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A seletividade penal e a utilização do paradigma etiológico da Criminologia Positivista

nos casos de condenação por crime de tráfico de drogas no Rio de Janeiro

Bruno de Paula Simões


Centro Universitário de Brasília - UniCEUB

Resumo
A proposta de trabalho visa a demonstrar como a utilização do arcaico arcabouço
teórico da Criminologia Positivista, desenvolvida em fins do século XIX, propicia um
racismo institucional nos atos de controle penal estatal hodierno.
Partindo de uma análise epistemológica crítica, objetiva-se demonstrar como o
Estado brasileiro ainda vincula-se, em teoria e prática, ao paradigma etiológico proposto
pela Escola Positivista italiana, para a qual a causa do crime encontra-se na natureza do
acusado, notadamente quando pertencente à categoria racial distinta da branca europeia ou
à categoria social vulnerável, definida pelo grau de pobreza. Nestes termos, intenta-se
averiguar a influência no sistema punitivo brasileiro atual de tais conclusões para a
definição de periculosidade e culpabilidade de um agente criminal.
Foca-se na análise da criminalização de acusados por tráfico de drogas, possível
graças à promulgação da Lei nº 11.343, de 2006 (Lei de Drogas), que despenalizou a
conduta do usuário, recrudesceu a pena para o traficante e deixou a critério do magistrado a
distinção entre usuário e traficante, pautando-se, geralmente, numa análise subjetiva acerca
do peso condenatório que possuem a quantidade de substância apreendida, o local do
cometimento do crime e as circunstâncias sociais e pessoais do acusado.
O trabalho analisa 90 ações constitucionais de habeas corpus impetradas no
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, entre janeiro e março de 2019, que
tiveram a ordem de concessão de liberdade a acusados por tráfico de drogas denegada, sob
argumentos pautados na ideologia da criminologia etiológica, retomando-se a categoria de
defesa social e do alegado perigo em abstrato na soltura dos pacientes, mesmo diante de
irrisórias quantidades de drogas apreendidas, baixos ou inexistentes riscos à ordem pública
ou à ordem judicial.
O método utilizado para o desenvolvimento do trabalho é o de Análise do Discurso
das decisões judiciais, conforme descrito por Dominique Maingueneau1, segundo o qual

1
MAINGUENEAU, Dominique. A análise do discurso e suas fronteiras. Matraga, Rio de Janeiro, v. 14, n.
20, p.13-37, jan/jun. 2007.
são cruzadas as ciências de linguagem e as humanas e sociais para revelar a
intencionalidade da mensagem difundida. Em outras palavras, analisamos o teor de cada
julgado para fins de enaltecer a influência do paradigma etiológico na manutenção da
prisão de acusados por tráfico de drogas, fortalecendo-se o racismo institucional por meio
da seletividade penal.
Como resultado esperado, pretende-se demonstrar a ocorrência de uma seletividade
penal marcada pelo racismo institucional e pela criminalização da pobreza.

A Escola Italiana da Criminologia Positivista

A Escola Positivista surge em meados do século XIX, com a consolidação do poder


da nova classe dominante, a burguesia, e em um contexto onde a Ciência era a rainha da
razão, de modo que é possível observarmos um esforço para deslocar a fundamentação
dogmática do Direito Penal para uma sustentação científica, lastreada em experimentos,
nas fórmulas matemática, nas leis da física.
Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garófalo são os expoentes e fundadores
desta Escola e foram responsáveis pela aproximação do Direito Penal às teorias que na
época possuíam o status de ciência. Eles modificam o paradigma da origem do crime como
sendo fruto de uma escolha individual, utilização do livre-arbítrio, e passam a fundamentar
a origem do crime como sendo um fator genético, social e determinado, impossível de ser
corrigido.
Porem nem sempre o que a Escola Positivista avocava como ciência era realmente
ciência, apenas possuíam uma roupagem, uma carapaça cientifica. Estavam elencadas
nestas características a biologia, a frenologia e a antropologia criminal. Lola afirma que o
êxito que estas pseudociências obtiveram na criminologia é demonstrado por meio da
construção das referências em quase todos os manuais descritivos2.
Devido a etimologia presente na Escola Positivista, Lola classifica a criminologia
positivista como uma ciência oculta ao iguala-la a alquimia, a quiromancia, a astrologia, a
cabala, a antropologia finissecular pois todas estas se vinculam na observação da aparência
como meio de conhecimento da essência, fundamento derivado da doutrina aristotélica.
Partindo desta procura no exterior para justificação de uma determinada essência,
Lombroso com o seu O homem deliquente3 inaugura a teoria do delinquente nato, aquele em

2
LOLA, Aniyar de Castro. Criminologia da Libertação. Revan, Rio de Janeiro, p.45 2007.
3
LOMBROSO, César. O homem delinqüente. Porto Alegre: Rivardo Lens, 2001.
que a propensão à delinquência, existiria de forma natural e estaria vinculada às
características físicas e biologias do indivíduo.

Lombroso se utiliza da teoria da evolução das espécies, desenvolvida por Darwin,


para traçar a característica fundamental do delinquente nato, que se encerraria em seu
comportamento atávico. Segundo Darwin, o sujeito atávico é aquele menos desenvolvido
na escala evolutiva, sendo ele ainda submetido ao estado selvagem. Assim, Lombroso
passa a ater sua atenção na determinação do criminoso nato, e elege como uma das
características para esta investigação como por exemplo, a tatuagem, pois seria um
indicativo de sua insensibilidade e selvageria, fatores intrínsecos ao atavismo. Era
importante também considerar o desenho, a região do corpo, o número de tatuagens já que
poderiam revelar muito de sua vida e personalidade, auxiliando a definição do seu
potencial delitivo.
Lombroso se debruça sobre a frenologia e se utiliza desta pseudociência para
desenvolver suas pesquisas que relacionavam as formas dos crâneos e a fisionomia dos
indivíduos delinquentes ao tipo de crime aos quais eram mais propensos a cometerem.
Estas pesquisas eram realizadas apenas com indivíduos já privados de sua liberdade, neste
ponto as conclusões só poderiam ser extremamente falhas, uma vez que as fisionomias e os
formatos dos crâneos dos indivíduos que gozavam de liberdade não eram estudados.
Enrico Ferri por sua vez, teve sua atuação mais voltada para a identificação da
origem do crime a partir da análise dos meios sociais aos quais os delinquentes estavam
sujeitos a crescerem e por lá permanecerem bem como analisou os fatores psíquicos que os
levaram a delinquir, adotando o método indutivo contrapondo-se assim ao método indutivo
utilizado pela Escola Clássica. Desta forma ele aproxima a Criminologia da Sociologia e
da Psiquiatria, juntando-se à etiologia criminológica os fatores sociais e psíquicos na busca
pela identificação da origem do crime a da sua devida prevenção.
Para Ferri 4 , o delinquente nato possuía uma limitação em seu desenvolvimento
moral, dententor de um instinto que o impeliria ao cometimento de crimes a ponto de não
ser capaz de impor resistência a este impulso. Este tipo de delinquente seria aquele que
apresentaria o maior risco à sociedade pois seria resultado de sua anormalidade física e
psicologia acrescido dos incentivos recebidos do meio social que o cerca.
Desta equação não poderia advir outra conclusão se não a de que o delinquente nato é
regido pela sua condição e que esta já se encontra determinada de forma psíquica e biológica,
não restando à sociedade outra forma enfrentamento destes tipos se não o daprevenção. Uma
4
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Trad. Luiz de Lemos D’Oliveira. São
Paulo: Saraiva, 1931.
vez traçado o perfil físico, psicológico e social do delinquente criou-se a possibilidade de uma defesa
social preventiva que antecedesse a ação criminosa, tendo como foco avaliativo a periculosidade
social do agente.5

“Para a defesa preventiva distinguem-se os cidadãos em perigosos e não perigosos: para a defesa
repressiva todos os delinquentes são perigosos, se bem que em grau diverso.”

Ferri, bem como a escola criminológica positivista, entendiam que as penas de


duração indeterminada seriam o melhor meio para que a justiça penal alcançasse sua
eficácia. Entendendo o delinquente como um agente dotado de anormalidade psíquica, não
haveria sentido a adoção de um limite prévio para a pena, uma vez que seria impossível
determinar o momento em que haveria a readaptação e se, principalmente, este momento
surgiria para o condenado.
Por óbvio estava a se defender o sequestro perpétuo dos que fossem classificados
como delinquentes e por consequência condenados, afinal o tratamento da pena se
estenderia até o momento em que ase alcançasse a reabilitação ou “cura” do agente. Vale
relembrar aqui que junto das características biopsicossociais estava a ideia de
determinismo evolutivo, paradigma que possibilitaria a eliminação física ou o
recolhimento eterno do delinquente.
A ideia de uma relação medico-jurídica é criada ao identificar o delito não como
um ente jurídico, conforme os clássicos entendiam, mas sim como uma anomalia
biológica, psíquica e do ambiente social, ou seja, o crime como uma doença inerente e
determinante do agente. Assim, forma-se um ambiente propício para se trabalhar no
Direito Penal com a ideia de doença/tratamento/cura, própria das ciências biológicas. Em
sua obra, Princípios de direito criminal, Ferri trabalha com esta ideia, ao comparar o
trabalho de um juiz ao de um médico, ao comparar a penitenciária a um hospital6.
“Quando o juiz, presentemente – através dos cálculos das frações aritméticas para mais ou
para menos – condena um criminoso, por exemplo, a 9 anos, 7 meses e 20 dias de prisão, o
absurdo do sistema é evidente, como se à porta do hospital o médico prefixasse os meses ou os
dias de permanência do doente, que tem de ficar aí até o fim do prazo, mesmo se for curado antes,
ou que tem de sair do hospital no termo designado, mesmo se ainda não estiver reestabelecido.”
Rafaelle Garófalo em sua obra Criminologia7, de 1855, foi responsável pela utilização da
palavra Criminologia como definidora deste ramo dos estudos do Direito Penal. Assim como

5
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 285.
6
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 321.
7
FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal- Parte Geral. Forense, Rio de Janeiro, v. 1, p. 46, 1985.
Lombroso e Ferri, também foi influenciado pelas teorias do evolucionismo e do determinismo
elaboradas por Darwin e Spencer respectivamente.
Sua contribuição para a Criminologia ocorreu no estabelecimento da definição do
delito natural, no entendimento de que a pena teria como sua finalidade a prevenção
especial, na punição como agente promotor da Ideologia da Defesa Social.
Entendia que o crime era uma característica ontológica do homem e que de
acordo com a influência exercida pelo meio ambiente ao qual pertencia na degeneração
de seus valores, potencializaria sua índole delinquente e se tornaria uma ameaça mais
perigosa ao convívio em sociedade.
Sendo o crime uma deformação moral natural e incrustada no delinquente desde o
seu nascimento, Garófalo expõe assim a sua visão determinista e indica a adoção do
darwinismo social em sua teoria, uma vez que esta deformação seria passada de forma
hereditária e então a identificação do criminoso se faria de maneira simples, já que esta
anomalia hereditária se apresentaria em formas atávicas e deformadas, possibilitando ate
uma associação da forma atávica apresentada pelo agente com o possível crime a ser
cometido.
Desta forma, com os possíveis inimigos da sociedade física e psicologicamente
marcados, fica claro então contra quem a ação preventiva e o reforço da Ideologia da
Defesa Social seriam adotados. Garófalo aponta dois modos de prevenção do crime, a
uma a pena de morte e a duas a prevenção especial que acreditava na maldade da espécie
humana como sentido essencial de seu propósito de ser.
Ao classificar os criminosos e seus crimes, indicou a pena de morte deveria ser a
única punição possível para os que seriam os classificados como delinquentes natos. E os
inimputáveis, mas com caraterísticas atávicas latentes como os deficientes mentais ou
psiquiátricos, considerava a adoção da medida de segurança por tempo indeterminado.
Como podemos observar, estes três teóricos e suas formulações carecem
profundamente de cientificidade, mas transbordaram em possibilidades para o
desenvolvimento de engenharias de controle social punitivas e eugenistas que viabilizaram e
ainda viabilizam a exclusão e a eliminação de pessoas que não necessariamente cometeram um
ato criminoso, porém se adequam ao tipo físico, crescem em áreas de alto índice de miserabilidade
e/ou pobreza.
É nesta etapa evolutiva do pensamento criminológico que se delineia uma secção
fulcral da sociedade: a existência de classes delinquentes e classes não delinquentes. É
possível dizer que este é o momento da gênese da criminalização da pobreza, desta forma
há a aglutinação do consenso sobre quem é o inimigo a ser combatido, obtido com a
legitimação do discurso pseudocientífico8.
Esta visão positivista sobre a origem do crime e as supostas formas de prevenir e
eliminar o crime o e criminoso do convívio social, tem pavimentado ainda no século XXI
as diretrizes de códigos penais e constituições: quais seriam da marcação dos inimigos da
organização e da ordem social, e a sua devida exclusão.

A Teoria da Análise do Discurso em Dominique Maingueneau

Segundo Maingueneau discurso é “uma dispersão de textos cujo modo de inscrição


histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas”. Para o autor, um
discurso incidiria sobre outros discursos e não sobre uma realidade posta de tal modo que o
enunciado de um discurso se constitui na relação com outro discurso. O sujeito é um
espaço separado por diversos discursos e a língua um processo semântico e histórico.
Mesmo não havendo um conceito único sobre o termo discurso, com exceção do
conceito defendido pelo prisma estruturalista podemos encontrar um ponto de consenso
entre todas os que analisam o discurso, qual seja, a análise não focada no funcionamento
linguístico, mas na relação que o sujeito e esse funcionamento estabelecem nos dois
sentidos. Assim, o objeto de estudo da análise do discurso não se fixa apenas na
linguagem, mas o que existe nos espaços em que permeia entre elas as principais seriam: as
relações de poder e os processos de inconsciência ideológica.

A Análise do Discurso utilizado na Identificação do Discurso Criminológico


Positivista na Denegação de Habeas Corpus Envolvendo o Crime de Tráfico de
Drogas e Associação Para o Tráfico no Estado do Rio de Janeiro

A opção feita por analisar as ordens denegadas de Habeas Corpus se deu


justamente por tratar-se do remédio constitucional utilizado exclusivamente para tutelar o
direito à liberdade quando alguém estiver sofrendo violência ou sendo coagido de forma
ilegal por autoridade estatal ou se achar na iminência de sofrer tais ameaças ao seu direito
de liberdade, que tenta garantir ao cidadão que o Estado não aja de forma arbitrária, ilegal
ou que exerça abusivamente o poder centralizado que detém, principalmente o do
monopólio da violência.
A via constitucional do Habeas Corpus possui extrema relevância nos mais
diversos ordenamentos jurídicos do mundo por tutelar o direito fundamental de ir e vir e
8
LOLA, Aniyar de Castro. Criminologia da Libertação. Revan, Rio de Janeiro, p.47, 2007.
por ser este bem jurídico fundamental para o exercício de outros direitos fundamentais ou
não porém essenciais para o exercício de uma cidadania digna. Assim esta talvez seja uma
das melhores vias para se analisar os motivos implícitos e explícitos que levam o Estado a
manter um cidadão sob a sua custodia, a forma como estes motivos são articulados entre
eles, as mensagens que são passadas tanto internamente para os demais componentes do
corpo jurídico estatal bem como para os demais jurisdicionados .
O campo de pesquisa escolhido foi o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, em função deste estado ao longo dos anos ter colecionado situações em que houve
a relativização dos direitos e garantias individuais, por parte dos agentes do estado, em
nome do combate a violência, da guerra às drogas, da defesa da paz social e da segurança
do cidadão de bem.
Soma-se o fato do Estado do Rio de Janeiro possuir o recorde de implementações
de operações da garantia da lei e da ordem (GLO) - que foram instauradas por diversas
vezes desde 1988, nesta primeira demanda ocorrida no País já sob a hedge da Constituição
Cidadã, o Exército, autorizado pela GLO, invadiu a Companhia Siderúrgica Nacional para
reprimir a greve dos trabalhadores da, na época, empresa estatal. A última ocorrência deste
tipo de operação no estado do Rio de Janeiro se confundiu com o período em que o estado
se encontrava sob intervenção federal na área de segurança publica, que teve duração de
fevereiro de 2018 a dezembro de 2018.
O acesso aos julgados dos habeas corpus, foi realizado por meio de pesquisa junto
ao site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Os filtros utilizados foram:
período de janeiro de 2019 até março de 2019; Origem Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro 2ª Instância; Competência Criminal; Ramo do Direito Penal; Pesquisa Livre
“habeas e corpus e tráfico e concedida” e “habeas e corpus e tráfico e denegada”. Os
resultados obtidos foram de 280 ordens denegadas e 53 ordens concedidas. Deste resultado
obtido foram selecionados, de maneira aleatória, para cada mês da pesquisa 30 julgados,
totalizando 90 julgados analisados.
Foi possível verificar um padrão de decisão dos Desembargadores favorável quanto
à questão da antecipação da custodia do acusado do crime de trafico ou de associação para
o tráfico, ou seja, a adoção da prisão preventiva prevista nos artigos 311,312 e 313 do
Código de Processo Penal. Desta forma, através dos discursos contidos em suas sentenças,
os Desembargadores, indicam a urgência e indispensabilidade da medida cautelar privativa
de liberdade, desconsiderando o principio constitucional da presunção de inocência, ainda
regente em nosso ordenamento jurídico, para adotar o principio da periculosidade.
Tal constatação não toma características, uma vez que, os últimos números
apresentados pelo CNJ, através do Banco de Monitoramento de Prisões 9 em Agosto de
2018, indicava que dos cerca de 77.577 mil presos no Estado do Rio de Janeiro, 58,07%
(45.048 mil) são presos sem condenação, são presos preventivos. Neste sentido Zaffaroni10
afirma que na América Latina o poder punitivo é exercido por medidas de contenção
àqueles rotulados como perigosos, o que permite classificar o poder punitivo como
decorrente da pratica de um direito penal de periculosidade presumida.
Talvez o crime de tráfico de drogas sejam os tipos penais pelos quais melhor
podemos analisar a concretização de um discurso constituinte, pois a partir da promulgação
da Lei nº 11.343, de 2006 (Lei de Drogas), houve a que despenalização da conduta do
usuário, recrudesceu a pena para o traficante e deixou a critério do magistrado a distinção
entre usuário e traficante, pautando-se, geralmente, numa análise subjetiva acerca do peso
condenatório que possuem a quantidade de substância apreendida, o local do cometimento
do crime e as circunstâncias sociais e pessoais do acusado. A soma destas distinções,
usuário e traficante constituiu ao longo do tempo a ideia de quem seria o inimigo a ser
enfrentado pela sociedade e legitimando as ações de defesa social do Estado contra o mal
comum que deveria ser recolhido ou eliminado do meio social.
Assim, são recorrentes as prisões em flagrante e tipificadas como incorrentes no
crime de tráfico, de agentes portando quantidades que variam de 19g a 100g de qualquer
substancia entorpecente, sejam porções de uma única substancia ou pela soma de porções de
substancias distintas, Em seguida estas prisões em flagrante são convertidas em prisões preventivas, e
em sua maioria evocando a garantia da ordem pública e indicando a finalidade de evitar que haja
reiteração delitiva do agente. As prisões em flagrante, nos casos analisados ocorreram em áreas
favelizadas, ou então nas regiões de subúrbio tanto na capital fluminense quanto no interior.
De uma maneira geral, os Desembargadores, ao menos nos casos analisados,
afastam a aplicação das medidas cautelares não privativas de liberdade, definidas no artigo
319 do Código de Processo Penal, mesmo quando as condições favoráveis ao agente como
por exemplo primariedade, trabalho fixo, residência na mesma comarca estão presentes.
São alegadas na maioria das vezes o ambiente no qual o agente vive, e que por isso
facilitaria a uma possível reiteração delitiva, a ausência de trabalho formal,
desconsiderando como emprego fixo as ocupações licitas não registadas na CTPS.

9
BRASIL. Conselho Nacional de Justica. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões. Brasília: Ministério
da Justiça e Segurança Pública, 2018. Disponível:
https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf. Acesso
17.ago.2019.
10
ZAFFARONI, E. Raúl. Inimigo no Direito Penal, O. p.71, 2011
Desta maneira o recolhimento do agente às instituições penitenciarias, que deveria
ocorrer conforme comando constitucional, apenas após sentença transitada em julgado, ou
ser utilizada de maneira realmente excepcional vem tornando-se a regra do sistema
judiciário brasileiro. Recolhe-se ao sistema penitenciário e posteriormente apura-se a
culpa.
Em nome do combate de um mal maior, a guerra às drogas, criam-se interpretações
dos comandos legais de acordo com a ocasião e o agente envolvido, relativizam-se os
direitos e garantias fundamentais daqueles identificados como inimigos e responsáveis,
segundo esta visão, pela deteriorização moral e ética da sociedade. Desta forma, através de
um discurso oficial, vai sendo constituído e difundindo, entre aqueles diretamente ligados
ao Poder Judiciário e também entre os entes sociais, a ideia de que existem situações e
pessoas para as quais seria possível a mitigação de garantias ou até mesmo a aplicação de
um direito penal exclusivo para este inimigo social.
Vale ressaltar que o recolhimento preventivo está devidamente previsto no artigo
312 do Código de Processo Penal, assim como no artigo 313 e seus incisos do mesmo
diploma legal está descrito as condições em que este tipo de prisão pode ser decretada.
Cabe observar que este instituto permite à autoridade judicial a possibilidade da decretação
da prisão preventiva e não a vincula como uma norma cogente.

Conclusão

Analisando os argumentos utilizados pelos Desembargadores fluminenses para


denegar as ordens de soltura pleiteadas nos habeas corpus analisados, não há como não
sermos remetidos ao paradigma da Escola Criminologia Positivista, principalmente da
Escola Italiana, representada por seus principais teóricos Cesare Lombroso, Henrico Ferri e
Reafaelle Garófalo.
Por si só, o instituto da prisão preventiva autorizada para a garantia da ordem
publica, já indica essa influencia positivista em nosso ordenamento jurídico, ao assumir a
possibilidade de uma medida que visa a prevenção da reiteração delitiva de um agente.
Fica clara a visão determinista do legislador e reforçada pela aplicação no caso em
concreto pelo Poder Judiciário.
Como este instituto não prevê um tempo máximo que um suspeito pode ficar sob
custodia provisória do Estado, o instrumento vem sendo utilizado de maneira deformada, o
que nos remete ao entendimento de Ferri quanto às medidas de defesa social, que deveriam
ser aplicadas sem um prazo máximo definido anteriormente a aplicação e que teriam a
duração do tempo necessário para a recuperação de cada individuo.
Assim nos informa Zaffaroni que já no ano de 1983, 3/4 dos presos da América
Latina estava submetida a medidas de contenção enquanto ainda estavam sendo
processados, ainda eram suspeitos de cometimento de algum crime. Prossegue dizendo que
deste numero de presos temporários, 1/3 será absolvido, 1/4 será condenado formalmente
sendo obrigados a cumprir o restante da pena, da metade do total de casos verifica-se que a
pena a ser cumprida já foi executada durante o tempo da prisão preventiva e o restante dos
1/4 dos casos não se pode verificar a infração e então o agente é liberado sem a imposição
de pena formal11.
No Brasil, o recolhimento de pessoas de forma preventiva, segundo dados do CNJ,
através do Banco de Monitoramento de Prisões12 em Agosto de 2018, indicava que dos cerca
de 812.564 mil presos, 41,50% (337.126 mil) são presos sem condencacao. Já no Estado do
Rio de Janeiro dos cerca de 77.577 mil presos, 58,07% (45.048 mil) são presos sem
condenação, são presos preventivos.
Soma-se a permissão legal, a ideia positivista nociva ao sistema jurídico, de que existem
pessoas que devam ter tratamento diferenciado pelo sistema penal, terem seus direito e garantias
fundamentais relativizados por serem classificados como criminosos e representarem uma ameaça a
coesão social.
É inegável e preocupante que ainda nos dias atuais, pós Constituição de 1988,
estejamos presenciando a aplicação pelos Tribunais do já ultrapassado paradigma
etimológico da Criminologia Positivista do século XIX, e que existe um esforço dos
agentes estatais para velar esta aplicação criando contornos de justiça, equidade e isenção
na aplicação da lei penal.

REFERÊNCIAS :

ZAFFARONI,E. Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro. Revan, 2011.


LOLA, Aniyar de Castro, Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro. Revan, 2005.
LOMBROSO, César. O Homem Delinqüente. Porto Alegre: Rivardo Lens, 2001.
FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal- Parte Geral. Forense, Rio de Janeiro, 1985.
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Trad. Luiz de Lemos

11
ZAFFARONI, E. Raúl. Inimigo no Direito Penal, O. p.71, 2011.
12
BRASIL. Conselho Nacional de Justica. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões. Brasília: Ministério
da Justiça e Segurança Pública, 2018. Disponível:
https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf. Acesso
17.ago.2019.
D’Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1931.
MAINGUENEAU, Dominique. A análise do discurso e suas fronteiras. Matraga, Rio de Janeiro, v.
14, n. 20, , jan/jun. 2007.
BRASIL. Conselho Nacional de Justica. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2018. Disponível:
https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3e
f4.pdf. Acesso 17.ago.2019
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponivel:
http://www4.tjrj.jus.br/EJURIS/ConsultarJurisprudencia.aspx?Version=1.1.4.1 Acesso 01.
ago. 2019

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