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São
Paulo: Paulus, 2007.
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[PARTE 1]
Cp 1. O Enigma de Kane
- “Como se pode dizer que “ninguém” viu (e ouviu) Kane pronunciar a palavra final se
a imagem e o som correspondem a essa cena foram efetivamente vistos e ouvidos no
filme? Uma pessoa, pelo menos, esteve presente no quarto de Kane no momento de sua
morte e pôde testemunhar o movimento de seus lábios pronunciando Rosebud: o
espectador. E, se considerarmos que o olhar que o espectador deposita no filme é
subsidiário de um outro lugar, aquele que determina o ângulo, a distância e a duração
segundo os quais o motivo é dado à visão, não é difícil imaginar a presença de uma
outra testemunha no leito de morte, aquela justamente que o espectador assume quando
vê o filme” (p.9-10)
- “De fato, há sempre “alguém” a mais dentro da cena de um filme, alguém que
eventualmente sabe mais que as personagens, às vezes também menos, mas de qualquer
forma alguém que não é necessariamente um protagonista explicitado na ação. Esse
alguém é quem vê, no final do filme, o trenó sendo devorado pelas chamas na fornalha
do castelo, enquanto nele aparece inscrita a palavra Rosebud” (p.10)
- “Difícil é localizá-lo, pois, como na maior parte dos filmes, ele permanece invisível o
tempo todo, não se deixando marcar no próprio corpo da narrativa. [...] Essa testemunha
invisível seria – grosseiramente falando e sem considerar as metamorfoses do
imaginário operadas pela diegese – o fotógrafo que “registra” a cena, além de todo
pessoa técnico que fabrica o filme. Se os planos em questão – os lábios de Kane
pronunciando a palavra enigmática antes de morrer e o trenó Rosebud ardendo em
chamas – estivessem colocados no contexto de um documentário ou de um reportagem
de telejornal, não restaria a menos dúvida de que uma testemunha, pelo menos,
presenciara as duas cenas: o fotógrafo que as “registrou” e nos permite agora
contemplá-las. Sem esse olho agenciador do plano as cenas simplesmente não existiriam
para o oferecimento ao nosso olhar. Daí que o fato puro e simples da existência de um
plano já pressupõe o trabalho de enunciação de um sujeito que primordialmente o
“olhou” (e eventualmente também o “ouviu”) para que ele pudesse ser finalmente
contemplado por nós, espectadores” (p.10-11)
- “Esse problema é particularmente fundante no Citizen Kane, pois sabemos que se trata
construído sobre “pontos de vista”. [...] depois que cada “narrador” literário começa a
falar, o filme ganha autonomia e caminha “sozinho”, a despeito da visão pessoa desse
“narrador”. Os “pontos de vista” literários não resolvem, portanto, o problema do
testemunho do plano. Continuamos sem saber quem estava presente no escritório de
Leland ou no quarto de Susan para observar aquilo que os “narradores” literários não
poderiam ter visto ou ouvido. A mesma entidade invisível e misteriosa retorna: quem é
ela?” (p.12-13)
- “Ao longo de toda trama, não é Thompson quem vê o desenrolar dos eventos: ele
apenas vê as pessoas que viram os fatos relacionados com Kane. E basta que o filme
transforme em imagens a narrativa de cada “narrador” para que tanto o ponto de vista de
Thompson quanto o do próprio “narrador” desapareçam, retornando à cena a mesma
entidade misteriosa que estamos tentando identificar” (p.13-14)
- “[...] no cinema a coisa não é tão simples assim, pois não se trabalha apenas com o
discurso (verbal) de cada personagem, mas também com o olhar que cada uma delas
deposita sobre a cena. Mais que um jogo de falas, uma “polifonia”, como queria
Bakhtin, no cinema temos um jogo de olhares, uma “polivisão”, cuja natureza é difícil
decifrar” (p.14)
- “[...] porque, apesar de o sujeito assumir a narração como o seu doador, ele ainda
permanece visto do exterior, ele é objetivado na cena exatamente como na focalização
externa. Por exemplo: é Leland quem conta a história da derrota de Kane nas eleições,
mas ele próprio (o sujeito da narração) aparece ao lado de Kane nas imagens, ou seja,
“narrador” e “narrado” são igualmente vistos por um outro sujeito, esse justamente que
estamos tentando identificar” (p.16)
- “Como em Citizen Kane, à medida que cada personagem começa a contar a sua
versão, o filme dramatiza em imagens e sons, jogando o próprio “narrador” para dentro
da narrativa. Temos então uma mesma intriga repetida quatro vezes com variação de
enfoque, representando a versão de cada personagem. O “paradoxo”, segundo Jost, é
que, em cada episódio, o “narrador” se “duplica”: é ele quem conta a história, mas no
filme ele pertence ao olhar de outro, ele aparece em cena visto por uma outra instância
vidente” (p.16)
- “Lacan (1985, p.133) já observou com muita fineza (na verdade, retomando um
raciocínio de Bertrand Russell em Principles of mathematics) que o “eu” que enuncia, o
“eu” da enunciação, não é exatamente o “eu” do enunciado, o shifter que no enunciado
designa aquele. Por isso, não há propriamente paradoxo na expressão “eu estou
mentindo”, pois ai o sujeito do enunciado diz a verdade, ou seja, que o sujeito da
enunciação está mentindo. Se isso é verdade no que diz respeito ao enunciado verbal,
ele o é muito mais ainda no que diz respeito ao “texto” cinematográfico, que pode ter
muitos “sujeitos” marcados no enunciado, devido ao caráter heterogêneo da narrativa
fílmica: ela é ao mesmo tempo fala (voz), som (música, ruídos) e imagem (olhar)”
(p.17)
- “Quem narra o filme não é, portanto, exatamente a voz que nele fala, mas a
instância que dá a ver (e ouvir), que ordena os planos e os amarra segundo uma
lógica de sucessão. Os comentários extradiegéticos de Oktiabr ou a intromissão da
câmera na cena para mostrar aquilo que as personagens não vêem (exemplo clássico: o
trenó Rosebud esquecido na neve e ardendo nas chamas, respectivamente no começo e
no fim de Citizen Kane) certamente têm mais a ver com a natureza do sujeito
cinematográfico do que aquela voz que conta, isto é, que fala a história na trilha sonora.
Filmes “narrados” literalmente na primeira pessoa, através do recurso do voz-over, não
indicam necessariamente uma “focalização interna”, enquanto outros em que não há
indicação explícita da instância narradora se dão largamente na perspectiva de uma
personagem (Peeping Tom, Blow-Up)” (p.18)
- “Por essa razão, é somente num sentido figurado que podemos falar, no âmbito do
cinema, numa “instância narradora” (e, por extensão, em “narração”, “narrativa”), assim
como, no âmbito da literatura, é somente num sentido figurado que podemos falar em
“ponto de vista”, “focalização”. Se, por comodidade, ainda for necessário continuar a
usar a expressão “narrador” a propósito do sujeito cinematográfico, é preciso ter em
mente que se trata de uma metáfora e, sobretudo, uma metáfora de fundo
antropomórfico, uma vez que sempre tendemos, por força de determinações históricas, a
imaginar o sujeito como alguém, no sentido de uma pessoa, em vez de uma atividade ou
uma função simbólica no “texto” cinematográfico (Branigan, 1984, p.40). Presente
virtual, simulação do processo do sonho, o filme só pode ser “contado” depois da
exibição, quando saímos do cinema. Enquanto estamos na sala escura, somos
pacientes/agentes do(s) olhar(es) que lá está(ão) depositado(s)” (p.19-20)
- “Eis porque, num certo sentido, a busca desse “alguém” que dá a ver (e ouvir) o filme
confunde-se, em vários aspectos, com a indagação psicanalítica em torno do sujeito do
inconsciente, embora a teoria cinematográfica o faça, como não poderia deixar de ser,
nos termos do sistema expressivo do cinema. Pois, se alguém serve de mediador entre
nós e os acontecimentos da história, seguramente não é um “contador de histórias”
(muito embora o cinema possa sugeri-lo na trilha sonora, para imitar uma arte nobre: a
literatura), mas um “alguém” que só pode existir na estrutura do filme como uma
lacuna, para que o espectador ocupe o seu lugar. Assim, qualquer que seja a instituição
do sujeito que se põe em circulação no cinema, ela deve poder colocar o espectador no
centro de seu processo de significação: “O espectador e o texto não podem ser
considerados separadamente de um do outro, cada um recebendo sentidos pré-
construídos pelo outro; o processo de construção do sentido envolve uma interação dos
dois” (Kuhn, 1982, p.56)” (p.20)
Cp 2. Ubiquidade e transcendência
- “Mesmo a expressão “foco”, com que a teoria literária designa a instância narradora, é
também uma metáfora de inspiração óptica. Ora, o que acontece com a “narrativa”
cinematográfica é que ela devolve o “ponto de vista” à sua origem óptica, recolocando a
instância doadora no centro topográfico da imagem, ou seja, na lente da câmera. O
cinema – o cinema narrativo, é claro – esforça-se, portanto, para esboçar uma síntese do
sujeito narrador (aquele que “conta”) com o sujeito enunciador da imagem (aquele que
vê e, por extensão, ouve), síntese intuitiva, é claro, nem sempre bem resolvida, como
ocorre nesses momentos em que um comentário-over (interno, passado) coexiste com
uma paisagem doada pelo olho da câmera (externa, presente)” (p.22)
- “O que importa, para os nossos propósitos, é observar que a noção de “ponto de vista”
e, por extensão, a de “sujeito”, nascem em decorrência dos cânones do código
perspectivo renascentista. Com base nessa perspectiva, todo quadro torna-se uma
visão organizada por um ponto originário, um olho único e imóvel (o “centro
visual”) que dá total coerência aos objetos dispostos no espaço. O mundo visível
passa então a ser exposto sob o prisma incontornável da subjetividade: ele não é apenas
uma paisagem que se abre ao nosso olhar, mas uma paisagem já olhada e dominada por
um outro olho que dirige o nosso” (p.22)
- “[...] ao fazer coincidir o seu olhar com aquele do sujeito invisível que vê a cena, ele se
deixa também assujeitar, identificando-se com a instância vidente” (p.23)
- “[...] os sons relacionados com objetos distantes da câmera são ouvidos numa
intensidade menos do que os sons relacionados com objetos mais próximos. Esse fato
(em geral produzido artificialmente na fase de mixagem das pistas sonoras) mostra que
o som é em geral colocado no filme fazendo referência a um ponto originário que
coincide, no plano da imagem, com a instância que dá a ver a cena. O cinema sonoro,
portanto, reforça a inscrição do sujeito enunciador no “texto” do filme, fazendo ampliar
a sua hegemonia para elementos até então refratários a esse poder de centralização”
(p.25)
- “Todo o trabalho do filme tem por função organizar o olhar, de modo que identifique
o comportamento da câmera (e de outros expedientes técnicos do filme, como a
montagem e a sonorização) com a visão de um observador imaterial e privilegiado,
capaz de assumir posições e deslocamentos impossíveis a um ser humano comum.
Encarnação desse observador onividente, a câmera procura sempre dar a melhor
imagem possível do que está acontecendo em cena, com as ênfases necessárias para
a inteligibilidade da história” (p.25-26)
- “Vê-se que o observador ideal do cinema não apenas deveria ter uma mobilidade
absoluta e uma total transparência, mas também ser uma espécie de onipotência, capaz
de encarnar um pássaro ou um computador, voar como uma ave ou colocar-se em
ângulos impossíveis, como se fosse uma expressão da divindade. A esse poder que tem
o olho enunciador de penetrar nas coisas como um observador invisível e totalizador
costuma-se dar o nome de ubiquidade, pois, tal como o sujeito onisciente da literatura, a
câmera cinematográfica é um olho que tudo preenche e povoa todos os lugares,
arrancando dos eventos, mesmo dos mais íntimos, mesmo dos mais clandestinos, a sua
visualização ideal” (p.28)
- “Do espectador pode-se dizer que, diante do filme clássico, ele se identifica
primordialmente com o olhar desse sujeito invisível e “transcendente” que centraliza o
espetáculo. Na sala de projeção, ele já não se encontra imobilizado sobre sua poltrona:
ele se torna elástico, mudando constantemente de posição em relação às imagens que
pululam à sua frente, modificando a todo momento o seu campo visual para abarcar
sempre da melhor forma possível a cena da narrativa. Ou se poderia dizer
diferentemente: a sua poltrona se torna um centro espacial, em relação ao qual as
imagens e sons se posicionam e reposicionam, deslocando sucessivamente o ponto de
observação” (p.29)
- “[...] existem poucos exemplos na história do cinema disso que poderíamos chamar da
câmera subjetiva sistemática, ou seja, uma coincidência entre a visão dada pela câmera
e a visão de uma personagem particular, mantida sistematicamente do primeiro ao
último plano de um filme” (p.31)
- “The Blair witch project escapa das limitações de Lady in the lake graças à esperta
estratégia de construir o filme dos pontos de vista, dos dois cinegrafistas que
“registraram” o material que vemos na tela” (p.35)
- “O grande salto que a análise lacaniana promoveu em relação à tradição filosófica foi
justamente retirar o sujeito de dentro do homem, expulsar esse “homenzinho” que o
pensamento clássico supôs definir interiormente o eu. Lacan desmonta esse cogito
cartesiano de que a perspectiva geométrica do Renascimento é o correspondente
plástico e reconduz a noção de sujeito à sua dependência significante: o sujeito já não é
essa instância fundadora e casual do discurso idealista, mas tão simplesmente um efeito
da cadeia do discurso. A dialética do imaginário principia com uma alienação
originária que coloca o “homenzinho” fora do indivíduo, de modo que a sua realização
vai sempre depender de um outro (Lacan, 1970, p.89-97). Alienado de si e identificado
em outro, o sujeito é esse estado de ambiguidade que encontramos assumido nas
atitudes da criança, do ator e do espectador. Assim é que, no plano da pulsão escópica
que aqui nos interessa, o olhar é separado do sujeito que olha: o sujeito resulta então o
quadro que o olhar apreende; ele pertence agora – ao contrário do ponto geométrico da
perspectiva – ao domínio do visível (Lacan, 1985, p.90-115). Ora, no cinema, num certo
cinema, o jogo alternado do campo/contracampo vai permitir construir uma
reversibilidade infinita do percipere e do percipi, de modo que o sujeito torna-se aí não
mais essa transcendência que condiciona a ubiquidade, mas um efeito dessa cadeia
significante que é a geometria dos olhares” (p.42)
- “Falar da esquize do olhar implica introduzir o sistema de sutura. Antes de chegar lá,
porém, é precisa fazer um percurso intermediário e tratar de uma modalidade narrativa
que se situa a meio caminho entre o modelo da câmera subjetiva e a contraposição de
olhares através da técnica do campo/contracampo” (p.43)
- “[Um corpo que cai] A coincidência de olhares, entretanto, deve ser aqui também
relativizada. O apego à perspectiva da personagem é um álibi do “narrador” para
deixar de fornecer informações que em princípio seriam necessárias para a
inteligibilidade da história. [...] Em Psycho [Psicose], o apego da câmera ao ponto de
vista de saber o que se passa no estranho casarão de Norman Bates. A câmera (e a
montagem e o som) nos oferece, na maior parte das vezes, uma visão precária e
também um saber limitado, justamente porque restritos ao que vê e ao que sabe uma
personagem, para assim poder jogar com a emoção do espectador” (p.46-47)
- “Curioso é que todos esses filmes afinados pela perspectiva restrita de uma
personagem acabem por tematizar, de uma forma ou de outra, a questão da escopofilia.
Curioso não apenas porque esses filmes concentram todo o campo visual dentro daquilo
que a personagem vê, reduzindo assim o cenário e todas as demais personagens a
objetos de um olhar (condição propícia ao exercício do voyeurismo), mas também
porque esse tipo de construção remete diretamente à situação do espectador em relação
à imagem exibida. A escopofilia, prazer de tomar o outro como objeto, submetendo-o a
um olhar fixo e curioso, é um dos componentes principais da sedução do cinema. O
filme – qualquer filme – trabalha fundamentalmente com essa perversão do olhar
abelhudo que se satisfaz em ver o outro objetivado: “Embora o filme esteja sendo
mostrado, esteja lá para ser visto, as condições de projeção e as convenções narrativas
dão ao espectador a ilusão de um rápido espionar num mundo privado” (Mulvey, 1983,
p.441)” (p.48)
- “[...] para que o efeito possa ocorrer no cinema, é preciso que o filme se mascare,
que tudo nele simule uma distância e uma indiferença à presença da plateia, que
ele finja não saber que está sendo olhado. Assim, pela mediação do olhar da
câmera, o espectador pode espiar, na sala escura do cinema, a privacidade das
personagens, penetrar sem ser visto no leito do amor, aproximar-se das
personagens até poder “ler” as expressões em suas faces. Num certo sentido, o
sucesso e a magia de um certo tipo de cinema que convencionamos chamar de
“clássico” ou “dominante” está em saber lidar com o prazer visual da plateia e de
refletir certas obsessões psíquicas da sociedade que o produz” (p.48-49)
- “Num trabalho de 1915, aprofundando seu estudo da escopofilia, Freud (1972, p.11-
44) observa que o destino da pulsão é reverter-se no seu oposto, quando o prazer do
olhar é transferido para o olhar do outro e a sua finalidade ativa é substituída pela
finalidade passiva (ser olhado)” (p.51)
Cp 5. A esquize do olhar
- “Se são raros no cinema exemplos de uso sistemático da câmera subjetiva como
encarnação do olhar de uma personagem, o fechamento da narrativa numa perspectiva
individual apenas em alguns instantes privilegiados do “texto” fílmico constitui pratica
corrente, a ponto de criar com a ubiquidade de uma tensão rica de consequências” (p.56)
- “Em inglês, dá o nome de eye-line match a esse tipo de construção, em que toda a
coerência das relações espaciais e do desenvolvimento da intriga é dada
predominantemente através das direções dos olhares numa sucessão de planos. Os
franceses tem uma expressão mais poética, designando a mesma construção através da
figura da linguagem mise-en-regards. Ambas as expressões buscam abranger essa troca
sistemática de olhares através do jogo de posições da câmera, essa ambiguidade
fundamental do sujeito-objeto que intercepta a ação das personagens e desenha a
interação em que estão envolvidas. O conceito que tais expressões condensam é o da
reversibilidade dos pontos de vista na cena clássica do cinema, ou seja, a ideia de que o
corte e o deslocamento de posição da câmera têm a função primordial de fazer alternar
os pontos de vista das personagens” (p.58-59)
- “No cinema “clássico”, a alternância dos pontos de vista determina uma intensa
fragmentação da cena para multiplicar o olhar numa pluralidade de visões particulares”
(p.62)
- “Claro que o próprio “narrador”, interessado em tirar proveito, para fins de
envolvimento de dramático, daquilo que o espectador sabia e as personagens, não.
Voltando à mesma sequência de The Birds, Bellour (1969, p.35) nota algo semelhante.
Quando Melanie deposita a gaiola com os pássaros no interior da mansão dos Brenner, a
decupagem coloca na sucessão dos planos um inserto em primeiríssimo plano
mostrando a gaiola e as mãos da mulher rasgando o envelope endereçado a Mitch
(vergonha?, culpa?). Esse inserto não corresponde à visão de Melanie, pois a posição da
câmera é inteiramente oposta à posição de seus olhos” (p.63)
- “Cada plano continua sendo o campo onde deposita um olhar, mas o olhar de que
personagem, de que instância vidente? Essa ambiguidade é o efeito de uma
multiplicidade de “vozes” (de olhares) que traz à cena à uma experiência do ver e do
ouvir mais complexa, mais aberta e menos controlável do que aquela que o produto
tradicional pode produzir com seu quadro definido de valores: “A ruptura com o
esquema monológico do olhar sacramentado pela indústria amplia o alcance da
discussão proposta pelo filme. Produz uma representação onde o espectador é
obrigado a uma consideração mais complexa da experiência social e humana, em suas
contradições e múltiplos aspectos [....]” (Xavier, 1983b, p.61)” (p.66-67)
- “Na esteira da revolução godardiana, o cinema moderno nunca mais conseguiu levar
demasiadamente a sério a funcionalidade das regras do eye-line match e, mesmo quando
o fez (como ocorreu amiúde nos filmes de Fassbinder), o resultado tendia mais para a
perversidade corrosiva da paródia do que para a celebração de valores cristalizado”
(p.68)
- “Por que essa obliquidade da cena em relação ao plano da tela e por que essa
obliquidade dos olhares em relação ao olhar do espectador? [...] ao código perspectivo
renascentista nela incorporado, esse código que faz embutir no quadro o “ponto de
vista” que o produz” (p.72)
- “A cena inscrita nessa pintura é sempre dupla: de um lado, há o visível, o motivo
encenado dentro do quadro; de outro, há a instância que olha para ele, que não aparece
no quadro, mas sem ela o arranjo topográfico deste último se tornaria absurdo. Alguém
vê a cena dessa maneira e sem a consideração da presença desse alguém no extraquadro
a pintura fica destituída de sentido” (p.72)
- “A imagem é sempre considerada incompleta, pois, se não o fosse, não haveria lugar
para o observador. Nesse sistema pictórico, o espectador se encontra implicado no
espaço e essa inscrição se dá através da duplicação do dispositivo cênico: os elementos
jogados dentro do quadro funcionam aí como os signos dessa inscrição, os signos do
“assujeitamento” do espectador. A todo simbólico corresponde, portanto, um campo
ausente, lugar de uma personagem podemos chamar – no sentido lacaniano – de o
Ausente, que o imaginário do espectador preenche no ato de “leitura”. Esse lugar nem
sempre está definido como na cena de Velázquez: ele pode permanecer desterrado,
ubíquo, exigindo uma “leitura” fantasmática por parte do espectador, pois, apesar de a
posição deste último ser sempre privilegiada em relação ao dado visível, ela própria não
se deixa conhecer a não ser como um abismo. De qualquer forma, não se pode entender
a imagem figurativa como um discurso se não entendermos, ao mesmo tempo, a posição
que o destinatário ocupa na sua estrutura” (p.73)
- “Embora o cinema não possa ser reduzido a um quadro, pois nele intervêm o
movimento, a duração, o corte, o som e o deslocamento do ponto de vista, esse
dispositivo não deixa, todavia, de aí funcionar, pois no cinema o código perspectivo
renascentista ainda continua a comandar. Mas é preciso avaliar as condições específicas
em que isso se dá. Em geral, a sucessão dos planos pressupõe uma sucessão de olhares,
de modo que o sujeito da visão não apenas está sendo sucessivamente reposto como
também ele é amiúde nomeado” (p.73)
- “[...] no cinema, pois aí o plano é quase sempre a representação do olhar de uma
personagem definida na intriga. O que sucede então à relação imagem/espectador diante
desse intercâmbio de olhares, que é peculiar ao cinema, é que agora essa relação será
essencial para a articulação dos planos, pelo menos num certo tipo de cinema, aquele
mais largamente difundido” (p.74)
-“[...] o mais correto seria dizer que, antes de tudo, o campo fílmico se articula com o
campo ausente ou o campo imaginário do filme. Na sucessão, a relação especular se
inverte, de modo que o plano seguinte atualiza o campo ausente do plano anterior,
convertendo-o em campo fílmico, e joga o campo fílmico anterior naquilo que agora é o
lugar ausente do plano anterior, convertendo-o em campo fílmico, e joga o campo
fílmico anterior naquilo que agora é o lugar do ausente. Assim, a articulação dos
planos se dá nesse cinema como um sistema de trocas entre os campos presente e
ausente, um jogo de espelhos em que sujeito e objeto da visão se alternam dos dois
lados do olhar” (p.74)
- “Pode-se dizer então que o contracampo sutura o buraco aberto na relação imaginária
do espectador com o campo fílmico. A novidade em relação à pintura clássica é que no
cinema a articulação do campo visível com o campo ausente é dada com uma
articulação de planos: cada plano sutura a “quarta parede” do que o antecede ou sucede,
de modo que, ao longo de uma sequência montada em campo/contracampo, o visível e
invisível vão trocando de lugar nos dois lados do dispositivo espetacular [...]” (p.76)
- “Daí por que Oudart considera que a estrutura reversível do campo/contracampo não
marca, ao pé da letra, uma visão “subjetiva”, ou seja, o ponto de vista de cada
personagem localizada no espaço: ela apenas indica a perspectiva deste ou daquele
protagonista, sem, todavia, assumi-la fisicamente. Em outras palavras, há uma
divergência entre a posição da câmera e a da personagem que aquela “indica”: a câmera
encontra-se ao seu lado, mas não no seu lugar. E o espectador, por sua vez, não se
identifica aí com a personagem que está ausente, mas com o Ausente propriamente dito,
embora ele saiba que a personagem está imaginariamente lá, naquele lugar em relação
ao qual ele está deslocado” (p.77)
- “Para Oudart, o contracampo a 180º é uma aberração, pois ele barra o “valor de
troca” dos planos e toma os olhares dos protagonistas como absolutos” (p.78)
- “A câmera já não incorpora a visão “subjetiva” de uma (ou mais) personagem(ns): ela
se coloca de modo que essa visão de um sujeito fictício possa se tornar “legível” a um
sujeito imaginário, a um sujeito mítico: o espectador. Mas, ao mesmo tempo, o
espectador recupera sua diferença, pois a personagem ausente é sujeito de uma visão
que não é exatamente a sua: “Uma vez que a chave no processo de qualquer leitura
cinematográfica é dada pelo sujeito que ignora sua função está operando e está sendo
representada na leitura, Bresson é provavelmente o primeiro a ter, não propriamente
colocado em prática, mas colocado o principio de uma cinematografia que permite a
essa função operar de uma forma que já não é mais sem propósito ou vazia” (Oudart,
1969a, p.39)” (p.79)
- “[...] cabe a Nick Browne o questionamento até agora mais certeiro do sistema de
sutura, [...] Ele considera, de início, que o grupo de Outdart trouxe uma contribuição
específica para a análise fílmica, que é a invocação de um dispositivo no qual a visão do
espectador é mediada pela visão de alguém fora da cena e no qual a posição da câmera é
assimilada à estrutura narrativa do filme. Mas essa simples inscrição de um olhar na
cena – mesmo que dotada de autoridade – não pode explicar adequadamente o processo
de significação no cinema. Mesmo quando eu vejo através da mediação dos olhos das
personagens (ou do Ausente, se quiserem), a relação emocional, a empatia que
estabeleço com esses mediadores vai depender de um emolduramento criado pelo
conjunto do “texto” fílmico, e essa relação é complexa porque inclui também, além da
transfusão de olhares, a intervenção da maquinaria sonora e o papel significante da
montagem. A controvérsia em torno da posição que o espectador ocupa na ficção que se
desenrola na tela não se esgota, portanto, apenas no processo de identificação com a
câmera [...]” (p.81)
- “[...] o filme trabalha justamente na diferença que se estabelece entre esses pontos de
vista físicos, primários, e o ponto de vista figurado que a enunciação constrói” (p.84)
- “[...] nos termos das teorias do ponto geométrico e da sutura, há ai um paradoxo: toda
a sequência está relacionada com o ponto de vista e os interesses de Lucy, mas a
simpatia (ou a piedade) do espectador vai para a prostituta. Como posso me identificar
com a posição humilhada se as visões que recebo dela pertencem a outra personagem,
aquela justamente que estou em vias de rejeitar? Como localizar na topografia da cena
essa posição paradoxal de um espectador identificado não com a fonte do olhar, mas
com o seu objeto passivo? Essa incongruência entre o sentimento experimentado pelo
espectador e o dispositivo formal onde se forja a ficção demonstra que é preciso
considerar o funcionamento do filme não em função de um de seus elementos, mesmo
que hegemônico, mas como uma máquina integrada de produção de sentido, como uma
retórica” (p.88-89)
- “O investimento emocional do espectador não está nesse “centro”, nem em Lucy, nem
na posição da câmera, embora mantenha uma certa relação com eles: relação de
assunção, de rejeição, de distanciamento ou qualquer outra. O espectador é sempre
distinto da personagem, e o ponto de vista que ele encarna não está definitiva ou
sumariamente estabelecido por uma simples tomada ou por uma série de tomadas.
[...] Em se tratando de cinema, não se pode – e esse é um dos principais postulados de
Browne – reduzir a questão da representação à construção de um ponto no espaço.
A nossa implicação como espectadores na ação é construída com o desenrolar dos
eventos no tempo, é todo um processo que deve ser pensado em termos de sua duração
ao longo do filme. Assim, a dialética do posicionamento do espectador – seu processo
de “habitação do texto” – é o efeito de um modo de sequenciação, de uma posição
regular de integrados e marginais, de uma modulação da atitude receptiva ao longo da
dimensão temporal” (p.90)
- “Grande parte da teoria francesa encontra-se marcada fortemente pela crítica que faz
Derrida da “presença”, do “centro”, a ponto de o espectador fílmico ser considerado
“teológico” por estar “centralizado” no eixo da perspectiva. Mas do fato de o espectador
sempre ver a cena através da mediação do centro óptico da perspectiva, através do olho
da câmera, não se pode tirar a conclusão de que ele se identifica fatalmente com esse
ponto. Em Psycho, o plano em que o detetive Arbogast cai da escada, depois de
esfaqueado por “alguém”, no casarão de Norman Bates, é dado inteiramente do ponto
de vista desse “alguém”, exatamente porque a câmera subjetiva permite esconder a
identidade do agressor. Mas seria um despropósito afirmar que ocorre aí qualquer
espécie de investimento emocional, ou mesmo de transferência perceptiva entre o
assassino invisível e o espectador, mesmo porque este último não se pode identificar
com quem ele nem sequer conhece. Nesse plano, o olho da câmera é inteiramente o
olho do outro. O espectador do filme – esclarece Browne – é um pouco como o sujeito
do sonho, um sujeito plural que vai se transfigurando ao longo do processo onírico. Ele
está em vários lugares ao mesmo tempo, ele é e não é ele próprio, ele faz às vezes do
observador e do observado simultaneamente, podendo ainda avaliar os clamores
de cada um e responder a eles. O que não quer dizer que ele não esteja “centralizado”
[...], mas é preciso pensar esse “centro fixo” como uma noção problemática, cuja
complexidade e função no discurso crítico não podem ser reduzidas apenas a um
determinismo técnico” (p.93-94)
- “O mesmo campo escópico que constitui o sujeito é também o local onde o sujeito
fracassa como fonte originária, como foco, como “ponto de vista”, porque, malgrado
esteja no ponto privilegiado de vidência, ele não é o único vidente da cena. O olhar,
como notou Merleau-Ponty (1971, p.235-237), é um quiasma, ponto de cruzamento e
reversibilidade do eu e do outro, dupla inscrição do dentro e do fora. [...] No cinema,
quem sabe exatamente quem vê e quem é visto, se os vários olhares do filme se
cruzam, se trocam e se revertem uns nos outros? Circularidade infinita que é, esta,
sim, a sintaxe mais profunda do filme” (p.97-98)
- “O que esteve em jogo até aqui é a maneira como se organizam os vários olhares que
permitem ver o filme: os olhares que as personagens trocam na cena e esses olhares
problemáticos, meio internos e meio externos, que o espectador e a instância vidente
depositam no quadro (às vezes coincidindo, às vezes divergindo), com todos os
desdobramentos, multiplicações e assimilações de uns por outros” (p.98)
- “Se bem que, efetivamente, o “texto” fílmico joga com as posições de câmera e com
os olhares literais que elas colocam na cena, para implicar o espectador no seu campo
simbólico, nada autoriza apontar aí qualquer determinismo simples, em que um
componente funcionaria como “modelo” ou “suporte” do outro. Quando a mulher
encurralada na cozinha vê avançar contra ela o marido alucinado de machado em punho,
em The Shining, vemos a reação da mulher através dos olhos do marido, incorporamos
o olhar deste que é, nesse momento, a instância vidente, mas nossa identificação
escorrega a personagem indefesa (a mulher), objeto do olhar daquele outro, e com ela
sofremos o medo da morte. Em outras ocasiões, entretanto, em que a anomalia do
agressor está menos caracterizada, é comum o espectador se encontrar naquela posição
ambivalente do assassino e da vítima ao mesmo tempo. Pode-se até mesmo dizer que
boa parte do fascínio exercido pelo filme de horror ou de suspense emotivo está nesse
deslizamento da subjetividade do espectador da identificação com o agressor para a
identificação com a vítima, e vice-versa, o que lhe permite experimentar um misto de
segurança e fragilidade, onipotência e abandono (só segurança seria monótono; só
fragilidade seria pouco agradável). Nisso falham as teorias convencionais da
identificação, que acreditam ingenuamente que o espectador de cinema faça projetar seu
ego em uma ou duas personagens relevantes do filme (o “herói” ou a “heroína”,
Cinderela ou o príncipe) e mantenha essa identificação do começo ao fim da película. A
identificação de superfície é um fenômeno banal, artificialmente produzido que pouco
eco encontra no fundo da subjetividade de cada espectador. Não é difícil alguém se
surpreender no cinema torcendo pelo carrasco, simpatizando com o vilão ou atraído por
uma personagem enigmática de fundo. As projeções/identificações, como já dizia
Edgar Morin (1980, p.81-106), são “polimorfas”, manifestam-se de forma fluida,
permutável e ambivalente, ultrapassando o quadro das personagens fixas para nos
colocar dentro do semelhante tanto quanto dentro do estranho, donde se explica, aliás, a
diversidade dos filmes e o ecletismo do gosto do público” (p.100)
- “Como já é sabido desde a intervenção de Lacan, a fase do espelho, vivida pela criança
entre os 6 e os 18 meses de vida, é a experiência responsável pelo surgimento no
indivíduo da dualidade entre o sujeito e o objeto, ou entre o eu e o outro. Mas, para que
essa constituição imaginária possa ocorrer, duas condições complementares são
necessárias: a imaturidade motora (a criança ainda não coordena ou coordena mal ou
seus movimentos) e a maturação precoce de sua organização visual (é pelo olhar e
unicamente pelo olhar que ela vai descobrir no espelho a imagem de seu próprio corpo e
diferenciá-la da imagem da mãe e do restante do ambiente). Considerando que essas
duas condições – suspensão da motricididade e predominância da função visual – se
encontram repetidas durante a projeção cinematográfica, alguns autores desconfiaram
existir aí algo mais que uma simples analogia [...]” (p.101)
- “[...] Christian Metz já alertou sobre o fato de que a tela é um espelho (ela nunca
reflete a imagem do vidente) e o espectador não é uma criança, já passou pela
experiência do espelho, já sabe se reconhecer a si próprio e já ultrapassou a
indiferenciação primativa e do não-eu. Mas, ainda assim, ele precisa se identificar com
uma instância vidente, ele precisa se constituir como sujeito dentro do filme; do
contrário, até mesmo o filme mais banal se tornaria para ele inteiramente
incompreensível” (p.102)
- “A (1) identificação primária no cinema ocorre, portanto, com uma diferença básica
em relação à experiência do espelho: o sujeito se reconhece, antes de tudo, naquilo
em que ele não está, no quadro em que ele figura fundamentalmente como um
excluído. Mas, se ele está excluído do quadro, ele se faz presente na cena, mesmo que
em transparência, pois é para ele que as figuras desfilam, é em função de seu lugar que
as personagens entram e saem de campo. Todo o material perceptivo vem se depositar
no espectador, como se ele fosse uma segunda tela, e é aí, na tela do eu excluído, que a
sequência vai se compor e ganhar sentido, possibilitando ao imaginário projetado
ascender ao campo simbólico. Apenas nesse aspecto o público se encontra
“centralizado”, pois toda a paisagem do filme se organiza em função do seu lugar,
não o lugar óptico que ele ocupa no cubo da cena, mas o seu lugar dentro da ficção,
como o elemento que “costura” e dá forma orgânica a essa sucessão de estilhaços a
que chamamos planos” (p.102-103)
- “Nesse sentido, o cinema – experiência cultural de forte apelo às projeções – vai jogar
um papel privilegiado nas identificações secundárias. Através dele, o ideal do eu pode
se constituir e evoluir através de identificações a modelos bastante diversos e
particularmente contraditórios. Em alguns pontos, pelo menos, o espectador do filme
encontra-se colocado num dispositivo que reedita algumas circunstâncias da cena
primitiva: é o mesmo sentimento de exclusão diante da imagem recortada pelo quadro; é
o mesmo processo de identificação com as personagens que evoluem na cena onde ele
figura como um ausente; é a mesma impotência motora e a mesma pulsão voyeurista
que lhe garantem uma hipertrofia do olhar (e da audição)” (p.105)
- “Para Michel Chion (1990, p.3), por exemplo, o que o cinema mobiliza nos seus
dispositivos técnicos e imaginários não é nem a visão, nem a audição separadas ou
somadas, mas uma audiovisão, entendida como uma atitude perceptiva específica e
única. [...] E, no que diz respeito à enunciação, parece óbvio também que falamos em
ponto de vista, no que se refere à imagem, podemos e devemos falar também de ponto
de escuta, no que se refere ao som, já que pressupomos a imagem e o som combinados
e funcionando em sincronia no cinema” (p.107)
- “No entanto, quando partimos para o exame das obras concretas que o cinema nos
legou, nem sempre as coisas funcionam tão bem quanto na sua idealização teórica.
Ponto de escuta, na verdade, é uma noção bastante problemática, porque pressupõe a
trilha sonora do filme funcionando da mesma forma que a pista de imagens, ou seja,
organizada em função de um ponto originário do espaço, aquele onde se imagina estar o
sujeito vidente. Mas, como já observou o próprio Michel Chion (1990, p.80), se
consideramos a natureza onidirecional do som (ele se propaga para todas as direções) e
também da escuta (os ouvidos, contrapostos um em relação ao outro, captam
circularmente todos os sons que estão ao nosso redor), não é muito fácil pensar o som
como derivado de um ponto” (p.108)
- “A esse respeito, Chion (1985, p.52) nos chama a atenção para esse efeito paradoxal
que o cinema produz (que ele chama de “desprendimento espacial”), quando se ouve um
diálogo bastante íntimo entre duas personagens, enquanto se vê a imagem de uma nave
espacial navegando no espaço cósmico, onde supostamente devem estar as personagens
que travam o referido diálogo. O que se passa é que o cinema “emoldura” a voz das
personagens, em geral num plano que inicia a sequência e identifica os falantes, e, uma
vez especificado o contexto do diálogo, a câmera pode deslocar-se à vontade no espaço,
pois a unidade da sequência será garantida pela uniformidade da trilha sonora” (p.113)
- “Filmes ou vídeos gravados com som direto, por meio de um microfone acoplado à
própria câmera (como se vê em reportagens ou documentários), registram essas
diferenças cada vez que a câmera muda de posição. Tais flutuações dão um colorido
especial a esse tipo de filme e em geral são interpretadas pelo público como um índice
de autenticidade dos registros, apesar de que esse efeito pode ser simulado em estúdio
(como se pode ver na atual vaga de filmes de ficção que imitam procedimentos de
reportagem televisual). Na produção cinematográfica mais habitual, porém, essas
flutuações são consideradas indesejáveis, distrativas e até mesmo comprometedoras do
ilusionismo mimético que o cinema visa produzir. [...] Isso produz um resultado mais
uniforme e mais facilmente assimilável às regras de continuidade do cinema clássico.
Aliás, recordemo-nos de que a uniformidade da trilha sonora (diálogos e música)
constitui um recurso importante de ocultamento dos cortes e das elipses no cinema”
(p.114)
- “Há no cinema um pressuposto de que tudo o que dizem as personagens precisa ser
entendido pelo espectador, mesmo quando o conteúdo de suas falas não traz nenhuma
informação importante para o andamento da narrativa” (p.114)
- “[...] tais teorias pressupunham uma concepção um tanto monolítica do que era o
cinema “clássico” e essa concepção começou a se mostrar problemática quando as
atenções se voltaram para um número imenso de filmes comerciais e hollywoodianos
que não referendavam o modelo (os musicais principalmente). Por outro lado, a
concepção que se fazia da atividade do espectador ou do processo de recepção era
demasiado abstrata e rígida: o espectador era visto, nesses sistemas teóricos, como uma
figura ideal, cuja posição e afetividade encontravam-se estabelecidas anteriormente pelo
aparato pelo “texto” cinematográfico, não cabendo, portanto, nenhuma consideração a
respeito de uma possível resposta autônoma de sua parte. [...] Essas teorias
funcionavam dentro de uma moldura conceitual que imaginava uma subjetividade
profundamente determinada pelas representações ideológicas. Além disso, elas
foram também acusadas, por esses mesmos setores, de serem a-históricas: nelas, os
filmes eram analisados independentemente do seu contexto social e político. Um filme
francês de 1962, ambientado na França do começo do século XV (O processo de Joana
D’arc), era lido da mesma maneira que um western norte-americano realizado por
Hollywood em 1939 e ambientado nos tempos da colonização (stagecoach), para ficar
apenas nos exemplos de Nick Browne” (p.126)
- “Os nomes mais representativos dessa nova tendência passam a ser David Bordwell,
Janet Staiger, Richard Arlen, Noël Carroll, entre outros. Eles se colocam contra a
presença “excessiva” da psicanálise na teoria da enunciação e também contra um certo
“determinismo” da teoria do dispositivo de Braudy (que advoga a passividade do
espectador, a sua vulnerabilidade à manipulação, a sua regressão narcísica, e assim por
diante)” (p.127)