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MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço.

São
Paulo: Paulus, 2007.

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[PARTE 1]

[Introdução] O sujeito na tela

Cp 1. O Enigma de Kane

- “Como se pode dizer que “ninguém” viu (e ouviu) Kane pronunciar a palavra final se
a imagem e o som correspondem a essa cena foram efetivamente vistos e ouvidos no
filme? Uma pessoa, pelo menos, esteve presente no quarto de Kane no momento de sua
morte e pôde testemunhar o movimento de seus lábios pronunciando Rosebud: o
espectador. E, se considerarmos que o olhar que o espectador deposita no filme é
subsidiário de um outro lugar, aquele que determina o ângulo, a distância e a duração
segundo os quais o motivo é dado à visão, não é difícil imaginar a presença de uma
outra testemunha no leito de morte, aquela justamente que o espectador assume quando
vê o filme” (p.9-10)

- “De fato, há sempre “alguém” a mais dentro da cena de um filme, alguém que
eventualmente sabe mais que as personagens, às vezes também menos, mas de qualquer
forma alguém que não é necessariamente um protagonista explicitado na ação. Esse
alguém é quem vê, no final do filme, o trenó sendo devorado pelas chamas na fornalha
do castelo, enquanto nele aparece inscrita a palavra Rosebud” (p.10)

- “Difícil é localizá-lo, pois, como na maior parte dos filmes, ele permanece invisível o
tempo todo, não se deixando marcar no próprio corpo da narrativa. [...] Essa testemunha
invisível seria – grosseiramente falando e sem considerar as metamorfoses do
imaginário operadas pela diegese – o fotógrafo que “registra” a cena, além de todo
pessoa técnico que fabrica o filme. Se os planos em questão – os lábios de Kane
pronunciando a palavra enigmática antes de morrer e o trenó Rosebud ardendo em
chamas – estivessem colocados no contexto de um documentário ou de um reportagem
de telejornal, não restaria a menos dúvida de que uma testemunha, pelo menos,
presenciara as duas cenas: o fotógrafo que as “registrou” e nos permite agora
contemplá-las. Sem esse olho agenciador do plano as cenas simplesmente não existiriam
para o oferecimento ao nosso olhar. Daí que o fato puro e simples da existência de um
plano já pressupõe o trabalho de enunciação de um sujeito que primordialmente o
“olhou” (e eventualmente também o “ouviu”) para que ele pudesse ser finalmente
contemplado por nós, espectadores” (p.10-11)

- “Mas se estamos no terreno da ficção – e o cinema, no grosso da sua produção, nos


presenteia habitualmente com planos que apontam para situações imaginárias, e não
para o registro documental – torna-se problemático identificar essa instância
responsável pela visão e audição, uma vez que sua natureza e localização devem ser
seguramente ser de outra ordem, diferentes, portanto, daquelas que dizem respeito à
equipe técnica que as constrói. Pois, tal como o narrador literário, a instância que “vê” e
“ouve”, que, portanto, dá a ver e ouvir (e também dispõe os planos, monta-os, ordena-
os), é, ela também, um fato da ficção e, como tal, circunscrita ao universo da diegese.
Mas, então, que instância é essa e como ela se constitui?” (p.11)

- “Esse problema é particularmente fundante no Citizen Kane, pois sabemos que se trata
construído sobre “pontos de vista”. [...] depois que cada “narrador” literário começa a
falar, o filme ganha autonomia e caminha “sozinho”, a despeito da visão pessoa desse
“narrador”. Os “pontos de vista” literários não resolvem, portanto, o problema do
testemunho do plano. Continuamos sem saber quem estava presente no escritório de
Leland ou no quarto de Susan para observar aquilo que os “narradores” literários não
poderiam ter visto ou ouvido. A mesma entidade invisível e misteriosa retorna: quem é
ela?” (p.12-13)

- “Ao longo de toda trama, não é Thompson quem vê o desenrolar dos eventos: ele
apenas vê as pessoas que viram os fatos relacionados com Kane. E basta que o filme
transforme em imagens a narrativa de cada “narrador” para que tanto o ponto de vista de
Thompson quanto o do próprio “narrador” desapareçam, retornando à cena a mesma
entidade misteriosa que estamos tentando identificar” (p.13-14)

- “[...] no cinema a coisa não é tão simples assim, pois não se trabalha apenas com o
discurso (verbal) de cada personagem, mas também com o olhar que cada uma delas
deposita sobre a cena. Mais que um jogo de falas, uma “polifonia”, como queria
Bakhtin, no cinema temos um jogo de olhares, uma “polivisão”, cuja natureza é difícil
decifrar” (p.14)
- “[...] porque, apesar de o sujeito assumir a narração como o seu doador, ele ainda
permanece visto do exterior, ele é objetivado na cena exatamente como na focalização
externa. Por exemplo: é Leland quem conta a história da derrota de Kane nas eleições,
mas ele próprio (o sujeito da narração) aparece ao lado de Kane nas imagens, ou seja,
“narrador” e “narrado” são igualmente vistos por um outro sujeito, esse justamente que
estamos tentando identificar” (p.16)

- “Como em Citizen Kane, à medida que cada personagem começa a contar a sua
versão, o filme dramatiza em imagens e sons, jogando o próprio “narrador” para dentro
da narrativa. Temos então uma mesma intriga repetida quatro vezes com variação de
enfoque, representando a versão de cada personagem. O “paradoxo”, segundo Jost, é
que, em cada episódio, o “narrador” se “duplica”: é ele quem conta a história, mas no
filme ele pertence ao olhar de outro, ele aparece em cena visto por uma outra instância
vidente” (p.16)

- “Lacan (1985, p.133) já observou com muita fineza (na verdade, retomando um
raciocínio de Bertrand Russell em Principles of mathematics) que o “eu” que enuncia, o
“eu” da enunciação, não é exatamente o “eu” do enunciado, o shifter que no enunciado
designa aquele. Por isso, não há propriamente paradoxo na expressão “eu estou
mentindo”, pois ai o sujeito do enunciado diz a verdade, ou seja, que o sujeito da
enunciação está mentindo. Se isso é verdade no que diz respeito ao enunciado verbal,
ele o é muito mais ainda no que diz respeito ao “texto” cinematográfico, que pode ter
muitos “sujeitos” marcados no enunciado, devido ao caráter heterogêneo da narrativa
fílmica: ela é ao mesmo tempo fala (voz), som (música, ruídos) e imagem (olhar)”
(p.17)

- “Quem narra o filme não é, portanto, exatamente a voz que nele fala, mas a
instância que dá a ver (e ouvir), que ordena os planos e os amarra segundo uma
lógica de sucessão. Os comentários extradiegéticos de Oktiabr ou a intromissão da
câmera na cena para mostrar aquilo que as personagens não vêem (exemplo clássico: o
trenó Rosebud esquecido na neve e ardendo nas chamas, respectivamente no começo e
no fim de Citizen Kane) certamente têm mais a ver com a natureza do sujeito
cinematográfico do que aquela voz que conta, isto é, que fala a história na trilha sonora.
Filmes “narrados” literalmente na primeira pessoa, através do recurso do voz-over, não
indicam necessariamente uma “focalização interna”, enquanto outros em que não há
indicação explícita da instância narradora se dão largamente na perspectiva de uma
personagem (Peeping Tom, Blow-Up)” (p.18)

- “Num texto literário na primeira pessoa, há sempre uma diferença fundamentalmente


entre o sujeito que enuncia e o sujeito do enunciado, o “eu” que intervém na história:
este último pratica a ação antes que o primeiro pratique o ato da escritura. Ou seja: a
história já aconteceu quando o narrador se põe a escrevê-la e é por isso justamente que
ele pode narrá-la. A fala que “conta” a história é sempre memória revolvida na
maturidade de acontecimentos vividos pelo narrado no passado [...]” (p.19)

- “Ora, a narrativa cinematográfica é sempre vivida pelo espectador como um presente


virtual. Num certo sentido, não há passado no cinema: quando as luzes se apagam e o
filme começa a ser projetado, a história começa “de fato” a suceder diante dos nossos
olhos, nós entramos dentro dela e nela nos empenhamos num processo de participação
onírica. Os eventos aparecem diretamente aos nossos olhos e ouvidos (efeito de
realidade), nós estamos “lá” como testemunha e tudo é imediato” (p.19)

- “Por essa razão, é somente num sentido figurado que podemos falar, no âmbito do
cinema, numa “instância narradora” (e, por extensão, em “narração”, “narrativa”), assim
como, no âmbito da literatura, é somente num sentido figurado que podemos falar em
“ponto de vista”, “focalização”. Se, por comodidade, ainda for necessário continuar a
usar a expressão “narrador” a propósito do sujeito cinematográfico, é preciso ter em
mente que se trata de uma metáfora e, sobretudo, uma metáfora de fundo
antropomórfico, uma vez que sempre tendemos, por força de determinações históricas, a
imaginar o sujeito como alguém, no sentido de uma pessoa, em vez de uma atividade ou
uma função simbólica no “texto” cinematográfico (Branigan, 1984, p.40). Presente
virtual, simulação do processo do sonho, o filme só pode ser “contado” depois da
exibição, quando saímos do cinema. Enquanto estamos na sala escura, somos
pacientes/agentes do(s) olhar(es) que lá está(ão) depositado(s)” (p.19-20)

- “Eis porque, num certo sentido, a busca desse “alguém” que dá a ver (e ouvir) o filme
confunde-se, em vários aspectos, com a indagação psicanalítica em torno do sujeito do
inconsciente, embora a teoria cinematográfica o faça, como não poderia deixar de ser,
nos termos do sistema expressivo do cinema. Pois, se alguém serve de mediador entre
nós e os acontecimentos da história, seguramente não é um “contador de histórias”
(muito embora o cinema possa sugeri-lo na trilha sonora, para imitar uma arte nobre: a
literatura), mas um “alguém” que só pode existir na estrutura do filme como uma
lacuna, para que o espectador ocupe o seu lugar. Assim, qualquer que seja a instituição
do sujeito que se põe em circulação no cinema, ela deve poder colocar o espectador no
centro de seu processo de significação: “O espectador e o texto não podem ser
considerados separadamente de um do outro, cada um recebendo sentidos pré-
construídos pelo outro; o processo de construção do sentido envolve uma interação dos
dois” (Kuhn, 1982, p.56)” (p.20)

Cp 2. Ubiquidade e transcendência

- “Mesmo a expressão “foco”, com que a teoria literária designa a instância narradora, é
também uma metáfora de inspiração óptica. Ora, o que acontece com a “narrativa”
cinematográfica é que ela devolve o “ponto de vista” à sua origem óptica, recolocando a
instância doadora no centro topográfico da imagem, ou seja, na lente da câmera. O
cinema – o cinema narrativo, é claro – esforça-se, portanto, para esboçar uma síntese do
sujeito narrador (aquele que “conta”) com o sujeito enunciador da imagem (aquele que
vê e, por extensão, ouve), síntese intuitiva, é claro, nem sempre bem resolvida, como
ocorre nesses momentos em que um comentário-over (interno, passado) coexiste com
uma paisagem doada pelo olho da câmera (externa, presente)” (p.22)

- “O que caracteriza a pintura do Quattrocento, antes de tudo, é a convergência para um


ponto de fuga único de todas as linhas que representam os planos perpendiculares à tela.
[...] Em outras palavras, o sujeito, embora ausente da cena, encontra-se nela embutido
pelo simples fato de que a topografia do espaço está determinada pela sua posição: as
proporções relativas dos objetos variam conforme esses objetos se aproximam ou se
afastam do ponto originário que organiza a disposição da cena” (p.22)

- “O que importa, para os nossos propósitos, é observar que a noção de “ponto de vista”
e, por extensão, a de “sujeito”, nascem em decorrência dos cânones do código
perspectivo renascentista. Com base nessa perspectiva, todo quadro torna-se uma
visão organizada por um ponto originário, um olho único e imóvel (o “centro
visual”) que dá total coerência aos objetos dispostos no espaço. O mundo visível
passa então a ser exposto sob o prisma incontornável da subjetividade: ele não é apenas
uma paisagem que se abre ao nosso olhar, mas uma paisagem já olhada e dominada por
um outro olho que dirige o nosso” (p.22)
- “[...] ao fazer coincidir o seu olhar com aquele do sujeito invisível que vê a cena, ele se
deixa também assujeitar, identificando-se com a instância vidente” (p.23)

- “O código da perspectiva renascentista faz do olho do sujeito o elemento fundante e


central da representação” (p.24)

- “Composto no interior do enquadramento, visado por um olho e disposto em relação a


ele em termos de distância e ângulo de mirada, o universo se transfigura em objeto
dotado de sentido, objeto intencional, implicado pela ação do sujeito que o visa. [...] A
câmera fotográfica, tal como a fotográfica, incorpora o código da perspectiva central na
sua própria constituição, mas, diferentemente desta última, ela pode inscrever o
movimento e, por consequência, anotar os seus próprios deslocamentos. Como se sabe,
o cinema multiplica os pontos de vista através dos movimentos do aparelho e os
remultiplica por meio dos cortes e da sucessão dos planos. Tudo parece indicar que o
cinema nos oferece pontos de vista variáveis, decompondo o espaço numa
multiplicidade de perspectivas” (p.24-25)

- “[...] longe de abolir o agenciamento de um sujeito enunciador, o cinema potencializa


o seu poder, produzindo a hipérbole desse efeito de centralização que tem na
perspectiva central o seu princípio constitutivo” (p.25)

- “[...] os sons relacionados com objetos distantes da câmera são ouvidos numa
intensidade menos do que os sons relacionados com objetos mais próximos. Esse fato
(em geral produzido artificialmente na fase de mixagem das pistas sonoras) mostra que
o som é em geral colocado no filme fazendo referência a um ponto originário que
coincide, no plano da imagem, com a instância que dá a ver a cena. O cinema sonoro,
portanto, reforça a inscrição do sujeito enunciador no “texto” do filme, fazendo ampliar
a sua hegemonia para elementos até então refratários a esse poder de centralização”
(p.25)

- “Todo o trabalho do filme tem por função organizar o olhar, de modo que identifique
o comportamento da câmera (e de outros expedientes técnicos do filme, como a
montagem e a sonorização) com a visão de um observador imaterial e privilegiado,
capaz de assumir posições e deslocamentos impossíveis a um ser humano comum.
Encarnação desse observador onividente, a câmera procura sempre dar a melhor
imagem possível do que está acontecendo em cena, com as ênfases necessárias para
a inteligibilidade da história” (p.25-26)

- “Vê-se que o observador ideal do cinema não apenas deveria ter uma mobilidade
absoluta e uma total transparência, mas também ser uma espécie de onipotência, capaz
de encarnar um pássaro ou um computador, voar como uma ave ou colocar-se em
ângulos impossíveis, como se fosse uma expressão da divindade. A esse poder que tem
o olho enunciador de penetrar nas coisas como um observador invisível e totalizador
costuma-se dar o nome de ubiquidade, pois, tal como o sujeito onisciente da literatura, a
câmera cinematográfica é um olho que tudo preenche e povoa todos os lugares,
arrancando dos eventos, mesmo dos mais íntimos, mesmo dos mais clandestinos, a sua
visualização ideal” (p.28)

- “Quando o cinema introduz o movimento no terreno da representação visual, ele o faz


dissimulando, ao mesmo tempo, a descontinuidade que o constitui. [...] a continuidade
cinematográfica ordena a sucessão de planos e de pontos de vista no sentido de obter
um efeito de multiplicação do olhar oferecido pela câmera, mas sempre de forma que
amplie o poder dessa instância originária do sentido que está no centro de tudo” (p.28)

- “Do espectador pode-se dizer que, diante do filme clássico, ele se identifica
primordialmente com o olhar desse sujeito invisível e “transcendente” que centraliza o
espetáculo. Na sala de projeção, ele já não se encontra imobilizado sobre sua poltrona:
ele se torna elástico, mudando constantemente de posição em relação às imagens que
pululam à sua frente, modificando a todo momento o seu campo visual para abarcar
sempre da melhor forma possível a cena da narrativa. Ou se poderia dizer
diferentemente: a sua poltrona se torna um centro espacial, em relação ao qual as
imagens e sons se posicionam e reposicionam, deslocando sucessivamente o ponto de
observação” (p.29)

- “[...] o grande problema que cabe ao filme narrativo resolver é justamente o de


posicionar o espectador no seu espaço e dar coerência aos seus deslocamentos, para que
ele se possa constituir como o sujeito unificante da visão, equivalente plástico daquilo
que Lacan denomina, no campo da filosofia, o “sujeito da certeza” (Descartes). Assim,
o espectador, apesar de imobilizado diante da tela, encontra-se imaginariamente em
perpétuo movimento, enquanto o mundo à sua volta (à sua frente, seria melhor dizer),
malgrado marcado pela diferença e pela dispersão, encontra-se unificado e centralizado
em torno de sua figura fundante” (p.29)

Cp 3. O olho privado e seu duplo

- “[...] existem poucos exemplos na história do cinema disso que poderíamos chamar da
câmera subjetiva sistemática, ou seja, uma coincidência entre a visão dada pela câmera
e a visão de uma personagem particular, mantida sistematicamente do primeiro ao
último plano de um filme” (p.31)

- “[...] um outro problema que surge em decorrência do parti pris da câmera é a


dificuldade de cortar. [...] se toda narrativa se fecha numa perspectiva individual, o
percurso da câmera passa a coincidir com o percurso da personagem, de modo que
nenhum deslocamento da visão pode ser realizado sem que a própria personagem realize
fisicamente esse deslocamento. [...] Nesse sentido, um filme realizado inteiramente em
câmera subjetiva corre o risco de ficar prolixo e monótono, pois praticamente deve
ocorrer em “tempo real”” (p.34)

- “The Blair witch project escapa das limitações de Lady in the lake graças à esperta
estratégia de construir o filme dos pontos de vista, dos dois cinegrafistas que
“registraram” o material que vemos na tela” (p.35)

- “Fugir da própria percepção é perceber a própria fuga, mas a paranoia, segundo a


psicanálise, não é outra coisa senão uma perseguição onde o perseguidor coincide com
uma imagem ideal e objetivada do perseguido” (p.41)

- “O grande salto que a análise lacaniana promoveu em relação à tradição filosófica foi
justamente retirar o sujeito de dentro do homem, expulsar esse “homenzinho” que o
pensamento clássico supôs definir interiormente o eu. Lacan desmonta esse cogito
cartesiano de que a perspectiva geométrica do Renascimento é o correspondente
plástico e reconduz a noção de sujeito à sua dependência significante: o sujeito já não é
essa instância fundadora e casual do discurso idealista, mas tão simplesmente um efeito
da cadeia do discurso. A dialética do imaginário principia com uma alienação
originária que coloca o “homenzinho” fora do indivíduo, de modo que a sua realização
vai sempre depender de um outro (Lacan, 1970, p.89-97). Alienado de si e identificado
em outro, o sujeito é esse estado de ambiguidade que encontramos assumido nas
atitudes da criança, do ator e do espectador. Assim é que, no plano da pulsão escópica
que aqui nos interessa, o olhar é separado do sujeito que olha: o sujeito resulta então o
quadro que o olhar apreende; ele pertence agora – ao contrário do ponto geométrico da
perspectiva – ao domínio do visível (Lacan, 1985, p.90-115). Ora, no cinema, num certo
cinema, o jogo alternado do campo/contracampo vai permitir construir uma
reversibilidade infinita do percipere e do percipi, de modo que o sujeito torna-se aí não
mais essa transcendência que condiciona a ubiquidade, mas um efeito dessa cadeia
significante que é a geometria dos olhares” (p.42)

Cp. 4. A janela do voyeur

- “Falar da esquize do olhar implica introduzir o sistema de sutura. Antes de chegar lá,
porém, é precisa fazer um percurso intermediário e tratar de uma modalidade narrativa
que se situa a meio caminho entre o modelo da câmera subjetiva e a contraposição de
olhares através da técnica do campo/contracampo” (p.43)

- “Nesse tipo de construção, o olhar da personagem é assimilado apenas parcialmente


pela ubiquidade da câmera, conservando, entretanto, boa parte de sua integridade. Os
dois pólos não se identificam totalmente, o olho da câmera não é o do personagem, a
trilha sonora não é o seu monólogo interior em voice-over, mas eles se embaralham, se
contaminam, caminhando em sintonia durante a maior parte do tempo. O sujeito que vê
os fatos da diegese não é a personagem, mas o olhar que ele deposita na cena não vai
além da experiência do protagonista” (p.43-44)

- “[...] pulsão que é a chave do prazer no cinema: a escopofilia” (p.45)

- “[Um corpo que cai] A coincidência de olhares, entretanto, deve ser aqui também
relativizada. O apego à perspectiva da personagem é um álibi do “narrador” para
deixar de fornecer informações que em princípio seriam necessárias para a
inteligibilidade da história. [...] Em Psycho [Psicose], o apego da câmera ao ponto de
vista de saber o que se passa no estranho casarão de Norman Bates. A câmera (e a
montagem e o som) nos oferece, na maior parte das vezes, uma visão precária e
também um saber limitado, justamente porque restritos ao que vê e ao que sabe uma
personagem, para assim poder jogar com a emoção do espectador” (p.46-47)

- “Curioso é que todos esses filmes afinados pela perspectiva restrita de uma
personagem acabem por tematizar, de uma forma ou de outra, a questão da escopofilia.
Curioso não apenas porque esses filmes concentram todo o campo visual dentro daquilo
que a personagem vê, reduzindo assim o cenário e todas as demais personagens a
objetos de um olhar (condição propícia ao exercício do voyeurismo), mas também
porque esse tipo de construção remete diretamente à situação do espectador em relação
à imagem exibida. A escopofilia, prazer de tomar o outro como objeto, submetendo-o a
um olhar fixo e curioso, é um dos componentes principais da sedução do cinema. O
filme – qualquer filme – trabalha fundamentalmente com essa perversão do olhar
abelhudo que se satisfaz em ver o outro objetivado: “Embora o filme esteja sendo
mostrado, esteja lá para ser visto, as condições de projeção e as convenções narrativas
dão ao espectador a ilusão de um rápido espionar num mundo privado” (Mulvey, 1983,
p.441)” (p.48)

- “[...] para que o efeito possa ocorrer no cinema, é preciso que o filme se mascare,
que tudo nele simule uma distância e uma indiferença à presença da plateia, que
ele finja não saber que está sendo olhado. Assim, pela mediação do olhar da
câmera, o espectador pode espiar, na sala escura do cinema, a privacidade das
personagens, penetrar sem ser visto no leito do amor, aproximar-se das
personagens até poder “ler” as expressões em suas faces. Num certo sentido, o
sucesso e a magia de um certo tipo de cinema que convencionamos chamar de
“clássico” ou “dominante” está em saber lidar com o prazer visual da plateia e de
refletir certas obsessões psíquicas da sociedade que o produz” (p.48-49)

- “Num trabalho de 1915, aprofundando seu estudo da escopofilia, Freud (1972, p.11-
44) observa que o destino da pulsão é reverter-se no seu oposto, quando o prazer do
olhar é transferido para o olhar do outro e a sua finalidade ativa é substituída pela
finalidade passiva (ser olhado)” (p.51)

- “Como funciona essa ambivalência no cinema? Já observamos que o prazer de ver um


filme tem uma base escopofílica inevitável, pois no cinema submetemos a imagem – a
imagem do outro – a um olhar concentrado e bisbilhoteiro, como se a espiássemos pelo
buraco da fechadura, ocultos nas trevas da sala de exibição. No entanto, o voyeurismo
puro e simples não garante a sedução do filme, se o espectador abelhudo ao mesmo
tempo não se sentir olhado pelo outro” (p.52)

- “[...] se a posição do espectador no cinema é largamente caracterizada pela repressão


do seu exibicionismo, ele faz projetar nos protagonistas o seu desejo reprimido.
Identificando-se com as personagens, o espectador converte a tela transparente em
espelho, onde ele vê projetado o(s) seu(s) ego(s) ideal(is) e onde ele pro fazer um
reconhecimento feliz” (p.52)

- “O sujeito pode, portanto, no mesmo momento em que vê, esquecer-se de quem é e se


reconhecer naquele que está sendo visto por ele” (p.53)

Cp 5. A esquize do olhar

- “Se são raros no cinema exemplos de uso sistemático da câmera subjetiva como
encarnação do olhar de uma personagem, o fechamento da narrativa numa perspectiva
individual apenas em alguns instantes privilegiados do “texto” fílmico constitui pratica
corrente, a ponto de criar com a ubiquidade de uma tensão rica de consequências” (p.56)

- “A estrutura básica do campo/contracampo permite tornar perceptível a cadeia de


ações e reações que move os agentes da intriga, constituindo-os simultaneamente em
sujeitos e objetos dos olhares uns dos outros” (p.58)

- “Em inglês, dá o nome de eye-line match a esse tipo de construção, em que toda a
coerência das relações espaciais e do desenvolvimento da intriga é dada
predominantemente através das direções dos olhares numa sucessão de planos. Os
franceses tem uma expressão mais poética, designando a mesma construção através da
figura da linguagem mise-en-regards. Ambas as expressões buscam abranger essa troca
sistemática de olhares através do jogo de posições da câmera, essa ambiguidade
fundamental do sujeito-objeto que intercepta a ação das personagens e desenha a
interação em que estão envolvidas. O conceito que tais expressões condensam é o da
reversibilidade dos pontos de vista na cena clássica do cinema, ou seja, a ideia de que o
corte e o deslocamento de posição da câmera têm a função primordial de fazer alternar
os pontos de vista das personagens” (p.58-59)

- “A decupagem clássica, baseada na alternância do campo/contracampo, funciona


fazendo retornar a todo momento um número limitado de pontos de vista,
correspondentes à distribuição topográfica das personagens na cena” (p.59)

- “No cinema “clássico”, a alternância dos pontos de vista determina uma intensa
fragmentação da cena para multiplicar o olhar numa pluralidade de visões particulares”
(p.62)
- “Claro que o próprio “narrador”, interessado em tirar proveito, para fins de
envolvimento de dramático, daquilo que o espectador sabia e as personagens, não.
Voltando à mesma sequência de The Birds, Bellour (1969, p.35) nota algo semelhante.
Quando Melanie deposita a gaiola com os pássaros no interior da mansão dos Brenner, a
decupagem coloca na sucessão dos planos um inserto em primeiríssimo plano
mostrando a gaiola e as mãos da mulher rasgando o envelope endereçado a Mitch
(vergonha?, culpa?). Esse inserto não corresponde à visão de Melanie, pois a posição da
câmera é inteiramente oposta à posição de seus olhos” (p.63)

- “O cinema moderno não dispensou o jogo alternado do campo/contracampo, talvez a


invenção mais eloquente do cinema “clássico”, mas colocou-o para funcionar em
detrimento desse “centro fixo” que ordena os olhares. Dizemos cinema moderno por
uma questão de localização diacrônica, mas na verdade trata-se de um retorno à mesma
liberdade de tratamento dos planos e dos olhares que se tinha no cinema dito “mudo”,
antes que o modelo “clássico” resultasse hegemônico” (p.65)

- “[...] a lógica do eye-line match depende de uma obediência cega às regras da


obliquidade do olhar e da variação dos ângulos de tomada dentro do eixo da câmera,
sem o que ninguém sabe exatamente quem olha para quem, de onde e para onde se
dirige o olhar” (p.65-66)

- “No cinema moderno, vamos ver, a partir da nouvelle vague, um Godard


reinventando de forma inteiramente anticonvencional o mecanismo do eye-line match.
Toda a clareza, toda a transparência da topografia industrial do produto, encontra-se
agora problematizada por um manejo do campo/contracampo que embaralha as
categorias percipere e percipi num tal nível que complexidade que já não pode traçar
com precisão os limites do “narrado”” (p.66)

- “Cada plano continua sendo o campo onde deposita um olhar, mas o olhar de que
personagem, de que instância vidente? Essa ambiguidade é o efeito de uma
multiplicidade de “vozes” (de olhares) que traz à cena à uma experiência do ver e do
ouvir mais complexa, mais aberta e menos controlável do que aquela que o produto
tradicional pode produzir com seu quadro definido de valores: “A ruptura com o
esquema monológico do olhar sacramentado pela indústria amplia o alcance da
discussão proposta pelo filme. Produz uma representação onde o espectador é
obrigado a uma consideração mais complexa da experiência social e humana, em suas
contradições e múltiplos aspectos [....]” (Xavier, 1983b, p.61)” (p.66-67)

- “Na esteira da revolução godardiana, o cinema moderno nunca mais conseguiu levar
demasiadamente a sério a funcionalidade das regras do eye-line match e, mesmo quando
o fez (como ocorreu amiúde nos filmes de Fassbinder), o resultado tendia mais para a
perversidade corrosiva da paródia do que para a celebração de valores cristalizado”
(p.68)

Cp. 6. O sistema de sutura

- “Sabe-se o olhar dirigido diretamente para a câmera é comum na fotografia e é regra


na televisão, enquanto no cinema, mesmo no cinema documental, tem um efeito
francamente transgressivo. Igualmente, o plano frontal é bastante frequente na
fotografia (notadamente nos retratos de pessoas ou de paisagens), quase uma lei na
televisão, mas tão raro no cinema que, quando usado sistematicamente (Méliès no
primeiro cinema, Syberberg no cinema moderno), produz um efeito “teatral” ou,
costuma dizer, “anticinematográfico”. No cinema, predomina o enquadramento oblíquo
ao eixo da objetiva, que faz com que os olhares (todos os olhares, sem exceção) que se
trocam na cena não se dirijam jamais à câmera, mas a um ponto situado à esquerda ou à
direita do quadro, no espaço off” (p.71)

- “O espectador do filme, portanto, jamais é interpelado diretamente pelas personagens.


O olhar direito à câmera é o único, no cinema, para o qual não há nenhum eye-line
match possível, a não ser que esse match seja a própria câmera e a não ser que se deseje
revelar a presença da câmera (como na televisão) ou escapar para fora do espaço
diegético do filme (Branigan, 1984, p.46). Ocultando a existência da câmera, pode-se,
portanto, preservar o estatuto do espectador como voyeur invisível e ignorado. Mas, se o
espectador é o grande ausente do sistema significante do filme, essa ausência justamente
lhe dará um papel constitutivo, pois ela lhe permitirá experimentar os eventos da
diegese na função de seu sujeito” (p.72)

- “Por que essa obliquidade da cena em relação ao plano da tela e por que essa
obliquidade dos olhares em relação ao olhar do espectador? [...] ao código perspectivo
renascentista nela incorporado, esse código que faz embutir no quadro o “ponto de
vista” que o produz” (p.72)
- “A cena inscrita nessa pintura é sempre dupla: de um lado, há o visível, o motivo
encenado dentro do quadro; de outro, há a instância que olha para ele, que não aparece
no quadro, mas sem ela o arranjo topográfico deste último se tornaria absurdo. Alguém
vê a cena dessa maneira e sem a consideração da presença desse alguém no extraquadro
a pintura fica destituída de sentido” (p.72)

- “O objeto figurado no quadro, nesse sentido, funciona como índice da presença do


sujeito no compartimento anexo, na “quarta parede”, nesse lugar que em todo quadro
figurativo é sempre um “buraco”, isto é, um campo ausente. A presença do sujeito está
marcada na cena sob a forma de uma ausência: é a presença de algo vazio, de uma
lacuna, que será preenchida por aquele que vai se colocar diante do quadro para olhá-lo:
o espectador” (p.73)

- “A imagem é sempre considerada incompleta, pois, se não o fosse, não haveria lugar
para o observador. Nesse sistema pictórico, o espectador se encontra implicado no
espaço e essa inscrição se dá através da duplicação do dispositivo cênico: os elementos
jogados dentro do quadro funcionam aí como os signos dessa inscrição, os signos do
“assujeitamento” do espectador. A todo simbólico corresponde, portanto, um campo
ausente, lugar de uma personagem podemos chamar – no sentido lacaniano – de o
Ausente, que o imaginário do espectador preenche no ato de “leitura”. Esse lugar nem
sempre está definido como na cena de Velázquez: ele pode permanecer desterrado,
ubíquo, exigindo uma “leitura” fantasmática por parte do espectador, pois, apesar de a
posição deste último ser sempre privilegiada em relação ao dado visível, ela própria não
se deixa conhecer a não ser como um abismo. De qualquer forma, não se pode entender
a imagem figurativa como um discurso se não entendermos, ao mesmo tempo, a posição
que o destinatário ocupa na sua estrutura” (p.73)

- “Embora o cinema não possa ser reduzido a um quadro, pois nele intervêm o
movimento, a duração, o corte, o som e o deslocamento do ponto de vista, esse
dispositivo não deixa, todavia, de aí funcionar, pois no cinema o código perspectivo
renascentista ainda continua a comandar. Mas é preciso avaliar as condições específicas
em que isso se dá. Em geral, a sucessão dos planos pressupõe uma sucessão de olhares,
de modo que o sujeito da visão não apenas está sendo sucessivamente reposto como
também ele é amiúde nomeado” (p.73)
- “[...] no cinema, pois aí o plano é quase sempre a representação do olhar de uma
personagem definida na intriga. O que sucede então à relação imagem/espectador diante
desse intercâmbio de olhares, que é peculiar ao cinema, é que agora essa relação será
essencial para a articulação dos planos, pelo menos num certo tipo de cinema, aquele
mais largamente difundido” (p.74)

-“[...] o mais correto seria dizer que, antes de tudo, o campo fílmico se articula com o
campo ausente ou o campo imaginário do filme. Na sucessão, a relação especular se
inverte, de modo que o plano seguinte atualiza o campo ausente do plano anterior,
convertendo-o em campo fílmico, e joga o campo fílmico anterior naquilo que agora é o
lugar ausente do plano anterior, convertendo-o em campo fílmico, e joga o campo
fílmico anterior naquilo que agora é o lugar do ausente. Assim, a articulação dos
planos se dá nesse cinema como um sistema de trocas entre os campos presente e
ausente, um jogo de espelhos em que sujeito e objeto da visão se alternam dos dois
lados do olhar” (p.74)

- “O dispositivo que estamos descrevendo é conhecido na teoria cinematográfica como


sistema de sutura. Ele foi proposto originalmente por Jean Pierre Oudart [...] dando
início a uma vasta polêmica, para a qual contribuiu fortemente a crítica de língua
inglesa” (p.74)

- “O termo sutura foi introduzido por Jacques-Alain Miller (1978, p.24-34), no


contexto da teoria lacaniana, para designar a relação do sujeito com a cadeia de seu
discurso. [...] Miller usa a metáfora do número zero na série numérica, segundo a qual
só se pode pensar um número dessa espécie como algo que marca uma ausência: ele é
necessário para a lógica da cadeira, mas não está aí representando nada que não seja
uma ausência. O sujeito é, portanto, o objeto separado de si, anulando, excluído do
discurso que ele produz. Para a psicanálise moderna, ele é justamente o que toma o
lugar do objeto excluído, sutura a ausência” (p.74-75)

- “Como se dá isso no cinema? Tomemos um exemplo do próprio Outdart, extraído do


filme de Buster Keaton The general. [...] O espectador então se dá conta da existência
de um espaço que prolonga aquele que a tela exibe, algo como uma elevação que
domina o rio que a posição da câmera nos impede de ver. Ele pode então intuir esse
espaço que não vê e o enquadramento máscara. A “quarta parede” se faz sentir como
uma ausência, logo preenchida pelo fantasma que o espectador coloca em seu lugar
(Outdart, p.1969b, p.50)”

- “A forma mais elementar de ocorrência de preenchimento suturante no cinema se dá


na estrutura do campo/contracampo. No campo, algo ou alguém aparece no quadro. No
contracampo, essa imagem é designada retrospectivamente como objeto da visão de
uma personagem que dela está ausente. Ou vice-versa: o olhar é nomeado no campo e o
seu objeto, no contracampo. O olhar que comanda esse dispositivo é aquele de ninguém,
que se torna (com o contracampo, ou vice-versa) o olhar de alguém que o espectador
assume. A experiência visual do espectador é ordenada, portanto, por esse dispositivo
especular, o seu campo visual é suposto e identificado com o da personagem vidente à
medida que ele introjeta o portador do olhar no campo ausente” (p.76)

- “Pode-se dizer então que o contracampo sutura o buraco aberto na relação imaginária
do espectador com o campo fílmico. A novidade em relação à pintura clássica é que no
cinema a articulação do campo visível com o campo ausente é dada com uma
articulação de planos: cada plano sutura a “quarta parede” do que o antecede ou sucede,
de modo que, ao longo de uma sequência montada em campo/contracampo, o visível e
invisível vão trocando de lugar nos dois lados do dispositivo espetacular [...]” (p.76)

- “De acordo com as regras de continuidade, a montagem de um dispositivo especular


coerente pede um posicionamento oblíquo das personagens que se defrontam na cena
pois só assim, jogando com o direcionamento à direita e à esquerda do quadro, pode-se
indicar campos contrapostos” (p.77)

- “Daí por que Oudart considera que a estrutura reversível do campo/contracampo não
marca, ao pé da letra, uma visão “subjetiva”, ou seja, o ponto de vista de cada
personagem localizada no espaço: ela apenas indica a perspectiva deste ou daquele
protagonista, sem, todavia, assumi-la fisicamente. Em outras palavras, há uma
divergência entre a posição da câmera e a da personagem que aquela “indica”: a câmera
encontra-se ao seu lado, mas não no seu lugar. E o espectador, por sua vez, não se
identifica aí com a personagem que está ausente, mas com o Ausente propriamente dito,
embora ele saiba que a personagem está imaginariamente lá, naquele lugar em relação
ao qual ele está deslocado” (p.77)
- “Para Oudart, o contracampo a 180º é uma aberração, pois ele barra o “valor de
troca” dos planos e toma os olhares dos protagonistas como absolutos” (p.78)

- “A estrutura do campo/contracampo não é ainda o horizonte de Oudart. Ele considera


que o sistema de sutura permite superá-la, desde que a obliquidade dos olhares em
relação ao eixo da câmera se converta no alicerce de organização dos planos de um
filme” (p.78)

- “A câmera já não incorpora a visão “subjetiva” de uma (ou mais) personagem(ns): ela
se coloca de modo que essa visão de um sujeito fictício possa se tornar “legível” a um
sujeito imaginário, a um sujeito mítico: o espectador. Mas, ao mesmo tempo, o
espectador recupera sua diferença, pois a personagem ausente é sujeito de uma visão
que não é exatamente a sua: “Uma vez que a chave no processo de qualquer leitura
cinematográfica é dada pelo sujeito que ignora sua função está operando e está sendo
representada na leitura, Bresson é provavelmente o primeiro a ter, não propriamente
colocado em prática, mas colocado o principio de uma cinematografia que permite a
essa função operar de uma forma que já não é mais sem propósito ou vazia” (Oudart,
1969a, p.39)” (p.79)

- “A demonstração feita por Oudart de que na articulação recíproca do campo fílmico


com o campo ausente se joga o destino do significante no cinema foi atacada em vários
flancos pelos seus adversários” (p.79)

- “O principal problema com relação à teoria de Oudart (e de seu seguidor Daniel


Dayan) é que na sua conceituação se hesita entre entender o sistema de sutura como a
verdadeira possibilidade de significação no cinema e entende-lo como uma operação
“ideológica” (termo frequentemente empregado por Dayan) visando a produção do
sujeito como unidade, elo de coerência que “amarra” (articula) os planos do filme. [...]
O olho que vê a cena do ponto de vista do extraquadro – melhor seria dizer o Olho, esse
Grande Vidente - encontra-se em constante excesso em relação aos olhares que as
personagens trocam entre si. Ele designa, pela falta, pela ausência, um observador
privilegiado, cuja visão “transcende” a cena e os olhares que nela são jogados. O
espectador participa desse dispositivo com uma reverência que não deixa de ser mítica
ou religiosa: ele entrega ao Outro (ao Ausente) o peso da causa, uma vez que o sentido
não é dado como produzido ou procedente de sua visão, nem de qualquer outra
personagem localizada na cena” (p.80-81)
- “[...] Oudart não faz mais que retomar, de uma forma mais tortuosa do que outros o
fizeram antes (Baudry, por exemplo), o tema da ubiquidade da câmera, que estaria
funcionando mesmo na estrutura do campo/contracampo e mesmo nas tomadas ditas
“subjetivas”. Ademais, a descrição da operação suturante como sintomáticas da falta do
sujeito, do eclipse do significante, da perda do objeto (derivada, como não poderia
deixar de ser, da ênfase exagerada que a psicanálise lacaniana dá ao complexo da
castração e outros analistas, como Gilles Deleuze e Felix Guattari, não se cansam de
acusar) conduz fatalmente a uma “leitura” deserotizada, desprazerosa do enunciado
fílmico, que está longe de coincidir com aquela que faz o espectador comum. De fato, se
a “leitura” do filme fosse antinômica com o prazer da possessão da imagem, como
afirma Oudart, não haveria indústria cinematográfica capaz de resistir de pé” (p.81)

Cp. 7. O espectador no texto

- “[...] cabe a Nick Browne o questionamento até agora mais certeiro do sistema de
sutura, [...] Ele considera, de início, que o grupo de Outdart trouxe uma contribuição
específica para a análise fílmica, que é a invocação de um dispositivo no qual a visão do
espectador é mediada pela visão de alguém fora da cena e no qual a posição da câmera é
assimilada à estrutura narrativa do filme. Mas essa simples inscrição de um olhar na
cena – mesmo que dotada de autoridade – não pode explicar adequadamente o processo
de significação no cinema. Mesmo quando eu vejo através da mediação dos olhos das
personagens (ou do Ausente, se quiserem), a relação emocional, a empatia que
estabeleço com esses mediadores vai depender de um emolduramento criado pelo
conjunto do “texto” fílmico, e essa relação é complexa porque inclui também, além da
transfusão de olhares, a intervenção da maquinaria sonora e o papel significante da
montagem. A controvérsia em torno da posição que o espectador ocupa na ficção que se
desenrola na tela não se esgota, portanto, apenas no processo de identificação com a
câmera [...]” (p.81)

- “[...] o filme trabalha justamente na diferença que se estabelece entre esses pontos de
vista físicos, primários, e o ponto de vista figurado que a enunciação constrói” (p.84)

- “A instância doadora no cinema (a quem Browne chama o “narrador”, como na


literatura – um deslize de seus textos) comanda não apenas a orientação da câmera, mas
também a mise-en-scène, a montagem e a sonorização, posicionando o espectador numa
certa relação com o mundo representado. Essa posição não é geográfica como no
sistema de sutura, não é um lugar, nem mesmo o lugar da câmera, mas é uma posição
ficcional, a que Browne denomina “espectador no texto”. Em outras palavras, a posição
do espectador, bem como sua empatia, não são identificadas nem com a posição da
câmera, nem com o ponto de vista de qualquer personagem na trama, mas são inscritas
numa complexa estrutura significante que cumpre à teoria cinematográfica descrever.
Há uma diferença, portanto, entre o que a personagem vê (o que se mostra de sua visão)
e o que vemos nós, os espectadores; essa diferença não corresponde apenas a um
divergência na localização das visões, mas é toda um retórica fílmica que a condiciona”
(p.85)

- “A instância doadora, enfim, não é simplesmente um olho, nem está simplesmente


numa certa posição (“ausente”) em relação ao quadro que organiza: ela é um fato da
produção ficcional e, como tal, conduz os procedimentos de “leitura” que o espectador
irá incorporar. [...] No sistema da sutura, a cena é sempre referida à autoridade do olhar
de um ausente, ou, melhor ainda, de dois ausentes que se distinguem um do outro: a
personagem fora do quadro (que será ou já foi revelada no contracampo) e o espectador
que assume o campo visual do Grande Ausente: a câmera e sua encarnação metafísica.
A origem do campo fílmico é estabelecida apenas com referência ao agenciamento do(s)
olhar(es) que nele está(ão) depositado(s), não se levando em consideração o
agenciamento final, a autoridade de um “narrador”” (p.85)

- “Na estrutura campo/contracampo “ortodoxa”, cada tomada é “lida” como a


representação do olhar da personagem que está fora do quadro e, momentos antes, havia
sido mostrada num contracampo” (p.86)

- “[...] nos termos das teorias do ponto geométrico e da sutura, há ai um paradoxo: toda
a sequência está relacionada com o ponto de vista e os interesses de Lucy, mas a
simpatia (ou a piedade) do espectador vai para a prostituta. Como posso me identificar
com a posição humilhada se as visões que recebo dela pertencem a outra personagem,
aquela justamente que estou em vias de rejeitar? Como localizar na topografia da cena
essa posição paradoxal de um espectador identificado não com a fonte do olhar, mas
com o seu objeto passivo? Essa incongruência entre o sentimento experimentado pelo
espectador e o dispositivo formal onde se forja a ficção demonstra que é preciso
considerar o funcionamento do filme não em função de um de seus elementos, mesmo
que hegemônico, mas como uma máquina integrada de produção de sentido, como uma
retórica” (p.88-89)

- “A identificação não é uma encarnação pura e simples do outro; é um estado


emocional e cognitivo que os procedimentos expressivos forjam ao longo da trama.
Nós fomos preparados, desde as primeiras imagens do filme [...] a acreditar que essa
exclusão é um ato abjeto e inaceitável” (p.89)

- “A posição do espectador no “texto” fílmico não é definida, portanto, nem em


termos de orientação geográfica, nem em termos de encarnação pura e simples na
personagem que vê ou naquela que é vista. A sua implicação no “texto” se dá como
um terceiro (***), que é capaz de incorporar ou rejeitar o vidente ou o visível”
(p.90)

- “O investimento emocional do espectador não está nesse “centro”, nem em Lucy, nem
na posição da câmera, embora mantenha uma certa relação com eles: relação de
assunção, de rejeição, de distanciamento ou qualquer outra. O espectador é sempre
distinto da personagem, e o ponto de vista que ele encarna não está definitiva ou
sumariamente estabelecido por uma simples tomada ou por uma série de tomadas.
[...] Em se tratando de cinema, não se pode – e esse é um dos principais postulados de
Browne – reduzir a questão da representação à construção de um ponto no espaço.
A nossa implicação como espectadores na ação é construída com o desenrolar dos
eventos no tempo, é todo um processo que deve ser pensado em termos de sua duração
ao longo do filme. Assim, a dialética do posicionamento do espectador – seu processo
de “habitação do texto” – é o efeito de um modo de sequenciação, de uma posição
regular de integrados e marginais, de uma modulação da atitude receptiva ao longo da
dimensão temporal” (p.90)

- “A coerência da sucessão dos planos na dimensão temporal é que forja o olhar no


cinema (com sua reversibilidade visível e vidente), e não uma contraposição física,
imediata, absoluta, entre um olho e um campo visível. A personalização do olhar, na
sequência de Stagecoach, é criada, portanto, lentamente, à medida que os campos
fílmicos contrapostos, os enquadramentos, as direções de olhares agenciam um ato de
visão coerente. Para que a eloquência do olhar possa se verificar na tela é preciso
tempo, ou seja, sequência de tomadas” (p.91)
- “O lugar que o espectador ocupa no “texto” é uma construção do próprio “texto”, que
dispõe a ação de uma determinada maneira, sugere um caminho de “leitura”, e é o
produto da enunciação disso que Browne chama o “narrador”. Só que este último se
apaga no corpo da trama, em benefício das personagens e da ação. Ele não é da mesma
natureza das personagens e da ação. Ele não é da mesma natureza das personagens,
razão pela qual não há pertinência em considerá-lo simplesmente visível ou invisível,
presente ou ausente. Ele tampouco se apresenta à sua audiência sob a forma “teológica”
de uma divindade, visto que na verdade ele não se apresenta de modo algum que não
seja através do agenciamento das personagens. O apagamento da presença desse
“narrador”, a dissolução de suas marcas no enunciado, o mascaramento de sua
autoridade, tudo isso tem por função fazer com que a história pareça contar-se a si
mesma. A autoridade narrativa é, por assim dizer, internalizada nas personagens, que
parecem se converter elas mesmas na fonte de exposição da história. Claro, Browne
trata aqui de um tipo particular de filmes, a modalidade dita “clássica”, de que
Stagecoach, aliás, e não sem motivo, é o modelo mais acabado e fonte de referência
constante” (p.92-93)

- “Grande parte da teoria francesa encontra-se marcada fortemente pela crítica que faz
Derrida da “presença”, do “centro”, a ponto de o espectador fílmico ser considerado
“teológico” por estar “centralizado” no eixo da perspectiva. Mas do fato de o espectador
sempre ver a cena através da mediação do centro óptico da perspectiva, através do olho
da câmera, não se pode tirar a conclusão de que ele se identifica fatalmente com esse
ponto. Em Psycho, o plano em que o detetive Arbogast cai da escada, depois de
esfaqueado por “alguém”, no casarão de Norman Bates, é dado inteiramente do ponto
de vista desse “alguém”, exatamente porque a câmera subjetiva permite esconder a
identidade do agressor. Mas seria um despropósito afirmar que ocorre aí qualquer
espécie de investimento emocional, ou mesmo de transferência perceptiva entre o
assassino invisível e o espectador, mesmo porque este último não se pode identificar
com quem ele nem sequer conhece. Nesse plano, o olho da câmera é inteiramente o
olho do outro. O espectador do filme – esclarece Browne – é um pouco como o sujeito
do sonho, um sujeito plural que vai se transfigurando ao longo do processo onírico. Ele
está em vários lugares ao mesmo tempo, ele é e não é ele próprio, ele faz às vezes do
observador e do observado simultaneamente, podendo ainda avaliar os clamores
de cada um e responder a eles. O que não quer dizer que ele não esteja “centralizado”
[...], mas é preciso pensar esse “centro fixo” como uma noção problemática, cuja
complexidade e função no discurso crítico não podem ser reduzidas apenas a um
determinismo técnico” (p.93-94)

Cp. 8. Identificação, projeção, espelho

- “Isso é exatamente o cinema: uma arte da multiplicação do olhar e da audição, que


pulveriza olhos e ouvidos no espaço para construir com eles, entre eles, uma
“sintaxe”, ou seja, uma intrincada rede de relações” (p.95)

- “O que há de especificamente cinematográfico nessa estrutura é que ela mobiliza de


maneira múltipla o olhar. Há, de início, o olho frio da câmera, que “registra” a ação,
porém, já tirando proveito da ambiguidade da situação, jogando com as diversas
espécies de olhares que dramatizam o campo da ficção. Há um duplo olhar do casal, que
se troca apenas entre si e se faz cego a tudo o que se passa ao seu redor, como que
enclausurado em si mesmo. Há o olhar inquieto e cheio de simpatia do público,
identificado com os protagonistas no que eles têm de transgressores e vítimas, mas deles
apartado no que têm também de inocência estúpida. Enfim, há ainda mais um olhar, este
virtual e hostil, o olhar do aparelho repressivo, que atormenta a cena como um intruso”
(p.96-97)

- “Cada olhar se encontra, portanto, na contingência de ver sempre menos do que


a cena mostra, todos fazendo um pouco a política do avestruz, com sua mirada parcial
e interessada, o conflito se situando não propriamente entre os protagonistas, mas entre
o que se vê e o que se ignora em cada um desses olhares. [...] O que percebo no cinema
não é apenas o que me é mostrado no recorte do quadro, através da mediação da câmera.
A minha percepção depende fundamentalmente do que eu adivinho na percepção
do outro, do que eu suponho que o outro vê (ou não) e do que eu suponho que o
outro sabe (ou não) que eu vejo” (p.97)

- “O mesmo campo escópico que constitui o sujeito é também o local onde o sujeito
fracassa como fonte originária, como foco, como “ponto de vista”, porque, malgrado
esteja no ponto privilegiado de vidência, ele não é o único vidente da cena. O olhar,
como notou Merleau-Ponty (1971, p.235-237), é um quiasma, ponto de cruzamento e
reversibilidade do eu e do outro, dupla inscrição do dentro e do fora. [...] No cinema,
quem sabe exatamente quem vê e quem é visto, se os vários olhares do filme se
cruzam, se trocam e se revertem uns nos outros? Circularidade infinita que é, esta,
sim, a sintaxe mais profunda do filme” (p.97-98)

- “O que esteve em jogo até aqui é a maneira como se organizam os vários olhares que
permitem ver o filme: os olhares que as personagens trocam na cena e esses olhares
problemáticos, meio internos e meio externos, que o espectador e a instância vidente
depositam no quadro (às vezes coincidindo, às vezes divergindo), com todos os
desdobramentos, multiplicações e assimilações de uns por outros” (p.98)

- “Assim, o processo que chamamos de “identificação”, uma das chaves de legibilidade


(inteligibilidade) do filme, nunca deve ser pensado como um monolito, mas como um
sistema maleável (embora consistente) de trocas provisórias, em que os vários olhos do
filme (entre os quais o do espectador) se substituem segundo um modo de agenciamento
que pode ser fechado ou aberto, “centralizado” ou múltiplo, de acordo com cada filme.
Habitar o “texto fílmico como um “leitor” é se dividir para ocupar muitos lugares ao
mesmo tempo e experimentar o outro como uma entidade móvel e escorregadia. [...]
Permutações, mudanças de papéis, jogos de assujeitamento e objetivação” (p.99)

- “Se bem que, efetivamente, o “texto” fílmico joga com as posições de câmera e com
os olhares literais que elas colocam na cena, para implicar o espectador no seu campo
simbólico, nada autoriza apontar aí qualquer determinismo simples, em que um
componente funcionaria como “modelo” ou “suporte” do outro. Quando a mulher
encurralada na cozinha vê avançar contra ela o marido alucinado de machado em punho,
em The Shining, vemos a reação da mulher através dos olhos do marido, incorporamos
o olhar deste que é, nesse momento, a instância vidente, mas nossa identificação
escorrega a personagem indefesa (a mulher), objeto do olhar daquele outro, e com ela
sofremos o medo da morte. Em outras ocasiões, entretanto, em que a anomalia do
agressor está menos caracterizada, é comum o espectador se encontrar naquela posição
ambivalente do assassino e da vítima ao mesmo tempo. Pode-se até mesmo dizer que
boa parte do fascínio exercido pelo filme de horror ou de suspense emotivo está nesse
deslizamento da subjetividade do espectador da identificação com o agressor para a
identificação com a vítima, e vice-versa, o que lhe permite experimentar um misto de
segurança e fragilidade, onipotência e abandono (só segurança seria monótono; só
fragilidade seria pouco agradável). Nisso falham as teorias convencionais da
identificação, que acreditam ingenuamente que o espectador de cinema faça projetar seu
ego em uma ou duas personagens relevantes do filme (o “herói” ou a “heroína”,
Cinderela ou o príncipe) e mantenha essa identificação do começo ao fim da película. A
identificação de superfície é um fenômeno banal, artificialmente produzido que pouco
eco encontra no fundo da subjetividade de cada espectador. Não é difícil alguém se
surpreender no cinema torcendo pelo carrasco, simpatizando com o vilão ou atraído por
uma personagem enigmática de fundo. As projeções/identificações, como já dizia
Edgar Morin (1980, p.81-106), são “polimorfas”, manifestam-se de forma fluida,
permutável e ambivalente, ultrapassando o quadro das personagens fixas para nos
colocar dentro do semelhante tanto quanto dentro do estranho, donde se explica, aliás, a
diversidade dos filmes e o ecletismo do gosto do público” (p.100)

- “Deve-se conhecer o seu modo de articular os opostos e o mecanismo que joga o


espectador do lado de cá e do lado de lá do olhar. Alguns autores, como Jean-Louis
Baudry e Christian Metz, falam de dupla identificação no cinema, fazendo referência à
distinção freudiana e (mais tarde lacaniana) entre a identificação primária e
secundária, como fatores responsáveis pela formação do eu. Chamam eles de (1)
identificação primária a assimilação pelo espectador do olhar agenciador do plano,
o olho da câmera ou da instância vidente. [...] Já a (2) identificação secundária seria
a identificação lato sensu, aquela que se dá com o representado, com as personagens da
intriga. Claro, a identificação de que se fala aqui – e como já observou Metz – é aquela
que se dá no interior da sala escura do cinema, e não a que ocorre nos primeiros anos de
vida para constituir o eu da criança; ela se diz “primária” ou “secundária” em relação
apenas ao processo cinematográfico, já que, no sentido restrito da psicanálise, qualquer
outra identificação que não a do espelho só pode ser secundária” (p.100)

- “Como já é sabido desde a intervenção de Lacan, a fase do espelho, vivida pela criança
entre os 6 e os 18 meses de vida, é a experiência responsável pelo surgimento no
indivíduo da dualidade entre o sujeito e o objeto, ou entre o eu e o outro. Mas, para que
essa constituição imaginária possa ocorrer, duas condições complementares são
necessárias: a imaturidade motora (a criança ainda não coordena ou coordena mal ou
seus movimentos) e a maturação precoce de sua organização visual (é pelo olhar e
unicamente pelo olhar que ela vai descobrir no espelho a imagem de seu próprio corpo e
diferenciá-la da imagem da mãe e do restante do ambiente). Considerando que essas
duas condições – suspensão da motricididade e predominância da função visual – se
encontram repetidas durante a projeção cinematográfica, alguns autores desconfiaram
existir aí algo mais que uma simples analogia [...]” (p.101)

- “[...] Christian Metz já alertou sobre o fato de que a tela é um espelho (ela nunca
reflete a imagem do vidente) e o espectador não é uma criança, já passou pela
experiência do espelho, já sabe se reconhecer a si próprio e já ultrapassou a
indiferenciação primativa e do não-eu. Mas, ainda assim, ele precisa se identificar com
uma instância vidente, ele precisa se constituir como sujeito dentro do filme; do
contrário, até mesmo o filme mais banal se tornaria para ele inteiramente
incompreensível” (p.102)

- “A (1) identificação primária no cinema ocorre, portanto, com uma diferença básica
em relação à experiência do espelho: o sujeito se reconhece, antes de tudo, naquilo
em que ele não está, no quadro em que ele figura fundamentalmente como um
excluído. Mas, se ele está excluído do quadro, ele se faz presente na cena, mesmo que
em transparência, pois é para ele que as figuras desfilam, é em função de seu lugar que
as personagens entram e saem de campo. Todo o material perceptivo vem se depositar
no espectador, como se ele fosse uma segunda tela, e é aí, na tela do eu excluído, que a
sequência vai se compor e ganhar sentido, possibilitando ao imaginário projetado
ascender ao campo simbólico. Apenas nesse aspecto o público se encontra
“centralizado”, pois toda a paisagem do filme se organiza em função do seu lugar,
não o lugar óptico que ele ocupa no cubo da cena, mas o seu lugar dentro da ficção,
como o elemento que “costura” e dá forma orgânica a essa sucessão de estilhaços a
que chamamos planos” (p.102-103)

- “Isso a que chamamos “identificação primária” não é, dizíamos, um monolito: é já um


nó de múltiplas projeções. Nós nos fazemos projetar, antes de tudo, nessa instância que
deixa ver (e ouvir), que já contatamos ser algo mais que o simples olho da câmera. Essa
instância – o sujeito da enunciação ou, segundo um conceito menos preciso, o
“narrador” – em geral se encontra invisível na cena “clássica”, não se deixando marcar
no próprio enunciado. Sendo transparente o “narrador”, e invisíveis a câmera e as
marcas de trabalho (montagem, sonorização etc.), o espectador tem a impressão de ser
ele mesmo o sujeito, só que um sujeito vazio, pura capacidade de ver e ouvir. Mas o
sujeito que agencia os planos, esse que o espectador em geral não vê, pode se diluir na
cena transferindo às personagens o agenciamento da história. Nesse caso, o espectador
se identifica com as personagens, mas essa identificação ainda é primária em termos
cinematográficos, pois se trata de ver através da mediação dos olhares das personagens
(câmera subjetiva, campo/contracampo). Igualmente, na maioria dos casos, essa
identificação se dá ainda com a figura invisível, aquela que permite ver, mas está
momentaneamente fora do quadro, só que a agora esse sujeito fictício já aparece
nomeado: ele está ausente de um ou mais planos, mas a sucessão dos planos o localiza e
personaliza o seu olhar. Como no espelho, a identificação primária é uma
identificação com o mesmo, ou seja, com o próprio olhar. O olhar da personagem
vidente cruza obliquamente o olhar do espectador e vai se confundir com este na medida
em que ambos têm em comum o fato de indicarem um sujeito fora do quadro, o sujeito
que vê a imagem da forma como ela é apresentada. Assim, a identificação primária já
se encontra marcada por um encavalamento de projeções: o olhar do espectador,
necessariamente mediado pelo enquadramento da câmera, é trabalhado pelo
“narrador” através do manejo dos códigos e subcódigos cinematográficos, para
depois se desdobrar no olhar da personagem ausente e finalmente se atomizar nos
olhares que figuram na cena” (p.103-104)

- “Nesse sentido, o cinema – experiência cultural de forte apelo às projeções – vai jogar
um papel privilegiado nas identificações secundárias. Através dele, o ideal do eu pode
se constituir e evoluir através de identificações a modelos bastante diversos e
particularmente contraditórios. Em alguns pontos, pelo menos, o espectador do filme
encontra-se colocado num dispositivo que reedita algumas circunstâncias da cena
primitiva: é o mesmo sentimento de exclusão diante da imagem recortada pelo quadro; é
o mesmo processo de identificação com as personagens que evoluem na cena onde ele
figura como um ausente; é a mesma impotência motora e a mesma pulsão voyeurista
que lhe garantem uma hipertrofia do olhar (e da audição)” (p.105)

Cp. 9. O ponto de escuta

- “Para Michel Chion (1990, p.3), por exemplo, o que o cinema mobiliza nos seus
dispositivos técnicos e imaginários não é nem a visão, nem a audição separadas ou
somadas, mas uma audiovisão, entendida como uma atitude perceptiva específica e
única. [...] E, no que diz respeito à enunciação, parece óbvio também que falamos em
ponto de vista, no que se refere à imagem, podemos e devemos falar também de ponto
de escuta, no que se refere ao som, já que pressupomos a imagem e o som combinados
e funcionando em sincronia no cinema” (p.107)

- “No entanto, quando partimos para o exame das obras concretas que o cinema nos
legou, nem sempre as coisas funcionam tão bem quanto na sua idealização teórica.
Ponto de escuta, na verdade, é uma noção bastante problemática, porque pressupõe a
trilha sonora do filme funcionando da mesma forma que a pista de imagens, ou seja,
organizada em função de um ponto originário do espaço, aquele onde se imagina estar o
sujeito vidente. Mas, como já observou o próprio Michel Chion (1990, p.80), se
consideramos a natureza onidirecional do som (ele se propaga para todas as direções) e
também da escuta (os ouvidos, contrapostos um em relação ao outro, captam
circularmente todos os sons que estão ao nosso redor), não é muito fácil pensar o som
como derivado de um ponto” (p.108)

- “Isso é apenas parte do problema. Enquanto a imagem é concebida (no cinema


“clássico”, pelo menos) como algo homogêneo, como uma matéria plástica obtida num
único registro da câmera, a pista sonora aparece sempre como um híbrido, onde pelo
menos três diferentes espécies de fontes sonoras estão sendo invocadas – os diálogos, os
ruídos e a música – e um trabalho de mixagem posterior aos registros faz a combinação
final, em diferentes intensidades. Algumas dessas fontes (os ruídos principalmente, mas
também as vozes das personagens, desde que não se trate de um comentário over)
podem estar mais facilmente relacionadas com o que se passa nas imagens e calibradas
(em termos de intensidade) para designar um possível ponto de escuta, mas outras (é o
caso da música, com exceção apenas dos casos em que ela está sendo produzida por
alguma fonte mostrada na imagem) podem já não pertencer ao universo da diegese,
aparecendo, portanto, como um comentário externo abstrato, impossível de marcar uma
experiência de subjetivação” (p.109)

- “A esse respeito, Chion (1985, p.52) nos chama a atenção para esse efeito paradoxal
que o cinema produz (que ele chama de “desprendimento espacial”), quando se ouve um
diálogo bastante íntimo entre duas personagens, enquanto se vê a imagem de uma nave
espacial navegando no espaço cósmico, onde supostamente devem estar as personagens
que travam o referido diálogo. O que se passa é que o cinema “emoldura” a voz das
personagens, em geral num plano que inicia a sequência e identifica os falantes, e, uma
vez especificado o contexto do diálogo, a câmera pode deslocar-se à vontade no espaço,
pois a unidade da sequência será garantida pela uniformidade da trilha sonora” (p.113)

- “Filmes ou vídeos gravados com som direto, por meio de um microfone acoplado à
própria câmera (como se vê em reportagens ou documentários), registram essas
diferenças cada vez que a câmera muda de posição. Tais flutuações dão um colorido
especial a esse tipo de filme e em geral são interpretadas pelo público como um índice
de autenticidade dos registros, apesar de que esse efeito pode ser simulado em estúdio
(como se pode ver na atual vaga de filmes de ficção que imitam procedimentos de
reportagem televisual). Na produção cinematográfica mais habitual, porém, essas
flutuações são consideradas indesejáveis, distrativas e até mesmo comprometedoras do
ilusionismo mimético que o cinema visa produzir. [...] Isso produz um resultado mais
uniforme e mais facilmente assimilável às regras de continuidade do cinema clássico.
Aliás, recordemo-nos de que a uniformidade da trilha sonora (diálogos e música)
constitui um recurso importante de ocultamento dos cortes e das elipses no cinema”
(p.114)

- “Há no cinema um pressuposto de que tudo o que dizem as personagens precisa ser
entendido pelo espectador, mesmo quando o conteúdo de suas falas não traz nenhuma
informação importante para o andamento da narrativa” (p.114)

- “O paralelo imaginado por Chion (1985, p.53) entre o funcionamento do aparelho


auditivo do aparelho auditivo e o da mesa de mixagem é instrutiva nesse sentido.
Vivemos num ambiente repleto de informações sonoras que nos chegam de todos os
lados (devido à circularidade da percepção auditiva), mas, ao processar os sinais
recebidos pelos ouvidos, o cérebro seleciona aqueles que são significantes para o
ouvinte. Quando estamos num bar superlotado e ruidoso, ainda assim conseguimos
entender o que dizem nossos companheiros de mesa, porque o cérebro destaca suas falas
do restante da massa sonora. É o famoso cocktail party effect: o aparelho auditivo
“aumenta” o nível subjetivo dos sons que interessam ao ouvinte e atenua ou mesmo
suprime os demais, numa operação semelhante à da mixagem de sons. O cinema produz
artificialmente o mesmo efeito” (p.119-120)

Cp. 10. A crise da enunciação


- “[...] verificar como o cinema (um certo tipo de cinema; não todo) trabalha para
interpelar o seu espectador enquanto sujeito, ou como esse mesmo cinema
condiciona o seu público a identificar-se com e através das posições de
subjetividade construída pelo filme” (p.125)

- “[...] tais teorias pressupunham uma concepção um tanto monolítica do que era o
cinema “clássico” e essa concepção começou a se mostrar problemática quando as
atenções se voltaram para um número imenso de filmes comerciais e hollywoodianos
que não referendavam o modelo (os musicais principalmente). Por outro lado, a
concepção que se fazia da atividade do espectador ou do processo de recepção era
demasiado abstrata e rígida: o espectador era visto, nesses sistemas teóricos, como uma
figura ideal, cuja posição e afetividade encontravam-se estabelecidas anteriormente pelo
aparato pelo “texto” cinematográfico, não cabendo, portanto, nenhuma consideração a
respeito de uma possível resposta autônoma de sua parte. [...] Essas teorias
funcionavam dentro de uma moldura conceitual que imaginava uma subjetividade
profundamente determinada pelas representações ideológicas. Além disso, elas
foram também acusadas, por esses mesmos setores, de serem a-históricas: nelas, os
filmes eram analisados independentemente do seu contexto social e político. Um filme
francês de 1962, ambientado na França do começo do século XV (O processo de Joana
D’arc), era lido da mesma maneira que um western norte-americano realizado por
Hollywood em 1939 e ambientado nos tempos da colonização (stagecoach), para ficar
apenas nos exemplos de Nick Browne” (p.126)

- “Os nomes mais representativos dessa nova tendência passam a ser David Bordwell,
Janet Staiger, Richard Arlen, Noël Carroll, entre outros. Eles se colocam contra a
presença “excessiva” da psicanálise na teoria da enunciação e também contra um certo
“determinismo” da teoria do dispositivo de Braudy (que advoga a passividade do
espectador, a sua vulnerabilidade à manipulação, a sua regressão narcísica, e assim por
diante)” (p.127)

- “Com a crise, o conceito de enunciação, extraído simultaneamente das teorias


linguística e psicanalítica, começa a declinar e ser substituído pelos estudos de recepção,
mas pragmático e baseados em princípios dos estudos culturais, da filosofia analítica e
das ciências cognitivas. O cinema começa a deixar de ser objeto privilegiado de
atenção. As novas abordagens privilegiam agora a televisão e os novos meios. Em lugar
de cinema, fala-se mais genericamente em mídias ou audiovisual. A recepção começa a
ser encarada com autônoma com relação à produção e, portanto, independente das
determinações do “texto” e das artimanhas de um sujeito enunciador. O “lugar” que o
espectador ocupa no filme ou no audiovisual em geral, se não é inteiramente arbitrário,
é datado agora pelo contexto da recepção. Dependendo desse contexto, a recepção pode
ser aderente às determinações textuais do filme, pode negociar com elas ou até mesmo
resistir a elas, redirecionando a “leitura”. [...] Depois das teorias da enunciação, não
tivemos, no campo do cinema, nenhuma outra Grand Théorie (considerando que a
incursão de Deleuze no campo é mais uma reflexão filosófica do que uma teoria
cinematográfica), mas apenas aquilo que Bordwell chama de Middle-leve researches
(“pesquisas de nível médio”) e Noël Carroll de piecemeal theory (“teoria de retalhos”).
[...] A questão do cinema já não se resolve dentro do campo do próprio cinema. Com a
convergência dos meios e a generalização do audiovisual, as questões teóricas se
deslocaram. Os fundamentos de uma nova teoria do audiovisual podem já não estar
sendo construído no campo específico do cinema. Qualquer enfrentamento do impasse
teórico vivido hoje pelo cinema deve, portanto ser buscado fora do cinema, nesse
terreno flutuante de novos meios que se convencionou chamar de ciberespaço” (p.129-
130)

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