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TÍTULO

A A FAIR

CUIDADO COM AS CURVAS


(Beware the Curves - 1956)

Detetives Cool e Lam #16

* * *
O AUTOR

A FAIR - (Erle Stanley Gardner) - nasceu em 7 de Julho de 1889


A em Malden, Massachusetts. Quanto Gardner tinha 10 anos, o
pai se mudou com a família para Portland no Oregon. Considerado uma
criança prodígio, se matriculou na Universidade de Valparaíso, porém foi
expulso, menos de um mês após a matrícula após se envolver numa luta
de boxe ilegal. Tal fato fez com que Gardner descobrisse o seu talento
como pugilista. O sonho do pai de Gardner era que seu filho fosse
advogado. Aos 21 anos foi contratado para trabalhar num escritório de
advocacia em Willow. Na Califórnia se casou com Natalie Frances
Beatrice Talbert em 9 de Abril de 1912 com quem teve um filho, e em
1915 se mudou para Ventura, onde em 1916 abriu um escritório de
advocacia, porém seus métodos legais ousados não atraíam os americanos,
por esse motivo, aliado ao fato de falar chinês fluentemente, Gardner
defendeu grande parte de clientes chineses, que também lhe serviram de
inspiração para o livro The Case of the Howling Dog em 1934. Pouco
depois Gardner se mudou para São Francisco, mas dois anos depois, em
1921 retornou a Ventura, onde se juntou a empresa Orr. Em 1921
Gardner se aproveitou das horas vagas para escrever a história "Naughty
Nellie Nighty", que no final do mesmo ano, foi publicada na revista
Breezy Stories.

Gardner passou então a ter uma carreira dupla, advogado durante o


dia e escritor durante a noite. O objetivo de Gardner era escrever 100 mil
palavras por mês. As histórias de Gardner iam desde romances policiais
até ficção científica. Gardner usou pseudônimo como Charles Green,
Kyle Corning e Grant Holiday, entre os títulos do autor, "Speed Dash
The Human Fly", e "Lester Leith". Em 1923 como Charles M. Green,
publicou a novela "The Shrieking Skeleton” - O Grito dos Esqueletos; na
revista Black Mask junto a Dashiell Hammett e John Carroll Daly, a
novela não obteve muito êxito, os editores da revista acharam que fosse
uma piada, e publicaram junto a novela, uma nota se desculpando com os
leitores da revista, que fizeram impiedosas críticas ao trabalho do autor,
Gardner, porém, leu as críticas e as usou para aperfeiçoar a novela, que foi
vendida a Black Mask por US$160. Assim iniciou a brilhante carreira de
um autor que venderia mais de 300 milhões de livros. Em 1933
abandonou a advocacia e passou a se dedicar inteiramente a literatura.
Mason que já era um sucesso, se tornou fenômeno nos anos 80 quando
seus romances foram adaptados para uma série televisiva, estrelada por
Raymond Burr. Sob o pseudônimo de A.A. Fair, Erle Stanley criou ainda
uma série de romances protagonizada por Donald Lam e Bertha Cool.
Além de outros personagens como o delegado Doug Selby, e o seu rival
Alphonse Baker Carr. Erle Stanley escreveu ainda como Kyle Corning,
Charles M. Green, Carleton Kendrake, Charles J. Keny, Les Tillray e
Robert Parr. Erle Stanley morreu em 11 de Março de 1970, em sua casa,
no Rancho del Paisano.

* * *
Bertha Cool (Benay Venuta) e Donald Lam (Billy Pearson)

LIVROS DA SÉRIE DETETIVES COOL E LAM

1. 1939; The Bigger They Come;


2. 1939; The Knife Slipped;
3. 1940; Turn on the Heat;
4. 1940; Gold Comes in Bricks;
5. 1941; Spill the Jackpot!;
6. 1941; Double or Quits; Morrow;
7. 1942; Owls Don't Blink;
8. 1942; Bats Fly at Dusk; Morrow;
9. 1943; Cats Prowl at Night;
10. 1944; Give 'em the Ax; Morrow;
11. 1946; Crows Can't Count;
12. 1947; Fools Die on Friday;
13. 1949; Bedrooms Have Windows;
14. 1952; Top of the Heap;
15. 1953; Some Women Won't Wait;
16. 1956; Beware the Curves;
17. 1957; You Can Die Laughing;
18. 1957; Some Slips Don't Show;
19. 1958; The Count of Nine;
20. 1959; Pass the Gravy; Morrow;
21. 1960; Kept Women Can't Quit; Morrow;
22. 1961; Bachelors Get Lonely;
23. 1961; Shills Can't Cash Chips;
24. 1962; Try Anything Once;
25. 1963; Fish or Cut Bait; Morrow;
26. 1964; Up for Grabs; Morrow;
27. 1965; Cut Thin to Win; Morrow;
28. 1966; Widows Wear Weeds;
29. 1967; Traps Need Fresh Bait;
30. 1970; All Grass isn't Green;

* * *
RESUMO

ONALD LAM e sua parceira, Bertha Cool, detetives particulares, são


D contratados por um cliente misterioso para investigar Karl Carver
Endicott, mas a primeira coisa que descobrem é que Endicott foi
assassinado. Agora o suspeito está tentando descobrir se é seguro para ele
voltar para sua amada seis anos depois, pois o assassinado era o marido...

* * *
Um

ERTHA COOL se assemelhava muitíssimo ao grande hipopótamo,


B na época dos amores. Isso transparecia em todos os seus gestos.
— Donald, quero lhe apresentar Mr. Ansel, John Dittmar Ansel.
Donald Lam, meu sócio...
O homem era grande e delicado. Parecia um poeta: nariz fino, boca
sensual, cabelos negros ondulados e mãos compridas de artista. O
vestuário era sóbrio e elegante.
Quando se levantou, calculei que tivesse um metro e oitenta e
quatro. A sua voz, harmoniosa e calma, e o modo de apertar a mão
revelavam um homem adverso a toda a violência. Nunca na minha vida
vira dois seres tão diferentes um do outro como a gorda Bertha Cool e
John Dittmar Ansel.
Aquela, sentada à mesa, era toda doçura. Enquanto falava, fazia
gestos e os diamantes que lhe ornavam os dedos soltavam chispas.
— Donald, me explicou ela, — Mr. John Dittmar Ansel é escritor.
Talvez já tenha lido algumas das suas habilidades... Quero dizer, das suas
obras?
Interrompeu-se e me olhou com ansiedade. Respondi com um sinal
de cabeça afirmativo. No rosto de Bertha, apareceu então um sorriso
radioso. Ansel interveio, num tom de desculpas:
— Não escrevi muitos romances, mas sim artigos técnicos. Uso
sempre o pseudônimo Dittmar.
— Mr. Ansel tem um problema, prosseguiu Bertha, — E o
aconselharam a que o procurasse. Perguntou por mim, mas, se não me
engano, lera B. Cool" na porta e julgara se tratar de um homem.
Sorriu a Ansel e continuou:
— Mostrou-se muito compreensivo, mas percebi que havia alguma
coisa que não estava bem. Foi por isso que quis lhe apresentar: um
detetive do sexo masculino inspira, sem dúvida, mais confiança...
Podemos ser úteis a Mr. Ansel, Donald, muito úteis... Está claro que só a
ele compete julgar e decidir, mas, em qualquer caso, não haverá qualquer
ressentimento da nossa parte.
Bertha sorria afavelmente, mas dificilmente conseguia disfarçar a
expressão dos olhinhos cúpidos que rebrilhavam com um fulgor frio como
os diamantes que trazia nos dedos. Ansel nos observava com um ar
hesitante.
Bertha com as suas cento e sessenta e cinco libras de carne, os seus
cinquenta anos bem entrados, era em geral tão atraente e dura como um
fio de arame farpado. Ansel não parecia perceber que tudo aquilo era pura
fachada! Contudo, recuava tranquilamente, pouco a pouco, e, em certo
momento, se achou entre Bertha e a porta. Lançou-me um olhar
hesitante, como se tentasse dizer o que pensava, sem me magoar.
Bertha falava cada vez mais depressa, procurando expor os seus
argumentos, antes de Ansel se eclipsar.
— O meu sócio, Donald Lam, é novo, não terá talvez a estatura que
esperaria encontrar num detetive particular. Mas é esperto, terrivelmente
esperto e é exatamente por... Por...
Bertha procurava visivelmente as palavras, depois pareceu dizer a si
mesma que não valia a pena. Subitamente abandonou a sua atitude de
delicadeza requintada para voltar a ser a mulher de negócios:
— Tem um ar tão inofensivo, disse, — Que pode andar por todo o
lado e conseguir uma quantidade de informações sem ninguém
desconfiar. Ninguém o julgaria um detetive particular. É um verdadeiro
diabo, pode crer! Em todo o caso, precisará se decidir: quer que
trabalhemos para si ou não? Se não quiser, vá embora pois temos mais o
fazer. Se quer, sente e fale! Já estou enjoada de vê-lo se aguentar ora num
pé ora noutro como um tipo à porta do banheiro.
Venceu. A boca sensual de Ansel se distendeu num sorriso. Tornou a
se aproximar de nós e se sentou.
— Julgo que a contrato.
— Muito bem, respondeu Bertha. — Isso vai lhe custar muito
dinheiro.
— Quanto?
— Diga-nos de que se trata e diremos quanto.
— Sabe, Mrs. Cool, os escritores não são muito ricos! Aquilo não
deu certo.
— Os detetives também não, replicou Bertha.
E, como Ansel pousasse o olhar sobre os anéis que lhe
ornamentavam os dedos, acrescentou vivamente:
— Salvo os bons, é evidente! Que pretende?
— Procuro alguém.
— Quem?
— Esqueci do sobrenome. Lembro apenas do nome próprio: Karl.
— Está brincando? Perguntou Bertha.
— Não.
Ela me lançou um olhar.
— E porque o procura? Perguntei.
Ansel passou a mão pela cabeleira espessa e ondulada. Depois me
olhou e sorriu:
— Deu-me uma ideia formidável para escrever um romance.
— Quando?
— Há seis anos.
— Onde?
— Em Paris.
— E porque quer voltar a encontrá-lo?
— Para obter o direito exclusivo de utilizar a sua história.
— É verídica?
— Sim, mas desejo fazer dela um romance. Seria extraordinário.
— Nesse caso, disse eu, — Conheceu Karl em Paris. Mas há muitos
Karl que vão a Paris. É tudo quanto pode nos dizer como informação?
— Evidentemente que naquela época sabia o seu sobrenome, mas
esqueci por completo. Sei que morava por aqui, num lugar chamado
Cítrus Grove, não muito longe de Santa Ana. Era rico e aquela era a sua
viagem de núpcias. A mulher se chamava Elizabeth, mas ele tratava-a
sempre por Betty. Era uma jovem muito gentil, de resto...
— E que história era? Perguntei.
— Tratava dum casamento... Era... Era a história dum homem
apaixonado por uma jovem que não o ama e que acaba por convencê-lo
de que o seu amor não é mais do que...
Calou-se.
— Não quero divulgar uma intriga tão perfeita.
— Bem, bem! Por conseguinte, devemos descobrir um homem
chamado Karl, morador em Citrus Grove, que foi a Paris há seis anos para
passar a lua de mel lá e que possui o assunto ideal para um romance! Pode
nos descrever esse homem?
— Alto, maciço, espadaúdo... O gênero de tipo que se impõe e
consegue tudo o que quer.
— Que idade?
— A minha pouco mais ou menos.
— Ou seja?
— Tenho atualmente trinta e dois anos.
— Qual a origem de todo o seu dinheiro?
— Ignoro!
— Qual era a sua profissão?
— Emprego de capital, creio eu.
— A quanto se elevava a sua fortuna?
— Não sei; parecia realmente ter tudo quanto queria.
— Isso é um pouco vago.
— Nada mais sei.
— Louro ou moreno?
— Ruivo.
— Olhos?
— Azuis.
— Altura?
— Um metro e setenta e seis.
— Peso?
— Pesado, à volta dos cem, cento e dez quilos. Não era
verdadeiramente gordo, mas largo e maciço. Compreende o que quero
dizer?
— Aborrecia-o ser tão forte?
— Creio que sim, mas não fazia dieta. Comia o que queria e tinha
horror a se privar fosse do que fosse.
— Em que hotel se instalara?
— Ignoro.
— Tinha ido de navio ou de avião?
— Creio que de navio, mas não ouso afirmar.
— Em que época?
— Em julho.
— E que deseja que façamos?
— Simplesmente que descubram e me deem o seu nome, nada mais.
— Muito bem, pode contar conosco, disse eu.
— Quanto me cobrarão?
— Cinquenta dólares.
Bertha se inclinou tão bruscamente para a frente que a sua poltrona
soltou um estalido de indignação. Abriu a boca como se para dizer alguma
coisa, mas depois mudou de ideia. Notei que os seus olhos rebrilhavam,
que tinha as faces cor de púrpura e que as pálpebras tremiam.
— Como poderei contatar consigo? Perguntei a Ansel.
— Daqui a quanto tempo poderá me dar uma resposta?
— Basta um dia, não mais.
— Nesse caso, é inútil contatar comigo. Voltarei aqui, amanhã à
tarde, à mesma hora.
Estendeu-me a mão comprida e fina, cumprimentou Bertha e se
eclipsou definitivamente. Ela nem sequer esperou que a porta se fechasse:
— Nunca na minha vida tinha visto um indivíduo tão cretino, tão
avarento, tão tímido e tão preguiçoso, como...
— Ele?
— Não, como você! Gritou ela em voz esganiçada.
— E porque diz isso?
— Nem sinal, falou com violência, — Nem nota de encargos! Nem
endereço! Apenas cinquenta miseráveis dólares para encontrar um Karl
que fez uma viagem a França há seis anos. Sim, cinquenta dólares e nem
mais um centavo! Deixa esse tipo sair daqui sem sequer lhe extorquir um
adiantamento para cobrir as nossas despesas. Finalmente, fixou um preço
ridículo a uma investigação que pode nos custar mais de mil dólares.
— Acalme-se, Bertha. Esse tipo é escritor. Há seis anos, uma pessoa
lhe deu uma boa ideia. Não parece nadar em dinheiro e quer se servir de
fatos verídicos para escrever um romance; como quer voltar a encontrar o
tipo emprega um detetive. Não acha que é um caso banal, banalíssimo?
Bertha meneou a cabeça em sinal de assentimento quando entreviu
tudo quanto eu queria dizer com aquilo.
— Não tinha pensado em tudo sob esse lado!
— Pois já é o momento de fazê-lo!
— Valha-me Deus, gostaria de saber o que ele procura, na realidade.
— Descobriremos amanhã à tarde, sem dúvida. Talvez esteja
escrevendo algum artigo sobre as agências de detetives e as suas maneiras
extraordinárias de extorquirem uma quantidade de dinheiro aos clientes,
graças a, digamos, nota de despesas! Conhece os métodos de certos
jornalistas. Enviam alguém munido de um rádio novo para fazer a ronda
nas empresas de consertos. Tomam nota de todos aqueles que enganam o
cliente, falando de grandes consertos, de mudança de lâmpadas e de uma
quantidade de outros truques!
— Macacos me mordam! Exclamou Bertha, enquanto eu saía.

* * *
Dois

S ESCRITÓRIOS dos jornais abriam às oito horas e meia. Cheguei


O lá às oito e meia em ponto e pedi que me deixassem consultar os
números de seis anos atrás.
Entregaram-me um belo maço deles, sem sequer me perguntarem
quem eu era. Como a lua de mel tivera lugar em julho, em Paris, calculei
que o casamento datasse do mês de junho. Por conseguinte, examinei
especialmente os números desse mês e, às oito e quarenta e sete, tinha à
minha frente a fotografia de Karl Carver Endicott e de Elizabeth Flanders.
A jovem trabalhara como secretária de um advogado da cidade. Karl
Carver Endicott era o protótipo do magnata: laranjais, poços de
petróleo... Em resumo o homem de negócios, novo e simpático... O
poderio petrolífero mais em vista...
Tomei alguns apontamentos e entreguei os jornais à jovem sentada à
mesa. Agradeceu-me com um sorriso e apoiou a ponta do pé sobre um
botão escondido. Adivinhei o gesto. Repetiu, para ter certeza de que o
alarme tocara.
Ouvi-o ressoar numa sala próxima. A porta se abriu e deixou ver um
homem novo, de cabelos muito compridos e de olhar vivo. Fingiu
procurar alguma coisa e depois os seus olhos pousaram em mim.
— Posso lhe ser útil? Indagou.
— Não, obrigado, encontrei o que procurava.
— Não posso ajudá-lo, realmente?
— Não, não!
Eles deviam farejar alguma coisa. Eu chegara de improviso e pedira
para consultar jornais de seis anos atrás. Tanto podia não ser nada, como
uma história interessante. Queriam ser postos a par. Não podiam admitir
que outro jornal roubasse um bom artigo. Se não fosse nada de interesse,
não queriam perder tempo. E era precisamente isso que eu queria fazê-los
acreditar.
— Pediu para consultar números antigos, explicou a jovem da mesa.
— Ah, sim? Disse o jornalista com um olhar penetrante.
— Umas buscazinhas acerca do aumento dos bens imóveis,
expliquei, rindo. — Estou interessado num terreno que já esteve à venda
há seis anos. Queria saber quanto pediam por ele, nessa época.
— E encontrou? Perguntou o rapaz. Meneei a cabeça numa
negativa.
— Encontrei apenas o anúncio “À venda". Por conseguinte, vou
passar pelo agente de câmbio. Espero que possa me informar.
— Talvez! Admitiu o rapaz. — Evidentemente que isso depende do
gênero de terreno: comercial ou residencial?
— Ah, sim, isso faz diferença? Perguntei.
Fez que sim com a cabeça. Naquele momento, podia ter saído e nada
teria acontecido. Mas experimentei uma sensação de segurança das mais
enganadoras. Até ali, tudo correra tão bem que tive vontade de ir até ao
fim.
— Reparei que um tipo chamado Endicott tinha terrenos para
venda.
— Endicott? Disse.
— Sim, Karl Carver Endicott.
O repórter se mostrou estupefato; tentou esconder a sua surpresa,
mas não conseguiu. A jovem deixou cair um lápis que tinha na mão e não
fez o mínimo gesto para apanhá-lo. Depois de ter engolido em seco por
várias vezes, o repórter acabou por dizer:
— Conhece... Conhece Endicott?
— De modo algum! Interesso-me por terrenos e não pelos seus
proprietários!
— Compreendo.
— Se fosse possível, gostaria de conseguir um arrendamento.
No final das contas, estava enterrado na minha mentira até ao
pescoço e nada mais tinha a recear.
— OK. O quê que há de estranho a respeito de Endicott?
— Isso depende dos pontos de vista.
— Continua a residir na cidade?
— Sim, muito perto.
Examinava-me do mesmo modo que um gato observa um buraco de
rato.
— Sou até capaz de conhecê-lo. Há alguns anos, conheci um sujeito
chamado Endicott. Era precisamente daqui. Foi durante a sua viagem de
núpcias ao estrangeiro.
— Compreendo, declarou o repórter, num tom sinistro.
— Diga-me, o quê que aconteceu? Esse homem teve peste ou quê?
— Karl Endicott foi assassinado precisamente depois do regresso do
estrangeiro. Se isso lhe interessa, lhe direi que há uma recompensa de
vinte e cinco mil dólares para a pessoa que tornar possível a captura do seu
ou dos seus assassinos. Se tem alguma pista, ficaríamos reconhecidos se
nos dissesse.
— Assassinado?
— Sim.
— Quem oferece a recompensa?
— A Direção das Empresas Endicott.
— Evidentemente, acrescentei com um sorriso. — Ignoro como se
chama. Enfim, seja como for, as histórias de terreno nada têm a ver com
um assassinato.
Dirigi-me imediatamente para a saída.
Entrara no carro da agência para vir a Citrus Grove e cometera a
burrice de estacioná-lo a dois passos da porta. Como não ousasse voltar a
entrar nele, me dirigi ao escritório de um agente de câmbio. Discuti
acerca de generalidades, durante um momento, e depois voltei a sair.
Depois de um bom café da manhã me dirigi à Biblioteca Municipal. Só
abria às dez horas; por conseguinte, me abriguei numa cabina telefônica e
comecei a folhear a lista. O repórter continuava no meu encalço.
Avistei um policial que verificava o horário de estacionamento dos
carros. Não queria ser multado. Entrei rapidamente num restaurante, bebi
uma xícara de café e depois, me dirigindo para a porta marcada lavabos,
entrei deliberadamente na cozinha. O cozinheiro, ocupado a retirar ovos
mexidos duma frigideira quente, fez um gesto e disse:
— É por ali, amigo!
Lancei-lhe um vago sorriso, atravessei a cozinha e saí pela porta dos
fundos. Percorri a viela, contornei um edifício e depois me dirigi com a
maior rapidez possível para o meu carro, evitando, contudo, correr.
Naquele momento preciso, a policial colava uma bonita “borboleta”
no meu para-brisa. O repórter estava atrás dele, com um bloco de notas
na mão.
— Estou desolado, declarei ao tira. — Vinha buscar o carro.
— Chegou atrasado.
— Julguei que pudesse estacionar até às dez horas. Apontou com o
dedo para um letreiro colocado do outro lado da calçada.
— Estacionamento limitado a uma hora, entre as oito da manhã e as
seis da tarde, salvo domingos e feriados.
— Seja compreensivo! Pedi, com um sorriso. — Não sou da cidade.
— O carro é seu?
— Sou eu que o dirijo.
— Mostre-me a carteira de motorista. Estendi-a.
— Bem, desta vez, passa!
O repórter me mimoseou com um sorriso diabólico. Subi para o
carro e liguei o motor. Mas que história deixava atrás de mim! Imaginava
facilmente os seus títulos em grandes caracteres:

UM DETETIVE DE LOS ANGELES VEM INVESTIGAR UM


CRIME

A partir daí, podiam fazer floreados:

Donald Lam, da firma Cool & Lam, investigadores particulares de Los


Angeles, esteve esta manhã na cidade. Consultou números antigos do nosso
jornal local, acerca do assassinato de Karl Carver Endicott. Lam se recusou
falar e até a dizer o seu nome. Parecia nitidamente mais desejoso de obter
informações do que de dá-las. Apesar disso, pode se deduzir do simples fato de
uma agência particular realizar uma investigação... Etc, etc.

Muito bem. E então? Se aquele maldito cliente tivesse feito jogo


franco, eu não teria fracassado desta maneira. Uma coisa é certa: estava
muito irritado. E Bertha que me descrevera como sendo um tipo muito
astuto! Imaginei facilmente a cara do nosso cliente poeta, de olhos
sonhadores e de mãos finas e compridas, lendo o jornal de Citrus Grove.
Ora, que fosse para o diabo! Antes desse jornal aparecer eu já teria
esclarecido tudo. Quanto a ele, teria todas as informações que desejasse.
Parei no retorno para telefonar a Elsie Brand, minha secretária
pessoal.
— Viva, Elsie! Bertha está?
— Sim.
— Agitada?
— Acho que sim.
— Agressiva?
— Não.
— Viu o nosso cliente de ontem, um homem chamado Ansel?
— Não.
— Telefonou ontem à tarde, cerca das três horas. Deve passar por aí
hoje. Mais ou menos, à mesma hora. Agora, escute: Às quinze para as três
horas, estarei no bar em frente. O barman me conhece. Quando o sujeito
chegar, me telefone. Não diga a Bertha que falei consigo, faça de conta
que não sabe de nada. Combinado?
— Combinado! Desliguei e me dirigi para a Biblioteca Municipal.

* * *

Um enorme repertório conservava os nomes dos escritores


publicados no decurso do ano nas revistas dos Estados Unidos. Trinta
minutos depois de chegar à Biblioteca, soube que o nosso cliente John
Dittmar Ansel nunca escrevera alguma coisa, nem sob o nome de John
Ansel nem sob o de John Dittmar.
Um amigo meu estava encarregado da seção de necrologia de um
grande jornal de Los Angeles. Fui procurá-lo e pedi emprestados os artigos
referentes ao assassinato de Karl Carver Endicott. Os jornais de Los
Angeles tinham falado muito a seu respeito sem infelizmente saberem
nada de preciso.
Quando cheguei ao bar, a televisão transmitia um jogo de futebol;
Elsie me interrompeu para me dizer que o dito Ansel se encontrava no
escritório e que Bertha arrancava os cabelos, tentando se pôr em contato
comigo.

* * *
Três

O ENTRAR no escritório, a telefonista me avisou:


A — Bertha procura desesperadamente falar consigo. Dei
uma olhada ao meu relógio, ergui a sobrancelha e disse:
— OK, vou até lá.
Atravessei o átrio da recepção e abri a porta da sala particular de
Bertha antes da jovem ter tempo de me anunciar pelo telefone interno.
Ansel estava sentado, direito e rígido numa cadeira, com as pernas
cruzadas, e uma expressão de vítima no rosto. Bertha Cool me lançou um
olhar. Reparei que a sua expressão estava mais sombria do que
habitualmente.
— Valha-me Deus, onde tinha se metido? Perguntou-me.
— Estava trabalhando no caso deste cliente, respondi apontando-o
com um sinal de cabeça.
— Não conseguia encontrá-lo.
— Não estava na cidade.
— Percebi. Já fez o relatório para Mr. Ansel?
— Sim. Já fiz.
Mr. Ansel ergueu as sobrancelhas castanhas. Avancei e lhe apertei a
mão; depois me sentei a um canto da mesa de Bertha.
— Descobri o que o senhor queria saber.
— Muito bem. E? Perguntou Mr. Ansel.
— Chama-se Karl Carver Endicott e mora em Citrus Grove. Casou
de fato com Elizabeth Flanders, há seis anos. Depois, me calei.
Ele se inclinou para a frente, esperando que eu prosseguisse.
Acendi um cigarro. O silêncio se tornou significativo. Bertha
começou a dizer alguma coisa, depois, percebendo que procedia
propositadamente daquele modo, cerrou os lábios finos. Ansel se agitou,
me olhou, depois examinou com olhar vago o tapete e tornou a olhar para
mim. Continuei fumando tranquilamente.
— E depois? Acabou por perguntar.
— Nada mais, respondi, saboreando a sua surpresa. — Não é o que
queria saber? O homem se chama Karl Carver Endicott e vive em Citrus
Grove, ou, mais exatamente, fora da cidade, perto dum rancho chamado
Whippoorwill.
— Whippoorwill, repetiu num tom vago.
— Exatamente!
Sorri e continuei a fumar. Ansel voltou a se agitar na cadeira.
— Pois bem, agora vou andando, disse eu a Bertha. — Tenho de
tratar do caso Russett e...
— Mas... E o meu caso? Perguntou Ansel, muito surpreso.
— O seu caso? Repeti num tom inquiridor, me virando para ele. —
Está acabado. Liquidado. Queria saber o nome desse Karl que conhecera
em Paris. Tinha esquecido do seu endereço. Já o informei de ambas as
coisas, não é?
— Sim, mas onde ele está agora?
— Não sei, não me perguntou isso. Humedeceu os lábios com a
ponta da língua:
— Gostaria muito que descobrisse.
— Mas isso dará muito trabalho.
— Como? Exclamou Bertha. — Um sujeito desses não pode ter
desaparecido sem deixar endereço!
— Tudo depende do lugar onde se encontre atualmente! Expliquei
num tom cheio de subentendidos.
Bertha compreendeu e se calou.
— Pois eu gostaria de saber! Confesso que... Enfim não pensava que
se contentasse em descobrir o seu nome, exclamou Ansel.
— Não foi só isso que tinha me perguntado?
— Sem dúvida, não fui bem explícito.
— É o que julgo!
— Pois bem, interveio Bertha, com uma voz impaciente, — Porque
diabos quer que se prossiga esta investigação, se já tem o nome e a
endereço do sujeito! Pegue uma lista telefônica e telefone. Ou escreva;
pode escolher entre um telegrama e uma carta!
— Está certa. Se compreendi bem, queria contatar com ele por causa
da sua formidável ideia para um romance.
Ansel passou a mão pelos cabelos.
— Mas certamente deve ter descoberto alguma coisa a seu respeito...
Quando soube de quem se tratava...
— Ah, sim, respondi, — Mas absolutamente por acaso. E isso é
outra história. Queria saber o seu nome; pois bem, já sabe!
— Mas me compreendeu mal! Obstinou-se Ansel.
— É possível, mas para uma pessoa que está interessada no
assassinato, se explicou muito mal.
— Não estou interessado no assassinato, quero simplesmente...
De súbito, a sua voz se calou e o silêncio reinou no aposento.
— Como sabe que houve um assassinato, Ansel? Inquiri com um
sorriso irônico.
Procurou responder à pergunta. Deu a impressão de querer dizer
alguma coisa, mas não conseguiu formular uma palavra.
Subitamente, Bertha Cool se animou: se inclinou para a frente e a
sua cadeira soltou um estalo. Ela farejava o cheiro do dinheiro do mesmo
modo que um cão de caça fareja uma pista.
— Se essa história do assassinato o preocupa, Ansel, devo observar
que cometeu numerosos erros. Esqueceu de me dizer que o principal
sujeito era um homem alto e magro, de cabelos castanhos e de mãos
compridas de artista. Qualquer motorista de táxi é capaz de identificá-lo.
Negligenciou também me pôr a par. Resultado: Agi sem nenhuma
precaução. Neste momento, a polícia já deve saber que a Agência Cool &
Lam se interessa pelo caso de Karl Carver Endicott. Eles são terrivelmente
cínicos e céticos. Não acreditarão nessa ideia de romance, de há seis anos.
Pensarão imediatamente que nos ocupamos do assassinato. Não
demorarão a vir nos interrogar. O terceiro erro foi não ter dado o seu
endereço. Foi impossível contatar consigo: queria preveni-lo para que não
passasse por aqui. Enfim, o que está feito, feito está, compete a si se
desembaraçar. Da próxima vez que pedir uma investigação, explique
claramente o que pretende saber. Entretanto, pague os cinquenta dólares
prometidos.
— Mas... Mas... Exclamou Ansel. — Está indo um pouco depressa!
— Com os detetives, isso acontece às vezes, retorqui. Agitou-se
alguns instantes na cadeira e depois acabou por dizer:
— Estou desolado.
— Porquê? Nós fizemos o nosso trabalho. Demos-lhe a informação
que nos pedira. Não lemos no pensamento dos nossos clientes. Por
conseguinte, pague esses cinquenta dólares à minha sócia.
Depois me dirigi para a porta.
— Eh, um momento, interveio Bertha. — Onde vai?
— Sair! Repliquei. Ansel ficou com um ar terrivelmente perplexo.
Saí do escritório, fui até ao parque de estacionamento onde
estacionara o carro da Agência, liguei o motor e esperei.
Ansel saiu quinze minutos depois do edifício. Olhou, receoso, por
várias vezes para trás, depois viu que ninguém prestava atenção nele e
pareceu se tranquilizar. Estacionara o carro no mesmo parque que eu.
Deste modo, pude examiná-lo tranquilamente enquanto saía dali, ao
volante de um incrível Chevrolet, com quatro anos, pelo menos, e a placa
AWY 421.
Comecei a segui-lo, a uma boa distância. Parecia estar desconfiado.
Seguiu por ruas sem grande movimento, e fez uma série de ziguezagues,
contornando edifícios, atravessando grandes praças; devia ter o olhar no
retrovisor para saber se alguém estava interessado no seu passeio. Deixei
de segui-lo, percorri cerca de cem metros da avenida principal e fui
estacionar numa rua transversal.
Ansel teve de fazer uma quantidade de manobras complicadas para
escapar a uma perseguição, pois esperei vinte minutos antes de vê-lo
novamente. Descia a avenida. Devia ter acabado por se convencer de que
não era seguido. Por conseguinte, já não havia qualquer dificuldade em
ficar no seu encalço. Por fim, parou diante dum bangalô da Betward
Drive e estacionou o carro. Parei à distância de algumas casas. Entrou no
bangalô. Meia hora depois, ainda não saíra de lá. Voltei ao escritório.
As secretárias já tinham ido embora. Bertha estava sozinha.
— Valha-me Deus, onde tornou a se meter? Que ideia foi essa de
desaparecer daquela maneira e de perder um cliente no meio duma
discussão?
— Dei-lhe todas as informações pedidas.
— Pois sim, replicou Bertha, — Mas se você fosse tão esperto como
diz, devia saber que ele poderia muito bem nos pedir outras, pagando, é
evidente!
— Estava até certo de que ele ia nos propor isso mesmo!
— Que quer dizer?
— Ele quer saber se pode voltar lá sem perigo.
— Que quer dizer com “voltar lá”?
— Um motorista de táxi levou um cliente na casa de Endicott, na
noite do crime. Segundo o seu testemunho, era um tipo alto e magro, de
olhos negros, com cerca de trinta anos. Levava na mão uma pasta preta.
Pouco antes de chegar lá, abriu-a e retirou dela um revólver que colocou
no bolso. O motorista pensou imediatamente num assalto. Pôs-se em
guarda, com os olhos no retrovisor. Mas não se tratava disso. O tipo
desceu em frente à casa de Endicott, pagou ao motorista dando um dólar
de gorjeta e se dirigiu para a porta da rua. O táxi se pôs em marcha. No
dia seguinte, o motorista se dirigiu à polícia.
— A única testemunha, aposto.
— A única que a polícia relatou. Mas soube que havia um banqueiro
na sala de Endicott, um sujeito chamado Hale, que tinha uma reunião de
negócios com ele.
— E o que aconteceu?
— Naquela noite, não havia criados na casa. Endicott tivera uma
discussão com a mulher pouco antes. Esta fizera a mala, entrara no seu
próprio carro e desaparecera. Tem apenas uma possibilidade a seu favor.
Ter parado para colocar gasolina numa garagem de Citrus Grove. É
conhecida e tem conta lá. Por conseguinte, encheram o tanque e
verificaram o nível de óleo. O empregado se lembra da hora porque já iam
fechar. Hale diz que bateram à porta. Endicott pediu licença e foi abrir.
Hale ouviu um homem trocar algumas palavras com ele, depois alguns
passos no átrio, ruídos de vozes confusas e, alguns momentos depois, uma
detonação, proveniente do primeiro andar. Hale acorreu. Alguns instantes
depois, descobria o corpo de Endicott num dos quartos do primeiro
andar. Jazia numa poça de sangue, morto. Uma bala de calibre 38 lhe
reduzira a nuca a papa.
Os olhinhos ávidos de Bertha coruscavam de atenção.
— E quanto ao motorista do táxi? Perguntou.
— Disse que o homem devia ter batido à porta às nove horas e que
reparou nisso por ser a sua hora de largar o serviço. Alguns minutos
depois, estava de volta à estação de táxis. Hale depôs que o tiro deve ter
sido desferido às nove horas em ponto. O empregado da garagem afirma
que Mrs. Endicott saía da garagem precisamente a essa hora. Ia fechar. Ela
tomou o caminho de San Diego. Ninguém sabia para onde ia. Mais tarde,
Mrs. Endicott contou à polícia que soubera a notícia através do rádio. Na
manhã seguinte, voltou a Citrus Grove por causa do enterro. Endicott
não fizera testamento. A mulher herdou tudo, pois ele não tinha outros
herdeiros. Alguns meses depois, Mrs. Endicott voltou a viver na sua casa
de Whippoorwill. Sai muito pouco e leva, segundo dizem, uma vida de
reclusa. Hale confidenciou a alguns amigos que Endicott parecia nervoso
e deprimido. Dissera-lhe que a mulher acabara de abandoná-lo. Na
opinião da polícia, deve ter sido vítima de chantagem e o mestre-cantor, o
assassino.
— Como? Perguntou Bertha.
— Na manhã desse mesmo dia, Endicott retirara do banco vinte mil
dólares em dinheiro. Era a terceira vez no período de alguns meses. De
uma vez, ficara reduzido a dez mil dólares. Dissera a Hale que estava à
espera de uma visita, mas que não demoraria mais do que alguns
instantes.
— Que babuínos me mastiguem! Exclamou Bertha. — Dez mil
dólares! Mas isso só pode ser chantagem!
— Sim! É bastante remunerador! Bertha pareceu sonhadora. —
Estamos quites quanto ao sujeito? Perguntei a Bertha.
— Que quer dizer com quites?
— Ora porque o cliente descrito pelo motorista do táxi, o que bateu
à porta de Endicott alguns minutos antes do assassinato, se assemelha a ele
muitíssimo. A polícia julga se tratar do chantagista a quem Endicott teria
dito não querer continuar a pagar!
— E então?
— Que faria você se fosse uma chantagista? Se tivesse um cliente que
lhe pagasse dez mil dólares por mês: mandava-o desta para melhor?
— Não, diabos! Respondeu ela imediatamente. — Faria um seguro
de vida e lhe conseguiria um guarda-costas para que ele não se deixasse
atropelar ao atravessar a rua.
— É exatamente o que eu pensava! Bertha refletiu:
— Se não fosse esse motorista de táxi, não haveria problema!
— É provável, admiti. — Mas é inútil informar a polícia das nossas
deduções. Eles são uns bons velhacos.
— Isso é verdade, aquiesceu Bertha. — Conhece o nome próprio
desse motorista?
— Sim, respondi, tirando do bolso o meu bloco de notas. — Drude.
D-r-u-d-e. Drude Nickerson, informei. Bertha esboçou o sorrisinho de
lado.
— Um destes dias, Donald, será forçado a admitir que, se você sabe
esclarecer os enigmas, eu aqui sei me arranjar para fazer entrar dinheiro no
cofre.
— Que quer dizer? Perguntei.
Ela abriu a gaveta da mesa, retirou de lá cinco belas notas novas de
cem dólares.
— O que é?
— Um adiantamento.
— Sobre quê?
— Sobre informações que você já tem.
— Como é?
— De que modo descobriu essa história do assassinato?
— Ora, achei que essa história cheirava mal. Consultei os jornais
para descobrir alguma informação útil...
— Acertou em cheio, disse Bertha. — Leia isto!
Estendeu-me um artigo recortado numa coluna de necrologia e li:
Nickerson, Drude, esposo bem-amado de Maria Nickerson. Morto num
acidente de automóvel, perto de Susanville, Califórnia. Será enterrado na
intimidade... Não mandem flores.

— Encantador, comentei. — Mas que relação tem isto com os


quinhentos dólares?
— Estamos encarregados de descobrir se se trata realmente do
motorista de táxi do caso Endicott. E teremos direito a outros quinhentos
dólares no fim da investigação, além de uma quantia razoável para
pagamento das nossas despesas. Compreendido, Donald?
— Não devia ter aceito, Bertha.
— Que diabo quer dizer? Não aceitar? Exclamou. — Quinhentos
dólares dos bons! Vai nos custar saber como gastar tanto dinheiro,
Donald, não me diga o contrário!
— Mas se trata de verdadeira dinamite!
— E então? O sujeito apenas quer uma coisa: saber se Drude
Nickerson é o famoso motorista de táxi.
— Pois bem, disse eu, consultando o meu relógio de pulso, —
Espero que ainda estejamos a tempo.
— A tempo de quê? Perguntou Bertha, num tom pouco amável.
— De esclarecer a história do assassinato de William Desmond
Taylor, respondi. — Lembre-se deste caso: foi em 1921. Um dos mais
célebres crimes de Hollywood que ficaram por esclarecer.
Desta vez, Bertha ficou confusa.
— Um de nós está completamente maluco, vociferou enquanto eu
abria a porta. — Volte! Gritou com voz estridente. — Volte, homem dos
diabos!
A porta, ao se fechar, calou-a. Cheguei a tempo à Biblioteca
Municipal e comecei a consultar os jornais antigos acerca do assassinato
de William Desmond Taylor.

* * *
Quatro

CASO Taylor era célebre em Hollywood. Fora um grande


O realizador no tempo do cinema mudo.
Uma manhã, em 1921, o seu criado pessoal, ao abrir a porta do
monumental quarto, descobrira-o, morto, jazendo no assoalho. Este
acontecimento tivera numerosas repercussões inesperadas.
Entre outras, se descobriu que William Desmond Taylor não era
outro que William Deane Taner, misteriosamente desaparecido em Nova
Iorque, alguns anos antes. Os dados biográficos de que o célebre
realizador se rodeava eram tão fictícios como os enredos dos seus filmes.
Falou-se muito em Hollywood de uma misteriosa camisola, feminina, de
seda. Os jornais se encarregaram de explorar essa história. Segundo o
rumor geral, o criado encontrou-a cuidadosamente dobrada numa gaveta
da cômoda. Arrumara-a de uma certa maneira, mas, por várias vezes,
descobrira-a dobrada de modo diferente.
Falou-se das mais célebres atrizes de momento, e fizeram as mais
estranhas suposições, explicações e comentários, tudo isso de uma maneira
tão exagerada como nos famosos filmes daquela época.
Naquele tempo, uma perseguição, no cinema, comportava o
inevitável manejo: o autor corria até ao fim do palco, parava e olhava na
direção errada. Protegia a vista com uma mão para dar a compreender que
observava o horizonte. Depois, se virava, fazia o mesmo na outra direção e
apontava um dedo significativo: “É por ali.” Depois começava a correr
como uma flecha para recomeçar o mesmo manejo na outra extremidade
do cenário.
Recorreu-se ao mesmo processo para investigar o assassinato de
William Desmond Taylor. Apontei uma profusão de notas. Depois, já no
fim da tarde, quando a Biblioteca se preparava para fechar as portas, meti
os dois blocos de notas no bolso. Se quisessem saber o que
investigávamos, responderia: o caso Taylor.
Na quarta-feira de manhã, voltei a consultar os artigos de jornais
sobre necrologia. Quando voltei ao escritório, Bertha Cool se preparava
para ir almoçar.
— Foi a Susanville? Perguntou.
— Vou lá precisamente.
— O quê? Valha-me Deus! Já devia ter ido há muito tempo. O
nosso cliente telefonou e eu disse que você estava lá.
— Perfeito!
— Mas que andou fazendo desde ontem? Perguntou, me lançando
um olhar acerado.
— Fiz um seguro.
— Um seguro? Confirmei com um aceno de cabeça.
— Para que não nos tirem a licença de detetives.
— E quando parte? Perguntou, demasiado exasperada para se perder
em pormenores.
— Imediatamente. Vou tomar um avião para Reno, depois alugarei
um carro para ir a Susanville.
Os olhos de Bertha rebrilhavam de cólera.
— E quando chegará a Susanville?
— Não sei!
— Escute, o nosso cliente está preocupado. Já me telefonou duas
vezes. Quer saber o que você anda fazendo. Garanti-lhe que estava
tratando seriamente do caso.
— Muito bem. Enquanto acreditar nisso, estará satisfeito. O rosto
de Bertha se tornou púrpura de cólera:
— Mas que diabo de necessidade tinha de fazer um seguro, quando
este caso é claro como água?
— Para mim, é claro demais.
— Que quer dizer?
— A polícia bem que gostaria de liquidar este caso Endicott. A única
testemunha é um motorista de táxi, chamado Drude Nickerson.
Subitamente os jornais anunciam a sua morte em Susanville e que será
enterrado com toda a simplicidade. Poderia se imaginar que o corpo seria
transportado para Citrus Grove e enterrado ali...
Pelos olhos de Bertha perpassou um fulgor de compreensão.
— Até breve. Depois me encaminhei para a porta.
— Macacos me mordam, falou ela em voz baixa, enquanto eu saía.

* * *
Cinco

HEGUEI a Susanville ao fim da tarde. Procurei um hotel e me


C registrei com o meu nome verdadeiro, dando o endereço da
agência. Depois, dei um pulo à Casa Mortuária de Susanville.
— Não têm o corpo de um certo Nickerson? Inquiri. O homem me
examinou atentamente, por trás do balcão e depois se pôs a folhear papéis
e um enorme registro.
— Sim! Respondeu por fim.
— Qual é o seu nome próprio?
— Drude. D-r-u-d-e.
— Que sabe sobre ele ou sobre o seu passado?
— Isso diz respeito à polícia, foi morto na rua.
— Para quando está marcado o enterro?
— Ninguém pode assistir a ele.
— Eu sei, mas quando é?
— Ainda não está decidido.
— Posso ver o corpo?
— Já foi posto no frigorífico. Quem é o senhor?
— Lam, Donald Lam, de Los Angeles.
— Alguém da família?
— Não. Estou interessado no caso, é tudo.
— De que gênero de interesse se trata?
— Verificação! Nickerson vivia em Citrus Grove. Porque não
fizeram o enterro lá?
— Não sei.
— É o legista que está encarregado do caso?
— Sim.
— Nesse caso vou procurá-lo.
— Como quiser.
— A propósito, quanto à roupa! Julgo que a devem ter identificado.
Posso ver a sua carteira de motorista?
— Precisa de uma autorização.
— Demora muito tempo a se obter?
— Não, não muito!
O homem estendeu o braço para o telefone, discou um número e
disse:
— Está aqui um homem chamado Lam, de Los Angeles. Está
fazendo uma investigação acerca de Drude Nickerson. Quer ver a sua
carteira de motorista e a sua roupa, para ter certeza da identificação. Está
fazendo uma quantidade de perguntas. Que devo fazer?
Escutou, por alguns instantes, e depois respondeu:
— Compreendido! Desligou.
— O legista vai mandar alguém aqui. Se as suas razões forem
convincentes, lhe mostrará o que deseja ver..
— Tenho razões convincentes, afirmei.
Não precisei esperar muito tempo. Tentei sem grande sucesso, falar
com o tipo do balcão. Remexia numa quantidade de papéis, como se
tivesse muito trabalho.
A porta se abriu e três homens entraram. Não havia engano possível:
eram tiras. O tipo do balcão me designou com um gesto, sem abrir a
boca, e os três se aproximaram de mim.
— OK. Disse um deles mostrando a sua insígnia. — Sou o xerife.
Por que razão está interessado no caso Nickerson?
— Ando fazendo uma investigação.
— Com que fim?
— Sou detetive.
— E que tem isso? Primeiramente, nos mostre a identidade.
Obedeci. Depois o xerife olhou para o maior dos dois
homens.
— Por conseguinte, Lam, esta metendo o nariz neste caso.
— Muito prazer em conhecê-lo, disse eu imediatamente. Fez-me um
breve sinal de cabeça sem sequer me estender a mão.
— O que procurava ontem nos velhos jornais da Citrus Groves? O
que queria saber?
— Colhia algumas informações!
— Está bem, disse o xerife de Susanville. — Siga-nos.
Escoltaram-me até um carro estacionado diante da porta e me
conduziram a uma casa que devia ser a do xerife. Foi o do Condado de
Orange que se pôs a me interrogar. Tinha um ar simpático, mas parecia
encolerizado e prestes a tudo.
— Não julgue que vai se desembaraçar tão facilmente. É detetive
particular. E se trata de um assassinato.
— Eu sei.
— Foi consultar os jornais de Citrus Grove, em busca de
informações acerca do assassinato de Endicott, não é verdade?
— Não.
— É inútil mentir, estamos perfeitamente informados a esse respeito
e...
— Nesse caso, deviam saber que eu estava interessado no seu
casamento. Entreolharam-se.
— Telefonem para o jornal de Citrus Grove. Estou pronto a pagar a
ligação. Saberão desse modo que não tive o mínimo interesse pelo crime.
O xerife fez um gesto de assentimento.
— Muito bem. É inútil telefonar. Acreditamos na sua palavra.
Tratava do casamento... Mas porquê?
— Porque já sabia do do assassinato!
— Nesse caso, admite?
— Certamente.
— Muito bem... Faz progressos. Mas porque estava interessado nessa
história? Em que lhe dizia respeito? E o que sabe?
— Tudo o que os jornais escreveram. A morte desse tipo Nickerson
dá um novo aspecto ao caso. Pessoalmente, me interesso pelos crimes não
esclarecidos da região, para escrever um livro. Ainda não sei que título
darei... Talvez: Assassínios na Califórnia.
— Certamente não espera que engula isso, não é? Disse o xerife.
— Certamente que sim. Isso pode dar uma quantidade de dinheiro.
Há revistas que se especializam em verdadeiras histórias de assassinatos e
posso até fazer um livro. Passei o dia de ontem tirando apontamentos
acerca da morte de William Desmond Taylor. Isso é que é uma bela
história!
— Sim! Já a escreveram um milhar de vezes! Disse o xerife do
Condado de Orange.
— Mas não à minha maneira!
— Que quer dizer?
— Não quero dar com a língua nos dentes, para que não roubem as
minhas ideias.
— Já escreveu?
— Não, nunca!
— Tenho vontade de rir.
— Algum dia vai ser o primeiro.
— E você começa por se arruinar com despesas de viagens. Vejo que
não faz poupanças!
— Foi o que fez, não é verdade? Ataquei imediatamente.
— O que quer dizer com isso?
— O senhor publicou uma história acerca do crime Endicott, numa
revista policial. Já tinha escrito antes?
— Não fui eu. O tipo assinou com o meu nome, é tudo.
— Pois bem, eu tenho a certeza de ter talento. E, graças ao meu
trabalho, estou na posse de todos os pormenores de certas histórias. Os
resultados podem jogar esta casa abaixo.
Peguei na minha pasta e estendi-a:
— Pegue, veja. Não hesito em lhe mostrar as minhas notas acerca do
caso William Desmond Taylor. É evidente que não lhe direi como conto
tratar o assunto...
Examinaram aqueles apontamentos atentamente e revistaram os
meus dois blocos de notas de ponta a ponta. Depois trocaram entre si
olhares intrigados e furiosos.
— Que faz em Susanville? Perguntou.
— Investigo a morte de Nickerson.
— Porquê?
— Porque, se ele morreu, nunca encontrarão o assassino de
Endicott.
— Não esteja tão certo disso! Interveio o xerife do Condado de
Orange.
— Evidentemente que há a possibilidade de ser perseguido pela sua
consciência. Se ele vier confessar, poderão lhe colocar a mão, caso
contrário não têm a mínima possibilidade.
— Porque queria ver o corpo?
— Para tirar uma fotografia do cadáver no caixão.
— Esqueça!
— Bem. Nesse caso, tirarei algumas fotografias do acidente e do
lugar onde morreu. Isso me servirá de ponto de partida.
O xerife meneou negativamente a cabeça.
— Porque não?
— Não estamos de acordo.
— Ao menos, me diga porquê?
— Estamos armando uma ratoeira, explicou o xerife. — Não
queremos que ande pelo lugar e nos estrague o trabalhinho.
O deputado acrescentou imediatamente:
— Estamos tratando do caso e não queremos estranhos nele.
— Desejo simplesmente reunir alguns testemunhos sobre o acidente
e fotografar os carros... É um assunto apaixonante!
— É inútil insistir. Os próprios jornais estão dispostos a cooperar.
Aconselho-o a fazer o mesmo.
— E dizer que gastei uma quantidade de dinheiro para vir tirar essas
fotografias, lamentei com certa irritação.
— Onde está a máquina?
— Iria alugar uma. Primeiramente quero adquirir alguma prática.
Não estou interessado em fazer uma compra tão cara, quando começo
precisamente a escrever.
Subitamente, o xerife de Susanville propôs:
— E se fôssemos discutir isso, à parte? Todos se levantaram e saíram.
— Fique aí! Recomendou-me.
Voltaram ao fim de cinco minutos. O xerife do Condado de Orange
me perguntou:
— Trabalha em Los Angeles?
— Sim.
— Quem conhece na polícia?
— Frank Sellers, do Serviço Criminal.
— Nesse caso, espere, vamos lhe telefonar. Pediu a ligação e desligou
o telefone.
Ficamos calados à espera da ligação. Eu sentia a desconfiança na sua
atitude. Por fim, o toque do telefone quebrou o silêncio.
— Deve ser Sellers, disse o xerife, pegando no auscultador. — Alô?
Adivinhei que algo acontecera. O seu rosto mudou de expressão.
— Que nome? Soletre, por favor. Como diz?
Pegou num lápis e escreveu alguma coisa no bloco pousado ao lado
do telefone. Depois perguntou:
— O primeiro nome, por favor? Ela dirige o próprio carro... OK.,
me dê o número. Está matriculado na Califórnia? Pode apanhá-lo... Oh,
cerca de dez minutos... Sim, seremos o mais rápidos possível...
Primeiramente, temos de aguardar um telefonema de Los Angeles... Faça
o que puder, combinado!... Sim, se não conseguir volte a ligar.
O xerife desligou e lançou um olhar significativo aos outros. Em
seguida arrancou a folha do bloco e colocou-a no bolso. Depois de
consultar o relógio, começou a dizer alguma coisa. O telefone tornou a
tocar e o xerife pegou no auscultador.
— Alô? Pela expressão do seu rosto, adivinhei que se tratava de
Sellers. — Temos aqui um detetive particular, chamado Donald Lam.
Que sabe dele?
O receptor emitiu uns ruidozinhos rangentes.
— Anda metendo o nariz num caso. Está juntando, digamos,
apontamentos para um artigo. Mas não queremos que por ora se fale da
história. Que havemos de fazer dele?
Voltaram a se ouvir ruídos de voz no receptor.
— Explique-se um pouco melhor, pediu o xerife. Sellers falou
durante três bons minutos. — Entendido, disse por fim o xerife.
Desligou e se virou para mim. A sua voz soou mais calma.
— Segundo Sellers, você é muito astuto, e nunca trai um cliente...
Mas é um terrível mentiroso.
— Isso foi gentil da parte dele!
— Disse que, se você der a sua palavra, podemos confiar em si.
— Há um se.
— Com efeito.
Depois de alguns momentos de silêncio, o xerife prosseguiu:
— Como veio até aqui?
— Aluguei um carro em Reno.
— Muito bem, Lam. Não o retemos por mais tempo.
— Mas eu não quero ir embora.
— Tenho um recado a lhe dar da parte de Sellers. Pede-lhe que
desista. É evidente que, se representa um cliente, fique. Se procurar
escrever uma história, lhe prestará um serviço tornando a partir.
Fui me sentar a um canto da mesa do telefone, com ar pensativo.
Com a mão direita atrás das costas, fingi me apoiar. Quando me
certifiquei de que não podiam vê-la, arranquei a folha superior do bloco.
O xerife escrevera na que ficara por cima. Fechei-a no côncavo da mão e
coloquei-a no bolso das calças.
Todos eles tinham o olhar fixo no meu rosto sem prestarem atenção
aos meus movimentos.
— Então? Perguntou o xerife.
— Deem-me tempo para pensar!
— Já o teve.
— Sellers é um tipo sério. Não gostaria de aborrecê-lo.
— Ele diz que você é muito astuto para merecer confiança.
— Isso é um cumprimento! Ele me conhece bem! Suspirei, pegando
na pasta. — De acordo! Tenho horror a esbanjar dinheiro, por isso vou
embora.
— Não sei o que pensar! Disse o xerife do Condado de Orange.
— Nem eu! Acrescentou o terceiro.
— Nesse caso, querem que eu fique um dia ou dois? A minha voz
estava cheia de solicitude. — Talvez pudesse escrever a minha história, se
mudarem de opinião?
— Não, replicou o xerife, — Depois de refletirmos, preferimos que
parta já. Tem uma hora para desaparecer. Se não souber o caminho, lhe
indicaremos de boa vontade.
— É desnecessário, saberei encontrá-lo sozinho.
— Consigo, nunca se sabe!
— Tenho horror a partidas rápidas.
— Compreendemos, mas é para prestar um serviço ao seu amigo
sargento Sellers, a menos que não represente um cliente...
Sem insistir, lhes disse adeus e me retirei. Uma vez no meu carro,
tirei o pedaço de papel do bolso. Distinguiam-se nele alguns traços, pouco
distintos. Com a ajuda do meu canivete, cortei a ponta de um lápis e
depois espalhei pó de grafite sobre o papel com a ajuda de um dedo. O
que o xerife escrevera ficava, nas depressões, em branco.

Stella Karis, 6825 Morehead Street, Los Angeles. Número de matrícula:


JYH 338.

De regresso ao hotel, o dono deste me preveniu que recebera ordem


do xerife para me fazer a mala e preparar a conta.
Depois fui no carro até ao fundo da avenida, parei junto a calçada e
esperei. Estava escuro, mas a luz dos postes da rua me permitia ler as
placas dos carros.
Precisamente quando me preparava para desistir, um Ford com a
placa JYH 328 passou por mim. Era conduzido por uma jovem. Fui em
sua perseguição e percebi logo que seguia com excesso de velocidade.
Segui-a durante um certo tempo. De repente, vi brilhar as luzes da
retaguarda. Freou bruscamente e parou à beira da estrada. A porta se
abriu. Entrevi duas pernas encantadoras, a borda de uma saia; um
segundo depois, se achava à minha frente.
Freei bruscamente. Ela não se mexera. Desci.
— Gostaria de saber o que está fazendo, declarou.
— Eu? Vou a Reno.
— Isso eu sei; mas tem medo de se perder e me segue há cinquenta
quilômetros! Pois bem, volte para dentro do carro e não pare antes de
Reno! Agora, se é um tira encarregado de verificar se eu saio da cidade,
pode ir lhes dizer que o faço com prazer e que nunca mais porei os pés lá!
— Nada tenho a ver com a polícia de Susanville. Eu trato apenas dos
meus assuntos. Posso lhe dar um conselho? Não é prudente uma jovem
bonita como você parar, para ver quem a segue há cinquenta quilômetros.
— Eu sei! Lançou-me um olhar chamejante. Agradeço-lhe ter me
lembrado disso, mas não preciso do seu conselho. Não o retenho por mais
tempo, pode partir! Quantos seguem nesse carro?
— Apenas eu.
Aproximou-se do carro e deu uma olhada no seu interior.
— Muito bem, vá embora!
— Estou a par de algumas coisas que talvez a interessem; me chamo
Donald Lam.
— Isso me é absolutamente indiferente. Vá para o diabo!
Subi no carro e coloquei-o em andamento, deixando-a atrás de mim,
a grande distância. Percorri cerca de cinquenta quilômetros antes de
chegar a um cruzamento. Diminui a velocidade e manobrei de forma a
me desviar para a estrada transversal; depois desliguei a chave e esperei.
Surgiram uns faróis na estrada. Chegava-me o roçar dos pneus sobre o
asfalto. Um carro passou como um raio mas não era o dela.
Estávamos em pleno campo e havia relativamente poucos carros.
Permaneci ao volante, esperando pacientemente.
Um outro carro passou. Ainda desta vez não era o dela. Finalmente,
passados cinco minutos, avistei-o, rodando lentamente.
Concedi-lhe alguns minutos de avanço e depois me pus em marcha.
Alcancei-a, depois ultrapassei-a a toda a velocidade, e, uma vez chegado ao
topo duma leve subida, diminuí a marcha. Percorremos cerca de quarenta
quilômetros desta maneira, eu à frente e ela atrás, sem ela suspeitar de
coisa alguma. Depois me ultrapassou e parou. Parei atrás dela.
Aproximou-se da porta e perguntou:
— Como se chama?
— Donald Lam.
— Que profissão é a sua, Mr. Lam?
— Sou detetive particular.
— Mas isso é apaixonante. Acaso, tem um cartão? Dei-lhe um.
— E posso ver a sua carteira de motorista? Mostrei-a.
Enfiou o cartão de visita na bolsa.
— Muito bem, agora sei quem o senhor é. Se insistir em me seguir,
vou mandá-lo prender, mal chegue perto de mim.
— E por que razão?
— Por ter me perseguido e outras más ações. Sorri e repliquei:
— Não lhe causei o menor aborrecimento. A estrada pertence a toda
a gente: vai para Reno, eu também!
— Julga que nada posso fazer?
— Absolutamente nada. Nem sequer tentei lhe fazer a corte.
Contentei-me em rodar tranquilamente, sem...
Com a mão esquerda agarrou a gola da blusa e puxou-a com força
para baixo. O tecido começou a se descosturar! Então agarrou-o com as
duas mãos para rasgá-lo com mais facilidade. O tecido resistiu por um
momento, depois cedeu e se rasgou, até à cintura.
— Já alguma vez ouviu falar de tentativa de estupro? Perguntou.
Respondi que sim com a cabeça.
— Pois bem, o senhor acaba de me atacar. Sabe quanto isso lhe
custará?
Respondi que não, com um aceno de cabeça.
— Eu também não! Mas, em Carson City, há uma encantadora
penitenciariazinha muitíssimo acolhedora. Foi o senhor que quis assim,
Mr. Lam. Eu já o tinha prevenido. Seguiu-me durante um certo tempo.
Parei para protestar. Agarrou-me e me atirou ao chão, à beira da estrada.
Debati-me para me libertar. Finalmente, avistei a luz duns faróis e gritei.
O senhor me largou e eu me precipitei para o meu carro. Depois me
esforcei por dirigir em alta velocidade, para que não voltasse a me agarrar.
— Ainda não está em Reno, observei. — Continua na Califórnia.
Ela não respondeu, se virou e correu para o carro. Saltou para o
volante, fechou a porta com força e desapareceu como uma flecha. Tentei
ultrapassá-la. Dirigia como uma louca e, mal me aproximava, seguia pelo
meio da estrada para me impedir a passagem. Devíamos estar a cento e
sessenta por hora, pelo menos, quando o farol vermelho dum carro da
polícia brilhou atrás de mim. O tira me fez sinal para que parasse à beira
da estrada. Não tive outro remédio senão obedecer. O policial parou a
meu lado.
— Siga-me, ordenou, — Mas sem procurar me alcançar.
Primeiramente tenho de parar o outro carro.
Pôs-se em marcha com a sirene ligada.
Avistava os faróis atrás do carro da jovem, ao longe e ouvia a sirene
enfraquecer à distância.
Pode se dizer que a jovem lhe deu o que fazer. Não era fácil alcançá-
la! Finalmente, conseguiu detê-la a uns trinta quilômetros do Reno, antes
de chegar no limite do Estado.
O tira estava vermelho de raiva. Cheguei pouco depois. Estacionei o
carro e saltei. Dirigi-me ao agente e lhe disse em voz grossa:
— Devia ter me dado tempo de me explicar! Venho tentado chamar
a sua atenção.
— Diabos, porque não ficou lá para trás? Perguntou se virando para
mim. — Tinha proibido grandes velocidades. Fiz cento e oitenta por hora
para alcançar este carro e o senhor estava mesmo atrás de mim.
Os olhos rebrilhavam de cólera.
— É evidente que o seguia, pois procurava fazê-lo parar. Julga que o
fiz para me divertir?
O meu tom furioso forçou-o a me escutar. Desta vez, eu estava
senhor da situação.
— Esta senhora foi atacada. Nós seguíamos a toda a velocidade para
ir prevenir a polícia. Se tivesse me escutado por cinco minutos, teria
conseguido alcançar o carro desses bandidos que estão a caminho de
Susanville! Mas não! Não pensa senão em dar ordens e não quer ouvir
nada.
Pôs a cabeça de lado.
— Que quer dizer? Perguntou por fim.
— Uns jovens gangsters obrigaram o carro desta jovem a parar à
beira da estrada e tentaram atacá-la. Sabe Deus o que teria acontecido se
eu não tivesse chegado tão cedo! Olhe para ela! Repare na roupa!
— Que quer me fazer acreditar? Inquiriu o tira. — Ela está
embriagada. Seguia mesmo pelo meio da estrada. O senhor procurava
ultrapassá-la e ela fazia uma quantidade de ziguezagues. O senhor ia em
sua perseguição e...
— Ela estava sob o choque de uma violenta emoção. Não pensava
senão numa coisa: encontrar um lugar donde telefonar para a polícia.
— Eu liguei a sirene, objetou ele, — E ela nem sequer prestou
atenção! Aproximei-me do carro:
— Ouviu a sirene? Ela começou a chorar.
— Sim, me parece que a ouvi, mas... Estava com tanto medo que
não queria parar. Julguei que fossem outra vez aqueles sujeitos. Expliquei
ao tira:
— Foi assim que, há pouco, a obrigaram a parar. Um deles imitou o
uivar de uma sirene e conseguiu um efeito muito convincente. Ela parou e
eles obrigaram-na a sair da estrada.
— Onde foi isso?
— A cerca de dez quilômetros daqui. Quase bateram no meu carro
quando me ultrapassaram.
— Que carro?
— Um Buick 52, negro.
— Quantos eram?
— Quatro! Jovens. Um deles em camisa de mangas curtas e blusão
de pano, o outro com casaco de camurça, o terceiro de pulôver e o quarto
com um casaco esportivo.
— Tomou nota do número da placa?
— Sim, admiti timidamente, — Mas com o nervoso me esqueci
dele. Não tinha nada onde anotá-lo e só pensava numa coisa: olhar por
esta jovem para que nada lhe acontecesse.
O tira hesitou durante alguns instantes. Depois:
— Parece se tratar de um bando que já nos causou bastantes
aborrecimentos. Um deles não era alto e louro?
— Sim, o do casaco de camurça. Tinha todo o aspecto dum jogador
de basquete.
— Com cerca de dezanove ou vinte anos? Um metro e oitenta de
altura?
— Não posso garantir. Fugiram a toda a velocidade quando parei o
meu carro, próximo do dela.
— Apesar de estar só, não hesitou em atacar esses quatro bandidos?
— Podiam julgar que se tratava de várias pessoas, repliquei, — E
além disso tinha o meu revólver.
— Tinha um revólver?
— Sim.
— Mostre-me a sua licença.
Obedeci logo. O tira refletiu por um momento e depois se virou
para a jovem.
— Posso ver a sua carteira de motorista? Ela estendeu-a.
— Stella Karis? O que quer fazer? Apresentar queixa?
— Pensando bem, não. Não quero que o meu nome saia nos jornais,
sobretudo depois do que me aconteceu.
— Mas, observou o policial, — isso não será útil para a próxima
jovem que eles atacarem na estrada?
— Se lhe fizerem perguntas, interrompi, — Não fale do carro de
polícia lançado em sua perseguição em lugar do dos jovens gangsters.
Ele me lançou um olhar acerado.
— Um Buick 52, não foi o que disse?
— Sim.
— Negro?
— Ou de uma cor escura. Segundo o que ela me explicou, eles
ultrapassaram-na e depois deixaram-na fazer o mesmo. Depois
ultrapassaram-na de novo e observaram cuidadosamente o carro. Por fim,
da terceira vez, imitaram a sirene da polícia. Ela parou e eles forçaram-na
a sair do carro. Depois...
— OK! Interrompeu o tira. -Mas o senhor devia se lembrar do
número da placa.
— Se tivesse me escutado quando tentava preveni-lo, a esta hora já
os teria alcançado.
— Talvez, admitiu em voz baixa. — Mas isto não é desculpa para
esta senhora seguir com excesso de velocidade.
— Sofreu um rude golpe!
— Sim! Vou retornar à delegacia para telefonar para que estabeleçam
uma barragem. Provavelmente, é muito tarde, mas não se deve
negligenciar a mínima possibilidade. Não é a primeira vez que temos
aborrecimentos com esses tipos. Seria capaz de identificar o carro, Lam?
— Não notei quaisquer sinais particulares. Seguiam quatro rapazes
num Buick 52, negro. Não posso lhe dizer mais nada; creio apenas que
sou capaz de reconhecer o rapaz louro. E talvez o gordo, de cabelos pretos.
Os outros desapareceram tão depressa...
— Está bem. Vou telefonar.
O agente partiu a toda a velocidade. Permaneci apoiado à porta do
carro de Stella Karis que subitamente começou a rir:
— Acreditou que eu o mandaria prender, Donald?
— Em todo o caso, rasgou a roupa!
— Não queria que se metessem nos meus assuntos. Já percebi que é
a maneira ideal de nos desembaraçarmos de um homem que nos estorva
demasiado. Isto os deixa terrivelmente assustados. Agora tenho de tirar a
roupa da mala.
— Ultrapasse primeiro o limite do estado. Há uma delegacia de
polícia neste lugar.
— Muito bem. Nesse caso, vá à frente que eu o sigo.
— E se jantássemos juntos em Reno?
— Vejo que não perde tempo, -comentou, rindo. — Que faz aqui?
— Vim investigar o caso de Drude Nickerson, motorista de táxi,
mas me pediram que saísse da cidade.
— Era isso realmente o que estava fazendo em Susanville? Perguntou
com os olhos arregalados pela curiosidade.
Aquiesci com um sinal de cabeça.
— Nesse caso, nos encontramos para jantar. Conhece um bom
hotel?
— Sim.
— Então, vou segui-lo.
Ao passarmos pela delegacia de polícia, no limite dos dois Estados,
vimos o tira de momentos antes. Estava telefonando. Cumprimentei-o de
passagem e ele nos fez um vago aceno com a mão. Tal como nós não
devia estar grandemente interessado em publicidade. Um pensamento me
inquietava: o homem certamente voltaria a pensar em toda esta história e
iria achá-la suspeita.
Alguns quilômetros depois do limite, parei o carro e Stella me
imitou. Tirou alguma roupa da mala e foi se trocar atrás do carro. Um
minuto depois, já tirara a blusa rasgada e a saia, e apareceu vestida de
maneira diferente. Perguntou:
— Está brincando ou disse a verdade?
— A pura verdade.
— Anda investigando o caso Nickerson?
— Sim.
— Porquê?
— Por razões que precisei esconder à polícia local. Foi por isso que
me obrigaram a sair da cidade.
— Nesse caso, qual é a sua opinião?
— A minha opinião?
— Sim, a respeito de Nickerson?
— Por ora, nada posso lhe dizer.
— Porquê?
— Por diversas razões. É um pouco prematuro.
— Pois bem, exclamou, — Você não é muito útil!
— Trabalho para um cliente!
— Muito bem! Mas me convidou para jantar e eu aceitei. Previno-o
de que procurarei lhe extorquir as informações de que necessito.
— E de que maneira?
— Pela esperteza ou sedução. Talvez o embriagando!
— Porque se interessa por Nickerson?
— Não tenho o mínimo interesse por ele.
— Tenho vontade de rir.
— Ora vamos, me leve para o hotel. E não seja tolo quando pedir os
quartos. Quero um para mim e espero que o seu fique noutro andar.
Conceda-me vinte minutos para me arrumar e venha me buscar para
jantar. Tem um orçamento para despesas?
— Sim.
— Muito bem, nesse caso pagará.
— Combinado!
Voltei para o meu carro e segui para Reno onde escolhi um hotel
agradável. Estava cheio. Tentei outro. Também estava cheio! Voltei ao
carro de Stella Karis.
— Vamos ter talvez aborrecimentos para nos alojarmos, disse eu.
— Tanto pior, nos desembaraçaremos o melhor que pudermos!
— Se não encontrarmos dois quartos, poderemos talvez...
— De forma alguma! Interrompeu ela.
— Nos instalarmos em hotéis diferentes. Sorriu.
— Enganei-me a seu respeito, Donald.
— Enfim, em todo o caso, vamos tentar!
O hotel seguinte era moderno e agradável. Conseguimos dois
quartos.
— Até daqui a vinte minutos, me lembrou ela com ar cético quando
o empregado da recepção nos entregou as respectivas chaves.
— Vai telefonar?
— É possível, respondeu, sorrindo. — E você?
— Vou enviar um telegrama. Até já!
Subi para o meu quarto e redigi um esplêndido telegrama, destinado
a Bertha:

ATÉ AGORA CAÇADA POUCOS RESULTADOS. UM


ANIMAL APANHADO ARMADILHA. MAS NÃO CREIO NOSSO
CLIENTE INTERESSADO NELE. É PEQUENO. SUA COLECÇÃO
MERECE MELHOR. RESPEITOSAMENTE DONALD

* * *
Seis

EI UMA PANCADA leve na porta de Stella Karis.


D— Donald.
— Quem é? Perguntou.

— Entre.
Abri a porta e a vi sentada em um pequeno toucador. Virou a cabeça
para mim e me olhou por cima do ombro nu.
— Viva, Donald! Saudou numa voz cheia de sedução. Eu tinha
certeza de que ela ensaiara aquela cena, mas garanto que valeu a pena.
Levantou-se lentamente e se aproximou de mim. O seu vestido de
noite deixava os ombros descobertos e lhe moldava com vantagem a
silhueta. Ao vê-la vestida assim, reparei que era muito bem feita e que
caminhava com graciosidade; ergueu os olhos para mim e me pousou uma
mão fina no braço:
— Donald, espero que irá me perdoar, não é?
— Perdoar o quê?
— Tê-lo tomado por um polícial de Susanville encarregado de me
perseguir até à fronteira... Sentia-me furiosa... Quando penso que armei
toda esta confusão da roupa rasgada para fazê-lo desistir!
— Pode se dizer que tirou proveito da situação. Se não fosse uma
mulher...
— Eu sei, não é justo. Mas o sexo fraco não é o único privilegiado...
Não é verdade que, neste momento, estou consigo...
— Vamos beber alguma coisa, propus.
— Claro.
Estendeu-me a estola e saímos. Bebeu dois coquetéis e instou comigo
para que eu também tomasse um. Em seguida, depois de um jantar
agradável, fomos jogar roleta, trinta e quatro, dados, numa máquina caça-
níqueis. Eu ganhei oito dólares e ela, cento e cinquenta, sem a mínima
emoção.
Por volta da uma e meia da manhã, acompanhei-a ao hotel.
— Quer entrar por cinco minutos?
— É tarde.
— De que tem medo?
— De si!
— O que quer dizer?
— Tem o hábito desagradável de rasgar a roupa.
— Oh, mas só faço isso com a roupa de usar todos os dias. Com um
vestido de noite nada tem a temer.
Entrei. Sentou-se no sofá e me indicou um lugar a seu lado.
— Muito bem, ataquei. — Vamos colocar as coisas a limpo: sei o
seu nome e a sua placa do carro. Sou detetive e posso descobrir quem é e
o que quer. Mas isso levaria tempo e dinheiro. Diga-me agora.
— Quanto a mim tenho um cartão com o seu endereço e o número
de telefone. Diga-me seriamente, Donald, é verdade que está investigando
o caso Endicott?
— Preveni-a de que não responderia. Olhou-me com ar pensativo:
— Nickerson é desonesto.
— Não é o único! Toda a cidade é!
— Susanville?
— Não, Citrus Grove.
— Donald, se está trabalhando no caso Endicott, talvez possamos
nos ajudar mutuamente.
— No meu ofício, não posso me permitir ajudar os outros; prefiro o
contrário.
— É agradável!
— Sou.
— Mas para si!
Seguiu-se um breve momento de silêncio.
— Donald, me responda: trabalha ou não no caso Endicott?
— Sem comentários.
— Talvez eu possa ajudá-lo! Numerosos fatos que não podem ser
revelados!
Abaixou os olhos por um segundo e os seus cílios se destacaram na
pele leitosa das faces. Depois ergueu-os para mim e disse bruscamente:
— Muito bem, Donald, vamos colocar as cartas na mesa. Tenho
trinta e três anos. Sou divorciada. Como mulher de negócios, vou me
desembaraçando. Por causa da morte de minha tia, eu mesma me ocupei
dos terrenos que ela me deixou em Citrus Grove. Antes disso, era
desenhista; ilustração, publicidade, enfim conhece o gênero.
Desembaraçava-me relativamente bem. Foi então que uma fábrica quis
comprar um dos meus terrenos. Simplesmente era residencial e precisava
obter uma autorização. Não podia ser mais banal, mas é preciso saber que
Citrus Grove não é uma cidade como as outras.
— Como é, então?
— É dirigida pelo presidente da Câmara, Charles Franklin Taber,
que é um sujeito honesto. Gosta muito de fazer discursos e de conceder
entrevistas à imprensa. O chefe de polícia tem bom ar. Mas há alguém por
trás de Taber cuja identidade ignoro mas que é uma pessoa com muitas
mais ideias do que ele. Seja como for, o antigo presidente da Câmara,
uma pessoa muitíssimo competente, foi vencido nas eleições. Charles
Franklin Taber ganhou e apresentou uma lista de reformas. Descobriu um
oficial de polícia pouco honesto e age como se toda a polícia fosse
corrompida. O chefe desta foi demitido e contudo era um ótimo
funcionário. O substituto veio não se sabe de onde e se declara livre de
qualquer influência política ou pressão local. Isto, entre aspas.
— E Drude Nickerson? Inquiri.
— Era um verdadeiro motorista de táxi. Mas também primo do
presidente. Meteu-se em negócios, em grandes negócios. Telefonou-me e
fiquei sabendo que ele estava a par das minhas negociações secretas com a
fábrica e sabia exatamente quais os terrenos que eu herdara. Fiz-lhe notar
as vantagens que a fábrica representaria na cidade para o comércio e para a
construção, enfim coisas deste gênero!
— E o que ele respondeu?
— Limitou-se a rir e me aconselhou a ser menos ingênua. Se estava à
espera da lei sobre os terrenos, iria esperar muito tempo. Na opinião dele,
os negócios não se faziam com tanta facilidade.
— Que ideia era a dele?
— Obrigar-me a soltar uma boa quantia.
— E soltou?
— Sim.
— Quanto?
— Quinze mil dólares, em três vezes.
Emiti um pequeno assobio.
— Acha que ele me enganou, Donald?
— Pelo menos, alteraram a lei dos terrenos?
— Ainda não. Passaram-se apenas duas semanas depois disso.
Nickerson disse que ficaria com mil dólares para ele e que utilizaria o resto
para distribuir luvas, comprar pessoas influentes, enfim, sei lá que mais...
— E depois?
— Depois, morreu num acidente de automóvel.
— Por que razão queria ver o seu corpo?
— Não me interessava vê-lo. Queria simplesmente revistar a roupa
dele. Ele me prometera só gastar o dinheiro depois da lei votada. Por
questão de segurança, guardava consigo a chave do cofre e um bilhete em
que declarava que a importância me pertencia. Parece que tudo isso estava
na sua carteira.
— E acreditou nessa história?
— Sim, durante um certo tempo.
— Conseguiu verificar o conteúdo da sua carteira?
— Não. A polícia me caiu em cima. Mandaram-me sair
imediatamente da cidade sem atenderem aos meus protestos.
— Nesse caso, não pôde verificar se essa quantia estava ainda na
posse de Nickerson?
— Não. Nem sequer me deram tempo para explicar... Escute,
Donald, fui franca consigo. Sei que tentei lhe extorquir informações me
servindo do grande jogo da sedução. Mas esqueçamos tudo isso. Tenho
lidado durante tanto tempo com gente desonesta, que acabei por não
confiar mais em ninguém. Salvo em si, Donald. Julgo-o um tipo sério...
Em que pode se ter confiança.
— É possível, mas não posso ajudá-la.
— Mas porquê?
— Porque estou investigando um certo caso e já trabalho para um
cliente. Ainda que obtenha informações secretas, me é impossível contá-
las. Posso apenas aconselhar uma coisa...
— Que coisa?
— Não verter lágrimas pela sorte desse pobre Nickerson.
— Verter lágrimas, exclamou ela, desabridamente. — Quero saber
uma única coisa: se esse larápio conseguiu que alterassem a lei sobre
terrenos. Quanto ao resto, que vá para o diabo, não perderei o meu tempo
chorando a sua sorte... E, prosseguiu. — Não julgue que estou falando
mal dum morto, isso não se faz...
— Ora, vamos, não finja!
— O que quer dizer?
— Muito simplesmente que ele não morreu! Ela arregalou os olhos:
— Como sabe disso?
— Não sei coisa alguma, adivinho. Toda esta história me parece
apenas teatro.
Ela ficou imóvel por uns momentos, mergulhada nos seus
pensamentos. Depois ergueu os olhos:
— Oh, Donald, você é um sujeito formidável! Pode me beijar antes
de ir embora. Mas nada dum beijo puro e frio! Quero que seja um beijo
que se sinta em todo o corpo.
E depois...
— Pois bem, devo reconhecer que realmente foi um beijo
formidável!

* * *
Sete

EGUEI o avião das seis horas para Los Angeles e cheguei no


P escritório ao mesmo tempo que Bertha.
— Recebeu o meu telegrama? Perguntei.
— O seu telegrama! Certamente. Devia estar completamente
embriagado quando o mandou!
— Engana-se, estava inteiramente sóbrio.
— Que queria dizer com as suas histórias de caça? E desse animal
apanhado na armadilha? Você é maluco!
— Nesse caso, não compreendeu coisa alguma? Pedia que prevenisse
o nosso cliente. O caso era uma armadilha!
— Que caso?
— A morte de Drude Nickerson. Bertha me observou, piscando os
seus olhinhos vivos.
— Se é uma ratoeira, o nosso cliente se arrisca a ficar em maus
lençóis!
— Porquê?
— Gastei um bocado de dinheiro tentando encontrar você, pelo
telefone. Liguei para todos os hotéis, pensões, e espeluncas da última
categoria de Susanville, se lamentou Bertha.
— Para me dizer o quê?
— Que largasse de mão! O caso está encerrado.
— Como, está encerrado?
— Ao ler os jornais, o cliente descobriu as informações que desejava.
— Que jornal? Inquiri.
— O Clarion de Citrus Grove.
— E o que dizia?
— Que Drude Nickerson morrera. Havia um pequeno artigo a esse
respeito, dizendo que a única possibilidade de descobrir o assassino de
Karl Carver Endicott desaparecera com ele. Nickerson era o único capaz
de identificar o assassino.
— E isso interessava o nosso cliente?
— Talvez.
— Que fez ele?
— Avisou-me que tinha todas as informações que desejava e que
agradecia os nossos esforços. Tinha ficado muito satisfeito conosco mas
que já não precisava dos nossos serviços Para ele, o caso estava resolvido.
— Encantador! Diga agora alguma coisa acerca da viúva de Karl
Endicott.
— O que quer que lhe diga?
— Onde ela está?
— Não sei e não quero saber!
— Pois bem vamos descobrir, declarei, pegando o telefone.
Pedi à telefonista que me ligasse para a residência de Elizabeth
Endicott, em Citrus Grove.
— E urgente e pessoal; queremos falar com ela ou saber onde
podemos encontrá-la, seja como for.
Ao desligar, Bertha me mirava com os olhos esbugalhados:
— Você está doido, ou quê?
— Não estou doido.
— As ligações interurbanas custam um dinheirão.
— Poremos isso na conta de despesas do cliente.
— Mas não temos mais cliente. Não me ouviu dizer que o caso
estava encerrado?
— Pode ser, Bertha, que, se tudo acontecer como imagino, o caso só
tenha começado agora. Não sei, evidentemente, se trataremos dele.
— Você, Donald, deve ter batido com a cabeça em alguma coisa
ainda mais dura! Resmungou ela. — O nosso cliente John Dittmar Ansel
afirmou não precisar mais dos nossos serviços. Entendeu?
— Sim, mas Ansel é que não entendeu.
— Não entendeu o quê?
— Que se trata de uma armadilha, expliquei.
O telefone tocou. A telefonista declarou que Mrs. Endicott não
estava em casa e que se ausentara por uma semana, ninguém sabia para
onde fora. Transmiti a informação a Bertha.
— E então?
— Podemos recorrer aos nossos correspondentes em Las Vegas,
Nevada e Yuma, no Arizona e encarregá-los de contatar com Ansel para
avisá-lo. Isso vai nos custar um bom dinheiro e ele não vai ficar contente
por estragarmos a sua noite de núpcias.
— Por isso, não podem censurá-lo, comentou Bertha. Dirigi-me
para a porta. — Ei alto lá! Um momento Donald, gritou ela. — Não saia
daqui sem me dizer do que se trata.
— Ainda não tenho certeza de coisa alguma.
— Quando terá?
— Quando prenderem John Dittmar Ansel e Elizabeth Endicott,
por se unirem para o melhor e o pior.
— Está brincando?
— Não.
— Mas pelo amor de Deus, quem diabo é esse John Ansel?
— Imagine que é o homem que Drude Nickerson levou no seu táxi
para a casa de Endicott na noite do crime.
Bertha refletiu durante alguns momentos:
— E a polícia pode provar isso?
— Certamente. Sem isso não teriam se dado ao incômodo de obrigá-
lo a aparecer e a lhe fornecer um motivo.
— Que macacos me trinquem e saguins me mordam! Exclamou
Bertha, dando estalos com os dedos, de irritação, enquanto eu fechava a
porta.

* * *
Oito

EVO TER ACORDADO por volta de uma e meia e me custou tornar


D a adormecer. Muitas coisas se atropelavam na minha cabeça sem
conseguirem se encaixar logicamente. Adormeci várias vezes, mas
acordava de novo sobressaltado com uma ideia empurrando outra. Acabei
por adormecer num sono agitado, cheio de pesadelos que o som do
telefone acabou por dissipar. Estendi a mão para o auscultador.
Era Bertha Cool e percebi, pelo seu tom de voz, que havia novidade.
— Donald, começou ela o mais amavelmente possível. —
Incomoda-me muito perturbá-lo no meio da noite... Mas pode se vestir e
dar um pulo no escritório?
Cada palavra silabada distintamente lembrava o tinido de dólares
caindo numa caixa.
— Do que se trata?
— É impossível explicar agora, mas entrou um cliente mal você saiu.
Devemos...
— Diga-me ao menos, Bertha, se se trata do homem que foi preso e
da mulher que se achava com ele, ou de um advogado.
— Da mulher que o acompanhava.
— Vou imediatamente. Onde está?
— No escritório. É o caso mais estranho que já vi na minha vida.
— Mrs. Endicott está aí consigo?
— Sim.
— Nesse caso, já estou indo.
Saí da cama com dificuldade, tomei um banho, me barbeei
ligeiramente e me vesti às pressas. Alguns minutos depois, dirigia o carro
através das ruas quase desertas, na direção do nosso edifício comercial.
O guarda-noturno já estava habituado às curiosas entradas e saídas
dos detetives particulares. Resmungou alguma coisa acerca das pessoas que
pretendiam ter um escritório aberto vinte e quatro horas por dia. Abri a
porta com a minha própria chave e entrei diretamente na sala de Bertha.
Ela se esforçava por tranquilizar uma mulher de cerca de trinta anos,
de olhar triste, sentada, rígida e aparentemente calma, mas torcendo as
luvas ao ponto de parecerem uma corda. O rosto de Bertha se iluminou.
— Aqui está, Mr. Lam, apresentou.
— Como está? Saudei. Ela me estendeu uma mão fria, mas o seu
sorriso era agradável.
— Donald, é a história mais inacreditável que já ouvi até hoje!
Exclamou Bertha Cool. — É absolutamente incrível. Acontece que... Mas
o melhor é deixar Mrs. Endicott contá-la, pessoalmente...
Mrs. Elizabeth Endicott era uma mulher jovem e morena, de
grandes olhos cor de avelã, de maçãs do rosto salientes e um bonito tom
de pele. Parecia triste e tão reservada como um jogador de pôquer. Sabia
controlar cuidadosamente as emoções: o rosto era tão inexpressivo como
uma figura de mármore decorando um túmulo. Torceu as luvas
violentamente e começou:
— Preciso recuar a sete anos atrás. John Ansel e eu estávamos para
casar. Amávamo-nos loucamente. John trabalhava para Karl Carver
Endicott. Este último levou-o para o Brasil e depois numa expedição à
Amazônia, a fim de procurar novas jazidas de petróleo; prometera e a um
seu companheiro, um prêmio de vinte mil dólares se regressassem com
informações. Na realidade John não era obrigado a ir lá mas precisava do
dinheiro que nos permitiria casarmos e sermos independentes. Porém,
essa expedição era um suicídio, cuidadosamente preparado mas que, nessa
época, eu ignorava. John não teria sequer uma possibilidade entre mil de
regressar. Todos os dados tinham sido convenientemente estudados e Karl
Carver Endicott se certificara de que tudo correria como previra. Algum
tempo depois, Karl me deu a triste notícia: a expedição desaparecera.
Esperara por notícias, depois enviara aviões para reconhecimento e
patrulhas para a selva. Na verdade, fez tudo quanto era possível! Isso, para
mim, foi um golpe terrível! Karl se esforçou por me ajudar nesses
momentos difíceis e acabou por me oferecer a possibilidade de refazer a
minha vida e a segurança do futuro.
Ela se interrompeu, torcendo as luvas a ponto de quase descosturar
os pontos.
— Decidiu, portanto, casar com ele, disse eu, para que continuasse a
narrativa.
— Sim. Mais tarde, despediu uma das secretárias. Foi ela quem me
informou da trama urdida. Nem queria acreditar no que ouvia. Mas os
fatos se encadeavam perfeitamente e tive que acreditar no que ela me
afirmava. Compreendi que Karl era tão responsável pela morte de John
Ansel como se tivesse ordenado fogo a um pelotão de fuzilamento.
— Discutiu esse assunto com seu marido?
— Não cheguei a fazê-lo porque não tive tempo para tal.
Imediatamente após o choque daquela informação recebi um telefonema.
Era John! Fora o único sobrevivente da expedição e tivera que enfrentar,
na selva, incríveis sofrimentos, antes de conseguir regressar à civilização. Já
sabia que eu estava casada.
— E a senhora, o que fez?
— Nessa época, era uma mulher impulsiva. Disse a John que o
amava e que nunca amara mais ninguém, senão ele. Expliquei que me vira
forçada ao casamento e disse que desejava vê-lo imediatamente. Tinha
decidido me separar de Karl, naquele mesmo instante. Foi então que
deixei escapar o que jamais deveria ter dito. Compreende, Mr. Lam, eu
estava completamente abalada pelo choque. Contei tudo a John, pelo
telefone; que a expedição não fora mais do que um assassinato disfarçado;
que Karl quisera se desembaraçar dele para casar comigo.
— E então, o que aconteceu?
— John desligou o telefone.
— Em que data aconteceu isso?
— No dia da morte do meu marido!
— De onde John lhe telefonara?
— Do aeroporto de Los Angeles.
— E depois o que aconteceu?
— Bem... Karl era violento, duro, egoísta e sempre senhor de si.
Quando queria alguma coisa, acabava sempre por consegui-la. Já tinha
mudado tudo entre nós e creio que ele lamentava a sua obstinação. De
resto, se ver casado com uma mulher cujo coração não se possui, pode
apenas satisfazer o antigo desejo de conquista, mas o interesse esmorece.
— Brigou com seu marido, quando soube de tudo isso?
— Sim, Mr. Lam, e lamento ter deixado falar o coração em vez de
ter utilizado a cabeça. Durante alguns meses, me contive, lutando para
dissimular os meus sentimentos mas, ao saber da verdade acerca do que
ele fizera a John, a raiva me transtornou. Fiz uma cena terrível.
Esbofeteei-o e, se tivesse uma arma, creio que o teria matado.
— Foi então que o deixou?
— Sim. John estava no aeroporto. Tomou um helicóptero para
Citrus Grove, depois um táxi e foi direto para a casa de Karl. Só mais
tarde vim a saber o que aconteceu...
— Sim?
— John bateu à porta e foi o próprio Karl que veio abrir. Só pelo
olhar de John, Karl compreendeu que este já sabia de tudo. Tentou,
porém, ainda fazer um blefe e lhe entregar os vinte mil dólares de prêmio
prometidas, embora não tivesse sido encontrado petróleo nessa mortífera
selva brasileira. Assustado, fê-lo subir ao primeiro andar e entrar no
escritório. Depois disse para esperar um momento e entrou no aposento
vizinho. Ora a selva tinha tornado John um homem de apurada intuição.
Pressentiu que meu marido fora buscar uma arma.
— O que fez ele, então?
— Saiu do escritório e desceu a escada, sem ruído. Decidira
enfrentar Karl no decurso de um processo jurídico e não se sujeitar ao
risco de ter de matá-lo, embora em legítima defesa.
— Que aconteceu, depois?
— Quando abria a porta da rua, ouviu um tiro.
— Ele sabia que a senhora já tinha saído?
— Sim. Disse-me que tivera essa intuição, embora Karl nada tivesse
lhe dito a esse respeito. Pediu carona até Los Angeles. Aí leu os jornais e
compreendeu que, enquanto o julgassem morto, não correria o menor
risco. Mas, se o descobrissem, teriam razões para suspeitarem dele,
enquanto não fosse descoberto o verdadeiro assassino.
— O que fez ele, então?
— Eu sabia onde encontrá-lo e decidi escondê-lo até que
descobrissem o autor do crime. Foi então que começou o nosso pesadelo.
Voltei para casa e herdei a fortuna de Karl, pois ele não teve tempo para
modificar o testamento.
— Quem imagina que o assassinou?
— Foi forçosamente Cooper Hale. Infelizmente não podemos
provar. É muito esperto e estava mais ou menos a par de toda a história e
do que se preparava. Deve ter seguido Karl até o primeiro andar. O meu
marido devia ter se decidido a matar John e, em seguida, pedir a Hale que
testemunhasse como legítima defesa. Hale deve ter entrado calmamente
no aposento e disparado um tiro na nuca de Karl.
— Sabe por que motivo?
— Karl levantara vinte mil dólares do banco para pagar o prêmio de
John, a título de indenização. Devia ter as suas razões para querer pagar
em dinheiro e não em cheque. Ora esses vinte mil dólares desapareceram.
Já havia dois meses que, meu marido vinha fazendo levantamentos de
altas quantias. Dez mil dólares por mês... Para pagar a um chantagista.
Hale, que era um simples empregado bancário, se tornou subitamente
banqueiro.
— Estou vendo a coisa! E depois, o que aconteceu? Animei.
— A polícia começou a me vigiar noite e dia. Talvez desconfiando
que eu contratara um assassino profissional. Fiquei aflita para proteger
John. Sabe Deus as dificuldades por que passei, a fim de poder vê-lo.
Embora todo o mundo o julgasse morto, Drude Nickerson fora
testemunha da sua ida, no táxi, para a casa de Karl. Portanto, quando
lemos a notícia da sua morte, nos jornais, respiramos fundo. John decidiu,
a meu conselho, contratar uma agência de detetives para tentar saber algo
a seu próprio respeito. Se esses detetives não descobrissem nada, a polícia
não deveria ter motivos para detê-lo. Convencidos, portanto, de que a
polícia não sabia nada acerca de John Ansel e de que Nickerson morrera,
conforme as notícias dos jornais, cometemos essa asneira terrível!... Nem
sequer nos deixaram casar!...
— Esperaram o momento do casamento para terem um motivo que
justificasse o assassinato, comentei.
— Foi uma armadilha, continuou ela. — Fora tudo cuidadosamente
preparado. Amanhã os jornais noticiarão que Drude Nickerson não
morreu e que tinham erradamente identificado, como sendo dele, o
cadáver de um homem que lhe furtara a carteira com os seus documentos.
Mrs. Endicott recomeçou a torcer as luvas cuja pele se tornava mais
clara, quase ao ponto de estalar, mas os seus olhos se mantinham secos.
Em voz surda e ameaçadora que lembrava algo do assobiar das cascavéis,
declarou:
— Eu vou matar o homem que é a causa de tudo isto!
— Mas isso não resolverá nada! Observei.
— Que devo fazer então? Bertha me explicou, com autoridade:
— Mrs. Endicott vai deixar o caso ao nosso cuidado. Já tratou
comigo das condições materiais.
Perante essa declaração, empunhei o telefone.
— Vai necessitar de um advogado, minha senhora.
— Já pensei em dois, muito conhecidos, de Los Angeles, disse Mrs.
Endicott.
— Nada disso! O processo correrá no Distrito de Orange. Precisará
alguém de Santa Ana e especialmente de alguém que seja razoável.
— O que quer dizer com isso?
— Alguém que aceite os meus conselhos, repliquei, pedindo a
ligação. — Quero falar com Barney Quin, advogado em Santa Ana,
Califórnia. O seu número é Sycomore, 3-9865. Insista até que ele atenda.
Não desista!

* * *
Nove

HEGAMOS na casa de Barney Quin quando o dia clareava. Estava


C no escritório à nossa espera. Era um homem alto e de aspecto
sólido. Tínhamos estudado juntos na mesma universidade. É preciso dizer
que ele sabia muito do seu ofício. Explicamos o caso com todos os
pormenores.
— Não tentaram prendê-la, Mrs. Endicott? Perguntou ele.
Ela negou com um movimento de cabeça.
— Penso que tencionam utilizá-la como testemunha de acusação. O
Procurador do Distrito vai se mostrar paternal e compreensivo, dizendo
que a senhora foi ultrapassada pelos acontecimentos. Em seguida, vai
aconselhá-la a fazer um depoimento sincero a fim de evitar
aborrecimentos... E outras conversinhas do mesmo tipo.
— Que devo fazer? Interveio ela com os lábios cerrados, com
determinação.
— Mandá-lo para o diabo que o carregue! Não textualmente, claro,
mas de uma maneira velada. Diga-lhe que se trata de um terrível e infeliz
engano e que John Ansel é incapaz de fazer mal a uma mosca. Acrescente
ainda que o assassino de seu marido está, neste momento, troçando da
polícia por esta acusar um inocente. Finalmente começará a chorar e se
recusará a acrescentar seja o que for. Perguntarão porquê e responderá que
concorda em cooperar, mas que o fará apenas na presença de Barney
Quin, advogado de John Dittmar Ansel. É capaz de representar esse
papel?
— Sim, certamente!
— Fará então o que eu disse?
— Pode contar comigo, respondeu ela, decidida.
— Perfeito! Aprovou Quin. — Vou tentar agora entrevistar Ansel.
Sabe se ele conseguiu se livrar da extradição?
— Não sei o que aconteceu. Agiram em segredo e me impediram de
falar com ele. Deviam estar vigiando, simultaneamente, Yuma e Las Vegas
e nos surpreenderam antes de obtermos a nossa licença de casamento.
— Se tentarem obter a extradição, nos oporemos. Farei tudo que for
possível. Se não conseguir, me esforçarei para vê-lo mal chegue aqui, na
prisão.
Quin se virou para mim:
— Você, Lam, tem sido sempre muito útil. Espero que, desta vez,
também queira me ajudar.
— Pode contar comigo, Barney! Prometi.
— Pode contar com ele, reforçou Bertha. Quin explicou a Mrs.
Endicott:
— Este caso carece, pela sua complexidade, de diligências de
detetives particulares, a fim de...
— Já se tratou disso, cortou Bertha. — Pode estar certo de que lhe
será prestada toda a assistência possível, Quin.
Ele franziu as sobrancelhas em sinal de reflexão. Os seus olhinhos
pálidos e finos examinaram Bertha enquanto tamborilava com a caneta no
tampo da mesa. Depois se decidiu:
— Vou ter que solicitar um adiantamento, Mrs. Endicott.
— De quanto?
— Este caso não sairá barato...
— Não peço descontos.
— Vinte mil dólares, arriscou Barney temerariamente. Sem
pestanejar, Helen Endicott puxou o talão de cheques e declarou:
— O verdadeiro responsável é Cooper Hale. Quin ergueu a mão.
— Não mencione ninguém. Basta que saiba que John Ansel é
inocente. Deixe-me tratar do resto.
— Muito bem!
Quin nos fitou, a Bertha e a mim.
— Compete a vocês, desencantarem as provas necessárias.
Bertha não respondeu. Estava vendo alguém assinar um cheque e,
para ela, essa operação era sagrada. Evitava sempre qualquer comentário
que pudesse interromper um gesto tão importante.
Manteve-se, portanto, sentada, retendo a respiração enquanto que
Mrs. Endicott escrevia a quantia e o nome. Quando acabou, Bertha
libertou o ar retido nos pulmões, viu o cheque transitar das mãos da
cliente para as do advogado e só então propôs:
— E se fôssemos comer alguma coisa?

* * *
Dez

S JORNAIS da manhã anunciavam em grandes títulos:


O
UM HOMEM SUSPEITO DE HOMICÍDIO CAI NAS MÃOS
DA POLÍCIA

Faziam um romance em volta do caso.

Cometido seis anos atrás, o assassinato do multimilionário Karl Carver


Endicott, proprietário de poços de petróleo e plantações de citrinos, se
classificava entre os casos de crime passional. A polícia conseguira os sinais
particulares do assassino, através de uma única testemunha: o motorista que o
levara ao local do crime. Esse motorista, Drude Nickerson, largara a sua
profissão graças a uma série de negócios que enriqueceram e tornado
proprietário de terrenos e bens imobiliários.

A polícia preparara uma armadilha. Sabendo que um desconhecido fora


atropelado perto de Susanville, o fez passar por Drude Nickerson, enquanto o
escondia, por alguns dias. Identificaram o corpo da vítima como sendo o do
antigo motorista. John Dittmar Ansel que fora considerado desaparecido e
morto na selva amazônica e que, todavia, vivia clandestinamente sob uma
falsa identidade, convencido de que a única testemunha que poderia acusá-lo
morrera, surgiu subitamente no Arizona, para casar, em Yuma, com a viúva
da vítima, Elizabeth Endicott. A polícia deseja descobrir agora quantas vezes
Mrs. Endicott se encontrara com Ansel, após a morte do marido e se estivera a
par de qualquer intenção de assassinato antes deste ter sido praticado.

Depois do café da manhã, voltamos a Los Angeles. Fui ao barbeiro


fazer a barba e massagear o rosto e em seguida para o escritório. Elsie
Brand me estendeu um papel. Dizia que Stella Karis queria falar urgente
comigo. Pedi a respectiva ligação telefônica.
— Não quer vir tomar o café da manhã comigo? Convidou ela.
— Eu sou um homem de trabalho, minha querida amiga, e já tomei
o meu café da manhã há algumas horas, recusei.
— Nesse caso, é o momento certo de tomar um segundo.
— Onde está?
— Em minha casa.
— Já leu os jornais? Trazem um caso que pode lhe interessar.
— Ainda não, mas vou lê-los enquanto espero por si.
— Onde?
— No edifício Monastery.
— Até já.
Ao sair, recomendei a Elsie:
— Se Bertha perguntar por mim, diga que entrei e saí logo em
seguida e que ignora para onde eu fui.
Ela sacudiu a cabeça em sinal de compreensão.
— Menina bonita! Brinquei lhe afagando um ombro.
O edifício Monastery era enorme e pretencioso. Stella Karis tinha
um apartamento suntuoso e ensolarado. Vestia um robe-de-chambre
vaporoso, fechado no pescoço e de longas mangas. Observei-a, fascinado.
Após um sorriso cativante, me disse:
— No final das contas, Nickerson não morreu!
— Leu os jornais?
— Sim, mas não era preciso. Acabou de me telefonar. Veio pedir
mais dez mil dólares. Parece que os membros do conselho municipal
ainda não estão decididos a alterar a lei sobre terrenos. É tal o seu preço
que não ficará sequer com um centavo de comissão. Faz por mera
simpatia.
— Bravo! Um filantropo, hem? Motejei.
— Foi o que ele disse!
— E aí se lembrou então de me convidar para tomar o café da
manhã consigo?
Ficou um momento silenciosa e depois sorriu.
— Confesso que lhe armei um laço.
— Mas eu trabalho! Sublinhei. — O meu tempo, é pago! Sabia?
— É essa a minha intenção.
— Acontece, porém, que, neste momento, não posso aceitá-la como
minha cliente.
— Porquê?
— Poderia causar conflito de interesses.
— E, se o meu preço for superior? Não aceitaria?
— Impossível, desde que se trate de Nickerson!
— Me dará então um conselho de amigo?
— Telefone-lhe e diga que tem um plano formidável capaz de virar a
cidade do avesso.
— E depois, o que faço?
— Desligue.
— E o que acontecerá?
— A lei sobre terrenos é alterada e você pode fazer o seu negócio
com a polícia.
— Está certo disso?
— Certo, certo, não. Isso depende do número de pessoas do
conselho que estão metidos no assunto e de, até que ponto, Nickerson
tem feito as suas jogadas. Pode ser que não tenha dado ainda um vintém,
seja a quem for. Tem lhe pago em dinheiro?
— Sim.
— De que maneira?
— Em três entregas de cinco mil dólares cada.
— Com quantos dias de intervalo?
— Diariamente. Levantei o dinheiro do banco, na terça, quarta e
quinta-feira.
— E onde lhe entregou o dinheiro?
— Aqui, no meu apartamento.
— Conte-me aquela história da fábrica. Ela hesitou. — Bem! Não
vale a pena. Tenho outro caso em mãos e não me sobra tempo para
escutar confidências.
Fiz menção de me levantar.
— Espere um pouco. Trata-se de uma companhia recente que quer
construir uma fábrica de balas e chicletes, em forma miniaturas de frutas,
laranjas, etc., embaladas em lindas caixinhas, como recordação da
Califórnia. Pretendem exportá-las para os estados do Leste, com a marca
Citrus Grove, Califórnia. Os diretores julgam que isso será uma boa
propaganda. Querem fazer em larga escala.
— Quanto terreno querem eles?
— Quatro hectares.
— Para quê tanto espaço?
— Pretendem montar uma linha ferroviária para saída dos produtos.
Refleti durante alguns segundos.
— Tem tratado desse assunto diretamente?
— Sim. Com um tal Jed C. Seward, que é um dos diretores da
Companhia.
— Como você tem tanto terreno não edificado?
— Herdei-o de uma tia minha, mas não sinto inclinação para
negócios. Apenas me interesso por desenho e pintura. Sabe? Sou
terrivelmente rica e preciso de um homem inteligente que queira tratar
dos meus assuntos financeiros, não sei se me compreende...
— Entregue o seu dinheiro a um banco e se contente com os juros
que ele render.
— Preferia que alguém se ocupasse desses negócios. Um banco é
muito impessoal.
— Não queira combater sozinha toda essa fauna, em plena selva
financeira, aconselhei. — Esse Nickerson é um espertalhão. Entregue-se
antes aos cuidados de um banco.
— Você julga que escolhi alguém desonesto? Você é, porventura
desonesto? Não compreende que estou lhe dando uma oportunidade para
me roubar o que quiser?
O telefone começou a tocar.
— É para si, Donald, anunciou ela me passando o auscultador. Era
Elsie Brand.
— As coisas aceleraram, Mr. Lam. Barney Quin fez uma declaração
em Santa Ana. Bertha Cool está à beira de uma crise de nervos, pois tem
dois repórteres aqui no escritório.
— Aguente-os até que eu chegue.
— Vai embora? Interrompeu Stella, ceticamente.
— Obrigado pelo café da manhã, me despedi, correndo para a porta.

* * *
Onze

S OLHOS de Bertha se iluminaram quando entrei no escritório.


O Os jornalistas deviam-na tê-la aborrecido muito. Depois de
apertarmos a mão, quiseram saber se trabalhávamos para John Ansel.
— Na verdade, trabalhamos para Barney Quin.
— Escute, Lam. Você já estava tratando deste assunto há muitos
dias. Foi a Citrus Grove vasculhar em jornais de há seis anos e fez
perguntas acerca de Endicott.
— Isso é mentira! Atalhou Bertha, dando um pulo na cadeira.
— Então, Bertha, intervi, me sentando sobre o tampo da mesa. —
Nunca devemos mentir aos jornalistas. Dizemos a verdade ou não
dizemos coisa alguma.
— É, portanto, verdade?
— Bem, não disse isso! Estava à procura de outras informações e só
soube que Endicott fora assassinado depois de ter falado com alguns
empregados do jornal.
— Hum! Nesse caso, que diabo de coisa procurava?
— Algumas informações para um cliente que não posso nomear.
Digo simplesmente que Citrus Grove está em vésperas de se tornar uma
importante cidade industrial. Uma grande companhia de automóveis quer
comprar terrenos para construir uma fábrica, instalar uma linha
ferroviária, montar instalações para todos os empregados locais, enfim,
uma coisa grande! Melhoram Citrus Grove, mas para que essa tal
companhia possa comprar o terreno escolhido, se torna necessário alterar
a lei que considera residencial parte da área ocupada por esses terrenos. O
interesse da cidade seria alterar a lei, no sentido de poder a indústria se
desenvolver na Califórnia. Contudo, parece que o negócio se arrasta e a
companhia verificou que certas individualidades se opõem e procuram
obter comissões para facultar essa concessão.
— Podemos repetir isso que nos contou?
— Podem citar as minhas próprias palavras e acrescentar que a
referida companhia já não está disposta a se estabelecer numa cidade onde
reina a confusão.
— Trata-se, portanto, de uma indústria de automóveis?
— Foi o que eu disse, mas não se espantem se se tratar de outra
indústria.
— Foi por isso que esteve em Susanville?
— Procurava obter aí informações sobre uma certa pessoa, mas um
membro da polícia do Distrito de Orange, me pôs para correr, sugerindo
que lhe prestaria um grande serviço se saísse da cidade.
— Podemos concluir que a pessoa que lhe interessa está implicada
nesse caso de confusão?
— Deixo isso ao seu critério, mas se acautelem com a possibilidade
de um processo por difamação.
— Não será uma estranha coincidência o fato de se achar
encarregado de dois casos, ambos referentes a Citrus Grove?
— Não vejo nisso nada de estranho. Barney Quin deve ter lido um
artigo, em que, erradamente, dizia que eu investigava a morte de Karl
Endicott e solicitou a nossa cooperação.
— Que vai fazer Mrs. Endicott? Tenciona cooperar com as
autoridades?
— Perguntem a Barney Quin.
— E John Ansel, que toda a gente julgava perdido na selva brasileira,
nunca se mostrou nem se declarou salvo, até ser descoberto?
— Perguntem também a Barney Quin.
— Por que razão ele se escondeu? É verdade que a viúva de Endicott
se encontrava secretamente com Ansel, antes da morte do marido?
— Estão perdendo o seu precioso tempo! Cortei com certa simpatia.
— Já lhes dei muita matéria para fazerem uma porção de artigos, não é?
Sabem bem que só Barney Quin pode informá-los acerca desse assunto. Já
fiz o que podia em seu favor. Admito que trabalhamos para esse advogado
no caso Endicott e é tudo.
Os jornalistas trocaram entre si alguns olhares entendidos e tiraram
algumas fotografias, de Bertha e de mim, fingindo discutir um assunto
qualquer e apertando a mão cordialmente. Depois, recolheram o material,
se despediram e se eclipsaram.
— Seu grande mentiroso! Exclamou Bertha mal a porta se fechou.
— Você precisava que eu lhe batesse com um tinteiro na cabeça!
— Mas porquê, Bertha?
— Acaba de inventar um himalaia de absurdos!
— Sério? Comentei calmamente. — Nesse caso, aconselho-a a
esperar um pouco e a julgar depois.

* * *
Doze

S JORNAIS da tarde consagraram largos títulos à minha história. O


O Citrus Grove Clarion continha uma declaração de um dos
administradores da cidade, chamado Bailey Grosset. Ele negava essa
acusação, que dizia infundada, feita por um jornalista de Los Angeles. Os
membros do Conselho de Citrus Grove nunca tinham recebido "luvas" e
nunca tinham se oposto, de qualquer forma ao progresso da cidade.
Lamentava a existência de algumas controvérsias na discussão de uma lei a
votar, mas isso era uma questão à parte. O Conselho iria examiná-la
muito cuidadosamente.
Pelo que se entendia, Grosset nunca recebera ou esperara receber um
centavo enquanto fosse administrador da cidade. Mas era também
político e como tal tinha o direito de utilizar os fundos destinados à
campanha eleitoral. Fora com esse fim que Drude Nickerson lhe entregara
dois mil dólares. Esse dinheiro era absolutamente limpo, mas mesmo
assim ia solicitar que se realizasse um inquérito. Se esse inquérito revelasse
que Nickerson estava envolvido nesse negócio de terrenos, ele, Grosset,
seria o primeiro a ficar surpreso. Era certo que, pessoalmente, tinha
intenção de votar contra a mudança da lei sobre terrenos. Não poderiam,
portanto, acusá-lo fosse do que fosse. Fazia disso uma questão de
princípios. O artigo continuava frisando que se tratava do mesmo
Nickerson citado como testemunha no caso Endicott e que, nesse
momento, se achava impossibilitado de responder a quaisquer perguntas.
Os jornais de Santa Ana insistiam em se referir à forte companhia de
Este que procurava terrenos em Citrus Grove e não deixavam de insinuar
que os arredores de Santa Ana podiam apresentar o mesmo interesse.
Stella Karis me telefonou. Estava tão furiosa que quase gaguejava:
— Diabos! Que diabo de história você foi inventar? E porquê, seu
maluco?
— Calma! Por acaso lhe prometi silêncio absoluto?
— Não, mas pelo que me aconselhou, entendi que...
— Então! Não se enerve. A última vez que a vi, tentavam lhe
extorquir dez mil dólares além dos quinze mil já entregues. Por ventura,
voltaram à carga?
— Não, admitiu ela.
— E não o farão! Não seja tola. Confie os seus assuntos a um banco
e continue a pintar nus.
Desliguei sem esperar resposta. O telefone tocou novamente. A voz
era doce e delicada.
— Mr. Lam?
— O próprio.
— Homer Garfield, presidente da Câmara de Comércio de Citrus
Grove.
— Como está, Mr. Garfield?
— Muito bem, obrigado. Li inúmeros artigos de imprensa,
referentes a uma provável expansão de Citrus Grove. Parece ser o senhor a
fonte dessas declarações.
— É exato.
— Posso lhe perguntar se possui alguns dados precisos?
— Sim.
— Quais são eles?
— Não posso dar quaisquer informações que não tenham já sido
publicadas nos jornais. Uma coisa, porém, é certa: o Citrus Grove Clarion
publica uma declaração de Bailey Grosset acerca de dois mil dólares
entregues por Drude Nickerson em benefício da campanha eleitoral.
Trate, portanto, de procurá-lo e tirar as coisas a limpo. Se interrogar os
outros membros do Conselho de Administração talvez possa saber se
receberam ou não dinheiro de Nickerson.
— É impossível falar com ele. Está proibido de se comunicar seja
com quem for, em virtude de ser uma das testemunhas principais.
— Não representa, o senhor, a Câmara de Comércio? Trate de
resolver esse assunto! Não vai ficar de braços cruzados enquanto uma
fábrica de vinte milhões de dólares vai ser construída em Santa Ana, só
porque a sua cidade está tão corrompida que o senhor não consegue
remover uma lei sobre terrenos. Estarão alguns políticos de baixo estofo,
desejosos de encher os bolsos, para o fazerem perder um mercado
considerável? Garfield pigarreou:
— Não pretendo discutir isso, Mr. Lam. Quero apenas esclarecer os
fatos.
— Nesse caso, se enganou de pessoa. O seu Procurador do Distrito e
o seu xerife estão em melhor posição do que eu para esse fim. Vão querer
impedi-lo de interrogar Nickerson a respeito de um assunto de tal
importância? Ficará o senhor de braços cruzados enquanto Santa Ana
mexe os cordéis para consegui esse negócio?
Homer Garfield hesitou e depois insistiu:
— Como sabe se tratar de um assunto de tão grande importância,
Mr. Lam?
— É o meu dedo mínimo que me diz!
Após isso, desliguei. Em seguida, decidi me lançar à procura da
secretária despedida por Karl Carver Endicott, a que tinha contado tudo à
mulher daquele acerca da malograda expedição de John Ansel. Muito
trabalho me deu para lhe descobrir a pista.
Helen Maning era uma loura bonita, de olhos azuis, um pouco larga
de quadris. Sabia se desembaraçar bem com uma máquina de escrever. O
patrão não se mostrava satisfeito por vê-la conversar durante as horas de
trabalho. Por esse motivo convidei-a para jantarmos juntos. Voltei para o
escritório, desejoso de saber novidades.
Elsie Brand me deu um telegrama. Estava assinado por Barney Quin
e dizia:

BRAVO CONTINUE

Pouco depois, um repórter do Citrus Grove Clarion telefonou com


intenção de conseguir uma entrevista.
— É impossível falar quanto ao assassinato, lamentei. — Deve se
dirigir ao advogado Quin e ele poderá...
— O assassinato não me interessa, cortou ele. — Falemos antes da
fábrica.
— Já abordou o diretor da Câmara de Comércio?
— Pode-se até dizer que foi ele que nos abordou.
— Interrogou Nickerson?
— Por que razão insiste tanto em sondarmos esse sujeito?
— Perguntei apenas se já o tinham interrogado.
— Não, e o seu tom de voz era seco.
— Pois bem, aconselho a que o façam.
— Escute! Estão acontecendo uma série de coisas... Um outro
membro do Conselho declarou ter também recebido dois mil dólares para
a campanha eleitoral. Segundo ele isso nada tinha a ver, nem de longe,
com essa história de terrenos. Vai pedir que se faça um inquérito; se se
verificar que o dinheiro serviu para obter o seu voto com a intenção de
uma mudança da lei, patenteará a sua oposição.
— Esse seu Conselho é uma coisa do arco-da-velha, comentei.
— Porquê?
— Então ainda não reparou? Esses sujeitos receberam a grana.
Vendo-se agora acusados, querem se limpar votando automaticamente
contra a nova lei.
— Um momento, cortou ele, espantado. — Acha então isso justo?
— O quê?
— Isso de se oporem a um projeto capaz de enriquecer a nossa
comunidade?
— Não se esqueça de que o Conselho apenas quer agora provar a sua
integridade, comentei com velada ironia. —Nada mais tenho a
acrescentar! Desliguei.
Dez minutos depois, disquei o número de Homer Garfield.
— Com que então, um outro dos seus conselheiros reconhece ter
embolsado dois mil dólares da parte de Nickerson? Comentei.
— Sim. A sua voz se mostrava prudente. — É exato.
— E já interrogou Nickerson?
— Já lhe disse que é impossível abordá-lo.
— Portanto, está fazendo o jogo deles, em vez de tentar saber
realmente a que se destinavam esses donativos?
— Dois mil dólares representam muito dinheiro para os políticos
locais, observou ele secamente.
— Muito bem e tudo indica que Nickerson não ficou por aí. Esses
quatro mil dólares estão longe de constituir todas as suas contribuições
para essa tal campanha eleitoral.
— Posso perguntar, Mr. Lam, por que razão se interessa tanto por
esse assunto?
— Porque sou um sentimental, Mr. Garfield. Luto pelo ideal da
região. Além disso, não quero que o acusem de ter traído os comerciantes
da cidade e deixado Nickerson se esconder atrás do Procurador do
Distrito, a título de que é uma testemunha em situação de sigilo. Seria
muito fácil para ele.
— Segundo o Procurador do Distrito, o senhor iria se ocupar desse
caso de homicídio...
— É exato.
— E quer mal a Nickerson...
— Não. Apenas pretendo saber a verdade.
— Parece que ele não está disposto a tirar as castanhas do fogo, em
seu favor.
— Portanto, não podem interrogá-lo?
— Não.
— E durante o processo?
— Ainda não foi decidido.
— Posso saber o que faz, na vida, Mr. Garfield?
— Sou comerciante no ramo de ferragens.
— Não possui interesses em Santa Ana?
— Não.
— Nem terrenos?
— Bem... Tenho alguns, para esses lados.
— Estou vendo! Comentei.
— O que quer dizer com isso?
— Nada. Penso apenas que se encontra numa posição delicada. Se a
fábrica for construída em Citrus Grove, o senhor perde a sua influência.
Se a constroem em Santa Ana, dirão que agiu no seu próprio interesse.
Situação desgraçada! Ele tentou mudar de assunto.
— A única Companhia de Automóveis que poderia empatar esse
capital declara que nunca pensou em construir uma nova fábrica.
— É uma manobra normal, objetei.
Permaneceu silencioso durante breves segundos.
— De resto, insisti, — Se nada está em jogo, como explica que dois
administradores receberam comissões neste momento preciso?
— É isso que me intriga, confessou.
— E tem boas razões para isso! Deixe-me perguntar uma coisa: o seu
inquérito acerca do dinheiro da campanha eleitoral poderia, de alguma
forma, modificar o testemunho de Nickerson, no caso do crime?
— Meu Deus! Não! Não vejo como!
— É também a minha opinião, me apressei a apoiar. — Portanto,
por que razão o Procurador do Distrito mantém Nickerson em sigilo?
Peço-lhe agora, Mr. Garfield, que me desculpe, mas tenho um encontro
importante. Até à vista.

* * *
Treze

ELEN MANING se embelezara. Cuidadosamente vestida e penteada,


H estava muito atraente e insinuava uma certa elegância indefinível.
Tomamos dois coquetéis antes de jantar. Tentada pelo criado, pela
ementa e por mim, negligenciou os seus cálculos de calorias e, após um
coquetel de ostras, deglutiu uma salada de abacate, um caldo de tomate,
um filé de linguado e uma torta de maçã.
Quando entramos no seu apartamento, me ofereceu um licor e
amorteceu a luz. Pretextou lhe doerem os olhos ao fim de uma tarde
inteira de datilografia.
Sentou-se e cruzou as pernas. Eram pernas bem feitas e sabiam se
mostrar tentadoramente. A meia-luz rejuvenescia-a. Tinha um magnífico
porte e quem, ao vê-la escrever à máquina, lhe atribuísse trinta e cinco
anos, não lhe daria agora mais do que vinte e dois.
— Que quer então saber? Começou ela.
— Trabalhou para Karl Carver Endicott, não é? Em que função?
— Secretária da Diretoria.
— Que gênero de patrão era ele?
— Maravilhoso.
— E sob o ponto de vista pessoal?
— O que quer dizer com isso? O tom da sua voz era agora ácido. —
As nossas relações se limitavam às que são comuns entre um patrão e uma
empregada. Foi sempre muito correto. Em caso contrário, eu o teria posto
no seu lugar.
— Estava a par de todos os seus assuntos?
— Sim.
— Ele era honesto?
— Escrupulosamente. Era um homem íntegro.
— Nesse caso, por que razão pediu demissão?
— Por razões pessoais; pedi para sair.
— Porquê?
— Não me agradava estar ali.
— Mudara alguma coisa?
— É difícil explicar. Algumas jovens eram antipáticas. Como podia
encontrar trabalho, facilmente, noutro lugar, não hesitei em deixar um
local que se tornara aborrecido. Portanto, me despedi.
— Sem animosidade, nem oposição?
— De forma alguma. Mr. Endicott me deu uma esplêndida carta de
recomendação. Posso mostrá-la.
— Com todo o gosto.
Levantou-se e entrou no aposento contíguo. Não demorou a
aparecer com uma folha de papel timbrado: Transações Endicott. Na
verdade era uma bela carta: Helen Maning, secretária eficaz e experiente,
trabalhou durante seis anos nesta empresa. Sai por seu manifesto desejo e
sentiremos a sua falta no serviço.
Dobrando a carta desfechei:
— E foi depois de receber esta carta que procurou Mrs. Endicott,
não é verdade?
— Quem? Eu? Perguntou em tom incrédulo.
— Sim, você.
— Mas isso é falso! Só vi Mrs. Endicott uma ou duas vezes no
escritório. Conhecia-a apenas de vista e, quando muito, troquei com ela,
somente, uma ou duas frases.
— Mas encontrou-a depois de ter deixado o emprego, não é?
— Posso talvez lhe dar bom dia, ao cruzarmos na rua, mas nem me
lembro de tal.
— Portanto, nunca telefonou para marcar um encontro e fazer
confidências?
— Não!
— Muito bem. Pode fazer uma declaração por escrito e assiná-la?
— Para quê?
— Poderia mostrá-la às pessoas para quem trabalho. Isso dissiparia
certos rumores.
— Não vou fazer uma declaração dessas!
— Mas, se o que diz é verdade...
— Sim...
— Então isso não poderá lhe causar problemas.
Ficou silenciosa, durante alguns instantes. Depois me interrogou
abruptamente:
— Como soube?
— Soube, do quê?
— Da minha visita a Mrs. Endicott?
— Não seja tola! Você nunca a viu e vai me assinar um papel em que
afirma isso.
— Está bem, disse subitamente. — Fui procurá-la e lhe disse o que
ela devia saber.
— A patifaria de Karl Carver Endicott?
— Tudo... Depois de tudo o que eu fiz por ele! Consagrara-lhe os
mais belos anos da minha vida, ninguém podia ser mais fiel do que eu
sempre fui... Fechei os olhos a uma porção de coisas... Nunca quis
suspeitar dele... De coisa alguma a seu respeito... Mas quando o vi metido
com aquela cabra! Uma vadia, que nem sequer era capaz de datilografar
decentemente. Não sabia fazer nada, de resto! Era apenas uma
prostitutazinha que o trazia pelo beicinho e...
— Você fez uma cena?
— Não. Disse-lhe apenas que, se queria uma amante, devia deixá-la
no apartamento em vez de deixá-la no escritório sabotando o trabalho! Já
que me nomeara secretária da diretoria não podia consentir que uma
porcaria daquelas me desse ordens, só porque tinha uma silhueta delgada
e um cérebro de pardal!
— Foi por isso que ele a pôs na rua? Helen começou a chorar. —
Então? Responda.
— Sim. É verdade. Que o diabo o carregue! Exclamou entre soluços.
— Isso já é mais claro! Foi, portanto, falar com Mrs. Endicott. Que
lhe disse?
— Contei-lhe o que tinha acontecido. Disse que quando Karl
enviara Ansel e um outro homem para a Amazônia, já sabia que não
teriam a menor possibilidade de regressarem. Queria simplesmente se
livrar deles.
— Desde quando estava a par dessa história? Sabia isso há muito
tempo?
— Não. Antes não me atrevia a lhe fazer perguntas.
— Como Endicott podia saber que eles não regressariam?
— Porque uma outra expedição que explorara esse local fora
totalmente exterminada. Karl estava a par disso, pois consultara a
companhia petrolífera que organizara a malograda expedição e aquela
fornecera pormenores do desastre... Pântanos, doenças, carência de
víveres, serpentes mortíferas, jacarés e tribos selvagens de caçadores de
cabeças.
— Guardou consigo alguns documentos?
— Não.
— E fotocópias?
— Também não. Apenas datilografei os pedidos de informações e li
as cartas que nos forneceram.
— Endicott lhe deu alguma coisa, quando a despediu?
— Não.
— E agora ganha bem?
— Trabalho.
Observei-a cuidadosamente e concluí que devia ter sido uma beleza,
seis anos atrás. Era ainda um belo exemplar. Tinha então vinte e nove
anos e agora, com trinta e cinco, devia saber, a fundo, como fazer as
coisas.
— Bem, Helen. Tenho que ir embora. Este caso me obriga a dar
uma porção de voltas. Foi muito gentil da sua parte ter me consagrado
todo este tempo.
— Obrigado pelo jantar, Donald. Foi maravilhoso!
Acompanhou-me à porta e ia beijá-la no rosto, para lhe desejar boa
noite. Ofereceu-me os lábios, mas o nosso beijo não foi apaixonado.
Estávamos ambos preocupados com outros pensamentos.
* * *
Quatorze

ABER, o presidente do Conselho Municipal de Citrus Grove era


T um homem de cerca de cinquenta e cinco anos, bochechudo, de
lábios grossos e olhos cinzentos frios; falava vivamente e aos arranques; as
palavras jorravam da sua boca como balas de metralhadora. Cooper Hale
era de pequena estatura, calmo e gordo. Olhou-me, desviou a vista e
tornou a me examinar.
Bertha nos apresentou. Apertamos as mãos. Taber começou a falar.
— É uma publicidade lamentável, deveras lamentável! Parece que
você é a fonte das informações. Não sei aonde foi buscar essas ideias, Lam,
e não quero saber. Insinua que o Conselho Municipal de Citrus Grove
não está à altura dos acontecimentos e que, não alterando a lei sobre
terrenos, se opõe ao desenvolvimento da cidade.
Parou um instante, retomou fôlego e continuou, acentuando as
palavras:
— Não gosto nada disso. Se tem qualquer ressentimento contra o
Conselho, diga francamente. Não sei o que tenta conseguir. Não estou
ainda pronto para fazer uma acusação pública, mas desconfio de si.
— Pretende sugerir que as minhas afirmações são falsas? Inquiri.
— Absolutamente.
— E o que pensa do dinheiro recebido por Crosset para a campanha
eleitoral?
— É uma história deplorável. Conheço Crosset intimamente,
respeito e o admiro sinceramente. É um homem íntegro. O menor ataque
à sua honra provoca nele as maiores repercussões, de tal forma são rígidos
os seus princípios. Estou desolado por isso lhe acontecer.
— Também ele deve ter ficado desolado.
— Tem o direito de receber fundos de plena boa-fé.
— Sim.
— Nesse caso, porque insiste no assunto?
— Ele não pediu demissão? Perguntei.
— Sim.
— Porquê?
— Porque, como lhe disse, é um homem honesto que preza a sua
reputação.
— E os outros?
— Quais outros?
— Os que também receberam donativos de dois mil dólares.
— O que lhe permite afirmar que houve outras contribuições?
— Um outro membro do Conselho já confessou ter recebido
também a mesma quantia.
— E que mal há nisso?
— Nenhum.
— Então por que insiste?
— Eu não insisto.
— Mas me perguntou isso.
— Queria me familiarizar com a situação. Hale mudou de posição e
ergueu os olhos para mim.
— Afinal de contas você não está livre de alguma acusação, Lam.
— Que espécie de acusação?
— Há por onde escolher.
— Dê um exemplo.
— Não é necessário. Apenas fiz uma observação.
— Bravo. Começamos com ameaças veladas.
— Não viemos aqui para questionar, interveio Taber.
— Ah, sim?
— Mas para obter a sua cooperação.
— De que maneira?
— Você fez declarações à imprensa.
— E que mal há nisso?
— Gostaríamos que fossem declaradas sem fundamento.
— Estão, portanto, interessados em que a fábrica seja construída em
Santa Ana em vez de Citrus Grove.
— De forma alguma. E estou certo de que essa fábrica é imaginária.
— Quer apostar?
— Não gosto de apostas. Sou um homem de negócios.
— Mas também se entrega à política.
— Tenho me ocupado também disso.
— Ora essa companhia quer se estabelecer em Citrus Grove.
Encontrou o local ideal. Mas carece de um mínimo de cooperação da
parte do Conselho Municipal. No momento ignoro o que os jornais vão
publicar, mas sei de um jornalista que tem uma ideia muito lógica.
— Qual é?
— Pensa que uma personalidade influente que possui terrenos em
Citrus Grove pretende que essa Companhia se instale noutro lugar. Sob a
cobertura dessa lei, arrasta os assuntos até conseguir saber o nome da
Companhia, para então fazer um bom negócio.
— Mas isso é absolutamente ridículo! É absurdo! Completamente
falso! Exclamou Hale.
— Exprimi apenas a opinião de um repórter.
— Quem é ele? Terá que se haver comigo!
— Porquê?
— Porque nada disso é verdade!
— Então por que quer destruí-lo? Isso lhe diz respeito pessoalmente?
Hale não retorquiu. Taber retomou a palavra.
— Mr. Hale quer dizer que uma história apresentada dessa maneira
insidiosa o atinge pessoalmente.
— E possui terrenos em Citrus Grove?
— Sempre tive fé no desenvolvimento da cidade, cortou Hale com
voz untuosa. — No decurso da minha carreira, sempre cuidei da
comunidade. Cheguei a fazer sacrifícios pessoais nesse sentido.
— Esses sentimentos só o dignificam! Comentei.
— É verdade, Sublinhou Taber.
Não fiz comentários. Mr. Hale continuou.
— Está interessado nesse caso?
— Estamos trabalhando nele, declarei.
— Ansel não tem a menor probabilidade de se safar! Está
antecipadamente perdido.
— É essa, certamente, a opinião do Procurador do Distrito, mas Mr.
Quin, seu advogado vê as coisas de outro modo.
— Esse caso excitou os cidadãos de Citrus Grove, prosseguiu Taber.
— Durante o processo, o espírito da comunidade não deixará de se
manifestar. A maior parte dos jurados serão daqui ou dos arredores. O
Juiz sugerirá a pena de morte e Ansel não terá possibilidade de se livrar
dela.
Não retorqui. Taber continuou:
— Mas estamos prontos a colaborar. Se a agitação dos jornais se
destina a distrair a atenção do caso Endicott e de provocar dúvidas quanto
à integridade de uma testemunha, tomou um mau partido, Mr. Lam. Fará
melhor em ficar do nosso lado.
— De que maneira?
— O Procurador do Distrito é um homem sensato e eu o conheço
pessoalmente. Estou certo de que compreenderá certas coisas...
— Que coisas?
— Se Ansel se confessar culpado, o Procurador saberá compreender
quanto isso facilita o processo e economiza dinheiro à cidade. Renunciará
ao pedido de pena de morte, se contentando com prisão perpétua. Não
posso, evidentemente, afirmar coisa alguma. Não tenho procuração do
Procurador do Distrito, mas entrevejo a situação.
— Estou vendo que sim.
— O próprio Ansel poderá se considerar culpado de homicídio em
segundo grau.
— Não creio que Mr. Quin tenha nisso algum interesse. Sabem bem
que está persuadido da inocência de John Ansel.
— É uma convicção errônea. Todos os fatos são contra o acusado. É
preciso reconhecer.
— Não estou a par de todos os fatos, atalhei. — Limito-me a
trabalhar no caso.
— Em breve os conhecerá, disse Taber se erguendo. — Poderá vir
me encontrar quando quiser, no meu escritório de Citrus Grove. Repito
que os meus únicos interesses são os da cidade.
— Então movimente-os no sentido dessa lei sobre terrenos.
— O que quer dizer?
— Se cinco membros do Conselho receberam dois mil dólares, cada
um deles, de Drude Nickerson, isso prova a que ponto o assunto é
importante. Já agora vou lhe dizer qual é a minha opinião pessoal. Estou
convencido de que esses dois mil dólares se destinaram efetivamente à
campanha eleitoral. Mas não a favor da alteração da lei. Mr. Nickerson
deve ter dado bem a entender que desejaria que ela não fosse alterada, a
fim de que a fábrica adquira os terrenos de um dos seus amigos. Não
posso dizer ainda os nomes das pessoas interessadas, mas conto fazer isso
amanhã.
— Também está tratando disso? Perguntou Taber.
— Certamente.
— Profissionalmente?
— Pareço porventura um amador? Perguntei.
— Isso vai lhe causar aborrecimentos!
— É possível, mas não apenas a mim! Penso se Mr. Grosset terá
declarado ao inquiridor ter recebido esses dois mil dólares.
— Os fundos destinados às campanhas eleitorais não têm de ser
declarados, cortou Taber.
Ri suavemente.
— Pelo menos, não creio que seja necessário, corrigiu ele. Continuei
a rir. Hale interveio:
— Já fizemos aqui o que podíamos fazer, Charles. Propusemos o
nosso auxílio. O Procurador do Distrito é meu amigo. Estou cheio de boa
vontade mas, ao menos, que venham ao nosso encontro, até metade do
caminho.
— Está bem, concordou Taber, meneando a cabeça. — Não foi
mais do que uma pequena visita de passagem, para travarmos relações.
Espero que apreciem a firmeza da nossa posição.
— Talvez seja mais apropriado apreciarem a nossa! Repliquei.
— Ouvirá falar de nós, muito em breve.
Dito isto, os dois homens saíram sem nos apertar a mão.
Fechada a porta, Bertha me fixou com um olhar tão gelado como os
diamantes dos seus dedos.
— Com seiscentos diabos, Donald! Que vai fazer agora? Insultou
deliberadamente estes tipos. Acusou-os de fazer jogo duplo.
— Foi essa a impressão com que ficou? Inquiri.
— Sim.
— Nesse caso, é provável que eles tenham percebido o mesmo.
— Sabe ao menos o que lhes disse?
— Sei, sim. Nickerson recebeu quinze mil dólares de Stella Karis.
Queria que mudassem a lei sobre os terrenos a fim de vender os seus para
a fábrica. Nickerson soube do negócio e Hale também. Mas Hale queria
vender os seus próprios terrenos à companhia. Stella Karis o incomodava.
Foi por isso que decidiu pagar aos conselheiros municipais, para que não
alterassem a famosa lei. Mas não queria largar dinheiro do seu próprio
bolso e acertou com Nickerson esse truque formidável. Este utilizaria o
dinheiro de Stella Karis para comprar os conselheiros, mas pediria, não
que mudassem a lei, mas sim que a mantivessem em vigor. Ora a gente de
Citrus Grove acabou por compreender que alguns políticos a fim de
satisfazerem os seus pequenos interesses particulares, estavam prestes a
deixar escapar a enorme fonte de receita que essa fábrica representava para
a cidade...
Bertha me interrompeu para observar:
— Uma vez alertada a opinião pública, não há forma de acalmá-la.
— Alertada já está. As pessoas se juntam nas ruas e não falam senão
do crime Endicott e da fábrica de automóveis.

* * *

O Conselho de Citrus Grove convocou uma reunião especial para as


três horas e meia da tarde. A notícia da lei sobre os terrenos foi votada e
Stella Karis viu os seus sonhos se realizarem. O Citrus Grove Clarion
anunciou a decisão do conselho e informou os leitores de que a expansão
econômica que viria dessa decisão estava finalmente assegurada.
Stella me telefonou por duas vezes. Eu tinha saído. Deixou um
recado com Elsie Brand que o estenografou e me transmitiu quando
voltei. Miss Karis desejava me ver, visto que não podia exprimir a sua
gratidão apenas com palavras.

* * *
Quinze

O DECORRER de um processo, o detetive fica encarregado de se


N informar da identidade dos jurados. Bertha e eu começamos a
trabalhar nisso. Ela se ocupou dos mais velhos e eu dos mais novos.
Não se tratava, como é óbvio, de discutir o caso com eles. O
Tribunal podia nos acusar de tentarmos influenciá-los. Mas nenhuma lei
nos impedia de tagarelar com eles, simplesmente para apurar certos
pormenores de sua vida e seria interessante saber se já tinham, ou não,
sido jurados e qual a sua opinião acerca doutros casos jurídicos. Era um
trabalho longo e fastidioso, mas conseguimos obter uma boa série de
biografias condensadas.
Barney Quin examinou-as atentamente e depois classificou-as
segundo um código especial: em frente do nome de cada jurado,
desenhava um quadrado. Se marcava um sinal no lado superior do
quadrado, isso significava que o jurado era honesto, intransigente, mas
aceitável. Se a marca se situava em baixo do quadrado, o homem era
obstinado, estúpido e particularmente intolerante. Enfim, colocado no
meio, se tratava de alguém que cederia a um interrogatório bem
conduzido. Entretanto, eu continuava a verificar todas as informações já
obtidas.
Na véspera do processo, Stella Karis me telefonou:
— Não tem vindo me ver, Donald.
— Tenho trabalhado noite e dia.
— Perde ao menos tempo para comer, não é?
— Não como; engulo.
— Então venha. Quero vê-lo engolir. Preciso realmente falar
consigo.
— A que respeito?
— Do que você se ocupa atualmente.
— Que há de novo?
— Hale veio falar comigo, disse Stella.
— Peste!
— E mais do que uma vez.
— O que ele queria?
Ela emitiu um risinho sedutor:
— Vou lhe dizer, mas não ao telefone.
— Sinceramente, Stella, estou cheio de trabalho neste momento...
— Mas se trata de um assunto acerca de uma testemunha do caso
Endicott.
— Bem! Dou um pulo aí.
— Quando? Vem jantar comigo?
— Impossível, lamentei, — Pois já tenho um encontro marcado.
Prefiro passar por aí, por volta das nove horas, se não for muito tarde.
— Não, não é. Esperarei por si.
Durante a tarde, acabei a lista dos jurados, verificando certos
pormenores. Cheguei na casa de Stella quando faltavam cinco minutos
para as nove. Abriu a porta imediatamente e o seu decote me revelou
maravilhosas perspectivas. A saia, fendida do lado expôs as pernas
admiráveis quando se sentou no sofá. Ofereceu café e licores. Por fim,
disse:
— Mr. Hale se propôs a tratar dos meus negócios.
— Foi gentil da sua parte.
— Você me disse para confiá-los a um banco e, portanto...
— Escute, interrompi. — Você não é tão estúpida ao ponto de
confiar em Cooper Hale?
— Ele tem uma larga rede de transações e vai fundar uma nova
sociedade para esse efeito.
— A solução é agradável... Para ele!
— Mostrou-se muito amável. Entre nós, ele o detesta.
— Como vê, fico profundamente aflito!
— Julga que eu também o aborreço.
— Sério?
— Sim. Disse-lhe que você não vinha mais aqui. Passa o tempo a me
fazer perguntas a seu respeito.
— Sim? Conte mais coisas.
— Contou uma história que mais ninguém sabe: A de um
fazendeiro chamado Thomas Victor, explicou Stella. — Lembra-se da
noite do assassinato de Endicott?
— Sim.
— Pois bem. Mrs. Endicott declarou que se achava precisamente às
nove horas, em frente de uma bomba de gasolina, portanto no momento
do tiro, não é? Pois bem, Thomas Victor passou faltando sete minutos
para as nove horas em frente da bomba de gasolina porque queria encher
o tanque e afirma que esta já estava fechada. Segundo ele, o garagista
fechara a loja antes do tempo ou estava com o relógio adiantado.
— Talvez o relógio desse Victor estivesse atrasado, observei.
— Ele insiste que estava certo. Não quis deixar de lhe contar isto,
Donald.
— Obrigado!
— É importante?
— O mais importante é o fato de Cooper Hale ter julgado
conveniente dizer isso a você.
— Que ideia seria a dele?
— No momento, ignoro, mas vou tratar de pôr isso a limpo. Como
corre o assunto da fábrica?
— Já assinamos um contrato e... Sabe uma coisa?... Você tinha
razão, Donald. Não se trata de balas e chicletes, mas sim de peças
metálicas. Estão construindo uma cadeia de fábricas em todo o Este e
tencionam torná-la extensiva ao Oeste.
— Olá!
— Não é surpreendente?
— Sim!
— Vou ganhar um bom dinheiro com esse negócio.
— Contente?
— Francamente, Donald, ainda não sei! Preferia me dedicar à
pintura e ao desenho. Não sou mais do que uma artista de segunda
ordem, mas tenho, ao menos, a impressão de criar alguma coisa. É a
minha vida! Gosto das pessoas que conheço nesse gênero de vida.
Podemos falar de muitas coisas; de linhas, de perspectivas, de cores. De
resto, não é apenas tagarelice. Acreditamos nelas seriamente. Oh, Donald,
exclamou ela subitamente, — Quando se decidirá a vir tratar dos meus
assuntos?
— Nunca.
— Porquê?
— Porque nesse caso trabalharia para você.
— E que mal há nisso?
— Significa que você me traria pela trela. Deus me salve dos
negócios! Vou me arranjando, muito bem, no meu ofício.
— Já esperava que me respondesse isso.
Refletiu, durante alguns segundos.
— Em todo o caso, Cooper Hale não tem as mesmas ideias que
você.
— Estou certo disso!
— Se organizar essa tal sociedade devo lhe confiar os meus
interesses? Promete belos rendimentos.
— Já lhe dei o meu conselho. Confie os seus capitais a um banco.
Deixe de pensar neles pessoalmente e se contente com rendimentos
médios. É muito mais seguro. Venda todos os seus terrenos à fábrica e
tudo quanto careça ser administrado. Compre ações seguras. Depois, volte
para a pintura. Vá para a Europa estudar arte, se tem vontade disso. Faça
alguma coisa que valha a pena.
— Sim, você tem razão! Concordou ela.
— Já foi casada?
— Sim. Disse isso na primeira noite em que nos vimos, em Reno.
— E que aconteceu ao casamento?
Ela percorreu com um dedo o rebordo do sofá.
— Foi desfeito!
— Não se entendiam?
— Sentia-me presa e não gosto disso. Creio que todos os artistas
receiam ser... Possuídos. É, sem dúvida, por isso que os atores e as atrizes
são tão pouco dados ao casamento. Fala-se da imoralidade de Hollywood,
mas não se trata de imoralidade, Donald, mas simplesmente de alguma
coisa que é mais forte do que nós. Apaixonamo-nos, é verdade, mas,
quando se torna necessário seguir as regras e observar as convenções,
somos tomados de pânico. Sentimos a impressão de estarmos prisioneiros.
Debatemo-nos não contra a pessoa a quem estamos ligados, mas contra a
ideia de estar ligado a alguém.
— Deseja tornar a se casar?
— É uma proposta? Perguntou.
— Não. É uma simples pergunta.
— Não, em princípio. Evidentemente que há certas pessoas com
quem poderia... Bem, confesso que, por vezes, me sinto à beira de me
apaixonar.
— Vai ser agora uma presa para os caçadores de dotes. A quanto
monta a sua fortuna?
— Você não tem nada com isso, replicou ela.
— Bravo! Assim mesmo é que é!
— Que é, o quê?
— A responder que ninguém tem nada com isso. E, se quer ouvir o
meu conselho, coloque o seu capital como um bom pai de família, volte
para Nova Iorque e viva com duzentos dólares por mês. Aconteça o que
acontecer, se convença, a si mesma, de não gastar mais do que isso.
— Já tinha pensado nesse assunto dessa mesma maneira.
— Pois bem, torne a pensar nele seriamente. Agora tenho que ir
embora.
— Eu não o vejo muitas vezes, se queixou, ficando amuada.
— Também eu não, a não ser alguns minutos, de manhã, quando
me barbeio.
Stella começou a rir.
— Você ainda é pior do que eu. Tem horror a se prender seja ao que
for.
— É possível. Agora tenho que ir. Vou ter um dia árduo, amanhã.
— Quando voltamos a nos ver?
Beijei os lábios que me oferecia, e fiz mais demoradamente do que
convinha.
— Até breve-prometi.
Saí e telefonei para Barney Quin.
A voz deste era tensa e excitada. Comecei por tentar contar a famosa
novidade, mas ele não me deixou.
— Escute, Donald. Há várias horas que procuro falar consigo. Pode
passar por aqui?
— Vou imediatamente. Bertha e eu passamos o dia estudando os
jurados.
— Já calculava. Não tinha ninguém no escritório. Traga Bertha
consigo.
— As coisas estão correndo mal?
— Pior do que isso.
— Devo adverti-lo que estão verificando a hora em que Mrs.
Endicott chegou no posto e...
— Que posto? Ah, sim! Na bomba de gasolina. Isso é um assunto
secundário. Venha logo que possa.
— É só ir pegar Bertha.
— Nesse caso, previna-a e espere-a aqui. É importante. Está tudo
correndo mal.

* * *
Dezesseis

ERTHA suspirou, resmungou e me injuriou ao receber a minha


B ligação telefônica, mas estava pronta quando passei para buscá-la.
Chegamos em Santa Ana sem demora.
Quin estava fechado no escritório. O aposento estava cheio de
fumaça e os cinzeiros de guimbas. O advogado se mostrava nervoso e
tinha os olhos encovados. Bertha atravessou o aposento e se deixou cair
numa poltrona, observando:
— Está com um aspecto medonho, meu caro amigo! Que
aconteceu?
— É por causa deste caso infernal! Mandei chamar Mrs. Endicott
que estará aqui dentro de minutos. Se não se importam, esperemos que
chegue para não ter que contar as coisas duas vezes.
— As coisas estão dando errado? Inquiri.
— Erradíssimo!
Esmagou um cigarro meio fumado no cinzeiro. Eu continuei:
— Também eu trago más novas.
— Despeje-as, já agora...
Bateram à porta. Quin foi abrir precipitadamente.
— Boa noite, Barney! Era Mrs. Endicott.
— Queira entrar, Betty, convidou ele. — Estou desolado por
incomodá-la a esta hora, mas tem tempestade no ar.
— Que está correndo mal?
— Queira sentar.
Mrs. Endicott se instalou numa cadeira.
— A senhora me contou uma série de histórias, começou ele,
encarando-a de frente, — Acerca de John Ansel e da sua intuição. Ele
sabia, por si, que a senhora tinha ido embora e que Karl Carver Endicott
estava decidido a matá-lo. A senhora acrescentou também que Karl
entrara num quarto e que John tivera o pressentimento de que ele fora
buscar um revólver.
— É verdade! Confirmou ela.
— Está certa disso? Não será essa história que pretende que
acreditemos? Não terá a senhora instado com Ansel para que mantenha
essa versão?
Ela não alterou a expressão e se limitou a repetir:
— É a verdade!
— Lamento contradizê-la, prosseguiu Barney Quin. — John me
contou essa mentira várias vezes, mas acabou por renunciar a ela. Quando
estiver no tribunal, o advogado vai submetê-lo a um interrogatório
cerrado e...
— John contou a verdade, afirmou Mrs. Endicott. — A sua versão
está baseada em fatos.
— Está, uma figa! Exclamou Quin, violentamente. — Ansel foi a
Citrus Grove com intenção de matar Karl Endicott, aí tem os fatos!
Levara um revólver consigo, mas foi Karl quem teve essa intuição.
Quando viu John, fê-lo subir ao primeiro andar, se desculpou, deixou-o
por momentos sozinho e entrou no quarto onde a senhora se encontrava.
— Eu?
Quin sacudiu a cabeça, afirmativamente.
— Uma coisa é exata no que a senhora disse: John vivera na selva e
lutara pela vida. Tinha os sentidos alerta e terrivelmente despertos. A
senhora estava nesse quarto e, quando Karl abriu a porta, Ansel sentiu
uma lufada do seu perfume. Depois ouviu Karl fechar a porta e lhe dizer
alguma coisa, em voz baixa. Num relance John compreendeu que a
senhora vivia com Endicott e sentiu uma revolta amarga. Jogou o revólver
que tinha na mão, pela janela. Este caiu no gramado. John se sentiu
verdadeiramente mal disposto. Desceu a escada e se precipitou para fora
de casa.
Quin se calou e se colocou em frente dela, com as pernas afastadas e
um ar acusador.
Mrs. Endicott não chorou, mas os seus ombros amoleceram. Olhou-
o e pareceu se tornar menor. Por fim, sussurrou:
— Ele me prometera nunca, nunca contar isso.
— Ansel mente muito mal, replicou Quin. — É pouco combativo.
Acreditei na sua história, mas sabia que o processo começa amanhã e que
o interrogatório seria muito duro. Por isso, esta manhã, tentei verificar se
ele aguentava o choque.
Fez-se um silêncio dramático.
— Que descoberta terrível! Exclamou Quin amargamente, virando
as costas.
Elizabeth Endicott tinha os olhos secos e a voz calma.
— Compreendo-o bem! Falou Quin se voltando rapidamente.
— E tem razão para isso!
Neste momento intervim:
— Estava no tal quarto?
— Não! Respondeu ela sem hesitar.
— Não se esqueça de que vai ser interrogada num julgamento,
interrompeu Quin. — Diga isso, ao menos, com um pouco mais de
sentimento.
— Não! Repetiu ela.
— Está melhor assim, aprovou Barney.
— O seu álibi depende de um tal Walden que fechou o posto às
nove horas em ponto, observei eu.
— É um bom álibi.
— Seria, se o Procurador do Distrito não tivesse desencovado um
fazendeiro, Thomas Victor, que ao passar pela bomba de gasolina,
faltando sete minutos para as nove horas, já a encontrou fechada.
Ela humedeceu os lábios.
— O relógio desse Victor estava atrasado.
— Com mil diabos, Lam! Gritou Quin. — Por que motivo se
apegam tanto a esse álibi? Walden confirmou isso durante a inquirição
preparatória. É Victor que está errado.
Eu não largava de vista Elizabeth.
— Esta senhora está jogando pôquer conosco, observei. Quin se
virou:
— Escute, Betty. Vai depor amanhã, como testemunha. Não pode se
permitir mentir. Somos seus amigos. Não podemos tomar a
responsabilidade de salvá-la se nos mente agora. É como se cortasse o
pescoço, a si mesma. Conte-nos a verdade.
— Já contei, teimou ela. Quin se voltou para mim:
— O que você pensa, Donald?
— Ela mente. Bertha interveio:
— Vejamos, Lam. Você não pode...
— Ah, não? Essa é boa! Exclamei. — Atente ao parágrafo 258 do
Código Penal, Barney, e leia o que ele diz.
— Que parágrafo?
— Nº 258.
Elizabeth Endicott me olhou de relance:
— É advogado?
— Já foi, respondeu Bertha. — Está formado e é um tipo esperto. Se
está mentindo, minha cara senhora, é melhor desistir.
Barney folheava o Código Penal.
— Achou? Inquiri.
— Sim.
— Então leia. Quin começou:
— Ninguém suspeito de homicídio poderá herdar da vítima. A
herança que devia receber será legada aos parentes mais próximos,
segundo a prescrição do capítulo precedente.
Quin olhou para Mrs. Endicott e, em seguida, para mim.
— Então? Interessou-se.
— Então, Mrs. Endicott, se decide de uma vez para sempre? Inquiri.
Ela levantou os olhos.
— Se trabalha para mim, não tem o direito de me acusar de mentir.
— Neste momento, estou pouco ligando para quem trabalho. Não
vou me afundar neste caso!
— Eu já não estava em casa quando o tiro foi disparado, disse ela,
por fim.
— Onde estava?
— Na estrada, a caminho de San Diego.
— Não acha melhor desfiar tudo, como deve ser? Propus.
— De acordo! Vou contar tudo. Estava a caminho de San Diego,
mas não posso provar. Na verdade Walden se enganou nas horas. Não
tinha dado corda no relógio nessa tarde. Parara às sete horas. Ligou o
rádio para saber a hora. O programa devia acabar às sete e quinze, mas ele
julgava que acabava às sete e meia. Quando acabou, Walden acertou o
relógio por ele e só descobriu o erro depois de ter prestado depoimento.
Disse no inquérito ter acertado o relógio duas horas antes do crime e
todos acreditaram, julgando que o acertara pelo rádio-relógio. Isso explica
o seu erro de quinze minutos.
— E ele descobriu?
— Sim, mas só depois do inquérito. Porém, Bruce Walden tem
confiança em mim. Disse-lhe que isso não tinha importância visto que já
me encontrava na estrada de San Diego. Ele acreditou em mim e nunca se
desdisse.
— Onde ele está, neste momento?
— Tem uma bomba de gasolina, por conta própria. Quin me
consultou:
— O pior é que tem Victor do lado deles, afirmando que o posto
estava fechado às sete para as nove.
— Se começarem a questionar esse ponto, interveio Mrs. Endicott,
— A mulher de Walden acabará por declarar que o marido se enganou
visto ter entrado em casa às nove horas e cinco minutos, isto é, mais cedo
quinze minutos do que o costume. Julgou que fechara a bomba mais cedo
e não fez comentários, mas após o inquérito lhe chamou a atenção para o
fato.
Quin me olhou, esboçando um gesto vago. Bertha exclamou:
— Que mil macacos me trinquem!
— Neste momento, declarei, — Temos que rever tudo do princípio.
Antes de mais nada, precisamos descobrir esse revólver, nos antecipando a
qualquer busca do Procurador do Distrito. Lembrem-se de uma coisa: ele
quer acusar John Ansel de homicídio. É o que importa. Mesmo que
Walden tenha fechado o posto quinze minutos antes, isso não quer dizer
que Mrs. Endicott tenha matado o marido. Ele não conta com isso e
ficará até perplexo com o desvio do caso para uma nova hipótese! De
nossa parte, temos que desencantar esse revólver.
— Mas, gritou Barney Quin, — Não veem que John Ansel precisará
dizer a verdade no tribunal? Ele é incapaz de mentir decentemente.
Acabaria por falar no revólver!
— Não precisa sequer de testemunhar.
— Mas, nesse caso, estamos perdidos! Exclamou Quin.
— Não obrigatoriamente! O Procurador do Distrito pode nos safar!
— Como?
— Se lhe oferecermos outra testemunha.
— Quem?
— Helen Maning.
— Quem é essa?
— Uma secretária despedida por Endicott e que foi contar à mulher
deste como mandara Ansel ao encontro da morte.
Elizabeth Endicott se manteve calmamente sentada com o rosto
inexpressivo como se não falassem dela:
— O que quer fazer? Tenta agora me acusar de assassinato?
— Não será isso precisamente, mas procurarei deixar o Procurador
do Distrito numa situação de incerteza: entre dois fogos!
— Não conseguirá, pressagiou Quin. — É um sujeito terrivelmente
esperto.
— Tem alguma ideia melhor do que essa?
Quin não soube que responder. Virei-me para Elizabeth Endicott:
— Só temos uma coisa a fazer. Certamente que não vamos utilizar
lanternas elétricas nem tampouco procurar o revólver em pleno dia. A
polícia seria avisada imediatamente. Temos, portanto, de fazê-lo de noite
e esta noite. Sairemos pela porta do lado é rebuscaremos o gramado,
polegada por polegada.
— E se acharmos o revólver? Perguntou Quin.
— Guardaremos!
— Mas é uma prova, observou Quin, assustado. — Você não tem o
direito de ocultar uma prova da polícia! Podem me expulsar da ordem dos
advogados por uma coisa dessas!
Dirigi-lhe um sorriso irônico:
— Mas você não tem nada a ver com isso, Barney! Contente-se em
perguntar, amanhã, se já encontraram a arma do crime!
Voltei-me para Bertha:
— E nós vamos embora. Estaremos em sua casa, Mrs. Endicott,
dentro de duas horas. Deixe a porta aberta para que possamos entrar.
Agradecia que nos conseguisse café. Sempre levanta o moral. E se assegure
de que o local está tranquilo.

* * *
Dezessete

NOITE estava escura como breu. Um nevoeiro frio e húmido


A vinha do oceano. Bertha e eu, de gatinhas, percorríamos a
grama tateando o solo com as mãos.
— Por que disse a Mrs. Endicott que ficasse em casa? Perguntou.
— Não tenho confiança nela. Além disso pode nos avisar se aparecer
alguém.
— Estraguei o vestido, um par de meias e já quebrei duas unhas,
suspirou Bertha.
— Isso não é nada, quando se trata de salvar a sua reputação de
detetive!
— Acho que estou fazendo o contrário, neste momento.
— Pensa assim? Não estamos servindo a um cliente?
— Nunca fiz nada semelhante até ter me associado a você, Donald.
Agora, não paro de ter aborrecimentos...
— E de embolsar um bom dinheiro, acrescentei. — Não se limite a
apalpar o chão. Enfie os dedos na terra. O revólver caiu aí há bastante
tempo e é capaz de estar enterrado.
— Como é que ninguém não o encontrou ainda?
— Ninguém pensou em procurá-lo. O jardineiro se contenta em
regar e a aparar a grama de tempos em tempos. Como é espessa e as ervas
daninhas não crescem mais alto do que ela, não se dá ao trabalho de
arrancá-las. Corta a grama em volta e joga o lixo no meio como se fosse
estrume. O revólver deve estar completamente dissimulado.
Neste momento, Bertha desfiou um rosário de imprecações.
— O que aconteceu?
— Acabo de arranhar a cara e rasgar o vestido. Oh, Donald! Por que
diabos não trouxe uma lanterna elétrica?
— Impossível! Ninguém deve saber disto. A polícia está talvez de
vigilância a este lugar e Hale mora mesmo ao lado.
Sempre resmungando, Bertha engatinhou pesadamente. Mandou-
me para o diabo várias vezes até que senti alguma coisa dura sob os meus
dedos.
— Olá, Bertha! Creio... Se não for uma pedra... OK. Aqui está. É o
revólver!
— Deus seja louvado! Exclamou ela. — Já não era sem tempo.
Levantou-se lentamente.
— Não tenho coragem de entrar em casa. Se o porteiro me vê neste
estado, julga que andei roubando galinhas no mato.
— Diga que não está lhe dando o seu devido valor, aconselhei. —
Acabou de evitar um erro judiciário. De resto, roubar galinhas é uma
bagatela, indigna dos seus talentos.
— Vamos prevenir Elizabeth Endicott e telefonar para Barney.
— Não.
— Não?
— Diremos a Mrs. Endicott que revistamos o gramado em vão. E o
mesmo diremos a Quin.
— Diabos! Explodiu Bertha com azedume. — Por vezes, desejo
nunca tê-lo conhecido!

* * *
Dezoito

UALQUER coisa não encaixava na história que John Ansel contara


Q para Barney Quin. O revólver estava enferrujado. Tive que raspar
o tambor para conseguir abri-lo. À luz da minha lanterna verifiquei que
fora disparada uma bala. Distinguia-se nitidamente a câmara vazia. As
restantes cinco estavam carregadas. Só me faltava aquilo!
O julgamento começou à hora marcada. Conversamos em voz baixa
durante a escolha do júri.
Barney Quin tinha em seu poder as nossas anotações. Nós tínhamos
comparecido para que pudesse nos consultar em caso de necessidade.
Notei que ele estava com um ar abatido. Se diria que se tratava do seu
próprio enterro. Não ousava nos falar acerca do revólver. Aproveitei o
intervalo do meio-dia para chamá-lo a um canto, longe da vista dos
repórteres.
— Eis o momento de mostrar as suas habilidades, exortei, pondo
uma mão em seu ombro. — Vai defender um homem acusado de
homicídio e que arrisca a cabeça. Não se esqueça que os jurados o
observam, tal como observam o Procurador do Distrito. Não se mostre,
portanto, com um ar de quem defende um culpado. Diabos! Pense no seu
cliente e se anime um pouco! Você parece um homem jogado às feras!
Precisa ter o ar de quem está seguro da inocência de alguém injustamente
acusado.
— Sei representar, mas não a esse ponto! Ripostou ele, picado.
— Pois bem! É tempo de aprender.
Notei que fazia esforços consideráveis, na parte da tarde.
Graças às nossas informações, Quin conhecia mais ou menos os
jurados e as suas possíveis reações. Uma única coisa era de recear: que
mudassem o júri. Nessas circunstâncias, ficaria perante uma lista de
nomes totalmente desconhecida.
O seu adversário, o Procurador do Distrito Mortimer Irvine, tinha
uma bela presença: alto, moreno, de ombros largos. Fazia muito sucesso,
não só junto das jovens sentimentais, como das matronas mais maduras.
Em contrapartida, os fazendeiros da região, de maneiras rudes,
examinavam-no com desconfiança. Celibatário, era considerado como o
melhor partido das redondezas. Sabia que agradava às mulheres e adorava
encontrar o maior número delas entre os jurados. As mais jovens
escutavam a sua argumentação com uma convicção extasiante e
cochichavam: “Não é maravilhoso?" As mais velhas monologavam: “Se
Jimmy não tivesse morrido, se pareceria com ele. Jimmy sonhou sempre
em ser advogado.” Mas a maioria dos lavradores, de mãos grandes e
rugosas, de roupas simples, examinava os cabelos ondulados de Irvine, os
seus olhos expressivos, o seu terno impecável e rebuscado e acabava por
votar a favor do acusado.
Quando Barney Quin analisara comigo a lista dos jurados, exprimira
o desejo de ter o menor número de mulheres possível. Opostamente,
Irvine teria desejado um júri inteiramente feminino. Quando vi o modo
como as coisas se apresentavam, chamei Quin à parte:
— Deixe-o fazer o que quiser, Barney.
— Fazer o quê?
— Quanto à escolha do júri... As mulheres.
— Deus me livre! Ficariam seduzidas e votariam automaticamente a
seu favor. Tem uma maneira de fitá-las, direito, bem nos olhos, quando
pleiteia... E de vestir ternos de trezentos dólares que muda todos os dias
de julgamento... Como se pode lutar com um sujeito destes? Tem
rendimentos e a sua vida não depende da profissão de advogado. Apenas a
admiração e a influência lhe interessam e pleiteia um cargo de Senador ou
de Governador.
— Não importa! Deixe-o fazer como ele quiser.
— Na verdade, suspirou Quin. — Já que estamos em tão má
posição, talvez fosse melhor advogarmos partindo de uma admissão de
culpa.
— Você sabe, Quin, do que precisa? Cortei eu fazendo uma careta.
— É de um uísque bem servido, de uma garota atraente e de uma noite
bem dormida. Vamos lá! Um pouco de ânimo! Este caso pode liquidá-lo
ou torná-lo célebre!
— Uma coisa é certa: retorquiu ele com ar sinistro, — Ficarei
célebre de qualquer forma!
— Evidentemente, se continuar se deixar ir abaixo dessa maneira!
Esperei até ao fim da sessão, por volta das cinco horas, e então,
deixando Bertha voltar sozinha para casa, telefonei para Stella Karis, para
convidá-la a jantar.
Depois do café, me convidou, por sua vez, a tomar uma bebida em
sua casa. Em vez de sentar no sofá, escolheu uma cadeira. O seu arzinho
reservado não me anunciava nada de especial.
— Que é feito do seu amiguinho? Interessei-me.
— A quem se refere?
— Ao seu banqueiro.
— Cooper? Oh, oh, Donald? Parece que você está com ciúmes!
Dirigiu-me um olhar cheio de malícia.
— É possível.
— Cooper é um tipo elegante. Além disso, não me é indiferente.
Deu um risinho abafado e continuou:
— Gostaria de saber quem é que lhe agrada. Você é uma pessoa
áspera e fria!.
— Engana-se, retorqui. — Acontece que estou envolvido num caso
venenoso! E ando cheio de azar.
— Por que motivo?
— Aqui para nós, por causa de uma testemunha. Receio que o
Procurador do Distrito a cace e consiga provar que Ansel é culpado.
Ela abaixou as longas pestanas e fixou a ponta do cigarro.
— De quem se trata?
— De uma jovem chamada Helen Maning, antiga secretária de
Endiicott. Ele a despediu, mas ninguém sabe disso. Ela foi procurar Mrs.
Endicott para lhe dizer que o marido era um patife que mandara John
Ansel para a selva a fim de se ver livre dele. Em resumo, uma história
repugnante.
— Calculo o efeito que isso causou em Mrs. Endicott, comentou
Stella.
Não respondi. Ela permaneceu pensativa durante alguns momentos.
— Creio que você, Donald, tem razão. É preferível que eu
transforme todos os meus bens em ações que me revertam um rendimento
para que me dedique à pintura...
— Sim, mas não venda o que tem de qualquer maneira. Veja lá a
quem vende! Ela amuou.
— Sou perfeitamente capaz de julgar as pessoas. De resto, se
tentassem me enrolar, saberia me mostrar feroz... Absolutamente feroz!
— A maior parte das mulheres são assim, mas não gostam de
reconhecer.
— Até tenho orgulho disso. Não tente me enrolar, Donald!
— Não tenho a menor intenção, verdadeira tigresa!
— Sou uma verdadeira tigresa!
Dito isto, se levantou para me encher outro copo.
Usava um vestido branco dos mais vaporosos. A garrafa estava vazia,
mas tinha uma outra de reserva. Abriu a porta para ir buscá-la. A luz
estava acesa na cozinha e ela parara à entrada. A sua silhueta recortava, na
contraluz, os seus mais secretos pormenores. Voltou-se:
— Que prefere, Donald? Brandy, Beneditine ou licor de Hortelã-
Pimenta?
Fazia calor. Levei muito tempo para me decidir. Estava de frente
para mim, recortada na luz e só trazia o vestido sobre a pele.
— Tem ambas as coisas?
— Sim.
Stella mudou ligeiramente de posição. Por trás dela, a luz
desempenhava perfeitamente o seu papel.
— Brandy e Beneditine, mas somente uma gota. Tenho que sair
daqui a pouco. Este caso infernal...
— Ah! Você e o seu trabalho!
— Vai me ver muitas vezes quando tiver terminado.
— Pode, porém, acontecer que, nessa época, seja eu que não esteja
livre! Voltou à cozinha e, no regresso, apagou a luz.
Tomei um cálice de brandy e desta vez o nosso beijo foi mais
prolongado. Meia hora depois, voltei para casa.

* * *

No dia seguinte, o telefone me arrancou do sono às oito horas.


Atendi. A voz que vinha do auscultador era quase histérica:
— Mr. Lam?
— Sim.
— Helen, Helen Maning.
— Olá, bom dia! Como está?
— Danada! Acabo de receber uma contrafé. Está lá fora um agente
de polícia. O xerife quer falar comigo imediatamente.
— Onde ele está?
— Na sala ao lado. Disse-lhe que vinha ao quarto mudar de roupa.
Que devo fazer?
— Que você pode fazer agora?
— Nada, admitiu ela, após alguns segundos de reflexão.
— Bem. Pode solicitar a presença de um advogado, mas não
aconselho. Imaginariam que tem alguma coisa a esconder. Se se recusar a
falar, isso ainda mais atrairá a atenção sobre si. Só vejo uma saída: dizer a
verdade!
— Oh, Mr. Lam! Se ao menos pudesse vê-lo antes disso!
— É impossível. Saio neste momento para Santa Ana. Preciso estar
presente no tribunal para a escolha do júri. Diga-lhes simplesmente a
verdade.
— Mas... Não sou capaz... Não teria coragem...
— Se a pegam mentindo, se arrisca a ter graves aborrecimentos.
Quer um conselho de amigo?
— Sim, aceitou ela ansiosamente.
— Mortimer Irvine, Procurador do Distrito de Orange City, é um
homem sedutor e celibatário e eu devo lhe dizer uma coisa: você mesma é
terrivelmente atraente.
A voz dela se elevou:
— Fala sério, Donald?
— Você tem alguma coisa que agrada inteiramente a um homem:
presença, personalidade, elegância e, o que é mais importante, sex appeal!
— Oh, Donald!
— Não conte nada, nem discuta seja o que for com a polícia.
Guarde a sua história exclusivamente para o Procurador do Distrito. Para
mais ninguém! Compreendeu o que estou dizendo?
Ela respondeu com mais animação:
— Oh, Donald! Você é maravilhoso. Que reconforto!
— Até à vista, disse e desliguei.

* * *
Dezenove

O DIA SEGUINTE, às onze horas, os acontecimentos se


N precipitaram.
O Juiz Lawton declarou aberta a audiência. Mal o Procurador do
Distrito se inclinou numa vênia, sorriu ao Tribunal e dirigiu o olhar
sedutor para o júri.
— Da minha parte estou plenamente satisfeito com a escolha dos
jurados.
O Juiz Lawton olhou então para Barney Quin; este, enfiado na sua
cadeira, me olhou furtivamente. Levantando-se, se achou perante os
jurados a quem dirigiu um sorriso mortiço:
— O advogado da Defesa está igualmente satisfeito com o júri e
persuadido que a sua escolha foi perfeita.
Franzindo ligeiramente o sobrolho perante esta declaração, o juiz
Lawton interveio:
— Perfeitamente. Os jurados prestarão agora o juramento. As
pessoas que não foram escolhidas podem se retirar. Depois do juramento
o tribunal fará um intervalo de dez minutos. Em seguida o Procurador do
Distrito fará o seu discurso de abertura.
A sala estava em plena atividade. Os jornalistas se precipitaram para
as cabines telefônicas para informar que o júri fora aceito e quais os nomes
dos jurados. Barney Quin veio ao meu encontro e, quando o ruído se
acalmou, disse:
— Daqui a pouco, saberemos em que embrulhada nos metemos...
Com certeza, na pior.
— Isso depende. Provavelmente o Procurador do Distrito não dirá
senão frases vazias. Aguardemos!
— Como me acha?
— Na melhor forma. Mas não esqueça de que os jurados não
perdem os advogados de vista. Os seus menores gestos podem traí-lo e
revelar a sua inquietação. São os pequenos pormenores que contam: a
maneira como toma apontamentos, como se senta na cadeira, como olha
para o relógio ou passa a mão pelo cabelo. Cautela. Vai ser difícil
convencer um júri no que você mesmo não acredita. Empregue-se a fundo
neste caso; pode ser vantajoso para o futuro.
Quin exteriorizava um ar sinistro:
— O brilharete é para Irvine! Tem a sorte do seu lado. Prepara-se
para conseguir uma estrondosa publicidade; repare nele: sorridente, ativo,
persuasivo. Que vá para o diabo que o carregue! Veja só, Lam: tem oito
mulheres no júri!
— E depois? Sabe você, porventura, como ele reage quando se
enfurece? Sabe se se enerva?
— Não sei nada disso!
— Deveria, contudo, saber! Trate, portanto, de descobrir e jogue
com esses dados! Aconselhei.
Esboçou um sorriso hesitante:
— Sabe de uma coisa, Lam? Geralmente tenho mais recursos do que
hoje, mas este caso... A propósito, você achou o revólver?
Fixando-o bem nos olhos, declarei:
— Não.
— Como não? O seu rosto se iluminou.
— Você representa a defesa e eu não tenho qualquer razão para
mentir! Afirmei.
— Nesse caso, não suprimimos uma prova?
— De forma alguma.
— Porque não me disse antes?
— Você não perguntou.
— Não ousava... Julguei que... Enfim, o próprio Ansel jura tê-lo
jogado pela janela...
— Gostaria de saber se teve realmente, alguma vez, um revólver. Se
quer que eu lhe diga uma coisa...
— Sim.
— Esse pobre idiota acha que Elizabeth matou o marido e tenta
ajudá-la à sua maneira.
Quin refletiu durante alguns instantes. Neste momento, as portas da
sala de audiência se abriram. Fiz-lhe um sinal com o polegar erguido.
— Vamos! Atire-se de cabeça e faça esse Irvine dos diabos andar às
voltas!
O juiz Lawton impôs silêncio e o Procurador do Distrito tomou a
palavra.
Contentou-se com uma descrição geral do caso, pretendendo provar
a existência de certas relações entre Mrs. Endicott e John Ansel, o que
explicava o seu recente propósito de casamento. Ansel não se satisfizera ao
sabê-la casada. Procurara destroçar a harmonia de um lar, esquecendo a
gratidão devida ao patrão que lhe patenteara toda a confiança escolhendo-
o para tão delicada missão. Preparara o seu plano na sombra...
Quin se ergueu para interromper. Considerou a acusação prematura
e aconselhou Irvine a expor os fatos sem procurar impressionar o júri.
O juiz Lawton exprimiu o seu descontentamento e censurou a
Defesa por essa intervenção. Também censurou a Acusação e o
Procurador do Distrito começou a se mostrar irritado. A cólera
transtornava Irvine. Perdia o domínio da delicadeza e se tornava rude e
sarcástico. Notei que ficava à beira de perder as estribeiras e que, quando
as coisas corriam mal, se esquivava em vez de atacar.
Retomando a palavra, descreveu Ansel de regresso da expedição
empreendida voluntariamente e principescamente remunerada. Mal
chegara ao Aeroporto, telefonara para casa de Endicott, mas chamara
pessoalmente a mulher deste. Irvine podia afirmar que Ansel fora até a
casa do patrão; que este abrira a porta e o levara até o primeiro andar.
Minutos depois, Elizabeth Endicott ficara viúva! Fugindo, Ansel escapara
durante alguns anos! Julgavam-no morto, mas ele não deixara de se
encontrar com Mrs. Endicott às escondidas. Somente a polícia suspeitara
da verdade, e preparara uma armadilha. Depois de ter assassinado
Endicott com uma bala de calibre 38, na nuca, Ansel pedira Elizabeth em
casamento! Dessa maneira ultimava a sua própria perdição.
Irvine mergulhou num silêncio impressionante. Duas jovens juradas
observavam Ansel, com terror.
Fez-se um intervalo ao meio-dia.
— Você notou, Quin? O seu adversário parece não gostar de ser
contrariado. Isso perturba a sua bela pose, portanto, não o largue da mão.
Seja duro com ele! Insista nas relações a que ele se referiu entre o patrão e
o empregado. Vire a história do avesso, à sua maneira, e conte como
Endicott preparara cinicamente a morte de John Ansel. Diga que os vinte
mil dólares se destinavam apenas a enrolá-lo; que deviam unicamente lhe
ser entregues quando regressasse e que esse regresso era, na verdade,
improvável!
— Mas não acha que me arrisco a descarregar a minha artilharia
cedo demais? Observou Quin.
— Mais vale isso do que não descarregar coisa alguma. Depois se
verá. Bem sabe que não pode convocar o acusado a depor e que
provavelmente não lhe convirá utilizar Elizabeth como testemunha.
Portanto, o que lhe resta? Anuncie o que tenciona provar e se ponha em
posição de ataque. Já que Irvine insiste na deslealdade de Ansel para com
o seu patrão, prove o contrário. Descreva Karl Endicott como sendo um
cérebro diabólico que, detrás da sua mesa, medita atirar um rival para a
morte, a fim de desposar a noiva dele.
— O juiz vai me censurar! Observou Quin.
— Deixe-se disso! Também já censurou a acusação. Ficam
empatados. Ande para frente.
Barney seguiu, portanto, os meus conselhos e fez o quanto pôde.
Irvine estava furioso. Toda a sua atitude o demonstrava: Levantava-se
subitamente, agitava a mão, apelando para o direito de intervir. Algumas
mulheres se mostraram sensíveis à versão apresentada por Quin.
Começaram a olhar Ansel com um pouco mais de simpatia. Outras
olhavam de relance Elizabeth Endicott, sempre impenetrável e senhora de
si.
Passei uma nota a Quin dizendo para insistir nos sofrimentos dessa
mulher que já não tinha lágrimas para chorar; após ter passado os piores
tormentos, durante anos, já não podia mais! Dessa maneira, Quin
retomou algum ânimo. Podia enfim demonstrar as suas qualidades que o
tornavam um jovem advogado cheio de futuro.
Quando chegou o momento da apresentação das provas, a impressão
que inicialmente Irvine causara sobre o júri tinha se apagado
completamente. Todos os jurados, sem exceção, estavam apaixonados
pelo debate. Observavam ora os advogados, ora as testemunhas, ora o
acusado e, principalmente Elizabeth Endicott. Não teria ela tudo quanto
era necessário para atrair os olhares? Dinheiro, beleza, mistério! Dizer-se
que se encontrava secretamente com o assassino do marido!
Irvine apresentou as suas testemunhas e passou, rapidamente aos
pormenores inevitáveis: a causa da morte da vítima, o esboço topográfico
do local do crime e as fotografias do corpo. Um médico legista declarou
que Karl Carver Endicott fora atingido, na nuca, por uma bala de calibre
38 e que o crânio quase arrebentara. A bala extraída foi apresentada como
prova. Não fora um tiro à queima-roupa e não apresentava qualquer
vestígio de pólvora. A testemunha afirmava que o assassino disparara de
certa distância, aproveitando o momento em que a vítima estava de
costas.
Após ter consultado o relógio de parede, o Procurador do Distrito
declarou em tom melodramático:
— Que Helen Maning seja chamada ao banco das testemunhas.
Ela se vestira esmeradamente. Deve ser dito, a bem da verdade, que
era bem feita e elegante apesar de alguns quilos supérfluos. Bastou-me
uma só olhada para perceber que as minhas previsões tinham sido erradas.
Mal ela se sentou no banco das testemunhas notei que não seduzira
Mortimer Irvine. Foi ele quem a dominou. Helen parecia pronta a fazer o
que ele quisesse!
E foi o que fez, de forma perfeita, recitando a sua historiazinha, em
voz baixa, um pouco velada, e narrando conforme lhe convinha: deixara
Mr. Endicott depois de vários anos de trabalho, porque este se tornara
excessivo e porque, além disso, ela sentira necessidade de mudar de
situação. Sem querer magoar Mr. Endicott, se via obrigada a admitir que
não lhe agradavam certas pessoas do escritório. Considerava-se uma boa
secretária e não seria difícil conseguir trabalho noutro lado. Mr. Endicott
ficara desolado com a sua partida. Tentou dissuadi-la e arranjar as coisas
de forma a contentá-la, mas ela recusara com firmeza. A jovem empregada
com que ela não se entendia tinha a mãe a seu encargo e precisava do
emprego. Tinha, de resto, pouca experiência para conseguir outro
facilmente.
Então Helen Maning contou como tinha sido passada uma carta de
recomendação, o mais elogiosa possível.
Nessa mesma época, ouvira falar, acidentalmente, da expedição de
Ansel à selva brasileira. Dizia-se que se tratava de um verdadeiro suicídio.
Acreditara nisso desastradamente e tinha falado dela com Mrs. Endicott.
— Pode nos dizer o que ela respondeu? Inquiriu Irvine.
Nesse ponto, Quin se levantou, protestando energicamente. Acusou
o Procurador do Distrito de ultrapassar os seus limites e se opôs à
pergunta. Essa declaração não podia ser levada em consideração. Elizabeth
Endicott podia ter ficado perfeitamente a par do acontecido, sem que isso
provasse a culpa do acusado! O Procurador do Distrito sabia disso muito
bem. Esse depoimento, cheio de insinuações, era desleal. O júri deveria
renegá-lo e Quin reclamava que a testemunha fosse dispensada e que
Mortimer Irvine fosse admoestado pelo Tribunal.
O juiz considerou cuidadosamente a reclamação e perguntou a
Irvine:
— Afinal de contas, o que pretende provar a Acusação? Afirma que
essa informação prestada a Mrs. Endicott modifica a conduta do acusado?
— Desejamos mostrar que Mrs. Endicott transmitiu ao réu a
referida informação. De resto, isso é evidente. O rosto do juiz enrubesceu:
— Pode provar o que afirma? Irvine ignorou a pergunta:
— Bem, devo confessar, Sr. Juiz, que alguns acontecimentos falam,
só por si, claramente. Creio que o júri poderia tirar deles as suas
conclusões.
— Fiz-lhe uma pergunta concisa, replicou o juiz Lawton, — E quero
uma resposta precisa. Tem alguma prova ou testemunho que possa apoiar,
em base jurídica, a sua afirmação?
Irvine alargou o colarinho que o incomodava.
— Se o Tribunal permitir, prefiro aguardar para apresentar essas
provas. Estou certo de que surgirão no decurso do debate.
— Que provas são essas? Insistiu o juiz.
— A posição moral do acusado e a sua própria confissão.
— O Tribunal deve verificar as provas, antecipadamente. Portanto,
não inquiriremos mais a testemunha, por enquanto. Solicito que prove a
veracidade das suas afirmações.
— Mas... Se o Tribunal me permite... Ainda não acabei de
interrogar esta testemunha, observou Irvine.
— Achamos que sim! Cortou o juiz Lawton. — O Tribunal deve
zelar pelos direitos do réu. A sua afirmação é insuficiente.
— Muito bem, anuiu Irvine. — Posso agora dispensar esta
testemunha e chamar uma outra?
— Tem a intenção de provar o depoimento desta testemunha?
— Sim, Sr. Juiz.
— Então, faça o favor, concedeu o juiz. — Mas esperamos ter nos
feito compreender. Foi pedido ao tribunal a verificação do depoimento
desta testemunha e a admoestação ao Procurador do Distrito pela forma
irregular da sua inquirição. O tribunal reserva a sua opinião e aguarda o
depoimento da nova testemunha. Pode se retirar, Miss Maning, mas não
se afaste muito da sala de audiência. O seu interrogatório ainda não
terminou. Terá que ser sujeita a contrainterrogatório. Sr. Procurador do
Distrito, pode chamar a nova testemunha.
— Muito bem, Sr. Juiz. Que seja chamado John Small Ormsby.
O homem estava elegante. Terno, gravata, sapatos, era tudo novo e o
corte de cabelo, muito recente. Parecia pouco à vontade. Ormsby era um
preso que cumpria uma pena de seis meses: tinham encontrado em seu
poder cigarros de maconha. Ele tentava agradar aos carcereiros e abreviar a
pena. Tinham, portanto, pensado em colocá-lo na mesma cela que John
Ansel a fim de fazer este falar.
— Quer contar ao Tribunal o teor das suas conversas com o réu?
Inquiriu Irvine.
Ormsby, constrangido, se agitou no banco das testemunhas e cruzou
as pernas. Os seus sapatos novos reluziam.
— Pois bem, quando Ansel voltou para a cela após uma conversa
com o seu advogado, se mostrava abatido.
— Um momento, interveio o juiz Lawton. — Não nos interessamos
pelas suas impressões, mas sim pelas palavras exatas ditas por Ansel.
— Pois bem, continuou Ormsby ainda mais constrangido, — O
parceiro disse: “O meu advogado me pintou o caso muito negro.”
— E depois?
— Disse que não conseguira resistir às perguntas do advogado e que
acabara por confessar tudo acerca duma arma que levava com ele na noite
do crime. Ansel acrescentou que jogara essa arma pela janela, para o
gramado, que fica mesmo por baixo da casa.
— E mais nada? Insistiu o Procurador do Distrito.
— O parceiro suspirou, receando ter feito asneira, ao falar disso ao
advogado e que este tinha ficado irritado ao ouvir uma história daquelas.
Todos os jurados fitaram Quin. Ele se limitou a jogar a cabeça para
trás e rir em surdina.
— Sim, e depois? Incitou Irvine.
— Falou de uma certa secretária que fora despedida e que contara a
Mrs. Endicott a razão porque o finado o mandara para aquela expedição.
E Mrs. Endicott contou tudo ao parceiro.
— A testemunha está à sua disposição, meu caro colega, interveio
Irvine.
— Segundo a sua versão, Ansel teria jogado um revólver pela janela?
Perguntou Quin com um sorriso desdenhoso.
— Sim.
— E disse se tratar do seu próprio revólver?
— Sim.
— Levara-o consigo, quando foi visitar Endicott?
— Foi essa a ideia com que fiquei.
— Explicou esse seu gesto?
— Isto é... Parece que se sentia agoniado!
— Que quer dizer com isso?
— Estava com o estômago rodando, por saber que a noiva casara
com um tipo como Endicott.
— Sabe se foi ele quem disparou a arma?
— Ele não me disse.
A testemunha passou um dedo pelo colarinho que parecia apertado e
prosseguiu o interrogatório:
— Ansel lhe disse só ter visto Mrs. Endicott apôs a morte do
marido?
— Sim, senhor.
— Não podia, portanto, lhe contar coisa alguma antes do crime?
— Objeção, gritou imediatamente o Procurador do Distrito.
— Objeção recusada, interveio o juiz Lawton.
— Podemos, portanto, concluir que o réu não viu Mrs. Endicott
desde que regressou da selva até à visita que fez a Karl Endicott?
— Sim.
— Muito bem. Outra coisa: você vende estupefacientes, não é
verdade? Interrogou Quin.
— Objeção! Gritou novamente Irvine, desta vez se pondo de pé. —
Ormsby tem todo o direito de testemunhar. Só um delito grave poderia
desacreditá-lo perante o tribunal.
— Essa pergunta, não é possivelmente uma acusação, interveio o
juiz, — Mas certamente uma pergunta preliminar.
— Exatamente, confirmou Quin, e se virando para a testemunha,
continuou: — Está atualmente na prisão, não é verdade?
— Sim, senhor.
— Há quanto tempo?
— Há pouco mais de quatro meses.
— E faltam apenas?...
— Apenas dez dias!
— Por que motivo o condenaram?
— Encontraram cigarros de maconha no meu bolso.
— Fuma essa droga?
— Não.
— Vende-a, portanto?
— Objeção! Essa pergunta está fora de propósito e sai do domínio
do contrainterrogatório, cortou Irvine.
— Objeção mantida, decidiu o juiz Lawton. Quin continuou,
noutro sentido:
— Teve alguma conversa especial com os policiais em que estes o
advertissem de que poderiam acusá-lo de tráfico de drogas? Não lhe
propuseram se mostrarem indulgentes caso quisesse testemunhar neste
processo?
— Hum... Não!
— Não lhe propuseram que partilhasse da cela de Ansel para fazê-lo
falar? O seu depoimento não contribuiria para mais cedo o libertarem,
esquecendo essa história de maconha?
— Bem, não foi bem assim!
Quin envolveu a testemunha num olhar de desprezo.
— Há quanto tempo tem esses sapatos?
— Desde ontem.
— E onde os comprou?
— Numa loja.
— Mas não estava na prisão? Como conseguiu sair?
— O xerife me deu autorização.
— E as suas calças, de onde vêm?
— Duma alfaiataria.
— Foram compradas... Quando?
— Ontem.
— E o seu casaco?
— Da mesma loja.
— E quando?
— Ontem.
— Quem pagou isso tudo?
— O xerife.
— De quando data o seu último corte de cabelo?
— De ontem.
— Quem o pagou?
— O xerife.
— Onde cortaram?
— Num barbeiro da cidade.
— Mas há barbeiros nas prisões! Há quanto tempo está preso?
— Há quatro meses e meio.
— E nunca lhe cortaram o cabelo?
— Sim.
— Quem cortou?
— Um barbeiro da prisão.
— Contudo, ontem, depois de ter servido de espião e ter delatado a
sua historiazinha aos policiais, um corte de cabelo feito pelo barbeiro da
prisão já não era digno de si! Era preciso causar boa impressão ao júri e,
portanto, levaram-no a um bom cabeleireiro, não é verdade?
— Não sei. Levaram-me a um barbeiro da cidade alta.
— A sua gravata também é nova! Quem lhe ofereceu?
— O xerife!
Barney Quin virou as costas à testemunha com ar de repugnância.
— Não tenho mais perguntas a fazer, declarou.
— Pode se retirar, disse Irvine à testemunha, que deixou o banco.
Quin retomou a palavra.
— Sr. Juiz. Peço que o depoimento da testemunha Helen Maning
não seja considerado. O que ela contou a Mrs. Endicott não foi
transmitido por esta ao acusado, pelo menos antes da morte de Endicott.
Peço também que o Procurador do Distrito seja admoestado pelo seu
procedimento irregular.
Inclinando-se à frente, o juiz Lawton declarou, silabando
cuidadosamente:
— O seu pedido tem a concordância do tribunal. As declarações do
Procurador do Distrito só são válidas quando devidamente provadas. O
tribunal aconselha os jurados a não levarem em consideração o que se
poderia deduzir do depoimento da testemunha Helen Maning.
Virando-se para Irvine, declarou:
— Tem a palavra.
— Chamarei a minha próxima testemunha, cujo depoimento,
espero, me permitirá inquirir de novo Helen Maning.
O homem alto e desarticulado que ocupou o banco das testemunhas
se chamava Steven Beardsley. Prestou juramento e Irvine interrogou-o.
— Qual é a sua ocupação, Mr. Beardsley?
— Sou ajudante do xerife, do Distrito de Orange.
— É especializado em algum ramo da sua profissão?
— Sim. Em balística. Identifico armas de fogo.
— Tem bastante experiência profissional?
— Estudei com os melhores peritos do país e pratico essa
especialidade há mais de dez anos.
— Conhece Citrus Grove?
— Sim. Muito bem.
— E o local denominado Whippoorwill, propriedade do defunto
Karl Carver Endicott?
— Sim.
— Reconhece os locais representados nesta carta topográfica?
— Perfeitamente.
— Desejava saber se pesquisou o gramado que se encontra aqui
localizado?
— Sim.
— E encontrou, dissimulada nela, alguma arma de fogo?
— Sim. Entreguei-a ao Tribunal.
— Queira mostrá-la, por favor.
A testemunha estendeu um revólver de aço, todo enferrujado.
— É uma arma de que tipo?
— Um revólver Colt, de calibre 38.
— Quantos cartuchos contém?
— Apenas cinco. Falta um cartucho no tambor.
— Deflagrou algum cartucho, para examinar a bala disparada?
— Foi difícil fazer a arma funcionar. Está cheia de ferrugem.
Limitei-me a retirar um mínimo de ferrugem, deixando a que não
prejudicsse os disparos, a fim de que se pudesse avaliar até que ponto
estava corroída pelo tempo.
— E o seu exame lhe permite declarar se se trata da arma do crime?
— Não posso afirmar. O tambor está completamente oxidado. É,
portanto, difícil identificar o revólver com precisão. Trata-se, pelo menos,
de uma arma do mesmo calibre do que aquela que matou Mr. Endicott. A
bala extraída da ferida da vítima era, igualmente, de trinta e oito
milímetros.
— Portanto, sob o ponto de vista de balística, Karl Carver Endicott
poderia ter sido morto com esse revólver?
— Sim. É possível.
— Descobriu a quem essa arma pertence?
— Sim.
— Pode declarar?
— Objeção! Cortou Barney Quin. — Essa declaração não se baseia
em qualquer prova, desde que a testemunha declarou não conseguir
identificar o revólver. Essa pergunta é tendenciosa, com o objetivo de
impressionar o júri desfavoravelmente.
— Na verdade, observou o juiz Lawton, — Parece que o perito aqui
presente ignora a quem pertence o revólver. Examinou-o cuidadosamente,
mas com a ideia preconcebida de que pertencia a uma certa pessoa.
— Muito obrigado, Sr. Juiz! Exultou Quin.
O juiz adiou a audiência para as dez horas da manhã seguinte. Fiz
um sinal a Bertha e saímos junto com a multidão.
— E agora, que fazemos? Interessou-se ela.
— Vamos a Pasadena, consultar um perito em balística. Quero
descobrir que diabo de revólver é o que nós encontramos.
— Um Colt 38, respondeu ela.
— Que é provavelmente a arma do crime. Resultado: um de nós
precisará depor como testemunha.
— Macacos me mordam! Exclamou ela.
O nosso perito examinou a arma. Meia hora depois, descobria o
número de fabricação e respondia à nossa pergunta.
— Esta arma foi comprada por Helen Maning, há coisa de seis anos.
— Minha amiga, anunciei a Bertha. — Vai ter de se ocupar dessa
boneca.
— De quem?
— De Helen Maning?
— Era o que me faltava!
— Pois vai deixar de lhe fazer falta. Mãos à obra!
— Bem! Vai nos contar tudo, de uma ponta à outra. Esteja
tranquilo!
— Estou. Vamos então!

* * *
Vinte

OQUEI a campainha da porta de Helen Maning.


T — Quem é? Perguntou ela entreabrindo-a ligeiramente.
— Donald Lam.
— Um momento, Donald! Depois acrescentou rindo: — Estava no
banho. É só o tempo de vestir alguma coisa!
Bertha e eu esperamos uns bons cinco minutos, antes que a porta se
abrisse. Tinha enfiado uma camisola meio transparente que a tornava
excitante:
— Desculpe recebê-lo assim, Donald, mas saí agora mesmo do
banho... Quem é? Exclamou ao ver Bertha, avançando pesadamente atrás
de mim, como um tanque transpondo as linhas inimigas.
— Bertha Cool, detetive! Respondeu ela. — Sente-se e me deixe
observá-la melhor.
E com o calcanhar, Bertha fechou a porta.
— Porque diabos tentou assassinar Karl Endicott?
A pergunta desnorteou Helen Maning. Levou as mãos ao pescoço e
franziu os olhos.
— Que quer dizer com isso? Não compreendo.
— Sabe muito bem do que estou falando, insistiu Bertha. — Você
foi visitar Endicott no dia da sua morte e levava consigo um revólver, não
é verdade?
— Eu?
— Sim. Esta tarde, você estava, na verdade, encantadora, dando
volta na cabeça do belo Procurador do Distrito. Simplesmente não se deu
ao trabalho de contar a história toda. Nem sequer, relatou ter comprado o
revólver. Pois bem, minha cara amiga, vou lhe contar eu: comprou-o
numa loja de Santa Ana; um lindo coltzinho de calibre 38. Foi dois dias
antes da morte de Endicott e, após o assassinato, deixou de tê-lo em seu
poder. Por que razão não contou tudo isso ao Procurador do Distrito,
hem?
— Porque... Eu nunca... Nunca na minha vida, balbuciou Helen
Maning.
— É inútil! Cortou Bertha em voz rude. — Neste momento, não se
trata de mostrar as suas lindas pernas a um homem impressionado. Fala
com uma mulher que conhece todos esses truques. Também não vale a
pena representar o papel de grande dama. Você era a amiguinha de
Endicott e não se importava que ele se casasse, contanto que você
continuasse sendo sua amante. Somente, quando ele a trocou por uma
outra, relegando-a para segundo plano, você perdeu as estribeiras.
— Eu... Eu, tentou replicar Helen, antes de começar a chorar.
— Vamos, chore, minha filha. Isso lhe permite evitar me olhar de
frente, mas, quando tiver acabado a sua provisão de lágrimas, terá que
enfrentar Bertha Cool e não Donald Lam. Vamos lá, corte essa torrente e
me conte tudo antes que eu me aborreça para valer!
— Que... Que quer saber?
— O que aconteceu na noite em que Endicott foi assassinado.
— Não sei de nada, soluçou Helen Maning.
— Está caçoando de mim? Você falou a Mrs. Endicott acerca da
expedição organizada pelo marido. Esvaziou o saco. Ela correu a acusar
este. Você também já tinha colocado lenha na fogueira, telefonando para
Endicott. E assim que imagino que as coisas tenham acontecido. De
qualquer maneira, você estava na casa dele na noite em que o mataram,
quando John Ansel chegou. Era você e não Mrs. Endicott que se achava
no quarto dele. Depois de tê-lo matado, você pensou que nunca mais
viriam a encontrar o revólver se o lançasse para o meio do gramado.
Infelizmente, minha querida, você se enganou. Nós o encontramos e o
nosso perito declara que a bala que matou Endicott veio deste revólver,
comprado por si em Santa Ana dois dias antes! Quer falar ou prefere que
chamemos a polícia e os jornalistas para descobrirmos o fim desta história?
Com os olhos chamejantes, Bertha se inclinava sobre Helen que não
parara de soluçar. Mostrava-se implacável e, na verdade, rudemente
impressionante.
— Eu não o matei, Mrs. Cool. Juro que não o matei!
— Então quem o fez?
— Cooper Hale, Não pode ter sido outro senão ele!
— Isso não passa de uma suposição, disse Bertha. — Quero fatos. O
que foi que aconteceu?
— Eu contei tudo à mulher e esta repetiu. Ele se encolerizou e me
pediu para que fosse até lá falar com ele. Tive medo e, por isso, comprei
esse revólver... Nem sequer sabia porquê... Tinha-o amado tanto, a Karl...
E tinha lhe dado tudo, sem contar... Os melhores anos da minha vida.
Eu...
— Corte isso, interveio Bertha. — Pedi fatos e temos pressa!
— Quando cheguei na casa dele, Karl esperava Mr. Hale, de um
momento para o outro, me mandou subir ao primeiro andar e me pôs no
quarto. Foi gentil comigo dizendo que sua mulher o deixara. Oh, sim...
Imensamente gentil. Tomou-me nos braços e... Descobriu que eu trazia
um revólver.
— E então?
— Riu, me tirou e guardou-o numa gaveta.
— Foi então que bateram na porta? Hale, não é verdade?
— Sim. Karl me disse que esperasse. Hale não demoraria. Eu estava
transtornada e não sabia o que fazer. Bateram de novo na porta. Desta
vez, era John Ansel. Eu julgava-o morto e, ao ouvir a sua voz, sofri um
grande abalo. Karl lhe pediu que subisse e se desculpou antes de entrar no
quarto. Em voz baixa, me disse: “Minha querida, precisa ir embora. A
situação está muito complicada. Vá para casa que eu telefono mais tarde.”
Depois me afagou o ombro, me beijou e acrescentou: “Desce
tranquilamente e desaparece sem que a vejam.”
— Muito bem. E você o que fez?
— Obedeci. No momento de fechar a porta da rua, ouvi um tiro no
primeiro andar.
— E então? Incitou Bertha.
— Depois de um instante de hesitação, comecei a correr.
— Escreva tudo isso, disse eu, lhe estendendo uma folha de papel
que tirei de cima da mesa. Ela escreveu a história toda. — E agora assine.
Ela obedeceu, acrescentando a data.
— Compreendeu que estava condenando um inocente à morte?
Acusou Bertha.
— Não sabia o que fazer. Sou uma boa secretária, tenho um bom
salário, mas um escândalo me deixaria desempregada. Além disso, já não
sou nova...
— Que diabo de coisa você está dizendo? Interveio Bertha. — Você
não tem mais que trinta e cinco anos. É a idade ideal para uma mulher; a
sua vida só começa agora! É desembaraçada, conhece os homens, a sua
maneira de trabalhar, de pensar, de agir. Pode fazer deles gato e sapato, se
quiser. Até me enjoa com toda essa idiotice! Deixe de comer muitos
bombons e atire o laço àquele que lhe agradar. Vai entrar agora no melhor
período da sua vida!
— É possível, disse Helen num tom ainda lamentoso. — Mas quase
todos os homens que conheço já estão casados!
— Isso é, na verdade, terrível, suspirou Bertha sarcasticamente. —
Contudo, você não tem um ar frustrado.
Aproximou-se de uma cadeira, pegou uma cinta e jogou-a longe,
para um canto.
— Com as suas belas pernas é estupidez usar este gênero de truques.
Siga antes um regime e não se aperte dessa maneira. Ponha essas quadris
em circulação! Vamos, Donald!
Deixamos Helen Maning entregue ao seu desespero.
— Vá dormir, Bertha. Vou entregar este papel a Barney.
— Espero que isso o anime.
— Confesso que é um rude golpe verificar que um cliente mente e
que se baseia o pleito nessa mentira.
Bertha pensava noutra coisa.
— Dizer que a boba desta loura se julga acabada aos trinta e cinco
anos! Se perder três quilos, ficará novamente em forma! Só agora começa a
conhecer as regras do jogo. Trinta e cinco anos! Não é maravilhoso?
Vamos, Donald. Vá para casa de Quin. Pessoalmente vou engolir um
bom bife suculento. Graças a Deus, já não tenho que me preocupar com
os quadris. Pus os homens de lado.

* * *
Vinte e Um

ARNEY QUIN andava de um lado para o outro da sua sala, como


B um leão na jaula.
— Começo a ver que o júri nos é favorável, Donald.
— Ainda bem. Amanhã, Irvine terminará com o seu perito em
balística. Tentará então interrogar novamente Helen Maning, utilizando a
declaração de que Ansel atirou o revólver para o gramado.
— Pode fazê-lo, à vontade. O juiz Lawton já o censurou duas vezes
por essa gracinha e dispensou a testemunha...
— Pois sim, mas, desta vez, quando Irvine chamar Helen Maning,
você dirá ao tribunal que aceita o seu testemunho porque os fatos se
apresentam agora sob um novo prisma.
— O quê? Gritou Barney. — Você enlouqueceu?
— Irvine cairá na ratoeira. Ele chamará primeiro Hale que será
deveras convincente. Então, se sentirá muito satisfeito consigo mesmo e
lhe passará a palavra. Você aproveitará a oportunidade para lembrar que
Helen Maning saiu do banco das testemunhas sem ser contrainterrogada e
será o momento de colocar fogo no rastilho.
— O que quer dizer com isso?
Coloquei as declarações escritas de Helen Maning sobre a mesa.
Quin leu a história toda, viu a assinatura e se ergueu de um pulo, com a
mão estendida para uma garrafa de uísque.
— Não coloque para mim, avisei. — Tenho de guiar o carro. Ele
engoliu meio copo, de um só gole.
— Tanto pior para si! Vou, enfim, passar uma noite tranquila. Deus
seja bendito. Isto vai ter o efeito de um soco no estômago de Irvine.
— Cuidado. Não fique muito otimista. Esse sujeito é muito esperto
e Maning é facilmente seduzida pelo seu olhar, a sua voz e as suas
maneiras.
Quin pensou dois segundos e encolheu os ombros:
— Quando colocar isto debaixo do nariz, pouco me importa todo o
seu encanto e pouco me importa que ela se meta com ele na cama ou não.
— Tenho a impressão que ela o fará, mais tarde ou mais cedo,
comentei.
Barney ergueu o copo e engoliu a segunda metade do uísque em
seco. Um longo sorriso iluminou o rosto dele.
— Isso às vezes até faz bem!

* * *
Vinte e Dois

AUDIÊNCIA da manhã começou com o interrogatório de uma


A testemunha do Procurador do Distrito. Declarou ter uma loja
de armeiro em Nova Orleans e ter vendido o revólver apresentado pela
Acusação, a John Dittmar Ansel, alguns anos antes. Mostrou um registo
com a assinatura do acusado e identificou este formalmente.
Quin não contrainterrogou.
— Se o tribunal me autoriza, declarou Irvine, num tom ausente, —
Desejaria chamar para depor a testemunha Helen Maning.
O juiz Lawton já abria a boca para recusar o pedido quando Quin
interveio:
— Se Vossa Exa. me permite, Sr. Juiz, a Defesa reconhece que a
identificação da arma confirma o testemunho de Miss Maning. Retiramos
portanto a nossa objeção sobre esse assunto.
— O quê? Que diz? Admirou-se o juiz.
— A Defesa se resigna perante o fato de que agora nada permite pôr
em dúvida o depoimento dessa testemunha.
— O Tribunal não é dessa opinião, dada a necessidade de se
respeitar os direitos do acusado...
Irvine saltou do seu lugar e sublinhou:
— A Defesa desistiu da sua objeção?
— Sim, confirmou o juiz.
— Nesse caso o tribunal não se oporá a que essa testemunha seja
chamada?
— Não, concedeu o juiz dirigindo um olhar lamentoso para Barney
Quin.
Irvine chamou primeiro Drude Níckerson. Era um tipo baixote e
barrigudo, sem porte algum. O Procurador do Distrito se reportou à
época em que a testemunha exercia ainda a profissão de motorista de táxi
e falou do homem que ele conduzira, como cliente, na noite do crime.
Nickerson identificou formalmente John Ansel e declarou tê-lo conduzido
do aeroporto, até a casa de Endicott.
O contrainterrogatório de Quin foi breve. Parecia que o fazia por
descargo de consciência. Então Irvine chamou Cooper Hale, para depor.
Este, muito calmo, se instalou cautelosamente no banco de testemunhas,
como se este ocultasse uma armadilha e prestou juramento.
Reconheceu ter estado em casa de Endicott na noite do crime e
declarou que, quando chegara uma visita, aquele o levara ao andar
superior. Hale esperara que Endicott regressasse ao salão. No momento
do tiro, Hale se precipitara para a escada e vira a silhueta de um homem.
Esse homem era o acusado, John Ansel.
Findo este depoimento, Quin chamou Helen Maning, a fim de ser
contrainterrogada. Irvine tentou se opor, mas o juiz Lawton observou que
a Defesa não tinha chegado a usar do direito de contrainterrogatório dessa
testemunha.
Helen caprichara na vestimenta, a fim de enfrentar as máquinas
fotográficas dos repórteres. Quin começou a inquirição:
— Falou com Mrs. Endicott, dois dias antes da morte do marido?
Helen confirmou.
— Não é verdade que Endicott lhe telefonou pouco satisfeito com a
história que você descobrira no escritório e fora contar à mulher?
— Sim.
— Foi então na casa dele, na noite do crime?
— Sim.
— E, gritou Quin, apontando para ela um dedo acusador, — Não é
também verdade que, nessa noite, levava consigo um revólver de calibre
38, dentro da sua bolsa?
— Não o levava na bolsa e sim no meu sutiã. Irvine pulou da cadeira
e interveio, tentando manter a voz serena:
— Não vejo motivo para se mostrar tão agressivo, meu caro colega.
Que pretende, afinal? Aterrorizar a testemunha?
O juiz Lawton se mostrava surpreso.
— Não é verdade, continuou Barney, — Que, antes de sair, Karl
Endicott a informou de que esperava Cooper Hale? Não lhe pediu que
subisse ao andar superior e esperasse que Hale saísse?
— Sim.
— Subiu, portanto, para um quarto, desse andar?
— Sim.
— Foi então, nesse quarto que Mr. Endicott descobriu a arma que a
senhora trazia escondida no seu sutiã?
— Sim.
— E que fez Mr. Endicott com essa arma?
— Apanhou-a, me censurando por ter tido tais ideias.
— Que aconteceu, então?
— Bateram na porta. Mr. Endicott me disse que devia ser Mr. Hale
e me pediu que o desculpasse.
— E depois?
— Desceu. Cerca de quinze minutos depois, tocaram novamente.
Mr. Endicott abriu. Era o acusado.
— Como sabe isso?
— Ouvi a voz dele.
— Conhecia John Ansel?
— Sim.
— Suficientemente bem para reconhecer a voz, mesmo ao fim de
seis anos de ausência?
— Sim.
— Que fez Mr. Endicott?
— Convidou Mr. Ansel a subir para o aposento ao lado.
— Que aconteceu então?
— Mr. Endicott se desculpou e entrou no quarto onde eu me
encontrava e disse que a situação começava a se complicar. Aconselhou-
me a que voltasse para casa e disse que me telefonaria para combinar um
novo encontro.
— E a senhora o que fez? Inquiriu Quin, admirado do curso que
levava o depoimento.
A testemunha, em vez de se mostrar desmoralizada e lavada em
lágrimas, admitia tranquilamente os fatos menos próprios. Por outro lado,
Irvine, não denunciava a menor apreensão por ver destruída a sua
primeira teoria, dando até a ideia de que estava escutando pequenos fatos
sem importância.
Um guarda me entregou um bilhete. Era uma nota do nosso perito
de Pasadena informando que fora convocado a se apresentar no Tribunal
com o revólver que examinara. Percebi que estávamos encurralados.
Tentei freneticamente chamar a atenção de Quin antes que ele
pronunciasse a pergunta fatal.
— Que fez depois disso? Continuava ele.
— Saí e deixei o revólver no quarto.
— Ficou mais alguém nesse quarto?
— Sim. Mr. Endicott.
— E o acusado, onde se achava nesse momento?
— Na sala contígua.
— É tudo, declarou Quin sentando. Tinha todo o aspecto de
alguém que se preparara para arrombar uma porta e a encontrava aberta.
O Procurador do Distrito ostentou um sorriso aprovador:
— Agradecemos à testemunha o seu depoimento claro e franco,
declarou ele.
Helen Maning se ergueu, pronta para deixar o banco de
testemunhas.
— Um momento, pediu Irvine. — Apenas mais uma pergunta, Miss
Maning. Contara já esses fatos antes de depor nesta audiência?
— Sim.
— Quando?
— Ontem à noite.
— E a quem?
— A dois detetives, empregados pelo acusado, Donald Lam e Bertha
Cool.
— Muito obrigado. Nada mais, terminou Irvine. A testemunha se
retirou.
Em seguida, Irvine pediu o comparecimento de um perito de
Pasadena.
Este identificou a arma que tínhamos entregue e contou ter limpado
o revólver a fim de poder disparar uma bala que servisse de teste. Como
não possuía a bala do crime não podia declarar se se tratava da arma
assassina.
— Terá ocasião de verificar isso com o nosso perito. Queira
examinar esta bala. Acha que poderia se tratar da bala do crime? O perito
declarou ser possível.
Irvine pediu que a testemunha se retirasse a fim de examinar a bala e
a arma com a colaboração de Steven Beardsley, perito da Acusação.
Solicitou então autorização para interrogar novamente Cooper Hale.
Este declarou que, ao ouvir o tiro, se precipitara para a escada.
Encontrara Endicott morto, no andar superior, com uma bala na nuca,
mas não encontrara qualquer arma. Irvine lhe perguntou onde morava.
— Na casa ao lado de Whipporwill, propriedade da vítima.
— Notou algum fato estranho na noite que precedeu o início deste
processo?
— Sim. Vi duas pessoas desenterrarem alguma coisa da grama que
rodeia a casa de Endicott.
— Viu distintamente quem eram essas pessoas?
— Sim. Estava às escuras, mas não conseguia dormir. Passava já da
meia-noite. Ouvi vozes e fui à janela. Vi dois vultos deslizarem sobre a
grama que rodeia a casa de Endicott. Enfiei um roupão e saí pela porta
dos fundos. Ouvi-os falar e compreendi que procuravam alguma coisa.
Em certo momento, um deles, exclamou: “Achei. Aqui está ele.”
— Sabe quem falou?
— Sim. Donald Lam, detetive privado, a serviço da Defesa.
— Antes dessa busca, já vira alguém enterrar alguma coisa na grama?
— Sim. Mrs. Endicott.
— E sabe o que Mrs. Endicott enterrou nesse lugar?
— Não sei. Tirou um objeto de um embrulho e fez um buraco no
solo. Enterrou esse objeto e cobriu-o com terra.
— E isso, em que data aconteceu?
— Na mesma noite.
— A que horas?
— Cerca de uma hora antes dos dois detetives terem revistado o
local.
— Eles mencionaram a palavra revólver?
— Sim.
— Em que local encontraram a arma? No mesmo em que viu Mrs.
Endicott enterrar esse objeto?
— O local foi o mesmo.
Irvine se virou para Quin e declarou muito amavelmente :
— Pode realizar o contrainterrogatório, meu caro colega.
Felizmente Quin teve a presença de espírito de lembrar ao Tribunal
que era hora de interromper a audiência.
— Que diabo aconteceu? Perguntou-me, quando conseguiu chegar
perto de mim.
— Parece que esse advogado sedutor conquistou a jovem Maning.
Esta, que não deixou de lhe fazer a corte, durante a primeira audiência,
deve ter lhe telefonado ontem, mal a deixamos.
— Nada pude fazer para aparar o golpe. Se ao menos representasse a
Acusação, a lei me teria dado poderes para pô-la à sombra, incomunicável
até o seu depoimento ser útil, mas na posição da Defesa...
— Irvine, quando Helen lhe contou toda a história, deve ter ficado
aterrorizado e certamente telefonou a Hale. Este, porém, sossegou-o e nos
preparou uma bela armadilha baseada na mentira forjada de que Hale vira
Mrs. Endicott esconder algo na grama.
— Que podemos fazer nesta situação?
— Você, Barney, vai desmantelar essa testemunha. Pergunte-lhe se
não foi ao meu escritório para me oferecer o seu auxílio. Propôs-me
suavizar o seu depoimento caso eu o deixasse vender certos terrenos à
fábrica do Este!
— O quê? Exclamou Quin espantado. — Não me diga que ele...
— Pergunte. Insista no fato de ter vindo ao meu escritório e se não
insinuou que o Procurador do Distrito estava do seu lado, era seu amigo
então não deixaria de interceder a favor do acusado, se eu concordasse em
cooperar.
— Você deporá se for preciso?
— OK. Direi, pelo menos, que essa oferta foi feita na sua presença.
Quando a audiência da tarde começou, Hale, sorridente e senhor de
si, aguardava o contrainterrogatório.
— Já não se encontrou com Donald Lam e Bertha Cool? Inquiriu
Quin.
— Apenas uma vez.
— Não lhes disse ser amigo pessoal do Procurador do Distrito?
— É possível! Considero-o na verdade como um amigo, assim como
outras entidades oficiais do Distrito.
— Não é verdade ter proposto interceder a favor do acusado, se Mr.
Lam concordasse em ajudá-lo num negócio privado?
— De maneira nenhuma!
— Não lhe prometeu utilizar as suas relações de amizade? Não é
verdade ter proferido ameaças quando Lam e Bertha Cool recusaram
servir os seus interesses?
— Não, de maneira nenhuma!
— Mas houve uma conversa, no escritório daqueles senhores, não foi
assim?
A testemunha hesitou.
— Faça o favor de responder, insistiu Quin.
— Bem... Sim!
— Antes do processo?
— Sim.
— E antes da prisão do acusado?
— Parece-me que sim. Não me lembro da data exata.
— Foi então que discutiu este assunto com ele?
— Falamos de uma porção de coisas.
— Responda à minha pergunta. Falou-lhes ou não acerca do
presente caso?
— Tenho a impressão de que o mencionei.
— E também mencionou a amizade recíproca entre o senhor e o
Procurador do Distrito?
— É possível.
— Deu a entender que desejaria cooperar?
— Isso é uma palavra muito vaga, Mr. Quin.
— Ou muito precisa, replicou este. — Portanto, ofereceu
cooperação?
— Se utilizei essa palavra, teria sido num sentido totalmente
diferente daquele que pretende lhe dar.
— E isso aconteceu no escritório de Lam e Cool, antes do processo?
— ...Sim...
— E mencionou as suas relações de amizade com o Procurador do
Distrito Irvine?
— Sim, somos amigos...
— E propôs uma certa cooperação a Mr. Lam?
— É possível que tenha dado a entender alguma coisa nesse sentido.
Já não me lembro bem.
— E a sua oferta foi recusada?
— Bem... Foi uma oferta deveras imprecisa para poder se dizer
recusada.
— E saiu do escritório proferindo ameaças?
— Eu... Não!
— Saiu, portanto, do escritório com os mesmos sentimentos
amistosos com que entrara?
— Sim.
— À saída apertou a mão de Mr. Lam?
— Hum!... Não me lembro.
— E a Mrs. Cool?
— Não sei. Já me esqueci.
— Partiu sem se despedir?
— Não me lembro.
— Por que motivo os visitou?
— Bem... Para... Para...
— Protesto, gritou Irvine. — Sr. Juiz. A Defesa já insistiu bastante
neste assunto.
— Objeção recusada! Declarou o juiz Lawton interessado.
— Por que motivo os procurou? Insistiu Quin.
— Para obter uma informação.
— A que respeito?
— Acerca de alguns rumores referentes a uma fábrica que seria
construída em Citrus Grove.
— Mas, não falou também, nessa época, acerca de uns terrenos que
possui ali?
— Sim, é possível.
— E ao mesmo tempo se referiu às suas relações de amizade com o
Procurador do Distrito, para influenciar Lam e Cool?
— Não foi bem assim.
— Nesse caso a que propósito fez a sua oferta de cooperação? Não
foi esse, realmente, o único objetivo da sua visita? Sim ou não? Gritou
Quin.
— Não foi bem isso.
Barney Quin lhe virou as costas com expressão de repulsa.
— Nada mais! Declarou.
Em seguida, Irvine anunciou que o exame do revólver pelos peritos,
demoraria ainda algum tempo. Sugeriu que o Tribunal se retirasse até às
duas horas. O juiz Lawton aceitou a sugestão.
— Já vou encontrar consigo no meu escritório, me disse Quin. —
Não quero falar aqui.
Saí. Os repórteres nos caíram em cima, de Bertha e de mim, nos
bombardeando com os seus flashes. Um deles perguntou a opinião de
Bertha quanto ao depoimento de Hale. Ela se mostrou indignada:
— Hale nos ofereceu um veredicto de homicídio não premeditado
contra certas informações. Podem publicar as minhas palavras e, se Irvine
quiser me interrogar, ouvirá das boas e bonitas! Verá com quem tem de se
haver!
Encontramos Mrs. Endicott no escritório de Quin.
— Então? Perguntou ela. Dirigi-me a Barney.
— Quero que faça uma coisa. Se me obedecer, podemos nos safar.
— De que se trata?
— Os peritos vão ser chamados a depor. Vão provar que o
assassinato foi cometido pelo revólver de Maning e não pelo de Ansel.
Não ligue para os outros pormenores. Fixe a sua atenção apenas sobre este
ponto preciso.
Virei-me para Mrs. Endicott:
— Diga-me uma coisa: enterrou esse revólver? Ela negou com a
cabeça.
— Essa história é mentira pura.
— Mas, cortou Quin, — Como eu podia prová-la? Se chamasse
Mrs. Endicott para depor, eles a apertariam com respeito das suas idas e
vindas na noite do crime e acabariam por destruir o álibi.
— O acusado é Ansel, não é verdade? Observei.
— Sim, mas se desacreditam Mrs. Endicott nesse ponto,
desacreditam-na em qualquer outro, especialmente nessa história do
revólver. Concluiriam que agiram de cumplicidade, um com o outro.
— Se você fizer o que lhe digo, escusa de chamá-la a depor.
— De que maneira?
— Demonstre apenas que a arma do crime é o revólver trazido pelo
seu perito.
Quin pareceu meditar.
— Diabos! Exclamei. — Eu sei, ao menos, o que faço! Trate de lutar
no sentido que lhe indico. Com esse júri, não lhe será difícil.
— Mas assim, declaram-no culpado!
— De acordo. Não é coisa que se pergunte em frente da cliente, mas
o faço: Qual é o seu plano? Quer fazê-la depor como testemunha?
— Não.
— Quer sujeitar o acusado a um interrogatório?
— De forma alguma! É impraticável!
— Nesse caso o que acontecerá?
— Ansel será acusado de homicídio não premeditado!
— Exatamente! Apoiei. — Portanto, você fará o que aconselho, quer
concorde ou não. Esqueça as suas teorias. Não pense senão no revólver e,
no momento da sua exposição, peça ao Procurador do Distrito que
reconstitua o crime.
Quin pareceu refletir profundamente:
— Até agora, é ele quem dirige a ação. Se o ponho entre a espada e a
parede, ele vai aceitar o desafio e é capaz de dar ao júri a impressão de que
Ansel matou Endicott pelas costas!
— Com o revólver de Helen Maning? Observei. Isso deixou-o
meditando.

* * *
Vinte e Três

ESSA TARDE, o tribunal se reuniu de novo. O Procurador chamou


N Steven Beardsley para depor.
Examinara o revólver com o perito da Defesa e esta segunda arma,
era, sem qualquer dúvida, a do crime. Acrescentou que, apesar da limpeza
do nosso perito, ainda ficara terra suficiente para poder analisá-la. Esta era
diferente da que se achara no revólver de Ansel. Podia se concluir daí que
tinha estado enterrado noutro lugar, durante algum tempo. Tinham-no
ali colocado somente há pouco tempo. Era evidentemente impossível
provar por quem.
A testemunha se virou para Mrs. Endicott, sempre calma e
impassível, que lhe devolveu o olhar.
— Está convencido de que a arma designada como pertencente a
Miss Maning é a arma do crime?
— Sim! Estou certo disso!
Com risco de me fazer admoestar pelo tribunal, garatujei num papel
algumas palavras o fiz chegar à mão de Barney Quin. Dizia simplesmente:
“Nada de contrainterrogatório, deixe correr.”
Quin leu o bilhete, se virou e me dirigiu um olhar intrigado. Depois
fitou Irvine de relance. Este se inclinou com ar sarcástico:
— A testemunha está à sua disposição, meu caro colega!
— Não tenho nada para perguntar.
— Mas nós já acabámos.
— A Defesa não tem qualquer pergunta para fazer à testemunha,
replicou Quin, em tom decisivo.
— Sr. Juiz... Gritou Irvine, visivelmente desconcertado. — Eu...
Devo reconhecer que esta atitude me pega desprevenido. Não pensava
que...
— Fez mal, observou o juiz Lawton, — Um advogado da sua
categoria deve sempre prever seja o que for! Continue, portanto, o seu
pleito.
Dessa forma, Irvine prosseguiu. Em seguida, Quin fez notar alguns
pontos curiosos do caso: a arma do crime tinha sido trazida por Helen
Maning e tinham tentado desacreditar Mrs. Endicott, acusando-a de
enterrar alguma coisa na grama. Nada provava que tivesse sido o revólver.
Poderia talvez haver ainda outra coisa na grama. A Acusação nada tinha
provado.
— De resto, insistiu Quin, — Como poderia Mrs. Endicott se
encontrar de posse da arma do crime? Ela não estava na casa no momento
do crime. Se Ansel tivesse querido matar Endicott, teria feito com o seu
próprio revólver, mas, nunca o teria jogado pela janela, na esperança de
encontrar um outro no quarto! É evidente!
Nesse ponto, Quin desafiou o Procurador do Distrito a reconstituir
o crime e se sentou.
Irvine se ergueu lentamente com ar digno. Aceitando o desafio tão
temerário da Defesa, declarou saber como as coisas tinham acontecido.
Descreveu Ansel, tomado de incerteza, encolerizado, angustiado. Queria
matar Endicott, depois já não queria. Jogara fora o seu revólver e se
preparara para deixar a casa, mas vendo outra arma sobre a mesa de
Endicott, aproveitara a ocasião. Irvine se aproximou da bancada dos
jurados com os olhos eloquentes dirigidos aos das mulheres. Pôs nisso
toda a sua persuasão.
O juiz Lawton enunciou as diferentes formas possíveis de veredicto:
o acusado podia ser declarado inocente, culpado de homicídio
premeditado, no primeiro ou segundo grau e, finalmente, de homicídio
não premeditado.
O primeiro grau se refere ao crime cometido por meio de veneno,
tortura, ou outros processos com intenção deliberada, isto é, com o fito de
roubar, incendiar ou estuprar. É punido pelo artigo 288 do Código Penal.
Os restantes crimes são considerados de segundo grau e se qualifica de
crime não premeditado aquele que é cometido no decurso de uma questão
violenta ou de uma crise passional. O juiz pediu ao júri que se retirasse, a
fim de deliberar.
Eram quatro horas e quinze. Quin se aproximou de mim.
— Não compreendo o que pretende fazer, Lam!
— O Procurador do Distrito acabou o seu pleito e caiu na
armadilha. Pretende que Ansel, a despeito das suas intenções, jogou o
revólver pela janela. Não podem, portanto, acusá-lo de premeditação. Se
matou, foi com o revólver achado no quarto, aquele que pertencia a
Helen Maning!
— Foi exatamente isso que julguei compreender, replicou Quin, —
Mas tenho medo, Lam, tenho um medo atroz apesar do seu otimismo.
Compreenderá o júri essa história da mesma maneira?
— Porque não? Acusarão Ansel de homicídio não premeditado e
você se esforçará por demonstrar que ele não se achava no seu estado
normal.
— Isso não o safará! Que farei em seguida?
— Quando o Tribunal agradecer aos jurados, venha se encontrar
comigo, eu lhe indicarei o novo passo a dar.
— Espero que saiba o que está tentando fazer, disse ele suspirando.
— Não me custava nada ter enterrado Hale completamente. Não tinha a
menor dúvida disso: subiu mal o acusado partira e encontrou Endicott no
quarto; pegou no revólver que se achava sobre a mesa e disparou uma bala
na nuca de Endicott. Em seguida, colocou a mão nos vinte mil dólares
que este prometera a Ansel.
— De acordo, apoiei. — Nós não temos dúvidas quanto ao que
aconteceu, mas, como poderíamos provar? Hale matou Endicott. Devia
estar a par da maneira como o outro abusara da boa-fé da mulher e devia
exercer chantagem sobre ele. Porém, Helen Maning colocou tudo a
perder. Mal Mrs. Endicott fosse informada, Hale não receberia nem mais
um centavo. Também ele subiu ao primeiro andar. Depois de Helen
Maning e de John Ansel terem partido, matou Endicott, embolsou o
dinheiro e enterrou o revólver em qualquer lado. Quando Ansel confessou
que jogara o seu pela janela, Hale desenterrou o seu para enterrá-lo no
gramado. Esperava que acabassem por encontrá-lo e foi então que acusou
Mrs. Endicott de tê-lo escondido. Nós não podemos provar nada e é
melhor não quebrarmos a cabeça com isso. Hale é um ilustre banqueiro.
Soube fazer frutificar o seu capital e se entrincheirar atrás do dinheiro.
Finalmente Irvine o protege. Se você tentar acusar Hale, pode estar certo
de que apanha pela cara um veredicto de homicídio em primeiro grau
contra Ansel e sem que você possa fazer seja o que for. Todavia, se
continuarmos neste jogo, tudo pode se arranjar.
— Mas, replicou Quin, com ar sinistro, — Um assassinato sem
premeditação pode, pelo menos, lhe acarretar dez anos de prisão.
— É possível, concordei.

* * *
Vinte e Quatro

S OITO horas e quinze, o júri se preparou para proferir o


A veredicto.
Os jurados entraram na sala. Era notório que algumas mulheres
tinham chorado. Um velho fazendeiro de rosto curtido pelas intempéries,
tomou a palavra. Após as formalidades da praxe, leu o veredicto que
declarava o acusado culpado de homicídio sem premeditação. Em
seguida, coçando a garganta, continuou:
— Se o Sr. Juiz me permite?...
— Que mais há? Estranhou o juiz.
— Os jurados pretendem exprimir a sua simpatia ao acusado,
embora, com toda a justiça, deva expiar o seu crime.
— Muito bem, anuiu o juiz, — O veredicto é aceito e o tribunal
agradece aos jurados.
— Um momento, Sr. Juiz, interveio Quin. Em seguida, se levantou,
e veio ao meu encontro.
— Tem aí o código penal? Perguntei.
— Sim. Entreguei-lhe um pedaço de papel:
— Vamos. Leia isso ao tribunal.
Quin lhe deu um olhar de relance e ergueu as sobrancelhas com
estupefação. Depois releu cuidadosamente.
— O tribunal está à sua espera, sr. Advogado, observou o juiz
Lawton.
Quin regressou lentamente ao seu lugar.
— Tenho a informar o tribunal do auxílio que acaba de me trazer,
neste caso, Mr. Lam. Ele é licenciado em Direito. Acaba de me entregar
um documento tão espantoso que mal pude avaliar, no momento, toda a
sua importância. Em resumo, eis do que se trata: o réu foi julgado
culpado de homicídio sem premeditação...
— É evidente! Não vejo nisso nada de espantoso! Declarou o juiz
Lawton.
— A sentença não pode ser alterada, prosseguiu Quin após ter
dirigido uma pequena vênia ao tribunal. — Ora, a situação é muito
curiosa. Um homem acusado de homicídio sem premeditação está fora da
alçada da lei, se esse crime remontar a mais de três anos. O Código é
formal nesse ponto. Como o acusado se encontra nesta situação, o
tribunal se verá constrangido a lhe restituir a liberdade. Subentende-se,
obviamente que um veredicto de homicídio sem premeditação implica a
ilibação dos homicídios de primeiro e segundo graus.
O juiz Lawton dirigiu um olhar ao Procurador do Distrito. Depois
observou Quin e finalmente me fitou com ar severo, mas adivinhei um
sorriso nos seus lábios.
— Posso ver a nota que lhe entregou Mr. Lam? Pediu ele a Quin.
Este último se aproximou da cadeira do juiz, o qual, abrindo o
Código, começou a consultá-lo. Finalmente, levantou a cabeça.
— Deseja o Procurador do Distrito retomar a palavra? Propôs.
— Que Vossa Exa., Sr. Juiz, me perdoe, se desculpou Irvine, — mas
fui pego desprevenido.
— Muito bem, retorquiu o juiz. — Acho que não haverá
controvérsia a esse respeito. Faço apenas notar que Mr. Lam se referiu ao
caso precedente classificado como o homem-aranha que viveu durante
anos nas águas-furtadas da residência da sua vítima. Deste pleito foi
advogado da Defesa Earl Seeley Wakeman. A situação do presente caso é
similar. Neste momento, o tribunal se lembra do referido caso e a tese da
Defesa parece ser válida. Nestas circunstâncias, a sentença que estou
prestes a proferir satisfaz as simpatias do tribunal e dos jurados para com o
acusado. Os testemunhos apresentados contra o réu nem sempre foram
convincentes. Portanto, visto que o réu foi ilibado de homicídio do
primeiro e do segundo graus e condenado por homicídio sem
premeditação; visto que este crime foi cometido há mais de três anos, o
veredicto caduca por si próprio. O acusado pode ir em liberdade.
Verificou-se, então, na sala, uma barafunda geral. Os espectadores
gritavam, entusiasmados. Os repórteres trepavam aos bancos, às cadeiras e
às mesas a fim de poderem tirar fotografias.
Eu disse que Elizabeth Endicott mantinha sempre o seu ar
impassível, mas, desta vez, se via nitidamente no rosto a sua emoção. Com
os olhos brilhantes se precipitou para John Ansel, apertou-o nos braços e
beijou-o. As lágrimas lhe inundavam as faces.
Subitamente, me pulou no pescoço e misturou com beijos os seus
agradecimentos. O juiz Lawton se esforçava por restabelecer a ordem. Em
seguida, sorrindo, saiu da sala.
Mrs. Endicott beijou Bertha e depois Barney Quin. Bertha
serpenteou até mim.
— Até que enfim, meu patife!

* * *
Vinte e Cinco

ARA BERTHA, o caso terminou dois dias mais tarde, com o cheque
P de Mrs. Endicott: quinze mil dólares.
Porém, para mim, não terminou senão algumas semanas mais tarde,
ao receber um grande envelope pelo correio da manhã. Não tinha
remetente no verso, mas notei que a caligrafia tinha um traço amplo e
feminino. No interior encontrei um artigo de jornal:

BANQUEIRO ACUSADO DE RAPTO E ESTUPRO


Cooper Franklin Hale, ilustre cidadão e banqueiro de Citrus Grove,
Presidente da Companhia de Transações Hale, fora preso após queixa
apresentada por Miss Stela Karis.

Parece que Hale se ocupava na colocação de capitais de Miss Karis,


mas se verificara um súbito desentendimento entre os dois associados.
Miss Karis declarou que Hale se servira do dinheiro dela para investi-lo
sem o seu conhecimento em outra operações financeiras. Hale se dirigira
ao apartamento da queixosa, a fim de pôr as coisas a limpo.
Duas horas mais tarde, um motorista encontrara Miss Karis coberta
de poeira, de arranhões e de nódoas negras. Cambaleava ao longo da
estrada com o vestido em farrapos, quase nua. Descreveu a maneira como
Cooper Hale parara o carro numa curva deserta a fim de discutir as suas
dificuldades financeiras, lhe fazendo a corte! Mas ela não quisera ceder.
Ele ficara então furioso, lançara-a fora do carro para derrubá-la sobre o
chão e estuprá-la. Miss Karis acrescentou que só pôde escapar depois dele
ter conseguido brutalmente os seus fins. Hale jurou que se tratava de uma
trama urdida contra ele e afirmou nunca ter estuprado Miss Karis. Segui o
debate com interesse. O júri acreditou na palavra de Stella Karis. É preciso
frisar que ela foi terrivelmente convincente durante todo o processo.
Neste momento, Hale cumpre a sua pena em Saint-Quentin. Foi
condenado a prisão perpétua e ninguém mais corre o risco de ouvir falar
nele.

Fim

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