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02/04/2024, 23:14 Felipão viaja por julgamento e é 'desfalque' em treino | GZH | Leia Isso

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Felipão viaja por julgamento


e é 'desfalque' em treino |
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02 ABRIL 2024 | 7min de leitura

A matéria de capa da segunda edição impressa do Planeta Ciência


contou com a contribuição do professor da Faculdade de Direito da
UFRGS, criminologista e desembargador aposentado Odone Sanguiné.
Na sequência, você confere a entrevista na íntegra.

Planeta Ciência: Pesquisadores americanos recentemente


relacionaram a atividade neural em uma região do cérebro a riscos de
um ex-detento voltar a ser preso. Para eles, esse dado pode servir de
auxílio a um juiz na hora de determinar se um indivíduo deve ser
libertado ou seguir preso. O que o senhor pensa sobre o uso da
neurociência pela Justiça?

Odone Sanguiné - As denominadas "neurociências" estudam a


correlação entre a decisão (liberdade de escolha) humana e os processos
cerebrais que a acompanham, campo até então pertencente à psicologia.

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As investigações da neurobiologia avançaram nos últimos anos graças


aos novos métodos de experimentação e neuroimagem num esforço para
demonstrar que durante um ato "voluntário" o cérebro se ativa antes
que o sujeito tenha a impressão subjetiva da "vontade". Esta ativação
cerebral é inconsciente e começa seis ou 10 segundos antes que o sujeito
tenha consciência de seu movimento. Portanto, no momento em que se
experimenta conscientemente algo, o cérebro já realizou o seu trabalho.

Todavia, outros neurocientistas, biólogos, psiquiatras e psicólogos


mostram seu ceticismo ou rejeição às conclusões das neurociências
contra o livre-arbítrio. Assinalam que até o momento é pouco o que se
pode observar diretamente no cérebro, e somente determinados campos
podem ser estudados com maior profundidade, não havendo conclusões
seguras, mas somente interpretações. As experiências somente
abrangem um escasso âmbito de decisões que não é representativo para
muitas das decisões relevantes para o Direito Penal. Todas as
experiências se referem a acontecimentos breves, decisões que se
adotam em um curto espaço de tempo sem grande reflexão e não de
decisões que ocorrem depois da ponderação de pontos de vistas e
argumentos opostos.

O ataque ao livre-arbítrio e o acolhimento do caráter determinado do


comportamento humano gerou inquietude entre os penalistas ante a
possibilidade de demolição da concepção tradicional da culpabilidade
baseada no livre-arbítrio. Entretanto, um eventual futuro modelo
baseado no determinismo da conduta humana não invalidaria o Direito
Penal entendido como um sistema sancionador do crime, mas
unicamente o direcionaria a um sistema de prevenção especial no qual o
autor considerado perigoso em determinadas situações como
consequência de seu sistema límbico (que regula o comportamento e
conduta social) poderia ser "condicionado". Um melhor conhecimento
do funcionamento do cérebro levaria a uma revisão de determinados
grupos de delinquentes violentos impulsivos reincidentes e do
tratamento dos psicopatas (sociopatas).
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De qualquer modo, o diálogo com os conhecimentos das neurociências


está provocando uma revisão das categorias dogmáticas do Direito
Penal, bem como uma rediscussão sobre a legitimação das penas e
medidas de segurança. Essa interação interdisciplinar é produtiva,
cabendo destacar que inclusive alguns neurocientistas alemães
mitigaram em muitos casos suas posições iniciais, formulando hipóteses
em colaboração com penalistas e filósofos. Nos casos em que as
modernas técnicas de neuroimagem venham porventura a demonstrar o
equívoco da imposição de penas em casos em que o crime decorreu de
déficits cerebrais, como seria a hipótese de indivíduos psicopatas, é
provável que isso produza a uma ampliação dos casos de
inimputabilidade ou semi-imputabilidade, portanto, a favor do autor e
sem violação do princípio da dignidade humana.

Por outro lado, embora a técnica de imagens cerebrais sirva para


detectar alterações no fluxo de sangue no cérebro e correlacioná-las com
a atividade cerebral, sua utilização como prova nos julgamentos vem
gerando um intenso debate entre neurocientistas e advogados. Um
neurologista norte-americano, que usa imagens do cérebro para estudar
a depressão, considera que tal uso constitui uma perigosa distorção da
ciência que provoca perigosos precedentes. Ademais, estes estudos são
em pequeno número, não repetidos e somente comparam diferenças na
média cerebral de grupos, em vez de indivíduos, tornando difícil
interpretá-los e aplicá-los a casos individuais.

Em um caso recente nos Estados Unidos, um juiz rejeitou fosse mostrado


aos Jurados uma tomografia cerebral de um homicida reincidente, que a
acusação pretendia aplicar a pena de morte, porque dificilmente poderia
indicar o estado mental do sujeito à época do crime. Cabe também
considerar que a capacidade preditiva do "método clínico" de valoração
da periculosidade criminal é bastante débil (mesmo com técnicas
avançadas de imagens do cérebro) e produz muitos erros denominados
falsos positivos (muitos sujeitos identificados como perigosos não
voltam a reincidir) e também falsos negativos (o indivíduo não preenche
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os critérios indicadores da periculosidade, porém reitera sua conduta


criminosa).

Também o "método atuarial" (estatístico) de predição do risco apresenta


aspectos frágeis, pois não faz um prognóstico sobre a probabilidade de
reincidência de um autor concreto, mas indica somente que este, com
base nos fatores negativos constatados, pertence a um grupo que
reincide em um determinado percentual. Os próprios professores Kent e
Aharoni são cautelosos ao afirmar que o grau de confiabilidade dessas
predições precisa ser cuidadosamente examinado antes que possa ser
aplicado a transgressores individuais no mundo real, pois a pesquisa
nunca foi realizada com pessoas ainda não identificadas ou selecionadas
pelo sistema penal como criminosos.

Planeta Ciência: Na doutrina criminológica, existe algum consenso no


tratamento dessas questões? O senhor considera que alguém pode ser
naturalmente impelido ao comportamento criminoso ou o crime é,
antes de tudo, uma doença social?

Odone Sanguiné - Alguns criminólogos norte-americanos consideram


que os recentes estudos sobre a correlação entre cérebro e crime
mediante tomografia computadorizada e imagens de ressonância
magnética ainda não são convincentes com seu propósito de demonstrar
que o dano cerebral cause uma conduta criminosa. Há quem, inclusive,
caracterize esse trabalho como uma espécie de "frenologia digital".
Ademais, a resposta não pode ser reduzida a um binômio: perspectiva
individual ou social.

Émile Durkheim escreveu que o crime é inerente a qualquer sociedade


saudável, embora mude sua forma de manifestação. É impossível
eliminá-lo da estrutura social. O delito inclusive é funcional porque serve
para integrar os sentimentos coletivos contra o transgressor. Somente é
patológico quando aparece em percentuais excessivos ou ínfimos. Mais
tarde, Edwin Sutherland revelou em seu estudo sobre o criminoso do
colarinho branco que o crime não é somente um produto de patologia
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mental ou da pobreza, mas pode ser cometido por pessoas com higidez
mental e elevado status sócioeconômico ou de poder. Portanto, crime
não significa doença individual, nem social. Infelizmente, já no início do
século XXI, a criminologia ainda não foi capaz de descartar nenhuma das
teorias criminológicas (biológicas, psicológicas, sociológicas, ecológicas,
anomia, subculturas, controle etc.), caminhando, então, para uma
integração, ou seja, estabelecer fatores correlacionados com a produção
da criminalidade.

Planeta Ciência: Quais são as evidências que o senhor apontaria como


as mais conclusivas para decidir o destino de um ex-detento? A
neurociência, em algum momento, prevalecerá sobre as demais
provas coletadas?

Odone Sanguiné - Em geral, a literatura recente permite concluir que há


bastante ceticismo e até rejeição da possibilidade de uma influência
radical das neurociências sobre os fundamentos do Direito Penal: o crime
e à pena. Por conseguinte, as conclusões neurocientíficas sobre a
atividade cerebral de criminosos baseadas em exames de tomografia
provavelmente servirão somente como mais um meio probatório
complementar para aperfeiçoar as decisões da Justiça Criminal.

A ressocialização de apenados evidentemente não depende


exclusivamente do encarceramento, pois a prisão é criminógena e
dessocializadora. Na verdade, a inclusão e o retorno de egressos à
sociedade sem reincidência depende mais da manutenção de vínculos
familiares e de políticas públicas de implementação de serviços
assistenciais pós-penitenciários e também da participação de
organizações não governamentais.

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