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Leila Guerriero
Revista “Gatopardo”, México, abril de 2008
Não é grande. Quatro metros quadrados apenas, e uma janela pela qual
entra uma luz coagulada, celeste. O pé-direito é alto. As paredes brancas,
sem muito esmero. A sala – um apartamento antigo em pleno Once, um
bairro popular comercial de Buenos Aires – é discreta: ninguém chega aqui
por engano. O piso de madeira está coberto por jornais e, sobre os jornais,
há um suéter listrado – rasgado –, um sapato retorcido como uma língua
negra – rígida –, algumas meias. Tudo o mais são ossos. Tíbias e fêmures,
vértebras e crânios, pélvis, mandíbulas, dentes, costelas em pedaços. São
quatro da tarde de uma quinta-feira de novembro. Patricia Bernardi está
parada na porta. Tem olhos grandes, cabelo curto. Segura um fêmur frágil
apoiado em sua coxa.
Mas depois pensaram que não havia nada a perder se fossem escutar, e
assim, às sete da tarde de 14 de junho de 1984, Patricia Bernardi, Mercedes
Doretti, Luis Fondebrider – e Douglas Cairns – se encontraram com Clyde
Snow – e Morris Tidball Binz – em um hotel do centro de Buenos Aires
chamado Continental.
Mas vieram tantas outras. Entre 1984 e 1989, Clyde Snow passou mais de
vinte meses na Argentina, e em cada uma de suas viagens os estudantes o
acompanharam nas exumações, mergulhando aos poucos nas águas dessa
profissão que não tinha – no país – nem antecedentes, nem prestígio.
Como tinham medo, iam sempre juntos. E, como iam sempre juntos,
começaram a ser chamados de "cardume". Não falavam com ninguém
sobre o que faziam e, para falar do que faziam, se reuniam na casa de
Patrícia ou de Mercedes.
"O que estamos fazendo”, disse Snow ao Página/12, “vai impedir que
futuros revisionistas neguem o que realmente ocorreu. Cada vez que
recuperamos um esqueleto de uma pessoa jovem com um buraco de bala na
nuca, fica mais difícil contestar".
Em 1988, quando foram convocados como peritos para escavar o setor 134
do cemitério de Avellaneda, um subúrbio de Buenos Aires onde os
militares tinham enterrado centenas de pessoas, poucos deles tinham mais
de 22 anos.
A fossa de Avellaneda permaneceu aberta por dois anos e tiraram dali
trezentos e trinta e seis corpos, quase todos com ferimentos de balas no
crânio, muitos ainda sem identificação.
– Mas para nós – diz Luis Fondebrider – todos são pessoas. Che ou Juan
Pérez. Quando foi o filho de Gelman, Morris, Alejandro e eu viajamos a
Nova York para receber um prêmio de uma fundação, e visitamos Gelman,
que vivia lá, para contar que tínhamos identificado seu filho. Me pareceu
uma figura muito intimidadora, sério, sisudo. Dormimos em sua casa. Ele
passou a noite acordado, lendo o relatório, e no dia seguinte fez milhões de
perguntas. Foi estranho. Nunca tinha dormido na casa de uma pessoa para a
qual tivesse ido dar uma notícia dessas.
No andar inferior há várias salas com mesas largas e estreitas cobertas por
papel verde. No lugar onde Sofía Egaña costuma trabalhar quando está em
Buenos Aires há uma escrivaninha, um computador. Ela tem 36 anos e
chegou à equipe em 1999, quando lhe ofereceram uma missão no Timor
Leste, ela disse sim e passou dois anos numa ilha sem luz nem água onde o
exército indonésio, em 1991, havia matado duzentos mil.
– Entrou direto: uma execução assim, tuc, pelas costas. Temos os dentes?
Como brilham os dentes?
Em dois dias, Sofía Egaña estará em Ciudad Juárez, onde a equipe trabalha
na identificação de corpos de mulheres não identificadas ou de
identificação duvidosa e, até lá, precisa resolver algumas questões urgentes:
tentar vender a casa onde vive, talvez pedir um empréstimo bancário, talvez
se mudar. Em um painel de cortiça, às suas costas, há desenho de uma
mariposa e a frase 'Sofi te amo' com a caligrafia de sua pequena sobrinha.
Há, também, uma foto tirada durante sua estadia no Timor.
*
Chove, mas aqui dentro é seco, morno. É terça-feira, mas dá na mesma.
– Está vendo? – disse uma mulher com rosto de camafeu, uma beleza oval.
– Isto, a parte interna, se chama osso esponjoso. E a externa é osso cortical.
Sob seus dedos, o esqueleto parece uma estranha criatura do mar, com as
partes esponjosas à vista.
Uma porta se abre como um suspiro, se fecha como uma pluma. Mercedes
Salado deixa uma caixa leve – em que está escrito Frutas e Verduras –
sobre uma escrivaninha. Depois diz “bom dia” e acende o primeiro cigarro
da hora. É espanhola, bióloga, trabalhou na Guatemala a partir de 1995, faz
parte da equipe desde 1997 e durante muito tempo seus pais, dois
aposentados que vivem em Madri, acreditaram que o trabalho da filha não
era um serviço honesto.
Depois, com um sorriso suave, diz que tem um trauma: não pode colocar
crânios dentro de sacolas de plástico e fechá-las.
Anália González Simonett tem um aro no nariz, está quase sempre de tiara.
Assim como Mariana, foi uma das últimas a chegar à equipe.
– E a sua é...
Eles.
– Tinham feito um portão que dava para a rua, para poderem entrar direto
com os corpos por ali. Na porta do necrotério havia um cartaz: "Não cague
aqui dentro". Quando começamos a trabalhar, não tornamos isso público.
Sentíamos medo. O policial que fazia nossa segurança era da mesma
delegacia que antigamente tinha a chave para colocar os corpos nessa fossa.
– Eu dizia: "Sei que está, mas onde, qual será?". E no ano passado,
dezenove anos depois, apareceu.
– Me dei muito bem com o velho Snow. Eu não entendia uma palavra de
inglês, mas nós entendíamos o idioma universal dos copos. Esse trabalho
me salvou. Eu bebia bastante, trabalhava organizando formulários, não era
um bom aluno na faculdade. Isso aqui era o oposto à rotina. Um trabalho
entre amigos, e logo criamos uma relação rara, incomum. Quando a mulher
de um de nós ficou doente, Patricia tinha vendido um apartamento e levou
todo o dinheiro. "Faça o que tiver que fazer", ela disse. Essas pessoas são
as que mais conheço e as que mais me conhecem. Para o bem e para o mal.
Esse trabalho não me incomoda. Pelo contrário. É o que de mais
interessante aconteceu na minha vida. Quais são as chances de um
estudante de arqueologia como eu conhecer o Congo, ainda que com um
trabalho louco como este? As pessoas se horrorizam. Você diz que viaja
para ver fossas comuns e necrotérios e cemitérios, e isso parece horroroso
para as pessoas. Mas para mim seria difícil sentar em uma barraca de dois
metros quadrados e esperar que viessem comprar balas de mim. A verdade
é que a única parte ruim do trabalho são os jornalistas. Um jornalista é a
pessoa que não conhece o tema e tem que fazer uma espécie de curso
intensivo, escrever seu texto, e é difícil captar essa complexidade. Eu
gostaria que, simplesmente, não se interessassem por isso.
– ...
– ...
O material associado.
– Os brinquedos.
- Sim. Quero terminar este trabalho. Para mim é importante acreditar que
posso prescindir dele. Este trabalho tem sido muito injusto em termos de
outras vidas possíveis para muitos de nós.
- Sim.
- De que maneira?
Em algum lugar uma mulher diz: "Meu irmão desapareceu em cinco do dez
de setenta e oito". E então alguém, discretamente, fecha uma porta.
Ela foi a primeira mulher da equipe a ser mãe, um ano atrás. A segunda foi
Anahí Ginarte, que vive na cidade de Córdoba desde 2003, quando chegou
para trabalhar na fossa comum do cemitério de San Vicente, um círculo de
inferno com centenas de cadáveres, e conheceu o homem de quem
alugavam a retroescavadeira, se apaixonou, teve uma filha.
- É muita adrenalina, muito romântico, mas também é ver a vida dos outros
e não ter vida própria – diz Anahí Ginarte. – Fiquei um ano sem passar um
mês inteiro em Buenos Aires. Tinha um apartamento onde não havia nada,
nem uma planta, trancava com chave e saía. Mas decidi parar.
– Tomara.
– Esse Citroën vermelho... Alguém disse algo sobre esse Citroën vermelho.
Selva Varela tem corpo de bailarina, cabelo comprido, olhos claros, óculos.
Está inclinada sobre uma das mesas. Segura um crânio contra o peito, como
quem faz carinho. Tem trinta anos e está na equipe dede 2003. Seus pais
foram sequestrados por militares e ela foi adotada por companheiros de
militância que, por sua vez, foram sequestrados em 1980. Foi criada por
vizinhos, avó, uma tia, e em 1997 chegou à equipe procurando seus pais.
– Estamos indo bem. Encontramos os restos das três mulheres que viemos
procurar – diz Ines.
Limpa o fundo com um pincel, os pés bem afastados para não pisar nos
ossos: um crânio, as costelas.