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A Polivalência da Verdade
Mafalda Teixeira Inácio

Rashomon, datado de 1950 e da diretoria de Akira Kurosawa, é um


filme atemporal e tipicamente caracterizado pela constante incógnita,
presente no pensamento de todos aqueles que o visualizam, interpretam
e lhe atribuem significados diversos.
Primeiramente, o próprio título desta longa-metragem possui em si
uma carga simbólica elevada, uma vez que faz referência a uma famosa
temática: o efeito rashomon. Este consiste numa expressão utilizada para
descrever uma situação que não pode ser julgada pela objetividade, uma
vez que cada qual interpretará o ocorrido de forma subjetiva e pessoal.
Assim sendo, demos, então, início a uma análise mais profunda deste
filme.
Num plano geral, Rashomon retrata um episódio ocorrido no Japão
onde três personagens masculinos, nomeadamente um padre, um
camponês e um lenhador, debatem entre si um crime específico, relativo
ao assédio de uma mulher e ao suposto assassinato do seu marido.
Embora este pareça, de início, um caso simples e de fácil tratamento, o
mesmo apresenta-se a cada momento mais complexo, uma vez que são
expostos variados testemunhos e pontos de vista divergentes,
responsáveis pelo adensamento do mistério envolvente ao filme.
Ao focarmos a nossa atenção sobre uma das primeiras falas
apresentadas na longa-metragem, nomeadamente: “I, for one, have seen
hundreds of men dying like animals, but even I've never before heard
anything as terrible as this.”, podemos inferir que até mesmo na simples
apresentação do delito em debate é realizado um juízo de valor e
comparação, o que, por si só, comprova a tese expressa no título do filme.
Além do mais, segundo as palavras de Anatole France, escritor
francês do século XIX e inícios do século XX, “Uma coisa chamada crítica
objetiva não existe, (…) A verdade é que ninguém consegue sair de si
mesmo”. À luz da minha interpretação, acredito que esta citação seja
crucial para o bom entendimento da temática anteriormente apresentada,
pois, através da mesma, é possível comprovar que é extremamente
complexo realizar qualquer tipo de crítica, sem tornar a mesma num mero
juízo de valor, gosto ou preferência, algo da qual a totalidade da
argumentação entre o padre, o camponês e o lenhador sobre o crime, é
exemplo.
Algo que me fascinou, desde o início do filme e ao longo de toda a
sua duração, foi a vasta importância e simbologia relacionada ao leque de
efeitos sonoros presentes na longa-metragem. Creio que numa
abordagem à clareza de maior minuciosidade e rigor, Rashomon
apresenta-se de forma singular relativamente à sua sonoridade, uma vez
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que, durante toda a sua durabilidade, músicas, ruídos e sons específicos


são utilizados para complementar os variados momentos do enredo.
Acredito que existem dois exemplos fulcrais para um melhor
entendimento deste tópico: primeiramente, algo bastante comum ao
longo de todo o filme é a transição da musicalidade, consoante, não só os
diferentes momentos e episódios, mas também consoante as personagens
que se encontram presentes em cada cena específica. A título de exemplo,
comparemos dois momentos distintos: quando a personagem feminina
Masako, segundo o testemunho de Tajômaru, surge sozinha em cena,
toda a sonoridade cinematográfica envolve-se numa ampla harmonia,
tranquilidade e delicadeza, como ocorre na cena retratada no minuto
vinte e dois do filme, intensificando a noção de fragilidade e amabilidade
que caracteriza esta figura, segundo o olhar obsessivo de Tajômaru.
Enquanto o foco da presença feminina é a sua debilidade e
afabilidade humana, sentimentos demonstrados através de melodias
harmoniosas, o mesmo não ocorre quando a cena tem como personagem
central uma figura masculina, como é o caso do infame Tajômaru ou do
falecido Takehiro. Por exemplo, logo após o final da cena solitária e
delicada de Masako, algo que confirma este contraste sonoro é o
momento em que o criminoso persegue a sua futura vítima antes de a
deixar completamente imobilizada, algo que decorre entre os minutos
vinte e quatro e vinte e cinco da obra cinematográfica. Neste episódio
específico do filme, a música utilizada contribui para o adensamento do
dramatismo e da intensidade momentânea.
Ainda sobre a temática da sonoridade cinematográfica desta obra,
um tópico que considero importante para análise é a permanência do riso
e a forma como o mesmo complementa o cariz perturbador desta longa-
metragem. Este elemento, utilizado por várias personagens, como
Tajômaru e Masako por exemplo, possui em si o mesmo carácter essencial
que a restante musicalidade de todo o filme. Consoante a mudança de
testemunha e consequentemente a transição de ponto de vista, o
elemento em estudo ganha novas características, objetivos e simbologias.
Por exemplo, na maioria das vezes que o riso foi posto em prática
por Tajômaru, esta expressão tinha por objetivo exprimir a loucura e a
insanidade presentes no pensamento e nas ações da personagem. No
entanto, quando o mesmo elemento era utilizado pelo lenhador ou pelo
camponês, o riso passava a possuir em si um cariz de possível
divertimento e descrença face à história contada pelo terceiro elemento
do debate: o padre.
“These elements – sounds, words, notes, gestures, expressions,
clothes – are part of our natural and material world. (…) They construct
meaning and transmit it.” (Hall, 1997). Creio que é exatamente sobre esta
premissa que a sonoridade cinematográfica de Rashomon se baseia, uma
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vez que, ao trazer um carácter ousado, perspicaz e, de certa forma,


perturbante, esta desenvolve uma ligação intensa face ao seu público. Isto
é, através da inteligente utilização da música, dos sons e dos ruídos,
acredito que este filme providencia à sua audiência a capacidade de
interpretar cada cena apresentada com maior brio e proximidade ao
episódio visualizado, pois visto que a sonoridade significa algo, a adição
da mesma ao filme terá por objetivo transmitir essa simbologia e permitir
ao público pensar e debater, não só sobre a sonância da obra, mas
simultaneamente sobre o impacto e a nova significação que esta fornece
à cinematografia em análise.
Ao interpretar este filme com um olhar mais pessoal e honesto ao
meu percurso académico, acredito que pode ser criado e desenvolvido um
paralelismo entre a simbologia presente em Rashomon e o jornalismo,
enquanto profissão nobre da sociedade global atual. Como já foi referido
previamente, o título desta obra cinematográfica faz referência a um
conceito específico: o efeito rashomon. Este, caracterizado pela apologia
face à divergência de opinião, consequente das perspetivas subjetivas de
cada indivíduo, é, então, uma ideologia complementar ao trabalho e ao
estudo jornalístico.
Quando analisado com maior rigor, é possível inferir que Rashomon
possui em si uma característica comum à comunicação social e a tudo a
que esta última se relaciona. A meu ver, o facto de serem apresentadas
várias perspetivas distintas relativas a um único episódio, nomeadamente
o crime ocorrido e debatido, é responsável pela similaridade
relativamente ao jornalismo, pois, como é de conhecimento geral, muitas
vezes os jornalistas são expostos a grandes quantidades de informação
variada e divergente entre si sobre um único evento ou notícia, acabando
assim por ser da própria responsabilidade dos noticiaristas analisar,
estudar, debater e, por vezes, através dos seus próprios juízos de valor,
decidir qual é a informação mais assertiva, assim como mais próxima da
realidade. A este fenómeno dá-se o nome de Jornalismo Rashomon, termo
criado por Leão Serva, no seu artigo para a revista e organização Quatro
Cinco Um.
Concluindo, Rashomon é um filme fortemente caracterizado pela
sua vasta simbologia, assim como pela sua unicidade relativamente à
sonoridade cinematográfica utilizada. À luz da minha perspetiva, a longa-
metragem em estudo fornece à sua audiência o espaço necessário para
pensar, debater e significar cada momento visualizado. Creio que é ainda
crucial reforçar o cariz atemporal de Rashomon. Cariz este, que
possibilita cada um de nós a relacionar, interligar e verdadeiramente
sentir cada cena do filme, uma vez que encontramos correspondências
com as nossas vivências pessoais, assim como académicas e,
consequentemente, profissionais.

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