceira erótica de Eros9 • Assim, o quadro viria pintar um
momento preciso, o momento em que o desejo que preencheu Psique vai

6 Apulée, Les métamorphoses, in Romans grecs et latim, textos apresen tados, traduzidos e ano­
tados por Pierre Grimal, Paris, Gallimard, coll. " Bibliotheque de la Pléiade" , 1 9 5 8 , p. 2 1 8-
25 5 .
7 " ( . . . ] u m a serpente enorme, um monstro dobrado e m m i l nós, c o m o pescoço cheio de u m
veneno sangrento, a goela hiante e profunda" (Apulée, Les métamorphoses, op. cit. , p. 232) .
8
Conjectura: não seria o croqui de Masson que teria introduzido para Lacan as asas de Psique?
9 J. Lacan, A tm11sferê11cia. . . , sessão de 1 2 de abril de 1 96 1 : "Para que não duvidem de que
Psique não é uma mulher, mas de fato a alma, que me baste dizer-lhes que [ . . . ] " .
202

fugir dela, abrindo assim a via para "o que se pode chamar as desgraças ou as
desventuras da alma". Desventuras, pois Psique tem, pelo menos, três sérios
problemas: 1) ter irmãs más muito invejosas de sua felicidade com Eros •
2) ser considerada por Vênus como a "cópia de [sua] beleza 1 0 " , em outr�
palavras, o ciúme de Vênus; 3) ter, por sua beleza, levado Eros a trair a mãe .
Conclusão: não se trata de um assunto de casal mas "de algo que [...] n ada
mais é que as relações entre a alma e o desejo". A interpretação em termos
de complexo de castração nem por isso é afastada por Lacan. Muito p elo
contrário, pois importa a superposição dessa interpretação primeira com seu
"achado". Seu verdadeiro achado parece assim, para acabar, ser o do "pon to
de concurso entre dois registros", o do complexo de castração e o da alma.
Eles têm "um centro comum". O quadro de Zucchi traz algo insubstituíve l ,
inacessível a uma análise estrutural do mito de Eros e Psique, nada mais que
esse ponto de cruzamento. Cruzamento, não harmonia. É até, no caso em
questão, bem o contrário, como assinala a história de Psique.

Pois, no fim das contas, se o mito de Psique tem um sentido, é o fato de


que Psique não começa a viver como Psique [ . . . ] , enquanto sujeito de um
pathos que, propriamente falando, é o da alma - nesse mesmo momento
em que justamente o desejo que a preencheu vai fugir dela, vai se esquivar,
é a partir desse momento que começam as aventuras de Psique 1 1 •

O que se pode dizer com uma fórmula: o p athos psukhikon: a psico ­


patologia é quando o desejo fugiu. Daí este esquema sumário, mas a ser
confrontado com aquele apresentado na página 192:

ALMA

r Metammío,e

DESEJO

10 Ap ulée, Les métamorphoses, op. cit. , p. 2 3 9 .


11 J. L acan, A tmnsferência . . . , sessão de
1 2 de abril d e 1 96 1 .
O S E P S I QU E 203
E ll

Se, usa ndo o anacronismo, convocarmos o "eu almo" a vir muitos


aqui vir no lugar da alma,
anos mais tarde, se, portanto, o amor pudesse
articulação regrada do amor e do desejo que, como vimos,
o btería m os uma
não cessa por enquanto de criar dificuldade.
Terceiro e decisivo momento da análise: voltando à interpretação
cimeira, Lacan agora pode afirmar que as flores do quadro não masca­
�ava m o falo de Eros mas sua ausência - como atesta a abundância delas.
O fato de não haver nada por trás dessas flores, é por aí precisamente que
La ca n presta homenagem ao pintor por ter "levado" o falo faltante "à
maior sig nificância". Prudência, no entanto, não está dito que o desejo se
resolve - essa satisfação obtida pela Psique antes de tentar desvelar Eros
_ uma vez realizada essa operação. É até bem o contrário. E aí, o fato de
0 falo ser tomado como significante do desejo, o que se repete com ardor,
su rge como uma fórmula portadora de uma das mais perniciosas confusões.
D eseja r é, ao contrdrio do que é sugerido por essa fórmula, renunciar a
esse falo, seu decaimento sendo precisamente o que dá acesso ao objeto do
desejo, ao pequeno a. O que está indicado de várias maneiras, notadamente
por uma retomada crítica da aphanisis de Jones vista não como medo do
desaparecimento do desejo, mas como um refúgio onde fica claro que
"algo é mais precioso que o próprio desejo: dele guardar o símbolo_ que é
o falo". E a logo emendar na ausência do falo no Zucchi. Em seguida é
q u estão de "desnivelamento" , de "queda de nível fundamental". Ter uma
alma é guardar o símbolo fálico. ''A organização psíquica na medida em
q u e é psíquica" , "não é adaptada" "à realidade do desejo sexual seja em
q u alquer nível" 1 2 •
Na semana seguinte, Lacan voltará ainda ao Zucchi. Nesse meio
tempo, deve ter-se informado mais, pois conta então que aquelas flores
não teriam sido pintadas por lacopo mas por Francesco Zucchi, seu irmão,
mais hábil tecnicamente. Francesco lhe serve então de ponte entre lacopo
e esse outro pintor maneirista que é Arcimboldo. Em Arcimboldo, a pessoa
h u mana parece ganhar substância de um "monte de objetos" , e trata-se,

11 J.Lacan, A tnmsfe rência . . . , sessão de 12 de abril de 1 96 1 . Recomponho de outro modo a


prop osição, guardando o conjunto de seus elementos.
204 O A M O R LAcAN

portanto, de interrogar um vazio. Em outras palavras, da relação d o fal o


com os objetos parciais.
A construção dessa relação, sua formalização, não deixa de cria r
dificuldade, por isso Lacan começa seu seminário de 19 de abril de 1 96 }
(em que ele inventa <I>, símbolo inominável de uma presença real, pon to e
momento de clivagem do ser e do ter) dizendo: "Retomo diante de vocês
meu discurso difícil, cada vez mais difícil em razão da visada desse discurso".
Logo, a análise de Psiche sorprende Amore terá desembocado na inven ção
desse <I>. O que importa, então, é seu posicionamento em relação a esse
objeto pequeno outro, à fantasia, ao desejo, parcial, ou ainda ressaltado
como agalma. Em 2 1 de junho de 196 1, Lacan relê o estudo de Abrah am
sobre o desenvolvimento da libido 1 3 , observando antes de mais nada q ue
Abraham nunca falou de objeto parcial (o que lhe põem na boca) mas de
um amor parcial do objeto (die Partialliebe des Objektes) , de um amor do
objeto menos a genitália. Assim, o falo se confirma como "função central
exemplar, função pivô". Mas sobretudo isso, que seria apenas confirmação,
permite "situar" o que é diferente, a saber, a, enquanto pequeno a design a
a função geral como tal do objeto do desejo. No cerne da função pequeno
a, permitindo agrupar, situar os diferentes modos de objetos possíveis, n a
medida em que eles ·intervêm na fantasia, há o falo 1 4 ".
A afirmação de 22 de março é reiterada: o falo não é inscritível na
lista dos objetos parciais. Mas uma precisão importante agora é trazida: ele
intervém, não mais exteriormente mas no cerne da função pequeno a, aquela
que agrupa os diferentes objetos do desejo. T ínhamos a fórmula: a = A - <p.
Agora temos algo como a + <I> = ? ''Algo como", pois, num sentido, esse +
<I> é uma aberração, já que ali onde se acredita ver o falo, ali precisamente
ele não está 1 5 • Ora, desse a + <I> Lacan vai dar uma imagem importante
sob vários aspectos, notadamente porque entendemos que pequeno a n ão

1 3 Karl Abraham, Psychomut/ytische St11die11 z111· Chnnkterbild1111g 1111d nndere Schriften, Fran­
cfort-sur-le-Main, S. Fischer Verlag, 1969. Tradução francesa, Développement de la libido,
em CEuvres completes li, chap. "Esquisse d'une histoire de la libido basée sur la psychanalyse
des troubles mentaux", trad. Ilse Barande, Paris, Payot, 1977.
14 J. Lacan, A trnnsferêncin. . . , sessão de 2 1 de junho de 196 1.
1 5 J . Lacan, A trn11sferê11cin... , sessão de 28 de junho de 196 1.
S E P S I QU E 205
f Jl O

á absolutamente diferenciado da imagem narcísica i(a) - o que


est en tão
vai j unto com a indiferenciação relativa entre o desejo e o amor. Ele então
evo ca (via A
braham)

essa possibilidade essencial do objeto fálico de emergir como um branco na


im agem do corpo, como uma ilha, como essas ilhas de cartas marinhas onde
0 interior não está representado mas o contorno - a saber, que acontece

0 mesmo em relação a todos os objetos de desejo, o caráter de isolamento

co m o Gestalt de partida é essencial pois nunca se desenhará o que está no


interior da ilha 1 •
6

Na semana seguinte (28 de junho), essa ilha vai figurar o objeto do


des ejo, o obje to que visaria o desejo na medida em que o que importa ao
desejo é o que lhe falta (representado, justamente, por essa ilha não explo­
rada, somente delimitada). Pouco importa, bem no fim desse seminário,
ela será dita "esse campo do ser que o amor só pode delimitar". O amor,
em out ras palavras, a transferência.
Logo, o psicanalista enquanto objeto de uma transferência não é
apenas pequeno a (o pequeno a desse ano). Sua presença real se escreve "
a + <I>". Ele tem de ser qualquer um, porque será assim, diremos, o '.'ele",
o da terceira pessoa. Assim se revela a lição, ela positiva, do Sócrates do
Banquete.
No que se refere ao arcabouço do amor, o que se sobressai dessas
o bservações? Uma subversão da função do para além do objeto. O esquema
do véu situava o nada para além do objeto. Com a leitura do Banquete, o
nada passou ao interior do objeto.

1 6 lbid. , sessão de 2 1 de j unho de 1 96 1 .


CAP ÍTU LO X

M E TA F Í S I C A D O A M O R

E m 1960- 196 1, não foi cumprida a promessa de uma formulação clara


da maneira como é amando que o sujeito poderia advir como dese­
j ante, poderia amando ficar sabendo o que lhe falta. Quinze dias, não mais,
dep ois de ela ter sido formulada ( 1 6 de novembro de 1960), já se assiste a
um certo recuo:

Nosso acesso a esse ser [o de "nosso paciente"] é ou não o do amor? Nosso


acesso tem alguma relação com o que saberemos do que é o ponto onde
nos colocamos quanto à natureza do amor 1 ?

O que traz A identificação ao amor Lacan? Primeiramente, uma


s u rpresa de porte já que, quando ali está em questão o amor, é sem relação
com a transferência. A importante questão que fora introduzida por A
transferência, proclamada como tal, a saber, a articulação entre o amor e a
tran sferência, parece como que esquecida... Entenderemos melhor o alcance
desse fato distinguindo três traços nas afirmações sobre o amor desse ano.
O primeiro se apresenta como uma falsa volta à casa abrahamo-freudiana
do desenvolvimento da libido. Tudo se passa, então, como se o amor, de­
pois de ter sido deixado próximo do simbólico, se reconciliasse com sua
ancoragem no imaginário. O segundo traço é bem inesperado, ele também
uma volta, mas sob forma de uma distância tomada pelo próprio Lacan com
seu estudo do amor cortês, depois do Banquete. Quanto ao terceiro traço,
a rtificialmente isolado do segundo, ele vale chamada à ordem, valorizando
novamente a distinção entre o amor e o desejo, assim como se a introdução

1
1 . Lacan . A tm11sferê11cin. . . , sessão de 30 de novembro de 1 960.
208

do fin'amor (o amor com sublimação da coisa) e a leitura do Ban quete ( a


"metáfora do amor") tivessem levado o seminário a se aproximar dem ais
do amor e do desejo. Sobre essa conivência, talvez até harmonia do am o r e
do desejo, certos alunos se teriam entusiasmado demais?
Seja, pois, A identificação. O inventor do estádio do espelho en tão
propõe a seu público sua imagem narcísica de seminarista. Uma imagem
narcísica não é necessariamente a de um corpo, pode ser uma im a gem
compósita, algo como um quadro (notadamente no "campo paranoico das
psicoses" onde, por falta de imagem do corpo próprio, é uma composição que
tenta valer como imagem narcísica). A se crer em Lacan, ele teria encontrado
sua imagem narcísica de seminarista em Um cão andaluz de Bu fiuel. S eu
público participa do desenho dessa imagem, se não edificante, pelo menos
edificada. Zangado porque os alunos, a despeito de suas incitações, n ão
foram estudar alemão, Jacques Lacan se reconhece nesse "homem que, só
com duas cordas, puxa um piano sobre o qual repousam, sem alusão, do is
asnos mortos2" . A alusão no entanto está ali, o que quer que ele diga, e a
confirmará, muitos anos mais tarde, a publicação de uma revista lacaniana
precisamente intitulada L'âne. Questão: isso lhe convinha tão pouco? S e o
público procurava dar uma de asno para ter som, não era precisamente o
que ele lhe fornecia?

DO AMOR LIBIDINAL

Primeiro traço do amor em A identificação: o amor libidinal, o amor pensado


numa econômica, o que estranhamente Lacan chama "uma metafísica do
amor". Do que se trata? De Freud. E, para além de Freud, de Platão. Em
2 1 de fevereiro de 1962, ao reconciliar-se de maneira crítica com o am or
sexual de Freud, Lacan de certo modo procura afastar o amor do desejo;
depois, isso obtido, levar o acento para este último. No mesmo passo, ele

2
Jacques Lacan, L'ide11tifict1tio11, transcrição Afi, sessão de 2 1 de fevereiro de 196 1. Doravan­
te: A identificnçiío.
AFÍS ICA DO
AMOR 209
MET

(re)toma certa distância do amor platônico. Primeiramente, mostra certa


inq uietude quanto ao lugar do desejo em seu trilhamento:

Repartamos do ano passado, de Sócrates, de Alcibíades e de todo o bando


[ . . . ] . Trata-se de conjugar essa inversão lógica relativa à função do um com
algo de que nos ocupamos há muito tempo, isto é, o desejo. Como, desde
0 tempo que não lhes falo disso, é possível que as coisas tenham ficado um

pouco confusas para vocês, vou fazer uma pequena lembrança [ . . . ] .

Um retorno forte do desejo, eis o programa. O que é, pois, essa "in­


versão lógica relativa à função do um" ? Lacan a apresentou na primeira parte
dessa sessão. Nenhuma necessidade, pelo menos aqui, de apreciar a validade
das afirmações então sustentadas sobre Kant, pois importa o teor delas no
q ue se refere à segunda parte da sessão, aquela em que o amor vai estar
explicitamente em questão. Essa inversão se apoia na abordagem lacaniana
do significante. Segundo essa abordagem, ''A não é A" (ver, em outra parte,
as observações sobre "um vintém é um vintém"), axioma considerado estar
na raiz do princípio de não-contradição, princípio este que, ao contrário,
seja no cálculo das proposições ou na lógica formal, exige que A seja A. Do
fato de ''A não ser A" resulta que "o seio real" {erotizado) não é mamã.rio,
não mais que o falo não é fálico. A sequência imediata dessa observação
deixa entender como a invenção de <I> um ano antes acabou dando lugar a
uma afirmação agora clara e distinta:

[ . . . ] é na medida em que o sujeito se constitui como fálico que o pênis, este,


que está no interior do parêntese do conjunto dos objetos que chegaram
para o sujeito no estádio fálico, que o pênis, pode-se dizer, não só não é mais
fálico que o seio não é mamário, mas que as coisas muito mais gravemente
nesse nível se colocam, vale dizer que o pênis, parte do corpo real, cai sob
o golpe dessa ameaça que se chama castração.

Funciona algo que se escreveria assim: " {seio, excremento, pênis) <I> " .
E m outras palavras, a castração nada mais é que a subjetivação como tal de
<I> . Entendemos que "castração oral" ou "anal" possa estar em questão, já
210

que, situado fora de parêntese, o fator comum <l> pode vir marcar cada urn
dos três objetos enfeixados no parêntese.
Logo, uma distância tomada em relação à lógica clássica. Distin ta
dela, Lacan vai fazer valer sua lógica elástica, a do significante. O Enheit
kantiano, fundamento de toda síntese a priori, "de fato parece bem impo r­
se, desde o tempo de sua progressão a partir da mitologia platônica, como
a via necessária, o Um, o grande Um que domina todo o pensamento, de
Platão a Kant" . Logo, Lacan vai opor seu Einzigkeit (a unaridade, o traço
unário, retomado da identificação histérica, segunda forma de identificação
em Freud) a esse "grande" Um unificante, que faz círculo; e, no mesmo
rastro, opor às virtudes da norma as da exceção. Logo, a "inversão lógicà'
parece antes uma inversão de lógica, que, além disso, não é muito uma
inversão, exceto no sentido em que o empreendimento poderia ser julgado
"espantoso" .
Ora, esse passo ao lado para com o Um unificante também é um passo
ao lado no que se refere a esse amor que supostamente não só faz um, mas
ainda e mais precisamente esse Um3 • Ao se comprometer em dizer com o o
traço unário intervém no advento do sujeito, Lacan toma distância do am o r
unificante. Mas também, coisa mais surpreendente, do amor tal como dele
tinha falado em A ética e em A transferência.
Sendo assim, é evidente que o freudiano que Lacan pretende ser não
pode evitar a seguinte questão: a maneira como Freud fala do amor em sua
"Introdução ao narcisismo" (ele estivera em questão no fim da T,-ansferên­
cia4) tem a ver com o Um? A resposta é dada na caracterização desse texto
de Freud: uma "metafísica do amor" (o próprio Freud referia a Platão as
descobertas psicanalíticas relativas ao amor). O problema pode ser encara­
do mais de perto reformulando a questão de maneira menos abstrata: "a
equivalência [sublinho] trazida por Freud entre a libido narcísica e a libido

·1 "Amanhã, vamos nos reunir e fazer só um, na esplanada onde o sonho de Martin Luther
King continua a ressoar" (Barack Obama, 19 de janeiro de 2009, citado no artigo "Uma
promessa americana", Libémtio11 de 20 de janeiro de 2009. Ver igualmente seu discurso de
posse em Libémtion de 21 de janeiro). David Halperin, a quem eu relatava esse prolonga·
mento de Aristófanes, assinala-me que não há nada aí senão esperado, como se vê ao ler, nas
notas verdes americanas, o slogan e pluribus 1111 11111 .
1 J. Lacan, A tra11sferê11cin. . . , sessão de 2 1 de junho de 196 1.
ICA DO AMOR 211
METAFÍS

de objeto " pode ser pensada fora do quadro do um unificante? Ela tanto
5

menos pode porquanto, sem esse um unificante, equivalência não pode


estar em questão. Além disso, a teoria do tubo em U prolonga esse amor
troca no qual Sócrates se apoia em sua resposta a Alcibíades, ao passo que
este, de maneira tão resoluta quanto inútil, tenta obter dele um signo de
seu desejo/amor. Por isso não é muito surpreendente ver Lacan, numa frase
cujo tom irônico não pode escapar, pegar numa mesma rede não só Freud,
mas Platão:

Tratava-se daquilo de que nos fala Freud, nesse nível da Introdução ao nar­
cisismo, a saber, que amamos o outro com a mesma substância úmida que é
aquela de que somos o reservatório, que se chama a libido, e que é na medida
em que ela está aqui, em l, que ela pode estar ali, em 2, isto é, cercando,
afogando, molhando o objeto em frente. A referência do amor ao úmido
não é minha, ela está em O banquete que comentamos no ano passado.

Sujeito 1 2

"Substância úmida" (Platão) e "reservatório da libido" (Freud) vão


bem juntos. Talvez bem demais. Por isso convém ler a afirmação seguinte
imediatamente não como um pensamento de Lacan sobre o amor mas
como uma observação relativa a um amor (platônico-freudiano) de que ele
toma distância:

1 /d.. A identilic11ciío.
212

Moralidade dessa metafísica do amor, já que é disso que se trata, o elemento


fundamental da Liebesbedingung, da condição do amor, moralidade: nurn ceno
sentido só amo, o que se chama amar, o que chamamos aqui amar, maneira de
saber também o que há como resto para além do amor, portanto o que se chama
amar de um certo modo, só amo meu corpo, mesmo quando transfiro esse amor
para o corpo do outro. É claro, sempre resta uma boa dose dele no meu.

Todas as discretas manifestações de uma reserva são importantes:


"num certo senti'do" , "o que se chama amar" , "de um certo modo" . Não se
trata do amor Lacan. A flecha curvada do esquema indica que a "substância
úmida" contida na parte inferior do reservatório libidinal passa em outrem,
o investimento da genitália restando, este, ao abrigo da operação. Deve-se
igualmente notar que esse reservatório, antes de ocorrer o investimento, era
concebido como cheio até a borda.
Lacan recorre aos dados clínicos apresentados por Karl Abraham
num capítulo do "Esboço de uma história do desenvolvimento da libido
baseada na psicanálise dos distúrbios mentais 6 " intitulado: "Inícios e
desenvolvimentos do amor objetal". Uma paciente, apresentada como
histérica, dá mostras, durante todo um tempo de seu tratamento, de um
apego a um pai reduzido a seu órgão genital. Abraham comenta: "Nessa
etapa, o objetivo sexual deve ter sido roubar ao objeto uma parte de seu
corpo, isto é, tocar em sua integridade sem atentar contra sua existência".
Em sua fantasia de apropriação do pênis do pai, "deve-se notar que ela se
identificava in toto com essa parte do corpo". Mas, prossegue Abraham,
"em via de melhora, sua produções fantasmáticas assumiram um caráter
diferente. Refiro-me, em particular, a um de seus sonhos em que o corpo
de seu pai era desprovido de pelos pubianos" {e Abraham produz um
caso similar em que uma paciente sonhava com ele sem os órgãos genitais
embora até ele se encontrasse, nesse sonho, em posição paterna). Logo,

6
Karl Abraham, Psychoanalytische St11dien zur Chamkterbildtmg 11nd andere Schariften, Fran­
cfort-sur-le-Main, S. Fischer Verlag, 1969. Tradução francesa, Développement de la libido,
em CE11vres completes II, chap. "Esquisse d'une histoire de la libido basée sur la psychanalyse
fíSICA DO AMOR 213
MET A

situação: agora é não mais a parte para o todo, mas o todo


inversão de
rnenos a parte. Abraham conclui que quando o sujeito sai da confusão de
"a parte para o todo", ele no entanto não pode investir o todo pelo fato
de que mantém um certo investimento sobre sua genitália. "Em razão de
sua zona genital, escreve ele, o neurótico não pode amar inteiramente o
objeto" , Ou ainda: "Sa�emos que cada um investe seu sexo com um amor
nardsico privilegiado. E por isso que tudo pode ser amado no objeto antes
7
de seu sexo". O comentário de Lacan se desenvolve numa longa frase que
comporta numerosos incisos. Por isso não é aqui mal-vindo (uma vez
não é costume) cortar em sua carne a fim de extrair, como se ensina às
crianças do primário, a "proposição principal". Além disso, vou pontuá-la
e introduzir {em itálicos) comentários que deverão esclarecê-la:

[ ...] propus-lhes definir em relação ao que amo em outrem[ ...] o que desejo
[o objeto de meu desejo]. É[ ...], sob forma do puro reflexo daquilo que resta
de mim investido [investido sobre mim] [ ...] o que falta ao corpo do outro,
[ ...]. No [ ...] nível do desejo, todo esse corpo do outro, pelo menos tão
pouco quanto o amo, só vale, justamente, pelo que lhe falta.

Estaríamos aí às voltas com uma articulação do amor e do desejo enfim


bem agenciada. O amor investiria o corpo do outro menos a genitália, e essa
falta de investimento, ao fazer faltante o corpo do outro, seria o que suscita­
ria o desejo. Poderíamos esquematizar essa bela harmonia acrescentando ao
esquema acima uma flecha horizontal superior indo do sujeito 1 ao sujeito
2 e que seria a do desejo, enquanto uma semelhante flecha inferior seria a
do amor. Ora, é bem o oposto desse acordo perfeito que Lacan vai concluir.
Uma surpresa, para falar a verdade, não tão surpreendente, se todavia nos
lembrarmos de que se trata aí de uma problematização do amor quase in­
teiramente posta na conta do narcisismo e de suas aplicações*, uma versão
bolsista, em suma, e que, com Lacan, tornou-se insustentável, notadamente
pelo fato de que despreza completamente o amor como dom (já instalado
nesse momento). Com efeito, lemos algumas linhas mais abaixo:

7
J. Lacan, A identijicnçdo.
* r r .. •
214 O AMOR LAc A
t-;

Desejo o outro como desejante. E quando digo como desejante, eu netn


mesmo disse, expressamente não disse como me desejando, pois sou eu qu
e
desejo, e desejando o desejo, esse desejo só pode ser desejo de mim se eu llle
encontrar nessa virada, ali onde estou, é claro, isto é, se me amo no outro, etn
outras palavras, se sou eu que eu amo. Mas, então, abandono o desejo.

Essas observações são anteriores à noção de um objeto causa do desejo ;


nesse momento, o desejo permanece, por pouco tempo ainda, encarado
como desejo do desejo. Esse desejo desejado não pode ser desejo de mim.
Nada é mais verdadeiro: desejo que o outro me deseje não é mais desejar
seu desejo como tal. Se, por acaso, eu me amo no outro, se desejo que ele me
deseje, simplesmente abandono o desejo. Ora, que eu me ame no outro, eis
precisamente o que cifra a teoria do tubo em U e o que Lacan, pouco antes,
indicava ao ter notado que "só amo meu corpo, mesmo quando transfiro esse
amor para o corpo do outro". Assim é derrubada a bela harmonia do amor
e do desejo por um tempo bajulada. Em nada convém a Lacan o conjunto
dessa problemática que prolonga a do amor troca e depende de uma pers­
pectiva unitária e não unária. Ele conclui: "O que estou acentuando é esse
limite, essa fronteira que separa o desejo do amor. O que, evidentemente,
não quer dizer que eles não se condicionam por todas as espécies de pontas".
Isso não quer dizer... mas isso parece bem dizer de qualquer modo, a coisa
ficando um pouco imprecisa. O importante, por enquanto, reside nessa
separação do amor e do desejo que o que vem adiante confirmará. Ela se
refere ao segundo traço anunciado, a saber, a espécie de recuo a que Lacan
se entrega no que diz respeito à sua leitura do Ban quete.

UM DUPLO PASSO AO LADO

Eis o texto {ele vem imediatamente após):

E isto também reencontra o que no ano passado acentuei como sendo esse
ponto visado desde sempre pela ética da paixão que é fazer, não digo essa
síntese, mas essa conjunção de que se trata de saber se, justamente, não é es-
FiSICA DO AMOR 215
MET A

trutu1'tllmente impossível [sublinho], se não continua sendo um ponto ideal


fora dos limites da épura, que chamei a metáfora do verdadeiro amor, que
é a famosa equação, o eron sobre eromenon, eron, o desejante, assumindo o
lugar do desejado nesse ponto, e por essa metáfora equivalendo à perfeição
do amante, como é igualmente articulado no Banquete, a saber, essa inversão
de roda a propriedade daquilo que se pode chamar o amável natural, dilace­
ramento no amor que põe tudo o que podemos ser nós mesmos de desejável
fora do alcance do afeiçoamento, se posso dizer. Esse noli me amare, que é o
verdadeiro segredo, a verdadeira última palavra da paixão ideal desse amor
cortês cujo termo não foi por nada que o coloquei, tão pouco atual, quero
dizer tão perfeitamente confusional que tenha ficado, no horizonte do que
eu havia no ano passado articulado, preferindo antes pôr em seu lugar como
mais atual mais exemplar [sublinho], essa ordem de experiência, ela nem
um pouco ideal mas perfeitamente acessível, que é a nossa sob o nome de
transferência [ . . . ].

O acerto é drástico. Caso persistisse a mínima veleidade de identificar


0 amor Lacan com a "metáfora do verdadeiro amor", ou ainda com o amor
cortês, seria forçoso, ao ler essa afirmação, a ela renunciar. Além disso, a
frase realiza um grande deslizamento do Banquete até o amor cortês. A
"metafísica do amor" é aqui retomada sob a denominação "ética da paixão".
O gesto consiste em excluir a possibilidade de uma conjunção do amor e
do desejo ao localizar a dita conjunção apenas no registro de um inacessível
ideal. Uma nova confirmação do fato de que Lacan, ao separar amor e dese­
jo, também deve deixar de lado a metdfora do amor é dada no próprio texto
onde, lembrando os termos dessa metáfora, ele utiliza indiferentemente
"amor" e "desejo": seria a metáfora do amor, mas, no mesmo tempo, eron é
traduzido por "desejante" e eromenon por "desejado". E, como para melhor
ainda afastar essa perspectiva, o que seria o efeito do funcionamento dessa
metáfora está ligado à ideia de uma aquisição da perfeição, uma associação
decerto platônica mas que não consegue muito, na mente dos ouvintes do
seminário, ser evidente.
A observação a seguir vai fazer transição do Banquete ao amor cortês.
A ideia, parece, é a seguinte: a metáfora do amor se basearia em outra coisa
216

que no amável. E, com efeito, o sacrifício de Aquiles, o amado, não se dev e


ao fato de que Pátroclo era amável (ele era o amante), mas ao fato de que
ele (Aquiles) o amava, que ele o ama nesse próprio sacrifício. N ão só 0
"amável natural" não intervém no amor, mas, além disso, o amor expulsa
aquilo que, no amante, seria da ordem do desejável. O amor, é sugerido ,
põe esse desejável fora de alcance do "afeiçoamento". Com efeito, quem,
pois, poderia afeiçoar Aquiles? Ninguém mais que Pátroclo. Ora, P átro clo
morreu. A fórmula noli me amare vem resumir a afirmação; construída
sobre o modelo do Cristo dirigindo-se a Maria Madalena: noli me tangere,
"não me toque", ela lança uma ponte entre o Banquete e o amor cortês, ele
também situado na idealidade. A essa idealidade Lacan opõe a experiência
da transferência, ela acessível. Oposição abrupta, já que é aqui precisado qu e
se Lacan situou "no horizonte" de seu seminário do ano precedente o amo r
cortês, a única razão disso teria sido o gesto pelo qual ele põe em seu luga r
o amor de transferência. Confirma-se que o amor não estava em questão
no comentário lacaniano do amor cortês.
Espera-se uma chamada à ordem. Ela é explícita:

O sujeito em questão, aquele cujo rastro seguimos, é o sujeito do desejo


e não o sujeito do amor, p�la simples razão de que não somos sujeito do
amor, somos ordinariamente, somos normalmente sua vítima. [... ] O
amor é quando Afrodite ataca, era muito bem sabido na Antiguidade, não
espantava ninguémª.

E Lacan joga com o próprio nome de Afrodite. Quando Afrodite


ataca, é a dúvida pavorosa*. Esse jogo de palavras foi fabricado a partir de
uma afirmação feita em seu divã por, diz ele, "um de meus mais divinos
obsessivos". Ignora-se se o obsessivo em questão estava presente no Hospital
Sainte-Anne nesse dia, se ficou ou não sabendo dessa selvagem maneir a
qual era sua "estrutura", como se dizia sem rir na época, se tal diagnóstico
o deixou zangado ou maravilhado. Ê verdade que Lacan tempera-lhe o

8
J. Lacan, A identificação.
* Em francês: Q1umd /i'flppé Aphrodite, c'est l'affiwx dou ti'. (NT\
ÍSICA DO AMOR 217
METAF

caráter desagradável chamando de "divino" esse paciente. Este lhe havia


falado da "pavorosa dúvida do hermafrodita". Lacan condensa a afirmação
no sentido em que Freud define "condensação", na Traumdeutung, como
uma compressão do texto, o torno se apertando entre suas duas extremi­
d::.des: pavorosa dúvida do hermofrodita*. Conclusão dessa sessão: "Logo,
está bem colocado que, no que se refere à busca daquilo que é, na análise, o
sujeito, isto é, ao que convém identific á-lo, ainda que de modo alternante,
só pode se tratar daquele do desejo".
No entanto, um parêntese intervém entre as duas formulações desse
acerto, que vai igualmente afastar uma outra figura do amor: o amor cris­
tão. Como em Freud, a afirmação permanece moderada quanto ao cristia­
nismo, o que não impede que essa figura do amor faça Lacan ranger: se o
cristianismo procurava, fim louvável entre todos, um "desprendimento do
desejo como tal", ele só o fez à custa de ter colocado o amor em posição
de se tornar um mandamento. Para entrever o que está em jogo quanto ao
desejo, convém reportar-se a um pouco antes, quando era dito que "o desejo
continuou sendo, durante esse número respeitável de séculos, uma função
pela metade, pelos três quartos, pelos quatro quintos, ocultada na história
do conhecimento". Tendo rapidamente lembrado Sócrates, o primeiro a
conceber "qual era a verdadeira natureza do desejo", depois Espindsa ("o
desejo é a essência do homem" torna-se, com Lacan, "o desejo é a essência
do sujeito"), em outras palavras, duas das grandes meditações sobre o desejo,
mas também após afastar Plotino (relacionado a essa noção do um que não
lhe cai bem), Lacan sugere a seus ouvintes, sem evidentemente dizer isso
de modo explícito, que agora é ele quem aceita o desafio do desejo. Temos
aí algo como uma história do desejo no Ocidente, uma espécie de grande
narrativa, mas que, por ser dita como que de passagem, não tem o peso que
puderam adquirir outras grandes narrativas. O empreendimento talvez deva
ser posto na conta de uma certa fanfarrice.
A identificação nem produziu uma nova figura do amor nem respon­
deu à questão de saber como, amando, o sujeito poderia realizar-se como
desejante. Em compensação, esse seminário terá mostrado a preocupação,

• Em francês: l'af(reux doute de l'hermaphrodite. (NT)


218

em Lacan, de separar amor e desejo, como se ele tivesse farejado o per igo
incorrido durante os dois anos precedentes. Ora, esse acento decididamen.
te posto no desejo levanta um problema, hoje patente. Pois o amor (ma is
exatamente o amódio) fez um formidável retorno ao momento da dissolu­
ção da EFP e, depois, da constituição in progress de grupos lacanianos. Ou
seja, a proposição: "O sujeito em questão, aquele cujo rastro seguim os, é 0
sujeito do desejo e não o sujeito do amor [ ... ]". A negligência na qual essa
proposição parece considerar o amor historicamente se voltou contra ela.
Expulso da análise, o amor ali volta a galope. Não sem consequências no
entanto, pois se "somos ordinariamente sua vítima" (sequência imediata
da citação), o psicanalista arrisca forte acabar sendo uma vítima do am or.
Uma vítima do amor de Freud, de Lacan, de tal outro psicanalista pode ser
psicanalista? Uma psicanálise com uma vítima do amor como psicanalista
pode produzir outra coisa que uma nova vítima desse amor sentido por
tal ou tal psicanalista do qual importa pouco que esteja morto ou vivo?
Decididamente sim, o apelo de Jacques Lacan à fundação de uma escol a
"daqueles que me amam" deverá ser questionado.
CAPÍTULO XI

HEGEL, LACAN:
DUAS IRRESISTÍVEIS RECEITAS
PARA OBTER O AMOR

O primeiro aparecimento do amor no seminário A angústia (21 de


novembro de 1962) é igualmente a última observação sobre o amor
antes da invenção do objeto a. Vou qualificá-la de coquetismo- o que não
con stitui nem censura nem uma razão de afastá-la. Lacan a chama uma
"receita", a receita para ser inevitavelmente feliz no amor, nada menos! O
essencial dessa sessão é dedicado a marcar, aí ainda pela primeira vez de
ma n eira nítida, sua diferença com Hegel; ela se conclui por uma espécie
de último golpe de esgrima para com aquele que tanto contou para Lacan,
mas também para com seus ouvintes. A afirmação cria enigma: espiritu­
a l, nem por isso é um chiste, pois, longe de suspender, no ouvinte, uma
inibição, ela o embaraça com uma questão. Hegel teria escrito, numa
nota cuja referência Lacan não dá, que poderia ser "feito passar toda a sua
dialética" (em outras palavras, a Fenomenologia do espírito) pela seguinte
fórmula: "Te amo, mesmo que não queiras". Julgando-a pouco séria, Hegel
se teria, confessaria ele nessa nota, abstido; e Lacan saúda essa abstenção
ao confirmar seu motivo mas também ao deplorar seu emprego "adotado
com demasiada frequência". Ele não tem dificuldade alguma de identificar
s ua ineficácia. Porém, como que desafiado por Hegel, ele vai propor a sua:
"Te desejo, mesmo que eu não saiba", chegando a dizer que ela é irresis­
tível. Ela o seria se, precisa ele mesmo assim, pudesse ser pronunciada, o
que, é claro, está excluído. Como Lacan a funda? Confrontada com a de
Hegel, sua fórmula põe o desejo no lugar do amor, "te desejo. . . " no de "te
amo... ". Porém não é tão simples:
220 O A M O R L A c AN

Se isto pudesse ser dito, o que eu diria por aí? Diria ao outro que, desejan .
do-o com certeza sem saber, sempre sem saber, tomo-o pelo objeto de l11i
tn
mesmo desconhecido de meu desej o, isto é, em nossa concepção do desejo,
o identifico, te identifico, tu a quem falo, tu mesmo, com o objeto que falta
a ti mesmo, vale dizer que por esse circuito onde sou obrigado a passar para
atingir o objeto de meu desejo, cumpro justamente para ele o que e le busca.
É bem assim que, de modo inocente ou não, se tomo esse desvio, o ou tro
como tal, objeto aqui, observem, de meu amor, cairá forçosamente etn
minhas redes. Deixo-os aí, nessa receita, e digo-lhes até a próxima vez 1 •

O nó subjetivo (intersubjetivo?) assim apresentado pede para ser


desdobrado. A isso procederemos em seis pontos (duas vezes três, ma is
exatamente), antes de poder chegar à questão do amor tal como ela surg e ,
aliás curiosamente em inciso, no fim da afirmação.
1 ) Otro. Em 1 962, tornou-se quase uma banalidade lacaniana ter qu e
passar pelo Outro para atingir o objeto de meu desejo. No entanto, o que
Lacan chama ali "circuito" é algo mais preciso.
2) Considerar... "Te desejo, mesmo que eu não saiba" correspond e a
dizer ao outro que eu "o tomo pelo objeto de mim mesmo desconhecido de
meu desejo". "Tomar (um outro) por... " evoca, em francês, uma operação
propriamente falando babaca2 (o "tomar-se por... " não é melhor, porqu e
remete, de modo banal, à loucura). Eu desconheço [cometo uma babaquice:
je dé-connais*] o outro ao tomá-lo por... ; eu me confundo; há confusão aí;
eu me engano e, enganando-me, não chego muito a esse outro reduzido,
por minha confusão, ao hábito com o qual o visto. Ora, é bem no oposto
que Lacan vai aqui fazer funcionar esse "tomar por... ". Segundo sua fórmula ,
ao tomar o outro por... , eu de fato o tomaria, eu me apossaria dele; não
haveria tanta confusão quanto tomada**. Seria esta a performatividade de

1 Jacques Lacan, L'ttngoisse, transcrição Afi , sessão de 2 1 de novembro de 1 962 {introduzi


algumas vírgulas, retomadas da excele nte versão Roussan). Doravante: A ttngtístitt.
2 Cf. Jean Allou ch , Les impromptus de Lttcttn, Paris, Fayard/Mille et Une Nuits, 2009, " l ntro ·
duction" .
* A par tir d e con [babaca] , o francês forma o verbo tÍéconner [dizer besteiras, brincar, funcio­
nar mal] . ]e dé-connnis dá, por tanto, também , des- conheço (NT)
** Jogo de palavras: ily n111'tlit tnnt méprise que prise. (NT)
L , LAC A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S P A RA O B T E R O A M O R 221
tJ E G E

u ma afi rmação cuja distância pode ser medida com o que, anos antes, era
apresentado como a fala plena, ilustrada pelo famoso "és minha mulher". •
c la nao e ·
� e' tanto p1 ena quanto perrormattva, e • prec1-
e perrormattva
Aqui, a ra
sa111ente porq,,ue não plena. Ela indica várias faltas- a primeira delas sendo
" �
meu nao sei. .
3) Falta no saber: "Te desejo, mesmo que não saiba". Esse dizer sig-
n ifi ca ao outro que me é possivelmente desconhecido (cf "mesmo que") o
objeto de meu desejo, que possivelmente me falta esse saber. Tal declaração
contrasta com outra, que não opera tanto quanto a de Hegel, a que diria:
"Te amo já que correspondes exatamente a meu tipo... de homem/de mu­
lher" - o que um Pascal sustenta em termos, é verdade, mais refinados. Mas
p or que, partindo daí, acrescentar que assim identifico o outro ao objeto
que lhe falta, e não somente que me falta? E por que acrescentar que, assim
fazendo, cumpro "por ele" o que ele busca? Esse duplicado suplemento
parece forçado, ou então estar mais para um insondável milagre. O que
mesmo assim convém explicar. Lacan está dizendo que o objeto que me
falta é também o objeto que falta ao outro? Seria um único e mesmo objeto
faltante? Percorreremos no outro sentido o caminho dessa frase, partire­
mo s do outro para ir até o declarante, assim denominado por prudência,
a fim de não cair nessa facilidade que consiste em usar a todo momento o
termo "sujeito". Esse declarante será mais bem designado ainda como o se
declarando(ante) 3 •
4) A frase propõe um nome para o que está combinado chamar, após
John Austin e os performers, uma pe,formance, um nome que traz a vantagem
de evocar o que Freud chamava: cumprimento (Erfüllung) . Conforme o que
reivindica a moderna pe,formance artística, a declaração cumpre (cumpriria)
algo não só em quem se declara, mas também no outro - com certeza não
a mesma coisa em um e no outro. Para além até desse "no outro", Lacan
diz pelo outro, no duplo sentido desse "pour"*: algo é realizado em favor do
o utro, mas também no lugar do outro. Esse "no lugar" permanece ambí-

·' Um número de Littoral foi dedicado a "A declaração de sexo" (Littoral, n º 23-24, Toulouse,
Éres, outubro de 1 987) . (NT) Déclarant tanto pode ser o declarante (substantivo) quanto o
particípio presen te, habitualmente traduzido no português pelo gerúndio declarando.
• A preposição pour tanto pode dizer aí por ou a fiwor de. (NT)
222 O AMOR LAc
AN

guo. O "se declarando(ante) " permanece em seu lugar e contin ua sendo


0
declarante(ando) ; o outro continua sendo o outro e continua em seu lu gar
de outro. O que o "se declarando(ante)" realiza no lugar do outro não está
de modo algum dito que o outro poderia tê-lo realizado por seus pró pr ios
meios e de seu lugar. Trata-se apenas de uma realização, no outro, de algo
que esse outro simplesmente não está em condição de (poder) realizar por
s1 mesmo.
5) Que coisa? Lacan a chama uma identificação. No outro , uma
identificação supostamente até então não foi efetiva. O outro até en tão não
se identificou com o objeto que lhe falta. O outro estaria em falta, talvez
até à espera dessa identificação; ele a encontraria com minha declaração ,
declaração esta que, de certo modo, cumpriria essa identificação, para falar a
verdade. Antes de mais nada porque sua efetividade e mais ainda sua neces­
sidade nada têm de evidente. Que o outro possa estar (como eu?) em busca
de seu objeto faltante, seja. Mas o fato de o outro só poder encontrar o que
busca se estiver identificado ao objeto que ele busca parece uma espécie de
postulado suplementar que está longe de ser evidente (se podemos dizer...
já que isso iria pelo outro, pelo "se declarando(ante) "). E poderemos nos
perguntar se a invenção do objeto a, menos de dois meses mais tarde, não
vai precisamente fazer esse postulado saltar fora. Quanto a essa identifica­
ção, o texto realiza um deslizamento da terceira para a segunda pessoa, qu e
é reproduzido espontaneamente pela presente leitura - como se estivesse
excluído dispensar-se disso. Não se pode no entanto inferir desse endereç a­
mento em segunda pessoa que se trata de uma identificação imaginária, pois
escaparia, assim, o próprio deslizamento. Daí mesmo assim se deduz qu e
o imaginário está metido no assunto; provavelmente o simbólico também;
quanto ao real, ele estaria no próprio cumprimento.
6) O gonzo. O que tem função de gonzo (um termo-chave da "Propo ­
sição de outubro de 1 967 ... "), de articulação entre o "se declarando{ante)"
e o outro, é a expressão "em nossa concepção", por onde Lacan toma dis­
tância de Hegel. É ela, essa lacaniana concepção, ela e nada além dela, que
afirma, que coloca essa articulação. Que articulação? A identificação em
questão. O objeto que falta ao outro, o objeto que o outro busca só pode
estar em outro lugar no outro, ali onde o identifica minha declaração. E o
L , L A C A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S P A RA O B T E R O A M O R 223
1-J E G E

outro só pode ali se identificar. O que, então, faz essa incrível eficácia, no
outro, de minha declaração? Resposta: o possível não-saber, em mim, do
objeto de meu desejo; mas um não-saber sobre o qual me fundo, de certo
modo, para comprometer, em minha relação com o outro, o que de qual­
quer modo resulta de um certo saber. Esse objeto de meu desejo, de mim
rnesmo desconhecido, e que, desconhecido, permanece, pois bem... sei de
qualquer modo que... é isso. Ora, esse "é isso" não pode perdurar, manter-se
no ser; ele só pode, uma vez advindo, logo se realizar ao se metamorfosear
(a gramática obriga) num "és tu". Eu te identifico como sendo o objeto de
rnim mesmo desconhecido de meu desejo. Avanço na tua direção como a
um só tempo sabendo e não sabendo, sabendo que és tu e não sabendo o
que és. Podemos pensar, para dar algum corpo a esse movimento na dire­
ção do outro, no que o amor à primeira vista transporta a um só tempo de
certeza e ignorância.
Por que, então, Lacan pode aqui convocar o amor? Ele nada diz, o
que não impede propor uma resposta: porque esse cumprimento pelo outro
é um dom. Que dom? O dom de uma identificação, da identificação do
outro com seu objeto faltante. Que o outro se identifique com aquilo pelo
q ue é identificado, isso se concebe de duas maneiras. Pode-se dizer que é ao
se identificar assim que o outro acolhe, aceita o dom; mas também dizer; em
termos de hoje, que "ele não aguenta". Esse outro no qual intervém minha
declaração "cairá forçosamente em minhas redes". Seria, uma vez mais, ou
uma versão guerreira do amor e do desejo? Em 27 de fevereiro de 1963, Lacan
voltará a esse blefante fim de sessão de 2 1 de novembro precedente.

[ . . . ] o desejo do Outro não me reconhece como acredita Hegel, o que toma


a questão bem fácil. Pois se me reconhece, como nunca me reconhecerá o
bastante, basta eu usar de violência. [ . . . ] Ele me questiona, me interroga na
própria raiz de meu desejo como a, como causa desse desejo e não como
objeto; é porque é ali que ele visa, numa relação de antecedência, numa
relação temporal, que nada posso fozerpara romper essa captura exceto nela me
comprometer[sublinho], [ . . . ] A relação com o outro, hegeliana aqui, é bem
cômoda, porque, então, com efeito, tenho contra isso todas as resistências, e
contra essa outra dimensão [a que é introduzida por Lacan], digamos, uma
224 O AMOR LAc
AN

boa parte da resistência desliza. Só que, para isso, é preciso saber o q ue é


0
desejo, e ver sua função, não só no plano da luta, mas ali onde H ege l, e o
P r
boas razões, não quis ir buscá-lo, no plano do amor.

Ver a função do desejo no plano do amor: belo programa! O "é preciso


saber o que é o desejo" retoma o "em nossa concepção do desejo" de 21 de
novembro. Também teremos lido a resposta à questão levantada: n ão, esse
amor em questão ao declarar ao outro que eu o desejo mesmo que eu não
saiba não é aquele amor guerreiro que, desde os gregos passando por Ovíd io ,
ainda agita certos corações. O passo ao lado em relação a Hegel equivale a
um passo ao lado em relação ao amor guerreiro. Sair da luta, tirar o desejo
e o amor da luta, é isto que está em jogo. E, para fazer isso, alojar o amo r no
lugar onde Hegel alojava a luta (uma antiga mania lacaniana aí atua como
pano de fundo: como o sujeito poderia não sucumbir à estrutura paranoica
do eu [moi] ?) . O deslocamento em relação a Hegel e ao amor guerreiro
também é um passo ao lado - explícito na citação acima - em relação ao
desejo: o desejo não vai mais à frente de seu objeto, está às voltas com um
objeto que o causa.

DO CONSTRAN G IMENTO AMOROSO

Subsiste, em 27 de fevereiro, a espécie de constrangimento que criava pro­


blema no fim da sessão de 21 de novembro. "Constrangimento" não é aqui
tomado no sentido de constraint, termo que aparece no título da magistral
obra de John Winkler: The Constraints of Desire, The Anthropology of Sex
and Gender in Ancient Greece4 . Surgidos sobre fundo de melancolia\ os
amores na Grécia antiga não conhecem outra cura a não ser sua satisfação .
O que afirma Longus (citado por Winkler): não há outro remédio a não
ser "abraçar, enlaçar e deitar-se juntos sem roupà', não há outro remédio
a não ser o próprio amado. Winkler mostra como, exceto esse desfecho, o

4 John J . Winkler, Désir et contraintes en Grece ancienne, préface de David Halperin, traduzido
do inglês (Estados Unidos) por Sandra Boehringer e Nadine Picard, Paris, Epel, 2005.
5 Ibid. , p. 1 64.
LAC A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S PA RA O B T E R O A M O R 225
ti E G E L

perm anece atormentado por seu amor e, na falta de suicídio


ap aixona do , . .
' · ) , apel a ou para receitas
na epoca, na G recia '
magicas de modo a
(frequente,
atormentar o(a) amado(a) a até que este ou esta ceda a seu desejo, ou para
u rn intermediário que pode aconselhar na realização do rito propiciatório,
ou então ainda intervir diretamente junto ao(à) amado(a) a, e pode ser um
deus. A posição do psicanalista parece, vista daí, em posição frágil, já que
nad a vem garantir que ele vai tudo fazer para favorecer a realização do
arnor (Platão, antes, havia trilhado outro desfecho, embora sem afastar
absolutamente a satisfação erótica). Uma posição frágil ainda mais níti­
da porqua nto, na Grécia antiga, aquele que estava atormentado por um
amor buscav a oprimir seu objeto (o que Winkler chama "transferência":
deslocamento para o amado do tormento que ele causa), ao passo que é a
urn movimento de transformação não do amado, mas de si, que recorre o
6
moderno atormentado pelo amor •
O capítulo que Winkler dedica aos "encantos eróticos" na Grécia
antiga faz inevitavelmente pensar na fórmula de Hegel: "Te amo, mesmo
que não queiras". Com efeito, é a visada de cada um dos procedimentos
postos em prática pelos gregos gravemente atormentados por um amor
recusado fazer de modo que esse amado acabe querendo aquilo que ele
não quer, isto é, o leito do amante - aquele leito aonde ele poderia· ir não
constrangido fisicamente, mas "enfeitiçado". O que não quer dizer que não
se usava de violência para obter esse enfeitiçamento que "encanta" o amado
(outra palavra de Winkler), de uma violência aliás homóloga àquela que
sofríamos ao termos nós mesmos ficado apaixonados7 • Entretanto, era para
acabar no encanto e não na violência que se apelava . A violência serve ao
enc anto, não o encanto à violência. Sempre se homenageou Ovídio por ter

6 Certas demandas de análise parecem assim vestidas "à antiga" , aquele que se encon tra em
dificuldade no casal enviando o outro , que ficaria bem sem isso, mesmo que não saiba, ao
trabalho da análise; ou então ainda, outra configuração, o analisando dedicando sua a nálise
a "analisar" o objeto de seu amor.
7 "Os entrelaçamentos sistemáticos da violência e do encanto, se pode nos deixar perplexos,
e até nos encher de nojo, é apenas a forma necessária da aspiração ao êxito, nessa sociedade
em que reinam o conflito, a hipocrisia e a duplicidade" (J . J. Winkler, Désir et co11h'tti11tes
en Grece n11cie1111e, op. cit. , p. 1 57) . Ver também, página seguinte, o comentário do termo
226

sido o primeiro a afirmar que, no amor, o parceiro feminino encontra su a


satisfação erótica. Ovídio abominava e deplorava publicamente qualqu er
outro amor. Seu exílio teria sido o preço da espantosa liberdade de que e le
assim dera prova. Entretanto, Winkler cita alguns textos que ele reconhece
"raros", mas que mostram que já era o caso entre os gregos, ou, pelo m eno s
entre alguns deles. Assim:

Que ela venha [ . . . ] cheia de erôs, de afeição e de desejo sexual, desejando de


toda a sua alma unir-se a Apalos.
[ . . . ] que ela cumpra seu próprio gozo (ta aphrodisiaka heautês).
[ . . . ] que ela me ame, que seu desejo seja carnal, que ela sinta langor, ternu ra,
que queime por se unir a mim, submissa a um erôs descontrolado8 •

Trata-se bem de encadear o outro, mas com um constrangimento


que deverá ser "divino" - algo como a exclamação contemporânea: "É divi­
no! " . Quanto à visada desse constrangimento, sua incidência nas mulheres
gregas da Antiguidade, Winkler escreve que esses encantos falam do desejo
das mulheres como "de um impulso surgido do interior9 " . Ele escora essa
afirmação de modo bem convincente por uma análise da posição e da ação
de Penélope, que tira Penélope da posição de vítima onde com prazer cos­
tumam mantê-la. Uma pena, portanto, que Hegel não tenha lido Winkler,
talvez ele pudesse ter desenvolvido sua "nota" de tal modo que ela se teria
aproximado de sua dialética. O que indica esse encontro entre a fórmula
de Hegel ("Te amo, mesmo que não queiras") e a análise winkleriana do
constrangimento? Por aí mesmo está confirmado que a fórmula hegeliana diz
respeito ao amor na medida em que ele ocorre numa sociedade de mestres.
Não era evidente na própria fórmula? Assim, pode-se concluir notando a
solidariedade de três traços: o amor assim iniciado, o discurso do mestre e
(contribuição winkleriana) a magia erótica.

8
J . J . Wi nkler, Désfr et co11h'(lÍlltes en
Grece nncienne, op. cit. , p. 1 9 5 .
9
lbid. A ci tação provém dos Pnpyri grttctt mngictt, o s famosos papiros mági cos encontrados no
Egi to , es cri tos em grego. " Essa frase" , escreve-me Sandra Boehri nger, "é bem representat iva
dos desejos formulados" . Ver Sandra Boehri nger, L'homosexunlité féminine dnns l'Antiquitt
grecque et romnine, Paris, Les Belles Lettres, 2007.
• LAC A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S PA RA O B T E R O A M O R 227
H EG E L

Ora, a espécie de constrangimento inventado por Lacan não é desse


,nesmo gênero pelo fato de que, a partir desse 2 1 de novembro de 1962, seu
desejo, se assim se pode dizer, não é mais, afora duas reservas, o de Hegel.
uma iniciativa nele a mais típica, ele precisa nesse dia sua diferença
Reiterando
cm relação a Hegel, logo depois de ter lido o artigo de um de seus alunos
ue s ustentava o contrário - não aliás sem sérios apoios textuais tomados
� ró prio Lacan. Logo, era tempo de se deslocar, de afirmar seu "salto'º"
op
e relação a Hegel. Em Hegel, o desejo é colocado como indo na frente de
m
seu reconhecimento; ele deve, portanto, como em Lacan, passar pelo desejo
do O utro. Mas, segundo Hegel, o outro é consciência, e o reconhecimento
que posso daí obter passa primeiramente pelo fato de que ele me vê, que só
posso, portanto, na melhor das hipóteses, ser reconhecido por ele em posição
de objeto. O desejo é desejo de um desejante, desejante este que só pode me
apreender como objeto. Ora, não posso suportá-lo, pois não sou objeto mas
consciência, Selbstbewusstsein. E Lacan efetua seu salto em relação a Hegel ao
falar de si (ele: Lacan) na terceira pessoa, o que pode ser tomado como o signo
de uma cômica enfatuação, mas também, e sem que haja incompatibilidade
com essa primeira leitura, de uma vontade de criar acontecimento:

Para Lacan, porque Lacan é analista, o Outro está ali como inconsciência
constituída como tal, e ele interessa meu desejo na medida daquilo que lhe
falta e que ele não sabe. É no nível daquilo que lhe falta e que ele não sabe
que estou interessado da maneira mais pregnante, por não haver para mim
outro desvio, em encontrar o que me falta como objeto de meu desejo.

A fó rmula lacaniana do desejo "d(a) < i(a) : d(A)" deve ser con­
frontada com a de Hegel: "d (a) : d(A) < a". Desta àquela, os dois pontos
que marcam a passagem do lado do outro deslocam-se de um grau. O
que pode ser assim transcrito: tem-se "X : Y < Z" em Hegel, e "X < Y :

rn J. Lacan, A angtístia, sessão de 21


de fevereiro de 1 963 . Mayette Vilcard me assinala o tex­
to "Notas de conferências" de Georges Bataille, publicado em Te/ Que!, n º 1 O, em 1 962,
q ue vem escorar a conjectura de uma influência de Bataille nessa depreciação de Hegel. A
consideração do não saber, que esteve em questão mais acima, também remete a essas con­
ferências de Bataille, em quem o não saber é experiência interior.
228 O A M O R LAc
"' N

Z" em Lacan. Para Hegel, o desejo d (a) é desejo d o Outro, d (A), o qu a


l
outro me trata como objeto, um objeto notado a. Para Lacan, o de se jo
,
d(a) , trazido pela imagem narcísica i(a), é desejo de um Outro , In a s
de um Outro barrado, caracterizado como falta. Logo, os dois tra ço s
mantidos comuns são 1 ) o desejo pensado como desejo do Outro e 2) 0
fato de que é, no início, um objeto (a) que deseja, um objeto "m arc ado
pelo desejo". O que não é menos verdade em psicanálise que em H e g el,
uma vez que é enquanto objeto que o sujeito está antes de mais n a da
posicionado, com o que ele deverá entrar em todo um movimento de
subjetivação que Lacan vai então cifrar sob a forma de uma "divis ão
aritmética" (fadada ao malogro) .
Logo, o constrangimento no sentido de Lacan aí está. Se é possível,
com Winkler, falar de encadeamento, não pode ser, em Lacan, no sentido
em que cordas mantêm alguém acorrentado mas, de certo modo, ao oposto ,
no sentido de uma sequência de lances de dados que permitiriam que esse
objeto de imediato encadeado, mas marcado pelo desejo, adviesse c omo
sujeito desejante. Além disso, diferentemente, ainda, do constrangimento
grego, o termo dessa subjetivação nada oferece, em Lacan, de divinamente
maravilhoso.
Em novembro, o constrangimento era aquele por onde o desejo
se apossava de seu objeto; em fevereiro, ele se torna o da própria análise,
aquela por onde o analisando está preso em sua análise, comprometido
num percurso do qual só pode se afastar (a não ser de modo selvagem) se
o tiver encerrado. Lacan de certo modo agora mudou de lugar no par do
sujeito e do outro. Ele não é mais aquele que deseja que o outro caia em
suas redes. Ele se acha em posição de analisando que está às voltas com o
desejo do outro tal como o coloca em jogo o desejo do psicanalista. Ele
não encara mais a incidência do constrangimento do ponto de vista do
se declarando(ante), que também é, portanto, "o constrangedor", mas do
ponto de vista daquele que é constrangido, daquele que está às voltas com
um desejo do outro que, porque precisamente não o toma como objeto ( é
todo o alcance da não-resposta à demanda), o impede de a isso se subtrair,
porque exerce sobre ele um constrangimento que nada mais é então que
aquele de uma questão, a própria questão desse desejo do outro. Nada mais,
para acabar, que a questão daquilo que o causa.
LAC A N : D U A S I R R E S I S T ÍV E I S R E C E I TA S PA RA O B T E R O A M O R 229
tJ E G E l .

R E SAB E R: O SEGUNDO ENCONTRO


A.M, O

"fe desejo, mesmo que eu não saiba". Ao te declarar isso, faço-te dom de
algo q ue não tenho, dom de tua identificação com o objeto que te falta; ao
ce declarar isso, te amo. Houve um tempo, antes feliz, em que era moda
questionar o outro com um por vezes cruel "de onde falas?". Não era mes-
.
mo assim tão bobo, exceto quando virou mama. · De onde, entao, o se r "

declarando(a nte)" ama o outro? Desde o possível não-saber de seu desejo


(o do se declarando(ante). Está assim colocado um laço do amor e do saber
a respeito do qual notaremos que é apenas a segunda vez, desde que faz se­
minário, que Lacan o encara. Duas vezes em dez anos. Há aí constância ou
então variação? O problema colocado por esse confronto é aguçado por dois
fatos. An tes de mais nada, o fato de Sócrates (na cena em segredo) apresentar
0 amor não como dom, mas como troca, ao passo que a maneira como, em

2 1 de novembro de 1962, Lacan liga amor e saber implica o amor como dom.
O utra diferença: Sócrates não ama Alcibíades, ao passo que o declarante,
este, ama esse outro ao qual ele se declara. Ora, apesar dessa dupla dispari­
dade, uma constante perdura. Por duas vezes não é o saber que é articulado
ao amor (um saber que se saberia ele mesmo) mas sua folha, ao menos parcial.
Co m Sócrates, a fórmula era: "E diremos que é por saber que não s;i.be o que
é o amor que ele não ama". Com, agora, a supostamente irresistível receita
de Lacan, temos: "E diríamos que é porque o se declarando(ante) não sabe
possivelmente qual é o objeto de seu desejo que ele ama (e, em contrapartida,
é pago)" . Por duas vezes intervém um "não sabe" . Mas o assunto é por duas
vezes mais sutil, não jogando binariamente com a oposição saber/não-saber.
S ó crates sabe que não sabe, parecendo fazer desse não-saber a razão de um
não -amor. O fato é que ele está a par do saber desse não-saber. Quanto ao se
declarando(ante), não é exatamente que ele não sabe, é apenas que ele poderia
não saber - o que bastaria para que seu desejo apaixonado em contrapartida
fosse pago. Este sabe que poderia não saber. Por duas vezes o saber de certo
mo do parece estratificado, indo como que contra si mesmo. Logo, é esta a
espécie de saber bizarro que Lacan primeiramente ligou ao amor.
Qual é aqui a distância em relação a Hegel? Posteriormente à sua
invenção do objeto a, Lacan poderá precisar isso melhor (23 de fevereiro de
230

1 962). Com seu "mesmo que eu não saiba", com seu não-saber, Lacan d eix
a
de lado o desejo de reconhecimento e o que o acompanha de violên cia.
O
desejo do outro não me reconhece; ao causar meu desejo, ele me põ e elll
causa. Assim, é a angústia que é solicitada, não mais a violência. E é nesse
desejo que não me circunscreve como objeto que Lacan pendura seu desejo
do analista.
A fórmula "Te amo, mesmo que eu não saiba" prolonga um afeto já
assinalado por Lacan: sua aversão por essa preocupação falsamente altruíst a
com a liberdade do outro que é apenas indiferença por esse outro, que é só
pretexto para deixar o outro se enrolar. Ora, sua fórmula funciona bem como
uma intervenção no outro, e uma intervenção maior, já que faz com que ele
caia na armadilha de meu desejo. Entretanto, notamos que, ao desdobrar
o funcionamento dessa fórmula, Lacan parece não claramente distinguir
amor e desejo. Vem, então, uma nova promessa: "É preciso saber o que é 0
desejo, e ver sua função, não apenas no plano da luta, mas ali onde H egel ,
e por boas razões, não quis ir procurá-lo, no plano do amor" 1 1 •

S E G RE D I N H O

Lacan terá escondido d e seu público que ele havia tirado de Alexandr e
Kojeve essa dialética hegeliana do amor. Poderemos julgar idiotas e sses
segredinhos pois, cedo ou tarde, alguém levanta o véu de Maia. Assim,
Kojeve falou da "dialética do amor" em Hegel durante as "Conferências
de aulas" (como as chama Raymond Queneau), proferidas em 1 934-1 9 35 .
Lacan as assistia. A conferência em questão tem por título: ''A dialética
do real e o método fenomenológico". Foi acrescentada por Queneau
em apêndice à sua publicação das "Notas e estenografias" das aulas de
Kojeve 1 2 ( 1 947). A "mui, mui preciosa notinha" supostamente assinada
por Hegel, que Lacan menciona em 2 1 de novembro de 1 962, existe? É

11 J. Lacan , A 1111glÍsti11, sessão de 27 de fevere i ro de 1 963.


1 2 Alexandre Kojeve, l11trod11ctio11 à la lecture de Hegel, Paris, Galli mard, coll . "Te!", 1 947, P·
5 1 2-5 1 5 . Os parên teses sáo de Koj eve, e de Kojeve também os adendos entre colch etes, e, é
claro, os travessões - como se Ko j eve aglutinasse o francês à moda elo � l e m f o
L ACA N : D U AS IRR E SIST Í V E IS R E C E I TAS PARA O B T E R O AMOR 23 1
H EG E L

dar. Em compensação, existe uma nota de Kojeve relativa


errn itido duvi
ªº .......
P n ni or em Hegel, chamada numa passagem do texto de Kojeve que é,
um desvio. Kojeve está explicando que, como entidade dia-
el a rn esma,
l ética, em outras palavras, livre e histórica, o homem é necessariamente
finito- As plantas, os objetos têm um fim; só o homem morre; sua finitude
é ela mesma dialética. E é a fim de mostrar que, desde seus escritos de
• uventude, Hegel desenvolvia esse tema que, em duas páginas, Kojeve
i nd i ca, traduz e comenta um escrito de Hegel sobre o amor; esse escrito
n ão é uma nota, mas, diz ele, um fragmento "romântico", datando talvez
de 1 79 5, em todo caso publicado em 1 9 07. Ele cita mais de vinte linhas
desse fragmento e acrescenta a seu comentário uma nota de pé de página
bern longa sobre o amor em Hegel (a nota que Lacan atribui a Hegel?) .
Eis, tal qual (exceto os itálicos que acrescento), a parte do texto de Hegel
que importa para a leitura de Lacan:

Considerando que o Amor é um sentimento (Gefühl) do vivente (Leben­


dingen), os Amantes só podem se distinguir [um do outro] na medida em
que são mortais, [isto é, na medida] em que pensam essa possibilidade de
separação, [e] não na medida em que algo estaria realmente separado, em
que o possível reunido com um ser-dado (Sein) seria uma entidade-real
(Wirkliches). Não há matéria [bruta ou dada] nos Amantes [enquanto
Amantes] , eles são um Todo vivente [ou espiritual, pois nessa época Hegel
identificava Vida e Espírito] ; que os Amantes tenham uma independência­
ou-autonomia (Selbstiindigkeit), [um] princípio-vital próprio-ou-autônomo
(eigenes), [isto] significa apenas: eles podem morrer.
[. . . ]
Mas o amor tende [ . . . ] a reunir o próprio mortal (Sterbliche}, a fazê-lo
imortal. . . E é assim que temos: o um-único (Einige}, os separados e o reu­
nido-de-novo (Wiedervereínigte). Os reunidos se separam novamente, mas
na criança a própria reunião {Vereinigung) ficou não separada (ungetre nnt
worden} 1 3 •

13
A. Koieve. l11trod11ctio11 à la lecture de HeJ!el, op, cit. , p. 5 1 2-5 1 3 .
232

Comentário:

Para compreender todo o alcance desse texto "romântico", é preciso saber


que, na época em que ele foi escrito, Hegel acreditou por um momento te r
encontrado no Amor o conteúdo especificamente humano da existê ncia
do Homem, e foi ao analisar a relação amorosa que ele pela primeira vez
descreveu a Dialética dessa existência que a distingue da existência pu ra­
mente natural.

Logo, seria este, pelo menos até prova em contrário, o texto retomado ,
trinta anos mais tarde, por Lacan e apresentado como uma "notinha" do
próprio Hegel. Lacan:

[ . . . ] nessa teoria do desejo em sua relação com o Outro, vocês têm a chave
disto, é que, contrariamente à esperança que lhes poderia dar a perspectiva
hegeliana, o modo da conquista do outro é aquele, infelizmente, com de­
masiada frequência adotado por um dos parceiros do "Te amo, mesmo que
não queiras" . Não acreditem que Hegel não percebeu esse prolongamento
de sua doutrina. Há uma mui, mui preciosa notinha em que ele indica
que é por aí que ele poderia ter feito passar toda a sua dialética. É a mesma
nota em que ele diz que, se não tomou essa via, foi porque ela lhe parecia
não ser muito séria. Como ele tem razão! Experimentem. Vocês me darão
notícias de seu sucesso 1 4 !

Não está dito que a fórmula "Te amo, mesmo que não queiras" é de
Hegel; o texto sugere, ao contrário, é verdade que de modo discreto, que
ela é de Lacan que, ao inventá-la, "prolonga" Hegel. A fórmula tampouco
se encontra em Kojeve. Em compensação, Kojeve desdobra, do modo mais
explícito possível, essa substituição/deslocamento que, para desenvolver a
dialética da existência, teria feito Hegel passar de uma dialética do amor
àquela do reconhecimento. Kojeve é tão preciso, ao apresentar essa substitui-

14 J. Lacan , A angústia, sessão de 2 1


de novembro de 1 962. A transcrição tão docu mentada de
Roussan "entrega os pon tos" quanto à dita " nota" .
L , LACA N : D U A S IR R E S I S T Í V E I S R E C E I TAS PARA O B T E R O AMOR 233
H EG E

ão, que é possível retomar seu texto sob a forma de um quadro, os itens da
�é à esquerda transformando-se um a um naqueles da direita (não vamos
rie
esquecer q ue se trata de um Hegel à moda Kojeve).

DIALÉTICA DO AMOR D IALÉTICA DO RECON H ECIMENTO

Desej o de amor Desejo de reconhecimento


Reconhe cimento mútuo no amor Reconhecimento social e político
Dialética am orosa Dialética histórica
Real ização no aro sexual e na criança Realização na lura culminando no sábio
Os separados são os amantes Os separados são o mestre e o escravo
Paridade dos separados Disparidade dos separados
A realidade humana dialética é o amor A realidade humana dialética
é a sabedoria/ciência

Estamos aí às voltas com uma espécie de chassé-croisé entre Lacan e


Hegel-Kojeve. Hegel por certo tem boas razões para deslizar de uma dialéti­
ca do amor para a do reconhecimento, e Kojeve as enumera. O amante, na
medida em que deseja ser amado, não é habitado por um desejo empírico
mas deseja ser reconhecido em sua particularidade tomada como valor
absoluto, universal. O registro é o de uma espiritualidade; não se trata de
um fenômeno natural, não mais que a Fenomenologia do espírito não é ela
mesma um desenvolvimento dialético de ordem natural. Mas, primeira
objeção, de certo modo de Hegel a si mesmo, esse desejo permanece de
ordem privada: só é possível ser amado por alguns. Segunda objeção, o
amante, diferentemente do mestre, não corre risco de vida (objeção aos
o lhos de Lacan bem discutível: ele volta várias vezes 1 5 ao deprimente apó­
logo em que Kant recua em considerar que um amante possa pôr a vida
em jogo a fim de satisfazer sua paixão) . Logo, não há, no amante, terceira
objeção, nem ação nem obra. Seu desejo de reconhecimento se refere a seu
Ser-dado (Sein). E Kojeve cita Grethe: ama-se alguém não por causa do
que ele faz, mas do que ele é- razão pela qual se pode amar um morto,

1 1 Notadam ente em " Kant com Sade", Lacan, Écrits li, op. cit. , p. 2 59-260 .
2 34 O A M O R LAc
AN

um animal, uma planta, u m rochedo. Disso decorre, quarta obje ção , que
um homem feliz no amor não pode estar plenamente satisfeito. Só a lu t a
e o trabalho produzem uma realidade objetiva verdadeiramente humana .
Essas objeções, que terão levado Hegel a pôr de lado sua dialétic a do
amor, valem ser aqui relatadas igualmente por serem, para o movimen to
lacaniano, atuais. Lacan as havia feito suas em 1 938, ao escrever, em Os
complexos familiares: " Hegel formula que o indivíduo que não luta pa ra
ser reconhecido fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade
antes da morte. [ . . . ] No que se refere à dignidade pessoal, é só àquela da s
entidades nominais que a família promove o indivíduo e ela só c onse ­
gue isso na hora da sepultura 1 6 " . Ora, o que aconteceu ao termo de seu
percurso? Um movimento exatamente inverso, já que um amor e m que
uma parte de sua própria família figura em primeira linha foi então po r
Lacan proposto como sendo o próprio laço pelo qual cada aluno poderia
ter acesso à sua "dignidade pessoal". Um único título como O dia em que
Lacan me adotou 17 é límpido a esse respeito: trata-se de filiação, de uma
inscrição numa família. A enumeração de Kojeve/Hegel dá exatament e
o preço disso.
Enquanto Hegel deixava de lado a dialética do amor, Lacan, bem
antes desse problemático recurso a uma parte de sua família, e logo
antes de inventar o objeto a, volta a isso, mas para daí produzir outra
versão. Ele refaz ao avesso o percurso entre o Hegel de juventude e o da
maturidade a fim de desembocar numa outra figura do amor que aquel a
que Hegel teve de pôr de lado para escrever sua Fenomenologia. Seu "Te
amo, mesmo que eu não saiba" é por certo reconhecido indizível {só
isso o torna por um instant e sustentável), mas parece no entanto poder
atuar como o elemento essencial da posição e da ação do analista na
transferência. Bem entendido, ele nem por isso podia, o que de qualquer
modo decorre logicamente, pretender que, com essa declaração não dita,
o analista ama o analisando. Ora, ele procura precisar que não, o que,

1 6 Jacques Lacan , Autres écrits, Paris, Le Seuil , 200 1 , p. 36.


17
Gérard Haddad, O dia em que Lacan me adotou, Rio de Janeiro, Editora Companhia de
Freud, 2003.
L L A C A N : D U A S I R R E S I S T Í V E I S R E C E I TA S P A RA O B T E R O A M O R 235
1-f E G E

a questão, antes lhe acusa o caráter aberto. E como,


l onge de encerrar
alé rn disso, essa declaração distingue mal amor e desejo, permanece
c o loca da a questão de saber como é amando que o analisando advém
c o rno desejante.
Assim, o que vai trazer, quanto a essa questão, a invenção do objeto a?
CAP ÍTU LO X I I

O AM O R LACAN
AP Ó S O O B J E T O a

L ogo após sua disputa com Hegel, que devia determinar qual dos dois
detém a melhor fórmula para obter o amor com certeza, Lacan pro­
cura trocar o agalma pelo objeto a. Em 1 6 de janeiro de 1 963, depois de
d iferenciar a transferência da repetição e observar que se trata de um amor
presente no real, é ainda trazida a questão central da transferência como
"a questão que o sujeito se coloca quanto ao agalma, isto é, o que lhe falta.
Pois é com essa falta que ele ama 1 " . Porém, uma semana mais tarde (23 de
janeiro de 1963), vem a troca do agalma pelo objeto a. O acontecimento
era previsível, após a oferenda por Lacan do objeto a a seu público em 9
de janeiro de 1963 . Por outro lado, era menos previsível que essa troca
viesse acompanhada de outra questão (nova nos seminários que, até ali, só
tinham feito tocá-la de leve) proposta sob o título de "A ambiguidade da
identificação e do amor", em outras palavras, a difícil questão freudiana da
identificação regressiva de luto.

Esse a, objeto da identificação[trata-se das identificações constitutivas do eu


ideal], só é também a objeto do amor na medida em que é, esse a, o que faz
o amante - para empregar o termo medieval e tradicional - o que arranca
metaforicamente esse amante, [ . . . ] a se propor como amável, erômenos, fa­
zendo-o erastês [erôn na versão Roussan], sujeito da falta, logo, aquilo com
o que ele se constitui propriamente no amor; o que lhe dá, se posso dizer,
o instrumento do amor, a saber, caímos novamente nisso, que se ama, que
se é amante, com o que não se tem.

1 T. 1 .�..-� n . A mwústia. sessão de 1 6 de j a neiro de 1 963.


238

Vem em seguida o jogo do amor e da identificação regressiva de luto:

Esse a se chama a em nosso discurso, não só como a função de ide ntidad e


algébrica que ressaltamos outro dia [nisso consistiu a invenção de pequeno
a em 9 de janeiro de 1 963) , mas, se posso dizer humoristicamente, para 0
que é, o que não se tem mais. É por isso que podemos encontrá-lo p or via
regressiva sob forma de identificação, isto é, com o ser, esse a que não se tem
mais. [ . . . ] Mas nessa regressão em que a permanece o que ele é, instru mento ,
é com o que se é que se pode, se posso dizer, ter ou não 2 •

Lacan parece ter esquecido que a metáfora do amor, segundo suas


próprias conclusões, não funcionava - o termo, no entanto, não é aqui pro­
nunciado. Seja como for, não é para esse lado que convém puxar esse texto,
o problema sendo saber não como de amado a pessoa se torna amante, mas
dar conta de uma regressão. Amar, fazer-se sujeito da falta, é dar o objeto a,
dar, portanto, o que não se tem, mas o que se é. E é isso mesmo que apó s
ser dado seria recuperado, por regressão, na identificação de luto. Seria uma
identificação com o objeto a, uma identificação que recomporia, no que se
refere ao sujeito, esse eu ideal que para ele figurava, em razão de seu amor,
o próprio objeto que ele acaba de perder, seu(sua) amado(a). Entretanto, a
noiva não parece bela demais? Lacan de fato reencontra, tal como afirma,
sua definição do amor como dom daquilo que não se tem? Encarado formal­
mente, o problema assim colocado foi de fato identificado e formulado pela
epistemologia moderna. Não é porque se usa um mesmo termo (aqui, uma
mesma definição do amor, uma descrição definida) que se está às voltas com
o mesmo objeto, nem com um mesmo sentido. Um mesmo termo, retomado
num meio conceitua! diferente, não tem mais o mesmo alcance3 • A fórmula

2 J. Lacan, A nng,ístin. Modificado com a aj uda da versão Roussan .


3 Ass i m , por exemplo, é aberrante encarar c o m o u m mesmo conceito remetendo a u m mes­
mo referente a sexualidade segundo os psiquiatras do século XIX e a sexualidade segundo
Freud. Arnold Davidson escreve: "Com efeito, ao afirmar que não há objeto natural do
instinto sexual , que o objeto e o insti n to sexual estão simplesmente soldados, Freud aplicou
u m golpe conceitualmente devastador em todo o edifício das teorias da psicopatologi a se­
xual do século x1x" (Arnold 1. Davidson , L'émergence de ln sexunlité. Épistémologíe historique
et formntion des concepts, traduzido do inglês por Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Albin
M ichel . 2004. o. 1 5 2) .
O R LACA N A P Ô S O O B J E TO ,1 2 39
O AM

"dar O que não se tem" assume aqui uma coloração particular, aquela que
as sinala um termo por duas vezes repetido: "instrumento". Lê-se, segunda
ocorrência: "nessa regressão em que a permanece o que é, instrumento".
fazer- se amante seria tomar o objeto a como um instrumento. O amor
ser ia assunto instrumental. No amor, o próprio amante se instrumentaliza
enquanto objeto a, usa de si mesmo, de seu próprio ser na medida em que
esse ser é o objeto a. Ora, o que pode querer dizer que um dom seja dom
de um instrumento? É tornar o dom intencional, fazer dele um dom que
vise algo (a desconfiança de um Bentham em relação ao altruísmo não está
longe); assim, o dom da pessoa de Cristo crucificado a visar a ressurreição
de rodos. Seria, de fato, um dom assim instrumentalizado que estivera pre­
viamente em questão? Se o dom é intencional, suspeita-se que ele poderia
bem resultar da troca. Ora, é precisamente o que fora excluído no momento
em que Lacan inventava sua fórmula do amor como dom daquilo que não
se te m. O problema remete em linha direta à questão do puro amor.
Em 3 de julho de 1 963, derradeira sessão de A angústia, Lacan vai
novamente considerar o que a identificação regressiva de luto é suscetível de
indicar a respeito do amor. Está então em questão o amor de Hamlet por
seu pai, um amor cujo valor inibitório ninguém ignora e que Lacan, nesse
dia, afirma ser parente do amor cortês. Mas é para opor a esse amor cortês
um amor verídico, nada além do que já pode ser chamado "o amor Lacan".
O amor cortês "se endereça a outra coisa que à dama", ele é, ao contrário,
" o signo de sei lá que carência, de sei lá que álibi, diante dos difíceis cami­
nhos que representa o acesso a um verídico amor". Eis, pois, o amor cortês
encarado como álibi, não é pouco.

Freud nos observa que o sujeito do luto está às voltas com uma tarefa que seria
de certo modo consumar uma segunda vez a perda provocada pelo acidente do
destino do objeto amado. O que isso quer dizer? Será que o trabalho do luto
não nos surge, numa luz a um só tempo idêntica e contrária, como o trabalho
que é feito para manter, para sustentar todos esse laços de detalhe?

Boa pergunta! O que importa no trabalho do luto é seu valor conser­


va tó rio do laço. A continuação diz isso de modo mais explícito mas, desta
vez, conforme as coordenadas lacanianas:
É esse laço que deve ser restaurado com o objeto fundamental, o obje to
mascarado, o objeto a, verdadeiro objeto da relação ao qual, na continu ação ,
um substituto poderá ser dado que não terá, no fim das contas, mais alcan ce
que aquele que, primeiramente, ocupou seu lugar.

Entende-se a ironia feita à troca de um objeto encarado como i (a).


E, com efeito:

Como me dizia um de nós, humorista, durante uma de nossas Jornadas


Provinciais, é a história bem feita para nos mostrar no cinema que qualq uer
alemão insubstituível [alusão ao filme Hiroshíma meu amor] pode encontrar
um substituto imediato e perfeitamente válido, esse alemão insubstitu ível ,
no primeiro japonês encontrado na esquina da rua. O problema do lu to é
o da manutenção de quê? Dos laços por onde o desejo é suspenso, não ao
objeto a no nível quarto [escópico4 ], mas a i(a) com o qual todo amor, n a
medida em que esse termo implica a dimensão idealizada de que falei, é
narcisicamente estruturado.

Logo, eis novamente aqui o amor lançado no imaginário. Uma pri­


meira indicação disso foi dada com a mudança de valor tomada pelo dom.
Quando pensamos em todo o esforço feito por Lacan, em janeiro de 1 9 57,
no momento em que ele forja sua fórmula: o amor é dar o que não se tem,
para bem diferenciar o dom de toda perspectiva de troca, para apresentar
o dom de amor como dom simbólico, como dom de nada, como dom de
um símbolo, ao lermos agora essas frases, ficamos simplesmente siderados.
Não está mais aqui em questão "pura gratuidade", já que, ao contrário, o
próprio dom é instrumentalizado, enquanto que se ironiza, entre médicos,

4 A respeito do objeto a nesse nível quarto, pou co antes Lacan declarava: " É por isso que,
paradoxalmente, é no nível dito quarto, no nível do desejo escópico que, se a estrutura
do desejo é para nós a mais plenamente desenvolvida em sua alienação fu ndamental, é ali
também que o objeto a é mais mascarado e com ele o sujeito é, quanto à angústia, o mais
securizado" .
O R L ACA N A P Ó S O O B J E T O n
O AM

sobre o caráter insubstituível do amado. Um outro termo também vem


confirmar esse acento freudianamente colocado na idealização amorosa: eu
ideal, Ele é objeto do mesmo espanto. Lacan, em março depois em maio
de 1 9 5 4, procurou mostrar primeiramente como o amor acontece quando
0 ideal do eu vem alojar-se no nível do eu ideal (aqui mesmo, capítulo 1),
depois mostrar, ao inverso, que, quando se reitera a assunção jubilatória no
nível do eu ideal, o desejo volta verbalizado, apoiou-se no ideal do eu para
esticar o amor na direção do simbólico, e eis tudo isso esquecido, eis que
0 amor se situaria no nível do eu ideal sem mais nenhuma relação, pelo

menos explícita, com o ideal do eu. Todo o apoio tomado na época sobre
0 ide al do eu, sobre "o outro enquanto falante", para parcialmente fazer

bascular o amor no simbólico parece, então, nunca ter acontecido. O que


se passa? Por que esse retorno forte da dimensão imaginária do amor logo
após a invenção do objeto a?
A fim de começar a responder, lembraremos que um dos eixos do
seminário A angústia é dado pela problematização da "divisão aritmética"
do sujeito, operação que deve fazer advir o sujeito desejante a partir de
um sujeito reconhecido antes de mais nada como sujeito do gozo. O ª ?1 ºr
não aparece nesse esquema do qual mostrei em outra parte que, mesmo
aritmeticamente, ele não se sustentava 5 - o que de modo algum implica ser
necessário proibir-se de fazer-se disso a vítima6 •

A s
s IA
a
lado do Outro lado do sujeito

1
J ean Allouch, Le désir de castration, seminário inédito, sessóes de 9 de fevereiro e 1 6 de
março de 1 999.
6
Esse esa uema é oroduzido desde a seeunda sessão de A anf/Ústia.
O A M O R L ACAN

Outra cifração:
Outro origi nário Sujeito não ainda existe nte X
Sujeito marcado com o traço u nário I nconsciente como lugar do Outro ANGÓST(A

outro como objeto DESEJO

Não ainda existente, o sujeito se constitui no lugar de um Outro orig i ­


nário, lugar do significante, enquanto divisor. A operação barra esse Outro e
produz o sujeito barrado, não sem um irredutível resto, denominado objeto
a. Essa divisão é em dois tempos, o que permite a distinção de três "andares" :
respectivamente os de um X primeiro, da angústia e do sujeito desejante.
Nenhum rastro de amor nessa maneira de subjetivação. Mas como, haja
vista essa ausência (será mesmo uma ausência?), posicionar o amor? Por que
Lacan fez tanta questão, a despeito de algumas de suas próprias afir mativas
anteriores, de acentuar-lhe o caráter narcísico? A resposta vem com duas
afirmações que podem ser chamadas de choque, apresentadas como tais.
A primeira é de 27 de fevereiro de 1 963. Lacan, dirigindo-se ao auditó rio,
declara: "Vocês estão maduros para entender isto". Esse auditório era tão
maduro [mur] quanto pretendia? Não seria melhor transcrever: "bastante
muros [murs] " ? Mas por que ironizar sobre um infeliz seminarista perdido
num procedimento diagnóstico para com o auditório? Vamos antes reter o
efeito retórico de anúncio.

[ . . . ] na medida em que o desejo intervém no amor e é, se posso dizer, o


que de essencial está em jogo, o desejo não diz respeito ao objeto amado.
Enquanto essa verdade primeira, em torno da qual somente pode girar uma
dialética válida do amor, estiver colocada para vocês na condição de um
acidente, Erniedrigung, da vida amorosa, de um Édipo que prende as patas,
pois bem, vocês não compreenderão absolutamente nada do que está em
questão, da maneira como convém colocar a questão relativa ao que pode ser
o desejo do analista. É por ser preciso partir da experiência do amor, como
fiz no ano de meu seminário sobre a transferência, para situar a topologia
na qual essa transferência pode ser inscrita, é por ser preciso partir daí que
hoje[a isso] os levo.
O AMO R LACAN A P Ó S O O B J E TO " 2 43

Objeção: nesse seminário, Lacan não parte precisamente daí, do


aJTl O r, mas do sujeito do gozo. No entanto, entendemos que a insistência
no caráter narcísico do amor é bem apropriada para dar corpo ao fato de o
desejo não dizer respeito ao objeto amado. O desejo, de certo modo (o "na
medida em que"), pode ser uma questão essencial no amor. Mas seu objeto
á é amor, não é o amado, vai sê-lo ainda menos porquanto teremos
n o O do
quas e localizado o amor no plano do narcisismo.
Uma outra declaração, da penúltima sessão desse seminário (26 de
junho de 1963), parece da mesma inspiração. Trata-se do obsessivo e, bem
entendido, do dom. Lacan proclama-lhe alto e forte o caráter estritamente
an al: "Não há rastro de dom num ato genital copulativo, por mais bem­
sucedido que vocês possam imaginá-lo". O amor altruísta do obsessivo,
um amor idealizado, exaltado (da mulher, na oportunidade) atua, no nível
escó pico, de maneira análoga ao dom do objeto anal. Diferente nisso do
erotômano, o obsessivo de fato compromete algo dele em sua maneira de
amar: precisamente esse objeto anal. Esse objeto assume nele valores tanto
mais desenvolvidos já que chegou ao estádio fálico, mas de maneira cal que
teve de rapidamente ir embora para a analidade, analidade esta que é então
canto mais animada, viva e inventiva porquanto está permanentemente
obsedada pelo estádio fálico. O obsessivo faz dom ao outro de uma imagem
de si pela qual ele entende que é amado, de uma imagem i(a) tanto mais
amável porquanto ela usufrui do brilho de seu objeto a. Assim, fica claro
que seu amor exaltado pelo outro nega seu próprio desejo. E, acrescenta
Lacan não sem um certo otimismo, as mulheres aí não se enganam. É bem
certo? Lacan: "Tudo o que acabamos de dizer da função de a como objeto
de dom andlogo, destinado a reter o sujeito na borda do furo castrativo,
tudo o que acabamos de dizer podemos transpor para a imagem". Logo,
seria esta a função desse amor: reter o sujeito na borda do furo castrativo.
Confirma-se que o objeto do desejo não é o objeto amado. Mas, de um ao
outro, uma certa relação é aqui afirmada: o amado não tem apenas uma
incidência inibidora, ele vem colocar uma rolha.
No entanto, amar poderia ter outro alcance. Certo, o aforismo que
diz esse outro alcance é de vários meses anterior. Com efeito, em 27 de
fevereiro, Lacan declarava: "Só o amor permite ao gozo condescender ao
2 44

desejo". É verdade que, para intervir assim, o amor deve ser encarado corno
"sublimação do desejo". Lacan dá-se conta da maneira como ressoa urn a
afirmação assim:

Continuo. Toda exigência de a na via desse empreendimento, digamo s,


já que tomei a perspectiva androcêntrica de encontrar a mulher, só pode
desencadear a angústia do outro, j ustamente pelo fato de que não o faço
mais que a, que meu desejo o odeie*, se posso dizer. E, aqui, meu pe queno
circuito de aforismo morde o próprio rabo; é bem por isso que o amo r
sublimação permite ao gozo, para me repetir, condescender ao desejo. O ra
que nobres afirmações! Estão vendo que não temo o ridículo.

Logo, ele imediatamente se apressa em partir novamente para outro


lugar. A justo título, pois seu comentário do amor cortês de fato tinha ex­
cluído que o amor fosse uma sublimação - confirma isso o que é dito do
amor ao fim de A angústia. E é assim que, bem nesse fim, o amor é libertado
de sua ancoragem em i(a). Isto é só uma indicação, o seminário está então
a ponto de ser concluído. Ela nada muda no que foi dito do amor nardsi­
co e de sua função; um álibi, uma rolha, uma maneira de bordejar o furo
castrativo. Mas poderia operar um outro amor (o amor verídico? O amor
Lacan?). Trata-se de um outro amor? De uma outra dimensão do amor? D e
um amor que reencontraria sua dimensão simbólica? Não está respondido
a nenhuma dessas questões, ao passo que uma porta está no entanto aberta
pela seguinte afirmação:

Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Só há amor de


um nome, como todos sabem por experiência, e o momento em qu e é
pronunciado o nome daquele ou daquela a quem se endereça nosso amor,
sabemos muito bem que é um limiar que tem a maior importância.

"Só há amor de um nome", a afirmação é lançada dois minutos antes


do termo desse seminário. Para quem conhece a sequência, ela remete ao

* Que Lacan escreve tt-ise em vez de httisse. (NT)


O R L A C A N A P Ó S O O B J E TO ,, 2 45
O AM

m atern a da transferência escrito na "Proposição de outubro de 1 967 sobre o


a ista da escalá' em que vai estar em questão a redução do psicanalista,
psic nal .
e" , ao s1gm'ficante qualquer... Por enquanto, coloca-se uma
''ele e seu nom
que é também uma não menos séria dificuldade. O que acontece com
questão
· a1·1sta, e este e' um traço
� . uma vez que ele, o pstcan
esst amor de eransfierencta
de su a inédita posição enquanto amado, não é nomeado? O que acontece
com esse amor de transferência que jamais, isso por causa do psicanalista,
de sua ativa abstenção, ultrapassaria esse limiar? O psicanalista não responde
ao amor de transferência nomeando-se. Por que razão? Por estar prevenido,
e le, que, enquanto objeto a, ele permanece inomináveF. A última frase de
A angústia diz isto: "Com certeza, convém que o analista seja aquele que
tenha podido, por pouco que fosse, por algum viés, por alguma borda, fazer
seu desejo entrar o bastante nesse a irredutível para oferecer à questão do
conceito da angústia uma garantia real". Há equivalência entre "fazer seu
desejo entrar o bastante nesse a irredutível" e abster-se de nomear-se enquan­
to amado. Dito de outra maneira ainda: o psicanalista não pode se achar o
grande Outro. Aliás, conviria, ao transcrever essa afirmação, escrever mais
uma vez não "Outro" mas "otro", pois se está aqui às voltas a um só tempo
com o grande Outro e o pequeno outro- se todavia for verdade que não se
pode pura e simplesmente pôr i(a) fora do campo do amor de transferência.
Questão: esse limiar não transposto na psicanálise não é exatamente aquilo
pelo qual ali se obtém o amor que não se obtém?
Conclusão: enquanto em A angústia o amor é amplamente lançado
na conta do narcisismo, um outro amor discretamente vem à superfície.
Temos aí a resposta à questão da incidência do objeto a no "grande caso para
todos" que é o amor? Não exatamente. Talvez um efeito do objeto a acabe
de ser isolado (a volta forte do narcisismo no amor), mas um efeito cuja
razão ainda se ignora. Essa razão, para encontrá-la explicitamente formulada,
será preciso esperar, para além da única sessão do seminário Os nomes do
pai e a dita "excomunhão", aquele sobre Os quatro conceitos fundamentais

7
Cf sessão de 1 2 de maio de 1 965 do seminário Problemas cmciais para a psicanálise, transcri­
ção Afi. Doravante: Problemas cmciais . . . Vamos nos reportar com grande proveito à versão
O A MO R. LA c
AN

da psicandlise, aquele em que, no entanto, não figuram, como co nc eito


s
fundamentais, nem o amor (o que não espanta, já que o amor não é u
rn
conceito) nem o desejo (uma ausência que espanta por não espantar). O que
encontramos no lugar dessa ausência? A pulsão. E é trabalhando a estranha
e propriamente psicanalítica questão da relação do amor não com o desejo ,
mas com a pulsão que Lacan vai poder dizer mais adiante a incidência do
objeto a no amor.
CAP ÍTU LO X I I I

0 AMO R E N GANAD O R

P or ter dado novamente ao amor sua ancoragem narcísica, o objeto a


faz do amor uma enganação. Bem no início do seminário Os quatro
conceitos. . . , Lacan cita duas estrofes de "Contracanto" (22 de janeiro de
t 96 4). Este poema dá o tom:

Inutilmente a tua imagem chega ao meu encontro


E não me entra onde estou que somente a mostro
Ti,, se te virasses para mim só poderia encontrar
No muro de meu olhar a tua sombra sonhada.

Sou aquele infeliz compardvel aos espelhos


Que podem refletir mas não podem ver
Como eles meu olho é vazio e como eles habitado
Pela ausência de ti que faz sua cegueira.

Com Aragon, Lacan maldiz o amor 1 • Definição: o amor é aquilo que


põe o narcisismo a serviço de uma enganação. Qual é ela? Quais são as vias?
Suas consequências? O que ali é passado para trás? Como o psicanalista
pode jogar com isso? " Enganação": se essa palavra por um tempo ressoou
em Lacan como associada ao simbólico (a enganação valendo como dêitico
de que de fato se estava às voltas com um sujeito), é bem num outro sentido
que ela aqui intervém. A enganação do amor, a enganação que é o amor,
surge nos seminários em 1 2 de fevereiro de 1964. Neles reaparecerá, algumas
vezes, pelo menos em fevereiro de 1966. Mas o próprio fato vai continuar

1 T T ara n P,,nl,lomm r,•,,rini, <P<S�n ,l p 1 6 el e cleze m h ro el e 1 96 4 .


O A M OR LAc
AN

sua estrada bem para além dessa data e sofrer notáveis transform aç õ es. N a
linha "enganação", o amor é designado como uma "falsidade" em 1 7 de
junho de 1964, como uma "negação" em 7 de dezembro de 196 6, corn o
um "monstro" ou ainda como "importuno" em 1 8 de janeiro de 1 9 67
como um "melaço" em 2 1 de fevereiro de 1968. Em 9 de junho de 1 97 1 '
de maneira talvez mais neutra, ele é apresentado como uma máscara. N ã�
se imaginará, pelo menos a priori, que o amor assim colorido seja diferente
do amor como dom daquilo que não se tem que, este, ainda que por pura
cretinice, parece dar alguma esperança e satisfazer a ética. Ao contrário, ser ia
possível que o amor como dom daquilo que não se tem fosse ele m esrn o
enganação, falsidade, negação, monstro, melaço, máscara.
Os seminários "pós-objeto a" notam primeiramente que amor e
inconsciente não se dão bem - o que Mais, ainda vai contradizer. N u rn
primeiro momento, essa incompatibilidade entre o amor e o inconscie nte
não é muito desenvolvida, Lacan preferindo brigar em outro terreno. Ern
22 de janeiro de 1 964 , ele está, uma vez mais, ressaltando o interesse de
Freud pelo que ele mesmo terá nomeado as "formações do inconsciente".
Um lapso é um certo gênero de achado e até de reachado. Algo foi perdido,
ao qual remete o lapso, que portanto acha, mas à sua maneira, esse perdido;
ora, esse próprio reachado é chamado a ser perdido. Lacan então se lança
numa metáfora:

[ . . . ] Eurídice duas vezes perdida, eu lhes diria, é esta a imagem mais sensível
que possamos dar no mito, daquilo que é o mito, daquilo que é essa relação
do Orfeu analista em relação ao inconsciente . Com o que, se me permitem
aí acrescentar alguma ironia, o inconsciente está na borda estritamente
oposta daquilo que acontece com o amor, que todos sabem ser sempre
único, e que a fórmula "uma perdida, dez encontradas" é a que encontra
sua melhor aplicação 2 •

O amor e o inconsciente são antinômicos, pelo menos no sentido de


que o amor, diferentemente do inconsciente, não vacila, não é descontínuo.

1
J . Lacan, Les quatre conceptsJondamentaux de la psychanalyse, transcrição Afi, sessão de 22 de
janeiro de 1 964. Doravante: Os quatro conceitos. . .
OR ENGANADOR 249
O AM

a n o sen tido de que cada abertura do inconsciente c� nduz o suj eito


E ai n d
cer ta p erda, ao passo que o amor, este, nada perde. E este o alcance
a U rn a
. ' i" a frase: " Uma perdida, dez encontradas" . Estamos cientes . Ainda
iro n co d
mais q ue ess a antinomia vai ser duplicada por outra, a do amor e da pulsão,
u Lac an só forja forçando Freud.
q e
No ano do seminário dito "dos quatro conceitos" , que se quer uma
rn artir de zero daquilo que dali por diante vai se chamar um
reto ad a a p
"en sin o" , o in consciente é apresentado como um "conceito fundamental",
es tat uto q ue ele partilha com três outros eleitos: a repetição, a transferência,
a p uls ão. Talvez Lacan tenha encontrado em Freud seu conceito de "con­
ceit o fu ndam ental": Grundbegriff é mencionado nada menos que cinco
vezes na pri meira página de " Pulsões e destinos das pulsões " ( 1 9 1 5) . A
3

escolh a dessas quatro noções como "conceitos fundamentais" cria enigma, e


Lacan não parece tê-la j amais j ustificado. Por exemplo, e ficando em Freud
(um a exigência que parece bem ter determinado suas escolhas, ainda mais
q ue Laca n acabava de ser excluído da I PA) , por que não a fantasia, da qual
cercas leituras de Freud fazem o achado inaugural da psicanálise, sendo sua
invenção correlativa do abandono da teoria da sedução ? O desejo, por sua
vez, já soava lacaniano demais para ser retido ? Em compensação, �gura a
p ulsão, que Freud, cinquenta anos mais cedo, havia elevado ao nível de
"co nceito fundamental " . Uma problemática inédita em Lacan, a da relação
o u das relações entre o amor e a pulsão , vai portanto ser desdobrada. Como
a q u estão fora tratada por Freud já em 1 9 1 5 , Lacan não podia ignorar " Pul­
sões e destinos das pulsões" , um escrito que vai lhe dar ainda mais o que
fazer, já que ele pretendia resolver o problema amor/pulsão diferentemente
de Freud . Com efeito, esse texto, apresenta o amor e o ódio como um dos
três pares pulsionais estudados . Freud faz da inversão do amor em ódio um
exemplo bem caracterizado de " inversão do conteúdo" pulsional , o que não
o impede de escrever, algumas páginas mais adiante, que o caso do amor e
d o ódio "dificilmente combina com nossa representação das pulsões" . Ele

3 Sigmund Freud, Métapsychologie,


trad. do alemão por Jean Laplanche e J.-8. Poncalis, Paris,
i""'I 1 1 . . -
"resolve" a questão afirmando que amar é de ordem pulsional depois de ter
sido realizada a síntese de todas as pulsões parciais, ou seja, no ato genital
reprodutivo. O que não convém muito a Lacan4 •

DIALÉTICA DO OLHO E DO OLHAR

O terreno onde ia atuar a incidência do objeto a sobre o amor Lacan (4 de


março de 1964) estava de antemão bem disposto. Para entendê-la em su a
simplicidade, bastará notar que é pelo olhar que costuma passar o amor - ali
onde a concepção freudiana distinguia duas pulsões específicas, de um lado
o amor ódio, do outro o voyeurismo/exibicionismo. Os gregos já tinham
fortemente acentuado o papel do olhar no enamoramento. O estudo qu e
Claude Calame dedica a O eros na Grécia antiga cita, de imediato, um canto
do coro do Hipólito de Eurípides:

Amo,; Amor que pelos olhos destila o desejo,


inspirando uma doce vo!ttpia
nas almas que teu ataque persegue,
nunca te mostres a mim com a escolta da infelicidade,
[. . .] 5

A chama do amor é tanto olhar quanto queimadura; Afrodite é dita "de


vivas pupilas6 " . As repercussões do relato de Apuleio contando o nascimen­
to da alma, psukhe, são determinadas por jogos de olhares. Psique foi o nom e
de um espelho. Na Grécia antiga, a incidência do olhar no amor é pensada
da maneira mais concreta: o olhar é um fluxo físico, material, partindo do
amado, atingindo o olho do amante {que se inflama) e "constrangendo"

4 Eis uma frase característica do gê nero de torção que ele faz em Freud: "Encontro aquilo que ,
no ponto que lhes citei, o próprio Freud articula, ao dizer, ao distinguir os dois campos, o
campo pulsional , de um lado, e, do ou tro, o campo narcísico do amor" . Como se Freud
nunca tivesse falado de libido narcísica!
5 Claude Calame, L'éros d1111s /11 Grece 1111tiq11e, Paris, Belin, 1 996, p. 1 4 .
6 Ibid. . D. 32.
O AM O R E N G A N A D O R 251

7
(Winkler) o amante a "dizer 'vejo', depois 'amo . Logo, a incidência do
"'

não é nem intempestiva nem inapropriada. Certo,


olhar no amor em Lacan
não se pode admitir que seja sempre o olhar que suscite aquele que ama.
Outros objetos a podem desempenhar esse mesmo papel. Mas, no caso em
q uestão, o olhar com certeza é o objeto a mais exemplar.
Em 4 de março de 1 964 é descrito o funcionamento da pulsão es­
có pica. Apesar de certas reservas não desprezíveis, notadamente o impres­
sionismo, Lacan então apresenta a teoria segundo a qual, na relação entre
0 pintor e o amante das artes, o quadro é um trompe-l 'reil. O trompe-l'reil
é um cer to gênero de enganação. Intervém, então, uma analogia entre re­
lação pictórica e relação amorosa: o amante das artes será enganado como
será enganado o amante. Essa analogia não é de quatro, mas de três termos:
n ão A estd para B como C estd para D, não a analogia ad alterum, aquela
que São Tomás chama "analogia de proporcionalidade", mas a analogia "de
proporção", a analogia ad unum, a analogia B estd para A como C estd para
A. A enganação estará para o amante como essa mesma enganação estará
para o amante das artes. Dito em outros termos, o amante será enganado
da mesma maneira e segundo a mesma via escópica que o será o amante
das artes - assim, quem estiver em busca de um amante à altura estaria
bem prevenido de escolhê-lo amante de pintura. A incitação, ou talvez até
o desafio do pintor, seria, dixit Lacan: "Você quer olhar, pois bem, então
veja isso! ", deponha ali o seu olhar "como se depõem as armas", acrescenta
ele provavelmente sem pensar no amor guerreiro (a paternidade de Eros é
flutuante, alguns mitógrafos lhe atribuem como pai Ares, deus da guerra).
Em que há aí enganação? No fato de que o encontro não seria faltoso e que,
faltoso, ele só pode sê-lo. Há depósito do olhar pois o quadro é ofertado não
ao olhar, mas ao olho e - precisão decisiva - ao olho como órgão. Ora, esse
ór gão... não é o bom, aquele pelo qual a pulsão encontraria sua satisfação.
A fim de indicar isso, dois meses mais tarde (20 de maio de 1964), Lacan
inventa um mito destinado a suplantar o de Aristófanes em O banquete
(imaginamos, não funcionou). A lâmina (ou ainda a (h)omelete, ou ainda
a libido - a coisa recebe esses três nomes) é apresentada como um órgão

7
lhid. . n. :,, :,,
252 O AMOR LAc
AN

particular, irreal mas não imaginário, que tem a propriedade de não exis ti
r
mas que, por exemplo, sai voando quando se rompem as membranas do
ovo. A placenta é aqui exemplar, pois pode simbolizar da melhor fo rrn a 0
objeto perdido. A lâmina é um órgão imortal, puro instinto de vida, al go
extraplano e que passa por toda parte, que tem relação com o que o ser vivo
perde por ser sexuado, e um órgão cujos representantes são os objetos a . A
lâmina é algo como o denominador comum libidinal de todos os objetos a,
Cada objeto a é lâmina... organizada. Logo, o olhar também pode representar
a lâmina, o olhar, sim, mas não o olho, que é outro gênero de órgão. Seja ,
agora, a seguinte passagem:

Para nós, na referência que é a nossa, relativa ao inconsciente, em que é tão


nítido que é da relação com o órgão que se trata, a saber, não a sexualidade,
nem sequer o sexo, [ . . . ] mas algo particular, o falo, na medida em que faz
falta ao que poderia ser atingido de real na visada do sexo, é na medida e m
que estamos às voltas com o cerne da experiência do inconsciente, com esse
órgão - determinado no sujeito por uma insuficiência, a que é organizada
no complexo de castração -, que temos que ver em que medida o olho está
interessado numa dialética semelhante. Pois bem! Desde a primeira ab o r­
dagem, vemos na dialética do olho e do olhar que não há coincidência, mas
profundamente engodoª .

O fato de o falo intervir como faltante na "visada do sexo" tornou­


se um top os nessa época do seminário, e L acan pode considerá-lo ganho9
- ainda que o acento aqui colocado no falo como órgão seja neutro. Ora, essa
própria falta não pode menos fazer falta (seria, então, a angústia) quando se
trata de outros objetos a (falicizados), notadamente o olhar. Daí esta afirma­
ção que liga essa problemática da pulsão escópica àquela do amor 1 0 : "Peço
um olhar; quando, no amor, faço esse pedido, o que há ali de profundamente

8
J . Lacan , Os quatro conceitos. . . , sessão de 4 de março de 1 964 .
9 Ver Jean Allouch, " Hommage rendu par Jacques Lacan à la femme castratrice" , L'é11olution
psychiatrique, n º 64 , 1 999.
10 Que transcrevo , a versão Afi não tendo sabido pon tuar a frase, ao passo que a da edição
Seuil elimina o pedido.
M OR ENGANADOR 2 53
O A

· nsa tisfa tório e que sempre falta é que 'você nunca me olha, ali onde eu o
1 ' .
vejo"'. Inversamente, "o que oIh o nunca e o que quero ver" . C orno a pmtura,
or si mesmo e em si mesmo insatisfatório. De que maneira? Para
0 amor é p
saber isso, suprimiremos as negações das duas frases-chave: no amor ou na
in tura você me olha ali onde eu o vejo, ou ainda, o que olho é o que vejo. O
; r como a pintura satisfazem o olho como órgão, não a pulsão escópica
rno

que é, no entanto, o que, através deles, busca sua satisfação. Dito ainda de
oucro modo, o amor não está às voltas com o olhar como faltante, como
objeto perdido. Ou ainda: o amor e a pintura viram as costas à castração
d a pulsão escópica. Ao aproximar amor e pintura, Lacan não pode ver o
amor em pintura. Daí a importância da enigmática e brevíssima observação
sobre o impressionista que atingiria de outra maneira o amante das artes,
o ferecendo-lhe essa própria satisfação pulsional que o olhar demanda.
De acordo com a leitura de Freud proposta por Arnold Davidson 1 1 , é
nos Três ensaios que é inventada a psicanálise, com a disjunção entre a pulsão
e seu objeto (o objeto sendo dito por Freud independente). Assim, Freud dá
0 passo decisivo que o distingue dessa sexualidade psiquiátrica que, ao ligar
a pulsão e seu objeto, era um apoio decisivo à normalidade heterossexual.
Assim, abordar o amor não enquanto pulsão mas referindo-o a uma pulsão
situa de outro modo o amor: o amor está às voltas com a disjunção. entre
a pulsão e seu objeto (no caso em questão, o olhar), pelo fato de que ele
recusa essa disjunção. Essa veia vai mostrar-se sólida. E, ao longo dos anos
que se seguem aos Quatro conceitos, Lacan vai escorá-la associando-lhe certos
dados. Entretanto, antes de percorrer a lista, não passaremos por cima de
uma afirmação do fim do seminário Os quatro conceitos que retoma, mas
de modo um pouco diferente, aqueles que acabam de estar em questão.
Nessa passagem, Lacan tenta dar outro sentido que hidráulico ao que fora
chamado "liquidação da transferência".

Só pode então se tratar, se o termo liquidação tiver sentido, da liquidação


permanente dessa enganação por onde a transferência tende a se exercer no

1 1 Arnold I. Davidson, L'émergence de /11 sex1111lité. Épistémologie historique et Jormntion des


concebtr. traduzido do inglês por Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Albin Michel, 2004.
25 4 O A M O R L A c ,4. N

sentido do fechamento do inconsciente. Expliquei-lhes o mecan ism o d iss o,


referindo-o à relação narcísica por onde o sujeito se faz objeto am ável. Po r
sua referência àquele que deve amá-lo, ele tenta induzir o Outro nurn a
relação de miragem em que o convence de ser amável 12 •

Logo, qual é o mecanismo desse "fechamento do inconsciente"? Po uco


antes, Lacan explicou. Seu achado, aquele que o terá feito ir, pelo men os ele
o afirma 1 3 , para além de Freud, é o do traço unário. "Significante número
um", "primeiro significante na medida em que funciona", o traço unár io
intervém como "mola propulsara" do ideal do eu, instância simbólica de
onde o sujeito pode se posicionar como eu ideal, em outras palavras, im agi­
nariamente "comprazer-se em si mesmo". Será dali, a partir do Ideal do eu ,
que o sujeito "se sentirá tão satisfatório quanto amado". A sessão seguinte
traz uma interessante precisão. Essa identificação "não é a identificação
especular, imediata, ela é apoio dessa identificação especular 1 4 ". Assi m, em
24 de junho de 1 964, a via da enganação do amor podia ser explicitada:
ela se realiza colocando no Outro esse ponto ideal "de onde o Outro me vê
sob a forma em que me agrada ser visto".
O achado da análise - o da pulsão (Freud), o do objeto a (Lacan)
- atinge, por retroação, a concepção do amor. Há andlise, e não apenas
transferência, quando se abre a possibilidade de que se instaure no sujeito
uma outra relação com o olhar que aquela em que ele se vê amável, aquela
que fabrica i(a). " Há um para além nessa identificação, e esse para além é
definido pela relação e a distância desse objeto a com o (I) idealizante d a
identificação". Esse fim de seminário com frequência esteve em questão entre
os alunos. Importa aqui o que ele desenha a respeito do amor. V isto a partir
desse "para alem ' " , o amor surge como uma colagem: "Isso cola" . Da mesma

12 J. Lacan, Os quatro conceitos. . . , sessão de 24 de junho de 1 964. A versão Seuil, acima guar­
dada, felizmente corrigiu a transcrição Afi: não "formação do inconsciente" mas, com efeito,
"fechamento do inconsciente". Mais uma vez aqui, a escrita de "Outro" cria problema: como
se poderia induzir o grande Outro numa relação de miragem, convencê-lo de ser amável?
13 lbid. , sessão de 1 7 de junho de 1 964: "Acho que sim, Freud aqui parou" .
14
Jbid. , sessão de 24 de junho de 1 964 . O que merece ser ressaltado, pois, na transferênc ia
psicótica, a identificação em questão não se superpõe precisamente àquela, ausente, do
estádio do esoelho. mas vem fazer-lhe as vezes.
MOR ENGANADOR 255
O A

for ma q ue terão sido distinguidas duas modalidades da pintura, da mesma


forma o objeto a pode atuar pelo menos de duas maneiras: 1 ) sustentar a
al vir, a partir de Grande I, compor i(a), e é o amor; 2) enquanto
ide izaç ão,
objeto per o, ser posto a serviço da satisfação pulsional, quando a pulsão
did
river sido castrada (simbolizada, subjetivada, o que é possível já que é uma
si lenciosa demanda, de onde o sujeito se esvaeceu) . Há problema pois essas
duas modalidades não só não coabitam na indiferença uma em relação à
outra, mas são antinômicas: o amor se opõe à castração da pulsão, o amor
bloqueia, impede a satisfação pulsional. O fato é que o amor não está tran­
quilo com seu para além, com o objeto a. Este o incomoda, o questiona, o
desestabiliza. Lembraremos aqui, ainda que Lacan a isso não se refira, que
0 amado de certo modo já fora dividido - o que chamei a função de p ara
além do objeto amado. É agora o objeto a que vem em lugar de argumento
dessa função. Ama-se um i(a) . Esse i(a) não é mais agora a imagem de um
pequeno outro, mas uma imagem i sustentada pelo objeto a. Assim, Lacan
pode emprestar ao analisado (não ainda o analisando) a seguinte afirmação:
"Te amo, mas porque amo inexplicavelmente algo em ti mais que ti, que é
esse objeto a, eu te mutilo" .
Eis o analista numa postura próxima daquela de um Sócrates solici­
tado por Alcibíades. Ele não pode entrar nesse jogo do amor, já que outra
co isa que ele é amada nele (um objeto a) ; e, segunda dificuldade, ei-lo aqui
mutilado. Mutilado em quê? De quê? De seu desejo de analista, que passa
pelo afastamento mantido tão amplo quanto possível, no analisado, entre
I e pequeno a.
Esse amor enganador pode ser situado como dom ao analista desse
objeto a que o analisado não tem. O fato é que esse dom serve ao narcisismo,
que ele apresenta uma face de pura e simples atribuição. Há dom, mas não
sacrifício 1 5 - o dom de a limitando-se no amor a constituir um i(a) em que
o analisado vê-se como amável. Daí esta outra frase colocada por Lacan

11
Outra modalidade do dom é indicada bem no fim do seminário Os quatro conceitos . . . (ses­
são de 24 de junho de 1 964) . Está en tão em questão a "lei moral que, exam i nada mais de
perto, nada mais é que o desej o e m estado puro, aquele mesmo que culmina no sacrifício,
propriamen te falando, de tudo o que é objeto do amor, em sua ter n u ra humana, na rejeição
nõn <I.. rln nhiP<n n � rnll..ai<"n . mas em seu sacrifício e em seu assassinato" .
na boca do paciente: " Dou-me a ti, diz ainda o paciente, mas esse do m. d
a
minha pessoa, como diz o outro, mistério, inexplicavelmente vira pres ent e
de uma merda [ ... ]". A coisa é sugerida: seria quando o dom do olhar se
revelasse dom de uma merda (é sabida a conivência desses dois objetos a)
que a pulsão escópica seria castrada e liquidado o amor de trans ferênc ia.

ESCORAMENTOS

Certas indicações vêm escorar esse amor enganador, que poderia, portan­
to, ser também denominado o amor em pintura. Não sem algum arbítrio ,
contaremos cinco. Antes de mais nada Kierkegaard. O "Pascal do Nort e"
começa a ser conhecido em 1 933, no ano em que Paul-Henri Tisseau publica
na editora Alcan A repetição e Temor e tremor. Em 1938, publicação dos
Estudos kierkegaardianos de Jean Wahl. E Rodolphe Adam, que publicava
recentemente um Lacan e Kierkegaard principalmente dedicado a eliminar
os problemas aos quais esse título remete, deve ter razão de conjecturar que
Kierkegaard foi uma das leituras de juventude de Lacan. Assinado Constan­
tin Constantius e com o subtítulo "Ensaios de psicologia experimental", A
repetição comporta vários relatos, notadamente este: um rapaz conhecido
seu vem visitar o narrador, seu confidente.

[ . . . ] ele subiu à minha casa fora de si. Seu ar era mais macho, seu físico,
mais belo; seus grandes olhos dilatados faiscavam; em suma, ele parecia
transfigurado. Contou-me então que amava e pensei sem querer que feliz
no entanto deve ser a jovem objeto de tal paixão 16 •

Essa paixão é tanta que desfaz, em Constantin Constantius, as capa­


cidades de observação: "Não adianta falar, um rapaz apaixonado é tão belo
que, ao vê-lo, esquecemos de exercer as faculdades de observação para nos
abandonarmos ao gozo dos olhos". Ainda um assunto de olhar! O jovem

16 S0ren K.ierkegaard, <Euvres completes, traduções de Paul-Henri Tisseau e Else-M arie Jac­
quet-Tisseau, t. 5 , Paris, Éd. de I.:Orante, 1 972, p. 6.
,, O R E N G A N A D O R 257
O A r"

cia que acaba de se declarar e de ter sido correspondido. Uma certa


l he an un
desconfian ça no entanto surge, no leitor desse relato, quando fica sabendo
ue O jovem temia importunar sua bela passando o dia com ela. Sintoma
:do O q ue há de analiticamente caracterizado: várias vezes no dia, ele foi à
mo rada de sta, mas para logo dar meia-volta. Constantin Constantius aceita
assear com ele e se põe, enquanto espera o fi acre, a escrever algumas cartas.
b u ran te esse lapso de tempo, o jovem não fica parado, cruza a sala a passos
rápidos, obs ervado de esguelha por Constantin Constantius. O qual logo
0 ouve, ch orando, declamar várias vezes uma estrofe de um poema de Paul
Mõ ller, cujo título, também, desperta as suspeitas: Den gamle Elsker, " O
velho amante" :

Um sonho primaveril me vem de minha juventude


Na poltrona onde estou,
E à tua lembrança suspiro sem cessa,;
Mulher que me fascinas.

E Constantin Constantius, tocado pela melancolia do personagem,


imediatamente conclui: "No fundo, ele já havia acabado" , "desde o início
torn o u-se um ancião" . Imaginamos Lacan deleitar-se relendo , em 1 96�, a
observação de Constantin Constantius : "A relembrança tem a grande van­
tagem de começar pela perda; ela igualmente está segura, já que nada tem
a perder" . Diferente nisso da pulsão que encontra sua satisfação , o amor
seg undo o relembrar nada perde, nada perde . . . por esperar. Ele é espera,
suspense do tempo; ele é uma morte na própria vida - o que Constantin
Co nstantius explicita dizendo do rapaz que "ele ficava no fim em vez de estar
n o co meço, e esse erro é a causa da infelicidade do homem" . Eis em que
term o s Lacan apresenta esse texto que foi um dos pilares do existencialismo
e que hoje se prefere intitular ''A retomada" :

Convido-os a reler esse texto fascinante em leveza e em jogo irônico, texto


verdadeiramente mozartiano em seu modo donjuanesco de abolir as mira­
gens do amor. [ . . . ] esse rapaz só se dirige a si por intermédio da memória.
Ele [Kierkegaard] mostra aí algum eco mais profundo da fórmula de La
O A M O R LAc
I\ N

Rochefoucauld que diz que muito poucos experimentariam o am or se 0 •


ªº
lhes tivessem sido explicados os modos e os caminhos, as fórmulas. S i m , rn
as
quem começou? E tudo não começa essencialmente na enganaç ão l 7 ?

Esse amor conforme o relembrar, esse amor enganador, esse a rnor


em que o próprio rapaz também se engana, esse amor narcísico só se en­
dereça a si. Mas Lacan não diz uma palavra sobre o que mesmo assim d á a
esse texto sua malícia, a saber, a distinção kierkegaardiana de duas espécie s
de amores, o amor conforme a reminiscência (o que ele retém) e o a rno r
conforme a repetição (que ele cala). Mais tarde, igualmente, esse silêncio
criará problema.
Lacan não esperou os anos dos seminários pós-objeto a para dizer 0
caráter enganador do amor. Em 8 de fevereiro de 1 96 1 (A transferência. . . ) ,
evocando a reação de Sócrates depois que Alcibíades, ébrio, lhe fez sua de ­
claração de amor durante o banquete que conhecemos, ele lembrava como
Sócrates via naquilo uma proposta inaceitável, a de um espertinho que 0
convidava a trocar cobre por ouro, uma opinião de beleza (a de Alcibíade s)
em troca de uma beleza verdadeira. Com o objeto a, essa enganação vai ser
outra. O amor é enganador não mais no sentido em que Alcibíades tenta
passar Sócrates para trás ao lhe propor uma troca para ele e aos olhos de
Sócrates vantajosa; não mais tampouco no sentido em que o próprio agalma
é enganador 1 8 ; o que o amor vai enganar não é o parceiro do jogo amoro so,
mas algo que decorre de ordem bem diferente, a saber, a pulsão. A enganação
assume outro regime. Esse amor enganador é bem o amor de transferência,
o é ainda mais porque, em contrapartida, "não é um dos menores interesses
da experiência da transferência colocar para nós, mais longe talvez do que
jamais pôde ser colocada, a questão daquilo que é chamado o amor autên­
tico, eine echte Liebe 19" . Mais longe? Talvez! Mas como?

[ . . . ] a enganação, se em algum lugar tem chance de ter sucesso, quanto a um


falso acesso ao que lhe falta, é bem seguramente o amor que dá o modelo

1 7 J. Lacan, Os quatm conceitos. . . , sessão de 1 2 de fevereiro de 1 964 (ligeiramente modificado).


1 8 Seminário de Danielle Arnoux de 30 de março de 2006 (inédito) .
19 J. Lacan, Os quatro conceitos. . . , sessão de 1 5 de abril de 1 964 .
M OR ENGANADOR 2 59
0 A

disso. Que melhor maneira de assegurar, de se assegurar, no ponto em que


nos enganamos, que persuadir o outro20 da verdade daquilo que é afirmado,
e será que não se trata aí de uma estrutura fundamental da dimensão do
amor que a transferência nos dá a oportunidade de imaginar?

O amor de transferência oferece "um falso acesso à faltà'. Entreve­


m os q ue outro acesso à falta, que tomaria caminho diferente, aquele que
1,acan procura trilhar, é possível. Mas ele deverá sobretudo, e nisso reside
a dificuldade, indicar como ele pode ser tornado praticável não ao lado,
m as a partir desse falso acesso à falta que é o amor. Daí, em 2 1 de maio de
1 96 4, o anúncio a seu público, perfeitamente explícito, que vai "levá-lo, do
amor, no limite do qual deixei as coisas na última vez, à libido2 1 " . Ainda é
preciso, para que esse percurso seja tornado possível, distinguir estes dois
registros, aquele, narcísico, do amor e o da libido. Procurando distinguir
narcisismo e pulsão, Lacan está às voltas com o que veicula o freudismo, a
saber, a concepção grotesca segundo a qual o ato genital, ao fazer convergir
as pulsões parciais, seria a realização plena do amor. Logo, ele vai, por um
lado, desmontar a ideia dessa convergência pulsional e mostrar, por outro
lado, que enquanto satisfação pulsional esse ato nada tem a ver com o
amor. Não se vai aqui entrar no detalhe de sua leitura do artigo de Herman
Nunberg "Amor e transferência", elogiosamente mencionado já em 29 de
abril de 1964, e nem tampouco naquela do artigo de Freud ''As pulsões e
suas vicissitudes22 " , comentado durante as numerosas sessões de seminário
(a partir de 6 de maio de 1 964). Guardaremos apenas

que está expressamente formulado que o amor não poderia, de modo algum
na experiência, ser confundido, ser considerado o representante, o que se
poderia chamar Ganze, como o que ele chama, o que Freud articula questio­
na sob o termo " die ganze Sexualstrebung" , isto é, a tendência, as formas, a
convergência do esforço do sexual, na medida em que terminaria em Ganze,

20 Por
que náo "o Outro" aqui, como outras vezes em outras partes no mesmo con texto ?
21 J . L
acan, Os q uatro conceitos, sessão de 2 1 de maio de 1 964 .
22
Título eleito por Lacan. Cf S . Freud, " Pulsions et destins des pulsions", i n Métnpsychologie,
op. cit. , p. 1 1 -44.
260 O A MOR L A C A N

num todo inapreensível que lhe resumiria a essência e a função. ''Ko m mt


aber aufdamit nicht z11her, n ão funciona assim", ele exclama [ . . . ) 23 •

E ai nd a em 2 1 de m aio:

Freud num lado põe as pulsões parciais e, no outro, o amor; ele diz: " Não
é igual ". As pulsões nos requerem na ordem sexual, isso vem do coração ,
Para nossa grande surpresa, ele nos diz que o amor, por outro lado, [ . . . ] [é]
algo como isto, isso "vem do ven t re, é o que dá água na boca" .

Essa "águ a n a boca" junta-se à o b servação "uma perdida, dez encontra­


das". É verd ade com as mulheres, como com os bifes com fritas caros a Roland
Barthes, mesmo encar ados como s i gnos de francidade. Resta, no entanto, u m
traço, que perm i ti ria d i ferenc iar as mulheres dos bifes com fritas:

[ . . . ] quando se trata de objetos que não têm esse valor pulsional propria­
mente falando, [ ... ] vocês dizem o quê, então, como Freud observa, "amo
isso, amo ensopado de carneiro". É exatamente a mesma coisa que quando
vocês dizem: ''Amo a Sra. fulana", exceto que "amo Sra. fulana" vocês dizem
a ela, o que muda rudo 24 •

M ais um a vez, em I O de janeiro de 1 968 (O ato psicanalítico), Lacan


martela rá su a afirm aç ão: ''A libido objetal nada tem a ver com o amor2 5 ".
Perguntamo-nos ent ão: qual efeito essa distinção tão claramente sustentada
produz no amor? Posto for a de todo estatuto pulsional, o amor aparece a ser­
viço do prazer no sent i do freudiano desse termo, no sentido do abaixamento
das tensões. O amor é "nardsico" , mas esse narcisismo não é em Lacan,
como em Freud em 1 9 1 5 e poster i ormente ainda, um destino pulsional26 ,
Do caráter l ac an ianamente nardsico do amor decorrem certos traços: 1) ele

23 J. Lacan, Os quatro conceitos. . . , sessão de 1 3 de maio de 1 964.


24 J . Lacan, Os qua/l'o conceitos... , sessão de 1 0 de junho de 1 964, modificado.
n Id. , Lacte psycha11alytiq11e, estenogra fi a , sessão de 1 O de janeiro de 1 968. D oravan te: O
O A M OR E N G A N A DOR

é redpro co ; 2) amar e ser amado se equivalem ; 3) "a face narcísica do


27 28

am or e a superestimação do objeto, a Verliebheit, no amor são exatamente a


m es ma coisa29 " ; 4) outra consequência mais curiosa diz respeito ao amor tal
como se pode acreditar estar às voltas com ele em História de O: se a oposição
ativi dade-passividade pode explicar muitas coisas no âmbito do amor, o fato
é q ue só p ode se tratar de uma "injeção de sadomasoquismo" . Para acabar,
ain da que seja aí apenas um fim provisório, Lacan toma ciência do caráter
tradic ion al dessa concepção do amor que se j unta ao velle bonum alicui de
S ão Tomás (a teoria física do amor30) . Tem-se aí, como com Kierkegaard,
um a nova escapada, um outro não dito, já que aqui não está em questão a
teoria extática do amor, no entanto já formulada para tentar dar conta do
amor nas psicos es.

A FORACLUSÃO AMOROSA

Entrada em cena da foraclusão amorosa. Ela também maldiz o amor. Além


disso, surge tão estranha e, talvez, tão excessiva que convirá estabelecer se
foi mantida por Lacan na sequência de seu encaminhamento. Qual fora­
cl usão vai estar em questão? Lacan sempre segura a corda da oposição amor
pulsão, mas sublinha ( 1 8 de janeiro de 1 967, A lógica da fantasia) que a
pulsão, longe de atuar fora da linguagem, funciona de maneira gramatical .
O que está agora em questão {versão estenografada) são os "dois únicos
exemplos QUE FUNCI ONAM de pulsões como tais, a saber, a pulsão escoto­
fílica e a pulsão sadomasoquista" . Talvez Lacan tenha vocalmente apoiado
"que funcionam" {daí as maiúsculas) , no que ele teria tido razão, já que é o
termo que, nessa frase, permite que ele exclua o amor e o ódio do âmbito
d a pulsão na qual Freud os havia aloj ado , não sem sérias hesitações . Vem

27
"Ao nível do amor, há reciprocidade do amar ao ser amado" ( id. , Os q uatro conceitos. . . , sessão
de 20 de maio de 1 964) .
28
"Amor, como em todo amor, é essencialmente querer ser amado" (ibid. , sessão de 1 7 de
junho de 1 964) .
19
lbid. , sessão de 1 7 de j u nho de 1 964.
'° lbid . sP«õn ri .. 70 ri .. m�in ,l,. 1 964 ícorri11i o ahsurclo "se ouerer seu bem" da transcricáo Afi).
O A M O R LACAN

em seguida um relativamente belo e parcialmente enganador ditirarn bo


(somente duas das três frases que o compõem remetem claramente às duas
pulsões ditas acima):

Só num mundo de linguagem é que pode assumir sua função dominante 0


quero ver deixando aberto saber de onde e por que sou olhado.
Só num mundo de linguagem, como eu disse na última vez para apon tá­
lo somente de passagem, é que uma criança é espancada tem seu valor de
pivô.
Só num mundo de linguagem é que o sujeito da ação faz surgir a que stão
que o suporta, a saber, para quem ele age3 1 ?

Interrogando-se sobre o estatuto dos pensamentos inconscientes, e,


portanto, do sujeito no inconsciente, Lacan de certo modo vai ao encontro
do amor. Como? Respondem, staccato, certas fórmulas articuladas, precisas,
com certeza preparadas. Primeira fórmula, esses pensamentos inconscientes
são tais que "não sou eu quem penso" . São tais, segunda fórmula, que
está excluído, para o sujeito, daí concluir com Descartes "logo sou"; nem
mesmo, terceira fórmula, "logo não sou" . O que é mais estranho já que,
no Outro, "o eu [je] , como tal, só vem efetivamente se inscrever com um
não sou- com um não sou que é suportado pelo fato de que se suporta de
outros ta!1tos que existem para constituir um sonho" . Com o sonho virá
em breve o amor. . . A ausência de consecução possível a partir da primeira
fórmula de certo modo faz jogar a bola para a lateral. Há deslizamento do
simbólico no imaginário: um enxame de pequenos outros vem no lugar
do inarticulável "logo não sou" . O delicado do assunto se deve ao fato de
que "nós" podemos dizer, "nós" e não o sujeito, "nós, os freudianos" que
lemos na Traumdeutung como Freud, estudando o Traumarbeit, dirige-se
para uma lógica dos pensamentos inconscientes, que essa lógica "exige esse
suporte do lugar do Outro, que só pode, aqui, de modo muito preciso,
articular-se com um logo não sou". Como uma planta que se desenvolve
graças à água, da mesma forma os pensamentos inconscientes só subsistem
O A M O R E N G A N A DO R

gra ç as ao logo
não sou. Vem, então, uma quarta fórmula: "Assim, aqui es­
tarn os suspensos, no nível dessa função, a um você não é logo eu não sou" .
Urn novo passo é dado, e vai imediatamente haver outros. O "nós" pode
ser tomado como sendo um "nós os psicanalistas". "Nós" estamos bem às
voltas com o logo não sou que, de certo modo, acompanha, embora não
fo rmulável, cada pensamento inconsciente do analisando e "nós" somos
portanto conduzidos a pensar nele em "nós" dizendo silenciosamente a
seu respeito: você não é. Mas o assunto se dialetiza, se podemos dizer, pois
se "nós" pensamos, para com o analisando, você não é, o que se segue, isto
é, a implicação logo não sou, não diz mais respeito apenas à função logo
não sou na medida em que ela acompanha cada pensamento inconsciente
do analisando, mas atinge o analista. Você não é (trata-se do analisando) ,
logo não sou (trata-se do analista) . Resulta uma nova tonteira, pois se o
logo não sou se refere ao analista, agora não é mais apenas a partir dos
pensamentos inconscientes indiciados do logo não sou, mas a partir da
não-existência do analista, mas desde seu não sou que ele, o analisando,
tampouco existe. Com efeito, não há analista enquanto um pensamento
inconsciente permanecer não subjetivado; e não há tampouco analisan­
do. Ambos "inexistem". Mas como? O que indica a quase reciprocidade
instaurada por essa tonteira? E aí, um novo passo, não uma nova fórmula
mas, desta vez, uma alfinetada (palavra muito útil na época para evitar a
palavra identificação), em que desce rolando o amor: "Assim, aqui esta­
mos suspensos, no nível dessa função, a um você não é logo não sou. Será
que isso não incomoda os seus ouvidos de um certo modo? Será que não
se trata aí da linguagem, eu diria a mais importuna, do próprio amor? ".
Talvez seja por ter reconhecido essa situação como aquela mesmo do amor
que Lacan pode de certo modo condensar a fórmula você não é logo não
sou nesta outra e quinta fórmula:

O que dizer? Deve-se levar-lhe o sentido mais longe, que aliás dá sua ver­
dade: você não é senão o q ue sou. Todos sabem e podem reconhecer que,
se o sentido do amor é bem, com efeito, o dado por essa fórmula, o amor
igualmente, em sua emoção, em seu impulso ingênuo, como em muitos de
seus discursos, não se recomenda como função do pensamento.
O A M O R L A C ,\ N

A nova oposição entre o amor e o pensamento está estreitam ente


articulada àquela que, três anos antes, separara o amor e a pulsão. Velll.
confortar a oposição entre amor e inconsciente (de 22 de janeiro de 196 4) .
Ora, o "desvio" pelo pensamento da problemática amor pulsão ou, mais
exatamente, a necessária consideração do pensamento para a problematização
da pulsão permite que Lacan dê uma consistência operacional a essa n ova
oposição que ele vai portanto identificar - ei-la - como uma foraclusão,
uma foraclusão do pensamento pelo amor.

Quero dizer que se, de uma tal fórmula: você não é logo não sou, sai o monstro
cujos efeitos conhecemos relativamente bem na vida de todos os dias, é m u ito
precisamente na medida em que essa verdade - aquela do você não é logo não
sou - é, no amor, rejeitada (verworfen) . As manifestações do amor, no real ,
é muito precisamente a característica, que é aquela que enuncio de to da
Verwerfung, a saber: os efeitos mais incômodos e mais deprimentes [ ... ].

O amor seria retorno no real da foraclusão da fórmula você não é


logo não sou. O círculo está fechado: tendo partido de um você não é logo
não sou, Lacan o encontra, mas com esse lucro (se for um), o de que, nesse
meio tempo, o amor terá sido aceito como uma foraclusão e terá visto seu
estatuto eminentemente narcísico confirmado com esta sexta fórmula: você
não é senão o que eu sou. O que reencontra outras palavras, tanto anteriores
quanto posteriores, em que o amor é dito uma loucura. Essa Verwerfong
que é o amor vai estar em questão na semana seguinte. Em 25 de janeiro de
1967, Lacan relata reações de analistas. Alguns se sentiram angustiados até
"a impaciência", teriam julgado sua afirmação depreciativa ou ainda "impru­
dente". Diante de ouvintes de vinte e cinco anos, lhe teriam aconselhado,
não se reduz o amor "a nada". Respondendo a eles, Lacan conta que alguns
deles tinham achado suas afirmações "antes salubres". Como ele vai tratar
(de) essa angústia? O episódio poderia intitular-se " Da arte de tratar uma
angústia em seminário". Ele lembra que

a posição do não sou, uma vez que é correlativa da função do inconsciente e


que eu articulava sobre esse ponto a fórmula como a verdade daquilo que 0
O AMO R E NGANADO R

amor aqui se permite formular - isto é: se você não é, eu morro, diz o amor,
esse grito é conhecido e vou traduzi-lo: você não é nada32, senão o que eu sou
-, não é estranho que tal fórmula ... que por certo vai além no que ela traça
de abertura ao amor, simplesmente pelo fato de ali indicar que a Verwerfimg
que ela constitui resulta precisamente disto: que o amor não pensa, mas
que ela não articula - como Freud, este, o faz, pura e simplesmente - que
o fundamento da Verliebtheit, do amor, é o Lust-lch e que ele nada mais é
(pois isto em Freud é afirmado) que o efeito do narcisismo.

Seu tratamento da angústia dos antigos surge múltiplo: 1) a fórmula


não sou, afirma, tem outro alcance que ali onde ela toca no amor- logo, uma
tentativa de enrolar um pouco; 2) essa Verwe,fimg (mas é uma? É possível
h aver foraclusão de outra coisa que de um significante, foraclusão de uma
fórmula?) deixa de lado a dimensão narcísica da Verliebtheit; mas, sobretudo,
3) ele transforma, silenciosamente, sua "tradução" (que não é uma) da fór­
mula do amor. Com efeito, enquanto se apresentava, oito dias antes, como
um você não é, logo não sou, eis agora que é introduzido, sétima fórmula, um
" nada": você não é NADA senão o que sou. Parabéns! Os antigos lhe observavam
que ele reduzia o amor "a nada". Ele pegou essa bola no pulo e lhes dá razão,
mas reformulando o problema. Com efeito, você não é nada senão o qt_te sou
introduz o nada, em outras palavras, um objeto a (o do anoréxico). Aqui, o
texto reserva uma surpresa de porte, já que é nesse contexto de uma discussão do
amor de transferência narcísica e enganador colocado como Verwerfung que ocorre
'o
nos semindrios a afirmação segundo a qual pequeno a, no caminho traçado
pela andlise, É o ANALISTA". A transcrição deu "é o analista" em maiúsculas.

32 A transcrição dita "esteno" , da qual disponho, aqui introduziu uma vírgula ausent e na pró­
pria estenografia. Essa vírgula desmembra um pouco o "nada senão" e sublinha, assim , a
in trodu ção do nada como objeto. É legfrimo? Sim , pois, além das razões propostas acima (a
in trodução do nada a oito dias de distância, a fun ção já operan te desse nada no amor) , essa
vírgula, ou tro dado con textual, remete ao fosso que é instaurado pela pon tuação lacaniana
do cogito en tre o "penso" e o "sou" (isto até a fórmula? "Ali onde sou não penso, ali onde
penso não sou") . Arriscando descambar para o macabro, acrescen tarei que o desmembra­
mento persisten te do cadáver de René Descar tes traz um apoio de porte a essa leitura do
cogito: o crânio, relíquia laica, é exposto no Museu do Homem, enquan to que a igreja Sain t­
Germain-des-Prés acolhe o resto de seus ossos. I n tranquilidade da alma de Descartes (cf
Philipp e Comar, Mémoires de 111011 m111e. René Des-Cartes, Paris, Gallimard, 1 997) .
266

Talvez a afirmação tenha sido berrada, ou cochichada, o que daria no mesmo .


Ela vai permitir responder ainda de outro modo à angústia dos antigos: " E é
porque o analista tem de ocupar essa posição do pequeno a que, com efeito
para ELE, a fórmula - e de modo bem legítimo- levanta a angústia que co n-
vém". Se a angústia "não é sem objeto" e se o analista é esse objeto, que ele al i
se reconheça é legitimamente angustiante. Em outras palavras, não era tanto
a desvalorização do amor que angustiava os antigos quanto o dizer de Lacan
engabelando a posição de analista.
Com uma semana de distância, a introdução desse nada conjuga i
minúsculo com a (e é o amor, e é a transferência) e, no mesmo ritmo, ab re
a possibilidade da disjunção entre os dois (e, então, é não mais a transferên­
cia, mas sua análise). Ora, nos seminários, esse nada do amor já esteve em
questão. Assim, aqui se oferece uma oportunidade especialmente pertinente
de confirmar que o amor se apresenta de outro modo após a invenção do
objeto a. Quanto a esse "nada", as coisas aliás já haviam se mexido. O nada
no amor fora introduzido em 30 de janeiro de 1957 (A relação de objeto)
com o esquema do véu e em termos que agora podem ser lidos de modo
um pouco diferente. Em 1957, o nada era simbólico. O dom do falo pelo
amante à sua dama (exemplaridade da Jovem Homossexual) é um dom da­
quilo que ela não tem, mas também dom de nada, pois simbólico, dom de
nada por ser simbólico. Ora, o amor materializa esse dom de nada, e, para
falar a verdade, Lacan torna essa materialização um pouco especial (ela dá
lugar a um aparecimento) ao introduzir um véu entre o amante e o amado,
um véu graças ao qual "o que está para além como falta tende a se realizar
como imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência". Teria sido preciso ler esse
"pinta-se", discernir o amor em pintura que estava portanto presente desde
janeiro de 1957. Lacan no entanto havia discretamente insistido: "Mas tão
logo se coloca a cortina, sobre ela pode pintar-se algo que diz - o objeto
está para além". Posteriormente vai estar em questão o nada no amor com
O banquete de Platão e a análise de Psiche sorprende Amore. Sócrates recusa
"porque, para ele, não há nada nele que seja amável33 " . E Lacan ainda argu­
menta: por trás das flores que deviam escondem o sexo de Amore no quadro

.u J. Lacan, A tmnsferência. . . , sessão de 8 de fevereiro de l 96 1 .


GANADOR
O AMOR E N

de Z ucchi não há nada. Ora, após a invenção de <I>, esse nada se tornara
compósito: não mais apenas pequeno a (pequeno a . . . não ainda pequeno a)
mas pequeno a com <I>. E concluiu-se que a leitura do Banquete e a análise
de Zucchi tinham feito passar o nada, primeiramente situado para além do
objeto amado no esquema do véu, no interior do objeto (Sócrates sileno).
O q ue acontece agora? Advém uma nova configuração do amor. Na frase
você não é NADA senão o que sou, o nada não está mais nem para além nem
interno ao objeto; ele é o amado enquanto objeto; ele é o objeto amado; ele
é aquilo que é objeto no lugar do amado. Talvez essa assinalação tenha sido
facilitada pelo acento colocado, graças ao objeto a, no caráter narcísico do
amor e na função de enganação de quê? Da imagem. Em outras palavras,
0 nada do amor agora é reconhecido como real. Para garantir isso, basta a

declaração que faz ser o psicanalista esse nada, esse objeto a.


Para nos limitarmos à pintura e a fim de dizer essa relação do nada real
com a imagem que ele suporta, à qual ele dá sua pregnância e seu caráter a
um só tempo fascinante e alienante, poderíamos convocar a verônica. Mas
en quanto o rosto do Cristo inscrito no pano remete a um acontecimento
passado e faz, portanto, do quadro uma lembrança, aqui nada igual. Estamos
antes às voltas com o jogo de dois objetos a que antes de mais nada vão
vir dar à imagem amada, à imagem do amado, essa consistência estranha
que faz dela uma aparição, depois fazer esvaecer essa aparição. Em outras
palavras, há metamorfose do olhar em nada. Com efeito, o você não é NADA
senão o que sou lê-se de duas maneiras: você é em: algo que eu sou e que é o
n ada (o nada, então, é realizado como olhar), e você não é nada e eu não sou
nada tampouco (o nada, então, é realizado como nada). A primeira maneira
remete à etimologia de "nada", rem, acusativo de res, rei, palavra que na
origem designa um bem, uma posse: habere rem: "ter bem" e, mais tarde,
a "coisa", com o sentido vago que lhe confere hoje o francês. A segunda
leitura remete ao que resultou do acoplamento de nada (dizia-se "uma
nada") com a negaçao: - ] . ,, , "nao
- "nada... [ nao - ... nada" , "nao
- e' nada" , etc.,
isto é, uma redução a nada que vai para além do "um pequeno nada" que
permanece algo, ainda que mínimo, que vai até o ens rationis kantiano (ver

• Em francês. os advérbios de negação são seguidos da partícula ne. (NT)


268

J º·
a ''Anfibologia dos conceitos da reflexão34 " ) : um conceito vazio sem ob ' et
Nem a aparição nem o nada são apreensíveis. O amante não tem nenhum a
influência nem ascendência* sobre eles ao passo que esse objeto com p ósito
o amado, de fato tem, ele, influência sobre o amante.
Talvez essa Verwerfung amorosa seja um efeito da leitura po r Lacan
do romance Lo/ V. Stein de Marguerite Duras. Em dezembro de 1965, ele
saudava esse romance com um texto em que é encontrada a ancoragem do
amor no olhar, "esse talismã de que todos se livram depressa como de urn
perigo35 " . Ou ainda: "Pelo olhar, isso se espalha com o pincel sobre a tela l

para lhes fazer baixar o seu diante da obra do pintor". Merece uma me nção
especial o que ele dizia em 23 de junho de 1 965 (Problemas crucia is. . . ) ,
arriscando notar que o traço que ele então sublinhava já fora ressaltado por
alguns comentaristas36:

Esse sujeito, nós o apreendemos, bem aquém do cogito. Nada dele jama i s é
formulado sob a forma do um do único . Eis o que diz disso seu amante [ o
amante de Lo!, Jacques Hold] : "Foi essa a minha primeira descoberta a seu
respeito, nada saber de Lo/ era jd conhecê-la. Era possível, pareceu-me, saber
menos ainda, cada vez menos sobre Lo/ V. Stein". Diga-se de passagem, essa
definição do amor não é tão ruim, parece-me .

" Diga-se de passagem": um justo pudor proíbe a exibição. Aí tam bém


se encontraria, nesse extremo do amor que é a loucura de Lol, a indicaç ão ,
aí ainda pouco apoiada, de outra modalidade do amor? Nada saber d o
amado, saber dele resolutamente cada vez menos não é a própria fórmula

34 Emmanuel Kant, Critique de /11 mison pure, trad. de Tremesaygues e Pacaud, Paris, P uF,
1 96 5 .
* Nem prise nem emprise. (NT)
.1 5 J . Lacan, " Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. S tein" , in Autm
écrits, Paris, Le Seuil , 200 1 , p. 1 94- 1 97.
36 Título do artigo de Matthieu Galey para a revista Arts ( 1 5-2 1 de abril de 1 964) : "En savoir
de moins en moins" ; o mesmo traço fora igualmente ressal tado por Pierre Demero n em
Candide (8- 1 5 de abril de 1 964) , e, pou co a ntes, por l'vladeleine Chapsal para L 'Express de
2 de abril de 1 964 (ver Dossier de presse. Le R11visseme11t de Lo! V. Stein, tex tos reu nidos e
aoresen t�OO< nor SnnhiP Rna�Prr P� ri < T m Pr ,. 1 íl / 1 li '} (1()1'.'.'
.i Q E NGANADOR 269
O A rn R

da Verwerfu ng amorosa mas, igualmente, a de um verdadeiro amor? A


afirm ação relativa a Lol V. Stein contrasta com o que era dito um ano an­
ces, m omento em que Lacan começa a desenvolver sua problemática do
sujeito suposto saber (início em 3 de junho de 1 964) , quando ele opõe
a co ncepção segundo a qual, no fim do percurso analisante, o analista
37
saberia "um pouco" sobre seu analisando • É possível amar embora se
li mitando a nada saber do amado? Seria isso o amor, aquele, efetivo, que
, �
não se obtem.
Isto para o saber. Mas o que acontece com a relação do amor com a
verdade? A questão é nova; surge no seminário O avesso da psicandlise. Po­
deria parecer supérflua, tanto está claro que um analista não pode ser levado
a reconhecer a menor dominância, no homem, de um amor pela verdade.
Então, por que não é mal-vinda? Porque aconteceu de Freud derrapar. A
relação analítica deve ser "fundada no amor pela verdade38 "? Com Freud e
mais ainda Ferenczi, a resposta é sim; é não com Lacan. E este logo zomba
de Freud:

Era realmente um tipo encantador [esse?] Freud. Era realmente todo fogo,
todo chama. Também tinha suas fraquezas. A relação que ele tinha com a
mulher, por exemplo, é algo inimaginável. Ter tolerado tal vagabunda toda
a existência é chama atenção. Enfim, pensem bem nisto - se há algo que
lhes deve inspirar a verdade, caso queiram sustentar a Analysieren, não é
certamente o amor. Pois a verdade, na oportunidade, é ela quem faz surgir
esse significante, a morte.

Seria um mau augúrio, lado Lacan, um psicanalista que fosse "todo


fogo, todo chamá' amante da verdade. Em 1 7 de junho de 1970, Lacan
lê durante o seminário sua resposta a um questionador belga que lhe per­
guntava: "Em que saber e verdade são incompatíveis?". Reteremos isto de
sua resposta:

17 J. Lacan, Os uatro conceitos. . . , sessão de 24 de j u nho de 1 964 .


q
18 Jacques Lacan, L'envers de la ps chnnnlyse, sessão de 1 0 de j u nho de 1 970. Paris, Le Seuil,
y
I C\ C\ 1 ~ 'lílíl nnr� v� n
tf': O avesso. . .
O A M OR LA c
AN

É notável que preveni o psicanalista de conotar de amor esse lugar do q ual e


le
está noivo por seu saber. Digo a ele imediatamente: não se espo sa a ve rdade ·
com ela, não há contrato, e ainda menos união livre. Ela não sup or ta n ad�
disso tudo. A verdade é primeiramente sedução, e para lhe pass ar para trás.
Para não cair nisso, é preciso ser forte. Não é o seu caso.

Assim, em que consistiria, no analista, o fato de ser forte? Isso fo i


formulado dois meses antes e não apresenta nenhuma dificuldade exegética .
A força do analista consiste em não participar das três paixões fundam en­
tais: o amor, o ódio e a ignorância39 • Dessas paixões, Yahvé, por sua vez
participa. E o círculo é fechado, com a observação ainda anterior seg und o a
qual Freud preserva a ideia "de um pai todo amor". Comentário: "Estranh a
sobrevivência. Freud acredita que isso vai evaporar a religião, emb ora seja
realmente a própria substância dela que ele conserva com esse mito b izar­
ramente composto do pai 40 ". Há solidariedade, em Freud, entre o apelo ao
amor da verdade como uma das alavancas da análise e a preocupação de
preservar o pai como "aquilo que há de primeiro a ser amado neste mundo".
Freud joga ali uma carta razoavelmente gasta. Daí esta fórmula de Lacan,
não tão paradoxal quanto poderia parecer: "Esse amor universal como se
diz, cujo pano é brandido para nos acalmar, é precisamente aquilo de que
fazemos véu, véu obstrução, ao que é a verdade". Ao afastar o amor pela
verdade e o amor pelo pai, Lacan abria um espaço para que tomasse lugar
outra questão, específica à análise pois se refere ao amor de transferência,
aquela que diz respeito à função que ali vai desempenhar (mas, mais tard e,
nos seminários) o sujeito suposto saber.
Duas observações para concluir a leitura desse momento do amo r
Lacan (desde A angústia até... ou pior não incluído): o sa b er parece em
nada intervir no amor de transferência considerado enganação e falso
acesso à falta; a problematização do ato analítico, durante um ano, deixa
quase inteiramente de lado o amor - o que só pode ser aceito como uma
notável lacuna.

39 Ibid. , sessão de 1 5 de abril de 1 970, p. 1 5 9 .


40 Jbid. , sessão de 1 8 de fevereiro de 1 970, p. 1 1 4 .
CAP ÍTU LO X I V

RU M O A U M O U T RO A M O R

A ALT E RNATIVA: UM OUTRO AMOR,


OU E NTÃO UMA VI RADA DA ENGANAÇÃO AMORO SA?

O s anos de seminário com os quais acabamos de estar às voltas levantam


uma questão não explicitada por Lacan, mas que a leitura deles impõe. La­
can, a meias-palavras, aposta numa virada possível da enganação amorosa
que, mal iniciada como falso acesso à falta, de qualquer modo desembocaria
_ mas, então, como? - num acesso efetivo a essa falta? Ou então, uma vez
reconhecido o impasse dessa via de um amor narcisicamente enganador,
ele tenta desenhar, em contraponto, uma outra figura do amor? Nós o
surpreendemos, nesses anos, passando silenciosamente por três ve'!-es bem
perto de um amor outro que enganador: ele não terá tido uma palavra para
o amor repetição de Kierkegaard; tampouco uma palavra para o amor extá­
tico, embora até situasse o amor como Verwerfung e já tivesse afirmado que
esse amor extático era o do psicótico; e ele só terá, terceira "escamoteação",
dado uma bem discreta indicação, a respeito de Lol V Stein, ao notar que o
a mor que tem por ela Jacques Hold consiste em saber cada vez menos sobre
Lol. Um outro amor se insinuaria, por ausência, diferente desse amor em
que o acento é posto num narcisismo enganador? Ou então ainda, outra
coisa que o amor? Pois essa via, também, se não é trilhada, está de qualquer
modo indicada:

Não há só narcisismo, nem felizmente só amor entre os seres humanos,


p a r a chamar isso como é chamado . Há aquele algo que alguém [La Roche­
foucauld?] que sabia falar do amor fel i zmente distinguiu: há o gosto, há a
272

estima; o gosto é de uma vertente, a estima talvez não seja da mesm a, rn


as
isso se conjuga admiravelmente 1 •

Talvez com esse "não há só " peguemos se não a razão, pelo m en os 0


motivo da monstruosidade segundo a qual não está muito em questão o arn o r
quando Lacan considera o psicanalisar como ato. Alguns anos mais tarde
(2 1 de j unho de 1 972) , vai lhe acontecer até, arriscando abrir a p orta aos
bons sentimentos mas logo fechando-a ao predizer uma escalada do rac is mo,
apresentar a relação paciente analista como quase a única, na moderni dade, a
dar corpo à fraternidade: paciente e analista são ambos " filhos do discu rso2 " .
Entretanto, a solução ou o começo de solução mais amplamente evocado é
outro. As últimas palavras do seminário Os q uatro conceitos, que foram fe itas
bandeiras aí voltam, . Lacan se interroga: uma outra via seria propos ta por
Kant, a de um sacrifício de tudo o que é objeto de amor, de ternura?

O fato de esse amor, que nos pareceu, aos olhos de alguns, ter de certo modo
procedido ao rebaixamento, de esse amor só poder se instituir, só poder se
colocar nesse para além onde primeiramente ele renuncia a seu objeto, é isto
também o que nos permite compreender que tudo o que pôde ser construído
de abrigo onde uma relação vivível de um sexo com o outro tivesse podido
instituir-se requer a intervenção [ . . . ] desse intermediário [ . . . ], a saber, a
metáfora paterna, com o que ela nos permite identificar daquilo que chamei
esse abrigo, esse abrigo em torno do qual se institui uma relação que seja
propriamente falando o que podemos imaginar da função da relação sexual
em formas que poderemos qualificar de temperadas. O desejo do analista
não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela
que vem quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem
pela primeira vez em posição de se sujeitar a ele. Somente aí pode surgir a
significação de um amor sem limites por estar fora dos limites da lei, em
que somente ele pode viver3 •

1 J. Lacan, O ato. . . , sessão de 7 de fevereiro de 1 968.


2 /d. , ... 011 pior, sessão de 21 de j u nho de 1 972.
·1 !d., Les q11ntre conceptsfa11dnmentn11x de ln psychnnnlyse, sessão de 24 de j u nho de 1 964 , este-
notioia. A versão Seuil a uase s11nri m i 1 1 � j,l,.i� ,lp n 1 1 P 1 1 m � m � • ,_., . , _ 1 - - .l --:- --- __ _ ..... . :..ln
O A U M O U T RO AMO R 2 73
R lJ M

São palavras bem ambíguas. Primeiramente, parecemos bem estar em


J(ant com a afirmação segundo a qual o amor só pode colocar-se renunciando
a seu objeto. Lacan acabava de dizer que "a lei moral [ ... ] , examinada de
é que o desejo em estado puro, aquele mesmo que culmina
perto, nada mais
no sacr ifício, propriamente falando, de tudo o que é objeto do amor, em
sua ternura humana". A ideia segundo a qual, nesse solo, algum amor sexual
possa ter sido construído usando a metáfora paterna era portadora de uma
espécie de reserva por parte de Lacan, uma reserva dita pela metade, algo
como um "muito pouco para mim" para com essa solução em forma de
construção de um abrigo. Estaríamos bem com Kant, não em Kant, e numa
rela ção de certo modo reativa a Kant: o abrigo nome-do-paterno temperaria
a relação sexual ao evitar o sacrifício (em contraponto, pensamos no filme
O império dos sentidos) . E seria este, é precisado, o ensino da psicanálise (na
verdade: de Lacan). Mas eis que, sem transição nessa passagem ultimamente
conclusiva em que Lacan é apressado pelo relógio, uma outra partida possível
é indicada: o desejo do analista não é, afirma-se, o desejo puro kantiano.
Como entender esse desejo de "obter a diferença absoluta"? O que é, pois,
essa estranha "diferença absoluta" que não é localizada por nenhum materna
ou objeto topológico? Uma frase anterior o esclarece um pouco:

[ . . . ] o analista - a operação e a manobra da transferência estão aí - tem


de regrar, dominar, instituir [a ser lido intransitivamente, parece] de uma
maneira que mantenha a distância entre esse ponto de onde o sujeito se
vê amável e esse outro ponto onde o sujeito se vê causado como falta por
a e onde a vem de certo modo tapar, propriamente, esse ponto de hiância
constituído pela divisão inaugural do sujeito.

Essa distância "mantida" é de ordem dinâmica, é uma tensão. A que


outra tensão ela se opõe? À tensão amorosa em outras palavras, à transfe­
rência, que tende a fazer "convergir" estes dois pontos: aquele de onde o

usando a metáfora p aterna e sim p lesmente desa p arece com a relação sexual tem p erada (op .
.. :� - "l '.l C \
2 74

sujeito se vê amável e aquele onde ele é constituído como falta pelo o bjeto
a. Duas forças opostas podem no entanto se estabelecer na estabilidade, e a
estabilidade das transferências... isso não falta na mais que centenária histór ia
da análise. Como resolver essa dificuldade? Como, pois, durante esses ano s
que precedem . . . ou pior, é pensada a curva possível da enganação am orosa,
da transferência, rumo a sua liquidação? Já em 13 de maio de 1964 (Os
quatro conceitos. . . ) , a questão é colocada:

Toda a questão é saber como esse objeto de amor pode querer p reench e r
um papel andlogo [sublinho] a esse objeto tal como acabo de lhes de fin ir [o
objeto da pulsão] , isto é, ao objeto do desejo . Sobre que equívoco s, so bre
que ambiguidades repousa a possibilidade, para o objeto de amor, de to r­
nar-se objeto de prazer?

"Prazer" deve aqui ser entendido no sentido de "gozo". O analist a


poderia jogar com uma analogia para que advenha no analisando a passagem
do amor à libido? Mas se se ignora como o objeto de amor pôde assumir um
papel "análogo" ao objeto pulsional ou de desejo (desta vez, não há distin­
ção), se não se sabe bem tampouco em que consiste essa analogia, não se vê
como poderia ser resolvida a intervenção do analista. Pouco depois (27 de
maio de 1964), outra declaração traça algo como um caminho, enquanto
um novo termo aparece:

A essa procura do complemento, que, de maneira tão patética e de manei ra


tão engodativa, o mito de Aristófanes nos imaja, que é o outro, que é sua
metade sexual que o vivo busca no amor, nessa maneira de representar
míticamente o mistério do amor, a análise, a experiência analítica substitui
[sublinho] a busca não do complemento, do complemento sexual, mas a
busca dessa parte, para sempre perdida dele mesmo no vivo, que é constituída
pelo fato de que ele é só um vivente sexuado e não é mais imortal.

Essa última afirmação vem em linha direta de Georges Bataille (bem


no início de O erotismo) , e Lacan já lhe deu não corpo, mas órgão, com seu
mito da lâmina. Mas como a experiência analítica realizaria essa "substitui-
1t 1J
MO A U M O UT RO A M O R 2 75

ão"? Admitiremos que "por trás do amor dito de transferência, podemos


�izer que o real, o que há é a afirmação desse laço do desejo do analista ao
4
desejo do próprio paciente ", mas é a juntura que permanece opaca. Uma
vez que está estabelecido que essa junção não pode ser outra coisa que o
objeto a, uma junção bem singular, estamos de qualquer modo um pouco
avançados. Em 24 de junho de 1964 é proposta a ideia de uma convergência,
de um encontro possível entre a enganação da transferência e, chamado por
ela, 0 objeto a. Estaria em questão fazer atuar o objeto a de outro modo que
como suporte da imagem amável, partindo desse objeto como suporte dessa
imagem. Mas como? Tese: essa possibilidade é dada nas próprias coisas. É
possívelfazer atuar de outro modo o objeto a porque, seja como f01; ele atua de
outro modo. O real ofereceria uma alavanca para a análise, o real do amor,
que aqui reata com o olhar:

O olhar desse a se apresenta j ustamente no campo da miragem da função


narcísica do desejo, como o objeto inengolível [sublinho] , se é possível dizer,
e que fica atravessado na garganta do significante. É esse ponto de falta onde
o sujeito tem de se reconhecer como constituído.

Por mais que o amor faça, por mais que faça das suas, por' mais que
dê lugar a poesias, a mil declarações, a tantas "provas", ele jamais consegui­
rá que o objeto a seja um puro suporte da imagem amável; o amor jamais
vai reduzir esse objeto a estar apenas a seu serviço, a ser apenas, de pleno
emprego o suporte da amabilidade. O amor pode agir como for, a vai con­
tinuar sendo "aquela parte, para sempre perdida de si mesmo no vivo, que
é constituída pelo fato de ele é apenas um vivente sexuado e não é mais
imortal". O objeto a permanece bipolar. Como Arlequim, ele serve a dois
"mestres": de um lado, ele conforta o amor, de outro, enquanto objeto sempre
já perdido, ele apela para a castração, em outras palavras, para advir como
o que ele é: perdido. E Lacan remete, para de modo mais preciso indicar
uma via possível que faria o amor de transferência virar desejo, à topologia
do seminário A identificação. Eis seu esquema:

4 1 1 n r n n n, ,,.,,,,..,, rnnrPitn< . ....��iio de 1 7 de i unho de 1 964.


T

O percurso do duplo círculo (D) é o da demanda, das voltas da


demanda. T é o ponto de transferência, d o desejo (pontilhados!), I é a
linha da identificação (pura ilusão ligada ao mergulho num espaço de três
dimensões), a da interseção que será mais bem percebida com a ajuda dos
seguintes esquemas:

Seminário A identificação Retomado de uma obra de Marc Darmon 5

Fechado, o próprio percurso das demandas recorta no cross-cap o


objeto a.
Agora é possível abordar a enigmática última frase dos Quatro conceitos:
"Somente aí pode surgir a significação de um amor sem limites por estar fora
dos limites da lei, em que somente ele pode viver". Um amor "sem limite"
(editora Lê Seuil) ou "sem limites" (Afi) não é nem o amor da amabilidade,
nem o amor de transferência, nem aquele amor enganação que, acabamos
de ver, se choca com um limite, na impossibilidade em que se encontra de
pôr inteiramente a a seu serviço. Assim, pois, essa última linha também faz
signo rumo a outro amor. O mesmo que só fez, ao longo dos anos anteriores
a ... ou pior, furtivas aparições?

5 Marc Darmon, Essais mr la topologie /acanienne, Paris, Afi éd .. 2004.


O A U M O UT RO A M O R 2 77
1t U M

A frase continua sendo de uma ambiguidade redobrada. Primeira


mbiguidade: deve-se ler que esse amor pode viver fora dos limites da lei?
�u então, ao contrário, e arriscando descambar para o paradoxo, que esse
amor só pode viver nos limites da lei, embora até esteja fora dos limites da
? ambiguidade: não se trata do amor mas da "significação de
lei Se gunda
um a mor". Um curioso retorno, para falar a verdade, pois o amor como
sign ificação já esteve em questão em A transferência . . . , em que a ideia do
amor como metáfora foi, para acabar, excluída. Outra questão tendo
valor de enigma e que convém aturar tal qual, na falta, por enquanto, de
su a solução: quer se trate do amor da amabilidade ou desse outro amor
p ercebido apenas em filigrana, é possível prender, nesses anos, o amor
em q uestão à sua definição anterior como dom daquilo que não se tem?
O próprio Lacan acaba emitindo uma séria dúvida ao declarar, durante
u ma sessão fechada do seminário O objeto da psicandlise ( 1 5 de junho de
1 9 66 ): " [ ... ] tentei definir para vocês o amor, numa espécie, assim, de
flash, eu disse que o amor era dar o que não se tem. Naturalmente, não
basta repetir isso para saber o que isso quer dizer6 " . Está claro que esta
última afirmação não diz respeito apenas aos alunos mas também a Lacan
que, portanto, confessaria, em 1 966, que não sabe mais muito bem o que
quer dizer o amor como dom daquilo que não se tem. A aquisição de um
não -saber como esse é um progresso.

PO NTUAÇÕES

Os enunciados de Lacan são incrivelmente móveis, o que vai ainda se veri­


fi car de múltiplas maneiras, por exemplo com as metamorfoses do véu do
amor, sobre o qual surge o(a) amado(a). Após ter virado quadro, esse véu
vai se tornar muro, depois, através da inscrição mural, folha de papel, sobre
a qual serão depositadas as palavras da carta de amor. Um belo percurso,
não é, do véu à carta? Logo, responderei ao convite de que é portadora essa
variabilidade dos enunciados formulando certas conjecturas.

6
Torm ,P< 1 .<ic:m . L'obiet de la psychana/yse, transcrição Afi . Doravante: O objeto. . .
O A M O R. L A c:
A�

Uma primeira conjectura vem à leitura desse texto em que o a rnor é


situado como Verwerfung do pensamento ou, mais precisamente, da frase
:
"Você não é nada senão o que eu sou". Seria possível que, depois de ter
partido das psicoses (não das perversões como ele diz várias vezes) , e dessa
maneira meio selvagem que foi sua transferência àquela que ele cha mou
Aimée, Lacan tivesse fechado o círculo, umas dezenas de anos mais ta rde
ao recair, para acabar, no amor não mais apenas nas psicoses, mas corno
psicose?
Essa primeira conjectura combina com outra, de certo mod o su a
gêmea: seria possível que fosse no registro e apenas no registro do "cam po
paranoico das psicoses" que Lacan tivesse tentado articular amor e saber?
Essa conjectura nasce da observação de que não estava muito em questão
nele (exceto, em 1932, em sua tese) essa possível articulação amor saber,
isso pelo menos até o início dos anos 1970, momento em que Lacan, pois
é, justamente... volta ao Hospital Sainte-Anne ("O saber do psicanalista") .
Estaríamos, então, menos às voltas com o papel do saber no enamoramento
do que com esse mesmo papel num enamoramento pensado como loucura;
não com a relação entre o saber e o amor, mas com a relação do saber com a
loucura amorosa. Essa segunda conjectura é apenas uma, já que, na relação
do amor com seu outro, esse outro do amor que foi o desejo, que em seguida
foi a pulsão, depois o inconsciente, depois o pensamento, é feita uma troca
por um novo termo que vem inflectir a tensão do amor e de seu outro, a
saber, o gozo - aguardando a não-relação sexual. O gozo pôde ser posto
em tensão com o amor na medida mesma em que havia anteriormente sido
introduzida a tensão entre amor e pulsão e não mais entre amor e desejo.
Desejo, pulsão, inconsciente, pensamento, gozo, não-relação sexual: a série
desses termos basta para assinalar a pregnância de uma função, diferente
daquela do para além do amado, e que doravante será designada como sendo
aquela do outro do amor - e não "outro que o amor", rubrica em que se
pode alinhar o ódio e a ignorância.
Surge uma terceira conjectura, mais ainda que a primeira, como um
possível guia de leitura, mas também como o índice de uma dificuldade. Do
que se trata? Do fato de que estamos às voltas com várias ordens de enun­
ciados relativos ao amor. Às vezes, o amor é encarado em si; outras vezes,
O A U M O U T RO A MO R 2 79
� l) M

or outro lado, ele o é de uma maneira que o faz parcialmente depender


:e seu objeto. Esse objeto não pode mais então ser somente "o amado",
.,., erto modo genérico; esse objeto é "o otro" e, daí, com mais fre­
cer... 0 de c
uên a que na sua vez, "o outro sexo" .e, portanto
d
.
... a mulher. Talvez fosse
.
qum p ouco grosseiro afirmar que, no pnme1ro caso, o amor e' homossexua1 ,
h eterossexual no segundo. Não seria no entanto absolutamente falso e La­
can, na oportunidade, vai dever enfrentar essa dificuldade que é a de uma
proble mática distinção de dois amores, respectivamente colocados como
macho e fêmea. Vai ele se safar com seu neologismo "hommosexuaF" que,
só por sua intervenção, resolveria definitivamente a alternativa homo/hetero
ao in screve r a mesmice no amor? Não realmente. Lacan não estava imerso
numa cultura como a de Bagdá no momento em que, uma vez que essa
capital se tornara a placa giratória de pelo menos três culturas, sabiamente se
interrogava sobre os respectivos méritos dos ou das adolescentes em matéria
8
de amor • Assim, vamos conjecturar que quando o amor é antes pensado
num contexto homoerótico (cf. a importância do discurso filosófico para o
amor), é exercida uma pressão que faria com que um esmagasse o outro, o
amor e o desejo, ao passo que quando é pensado num quadro heterossexual,
uma distinção mais franca do amor e do desejo torna-se possível, brecha onde
virão se alojar outras figuras do outro do amor; mas o amor então tende a
se dividir em dois: haveria uma maneira fêmea e uma maneira macho de
amar- o que cria dificuldade.
O caráter movediço dos enunciados lacanianos convida igualmente
a po ntuar o percurso que eles desenham. Como delimitar o momento com
o qual vamos agora estar às voltas? Terminus a quo: a partir do seminário . . .
ou pior ( I 97 1 - 1972) vai muito estar em questão o amor, quantitativamente
falando, notadamente em Mais, ainda {no ano seguinte), que foi qualificado

7 J . Lacan , Mais, ainda, sessão de 1 3 de março de 1 97 3 . [A ortografia em francês com dois 111
remete a homme [homem] . (NT)]
8
AI-Jâhiz, Le livre des mérites respectifi des jo11ve11celles et des jo11ve11cea11x, traduzido do á rabe e
apresentado por Bernard Bouillon, Paris, Philippe Picquier, 2000. A generosidade do editor
ofecere nesse mesmo volume Les a1110111;, do Pseudo-Lucien de Samosate, assi m como o
Alcibiade enfant à l'école de Antonio Rocco. Como determinar, desses três textos, qual é o
mais delicioso? Tampouco vamos desprezar, de I b n Hazn , Le collier de la colombe, traduzido
do árabe oor Léon Bercher, Paris, Papyrus, 1 98 3 .
280 O A M O R LAc
AN

de "seminário sobre o amor" - uma observação que Lacan deve be rn te


r
feito sua após tê-la afastado. Outro indício de uma virada: no ano de
ou pior ele rebatiza o amor, e será o (a)muro. Terceira marca dessa virad�·
,
a problemática do amor desdobrada nos anos precedentes, a do am o r nar-
dsico, do amor enganação, parece esvaecer-se. Notadamente, não vai tnais
estar muito em questão o narcisismo do amor. Logo, há bem, a par tir de
... ou pior, uma virada. Mas onde convém situar o termo desse momento?
No limiar de qual outra virada da problematização do amor? Essa virada
é a da não-relação sexual. Fixar precisamente esse terminus ad quem exige
saber por que ele se apresenta assim. Seja, pois, o breve percurso9 que fez
Lacan deslizar de um "há um ato sexual" a um "não há ato sexual" depo is
ao "não há relação sexual", o qual, pela primeira vez, aparece, portanto ,
perfeitamente articulado em 4 de junho de 1969:

[ . . . ] que não há, no sentido preciso da palavra relação, no sentido em que


relação sexual seria uma relação logicamente definível, não há justamente,
falta o que poderia se chamar a relação sexual, a saber, uma relação defin ível
como tal entre o signo do macho e o da fêmea. A relação sexual, o que cor­
rentemente se chama por esse nome, só pode ser feita de um ato. Foi o que
me permitiu formular esses dois termos, que não há ato sexual no sentido
em que esse ato seria aquele de uma justa relação, e que, inversamente, só
há o ato sexual, no sentido em que só há o ato para fazer a relação.

Os três momentos desse percurso são aqui retomados num enuncia­


do que, não desprezando nenhum, lhes suspende as contradições, faz com
que fiquem juntas. Partindo daí, a questão será a do efeito, da incidência
da não-relação sexual no amor. Essa problemática começa nos seminários
sensivelmente mais tarde, precisamente em 1 6 de janeiro de 1 973, em
pleno centro de Mais, ainda, data que portanto valerá como terminus ad
quem. Como a não-relação sexual virá atingir, modificar, deixar entrever
de outro modo o amor? Que relações são estão estabelecidas entre amor e

9
Sua datação e uma leitura são propostas em conclusão de minha obra A clín ica do escrito.
lhmscreve,; traduzi,; translitemr, Rio de Janeiro, Companhia de Freud.
AMOR 281
Jl LI M O A U M O U T R O

, rela ção sex ual? O plural se impõe, pois, aqui também, a variabilidade
ºªº
vai intervir.
Exceto uma única exceção'º, o borromeano não recolocará em ques-
cáo a i nexistência da relação sexual. O amor começa a ficar discretamente
reso no borromeano desde 1 1 de dezembro de 1 973 (Les non-dupes errent) ,
� ntecimento que é confirmado uma semana mais tarde. A sessão de 1 2 de
co
m arço de 197 4 {logo, três meses depois da tomada do amor no borromeano)
volta a esse acontecimento:

Então, tentemos nos i nterrogar sobre o que poderia acontecer se ganhásse­


mos seriamente desse lado que... que o amor é apaixonante, mas que isso
implica que ali se siga a regra do jogo. É claro, para isso é preciso conhecê-la.
Talvez seja o que falta: é que sempre se esteve aí numa profunda ignorância,
isto é, o jogo é j ogado sem que se conheçam as regras. Então, se é preciso
inventar esse saber para que haja saber, talvez seja para isso que pode servir
o discurso psicanalítico.

A ignorância em questão foi de "sempre"? Não por completo, e agora


se conjectura que o interesse de Lacan pelo amor cortês teria vindo do fato
de que, durante um tempo relativamente breve e talvez único no Ocidente, o
amor h avia recebido, com a cortesia, uma regra do jogo precisa e articulada.
Seja como for, essa citação pede a seguinte observação: talvez não haja, nos
seminários, nenhuma declaração que, de maneira tão explícita, ofereça um
apoio à nomeação o amor Lacan. Essa declaração, que também vale promessa,
deixa entender que o amor Lacan não seria tanto uma invenção ex nihilo de
Jacques Marie Lacan, mas algo menos novo à primeira vista: a explicitação,
pela psicanálise e graças à psicanálise, de uma regra do jogo amoroso. O
fato de não se tratar de uma invenção radicalmente nova não torna menor
a ambição. Como mostra a afirmação que vem pouco depois:

Se acontecesse, se acontecesse de o amor se tornar um jogo cujas regras ...


cujas regras_ conhecêssemos, isso talvez tivesse, no que se refere ao gozo,

1n n . _ _ ,. _ .J _ _ --- .-. � ..-.. r .... ..


282

muitos inconvenientes. Mas empurraria novamente o gozo, se pos so d i ze r,


para seu termo conjugado. E se esse termo conj ugado é bem o que fo rmu lo
do real, em relação ao qual, como veem, eu me contento com esse peq ue­
níssimo suporte do número (eu não disse a cifra), do número três. Se 0
amor, tornando-se um jogo cujas regras são sabidas, um dia se encon tra sse ,
já que é sua função, afinal, como um dos uns desses três - se ele funci onasse
para conjugar o gozo do real com o real do gozo, não estaria aí algo que
valeria o jogo?

Por enquanto, vamos nos proibir extrair a substantífica medula* dessas


frases em que insiste o condicional, tal leitura fora de contexto permanecen­
do excluída. No entanto, notaremos pelo menos isto: se a psicanálise dev ia
mostrar-se suscetível de tornar claras e distintas as regras do jogo amoroso
(essas mesmas regras que permitiriam que se brincasse com o amor e, p or­
tanto, com o amor de transferência 1 1 ) , tal resultado seria acontecimento, 0
amor acabando "civilizado 1 2 " . Com efeito, daqui por diante o problema v a i
consistir não mais tanto em dizer o que é ou, melhor, o que seria o amor
quanto em dizer o que ele poderia e, consequentemente, deveria ser. H á
mudança de regime discursivo, passagem de um discurso descritivo a um
discurso prescritivo - ainda que a prescrição consista somente em seguir
a natureza, se é possível dizer, do amor. Interviria aqui o voto exprimido
por Lacan sob forma do lamento de a psicanálise não ter inventado um a
nova perversão? Parece indicar isso uma declaração tardia em que o amor
é explicitamente ressaltado como uma perversão: "A lei, na oportunidade,
é simplesmente a lei do amor, isto é, a perversão 1 3 " . Perversão e civilização
às vezes funcionam bem juntas. O amor Lacan é a civilização do amor. não
uma civilização onde reinaria o amor (ainda que... ), mas uma civilização

* Alusão à co nhecida frase de Rabelais: " Parti o osso e sugai a substantífica medula". (NT)
1 1 Musset, 011 ne badine pas avec ln111011r, Paris, Classiques Hachette. Quanto a ele pessoalmente,
Jacques Lacan desej ava o amor divertido. Ele co nfessa em 3 de fevereiro de 1 972: "Pois esse
(a)muro, tal como lhes apresento, nada tem de muito divertido. Ora, eu não posso me susten­
tar de ou tro modo senão divertindo , divertimento sério ou cômico [ . . . ]". Com efeito, havia
isso, divertimento, em seu acolhimento da transferência amorosa. Logo, jogo.
1 2 J. Lacan, Les 11011-dupes. . . , sessão de 1 2 de março de 1 974 .
1 3 !d. , Le sinthome. transcricão Afi. sessão cl .. 1 1 ri .. m � i n ,.J,. 1 (}7/; nMnun � •-· n ,;., ,/.nu,,,
O A U M O U T RO A M O R
p. U M

ern que o amor seria enfim civilizado. "Civilização" deve ser entendida num
sentido pouco usual, embora repertoriado: não o fato de ser civilizado, mas
0 de civilizar-se, de "tornar-se civil". O desejo formulado por Lacan de ci­
vilizar o amor implica ter sido colocado o diagnóstico segundo o qual esse
arn or é, na hora em que esse desejo se formula, selvagem, bárbaro - um
diagnóstico ao oposto daquele de um Stendhal que escrevia: "O amor é o
rnilagre da civilização. Só se encontra um amor físico e dos mais grosseiros
14
entre os povos selvagens ou bárbaros demais ". Em matéria de selvageria
do amor, pensamos, aliás erradamente, no escândalo que foi a publicação
de Lolita (com um processo no fim de tudo, como para Madame Bovary) .
Ovídio, dizem, teria escrito as regras do jogo de uma tal Arte de amar, mas
foi co m certeza utilizado mais como se propusesse um conjunto de receitas.
E é possível conceber que a "estética da existência" tentada por Foucault
não deixa de dizer respeito ao amor. David Halperin, também, visa uma
1
sa ída da selvageria amorosa, desejando o amor irônico 5 • Aliás, é mesmo
útil multiplicar as atestações?

14 Citado por Le Robert, na palavra "Civilisation" .


l j David Halperin, Amour et ironie, six remarques s111· l'amour platonicien , traduzido do i nglês
tc_._ .J _ _ r ,_ , ,.1M\
�M T M l, PIIP r h �tPIPt. P� ris. c.�h iers de �Unebévue, 200 5 .
C A P Í T U L O XV

0 ( a ) M U RO

N os seminários, as coisas às vezes avançam muito rápido; outras


vezes, ao contrário, a lentidão espanta. Um enunciado novo é pro­
d uzido, pensa-se que ele poderia ter consequência num ponto conexo da
doutrina e, no entanto, essa consequência não vem, pelo menos não de
imediato. Assim acontece com o "não há relação sexual" que, no entanto
trazido em 4 de junho de 1 969, coabitará por um tempo com o amor
sem mesmo assim a ele estar ligado. Com efeito, será preciso esperar 1 6
d e janeiro de 1 973, ou seja, dois anos e meio, para ver proposta uma
primeira articulação explícita da não-relação sexual e do amor. Como
se explica essa articulação não ter sido possível antes e ter-se tornado
possível nessa data?
Ou seja, pois, ... ou pior. É quase unicamente na capela d� Hospi­
t al Sainte-Anne que, nesse ano, o amor está em questão; entretanto, as
conferências em Sainte-Anne ("O saber do psicanalista") e as sessões do
seminário na faculdade de direito parecem tão estreitamente incrustadas
que está excluído encarar umas independentemente das outras - mesmo
que a frequência desses dois lugares oriente, na oportunidade, as afirmações
alternativamente mantidas aqui e ali. O amor desembarca na capela Sainte­
Anne pelo viés de um poema de Antoine Tudal cuja citação suscitou um
formidável lapso em Lacan. Vamos mostrar que tudo o que está em jogo
nesse lapso não diz respeito só a ele.
O (a)muro, ou, antes, seu rascunho - já que ele então é escrito "amu­
ro" [amur] e não " (a) mur" -, aparece uma primeira vez em Lacan em 1 93 1
("Escritos inspirados"), numa citação dos escritos de uma denominada
Marcelle C., em que já intervém a sequência "mur [ maduro] , mur [muro] ,
amur [amuro]" ) :
286

,
O sortilégio "vês, minha mulher, o que fazemos com a sorce ,.,, te faz o m aior
pintor do universo inteiro, e, se és é daqueles que fazem: poeta em apuros não
responde mais, mas infelizmente! Ele está maduro [mur] no amuro [am ur]
do outro mundo, farás, creio em Jesus num outro mundo ainda, conta nto
que o pobre seja inundado com o hábito do monge que o fez 1 " ,

Continuamos amplamente incapazes d e ler essa frase. Lacan nu ­


mera certas passagens dos escritos de Marcelle C. de modo a não ter em
seguida que citá-las na leitura culta - culta demais - que ele prop õ e.
Numerada (64), a frase acima só é evocada uma única vez em seu co­
mentário, quando está em questão o caráter por vezes lúdico do est il o
daquela que dizia de si mesma: "Faço a língua evoluir. É preciso sacudir
todas essas velhas formas". Lacan sublinha "o notável valor poético que,
apesar de alguns defeitos, certas passagens alcançam". Nada mais que
isso, a propósito dessa frase, e nada tampouco sobre "amuro". O termo
tem incontestavelmente o sentido de "amor". Não é impressionante
que "amuro", desaparecido do francês há sete séculos, volte assim nu m
discurso dito "psicológico"? Trata-se de seu primeiro reaparecimento?
"Amuro" traduzira o amor latino até o momento em que a cortesia pro­
vençal, graças a seu amor, impôs trocar amur por amour. Lacan deve ter
relido " Escritos inspirados" em 1 97 5 ou 1 974, já que publica de novo
esse artigo na segunda edição de sua tese. Entretanto, é pouco provável,
embora não excluído, que ele o tenha relido antes de 6 de janeiro de 1 9 72,
data de conferência em Sainte-Anne em que (re) aparece (a) muro. Ness e
dia, Lacan devia cometer um notável equívoco, ocorrido enquanto ele
cita um poema de Antoine Tudal, já mencionado em 1953 em "Funç ã o
e campo da fala e da linguagem". Esse equívoco deu lugar a um artigo

* Sorce não existe em francês. Pode remeter a sorcellerie [bruxaria) ou a de la sorte [dessa ma­
neira) . (NT)
1
Jacques Lacan, " Écrits inspirés" . Assinado por três au tores, esse tex to é sem dúvida alguma
da pena de Lacan. Aí notaremos a vizinhança de "amuro" e de "mu ndo" , que vai estar em
questão mais adiante. Annalles médico-psychologiques, t. I I , 1 93 1 ; retomado após a segunda
edi ção da tese De la psychose pamnoi'aque dam ses mpports avec la personnalité em 1 975 .
Igualmente in PTL.
O (a) M U RO

2
de Roberto Harari , que teve além disso a felicidade de pôr a mão no
conjunto desse poema que Tudal escreveu na idade de quatorze anos e
foi publicado, em 1 9 5 0, num denominado Almanach de Paris, editado
or ocasião do segundo milésimo aniversário da cidade. Lê-se, pois, em
f.Fu nç ão e campo da fala e da linguagem":

En tre o homem e o amor


Há a mulher.
En tre o homem e a mulher
Há um mundo .
Entre o homem e o mundo
Há um muro 3 .

Esse poema figura em epígrafe da terceira e última parte de "Função


e campo da fala e da linguagem". Nenhum comentário vem dizer a razão da
menção, aqui, desses versos. Ao ler até o fim as páginas que se seguem, em
que não está em questão nem o amor, nem a mulher, nem o mundo, somos
levados a concluir que a presença deles só pode se dever à queda, à última
palavra deles, ao "muro" - a qual, aliás, só é uma última palavra porque
Lacan a fez tal ao citar Tudal. Com efeito, essa última parte do rel�tório de
Roma insiste no "muro da linguagem", para além do qual não há nada a
buscar4. As últimas linhas, iniciando um voo de um lirismo relativamente
desusado, são introduzidas da seguinte maneira: "Aqui estamos, pois, no
pé do muro, no pé do muro da linguagem. Aí estamos em nosso lugar, isto
é, do mesmo lado que o paciente, e é sobre esse muro que é o mesmo para
ele e para nós que vamos tentar responder ao eco de sua fala5 ". Logo, não
será pouco, no que se refere ao corte operado por Lacan nesse poema, senão
a isso contravir trazendo aqui mesmo a continuação do poema - mesmo
arriscando suscitar alguma decepção, uma vez que esse ensaio de juventude
se afigura, para acabar, bem pouco poético:

2
Roberto Harari, " Un double lapsus de Lacan" , Revista de Psicotel'tlp ia psicot111t1litict1, s . l . n . d .
J J. Lacan , Écrits /, op. cit. , p. 1 70 . Respeitei, acima, a apresentação gráfica d o s Escritos.
4
lbid. , p. 1 9 1 .
1
lbid. , p. 200.
288

Os fortes derrubam o muro,


Os habilidosos o escalam,
Os pacientes o esfregam.
Para outros um muro é um muro
Eles o circundam sem pensar mal...
. . . nem bem.

O bem e o mal
No entanto existem para eles
É um muro como o outro
Que lhes dá sua sombra.

Para os murados tudo é muro


Até uma porta aberta.

Tudal terminava sua coisa numa porta aberta, Lacan, num muro.
Perdoaremos um garoto de quatorze anos por ter escrito essa continuaçã o,
ainda que a observação conclusiva esteja longe de faltar em pertinência,
notadamente no "campo paranoico das psicoses6 " . Mas, então, o que tanto
interessou Lacan nesses seis primeiros versos? Essa queda no muro basta
para responder a essa questão? A prova que não é fornecida, vinte anos após
Roma, pelo lapso de Lacan tentando, num lugar singularmente murado,
a saber, a capela Sainte-Anne, dizer mais uma vez esses seis versos. Ele já
se engana ao localizar mal o lugar que lhes havia atribuído. Acaba de se
perguntar como um analisando "pode alguma vez ter vontade de se tornar
psicanalista", acrescentando que "eles chegam a isso sem ter a mínima ideia
do que lhes acontece", algo só despertando, a esse respeito, quando lá estã o;
ele menciona, então, a escrita de "Função e campo... ", e, logo depois, o
poema de Tudal:

6 Lembramos a imagem (inventada por Lacan?) do louco que se agarra desesperadamente à


sua grade circular, dando a volta sem e ncontrar a saída. Era a Praça da Concorde, e ele estava
no exterior do espaço onde o obelisco está erguido.
O ( a ) M U fl ü
289

Com o se explica que aceitei isso, entre todas as espécies de coisas sensatas,
uma esp écie de epígrafe do gênero refrão, que vocês encontrarão em ... basta
vo cês olh arem no nível da parte quatro, tanto quanto [tottt atttant que] me
le m bro [ ... ] .
7

Nota-se uma discreta mas sensível flutuação em suas lembranças,


indica da na transcrição, a um só tempo pelos três pontos e pelo erro (ou
0 lapso) " tout" no lugar de "pour"* . Ele tem bem razão de flutuar, pois
em vão se buscaria uma "parte quatro" em "Função e campo... " (Harari
ress altou isso) . Em outras palavras, Lacan está situando o poema de Tudal
em epígrafe de uma parte inexistente de seu texto, está excluindo esses
versos de "Função e campo ... ". Ele não sabe, mas declara mesmo assim
que esse poema "vem ali nessa história de função e campo como fios de
cabelos na sopa". Não é tão seguro. O que, então, nesse fragmento de
poema, no entanto eleito por ele, não funciona? Ou não funciona mais?
O lapso virá dizer:

[ ... ] começa assim: "Entre o homem e a mulher, há o amor, entre o homem


e o amor - vocês, hein, nunca notaram esse negócio, em sua coisa - há um
mundo , entre o homem e o mundo há um muro" .

Talvez, como ele vai dizer logo depois, essa "poesia proverbial" ronro­
na; em todo caso, com seus lapsos, isso não ronrona mais nem um pouco!
Estamos às voltas com um tipo específico de lapso, que chamarei lapso em
extensão, ou ainda lapso repercutente, a repercussão sendo aqui com certeza
suscitada pelo formalismo poético. O que nada tira de seu alcance doutrinal:
'a 'o
ao ter colocado mulher " no lugar de amor ': Lacan é levado a pôr o amor
no lugar da mulher. Embora ligadas, essas duas operações são diferentes, já
que a primeira em nada implica necessariamente a segunda. De mais a mais,

7 J . Lacan, Le savoir du psychanalyste, transcrição Afi. Igualmente i11 PTL.


* O erro (ou o lapso) muda, porta nto , a tradução acima: tollt n11tn11t que: ta nto quanto; pour
autam que: na medida em que, contanto que. (NT)
290 O AMOR LAc
AN

logo depois, ele reitera esse lapso decididamente em extensão. Ele o repete
produzindo então uma nova interposição:

"Entre o homem e a mulher, há o amor - mas é claro!. . . só hd isso até -, en tre


o homem e o amor há um mundo", sempre é o que se diz, "há um m undo"
assim, "há um mundo", quer dizer: "vocês não conseguirão nunca" [ ... ] .

Segundo a ordem de aparecimento do substantivos, obtêm-se as du as


seguintes séries:

I TuoAL: o homem / o amor / a mulher / o mundo / o muro


II LAcAN: o homem / a mulher / o amor / o mundo / o muro.

Dizer que entre o homem e o amor há a mulher (Tudal) ou então


dizer que entre o homem e a mulher há o amor (Lacan) remete a d uas
problemáticas distintas. Outra representação dessa diferença levará em
conta o efeito de "entre" que Lacan, aliás, vai comentar, depois escrever
topologicamente.

EM TUDAL EM LAcAN "ENGANANDO-sE"

o homem, buscando o amor, o homem, buscando a mulher,


encontra a mulher como primeiro encontra o amor como primeiro
obstáculo, obstáculo,
depois, buscando a mulher, depois, buscando o amor,
choca-se com o mundo choca-se com o mundo,
depois, buscando o mundo, depois, buscando o mundo,
choca-se com o muro. choca-se com o muro.

A cada passo, o homem é levado a mais abandonar suas pretensões.


Sua ambição primeira sempre se afasta mais, ou antes ele mesmo dela sem­
pre se distancia mais; vemos que há aí algo aberto, talvez até hiante. Al ém
disso, se fizermos atuar a função do "entre", a série difere daquela obtid a
por simples constatação da orde m de aparecimento dos substantivos no
poema. Em Tudal, dá:
O (a)M U RO 291

oRDEM POÉTICA: o homem / o amor / a mulher / o mundo / o muro


II I ORDEM (CRONO )
LÓGICA ("ENTRE,, ) : o homem / o muro / o mundo / a mulher / o amor

E, em Lacan:

II oRDEM POÉTICA: o homem / a mulher / o amor / o mundo / o muro


N ORDEM (CRONO)
LÓGICA (O "ENTRE ") : o homem / o muro / o mundo / o amor / a mulher

Nenhuma dessas quatro séries é equivalente a outra. A diferença mais im­


portan te, introduzida pelo lapso de Lacan no que se refere a Tudal, mas também
ao Lacan de "Função e campo... ", diz respeito à afirmação daquilo que o homem
visaria. Ou se formula que o homem visaria o amor (Tudal, Lacan primeira
maneira), ou que ele visaria a mulher (Lacan segunda maneira, não sabendo que
está confiando num lapso seu). Ora, não faltam ecos a uma alternativa assim.
O homem visando o amor, eis o neoplatonismo, esse fio deixado de lado por
Lacan ao não levar em consideração o comentário de Ficino sobre O banquete.
O que seria, então, o homem visando a mulher? Melhor que heterossexualidade,
chamarei, com Louis-George Tin, o heterossexismo8 • Eis uma formulação tirada
de um autor que talvez não esperemos aqui, a saber, Levinas:

Não haveria uma situação em que a alteridade seria trazida por um ser de
título positivo como essência? Qual é a alteridade que não entra pura e
simplesmente na oposição das duas espécies do mesmo gênero? Penso que
o contrário absolutamente contrário, cuja contrariedade em nada é afetada
pela relação que pode se estabelecer entre ele e seu correlativo, a contrarie­
dade que permite enfim que o termo permaneça absolutamente outro, é o
feminino. [... ] A alteridade se cumpre no feminino. Termo de mesmo nível,
mas de sentido oposto à consciência 9 •

8 Louis-Georges Tin, 'Tinvention de la cul ture hétérosexuelle" , Les temps modemes, nº 624 ,
maio-ju nho-j ulho de 2003 .
? Citado por Simone de Beauvoir, Le deuxieme sexe, t. I , Paris, Gallimard, coll . " Folio essais" ,
1 976 0" éd. 1 949) , p, 1 5- 1 6.
292

Michele Le Oreuff cita parcialmente esse texto num notável artigo


sobre O segundo sexo'º. Também se lê ali a reação de Simone de Beauvoir :
"Suponho", escreve Simone de Beauvoir, "que o Sr. Levinas não está esqu e ­
cendo que a mulher é também por si consciência. Mas é impressionante
que ele adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar
a reciprocidade do sujeito e do objeto". Simone de Beauvoir é ainda bern
complacente em sua leitura, a não ser que use deliberadamente de urn
eufemismo ao colocar a questão de saber se Levinas "está esquecendo" qu e
a mulher é por si consciência. Para falar a verdade, longe de esquecer isso,
ele faz do feminino um "termo de mesmo nível mas de sentido oposto à
consciência". Não se pode ser mais claro: a mulher é sem consciência. Como
indica sem pensar com malícia Simone de Beauvoir quando vem sob sua
pena "a mulher", essa perspectiva heterossexista levinassiana só pode faze r
do feminino o absolutamente outro se localizar esse feminino em A m ulher
(outra versão: o feminino como "continente negro": espera-se o etnólogo).
Onde está o erro? Aqui mesmo legível, ele consiste em imaginar que a al­
teridade possa ser "trazida por um ser positivado".
Logo, estamos às voltas com algo que talvez não seja exatamente uma
antinomia mas que vale como duas veias diferentes: ou o amor como tal é
visado (tradição neoplatônica), ou A mulher (heterossexismo). Ora, essas
duas veias estão presentes nas duas epígrafes da terceira parte de "Função e
campo... ". A primeira, o poema de Tudal, diz a visada do amor. A segunda,
um texto do Satiricon de Petrônio, não traduzido, diz a visada da mulher.
Eis esse texto: "Pois vi, com meus olhos, a Sibila de Cumes suspensa numa
garrafa e quando as crianças lhe perguntavam em grego: 'Sibila, que que­
res?'. Ela respondia: 'Quero morrer' ' ' ". Essas duas veias, como posicioná-las
uma em relação à outra senão teoricamente, pelos menos historicamente?
Consideraremos demonstrado pelo artigo de Louis-George T in acima

1 0 Michele Le Dreuff, " Pour u ne critique transatlantique du De11xie111e sexe", Les temps moder­
nes, op. cit. , p. 1 68- 1 83.
11 Explicação de "suspensa numa garrafa" , dada em nota na edição francesa: "Contava-se qu e
a sibila de Cumes, sendo jovem , fora amada por Apolo e que, em contrapartida por seus
favores, o deus lhe concedera viver tantos anos quanto houvesse de grãos de areia na praia.
Mas a jovem esquecera de pedir a j uventude, por isso, ao envelhecer, foi secando, ao ponto
de ficar igual a uma cigarra" .
0 ( a ) M U RO 2 93

mencionado que "é por volta do ano 1 000 que essa cultura heterossexual
emergiu no Ocidente", mas sobretudo que essa fabricação nova foi o forte
da ética cortesã que, ao paradigma homem/homem, substituiu o paradig­
ma homem/dama, uma cultura da heterossexualidade vindo no lugar de
uma cultura da homossocialidade. Essas duas veias deixam-se articular: o
ftn 'am o r produziu a heterossexualidade, não o inverso. A visada da mulher
vem historicamente em segundo no que se refere à visada do amor. O
ftn 'am or terá atuado como termo mediano, como passagem: ele havia posto
a mulher em lugar de erômeno, e o amante ali buscava o amor da mulher,
a qual continuava sendo seu objeto. Com a onda neoplatônica varrendo
r,
0 fin'am o essa "mesma" mulher (que, evidentemente, não é precisamente
mais a mesma) encarna a alteridade, mas por um tempo apenas, aquele
12
para o amante de enfim encontrar seu verdadeiro objeto • Então vai poder
surgir o que pode ser chamado uma terceira mulher, não mais a dama do
poeta cortês, nem tampouco a mulher-padrão do neoplatonismo, mas uma
mulher que, nesse terceiro momento, terá recebido a carga da alteridade
(fim do neoplatonismo) e terá tomado o lugar do amor (definitivo fim do
amor cortês). Não se espera mais o amor dessa terceira. Como se esperaria
dela isso se ela está no lugar do amor? Aliás, ela é "sem consciência". O
acento colocado na alteridade terá aberto a porta à heterossexualidade, em
que a mulher, de novo mas muito visada como último objeto, aparece como
" .
contmente negro .
,,

Assim, revela-se a profundidade histórica do lapso de Lacan. Ele


opera a báscula de uma à outra das duas veias distinguidas. Além disso, sua
flutuação assinala uma dificuldade na análise, sublinha que nem uma nem
outra dessas duas perspectivas convém, que mais uma vez a análise é convi­
d ada a navegar entre Caribde e Cila. Como tentar essa navegação? Notando
que, justa ou falsa citação, fo rmalmente, o problema é o mesmo: o homem
é um alpinista que qu er atingir um cume (ou o amor, ou a mulher), e não
consegue. Como o aprisionamento que lhe daria acesso a ele não parece
fiável, ele se volta para o aprisionamento precedente (a mulher, ou, então,
o amor), pouco fiável igualmente; ele então se volta para a tomada ainda

12 {) �.n l-.lPmo ín ; P nr�r�rln m ,, i, rl e nerto aa ui mesmo, em preâmbulo.


2 94 O A M O R LAcAN

precedente (o mundo, nos dois casos), fraquejante também, depois, corn


mais um grau, para, desta vez, enfim chocar-se com algo: o muro.
Ora,formalmente, essa estrutura é a mesma que aquela que caracte riza 0
sign ificante. Isso merece explicação. Pouco se notou como o seminário De urn
Outro ao outro ( 1 968- 1 969) remodelava a definição do sujeito como "o que
é representado por um significante junto a outro significante". Lacan dedica
várias sessões desse seminário a essa remodelagem, e o fato de ela intervir
logo após a escrita do materna da transferência na "Proposição de outubro
de 1967 sobre o psicanalista da escola'' acusa ainda mais a importância disso.
Ao longo do ano 1 968 - 1969, Lacan interroga seu S 1 ----+ S 2 • Produz, então,
vários maternas, notadamente a seguinte escrita conjuntista (4 de dezembro
de 1 968): { {S 1 } , {S 1 , S2 } } , em que já se vê surgir o problema (o S2 escapando
pela direita). Outros maternas assinalam esse deslizamento:

A / A/
S, < s, \ s,

27 de novembro 4 de dezembro 12 de fevereiro 26 de março 1 4 de maio


de 1 968 de 1 968 de 1 969 de 1 969 de 1 969

Esses maternas apresentam o que Wittgenstein poderia ter chamado


um "ar de família". Muitas questões são assim colocadas, uma delas formu­
lando-se assim: o que é, pois, o outro sign ificante, aquele que estava escrito
S2 em S 1 ----+ S} Lacan parece perceber naquele momento que há Outro no
próprio nome de "outro significante" (representa... junto a outro significante).
Tudo teria ocorrido como se, até ali, ele não tivesse lido o Outro no "outro
significante" e como se se interrogasse, por isso, o que acontece, subjeti­
vamente, quanto a esse S2 • Ele teria esperado das cifrações conjuntistas e
topológicas da reiteração da relação S 1 ----+ S 2 que elas lhe dessem a solução.
Mostra-se particularmente notável, nesse ponto, a diferença entre a cifração
de 27 de novembro de 1 968 e a de 26 de março de 1 969. Ali onde, em 27
de novembro de 1 968, lemos grande A, encontramos, em 26 de março,
pequeno a. O objeto a faz furo, mas também oferece a grande A seu "em
forma". Em outras palavras, o S 2 nunca pode valer como saber absoluto, o
que Lacan, em dado momento (4 de dezembro de 1968), identifica pura e
( a ) M U ll O
2 95
O

ente, e sem muito discutir esse ponto, com o sujeito suposto saber.
simplesm
Assi m, vemos então ressurgir um personagem de aparições no entanto ex-
m raras após a "Proposição... ", a saber, o "significante qualquer",
crem a ente
da transferência (escrito, também, S/ O fato de o S 2 nunca
0 do materna
:1 cin gir o saber absoluto, de nunca ser localizável o sujeito suposto saber em
ualq uer S2 que seja, coloca sob novos aspectos a questão da transferência,
dqo amor de transrerenc1a, e pede tres ob servaçoes.
C A . A -
Primeiro ponto: a fantasia não tem a ver com o assunto. Em 13 de
novembro de 1 968 (primeira sessão de De um Outro ao outro) , Lacan trata
da fantasia para, de certo modo, não ter mais de voltar a isso naquele ano. A
fantasia se opõe à reiteração significante, razão pela qual o estudo desta exclui
que nos focalizemos naquele. A fantasia é feita da "reiteração do significante
13
que representa o sujeito em relação a si mesmo " . A fantasia permite que não
seja colocada a questão do outro significante - uma vez que a regra analítica
cem precisamente por função tentar "relaxar" essa corrente por demais blo­
queada. A fantasia é uma escamoteação. É confundida com o amor porque
ele também cria dificuldade? Trata-se de uma ilusão. Por exemplo, quem
procura salvar uma mulher da perdição, ou salvar o pai, pode se imaginar
amá-lo. No entanto, fantasias assim nada têm a ver com o amor.
Segundo ponto: se nos limitarmos à reiteração significante e .ª trocar,
como então procura fazer Lacan, o par {S 1 S2 } pelo grande A, este aparece,
durante cada "golpe", como um "paredão" (4 de dezembro de 1 968) , como
um obstáculo. Em outras palavras, a estrutura formal do poema de Tudal é
isomorfa àquela da remodelagem do S 1 S2 em De um Outro ao outro. Essa
estrutura é independente dos termos primeiramente visados (a mulher ou
o amor). Da mesma fo rma que o termo visado nunca é alcançado, da mesma
fo rma nunca é alcançado o S2 do materna inaugural. O que se passa, durante
cada golpe, cada reiteração, cada relação estabelecida de um significante S 1
com o que é entrevisto como um S2 mas que vai se revelar não ser o S2 , aquele
que esperamos, o saber absoluto, o sujeito suposto saber? Tal fracasso tornará
possível um golpe seguinte. Logo, essa desilusão pode também facilmente
ser a do amor de transferência. Daí se deduz que a inte1pretação, longe de

1., J . Lacan, De 11111 Outro no outro, transcrição Afi (introduzo os itál icos) .
O AMO R LA C N
A

apagá-lo, longe de absorvê-lo, longe de acabar com ele,fazjlambar o am or de


transferência. Para falar a verdade, esta última fórmula é de experi ência b anal .
Comentando seu materna de 1 2 de fevereiro de 1969, Lacan diz claram ente
a coisa, diz sua ambivalência (a um só tempo suscitação e questionamento do
transamor): nesse jogo há algo que, "no lugar do 1 [do grande Outro tomado
como J] coloca-se como que se o interrogasse sobre o que ele se torna, ele ,
o 1 , quando eu [mot] , pequeno a, eu lhe falto". Logo, eis aqui o transmo r
declarando-se com o comum "senti falta de você, sabe"; e eis agora a cont i�
nuação, o só-depois devido à reiteração dos golpes: "E nesse ponto em que eu
lhe falto, se me recoloco mais uma vez como "eu" [je] , será para interrogá-lo
sobre o que resulta do fato de eu ter colocado essa falta".
Uma ópera moderna deixa ouvir a balada do S 2 esquivando-se toda
vez que um S 1 tenta atingi-lo e só atinge (não é pouco) um outro S 1 • Des de
seus primeiros compassos, Jaufré Rudel, o célebre trovador encenado por
essa ópera, canta:

Vi um rouxinol no galho, suas palavras chamavam a companheira. Minh as


próprias palavras só chamam outras palavras, meus versos só chamam outros
versos. Me dirás rouxinol... (ele se interrompe). Rouxinol, me dirds rouxinol . .
(ele faz "sim''). Rouxinol, me dirás rouxinol...

E, aí, intervenção franca do coro: "Rouxinol não te dirá nada 1 4 !".


Moral: um rouxinol pode perfeitamente responder como um analista,
mesmo que este último possa se encontrar em dificuldade quando se trata
de responder como um rouxinol.
Um contraexemplo poderá mostrar em que impasse se acha um a
análise, já que o analista se põe a crer que o S2 foi de fato atingido. Parti­
cularmente propícia a esse respeito afigura-se a sexta das grandes psicaná­
lises de Freud 1 5 • Vamos reter apenas um traço. Elfriede Hirschfeld deixou

14 Amin Maalouf, l'n111011r de loin (libreto) , Paris, Grasset, 200 1 , p. 1 5- 1 6.


1 5 Distinguiam-se até então cinco (as "cinco psicanálises") , mas Ernst Falzeder recen teme nte
exumou e publicou este sexto grande caso freudiano , primeiramente em 1 997, na Revue
fhmçaise de psychanalyse, depois numa obra coletiva: André Haynal , Ernst Falzeder, Paul
Roazen, Dans les secrets de la psychanalyse et de son histoire, Paris, PuF, 2005 . Todas as citações
que se seguem são retomadas do tex to de Falzeder nessa obra.
O (a)M U RO 29 7

brus camente seu psicanalista no mesmo dia em que Freud "estivera a ponto
"'
de lhe dizer 'a palavra decisiva do segredo de sua doença . Eis o S2 : uma
"palavra decisiva", à qual em geral falta fineza, em outras palavras, espírito,
decorre mais daquilo que Lacan chamava a babaquice da verdade. Freud
não vê o problema, embora até o mostre. Essa ruptura estava no entanto
bem feita para lhe indicar que, palavra decisiva desse tipo, pois bem, não
há, 0 S2 se esquiva e acreditar poder pôr um saber, seja ele qual for, em
posição de verdade de uma análise está precisamente excluído, deve por­
tanto ser excluído.
Logo, o que é desprezado quando um psicanalista acredita poder
reduzir um caso a um S/ Nada mais que o amor de transferência. Elfriede
H irsch feld leva Freud a soltar este grito do coração, enquanto escreve a
Jung a seu respeito: "Não permitamos nunca que os pobres neuróticos nos
deixem loucos". O que deixaria Freud louco é, como ele escreve a Binswan­
ger em 24 de abril de 1915, que ela pretenda ainda depender dele. Ele
acres centa: "Na realidade, ela foge de mim desde que consegui lhe revelar
a palavra decisiva de sua doença". Essa dependência é de ordem amorosa:
uma transferência paterna, segundo Freud. E todo o conflito com Jung, no
qual Elfriede Hirschfeld é um protagonista maior, refere-se à respo�ta a ser
dada ao que também se nomeia, empregando um eufemismo, a busca de
uma "certa quantidade de compaixão". Jung seria levado a concordar, Freud
não. A tática dele, a resposta que ele dá ao amor de transferência consiste
sobretudo em permanecer dono da situação, e Falzeder faz a esse respeito
uma observação filológica das mais pertinentes quando aponta que sempre
que Freud fala de contratransferência, está em questão tornar-se o dono
dela, dominá-la. Mas por quê? E como? Tentando desviar o amor, fazê­
lo passar, diz Freud, "do material ao psíquico". Ao dar sua explicação do
caso à paciente, Freud lhe faz dom, no plano do amor, de um "sucedâneo"
(Surrogat), de um detentor do lugar de S2 • Sucedâneo de amor, a palavra é
bem encontrada, pois Freud dá então à sua paciente o que ele tem, e até o
que ele construiu a seu respeito e não só para ela. Ora, Elfried Hirschfeld
não está nem um pouco interessada nesse sucedâneo e nessa mudança do
material em psíquico! E Freud simplesmente se mostra odioso ao destinar
O A M O R LA CAN

ess a mulh er à categoria daquelas que só são acessíveis "à lógica da so pa e


ao s arg umentos dos bolinhos".
Assim, o fracasso desse tratamento vale ensinamento. Fica claro qu e
oferecer como sucedâneo de amor um S2 ao analisando não pode constitu ir
uma resposta efetiva ao amor de transferência. O amor seria, então, de tipo
mercantil: "Fazes-me dom de teu amor, recebe em troca este saber, e vá-te
embora, com este viático à guisa de amor". Mas quem, então, não preferiria
os bolinhos? Assim, limitar-se a um S2 corresponde a desprezar, no mesm o ritmo,
não só a esquiva do S2' mas o amor de transferência. Crer ter fixado um S2 tem
por efeito colocar em impasse o amor de transferência. Há solidariedade, na
análise, entre uma certa relação com o saber, sustentada pelo psicanalista, e seu
acolhimento do amor de transferência que, para dizer do modo mais simples,
mais breve e talvez mais justo, não seria o de um grosseirão. A homologia
que liga a interposição do Outro entre S 1 e S2 e o amor posicionado entre 0
homem e a mulher vê-se assim, a contrario, confirmada.
Terceiro ponto. O isomorfismo entre o poema de Tudal e os maternas
da reiteração significante é confirmado por Lacan que cifra um e o outro
com a garrafa de Klein. Em De um Outro ao outro, a garrafa de Klein vem
escrever o "em forma" de pequeno a do grande A (26 de março e 23 de
abril de 1 969) ; e é com essa mesma garrafa que Lacan, nas conferências
em Sainte-Anne, vai tentar escrever sua citação do poema de Tudal. Não
só se trata da mesma estrutura topológica, mas mais ainda, Lacan, em 6 de
janeiro de 1972, faz referência, sem indicá-la precisamente, à sessão de 23
de abril de De um Outro ao outro. Eis a cifração:

O amor está ali, o p e q ueno anel

FIGURA I
O ( a ) M U RO 2 99

A garrafa de Klein importa por sua virada de direção , que por certo
está po r toda parte, como está o anel do amor, mas que não deixa de ser uma
vi rada de direção. Entre o homem e a mulher, o amor forma anel . Parte-se
daí, do heterossexismo 1 6 • A garrafa de Klein permite pensar a continuação
de man eira não geométrica. Permite entender que entre o homem e o amor
0 m un do só pode estar localizado no lugar da mulher, o mundo "recobre"

0 te rrit ório da mulher - a tal ponto que o homem imagina conhecer ("no

sen ti do bíblico" , um sentido que os filólogos hoje não admitem mais) o


m un d o. Enfim, a garrafa de Klein permite identificar o muro com o qual
se chocaria o homem em seu movimento rumo ao mundo como o ponto
d e virada de direção da estrutura topológica. Disso se deduz que esse muro
está por toda parte. Disso também se deduz que ele não é um muro, j á que
esse ponto de virada de direção é idêntico à estrutura. Disso se deduz que
0 que parecia um muro era algo transponível nada mais que a castração. O

que está em j ogo no amor é a castração. Ora, essa conclusão que assinala
a possibilidade de uma perda efetiva e subjetivan te já era aquela para a
qual tendia o uso dos objetos topológicos de De um Outro ao outro, já era
a razão do recurso à topologia. A escrita (a)muro, de 6 de janeiro de 1 972,
corresponde ao "em forma" de pequeno a do grande A.
Logo, a impotência da interpretação em dar solução ao trahsmor não
é um dado acidental; o transmor é a um só tempo o que impede que o anali­
s ando "repouse mais uma vez" como "eu" [je] e o que abre essa possibilidade.
Tudo acontece, em última análise, no lugar do analista; tudo depende da
maneira como o analista saberá ou não (com um saber prático) fazer um
resultado do fato de que o analisando lhe falte. Já se sabe a dificuldade que
o aguarda, já que esse resultado . . . é ele mesmo.

16 " Quando digo: "quando um homem encon tra uma mulher" hein, é porque so u modesto,
quero dizer por aí que náo pretendo chegar a falar do que acon tece quando uma mulher en­
con t ra um homem . . . porque minha experiência é limitada, hein" (J . Lacan, Les 11011-dupes. . . ,
----• - .J _ 1 o .J_ ..l ---m '- •� rl� 1 Cl7'1)
CAPÍTULO XVI

0 AMOR ESCREVE,
NÃO RASURA

U ma vez assinaladas a espessura histórica do lapso de Lacan e a iso­


morfia de estrutura entre os versos deTudal e o jogo reiterado do S 1
-t S 2, um outro traço salta aos olhos: esse lapso oferecia a Lacan a oportu­
nidade de situar o amor como obstdcufo à não-relação sexual, não-relação
essa que já se encontrava à disposição. Como esse lapso colocava o amor
entre o homem e a mulher, a coisa estava ali, ao alcance. No entanto, ex­
plicitamente, não é nada disso, e talvez essa observação não o tenha sequer
tocado de leve. Pelo menos à primeira vista, ele toma uma outra pista a fim
de que seu lapso dê sua razão. Pois ele acaba bem lhe dando razão: como
mostra a cifração do problema pela garrafa de Klein que põe um termo
a seu comentário do lapso (não digo à sua análise). O amor (o pequeno
anel) é bem entre o homem e a mulher, cada um ocupando ficticiamente
um espaço da superfície, esquerda para o homem, direita para a mulher
(configuração esquerda/direita que breve será encontrada nas fórmulas da
sexuação). Esse pequeno anel deve figurar o "ponto de virada de direção"
da estrutura cuja fabricação deixa-se assim esquematizar:

FIGURA II
302

Outra figuração, em que se percebe talvez de modo mais claro o círculo


de virada de direção (o pequeno anel) que no quinto desenho da figura I I:

FIGURA III

T ão logo são realizados o corte dos dois círculos do toro cortado


(terceiro desenho da figura I I ) e a autotravessia, esse "pequeno anel" não é
localizável aqui mais que ali. Da mesma forma, as localizações homem/mulher
na garrafa de Klein não têm nenhum valor topológico especial, são uma pura
convenção achatada sobre a superfície ou, melhor, sobre essa apresentação
plana da superfície. Logo, por que esse tráfego tão artificial? O isomorfismo
de estrutura oferece um início de resposta: da mesma forma que o significante
mestre, o S 1 , nunca atinge o outro significante, o S2 , aquele junto ao qual ele
representaria o sujeito, da mesma forma o homem nunca atingiria a mulher
e o que dela o separaria seria, pois bem, conforme a esse lapso decididamente
significativo... , o amor. O amor que pode então ser dito " (a)muro", já que,
como um muro, como um muro de linguagem se não for da linguagem, ele
se interpõe, faz barreira entre o homem e a mulher. Qual passo é em seguid a
dado graças à garrafa de Klein? Sua aplicação o atesta: trata-se mais que de
um isomorfismo. Seria uma única e mesma operação não atingir a mulher e
nunca tampouco atingir o S2 (em outras palavras, o saber). Onde quer que seja
(na superfície) que o homem tente chegar à mulher (e Deus sabe que o lugar
onde eles tentam reencontrar-se está longe de ser indiferente: não se ama do
mesmo jeito na casa dela, na dele, na dos dois, no hotel, etc.), um muro se
ergue entre ele e ela, e esse muro é o (a)muro.
Três traços vêm escorar isso: 1 ) a formulação da carta [lettre] de amor,
que vem dizer de que é notadamente feito o (a)muro, a saber, de letras* - será

* Em francês, Lettre tanto pode ser letra quanto carta. (NT)


O AM
O R E SCR E V E . N Ã O RAS U RA 3 03

ai nd a conveniente precisar de que literalidade se trata; 2) a inacessibilidade


da m ulher, que é então ainda mais bem afirmada porquanto essa mulher
vai estar posicionada como mãe; 3) o próprio muro que se torna folha de
qual se escrevem as cartas [lettres] .
p ap el na

DA CARTA DE AMOR

A carta de amor também está ao alcance da mão de Lacan, mas, contraria­


mente a seu provisório "esquecimento" da não-relação sexual, ele dela se
ap oss a. Bastava-lhe notar, quase trivialmente, que estava às voltas, lapso ou
não, com um poema, ou seja, com um escrito como tal. O que vai incitá-lo
a prolongar esse poema da seguinte maneira:

A carta, a carta de (a)muro, para dar sequência a essa pequena balada em


seis versos que comentei aqui, na última vez, está claro que seria preciso que
isso mordesse o próprio rabo e, se isso começa entre o homem, que ninguém
sabe o que é, "entre o homem e o amor, há a mulher" e, além disso, como
sabem, isso continua - não vou recomeçar hoje - e deveria terminar no
fim, no fim há o muro: entre o homem e o muro há justamente . . . o amor,
a carta de amor. O que há de melhor nesse curioso impulso que chamamos
o amor é a carta, é a carta que pode assumir estranhas formas' .

A carta de amor parece um condensado: o amor é muro, muro este


que, na medida em que o amor é letra, seria o "muro da linguagem" que
esteve em questão já em 1 953. Ora, signo de seu caráter sério, essa conjunção
muro-carta é confirmada por sua própria enunciação. E é o episódio de 3
de fevereiro de 1 972 que, após ter feito dele um chiste2 , chamarei "Ele bem
que procurou". Esse episódio acontece na capela do Hospital Sainte-Anne;
precede de pouco o surgimento do (a)muro nos seminários:

1 Jacques
Lacan, . . . 011 pior, sessão de 3 de fevereiro de 1 972.
2 ean
J Allou ch. Les imfJromptus de Lacan, Paris, Fayard/Mille et Une Nuirs, 2009 .
Como saber a quem falo? Sobretudo porque, afinal, vocês contam no as­
sunto, embora eu me esforce . . . Vocês contam ao menos pelo fato de que
não falo ali onde eu contava falar, já que eu contava falar no an fitea tro
Magnan e estou falando na capela. Que história! Vocês ouviram ? vo c ts
OUVIRAM? ESTOU FALANDO À* CAPELA! É a resposta. Estou falando à capela,
isto é, AOS MUROS!
Cada vez melhor o ato falho! Agora sei a quem 3 vim falar, àquilo a que sempre
falei em Sainte-Anne, aos muros! [ . . . ] De vez em quando, voltei com um
pequeno título de conferência, sobre o que ensino, por exemplo, e de po is
alguns outros, não vou fazer a lista. Ali sempre falei aos muros.
X - ...
LAcAN - Alguém tem algo a dizer?
X - Nós deveríamos todos sair já que o senhor está falando aos muros.
LAcAN - Quem . . . quem está me falando aí?
X - Os muros.

Lacan vai ele mesmo fazer a aproximação entre o muro de Tudal e os


muros da capela Sainte-Anne aos quais ele fala (pelo menos, a experiência
ajudando, ele deve acabar aceitando) . Em 6 de janeiro de 1972, logo apó s
ter citado os últimos versos de Tudal: "Entre o homem e o mundo, há um
muro", ele prossegue: "Como veem, eu havia previsto o que lhes diria esta
noite, estou falando aos muros" . Está claro que ele não havia previsto nada,
que seu "estou falando aos muros" foi uma descoberta ligada ao momento,
à situação, e tão imprevista quanto a resposta dos muros. Está menos claro
que os muros, ao lhe responderem, também lhe fazem, e em troca, uma
declaração de amor - cômica, como se deve, lacanianamente, tratando-se
do amor. Esse momento do seminário é aquele em que, talvez da maneira
mais clara, Lacan e seu público fazem amor, se amam no sentido que está
tomando esse termo em Lacan. Com seu "estou falando aos muros", Lacan

* Jo go em fr ancês : ]e parle à ln chapei/e. A p re p osição francesa à p ode aí ser traduzida p or na


ou à. (NT)
·1 Com este "quem" no lugar de um "que", Lacan indicaria que está falando à santa, à Santa An a?
O R E S C R E V E , N ÃO RAS U RA
O AM

encontrou um viés mais eficaz que seu "Te amo mesmo que eu não saiba".
Com o " (a)muro", os apaixonados mu mú ios dos mu os fazem muro. As­
r r r
sim conve rgem enunciado e enunciação: o diálogo amoroso de Lacan com
os m uros que falam confir ma, da melhor maneira possível, que o amor é
(a) m uro, car ta de (a)muro.
O ter mo (a)muro é como tal um escrito, como atesta o uso do pa­
rêntese. Ora, ele dá lugar a uma outra escr ita no falar. Em 9 de fevereiro de
1 9 72 , Lacan está discutindo o binar ismo em linguística quando sobrevém,
tendo aparentemente o estatuto de um simples exemplo, uma proposição
sobre o amor:

Amar a alguém, isso sempre me maravilhou. Quero dizer que lamento falar
uma língua em que se diz amo uma mulher, como se diz eu a espanco. Amar a
uma mulher me pareceria mais congruente. É até ao ponto que um dia percebi
[ ... ] que estava escrevendo não saberás nunca como te amei. Não pus e no final *,
o que é um lapso, um erro ortográfico se quiserem, incontestavelmente. Mas
foi refletindo nisso justamente que pensei que, se eu estava escrevendo assim,
era porque eu devia sentir amo a você. Mas, enfim, é pessoal4 •

Deve ser pessoal, mas vai bem além de um "assunto pessoal",. ainda
ai
m s que quanto mais um assunto é decididamente pessoal, mais ele interessa
qualquer um. A expressão amo a uma mulher apresenta a mesma concate­
nação liter al que a palavra (a)muro. Tudo se passa como se inter viesse aqui
um novo erro de or tografia, como se Lacan pensasse amo a uma mulher
1/ 'aíme a une femme] sem pôr acento algum no "a"** q ue, assim, torna-se
objeto a. Tudo se passa como se (a)muro esten ografasse a expr essão amo
tem uma mulher. O que conduz a um segundo indício, à inacessibilidade
da mulher.

• O certo seria { . . } combien je t'ai aimée, já que se trata de uma mulher e que, em francês,
se faz a concordância do par ticípio passado do verbo conj ugado com o objeto dire to ( no
caso, femi nino) colocado antes. Com a regência amar a, a concordância não se faz pois o
complemento passa a ser objeto indire to. (NT)
4 J. Lacan, . . . 011 pior, sessão de 9 de fevereiro de 1 972.
• • O acento distingue a preposição à de a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo
avoil' f terl (NT)
306

Mas, antes, uma palavra sobre a carta de amor. Alguns casos fo ralll
amplamente discutidos, a começar pelas célebres Cartas [Lettres] da religiosa
portuguesa, que constituíram, em 1 688, uma virada na história da carta de
amor, de imediato percebida pelos contemporâneos5 • Um muro tem U lll
grande papel no amor da Religiosa portuguesa, e antes espesso, já que se
trata daquele de seu convento. Mas há também uma sacada. Se o amor não
fosse (a)muro, não se veria por que a sacada aí é tão importante. O que lev a
centenas de milhares de pessoas a ir todo ano se pasmar, em Verona, di a nte
da sacada de Julieta, embora seja mais que duvidoso que Julieta lá tenha
alguma vez aparecido? A sacada é um falso foro no muro; ela é um furo que
permite que a amada apareça exatamente como se sua imagem surgisse na
superfície do muro. E esse furo é igualmente falso uma vez que não é a v ia
de passagem de um lado ao outro do muro. Com o que se tenta transfor­
mar esse falso muro em verdadeiro furo, por exemplo com a ajuda de uma
cançoneta que viria furar o ouvido da amada e - quem sabe? - atingi-la no
coração. A sacada é a inacessibilidade da amada vista como aparição. Era esta
a posição da Religiosa portuguesa, que era portuguesa mas não religiosa,
somente uma viúva acolhida num convento. Ela de modo algum esconde
da madre superiora sua ligação com o oficial francês que viera combater os
espanhóis ao lado dos portugueses. A resposta da madre superiora é de uma
justeza que não pode deixar de ser saudada: ela lhe pede para, dali por diante,
ser... porteira, a do convento, o que, por parte das autoridades conventuais,
valia menos como uma punição de suas encartadas que como uma maneira
de terapia. Porteira: propõem a ela dominar a passagem pelo furo no muro;
fazem-na passar do falso ao verdadeiro furo! Quem não conhece a impor­
tância da porta nos casos de amor? A importância, no limiar da porta, das
falsas saídas? Das portas batidas? Das portas entreabertas? Decididamente
sim, o amor, esse amor em todo caso, é (a)muro. O francês dispõe de uma
bela e falante expressão para designar uma certa transposição do muro: "pular
[em francês faire: lit. fazer] o muro". Para "possuir [em francês sefaire: lit.

5 Notadamente pelos anexos que ela nos oferece, a edição do livro de bolso (Paris, Librairie
gé nérale française, 1 993) é particularmente ú til, e notável o trabalho de Anne-Marie Clin­
Lalande a quem é devida a int rodu ção, o estabelecimento dos textos e as notas.
O R E S C R E V E , N Ã O RA S U RA
O AM

[azer-se] a b ela"? Paire [pular] o muro fabrica o muro, e assim revela, nesse
rnesmo gesto de transposição do muro, o amor como (a)muro. Mas muito
l onge também, e em outras línguas, estamos prevenidos da importância do
rnuro no jogo do amor. Que nos reportemos, para a China, à belíssima obra
de Rainier Lanselle O sujeito por trds da muralha .
6

Outros casos célebres de cartas de (a)muro: as de Diderot a Sophie


Volland, aquelas, "incestuosas" de quem ainda não era Stendhal à sua cara
alma gêmea, as correspondências Sand-Musset, Joyce-Nora, Nin-Miller,
etc. Não se pode mais desprezar esses manuais que, desde a Antiguidade e
sem interrupção até os dias de hoje, florescem, oferecendo a quem se acha
em dificuldade de escrita modelos de cartas de amor entre os quais basta
apenas eleger aquele que parece mais apropriado. O uso amplo que foi fei­
to das coletâneas coloca um interessante problema: elas são sinceras? Um
apaixonado que envia à sua amada uma carta na qual lhe esconde que ela
não é obra sua é menos sincero que aquele outro que usa a própria prosa?
Nada é menos seguro. A justo título, Lacan associava citação e verdade.
Reciprocamente, quando se acredita escrever o verdadeiro do verdadeiro
de um sentimento ou de uma paixão no que ela tem de mais singular não
se está mantendo um discurso quase perfeitamente impessoal? Tenderia a
prová-lo uma observação de Bernard Bray7 segundo a qual, com os séculos,
a s palavras, as ideias, as imagens são as mesmas. São de grande pobreza,
segundo Bray, as cartas de amor... O que contesta a afirmação de Lacan
segundo a qual "o que há de melhor, nesse curioso impulso que chamamos
o amor, é a carta8 " . A carta de amor é um gesto, um ato de amor? É bem
uma carta de amor? Acabamos por duvidar quando nos interessamos mais
de perto. Assim, Roland Banhes (citado por Bray) observava que "o amor
por certo tem ligação com minha linguagem (que o entretém), mas ele não
pode se alojar em minha escrita [ ... ] . O que bloqueia a escrita amorosa é a
ilusão de expressividade". Essa expressividade seria o forte de um escritor. De
um escritor sim, mas de um apaixonado? O escritor como tal pode ser um

" Rainier Lanselle, Le sujet derriere la m11rnille, Toulouse, Éres, 2004.


7 Bernard Bray, "Treize propos sur la lettre d'amour" , Text11el (revista da VFR "S cience des
textes et documents" , u niversité Paris-VII ) , 1 992, p. 9- 1 7.
8 J
. Lacan, . . . 011 pior, sessão de 3 de fevereiro de 1 972.
308

apaixonado? O cuidado literário, a ambição estilística se não a preciosidade


ao que se acrescenta o endereço, através do(a) eleito(a), a um público m ai�
amplo, talvez até à posteridade, podem ser o forte de um amante?
Isso diz respeito ao sentido da carta, mas ela também é um objeto:
escolhemos seu formato, sua cor, somos refinados no papel, o perfumamos
cuidamos da caligrafia, ali deixamos o rastro de um beijo, acrescentamos uma
mecha de cabelos. Outras tantas indicações de que a carta funci ona como
um fetiche. Esse fetichismo pode ser de um amante? Enfim, após o sentid o
e o objeto, eis o percurso da carta. Fazer uma carta chegar ao(à) amado (a) é
não estar junto dele, dela. É validar uma distância pela qual não podemos
nos desculpar a pretexto do que invocamos, a saber, algum impedi mento
da realidade. Quem, pois, ali se deixa enganar? A carta de amor vem no
lugar do amante, ela é metonímia do corpo do amante. Assim, Henrique
IV escreve à marquesa de Verneuil (citada por Bernard Bray): "Esta carta
será mais feliz que eu; pois ela dormirá com você. Julgue se a invejo". Ele a
inveja? Nada menos seguro. Seja como for, que a carta venha em seu lugar
no leito de sua amante assinala a ausência do amante nesse lugar. Confirma
essa troca a notável análise da função da carta de amor no teatro de Marivaux
escrita por Caroline Krusse nesse número da revista Textuel que aqui me
inspira bastante. O artigo se intitula "Um objeto ardente". O autor observa
que jamais, no teatro de Marivaux, uma carta de amor é entregue em mãos.
Notadamente porque, pelo viés da carta, podem se dizer certas coisas que
não podem ser ditas de viva voz, em presença. Há um exibicionismo da carta
de amor e, às vezes até, uma obscenidade (obscenidade de uma ameaça, de
uma chantagem, de uma lamentação, de uma confissão, de uma promessa,
etc.). Bray cita, assim, a seguinte passagem de uma carta de Henrich Pesta­
lozzi a Anna Schultness: "Você bem sabe que não sou temerário, só minha
pena é temerária. Se a sua pena quiser se querelar com minha pena, deixe-a
escrever e punir minha audácia de papel com suas censuras de papel. Mas
nós, toda essa querela em nada nos diz respeito". Não se pode dizer melhor
que quem escreveu não é o amante. Um amante que põe em seu lugar algo
diferente é bem um amante? Anne Garréta (citada por Caroline Krusse) dá
a solução: as cartas de amor são "a prova de que sempre se escreve quando
o amor ou [sublinho] o objeto de amor vem a faltar". ? Não seria bem an-
O R E S C R E V E , N Ã O R AS U R A 309
O AM

ces "e"? Essas questões não passam perto de Lacan. Muito pelo contrário,
el e parece, nesse momento, pensar (acreditar?) que o amor, na melhor das
hipóteses, é apenas carta, e isto ao ponto de logo procurar escrever, depois
ler, uma carta de amor ao público de seu seminário (voltaremos a isso).

HOM EM, MULH E R

O fato de o amor ser muro, ser separador torna seu objeto, no caso em ques­
tão a mulher, inacessível. Há aí uma armadilha montada contra as mulheres,
canto mais perniciosa já que elas podem adorar ser assim tornadas fora de
al cance, mesmo que o preço, que elas não percebem necessariamente de ime­
diato, no fim se revele elevado. E, se não apreciam, pelo menos podem jogar
0 jogo de sua (pretensa) inacessibilidade quando o parceiro vê aí um traço
de sedução. Ora, o que de melhor, numa disciplina que fez do complexo de
Édipo o nó subjetivo mais determinante, para significar essa inacessibilidade
da mulher do que fazer dela uma mãe? Em Lacan, o interdito do incesto não
é desses interditos que impedem a realização de um ato que poderia ocorrer
se não fosse proibido; ele vem atingir um ato impossível como tal. O que
dá seu peso ao gesto de elevar, ao mesmo tempo que sua afirmaçã<? que o
amor é muro, o amor materno à dignidade de um paradigma amoroso. Ele
a isso se dedica pela primeira vez na capela Sainte-Anne, em 6 de janeiro
de 1972, mas também, três meses mais tarde, precisamente em 1 0 de maio
de 1972, na faculdade de direito. O que é dito na capela Sainte-Anne só é
legível sobre o fundo de uma tese pouco articulada mas que o texto impõe.
Essa tese nomeia a operação realizada pelo (a)muro em quem se choca com
ele como o obstáculo que e l e é. Esse obstáculo é castrante, o amor "é o que
é c astrante9 " . Mas aí, prudência, não se trata tanto da castração simbólica,
aquela que torna desejante, quanto de uma castração aceita imaginariamente,
em outras palavras, de um impedimento (para usar aqui um termo que, no
seminário A angústia, teve provisoriamente um estatuto conceitual): se, no
momento de escrever, percebo que minha caneta não tem mais tinta, isso

9 J. Lacan, . . . 011 pior, sessão de 6 de janeiro de 1 972.


310

não suscita nem aumenta de modo algum meu desejo de escrever. C astr a­
ção, será bem o termo que aqui convém'º? Seja como for, a consequênc ia
,
esta, permanece sem ambiguidade: se o (a)muro é esse círculo de virada de
direção que está por toda parte na superfície de Klein, essa castração tam bém
vai estar por toda parte.

De modo que, quanto à relação entre o homem e a mulher, e tudo O que


daí resulta no que se refere a cada um dos parceiros, a saber, sua posição
bem como seu saber, a castração está por toda parte. O amor, o am or, que
comunica, que flui, que brota, que é o amor, ora! O amor, o bem que q u e r a
mãe para seu filho, o " (a)muro", basta pôr entre parênteses o a para encontrar
o que tocamos com o dedo todos os dias, é que mesmo entre a mãe e o filho
a relação que a mãe tem com a castração vale um bocado 1 1 !

Três meses mais tarde, a modelização do amor pelos cuidados que a


mãe dá ao filho (ao filho!) é confirmada pela menção do caractere chinês
Hao 12, o bem, que se escreveria com dois caracteres: "filho" e "mulher". As­
sim, pois, o (a)muro seria na melhor das hipóteses presentificado pelo amor
materno enquanto vetorizado pelo cuidado do bem da criança. Ficamos
mesmo assim surpresos de ler aqui tal consideração; surpresos notadamente
pela volta em Lacan daquilo que em Freud se chamava "anaclitismo", de
que ele havia escarnecido, pelo menos tanto quanto do velle bonum alicui
ao qual ele associa - perguntamo-nos bem por quê - o amor materno.
Mães, em análise, em outros lugares igualmente, por vezes mantêm um
outro discurso, dos quais Freud recolheu o essencial quanto à relação delas
com a criança 1 3 • Ou então ainda, com Marguerite Duras, colocaremos a
questão: por que, então, um filho deve passar dias inteiros nas árvores? Mas

10 Um ano mais tarde, a castração será definida como "algo que diz não à fu nção fálica" (Mais,
ainda, sessão de 20 de fevereiro de 1 973). O que não resolve o problema acima colocado :
"algo" , sim , certo, mas o quê?
1 1 J . Lacan, . . . 011 pior, sessão de 6 de janeiro de 1 972.
1 2 Ibid. , sessão de 1 0 de maio de 1 972.
1 3 Jean Allouch , "Trois prélimi naires au non-rapport sexuel", in L'U11ebév11e, nº 1 8 , ou tono
200 1 .
O R E S C R E V E . N ÃO R A S U R A 311
0 AM

esse espanto não para aí. Pouco antes, nos seminários, estava-se às voltas
com O amor como narcísico e, por aí, enganador da pulsão. Eis que esse
a.m or (a) muro não é mais enganação mas obstáculo, e um obstáculo em
nad a enganador: diferente nisso do espelho, lugar de desconhecimento, o
inuro com o qual nos chocamos de modo algum engana, ele se contenta
e rn estar ali. Estávamos, além disso, às voltas, desde a invenção do objeto
a, co m um amor imaginário, e eis também, novo espanto, que, com a carta
de amor, o amor, renomeado (a)muro, parece descambar para o simbólico,
ern ro do caso dele se aproxima. Outro espanto, enfim, no que se refere aos
seminários precedentes: o (a)muro designa não o amor em si mas pensado
de maneira androcentrada, o amor na medida em que um homem ama (a)
uma mulher. Logo, vamos evitar generalizar a expressão "o amor é castrante",
que significa apenas que seu amor por uma mulher castra o homem, mas
com certez a não que seu amor por um homem castra uma mulher.
Abordar o amor de maneira androcentrada, o que fez também o
fin 'amor, leva a precisar como tal abordagem vem se referir à amada, como
essa amada pode jogar com isso. Lacan não deixa de se colocar essa questão.
Para ler sua resposta, convém tomar algum impulso, partir do novo Outro
que dissemos. A própria palavra que a assinala - "entra" - não era menos
decisiva no poema de Tudal e em sua análise. O Outro não será mais um
antro * (do latim antrum "cavidade", grego antron) , sua imaginarização
c omum, mas um entra. La Fontaine (citado pelo dicionário Le Robert) não
desprezou esse equívoco significante:

[ . . . ] nesse antro
Vejo muito bem como se entra,
E não vejo como se sai.

La Fontaine teria tido uma premonição da psicanálise lacaniana? La­


can: "O Outro, entendam bem, é, portanto, um entra, o entra que estaria em
questão na relação sexual, mas deslocado e justamente por se outrocoloca,J4 " .

• H á homofo nia: entre [entra] e antre [antro) . (NT)


14 J . Lacan, . . . 011 pior, sessão de 8 de março de 1 972 (suprimi intempestivas maiúsculas) .
312 O A M O R. LAc
AN

O Outro não permite a escrita da relação sexual. Entre homem e mulh er, e
Ie
deveria fornecer o conector lógico suscetível de criar relação e deveria be
ill
assim estar situado "entre*" os termos ligados por essa relação; m as, e rn V
ez
de esse "entre" fazer laço, ele se interpõe, ele se coloca nesse próprio lugar
e, portanto, no bom lugar, de modo diferente do previsto - o que Lacan
formula com um neologismo: ele "se outrocoloca". A sequência imediata
dessa citação resultaria da constatação empírica e, por parte de Lacan (varnos
lhe dar esse crédito), dessa modéstia que consiste em só acolher as cois as da
maneira como elas se apresentam.

De se outrocolocar, é curioso que, ao introduzir esse Outro, o que tive de


formular hoje só diz respeito à mulher. E é bem ela que, dessa fig ura do
Outro, nos dá a ilustração a nosso alcance, a de estar, como escrev eu u m
poeta, entre centro e ausência. Entre o sentido que ela toma naquil o que
chamei esse ao menos um em que ela só o encontra no estado daqu ilo que
lhes anunciei, anunciei não mais, de ser apenas pura existência en tre centro
e ausência [sublinho] 1 5 •

A eleição da via androcentrada se justificaria pelo fato de a mulher


se apresentar empiricamente como o viés pelo qual se teria acesso a um a
abordagem mais universal do amor. Ouve-se ressoar o grito do coração de
Paul Claudel: "Senhor! Meu Deus! Amiga de meus dias culpados, adeus! N ão
existem dois amores 1 6 " . Mas o que acontece, então, no lugar de a mulher
amada, uma vez que esse "a" esta' marcado com uma b arra.�

Seu modo de presença está entre centro e ausência, entre a função fálica da
qual ela participa, singularmente, daquilo que o ao menos um que é s eu
parceiro, no amor, aí renuncia por ela . O que permite que ela deixe aquilo

* A preposição entre também faz homofonia com enh·e [verbo entrar) e mlh'e [antro) . (NT)
15 J. Lacan, ... ou pior, sessão de 8 de março de 1 972.
16
Paul Claudel, "Communion", in Bréviaire poétique, Paris, Gallimard, coll. "Poésie", 1 999,
p. 5 1 .
o ,. ,.. O
•• R E S C R E V E , N Ã O RAS U RA 313

por que ela não participa disso, na ausência que não é menos gozo, por ser
gozamenc1 a
A ' /7

Eis o amor castrador de seu parceiro, e o amor que é bem aqui o amor,
0 ,. não é nem o desejo nem a pulsão. Sua renúncia à função fálica (sua
�ca:tração") homologa, cauciona, talvez até legitime, em sua parceira, um
certo gozo, seu próprio gozo de ausentar-se da função fálica - aquela que
vale q ue seja inventado um outro neologismo: gozausência. O fato de um
homem preservar tal acolhida a esse gozausência não é por certo evidente
( definição da neurose: não pode ser questão disso) e eis, pois, a mínima, o
que indica que essa acolhida seja nomeada castração.
Do lado mulher, não se deixará de ressaltar que, após tal afirmação,
Lacan tentou responder às objeções, pelo menos aquelas que poderiam lhe
vir do feminismo:

E penso que ninguém dirá que o que enuncio da função fálica decorre de
um desconhecimento daquilo que acontece com o gozo feminino. É, ao
contrário, daquilo que o gozausência, se posso assim me exprimir, da mu­
lher, dessa parte que não a faz toda aberta à função fálica, daquilo que, esse
gozausência, o ao men os um tenha pressa de habitá-lo, num contrassenso
radical sobre o que exige sua existência 1 8 •

Não achem, diz Lacan, que Ltí a mulher não convoca seu "homem­
menos-um" [homofonia com "ao menos um"] a dar corpo à função fálica;
mas saibam que essa mais ou menos premente convocação pode valer con­
trassenso se deixar crer que o gozopresença da mulher vai ser acompanhado
de seu gozausência. Não se pode admitir a justeza dessa descrição clínica
sem se explicar.
Ela permite dar conta de outro fato clínico jamais comentado nem
sequer formulado na psicanálise e que pode ser aceito a título de uma certa
dureza, feminina. Não se trata de um universal da mulher que não existe,

17 J . Lacan, . . . 011 pior, sessão de 8 de março de 1 972.


18 lbid. , sessão de 18 de março de 1 972.
314 O AMOR L A C A N

mas de um traço que encontramos em certas mulheres não tanto, aliás, e rn


análise (pois é um dos milagres do divã fazer com frequência esvaecer-s e
essa dureza) quanto na vida cotidiana, a qual compreende, notadamente,
produções intelectuais que são atribuídas a mulheres. Marguerite Duras era
dura, Monique Wittig também, embora de outro modo, e de outro modo
ainda as ditas "cadelas de guarda", mais recentemente as "nem putas n e rn
submissas"*. Antígona também, para uma referência mais memorável. Por
que essa dureza que por vezes busca, se não encontra, sua justificação numa
ética vagabunda (não é Antígona quem quer)? Por que esse caráter tan to
mais impiedoso já que permanece mal fundado? O conceito de gozausência
permite que não se fique calado diante desse problema.
Essa dureza feminina parece uma resposta reativa ao fato de não ter
recebido o menor reconhecimento desse gozausência que faz a mulher não
toda presa na função fálica. Aliás, tal reconhecimento pode vir enfeitad o
de uma palavra que Lacan apreciava: homenagem. Esse amor que castra o
homem e que o faz assim prestar homenagem ao gozausência da mulher não
toda, esse amor homenagem terá faltado ao encontro. E, como é exigível, essa
falta não pode ficar sem resposta. Parece assim exemplar que Lacan tenha
respondido por uma homenagem a Marguerite Duras 1 9 • Ao assim fazer, ele
lhe oferecia, ou tentava lhe oferecer aquilo que a ela faltava. Mas tamb ém
aquilo de que ela ferozmente não quis saber, persistindo nessa recusa até o
último suspiro20 • No caso em questão, Lacan terá desprezado dois versos
de As mulheres sdbias:

Temo ser desagradável pelo ardor que me força


A lhe prestar hoje, Senhora, minha homenagem [ . . . ]
Moliere, As mulheres sdbias, III, 3.

* L es chien11es de garde e Ni putes 11i soumises são movime ntos femi nistas franceses. (NT)
19 J . Lacan, " Hommage fait à Margueri te Duras, du ravissement de Lol V. Stein" , i n Autres
écrits, Paris, Le Seuil, 200 1 .
20 Um membro da Escola Lacaniana na Argenti na, Marta Mattoni , está i nvestigando essa oje­
riza de Duras pela psi canálise e bem especialmente por Jacques Lacan, para o qual a querida
Margueri te nunca encontra palavras . . . duras o bastante.
0 A MOR
E S C R E V E , N ÃO RAS U RA 315

"Sim, desagradável, você terá sido", terá portanto resolutamente res­


pondido Duras a Lacan. O que não impede, estando excluído que o divã
vire cama, essa homenagem a seu gozausência um psicanalista homem ( o
que Lacan, o que quer que pensasse, não era para Duras) pode, mais facil-
e e
mente que seu "cara" , orerecer a uma mu Iher. " Homenagem" e' rorma d a de
" homem" e do sufixo "agem", é, diz o dicionário Le Robert, "o ato pelo qual
um vassalo se faz 'homem' de seu senhor". Assim, ele pode notadamente pôr
suas armas a seu serviço. Esse vassalo é falóforo, mas no sentido em que essa
faloforia vale submissão: o falo não vê sua aplicação regrada pelo que seria
uma busca mais ou menos desenfreada de seu gozo. Ora, nessa linha, veio,
a partir do século XII, a bem interessante distinção entre a homenagem lígia,
um a vassalagem sem limites, e a homenagem plena, juramento que o vassalo
prestava de pé e armado mas que só o engajava para um serviço limitado.
A essa homenagem paradoxalmente dita "plena" remete essa passagem de
A educação sentimental em que se pode perceber o que a homenagem faz ao
amor: "Pensei: 'Mas ele me ama... ele me ama! '. Eu estava com medo de me
assegurar, no entanto. A sua reserva era tão encantadora que eu dela usufruía
como de uma homenagem involuntária e contínua". Igualmente esta frase
de "O aturdito" : "Pois a que o homem confessaria servir de melhor para a
mulher da qual ele quer gozar a não ser lhe dando esse gozo seu que não a
faz toda dele: de nela re-suscitá-la2 1 " . A homenagem é esse próprio serviço.
Da mesma forma que uma certa faloforia vale submissão, da mesma forma
a homenagem, embora tenha o alcance de um ato, nem por isso deixa de ser
uma reserva, uma reserva ativa, não uma pura e simples abstenção - como
atesta o fato de que isso possa virar vinagre. Até que consequências sobre o
amor de transferência pode portanto chegar, numa análise, a homenagem
prestada ao gozausência de uma mulher? Ou ainda: a homenagem seria o
nome dessa operação segundo a qual se obtém o amor que não se obtém?
Não se trata aí daquilo que sugere a citação de Flaubert?
A leitura da passagem em que sobrevêm os termos gozopresença e go­
zausência é importante no que se refere à problematização da relação homem

21
J. Lacan , 'TÉrourdi t" , Scilicet, nº 4 , Paris, Le Seui l , 1 973. Devo essa ci tação a Marie-Claire
Boons.
316

mulher. Não menos notável parece sua incidência na própria psican álise .
Nesse terreno, que conclusão Lacan tira disso? Ele acaba então falando de
um homem que ele aceitou tomar em análise na seguinte base: esse homern
pedia à análise o êxito a qualquer preço de seu conjúgio (há "jugo" em co n­
júgia22) com a mulher de seu coração. As coisas se engancham assim, mas
também, e aí fica perigoso, pelo fato de que Lacan se colocava, aliás sern
acreditar muito nisso, a questão de saber se uma análise é suscetível de fazer
um amor conjugal dar certo. Ele não conhecia exemplo, mas de qualquer
modo tenta a coisa, o que vale a seu público ouvir esta autoapreciação:
"Vocês se dão conta do que posso fazer como sujeiras para verificar m in has
afirmações23 ! ". Esperamos a irônica e desiludida conclusão, e, com efeito,
ela vem: "Naturalmente, é claro, não deu certo, graças a Deus, nos prazos
mais curtos! ". Podemos lamentar que para o começo dessa análise tenha
intervindo uma demanda do analista. No entanto, vamos deixar de lado esse
juízo para melhor privilegiar a conclusão da confissão culpada desse cas o.

O que está em jogo quando se trata de sexo é o outro, o outro sexo, m esmo
quando se prefere o mesmo. Não é porque eu disse há pouco que, no que
se refere ao êxito de um amor, a ajuda da psicanálise é precária que se deve
crer que o psicanalista não está nem aí, se posso me exprimir assim. O fa to
de o parceiro em questão ser do outro sexo e de o que está em jogo se r algo
que tenha relação com seu gozo - falo do outro, do terceiro, a respeito do
qual é enunciada essa "falação" em torno do amor -, o psicanalista não
pode ser indiferente a isso, porque aquele que não está ali, para ele, é be m
isso, o real. Esse gozo, aquele que não está "em análise", se me permitem
exprimir-me assim, faz função para ele de real.

O gozo do parceiro do analisando, da analisanda, é um real da análise


desse analisando, dessa analisanda, e um real que o analista de modo algum
despreza, pois se trata de oferecer a esse gozo o regime que, na melhor das

22
Daí este chiste: "- O que é a bigamia? - Uma mulher a mais. - E a monogamia? - É
igual".
23
J. Lacan, ... 011 pior, sessão de 4 de maio de 1 972.
O AM
O R E S C R E V E , N ÃO RAS U R A 31 7

h ipó teses, poderia ser o dele, o regime do não todo ao qual qualquer um,
homem ou mulher (mas diferentemente), é forçado.
Terceiro viés suscetível de tornar o objeto inacessível: o próprio
muro. Esse muro do amor é o personagem principal de ln the mood of
/ove, assinado por Wong Kar-Wai, lançado em 2000. No final desse filme,
embora o homem, Chow Mo-wan, tenha se declarado, não sem saber que
ela também o ama, mas à sua maneira, a do quizas de uma célebre canção
latino-americana, um muro, de verdade, separa a noite em comum dos dois,
um muro que nada vai derrubar. Os muros estão constantemente presentes
no filme, muros em geral em ruínas, mas também muros figurados pelos
movimentos da câmera cujo travelling atravessa várias vezes um espaço negro
(tela cheia) que os separa, ela, Su Li-zhen, e ele. O (a)muro, não o amor,
é aqui cumprido. E o abraço amoroso, como é o caso, só pode ser o das
mãos. Eles são, cada um, como atesta o próprio título do filme, de humor
adequado (in the moodfo r) ao amor.

AMOR E CALIGRAFIA

Nem tudo do que pouco antes fora revelado passa por lucros e perdas nessa
figura (a)murosa e murante. Com efeito, esse muro não é apenas feito de
letras [lettres] definidas como elementos discretos de um alfabeto ou de algum
outro modo de escrita, esse muro tem também a consistência do próprio
suporte desses elementos discretos; ele é folha de papel (a carta [lettre] como
objeto material), ou então ainda qualquer suporte sobre o qual seja possível
escrever palavras de amor (uma calçada, a areia da praia, um lenço, etc.).
E, portanto, em particular... um muro. Lembramos aqui a maneira como
La can apostrofava os ex-manifestantes de maio de 1 968 na França que o
ouviam, em 1 972, na capela Sainte-Anne. Ao escrever nos muros, ele lhes
dizia (subentendido: vocês que pretendem derrubá-los), vocês os reforçam24 •
Entretanto, há outra maneira de reforçar o muro, ela não simbólica, mas
imaginária. Nela encontraremos, mais uma vez, a colocação em ressonância,
p or Lacan, do amor e da pintura.

14 J. Laca n . . . . nu tJinr. sessão de -� de fevereiro de 1 972.


318

[... ] há uma zona do sentido bem clareada por exemplo pelo ch am ad


o
Leonardo da Vinci [... ] . Então, ele lhes explica: "Olhem bem o muro... "
[... ] Pois é, se acreditarem em Leonardo, se houver uma mancha de mofio,
é uma belíssima oportunidade para transformá-la em madona ou então em
atleta musculoso - isso serve ainda melhor porque, no mofo, sempre há
sombras, cavidades25 •

Talvez Lacan tenha lido Os carnês de Leonardo da Vinci, pub li cados


em 1 942 26 , ou esse trecho dos Carnês em Caillois 27 • Sej a como fo r, sua
memória comporta uma parte de imaginação, pois em vão se busca ri a , na
passagem evocada, uma madona, um atleta musculoso e tampouco mo fo.
Lê-se, sob o título

MANEI RAS DE ESTIMULAR E DESPERTAR O INTELECTO


PARA INVENÇÕES DIVERSAS

Se você olhar muros sujos de manchas, ou feitos de pedras de espéc ies


diferentes, e você precise imaginar alguma cena, ali verá paisagens varia­
das, montanhas, rios, rochedos, árvores, planícies, grandes vales e diversos
grupos de colinas. Ali você descobrirá também combates e figuras de um
movimento rápido, de estranhos aspectos de rostos, e roupas exóticas, e
uma infinidade de coisas que você poderá reduzir a formas distintas e b em
concebidas. Acontece com esses muros e misturas de pedras diferentes
como com sons de sinos, dos quais cada golpe evoca em você o nome ou o
vocábulo que você imagina.

25 Ibid. , sessão de 3 de fevereiro de 1 972, versão aqui um pouco modificada, notadamente a


pontuação.
26 Léonard de Vinci, Les Carnets de Léonard de Vinci, i ntrodu ção, classificação e notas por
Edward Maccurdy, traduzido do italiano e do inglês por Louise Servicen, prefácio de Paul
Valéry, 2 tomos, Paris, Gallimard , 1 94 2 , reedição coll . "Tel " , 2004 , p. 247. O fato de Lacan
mencionar os dois tomos dessa obra a identifica claramente: não se trata do Traité de la
pei11t11re [ li'tltado da pi11t11m] .
27 L. de Vinci, Manuscrit 2038 da Bibliotheque nationale, p. 22 verso, citado por Roge r
Caillois em Méduse et C', Paris, Gallimard , 1 960, p. 57- 5 8 . Devo a Laurie Laufer essa re fe­
rência bibliográfica.
O AM
O R E S C R E V E . N Ã O RA S U RA 319

Resta que Lacan reteve bem o gesto, o apoio tomado pelo pintor sobre
0 que já de figuras lhe oferece o muro. Ele prossegue: "É muito importante
isso, perceber que há uma classe das coisas nos muros, que serve de figura,
de criação de arte, como se diz. É o próprio figurativo, aqui, a tarefa [em]
questão". O fato de a figura jd estar na mancha antes de a arte lhe dar sua
forma "distinta e bem concebida" (Da Vinci), eis o que faz melhor que
confirmar que o amado seja uma aparição, eis que revela o caráter compósito
dessa aparição: quem o percebe põe ali do seu ou, mais justamente, põe ali
0 que é do outro nele- como Lacan citando Da V inci. O conselho técnico
de Da Vinci acarreta uma questão:

É preciso de qualquer modo saber a relação que há entre isso [id est: o que
se encontra no muro, nas cartas, nas figuras] e o que quer que possa vir no
muro, a saber, os ravinamentos, não só da fala - ainda que isso aconteça,
é bem assim que isso sempre começa - mas do discurso, [saber] em outras
palavras, se é da mesma ordem, o mofo no muro ou na escrita. Isso deveria
interessar aqui certas pessoas que [ . . . ] se ocuparam muito de escrever coisas,
cartas de amor nos muros.

Se, pintado ou natural, o mofo no muro e a escrita eram dá mesma


ordem, se, pois, havia o que mais tarde vai se chamar uma "colocação em
continuidade" do imaginário e do simbólico, estaríamos, em consequên­
cia, às voltas com um amor psicótico (a psicose sendo então definida pela
colocação em continuidade dos três anéis de barbante R. S. I. 28 ) . Ora, o que
vem depois responde de outro modo à questão. O sentido figurado - que,
maneira Da Vinci, a um só tempo já está inscrito e no entanto deve ser ins­
crito pelo pintor no muro- é confusional, "mas, diante do muro, acontecem
coisas, e é o que chamo discursos". Com efeito, acontecem muitas coisas
no muro! Ali convivem o imaginário e o simbólico. Há copresença de uma
mancha tornada figura e de falas trazendo um sentido confuso. Pensamos

18 .
J Allou ch , Marguerite, 011 l'Aimée de Lacan, 2' éd. revista e aumentada, Paris, Epel , 1 994 .
(Paranoia: Marguerite 011 a Aimée de Lacan, 2 ª ed. Rio de Janeiro, Companhia de Freud,
1 997) .
320

em certos quadros cubistas, que associam letras e figuras; pensamos, b ern


particularmente, na pintura letrista; mas também em toda essa convivência
pintura e escrita, tão característica de um momento do qual o jovem Lacan
interessado, era contemporâneo29 - logo chegaremos a essa outra conivência
que é a caligrafia. Em 1 972, um ponto está explícito nele: o m ofo (feito
quadro figurativo) e a escrita são duas coisas diferentes, e a carta de amor
a que faz o (a)muro, tem a ver com a fala, não com o discurso. Não hd, em
Lacan, ao contrário do que se achava na época em Roland Banhes, discurso
amoroso. Tal constatação se afigura conforme ao manifestado desejo lacaniano
de estabelecer as regras do jogo amoroso. Em outras palavras, quem estiver
envolvido com o amor está fora de discurso. E, ainda de outro modo, 0
amor de transferência não tem a ver com o discurso psicanalítico.
Nesse dia, Lacan parece ter em mente algo como um esque ma não
escrito por ele (ao contrário do esquema do véu, que esse esquema no en­
tanto evoca por sua configuração), e talvez por isso permanecido um pouco
opaco, mas que pode ser esboçado. Há o muro, suporte de figuras e cartas
de amor; há algo diante do muro, a saber, discursos, mas também algo po r
trás do muro, um real. Não escrito, esse esquema poderia chamar-se esquema
da clivagem do muro.

O que posso dizer é que, em todo caso, a clivagem do muro, o fato de haver
algo instalado diante, que chamei fala e linguagem, e que é de um outro lado
que isso trabalha, talvez matematicamente, é bem certo que não podemos
ter disso outra ideia. [ . . . ] 3° .

Teríamos, disposta espacialmente, algo como uma ternaridade: diante,


discursos, entre o (a)muro, por trds, um real. O (a)muro estando em posi­
ção intermediária, estando entre, estando também ligado ao sentido, opõe
obstáculo a que a discursividade ofereça acesso a um real que, este, é fora

29 Poderemos co nsul tar a impressio nante lis ta proposta pelo catálogo da exposição "Da esc rita
à pintura" , 4 de j ulho - 1 4 de novembro de 2004 (Fundação Maegh t) , ou ainda Ln révolu­
tio11 s11rré11/iste ( 1 924) , Cnhiers d 'nrt ( 1 926) , Le mi11ota11re ( 1 933) , Derriere /e miroir ( 1 946) ,
que conjugam com uma paginação bem cuidadosa quadros e escritas.
30 J Lacan, . . . 011 pior, sessão de 3 de fevereiro de 1 972.
.
MOR ESCREVE. NÃO RASURA 321
O A

de sentido. O outro do amor (que foi o desejo, a pulsão, o inconsciente,


0 pensamento, o gozo) é aqui esse real, ao qual daria acesso o discurso da
ciência.

Mas que alcance dar à interposição do (a)muro? Um canto de amor,


fi
0 l me estranhamento mudo (visto seu título) de vinte e cinco minutos
realizado por Jean Genet em 1950, foi proibido durante dezenas de anos31•
Circulando clandestinamente, foi fraudulentamente reproduzido e abusi­
vamente vendido, inclusive pelo próprio Genet. As imagens, em preto e
branco, são sublimes. O amor, seria esta a incidência do muro, ali é levado
à "incandescência de uma brasa". Sem outro comentário, eis duas imagens
que não sou o único a achar indicadoras do fato de, como com ln the mood
for /ove, o amor ser (a)muro - a mão que segura as flores é a de um amante
de Genet, não menos inacessível que a mulher em certas configurações
amorosas. Mais precisamente, como funciona a interposição do (a)muro
entre o homem e a mulher? Vamos ler aqui adiante, Lacan se perguntava
qual podia bem ser a relação dessa interposição e de seu conceito de ravina-

31 Cj Janes Giles, U11 c/11111t di11110111; Le ci11é111a de Jean Genet, Paris, Macula, 1993. Lê-se,
p. 44-45, esta citação de Notre-Da111e-des-Fle11rs (CEuvres completes, r. II, Paris, Gallimard,
1951, p. 42): "Ele apoia o rosto no muro. Com um beijo, lambe a superfície vertical e o ges­
so guloso puxa sua saliva. Depois, beijos aos borbotóes. Todos seus movimentos desenham
os contornos de um invisível cavaleiro que o abraça e que o muro desumano sequestra"; ou
ainda, p. 45-46, esta outra, extraída de o Milagre da rosa (O. C., op. cit., p. 213-214): (Ge­
net, depois da estada em Merrray, é enviado para a prisão de Fonrevraulc]: "À minha volta,
os muros do bairro de Mettray caíram; estes cresceram onde descubro, um pouco por roda
parte, as palavras de amor gravadas pelos punidos[ ...]". Visto como obstáculo, o (a)muro é
unlnPotln Pntolh,cln. nPnNrndn.
322 O AMO R. LAc
AN

mento não só da fala, mas do discurso. Como entender esses "ravin arn en to
s
do discurso"? Eis o que foi dito logo depois de a questão do ravinarn en to
ter sido colocada:

Quero simplesmente observar que seria muito melhor nunca ter hav ido nada
de escrito nos muros. [ ... ] Eu já disse há pouco para a carta de (a)m uro : tudo
o que se escreve reforça o muro. Não é forçosamente uma objeção. Mas O que
há de certo é que não se deve achar que isso seja absolutamente necessário '
mas serve mesmo assim, porque se nada tivesse sido escrito num muro, seja
ele qual for, este ou os outros, pois é! é um fato, não se teria dado u m p asso
no sentido daquilo que talvez deva ser olhado para além do muro 32 •

Logo, melhor seria se nada jamais tivesse sido escrito nos muros, m as
também: ainda bem que algo foi escrito nos muros (o muro provavelment e
é então pensado como quadro negro). Não é uma contradição, pois o que é
louvado como escrita no muro é uma escrita de discurso, diferente de um a
escrita de sentido. Questão: o "ravinamento do discurso" deve ser enten­
dido no sentido de um genitivo subjetivo, no sentido em que o discurso
viria ravinar a indecente escrita mural de sentido? Ou, então, o contrário,
genitivo objetivo, seria o discurso que ficaria ravinado no muro, o discurso
e também o que o muro comporta de inscrições e figuras indecentes? N ão
está aqui decidido. Simplesmente, está e continua colocada a questão das
relações desses dois modos de escrita. Ora, ela é também a do (a)muro e do
outro do amor, que constatamos ser então pensado como discurso. Deci­
didamente sim, não há discurso amoroso.
O termo "ravinamento" tem estatuto conceituai em "Lituraterre". "Li­
turaterre", a palavra dá título a um artigo publicado em outubro de 197 l 33 •
É também, fato excepcional por parte de Lacan, o que ele põe como título
da sessão de 1 2 de maio de 1 97 1 do seminário De um discurso que não fosse
semblante, durante a qual ele lê esse escrito. Logo, essa sessão precede de

32
J. Lacan , . . . 011 pior, sessão de 3 de feverei ro de 1 972 .
.l.l J. Lacan, " Lituraterre" , in Littémt11re, n º 3 , Paris, Larousse, 1 97 1 , retomado em Auh-es écrits,
op. cit. , p. 1 1 -20.
O R E SCR E V E , N Ã O RAS U R A
O AM

al guns meses a de 3 de fevereiro de 1972 em que s e trata de uma relação,


elí pticamente afirmada e apresentada sob forma interrogativa, entre as figu­
ras e as palavras de amor no muro e os ravinamentos da fala e do discurso.
parece excluído, quando Lacan nesse dia emprega a palavra "ravinamento",
ele não ter em mente o que escreveu e depois disse, nove meses antes, sobre
0 ravinamento. Uma outra e não menos séria razão convida a recorrer à
sessão "Lituraterre": a menção, nesse mesmo dia, de um sintagma com o
qual já se esteve às voltas a respeito da mulher posicionada como grande
Outro, "entre centro e ausência" - o que corresponderia exatamente ao
p ar gozopresença/gozausência. Ora, esse mesmo sintagma (obra de Henri
Michaux 34 ) já estava presente em 1 2 de maio de 197 1 , mas, aparentemen­
te, com outras coordenadas: "Entre centro e ausência, entre saber e gozo,
há litoral que só vira literal pelo fato de que você poder pegar essa mesma
viragem a todo instante35 " . Nem uma palavra quanto ao amor, na sessão­
leitura de 1 2 de maio de 197 1 . Porém um outro ponto ainda a aproxima do
muro do amor. Com efeito, uma das duas experiências sobre o fundo das
quais foi escrito "Lituraterre" nada mais é que a de letras e imagens presas
a muros, precisamente a da pintura japonesa. Logo, o que é o ravinamento
em "Lituraterre"? Uma operação real, a que a caligrafia realiza.
Embora o pintor japonês Akeji até confira a Jacques Lacan um diploma
de caligrafia, este julgava o gesto caligráfico excluído para um "ocidentado".
O que não o impedia de dizer qual seria, segundo ele, o alcance. Um aluno
p intor pode, no Japão, dedicar anos a tentar fazer, numa folha, um traço
horizontal. Logo, em que reside a dificuldade, a que seria resolvida uma vez
que soubéssemos entender, em ato, "com que rasura isso é atacado e com
que suspensão é parado"? Esse gesto, propõe Lacan, rasurando-o, rompe
um semblante, em outras palavras, um significante. Pois é este, então, o
novo estatuto do significante, sensivelmente diferente do que ele era antes,
a saber, concebido como apagamento de um rastro. Isso continua sendo
verdade, mas não há agora necessidade alguma de imaginar que um rastro

Jl Henri Michaux, " Entre centre e absence" , Loi11tt1i11 i11térie11r, in CE11vres completes, t. I, Paris,
G allimard, coll . "Bibliotheque de la Pléiade" , 1 99 8 .
3s Jacques Lacan , D'1111 discours i 1 1 e semit pt1S se111b!t111t, versão Afi, Doravan te: De 11111 dismr­
qu
so . . .
32 4

já esteja ali para que possa ser apagado, já que é com um mesmo movimento
que o gesto caligráfico produz, segundo Lacan, a um só tempo um ra stro
e sua rasura. Esse semblante terá feito litoral entre saber e gozo, em outras
palavras, terá sido uma linha de demarcação entre dois territórios n ão ho ­
mogêneos - ao passo que a fronteira, esta, distingue duas entidades h omo­
gêneas, por exemplo dois estados. O que a ruptura de um semblante realiza ,
em outras palavras, sua viragem do litoral ao literal? Ela opera um a chuva
do significado que ali estava como que em suspensão, e assim realiza um
"ravinamento do significado". Ela "dissolve o que fazia forma, fenômeno'
meteoro". Salta aos olhos que esse significante nova maneira, que esse sem-
blante é bem próximo da carta de (a)muro, e isto tanto do ponto de vista
de seu teor quanto de sua função. Como a carta de (a)muro, o significante
é feito de formas, e transporta consigo todo um monte de significados,
eis para seu teor. Mas ele também tem essa mesma função de separar dois
territórios não homogêneos, aqueles respectivamente ditos "saber" e "gozo"
(para o significante) e (para o (a)muro) "o homem" e "Lti mulher". Logo, é
tentador outorgar ao significante/semblante o estatuto de um muro, ainda
mais por ter estado em questão o "muro da linguagem" desde 1 953. Ora,
sempre segundo Lacan, essa ruptura de um semblante não é sem valor, em
sua própria operatividade, como um gozo:

Pois é! o que de gozo se evoca quando se rompe um semblante, é isso que,


no real, é o ponto importante, no real, apresenta-se como ravinamento.
É definir-lhes pelo que a escrita pode ser dita no real o ravinamento do
significado, ou seja, o que choveu do semblante na medida em que é isso
que faz o significado.

Lacan conta sua experiência do voo sobre a planície siberiana (um


muro, visto do alto), planície desolada e onde os únicos rastros visíveis são
os do escorrer das nuvens que a percorrem. Considerando esse contexto
"experiencial" (que Lacan associa à sua recente experiência com a pintura
japonesa), entende-se "o que choveu [plu *] do semblante" como uma c on-

* P/11 é forma verbal tanto de pleuvoir (chover) quanto de plaire (agradar) . (NT)
O AM
O R E SC R E V E . N Ã O R AS U RA 3 25

• ugaç ão de "chover". Nada no entanto objeta ao fato de ele ter usado o


� bo "agradar". E, com efeito, essa outra leitura se impõe, ainda mais por
er
vir fazer a ponte entre "Lituraterre" e essa frase de 3 de fevereiro de 1 972,
cujo sentido, agora, pode ser precisado. Durante sua experiência "siberia­
na", Lacan se perguntava: mas o que fazem, então, essas nuvens douradas
cão presentes na pintura japonesa "que literalmente tapam, escondem toda
uma parte das cenas"? Resposta: elas introduzem na pintura a dimensão do
significante. Mas por que, misturados a eles, esses ideogramas caligrafados?
Resposta: eles fazem rasura com esse significante. Essa composição pictórica
p arece bem próxima, se não exatamente a mesma, daquela que vai estar em
questão, nove meses mais tarde, com Da Vinci, seu uso do mofo e a escrita,
nos muros, das cartas de amor. Estávamos nos perguntando, com Lacan,
que relação podiam bem manter o que se acha nos muros e o ravinamento
da fala e do discurso. Já foi estabelecido que não era da mesma ordem, e
agora se confirma que passou a ser possível ligar, por um lado, mofo e nu­
vem, por outro, escrita e caligrafia. Assim, temos, de um lado, significante,
semblante e, do outro, a ruptura desse semblante, sua rasura. O ravinamento
consiste na operação real dessa rasura, com produção de gozo. Resulta que
o ravinamento não pode ser considerado o do discurso, que se acha exclu­
ída a leitura pelo genitivo objetivo: não é o discurso que se acha ravinado.
Resulta também que essa mistura de figuras e textos que compõe o (a)muro
é, em si mesma e por si mesma, suscetível de ravinamento, a pintura japonesa
vindo dizer como. "Ravinamento" é o nome dessa permanente ameaça que
pesa sobre o (a)muro e que, posta em prática, viria extrair do amor o que
o amor comporta de gozo.
Uma ameaça, ou então um benefício? O amor escreve,· o amor não
rasura. E se a leitura no sentido lacaniano é bem o que tentei precisar em
Letra a letra [ Clínica do escrito] , uma operação do escrito sobre o escrito,
então será preciso convir que, não rasurada, a letra de amor tem de notável
o fato de não ser lida. Aliás, quem ignora isso? Essas mulheres fictícias de
Ovídio, que, aos prantos, escrevem a seus fugidios amantes para lhes pedir
que voltem, são elas de fato lidas por eles? Essas cartas fazem o (a)muro,
essas cartas muram, essas cartas são l itorais. Dito ainda de outro modo, o
calígrafo atinge um grau de subjetivação para além daquele do amante, da
O A M O R L ACAN

amante. O que surge quase de modo tautológico, pois não se veria com o, se
não fosse este o caso, haveria uma saída possível do amor de transferên c ia.
Mas, sobretudo, o amor, provisória conclusão, transporta em si mesmo sua
própria rasura, seu próprio ravinamento, tal um "em potência" suscetível
de virar ato. E é agora, portanto, a caligrafia, não mais tanto o gozo, que
vem no lugar de outro do amor.
Antes de encerrar essa primeira análise da maneira como o amor jo g a
com o semblante (ela logo repercutirá), notaremos que Lacan, sobre esse
tema, já assinala que ele não deu aqui sua última palavra. Em 4 de maio
de 1 972, ele faz a seus ouvintes esta nova promessa: " Um dia, quando eu
estiver inspirado e me arriscar a fazer o gênero La Bruyere, tratarei a questão
das relações do amor com o semblante. Não estamos aqui, esta noite, para
perder tempo com essas bobagens36!". É uma pena! Como estaríamos felizes,
presentemente, se, naquele dia, ele tivesse se divertido com aquelas bobagens!
Mas, talvez, para acabar e sem dizer muito, ele tenha feito...

16 J. Lacan, . . . 011 pior, sessão de 4 de m a i o de 1 972.


C A P Í T U LO XV I I

FAZ E R U M

E m 1 6 de janeiro de 1 973, Lacan vai explicitamente ligar sua questão


sobre o amor à não-relação sexual. Se nos lembrarmos que a não-rela­
ç ão sexual estava perfeitamente articulada, nele, desde 4 de junho de 1 969,
fi caremos menos espantados com o fato de que, durante esse momento, a
não-relação sexual, é verdade que um pouco subterrânea, já viesse marcar
com seu selo a problematização do amor. E é, portanto, o (a)muro, o amor
como que a fazer muro entre o homem e a mulher. Homem e mulher
est ão pelo (a)muro separados. Vale por isso dizer que estão, por esse Jato,
sem relação sexual? Isso não é dito. Podem se passar muitas coisas de um
lado ao outro do muro, como põe em cena um poema de Baudelaire em
que entram em ressonância os desejos do menino pobre e do menino rico,
cada um de um lado da grade. No cinema como no teatro não faltam cenas
em que se fala através do muro (mas não em Um canto de amor) . Se, pois,
remos bem, em Lacan nesse momento, um amor separador, a distribuir o
homem e h1i. mulher de cada lado de um muro, nenhuma articulação foi
ainda proposta entre essa separação e a não-relação sexual. O que se passa,
então, nos seminários, entre 3 de fevereiro de 1972 e 1 6 de janeiro de 1973,
para que, nessa última data, tivesse passado a ser imaginável a articulação
de certos enunciados a ligar explicitamente amor e não-relação sexual? Por
enquanto, os textos relativos ao amor apresentam-se como um entre-dois:
já intervém a não-relação sexual, mas ela ainda não intervém como tal.

UMA ENC ENAÇÃO P RIMITIVA

S eja, pois, o início de Mais, ainda. Tratando-se do amor, esse seminário é


lançado de maneira ruidosa, talvez até alta demais. Lacan descreve uma cena
O AMOR LAc
AN

da qual ele será a um só tempo um dos atores e o diretor - já era pos icio .
nando-se como tal que ele lia Hamlet1. Ei-lo, pois, nesse 2 1 de novembro
de 1972, a construir por sua fala uma situação, um pouco à maneir a do s
.
ce' l e b res cond'1c1ona1s .
. durassianos: "sena. ... ,, , " havena
. ... ,, , "venam
' os... , ', etc .
Ele antes de mais nada põe o público no leito "de pleno emprego", no leito
onde, a dois, "as pessoas se abraçam" (onde gozam?). Vamos de bom grado
deixar-lhe a responsabilidade das duvidosas afirmações segundo as quais
seria a dois que o leito se afiguraria de pleno emprego, igualmente aquela
outra segundo a qual de fato existiria um leito de pleno emprego (S ade
não acreditava em nada nisso, daí sua raiva). Vem, então, dita como que
de passagem, uma observação que reata com uma das teses mais decis ivas
de A ética . . . : "O gozo é o que não serve para nada". Eis, pois, o púb lico
do seminário espalhado dois a dois em algumas centenas de leitos ond e ,
acrescenta ele, "eu os deixo [ ... ] às suas inspirações". O que ele faz? Ele sa i,
deixa o quarto: "Saio, e uma vez mais vou escrever na porta2, no intuito
de que, na saída talvez, vocês possam se dar conta dos sonhos que vão ter
prosseguido nesse leito, a seguinte frase: [... ] " . É um senhor que já passou
dos setenta anos que prefere assim seu "saio", e havia por que se perguntar
se, com efeito, ele não ia definitivamente abandonar seu seminário, ai nd a
mais que depois de ... ou pior um título como Mais, ainda, acolhido sem
histeria, não era muito encorajador. O grito "Ainda! ", questão de tom,
taro b em , se ouve como "ch ega,, , " basta.1 " .

1 Jean Allou ch, Erótica do luto 110 tempo da morte seca, l ª edição, Rio de Janeiro, Companhia
de Freud, 2003, estudo b.
2 Pequena curiosidade cuja ide ntifi cação devo a Mayette Viltard: um "rascu nho" da situação
instalada nesse 2 1 de novembro de 1 972 fora tentado em 9 de j u nho de 1 96 1 e, da mesma
forma, bem no início de sessão. Já estavam presentes os dois seguintes traços: de dois seres
no leito e a escrita de Lacan, o primeiro chamando o outro. A articulação dos dois deve-se,
e ntão, ao grito [cri] , aquele do ente ndime nto no leito, e o de "escrito" [écrit] . Lacan tam­
bém joga com "se e nt e nder" [s'entendre: em francês, também, ouvir (NT) ) , deslizando do
e ntendiment o à audição. Por não se ent e nderem [se ouvirem] . um homem e uma mulher
podem se ouvir gritar. Por isso, "eles se e ntenderiam" ou só se entenderiam calando-se? A
questão está colocada. A fim de evitar brincar com isso (mas por que não?) , Lacan anuncia
a seu público que ele vai ler um escrito. Tudo se passa como se seu escrito tomasse o lugar e
desse valor ao grito dos amant es. Pou co importa, a posição de Lacan é menos clara que em
2 1 de novembro de 1 972, isso se lê desde sua primeira frase: "Vou estender-me [sublinho] ,
hoje, sobre algo que fi z questão d e escrever" .
329

Roger Planchon ensinava que a saída do palco era um dos gestos mais
difíceis de encenar e, para o ator, de efetuar. Cada uma das saídas de cena
deve ser interpretada, deve ser teatralmente falante, deve valer como uma
regrada da tensão dramática. E essa "saída" de Lacan, imagina­
pontuação
da, instalada por ele, estava, com efeito, regrada. Ela devia ser tal que ele
pudesse, uma vez saído, escrever na porta. Não há uma saída desordenada,
nem com certeza daquelas em que se bate a porta e em que, o gesto valendo
escrita, não há necessidade alguma de escrever na porta. A didascália pare­
ce bem indicar que quem sai escreve uma vez fechada a porta: sai, depois
escreve. Eis prevenidos os dois seres postos no leito: uma leitura os espera
quando, cumpridas as efusões amorosas, eles por sua vez deixarem o quarto.
Nenhuma dúvida de que só esse saber de uma leitura que os espera pode
modificar essas efusões, ainda mais que esse saber é o de um saber insabido.
Preferirão eles se levantar, ir imediatamente ler a frase? A encenação não
prevê isso. Por enquanto, eles são, portanto, três no quarto, Lacan, de pé,
preparando-se para sair, e os dois ouvintes medianos do seminário, estes, no
leito, logo antes de lhes vir a inspiração erótica, a não ser que esta já esteja
ali e Lacan já seja um intruso. Em suma, essa primeira configuração é a de
uma cena primária, mas vista por ausência, somente enquadrada por um
antes (a cena a três) e um após (a saída leitura e após as efusões amorosas).
Em outras palavras, os dois seres postos no leito por Lacan são seus próprios
pa is. C om efeito, seria bem de sua maneira essa ativa encenação que viria
no lugar daquilo que ele não saberia sofrer passivamente, essa demiurgia
(latim dimiurgus, do grego dêmiourgos, "que trabalha para o público, arte­
são", em particular "artesão do universo"). Realizar ele próprio aquilo de
que se padece mais que sofrê-lo, fazer-se disso o agente, é esta a definição do
masoquismo em Os complexos familiares. E, já que aqui estou a dar alguma
cor cênica a esse início de Mais, ainda, melhor acrescentar que o que fazem
então seus pais nesse leito nada mais é que essa irmãzinha Maneine que,
veremos, não teve um papel desprezível na articulação do amor e do saber.
Jacques tem dois anos.
Jacques Marie Lacan, o menino, o irmão, o seminarista, o ator, não se
limita, diretor de cena, a pôr os pais no leito e sair do quarto deles. Mesmo
assim, já era muito, e só o horizonte de uma sexualidade de visada procria-
330 O AMOR LAc N
A

dora permite que seja sustentada a afirmação segundo a qual a cri a nça õe
P
os pais no leito "de pleno emprego" (Lacan tendo declarado, em out ra P ar te
que a criança estava presente no horizonte de qualquer ato sexu al possível) :
Tudo se passa como se, pelas vias do teatro, a criança, superando seu des ­
peito, autorizasse o ato p rocriador: "Pois então, façam essa irm ã ! " . Alérn
disso, sua autorização vem acompanhada de uma advertência ao esc reve r
na porta a frase gritada que convirá decifrar, mas decifrá-la sem des p rezar
esse contexto teatral que, só ele, dá seu alcance. Também lembrare mos, para
contextualizar esse próprio contexto, que Lacan - ele lembra (cf "mais uma
vez vou escrever na porta") - no passado já escreveu pelo menos u m a vez
em portas e até fabricou essas portas conforme um esquema bem pessoal .
Tratava-se das portas da dita segregação urinária e, portanto, tam bém de
um muro, aquele que separa os sanitários HOMEM e MULHER3 • Também é
possível lembrar sua declaração de homem apressado segundo a qual, com
seu seminário, ele abria porta após porta, deixando a outros o cuidado de
explorar em detalhe os espaços assim oferecidos. O que será escrito na por ta
não é destinado a ser sem efeito sobre a inspiração dos dois seres deitados no
leito, muito pelo contrário. Uns cobrem os muros do quarto com q u adros
eróticos, outros com um retrato de Cristo na cruz, com uma Virgem pedó­
fora ou uma Anunciação, outros ainda com seus mortos, fazendo assim do
quarto um túmulo; para eles, será a frase de Jacques, mas reservada à saída
deles. O que ele espera? Isso ele anunciou: ele deseja que nos demos conta
dos sonhos prosseguidos no leito embora pensássemos estar bem despertos.
Mas o que vão então ser essas efusões amorosas, doravante em ep ígrafe dessa
fórmula presente, embora ainda não lida?

O gozo do Outro, do Outro com. . . parece-me que com o tempo isso deve
bastar para que eu pare aqui, eu lhes enchi os ouvidos com esse grande Outro
que vem após, e que agora ele arrasta por toda parte, esse grande A posto

3 J . Allouch,
Le sexe d11 maítre. L'érotisme d'apres Lacan, Paris, Exils, 200 l , p. 1 06- 1 33. Um
dos fu ndadores do movimento q11eer também se i nteressou por essa segregação urinária . Ver
Lee Edelman, "Tearooms and Sympathy, or, The Epistemology of che Wacer C loset", in
Henry Abelove, Michele Ainda Barale, David Halperi n (éd.), lhe Lesbian and Gay Studies
Render, New York e Londres, Roucledge, 1 993, p. 5 53-574 .
fAZ E R U M 331

diante do Outro [Autre] , aliás de modo mais ou menos oportuno, isso se


imprime a torto e a direito, o gozo do Outro, do corpo do outro que O [o
artigo francês Le] , ele também com um O [Le] , que O [Le] simboliza não
é o signo do amor4 •

Versão Le Seuil (itálicos no texto): " O gozo do Outro, do Outro com um


A maiúsculo, do corpo do Outro que o simboliza, não é o sign o do amor5" . O
impulso é diferente, o fim vem imediatamente. É anulado todo um tempo
de suspensão, de espera do encerramento da frase; é anulada a preferência
de Jacques Lacan, simplesmente dita um certo dia em seminário, pelas
preliminares. A despeito da indicação expressa de Lacan, J acques-Alain
M iller não achou bom escrever "Le" com L maiúsculo. Outra diferença:
0 "corpo do Outro", escrito A [Autre] na versão Le Seuil, a minúsculo na
versão semicrítica de que disponho - uma flutuação que vale como sinal
d e um problema.
A saída de Lacan abre uma outra cena. Uma leitura post coitum espera
sem muita impaciência dois seres agora sós no leito. Um saber já está ali
inscrito, eles sabem, por enquanto inacessível, e no entanto referindo-se ao
q ue eles vão ali fazer, o que ali fazem, o que ali terão feito. Breve vão ficar
sabendo que, nesse leito, terão perseguido um sonho. Que sonho? Lemos
seu teor na frase escrita na porta. Eles sonham obter, seguindo suas inspi­
rações eróticas, o gozo do Outro não só por ele mesmo, como um gozo
seco, se ousamos dizer, mas na medida em que seria, além disso, o signo do
amor (o horizonte é aqui mais judeu6 que católico) . Não "um" mas bem
o signo do amor. O sonho deles comporta essa ideia de que um tal signo
d e fato existiria em algum lugar no grande Outro; ao que viria conjugar-se
essa outra ideia de que esse signo único nada mais seria que o gozo desse
grande Outro.
Escrita na porta, a frase vem tentar quebrar esse sonho que pode ser
aceito como um desdobramento do conceito de amor sexual, como essa

4 J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 2 1 de novembro de 1 972.


5 !d., Encore, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Paris, Le Seuil , 1 97 5 , p. 1 1 .
6
S hmuel Trigano, L'intention d'amom: Désir et sexualité dans Les Maicres de l'âme de R.
Abraham hm David de Posouieres. Pa ri� e Tel -Aviv. F.cl . ele l' Éclat. 2007.
33 2 O A M O R LACAN

convergência do amor e do gozo veiculada pela expressão que parece não


gastar: "fazer amor". Se o gozo do Outro fosse o signo do amor, ele seria
enquanto gozo, útil a alguma coisa, precisamente ao amor. Ora, co m�
tal, ele não serve para nada. Mas, então, por que esse sonho de um a m or
sexual? Embora não o diga, Lacan se dedica, em ato, a que despertem os
sonhadores despertos. Outro acesso ao gozo do Outro pode ser tentad o
sugere ele, que se dispensaria de fazer desse gozo o signo do amor. Parece no
mínimo espantoso que ele tenha emprestado tal sonho àqueles que ele põ e
no leito; e sugerir que, com essa imputação, Lacan fala de um saber oriundo
de sua experiência de analista seria uma maneira cômoda demais de afasta r
essa estranheza. Aliás, como saberíamos? Vamos nos dispensar disso. Um a
bizarrice, sim, pois não está excluído que, no leito, dois seres, deixando-se
levar por suas inspirações, deixem todo seu lugar ao gozo do Outro sem por
isso esperar desse gozo que ele seja o signo do amor deles. O fato de estar
presente, em outras cabeças, essa convergência do amor e do gozo do Outro
não impedirá admitir que há algo forçado em deixar entender que seria 0
caso em qualquer um. Por que um tal forçamento?
Lacan ainda imputa outra coisa a esses seres que ele põe no leito.
Ele os descreve como se não duvidassem que o corpo do outro simboliza o
grande Outro. A transcrição "corpo do Outro" é errônea: não pode se tratar
do velho Outro concebido como "tesouro dos significantes", do corpo dos
significantes reunidos no antro do grande Outro, ainda que porque, como
vimos, o Outro não é mais em Lacan um antro, mas um entre. É concebível
que o corpo de um pequeno outro possa assim "simbolizar" (aqui no senti­
do de "representar") o grande Outro? Sim, se é verdade que "trepa-se c om
significante, ama-se com signos". Esse corpo do outro com o qual se trepa,
convém imaginá-lo recoberto aqui e ali de algumas etiquetas depositárias,
cada uma, de um significante, desses mesmos significantes que regram o
desenrolar do ato sexual. Resta, pois, a estranheza do próprio problema ao
qual pretende responder, se é que não pretende resolver, a frase escrita na
porta. Essa estranheza será absorvida pelos numerosos comentários, talvez
até as explicitações, que Lacan vai posteriormente desenvolver? Aliás, ele aí
trabalha incontinente, logo depois de uma frase de transição que põe u m
termo em sua encenação e recoloca cada um dos assistentes do seminário em
p, z E R U M 333

s ua poltrona ou de pé: "Escrevo isso, não escrevo depois: 'terminado', nem


'am em', nem 'assim sejà". Não se vai desprezar a ambiguidade do "assim sejà'
que, tomado literalmente, formula o voto de que de fato seja no futuro da
man eira que acaba de ser dita. Nada igual aqui. Logo após parecer ter posto
um pé numa pastoral (ter agido como um filho tirânico que exige dos pais
que se comportem como ele diz que é preciso se comportar), Lacan o retira
precisando que não deseja especialmente que seja no futuro, para qualquer
um, da maneira como ele mesmo acaba de formular. Ele não diz "que as­
sim seja", e diz até que não diz isso. Com efeito, era bem preferível, pois a
configuração que viria designar esse "assim seja" está longe de ser clara.

AMOR E GOZO

Uma primeira explicitação de imediato vem. Permite assinalar que uma das
questões da frase escrita na porta nada mais é que uma distinção radicalmente
sustentada entre amor e gozo - o que não seria o caso se o gozo do Outro
fosse o signo do amor. Entretanto, a disjunção amor gozo permanece sutil,
talvez até problemática se, como já se entreviu, o amor é depositário de
gozo. A afirmação continua:

Ele não é signo, é entretanto a única resposta. O complicado é que a res­


posta já está dada no nível do amor, e que o gozo por isso permanece uma
questão, questão pelo fato de que a resposta que ele pode constituir não é
necessária primeiro. Não é como o amor. O amor, este, faz signo e, como
eu já disse há muito tempo, é sempre recíproco. [ . . . ].

Essas frases de uma primeira sessão de seminário foram preparadas


com carinho. Tese: o gozo do Outro é a resposta ao amor, a única resposta.
Essa tese cheira a enxofre e conduz às paragens de um amor bem particular,
precisamente o amor místico (ressaltado pela capa de Mais, ainda) . O fio
aqui retomado e desenvolvido é o daquele amor extático já convocado, um
amor do grande Outro tomado absolutamente. Ora, uma vez assinalada,
essa maneira de amor força a admitir que o gozo do corpo de um pequeno
334

outro não pode validam ente valer para o do grande Outro. Um a das di­
ficuldades de trans crição - e, portanto, doutrinal - acima ressaltada vê-se
por aí resolvida. As flutuações (A/a) têm bem razão de ser: são m arcadores
da relativa incongruência em fazer o gozo do corpo de um pequen o o utro
ser suportado por aquele do grande Outro. Em seu êxtase, Santa Tereza de
Ávila, que Deus não queira, não abraça nenhum amigo, nenhum peq uen o
outro em seus braços , sequer seu querido João da Cruz. Além diss o, ter dis­
tinguido o tipo de amor que Lacan tem aqui em mente permite es clarecer
um outro ponto que permaneceu opaco em sua frase, e permanece u o paco
até sem que se perceba. Esta frase não diz: " O gozo do Outro, [ . . . ] não é 0
signo de seu amor" . Se tivesse dito isso, estaríamos às voltas com um amor
recíproco: "Te amo, e o gozo de teu corpo, que recebo como gozo do Outro,
me toca como sendo o signo de teu amor" . Não se trata disso, desse amor
humano demasiado humano que pede o amor em resposta ao amor e q ue
não é, portanto, aquele puro amor cuj o fio histórico Jacques Le Bru n tão
precisamente revelou. Lacan diz bem: "o signo do amor", isto é, de um amor
que é o amor pelo fato de que, por ser o amor, não pode ser nem o meu nem
o teu. Em Plotino, tal amor só advém com a intransmissível experiência
da dissipação, eminente e necessariamente pontual, de toda entidade que
fosse amante ou amada. O amor que está em questão nessa frase avizinha as
águas, aquelas que, historicamente, foram postas em epigrafe do misticismo
ou do puro amor.
Uma resposta não é um signo, menos ainda o signo. Uma resposta
resolve uma questão que, assim tratada, não será mais colocada. Diferente
nisto de uma resposta, um signo, ainda que se aproxime de uma solução, vai
guardar sua parte de sombra, não vai dissolver a questão. Como a experiência
mística é excepcional, será heuristicamente útil reformular no condicional a
afirmação de Lacan: se houvesse uma resposta ao amor, essa resposta só poderia
ser o gozo do Outro. É verdade, estou muito errado em proceder assim, pois
é inegável a modalidade afirmativa do que é dito. Porém essa reformulação
(falsa, portanto) oferece a vantagem de indicar como o gozo do Outro como
resposta real ao amor, e talvez se possa precisar com Plotino como realização
do amor, permanece fora de alcance do comum dos mortais, permanece
pouco facilmente subjetivável. Ainda mais que, dixit Lacan, o amor t raz
335

co nsigo sua própria resposta. A resposta ao amor, segundo o amor e trazida


m or, é o amor. O amor é recíproco. A signos de amor virão ecoar,
p elo a
vi rão "respon d er" outros signos
. de amor e, como se d"1sse, "nao
� há amor,
ap en as p rovas de amor" - exceto que, todos sabem, essas provas nunca são
v perm anecem enigmáticos signos; exceto que a resposta está em
p ro as e
o u t ra p arte , a resposta ao amor é nada menos que o gozo do grande Outro.
Lo go , esta mos às voltas com a coabitação se não infeliz, pelo menos incô­
m od a, de duas respostas que, por assim dizer, se depreciam - nem que sej a
p elo sim ples fato d e coabitarem. J á que o amor carrega consigo sua própria
resp o sta, a resposta, ela efetiva, ao amor, id est o gozo do Outro, adquire
es te est atuto de não ser "necessária primeiro" . Não se pode deixar passar esse
"pri m ei ro", essencial à afirmação feita. Ele se entende em dois sentidos, não
exclusivos entre si, um temporal, o outro espacial: 1 ) num primeiro tempo,
e ap enas num primeiro tempo, o gozo do Outro parece uma resposta não
necessária, embora até o seja de fato, o que indica que ela seja a resposta
ao amor; 2) o gozo do Outro não � uma abordagem necessária para quem
espera ser respondido em seu amor, como indica que qualquer um não
sej a um místico. Assim, embora seja a resposta ao amor, o gozo do Outro
permanece uma resposta possível ao amor. Lacan fala de "a resposta que ele
pode constituir" . Ora, ele poderá de modo ainda mais difícil uma vez que
o amor trará consigo sua própria resposta.

Então, é claro que isso explica que o gozo do corpo do outro, ele, não seja
uma resposta necessária. Vai até mais longe, não é tampouco uma resposta
suficiente, porque o amor, este, pede o amor, não cessa de pedir isso, pede
ainda. "Mais, aindà' é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte
a demanda de amor7 •

Em outras palavras, ainda que o gozo do Outro viesse dar sua resposta
ao amor, uma resposta vinda de outro lu g ar que do amor, o amor ali não
se satisfaria, ele que não cessa de pedir mais e mais amor. Esse chassé-croisé
d as respostas ao amor em nada cria uma situação satisfatória:
336 O AMOR LAC A N

É até por isso que foi inventado o inconsciente, foi para que se perceb esse
que o desejo do homem é o desejo do Outro, e que o amor é um a P aixão
que pode ser a ignorância desse d e sejo, mas que não lhe deixa men os todo
seu alcance . Ao olharmos ali mais de perto, podemos ver as devastações
causadas .

Mas ele também traz uma questão: "Então, de onde parte isso, que é
capaz, decerto, mas de maneira não necessária, não suficiente, de respon der
pelo gozo, gozo do corpo, do corpo do outro? ". Talvez, a fim de im pedir
as devastações do amor, só possa estar em questão tomar o caminho que
desembocaria na verdadeira resposta ao amor, no gozo do Outro. Daí,
portanto, um caminho assim poderia iniciar sua partida? Sobre que apoio,
tomado no próprio amor, e que não pode ser localizado em outro lugar a
não ser no amor (caso contrário, o gozo do Outro não seria a resposta ao
amor) , iria se escorar essa resposta, sabendo que, nem necessária nem su­
ficiente mas só efetiva resposta de qualquer modo, ela nada pode ser além
do gozo do Outro? Ao tentar responder a essa questão decisiva, Lacan vai
acabar operando um formidável movimento doutrinal. Uma nova porta
vai então se abrir, e surgir uma nova varidade do amor, ainda mais nova
porquanto recicla antigos elementos, alguns de fresca data quando se tratar
de uma retomada do (a)muro, outras de data imemorial quando for se
tratar do amor na medida em que visa fazer um (em que encontraremos o
amor místico).

Q!!ANDO AMAR CONTA

A abertura de Mais, ainda merece que não se despreze ali nenhuma linha.
Eis, então, logo depois, em que palavras Lacan tenta responder à questão "de
onde isso parte? ": "É bem o que no ano passado, inspirado de certa maneira
pela capela de Sainte-Anne que me levava ao sistema, acabei chamando o
(a)muro. O (a)muro é o que aparece em signos bizarros no corpo [ ... ] ".
De imediato dois traços merecem ser ressaltados. O primeiro: a capela
Sainte-Anne, com a presentificação de seus muros que Lacan, para sua sur­
presa, teve de situar como o próprio endereço de seu discurso. atin1Yiu seu
337

"sistema", ou seja: o que nele tende à construção de um sistema. O (a)muro


não faz parte dele (não existe teoria do amor) . Em compensação, só se podia
ignorar que, na capela Sainte-Anne, Lacan havia falado do (a)muro como
"o que aparece em signos bizarros no corpo". Esses signos bizarros, cujo
ceor e cuja função foram citados, ei-los aqui doravante localizados não num
muro, mas num corpo, em outras palavras, numa pele. O véu do amor,
esse véu celebrado por Verdi num célebre intermezzo de Don Cario, esse véu
tornado muro ou ainda pintura, ei-lo agora metamorfoseado numa pele.
Lembramos que, no Canto de amor de Jean Genet, os muros da cela têm o
valor de uma pele, são o corpo do outro, aquele outro corpo que cada carícia
revela inatingível pelo amor. O amor eleva a pele do outro à dignidade de um
m u ro. Adivinhação: tirem o a minúsculo de "peau" [pele] , o que resta? Um
"peu" [pouco] . Mas por que esse novo deslizamento do muro à pele, por
que, então, essa pele como muro? Resposta:

O (a)muro é o que aparece em signos bizarros no corpo e que vem de para


além, de fora, daquele lugar que acreditamos assim poder mirar no micros­
cópio sob a forma do germe, que observarei a vocês que não se pode dizer
que ali esteja a vida já que traz do mesmo modo a morte, a mortç: do corpo,
que isso o reproduz, o repete, que é daí que vem o em-corpo.

Como a transcrição semicrítica a que me refiro, a da editora Le Seuil


aqui· escreveu "o em-corpo,, . No entanto, e' "o am . da" que convem. ' Com
efeito, Lacan acaba de dar um estatuto conceituai ao "ainda", acaba de fazer
dele não mais um advérbio de tempo, mas um substantivo, um nome pró­
prio, dizia ele até: "O nome próprio dessa falha de onde no Outro parte a
demanda de amor". O ainda, e não o em-corpo, vale como falha provocadora
da demanda de amor; é ela, essa falha, que suscita essa demanda, ela, e não
um pequeno outro preso "em corpo". O "em-corpo" ressoa no ainda, não o
inverso. Uma vez que o ainda acabava de adquirir um estatuto conceituai,
era exigível que essa falha fosse localizada. Já foi dito que ela está situada no
Outro. Entretanto, convinha escorar essa afirmação, o que uma referência
pelo menos inesperada vem realizar. O apelo ao par soma/germe pode ser
I : � - �- - - . . m ., 1 ., m o n t-n ,-lp n rnu'l .. ,, ,.,P7 'l t� rlP nrnv� científica.
o fato é
338 O AMOR LA C A. N

que essa "prova" é levada ao estatuto de um mito quando é estabelecid o urn


laço entre as exigências do imortal germe e as do amor em busca não só de
sua resposta, mas também de sua origem - via eleita para que ele vá à frente
de sua resposta. A origem do amor é, no sentido weismanniano, germinal.
E o ainda é o próprio conceito dessa origem. O afresco é grandioso. O que
está no início do amor que cada um sente, o que faz que aconteça de al­
guém amar não é um assunto de individualidade. Bem antes, o amor vai se
realizar mais e mais às custas dessa coisa perecível que é a individualidad e.
O conceito germinal de ainda é transindividual. O amor serve ao germe;
o amante adere, subscreve, sem saber, às exigências do germe; ele é a presa
do germe. O que quer também dizer, e o que só um mito pode dizer: que
só existe amor eterno. "É do ser que partimos. Do ser na medida em que
é, perdoem-me esse deslizamento de escrito, concebido como o étrernef•
[ser eterno] , [ ... ) 8 " . O amor tem a ver com uma ôntica germinal. A junção
entre o (a)muro e a germinalidade começa a ser estabelecida com a seguin­
te frase: "É falso dizer separação do soma e do germe, já que por carregar
esse germe o corpo carrega rastros. Há rastros no (a)muro". Ela expan de a
avenida de uma leitura incorreta, ainda mais que o que se acredita saber d a
oposição soma/germe convida a aí se precipitar. Pois logo vem à mente que
esses "rastros no (a)muro" nada mais são que os caracteres sexuais, primários
e secundários. Ora, Lacan sem mais tardar procura afastar essa concepção:
"O ser do corpo é sexuado, certo, mas é secundário, como se diz. E como
demonstra a experiência, não é desses rastros que depende o gozo do corpo
na medida em que ele simboliza o Outro9 " .
O mito que Lacan está forjando tem a ambição de levar a incidência
do amor até o domínio da reprodução do ser vivo, um domínio que sabemos
bem anterior à reprodução sexuada e bem mais vasto que ela. Por não termos
uma ideia clara disso, deixamos numa certa opacidade a audaciosa afi rma-

* Amálgama de être [ser] e éternel [eterno] . (NT)


8
J . Lacan, Mais, ainda, sessão de 1 6 de janeiro de 1 973 ( corrigi "o étrenel" de minha versão
de referência por "o ê trernel" da versão Seuil) . Está entendida a iro nia com que essa inven ­
ção léxica marca a eternidade.
9
Logo depois o "há rastros no (a}muro", Jacques-Alain Miller escreve as seguintes palavras,
de sua ú nica mão: "Pois é, não passam de rastros" . Por que, então, tal desvalorização? Os
rastros no muro do amor de fato são rastros, que sabemos até à espera de su� rns ur� .
f /, Z E R U M 339

� 0 segundo a qual o gozo de um corpo, na medida em que ele simboliza


: utro, em outras palavras, esse gozo do Outro, "do corpo do outro que
O
O [Le] simbolizà', não depende de rastros que seriam reconhecidos como
sexuadas, que, por assim dizer, seriam coloridos sexo. Não são sexuais esses
n
raStros de onde parte o (a)muro, esses rastros a pele a partir dos quais o
(a)muro tenta juntar-se ao que lhe daria resposta, a saber, o gozo do grande
Outro. Mas, então, o que são eles? Em que rastros toma assim apoio o germe
n
para jogar com as i dividualidades como se fossem pedacinhos de palha
lan çados no esterco logo depois de ter servido sua imortalidade? Nem sequer
ao esterco, aliás, pois o esterco serve... ainda. Como para melhor sign ificar o
caráter fora de sexo de seu mítico registro do amor, Lacan vai en tão falar de
um a mor que atravessa as espécies, de uma relação amorosa que, portan to,
claramente exclui a sexualidade. Ele apela para um amor n ão de um cão,
de um gato ou de um qualquer an imal doméstico, mas de um pássaro por
um homem, indican do por aí mesmo em que ordem de rastros não sexuais
0 amor inicia sua partida. Eis, pois, a historin ha da periquita de Picasso:

O amor. . . , posso mesmo assim lhes dar um pequeno exemplo, o exemplo


de uma periquita que estava apaixonada por Picasso, isso se via pela ma­
neira como ela lhe mordiscava o colarinho da camisa e as abas do. casaco.
Com efeito, essa periquita de fato estava apaixonada pelo que é essencial
ao homem, isto é, sua roupa 1 º .

Um colarin ho de camisa, a aba de um casaco, seria este o tipo de ras­


tros de que depen deria o amor. Também diremos: um charuto e óculos; ou
então, um charuto, mas desta vez torto, e um nó borboleta. Nem a camisa
nem o casaco [em francês, la veste] são identificáveis como masculinos, nem
sequer o charuto, exceto para um jun guian o.

Mas não passa de um mito, um mito que vem convergir com o leito de há
pouco. Gozar de um corpo quando não há mais roupas é algo que deixa
intacta a questão sobre aquilo que faz o Um, isto é, sobre a identificação. A
periquita identificava-se com Picasso vestido.

IO T T �r� n M,,;, ,,;.,,!,, <P«5n rl.- 7. 1 rl.- n nvemhro de 1 972.


34 0

Não é possível ser mais explícito: o que pode bem se passar no le ito
não é suscetível de responder ao amor. Desejo e gozo são uma coisa; outra
coisa é o amor. E é agora isso que pode enfim se entender na frase choque
que dava seu impulso a Mais, ainda. Como essa distinção vem marcar 0
amor? Num certo sentido, Lacan reata com antigas notações, especialment e
o caráter nardsico do amor. Entretanto, o fato de o gozo, e não mais apenas
o desejo, estar em lugar do outro do amor vai ter por corolário uma c en a
definição do amor, inédita em Lacan embora até se arraste pela cultura no
mínimo desde O banquete de Platão.

A periquita identificava-se com Picasso vestido. Acontece o mesmo co m


tudo o que é do amor. Em outras palavras, o hábito ama o monge po r ser
por ali que eles são todos apenas Um. Em outras palavras, o que há sob 0
hábito e que chamamos o corpo talvez seja apenas no caso esse resto q ue
chamo o obj eto a. O que faz essa imagem se manter é um resto. E o que a
análise demonstra é que o amor em sua essência é nardsico, que a c onversa
mole sobre o objetal é algo cuja substância j ustamente ela sabe denun c iar
naquilo que é resto no desejo, a saber, sua causa, e o que o sustenta com
sua insatisfação, talvez até com sua impossibilidade.

A psicanálise, nessas afirmações, é Lacan. Aqui, mais uma vez ele


rompe com a oposição amor narcísico/amor objetal. É que convém dis­
tinguir amor e gozo. Está então dita, enfim, a razão pela qual ele operou
a encenação da frase choque: "A impotência do amor, embora ele seja
recíproco, é devida a essa ignorância de ser o desejo de ser um". Eis o que
deviam saber aqueles que ele havia posto no leito: amar é narcísico no
sentido em que esse narcisismo é carregado pelo desejo de ser um. Esse
narcisismo parece novo, ao passo que se desenha assim uma nova figura,
pelo menos em Lacan, do amor narcísico. Pois, até então, nele, a iden­
tificação narcísica não era precisamente fazer um. Narciso desaparece na
água, ali se juntando à sua imagem; mas esse acontecimento só ocorre
na medida em que ele não se identifica com essa imagem amada, que ele
entra na via de fazer um com ela. Amar narcisicamente dessa maneira
não é aqui identificar-se narcisicamente. Assim, a teoria freudiana do
f i\ Z E R U M 34 1

ou que a identificação narcísica regressiva só advém quando


Juro ressalt
n ão é mais possível amar. A identificação narcísica tal como a descrevia
0 estádio do espelho não era fazer um. Se fosse esse o caso, não se veria
0 q
ue o sujeito poderia designar a um grande Outro nem tampouco de
o n de ele poderia designar para que fosse homologado, no lugar do Outro,
q ue esse pequeno outro que ele designa é ele. A identificação narcísica
produz um mesmo (um falso mesmo) sobre fundo de semelhança, o que
exige não haver precisamente nem produção, nem visada, nem desejo de
unidade. Talvez tenhamos lido rápido demais essa afirmação, dita como
q ue de passagem: "o que faz um, isto é, a identificação". E não ficaremos
espantados, tendo tomado ciência da novidade dessa identificação narcí­
sica que faz um, em outras palavras, desse amor unificante, que a própria
q uestão da identificação tenha novamente se tornado um problema em
Lacan, problema que ele vai novamente visitar, sem jamais resolvê-lo, nos
seminários seguintes.
No que se refere ao amor enquanto tal, a que se deve a novidade?
Ao "fazer um", em outras palavras, à contagem. A questão da conta invade
o amor.

Logo, de que se trata no amor? Como a psicanálise formula, com uma


audácia tanto mais incrível porquanto toda a sua experiência vai contra,
porquanto o que ela demonstra é o contrário, o amor é fazer Um. É verdade
que só se fala disso há muito tempo, do Um: a fusão, o Eros seriam tensão
rumo ao um.

A psicanálise, aqui também, é Lacan, um Lacan que, evidentemente,


só pode falar de sua própria e atual audácia atribuindo-a à psicanálise. Tal
audácia poderia ser contestada por quem se lembrasse aqui do Eros freudiano
unificante. Entretanto, de fato há novidade do ponto de vista do percurso
de Lacan. Assim, vamos vê-lo dizer: ''Até então, tomando meus apoios na
experiência psicanalítica, encarei o amor de outro modo que como fazendo
um; hoje, no entanto, admito que essa afirmação freudiana de um amor
unificante merece ser levada... em conta".
34 2 O A M O R LAcAN

Como se fabrica um? De maneira contábil. Pois "um" em lu gar al­


gum tem existência solitária. Em sua monumental História comparada das
numerações escritasn , Genevieve Guitel mostrou que, nas línguas q ue el a
estudou (todas as que deram lugar à invenção de uma numeração escrita),
existem primeiramente certos termos que são outros tantos signos de nu me­
ração; e, com frequência, o homem contando espontaneamente no s dedos
encontramos: um, dois, três, quatro, cinco (e portanto também uma b ase
cinco, outras vezes uma base dez) . Sem um tal conj unto de termos, po r m ais
reduzido que seja, ninguém pode ter o menor conceito do que seria fazer
um. Mas como as unidades numéricas são constituídas? Nessa pri m eira
sessão de Mais, ainda em que o amor é levado em conta, Lacan enc ara ess a
questão a partir da matemática moderna. Ele ali declara igualmente que "a
fusão, o Eros seriam tensão rumo ao Um. 'Há um', foi com isso que sustente i
meu discurso do ano passado, e por certo não para confluir nessa co nfus ão
original [ . . . ]" . Questão: a partir de que unidades bem constituídas o amor
poderia fazer um? Se a mulher é "nãotoda" e se, por outro lado, a próp ria
unidade está diminuída, reduzida apenas ao "há um", vemos mal como o
amor poderia produzir um qualquer um. A resposta virá em 1 6 de janeiro
de 1 973 : vamos tentá-la a partir dessa "miragem do um que acreditamos
ser" . Uma miragem que dirige cada um direto para uma impotência. A
própria sequência dessa citação que introduz o "fazer um" vai dizer respeito
à relação sexual sob a forma de "a relação dois" : "A impotência do amor,
embora ele seja recíproco, é devida a essa ignorância de ser o desejo de s e r
Um. E isto nos conduz ao impossível de estabelecer a relação deles. A relação
deles, quem? Os dois sexos" . Logo vão então aparecer nos seminários os
primeiríssimos enunciados ligando amor e não-relação sexual. E será, para
plagiar, aqui sem vergonha, Gabriel García Márquez, "o amor nos tempos
da não-relação sexual".

1 1 Genevieve Guitel, Histoire compttrée des numémtions écrites, prefácio d e Charles Morazé,
Paris, Flammarion, 1 97 5 .
C A P Í T U L O XV I 1 1

0 AMO R N O S T E M P O S
DA NÃO - RE LAÇÃO S E X UAL

E mbora seja costume reter apenas uma única, várias fórmulas, nos
seminários, vêm dizer o jogo do amor e da não-relação sexual, o teor
de cada uma devendo ser tanto mais experimentado na medida em que ela
tiver sido menos escorada por Lacan. A pluralidade dessas fórmulas também
cria problema: vão bem juntas? Ou há, de uma à outra, movimento, talvez
a té disparidade? A fim de começar a responder, vamos primeiro procurar
apresentá-las em lista de maneira simplesmente cronológica e sem por en­
quanto entrar nas questões colocadas por cada uma. Assim, veremos essa
lista desenhar uma volta bem esperada.
Mais, ainda, sessão de 19 de dezembro de 1 972:

Somos apenas um. Todos sabem, é claro, que nunca aconteceu entre dois
que eles fizessem apenas um, não é? Mas, enfim, somos apenas um. É daí
que parte essa ideia do amor, é realmente a maneira mais grosseira de dar a
esse termo, a esse termo que se esquiva manifestamente, da relação sexual,
seu significado.

Em 1 3 de fevereiro de 1 973, lemos: ''A carta de amor não é a relação


sexual". Uma distinção radical, portanto. E também, nessa mesma sessão:

O amor cortês, o que é? Era a espécie, a maneira bem refinada de suplementar


a ausência de relação sexual fingindo que éramos nós que a ela púnhamos
obstáculo. Isso é realmente a coisa mais formidável que jamais se tentou,
mas como denunciar esse fingimento?
344

O amor fora situado como "significado" da relação sexual; ei-lo, d oi s


meses mais tarde, suplementando a relação sexual ausente. A ausência da re­
lação sexual não é a não-relação sexual. Em 1 3 de março de 1 973 , enquanto
Lacan lê "alma" em "amor", encontramos reafirmada a distinção en tre 0
amor e o sexo; logo, entre a relação ou a não-relação sexual:

Logo, a existência da alma pode por certo ser questionada, é o termo próprio
a se perguntar se não é um efeito do amor. Com efeito, enquanto a alm a
a/mar a alma, não há sexo no caso, o sexo aí não conta.

Sempre em Mais, ainda (26 de junho de 1973), é o amor como subs­


tituto que vai estar em questão, o que é outra coisa que um suplemento,
pois, se um suplemento vale substituição (peixe no lugar da carne), uma
substituição não suplementa necessariamente (queijo ou sobremesa?):

E, com efeito, é este [trata-se do amor] o substituto que, pela via da existênci a
não da relação sexual, mas do inconsciente, que disso difere, que po r ess a
via faz o destino e também o drama do amor.

Assim abruptamente apresentada, a frase não é muito clara, e volta ­


remos a essa sessão capital em que o amor é apresentado como "uma certa
relação entre dois saberes inconscientes". Tudo se passa como se, naquele
dia apenas, Lacan retomasse o fio, por anos abandonado, que ligava amor
e transferência.
Em 1 8 de dezembro de 1 973 (Les non-dupes errent) oferece um a
declaração que não é tão vazia quanto se poderia primeiramente pensar :
"Esse amor é levado à existência, o que é bem obra de seu próprio sentido,
pelo impossível do laço sexual com o objeto, o objeto seja qual for a sua
origem, o objeto dessa impossibilidade". Quase se entenderia aqui que o
amor é fomentado pela não-relação sexual. Pouco depois, em 1 4 de janeiro
de 1 974, o amor é apresentado como

a verdade, mas apenas na medida em que é a partir dele, a partir de um


corte, que começa um outro saber que o saber proposicional, isto é, o saber
O AM
O R NO S T E M P O S DA NÃO- RE LAÇÃO S E X U A L 345

inconsciente. É a verdade enquanto não pode ser dita do sujeito, enquanto


0 que é suposto, o que é suposto poder ser conhecido do parceiro sexual.

N o que se refere à não-relação sexual, o amor é reafirmado como


sub stit uto {enganador) mas um substituto não mais tanto dessa não-relação
u n do saber dessa não-relação - com o que esse saber pode ele mesmo
q a to
provoc ar de uma relação nova com o gozo (cf o início de Mais, ainda) . Seja,
agora, em R. S. I. , a sessão de 21 de janeiro de 1 97 5 . Do amor masculino
he te rossexual é dito que "é essencialmente dessa fratura do muro onde só
podemos fazer um galo na testa, enfim! que se trata; se não há relação sexual
[ .. . ] I '' . Vamos por enquanto reter a ideia do amor como fratura da não­
relação sexual, "fratura" aparecendo então como um termo recentemente
ch eg ado li gando amor e não-relação sexual .
Já na sessão seguinte do seminário ( 1 1 de fevereiro de 1 975) , intervém
uma mudança brusca inesperada, que também poderia ser denominada uma
vasso urada, tornada mais manifesta ainda após a listagem exaustiva das dife­
ren tes articulações do amor e da não-relação sexual. Entre essas duas sessões,
Lacan foi a Londres e foi levado a ler a obra Queen Victoria de Lytton Strachey2.
O caso é exemplar da maneira como a literatura, ainda que sob a forma da
narrativa histórica, intervém na psicanálise, ali pondo abaixo todo um pedaço
de saber. Com efeito, Lacan sai de sua leitura com a seguinte afirmação: "Creio
q ue este livro me parece dever tornar-lhes sensível, enfim, sensível com um
particular relevo, o fato de o amor nada ter a ver com a relação sexual [ . . . ] 3 " .
Paft! Tornam-se caducas todas as palavras acima listadas e que, a despeito desse
aco ntecimento discursivo, convirá no entanto estudar com tanto cuidado
q uanto outras. Não vai mais estar em questão, na sequência dos seminários,
uma qualquer articulação entre o amor e a não-relação sexual, mais nenhum
termo vindo dar existência a tal articulação. Em outras palavras, a articulação
do amor com a não-relação sexual não terá sido a última palavra de Lacan

1 Jacques Lacan , R. S. I. , transcrição Afi. Doravan te: R. S. I.


2 y
L tton Strachey, Queen Victoria, primeira edição em 1 92 1 , numerosíssimas reedições em
vários editores, Londres, Chatto and Windus, 1 969; crad. em francês por F. Roger-Cornaz,
Paris, Payot, edições em 1 92 1 , 1 923 , 1 9 5 2 , 1 973, 1 98 0 , 1 993.
R. S. I < P « ó n rl P 1 1 rl P ÍPvP rPi ro d e 1 9 7 5 .
O AMOR LA C N
A

sobre o amor. Por um momento, o dos últimos seminários, o amor terá sido
tomado em outras coordenadas.
Ora, não contente de separar o amor e a não-relação sexual, La ca n
vai posteriormente ligar o amor... a quê? À relação sexual! Em 1 1 de a bril
de 1 978, temos isto:

Existem três, três gerações, entre as quais há relação sexual. Isso evide ntemen te
acarreta toda uma série de catástrofes e foi, em suma, o que Freud perce beu. Ele
percebeu, mas isso não se viu em sua vida familiar; porque ele havia to m ado
a precaução de ser louco de amor pelo que chamamos uma mulher, é prec iso
dizer, é uma bizarrice, é uma estranheza. Por que o desejo vira amor4 ?

Logo, estamos às voltas com o seguinte esquema: relação sexual {in­


tergeracional) � abandono do desejo � amor louco. O derradeiro item d a
lista aqui estabelecida, embora ali tenha seu lugar, não contradiz o ponto
de parada, em Lacan, da problemática amor não-relação sexual pelo fato d e
que se trata de um caso em que a conivência do amor e da relação sexual
expulsa o desejo e cria enigma.
Mas, ao percorrermos a sequência das afirmações que ligam o amor à
não-relação sexual, talvez tenhamos sentido seu caráter esquelético. É possível
que o mais significativo do que é então dito do amor não se deva tanto a
seu laço com a não-relação sexual, com os termos que vêm então dizer esse
laço (significado, suplemento, substituto, arrombamento), quanto a tudo
o que lhe dá corpo, espessura, conformação, teor tecidual.

PARA UM AMOR ACO STUMADO COM O PARA-S E R*

O reconh ec1mento
. por Lacan do amor como "f:azer um" e ate' como «e.rusa� o"
salta aos olhos da forma mais surpreendente, se não inconveniente. Eis

4 Jacques Lacan, Le moment de co11c/11re, transcri ção Afi. Doravante: O momento. . .


* Amálgama criado por Lacan com parai'tre [parecer] e être [ser] . A tradu ção brasileira do se•
m i nário xx, Mais, ainda, Edi tora Zahar, Rio de Janeiro, 1 97 5, prefere o termo "para-esser",
havendo também "há-par-e-ser" . (NT)
O AM
O R N O S T E M P O S DA N Ã O - R E LAÇ ÃO S E X U A L 34 7

al gué m que, por anos, visitou várias varidades do amor, que as desdobrou
e p roblematizou apelando para certos termos, ou freudianos, ou por ele
rnesm o inventados, que para isso se apoiou em certos textos e trabalhos
rnas ta m bém na poesia e, de maneira mais original, na pintura, e que, após
isso rudo, declara de chofre, em 2 1 de novembro de 1 972, esta perfeita
b an ali da de que o amor é fazer um 5 ! E como, além disso, as afirmações
anteriores parecem então amplamente esquecidas, pensamos: valia a pena
cer- se da do tanto trabalho? Por que razão essa degringolada naquilo que,
à pri m eira vista, tem a ver com um lugar comum dos mais usados? Mas
esse p róprio espanto vem sugerir que poderia bem se tratar, nesse início
de Ma is, ainda, de um acontecimento mais inovador do que se pensa,
pois estaria bem na moda de Lacan só cair no lugar comum modificando
a d istribuição de seu jogo.
Esse advento do amor como "fazer um" foi devido ao borromeano? O
borrom eano é constituído de umfato de três, de um um ternário, de um um
p ar a o qual três é primeiro. Será o acento colocado nessa contagem que, por
um efeito de contágio, teria levado Lacan a conceber o amor como "fazer
um"? Entretanto, se a descoberta do borromeano é anterior de alguns meses
ao a parecimento da problemática do "fazer um" nos seminários, sua explora­
ç ão e sua exploração são, estas, amplamente posteriores. Em compensação,
é indubitável que a pegada do amor na contagem (como se diz de um gesso
que ele "pega"), uma contagem ela mesma problematizada e, de certo modo,
desestabilizada pela invenção recente do "há um6 " , deve-se à não-relação
sexual. Com efeito, nessa primeira sessão de Mais, ainda em que está muito
e m questão o amor e em que o amor como "fazer um" vai começar a tomar
impulso, é trilhada uma via que, tal como se apresenta, vai do amor à não­
rela ção sexual: "A impotência do amor, embora ele seja recíproco, deve-se
a e ssa ignorância de ser o desejo de ser Um. E isto nos conduz [sublinho] ao
impossível de estabelecer a relação deles. A relação deles, quem? Os dois

1
Sobre o jogo do um e do " há um" , poderemos nos reportar ao texto " . . . 011 pior" (Autres
écrits, Paris, Le Seu il, 200 1 , p. 547- 5 5 2 ) . Ali é simultaneamente proposto à anál ise fazer a
crítica " da i nconsistência dos dizeres antigos do amor".
6
An edota divertida: nos Principia Mathematica de Whitehead e Russell, a defin ição do nú-
m "" rn 1 � rl ., rl ..., . ... .,, " � n- i n -,, 'l. «; .á � rl n n 1'1 m P rn ? ,, .l n � o i n � � 7 'l
sexos7 " . O que pede três observações. Primeiramente é reafirmado o laço
entre o amor e o saber, aquele mesmo que foi posto em ato com a fi cç ão
teatral do início dessa mesma sessão. Assim fazendo, agora o lemos, Lacan
tentava subir a ladeira dessa "impotência do amor", devida à "ignorância
de ser o desejo de ser um". Se isso se soubesse, é sugerido, estaria susp ensa
a impotência do amor. Que impotência? A do amor de transferência? C om
certeza, mesmo que isso não esteja dito. O que desemboca nessa consideração
pouco banal, um pouco sulfurosa e não menos heterodoxa, segundo a qual ,
sendo o amor de transferência recíproco, o analista ama o analisando, mas
estando ele, analista, prevenido do fato de que o amor é desejo de ser um; e
esse saber poderia tornar potente o amor de transferência. Bastaria que um
único dos dois amantes ligados pelo amor soubesse que o amor é fazer um
para que o amor desdobrasse sua enigmática potência? Na cena teatral, os
dois amantes eram bem solicitados por Lacan a saber. Seja como for, seria
esta uma das questões do caminho aqui mesmo percorrido (após ter sido 0
de Lacan): outorgar, enfim, sua potência ao amor.
Segunda observação: é aqui colocada uma equivalência entre relação
(sexual) e "relação dois". Se houvesse uma relação sexual, um certo conector
ligaria dois termos, a e p. Como esses dois termos são distintos, haveria bem
dois: eles {os sexos) seriam dois. Mas, relacionados um ao outro, esses dois
termos só fariam um, o um da própria relação: há uma relação sexual. Só que
esse um da relação não é o um do "fazer um" do amor, não é em nada fusional.
Logo, só se pode distinguir o 1 do amor, feito de 1 + 1 (a isso voltaremos),
e o da relação sexual {"o um da relação relação sexualª ") composto de três
termos, de duas variáveis distintas, a e p, e de um conector que, ao ligá-las,
faz o um da relação. O francês vem ajudar essa distinção: vamos chamar o
"um dois" de um do amor e "o um de três" de um da relação sexual.
Uma terceira observação vale questão: não convém percorrer esse
caminho no outro sentido? Não seria, como é dito aqui, a impotência desse
amor não prevenido do desejo que o carrega ("fazer um") que teria conduzido
Lacan à impossibilidade da relação sexual {nota-se o jogo entre impotência

7
J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 2 1 de novemb ro de 1 972.
8
J . Lacan, Mais, ainda, sessão de 2 1 de novembro de 1 972.
O A
M O R N O S T E M POS DA NÃO- RE LAÇÃO S E X UA L 3 49

e i mpossib ilidade) mas, ao contrário, a impossibilidade da relação sexual a


dois que o teria levado a situar o amor como uma impotente tentativa de
fazer um. Em todo caso, é o que será não dito mas sugerido durante todo
um tempo, um tempo que termina exatamente com uma declaração pública
quase derradeira em que Lacan confessava o fracasso daquilo que teria sido
um caminho seu do amor rumo à Heteridade, e o alívio que lhe teria então
proporcionado o enunciado "não há relação sexual".

Como o célebre encontro dos apaixonados durante um baile na Ópera. Horror


quando eles deixaram cair suas máscaras: não era ele, ela tampouco , aliás.
Ilustração de meu fracasso nessa Heteridade - perdoem-me a Úbris - que
me decepcionou bastante para que me livre do enunciado de que não há
relação sexual 9 •

O "nos conduz" de 2 1 de novembro de 1972 jd dizia o que será dado


como motivo da dissolução da École freudienne de Paris, em 1 5 de janeiro
de 1980.
Assim, a linha que liga amor e não-relação sexual foi percorrida em
seus dois sentidos: do amor rumo à não-relação sexual, da não-_relação
sexual rumo ao amor. O primeiro percurso é cronológico: confirmam
isso as duas indicações que acabam de ser aproximadas a despeito de sua
d istância temporal (oito anos). Convém daí concluir que o outro percurso
é de ordem lógica? Seria intelectualmente satisfatório, pelo menos para
quem gosta de distinguir a ordem da descoberta e a da exposição. Como
esse segundo percurso veio a ser o único a ter sido retido por muitos
comentadores, notadamente Alain Badiou 1 0? Badiou parte do enunciado
segundo o qual "o amor vem suplementar a falta de relação sexual", en­
tregue sem referência bibliográfica. Lacan disse, pelo menos uma vez (20
d e fevereiro de 1 973), algo próximo. Entretanto, tratava-se, então, não do

9 Dou essa citação tal como foi publicada em Le Mo11de, depois em Omicar?. Para uma leitura
mais aplicada dessas duas frases, poderemos nos reportar à minha obra Co11tre l'étem ité.
Ogawa, Mallarmé, Lt1m11, Paris, Epel, 2009, cap. III.
10 Alain
Badiou , " La sce ne du deux" , in De lamour, obra coletiva, sob a direção da École de la
---- - - r J , _ _ _ _ n _ _ ,_ r' l. " m - • C l " m m � r õ � � 1 Cl () ()
350 O A M O R LAc
I\ N

amor em geral, mas d o amor cortês, sendo esse suplemento, além d isso
apresentado como um fingimento, um traço que Badiou não retém, c o lll�
se fosse possível dissociar a ideia de suplemento daquela de fingim ento,
Sobre essa precária base citacional, Badiou entra num desenvolvim ento
em que, quase imediatamente, ele introduz o que chama de sua pró pr ia
linguagem. Do amor como suplemento ele passa, sem encontrar a m enor
resistência, à fórmula segundo a qual "sendo o sexual da ordem do ser, é
no acontecimento que se deve registrar o amor". Nada sugere tal b ipartição
em Lacan, em quem numerosas observações indicam, ao contrár io, que 0
amor diz respeito ao ser do sujeito (ou do outro, ou do Outro) . Quanto
ao gesto pelo qual Lacan acaba afastando essa problemática, em vão se
buscaria sua consideração em Badiou.
A tese de um amor suplementando a não-relação sexual não m ante­
ve, em Lacan, a distância. Mesmo assim, ela ainda hoje permanece eleita
por muitos comentadores. Essa eleição foi sugerida pela ideia, aceita como
prazerosa, de suplemento, aquela que dá o teor da primeiríssima articulação
explícita do amor e da não-relação sexual. Com efeito, na citação acima, só
estão em questão os "dois sexos", e será apenas três sessões mais tarde, em
1 6 de janeiro de 1973, que será encontrado um enunciado em que, desta
vez com todas as letras, o amor está articulado à não-relação sexual - mais
exatamente, à inexistência da relação sexual. O suplemento é então o nom e
dessa articulação. Suplementar significando "vir no lugar", imagina-se qu e
algo estava bem ali antes, ali em primeiro, que é preciso essa ocupação pri­
meira e esse lugar já marcado para que haja suplemento. Esse " imagina-se"
vale alusão às análises de Jacques Derrida que desmantelaram a pretensa
necessidade de uma origem para que pudesse ser produzida uma cópia. Um
suplente* [suppléant] ocupa o lugar e faz o trabalho daquele que ele substi­
tui. Segundo esse ponto de vista preguiçoso, concebe-se uma inexistência
primeira da relação sexual, no lugar da qual viria alojar-se o amor. Entre­
tanto, o suplemento [le suppléant] também pode decorrer da insuficiênci a
da função e da suposição de que o suplemento, este, não será insuficiente.
Essa brecha na ideia comum de suplemento é confortada pela etimologi a:

* O suppléant tanto pode ser em francês o suplente quanto o rnplemento. (NT)


O AM
O R N O S T E M P O S DA N ÃO- R E LAÇÃO S E X U A L 35 1

"suplementar *" vem de supp,ere,' "preencher; completar" , atraves ' ·


' de soupioter,
"abundar; submeter-se", por confusão, diz o dicionário Le Robert, com uma
vari edade de suplicar. Suplicar vem de supplicare (sublplicare, dobrar [em
francês, p lie1i ), "dobrar" [plier] este que acabou "mais ou menos misturado
a um composto de ploier (ploye,) [dobrar, flectir] ". Souployer significava a
u m só tempo "suplicar", "dobrar [plie,i , curvar" e "suplementar". Logo,
suplementar pode realizar outra coisa que uma pura e simples substituição,
0 mesmo orifício sendo preenchido. Ora, essa equivocidade do suplemento
permite questionar o primeiro enunciado que liga o amor à inexistência da
relação sexual. Ele põe em jogo o para-ser, que é aquilo com o que vai ser
esboçada uma nova figura do amor: " [ ... ] é bem no que se refere a esse para­
ser que o que suplementa essa relação [sexual] enquanto inexistente, é bem
nessa relação com o para-ser que devemos articular o que ali suplementa,
a sa b er, precisamente, o amor' ' ". Reencontramos a brecha do suplemento:
é dito não que o amor suplementa a relação sexual, mas a inexistência da
relação sexual. Além disso, trata-se de um enunciado programático: o amor
resta a ser articulado, ao passo que já certos termos (ser, para-ser, gozo, rela­
ç ão sexual, signo), com os quais deveria ser levada a cabo a realização desse
programa, estão presentes na vizinhança,. Nesse mesmo 1 6 de janeiro de
1 9 73, Lacan retoma o fio do início de Mais, ainda:

A primeira vez que lhes falei, se não me engano, enunciei que o gozo , o gozo
do Outro, que eu já disse simbolizado pelo corpo, não é um signo do amor.
Naturalmente, isso passa. Passa porque sentimos que é do nível daquilo que
fez o precedente dizer [não há relação sexual] , que isso não se dobra 1 2 •

E teremos agora direito a um esclarecimento quase palavra por pala­


vra da frase-chave que havia aberto Mais, ainda (que Lacan quase acaba de
repetir). O Outro, antes de mais nada. Esse termo é objeto de uma reserva
e um posicionamento. A reserva se refere ao fato de que esse Outro se deve

' E também suprir. Porém só s11plê11cin - e não suprimem to - daria, em português, a ideia de
substituição. (NT)
11 J . Lacan, Mnis, nindn, sessão de 1 6 de janeiro de 1 973.
1 1 lh:,I r ........ : .... : . " .-: mhnli"7 ... rln,, n-3n " ci m h n l i 7 "lrl,/ '
p
352 O A M O R LAc
AN

à fala de Lacan, que, portanto, lhe parece eminentemente frágil. N ão é tão


seguro assim que, tomado como conceito, o Outro tenha um referente
(uma dificuldade que por vezes tentamos resolver com a escrita "o tro" ) .
Não só que o Outro não existe, que esteja barrado; mas mais ainda, daqu i
por diante, que, como elemento de uma bateria supostamente conceituai 1

ele não resulta de si mesmo. O Outro só é imaginável como conceito n a


estreita medida em que é nomeadamente Lacan quem o diz, em que in­
tervém o que ele chama (evocando o pequeno Hans?) sua burrice: "Só a
minha presença em meu discurso, só a minha presença é minha burric e l 3 ".
Talvez. Mas contanto que se acrescente que convém desconfiar das pessoas
que, acima de tudo, evitam ser burras. O Outro ligando-se a ele, a seu
nome, Lacan pode portanto também lhe dar nesse dia uma posição antes
surpreendente no que se refere ao que foi por um tempo arrastado so b 0
nome de "ordem simbólica". Não que o significante daqui por diante esteja
afastado do Outro, longe disso, já que é após ter precisado que o homem,
que uma mulher são puros significantes e que só tomam sua função de seu
dizer "enquanto encarnação distinta do sexo 1 4 " que Lacan acredita pod er
concluir por um enunciado perfeitamente decisivo: "O Outro, em minha
linguagem, só pode, portanto, ser o Outro sexo". O "portanto" sugere um a
consequência lógica, felizmente temperada pelo "em minha linguagem".
Esse novo posicionamento do Outro é aqui mais afirmado que deduzido.
O terreno, no entanto, fora preparado, em 1 967, por uma virada que veio
atingir o grande Outro como tesouro dos significantes, uma virada que não
vai contra essa primeira descrição mas que lhe dá seu lugar: nada menos
que o corpo. Resumindo para a instituição que hospedava seu seminário A
lógica da fantasia, Lacan escrevia:

Em que pela primeira vez apoiamos que esse lugar do Outro não deve ser
tomado em outro lugar que no corpo, que ele não é intersubjetividade,
mas cicatrizes no corpo tegumentário, pedúnculos a serem pendurados

1 3 J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 1 2 de dezembro de 1 972.


1 4 Jbid. Não cito a frase, considerando q ue, na versão aqui eleita. eb re<t• • <P r p cMh PIPr; tl,
O R N O S T E M PO S DA NÃO- RE LAÇÃO S E X U A L 353
O AM

e m seus orifícios para ali servir de tomadas, artifícios ancestrais e técnicos


q ue o roem 1 5 •

Assim , o Outro, depois de ter feito corpo em 1 967, advém cinco anos
m ais tarde como sexo. O Outro sexo só pode ser entendido como o Outro
feito sexo - necessário correlato da própria possibilidade do conceito de
gozo do Outro. Qualquer um está às voltas com esse Outro feito sexo, e isto
seja qual for o corpo que a esse Outrossexo (ele merece ser escrito assim)
dê seu suporte. Assim surge uma nova questão. Se o Outro é o Outrossexo,
como, então, vai ele atuar na relação sexual? "O que acontece com esse
Outro? Com sua posição no que se refere àquilo em torno do que se realiza
16
a relação sexual ?". Logo, em torno do que se realiza a relação sexual? Em
torno do falo. "Relação sexual" deve aqui ser entendida não no sentido
de Lacan, mas como o que deve de fato ser chamado a "trepada". Lacan
vai logo precisar isso, mas de uma maneira que comporta, alusivamente,
uma crítica da (se não de sua) psicanálise. "Isto é, um gozo que o discurso
analítico precipitou como aquela função do falo sobre a qual, em suma,
0 enigma permanece inteiro, já que ali só se articulam fatos de ausência".
Ressoa uma nova reserva: teria havido uma certa precipitação, por parte do
" d iscurso analítico", em afirmar que a relação sexual se realiza "em torno"
(em torno!) da função fálica. Lacan está se distanciando no que se refere a
afirmações que ele anteriormente fizera. Não, o gozo do Outrossexo não
pode ser reduzido ao gozo fálico. Logo, é precisamente o gozo desse Outros­
sexo tal como acaba não de ser delimitado, longe disso, mas parcialmente
e pelo menos negativamente determinado, é, portanto, esse gozo do qual
nada por enquanto vem assegurar que seja masculino ou feminino (caso
contrário, por que ter sexuado seu grande Outro?) que deveria ser tomado

15 !d. , " Resumo do semi nário 1 966- 1 967" , Autres écrits, op. cit. , p. 327. Em 1 0 de maio de
1 967, ele fora mais explíci to: " [ . . . ] é an tes de mais nada o corpo, nossa presença de corpo
animal que é o primeiro lugar onde pôr inscri ções. O primei ro significan te, como mdo está
ali para nos sugerir isso em nossa experiência, [é a cica triz] - exce to que sempre damos pai­
xão as coisas quando falamos da ferida, acrescen tamos narcísica e imedia tamen te pensamos
que isso deve bem chatear o sujeito que é na turalmen te um idiota - não vem à mente que o
in teresse da ferida é a cica triz" . Ver igualment e o início da sessão de 30 de maio de 1 967.
16 1 T � �� " 1.,r,,;, ,,;.,,1,, <P«iín rlP 1 6 rle ianeiro de 1 973.
354 O AMOR LAc
AN

como signo do amor - o que Lacan procuraria afastar. O que vai s er d '
lto
do amor poderá dar alguma consistência a essa junção falaciosa entre gozo
do Outro e o amor? "Signo" seria o nome dessa junção mal-vinda. E, da
mesma forma que acabamos de ver como a "frase inaugural" de Mais, ainda
terá apelado para uma sensível modificação do grande Outro, da rn esma
forma sua explicação do texto dessa frase virá modificar o amor.
Com que varidade do amor vamos estar às voltas? Para form ular
isso, Lacan vai buscar força bem longe: "Este ano, temos que artic ula r
aquilo que está em questão, que está bem ali como pivô de tudo o que se
instituiu da experiência analítica: o amor". Entretanto, não é a experiência
analítica do amor que primeiro vai estar em questão, mas o amor, por
estar "no cerne do discurso filosófico". Desse discurso Lacan desconfia. No
entanto, ele lhe fornece um escoramento da afirmação segundo a qual "o
amor visa o ser". Evidentemente não é falso, ainda que muitas restriçõ es
possam ser trazidas a um enunciado tão geral; e, aliás, mencionando Aris­
tóteles, o próprio Lacan emite algumas reservas. Mas, sobretudo, trata-se
aí de palavras bem antigas nele, presentes já na construção da pirâmide
das paixões do ser. Só ficaremos mais espantados de vê-lo dizer, em todo
caso na versão Le Seuil de Mais, ainda, que essa visada do ser pelo amor
teria sido enunciada somente oito dias antes. Nada igual é formulado
na versão semicrítica que serve aqui de referência. O que diz ela ness e
lugar? Essa versão elegeu uma apresentação insatisfatória, cortando uma
frase é verdade bem longa, empilhando, com isso, frases interrompidas,
separando-as, e além do mais, por alíneas. Em suma, das duas versõ es
disponíveis, nenhuma é boa. Proponho o seguinte estabelecimento, sem
de modo algum pretendê-lo terminado, mas apenas por ter a vantagem d e
não mascarar as dificuldades textuais embora conserve a ossatura da frase.
Estamos às voltas com seis "se", mas não de mesmo nível:

Se o discurso filosófico entreviu-se como o que é: essa variante do discurso


do mestre, se na última vez pude dizer do amor, enquanto o que ele visa
é o ser, a saber, aquilo que, na linguagem, mais se esquiva (aquilo no que
insisti como o que ia ser, ou o que justamente por ser fez surpresa) , se pude
acrescentar que esse ser, devemos nos interrogar se ele não está tão perto
O R NOS T E M PO S DA N ÃO- R E LAÇÃO S E X UA L 355
O AM

daqu ele ser do significante mêtre* (m, apóstrofo e acento grave), se não for
0 se r no mandamento, se não há aí o mais estranho dos engodos, será que

n ão é também para, com a palavra signo, nos mandar interrogar em que o


si gn o se distingue do significante?

Oito dias antes, depois de colocar em relevo o discurso filosófico como


discurso do mestre, Lacan mais uma vez tinha tomado distância da ontologia.
Por que, ele se perguntara, essa insistência no verbo de ligação "ser" [être] ?
N ada obriga a isso, a não ser que a isso obriga, precisamente, a realização
fi losófica do discurso do mestre. Assim, ao escrever "seskecê' para "é o que é",
ele mostrava que o uso do verbo ser (ele nota que ele nada tem de universal)
resulta de uma "acentuação cheia de riscos". E a escrita "discurso do m'être"
vem então inscrever que o discurso do ser "é aquele do ser devotado, do ser
às ordens 1 7 ". Oito dias mais tarde, como que para melhor tomar alguma
distância desse discurso, "mestre" se escreve não mais "m'être" mas "m'etre" :
eis o ser rechaçado. Esse desenvolvimentos confortam a afirmação contra
a qual se eleva a ontologia, isto é, o ser é "aquilo que na linguagem mais se
esquivá'. Mas um argumento mais sólido que esse desvio filosófico meio
sem nuanças vem escorar a afirmação, "mais sólido" pois devido à própria
linguagem, à linguagem tal como a apreende Lacan: "E no entanto. sabe­
mos bem que a linguagem se distingue pelo fato de sempre estar, em seu
efeito de significado, justamente, ao lado [sublinho] do significante [... ) 1 8 " .
Logo, não é apenas o discurso filosófico que impõe o ser (o que ele impõe é
a ontologia que, esta, impõe o ser), mas a linguagem enquanto tal. Só que
essa mesma linguagem não permite agarrar o significado, ao passo que "ao
supormos um aquém sentimos bem que só há ali uma referência intuitiva"
- a ser entendido: o referente, mesmo que seja o ser, sempre é entendido de
outro modo pela intuição, o que não vale muita coisa, nada tampouco. A
linguagem a um só tempo impõe o ser e o torna inapreensível. Por si só, o
fato de o significado não estar mais sob o significante (como em "A instância
da letra") torna o ser inacessível. Depois da supressão da oval saussuriana que

* Homofonia com maitre [mestre] . (NT)


17 J.
Lacan , Mais, ainda, sessão de 9 de janeiro de 1 97 3 .
IB TI. :,/ .,.,.�n ,1 ,. 1 (., ,l p i � n e i ro de 1 97 3 .
toma juntos significante e significado, depois de o significante ter sido posto
sobre o próprio significado e não mais sob, como em Saussure, eis agora que
o próprio significado não está mais sob o significante, mas ao lado. Vem
então, encerrando a frase cuja citação foi iniciada acima, uma proposição:
em outras palavras, um enunciado que tem valor de ordem:

[ . . . ] que aquilo que é preciso, aquilo com o que temos que nos aco stu mar '
[sublinho] , é com substituir essa imposição que é aquela que a l inguagem
provoca, imposição do ser, pel a tomada radical, a admissão de início de que
do ser não temos nada, nunca.

Ora, tão logo dita, eis a ordem executada. Como? Por uma passagem
ao grego, nomeando para esse "ao lado" , e afirmando, d a1,' que "o ser se
apresenta e só se apresenta de "pare-ser 1 9 " . A transcrição Seuil escreve "par­
être", e ''pare-être" minha versão de referência. A despeito de seus esforços,
a musicalidade do francês antes serve mal Lacan. Ele precisaria escrever
''para-être" , que soa mal. Ao que se acrescenta uma dificuldade de ordem
,,
semant1ca, par-etre sendo um homorono
A • " A ,, ,e ,
de "para1tre [parecer] . Ora,
esse "paraítre" remete à oposição fenômeno/númeno que é precisam ent e
aquilo de que Lacan não quer saber, essa oposição dando todo seu lugar à
ontologia, à imposição da qual ele quer se desprender. A escrita ''pare-être"
também cria problema: esse " pare-être" estaria para o ser como para a brisa
está o para-brisa? Nada vem garantir, pelo menos nessa passagem do semi­
nário, que essa significação está presente nesse neologismo. Se do ser "nunca
temos nada", de que adianta dele se esquivar [se parer] como de um golp e?
Quanto ao sentido ornamental de "parer" [paramentar] , é a ontologia qu e
disso se encarrega! O embaraço da transcrição mesmo assim está suspenso
graças a uma obra bem útil que recenseia 789 neologismos de Jacques Lacan
e, para acabar, por Lacan, que publica "O aturdito" em 1973. Ness e texto,
do mesmo período que Mais, ainda, encontramos escrito "para-ser" [pa-

* A tradu ção brasileira (Mais, nindn, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1 975) op tou pela tradução
literal , isto é, romper-se n [se rompre à] . (NT)
19 Ibid. , sessão de 1 6 de janeiro de 1 973. Conservo aqui muito provisoriamente a esc rica
"pnre-être" .
O R N OS T E M P OS D A N Ã O- R E L A Ç ÃO S E X U A L 357
O AM

rêtre] . "Para-ser" é a um só tempo um substantivo e um verbo,


que Lacan
con juga. A coletânea dos neologismos também convida a ir direto a outra
ocorrência de "para-ser", situada em L'insu. . . , em que, desta vez, a literali­
dad e vem bem em ajuda a Lacan, permitindo que ele note que "para-ser"
escá exatamente contido nesse outro neologismo que ele inventará pouco
depois de "para-ser", a saber, "ser-da-fala [parlêtre] *" . Com L'insu . . . , ele vai
se afastar ainda mais da ontologia já que, se, em Mais, ainda, a invenção do
"para- ser" [parêtre] valida uma tomada de distância em relação ao ser, em
Ltnsu. . . , "ser-da-fala" vem por sua vez como que monopolizar o ser, marcá-lo
no sentido futebolístico, impedi-lo de desempenhar o papel que ele ocupa
na ontologia ao ancorá-lo explicitamente na fala: "só existe o 'para-ser' de
que temos de saber, o ser na oportunidade sendo apenas uma parte do 'ser­
d a- fala', isto é, daquilo que é feito unicamente daquilo que fala " . O " par"
20

n ão tem mais então o mesmo alcance, perde seu valor semântico para só
atuar como significante que remete não mais ao "para" grego, mas ao " par"
deparole [fàla] . O problema com "para-ser" também vinha do fato de que o
prefixo "para" , se marca bem a ideia de "ao lado", também significa "que está
próximo de, que é semelhante": "paramilitar", por exemplo, condensa esses
dois valores. Disso decorre que talvez não tenhamos acabado tanto quanto
pensamos com o ser quand o col ocamos "para-ser" no l ugar d e " ser". .
Logo, como vai se apresentar o jogo do amor e da não-relação sexual
uma vez que o ser está afastado, posto de lado e como tanto melhor parali­
sado (grego paralusis, "relaxamento") porquanto um termo vem dizer com
o que vamos estar às voltas, com o para-ser? O deslizamento do ser para o
para-ser implica uma mudança de razão. Com efeito, é somente a partir
dessa sessão de 1 6 de janeiro de 1973 que pode ser situado o que fora dito
do amor pouco antes ( 1 9 de dezembro de 1972): mais uma vez, Lacan
abordava o amor recorrendo a uma poesia. É então convocado o poema de
Rimbaud intitulado "A uma razão 2 1 " . Ele dá lugar ao seguinte comentário:

• Condensação de parler [falar] e être [ser] . Também traduzido por fala-ser e folesser. (NT)
1° Ci tado em Marcel Bénabou ,
Laure n t Cornaz, Dominique de Liege, Ya n Pélissier, 189 11éo­
logis111es de Jacq ues Laca 11, Paris, Epel , 2002 , p. 70.
1 1 " Um
toque de seus dedos no tambor desen cadeia todos os sons e dá início a uma nova
ho rmnn i � l Jm oasso teu recru ta novos homens, e os põe em marcha. Tua cabeça se vira: o
O AMOR LA C AN

"O amor é, em Rimbaud nesse texto, o signo, apontado como tal, de qu e


se troca de razão, é bem por que é a essa razão que ele se endereça, 'A urn a
razão'. Mudou-se o discurso22 " . Os quatro discursos lacanianos foram es­
critos a partir do discurso do analista, que portanto dá fundamento aos trê s
outros; a partir daí Lacan pode observar que "sempre há alguma emergência
[do discurso do analista] a cada passagem de um discurso a outro". E seria ,
portanto, quando ocorre essa emergência que se manifestaria o amor. Ern
outras palavras, a mudança de razão ("razão" equivale aqui a discurso) sern ­
pre é a mesma; essa presença do amor no momento de cada mudança de
discurso assinalaria uma mutação da razão, aquela mesma que é suportada
pelo discurso do analista. Ora, essa mudança é precisamente o que está ern
jogo quando se coloca o para-ser no lugar do ser. Há de fato um novo am or
(não: uma outra vez o amor, mas um outro amor) uma vez que o amor seria
regrado não mais pelo ser, mas pelo para-ser. O novo amor? Lacan nesse
dia se priva de um escoramento citando falsamente Rimbaud. Não, o novo
amor não vem, como ele crê, terminar cada verso do poema; mas sobretudo
Rimbaud escreve " o novo amor" e não- o que Lacan o faz dizer - "um novo
amor". O novo amor seria o da razão analítica, dessa razão que se acostum a
com o para-ser. Esse amor, que não seria mais impotente, que não ignoraria
mais que o amor é desejo de ser um (um... ser), e tampouco que não há um,
mas apenas "há um", esse amor daqui por diante não pode mais visar o ser,
estaria "em relação com o para-ser". A questão de uma afirmação já citada
surge agora mais clara e mais decisiva. Aqui está:

[ . . . ] é bem no que se refere a esse para-ser que o que suplementa essa rela­
ção [sexual] enquanto inexistente, é bem nessa relação com o ''para-ser que
devemos articular o que suplementa, isto é, precisamente, o amor 23 •

novo amor! Tua cabe ça se volta, - o novo amor! 'Muda nossos destinos, acaba com as cala­
midades, a come çar pelo tempo' , cantam estas crian ças, diante de ti. 'Semeia não importa
onde a substân cia de nossas fortunas e desejos' , pedem- te. Chegada de sempre, que irás por
toda parte". (Tradu ção de Ângela Caval can ti Bernardes) .
22 J . Lacan , Mnis, nindn, sessão de 1 9 de dezembro de 1 972.
1.1 J. Lacan, Mnis, nindn, sessão de 16 de janeiro de 1 973.
O R NOS T E M POS DA N ÃO- RE LAÇÃO S E X U A L 359
O AM

Que relação o amor mantém com o para-ser? Vai se decepcionar


m esp erava uma resposta imediata, direta, frontal, a essa questão. Em
que
co m p en saç ão , o utra via é tomada e logo vamos saber por quê.

METAMORFOSE DO AMOR

Es taríamos tomando um caminho muito errado s e referíssemos certos enun­


ciad os q ue vão ser formulados ao amor segundo Lacan, ao novo amor, ao amor
Lacan. Pois Lacan , por não se comprometer em seu programa, escolhe antes

revisit ar os mais bem estabelecidos dos lugares-comuns sobre o amor para, em


cada oportunidade, marcar um afastamento, um ao lado, um para, desenhando
assi m ind iretamente o lugar, se não for o teor, do novo amor. A hibridez dos
enu nciados futuros parece um indício da espécie de metamorfose que Lacan
pro cu ra fazer o amor aguentar. Só um exemplo dessa hibridez, extraído da
primeira sessão de Mais, ainda, que portanto tem valor de anúncio : "O que,
então, está em j ogo no amor? Como a psicanálise form ula, com uma audácia
canto mais incrível porquanto toda a sua experiência vai contra, porquanto
o que ela demonstra é o contrário, o amor é fazer Um 24 " . A ocorrência de
"audácia" aqui nada indica de particularmente valoroso ou prestigioso;- é de
um traço de ironia que se trata. Contra sua própria experiência, a psicanálise
afirma que o amor é fazer um. Espera-se de quem fala assim e que não faz
sua essa "audaciosa" definição do amor (audaciosa j á que p roveniente de uma
experiência contrária) que nos dê outra figura do amor, aquela que seria con­
forme a essa experiência. Nada assim será no entanto proposto nesse momento
do seminário. Em compensação , o amor como "fazer um" vai parar Lacan e
será aquilo contra o que, aquilo bem con tra o que ele vai se dispor a situar o
novo amor. Ele busca uma via, a de uma metamorfose do amor. Assim, parece
menos estranho que tome sua partida no amor em sua mais clássica figura:

Somos apenas um. Todos sabem, é claro, que nunca aconteceu entre dois
que façam apenas um, não é? Mas, enfim, somos apenas um. É daí que

14 Thirl <P«fo cl,. 2 1 de novembro de 1 972.


360 O A M O R L Ac
AN

parte essa ideia d o amor, é realmente a maneira, a , a , a , a mais grosse i ra de


dar a esse termo, a esse termo que se esquiva manifestamente da re la ção
sexual, seu significado 25 •

Ali onde não há relação sexual, ali onde, de mais a mais, o pró pr io
termo "relação sexual" se esquiva, ali tomaria sua partida o amor como "fazer
um". Há bem, se quisermos, suplemento, mas num sentido muito partic ular.
Para falar a verdade, parece difícil falar mais uma vez de um suplem ento
mesmo sabendo que Lacan mal acabava de fazê-lo. A operação ou a fu nçã�
do amor é outra. O amor, definido como "fazer um", ao se alojar no lug ar
que seria o do significado da relação sexual, passaria qualquer um para
trás com essa ilusão segundo a qual o termo "relação sexual" poderia bem
estar, como significante, no lugar de significante. Ora, ele ali não está, ele
se esquiva. O posicionamento do amor como significado da relação sexual
é uma "grosseria". Estaremos ainda menos às voltas com a escrita

Relação sexual

Amor

uma vez que o significado não está mais, então, sob o significante, mas
ao lado. Mais uma vez, Lacan toma distância do amor sexual, da libido. Essa
escrita é a da ilusão do amor que se vê, portanto, agora desdobrada. Por um
lado, o amor como "fazer um" é ilusório, uma "miragem"; por outro lado,
é ilusório esse envio do amor à relação sexual como um significado poderia
remeter a seu significante. Constatando o fato de que a relação sexual se
esquiva, poderíamos escrever assim sua situação efetiva:

Relação sexual

Amor

15 J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 1 6 de j a neiro de 1 973.


º" MOR NOS T E M POS DA NÃO- RE LAÇÃO S E X U A L 361

Essa dupla ilusão aplica-se a conjugar, talvez até a confundir, os dois


a análise distingue, o um dois (o do amor) e o um três (o da relação
uns que
sex: ual) . A proposição "nunca aconteceu entre dois que eles só fizessem um"
subs ume um e outro um. Ainda mais que um e outro veiculam um pen­
26
samento do um e, de modo mais geral, do número que deve ser revisto •
O apoio que ele toma na moderna contagem dos matemáticos mostra-se
operante para a problematização do amor; e está, portanto, na ordem do
trilhamento de Mais, ainda, que esse seminário seja a um só tempo tão im­
portante para o amor e tão insistente na função da escrita, notadamente a
do n úmero. Lacan se interroga: para que, então, serve essa ilusão? Resposta,
27
quase trivial: "Para a reprodução dos corpos " . Sob uma forma mais históri­
ca, menos grandiosa, lê-se aqui um eco como que amortecido do mito de um
amor que zomba dos indivíduos para melhor servir ao imortal germe. Vem,
então, o voto de Lacan deixando lugar claro a um outro amor: "Mas não
se poderia, não se sentiria, não se tocaria com o dedo que a linguagem tem
outros efeitos que levar as pessoas como ela bem entende a se reproduzirem
mais? ". A questão se coloca: a que se deve a pregnância desse um do amor,
sua insistência também, que chega até a desconhecer o que é realmente o
número? Resposta: é ao narcisismo que devemos a realização desse força­
mento, essa transferência, no sentido bancário, do "há um" a esse um dois
imaginário, fusional. A audácia de Freud pode agora encontrar seu lugar:

[ . . . ] é nisso que o velho pai Freud trilhou vias, mesmo assim [sublinho]. É
de qualquer modo muito bonito, muito impressionante, [ . . . ] perceber que
o fundamento do amor, se isso tem relação com o "um", isso tem muito
exatamente por resultado nunca fazer quem quer que seja sair de si mesmo.
[ . . . ] A partir do momento em que ele introduziu a função do amor narcísico,

ir, lbid. , sessão de 2 1 de novembro de 1 972. Ou ainda, pouco antes: " H á Um" , é com isso que
sustentei meu discurso do ano passado , e por certo não para confluir nessa confusão original
[o um como fusão, o eros como tensão rumo ao um] . . . a do desej o que só nos conduz à visa­
da da falha em que se demonstra que um só vem da essência do significante. Se i n terroguei
Frege no i n ício, fo i para tentar demonstrar a h iância que há desse um a algo que tem relação
como o ser, e, por trás do ser, com o gozo" .
27 L l .� rn n . Mnis. ainda, sessão de 1 6 de janeiro de 1 97 3 .
O A M O R LACAN

todo mundo pôde sentir que o problema era como podia haver um am or
por um outro. E que é bem claro que esse "um", com o qual todo mu ndo
tem a boca cheia, é antes de mais nada e essencialmente da natureza d essa
miragem do "um" que se crê ser. Mas, enfim, isso não é mesmo assim para
dizer que esteja aí rodo o horizonte[ . . . ].

Estas últimas palavras também abrem a porta ao amor Lacan ,


Aquelas que as precedem atribuem ao fato de se crer um, que tem a ver
com o narcisismo, essa pretensa e ilusória possibilidade de fazer um com
qualquer outro um. A audácia de Freud, a despeito de se enganar ao enca­
rar o amor como "fazer um", como fusão, ou antes nesse próprio engano,
terá consistido em lançar esse amor unificante na conta do narcisismo, daí
vem (eis a audácia) que é questionado, até em sua raiz, aquilo que seria,
o que pretende ser o amor por um outro, a pretensa abertura a outrem
do amor. Assim, o "velho pai Freud" abria uma brecha nesse amor fu são
que erradamente ele apresentava como aquele mesmo com o qual estaria
às voltas o psicanalista.
Vem então a proposição que vai permitir entender por que razão Lacan
fez tanta questão de interrogar o amor como "fazer um". Ela é trazida por
uma retomada do "tempo lógico", um problema de matemática divertida,
nos meandros do qual não é aqui útil avançar 28 , mas cuja resolução tem por
questão uma saída de prisão de um dos três detentos a quem ele é propos­
to. Importa um traço, que vem recolocar sob novos aspectos uma questão
que desde A transferência . . . pudera-se crer definitivamente resolvida com
o afastamento, datando desse seminário, da intersubjetividade. Ora, essa
retomada do tempo lógico permite que Lacan indique o que logo vai igual­
mente dizer respeito ao amor, isto é, que "algo como uma intersubjetividade
pode culminar nesse desfecho salutar", o que, haja vista o contexto, nada
mais quer dizer que uma saída de prisão. Não é absolutamente novo, pois
já "algo como uma intersubjetividade" de fato estava implicado no conceito
de sujeito suposto saber. Sempre graças a essa retomada do "Tempo lógico",

28 J . Lacan, " Le temps logique et l'assertion de cer titude anci cipée" ,


in Les cnhiers d 'rtrt 1940-
1945, retomado (modificado) em 1 966 nos Escritos, op. cit. , p. 1 97-2 1 3 .
0 AMO R NOS T E M POS DA NÃO- RE LAÇÃO S E X UA L 363

um segundo traço sublinha o caráter "inadequado" daquilo que seria uma


relação do um ao outro, o que Lacan diz uma segunda vez:

Essa função de identificação, que ocorre numa articulação ternária, é aquela


que se funda pelo fato de que, em caso algum, podem ser considerados su­
porte dois como tais, que, entre dois, sejam eles quais forem, há sempre o
um e o outro, o um e o pequeno a, e que o outro não pode em caso algum
ser tomado por um um. É muito precisamente no fato de que, no escrito,
algo, algo acontece que, a partir disto de brutal, toma por um todos os uns
que se quiser, que os impasses que daí se revelam são por si mesmos para
nós um acesso possível a esse ser, uma redução possível da função desse ser
no amor.

A versão Le Seuil deixa ler "um acesso possível ao ser", ontologizando


aa fi rmaç ão. Não, de fato se trata de "esse ser", do ser do outro, do outro
narcísico, do pequeno outro amado, desse outro do um dois, tomado por
um um que se toma por um um, assim desprezando seu estatuto de objeto
a - o que não faz o prisioneiro do "Tempo lógico", cujo cálculo e cuja açã o
são regrados pelo "cada um por si", preocupado com a própria libertação e
bem longe de qualquer amor por quem quer que seja. Ele não é peio amor
enganado quanto ao estatuto do outro, não é colocado em impasse pelo
amor. No entanto, Lacan não se contenta em assinalar esse impasse, dizer seu
teor, a saber, a abordagem do outro como um um. Desse próprio impasse,
ele adianta, algo pode resultar, a saber, a "redução possível da função desse
ser [o ser do outro] no amor". Redução a quê? Redução desse um ao objeto
a. Pensamos no que pôde ser dito quanto ao ato psicanalítico, igualmente
na "Proposição de outubro de 1 967". E agora entendemos por que razão
Lacan se interessa por esse amor unificante. Não se trata tanto de dizer que
isso não funciona {pelo que passa quem quer que embarque nesse navio), não
tanto de ressaltar que um novo amor é possível {o que talvez seja entrevisto
por qualquer um); não se trata de afastar um em proveito do outro, mas de
constatar, de maneira de certo modo realista, o que se apresenta, isto é, o
amor fusão, o amor narcísico, a ilusão amorosa do 1 + 1 = 1 , a miragem do
outro como um, para, daí, extrair uma possibilidade. Por mais enganado
que esteja, esse amor, por seus próprios impasses, abre a via que permitir ia
que fosse reduzido o ser do outro. Reduzido a quê? A resposta "a pequeno
a " permanecia parcial. Enquanto outro, o outro é tomado como pequeno
a; mas, enquanto ser, agora se sabe também a que ele se acha reduzid o: ao
para-ser. Na medida mesma em que constitui um impasse, o amor narc ísico ,
fusional, o amor impotente, o amor que visa o ser do outro abre um a via a
uma redução desse ser. Vai-se dizer desse novo amor que ele permitiria que
nos acostumássemos com o para-ser? Por enquanto, continua sendo b em
misteriosa a via que seria aquela dessa saída do impasse amoroso, do amor
unificante, do um dois que faria que o outro fosse tomado não mais como
um um semelhante ao um que me imagino ser, mas como objeto a.
Duas dificuldades continuam sendo sensíveis. Por um lado, seria
bem possível que Lacan deslizasse subrepticiamente do amor para o desejo
se "entre dois, sejam eles quais forem, sempre há um e outro, o um e o pe­
queno a " - um problema já encontrado. Também seria possível que o grau
de generalidade da afirmação não conviesse, em outras palavras, que fosse
preciso descompor a questão distinguindo como ela se apresenta diferente­
mente no homem e na mulher.

UM NOVO AMOR?

As primeiras sessões de Mais, ainda oferecem uma espécie de abertura em


que surge o que poderia valer como um novo amor que supostamente não
concorreria com o amor fusão numa espécie de enfrentamento entre duas
figuras do amor, mas, bem antes, feito a fênix, nasceria se não das cinzas,
pelo menos dos impasses do amor fusão. Tal metamorfose continua sendo
pouco clara. Como permanece somente semielaborada a noção de "para­
ser". Que relação com o semblante? Como se diz que o analista, a título de
objeto a, ocupa o lugar do semblante na doutrina dos quatros discursos,
apenas entrevemos como isso ofereceria ao analisando a possibilidade de
sua transferência amorosa acostumar-se com o para-ser.
Mas não tirei de um único termo, a saber, da palavra "redução" (a
"redução possível da função desse ser no amor"), uma conclusão apressada
M O R N O S T E M P OS DA N ÃO- R E L AÇ Ã O S E X U A L
O A

ao notar que, nesse momento de Mais, ainda, amor e amor deviam ser dis­
tinguidos? Várias indicações a seguir mostram, ao contrário, que a própria
questão do amor, como em Kierkegaard, deve-se precisamente ao fato de
que há amor e amor. Assim, em 20 de fevereiro de 1 973, Lacan voltará à
distinção entre o amor físico e o amor extático. Assim, em 1 ° de março, ele
vai d istinguir o "falar de amor" e, mais séria a seus olhos, a carta de amor.
Da mesma forma, bem no fim de Mais, ainda (26 de junho de 1973), ele
falará de novo da abordagem do ser pela via do amor e, assim fazendo, da
"verd adeira amor" - o que sugere a possibilidade, pelo menos ela, de outra
modalidade do amor. Essa verdadeira amor, além da inabitual feminização
do amor, está associada ao ódio; aliás, de maneira mais consumada, encon­
traremos em ação, nas últimas sessões de Mais, ainda, não só o amor como
narcísico, que estava ali bem no início e ao qual a invenção do objeto a havia
dad o um retorno de vitalidade, mas também o ternário amor/ódio/igno­
rância, ele também muito cedo presente nos seminários. Há amor e amor.
O que lança nova luz sobre o toque de clarim na abertura de Mais, ainda,
sobre esta frase da qual Lacan deu posteriormente uma primeira explicação
de texto e que eis aqui surge agora novamente aliviada de seus incisos: "O
gozo do Outro, [ ... ] do corpo do outro que O [ . . . ] simboliza não .é o signo
do amor29 " . Já não havia ali uma indicação da possibilidade de um novo
amor? Haveria esse amor que daria ao gozo do Outro o valor e o alcance
de um signo. Signo de quê? De sua efetividade. Esse gozo valeria prova do
amor. Mas afirmar que não é nada disso, como fez teatralmente Lacan, já
não era discretamente indicar que um outro amor seria possível, e distinto
do amor unificante pelo menos por esse traço, que ele não esperaria que o
gozo do Outro valesse como signo de sua própria efetividade? Uma outra
maneira ainda de delimitar o lugar daquilo que seria esse novo amor pode
ser entrevista a partir daquilo que Lacan apresenta em Mais, ainda como
send o nada menos que "o fim de nosso ensino30 " . Improvisando, ele comenta
o esquema dito das fórmulas da sexuação, não essas próprias formas, mas o

29 J. Lacan, Mais, t1i11dt1, sessão de 2 1 de novembro de 1 972.


30 T T n r n n A,f,,;, ,,;.,A,, <P«5n ,l,. 1 � ,1,. m a rc o de 1 973 . Teremos lido o eq uívoco.
366 O A M O R LAc
AN

que vem inscrever-se no que está por baixo delas. O conjunto se apresent a
assim (sessão de 1 3 de março de 1 973):

Hx <Dx
yx <I> x

Salta aos olhos que esse térreo, com seu lado homem e seu lado mulher,
representa algo como uma penetração. A qual, aliás, não penetra muito,
sendo realizada por aquele próprio pênis que Bataille chamava "o pequeno" .
Esse esquema ambiciona escrever como o homem univocamente se dirige
à mulher, que ele toma como causa de seu desejo (objeto a), e a mulher ao
homem, ela não unívoca em sua relação com o homem pois "nãotodà' nessa
relação, estando às voltas por um lado com o grande Outro barrado [o S(A)],
com um grande Outro para o qual não há Outro, mas também um grande
Outro sexuado (a partir de 1 2 de dezembro de 1972) e, por outro lado, no
homem, com o falo (o que é muito classicamente freudiano3 1 ) . Importa aqui
a observação a um só tempo mais precisa e mais útil que aquela da distância
mantida entre grande I e pequeno a, observação segundo a qual esse fim
do ensino de Lacan seria não tanto o afastamento dito acima quanto uma
dissociação, quanto uma cisão de a e do grande A.

Como, em suma, esse pequeno a, por se inscrever logo abaixo desse grande
S de A barrado, em nossa inscrição no quadro, tivesse podido até um certo
termo causar, em suma, confusão, e isto muito exatamente por intermédio
da função do ser, é seguramente aquilo em que algo, se posso dizer, resta a
descolar, resta a cindir, e precisamente nesse ponto onde a psicanálise é outra

·1 1 J. Allouch, "Trois préliminaires au non-rapport sexuel", art. citado.


R NOS TEMPOS DA NÃO- RE LAÇÃO S E XUA L
MO
O A

32
coisa que uma psicologia. A psicologia é essa cisão ainda não feita •

A psicologia constrói um muro, não representado graficamente e


comando seus apoios em dois pilares que são S(A) e pequeno a. A penetra­
ção permanece aquém. Não há, na derrubada desse muro, a indicação da
possibilidade de um outro amor, de um amor não psicológico?
Em conclusão da tão importante sessão de 1 6 de janeiro de 1973, logo
apó s ter falado do amor como de um intérprete por onde poderia operar-se
uma redução do ser ao para-ser, Lacan se lança num parágrafo cuja presença
aq ui surpreende já que, antes de voltar, bem no fim, ao amor, ele parece
p assar, sem transição, a outro tema, a saber, a distinção entre o significante
e O signo. No entanto, se nos lembrarmos que, na frase de abertura de Mais,
ainda, o gozo do Outro é encarado como um signo, essa volta à distinção
signo/significante surpreende menos. Sua visada será de modificar a dis­
tribu ição do jogo. À primeira vista, sim, seria uma simples lembrança: "O
significante, eu disse, se caracteriza pelo fato de representar um sujeito para
outro significante33 " . Lacan volta a essa distinção, o "eu disse" assinala que ele
se prepara para não mais dizer por inteiro a mesma coisa. A fim de revisitar
sua distinção tornada canônica, ele desta vez parte do signo. A fumaça, diz
ele, não é o signo do fogo mas do fumante: se, navegador, percebo uma
fumaça elevando-se acima de uma ilha pretensamente deserta, da í concluo
q ue um homem ali se acha - Lacan não tendo nunca, parece, visitado uma
ilha vulcânica. O exemplo é tão simples quanto grandes serão as consequ­
ências. Elas vêm imediatamente: "Esse signo, esse signo na medida em que
o signo não é o signo de algo, mas é o signo de um efeito [ .. .]". Esfregamos
os olhos, relemos: o signo não é o signo de algo. No entanto era esta sua
definição: "O signo representa algo para alguém". Ei-lo que agora remete a
um efeito, de mais a mais ao efeito de alguém (o fumante). Não duvidamos
mais que essa transformação da definição do signo vai, mutatis mutandis,
modificar a do significante e, por aí mesmo, a do sujeito:
Esse signo [a fumaça] , esse signo na medida em que o signo não é o signo

32 J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 1 3 de março de 1 973 .


.13 11. : J ----�- ri� 1 f'.. ,-lp i � n P i rn ele 1 CJT\ .
3 68 O A M OR LAc N
A

de algo, mas é o signo de um efeito que é o que se supõe enquanto tal d


e
um funcionamento do significante, [ . . . ] a saber, que o sujeito não é nad
a
além, tenha ele ou não consciência de qual ele é o efeito, não é n ada al é
rn
como tal senão o que desliza numa cadeia de significantes.

A proposição segundo a qual o sujeito "não é nada além com o tal


senão o que desliza numa cadeia de significantes" poderia por um instante
ser encarada como uma simples repetição. Entretanto, estamos aqui às vol­
tas com duas ocorrências de "efeito": o signo é signo de um efeito, prim eira
menção, depois, segunda menção, o sujeito é efeito de um significante. O
sujeito é efeito do significante, não há aí nada de novo. Mas vem juntar-se
ao funcionamento do significante a suposição de um certo efeito do qual há
um signo. Precisar imediatamente que se trata de um "efeito intermediário"
esclarece essa nova configuração entre signo e significante: "Não é nada além
senão esse efeito que é o efeito intermediário, intermediário entre o que
caracteriza um significante e um outro significante, é ser cada um "um",
ser cada um um elemento" . A retomada do "não é nada além" assegura que
se trata do sujeito como efeito do significante. Mas a relativa diz respeito,
por sua vez, a esse efeito que mal acaba de dar sua nova definição ao signo.
Há, de fato, dois efeitos distintos, mas o efeito signo vem deslizar entre os
dois significantes, entre os S 1 e S2 da definição até ali aceita do significante.
Ora, ao mesmo tempo, e isso nos espanta, Lacan junta, se não identifica,
esses dois efeitos. Intervém ali esse "um" ao qual o amor dá consistência no
"fazer um" ele mesmo composto de dois seres que, cada um, se toma por
um um. Finalmente, a observação surge quase trivial; ela valoriza algo que
tínhamos sob os olhos sem no entanto ver, e que Lacan também tinha sob
os olhos há anos e que ele só percebe nesse dia. Ou seja, a escrita clássica S 1
- S 2 • O que se lê agora? Que um 1 de fato se acha numa posição interme­
diária entre o primeiro e o segundo S. E esse um dá seu suporte ao "efeito
intermediário", ao signo.
Essa fecunda releitura do S 1 - S2 parece da mesma têmpera que aquela
que constatara a incidência de "outro" em "o significante representa o sujeito
para um outro significante". Da mesma forma que não havia aceitado passar
rápido demais sobre esse "outro", da mesma forma Lacan não passa mais
O R N OS T E M P OS DA N Ã O - R E L A Ç Ã O S E X U A L 369
O AM

mais sobre o 1 do S 1 • Não parece quase nada, e é muito. Lacan


ráp ido de
r
a ui rea ta com seu questionamento do S 1 - S2 em De um Outro ao out o,
e:sse mesmo questionamento será em seguida levado mais adiante ainda
com a candidatura do conceito de unebévue a se inscrever no lugar daquele
de inconsciente. O signo vem portanto interpor-se entre um significante
e esse outro significante junto ao qual um significante viria representar o
sujeito. O signo vem se aproveitar do "um" do significante um". O signo
se precipita (no sentido temporal mas também químico) sobre o um do
signifi cante um, com esse efeito de sugerir que há ali algum um (Laca o res­
salc a), mas mais precisamente algum um tomado pelo signo como alguém,
a saber, o fumante - igualmente aquele que ama na reciprocidade fusional
d o 1 + 1 = 1 . Há parasitagem do significante pelo signo? Só se poderia
qualifi car essa operação como parasitagem (até no sentido nobre que dava
a esse termo Lucien de Samosate34 ) se nós mesmos permanecêssemos de
certo modo partidários, se não nostálgicos, da antiga distinção do signifi­
c ante e do signo. De maneira mais neutra e talvez mais aberta à novidade,
escolheremos antes encarar essa operação como um agarramento. O signo
se agarra no significante mestre.
Não estávamos às voltas com um mesmo esquema desde a "Proposição
c
de ou ubro de 1967 sobre o psicanalista da escola", precisamente na escrita
do materna da transferência?

S -----➔ Sq
s (S 1 , s 2 , ... S")

O significante da transferência (S), aquele a partir do qual se instaura


a transferência, de fato representaria o sujeito junto ao significante qualquer
(Sq), mas ele não faz isso, mas o acontecimento não ocorre, enquanto, em
consequência, no lugar de um S sob S, vem toda uma escrita da qual só a
presença aqui inscreve que o S não cessa, durante o tempo todo de uma
análise, de não representar o S. Graficamente, não há propriamente falando

34 Lucien de Samosate,
Éloge du pamsite, traduzido do g re go e a p resen tado p or Claude Terre­
� " v P� ,i• A rlé� . 200 1 .
370 O A M OR L A. e
AN

interposição, como quando, em Mais, ainda, salta aos olhos de Lacan o índice
1 , ele de fato situado entre S 1 e S 2 • Mas temporal e logicamente, h á, si m
interposição (por baixo), aquela mesma do sujeito suposto saber (o pequen�
s itálico) e dos significantes no inconsciente (a série, entre parênteses, dos si
S2 , • • • S0 ) ; logo, já havia ali alguma intersubjetividade. O materna dos quatr�
discursos, ele também escrito a partir do S 1 ---+ S 2 , ainda perturbava mui to
a relação intersignificante. O discurso do mestre o mantém, os três outro s
o maltratam. Em outras palavras, a novidade de Mais, ainda não se deve à
interferência da relação S 1 ---+ S2 (houve outras), mas ao fato de ser, então, 0
amor que, através do signo 1 , vem operar a não-realização da representação
do sujeito por um significante junto a outro significante. Não é notável
que, já, tal interposição tivesse sido escrita com o materna da transferênci a?
Com alguns anos de distância, transferência e amor terão sido posicionados
da mesma maneira no que se refere ao significante. A novidade de Mais,
ainda pode ser dita de outro jeito: o amor, de certo modo, vê chegar um S
1
e dele se apodera como de uma oportunidade inesperada, não do S 1 como
tal (que um único nome designa - significante mestre - e que é, assim to­
mado, apenas uma única letra), mas apenas do 1 desse S 1 • Desse 1 , o amor,
maliciosamente e narcisismo ajudando, faz um signo, em consequência do
que o S 1 , como que desmembrado, vê-se bem em dificuldade de se referir
ao outro significante, ao S 2 • O amor bloqueia localmente a fimção simbólica.
Temos a í uma formalização inédita de algo muito bem percebido na análise
desde Freud, isto é, o amor de transferência como obstáculo ao Durchar­
beit, ao que Jean Laplanche traduziu por "perlaboração". O amor deixa em
suspenso um significante. Qual significante? Se é verdade que, desde De um
Outro ao outro, o S2 está de qualquer modo fora de alcance, só pode ser um
S 1 • Conjectura: seria para não estar às voltas com essa radical escapada do S 2
que recorreríamos ao amor sem estarmos tampouco às voltas com esse S /
O agarramento do signo ao significante em Mais, ainda sugere que
há alguém ali onde um significante seria suscet ível de representar o sujeito
junto a outro significante. Esse agarramento introduz intersubjetividade,
fórmula que se preferirá a: "reintroduz a intersubjetividade", pois essa inter­
subjetividade não é aquela, simbólica, de antes de A transferência . . . ) . Ora,
considerando que já essa intersubjetividade mal acabava de encontrar uma
M OR NOS T E M POS DA NÃO- RE LAÇÃO S E XUAL 371
O A

com a referência ao tempo lógico, Lacan pode concluir essa


certa dig nidade
sessão de 1 6 de janeiro de 1973 de Mais, ainda dizendo: "O que, portanto
[sublinho] , no amor, é visado é o sujeito, o sujeito como tal, [ ... ] é um sujeito
35
e n ão é nada além " . O amor faz fundo sobre esse efeito intermediário que
j oga s ua partida entre dois significantes e que toma corpo com o signo. Não
deix aremos passar o "portanto": como ele vem remodelar sua definição con­
j unta do significante e do signo, Lacan pode concluir que o amor, fazendo
uso do sig no, visa um sujeito como tal - o que não faz o significante que,
este, se limita a visar apenas o outro significante e que, precisamente por
não visar o sujeito, o representa. Chegaremos a pensar, ao inverso, que foi
p ara formular esse amor intersubjetivo que Lacan remodelou as definições
do sig nificante e do signo? Não há necessidade alguma de uma conjectura
c ão for te: as variações importam aqui mais que suas visadas. As últimas
p al avras dessa sessão também são uma nova promessa:

Um sujeito como tal não tem muito o que fazer com o gozo, mas, po r
outro lado, na medida em que seu signo, seu signo é algo que é suscetível
de provocar o desejo, aí está a força do amor, e por aí o caminho que tenta­
remos continuar nas próximas vezes para lhes mostrar onde se reencontram
o amor e o gozo sexual.

Diremos que um sujeito faz signo? Haveria aí uma outra e nova defi­
niç ã o do sujeito? Conjunta, sem chocá-la demais, àquela que conh ecemos?
N ão nos precipitaremos em concluir isso, ainda mais que subsistem pelo
menos quatro enigmas: 1 ) Há unicidade do signo? Ou ainda, esse signo
seria simplesmente o um, esse um com o qual se fabrica o amor? Mas não,
ficamos sabendo depois, esses signos são vários. 2) O teor desses signos, tal
que provocaria o desejo. 3) A intersubjetividade: esses signos se apresentam
a um outro sujeito no qual eles assumem esse alcance de provocar o desejo. 4)
O caminho que se traça, através do desejo, do amor ao gozo sexual. O amor
e o gozo do Outro tinham sido separados bem no início de Mais, ainda. O

]lj T T
372 O A M OR LAc
AN

gozo fora o outro do amor. Ei-los agora apresentados como suscetíveis de s


e
conjugar. Lacan terá efetivamente traçado esse caminho? Ele só reto rn ará
bem no fim de Mais, ainda (26 de junho de 1 973) essa veia que fazia nasc er
o amor dos signos de um sujeito. Se tivesse sido dito, na citação acima, e lll
vez de "não muita coisa", que um sujeito não tem nada a ver com o gozo, a
questão dessa junção não poderia ter sido colocada. Logo, essa junção será
"não muita coisa", um "não muita coisa" no entanto decisivo, já que s e tra ta
de nada menos que da transferência:

Na análise, estamos às voltas apenas com isso [com o amor]. E não é, n ão


é por outra via que ela opera, via singular pelo fato de só ela ter per mitid o
extrair aquilo de que eu lhes falo, acreditei dever suportá-la, quero dize r
essa transferência, e nomeadamente na medida em que ela não se distin gue
do amor, com a fórmula: o sujeito suposto saber.

Essa citação é de 20 de fevereiro de 1973; ela permanece, nessa data ,


quase ilegível. Reteremos que o sujeito suposto saber é então introduzido como
uma nova peça na questão do amor tal como Mais, ainda a desdobra. Porém
teríamos muita dificuldade de precisar como esse sujeito suposto saber vem
caracterizar a via analítica do amor. E mais dificuldade ainda se devêssemos
imediatamente explicitar como o sujeito suposto saber intervém na determi­
nação desse caminho, cartografado mas não percorrido, que iria do amor ao
gozo sexual. Mais estranho ainda surge o fato de que o horizonte ou o ponto
de obstáculo desse gozo sexual é o da inexistência da relação sexual. Basta não
desprezar esse dado para já entrever algo como um malogro prometido a quem
tivesse percorrido esse caminho. Entenderemos "malogro" à maneira de Lacan:
se fracasso existe, ele pode valer como êxito, talvez até libertação.
Ler Lacan passa por uma ascese: muitas questões devem ser acolhi­
das mesmo que permaneçam sem respostas imediatas. E jogaremos antes
o jogo daquilo que, à primeira vista, pode passar por desvios. Dois virão,
que Lacan aliás acabará ligando um ao outro e até interpretando um pelo
outro, mesmo arriscando remeter um ao outro. Eles se referem ao amor de
Deus e à relação homem mulher.
CA P ÍT U LO XIX

0 A L M O R*

D EUS MULH E R

A mulher tomada como uma idealidade, se não divinizada, não é uma no­
vi d ade de Mais, ainda. Mas, justamente, Lacan a ntes de mais nada procma
afa star mais uma vez o amor cortês:

O que é o amor cortês? Era aquela espécie, aquela maneira bem refinada
de suplementar a ausência de relação sexual fingindo que éramos nós que
a ela colocávamos obstáculo. Isso é realmente a coisa mais formidável que
jamais se tentou, mas como denunciar seu fingimento 1 ?

Em outras palavras, esse "fingimento", longe de ser encarado como


um a via, deve ser deixado de lado. E Lacan então confessa simplesmente:
"Apesar de tudo, prefiro mesmo assim Aristóteles a Jaufré Rudel". Exit o amor
cortês, lugar claro dado ao amor de Deus. Mas por quê? Porque o amor de
D eus, segundo uma tradição que, reivindicando Aristóteles, foi marcada por
São Tomás (e revisitada por mais ou menos recentes trabalhos2) , coloca a
questão de Seu gozo; porque ela oferece uma vi a que, explicitamente, vai do
amor ao gozo. Lacan não larga o cristianismo (Rousselot é jesuíta, Nygren

• Em francês, l'/tmour, amálgama de âme [alma] e amour [amor] . (NT)


1 J. Lacan, Mais,
ainda, sessão de 20 de fevereiro de 1 973.
2 Pierre
Rousselot (que é padre e que Lacan faz abade) , Pour l'l,istoire du probleme de l'a mour
au Moyen Âge, Paris, Vrin, 1 98 1 ( l • ed. , igualmente na editora Vrin, em 1 933() ; Denis de
Rougemonc, L'Amour e /'Occident, Paris, Plon, 1 939 (reeditado em 1 972) ; Anders Nygren
(que Lacan escreve Niegrens) , Érôs et Agape, La 11otio11 chrétie1111e de l'amour et seus tra11s­
formatio11s, obra primeiramente publicada em Estocolmo em 1 936 e 1 93 8 , traduzida na
- .l : . _ _ _ A . . L : - - / 2 • •� ( \ � m 1 CJ
ÂÂ CPPrl i t� rb f' ffi ] 9 5 2 .
374 O A M O R LAc
A :x

luteriano, Rougemont protestante). Tal como nota com pertinência Ch a r.


les Baladier3, embora Lacan até vá pôr o acento não no "falar de amo('"
mas na carta de amor, ele no entanto não escolhe ler A nova Heloísa e ne �
tampouco as Cartas da religiosa portuguesa e prefere interessar-se p or e ssa
tradição cristã. O amor de Deus problematiza o amor de uma maneira cu ja
radicalidade provavelmente lhe parece sem rival 5 . Esse amor de Deus, por­
que foi seriamente, isto é, teologicamente pensado, vai sobretudo serv ir a
Lacan de exemplo contrário. Ele precisa desse exemplo contrário por razões
essenciais (seu questionamento do amor) mas também acidentais, pois e le
se acha, então, mais que interpelado, acusado. Acusado de quê? Por quern ?
Ele não menciona o nome de Louis Althusser, porta-voz de uma filos o fi a
dita materialista, mas ninguém aí se engana.
O que lhe censuram, desse lado? De ter posto entre o homem e mulher
um grande Outro "que só parecia bem ser o bom velho Deus de semp re".
Anos antes, Claude Lévi-Strauss tinha manifestado essa mesma inquietude.
Em 20 de fevereiro de 1 973, ele vai portanto responder desenvolvendo trê s
argumentos: 1 ) Acusando seus acusadores: por que, então, o materialismo se
acha obrigado a estar tão "em guarda contra esse Deus do qual eu disse que
dominou, na filosofia, todo o debate do amor"? 2) Recusando a acusação: esse
"Outro era mesmo assim uma maneira, não posso nem dizer de laicizar, d e
exorcizar esse bom velho Deus". 3) Recusando que esse Outro que ele teria
situado entre o homem e a mulher {lembramos seus lapsos a esse respeito)
ali se acha em lugar de pura e simples barragem entre o homem e a mulher.
Ele então precisa: "Esse Outro que, se só existe um sozinho, deve bem ter
alguma relação com o que então surge do outro sexo". O outro sexo aqui se
escreve com um pequeno a, o que nem por isso deveria autorizar desprezar
a escrita Outro sexo, produzida há pouco. Ora, esse equívoco O/o, se não
essa dificuldade, já estabelece uma junção, ela mesmo igualmente proble­
mática, entre Deus e a mulher. Qual é, então, a questão do debate, que as
circunstâncias avivam? Para identificá-la, convém convocar uma afirmação

3 Charles Baladier, Eros t111 Moyen Age. Amo111; désir et ''delecftltio morosn", Paris, Cerf, 1 999, P·
16.
4 J. Lacan, Mnis, nindn, sessão d e 1 3 d e março d e 1 973.
5 Jbid. , sessão de 20 de fevereiro de 1 973 .
3 75

rada e sustentada dois meses antes, mais exatamente uma tomada de


J'á ei . .
que se pretende de ana1·1sta: "O que visamos
. no amor e' um su1e1to
p osiç ão
e não é nada além. Um sujeito como tal não tem muito a ver com o gozo
[.. . ] ". Essa posição era nova. Lacan não havia, com uma bela constância,
sublinhado que o amor visava o ser? E eis que o que o amor visa não é mais
0 ser mas um sujeito, talvez até um outro sujeito. Ora, será precisamente
p ara de certo modo desprender-se desse amor que visa o ser, mas também
p ara dele reter certos considerandos, que Lacan vai brevemente revisitar,
atra vés de Rousselot, a abordagem tomista do amor de Deus. Em que essa
abordagem é importante para ele, ainda que por ausência? Dissemos: porque
ela desenha um caminho que vai do amor ao gozo.

[ . . . ] o que busca Aristóteles, e que abriu a via para tudo o que em seguida
veio atrás dele, é [ . . . ] esse gozo do ser do qual um São Tomás em seguida
não terá nenhuma dificuldade em forjar a teoria, como a chamamos, como
a chama o abade Rousselot: a teoria física do amor. Vale dizer que, afinal, o
primeiro ser de que temos o sentimento, bem, é o nosso ser, e tudo o que é
para o bem de nosso ser será, por isso, gozo do Ser supremo, isto é, de Deus.
Que ao amarmos Deus, para dizer tudo, é a nós mesmos que amamos 6 •

Penetrando nesse caminho anunciado de uma redução do ser no


amor, Lacan vai ponto por ponto recusar os considerandos desse amor
físico teologicamente construído. Ele opõe 1) a esse Ser supremo "o ser da
significância"; 2) a Seu gozo o do corpo: "a razão desse ser da significância
é o gozo na medida em que ele é gozo do corpo"; 3) ao um da união em
Deus seu "há um":

É preciso bem partir disto, que esse há Um deve ser tomado do acento
que há Um, e j ustamente porque não há relação, que há Um e Um soúnho
[sublinho] , que é daí que se pega o nervo do que acontece relativo ao que,
afinal, precisamos bem chamar pelo nome com o qual a coisa ressoa ao
longo dos séculos, isto é, o do amor.

6
J. Lacan, Mais, ainda, transcrição mais leve.
Qualquer um não é UM um sozinho; qualquer um é, sozinho, no u m
[DE l'un] . E, portanto, será a partir dessa solidão, menor, que será abordada a
questão do amor. Por enquanto, é um outro assunto que Lacan desen vo lve
ainda que ele ali faça ressoar o nome amor. Se, com efeito, só existe ser de
significância e se esse ser tem por razão o gozo do corpo, como acabamo s por
gozar de outro corpo? Formalmente, essa questão é de aspecto tomista: co rno
conseguimos amar Deus se não cessamos nunca de amar a nós mesmos? Ela
se coloca uma vez recusado esse caminho tomista que, pelo amor, vai c ontra
o gozo do Outro. E Lacan a isso responderá apenas de maneira parcial, ba­
seando-se na aproximação que ele havia operado entre Outro sexo e o utro
sexo (sabemos qual) , em outras palavras, tratando-o primeiramente apenas
de um ponto de vista androcentrado. O Outro pode não se interpor entre
o homem e a mulher, esta pode parecer poder vir ocupar o lugar de De us
no amor físico, mas as coordenadas do assunto, vimos, são diferentes.

[ . . . ] digo que, a não ser em caso de castração, isto é, de algo que diz não
a essa função fálica, e Deus sabe que não é muito simples, não há chance
alguma de que o homem tenha gozo do corpo da mulher, em outras pala­
vras, faça amor [ . . . ]7 .

Há, aí, como que um golpe de mágica. Embora não diga nada, mas
isso se deduz do que vem depois, Lacan não desconhece que a expressão
"fazer amor" deixa escapar o amor, que seu propósito subrepticiamente
passou do amor ao desejo. Ele deve igualmente saber que não desenhou
seu caminho, diferente do caminho tomista, que iria do amor ao gozo. Por
isso, desde a sessão seguinte de Mais, ainda, vai de novo falar de amor a seu
público, ou, mais exatamente, novamente proceder de modo teatral com
seu público endereçando-lhe uma carta de amor. O amor recebe dele um
novo nome, aquele que o liga à alma: o almor.
O almor surge em 1 3 de março de 1 973. Não nos surpreende muito
ele tomar o lugar do {a)muro, expulsar o {a)muro e torná-lo caduco, destruir
o muro do {a)muro feito um desaparecido muro de Berlim, pois esse muro

7
J. Lacan, Mais, ainda.
0 A L M OR 377

j á não está mais no lugar, o Outro não se interpondo mais de modo tão
si mples entre o homem e a mulher - é todo o jogo entre Outro sexo e outro
sexo. Assim , todo o movimento dessa sessão de Mais, ainda e das sessões
seg uintes vai poder dirigir-se para um certo modo de reconhecimento amo­
roso do qual deverá ser precisado o estatuto, o teor, talvez até os impasses.
Um a das grandes novidades de Mais, ainda, tratando-se do amor, parece
estar aí, nessa foraclusão (ouso o termo) do (a)muro, mas também do que se
elaborou durante anos sobre o amor e que foi figurado com o esquema do
véu. É o fim da interposição à maneira Tudal; e, portanto, correlativamente,
0 surgimento de questões inéditas e perigosas. Com efeito, o terreno está
mi nado: eis um analista em atividade, objeto de transferências amorosas, e
q ue parece bem então abrir amplamente as comportas do amor, de mais a
mais reatar com a alma! Era razoável? Por certo não.
Um novo nome esse almor. Será por isso uma nova varidade do amor?
Nova no que se refere a esse amor recentemente revelado e focalizado pelo
"acostumar-se com o para-ser"? Nova no que se refere a esse amor que não
vis aria mais o ser, mas um sujeito? Nova no que se refere a esse amor redutor
da função do ser? Parece que não, que o termo almor, muito pelo contrá­
rio, vem dar seu nome a essa transformação que Mais, ainda já fez o amor
aguentar. Essa nomeação, certo, aí introduz algumas mudanças.
Nesse 1 3 de março de 1973 , Lacan traz suas fórmulas da sexuação mas
também, a elas coladas, "a indicação escandida daquilo que está em jogo"
- esse abaixo não sendo de outro modo designado (aqui mesmo, pág. 366) .
Comentário do vetor S -----+ a (que também vale como S O a):

[ . . . ] esse S sempre está às voltas, enquanto parceiro, unicamente com esse


objeto pequeno a inscrito como tal do outro lado da barra. Não lhe é dado
atingir esse parceiro, esse parceiro que é o Outro, o Outro com um grande
A, senão por intermédio do fato de que ele é a causa de seu desejo, mas
que, a esse título, como em outra parte indica em meus grafos a conjunção
apontada desse S e desse pequeno a, nada mais é senão fantasia.

Caso persistisse alguma dúvida sobre a ambiguidade Outro sexo/ou­


tro sexo, ei-la aqui suspensa, pelo menos no que se refere ao homem: seu
O A M OR LAc
AN

parceiro é o Outro, o Outro é seu parceiro; daí decorre que o hom em só


atinge esse Outro corpo, esse Outrossexo, como objeto a. A identidade do
Outro sexo e do outro sexo é absoluta para o homem. Ocorre diferentemente
com a mulher. Ela não faz sua essa identidade; sua relação com o O utro é
diferente pois desdobrada. Vem, então, uma brusca mudança de cenário, de
problemática, mas também de maneira: o seminarista anuncia que vai, "para
descansar", ler um texto. Por que, contra o uso do seminário, ali ler urn a
carta (com efeito, o texto foi escrito para seu público) da qual Lacan, aliás
não precisa em que momento ele a teria escrito? Por que esse uso da es crit a
e da leitura em voz alta? Podemos distinguir três razões convergentes.
1 ) Tendo valorizado, contra o Ser, seu "ser da significância", cu ja
"razão" era o gozo do corpo, passara a ser inconveniente falar de amor, po is
falar de amor nada mais seria senão pôr em movimento esse gozo corporal
do ser da significância, o que deixaria pairar mais que uma dúvida sobre
a qualidade do amor pretendido. Logo, é coerente formular que "falar de
amor é em si um gozo" .
2) De onde, pois, essa carta foi escrita? O que fora precisado pouco antes:

Que sentido isso pode ter, que sentido existe no fato de eu vir a lhes falar
de amor? Devo dizer que é pouco compatível com a posição de onde aqui
lhes enuncio . . . [ . . . ] com o que se deve bem dizer que, há muito tempo, não
cesso de perseguir, isto é, essa direção de onde o discurso analítico pode
fazer semblante de algo que seria ciência .

Lacan volta-se para o escrito porque ele corresponde a fazer semblante


de ciência.
3) A terceira razão é interna ao propósito. Só a literalidade permite
o jogo significante amor alma então introduzido: "A alma em francês, no
ponto em que me encontro, dela só posso me servir para dizer que é o que se
'alma': eu almo, tu almas, ele alma, vocês veem aí que só podemos nos servir da
escrita, mesmo nela incluir jamais eu almava �" . Sobre a alma, duas posições

• Em francês, "j amais j 'âmais" : jamais, amálgama de âme [alma] e Jnimais [eu amava] . Há
também homofo nia com jamais [jamais, n u nca] . (NT)
3 79

sa, 0 m a n tidas. Por um lado, não se mostrar puritano a seu respeito. A alma
é então definida como "o que permite que um ser, que o ser falante, para
ch amá- lo por seu nome, suporte o intolerável de seu mundo, o que a supõe
ali ser estranha, isto é, fantasmática". Mas também, segunda posição:

Logo, a existência da alma pode por certo ser questionada, é o termo próprio
a se perguntar se não é um efeito do amor. Com efeito, enquanto a alma
a/mar a alma, não há sexo no caso, o sexo ali não conta. A elaboração de
que ela resulta é hommo com dois m, hommossexual *, como é perfeitamente
leg ível na história.

A alma é possível; ela não é necessária. Ela é fora de sexo. O que a


amizade encarna em Aristóteles, em que o amor é philia. Entretanto, o
"divertimento" [escrito âmusement] ** da letra não fica nisso. Pois uma ob­
jeção se apresenta, que vem... das mulheres - não do que elas dizem, mas
do que são. Elas também são "almorosas". O que dá lugar a uma descrição
dos impasses do almor, que não são os mesmos nas mulheres e nos homens.
Para elas, vistas como heterossexuais (quid do amor lésbico? Nada), o almor
é uma via direta rumo à histeria:

O que pode bem ser essa alma que elas almam no parceiro, no entanto hommo
até o fundo, e da qual não sairão? Com efeito, isso só pode conduzi-las a
esse termo derradeiro, e não é por nada que a chamo assim usteron, como se
diz em grego, da histeria, ou seja, fazer o homem como eu disse, ser por esse
fato homossexuais [no feminino] , se posso assim me exprimir, ouforadessexo
elas também. Sendo para elas difícil não sentir, em consequência, o impasse
que consiste no fato de que elas se amam [se mêment]*** no outro [ . . . ] .

Eis, pois, as mulheres "difalmadas". Os homens não são muito mais


bem favorecidos. Se voltarem seu amor de outro modo que para os philoi são
,

• Amálgama de Homme [homem] e homosexuel [homossexual] . (NT)


•• Amálgama de âme [alma] e ttmusement [diver time nto] . (NT)
*** U ,... m r.. Í,... no i ... rrt.m �p '1 J J U7 J J J m � c;,: t � m hPm � m :H o-� m � c.o m 111ê111e ímesmol . (NT)
380

levados a essa confusão da mulher e de Deus. Ora, como Deus não co nhece
o ódio (o Deus de Empédocles, então convocado), o homem também arn ará
com um amor sem ódio, em outras palavras, não amará.
Por que, pois, esse a/mor? Trata-se de um hápax? De uma nova var idade
do amor? Muito pelo contrário, e ainda que Lacan não diga isso de tno d o
claro, o almor prolonga e vem dar alguma consistência, inclusive histó rica
à exigência recentemente formulada de um amor que saberia acostumar- s;
ao para-ser. O a/mor é um nome do amor redutor do ser. Isso é claramente
sugerido em 20 de março de 1973, quando Lacan volta ao que disse o ito
dias mais cedo:

O próprio amor, sublinhei na última vez, se endereça do semblante . Ele se


endereça do semblante e igualmente, se é bem verdade que o Outro só é
atingido abraçando-se, como eu já disse na última vez, ao pequeno a causa do
desejo, é igualmente ao semblante de ser que ele se endereça . Esse ser aí n ão
é nada, ele é suposto a esse algo, a esse objeto que é o pequeno a [ . . . ] 8 •

Com efeito, era do semblante, a partir do semblante, que Lacan


havia escrito, depois parcialmente lido, sua carta de amor, fazendo assim
caminharem juntos enunciação e enunciados. Transcrever "se endereça ao
semblante 9 " não é aceitável e deixa escapar algo importante. O amor, é
dito, se endereça do semblante ao semblante; todo o movimento e toda a
questão dessa frase (sublinhados pelo "igualmente") é até estabelecer essa
junção. O amor liga o para-ser ao para-ser, o para-ser a partir do qual ele
avança ao para-ser ao qual ele se endereça. Como "semblante de ser", esse
para-ser começa aqui a tomar uma certa consistência. E tem-se aí uma nov a
incidência do objeto a sobre o amor. Ele deu lugar a uma certa modalidade
do ser, aquela à qual ele incita, que lhe é a mais adequada e que foi designada
como para-ser e agora como semblante de ser. Por aí se confirma o forad es­
sexo amoroso. O que encontra mil ecos no que é nomeado a experiência
e que vira tão facilmente para grosseria uma vez que é reivindicada para

8
J . Lacan , Mais, ainda, sessão d e 20 d e março d e 1 97 3 .
9
lbid. , p. 84.
. A a lugar o dandismo de Lacan. O dandismo é um para-ser não
SI, q ui tom
coberto mas aberto, tornado patente, do para-ser exposto. O dandismo de
Jacques Lacan marcava sua prática. Aqui toma lugar também a experiência
de qualquer um, a da sedução amorosa, do cuidado que tomamos com a
arência quando nos preparamos para cortejar. Jogamos bem (ou
p ró pria ap
m al) entã com o para-ser, com o semblante de ser, contamos com ele. Fora
o
de q uestão deixar-se levar. O dândi Jacques Lacan não se deixava levar, até
10
quando recebia seus analisandos de roupão • Até o fim, é como dândi que
ele se apresenta: em 1 98 1 , a capa do seminário As psicoses disso oferecia uma
im agem que vale ensinamento. Devo confessar? Essa capa me irritou. Por
que essa alegação de uma imagem de autor sobre uma temática que não
merece muito que alguém se faça de esperto? O dândi ali se mostra, faz
pose; o dinheiro também escorre. No entanto, é possível que meu desagrado
me tenha feito passar ao lado da lição dessa capa. Eu esquecia que, antes de
ser u ma prática de alguns milhares de pessoas na França, isto notadamente
graças a Lacan que amplamente a abriu ao não-médico, a psicanálise era
exercida por uma tribo médica que, graças a ela, ganhava bastante dinheiro.
As pessoas conviviam em noitadas, e os bailes de máscaras não eram raros.
O baile de máscaras vai bem com o objeto a, pois é uma prática do para-ser
ostensivo, do semblante, de uma apresentação de si num modo que zomba
daquilo que seria o verdadeiro si. O dândi mostra que o que o veste lhe cai
muito mal. Da mesma forma a alma ao corpo. Lacan pensava a alma como
um tal disfarce. Não necessária, mas possível, a alma vale como hábito. A
bela alma, extasiamo-nos. Tudo se passa como se a alma se oferecesse à visão
(na pintura sob o aspecto de uma borboleta) . Dizê-la bela em nada exclui
que seja uma imitação barata. Não era, também, um semblante a legendária
feiura de Sócrates?
Esse almor de alma a alma também dá a Lacan a apreciável vantagem
de poder reatar com o narcisismo. Pelo menos do lado mulheres que, dizia a
carta de amor, se enganam ao não ver que o parceiro é "hommo até o fun­
do"; mas esse engano não as impede de amar narcisicamente esse parceiro,

rn Para
um esclarecimento insólito do dandismo, podemos nos reportar a Kuki Shuzô , La
O A M O R LAcA
N

talvez até ele sirva a esse amor. Que amor? Aquele em que, almorosas, e l
as
"se mement
" ,, [se amam, mas tamb em ' se " mesmam ") no outro. A al m a serv
e
ao narcisismo delas, dá a elas o intermediário graças ao qual elas podem de­
liciosamente se "mêmer" [se amar, mas também se "mesmar"] "almando" seu
homem. Ora, não está tudo aí. Se há alguma ironia em jogar com a palavra
"almor", se a palavra faz rir, talvez seja também para afastá-la e preparar 0
terreno a outra maneira (ela mais diretamente analítica e que dispensar i a
a alma) de encarar um amor muito acostumado com o para-ser, bem mais
de acordo com o objeto a e com seus balangandãs. Lacan, conforme lemos
acima, admitia que a existência da alma podia ser questionada, encarada
como "um efeito do amor 1 1 " .
Com o almor, permanecem como que em suspensão duas questõ es
no entanto já colocadas: 1 ) o jogo do amor e do saber, e 2) a articulação
do amor e da inexistência da relação sexual. Com efeito, se o almor é sim­
plesmente foradessexo, como pensar tal articulação? Convém até pensá-la
de outro modo que como simples exterioridade? Ora, nesse fim de Mais,
ainda, Lacan, que por enquanto não leu Queen Victoria, não está a ponto de
recusar essa questão. Em 26 de junho de 1 973, derradeira sessão de Mais,
ainda, ele vai enfim admitir que ele ali de fato falou um pouco de amor,
vai enviar seus ouvintes ao que ele pôde disso dizer no meio do ano, mas
sobretudo produzir essa outra modalidade do amor redutor do ser cujo
interesse teremos até ali somente percebido.

0 RECON H EC IMENTO AMOROSO

O fim de Mais, ainda faz pensar num buquê e num buquê não composto
de uma única espécie de flores, folhas e caules, mas reunindo várias espécies
de plantas. Ele oferece a harmoniosa delicadeza do ikebana? Vários termos
vão intervir para desenhar o amor, comparecer a seu convite: o inconsciente,
o sujeito, o saber, o signo, o ser, o gozo do Outro, o objeto a, o sintoma, o
afeto e, last but not least, a relação sexual.

11 J . Lacan, Mais, ainda, sessão de 1 3 de marco de 1 97.� .


Dois nomes poderiam dizer o amor que está em questão: encontro,
ou então reconhecimento. Este último merece ser retido, "encontro" sendo
usado repetidamente no falar corrente, mas também psicanalítico. "Re­
conhecimento" não tem aqui o valor moral suscitado por um benefício
recebido e em relação ao qual nos sentiríamos em dívida, ainda que essa
significação não deva absolutamente ser afastada. "Reconhecimento" remete
a conhecimento - um termo até ali antes mal visto por Lacan. Ele não vai
distinguir, como no passado, saber e conhecimento, privilegiando o primeiro,
desvalorizando o segundo. Eis, pois, o reconhecimento amoroso. É a um só
tempo conhecimento e conivência.
Enquanto preparava a última sessão de Mais, ainda, Lacan releu
esse seminário. Nesse 26 de junho de 1973, ele declara que teve nas mãos,
qu atro ou cinco dias antes, o que ele chama belamente "a trufa escovada
em minhas elocuções aqui". Não se imagina muito que ele se tenha alguma
vez dedicado a tal releitura para concluir seus seminários anteriores. Logo,
vamos convir que o habitava, nesse ano, uma certa inquietude: com Mais,
ainda, ele não estava seguro "de estar no campo que desbastei durante vinte
anos". I nquietude, portanto, de um fora de campo. Por que razão? Porque
o pró prio título, Mais, ainda, assinalava "que isso podia durar ainda muito
tempo". Ora, a proximidade de sua morte torna mais vivo ainda o problema
levantado por sua imortalização por seus alunos. O fato de, em 1 98 1 , ele
ter sido obrigado a travar a última briga para ser reconhecido como mortal
assinala que o propósito conclusivo de Mais, ainda não fora muito aceito.
No entanto, ele tinha então quase ameaçado o auditório ao fazer flutuar no
ar a possibilidade de acrescentar a seu "ainda" um "chega". Ele precisa que
não marca com ele encontro no ano seguinte e chega até a generalizar seu
gesto: "Eu nunca soube, nos vinte anos em que articulo coisas para vocês,
eu nunca soube se eu continuaria no ano seguinte. Ah, isso, isso faz parte
de meu destino de objeto a 12 " . Ele abre as apostas: vai continuar, não vai
continuar? E coloca uma questão: aqueles que tiverem adivinhado certo serão
aqueles que o amam? Ele recusa isso, com o que a última palavra de Mais,
ainda será a palavra "amor": "É justamente isso o sentido daquilo que acabo

ll L 1 .oro n Mnir. ni11dn. sess� o de 26 de i u n ho de 1 971.


O AMOR LAc
AN

de lhes enunciar hoje, é que saber o que o parceiro vai fazer não é uma prova
do amor". Não duvidamos, observava ele pouco antes, que prossiga... ainda .
Assim fazendo, o amor que se tem por ele vai para além de seu ser m o na}
mas também de seu estatuto de objeto a (como se tal estatuto pudesse se ;
dito, talvez até ser reivindicado!). Os dois estão ligados. E esse laço assinal a
mais que a armadilha, a miséria na qual ele se acha mergulhado, uma ve�
que dever falecer para realizar seu destino de objeto a valeria prova de qu e
ele não soube realizar esse destino em tal ou tal de suas análises. Por qu e
deixar entender que seu destino de analista estaria em jogo em outro l ug a r
que ali onde ele exerce a análise? Em seu seminário? Em sua vida m esm a ?
Mas também: não era exatamente a ambição do ato analítico, tal com o ele
mesmo o havia fabricado, tornar possível a redução do analista a objeto a
sem que por isso o analista disso morresse?
Essa sessão de Mais, ainda vai portanto juntar certos dados esparsos
nesse seminário a fim de valorizar um outro amor que aquele que encon­
traria sua prova no saber que se teria daquilo que o parceiro vai fazer. Log o ,
Lacan retoma a coisa em seu início. Leitura feita, o que ele pôde dizer não
lhe parece tão mal, mas "um pouco estreito", e a problemática inaugurada
pela frase "o gozo do Outro não é o signo do amor", que era, diz ele agora,
apenas uma partida, vai poder ser encerrada. Pelo menos ele assim pretende.
Durante todo o ano, tinha havido uma certa flutuação. Tratava-se de um
seminário sobre o amor, como muito cedo lhe jogaram na cara, ou então
sobre o saber, como ele mesmo afirmava? Nesse 26 de junho de 1973, a
questão não se coloca mais, precisamente porque essa sessão reata com uma
possível articulação (deixada de lado durante anos) entre o amor e o saber. E
é portanto agora, após muitos desvios, que a análise vai enfim dar sua palavra
e até trazer sua revelação relativa ao amor. Lacan assinala explicitamente a
virada à qual vai imediatamente se dedicar.
Primeiro dado, analiticamente elementar: o ser falante "é afetado,
enquanto sujeito, por esse saber inconsciente". Não vamos desprezar a re­
lativa bizarrice da expressão "ser afetado por... ". Um segundo dado é menos
evidente pois Lacan, embora conte com ele, não o formula explicitamente.
Diremos: a maneira como um ser é afetado pelo saber inconsciente é per­
ceptível por outrem - e isto esteja ou não esse ser a par dessa possibilidade.
f,s se traço remete à espécie de provocação à qual se dedicou Lacan logo
antes de se entregar à teatralização da primeira sessão de Mais, ainda. São
até q uase as primeiras palavras dessa sessão.

Ném disso, percebi que o que constituía meu caminho era algo da ordem
do "não quero saber nada disso". [ ... ] Há algo, há algum tempo, que me
favorece, é que há também em vocês, na grande massa daqueles que estão
aqui, um mesmo, em aparência um mesmo "não quero saber nada disso".
Só que tudo está aí, é o mesmo?, o "não quero saber nada disso" de um
certo saber que a vocês é transmitido aos pedaços, será bem disso que se
trata [entendamos: no meu]? Não acredito. E até é bem porque vocês su­
põem que eu parca de outro lugar nesse "não quero saber nada disso" que
esse suposto os liga a mim. De modo que se é verdade que eu diga que,
em relação a vocês, aqui só posso estar em posição de analisando de meu
"não quero saber nada disso", até que vocês alcancem o mesmo, haverá um
pagamento, e é bem o que faz que seja só quando o de vocês lhes parece
suficiente que vocês podem, se forem, ao contrário de meus analisandos,
vocês podem normalmente se desprender da análise 1 3 •

Tanto se repetiu que, em seu seminário, Lacan estava em posição de


analisando que vocês ficam estupefatos... O que é dito ali é mais preciso, ainda
que a afirmação deva guardar sua parte de sombra. Seminarista, Lacan não
"se analisa", como dizem os hispanófonos. Ele próprio não é objeto da análise;
ele analisa seu "não quero saber nada disso". Daí vem que seus ouvintes, que,
segundo ele, supostamente nada querem saber das afirmações que analisam
seu "não quero saber nada disso", em outras palavras, nada querem saber do
que ele diz em seminário, não estão tomados no mesmo "não quero saber
nada disso". Eles só estão tomados no mesmo enquanto analisandos de Lacan
(perguntamos: e os outros? - é um mestre espiritual que fala). Segundo essa
via, é dito, eles também poderão acabar achando "suficiente" o "não quero
saber nada disso" deles, chegar ao mesmo "não quero saber nada disso" dele,
e assim desprender-se da análise (notar: Lacan não diz "do analista deles").

1 1 r r - - - - . ,, _ , _ _ ,,. ,/d eoee� n ,.jp 'J 1 ,l p nnvPmh rn ,l ,. 1 972. Pontuei de ou tro modo.
386 O A M O R LAc
A t,:

O que isso quer dizer? Só se pode responder optando por um certo sentid
, o
de "suficiente". E evidente que o termo não remete aqui àquela suficiência
estufada, tão belamente caricaturada muitos anos antes 1 4 • Ele pode nada
mais querer significar senão um ponto de parada definitivamente refer ido
ao "não quero saber nada disso": isso basta! Já é tempo de submeter à anál i se
esse "não quero saber nada disso" (as pessoas não se limitam a assistir ao se­
minário, elas deitam no divã de Lacan). O fato é que, se tantas pessoas fi cam
tomadas pelo seminário (quantas o terão deixado de lado?), é na medida em
que essas pessoas entreveem essa relação analisante com o "não quero saber
nada disso" que é a de Lacan. Ele as liga a ela. Logo, estamos aí às voltas com
uma relação específica com o saber inconsciente, com uma relação diferente
de outras possíveis (para só mencionar ele: o "não quero saber nada disso"
referido ao ensino de Lacan), e não sem consequências sobre outrem, já que
esse "não quero saber nada disso" analisante gruda os ouvintes do seminár io
como o mel as moscas. Mas segundo que via se desvela a relação com o saber
inconsciente de que cada um se acha vestido? Terceiro dado: essa via é fei ta
de signos. Por mais enigmáticos que sejam, esses signos são suscetíveis d e
funcionar como veículos para um reconhecimento. Reconhecimento de quê?
Da maneira como cada um se situa quanto a esse saber inconsciente que ele
arrasta consigo como o embrião, sua placenta.

Se falei de algo a esse respeito[a respeito da escolha do amor, não de um obje­


to de amor, mas do amor], é em suma do reconhecimento, o reconhecimento
por signos que são sempre pontuados de modo enigmático, da maneira como
o ser é afetado, enquanto sujeito, por esse saber inconsciente 1 5 •

Pouco depois, esses signos vão receber seu estatuto. Entretanto, limi­
tamo-nos a isso por enquanto, pois esse estatuto só advém uma vez após ter
sido colocado o outro pilar sobre o qual repousa o que chamei um edifício
a fim de melhor distinguir suas partes.

1 4 Ver, em "Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1 956" (Écrits, op.


cít. , p. 4 5 9-49 1 ) , a declinação de grau ú nico da hierarquia psicanalítica" em três persona­
gens respectivamente designados como Beatitudes, Bem-Necessários e Sapatos apertados.
i s J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 26 de j u nho de 1 973.
Outra questão: como, a partir desse reconhecimento, pode portanto
ntar-se o viver-junto? Daí resulta "uma coabitação específica", estru-
aprese · amente, por esse sab er e que na a mais e que o amor. uarto
curad a, precis
d . , Q
dado. Eis, pois, o amor como "uma certa [sublinho] relação entre dois
sab eres inconscientes". O nome dessa relação é "coabitação". Lacan não
es tá evocando a pretensa "comunicação de inconsciente a inconsciente".
Várias vezes no passado, ele se elevou contra ela, e não era, como para ou­
eras rejeições, a fim de em seguida melhor aprová-la. Essa relação entre dois
sab eres inconscientes não é direta, mas, como vimos, intermediada. Cada
um d os amantes não tem acesso, ainda que inconscientemente, ao saber
inconsciente do outro. Essa relação é uma relação de relações: através de
alguns signos, cada um manifesta uma certa relação com o saber inconsciente
do q ual está dotado; e o reconhecimento amoroso, na medida em que ele
mesmo instaura u ma relação, vale como relação com essa relação. É então
trazida uma importante precisão para a questão do amor: "Se enunciei que
a tra nsferência é motivada pelo sujeito suposto saber, só está aí um ponto
de aplicação bem particular [ ... ] " . Em outras palavras, o tipo de relação
insta u rada com a colocação em jogo do sujeito suposto saber é apenas um
caso particular de uma problemática do amor que pode assumir outros re­
gimes que, todos, no entanto, teriam relação com o saber inconscienté. O
amor de transferência, como é exigível, é só u m caso particular desse amor
de coabitação cujo vetor é o reconhecimento por signos da maneira como
o parceiro é afetado por seu inconsciente. Há um tipo de parceiro para o
qual essa maneira dá lugar ao sujeito suposto saber - não é necessário que
ele o seja ou o encarne mas, diremos, o avive.
O amor nesse texto não é somente pensado do ponto de vista do
sa ber inconsciente, ele aí é também articulado à inexistência da relação
sexual. Apresentada como real, isto é, como designando um impossível,
essa inexistência vai portanto funcionar, com o inconsciente, como a outra
referência a partir da qual se configura o amor. Assim, vamos ver o amor
situado entre dois termos que não são novos em seu meio, mas entre os quais
Lacan vai por um instante hesitar, flutuar, antes de limitar-se ao segundo:
por um lado a coragem, por outro a ilusão. A coragem já esteve em questão
em Mais. ainda, exatamente em 1 3 de março de 1973, e a respeito da ética
388

aristotélica. Já se notou que a obj eção maior a esse almor devia -se ao fa to d
e
as mulheres também serem almorosas e, portanto, o afastamento da co ra e
g
não surpreenderá muito - ao passo que Foucault, este, vai até seu ú lt i rn
rn
suspiro contar com essa coragem (sua última aula refere-se à parrhêsia). �
alma, como ele havia formulado em 1 3 de março de 1 973 , é "aqu ilo ue
q
permite que um ser, o ser falante para chamá-lo por seu nome, s u po rte
0
intolerável de seu mundo" . Ela vale por sua paciência e "sua corage m d e
enfrentamento 1 6 " . Essa coragem é capital na ética do bem que liga e n t re si
os philoi. No entanto, é com algo mais local e mais bem delimit ado que está
às voltas o ser falante segundo Lacan: com a ausência da relação sexual . A
afirmação permanece dramática, se não trágica:

Se é verdade que não há relação sexual [ ... ], será que não é por enfre ntar
esse impasse, essa impossibilidade que define como tal um real, que é posto
à prova o amor na medida em que do parceiro ele só pode realizar o que
chamei, por uma espécie de poesia para me fazer entender, o que chamei a
coragem quanto a esse destino fatal 1 7 ?

Não se pode desprezar o ponto de interrogação (descartado em minha


versão de referência) . Vale ele como um efeito retórico sem outro alcance que
melhor fazer passar uma ideia nova? O u então sublinha o caráter hipotético
da proposição? A afirmação antes foi lida, embora as coisas ainda fossem
variar. Aliás, elas variam imediatamente. Porém vamos reter que o mode l o
aristotélico da coragem amorosa é aqui retomado, mas deslocado para outro
objeto, referido a outro objeto : a inexistência da relação sexual apresen tada
como "destino fatal" . Tão logo dito, Lacan se interroga:

Será de coragem que se trata ou dos caminhos de um reconhecimento, de


um reconhecimento cuja característica nada mais pode ser senão isto, que
essa relação dita sexual, tornada aí relação de sujeito a sujeito, isto é, do
sujeito na medida em que é só o efeito do saber inconsciente, da maneira
como essa relação de sujeito a sujeito cessa de não se escrever?

16 J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 1 3 de março de 1 973.


17
Jbid. , sessão de 26 de junho de 1 973. Pontuo diferentemenr,.
389

Eis aqui de novo o reconhecimento amoroso, ele não estava longe.


to do amor com o "destino fatal" permite precisar a via desse
O confron
ento. Para indicá-lo imediatamente: o signo assume valor de
reconhecim
crescenta o afeto. Sobre fundo de impossibilidade (definida
s intoma e a
m "NÃO cessa de não se escrever") da relação sexual vai tomar corpo
como u
esta contingente (que cessa de não se escrever), uma relação
u m a relação,
d e sujeito a sujeito. Logo, o que é essa contingência? Ela é

esse algo que, pelo encontro, o encontro deve-se bem dizer de sintomas,
de afetos, daquilo que em cada indivíduo marca o rastro de seu exílio, não
como sujeito mas como falante, de seu exílio dessa relação, será que não é
dizer que é apenas pelo afeto que resulta dessa hiância que algo em todo
caso onde ocorre o amor, que algo que pode variar infinitamente quanto ao
nível desse saber, que algo é encontrado que, por um instante, pode dar a
ilusão de cessar de não se escrever, a saber, que algo não só se articule mas se
inscreva, se inscreva no destino de cada um, pelo que, durante um tempo,
um tempo de suspensão, esse algo que seria a relação, esse algo encontra no
ser que fala, esse algo encontra seu rastro e sua via de miragem?

Aqui ainda, minha transcrição de referência suprimiu o ponto de


interrogação. Exilado da relação sexual, o indivíduo é por isso afetado.
Sintomas o manifestam. Como se deve entender "encontro de sintomas"?
Não que dois ou vários sintomas que afetassem dois indivíduos diferentes se
encontrariam, aliás não se pode dizer nem onde nem como, fora da ilusão,
que se trataria do "mesmo" sintoma. Que seria o encontro de uma fobia num
e de uma alucinação num outro? De uma interpretação delirante e de uma
conversão histérica? De uma obsessão e de um fetichismo? "Encontro de
sintomas" só pode ser a percepção em outrem de um sintoma que me assinala
o exílio da relação sexual, um exílio que, em mim também, faz hiância. O
sintoma fala, o que é psicanaliticamente banal, mas, o que o é menos, fala
a alguém que não é aquele que é por ele afetado e para quem ele faz signo
e questão. Aí atua o reconhecimento, aí intervém o amor. Esse amor não se
r-n n f- o n r-, o m .,-, l p r ro m o 1 1 ma
esoécie de compaixão comum quanto a um
3 90

destino fatal partilhado. Esse amor é mais esperto que isso. Se vale co rno
ilusão e como suspensão do tempo, é na medida em que vem mono pol i r
2a
em seu proveito a impossibilidade da relação sexual, virá-la em seu provei.
to, permitir seu reconhecimento. Como pode fazer isso? Suprimin do u rn a
negação, deslizando do "NÃO cessa de não se escrever" (impossibilidade da
relação sexual) ao "cessa de não se escrever" (contingência do am or) . Ele
assim instaura, ali onde não há relação sexual homem/mulher, a mir agem
de uma relação de sujeito a sujeito (este ponto será em breve estudado ern
detalhe).
O reconhecimento amoroso acolhe vários traços do amor for m ul a­
dos em Mais, ainda. Despreza outros. O amor conta com o signo. O amo r
suspende o tempo (é possível amar um mortal?). O amor vira as costas à
inexistência da relação sexual. O amor parte da dependência na qual cada
um se encontra quanto ao saber inconsciente. O amor não faz mais m u ro ,
mas ponte, ou antes passarela entre dois seres que ali negligenciam se u
sexo. Em compensação, o reconhecimento amoroso, justamente por faze r
passarela de um ao outro, parece bem deixar de lado o narcisismo do amo r.
O que acontece, então, com o amor como redutor do ser? A ideia não é
abandonada, mas parece ter perdido um pouco de seu lado mordaz. N ão
se trataria mais tanto de um amor acostumando-se com o para-ser (o q u al
não está mais muito em questão), mas de um amor que (como era o caso
antes que a perspectiva de reduzir o ser fosse ofertada ao amor) iria à frente
de um malogro: ''A abordagem do ser, será que não é aí que reside o q ue
em suma se afigura ser o extremo, o extremo do amor, o verdadeiro amor,
o verdadeiro amor desemboca no ódio [ ... ] 1 8 " . É esse o amor Lacan? O q ue
ocorre com a metamorfose do amor? E com o caminho anunciado que iri a
do amor ao gozo?

18 J. Lacan, Mais, ainda, sessão de 26 de j unho de 1 973.


C A P Í T U LO XX

A E S T I M A A M O RO S A

Em 1 1 de fevereiro de 1975 é afastada toda articulação imaginável entre


am or e inexistência da relação sexual. Lacan nunca mais vai pôr os pés nessa
trilha. Entre 26 de junho de 1973, esse final de Mais, ainda que foi um naco
de bravura quanto ao reconhecimento amoroso, e 1 1 de fevereiro de 1975, vai
por duas novas vezes estar em questão uma articulação amor inexistência da
relação sexual. No entanto, não podemos estudá-las sem antes de mais nada
ressaltar que uma outra linha melódica surge, isto já em 1 1 de dezembro de
1 97 3 (Les non-dupes. . . ) : o amor é encarado não mais do ponto de vista da
inexistência da relação sexual mas com a cadeia borromeana. Assim, essas duas
linhas melódicas coabitam por um certo tempo, antes de a segunda defini­
tivamente prevalecer. Há por certo algo artificial, excessivo se não errôneo,
em isolar, como nos propomos fazer, as duas últimas observações sobre amor
inexistência da relação sexual do novo contexto doutrinal que se inicia e em
que elas cronologicamente tomam lugar. Entretanto, tal iniciativa não parecerá
absolutamente inconveniente se ficar claro que permite notadamente apreciar
a distância ou as distâncias que essas duas últimas observações instauram
relativamente ao fim de Mais, ainda. Tudo se passa como se, antes mesmo
de ser deixada de lado, a problemática amor inexistência da relação sexual se
achasse minada do interior pela nova linha melódica borromeana. É a uma
espécie de canto do cisne que se vai assistir, a um desmantelamento que, por
um tempo, permanece parcial mas que, já, anuncia um fim.

PRECARI EDADE MODAL DO AMOR

Seja, pois, a seguinte afirmação, de 8 de janeiro de 1 97 4, a primeira das


,-1 . , ., ., ., ., ,, r rn l n r".l rl ".I n ,:i m Pc;:i • " F.c;_c;p :i m nr é levado à existência, esse amor, o
3 92 O A M O R L Ac
AN

que é bem obra de seu próprio sentido, pelo impossível do laço sexual co ni
o objeto, objeto seja qual for a origem, o objeto dessa impossibilidade"
"Levado à existêncià': a articulação parece menos precisamente deterrn in ad�
que aquelas com as quais estivemos às voltas até então. Estivera em qu estão
em 1 6 de janeiro de 1 973, suplemento; mas também, nesse mesmo dia, 0
amor como significado da relação sexual; estivera em questão, ern 2 6 de
junho de 1 973, o amor como enfrentamento da impossibilidade da re lação
sexual; depois, nesse mesmo dia, o amor como suspensão da relação sexu al
graças a essa espécie de transformação que, no reconhecimento amo roso ,
faria que uma relação de sujeito a sujeito afastasse essa outra relação, im­
possível, que tem nome de relação sexual. Esse 8 de janeiro de 197 4 no
entanto se apresenta como uma retomada parcial da problemática final de
Mais, ainda. Com efeito, não estão mais em questão nem sintomas, nem
o reconhecimento amoroso, nem exílio da relação sexual. Lacan se limita
a encarar a articulação amor não-relação sexual nos termos que são os da
lógica modal, mais exatamente de sua lógica modal. Em outras palavras,
o momento entre o fim de Mais, ainda e 8 de janeiro de 1974 é dedi c ado
a uma tentativa de modalização de um amor articulado à inexistência d a
relação sexual. Nesse 8 de janeiro de 1 97 4, como se então tivesse percebido,
nesse registro modal, a presença de um ponto difícil na conclusão de Mais,
ainda, Lacan vai revisitar essa modalização.
No fim de Mais, ainda, o amor era visto como a ilusão segundo a qual
a impossibilidade da relação sexual, em outras palavras, o que "não cessa de
não se escrever" cessaria de não se escrever - a passagem da impossibilidade
(da relação sexual) à contingência (do amor) efetuando-se por supressão da
primeira negação. Vai se escrever:

Relação sexual não cessa de não se escrever IMPOSSIBILIDADE

Apagamento da negação: não cessa de não se escrever


O amor (seu resultado) : cessa de não se escrever CONTINGÊNCIA

Como rastros da articulação entre o amor e a não-relação sexual não


restam mais senão dois quase invisíveis brancos. Musicalmente, um silêncio.
Com o amor, a relação se escreveria, exceto que não seria mais então uma rela-
S T I M A AMORO S A 393
/1 E

çáo sex ual mas uma relação de sujeito a sujeito. Tomado eticamente, esse jogo
da contingência com a impossibilidade corresponderia a dizer que "ali onde
estava o amor deve advir a não-relação sexual"? Mas não é como moralista que
1,acan tenta escrever a articulação da impossibilidade da relação sexual com a
contingência do amor. Ele prolonga sua distribuição do jogo dizendo que

a passagem da negação ao não cessa de se escrever, à necessidade no lugar


dessa contingência, é bem esse o ponto de suspensão a que se prende todo
amor. Todo amor, de só subsistir por cessar de se escrever, tende a fazer passar
essa negação ao não cessa, não cessa, não cessará de se escrever.

Tudo até ali acontecia entre impossibilidade e contingência; eis que


agora intervém a necessidade, o amor como necessário - diremos: como
cristalizado:

Relação sexual: não cessa de não se escrever IMPOSSIBILI DADE

Apagamento da negação: não cessa de não se escrever

II O amor (seu resultado) : cessa de não se escrever CONTINGÊNCIA

Deslocamento da negação: cessa de NÃO se escrever

III O amor (cristalizado) : não cessa de se escrever NECESSIDADE

O esquema do tempo lógico aqui funciona parcialmente. O tempo


II é o instante de ver, o III o tempo para compreender, e não há, podemos
esperar por isso, ponto de momento de concluir. Isso foi explicitamente
formulado: o amor comporta um ponto de suspensão. Ele não cessa de
compreender! O amor oscila entre contingência e necessidade, paixão à
primeira vista e amor cristalizado. Seríamos quase tentados a admitir que
tudo iria muito bem no quase melhor dos mundos amorosos modalizados,
se não fosse... um lapso de Lacan, vindo proibir de sucumbir a essa tentação.
À frase já citada, que introduzia o amor como reconhecimento e "relação
de sujeito a sujeito", segue-se esta:
3 94 O A M ü it l
.4. C
,1 : ,

Este cessar de não se escrever, como veem, não é fórmula que p resc revi
. , . como no que
acaso. S e encontrei prazer no necessano não cess a de -
ªº
n
[Lacan entrevê q ue estd se enganan do, ele repete o erro, balbucia, gau,,�'
o�-J co,n 0
para ter tempo de se dar conta de que algo não vai bem] de não s e es cr

[pronto, ele sabe seu erro e corrige] que não cessa, não cessa de se esc reve
r na
oportunidade, o necessário não é o real, é o que não cessa de se es c rever.

Em vão se procuraria esse lapso na versão de Mais, ainda pub lic ada
pela editora Le Seuil. Ali não figura igualmente a frase na qual Lacan vo lta
a seu lapso, de maneira aliás insatisfatória pois anunciar que um lapso que
acaba de ser cometido é "bem significativo" corresponde a dele se livra r
fácil. Durante todo um momento, Lacan vai calar esse lapso, não notand o
sua efetividade. Mesmo assim, acabará por considerá-lo, talvez coloca ndo
em jogo, então, um novo lapso: "O deslocamento dessa negação, isto é, a
passagem ao que há pouco perdi [manquéJ como um lapso em si mes mo
bem significativo [ ... ] " . Lacan disse bem "perdi" com certeza no lugar de
"marquei"*, ou se trata de um erro de digitação? Leremos a hipótese que lhe
é a mais desfavorável - já que é este o alcance de um lapso, trazer um dizer
outro que o que se queria dizer. O primeiro lapso vem diretamente afirm a r
o contrário do que ele quer dizer. Ele quer dizer que "o necessário não é o
real"; mas o lapso diz o impossível (em outras palavras, diz o real) em vez
do necessário, diz "não cessa de não se escrever" em vez de "não cessa de se
escrever". Enquanto Lacan tenta posicionar a necessidade do amor do ponto
de vista da impossibilidade da não-relação sexual, eis que seu lapso vem
modalizar o amor não como necessário, mas como impossível. Segundo esse
lapso, a impossibilidade do amor resultaria daquilo que pode se apreender
como uma contaminação da impossibilidade da não-relação sexual. Ora,
se, pela graça de um segundo lapso, Lacan disse bem que ele "perdeu" essa
contaminação, surge em sua própria afirmação, lapso incluído, uma espécie
de suspensão para com o posicionamento do amor do ponto de vista da
não-relação sexual. O que há de suspendido, de colocação em suspensão, de
suspensão no amor (o jogo em II e III), isso mesmo orienta o amor para a

* Isto é, man que em vez de marque. (NT)


T J M A AMOR O S A 395
A ES

n ão-relação sexual. Isso ele disse querendo dizer. Mas o que viriam indicar
seus lapsos desenha como que um movimento recíproco, que iria da não­
relação sexual para o amor e marcaria o amor como impossibilidade.
D aí pode diferencialmente ser apreciado o que traz, recusa ou modi­
fi ca a sessão de 8 de janeiro de 1 974. Nesse dia, o jogo modal é diferente.
Como, pois, já que é esta, então, a nova fórmula da questão amor não-re­
lação sexual, o amor seria "levado à existência" pelo impossível da relação
s exual? Segundo que jogo modal? Lacan parte de bem longe e é também
de lá que partiremos. Não nos espantaremos, uma vez que amor está em
questão, que seja preciso uma vez mais convocar a linguagem, mas, desta
vez, n ão só ela. Lacan menciona, então, o que ele chama uma "decantação
do sen tido". Em que consiste ela? Para precisar, ele distingue a linguagem
e "alíngua". A linguagem é feita de proposições, cujo modelo mínimo é:
sujeito/verbo/complemento. Esse modelo é ordenado. O discurso analítico
traz essa novidade, que a decantação do sentido das palavras "só faz aparelho
para [... ] o coito sexual". Esse discurso seria necessário, pois, isso, ele não
cessa de escrever. A linguagem, esta, é feita de unidades proposicionais tais
que a ruptura delas faz o sentido das palavras desaparecer. Ora, pelo fato
de que a proposição traz o sentido das palavras, daí se pode concluir que a
linguagem como tal não é feita de palavras. Por outro lado, para alíngua,
é diferente: feita da ambiguidade de cada palavra, o sentido ali "escorre"
e é preciso pequenas capelas para parar esse escorrimento, para suspender
o sentido. Esses desenvolvimentos vão permitir retomar de maneira fina a
lógica modal. Com efeito, essa parada do escorrimento, que é assunto de
alíngua e não da linguagem, "é aquilo em que possível emerge". Ele prosse­
gue: "O fato de que, no fim das contas, algo que se disse cesse de se escrever
é bem o que mostra que, a rigor, tudo é possível pelas palavras, justamente
com essa condição que elas não tenham mais sentido". Esse possível, esse
"cessa de se escrever" (Lacan ainda não introduziu a vírgula que mudará sua
distribuição modal do jogo: "cessa, por se escrever"), da mesma forma que
as três outras modalidades clássicas, é feito de letras, não de palavras - o
que o "se escrever" quer dizer. Ora, pouco antes, o "cessar de se escrever" já
tinha sido ligado à literalidade, e justamente a respeito do amor. ''A palavra
existe", alusão à célebre observação de La Rochefoucauld,
3 96 0 A M O R L A C AN

E é em que a coisa, a coisa deve ser concebida como possível. O que se traduz
em meu dizer pelo fato que ela se funda, a coisa, a coisa amor, que ela não
se funda - já que se trata apenas de sua possibilidade - ela se funda como eu
disse de cessar de se escrever. Isto é, daquilo que resta disso que ela cessa de
se escrever. O que disso resta, articulei desde esse tempo, desde esse te m p o
quase infinito para mim, eu me repito, isto é, a carta de (a)muro. A carta de
(a)muro na medida em que, enfim, isso nada mais faz que um monte.

Talvez fiquemos surpresos com o reaparecimento aqui do (a) m uro


posto de lado por Mais, ainda. Teríamos intempestivamente tirado u rn a
conclusão do amor encarado como reconhecimento? Não, o reconhecimento
amoroso de fato derrubou esse muro, lançou uma passarela entre os amantes,
encarou o amor como laço e não mais como obstáculo; e a confirmação
desse caráter afável do amor aliás será dada em Les non-dupes . . . em que 0
amor, com o borromeano, acaba sendo situado como um termo médio ,
logo, como se fizesse laço. Mas, então, por que esse ressurgimento aqui do
(a)muro? Para situá-lo de outro modo. Primeira observação, Lacan insiste
nisso, não se trata do amor mas de sua possibilidade, aquela realizada não
pelo amor sentimento, mas pela carta de (a)muro. Segunda observação, to­
mada como um "cessar de se escrever" essa possibilidade "se fundà' naquilo
que o cessar de se escrever produz como resto, esse resto nada mais sendo,
no caso em questão, que as cartas de amor doravante tratadas como um
monte, colocadas e tomadas em montes. Logo, reteremos esse novo estatuto
do (a)muro: o (a)muro é o amor como possível, no sentido valorizado pela
réplica cômica à pergunta: "Pode me dizer a hora? " - "Sim, posso". Assim,
leremos: "A carta de (a)muro faz nada mais [sublinho] que um monte". Não
pode estar em questão, nesse momento do seminário, ater-se a isso, pois, da
mesma forma que, no fim de Mais, ainda, o amor deve ser pensado não só
em sua possibilidade mas também em sua necessidade, de mais a mais, em
sua necessidade do ponto de vista da inexistência da relação sexual. A não­
relação sexual levaria à existência o amor de uma maneira tal que ele o faria
primeiramente possível, depois necessário. Vai portanto intervir a articulação
entre o necessário e o impossível, mas tal como a revisitam as observações
sobre a linguagem e a alíngua.
t,. E S
T I M A A M O RO S A 397

Se minha maneira de situar estiver correta, isto é, que o que não cessa de
se escrever, o necessário [... ] , é isso mesmo que necessita o encontro do im­
possível, isto é, o que não cessa de não se escrever (que só pode ser abordado
pelas cartas) , está bem aí [... ] o que só permite abordar por algum dizer a
estrutura que designei por aquela do nó borromeano - é em que, na última
vez, o amor era um bom teste da precariedade desses modos 1 •

"O necessário necessita o encontro do impossível". O que não é de


modo algum evidente. O que se passa? Lacan introduz algo como uma
dinâm ica em sua lógica modal, o que a torna precária, enquanto que, reci­
procamente, a precariedade de sua lógica modal a torna dinâmica. Então, por
que o necessário necessitaria o impossível? Por que ele não subsistiria em si
mesmo pura e simplesmente, sem nada necessitar de impossível? Confrontar
0 jogo modal do fim de Mais, ainda e o que é dito presentemente deixa
aparecer um desnível, identificável, já, no fato de que o possível, o amor
como possível, no fim de Mais, ainda, não era meio: estávamos às voltas
com duas operações (apagamento de uma negação, depois deslocamento da
negação restante) que, a partir da impossibilidade da relação sexual e pas­
sando por um amor dito contingente, produziam o amor como necessário.
O caminho traçado era o seguinte:

Impossibilidade (da relação sexual) -t co n t i n gência (do amor) -t

necessidade (do amor)

Ausente acima, o amor como possível agora surge. Mas sobretudo,


outra novidade, nada indicava no fim de Mais, ainda a presença de uma
questão relativa à passagem (não só possível mas dita necessária) da neces­
sidade à impossibilidade. Ora, é isso que está em questão nesse S de janeiro
de 1974, um necessário que necessita o encontro do impossível. Assim, o
caminho traçado na época aparece percorrido no outro sentido:

necessidade (do amor) -t impossibilidade (da relação sexual) .


398 O AMOR L A C A N

Esse minipercurso se apresenta ao avesso da frase que tentamos de­


cifrar e que, esta, como no fim de Mais, ainda, partia da impossibilid a de
da relação sexual para levar o amor à existência. Damo-nos conta, então,
passavelmente siderados, de que já o lapso de Lacan abria esse caminho d o
necessário ao impossível. Eis um belo caso de escola: um lapso que acab ou
sendo publicamente notado, um lapso que talvez tenha dado lugar a u m
segundo lapso, um lapso que ficou não analisado vê sua problemática voltar
à superfície seis meses mais tarde (26 de junho de 1 973 - 8 de janeiro d e
197 4). E, desta vez de modo explícito, as coisas são mais bem encaminhadas,
já que se trilha uma via do amor como necessário à relação sexual como
impossível. Advém necessariamente que o amor como um "não cessa de se
escrever", mediante a adição de uma negação se dirige para um "não cessa
de NÃO se escrever", em outras palavras, para a impossibilidade da relação
sexual. Mas por que, perguntaremos de novo, essa necessidade? Por que 0
amor é um "bom teste" da dinâmica modal? Parece que a razão é que Lacan
pensa sua lógica modal não mais no registro da linguagem mas conforme
alíngua. A carta de amor tem a ver com alíngua, não com a linguagem
enquanto logicamente modelável e modelada. Sobrevém, então, ainda
algo novo, isto é, o amor como a um só tempo contingente e necessário.
Bem entendido, Lacan pode continuar a descrever fenomenologicamente
a experiência amorosa como uma passagem do contingente do encontro ao
fato de ela acabar, depois, sendo concebida como necessária. Há novidade,
no entanto, pois essa necessidade, é então admitido, não chega a apagar a
contingência primeira do amor; e Lacan vai tomá-las juntas - o que atesta
o caráter precário dessa modalização lacaniana.

Assim, o amor mostra em sua origem ser contingente, e ao mesmo tempo


ali se prova a contingência da verdade do ponto de vista do Real. Pois esses
modos são verdadeiros, e até definíveis de fato, pelo destaque que damos da
escrita. Eles dilaceram, se posso dize,; a verificação do amor [sublinho] [ ... ].

Ora, basta tomarjuntas a contingência e a necessidade do amor para


cair em quê? Precisamente na impossibilidade: a necessidade traz à contin­
gência a negação que lhe falta para advir como impossibilidade; a contingên-
T
t,. E S I M
A A M O RO S A 399

ei a traz à necessidade a negação que lhe falta para, ela também, advir como
i mpossibilidade. Há precariedade pois o amor nunca realiza essa tomada
conjunta, o amor permanece assediado, dilacerado entre contingência e
necessidade, no horizonte de impossibilidade da relação sexual. "É preciso
aí, se posso dizer [sublinho, pois Lacan justamente não pode dizer isso] , essa
raiz de impossível. E foi isto o que eu disse ao articular este princípio: que o
amor é o amor cortês". Uma raiz, realmente? Isso sugere uma efetiva conti­
nuidade entre impossibilidade da relação sexual (a raiz) e o amor (o tronco,
os galhos, a folhagem) que não parece muito estabelecida, se é verdade que
0 amor permanece assediado entre contingência e necessidade, se o amor
permanece assim para sempre, experiência banal, não verificado. Não mais
que o (a)muro, a menção aqui do amor cortês não deve ser aceita como
a verdade lacaniana sobre o amor. E Lacan logo após convoca esse outro
amor, o amor pelo próximo, muito mais suscetível, este, de presentificar a
precária lógica modal do amor:

É evidente que o divertido' , se posso assim me exprimir, é, ali dentro, o


amor pelo próximo na medida em que se sustenta por esvaziar o amor de
seu sentido sexual. É cessando de escrever o sentido sexual da coisa que a
tornamos, como é sensível, que a tornamos possível . Isto é, na medida,
deve-se bem dizer, em que cessamos de escrevê-lo . Uma vez chegada, a
coisa, o amor, é evidente que é a partir daí que ela se imagina necessária. É
bem o sentido da carta de amor, que não cessa de se escrever mas somente
contanto que guarde seu sentido, isto é, não por muito tempo.

Essa última afirmação parte do reconhecimento (implícito) de que


há um sentido sexual no amor, em outras palavras, da libido freudiana. O
amor pelo próximo disso se distancia: com ele, o sentido sexual do amor
cessa de se escrever. Assim, o amor pelo próximo adquire sua possibilidade.
A passagem desse amor possível a um amor necessário se obtém em seguida
pela adição de uma negação: a carta de amor NÃO cessa de se escrever. Está
tudo aí? Não, pois é então precisado que essa carta de amor não cessa de

• Que é escri to (a)m11sa11t. (NT)


400 O A M O R LAcAN

se escrever (escreve-se, escreve-se, escreve-se... ) "contanto que guarde seu


sentido". Eis aqui novamente a questão da decantação do sentido. O que
ocorre com o sentido uma vez que cessa de se escrever o sentido sexual do
amor, já que foram dissociados o amor e, assim diremos com uma pisca­
dela de olho a Freud, a pulsão? A coisa permanece difícil de agarrar. Pouco
antes, líamos: "Pois a língua é isso. E é até esse o sentido a ser dado ao qu e
cessa de se escrever. Seria o próprio sentido das palavras que, nesse cas o, se
suspende. É em que o modo do possível daí emerge". Entretanto, não h á
contradição entre, por um lado, esse possível como suspensão do sentido
das palavras e, por outro lado, o amor como possível e oferecendo-se o viés
da carta de (a)muro que, por um tempo, guarda seu sentido? A noção de
suspensão vem resolver essa pseudocontradição. A suspensão do sentido
marca a um só tempo sua presença e sua ausência. Sua suspensão tamb ém
oferece ao sentido a possibilidade de sua decantação. Mantido, o sentido das
palavras serve ao coito sexual. Posto em suspensão, o sentido das palavras
se oferece à sua própria decantação. Já dele mesmo, esse sentido enquanto
suspendido adquire uma certa fragilidade, presta-se à erosão do tempo, é
suscetível de esvaecer-se tão logo escrito. Nada mais volátil que uma carta
de amor, fadada ao monte. Uma vez amontoadas, amarradas, as cartas de
amor são ilegíveis. E é preciso todo o talento de um Ovídio, de uma Cons­
tance de Salm2 e de alguns outros para dar corpo à ilusão de que as cartas de
amor permanecem portadoras de sentido; aí é preciso... a literatura. Mas a
literatura aqui nos tira do bom caminho, pois a carta de amor como tal não
é literária; ela é nula literariamente, de uma nulidade que não a destitui de
modo algum como carta de amor. De que são testemunhas as coletâneas de
modelos de cartas de amor; ou ainda o que se escreve no jornal Libération,
no dia dos namorados: para quem não está por dentro, o que se lê parece,
na melhor das hipóteses, cômico. Eis aqui de novo o cômico do amor, ao
que Lacan não vai renunciar.

2 Constance de Salm, Vi11 - 11atre heures d'1111e femme sensible, publicado pela editora Phébu s
gt q
em 2007, é uma soberba coletânea de cartas de amor, escritas por uma mulher, Constance
de Sal m , que não pretende nada menos que desvelar "uma multidão de sensações que são
desco nhecidas da maioria dos homens" . Deve-se precisar que se trata, ao longo dessas vinte
e quatro horas, exceto o fim feliz como se deve, apenas do amor com n nm< i hi l irl�,l.,. �
A E ST IM A A MOROS A 401

Vamos concluir esta leitura com duas observações. Antes de mais nada,
0 que quer dizer que o amor seja "levado à existência pelo impossível do
laço sexual com o objeto"? Pois é, não muita coisa... , nada, em todo caso,
de necessário. O que, aliás, vemos agora, poderia ter sido lido na própria
expressão "levado à existêncià'. Um clima úmido e quente pode bem "levar
à ap atia" sem que por isso toda uma população fique apática; pode de fato
acontecer de "tudo levar a crer que... ", sem que ninguém, no entanto, adote
essa crença. É este, portanto, o valor que convém atribuir a essa fórmula. O
que, para acabar, parece ser evidente: se, com efeito, o amor fosse necessaria­
mente levado à existência pela impossibilidade da relação sexual e estando
entendido que qualquer um está às voltas com essa impossibilidade, todo
mundo ficaria apaixon�do, e apaixonado sem descanso. Logo, que vidas ali
estariam em questão?
Uma segunda observação se refere ao afastamento aqui realizado em
relação ao fim de Mais, ainda. A tentativa de modalização da articulação
não-relação sexual/amor vem de certo modo curto-circuitar o que esse fim
tentava estabelecer, isto é, o amor como laço entre dois exilados da relação
sexual. Com efeito, se a não-relação sexual necessariamente levava o amor
à existência, o reconhecimento a signos do exílio, no outro, a relaç�o sexual
não seria mais o nervo do amor, mas, na melhor das hipóteses, seu viés;
seria a não-relação sexual que, por si mesma, em via direta, por assim dizer,
provocaria o amor e não a relação de cada um com a não-relação sexual.

A ESTIMA AMOROSA

A última afirmação que explicitamente liga o amor e a não-relação sexual


é lida na sessão de 2 1 de janeiro de 1 975 de R.S. I., que portanto precede
de pouco a de 1 1 de fevereiro de 197 5 em que definitivamente se põe fim
à problemática amor não-relação sexual. Essa contiguidade é interessante
pois seria bem possível que fosse por ter levado o amor ao ponto que foi
dito em 2 1 de janeiro de 1 975 que Lacan pode tirar de sua leitura de Queen
Victoria a conclusão dita acima. Essa sessão é aquela que terá posicionado
"uma mulher" como sintoma. Lacan é orevenido da novidade da coisa; no
402 O AMOR L AC A N

fim dessa sessão, ele sublinha que ninguém jamais havia dito isso ain da .
O ponto de vista é, uma vez mais, androcentrado, mas não exatamente
androcentrado; é para "quem está saturado do falo3 " que uma mulher está
em função de sintoma, o que de modo algum impede Lacan, muito pelo
contrário, de se perguntar o que isso causa nela, o que suscita, nela, estar
assim "presa", e de se perguntar, igualmente, como ela vai fazer com esse
domínio, ainda que só esteja ocupada com isso. Como pôde despencar, no
seminário, essa "uma mulher" sintoma? Duas fontes são indicadas, uma
oriunda da prática analítica de Jacques Lacan, a outra literária. Primeira
fonte: alguém, que ele escuta, teria aproximado o sintoma das reticências.
Essa referência à pontuação combinava com Lacan. Ele a confirma falando
do caráter literal do sintoma: "O que é dizer o sintoma? [ ... ] É o que d o
inconsciente pode ser traduzido por uma letra, na medida em que somente
na letra a identidade de si a si está isolada de toda qualidade". O sintoma é
letra, letra fora de sentido e mantida em suspensão quanto ao que a um só
tempo ela traduz e seria suscetível de traduzir (pois a "tradução" permanec e
não efetuada, é esta a suspensão) e que teria a ver com o inconsciente. Não
nos satisfaremos com um tal uso metafórico, para não dizer frouxo, aqui
como em outra parte em Lacan (e em Freud), do conceito de tradução4 .
Diremos, mais justamente, que a letra em função de sintoma remete a algum
elemento inconsciente. Até aí, nada de muito novo relativo ao sintoma.
Vem então marcá-lo uma dupla novidade, ou quase novidade pois, já em
Roma, na conferência intitulada "A terceira", em 1 ° de novembro de 197 4,
Lacan havia localizado o ternário freudiano inibição/sintoma/angústia no
borromeano. Vamos apenas tocar de leve na questão desse posicionamento.
Ei-lo, primeiramente, retomado da versão Afi da sessão de 2 1 de janeiro de
1975 que aqui importa:

3 R. s. t. , sessão de 2 1 de janeiro de 1 97 5 .
4 Com Clínica do escrito (Rio d e Janeiro, Companhia d e Freud, 1 99 5 ) , eu tentava reduzir
um pouco as ambições desse i mperialismo da tradução. Em Écholalies. Essai sur l'oubli eks
tangues (traduzido do inglês por Justine Landau, Paris, Le Seuil, 2007) , Daniel Heller-Ro­
azen demonstra que, no Freud de O esboço, o uso de Überzetzung não está rigorosamente
fundado.
A ESTIMA AMOROSA

ICS
I{

Do sintoma assim localizado, em Roma, fora dito isto: "O sintoma é


irrupção dessa anomalia em que consiste o gozo fálico, na medida em que
ali se exibe, em que ali desabrocha essa falta fundamental que qualifico de
a não-relação sexual 5 ". Não perderemos o "na medida em que", caso con­
trário cairíamos, sem luta, num contrassenso de leitura. E é, pois, essa frase
que vamos reencontrar, modulada, dois meses mais tarde: "Esses pontos de
suspensão do sintoma na verdade são pontos, se posso dizer, interrogativos
na não-relação. Quero, mesmo assim, para trilhar o que aí introduzo, mos­
trar-lhes por que viés isso se justifica, essa definição do sintoma6". Locali­
zado no real, ladeando o simbólico, o sintoma é esse elemento literal, sem
qualidade, trazido pelo gozo fálico que vale como um ponto de interrogação
"na não-relação". Vem, então, imediatamente depois, a segunda novidade
anunciada: "O que há de impressionante no sintoma, nesse algo que dá
uma bicota no inconsciente, é que acreditamos nisso". Acreditamos nisso
pois o supomos, pois o sabemos "suscetível de dizer algo". E é, pois, esse
sintoma, esse sintoma e não um outro, do qual "uma mulher" vai acabar
sendo o suporte para "quem está sobrecarregado do falo" (uma mulher,
portanto, igualmente). A outra fonte que oferece ao seminário essa "uma
mulher sintoma" é literária.

1 Jacques Lacan, "La troisieme", in PTL. A notável brochura difundida por Patrick Valas dá
exatamente o mesmo texto.
O A M O R. L A. e
... �

Há tão poucas relações sexuais que lhes recomendo para isso a le itu ra de
uma coisa que é um belíssimo romance, Ondine. Ondine manife st a O que
está em questão: uma mulher na vida do homem é algo em que ele cre'
,
ele crê que há uma, às vezes duas, ou três, e aliás é bem aí que é interes .
sante, é que ele só pode acreditar numa. Ele acredita que há uma e s pécie
,
no gênero das sílfides ou das ondinas. O que é acreditar em sílfi des o u
em ondinas7 ?

É numa linha de crista que um sujeito se acha alojado quando, a


respeito de tal ser, esse sujeito constata que ele "lhe diz algo". Algo, mas 0
quê? Para responder, ainda é preciso saber quem vai dever tomar a palavra. O
sujeito, ou então esse ser? Há aí uma ambiguidade, pois, por uma vertente ,
aflora a demanda: "Diga-me algo", não muito afastada de uma de manda
de ser amado. Mas também se pode imaginar a seguinte réplica, aquela em
que o outro, ao "você me diz algo", responde: "Ah sim, o quê? ". Se o sujeito
se põe a dizer o que o outro lhe diz, está ferrado; o algo, que valia por sua
indeterminação, terá então grandes chances de se afigurar mera banalidade.
Lacan vai jogar em outros termos com esse ponto de báscula da enunciação.
O "isso me diz algo" pode igualmente se referir a um objeto, a uma pintura,
por exemplo, que "me fala". No entanto, ainda que obstinadamente para ela
eu apele, ainda que a escrute, ainda que eu leia tudo o que terá sido escrito
a seu respeito, caberá a mim formular o que ela me diz. Em compensação,
se a declaração for endereçada a um analista ou ao que chamarei uma MOS
(mulher Ondina sintoma), a coisa é suscetível de acontecer de outro jeito.
O analista, salvo exceção, responde por um certo silêncio que, estando a
situação transferencial então mais ou menos tensa, vem indicar ao sujeito
que é a ele que cabe dizer esse algo que lhe "diz" o analista precisamente ao
não lhe dizer nada no sentido de: "calando-se". Quando se trata da MOS, o
assunto pode mudar de outro jeito. Qual aspecto pode então ser tomado?
A fala bascula na outra vertente daquilo que Lacan chama "a fragilidade do
acreditar nisso", aquela em que é ao objeto que é outorgado tomar a palavra,

7
Deve se tratar do conto Ondina, de Friedrich de la Motte-Fouqué, publicado em 1 8 1 1
(indicação que devo a Mayette Vil tard, embora eu tivesse espontaneamente pensado em a
Ondine de Giraudoux) .
E S T I M A AMORO S A
A

tido e m que é o objeto que toma a palavra. Eis e m que termos


e até no sen
é descrita essa situação:

Se ele nos pede nossa aj uda, nosso socorro, é porque crê que o sintoma
é capaz de dizer algo, que é preciso apenas decifrá-lo . É da mesma forma
para o que se passa com uma mulher, exceto que o que acontece, mas que
não é evidente, é que se crê que ela efetivamente diz algo, é aí que atua a
rolha . Por acreditar nisso, acreditamos nela. Acreditamos no que ela diz . É
o que se chama o amor. E é em que é um sentimento que na oportunidade
qualifiquei de cômico. É o cômico bem conhecido, o cômico da psicose: é
p or isso que costumam nos dizer que o amor é uma loucura8 •

Salta aos olhos uma diferença capital entre a MOS e o analista. Pois
se há uma coisa clara para quem tiver mergulhado um pouco na análise,
a qualquer título que seja, é que, naquilo que o analista pode dizer, e por
mais parcimoniosa que seja sua fala, o analisando não crê. Não que essa
fala de analista não tenha efeito algum, mas esse efeito não é da ordem da
crença - essa fala, aliás, não visa isso. Como atesta o próprio Freud que, se
tivesse pensado que o paciente acreditava no analista, não teria necessidade
algu ma de escrever "Construções em análise". Com efeito, esse artigo dá
c omo visada da intervenção do analista não a adesão fideísta do analisando
a essa intervenção, mas bem outra coisa, a saber, sua verdade. Segundo
Freud, toda intervenção do analista é uma fala tal que resta a confirmar e
que permanece, nessa espera, conjetural - exatamente como foi aceita por
Sócrates a fala do oráculo de Delfos segundo a leitura que disso fez Michel
Foucault9. Assim, o que vem indicar essa diferença entre a MOS e o analista?
Que esse amor louco que está aqui em questão, que dá fé à fala da MOS, não
é o transmor. A continuação da afirmação vai confirmar isso, mas também
fornecer a última maneira lacaniana de ligar o amor à não-relação sexual.

8
sessão de 2 1 de janeiro de 1 97 5 .
R S. t. ,
9
Michel Foucault, Le coumge d e la vérité, !e gouvemement d e si e t des nutres ll aula no Colle­
ge de France, 1 984, Paris, Gallimard/Le Seuil, coll . "Hautes études", 2009, aula de 1 5 de
feve re i ro de 1 984.
4 06 O A M O R L A c:
AN

Acreditar nela é um estado, graças a Deus!, difundido, porque, de q ual que


r
modo, isso faz companhia! Não se está mais sozinho. E é nisso qu e o arno r é
precioso, eeeh! raramente realizado, como todos sabem, durando ape nas u m
tempo e mesmo assim faz isso que é essencialmente dessa .fatura [sub linho]
do muro onde só se pode arrumar um galo na testa enfim! que se trata ; se
não há relação sexual, é certo que o amor, o amor se classifica segundo certos
casos que Stendhal muito bem desfolhou enfim! há o amor estima , é isso
enfim, não é nem um pouco incompatível com o amor-paixão não é! nem
tampouco com o amor gosto; mas mesmo assim é o amor maior, é aque le
que é fundado nisto: é que acreditamos nela, que acreditamos nela porq ue
nunca tivemos prova de que ela não fosse absolutamente autêntica.

Se fosse necessário uma indicação suplementar do fato de que Mais,


ainda largou de lado o (a)muro, ei-la aqui. O muro se deslocou, o m uro
é aqui o da inexistência da relação sexual, enquanto o amor é uma fratura
nesse muro que, é precisado, não pode ser fraturado. O amor é tentativa de
fratura desse muro; o amor tenta quebrar a inexistência da relação sexual:
os cantos desesperados são os mais belos cantos. Interrogamo-nos: não teria
sido possível ir mais diretamente ao ponto em que é aqui levado o amor?
Lembremos o poema de Tudal, ele também androcentrado. Como La can,
depois de ter afirmado seu "não há relação sexual" , não se deu conta mais
cedo de que entre o homem e a mulher... era este o muro? Talvez porque o
"entre" estabeleça relação, o muro também, ainda que seja por ele distribuir
dois lados: "lado homem", "lado mulher". Em Mais, ainda, esse posicio­
namento binário tenta acalmar o jogo, evocar sua distribuição das c artas
de maneira menos identitária que quando se fala de homem e de mulher.
Entretanto, ainda é demais, do ponto de vista da inexistência da relação
sexual, afirmar que há dois lados. P ara isso é preciso um certo ponto de vista
que diremos de pendor e que, precisamente, nem todos têm.
Esse amor estima é o transmor? É possível identificá-los um ao outro,
como a isso convida o fato de, com frequência, o analisando conceder su a
estima a seu analista, embora a recíproca não seja menos verdadeira, em
todo caso no melhor dos casos, casos de analista? Esse amor estima, esse
"amor maior", a despeito do que acaba de ser observado, não é o transmor,
A ES T I MA AM O ROS A

e isto por pelo menos três razões: 1 ) o analisando não crê no que lhe diz o
an alista e, aliás, não está de modo algum convidado a acreditar no analista.
2) A segunda razão está ligada à primeira: que a MOS seja reconhecida sa­
bedora não deixa mais lugar algum ao sujeito suposto saber, ainda menos
lugar já que nesse saber não acreditamos. Com esse amor estima, sai fora o
"suposto"; ora, é essencial ele ser mantido como tal na análise, já que só seu
ser-ali permite sua destituição. 3) Se a MOS se caracteriza por nunca ter dado
prova de sua falta de autenticidade, não é evidentemente o caso do analista
(exceto o analista ferencziano). O analista, em posição de objeto a, a fim de
manter essa posição de semblante, deixa permanentemente pairar a suspeita
de que ele é suscetível de fazer o analisando cair feito um patinho. Ele se
acostuma com o para-ser e torna manifesto, junto ao analisando e para o
analisando, seu "acostumar-se com o para-ser" (foi evocado o dandismo de
L a can; outros vieses são possíveis). Sequência e fim da citação:

Mas este "acreditar nelà' é de qualquer modo esse algo sobre o qual ficamos
totalmente cegos, que serve de rolha, se posso dizer, é o que eu já disse, a crer
nisso, que é uma coisa que pode ser muito seriamente questionada. Pois acreditar
que há uma, Deus sabe aonde isso os leva, isso os leva a crer que há a A, A que
é uma crença inteiramente falaciosa. Ninguém diz a sílfide, ou a ondina, há
uma ondina, ou uma sílfide, há um espírito, há espíritos, para al gu ns. Mas tudo
isso sempre faz apenas um plural. Trata-se de saber qual é o sentido disso. Que
sentido tem acreditar nisso e se não há algo de inteiramente necessitado no fato
de que, para acreditar nisso, não há melhor meio que acreditar nela.

Diferentemente do amor estima tal como é aqui apresentado, o trans­


mor, pelo menos o analista a isso se dedica, não derrapa do "crer nisso" ao
"crer nela". A transferência psicótica vem exatamente aí, nesse entre-dois.
O fato de, para Jacques Lacan, Marguerite Anzieu ter sido sabedora 1 0 nem
por isso o conduziu a acreditar nela.

1 0 Ver meu capítulo " Marguerite sabedora", in Mt1rg11erite, 011 ti Aimée de Lt1ct111, 2' éd. revista
e aumentada, Paris, Epel , 1 994. No Brasil, Pm'fmoÍtl: Mm-guerite 011 ti "Aimée" de Lt1ct111 ,
r'.nm nanhia de Freud, Rio, 1 997.
CAP ÍTU LO XX I

E VICÇ ÕES

D istinguem-se duas evicções: 1 ) a de toda articulação possível entre


amor e não-relação sexual; 2) mais inesperada aqui, a do amor re­
conhecimento.
Assim, nos seminários, houve um momento em que o amor foi
pensado do ponto de vista da não-relação sexual. Em 1 1 de fevereiro de
1 97 5 (R. S. I. ) , Queen Victoria, de Lytton Strachey, vem assinalar o fim desse
momento: "acho que este livro parece dever tornar-lhes sensível o fato,
enfim sensível com um particular relevo, o fato de que o amor nada tem
a ver com a relação sexual [ ... ]". Interromper por um instante a afirmação
fará ressoar-lhe os termos (e esse termo), amplamente desconhecidos. Além
disso, na versão citada, a sequência surge inoportunamente pontuad� . O
contexto mais amplo é o do amor encarado de modo borromeano; ele toma
seu impulso em 1 1 de dezembro de 1 97 3, ou seja, quatorze meses antes, e
levanta duas questões. 1 ) Esse novo contexto, embora ainda pouco explorado,
não foi o elemento determinante desse desinteresse? Em outras palavras,
a leitura de Queen Victoria não atua como um simples desencadeador, a
questão amor não-relação sexual estando de qualquer maneira destinada a
ser abandonada pelo enganchamento do amor no borromeano? Ou então,
ao contrário, as coisas teriam sido mantidas tal qual sem essa leitura? 2)
Seria possível identificar uma incidência do amor estima, derradeira forma
de um amor articulado à não-relação sexual, na leitura de Queen Victoria?
Em outras palavras, não teria sido tanto essa leitura que teria produzido o
abandono da problemática amor não-relação sexual quanto o próprio amor
estima, vizinho no tempo e simplesmente confirmado por Queen Victoria.
O contexto aproximado oferece outras questões ainda. A primeira parte da
observacão se2:undo a aual o coniunto dos comentários sobre a rainha e seu
410 O AMOR L A c
AN

caro Albert surge como que entre parênteses: a questão colocada n o iníc io
dessa sessão de 1 1 de fevereiro de 1 97 5 é a do efeito de sentido, e é ta rn bé
rn
no efeito de sentido que Lacan prosseguirá, deixando definitivam ente de
lado V ictoria e Albert. Qual pode ter sido a incidência da problernát ica
"efeito de sentido" sobre as observações entre parênteses?
Em início de sessão, Lacan constata que seu dizer tem efe itos de
sentido, anunciando então que "aquilo de que me ocupo este ano é ten tar
seguir mais de perto qual pode ser o real de um efeito de sentido". A coisa
não é dita, mas sugerida: ele de certo modo teria conseguido segui r mais de
perto esse sentido, como constatava em Nice mas também em Estrasb ur go.
Toda uma geografia é então convocada, já que a essas duas cidades vão se
acrescentar Londres e o Japão. Em cada um desses lugares a questão do
efeito de sentido coloca-se de modo diferente, ainda mais que a um lugar
pode corresponder uma língua. Se seguir mais de perto o efeito de sentido
se obtém por um certo manejo do inconsciente, certas línguas, é dito, a isso
se prestam melhor que outras. Notadamente o inglês a isso faz obstáculo,
há "resistência de alíngua inglesa ao inconsciente", o que esclarece com
luz nova as observações sobre a rainha V ictoria. Uma dimensão histórica
é então invocada, a oposição do inglês e do inconsciente duplicando-se de
outra oposição, ela dialética, a da ação da rainha V ictoria e da descoberta
do inconsciente:

Se o século XIX, parece-me, não tivesse sido tão espantosamente dominado


pelo que é preciso bem que eu chame a ação de uma mulher, a saber, da
rainha Victoria, bem! talvez não tivéssemos notado a que ponto era preciso
essa espécie de devastação para que houvesse aí o que chamo enfim! um
despertar.

A devastação "queen V ictorià' teria historicamente sido uma condição


de possibilidade da invenção do inconsciente, ao passo que essa invenção se
oporia a essa devastação como o despertar se insurge contra o sono - esse
sono despertado em que cada um vive "na realidade" sem saber que ela é
um sonho. Fre ud é a rainha Victoria despertando. Eis o que deixa ouvir outro
som que o tão solidamente estabelecido Freud-o-Pai. Ora, essa clivagem
[VICÇÕES 411

redobrada diz respeito ao amor e, de outra maneira, à não-relação sexual,


ou seja, os dois termos que vão estar disjuntos. Já foi como que anunciado
logo antes de estar em questão a rainha Victoria, e surge no próprio fio do
efeito de sentido e da dificuldade mais ou menos grande de segui-lo de perto
conforme os lugares e as línguas. O que permitiria, na melhor das hipóteses,
sua realização (nos dois sentidos desse termo)? Para indicá-lo, Lacan recorre
a uma das figuras e a um dos usos "achatados" do borromeano:

ICS

Esse "esquema" permite notadamente distinguir três faixas topolo­


gicamente equivalentes, sendo assim dado lugar para possíveis nomeações.
Esse nó borromeano terá inscrito o estranho ternário Gozo do Outro {JA*)
/ gozo fálico (J<D) / sentido ("estranho", pois, exceto as localizações, há um
traço comum que os faria serem três?). Ele também permite apreender de
maneira concreta o conceito de seguir de perto o sentido. Pequena mani­
pulação: se mantenho no lugar com uma das mãos os anéis I e R e se, com
a outra mão, puxo o anel S numa direção que será a do sudoeste, o "furo"
do sentido vai ficar reduzido à porção mínima, embora sem jamais cessar de
ser um furo; mas também os dois outros furos notados J<D e pequeno a. Em
compensação, JA verá seu espaço aumentado. Esse gozo do Outro deve ser
entendido como um genitivo "não subjetivo mas objetivo"; ele não é o do

* l .-la ;no,;wrnrp 0070 �m francês. (NT)


412 0 A M O R LACAN

Outro mas o do sujeito que, do Outro, goza. Essa manipulação (que ign0 •
ramos se Lacan a tinha na mente nesse dia, a coisa permanecendo provável
pois ele a isso se dedicou, em outra parte, abertamente) esclarece o que el e
designa como "uma especial acentuação" do furo JA. E prossegue:

[ . . . ] e sublinhei que é ali que se situa bem especialmente isto que, cre io, de
modo legítimo, salutar, corrige a noção que Freud tem do Eros como u ma
fusão, como uma união . Pus o acento, a esse respeito, assim incidentemente ,
mais ou menos antes de ter tirado esse nó borromeano, pus o acento n is to ,
é que é muito difícil que dois corpos se fundam. Não só é muito di fícil
mas é uni obstáculo de experiência corrente; e que se encontramos o lu gar
dele bem indicado num esquema, é de qualquer modo de natureza a no s
incentivar quanto ao valor daquilo que chamo o esquema .

Que relação entre a "acentuação" de JA e a "correção" do Eros freudiano?


Não se vê outra resposta possível exceto a conjectura, não dita mas necessária
para manter de pé a afirmação, segundo a qual o Eros freudiano ocupa o lugar
do sentido. E, com efeito, se esse Eros é "fazer um", ele tem bem um sentido,
talvez até um sentido que valha lei. Esse Eros que não é, como de acordo com
a Carmem de Bizet, "filha de boêmio que nunca conheceu lei" - aliás, ela se
apressa em lhe dar uma. Esse sentido deve ser diferenciado do "um de sentido"
(definido como "o ser especificado do inconsciente, na medida em que ele
ek-xiste pelo menos no corpo' "), que na sessão precedente desse seminário
Lacan havia distinguido do "um de significante", diferenciação que é imagi­
nável se for exato, como afirma essa mesma sessão, que "existem vários modos
de enunciar o sentido, que todos se referem ao real pelo qual ele responde". A
oposição do inconsciente e da erótica freudiana reclama a invenção de uma
nova erótica, que deixaria mais lugar ao inconsciente, à sua "manipulação" e
que, para fazer isso, deverá clivar o amor e a não-relação sexual. Aqui intervém
a rainha Victoria. Partindo da versão Afi, a ela trazendo certas modificações,
proponho estabelecer assim esse texto:

1
R S. l. . , sessão de 2 1 de j aneiro de 1 975.
EViCÇÕES 413

Acho que este livro me parece dever tornar-lhes sensível o fato, enfim sensível
com um particular relevo, o fato de que o amor nada tem a ver com a relação
sexual; e confirmar que isso parte, não, vou dizer, da mulher [ . . . ] mas de uma
mulher, uma mulher entre outras, uma mulher bem isolada no contexto inglês
por essa espécie de prodigiosa seleção que nada tem a ver com o discurso do
mestre - não é porque há uma aristocracia que há um discurso do mestre.

O momento em que, nos seminários, o amor foi pensado do ponto de


vista da não-relação sexual (e, mais raro, o inverso) foi seguido de um outro, em
que o amor é abordado pelo borromeano. Ai também, o começo é situável: em
I l de dezembro de 1973 (Les non-dupes errent); por outro lado, nada garante
que esse momento teve um fim outro que o dos próprios seminários, devido
ao falecimento de Jacques Lacan. Após certas ocorrências (que propomos
estudar), em 1 1 de maio de 1976 (Joyce, o sinthoma) , vai mais uma vez estar
explicitamente em questão o amor em ligação com o borromeano. V irão em
seguida os últimos seminários, em que talvez não seja discernível um novo
momento do amor pois nenhum enunciado vem jamais recusar a tomada do
amor no borromeano - como foi o caso para a articulação amor não-relação
sexual. Logo, convirá determinar se, sim ou não, o que é formulado quanto
ao amor, sobretudo em L'insu. . . , deve ser isolado como um novo momento do
amor em Lacan ou, então, se deixa inscrever nesse momento borromeano, sem
outro fim que circunstancial. Como os dois momentos da não-relação sexual
e do borromeano se recobrem por um tempo, coloca-se a questão de saber se,
a despeito desse recobrimento, é pertinente distinguir esses dois momentos
do amor. Para estar seguro disso, seria preciso identificar um traço, um único
bastaria, que mudasse de valor sendo retomado... de um momento ao outro.
Ora, dispomos de tal traço, e que nada tem de acessório já que se trata do
suplemento. Lacan havia situado o amor como suplementando a não-relação
sexual. Ora, eis novamente aqui esse suplemento, mas de outro modo referido.
Como isso é conduzido? Uma das virtudes principais do borromeano será
trazer a Lacan uma inédita problematização do dois do amor. E, em 1 2 de
414 0 AMOR L A C A N

março de 1 974, sessão em que, aliás, é claramente formulado o proj eto de


um amor Lacan, é dito isto:

[... ] se o saber, até inconsciente, é justamente o que se inventa para su­


plementar algo que talvez seja apenas o mistério do dois, pode-se ver que
mesmo assim há um passo dado em ousar dizer que se o amor é apaixonante
[ ... ] 2 .

Não vamos tentar esclarecer desde agora e tão longe quanto possível
esse pedaço de frase; reteremos dele somente esse reaparecimento do suple­
mento e, mais inesperado, o lado pelo avesso do suplemento, pois, enquanto
era o amor que estava em função de suplemento , eis que aqui é ele qu e,
agora, é suplementado, ele enquanto portador do "mistério do dois" .
Outro ponto de referência: quantitativamente, ainda está muito em
questão o amor no início do seminário que vem após Mais, ainda, nos me­
ses de novembro-dezembro de 1 973 e em j aneiro de 1 974. Tudo se pass a
como se o choque de Mais, ainda, talvez até sua possível disparidade n a
série dos seminários (já evocada) , continuasse a agir, depois se acalmasse
um pouco.
Terceiro ponto de referência, o gesto pelo qual Lacan, no início do
seminário Les non-dupes. . . , vai, aliás sem dizê-lo explicitamente, afastar as
afirmações do fim de Mais, ainda que situavam o amor como se instaurasse
relação de suj eito a suj eito através do reconhecimento amoroso. Esse gesto
cai com um cutelo :

Mas é o que há de mais concebível que, com uma pessoa que amamos, te­
nhamos com ela algumas relações inconscientes. Mas não é, não é na medida
em que a amamos [sublinho] , porque na medida em que a amamos, é bem
conhecido, não é, nós a perdemos. Não conseguimos3 •

Logo, essa retificação é feita muito cedo, logo após a interrupção d as

2 J . Lacan, Les non-dupes. . . , sessão de 1 2 de março de 1 974.


3 J. Lacan, L es non-dupes. . . , sessão de 20 de novembro de 1 973.
EVICÇÕES

férias de verão. Nenhuma sessão se interpõe entre aquela em que é proposto,


mas sob forma interrogativa, esse amor reconhecimento e aquela que rejeita
explicitamente essa proposição. Pode-se ver aí um novo signo do caráter
desnivelado de Mais, ainda em relação à série dos seminários, o primeiro
deles sendo que Lacan o tivesse notado.
Um quarto ponto de referência diz respeito à ocorrência do borro­
meano como tal, depois suas repercussões. A tomada do ternário s.I.R. no
borromeano adveio em 13 de novembro de 1974 4 , sessão que precede
imediatamente aquela em que se lê a recusa do amor reconhecimento.
Não vamos por isso nos precipitar em ver aí uma relação direta de causa a
efeito. A que se deveu, então, a impressão de uma formidável, feliz e alegre
descoberta? Ao que o borromeano lhe trazia, acreditou ele por um instante,
isto é, uma colocação em equivalência de suas três dimensões, ainda que,
depois, pouco depois, essa colocação em equivalência fosse criar problema.
É, em todo caso, o verdadeiro fim do primado do simbólico. Só podia se
seguir uma modificação da definição do sujeito, o que tive de encarar nota­
damente para a cifração nodológica da loucura a vários na qual esteve presa
MargueriteAnzieu. Cifrada pelo nó de trevo (um simples em cima-embaixo),
a loucura a vários recompõe uma maneira de subjetividade borromeana sob
a forma de quatro nós de trevo amarrados borromeanamente. É não ménos
claro que, além do sujeito, o amor também se achasse exposto a dever ser
revisitado.

4 Jean Allouch, Mnrguerite, 011 l'Aimée de Lncnn, 2' éd. revista e aumentada, Paris, Epel, 1994,
n .á<;<; w A«im rnmn ;,/ h"P11d. Pt h11i, f.11r1111. P�ri�. F.nel. 1993. O. 106-111.
CAPÍTULO XXII

0 AMOR
NOS TEMPOS DO BORROMEANO

D esde 1 1 de novembro de 1973 é sensível a marca do borromeano


no amor. Notadamente porque vem então à luz a adoração, uma
temática até então ausente do questionamento do amor. Com efeito, uma
inclinação faz a declaração de amor deslizar até a fórmula "Eu te adoro".
O que se adora, então? A resposta de Lacan provém do borromeano, ainda
que o borromeano não seja sua única razão: adora-se... uma silhueta. Mas
que relação o borromeano mantém com a silhueta? Nenhuma, a não ser
que o borromeano, em Lacan e em alguns outros na época, é notadamente
explorado por seu achatamento, em outras palavras, por um mergulho em
duas dimensões, as da silhueta.

DO DOIS DO AMOR

Embora interessado pelo Japão de uma maneira que terá deixado consequ­
ências, Lacan nada terá sabido do amor iki, que se praticava na época de
Edo no mundo dos bairros de prazer para em seguida aparecer na literatura
popular. O iki é um laço social de ordem principalmente estética entre
aqueles que frequentam esses bairros e as "cortesãs". Tomando distância da
ética confucionista, o iki é uma arte de viver, uma colocação em forma da
atração, do coquetismo, da bravata igualmente, mas também uma atitude
nobre e corajosa que deixa transparecer tanto o desencanto quanto a recusa
das ilusões da existência. Na relação homem/mulher, o amor iki limita-se à
realização dessa atitude. Camille Loivier, a tradutora de Kuki Shuzô, a quem
O AMOR LACAN

devemos a obra A estrutura do iki 1 , aproxima o iki do dandismo e cita Ver!ai­


ne: "Pois queremos a nuança ainda, não a cor, nada a não ser a nuança!". A
atração é o primeiro elemento constitutivo da atitude iki. Ela é tensão rumo
ao outro sexo, tensão que mantém a dualidade entre esse outro sexo e si. A
dualidade persiste na atração; a atração persegue o possível pelo possível; ela
incita à aproximação mas cuida de manter uma distância mínima. A arte de
viver iki consistirá em manter essa direção, essa tensão e esse afastamento.
Os mínimos detalhes dessa vida amorosa que é também uma vida social vão
ser precisados e determinados em função desta preocupação: uma maneira
de falar erótica mas que não busca lisonjear; uma voz de mezzo-soprano
mais que de soprano; um jogo com a nudez nos antípodas das revistas pa­
risienses, que por exemplo soltará a nuca mais que o decote; uma maneira
de se vestir saindo do banho; uma maneira de levantar o lado esquerdo do
quimono; uma maquiagem discreta ao ponto de passar quase despercebida;
um olhar brilhante mas em que deve ser lida a resignação diante da vida e a:
coragem de enfrentar essa vida; um sorriso mai s que um riso; um penteado
informal, como tal cuidadosamente estudado; muitos outros traços ainda
e notadamente uma silhueta longa e fina que evoca a Shuzô os personagens
de Greco, ou ainda as imagens de fantasmas no Ocidente. Tais silhuetas,
escreve ele, espiritualizam a atração2• O caráter longilíneo delas indica a
um só tempo a fraqueza da carne e a força da alma. Mas, sobretudo, essa
silhueta deve aparecer partida, não no sentido do espelho partido mas no
sentido em que ela valoriza uma linha de quebra, signo de um equilíbrio
corporal rompido sem sê-lo totalmente e, portanto, elemento de atração.
Bem informado da filosofia ocidental, Shuzô escreve:

Iki primeiro se manifesta numa ligeira ruptura da linha do corpo. [...] A


dualidade inerente à atração, causa material do iki, vem quebrar o equilíbrio
monista da silhueta para exprimir a atividade voltada para o outro sexo assim
como a passividade receptiva. Mas o idealismo irrealista, causa formal do

1 Kuki Shuzô, La stmcture de l'iki, Paris, PUF, 2004. O autor escreveu uma primeira versão de
.
sua obra em Paris e a publicou, após transformação, em 1930, no Japão, na revista Shizô (O
pensamento).
2 Ibid.. D. 68.
0 AMOR NOS TEMPOS DO BORROME ANO 419

iki, ao vir limitar e moderar essa ruptura do equilíbrio monista, põe um


freio no pressuposto da dualidade licenciosa3•

Lacan não encara a silhueta de uma maneira tão delicada quanto o


fazia a arte de viver iki. Ele antes a toma ingenuamente e a liga à adoração
_ à adoração, não ao amor. Pois se essa silhueta que suscita o amor iki (não
a adoração) é portadora de um traço, de um minúsculo detalhe que não
combina com o que ela oferece de harmonia, que não faz mancha mas se
apresenta como um ligeiro defeito (exemplarmente: a linha de quebra), em
compensação, o jogo de um tal defeito e com um tal defeito não ocupa o
dândi. No dandismo e na arte de viver iki, o "freio" (Shuzô) não é posto
no mesmo lugar. O dândi é menos voltado para o outro sexo (seu outro é
mesmo sexuado?), menos engajado na atração que aquele que, na mesma
época que Brummell e a milhares de quilômetros, se exercia na arte de viver
iki. Resta um ponto comum: cada um, à sua maneira, dedica-se a fornecer
um limite ao amor, a obter o amor que não se obtém, aquele amor Lacan
que, vemos aqui, pode tomar diversas nuanças. Até ali quase não abordada
nos seminários, a questão do (ou dos) limite(s) do amor vai vir em primeiro
plano nos tempos do borromeano.
Como Lacan aborda a silhueta? A despeito de suas duas dimensões,
não foi do achatamento do borromeano que ele partiu nesse 11 de dezembro
de 1973, mas de uma tentativa física, de uma bricolagem visando realizar
um nó borromeano com a ajuda de uma montagem de cubos, em outras
palavras, de objetos em três dimensões. Tentem, propõe ele a seu público,
"vocês perceberão aí a que ponto não sentimos o volume", vocês se darão
conta de que "somos seres, vocês como eu, de duas dimensões, apesar da
aparência. Habitamos o Flat land, como se exprimem autores". Segue, então,
a consideração sobre o amor adoração, mas trazida logo depois que foi alega­
do que não há outro laço entre os seres falantes a não ser de discurso, o que
limita já drasticamente toda pretensão do amor adoração a fazer laço. Não
há, em Lacan, discurso amoroso. Se, pois, não temos acesso ao volume. . .

3 lhid. n h'i-h6.
420

[...] há mesmo assim algo diferente, hein, que tomamos pelo volume. E,
justamente, é o nó. Hein? Fazemos dele... metáforas - não infundadas_ "os
nós da amizade", "os nós do amor". Pois é, limita-se a isso, enfim: é nossa
única maneira de abordar o volume. Quando abraçamos, assim, alguém
- também acontece comigo, sim - mas... será que estamos tão seguros dess es
nós? Ficamos nisso para a adoração, não é4 ?

Essas linhas colocam pelo menos dois problemas de ordem exegética.


O primeiro é simples de resolver: o que quer dizer o quase incorreto em
francês "ficamos nisso para a adoração"? Limitar-se às duas dimensões da
adoração, da silhueta, nada mais pode indicar a não ser o fracasso da tentativa
que seria a do amor de abordar o volume - cf. o início da afirmação em que
está em questão não o volume, mas "algo que tomamos pelo volume". Em
que consiste essa tentativa? Esse segundo problema é um pouco mais ma­
nhoso, pois o texto é portador de uma ambiguidade. A tentativa de abordar
o volume é a amizade, é o amor, ou então consiste na invenção como tal de
metáforas: nós da amizade, nós do amor? Apenas vendo essa frase, não se
pode decidir. Felizmente, três meses mais tarde, em 12 de março de 1974,
ainda vão estar em questão os nós do amor e, desta vez, para afirmar que "é
mesmo assim engraçado que isso fique na metáfora". Esse enunciado vem
suspender a ambiguidade dita acima. A tentativa de abordar o volume po­
deria ser a amizade, o amor; mas ela aborta ao se limitar à metáfora. Lacan
se espanta com isso, acha engraçado, deplora. Com efeito, desde essa sessão
e na série das sessões seguintes ressoa o mal-estar do amor. Esse sintagma
pode condensar-se em ma/amor. Ele nunca é enunciado desse jeito, mas seus
indícios são tão numerosos que validam, se não justificam essa nomeação.
Lacan constata: pelo menos no momento histórico em que ele fala, o amor
é sempre malamor; é disso que seria conveniente desprender-se e é a isso
que a análise poderia se dedicar. A fim de sair disso conviria t�rnar o amor...
volumoso, levá-lo a apreender seu objeto de outro modo que como uma
silhueta, não limitar-se à adoração.

4 J. Lacan, Les non-dupes... , sessão de 11 de dezembro de 1973.


0 AMOR NOS TEMPOS DO BORROMEANO 421

Muitas afirmações dizem o malamor em Les non-dupes..., a começar


pelo fracasso do amor em fazer volume: uma pessoa que amamos, na medida
em que a amamos, a perdemos (2 de novembro de 1973); o amor desejaria
ser possível (mesma data); essa debilidade que se chama o amor, em que
não se faz muito melhor que se virar ( 1 1 de dezembro de 1973); o amor se
choca com a objeção de que não concebemos como o ser seria a ser mani­
pulado a partir de algum ente ( 18 de dezembro de 1973); o amor, confessa
Lacan, me obseda, a vocês também, é claro, mas não como a mim (I 5 de
janeiro de 1974); falca ao amor sua regra do jogo ( 12 de março de 1974);
com o amor, pagamos as dívidas, damos a ele um óbolo, enfim, tentamos
por todos os meios permitir que ele se afaste, que se dê por satisfeito (I 9
de março de 1974). Em suma, malamor pode ser tomado como o nome
genérico desse amor que não é muito um e que seria suscetível de dar lugar
ao amor Lacan.
Por suas duas dimensões, a silhueta põe na pista o dois, ou antes um
dois que, durante um certo tempo, vai ocupar Lacan. Impressiona seu ca­
ráter polissêmico, mas também polifônico, Lacan jogando com o "deles*",
mas convém igualmente associar "Deus", o amor divino sendo chamado a
tomar um novo lugar.
A problematização do dois do amor deixa na beira do caminho amoro
como fazer um. Uma vez mais, nada é dito de um tal abandono. É verdade
que o "há um" de certo modo havia desvalorizado o amor como fazer um,
tinha emagrecido seu prestígio, e que talvez então não conviesse volcar a
isso. O fato é que essa própria desvalorização terá aberto a questão do dois
do amor. Qual dois? Ou antes, quais dois? Considerando essa partida com
a silhueta, o primeiro dois que se apresenta é o dois de dimensão. Por ele,
o amor vai ser aplicado ao borromeano. Esse deslizamento de certo modo
se impõe por si mesmo uma vez que Lacan dispõe do borromeano como
cifração de suas três dimensões: se a silhueta é situável nas coordenadas
cartesianas (duas bastam), trocar essas coordenadas pelas de Lacan abrirá
um novo canteiro de obras. No início dessa exploração, tem-se isto:

* lncm hnmnfônico entre deux [dois], d'eux [deles] Dieu [Deus]. (NT)
422

[ ... ] quanto mais vou mais estou convencido de que só contamos até três. E,
ainda, que seja apenas porque contamos três que podemos chegar a contar
dois - ainda a verdadeira religião, hein, já que é bem o cristianismo de que
falo, ela ali olhou por duas vezes. O ortodoxo, notadamente, que não quer
saber do jilioque5.

O argumento é de peso. Ele evoca um chiste mau que circulava no


Instituto de Psicanálise (uma instituição parisiense filiada à lnternational
Psychoanalytical Association). Por que, questionava-se, Lacan mantém
por tanto tempo seus pacientes em análise6? Resposta: para lhes ensinar a
contar até três. Não era tão mal visto! Lamentável que não se tenha nada
sabido fazer disso, nem sabido o que se dizia. Lacan poderia também ter-se
voltado para a ciência. Em Um dois três... o infinito, o físico russo-americano
George Gamow conta a seguinte anedota: dois matemáticos reconhecidos
conversam. Um deles pergunta ao outro: "Até quanto você conta?". Silêncio.
Longa reflexão do questionado, mas a resposta acaba vindo: ''Até três", logo
seguida de uma questão: "E você, até quanto conta?". Longo silêncio, longa
reflexão e, aí também, a resposta acaba vindo: ''Até três".
Há convergência entre o primado cristão do trinitário, e o que traz
o borromeano que, ele também, é feito um três primeiro. Deus e dois já
tinham tido dificuldades com Lacan; ele não inventa o jogo de linguagem
que os associa mas o colhe em Gide, que provavelmente o recebera de
Virgílio7, o célebre numero Deus impare gaudet8. Traduzimos: "Deus se
regozija com o número ímpar", ainda que, gaudere não estando refletido,
uma tradução mais literal daria "Deus goza com o número ímpar", ou, mais
elíptico: "Deus goza com o ímpar". Um certo Servus talvez tenha elevado
a fórmula de Virgílio à eminência do provérbio. Ele a comenta ligando-a

' ]. Lacan, Les non-d11pes..., sessão de 11 de dezembro de 1973.


6 Uma estranha maneira de questionar. Não se pergunta: "Por que seus analisandos manti­
nham Lacan por tanto tempo? Não se coloca tampouco a questão de saber por que o célebre
neurologista Oliver Sacks está, até hoje, em análise há quarenta e três anos" (Le Monde de 9
de janeiro de 2009) .
7
Virgílio, B11coliq11es, VIII, verso 75.
8
J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 471-472 (a nota 2 remete ao texto de Gide "Dic mr hic- a outra
Escola") .
0 AMOR NOS TEMPOS DO BORROMEANO 423

aos pitagoristas, que teriam dado uma forma de superioridade ao ímpar


ern razão de sua capacidade de produzir par, por oposição ao par, ele estéril
pois só podendo engendrar ele mesmo. Verlaine também fazia o elogio do
írnpar em sua arte poética9• Em Paludes, Gide havia escrito:

Você me lembra aqueles que traduzem Numero Deus impare gaudet por: "O
número Dois se regozija por ser ímpar" e que acham que ele tem bem razão.
- Ora, sefosse verdade que a imparidade traz em si alguma essência defelicidade
- digo de liberdade, deveríamos dizer ao número Dois: ''Mas, pobre amigo, você
não é ímpa,�· para satisfazê-lo de ser isso, procure pelo menos se tornar ele'°".

Vamos exatamente estar às voltas com isso, com um esforço de Lacan


para puxar, pela virtude do borromeano, o dois do amor para a imparidade.
Ele por várias vezes11 havia voltado ao inglês odd: "ímpar", mas também
"bizarro, estranho", não sem afinidade com o latim, em que impa1; impa­
ris, designa o dessemelhante, o desigual, talvez até o inferior. "Ímpar", na
expressão "cometer uma gafe*", é conotado negativamente, é o "não par",
comporta uma imperfeição. Mas para quem? Nem para os pitagoristas, nem
para Gide, nem para Verlaine, nem para Lacan, nem tampouco em política,
na qual da estrita paridade resulta a não-decisão, talvez até a guerra civil.
Não se teve que apelar para Atenas, nas Eumênides, para decidir condenar
Orestes ou dar-lhe clemência? Em "Situação da psicanálise em 1956", Lacan
parece fazer sua a tradução "burlesca" de "numero Deus impare gaudet", e
isto para determinar nada menos que aquilo que deve ser a orientação da
escuta do psicanalista:

9 "Música antes de tudo, e para isso prefira o Ímpar, mais vago e mais solúvel no ar, sem nada
nele que pese ou que pose".
10 André Gide, Paludes, Paris, Gallimard, 1920, reed. "Folio", 1973, p. 70.
11 Duas vezes no "Seminário da carta roubada", (Écrits, op. cit., p. 23 e 29), mas também na
"Observação sobre o relatório de Daniel Lagache", em que se lê (Écrits, p. 663): "Como se
sabe, as partículas tão diferenciadas em todas as línguas que matizam a negação oferecem à
lógica formal oportunidades ímpares (oddities ) que comprovam que elas participam de uma
distorção essencial [...]".
* i:;_ ·M�rAe ,.,,..,..,Plh'P 1111 im/Jair [lit. Cometer um Ímpar]. (NT)
É assim que a fala que se oferece à adesão de vocês num lugar comu m , e c om
uma evidência tão capciosa quanto é atraente sua verdade, por só se entregar
num segundo tempo - como em: o número dois se regozija em ser ím pa r (e
tem razão o número dois de se regozijar por sê-lo, embora esteja errado e m
não ser capaz de dizer por quê) - encontrará no nível do inconscie nte seu
alcance mais significativo, purificado de seus equívocos ao se traduzir po r:
números, são dois, que não têm igual, ficam esperando Godot 1 2 •

Logo, uma nova conivência do dois e de Deus. Breve vamos reenco n­


trá-la, mas doravante prevenidos de que a paridade do dois já havia sofrido
alguns arranhões por parte de Lacan (e de alguns outros) antes de ele encarar
o dois a partir do três borromeano.
Tenta-se, aqui mesmo, dar conta dos enunciados de Lacan sem despre­
zar suas condições enunciativas; elas permitem, pelo menos é esta a aposta,
que a decifração não seja desviada demais. O mesmo acontecerá quanto à
ocorrência do dois em Les non-dupes. . . , essa ocorrência resultando até de
uma conversa de Lacan com seu público. Em 20 de novembro de 1973,
Lacan discute algumas páginas de Freud relativas à questão dos limites da
interpretação, "die Grenzen der Deutbarkeit". Para o sonho, esses limites
seriam dados pelo sentido sexual; ora, não há nada ali que seja evidente.
Pois "a linguagem é feita assim, é algo que, por mais longe que vocês levem
a cifração, não conseguirá nunca soltar o que acontece com o sentido, por­
que ela está ali no lugar do sentido 1 3 " . A segunda questão de Freud nesse
texto é saber se, por exemplo partindo de um sonho, são calculáveis todos
os elementos do futuro. Lacan retoma essa questão a partir de Aristóteles,
o qual tratava da contingência perguntando-se se era possível saber, na
véspera da batalha de Mantineia, qual dos combatentes ia vencer. Lacan,
então, interpela seu público:

Por que uma vitória não é calculável? Quem me responde?


Um certo silêncio. . .

11 J. Lacan, Écrits, 1 966, p. 47 1 . Gide é mencionado em nota como predecessor: " O nonsens
sobre o qual ap6s ele especulamos".
l.l /d., Les 11011-dupes... , sessão de 20 de novembro de 1 973 (no n m �r�n mn,l : 1: -- ..l - \
O AMO ll NOS T E M POS DO BO ll R O M E ANO

Escutem, uma vitória não é calculável. . .


Alguém na sala - Porque é preciso ser dois... !
Há ideia... Há ideia, é evidente, enfim, é verdade, como você diz, é preciso
ser dois, e às vezes até um pouco mais... Mas indo nesse sentido, não é, você
vê bem que, apesar de tudo, você desliza bem devagar do lado, do lado onde
esse dois, onde esse dois fracassa: isto é, do lado da relação sexual . É bem um
truque, hein, ser dois. Sim. Quando penso que não terei tempo hoje de lhes
contar todas as belas coisas que eu havia preparado para vocês sobre o amor,
pois é, fico um pouco decepcionado mas é porque perdi tempo [ . . . ] .

De modo exemplar, enquanto poderia estar em questão a não-rela­


ç ão sexual, enquanto ia estar em questão a não-relação sexual (do dois que
malogra), eis que se interpõe o amor. E é a contrapelo do "ser dois" que
parece então se apresentar a relação de Lacan com seu público, numeroso
demais para que ele e seu público possam ser dois, ou ainda, ele vai dizer isso
também, para que ele possa tomá-lo por uma mulher. Para que possa amá­
la? "É bem um truque, hein, ser dois". Truque: maneira de agir que requer
habilidade, destreza. Mas também, sempre segundo o dicionário Le Robert,
"astúcia, dica, procedimento, esperteza, estratagema, volta". Segundo sen­
tido: "meio concreto, máquina ou dispositivo cênico destinado a criar uma
ilusão". Etimologicamente, um truque é um golpe. Esse truque, portanto,
tanto em Lacan quanto no cristianismo, consistiria num engendramento:
o dois viria de um três primeiro. O amor Lacan nem por isso será o amor
cristão. Segundo as coordenadas lacanianas renovadas pelo borromeano, o
truque do amor adoração seria uma passagem de três a duas dimensões, a
da silhueta. Essa mudança de dimensão modifica certos dados. Assim, o
achatamento do nó borromeano obriga, por exemplo, a distinguir dois nós,
u m levógiro, o outro dextrógiro. Enquanto que em três dimensões essa obri­
gação sai fora. Essa passagem de três a duas dimensões diz respeito a certas
apresentações possíveis do borromeano que são outras tantas interrogações
da própria estrutura do borromeano. Essa estrutura deve ser conservada.
Em outras palavras, para abordar qualquer problema que seja, e o amor
não escapa a isso, não pode estar em questão essa passagem de três a duas
dimensões, no entanto imaginável, que consistiria em engendrar um enla-
çamento de apenas dois anéis de barbante a partir de três anéis encadeados
borromeanamente. Perfeitamente realizável, essa transformação pode ria ser
operada pela "colocação em continuidade" de dois dos três anéis do b orro ­
meano. O primeiro desenho abaixo mostra como se opera essa colo cação
em continuidade, o segundo, seu resultado:

...
c6)
Não seria isso o amor, esses dois anéis incrustados (talvez até o ca­
samento) ? Nem um só segundo Lacan encara essa possibilidade. Por quê?
Porque real, simbólico e imaginário são de estrutura, o que exige que nenhum
desses três, sejam quais forem suas relações, possa ser posto de lado. Logo,
será necessariamente com essas três inelimináveis dimensões que se fará a
abordagem borromeana do amor como dois. Em outras palavras: a adoração
não é o amor; e bem mais decisiva que a adoração parecerá a abordagem cristã
do amor, ela também baseada numa ternaridade fundamental e primeira .
E é portanto com isso que vamos estar às voltas, com um dois ou, se
preferirmos, com um símile dois engendrado pelos dois ímpares que são o
um e o três:

[. .. ] ele estaria errado [o dois] de se regozijar em ser ímpar, pois caso se


regozijasse por isso, seria uma pena para ele, ele não o é seguramente, mas
que seja engendrado pelos dois ímpares um e três é, em suma, o que o nó
borromeano nos salienta, se posso dizer 1 4 •

De que modo o amor como fazer dois poderá, então, ser cifrado por
uma cadeia borromeana que necessariamente comporta pelo menos três
elementos? À primeira vista, isso parece impossível, e de fato seria se não
fosse que o borromeano dá lugar a um grande número de apresentações.

14 J. Lacan, Les non-dupes..., sessão de 12 de março de 1974.


O AMO R NOS T E M P O S DO B O R RO M E A N O 42 7

Uma delas oferece o nó achatado, mas de maneira tal que um dos anéis está
à esq uerda, um outro à direita (nos "extremos") , ao passo que o terceiro,
li gan do esses dois, está "no meio" - Lacan o chamará "o médio*" . Talvez
es tej a aí o que o borromeano pode oferecer de melhor em maneira de im­
paridade do dois: o dois dos extremos, tornados dois pelo médio. Isso pode
parecer um truque e, com efeito, isso é um truque, na melhor das hipóteses
um a convenção, mas que coloca interessantes questões, algumas de ordem
topológica, outras ligadas às operações, notadamente de nomeação - o
borromeano valendo como suporte de certos termos. É tão verdade que
Lacan recorre ao borromeano para seu questionamento do amor que até
lhe aconteceu dizer que é pelo próprio fato desse questionamento que ele
se pôs a estudar o borromeano. Essa afirmação está na linha daquelas que,
em 1 1 de dezembro de 1 973, dizem respeito à silhueta e ao volume.

O dois nada mais pode ser que o que cai junto do três. E é por isso que este
ano tomo como assunto [ . . . ] o nó borromeano. [ . . . ] É de qualquer modo
em razão de algo da ordem dessa debilidade que se chama o amor, em que
não se pode muito fazer melhor que . . . que se virar [ . . . ] 1 5 •

00 AMOR C RI STÃO

De onde vem essa ideia de um "o que cai j unto" ? De uma irritação, expressa
logo antes : " [ . . . ] obrigam-me a suar um pouco ao sempre me responderem
com um dois eterno. Embora eu sempre o tenha produzido como índice
[alusão ao S) , isto é, como sintoma" . Como reduzir essa irritação ? O amor
eterno é o amor cristão, do ponto de vista do qual a posição de Lacan será
a um só tempo de proximidade e de distância. Várias vezes ele convida seu
auditório a ler os autores cristãos a respeito do amor. Lembramos que ele
já mencionou e utilizou várias vezes Denis de Rougemont, Anders Nygren

* Moyen tanto pode ser médio, isto é, situado entre extremos, quanto meio, no sentido de
intermedidrio. O emprego de médio vai, portanto, ser ambíguo. (NT)
15 T T �r� n . l.es non-duo es ... , sessão de 11 de dezembro de 1973 (pontuação modificada) .
0 AMO R L AC A N

e Pierre Rousselot. Outros vão agora ser convocados, a começar po r


Pascal:

[ ... ] um dia eu disse isso de maneira bem direta, assim, bem clara, eu disse
que o efeito da interpretação [é incalculável] - para me limitar àquilo a
que, não é, devo ficar colado, devo permanecer tolo, e mais ainda tolo sem
me forçar, porque se sou tolo forçando-me, pois bem, escreverei o Discu rso
sobre as paixões do amor, justamente, vale dizer o que escreveu Pascal; e com o
vemos que ele se força, hein? [ ... ] É absolutamente magnífico; enfim, ao nos
forçarmos, conseguimos dizer. . . conseguimos realmente não errar 1 6 •

Hoje se duvida que o Discurso em questão seja de Pascal, certos traços


estilísticos deixando pensar que ele poderia ser atribuído a La Rochefoucauld
ou a Malebranche. Pouco importa aqui. Logo, um convite à leitura. N ão
que esse Discurso, que tenta fazer caminhar junto e em bom entendimento o
amor com o espírito (e não a alma), diga a verdade do amor Lacan. Mesm o
que cada um, Pascal ou Lacan, permaneça tolo e portanto não erre, uma
distância é claramente sublinhada: há forçamento em Pascal, retraimento
em Lacan. Ele não escreverá seu Discurso sobre as paixões do amor. Outro
convite à leitura: Kierkegaard, esse companheiro em dandismo, Kierkegaard
do qual foram recentemente publicados na França os Didrios e cadernos de
notas de onde felizmente se valorizou 1 7 a própria afirmação que assinala o
fim do romantismo, um simples papelzinho recortado que diz "a onipre­
sença do chiste".
Depois de ter mencionado o mandamento "Amarás teu próximo como
a ti mesmo", Lacan prossegue:

Seja tolo, você não errará, devo dizer. Porque não se pode dizer que religião
igual não seja nada. Já que eu lhes disse na última vez, é a verdadeira, é a

16 J. Lacan, Les 11011-dupes ... , sessão de 20 de novembro de 1 973 (o acréscimo entre colch etes,
que torna gramatical a frase, provém, com certeza possível quanto a seu teor, do con texto) .
Pontuação modificada.
1 7 O uvido em France Culture e lido no n º 463 do Mflvnzine littémire / a h r i l cJ,. 7007) n 'i 1 .
O A MOR NOS TEM P OS DO BORROMEANO 429

verdadeira já que ela inventou essa coisa - essa coisa sublime - da Trinda­
de. Ela viu que era preciso três. Que era preciso três anéis de barbante de
consistência estritamente igual para que nada [nada?] funcione. [ ... ] Mas
leiam Vida e reinado do amor em Kierkegaard [ ... ] Leiam isso, porque não
há lógica mais implacável, nunca se articulou nada melhor sobre o amor,
entenda-se o amor divino 1 8 •

A última precisão manifesta a mesma reserva já ressaltada a respeito


de Pascal. O ser tolo faz solo comum; mas essa comunidade posicional não
funciona sem uma certa distância. Por não termos identificado esse acordo/
desacordo com o cristianismo, arriscamos lançar na conta do amor Lacan
o que decorre de uma análise crítica do amor divino. Algumas frases são
suficientemente equívocas para servir a mal-entendido igual. Essa armadilha
estando evitada, notamos que Lacan, nesse momento quase conclusivo desse
seminário, dedica muitos esforços à análise do amor divino. Talvez esteja
ligado a sua irritação. Tudo se passa como se ele diagnosticasse e fizesse saber
a pregnância desse amor divino, inclusive entre aqueles que se imaginam
presos em outro lugar que nas redes do cristianismo, entre aqueles a quem
ele declara frontalmente que eles são "ainda mais babacas" que os cristãos.

Sei bem que vocês não creem, não é? Mas vocês são ainda mais babacas,
como já tive a oportunidade de lhes dizer na última vez, porque, ainda que
vocês não creiam, nessa aspiração [a do amor divino] , vou mostrar-lhes isso
ao longo daquilo que vou lhes dizer hoje, nessa aspiração, vocês creem. Não
direi que vocês a supõem: ela supõe vocês.

Uma babaquice, portanto, entre aqueles que engolem a pregação


sobre o amor eterno; e uma babaquice maior ainda entre aqueles que se
imaginam fora desse campo ou surdos a esse canto. Entretanto, a relação
entre a babaquice e a verdade não é de exclusão recíproca 1 9 , que haja uma

18 J.Lacan, Les 11011-dupes. . . , sessão de 1 8 de dezembro de 1 973. O contexto parece entregar


a estranheza do "para que nada funcione": seria o "esvaziamento do amor sexual" ou, dito
ainda de outro modo, do fato de que "o corpo torna-se morto" .
19 J,,� n A l l ouch. Les im/Jromptus de Lacan, Paris, Fayard/Mille et Une Nuits, 2009.
430 O A M O R LAcAN

verdade da babaquice torna apropriado o interesse crítico que Lacan tem


no amor eterno. Essa crítica vai tomar dois vieses: 1) uma denúncia da
pretensão desse amor a pôr em jogo, talvez até a atingir o ser como tal, que
valerá igualmente como denúncia do amor platônico, e 2) uma apresenta­
ção borromeana daquilo que esse amor eterno tenta realizar. Antes de mais
nada, a denúncia:

O amor, em tudo o que, o que nos permitimos garatujar até agora, é de


qualquer modo algo que se choca com a objeção de que não concebemos
como o ser [ ... ] seria a ser manipulado a partir de algum ente. O que apre­
senta uma grande dificuldade lógica. Já que o ser, quando lhes falamos dele ,
isso não é pouco, e isso desemboca nessa aspiração que será feita a par tir
de Deus, do amor20 •

Se não fosse a elíptica alusão à lógica, ouviríamos aqui ressoar o corte


heideggeriano. Mas sobretudo, essa crítica do amor cristão atinge também
muitas afirmações feitas anteriormente por Lacan, todas aquelas que, pre­
cisamente, faziam do amor um acesso possível ao ser. Esse acesso é agora
qualificado de "babaquice". E a sequência da denúncia se apresenta de tal
maneira que acabamos nos perguntando se não atua aqui, determinando
em silêncio o propósito, o significante "conhecer"*:

Em suma, tenta-se esvaziar tudo isso - ou encher, que importa - esque­


matizando-o na velha metáfora do conhecer. Sabemos com quem estamos
às voltas, aquele com quem estamos às voltas, conhecemo-lo no amor...
Só que, vou objetar: o que é o ser, se não o caso desinfetado das perfeições
imaginárias com o que sonhamos, com o qual vocês mesmos, acabo de lhes
dizer, o que quer que saibam disso, vocês sonham, vocês sonham a escala.
A escala cujo último escalão será ou não esse Deus de que há pouco falei...
mas se não for esse, é um outro.

20 ] . Lacan, Les 11011-dupes. , sessão de 1 8 de dezembro de 1 973.


..
• Jogo homofônico: con-être [lit. babaca-ser] soa connaitre [conhecer]. (NT)
M
O A OR
NOS TEM P OS DO BORROMEANO 43 1

A dita escala remete a Platão, e está portanto visada a imemorial


conivência entre amor platônico e amor cristão - este último não sendo
aq ui diferenciado do amor divino, pois Lacan, após muitos outros, pensa
0 cristianismo como vera religio. Não é somente objetado que o amado é
u ma figura imaginária, afirmação em que se ouve um eco da tese do caráter
narcísico do amor; é afirmado, além disso, que no lugar do amado assim
situado ocorre uma aspiração (a ser entendida num sentido tudo o que há
de mais físico) que, desse amado, conduziria a Deus. Essa aspiração é o pró­
prio amor, entenda-se o amor divino. Lacan identifica essa aspiração como
sendo um sonho acordado, ao qual lhe será assim fácil opor o verdadeiro
sonho, "aquele que lhes faz soar os sinos". Outra maneira de marcar sua
distância em relação ao amor cristão: a humorística e rangente sexualização
do mandamento divino:

Que efeito isso lhes faz se o enuncio "Amarás tua próxima como a ti mes­
mo" ? Isso faz de qualquer modo sentir algo, hein, é que esse preceito funda
a abolição da diferença dos sexos. Quando lhes digo que não há relação
sexual, eu não disse que os sexos se confundem, bem longe disso!

Mas com certeza se trata de outra coisa ainda que marcar uma di�tân­
cia. Lacan vai atacar o amor cristão ao desenvolver suas consequências, e isto
pelo viés de uma apresentação borromeana do amor cristão. Ela se anuncia
de maneira bem violenta: "Vou lhes dizer coisas de vomitar". O que, então?
Coisas que vão mostrar as consequências desagradáveis do dois do amor.
O francês vem em ajuda a Lacan: o fazer dois dos amantes é o que os põe
"fora deles* ". Fora de quê? Aqui intervém o borromeano. O enodamento
borromeano de s.R. I. oferece três e apenas três apresentações em que uma
das consistências pode ser tomada como médio: esse médio será s, ou então
r, ou então R. Vem, então, uma das mais explícitas mostrações do fato de
o amor Lacan não ser o amor cristão. Poderíamos nos espantar com o fato
de o simbólico funcionar como médio para o amor cristão. Seria desprezar
que os Evangelhos fazem de Cristo a própria palavra.

* Jogo homofônico: hors d 'eux [deles] e deux [dois]. (NT)


43 2 O A M O R LACAN

Estando eleito s como médio, os dois extremos serão R e 1 :

S e considerarmos que esse simbólico [ ... ] fa z o papel de médio entre o real e


o imaginário... estamos aí no cerne do que é esse amor de que eu falava há
pouco sob o nome do amor divino. Para isso basta esse simbólico tomado
enquanto amor, amor divino - isso lhe cai bem - ele está sob a forma desse
mandamento que põe no auge o ser e o amor.

Daí, vai ser operada uma distribuição das cartas (sequência da afirmação):

Para que ele conjugue algo enquanto ser e enquanto amor, essas duas coisas
só podem ser ditas suportando o real por um lado, o imaginário por outro,
respectivamente começando pelo último, do corpo e do outro, o real, da
morte. É bem aí que se situa o nervo da religião na medida em que ela
prega o amor divino.

O ser é lançado na conta do real; o amor na do imaginário. Essa


distribuição é em seguida redobrada: ao imaginário é associado o corpo;
ao real, a morte .

real simbólico imagindrio


ser amor
amor divino
morte corpo

O amor divino, simbólico, liga o amor ao ser, o corpo à morte. Passa


a ser então possível apreciar-lhe os defeitos :
O AMOR NOS T E M POS DO BORRO M EANO 433

É bem aí também que se realiza essa coisa louca, esse esvaziamento do que
acontece com o amor sexual na viagem. Essa perversão do Outro como tal
instaura na histórica sádica da culpa original, e em tudo o que se segue (por
ter adotado, é claro, esse mito pré-cristão, por que não, talvez seja tão bom
quanto outro), instaura no imaginário, no corpo, justamente, essa espécie
de levitação, de insensibilização do que lhe diz respeito, que é afinal, não
preciso insistir mais nisso, toda a história do que foi chamado o arian i smo,
talvez até o marcionismo.

A condenação do arianismo, pelo Concílio de Niceia em 325, permitiu


a formulação do dogma trinitário. Quanto ao marcionismo, ele também
condenado, talvez seja mencionado aqui por sua recusa radical de todo con­
tato corporal entre os fiéis. Levitação do corpo, insensibilização do corpo,
esvaziamento do amor sexual, seriam estas as consequências do amor divino,
enquanto que seus promotores seriam os servidores de uma perversão do
Outro, de um sadismo, termo com o qual Lacan ressalta, portanto, aqui,
a o ferta cristã. Está claro que ele não aceita esses procedimentos... Pouco
depois, mencionando Vida e reinado do amor, de Kierkegaard, ele coloca­
rá os pingos nos ii. A trilogia do amor cristão é então apresentada como
caridade, fé e esperança; é, no entanto, habitualmente dita numa ordem
diferente: fé, esperança, caridade. Esse deslocamento da caridade marca o
especial interesse que Lacan lhe dá. E mais uma vez, quanto ao amor, é feita
referência à pintura em que a caridade é figurada como "aquela mulher de
seios inumeráveis, não é, na qual são penduradas inúmeras crianças". Isso
não lhe convém; ele diz o preço e dá, desse modo, sua definição do amor
divino: "A relação entre o corpo e a morte é articulada pelo amor divino de
uma maneira tal que faz, por um lado, que o corpo se torne morto, que a
morte se torne corpo, por outro lado, e que é por meio do amor". Passa a
ser possível suplementar o pequeno quadro acima:

real simbólico imagindrio


ser amor
amor divino
corpo morto corpo morto
434 O A M O R LAc
AN

Teremos reconhecido, nessa morte corpo, a ressurreição da carne. O


amor divino faz do corpo vivo um corpo morto e do corpo morto, um corpo
vivo. Logo, o que está errado em sua distribuição? Curiosamente, Lacan
não menciona aqui A repetição de Kierkegaard embora até suas observaçõ es
saltem aos olhos como uma duplicação da análise kierkegaardiana2 1 •

O amor de Deus é a suposição de que ele deseja o que se cumpre para to ­


dos os fins, se posso dizer. É a definição da teleologia em si mesma. É uma
transformação do termo desejo em termo fim. Mas, nessa articulaç ão, o que
faz o fim é o meio; na articulação do nó borromeano, há confusão com 0
meio e o fim. Todo fim pode servir de meio. Façamos aqui, justamente, es te
simples parêntese [... ] que, ao tomar esse lugar [... ], o amor divino expulso u
o que acabo de definir como o desejo. Com esse ganho de uma verdade,
a verdade do três, que, se posso dizer, paga a coisa e a compensa: o que é
propriamente falando situável nesse lugar, no lugar do simbólico na medida
em que ele se torna apenas médio, é o desejo. Noto de passagem, o amo r
cristão não apagou, bem longe disso, o desejo. Essa relação do corpo com
a morte, ele, se posso dizer, a batizou amor.

Seria esse o "truque" divino: batizar "amor" esse desejo de Deus {ge­
nitivo subjetivo e objetivo) que leva o cristão ao fim, ao fim dos tempos,
que faz desse fim seu meio. Lacan convida a ler "desejo de Deus" ali onde
o simbólico, tomado como meio, situa o amor divino. Em 12 de março de
1974, ou seja, a própria sessão em que é formulado o voto de dar sua regra
do jogo ao amor, retoma essa apresentação crítica do amor divino: "Em que o
simbólico, o imaginário e o real, será algo que, pelo menos, teria a pretensão,
enfim de ir um pouco mais longe que... que essa girada em círculos do gozo,
do corpo e da morte22?". No entanto, apresenta-se outra possibilidade, que
situaria de outro modo o amor nos tempos do borromeano.
Nessa mesma sessão de 18 de dezembro de 1973 em que esteve em
questão o amor divino, segundo a lógica das três únicas possibilidades ofe-

Z I Ver supra, capítulo xm, p. 256.


22 J . Lacan, Les 11011-dupes... , sessão de 12 de março de 1974 .
M O R NOS TEMPOS DO BORROM E A NO 435
O ,'\

elo borromeano de três anéis de barbante de instaurar um termo


,ecidas p
médio e dois extremos, Lacan encadeia assim:

Então, o que nos demonstra o anel de barbante do imaginário tomado


como médio? É que o que ele suporta não é nada menos que o que se deve
bem chamar o amor, o amor, se posso dizer, em seu lugar, aquele que ele
teve desde sempre 23 •

Esse "desde sempre" é bem feito para chocar, como sempre o in­
tempestivo "sempre", ainda mais que não cessamos de estar às voltas com
diferentes figuras do amor, inclusive no próprio Lacan. E compor, a partir
dessas diferentes figuras, uma espécie de pedestal comum abstrato que seria
0 amor de sempre não parece muito heurístico. Outra objeção ainda, desta

vez propriamente significante: a rima de que o francês abusa, entre "amor"


[amour] e "sempre" [toujours] , não torna o amor mais viável. Se o amor
fosse de sempre e para sempre, como se poderia ter falado de um amor de
transferência? Não teria, ele também, nunca fim? Lacan deve sentir o perigo
de seu "desde sempre" pois logo procura se explicar fazendo-se - não é a
primeira vez - historiador do amor. Logo, o que é precisamente seu amor
de sempre? Sua tese "historiadora" é a seguinte: o amor cortês não é {acres­
cento: como muitas pessoas pensaram, e ainda hoje) "uma contrateoria do
amor divino", tampouco uma "compensação", mas uma ressurgência, um
reaparecimento, no próprio feudalismo, da ordem antiga do amor. Esse amor
se teria mantido discretamente no feudalismo, em outras palavras, num
contexto diferente daquele da cidade antiga grega ou do Império Romano,
para ali voltar abertamente com o movimento cortês.

E para tudo dizer, peço-lhes que verifiquem, não vejo distinção alguma
quanto ao acento, quanto ao sentido do amor, entre o que nos resta das
teorias, bem elegantes, do amor cortês e todo o romance que se desenvolve
em torno, não vejo diferença alguma entre isso e o que nos mostra a literatura
de Catulo e a homenagem a Lésbia, por mais prostituída que fosse. Penso

23 lbid. , sessão de 18 de dezembro de 1973.


4 36 0 AMOR L ACA N

que aqui [podemos supor que ele aponta o desenho de um nó borromean o


com um termo médio e dois extremos] , isto é, o imaginário tomado co m o
médio, é este o fundamento do verdadeiro lugar do amor24 •

A fim de escorar essa surpreendente afirmação (posteriormente des­


mentida), breve virá o argumento segundo o qual o que funcionava como 0
imaginário do belo em O banquete de Platão tomou corpo no amor cor tês.
Acreditamos compreender que esse corpo é o da dama. Entretanto, nada
garante que a verificação proposta se concluiria como desejado. Não se pode
desprezar o sentimento de novidade experimentado pelos poetas corteses
e as pessoas à volta e menos ainda a reação da Igreja que viu no fin'amor
um perigo efetivo. Mas não é esta, aqui, a questão. Tudo se passa como se,
no momento mesmo em que tenta algo de novo relativo ao amor, Lacan se
desculpasse sugerindo que se trata apenas do amor de sempre. É evidente
demais, e veremos nisso não tanto uma tese sobre a história do amor no
Ocidente quanto um procedimento retórico banal a sublinhar ainda mais
uma novidade porquanto ele a anuncia como coisa antiga. Vale mais jogar
o jogo, sem se preocupar com a realidade histórica invocada, sua história
do amor produzindo em Lacan uma questão (falsa, portanto, com certeza,
ela também, historicamente). Com efeito, desde esse amor de sempre, ele é
bem forçado a se perguntar: "Como pôde ocorrer esse deslocamento, afinal
fecundo, que no amor cristão situa o amor no lugar - vocês verão no fim por
quê - no lugar que me parece ser o do desejo?". Tal enigmática interrogação
é mais que uma questão, ela traz dados novos sem no entanto explicitá-los.
Notadamente um estranho "deslocamento", mas também uma afirmação
pouco precisa sobre "o lugar do desejo". Qual é, então, esse lugar "que me
parece [sublinho] ser o do desejo"? À primeira vista, os lugares seriam três:
dois extremos e um médio. Mas esses lugares são mais numerosos ainda (seis
exatamente), já que em cada um desses três lugares ditos acima pode vir ou
R, ou s, ou 1 2 5 • Vimos que o amor divino estava inscrito numa cadeia R. S . I .

24 J. Lacan, Les 11011-dupes... , sessão d e 18 d e dezembro d e 1973. Modifiquei ligeiramente o


texto.
25
O jogo de três lugares e de três letras dá lugar a seis configurações possíveis: RSI , S I R, I RS, ru s ,
!SR e S R! .
O AMOR NOS TEMPOS DO BORROMEANO 437

n o lugar de um anel médio identificado como simbólico - ainda que essa


cadeia pudesse ter sido I.S.R., só uma pequena afirmação tendo feito pender
em favor de R. S.I. 26 ; e visto igualmente que o amor divino vinha no lugar
do desejo, que portanto também estava em lugar de médio, e de um médio
i d entificado como s. Questão: o lugar do desejo é aquele do médio como
tal (e pouco importa, então, que esse médio seja R s, ou 1), ou então de um
médio marcado ou s, ou R, ou 1? Ou então ainda estaria ele em outro lugar
que no termo médio? Vamos nos dispensar de tomar o problema de modo
formal demais, o lugar dos extremos permanecendo ambíguo. Deve-se di­
ferenciar um extremo esquerdo e um extremo direito? É melhor limitar-se
aos enunciados, ao que eles dizem dos lugares, sem esquecer que o auditório
está prevenido da dificuldade: "É difícil".
Tentando responder à questão por ele mesmo forjada, Lacan cita
o ensino de Cristo: "Imitem o lírio dos campos, ele não tece nem fia". O
que ele interpreta de maneira audaciosa partindo primeiro da observação
segundo a qual, desde que essa fala foi proferida, o saber veio desmenti-la: há
tecedura e fiação na natureza. Entretanto, sua audácia está em outra parte,
não tanto ainda no fato de que, a seus olhos, o convite crístico "acrescenta
ao desconhecimento a denegação", mas na interpretação dessa denegação
como denegação do saber inconsciente - o caso dos lírios dos campós sendo
lido como uma metáfora: o inconsciente também, como o lírio "moderno",
tece e fia. E vamos encontrar aí uma temática por muito tempo deixada
d e lado, aquela que articula o amor com o saber. A denegação cristã do
inconsciente é denegação

daquilo que ele tece e que ele fia, esse saber sem o que não há justa situação
do amor se [sublinho] aquilo em que consiste o amor for precisamente esse
dizer, esse dizer que parte, notem, do imaginário tomado como médio.

A condição deixa pairar um certo suspense: o amor tomado como


médio é o amor divino, ou então é aquele amor de sempre construído por

26 Lacan havia dito: "[ . . . ] se tomarmos esse simbólico [ . . . ] como se desempenhasse o papel de
__ 1 _J ! _ r 1 - - - - - - ___ , - .... =---: .... .! .. : .... " / ,.� ,. ; ,. \
4 38

Lacan? Este último também estaria em lugar de médio? A resposta é dada ,


parece, quando Lacan afirma que o amor divino "esvaziou de seu lugar" 0
amor cortês (o amor de sempre). Esse passo permite que ele prolongue sua
análise daquilo que o cristianismo teria realizado. Ele nota, então, que se 0
amor divino afastou o amor cortês e se, como vimos, esse amor divino vern
no lugar do desejo, isso de modo algum implica que "o desejo é tr ocado"
(o que não teria sentido algum em Lacan) mas que ele "foi levado a o utro
lugar, a saber, para ali onde o próprio real é um médio entre o simbólico e
o imaginário". Logo, estamos às voltas com duas cifrações borromeanas da
operação cristã, uma que diz respeito ao amor, a outra, ao desejo. Para o amor
divino, era R. S . I . , para o desejo será S . R. I . A afirmação segundo a qual o amor
divino tomou o lugar do desejo apresenta-se de outro modo. O diagnóstico
de perversão já referido ao cristianismo vê-se assim esclarecido. Se esse real
em posição de médio é a morte, e se ele une o gozo e o corpo (eis aqui 0
dois), então essa perversão cristã traz um nome: masoquismo.
Há um certo rigor no discurso assim mantido, pois, depois de s ter
sido colocado como termo médio (o amor divino), depois 1 (o amor em seu
"verdadeiro lugar"), eis agora que R ocupa essa posição (a perversão cristã).
Logo, parece que as três únicas possibilidades foram bem tratadas. Mas
nem tudo por isso gira tão redondo assim. Com efeito, nos dois primeiros
casos, o borromeano situava uma certa figura do amor, no terceiro, o desejo.
Quanto a saber, além disso, o que seria o verdadeiro lugar do desejo que
não pode consistir nessa perversão masoquista recusada por Lacan, ainda
ficamos amplamente na incerteza - o que talvez não seja tão mal-vindo
tratando-se do desejo.
Por mais fantasista que seja, essa história oferece uma orientação
à prática analítica. E antes de mais nada uma retificação. Como o amor
divino deslocou o amor de sempre (agora se sabe só um pouco melhor
mas não ainda precisamente em que teria consistido esse deslocamento) e
como a análise se inscreveu nesse deslocamento, vai se tratar de sair disso,
de refazer o caminho desse deslocamento, de reinscrever a análise no amor
de sempre. Agora entendemos por que Lacan terá precisado desse amor de
sempre. A escrita da cadeia do desejo preso nas redes do cristianismo, ou
seja, a cadeia R. S . I . , vai então servir. O que ela liga? O gozo e o corpo. Isso
0 AMOR NOS TEM POS DO BORROM EANO 439

n ão é tão ruim assim: para s, o gozo seria o da Fala (de Cristo) e, para 1 ,
0 corpo imaginário seria o corpo glorioso que o cristianismo agita como
um chocalho para incitar cada um a orientar a vida para um outro mundo.
Logo, a psicanálise teria deslizado nessa configuração (s.R.1.):

[ ... ] o fato de ser o masoquismo que ali os [os psicanalistas] tivesse suscitado
não deixa dúvida alguma; a j unção, o emprego como médio, como médio
para unir o gozo e o corpo, dessa perversão, é decerto o que os liga. O que
os liga, se posso dizer, por um tempo, enfim, irremediavelmente, aquilo
sobre o que uma parte da teoria deles é construída27 •

O masoquismo é o que amarra os analistas. Apreciamos o humor:


eles são amarrados, não amarram. Para desprendê-los dessa amarração, é
possível tomar apoio no erro do cristianismo que foi denunciado, em seu
desconhecimento/denegação do saber no real:

O fato é que o amor é a relação do real com o saber. E a psicanálise, é pre­


ciso que ela se corrija desse deslocamento, desse deslocamento que é devido
ao fato de que, afinal, ela só fez seguir a virada fora de lugar do desejo, é
preciso bem que ela saiba que, se a psicanálise é um médio, é no lugar do
amor que ela fica.

Muitas coisas aqui são ditas em duas frases.A começar por uma analo­
gia: da mesma forma que o amor divino expulsava o desejo, da mesma forma,
embora contra a corrente, ali onde se mantém o amor de transferência, ali
mesmo deve vir alojar-se o que ele expulsa, a saber, a análise. Quando lemos
que a análise fica no lugar onde ela aloja o amor, podemos simplesmente
pensar na descoberta da transferência como obstáculo à análise. Entretanto,
logo segue uma declaração em que o amor se vê configurado como aquele
amor que se obtém, sim, mas não se obtendo, em outras palavras, como
um amor que estd às voltas com seu próprio limite. Essa declaração realiza
um passo ao lado em relação ao amor de sempre, o que é bem-vindo; não

27 J. Lacan, Les 11011-dupes . . . , sessão de 1 8 de dezembro de 1 973.


44 0 0 AMOR LAC AN

menos notavelmente, ela extrai o amor Lacan do imaginário do belo (de


Platão, portanto):

É com o imaginário do belo que ela tem de se defrontar, e é a ab rir a via


a um reflorescimento do amor enquanto (a)muro, como eu disse um dia,
escrevendo-o com o objeto pequeno a entre parênteses mais a palavra "m u ro"
- j á que o (a)muro é o que o limita.

A preocupação de Lacan será, então, de não fazer desse (a)muro, cujo


reaparecimento aqui confirma e assinala o fim do amor reconhecimento
de Mais, ainda, uma figura universal demais; ele por duas vezes fala de sua
singularidade. Primeiro: "O amor é o imaginário específico de cada um,
o que só o une a certas pessoas nem um pouco escolhidas ao acaso", e, em
seguida: "Cada um tece seu nó". Que nó? O que liga o amor Lacan que seria
situado no lugar do imaginário tomado como meio ("meio" [moyen] devendo
também ser entendido como meio* de uma ação)? Como serão identificados
os extremos? A última frase dessa sessão vem sugerir que a fórmula desse nó
seria R. S . I . , a mesma, portanto, que a do amor divino (esperamos por isso),
mas com outras coisas em jogo, a especificar.

E que a face, a face equivalente daquilo que situei do amor como sendo esse
laço essencial do real e do simbólico, é que, tomado como meio, isso tem
todas as chances de ser o que isso é também no nível da finalidade, a saber,
o que chamamos um puro malogro.

Podemos ler "Laço essencial do real com o simbólico" como designan­


do o acréscimo de I aos anéis R e s (o que dá R. S . 1 . ) , que Lacan oporia, como
"face equivalente", a I em lugar de médio (o que dá R. I . s . ) . Ora, essa leitura
não cola com .o amor situado no lugar do imaginário tomado como médio.
T ínhamos acreditado entender, não sem apoios textuais, que a fórmula que
Lacan tinha em mente nesse dia e que diferenciava claramente, id est pelo
escrito, o amor Lacan do amor divino era R. I . S . , não R. S . I . (fórmula do amor

* Cj nota anterior, moyen podendo ser traduzido p or médio ou meio. (NT)


0 AM O R N O S T E M PO S D O BO R RO M EA N O 44 1

divino), e eis que a queda dessa sessão vem desmentir essa leitura talvez
satisfatória demais. Ou seja, a seguinte afirmação: "Se o amor realmente
se torna o meio pelo qual a morte se une ao gozo, o homem e a mulher, o
ser ao saber, se ele se torna realmente o meio, o amor não se define mais
[senão] como malogro". Breve vamos encará-lo. Importa por enquanto a
série dos termos acoplados (dos dois) sem no entanto rejeitar essa primeira
impressão de que o número deles traz primeiramente mais confusão que
clareza. Tem-se: morte/gozo; homem/mulher; ser/saber. Onde distribuí-los?
Numa cadeia R.s.1? Como com bastante frequência quando tenta basear seu
dizer num materna, Lacan, por um tempo, se enrola. E será somente em 12
de março de 1974, ou seja, três meses mais tarde, que um enunciado virá
dissipar essa flutuação. Sua importância e sua novidade se devem, então, ao
passo efetuado, a saber, a definição do corpo como substância gozosa, mas
uma definição que não pode se manter sozinha:

Um corpo goza de si mesmo, goza bem ou mal, mas está claro que esse gozo
o introduz numa dialética em que, incontestavelmente, é preciso outros
termos para que isso fique de pé, a saber, nada menos que esse nó que lhes
sirvo em fatias. ..

Vem o amor:

O fato de o gozo poder ser punido a partir do momento em que o amor


for algo um pouco civilizado, isto é, em que soubermos que isso se joga
como um jogo, enfim, não é seguro que isso aconteça; não é seguro que isso
aconteça, mas isso poderia mesmo assim vir à ideia, se posso dizer.

Teremos reconhecido, nesse amor "um pouco civilizado", o amor


Lacan, o amor que Lacan deseja ardentemente, talvez sem ilusões demais,
talvez com muitas ilusões. Como será ele configurado? Dois traços, aliás
conjuntos, antes de mais nada o caracterizam: 1) o volume, Lacan tomando
ao pé da letra a metáfora dos nós do amor, e 2) o afastamento do imagi­
n ár io como médio [meio] . Se convém oferecer ao amor sua regra do jogo,
o amor de fato só pode vir no lugar do simbólico. Só o simbólico, e não
44 2 O A M O R LAc
AN

o imaginário, oferece com o que compor uma regra e assim permitir ue


q
joguemos um certo jogo (a afirmação coloca, sob novos aspectos, emb ora
de modo silencioso, a questão do narcisismo amoroso):

[ ... ] o amor, enfim, não é feito para ser abordado pelo imaginário. Porque o
simples fato de que quando ele resmunga, não é, por não conhece r a re gra
do jogo, ele articula os nós do amor, hein... é mesmo assim engraça do que
isso permaneça na metáfora [... ] .

Tomar o amor no volume é, ao mesmo tempo, desprendê-lo do im agi­


nário. Por aí o amor Lacan tenta se desprender da função da beleza no am or
mas também do masoquismo; por aí também ele desloca o deslocamento
operado pelo cristianismo. Segue, então, o enunciado cuja importânci a
assinalamos:

Se o amor, tornando-se um jogo cujas regras são conhecidas, um dia se


achasse, já que é sua função, ao termo disto que ele é um dos uns desse s
três, se ele funcionasse para conjugar o gozo do real com o real do gozo,
será que não seria aí algo que valeria o jogo?

Três razões, pelos menos, permitem extrair esse enunciado do enrolo


dito acima: 1) porque ele acaba optando pela cadeia R. S . I . , essa própria ca­
deia que, no ano seguinte, dará seu título ao seminário; 2) porque o amo r
divino também é cifrado por R. S . I . , e que é preciso bem algum solo comum
se o analista for levado a se "deslocar" em relação ao amor divino; 3) por­
que ele se diferencia desse amor divino, e isto tanto melhor porquanto há,
entre eles, isomorfismo. Com efeito, ao passo que o amor divino, na cadeia
R. S . I . , ligava corpo morto e morto corpo, eis que, nessa mesma cadeia, o
amor Lacan liga o gozo do real ao real do gozo. O esquema é o mesmo, os
dois extremos sendo da forma a/b � b/a, ao passo que os termos ligados
são diferentes. Assim se desenha o desprendimento do amor divino, assim
é dada a resposta a uma questão que mal acabava de ser colocada: "Em que
o simbólico, o imaginário e o real, é algo que, pelo menos teria a preten­
são, enfim, de ir um pouco mais longe que... que essa girada em círculos
O p
,1 O R NOS TEMPOS DO BORROM E ANO 443

do gozo, do corpo e da morte?". É possível desprender-se desse círculo por


uma abordagem do corpo mais radical que aquela proposta pelo cristianis­
rno, Pois não é seu caráter de vivo que caracteriza um corpo, mas seu gozo.
1,acan escora essa observação notando que a morte (e, portanto, não muito
rnaü, a vida) não está ao alcance do verdadeiro, que pretender ter a morte
d iante de si nada mais é que simulação28 • Só o belo, diz novamente Lacan
após seus desenvolvimentos de A ética... , instaura uma relação certeira
com a morte. Daí vem que o deslocamento operado pelo amor Lacan em
relação ao imaginário do belo implicará uma outra relação com a morte.
Vida/morte, esse par prometido pelo cristianismo de maneira perversa é
posto de lado para dar outro estatuto ao corpo e à morte, estatuto esse que
al iás não deixa de evocar esse desprezo no qual os estoicos mantinham a
morte. Outro escoramento dessa posição crítica para com a vida (eterna)
como valor supremo: a pouco imaginável aproximação, que no entanto
deveria ser feita se definíssemos o corpo por seu caráter de ser vivo, entre a
abundância bacteriológica e o corpo humano.
Como entender esse amor que liga gozo do real e real do gozo? A que
remete esse novo dois dos extremos assim designados? É possível dar algum
co nteúdo a esses termos bem abstratos? Sim e não. Não, porque o segundo
termo, "o real do gozo", é produzido de maneira especulativa e guardará esse
estatuto na sessão de 12 de março de 1974 que se conclui sobre a questão
"Mas que sentido dar a este termo: 'o real do gozo'?". Seu sentido ainda não
estando determinado, esse termo no entanto já se impõe, pois o gozo do
real (do corpo), se o real é três (o que é trazido pelo borromeano), deverá
de fato ser pendurado em alguma coisa, e a coisa mais ao alcance da mão
só pode ser aquela que é chamada por nada mais que isso mesmo que a
chama: o gozo do real "produz" assim o real do gozo, ainda que a título de
um conceito provisoriamente vazio de sentido.
Se confrontado com o do amor divino, o quadro do amor Lacan se
deixa, para acabar, escrever de uma maneira mais simples e mais precisa

28 "Mais luz!" teria proferido Gcethe, ao passo que o gramático Vaugelas, não menos na simu­
lação, declarava num último suspiro: "Vou-me embora ou vais-me embora, um ou outro se
..J : _ � , , ,. � ,.l i ..u::1 m,,
4 44 O A M O R LACAN

qu e aquele que poderíamos ter tentado escrever com os três pares, qu e su­
postamente são ligados pelo amor: morte/gozo; homem/mulher; ser/sabe r,
Ele assim se apresenta:

real simbólico imagindrio


gozo do real amor Lacan real do gozo

O gozo com certeza deverá "ser punido" pela realização dessa cadeia
borromeana; mas em vão se buscaria aqui essa condenação moral do gozo de
que certos psicanalistas hoje se fazem os cantadores, depois de o narcisismo
ter sido, ele também e não menos intempestivamente, banido.

AMOR, GOZO, SUBJ ETIVAÇÃO

Esse novo dois do amor pede três observações provisoriamente conclusi­


vas: 1) ele fora como que anunciado desde 16 de janeiro de 1973 (Mais,
ainda) ; Lacan então procurava mostrar onde se reencontram o amor e o
gozo sexual, ele mantém aí, pelo menos de modo parcial, sua promessa; 2)
ele não deixa, para esse amor que teria e conheceria sua regra do jogo, de
mencionar Wittgenstein29 ; 3) talvez não seja muito possível esclarecer esse
sempre misterioso "real do gozo" sem convocar o saber, mais precisamente,
a relação do saber (ele também no real) com o gozo. Assim, vamos ver rea­
parecer, na sequência dos seminários, a problemática amor saber, e até amor

29 O amor "é um dizer que, como cal, implica em si mesmo uma regra. Já que dizer que algo
é apaixonante [Lacan acaba de dizer isso do amor], pois bem, é falar disso como de um
jogo, em que só se está em suma ativo a partir das regras. Há mesmo assim algumas pessoas
que perceberam isso há muito tempo. A respeito de tudo o que se diz, há um nomeado
Wittgenscein, particularmente, que nisso se distinguiu" . Publicada pela editora Ellipses,
em 2005, a obra de Philippe de Lara, A experiência da linguagem: Wittgemtein filósofo da
subjetividade, trata do que seria aplicar uma regra com tanto fineza quanto ali punha Wit­
tegenstein. Aí também é encontrada uma ajuda preciosa, no que se refere ao acolhimento
do afeto na análise, com a observação segundo a qual "os vividos não se identificam eles
mesmos" . Não se pode melhor articular resposta dirimente àqueles que censuram Lacan por
não ter sabido tratar o afeto.
0 A M O R N O S T E M P O S D O B O R RO M E A N O 445

sujeito suposto saber. Ela é esperada, uma vez que sabemos Lacan ocupado
em fazer o amor reflorescer a partir da experiência analítica.
Nessa mesma sessão ( 18 de dezembro de 1973) em que é encetado
0 reflorescimento do amor também está em questão seu malogro. Não se
espera menos de Jacques Lacan.

Pareci lhes cantar o louvor do amor, sim. . . há um inverso, é que vocês vão
ver como, se o amor se torna realmente o meio pelo qual a morte se une
ao gozo, o homem e a mulher, o ser ao saber, se ele se torna realmente o
meio, o amor não se define mais [senão] como malogro. Por que não há
mais senão realmente o meio que possa desatar um do outro.

"Louvor [Los]", de laudes, louvação, a palavra hoje é julgada arcaica. A


frase coloca uma condição. Esse malogro é tratado pela tecedura borromeana.
Com efeito, uma "encantadora pessoa" acaba há pouco de passar a trança
a Lacan, sob forma de um pequeno escrito, com certeza Pierre Soury, ou
Michel T homé. Ou seja, portanto, três fios, respectivamente denominados
1, 2, 3, e primeiramente dispostos, em paralelo, nessa ordem. Vamos trançá­
los à maneira usual como trançamos cabelos.

PARTIDA:

PRIMEIRA TROCA, 2 passa por cima do 1 . A nova ordem é então 2, 1, 3.


SEGUNDA TROCA, 3 passa por baixo do 1. A nova ordem é 2, 3, 1 .
TERCEIRA TROCA, 3 passa por cima do 2 . A nova ordem é então 3 , 2, 1 .

Para que haja tecedura, os sucessivos cruzamentos devem respeitar


uma regra: se um primeiro cruzamento faz passar uma corda por cima de
outra corda (por exemplo, o 2 sobre o 1, na primeira troca partindo de cima
para baixo), essa mesma corda deverá em seguida passar por baixo da corda
com a qual ela vai cruzar logo depois (o 2 por baixo do 3 na terceira tro ca) .
Em três trocas, passa-se da configuração 1, 2, 3, à configuração "inversa", a
saber 3, 2, 1. É possível, então, imaginar obter um nó borromeano juntando
as extremidades 1, 2, 3 às extremidades 3, 2, 1. Pois bem, nada diss o . O
convite para "colar de novo o 1, 2, 3 ao 3, 2, 1" abre duas possibilidades ,
conforme tomarmos ou não ao pé da letra essa afirmação de Lacan. Se nos
limitarmos à sua literalidade, juntaremos o 1 ao 3, o 2 ao 2, e o 3 ao 1. O
que isso dá? Um nó a dois, já que pusemos em continuidade o 1 e o 3 ao
passo que o 2 era juntado a si mesmo. E esses dois anéis de barbante são
dois anéis incrustados.

Mas se juntarmos o 1 ao 1, o 2 ao 2, e o 3 ao 3, o que se obtém? Um


nó a três, já que juntamos cada corda com ela mesma, mas um nó que não
é borromeano, cujas três cordas estão incrustadas, e especificado nisso que
só o 2 liga as duas outras, e que, portanto, só o corte do 2 desata comple­
tamente o nó, deixando livre cada um dos anéis de barbante. O 2 está só
em posição de médio, e isto por diferença com o borromeano simples onde
qualquer das cordas pode ser disposta em posição de meio.

Em que esse pequeno exercício topológico viria esclarecer o malogro


do amor? De que malogro se trata? De que amor é aí o malogro? O malogro
0 AMO R N O S T E M POS DO BORRO M E A N O 447

com o tal nada mais é que o da realização do borromeano que, após as opera­
ções de tecedura e as junções ditas acima, não aconteceu. Mas o importante
é que essa realização poderia ter acontecido. Para isso teria sido preciso, em
vez de juntar os pedacinhos após apenas três passagens acima-abaixo, pros­
seguir a tecedura até seis "movimentos" como Lacan os chama • Ao tecer
30

três pedacinhos, realizamos um borromeano toda vez que passamos por


seis ou por qualquer dos múltiplos de seis. Agora se entrevê como entender
"malogro do amor". A expressão não diria que o amor como tal malogra,
mas que faz a borromeanização malograr. O amor, ou mais precisamente
um certo amor (vamos logo ver), faz mudar bruscamente a subjetivação
doravante pensada como realização de um borromeano. A proposição se­
gundo a qual com o amor "não há mais senão realmente o médio que possa
desatar um do outro é bem feita para indicar que Lacan pensa na segunda
possibilidade de junção que foi distinguida. Trata-se bem de um nó a três,
mas não borromeano e tal que só o corte do médio libera os três anéis de
barbante. A realização desse nó em que o amor está em posição de médio
corresponde ao que Lacan chama então "cair no médio". Graças à tecedura
tomada dinamicamente, vemos que se desenha uma passagem possível, ou
então, ao contrário, um fechamento. Se, após três cruzamentos, os fios se
juntam como foi dito, o sujeito "cai no meio", cai apaixonado; ele se r�aliza
como nó, mas não como nó borromeano. Ele está então, num sentido, menos
exposto, menos frágil, já que só o corte do anel médio desfaz completamente
o nó e, num outro sentido, bem mais à mercê do amor, já que o possível
desmembramento do nó subjetivo cabe inteiro na ruptura do médio: tudo
vai embora, se o amor arrebenta. Mas, sobretudo, o amor assim configurado
deixa em pane a subjetivação, a efetuação do borromeano. Se, em compen­
sação, a tecedura prossegue até seis cruzamentos e se a junção dos três fios
se realiza nesse momento preciso, há fechamento da subjetivação. Em outras
palavras, a subjetivação vai passar por um momento crítico, que evoca essas
interrupções do procedimento analítico que foram chamadas "cura pelo

30
J. Lacan, Les 11011-dupes... , sessão de 2 1 de maio de 1 974. Ele já voltou, por diversas vezes
e a cada vez espantado, a essa tecedura: em 8 e 1 5 de janeiro de 1 97 4, em 1 2 de março de
1 974.
amor". Esse momento será tanto mais analiticamente crítico porquanto,
então, os sintomas se esvaecem e parece, portanto, não haver mais nenhurn a
razão de prosseguir a análise. Esse ponto pode ser dito "obter o amor". Ao
passo que, se a junção não se efetuar, se esse amor médio não se cristalizar,
se prosseguir a tecedura com pelo menos três cruzamentos suplementares,
a frase poderá ser suplementada: "obter o amor... que não se obtém". A tra­
vessia ou não desse momento crítico é o que decide a posteriori que alguérn
num divã terá feito uma análise ou então uma psicoterapia. Sob uma forma
pública já que publicada pelo interessado, dispomos de um belo exemplo de
psicoterapia realizada num divã, o de Lacan. A se crer nele, Gérard Haddad
teria obtido o amor de seu psicanalista, Jacques Lacan, por ter sido "adotado"
por Lacan3 1 (outros igualmente pretenderam ser seus "filhos").
Entendemos agora que não decorria de um puro efeito retórico a
colocação no condicional da frase que, pelo amor, unia a morte ao gozo, o
homem à mulher, o ser ao saber; esse condicional se impunha, indicando
que a esse amor que valia como um tempo de parada na subjetivação podia
ser oposto um outro amor, aquele que liga borromeanamente o real do gozo
ao gozo do real, o amor Lacan. O simbólico aí está em lugar de médio. A
cadeia é R. S . I . Mas o corte de um qualquer anel de barbante, e não somente
o do médio, rompe o nó subjetivo. Num certo sentido, o amor está menos
pesadamente carregado, ele não tem, sozinho, o encargo de manter juntos
os dois outros, de fazer três com eles dois. O fato de ele estar em posição
de médio é então apenas assunto de apresentação. Essa apresentação sendo
modificável sem desenlace do nó, o amor é também suscetível de usufruir
dessa maleabilidade. Questão: como a análise poderá vir no lugar desse amor?
O que advirá dele, uma vez que a análise terá vindo em seu lugar?
Les non-dupes. . . nada mais oferecerá sobre esse "real do gozo" que o
amor ligaria borromeanamente ao gozo do real. Em compensação, toma
consistência, nas últimas sessões desse seminário, uma problemática que
pode nos espantar por ter sido por tanto tempo deixada de lado: a articu­
lação do amor e do saber. Dando sequência ao dois de dimensão, depois

·1 1 G érard Haddad, O dia em que Lacan me adotou, Rio de Janeiro, Companhia de Freud,
2004.
0 AMO R NO S T EMPO S DO ll O R ROM E A NO 449

a o dois do amor divino (corpo morte / morte corpo), depois ao dois desse
amor construído como uma alternativa ao amor divino (gozo do real / real
do gozo), um novo dois do amor surge, o dois de saber. O real do gozo
a cabará esclarecido? O amor Lacan vai encontrar aí sua regra do jogo? A
frase mais clara, relativa a esse dois de saber, é de 15 de janeiro de 1974,
a nterior, portanto, à alegação de 12 de março de 1974 que fará do amor
um laço entre gozo do real e real do gozo. Assim, ela deve ser lida sobre
fu ndo desse reconhecimento amoroso que havia constituído um momento
d e Mais, ainda. Bem no fim de Mais, ainda, o amor era apresentado como
reconhecimento da maneira como um ser é afetado por um saber incons­
ciente. Também estava situado do ponto de vista da não-relação sexual,
o que teve igualmente um fim. E o amor reconhecimento também será
destituído em 12 de março de 1974. Logo, a frase que agora importa vale
como um entre-dois, um momento de passagem, um primeiro passo rumo
à destituição do amor reconhecimento.

[ . . . ] o amor é a verdade, mas apenas na medida em que é a partir dele, a partir


de um corte, que começa um outro saber que o saber proposicional, isto
é, o saber inconsciente. É a verdade enquanto não pode ser dita do sujeito,
enquanto o que é suposto [ . . . ] poder ser conhecido do parceiro sexual. O
amor é dois semidizeres que não se recobrem . E é o que faz seu o caráter
fatal. É a divisão irremediável. [ . . . ] É a conexidade entre dois saberes na
medida em que estão irremediavelmente distintos. Quando isso ocorre, faz
algo de inteiramente privilegiado. Quando isso se recobre, os dois saberes
inconscientes, faz uma suja bagunça32 .

Um novo motivo vem aqui escorar o "não há teoria do amor": o


posicionamento do amor como corte abrindo a via a outro saber que
proposicional (ao saber inconsciente). Mas o amor só faz abrir a via. Uma
coisa é abrir uma porta, outra coisa atravessá-la. Abrir uma via é bem um
"começo", mas as coisas podem apenas estar começando. O que parece bem
indicar a situação do amor como verdade "enquanto ela não pode ser dita

12 1 1 - -- � T 8' unu-duhP< . . sessão de 1 5 de janeiro de 1 974 . Suprimi as repetições.


450

do sujeito". E o que também confirma que ele se limita à "suposição" e não


ao conhecimento do parceiro sexual. Ou ainda que esteja em questão Ulll. a
"divisão irremediável". Em outras palavras, se o amor como conexidade de
dois saberes toma consistência sob a forma de dois semidizeres, o "se llli"
em questão marca aqui não tanto o fato de que, de uma maneira que se
diria essencial, a verdade só possa ser dita pela metade, mas algo mais cir­
cunstancial, isto é, que o amor seja um dizer abortado. Não nos deixaremos
deter pela aparente trivialidade da seguinte observação: o amor como (dois)
semidizer é da ordem do dizer, do dizer - e não mais, como fora sustentado
por um tempo, da letra. Já em 18 de dezembro de 1973, Lacan declarava:
"O amor nada mais é que um dizer, enquanto acontecimento". Logo, esse
acontecimento faz corte, vale abertura para o saber inconsciente. Seria esta
a virtude analítica do amor, ou a virtude do amor em análise. Ela não es ­
perou Lacan para ser observada: acontece de o analisando não desprezar as
manifestações de seu inconsciente, notadamente porque a transferência, e
não mais somente o sintoma, a isso o convida, talvez até a isso o incite, às
vezes contra a sua vontade. Entretanto, essa virtude do transmor oferece uma
outra face, um lado negro. Ou seja, os dois semidizeres se apresentam sem
se recobrir, permanecem conexos, e o amor é fatal; ou seja, eles se recobrem,
e o amor vira a suja bagunça. O caso da fatalidade {essa fatalidade tornada
cômica por Offenbach em A bela Helena) , da "divisão irremediável" {trágica
fatalidade), importa especialmente pelas observações às quais ele dá lugar.
Esses dois semidizeres, é precisado, são sem mediação. Em outras palavras,
eles não podem ser enodados borromeanamente por um anel de barbante
em posição de médio. Ora, desde 1 1 de dezembro de 1973, está bem em
questão abordar o amor com o borromeano. Logo, há aí problema, ao qual
em breve tentará responder o amor Lacan tomado como meio termo a ligar
o gozo do real ao real do gozo. Em suma, em análise, não é possível limitar­
se à constatação do caráter fatal do amor.
Embora Lacan não tivesse, posteriormente, precisado o que ele en­
tendia por "real do gozo", embora não tivesse desenvolvido mais adiante
as potencialidades do nó borromeano que liga, pelo amor, gozo do real
e real do gozo, a escrita desse nó em Les non-dupes. . . teve uma função de
corte, constituiu uma virada. Já o fato de que estivesse excluído limitar-se
M
O A OR
N O S T E M P O S D O B O R RO M EA N O 451

à fatalidade do amor, e menos ainda à bagunça amorosa, deixava entrever


a necessidade de retomar de outro modo a questão. Mas perceberemos so­
bretudo o acontecimento que terá sido a escrita desse nó se notarmos que é
somente uma vez produzido que estará muito em questão a transferência, e
isto até o fim desse seminário, e deixada de lado a problemática do dois do
am or encarado, infine, como dois de saber, não absolutamente deixada de
lado mas, de qualquer modo, desviada. Certo, ainda vai estar em questão o
saber, mas antes o viés segundo o qual a análise o aborda. Pois se um ana­
lista funciona como tal, se ele sabe, por um saber prático (um saber fazer),
deixar-se moldar na problemática do analisando, ali tomar um certo lugar
precisamente determinado por essa problemática e limitar-se a isso, daí vem
que ao sair de sua análise o analisando não terá estritamente sabido nada
de seu analista.
CAPÍTULO XX I I I

P RO P OS I Ç ÃO D E 1 1 D E
J UNHO DE 1 9 7 4

A o longo dos três últimos meses do seminário Les non-dupes... , o amor


se move; e vale desde já registrar o ponto no qual ele culmina, mesmo
que devamos posteriormente distinguir suas etapas, distingui-las com ainda
mais facilidade uma vez que teremos conhecido seu fim. Esse fim é também
o desse seminário, uma espécie de estocada que terá deixado o público des­
concertado. Aliás, será tanto mais difícil livrar-se da sideração já que não se
tratava de um chiste e que, portanto, não funcionava aqui a sequência tão
justamente extraída por Freud: sideração ----+ luz. Eis aqui:

Pela primeira vez na história, vocês podem errar, isto é, recusar amar o in­
consciente, já que enfim sabem o que é: um saber, um saber chato 1 •

No anfiteatro superlotado da faculdade de direito, essa declaração


causou... um certo efeito. Quem fala? Jacques Lacan. Com certeza. Mas en­
quanto o quê? Analisando? Analista? Talvez... Entretanto, se nos limitarmos
ao teor do enunciado, à maneira como foi articulado e a seu momento, não
é possível afastar a ideia de que é um mestre espiritual que assim se dirige a
alunos e, mais amplamente, a todos aqueles que, por sua presença, parecem
testemunhar que seu dizer para eles tem importância (pessoalmente?) . Pelo
menos, esse dizer será acolhido como uma proposição no mesmo sentido
em que esteve em questão, alguns anos antes, a " Proposição de outubro de
1967 sobre o psicanalista da escola".

1 1 1 ---- T .. un u-duhP< . . sessão de 1 1 de j unho de 1 974.


454

É nada menos que uma regra de vida que é proposta a cada um. E
que ressoa de modo ainda mais forte como tal já que remete ao próp rio
título desse seminário: Les non-dupes errent. Esse título havia operado uma
inversão. Se, parece, nenhum ser sensato acha bom errar, e a errância é
comumente conotada de modo negativo (isso desde a Nave dos Louco s até
a pretensa "viagem patológica" em psiquiatria), achamos mesmo assim que
não errar exige não ser tolo, que, portanto, les dupes errent, precisament e
porque são enganados [dupés] ou se enganam [se dupent] eles mesmos.
Pois bem não, dizia o título, é, ao contrário, o não-tolo que erra - logo ,
uma inversão. Ora, eis que, em conclusão do seminário assim intitulado ,
uma proposição vem suplementar essa inversão, tirar daí a consequência.
Até então, a questão da errância era abordada de maneira supostamen t e
descritiva, a inversão só fazendo descrever de outro modo. E eis que agora
a descrição se faz prescrição. Como? Abrindo uma alternativa, propondo
uma solução. Alternativa: ou então, não tolo, erra-se, ou então, tolo... e
então o quê, tolo? E tolo de quê? Resposta em fim de seminário: tolo de um
saber chato denominado inconsciente. A regra de vida ataca cada um por
dois lados. A qualquer um é proposto ou errar, ou passar a vida num laço
determinado, resolvido, sustentado, numa certa chateação, preço a ser pago
para não errar. "Chato"* deve ser tomado ao pé da letra. Lacan poderia ter
dito "incômodo", "perturbador", "tedioso", etc., mas não, é bem de uma
chateação que se trata, à qual só a morte porá um termo.
Há aí eleição de uma erótica específica. E deveremos portanto precisar,
para quem teria feito sua essa erótica, o que seria amar um outro objeto que
seu inconsciente. A questão também vai se colocar para o amado: o que é,
então, ser amado por um ser que ama seu inconsciente? Ou ainda: o que é,
então, amar um ser chateado por seu inconsciente e que, no entanto, ama
seu inconsciente, que ama "suas chateações" (Charles Aznavour: "Meus
amigos, meus amores, minhas chateações")? Estaríamos às voltas com uma
bem estranha triangulação, talvez até com um vaudeville do qual um dos
personagens (a amante? a outra mulher? o amante? o marido?) seria o in­
consciente (qualificado de "parceiro" em 16 de março de 1976). A menos

* Em francês, emme1dant, derivado, portanto, de me1de. (NT)


r ROPOS I Ç Ã O DE 1 1 D E J U N H O DE 1 9 7 4 455

que cada um dos apaixonados tenha adotado a regra lacaniana, caso este
ern que o jogo seria jogado não mais a três, mas a quatro. Uma vez que se
trataria de amar o inconsciente, este se vê personificado, e Lacan acabará
pura e simplesmente identificando o inconsciente ao que parece com um
personagem, ainda que um tigre de papel: ao sujeito suposto saber.
O analista tem a ver com isso? Teria ele, deveria ele, ele em todo caso,
e scolher não errar amando seu inconsciente? E Lacan não sugere que seria,
pelo menos, seu próprio caso? Essa regra se endereçaria especialmente àqueles
que, sentados no anfiteatro, praticavam a análise em outro lugar? Certo.
Mas, então, como essa posição de analista intervém no acolhimento que o
analista reserva ao amor de transferência? Que incidência pode bem ter sobre
o analisando que seu transmor tenha elegido como objeto um personagem
que resolutamente escolheu ser chateado por seu próprio inconsciente? E
ainda: não é aí entreabrir, se não abrir, a porta à contratransferência, da qual
se diz, um pouco rápido demais, que Lacan não teria querido saber 2? Com
certeza não necessariamente.
Colocar essas questões faz advir uma outra. Com efeito, se nos lem­
brarmos que, em 12 de março de 1974, fora formulado o voto de que ao
amor fosse dada sua regra do jogo e que o discurso analítico poderia, talvez
até devesse, produzir o saber dessa regra, acabamos nos perguntan4o: não
é exatamente o que faz Lacan dois meses mais tarde ao propor essa inédita
regra de vida? O amor Lacan encontra aí uma de suas determinações, a regra
de vida proposta a cada um deixa-se inscrever como um dos componentes da
nova regra do jogo amoroso. Visto a partir da experiência da análise, o amor
Lacan é amar alguém que ama seu inconsciente a despeito das chateações
que daí lhe vêm, que portanto ama em outro lugar que ali onde é amado.
E vamos com certeza encontrar aqui outra determinação do amor Lacan
com a qual já estivemos às voltas, isto é, que esse amor é um amor limitado,
limitado por esse outro amor ao qual o amado não vai renunciar.
Pouco depois, em R. S. I. , Lacan vai tentar escrever o limite do amor. Se
o amor, como se viu, oferece um acesso ao saber inconsciente, ainda que a

1 Cf. Gloria Leff, Portraits de Jemmes en 111111/yse. Jacques Lacan et /e contre-tmnsfert, traduzido
do espanhol por Béatrice Cano, Paris, Epel, 2009.
título de uma abertura, nos perguntaremos: o analisando também acabará
como seu analista, amando seu inconsciente? Teríamos aí uma notável e
estranha retomada (e versão) da reciprocidade amorosa. E ao limite corn
o qual se choca o transmor elegendo como seu objeto um personagem ( o
analista) que ama seu inconsciente viria se acrescentar esse outro limite ,
ele devido ao fato de que doravante ele também, o analisando, ama seu
inconsciente. O amor passaria de três a quatro. Amar corresponde, então,
a amar dois objetos simultaneamente e dois objetos díspares: o objeto eleito
do amor, mas também um saber chato. É possível amar ao mesmo tempo
esses dois objetos sem que nenhuma incompatibilidade ocorra entre ele s ?
Implícita em Lacan, a resposta é sim, caso contrário não teria sentido algurn
a perspectiva de dar ao amor sua regra do jogo.
Se não fosse o humor, o "pela primeira vez na história" mostraria
uma impressionante visão ampla. Teríamos quase vontade de transcreve r
"História", tratando-se daquilo cujo fim se deplorou, isto é, a História
como lugar de um Grande Relato - o relato desse fim não sendo menos
um Grande Relato, como foi observado. A afirmação é solene. Aliás, ela
está longe de ser a única a dar ao ensino de Lacan um alcance mais próximo
daquele de Sócrates, de Diógenes o Cínico, de Cristo ou de Buda que do
universitário moderno. Resumindo seu ensino, Buda, por exemplo, poderia
ter dito, condoído: "Pela primeira vez na História, vocês podem não so­
frer mais". A fórmula cria paradigma, e poderíamos, a título de um desses
exercícios espirituais ao gosto de Wittgenstein, tentar produzir uma para
cada grande pensador ou cada artista que tivesse deixado nome na história.
Entretanto, é responsabilidade de um analista, mesmo um Jacques Lacan,
oferecer a quem quer que seja uma regra de vida? Freud afirmava que não,
mesmo arriscando que sua prática desmentisse sua declaração. Freud dizia,
ao contrário, que uma condição necessária para que alguém valesse como
analista era dispensar-se de fornecer ao paciente qualquer regra de vida que
fosse, menos ainda sua própria regra de vida. Além disso, não é estúpido
prescrever o amor? Mais que isso, indicar um certo objeto a ser amado? Mais
que isso, um objeto chato? É verdade que não se tratava exatamente de uma
prescrição do gênero "Amarás teu inconsciente como a ti mesmo", mas a
questão no entanto se coloca com o "vocês podem": sua própria enunciação
não vai contra sua visada? Assim, vamos tentar determinar como a enuncia-
p RO P O S I Ç Ã
O D E 1 1 D E J U N H O D E 1 9 74 457

ção de uma tal regra pôde ser tornada possível, ou ainda quais foram seus
considerandos. É possível distinguir dois: primeiro Aristóteles, depois uma
retomada da questão da transferência.

A ESCOLHA DE Aru STÓTELES

Em 12 de fevereiro de 1974, sessão que vem imediatamente após aquela


em que esteve em questão a conexidade de dois saberes, Lacan se lança
na leitura de uma passagem de Aristóteles. Ele tem em mãos os Primeiros
an alíticos (686). Ele lê essa passagem, recheando sua leitura de comentários
e indicações quanto aos termos gregos, quase sempre precisos, por vezes
errôneos. O que dá uma afirmação bem incoerente, vindo acrescentar sua
relativa confusão a uma demonstração de Aristóteles ela mesma de difícil
acesso. Essa afirmação se inscreve nesse período do seminário em que ainda
não se acabou com a articulação do amor e da não-relação sexual embora
já esteja encetado seu posicionamento quanto ao borromeano. Assim, po­
deremos relacionar uma de suas conclusões à referência em via de esvaecer,
a outra àquela em via de nascer. Partiremos de novo de Aristóteles, como a
isso convida Lacan, a fim de apreciar o teor e avaliar o alcance _dessas duas
conclusões, notadamente sua distância para com Aristóteles.
Já se apelou para Aristóteles nessa sessão da qual uma das novidades
é a distinção que ela traz entre "ciência do real", a saber, a lógica, e algo
diferente, o "dizer verdadeiro". Graças a Michel Foucault, hoje é possível dar
seu nome grego a este dizer verdadeiro: parrhêsia. Em Lacan nesse dia, diz-se
que o dizer verdadeiro é chamado pela impossibilidade de o procedimento
lógico escrever a relação sexual. Isso faz furo. E essa lacuna no saber convida
a "realizar mesmo assim3 " essa relação sexual. É então retomada a ideia de
suplemento e, no mesmo ritmo, é convocado o amor:

[... ] o real é o que se determina pelo fato de que não possa de modo algum
ali se escrever a relação sexual. E é daí que resulta o que acontece com o

·1 T T �r� n r.,,c 11011-du/J es. . . , sessão de 1 2 de fevereiro de 1 974.


O A M O R LAc
.._ N

dizer verdadeiro, pelo menos o que nos demonstra a prática do disc urso
analítico, é que é dizendo verdade - isto é, babaquices, aquelas que nos vê
lll
aquelas que nos babam assim - que conseguimos trilhar a via rumo a al �
g
do qual só é muito contingente que algumas vezes, e por erro, isso cessa de
não se escrever, como defino o contingente, isto é, que isso leva, entre dois
sujeitos, a estabelecer algo que parece se escrever assim: daí a importânc ia
que dou ao que eu disse da carta de (a)muro.

O "que parece" tem importância pois, na falta dessa precisão, seria


suprimida a distinção entre ciência do real e dizer verdade. Aristóteles é
decisivo em matéria de ciência do real, Lacan lhe oferecendo até o estatuto
de alguém que entrevê. Com a teoria do silogismo, Aristóteles faz funcio­
nar o três (a ciência do real é ciência do três, paradigma lacaniano obriga) ,
tanto que ele teria tido um "pressentimento do nó borromeano". Só um
pressentimento, pois "ele imagina que eles [esses três] ficam juntos dois a
dois", o que, visto de Lacan, é um erro, ainda mais que "ele os faz concên­
tricos" {lógica extensional), proibindo assim afirmar que ele trata seu três
de maneira borromeana. Na passagem mencionada, Aristóteles se dá quatro
letras, mas às quais ele vai atribuir uma significação e que, além disso, ele
vai tomar como opostas duas a duas: A se opõe a B e a 8.: r
A = o amado está disposto a conceder seus favores [kharizesthat]
B = o amado não está disposto a conceder seus favores [mê kharizesthat]
r = o amado não concede seus favores [to mê kharizesthat]
11 = o amado concede seus favores [to kharizesthai]

Dois casos são encarados, e agrupam, cada um, dois desses


termos, mas não dois termos definidos como opostos. Estamos
às voltas com as duas seguintes configurações:

A r: o amado está disposto a conceder seus favores mas não os concede


/1 B: o amado concede seus favores sem estar disposto a concedê-los

O caso A 8. não é levado em conta, com certeza Aristóteles o reser­


vava a nossa preguiçosa modernidade em que esse caso recebe seu nome:
p ll
OPOS I ÇÃO D E l i D E J U N H O D E 1 9 74 459

con se n timento. Vamos nos dispensar de refazer a demonstração lógica de


Aris tóteles para reter apenas sua conclusão (tradução Tricor) : "É evidente
q u e A é de uma natureza tal que é preferível ao partido ver-se conceder os
favo res do amado", preferível, portanto, a /)._ Ou ainda:

Ser amado (to phileistha1) é, portanto, em amor, preferível à união carnal


(sunousia) . O amor (érôs) depende assim mais da afeição (philia) que da
união carnal (suneina1) . E se é acima de tudo ser amado [glosa de Tricor,
Aristóteles simplesmente escreve "isso") que importa, é este seu fim. A união
carnal (suneina1) não é portanto absolutamente um fim, ou só o é em vista
de ser amado (to phileisthaz) [ ... ] 4 .

Lacan produz, então, o seguinte esquema:

A e B, sendo opostos, são representados por dois vetores que, partin­


do do ser amado (o grosso ponto negro!), phileisthai, se dirigem, como se
deve, em sentido oposto. Na frente, os dois outros vetores são, eles também
como se deve, de direção oposta. As quatro possibilidades que se oferecem
ao amado são colocadas em paralelo, o que exige que o phileisthai não sej a
apenas um ponto negro mas que esse ponto negro se prolongue numa linha
que ligue esses duas paralelas. Essa "linha do amado" é uma linha de dobra.
É a partir dela que o amado vai optar por tal ou tal solução (ele deve esco-

4 Aristóteles, Organon IIl Les remie,, analytiques, tradução nova e notas por Jules Tricoe,
p
nnu� Pcl ir ão. Paris, Vrin, 1 97 1 , p. 3 1 0-3 1 1 .
O A M O R LACAN

lher entre A ou B por um lado, r ou !J.. por outro). Lacan não s e pergun ta,
e eu não posso dizer se Aristóteles pensou nisso, mas isso não impede de se
interrogar: com essas quatro possibilidades, Aristóteles está introduzindo
cálculo na famosa cena secreta entre Sócrates e Alcibíades? Sócrates aí não
realizou a configuração eleita por Aristóteles, isto é, A r, em que o am ado
está disposto a conceder seus favores mas não os concede? Lacan acrescen ta
quatro linhas a esse esquema que, parece, nunca recebeu nome. O que elas
desenham? Isso parece quase trivial, como com frequência quando ele produz
uma escrita e não lhe resta mais senão ser tolo dela.

1 / aquela que junta o máximo de A ao mínimo de !J.. .


2 / aquela que junta o mínimo de A ao máximo de r.
3 / aquela que junta o mínimo de A ao máximo de !J...
4 / aquela que junta o máximo de B ao máximo de r.

As duas primeiras linhas importam pois beiram um espaço (som­


breado) que é aquele mesmo que o raciocínio de Aristóteles conclui que é
preferível a qualquer outro. O amado, para dizê-lo em termos de hoje, está
"a fundo" disposto a conceder seus favores, e no entanto não menos resolvido a
não concedê-los. O que o amante obtém do amado é, portanto, sem reserva
alguma, sua disposição ( houtôs ekhein) ; mas não o ato - uma posição no
entanto nuançada em Aristóteles: o ato é possível, mas subordinado ao fim
( telos) de ser amado 5 ". E aí, surpresa: a conclusão de Aristóteles, a escolha
racional de A r, ratificada por Lacan, diz exatamente a fórmula do amor
Lacan: obter o amor que não se obtém. A configuração desse amor mostra
já ter sido discutida depois eleita desde os Primeiros analíticos 68b.
O que, então, é trazido a Lacan por essa passagem deAristóteles? Antes
de mais nada, a escolha da combinação "ser amado pelo parceiro sem que
para isso ele lhes conceda seus favores" e a rejeição da "combinação contrárià'
(Lacan), "a saber, que ele lhes concede seus favores embora sem amá-los";

5 As escolas fi losóficas antigas foram, desde a An tiguidade, classificadas em função desse telos.
Assi m , foram disti nguidas até noventa e seis (quarenta e oito exatamente, mas o número foi
dupl icado já que se podia ser o u não ser cínico em cada uma das quarenta e oito escolas) .
Não encontramos hoje essa bela pe,formance com a multiplicacão das P<rn l � • l � r� " : " " " " '
p R O POS I Ç Ã O DE 1 1 DE J U N H O DE 1 9 7 4

mas também, e por isso, um juízo de valor que Lacan formula nos seguintes
termos: "Dela resulta [da demonstração] , o que, com efeito, parece inevitável
admitir, que o suneinai vale menos que o kharizesthai, isto é, a boa disposição
6
que mostra ser amado " . Suneinai é "estar junto", Lacan traduz: "deitar"*, o
que não há nenhuma razão de invalidar. Em compensação, tratando-se de
kharizesthai, o grego de Lacan afigura-se flutuante. Não se trata apenas da
boa disposição a ser amado mas do fato de ceder, de conceder seus favores
a um eraste. Homossexualidade grega, de K.J. Dover, hoje ainda uma obra de
referência, ressalta que kharizesthai costuma ser empregado no discurso de Pau­
sânias ( O banquete) com essa significação. Dover nota ainda que kharizesthai é
igualmente empregado a respeito de uma mulher que cede a um homem. Em
suma, o uso, aqui, de kharizesthai vem desmentir a afirmação! É philia que
Aristóteles opõe a suneinai. Lacan nota bem que amar "é, portanto, philein"
e talvez seu tropeção no grego seja imputável à sua reticência para com esse
philein que, historicamente, terá por demais feito cair o amor na idealidade.
PorémAristóteles oferece mais ainda a Lacan. Já aconteceu a este último notar
que os exemplos inventados pelo discurso dos lógicos dizem mais que o que
esse discurso pretende significar ao forjá-los; mas ele aqui se mostra fascinado,
talvez até maravilhado, pelo que ele chama a "irrupção do verdadeiro" no
próprio seio desse discurso que terá estabelecido as bases de uma ciência do
real. De que verdade se trata? Da verdade da não-relação sexual. Aristóteles
teria nesse texto dado um passo no reconhecimento da inexistência da rela­
ção sexual. Como? Por seu afastamento do suneinai - que Lacan diz até não
suneinai, como para melhor aproximar Aristóteles da não-relação sexual.

[ . . . ] se há, com efeito, algo que é permitido pela não-existência da relação


sexual como tal é muito precisamente que o homoios [não tanto o mesmo
quanto o igual, o parecido, o semelhante] é disso seguramente algo como
um passo, com certeza, mas um passo, de certo modo, que confirma, que
apoia a não-existência da relação7 •

6
J. Lacan, Les no11-d11pes..., sessão de 1 2 de fevereiro de 1 974.
• Em francês co11cher, no sentido de deitar com alg11ém, ter relações sexuais. (NT)
O A M O R L ACAN

Logo, essa é uma primeira conclusão dessa leitura: Lacan encontra ern
Aristóteles uma confirmação da teoria do amor como suplemento à não­
relação sexual. O que deverá no entanto ser abandonado ao "se aposentar" a
teoria do suplemento. Em compensação, algo mais precioso pode ser retido
dessa retomada de Aristóteles, e que Aristóteles de certo modo confirma
igualmente. Na sessão seguinte ( 12 de março de 1974), é evocada a possi­
bilidade de "o gozo poder ser punido a partir do momento em que o amor
for algo um pouco civilizado, isto é, em que se souber que isso é jogado
como um jogo [ . . . ] " . Lida com o comentário de Aristóteles, essa frase fala
do gozo fálico como devendo ser subordinado ao desejo do ser querido. Ele
seria punida no sentido de que não pode valer como um fim.
Outra conclusão, ela orientada para a continuação do trilhamento
de Lacan, diz respeito à espécie de antecipação do borromeano que Lacan
atribui a Aristóteles. Mas, sobretudo, embora isso não seja dito, pode-se
admitir que o interesse desse texto a seus olhos se deve à regra do jogo que
ele oferece ao amor. Já na sessão seguinte desse seminário, ele formulará
o voto de dar ao amor sua regra do jogo não mais a partir de Aristótele s
mas a partir da análise. Com efeito, ele já sublinhou que, em Aristóteles, a
problematização do amor diz respeito ao amor homossexual, ao passo que
ele deverá procurar diferenciar, quanto ao amor, as respectivas posições do
homem (tomado em geral) e de uma mulher (bem entendido, ele não diz
de "a mulher").

DO AMÓD I O

Assim, vai-se assistir, depois de ter sido formulado esse desejo de dar ao
amor sua regra do jogo, a um retorno forte da transferência. Ele ocorre
imediatamente após a escrita do amor com o borromeano, depois de o amor
ter sido dito fazer laço entre o gozo do real e o real do gozo. Desde 19 de
março de 1974, diz-se que a transferência realiza a entrada da verdade, o
que remete ao dizer verdadeiro, à veridição, "mas a verdade da qual justa­
mente a transferência é a descoberta, a verdade do amor". Consideraremos
o diagnóstico a seguir como amplamente verdadeiro hoje ainda:
o r OS I Ç Ã O DE 1 1 DE J U N H O DE 1 9 7 4
p ll

[ . . . ] por isso é preciso estar imbuído do fato que, da experiência, da experi­


ência analítica, a transferência é o que a experiência expulsa, é o que ela só
pode suportar tendo fortes dores de estômago. O amor, se aqui passa por
esse estreito desfiladeiro daquilo que o causa, e por isso revela o que ocorre
com sua verdadeira natureza, será, será que não vale a pena repetir a questão?
Pois é difícil não confessar que o amor ocupa um lugar, mesmo que até aqui
tenhamos sido reduzidos a, como se diz, prestar-lhe seus deveres. Com o
amor, ficamos quites, pagamos-lhe um óbolo, enfim, tentamos por todos
os meios permitir que ele se afaste, que se considere satisfeito.

Lacan tem o sentimento de dever refazer um difícil caminho, o dessa


expulsão da transferência, nada menos que daquilo que abre à verdade do amor.
Considerando essa rejeição, ele é levado a dizer a "enormidade" daquilo que
seu discurso suporta. Como refazer esse caminho? A solução, cuja feitura já
se entrevê, vai aos poucos se desenhar. Ela consistirá numa junção do incons­
ciente (estandarte dos psicanalistas) e da transferência (que eles expulsam de
sua experiência). Primeiro passo dessa junção, desde a sessão seguinte:

se há algo cuja verdade a análise descobriu, é o amor ao saber. Já que, pelo


menos se o que eu lhes observo tem algum acento, acento que os emociona,
a transferência revela a verdade do amor e precisamente no fato d� ela se
endereçar ao que enunciei do sujeito suposto saber8 •

O amor ao saber é um topos filosófico. Lacan desloca sua base: não é


o saber que é amado mas o sujeito suposto saber. No momento de concluir
esse seminário, ele vai dizer novamente isso com sua proposição de 1 1 de
junho de 1974. "Sujeito suposto saber", isso não quer de modo algum dizer
que o saber tenha um sujeito, já que o saber é simplesmente feito da conexão
de dois significantes: "Se o saber está ferrado (ferrado!) na conexão de dois
significantes e que é só isso, isso só tem sujeito supondo que um só serve de
representante do sujeito junto ao outro9 " . Estamos aí no clássico lacaniano,

8
]. Lacan, Les 11011-d11pes... , sessão de 23 de abril de 1 974 .
9 J . Lacan, Les 11011-dupes ... , sessão de 1 1 de junho de 1 974.
O AMOR L A C A r,.:

que sabemos ter sido um pouco machucado: o significante representa 0


sujeito junto a outro significante, o S 2 , reconhecido como saber. Só que eis
que a isso se acrescenta uma curiosidade: "Há mesmo assim algo bem curioso
aí: é a relação [portanto, a relação intersignificante] , se vocês escreverem.
xRy nessa ordem, disso resulta que x é relacionado a y? Podemos da relação
suportar o que se exprime na via ativa ou passiva do verbo?". Depois, não
menos curiosamente e sem transição alguma, como se ele novamente dissesse
em outros termos a mesma coisa, Lacan encadeia assim:

Não é porque eu disse que os sentimentos sempre são recíprocos [... ], não
é porque se ama que se é amado, nunca ousei dizer coisa igual. A essê nci a
da relação, se de fato algum efeito volta ao ponto de partida, isso que r
simplesmente dizer que quando se ama se está feito enamorado. E quand o
o primeiro termo é o saber? Aí, temos uma surpresa, é que o saber é perfei­
tamente idêntico, no nível do saber inconsciente, ao fato de que o suje ito
é sabido.

A identificação pura e simples do inconsciente e do sujeito suposto


saber provavelmente veio um pouco mais tarde no percurso de Lacan 1 0 •
Entretanto, embora não explícita, essa identificação ali já está ativa. Disso
se quer apenas por nova prova o fato de que após ter dito novamente que
"o amor se dirige para o sujeito suposto saber", Lacan pôde concluir sobre
o convite feito a cada um de amar o inconsciente, a instância em que o
sujeito é sabido. O objeto do amor pode tanto mais facilmente deslizar do
sujeito suposto saber ao inconsciente porquanto já se trata do mesmo objeto.
O sujeito suposto saber é o inconsciente potencial. E com esse benefício
considerável, que a suposição é anulada: o amor do inconsciente será o de

10
Precisamente em Deauville, em 8 de janeiro de 1978, durante o congresso da Escola Freu­
diana sobre o passe. Lemos, em sua exposição conclusiva dessas duas jornadas (PTL) : "Mas
é preciso dizer que para se constituir como analista é preciso estar apaixonado [em francês:
mo1d11, lit.: mordido) ; apaixonado [ 11101d11] por Freud principalmente, isto é, acreditar nessa
coisa absolutamente louca que se chama o inconsciente e que tentei traduzir pelo 'sujeito
"'
suposto saber . Para uma problematização dessa "mordida", poderemos nos reportar a meu
artigo "Perturbação em pernépsy" [ neologismo criado por Jean Allouch a partir de perver­
sion, névrose et psychose. (NT)), Littom!, nº 26, novembro de 1 9 88 n t: � Ili'.
pRO P O S I Ç ÃO D E l i D E J U N H O D E 1 9 7 4

um saber sabido, não mais suposto sabido. Uma análise pode assim ter um
fi m, que não é outro senão esse próprio deslizamento. Ele assinala a termi­
nação da "atribuição" (Lacan dirá isso mais tarde) do sujeito suposto saber
ao a nalista e aloja esse sujeito suposto saber em seu verdadeiro lugar, em
outra s palavras, no inconsciente. Assim, o amor Lacan terá tomado corpo,
cerá encontrado, Aristóteles ajudando, sua regra do jogo.
A preocupação lacaniana de dar ao amor sua regra do jogo não cessará
de estar ativa nos seminários, até aparecer em título de um deles, em que o
jogo do amor se escreverá: jogo "da mo urre"*. Vale por isso dizer que esse
amor lúdico que parece bem ter adquirido alguma consistência ao ponto
de se ter podido denominar "amor Lacan" e cujas raízes mergulham até
Aristóteles, que esse amor que terá sabido desprender-se do amor guerreiro,
calvez até se construir contra esse amor guerreiro num debate várias vezes
retomado com Hegel, que um tal amor poderia doravante ser reconhecido
pacificado? Já não era o que anunciava sua qualificação como sentimento
cômico, jamais desmentida? Ou ainda que tivesse sido colocado em epígrafe
de um "acostumar-se com o para-ser"? Longe de ter desenhado uma figura
pacificada do amor, a invenção de uma regra do jogo amoroso terá, ao
contrário, permitido que Lacan reatasse com um fio que pode nos espantar
por ter sido por tanto tempo deixado de lado, a saber, a conivência dó amor
com o ódio. Lembramos a pirâmide das paixões do ser, produzida em 30 de
junho de 1954. O amor ali figurava em igualdade estatutária com o ódio
e a ignorância. Se é possível admitir que a problematização da articulação
entre amor e o saber era uma maneira indireta, embora parcial, de tratar
de sua relação com a ignorância, em compensação não encontramos quase
nada, nos seminários, sobre sua relação com o ódio, até essa data de 20 de
março de 1 973 (Mais, ainda) em que o amor é renomeado "amódio", um
neologismo que ainda vai esperar dois anos ( 15 de abril de 1975, R. S. I. ) para
ser estudado em razão - em razão borromeana. Vinte anos de um silêncio
quase absoluto! E tanto mais gritante porquanto aconteceu a Lacan indicar
que uma psicanálise começa com a transferência negativa. Assim, acaba-se
pensando, a contracorrente daquilo que se poderia ter acreditado (desejado?)
poder concluir, que ter dado alguma regra do jogo ao amor, longe de ter
afastado o ódio do amor, terá sido como que uma condição de possibilida­
de para um questionamento renovado da conivência do amor com o ódio,
Era preciso essa segurança tomada no lugar do amor para enfim poder se
perguntar como ele caminhava junto com o ódio?
Tese: tendo revelado a correlação do amor e do ódio, a análise no
entanto se terá impedido de dar a essa descoberta toda sua ressonância.
Como? Inventando a ambivalência. A ambivalência terá atuado como virtude
dormitiva a atenuar o caráter mordaz dessa correlação amor ódio que, no
entanto, a análise (a começar por Freud) havia justamente distinguido. Logo,
o gesto não será sem alcance, inclusive prático, por indeferir a ambivalência
para, em seu lugar, inscrever o amódio. Bem no início da sessão de 20 d e
março de 1973, Lacan retoma esse fio nos seguintes termos:

Quero partir de uma observação, de algumas observações das quais as duas


primeiras vão consistir em lembrar o que acontece com o saber. E depois
em tentar fazer a junção com o que para vocês hoje eu escreveria de bom
grado amódio que deve ser escrito: a.m.ó.d.i.o. É o relevo, vocês sabem,
que a psicanálise soube introduzir para lá situar a zona de sua experiência;
é de sua parte um testemunho, se posso dizer, de boa vontade. Se o amó­
dio, justamente, ela tivesse sabido chamá-lo por outro termo que aquele,
bastardo, da ambivalência, ela talvez tivesse mais bem conseguido despertar
o contexto da época em que ela se insere. Talvez também seja modéstia de
sua parte 1 1 •

O anúncio de uma "junção" entre saber e amódio foi suprimido na


versão Le Seuil. Sua construção é no entanto imediatamente empreendida,
com a menção da referência freudiana a Empédocles (Freud "se arma" de
Empédocles). Por não conhecer o ódio, o deus de Empédocles é o mais
ignorante de todos os seres. Assim, seu caso parece o de um ódio que não é
"colocado em seu lugar". Fora de questão sacrificar o saber ao desejo mani­
festado de uma disjunção entre o amor e o ódio. Pôr o ódio em seu lugar,

l i J. L ::1 c: ::1 n _ Mni, ,i i u AA L" Q r r ;;; ..... ,1 .,. 'l f\ .J _ - - --- J 1 n,...,. ... I
p RO P O S I ÇÀ O D E l i D E J U N H O D E 1 9 7 4

Lacan a isso se dedica ao justapô-lo ao amor. Nenhuma dúvida que ele daí
espera uma saída do impasse quanto ao saber em que se encontra o deus
de Empédocles. Seu caso parece exemplar da articulação do ternário amor,
6dio, ignorância. Lacan tenta fazê-los atuar de outro modo, não, aliás, sem
subverter esse ternário que, com a nomeação "amódio", doravante não é
mais um. O deus de Empédocles vale contraexemplo.
Menos longínquo talvez, um outro contraexemplo diz respeito à
relação homem mulher. Um repetindo o outro, esses dois contraexemplos
estão ligados, e feitos da mesma madeira. A sessão precedente (em que foi
lida por Lacan sua carta de amor) se concluíra pela formulação daquilo que
talvez mereça o nome de "lei do espírito", a esse título siderante:

Se Deus não conhece o ódio, está claro para Empédocles que ele disso sabe
menos que os mortais. De modo que se poderia dizer que quanto mais o ho­
mem pode causar confusão na mulher com Deus, isto é, aquilo de que ela goza,
menos ele odeia, as duas ortografias odeia [h-a-i-t] e é [e-s-t] *, e nesse assunto
também, já que afinal não há amor sem ódio, menos ele ama bem 1 2 •

Um amor primeiramente dito "não sem ódio" torna-se, oito dias mais
tarde, "amódio": o "não sem" pulou fora. E essa modificação provavelmente
contribuiu para baixar o tom da acima citada lei do espírito. Ela é então
dita novamente quase que palavra por palavra, oportunidade para Lacan
de manifestar uma certa insatisfação: "Eu não estava muito feliz por ter
terminado nisso, que no entanto é uma verdade. É bem o que hoje me fará
interrogar-me mais uma vez sobre o que se confunde aparentemente do
verdadeiro e do real [ ... ] ". Certo, mas também se pode pensar que, tendo
tido o sentimento de ter ido longe demais, Lacan realiza tão logo que possível
um recuo estratégico... embora não pensando menos. Esse movimento é
várias vezes observável nos seminários, e com frequência segundo a mesma
temporalidade que aqui, entre o fim de uma sessão e o início da seguinte.

* Homofonia: il hait [ele odeia) e il est [ele é) . (NT)


12 " Causar confusão na mulher [prêter à la femme à confusion)" permanece uma afirmação . . .
Seja como for, que se trate apenas de verdade ou então de uma verdad e elll
contato com um real, a afirmação diz o voto de Jacques Lacan de não ser
elevado ao nível pouco invejável de imortal. A isso um homem pode "prestar­
se"; disso uma mulher pode gozar. Empédocles permite que seja distinguido
o preço de igual operação: confundido com Deus, o homem não é [est] ,
não odeia [hait] tampouco e, por isso, não ama. Lacan busca outra via, q u e
ele portanto procura trilhar com a invenção do neologismo amódio. N ão se
pode muito ligar o amor ao ódio a não ser escrevendo amódio. Melhor, ou
pior que uma articulação, seria uma mesma entidade, indissociavelmente
amor e ódio, um e outro crescendo e decrescendo conforme um me sm o
gradiente. ''Amodiar-se" é outra coisa que amar e odiar.
Quase dois anos mais tarde, enquanto o borromeano dali por diant e
é a um só tempo dificilmente explorado e resolutamente questionado, 0
amódio volta à superfície e vai poder ser problematizado. O borromeano
notadamente levantou o problema dos limites do amor, a ser agora nova­
mente encarado como o dos limites do amódio. O amor como limitado não
vai estar menos presente que o amor como jogo nos últimos seminários.

Com o nó borromeano, o que temos a nosso alcance é isto para nós essencial,
crucial para nossa prática, que não temos necessidade alguma do microscópio
para que surj a a razão, a razão daquilo que enunciei como verdade primeira,
isto é, que o amor é amódio [hain(e)amoration, h-a-i-n-a-m-o-r-a-t-i-o-n.].
Por que o amor não é velle bonum alicui, como enuncia Santo Agostinho,
se a palavra bonum tem o menor suporte, isto é, se ela quer dizer o bem­
estar? Não por certo que, na oportunidade, o amor não se preocupe um
pouquinho, o mínimo, com o bem-estar do outro, mas está claro que ele
só o faz até um certo limite [ ... ] 1 3 •

Com dois anos de distância, a palavra de novo é soletrada! Como


que para melhor fazer entender que se tornou fora de questão escrevê-la
"énamoration"*. Embora não figure em nenhum dicionário usual, em que

13R. S. t. , sessão de 1 5 de abril de 1 97 5 .


* D o ponto d e vista homofônico, énamoration lembra haine [ódio) e amoration [enamora­
m�ntol (NT\
p RO P O S I Ç Ã O D E 1 1 D E J U N H O D E 1 9 7 4

no e ntanto é encontrado, embora considerado arcaico, énamourement [ena­


moramento] (feito de enamorar-se, apaixonar-se), énamoration se entende em
fran cês. Lacan fizera disso um uso preciso e localizado; ele lhe servira para
traduzir o termo freudiano Verliebtheit com o sentido de "ficar apaixonado",
0 raio do amor à primeira vista* sendo então privilegiado às custas do estado
amoroso 1 4 • Ausente dos seminários a partir de 1961, o enamoramento [éna­
,noration] está ligado ao acento colocado, na época, no caráter narcísico do
amor. O ódio, por sua vez, há muito tempo estivera ligado ao amor.Assim,
n essa passagem de 7 de julho de 1954 (em que se reconhecerá o esticamento
do amor, mas também do ódio, na direção do simbólico):

O ódio 1 5 , na medida em que se desenvolve, ele também [como o amor] ,


no sentido da relação simbólica, é uma paixão que não se satisfaz com o
desaparecimento do adversário. O que ele quer é muito precisamente o
contrário desse desenvolvimento de seu ser de que eu há pouco lhes falava a
respeito do amor; o que ele quer é seu rebaixamento, é seu desnorteamento,
seu desvio, seu delírio, sua subversão 1 6 •

Amor e ódio eram então apresentados como dois vieses antinômicos


visando o ser do outro, cada um aparecendo, além disso, sem limite aúibu­
ível. Nos tempos do borromeano, conjugá-los no amódio coloca de outro
modo a questão do limite: este de certo modo se torna interno ao amódio
e constitui uma de seus características. Sequência da citação acima de 15
de abril de 1975 {retomada um pouco mais acima):

Não, decerto, que, na oportunidade, o amor não se preocupe um pouquinho,


o mínimo, com o bem-estar do outro, mas está claro que ele só o faz até
um certo limite, do qual não encontrei nada de melhor, até hoje, que o nó
borromeano, para esse limite, representá-lo. Representá-lo, entendam bem

• Amor à primeira vista, em francês, !e coup de foudre [lit. o golpe de raio]. (NT)
14 Reportar-se às sessões seguintes de seu seminário: 8 de junho de 195 5 ; 31 de maio de 1956;
23 de janeiro de 1957; 11 de junho de 195 8 ; 8 de fevereiro de 1961; 31 de maio de 1961.
1 5 Não "ali mesmo" [là-même] das transcrições Seuil e Afi.
,,. ' • - - - , -- ,_ .. , •. •--L - , �···· .,. .. ;;n ,l,. 7 ,l,. ; . , J hn ,l,. 1 CJ'i4_ Pontuacáo modificada.
470

que não se trata de uma figura, de uma representação, trata-se de coloca r


que é o real que está em jogo, que esse limite só é concebível nos termos de
ex-sistência, que, para mim, em meu vocabulário, em minha no mea ção ,
quer dizer o jogo, o jogo permitido a um dos ciclos, a uma das consistênci as
pelo nó borromeano. A partir desse limite, o amor se obstina porque há re al
no assunto, o amor se obstina bem ao contrário do bem-estar do outro. É
bem por que chamei isso o amódio, com o vocabulário substantificado d a
escrita c?m a qual o suporto.

A oscilação entre querer o bem de alguém ou querer o contrário sugere


a Lacan a ideia de uma senoide 1 7 :

Esse desenho logo cria problema: o enrolamento é um nó? O borro­


meano torna agudo esse problema pois coloca que o nó é subjacente a toda
"consistência", a todo anel de barbante, pois "o real é caracterizado por se
nodular", mas no sentido em que esse nó deve ser feito.
O círculo "redondo" figura um certo limite; o círculo torto (a "senoi­
de") desenha, este, as oscilações do amódio que, de maneira notável, nunca
se afastam demais desse limite ( cf "o jogo permitido"). Em outras palavras,
esse limite não é um no sentido em que o horizonte cria limite à vista; ele
se atravessa mas não admite um afastamento grande demais.
A obstinação do amor (de um certo amor?) é uma questão nova nos
semindrios. Tudo se passa como se, sob a visada do bem-estar do outro,
corresse uma outra visada que, por assim dizer, prevaleceria no momento
em que o amor virasse ódio, enquanto que, longe de se esvaecer, a visada
do bem-estar passaria para baixo até que novamente prevalecesse enquanto

17 Esse desenho não é comentado nem na obra de Jeanne Granon-Lafont ( Topologie lacanienne
et cliniq11e psychanalytiq11e, Paris, Point hors ligne, 1 990), nem na de Alain Cochet (Nodolo­
gie lacanienne, Paris, l'Harmattan, 2002) que no entanto dedica um capítulo a R S. I. , e nem
na de Marc Darmon (Essais s11r la topologie lacanienne, op. cit. ) .
p 11- 0 P O S I Ç Ã O D E 1 1 DE JUNHO DE 1 974 471

0 ódio vira amor ("eu te detesto" pode perfeitamente constituir a primeira


palavra de um movimento segundo o qual acabaremos nos descobrindo e
nos dizendo apaixonados). Assim, é possível compreender os avessos dos
avessos do desenho que são outros tantos nós de trevo. Talvez o número
deles, cinco no caso em questão, não seja significativo. O ódio parece o
nome de disfarce de uma obstinação do amor, o amor, o nome de disfarce
de uma obstinação do ódio, essa obstinação não sendo, para acabar, nem a
do amor nem a do ódio. O amódio é o nome de uma relação com o outro
que não é nem amor nem ódio, à qual amor e ódio servem de veículo.
Seria isto, em todo caso, o que indica esse esquema, ao passo que o texto,
este, sugere uma certa disparidade entre amor e ódio, já que só é aí evoca­
do o limite do amor. Ele no entanto confirma a espécie de paridade que é
a presentada pelo esquema entre amor e ódio ao afirmar que o ódio visaria
"bem o contrário" do que visa o amor, bem o contrário do bem-estar do
outro. Dessa relação com o outro somente indicada pela dupla obstinação
do amor (ela formulada) e do ódio (ela somente sugerida), dessa relação que
não deixa de evocar Para além do bem e do mal, nada mais será dito, a não
ser que ela é real.A razão disso não é fenomenológica, mas de pura doutrina
borromeana, que Lacan aliás lembra. Um simples anel de barbante já é um
nó, isso a nodologia lacaniana exige, nodologia que aliás não é desmentida
pela teoria matemática dos nós 1 8 • Assim, Lacan pode se perguntar· se seu
desenho da senoide faz nó com o do limite. Sim, seu desenho é bem o de
um nó. Mas esse nó não é borromeano, tanto que o nó (borromeano) resta
a ser feito. Como? Lacan, lamentamos, se dispensa de mostrá-lo - pelo
menos a partir desse desenho. É verdade que esse desenho, diferentemente

18 Verifiquei , com Michel Thomé a quem aqui agradeço, senão a j usteza, pelo menos a pos­
sibilidade das segui n tes considerações: mesmo que o borromeano comece a três, dois anéis
i ncrustados podem ser ditos borromeanos uma vez que cortar um os torne todos (dois)
livres. Assi m , John Willard Milnor (que classificou as cadeias, notadamente borromeanas,
em 1 9 5 4 , depois em 1 9 57) incluiu esse nó de dois enlaçamen tos em sua classificação dos
borromeanos. Thomé e Soury o chamaram " borromeano degenerado" . Quanto ao si mples
anel de barbante, d i to "trivial", um equivalente de certo modo do zero , nada proíbe enca­
rá-lo como o menor nó possível ao menos pelo fato de que se, tomado em si mesmo, ele
permanece mudo, ele "esconde seu jogo" (Thomé) , sua exploração exige passar pelo borro­
meano a três - a fim, por exemplo, de se perguntar se ele localiza um verdadei ro furo.
472 O AMO R L A C A N

de um início de tecedura, não parece muito suscetível de valer como um


ponto de partida fácil para a realização de um borromeano, e talvez não
convenha lhe pedir mais que o que ele pretendia fornecer19• Enquanto nó,
ele supõe o borromeano, questão, dissemos, de pura doutrina. Cifrando os
movimentos permitidos ao amódio em torno de seu próprio limite, ele já
assinala que um real aí está em jogo, embora ainda não atingido no sentido
de não-subjetividade.

PATERN I DADE, ETERN I DADE

Estamos agora em condição de ratificar a afirmação segundo a qual "não


temos necessidade alguma do microscópio", com o borromeano, para "que
apareça a razão" que permita tornar plausível o amor como amódio? Lacan
com certeza entreviu que ainda não tinha sabido dizer essa razão, que o
desenho desse nó não lhe fornecia uma feliz base de partida para isso. Por
isso, já nessa mesma sessão, ele de novo encara o amor de outro modo, talvez
jogue para a lateral interessando-se pelo amor... em Freud. Já estivemos às
voltas com o possível contrassenso de leitura que de novo se apresenta a
respeito da seguinte questão, colocada em fim de sessão: "Será que Freud
não enunciou corretamente [ . . . ] que só há amor da identificação relativa a
esse quarto termo, isto é, o Nome-do-Pai?". Lacan não diz aqui o que ele
entende por "amor". A forma interrogativa parece aqui mais valer como um
artifício retórico que mascara levemente uma afirmação que como a marca
de um efetivo questionamento. Uma curiosa afirmação, no entanto, pois
em vão buscaríamos em Freud tanto um qualquer quarto termo quanto o
conceito de Nome-do-Pai e, portanto, menos ainda a ideia de que um e
outro seriam apenas um. Nenhum texto de Freud evidentemente é citado.
Lacan antes procura transpor a problemática freudiana das três identificações
(aquela com o pai, a histérica, aquela com o traço unário) em seus próprios

19 Ainda mais que uma outra versão de R S. I. não oferece nenhum avesso do avesso e poderia
bem estar mais próxima do que teria desenhado, se não rabiscado Lacan - o caráter capri­
chado dos desenhos da versão aqui eleita como de referência tornando-os relativame nte
suspeitos, suscetíveis de apagar enrolos interessan te.�.
P RO P O S I ÇÃO D E l i D E J U N H O D E 1 9 74 4 73

cermos e em sua própria problemática do momento. Muitas objeções po­


deriam ser feitas a tal iniciativa, se esta devesse aqui ser a questão. Vamos
antes escolher considerar para ele mesmo o hábito com o qual Lacan veste
Freud. Como ele é configurado? A partir do tríscele [triskele] (exemplo: três
2
fuzis dispostos em feixes, pois dois apenas não permitem mantê-los de pé 0 ) ,
em outras palavras, de três consistências não enodadas:

O tríscele (ou a tríscele, esse substantivo sendo curiosamente mas­


culino e feminino) deixa-se distinguir no nó borromeano simples como
constituindo "o coração, o centro do nó", esse centro furado onde Lacan
aloja o objeto a (o desenho acima é um bom ponto de partida para traçar
um borromeano simples). Entretanto, ele sozinho não faz nó. "Ele só se
inscreve da consistência, ele [Freud] chamou isso o traço unário, não se
podia dizer melhor o que faz componente do nó, não sem ter colocado
em mente que só há amor, direi, daquilo que do Nome-do-Pai faz círculo
entre os três, faz círculo dos três do tríscele". Será nisso que reside uma das
últimas determinações do amor Lacan nos seminários? Quem quisesse dis­
so se assegurar poderia, aliás, acolher como uma confirmação duas outras
afirmações rapidamente lidas. A primeira, retomada da última sessão do
seminário O sinthoma, diz isto:

Até onde vai, se posso dizer, a pere-version? Como sabem, desde o tempo
que o escrevo, o nó bo, é isso. É a sanção pelo fato de que Freud faz tudo
caber na função do pai. O nó bo é apenas a tradução disto, é que, como
me lembravam ontem à noite, o amor e, mais que isso, o amor que pode

10 O que
toma um regime quase matemático com a observação que o cruzamento de duas
lin has não basta para localizar um ponto, essas duas linhas sendo suscetíveis de deslizar uma
�nh. r..,. ,., ,,. , , .. .. ,. .... .., ..., , , ,.. ... ....... , , .,_ ..._ .. .,. .. ,.. ,,. • .. ,.. .... - � • - .. ... ... . • ... .. ._ _ __ L I - � . . ....... .. .,..,..,..,, ,...1. ,,.,.J • ., ..,, r,,-o ..., ...,. ,-,,._
474

ser qualificado de eterno, é o que se relaciona com a função do pai, que se


endereça a ele, em nome do fato de que o pai é portador da castração2 • .

Da mesma veia, uma segunda afirmação vem logo após, bem no início
do seminário seguinte:

[... ] para Freud, há pelo menos três modos de identificação, a saber, a iden­
tificação à qual ele reserva, não sei bem por quê, a qualificação de amor,
amor, é a qualificação que ele dá à identificação com o pai. O que é que,
por outro lado, ele formula de uma identificação feita de participação, ele
chama isso, ele ressalta isso da identificação histérica. Além disso, há u ma
terceira identificação que é aquela que ele fabrica com um traço, com um
traço [... ] que chamei unário. Esse traço unário nos interessa porque, como
Freud sublinha, não é algo que tem especialmente negócio com uma pessoa
amada, uma pessoa pode ser indiferente e um traço unário escolhido como
se constituísse a base de uma identificação 22 •

Vários discretos indícios assinalam que esse amor só adviria pelo viés
de uma "identificação relativa a esse quarto termo", a saber, o Nome-do­
Pai, que "faz círculo entre os três do tríscele" (primeira citação, R. S. I. ) , "que
se refere à função do pai" (segunda citação, O sinthoma) , que "qualifica a
identificação com o pai" (terceira citação, L'insu...) , não é o amor Lacan.
Vamos encará-los na ordem. Sobre o que, perguntaremos antes de mais nada,
desembocam as afirmações feitas no fim de R. S. I. ? Lacan prossegue assim:

E onde é que lhes marquei que já se situa o desejo, o desejo que também é
uma possibilidade de identificação? É aqui, a saber, ali, onde lhes situei o
lugar do objeto a como sendo aquele que domina aquilo de que Freud faz
a terceira possibilidade de identificação, o desejo da histérica.

Notamos um duplo deslizamento: do amor subrepticiamente se


passou ao desejo, e da identificação com o pai à identificação histérica. Um

21 J. Lacan, O sinthoma, sessão de 11 de maio de 1976.


22 J. Lacan, l'i11s11 ..., sessão de 16 de novembro de 1976.
p R O l' O S I Ç Ã O DE 1 1 DE J U N H O DE 1 9 7 4 4 75

Jacaniano muito decidido a fazer saber que as afirmações de seu mestre são
permanentemente de um rigor a toda prova poderia, mediante, é verdade,
alguma acrobacia, encontrar aí seu alimento: o amor do pai por identificação
com o pai permitiria a realização do nó que, tendo alojado o objeto a em
seu lugar, faria o sujeito desejante. Do amor ele teria passado ao desejo; por
amor, ele teria advindo como desejante. Entretanto, não vemos por qual
al quimia o Nome-do-Pai (encarado como quarto anel de barbante) cessaria
de ser objeto dessa identificação com o pai na qual se aloja o amor. E nem
tampouco como adviria um desengajamento da histeria se, uma vez feito
o nó, o sujeito se identificasse, como é sugerido, com o objeto a.23. Logo,
leremos antes esse fim de sessão como um certo golpe de mágica quanto à
questão do amor. Houve bem outros... Mas se ainda nos perguntássemos se
o amor Lacan devia ou não ser relacionado à "função do pai", essa dúvida
acabaria com a citação do seminário O sinthoma em que esse amor é, "de
mais a mais", qualificado de eterno. O argumento é decisivo: de um amor
eterno Lacan não terá querido saber. Aliás, ele de novo ressalta isso, pouco
antes de ter dito a frase acima citada:

É preciso tentar livrar-se de uma ideia essencialmente confusa que é a ideia


de eternidade. É uma ideia que só se liga ao tempo passado: philia de que
eu há pouco falava. Pensamos, e até acontece de falarmos disso a torto e a
direito, pensamos um amor eterno. Na verdade não sabemos o que estamos
dizendo. Porque por aí entendemos a outra vida, se posso me exprimir assim.
Veem como tudo se penetra. E aonde, em suma, essa ideia de eternidade, da
qual ninguém sabe o que é, essa ideia de eternidade nos conduz.

Philia, dissera ele pouco antes, "pode ganhar peso. É o tempo enquan­
to passado - passado, não o pensamento, mas o tempo passado. O tempo
passado é a philia". Assim, o próprio nome philia se apresenta como o desse
amor que Lacan procura referir ao pai. Só é possível indicar melhor isso por

n O problema será retomado em 14 de dezembro de 1976 (L'insu... ) em termos por certo


diferentes mas que mantêm o laço entre histeria e amor do pai: "A histérica é sustentada em
sua forma de porrete, é sustentada por uma armadura. Essa armadura é, em suma, distin ta
ele seu consciente. Essa armadura é seu amor por seu pai" .
O AMOR L AC AN

uma nomeação e por esta, além do mais: não se trata do amor Lacan. O am or
Lacan não é filosófico. E mais uma vez pensamos na distinção kierkegaardia­
na entre o amor conforme a reminiscência e o amor conforme a repetição.
Assim, Lacan poderia acabar tendo de admitir na terceira citação ( L'insu.. . )
que poderia ter sido utilizada contra essa distinção de dois amores (o arnor
Lacan, o amor philia) e que, ela também, lida de perto, a confirma. Freud
reserva a qualificação de amor à identificação com o pai, "não sei bem por
quê", confessa então Lacan.
Ainda não teremos lido, na citação acima do seminário O sintho ma,
o que, segundo Lacan, motiva esse amor eterno relacionado com a função
do pai. Endereçamo-nos a ele, é precisado, "em nome do fato de o pai ser
portador da castração". Não está dito aqui que o pai é portador da castração,
só que nos endereçamos a ele ao considerá-lo tal. E, aí ainda, seria errô neo
tomar essa observação como certa. A sequência indica isso:

É o que Freud pelo menos formula em Totem e tabu, a saber, na referência


à primeira horda. É na medida em que os filhos estão privados de mulher
que eles amam o pai. Com efeito, é algo bem singular e atordoante e que
só a intuição de Freud sanciona.

"Pelo menos", "singular", "atordoante" indicam uma reserva que acaba


sendo dita: só a intuição de Freud dá algum peso a seu dizer. E Lacan conclui:
"A lei, na oportunidade, é simplesmente a lei do amor, isto é, a perversão".
Leremos antes, conforme a mesma linha seguida há um momento: "a lei de
um certo amor, isto é, a perversão". Assim, não ficaremos muito surpresos
que Lacan busque dar "um outro corpo" à intuição de Freud, "precisamente,
em meu nó bo". A relação do amor com a perversão é aqui objeto de uma
notável virada de bordo de 180 graus . Enquanto que, num primeiro e ina­
cessível texto, Lacan teria ressaltado o amor como perversão, eis agora que,
atribuído a Freud {depois de ter caracterizado o amor cristão), esse amor
perverso não convém mais. Colocado ao lado, ele deixa lugar ao voto de
dar um outro corpo, borromeano, ao amor. Esse voto terá sido cumprido?
Com certeza não. No entanto, suas consequências não foram nulas: entre
elas, quase última, figura o amor renomeado "amódio".
CAPÍTULO XXIV

DAN T E VE R S US LACAN

OS NOMES E AS COISAS

Com L'insu..., Dante vem para o primeiro plano do questionamento laca­


niano do amor1 • Sem que possamos por isso considerar que esse questio­
namento terá desenhado uma figura terminada do amor, certos traços vão
no entanto, através de Dante, acabar ligados. São retomados, é verdade que
um pouco transformados: o amor como sentimento cômico {ele será dito
bufão) ; o amódio {como violência amorosa) ; o amor como jogo {jogo da
mourre) . A poesia amorosa também traz um elemento novo, embora retome
de outro modo as bem numerosas vezes em que Lacan, tentando situar o
amor, voltava-se contra a linguagem.
Com certeza conj ugadas apenas pelo acaso, duas circunstância� terão
notadamente prolongado Lacan em Dante: a tradução italiana dos Escritos,
para a qual lhe pediram um prefácio, e o gesto do livreiro que, supondo-o
interessado, trouxe-lhe Dante Alighieri ou a p oesia amorosa de E. J. De­
2
lécluze . Lacan acolhe esse pedido de prefácio como o que ele considera

1 Dante foi convocado, em 8 de fevereiro de 1 96 1 , para lembrar que ele situa o amor eterno
nas portas do inferno. Essa referência isolada não pode ser considerada uma leitura de
Dante; ela é, por parte de Lacan, um viés para ajudar seus ouvintes a pensar o amor eterno
de uma maneira que não lhes seja pesada demais. Dante ainda esteve em questão em "O
aturdito" ( 1 972), mas se trata, aí ainda, de pinceladas, não desenvolvidas.
1 "Ou", não "e", como deve ter dito Lacan ao citar falsamente esse título. Ele também se
engana quanto à data: 1 857 e não 1 854 ou 1 964 (transcrições L'Unebévue ou Afi) . O nome
do autor está mal ortografado nesta última. Pequena diversão: esta traduz o título da obra
por: Mante e a poesia amorosa. Por que não, já que ali se estava: Mante e a poesia religiosa?
Publicada por Adolphe Delahais, livreiro, na " Biblioteca de um homem de gosto", coleção a
1 franco o volume (Lacan terá com certeza pago mais caro), a obra comporta dois tomos.
0 AMO R L AC A N

característico desses prefácios: um convite feito ao autor para se ap rovar,


talvez até se aplaudir.

É da ordem da comédia e... isso me fez, isso me induziu a... isso me empurrou
para Dante. Essa comédia, essa comédia é divina, é claro, mas isso só quer dizer
uma coisa, é que ela é bufona. Falo de, do bufão em O aturdito. [...] Isso q u er
dizer que é possível bufonar sobre a pretensa obra divina. Não há a menor obra
divina a não ser que queiramos identificá-la com o que chamo o real3 •

O que é, então, que Lacan entende por " bufonar" ? Em que, po is,
o bufonar pode bem dizer respeito ao amor4 ? E que amor? O que liga 0
bufonar ao divino? A remissão a " O aturdi to" fornece um início de resposta .
Chamada pela consideração (discutível) segundo a qual o matemático tem
o mesmo embaraço, com sua linguagem, que o analista com o inconsciente,
uma nota de pé de página convoca, com efeito, o personagem do bufão.
Como o conj unto de " O aturdito" , ela permanece dificilmente legível, tanto
ali abundam equívocos e duplos e triplos sentidos. Porém acreditamos poder
ali notar a distinção de dois personagens, o louco e o bufão. O louco é o
filósofo, "ocupando lugar da verdade" no discurso do mestre em que importa
que o papel seja mantido. Kojeve, que Lacan lembra, aparentemente sem rir,
que foi "seu mestre" por tê-lo "iniciado em Hegel", tratava o assunto de outro
modo, e não é possível, considerando o que é dito de Koj eve, impedir-se de
pensar que seria bem possível tratar-se também de Lacan. Kojeve

[ ... ] só filosofava a título do discurso universitário no qual ele se alinhara


provisoriamente, mas sabendo bem que seu saber ali só funcionava com o
semblante e tratando-o como tal: ele mostrou isso de todas as maneiras,
entregando suas notas a quem pudesse aproveitá-las [Queneau vai publicá­
las] e postumando sua derrisão de toda a aventura5 •

.i J. Lacan, L'ins11..., sessão de 8 de março de 1977.


4 Ver e ouvir, a esse respeito, de Gaetano Donizetci, L'Elisir d 'amore. O acessorista de uma
recente encenação na Ópera de la Bastille (setembro de 2007} não omitiu a escala platônica,
conforme numerosas indicações do libreto.
5 J. Lacan, ''l.:étourdit", Scilicet, nº 4, Paris, Le Seuil. 197 � -
D ANT E V E R S U S L A C AN 4 79

Essa derrisão ainda é sublinhada pelo itinerário de Kojeve, em breve


retornando, após ter ensinado Hegel, à sua função de alto funcionário
do Estado na qual sabia "tratar os bufões tanto quanto os outros, ou seja,
como súditos, que eles são, do soberano". Não é dito que Kojeve bufonava,
ne m se bufonava ao ensinar ou/e enquanto alto funcionário. Resta que
sua situação é aqui reconhecida diferente daquela do filósofo, do fouló­
sofo*, ele inconsciente de sua situação (alusão ao personagem do louco
[o bobo] ** em Shakespeare). Já num de seus primeiros textos 6, a respeito
de uma aventura vivida depois relatada em Poesia e verdade, um de seus
amores adolescentes que Grethe aborda ludicamente disfarçando-se pri­
meiro de estudante de teologia, depois, "um pouco abaixo7 " , em garçom
de hospedaria, Lacan havia distinguido esses dois disfarces, sugerindo que
o segundo exagera em relação ao primeiro na questão bufonaria. Mais
tarde, vai se tratar de uma "derrisão superior", a de Ulisses em pessoa bu­
fonando Polifemo8 • Esse estranho uso transitivo de "bufonar" é de Lacan:
bufonamos alguém. O divino não está longe no contexto, já que é logo
após ter declarado que a ausência do sujeito no isso "não pede nenhum ser
supremo", que ela remete bem antes ao silêncio da pulsão de morte, que
Lacan convoca Ulisses a bufonar. Ulisses, ao se apresentar junto a ·Polife­
mo sob seu nome de Ninguém, "redobra" esse "lugar de Mais-Ninguém"
que não pode permitir sozinho que seja colocada a questão do impessoal
(uma questão aqui mesmo já visitada). Mais tarde ainda, louco e bufão
vão encontrar seu solo na comum função de contrabater o narcisismo
de grupo9• Revisitadas desde L'imu. . , essas indicações assumem o valor
de abordagens ainda tateantes, uma distinção mais precisa do louco (o
filósofo) e do bufão só sendo estabelecida nesse seminário:

• Jogo homofônico comfau [ louco] e filósofo. (NT)


•• Le Jou é não só o louco mas também o bobo, logo, o bufão a serviço do rei. (NT)
6 J. Lacan, "Le mythe individuei du névrosé", in PTL, retomado na coll. "Champ freudien",
Paris, Le Seuil, 2007.
7
Sobre "rebaixar-se para conquistar", ver Gloria Leff, Portraits de femmes en nnnlyse. Jacques
Lncn11 et /e co11tre-trnnsfert, traduzido do espanhol por Béatrice Cano, Paris, Epel, 2009.
8
J. Lacan, "Remarque sur le rapport de Daniel Lagache", Écrits II, op. cit., p. 144.
O A M O R LAcA
N

Resta, de qualquer modo, que sua partida [a de Saussure] , a saber, que a


língua é o fruto de uma maturação, de um... , de um amadurecimen to, de
algo que se cristaliza no uso, resta que a poesia decorre de uma vio lê n cia
feita a esse uso e que disso temos provas, se na última vez evoquei D ante e
a poesia amorosa, é bem para, para marcar, para marcar essa violência que
a filosofia faz tudo para apagar, é bem em que a filosofia é o campo exp e­
rimental da escroqueria.
E em que não se pode dizer que a poesia aí não atua à sua maneira, in o­
centemente o que chamei há instantes, o que conotei do imaginariamente
simbólico, isso se chama a verdade 1 0 •

A poesia (dantesca) atua na filosofia, mas diferentemente da filosofia.


Dante bufona ao criar uma nova língua, trazida por sua poesia amorosa.
Delécluze ressaltava que, diferentemente dos provençais, catalães e sicilia­
nos, sua poesia amorosa veicula um grande princípio filosófico, nada mais
que a filosofia platônica. Também nesse terreno, nota ele ainda, outros o
terão precedido {Anselmo de Cantorbéry, Abelardo, Pedro o Lombarda,
Alberto o Grande, Tomás de Aquino); mas só Dante soube dar ao amo r
platônico o veículo poético e literário sem o qual esse amor teria ficado
confinado a um círculo estreito de sábios 1 1 • A figura de Beatriz não teve aí
papel pequeno, figura à qual Delécluze oferece uma genealogia: a Diotima
do Banquete de Platão, o escravo de Hermas 1 2 {realização no próprio seio do
cristianismo da mulher símbolo que dirige o amante para o amor divino), a
Laura de Petrarca, ou ainda Santa Mônica (mãe de Agostinho), são outras
tantas visões de mulheres que levam o homem ao único verdadeiro Bem.
Dante parte daí, de uma Beatriz rainha das Virtudes; dos limbos, ela envia
Virgílio em missão, ordenando-lhe que conduza o poeta florentino pelo
bom caminho. Essa partida em nada reduz a ambição do projeto dantesco.
Segundo Delécluze:

10 Jd, L'insu . . . , sessão de 15 de março de 1977.


11 E . J. Delécluze, Dante Alighieri, op. cit. , p. 30.
1 2 A obra de Hermas é citada por São Paulo, q ue a terá lido em sua versão grega há muito
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D AN T E V E R S U S L A C AN

[ ... ] não se tratava de nada menos que encontrar o meio de submeter


ao mesmo impulso uma massa de ideias díspares difundidas na Bíblia,
em Homero, em Platão, em Aristóteles, em Virgílio, no Evangelho e no
Apocalipse, juntando a esses elementos já tão contrários aqueles que ainda
eram oferecidos pela literatura provençal. É desse caos de ideias lançadas
em desordem pela Idade Média que foi necessário que Dante compusesse
um conjunto de moral religiosa, que foi para a poesia o que a Soma de São
Tomás de Aquino já era em relação à teologia 1 3 .

Esse "conjunto de moral religiosa" foi escrito inventando uma língua,


invenção na qual Lacan vê a bufonaria de Dante. O laço entre invenção de
uma língua e bufonaria só é entendido a partir de uma certa versão daquilo
que é uma língua. Aquela então proposta por Lacan não é a de Dante, e
até a ela contravém - o que dá a Lacan a um só tempo o ponto de vista e a
condição de possibilidade de sua afirmação segundo a qual Dante bufona.
A quase metalinguagem inventada por Dante segundo Lacan lhe surge ma­
lograda pelo fato de se formar sobre o modelo das antigas línguas, que elas
mesmas são malogradas, mas, mais exemplarmente com certeza, pelo fato de
ela fracassar em realizar o princípio gerador que ela no entanto se dá: n_ omina
sunt consequencia rerum. Um belíssimo estudo deAndré Pézard, tradutor em
1965 para a Plêiade de A divina comédia, publicado nesse mesmo número
de L'Unebévue em que também é encontrada a versão do seminário L'i nsu...
tomada aqui como texto de referência, persegue a origem desse artigo de fé e
estabelece, assim, como Dante lhe terá inflectido o sentido e o alcance. Até
ali estavam em questão os nomes dados às coisas, concepção que repousa
n uma teoria do conhecimento que remonta a Aristóteles e foi renovada por
Santo Agostinho: no espírito se formam imagens das coisas à semelhança
das coisas, imagens essas que são em seguida retomadas em palavras que
a elas se assemelham 14 • Ora, ali onde se tratava de um acordo dos nomes
às coisas, Dante vê uma relação de consequência {assim, o próprio nome
de Beatriz: vendo-a, qualquer um se acha forçado a modular-lhe as doces

1 3 E. J. Delécluze, Dante Alighieri, op. cit., p. 1 03 .


1 4 Já e m seu estudo sobre a afasia, em 1891, Freud, estratificando o que ele inventa sob o nome
sílabas, mesmo que nunca tivéssemos sabido esse nome). Um círculo vern
em seguida, já que, daí, as coisas também poderão ser encaradas, talve z até
criadas, como consequências dos nomes. Assim, Dante eleva até uma mís ­
tica um problema epistemológico. Assim acontece com o amor: "O no me
Amor é tão doce de ouvir que me parece impossível que sua ação própria,
na maioria das coisas, não seja toda doçura, como assim seja que os no m es
respondem às coisas nomeadas, conforme ele estiver escrito: nomina sum
consequencia rerum".
Dante não parece ter lido Safo, a amargura do amor não entra em
seu campo. Os nomes são figuras das coisas, as coisas figuras dos nomes . E
Pézard conclui quanto ao preço a ser pago por ter adquirido essa faculdade
de modelar as coisas dando-lhes um nome, por essa fé manifestada por Dan te
na significância dos nomes próprios: ela desconhece o estatuto do nome
próprio 1 5 ao lhes conceder o privilégio de colonizar os nomes comuns, que
se dobram pouco, estes, à fantasia individual - assim Amor, cuja maiúscula
vem marcar a personaçao. - "E m suma" , escreve P ezar' d , "trata-se de uma
linguagem que só tem sentido para um único homem: Dante, que dialoga
com os fantasmas [fàntômes] nascidos de seu gênio". Assim, ele confirmava
o juízo lacaniano segundo o qual Dante havia fracassado em inventar ess a
língua que faria dos nomes as consequências das coisas. Sozinho, já em
1953, o ternário simbólico imaginário real exigia o reconhecimento daquilo
que Lacan também dirá em latim em sua abordagem distanciada de Dante:
nomina non sunt consequentia rerum. Como entende ele "consequência" no
artigo de fé dantesco? Ela só poderia, diz ele, ser real. Ora, o real "compor ta
a exclusão de todo sentido", e, portanto, "não há verdade sobre o real" (esta
frase não seria uma?).
Lacan, no entanto, não consegue sair da influência de Dante de uma
maneira tão principialmente decidida pois, psicanalista, tem bem que ad­
mitir que, se os nomes não são consequências das coisas, eles por outro lado
intervêm por algum viés nas coisas, a começar pelo sintoma, que portanto

1 5 Um nome próprio não se traduz mas se translitera, especificidade que esteve no início de sua
virtude para a decifração dos hieróglifos egípcios Oean Allouch, Letra a letra. Transcrever,
tmd11zi1; tmnslitemr, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1995) .
D A N T E VERS US L A C A N

deverá ser dito manter um sentido no real. Ele tem que admitir que existem
"efeitos de sentido 1 6 " . As palavras têm um alcance: "Se os nomina, de uma
maneira qualquer, não se ligam às coisas, como a psicanálise é possível 1 7 ?".
E então cita como exemplo o neto Luc, que se esforça para dizer as palavras
que não entende, e que tira dessa experiência a teoria segundo a qual ele
tinha uma cabeça especial, teoria confirmada pelo avô que a relaciona à sua,
à sua. . . de cabeça, mas também à sua teoria. O que diz ela? Que, longe de
estar harmonizada às coisas, a linguagem é parasitária. Daí pode ser mais
bem circunscrita a bufonaria da poesia amorosa. Ela é violência feita à lín­
gua. Mas de que maneira? Teremos amplamente começado a dizê-lo com
Pézard comentando o nomina sunt consequentia rerum. Em 15 de março de
1977, Lacan leva mais adiante sua análise da violenta bufonaria dantesca.
Mais uma vez, é então colocada à questão a fórmula S 1 � S2 •

E o significante, deve-se mesmo assim notar bem que ele é algo bem especial.
Ele tem o que é chamado efeitos de sentido, e bastaria eu conotar o S 2 não
por ser o segundo no tempo, mas por ter um sentido duplo, para que S 1
tome seu lugar, e seu lugar corretamente.

S 1 � S2 escreve a fórmula "o significante representa o sujeitá para


outro significante". Lacan a isso voltou várias vezes: primeiro, ao ler "Outro"
em "outro significante", de onde resultava que, o Outro interpondo-se a
cada novo lance de sorte, o S 2 nunca era alcançado ( De um Outro ao outro) ;
em seguida, lendo o 1 do S 1 mediante o que o amor, pendurado a esse 1,
bloqueava a função simbólica (Mais, ainda) . É agora o 2 que se acha dis­
tinguido e questionado como tal. Seu valor até ali aceito é transformado:
marca de uma secundaridade, ei-lo marca de um sentido duplo; mas também
condição de possibilidade para que o S 1 tome seu lugar. Escreveremo�: o
significante (S 1 ) representa o sujeito junto a outro significante (S 2 ) portador
de um sentido duplo. Lacan não comenta mais adiante essa novidade, mas

1 6 Lembramos que isso esteve em questão aqui mesmo a respeito da ação da rainha Victoria,
e, j á, em relação com considerações sobre as línguas.
17 1 T oro n f ';., ,,, <P«Ón ,jp 1 'i ,l,. m � rro cl .. 1 97 7 .
O A M O R L A C I\ N

a esclarece um pouco ao logo colocá-la em ação em sua leitura de Da nte,


Ambas encaradas como uma escroqueria, poesia e psicanálise fundam seu
exercício nesse sentido duplo. Prima da psicanálise, a poesia é imaginaria­
mente simbólica, é verdadeira - o imaginariamente simbólica caracteriza a
verdade nos tempos em que a verdade adveio como varidade.
A operação poética violenta a língua encarada como fruto de urna
cristalização devida ao uso, uso este, é possível considerar lendo essa ses são
de seminário, que reduz o sentido duplo do S 2 • A escroqueria filosófica apaga
essa violência poética feita à língua (limitando-se a um sentido?), ao passo
que as duas outras escroquerias, aquelas que têm nome poesia e psicanálise,
não a põem em ação da mesma maneira - em que elas são, ainda que corno
escroquerias, preferíveis, mais bem ajustadas ao que é uma língua portadora
do sentido duplo de S2 • Mas como, então, se diferenciam poesia e psicanálise?
Lacan encontra aqui uma oportunidade de dar novamente algum interesse
à oposição fala plena/fala vazia que tivera sua hora de glória em seus pri­
meiros seminários, mas na qual o materna S1 ---+ S2 havia licenciosamente
desferido um golpe fatal. A fala plena agora é redefinida como aquela que
parte da duplicidade do S 2 • Portadora desse sentido duplo, ela é plena de
sentido. A fala vazia, em compensação, "tem apenas significação". Assim,
munido da oposição sentido/significação, Lacan considera que é "próprio
da poesia quando ela malogra justamente ter apenas uma significação, ser
puro nó de uma palavra com outra palavra". Dante, como lemos, é um dos
nomes da poesia quando ela malogra . E o como desse malogro, que vale
bufonaria, agora é dito:

Como o poeta pode realizar essa prova de força de fazer com que um sentido
esteja ausente é, bem entendido, substituindo esse sentido ausente pelo que
chamei a significação. A significação não é nem um pouco o que ... o que um
frívolo povo acredita, se posso dizer. A significação é uma palavra vazia, é,
em outras palavras, o que, a respeito de Dante, se exprime no qualificativo
colocado sobre sua poesia, isto é, que ela seja amorosa.

A prova de força do poeta enuclearia um dos sentidos do sentido duplo


do S/ Ou esvazia o S2 de todo sentido? Pouco antes, foi dito que "a poesia se
D ANTE V E R S U S L A C AN

fu n da precisamente nessa ambiguidade de que falo e que qualifico do sentido


d upl o" . A questão permanece manhosa, pois não se trata apenas da poesia
m as também da poesia quando ela malogra, sem que, aliás, seja sempre pos­
s ível determinar se tal enunciado se refere a uma ou à outra, talvez até a uma
e à outra. Se, no entanto, "a significação é uma palavra vazià' , será forçoso
con cluir que a poesia de Dante, pelo menos ela, esvazia de todo sentido o S 2 •
Teremos notado o "em outras palavras" que, como com frequência, introduz
essa coisa, precisada pela sequência imediata da citação:

O amor nada é senão uma significação, vale dizer que ele é vazio, e vemos
bem a maneira como, como Dante encarna essa significação, o desejo tem
um sentido mas o amor tal como dele já falei em meu seminário sobre a
ética, tal como o amor cortês o suporta, é apenas uma significação.

Não vamos nos lançar numa avaliação crítica da aproximação aqui


operada entre amor divino dantesco e amor cortês . Tal aproximação espan­
ta em alguém que, por ter lido Delécluze, terá tomado conhecimento de
afirmações sobre esse problema de história literária de teor bem diferente
(Delécluze não tem em alta estima a poesia cortesã) ; ela também espanta se
nos lembrarmos em que desembocou aqui mesmo a leitura do momento em
que, em A ética, esteve em questão o amor cortês: tratava-se da sublimação ,
não tanto do amor. "Dize-me qual é tua relação com a linguagem, te direi
como tu amas" , poderia ser esta a moralidade da consideração de Dante
por Lacan, mesmo que uma moralidade assim não fosse, em Lacan , uma
novidade. Uma última vez, Lacan valoriza uma figura do amor com esse
fim sobretudo de indicar que o amor. . . não é isso 1 8 •
Resta que essa passagem em Dante e por Dante lhe terá permitido
outra coisa que simplesmente colocar de lado uma maneira de amar, isto
porque ele colocava a seguinte questão : o que seria essa outra maneira de
amar que não desprezaria o duplo sentido do S/ Em vão buscaríamos uma
formulação explícita dessa questão em L'insu. . . , o que não a impede de modo

18 Sobre a função em Lacan do "não é isso" , poderemos consultar o início de minha obra
• • ,. ...... • T'"" 1 1 " " ,,
O A M O R LACAN

algum de ali ser legível. A consideração de Dante permite di zê-la ainda com
outras palavras: um amor que não seria pura significação, em outras pal a­
vras, vazio de sentido, é possível? Não vamos excluir que essa questão tenh a
permanecido sem resposta clara e como que definitiva em L'i nsu...
A última indicação que fornecem os seminários sobre o que foi cha­
mado o amor Lacan é lida na sessão de 1O de maio de 1977. Ela novamente
encara o amor como jogo, precisamente como jogo da mourre. Esse jogo
vai esclarecer com nova luz o amor Lacan? A fim de tentar responder, exa­
minaremos a primeira formulação da questão que Dante coloca a Lacan, a
da manutenção possível do duplo sentido do S2 no amor. Aqui importa um
lapso de Lacan, que diz respeito a, modifica e esclarece o estatuto do S2 " Ele
ocorre, precisamente, em 8 de março de 1977, enquanto ele constatava que
a psicanálise só era possível se Dante não estivesse absolutamente errado
em considerar que os nomes se prendem às coisas. Sem isso, "a psicanálise
seria, de certa forma, o que se poderia chamar blefe, quero dizer semblante".
E ele prossegue:

Foi de qualquer modo assim [o anúncio vai se afigurar falso] que situei
no enunciado de meus diferentes discursos a única maneira pensável [ele
ainda não sabe que vai escrever uma outra] de articular o que é chamado
o discurso psicanalítico. Lembro a vocês (ele vai ao quadro) que o lugar do
semblante onde pus o objeto a . . .
- Mais alto!

que o lugar do semblante não é aquele . . .


- Mais alto, não estamos ouvindo muito bem!

que (volta) articulei da verdade. Como é que um sujeito, já que é assim que,
que eu designo o S com a barra, como é que um sujeito, um sujeito com
toda a sua fraqueza, sua debilidade, pode ocupar o lugar da verdade, e até
( vai de novo) fazer que isso tenha resultados?

Ele ali se coloca dessa maneira, a saber que ( volta) um saber, hein?
Voz de jacques-Alain Mille,; inaudível.

- Não foi assim que eu escrevi na época?


O público - Não! Não! (alvoroço)
D AN T E V E R S U S L A C A N

Uma voz - Não, estd tudo invertido.


- É assim, está bem exato.
]acques-Alain Miller - S barrado no lugar de Sr
Uma voz - É melho,; é melhor (risos)
]acques-Alain Miller - S1 no lugar de S2 e S2 no lugar de S barrado (risos do
público).
Alvoroço.
- Ah!!!
]acques-Alain Miller - S2 ali! . . . S/ . . . 2! . . . 2!
Uma voz - 2!
Lacan ri.
- Pois bem!
(volta) Vocês veem que há com o que se enrolar... (risos e alvoroço; alguém nas
primeiras fileiras - Um novo discurso, é o quinto) sim, é incontestavelmetne
melhor assim (risos) , é incontestavelmente melhor assim mas é ainda mais
perturbador assim (risos) . Quero dizer que a falha entre S 1 e S 2 é mais que
impressionante.

Qual foi, precisamente, o teor desse lapsus calami? Modificando sem


ter tomado cuidado a sequência no entanto afirmada como intangível das
letras, S, S 1 , S2 , a, na escrita dos quatro discursos, Lacan primeiro teria
escrito:

Depois, segundo a versão Afi desse seminário, assim teria sido corrigido:
Isso no lugar daquilo que até ali sempre fora a escrita do discurso
psicanalítico (que ele queria escrever):

Discu rso analítico

A segunda escrita, ela também errada, provocou a seguinte c orre­


ção, proposta por Jacques-Alain Miller: "S 1 [na escrita que convém] no
lugar de S2 [na escrita errada] , e S 2 [na escrita que convém] no lugar de
S barrado [na escrita errada]" . Essa correção se refere à segunda escrita
errada da transcrição Afi. Vamos aqui desculpar um testemunho pessoal
ou antes de um pequeno coletivo de amigos com os quais, na época, eu
trabalhava em cartel. Presentes no público, vendo Lacan não perceb er
que estava escrevendo algo novo, estávamos... nas nuvens, evitando b em
intervir no que acontecia de inédito. Outros acreditaram dever fazê-lo,
interrompendo de imediato o que se inventava. Estávamos mais que con­
trariados, furiosos. Entretanto, de fato foi preciso admitir que um d izer
fora interrompido, aceitar a perda. Resta possível, no entanto, estuda r
como, na sequência do seminário, Lacan terá reagido à revelação aberta
de seu lapso e à interrupção de sua formulação. Uma primeira reação,
imediata, não levou em conta o fato mesmo do lapso (vão ser necessárias
três sessões de seminário), mas seu teor. Teremos lido: a escrita errada, a
que foi corrigida, apresenta de maneira mais "impressionante" a falha entre
S 1 e S 2 • Levada a sério, essa falha realiza nada menos que uma demolição
da escrita dos quatro discursos. Esta, com efeito, parte do primeiro deles,
o discurso do mestre, ele mesmo construído a partir da fórmula S1 - S2
que, precisamente, se vê, por essa falha, questionada:

s a Discurso do mestre

Terá sido preciso uma consideração das mais sérias para assim derrubar
de modo meio silencioso a doutrina da discursividade. Lacan ainda não está
disposto a admitir, mas está perto, seu lapso o antecipa. Oual? Nada menos
D A N T E VE R S US L A C A N

que a da falha em questão que, dita com todas as letras, se enuncia assim
(sequência da citação acima):

Porque aqui (vai de novo ao quadro) há, há algo interrompido. E que, em


suma, o S 1 é apenas o começo do saber mas um saber que . .. que . . . que . . . que
se contenta em sempre começar, como se diz, não chega a nada.

É um senhor agora idoso que sustenta essa afirmação, o fim dos


seminários está no horizonte, o tempo dos anúncios, das promessas, das
esperanças está quase que para trás. Lacan constata que não vai atingir
nunca o saber, o S 2 • O que mostra sua definição da escroqueria psicanalítica
(ele ainda não pronuncia a palavra, no entanto dita recentemente numa
conferência em Bruxelas 1 9 ) : há escroqueria no sentido em que, a despeito
daquilo que a análise deixa entender (mas mais agora, uma vez que está
dito!), o S2 permanecerá para sempre fora de alcance do S 1 • Logo, não é um
escroque quem fala, e a escroqueria psicanalítica afigura-se bem o contrário
de uma escroqueria, se é verdade que dizer a falha entre S 1 e S2 corresponde
a constatar um ponto de real da experiência (ele mesmo como que repetido
e tornado vivo pela aproximação da morte que põe um termo ao seminário).
Ora, vimos que o destaque dado a uma escroqueria também vai dizer r�speito
ao amor. Mais uma vez, a lógica é a mesma: o amor Lacan é obtenção do
amor que não se obtém, a pseudoescroqueria analítica é obtenção do saber
que não se obtém. Logo, uma primeira e mínima consideração do lapso,
de um lapso em que se ouve uma afirmação já feita em outros lugares, mas
por um tempo mantida em reserva nas circunstâncias presentes.
Iniciando a sessão seguinte do seminário ( 15 de março de 1977), Lacan
informa seu público de que pessoas bem intencionadas a seu respeito lhe escre-

19 Em Bruxelas, em 26 de fevereiro de 1977, Lacan havia dito isto: "O real está no extremo
oposto de nossa prática. É uma ideia, uma ideia limite daquilo que não tem sentido. O sen­
tido é aquilo através do qual operamos em nossa prática: a interpretação. O real é o ponto
de fuga como o objeto da ciência (e não do conhecimento que, este, é mais que criticável), o
real é o objeto da ciência. Nossa prática é uma escroqueria, pelo menos considerada a partir
do momento em que partimos desse ponto de fuga" (" Propos sur l'h ystérie", in PTL; igual­
mente em Quarto, nº 2, suplemento belga à Lettre menmelle de l 'École de la causefi-eudienne,
1981) ,
4 90 O A M O R LAcAN

veram que ele havia cometido um lapso. Entretanto, ele ainda não concorda,
preferindo falar de um erro, o que lhe permite afirmar que acredita saber 0
que queria dizer ao subverter a ordem das letras, suporte da escrita dos quatro
discursos. Ele parece, então, até se safar bem ao notar que o S 1 e o S2 estão
separados na escrita do discurso analítico - aquilo mesmo que manifestava
o lapsus calami. Mesmo assim não se acabou com um lapso ao trazê-lo a um
déjà vu, e isso se manifesta aqui com a ocorrência do novo valor do S2 , aquele
que vê aí um sentido duplo. Agora se entende melhor a afirmação segundo
a qual "bastaria que eu conotasse o S2 não por ser o segundo no tempo, mas
por ter um sentido duplo para que o S1 assumisse seu lugar". Esse lugar se
afigura aquele que ele tem na escrita do discurso analítico, ele é o da verdad e.
Com efeito, os lugares na doutrina da discursividade são assim configurados
e fixados, quaisquer que sejam as letras que vêm ocupá-los:

o agente o outro

a verdade a produção

A afirmação é nada menos que trivial, o que uma inferência permite


formular assim: só o novo valor do S 2 como sentido duplo permitiria ao S 1
estar no lugar da verdade. Resulta que, assim situado, o S1 nunca atinge o
S2 , falha que, lida com a escrita dos quatro discursos, indica nada menos
que um defeito do S 2 , o qual não pode em caso algum ser tomado como
verdade verdadeira. Na análise, o S 1 "parece prometer um S/, mas sempre
encontra ali só um vazio. O paradoxo que atinge a escroqueria psicanalítica
repercute no nível do S2 • No entanto encarado como fala plena oposta à
fala vazia (aquela que só tem uma significação), o S2 , ao se esquivar, deixa
vazio o terreno da verdade. É possível dar alguma consistência a esse para­
doxo? Em 19 de abril de 1977, aproveitando a oportunidade da publicação
recente da obra de François Cheng sobre A escrita poética chinesa2° e sem
dizer explicitamente que opõe essa escrita àquela da poesia amorosa, Lacan
observa que:

2 ° François Cheng, L 'écriture boétiaue chi11niw•. r� ri< T p l;p, , ; J 1 077


D A N T E V E R S U S L A C AN 49 1

o sentido é o que ressoa em ajuda ao significante. Mas o que ressoa não


vai longe, é antes mole. O sentido tampona. Mas, com a ajuda do que é
chamado a escrita poética, vocês podem ter a dimensão do que poderia ser,
do que poderia ser a interpretação analítica. [... ] É de qualquer modo muito
impressionante que os poetas chineses se exprimam pela escrita [... ]. Mas
vocês talvez sintam aí algo, algo que seja outro... outro que o que faz que
os poetas chineses não possam fazer de outro jeito a não ser escrever. Há
algo que dá o sentimento de que eles, que não estão reduzidos aí, é que eles
cantarolam, é que eles modulam, é que há o que François Cheng enunciou
na minha frente, a saber, um contraponto tônico, uma modulação que faz
que isso se cante pois, da tonalidade à modulação, há um deslizamento. [... ]
A metáfora e a metonímia só têm alcance para a interpretação na medida
em que são capazes de fazer função de outra coisa e essa outra coisa da qual
elas fazem função é bem aquilo pelo que se unem, estreitamente, o som e
o sentido. É na medida em que uma interpretação justa apaga um sintoma
que a verdade se especifica por ser poética.

Estamos às voltas com um ternário letra, sentido, som: ao recorrer


à letra, a poesia chinesa une estreitamente o som e o sentido. Assim, ela
permite que o sentido cesse de tamponar. Assim, ela pode exemplificar
a interpretação analítica. O contraponto tonal da escrita poética chinesa
deixa transparecer o vazio que, sem ele, o sentido preencheria. Essa poesia
presentifica a inacessibilidade do S2 • Tratar-se-ia não tanto de dois sentidos
conjuntos quanto de um sentido duplicado de um som, cantarolado. Em 10
de maio de 1977, Lacan volta uma última vez a seu lapso, de uma maneira
doravante apaziguada. Ele pode enfim desdobrar plenamente o alcance
subversivo desse lapso e, tendo inscrito no quadro a fórmula do discurso
analítico, declarar que

o que marquei é que, desse tetraedro, há semp re uma de suas ligações que
está rompida, é, a saber, que o S índice 1 não representa o sujeito junco ao S
índice 2, isto é, junco ao Outro. [... ] e o que a psicanálise enuncia é, muito
precisamente, o fato de que [o inconsciente] é apenas uma, digo, dedução
suposta nada mais, aquilo com o que tentei lhe dar corpo com a criação do
492 0 AMO R L A C A N

simbólico tem muito precisamente esse destino, que isso não chega a seu
destinatário. Como, no entanto, se explica que isso se enuncie?

Está na ordem das coisas que a afirmação de Lacan não sofra um


destino diferente daquele do S1 , e que, não mais que o S1 , ele não chegue
a seu destinatário. E, igualmente, que um e outro sejam marcados pela
mesma questão, qualificada de interrogação central da psicanálise: como se
explica que haja produção de S1 embora até falte o destinatário? Confirma­
se que uma mesma lógica regra, por um lado, esse novo funcionamento do
simbólico fundado na caducidade doravante reconhecida da codefinição do
significante e do sujeito (S/S1 ----+ S2 ), naquilo que é então designado como o
"sentido branco", e, por outro lado, o amor. Aliás, as duas coisas estão ligadas
naquilo que será a derradeira observação de Lacan relativa ao amor.

A MOURRE E O AMOR

Chegou agora o tempo das vacas magras. Só é encontrada uma única citação,
em L'i nsu... , ligando o amor e o jogo da mourre:

Há um mas não há nada mais. Um, eu disse, o um dialoga sozinho já que


recebe sua própria mensagem sob uma forma invertida. É ele quem sabe,
e não o suposto saber. [. . . ] Há um, mas isso quer dizer que mesmo assim
há sentimento. Esse sentimento que chamei conforme as unaridades, que
chamei o suporte ... , o suporte daquilo que tenho bem que reconhecer
como o ódio na medida em que esse ódio é parente do amor. A mourre que
escrevo em, tenho bem que acabar aí, que escrevo em meu . . . em meu título
deste ano l 'insu que sait, o quê? de l 'une-bévue, não há nada mais difícil de
entender que esse traço da l 'une-bévue2 1 •

Seja, pois, o título desse seminário, ao qual somos aqui enviados:


"L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre". Outras versões não com-

21 Transcrição modificada num pomo: não "Um", mas "um", o "um" minorado, reduzido a
um traço, o um do "há um".
DANTE VE R S US L A C A N 493

portam traço de união ("l'Unebévue"); também se lê "l'une bévue". Mais


decisivo, talvez, é o sentimento de uma espécie de cadeia de jogos de pala­
vras feitos pela metade. Há aí, em excesso, o que um dos mais eminentes
especialistas da língua francesa chamava o "lape-pres"*, com um nome
que, manifestando a coisa, era ele mesmo um lape-pres. Aqui, os "mais
ou menos" não estão tão próximos** e, como o próprio significante não
resolve o que essa cadeia abre de possibilidades de leituras diferentes, estas
ficam multiplicadas. Sem ir procurar longe demais, e sem levar em conta as
diferentes transcrições de une-bévue, um primeiro repertório poderia assim
se apresentar:

L'insu que sait de L'une-bévue s'aile à mourre


I..:in su que c'est . . . ---------------­
I..:insu cces . . . ------------------
---------------- . . . c'est la mourre
---------------- . . . c'est l'amour
---------------- . . . scelle la mourre
---------------- . . . scelle l'amour

Estamos às voltas com algumas alternativas: saitlc'est [sabe, · é] ; msu


que sait!insucces [insabido que sabe/insucesso] ; s'ailelc'est la [se ala***/é o] ;
la mourrell'amour [a mourrelo amor] ; s'aile!scelle [se ala/sela****] . Já jogan­
do com essas cinco alternativas (outras seriam imagináveis por uma mente
experiente no Oulipo*****), certas frases poderiam ser mecanicamente
engendradas como que por uma máquina de Touring. Todas seriam, se não
verdadeiras em Lacan nesse momento de seu percurso, pelo menos interes­
santes? Seria excessivo imaginar isso. É preferível evitar a dificuldade com
o recurso a uma certa regra metodológica: só vamos eleger como possíveis,

* J ogo homofônico com l'apres [o após] e lã peu pres [o mais ou meno s] . (NT)
•• Em francês: les à-peu-pres [nota acima] nã o e stã o si pres [tã o perto, tão próxim os]. (NT)
*** Alar-se, no sentido de criar asas, sair vo ando, elevar-s e . (NT)
**** Sel ar, no sentido, evidentemente, de marcar, cerrar, fechar. (NT)
***** O Ou l ipo [Ouvro i de l ittérature potentielle] é um atel iê de l iteratura, inspirado pelo
escriror Ravmoncl Ouenea11. (NT) .
494 0 AMO R L AC A N

pois entrando homofonicamente em ressonância com a frase de partida,


aquelas que uma afirmação de Lacan escoraria.
Mas uma precisão, primeiro, sobre o jogo da mourre, ainda que La­
can, não entrando em seus meandros, só faça mencioná-lo22 • Georges lfrah
assim o define:

Os dois parceiros ficam um diante do outro, o punho fechado à frente. Uma


vez dado o sinal, cada jogador deve, ao mesmo tempo que o adversário, abrir
espontaneamente a mão direita (ou esquerda) e levantar tantos dedos quanto
desejar, enunciado um número de 1 a 1 0 [de 1 a 20 se o jogo se praticar com
as duas mãos] . Aquele que enunciar um número igual ao total dos dedos
mostrados por um e outro dos dois jogadores marcará um ponto 23 •
..
Esse autor fei uma pesquisa que mostra o tamanho do campo de apli-
cação desse jogo, conhecido na China e na Mongólia sob o nome de Pruo
Chhüan: "gritar com o punho", chamado ip (contar, calcular) no Egito desde
o Médio Império, moukh raja, "o que faz sair", no Islã (onde, desde a alta
época, dotado de um alcance divinatório, foi proibido por razões religiosas).
Também é encontrado em vasos gregos e, em Roma, sob o nome de micatio,
ou micare e digitis, "o jogo do levantar dos dedos" (Cícero deplorando que
o provérbio ao qual ele deu lugar - Dign us est, quicumque in tenebris mices
-, e que servia para designar um homem acima de qualquer suspeita, fosse
usado por sua antiguidade). A mourre foi muito popular na Renascença,
entre os pajens, os lacaios, as servas (Rabelais e Malherbe o mencionam);
esse jogo é bem popular na Itália, onde é denominado morra, enquanto os
provençais não ficam para trás pois organizam todos os anos um concurso
de mourre em Crévaux, nos Alpes franceses.
Quem tende a atribuir a Lacan a colusão da mourre e do amor toma
um caminho errado. Devemos essa aproximação ao poeta Louis Scutenaire

22 Mayette Viltard generosamente me deu o conjunto do dossiê ue ela havia composto para
q
uma intervenção durante meu seminário. Aqui meus agradecimentos.
2 3 Georges Ifrah, Hístoíre 1111íverselle des chí/fi-es, Paris, See:hers. 1 98 1 . n. 7C:.,
D A N TE \I E R S U S L A C AN 495

que, posto em 1966 diante de um quadro de Magritte, ligou os "jovens


amores*" ao "jogo da mourre24" , dando assim seu título a esse quadro.
Scutenaire jogava com o significante mas, no plano semântico, a
aproximação que ele inscreveu na língua ao ali encontrá-la já tinha tido
suas cartas de nobreza. Uma lenda grega conta que Helena teria inventado
a mourre para jogar com Páris. Em Lacan, o jogo da mourre vale mais que
um agradável passatempo entre amantes sem o que fazer. Lacan escreve "a
mourre". Mais que um batismo do amor, há aí a indicação de uma maneira
lúdica de amar, aliás suscetível de trazer consigo certas dificuldades (foi de­
monstrado que, no jogo da mourre, uma máquina é superior ao homem, haja
vista as dificuldades espirituais deste último em ser realmente aleatório25 ) .
Logo, em seu título, a troca do segundo termo pelo primeiro é possível,
talvez até desejável. No entanto, a frase assim produzida continua sendo
capenga, não só no plano semântico: l'insu que sair de l'une-bévue s'aile
l'amour. O "s'aile", a começar por ele, cria dificuldade. Uma solução por
"sela" [scelle] poderia parecer astuciosa, que nada, no texto, vem no entanto
autorizar. Felizmente, dispomos de outra afirmação, naquele ano, em que
está igualmente em questão não só a mourre mas o título desse seminário.
Depois de contar sua experiência de criança às voltas com uma irmã que,
falando de si mesma, lhe afirmava: "Maneine sabe", Lacan prosseg�e:

Sempre lidei com a consciência mas sob uma forma que fazia parte do in­
consciente, já que é uma pessoa, uma ela na oportunidade, uma ela já que
a pessoa em questão colocou-se na terceira pessoa ao se nomear Maneine,
sob uma forma que fazia parte do inconsciente, digo, já que é uma ela

* Há homofonia entre les jeunes n111011rs e lejeu de ln 111011rre. (NT)


24 Não sem consequências, porém, pois McCartney, comprador de quadros do pintor belga,
elegeu a maçã que figurava nesse quadro como símbolo da "Beatles Compagny", e assim o
inscreveu nas costas do álbum Sgt. Pepper. Essa maçã logo se tornou um logotipo e hoje é
encontrada por toda parte onde se terá resolvido o debate teológico mais decisivo da época
em favor de Apple e às custas dos PC. Apple tem fama de oferecer máquinas mais lúdicas,
mas é também, portanto, através da mourre, a maçã do amor que essa empresa propõe.
25 Christophe Meyer, Jean-Daniel Zucker: '"Mind-Reading Machines' . Modelização dos ad­
versários e antecipação nos jogos de informação completa e imperfeita", Actes de ln premiere
conférence d 'npprentissnge, M. Sebad ed.
O A MO R LACAN

que, como em meu título deste ano, uma ela que s'ailait* à mourre, que se
mostrava depositária de saber.

É útil prolongar essa citação pelo que ela indica, ao terminar, de


solidão:

Ele ou ela é a terceira pessoa, é o Outro, tal como o defino, é o inconsciente.


Ele sabe, no absoluto e somente no absoluto, ele sabe que eu sei o que havia
na carta mas que eu sei sozinho. Na realidade, portanto, ele não sabe nada
a não ser que eu sei, mas que não é razão para que eu lhe diga isso26 •

"Uma ela que s'ailait à mourre". Há contaminação, l'elle [ela] pede


l'aile [a asa] , que pede o s'ailer [alar-se] : "uma asa que se alava. . . ", a asa
se ala. Alar [ailer] (dicionário Le Robert) : "dar asas a... , tornar alado; dar
entusiasmo". Sem estarmos absolutamente certos disso, podemos ouvir a
relativa final como uma redundância explicativa. "S'ailer à mourre" seria,
então, equivalente a "mostrar-se depositário de um saber". Mas também seria
possível que a relação fosse de gênero à espécie e, neste caso, o mostrar-se
depositário de um saber" seria apenas uma espécie como tal específica do
gênero "s'ailer à mourre". Seria, então, inconveniente admitir que a espécie
forneça a definição do gênero, definição que então deveria ser buscada ainda
em outro lugar. "S'ailer à mourre" pode querer dizer mostrar-se sabedor,
mas isso constitui apenas uma possibilidade. Ela é falante? Sua aplicação
produz a seguinte frase, que, embora continue capenga, transforma e assim
interpreta aquela que dá título a esse seminário: "l'insu que sait de l'une-bé­
vue mostra-se sabedora". Somos então tentados a pôr "o insucesso" no lugar
de "l'insu que sait", a frase obtida - o insucesso da l'une-bévue mostra-se
sabedor - parecendo, por seu binarismo, bem feita para dar coragem à obra
de quem empunha o estandarte do inconsciente. Vamos nos proibir essa
facilidade; vamos preferir notar que, com efeito, a passagem desse seminário
em que Lacan comenta laconicamente seu título coloca a questão "Quem

* Lacan "conjuga", então, o verbo "s'ailer" [alar-se) . (NT)


26 J. Lacan, L'ínsu... , sessão de 1 5 de fevereiro de 1 977.
DANTE VE R S US L A C A N 497

sabe?". Ou, antes, traz a isso uma resposta: é o um que sabe, este, "e não o
sujeito suposto saber".
Esse um só pode ser outro que aquele do "há um", repetido duas vezes
com algumas linhas de intervalo, enquanto que é igualmente martelado que
não há nada mais. Muitos anos antes, a ascese aqui proposta já fora como
que iniciada com a distinção do unário (o traço) e do uniano (a unificação).
Lacan toma ciência e conclui essa passagem neste ponto: "Nada mais difícil
de entender que esse traço de l'une-bévue". O um de l'une-bévue é aquele
mesmo do "há um". Ele dialoga sozinho. O oximoro remete à inacessibili­
dade do S2 , doravante pensado como fora de alcance do S 1 e até da série dos
S 1 • Assim se esclarece um pouco a reescrita acima do título: "l'insu que sait
de l'une-bévue mostra-se sabedora". Lacan se perguntou: ''l'insu que sait,
o quê? de l'une-bévue". O estranho "o quê?" se dirige ao objeto do saber,
mas qual pode de fato ser o sujeito do verbo? Nada menos que o um do "há
um". Assim, podemos escrever: "L'insu que sait l'un [O insabido que sabe o
um] * de l'une-bévue mostra-se sabedor". Ou ainda: "O um de l'une-bévue
sait que l'insu [sabe que o insabido] mostra-se sabedor". Eis aqui de novo
Maneine, a irmã pequena. Enquanto ela leva sua reivindicação de saber
ao ponto de pretender igualar-se a uma máquina, o irmão, diante de tal
atrevimento e como que empurrado num entrincheiramento heurístico, é
levado a saber que nunca se atinge o saber que Maneine pretende deter, que
só o um de l'une-bévue sabe.
Porém há um "mas", há " mesmo assim sentimento", ódio, "parente do
amor". Em sua posição, Maneine é odiosa - proposição que queremos bem
ler, bem como as seguintes, como fora do campo psicobiográfico, como que
resultando de uma análise do sentimento. Ela é odiosa porque odiante. Com
efeito, é este o sentimento que seu dizer veicula; sua reivindicação de saber
chega até a devastar o ser ao qual ela o endereçà. O que resta a esse ser, como
lugar, se ela sabe? O que pode ele ainda desejar saber se todo o saber já está

* Em francês, o relativo que [há também o relativo qui com antecedente sujeito] refere-se a
um objeto direto anteposto; ora, o estranho o quê? [quoi?], introduzido por Lacan ao dizer
L'insu que sait quoi? de /'une bévue s'ai/e amourre de fato só pode interrogar o verbo saber
[sait] . O um também passa a ser a solução para a frase que não tinha sujeito para o verbo
--L-- /1'J'T\
O A MO R LA C AN

ali, presente em alguém que é audacioso o bastante para lhe fazer saber isso ?
Maneine deteria o S 2 • Se nela tivesse acreditado, Lacan teria entrado numa
loucura a dois com Maneine (lembramos seu interesse pelas irmãs Papin,
igualmente sua questão sobre "acreditar nisso" ou "acreditá-la"). Resta que a
postura de Maneine é mais frágil do que parece, da mesma forma seu ódio.
Com efeito, bastaria forçá-la a dizer o que ela sabe ou, mais simplesment e,
o que quer que seja, um único algo que ela saberia, para que fosse depor­
tada para um S1 e outros S1 em sequência, o que tornaria imediatamente
insustentável sua pretensa detenção do S2 • Maneine nada mais pode dizer
que "Maneine sabe". T ão logo se pusesse a dizer o que sabe, Maneine não
saberia mais, e o um do "há um" se poria, este, em marcha na direção do
saber. O saber de Maneine é feito de uma absoluta ignorância.
E o amor? Vimos que era imaginável colocar o "é o amor" [c'est
lamour] no lugar de "s'aile à mourre". Essa troca possibilita uma outra
escrita interpretativa do título desse seminário: 'Tinsu que sait l'un [o um]
de l'une-bévue c'est l'amour". Em outras palavras: o um de l'une-bévue
sabe o amor insabido. Há aí um certo regime do saber, diferente desse saber
do ódio que acabamos de dizer com Maneine, a um só tempo absoluto e
inarticulável. Um certo saber se sabe furado, vestido de um insabido que
nada mais é que o amor. De um certo amor que não é nem o amor do saber
nem o saber do amor. Regime do amor e regime do saber caminham juntos
embora nem por isso formem um par. Enquanto o amor Lacan é obtenção
do amor que não se obtém, o saber do um de l'une-bévue é obtenção do
saber que não se obtém.
Voltando aos jogos homofônicos do título desse seminário, é possível
ler aí: "o insucesso de l'une-bévue é o amor"? Certo, mas com essa precisão,
doravante formulável, que não estamos aí às voltas com uma alternativa
que convidaria a optar ou por l'une-bévue (o que se dizia antes: amar o
inconsciente"), ou pelo amor, mas que, ao contrário, obter o amor que não
se obtém advém com o insucesso de l'une-bévue, considerando que todo
equívoco [bévue] está fadado ao insucesso, a nunca atingir o saber. Logo, é
possível também escrever: "O um (o um do "há um") sucesso de l'une-bévue
é o amor". Como sublinhou o ensino tirado da p intura chinesa, tanto no
que se refere ao amor quanto ao saber, há vazio.
C O N C L U S ÃO

0 AMOR LAC AN : QJ) E B RA- C A B E Ç AS

O mundo {é]
como o mais belo dos amontoados,
espalhado ao acaso.
Heráclito

E m pontilhado ao longo dos seminários de Jacques Lacan se desenha uma


inédita figura do amor. Assim, sua característica mais nítida, a saber, sua
autolimitação, apareceu somente em algumas oportunidades nas páginas que
precedem. O amor Lacan se obtém como que não se obtendo. Essa fórmula
evoca a suposição impossível da mística moderna, uma proximidade que
pede o confronto do amor Lacan com o puro amor. Essas duas m;meiras
de amar se recobrem até ficarem idênticas? Sublinhamos bastante o caráter
inédito do amor Lacan para saber desde agora com o que lidar. Entretanto,
essa proximidade permanece perturbadora e vamos tentar, para concluir,
daí extrair o saber de que ela se acha obscuramente depositária.
O que, então, no percurso cumprido, seria suscetível de escorar
essa característica? Chegou o momento de dizer isso de maneira concisa e
densa. Se se afigurasse que o amor assim posicionado permitia conjugar,
de maneira relativamente coerente, certos traços que Lacan pôde atribuir
ao amor, esse escoramento estaria confortado. Assim, somos convidados a
configurar um quebra-cabeças denominado "amor Lacan", ainda mais que,
ao longo dos anos, Lacan visitou, mas para tomar distância, um número não
desprezível de maneiras de amar. Ele louva Freud por ter revelado o caráter
narcísico do amor, mas como que para melhor esticar o amor na direção do
simbólico. Ele se interessa de perto pelo amor cortês, mas sobretudo a fim
500 O AMO R L A C A N

de elaborar uma teoria da sublimação. Ele estuda longamente O banquete


de Platão, parecendo por um tempo dali reter uma fórmula do amor, m as
logo abandona esse belo otimismo que misturava um pouco o amor e 0
desejo. Ele usa como argumento o amor divino por ele se revelar o m ais
avançado na análise da relação entre o amor e o gozo do Outro, mas é para
ali reconhecer uma perversão. Vai procurar ver do lado de Dante, mas é
para constatar, lapso ajudando, que o que se enuncia permanece fora d e
alcance do destinatário. Nada do que foi historicamente proposto, talvez
até realizado, como figura do amor convém à experiência do amor situada
na experiência analítica - pois o amor Lacan é antes de mais nada isso: uma
experiência (a do amor) em uma experiência (a da análise). Nunca tinha
acontecido ao amor estar assim incrustado, e é possível conceber daí que
ele deve bem ter-se metamorfoseado para se manter no lugar novamente
oferecido (e conquistado?). Assim, convém revelar tão precisamente quanto
possível em que consiste essa metamorfose.
Debulhados ao longo do tempo e sem quase nenhuma remissão
de uns aos outros, os traços desse novo amor apresentam-se como outras
tantas peças de um quebra-cabeças. Não vamos excluir que o resultado,
longe de oferecer uma bela figura do amor Lacan, comporte sua parte de
inacabamento, sua casa vazia. Mas se, a despeito dessa reserva que nada, a
priori, obriga a encarar como um defeito, a realização desse quebra-cabeças
permitisse valorizar certas articulações determinantes, essa realização teria
de qualquer modo preenchido sua função: configurar 1 o amor Lacan.
Compor um quebra-cabeças é jogar com bordas2 • Duas peças se ajus­
tam, o que acontece? Não basta que seus contornos, localmente, se encaixem,
o desenho do qual cada uma é depositária também deve se harmonizar com
o da outra peça, enquanto persistem, a despeito dessa dupla articulação,
ambiguidades: é possível enganar-se e não perceber isso de imediato. Essas

1 Vamos nos reportar com grande proveito às páginas que Jacques Lacan dedica à figura O. Le
Brun, Le pur amour de P!aton à Lacan, Paris, Le Seuil, 2002, p. 13 sq. ) . Se devêssemos nos
interrogar sobre a ordem de racionalidade posta em prática ao longo da presente obra, estas
páginas estariam entre as mais preciosas e as mais bem ajustadas.
2
Raymond Queneau, Bo,ds, Paris, Hermann, 1963 (ilustrado com numerosas composições,
fora e no texto, de Georges Mathieu).
o A M o R L A e A N : QU E B R A eA B EçAs 501

duas peças, depois de colocadas provisoriamente juntas3 , têm as bordas


modificadas, é traçado um novo contorno que apaga, em parte, o traçado
das bordas precedentes. O novo contorno assim obtido pode dar a ideia
de aí ajustar uma nova peça, ideia que talvez não tivesse ocorrido antes de
realizado esse primeiro ajuste. A operação se repete até todas as peças terem
encontrado seu lugar. Entretanto, essa totalidade está fraudada, é devida
ao fabricante, e o problema do quebra-cabeças Lacan é, este, mais árduo
no sentido de que nenhum fabricante de antemão lhe talhou as peças nem
lhe concebeu a imagem. Daí vem que esse quebra-cabeças só poderá ser
realizado se ao mesmo tempo produzir suas peças e a montagem destas. O
que vamos tentar.

ESCORAMENTO DO AMOR LACAN

Obter o amor que não se obtém, existe uma melhor, isto é, uma maneira
mais simples de fazer do amor uma experiência claramente limitada? Não,
pois, antes de mais nada, esse limite não lhe é dado de um exterior, seja uma
realidade material que o tornaria parcialmente irrealizável, uma exigência
ética à qual ele contraviria, ou ainda a incidência de outro compo!1ente do
nó subjetivo que, em razão do amor, não tiraria proveito nem satisfação.
Livre desses constrangimentos que são outras tantas heterolimitações e de­
finido como obtenção de um amor que não se obtém, o amor Lacan é amor
interruptus: ele detém em si mesmo seu próprio limite, limite esse que torna

-1 Pensamos, analogicamente, no sonho. Concebê-lo como um rébus leva Freud a escrever:


"Toda vez que ele [o sonho] aproxima dois elementos, ele por aí mesmo garante que h á u rna
relação particularmente estreita en tre o que lhes corresponde nos pensamentos do sonho.
É assi m também com nossa escrita, ab indica uma ún ica sílaba, a e b separados por u m
espaço n o s deixam entender que a é a ú l t i m a letra d e uma palavra, b a p rimeira de outra"
(L'i11terprétt1tio11 des rêves, Paris, PuF, 1 967, p. 29 1 ) . Fica claro que rébus e quebra-cabeças
são i rmãos. Diferentes, porém, pois ali onde o sentido vem garanti r que o rébus foi bem
decifrado, que cada um de seus elementos foi bem l ido, são o aj ustamento das peças e a
composição da imagem que garantem o êxito do quebra-cabeças . Além disso, em bora não
haja elucidação de rébus sem essa i nt e rvenção do sentido, a imagem é só um aj udante, ela
não é necessária à cons trução do quebra-cabeças : é possível conceber e realizar um quebra­
,.,. h,.cas sem imagem, de p u ra forma.
502 O A MOR L A C A N

possível seu fim. Não há aí nada de ordem sintomática; aliás, foi ress altado
o amor não é um sintoma. A obtenção do amor é sua não obtenção; s ua n ão
obtenção é sua obtenção. Além disso, sua limitação interna não é devida
a sabe-se lá que traço que lhe seria específico mas apenas à sua realiza ção.
Mais simples, impossível.
Esse amor não é a menor de suas virtudes, não reduz a nada a preciosa
solidão dos amantes, não alimenta até a absurda ilusão que a dissolveria, e
no entanto a isso contravém de alguma maneira. Assim, a fórmula escrita
por Philippe Sollers que ele de imediato considerou é transponível numa
outra: "Não se é tão amado, em suma". Caminhando juntos, solidão e amor
resultam do mesmo simili-paradoxo. Num tempo, o nosso, em que não
tem muito peso subjetivo o memento mori, o amor Lacan não espera que a
doença ou a morte mergulhe brutalmente o amante em sua solidão, tendo-o
até ali afastado disso. O regime do amor não é intensivo: "ser tão amado" ; o
excesso de amor ofende o amor, não é o amor. Uma de suas figuras é o amor
incondicional, uma outra o amor eterno, do qual Lacan não quis saber.
Como esse amor pôde surgir na experiência analítica? Ou, pelo menos,
na de Jacques Lacan, sobre a qual nos perguntamos (sem evidentemente
poder decidir - é uma das questões decisivas da escola possfve� se era singular
ou, então, igualmente exemplar. Penderão para a exemplaridade aqueles
que tiverem admitido com Lacan que "se oferecer com objeto de amor"
é constitutivo da posição analista. Exemplar lhes parecerá igualmente sua
resposta: a lenha analítica não se inflama, que queima no entanto - não
menos que o amor eterno, Lacan também recusava esse ideal de analista, em
outros lugares denominado ataraxia4 , que seria feito de insensibilidade aos
sentimentos que se têm por ele. Ele augurava mal de um analista que nunca
tivesse vontade de abraçar tal ou tal analisando ou de matá-lo. Essa lenha
que se "consome", que permanece úmida embora queime, é uma metáfora
apropriada para dizer a bivalência (não a ambivalência) do amor que se

4 Um psicanalista kleiniano elevou-a até a caricatura com seu cuidado de sempre usar exa­
tamente a mesma roupa. Outra versão dessa crispação: a ordem de nunca mudar nada na
configuração do consultório ("crispação", aqui, remete a Winnicott que, médico, dizia de
um psicanalista que recusava absolutamente tocar seus pacientes que ele era vítima de uma
"ligeira crispação") .
O A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S 503

obtém não se obtendo. Mas é de fato uma simples metáfora, pelo menos
para Jacques Lacan? Pode dela duvidar quem tiver tomado ciência de sua
declaração a seus interlocutores católicos bruxelenses, quando ele confessava
que, nesse lugar de analista, ele desejava que acabasse de se "consumir" sua
vida; na Itália, falando de "consumição", ele insiste mais nisso.
Dessas confissões Lacan fez doutrina, a qual, em contrapartida, es­
clarece essas confissões. Oferecer-se como objeto de amor passa por uma
ascese: tornar-se lenha úmida consumindo-se; assim surge o ponto em que
a experiência analítica intervém sobre o amor, forçando-o a se metamorfo­
sear, ele que, visitante não convidado, veio forçar a porta dessa experiência.
Pois o analista não se oferece ele mesmo, se por "ele mesmo" entendemos
a inefável e amplamente superestimada singularidade com que cada um se
considera vestido e que, fora de análise, é pensada como aquilo mesmo que
ama e deseja ser amado. Freud, já, deu esse passo ao lado ao não atribuir
a seus encantos pessoais o amor do qual, psicanalista, ele foi objeto: ele
inventa a transferência (transmor), embora um número não desprezível de
testemunhos atestem que, pai demais5 , ele soube antes mal se livrar disso
(ele se recusa como encantador, não como pai, parecendo esquecer que um
pai pode encantar).
Se Freud foi pai demais, o que foi, então, Lacan? O que ele foi de­
mais? Quanto ao transmor, ele inovou, embora o que acaba de ser dito de
Freud já se afigure, mutatis mutandis, poder ser bem amplamente referido a
Lacan - pois forjar uma posição, considerá-la desejável, é uma coisa, outra
coisa é limitar-se a ela, sustentá-la, já que a ascese esperada do psicanalista
é precisamente o que seria suscetível de operar a passagem de uma borda
à outra dessa ravina. Ao constatar tanto a descoberta da transferência por
Freud quanto a dificuldade que ela obstinadamente mostrava, inclusive
entre seus sucessores, Lacan percebe que sua solução, longe de poder ser
encarada de maneira temperada, reclama, mais ainda que o reconhecimento
da pregnância do transmor, uma mudança de registro amoroso. Foi esta a

5 Sobre esse tropismo "trop pere", ressaltado por Lacan, poderemos consultar minha obra
Sombm de te11 cão. Disc11rso psicanalítico disrnrso lésbico, Rio de Janeiro, Companhia de
Freud, 2006, em que são retomadas as observações de Lacan a discu tir o caso freudiano dito
da " Jovem homossexual" .
O AMO R L AC A N

realização, sobre esse ponto, de seu excesso de liberdade. Mais que ao amor
físico, ele dá sua preferência ao amor extático (Rousselot) - aquele do qual
não há teoria. Entretanto, não está dito que todo transmor se apresenta
nesse registro. É bem antes à sua acolhida pelo analista que caberá operar,
se convier, essa mudança de registro, essa deportação de qualquer amor
que seja até seu coração místico (Kierkegaard gostava muito de alface, mas
nunca comia o coração). Esse transmor pode bem tem a ver com um regime
tomista, a análise nem por isso vai se privar de acolhê-lo à moda de Madame
Guyon. À lenha não ardente vai caber essa operação que não é, com certeza,
exatamente o que a mística moderna denominou "ato passivo6 " mas que
é vizinha dessa modalidade do ato. O amor aí se faz úmido.
Há ainda outra maneira de dizer esse novo amor: se só há amor do
nome, o analista, este, não se nomeia. Ele só está ali (pois, sim, ele estd ali),
dissemos, "no último termo" como "aquilo que se cala na medida em que
ele falta a ser". Um intransponível limiar não é transposto, aquele mesmo
que faz que o amor seja obtido não sendo obtido. Jacques Lacan pôde, na
oportunidade, prevenir seu público: "Só a minha presença, em meu dis­
curso, é minha burrice"; a indicação pode ser relacionada à sua presença
no consultório. Isso o analisando pode acabar percebendo, analisando cujo
amor não é de modo algum recusado, menos ainda interpretado, mas posto
à prova assídua de seu objeto inesperado (a lenha úmida). Presente, seu
analista é burro, burro por estar presente. E também é ao um belo dia virar
as costas a essa burrice, a ela não voltando, ao cessar de não voltar dela, que
o analisando vai mais diretamente estar às voltas com essa silenciosa falta a
ser cuja incidência acentua ainda mais o amor Lacan: "de obter o amor" o
cursor se desloca sobre o "que não se obtém". O analisando deixa ficar "só,

6 Ver ]. Le Brun, Le p11r 111110111: . . , op. cit., p. 31-32. Esse texto estabelece claramente a não­
reciprocidade desse ato e do ato que dele resulta e que não volta ao ato primeiro: "[ . . . ]
abordado pelo desejo do amante, o amado não dá a este último o 'objeto' desconhecido
que ele buscava no amado, ele só lhe apresenta uma mudança de lugar, um nada que deixa
totalmente desinteressado o movimento de ' resposta' e só preenche o amante ao lhe roubar
o objeto fascinante, tornando-se ele mesmo de amado amante". Ver igualmente p. 87 onde,
a respeito da posição de Fénelon, Jacques Le Brun escreve: "Aquele que ama vê-se numa
posição onde, longe de "se servir de" (11ti) o objeto de seu amor, ele de certa forma passa a
ser 'coisa' de que se 'serve' o amado".
0 A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S

não tão só" o analista; o analista deixa ficar "só, não tão só" o analisando.
Fim da análise, cujo mistério nem por isso está inteiramente dissipado se for
exato, mas isso permanece não assegurado, que essa mesma falta a ser também
é aquela pela qual advém o desejo. Notou-se, igualmente, o esclarecimento
desse mistério, em que o jogo do amor, mais exatamente desse amor, seria
colocado a serviço do desejo, não ao alcance de um seminário, mesmo o de
Jacques Lacan. Ele estava prevenido disso e esperava de sua " Proposição de
outubro de 1967 sobre o psicanalista da escolà' que ela trouxesse essa luz se
não fora de alcance. Mais tarde ainda ( 1 1 de junho de 1974), ele lhe baliza
o caminho ao propor a qualquer um que ame seu inconsciente.
Um estranho acontecimento, absolutamente inesperado e não ainda
assinalado, parece, deixou sua marca no campo freudiano, acontecimento
que convoca o nome completo de Jacques Marie Lacan (Marie conta, que
é igualmente o segundo prenome de sua irmãzinha Madeleine). Admitire­
mos que Jacques Marie Lacan não esperou a análise, nem sua análise, para
ocupar em sua vida e em relação ao amor a posição que ele ia dizer longe
de seu seminário e que acabamos de lembrar. Disso queremos por prova
que seu temor, manifestado em seminário ( 15 de fevereiro de 1977), diante
da posição de Madeleine reivindicando-se sabedora: "Maneine sabe", ela
lhe afirma, solidamente pousada sobre as duas pernas (seu saber para uma,
para a outra a ignorância: elas não se misturam como no conceito da douta
ignorância). Ela sabe, ponto. Sem evidentemente apoiar demais, ele então
sugere esse temor, mas também sua cólera diante desse saber pretendido que
não pode se articular por pouco que seja sem perder seu caráter absoluto7 •
Dessa cólera Jacques Marie Lacan fez virtude, prática e ensinamento - seu
nome "Marie" tendo inscrito, de maneira antecipada, sua própria antecipa­
ção nessa posição. Vamos ler, num e noutro prenome da irmã e do irmão,
o Ma . . . , sílaba que, no hinduísmo, designa a maternal e feroz deusa Cali8 ,

7 Temor e cólera não estão no texto de seu relato. Eu no entanto os infiro, a partir de certas
declarações com as quais já estivemos às voltas aqui mesmo, notadamente aquela em que
Lacan se diz "escandalizado" com o esbanjamento do saber do qual qualquer um se acha
portador (Jacques Lacan, Le triomphe de ln religion. Précédé de Discou,, t111x ct1tholiq 11es, Pa­
ris, Le Seuil, 2005, p. 1 8).
8
Ver o filme A de11st1, de Satyajit Ray.
506 O AMOR LACAN

semissilenciosamente convocada, portanto, toda vez que é pronunciado,


em francês, o nome "mamãe" .
Como proceder para que ceda a idiota postura subjetiva de Maneine
(Maneine, que parece ser assim o nome genérico de cada analisando de
Lacan)? Para que Maneine, tentando enunciar o que ela pretende saber,
cesse de saber da maneira como ela o pretende, isto é, sem nenhum proveito
de saber? Foi esta a questão de Jacques Lacan, aquela à qual ele dedicou e
dobrou sua vida. Foi esta igualmente sua crença. Seu ato de fé, tão "aceso"
quanto outros, deixa-se articular numa fórmula bem simples: que seja de
outro modo, isso é possível, qualquer um, solicitado de uma certa maneira,
pode exibir o saber a um só tempo sabido e insabido de que é depositdrio. Assim,
Marguerite Anzieu tomou o lugar de Maneine (Ma..., de novo, mas, desta
vez, tendo, além disso, o nome de Marie inscrito em Marg uerite) . Ora, com
ela Lacan pôde se entreter, reconhecê-la sabedora9 , é verdade, e ao ponto
de fazer-se dela secretário 1 0 , mas de um saber que ela aceitava em parte lhe
entregar. Ele a denominou "Aimée", amarrando assim a questão do amor
àquela de um saber que ele próprio não se sabe absolutamente uma vez que
aceita, talvez até faça questão de se fazer saber.
A articulação destas duas questões, amor e saber, atenazou seriamente
Jacques Marie Lacan: o que seria uma maneira de amar ou de ser amado que
tornaria possível, talvez até desse lugar ao (fazer) saber? Resposta: fazer-se
lenha úmida e mesmo assim ardente embora sem queimar (sua umidade
a impedindo disso 1 1 ) ; apelar assim para a liberdade de outrem, solicitá-lo
a conquistar, por essa via de ressonâncias antigas 1 2 , sua própria liberdade
entregando seu saber insabido - o acréscimo desse qualificativo dito a no­
vidade e a incidência de Freud nessa tradição da preocupação consigo que,

9 Ver meu capítulo "Marguerite sachante", in Marguerite, 011 l'Aimée de Lacan, 2' éd. revista e
aumentada, Paris, Epel, 1994, p. 439-503.
w Cf Littoral, nº 34-35, "La part du secrétaire", Paris, Epel, a vril 1992. Igualmente, de Mi­
chele Benvenga e Tomaso Costo, La main d11 prince. Petits traités d11 secrétail'e dans l'Italie
baroque, prefácio de Salvatore S. Nigro, tradução de Mireille Blanc-Sanchez, Paris, Epel,
1992.
11 Ver L'Unebévue, nº 21, "Psychanalystes sous la pluie de feu", Paris, Unebévue éd. 2004.
12 Michel Foucault, L'hermé11e11tiq11e du sujet, Cours au College de France, Paris, Gallimard, Le
Seuil, coll. "Les Hautes Études", 2001.
O AMO R L A C AN : QU E BRA C A B E Ç AS

sem que ele soubesse, dava seu solo à invenção da psicanálise. Este partido
é o de Jacques Lacan, seu nome de psicanalista. Eis, pois, o acontecimento
anunciado; Jacques Lacan foi o único psicanalista que jamais existiu13 - isto,
bem entendido, até prova em contrário - no qual o desejo de ser psicanalista
em nada foi diferente daquilo que ele chamou, depois dos sessenta anos,
"desejo do analista". Em todos os outros, a começar por seus alunos entre os
quais eu de bom grado me incluiria caso fosse possível incluir a si mesmo,
existe uma distância de início entre desejo de ser psicanalista (com os mais
variados e tendenciosos motivos, mas que podem ser absorvidos pela análise
didática) e desejo do analista.Aqui novamente a questão da exemplaridade.
A figura e a função do analista de imediato convieram a Lacan. Bem antes
de ele avançar como analista, seu nome sofreu uma fragmentação que distri­
buiu as posições: Jacques Lacan, o analista, a ele a poltrona, o divã estando
então oferecido a Marie (seu nome de analisando), a Maneine (que não
tem nenhuma necessidade disso), a Marguerite e a todos aqueles, homens
e mulheres, que, após eles, lá se deitaram e que, por esse gesto mesmo,
acabaram feminizados 1 4 •
Ainda em 1976, uma analista em supervisão com ele pensará: "Não
podemos de qualquer modo brincar o tempo todo de Sócrates e Diotima 1 5 !".
Na desconfortável poltrona cujos braços são como os batentes de uma
chaminé 1 6 , eis o amante lenha úmida e ardente; no divã, a amante, da qual

1 3 A posição de Sigmund Freud também foi excepcional, e reconhecida cal. E sabemos a que
ponto a questão de sua "aucoanálise", ou ainda a de seu amigo Wilhelm Fliess em função de
analista ocupou os espíritos. Porém não podemos, sem forçar, aplicar a Freud as categorias aci­
ma que, em compensação, convêm a Lacan: "desejo de ser psicanalista", "desejo do analista".
14 Já é possível ouvir o implicante: "Não, não, Marguerite Anzieu não foi uma analisanda de
Lacan". Certo. Vamos no encanto convidá-lo a se reportar às páginas dedicadas à questão
da transferência em ação no encontro que tiveram (referenciadas nota 9). O capítulo em
questão, que aqui acima recebe seu prolongamento, comporta, em epígrafe, uma citação de
Lacan em que se lê que ele foi levado a Freud por Marguerice Anzieu com esta questão: "O
que é o saber? " O prolongamento dito acima consiste em remontar de Marguerite Anzieu
a Maneine, um pouco como o filósofo se alegra ao pôr a mão numa ocorrência mais antiga
de um termo cuja primeira menção na língua ele até ali acreditara ter notado.
15 Élisabech Geblesco, Un amo11r de transfert. Joumal de 111011 contrôle avec Laca11 (J 974- 1981),
Paris, Epel, 2008, p. 120.
16 "Vejam! entre os batentes da chaminé, eis o objeto ao alcance da mão que o sequestrador só
•�m nup P < tP nrln __ _" ( T . Lacan, Écrits, 1966, p. 36) .
508 O AMOR LACAN

é sabido, ainda que por ali estar deitada, que ela não ocupa mais a posição
estrita de Maneine, que ela está inscrita na linha espiritual das Diotima,
Laura, Santa Mônica, Beatriz, Margarida de Navarra (Mar. . . ainda, como
Lacan não deixou de dizer sua importância para ele) e outras Tereza de Ávila,
sem esquecer aqui uma outra Mar. . . ainda, Marguerite Duras, lista à qual
vamos acrescentar 1 7 essas mulheres de saber que compunham os tribunais
de amor nos tempos da cortesia, e ainda, a despeito de sua mudança de
estatuto, essas pretensas alienadas da modernidade 1 8 que uma atividade
diagnóstica tenta, em vão, desapossar de seu saber ao fazer como se o saber
do ser delas fosse detido pelo médico. " Homenagem" é o nome da relação
que o amante mantém com elas, essas inspiradoras inspiradas19 ; "secretário",
o da encenação dessa relação ; "lenha" , a desse objeto que ele aceita ser para
que a homenagem tome corpo, que saúda, nelas, não só a incidência de um
(( ,. . )) . .
gozausenc1a mas a msp1raçao.
-

Como, então, um analista pode se fazer lenha úmida ardente? Con­


forme que viés pode ser realizada a ascese do analista? Já teremos lido mais
que um começo de resposta: essa ascese exige dele um luto de si mesmo
que o faz se igualar ao qualquer um, desaparecer enquanto algum um20 e
até enquanto um. Sócrates, aqui, vale como contraexemplo, enquanto que
Aristóteles pode ser reconhecido como tendo antecipado o amor Lacan,
aquele que faz com que o desaparecer dê lugar ao aparecimento e que o
aparecimento já assinale o desaparecer - em que reencontramos a oscilação
do amor que não se obtém (o desaparecer) por tê-lo obtido (o aparecimento) .

17
Ver igualmente a lista estabelecida por Jacques Le Brun p. 131 de sua obra Le pur amo111: . . ,
op. cit. Não se pode muito desprezar a análise que se segue relativa a esses "pares com ft.m­
ções diferenciadas" , "desiguais", em que "uma hierarquia de inspiração e uma hierarquia de
jurisdição se articulam entre si". Jacques Le Brun identifica aí "um esquema para o historia­
dor tornado um lugar comum, como se a inversão ou a subversão da ordem institucional
constituísse uma suficiente garantia de fidelidade a uma ordem originária ou primitiva, a
uma ordem oculta, isto é, "m ística".
18 Denominadas "doentes mentais" posteriormente e, hoje, "usuárias da psiquiatria". Prova de
que não se para o progresso.
19 CJ. Marianne Massin, La pemée vive Essai sur l'impiration philosophique, Paris, Armand
.
Colin, 2007.
20
Ver as belas páginas que Paul Veyne dedica ao tema "despersonalizar a vida interior" em seu
Fo11ca11/t. Sa pensée, sa perso1111e, Paris, Albin Michel, 2008, p. 191 sq.
0 AMOR L A C AN : QU E BRA C A BEÇ AS 509

Um limite não é apenas um obstáculo, mas também um algo que pode não
ser alcançado, em relação ao qual é possível ficar à ("boa") distância.
Em seu acolhimento do amor que tem por ele Alcibíades, Sócrates
está próximo de se realizar como qualquer um, ele que se sabe e sustenta
não deter os preciosos agalmata cobiçados porAlcibíades. Ele no entanto se
esquiva infine, enviando Alcibíades ao que ele pretende ser seu verdadeiro
objeto de amor, isto é, Agatão. Ao desiludir Alcibíades, Sócrates fica tal como
o oráculo de Delfos o fez, aquele alguém*, e até aquele único que recebeu
de Apolo uma missão. A ascese esperada do psicanalista é outra, pois, não
mais que Alcibíades, uma vez que o homem do desejo se volta para Sócrates,
o analisando não erra o caminho ao se dirigir a seu psicanalista conforme
a via eleita do transmor. E o analisa não o engana nem o desilude. Como
Sócrates na cena clandestina com Alcibíades, ele não se inflama, fica úmido;
no entanto arde, o que só pode ser tornado sensível ao analisando à condição
de nunca formular um "não é nada disso". Seja a observação: "Quando se
ama, está-se feito enamorado" . A ascese do psicanalista é regrada por esse
"estar feito enamorado", ela está a serviço desse "estar feito enamorado" que
ela permite que o analisando realize nos dois sentidos de "tornar efetivo"
(francês) e de "dar-se conta" (anglicismo). Aristóteles escreveu-lhe a fórmula
ao falar de sua preferência pela postura em que, sendo amados, nem por
isso concedemos nossos favores. Já era dar seu limite "lacaniano" ao amor,
já se dirigir, se ousamos assim dizer, rumo ao amor Lacan definido como
obtenção de um amor que não se obtém.
Lacan sentiu a que ponto era árduo colocar em prática essa ascese?
Com certeza. E é possível conceber, daí, o alcance estratégico de sua pro­
posição de 1 1 de junho de 197 4 convidando todos a amar o inconsciente.
Não era dar corpo a esse limite do amor, que ele quis constitutivo do amor,
oferecer-lhe outro objeto que aquele para o qual o analista se faz lenha
úmida e ardente? Mesmo assim nos interrogamos: dar-lhe corpo já não era
reduzir-lhe a incidência?
Mas que valor dar à afirmação acima? A julgar pela ausência, nos dias
de hoje, de arquivos Lacan, tenho pouca chance, e meu leitor não muito

* Escrito o uelqu' 11111. (NT)


510 O AMOR LACAN

mais, por mais jovem que eu possa imaginá-lo, de ver publicados vários
espessos volumes que contariam a correspondência de Jacques Lacan2 1 • No
entanto, seria ali sobretudo que poderiam ser postas à prova as considerações
precedentes que levam a sério certas afirmações de Lacan até então mantidas
afastadas daquilo que se ensina sob seu nome. Uma porta foi aberta, uma
negligência acaba de ser suspensa, a que pretendia manter fora do campo de
sua doutrina a pessoa de Jacques Marie Lacan. Certo, seu fantasma [fàntôme]
por enquanto permanece, e com certeza por algum tempo ainda, silencioso,
em todo caso nesse ponto preciso de autorizar a constituição de arquivos
públicos (pois, no que se refere aos sonhos dos lacanianos e de outros ain­
da. . . ). Alguém, entretanto, um dia acolherá seus dizeres hoje guardados nos
armários, a quem caberá, então, avaliar os meus. Por enquanto, estamos sob
a lei de uma universal afirmativa: todos mal servidos.

CON FIGURAÇÃO DO AMOR LACAN

Esse amor Lacan, é possível a ele associar, sem muita ginástica intelectual,
certos traços que foram enunciados como que de passagem em tal ou tal
momento dos seminários, embora até nem sempre tenha sido possível
determinar até ali se aquelas observações eram mantidas ou, então, ao con­
trário, tênues*, talvez até fadadas a apagamento? Quanto a algumas delas,
forjadas por Lacan ou simplesmente recolhidas por ele, a questão de fato
foi resolvida. Assim acontece com o pacto amoroso, o suicídio amoroso,
o amor libidinal, a oposição narcisismo-anaclitismo, o amor como "fazer

21 A publicação de sua correspondência com Marie de la Trinité é anunciada para 2020 (Le
11011vel âne, nº 9, setembro de 2008, p. 14, onde no entanto é ofertado um "bilhete" de
19 de setembro de 1950 de Lacan a: "Minha querida irmã") . Ver Marie de la Trinité, De
l'angoisse à ln pnix. Relntion écrite pour Jacques Lacnn, texto apresentado e comentado pela
Ora. Jacqueline Renaud, médica de Marie de la Trinité, Orbey, Arfuyen, 2003; bem como
" Cansem à n'être rien'; Cnmets 1936- 1942, Orbey, Arfuyen, 2006; igualmente, de Chris­
tiane Sanson, Marie de ln Trinité. De l'angoisse à ln pnix, Paris, Cerf, 2005 (especialmente
nas p. 133-156, onde são narradas as desilusões de Marie de la Trinité entre psicopatologia
(incluindo quatro anos de análise com Lacan} e es piritualidade.
* Homofonia: . . . étaient tenues [eram mantidas] ou bien au contraire ténues [tênues]. (NT)
0 A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S 51 1

um", o amor guerreiro, o amor sublimação, o amor repetição de um amor


de infância, o discurso amoroso, a articulação entre o amor e a não-relação
sexual, o (a)muro, o amor estima, o amor ilimitado, o amor incondicional,
o amor divino, o amor como "estar a dois" (recentemente levado ao pináculo
por Jean-Luc Nancy22 ) , o amor como reconhecimento (instaurando uma
relação de sujeito a sujeito), o amor adoração, um amor ligado ao imaginário
do belo, o amor masoquista, o velle bonum alicui, o amor interposição, o
amor filosófico (philia) , o amor eterno, o amor como acesso ao ser, o amor
caridade, o amor perversão, etc. Assim, está permitido tirar essas peças da
caixa onde são ofertadas, a granel, as do quebra-cabeças "o amor Lacan".
Por outro lado, a situação de outras peças permanece duvidosa. Parece ser
este o caso (a lista é sensivelmente menos longa) da relação entre o amor
e o saber, do narcisismo amoroso, do amor sentimento cômico, do amor
como dom, da reciprocidade amorosa, do amor como "acostumar-se com
o para-ser", do amor como carta [lettre] , do amódio, do amor como malo­
gro, etc. Sucessivamente propostos, abordados, discutidos, esses traços não
formam um corpus tal que decorreria de um desenvolvimento dialético, e
não se pode ver muito aí um aprofundamento de uma mesma questão. O
caso dessas peças é tanto menos claro porquanto não se pode aplicar a um
discurso posto sob os auspícios de uma verdade entendida como varidade a
regra estrutural que distingue por um lado variáveis, por outro constantes.
A que, então, recorrer? Vai decidir isso não o que foi dito, mas o que poderá
ser: a própria composição do quebra-cabeças será decisiva conforme acolher
ou rechaçar tal ou tal das peças por enquanto em desordem na caixa.
A primeira delas, e a mais segura, é o saber. O que, pois, Lacan, pas­
sando dos setenta anos, foi dizer na Itália ao afirmar a seus ouvintes que,
graças à análise, se sabia o que o amor deve à inédita suposição denominada
"sujeito suposto saber"? Em 30 de março de 1974, o analista é dito ser, pelo
analisando, suposto saber (em outra parte, ele vai recusar essa cancterização,
que portanto não é necessária mas possível). Em que o analista contribui
para a ocorrência dessa figura na análise? No fato de ele colar no saber. O

22
Em /e t'aime, 1111 peu, bea11co11p, passio1111é111e11t. . . Petite conférence mr litmo111·, Paris, Ba yard,
2008.
512 0 A M OR L A C AN

que é, pois, colar no saber? Não é evidentemente saber, menos ainda saber
que se sabe. É bem antes uma posição que evoca a douta ignorância do
Cusain, bem cedo saudada por Lacan; é, mais precisamente, estar a par do
fato que, para acabar, o saber não se alcança, mas, nesse ínterim, se obtém
de qualquer modo de maneira local e parcial. O que, longe de convidar a
renunciar a saber, incita a, ao contrário, talvez até dê raiva de saber2 3 • Scilicet,
"Você pode saber", foi o título escolhido por Lacan para a revista da Escola
Freudiana24 , uma revista em que ele quis - piscadela de olho para o qualquer
um - que os artigos não fossem assinados, exceto os dele, infelizmente fáceis
de identificar. Colar no saber é limitar-se a essa modalidade do saber em
que a figura do sujeito suposto saber é reconhecida vir ocupar, feito uma
miragem, o espaço desértico deixado vago entre o pedacinho de saber que
se obtém e o inacessível saber absoluto, verdadeiro de verdadeiro. Parecidas,
duas peças do quebra-cabeças se encaixam, portanto, segundo uma borda
denominada "sujeito suposto saber": da mesma forma que o saber, o amor
se obtém como que não se obtendo. Da mesma forma que o amor, o saber
não se obtém quando é exigido como se devesse ser obtido seja como for.
Varias vezes e sob diferentes ângulos, vamos estar às voltas com esse
isomorfismo do amor e do saber. Ele surge agora como a razão do "não há
teoria do amor". Ele foi primeiro encontrado com a leitura do Banquete de
Platão, depois a respeito do O deslumbramento* de Lol V. Stein, depois no
lapso ocasionado pela citação do poema de Tudal, depois no agarramento
do amor ao um do S 1 e, enfim, na leitura da poesia amorosa de Dante. De
um lado dessa borda fadada ao apagamento pela junção dessas duas peças, o
sujeito suposto saber sobrevém na medida mesma em que a aquisição de um

23 Segundo Boris Vian, a iniciativa do sábio é dita nos seguintes termos: "Tem algo aí que está
soando mal, volto imediatamente". Esse dito espirituoso dá a razão da volta do analisando
à sua próxima sessão de análise, igualmente da assiduidade de Lacan a seu seminário, e isto
até perceber que o "que está soando mal" nada mais é que o objeto a definido como "não é
isso" {ver meu comentário dessa incidência do objeto a em Freud et p11is Laca11, op. cit.).
24 Em "A quem se endereça Scilicet" (Scilicet, nº 1, 1968, p. 3-13), Lacan escreve: "Scilicet:
você pode saber, é este o sentido desse título" (primeira frase) . O sentido, talvez, mas não
aquele que uma exata tradução desse advérbio daria: "é evidente que . . . ", "desnecessário dizer
que . . . ", "com certeza", "a saber".
• Também traduzido por O a/'/'ebatamento de Lol V. Stein. (NT)
0 A M O R L A C A N : QU E B R A C A B E Ç A S 513

pedacinho de saber deixa transparecer a radical fraqueza do saber e convida


a mais e a melhor saber; do outro lado dessa mesma borda, o sujeito suposto
saber chama o amor não sendo nada mais que o colofão dessa fraqueza.
Lembramos a irresistível mas indizível fórmula lacaniana que supostamente
leva quem quer que seja a entregar as armas: "Eu te desejo, mesmo que eu
não saiba" . Era a de meu amor que, portanto, se baseava naquilo que, em
mim, permanecia insabido mas designado; igualmente aquela sobre a qual
alçava voo o amor que ia ter por mim aquele ou aquela a quem essa fórmula
mágica era endereçada. Sujeito suposto saber é o nome de uma borda, de
uma borda de um furo no saber que nenhum saber absoluto j amais pode
vir colmatar. Sua destituição torna esse furo inominável 25 • Assim, ligados
por essa borda, transmor e saber estão fadados ao mesmo porvir: obter o
amor, obter o saber, o acento vai para o amor que não se obtém assim como
para o saber que não se obtém. Por ter-se endereçado ao suj eito suposto
saber, por ter-se nutrido e tê-lo nutrido (eis o amor como abertura para o
saber inconsciente) , o transmor aí encontra seu limite. Por ter conj ugado a
transferência e o inconsciente, por ter "traduzido" o inconsciente freudiano
por "suj eito suposto saber" { 1 978) , Lacan tornou possível, se não efetivo,
esse deslizamento cuj a via é aquela dessa mesma "tradução" , mas tomada no
outro sentido. Assim, ele pode convidar todos a amar o inconsciente, esse
"saber chato" , mas também esse "lugar onde o sujeito é sabido" . É anulada,
então, a suposição. Ao fazer assim, o analista não se comporta como Sócrates
a designar Agatão a Alcibíades; ele não foge da briga, mas fica desprovido
das roupas que durante um tempo havia usado para ser então apenas aquela
lenha úmida e no entanto ardente, suporte objetal do transmor. O rei, ou
a criança, está nu; aberto, o ventre deixa perceber seu vazio.
Uma nova peça do quebra-cabeças vem aqui se encaixar bem facil-
"
mente com as d uas peças prece d entes: o acostumar-se com o para-ser ,
,,
única outra proposição com a qual aqui estivemos às voltas. O deslizamento
do para-ser para o ser-da-fala permite a aproximação dessa terceira peça
com aquela que suporta a configuração dita acima do saber. Acostumar-se
com o ser-da-fala é colar no saber, aquele que a "alíngua" arrasta para Lacan

25 A lnn n < r� lriados. não hesitam em ali alojar o que Freud chamou "recalque primário".
51 4 O A M O R LACA N

seminarista e, para o analisando, aquele, notadamente, das "une-bévues".


Além disso, por uma outra de suas bordas, a peça "acostumar-se com o
para-ser" vale como o exercício graças ao qual é tomada uma distância em
relação ao ser, precisamente em relação ao ser pensado como um. Não resulta
apenas a exclusão do amor como fazer um com um mais um - esse mito
que Lacan quis afastar pondo em seu lugar o da lâmina pode sem danos ser
deixado fora da caixa. Sobretudo resulta a colocação em presença daquele
que ama com seu estranho objeto, estranho pelo fato de que, acostumado
com o parle-être (que poderá ser escrito assim para designar a um só tempo
a focalização na alíngua e o "parer à l'être") , ele torna inoperante a tentativa
de tomá-lo por um um.Acostumando-se com o parle-être, o analista força,
ouso a palavra, o analisando a se dar conta de que ele só existe por ser da
significância (o que o analisando admite, meio sem querer - milagre da
análise, ainda mais que o gozo está em jogo). O neologismo "des-ser" diz o
estatuto ôntico desse objeto.
Amor que se obtém como se não fosse obtido, relação com o saber,
"acostumar-se com o parle-être", essas três peças começam a formar uma
composição; colocadas juntas, esboçam o quebra-cabeças o amor Lacan.
Ora, quem tem prática com quebra-cabeças também tem a experiência de
felizes momentos em que, certas peças já estando ordenadas, outras, sem
mais tentativas nem erros, de modo fácil e rápido encontram seu lugar. Assim
acontece, quarta peça do quebra-cabeças, com o amor reduzido à carta de
amor. Ela se ajusta sem dificuldade com o que o "acostumar-se com o par­
le-être" exige que se conforme à literalidade. Para isso, a carta de amor não
pode ser aceita como uma pura montagem de letras: ela também é objeto.
E o nome (a)muro transcreve esse jogo do literal (o muro da linguagem)
e do objetal (objeto a) veiculado pela carta de amor. Entretanto, como foi
expulso pelo almor, o nome " (a)muro" não pode mais ser aceito como um
dos nomes do amor Lacan. Parece podê-lo, em compensação, a nomeação
"almor", da qual vimos igualmente que designava o amor enquanto redutor
do ser. Entretanto, não pode se tratar de uma nova peça do quebra-cabeças,
nem de um nome possível para o amor Lacan uma vez que a existência da
alma foi reconhecida como um possível efeito do amor.
Uma quinta peça, o amor como enganação, também se ajusta fa­
cilmente. A revelação da enganação amorosa foi, como assinalamos, uma
0 AMOR L A C AN : QU E BRA C A BEÇAS 515

consequência da invenção do objeto a, precisamente da focalização da


questão do amor sobre o olhar. O amor põe o narcisismo (sexta peça) a
serviço de uma enganação. Essas duas novas peças vão assim juntas se juntar
ao quebra-cabeças. Há enganação possível uma vez que o amor se oferece
como intrinsecamente limitado e que, desprezando essa determinação, dele
se espera mais. Da mesma forma que a análise vista como escroqueria não
é uma, da mesma forma essa enganação. O amor a contém, nos dois senti­
dos desse termo. Basta que ele cesse de detê-la, que ela cesse de ali estar em
potência, para que ela não se limite mais a ser um possível do amor, para
que ela se manifeste em ato.
De que espécie é esse narcisismo servidor da enganação amorosa? Não
é tanto a imagem de um pequeno outro, i(a), que está aqui em jogo, não tanto
o ar ridículo do psicanalista quanto a lição que Lacan pôde tirar da pintura
para reconfigurar o amor. Ainda mais que, recebida em última instância da
pintura japonesa, essa lição usa como argumento o aparecimento, estatuto
que foi reconhecido ser o do(a) amado(a). Melhor que outras, essa pintura
ensina como pode intervir um ravinamento do significante, do semblante,
o qual está, portanto, como o amor Lacan e no amor Lacan, em equilíbrio
instável - a perpetuação do amor e seu uso do semblante (a linguagem do
amor é uma linguagem de signos) evocando um caminho ao longo de uma
linha de crista. No amor, o semblante se mantém aquém de seu próprio
ravinamento; o amor escreve, ele não rasura.
Se narcisismo e enganação amorosa caminham juntos, o mesmo
acontece com o amódio (sétima peça) e o amor encarado como sentimento
cômico (oitava peça). Dissemos, sejam quais forem os apoios que Lacan
pôde encontrar para qualificá-lo "cômico", isso afinal se limitou apenas a
ele. Pouco importa, seu debate reiterado com Hegel quanto ao amor teve
precisamente por questão uma retirada do amor de qualquer preocupação
(guerreira) de reconhecimento. Hegelianamente superior ao trágico, o cô­
mico amoroso mantém dissimulado o ódio, esse indefectível companheiro
do amor. Com efeito, configurado como obtenção de um amor que não se
obtém, o amor Lacan de fato é amódio: ele só pode deixar hiante a possi­
bilidade de sua pura e simples virada em ódio, ele a isso se dedica de modo
até resoluto ao não desprezar a não obtenção, ao colocá-la permanentemente
516 0 AMOR LACAN

na ordem do dia. E o ódio pode encontrar aí seu alimento, uma vez que
continua colocada a questão de saber que determinações permitem outra
saída, outro fim do transmor.
O cômico amoroso é uma dessas determinações. Uma outra ainda é
o amor pensado como dom (nova peça). "Consumo" é o nome desse dom,
que não é portanto um dom daquilo que não se tem, nem tampouco um
dom daquilo que se é, mas dom não sacrifical de um des-ser ("não sacrifical"
pois nada daí é esperado em contrapartida, ele simplesmente caminha junto
com um efeito de destituição subjetiva). Esse dom é suscetível de impedir
a virada do amor em ódio? Se o for, e ele o é, só pode ser deixando aberta a
possibilidade dessa virada, não sendo por ela obcecado. Daí, contrastando
com suas afirmações sobre o amor, a discrição de Lacan quanto ao ódio.
É possível pendurar nesse conjunto agora em via de acabamento, em
outras palavras, de incompletude, a noção de uma reciprocidade amorosa?
Já o caráter insustentável e não sustentado do mito do encontro das duas
mãos assinalava que isso não é possível. Acrescentaremos que a homenagem
amorosa que a consumição presta ao transmor instaura, entre esses dois,
uma dissimetria.
Mais árdua surge a questão do limite do amor e de seu eventual para
além, aquele, em outras palavras, do malogro (décima peça). De imediato
temos aqui recusado esse para além do amor. Mas era, sem muito saber
então, entrar em dificuldades, era ir contra afirmações que soavam bem
diferentes, que até objetavam à posição eleita. Porém não convém evocar
aqui a maneira como o amor, pendurado no 1 do S 1 , bloqueava a função
simbólica, pois esse amor, a ressaltar o "fazer um", não é o amor Lacan. Não
há por que se emocionar tampouco com a constatação de que a realização do
borromeano pode mudar bruscamente de direção em razão até da realização
do amor (capítulo XXII), pois o prosseguimento da tecedura é precisamente
o que permite pensar as duas proposições axiais do amor Lacan. Primeira
tecedura: obter o amor; segunda tecedura: o amor que não se obtém. Em
compensação, há de fato um problema uma vez que é admitido que se o
amor escreve, ele não rasura, que, portanto, o gesto caligráfico lhe é subje­
tivamente superior. O passo suplementar na subjetivação/dessubjetivação
vale como um para além do amor? Formalmente, essa questão parece da
O AMOR L A C AN : QU E B RA C A B E Ç AS 51 7

mesma feitura que aquela colocada pela tecedura borromeana. Da mesma


forma que o prosseguimento da tecedura efetua o "que não se obtém", da
mesma forma a rasura do semblante (do signo). Assim, é possível admitir
que o amor Lacan, autolimitado, é por si mesmo seu próprio para além.

AMOR LACAN E PURO AMOR

Um medíocre jogo de palavras pode se aproximar da espécie de presença,


a um só tempo reiterada e aceita como parasitária (exceto Lacan e alguns
outros), do "discurso místico26 " no campo freudiano. É a do mosquito que
por vezes ouvimos se aproximar, que tentamos expulsar com um brusco e
inútil gesto da mão, que às vezes morde, embora, na maioria das vezes, sem
inocular a malária. Essas picadas foram outras tantas obras que, para acabar,
deixaram amplamente sem mudanças a pesada marcha de longo curso da
psicologia psicanalítica. Freud, a começar por ele, que havia declarado que,
no que se refere ao Aufkliirer, suas concepções "dão uma impressão franca­
mente mística 27 " , teve de sofrer essa picada. Reconhecemos o livro de David
Bakan, Freud e a tradição místicajudia28 , publicado na França acompanhado
de um ridículo prefácio que, longe de louvar-lhe os méritos como é de uso,
não tinha outro objetivo senão reduzir-lhe o alcance. Entretanto, há alguns
anos, na França, os mosquitos tornaram-se mais numerosos e mais ativos,
e talvez a capa de Mais, ainda não seja totalmente inocente na história.
Em 1982, Michel de Certeau publicava na editora Gallimard sua Fdbula
mística29; dois anos mais tarde, no mesmo editor, Paul-Laurent Assoun de-

26 Entenderemos aqui "discurso místico" num sentido simplesmente descritivo, sem portanto
entrar no debate suscetível de decidir a questão de saber se as afirmações que ressaltam o
misticismo fazem ou não "discurso" .
2 7 "Einen gemdez11 mystischen Eindmck macht" (Sigmund Freud, A11-delà du principe de plaisir,
Paris, Payot, 1987, p. 102; citado por J. Le Brun, in Le p11r amo11r. . . , op. cit., p. 301) .
28
Sigm11nd Fre11d and the jewish Mystical Thtdition teve, em inglês, vários editores: Schocken
Books em 1965, Free Assn Books em 1990; Dover Publications em 2005 . A tradução em
francês de que disponho, de 1977, assinala uma primeira publicação na coleção "Science de
l'homme" na editora Payot, mas sem menção de data. O autor do prefácio assassino dessa
edição era um membro dos mais eminentes da ortodoxia freudiana internacional .
'" " ' º - - - = - - · · = •� '-�m �rnl h irl� ,.m littnml n ° 9 (iunho de 1983), que a obra de Bakan pelo
518 O A MO R LACAN

clicava mais de trinta páginas à relação entre Freud e a mística em seu livro
O entendimento freudianrr0; em 2002, as edições Le Seuil publicam a obra
de Jacques Le Brun já mencionada; mais recentemente ainda, depois de
François Balmes publicar ainda vivo (I 999, Presses universitaires de France}
seu mui notável O que Lacan diz do ser, pudemos ler outra obra desse autor:
Deus, o sexo e a verdade (Éres, 2007). Devemos também a Catherine Millot
dois livros importantes: Abismos comuns, em 200 1, e A vida perfeita, Jeanne
Guyon, Simone Weil, Etty Hillesum, em 2006 (ambos na editora Gallimard)
e a Sean Wilder, bem recentemente, a obra Um sujeito sem eu [ mot1 . Psi­
candlise e experiência mística (Epel, 2008). Essa lista não é nem exaustiva
nem fechada mas suficiente, com certeza, para que hoje se possa falar de um
frêmito místico do campo freudiano. Para elucidar o que ali se passa, seria
preciso todo um estudo que aqui deve apenas ser esboçado.
Conjectura: a despeito de milhares de artigos e obras escritas há um
século sobre esse tema, a persistência de uma dificuldade, do lado psicana­
lista, em acolher o amódio de transferência de modo que possa encontrar
sua feliz solução não se deve a uma timidez mal colocada, a uma falsa
prudência, talvez a uma falta de audácia, de coragem e de liberdade? O
que cobre a noção de "neutralidade benevolente" que, tal como notavam

autor de seu prefácio: ver os artigos de Alain de Libera e Frédéric Nef, de Guy Le Gaufey,
aos quais responde uma breve missiva de M. de Certeau, seguida de outro artigo ainda,
assinado por Philippe Julien. Não se pode recusar a justeza histórica e "científica" dessas lei­
turas críticas que só têm, portanto, um erro : permanecem sem alcance sobre seu objeto. Só
queremos por prova a retomada por Jacques Le Brun, decerto num modo sensivelmente di­
ferente, daquilo mesmo que era recusado em M. de Certeau, a saber, sua própria implicação
em seu objeto de estudo. Metodologicamente, a iniciativa deles é também a mesma, pois,
enquanto Certeau escolhe "instalar-se primeiramente no centro desse campo de fronteiras
históricas moventes", da mesma forma Le Brun escolhe um ponto de observação (as crises
do fim do século xvn) para, dali, reportar-se mais acima depois mais abaixo. Mais acima
onde "o historiador desce de novo até si mesmo, perdendo sua posição privilegiada para
não ser mais senão um provisório ponto culminante do destino dos objetos cujas formas sucessivas
ele estuda" 0- Le Brun, Le pur amou,: .. , op. cit., p. 22 - sublinho) . Assim, é possível, em
resposta a seus críticos, pôr na boca de M . de Certeau a frase que Fénelon endereçava aos
seus: "Vocês só se salvam não se explicando nunca sobre minhas questões" (citado por J . Le
Brun, Le pur amour... , op. cit. , p. 123).
-1 0 Um primeiro artigo do mesmo autor sobre "Freud e a mística" era publicado na Nouvelle
revue de psychannlyse, nº 22, outono de 1 980
0 AMOR L A C AN : QU E BRA C A BE Ç AS 519

Laplanche e Pontalis, não é "em geral contestada pelos analistas 31 " ? J á não
é desprezar o registro e o teor do transmor acolhê-lo como um p roble­
ma "técnico" que deve ser resolvido pela dita neutralidade benevolente?
Igual mente citada no Vocabuldrio dapsicandlise, uma declaração de Freud
feita em 1 9 1 8 permanece por certo de grande j usteza: " Recusamos cate­
goricamente considerar como nosso bem próprio o paciente que requer
nossa aj uda e se coloca em nossas mãos . Não buscamos nem fo rmar para
ele seu destino, nem inculcar-lhe nossos ideais, nem modelá-lo à nossa
imagem com o orgulho de um criador" . Podemos duvidar que o "paciente"
se recupere "inteiramente em nossas mãos" . Por mais longe que estej a o
caso, ele liga o psicanalista, exercendo sobre ele um domínio que tem nome
"transmor" . Por isso, essa recusa de toda imiscuição moralizante regra a
questão colocada pelo transmor? O sin tagma "neutralidade benevolente"
não figura no corpus freudiano, isolados nele se encontram, dispersos,
raros, os termos "neutralidade" e " benevolência 3 2 " . En tretanto, em 1 9 1 7 ,
a pena de Freud havia soltado "simpatia compreensiva" . É o mínimo q ue
se pode esperar de um médico o u de um sacerdote, os dois personagens
que Freud afastava para extrair uma posição que seria propriamente de
analista. Daí, talvez, o s ucesso de "neutralidade benevolente" que, além
disso , faz figura de oximoro e veicula suas virtudes . Os lacartianos, tanto
quanto sei, não estão muito i nteressados nisso. Em vez de desdobrar-lhe
as aporias, vamos colocar em seu lugar o amor Lacan, que apresenta a
mesma tensão, mas , desta vez, enfim, num registro que convém ao trans-
mor: no l ugar d e " b enevo l ente " co l ocaremos " o b ter o amor " , e no d e
"neutralidade" , "que não se obtém" . Terá sido este, então , o passo efetuado
por Lacan, cuj a prática sabia na oportunidade não ser em nada "neu tra" ,
pelo menos no sentido em que o analista se quereria não implicado, e não
tampouco, " benevolente" , pelo menos no sen tido usual, pastoral , desse
termo. Veremos nisso uma consequência do desej o que o animava e que
o fazia ir à frente da liberdade de outrem.

31 Jean Laplanche, J .-B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse, Paris, PuF, 1967, p. 266-
267.
32 Este último termo em Le moí et /e ça (Paris, Payot, 1987, p. 109) em que está em questão
' ... • ,, ' • L•: /. 1-_ t V/... J,. J. . . ,. /1.,,.,) - n n t::1 m os o o ximo ro .
520 O A M O R LACAN

Jacques Le Brun, citando uma observação feita por Lacan n a Itália


em 1 973 33 , não tem dificuldade alguma de ver ali uma exposição precisa da
suposição impossível, coração do moderno puro amor.

De qualquer modo, houve, na sequência, certas pessoas sensatas que per­


ceberam que o cúmulo do amor de Deus devia ser dizer-lhe... "se for a tua
vontade, dana-me", isto é, exatamente o contrário da aspiração ao soberano
bem. Isso quer mesmo assim dizer algo: questionamento do ideal da salvação,
em nome justamente do amor do Outro. É a partir desse momento que
entramos no... no campo de quê?... no campo daquilo que o amor deveria
ser, se isso tivesse o menor sentido. Só que é a partir desse momento que
isso se torna absolutamente insensato, e é isso o interessante: é perceber
que quando se entrou num impasse, quando se chega no final, é o final.
Pronto, é o final e é justamente isso que é interessante... porque é aí que o
real está34 •

M me Guyon está mais próxima de sua realização que seu mestre Fé­
nelon, a quem ela escreve, repreendendo-o: "Não, você nunca será próprio
a ser feito um homem novo a não ser quando tiver se tornado lama3 5 ".
Ela sabe, ela, que o puro amor não vem da ciência mas da experiência. E,
revelado por Le Brun 36 , o fracasso de Fénelon em pensar o puro amor não
o desaprova. Michel de Certeau dizia o "privilégio da relação sobre a pro­
posição 3 7" . Assim fica claro que a recusa, de imediato, de teorizar o amor já
situava o amor Lacan numa proximidade com o amor místico. A ordem de
racionalidade das afirmações de Lacan sobre o amor os torna primos dessa
"ciência dos santos 38 " posta em prática no século XVII e que nunca adquiriu
o rigor dos enunciados teológicos. O que acontece exatamente? Se não é

33 J. Le Brun, Le pur amo11r. . . , op. cit. , p. 333.


34 Jacques Lacan, Lacan in ltalia 1953-1978, Milão, La Salamandra, 1978, p. 89.
3 s J. Le Brun, Le p11r amo111: .. , op. cit. , p. 148 .
36 "É portanto sobre o fantasma de uma teoria do puro amor que parece se acabar o esforço de
Fénelon" (ibid. , p. 210) .
37 M . de Certeau, La fable mystiq11e, op. cit. , p. 15.
38 J. Le Brun, Le p11r amo111: . . , op. cit. , p. 142.
O AMOR L A C AN : QU E B R A C A B E Ç AS 52 1

por certo possível identificá-los como tais, pelo menos p.;irece espantoso o
"ar de famílià' (Wittgenstein).
Um de seus traços comuns entre os mais nítidos é o reconhecimento
de uma deiscência estritamente interna ao amor. Outros vêm junto: a an­
coragem, no próprio seio do amor, da possibilidade do ódio;• o luto de si
mesmo; o ato passivo (denominado "inação", diremos em que sentido).
Ou seja, pois, a primeira formulação da suposição impossível tal como
a escreve Fénelon a M me Guyon, em 28 de março de 1689:

O cristão, que se abandona sem reserva, pode bem consentir em ser eter­
namente punido e infeliz, se for a vontade de Deus, mas parece-me que
ele não pode nunca consentir em odiar Deus no inferno; caso contrário,
aconteceria, em conformidade com a vontade de Deus, de ele querer ser
contrário a essa mesma vontade, o que seria uma contradição39 •

O puro amor não nega somente toda preocupação de pena ou re­


compensa, ele nega o próprio amo_r, "como se o amor fosse 'puro' uma
vez que o sujeito dele se desprendesse, dele se ausentasse, e que esse amor
tornado sem sujeito se voltasse sobre seu objeto e, por assim dizer, nele se
absorvesse40 " , escreve Le Brun. Não obter o amor de Deus, oferecer-se pos­
sivelmente a Seu ódio, e amá-Lo no entanto, é o próprio critério do amor
puro. Esse amor constrói o espaço de um amor que não se obtém. Logo,
ele joga o mesmo jogo que o amor Lacan, ele coloca o mesmo limite, mas
diferentemente, pois ele não o supõe absoluto: se é esta a vontade de Deus,
uma vez transposto esse espaço, sua realização é uma união com Deus, um
"consentimento admirável que se pode chamar união, ou antes unidade
de nossa vontade com a de Deus", escreve Fénelon em seu Tra tado sobre
o estado passivo41 • Esse horizonte unitivo não tem razão de estar no amor
Lacan; sua autolimitação é radical, ela é relativa em Fénelon e M me Guyon.
Pouco importa, a aproximação do amor Lacan e do puro amor não é aqui
somente formal: são as mesmas alavancas que operam.

1
·
9
J. Le Brun, Le p 11r nmo11r. . . , op. cit. , p. 1 49 .
40
Jbid. , p. 1 6 1 .
.t 1 11- : J _ 1 t.: n
522 0 AMOR L A C A N

Acontece o mesmo com o luto de si mesmo. Le Brun cita Fénelon


que, em busca de apoios em seu combate, apela para Santa Catarina de
Gênova. É preciso, diz ela, "renunciar-se sem recurso, tornar-se estranho
a si, não ter mais eu [mot] por quem nos interessemos. Eu [Mot] é Deus,
não há mais outro42 " . Se aqui ressoa também o amor unitivo, não é menos
verdade que a essa declaração faz eco esta afirmação de Lacan ( 15 de maio
de 195 5): "Se analistas são formados, é para que haja sujeitos tais que, ne­
les, o eu [mot] esteja ausente43 " . O "eu" [mot] de Santa Catarina de Gênova
não é evidentemente aquele de Lacan. Porém uma determinação é bem aí
comum, inscrita na língua e retomada em outros termos por Lacan quando,
introduzindo seis anos mais tarde o operador "desejo do analista", ele faz
de um luto de si mesmo a condição de possibilidade de uma colocação em
prática desse desejo.
Importadas da problematização do puro amor, duas noções podem
ajudar a melhor entender o que estaria em questão nesse luto de si mesmo
graças ao qual o analista se igualaria ao qualquer um, se absteria de ser
algum um: passivedade [passivete1 e inação. Lemos bem: passivedade, não
passividade. Essa passivedade permite reduzir, se não preencher, uma das
mais graves lacunas encontradas aqui mesmo, a saber, a ausência de uma
articulação, em Lacan, entre o ato analítico e o amor. Por "passivedade"
M m• Guyon entende esse grau do amor em qüe, o amor de concupiscência
doravante deixado de lado, "a atividade amorosa se perde e se apaga44 " . Na
via da realização do puro amor, essa etapa precede e condiciona a possibi­
lidade da morte da alma. A passivedade é uma passividade ativa. A inação
a clareia. Ela não é ausência de ação mas ação em (da mesma forma, nota
Le Brun, que "inexistência" primeiro significou "existência em4 5 " ) , ação em
relação com a iniciativa divina, ela mesma, aliás, pensada como inação (o
caráter gratuito da promessa). Ao deixar de lado sua ação própria, a alma
deixa advir em si mesma a inação divina, dela se torna o lugar. Não estamos
nos aproximando aqui da maneira como o analista é convidado por Lacan
a acolher o transmor?

42 Ibid. , p. 1 64 .
43 J. Lacan, Le moi. . . , op. cit., p. 287.
4 4 J. Le Brun, Le p 11r amo111: .. , op. cit., p. 1 52- 1 53 .
45 Ibid. , p. 1 88 .
O AMOR L AC AN : QU E B RA C A BEÇAS 523

Por isso, essas aproximações que podem chegar a valer como efetivos
cruzamentos não autorizam a desprezar em que e como diferem o puro amor
e o amor Lacan. A esse respeito, exceto o amor unitivo que acaba de estar
em questão e que não é por certo o amor Lacan, o outro traço diferencial
principal é este: o puro amor elege um objeto - Deus - cujo estatuto é
claramente aquele de um mestre, e de um mestre que o puro amor cuida
bem de manter em Sua posição de mestre, em Sua liberdade, em nada
ligando, absolutamente nada, Sua vontade. Isso ao ponto de excluir que
seja excluído que essa vontade seja ruim: Deus pode me querer no inferno,
não o amarei menos. ''A vontade de Deus, escreve Le Brun, está no cerne
da famosa suposição impossível46 " . Quanto a ela, Marie de la Trinité, que
se tornará terapeuta no hospital de Vaugirard, conclui assim (num registro
bem próximo do puro amor) o fim de seus sofrimentos depositados nas
mãos de psiquiatras (o primeiro deles propondo-lhe com insistência uma
lobotomia, depois eletrochoques), de psicanalistas, de diretores espirituais,
de autoridades conventuais:

Meu Deus, estou à vossa mercê. Se fiz mal e desejais me castigar, fazei-o; se
quereis me perdoar, fazei-o; se quereis me preencher, fazei-o; e se quereis que
eu vos adore, criai o louvor em meus lábios (como diz Isaías) [suas obsessões,
cujo conteúdo ignoramos mas não a violência, a impediam de orar] . Orei
com todo o meu coração essas poucas palavras; depois, o silêncio de ferro
caiu. Ele não se levantou47 •

Assim, se fosse preciso articular, isto é, associar e dissociar, o amor


Lacan e o amor puro, poderíamos propor a seguinte fórmula: o amor Lacan
retoma por sua conta o puro amor (uma versão da suposição impossível)
mas transportando-o, mas deportando-o para fora do campo do domínio,
mais exatamente do Domínio, se é verdade que aqui Deus, e não como em
Lacan a morte, é o Mestre absoluto.

46 J. Le Brun, Le pur amour.. . , op. cit., p. 1 97.


47 r :._ ..J ~ -�· r '-� n m n . M111-ie de /a Trinité..., op. cit., p. 1 5 5- 1 56 .
524 O AMO R L AC A N

O puro amor e o amor Lacan se afiguram próximos e distintos. Não se


pode aplicar ao primeiro certas fórmulas-chave do segundo. Entretanto, essa
distinção permanece localmente sutil, já que fórmulas como "não se é tão
amado em suma" (Deus pode querer me odiar), ou ainda "a lenha analítica
não se inflamá' (Deus é livre) permanecem pertinentes no puro amor sem
no entanto determiná-lo de um lado ao outro (Deus pode querer amar) .
Assim, M m• Guyon pode fazer sua a metáfora do "fogo [que] retorna à sua
esfera quando nenhum sujeito o para4 8 " , o amor que ela tem por Deus só
se preocupando com seu objeto ao ponto de o sujeito ali se destruir e ali se
perder. Esse horizonte não tem razão de ser no amor Lacan que, dissemos,
recusa a eternidade. O êxtase tampouco. O amor Lacan é o amor puro
aliviado de sua transcendência.

48
J. Le Brun, Le p11r 111110111: . . , op. cit., p. 1 59.
RE F E RÊ N C IA S B I B L I O G RÁ F I CA S
D E JAC Q!J E S LACAN

e orno a s referências bibliográficas dos autores citados estão assinaladas


em notas, não julgamos útil reuni-las aqui. Em compensação, haja vista
a atual dispersão e disparidade editorial da obra de Jacques Lacan, poderemos
tomar conhecimento aqui abaixo dos partidos que foram tomados.
Distinguem-se os textos da mão de Lacan (ESCRITOS), as TRANSCRI­
ÇÕES de intervenções orais (algumas, nesta data, publicadas sob forma de
livro) e os SEMINÁRIOS. Como o conjunto dos seminários não foi objeto de
uma edição crítica, cada um deles é aqui citado numa versão eleita (lista a
seguir), anunciada em nota durante sua primeira menção e à qual vamos
nos limitar, exceto envio explícito a outra versão (a heterogeneidade das
diversas maneiras de transcrever não foi, portanto, reduzida). As inter­
venções orais e outros escritos de Lacan, disseminados, são retomados em
"Não todo Lacan" (PTL), facilmente acessível no site da Escola Lacaniana
de Psicanálise: http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php?id= 1 O,
com menção, se convier, da publicação em papel. Os Escritos_ são citados
em sua edição de bolso, em dois volumes, ela também mais acessível. Para
o texto dos Escritos não retomados na edição em bolso, vamos nos reportar
à primeira edição em 1966.

1 . E S C RITO S

- "Alocução de boas-vindas pronunciada na abertura da reunião convocada


por ele, no sábado 15 de março, no PLM Saint-Jacques", Le Matin, 18 de
março de 1980; igualmente in PTL.
- Autres écrits, Paris, Le Seuil, 200 1.
- "Compte rendu du séminaire 1966- 1967", in Autres écrits, op. cit.
- "Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines", Scilicet,
nº 6/7, Paris, Le Seuil, 1975 ; igualmente in PTL.
O AMO R L AC A N

- De la psychose paranoiaque dans ses rapports avec la personnalité, 2 e ed.,


Paris, Le Seuil, 1980.
- "Discours de Rome. Réponse aux interventions", in Autres écrits, op. cit.
- Écrits, Paris, Le Seuil, 1966 (citado : Écrits, 1966) ; reedição parcial, coll.
" Points", Écrits I, 1969 ; Écrits II, 1999.
- "Écrits inspirés", Annales médico-psychologiques, t. II, 193 1 ; retomado in
De la psychose paranoiaque. . . , op. cit. ; igualmente in PTL.
- 'Tétourdit", Scilicet, nº 4, 1973 ; igualmente in PTL.
- " Hommage fait à Margueritte Duras, du ravissement de Lol V. Stein", in
Autres écrits, op. cit.
- "lntroduction de Scilicet au titre de la revue de l'École freudienne de
Paris", Scilicet, nº 1, 1968 ; igualmente in PTL.
- "Lituraterre", in Littérature, nº 3, Paris, Larousse, 197 1, retomado em
Autres écrits, op. cit.
- Le mythe individuei du névrosé, Paris, Le Seuil, coll. "Champ freudien",
2007 ; igualmente in PTL.
"Raison d'un échec", in Autres écrits, op. cit.
- "Remarque sur le rapport de Daniel Lagache", in Écrits II, op. cit.
- "Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956",
in Écrits, op. cit.
- "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien",
in Écrits Il op. cit.

I I . TRANS CRIÇÕES

- ''Alla Scuola Freudiana", in Lacan in Italia 1953-1978. En Italie Lacan,


Milão, La Salamandra, 1978; igualmente in PTL.
- "Excursus" (intervenção durante uma reunião da Scuola Freudiana em
Milão, em 4 de fevereiro de 1973), in Lacan in Itdlia 1953-1978, op. cit.;
igualmente in PTL.
- "Exposé conclusif des Assises sur la passe", in PTL.
- "Hommage rendu à Lewis Carroll", Ornicar ? nº 59, 2003.
- " lntervention au premier congres mondial de psychiatrie", in PTL,
195 0.
RE F ER Ê N C I AS BI B L I O G RÁ F I C A S D E J A C QU E S L A C AN 527

- Le savoir du psychanalyste, transcrição Afi ; igualmente in PTL.


- "La troisieme" , in PTL, ou ainda a notável brochura difundida por Patrick
Valas.
- "Le symbolique, l'imaginaire et le réel", in PTL, 1 95 3 .
- L e triomphe de la religion, précédé de Discours aux catholiques, Paris, Le
Seuil, 2005 ; igualmente in PTL.
- "Propos sur l'hystérie", Quarto, n º 2, suplemento belga a La lettre mensuelle
de l'École de la cause freudienne, 1 98 1 ; igualmente in PTL.

I I I . S EMINÁRIO S

- 1 9 53- 1 954, Les écrits techniques de Freud, Paris, Le Seuil, 1 97 5 . Citado


Les écrits techniques. . .
- 1 9 54- 1 9 5 5 , L e moi dans la théorie de Freud et dans la technique psychana-
lytique, Paris, Le Seuil, 1 978. Citado Le moi. . .
- 1 95 5 - 1 956, Les psychoses, Paris, Le Seuil, 1 98 1 .
- 1 9 56- 1 957, La relation d'objet, Paris, Le Seuil, 1 994.
- 1 9 57- 1 9 5 8 , Les formations de l'inconscient, Paris, Le Seuil, 1 99 8 . Citado
Les formations. . .
- 1 9 58- 1 9 5 9 , L e désir et son interprétation, transcrição Afi . Citado : Le
désir. . .
- 1 959- 1 960, L'éthique de la psychanalyse, transcrição Afi . Citado : L'éthi­
que...
- 1 960- 1 96 1 , Le transfert dans sa disparité subjective, sa prétendue situation,
ses excursions techniques, versão Stécriture, disponível no site da École
lacanienne de psychanalyse. Citado Le transfert. . .
1 96 1 - 1 962, L'identification, transcrição Afi.
- 1 962- 1 963, L'angoisse, transcrição Afi.
- 1 963- 1 964, Les quatre conceptsfondamentaux de la psychanalyse, transcrição
Afi. Citado Les quatre concepts. . .
- 1 964- 1 965, Problemes cruciauxpour la psychanalyse, transcrição Afi . Citado
Problemes cruciaux. . . Podemos nos reportar com grande proveito à versão
Roussan.
0 AMO R L A C A N

- 1 965- 1 966, L'objet de la psychanalyse, transcrição Afi. Citado L'objet. . .


- 1 967- 1 968, L'acte psychanalytique, estenografia.
- 1 967- 1 968, La logique dufantasme, estenografia.
- 1 968- 1 969, D'un Autre à l'autre, transcrição Afi. Cítado D'un Autre à
l'autre.
- 1 969- 1 970, L'envers de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1 99 1 . Citado
L'envers. . .
- 1 970- 1 97 1 , D'un discours qui ne serait pas du semblant, transcrição Afi.
Citado D'un discours. . .
- 1 97 1 - 1 972, . . . ou pire, transcrição Afi.
- 1 9 72- 1 9 7 3 , Encore, versão semicrítica, assinada VRM NAG RLS O FA-
FBYP M B .
- 1 973- 1 97 4, Les non-dupes errent, transcrição Afi ( uma primeira e notável
versão é devida a Nicole Sels) . Citado Les non-dupes...
- 1 974- 1 975, R. S.l Transcrição Afi {uma primeira e notável versão é devida
a Monique Chollet) .
- 1 975- 1 976, Le sinthome, transcrição Afi.
- 1976- 1 977, 'Tinsu que sair de l'Une-bévue s'aile à mourre" {segundo o
seminário de Jacques Lacan, sessão de 1 9 de abril de 1 977) , in L'Unebévue,
n º 2 1 . Citado L'insu...
- 1 977- 1 97 8 , Le moment de conclure, transcrição Afi . Citado Le mo­
ment. . .
A G RA DEC I MENTOS

Q
uero expressar minha imensa gratidão a Daniel/eArnoux, Isabel/e Châte­
let, Guy Le Gaufey, Thierry Marchaise e Mayette Viltard que, cada um
à sua maneira, leram atentamente o manuscrito desta obra e, de modo gentil
mas firme, obrigaram-se a numerosas modificações. Meus agradecimentos vão
tambémpara os participantes de meu semindrio na França, na América Latina
e na Austrdlia que, com suas intervenções, contribuírampara as afirmações que
acabamos de ler fossem mais exatamente aquelas que eu acreditava formular.
Devo a David Halperin a composição ''em pórticos " do conjunto deste texto e
aqui lhe agradeço por isso.
1 5 de agosto de 2009
] EAN ALLOUCH
Definição: o amor é aquilo que põe o narcisismo a
serviço de uma enga nação. Qual é ela? Quais são
as vias? Suas consequências? O que ali é passado
para trás? Como o psicanalista pode jogar com
isso? " Enganação": se essa palavra por um tempo
ressoou em Lacan como associada ao simbólico
(a enganação valendo como dêitico de que de
fato se estava às voltas com um sujeito), é bem
num outro sentido que ela aqui intervém. A en­
ganação do amor, a enganação que é o amor, sur­
ge nos seminários em 1 2 de fevereiro de 1 964.
Neles reaparecerá, algumas vezes, pelo menos
em fevereiro de 1 966. Mas o próprio fato vai
continuar sua estrada bem para além dessa data
e sofrer notáveis transformações. Na linha "en­
ganação", o amor é designado como uma "falsi­
dade" em 1 7 de j u nho de 1 964, como uma "ne­
gação" em 7 de dezembro de 1 966, como um
"monstro" ou ainda como "importuno" em 18
de janeiro de 1967, como um "melaço" em 2 1
de fevereiro de 1 968 . Em 9 de junho de 1 97 1 ,
de maneira talvez mais neutra, ele é apresenta­
do como uma máscara. Não se imaginará, pelo
menos a priori, que o amor assim colorido seja
diferen te do amor como dom daquilo que não
se tem que, este, ainda que por pura cretinice,
parece dar alguma esperança e satisfazer a ética.
Ao contrário, seria possível que o amor como
dom daquilo que não se tem fosse ele mesmo
enganação, falsidade, negação, monstro, mela-

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