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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Disciplina: Estudos das Marrativas


Professor: Maurício Bragança
Aluna: Thamires Duarte

GETT: O JULGAMENTO DE VIVIANE AMSALEM

INTRODUÇÃO

O filme escolhido para este trabalho é um filme roteirizado, dirigido e encenado


por uma mulher israelita.
Ronit Elkabetz ao dar vida ao longa metragem Gett: O julgamento de Viviane
Amsalem, nos integra a parte de um júri de Rabinos cuja a função de orquestrar
o extenso processo de divórcio entre Elisha e Viviane foi incumbida.
Na cultura judaica, uma mulher só poderá divorciar-se de um homem caso haja
total consentimento do mesmo, ou outro determinado “motivo relevante” que
possa judicialmente justificar uma separação.

Ronit estabelece o ponto de partida e sustentação de sua narrativa


através de algo tão simples, e ao mesmo tempo, tão absurdo: o desejo autônomo
de uma mulher.
Trabalha com o porque sim, pois assim desejo.

Ao topar essa experiência fílmica, somos atravessadas por olhares desconfiados


e suspiros retidos inchando o peito, as vezes esbaforidos e incontidos; veias
pulsantes de quem também está confinada naquele claustrofóbico e arcaico
tribunal.
A construção desta obra faz com que você se sinta parte integrante daquele
espaço diegético; a expectadora de repente se vê inserida assim como a
protagonista, numa entrega completa e desconfortável.

Um enredo de 113 minutos onde praticamente todos se passam dentro da


mesma sala de audiências, com as mesmas pessoas, variando uma ou outra em
momentos pontuais.

A expertise e delicadeza com que a diretora desenvolveu esta narrativa


cresce em sentindo rítmico de efeito através do uso e observação do espaço
onde confluiriam outros fatores técnicos e conceituais juntamente aos corpos e
ao texto, elencando signos narrativos que puderam ser explorados dentro de
uma edição seriada de cenas.
Por isso, ao discorrer sobre este filme, minhas principais percepções organizam-
se através do uso da câmera enquanto dispositivo narrativo, conectando-se
também às referência de Inês Gil sobre a atmosférica fílmica e Djamila Ribeiro,
sobre o lugar de fala.
A MULHER COM A CÂMERA

Logo no primeiro plano fílmico somos abordadas pelo olhar do advogado Carmel,
posicionado num contra-plongée a partir de uma espécie de câmera ponto de
vista.

O uso delicado e interessante do dispositivo que nos é apresentado ali, logo no


primeiro plano, não é necessariamente o de uma câmera subjetiva (mesmo que
possamos relativizar este entendimento através dos efeitos gerados), mas de
algo mais próximo à um “plano ponto de vista etéreo” que permite a inserção da
expectadora como personagem voyeurística dentro do espaço físico da narrativa
fílmica como efeito desejado.
O mesmo olhar lançado por Carmel, que não acerta diretamente o nosso,
mas algo bem próximo (quase que estrábico) é lançado pelo marido (permita-me
referencia-lo como encosto) Elisha para Camel e logo em seguida, para Viviane.

Inventivamente e representativamente, estes primeiros posicionamentos


fotográfico nos torna algo como um braço direito dos dois personagens que ali
estão batalhando a favor da concessão do divórcio (Viviane e Carmel).
Seu uso logo nos primeiros minutos do filme nos orienta sobre qual perspectiva
dentro da narrativa iremos acompanhar essa história, mesmo que ainda sim, nos
possibilite liberdades.
Afinal, se trata de um julgamento.
Esses planos e contra planos ponto de vista “etéreos” são os grandes
pilares da linguagem cinematográfica utilizada aqui por Elkbatz, que ao serem
somados a outros conceitos plásticos e sonoros, criam a atmosférica fílmica
que é perpetuada em toda a narrativa e transpassada aos expectadores.

- Permita-me a liberdade de me enquadrar como uma expectadora


parcial ao assistir a esta obra.

Por ser mulher branca; pela questão do divórcio ter um peso significante em
minha vida; e por ser feminista.
Três fatores que certamente também caracterizam a diretora do Filme.

Claro que o condicionamento ser mulher para mim e para Ronit possui cargas
muito diferentes.
Mas nos conectamos do modo universal onde qualquer mulher pode se
conectar: Através do sistema opressor de uma sociedade patriarcal e machista,
cada qual, com suas práticas e peculiaridades culturais escravocratas de
gênero.
Por isso, decidi escrever sobre o cinema de Ronit ao invés do cinema de
Adélia Sampaio por exemplo. Por ter um lugar de fala em minhas percepções e
escrita muito mais próximo ao de uma mulher branca, mesmo que israelita, do
que ao de qualquer mulher negra.

Então, traçando um paralelo com o conceito de lugar de fala colocado


pela escritora negra Djamila Ribeiro que diz:
“A nossa hipótese é que a partir da teoria do ponto de vista feminista, é
possível falar de lugar de fala. Ao reivindicar diferentes pontos de análise e a
afirmação de que um dos objetivos do feminismo negro é marcar o lugar de fala
de quem as propõem, percebemos que essa marcação se torna necessária
para entendermos realidades que foram consideradas implícitas dentro da
normatização hegemônica”

E é dessa normatização hegemônica, nesse caso, do tornar-se mulher


israelita que Ronit permite-se à escrita, direção e atuação em seu drama.
Todas as partes encaixam-se muito bem, harmonicamente e isso não é mera
coincidência ou exibição de técnicas muito apuradas.
Isso é um sentimento muito forte colocado em cada pedaço de imagem, em
cada coisa ali.
-Sentimento e sentido, as palavras combinam;
daí, os efeitos narrativos gerados são atribuídos a Ronit através de uma
palavra com duplo sentido: Propriedade.
Propriedade no sentido da autoria fílmica.
Propriedade no sentido Foucaltiano de discurso.

O LUGAR DE GRITO

Retornando para a construção lúdica dessa narrativa de partes tão reais,


agora estamos dentro da sala junto aos personagens.
A escolha em concentrar todos os planos fílmicos dentro de um espaço que se
limita a uma sala de espera e a uma sala de audiência nos torna expectadores
muito focados no objeto discursivo.

Por ser mulher, a protagonista do filme possui poucas falas, fala quando
é requisitada, autorizada que fale, e quando somos levados a um ponto de
tensionamento praticamente insuportável, ela grita, desestabiliza, nos permite
finalmente respirar.
Uma relação ambígua à executora da obra, que tem seu discurso feminista
traduzido majoritariamente através de vozes masculinas.

Percebermos naquele determinado espaço onde os homens envolvidos


pautam suas visões sobre as mulheres e como se comportam através de suas
falas e atitudes, compactuadas em suas construções sócio-culturais.
Ao meu ver isso é um maneirismo, que para além de elucidar uma
realidade, que possibilita a espectadores dos cromossomos XY uma
aproximação do ponto de vista feminino (já que a mulher perante ao tribunal
está “calada”) através de algo que para eles tem mais significância (querendo
dizer importância), a fala masculina.
E assim podemos mais seguramente acompanhar o desdobramento de um
embate fálico onde cada parte afirma seus argumentos sobre uma mulher e
seus desejos.

Esta tensão narrativa é excepcionalmente construída através destes fatores.


Existe uma maestria rítmica para que não fiquemos entediadas ou exaustas
assistindo um filme extenso que se passa integralmente em um local.
Por Viviane falar pouco, queremos que fale mais. Pelas falas absurdas e
colocações tão absurdas quanto, não suportamos que Viviane não fale, não
retruque, não mate um macho. Isso nos prende, nos deixa sempre à espera.
Com os planos e contra planos “etéreos”, somos muito bem manejadas entre
falas e reflexões em uma espécie de mis en scène que não se caracteriza
unicamente através da movimentação dos atores em cena, mas parece surgir,
criar movimento principalmente de onde os olhares partem, para onde olham
quando falam, e para quem os olha enquanto falam.

SEMIÓTICAS E ARTIMANHAS SENSO-ESPACIAIS

O uso de cores sóbrias que limitam-se a tons de cinza, preto e azul nos
familiariza à uma mesmice visual, a uma contensão, ao aprisionamento.
A sala está sempre iluminada da mesma maneira nos causando uma sensação
de não avanço, da impossibilidade de seguirmos de um lugar para outro.
O tempo passa, mais especificamente, cinco anos se passam entre idas e
vindas ao tribunal em busca da conclusão do mesmo processo.

A não utilização de trilhas sonoras, a troca de planos, as cores sóbrias, a


contensão dos corpos dentro de um espaço formal, fazem com que as falas
ocupem praticamente todos os espaços fílmicos.
O resultado disso é novamente uma atenção aguçada, que a primeira vista
possa parecer voluntária da expectadora, para o objeto fílmico seja alcançada
intencionalmente através de sua utilização na narrativa.

A prova disso, é que através da ruptura desses padrões que nos


locomovem durante todo o filme, como por exemplo em um rápido momento de
silêncio onde apenas o som das teclas do escrivão ecoam pela sala, temos o
tempo exato de respiro entre a tensão, da irracionalidade, não reflexão,
constituindo a atmosfera fílmica;
Alguma fala que possa constranger os homens presentes e o tempo de
troca entre olhares silenciosos, mas muito expressivos; a entrada e saída dos
personagens na sala de audiências, um rápido detalhe evasivo das falas
argumentativas cativantes que é a maestra do filme, possui em sua
simplicidade, uma potência narrativa.

Como em uma alquimia pagã cada ingrediente é essencial e tem valor e


sentido único, insubstituível para a confecção do feitiço. A bruxa naquele
tribunal onde ocorre sua inquisição desafia de vermelho forte a tribuna antes de
saber que seria acusada de adultério. A bruxa que dirige o filme, escreve essa
cena, realiza o feitiço.
O signo semiótico do vermelho, devolve a nós e a personagem à sua
representatividade feminina, os seus desejos estão livres e combativos, são
dela.
Pela primeira e única vez, rapidamente temos o foco na movimentação de seus
pés e pernas de baixo da mesa em um desses planos evasivos das falas. Nos
relembrando que ela é um objeto, ou uma mulher?
Saímos da dor e vamos para o sexo, saímos da dor e vamos para as
dores da não possibilidade do sexo e ser um animal.

Nesta mesma cena, um dos juízes que é caracterizado estilisticamente


através de uma postura tragicômica completamente passiva às opiniões do
Rabino responsável pelo caso, sempre calado, surpreende a nós e aos
presentes ao ordenar que Viviane coloque seus cabelos para trás quando a
mesma desconcentra-se, e nos desconcentra mexendo em seus cabelos, as
falas ali não eram o mais importante para ela, e sim a fuga delas para seu local
de imaginação.

Depois, a cena seguinte num oposto all black , uma câmera ponto de
vista “etérea” como se nós fossemos um espelho, fita Viviane com lábios
cerrados e olhar fixo e também pela primeira e única vez uma trilha sonora é
usada ao fundo, uma trilha épica, que cessa, assim que Viviane abre sua boca
delicadamente para um respiro.
Temos logo em seguida um plano ponto de vista para o marido
(encosto) Elisha, com títulos sobrepostos ao plano; algo mudou, as
circunstâncias espaciais são as mesmas, mas algo dentro dela mudou
transbordou e se reteve a reflexão agora se transformaria em ação.

Poderia também elucidar ao final do filme, pontos semióticos importantes,


sentidos fílmicos para os elementos (como sempre) delicadamente colocados
em cena para constituir determinada atmosfera, mas prefiro deixar à leitora, ou
ao leitor, a mercê da experiência de assistir ao filme e compreender por si só
não destruindo assim a sua possibilidade de reagir a narrativa imaginando seu
desfecho.

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