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O RASTRO NOS OSSOS

Leila Guerriero
Revista “Gatopardo”, México, abril de 2008

Não é grande. Quatro metros quadrados apenas, e uma janela pela qual
entra uma luz coagulada, celeste. O pé-direito é alto. As paredes brancas,
sem muito esmero. A sala – um apartamento antigo em pleno Once, um
bairro popular comercial de Buenos Aires – é discreta: ninguém chega aqui
por engano. O piso de madeira está coberto por jornais e, sobre os jornais,
há um suéter listrado – rasgado –, um sapato retorcido como uma língua
negra – rígida –, algumas meias. Tudo o mais são ossos. Tíbias e fêmures,
vértebras e crânios, pélvis, mandíbulas, dentes, costelas em pedaços. São
quatro da tarde de uma quinta-feira de novembro. Patricia Bernardi está
parada na porta. Tem olhos grandes, cabelo curto. Segura um fêmur frágil
apoiado em sua coxa.

– Os ossos de mulher são delicados.

E é verdade: os ossos de mulher são delicados.

Entre 1976 e dezembro de 1983, a ditadura militar na Argentina sequestrou


e executou milhares de pessoas, que foram enterradas como indigentes em
cemitérios e túmulos clandestinos. Em maio de 1984, já na democracia,
convocados pelas Avós da Praça de Maio (um grupo de mulheres que
procura seus netos, filhos de seus filhos desaparecidos durante a ditadura),
sete membros da Associação Americana pelo Avanço da Ciência chegaram
ao país. Entre eles, um antropólogo forense – um especialista na
identificação de restos ósseos: alguém que pode ler ali os rastros da vida e
da morte – chamado Clyde Snow. Nascido em 1928 no Texas, Snow tinha
seu prestígio: havia identificado os restos de Josef Mengele no Brasil.
Além disso, bebia como um cossaco, fumava charutos cubanos, usava
sombreiro e botas texanas e estava habituado a viver em um país onde os
criminosos eram indivíduos que matavam os outros: não uma máquina
estatal que engolia pessoas e cuspia seus ossos. Nessa viagem – a primeira
de muitas – dava uma conferência sobre ciências forenses e desaparecidos
na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, e a tradutora,
assustada pela quantidade de termos técnicos, pediu demissão na metade.
Então um homem loiro, carismático, disse "eu posso: eu sei inglês". E foi
assim que Morris Tidball Binz, 26 anos, estudante de medicina e dono de
um inglês perfeito, entrou na vida de Clyde Snow.

Durante as semanas seguintes, Clyde Snow participou de algumas


exumações a pedido de juízes e familiares de desaparecidos, sempre na
companhia de seu novo tradutor. Em junho, quando teve que desenterrar
sete corpos de um cemitério de subúrbio, decidiu que precisaria de ajuda e
enviou uma carta ao Colégio de Graduados em Antropologia solicitando
colaboração. Mas não teve resposta. Foi então que Morris Tidball Binz
disse: "Eu tenho uns amigos". Os amigos de Morris eram um só: chamava-
se Douglas Cairns, estudava antropologia na Universidade de Buenos Aires
e espalhou o recado –"Tem um gringo procurando gente para desenterrar
restos de desaparecidos" – entre seus colegas de curso.

– Estou acostumada a desenterrar lhamas, não pessoas – disse Patricia


Bernardi, 27 anos, estudante de antropologia, órfã, funcionária da
transportadora de seu tio.

– Não gosto de cemitérios – pode ter dito Luis Fondebrider, estudante do


primeiro ano de antropologia, funcionário de uma firma de dedetização de
prédios.

– Nunca fiz uma exumação – disse Mercedes Doretti, estudante avançada


de antropologia, fotógrafa e funcionária de uma biblioteca itinerante.

Mas depois pensaram que não havia nada a perder se fossem escutar, e
assim, às sete da tarde de 14 de junho de 1984, Patricia Bernardi, Mercedes
Doretti, Luis Fondebrider – e Douglas Cairns – se encontraram com Clyde
Snow – e Morris Tidball Binz – em um hotel do centro de Buenos Aires
chamado Continental.

– Clyde nos pareceu um tipo estranho, pensávamos: "Como bebe esse


velho, como fuma" – disse Patricia Bernardi. – Ele nos ofereceu um trago
e, quando explicou o que queria fazer, achei que perderíamos o apetite.
Mas depois nos levou para jantar, e nós éramos estudantes, nunca tínhamos
entrado em um restaurante elegante. Comemos como animais. Mas
sentimos medo. O país estava muito instável, e pensávamos: "Se volta a
acontecer algo aqui, esse gringo volta para seu país, mas nós temos que
ficar".

Nessa noite se despediram de Clyde Snow com a promessa de pensar no


assunto. "Fiquei comovido, mas eles não tinham experiência”, contaria
Clyde Snow anos depois ao jornal Página/12. “Falei que o trabalho ia ser
sujo, deprimente e perigoso. E que, além disso, não havia dinheiro. Me
disseram que iam conversar e no dia seguinte me dariam uma resposta.
Pensei que era uma maneira gentil de me dizer: ‘Tchau, gringo’. Mas no
dia seguinte estavam ali".

No dia seguinte estavam ali.

– Decidimos fazer uma experiência com essa exumação e, depois, ver se


continuávamos – disse Patricia Bernardi. – Nós nos encontramos cedo, na
porta do hotel, e nos levaram ao cemitério nos carros da polícia, Foi
estranho subir naquela coisa. E depois subiríamos nesses carros tantas
vezes. Eu nunca havia entrado em uma cova, mas com Clyde o difícil
pareceu um pouco mais fácil. Ele se atirava com a gente na fossa, se sujava
com a gente, fumava, comia dentro da fossa. Foi um bom professor nos
momentos difíceis, porque uma coisa é desenterrar ossos de lhama ou de
lobos marinhos, e outra é o crânio de uma pessoa. Quando começaram a
aparecer os restos, a roupa se enroscava no pincel e eu perguntava: "Que
faço com a roupa?". E Clyde me olhava e dizia: "Continua, continua".
Nesse dia desenterramos os restos, fomos ao necrotério e percebemos que
não eram os que procurávamos. Clyde começou a discutir algo sobre a
trajetória de um projétil com o pessoal do necrotério. Nós não entendíamos
nada. Estavam lá os familiares, e eu pedi ao juiz: "Avise que não são os
restos, essa gente já passou por muita coisa". Quando lhes disse, o choro
dos familiares foi algo que... Saímos dali às três da manhã. Foi a exumação
mais longa da minha vida.

Mas vieram tantas outras. Entre 1984 e 1989, Clyde Snow passou mais de
vinte meses na Argentina, e em cada uma de suas viagens os estudantes o
acompanharam nas exumações, mergulhando aos poucos nas águas dessa
profissão que não tinha – no país – nem antecedentes, nem prestígio.

– Ninguém entendia o que fazíamos. Coveiros especializados, médicos


forenses? – disse Mercedes Doretti. – A academia nos olhava torto porque
diziam que não era um trabalho científico.

Com pouco mais de vinte anos, funcionários mal pagos de empregos


absurdos, estudantes de uma profissão que não os preparava para um futuro
que de toda forma não podiam adivinhar, passavam os fins de semana em
cemitérios do subúrbio, cavando na terra ainda fresca das fossas de jovens,
sob o olhar de seus familiares.

– Criamos uma relação com os familiares dos desaparecidos desde o


começo – disse Luis Fondebrider. – Tínhamos a mesma idade que os filhos
deles na época em que desapareceram, e desenvolveram um grande carinho
por nós. E havia o fato de que nós tocávamos em seus mortos. Tocar nos
mortos cria uma relação especial com as pessoas.

Como tinham medo, iam sempre juntos. E, como iam sempre juntos,
começaram a ser chamados de "cardume". Não falavam com ninguém
sobre o que faziam e, para falar do que faziam, se reuniam na casa de
Patrícia ou de Mercedes.

– Todos nós sonhávamos com ossos, esqueletos – diz Luis Fondebrider. –


Nada muito elaborado. Mas conversávamos sobre essas coisas entre nós.

– Todos nós tínhamos pesadelos – conta Mercedes Doretti. – Um dia


acordei aos gritos, sonhando com uma bala que saia de uma pistola, e
acordei quando a bala estava para me acertar na cabeça. Senti como se
estivesse morrendo e pensei: "Como não me dei conta de que isso
aconteceria, como não me dei conta de que estou morrendo inutilmente,
como não me dei conta de que não tinha que me meter nisso?".

Em 1985, viajaram à cidade de Mar del Plata para desenterrar os restos de


uma desaparecida, com a certeza que estavam do lado dos bons. As Mães
da Praça de Maio, o grupo de mulheres que busca seus filhos
desaparecidos, esperavam por eles.

– Queriam impedir a exumação – diz Mercedes Doretti. – Diziam que


Snow era um agente da CIA e que o governo estava tentando acobertar as
coisas entregando sacolas com ossos. Houve insultos, foi duro. Ver que
elas, nossas heroínas, estavam contra nós foi muito forte. Finalmente
fizemos a exumação, e depois fomos para a praia. Sentamos ali, olhando o
mar, compungidos.

Nesse mesmo ano, Clyde Snow testemunhou no Julgamento das Juntas –


onde foram julgados os militares que estiveram no poder durante a ditadura
–, e projetou um slide dessa exumação em Mar del Plata: uma jovem
chamada Liliana Pereyra, o crânio cheio de balas.

"O que estamos fazendo”, disse Snow ao Página/12, “vai impedir que
futuros revisionistas neguem o que realmente ocorreu. Cada vez que
recuperamos um esqueleto de uma pessoa jovem com um buraco de bala na
nuca, fica mais difícil contestar".

O tempo passou, conseguiram financiamento, uma ou outra bolsa, e quando


ficou claro que talvez pudessem viver disso, alguns largaram seus
empregos. Em 1987, se inscreveram como associação civil sem fins
lucrativos sob o nome Equipe Argentina de Antropologia Forense, com o
objetivo de praticar "a antropologia forense aplicada aos casos de violência
de Estado, violação dos direitos humanos, crimes de lesa-humanidade".
Depois juntaram-se ao grupo Darío Olmo, estudante de arqueologia,
servidor municipal; Alejandro Incháurregui, estudante de antropologia e
direito, assistente dos procuradores Moreno Ocampo e Strassera durante o
Julgamento das Juntas; Silvana Turner, estudante de antropologia social, e
Anahí Ginarte, estudante de antropologia.

Em 1988, quando foram convocados como peritos para escavar o setor 134
do cemitério de Avellaneda, um subúrbio de Buenos Aires onde os
militares tinham enterrado centenas de pessoas, poucos deles tinham mais
de 22 anos.
A fossa de Avellaneda permaneceu aberta por dois anos e tiraram dali
trezentos e trinta e seis corpos, quase todos com ferimentos de balas no
crânio, muitos ainda sem identificação.

A Equipe Argentina de Antropologia Forense mantém seus escritórios em


dois apartamentos idênticos, no primeiro e no segundo andar de um edifício
antigo em estilo francês no bairro do Once. Ao redor, vendedores
ambulantes, carros, ônibus, pedestres: a trilha sonora de uma cidade em um
de seus pontos altos. O segundo andar não tem nome. O primeiro sim, e se
chama Laboratório. Além disso, ambos têm a mesma quantidade de
quartos, banheiros idênticos, cozinha no fundo, e quase nenhum sinal de
vida particular. Os móveis são novos e velhos, pequenos e grandes, de
madeiras nobres e de fórmica. Há um quadro, um pôster do Museu
Metropolitan, mas são coisas que estão há muito tempo ali: coisas que já
ninguém vê. Há uma lousa, painéis de cortiça com cartões de delivery e
postais de esqueletos dançando: as festas latino-americanas da morte. Em
uma janela há dois pequenos cactos e, em todas as paredes, uma profusão
de projetos e de mapas. Alguns, não todos, têm marcas. Algumas dessas
marcas, não todas, mostram os centros clandestinos de detenção: lugares de
onde vem o objeto estudado aqui.

O escritório onde trabalha Luis Fondebrider está no segundo andar. Ele,


Mercedes Doretti e Patricia Bernardi são os únicos remanescentes do grupo
original: Douglas Cairns só ajudou, no começo, em um par de exumações;
Morris Tidball Binz saiu em 1990 para trabalhar na Cruz Vermelha e mora
em Genebra desde então. No fim dos anos noventa, juntaram-se outras
pessoas – Miguel Nievas, Sofía Egaña, Mercedes Salado – e, durante muito
tempo, não foram mais que doze. Mas, no começo do novo século, a
possibilidade de aplicar o exame de DNA aos ossos exigiu novas
contratações, e agora são trinta e sete. Em todos esses anos, a equipe
trabalhou em mais de trinta países, contratada pelo Corte Penal
Internacional para a antiga Iugoslávia; pelo Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos; pelas Comissões da Verdade de
Filipinas, Peru, El Salvador e África do Sul; pelos Ministérios Públicos de
Etiópia, México, Colômbia, África do Sul e Romênia; pelo Comitê
Internacional da Cruz Vermelha; pela comissão presidencial para a busca
dos restos mortais de Che Guevara e pela comissão para os desaparecidos
do Chipre.

– Todos os salários que recebemos por essas missões internacionais vão


para um fundo comum – diz Luis Fondebrider. – Não cobramos dos
familiares pelo que fazemos. Nós nos sustentamos com o financiamento de
uns vinte doadores particulares europeus e norte-americanos e de alguns
governos europeus. Não temos apoio de doadores particulares nem de
associações civis argentinas. As associações civis apoiam eventos de Julio
Boca, mas não projetos como este.

Ocultos, discretos, são empurrados para as primeiras páginas dos jornais a


cada nova identificação – em 1989, na de Marcelo Gelman, o filho de Juan
Gelman, poeta argentino radicado no México; em 1997 na de Che Guevara,
na Bolívia; em 2005 na de Azucena Villaflor, fundadora das Mães da Praça
de Maio, desaparecida em 1977.

– Mas para nós – diz Luis Fondebrider – todos são pessoas. Che ou Juan
Pérez. Quando foi o filho de Gelman, Morris, Alejandro e eu viajamos a
Nova York para receber um prêmio de uma fundação, e visitamos Gelman,
que vivia lá, para contar que tínhamos identificado seu filho. Me pareceu
uma figura muito intimidadora, sério, sisudo. Dormimos em sua casa. Ele
passou a noite acordado, lendo o relatório, e no dia seguinte fez milhões de
perguntas. Foi estranho. Nunca tinha dormido na casa de uma pessoa para a
qual tivesse ido dar uma notícia dessas.

– Você é capaz de se imaginar sem fazer este trabalho?

– Sim. Não sei o que faria. Mas sim.

Todos dizem – e dirão – o mesmo. Como se caminhassem orgulhosos em


direção ao único futuro possível: a extinção.

No andar inferior há várias salas com mesas largas e estreitas cobertas por
papel verde. No lugar onde Sofía Egaña costuma trabalhar quando está em
Buenos Aires há uma escrivaninha, um computador. Ela tem 36 anos e
chegou à equipe em 1999, quando lhe ofereceram uma missão no Timor
Leste, ela disse sim e passou dois anos numa ilha sem luz nem água onde o
exército indonésio, em 1991, havia matado duzentos mil.

Um clique e uma foto se abre: um crânio. Outro clique: o crânio com um


buraco.

– Entrou direto: uma execução assim, tuc, pelas costas. Temos os dentes?
Como brilham os dentes?

Em dois dias, Sofía Egaña estará em Ciudad Juárez, onde a equipe trabalha
na identificação de corpos de mulheres não identificadas ou de
identificação duvidosa e, até lá, precisa resolver algumas questões urgentes:
tentar vender a casa onde vive, talvez pedir um empréstimo bancário, talvez
se mudar. Em um painel de cortiça, às suas costas, há desenho de uma
mariposa e a frase 'Sofi te amo' com a caligrafia de sua pequena sobrinha.
Há, também, uma foto tirada durante sua estadia no Timor.

– Esses são meus caseiros. Eles me alugavam a casa onde vivíamos. Às


vezes me ligam para saber como estou. Como não tenho telefone fixo, eles
têm que ligar para a casa de meus pais. Há mais de onze anos estou
viajando. Não tenho guarda-roupa. Tenho duas malas. Mas quando o osso
se encaixa na história, tudo faz sentido. Diante dos familiares sou a médica,
a doutora. Quando preciso chorar, vou para trás de uma árvore. Não
podemos cair no choro.

– E com o tempo você se acostuma?

– Não. Com o tempo fica pior.

No final de um corredor há uma sala escura, arejada, as paredes cobertas


por estantes que sobrem até o teto, e nas estantes caixas de papelão de
tamanho discreto com os dizeres “Frutas e Verduras”.

– Cada caixa é uma pessoa. Aí guardamos os ossos. Todas estão


etiquetadas com o nome do cemitério, o número do lote.

Na frente, em dois ou três salas iluminadas, cinco mulheres jovens se


inclinam sobre as mesas cobertas com papel. Sobre as mesas há – claro –
esqueletos.

O escritório de Silvana Turner, no andar superior, está lotado de caixas que


dizem Kosovo, Togo, África do Sul, Timor, Paraguai: a rota dos maiores
massacres do século passado. Silvana Turner tem cabelo curto, rosto limpo.
Chegou à equipe em 1989.

– Se o familiar não quer recuperar os restos, não intervimos. Nunca


fazemos nada que um familiar não queira. Mas mesmo que seja doloroso
receber a notícia de uma identificação, também é reparador. Em outros
lugares, isso costuma ser um trabalho mais técnico. É impensável que a
mesma pessoa que analisa os restos tenha feito a entrevista com o familiar,
tenha ido a campo recuperar os restos e se encarregue de fazer a devolução.
Nós fazemos isso sempre.

Em todos esses anos conseguiram trezentas identificações com a devolução


de restos às famílias, e – cruzando dados, rastreando documentação –
conseguiram descobrir e notificar o destino de mais trezentas pessoas cujos
restos nunca foram encontrados.

– Se eu tivesse que definir um sentimento sobre esse trabalho seria


frustração. Queria dar respostas mais rapidamente.

A poucos metros daqui há outra sala onde as caixas têm nomes de


cemitérios argentinos: La Plata, San Martín, Ezpeleta, Lomas de Zamora,
Ezeiza.

A tarefa foi enorme. O trabalho pode ser interminável.

*
Chove, mas aqui dentro é seco, morno. É terça-feira, mas dá na mesma.

Em um dos escritórios do laboratório haverá, durante dias, um pequeno


caixão. Chamam-no de urna. Em urnas como essa devolvem os ossos aos
seus donos.

– Está vendo? – disse uma mulher com rosto de camafeu, uma beleza oval.
– Isto, a parte interna, se chama osso esponjoso. E a externa é osso cortical.

Sob seus dedos, o esqueleto parece uma estranha criatura do mar, com as
partes esponjosas à vista.

– Isto é um pedacinho de crânio. No crânio, o osso esponjoso se chama


díploe.

Quando ela terminar de reconstruí-lo – numerar suas partes, suas lesões,


dispor sobre a mesa o que resta dele –, o esqueleto voltará à sua caixa, e
essa discreta paciência da mulher oval levará anos depois – com sorte – a
um nome, um caixão do tamanho de um fêmur e uma família chorando pela
segunda vez: talvez pela última.

Em uma das janelas que dá para a rua há um papel colado no vidro: o


esquema de uma fossa e o desenho de 16 esqueletos. Ao pé de cada um há
anotações: cinco pedaços mais um tampão, desdentado no maxilar superior,
cinco projéteis. Nenhum tem nome, mas sim idade – 30 anos em média – e
sexo: quase todos homens. Da rua, qualquer um que olha para cima pode
ver esse papel colado na janela. Mas o que se veria lá de fora é uma folha
em branco. E, de qualquer forma, ninguém olha.

Uma porta se abre como um suspiro, se fecha como uma pluma. Mercedes
Salado deixa uma caixa leve – em que está escrito Frutas e Verduras –
sobre uma escrivaninha. Depois diz “bom dia” e acende o primeiro cigarro
da hora. É espanhola, bióloga, trabalhou na Guatemala a partir de 1995, faz
parte da equipe desde 1997 e durante muito tempo seus pais, dois
aposentados que vivem em Madri, acreditaram que o trabalho da filha não
era um serviço honesto.

– Um dia me chamaram e perguntaram: "Escuta, Mercedes, o que você


faz... é legal?". Claro, quando comecei não se sabia muito bem o que
significava ir para a América Latina e se meter nas montanhas para
desenterrar restos de guatemaltecos... Meus pais tinham medo de
receberam uma ligação dizendo: "Sua filha está presa porque roubou
alguém". Agora em Madri os vizinhos me saúdam, dizem "uau, é legal". O
que me surpreende na equipe é a coerência. Ela se sustenta com projetos,
mas também há um fundo comum. É um sistema comunista que funciona.
Fazem porque acreditam no que fazem. Ninguém passaria vinte anos
ganhando o que se ganha aqui se não gostasse do trabalho. Mas este
trabalho tem uma coisa que parece muito romântica, muito banal. É que
este não é um trabalho, é uma forma de vida. Está acima de sua família, de
seu marido, está acima de sua perspectiva de ter filhos. Nós esquecemos de
aniversários, de aniversários de casamentos, mas não esquecemos de
nenhum encontro com familiares das vítimas. E no fundo é tão pouco. O
que você faz? Descobre a identidade de uma pessoa. É a resposta que a
família necessitava há tanto tempo... e pronto. Isso é tudo. Mas quando
você vê o rosto das pessoas, vale a pena. Dá dignidade ao morto, mas
também ao vivo.

Depois, com um sorriso suave, diz que tem um trauma: não pode colocar
crânios dentro de sacolas de plástico e fechá-las.

– Me dá uma angústia. É bobagem, mas sinto que estão sufocando.

É sexta-feira. Mas dá na mesma. Mulheres jovens, vestidas com diversas


manifestações da informalidade urbana – piercings, calças largas, camisetas
sobrepostas – estão concentradas nas mesas do laboratório. Semana após
semana, como se uma maré caprichosa interminável os levasse até ali –
mais ou menos inteiros, mais ou menos lustrosos – os esqueletos mudam.

– Estão misturados. Já tenho cinco mandíbulas, cinco indivíduos pelo


menos – diz Gabriela, enquanto cola dois fragmentos de osso.
São horas disso: olhar e colar, e depois ainda rastrear as lesões compatíveis
com golpes ou balas, e depois aplicar a burocracia: tomar nota de tudo em
fichas infinitas. Mariana Selva – olhos claros, unhas curtas, vermelhas –
prepara restos para uma série de exames: um crânio, a mandíbula.

– As vezes você vê os olhos de um jovem de vinte anos com nove balas na


cabeça e diz: “Ai, deus, pobre garoto, que raiva”. Mas não dá para ficar
chorando, nem pensando em como foram todas essas mortes, porque assim
seria impossível trabalhar.

Anália González Simonett tem um aro no nariz, está quase sempre de tiara.
Assim como Mariana, foi uma das últimas a chegar à equipe.

– O que continua a me assustar é a roupa. Abrir uma fossa e ver que o


corpo está vestido. E a devolução dos restos aos familiares. Aqui uma vez
houve uma restituição a uma mãe. Ela tinha dois filhos desaparecidos, e os
dois foram identificados pela equipe. Nós a levamos aonde estavam os
restos. Antes de colocá-los em uma urna, nós os dispomos em uma mesa.
"Zezinho", ela dizia, e tocava nos ossos. "Ai, Zezinho, ele gosta de..." A
forma de tocar nos ossos era tão carinhosa. E de repente ela disse: "Posso
dar um beijo na testa dele?"

Em 6 de janeiro de 1990, os restos de Marcelo Gelman foram velados em


público. Mas antes sua mãe, Berta Schubaroff, quis se despedir sozinha. A
portas fechadas, nos escritórios da equipe, treze anos depois de vê-lo pela
última vez, beijou os ossos do fruto de seu ventre.

No escritório de Miguel Nievas há um crânio de plástico que serve de


cinzeiro, um datilograma, um esquema de DNA nuclear, uma biblioteca,
livros, mapas. É um cômodo interno, com apenas uma janela e pouca luz.
Miguel Nievas tem pouco mais de trinta anos. Vivia em Rosario, uma
cidade do interior, e entrou na equipe no final dos anos noventa.

- Eu trabalhava no necrotério de Rosario, estava estudando restos ósseos e


precisava de ajuda. Liguei e Patricia me atendeu, perguntou se eu podia
viajar com os ossos até Buenos Aires. E vim. Continuei colaborando desde
então e, em 2000, me perguntaram se eu podia ir a Kosovo. Eu disse que
sim, mas a verdade é que não sabia para onde ia. Quando o avião aterrisou
na Macedônia, e vi tanques, soldados, pensei: "Caralho, onde foi que eu me
meti". Eu não falava uma palavra de inglês e, no necrotério, fazíamos trinta
ou quarenta autópsias todos os dias. Tivemos um curso obrigatório de
explosivos, mas a única coisa que entendi foi 'don’t touch'. Na volta fiquei
trabalhando aqui. Me envolvi com o trabalho na Argentina. Quando você
começa a investigar um caso, acaba conhecendo a pessoa como se fosse um
amigo. É preciso manter alguma distância, porque passar o dia todo nisso te
afeta. Cada um é afetado de uma forma diferente.

– E a sua é...

– Psoríase. E faz anos que não lembro de um sonho.

Patricia Bernardi diz que tem deformações profissionais. A mais notória:


olha para os dentes das pessoas.

– Eu nem percebo. Enquanto falo, olho para a dentadura. Porque nós


estamos sempre procurando coisas nos dentes. Outro dia o contador veio
aqui com uma radiografia, e eu disse a ele: "Por que não deixa uma aqui,
por via das dúvidas?".

E ri. Mas sempre ri.

– Eu nunca suportei os mortos. Tenho pânico. Se eu tiver que cortar um


cadáver fresco, morro. Mas com os ossos não sinto nada. Os ossos estão
secos. São bonitos. Toco neles à vontade. Me sinto próxima dos ossos.

Passa as páginas de um álbum de fotos.

– Este é o setor 134, em Avellaneda.


Um terreno repleto de ervas daninhas. Depois, o chão de terra. Depois, a
terra aberta. Depois, os ossos. E um edifício viscoso com paredes cobertas
de azulejos.

– Esse é o necrotério onde eles trabalhavam.

Eles.

– Tinham feito um portão que dava para a rua, para poderem entrar direto
com os corpos por ali. Na porta do necrotério havia um cartaz: "Não cague
aqui dentro". Quando começamos a trabalhar, não tornamos isso público.
Sentíamos medo. O policial que fazia nossa segurança era da mesma
delegacia que antigamente tinha a chave para colocar os corpos nessa fossa.

Em pouco tempo, tocarão a campainha e Patricia descerá as escadas com


uma pequena urna. Nessa urna, levará os restos de María Teresa Cerviño,
que, em maio de 1976, apareceu pendurada em uma ponte com um cartaz,
uma inscrição – 'Eu fui guerrilheira' –, a cabeça coberta por uma bolsa, os
olhos e a boca tapados com fita adesiva. Todas as pistas indicavam que
havia terminado na fossa comum de Avellaneda. Sua mãe nomeou a equipe
como perito no processo que abriu em 1988 para buscar os restos da filha.
Durante todos esses anos, Patricia soube que María Teresa Cerviño estava
ali, era algum de todos esses ossos.

– Eu dizia: "Sei que está, mas onde, qual será?". E no ano passado,
dezenove anos depois, apareceu.

Há lugares assim. Lugares onde todas as colheitas são tardias.

Quando Darío Olmo chegou à equipe, convidado por Patricia Bernardi, em


1985, era um estudante de antropologia de 28 anos, agonizando em um
emprego que o frustrava: receber formulários na mesa de entrada de uma
repartição do governo.

– Me dei muito bem com o velho Snow. Eu não entendia uma palavra de
inglês, mas nós entendíamos o idioma universal dos copos. Esse trabalho
me salvou. Eu bebia bastante, trabalhava organizando formulários, não era
um bom aluno na faculdade. Isso aqui era o oposto à rotina. Um trabalho
entre amigos, e logo criamos uma relação rara, incomum. Quando a mulher
de um de nós ficou doente, Patricia tinha vendido um apartamento e levou
todo o dinheiro. "Faça o que tiver que fazer", ela disse. Essas pessoas são
as que mais conheço e as que mais me conhecem. Para o bem e para o mal.
Esse trabalho não me incomoda. Pelo contrário. É o que de mais
interessante aconteceu na minha vida. Quais são as chances de um
estudante de arqueologia como eu conhecer o Congo, ainda que com um
trabalho louco como este? As pessoas se horrorizam. Você diz que viaja
para ver fossas comuns e necrotérios e cemitérios, e isso parece horroroso
para as pessoas. Mas para mim seria difícil sentar em uma barraca de dois
metros quadrados e esperar que viessem comprar balas de mim. A verdade
é que a única parte ruim do trabalho são os jornalistas. Um jornalista é a
pessoa que não conhece o tema e tem que fazer uma espécie de curso
intensivo, escrever seu texto, e é difícil captar essa complexidade. Eu
gostaria que, simplesmente, não se interessassem por isso.

São sete da noite de uma sexta-feira e, em uma sala da Faculdade de


Medicina da Universidade de Buenos Aires, Sofía Egaña e Mariana Selva
dão uma aula sobre ossos em geral, lesões em particular, a um pequeno
grupo de estudantes.

– O osso fresco contém umidade e reage à fratura de forma diferente que o


osso seco. O osso se mantém fresco mesmo depois da morte. Então o
diagnóstico é feito segundo a forma da fratura, a coloração – diz Mariana
Selva enquanto projeta imagens de ossos quebrados e secos, quebrados e
úmidos, quebrados e brancos.

– É possível ver os rastros da vida nos ossos –dirá depois, sobre um


esqueleto estendido, Sofía Egaña. – Estão vendo os picos de artrose? Como
veriam esta mandíbula? Toquem-na, agarrem-na. O que essa dentição é
capaz de dizer a vocês?
Quando a equipe se formou, a antropologia forense não existia como
disciplina no país. Eles aprenderam nos cemitérios, desenterrando pessoas
de sua idade – vomitando ao descobrir que tinham os mesmos sapatos –,
lendo o rastro verde da pólvora na parte interna dos crânios. E depois,
ainda, ensinaram uns aos outros. Agora são generosos: aqui dividem o
conhecimento. Espalham o que semearam.

O dia está cinza. Patricia Bernardi pega o telefone, digita um número,


alguém atende.

– Sim, boa tarde, estou procurando a senhora X.

– ...

– Ah, boa tarde, senhora, quem fala é Patricia Bernardi, da Equipe


Argentina de Antropologia Forense. Não sei se conhece esta instituição.

– ...

– Bom, muito obrigada, até mais.

O tom de Patricia é doce e não há irritação quando desliga: quando não


querem atender. Em 2007, no aniversário da morte de Che, os meios de
comunicação pegaram suas máquinas de fazer efemérides e apontaram para
os membros da equipe que, convocados pelo governo cubano, estiveram lá.

– Às vezes me sinto obrigada a dizer que foi um orgulho ter participado


dessa exumação, mas era tudo muito tenso. Nós ficamos cinco meses,
saímos, e voltamos quando os cubanos encontraram a fossa de Che, em
julho de 1997. Me ligaram, era um sábado. Não me lembro se quem me
ligou era o cônsul ou o embaixador de Cuba, e me falou: "Encontraram uns
ossos". Quando chegamos já havia dois ou três brigando para ver quem
tirava a foto. O que me marcou foi o que aconteceu em El Petén, na
Guatemala. Ali, em 1982, um pelotão do exército executou centenas de
pessoas. Nós retiramos cento e setenta e dois corpos. A maioria crianças
menores de doze anos. E não tinham ferimentos de bala porque, para
economizar projéteis, batiam a cabeça delas na borda do poço e jogavam os
corpos longe. Chega um momento em que você se acostuma a ossos
pequenos, porque são muito lindos, formosos, perfeitos. Mas o que te trazia
de volta à realidade era o material associado.

O material associado.

– Os brinquedos.

No prédio ao lado há um salão de cabeleireiro e depilação. Nas janelas


pode-se ver, todos os dias, senhoras cobertas por toalhinhas de plástico e
cabelos envoltos em vaporizadores como merengues moles. Mas dá na
mesma: aqui ninguém as olha.

No escritório de Carlos Somigliana – Maco – há uma profusão de papeis,


desenhos de crianças, pilhas de coisas que procuram seu lugar como em um
pequeno camarote. Desde que entrou na equipe, em 1987, ele se dedicou a
ligar os pontos e ensinar os demais a fazer o mesmo: entrevistar familiares,
buscar depoimentos, cruzar informações.

– Enquanto o Estado empreendia uma campanha de repressão clandestina,


continuava registrando coisas com seu aparato burocrático. É como uma
engrenagem grande e uma engrenagem pequena. Você pode entender o que
acontece na primeira pelo que acontece na segunda. Agora há uma urgência
no trabalho que não era tão forte no passado, e isso tem a ver com a
sobrevivência das pessoas que esperam a notícia da identificação. Você
aborda uma família para informar que um familiar desaparecido foi
identificado e dizem "Ah, meu pai morreu há um ano". Quando isso
começa a acontecer muito, você pensa "Tenho que me apressar".

– Você seria capaz de largar este trabalho?

- Sim. Quero terminar este trabalho. Para mim é importante acreditar que
posso prescindir dele. Este trabalho tem sido muito injusto em termos de
outras vidas possíveis para muitos de nós.

- E afetou a sua vida particular?

- Sim.

- De que maneira?

- Nenhuma que se possa publicar.

- Então tem partes negativas.

- Lógico que tem partes negativas. Quando você é o familiar de um


desaparecido, teve que aceitar o desaparecimento, e aceitou, depois de
trinta anos nisso. Acostumou-se. De repente vem alguém e diz que não,
olha só, não foi como você pensava, e além disso encontramos os restos de
seu filho, sua filha. É uma boa notícia. Mas é uma merda. É como uma
operação. É para o bem, mas te machuca. Quando você se dá conta de que
a ferida é muito profunda, até que ponto não está fazendo uma cagada ao
remoer essas coisas? Mas não há nada de bom sem algo de mau. O que te
leva a outra possibilidade muito mais perturbadora: não há nada de mau
sem algo de bom.

Em algum lugar uma mulher diz: "Meu irmão desapareceu em cinco do dez
de setenta e oito". E então alguém, discretamente, fecha uma porta.

– Meu nome é Margarita Pinto e sou irmã de María Angélica e de Reinaldo


Miguel Pinto Rubio, os dois são chilenos, militantes guerrilheiros.
Desapareceram em 1977. Minha irmã tinha 21 anos. Meu irmão, 23.

Margarita Pinto diz isso na área de fumantes da confeitaria La Perla, no


Once, a quatro quadras dos escritórios da equipe. Depois diz que os restos
de sua irmã foram identificados por antropólogos em 2006.

– A dor de ter um familiar desaparecido é como uma espinha espetando o


coração, mas você se acostuma. E quando me disseram que haviam
encontrado os restos, entrei em uma depressão muito profunda. Não quis
vê-los. Fui apenas à homenagem no cemitério. É como uma segunda perda,
mas depois é um alívio. Os antropólogos falam de minha irmã como se a
tivessem conhecido. E eu a procurei tanto. Eu era criança quando ela
desapareceu, então comecei a visitar os pais de alguns companheiros dela.
Uma vez fui a casal de velhinhos. A certa altura, a senhora se levantou e foi
embora e o homem me pediu desculpas, disse que a senhora estava muito
mal. Que todos os dias se levantava muito cedo para desfazer a cama do
filho. E eu ali, perguntando sobre minha irmã. Às vezes você magoa sem se
dar conta.

O céu cinza. Brilha em seus olhos.

Em 26 de setembro de 2007, Mercedes Doretti recebeu uma bolsa da


fundação MacArthur de quinhentos mil dólares e, como fazem e sempre
fizeram com bolsas, prêmios e salários das missões internacionais, doou o
dinheiro para o fundo comum que financia a equipe.

– A bolsa é individual, mas eu não trabalho sozinha – diz Mercedes Doretti.

Ela foi a primeira mulher da equipe a ser mãe, um ano atrás. A segunda foi
Anahí Ginarte, que vive na cidade de Córdoba desde 2003, quando chegou
para trabalhar na fossa comum do cemitério de San Vicente, um círculo de
inferno com centenas de cadáveres, e conheceu o homem de quem
alugavam a retroescavadeira, se apaixonou, teve uma filha.

- É muita adrenalina, muito romântico, mas também é ver a vida dos outros
e não ter vida própria – diz Anahí Ginarte. – Fiquei um ano sem passar um
mês inteiro em Buenos Aires. Tinha um apartamento onde não havia nada,
nem uma planta, trancava com chave e saía. Mas decidi parar.

Salvo as duas – Mercedes, Anahí –, nenhuma das mulheres que estão há


anos na equipe tem filhos.
*

Em meados de 2007, a equipe, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos


e o Ministério da Saúde assinaram um convênio para criar um banco de
dados genéticos dos familiares de desaparecidos, por meio de uma
campanha que solicita amostras de sangue para comparar o DNA com o de
seiscentos restos ainda não identificados. O projeto se chama Iniciativa
Latino-Americana para a Identificação de Pessoas Desaparecidas, e há dias
não se fala de outra coisa aqui: da iniciativa que se inicia.

Nesta manhã, Mercedes Salado e Sofía Egaña aguardam ansiosas enquanto


um homem instala a impressora de código de barras da qual sairão milhares
de etiquetas que identificarão o sangue dos familiares.

– Vamos ver, vamos fazer um teste – diz o homem.

Aperta um botão e a pequena impressora balança, treme como um hamster


e imprime um, dois, dez, vinte códigos de barras.

– É muito emocionante – diz Mercedes. – Estamos há anos esperando por


isso.

Nas semanas seguintes, todos se dedicam a uma tarefa simples: preparar


formulários para enviar aos quatro cantos do país. Um dia, já de noite,
Mercedes Salado, descalça, sentada no chão ao lado de uma caixa cheia de
envelopes que dizem “Seu sangue pode ajudar a identificá-lo”, fuma e
conversa com Patricia Bernardi.

– Se conseguirem identificar todos, vocês vão ficar sem trabalho.

– Tomara.

Um rádio velho toca "I will survive".

Quarta-feira. Nove e meia da manhã. De um dos escritórios do primeiro


andar chegam rajadas de conversas:

– O irmão dela está desaparecido.

– Não pode existir um estudante de medicina de 60 anos. Por que não


checamos a informação?

– Esse Citroën vermelho... Alguém disse algo sobre esse Citroën vermelho.

Ines Sánchez, Maia Prync e Pablo Gallo trabalham com investigação


preliminar: por meio de fontes escritas, orais, jornais, constroem hipóteses
de identidade para os ossos. Ines Sánchez, pouco mais de vinte anos, é filha
de desaparecidos.

– Eu cheguei à equipe há dois anos, mais ou menos. Nossa tarefa é sugerir


a identidade a partir de um conjunto de pessoas com base nas exumações já
feitas. Para isso vemos qual centro clandestino usava determinado
cemitério, em quais datas houve transferências de corpos.

Selva Varela tem corpo de bailarina, cabelo comprido, olhos claros, óculos.
Está inclinada sobre uma das mesas. Segura um crânio contra o peito, como
quem faz carinho. Tem trinta anos e está na equipe dede 2003. Seus pais
foram sequestrados por militares e ela foi adotada por companheiros de
militância que, por sua vez, foram sequestrados em 1980. Foi criada por
vizinhos, avó, uma tia, e em 1997 chegou à equipe procurando seus pais.

– Depois estudei medicina, antropologia, e quando me disseram que aqui


faltava gente, vim e fiquei. Mas não estou aqui procurando meus pais.
Penso nos familiares das vítimas, penso que é bom que a sociedade saiba o
que aconteceu.

Em pouco tempo haverá um clima de euforia e desconcerto: um crânio que


acreditavam ter sido trazido por engano não teve o resultado que
esperavam. A boa notícia – a má notícia – é que de fato é o crânio de um
desaparecido. Levantam-no, olham como para uma fruta mágica,
magnífica.
– E se for o pai de... ?

É uma boa tarde. Por tanto. Por tão pouco.

Dez da manhã: o céu sem uma nuvem.

O cemitério de La Plata é pródigo em abóbadas, depois em lápides, depois


em cruzes. E ali, entre essas cruzes, há duas tumbas abertas e o raio negro
do cabelo de Ines Sánchez. O sol escorre por suas costas curvadas. Ao
redor, montes de terra, baldes, pás: coisas com as quais as crianças
brincam.

– Estamos indo bem. Encontramos os restos das três mulheres que viemos
procurar – diz Ines.

Limpa o fundo com um pincel, os pés bem afastados para não pisar nos
ossos: um crânio, as costelas.

Do outro lado de um muro de abóbadas, em uma área de sombras frescas,


Patricia Bernardi, três coveiros, um homem e duas mulheres cercam Maço,
que – de bermuda e chinelo – tira pás de terra de uma fossa. Os coveiros
caçoam dele: dizem que não se deve cavar de chinelo, que pode perder um
dedo. Ele sorri, suado. Quando sob a pá aparece um trapo cinza – a roupa –,
Maco se retira e Patricia submerge. Perto dali, entre as árvores, uma mulher
de traços finos caminha, fuma. Está aqui por causa dos restos de Stella
Maris, 23 anos, estudante de medicina, desaparecida nos anos setenta: sua
irmã. Patricia tira terra com um balde e os ossos aparecem, misturados com
as raízes das árvores.

– Está de boca para cima e tem uma meia.

As meias são valiosas: sacos perfeitos para os ossos do pé.

– O crânio está muito perfurado. Aqui há um projétil. No semitorax


esquerdo, parte inferior. Tem as mãos assim, sobre a pélvis.
Depois, retiram o esqueleto da tumba: osso por osso, em sacos rotulados
que dizem pé, que dizem dentes, que dizem mãos. A mulher de traços finos
se aproxima.

– Não sei se é minha irmã – diz. – Tem os ossos muito largos.

– Não se guie por isso – diz Maco.

Em outra das fossas, alguém encontra um suéter listrado, um crânio com


três buracos, redondos como três bocas de peixe: os ossos de mulher são
graciosos.

Amanhã, em um quarto discreto do bairro do Once, sobre os jornais com


notícias de ontem e sob a luz coagulada da tarde, serão postos para secar os
ossos, o suéter rasgado, o sapato como uma língua rígida.

Mas agora, no cemitério, a tarde é um véu celeste um pouco rasgado pela


brisa fina.

Leila Guerriero (1967) é jornalista argentina, autora de livros como


“Zona de Obras” (2015) e “Frutos extraños” (2009). Esta reportagem foi
publicada originalmente na revista mexicana “Gatopardo”, em abril de
2008, e venceu a 9ª edição do prêmio concedido anualmente pela
Fundación por el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI).

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