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Apresentação da tese “A avaliação pericial do louco infrator: dos desvios da norma à

responsabilidade pelo imprevisível”

Romina Moreira de Magalhães Gomes

O presente trabalho teve início a partir de questões surgidas em minha prática clínica com loucos
infratores realizada no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ, do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O público acompanhado por esse programa é objeto de
uma sanção penal específica, denominada medida de segurança, aplicada ao louco que
cometeu um ato caracterizado como injusto penal, pois esse ato não pode ser tomado como um
crime. De acordo com nosso direito penal vigente, para que haja crime são necessários três
elementos: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Mas, nos ilícitos cometidos por loucos, há
a exclusão da culpabilidade, o que impede de considerá-los imputáveis e, portanto, responsáveis
pelo ato. A sanção penal será então baseada na periculosidade presumida e se dirigirá não ao
ato cometido, mas à virtualidade da ação, visando o controle do que o sujeito pode vir a fazer no
futuro. A medida de segurança implica a necessidade de um tratamento compulsório por tempo
indeterminado e o processo criminal somente poderá ser extinto com a realização de uma
avaliação pericial.

No percurso realizado, a constituição do campo da avaliação pericial do louco infrator foi


retomada, com o objetivo de encontrar os elementos que possibilitaram sua abertura e
estabelecimento nas brechas do poder judiciário. Na passagem do interesse pelo ato cometido
ao interesse pelo modo de ser do autor, ocorrida na época do regime disciplinar, tornou-se
possível a constituição do campo da avaliação. O exame surgiu no século XIX com as
disciplinas, que permitiram a constituição de um saber sobre o criminoso. A partir das
formulações de Pinel, a ideia de que haveria um déficit irreversível na loucura concebida como
perigosa favoreceu que a psiquiatria se constituísse como saber capaz de realizar seu controle.
De acordo com as ideias de Pinel e seus discípulos, o louco tenderia a alojar em si o mal e seria
portador de um déficit moral que o tornaria incapaz de responder, por não poder controlar a
própria vontade. Suas ações seriam determinadas pelo instinto, força irresistível que age no
sujeito em detrimento do que ele possa querer, produzindo um empuxo irresistível ao ato. Desse
modo, o louco foi concebido como perigoso, por ser imprevisível e impulsivo. Essas concepções
fizeram com que o poder judiciário recuasse em sua tarefa de convocá-los a responder pelos
atos cometidos e os entregasse à psiquiatria criminal. Com a proposta de estabelecer uma
vigilância contínua do louco no asilo, a psiquiatria assumiu sua gestão. Os mecanismos de
controle surgidos na época disciplinar caracterizavam-se por exigir a presença do olhar. Os
loucos eram enviados ao asilo, onde podiam ser continuamente vigiados e submetidos ao
tratamento moral.

A invenção do exame permitiu à psiquiatria oferecer uma resposta à pergunta sobre quem é o
criminoso, nos crimes cometidos por loucos. Com a síntese empreendida por Lombroso, a partir
das ideias de Pinel e seus discípulos, e a criação da Escola Criminal Positiva, a ideia de uma
periculosidade intrínseca ao louco foi difundida. De acordo com essa perspectiva determinista,
mecanismos de controle foram criados, visando à defesa social e à precaução contra os riscos
envolvidos na convivência com a loucura. A presunção de periculosidade, que implica atribuir ao
louco infrator um risco virtual de cometer novas infrações penais, fez surgir a ideia de um
dispositivo de controle específico, o manicômio judiciário.

A avaliação do louco infrator, desde suas origens, aponta certo embaraço do judiciário frente a
esse saber, o que conduzia frequentemente a buscar a intervenção de muitos especialistas,
como aconteceu nos casos de Henriette Cornier, Pierre Rivière, Custódio Alves Serrão, Febrônio
Índio do Brasil, e como acontece frequentemente nas avaliações realizadas nos dias atuais. No
início da prática de avaliação do louco infrator, a intervenção de vários especialistas visava
assegurar o lugar do perito junto ao aparelho judiciário. Não importava tanto o que o próprio
sujeito tinha a dizer, pois cabia ao especialista apontar se havia ou não patologia, indicando o
tratamento adequado, que sempre coincidia com a internação no asilo. Esse dado intrigante que
podemos recolher das avaliações desde os seus primórdios mostra, em última instância, a face
de ficção das ideias e conceitos envolvidos nesse modo de apreensão da loucura.

O foco desta pesquisa dirige-se ao momento da avaliação pericial de cessação de


periculosidade. Parto da hipótese de que a avaliação pericial é um dos mecanismos
fundamentais que, ao lado da legislação penal vigente, permite sustentar e transmitir o discurso
pautado na periculosidade do louco e na necessidade de seu controle. Assim, ao apontar as
especificidades da intervenção pericial junto aos loucos infratores, a tese que ora apresento
procura mostrar como opera essa sustentação e transmissão. Por outro lado, uma sanção penal
que anula o ato cometido e se dirige ao futuro, concebendo o sujeito como perigoso, não é sem
efeitos para cada um que a recebe. Ao não ser considerado responsável, o sujeito é dispensado
e passa a ser tomado como um objeto a ser controlado, o que produz consequências
relacionadas às possibilidades de tratamento da dimensão real do sofrimento mental.
A leitura das avaliações periciais de duas instituições mineiras, o Ambulatório de Perícias
Forenses do Instituto Raul Soares e o manicômio judiciário Jorge Vaz, mostram que o conceito
de periculosidade permanece, juntamente com o conceito de normal, orientando os peritos. O
normal foi o modo pelo qual o cientificismo se propagou no campo das ciências humanas,
visando dar “objetividade” à abordagem do homem e sua conduta. Esse conceito orienta a
aplicação de escalas de avaliação de riscos, bem como os diagnósticos referenciados no DSM e
no CID que classificam os transtornos mentais e direcionam os tratamentos dos loucos
infratores, pautados no ideal de normalidade. Esse ideal encontra-se ainda presente na
exigência de remissão completa dos sintomas psicopatológicos. Em última instância, o normal
orienta a proposta de um tratamento padrão, válido para todos, que desconsidera o sofrimento
em sua dimensão singular e favorece a burocracia das instituições.

A abertura às probabilidades que se deu com o surgimento do saber estatístico aplicado aos
fenômenos aleatórios estabeleceu as condições que tornaram possível a aplicação do normal ao
homem e sua conduta. A transmissão do discurso do perigo realizada pelos peritos é, assim,
atualizada pela propagação da estatística que foi condição para o surgimento dos sistemas de
classificação dos transtornos mentais – DSM e CID –, e as escalas de avaliação de riscos, além
de um refinamento dos modos de controle como a recomendação do uso de psicotrópicos como
medida de precaução contra o perigo. As ideias do astrônomo belga Quételet foram
determinantes para a abertura dessa possibilidade, por favorecerem a transposição da
mensuração utilizada na abordagem dos fenômenos físicos para a dimensão dos atributos e
condutas do homem. Ao aplicar a curva de Gauss à medição dos atributos humanos, esse autor
concebeu a possibilidade de mensurar quaisquer características humanas, a partir do
esvaziamento de suas qualidades possibilitado pela invenção do homem médio. O homem
tornou-se, assim, contável e comparável, o que permitiu a constituição de saberes que
buscavam extrair um padrão de suas condutas, para controlá-las. Com essa possibilidade aberta
por Quételet e a teoria das correlações estatísticas estabelecida por Francis Galton, tornou-se
possível a criação de um novo modo de exercer o controle. Essa teoria possibilitou a dominação
do acaso, ao estabelecer que a variação das características transmitidas geneticamente
obedecia à lei de desvios da curva de Gauss, o que permitiu não somente explicar os fenômenos
mas também predizer o futuro para controlá-lo.

A possibilidade de reconhecimento da diversidade e complexidade dos acontecimentos ligados


ao homem e ao mundo foi abandonada, com a domesticação do acaso. Ao expor a
indeterminação dos acontecimentos, o acaso apresentou-se como obstáculo ao cálculo de
probabilidades. Foi preciso submetê-lo às leis, para dominá-lo, o que permitiu a abertura da
possibilidade de predizer o futuro pela via do cálculo. A partir dessas ideias, o controle pôde
passar a ser exercido à distância, pois a leitura dos desvios da média favorece uma antecipação
aos riscos e dispensa a vigilância imediata do olhar que caracterizava o controle exercido na
época do regime disciplinar.

O interesse em controlar os homens responde a um programa que visa torná-los coisa


governável. O conceito de normal insere-se nesse programa, pois favorece uma busca
incessante de homogeneização, visando alcançar uma igualdade substancial entre os homens,
para que se tornem comparáveis e mensuráveis. Mas, existe um real que não se deixa
apreender pelos procedimentos de objetivação e mensuração. Os casos mostram que os seres
falantes são, nesse sentido, incomensuráveis e incomparáveis.

A leitura dos laudos de avaliação de cessação de periculosidade dos loucos infratores permitiu,
também, verificar que o tratamento, de acordo com a concepção dos peritos forenses, coincide
com um mecanismo de controle, ideia que já se encontrava presente na época do regime
disciplinar. Os laudos reafirmam a existência do perigo e do risco associado à presença de
sintomas psicóticos produtivos, ao uso de drogas e à psicopatia, bem como a necessidade de
seu controle. No caso do Instituto Raul Soares, os laudos reproduzem a ideia de uma gradação
do perigo, segundo as diferentes classes diagnósticas, e as classes que apontariam um perigo
mais elevado podem requerer a aplicação de escalas de avaliação de riscos.

As avaliações do manicômio judiciário, por sua vez, retratam uma resposta inteiramente
burocrática às exigências da legislação penal, e podem chegar a prescindir das falas dos
avaliados. O tratamento manicomial, de acordo com o olhar dos peritos, dispensa a dimensão
terapêutica e visa, sobretudo, a adaptação às normas, demonstrando o estabelecimento de uma
parceria com a vertente burocrática do discurso jurídico.

A leitura das avaliações periciais realizadas ao longo desta pesquisa permitiu verificar que o
saber veiculado por essa prática requer que os avaliados se reconheçam nos transtornos
diagnosticados pelos peritos e consintam com o tratamento indicado para cada transtorno. Essas
exigências podem mostrar-se, na realidade, inaplicáveis, na medida em que não é considerado o
aspecto real do sofrimento apresentado pelo sujeito, assim como as invenções singulares que
cada um pode constituir como defesa ao real.
A aplicação de escalas de avaliação de risco mostra como os enunciados podem ser
determinantes na conduta dos peritos que, ao ser orientada pela estatística e pelos desvios do
normal, assume um formato protocolar. Torna-se, assim, possível identificar um descrédito à
palavra, enquanto portadora da enunciação do sujeito, que acompanha a retirada da
responsabilidade dos psicóticos infratores, os quais são tomados como objetos a serem
controlados, pois os mecanismos de controle são dispositivos silenciadores que calam o sujeito e
não abrem lugar às suas respostas. A medicação torna-se, nesse sentido, um recurso de
controle que deve ser utilizado compulsoriamente, tendo em vista o diagnóstico, sobretudo nos
quadros considerados psicóticos.

O discurso do controle se sustenta em uma promessa de garantia, buscando prever os


acontecimentos possíveis no futuro com o objetivo de controlar as contingências, na tentativa de
fazer existir um Outro completo, Outro da garantia, em resposta à sociedade que reclama o ideal
do “risco zero”. O manicômio judiciário insere-se nesse contexto, como um dispositivo de
governo que opera como mecanismo de precaução para responder à exigência de garantia do
controle da periculosidade.

Do mesmo modo, os medicamentos são recomendados pelo mestre contemporâneo como


recurso de gestão do sofrimento mental. Os medicamentos alcançam o status de recurso que é
suposto garantir o controle da periculosidade. Eles tendem a não se dirigir mais aos sintomas,
mas apenas aos índices apontados pela estatística como desvios da norma, visando anular as
consequências de maus encontros e possibilidades futuras, incluindo as respostas de cada
sujeito.

De modo geral, o que podemos encontrar nos laudos periciais dos loucos infratores são
informações padronizadas que retratam uma coisificação do sujeito, silenciado pelos
procedimentos protocolares que dispensam suas invenções singulares. Lacan mostrou, nesse
sentido, que ao abordar o louco pela via de um discurso comandado por significantes e devido à
sua entrada na medicina geral submetida aos medicamentos, a psiquiatria abandonou a via
aberta pela relação do sujeito ao objeto voz e à função da fala. Se por um lado, isso permite aos
psiquiatras evitarem a angústia, por outro, chega-se a um impasse fundamental, pois a
burocracia dos protocolos e das avaliações deixa que o sofrimento mental singular a cada sujeito
reste sem tratamento.
Os casos apresentados na pesquisa mostram, em última instância, que cada sujeito resiste, ao
seu modo, à apreensão pelo discurso universal. Suas soluções singulares mostram o caminho
encontrado por cada um para tratar o insuportável. Sem a oferta da palavra e sem levar em
conta as possibilidades e limites de cada um, não é possível alcançar um tratamento que inclua
o real.

As contribuições de Lacan para as questões abertas pelo discurso da avaliação e pela clínica do
louco infrator foram percorridas, sobretudo a partir de suas formalizações sobre a abordagem do
louco pelo discurso psiquiátrico e as transformações da teoria ocorridas em torno das noções de
déficit e normalidade. Com a formalização da clínica empreendida por esse autor, tornou-se
possível vislumbrar, sobretudo a partir da noção de discurso, como o modo de conceber, de
pensar e de falar sobre o homem interfere em seu modo de ser e se apresentar no mundo, pois
o significante tem a potência de criação e pode fazer existir novas realidades. Os muros do
manicômio podem operar como contenção por serem discurso. Da mesma forma, os
medicamentos são discurso e faz-se necessário considerá-lo no âmbito do tratamento.

Lacan mostrou que a linguagem é um ordenamento normativo que transforma alíngua em saber.
A norma apareceu primeiro no âmbito da linguagem e orienta a busca de uma correspondência
biunívoca entre as palavras e as coisas. Mas cada ser falante utiliza uma língua própria que se
constitui a partir de aluviões dos mal-entendidos e criações que se acumulam ao longo do
tempo. Os elementos relacionados ao modo próprio a cada sujeito de lidar com a língua comum,
chamado por Lacan de alíngua, permitem recuperar sua orientação singular no real e oferecer
um tratamento ao insuportável. Alíngua incide sobre o corpo pela via do encontro contingente,
inesperado, sem correspondência a qualquer saber prévio. Esse encontro traumático designa um
ponto em que o saber falta e requer sempre uma invenção. Todo ser falante responde ao real
pela via de uma invenção.

Desse modo, as formalizações de Lacan permitem vislumbrar que um tratamento não


corresponde a um mecanismo de controle. Um tratamento parte do laço constituído com o sujeito
e procura dar lugar à sua invenção singular para lidar com o real, invenção essa que não se
confunde com nenhuma norma. A responsabilidade pode, então, ser pensada como a
possibilidade que todo ser falante apresenta de responder ao real pela via de uma invenção. A
psicanálise mostra que a responsabilidade é sempre subjetiva e corresponde ao único modo
pelo qual é possível imputar a cada sujeito o seu real. É o que o filósofo Louis Althusser nos
ensina após ter matado sua esposa Hélène, ao indicar que somente ele próprio poderia
responder por seus atos. Isso favorece que se abra, para cada um, a possibilidade de fazer uso
de sua própria invenção para lidar com insuportável.

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