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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE


HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

A FUNÇÃO SOCIAL DOS ARQUIVOS DE POLÍCIAS POLÍTICAS: USOS E


RESSIGNIFICAÇÕES.

APRESENTADA POR

EVILYN OLIVEIRA MERLO

Rio de Janeiro, Dezembro 2020


FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

A FUNÇÃO SOCIAL DOS ARQUIVOS DE POLÍCIAS POLÍTICAS: USOS E


RESSIGNIFICAÇÕES

PROFESSORA ORIENTADORA ACADÊMICA ANGELA MOREIRA


DOMINGUES DA SILVA

EVILYN OLIVEIRA MERLO

Dissertação de Mestrado Acadêmico apresentada ao


Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em História,
Política e Bens Culturais.

Rio de Janeiro, Dezembro 2020


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV

Merlo, Evilyn Oliveira


A função social dos arquivos de polícias políticas : usos e ressignificações /
Evilyn Oliveira Merlo. – 2020.
135 f.

Dissertação (mestrado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio


Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.
Orientadora: Angela Moreira Domingues da Silva.
Inclui bibliografia.

1. Arquivos públicos - Brasil - Controle de acesso. 2. Brasil - História - 1964-


1985. 3. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. 4. Documentos
arquivisticos. 5. Polícia - Documentos e correspondência. I. Silva, Angela Moreira
Domingues da. II. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas.
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III. Título.

CDD – 300

Elaborada por Rafaela Ramos de Moraes – CRB-7/6625


Dedico à minha família, em especial Rafael Merlo Guimarães
E Lucas Dos Santos Guimarães.
EVILYN OLIVEIRA MERLO

“A FUNÇÃO SOCIAL DOS ARQUIVOS DE POLÍCIAS POLÍTICAS: USOS E RESSIGNIFICAÇÕES’’.

Dissertação apresentado(a) ao Curso de Mestrado em História, Política e Bens Culturais do(a) Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil para obtenção do grau de Mestre(a) em
História, Política e Bens Culturais.

Data da defesa: 17/12/2020

ASSINATURA DOS MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

Presidente da Comissão Examinadora: Profª Angela Moreira Domingues da Silva

Angela Moreira Domingues da Silva


Orientador

Beatriz de Moraes Vieira João Marcus Figueiredo Assis


Membro Externo Membro Externo

Nos termos da Lei nº 13.979 de 06/02/20 - DOU nº 27 de 07/02/20 e Portaria MEC nº 544 de 16/06/20 - DOU nº 114 de 17/06/20 que dispõem sobre
a suspensão temporária das atividades acadêmicas presenciais e a utilização de recursos tecnológicos face ao COVID-19, as apresentações
das defesas de Tese e Dissertação, de forma excepcional, serão realizadas de forma remota e síncrona, incluindo-se nessa modalidade
membros da banca e discente.

Celso Corrêa Pinto de Castro Antonio de Araujo Freitas Junior


Diretor Pró-Reitor de Ensino, Pesquisa e Pós-Graduação FGV

Instrução Normativa nº 01/19, de 09/07/19 - Pró-Reitoria FGV


Em caso de participação de Membro(s) da Banca Examinadora de forma não-presencial*, o Presidente da Comissão Examinadora
assinará o documento como representante legal, delegado por esta I.N.
*Skype, Videoconferência, Apps de vídeo etc
AGRADECIMENTOS

Iniciar um texto de agradecimento nunca é fácil, seja pela dificuldade de enumerar e


nomear todas as pessoas que participaram ativamente deste desafio que é ingressar em um
mestrado acadêmico, seja pela ordem dos agradecimentos. A quem começar agradecendo por
um trabalho, que está longe de ser individual? Contou com esforços de muitos olhos nas leituras
atentas, ouvidos nos intermináveis momentos de desabafo e angústia, mãos que ajudaram a
revisar pontualmente cada erro que passariam despercebidos.
Pela nova fase que iniciei em minha vida durante a caminhada na pós graduação, gestei,
pari e me tornei mãe do meu filho Rafael Merlo Guimarães. Eu gostaria de iniciar meus
agradecimentos a todas as mulheres que antes de mim enfrentaram o difícil papel que é tornar-
se e ser mãe continuando na luta por uma formação acadêmica de qualidade.
Graças à luta de tantas mulheres, conseguimos o direito à licença-maternidade por 6
meses durante a pós graduação. Período mais que necessário para nos reorganizarmos dentro
desse novo papel social que passamos a assumir, com todas as responsabilidades e medos que
vêm acompanhados, quando optamos por ter um filho. Se redescobrir, se refazer e se reinventar
leva tempo, demanda cuidado e afeto, e eu pude contar com todo apoio que precisava. Se hoje
estou encerrando mais esse ciclo na minha formação acadêmica isso, também, se deve a vocês.
Seguindo essa linha, agradeço imensamente a minha mãe Vilma Alves de Oliveira
Merlo. Minha mãe largou todos seus compromissos no Rio de Janeiro e veio a Recife, onde
moro atualmente, cuidar do meu filho, da minha casa para que eu pudesse me concentrar em
escrever minha dissertação. Mais do que isso, me ensinou a vida toda que eu era capaz de chegar
aonde eu quisesse e se sacrificou trabalhando dia e noite junto com meu pai, Eurly Merlo, para
que eu tivesse a oportunidade de estudar. Muito obrigada a vocês dois que são meus alicerces.
Agradeço à minha orientadora Angela Moreira por tudo. Mulher incrível que mesmo
com todas as responsabilidades que possui com a coordenação do curso, com aulas para
ministrar, eventos para participar, prazos a cumprir, me acolheu com muito carinho. Desde o
início do curso e das nossas primeiras conversas, pude contar com a compreensão, com o apoio
e com o cuidado dela. Obrigada por nossas reuniões via videoconferência que contaram em
alguns momentos com a participação especial de Iara, sua filha e do Rafinha, meu menino. Eles
davam o fôlego que eu tanto precisava. Obrigada por me incentivar e por não me deixar desistir,
acima de tudo por me respeitar e me enxergar como ser humano e não como um número no
Lattes.
Agradeço ao meu amigo Edson Silva de Lima por praticamente ter me obrigado a fazer
a prova de seleção do mestrado. Por acreditar em mim, mesmo quando eu tinha certeza de que
nada poderia produzir. Nos afastamos um pouco, coisas da vida e sabíamos que isso aconteceria,
eu precisava voar com minhas asas e aprender a levantar dos tombos com minhas próprias
pernas. Comprovando tudo que você sempre me disse, estou aqui completando mais uma
formação acadêmica graças a sua insistência.
Agradeço aos meus colegas de turma, pessoas da mais alta estirpe acadêmica e pessoal.
O que teria sido da minha formação sem os debates enriquecedores que fizemos dentro e fora
da sala de aula? Vocês têm todo meu respeito e admiração. Nunca imaginei que de uma turma
tão plural, eu pudesse me sentir tão acolhida e em casa.
Agradeço a minha amiga Viviane da Silva Fernandes, ao nosso pai (porque adotei o dela
como meu também) Sr. Marcos, por toda torcida e afeto dedicados a mim durante todos esses
anos que nos conhecemos. Choramos juntas, rimos juntas, bebemos juntas e papai sempre feliz
com nossas conquistas. À Vanessa de Araújo Andrade, agradeço o tapa na cara virtual que
recebi quando disse que ia desistir. Ninguém é capaz de acertar em cheio nossa consciência e
nos trazer de volta ao prumo como ela. Obrigada mesmo Vanessa, você foi fundamental no
processo de finalização desta dissertação.
Agradeço às minhas amigas Fernanda Siqueira, Juliana Lins por todo apoio que me foi
dado durante todo esse período e em todos os momentos difíceis. Vocês foram muito
importantes nessa trajetória. Raquel de Oliveira Melo, agradeço por sua amizade por
compartilhar comigo a sina canceriana e por não ter me deixado embarcar numa aventura
alucinante na caçamba do caminhão de lixo, enquanto comemorávamos minha aprovação no
mestrado.
Por fim, não menos importante, agradeço ao meu companheiro Lucas dos Santos
Guimarães por ter “sustentado essa barra que é gostar de mim” e ter aguentado todos meus
surtos de desespero, meus choros, meus gritos de “Eu quero morrer”. Não morri, aqui está a
prova disso. Obrigada por ter cuidado tão bem do nosso “Tchuquito” enquanto eu escrevia este
trabalho.
RESUMO

Esta dissertação apresenta uma reflexão sobre as diferentes formas de acionamento e de


significados que são atribuídos aos documentos do fundo de Polícias Políticas do Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro, produzidos pelos órgãos repressivos durante o período da
ditadura militar no Brasil (1964-1985). Apresentamos ao longo do trabalho a forma como
documentos das Polícias Políticas foram organizados pela equipe técnica do Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro, os dilemas e desafios enfrentados durante o processo de
recolhimento, organização e, posteriormente, acesso ao público. Além disso, desenvolvemos
uma discussão acerca dos usos sociais dos arquivos, principalmente os que foram produzidos
no período ditatorial militar brasileiro, defendendo a importância que o acesso a esses
documentos possui para história e memória do nosso país, bem como para construção e
consolidação de uma sociedade democrática. Observamos, através de análise de processos de
pedido de reparação, como vítimas e familiares de mortos e desaparecidos constroem uma
narrativa de direito a partir do uso dos documentos sob guarda do Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro. Ademais, avaliamos como a Comissão Nacional da Verdade e a Comissão
Estadual da Verdade do Rio de Janeiro acionaram os documentos do fundo de Polícias Políticas
em suas investigações, buscando informações sobre as violências e violações de direitos
humanos cometidos por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985).

Palavras-Chave: Ditadura Militar; Polícias Políticas; Arquivos da repressão; Arquivo Público


do Estado do Rio de Janeiro.
ABSTRACT

This dissertation presents a reflection on the different forms of activation and meanings which
are found in the documents of the Political Police archives group of the Public Archive of the
State of Rio de Janeiro (APERJ), obtained by repressive agencies during the period of military
dictatorship in Brazil (1964-1985). We present throughout the work the way in which Political
Police documents were organized by the technical team of the Public Archives of the State of
Rio de Janeiro, the dilemmas and challenges faced during the process of gathering, organizing
and, later, the access to the public. In addition, we developed a discussion about the social uses
of archives, especially those obtained during the Brazilian military dictatorship period,
defending the importance which the access to these documents has for the history and memory
of our country, as well as for the construction and consolidation of a democratic society. We
observed, through the analysis of restitution request processes, how victims and relatives of the
dead and disappeared ones build a narrative of law based on the use of documents under the
custody of the Public Archive of the State of Rio de Janeiro. Furthermore, we assessed how the
National Truth Commission (CNV) and the State Truth Commission of Rio de Janeiro (CEV-
Rio) utilized the documents of the Political Police archives group in their investigations, seeking
information about the violences and human rights violations committed by agents of the
Brazilian State during the military dictatorship (1964-1985).

Keywords: Military dictatorship; Political Police; Repression archives; Public Archive of the
State of Rio de Janeiro (APERJ)
LISTA DE ABREVIAÇÕES

APERJ - Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro;


CEV-Rio - Comissão Estadual da Verdade Rio;
CEMDP - Comissão Especial Sobre de Mortos e Desaparecidos Políticos;
CER - Comissão Especial de Reparação;
CNV - Comissão Nacional da Verdade;
DOPS - Destacamento de Ordem Política e Social;
DOPS GB - Destacamento de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara;
DOPS RJ - Destacamento de Ordem Política e Social do Estado do Rio de Janeiro.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12
COMPREENDENDO O QUE SÃO ARQUIVOS E SUA FUNÇÃO SOCIAL A PARTIR DE
DEMANDAS POR DIREITOS. 22
1.1 - Análise da trajetória arquivística internacional e brasileira - Afinal o que são arquivos?
22
1.2 - Compreendendo os processos que envolvem a organização de arquivos
permanentes - Um caminho para o desenvolvimento de pesquisa em Arquivos. 31
1.3 - A função social dos arquivos mobilizado nas narrativas construídas por vítimas da
ditadura militar (1964-1985) no contexto de luta por direitos. 38
1.4 - Os arquivos da repressão e o debate sobre os documentos sensíveis para a temática
dos direitos humanos. 50
FUNDO DE POLÍCIAS POLÍTICAS - OS DESAFIOS ENFRENTADOS POR
PESQUISADORES NO ACIONAMENTO DESTES DOCUMENTOS. 59
2.1 - O processo de recolhimento, organização e acesso aos arquivos do fundo de
Polícias Políticas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro- APERJ. 59
2.2 - Armadilhas e Tensões- Os desafios enfrentados no acionamento de documentos
sensíveis. 79
OS ACIONAMENTOS DOS DOCUMENTOS DO FUNDO DE POLÍCIAS POLÍTICAS-
COMISSÃO ESPECIAL DE REPARAÇÃO, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE RIO. 92
3.1 - Comissão Especial de Reparação, Lei 3.744/2001- Os arquivos do fundo de Polícias
Políticas como prova da violência cometida pelo Estado durante a ditadura militar (1964-
1985). 92
3.2 - A mobilização de familiares de mortos e desaparecidos e da Comissão Nacional da
Verdade na busca por informações nos arquivos do fundo de Polícias Políticas. 99
3.3 - Comissão Estadual da Verdade Rio- investigações realizadas no fundo de Polícias
Políticas. 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS 124
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 129
12

INTRODUÇÃO

A pesquisa desenvolvida nesta dissertação surgiu da vontade de estabelecer um diálogo


entre minhas duas áreas de formação: História, concluída na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), e Arquivologia, concluída na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Minha primeira formação acadêmica foi a graduação em História, onde no trabalho
de conclusão de curso desenvolvi uma reflexão acerca da utilização da literatura infanto-juvenil
como instrumento para discussão de temas sensíveis, especificamente, a ditadura militar
brasileira (1964-1985). Realizei uma análise comparativa entre as políticas educacionais do
Brasil e da Argentina, por fim demonstrando através do livro infanto-juvenil “Quién Soy?
Relato sobre identidad, nietos y reencuentros” as possíveis discussões e abordagens que podem
ser feitas através do uso de literatura infanto-juvenil no Ensino de História.
Enquanto cursava Arquivologia na UNIRIO, iniciei uma especialização em Ensino de
História no Colégio Pedro II, onde no trabalho final dei continuidade às discussões realizadas
no curso de História. Nesse caso, desenvolvendo um plano de atividade voltado para o ensino
do período ditatorial brasileiro (1964-1985), através de diferentes ferramentas: literatura
infanto-juvenil; história em quadrinho; jogo lúdico e criação de material. Senti nesse processo
a necessidade de desenvolver uma pesquisa que me permitisse sair da seara do Ensino de
História, e que possibilitasse articular as minhas indagações enquanto arquivista em formação
(na época), que giravam em torno da questão de acesso aos documentos, da relação de poder
entre a instituição de guarda e os pesquisadores, com meus questionamentos de historiadora
relacionados ao trabalho com fontes documentais e a necessidade de pesquisa em arquivos.
Desta forma, inicialmente esta pesquisa visava fazer uma análise sobre os possíveis
impactos gerados no encontro entre o pesquisador e o arquivo. Escolhemos como instituição o
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, primeiro por uma questão estratégica de
deslocamento, uma vez que o APERJ tem sua sede em Botafogo, próximo à UNIRIO e da
Fundação Getúlio Vargas (FGV). Em segundo lugar, por ser o arquivo responsável pela guarda
dos documentos do fundo de Polícias Políticas, que contém uma vasta documentação dos órgãos
repressivos do Estado produzida, sobretudo, durante o período ditatorial brasileiro (1964-1985).
Nosso objetivo era fazer um estudo sobre o Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, analisando a forma de organização do fundo de Polícias Políticas, identificando as
normas e procedimentos adotados pela instituição no que se refere ao acesso aos documentos.
Por fim, após a identificação de usuários do acervo pretendíamos, a partir de entrevistas,
13

perceber como o contato com a instituição e com o acervo teriam contribuído ou mudado os
rumos da pesquisa realizada e como esses impactos teriam afetado a conclusão do trabalho.
Infelizmente, não foi possível realizar esse estudo, no decorrer do curso de mestrado
houve uma mudança na direção do Departamento de Acesso à Informação do Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro. O diretor que havia se disponibilizado a nos dar acesso aos dados
dos pesquisadores, foi exonerado. A nova direção, ao assumir, negou nosso pedido
inviabilizando o trabalho. De certa forma, mesmo que não tenha sido possível realizar a
pesquisa nos moldes que havíamos planejado, o trabalho que desenvolvi posteriormente é um
exemplo de como os rumos de uma pesquisa acadêmica podem ser alterados e ou
impossibilitados a partir de um pedido negado de acesso, da mudança de direção, dessa relação
entre pesquisador e arquivo. Enfim, pude comprovar empiricamente que o contato entre
pesquisador e arquivo, consequentemente, seus funcionários ou servidores, possuem um
impacto nas pesquisas a serem desenvolvidas, seja ele positivo ou negativo.
Como não foi possível realizar a coleta de dados dos pesquisadores, foi necessário uma
alteração nos objetivos e nos caminhos da pesquisa de modo que fosse possível continuar a
análise sobre o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o aprofundamento sobre a função
social do arquivo e a importância dos documentos como instrumentos comprobatórios,
sobretudo, como mecanismo de compreensão, desconstrução e reconstrução de narrativas sobre
a ditadura militar brasileira (1964-1985). Desta forma, as leituras que foram sendo realizadas
ao longo da pesquisa nos levaram a outras indagações, ou seja, um questionamento sobre os
diferentes usos dos arquivos do fundo de Polícias Políticas e os significados a eles atribuídos
de acordo com o contexto em que são acionados.
As discussões sobre a função social dos arquivos não é uma novidade no campo de
produção arquivística. No entanto, é interessante observar que é através do projeto Memórias
Reveladas1 que há um alargamento nas análises e os documentos produzidos durante a ditadura
militar passam a ser reconhecidos como fundamentais nessa discussão. De modo que a
preservação e o acesso a esses documentos se tornam uma demanda assumida por diversos
grupos politicamente organizados e pela sociedade.
Este marco assinalou com veemência os múltiplos esforços realizados pela comunidade
acadêmica, os grupos de apoio às vítimas da ditadura militar, assim como a sociedade civil

1
“O Memórias Reveladas” se constitui em um espaço de preservação de acervos e de reunião de informações
capazes de subsidiar a pesquisa histórica e elucidar violações de direitos ocorridas no contexto da ditadura civil-
militar. Reunindo importantes conjuntos documentais públicos, o projeto abriga também acervos privados
acumulados ou reunidos por atores sociais que resistiram à ditadura, promove seminários, organiza exposições e
fomenta o trabalho acadêmico por meio de um prêmio de pesquisa” (HEYMANN, 2014:40-42).
14

organizada, pela abertura e pelo acesso aos documentos. Antes de qualquer objetivo acadêmico,
a luta pela identificação e acesso aos documentos produzidos por órgãos de repressão durante
o período da ditadura militar brasileira, possuem um caráter humano. Atribui-se esse valor a
um sentido de garantia de direitos, de informações que levem ao paradeiro de pessoas mortas e
desaparecidas, seja encontrando seus corpos ou até mesmo possibilitando a formalização de
seus atestados de óbito. Para além disso, a necessidade de reparação às vítimas através de
pagamento de indenização monetária, mas, principalmente, pelo reconhecimento do Estado
brasileiro pelos crimes cometidos contra vida humana durante o período ditatorial (1964-1985).
À luz do acervo documental disponibilizado, por exemplo, pelo Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro através do fundo Polícias Políticas, foi possível tornar públicas as
violações de direitos cometidas pelo Estado, que já vinham de longa data sendo denunciadas
por vítimas e seus familiares. Nesse sentido, tem bastante importância a luta travada pela
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comissão Nacional da Verdade
e a Comissão Estadual da Verdade Rio, que através de dossiês e dos Relatórios Finais de seus
trabalhos possibilitaram que a sociedade civil tivesse acesso a novas narrativas sobre os
acontecimentos que marcaram nosso passado recente. Narrativas estas que contrapunham o
discurso oficial apaziguador, trazendo à tona provas documentais que comprovam as mentiras
construídas e sustentadas pelos órgãos de repressão.
Diante do exposto, defendemos que a preservação e o acesso aos documentos
produzidos durante a ditadura militar brasileira são instrumentos fundamentais para formação
de uma consciência histórica2. Portanto, é necessário que se tenha acesso a esses documentos
porque,
[...]com distintas naturezas, procedências, configurações e potencialidades, são esses
arquivos que nos permitem conhecer o período, de forma cada vez mais completa e
complexa, bem como reconhecer e institucionalizar memórias então silenciadas ou de
circulação restrita. (HEYMANN, 2014, p. 34).

Sabemos que o debate em torno da memória construída e/ou reconstruída sobre períodos
marcados pela presença de governos militares também se apresenta como essencial para
compreensão do papel da memória, seja ela oficial ou subterrânea (POLLAK, 1989), para
formação humana e, portanto, social. O não reconhecimento das violências cometidas contra a
humanidade, caracterizadas por sessões de tortura, desaparecimento forçado e assassinato de

2
Segundo Jorn Rusen (2007) a consciência histórica é a capacidade do indivíduo de se perceber como um agente
no processo de mudanças temporais, onde passado e presente se entrecruzam através dos movimentos de
continuidades e rupturas que surgem desse contato. Perceber-se como pertencente a um determinado tempo
cronológico que é resultado, mas não consequência do devir histórico no qual, esse aprendizado se dá, como define
o autor, através de três operações básicas “experiência, interpretação e orientação” (Rusen, 2007, p 110).
15

militantes, inclusive daqueles que não tinham relação direta com os grupos organizados de
resistência, devem ser vistos como uma tentativa de apagamento dessa memória dolorosa3.
Assim, a continuidade da luta pelo direito à memória travada pelas famílias, amigos e
segmentos sociais se torna fundamental para que possamos, parafraseando De Certeau (1982),
dar luto à história.
Samantha Viz Quadrat (2005), ao analisar as transformações políticas experimentadas
pela América Latina durante a década de 1980, observa que este processo de mudança incorre
na possibilidade de atendimento às reivindicações populares de investigações mais profundas
dos crimes cometidos pelas Forças Armadas com o apoio do Estado durante a ditadura militar
brasileira. Entretanto, como foi assinalado anteriormente, com a abertura destes arquivos e
consequentemente sua publicização, as instituições arquivísticas passam a ocupar um papel de
destaque, também, nas pesquisas realizadas pelas ciências sociais. Ou seja,

Trabalhos desenvolvidos, sobretudo, nas áreas da Filosofia e da Antropologia, mas


também na área da História, promoveram um deslocamento da abordagem tradicional,
segundo a qual os arquivos são vistos como conjuntos de registros que preservam o
passado, funcionando como “prova” desse passado, para outra em que são vistos como
parte do processo de construção de discursos acerca do presente que pretendem
documentar. (HEYMANN, 2014, p. 34-35).

Nesse sentido, podemos observar que os documentos que compõem os acervos sobre a
ditadura militar brasileira, mais do que prova daquele período, podem ser entendidos como um
testemunho4, uma vez que, eles carregam em suas linhas e entrelinhas o peso das violências
cometidas pelo Estado e seus agentes ou negação delas. Seja através de processos de entrada de
presos políticos nas cadeias públicas ou mesmo a ausência de documentos através do descarte
clandestino dos mesmos, ou pela decisão subjetiva dos chefes militares em não documentar o
paradeiro destes homens e mulheres sequestrados, desaparecidos e/ou mortos pelo regime.
Para compreender como foi possível que hoje alguns desses documentos sejam públicos
e acessíveis em instituições arquivísticas, grupos de militância ou até mesmo disponíveis online,
precisamos ressaltar o papel imprescindível que a Lei de Acesso à Informação 12.527/11 possui
para esse avanço. Não pretendemos com isso fazer uma análise conjuntural acerca do contexto
histórico em que ela foi publicada ou mesmo desenvolver uma discussão aprofundada sobre o

3
VIEIRA, Beatriz de Moraes. A Palavra Perplexa: experiência histórica e poesia no Brasil nos anos 1970. 1. ed.
São Paulo: Hucitec, 2011.
4
“(...) podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma atividade elementar, no sentido de que dela
depende a sobrevida daquele que volta do Lager (campo de concentração) ou de outra situação radical de violência
que implica esta necessidade, ou seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar.” (SILVA, 2008:6).
16

tema, sem nos esquecer de que a formulação desta legislação é resultado do progresso das
políticas legislativas sobre informação.
Posto isto, a LAI, como é também conhecida a Lei de Acesso à Informação, refere-se
ao direito de acesso a documentos referentes a violações de direitos no seu art. 21, garantindo
que não poderão ser negados pedidos de informação que estão relacionados a ações promovidas
por agentes ou autoridades públicas. Entretanto, há também na referida lei uma preocupação
em torno dos documentos que contêm informações pessoais, sobretudo, os que podem ferir o
direito à privacidade, intimidade etc.
Assim, percebemos que a Lei 12.527/11. tornou-se um instrumento importante de
legitimação do direito não só ao acesso à documentação, mas principalmente, a possibilidade
de que através deles sejam comprovadas as violações cometidas, os desaparecimentos até hoje
sem resposta, caracterizando-se como um meio de conhecer o nosso passado, permitindo novas
interpretações, garantindo espaços para vozes que foram silenciadas através do trauma ou da
morte e que encontram agora uma brecha para finalmente explicitar sua dor. Buscamos em
nosso trabalho, por uma questão política e de respeito a todos aqueles que sofreram e sofrem
em decorrência das ações do Estado, cometidas durante a ditadura militar (1964-1985),
construir uma narrativa e reflexões que nos auxiliem a compreender e, na medida do possível,
preencher as lacunas e vazios deixados pelo tempo.
Partindo dessa responsabilidade social com nosso passado, principalmente, com nosso
presente e futuro, dispomo-nos ao longo desta dissertação a assumir nosso papel na luta pela
memória, verdade e justiça. Para tanto, construímos nossa análise a partir da compreensão do
universo arquivístico e sua constituição como lugar de memória, como diria Pierre Nora (1993),
e de direito, na medida em que se tratando de documentos produzidos no período ditatorial
brasileiro esses documentos foram instrumentos fundamentais na luta por direitos.5
Sendo assim, as discussões desenvolvidas no primeiro capítulo se iniciam com uma
análise do panorama internacional e nacional do processo de consolidação da arquivologia
enquanto disciplina científica e, também, o reconhecimento por parte do Estado da necessidade
de preservação de seus documentos. Esse estudo é importante para situar o nosso leitor nas
discussões e contexto em que a arquivologia foi desenvolvida, que em alguns casos podem ser
leigos no assunto, auxiliando na compreensão do tema e do pano de fundo que o fazer

5
Ao utilizar o termo “direitos” o fazemos em sua forma mais ampla, abarcando os direitos civis presentes na
Constituição de 1988, como também as discussões acerca do reconhecimento seja ele simbólico ou material por
parte do Estado brasileiro da dívida imensurável com diversos homens e mulheres que tiveram suas vidas ceifadas
por terem se posicionado e lutado contra o golpe militar e o regime político que se instaurou no país em 1964.
17

arquivístico se inscreve. Fazer uma apresentação, ainda que concisa, sobre a trajetória
arquivística nos ajuda a compreender como hoje os arquivos são tratados e geridos pelo Estado,
sua importância e as disputas políticas que giram em torno do investimento ou não, em
instituições de guarda de documentos.
No campo internacional, destacamos em nossa análise a observação do caso francês.
Esta escolha foi realizada porque a arquivologia brasileira sofre grande influência de pensadores
e críticos franceses em sua formação. De modo, que o marco temporal adotado por
pesquisadores no que se refere a experiência da França com arquivos é a Revolução Francesa,
em 1789. Segundo pesquisadores da área, como Posner (2013), a Revolução Francesa teria sido
responsável pela compreensão de que era necessária uma centralização dos documentos
produzidos pelo Estado francês e que a preservação destes documentos era importante para
sociedade. Para além de questões burocráticas estatais, os arquivos tornaram-se importantes
ferramentas de construção e consolidação das memórias e identidades nacionais.
No que se refere a consolidação da Arquivologia no Brasil muitos são os autores que se
debruçaram sobre esta questão. Nos chama atenção as análises desenvolvidas por Santos
(2013). Isto porque, enquanto Santos (2012) faz um trabalho retrospectivo da Arquivologia
desde a formação do Departamento Administrativo de Serviço Público (DASP), em 1940,
consequentemente, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 1950. Silva (2013), por sua vez,
desenvolve sua análise a partir das mudanças ocorridas na década de 1970, relacionadas ao
estabelecimento de marcos legais e da formação de organizações próprias voltadas para o
arquivo como a Associação dos Arquivistas Brasileiros (AAB).
Reconhecer o valor dos documentos para além de seu caráter jurídico e legal, é um dos
pontos importantes que estabelecem uma relação entre as proposições realizadas pelos autores.
Além disso, o recorte temporal nos permite identificar um marco para o reconhecimento e
valorização dos arquivos como uma política nacional, que se desenvolveu predominantemente
entre os séculos XIX e XX nos países da Europa e nos Estados Unidos. Perceber essa discussão
no tocante à institucionalização do campo no Brasil, é fundamental para compreendermos como
nosso país tem lidado com estas questões e como a arquivologia tem se estabelecido enquanto
saber e fazer, ciência e prática.
Após refletir sobre a consolidação do campo arquivístico, optamos por analisar e
apresentar como é realizada a organização de arquivos permanentes. Haja visto que, seja nas
chamadas Ciências Humanas, e até mesmo nas Ciências Exatas, o pesquisador recorre aos
arquivos e aos documentos buscando solucionar suas indagações. Acreditamos que antes de
partir para análise documental, o pesquisador deve em primeiro lugar compreender como se dá
18

o funcionamento e a organização da instituição custodiadora dos documentos que deseja


acessar.
Sendo assim, ao adentrar numa instituição de guarda faz-se necessário que o pesquisador
tenha domínio ou pelo menos conhecimento mínimo dos processos que antecedem a
disponibilidade do acervo ao público, de modo que seja capaz de não cair nas armadilhas postas
entre caixas de papel e fichários que fazem vítimas a todo instante. Este olhar cuidadoso sobre
o universo que engloba o documento, traz muitas vezes respostas às lacunas presentes no
conjunto documental, não necessariamente em seu conteúdo, mas explica a falta ou a
inexistência de informações que muitas vezes são essenciais para a pesquisa.
Após apresentar as etapas de organização dos arquivos permanentes, nos dedicamos a
uma reflexão sobre qual é o papel dos arquivos e dos documentos de arquivo para a sociedade.
Quais são os possíveis usos da documentação custodiada e sua importância para a sociedade,
de modo a compreender a luta travada por longos anos, por arquivistas, historiadores, sociedade
civil organizada e pesquisadores em geral para a preservação e o acesso aos documentos. Sendo
assim, o reconhecimento da importância dos arquivos e seus documentos para a sociedade pode
ser visto como um caminho para que estas instituições passem a receber o devido investimento.
Assim, será possível garantir seu pleno funcionamento, como também o oferecimento do
atendimento adequado aos pesquisadores, auxiliando não apenas no processo de elaboração de
pesquisas acadêmicas, mas também na disponibilização de ferramentas a serem utilizadas por
cidadãos para conquista e garantia de seus direitos.
Dessa forma, nos preocupamos em compreender como se estabelece uma relação entre
direito, memória e cidadania a partir dos documentos presentes em arquivos. Percebemos
através deste exercício reflexivo que esse trabalho exige de nós, pesquisadores, uma
sensibilidade que vai além dos nossos objetivos práticos de demanda por informações referentes
aos nossos propósitos de pesquisa. É compreender que aqueles documentos carregam em suas
páginas, linhas e entrelinhas o peso de ações que muitas vezes mudaram o cotidiano de
cidadãos, alteraram a forma como o Estado lidava e lida com eles, ou seja, configuram-se como
provas de crimes, excessos ou negligências. Além disso, em casos de violência, como as
cometidas largamente durante a ditadura militar brasileira, o acesso aos documentos permite às
vítimas e suas famílias o direito à “verdade”, seja efetivamente com um documento produzido
por órgãos oficiais do Estado ou através de buscas incansáveis por outras fontes que quando
defrontadas com a primeira confirmam o fato ou demonstram outro desfecho para o caso em
questão.
19

A abertura dos arquivos e o acesso aos documentos produzidos no âmbito da ditadura


militar (1964-1985), são importantes caminhos para a reescrita do passado, esclarecimento
sobre mortes e desaparecimentos de pessoas, desconstrução das versões oficiais sobre fatos
ocorridos durante este período. Revelar as atrocidades cometidas por agentes do Estado contra
seus cidadãos, promover uma efetiva reparação a partir do reconhecimento e o pagamento de
indenização às vítimas são potenciais decorrências ao acesso e do uso orientado dessa
documentação. Além disso, possibilita também o estabelecimento da confiança dos cidadãos
no Estado, promovendo a construção de uma sociedade a partir de valores e ações efetivamente
democráticas, como verdade, memória e justiça.
Finalizamos o primeiro capítulo refletindo acerca do caráter sensível que documentos
produzidos por órgãos repressivos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) possuem.
Observamos os impactos sociais produzidos pela abertura dos documentos de Polícias Políticas
(1992), no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, bem como as possibilidades de
pesquisa com a utilização destas fontes. Alinhado a esse contexto, o discurso dos direitos
humanos emerge como ferramenta importante no processo de disputa pela verdade e justiça.
Assim como a luta pela responsabilização e reconhecimento do Estado brasileiro pelas
violências e violações cometidas, além do esclarecimento sobre mortes e desaparecimentos
forçados. Desse modo, percebemos que independente do formato e da natureza, o caráter
sensível dos documentos dependerá também do contexto em que esta documentação é
consultada. Isto, porque as condições de acesso irão interferir no modo como o pesquisador
observa essa fonte, quando realizado em um momento de efervescência dos debates acerca do
tema estudado, maior é a possibilidade de trocas e de bibliografias disponíveis para auxiliar no
processo de reflexão. Quando realizado em período ainda marcado pela censura política, difícil
será o acesso e maiores são os riscos e o perigo de perseguições.
No Brasil, os primeiros documentos a tornaram-se públicos foram os produzidos pelas
Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), este processo se deu através do recolhimento
do acervo produzido nos DOPS pelos arquivos públicos de diversos estados brasileiros na
década de 1990 (HEYMANN, 2013, p.40). Por conter informações das vítimas da ditadura
militar (1964-1985), em alguns casos detalhes sobre a tortura aos quais foram submetidos e por
se tratar em grande parte de documentos que retratam a vida particular e privada os sujeitos
investigados, foi longo o processo de disputa e discussão em torno do acesso a esse acervo.
A partir desta constatação, iniciamos o segundo capítulo, que tem como objetivo
analisar todo processo que envolveu o recolhimento, organização e acesso aos documentos
produzidos pela Polícia Política na ditadura militar brasileira. Para tanto, foi imprescindível
20

desenvolver uma apresentação sobre a história do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro-
APERJ. Apresentando o contexto em que foi criado, as leis que orientam o funcionamento da
instituição, para então analisarmos o tratamento dispensado aos documentos que forma o fundo
de Polícias Políticas da instituição.
Identificamos a partir da análise acerca do trabalho desenvolvido pelo Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro- APERJ, que a gestão e organização de arquivos é uma tarefa
árdua. Dependendo do contexto em que esses documentos chegam ao arquivo, toda a lógica de
trabalho é modificada para atender as demandas sociais advindas da abertura desta
documentação. Com o fim da ditadura militar (1985), a luta encarada pela sociedade como um
todo e, especialmente, as vítimas diretas da repressão era outra. Uma guerra contra burocracia,
contra a sombra criada em torno do paradeiro de desaparecidos políticos, uma guerra onde as
armas passaram a ser “documentais”. Surgiu a necessidade de encontrar provas materiais que
pudessem provar sua inocência, garantir seus direitos negados durante a ditadura militar e
romper o silêncio imposto pelas perseguições e censura. Era chegada a hora de descortinar e
escancarar os abusos cometidos pelo Estado e seus órgãos de repressão, os documentos que
serviram como prova de incriminação seriam ressignificados, pois passariam a ser prova
material das ações realizadas pela polícia e seus agentes, caracterizando-se como potenciais
instrumentos garantidores de legitimidade às demandas por direitos e por justiça.
A pesquisa em arquivos e o uso de documentos como fontes de pesquisa, seja com fins
acadêmicos ou particulares, não é um exercício simples. Com esta constatação apresentamos
na segunda parte do capítulo um debate sobre as tensões e armadilhas que os arquivos
apresentam ao seu usuário. Os desafios enfrentados são muitos, tanto pesquisadores quanto
indivíduos particulares são confrontados com uma massa documental que a depender da
intenção da pesquisa podem ou não dizer muito. O que vai definir os rumos da pesquisa e do
uso a ser feito dos documentos são as intenções e a capacidade de compreender o conjunto
documental como um todo, identificar as faltas, preencher as lacunas com outros documentos
e informações.
O terceiro e último capítulo desta dissertação trata diretamente de todas as discussões
que foram até então desenvolvidas ao longo do trabalho. Isto porque, apresentamos, por meio
de uma análise prática, as possibilidades de uso e de acionamento que são feitos dos documentos
do fundo de Polícias Políticas, presentes no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Em
primeiro lugar, analisamos a utilização dos documentos como instrumentos necessários para
construção e legitimação de pedido de indenização monetária oferecida pelo estado do Rio de
Janeiro. Ou seja, com a criação da Comissão Especial de Reparação, através da Lei 3.744/2001,
21

iniciou-se um movimento de busca no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ),


para formalização do requerimento de indenização de vítimas, presas ou mantidas sob custódia
pelos órgãos repressivos cometidas entre 1º de abril de 1964 até de agosto de 1979,
compreendendo o período que vai do golpe de Estado à edição da Lei de Anistia.
No que se refere ao acionamento da documentação no caso de pedido de reparação,
analisamos quatro requerimentos apresentados à Comissão Especial de Reparação. Buscamos
identificar como, na construção do processo e do dossiê, os documentos do fundo de Polícias
Políticas foram utilizados pelos requerentes na construção de uma narrativa comprobatória dos
seus direitos de indenização. Além disso, analisamos também a forma como a Comissão
responsável por avaliar os pedidos de indenização analisavam a documentação apresentada,
considerando as dimensões de sentido a ela atribuído.
No que se refere à Comissão Nacional da Verdade, optamos por analisar no Volume III
do Relatório Final da CNV - Mortos e Desaparecidos Políticos, apenas casos em que os
documentos do fundo de Polícias Políticas foram acionados. Além disso, escolhemos trabalhar
apenas com casos ocorridos no Estado do Rio de Janeiro e que tiveram como justificativa e
argumento dos serviços de segurança “confronto com a polícia”. Selecionamos, então, três
casos de mulheres: Marilena Villas Boas Pinto, Maria Regina Lobo e Lígia Maria Salgado
Nóbrega; e três casos de homens: Marco Antônio da Silva Lemos, Aderval Alves Coqueiro e
Antônio Marcos Pinto de Oliveira.
Finalizando as discussões desenvolvidas ao longo do terceiro capítulo, ao concluir o
exercício de análise acerca dos usos feitos dos documentos do fundo de Polícias Políticas, sob
guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, examinamos o Relatório Final da
Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. Explicamos como funcionava a Comissão,
sua relação com a Comissão Nacional da Verdade e com grupos de familiares de mortos e
desaparecidos, bem como diversos grupos políticos organizados. Escolhemos examinar o
Capítulo 13 do Relatório, seguindo a mesma orientação utilizada na análise realizada no
Relatório da Comissão Nacional da Verdade: apenas casos em que foi possível identificar a
utilização de documentos do fundo de Polícias Políticas. Desse modo, identificamos cinco casos
de vítimas da ditadura militar brasileira.
22

CAPÍTULO 1

COMPREENDENDO O QUE SÃO ARQUIVOS E SUA FUNÇÃO SOCIAL A PARTIR


DE DEMANDAS POR DIREITOS.

1.1 - Análise da trajetória arquivística internacional e brasileira - Afinal o que são


arquivos?

O trabalho de pesquisa histórica pressupõe ao historiador a crítica às fontes como


metodologia científica. Documentos que, em diversos formatos e temporalidades, auxiliam o
pesquisador na reflexão sobre o passado ou o presente que se pretende estudar. Neste exercício
reflexivo o pesquisador ao entrar em contato com suas fontes o faz elaborando questionamentos,
entrecruzando dados e referências que permitem a ele compreender os discursos e as narrativas
presentes nos documentos.
Como ponto de partida para as nossas discussões, que se inscrevem nas diversas formas
de mobilização dos documentos do fundo de Polícias Políticas sob guarda do Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro, é sensível notar quais foram os caminhos percorridos no âmbito
dos arquivos até que a estes fosse reconhecido seu caráter social e sua importância para a
história e para sociedade. Nesse caso, como veremos a seguir, no século XIX as correntes
positivistas e historicista na historiografia elevaram o status dos documentos escritos e oficiais
como fonte de pesquisa fidedigna para a história. Além disso, as mudanças sociais e da
organização administrativa do Estado na França, a partir da Revolução Francesa e da criação
do Arquivo Nacional Francês, alterou também a compreensão que a sociedade possuía sobre
seus arquivos.
Foi a partir da Revolução Francesa em 1789, que houve uma preocupação com a
centralização dos documentos de Estado, que antes eram encontrados em diversos espaços, por
exemplo, os arquivos monárquicos. Segundo Ernest Posner,

A concepção de estabelecimentos gerais de arquivos como lugares onde os


documentos de toda a administração do Estado, tanto central como provincial,
deveriam ser preservados não se materializou e não poderia materializar-se até que se
recebesse um impulso externo e se desenvolvesse uma atitude inteiramente nova em
relação aos arquivos. (POSNER, 2013, p. 275)

Este impulso ao qual se refere o autor, encontra suas bases em 1790, quando há a criação
do primeiro arquivo nacional francês. Ou seja, o reconhecimento da necessidade de criação de
espaços específicos e especializados para lidar com a documentação que era produzida pela
23

administração. Embora o desejo de centralização dos documentos em um único Arquivo tivesse


sido o interesse na época, foram instituídos Arquivos departamentais. De qualquer forma, isto
demonstra uma alteração na lógica de compreensão da importância da manutenção e
preservação dos documentos.
Além da institucionalização de um espaço de guarda para os documentos, a Revolução
Francesa apresentou, segundo Posner (2013), outras três consequências importantes para a área.
Nesse sentido, após a revolução, observamos a consolidação da administração pública
centralizada em órgãos criados com objetivos nacionais e unificados, é o caso, por exemplo, do
Arquivo Nacional francês. Criado originalmente para servir aos arquivos parlamentares da
Assembleia Nacional, o arquivo transformou-se em uma instituição central do Estado após a
revolução, promovendo uma submissão dos arquivos provinciais já existentes. Observamos,
pela primeira vez uma gestão documental que abarcava os depósitos existentes e documentos
de repartições públicas. Outra característica a ser mencionada é que o Estado parecia ter
admitido sua responsabilidade com a massa documental que havia herdado de outros períodos
históricos. De início um número significativo de documentos foi descartado, entretanto, com a
criação do Bureau de Seleção e Títulos passou-se a compreender o valor histórico desta
documentação e, consequentemente, a importância da sua preservação e guarda. (POSNER,
2013, p.276)
Ademais, foi a partir da legislação criada com a revolução que o Estado reconheceu o
direito de acesso aos documentos ao cidadão. Isto pode ser observado no artigo 37 do decreto
de Messidor: “Todo cidadão tem o direito de pedir, em cada depósito [...] a exibição dos
documentos ali contidos” (POSNER, 2013, p. 276). O objetivo deste artigo não estava
relacionado a uma preocupação com pesquisas históricas ou de cunho acadêmico, mas na
necessidade de atender aos cidadãos que haviam adquirido parte da propriedade nacional, de
modo que os documentos eram tratados a partir do seu caráter jurídico e de prova.
Podemos afirmar, que a partir do fortalecimento do nacionalismo e o medo de invasões
estrangeiras na França, os arquivos e a história nacional foram resgatados e com isso os
documentos que antes não possuíam valor social, passaram a ser utilizados no sentido de
contribuir para a construção e fortalecimento da uma memória e da identidade nacional.

Os povos da Europa gradualmente tomaram consciência de sua individualidade e


começaram a usar a história nacional como uma fonte de encorajamento em momentos
de desastre nacional. O romantismo começou a glorificar o passado, suas obras de arte
e seus monumentos literários e documentais. A publicação de fontes documentais, a
fim de torná-las acessíveis para a história do país, e escrever essa história por meio
dos materiais recentemente descobertos tornaram-se os objetivos de um vigoroso e
entusiástico movimento na historiografia. (POSNER, 2013, p. 279)
24

É interessante observar que a princípio não havia uma metodologia específica para o
tratamento desta documentação, por vezes a organização realizada nos conjuntos documentais
seguiam a orientação de diretrizes da área da biblioteconomia e aos interesses dos pesquisadores
e estudiosos. Com a chegada de eruditos aos arquivos, foi importante que houvesse o
desenvolvimento de novas formas de organização dos acervos, isto porque com o crescente
interesse de pesquisadores, especialistas e historiadores nos Arquivos, os documentos e o
próprio Arquivo passaram a adquirir um valor acadêmico de interesse dos intelectuais.

[...] dentro dos arquivos, os documentos eram muitas vezes arranjados de acordo com
pontos de vista não condizentes com seu caráter peculiar. Muitos arquivistas haviam
obtido seu treinamento em bibliotecas e apenas eram capazes de pensar em termos de
biblioteconomia, e, além disso, as necessidades da investigação erudita e do trabalho
de pesquisa eram consideradas de importância tão preponderante que parecia óbvio
que os documentos deviam ser arranjados e catalogados de modo a facilitar por todas
as maneiras o uso erudito. (POSNER, 2013, p. 279-280)

O reconhecimento da importância de uma metodologia própria da arquivística foi


observado através da criação da noção de respeito aos fundos. Esta é uma das bases essenciais
ao trabalho do arquivista, em que se confirmou que os documentos parte de uma unidade
administrativa extinta ou não, não podiam ser agrupados a outros documentos de origens
distintas. Implementada na França e na Prússia nos anos de 1840, esta noção passou a
influenciar o trabalho arquivístico desenvolvido em outros países e instituições. Sendo então
oficializado com a criação do Manual dos Arquivistas Holandeses, documento que marca a
institucionalização e normatização do trabalho arquivístico, considerado por muitos autores
como o marco fundador da Arquivologia.
Esta preocupação com os documentos e o reconhecimento da sua importância para os
Estados Nacionais, principalmente, na França, é também demonstrada pelo autor Eliezer Pires
da Silva (2011). Segundo o pesquisador existem três visões que caracterizaram a trajetória da
Arquivologia enquanto disciplina, a saber: uma visão histórica; gerencial e informacional.
Como nosso objetivo é compreender de que maneira os Arquivos e seus documentos passaram
a adquirir importância no âmbito da administração e da sociedade, nos deteremos a chamada
visão histórica identificada pelo autor.
A visão histórica, segundo Silva (2011), pode ser identificada a partir do século XIX
alinhada aos interesses historiográficos de estabelecer e fortalecer os discursos nacionais e
identitários. Esta visão pode ser facilmente compreendida se observarmos o modelo de
instituição arquivística que se estabelece no século XIX na França, reflexo das influências
francesas no processo de organização/gestão documental dos arquivos pós revolução 1789. Mas
25

também, de acordo com o autor, o arquivo para além de seu uso administrativo passou a ser
terreno fértil para o projeto dos Estados Nacionais. Que através de instituições estatais, como
os Arquivos, buscavam guardar documentos que lhes garantisse as bases para formação e
consolidação da identidade nacional. Sendo assim, é neste contexto que o Arquivo enquanto
instituição passa a ter uma função fundamental para o Estado Nação.
O Arquivo, portanto, passa a ser visto como o local onde são armazenados os
documentos necessários as memórias coletivas que garantem a unificação da identidade
nacional. Além disso, outro aspecto importante é a consolidação da História enquanto disciplina
científica, onde os documentos a partir da corrente positivista, passam a ser elementos
essenciais para acessar o passado e garantir “veracidade” as narrativas históricas. Portanto,
observa-se um afastamento da arquivologia das suas funções exclusivamente administrativas e
inaugura-se um novo modelo institucional voltado para o uso de fins acadêmicos, mas também
sociais relacionados à garantia da cidadania.
Corroborando com as ideias defendidas por Posner (2013) e Silva (2011), Clarissa
Schmidt (2012) se debruça a uma discussão bibliográfica acerca da história dos arquivos e,
consequentemente, da arquivologia. Em seu trabalho a autora apresenta diversas correntes que
se propõe a estabelecer marcos temporais para o estudo dos arquivos. No entanto, Schmidt
(2012) estabelece a periodicidade do seu estudo alinhada à corrente do pensador Vivas Moreno.
Desta forma, como nos trabalhos anteriores, observamos um recorte denominado
“Desenvolvimento Historiográfico e Teoria Especulativa” que abarca a segunda metade do
século XVIII até meados do século XX.
Sem aprofundar as discussões sobre as mudanças ocorridas após a Revolução Francesa,
a autora reconhece a importância deste movimento no que se refere a organização e ao valor
que passou a ser atribuído aos documentos e aos Arquivos. Afirma que era de interesse do novo
governo ter sob seu controle documentos, principalmente, os de caráter cartorial. Desta forma,
fazia-se essencial a criação de uma instituição que centralizasse estes documentos atendendo
ao novo sentido que a eles foi atribuído dentro do Estado a partir das relações de poder.
Destacando também o valor histórico e social em contraponto ao valor meramente jurídico e
legal, Schmidt (2012) destaca a utilização dos documentos como forma de construção e
reafirmação da identidade e da memória nacional.
A trajetória internacional da arquivística possui características que refletem as
realidades e os contextos nos quais o campo se desenvolveu, não está restrita a experiência
francesa e foi percebida de diferentes formas em outros países da Europa e Estados Unidos. No
entanto, como a França teve maior influência sobre o modelo adotado no Brasil escolhemos
26

privilegiar este enfoque. Assim, cabe a nós apresentar como se deu no Brasil a
institucionalização do campo, os marcos legais e as discussões mais recentes acerca da história
arquivística brasileira.
Santos (2018) desenvolve sua pesquisa sobre a institucionalização da arquivologia no
Brasil a partir do projeto de modernização administrativa realizada por Getúlio Vargas.
Segundo o autor, a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), criado
em 1938, possibilitou a separação da política e da administração num contexto de forte
centralização política do poder na Presidência da República (SANTOS, 2018, p. 122). Isto teria
lançado as bases para a consolidação da fase moderna da arquivologia, onde era indispensável
a formulação de técnicas, métodos e práticas específicas do campo que garantiriam seu lugar
na administração recém reformulada. Além disso, Santos (2018), considera que só é possível
perceber e compreender a institucionalização da arquivística se forem também observadas as
relações estabelecidas entre as áreas da biblioteconomia e documentação que estavam também
associadas ao projeto modernizador implementado pelo DASP.
De acordo com Santos (2018), é a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas e com
a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), que são criados campos
funcionais no Estado brasileiro sendo então exigidos os cargos profissionais e pessoal
qualificado sendo arquivistas, bibliotecários e documentalistas. Estas áreas teriam maior
destaque a partir dos anos 1950, no entanto, já iniciavam sua trajetória na administração pública
desde meados da década de 1930 (SANTOS, 2018, p. 123). A crescente demanda por
profissionais especializados e a formação de um corpo burocrático promoveu mudanças até
mesmo na forma de admissão do corpo de funcionários, que passou a ser realizada por meio de
concursos públicos. O DASP, desempenhou papel importante também no que diz respeito à
formação técnica da administração pública, incentivando seus funcionários a realizarem cursos
no exterior, em país como os Estados Unidos, que mantinham fortes relações com o projeto de
Estado e governo que estava sendo consolidado à época.
O autor desenvolve uma reflexão neste contexto buscando compreender quais foram as
influências do DASP, a partir das suas medidas e propostas administrativas, no que diz respeito
ao papel que os Arquivos iriam assumir dentro da administração pública através das reformas
administrativas que vinham ocorrendo. Santos (2018) destaca que, ao contrário do que pode ser
observado no caso das bibliotecas, os arquivos não obtiveram a mesma atenção do Estado. Foi
possível perceber, no entanto, em 1940, no texto das Exposições de Motivos a inclusão da
“organização e administração de arquivos”, “biblioteconomia” e “organização e administração
de escritórios” como três atividades auxiliares da administração (SANTOS, 2018, p. 131). De
27

modo que, investigando os arquivos do DASP, o autor encontrou o primeiro relatório do órgão
publicado em 1938, em que foi possível identificar a nomeação de uma servidora como chefe
da seção de Comunicação. De acordo com a descrição das atividades do cargo, Santos (2018)
compreende que se tratava de um “serviço de arquivo e protocolo” que passou a conviver com
o setor de Serviço de Documentação a partir de 1940.
Nesse contexto, além do relatório de 1938, o autor teve acesso ao relatório dos anos de
1940-1941, sendo possível identificar a partir da leitura deste documento a existência de um
Arquivo Histórico responsável por supervisionar a distribuição de publicações do DASP e
preparava trabalhos como “Índice das Resoluções do CFSPC” (SANTOS, 2018, p. 131). Bem
como, percebeu uma alteração na chefia, na estruturação do Arquivo e na nomenclatura que de
Seção de Arquivo Histórico passou a chamar Pesquisas e Arquivo. Um ponto interessante
destacado por Santos (2018), diz respeito a falta de conhecimento teórico e metodológico
arquivístico, que é evidenciado por uma demanda da chefe da seção de normatização de códigos
a serem utilizados na organização dos documentos. Outro aspecto que, segundo o autor,
demonstra a fragilidade do conhecimento arquivístico, foi a adoção do código de classificação
de “Dewey”, que privilegia a organização dos documentos por assuntos.
Em 1940, é iniciado um processo de elaboração de concurso público para os cargos de
arquivista e arquivologista. No entanto, no ano seguinte, houve um desdobramento no quadro
de arquivista que já era previsto em lei n.284 de 1936. Assim, segundo Marques (2013) “a)
arquivologista, encarregado das funções de planejamento, organização e orientação; e b)
arquivista, que atuaria como auxiliar do primeiro.” (apud. SANTOS, 2018, p. 132). Apesar da
força política que o DASP possuía na administração e seu desejo de promover uma
reformulação nas carreiras públicas, não foi tão fácil implementar o projeto de reforma nos
quadros de cargos e funcionários.

No processo de implementação da nova carreira de arquivologista, o Departamento


deparou com o desconforto do Arquivo Nacional que, segundo seu diretor, Eugênio
Vilhena de Moraes, seria a “única repartição” para a qual deveriam ser criados os
cargos de arquivologista, por ser a única, “por força da lei”, responsável pelo
arquivamento dos documentos oficiais e originais, “monumentos da legislação e
administração” (SANTOS, 2014, p.24-25). O então diretor do Arquivo Nacional
procura justificar a omissão do órgão e aponta o prazo de 90 dias como insuficiente
para que os candidatos pudessem se inteirar dos conteúdos que comportavam matérias
novas, e algumas com exigências de provas práticas. (SANTOS, 2018, p.132-133)

Ainda diante dos obstáculos enfrentados pelo Departamento, o autor nos revela que o
órgão se manteve firme na sua posição de criação do cargo e sua implementação no quadro
geral de especialistas. Nota-se, que há por parte do DASP um entendimento do que sejam essas
profissões e sua função dentro da administração pública, e as Instruções de 1944 e a proposta
28

de 1945 representam essas características. De acordo com as afirmações do autor, em 1945 já


havia indícios do reconhecimento da área como disciplina, sendo identificado nas orientações
criadas para os concursos a serem realizados pelo Departamento Administrativo de Serviço
Público- DASP.
Santos (2018) observa a institucionalização da arquivologia sob o viés da consolidação
de uma disciplina acadêmica, ao contrário de Marques (2018), intimamente ligada a
aproximação entre o Brasil e os Estados Unidos numa ação de cooperação e formação do corpo
técnico especializado da administração. Assim sendo, a Segunda Guerra Mundial e as ações de
aperfeiçoamento de profissionais no exterior teriam favorecido uma influência norte americana
nos métodos e teorias utilizadas para a organização e gerenciamento de arquivos e bibliotecas.
Por fim, o que se pode aferir sobre a década de 1940, na visão do autor, é que neste período são
lançadas as bases de uma disciplina que estaria relacionada a um saber de Estado, que por outro
lado, ainda não havia se estruturado diferenciando-se da biblioteconomia e documentação.
(SANTOS, 2018, p. 139)
Apesar da década de 40 ter sido apresentada por Santos (2018) como um dos períodos
que marcaram a trajetória da arquivologia, o autor aproxima-se muito das formulações
desenvolvidas por Silva (2013) que defende, por sua vez, como período fundamental para
consolidação da arquivologia a década de 1970. É interessante observar que ambos os autores
se debruçam sobre a institucionalização do campo partindo de pontos de análises distintos.
Enquanto Santos (2012) faz um trabalho retrospectivo desde a formação do DASP em 1940,
consequentemente, da Fundação Getúlio Vargas- FGV em 1950, Silva (2013) atenta-se às
mudanças ocorridas na década de 1970, relacionadas ao estabelecimento de marcos legais e da
formação de organizações próprias voltadas para o arquivo como a Associação dos Arquivistas
Brasileiros-AAB.
Apesar dos diferentes pontos de partida de análise, ambos autores reconhecem que é sob
a presidência de José Honório Rodrigues na direção do Arquivo Nacional que houve mudanças
fundamentais para o campo da arquivística brasileira. Seu projeto de modernização do arquivo
com o estabelecimento de ações de cooperação entre arquivistas brasileiros e estrangeiros viria
a modificar profundamente os modelos arquivísticos implementados até então no país. “No
entanto, apesar da existência de diversas instituições arquivísticas, o ensino universitário para
formação profissional de arquivistas e o reconhecimento legal da profissão foram estabelecidos
apenas no final da década de 1970” (SILVA, 2012, p. 22).
Indo além das afirmações propostas por Silva (2013), Santos (2012) afirma que alinhado
a gestão de Honório Rodrigues no Arquivo Nacional, deve-se perceber a importância que a
29

Fundação Getúlio Vargas possui nesse processo. A criação do sistema de arquivo criado por
Marilene Leite Paes com o auxílio de Maria Lourdes Costa e Souza, na Fundação serviu como
modelo para muitos órgãos e instituições públicas brasileiras à época.

Embora não tenham existido relações orgânicas entre as duas experiências acima
descritas e o processo institucional do Arquivo Nacional no período, é possível
afirmar que se complementam na medida em que incorporam em graus diferenciados
aspectos relacionados à experiência prática, ao conhecimento teórico e metodológico,
à profissionalização e às políticas públicas. (SANTOS, 2012, p. 12)

Segundo Silva (2013), a década de 1970 foi um marco para o processo de


profissionalização da arquivologia no Brasil. Houve importantes acontecimentos que marcaram
a trajetória do campo arquivístico brasileiro, podemos destacar entre outros fatores a formação
da Associação dos Arquivistas Brasileiros- AAB, no ano de 1971. Esta associação contou com
apoio e incentivo de José Pedro Esposel, o que já indicava uma organização dos agentes que
trabalhavam em arquivos no sentido de criar um associativismo ligado a setores da sociedade,
profissionais da área e o Estado.

A partir de sua criação a AAB passou a desempenhar papel central na


institucionalização da arquivologia no país e na constituição de uma “comunidade
profissional” que reunia arquivistas, bibliotecários, historiadores, advogados e
administradores, entre outros que procuravam compartilhar de um mesmo projeto. [...]
Em torno da liderança política de José Pedro Esposel se constituiu um grupo que atuou
de maneira coordenada e contribuiu para o desenvolvimento da disciplina nos anos
1970. Os congressos, o periódico e as discussões do currículo mínimo foram fatos
relevantes para a área, e os profissionais agrupados na associação estão entre os atores
principais naquele contexto. (SANTOS, 2012, p. 13)

A criação da AAB, veio acompanhada da elaboração de uma revista periódica


denominada Arquivo & Administração em 1972, onde eram publicados artigos e trabalhos sobre
arquivologia e administração, e a organização bianual do Congresso Brasileiro de Arquivologia.
Outros eventos marcaram a tão movimentada década de 1970, a saber: a criação do curso
superior em Arquivologia aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1972; o mandato
universitário ao curso do Arquivo Nacional oferecido pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro- UFRJ, em 1973; A incorporação por parte da UNIRIO do curso oferecido pelo Arquivo
Nacional, em 1977; por fim, temos em 1978 a regulamentação da profissão de arquivista no
Brasil.
A partir desta discussão, podemos compreender que apesar dos pontos de congruência
entre as argumentações defendidas pelos autores, ficam claras as marcas de suas preferências
interpretativas. Santos (2012) associando a institucionalização da arquivologia a partir do seu
reconhecimento enquanto disciplina científica, já Silva (2013) buscando explicar o processo de
institucionalização voltado para as questões associativistas dos profissionais e aos marcos legais
30

desse processo. Estas não são, contudo, as únicas vertentes que se propõem a estudar o tema.
Muitos são os pesquisadores que desde a década de 1990, mais especificamente, dos anos 2000
até hoje tem se empenhado em estabelecer uma gênese da institucionalização arquivística no
Brasil. Nosso objetivo, entretanto, foi apresentar um breve panorama destas discussões de modo
a orientar nosso leitor sobre as discussões que vêm sendo realizadas na área.
Reconhecer o valor dos documentos para além de seu caráter jurídico e legal, é um dos
pontos importantes que estabelecem a relação entre as proposições realizadas pelos autores
citados na primeira parte do texto, bem como o recorte temporal que nos permite identificar um
marco para o reconhecimento e valorização dos arquivos como uma política Nacional, que se
desenvolveu predominantemente entre os séculos XIX e XX nos países da Europa e Estados
Unidos. Perceber essa discussão no tocante a institucionalização do campo no Brasil, foi
fundamental para compreendermos como nosso país tem lidado com estas questões e como a
arquivologia tem se estabelecido enquanto saber e fazer, ciência e prática.
Acreditamos que no que se refere a função social do arquivo, as características voltadas
para a questão jurídica e de prova são fundamentais na manipulação dos documentos. Isto
porque, ao buscar nestes arquivos provas de determinados acontecimentos o pesquisador ou o
cidadão faz uso, sobretudo, do seu caráter legal buscando garantir legitimidade de seus pleitos
e direitos. Observamos esses acionamentos dos documentos quando analisamos, por exemplo,
a construção de requerimentos de vítimas da ditadura militar brasileira (1964-1985) por
demanda de indenização possibilitadas pela criação da Comissão Especial de Reparação,
através da lei 3.744/2001. Bem como, nos trabalhos desenvolvidos pela Comissão Nacional da
Verdade e Comissão Estadual da Verdade- Rio, em que os documentos são instrumentos
importantes na reconstituição, reelaboração e reinterpretação do passado ditatorial brasileiro.
Ou seja, as informações contidas nos documentos nos permitem comprovar ou
conjecturar sobre acontecimentos passados, de modo que através de um estudo e análise atento
ao seu conteúdo, ainda que diante da falta de determinadas informações, conseguimos
identificar os fios e pistas que nos levam a responder nossos questionamentos iniciais. Em se
tratando de requerimento de indenização, vítimas e familiares conseguem comprovar que são
sujeitos qualificados a receber reparação. Nas Comissões da Verdade, é possível contrapor os
discursos oficiais, denunciando o Estado pelos crimes cometidos por seus agentes durante a
ditadura militar (1964-1985).
Para que o pesquisador e o cidadão consigam adentrar no universo dos arquivos, não
basta apenas vontade e interesse, é preciso que se tenha o conhecimento de determinados
códigos e linguagens que são utilizados durante todo o processo de organização de acervos.
31

Dominando esse conhecimento, torna-se menos complicado o processo de busca e leitura dos
documentos, bem como sua utilização. Poderíamos afirmar que essa necessidade de um
conhecimento prévio, é um dos impeditivos para que o acesso aos documentos seja
efetivamente contemplado e que esta dificuldade de compreensão torna-se na verdade um
obstáculo não apenas para o cidadão “leigo”6, mas também para o pesquisador que pela primeira
vez entra em contato com arquivo e com seus documentos.
Neste sentido, nas próximas páginas apresentaremos em linhas gerais os processos que
envolvem a organização de acervos permanentes, explicando os processos e as etapas
desenvolvidas por arquivistas e funcionários de arquivo7 que trabalham nos arquivos, até que
estes se tornem efetivamente abertos ao público. Acreditamos que isto seja necessário, até
mesmo como uma forma de orientação e auxílio aos que pretendem compreender um pouco
mais sobre como se dá a organização de acervos e com isso buscar caminhos que facilitem de
certa forma sua pesquisa, ou até mesmo encurtem o processo, muitas vezes demorado, de busca
por determinada fonte.

1.2 - Compreendendo os processos que envolvem a organização de arquivos permanentes


- Um caminho para o desenvolvimento de pesquisa em Arquivos.

Ao iniciar um trabalho de pesquisa são muitas as questões que se encontram no caderno


de anotações do pesquisador, sejam elas relacionadas ao objeto selecionado para o estudo, as
perguntas que o levou a escolher determinado campo em detrimento de outros, as motivações
externas e internas que de algum modo direcionaram o estudioso ao encontro dos documentos.
Enfim, todo esse processo que antecede a busca por informações e dados que o auxilie a
responder suas indagações iniciais ou até mesmo a seguir por outros caminhos até então
inimagináveis são essenciais e dizem muito sobre o tipo de trabalho que está sendo realizado e
o pesquisador por trás desta engrenagem. Em muitos casos, seja nas chamadas Ciências

6
Utilizamos a expressão ‘“leigo” para caracterizar os cidadãos que não possuem interesse acadêmico em suas
pesquisas. O cidadão que por questões particulares vai ao arquivo em busca de informações sobre, por exemplo, a
vinda de sua família da Europa para o Brasil em registro de embarcações disponíveis no Arquivo Nacional. Até
mesmo, pessoas que movidas por curiosidade ou vontade de conhecer mais sobre determinado tema, buscam nos
arquivos documentos para construção de conhecimento.
7
Nos referimos à funcionários de arquivo, uma vez que, tanto em instituições públicas como privadas é comum
observarmos servidores/ trabalhadores com diversas formações profissionais. Isto se deve a organização dos cargos
e a distribuição das funções. Acreditamos, que essa diversidade de profissionais não se apresenta como um
problema no desenvolvimento das atividades relativas aos arquivos, desde que acompanhadas e supervisionadas
de um Arquivista formado na área e que oriente todo o processo de tratamento, organização, gestão e acesso aos
documentos. Garantindo desta forma que serão seguidos e respeitados os preceitos arquivísticos em todo o
processo de trabalho.
32

Humanas e até mesmo nas Ciências Exatas, o pesquisador recorre aos Arquivos e aos
documentos buscando solucionar suas indagações. Este exercício de análise documental deve
ser precedido pelo conhecimento acerca do funcionamento e organização das instituições
custodiadoras destes acervos.
Sendo assim, ao adentrar numa instituição de guarda faz-se necessário que o pesquisador
tenha domínio ou pelo menos conhecimento mínimo dos processos que antecedem a
disponibilidade do acervo ao público, de modo que seja capaz de não cair nas armadilhas postas
entre caixas de papel e fichários que fazem vítimas a todo instante. Este olhar cuidadoso sobre
o universo que engloba o documento, traz muitas vezes respostas às lacunas presentes no
conjunto documental, não necessariamente em seu conteúdo, mas explica a falta ou a
inexistência de informações que muitas vezes são essenciais para a pesquisa.
São muitas as etapas que antecedem a disponibilidade de acesso aos acervos, estas
iniciam-se no processo de doação, recolhimento e, em alguns casos, de compra destes
documentos dos seus órgãos de origem para o arquivo permanente. A princípio pode parecer
fácil decifrar estas nomenclaturas técnicas utilizadas pelos arquivistas, no entanto, elas dizem
muito sobre todo o processo que levou determinados documentos a tornarem-se públicos e,
consequentemente, objeto de estudo e pesquisa. Por exemplo, quando falamos em doação esta
ação pressupõe um ato voluntário pelo qual um indivíduo ou mesmo uma pessoa jurídica faz a
doação de acervos que estão sob sua posse, sejam eles referentes às suas atividades ou então de
terceiros. A doação é realizada sem fins pecuniários e segue trâmites jurídicos específicos em
que consta no acervo o caráter de doação de tais documentos (PAES, 2004, p.26). Já a
transferência é a ação de recolhimento de acervos que se encontram em arquivos intermediários
para os arquivos permanentes.
À primeira vista, estas ações podem parecer naturais do transcurso documental, mas
quando lidamos com documentos que tratam, por exemplo, de períodos autoritários o caminho
percorrido pelos conjuntos documentais muitas vezes revela os impasses e nos dão pistas sobre
quais teriam sido as estratégias dos agentes para a desfragmentação destes acervos.
Compreender as disputas de poder e discursos são fundamentais na pesquisa, ainda que o foco
principal do pesquisador não seja a compreensão dos meandros políticos que levaram ao destino
da documentação. Através destas informações, podemos identificar quais foram os esforços
promovidos pela sociedade civil e grupos organizados para que estes documentos se tornassem
públicos e quais são as implicações práticas deste acesso aos documentos.
Assim, o pesquisador deve num primeiro momento estudar e conhecer o acervo e a
instituição que o preserva, para então debruçar-se sobre os documentos e poder enfim realizar
33

sua pesquisa. Neste sentido, ao buscar identificar e a definir o que são efetivamente arquivos, o
pesquisador pode amparar-se nas proposições elaboradas pelo Dicionário Brasileiro de
Terminologia, que determina quatro definições possíveis para arquivo. Sendo elas em primeiro
lugar relacionadas a ideia de “conjunto de documentos” com características em comum; em
segundo lugar definindo arquivos como “instituição ou serviço que tem por finalidade a
custódia, o processamento técnico, a conversão e o acesso a documentos”; a terceira definição
ligada à questão estrutural do arquivo como as “instalações onde funcionam arquivos”; e por
fim, determina que arquivo seria o “móvel destinado à guarda de documentos” (DICIONÁRIO
BRASILEIRO DE TERMINOLOGIA, 2005, p. 27).
Observamos que as definições de arquivo como um todo, estão circunscritas aos
documentos e ao seu acúmulo. Assim como no referido Dicionário, Marilena Leite Paes (2004)
identifica possíveis definições para arquivos, que vão desde uma designação genérica de um
conjunto documental, até a questão da mobília em que os documentos são guardados. Para nós,
pesquisadores, interessa diferenciar a instituição de guarda dos documentos efetivamente. Para
tanto, ao longo do nosso trabalho quando nos referirmos às instituições utilizaremos o termo
Arquivo em letra maiúscula, por sua vez, quando tratarmos de conjuntos documentais o termo
será utilizado em letra minúscula, arquivo. Esta diferenciação é necessária ao nosso ver, para
evitar confusões interpretativas ou até mesmo facilitar a leitura e compreensão das nossas
discussões.
Cabe também, em meio a esta definição de arquivo, resgatar a acepção atribuída por
Heloísa Liberalli Bellotto (2007), uma vez que a autora identifica que a razão de existência dos
arquivos encontra-se ancorada tanto na administração quanto na própria história. Desta forma,
sendo uma das funções dos arquivos permanentes recolher os documentos administrativos
concedendo-lhes caráter histórico e ambiente propício e fértil para a pesquisa historiográfica
(BELLOTTO, 2007, p.24). Ou seja, a autora reconhece desde logo a importância dos
documentos nascidos com fins administrativos e de rotina de determinados órgãos ou empresas,
para o estudo e as pesquisas realizadas por pesquisadores, sobretudo, historiadores. Bem como,
Bruno Delmas (2010), que compreende que os arquivos são elementos fundamentais para o
funcionamento de toda e qualquer sociedade, sendo instrumentos que demonstram a alta
complexidade organizacional das mesmas e de suas instituições. De modo que podemos afirmar
que ao preservar estes documentos é possível através do exercício crítico destas fontes,
compreender o funcionamento destes órgãos, conhecer sobre sua rotina, métodos de trabalho,
pessoal e, quando completo o acervo, as datas de fundação e extinção dos mesmos.
34

A palavra arquivo pode referir-se a uma instituição cuja finalidade é manter sob sua
custódia os documentos, ou ao lugar onde são armazenados, bem como pode estar
referindo-se ao documento em si mesmo e, ainda, em última análise, aos móveis
criados com a finalidade de guardar e preservar os documentos. No entanto, procurou-
se aqui tratar do termo “arquivo” sob dois aspectos. Primeiro como documento e, em
segundo, como lugar de guarda abarcando instituição e/ou repartição de um serviço
de arquivo. (SILVA, 2011, p. 21)

Assim, para deixar claro quais são as etapas que compõem o fazer arquivístico em
arquivos permanentes, elaboramos uma explicação breve sobre cada uma destas ações. Não
vamos, por conseguinte, nos atentar a questões minuciosas do trabalho desenvolvido pelos
arquivistas, mas apontaremos de maneira objetiva o que são estes processos e qual a função de
cada um. Como já definimos posteriormente o que é uma doação e transferência, vamos dar
continuidade a partir deste ponto.
Ao receber uma massa documental em um arquivo, sobretudo, quando se trata de
documentos que não receberam o devido tratamento uma das primeiras etapas consiste em fazer
um levantamento sobre quais são os documentos existentes nesse conjunto documental,
identificando quando possível seu órgão de origem e se porventura os documentos não se
encontram misturados a outros de procedências distintas. Quando o arquivista faz esse
levantamento inicial, ele busca entre outras coisas identificar a quantidade exata de documentos
que foram doados, identificar a característica de preservação da documentação, principalmente,
atentando ao princípio fundamental de respeito aos fundos8. É possível neste primeiro contato
com a documentação, identificar quais são os gêneros e tipos de documentos presentes no
conjunto e desta forma armazená-lo de forma correta.
O arquivista manterá a ordem original dos documentos, quando esta houver sido
mantida, do contrário poderá de acordo com a leitura deles pressupor ou encontrar uma relação
entre eles. De um modo geral, a elaboração do arranjo9 é realizada seguindo critérios funcionais,
entretanto, nem sempre, isto é possível e vai depender, da condição em que se encontram os
documentos no fundo documental. Uma saída para este tipo de embate é buscar informações
sobre a estrutura organizacional do órgão ou instituição aos quais os documentos são referentes,
tornando-se mais fácil esse processo de organização.

8
O princípio de respeito aos fundos diz respeito a manutenção em um mesmo fundo de todos os documentos
provenientes de uma mesma fonte geradora. (PAES, 1986, p.27) Ou seja, ao fazer o tratamento de um acervo e/ou
fundo de arquivo, o arquivista não pode colocar agrupados documentos de origens distintas, uma vez que, os
documentos de arquivo são caracterizados pela relação orgânica que estabelecem entre si. Se colocados em fundos
que não os seus de origem, perdem o vínculo e, consequentemente, seu significado em conjunto.

9
Marillena Leite Paes (2004) identifica que a atividade de arranjo é a mais importante a ser realizada num arquivo
permanente, seja ele público ou privado, já que será essa atividade que vai garantir a organicidade do acervo e
permitir que o acesso seja feito de modo rápido e espelhando a vida e as atividades da instituição que o produziu.
35

As atividades desenvolvidas no arranjo são de dois tipos: intelectuais e físicas. As


intelectuais consistem na análise dos documentos quanto a sua forma, origem
funcional e conteúdo. As atividades físicas se referem à colocação dos papéis nas
galerias, estantes ou caixas, seu empacotamento, fixação de etiquetas etc.
(BELLOTTO, 2007, p.122-123)

Além da criação do arranjo intelectual do acervo, são criados códigos de identificação


nos documentos ou nos dossiês. Isto é importante, porque nos permite ter o controle exato da
localização e do número de documentos presentes no conjunto. Faz-se necessário, em alguns
casos sim e outros não, a higienização da documentação, etapa esta que em sua maioria é feita
item a item e a depender do tamanho do acervo é um processo bem demorado. Outro aspecto
que interfere nessa etapa de higienização é o suporte documental em que se encontra a
informação, se em papel, em imagem fotográfica, fita VHS, fita k7 entre outras, demandará
equipamentos e técnicas específicas, bem como profissionais especializados no tratamento
deste tipo de documento.
Assim como no processo de higienização, o acondicionamento dos documentos também
será determinado pelo suporte documental, de modo que cada documento receberá o tratamento
e o acondicionamento condizente com a sua necessidade, para que seja prolongado o tempo de
vida do documento e mantida sua preservação. O modo como os documentos serão dispostos
no arquivo também nos dá indicações interessantes de como o acervo foi tratado pela
instituição. Os arquivamentos podem, segundo Paes (2004), ser feitos de forma horizontal ou
vertical, os primeiros são utilizados predominantemente quando se trata de mapas, desenhos,
plantas; os segundos são feitos geralmente em documentos textuais, onde podem ser colocados
um atrás do outro em pastas ou fichários sem que isso prejudique ou cause danos ao documento
(PAES, 2004, p.28).
A descrição10 e publicação consistem em outras etapas fundamentais para o acesso aos
documentos, é nesta fase que o papel subjetivo do arquivista se apresenta de forma mais clara.
Isto não quer dizer que ao fazer a descrição da documentação, o arquivista irá de acordo com
seus interesses escrever o que lhe parece mais relevante, no entanto, como a descrição é algo
pessoal acaba sobressaindo de certa forma sua compreensão sobre as informações contidas em

10
Segundo Heloísa Liberalli Bellotto, “a descrição é a única maneira de possibilitar que os dados contidos nas
séries e/ou unidades documentais cheguem até os pesquisadores [...] O processo de descrição consiste na
elaboração de instrumentos de pesquisa que possibilitem a identificação, o rastreamento, a localização e a
utilização de dados [...] Como os depósitos de arquivos, obviamente, nunca são de livre acesso, seu potencial de
informações só chega ao usuário via instrumento de pesquisa.” (BELLOTTO, 2007, p. 179)
36

determinados documentos. Existe, no entanto, a Norma Brasileira de Descrição Arquivística11


criada justamente para orientar os profissionais que atuam em arquivos a como desenvolverem
a atividade de descrição de maneira padronizada. Assim, são indicados campos obrigatórios
que devem ser preenchidos nas fichas de descrição e que são imprescindíveis para a
identificação do documento, bem como sua localização dentro dos arquivos e posição no
arranjo. Com isso, a descrição pode alcançar diversos níveis do mais elevado fundo, passando
pela série documental, subsérie, dossiê/processo até o item documental propriamente dito. A
escolha destes níveis irá depender da comissão técnica responsável pelo acervo e uma vez
escolhido o método ele é realizado até o final do processo.
Um elemento fundamental quando tratamos do acesso aos documentos está relacionado
aos meios pelos quais os Arquivos divulgam seus acervos. Os instrumentos de pesquisa são
essenciais, na medida em que ao “divulgar o conteúdo e as características dos documentos”
(PAES, 2004, p.126), possibilitam o primeiro contato e diálogo entre o pesquisador e os
documentos a que pretende pesquisar. Desta forma, é possível que se encontre em instituições
custodiadoras os seguintes instrumentos: Guia; Inventário; Catálogo e Repertório.
O Guia, é um instrumento de pesquisa de caráter genérico, ele pretende apenas
apresentar ao pesquisador uma visão geral dos fundos que integram o acervo documental e o
Arquivo. Assim, deve conter informações que revelam a natureza, estrutura, o período,
quantidade de cada fundo que integra o acervo total. Não é raro que os pesquisadores se
deparem com os guias ao tentarem um primeiro contato com a documentação. Através do Guia,
o pesquisador extrai informações relevantes quanto ao funcionamento, endereço e telefone do
Arquivo, horário de atendimento ao público, quais são as normas e regulamentos para a
utilização da sala de consulta, bem como quais materiais podem ser utilizados ou não. Além de
informações sobre a oferta de recursos técnicos como cópias, digitalização de documentos,
microfilme, gravação e reprodução de mídias entre outros.
Já o inventário nos apresenta de forma mais completa informações específicas sobre
determinado fundo documental. No inventário descreve-se o fundo em sua totalidade ou parte
dele. Neste caso, identificamos a existência de tipos distintos de inventário, ou seja, inventário
sumário e inventário analítico. O pesquisador precisa saber a diferença entre cada um deles,
para desta forma extrair as informações que lhes são necessárias. Assim, no inventário sumário
as unidades de arquivamento, as divisões presentes nos fundos são apresentadas de maneira

11
A Norma Brasileira de Descrição Arquivística surge como uma adaptação das normas internacionais criadas
para orientação do trabalho de descrição em arquivos. Foi desenvolvida no intuito de adaptar à realidade das
instituições brasileiras as coordenadas internacionais existentes. (NOBRADE, 2013, p. 9)
37

mais sintética. É no inventário sumário, que encontramos informações mais precisas sobre os
fundos documentais, “o inventário é fundamental e deve ser o primeiro instrumento de pesquisa
a ser elaborado tanto para fundos de arquivos públicos [...] quanto para os de arquivos
privados.” (PAES, 2004, p. 131). O inventário analítico, por sua vez, é o instrumento que nos
oferece informações mais minuciosas sobre as unidades de arquivamento, em que neste caso é
necessário o apoio de especialistas sobre o tema, por exigir domínio dos conteúdos presentes
nos documentos.
O catálogo, é um instrumento que pode ser criado de acordo com diversos critérios sejam
eles temático, cronológico, onomástico ou geográfico e devem incluir todos os documentos que
fazem parte de um fundo ou mais fundos. Podendo, assim, ser agrupados documentos que
tratam de um mesmo assunto, ou que foram produzidos no mesmo período (PAES, 2004, p.
136). Por fim, o repertório que de modo geral descreve determinados documentos escolhidos
em um ou mais fundos, é um instrumento criado quando se pretende dar visibilidade a
documentos individuais considerados relevantes no conjunto documental.
Sendo assim, ao dominar esses processos presentes na maioria das instituições
custodiadoras de arquivos, o pesquisador tem a capacidade de dialogar e em muitos casos
interferir na forma como a organização é realizada. Isto porque, o trabalho do arquivista e dos
funcionários que atuam em Arquivos não é fechada, na maioria dos casos, sugestões e
inferências feitas por pesquisadores especialistas são incorporados aos modos de sistematização
dos arquivos. Além disso, o conhecimento das técnicas, nomenclaturas, etapas de organização
da documentação, dos instrumentos de pesquisa e quais informações extrair destes, possibilita
ao pesquisador/ usuário explorar de forma mais eficiente o Arquivo e os documentos nos quais
desenvolverá sua pesquisa.
Após apresentar as etapas de organização dos arquivos permanentes, nos dedicaremos
a uma reflexão sobre qual é o papel dos Arquivos e dos documentos de arquivo para a sociedade.
Quais são os possíveis usos da documentação custodiada e sua importância para a sociedade,
de modo a compreender a luta travada por longos anos, por arquivistas, historiadores, sociedade
civil organizada e pesquisadores em geral para a preservação e o acesso aos documentos. Assim
como, a necessidade de políticas públicas para Arquivos, investimento em pessoal técnico
especializado, infraestrutura, material de trabalho e apoio tecnológico para divulgação dos
acervos que são custodiados por essas instituições. É necessário deixar claro, que o processo de
sucateamento e desvalorização dos Arquivos é um problema endêmico no serviço público, mas
também é observado em muitas instituições particulares, sendo um dos primeiros setores a
sofrer com cortes de gastos e investimento em momentos chamados de crise econômica.
38

Sendo assim, o reconhecimento da importância dos Arquivos e seus documentos para a


sociedade pode ser visto como um caminho para que estas instituições passem a receber o
devido investimento. De modo a garantir seu pleno funcionamento como também o
oferecimento do atendimento adequado aos pesquisadores auxiliando não apenas no processo
de elaboração de pesquisas acadêmicas, principalmente, como ferramentas a serem utilizadas
por cidadãos para conquista e garantia de seus direitos.

1.3 - A função social dos arquivos mobilizado nas narrativas construídas por vítimas da
ditadura militar (1964-1985) no contexto de luta por direitos.

Estabelecer uma relação entre direito, memória e cidadania a partir dos documentos
presentes em Arquivos exige de nós pesquisadores uma sensibilidade que vai além dos nossos
objetivos práticos de demanda por informações referentes aos nossos objetos de pesquisa. É
compreender que aqueles documentos carregam em suas páginas, linhas e entrelinhas o peso de
ações que muitas vezes mudaram o cotidiano de cidadãos, alteraram a forma como o Estado
lidava e lida com eles, são provas de excessos ou negligências. Além disso, em casos de
violência, de regimes autoritários e de repressão, o acesso aos documentos permite às vítimas e
suas famílias o direito à “verdade”, seja efetivamente com um documento produzido por órgãos
oficiais do Estado ou através de buscas incansáveis por outras fontes que quando defrontadas
com a primeira confirmam o fato ou demonstram outro desfecho para o caso em questão.
Alguns autores vêm ao longo dos anos estudando e refletindo sobre a função social dos
arquivos, qual a importância da preservação dos documentos para a sociedade, discutindo se
realmente teriam os documentos a capacidade de serem utilizados de modo a promover
mudanças na ordem social ou seriam apenas objetos de estudo que nos permitiram conhecer o
passado. A partir destas questões e de muitas outras que espelham a complexidade que cerca os
documentos e também o desconhecimento sobre eles, Bruno Delmas (2010) busca responder
uma indagação feita pela secretária de Estado da Cultura da França, quando nomeada em 1976,
ao então diretor do Arquivo Nacional Francês, “Arquivos servem para quê?”.
Esta pergunta pode parecer ingênua, no entanto, ela reflete o desconhecimento que boa
parte da população francesa possuía sobre seus documentos. Podemos dizer que não apenas a
França experimenta esse fenômeno, mas que ele é identificado em muitos países, como o Brasil,
que de um modo geral aos arquivos e aos documentos é relegado um lugar de pouca importância
em algumas repartições, sendo utilizados como um lugar de punição aos funcionários. O
39

desconhecimento é tamanho que leva a ignorância de achar que por não terem mais função
administrativa e corrente, ou seja, no dia a dia das rotinas administrativas, estes documentos
pudessem ser descartados sem que houvesse grandes prejuízos.
Este pensamento é, contudo, questionado pelo autor na medida em que ele observa que
as estruturas físicas podem facilmente ser reerguidas após fatalidades estruturais, por sua vez
só é possível a recuperação de uma empresa se seus documentos tiverem sido preservados.
Estamos diante de uma das primeiras afirmações feitas por Delmas (2010) ao reconhecer que
os documentos têm valor vital para o funcionamento da máquina pública ou mesmo órgãos e
empresas privadas. Neste sentido, percebe-se que para o bom funcionamento da sociedade e de
sua organização é indispensável que seus documentos sejam preservados.

Quanto mais uma sociedade se desenvolve, mais atividades humanas são numerosas,
diversificadas e interdependentes. Quanto mais documentos são usados para que os
homens registrem seus atos e assegurem sua continuidade e estabeleçam
relacionamentos duráveis entre si, mais eles produzem e conservam arquivos.
(DELMAS, 2010, p. 19)

De acordo com o autor, quanto mais organizada é uma sociedade mais complexas se
tornam as relações estabelecidas entre cidadãos, seja através do trabalho ou da própria mudança
na ordem social, maior é o contato e a troca com nações estrangeiras, diversificados tornam-se
os vínculos burocráticos, entre outros. Esta mudança exige que determinados acordos e
contratos sejam estabelecidos de modo a garantir que ambas as partes ou todas cumpram seus
deveres. Sendo assim, os documentos passam a ser essenciais já que podem ser utilizados como
forma de garantia de que foram realizados acordos e que estes devem ser cumpridos, os
documentos tornam-se elementos fundamentais para as trocas, negociações e para a vida em
sociedade. Fazendo esse exercício de identificação das mudanças e avanços desenvolvidos em
sociedade, Delmas elaborou um quadro contendo quatro funções essenciais e básicas
desempenhadas pelos arquivos, sendo elas: provar, lembrar, compreender e identificar-se.
(DELMAS, 2010, p. 21)
Na visão do autor, a capacidade de prova dos documentos estaria diretamente
relacionada a uma necessidade que a sociedade Ocidental teria de comprovar perante a justiça.
Sendo este, um dos motivos principais que levaram o Ocidente a promover uma política de
salvaguarda de seus documentos. Os arquivos eram compostos por documentos probatórios,
sendo por esta razão preservados. Segundo o autor, só após um determinado tempo é que esta
lógica se inverteu e foi atribuído caráter de autenticidade aos documentos e reconhecido o valor
probatório que, portanto, deveria ser preservado.
40

O valor de prova dos documentos não possui um tempo determinado, ele pode ser a
qualquer momento resgatado de modo a garantir o pleito ou até mesmo descaracterizá-lo. O
autor apresenta alguns exemplos em que documentos foram utilizados durante a Idade Média
para garantir o direito a pesca em um determinado rio. Além disso, demonstra que arquivos
foram sendo instituídos de acordo com a demanda local, foram criados cartórios eclesiásticos,
cartórios senhoriais e após um tempo arquivos municipais e consulares, demonstrando que de
certa forma desde o século XII já era possível perceber uma preocupação e o reconhecimento
da importância dos documentos para organização social. Delmas demonstra que num primeiro
momento, são os documentos jurídicos que possuem maior importância social, ou seja, os
relativos a direitos de posse, contratos, obituários, documentos fiscais entre outros. (DELMAS,
2010, p. 23)
Entretanto, hoje percebemos um alargamento da noção probatória dos documentos e sua
utilização, principalmente, pelo aumento de sua produção e de atos notariais que podem explicar
esse fenômeno. De acordo com o autor, a extensão do valor de prova dos documentos também
é algo que deve ser observado, isto porque não apenas os documentos notariais e judiciais são
considerados com valor de prova, que por sua vez passou a abarcar outros documentos presentes
em arquivos “comuns”, podendo ser utilizados juntos para comprovação de um determinado
ato. São muitas as possibilidades de prova a serem utilizadas, desde ações mais complexas como
a espoliação de judeus na França até pedido de dupla nacionalidade, possível com os registros
de entrada de imigrantes no país. (DELMAS, 2010, p. 25).
O valor probatório dos documentos de arquivo esbarra com outra qualidade identificada
pelo autor, que estaria relacionada ao seu caráter sensível. É interessante que neste sentido o
autor associa a sensibilidade dos documentos não apenas ao conteúdo que ele carrega, mas sua
estrutura física que permite em muitos casos o desaparecimento de documentos essenciais,
através de ações intencionais ou até mesmo deterioração causada pelo tempo e mau uso. A
sensibilidade do arquivo, ao nosso ver, está muito mais ligada às informações neles contidas e
as emoções que provocam em seus leitores, principalmente, quando tratam de violações e
violências, quando comprovam o desaparecimento forçado ou quando simplesmente não são
capazes de dar as respostas que são imprescindíveis para solucionar determinados casos. Apesar
de reconhecer a importância desse debate, optamos por fazê-lo em outro momento do texto, por
hora nos atemos às proposições elencadas pelo autor.
A segunda característica atribuída aos documentos, de acordo com Delmas (2010), é a
capacidade de fazer lembrar. Para o autor esta capacidade relaciona-se ao fato de ter acesso às
decisões e ações tomadas anteriormente e com elas adquirir a experiência necessária para agir,
41

como se os documentos nos ensinassem. É nesse caminho que o autor demonstra através do
caso observado na Universidade francesa, em que a expansão universitária e consequentemente
o número de alunos fez crescer exponencialmente o número de documentos produzidos, a
necessidade de arquivistas profissionais para lidar com a massa documental, bem como
arquivos adequados para a destinação e guarda destes documentos por tempo determinado. A
lembrança também é resgatada quando há interesses econômicos em jogo, ou seja, através dos
documentos as empresas e indústrias possuem acesso às decisões tomadas em eventos
anteriores, a estudos previamente realizados, o que facilita e barateia em muitos casos as
medidas a serem adotadas.

No início dos anos 1980, no pior momento da crise siderúrgica, os operários da


Usinor-Sacilor com mais de sessenta anos foram postos em pré-aposentadoria. De
imediato aumentou consideravelmente a proporção dos produtos descartados por falha
de fabricação. Ao demitir os mais velhos, os dirigentes da empresa haviam demitido
a experiência, a memória, a lembrança das máquinas e o funcionamento dos
equipamentos, os modos de fazer e de olhar. Recentemente as empresas passaram a
se preocupar com a gestão do conhecimento e a “arquivar” a memória, registrando os
gestos, as palavras e a experiência daqueles que se aposentam. Para os serviços
públicos e para as empresas, os arquivos, preservadores da memória, constituem não
apenas um bom instrumento de gestão, mas uma segurança. (DELMAS, 2010, p. 33)

A terceira característica elencada pelo autor é conhecer e compreender, este marco teria
surgido no período da revolução científica do séc. XVIII e se estendido até a era industrial.
Seguindo esta cronologia, o conhecimento advindo dos arquivos foi desde logo incorporado à
ciência. Assim, a História no século XIX, no período de sua consolidação enquanto disciplina
acadêmica, influenciada pelo pensamento positivista e historicista passa a utilizar os
documentos como fontes para sua pesquisa. Segundo Delmas (2010), como os documentos da
época eram predominantemente de caráter jurídico e administrativo, isso explicaria por que o
modelo narrativo desenvolvido por historiadores naquele momento era voltado para o campo
da história política e institucional dos Estados.
Para além de seu uso como fonte para história, os documentos que muitas vezes são
deixados de lado tornam-se verdadeiros tesouros se observados com atenção. De uma massa
documental esquecida, podem ser extraídos documentos a serem utilizados de diversas formas
e com muitos propósitos. Isto é demonstrado pelo autor quando apresenta casos como o do
Marrocos, que em 1970 após descobrir importantes documentos sobre agricultura criou um
centro de documentação agrícola e uma escola de formação, ambos oriundos das informações
extraídas dos documentos. Os documentos são também material de disputa, quando um
pesquisador está desenvolvendo pesquisas em determinado laboratório, ele registra todos os
processos, testes, materiais usados, procedimentos, enfim, tudo relativo aos trabalhos
42

desenvolvidos em todas as etapas. Ao ser demitido ou sair do laboratório onde iniciou seu
trabalho, os documentos seriam de sua propriedade ou do laboratório? É correto afirmar que as
informações contidas nos inúmeros documentos e anotações são de interesse de ambos,
tornando os documentos um material precioso para continuação dos estudos e pesquisas e um
objeto de disputa na medida em que o conhecimento presente nos documentos possui,
sobretudo, valor econômico (DELMAS, 2010, p. 38).

Algumas instituições comercializam informações. É o caso do Instituto Nacional de


Estatística e Estudos Econômicos da França (INSEE), cujos arquivos e nomenclatura
são da maior utilidade. Na área audiovisual, em que o uso dos arquivos é imediato e
entra no circuito econômico, sabe-se perfeitamente que os arquivos são uma fonte
diretamente comerciável. Todos os canais de televisão do mundo sabem bem disso,
assim como as federações de esportes e os organizadores de espetáculos. Será que o
resto do mundo também sabe ou se preocupa com isso? (DELMAS, 2010, p. 38)

Por fim, a capacidade de identificação traduzida pelos documentos é apresentada. Nesse


aspecto, o que percebemos de forma clara é a capacidade dos documentos de serem utilizados
como meio de fortalecimento de identidades e de memórias nacionais, sobretudo, no período
que compreende o início do século XX. São muitas as mudanças ocorridas neste século,
Guerras, períodos de separação e anexação de territórios, uma reordenação da vida social e dos
espaços de sociabilidade, estes e outros eventos reforçam a necessidade dos Estados de tornar
sólidas as identidades de grupo e suas memórias. Recorrem aos arquivos como fontes fidedignas
que forjam e ratificam um passado comum, reforçando costumes, símbolos, datas
comemorativas. Para o autor, os arquivos seriam estes lugares onde as memórias dos grupos se
encontram preservadas, de modo que os documentos assumem também este papel de lembrança
enquanto uma necessidade de uma sociedade que está passando por inúmeras mudanças e que
precisa, portanto, resguardar seu passado e o elo que os une enquanto nação.
Delmas (2010) demonstra que não apenas os Estados se ocupam do reforço de suas
identidades, este movimento é observado também em empresas. Em primeiro lugar, com
interesses publicitários na medida em que passam a utilizar de datas comemorativas para atrair
clientes e a forjar uma tradição, por exemplo, quando são criados objetos representativos de
tantos anos de funcionamento. Além disso, a partir da década de 1960 com a crise do petróleo,
as empresas recorrem aos seus arquivos com o objetivo de criar um ambiente de identificação
entre os funcionários, fazer com que estes se sentissem parte da sua história e, portanto,
pertencentes efetivamente a este grupo.

Embora se pense comumente que os arquivos servem, sobretudo, para a escrita da


história e que alimentam uma parte importante das editoras, eles têm muitas outras
utilidades, utilidades múltiplas que vão se diversificando no decorrer do tempo.
43

Dependendo do momento e das circunstâncias, nunca são os mesmos que se revelam,


mas quando necessitamos deles, são essenciais e acompanham todos os momentos e
todos os aspectos de nossas vidas individuais e coletivas. os arquivos são um desafio
político. (DELMAS, 2010, p.53)

Jimerson (2008), por sua vez, em tom literário nos demonstra a sensação que nós
pesquisadores sentimos ao entrar em um arquivo. Nesse relato fictício, mas que tem uma relação
muito próxima com a realidade, o autor faz uma analogia entre arquivo e restaurante. Estão lá
todos os elementos que enquanto matéria prima nos permite fazer nossa própria comida, assim
como nos arquivos em que estão lá disponíveis os documentos e cabe a nós determinar o uso
que faremos destas fontes. Dependendo da nossa escolha o resultado será um, a inclusão ou
exclusão de um documento, que certamente farão com que nossas reflexões e os resultados da
pesquisa sejam outros. Do outro lado da mesa estamos nós, estudiosos e pesquisadores, que ao
manipular nossas fontes daremos a elas a oportunidade de externar seus conteúdos, não de
forma natural, mas através de perguntas, críticas e cruzamento de fontes.
A escolha desta analogia não é aleatória, através da imagem de uma torre, uma prisão e
enfim o restaurante, o autor elenca quais são as funções essenciais dos arquivos, segundo ele:
seleção, preservação e acesso. Desta forma, os arquivos constituem-se inicialmente, de acordo
com a visão do autor, como lugar de poder, conhecimento, memória e nutrição. Como sabemos,
através do trabalho desenvolvido pelo arquivista, documentos são preservados, tem seu valor
como fonte legitimado, enquanto a outros o destino é o descarte e são invalidados através de
um processo de seleção. Controla-se tudo, desde os próprios documentos até mesmo os
pesquisadores e as condições as quais poderão acessar os documentos.
O poder relativo aos documentos e ao arquivo, está relacionado às informações que eles
contêm. De modo que Jimerson (2008) afirma que tanto historiadores como pesquisadores têm
ao longo do tempo reconhecido cada vez mais a importância dos arquivistas, uma vez que, são
eles que garantem a liberdade desse poder. O autor aproxima-se das afirmações de Derrida
(apud, JIMERSON. 2008), quando concorda com a associação entre o poder político inerente
aos arquivos e sua importância para a sociedade. Apesar do reconhecimento da importância do
arquivista, Jimerson (2008) faz um alerta quanto a intenção de neutralidade e imparcialidade
presente na atividade arquivística. O autor afirma, que por mais que sejam empenhados esforços
neste sentido, o arquivista sempre deixa alguma marca de subjetividade nestas fontes.
Assim como Delmas (2010), Jimerson (2008) percebe as influências do historicismo do
século XIX no que se refere ao tratamento as fontes. Os documentos passaram a ocupar um
papel de destaque no fazer historiográfico num período em que surgia os ideais de
imparcialidade, neutralidade e passividade. Estas três características seriam as marcas dos
44

documentos de arquivo e, consequentemente, do trabalho desempenhado pelo arquivista. Ao


apresentar sua crítica a esse movimento enraizado no cerne do pensamento arquivístico, o autor
questiona se esse papel de subserviência continuaria guiando os trabalhos em arquivos e o
pensamento dos arquivistas.
Como alternativa a esse movimento, o autor apresenta a influência da corrente pós-
moderna na arquivologia. Sendo um dos maiores representantes deste movimento o autor Terry
Cook, que desde logo defende a impossibilidade de neutralidade e imparcialidade, afirmando
que estes valores tradicionais são antiquados e perigosos para a sociedade. Bem como defende
que os arquivistas devem assumir o papel social das suas ações e as influências que o olhar
ampliado lançado as fontes e ao seu contexto histórico possuem.
Nesse debate sobre o papel social e a função social que o arquivista e o fazer arquivístico
assumem ao longo dos anos, faz-se necessário perceber como alertam alguns autores que todas
as tomadas de decisão, todas as medidas e estratégias adotadas durante o processo de
organização de acervos, sejam eles públicos ou privados, estão imbuídos do caráter subjetivo
dos seus atores, de modo que essas ações envolvem acima de tudo um fazer político. Uma
escolha que consciente ou não, interferirá diretamente na forma como os documentos e as
informações neles contidas chegarão aos pesquisadores e ao cidadão.
O autor destaca que neutralidade e objetividade não podem ser confundidas. Assim, o
arquivista pode em sua dinâmica de trabalho, vinculado a uma preocupação em manter a
honestidade, justiça e verdade, pretender uma objetividade de suas ações. O que não irá
significar, por sua vez, que haja uma neutralidade em seus atos já que ao exercer suas funções
ele irá tomar partido e usará de sua expertise para determinar, por exemplo, quais documentos
serão preservados e quais serão descartados. A objetividade pode ser observada quando se trata
de sua participação na elaboração de políticas públicas, quando se empenha em fazer com que
os arquivos salvaguardem documentos de diversos setores sociais e não apenas um. Este esforço
relaciona-se com um comprometimento ético do arquivista em garantir uma participação ativa
em que sejam assegurados os direitos dos cidadãos e de toda sociedade em ter seus registros
salvos em arquivos. (JIMERSON, 2008, p. 32)

Desde a antiga Suméria, arquivos consolidam poder econômico e político. A escrita


emergiu em sociedades hierárquicas que precisavam controlar e contabilizar
propriedades e leis. O moderno arquivo público europeu surgiu para solidificar e
memorizar primeiro o governo monárquico, e depois o poder do Estado-Nação. Desde
então, arquivos jamais têm sido neutros. Por toda história ocidental, eles serviram aos
interesses do Estado e dos governantes. O sectarismo dos arquivos ocorre em
sociedades monárquicas e democráticas, incluindo os Estados Unidos, Brasil e outros
países. (JIMERSON, 20058, p. 23)
45

O autor percebe ao longo de suas análises que há uma ampliação significativa da


compreensão sobre o poder e as disputas de poder que emergem nos arquivos. Para Jimerson
(2008), essa dimensão reflexiva sobre poder gerou um sentimento controverso em alguns
arquivistas que buscaram, ao invés de compreender essa característica, reforçar através de
métodos denominados pelo autor de pseudocientíficos sua neutralidade. Crítico a esta corrente
neutra nos arquivos, o pesquisador deixa claro que os arquivistas devem se apropriar desse
poder e fazer um bom uso dele, não ignorando as influências que exercem na história, memória
e no passado. Como forma de compreender as manifestações de poder presentes no arquivo,
Jimerson (2008) se propõe a explicar os três aspectos por ele destacados, em que é possível
identificar o poder dos arquivos a partir de metáforas.
Na metáfora do templo, percebemos como a arquitetura e a estrutura física dos arquivos
são, em sua grande maioria, instrumentos de controle. Isto porque, os arquivos são lugares de
acesso controlado, são determinados o tipo de acesso, a forma de manuseio dos documentos,
possuem um código de conduta a ser seguido e guiado pelo manual do usuário. O “templo” ou
arquivo é o lugar onde o arquivista assume controle da documentação12, é ali que são tomados
importantes decisões sobre os documentos a serem guardados e descartados, essas decisões
possuem impacto imediato ao conjunto documental e posteriormente ao conhecimento que dele
poderia e pode ser produzido.
Jimerson (2008) faz um alerta que apesar de reconhecerem-se diante de um “negócio
das memórias” ainda é difícil para os arquivistas compreenderem seu papel neste jogo e a
repercussão que suas ações alcançam. Ou seja, segundo Elisabeth Kaplan (apud, JIMERSON,
2008) os indivíduos são resultado de informações que coletam e, portanto, coletam o que são.
Desta forma, além do jogo das memórias coletivas, a memória individual está também nos
meandros das decisões de arquivistas, sendo os documentos fontes recheadas dos complexos
valores sociais que são compartilhados. Segundo esta afirmação, podemos aferir que o processo
de seleção de documentos, faz com que os arquivistas intervenham na forma como a sociedade
compreende seu passado.

Os arquivos fornecem o documento de um acordo feito há um determinado tempo, por


uma ou mais pessoas, sobre ações individuais, eventos e histórias. Arquivos não
testemunham a precisão ou verdade destes valores, mas a exatidão de como e quando

12
O controle da documentação, neste caso, refere-se ao trabalho desenvolvido pelo arquivista nas decisões que
envolvem a produção e organização do acervo. Em se tratando de documentos ainda de caráter corrente, quando
há gestão documental, são produzidos apenas documentos indispensáveis e a partir da Tabela de Temporalidade
são definidos os destinos dos mesmos. Ou seja, são encaminhados para os arquivos intermediários e após o prazo
são eliminados ou transferidos para arquivos permanentes. Nos arquivos permanentes, os fundos documentais são
organizados, dentro do que chamamos de arranjo documental. Dispostos de acordo com o órgão produtor, seguindo
série, subsérie, dossiê e item documental etc.
46

tais testemunhos foram criados. Coletivamente, esses documentos do passado


fornecem um antídoto para a memória humana, um substituto que se mantém imutável
enquanto a memória constantemente muda e redireciona sua visão do passado.
Embora documentos e imagens nos documentos de arquivo não mudem visivelmente,
no entanto, o pós-modernismo nos lembra de que nossa compreensão e interpretação
sobre eles mudam e se refocalizam constantemente. (JIMERSON, 2008. p.34)

Outro lugar de poder exercido nos arquivos identificado pelo autor através de sua
analogia é uma prisão. Ao nosso ver esta é uma das mais interessantes análises realizadas por
Jimerson (2008), isto porque demonstra, efetivamente, o controle exercido pelo arquivista não
só no que diz respeito ao acesso aos documentos, mas também o controle no processo de
pesquisa desenvolvido pelo pesquisador. A sensação de aprisionamento é percebida desde a
chegada do pesquisador ao arquivo, a passagem pelos seguranças, pelas portas de vidro que só
abrem mediante autorização, o preenchimento de uma ficha de identificação que na maioria dos
casos exige informações completas do pesquisador e sobre sua intenção de pesquisa. Estão
todos em sistema de aprisionamento uns temporários, os arquivistas e pesquisadores, outros
permanentes, como os arquivos. De acordo com o autor, todo esse aparelho de controle e
segurança faz parte da rotina em arquivos, e o arquivista exerce seu poder também mediante
“preservação, segurança, administração do acesso” (JIMERSON, 2008, p.35).

Os arquivistas, então, aprisionam não apenas suas caixas de documentos e seus


pesquisadores, mas também o significado dos documentos arquivísticos e das
identidades de seus criadores. O arquivista exerce um poder de interpretação sobre os
documentos sob sua custódia e, por conseguinte, controla e formata os significados
destas fontes aprisionadas.” (JIMERSON, 2008, p. 35-36)

Por fim, apresenta-se a comparação do trabalho realizado pelo arquivista como ao


serviço oferecido em restaurantes. Esta comparação é interessante na medida em que é uma
reflexão sobre a percepção que se tem do contato estabelecido entre o pesquisador e o
arquivista. O primeiro como consumidor faminto a espera de suas fontes e documentos para
alimentar-se de informações e produzir conhecimento, já o segundo mediador desse enorme
cardápio que são os arquivos. Um depende do outro para alcançar seu objetivo, mas o arquivista
mais uma vez assume um papel primordial nesse aspecto, já que ele irá decifrar para o
pesquisador os instrumentos de pesquisa, sugerirá a partir das intenções de pesquisa
documentos, pastas, caixas onde provavelmente o pesquisador irá deliciar-se com as fontes.
Compreender essa dinâmica é algo esclarecedor, principalmente, porque nos permite
perceber que o resultado das nossas pesquisas não está apenas associado à nossa capacidade de
interpretação, reflexão e análise sobre fontes e a bibliografia de referência, mas também
consequência desse encontro “ao acaso” que ocorre nos arquivos. Nosso contato com o
documento não é feito de maneira espontânea, depende diretamente da autorização e da
47

mediação realizada por uma terceira pessoa, neste caso, o arquivista. Assim, num contexto em
que informação é um elemento essencial para vida em sociedade e para garantia de direitos e
deveres, o saber arquivístico e o conhecimento dele advindo compreende-se como estratégico
e importante para construção e manutenção de uma democracia eficiente e efetiva (apud
JIMERSON, 2008).
Apesar de ser uma tarefa importante, a preocupação dos arquivistas com suas atividades
técnicas pode levá-los a ignorar a sua importância no que diz respeito ao seu papel na
preservação do patrimônio, cultura e memória. Neste aspecto, o autor destaca o poder exercido
pelo Arquivo e pelos arquivistas na salvaguarda da memória, com isso dos direitos individuais
e coletivos que são demonstrados e comprovados através dos documentos. Se por um longo
tempo, utilizou-se documentos como provas de atividades da administração, como forma de
transparência do serviço público e privado, hoje reconhece-se que os arquivos são testemunho
das atividades humanas de maneira mais ampla. De modo que, o papel do arquivista na
sociedade, além da proteção dos documentos enquanto suportes de memória, é a preservação
da principal característica documental como prova a ser utilizada pelo cidadão.
Ao assumir a responsabilidade de salvaguarda de documentos/provas essenciais para o
cidadão e para sociedade, o arquivista deve adotar uma postura crítica e responsável diante
destes documentos. Ou seja, atuar de modo a garantir que estes documentos sejam preservados
e sejam de acesso público, uma vez que são capazes de fornecer informações imprescindíveis
não apenas a elaboração, fortalecimento e construção das memórias, mas também sua revisão
e reinterpretação. Além de suporte da memória, os documentos e os arquivos são instrumentos
chaves para garantia de direitos e da possibilidade de grupos marginalizados “saírem” da
periferia das narrativas históricas.

Com frequência, arquivos serve aos interesses do poder estabelecido, mas eles
também podem dar poderes aos grupos marginalizados da sociedade. Os arquivistas
devem usar seu poder- ao determinar quais documentos serão preservados para as
gerações futuras e ao interpretar tal documentação aos pesquisadores - para o
benefício de todos os membros da sociedade. Adotando uma consciência social pela
profissão, eles podem empenhar-se em um compromisso ativo no cenário público.
(JIMERSON, 2008, p. 39-40)

Este processo de aceitação do poder que exercem em seus arquivos e do reconhecimento


do papel social que representam faz com que os arquivistas identifiquem que suas atividades
vão além da mera organização dos documentos e suas informações, são responsáveis até
determinado ponto pela forma como os cidadãos e a sociedade estabelecem seus vínculos, sendo
portadores da tarefa de contribuir para a construção de uma sociedade democrática e,
consequentemente, garantia da cidadania. Quando tratados adequadamente, colocados à
48

disposição do público os arquivos podem efetivamente cumprir todas as suas funções, desde
objeto de estudo para compreensão do passado até mesmo instrumento jurídico como prova de
violações de direitos. Preservar documentos é preservar a memória, é garantir para as gerações
vestígios e indícios da vida humana em sociedade, reconhecer a importância de documentos
que sejam do povo, pelo povo e para o povo. (JIMERSON, 2008, p.41)

Seria difícil engajar arquivistas e sua profissão em uma visão mais inclusiva das
responsabilidades sociais. Porém, os riscos são altos demais para não aceitar o desafio.
Os exemplos históricos de abuso de poder, controle por meio da manipulação dos
documentos arquivísticos e o esforço para limitar o acesso a informações vitais
demonstram os perigos do mau uso do poder dos arquivos e dos documentos.
Arquivistas deveriam assumir o compromisso de evitar que a profissão arquivística,
explícita e implicitamente, apoie as elites privilegiadas e governantes poderosos às
custas dos direitos e interesses do povo. Deveríamos nos comprometer com valores
de accontability pública, governança transparente, diversidade cultural e justiça
social. Assim, arquivistas poderiam realmente dizer que estão assegurando arquivos
para todos e empregar nossas experiências profissionais para promover uma sociedade
melhor. (JIMERSON, 2008, p. 43)

Mattos e Vignoli (2013), também se ocupam de refletir sobre a função social dos
arquivos e dos arquivistas em sociedade. Assim como Delmas (2010) e Jimerson (2008), os
autores associam a importância dos documentos a construção da cidadania e a preservação da
memória. No entanto, o objetivo principal da análise desenvolvida é demonstrar como a
sociedade pode utilizar os documentos como meio de inteligibilidade das ações dos governantes
e, também, como meio de construção e preservação da memória. A partir desta perspectiva, os
autores baseiam-se numa afirmação que identifica um caráter duplo associado aos arquivos,
onde o valor primário dos documentos estaria relacionado a cidadania e ao valor administrativo
do documento, enquanto o valor secundário seria referente a preservação da memória.
A análise sobre os documentos, realizada pelos autores, privilegia um olhar sobre os
documentos e arquivos públicos. Para os autores estes documentos são reflexo direto das ações
que importam à cidadania e a memória. Os autores concordam ao afirmar que o papel e o valor
dos arquivos vão muito além de seu testemunho histórico, podem ser considerados a partir da
sua capacidade de comprovação jurídico-administrativa. De modo que ao fazer parte da
administração pública os documentos possibilitam que os cidadãos tenham conhecimento das
decisões tomadas pelo governo, atuando no controle e fiscalização de seus atos, bem como
garantindo desta maneira o exercício pelo na cidadania.
Uma característica importante no trabalho desempenhado por Mattos e Vignolli (2013)
é a preocupação em situar as discussões sobre acesso à informação ao contexto de promulgação
da lei 12.527/2011. Que garantiu à sociedade acesso aos documentos e informações públicas e
identificadas como de interesse público, ou seja, este debate foi acalorado e fez com que as
49

discussões sobre acesso e abertura de documentos públicos fossem debatidas tanto em órgãos
públicos, como nas universidades e na sociedade como um todo. A partir de então, compreende-
se um novo contexto social, em que a informação passou a ter um papel central “nas relações
econômicas, políticas e sociais desta nova sociedade” (MATTOS; VIGNOLLI, 2013, p. 4)
Os autores afirmam que diante desta nova ordem social imposta pela necessidade de
informação, os arquivos são elementos essenciais em todo processo de negociação, na medida
em que neles se encontram documentos que contém informações imprescindíveis para as
negociações e tomadas de decisão. Assim, o documento de arquivo e a informação seriam a
nova moeda ou objeto de desejo e disputa vigente em sociedade. A disputa pelo acesso aos
documentos e as informações garantiriam nesse jogo de interesses o sucesso ou o fracasso que
pode ser observado em sentido mais amplo pensando no Estado e em empresas, bem como nas
necessidades individuais. No que se refere às necessidades individuais, o que nos chama atenção
é a utilização e o acesso à informação como forma de exercício da cidadania.

[...] É por meio do acesso à informação que o cidadão tem condições de conhecer e
cumprir seus deveres, bem como de entender e reivindicar seus direitos. Somente
através de informação os indivíduos podem contribuir, participar, e ocupar espaços na
sociedade, assim como acompanhar, avaliar e questionar as ações do estado com o
objetivo de promover o bem comum. (apud, MATTOS; VIGNOLLI, 2013)

Concordamos com os autores quando estes defendem que a garantia de acesso às


informações pelo Estado, representam seu compromisso com a transparência das ações de
governo e com o fortalecimento da democracia no país. Ao ter acesso aos documentos, dados e
ações desenvolvidas, o cidadão possui maior controle e pode exigir que seus direitos sejam
preservados e respeitados. Além disso, percebe-se que além da possibilidade de fiscalização os
documentos permitem aos cidadãos acesso ao seu passado, a construção de sua memória
tornando-se, consequentemente, autores de sua própria história (MATTOS; VIGNOLLI, 2013,
p.6).
Percebemos ao longo desta sessão que os autores possuem concepções bem claras a
respeito da importância social dos documentos de arquivo e dos arquivos enquanto instituição
de guarda, bem como o papel que os arquivistas assumem neste contexto. Nesse sentido,
concluem que as discussões sobre o acesso à informação através da abertura dos arquivos e
documentos são temas fundamentais nos debates. Essas reflexões nos levam a pensar e
problematizar se o Estado tem assumido o compromisso de garantir ao cidadão acesso aos
documentos. Sobretudo, documentos produzidos durante o período da ditadura militar (1964-
1985) pelas agências de Segurança e Informação, pelas Forças Armadas e pelos órgãos de
Polícias Políticas.
50

A abertura dos arquivos e o acesso aos documentos produzidos no âmbito da


ditadura militar (1964-1985), são importantíssimos caminhos para a reinterpretação do passado,
esclarecimento sobre mortes e desaparecimentos de pessoas, desconstrução das versões oficiais
sobre fatos ocorridos durante este período. Revelar as atrocidades cometidas por agentes do
Estado contra seus cidadãos, promover uma efetiva reparação a partir do reconhecimento e o
pagamento de indenização às vítimas. Além de estabelecer através da verdade, memória e
justiça a confiança dos cidadãos no Estado, promovendo a construção de uma sociedade a partir
de valores e ações efetivamente democráticas.

1.4 - Os arquivos da repressão e o debate sobre os documentos sensíveis para a temática


dos direitos humanos.

Ao finalizar as discussões anteriores abrimos caminho para nossa análise acerca do


caráter sensível que documentos produzidos por órgãos repressivos durante a ditadura militar
brasileira (1964-1985) possuem. Observamos os impactos sociais produzidos pela abertura dos
documentos de Polícias Políticas (1992), no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, bem
como as possibilidades de pesquisa com a utilização destas fontes. Soma-se a esse contexto, o
discurso dos direitos humanos, como componente no processo de disputa pela verdade e justiça.
Assim como a luta pela responsabilização e reconhecimento do Estado brasileiro pelas
violências e violações cometidas, além do esclarecimento sobre mortes e desaparecimentos
forçados.
Nesse contexto de lutas políticas e disputas, é comum que seja utilizado o conceito de
memória para dar embasamento às discussões realizadas tanto pelo Estado, como também pelos
grupos de militantes e sociedade civil que pretendem a partir de suas ações construir e/ou
reconstruir o conhecimento que se tem desse passado. Assim, vamos analisar pontualmente o
que se tem produzido enquanto bibliografia sobre a memória para compreender qual a força
que a mobilização desse conceito possui e acarreta aos discursos pela luta de direitos.
As reflexões desenvolvidas no sentido de compreender e estabelecer o conceito de
memória não são algo recente, inúmeras são as correntes de pensadores de diversas áreas do
conhecimento que se debruçaram sobre o tema. Se formos observar esta análise a partir do
recorte usual, encontramos num primeiro momento a noção de memória coletiva, cunhada por
Halbwachs, enquanto uma disciplina desde finais da década de 60. Para o autor, a memória
coletiva seria composta do diálogo estabelecido entre a memória com a História, na medida em
que se faria uso da história como um dos seus lugares de manifestação já que através da
51

historiografia, ou seja, da narrativa histórica, a memória poderia ser manipulada, reproduzida e


alcançaria um status de “veracidade” enquanto conhecimento.
Segundo Barros (2009), durante o século XX era comum encontrarmos interpretações
simplistas e de tal modo superficial sobre as discussões em torno da memória, no entanto, essas
visões estáticas passaram por revisão e neste contexto começaram a compreender o valor que a
memória individual exercia no sentido de enriquecer a compreensão da memória coletiva. De
acordo com Ricouer (2003), a memória é observada em plano individual e coletivo, estando
estas lembranças suscetíveis à manipulação, consciente ou não, para o futuro. Sendo assim,
coletiva e individual, a memória possuiria uma capacidade inventiva utilizada, entre outros
fatores, para a criação de símbolos capazes de gerar e fortalecer as identidades de grupos. A
partir do conceito de memória social, o autor observa a memória como um território, um espaço
vivo de política e símbolos em que se afirmam os poderes de comunidade e dos indivíduos
permeado pela lembrança e pelo esquecimento, em que se afirmam os poderes de comunidade
e dos indivíduos.
Hartog (2013) analisa o fenômeno das narrativas da memória a partir da observação da
passagem do tempo, da necessidade de construção de patrimônios e a busca por testemunhos,
sejam eles orais ou escritos, sobre determinado período. Sendo assim, apoiando-nos nas análises
desenvolvidas por Pollak (1989) identificamos que estamos lidando, ao acessar documentos
produzidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), com uma documentação muito
específica no sentido de resgatar as memórias de vítimas da violência de Estado. Esse processo
só é possível por estarmos num contexto no qual alguns dos documentos já se encontram abertos
ao público, como o fundo de Polícias Políticas no APERJ. Além disso, a partir do processo de
abertura política iniciada em 1974 no país, da criação da Lei de Anistia em 1979 e dos trabalhos
desenvolvidos pela Comissão de Familiares Mortos e Desaparecidos, criou-se um ambiente de
acaloradas disputas pela verdade, pelo esclarecimento dos crimes e violências cometidas por
agentes do Estado.
Assim, observa-se um ambiente de debates e confronto, polarizado pelos interesses de
quem pretende a qualquer custo ignorar e fingir que nenhum crime aconteceu e por vítimas e
familiares que buscam incansavelmente respostas, informações, direito e justiça. Os
ressentimentos e traumas que são consequência direta das ações sofridas, individualmente e em
grupo, ressurgem cada vez mais fortes nos grupos sociais almejando destaque e espaços de
rememoração e memória. Ou seja, “uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias
subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente
previsíveis se acoplam a essas disputas de memórias.” (POLLAK, 1989, p. 5)
52

O que podemos observar, neste caso, é a vontade e a necessidade da reconstrução e


reinterpretação do conhecimento produzido sobre o período militar (1964-1985), assim como
as memórias que foram forjadas pelos grupos considerados vencedores e a narrativa oficial
sustentada ainda pelo Estado, pelas forças armadas e pelos grupos apoiadores da ditadura
militar. Pollak (1989) defende que apesar de estarem na maioria das vezes ligados a um
processo de dominação essas disputas entre memórias oficiais e memórias subterrâneas não
estão concentradas, necessariamente, a uma oposição entre Estado dominador e sociedade civil.
Pelo contrário, esse fenômeno é mais bem identificado quando observamos a relação que se
estabelece entre os grupos minoritários e sociedade englobante nesse processo de disputa de
narrativas e lutas por direitos.
Trabalhar e mobilizar o conceito de memórias é antes de tudo perceber, segundo Joutard
(2007), que elas possuem uma relação afetiva com o passado de modo que cada indivíduo e
cada grupo irá apresentar uma lembrança ou um ponto de esquecimento sobre os eventos
passados. Neste movimento de lembrar e esquecer, que é uma das características das narrativas
da memória, recorre-se a símbolos e a criação de mitos como meios de representação, descrição
e compreensão do real. Podemos identificar que em alguns casos é recorrente o silenciamento
como ferramenta utilizada por grupos ou pessoas que passaram por momentos traumáticos e
deles possuem lembranças.
De acordo com as análises realizadas por Pollak (1989), o silenciamento por parte de
indivíduos que participaram e apoiaram ativamente governos autoritários, grupos alinhados à
política de Estado e simpatizantes do regime é compreensível, já que refletem de certa forma
coerência em relação às ações que promoveram e ao apoio prestado ao governo. No entanto, o
processo de entendimento dos motivos que levam algumas vítimas a optarem, conscientemente
ou não, pelo silenciamento possuem razões e demandam o fortalecimento de capacidades
sensíveis nos sujeitos que são muito mais complexas.
As circunstâncias que provocam o silenciamento podem estar relacionadas a dificuldade
e, consequentemente, a necessidade de encontrar espaços de fala e de escuta, podem também
ser uma reação instintiva de proteção no sentido de não desejar externar e compartilhar a dor e
os traumas que essas lembranças fazem reviver. Enfim, é um processo que exige do pesquisador,
principalmente, aquele que lida diretamente com o testemunho das vítimas, respeito e empatia
e um cuidado e rigor metodológico para que não seja ludibriado pelas emoções e “confusões”
aos quais esses discursos podem nos levar.
53

O processo de compartilhamento dessas memórias subterrâneas pode ser observado,


sobremaneira, em espaços mais reservados como o ambiente familiar, em associações de
sociabilidades afetivas e políticas. Por serem em sua grande maioria compartilhadas em espaços
não oficiais, essas lembranças envergonhadas e muitas vezes indizíveis não possuem um alcance
maior em sociedade, passando ao largo do que é produzido oficialmente, como bem observa
Pollak (1989). Todavia, os limites entre a fala, os silêncios e o “não-dito” estão em constante
deslocamento, de modo que essa fronteira que se estabelece é o ponto que separa a memória
entre coletiva e subterrânea. Logo, é imprescindível identificar as conjunturas favoráveis às
memórias marginalizadas e desta maneira perceber até que ponto o presente interfere na
interpretação do passado. “O problema que se coloca a longo prazo para as memórias
clandestinas e inaudíveis é o da sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar
uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não-dito” à contestação e à
reivindicação.” (POLLAK, 1989, p.9)
As memórias subterrâneas através desse constante deslocamento entre lembrança e
esquecimento apresentam manifestações resultantes do que o indivíduo sofreu, do que lhe foi
negado, o que não pode viver ou o que foi obrigado a acreditar como verdade, fazendo surgir
um sentimento de ressentimento. De acordo com Ansart (2004), a reflexão sobre o ressentimento
deve ser realizada a partir de suas concepções básicas e opostas, primeiro quando observada
através da narrativa dos oprimidos, dos considerados fracos; segundo caracterizado pelo ódio
sentido pelos dominantes quando são confrontados pelas insatisfações dos grupos que eram por
eles considerados inferiores.
Mais uma vez, podemos aferir através da análise do autor, que esse exercício de análise,
reflexão e compreensão sobre o passado, principalmente, um período marcado por violência,
perseguição, desaparecimentos forçados e violações de direitos característicos da ditadura
militar brasileira (1964- 1985) é uma tarefa muito complexa e difícil para o pesquisador. Ao
entrarmos nos arquivos e abrir as caixas e fichários, estamos diante de documentos que relatam
de certa forma aquilo que não é dito e que muitas vezes é negado, estamos prestes a seguir por
caminhos tortuosos como bem observa Ansart (2004).
Sendo assim, necessário a criação de hipóteses com o objetivo de compreender as
lacunas deixadas por informações que não estão aparentes, podendo ser encontradas nos
silêncios das memórias que vez ou outra emergem solicitando espaço de representação. A
atenção ao analisar as linguagens utilizadas é um elemento importante, na medida em que nos
permite identificar como se dá esse processo de comunicação, compartilhamento e reprodução
dos sentimentos. Assim é possível observar como os códigos utilizados, que podem ser textuais,
54

orais, escritos em alguns casos até gestuais se articulam para dar sentido, legitimidade e alicerçar
essas memórias ressentidas.
Os arquivos da repressão, dos agentes e órgãos repressivos, representam a possibilidade
de acesso ao passado através de fontes oficiais. Ao recorrer, por exemplo, aos documentos do
Departamento de Ordem Política e Social - DOPS-RJ, o pesquisador encontrará diversos
documentos que o auxiliarão a compreender o funcionamento do órgão. Assim como,
compreender as etapas que compunham o processo de prisão e interrogação de presos, sendo
possível analisar as linhas investigativas utilizadas pela polícia política para dar andamento aos
autos. Outra característica que a análise desta documentação possibilita, é perceber como o
registro das ações, seguindo a ordem burocrática do órgão, imprimiam legalidade as ações
promovidas. Os documentos do fundo Polícias Políticas, podem ser utilizados como fontes de
pesquisa na busca por informações que ajudem a esclarecer casos de mortes e desaparecimento
de militantes.
Como estamos observando ao longo deste capítulo a associação entre arquivos e direitos
encontra-se no cerne da compreensão e caracterização da atividade de arquivo. Se num primeiro
momento o caráter de prova do documento pode ser demandado no sentido de demonstrar ou
comprovar uma atividade administrativa, por outro lado, os documentos podem e são utilizados
e requeridos em ações individuais e coletivas objetivando o reconhecimento e a garantia de seus
direitos. Contudo, quando nos propomos a analisar a utilização dos documentos produzidos no
período da ditadura militar (1964-1985), por órgãos repressivos, esse exercício de análise é um
pouco mais complexo.

Em contextos históricos caracterizados como de violações de direitos, como é o caso


dos regimes políticos repressivos, os arquivos das instituições governamentais,
sobretudo de órgãos de segurança e serviços de inteligência, se tornam importantes
instrumentos na busca por justiça e reparação, findos os regimes que os produziram,
além de constituírem fontes fundamentais para a pesquisa histórica. Por essas razões,
são objeto de demandas por parte das comunidades vitimadas por esses regimes, de
operadores de Direito e de pesquisadores. (ALBERTI; ALVES; HEYMANN, 2017,
p. 92-93)

As discussões e debates em torno das conexões entre arquivos e direitos humanos é um


tema que vem sendo realizado há bastante tempo. A autora Michelle Caswell (apud, ALBERTI,
2017), por exemplo, trabalha com a concepção de “arquivos de direitos humanos”. Pode-se
depreender duas concepções sobre o conceito; no primeiro compreende-se arquivos de direitos
humanos os documentos que foram produzidos no âmbito dos abusos de poder e violências
perpetrados pelo Estado; no segundo observa-se os documentos que foram produzidos por
agentes defensores dos direitos humanos e advogados que utilizavam essas fontes nos autos dos
55

processos em julgamentos, tribunais, são documentos que registram as histórias dos indivíduos
que sobreviveram à ditadura militar brasileira, também os produzidos por seus familiares e
pelos movimentos sociais.
O aprofundamento desta discussão ganha fôlego no contexto de luta dos familiares de
mortos e desaparecidos por informações de seus entes queridos, com a criação da Lei de Anistia
(1979), o processo de abertura política e redemocratização. Além da criação de leis e projetos
de reparação de vítimas e familiares, a elaboração da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Ou seja, um contexto em que tanto a sociedade civil, a academia e a grande mídia estavam com
sua atenção voltada para as questões referentes às investigações e as possibilidades de pesquisa
e estudo sobre o período marcado pela ditadura militar brasileira (1964-1985).
Neste sentido, observamos que os usos dos documentos produzidos no contexto da
ditadura militar (1964-1985), refletem o caráter ambíguo defendido pela autora Michelle
Caswel (apud, ALBERTI, 2017). Uma vez que, os documentos produzidos pela polícia política,
que se encontram sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, possuem o
caráter de prova das ações realizadas pela polícia, ou seja, refletem as ações burocráticas do
órgão. Já quando utilizados por vítimas, familiares, Comissão da Verdade (CNV), Comissão
Estadual da Verdade- Rio (CEV-Rio), são ressignificados como objeto de luta e busca por
direitos.
Fernandes (2017), por sua vez, reconhece que os arquivos públicos possuem um papel
significativo nas sociedades democráticas, tanto no que se refere a construção das memórias
sociais bem como questões ligadas ao acesso às informações e aos direitos garantidos a partir
da utilização e manipulação destes documentos. É interessante observar que o acesso à
informação, elemento crucial nas discussões sobre abertura de documentos da ditadura, esbarra
no direito à proteção da imagem e à identidade das vítimas, que são por sua vez temas
defendidos pelos direitos humanos e que merecem de atenção no trabalho arquivístico.
Quando tratam de arquivos de direitos humanos, algumas características são observadas,
dentre elas o que se compreende como documento referente aos direitos humanos. A forma
como esta categoria é compreendida influencia no modo como o documento e os conjuntos
documentais serão tratados pelo arquivista e pelo arquivo, impondo neste sentido livre acesso
ou as restrições previstas na legislação. Outra questão destacada por Fernandes (2017) remete
a reflexão sobre o reconhecimento dos documentos enquanto relativos aos direitos humanos,
apenas aqueles que de certa forma foram criados e mantidos pelos agentes de Estado com o
objetivo de aparelhar e administrar as violações que eram cometidas, ou se pode ser atribuído
esse caráter a outro tipo de documentos e arquivos.
56

A autora apresenta exemplos em que a temática dos direitos humanos está inserida em
documentos que, não necessariamente à primeira vista, são identificados com as violações de
direitos. Um recorte de jornal, que fora do contexto ou dentro de um conjunto documental
diverso pode não ser interpretado diretamente com as discussões dos direitos humanos, quando
encontrado num arquivo de polícia política pode demonstrar quais foram os usos e
interpretações realizadas pelos agentes e qual a importância que ele possuía no conjunto de
provas e papeladas produzidas. Diante desta observação, Fernandes (2017) afirma que a leitura
e observação do recorte com seus vestígios, marcas de leitura, trechos grifados, quantidade de
cópias, carimbos oficiais entre outros, são pistas importantes para compreensão do modo como
os agentes de Estado através dos órgãos de inteligência e informação se articulavam na
investigação dos indivíduos considerados suspeitos.
Fica claro pois, que importa na interpretação e compreensão de um documento a análise
do contexto em que ele foi produzido e, também, quais foram os motivos que o levaram a fazer
parte de um determinado conjunto documental. Ou seja, se o documento se encontra em um
fundo diverso do que o que o produziu por mero acaso, ou se faz parte efetivamente do conjunto
em que se encontra através da ação intencional dos sujeitos. Esse alerta é realizado por
Quintanilha Martins (apud, FERNANDES, 2017) quando o autor afirma que é um equívoco
reconhecer que apenas os arquivos produzidos pelas polícias políticas e seus agentes nos dariam
pistas das violências, violações e torturas cometidas durante a ditadura militar iniciada em 1964,
demonstrando que documentos que retratam este contexto podem estar presentes em arquivos
que à primeira vista não levantaria suspeita.

Os arquivos, por meio de seus conjuntos documentais, possibilitam conhecer o


passado e são fundamentais para determinar, no presente, as responsabilidades pelos
crimes e injustiças cometidos por agentes do Estado, ou a seu mando. Dessa forma,
esses documentos devem ser reconhecidos como um bem público que, diretamente,
contribui para a escrita da história, para salvaguarda do patrimônio documental da
nação e para a promoção do direito à memória e à verdade. (MÜLLER; STAMPA;
SANTANA, 2013, p. 7)

As autoras Müller, Stampa e Santana (2013) destacam que as ações direcionadas a lidar
com o legado das graves violações dos direitos humanos, principalmente, as perpetradas durante
o ditadura brasileira de 1964-1985, buscam reforçar a preocupação com o desenvolvimento de
estratégias que visam no presente combater esses excessos do Estado. As autoras reconhecem
que os documentos e as fontes utilizadas na construção dessas memórias possuem diversos
formatos, podem ser audiovisuais, textuais, iconográfica e ainda terem como marca a oralidade,
oriunda dos testemunhos das vítimas diretas do período. Essa grande diversidade de fontes e a
57

enorme massa documental produzida durante o período garantiram ao Brasil destaque sendo o
maior acervo encontrado no Cone Sul, o que não garantiu por outro lado que o acesso a essa
documentação se desse de maneira rápida (MÜLLER; STAMPA; SANTANA, 2013, p. 10).
Foram muitos anos e lutas travadas até que o Estado assumisse efetivamente sua
responsabilidade na abertura e acesso aos documentos.
Heymann (2013), apresenta uma discussão um pouco mais elaborada ao perceber que
os debates acerca dos arquivos e suas potencialidades foram sendo modificadas a partir do
amadurecimento das reflexões. Se, por um lado, durante bastante tempo tornou-se lugar comum
analisar os arquivos enquanto fontes passivas que apenas possuíam a alcunha de preservar o
passado enquanto prova, passou-se a compreender sua capacidade na qualidade de elementos
essenciais para construção dos discursos mobilizados no presente. Podemos perceber, deste
modo, que a demanda por acesso aos documentos e aos arquivos da repressão revelam entre
outras necessidades:

a demanda pelos arquivos, sobretudo, aqueles vistos como capazes de produzir


avanços políticos e sociais no que tange ao conhecimento da violência perpetrada pelo
Estado e ao reconhecimento das vítimas e de suas memórias, por um lado, e o debate
crítico sobre a produção dos arquivos, o lugar que ocupam em dispositivos de poder
e a potência das representações que as associam à verdade e à prova, por outro.
(HEYMANN, 2013, p. 35)

A autora trabalha a partir do binômio arquivo e sensibilidade para compreender esse


processo de deslocamento das formas de analisar os arquivos. Nesse sentido, a dimensão
sensível dos documentos estaria relacionada às questões da experiência do pesquisador, desde
a escolha do arquivo passando por suas fontes e ao olhar atento que o pesquisador deve ter sobre
os documentos, sobretudo, as produzidas por órgãos de justiça, polícias políticas etc. Nesse
sentido, a sensibilidade deve ser aguçada não apenas para as informações contidas nos
documentos e deles facilmente extraídas, mas principalmente das lacunas e a incompletude do
documento.
Heymann (2013) afirma que a temática das sensibilidades presentes nos arquivos e seus
documentos, é uma categoria analítica utilizada para caracterizar documentos de regimes
totalitários, ressaltando que esta denominação surge com mais força após o processo de abertura
dos documentos da Stasi alemã. Os cuidados com os usos e as interpretações destes documentos
tornaram-se latentes, porque num primeiro momento a empolgação e entusiasmo de
pesquisadores acabou levando alguns a acreditar que estavam diante da verdade referente ao
funcionamento do regime, ao mesmo tempo das histórias das vítimas que se encontravam
retratadas nestas fontes. Entretanto, anos mais tarde, reconheceu-se que “as condições de
58

produção do registro arquivístico limitam e qualificam as informações neles contidas”


(HEYMANN, 2013, p. 36). Assim, além do olhar lançado à fonte faz-se necessário uma análise
minuciosa sobre o órgão que a produziu.

A ideia de que arquivos são sensíveis e/ou requerem sensibilidade remeteria, portanto,
tanto à imaginação necessária para pesquisar determinados fundos, como sugere
Farge, como à natureza potencialmente enganadora de outros, que dizem mais dos
autores dos registros do que do objeto de suas démarches. Nesse sentido, os arquivos
“sensíveis” armazenariam documentos que demandam uma abordagem duplamente
crítica- já que não se trata, aqui, apenas das críticas de fontes exigida do historiador
de ofício. (HEYMANN, 2013, p. 37)

Assim, podemos perceber que independente do formato, da forma e sua natureza o


caráter sensível dos documentos dependerá também do contexto em que esta documentação é
consultada. Isto porque, as condições de acesso irão interferir na forma como o pesquisador
observa essa fonte, quando realizado em um momento de efervescência dos debates acerca do
tema estudado, maior é a possibilidade de trocas e de bibliografias disponíveis para auxiliar no
processo de reflexão. Quando realizado em período ainda marcado pela censura política, difícil
será o acesso e maiores são os riscos e o perigo de perseguições.
No Brasil, os primeiros documentos a tornaram-se públicos foram os produzidos pelas
Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), este processo se deu através do recolhimento
do acervo produzido nos DOPS pelos arquivos públicos de diversos Estados brasileiros na
década de 1990 (HEYMANN, 2013, p.40). Por conter informações das vítimas da ditadura
militar (1964-1985), em alguns casos detalhes sobre a tortura aos quais foram submetidos e por
se tratar em grande parte de documentos que retratam a vida particular e privada os sujeitos
investigados, foi longo o processo de disputa e discussão em torno do acesso a esse acervo.
Estas características singulares, nos permitem compreender os documentos produzidos
pelo Departamento de Ordem Política e Social- DOPS enquanto documentos sensíveis e,
também, documentos relativos aos direitos humanos. Por um lado, por conter informações que
demandam uma atenção especial do pesquisador ao manusear estas fontes, bem como as provas
de violações de direitos e crimes cometidos por parte dos agentes de Estado.
59

CAPÍTULO 2

FUNDO DE POLÍCIAS POLÍTICAS - OS DESAFIOS ENFRENTADOS POR


PESQUISADORES NO ACIONAMENTO DESTES DOCUMENTOS.

2.1 - O processo de recolhimento, organização e acesso aos arquivos do fundo de


Polícias Políticas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro- APERJ.

O Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), foi fundado em 1931, por
meio do decreto de lei nº 2.638/1931. Em sua trajetória, enquanto instituição de guarda de
documentos passou por mudanças significativas no que corresponde à sua atividade principal e
responsabilidades. Influenciado pela reorganização de secretarias de Estado entre os anos de
1933-1975, a fusão do antigo Estado da Guanabara e Estado do Rio de Janeiro 1975, além de
processos de reestruturação administrativa do Estado através da transferência da Capital Federal
para Brasília (1960). Ao longo desse período o arquivo passou a ser responsável pela guarda e
preservação de acervos oficiais produzidos no âmbito da administração estadual e seus
municípios.
Uma vez que faz parte da estrutura da Secretaria da Casa Civil do Estado do Rio de
Janeiro, o APERJ passa a ser responsável pela orientação e criação de tabela de temporalidade
e plano de classificação das atividades-meio do Estado, sendo desta forma referência na criação
e implementação de uma política estadual de arquivos. Seu arquivo permanente conta com
fundos documentais produzidos desde meados do século XVIII, coleções e até arquivos
pessoais que compõem o vasto acervo da instituição.
Os documentos do acervo possuem diversos gêneros e suportes, textuais, manuscritos,
audiovisuais, fotográficos, cartográficos sendo possível realizar pesquisas sobre temas
diversificados. Tratando desde questões burocráticas de Estado, escravidão, questões
feministas, política, temática agrária. Conta em seu arquivo com documentos produzidos pelos
órgãos que fizeram parte da antiga Polícia Política do Estado da Guanabara e do Estado do Rio
de Janeiro, dentre eles: Departamento Autônomo de Ordem Política e Social do Estado do Rio
de Janeiro (DOPS-RJ); Departamento de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara
(DOPS-GB); Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS); Divisão de Polícia
Política e Social (DPS); Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE).
O fundo de Polícias Políticas foi transferido para o Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro no ano de 1992, a guarda da documentação se deu no contexto de extinção e transição
60

dos órgãos de polícia a nível Federal e Estadual. Antes de ser custodiado pelo APERJ, os
documentos de Polícias Políticas ficaram sob guarda do antigo Departamento Geral de
Investigações Especiais, onde segundo Espíndola e Silva (2010) houve um processo de
avaliação e eliminação dos documentos do acervo. Após a extinção deste órgão os documentos
foram transferidos para Polícia Federal e só foram enviados para o APERJ após pressões
realizadas por grupos como o Tortura Nunca Mais, sociedade civil e o então Secretário de
Justiça Nilo Batista (SOARES, 2013, p.11).
A documentação reunida no fundo de Polícias Políticas, retrata a atuação das
instituições de polícia desde a criação em 1927 até a extinção do Departamento Geral de
Investigações Especiais em 1983. O fundo é composto por relatórios, fichas de presos políticos,
cartazes, impressos, depoimentos, materiais produzidos pela burocracia administrativa destes
órgãos de investigação. Como a documentação retrata o período da ditadura militar (1964-
1985), o fundo de Polícias Políticas conta também com a coleção de arquivos pessoais que
foram doados ao acervo.13
O tratamento do acervo foi um trabalho que demandou esforços de toda a equipe técnica
do APERJ, a partir do recolhimento da documentação foi necessário que se fizesse um
levantamento e reconhecimento do acervo. Quer dizer, na etapa de recolhimento de acervos é
importante que se faça um levantamento preliminar, momento primordial para identificar a
quantidade de documentos, as tipologias documentais, gênero etc. É nesse primeiro momento
que se faz uma avaliação geral das condições do acervo, ou seja, se estão muito ou pouco
deteriorados, o estado de conservação como um todo, é possível identificar se o acervo está
completo ou se sofreu algum processo de eliminação de documentos. Esse trabalho foi realizado
no ano de 1993, através de um projeto conveniado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro (FAPERJ) e a equipe do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Refletir sobre os meandros que envolvem o trabalho dentro de uma instituição de guarda
de documentos, pode parecer num primeiro momento algo óbvio. No entanto, é uma discussão
necessária se pensarmos que o trabalho em arquivo não é tão simples quanto parece. Garantir o
acesso a um fundo documental, além de questões legais e da demanda social pela abertura dos
arquivos, requer procedimentos anteriores que sem eles põe-se em risco os documentos, seja
pela possibilidade de deterioração devido ao manuseio ou até o seu extravio.

13
As informações sobre os documentos que compõem o fundo de Polícias Políticas podem ser acessados e
verificados com todos os detalhes no site da instituição. Disponível em: http://200.222.27.136/index.php/pol-cias-
pol-ticas-do-rio-de-janeiro. Acessado em 11/09/2020
61

Sendo assim, quando pensamos em acesso temos que ter consciência que essa demanda
depende também de procedimentos que num ambiente ideal seriam respeitados desde o
processo de produção da documentação. Como não é o caso dos documentos que fazem parte
do fundo documental do DOPS, a garantia de acesso aos documentos é algo importante, mas
antes que fosse possível torná-los efetivamente públicos era necessário que o arquivo fosse
previamente mapeado e identificado.
Beatriz kushnir (2006) nos alerta para o fato de que “certamente houve uma “limpeza”
realizada por ex-agentes do órgão, o que leva a crer que a sua lógica interna14 tenha sido muitas
vezes deliberadamente manipulada (2006, p.50).” A eliminação de documentos pertencentes
ao fundo de Polícias Políticas (DOPS-RIO) foi uma prática realizada não apenas pelos próprios
agentes da polícia após a extinção dos órgãos e transferência para a sede da Polícia Federal.
Quando se deu o processo de redemocratização, muitos documentos produzidos por órgãos e
setores de investigação e repressão foram eliminados.
Motta (2006), atenta para o caso dos documentos do DOPS-MG. Segundo o autor, no
início da década de 1990, foi aprovada uma lei na Assembléia Legislativa de Minas Gerais que
determinava o recolhimento da documentação do DOPS-MG para o Arquivo Público Mineiro.
No entanto, houve muita resistência por parte dos agentes e órgãos de segurança, que alegavam
que a documentação teria sido incinerada na época da extinção do órgão. Após denúncias que
a polícia continuava utilizando os documentos do extinto DOPS, a Assembleia Legislativa criou
uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no ano de 1997, para investigar o caso.
Os integrantes da CPI visitaram instalações policiais e localizaram microfilmes feitos
a partir do acervo original, que a polícia alegou ter incinerado após a conclusão do
processo fotográfico. Em meio aos trabalhos da Comissão Parlamentar, começaram a
aparecer, espalhadas pela cidade, fichas em papel de pessoas investigadas por
atividades políticas, o que aumentou a pressão sobre a polícia. A existência das fichas
levantou a dúvida, ainda não esclarecida, sobre a veracidade da suposta incineração.
Ao final do processo, como se vê tenso e polêmico, 98 rolos de microfilmes acabaram
sendo recolhidos ao Arquivo Público Mineiro. Em seu relatório final, a CPI sugeriu
uma possibilidade preocupante: os microfilmes enviados ao APM podem ser apenas
parte dos documentos; a polícia pode ter retido parcela substancial dos arquivos de
sua antiga agência de informações e repressão. (MOTTA, 2006, p.63)

A eliminação dos documentos provenientes do DOPS, assim como de outros arquivos


de polícia produzidos durante o período da ditadura militar (1964-1985), interessa sem dúvida
aos agentes que estavam diretamente ligados às ações perpetradas contra dignidade humana.
Mas também é sabido que muitas empresas e setores específicos da sociedade civil também

14
Lógica interna se refere a organicidade dos documentos de acordo com o órgão produtor. Desta forma, quando
documentos são manipulados sem respeito a ordem interna, ou retirados intencionalmente do contexto em que
foram produzidos, isto descaracteriza o fundo e interfere na compreensão dos documentos em seu conjunto.
62

contribuíram para o golpe 1964 e, consequentemente, apoiavam as perseguições, prisões e de


um modo geral garantiam o apoio que era necessário para sustentar o regime15. Se no período
de atuação do regime militar (1964-1985) a documentação era essencial para o funcionamento
do aparato repressivo, com o processo de redemocratização e abertura política estes mesmos
documentos passaram a ocupar um lugar ambíguo no campo de disputas sobre as “verdades”
acerca da ditadura. O caráter de prova aqui é indiscutível, a questão é como esse conceito seria
interpretado e instrumentalizado por diferentes atores.
Deste modo, enquanto registro das atividades realizadas pela polícia política e seus
agentes, assim como prova do apoio de atores das classes médias e empresariais a eliminação
dos documentos interessa por permitir apagamento da materialidade dos atos e crimes
cometidos. Já para vítimas e familiares esses mesmos documentos também com caráter de prova
devem ser resgatados para servirem como instrumentos que legitimam seus direitos, sendo úteis
para as denúncias contra o Estado e seus aparelhos repressivos.
Segundo relato de José de Moraes16, em entrevista concedida ao APERJ, havia
interesses particulares na destruição das fichas. Ele insinua, por exemplo, que Leonel Brizola
teria sumido com seu prontuário (APERJ, 2013, p.105). Se as acusações são verdadeiras ou
não, não nos cabe julgar uma vez que não temos provas que remetem a quem poderia ter tido
acesso aos documentos e, consequentemente, eliminado. No entanto, é interessante observar
que há muitos documentos em falta nos prontuários, que podem ter sido extraviados no processo
de transferência dos arquivos de um setor a outro, ou podem ter sido retirados intencionalmente
por determinados indivíduos. Fato é que, quando os documentos eram retirados de forma legal,
um registro era feito e colocado exatamente no lugar do documento que havia sido removido,
constando informações sobre o órgão ou quem realizou a solicitação (APERJ, 2013, p.102).
Ao fazer uma análise da entrevista17 de José de Moraes concedida ao APERJ, em relação
ao extravio de documentos, fica evidente a tentativa de acusar pessoas que atuaram pública e

15
Estudos realizados por pesquisadores como René Dreifuss, demonstram a participação de setores empresariais
da sociedade no apoio e legitimação do governo militar, como por exemplo, o complexo IPES IBAD. Além disso,
em Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, foram identificados pelo menos 50 nomes de empresas que
teriam sido cúmplices da repressão política no Brasil, dentre elas a Volkswagen, Johnson & Johnson, Esso, Pirelli,
Texaco e outras. As pesquisas desenvolvidas por Pedro Henrique Pedreira Campos que buscam demonstrar como
as empreiteiras da construção civíl se beneficiaram no período da ditadura militar (1964-1985).
16
José de Moraes, é policial aposentado, que havia trabalhado em diversos setores do Departamento de Polícia
Social (DPS). Foi entrevistado pela equipe do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, em 1998, num projeto
de fontes orais produzidos pela equipe técnica da instituição. Foram entrevistados outros ex agentes, com o objetivo
de conseguir informações que auxiliassem a equipe a compreender melhor a lógica de produção das informações
e o próprio funcionamento da rede de informação montada pelo Estado no período da ditadura militar (1964-1985)
17
A entrevista de José de Moraes está publicada no livro “A Contradita: Polícia Política e comunismo no Brasil
1945-1964”, publicado pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro em 2013.
63

politicamente contra o governo militar pela eliminação intencional dos documentos. Colocando
em evidência que mesmo após 50 anos do golpe, de reabertura política do Brasil os agentes que
atuavam na repressão continuam sustentando de maneira incisiva um posicionamento
acusatório em relação aos indivíduos que se manifestaram e lutaram contra a ditadura militar
(1964-1985)

Entrevistador: A partir de 1983, com a extinção do DOPS, esse arquivo foi transferido
para vários lugares. Não há chance de se ter perdido uma parte da documentação nessa
transferência?

Moraes: Olha, não sei… Onde é que anda o prontuário do Brizola? Eu não sei se está
aí. Não sei se ele pegou e botou fogo, ou levou para mostrar à sua filha, não sei.

Entrevistador: Consultado a documentação, pode-se perceber que não existem alguns


documentos para s quais as fichas remetem.

Moraes: Então foi retirado. Para ter certeza disso, faz o seguinte: faz uma pesquisa no
prontuário de Marcello Alencar, no prontuário de Mário Lago, veja se os dois estão
lá. Se estiverem lá… Eu tenho minhas dúvidas. (APERJ, 2013, p. 105)

Ao longo da entrevista José de Moraes defende que havia pelos órgãos de segurança
uma preocupação com a integridade física dos arquivos. No entanto, segundo análise realizada
por Luciana Lombardo da Costa Pereira (2014), na prática a realidade era completamente
diferente. Quando houve início dos trabalhos de recolhimento do acervo na sede da Polícia
Federal em 1992, os documentos foram encontrados em péssimo estado de conservação, muitos
deles já em processo avançado de deterioração. Além disso, já haviam sido feitas denúncias
pelo Grupo Tortura Nunca Mais, através de Cecília Coimbra sobre ocultação de documentos de
presos políticos no acervo. Bem como das historiadoras Virgínia Fontes e Angela de Castro
Gomes que, também, denunciavam a retirada de documentos sobre os desaparecidos pela
Polícia Federal (apud, PEREIRA, 2014).

Mas a alegação de que o material seria destruído ou ocultado no contexto da


redemocratização é bastante expressiva das forças políticas em disputa que
ainda em 1998, por ocasião da entrevista, orientavam a fala dos policiais do
antigo Dops. O discurso de Moraes, ao mesmo tempo em que acusava os
personagens identificados com a luta pela abertura política de “fazer
desaparecer” as fichas, protegia os verdadeiros interessados na operação de
esquecimento do passado recente da ditadura brasileira. (PEREIRA, 2014,
p.264)

Além de lidar com a falta de alguns documentos no fundo documental do DOPS


identificada no momento de recolhimento, a equipe do APERJ teve que se empenhar em
desenvolver um projeto de conservação e preservação da documentação. No estudo realizado,
foram encontrados documentos em péssimo estado de conservação que sem o tratamento devido
corriam o risco de causar mais danos do que os já apresentados. Documentos com acidez,
64

quebradiços, fotografias manchadas, microrganismos mortos, fungos etc. A documentação


encontrava-se bastante prejudicada, diante desse cenário a equipe técnica do APERJ e a equipe
do Arquivo Nacional, através do projeto Memórias Reveladas18, iniciaram uma força tarefa para
higienização e acondicionamento adequado dos documentos.
Os esforços no sentido de garantir a integridade física dos documentos foi fundamental
para que após esse processo os documentos pudessem ser disponibilizados para pesquisa. A
equipe do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro optou, por questão de preservação dos
documentos, e por conta do apoio financeiro do projeto Memórias Reveladas, pela digitalização
do fundo DOPS, o que possibilita maior acesso na medida em que os arquivos podem ser
consultados em formato digital. Ao mesmo tempo essa medida diminui o contato físico com os
documentos, evitando o manuseio e ao mesmo tempo postergar sua deterioração.

Com atributos compatíveis – como no caso do DOPS/GB e RJ em relação ao


Portal do Projeto Memórias Reveladas –, os arquivos digitais podem se inserir
nas grandes redes e portais de dados e integrar a grande malha virtual de
informação que vem se formando e se estendendo por todo o mundo. (...) Tal
medida deverá permitir que no futuro políticas públicas de preservação do
patrimônio digital sejam capazes de garantir a salvaguarda dessa importante
parcela da memória e da história recente de nosso país. (SPINDOLA; SILVA,
2010, p.121)

Outro dado importante foi o trabalho desempenhado pela Coordenadoria de Pesquisa do


Arquivo Público, que deu início a um projeto denominado “Fontes Orais”19 (SOUZA, 2013, p.
12). Fundamental para compreensão do funcionamento dos órgãos de repressão, uma vez que,
contou com entrevistas de um ex-policial e ex-agente que atuaram diretamente nas ações

18
O projeto Memórias Reveladas, surge da necessidade de criação de um centro de referência de “documentos,
informações, arquivos, objetos de valor simbólico sobre as violações dos Direitos Humanos durante o período da
ditadura militar no Brasil". É importante porque a partir dele, foi criado um banco de dados onde são reunidos
documentos de instituições públicas e privadas de todos os Estados brasileiros. Além disso, houve o recolhimento
de documentos que se encontravam na Agência Brasileira de Inteligência- ABIN, os documentos produzidos e
recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional - CSN, Comissão Geral de Investigações - CGI e Serviço
Nacional de Informações - SNI. Com o financiamento da Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91), foram captados recursos
financeiros utilizados para o tratamento dos documentos dos extintos Departamento Estadual de Ordem Política e
Social (DEOPS) e Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). O Banco de Dados Memórias Reveladas
atinge 18 milhões de páginas de documentos textuais digitalizados e com reconhecimento óptico de caracteres
(OCR), incluindo acervos federais, estaduais e parte dos documentos produzidos ou acumulados pela Comissão
Nacional da Verdade (CNV). Informações retiradas do site http://www.memoriasreveladas.gov.br. Acessado em:
11/09/2020.
19
Quando a equipe técnica do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), no ano de 1998, estava
desenvolvendo o trabalho de identificação e arranjo da documentação do fundo de Polícias Políticas, perceberam
a necessidade criação de novas fontes que os auxiliassem a compreender como era o funcionamento interno dos
órgãos de Polícia Política. Para tanto, buscaram entrevistar pessoas que tivessem trabalhado nesses órgãos e,
consequentemente, participado da produção desta fonte documental e da história da instituição. Nesse projeto,
foram entrevistados dois ex agentes José de Moraes e Nilson Venâncio. Além de dois ex militantes que sofreram
perseguição política e foram presos pelo DOPS Cecil Borer e Hércules Corrêa dos Reis. As entrevistas foram
publicadas no livro “A contradita: Polícia Política e Comunismo no Brasil 1945-1964, lançado no ano de 2013.
65

promovidas pela polícia política. Participaram também desse projeto concedendo entrevistas,
Hércules Corrêa e Nilson Venâncio dois ex-militantes do PCB. Segundo relato de Jessie Jane
Vieira de Souza (2013)20, a proposta de recolher depoimento de ex-agentes e ex-militantes era
fundamental por permitir que as experiências vivenciadas por estes indivíduos pudessem ser
conhecidas pela sociedade através de sua publicização. Além disso, era a oportunidade de
materializar esses discursos que poderiam ser cotejados com os documentos escritos servindo
de instrumento para pesquisa e compreensão do período repressivo brasileiro (1964-1985). “A
interação entre a experiência pessoal e o fio histórico dos acontecimentos dá vida a fatos
anteriormente conhecidos, introduzindo a sensibilidade individual dá ação coletiva e o cotidiano
à conjuntura macro.” (SOUZA, 2013, p.15)
Segundo Santos (2005), a utilização da História Oral como mecanismo de acesso ao
passado, fornece elementos para interpretar fatos e acontecimentos a partir das lembranças de
indivíduos que participaram diretamente destes eventos ou que testemunharam de alguma
forma as transformações deles decorrentes. É indispensável nesse processo de escuta, a
utilização de técnicas que nos permitem através de um exercício atento de investigação,
identificar nesses relatos o que tem ancoragem efetivamente com os acontecimentos relatados,
o que é construído através do testemunho como significação da experiência vivida e
compartilhada.
Ferreira (2002) identifica nesse processo duas formas de utilização da História Oral no
fazer historiográfico. No primeiro caso, o reconhecimento que estes testemunhos se tornam
essenciais para o preenchimento das lacunas encontradas nos documentos escritos. No segundo,
privilegia-se as representações e significados produzidos a partir das relações elaboradas entre
a memória e a história. Nesse sentido, o projeto desenvolvido pelo APERJ, pode ser identificado
nestas duas características definidas por Ferreira (2002).
No primeiro momento os testemunhos serviram objetivamente a uma necessidade de
compreensão do funcionamento administrativo e burocrático da polícia política, através dos
depoimentos de seus ex-agentes, e das experiências vivenciadas por aqueles que foram
diretamente atingidos pelas políticas de investigação e acusação. Este objetivo estava ligado à

20
Jessie Jane Vieira de Sousa é de uma família com histórico de militância política. Filha de Washington
Alves da Silva e Leta Alves, militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Iniciou sua militância
política em 1969 na Aliança Libertadora Nacional (ANL), em tentativa frustrada de sequestro de um
avião na base do Galeão em 1970, Jessie foi presa e só obteve sua liberdade 9 anos após sua prisão,
sendo a penúltima presa política a ser solta. Casou-se, engravidou, gestou e pariu no cárcere, só
podendo ter contato diário com sua filha após sua liberdade. Formou-se em História em 1986, fez
mestrado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Doutorado pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). foi diretora do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro de
fevereiro de 1999 até maio de 2002
66

etapa de organização do acervo que se encontrava em fase de desenvolvimento pela equipe do


Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Além disso, ao não estabelecer no caso de ex-
militantes uma ordem engessada de seus relatos, permitiu que os depoimentos seguissem a
ordem “natural” do discurso dos entrevistados.
Para não cair nas armadilhas que a narrativa dos entrevistados apresenta, é essencial que
tomemos como ponto de partida que estes relatos são realizados num contexto e em condições
distintas daquelas que os levaram ao cárcere ou que justificavam suas ações enquanto agentes
do Estado repressivo. Sendo assim, ao analisar os relatos de ex-agentes de Estado, é necessário
recorrer a técnicas e métodos de pesquisa que auxiliem no controle da subjetividade presente
nas narrativas, confrontar os relatos com documentos escritos, com outros relatos e com as
fontes disponíveis.
Por se tratar de uma experiência sensível, quando lidamos com vítimas de períodos
repressivos, principalmente, nos dispondo a ser um canal de escuta de suas histórias e memórias
da época em que foram perseguidos, presos e em alguns casos torturados. Devemos ter claro
que nossa ação de escuta e as deles de narrar as violências vividas possuem um significado
político muito importante. Ao mesmo tempo em que tornamos públicos as atrocidades
cometidas pelo Estado, somamos forças na luta pela verdade, pela memória e pela justiça.
Reside aí a função social do arquivo, ser um canal de preservação da memória, divulgação de
documentos e informações essenciais para construção e manutenção de uma sociedade mais
justa e democrática. Estabelecendo uma ponte entre aqueles que tiveram suas vidas
interrompidas pela violência promovida por agentes do Estado (1964-1985), através de
exercícios de rememoração, aqueles que por muito tempo tiveram suas vozes silenciadas e que
lutam até hoje para que a verdade dos fatos seja esclarecida, e a sociedade que em constante
processo de transformação adote políticas e práticas democráticas
Desta forma, os depoimentos prestados por ex-ativistas no projeto desenvolvido pelo
APERJ não tinham um tema pré-definido e havia liberdade para que eles falassem de suas
experiências de forma espontânea, sendo respeitados em suas pausas e até divagações. Quer
dizer, a não elaboração de roteiros não significou em contrapartida, que não houvesse questões
que orientaram de alguma forma a maneira como as entrevistas eram conduzidas. As indagações
eram desenvolvidas de acordo com as informações relatadas pelos entrevistados e respeitando,
especialmente, sua condição de sujeitos e testemunhas de um período tão marcante da nossa
história recente como a ditadura (1964-1985). Neste sentido, para os estudos a partir destes
relatos “as distorções da memória podem se revelar mais um recurso do que um problema, já
que a veracidade dos depoimentos não é a preocupação central.” (FERREIRA, 2002, p. 328)
67

A execução do projeto não foi feita sem resistência. Se por um lado era difícil entrar em
contato com agentes que atuaram nos órgãos repressivos devido à natureza conturbada dos
assuntos tratados nos documentos, havia a possibilidade de que muitos já estivessem na reserva
e aposentados. Já em relação aos ex-militantes, o convite para participar era realizado junto ao
documento de Habeas Data21. Souza (2013), relata que a grande maioria das pessoas que
haviam respondido ao pedido era formada por ex militantes do PCB22, mas apesar de muitos
convites terem sido aceitos, ao longo do tempo muitos voltaram atrás e decidiram não falar.
Essa recusa da fala, segundo a autora, pode ser compreendida através de duas principais
perspectivas no que se refere aos militantes e simpatizantes do PCB. Em primeiro lugar a recusa
pode ser compreendida devido a um compromisso com o partido - PCB- que impedia que
detalhes das operações fossem revelados. O segundo motivo, mais simbólico e sensível, refere-
se ao significado do que os documentos do DOPS representavam para esses indivíduos. Ou
seja, havia um receio se a fala seria incorporada ao acervo como “entrevista ou depoimento?”.
Esse questionamento advinha do fato que, os documentos que fazem parte do fundo de Polícias
Políticas são em sua maioria compostos por depoimentos prestados por esses indivíduos durante
interrogatórios promovidos pela polícia23. Falar, portanto, trazia de volta as lembranças e
memórias de uma experiência traumática mostrando assim “que nem sempre a fala é um
instrumento terapêutico” (SOUZA, 2013, p. 14).
Estudar os motivos que levam um indivíduo a optar conscientemente ou não pelo
silêncio é um exercício que requer um nível de compreensão que vai além do desejo objetivo
de saber sobre a experiência individual desta pessoa no período em questão. É preciso respeitar
os sentimentos e as memórias que o ato de falar trazem à tona, isso não significa que o silêncio
seja um recurso que neutraliza ou minimiza as dores e feridas. Em alguns casos, pode ser uma

21
O Habeas Data, foi criado na Constituição de 1988 no Brasil. Ele pressupõe o direito de todo cidadão de requerer
do Estado as informações que têm a seu respeito. É importante deixar claro, que no ordenamento jurídico brasileiro,
o Habeas Data só é acionado legalmente, quando há prévia recusa de órgão público de prestar informações.
Durante a ditadura militar (1964-1985), o Sistema Nacional de Informação (SNI), em conformação com os órgãos
repressivos, promoveu uma produção em massa de informação sobre militantes e suspeitos de atividades políticas
contrárias ao governo. O acionamento do Habeas Data, por essas pessoas permite que elas tenham acesso ao que
foi produzido pelo Estado brasileiro a seu respeito e servem como provas das perseguições que foram sofridas.
Nesse sentido, muitos militantes e familiares de presos/desaparecidos políticos, impetraram pedido de Habeas
Data, ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, para obter acessos aos seus documentos que estão sob
guarda da Instituição.
22
Segundo Jessie Jane Vieira de Sousa (2013), era natural que a maioria dos pedidos de Habeas Data fosse
impetrado por ex militantes ou simpatizantes do PCB e do comunismo. Mais de 90% da documentação produzida
pela Polícia Política dizem a respeito da atuação do Partido Comunista Brasileiro, seus militantes e simpatizantes.
23
Na maioria dos casos, os depoimentos prestados por esses indivíduos à polícia política no período da ditadura
militar (1964-1985), no contexto de investigação, eram feitos sob ameaças, violência física e psicológica. Era
prática comum dos órgãos repressivos o sequestro e práticas de tortura durante os interrogatórios, ameaças
constantes à vida dos interrogados e de suas famílias.
68

forma de preservação da sua identidade e da imagem que se pretende conservar, mexer no


passado abre portas e acende questões que para alguns indivíduos pretendem-se que fiquem no
“passado”.
Michael Pollak (1989) realiza uma reflexão bastante emblemática no que se refere aos
silêncios e ao não-dito. O autor desenvolve sua análise baseado nas pesquisas realizadas sobre
a experiência alemã no pós Segunda Guerra (1939-1945). No entanto, as discussões por ele
desenvolvidas servem como arcabouço para pensar as vítimas da repressão, violência e
violações dos direitos humanos no Brasil (1964-1985). Isto porque, ao discorrer sobre a
experiência das vítimas dos campos de concentração, Pollak mobiliza conceitos e ideias que
nos ajudam a compreender e a discutir as formas de apropriação, construção e reconstrução do
passado realizado pelos diversos atores que participaram politicamente contrários ou a favor do
regime militar brasileiro (1964-1985), bem como os desdobramentos das ações perpetradas pelo
Estado na vida social.
Deste modo, assim como na Alemanha, no caso brasileiro o silêncio ou a fala possuem
características ambíguas e nos levam a compreender o período por ângulos bastante diferentes.
Em outras palavras, se pensarmos na qualificação de perseguidos políticos e vítimas, é senso
comum associar ex-militantes e pessoas envolvidas politicamente em algum grupo ou
organização. Por muito tempo a historiografia deixou fora do debate grupos minoritários, mas
que também sofreram com os horrores da ditadura, por exemplo, comunidades indígenas,
homossexuais etc. Esses debates são importantes na medida em que alargam as fronteiras sobre
os reflexos da ditadura e, consequentemente, trazem à baila visões e percepções sobre o período
que até então não tinham espaço no discurso oficial.
O que nos chama atenção na análise realizada por Pollak (1989), que nos ajuda a
compreender a recusa no convite de depoimento enviado pela equipe do APERJ, se refere ao
que o autor identifica como um exercício de “reconstrução da identidade”. Isto é, a partir de
entrevistas e depoimentos, ao falar sobre si os indivíduos buscam estabelecer laços de conexão
e coerência sobre as experiências vividas, criam a partir dos seus discursos uma imagem e
estabelecem relações com o passado e o presente. Produzem e reconstroem sua identidade
baseados nas vivências experimentadas coletiva e individualmente, atravessadas pelas ações
violentas do Estado. Através deste relato, do exercício de memória e lembrança dos fatos
vividos, os indivíduos vão construindo seu lugar social e sua relação com os outros. (POLLAK,
1989, p. 11)

Pode-se imaginar, para aqueles e aquelas cuja vida foi marcada por múltiplas
rupturas e traumatismos, a dificuldade colocada por esse trabalho de
69

construção de uma coerência e de uma continuidade de sua própria história.


Assim como as memórias coletivas e a ordem social que elas contribuem para
constituir, a memória individual resulta da gestão de um equilíbrio precário,
de um sem-número de contradições e de tensões. (POLLAK, 1989, p.11)

Não temos dúvida de que a experiência da repressão, sobretudo, aquela sentida em


forma de violência impactam e marcam o indivíduo. Buscamos compreender em poucas linhas
quais seriam os motivos que levam alguns indivíduos a não falar e não querer expor suas
histórias e experiências de vida. No entanto, em outros momentos, o testemunho e as histórias
desses sujeitos são ressignificados e passam a integrar um conjunto importante de provas
acionados nas denúncias realizadas contra o Estado brasileiro, na cobrança por respostas,
justiça, memória e verdade.
Isto posto, o projeto “Fontes Orais”, foi importante para identificação do
funcionamento dos órgãos de Polícia Política, a partir das informações coletadas nas entrevistas
foi possível a realização do arranjo da documentação. Por sua vez, no que se refere a
organização do fundo de Polícias Políticas, é possível buscar informações na base de dados do
APERJ24. Assim sendo, os prontuários são organizados numericamente, os dossiês foram
separados de acordo com os 58 setores atribuídos pelo DOPS. Há um controle rígido da
documentação uma vez que os documentos são todos numerados dentro das pastas. Já as fichas
de investigados e presos políticos foram postas em ordem nominal, por assunto e tipo
documental.
O cotejamento dessas fontes é um exercício que envolve a sensibilização e
responsabilidade, que interferem nas dimensões técnicas do trabalho arquivístico e nos
indivíduos dos quais esta documentação diz respeito. As discussões acerca da abertura de
documentos relativos às polícias políticas mobilizam categorias muito complexas, onde o
discurso em torno da ideia de verdade, a demanda por direitos, o reconhecimento de práticas de
violação e violência contra presos políticos por parte do Estado, assim como o esclarecimento
de fatos referentes a desaparecimento forçado, por exemplo, devem ser observados com
bastante atenção.
Desta forma, ao ter acesso aos documentos de um fundo de Polícias Políticas, os
pesquisadores devem levar em consideração, durante a leitura das fontes, o contexto de
produção destes documentos. Ou seja, quem produziu a documentação a ser analisada, quais
eram os interesses por trás de uma prática burocrática de registro das atividades. Isso pode

24
O Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro possui um site eletrônico, onde é possível acessar
informações pontuais sobre a organização do acervo disponível na instituição. Infelizmente, é uma plataforma
muito precária e a meu ver de baixa qualidade, que acaba dificultando as pesquisas e o acesso. É possível acessar
através do link: http://200.222.27.136/index.php/ acessado em: 14/09/2020.
70

implicar, em certa medida, em frustração aos que vão até os arquivos atrás de respostas objetivas
para seus questionamentos. Quando interpretados, em alguns casos, os documentos revelam
muito mais sobre a forma como os agentes intencionavam retratar os fatos do que efetivamente
o que aconteceu.

Os arquivos policiais apresentam suas próprias peculiaridades e colocam


desafios específicos para aqueles que os analisam. Um desses desafios é
justamente compreender essa operação de escrita intensa e consciente que
coloca algumas armadilhas para o pesquisador. Cabe ao observador atento
desnaturalizar os arquivos policiais que “escondem tanto quanto revelam” e
questionar o processo dinâmico de constituição do corpus, os princípios de
classificação e catalogação adotados, as escolhas dos indexadores utilizados e
as atribuições hierárquicas de valor dadas a cada série de documentos pelos
arquivistas e pesquisadores que organizaram os fundos. (PEREIRA, 2014, p.
258)

A prática de registro das ações tinha o objetivo de garantir ares de legalidade aos atos
praticados. Desta forma fazia-se uso da burocracia para sustentação de interrogatórios, prisões,
investigações, condenações etc. O sistema de informação do Governo Federal foi aperfeiçoado,
de modo que havia um grande fluxo e trocas de dados entre os órgãos, pessoas que agiam de
forma “legal”, na medida em que exerciam suas funções em cargos de controle e produção da
informação, bem como agentes infiltrados, indivíduos da sociedade civil e militantes que em
alguns casos submetidos a tortura acabavam revelando os segredos dos grupos dos quais faziam
parte e de seu partido. A especialização na produção de informação era tamanha na polícia que
os agentes trabalhavam de forma bastante organizada, as fichas eram produzidas contendo todas
informações do indivíduo e essas informações eram comparadas às de outros prontuários, em
caso de homônimos, as fichas eram recolhidas e os dados contidos eram utilizados para
identificar a quem realmente se tratava. (APERJ, 2013, p.103)

O acervo da polícia política sob a custódia do APERJ contém o registro da


formação e desenvolvimento das primeiras agências de informação no Brasil.
A história desses órgãos e a forma como seu acervo documental foi posto em
disponibilidade para a sociedade revelam as mudanças por que passou o
conceito de informação no Brasil nas últimas décadas. Durante o período de
vigência desses órgãos, a informação era concebida antes de tudo como um
elemento que possibilitava o controle da ordem social e política. As constantes
demandas políticas da sociedade civil, notadamente os movimentos sociais
iniciados nas décadas de 1970 e 1980, imprimiram uma redefinição no sentido
político dessa informação: aquilo que antes servia para controle do cidadão é
hoje utilizado para garantia de seus direitos. (MENDONÇA, 1998, p.3)

Os Departamentos de Ordem Política e Social, após o golpe de 1964, passaram a se


tornar grandes centros de informação, com o aumento do número de agentes, o crescimento da
estrutura de cada polícia e o alinhamento com práticas promovidas pelas Forças Armadas. Este
71

movimento fez com que o DOPS agisse como um braço do sistema de segurança, subordinado
aos órgãos de inteligência militar.
Não era novidade no contexto do golpe de 1964 a atuação da polícia política contra
supostos inimigos internos, essa atividade de perseguição é herdada do Estado Novo varguista,
iniciado em 1937. Podemos compreender a atuação da polícia no período de 1937 até 1945
como um “estágio” em que eram instituídas formas de controle social, sobretudo, de grupos
políticos contrários ao governo e alinhados a ideia comunistas. Já nesse período muitos
indivíduos foram presos, dentre eles brasileiros e estrangeiros sob a alegação de serem
perigosos para ordem interna. O medo do comunismo e de uma crescente força de oposição
levava Vargas a adotar políticas duras contra seus inimigos, instituindo censura, repressão em
todos os níveis.

Enfim, o resultado foi um Estado que não sabia conviver com as diferenças,
fossem étnicas, políticas ou culturais. Assim, herdamos do Estado Novo uma
cultura amordaçada, lapidada e corroída pela erosão característica das
ditaduras modernas. (...) Anos mais tarde, em 1964, o Exército reeditava a
Ideologia da ordem traduzida na Doutrina de segurança nacional, herança
maldita dos tempos do Estado Novo e da obra Getulina. (CARNEIRO,1999,
p. 334)

O que percebemos com essa tradição repressiva da atuação policial, é que os


documentos produzidos possuem interesses políticos bem definidos. Ou seja, criava-se através
dos inquéritos, dos depoimentos e operações um aparato discursivo técnico oficial que de certa
forma legitimavam tais atividades e serviam como prova para a cassação contra os grupos
organizados dissidentes. Nesse caso, com a chefia da polícia política sendo realizada quase
exclusivamente por militares, salvo algumas exceções, havia sido criado o ambiente favorável
para a instituição da lógica do inimigo interno. Consequentemente a atuação conjunta entre os
serviços de informação do Exército, Marinha e Aeronáutica bem como o Serviço Nacional de
Informação- SNI.
Diante deste processo de criação e extinção dos órgãos de polícia e a mudança nas suas
cadeias de hierarquia, a documentação produzida também ia sendo alterada. Fundos
documentais pertencentes primeiramente a um órgão até então Federal, são transferidos para
um estadual, acarretando numa interferência na organização interna desses documentos. Quer
dizer, os desafios enfrentados pelos arquivistas nos anos 90 para recuperação destes
documentos vai além de questões meramente técnicas, esbarraram também com a dificuldade
de identificar o local onde a documentação se encontrava e, no caso do APERJ, foi necessário
a mobilização do corpo de bombeiros para auxiliar na transferência segura de todos os
documentos que haviam sido encontrados na sede da Polícia Federal. (PEREIRA, 2014, p. 263)
72

Longe de ser um processo tranquilo, os depoimentos reunidos a respeito do


processo de entrada do Fundo Polícias Políticas no APERJ destacam
invariavelmente as condições desfavoráveis criadas pela Polícia Federal para
que se desse o recolhimento, o mau estado geral de conservação em que se
encontravam as caixas de documentos e a existência de um amontoado
indistinto de papéis e publicações apelidado de “lixão” pela equipe técnica que
os recebeu e tratou no primeiro momento. (PEREIRA, 2014, p.263)

Ao ser recolhido ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, esse acervo teve que
ser interpretado à luz de toda complexidade que existia nos órgãos de polícia do qual os
documentos faziam parte. Dito isso, a leitura dessas fontes e os usos que são feitos dela
dependem diretamente da compreensão de como se deu a criação da polícia política no Brasil.
Reconhecer o histórico da instituição e as formas como funcionava administrativamente são
fundamentais na organização do acervo. Como dito anteriormente, buscou-se no trabalho de
organização dos documentos uma metodologia que permitiu que os documentos fossem
agrupados de acordo com o órgão que os originaram.
Esse esforço da equipe técnica do APERJ se justifica pela necessidade imposta pela
forma desorganizada como o acervo se encontrava nos depósitos da Polícia Federal, bem como
pelo objetivo de recuperar através da ordenação dos documentos a estrutura administrativa e
funcional da polícia política desde sua criação. É possível pesquisar no fundo de Polícias
Políticas documentos produzidos desde o período de atuação das polícias no Governo de
Getúlio Vargas (1930-1945), durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1975) até a
extinção do Departamento Geral de Investigação Especial em 1983. Uma vez organizados e
disponíveis para acesso ao público os usos que serão feitos dos documentos são múltiplos, as
possibilidades de questionamentos e de pesquisas a serem realizadas com essas fontes são
inúmeras.
As discussões sobre acesso aos documentos do período repressivo mobilizam diferentes
enfoques, em grande medida há o reconhecimento e um consenso entre autores que estabelecem
como marco temporal a Constituição de 1988 e a criação da Lei de Arquivos em 1991, como
instrumentos legais e essenciais para que a documentação pudesse ser recolhida, organizada e
tornada acessível ao público. Outra característica desse processo, foi a consolidação de
governos opostos a ditadura militar (1964-1985) chegando ao poder no período de
redemocratização. Com isso, em muitos Estados brasileiros houve iniciativas no sentido de abrir
os documentos que tinham sido produzidos por suas polícias políticas. Essa movimentação foi
realizada de maneira diferente em cada Estado, no Rio de Janeiro e em São Paulo essa abertura
se deu de modo mais acelerado (DIAS, 2010, p.158).
73

Segundo Motta (2006) para compreender o processo de abertura dos documentos, é


imprescindível que se observe o contexto internacional de finais dos anos 80. Nas palavras do
autor, inaugurou-se nesse período o direito à informação como uma das prerrogativas para
cidadania, o que implicou num desenvolvimento de políticas de abertura de documentos
públicos que já vinham desde os anos 60-70 sendo abertos ao público, consequentemente, suas
informações. No caso brasileiro, Motta (2006) destaca que a criação do Habeas Data se tornou
uma referência importante, garantindo constitucionalmente que indivíduos tenham acesso às
informações suas produzidas no âmbito de órgãos públicos. Assim como qualquer cidadão tem
direito a requerer informação de interesse particular ou público a órgãos e instituições públicas.
(MOTTA, 2006, p.63). Outro fator legal que corroborou para o contexto favorável a luta pela
abertura dos arquivos, foi a criação da Lei 8.159/1991 que estabeleceu uma política nacional de
arquivos públicos e privados.
O direito ao acesso à informação é pauta defendida na Corte Interamericana, de acordo
com Marino (2011) ao estabelecer em seu artigo 13 o direito à informação como um direito
fundamental da Convenção Americana, é fortalecido em nível internacional a importância do
acesso como um instrumento consolidador de sistemas democráticos. Perceber a dimensão
política que embasa a luta por demandas de abertura de arquivos repressivos, enfrentadas não
apenas por países que viveram os horrores da ditadura nas décadas de 60-70 na América Latina,
como uma diligência coletiva e internacional é significativo. Há um esforço de órgãos
internacionais voltados para os direitos humanos em atuar orientando de que maneira os países
devem lidar com as vítimas e familiares de violência cometida pelo Estado. Sublinhando que o
acesso aos documentos comprobatórios de tais atos é inegociável e sua disponibilidade pública
deve ser assumida como uma responsabilidade/ obrigação dos Estados que pretendem avançar
na consolidação de governos democráticos.
Um dado relevante na discussão sobre acesso à informação, é que a partir da
Constituição de 1988 já se inauguram os direitos fundamentais do cidadão. No decorrer dos
anos, leis e decretos foram sendo criados e reforçaram a legitimidade da demanda por
informações. Longos foram os debates que se inscreveram nessa seara, questões legais que
envolviam sigilo, quais documentos poderiam ser abertos sem ferir o direito a dignidade e a
imagem dos cidadãos. É sem dúvida um debate bastante acalorado que mobilizam
sensibilidades e emoções em diferentes escalas e sentidos. Se formos analisar o percurso legal
que envolve o direito à informação temos como ponto de partida a Lei Nacional de Arquivos
de 1991.
74

A referida lei foi importante, entre outros motivos, porque deixa claro a
responsabilidade do Estado brasileiro em relação a gestão documental e sobremaneira com os
documentos de arquivo. Reconhece-se já neste período a importância cultural, política,
administrativa, de prova e informações que estes documentos possuem. Além disso, fica
evidente o direito de todo cidadão a requerer informações do Estado, respeitando-se as
categorias de sigilo que se aplicam aos documentos públicos referentes à administração e aos
produzidos pelo Estado sobre indivíduos. Algumas alterações foram realizadas na legislação
como demonstra Sônia Maria Alves da Costa (2014):

A legislação acerca da política nacional de acesso aos arquivos públicos e


privados iniciou com a promulgação da Lei n° 8.159, de 8 de janeiro de 1991,
após, regulamentada por meio do Decreto nº 2.134, de 24 de janeiro de 1997,
revogado pelo Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002, com novas
alterações pelo Decreto nº 5.301, de 12 de setembro de 2004, seguida pela Lei
n° 11.111, de 5 de maio de 2005, e o novo Decreto nº 5.584, de 18 de
novembro de 2005; posteriormente, em 2011, foi promulgada a Lei n° 12.527,
de 18 de novembro de 2011, a Lei de acesso à informação. (COSTA, 2014,
p.280-281)

A lei de acesso à informação aprovada em 2011 provocou alterações na Lei Nacional


de Arquivos no que se refere a questão de sigilo dos documentos. O Capítulo V da lei que
discorria sobre acesso e sigilo foi totalmente revogado pela lei 12.527, isso representou na
prática uma nova forma de classificação dos documentos. Os documentos de Estado eram antes
classificados como sigilosos e tinham um prazo de sigilo com duração de 30 anos, que podia
ser prorrogado mais uma vez por igual tempo. Enquanto os documentos sigilosos referentes à
honra e imagem de pessoas tinham prazo máximo de sigilo de 100 anos. A principal mudança
trazida pela lei de acesso à informação é a definição de que a publicidade dos dados é uma regra
geral e a aplicação de sigilo deve ser uma exceção.
Entretanto, criou-se com a lei 12.527/2011 prazos máximos de restrição de acesso a
informações e foi estabelecido três níveis de sigilo aos documentos, a saber: ultrassecreta com
prazo de restrição de 25 anos; secreta possuindo prazo de 15 anos; reservada que têm prazo de
5 anos de sigilo. Esses prazos correspondem às informações produzidas no âmbito da
administração pública e privada de interesse público, uma vez transcorridos os prazos ou
eventos que os tornam sigilosos os documentos passam a ser automaticamente abertos ao
público. Quanto às informações pessoais, estabeleceu-se um prazo de 100 anos de sigilo dos
documentos, podendo ser acessados pelos sujeitos aos quais se referem ou agentes públicos
legalmente autorizados. Para o acesso e uso da documentação por terceiros, é exigido uma
autorização expressa da pessoa titular da documentação ou diante de uma previsão legal. É
importante ressaltar que estes documentos podem ser acessados em caso de “defesa de direitos
75

humanos e à proteção do interesse público e geral preponderante” sem a necessidade de


autorização dos sujeitos.
De acordo com Costa (2014) a aprovação da lei de acesso à informação foi realizada no
contexto de discussão sobre o acesso aos arquivos provenientes da Ditadura no Brasil (1964-
1985). Nesse período discutia-se que o acesso democrático aos arquivos estaria alinhado a
defesa dos direitos humanos, especialmente, referente aos casos de tortura, desaparecimento
político e outras atrocidades cometidas entre as décadas de 1960-1980. A autora demonstra que
o caráter coletivo do direito à informação, está previsto na Constituição, de modo que é uma
discussão que mobiliza não apenas vítimas e seus familiares, mas a sociedade civil como um
todo.
A autora defende que outro marco de relevante importância no contexto de disputas pelo
acesso à informação resulta da criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em novembro
de 2011. Pretendia-se com os relatórios e investigações realizadas pela CNV a revisão da Lei
de Anistia (10.559/02) buscando incriminar e condenar os autores das violações de direitos.
Sabemos que este processo de revisão e julgamento dos responsáveis pelas violências cometidas
contra dignidade humana não aconteceu. No entanto, as pesquisas, denúncias e os relatórios
produzidos pela Comissão Nacional da Verdade foram essenciais para compor a luta por
direitos e dentre eles o de acesso à informação e abertura dos arquivos.
Assim como a Comissão Nacional da Verdade, Comissões Estaduais da Verdade foram
criadas em todo o país, somando forças na luta pela verdade e justiça. As Comissões Estaduais
também foram instrumentos fundamentais, uma vez que atuaram produzindo e recolhendo
documentos e informações sobre a ação dos agentes e os efeitos do período repressivo em seus
respectivos Estados. Vale lembrar que antes mesmo da implementação de uma política de
acesso, já havia movimentos liderados pela sociedade civil no sentido de reunir documentos
produzidos pelo Estado repressivo e torná-los públicos. A exemplo disso, Costa (2014)
identifica a atuação de advogados de presos políticos que apoiados pela Arquidiocese de São
Paulo, copiaram páginas de processos do Superior Tribunal de Justiça. Documentos estes que
compõe o rico acervo do Arquivo Edgar Leuenroth, resultado do projeto “Brasil Nunca Mais”.
(COSTA, 2014, p. 289). Este acervo está sob guarda da Universidade de Campinas, é aberto ao
público em geral e não possui nenhum tipo de restrição quanto ao acesso aos documentos.25

25
É possível acessar a documentação através de atendimento presencial no Arquivo, mas também alguns
documentos se encontram digitalizados e acessíveis no banco de dados do Brasil Nunca Mais. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/index.html acessado em 14/09/2020.
76

Ana Claudia Coelho (2016)26 nos apresenta um panorama bastante completo sobre as
leis e regulamentos que orientam a discussão e o direito ao acesso à informação a nível Federal
e Estadual. É de suma importância o domínio desse conhecimento para compreender os
percursos legais que foram travados até que chegássemos ao que temos hoje como direito. Sobre
a vasta legislação explorada pela autora, vamos nos ater apenas aquelas em que sua publicação
em Diário Oficial, impactaram e orientaram o trabalho desenvolvido pelo Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro.
Sendo assim, destaca-se a Constituição do Estado do Rio de Janeiro publicado em 1989
que de acordo com a autora veio reforçar a garantia ao acesso à informação de forma gratuita a
qualquer cidadão que por elas demonstram interesse. Ficava, pois, assegurado o direito à vida
privada, a honra e intimidade. No âmbito estadual a lei 2.027/92, dispunha sobre a transferência
dos documentos produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social do Estado do Rio
de Janeiro e os documentos da 2ª Seção do Estado Maior da Polícia do Estado para o APERJ.
Além disso, deixava claro a garantia de acesso a esses documentos por todos os cidadãos.
Somando à luta por direitos individuais, a lei 2.397/95, lei estadual de arquivo, regulamenta os
artigos 20º e 21º da CF-RJ quanto ao direito de todo cidadão ter acesso à informação a seu
respeito em posse do Estado.

Art. 20 - Todos têm direito de tomar conhecimento gratuitamente do que


constar a seu respeito nos registros ou bancos de dados públicos, estaduais e
municipais, bem como do fim a que se destinam essas informações, podendo
exigir, a qualquer tempo, a retificação e atualização das mesmas.
§ 1º - O habeas data poderá ser impetrado em face do registro ou banco de
dados ou cadastro de entidades públicas ou de caráter público.
§ 2º - Os bancos de dados no âmbito do Estado ficam obrigados, sob pena de
responsabilidade, a averbar gratuitamente as baixas das anotações em seus
registros, compilados das mesmas fontes, que originaram a anotação.
* Art. 21 - Não poderão ser objeto de registro os dados referentes a convicções
filosófica, política e religiosa, a filiação partidária e sindical, nem os que
digam respeito à vida privada e à intimidade pessoal, salvo quando se tratar de
processamento estatístico, não individualizado. (CR-RJ. 1995)

Foi de suma importância a promulgação de uma lei estadual de arquivo 2.395/1995.


Mesmo que tardiamente, três anos após a transferência da documentação do DOPS-RJ para o
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (1992), esse mecanismo legal serviu como
instrumento legitimador do direito de vítimas e familiares de mortos e desaparecidos de

26
Ana Claudia Lara dos Santos Coelho, defendeu seu trabalho de conclusão de curso em Arquivologia
no ano de 2016. Sob orientação do prof. Dr. Vitor Manoel Marques da Fonseca, Ana Claudia esmiuçou
cada detalhe da legislação em nível Federal e do Estado do Rio de Janeiro. Para saber mais acessar
o banco de dados da Universidade Federal Fluminense, onde o trabalho se encontra disponível para
consulta online em formato PDF. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/9374
77

acessarem os fichários da política em busca de respostas, provas e através destes documentos


pleitearem junto ao Estado os seus direitos. Outro dispositivo legal importante em relação ao
acesso, é o decreto estadual 44.012/2013, isto porque, em vista da promulgação da Lei de
Acesso à Informação em 2011, os Estados e Municípios tiveram que criar normas para
regulamentar e instaurar em a aplicabilidade da lei em suas respectivas administrações públicas.
Publicado em 2009, a Lei 5.562 ordena sobre a política de arquivos públicos e privados
do Estado do Rio de Janeiro. Deste modo, seus artigos versam diretamente sobre o trabalho
desenvolvido pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Deste modo, fica claro que é
dever do Estado a proteção e guarda de documentos de arquivo, reconhecendo desta maneira
que estes documentos são instrumentos essenciais de prova e de informação. Em que através
deles é possível que sejam efetivados os direitos e garantias individuais e coletivos. Além disso,
fica proibido a alienação, destruição ou qualquer ação que possa causar prejuízo e danos aos
documentos, consequentemente, impedindo que o próprio Estado e seus cidadãos tenham pelo
acesso às informações.
Já o decreto estadual de n. 43.156/2011 determina as formas de acesso aos documentos
produzidos por órgãos de inteligência e informação, nesse sentido acabam atravessando as
discussões em relação aos documentos do regime militar brasileiro (1964-1985). Este decreto
estabelece responsabilidades sobre os usos que são feitos das informações coletadas nos
arquivos. Deste modo, é indispensável ao acessar a documentação a assinatura de um termo de
responsabilidade e que sejam respeitados os direitos individuais sobre informações contidas nos
documentos e sua divulgação pública. Esse decreto é essencial por definir a integração dos
documentos relativos ao regime militar, sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, com os documentos que também versam sobre o período e que se encontram em outros
Estados, Municípios, Instituições e arquivos. Gerando assim uma rede de comunicação e troca
entre instituições de guarda, pesquisadores profissionais e a sociedade civil como um todo.
Para o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, outro decreto que aumentou a
visibilidade e agregou no sentido de reforçar a importância dos documentos que estão em sua
guarda, principalmente, aos relativos à ditadura brasileira de 1964, foi o de n. 44.113/2013. A
partir desse decreto há uma preocupação específica com o período do regime militar (1964-
1985) e com os documentos produzidos pelos órgãos de vigilância e controle. Assim,
reconhece-se o valor histórico e a importância social que o arquivo do Departamento de Ordem
Política e Social possuem. Bem como os arquivos referentes as informações e dados produzidos
pelos setores de inteligência da Polícia Civil e Militar do Rio de Janeiro.
78

Como forma de proporcionar maior acesso a esses documentos, ficou determinado que
o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro publicasse em seu site a descrição de toda a
documentação referente ao regime militar, contendo assim o assunto, as datas e dimensões dos
conjuntos documentais. Além disso, foi garantido que os titulares de documentos, pudessem
entrar com o pedido de restrição das suas informações ao público, encaminhado junto a uma
justificativa que era posteriormente analisada pelo diretor geral do APERJ.
Assim, percebemos através desta breve análise acerca do trabalho desenvolvido pelo
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, que a gestão e organização de arquivos é uma
tarefa árdua. Dependendo do contexto em que esses documentos chegam ao arquivo, toda a
lógica de trabalho é modificada para atender as demandas sociais advindas da abertura desta
documentação. O acervo do DOPS-RJ, possui uma característica simbólica por tratar de um
acervo que foi produzido no auge do aparelhamento do regime militar, produziam provas e
“verdades” que eram utilizadas contra militantes ou qualquer indivíduo contrário ao governo.
Foram arquivos forjados na intenção de criar evidências contra os inimigos internos,
legitimando ações violentas, interrogatórios infindáveis, declarações e depoimentos feitos com
base em pressão psicológica.
Com o fim da ditadura militar (1985), a luta encarada pela sociedade como um todo e,
especialmente, as vítimas diretas da repressão era outra. Uma guerra contra burocracia, contra
a sombra criada em torno do paradeiro de desaparecidos políticos, uma guerra onde as armas
passaram a ser “documentais”. Surgiu a necessidade de encontrar provas materiais que
pudessem provar sua inocência, garantir seus direitos negados durante o regime militar e romper
o silêncio imposto pelas perseguições e censura. Era chegado a hora de descortinar e escancarar
os abusos cometidos pelo Estado e seus órgãos de repressão, os documentos que serviram como
prova de incriminação são ressignificados. Passam a ser prova material das ações promovidas
pela polícia e seus agentes, são instrumentos que garantem legitimidade às demandas por
direitos e por justiça.
Iniciou-se também uma disputa no campo legal, pressões de familiares, vítimas e grupos
organizados para que Leis e Decretos fossem criados garantindo as bases legais para o acesso,
exigindo que documentos referentes ao período militar e seus órgãos de polícia, investigação e
inteligência fossem transferidos para arquivos públicos. Determinar, assim, o acesso à
informação como um direito fundamental de fato que pode ser recorrido e deve ser atendido
por todas as instituições públicas nas três esferas de poder.

Mais que direito constitucional de acesso à informação, a questão da verdade


também está permeada na discussão da luta pela justiça; por essa razão, é justo
79

que a geração presente e as futuras que não vivenciaram aquele período de


perseguições e violações conheçam a realidade da repressão imposta, tanto
para entender a história recente do nosso país, como para compreender que
muitas conquistas se devem à combativa luta de muitos resistentes à ditadura
militar que, por vezes e em muitos casos, pagaram com a vida ou sofreram
com toda sorte de torturas e perseguições praticadas pelo Estado repressor e,
mesmo assim, continuaram de forma combativa na luta para o
restabelecimento da democracia, ao contrário daquela parcela da sociedade
civil que foi conivente ou financiou a repressão política durante esse regime
no Brasil. (COSTA, 2014, p. 289)

2.2 - Armadilhas e Tensões- Os desafios enfrentados no acionamento de documentos


sensíveis.

O historiador que se debruça sobre fontes policiais sabe, a priori, que as narrativas e as
informações contidas nestes documentos são em certa medida controversas, uma vez que são
produzidas dentro de instituições estatais com objetivos bem definidos. Ou seja, em se tratando
de fichários investigativos nominais os documentos anexados, que fazem parte deste conjunto,
em sua maioria são forjados para qualificar e identificar esse indivíduo a partir de uma categoria
específica como, por exemplo, “suspeito”. Isso fica muito claro quando analisamos os fichários
e dossiês de presos e perseguidos políticos do regime militar brasileiro (1964-1985).
A crítica às fontes, exercício essencial e primordial do fazer historiográfico, é lugar
comum ao historiador que além de cotejar e contrapor estes documentos escritos com outros de
mesma natureza, por uma questão de método, deve estar também preocupado com a análise das
narrativas presentes nestes conjuntos documentais. Conhecer a trajetória política de um
indivíduo ou mesmo sua vida através de arquivos policiais já carrega por si só uma leitura e
compreensão localizadas em terreno perigoso. Isto porque, no senso comum, se há ficha na
polícia sobre determinado indivíduo significa quase naturalmente que este sujeito é de alguma
forma culpado, seja lá qual for a acusação. Por este motivo, há uma preocupação das
organizações e dos órgãos de guarda destes documentos em informar sob quais contextos os
depoimentos foram colhidos, como podemos observar no site do movimento Brasil: Nunca
Mais27:
Atenção:
Parcela expressiva dos depoimentos de presos políticos e das demais
informações inseridas nos processos judiciais foi obtida com uso de tortura e
outros meios ilícitos e não pode ser considerada como absoluta expressão da
verdade. Clique ok e boa pesquisa. (BNM, 2013)

27
No site do Brasil: Nunca Mais são disponibilizados os relatórios do projeto Brasil: Nunca Mais, os processos
do STM, acervo do Conselho Mundial de Igrejas e Comissão Justiça e Paz. Ao clicar para acessar estes
documentos, o sistema mostra um aviso preparado pelos organizadores do projeto alertando sobre o contexto de
produção dos documentos. Desta forma, deixa claro ao pesquisador que é imprescindível uma leitura crítica e
atenta aos documentos.
80

Sem dúvida que o historiador experiente não se deixa levar por esses enganos, seu olhar
sobre o documento é desconfiado, sabe que a produção narrativa tem uma intencionalidade,
mesmo quando se trata de um relato de vida ou de um depoimento espontâneo sobre si ou sobre
algum fato. Quando analisamos documentos de polícia, há pelo menos dois caminhos de
interpretação e compreensão desses discursos, por um lado a linguagem técnica e os arranjos
burocráticos que são desenvolvidos para conferir lógica e legitimidade as acusações e
investigações. É indispensável que se observe atentamente os procedimentos adotados pela
instituição nos critérios utilizados para identificação dos seus “suspeitos”, os meios utilizados
para conseguir informação, os documentos anexados para compor o aparato legal e constituição
de provas. Isso permite que o historiador ou pesquisador sobre o tema, identifiquem as
estruturas das ações e a partir delas desenvolva o exercício crítico a estas fontes.
Enquanto atividade estatal encarregada de ajustar a liberdade e a propriedade
dos indivíduos aos chamados interesses coletivos, o poder de polícia
(preventiva ou repressiva) se caracteriza por um sentido essencialmente
negativo que, por extensão, atinge também os produtos residuais de seu
funcionamento. É o que ocorre com os documentos resultantes das ações
persecutórias empreendidas por serviços de inteligência durante os períodos
totalitários, alimentando sistemas de informação (sobre pessoas, grupos e
organizações) que acabam por se transformar em mecanismos de auto
sustentação do próprio regime. (CAMARGO, 2002, p.5-6)

Outra alternativa, para além da análise da construção de uma gramática técnica e oficial
desenvolvida pelos órgãos da repressão, é estudar os depoimentos prestados pelos investigados
identificando neles os possíveis traços de veracidade com as atividades que eles
desempenhavam nas organizações das quais faziam parte, sua atuação política, as
características comuns de comportamento diante dos órgãos de repressão compartilhadas e
definidas para situações de confronto e interrogatórios. O depoimento destes sujeitos, podem
ser lidos pelo historiador e pelo pesquisador a partir da perspectiva de uma estratégia narrativa
compartilhada no sentido de se defender e defender seus companheiros de luta. Mas para isso,
é importante que fique claro em quais condições estes sujeitos foram colocados a falar, se foram
declarações prestadas em situação de tortura física ou em interrogatórios preliminares.

Dois depoimentos de uma mesma pessoa sobre um mesmo fato têm qualidades
distintas se se encontram nos arquivos de uma delegacia de polícia ou nos
arquivos de um tribunal de justiça. A marca do órgão produtor, nesse como
em qualquer caso, faz toda a diferença, sem retirar de um ou de outro, além
dos atributos de legítimos e autênticos, o valor último de prova. (CAMARGO,
2002, p. 9)

A essa característica complexa dos documentos de polícia política, Ana Maria Camargo
(2002) apresenta a crítica realizada por alguns autores sobre a legitimidade das informações
81

contidas nos documentos de ordem policial. Dentre eles destaca-se o argumento de que as
informações colhidas pelos órgãos de informação e investigação sobre os sujeitos seguem
caminhos controversos, onde muitas vezes as informações são manipuladas, inexatas e até
mesmo enganosas. Sendo assim, questionada a legitimidade dos métodos utilizados para reunir
informações estes documentos não deveriam ser abertos. Contrapondo a essas afirmativas,
Camargo (2002) afirma que o método historiográfico e o olhar crítico do historiador ou
pesquisador atentos a esses falseamentos propositais, tornam estas armadilhas em instrumentos
de análise e reflexão.
Segundo a autora, os documentos de arquivo especialmente os que provêm de órgãos
de polícia possuem uma característica peculiar. Um documento, uma ficha ou uma página
documental, a depender da questão abordada pelo pesquisador, pode ser analisado de forma
individual. No entanto, este exercício fica comprometido, porque as informações contidas no
documento fazem parte de uma lógica discursiva construída a partir do conjunto documental.
Assim, para conseguir compreender o contexto e a intenção, mesmo que subjetiva no caso de
documentos sobre pessoas, dos agentes dos órgãos de informação e polícia, é importante que
seja identificado a intencionalidade por trás do acúmulo destas informações e quais são os
discursos e sentidos fabricados a partir desta manipulação intencional dos documentos.
Partir de uma premissa de a análise dos documentos do DOPS-RJ buscando perceber as
formas de resistência empregadas pelos sujeitos no âmbito das práticas políticas nas ruas, nos
sindicatos, nas organizações de esquerda e nos grupos dissidentes em geral, é uma outra forma
de qualificar as potencialidades destes documentos e a importância da sua preservação no
arquivo. Maria Luíza Carneiro (2005), defende que estudar as polícias políticas é compreender
um dos mais importantes órgãos de atuação do Estado no que se refere a repressão da sociedade
e seus indivíduos no mundo moderno. Realçando que estes documentos revelam também a
possibilidade de identificar as brechas encontradas por militantes para resistir e lutar contra a
opressão.
É emblemático nas análises desenvolvidas pelos autores que estudam os arquivos de
polícia política, ressalvas quanto ao teor ideológico e intencional dos documentos. Carneiro
(2005) apresenta como componente principal do trabalho com este tipo de acervo, a
compreensão de que são resultado de um aparato burocrático e investigativo moderno do Estado
desenvolvido para garantir o controle social em diversos níveis. Em outras palavras, as
investigações e produção de dossiês nominais eram construídos também para gerar o controle
social através do medo. O cidadão era observado e podia a qualquer momento ser acusado de
82

subversão ou de atividades suspeitas, bastava uma denúncia anônima e uma prova, ainda que a
legalidade desta prova pudesse ser questionada.
Nesse processo de domesticação das massas, termo utilizado pela autora, os documentos
reunidos formavam as provas incontestáveis, na lógica de legitimação utilizada pela polícia, e
construíam a imagem que era necessária para qualificar como perigosos os considerados
suspeitos e os grupos que eram historicamente marginalizados. Nesse processo de crítica e
análise dos documentos de polícia política, Carneiro (2005) destaca que a leitura das fontes
permite identificar três formas de discursos presentes nos arquivos; O discurso da ordem -
aquele que é produzido pelas polícias políticas e que legitimam suas ações de controle e de
repressão – O discurso da desordem – localizado nas formas de resistência elaboradas pelos
sujeitos considerados subversivos dentro das organizações, em suas práticas cotidianas e nos
depoimentos prestados para polícia- O discurso colaboracionista- neste caso chama atenção o
papel da imprensa como apoiadora e legitimadora das ações do Estado, bem como de delatores
civis que atuavam em conjunto com a polícia.
A autora apresenta que no trabalho com estes arquivos é importante que seja identificado
o processo de gerenciamento das fontes para construção do discurso policial. Deste modo, é
encontrando o fio da meada que podemos refazer e compreender as articulações práticas que
envolviam a criação de provas a partir do raciocínio policial. “Neste caso, quem “monta” a
história oficial é a autoridade policial que, com base na observação e na materialização do crime
(provas concretas), “constrói” realidades.” (CARNEIRO, 2005, p.2)
A abertura dos documentos do DOPS-RJ garante, desta forma, um meio de descobrir e
revelar o arcabouço que sustenta o discurso oficial construído pela polícia política que estava
sobremaneira ligado às ações do governo militar. Além disso, muito mais do que um recurso
para compreensão das práticas institucionais, fica evidente que a análise destes documentos nos
permitem acessar o passado através de chaves que revelam e expandem as diversas formas de
resistência e seus atores, as minorias que também eram perseguidas e desmistificar um discurso
oficial que foi construído como base acusatória legítima.
Sabendo que os discursos e as informações presentes nos arquivos da Polícia Política,
referente a presos políticos, suspeitos e investigados, são construções políticas que amparavam
as ações de repressão. Nossa preocupação como historiadores, não está no encontro da verdade
sobre os fatos, nosso trabalho é árduo e requer reflexão, atenção e como detetives buscamos as
pistas e rastros que nos permitem, através de um longo exercício de análise, aproximar ao
máximo dos acontecimentos passados.
83

Mariana Joffily (2014) parte de um pressuposto um pouco diferente dos caminhos


seguidos por Camargo e Carneiro (2005). Segundo ela, com a abertura dos documentos da
ditadura e com os projetos de integração destes conjuntos documentais no Memórias Reveladas
foi possível que tivéssemos acesso mais amplo aos arquivos. Entretanto, ela defende que além
das possibilidades promovidas por esse novo contexto, é preciso que se analise também as
restrições e as dificuldades em desenvolver pesquisa nesse tipo de arquivo.
O primeiro ponto elencado pela autora, relaciona-se a grande quantidade de documentos
que fazem parte destes acervos. Isto porque, esses arquivos são compostos por documentos que
são produzidos pelas polícias políticas e, também, aqueles que foram intencionalmente reunidos
para compor os dossiês e fichários. Sendo importante nesse processo, conseguir identificar
quais documentos são produzidos na lógica burocrática da instituição, quais foram recolhidos
de forma sistemática e intencional, além dos documentos que produzidos por outros órgãos de
investigação e inteligência foram incorporados ao arquivo. Segundo Joffily (2014) isso é
possível se forem observadas as datas cronológicas dos documentos e suas características
formais, desde que nesse processo de seleção e separação das fontes, seja respeitado a
organicidade e o documento seja lido de acordo com sua relação com o conjunto documental
do qual faz parte.
Joffily (2014) propõe que além de uma análise geral dos documentos, é preciso que o
pesquisador fique atento a critérios diplomáticos presentes nas fontes. Em outros termos, todos
registros, carimbos, assinaturas, formatação e formato dos textos, a linguagem utilizada que nos
ajudam a identificar que documento se trata e qual órgão o originou. A autora faz suas
observações baseadas na experiência de pesquisa dos documentos produzidos pela Operação
Bandeirantes- OBAN. No entanto, ainda que se tratando de órgãos diferentes, as sugestões e o
conhecimento adquirido nos servem como modelo para pesquisa nos documentos do DOPS-
RJ.
Esse estudo minucioso sobre o documento e as marcas presentes, podem apontar para
as manipulações feitas das informações. Era comum dentro da lógica de cooperação e
informação entre órgãos de inteligência que os documentos fossem estudados e observados
pelos seus agentes. Assim, eram feitas anotações, rubricas e coletas de dados específicos que
permitiam que os depoimentos prestados por presos políticos fossem confrontados com as
fontes. Mesmo quando o preso fazia um malabarismo narrativo na tentativa de enganar os
interrogadores e não entregar os aparelhos e os planos do partido, vez ou outra deixavam
escapar informações que permitiam que os agentes, através do grande número de dados que
possuíam, desvendassem as mentiras contadas.
84

Sobre os testemunhos prestados por presos políticos, observa-se que não ficam
registrados sob quais condições estes sujeitos são postos a falar. A legalidade encontra-se
ancorada na transcrição da narrativa do indivíduo que está sendo intimado, na assinatura do
depoente, a data e o cabeçalho do documento. Não fica, pois, registrado se o suspeito ficou
horas preso na sala, se sofreu algum tipo de violência física ou psicológica. Neste caso, Joffily
(2014) questiona como identificar as violações cometidas pelos órgãos de polícia, respondendo
que a saída para essa lacuna são os relatos das próprias vítimas através de denúncias, como as
disponíveis nos relatórios do projeto Brasil: nunca mais. Nestes relatórios é possível encontrar
os depoimentos prestados pelas vítimas, sendo possível então confrontar os dados presentes
nestes relatos e os registrados nos documentos oficiais.

Mesmo porque, as fontes tendem a encaminhar nossa visão para determinados rumos,
nem sempre os mais indicados para chegar aos resultados desejados. Se os
interrogatórios preliminares e demais documentos que os cercam, por representarem
um dos núcleos da atividade repressiva e terem sido majoritariamente produzidos sob
tortura impõem-se aparentemente como material adequado para compreender as
engrenagens da repressão política, não é tarefa simples escrutiná-los. (JOFFILY,
2014, p. 11)

O rigor metodológico também é defendido por Dias (2010), na medida em que o autor
compreende que a leitura das fontes policiais apresenta duas perspectivas distintas. A primeira
ligada aos acontecimentos que levaram a quebra da conduta legal, no sentido de terem os
agentes dos órgãos de informação recorrido a estratégias ilegais para obtenção de dados. Já a
segunda perspectiva, revela-se como consequência da primeira, que foram os resultados das
ações dos agentes no sentido de manipularem e construírem de acordo com seus interesses as
verdades sobre os acontecimentos. O autor concorda com as proposições defendidas pelas
autoras acima citadas, ou seja, percebe que mesmo sendo documentos produzidos pela polícia
com intuito incriminador estes documentos são ricos para se estudar as estratégias de
resistência.
Na esteira das discussões sobre os usos de documentos produzidos por órgãos
repressivos, instituições públicas, documentos de empresas e grupos que cooperavam com o
regime no período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), esbarramos com a questão da
“verdade”. Nesse sentido, Dias (2010) é bastante enfático, o autor identifica que a fluidez na
compreensão da verdade dos discursos, é algo que nos permite perceber que ela é evocada no
que foi intencionalmente revelado, naquilo que não foi dito ou o que por uma estratégia
narrativa foi deformado. Para o autor, a verdade se apresenta como a manifestação das relações
desiguais entre o órgão repressor e os réus. A verdade construída pelos agentes repressivos para
legitimar as ações promovidas contra os indivíduos acusados de práticas subversivas, assim
85

como a verdade concebida pelos prisioneiros em seus depoimentos buscando não entregar
informações que comprometiam as atividades dos seus grupos e companheiros.

Nos dois casos, o "zelo" na busca pela verdade (ou a verdade que se queria produzir),
forjada por métodos coercitivos, legou farta documentação a respeito daquelas
experiências. Claro que, no caso da repressão promovida pela ditadura militar, outras
fontes, incluídos os depoimentos de muitos ex-militantes, encontram-se acessíveis,
mas as informações dispostas nos processos são fundamentais. Primeiro, para
identificar a natureza do método de produção dos inquéritos e punições. Segundo, para
recuperar informações e pistas que possam alimentar a investigação. As duas
dimensões estão presentes nos processos e inquéritos investigados. (DIAS, 2009, p.
162)

A discussão sobre verdade histórica ou a relação entre o que se compreende como


verdade e discurso histórico não nos cabe aqui. No entanto, a questão da verdade assume
interpretações distintas quando observadas no fazer arquivístico e historiográfico. De maneira
sucinta, podemos concluir que a verdade do documento de arquivo é a sua capacidade de
externar e refletir o seu produtor. Em outras palavras, os signos e sinais presentes no documento
nos permitem identificar de onde, qual setor, quem, quando, porque e para que determinado
documento foi criado. Isso só é possível, pela característica burocrática e normativa que as
instituições públicas e privadas possuem no Brasil, característica esta que é herdeira de um
Estado cartorial.
Dias (2010) aproxima sua análise dos métodos utilizados por Carlo Ginzburg (2006) no
que tange ao tratamento de fontes judiciais. Nesse caso, o autor respeita os limites temporais e
contextuais de que tratam os documentos, mas percebe que ambos possuem algumas
características semelhantes e que por isso apresentam os mesmos cuidados metodológicos. Se
por um lado Ginzburg (2006) utilizou-se de documentos inquisitoriais para compreender, a
partir do julgamento do moleiro Menocchio, a sociedade italiana do sec. XVI e identificou o
caráter circular da cultura. Carlo Ginzburg (2006), afirma que é a capacidade de leitura dos
documentos por cima dos ombros do inquisidor, percebendo o processo nos seus meandros que
o permitiu observar e identificar a complexidade em torno da questão cultural.
O trabalho com fontes de Polícia Política, como defendemos desde o início desta sessão,
depende desse exercício e cuidado metodológico. O documento tem a capacidade de nos
mostrar muito mais do que está escrito, a observação do que foi transferido do discurso oral
para o textual, as possíveis perdas propositais e intencionais de quem datilografava, as perguntas
realizadas são pistas ou, nas palavras de Ginzburg (2007), sinais. Estes sinais podem ser
caminhos interessantes para compreensão das lacunas ainda presentes sobre os acontecimentos
que marcaram a sociedade brasileira no regime militar (1964-1985), nos ajudando a resolver
86

questões pendentes sobre desaparecidos políticos, sobre o funcionamento do Estado e seus


agentes no controle e produção de informações etc.
As tensões ao ter acesso a esses arquivos são múltiplas e impactam tanto os sujeitos que
acessam essa documentação na busca por seus direitos, familiares de desaparecidos políticos,
vítimas que buscam indícios materiais que legitimem suas demandas por direitos. A luta por
direitos encampada por vítimas possui uma trajetória dolorosa que pelas circunstâncias parecem
não ter fim. Como se não bastasse terem sofrido as mais diversas formas de violência, em alguns
casos pagando com a própria vida, promovidas com a conivência do Estado. Estes sujeitos e
seus familiares, com o processo de redemocratização, precisaram vencer a burocracia e as
barreiras legais criadas por este mesmo Estado para terem seus direitos enquanto cidadãos
reconhecidos e garantidos. Direito ao luto para aqueles que perderam seus familiares e precisam
de respostas sobre quais circunstâncias foi provocado o desaparecimento, indenizações que
podem ser feitas financeiramente ou através de ações de reparação e informação.
No campo das disputas políticas, enfrentar a burocracia estatal não é tarefa fácil. Foram
estabelecidos critérios legais que dificultaram o acesso aos direitos, na medida em que a
comprovação da legitimidade da demanda depende/ dependia de documentos oficiais. Como
conseguir justiça em forma de indenização, quando se trata de esposa ou dependente direto de
um desaparecido por motivos políticos? Como não há corpo, não há crime e não existe também
atestado de óbito. Quantos familiares além de lidar com a dor de terem perdido seus entes
queridos, ainda tiveram que lidar com a resistência do Estado em reconhecer que ceifou a vida
de diversos cidadãos?
Para conseguir provar que eram sujeitos de direito à indenização, no caso de pedidos
feitos à Comissão Especial de Reparação28, por exemplo. Vítimas e familiares tinham que
recorrer aos arquivos do fundo Polícias Políticas em busca de documentos que pudessem provar
os motivos que levaram a demissões, afastamentos, prisões e desaparecimento. Muitas vezes
nessa luta por respostas, a busca realizada em arquivos se dava em um momento em que muitos
ainda não tinham podido viver o luto, sendo uma realidade encarada por muitas famílias. Nesse
contexto turbulento, o olhar que se lança ao arquivo é ambíguo, ao mesmo tempo que a
objetividade dos fatos relatados nos documentos provam e legitimam as demandas por direitos,
são registros que ao serem reinterpretados e ressignificados podem ser lidos como indícios das

28
A Comissão Especial de Reparação criada através da lei 3.744/2001, previa o pagamento de indenização
pecuniária simbólica a pessoas mantidas presas e torturadas em órgãos do Estado do Rio de Janeiro durante 1 de
abril de 1964 à 15 de Agosto de 1979.
87

violências cometidas por agentes do Estado que agiam dentro de um regime legal contra os
direitos humanos.

Se existe consenso quanto à ideia de que os arquivos desempenham um


importante papel na sociedade contemporânea, inclusive como ferramenta
para o exercício da democracia e dos direitos civis, tal importância é
particularmente acentuada quando se trata de documentos que, tendo
sobrevivido aos regimes repressivos que lhes deram origem, deixam de
instrumentalizar as instituições que os acumularam (a polícia política, os
serviços de inteligência, as forças armadas, os tribunais de exceção) e passam
a surtir o chamado efeito-bumerangue, isto é, são usados como prova dos
abusos então cometidos, para fins de reparação. (CAMARGO, 2009, p. 425)

Para os atingidos, era mais uma batalha que se instaura contra o Estado e nesse caso
novamente se encontravam em posição de desvantagem. A anistia ampla e irrestrita contribuiu
para as injustiças contra as vítimas dos crimes cometidos pelos agentes da repressão. Isso
porque, ao buscarem relativizar e minimizar a barbárie amplamente promovida, através de atos
institucionais, criou-se um impeditivo legal para que os crimes fossem julgados e os culpados
condenados. Segundo Gallo (2012):

Na visão dos que sofreram e foram vítimas há ainda um caminho a percorrer


para que seja posto um fim a esse caso: punir os torturadores. Tal fato, na visão
de muitas vítimas da ditadura, não seria revanchismo, mas uma questão de
justiça, ou seja, seria uma condição sine qua non num país regido por uma
democracia em vias de consolidação e signatário de leis internacionais que
condenam a tortura - discussão extremamente debatida nas comissões de ex-
presos políticos, assim como de familiares de mortos e desaparecidos. (apud
AYDOS; FIGUEIREDO, P. 411)

A própria categoria de vítima é um elemento a ser considerado no campo das disputas


políticas, é um termo polissêmico que tem seu status ressignificado de acordo com o contexto
histórico e os usos políticos e sociais feitos a partir de sua compreensão. Ser “vítima da
ditadura” engloba portanto sujeitos e grupos que passaram a mobilizar esse termo de acordo
com a possibilidade e com a capacidade que essa categoria possui na construção de uma
narrativa localizada desses sujeitos enquanto atores e agentes que lutaram e continuam lutando
contra o regime militar instaurado em 1964 e seus desdobramentos até hoje.
Na esteira dessa discussão, temos a análise desenvolvida por Aydo e Figueiredo (2012),
em que os autores através de relatos de ex-militantes e presos políticos no Rio Grande do Sul,
se propuseram a compreender como a categoria de vítima era acionada por estes sujeitos. A
partir dos testemunhos foi estabelecido um recorte temporal, desde a década de 1960 até os anos
2000 em que os autores demonstram que num primeiro momento não havia uma noção
consciente entre os que estavam na luta contra o regime repressor de que eram vítimas do
Estado, década de 60. Houve uma mudança nos anos 70, a partir das buscas de familiares de
88

mortos e desaparecidos que passaram a compor como grupos englobados por essa categoria.
Nos anos 80, a subjetivação do conceito se deu através de um processo de reflexão e
reconhecimento de si, influenciado pela psiquiatria e a patologização do trauma. Nos anos 90,
a categoria foi sendo politizada e utilizada como forma de luta pelo reconhecimento e pelas
demandas por direitos. Já nos anos 2000, no contexto de consolidação do processo de
redemocratização e a atuação de ex-militantes na cena política nacional, o termo ganhou outro
significado de vítima-herói, na palavra dos autores.
Apresentaremos em linhas gerais esse quadro explicativo criado pelos autores. Assim,
partindo do pressuposto do início das lutas políticas nos anos 60 e 70, o argumento comumente
utilizado por ex-militantes e presos políticos diz respeito a dificuldades enfrentadas por eles
para compreenderem seus lugares sociais naquele contexto de violações, violência e torturas.
Compreendia-se que as prisões e as consequências delas, ainda que dramáticas, eram um
caminho “natural” da luta política, passar pela experiência da tortura segundo os relatos
analisados, era uma passagem entre a militância ativa e a prisão (AYDE. FIGUEIREDO, 2012).
Ou seja, nos primeiros anos do regime não fazia sentido nas narrativas e no campo político de
atuação para os ex-militantes a concepção de que fossem ou estavam sendo vítimas, essa era
uma categoria que não tinha espaço e não era reivindicada nos discursos.
Esse cenário começa a mudar em meados dos anos 70, quando exilados políticos passam
a utilizar o conceito de vítima com objetivo de denunciar internacionalmente e apresentar outra
forma de luta contra o Estado. Deste modo, foi-se construindo um sentido político para o termo,
que ainda assim não era aceito e incorporado por todos os sujeitos que participavam da luta
contra o governo. Como dito anteriormente, a luta política não era formada por um todo
homogêneo, as diferentes frentes também eram perceptíveis quando se analisa as formas de
atuação distintas entre presos políticos de correntes e grupos políticos diferentes. No entanto,
um elemento importante nesse contexto, que são os familiares de presos políticos, nos
depoimentos foi possível perceber que mesmo não se compreendendo ainda dentro da categoria
de vítimas, os familiares surgem como sujeitos que por sofrerem direta ou indiretamente
tornaram-se vítimas do regime repressor (AYDE; FIGUEIREDO, 2012).
Ayde e Figueiredo (2012), identificam ainda outro grupo que por suas características
podem ser incorporados na categoria de vítima, que são os dissidentes da luta política. Os
autores afirmam que nesse caso há pelo menos duas formas de compreender esses sujeitos, que
para fugir da tortura e perseguição entregaram e passaram a atuar como colaboradores do
regime. Por um lado, ao traírem os ideais políticos e começarem a colaborar com os agentes de
Estado na obtenção de informações, estes sujeitos foram excluídos e rejeitados pelos grupos de
89

esquerda e não possuíam mais um lugar de atuação e significação nestes grupos. Além disso,
por estarem em sua maioria presos, foram também privados do convívio social mais amplo.
Um elemento fundamental que contribuiu para a dificuldade de compreensão da
categoria de vítimas por parte da sociedade, era a atuação da imprensa que agindo como porta-
voz e elemento legitimador da ditadura (1964-1985), só dava espaço na sua programação para
indivíduos que iam a público demonstrar arrependimento por terem lutado contra o governo.
Ou seja, a ditadura militar construía a dualidade através da imprensa e da
mídia, acionando, assim, ferramentas poderosas na disputa simbólica de
nomeação de quem era contra ou a favor da construção da nação brasileira,
contribuindo, assim, também para que a noção de “vítimas da ditadura” não
se construísse no espaço público.(AYDE; FIGUEIREDO, 2012, p. 401)

Nos anos 80, há uma virada política e inicia-se o processo de redemocratização da


sociedade brasileira em um contexto de transformações significativas provocadas pelos
rearranjos políticos e sociais. Era um momento de retorno dos exilados, presos políticos eram
soltos após a Anistia, uma reconfiguração da sociedade era posta em prática. Os autores
identificam, a partir dos estudos de Sarti (2011), a influência dos estudos da psiquiatria ao
elaborar o diagnóstico do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, como uma realidade vivida
por estes sujeitos (apud AYDE, FIGUEIREDO, 2012) para uma nova configuração da categoria
de vítima. Assim, através de um diagnóstico e dos saberes de si, bem como a compreensão
desses processos vividos como resultado de violência cometida pelo Estado, a categoria de
vítima ganha uma legitimidade baseada no discurso psicológico. Identificando que estas
pessoas sofreram e sofrem por uma existência que foi fragmentada, “traumatizada”.
Contribuindo para essa ressignificação política da categoria de vítima, às famílias de ex-
presos e desaparecidos políticos que assumem o papel na luta por reivindicações de informações
sobre os acontecimentos que levaram ao desaparecimento forçado de seus familiares. É através
das lutas por informações travadas pelas famílias e por ex-presos políticos, que a categoria de
vítima assume uma conotação política definida. Passa a ser um instrumento que localiza e define
a atuação destes grupos que pressionavam e continuam pressionando o Estado brasileiro, para
que se faça justiça.

Em síntese, mesmo com um reconhecimento social já aparente sobre a


vitimização dos ex-presos e torturados políticos na década de 1980, dentre os
militantes políticos poderíamos diferenciar as vítimas que subjetivaram de
forma mais enfatizada a experiência traumática e concebiam-se como
“sujeitos torturados” (AYDOS, 2002), fragmentados tanto pessoal como
politicamente pelos dados físicos, psíquicos e morais sofridos, de forma muito
mais verbalizada pelas mulheres; e as ‘vítimas’ que buscavam enfatizar que
todo o risco e problemas por que passaram foi em nome do Partido, da
resistência e da redemocratização. Dentre essas últimas “vítimas”, nesse
momento transformadas em heróis, estavam os camaradas que “tombaram
90

lutando contra a ditadura militar”, ou seja, que foram assassinados ou se


suicidaram. (AYDOS; FIGUEIREDO, 2012, p. 405)

A década de 1990, foi o período em que se verificaram as primeiras investidas do


governo no sentido de reparar os que haviam sido vítimas das violências e violações de direitos
humanos durante o regime militar (1964-1985). Foi criada a lei 9.140, que concedia por parte
do estado o reconhecimento de morte presumível de desaparecidos durante a ditadura. As
reivindicações de direitos, balizadas pela categoria de vítima incorporada pelos familiares e ex-
presos políticos, ganham força nesse período. Além disso, os autores percebem que a eleição
de partidos de esquerda na década de 1990, criou o ambiente para que a categoria de vítima
fosse utilizada nos discursos como forma de identificação e localização desses candidatos
dentro de um posicionamento político bem definido.
No início dos anos 2000 com a mudança política protagonizada pela eleição de
militantes de esquerda, que foi se desenhando desde a década de 90, Ayde e Figueiredo (2012)
identificaram que, conforme o reconhecimento e empoderamento desses sujeitos foi se
fortalecendo, alguns grupos passaram a compreender-se como vítimas-heróis valorizando as
experiências e suas trajetórias políticas e de seus companheiros de luta. Entretanto, com os
avanços políticos no sentido de reparação às vítimas, lei 10.559/2002, essa glorificação do
passado de luta contra ditadura acabou adquirindo para alguns militantes, segundo relato dos
autores, um caráter ambíguo. Isso se dá por conta dos pedidos de indenização, porquanto para
alguns é como se estivessem entrando em acordo com o Estado e abrindo mão do passado de
luta que viveram. A reparação monetária poderia ser entendida como monetarização da dor, que
por seu caráter subjetivo não é capaz de ser mensurado.
No entanto, neste momento, a capitalização política e a construção heroica da
categoria de vítima da ditadura são colocadas em xeque frente ao fato de uma
possível indenização financeira. São muitos os relatos de ex-presos e
perseguidos políticos que enfatizam o conflito desses sujeitos frente à
ambiguidade de ter na Lei o “reconhecimento dos erros políticos do Estado”,
o qual admitiria com a sua promulgação que prendeu e torturou inocentes
simplesmente por se oporem ao regime militar; mas, ao mesmo tempo, o
desconforto de receber dinheiro por conta de danos que não podem ser
ressarcidos financeiramente. (AYDO; FIGUEIREDO, 2012, p. 409)

Portanto, quando pensamos nas tensões provocadas pelo acesso aos arquivos de Polícia
Política, principalmente, quando analisamos a partir de uma experiência das vítimas da ditadura
(1964-1985) entramos num campo de terreno arenoso. Primeiro porque não há homogeneidade
nas interpretações e usos políticos do termo, apesar de construída e compartilhada
coletivamente, a experiência subjetiva que diz respeito ao sujeito é de caráter individual e só
acessível quando ele mesmo racionaliza e verbaliza. Segundo, não podemos afirmar como cada
91

um dos grupos que reivindicam a categoria de vítima experimentaram esse processo de


reconhecimento e pedido de indenizações ao Estado utilizando documentos dos arquivos do
fundo de Polícias Políticas como instrumentos de prova.
Os relatos e depoimentos das vítimas nos ajudam a entender o caminho percorrido por
estes sujeitos, por isso é tão importante que existam espaços de acolhimento, que sejamos um
canal de escuta. Sendo assim, percebemos que as pesquisas e os trabalhos que foram
desenvolvidos, a partir da primeira década dos anos 2000, pela Comissão Nacional da Verdade
(CNV), pelas Comissão Estadual da Verdade Rio (CEV-Rio) e pela Comissão de Familiares
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e grupos de vítimas e familiares, que lutam na
defesa pelos direitos humanos, verdade e justiça construíram um rico acervo durante todo esse
período de luta e em seus relatórios finais29. Dentre os documentos acionados pelas Comissões
encontram-se inúmeros depoimentos de vítimas, que ao serem contrapostos às narrativas
encontradas em documentos oficiais, como os do fundo de Polícias Políticas do APERJ,
possibilitam que venham à tona registros memorialísticos que não se encontram refletidos nos
documentos produzidos por órgãos estatais.
Portanto, é importante nos sensibilizarmos com as lutas por eles travadas,
compreendendo como todo esse processo de busca por respostas e por justiça interferem em
suas vidas. Denunciar e somar esforços no sentido de cobrar um posicionamento menos
apaziguador do Estado, se torna uma obrigação moral de todos nós que de uma forma ou de
outra devemos nossos direitos e liberdade aos homens e mulheres que lutaram e continuam
lutando por uma sociedade mais justa e igualitária.

29
A Comissão Nacional da Verdade, Comissão Estadual da Verdade- Rio foram criadas em 2011, em decorrência
de um contexto de disputas sobre o passado ditatorial brasileiro (1964-1985). Pressões Internacionais e internas
pelo esclarecimento sobre mortes e desaparecimento durante a ditadura militar, responsabilização do Estado
brasileiro pelas graves violações de direitos cometidos naquele período. As Comissões somaram esforços para
investigar e apontar na medida do possível as verdadeiras causas dos desaparecimentos, além de ter possibilitado
a identificação de locais clandestinos de tortura, bem como a rede de colaboração montada pelos órgãos
repressivos. A luta dos familiares de mortos e desaparecidos, por sua vez, é bastante anterior aos trabalhos das
Comissões. Iniciaram suas buscas ainda na década de 1970, em plena ditadura militar, buscando incansavelmente
informações sobre seus entes queridos. Falaremos mais sobre os trabalhos da CNV, CEV-Rio e da luta de
familiares de presos e desaparecidos políticos no terceiro capítulo.
92

CAPÍTULO 3

OS ACIONAMENTOS DOS DOCUMENTOS DO FUNDO DE POLÍCIAS


POLÍTICAS- COMISSÃO ESPECIAL DE REPARAÇÃO, COMISSÃO NACIONAL
DA VERDADE E COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE RIO.

3.1 - Comissão Especial de Reparação, Lei 3.744/2001- Os arquivos do fundo de Polícias


Políticas como prova da violência cometida pelo Estado durante a ditadura militar (1964-
1985).

As discussões sobre meios de reparação e responsabilização do Estado brasileiro contra


os crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985), estavam cada vez mais acaloradas
no contexto brasileiro, sobretudo, no final da década de 90 e início do século XXI. Pressões
internas e internacionais movimentavam o campo de disputas por direitos, pela verdade e pela
justiça. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, antes mesmo da criação da Comissão
Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade Rio, foi editada uma lei, em 2001,
visando garantir indenização pecuniária às vítimas e/ou familiares de presos políticos.
A Lei nº 3.744, aprovada em 21 de dezembro de 2001, no então governo de Anthony
Garotinho, dispõe sobre direito de indenização às pessoas que em decorrência de acusação de
atividade política foram presas e torturadas por órgãos do Estado entre 1º de abril de 1964 e 15
de agosto de 1979. A criação da Lei previa uma indenização simbólica máxima no valor de R$
50.000.00, que seria determinado pela Comissão Especial de Reparação. A composição da
Comissão Especial de Reparação (CER) foi determinada na lei da seguinte forma:

§ 1º - Para a composição da Comissão Especial, serão obedecidos os seguintes


critérios de indicações:

I – 04 (quatro) membros indicados livremente pelo Governador do Estado do Rio de


Janeiro;

II – 02 (dois) pela Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro – OAB/RJ;

III – 01 (um) pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro;

IV – 01 (um) pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro – TNM/RJ;

V – 01 (um) pela Associação Brasileira de Imprensa – ABI (LEI 3.744/2001)

A formação da Comissão Especial tinha como prazo previsto em lei, 60 dias após a
publicação da mesma, de modo que findo esse prazo a Comissão deveria estar efetivamente
instalada e iniciados os trabalhos. Além disso, havia sido definido que a Comissão teria 12
93

meses para avaliação e conclusão dos processos de pedido de reparação. Ficava a cargo do
Governo do Estado determinar o órgão em que a Comissão funcionaria, e a indicação do
Presidente da Comissão. Prevista para começar em janeiro de 2002, ao contrário do que se
esperava, a Comissão ainda não tinha sido formada e o prazo para o início dos trabalhos estava
correndo. Somente em outubro de 2002, a então governadora do Estado do Rio, Rosinha
Garotinho, assinou o decreto 31.995/2002, que regulamentou a lei 3.744/2002.
A luta para a formação da Comissão Especial foi grande, porque mesmo com lei
sancionada e com decreto regulamentando a lei, nada ainda tinha sido feito no que se refere ao
atendimento aos dispositivos legais aprovados. Em junho de 2003, o deputado estadual
Edmilson Valentim, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), abriu um requerimento de
informação nº102/2003, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, cobrando
respostas a então Governadora sobre o cumprimento da Lei 3.744/2001.

Ocorre que, passados 08 (oito) meses, até a presente data, a Comissão Especial de que
trata o Decreto em questão, não foi instalada como sequer nomeada, impedindo assim
que se cumpram os ditames previstos no texto da Lei.
Portanto, dada à relevância da matéria em questão é que se faz necessário obter das
autoridades competentes os motivos legais ou administrativos, pelos quais não foi
cumprido até a presente data o proposto na Lei, bem como em seu decreto de
regulamentação (REQUERIMENTO Nº102/2003).30

A Comissão só foi formada em 18 de setembro de 2003 e em sua composição original


a comissão era integrada pelo Cel. Jorge da Silva - secretário de Estado de Direitos Humanos e
presidente da Comissão; Flora Abreu Henrique Costa - representante do Grupo Tortura Nunca
Mais; Celuta Cardoso Ramalho - representante da Ordem dos Advogados do Brasil; Seção do
Estado do Rio de Janeiro, Leonor Nunes de Paiva - representante da Procuradoria Geral do
Estado; Carlos Alberto Lopes - representante da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos do
Cidadão, Oscar Maurício de Lima Azevedo - representante da Associação Brasileira de
Imprensa, Fernando William - representante da Secretaria de Estado de Ação Social e o Senhor
Coordenador Jurídico; Jorge Orlando Pereira da Costa31.
Foram recebidos um total de 1.112 processos de requerimento de reparação 32, desde
junho de 2004. Os primeiros processos analisados foram encerrados em dezembro do mesmo

30
As informações sobre o Requerimento de informação a respeito do cumprimento da Lei 3.744/2001 e do Decreto
31.995/2002 estão disponíveis em:
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro0307.nsf/e00a7c3c8652b69a83256cca00646ee5/fde89af31571915983256d420
05fc171?OpenDocument&ExpandSection=-5 acessado em: 15/10/2020.
31
A Comissão Especial de Reparação formada oficialmente em decreto na data de 18/09/2003. Os nomes dos
participantes da primeira sessão foram registrados em Ata, publicada no dia 8 de novembro de 2004 no Diário
Oficial do Estado do Rio de Janeiro, cópia anexada ao processo E- 32/ 0001/0009/2004.
32
Todos os requerimentos que foram feitos a Comissão Especial de Reparação foram digitalizados através do
projeto “O Testemunho como Janela: O Perfil dos Atingidos e a Estrutura Repressiva do Estado Ditatorial no Rio
94

ano, na oportunidade de terem sido apresentados todos os documentos necessários para


apreciação do caso. Para que o requerimento fosse aceito pela Comissão Especial de Reparação,
alguns critérios foram estabelecidos. A apresentação de provas e/ou testemunhas que dessem
legitimidade ao pedido de reparação, que deveria ser anexada ao pedido, como disposto no art.
3º da Lei 3.744/2001.
Desta forma, o requerente deveria ajuizar ação junto à Secretaria de Estado de Direitos
Humanos para a Comissão Especial de Reparação. O requerimento era protocolado e seguiam-
se os trâmites burocráticos. No Regimento Interno da Comissão Especial de Reparação, no art.
15 e parágrafos subsequentes e art. 16 foram estabelecidos quais eram as pessoas que podiam
entrar com pedido de indenização, bem como o modelo de requerimento que devia ser seguido
por todos para dar entrada com pedido33.
Os pedidos de indenização deveriam ser feitos pessoalmente ou por meio de
correspondência registrada com aviso de recebimento, endereçada à Secretaria de Estado de
Direitos Humanos e encaminhada para a Comissão Especial de Reparação. O requerente
poderia se fazer representar por procurador, com todos os documentos legais necessários, ou
por advogados devidamente registrados na OAB. Além do próprio atingido, poderiam entrar
com pedido de indenização pessoas com grau de familiaridade ascendentes, descendentes,
cônjuges ou companheiros. No caso de parecer favorável à indenização e havendo mais de um
beneficiário, o valor a ser recebido era dividido igualmente entre eles.
Seguindo os devidos trâmites legais e o modelo elaborado em Regimento Interno, pela
Comissão Especial de Reparação, instruído pelo art.16, o Requerimento deveria conter as
seguintes informações:
Art 16 - O requerimento de reparação será instruído com as seguintes
informações:
I - a qualificação completa do requerente;
II - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;
III - do pedido, com suas especificações;
IV - as provas com que se pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados;
V - declaração expressa do requerente renunciando ao direito de postular, em
Juízo ou fora dele, nova indenização, revisão ou complementação da indenização que

de Janeiro a partir de Testemunhos dados à Comissão de Reparação do Estado do Rio de Janeiro” coordenado por
Marcos Luiz Bretas (PPGHIS/UFRJ). Foram disponibilizados para nossa pesquisa pelo professor Jean Salles
Rodrigues, a quem agradeço muito pela generosidade e por ter sido tão solícito. Está pesquisa só foi possível graças
a sua ajuda.
33
Tivemos acesso ao Regimento Interno da Comissão Especial de Reparação através de cópia anexada aos
documentos que fazem parte Requerimento de indenização nº E- 32/ 0001/ 0009/ 2004, analisado nesta dissertação.
É possível acessar o Regulamento Interno da Comissão Especial de Reparação, no setor de documentação da
Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro. Sede na Rua Professor Heitor Carrilho, 81 - Centro - Niterói - RJ.
Todos os exemplares do Diário Oficial, desde a sua criação, estão arquivados no setor e podem ser consultados
por qualquer cidadão. Além disso, é possível acessar através do site eletrônico da Imprensa Oficial os exemplares
digitalizados desde o ano de 2005 até o ano de 2020. Disponível em:
http://www.ioerj.com.br/portal/modules/conteudoonline/do_seleciona_data.php acessado em: 28/10/2020.
95

lhe tenha sido concedida, no que se relacione com os mesmos fatos ou outros que lhes
tenham dado causa ou que deles decorram direta ou indiretamente e que tenham
fundamento o seu requerimento de indenização do Estado do Rio de Janeiro ou de
entidade que integre sua Administração Indireta;
VI - quando o requerimento se fundamenter no direito sucessório, a indicação
dos demais herdeiros que possam vir a se habilitar ao recebimento da indenização,
com o nome e qualificação completos. (REGIMENTO INTERNO CER.2004).

Observamos que através do modelo de Requerimento, instituído pela CER, criou-se um


espaço para que as vítimas pudessem denunciar as violências às quais foram submetidos durante
o período em que estiveram presas. Assim, o Requerimento inicial é a oportunidade de, além
de demandar indenização na Comissão Especial de Reparação, expor sua trajetória de acordo
com a sua versão dos fatos. Isto porque é através da construção narrativa dos acontecimentos,
realizada no Requerimento inicial, que o indivíduo elabora sua identidade como sujeito de
direito, fazendo uso da memória e, também, através do acionamento de documentos referentes
aos eventos relatados.
É interessante notar que, no que se refere à análise dos casos pela Comissão Especial de
Reparação, esses relatos só possuem validade, no sentido de garantia de direito de indenização,
quando acompanhados de documentos probatórios ou testemunhais. Quer dizer, para a
Comissão Especial de Reparação, pelo menos num primeiro momento de análise do pedido o
que importava era se ao Requerimento tinham sido anexados os documentos necessários, que
podiam ser depoimento de testemunhas, recorte de jornal anunciando a prisão, além dos
documentos de Polícia Política encontrados no APERJ. Do contrário, era enviada notificação
para que em prazo determinado isso pudesse ser feito ou, em outros casos, testemunhas
pudessem ser indicadas para validar o pedido do requerente, como citado acima.
O primeiro pedido de reparação34 foi protocolado em 6 de junho de 2004 na Secretaria
de Estado de Direitos Humanos, sendo transferido para a Comissão Especial de Reparação. Por
se tratar de requerimento35 movido pelo próprio atingido, constam em sua maioria documentos
nominais pessoais e, em alguns outros, o nome da esposa do requerente que também havia sido
presa e torturada. Os documentos anexados obrigatoriamente por todos os requerentes são:
cópias do RG, CPF, Título de Eleitor e informações da conta bancária na qual o valor da

34
Optamos em nossa pesquisa por anonimizar os atingidos que entraram com pedido de indenização.
Concordamos que as informações que são importantes para nossa análise são o processo em seu conjunto e os
documentos que anexados constroem a base argumentativa e ajudam a validar o requerimento de indenização
movido. Nesse sentido, não revelar nomes tem a intenção de preservar a identidade destas pessoas e tornar nossa
análise mais objetiva possível.
35
Os processos analisados pela Comissão Especial de Reparação, foram encaminhados para o Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro após encerramento dos trabalhos. Os documentos estão digitalizados e disponíveis
para consulta, no entanto, não é possível acessá-los pelo site da instituição. Tivemos acesso aos documentos,
através da gentileza do Prof. Drº Jean Sales que disponibilizou a pedido da minha orientadora Angela Moreira, os
processos em formato digital.
96

indenização seria depositado. A natureza dos demais documentos comprobatórios ficavam a


cargo do próprio requerente, que deveria anexar cópias ao pedido.
Ao requerimento E-32/0001/0009/2004, número do protocolo de identificação do
pedido de reparação, foram anexados documentos do Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro. Ao todo, 8 documentos36 foram utilizados no processo, cada qual enumerado e
correspondente a um setor dos órgãos de repressão. Os documentos encontrados no fundo das
polícias políticas, apresentam detalhes de como se deu a ação que levou a buscas na residência
do requerente, sua prisão e de sua esposa. São eles: Mandado de Busca e Apreensão expedido
por delegado do DOPS/GB, Auto de Apreensão do DOPS relatando a operação realizada na
casa do requerente, Registro de Detidos do DOPS/GB, Prontuário do DOPS/GB presente no
serviço de investigação, Ficha da Divisão de Informação, Informe do Comissário de Polícia
Eduardo Rodrigues, Apresentação de presos do DOPS/GB, recorte do prontuário contendo
codinome que era utilizado pelo requerente, Boletim Policial, Ofício de transferência de preso,
Ofício enviado pelo DOPS/GB ao DOI-CODI e Informativo do Centro de Informações da
Aeronáutica- CISA.
Apresentado o requerimento inicial, o pedido era encaminhado para um Conselheiro
Relator que avaliava o pedido e as provas incluídas ao requerimento. Além da apresentação do
requerimento inicial, os requerentes assinavam uma Declaração37, em que abriam mão de
requerer no Estado do Rio de Janeiro outras indenizações pecuniárias. Após a análise era dado
parecer do Conselheiro Relator, que poderia deferir ou indeferir o pedido indicando, caso
necessário, solicitação de provas ou testemunhas. O primeiro requerimento teve parecer
favorável do Conselheiro e seguiu para apreciação na Sessão38 da Comissão de Reparação. Na

36
Além dos documentos do fundo de Polícias Políticas, encontrados no Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, foram utilizados documentos cedidos pela Casa de Inteligência da Presidência da República, datado de
1998, Certidão fornecida pela Justiça Militar Federal 5ª Auditoria da 1ª Circunscrição da Justiça Militar, Certidão
da 3ª Auditoria da Justiça Militar.
37
Na Declaração constava a seguinte informação: “Eu [nome do requerente] DECLARO para fins do previsto no
art. 12, V, do Decreto n°31.995/02, que RENUNCIO ao direito de postular, em juízo ou fora dele, nova
indenização, revisão ou complementação de indenização que me tenha sido concedida no que se relacionam com
os mesmos fatos ou com outros que lhes tenham dado causa ou que deles decorram direta ou indiretamente e que
tenham fundamentado meu requerimento de indenização junto ao Estado do Rio de Janeiro ou de entidade que
integre sua administração indireta.” A declaração renunciando nova indenização, foi fixada no decreto
31.995/2002, sendo ressaltada pela relatora Drª Leonor Paiva, na segunda Sessão realizada pela Comissão.

38
Na primeira Sessão da Comissão Especial de Reparação, realizada em 22/06/2004, foram iniciadas discussões
sobre a elaboração do Regimento Interno da Comissão, o calendário das sessões e o como seria definido o valor
das indenizações a serem pagar. Foram apresentadas na sessão pelo Presidente da Comissão, o Cel Jorge da Silva,
duas propostas: na primeira seria a não fixação de um valor mínimo de indenização, já que o ideal seria o
pagamento do valor máximo para todos os requerentes; a segunda proposta era levar à Governadora, Rosinha
Garotinho, a possibilidade de pagamento do valor máximo de 50.000,00 mil reais a todos. Caso contrário, qual
valor máximo que poderia ser pago pelo estado. A segunda proposta ganhou, mas na impossibilidade de conseguir
97

Sessão, o relator apresentou seu Parecer e o Relatório do caso, em que era feito uma
apresentação sucinta dos dados e informação. O caso foi aprovado por unanimidade de votos,
foi anexada a Súmula com o parecer da Comissão e o montante referente a indenização que
seria recebida pelo requerente.39O caso foi encerrado, através do Termo de Encerramento, em
dezembro do mesmo ano.
O trâmite processual para ajuizar pedido de indenização era o mesmo para todos os
processos, sendo que o que interferia no andamento da causa era se os fatos narrados e
documentos anexados pelo requerente estavam de acordo e eram aprovados em análise
realizada pelo Conselheiro Relator. Como nosso objetivo é analisar a forma como os
requerentes e a Comissão faziam uso da documentação do Dops, nos parágrafos seguintes
examinaremos 3 casos - além do acima utilizado - para demonstrar os trâmites legais do
processo de requerimento de indenização, impetrados na Secretaria de Estado de Direitos
Humanos e avaliados pela Comissão Especial de Reparação.
Foram ajuizados mais de mil pedidos de requerimento para avaliação da Comissão
Especial de Reparação, os pedidos variaram entre as próprias vítimas, familiares ascendentes,
descendentes e cônjuges. Não sendo possível a análise individual de cada caso apreciado pela
Comissão, determinamos como critério de análise a escolha de processos em que foram
mobilizados documentos sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, no fundo
de Polícias Políticas, como prova.
Com a criação da lei 3.744/2001, e a necessidade de comprovação documental e/ou
testemunhal do direito de indenização, iniciou-se um movimento a Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro de modo que atingidos, advogados, procuradores buscavam no arquivo da
instituição documentos os comprobatórios40. Por ser a instituição responsável pela
documentação de Polícia Política, muitos requerentes à indenização por parte do estado
recorreram ao arquivo na esperança de encontrar a documentação que se converteria nas provas
de que precisavam. Assim, é muito comum encontrar nos processos de pedido de indenização

reunião com a Governadora, na quarta sessão, realizada em 08/10/2004, foi votado e aprovado o valor de 20.000,00
mil reais a ser pago a todos os requerentes. As atas das Sessões foram publicadas em Diário Oficial no dia 8 de
novembro de 2004. Tivemos acesso a ata através do processo E- 32/0001/0009/ 2004.
39
Os primeiros processos recebidos pela Comissão Especial de Reparação, tiveram a apreciação dos casos feitos
de forma bastante rápida. O primeiro caso recebeu o Termo de Encerramento do processo em dezembro de 2004.
No entanto, com o aumento da demanda por indenização, maior volume de processos e os prazos de trabalho da
Comissão se encerrando, alguns processos levaram 10 anos até sua conclusão. Essa demora na apreciação dos
casos, foi duramente criticado, inclusive porque muitos requerentes eram idosos e poderiam morrer antes mesmo
do encerramento do caso e do recebimento da indenização devida.
40
Podemos verificar esses dados nos Requerimentos que tivemos acesso. Para compor o pedido no processo quase
todos os requerentes utilizaram documentos do fundo de Polícias Políticas que estão sob guarda do Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro.
98

documentos com o carimbo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Percebemos


através da análise dos processos a forma de elaboração da demanda pela indenização realizada
pelo requerente e o modo como esses documentos eram analisados pela Comissão através do
seu relator.
No processo E-32/0003/0009/2004, o requerente da indenização era o próprio atingido.
No Requerimento inicial é exposto em detalhes todos os fatos e argumentos que segundo o
requerente o qualificam como sujeito de direito da indenização pleiteada. Foram anexados seus
documentos de identificação e de seus herdeiros, como de praxe no processo. O que nos chamou
atenção nesse processo, é que foram apresentadas 52 folhas de documentos do Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro. Mesmo após parecer favorável a vítima anexou mais diversos
documentos, formando um grande dossiê de sua experiência traumática nas dependências do
DOPS, comprovando também as sequelas físicas e emocionais que o acomete desde então.
A documentação apresentada após a emissão do parecer não foi levada em consideração
para a decisão do relator e nem da Comissão, mas se pode depreender que a necessidade de
conseguir provar e contar sobre os sofrimentos a que foi submetido era uma vontade do
atingido. Em parecer, destaca-se de maneira objetiva as folhas do processo nas quais o relator
julgava estarem presentes às provas que fundamentaram o pedido de indenização.
Alguns outros processos são mais enxutos, por exemplo, o E-32/004/0009/2004 onde o
requerente também elaborou sua narrativa sobre o período em que foi preso. Diferente do
requerente do processo anterior, o atingido desse processo limitou-se a pontuar os fatos sem
deles apresentar muitos detalhes. Seguiu os protocolos burocráticos, anexando 13 folhas de
documentos pesquisados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, além de outros
documentos de identificação pessoal e de outros órgãos de segurança.
No pedido protocolado E-32/0005/0009/2004, o relato do requerente ao contrário dos
dois anteriores, não foi realizado na introdução da folha de requerimento. No espaço reservado
ao relato “II- dos Fatos e fundamentos do pedido” e “III- do pedido e suas especificações” o
requerente escreveu parte da letra da lei 3.744/2001 anexando habeas data requerido ao
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. A princípio parece que não era interesse do
atingido expor, além dos dados necessários para o embasamento do pedido de indenização, as
situações a que foi submetido. No entanto, após apresentação dos documentos que compõem o
habeas data encontramos um texto denúncia escrito por ele.
As informações e documentos que interessavam a Comissão, eram as que efetivamente
comprovavam a prisão e ou tortura das vítimas. Sendo assim, como nos casos anteriores dos
99

documentos presentes no habeas data, dois deles foram sinalizados em relatório como prova
de prisão em dependências do Estado.
Durante a leitura dos processos ajuizados na Comissão Especial de Reparação,
percebemos que a forma de acionamento e compreensão dos documentos anexados aos pedidos
de reparação possuem um caráter diferente se comparado aos usos feitos pelas vítimas e pela
Comissão. A Comissão Especial de Reparação, criada para analisar e decidir sobre os pedidos
de indenização, tinha objetivos bem pragmáticos no sentido de avaliar se os pedidos e os
documentos apresentados qualificavam o requerente, dentro do disposto na letra da lei, ao
recebimento ou não da indenização pecuniária. Enquanto para as vítimas o desejo de reparação
e a oportunidade de expor sua dor, mobilizavam sentimentos e sentidos diferentes na elaboração
do processo. Quer dizer, a produção burocrática movida no âmbito de uma instituição estatal,
com objetivos práticos de indenização pecuniária a atingidos que sofreram prisão e tortura no
período delimitado na lei 3.744/2001, acabou tornando-se e sendo ressignificado como um
espaço para fins de reparação simbólica.
Assim, identificamos que ao estruturar o requerimento inicial os atingidos estavam ao
mesmo tempo reconstruindo suas histórias, narrando e elaborando novo sentido ao passado. Os
documentos do fundo de Polícias Políticas, utilizados com a finalidade de provas das ações
perpetradas pelo Estado, tornam-se objeto de contestação. Se, quando produzidos, esses
documentos foram utilizados para justificar ações de violência, prisões e perseguição política,
esses mesmos documentos são ressignificados pelas vítimas, que fazem uso deles como
instrumento de legitimação de direito. Contudo, é importante ressaltar que estes documentos
não deixaram de se caracterizar como fontes que integram arquivos da repressão, em sua
origem.

3.2 - A mobilização de familiares de mortos e desaparecidos e da Comissão Nacional da


Verdade na busca por informações nos arquivos do fundo de Polícias Políticas.

Por meio das discussões apresentadas nos capítulos anteriores foi possível perceber que
o trabalho de pesquisa em arquivo, bem como sua organização e os debates que giram em torno
da questão do acesso aos documentos, são elementos que permeiam a instituição arquivística,
em sua função de guarda e conservação. Além de mobilizar a comunidade acadêmica que possui
interesses de pesquisa nos documentos, influenciam sobremaneira nas buscas de indivíduos que
fazem uso dos arquivos como instrumento probatório. Esse caráter se torna mais complexo,
quando estamos tratando de pessoas que tiveram sua intimidade, seus direitos e sua vida
100

atravessados por violências perpetradas pelo Estado, como os casos de violência cometidos
durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Assim, vítimas e familiares de ex-presos políticos, mortos e/ou desaparecidos da
ditadura militar brasileira, organizados em diversos espaços, como a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a extinta Comissão Nacional da Verdade (CNV),
bem como a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), por exemplo,
passaram a ser consulentes ativos nos arquivos e mobilizadores de agitação social no sentido
de denunciar os crimes e exigir punições aos culpados, o exercício do direito de reparação aos
atingidos, além de verdade e justiça.
Nossas afirmações quanto ao caráter probatório dos documentos da Polícia Política e o
chamado efeito-bumerangue defendido por Camargo (2009), podem ser observados nos
trabalhos de busca por informação desenvolvidos por ex-presos políticos e seus familiares, bem
como na atuação investigativa da CEV-Rio. Na década de 1970, familiares de presos políticos
iniciavam uma busca incansável por informações que pudessem levar ao paradeiro ou a
informações mais concretas sobre onde estavam seus entes queridos, sob quais condições
estavam sendo mantidos e, em caso de desaparecimento, quem eram os responsáveis.
A luta encampada pelos familiares de vítimas da ditadura militar (1964-1985), obteve
apoio de setores da Igreja Católica em São Paulo, por exemplo. Quando Dom Paulo Evaristo
Arns passa a apoiar os familiares de vítimas, somando esforços no sentido de denunciar os
crimes que estavam sendo cometidos por agentes estatais, durante a ditadura. Além disso,
através da Comissão de Justiça e Paz, por ele fundada, oferecia apoio jurídico que era
indispensável nesse momento de busca por informações. O apoio à Comissão de Familiares
Mortos e Desaparecidos Políticos foi aos poucos crescendo, contou com ajuda de membros da
OAB, Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e, fora do país, contava com denúncias feitas
pela Anistia Internacional, como afirma Carlos Artur Gallo (2012, p.333).
Gallo (2012) analisa como foi o processo de formação e atuação da CFMDP. Segundo
o autor, parte da luta encampada pelos familiares se deu no momento em que não obtinham do
Estado informações sobre seus parentes desaparecidos. Além disso, tinham que lidar com
constantes negativas como resposta sobre o paradeiro de seus familiares, sendo que, em alguns
casos, eram informados das mortes desses militantes através de “versões oficiais” marcadas por
controvérsias. Segundo o autor, no final da década de 1970, com a criação dos Comitês
Brasileiros pela Anistia a luta dos familiares ganha novo fôlego (GALLO, 2012, p. 334).
De acordo com Almeida Teles (2009, p.162-163) As reivindicações sobre as
circunstâncias das mortes e desaparecimentos, a localização dos corpos e a punição aos
101

culpados foram cada vez mais intensas (apud, GALLO, 2012, p. 334) . Nesse sentido, as
Comissões de Anistias criadas no país, com a finalidade de lutar por anistia política, foram
importantes espaços de discussão e demandas na disputa política que se desenhava, oriunda da
sociedade civil. Além disso, nesse mesmo período foram divulgadas as primeiras listas
contendo o nome dos desaparecidos políticos, escancarando e denunciando publicamente as
violências e violações cometidas pela Polícia Política e pelo Estado brasileiro durante a ditadura
militar. Segundo Gallo (2012, p. 334-35), havia um forte movimento de contestação aos limites
impostos pela Lei de Anistia, aprovada em 1979.
Esses esforços, no entanto, não foram suficientes para que a Lei de Anistia fosse alterada
no sentido de possibilitar a condenação dos agentes estatais que praticaram violações aos
direitos humanos. Essa demanda por justiça é uma das respostas pelas quais os familiares tanto
lutam até os dias de hoje. Ademais, Gallo (2012) observa que a Lei da Anistia 6.683/1979,
colocou a cargo dos familiares ou requerentes a incumbência de provar na justiça que as suas
demandas por direitos eram legítimas. Ou seja, além de viver com a dúvida sobre o que
aconteceu com seus parentes, os familiares tinham que encontrar documentos, informações,
testemunhos que provassem para o Estado, que o Estado brasileiro através dos seus órgãos de
polícia, era responsável por esses desaparecimentos.
Só então, munidos de provas e com decisão judicial a favor, o Estado reconhecia o
desaparecimento de militantes. Esse reconhecimento, previsto na Lei de Anistia 6.683/197941,
vinha através da produção de uma “Declaração de Ausência”. Com esse documento em mãos
as famílias podiam entrar com ações para pedidos de pensões, dissolução de sociedade, pedidos
de heranças etc. Enfim, o Estado criou uma forma de resolução de questões burocráticas
relativas aos desaparecimentos sem, contudo, assumir sua responsabilidade.

Art. 6º O cônjuge, qualquer parente, ou afim, na linha reta, ou na colateral, ou o


Ministério Público, poderá requerer a declaração de ausência de pessoa que, envolvida
em atividades políticas, esteja, até a data de vigência desta Lei, desaparecida do seu
domicílio, sem que dela haja notícias por mais de 1 (um) ano

§ 1º - Na petição, o requerente, exibindo a prova de sua legitimidade, oferecerá rol


de, no mínimo, 3 (três) testemunhas e os documentos relativos ao desaparecimento,
se existentes. (grifo nosso)

§ 2º - O juiz designará audiência, que, na presença do órgão do Ministério Público,


será realizada nos 10 (dez) dias seguintes ao da apresentação do requerente e proferirá,

41
Lei 6.683/1979. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6683.htm. acessado em
07/08/2020.
102

tanto que concluída a instrução, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, sentença, da qual,
se concessiva do pedido, não caberá recurso.

§ 3º - Se os documentos apresentados pelo requerente constituírem prova suficiente


do desaparecimento, o juiz, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas,
proferirá, no prazo de 5 (cinco) dias e independentemente de audiência, sentença, da
qual, se concessiva, não caberá recurso. (grifo nosso)

§ 4º - Depois de averbada no registro civil, a sentença que declarar a ausência gera a


presunção de morte do desaparecido, para os fins de dissolução do casamento e de
abertura de sucessão definitiva. (grifo nosso) (LEI 6.686/1979)

No entanto, em 1995 o Governo brasileiro decreta a lei 9.140/1995, onde reconhece


como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em
atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Ou seja, foi
um primeiro passo para que o Estado reconhecesse que as pessoas que se encontravam
desaparecidas estavam mortas em decorrência de ações promovidas pelo próprio Estado.
Assim, através dos trabalhos realizados, após a criação da lei, pela Comissão Especial de Mortos
e Desaparecidos Políticos- CEMDP, o “atestado de óbito” produzido vinha com a causa mortis
“Lei 9.140/1995”. Reconhecendo a morte em decorrência de atividades políticas, onde o sujeito
causador da morte era o “Estado”.

Art. 7º Para fins de reconhecimento de pessoas desaparecidas não relacionadas no


Anexo I desta Lei, os requerimentos, por qualquer das pessoas mencionadas no art.
3º, serão apresentados perante a Comissão Especial, no prazo de cento e vinte dias,
contado a partir da data da publicação desta Lei, e serão instruídos com informações
e documentos que possam comprovar a pretensão (Grifo nosso). (LEI 9.140/1995)

Como podemos observar nos trechos acima, tanto a Lei de Anistia quanto a Lei nº
9.140/1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de atividade política,
representaram dispositivos legais importantes na luta política, ainda que insuficientes e, de certa
forma, perversos. Contudo, no que se refere aos mortos e desaparecidos políticos a dificuldade
de acionamento da justiça por parte de seus familiares ou requerentes tornou-se mais uma etapa
na luta a ser vencida. A aprovação da Lei de Anistia, nos moldes como foi aprovada, provocou
a sensação de que pouco mudaria no caso dos desaparecidos e mortos pela ditadura militar. A
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos acabou se dividindo em finais dos anos
1970 por divergências quanto às formas de atuação política e compreensão dos fatos. (GALLO,
2012, p. 335).
As buscas pelo paradeiro dos desaparecidos políticos, por outro lado, não cessaram,
mesmo com ramificações no grupo de familiares, muito foi feito durante todos esses anos. Na
década de 1980, os familiares reorganizados na Comissão de familiares de mortos e
103

desaparecidos e outras correntes formadas naquele período, foram em busca de informações a


partir de frentes distintas de trabalho. Segundo Gallo (2012), a CEMDP atuava no sentido de
resgate da memória através de ações de conscientização em escolas, tentativa de oficializar uma
data comemorativa para lembrar dos desaparecidos, criação de listas oficiais de desaparecidos
políticos. Por outro lado, uma corrente dissidente dedicou-se ao caso Araguaia, promovendo
caravana de busca e denúncia das atrocidades cometidas pela repressão naquela região, com os
militantes que participavam da guerrilha e com os moradores locais. Sheila Cristina Santos
(2008), observa que as investidas dos familiares nas buscas feitas no Araguaia não tiveram
resultados tão significativos sobre a localização dos corpos dos militantes desaparecidos.
Lívia Salgado (2018), por outro lado, defende em sua análise, que os anos de 1990 foram
importantes para consolidação de leis42 que garantiam alguns direitos às vítimas e seus
familiares. Mas no que se refere à verdade, um dos pilares do campo conhecido como Justiça
de transição, a autora afirma que o Brasil não assumiu a responsabilidade pelo esclarecimento
dos fatos, na medida em que alguns arquivos continuam fechados, sobretudo os das Forças
Armadas. Além disso, segundo a Lívia Salgado (2018), o Estado brasileiro adaptou a sua
realidade o direito à verdade, num contexto marcado por disputas no campo político entre os
movimentos que buscavam remexer nesse passado e os que pretendiam “virar a página” e
negavam os acontecimentos. Deste modo, falava-se em reparação, mas os meios para se
descortinar e descobrir informações sobre os acontecimentos ainda eram muito precários e
continuam sendo. A busca pela verdade, demanda tão importante como da luta por reparação
ainda é um elemento que vem sendo impedido à sociedade brasileira.
Os autores Seixas e Souza (2015), assim como Gallo (2012) e Santos (2008),
reconhecem o papel fundamental que os familiares de vítimas tiveram no sentido de exigir do
Estado responsabilidade por todos os crimes cometidos contra vida e dignidade humana, através
das sessões de tortura, mortes e desaparecimento forçado. De acordo com Seixas e Souza
(2015), após o período de redemocratização iniciou-se um processo denominado como
reparação e memória (2015, p.349), onde a questão dos crimes cometidos durante a ditadura
militar (1964-9685) ainda era visto como um assunto difícil de ser examinado.
Deste modo, os autores acima citados concordam que a luta pela verdade, só foi possível
por conta de um conjunto de fatores que implicaram ao governo brasileiro ações mais efetivas

42
Segundo Lívia Salgado (2018) as Leis 9.140/1995 e a 10.559/2005, respectivamente a Lei que reconhece como
mortos os desaparecidos em decorrente de atividades políticas e a lei do anistiado político, representaram um
panorama importante na consolidação de direitos. No entanto, não eram suficientes para que os fatos fossem
esclarecidos e que o Estado brasileiro realmente se comprometesse a esclarecer e a investigar os crimes cometidos
durante o período da ditadura militar (1964-1985) no país.
104

no que corresponde aos crimes cometidos na ditadura militar (1964-1985). Dentre eles,
observamos as buscas de familiares de mortos e desaparecidos acima exemplificadas, a
condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a elaboração do 3º Plano
Nacional dos Direitos Humanos, em 2010, entre outros. Concordamos com Lívia Salgado
(2018), quando a autora defende que a luta pela verdade no Brasil, é um processo que ainda
está em fase de consolidação, anda a passos lentos e curtos e só será possível de ser vencida
quando todos os arquivos dos órgãos de repressão, principalmente, das Forças Armadas forem
abertos.
A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos se deu por conta
de denúncias apresentadas pela Comissão de familiares de mortos e desaparecidos, com apoio
da de grupos como o “Tortura Nunca Mais-RJ, Comissão de familiares de mortos e
desaparecidos de SP, Centro de Justiça e pelo Direito Internacional- Cejil” (SANTOS, 2008, p.
120). Santos (2008) destaca que mesmo alegando que já havia no país uma lei específica para
tratar do assunto, a Lei 9.140/95, na interpretação da Corte Interamericana o Brasil deveria
promover ações que além de indenização pecuniária, garantissem efetivamente o direito à
verdade instituindo investigações que levassem ao esclarecimento das violências ocorridas
durante a ditadura militar (1964-1985) no país. Lançar luz sobre as condições que levaram ao
desaparecimento de militantes e/ou suas mortes, assumir sua responsabilidade pelas ações
praticadas e prestar esclarecimentos e informações sobre onde os corpos foram enterrados.
Constituindo esse contexto favorável de discussões sobre os direitos humanos, sobre
responsabilização do Estado brasileiro e quais ações deveriam ser tomadas, em 2008 ocorreu a
11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos. Nesta conferência foi aprovado o 3º Plano
Nacional de Direitos Humanos, que previa a necessidade de criação de uma Comissão Nacional
da Verdade para apurar as denúncias e investigar as violações de direitos cometidas durante a
ditadura militar no Brasil. Em 2010, foi apresentado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da
Silva o projeto de lei para criação da Comissão Nacional da Verdade, que só foi aprovada no
ano seguinte, já no governo de Dilma Rousseff (SEIXAS; SOUZA, 2015, p. 350).
De acordo com a Lei 12.528/201143, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade no
Brasil, era de responsabilidade da Comissão “examinar e esclarecer as graves violações de
direitos humanos praticadas no período fixado” (1948-1988), “a fim de efetivar o direito à
memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Lívia Salgado (2018)
identifica que muitas foram as críticas feitas sobre o funcionamento e organização da CNV. A

43
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm (acesso em
15/08/2020)
105

autora cita o desconforto e mal-estar gerado no governo com a criação do PNDH-3, onde setores
da ala militar acusavam a instituição da CNV, como uma medida revanchista.
De acordo com as análises feitas por Salgado (2018), criou-se um ambiente de
acalorados debates em que ficava claro os posicionamentos opostos dos representantes das
pastas do então Ministério da Defesa, chefiado à época por Nelson Jobim, e o Ministério dos
Direitos Humanos44, chefiado por Paulo Vannuchi. Com a insatisfação e disputas enfrentadas
pelos setores que eram a favor e contra a criação da Comissão Nacional da Verdade, Salgado
(2018) relata que foram feitas mudanças no PNDH-3 em 2010.
As alterações realizadas no PNDH-3, segundo Salgado (2008), deixam evidentes os
recuos feitos pelo governo brasileiro por conta das pressões realizadas tanto pela ala militar,
que não desejava que investigações fossem realizadas, bem como por alguns setores 45 da
sociedade que tiveram participação ativa apoiando a ditadura militar. Dessa forma, um dos
retrocessos mais significativos se refere a questão da não possibilidade de julgamento dos
crimes e condenação dos torturadores, respaldados na lei de anistia. Salgado (2008) percebe
que outro elemento crítico na criação da CNV, foi o período fixado em lei (1948-1985) que
excede o final do último governo de um presidente militar, o que de acordo com a autora
descaracteriza a luta pela descoberta da verdade do período em questão.

A CNV foi criada com objetivo de esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de
violações de direitos humanos, sem, porém, apresentar caráter “jurisdicional ou
persecutório”, como aponta o Art. 4º, § 4º da Lei nº 12.528. Em outras palavras, a
Comissão não teria o poder de levar os casos ao Poder Judiciário. Assim, a ênfase do
trabalho está no resgate da memória. Para atingir tal finalidade, a CNV realizou
audiências públicas colhendo depoimentos daqueles que sofreram as violências
cometidas pelo Estado brasileiro durante da ditadura no país (SALGADO; GRABOIS,
2017, p. 60).

Os trabalhos desenvolvidos pela Comissão Nacional da Verdade tiveram sem dúvida a


função de denúncia, apontamento das graves violações de direitos humanos, identificação dos
torturadores e colaboradores diretos da ditadura militar (1964-1985). Bem como se constituiu
como um espaço para que as memórias até então silenciadas, pudessem ser tornadas públicas.

44
Atualmente Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob chefia de Damares Alves. Retrocesso
conservador promovido pelo atual governo que possui claras tendências antidemocráticas e que tem empenhado
esforços no sentido de desqualificar a luta pelos Direitos Humanos.
45
Trabalhos como a tese de Pedro Campos, trazem para a discussão a questão do apoio de empresários na ditadura
militar, sobretudo os ligados à construção civíl. “A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção
pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, de 1964-1985” foi defendida pelo autor em 2012,
na Universidade Federal Fluminense. Além dele, outros autores têm se dedicado a demonstrar o apoio, por
exemplo, da mídia na propaganda do governo militar. Essas discussões são importantes por possibilitar uma
compreensão mais ampla da ditadura militar (1964-1985), percebendo assim as bases que ajudaram a alicerçar o
regime e legitimar suas ações.
106

Além disso, as investigações da Comissão foram realizadas com apoio de grupos organizados
que já estavam há muito tempo empenhados nas investigações para o esclarecimento das
violências cometidas durante a ditadura.
Durante o levantamento de informações pela Comissão Nacional da Verdade, foram
realizadas pesquisas em arquivos públicos estaduais, no Arquivo Nacional, arquivos privados
e em diversos órgãos que possuíam documentos que ajudavam a esclarecer as circunstâncias de
morte e desaparecimento de presos políticos. O acionamento desses documentos, é feito de
modo comprobatório no sentido de reconstrução e resgate dessas histórias, identificação de
pessoas envolvidas nos sequestros, prisões, sessões de tortura. Foi a partir da utilização e
mobilização da documentação levantada pela CNV, e os grupos que apoiavam os trabalhos da
Comissão, que se pôde estabelecer a criação de uma nova narrativa, por um órgão vinculado à
Casa Civil da Presidência da República, sobre o que ocorreu durante a ditadura.
O trabalho da CNV, veio de encontro ao discurso oficial das forças armadas 46 e do
Estado, contrapondo as alegações dos órgãos de segurança que negavam os crimes largamente
cometidos por seus agentes, que durante a ditadura militar prenderam, sequestraram, torturaram
e assassinaram cidadãos brasileiros contrários ao governo. Diligências, Ofícios, Declarações
oficiais, laudos de IML entre outros documentos, forjados para isentar de culpa pelas violações
aos direitos humanos cometidos ou justificar o peso e consequência das ações.
Sendo assim, a busca pelos documentos e a mobilização dos mesmos se dá num contexto
diferente daquele nos quais foram utilizados, por exemplo, durante o trabalho da Comissão
Estadual de Reparação do Rio. É possível afirmar que os usos feitos dos documentos e seus
acionamentos mudam de acordo com o contexto em que eles estão sendo utilizados e o que se
busca através da mobilização dos mesmos. Na Comissão Especial de Reparação os documentos
serviam, inicialmente, como instrumento comprobatório de prisões, tortura, morte e/ou
desaparecimento utilizados na demanda por reparação pecuniária. Já na Comissão Nacional da
Verdade, a utilização dos documentos teve finalidade diferente, o que não significa que esses
usos sejam contraditórios, pelo contrário podem ser compreendidos como complementares.

46
O trabalho da Comissão Nacional da Verdade promoveu um desagrado tão grande no interior das Forças
Armadas brasileiras, que houve uma grande participação e apoio de grupos militares no processo de impeachment
da ex presidenta Dilma Rousseff. Havia medo de que a ex presidenta promovesse alteração na Lei de Anistia e em
questões presentes no Programa Nacional de Direitos Humanos-3 2009. Essas informações foram reveladas pelo
ex presidente Michel Temer, em livro “A escolha: Como um presidente conseguiu superar a grave crise e
apresentar uma agenda para o Brasil”. Tivemos acesso a reportagem de Marcelo Godoy sobre o tema no site:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/11/02/em-livro-temer-revela-contato-com-
militares.htm acessado em 16/11/2020.
107

No Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, no Volume III - Mortos e


Desaparecidos Políticos47, foram identificados pela Comissão 434 vítimas do Estado brasileiro
durante a ditadura militar (1964-1985). Não vamos analisar ao longo desta sessão todos os casos
identificados pela Comissão, nossos esforços são voltados para os casos em que a Comissão
mobilizou documentos presentes no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Identificamos ao longo das 1.996 páginas do Relatório Final da CNV, que o Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro é referenciado 45 vezes e os documentos foram utilizados
em pesquisas referentes a 1448 casos investigados pela Comissão. Em todos os casos49, a morte
ou desaparecimento se deram na década de 1970 e foram organizados em ordem cronológica
de acordo com a data de identificação da morte ou desaparecimento.
É importante que fique claro, que a Comissão Nacional da Verdade não tinha poder
jurídico sobre os casos por eles investigados, de modo que a análise dos dados tinham por
objetivo avançar nas investigações e trazer, na medida do possível, mais informações sobre
autoria dos crimes, estrutura, locais e instituições envolvidas (CNV, 2014,p. 26). Posto isto, a
Comissão organizou o perfil das vítimas50 seguindo uma estrutura dividida em 8 partes, dentre
elas a que nos chama mais atenção é a dedicada aos documentos que foram localizados e
utilizados na releitura do discurso oficial sobre o desaparecimento e/ou morte de militantes.
Como nosso objetivo é avaliar o uso dos documentos do fundo de Polícias Políticas, a forma
como as informações dos documentos puderam ser e foram acionados pela Comissão Nacional
da Verdade em cada caso, foi um dos critérios utilizados para escolha dos casos a serem
analisados.
Fizemos uma seleção entre os 14 casos identificados, de modo que escolhemos analisar
casos em que a morte e/ou desaparecimento tenha ocorrido no Estado do Rio de Janeiro,
selecionamos casos em que a versão oficial dos órgãos de segurança alegavam que as mortes
teriam ocorrido em decorrência de confronto entre os agentes de segurança e os militantes.

47
Os Relatórios finais produzidos pela Comissão Nacional da Verdade estão disponíveis para download no site:
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/ acessado em 10/08/2020.
48
A saber: Marcos Antônio da Silva Lima, Aderval Alves Coqueiro, Carlos Alberto Soares de Freitas, Marilena
Villas Boas Pinto, Luiz Almeida Araújo, Luís Alberto Andrade de Sá e Benevides, Antonio Marcos Pinto de
Oliveira, Ligia Maria Salgado Nóbrega, Maria Regina Lobo de Figueiredo, Wiltin Ferreira, Célio Augusto Guedes,
Aurora Maria Nascimento Furtado, Lincon Bicalho Roque e Honestino Monteiro Guimarães.
49
No caso das pessoas atingidas registradas no Relatório da CNV, citaremos os nomes das mesmas, uma vez que
essa informação está explícita no próprio documento e disponível de forma pública para todos.
50
Assim como na seção anterior não vamos traçar o perfil dos casos que analisamos, apresentamos de forma
objetiva cada caso, uma vez que nossos esforços têm a finalidade de analisar o acionamento feito pela CNV dos
documentos do fundo de Polícias Políticas. As informações sobre cada indivíduo morto e desaparecido por força
dos agentes da repressão, encontram-se no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Volume III - Mortos
e Desaparecidos Políticos. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/ (acesso em xx/xx/2020)
108

Além disso, analisamos 3 casos de mulheres: Marilena Villas Boas Pinto, Maria Regina Lobo
e Lígia Maria Salgado Nóbrega; e 3 casos de homens: Marco Antônio da Silva Lemos, Aderval
Alves Coqueiro e Antônio Marcos Pinto de Oliveira. Por fim, o caso de Mário Alves de Souza
Vieira, pelos motivos acima expostos.
O primeiro caso analisado de acionamento dos documentos do APERJ, realizado pela
CNV, é o de Marcos Antônio da Silva Lima (as informações sobre o caso se encontram na Parte
III do Relatório Final da CNV, nas páginas 379-381). Sargento da Marinha e filiado ao Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Marcos foi morto no ano de 1971, no estado do
Rio de Janeiro. Neste caso, as informações oficiais divulgadas pelos órgãos de Estado
afirmaram que Marcos teria reagido, ao receber voz de prisão, empunhando arma de fogo e
entrado em confronto armado com a polícia sendo atingido e morto. A CNV, utilizando a
documentação do APERJ através do portal Memórias Reveladas, acessou o registro de
ocorrência do caso, escrito pelo comissário do DOPS/GB, Maurício da Silva Luiz. Este
documento, permitiu que fosse identificado o comissário do caso, e através do testemunho de
Ângela Camargo Seixas prestado à CEMDP e outros documentos levantados pela mesma, foi
possível refutar a versão dos fatos até então apresentada como oficial.
Aderval Alves Coqueiro (as informações sobre o caso se encontram na Parte III do
Relatório Final da CNV, nas páginas 533-537) , militante do Movimento Revolucionário
Tiradentes, foi morto em 1971 no Estado do Rio de Janeiro. Sua morte foi relatada em veículos
de imprensa e em relatório oficial enviado através do memorando nº 268/7, afirmando que sua
morte teria ocorrido através de um confronto armado, ao resistir a prisão. A ação que levou à
morte de Aderval, foi articulada entre o I Exército e agentes do DOPS, resultando em um cerco
ao prédio onde o militante morava e foi assassinado.
Apesar de a ação ter sido previamente orquestrada, o documento localizado pela CNV
no fundo de Polícias Políticas, consta no “Boletim de Preso” e a informação registrada a respeito
do corpo de Aderval é “cadáver de um desconhecido”. Em outro documento, “Diligências do I
Exército”, encontra-se a informação dirigida ao Comissário de dia do DOPS - na data do
ocorrido -, Maurício da Silva Luiz. Além disso, em outros documentos consultados, foi possível
identificar que ampla investigação era realizada sobre a atuação política de Aderval Alves
Coqueiro, onde era feito um levantamento sobre as ações de retorno de banidos do Estado para
o Brasil. Fotos feitas no local, presentes no relatório da CEMDP, o testemunho prestado pelo
zelador do prédio e dados do IML, ajudaram a concluir que houve manipulação do local onde
o crime ocorreu. Segundo Relatório da CNV, fica claro que a versão apresentada pelos órgãos
109

de segurança era falsa, ou seja, criada em mais uma tentativa de tirar a responsabilidade do
Estado pela morte de um indivíduo.
Antônio Marcos Pinto de Oliveira (as informações sobre o caso se encontram na Parte
III do Relatório Final da CNV, nas páginas 904-908) militante da Vanguarda Armada
Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), foi morto em 1972 no episódio que ficou conhecido
como a “Chacina de Quintino”51. Esse foi mais um dos casos em que o discurso oficial proferido
pelos órgãos de segurança da ditadura militar afirma como decorrentes de confronto armado.
Fora montado um cerco na casa em que funcionava um aparelho da VAR-Palmares, organizado
por agentes do Destacamento de Operações e Informações do I Exército com apoio do
Departamento de Ordem Política e Social do Estado- DOPS/GB.
Os documentos comprovam que a versão oficial amplamente divulgada na época era
falsa, testemunhas que eram vizinhas relataram que o cerco policial estava sendo montado desde
o final da tarde de 29 de março e que a operação foi deflagrada na noite no mesmo dia. Além
disso, relatam que os barulhos de disparos não vinham de dentro da casa, desmentindo a versão
oficial de que teria havido confronto. Os documentos do Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, do fundo de Polícias Políticas, apresentam os nomes dos agentes envolvidos nas
operações, bem como o responsável pela ação, Arthur Brito. Os documentos do fundo de
Polícias Políticas, em conjunto com outros documentos encontrados pela CNV, pela CEV-Rio,
Grupo Tortura Nunca Mais e outros, foram essenciais para que pudessem ser revelados os fatos
e questionado o discurso oficial.
Lígia Maria Salgado Nóbrega (as informações sobre o caso se encontram na Parte III
do Relatório Final da CNV, nas páginas 909-913) também era militante da Vanguarda Armada
Revolucionária- Palmares, foi morta em 29 de março de 1972. Sua morte aconteceu no mesmo
evento que Antônio Marcos Pinto de Oliveira, na “Chacina de Quintino”. Circulou na mídia
impressa e em documentos oficiais que sua morte teria ocorrido em decorrência de confronto
armado, ao resistir a voz de prisão. Fato este, que foi negado e comprovado através de
investigações posteriores.

51
No Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade- Rio, capítulo 14, trata da chacina ocorrida em Quintino,
bairro da zona Norte do Rio de Janeiro e de outras chacinas ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985). A
Chacina de Quintino ocorreu em 29 de março de 1972, numa ação deflagrada por agentes do DOI-CODI, com
apoio do DOPS/RJ e da Polícia Militar. Nessa emboscada, foram mortos 3 militantes da organização VAR-
Palmares. Um homem, Antônio Marcos Pinto de Oliveira e duas mulheres: Maria Regina Lobo e Lígia Maria
Salgado Nóbrega. A CEV-Rio realizou vasta investigação sobre o caso, acessando os documentos produzidos pela
polícia sobre o caso. Percorreu o IML, acessou os laudos das vítimas, descobrindo desta forma que não havia
pólvora no corpo das vítimas, fato este que somado ao depoimento de vizinhos do local na época da Chacina,
ajudam a comprovar que a alegação de auto de resistência era falta.
110

As informações obtidas pela CNV, no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, no


fundo de Polícias Políticas, acerca do evento e da atuação de Lígia Maria é extensa. Na Ficha
de Identificação, produzida pelo DOPS/GB, contém informações sobre Lígia e uma foto do seu
cadáver. Através dos documentos do Livro de Ocorrência do DOPS/GB encontram-se os nomes
dos agentes que participaram da ação e os que foram até o local do crime após a entrada na casa
e o assassinato dos militantes.
Maria Regina Lobo de Figueiredo (as informações sobre o caso se encontram na Parte
III do Relatório Final da CNV, nas páginas 914-919), militante da Vanguarda Armada
Revolucionária- Palmares, foi assassinada em 29 de março de 1972. Encontrava-se junto a Lígia
Maria Salgado Nóbrega e Antônio Marcos Pinto de Oliveira, na casa que funcionava como
aparelho da organização. Assim como seus companheiros, sua morte foi divulgada pelos órgãos
de repressão como resultado de ferimento por arma de fogo, resultado de um confronto entre os
militantes e agentes das forças de segurança.
Nos documentos do fundo de Polícias Políticas, consultados no Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro, comprovam que o responsável pela operação conhecida como
“Chacina de Quintino”, era Arthur Brito52. Após os assassinatos, o responsável por apurar os
casos foi Jorge Marques Sobrinho. Além dos dados relativos aos agentes que participaram
efetivamente das ações, dos que estiveram no local após o crime, encontram-se no arquivo
dados e fotografia de Maria Regina depois de morta.
Marilena Villas Boas Pinto (as informações sobre o caso se encontram na Parte III do
Relatório Final da CNV, nas páginas 572-575), militante do Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8), foi morta em 1971 na Cidade do Rio de Janeiro. Segundo informações oficiais
divulgadas, Marilena teria sido baleada em decorrência de um tiroteio, ocorrido na rua
Niquelândia, no bairro de Campo Grande, zona Oeste do Rio de Janeiro. Marilena estava
acompanhada de Mário de Souza Prata, que morreu no local. Em notícia divulgada pela
Secretaria de Segurança Pública, ao ser ferida Marilena teria sido levada ao Hospital Central do
Exército (HCE), onde acabou falecendo.
Essa versão foi contestada, primeiro porque não houve perícia no local para averiguar
as circunstâncias do confronto, morte e ferimento dos envolvidos. Além disso, em depoimento

52
Informação encontrada pela equipe da Comissão Nacional da Verdade no Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro. “Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ): Fundo de Polícias Políticas. Setor
Administração. Notação 86. Registro de Ocorrência 357/72.” (CNV, 2014, p. 916)
111

prestado por Inês Etienne Romeu, ela afirma que ouviu do carcereiro da Casa da Morte 53, que
Marilena teria morrido exatamente no local onde ela estava. Há fortes indícios de que Marilena
tenha sido entregue a agentes do DOI-CODI, e mesmo ferida levada a Casa da Morte em
Petrópolis, de onde já saiu sem vida.
Em pesquisa aos documentos do fundo de Polícias Políticas, foi possível identificar que
Marilena Villas Boas Pinto já vinha sendo há bastante tempo investigada pelo DOPS. Foi
identificado um cartaz de procurada, onde Marilena era apresentada como assaltante de banco.
No Prontuário do DOPS/GB a causa da morte de Marilena é apresentado segundo as
informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública. O local da morte de Marilena,
ficou registrado do Relatório da CNV, como o Hospital Central do Exército. No entanto, as
verdadeiras circunstâncias de sua morte, ainda carecem de mais informações, apesar de tudo
indicar que ela teria sido vítima também de tortura.
O caso de Mário Alves de Souza Vieira (as informações sobre o caso se encontram na
Parte III no Relatório Final da CNV nas páginas 385-392), é mais um retrato das brutalidades
permitidas pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar. Sequestrado em 16 de janeiro de
1970, Mário Alves foi torturado e assassinado por agentes da Polícia do Exército no DOI-CODI,
na rua Barão de Mesquita no Rio de Janeiro. Tornou-se o primeiro caso de reconhecimento da
responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento de preso político, em 1985. Em
1996, O estado do Rio de Janeiro concedeu atestado reconhecendo o óbito de Mário Alves.
Os casos acima selecionados, demonstram uma prática comum dos órgãos de segurança
no período da ditadura militar no Brasil. As tentativas de justificar o extermínio por eles
praticados, produzindo documentos e informações registradas em seus livros de ocorrência,
ordem de serviço, memorandos etc., sobre confronto entre militantes e os agentes de segurança.
Dessa forma, alude-se ao fato de que era colocada em ação uma mecânica burocrática, no
âmbito do Estado, para registrar as falsas ocorrências. Não raro, após investigações produzidas
pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, familiares de mortos e
desaparecidos em diversas frentes. Posteriormente a Comissão Nacional da Verdade e
Comissões Estaduais, conseguem confrontar essas versões, comprovando a partir de
documentos e testemunhas que os órgãos de segurança mentiram, manipularam e forjaram
versões que escondiam as verdadeiras circunstâncias da morte de militantes.

53
A Casa da Morte foi um centro clandestino de prisão, tortura e morte durante o período da ditadura militar
(1964-1985), na Cidade de Petrópolis, Região Serrana do Rio. só foi possível identificar sua localização através
de denúncias de Inês Etienne Romeu. Única militante presa e torturada a sair com vida da Casa da Morte.
112

Os arquivos do fundo de Polícias Políticas, são importantes por registrarem os


responsáveis pelas ações, os agentes envolvidos em cada caso, bem como todo o esquema de
perseguição e eliminação de militantes. Nos casos analisados, a CNV conseguiu fazer o
levantamento da cadeia de comando dos órgãos envolvidos nessas mortes. Nesses casos, a
documentação foi fundamental por legitimar os depoimentos de testemunhas, que muitas vezes
por estarem presas foram as últimas pessoas a verem um militante ainda com vida. Por outro
lado, também é possível que esses mesmos testemunhos confrontando os discursos oficiais
presentes nos documentos, indiquem outras versões e tragam informações que auxiliam a
desmascarar as alegações forjadas pelo Estado.
A Comissão Nacional da Verdade contou com uma rede de apoio formada por
Comissões Estaduais, Municipais e Setoriais da Verdade, com relatórios do Grupo Tortura
Nunca Mais, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, bem como com o
empenho de familiares e vítimas que lutam para que a verdade seja finalmente trazida a público.
Assim, no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade ficou exposta a importância da
criação desta rede de comissões que somaram esforços nos trabalhos de levantamento de dados
e documentos, investigações e organização das informações.
Nesse caso, na próxima seção do trabalho, analisaremos como a Comissão Estadual da
Verdade-RJ, através das suas investigações locais, acionou os documentos do Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro, como importantes instrumentos de prova e contraposição das
afirmações feitas pelos órgãos de repressão, sobre a morte e/ou desaparecimentos forçados de
militantes. Buscamos demonstrar que, assim como a CNV, a mobilização dessas fontes pela
Comissão Estadual da Verdade-Rio, possui um significado diferente daquele em que os
documentos foram produzidos.

3.3 - Comissão Estadual da Verdade Rio- investigações realizadas no fundo de Polícias


Políticas.

A Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro seguiu as mesmas orientações da


Comissão Nacional da Verdade, segundo Salgado e Grabois (2017). Seixas e Souza (2015)
afirmam que num país com dimensões continentais, foi importante que houvesse
desdobramentos da CNV nos respectivos estados federativos. Para os autores, isso foi
importante por alargar e aumentar o alcance das buscas e investigações promovidas pela
Comissão, de modo que os resultados alcançados são complementares e nos auxiliam a ter uma
noção da dimensão que a ditadura e seus desdobramentos tiveram em todo o território nacional.
113

Entre seus objetivos, estão: esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves
violações aos direitos humanos; elucidar os casos de tortura, morte, desaparecimento
forçado, ocultação de cadáver e identificação dos responsáveis; tornar públicas as
estruturas de funcionamento da ditadura; promover a reconstrução da história do
período; dar assistência às vítimas. (SALGADO; GRABOIS, 2017, p.67)

Entre as ações desenvolvidas pela CEV-RIO, estavam as audiências públicas, visitas a


campo nos antigos centros de repressão, como o do DOI-CODI do Exército, que funcionava no
bairro da Tijuca. Foram feitas incursões na sede do DOI-CODI da Aeronáutica e talvez uma
das mais importantes descobertas à época, que foi a localização da Casa da Morte em Petrópolis,
na região serrana do Rio. Salgado e Grabois (2017), Seixas e Souza (2015) concordam quanto
a importância das audiências públicas realizadas pela CEV-RIO, isto porque através dos relatos
e testemunhos era possível “refazer” os caminhos percorridos pelos militantes, além de
possibilitar que fossem os narradores de suas próprias histórias. Ao contrapor os relatos com
versões oficiais, foi possível comprovar que as violências não eram uma prática esporádica, era
o modus operandis dos órgãos de repressão.
Os autores afirmam que no caso da CEV-RIO, a audiência pública com maior destaque
foi a realizada com a presença do ex-major Walter Jacarandá54, no caso de Mário Alves.
Emblemático, porque foram convocados 4 militares acusados e reconhecidamente culpados por
sessões de tortura no período da ditadura militar (1964-1985). O único a comparecer à sessão
foi Walter Jacarandá, que interpelado pelo presidente da sessão e por militantes que
participavam como testemunhas, permanecia calado dizendo que nada sabia e que “nada tinha
a declarar” (Rio de Janeiro, 2015, p. 174).
A Comissão Estadual da Verdade-Rio, assim como a CNV, produziu um relatório ao
final dos seus trabalhos, em dezembro de 201555. Esse relatório é bastante emblemático na
medida em que demonstra os esforços dispensados por todos os agentes envolvidos diretamente
na Comissão, grupos de familiares e colaboradores externos. Enfim, todos que estiveram
envolvidos em esclarecer as violências cometidas pelo Estado brasileiro durante a ditadura
militar. Mais do que isso, a CEV-Rio empenhou-se em fazer uma crítica atualizada da
sociedade, identificando a permanência de uma política de perseguição e de violência que são
atualizados para reprimir cidadãos, conformar as massas e reforçar as desigualdades e
diferenças.

54
Walter Jacarandá, é ex- coronel do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro. Identificado por militantes
como torturador agia no DOI-CODI e DOPS.
55
Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade Rio, disponível em:
http://www.memoriasreveladas.gov.br/index.php/comissoes-da-verdade acessado: 25/008/2020.
114

Fundamental para o desenvolvimento das investigações realizadas pela CEV-Rio foi a


criação e o apoio a Comissões Municipais da Verdade. Ao entrar em contato com a sociedade
civil buscando somar esforços na luta pela verdade foram convocadas reuniões preliminares e
coletivamente foi deliberado a forma como se daria o trabalho das Comissões Municipais. Em
alguns casos, como observado no relatório da CEV-Rio, foi possível contar com o apoio de
órgãos públicos que já vinham atuando na questão da defesa dos direitos humanos. Só no Estado
do Rio de Janeiro foram criados 9 Comissões Municipais da Verdade, a saber: Niterói, Barra
Mansa, Volta Redonda, Duque de Caxias, São Gonçalo, São João de Meriti, Nova Friburgo e
Petrópolis. Segundo relatório final da CEV-Rio, as Comissões Municipais auxiliaram a busca
por documentação, identificação de locais clandestinos de tortura, torturadores. Além disso, foi
possível mapear e tornar público que a ditadura e seus órgãos de repressão não agiam apenas
nos grandes centros urbanos, mas instauraram-se nos interiores e cidades pequenas praticando
igualmente as violências cometidas nas capitais (CEV-RIO, 2015, p. 45)
Assim como a Comissão Nacional da Verdade, houve uma colaboração entre as
Comissões Estaduais da Verdade. Essa parceria foi firmada no intuito de avançar nas
investigações, trocar experiências de métodos e caminhos utilizados para pesquisas, formando-
se naquele momento um intercâmbio de conhecimento. Foram produzidos eventos para que
fossem discutidas ampla e abertamente as pesquisas que estavam sendo desenvolvidas no
âmbito de cada Comissão, a exemplo disso o Encontro Nacional das Comissões Estaduais da
Verdade.

Nos dias 16 e 17 de abril de 2015, a CEV-Rio sediou o Encontro Nacional das


Comissões Estaduais da Verdade, que tinha por objetivo promover o intercâmbio de
experiências e incentivar a colaboração entre as comissões. Participaram do Encontro
representantes da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva,
Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, Comissão Estadual
da Verdade do Paraná – Teresa Urban, Comissão Estadual da Verdade e da
Preservação da Memória da Paraíba e de Minas Gerais, além do Rio de Janeiro. (RIO
DE JANEIRO, 2015, p. 45)

Um fator primordial para que fossem realizadas as pesquisas pela CEV-Rio foi a
parceria firmada com o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Como foi apresentado
anteriormente, o arquivo tem a custódia dos documentos produzidos pela Polícia Política no
Estado do Rio de Janeiro. Desta forma, foi importante a cooperação entre a Comissão e o
arquivo, na medida em que os documentos se apresentam como provas valiosas para
reinterpretação e conhecimento do passado.

O acesso à vasta documentação utilizada nas investigações abordadas neste Relatório


resulta de importante parceria entre a CEV-Rio e o Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ). Além de a equipe contar com a estrutura necessária ao
115

desenvolvimento de suas pesquisas, parte dos pesquisadores teve acesso direto aos
fichários do DOPS, o que dinamizou as investigações. Destaca-se, ainda, o auxílio
dado pelo APERJ aos pesquisadores dos projetos contemplados pelo edital FAPERJ
e pesquisadores colaboradores. (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 47)

Os documentos do fundo de Polícias Políticas foram amplamente utilizados pela


Comissão Estadual da Verdade. O manejo das fontes é referenciado ao longo do relatório final
apresentado pela Comissão, e o que chama atenção e desperta nosso interesse são os usos feitos
no intuito de esclarecer fatos que até então eram controversos, por exemplo, sobre mortos e
desaparecidos políticos causados pelos órgãos de repressão. Com o acesso garantido a
pesquisadores aos fichários do DOPS, bem como o apoio técnico prestado pelo APERJ aos
projetos contemplados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro56 foi
possível a produção e o desenvolvimento de pesquisas que foram fundamentais para
compreender o funcionamento do aparelho repressivo, bem como a dinâmica e a lógica criada
pela Polícia Política na sua rede de investigação e produção de informações.
Com intuito de analisar como os documentos de Polícia Política puderam ser utilizados
nos trabalhos desenvolvidos pela CEV-Rio, vamos analisar o relatório final na parte III
intitulada “Violência e Terror de Estado”. Dividido em capítulos, essa seção do relatório é
emblemática por apresentar as formas de atuação da repressão em diversos níveis. A discussão
e análise abarcam a questão da violência no campo, os trabalhadores urbanos que sofriam
pressão e eram sumariamente perseguidos e investigados, são apresentados casos de militares
que foram perseguidos, a questão racial passa a ser avaliada como central denunciando o
racismo como ação dos órgãos de repressão, são observadas histórias de mulheres que lutaram
avidamente contra ditadura, bem como a perseguição a homossexuais e a comunidade
LGBTQIA+57 durante o período da ditadura militar no Brasil.

56
“Na posse da CEV-Rio, o então governador do Estado, Sérgio Cabral, anunciou o compromisso em apoiar o
estudo de temas relacionados à apuração de violações de direitos humanos durante o período da ditadura,
colocando a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.(FAPERJ) à
disposição para negociações referentes ao financiamento de projetos de pesquisas que subsidiariam os trabalhos
da Comissão. No dia 04 de outubro de 2013, a FAPERJ lançou o edital nº38/2013 Programa “Apoio ao estudo de
temas relacionados ao direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no período
de 1946 a 1988”10. Este edital visou a seleção de projetos coordenados por pesquisadores vinculados a instituições
de ensino e pesquisa sediadas no Estado do Rio de Janeiro e seguiu orientações que estruturavam o próprio
ordenamento dos trabalhos da CEV-Rio. A iniciativa teve investimento total de R$ 2 milhões, distribuídos entre
sete projetos contemplados, de seis universidades do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ, UFRRJ–CPDA, UFF-VR,
PUC-RIO, FGV, IBMEC).” A pesquisa realizada pelo Prof. Dr. Jean Salles também foi contemplada no âmbito
deste edital, sendo de extrema importância para nosso trabalho. (RIO DE JANEIRO, 2015, p.42-43)
57
Escolhemos adotar a atualização da sigla LGBTQI+ por uma questão de respeito às diferenças de gênero e
sexualidade e as abordagens e estudos mais recentes sobre esta questão. Importante informar que as três primeiras
letras L, G, B estão relacionadas a orientação sexual do indivíduo, ou seja, Lésbica, Gay, Bissexual. Já as letras T,
Q, I, A + dizem respeito a identidade de gênero.
116

Não vamos aprofundar nossa análise acerca dos temas acima expostos, mas é importante
sabermos que a CEV-Rio, assim como a CNV e outras Comissões, se empenharam em discutir
a repressão e os impactos da ditadura em grupos, comunidades, setores que anteriormente não
tinham tanta visibilidade nas discussões sobre o tema. No entanto, faremos nossa análise a partir
dos capítulos 12 e 13 do Relatório. Isso porque, o capítulo 12, “Vozes Despertadas”, dedica-se
a depoimentos de homens e mulheres que buscaram a CEV-Rio para contar sobre as violências
as quais foram submetidos nos centros de tortura.
No capítulo 13, “Inventário de Cicatrizes”, a CEV-Rio apresenta 12 casos importantes
sobre mortos e desaparecidos políticos, em que foi possível esclarecer algumas circunstâncias
através da exame do “Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Direito à Verdade e à
Memória produzido pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, e nos
relatórios de familiares de mortos e desaparecidos (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 169)”. Além
disso, foram utilizados documentos do fundo de Polícias Políticas do Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro. Logo, através deste dado buscaremos demonstrar como esses
documentos foram importantes para desvendar algumas informações contraditórias sobre os
desaparecimentos relatados.
Ao abrir espaço de escuta e de compartilhamento da dor, a Comissão Estadual da
Verdade possibilitou que se tornassem públicos, a partir dos testemunhos de militantes e seus
familiares, os horrores aos quais eles foram submetidos enquanto estiveram presos e as sequelas
que carregam até hoje pelas violências sofridas. No caso dos familiares, a dor de não saberem
o que aconteceu com seus entes queridos que estão até hoje desaparecidos e o que foi feito de
seus corpos. Essa possibilidade de escuta, de externar as angústias e de se sentir acolhido e
respeitado, ter sua história reconhecida, encontrar abrigo e apoio são elementos importantes
para dar fôlego e mais energia para que as buscas por informações não cessem e que a
publicidade desses relatos promova na sociedade um sentimento de empatia e de vontade de
lutar para que isso nunca mais aconteça.
A necessidade de narrar o trauma, para usar o termo utilizado por Seligmann-Silva
(2008), advém da possibilidade de criação de uma ponte, um elo capaz de ligar a testemunha,
aquele que narra os fatos vivenciados e as atrocidades experienciadas na ditadura militar (1964-
1985), ao outro. A construção de uma relação de reciprocidade e reconhecimento, onde os
muros que separam as vítimas e a sociedade são derrubados. A fala, a oportunidade de narrar,
de contar o que aconteceu, segundo o autor, é significativo no sentido de trazer à vida, sujeitos
que se encontravam silenciados e a margem.
117

Além da criação de laços de inteligibilidade sobre as violências as quais vítimas foram


submetidas, o testemunho destas pessoas é uma importante arma contra processos
negacionistas. Seligmann-Silva (2008), utilizando-se da análise de Piralian (apud
SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75), observa que os discursos negacionistas são uma dupla
violência que mata suas vítimas. A primeira de forma literal, na segunda a morte se dá pela
negação da primeira. Nesse caso, podemos observar que a ditadura militar (1964-1985),
empenhou esforços no sentido de manter mortas suas vítimas e apagar os sinais e vestígios da
violência que cometeram.
Observando os testemunhos que foram espontaneamente prestados para a CEV-Rio,
encontramos no Relatório Final, informações importantes que comprovam as análises que
fizemos ao longo deste trabalho acerca da importância dos documentos do Fundo de Polícias
Políticas para obtenção de informações que ajudam a esclarecer ou a revelar caminhos para
compreender o que aconteceu com militantes presos, mortos e/ou desaparecidos. Documentos
estes que auxiliam as famílias na conquista de direitos, na demanda por indenização e para a
possibilidade de viver o luto.
No capítulo 12 do Relatório Final da CEV-Rio, nos deparamos com o testemunho de
Valéria Matos Valéria. Ao procurar a CEV-Rio em busca de informações sobre o seu pai, de
quem nem sequer sabia o verdadeiro nome porque havia sido registrada por seu avô. Valéria
descobriu, através de pesquisas feitas pela CEV-Rio no Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, no fundo de Polícias Políticas, que o nome de seu pai era Waldemar Valerio. Através
das pesquisas realizadas nos documentos produzidos pelo DOPS-GB, foi possível identificar
que o codinome Valérius Valério era utilizado por Waldemar. Consta uma investigação contra
Waldemar, sobre a utilização de nome falso na carteira na Casa de Estudante. Em setembro de
1967, foi preso por pichação contra o fundo internacional monetário.
Os documentos também demonstram que em 1969, Waldemar Valerio foi convocado a
prestar esclarecimentos sobre uma viagem que havia feito, em 1967, para Argentina e Chile.
Nos documentos do DOPS/GB a última informação encontrada foi um pedido de busca feito
pelo DOPS/GB no ano de 1972. Desde então, não se tem mais notícias sobre o que teria
acontecido com seu pai.
Para identificação e tentativa de encontrar informações, a CEV-Rio pesquisou em três
Setores do Fundo de Polícias Políticas, a saber: o Setor DOPS-GB, Estudantil e Secreto. Ao
todo foram pesquisadas 5 pastas de documentos e um dossiê disponível no acervo. Apesar das
buscas não terem sido satisfatória no sentido de permitir identificar o que aconteceu com
Waldemar Valério e as causas de seu desaparecimento, através das buscas realizadas foi
118

possível comprovar que ele esteve preso no DOPS/GB no ano de 1967. Além disso, os
documentos mostram que a polícia se empenhava numa vasta investigação a respeito de
Waldemar Valerio. Não tivemos acesso ao depoimento na íntegra realizado por Valeria Mattos
Valerio e os dados que possuímos são os trechos que estão disponíveis no Relatório Final da
CEV-Rio. No entanto, as informações sobre o empenho dos pesquisadores da CEV-Rio em
encontrar informações sobre o Waldemar Valerio são reveladoras. Comprovam a dedicação e
atuação do grupo no incansável processo de busca sobre desaparecidos, demonstrando como os
documentos são importantes instrumentos nessa luta por verdade.
No capítulo 13, Inventário de Cicatrizes, a CEV-RIO apresenta 12 casos de vítimas da
ditadura militar que se tornaram marcantes pelas atrocidades cometidas contra esses indivíduos,
além da tentativa do Estado de se eximir da responsabilidade por essas mortes. A criação de
discursos falaciosos sobre o desconhecimento do paradeiro desses militantes, ou narrativas
falsas sobre o que tinha acontecido realmente com essas pessoas, puderam ser postos a prova
através dos documentos encontrados, sendo alguns destes do fundo de Polícias Políticas sob
guarda do APERJ. Vamos analisar pontualmente cada caso, mas não faremos uma descrição tal
qual se pode encontrar no Relatório Final. Assim, daremos ênfase aos casos em que os
documentos do fundo de Polícias Políticas foram essenciais para contrapor o discurso oficial
do Estado. Deste modo, serão analisados apenas os casos em que foi possível encontrar
documentação no fundo de Polícias Políticas.
O primeiro caso apresentado no Relatório Final da CEV-Rio é o do jornalista Mario
Alves de Sousa Vieira (as informações sobre este caso se encontram no Relatório Final da CEV-
Rio, Parte III nas páginas 170-176). Sequestrado em 16 de janeiro de 1970 por agentes do DOI-
CODI, ficou preso nas dependências do órgão repressivo, submetido a interrogatório e torturas,
visto pela última vez por ex-presos e testemunhas no dia 17 de janeiro do mesmo ano. Seu corpo
nunca foi encontrado e, em decorrência da lei 9.140/95, foi produzido atestado de ausência e
morte presumida no ano de 1996.
As pesquisas realizadas pela CEV-Rio no fundo de Polícias Políticas, Setor
Informações, demonstraram que Mario Alves era investigado desde o início de sua militância
ainda durante o colegial. Sendo assim, foi um dos militantes que mais esteve sob vigilância dos
serviços de informação e investigação do Estado. No Relatório Final da CEV-Rio não
encontramos mais referências sobre o uso de documentos do APERJ, para esclarecimentos do
119

caso Mario Alves. Contudo, estes documentos foram utilizados pelo Ministério Público
Federal58 em denúncia apresentada pelos órgãos, em 2013.
José Roberto Spiegner (as informações sobre este caso se encontram no Relatório Final
da CEV-Rio, Parte III nas páginas 177-179) estudante morto pelo DOPS-RJ, teve sua morte
registrada pela repressão como decorrente de uma troca de tiros. Um dos modus operandi dos
integrantes dos órgãos repressivos era forjar autos de resistência utilizados para justificar
mortes/assassinatos cometidos por agentes da polícia. No caso de Spiegner, foram encontrados
documentos no livro de ocorrência do DOPS, no qual foi registrada a sua morte. Ao contrário
do que havia sido registrado no relatório, de que o militante havia resistido à prisão e atentado
contra vida dos policiais, o laudo médico do IML e as fotos feitas na perícia demonstram que a
morte de José não se deu em decorrência de trocas de tiros59.
Esse caso foi analisado pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, pela
Comissão Nacional da Verdade e pela CEV-Rio. É interessante observar que, apesar da
descrição falseada dos fatos no registro policial, foi possível identificar o nome dos agentes
envolvidos na busca no aparelho da Rua Montevidéo e na Rua Taylor, onde Spiegner foi
capturado. Diferente de Mário Alves, o corpo de Spiegner pôde ser enterrado pela família.
Como destacado no Relatório Final da CEV-Rio, o caso de José Roberto Spiegner é um retrato
das muitas declarações falsas de casos de morte promovidas pelos órgãos de polícia durante a
ditadura.
Nesse caso, os documentos do Fundo de Polícias Políticas, no setor de registros
policiais, não dão pistas do que efetivamente teria acontecido com Spiegner, uma vez que as
provas foram forjadas e o discurso oficial camufla evidências de que outros motivos poderiam
ter levado o estudante à morte. O discurso policial foi colocado em xeque por meio da crítica
ao documento e pela comparação com outras fontes, como o laudo do IML e da perícia
realizada. No entanto, a identificação dos policiais envolvidos na perseguição, presente no
Livro de Ocorrências encontrados no fundo de Polícias Políticas, é um dado importante para
que os nomes sejam tornados públicos e que a sociedade saiba que eles foram responsáveis por
ações criminosas, que levou à morte um estudante de apenas 21 anos. Além disso, outro dado
importante é que o acesso aos documentos do IML e do laudo pericial foram essenciais para
que a farsa montada pela polícia pudesse ser questionada.

58
É possível ter acesso à Denúncia realizada através do site http://
www.prrj.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/publicacoes/custos-legis/denuncia-2013-ditadura-militar-
2013-caso-mario-alves-antonio-cabral-e-luiz-lessa (acesso em xx/xx/2020)
59
Essa afirmação foi realizada pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, encontra-se
citada no Relatório Final da CEV-Rio, página 178.
120

Marillena Villas Boas Pinto e Mario de Souza Prata (as informações sobre estes casos
se encontram no Relatório Final da CEV-Rio, Parte III nas páginas 191-194) foram presos em
abril de 1971, após um cerco policial montado no bairro de Campo Grande, zona oeste do Rio
de Janeiro. Segundo informações oficiais, os dois haviam entrado em confronto armado com as
forças de segurança. Ação que teria levado a morte dos dois militantes, um major havia sido
morto e um capitão ferido. A versão oficial pôde ser averiguada após a CEV-Rio encontrar um
documento produzido pelo Centro de Informações do Exército (CIE) e que foi distribuído para
o DOPS. De acordo com o comunicado expedido pelo Exército, Mario havia sido ferido e
levado para o Hospital do Exército, enquanto Marillena, detida, havia ficado no local.
Através do documento foi possível encontrar o nome do taxista que levava os dois para
o endereço onde foram presos. Em depoimento prestado à CEV-Rio pelo taxista e por vizinhos
do local, foi possível saber que Marillena ficou sob o poder dos agentes de segurança dentro da
casa que era utilizada como aparelho pelos militantes. De onde era possível ouvir gritos que só
cessaram no meio da madrugada. No documento, ficou registrado um pedido de remoção de
corpo de Marcos Prata, que segundo informações oficiais havia morrido no processo de
transferência de hospitais.
O corpo de Marillena foi resgatado por seus familiares e enterrada, já Mario Prata havia
sido enterrado como indigente. Seu corpo só foi encontrado e identificado no ano de 1996,
através de buscas realizadas pelo grupo Tortura Nunca Mais. O documento que registra a ação
foi encontrado no “Setor Terrorismo” do fundo de Polícias Políticas, enquanto as informações
sobre a identificação do corpo de Mario Prata foram encontradas no Setor Administração.

Os elementos levantados permitiram a elucidação do caso, desmentindo a versão


apresentada pela repressão acerca da morte dos militantes Marilena Villas Boas e
Mário de Souza Prata. A partir dos testemunhos colhidos foi possível demonstrar que,
ao contrário do que se afirmava, o casal foi preso com vida e sem ferimentos. Marilena
foi interrogada durante toda a noite e Mário Prata foi levado a uma instituição militar.
Ambos foram mortos enquanto estavam sob poder do Estado, que tentou ocultar suas
mortes ao dificultar o acesso das famílias aos seus restos mortais. (CEV-RIO, 2015,
p. 194)

Stuart Edgar Angel Jones (as informações sobre este caso se encontram no Relatório
Final da CEV-Rio, Parte III nas páginas 195-200), filho da estilista Zuleika Angel Jones,
desaparecido em 1971, é também um dos casos mais conhecidos e com grande repercussão
sobre as violências cometidas por agentes estatais durante a ditadura. Mesmo com todos os
indícios e evidências recolhidos pela sua mãe e pelas Comissões Nacional e Estadual da
Verdade o caso continua em aberto, sem que seu corpo possa ser encontrado e identificado.
121

A CEV-Rio teve acesso a uma carta endereçada a Zuzu Angel, em que o ex-preso
político Alex Polari de Alverga relata a sessão de tortura que os agentes do Centro de
Informação da Aeronáutica (CISA), na base do Galeão, cometeram contra Stuart. Outra
testemunha importante do caso é Maria Cristina de Oliveira Ferreira, presa também na base
aérea do Galeão. Os documentos que comprovam as prisões de Alex Polari e outros presos
políticos podem ser encontrados no APERJ, de modo que dá legitimidade ao seu testemunho
uma vez que atestam que ambos se encontravam presos no local em que Stuart foi visto pela
última vez. Foram consultados o fundo de Polícias Políticas, “Setor GB” e o fundo do
Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara na série Livro de Ocorrências.
Raul Amaro Nin Ferreira (as informações sobre este caso se encontram no Relatório
Final da CEV-Rio, Parte III nas páginas 201-208), era engenheiro, militante e participava do
grupo de apoio ao MR-8. Foi preso, torturado e morto em 1º de agosto de 1971. Sua entrada no
DOPS foi registrada pelo delegado Walter Dantas, fato este comprovado pela CEV-Rio através
de documentos encontrados no “Setor Administração”, do fundo de Polícias Políticas. Raul foi
transferido do DOPS para o DOI-CODI e em virtude dos ferimentos causados pelas sessões de
tortura foi levado ao Hospital Central do Exército. O último interrogatório a que foi submetido,
ainda nas dependências do HCE, foi encontrado no “Setor Secreto”, do mesmo fundo.
Além dos documentos encontrados no fundo de Polícias Políticas, no Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro, outros documentos e provas foram levantadas pela família e um
dossiê foi montado pelos seus sobrinhos. O corpo de Raul foi entregue à família e sua morte
justificada como decorrente de um enfarto. Fato este que pode ser desmentido pelas
investigações realizadas nos laudos realizados pelo médico legista Nelson Massini.
Honestino Monteiro Guimarães (as informações sobre este caso se encontram no
Relatório Final da CEV-Rio, Parte III nas páginas 209-212), estudante e militante político,
desapareceu no ano de 1973. Mesmo antes desse fato, Honestino já havia sido preso e intensas
investigações já haviam sido feitas pelos órgãos de segurança a seu respeito. A CEV-Rio
localizou documentos no APERJ, que datam de 1972, quando foi condenado por ser dirigente
da UNE (que havia sido posta na ilegalidade) e sua participação em grupos de oposição à
ditadura. Através de suas pesquisas no arquivo a CEV-Rio chegou a conclusão de que os órgãos
de repressão não tinham informações exatas sobre a localização de Honestino. A princípio,
acreditava-se que sua atuação política tinha como eixo principal as cidades do Rio de Janeiro,
São Paulo e Brasília. Essas informações foram coletadas no “Setor Prontuário”, do fundo de
Polícias Políticas.
122

Na busca por documentos e informações oficiais produzidas pelos órgãos de repressão,


foram consultados também os “Setores Imprensa, Alvarás e Comunismo”. O caso de Honestino
Monteiro Guimarães nunca foi resolvido, e não foram encontrados documentos substanciais
que ajudassem a esclarecer as circunstâncias do seu desaparecimento. A CEV-Rio levantou
algumas hipóteses sobre o que teria acontecido, mas nenhuma delas pode efetivamente ser
comprovada. Carecemos, portanto, da abertura de todos os arquivos referentes ao período da
ditadura militar no Brasil. Para quem sabe, através de um trabalho árduo de crítica às fontes,
confronto dos discursos oficiais registrados nos documentos e testemunhos possamos
finalmente velar nossos mortos, viver o luto, tornar as lacunas desse passado resolvidos.
As pesquisas realizadas nos arquivos, como apresentamos durante essa sessão, tiveram
resultados positivos em alguns casos. Após o empenho conjunto entre CNV, CEV-Rio e a
colaboração de grupos dedicados a luta pela memória, verdade e justiça, foi possível encontrar
provas documentais e localizar testemunhas. Desse modo, a partir dessa colaboração, casos
como o de Marilena Villas Boas Pinto, para utilizar apenas um exemplo, puderam ser revisados,
desconstruindo a versão forjada pelos órgãos de segurança do Estado. Assim, os discursos
oficiais - elaborados no sentido de ocultar a verdade e se eximir da responsabilidade pelos
mortos e desaparecidos - puderam ser contestados, com base em documentos produzidos pelos
próprios órgãos repressivos e em testemunhos, revelando as verdadeiras circunstâncias da morte
e ou desaparecimento de Raul Amaro Nin Ferreira, Mário de Souza Prata, José Roberto
Spiegner e Mario Alves, por exemplo.
Apesar de não ter sido possível ainda a localização e identificação dos corpos de muitas
pessoas mortas e desaparecidas durante a ditadura militar no Brasil, por meio do levantamento
documental do fundo de Polícias Políticas foi possível a identificação dos militares e agentes
que participaram de emboscadas e ações que levaram à prisão de muitos militantes, como consta
no Relatório Final das citadas Comissões da Verdade. Esse investimento auxiliou na
identificação de uma rede de tortura e violência, onde os nomes de militares e agentes
encontrados nos documentos são, em muitos casos, citados por sobreviventes que os
reconhecem como seus torturadores
Em virtude dos aspectos abordados ao longo das três sessões, percebemos que os
documentos do fundo de Polícias Políticas, sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro, são ressignificados e acionados de formas distintas, de acordo com o contexto e com
a intenção de uso que deles são feitos. Nos casos relacionados à Comissão Especial de
Reparação do Rio de Janeiro, criado através da lei 3.744/2001, os documentos do fundo de
Polícias Políticas, eram utilizados pelas vítimas como elementos de legitimação das narrativas
123

sobre a experiência de prisão e tortura que haviam sofrido, realizadas por agentes em órgãos do
Estado. Essas narrativas, além de terem sido objeto de denúncia eram uma peça importante no
processo de demanda por indenização, de modo que os documentos eram provas dos fatos
narrados e, ao mesmo tempo, comprovavam o direito das vítimas de receberem uma reparação
pecuniária, por parte do Estado, ainda que simbólica. Já para os membros conselheiros da CER,
os documentos possuíam valor pragmático e eram analisados em seu conteúdo enquanto provas
objetivas dos fatos.
Por outro lado, para a Comissão Nacional da Verdade e para a Comissão Estadual da
Verdade-Rio, esses documentos eram compreendidos como peças-chaves para construção de
narrativas que contrapunham os discursos oficiais produzidos por agentes repressivos e
registrados em documentos, no âmbito da própria burocracia do Estado. Os trabalhos exaustivos
desempenhados tanto pela CEV-Rio quanto pela CNV, tinham objetivos claros de reelaboração
do passado e reinterpretação das “verdades oficiais”. Os resultados das atividades feitas pelas
Comissões comprovam o que o Estado brasileiro há muito tempo vinha tentando negar e apagar:
sua responsabilidade pelos bárbaros crimes cometidos contra a dignidade humana, a vida e a
democracia, cometidos na ditadura militar brasileira (1964-1985).
124

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa buscou analisar os diversos acionamentos e usos que foram feitos dos
documentos do fundo de Polícias Políticas, sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ), por vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos, Comissão
Nacional da Verdade e Comissão Estadual da Verdade Rio. Escolhemos antes de iniciar nosso
debate acerca do tema acima explicitado, apresentar o panorama e a forma como se deu a
consolidação da Arquivologia como disciplina e os arquivos como locais essenciais de guarda
de documentos.
Dedicamo-nos, no primeiro capítulo, a um debate extenso sobre o que são arquivos,
sendo esta discussão importante na medida em que compreendemos que nossos leitores podem
não ser formados apenas por profissionais familiarizados com o tema. De modo que apresentar
o que são arquivos, para além de uma definição acadêmica, permite uma compreensão holística
capaz de comunicar aos diversos públicos aos quais nosso texto pode alcançar. O arquivo, para
ser considerado de valor histórico, depende diretamente do uso social que dele é feito. É o modo
como esses documentos são interpretados de acordo com o contexto de utilização, que garante
a eles a qualidade de permanentes.
No caso de documentos produzidos por órgãos estatais no contexto da ditadura militar
brasileira (1964-1985), por exemplo, houve e há até hoje um campo de disputa acirrada entre
os que defendem a abertura de todos os documentos produzidos no período e aqueles que
insistem em negar a existência dos mesmos. Nos documentos do fundo de Polícias Políticas, no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, foi possível perceber que a luta pela guarda e
salvaguarda dos documentos foi um processo longo. Diversos foram os desafios enfrentados
pela instituição, por sorte uma parte significativa da documentação foi recolhida. No entanto,
não é possível mensurar quantos documentos podem ter sido perdidos durante o tempo em que
o arquivo estava à deriva sem o devido tratamento técnico e as possíveis retiradas clandestinas
de documentos.
Entender como se dá a organização de arquivos permanentes/históricos é importante
para pesquisadores que desejam desenvolver pesquisa em instituições de guarda de
documentos. Os arquivos possuem uma linguagem técnica própria que dá conta de atender as
necessidades organizacionais do acervo, os critérios e métodos criados e desenvolvidos são
saberes que o profissional responsável domina. Entretanto, percebemos que quando o usuário
compreende a lógica organizacional do acervo, a pesquisa se torna mais fluida facilitando o
125

acesso e a busca dos documentos que deseja. Nesse sentido, o pesquisador consegue ao ter
acesso aos instrumentos de pesquisa decifrar os códigos utilizados para identificação da
localização do conjunto e item documental. Através da apresentação das técnicas relacionadas
à organização dos arquivos, construímos as bases necessárias para iniciar uma reflexão sobre a
função social dos arquivos.
Compreender a consolidação internacional da arquivologia e seus impactos na
arquivística brasileira foi essencial para o debate que se seguiu. Uma vez que, a partir do
conhecimento das influências francesa e americana no saber arquivístico, aprendemos sobre os
métodos utilizados na organização dos nossos arquivos permanentes. Através desta discussão,
foi possível identificar as diversas possibilidades e potencialidades que mobilizam a guarda de
documentos e os qualifica como de caráter histórico. De modo que, para a sociedade, esses
documentos além de serem compreendidos como elementos da atividade administrativa
burocrática, passam a ser reconhecidos como instrumentos importantes para a construção de
memórias, identidades e mecanismo de prova contra ações promovidas pelo Estado durante a
ditadura militar (1964-1985).
Sendo assim, foi possível discutir e analisar a função social dos arquivos a partir das
narrativas de direito construídas por vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos.
A luta travada ainda durante a ditadura militar brasileira encampada por vítimas e familiares de
mortos e desaparecidos em busca de respostas e informação sobre as violências e violações
cometidas por agentes do Estado, tornou-se um importante ponto de debate e de reconhecimento
da relevância dos documentos. Documentos estes que serviam como prova de que pessoas
foram sequestradas, presas, torturadas e desapareceram sob tutela do Estado, seus agentes e
agências da repressão. Nem todos os casos, como identificamos ao longo da nossa pesquisa,
puderam ser solucionados e muitas famílias lutam até hoje para que o Estado reconheça e
assuma sua responsabilidade pelo desaparecimento forçado.
A partir de um estudo sobre o processo que envolveu o recolhimento e organização dos
documentos que formaram o fundo de Polícias Políticas, pudemos concluir que mesmo após o
período de redemocratização, muitas foram as dificuldades e empecilhos enfrentados pelas
instituições de guarda em realizar a identificação de toda documentação que fazia parte do
fundo, bem como o procedimento de recolhimento dos mesmos. Ao terem sido armazenados
de forma inadequada, os documentos das Polícias Políticas encontravam-se em mau estado de
conservação. Além disso, a grande massa documental e o risco de deterioração fizeram com
que o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro criasse um verdadeiro esquema de
“resgate”.
126

Isto demonstra que nem sempre o recolhimento de documentos, sobretudo, os


produzidos pelas Polícias Políticas, durante a ditadura militar, é feito sem dificuldade, ainda
que realizado em período posterior à ditadura, em 1992. O acervo do DOPS-RJ, possui uma
característica simbólica por tratar de um acervo que foi produzido no auge do aparelhamento
do regime militar, produziam documentos utilizados como supostas provas e “verdades” contra
militantes ou qualquer indivíduo contrário ao governo.
Nesse sentido, ao chamarmos atenção para as armadilhas e tensões advindas do uso
destes documentos por pesquisadores profissionais, vítimas e familiares ficaram claros os
cuidados que devem ser tomados. Quer dizer, quando estamos avaliando os usos feitos por
vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos, os documentos produzidos pelos
órgãos repressivos passam a ser compreendidos como elementos importantes de prova das
violências de violações cometidas por agentes do Estado. De modo que a função social dos
arquivos passa a ser compreendida, nesse momento, pela sua capacidade probatória, ainda que
seu caráter de arquivo repressivo permaneça.
No entanto, em alguns casos não é possível encontrar nos arquivos a resposta para as
perguntas e inquietações que movem o pesquisador e o usuário do arquivo. Nestes casos, é
necessário que sejam avaliadas as faltas, as lacunas deixadas por documentos que não podem
ser encontrados no conjunto documental. Identificar que os hiatos, para além de serem um ponto
de dificuldade, quando bem avaliados podem indicar outros caminhos e possibilidade de
pesquisa. No caso de pesquisadores acadêmicos, novos caminhos e novas abordagem podem
ser enriquecedoras e levam a conclusões ou reflexões que, a princípio, não tinham sido
elaboradas.
A partir do debate que foi sendo desenvolvido ao longo do trabalho, destacamos que ao
utilizar o termo “arquivo de repressão” estamos tratando de documentos que foram produzidos
em períodos marcados por ditaduras, como a vivida no Brasil entre 1964 e 1985. Além disso,
os documentos da repressão são, também, documentos que podem ser caracterizados como
“sensíveis”. Isto porque, dependendo do olhar lançado à fonte, esses documentos mexem com
feridas ainda abertas, fazem reacender traumas e dores que não foram curados, principalmente,
por familiares de mortos e desaparecidos que até hoje lutam por informações sobre seus entes
queridos.
Nessa análise, percebemos que a categoria de “vítima” surgiu como uma importante
ferramenta de luta. Sendo utilizada e ressignificada de acordo com a demanda social advinda
dos avanços e retrocessos enfrentados ao longo da luta pela verdade e justiça. Se durante as
décadas de 1960 e 1970 ainda não havia se consolidado uma noção de vítima como uma
127

gramática de luta, a partir dos anos 1990 o termo passou por um processo de politização,
ganhando força e a categoria de vítima foi ressignificada passando a ser mobilizada como forma
de identificação dos sujeitos que compõem a luta pela verdade, memória e justiça.
Seguindo na construção narrativa e reflexiva que fomos conduzindo ao longo do
trabalho, quando nos dedicamos a analisar os acionamentos práticos da documentação das
Polícias Políticas escolhemos três caminhos diferentes, mas que dialogam por possibilitar a
observação prática do uso feito dos documentos. Assim, ao investigarmos casos de pedido de
indenização na Comissão Especial de Reparação, criada através da lei 3.744/2001,
identificamos que, para vítimas, o requerimento de indenização em muitos casos servia como
uma espécie de desabafo ou mesmo uma oportunidade de publicizar os horrores e violências
pelas quais esses indivíduos passaram. Nesse sentido, os documentos do fundo de Polícias
Políticas eram acionados como prova material dos argumentos utilizados para demanda de
indenização. Mas também, eram dispostos de forma a construir a lógica e a narrativa de
denúncia contra o Estado.
Já nos casos investigados pela Comissão Nacional da Verdade e Comissão Estadual da
Verdade Rio, identificamos que os documentos são importantes como instrumentos para refutar
e questionar as afirmações e alegações defendidas por órgãos do Estado, acerca do
desaparecimento e morte de militantes. Nos casos selecionados por nós, nos relatórios finais
das duas Comissões, observamos que os documentos do fundo de Polícias Políticas foram muito
importantes para o andamento das investigações. Para alcançar êxito, tanto a Comissão
Nacional da Verdade, quanto a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro fizeram uso
dos documentos do fundo de Polícias Políticas, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro,
conjugado a outras fontes e depoimentos de testemunhas.
Consideramos assim, que ao longo da nossa pesquisa conseguimos construir uma linha
de análise em que o conhecimento técnico arquivístico e o saber histórico alinham-se na
percepção da importância da preservação dos documentos produzidos por órgãos e agências do
Estado durante a ditadura militar. Estes documentos compreendidos a partir das diversas
potencialidades de uso, possuem para nós um significado político. Ou seja, faz-se urgente a
abertura de todos os documentos de agências e órgãos que atuaram de forma repressiva e
criminosa durante a ditadura militar, além de ser uma demanda que ultrapassa os interesses de
familiares de vítimas, colocando-se como um compromisso que o Estado brasileiro deveria
assumir com seus cidadãos.
Concluímos nossa pesquisa, com alguns questionamentos que julgo necessários nos
debates e estudos sobre os desdobramentos das lutas de vítimas e familiares, entre eles a
128

necessidade de melhor compreender como os estados brasileiros lidam com as pessoas que
sofreram perseguições e violências durante a ditadura. Esta questão está posta pela dificuldade
que enfrentamos para encontrar trabalhos que refletiam sobre as formas e consequências das
Comissões Especiais de Reparação, sobretudo, a criada no Rio de Janeiro em 2001.
No que se refere a Comissão Especial de Reparação no Estado do Rio de Janeiro, temos
um material riquíssimo com mais de mil processos de requerimento de indenizações
perpetrados por vítimas e familiares de vítimas da ditadura. Esta documentação encontra-se no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, mesmo órgão estatal onde estão salvaguardados
os documentos de Polícia que foram produzidos durante a ditadura militar (1964- 1985). É
necessário que esse material seja explorado, que as Comissões de Reparação sejam estudadas a
fim de criarmos um panorama nacional de atuação dos Estados na reparação e indenização de
suas vítimas.
129

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