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LaVyrle Spencer

Teu Carinho
TEU CARINHO
Das ruas de Boston do século XIX até a selvagem fronteira ela teceu uma
rede de mentiras para conquistar seu amor!
A encantadora Anna Reardon de temperamento ardente foi forçada a
mentir para fugir da vida miserável que a envergonhava... para se tornar a
noiva por correspondência de Karl Lindstrom na bela e traiçoeira região
selvagem de Minnesota.
Karl perdoou Anna por suas mentiras, mas ainda havia um terrível e
vergonhoso segredo que ela tinha que esconder dele, sabendo que sua
revelação destruiria o amor que se tornara sua própria vida!
FICHA TÉCNICA
“TEU CARINHO”
Título original: The Endearment
Copyright © 1982 by LaVyrle Spencer
Todos os direitos reservados.
Tradução: C. Belo
Revisão: D. Silva
Distribuição: MR
Capa: MR
Criação do ePub: D. Silva
Este livro é uma obra de ficção histórica. Os nomes, personagens,
lugares e incidentes que se relacionam com figuras não históricas são
produto da imaginação da autora, ou se usam de forma fictícia. Qualquer
semelhança com figuras não históricas, lugares ou incidentes com
personagens reais, vivos ou mortos, acontecimentos ou lugares é pura
coincidência.
DEDICATÓRIA
A minha querida amiga
Ellen Anderson Niznik,
Cujos pais, faz muitos anos,
se deram as mãos e cruzaram o umbral da igreja
para se sentarem e contemplar o pôr do sol
NOTA HISTÓRICA
Durante os anos precedentes a admissão de Minnesota como
estado, quando, todavia, o consideravam a fronteira, poucas mulheres se
aventuravam em seus confins, em particular mais além das cataratas de
Saint Anthony. A vida na fronteira exigia um custo demasiado alto a
qualquer mulher que fosse viver na região Norte do país. Embora os
jornais do Leste descrevessem de forma tentadora o que o território de
Minnesota podia oferecer aos homens, e os convidava a estabelecer-se
ali, estes convites não se estendiam as mulheres. Ao contrário, os artigos
desses jornais as desalentavam a aproximar-se dessa terra selvagem e
indômita. Por isso, a maioria dos homens chegavam sozinhos ao
desolado território de Minnesota, dispostos a ganharem a vida com
sacrifício. Assim o costume de mandar pedir esposas, sem conhecê-las
previamente era necessário. Essas mulheres eram conhecidas pelo nome
de “noivas por correspondência”.
L. S.
CAPÍTULO 1
Anna Reardon havia feito algo imperdoável. Havia mentido
desavergonhadamente para que Karl Lindstrom se casasse com ela.
Havia enganado esse homem intencionalmente, a fim de que lhe
enviasse o dinheiro para viajar a Minnesota como sua “noiva por
correspondência”. Ele esperava uma moça de vinte e cinco anos, hábil
cozinheira, experiente dona de casa, disposta trabalhadora rural e...
virgem.
Mais ainda, esperava que chegasse só.
A única coisa sobre a qual não mentiu, foi sua aparência. Ela se
descreveu com precisão como uma irlandesa, com o cabelo da cor do
uísque, alta, magra, de olhos castanhos, orelhas chatas, com algumas
sardas, de feições comuns, com todos os dentes e sem marcas de varíola.
Quanto ao resto das cartas, eram uma série de mentiras muito bem
forjadas para fazer com que o crédulo Karl lhe enviasse o dinheiro da
passagem, dando-lhe assim a oportunidade de escapar de Boston.
Apesar destas invenções, Anna não achou fácil mentir. Desde o
momento em que a mocinha, desesperada e desabrigada, havia ditado as
cartas ao irmão mais novo, estas pesavam sobre sua consciência como
um castigo. De fato, cada vez que voltava a contar suas mentiras, o
castigo se manifestava em uma aguda dor na boca do estômago e mesmo
agora, somente a alguns minutos do encontro com Karl Lindstrom,
invadia-a um sofrimento tão intenso como nunca antes tinha
experimentado.
A dor tinha ficado cada vez mais intolerável durante a longa e
tediosa viagem até o Oeste, viagem que havia começado um mês atrás
depois que as geleiras se dissolveram nos Grandes Lagos. Anna e seu
irmão, James, tinham viajado de trem de Boston a Albany durante todo o
mês de junho, depois de barco pelo canal até Buffalo. Depois viajaram
em um navio a vapor pelo lago, cujo destino era uma fossa lamacenta
chamada Chicago, uma cidade que em 1854, consistia só em uma estrada
de madeira, que ia desde o barco até o hotel. Mais adiante, se estendia a
região deserta que Anna e seu irmão acabavam de atravessar.
Uma carroça levou-os a Galena, no território de Illinois. Esta parte
da viagem demorou uma semana inteira durante a qual os mosquitos, o
clima e o chocalho da carroça por terrenos irregulares contribuíram
para o mal-estar geral. Em Galena, tomaram um barco a vapor para St.
Paul, onde embarcaram em outra carroça puxada por bois que os levou a
alguns quilômetros das Cataratas de St. Anthony.
Meu Deus! Comparada a Boston, a cidade era completamente
decepcionante, nada mais do que algumas construções rudimentares,
toscas e sem pintura. Fez Anna pensar no que esperar de Long Prairie, a
cidade fronteiriça onde ela encontraria seu futuro marido.
Por mais de um mês, não teve mais nada a fazer além de observar
como deslizavam a sua frente quilômetros e quilômetros de terra e água
e se preocupar com o que Karl Lindstrom faria quando descobrisse as
mentiras.
Nervosamente cansada, se perguntou como lhe tinha ocorrido que
iria realizar com sucesso esse plano.
Uma mentira se tornaria evidente imediatamente: James. Ela
nunca disse a seu futuro marido que tinha um irmão por quem ela se
sentia responsável. Não fazia ideia da reação daquele homem quando
conhecesse um cunhado adolescente com sua futura esposa.
A segunda mentira era a sua idade. Karl Lindstrom havia
especificado no anúncio que queria uma mulher madura e experiente;
de modo que Anna, sem dúvida, sabia que, se tivesse admitido sua
verdadeira idade, Lindstrom a consideraria mais imatura do que o trigo
na primavera. Foi por isso que ela disse a ele que tinha vinte e cinco anos
de idade, assim como ele, em vez de dezessete. Anna imaginou que
qualquer mulher de vinte e cinco anos teria a experiência prática
necessária para ser uma esposa da fronteira. Deus a proteja quando a
diferença for descoberta!
Pela primeira vez em sua vida, Anna desejou ter algumas rugas,
alguns pés de galinha, alguma gordura extra em volta de sua cintura,
qualquer coisa que a fizesse parecer mais velha! Assim que ele a visse,
Lindstrom descobriria a verdade. E o que ele diria então? "Pegue seu
irmão e volte para Boston. Com o quê?”, pensou Anna.
O que eles fariam se Lindstrom os deixasse totalmente
desamparados e sem recursos? Anna tinha sido forçada a ganhar o
dinheiro da passagem para levar James a Minnesota com ela, sem
Lindstrom descobrir, e a lembrança à fez estremecer e fez o nó em seu
estômago mais doloroso. "Mais uma vez, não!", Pensou. "Nunca mais!"
Tanto ela como seu irmão estavam à mercê de Lindstrom. Pensar
que ele, talvez, tivesse contado algumas mentiras, ajudou-a a acalmar
seu estômago irritado. Não havia garantia de que Karl não tivesse
mentido. Escrevera-lhe sobre o lugar e seus planos para o futuro, mas
temia que lhe tivesse contado muito pouco sobre si mesmo. Talvez
porque não havia muito a dizer!
Havia escrito exaustivamente sobre Minnesota, Minnesota,
Minnesota! Pedindo desculpas por sua falta de originalidade e seu inglês
imperfeito, Karl citou artigos de jornais atraindo imigrantes e colonos
para aquele lugar indômito.
"Minnesota é uma terra maravilhosa. É um lugar onde você pode viver de
forma simples, mas com mais do que suficiente. Um lugar onde há árvores
suficientes para combustível e materiais para construção. Um lugar onde os
frutos silvestres crescem em grandes quantidades, enquanto animais de caça de
todos os tipos passeiam por florestas e prados; lagos e riachos onde abundam os
peixes. Florestas generosas, campos férteis, colinas, lagos e riachos, nos quais o
céu reflete generosamente, fornecem sua utilidade e beleza."
Estas descrições, escrevia Karl, chegaram à sua Suécia natal, onde
uma súbita explosão populacional trouxe consigo a falta de terra.
Minnesota, assim como sua amada Skane, o seduzira com esse convite.
Foi assim que ele atravessou o oceano com a esperança de que seus
irmãos e irmãs o seguiriam em breve. Mas sua solidão não foi aliviada
por nenhum irmão, irmã ou vizinho.
Quão idílico tudo soou quando James leu para Anna o que Karl
estava dizendo sobre Minnesota! No entanto, quando se tratou de
descrever a si mesmo, Lindstrom foi muito menos expressivo.
Tudo o que ele disse foi que ele era sueco, loiro, de olhos azuis e
muito "corpulento". Do seu rosto ele havia dito: "Eu não acho que assuste
ninguém".
Anna e seu irmão riram quando James leu, e os dois concordaram
que Lindstrom parecia ter senso de humor. Indo ao seu encontro pela
primeira vez, Anna desejou ardentemente que assim fosse, pois ele o
precisaria mais cedo do que imaginava.
Em um esforço para dissipar seus medos, Anna começou a pensar
sobre como Lindstrom seria. Ele seria um bom homem? Como seria o
timbre de sua voz? Seu jeito de ser? Que tipo de marido seria?
Considerado ou severo? Terno ou rude? Indulgente ou intolerante? Isso,
acima de tudo, preocupava Anna, que homem não ficaria zangado ao
saber que sua esposa não era virgem? Ao pensar nisso, suas bochechas
queimaram e seu estômago revirou. De todas as suas mentiras, era a
mais séria e menos perdoável. Era a que mais facilmente podia esconder
de Karl até que fosse tarde demais para ele reagir; no entanto, ela não
conseguiu impedir que um suor frio e úmido percorresse por seu corpo.
James Reardon havia se tornado um cúmplice voluntário no plano
planejado por sua irmã. Na verdade, ele foi o primeiro a encontrar o
anúncio de Lindstrom e mostrou a Anna. Mas como sua irmã não sabia
ler nem escrever, coube a ele ocupar-se das cartas. A princípio, foi fácil
fazer uma descrição adequada do tipo de mulher que Lindstrom queria.
No entanto, com o passar do tempo, James percebeu que eles estavam se
envolvendo em um enredo que eles mesmos haviam tecido. O menino
insistira que Lindstrom soubesse, pelo menos, que ele, James, também
iria. Mas Anna sempre tinha a última palavra. Ela argumentou que se
Karl soubesse a verdade, suas esperanças de escapar de Boston seriam
frustradas.
James estava viajando em cestos, barris e bolsas, com a testa
franzida de preocupação. Pensava, enquanto sacudia sobre aquela
estrada, qual seria seu destino se Lindstrom mantivesse sua promessa de
se casar com Anna, mas não incluí-lo no acordo. Ele olhou para o sol,
franzindo a testa. Usava um gorro gasto cobrindo os olhos; um tufo
marrom avermelhado escapava sobre suas orelhas; linhas muito
profundas para esse rosto de criança franziam a testa.
— Vamos —, disse Anna, tocando suavemente as juntas do menino,
de tamanho inadequado para o comprimento de seus dedos. — Tudo vai
ficar bem.
Mas ele continuava olhando para o oeste, enquanto a cabeça,
encostada na lateral da carroça, tremia toda vez que as rodas caíam em
algum buraco.
— Ah sim? E se ele nos mandar de volta? O que fazemos então?
— Eu não acho que ele fará isso. De qualquer forma, concordamos,
certo?
— Concordamos? — ele perguntou, dando-lhe um rápido olhar. —
Deveríamos ter dito a ele essa parte da verdade.
— E acabar apodrecendo em Boston! — Anna respondeu pela
centésima vez.
— E assim, vamos acabar apodrecendo em Minnesota. Qual é a
diferença?
Mas Anna odiava discutir e deu-lhe um aperto afetuoso no braço.
— Vamos, você está com medo.
— E você não!? — James respondeu sem aceitar o mimo.
Ele tinha visto Anna segurar seu estômago. Percebendo seu rosto
contraído, James lamentou ter começado a discussão novamente.
— Estou tão assustada quanto você —, ela admitiu finalmente, não
mais fingindo disfarçar. — Meu estômago dói tanto que acho que vou
vomitar.

KARL LINDSTROM ACREDITAVA, SEM NENHUMA sombra de


dúvida, que Anna Reardon era tão boa quanto diziam suas cartas, e
acreditava fielmente em suas palavras. Andava de um lado para o outro
em frente ao armazém de Morisette, esperando ansioso a próxima
carroça de suprimentos. Poliu as botas mais uma vez, esfregando-as com
as costas da calça. Ele tirou o gorro de lã preto com uma pequena viseira
e bateu no quadril, olhou para a estrada e o colocou de novo no cabelo
loiro. Ele tentou assobiar entre os dentes, mas sentiu que desafinava e
parou. Limpou a garganta, colocou as mãos nos bolsos e pensou nela
novamente.
Ele havia se acostumado a pensar nela como sua "pequena Anna,
loira como uísque". Não importava que ela dissesse que era alta, nem
que seus cabelos eram rebeldes. Karl a imaginou enquanto se lembrava
das mulheres de sua terra: bochechas rosadas, fortes, um rosto
agradável emoldurado por tranças loiras suecas. Sardas, ela dissera.
Passável, ela dissera. O que isso significava, passável? Queria que ela
fosse mais do que passável, queria que ela fosse bonita.
Então, com um sentimento de culpa por dar muito valor a algo tão
superficial, ele começou a andar mais uma vez, dizendo: “Que
importância tem um rosto, Karl Lindstrom? O que importa está dentro.
Apesar de tudo, Karl ainda estava esperando que sua Anna fosse linda.
Mas ele percebeu que esperar beleza de alguém capaz de ajudar tanto na
fazenda era demais.
A única coisa que o preocupava era que ela era irlandesa. Ele
ouvira dizer que os irlandeses eram facilmente irritados. Onde eles
morariam, tão longe dos outros, tendo apenas um ao outro, um bom
arranjo resultaria se ela mostrasse bom humor. Ele, sendo sueco, era um
cara gentil, pelo menos ele pensava assim. Ele não considerava que seu
caráter pudesse perturbar qualquer mulher, embora às vezes, olhando
no espelho, ele pensava que seu rosto sim o faria. Ele dissera a Anna que
seu rosto não assustava ninguém, mas quanto mais próximo o horário
do encontro, mais ele o temia. Apesar de tudo, ele tinha certeza de que
ela adoraria o lugar.
Ele pensou em suas terras, muito extensas, muito mais do que na
Suécia. Ele pensou em sua criação de cavalos, algo raro neste lugar onde
todos tinham bois que custavam duzentos dólares a menos do que seu
belo par de percherões. Ele os batizou com dois dos nomes mais
americanos, Belle e Bill, em homenagem à sua nova terra adotiva. Ele
pensou em sua casa de adobe, que ele havia limpado tão
meticulosamente antes de sair, e na casa de madeira, já começada. Ele
pensou em seus campos de trigo, que amadureciam em pleno sol e que
apenas dois anos atrás eram pura selva. Ele pensou em seu manancial,
seu riacho, seu lago, seus bordos, seus lariços. E embora ele tenha dado
pouca importância à sua pessoa ou aparência, ele disse: “Sim, tenho muito
a oferecer a uma mulher. Eu sou um homem rico”.
Mas sonhava em ter mais.
Ele tirou as cartas de Anna do bolso da calça e estudou as letras
novamente com grande orgulho, pensando em como ele era sortudo por
ter conseguido uma mulher educada. Quantos homens poderiam dizer o
mesmo? Aqui, um homem era sortudo em ter qualquer mulher, sem
mencionar uma que fosse educada. Mas sua Anna havia aprendido suas
primeiras palavras em Boston; Portanto, poderia algum dia ensinar seus
filhos. Ao tocar o áspero papel em que ela escrevera, e pensar que tinha
passado por suas mãos, essas mãos que ele nunca tinha visto, e nas
crianças que eles teriam algum dia juntos, um nó se formou em sua
garganta. Ao pensar que ele nunca mais teria apenas seus animais para
conversar, apenas seu próprio calor na cama à noite, ele sentiu seu
coração sair do peito.
“Anna”, pensou, “minha pequena Anna, loira como o uísque.
Quanto eu esperei por você!”

ANNA SE ATREVEU A ESPIAR UM POUCO entre os ombros dos


condutores mestiços, antes de se esconder atrás deles, limpar as palmas
das mãos no vestido de segunda mão e dizer a James para avisá-la
quando ele avistasse o armazém.
— Estou vendo! — James gritou, esticando o pescoço enquanto
Anna tentava desaparecer dentro da carroça.
— Oh não! — se lamentou em um sussurro.
— Tem alguém do lado de fora! — disse James excitado.
— É ele? Você acha que é ele? — Anna murmurou nervosamente.
— Ainda não sei, mas olhe aqui.
— James, estou bem?
James olhou para o chamativo vestido azul com saia com babados.
Ele não gostava muito. Deixava ver uma boa parte de seus seios, embora
Anna tivesse tentado, tanto quanto possível, ajustar o decote com uma
pinça para torná-lo mais decente. Mas o garoto respondeu:
— Está muito bem, Anna.
— Eu gostaria de ter um chapéu—, disse Anna, pensativa. Alisou
seus cachos rebeldes distraidamente, o que tornou esse defeito mais
óbvio.
— Talvez compre um para você. Ele usa um. É um gorro pequeno e
raso; Parece um prato de bolo.
— O que... o que mais? Como... como ele é?
— Corpulento, mas não consigo ver bem. Eu tenho o sol na frente.
Anna fechou os olhos. Segurou as mãos com força entre os joelhos
e desejou saber orar. Balançava da frente para trás; então, com
determinação, abriu os olhos novamente e inspirou profundamente, sem
poder evitar um tremor no estômago.
— Diga-me mais alguma coisa do que consegue ver—, ela
murmurou. Um dos mestiços ouviu o murmúrio e se virou, curioso —
Continue dirigindo! — Ela disse de mau humor, fazendo um gesto
impaciente com a mão, e ele olhou para trás, rindo.
— Já o vejo! — exclamou James. — Ele é grande, veste uma camisa
branca e calças escuras dentro das botas e…
— Não, o rosto dele! Como é seu rosto?
— Bem, eu não consigo ver daqui. Por que você não olha?
Então, James também se sentou para que não o pegassem olhando
quando parassem.
No último minuto, Anna avisou:
— Lembre-se, não diga quem você é até que eu tenha tido a
oportunidade de falar com ele. Vou tentar prepará-lo um pouco antes
que ele se acostume com você.
Ela sacudiu a saia, depois olhou para o peito e descansou a mão
trêmula ali, esperando que ele não notasse a porção de pele que estava
exposta quando ela trocou o vestido.
James engoliu em seco, fazendo o nó-de-Adão se destacar em seu
pescoço jovem e magro.
— Boa sorte, Anna—, disse ele, mas sua voz falhou como sempre
acontecia ultimamente. Geralmente, esses falsetes inesperados os faziam
rir, mas neste momento nenhum deles ria.

Quando a carroça se aproximou, Lindstrom subitamente se


perguntou o que fazer com as mãos. O que ela pensaria daquelas mãos
grandes e desajeitadas? Ele as colocou no bolso, sentiu suas cartas e
segurou uma delas como se fosse uma tábua da salvação. Ele sentiu os
ouvidos invadidos pelo som que ele fez enquanto engolia. Já podia ver os
dois condutores claramente. Atrás deles, duas outras cabeças estavam
tremendo, e Karl olhou para uma delas, tentando distinguir a cor dos
cabelos.
“Um homem”, ele pensou, “não pode parecer tremendo de medo
quando vem conhecer sua esposa. O que você dirá se vir seu medo? Ela
espera, certamente, que um alce como eu mostre que sabe o que está
fazendo. Tenha certeza de si mesmo. Acalme-se, Karl!” Mas não foi fácil
parar o tremor em seu estômago.
A CARROÇA DIMINUIU A VELOCIDADE e parou. Os índios
seguraram as rédeas e Anna ouviu uma voz profunda que dizia:
— Chegaram bem na hora. Tiveram uma boa viagem?
A voz tinha a suave masculinidade do acento sueco.
— Bastante boa — comentou um dos condutores.
Passos se aproximaram lentamente da parte de trás da carroça, e
um gigante, loiro, enorme apareceu. Naquele momento, Anna sentiu que
todo o seu corpo queria sorrir. Houve um momento de hesitação infantil
antes que ele mal pudesse abrir a boca. Uma mão áspera ergueu-se
lentamente para remover a pequena touca em forma de fonte, que
cobria seus cabelos, loiros como trigo. O nó-de-Adão tremeu por um
segundo, mas ainda não disse nada; Ele apenas torceu o gorro entre os
punhos gigantes, os olhos sempre fixos no rosto da garota.
Anna sentia a língua intumescida e tinha dificuldade para engolir.
O coração queria sair do peito.
— Anna? — ele disse finalmente, seduzindo-a com o sotaque do
Velho Mundo que acrescentou ao seu nome um tom de ternura. — Anna?
— ele perguntou de novo.
— Sim — conseguiu responder—. Sou Anna.
— Eu sou Karl — disse simplesmente, e olhou para seus cabelos. E
ela também olhou para o dele.
"Amarelo", pensou Anna, "mais amarelo impossível". Durante todo
esse tempo, eu só tinha imaginado. Agora, aqui estava, era a única coisa
colorida na imagem que forjara dele. Mas ele não tinha feito justiça. Era
o tom de loiro mais maravilhoso que ela já vira em um homem. Ele era
saudável e forte, com uma pequena ondulação no pescoço e ao redor do
rosto, onde havia formado gotículas de suor.
Karl descobriu que o cabelo de Anna era realmente da cor de um
bom uísque escocês, como quando o sol brilha, iluminando-o até as
profundezas com raios de sienna. Solto e com ondas rebeldes; Nenhuma
trança sueca visível.
Quando ele deixou seu olhar vagar sobre ela, Anna levantou a mão
para acomodar um cacho que caiu sobre sua testa. Que olhar! Anna
gostaria de usar um chapéu. De repente, ela largou a mão e agarrou a
outra, percebendo o que estava fazendo: tocando os cabelos com medo
de que ele a estivesse contemplando.
Mais uma vez seus olhos se encontraram: dele, a cor do céu de
Minnesota; dela, como as faixas marrons escuras das ágatas que ele
muitas vezes puxava do chão com seu arado. Ele baixou o olhar até sua
boca. Se perguntou como seria quando ela parasse de morder o lábio
superior. E justo então, o lábio se soltou de seus dentes e ele pôde ver
uma boca bonita curvada como uma folha, doce, mas séria.
Então, ele sorriu um pouco e ela sorriu um sorriso trêmulo. Anna
tinha medo de sorrir tanto quanto sua aparência merecia, pois ele era o
homem mais bonito que ela já conhecera. O nariz era reto e simétrico,
com as abas como metades de um coração. As bochechas eram grandes e
côncavas e davam-lhe uma aparência jovem e ansiosa. O queixo mal se
fundia, os lábios, ainda entreabertos, como se ele estivesse respirando
com dificuldade, estavam perfeitamente desenhados e arqueados na
crista e nos cantos. Sua pele retinha a rica cor do sol.
Envergonhada, Anna olhou para baixo, pois sentia que estava
sendo indelicada o encarando fixamente.
Anna pensou: "Não, seu rosto não assusta ninguém". E Karl
pensou: "Sim, é muito mais do que passável".
Finalmente, Karl limpou a garganta e colocou o pequeno gorro na
cabeça novamente.
— Vamos, deixe-me ajudá-la, Anna. Me passe suas coisas primeiro.
Quando ele estendeu a mão e Anna viu que preenchia toda a
largura da manga branca, percebeu o quão forte era.
A moça se virou e estendeu a mão por cima de James, que durante
todo esse tempo se sentiu como um intruso, mesmo que eles mal
tivessem falado. Quando Anna se incorporou, ela tinha os músculos
rígidos e não respondiam após a longa viagem; temia que Karl a achasse
estranha e sem graça. No entanto, ele não pareceu notar o puxão no
quadril e estendeu as mãos enormes para ajudá-la a saltar sobre a borda
da carroça. Ele usava as mangas da camisa enroladas até o cotovelo,
revelando os grandes e fortes antebraços. Os ombros largos fizeram a
camisa ficar firme na pele. Quando Anna se apoiou neles, encontrou-os
duros como pedras. Sem esforço, ele a ajudou a pular, levando-a pela
cintura com as mãos largas.
"Ele tem mãos tão grandes", pensou Anna, e sentiu um vácuo no
estômago.
Karl viu que quase não tinha formas e, ao se aproximar, sua
suspeita foi confirmada. Ela não tinha 25 anos!
— Foi uma viagem muito longa. Você deve estar cansada — ele
disse. Ele percebeu que, jovem ou não, ela era realmente alta. A cabeça
da garota quase alcançava a ponta de seu nariz.
— Sim—, ela murmurou, sentindo-se estúpida ao não lhe ocorrer
mais nada para dizer, mas as mãos dele ainda estavam em sua cintura e
seu calor passou para seu corpo, enquanto ele agia como se tivesse
esquecido que a estava segurando.
De repente, ele afastou as mãos.
— Bem, hoje à noite você não terá que dormir em uma carroça.
Você estará em uma cama quente e confortável na missão. — Então
pensou: “Tolo! Ela achará que é a única coisa que preocupa você, a cama!
Primeiro você deve mostrar que está interessado nela.”
— Esta é a loja de Joe Morisette, sobre a qual eu falei. Se você
precisar de algo, podemos obtê-lo aqui. É melhor comprar agora, porque
amanhã sairemos muito cedo para minha casa.
Ele se virou e caminhou ao lado dela, observando a ponta dos
sapatos dela alargar a saia com babados. Ela usava um vestido que não
gostava. Era brilhante, estridente, com rendas na área do busto, como se
tivesse sido feito para uma mulher mais velha com uma estrutura mais
curvilínea. Era estranho, com muitos babados e um pequeno corpete,
nada adequado para um lugar como Minnesota.
Ficou claro que ela o usava para parecer mais velha. Ela não devia
ter mais de dezoito anos, supôs, observando-a com desconfiança
enquanto caminhava na frente dele para o local. Parecia que tinha o
busto camuflado dentro do chamativo corpete, mas o que ele sabia
disso?
Quando a jovem entrou no armazém, ele a viu por trás pela
primeira vez. Ela não tinha formas. Ah, ela era alta, sim, mas magra
demais para o seu gosto. Pensou nas varas por onde os feijões plantados
por sua mãe cresciam e considerou que a única coisa que sua Anna
precisava era ganhar algum peso.
Morisette levantou a cabeça assim que entraram, e exclamou, com
um forte sotaque francês:
— Então finalmente chegou, agora o noivo vai parar de andar
nervosamente e beber tanto uísque!
"Você tem uma boca muito grande, Morisette", pensou Karl. Mas
quando Anna se virou rapidamente e olhou novamente para Karl, ela o
viu vermelho até as orelhas. Ela tinha visto bebedores de uísque
suficientes em Boston para fazer a lembrança durar uma vida. A última
coisa que ela queria era se casar com um.
“Devo negar isso aqui, na frente de Morisette?”, se perguntou Karl.
“Não, a garota terá que descobrir que sou honrado depois de ter morado
comigo por um tempo”.
Anna olhou ao redor do local, imaginando o que ele diria se ela
confessasse que gostaria de ter um chapéu. Ela nunca teve um, e Karl
perguntou se ela precisava de alguma coisa. No entanto, ela não se
atreveu a pedir nada, porque James ainda estava esperando do lado de
fora, sem Karl Lindstrom perceber nada. Sentiu uma mão no cotovelo,
que a levou até o lojista.
O moreno franco-canadense mostrou um sorriso sincero e
provocador.
— Esta é Anna, Joe. Está finalmente aqui.
— Claro que é Anna. Quem mais poderia ser? — Morisette riu e
agitou os braços. Tinha uma risada contagiante. — Tremenda viagem
pela rodovia estadual, não? Não é o melhor caminho, mas tampouco é o
pior. Espere até ver o que leva para a casa de Karl, e você apreciará o que
acabou de passar. Você sabe, mocinha, que os jornais aconselham as
mulheres a não virem aqui porque a vida é muito difícil?
Karl não queria que Morisette dissesse isso a Anna. Ele não queria
assustá-la antes que ela tivesse a chance de conhecer a maravilhosa
Minnesota e deixá-la falar por si mesma.
— Sim, claro, eu... eu os li—, Anna murmurou. — Mas Karl acha que
não há lugar melhor para viver, porque há muita terra e é tão rica e... e
há tudo que um homem precisa.
Morisette riu. Karl já tinha enchido sua cabeça, pelo que via.
Satisfeito com sua resposta, Karl respondeu:
— Viu, Morisette? Você não pode assustar Anna com sua conversa
boba. Ela veio de muito longe para ficar.
Anna respirou aliviada. Até agora, parecia ter sido aceita, tivesse
ou não dezessete anos, com rugas ou não.
— Então o bom padre os casará na missão? — perguntou Morisette.
— Sim, de manhã—, disse Karl, olhando por trás, nos ombros de
Anna, onde aqueles cachos bagunçados percorriam seu pescoço.
Nesse momento, os condutores mestiços entraram no armazém,
cada um carregando um barril no ombro. Um deles deixou a carga no
chão com um golpe e disse:
— Aquele garoto está lá, na estrada, como se estivesse perdido.
Você não disse a ele que este é o fim da viagem?
Era óbvio que a pergunta foi dirigida a Anna. Mas ela permaneceu
calada.
— Qual garoto? — perguntou Lindstrom.
Não vendo saída, Anna olhou para ele e respondeu:
— Meu irmão James.
Atordoado por um momento, Karl olhou para ela; Estava
começando a entender a verdade, enquanto Morisette e os condutores
assistiam.
— Sim... claro... James.
Lindstrom caminhou em direção à porta e, pela primeira vez,
olhou para o garoto que fora o outro passageiro na carroça de
suprimentos. Karl estava tão absorvido por Anna que não percebeu que
o garoto estava lá.
— James? — Lindstrom falou naturalmente, como se estivesse
ciente de tudo.
— Sim? — James respondeu. Ele imediatamente se corrigiu: — Sim,
senhor. — queria causar uma boa impressão no homem alto.
— Por que você está aí no meio da estrada? Venha conhecer meu
amigo Morisette.
Surpreso, o garoto pareceu estar com os pés presos no chão, por
um momento. Então ele colocou as mãos nos bolsos e entrou no
armazém. Quando ele passou por Karl, ele notou uma semelhança entre
Anna e o garoto. O menino era extremamente magro, com um tom de
pele semelhante, mas faltavam as sardas e os olhos, embora grandes
como os de sua irmã, eram verdes em vez de marrons.
Karl escondeu sua surpresa com habilidade e andou pelo armazém
metodicamente, enquanto carregava mercadorias em sua carroça. James
e Anna exploravam o local, encontrando-se de vez em quando,
desviando o olhar rapidamente, imaginando a reação de Karl, se havia
alguma. Os dois ficaram surpresos ao ver quão pouco a situação parecia
preocupá-lo. Com aparente tranquilidade, ele ia e vinha, carregando sua
carroça e brincando com Morisette.
Quando todos os embrulhos já estavam amarrados e seguros atrás
do par de percherões, Karl voltou a entrar e anunciou que estava na
hora de partir. Mas Anna observou que ele não repetiu sua oferta de
comprar tudo o que ela queria. Ele se despediu de Morisette e a levou
para fora, levando-a firmemente pelo cotovelo; aquela pressão em seu
braço avisou Anna que seu novo futuro marido não era tão complacente
quanto ela supunha.
CAPÍTULO 2
Anna pensou que Karl lhe deslocaria o braço antes de soltá-la. A
levava, sem dizer uma palavra; Anna dava dois passos para cada um dele,
mas Karl a ignorou e, empurrando-a pelo cotovelo, a fez subir no banco
da carroça. Ela se aventurou a olhar rapidamente para ele, e sua
expressão fez seu estômago tremer. Ela esfregou o ombro machucado,
desejando, mais do que nunca, ter escrito a verdade nessas cartas.
A voz de Karl soou tão controlada como sempre quando ele falou
com seus cavalos; ele estalou as rédeas e os fez andar pela estrada. Mas
depois de passar uma curva, longe do armazém, a carroça se deteve com
uma repentina sacudida. A voz de Lindstrom vibrou no ar em um tom
muito diferente do que havia usado até então. Suas palavras soaram
lentas como sempre, mas em um tom mais alto.
— Não exponho meus assuntos na frente de Joe Morisette em seu
armazém. Não permito que o brincalhão de Morisette veja que Karl
Lindstrom foi enganado. Mas acho que foi o que aconteceu! Acho que
você, Anna Reardon, tentou enganar um sueco estúpido, não é? Você
não foi honesta e me fez de bobo na frente de meu amigo Morisette!
Anna ficou tensa.
— O que... como assim? — Ela gaguejou, sentindo-se cada vez mais
arrependida.
— Como assim? — Ele repetiu, com o sotaque mais pronunciado. —
Mulher, eu não sou bobo — ele explodiu. — Não me tome como tal.
Fizemos um acordo, você e eu. Durante todos esses meses, estávamos
preparando o plano para você vir até aqui, e nem uma vez você
mencionou seu irmão nas cartas! Em vez disso, você dá uma pequena
surpresa a Karl, não é? Como as pessoas irão rir quando descobrirem que
minha noiva trouxe um passageiro extra que eu não esperava!
— Eu acho... que... eu deveria ter contado a você, mas ...
— Você acha! — ele gritou, cheio de frustração. — É mais do que
isso. Você sabe que está preparando essa armadilha há muito tempo e
talvez pense que Karl Lindstrom é um sueco tão grande e bobo que
funcionaria!
— Eu não pensei nada disso. Eu queria contar a você, mas pensei
que, uma vez que visse James, perceberia que ele seria útil. Ele é um
garoto bom e forte. Já é quase um homem! — Ela se defendeu.
— James é uma criança! É outra boca para alimentar e mais roupas
de inverno para comprar.
— Ele tem treze anos, em um ou dois anos ele já será um homem.
Poderá render o dobro que eu.
— Não coloquei um anúncio no jornal de Boston pedindo uma
assistente, mas uma esposa.
— E eu estou aqui, certo?
— Claro. Claro que você está. Mas você e esse irmão são mais do
que o combinado.
— Ele é um bom trabalhador, Lindstrom.
— Isto não é Boston, Anna Reardon. Aqui uma pessoa a mais
implica mais provisões. Onde vai dormir? O que vai usar? Haverá comida
suficiente para alimentar três no próximo inverno? Você precisa
considerar tudo isso, se quiser sobreviver aqui.
Anna estava realmente implorando agora, as palavras
borbulhavam:
— Pode dormir no chão. Ele tem roupas suficientes para o inverno.
Isso ajudará você a cultivar mais grãos no próximo verão.
— Os grãos já estão na terra. Era você quem me ajudaria a cuidar
deles. Eu só precisava de uma pessoa: você.
— E eu vou ajudá-lo. Pense apenas em quanto mais podemos
cultivar três pessoas. Porque não? Teríamos muito...
— Repito, os grãos já estão na terra. Neste momento, não são mais
os cultivos que me preocupam. É o fato de que você mentiu para mim e
que medidas eu tomarei. Eu nunca escolheria uma mentirosa para
esposa.
Anna estava destruída e não conseguiu responder. Parecia não
haver argumentos contra essa acusação.
James, que estava sentado na carroça sem abrir a boca, finalmente
falou.
— Senhor Lindstrom, não tivemos escolha. Anna pensou que, se
você soubesse que eu fazia parte do acordo, a rejeitaria. — A voz de
James falhou: passou de tenor para soprano e tenor novamente.
— Não estavam equivocados! — Karl explodiu—. É exatamente o
que eu faria e o que estou pensando em fazer agora.
Anna recuperou a voz, mas o medo a fez tremer. Os olhos se
arregalaram naquele rosto magro e brilhavam com lágrimas prestes a
explodir. — Você nos enviaria de volta? Não, por favor.
— Ao mentir para mim, você quebrou o acordo. Eu não sou mais
responsável por você. Meu acordo não era com uma esposa mentirosa.
Soava tão falsamente justo e bom, sentado ali, parecendo saudável
e satisfeito, tão bem nutrido, que Anna explodiu.
— Claro! Que necessidade você tem para fazer um acordo?
Nenhuma! — Ela exclamou furiosamente, acenando com as mãos e
apontando a terra com veemência. — Não, quando você tem sua preciosa
Minnesota, que lhe dá seu néctar, sua madeira, seus frutos! — Sua voz
quase exalava sarcasmo. — Não, quando está abrigado, alimentado e
confortável! Você não tem ideia do que é sofrer de frio e fome, não é? Eu
gostaria de vê-lo nesse estado, Karl Lindstrom. Talvez então você
descubra como é fácil mentir um pouco para melhorar sua condição de
vida. Boston logo o ensinaria a ser um artista talentoso na arte de
mentir!
— Então você tem o hábito de mentir? É isso que você tenta me
dizer? — Ele olhou para ela com raiva e sentiu suas bochechas
queimando sob as sardas.
— Maldição! Você não está enganado — exclamou com raiva,
olhando-o diretamente no rosto—. Eu menti para comer. Eu menti para
que James pudesse comer. Primeiro tentamos sem mentir, mas não
estávamos indo a lugar algum. Ninguém queria contratar James porque
ele era muito magro e desnutrido, e ninguém queria me contratar
porque eu era uma garota. Finalmente, quando tentar viver
honestamente não funcionou, decidimos que era hora de tentar outra
coisa e ver se estávamos melhorando.
— Anna! — Ele exclamou, tão decepcionado por suas maldições
quanto por suas mentiras—. Como você pôde fazer algo assim? Eu
também passei fome um dia. Mas nunca cheguei a mentir por isso. Não
há nada que faça de Karl Lindstrom um mentiroso.
— Bem, já que você é tão onipotente e honesto, cumprirá sua parte
do acordo e se casará comigo! — Ela disse com ímpeto.
— Acordo! Eu lhe disse que o acordo se quebrou com suas
mentiras. Paguei muito pela sua passagem. Você pode me devolver?
Você pode, ou fui burro o suficiente para te buscar e terminar sem uma
esposa e sem dinheiro?
— Não posso devolver o dinheiro, mas se você aceitar nós dois,
trabalharemos duro. É a única maneira de compensar.
Anna desviou o olhar do genuíno gesto de surpresa refletido nos
olhos de Karl. Esse gesto vinha de uma educação em que o branco e o
preto não se misturavam.
— Sr. Lindstrom—, disse James, — eu também lhe pagarei, você
verá. Eu sou mais forte do que pareço. Posso ajudá-lo a construir a
cabana que planejou, posso ajudá-lo a limpar a terra e... cultivá-la e
colhê-la.
Os olhos de Karl olharam para um ponto fixo entre as orelhas de
Belle. Sua mandíbula estava tão tensa que parecia inchada.
— Você sabe lidar com uma parelha, garoto? — Ele perguntou
bruscamente.
— Não...
— Você sabe lidar com o arado?
— Eu nunca tentei.
— Você sabe levantar uma corrente de toras, usar um mangual ou
derrubar árvores com um machado?
— Eu posso... aprender—, gaguejou James.
— Aprender leva tempo. Aqui o tempo é precioso. A temporada de
cultivo é curta e o inverno é longo. Você aparece diante de mim sem
nenhuma habilidade e espera que eu o treine como carroceiro, lenhador
e fazendeiro, tudo em um verão?
Anna começou a perceber a precariedade de seu plano, mas não
podia ceder agora.
— James aprende fácil, Lindstrom—, prometeu—. Você não vai se
arrepender.
Karl olhou para ela de lado, balançou a cabeça com desânimo e
estudou as botas.
— Eu já estou me arrependendo. Lamento ter tido a ideia de pedir
uma esposa pelo correio. Mas esperei dois anos pensando que outros
colonos viriam, outras mulheres. Na Suécia, conversamos muito sobre
Minnesota e pensei que outros suecos me seguiriam. Mas ninguém vem e
eu não posso esperar mais. Você sabe disso também. Você se aproveitou
disso para tirar vantagem de mim — lamentou.
— Pode ser, mas eu também pensei que mais uma pessoa seria útil.
— Anna rasgou uma pele da cutícula enquanto falava.
Havia outro ponto que Karl queria esclarecer, mas não sabia como
mencioná-lo sem que pensassem que era um homem exigente em
termos de sexo. Ele não podia imaginar-se levando uma esposa para a
cama no mesmo quarto que seu irmão. Se ele mencionasse isso, Anna
ficaria horrorizada. Tudo o que ele pôde fazer foi tentar abordar o
assunto de forma cautelosa dizendo, com os olhos fixos no pescoço de
Belle: — Eu moro em uma casa de um quarto, Anna.
Anna parou de cavar sua cutícula. Sentiu seu rosto queimar
quando entendeu completamente o que Karl sugeria. A maneira educada
que sugeriu que eles precisariam de mais privacidade a comoveu. Era
diferente de qualquer outro homem que ela conhecera. Nunca havia
encontrado um ser humano que fosse bom. Essa gentileza a encheu de
autocensura e ela lamentou não poder ser melhor para merecer isso.
Se naquele momento Karl tivesse ousado olhá-la, ele teria notado
um leve rubor aparecendo sob suas sardas. Mas ele não fez isso. Ele
desviou o olhar, preocupado com outra ideia decepcionante. Se Anna
tivesse contado com essa falta de privacidade para se livrar, portanto, de
cumprir o dever que algumas esposas - segundo lhe haviam dito -
consideravam desagradáveis? Ele não podia acusá-la disso,
especialmente na frente do garoto.
Tudo o que Karl queria era levar sua nova esposa para sua pequena
casa, que os esperava. Lá ele teria tempo e privacidade para fazer a corte
da maneira usual. Ah! "Que maneira estranha de nos conhecer, Anna!”
Ele pensou.
Um manto pesado de tristeza cobriu seu coração. Como havia
esperado esse dia, pensando em quão orgulhosa Anna se sentiria na
primeira vez que a levasse para sua casa de adobe, sua Anna, loira como
uísque. Ele mostraria com orgulho a chaminé que construíra com as
pedras de suas próprias terras, a mesa e as cadeiras que ele havia feito
com a nogueira sólida de suas próprias árvores. Lembrou-se das longas
horas que passara trançando a grama para decorar a estrutura da cama,
feita de troncos. Com que cuidado ele secou as cascas de milho da última
colheita para obter o tecido mais macio que qualquer mulher poderia
desejar. Havia dedicado horas preciosas para colher aneas e arrancá-las
para encher os travesseiros. As peles de búfalo foram ventiladas,
sacudidas e esfregadas com ervas selvagens para fazê-las cheirar
melhor. Finalmente, ele pegou um monte de trevo perfumado, de
fragrância embriagadora, e o colocou no espaço entre os dois
travesseiros, no centro da cama.
De todas estas maneiras, ele havia procurado expressar a Anna sua
apreciação, seu desejo de recebê-la e seu esforço para agradá-la. E agora
que estava aqui, descobria que era uma mentirosa, que talvez não
merecesse tanta preocupação; uma mentirosa, com um irmão que
estaria dormindo no chão na mesma noite em que Karl Lindstrom
levaria sua esposa para sua cama pela primeira vez.
Karl ficou um tempo pensando em silêncio; Anna e o irmão
também não falaram. Finalmente, incapaz de suportar o tenso silêncio,
Anna disse, mordendo a parte interna da bochecha: — Se você me
aceitar, nunca mais mentirei.
Karl finalmente olhou para ela. A mancha de culpa era visível em
sua pele, o que em si não lhe desgostava. Lhe revelava que ela não
mentia sem se sentir mesquinha ao ser descoberta. Suas bochechas
estavam da cor das rosas selvagens que adornavam a terra de Karl na
primavera. Do mesmo modo que ao descobrir uma rosa em uma curva na
estrada, ao descobrir agora aquela tonalidade rosa nas bochechas de
Anna, sentiu vontade de pegá-la e levá-la para casa.
Ele era um homem para quem a solidão era uma coisa terrível.
Pensou novamente em acordar e encontrar a flor de sua bochecha no
travesseiro de anea ao lado dele, e seu rosto se iluminou. Ele começou a
contemplar suas sardas douradas; pareciam atenuar a gravidade de sua
culpa. A faziam parecer totalmente inocente. Naquele momento, ele
pensou que suas mentiras eram como uma história infantil contada por
um garoto para conseguir o que queria.
— Você pode me prometer? — Ele perguntou, olhando-a
diretamente nos olhos—. Que você não mentirá mais para mim. — Sua
voz era suave mais uma vez, calma.
— Eu prometo—, disse ela, respondendo igualmente ao seu olhar
firme e seu tom gentil.
— Então eu quero que você me diga sua verdadeira idade.
Anna olhou para baixo, mordeu o lábio e Karl a sentiu esquivar
novamente.
— Vinte — disse.
Mas a cor de suas bochechas acentuou-se até que adquiriu o tom
do heliotrópio nos prados cobertos de cardos; plantas que Karl nunca
teria pegado para levar para casa.
— Se eu disser que não acredito em você?
Anna deu de ombros e evitou os olhos de Karl.
— Pediria ao seu irmão que me diga a verdade, mas vejo que os
dois estão confabulados nessa trama que urdiram para mim.
O tom suave de sua voz não a enganou desta vez. Ocultava uma
vontade inabalável de chegar a verdade. Anna levantou as duas mãos ao
mesmo tempo.
— Pelo amor de Deus! Está bem. Eu tenho dezessete anos. Qual o
problema?
O olhou na cara, desafiante e furiosa; sua explosão repentina quase
o fez sorrir, mas ele evitou a tempo.
— Qual o problema? — Ele repetiu, erguendo as sobrancelhas e
inclinando-se para trás, relaxado. Era como um gato brincando com um
rato antes de afundar os dentes. — Então eu me pergunto se você será
uma cozinheira e dona de casa tão qualificada como você disse.
Ela apertou a boca bonita e olhou para frente.
— Não se esqueça, você disse que tinha terminado com as mentiras
—, ele a lembrou.
— Eu disse que tenho dezessete anos. O que mais você quer saber?
— Quero uma mulher que saiba cozinhar. Sabes cozinhar?
— Um pouco.
— Um pouco?
— Bem, não muito—, disse. — Mas eu posso aprender, certo?
— Não sei. Como? Eu vou ter que te ensinar também?
Ela preferiu não responder.
— O que você sabe sobre o trabalho doméstico?
Silêncio.
Karl pegou o braço dela.
— O que você sabe fazer?
Anna afastou o braço.
— O mesmo que cozinhar.
— Você sabe fazer sabão?
Não houve resposta.
— Você sabe fazer velas de sebo?
Não houve resposta.
— Fazer pão?
Não houve resposta.
— Suponho que você não fez muito trabalho de campo, nem de
jardinagem, nem trabalho doméstico.
— Eu sei costurar—, foi tudo o que ela disse.
— Costurar... — Karl repetiu com um tom de sarcasmo—. Sabe
costurar — ele disse a roda de sua carroça. Então Karl começou a falar
sozinho em sueco, o que deixou Anna louca porque ela não conseguia
entender uma única palavra.
Por fim ficou em silêncio, estudando a roda da carroça. Anna
estava rígida como uma vara, os braços cruzados sobre o peito.
— Teria sido melhor esperar que essas meninas suecas chegassem a
Minnesota, certo? — perguntou com amargura, fazendo com que fosse
ela agora a olhar o pescoço dos cavalos.
— Sim, teria sido melhor — disse Karl. Então murmurou, mais uma
vez, para terminar: — Dezessete, e tudo que sabe é costurar.
Ele ponderou um momento em silêncio, depois se virou para
encará-la, imaginando como um homem da idade dele poderia levar uma
menina de dezessete anos para a cama sem se sentir como um
profanador da inocência. Seu olhar caiu em seus seios, depois em James,
em seguida novamente em seu rosto.
— Parece que há muitas coisas que você não sabe fazer.
— Eu posso fazer qualquer coisa que você me pedir, com dezessete
ou não, maldição! — Porém implorou para não corar.
— Você realmente sabe amaldiçoar. Porém eu não preciso de
nenhuma mulher que passe o tempo todo xingando. — Ele se perguntou
como sobreviveria ao resto de sua vida com aquele temperamento
irlandês. Mas ele também estava preocupado com a maneira como
sobreviveria a mais um ou dois anos sem uma mulher. Tudo o que ele
disse foi: — Eu tenho que pensar sobre isso.
— Senhor... — James começou a dizer — Anna me disse...
— Não me incomode quando estou pensando—, ordenou Karl.
James e Anna se olharam de soslaio. Eles pensaram que ele ia
incitar os cavalos a andar, mas ele continuou pensando em silêncio. Era
o jeito dele, o jeito que o pai o ensinara, o jeito que o avô ensinara o pai.
Primeiro, passava um longo tempo meditando sobre uma situação,
depois refletia antes de tomar uma decisão; de modo que quando
abordava o problema, o tinha quase resolvido. Ele estava sentado imóvel
como uma estátua, enquanto os pássaros cantavam; era como uma doce
canção da noite com a qual embalavam seus filhotes no ninho.
Anna se sentiu atraída pela noite de verão e pensou que em Boston
o canto dos pássaros quase nunca era ouvido. Lá, naquele momento, se
ouvia a música das tabernas recém abertas para começar a noite. Anna
descobriu que preferia o canto dos pássaros. Em suas cartas, Karl disse a
ela que, naquele lugar, havia mais pássaros do que poderia nomear.
Agora ela se perguntava se teria a chance de conhecê-los.
— Anna—, disse ele, assustando-a, — diga-me agora que outras
mentiras você me contou. Acho que tenho o direito de saber se há mais.
Anna sentiu o cotovelo de James em sua costela.
— Eu não contei outras mentiras. Por Deus! O que mais eu poderia
ter dito? — Ah! Parecia tão convincente. Anna pensou que ela deveria
atuar no teatro.
— Melhor que não haja mais! — Karl avisou.
No entanto, ele não deu nenhuma indicação do que estava
pensando. Pegou as rédeas, pôs os cavalos em movimento e seguiu para
a missão.
Ele parou os cavalos na frente de duas construções de troncos,
separadas por um trecho de terra. A maior tinha uma cruz sobre a porta;
a outra não tinha. Anna supôs que era a escola.
— Ainda tenho muito em que pensar—, disse Karl—. Dormiremos
aqui esta noite, conforme planejado, e buscaremos a orientação
espiritual do Padre Pierrot. De manhã, tomarei uma decisão: ficar ou
enviá-los de volta a Boston na próxima diligência de Red River que
aparecer.
De repente, Anna percebeu o significado do termo "Padre".
— Padre Pierrot? — perguntou. — É uma missão católica?
Sua mente já estava avançando, imaginando como sairia disso.
— Sim, claro. Nas minhas cartas, eu lhe disse que nos casaríamos
aqui.
— Mas... você nunca disse que era uma missão católica.
— Claro que ela é católica. Te preocupa que o padre Pierrot não
queira testemunhar nosso casamento porque eu sou luterano e você é
católica? Tudo está arranjado e o padre recebeu uma dispensa especial
do bispo Cretin para testemunhar os votos que pronunciaremos. Mas
não pense mais nisso, porque talvez não haja votos.
Anna não sabia qual das perspectivas a aterrorizava mais: que Karl
a mandasse de volta ou descobrisse suas outras mentiras.
Karl saltou ao chão, amarrou as rédeas e ajudou Anna a descer.
Mas desta vez, quando ele colocou as mãos na cintura estreita, não pôde
deixar de lembrar-se de suas palavras de que ele nunca havia passado
fome. Ela era magra como um fio.
O padre Pierrot os cumprimentou da porta do prédio menor.
— Ah, Karl, é bom dizer olá, meu amigo. Essa deve ser a Anna.
— Olá padre.
Anna assentiu com a cabeça, e o moreno padre a presenteou com
um amplo sorriso.
— Você sabe como esse jovem estava esperando por você? Toda vez
que o vejo, ele me fala sobre sua Anna, sua pequena Anna, loira como
uísque. Pensei que, se você tardasse a chegar, teria deixado este lugar,
do qual sempre se vangloria, para correr para te buscar.
Pecando por ser irreverente, Karl pensou: "Você também, padre,
tem uma boca grande, apesar das roupas que veste". Karl fora ensinado
a sentir grande respeito pelo clero. Era natural que ele procurasse a
amizade do único clérigo em mais de cem quilômetros,
independentemente de sua crença.
— Sobre o que eu me gabo, padre? — Perguntou Karl.
— Bem, não se preocupe, Karl. Eu gosto de fazer piadas. — Ao ver
James, o padre perguntou: — E quem é esse garoto?
—James, senhor—, respondeu o garoto. — James Reardon.
— Ele é meu irmão—, declarou Ana abertamente.
— Seu irmão, mmm... Karl não me disse que você tinha um irmão. É
uma boa notícia. Minnesota precisa de pessoas jovens e fortes como
você, James. Não é um lugar ruim para um garoto crescer e se tornar um
homem. Você acha que vai gostar do lugar, James?
— Sim, senhor—, respondeu James prontamente. — Mas tenho
muito a aprender.
O padre levantou a cabeça e riu.
— Você escolheu um bom homem, filho. Se você tiver alguma
dúvida sobre Minnesota, este grande sueco vai tirá-la da sua cabeça.
De repente, Karl pigarreou e disse: — Eu tenho que cuidar dos
cavalos, padre. Você pode conversar com Anna e James de Boston e do
Leste.
— Posso ajudá-lo? — James perguntou imediatamente.
Karl olhou para o garoto tão frágil, tão magro, tão jovem, tão
disposto. Ele não queria que a boa disposição do garoto influenciasse sua
decisão em relação a Anna.
— Vá com o padre e Anna. Você fez uma longa viagem e ainda não
acabou.
O olhar nos olhos de James expressou uma dúvida: "O resto da
viagem me levará de volta para Boston ou para casa?" Karl desviou o
olhar, pois ainda não tinha a resposta.
Observando seus ombros largos desaparecerem pela porta, Anna
sentiu um desejo repentino de agradá-lo, pelo bem de James. O garoto
nunca conheceu um pai, e esse homem seria a melhor influência que um
garoto da idade dele poderia ter. Mesmo depois que ele saiu, a imagem
de suas costas vigorosas estava gravada na mente de Anna.
Uma índia serviu-lhes um delicioso ensopado de milho e carne.
Anna e James quase devoraram a comida. Do outro lado da mesa, Karl
estava agora estudando Anna mais de perto. Seu rosto era bastante
atraente, mas ele não gostava do vestido, e seu cabelo parecia selvagem
e muito bagunçado, nada a ver com as coroas de tranças que ele
costumava ver nas mulheres suecas.
De repente, Anna olhou para cima e o descobriu observando-a.
Imediatamente, ele começou a comer mais devagar.
Mas a palavra "fome" ainda estava na mente de Karl, como ela
havia dito antes. Os ossos do ombro eram visíveis sob o vestido, e os nós
dos dedos eram grandes demais para aquelas mãos finas; ele pensou,
então, na fome que devia ter sofrido em Boston. O garoto também
parecia extremamente magro e seus olhos pareciam grandes demais
para suas órbitas. Karl tentou afastar essas imagens enquanto comia,
mas repetidamente era apresentada diante de seus olhos.
Depois do jantar, o padre Pierrot pediu a índia que preparasse
alguns paletes no chão para seus três convidados. Quando estavam
prontas, a mulher voltou e levou Anna e James para suas camas,
enquanto Karl ficou para conversar com o padre Pierrot.
Eles improvisaram algumas camas de palha e peles de búfalo, que
os irmãos acharam muito confortáveis; então eles decidiram considerar,
com alguma tristeza, sua situação futura.
Tudo estava muito escuro e silencioso; a noite parecia cheia de
pensamentos não expressos. Finalmente, James perguntou: — Você acha
que ele vai nos mandar de volta?
— Eu não sei—, Anna admitiu.
James percebeu, por sua voz, que ela estava muito preocupada.
— Estou apavorado, Anna—, confessou.
— Eu também—, ela admitiu.
— Mas ele parece um homem justo—, acrescentou James,
precisando se agarrar à esperança—. Saberemos de manhã.
Houve um silêncio novamente, mas nenhum deles havia
adormecido.
— Anna? — A voz fraca de James denotava preocupação.
— O que você quer agora?
— Você não deveria ter mentido sobre as outras coisas. Você
deveria ter admitido quando te perguntou.
— Sobre que outras coisas? — Ela perguntou, prendendo a
respiração por medo de que ele conhecesse o pior e mais imperdoável de
seus segredos.
No entanto, James nomeou apenas os outros:
— Que você não sabe escrever, que fui eu quem escreveu as cartas e
onde morávamos.
— Eu tive medo de dizer a verdade.
— Mas ele vai descobrir.
— Mas a descobrirá tarde demais, se tivermos sorte.
— Isso não está certo, Anna.
Anna olhou para a escuridão, sentindo o choro na garganta.
— Eu sei. Mas desde quando o certo está do nosso lado?
Não, James admitiu para si mesmo, a coisa certa nunca esteve do
seu lado. Mas ele também não acreditava que, se continuassem
mentindo, se beneficiariam. Sabia que devia ter sido terrível para Karl
vê-lo chegar com Anna; um garoto cuja existência não tinha a menor
noção. Então, o pobre Karl descobre que Anna tem dezessete anos, em
vez de vinte e cinco, e que não sabe fazer nada em casa. James
reconheceu que Karl tinha tomado tudo melhor do que a maioria dos
homens teria feito.
— O que você acha dele, Anna? — Ele perguntou calmamente.
— Ah, cale a boca e durma de uma vez! — Anna exclamou, sua voz
embargada.
Então, escondeu o rosto nos braços para afogar um soluço,
lembrando-se da expressão ingênua e expectante com que Karl a
recebera; a maneira como ele a ajudou a sair da carroça, e a oferta de
comprar o que ela quisesse na loja. Sim, ela gostava de Karl. Mas, ao
mesmo tempo, morria de medo. Afinal, ele era um homem.
CAPÍTULO 3
— Padre Pierrot, devo falar com você como amigo e como
sacerdote. Eu tenho um problema com respeito à Anna.
Os dois se instalaram na sala, atrás da escola, fumando cachimbos
cheirosos de tabaco indígena.
— Ah, Karl, percebi que você estava preocupado assim que te vi
chegar. As dúvidas de última hora o assaltam?
— Sim, claro, mas não as que você imagina—, Karl suspirou. — Você
sabe quantos meses levou para trazer Anna a este lugar. Também sabe
que eu preparei um bom lar para ela e que tenho planos para um
melhor. Estou mais do que preparado para uma esposa há muito tempo.
Todos esses meses eu estava sonhando com a chegada dela. Mas acho
que fui um pouco ingênuo, padre. Sonhei que ela era algo que não é, e
agora descubro que ela mentiu para mim em muitas coisas.
— Não era um risco que você corria ao cortejá-la por carta?
— Sim, é verdade. No entanto, não é uma boa maneira de começar
a vida de casado. Eu acho que não quero uma esposa mentirosa, embora
eu queira uma esposa, e ela é a única disponível.
— Sobre o que mentiu para você, amigo?
— A primeira é uma mentira por omissão. Este seu irmão, James,
foi uma surpresa completa para mim hoje. Ela não tinha me falado sobre
ele. Na minha opinião, ela sabia que eu não gostaria de ter um menino
daquela idade conosco, sendo recém-casado.
— Você os mandaria de volta por isso?
— Eu apenas os ameacei, mas acho que não posso suportar a
solidão mais um ano enquanto tento encontrar outra esposa. Perdão,
padre, talvez eu não deva lhe contar isso, mas já tenho vinte e cinco
anos; Estou sozinho há dois anos, desde que deixei a Suécia; Estou
ansioso para começar uma família. Há momentos, especialmente no
inverno, em que fico cercado de neve por dias sem companhia e... — Karl
segurava o cachimbo na mão enorme, acariciando a madeira brilhante
com o polegar e observando a voluta de fumaça subindo. Lembrou-se
amargamente do vazio daquelas noites de inverno. Quando olhou para
cima, encontrou o amigo olhando para ele e sorrindo timidamente; Karl
apoiou o cotovelo em um joelho e segurou o queixo com a mão.
— Sabe, padre, às vezes eu deixo a cabra entrar em casa para que
não congele na nevasca e assim tenho alguém com quem conversar. Mas,
pobre Nanna, acho que se cansa de ouvir o tolo de seu amo penando por
companhia humana.
— Entendo, Karl. Você não precisa se desculpar por suas
necessidades. Não é uma desonra querer uma esposa por longas noites
de inverno e começar uma família. Também não é uma desonra querer
começar a vida de casado com tempo para se conhecerem na intimidade.
— No entanto, me sinto mal por rejeitar o garoto.
— Quem não?
— Você, não, padre, se você estivesse no meu lugar? — Karl não
podia admitir que um padre tivesse tais falhas humanas.
— Talvez. Por outro lado, eu colocaria na balança ao lado da
utilidade que o garoto me prestaria aqui, nesta solidão. Poderia ser mais
do que uma ajuda. Com o tempo, poderia ser um amigo, talvez até uma
espécie de para-choque.
— O que significa "para-choques", padre?
— Olhe por este lado, Karl—, disse o padre, reclinando-se com ar
filosófico—. Você acha que se se casar com Anna, todos os seus males
desaparecerão magicamente e ela será todas essas coisas que você
imaginou? Não acredito. Penso que, sendo estranhos, discutirão muitas
vezes antes de se conhecerem e se aceitarem como são. É aí que é
necessária a presença de um terceiro que atua como mediador ou
conciliador ou como um simples amigo.
— Isso não havia me ocorrido, mas vejo que você está certo. Parece
que esteve escutando Anna e eu hoje com um humor totalmente
alterado.
— Se disseram muitas coisas?
— Sim. Mas o garoto estava lá, então dissemos menos coisas do que
pensávamos.
— Deixando de lado que o garoto veio sem ser convidado, o que
você acha dele?
— Ele parece ansioso para aprender e prometeu trabalhar duro.
— Não poderia ter sido melhor do que ter você como professor,
Karl. Sob sua tutela, acho que o jovem James aprenderá rapidamente.
Você não achou que se sentiria satisfeito se o ensinasse?
Os dois fumaram seus cachimbos em um silêncio amigável. Karl
pensou no que o padre lhe disse sobre o menino. A ideia de ter que
ensiná-lo, alimentá-lo, era um desafio. Karl pensou na casa de madeira e
no que seria necessário para construí-la; ele imaginou trabalhar ao lado
do garoto, com o torso nu ao sol; Ele imaginou a primeira, a segunda e a
terceira fila de toras, ficando mais altas, e os dois brincando e
trabalhando juntos. Ele podia ensinar muito ao garoto sobre as florestas,
assim como seu pai havia ensinado.
— Karl?
Uma voluta preguiçosa de fumaça flutuou com a palavra.
— Hum...? — Karl disse distraidamente, totalmente perdido em
seus pensamentos.
— Há algo que eu devo saber, mas peço que você pense
realisticamente sobre tudo isso.
— Sim, bem, pergunte.
— Você pensou em enviar a garota de volta porque algo o
decepcionou quando a viu? Esse aspecto é tão importante quanto os
outros, falando em casamento. Você a trouxe aqui sem conhecê-la, com
grandes esperanças. Se você a achar desagradável, isso traria muitas
dificuldades ao seu casamento. Você deveria ver isso considerando que
você é um ser humano, Karl; Como tal, você tem o direito a dúvida e ao
ceticismo, goste ou não. Eu também acredito que você é um homem que
faz prevalecer os princípios sobre os gostos, e a manteria ao seu lado por
causa do dever, se você pensa que está obrigado a fazê-lo.
Karl descobriu naquele momento a faceta humana do padre
Pierrot, de que ele tanto precisava.
— Oh não, padre. Eu a acho muito atraente, só um pouco magra.
Mas o rosto dela... ela... eu...
Era difícil expressar a esse padre os sentimentos que o haviam
abalado quando a viu pela primeira vez, quando ele pegou a mão dela
para ajudá-la a sair da carroça, quando sentiu os quadris finos e a
cintura estreita quando pulou. Era difícil para ele afastar esses
sentimentos da ideia do carnal, e ele não queria ficar imaturo diante do
amigo, o padre.
— Gostei do que vi, padre, mas tentei usar minha razão. Eu não
deveria me importar com sua aparência, eu deveria...
— Claro que importa! — Interrompeu o padre, incorporando-se—.
Karl, não me faça de bobo, seria a primeira vez desde que te conheci.
Você vai olhar para essa mulher muitas vezes, se casar com ela. Que tolo
não gostaria de ficar satisfeito com o que vê?
Karl riu.
— Estou surpreso, padre. Eu nunca teria imaginado, desde que o
conheço, que estava tão compreensivo com os assuntos do coração.
O sacerdote também riu.
— Eu era homem primeiro; depois padre.
Karl agora o olhava direto nos olhos, sem rir.
— Então devo admitir que gosto da aparência dela. Talvez demais.
Talvez não use tanto a razão ao julgar suas outras mentiras.
— Diga-me—, o sacerdote disse simplesmente, e inclinou-se
novamente.
— É só uma garota. Eu esperava uma mulher de 25 anos. Mas Anna
mentiu para mim; Ela tem dezessete anos.
— Mas ela não veio aqui para se casar com você por sua própria
decisão?
— Não exatamente. Eu acho que ela e o garoto estavam
desamparados e eu era o último recurso deles. Sim, Anna veio se casar,
mas acho que ela escolheu o menor dos males.
— Ela te disse isso?
— Não com essas palavras. Ela me pediu para não enviá-los de
volta, mas, enquanto me pedia, notei como é jovem e como está
assustada. Não acho que ela perceba o que significa ser uma esposa.
— Karl, você está adicionando uma preocupação desnecessária. Por
que você não a deixa julgar se ela é madura o suficiente para se casar?
— Mas dezessete anos, padre... Admitiu que sabe muito pouco
sobre o manejo da casa e da cozinha. Eu também teria muito o que
ensinar.
— Seria um desafio, Karl, mas poderia ser divertido com uma
garota entusiasmada.
— Também pode ser um erro com uma garota entusiasmada.
— Karl, você pensou por que ela mentiu? Se ela e o garoto se
voltaram para você como sua última esperança, vejo por que ela sentiu a
necessidade de mentir para chegar aqui. Embora eu não aprove
mentiras, Karl, acho que elas podem ser perdoadas de acordo com as
circunstâncias. Acho que você deveria se perguntar se Anna não é, no
fim das contas, uma mulher honesta forçada a mentir pelas
circunstâncias. Talvez Karl, você a esteja julgando muito severamente,
pois pensa apenas em si mesmo.
— Você me faz ver que há muito a considerar, amigo—, disse Karl,
sentando-se e esticando todo o corpo—. Desde criança, eles me
ensinaram o que é certo e o que é errado e me avisaram que o caminho é
estreito. Nunca antes havia considerado as circunstâncias que poderiam
atenuar uma falha. Acho que hoje você me ajudou a ver as coisas de
outro ângulo. Vou tentar fazer isso.
Ele parou e olhou para a porta.
— Anna e o menino já devem ter se preparado para descansar. Eu
farei o mesmo e continuarei pensando.
— Durma bem, Karl—, desejou o sacerdote.
Karl limpou o cachimbo e disse, pensativo: — Sabe padre? Anna me
garantiu que não havia mais mentiras e prometeu não mentir
novamente. Essa promessa já é alguma coisa.
O padre Pierrot sorriu, apoiou a mão no ombro de Karl Lindstrom e
entendeu por que um homem de sua natureza poderia se sentir
atormentado pela incerteza em um momento como este. A maioria dos
homens, tendo vivido dois anos na fronteira, parava para pensar apenas
na própria necessidade de uma mulher, dentro ou fora da cama. Mas
Karl era um homem de qualidades raras, de rara honestidade. Anna
Reardon seria uma mulher de sorte se casasse com um homem assim.
A sala estava escura, seca e empoeirada. Karl encontrou o palete e
deitou-se de costas, com as mãos atrás da cabeça. Ele pensou em tudo o
que o padre Pierrot havia lhe dito e, pela primeira vez sem culpa, tentou
considerar Anna como uma mulher. Mas não conseguia; Ele se viu
pensando nela como uma menina. Ela era alta, mas por ser tão magra lhe
dava um ar imaturo, quase infantil. Às vezes, seu medo sincero o fazia
pensar em uma jovem inexperiente que talvez nem soubesse quais eram
os deveres da cama conjugal. Até certo ponto, isso o agradou, mas
também o assustou. Uma coisa era trazer uma mulher de 25 anos para a
cama que sabia o que esperar. Outra coisa, totalmente diferente, era ter
uma garota de dezessete anos na cama, cujos olhos escuros e brilhantes
o olhavam aterrorizados ao ouvir o que se esperava dela. Ela parecia tão
frágil, que seus ossos pequenos poderiam quebrar quando ele tentasse
abraçá-la contra seu peito. Só de pensar nisso, ele sentiu um
formigamento emocionante no cabelo do peito.
Ele passou a mão sobre a camisa, deslizando-a sobre o peito. Era
um peito largo. Ele tinha braços grossos e musculosos por ter usado o
machado a vida toda. As coxas eram longas e maciças do joelho aos
quadris. Ele tinha o corpo grande e musculoso de seu pai. Até agora, ele
sempre tinha como certo o que as mulheres pensavam dele quando
olhavam para ele.
Agora, pensando em Anna, ocorreu-lhe pela primeira vez que, para
uma garota, seu tamanho podia ser assustador. Talvez ela não tenha
gostado dele. Ele percebeu, de repente, naquela noite que havia se
interessado egoisticamente apenas com o que ele, Karl, pensava dela,
Anna. Ele não deveria ter dedicado o mesmo tempo a pensar no que ela
pensava dele? É claro que ela implorou para que ele não os devolvesse.
Seria apenas por medo? Sem dinheiro e com medo, o que mais uma
jovem poderia fazer se ameaçasse deixá-la no meio do deserto?
Voltou a pensar em sua casa de adobe, na cama que preparara para
ela com a melhor das intenções. Ele tentou imaginar o que pensaria
quando visse o monte de trevo doce. A incerteza fez seu coração bater
forte. Talvez tivesse sido estúpido preparar a cama de forma tão óbvia,
como se a única coisa em sua mente todos esses meses fosse dormir com
ela. Ela veria o colchão cheio e fofo, os travesseiros recém-feitos, o trevo
de boas-vindas e fugiria assustada como um potro tolo diante de um
coelho, sem saber que o coelho não pode e nem deseja lhe fazer mal.
"Anna, o que devo fazer com você? Como eu poderia te enviar de
volta? Como pedir para você ficar? Nesse caso, quanto caminho para
percorrer juntos, quanto aprender um com o outro!”
Ele acordou de manhã quando o sol era apenas uma promessa. Era
a hora em que o dia ainda não tinha decidido deslocar a noite. Uma luz
pálida entrou, furtivamente na sala, sem a força suficiente para dissipar
as sombras que caíam pesadamente sobre Anna enquanto ela dormia de
lado, de frente para Karl. Anna tinha um braço atrás da orelha e o queixo
pressionado contra o peito, como uma criança. A expressão em seu rosto
era tão inocente que Karl se perguntou novamente se ele estava fazendo
a coisa certa.
Mas sua mente estava clara. Ele havia pensado muito sobre os dois;
seu coração lhe dizia que juntos, Anna, seu irmão, e ele poderiam fazer
tudo funcionar. O casamento deveria fazê-los esquecer aquele começo
infeliz. Exigiria paciência da parte dele e coragem da parte dela. Se ele
estava disposto a perdoar, ela deveria agir humildemente. Cada um
deles, ele tinha certeza, teria que ter a coragem que faltava ao outro,
porque essa era a base do casamento.
Anna havia demonstrado até agora o tipo de força que muitas
mulheres não possuíam. O fato de chegar até aqui, enfrentar tudo, com o
garoto por quem ela era responsável, significava que ela tinha
determinação. Tal qualidade era incalculável naquele lugar.
Karl se incorporou sobre o palete, já vestido e ajoelhou-se ao lado
de Anna. Ele nunca havia despertado uma mulher adormecida antes,
exceto sua irmã e mãe, e se perguntou se seria um gesto muito íntimo
tocar seu braço e sacudi-la gentilmente. O braço longo e fino estava mole
sob a pele de búfalo. Ele pode distinguir algumas sardas pálidas nas
costas da mão. Apesar da luz fraca, ele notou mais sardas dançando no
nariz e nas bochechas. Ela dormia como uma criança, sem saber que ele
a estava observando, e Karl achou que isso era injusto de sua parte.
— Anna? — sussurrou e viu suas pálpebras se contorcerem como se
estivesse sonhando. — Anna?
Ela abriu os olhos. No momento em que acordou, voltou à adotar a
expressão cautelosa que já era familiar a Karl. Olhou para ele por um
momento, tentando recuperar os sentidos. Karl descobriu em sua
expressão o exato momento em que a memória veio à tona e ela
percebeu quem ela era e quem ele era.
Porque ela parecia tão jovem, tão indefesa e tão cautelosa, lhe
perguntou:
— Você sabia que tem remelas em seus olhos?
Ela continuou a olhar para ele, surpresa, sem palavras. Piscou e
sentiu as remelas coçarem as pálpebras; Ela sabia que elas estavam lá
porque estava chorando naquela noite antes de adormecer.
— Hora de levantar e lavar os olhos. Depois eu quero falar com você
— disse
Karl.
O garoto acordou ao ouvir a voz de Karl, que se levantou e disse:
— Hora de levantar, garoto. Deixe sua irmã se arrumar.
Karl saiu da sala.
—Anna? — James disse, sua voz rouca e um pouco desorientada
também.
Ela se virou para olhá-lo.
— Você parece um sapo esta manhã—, ele brincou. Porém ele não
estava sorrindo.
— Ele disse o que havia decidido?
— Não. Ele disse que quer falar comigo. Isso é tudo. Ele voltará
assim que tivermos tempo de levantar.
— Depressa, então.
Mas enquanto James saia correndo da sala, Anna permaneceu por
um momento, sem decidir deixar a proteção quente das peles de búfalo e
se perguntando o que Karl planejaria fazer com ela e James.
Ela pensou nas palavras curiosas que ele usara para acordá-la.
Eram palavras ternas, aquelas usadas com uma criança. Talvez ele fosse
um homem de boa índole, cujo temperamento havia sido testado ontem
ao ouvir as revelações que lhe haviam feito. Talvez, se tivessem a
oportunidade e o tempo, Lindstrom seria menos temperamental e
exigente; talvez ele fosse gentil novamente como tinha sido agora. Mas
quando Anna pensou em acordar na mesma cama que ele, onde notaria
mais que as remelas, começou a tremer.
Ela se levantou, tentou alisar as rugas do vestido, lavou o rosto e
prendeu os cabelos. Uma batida na porta indicou que Karl já estava de
volta; Anna se ajoelhou para arrumar as peles de búfalo.
Aparentemente, ele havia lavado o rosto e penteado os cabelos. Ele
estava usando seu gorro estranho. Ele se aproximou dela, olhando em
seus enormes olhos castanhos, que tinham essa expressão chocada toda
vez que ele estava por perto.
— Como dormiu, Anna?
— Bem... — Mas sua voz falhou, como a de James, e ela limpou a
garganta antes de tentar novamente—. Bem. — Suas mãos descansavam
nas peles como se ela tivesse esquecido o que estava fazendo.
Karl fez essa pergunta simples para fazê-la se sentir mais
confortável, mas percebeu que ela estava tensa e com medo. Quebrou
seu coração pensar que ela poderia estar assim por causa dele. Ele
apoiou um joelho nas peles que ela estava dobrando.
— Anna, eu não dormi tão bem. Passei muito tempo pensando. Você
sabe o que eu descobri enquanto pensava?
Anna balançou a cabeça, sem dizer nada.
— Descobri que só pensava em mim e no que esperava de uma
esposa. Egoisticamente, não pensei no que você esperava de mim. O
tempo todo penso no que Karl pensa de Anna; nunca o que Anna pensa
de Karl. Mas isso não está certo, Anna. Hoje deve ser uma decisão que
tomamos entre nós dois, não eu sozinho.
Ela estudou o braço dourado que sustentava o joelho, sabendo que
ele estava estudando o rosto dela enquanto falava.
— Vamos relembrar, Anna, sim? Depois de concordar em nos casar,
decidimos nos encontrar. E quando eu te conheço, tudo o que faço é ficar
bravo com você porque você mentiu para mim, independentemente da
razão pela qual mentiu. O padre Pierrot me fez ver que devo entender
sua posição e compreender que você devia sair de Boston, onde as coisas
estavam ficando muito ruins para você e o garoto.
Ele estudou as sardas nas bochechas dela e viu o leve rubor rosa
aparecer; ele sentiu o batimento de seu coração em partes inesperadas
do corpo. Ele queria que ela olhasse para cima, pois era muito difícil ler
seus sentimentos quando ela evitava olhá-lo.
O coração de Anna pulava no peito com esse inesperado gesto de
ternura e abnegação. Ela nunca havia recebido tais considerações. Ela
desejava se encontrar com a profundidade de seus olhos azuis, mas se
fizesse isso, começaria a chorar. Ela só podia olhar para aquela mão forte
e bronzeada apoiada no joelho enquanto continuava a falar.
— Anna, não é tarde demais para você voltar. Não é tarde demais
para qualquer um de nós mudar de ideia. Pensei que agora que você me
conhece, talvez... talvez você não queira se casar comigo. Sabendo como
você é jovem e como teve que pensar em alguma saída rápida para
continuar vivendo, você e o garoto, eu entendo que... talvez você pense
que cometeu um erro, agora que conhece Karl Lindstrom. Acho que devo
lhe dar duas opções, Anna. Primeiro, prometo que, se você quiser voltar,
o padre Pierrot e eu encontraremos uma maneira para que cheguem
bem a Boston. Somente se tiver certeza de que não é isso o que deseja,
devo oferecer a segunda opção: casar comigo.
Anna sentiu as lágrimas queimarem seus cílios e prestes a explodir.
— Eujá te disse... não tenho a quem recorrer; Nenhum lugar para ir.
Seguia sem olhá-lo.
— O padre e eu vamos pensar em algo, se é o que você quer. Em
algum lugar aqui em Minnesota, onde você pode viver.
— Seu lugar parece bom para mim—, ela se encorajou, um pouco
assustada.
Sim, Anna tinha medo dele; ele sabia disso pelo tremor em sua voz.
— Está segura?
Ela assentiu, olhando as peles.
— Nesse caso, uma garota tem o direito de dizer que recebeu uma
verdadeira proposta de casamento e que participou da decisão, depois de
ter conhecido o noivo e não antes.
Agora sim ela olhou para ele. Dirigiu os olhos a seu rosto, tão perto
do dela. O olhar intenso de Karl não se desviou dela; ele só estava
esperando ela olhar para ele. Aqueles olhos eram de um azul puro e
pareciam sinceros. Ela se perguntou quantas garotas teriam olhado para
ele e haviam sentido o que ela estava sentindo no momento. Ela desejou
poder traçar a curva daquelas sobrancelhas bem formadas sobre os cílios
escuros com os dedos. No entanto, reprimiu a compulsão tola de fazer
um gesto tão inesperado, prendendo parte da pele de búfalo em seu
punho.
— Onnuh... —ela começou a dizer, e durante aquela longa hesitação,
antes de continuar, Anna teria querido dizer: "Sim, sim. Eu sou Onnuh
agora, me chame novamente assim”. E como se ele estivesse ouvindo seu
pensamento, ele disse—: Onnuh, se eu não for o que você esperava, eu
entendo. Mas se você acha que poderíamos esquecer esse começo ruim,
prometo que serei bom para você, Onnuh. Eu vou ficar com você e o
garoto.
Uma mão enorme deslizou o gorro pelos cabelos loiros, em um
gesto de cortesia que a tocou nas fibras mais íntimas do coração. Ele
estendeu a outra mão e a pegou pelo cotovelo. O calor de sua pele, o
olhar de necessidade que ela leu em seus olhos, o toque suave de sua
mão, tudo isso fez Anna se sentir aturdida, tonta.
— Onnuh Reardon, quer se casar comigo?
Ela sentiu como se tivesse acordado no meio de um sonho
fantástico para encontrar esse gigante loiro e bonito ajoelhado diante
dela, acariciando seu braço com o polegar e olhando para ela com uma
intensa expressão de esperança e promessa em seu rosto bronzeado. Os
lábios de Anna se separaram e ela soltou um suspiro que revelou a
mistura de sentimentos que a invadiram: alívio, medo e também uma
nova sensação tão emocionante que lhe oprimiu o peito e umedeceu as
palmas das mãos.
— Sim—, ela finalmente disse.
Karl sorriu aliviado. Ele olhou para os cabelos de Anna e depois
quis transmitir sua confiança com uma leve pressão no cotovelo.
— Muito bem. Este será o nosso começo, então, e esqueceremos
tudo do passado. Sim?
— Sim—, ela concordou, bravamente se perguntando se poderia
confessar o resto para ele aqui e agora. No entanto, ela estava apavorada
que ele pudesse retirar sua proposta de casamento e a segurança que ela
oferecia. O olhou com um sorriso trêmulo.
— Vamos começar bem... Karl e Anna... — Ele acrescentou, com um
sorriso largo, — E James.
— Karl, Anna e James—, ela repetiu quase como se estivesse fazendo
um voto.
Karl levantou-se diante dela. Quando ela olhou para ele, ela notou
como eram os dentes dele. “Não tem nenhum defeito?”, perguntou-se.
Anna sentiu uma sensação de inferioridade em relação a Karl a invadir.
— Venha—, ele disse suavemente—. Vou ajudá-la a enrolar as peles.
Depois, contaremos ao padre Pierrot que tomamos uma decisão e que
estamos prontos.
O padre Pierrot mostrou sua alegria enquanto lhes apertava as
mãos com entusiasmo, dizendo:
— Tenho plena confiança de que formarão um casamento feliz e
duradouro.
Mas interiormente ele estava preocupado. Embora ele tivesse dito
a Karl que havia obtido uma dispensa especial da diocese para
testemunhar o casamento, isso não era inteiramente verdade. O bispo
Cretin havia entendido a situação do casal, mas fora inflexível em sua
decisão e argumentara que tal dispensação deveria vir do Santo Padre,
em Roma, e que levaria um ou dois anos. O padre Pierrot considerou
uma atitude muito rígida. Afinal, ele não podia conceder o sacramento;
sabia que isso era impossível.
Foi assim que o padre Pierrot se viu diante de um dilema. Ele
deveria seguir os ditames da Santa Igreja Católica ou os de seu próprio
coração? Certamente, era um ato muito mais cristão abençoar essa união
entre duas almas tão bem-intencionadas do que deixá-las viver em
pecado. "Esta é a fronteira", argumentou o padre Pierrot, o homem
dentro do padre. "Esta é a única igreja em mais de cem quilômetros, e
essas pessoas vieram até mim com as melhores intenções".
O fato de Karl ser seu amigo influenciou sua decisão. O vínculo que
os unia ultrapassava qualquer crença religiosa. Ao conduzi-los à humilde
sacristia, o padre pensou na exatidão de sua decisão. Talvez esse fosse o
melhor casamento que ele já havia celebrado.
— Venha, Anna—, disse o padre ao entrar na sacristia perfumada
pelo incenso.
As pernas de Anna pareciam ter-se convertido em lama. James, de
acordo com suas instruções, havia escrito a Karl que ela era uma católica
devota, pois ambos sabiam que o sueco queria uma mulher de origem
cristã. Karl nunca disse a ela que essa missão era católica. Nesse caso,
Anna teria dito a ele que ela era de qualquer outra religião para não
provar que era católica. Do jeito que as coisas estavam, ela estava
envolvida em outra mentira agora.
— Mas não posso... quero dizer... bem, não quero confessar.
Anna—, o padre a repreendeu—, me perdoe por ser franco, mas

ontem à noite eu e Karl conversamos. Ele me disse que você admitiu ter
mentido. Esses são pecados, filha. Você deve confessá-los se quiser estar
em um estado de graça antes do casamento. Você com certeza sabe
disso.
Obviamente ela não sabia. Tudo o que ela sabia sobre a Igreja
Católica era que dentro de St. Mark ela se sentia quente e ninguém lhe
havia impedido de entrar.
— Mas...
eu disse a Karl que sentia muito e que não mentiria mais,
não é o suficiente?
— Não é suficiente para um católico. Você sabe que a confissão é
necessária, Anna, para purificar a alma. — O padre não conseguia
entender essa rejeição.
Anna brincava com as mãos e se movia de um lado para o outro
para não olhar para ele, enquanto Karl também se perguntava por que
tanta hesitação. Com crescente preocupação, Anna percebeu que a única
confissão que ela tinha que fazer no momento era a verdade. Ela mordeu
o lábio, cruzou as mãos atrás das costas e então, corajosamente, admitiu:
— Eu não sou católica.
Karl não podia acreditar no que estava ouvindo. Ele a pegou pelo
cotovelo (Anna pensou que ele estava abusando de seu cotovelo
ultimamente) e a forçou a olhá-lo no rosto.
— Mas Anna, você me disse que era católica. Por quê?
— Porque você dizia no anúncio que queria uma esposa temente a
Deus.
—Outra mentira, Anna? — Karl perguntou, novamente
desapontado.
— Não é mentira, é a verdade. Disse que queria a verdade e desta
vez eu lhe disse. Mas qual é a importância de fazermos os votos nós
mesmos?
Preso agora pela meia-verdade que Karl lhe havia feito acreditar, o
padre Pierrot começou a sentir remorso. O que devia fazer? Se ele
testemunhasse a união, poderia ser excomungado quando o bispo
descobrisse. Nesse momento, o sacerdote desejava que Long Prairie
tivesse um juiz de paz que pudesse casá-los, pois estaria livre de toda
essa confusão.
Mas a perseverante irlandesa olhou o noivo nos olhos e disse:
— Bem, se está tudo bem para você, para mim também.
Isso era demais para Karl. Ele havia passado a noite inteira
refletindo sobre a situação para concluir que casar com Anna era a coisa
certa a fazer. Agora, outra ilusão destruída. Incomodou-o muito o fato de
outra nova mentira surgir na frente do padre Pierrot. Sentiu que não
podia se rebaixar ainda mais e começar a discutir. E o dia avançava. Ele
havia perdido tanto tempo com essa viagem, era uma loucura perder
mais e não havia nenhuma outra igreja por perto. Mas uma mulher
ateísta... pensou o irritado Karl. "No que eu me meti?"
— Não importa—, disse Karl secamente, e todos perceberam que isso
importava. — Vamos nos casar como planejado.
Ele se virou para o amigo.
O padre Pierrot não teve coragem para dizer: “Não, Karl, não posso
testemunhar esse ato, nem posso registrá-lo nos livros. O valor do voto
reside no coração, não nas testemunhas ou nas palavras escritas”. Se
eles estavam dispostos a se aceitar, ele não atrapalharia.
Anna sentiu um grande alívio quando se aceitou realizar a
cerimônia. Tinha os joelhos fracos e a língua colada ao céu da boca.
Apertou os olhos e prometeu, em silêncio, que faria o impossível para
compensar Karl.
Mas Karl sentia um peso no coração quando se aproximou do altar.
Essa manhã havia chegado a um entendimento com ela, a seu modo. A
paz devia reinar em seu coração quando fizesse os votos, e não este
ressentimento que estava sentindo. “Já é difícil prometer amor a alguém
a quem não se conhece, imagina quando se tem maus pressentimentos.”
O sacerdote havia posto a bata, e a estola, e tudo estava pronto.
— James será nossa testemunha — disse Anna.
Queria compensar Karl de alguma maneira. Era evidente que Karl
estava descontente com ela. Evitava seus olhos e mantinha distância,
como se estivesse perdido em pensamentos profundos. Sua voz havia
perdido a musicalidade habitual; tudo revelava claramente que estava
descontente.
A situação estava tão tensa, que o padre Pierrot sentiu que havia
certas coisas que devia dizer. Pode perceber a hostilidade que havia
surgido. Karl tinha os lábios franzidos, e Anna olhava fixo o ramo de
lírios e rosas silvestres aos pés de São Francisco de Assis.
— Anna — começou—, falo para ti primeiro, com a esperança de
que tomes a sério tudo o que digo. É jovem, Anna. Assumes uma grande
responsabilidade ao casar-te com Karl. Os dois tem uma longa vida pela
frente e pode ser uma vida feliz, se te propões. Mas a felicidade deve
basear-se no respeito mútuo, e este respeito nasce da confiança. A
confiança, por sua vez, surge da verdade. Creio que fez o necessário para
estar aqui com Karl. Mas de agora em diante, te aconselho ser leal com
ele em todos os sentidos. Vai encontrar-te com um ser bom,
compreensivo e paciente, te garanto. Mas também te encontrarás com
alguém que é estritamente honrado. Te aconselho mais uma vez dizer
toda a verdade; quando estiver fazendo o voto de amor, honra, e
obediência, te peço que agregues, desde o fundo de teu coração, Anna, o
da verdade.
Levantou para ele o seu rosto de menina e disse, sem malícia—:
Sim, padre.
O sacerdote não pode evitar esboçar um sorriso. Viu que Karl
também a olhava de soslaio.
— Bom, Sr. Karl, quero adverti-te acerca de algumas coisas que não
se expressam nos votos. Recai sobre teus ombros proteger e alimentar
Anna. Em teu caso, aqui nesta solidão, e com a responsabilidade extra de
velar por James, esta tarefa é mais do que se espera de outros homens.
Karl olhou o garoto, e o sacerdote notou que a expressão no rosto
do sueco se suavizava.
— Este lugar é algo novo para eles e haverá muito o que aprender.
Se requererá paciência, mas tens o dom do conhecimento para brindar-
lhes; será mestre e protetor, pai e esposo quase desde o começo. Se esta
carga te resultar pesada, te recordo que na cerimônia de tuas bodas
agregou em silêncio o voto da paciência.
— Sim, padre.
— E enquanto tampouco está escrito nos votos, há um velho
provérbio em que creio cegamente; o repetirei agora e lhes pedirei que o
recordem nos momentos difíceis: “Nunca deixes que a noite te
surpreenda com a ira”. Haverá desacordos entre vocês, que não poderão
evitar-se, pois são seres humanos com muito que aprender um do outro.
Mas as diferenças que houve entre vocês durante o dia se agravarão se
se mantém durante a noite. Ao ter isto em conta, quiçá não se agarrem
tanto a suas convenções e compreendam que já é hora de ceder um
pouco e chegar a um entendimento. O recordarão?
— Sim, padre — disseram ao mesmo tempo.
— Assim seja, comecemos.
O padre Pierrot começou seu sermão.
As suaves inflexões do latim recordaram a Anna às noites em que
ela e James haviam buscado refúgio em St. Mark. Noites em que todos os
quartos sobre a taberna estavam ocupados e os faziam sair, proibindo-os
que aparecessem antes que o último cliente houvesse partido,
cambaleante, a sua casa. Anna tratou de afastar as tristes recordações,
mas a cadência da reza em latim a transportava a angústia do passado.
Essa angústia que a invadia quando se encolhia na penumbra da igreja
perfumada pela cera, incenso e as velas; quando rogava encontrar uma
saída a essa vida, pois, desde a morte de sua mãe, ninguém se importava
se os filhos de Barbara estavam vivos ou mortos.
A duras penas, ela e James haviam sobrevivido, mas Anna havia
jurado escapar dessa situação desesperada, seja como fosse. O estava
conseguindo agora. Ela e James voltariam a ter um lar. As “damas” e
seus clientes, os “cavalheiros”, já não voltariam a jogá-los na rua. Mas
sabendo o que havia feito para chegar aqui, sabendo que estava
enganando um homem que não merecia, sentiu que a culpa a invadia.
Sentiu a enorme mão de Lindstrom tomar a sua; sentiu a aspereza,
resultado do trabalho; sentiu o firme aperto que revelava sua força, e
supôs que este homem honrado nunca entenderia o que ela havia feito.
Tinha a palma fria e seca, e tão sólida como uma rocha. Pela forma como
pressionava seus dedos, pensou que lhe quebrariam; mas esse apertão
significava que cumpriria com o prometido esse dia. Se pôs a olhar esses
olhos azuis, a contemplar esses lábios sensíveis que recitavam as
palavras do livro que o padre Pierrot segurava sobre as palmas. A voz de
Karl recitava, e Anna observou sua boca, tentando memorizar as
palavras tudo o que podia.
E os longos meses de espera, de sonhos e de planos para este dia
formariam parte da trama que agora os unia através das palavras que ele
pronunciava em voz alta. Tampouco os pensamentos que haviam vivido
todo esse tempo na mente de Karl poderiam permanecer distantes ao
que estava prometendo.
— Eu, Karl, te tomo, Anna...
Minha pequena Anna, loira como o uísque...
“como minha legítima esposa...”
Como esperei este momento!
“para amar-te e proteger-te...”
Todavia não te tive em meus braços.
“desde este dia em diante...”
Esta noite, e amanhã e amanhã...
“nos bons e nos maus...”
Apesar de tudo, sei que poderia ser pior...
“na riqueza e na pobreza...”
Ah, que ricos podemos ser, Anna, ricos de vida...
“na saúde e na doença...”
Eu farei que esta mão magra seja forte...
“Até que a morte nos separe.”
Tudo isso te prometo com minha vida, todo este voto de paciência,
como o sacerdote, meu amigo, me pediu.
Enquanto os olhos de Anna contemplavam o rosto de Karl, um raio
de luz entrou pela porta entreaberta, e iluminou seus traços como se a
própria natureza estivesse dando a bênção que o sacerdote não podia
dar. Nessa pequena missão de fronteira de Long Praire, nada mais que
flores silvestres adornavam o altar. Só o arrulho das pombas prestava
seu canto. Mas para os olhos e ouvidos de Anna, esse lugar era tão bonito
como uma catedral que albergava um coro de cem vozes. Podia sentir
como o bater de seus corações se unia ali onde sua mão pálida e magra
descansava na dele, grande e bronzeada. Quando coube a ela fazer os
votos, Anna experimentou um entusiasmo que jamais haveria imaginado
naqueles tristes dias de inverno, quando planejava o encontro com esse
esposo desconhecido.
— Eu, Anna, te tomo, Karl...
Perdoe-me, Karl, por enganar-te...
“como meu legítimo esposo...”
Mas James e eu não sabíamos que outra coisa fazer...
“desde este dia em diante...”
Nunca mais ficaremos sem um lar...
“nos bons e nos maus...”
Prometo que nunca, nunca direi outra mentira...
“na riqueza e na pobreza...”
Não precisamos de riquezas. Um lar será suficiente...
“na saúde e na doença...”
Aprenderei tudo o que eu disse que sabia fazer...
“até que a morte nos separe.”
Te compensarei por tudo, Karl, te compensarei por tudo, seja como
for.
Ela viu que Karl engolia em seco e percebeu um tremor em seus
lábios.
Logo, todavia apertando sua mão, ele olhou para o padre Pierrot.
— Não há anel, padre. O ouro é muito caro e não havia outra coisa
no armazém de Morisette. Mas tenho um anel simples porque não me
perecia bem que não houvesse um anel.
— Um simples anel está ótimo, Karl.
Karl tirou de seu bolso um cravo de ferradura arqueado em forma
de círculo. Estava a ponto de dizer: “Sinto muito, Anna”, mas ela sorria,
olhando o anel como se fosse de ouro puro.
Anna notou que as mãos de Karl tremiam; as dela também,
enquanto estendia a mão e ele deslizava o pesado círculo de fero por seu
dedo. Não havia calculado bem a medida e ela se apressou a apertar os
dedos para não perdê-lo. Então Karl lhe tomou a mão outra vez. Com
ternura, lhe fez estender os dedos e apoiar a mão sobre sua palma
aberta, enquanto que com os dedos da outra mão tocava suavemente o
anel como para selá-lo em sua carne para sempre.
— Anna Reardon, com este anel te faço minha esposa para sempre.
A voz falhou sobre a última palavra, e ela voltou a encontrar seus
olhos.
Logo, Anna pousou sua mão livre sobre a de Karl e o anel, e disse
olhando-o nos olhos:
— Karl, com este anel te aceito como meu marido... para sempre.
Karl baixou o olhar até seu nariz, pequeno e com sardas; em
seguida, até os belos lábios expectantes. O coração batia forte dentro do
peito. “Agora é minha de verdade Anna”, pensou, de repente tímido e
ansioso.
Os lábios de Anna tremeram ligeiramente. Sentiu a pressão em sua
mão intensificar-se por uma fração de segundos antes que ele se
inclinasse para beijá-la levemente. Esquecendo fechar os olhos, Karl
roçou seus lábios, vacilante, e em seguida voltou a se endireitar.
— Que assim, seja — disse o padre Pierrot em um tom calmo,
enquanto o noivo e a noiva buscavam nervosamente, algo onde pousar o
olhar. Anna se voltou para seu irmão e os dois se deram um rápido
abraço.
— Oh, Anna, Anna... — disse James.
Ela murmurou em seu ouvido:
— Agora estamos a salvo, James.
O garoto a apertou mais forte.
—Cumprirei com minha parte. —Mas olhou para Karl quando o
disse, enquanto seguia sustentando a mão de Anna.
— Eu sei — disse Anna, olhando para Karl agora.
O padre Pierrot a surpreendeu ao felicitá-la com um cálido abraço
e um beijo na bochecha.
— Te desejo saúde, felicidade e a benção de muitos filhos. —Logo,
voltando-se para Karl e agarrando-lhe ambas as mãos, o sacerdote disse,
emocionado—: O mesmo para ti, amigo.
— Obrigado, padre. Parece que já tenho uma dessas duas coisas. —
Karl olhou significativamente para James, quem lhe devolveu um amplo
sorriso.
—Sim — disse o padre Pierrot, estreitando a mão de James em um
gesto viril—. Agora é assunto teu ver que estes dois cumpram com o que
lhes pedi. Haverá momentos em que esta tarefa será a mais difícil.
—Sim, senhor —replicou James, e todo mundo riu.
— Assim seja, e já és um feito. Agora falta que você dois assinem o
documento. Tem James e eu como testemunha. Logo podem partir, pois
os esperam um longo caminho.
Karl se voltou, fez que Anna lhe segurasse o braço e tomou o
ombro de James, que estava indeciso.
— Temos um longo caminho pela frente, não James?
— Sim, senhor! — disse o rapaz com veemência.
— Mas iremos juntos, tu, Anna e eu.
Enquanto o padre os conduzia outra vez a seu pequeno escritório
atrás da escola, Anna caminhava ao lado de Karl com a mão apoiada em
seu sólido braço, doente de preocupação outra vez. O padre trouxe tinta
e pluma, molhou a ponta e a passou a Anna, indicando-lhe o pergaminho
sobre a mesa do escritório.
—Podes assinar primeiro, Anna.
Karl estava li, com um amplo sorriso, observando-a. Mas ela não
sabia escrever seu nome!
—Que Karl assine primeiro —lhe ocorreu dizer.
—Muito bem.
Condescendente, Karl escreveu seu nome no papel com muito
cuidado.
Anna permaneceu atrás dele, olhando a nuca de Karl, enquanto ele
formava as letras. Observou James, que deu de ombros desanimado.
Anna tomou o lugar de Karl e escreveu um X grande no papel, enquanto
ele a olhava por cima do seu ombro.
E assim foi descoberta outra de suas mentiras.
Karl viu como Anna fazia o X, e se surpreendeu, pois havia
acreditado que era uma mulher instruída. Mas ela o olhou com um
sorriso cheio de vida, tentando apaziguá-lo.
Mas Karl não se apaziguou. “E agora descubro outra verdade
acerca de Anna”, pensou. Mas não deixou que o padre Pierrot soubesse
do drama que estava ocorrendo. Em troca, tomou com firmeza o braço
de Anna, a levou até a porta e a conduziu para fora.
— Espera aqui, vou trazer a carroça —foi tudo o que disse.
Saiu em seguida, precipitadamente, deixando-a só com James.
— Anna, não sabia o que fazer —lhe disse seu irmão com amargura
—. Não podia assinar por você. Eu disse que você deveria ter contado a
ele.
— Está bem. Pelo menos agora já sabe.
— Mas por que não disse nada? Talvez não se incomodou tanto.
— Eu acho que se incomodou. Quase me arranca o cotovelo quando
me levou para fora, mas prometi que não voltaria a mentir e não vou
voltar a fazer. Mas não prometi contar-lhe toda verdade de uma vez.
Não estou segura de que possa aceitar de uma só vez.
— Descansarei tranquilo quando ele souber tudo — disse James.
Anna se voltou para ele, perguntando-se outra vez se suspeitaria
algo acerca de como havia conseguido o dinheiro para sua passagem e
sua roupa. Mas justo neste momento o padre Pierrot saiu com um pacote
de comida para a viagem, e Karl apareceu com a carroça. Havia chegado
o momento da despedida, dos apertos de mãos e da viagem para o
incerto futuro de casados.
CAPÍTULO 4
Não haviam percorrido nem um quilômetro e meio quando Karl,
inevitavelmente, retomou o tema. Quando conduzia seus cavalos, jamais
levantava a voz, de modo que agora falou com estudada paciência,
olhando, carrancudo, as rédeas que tinha diante dele.
— Acho que você tem mais uma coisa para me dizer, Anna. Você
quer me contar agora?
Ela olhou de soslaio para aquela mandíbula saliente e sólida.
— Você já sabe, então por que quer que eu te diga? — Ela
perguntou, sem levantar a cabeça.
— É verdade então? Você não escreveu as cartas?
Anna balançou a cabeça.
— E você não sabe ler nem escrever?
Ela voltou a balançar a cabeça.
— Quem escreveu as cartas? — Ele perguntou, lembrando-se de
todas as vezes que as havia tocado, que havia meditado sobre elas,
sabendo que já haviam passado pelas mãos de Anna antes.
— James.
— James? — Karl olhou para Anna e depois para o menino, que o
encarava. — Você deliberadamente fez o menino escrever mentiras
porque você não poderia fazer isso sozinha?
— Eu não o fiz escrevê-las.
— Bem, como você chamaria isso de ensinar tais lições a um
menino como ele?
— Nós concordamos, isso é tudo. Precisávamos sair de Boston e
encontrar um modo de vida. James viu seu anúncio no jornal e leu para
mim. Decidimos juntos tentar fazer você se casar comigo.
— Decidiram juntos fazer com que Karl Lindstrom se casasse com
uma mulher de 25 anos, uma boa jovem católica que sabia ler e escrever
e que ensinaria nossos filhos a ler e escrever; que sabia cozinhar e fazer
sabão e jardinagem.
Os dois culpados ficaram em silêncio.
— E quem vai fazer isso, Anna? Quem vai ensinar nossos filhos a ler
e escrever? Devo expressamente voltar do campo e ensiná-los?
Essa menção, como se inadvertidamente, de nossos filhos a fez
corar; no entanto, ela respondeu esperançosa:
— James poderia fazer isso.
— Como você mesma disse, James ia ser meu assistente na floresta
e nas terras. Como James pode estar em dois lugares ao mesmo tempo?
Anna não tinha resposta.
— Como é que James aprendeu a ler e a escrever e você não? —
perguntou.
— Às vezes, quando nossa mãe tinha um momento de lucidez, ela o
fazia ir para a escola, mas ela não via para que uma menina precisava
saber as letras; então, me deixava sozinha.
— Que tipo de mãe mandava um menino para a escola de vez em
quando, quando ela tinha um momento de lucidez? Lucidez para quê?
Desta vez, James evitou que Anna mentisse ou revelasse toda a
verdade. Ele disse bruscamente:
—Não tínhamos muito, nem antes de Barbara adoecer e morrer.
Morávamos com... seus amigos na maior parte do tempo, e eu tinha que
sair e encontrar um emprego em que pudesse ajudar. Ela achava que eu
era muito jovem para trabalhar e talvez ela tivesse... bem, pena. Foi
quando eu tive que ir para a escola. Tive tempo para aprender a ler e
escrever um pouco.
Espantado, Karl perguntou:
— Barbara? Quem é Barbara?
— Esse era o nome de nossa mãe.
— Chamavam sua mãe de Bárbara? — Karl não conseguia conceber
uma criança chamando sua mãe pelo nome. Que tipo de mãe permitiria
tal coisa? Mas como nenhum deles respondeu, Karl os pressionou: —
Você me disse que não havia trabalho para você em Boston e é por isso
que precisavam sair de lá.
— Bem, havia... quero dizer... bem...
— Bem o quê, garoto? — Perguntou Karl—. Qual é a verdade? Você
trabalhava ou não?
James respirou fundo e se atreveu a dizer com voz de falsete, — Era
um ladrão.
Karl ficou pasmo. Ele olhou para o perfil do menino, tentando
imaginá-lo fazendo algo tão desonesto. Então ele olhou para Anna,
sentada, seu olhar escuro fixo no caminho estreito à frente.
— Sua mãe sabia disso? — Ele perguntou, observando o rosto de
Anna com cuidado, caso ela mentisse para ele novamente; apenas
percebeu um gesto de triste resignação que a fez parecer mais velha do
que realmente era.
— Ela sabia—, disse Anna. — Ela não era realmente uma mãe.
Algo no tom de sua voz desarmou Karl. O tom resignado com que
falava o fez de repente sentir pena dos dois, por terem uma mãe assim.
Karl pensou em sua própria mãe, na bela e calorosa família que ela
construiu, ensinando-lhes o valor da honestidade e todas as outras
virtudes. O padre Pierrot estava certo quando o advertiu de que deveria
estar preparado para ser seu professor. Ele teria que compensar os dois
por todos os ensinamentos que a mãe negligente não se preocupou em
incutir neles. Naquele momento, mais do que nunca, Anna parecia
apenas uma criança rebelde para ele, assim como seu irmão.
— Aqui nesta solidão, você não encontrará muito para roubar—,
disse Karl—. Em vez disso, há muito trabalho honesto para manter as
mãos de um menino ocupadas do nascer ao pôr do sol. É um bom lugar
para esquecer que você aprendeu a roubar.
Os dois irmãos se viraram e olharam para Karl ao mesmo tempo;
então eles se entreolharam, sorrindo, percebendo que haviam sido
perdoados novamente. Anna se atreveu a estudar o perfil de Karl, o nariz
reto e nórdico, a bochecha bronzeada, os cabelos loiros ondulados como
uma onda beijada pelo sol sobre sua orelha em forma de caracol, aqueles
lábios que acabavam de roçar os seus. Oh, era magnífico em todos os
sentidos. E se perguntou como uma pessoa podia ser tão boa. Que tipo de
homem é esse, ela se perguntou, que enfrenta cada novo obstáculo e o
supera com tanta paciência?
Ele olhou para ela brevemente. Naquele momento, Anna poderia
jurar que viu um sorriso brincar em seus lábios. Então se pôs a
contemplar a floresta.
Anna sentiu o peso em seus ombros ficar mais leve, como uma
semente de dente-de-leão levada pela brisa quente e perfumada de
verão. Passou os braços em volta dos joelhos e sorriu, olhando para a
trilha coberta de pegadas. Pela primeira vez, seu olhar percorreu as
belezas ao seu redor.
Eles estavam passando por um lugar de verde magnificência. A
selva era forrada de paredes verdes, interrompida de vez em quando por
um espaço silencioso onde a grama da pradaria lutava para prevalecer.
Árvores de proporções gigantescas formavam uma abóbada acima
das mais jovens, buscando alcançar o céu. O céu estava adornado com
um grande desenho de folhas. Anna inclinou a cabeça para trás para que
pudesse olhar para a cúpula sombreada verde esmeralda.
Karl olhou para a garganta arqueada dela e sorriu com aquela pose
infantil e encantadora.
— O que você acha da minha Minnesota agora?
— Eu acho que você estava certo. É muito melhor do que o prado.
— Muito melhor—, repetiu Karl, satisfeito com a resposta dela. De
repente, ele se sentiu expansivo e falante—. Aqui há madeira para tudo o
que você puder nomear. Bordos! Os Bordos são abundantes e cheios de
néctar. Você não encontrará outros como esses em nenhum lugar. — Ele
apontou para eles, esticando o braço na frente do nariz de Anna. — Veja,
esse é o bordo branco... trinta metros de madeira e mais de cinquenta
litros de seiva todos os anos. E o que você pode conseguir: violinos,
madeira com grãos, flores, folhas. — Ele deu uma risadinha. — Quando
você corta um bordo, está cheio de surpresas. É duro... e pode ser polido
até brilhar como água parada.
Anna nunca tinha pensado em árvores mais do que como árvores
antes. A divertia o vínculo que Karl tinha com elas. Eles continuaram um
pouco mais antes de Karl apontar a paisagem novamente.
— Vê aquela? Acácia amarela. Se parte tão facilmente quanto uma
maçã caindo de uma árvore. E aquele castanheiro? Também é fácil de
cortar. Você pode obter tábuas tão lisas quanto a pele de um bebê.
Naquele momento, a luz do sol os atingiu totalmente. Anna
protegeu os olhos e olhou para Karl. Ele observava a cabeça erguida, os
olhos estreitos, o nariz enrugado, o sorriso atraente. Tudo nela era
encantador, e ele estava satisfeito por Anna não achar o assunto muito
profundo ou chato.
Anna procurou ao redor, com uma súbita intuição de como agradá-
lo. Descobriu uma nova variedade, apontou para ela e perguntou:
— O que é isso?
Karl acompanhou o dedo dela com o olhar.
— Isso é uma faia.
— E para que serve? — Ela perguntou, seguindo-o com os olhos até
ficar de frente para ele.
— A faia? Esta árvore pode ser esculpida. Cabe na faca de trinchar
como nenhuma outra madeira que conheço. E quando polida, sua
madeira fica melhor do que qualquer outra.
— Isso significa que você não pode esculpir qualquer madeira
velha? — Perguntou James.
— Pode ser tentado, mas algumas o decepcionarão. Você sabe,
algumas pessoas não entendem de árvores. Eles pensam que madeira é
madeira e pedem às árvores coisas que elas não podem dar. Você deve
pedir a uma árvore para fazer o que faz de melhor, e ela nunca o
desapontará. Por isso corto a acácia, esculpo a faia e faço tábuas com o
pinheiro e o castanheiro. O mesmo vale para as pessoas. Não pediria ao
ferreiro para fazer um bolo para mim, não é certo? Ou um confeiteiro
para colocar uma ferradura no meu cavalo. — Karl fez uma leve careta—.
Se o fizesse, teria que comer a ferradura e colocar o bolo na perna do
meu cavalo.
James e Anna riram alegremente, o que fez Karl se sentir
realmente inteligente e mais otimista do que nunca em relação a sua
nova família.
— Conte-nos mais, — disse James—. Gosto de ouvir sobre árvores.
Anna olhou para cima e estudou a mandíbula de Karl enquanto ele
olhava para frente e para trás enquanto eles desciam o caminho. Anna
achava que nunca havia conhecido ninguém que fosse tão atencioso com
tudo, parecendo não estar.
— Logo chegaremos aos carvalhos—, continuou Karl—. Os
carvalhos gostam de crescer em bosques. O carvalho branco é usado
para fazer telhas que podem manter um telhado firme por cinquenta
anos. Pense nisso, cinquenta anos! É muito tempo, cinquenta anos. Uma
vida mais longa que a de meu morfar, que...
— Seu o que? — Anna interrompeu, franzindo a testa.
— Meu morfar, o pai de minha mãe. Ele me ensinou muito sobre
árvores, meu pai também. Meu morfar me deu as primeiras aulas.
Anna meditou sobre isto de aprender de um avô a amar a terra e
seus frutos.
— Mas teu... teu morfar...? — Sua pronúncia soou ridícula para
Anna, mas Karl recebeu sua tentativa com aprovação: — Ele está morto
agora?
— Sim, ele morreu há vários anos, mas não antes de me ensinar
muito o que sabia sobre florestas. Minha mormor, todavia vive, ela está
na Suécia.
Uma nota de tristeza apareceu na voz de Karl. Anna gostaria de
confortá-lo colocando a mão em seu braço. Ele parecia perdido em
pensamentos; então ele olhou por cima do ombro por um segundo, como
se lamentando tê-los sobrecarregado com suas memórias ou sua solidão.
— Tudo bem—, Anna sorriu ao enviar esta mensagem silenciosa e,
em seguida, pediu-lhe para continuar:
— Vá em frente... eu interrompi você. Você estava falando sobre os
carvalhos.
— Sim, os carvalhos... — De novo ele ficou feliz, e Anna preferiu
assim. — Você sabe que quando o carvalho é cortado, são liberadas
partículas bonitas e naturais que se misturam com a chuva e a fazem
correr por canais como se fosse o leito de um rio caindo sobre uma
cachoeira? É verdade. Mas quando preciso de postes para a cerca, uso
carvalho vermelho. Uma vez usei carvalho branco como cabo de
machado e não funcionou. Demasiado difícil. Nogueira é melhor para
cabos de machado, mas não há nenhum aqui. Ash é quase tão bom para
isso. É leve, resistente e flexível.
— Flexível? — James perguntou, intrigado com a ideia de que a
madeira pudesse ser elástica.
— É assim que deve ser, para poder suportar o impacto das mãos
ao baterem no tronco.
— Que outros tipos de árvores têm?
— Cerejeiras silvestres, mas não muitas, apenas uma ou outra. Com
a cereja silvestre faço marretas. Dos salgueiros, obtenho vime. O
sabugueiro nos dá sua sombra e sua beleza—, disse Karl com um sorriso
—. Não devemos esquecer que certas árvores só nos dão sombra e beleza,
e ficam felizes se não pedirmos mais do que isso.
James sorriu.
— Vamos, Karl, as árvores não podem ser felizes. — Apoiou os
cotovelos nas coxas e desviou o olhar de Anna para o homem loiro, que
sorria de satisfação—. Homem, se vê que você sabe muito sobre árvores
—, disse James, endireitando-se novamente e observando a paisagem
com um olhar. Ele ficou surpreso que um homem pudesse ter aprendido
tanto. E Karl tinha apenas 25 anos!
— Como já disse, aprendi com meu morfar e meu jar na Suécia, que
é muito parecida com Minnesota. Por isso que vim aqui em vez de ir
para Ohio. Também aprendi com meus irmãos mais velhos. Todos nós
trabalhamos madeira desde que éramos mais novos que você. Acho que
começamos tarde com suas aulas, hein, garoto? Você deve aprender
duas vezes mais rápido que Karl.
Mas James ouviu um tom de provocação na voz de Karl, o que o
deixou mais curioso.
— Fale-me mais sobre as árvores—, pediu ele quase sem fôlego,
pois havia se envolvido na magia do aprendizado e estava se
recuperando do amor de Karl pela floresta.
— Aqui estão os pinheiros, os melhores amigos do lenhador.
— Por quê?
— Porque eles te poupam problemas. Antes de obter as tábuas, a
seiva e a medula da maioria das árvores devem ser extraídas. Mas basta
extrair a seiva do pinheiro, e aí está a madeira pronta para fazer um lote
de lindas tábuas com ela. Você já ouviu falar da sucata e da cunha?
— Não, senhor, — James respondeu, e levantou os olhos para as
altas copas dos pinheiros, que pareciam alcançar, em seu balanço, o céu
azul.
— Eu vou te mostrar. Eles são as ferramentas para fazer as telhas
de madeira.
— Quando?
A impaciência do menino o fez rir.
— Tudo no seu tempo. Primeiro vem o machado e, ao dominá-lo,
conseguirá sobreviver no meio da mata, trabalhando com madeira. Um
homem engenhoso pode sobreviver com o machado como a única
ferramenta na selva mais profunda.
— Eu nunca usei.
— Você pode atirar com um rifle? — Perguntou Karl, mudando
repentinamente de assunto.
— Não senhor.
— Você acha que poderia, se fosse preciso?
— Não sei.
Algo fez Anna se voltar para Karl. O tom de sua voz não havia
mudado, mas algo lhe dizia que a última pergunta não era casual, como
as outras. Os olhos de Karl estavam obviamente alertas, olhando de um
lugar para outro.
— O que acontece? — Anna perguntou enquanto um tremor
percorria sua espinha.
— Rapaz, suba na parte de trás—, disse Karl com uma voz calma,
mas profunda. — Há um rifle ali. Pegue com cuidado, está carregado.
— Algo está errado? — Perguntou James.
— Sua primeira lição na floresta é que quando eu mandar você
pegar um rifle, você deve agir como se sua vida dependesse disso porque
quase sempre é o que acontecerá.
James subiu na parte de trás da carroça sem mais delongas,
embora as palavras não tenham sido nem ásperas, nem críticas ou
recriminatórias. Karl as havia falado em um tom neutro, estudando os
arredores com cautela.
— Agora volte, mas aponte o rifle para longe de nossas cabeças
enquanto sobe.
James fez o que Karl ordenou, desta vez rapidamente.
— O que acontece? — Anna insistiu, ficando mais nervosa agora.
— Esse cheiro... — Karl respondeu—. Você sente? É o cheiro do gato
selvagem.
Ela cheirou várias vezes, mas só sentiu o cheiro dos pinheiros.
— Só sinto o cheiro dos pinheiros—, disse ele.
— No início eram só os pinheiros, mas agora também cheira a gato
selvagem. Nessas florestas também existem pumas. Eles são astutos e
deixam seu cheiro onde os pinheiros podem escondê-lo. Portanto,
devemos ser muito espertos e estar preparados caso um deles esteja nos
perseguindo. Não tire os olhos das árvores à sua frente. Quando
entramos no bosque de carvalhos, devemos ser muito cautelosos. Os
galhos são altos e o puma pode estar à espreita para atacar qualquer
coisa que se mova por baixo.
Ele falava com a mesma calma com que vinha descrevendo os
atributos das árvores que ali cresciam. Apesar disso, Anna sentiu seu
sangue gelar de medo. Ela percebeu de repente o quanto ela e James
dependiam do conhecimento desse homem sobre a floresta.
— O rifle irá derrubá-lo se você tiver que atirar, então lembre-se de
apertar a coronha contra seu ombro antes de apertar o gatilho ou você
vai acabar com ossos quebrados. É um bom rifle. É uma arma de
carregamento por culatra Sharps e é a melhor feita aqui na América; em
Windsor, Vermont. Não irá falhar com você, mas você deve aprender a
usá-lo corretamente. Uma vez que a alavanca é levantada, a extremidade
do cartucho é desalojada e o pó fica exposto. Não tem pederneira,
garoto. Você não precisa disso com essa cápsula de percussão, então
agora você tem um objeto vivo em suas mãos. Tem que respeitá-lo.
Agora coloque o cano na altura dos ombros e ao alcance de seus olhos.
Acostume-se ao toque dele ali e não tenha medo de atirar, se for preciso.
James ergueu a arma até o ombro; era liso e simples e formava uma
linha longa e uniforme, exceto pela reentrância no pino de disparo.
Sentindo sua respiração entrecortada, Anna imediatamente sentiu
a excitação e o medo que emanavam do menino. A garota desejou que
Karl fosse o único segurando o rifle, mas assim que ela pensou sobre
isso, ele disse:
— Se tiver que atirar, esteja preparado para segurar firme porque
ao sentir o tiro os cavalos entrarão em pânico. Posso controlá-los, mas é
melhor não largar as rédeas. Você está bem, garoto?
— Sim senhor.
Os cavalos relincharam e Karl os tranquilizou.
— Sh… Belle. Sh ... Bill. Tranquilos. — Houve um movimento dos
arreios, como se os cavalos tivessem entendido e concordado. Mais uma
vez, Karl gritou: — Tranquiiii... los!
Então ele falou com James:
— Afrouxe o rifle, garoto. Você parece um relógio com corda para
três dias. Quando você não sabe o que está lá fora e quanto tempo deve
esperar para descobrir, ficará tão tenso que será impossível agir. Relaxe
um pouco e deixe seus olhos e o rifle em alerta.
— Mas... mas eu nunca vi um puma até agora, — disse James,
engolindo em seco.
— Não sabemos se é um puma. Pode ser um lince. O puma é
castanho dourado como uma omelete bem feita, com uma cauda longa e
graciosa. O lince é castanho acinzentado, com manchas, sendo mais
difícil de distinguir entre as folhas verde-escuras. Às vezes, um gato
selvagem aparece com uma cauda de cor marrom avermelhada. É muito
menor que o puma e mais difícil de detectar.
De repente, houve uma pequena explosão e Anna se assustou.
— São apenas as bolotas batendo nas rodas—, explicou Karl—.
Chegamos aos carvalhos, meu jovem. Você vai perceber o que eu disse
sobre os galhos altos.
James observou a maneira cuidadosa com que Karl examinava a
floresta à esquerda e à direita e depois para cima. Karl estava sentado
muito ereto, todo o corpo tenso e alerta.
— Existem muitos carvalhos aqui em Minnesota e abundantes
bolotas para os porcos. Esses animais engordam e crescem bem com as
bolotas. O problema é que eles são estúpidos demais para ficar em casa e
às vezes vagam pela floresta e se perdem. Então você tem que ir
procurá-los.
— Por que você não os cerca? — Perguntou James.
Anna achou que os dois haviam enlouquecido falando sobre porcos
e bolotas em um momento como aquele.
— Em Minnesota, construímos cercas para que os animais fiquem
fora e não dentro. As florestas são tão ricas em alimentos para o gado
que deixamos os animais vagarem onde quiserem. O que devemos cercar
é nossa horta, para que os porcos vorazes não acabem com nosso
suprimento de comida para o inverno. Já vi porcos arrancar um campo
inteiro de nabos em um piscar de olhos e comer tudo. Oh, porcos adoram
nabos! Se uma família perder a colheita de nabo, isso significaria fome
durante o inverno.
Karl relaxou um pouco sua postura. Anna e seu irmão perceberam
antes que ele dissesse:
— Tudo está em ordem. Podem ficar tranquilos.
— Como sabes? — Perguntou James.
— Por causa dos esquilos. Os veem?
Anna olhou, mas não viu nenhum esquilo.
— Onde? — perguntou, estreitando os olhos.
— Lá. — Seguindo o dedo bronzeado de Karl, ela pôde finalmente
ver uma cauda peluda disparando agilmente entre os carvalhos—. Os
esquilos se escondem em seus ninhos quando os pumas estão por perto.
Quando os vemos correndo livremente entre os carvalhos, a ameaça
acabou. Mesmo assim, continue segurando a arma um pouco, mas apoie-
a nas pernas agora, garoto. Você se comportou muito bem.
James não tinha orgulho em seu peito. A excitação do perigo era
totalmente estranha para ele. Nunca havia sentido nada parecido.
Segurando o rifle como um homem, deixando que Karl confiasse nele,
sentindo que se o perigo se aproximasse ele defenderia os três: tudo isso
despertou no jovem seu senso de maturidade.
— Desta forma, você aprendeu sua primeira lição sobre a floresta
—, observou Karl.
— Sim, senhor, — James respondeu, sem fôlego.
— Diga-me o que você aprendeu.
— Que é preciso ter cuidado entre os pinheiros porque os pumas aí
se abrigam para esconder o cheiro; que os carvalhos são um refúgio
muito bom para pumas; que os esquilos devem ser vigiados e estar com o
rifle alerta até que apareçam novamente. — James deixou o melhor para
o final—. E que falar alto por um tempo ajuda a manter o puma longe.
Anna ficou pasma. James aprendeu sua lição sem a necessidade de
palavras; ele apenas observara o comportamento de Karl. Ela nunca
havia percebido que seu irmão era tão perspicaz.
Como se estivesse lendo sua mente, Karl expressou seu elogio:
— Você é engenhoso, garoto. Sua irmã é tão esperta quanto você?
— Ele olhou rapidamente para Anna.
A jovem levantou a cabeça na direção dele, com ar provocador, e
então olhou como procurando por mais esquilos enquanto dizia:
— Esperta o suficiente para saber que terá a ingrata tarefa de
pastorear os porcos quando eles perambularem pelo bosque, e que se
verá forçada a comer muitos nabos contra sua vontade.
Pela primeira vez, Karl riu sem se conter. Foi uma risada alta de
barítono que agradou e surpreendeu Anna e fez James rir. Houve tanta
tensão entre eles que foi um alívio ouvir aquela risada expansiva.
— Nesse caso—, disse Karl, — seria melhor ver se os frutos do
lúpulo estão maduros; Então, quando James e eu comemos nabos, sua
irmã pode comer pão, hein, James?
— Sim senhor! — James acenou com a cabeça veementemente e
então os fez rir mais uma vez, adicionando, — Para quê?
Karl explicou que o lúpulo era usado para fazer fermento. Todo
verão colhia seus frutos em quantidade suficiente para durar o ano todo.
— Acho que são os maiores do mundo. Também creio que não estão
maduros, ainda é cedo, mas poderemos verificar quando passarmos;
então saberei quando colhê-los novamente.
Karl parou a carroça em um ponto da estrada que era semelhante a
qualquer outro.
— Como você sabe onde parar? — Anna perguntou. Karl apontou
novamente.
— Por causa da incisão na madeira—, respondeu ele. — Devo
começar a olhar para trás dos carvalhos.
Um longo corte branco apareceu no tronco da árvore, mostrando a
Karl o lugar, que era imperceptível da estrada.
Ele os conduziu através dos arbustos, segurando a arma na dobra
do braço. Os conduziu para a sombra perfumada, separando os galhos de
vez em quando, virando-se para observar Anna abrindo caminho entre
os arbustos de sabugueiros, suas flores rosadas que logo se
transformariam em amoras no outono.
A jovem se abaixou, afastou os galhos com o cotovelo e de repente
encontrou o olhar daqueles olhos azuis que a esperavam.
— Cuidado—, disse Karl.
Imediatamente Anna desviou o olhar, perguntando-se quando foi a
última vez que a haviam prevenido com aquela frase simples, uma frase
que ia além de meras palavras.
— O que é isso? — Ela perguntou, perdida em pensamentos.
— Ramos de sabugueiro.
— E para que servem?
— Não para muito—, respondeu ele, caminhando ao lado dela—. No
outono ela floresce, mas a fruta é amarga demais para comer. Por que
comer frutas amargas quando você pode obtê-las doces?
— Quais?
— Muitas—, respondeu ele. — Morangos, framboesas, amoras,
groselhas, uvas, Blueberries. Blueberries são minhas favoritas. Nunca
conheci uma terra com tantos frutos silvestres. Os Blueberries aqui são
grandes como ameixas. Ah, e também há ameixas selvagens.
Eles chegaram onde estava o lúpulo, videiras entrelaçadas que
subiam sobre o sabugueiro e caíam em cascata como folhas de uva.
Embora ainda não houvesse frutas visíveis, Karl parecia satisfeito.
— Haverá muito lúpulo novamente neste verão. Talvez minha
Anna não precise comer nabos, afinal.
Por tanto tempo ele pensara nela como "minha Anna" que as
palavras lhe escaparam sem perceber.
Anna olhou para ele com um lampejo de surpresa em seus olhos e
sentiu suas bochechas esquentarem.
Karl voltou sua atenção para o lúpulo. Ele pegou uma folha longa e
bem formada e disse:
— Aqui está, estude-a bem. Se você encontrar outra parecida,
marque o local. Seria uma economia de tempo, se não tivéssemos que vir
aqui, tão longe, pelo lúpulo. Talvez você encontre algum mais perto de
nossa casa.
“Nossa casa”, ela pensou. Olhou para ele furtivamente e descobriu
uma mancha colorida subindo da gola aberta de sua camisa. Olhou para
o oco de sua garganta; De repente, o pomo-de-adão estremeceu
convulsivamente. Karl brincou com a folha, olhando para ela, girando o
caule entre os dedos, como se tivesse esquecido que a pegara. Ela
estendeu a palma da mão e Karl se sacudiu, como se tivesse despertado.
Culpado, ele colocou a folha em sua mão. Anna demorou o olhar nele por
mais um momento, depois baixou os olhos e alisou a folha.
Ele estava sendo seduzido por aquele nariz sardento. Parado ali,
estudando sua Anna enquanto as sombras marcavam sua testa, ele
imaginou sua casa de adobe e o ramo de trevo na cama, como uma
saudação. Ele ficou tenso. “Por que tive essa ideia?”, pensou angustiado.
Naquele momento, parecia um gesto amável, mas agora ele o via como
algo tolo e equivocado.
— Acho que deveríamos ir, — ele disse suavemente, olhando
brevemente para James, que estava explorando alguns cogumelos
grandes e amarelados. Karl de repente desejou que o menino não
estivesse ali, para que pudesse tocar a bochecha de Anna.
Naquele momento, ela ergueu os olhos. Seu coração batia
furiosamente e ela começou a estudar a folha mais uma vez.
Karl pigarreou e disse a James:
— Pegue uma folha também, garoto. Será sua segunda lição.
Então ele se virou e os conduziu para fora da floresta, seus
pensamentos se afastando de Anna e seu pequeno nariz arrebitado e
sardento.
CAPÍTULO 5
Já estava quase escuro quando eles finalmente deixaram a estrada
principal e tomaram um caminho onde as árvores formavam um túnel
estreito e alto. Só havia espaço para uma carroça ali. O matagal era tão
denso que os animais às vezes chiavam quando as ervas daninhas
roçavam o focinho. Os cavalos fizeram o arreio soar novamente, ao
balançar a cabeça em um gesto exagerado de reconhecimento.
— Sim, eu sei que estão impacientes. Sabem que estamos perto de
casa, mas não posso deixar que saiam em disparada. Acalmem-se.
Anna e James nunca tinham ouvido uma pessoa falar com animais
como se fossem humanos. Estranhamente, Bill moveu suas vendas ao
ouvir seu nome.
— A trilha está tão estreita quanto era ontem—, disse Karl, —então
se acalme, Bill.
Da mesma forma que os cavalos, James e Anna ergueram a cabeça,
sentindo que estavam perto de casa e se perguntando como seria. Karl
havia anunciado que aquela era sua terra, e cada folha, cada galho e cada
grão de solo estava se tornando mais importante para ela. O cheiro
parecia mais pungente; O cheiro de coisas que crescem e amadurecem
enquanto outras apodrecem, adicionando-se assim ao aroma secreto do
ciclo contínuo da natureza.
“Este é o meu caminho”, Anna pensou. “Minhas árvores, minhas
flores silvestres, o lugar onde minha vida será triste ou feliz. Quando o
inverno chegar, a neve vai me envolver aqui com este homem que fala
com os cavalos e as árvores”. Seus olhos percorreram toda a paisagem o
mais rápido possível. O espaço ficou mais amplo e lá estava, na frente
deles, a casa de Karl e Anna Lindstrom; este lugar onde reinava a
abundância e sobre o qual a noiva tanto tinha ouvido falar.
Havia uma clareira muito ampla, com uma horta atrás de uma
cerca. Anna sorriu ao ver como o portão era firme, para evitar que os
porcos arrancassem os nabos de Karl. “Nabos!”, pensou. Argh!
A casa se estendia para a esquerda. Era uma casa quase retangular
feita de grandes pães de adobe, colados com uma mistura de argila
branca e grama. Tinha uma chaminé de pedra que se erguia
lateralmente e um telhado de toras rachadas, coberto com blocos de
adobe. Havia duas pequenas janelas e uma pesada porta de madeira,
protegida com uma longa tábua. O coração de Anna deu um pulo quando
ela viu aquele lugar onde Karl tinha vivido por dois anos. A cabana era
tão pequena! E tão... tão tosca! Mas ela viu os olhos de Karl examinando
tudo para ter certeza de que estava como ele havia deixado, e ela
reconheceu o olhar orgulhoso de seu dono. Ela tinha que ter cuidado
para não ferir seus sentimentos.
Ao lado da casa havia uma enorme pilha de lenha disposta com a
mesma precisão como se tivesse sido medida por um agrimensor. Ela
ficou maravilhada com o fato de as mãos de seu marido terem cortado
toda aquela madeira em uma pilha tão perfeita. Havia também outras
construções menores. Uma parecia ser um fumeiro, com uma chaminé
de barro no centro. O estábulo era feito de ripas verticais de madeira e o
telhado de casca de árvore, preso com ramos de salgueiro. Anna sentiu
um raro estremecimento de orgulho porque agora sabia que os juncos
eram feitos de salgueiro. Mas olhando em volta, de repente percebeu o
quanto, mais quanto, ela teria que aprender para sobreviver aqui e ser
de alguma ajuda para Karl.
A clareira se estendia para o leste e incluía terras semeadas onde
cresciam milho, trigo e cevada. Do outro lado da entrada da estrada,
abria-se uma larga avenida, sem árvores e ladeada por uma dupla fileira
de troncos sem casca; muito parecidos com os trilhos da ferrovia,
subiam por uma inclinação suave e desapareceriam entre as árvores
após uma grande curva à distância.
Karl Lindstrom nunca abandonava este lugar sem deixar de se
sentir maravilhado e orgulhoso a seu regresso. Sua casa de adobe lhe
dava as boas-vindas, as plantas pareciam ter crescido
incomensuravelmente nesses dois dias, os campos de trigo assobiavam
com o vento, como se perguntando onde ele estivera enquanto cresciam,
e o celeiro parecia impaciente para ter Belle e Bill entre suas paredes de
casca de árvore. A guia de toras lhe apontava o caminho para seus
sonhos.
Não foi fácil para Karl conter um grito de alegria ao ver sua casa
novamente. Sua casa? Não, a casa dos dois, agora. Seu coração batia forte
de felicidade e ele finalmente soltou Belle e Bill para caminhar
cinquenta metros até o celeiro.
Quando ele parou, os cavalos chutaram o chão com impaciência. E
de repente foi mais fácil para Karl falar com os cavalos do que
confrontar Anna.
“E se ela não gostar?”, pensou. Ele pisou no freio e amarrou as
rédeas. “A casa não significará para ela o mesmo que significa para mim.
Anna não sentirá o amor com que fiz tudo isso. Talvez apenas veja que
este é um lugar muito solitário, onde ninguém pode ser seu amigo,
exceto o menino e eu.
Para os cavalos, ele disse:
— Talvez vocês estejam com ciúme porque os faço esperar, mas
primeiro devo levar Anna e o menino para casa. — A jovem viu Karl
enxugando as mãos nas calças e leu em seus olhos um pedido silencioso
de aprovação. Em voz baixa, ele disse:
— Estamos em casa, Anna.
Ela engoliu em seco, queria dizer algo para agradá-lo; Mas tudo em
que conseguia pensar era: "Se a casa é tão miserável por fora, como será
por dentro?" Talvez ela passasse o resto de sua vida lá. E se não tanto,
pelo menos a noite de núpcias, que já se aproximava.
Karl ergueu os olhos para a casa, lembrou-se do ramo de trevo e
desejou nunca tê-lo colocado ali. Tinha sido um gesto bobo, ele sabia
agora, apenas para agradá-la. Era nada mais do que um símbolo de boas-
vindas, algo que falava não apenas do coração dele como homem, mas do
coração de sua terra e casa, que não tinham vozes próprias.
Anna perceberia sua intenção? Ou talvez ela veria no trevo um
simples elemento de decoração, a impaciência do homem em levá-la
para a cama? Não havia mais nada a fazer, ele estava lá e ela o veria
assim que ela entrasse. Saltou da carroça enquanto James descia do
outro lado e ficava boquiaberto com os arredores.
Anna se levantou e novamente viu Karl pronto para ajudá-la. Como
antes, suas mangas estavam puxadas até o cotovelo quando estendeu os
braços. Ela evitou olhá-lo nos olhos e se deixou cair em seus braços. O
toque de suas mãos em sua cintura lhe fez pensar naquela noite como
algo ameaçador. Ela teria se afastado de Karl, mas ele a segurava com
ternura, as mãos apoiadas apenas em seus quadris delgados. Karl olhou
para o menino, mas James prestava pouca atenção a eles.
— Anna, não tenha medo—, disse Karl, baixando as mãos, —tudo
ficará bem, eu prometo. Bem-vindos à minha casa e a tudo o que é meu.
Agora também é seu.
— Tenho muito que aprender e com que me acostumar—, disse ela
—. Talvez não sirva para muitas coisas e você se arrependa de ter me
trazido.
Havia coisas que ele também precisava aprender e pensou, com o
coração impaciente, na noite que se aproximava. “Mas vamos aprender
juntos”, disse a si mesmo.
— Venha, vou te mostrar a casa, depois devo cuidar de Belle e Bill.
Ele gostaria de poder levá-la para casa sozinha, mas James estava
vindo correndo em direção a eles. Era sua casa também e ele estava
ansioso para conhecê-la por dentro.

AO CRUZAREM A CLAREIRA, ANNA VIU um banco perto da porta,


um balde e um pedaço de couro pendurado em um cabide; ela supôs que
era onde Karl se lavava e se barbeava. Havia uma base de toras ao lado
da pilha de madeira, onde ele certamente fazia seu trabalho.
Karl caminhava atrás dela. Quando chegaram à porta, ele deu um
passo à frente para mover a tora que a estava bloqueando.
—Isso impede que os índios venham e roubem tudo—, explicou,
jogando a madeira perto da cortadeira—. Os índios têm um curioso senso
de honra. Se eles vierem e descobrirem que não há ninguém, eles
levarão tudo o que encontrarem. Mas se você colocar o bloco de madeira
na frente da porta para que eles saibam que você foi embora, eles não
pegarão nem uma única ameixa do arbusto mais próximo.
— Há índios aqui?
— Muitos, mas são meus amigos e você não deve temê-los. Um
deles cuida da minha cabra quando eu não estou. Terei que ir buscá-la.
Mas ele estava demorando o máximo que podia para levar Anna
para dentro de casa. Ele procurou o barrete. Anna nunca tinha visto
nada parecido: uma corda pendurada do lado de fora da porta, passava
por um buraco na madeira e era presa ao barrete por dentro. Quando
Karl puxou a corda, Anna ouviu o som da pesada barra de carvalho
sendo levantada. Ele se encostou na porta, empurrou-a com o ombro e
deixou Anna e o menino passarem primeiro.
O interior era escuro e cheirava a terra úmida e madeira
defumada. “Como ele pôde viver neste buraco por dois anos?”, Anna se
perguntou. Karl rapidamente encontrou uma vela de sebo, o fio e a
pederneira, enquanto Anna tentava ver o que havia além do arco de luz
fraca lançada pelo crepúsculo da porta aberta.
Ela sentiu o som do pavio sendo aceso e a vela começou a arder.
Viu uma mesa e algumas cadeiras de madeira com as pernas presas com
cavilhas; um banco, semelhante ao de fora; uma estranha peça de
mobília que parecia um pedaço de tronco sobre quatro pernas; uma
lareira com o caldeirão de ferro balançando nas cinzas apagadas;
recipientes de bronze pendurados em ganchos e vários pratos de argila
no chão da lareira; barris levantados em paletes de madeira; alimentos
secos pendurados no teto. Marcas recentes no chão de terra revelaram
que Karl o havia varrido pouco antes de partir.
Karl estava alerta, observando o olhar dela de um objeto a outro.
Um nó se formou em sua garganta quando a viu se virar para onde
estava a cama. Ele queria segurá-la pelos ombros magros e dizer: "É para
recebê-la, nada mais." Ele viu como Anna levava a mão a garganta antes
de desviar o olhar para as roupas penduradas atrás da porta e, em
seguida, para o baú de madeira próximo.
James também se virou para olhar para a cama, e Karl desejou,
naquele momento, fugir com o cacho de trevo nas mãos. Em vez disso,
ele se desculpou, dizendo:
— Belle e Bill estão ansiosos para se livrar dos arreios.
Quando ele saiu, James explorou o lugar completamente e disse:
— Não é tão ruim, Anna, não é?
— Nada mal para uma toupeira que está disposta a viver no
subsolo. Não consigo entender como ele pode ter vivido aqui todo esse
tempo.
— Mas Anna, ele fez isso com as próprias mãos!
Tudo lhe intrigava: as pedras da lareira, a maneira como as pernas
da mesa eram inseridas na madeira, as janelas cobertas por um pano
encerado opaco que deixava entrar muito pouca luz de fora. Enquanto
Anna se perguntava como alguém poderia pensar que aquelas eram
janelas, James estava satisfeito com tudo.
— Porque não? Aposto que este lugar é tão confortável quanto uma
toca de coelho no inverno. Suas paredes são tão grossas que não
permitem a passagem de neve ou chuva.
Anna colocou os pacotes na mesa e começou a desamarrá-los,
tentando mostrar que não estava decepcionada. James foi até a porta e
disse que ajudaria com os cavalos. A garota se sentou, com as mãos
cruzadas entre os joelhos, e olhou para a cama do outro lado do quarto;
depois nas flores, que estavam secando. Vendo aquelas flores, uma
estranha sensação, uma mistura de desejo e medo correu por suas veias.
Ela pensou em Karl, sua primeira raiva, sua aceitação e perdão, sua
hesitação, seu aparente calor. Ela o imaginou sozinho, colhendo aquelas
flores, preparando esta cabana para ela.
Ela se lembrou de como as palavras “minha Anna” haviam
escapado de sua boca e sua pele se arrepiou. Ela se abraçou para parar o
tremor que a sacudia, ainda pensando no trevo que de alguma forma a
fazia se sentir culpada.
Karl não era homem de levar uma esposa para a cama sem pensar
no que isso significava. Ela se lembrou de suas palavras de boas-vindas
ao descer da carroça, quando Karl lhe explicava como era importante
para ele compartilhar tudo isso com ela. Palavras de um homem que
fazia o possível para agradá-la, que oferecia tudo o que tinha como dote
pela noiva. Mas o único dote que ela trouxe foi a decepção.
Anna já sabia até que ponto suas mentiras haviam decepcionado
Karl e quão difícil havia sido para ele aceitá-la apesar disso. Deitar ao
lado dele significaria ser descoberta na mentira que ela mais queria
esconder; não havia dúvida de que Karl Lindstrom jamais aceitaria uma
esposa usada.
Naquele momento ele apareceu, um barril no ombro, obstruindo o
batente da porta com sua corpulenta figura antes de se abaixar e
depositá-lo no chão. Então ele a viu, ali, enrolada na cadeira.
— Anna, você está tremendo. Vou acender o fogo. É sempre fresco
aqui; é por causa do adobe. Por que você não vai lá fora, onde é mais
quente?
— Karl? —Ela perguntou hesitante.
Karl olhou para ela. Ele percebeu que era a primeira vez que ela o
chamava pelo nome.
— Você não tem um fogão?
—Eu nunca precisei disso—, respondeu ele—. A lareira é boa e
posso fazer o que quiser com ela: cozinhar, aquecer, secar as ervas,
esquentar água, fazer sabão, dissolver a cera. Nunca pensei em um
fogão. Morisette vende, mas são muito caros.
Anna estava preocupada em como conseguiria usar aquele poço
negro da lareira quando o pouco que sabia sobre cozinhar tinha sido
feito em um fogão de ferro como o que todo mundo tinha no Leste.
Karl pensou por um momento. Ele gostava da lareira. Nas longas e
sombrias noites de inverno, não havia nada mais reconfortante do que
olhar para as chamas, especialmente se alguém tivesse acendido o fogo
com lenha obtida por suas próprias mãos.
Quantas vezes ele pensara em esta noite em que traria sua Anna
aqui e acenderia um lindo fogo na frente do qual ele a colocaria em uma
pele de búfalo. “Sim”, ele pensou, “uma casa deve ter uma lareira”. Uma
casa com amor não pode deixar de ter uma lareira.
— Então você quer um fogão, Anna? —Ele perguntou.
Ela encolheu os ombros.
— Não veria mal.
— Talvez na casa de toras tenhamos um—, prometeu. Anna sorriu e
ele se sentiu melhor—. Venha. Você pode juntar alguns galhos para
acender o fogo enquanto eu trago as toras.
Ele pegou uma cesta de vime e deu a ela, e saiu de casa.
James chamou de fora:
— Ei, Karl! O que é isso no jardim? — Ele perguntou.
— Detudo um pouco—, respondeu ele. Ele gostou de ouvir a voz do
menino chamando-o de Karl.
— E isso aqui?
— Esses são nabos.
— E estes?
— Todos. Mas não diga isso muito alto. Você vai fazer sua irmã fugir
—. Karl sorriu para Anna, e ela sentiu que ele tentava fazê-la se sentir
confortável.
— Posso distinguir ervilhas, feijões e outros mais—, disse James com
orgulho.
— Você viu as melancias? Você gosta?
— Melancias? De verdade? — Acenando com os braços, James
caminhou até o final do pomar. — Ei Anna, você ouviu isso? Melancias!
Karl riu e ficou olhando para James, que estava explorando o
jardim.
— Não é preciso muito para ficar animado, não é?
— Parece que não. Ele está tão feliz por estar aqui quanto você.
Mas ela não fez menção de seus próprios sentimentos, enquanto
juntava os galhos em sua cesta. A fragrância de madeira recém-cortada
parecia emanar de Karl o tempo todo. Lembrando como ele havia falado
sobre as árvores no caminho, nada mais poderia ser esperado.
Dentro da cabana, Karl se ajoelhou de costas para Anna, segurando
um pequeno machado com o qual obteve aparas de uma das toras que
trouxera. Anna olhou para sua nuca e viu que as aparas de madeira eram
muito semelhantes à cor do cabelo de Karl. Naquele momento, ele se
virou e pediu a cesta. Mais uma vez, seus olhos pousaram nos de Anna de
tal forma que a garota estremeceu de novo com a ideia de ir para a cama.
Com uma pequena pá, Karl limpou as cinzas da lareira e as colocou em
um balde; então ele encontrou um grande tronco sob as cinzas e
cuidadosamente o colocou de lado como algo muito precioso.
Anna observou tudo isso por trás, observando seus músculos se
mexerem enquanto Karl se esticou para pegar a pá, se inclinou para usá-
la, girou nos quadris para pegar o balde, rolou nas solas dos pés para
pegar o tronco se endireitou e se abaixou novamente com um rangido de
joelhos. Ele se virou abruptamente para olhar para ela, e Anna se
perguntou: "Ele sabe que eu estava estudando seus músculos sob a
camisa?"
— Dê-me a vela—, disse Karl.
A jovem entregou a ele e seus dedos evitaram se tocar.
Karl se inclinou sobre a lareira novamente para espalhar a pilha
volumosa de aparas; sob seu olhar vigilante, o fogo ardia e queimava. Ele
acrescentou lenha e se agachou em frente ao fogo, imóvel, perdido em
pensamentos, os cotovelos apoiados nos joelhos. O fogo iluminou seu
cabelo, que parecia captar a cor da chama.
Anna estava olhando para as costas de Karl.
— Você pode guardar suas coisas no baú—, disse ele, sem olhar para
ela.
— Não
tenho muito.
— Guarda o que tens, tem espaço e o baú vai proteger da humidade;
você pode guardar as roupas do seu irmão também.
Ele a sentiu se mover, ouviu o som da tampa se abrindo. Ele se
levantou, pois o fogo já estava bem alimentado. Quando ele se virou, ele
a encontrou guardando as roupas no baú, parcialmente escondido atrás
da porta.
— Querque eu te mostre o manancial? —perguntou—. Tenho uma
bela nascente e perto dela cresce agrião.
“Você está falando bobagem”, Karl disse a si mesmo. "Por que você
não diz o que quer sobre o manancial? Mas se menciono a palavra lavar,
Anna pode pensar que estou criticando-a, ou pior, ela pode pensar que
eu quero que ela esteja limpa na hora de dormir e que esta é a única
razão pela qual trago à tona o assunto do manancial. "
— Nunca provei agrião. Como é?
Anna havia arrumado as roupas no baú. Agora tinha que se sentar
e agir como se sua mente estivesse no que estava dizendo.
— Tem gosto de... agrião. —Quando ele completou a frase, ele riu
nervosamente—. É parecido com o repolho, a semente de dente de leão,
mas principalmente de agrião. É mais doce do que outros vegetais. —
Karl pegou o pedaço de tora e levou-o para fora, dizendo: — Vamos, você
tem que ver meu manancial.
— Ei, Karl! —Gritou James. —De onde vem toda essa água? —Ele
tinha começado a examinar o jato borbulhante vindo do outro lado das
paredes do manancial.
— Vem das profundezas da terra. Flui o ano todo, mesmo que
esteja frio. Temos sorte. Nunca teremos que fazer buracos no gelo da
lagoa para pegar água, nem derreter neve ou gelo, o que leva muito
tempo.
—Quer dizer que podemos vir aqui a qualquer hora e tomar água
fria?
— Isso mesmo, garoto — disse Karl com orgulho, esperando que
Anna também ficasse impressionada com o lugar que ele escolhera para
sua casa—. Esta é a casa do manancial. Abra a porta e olhe para dentro.
Era feita de madeira e tinha uma porta com trinco que girava sobre
dobradiças de madeira feitas à mão. Quando James abriu, ela ficou
surpresa com o quão fresco era por dentro. A areia fofa que cercava a
nascente havia sido escavada e escorada, formando um vasto tanque
onde surgiram alguns jarros e potes de barro, meio submersos. Água
cristalina fluía, sussurrando através dos potes, e seguia seu caminho sob
as paredes. Em um canto estava pendurada uma bolsa de couro e
embaixo dela um balde; Karl colocou o pedaço de carvão dentro.
— Por que está guardando? —Perguntou James.
— Para obter alvejante. A água neste saco goteja lentamente sobre
o carvão e se forma o alvejante. Agora o saco está vazio, então devo
enchê-lo. —Ele se abaixou para fazer isso—. Com isso preparamos o
sabonete, curtimos o couro e fazemos muitas outras coisas. Você poderia
me ajudar, se você pudesse cuidar da bolsa toda vez que você entrar
aqui, para mantê-la cheia e pingando. Mas devo avisá-lo que às vezes
você precisa verificar se o alvejante é forte o suficiente. Para fazer isso,
você deve encontrar um ovo de guaco e fazê-lo flutuar em um copo com
o líquido. Se afundar, o alvejante está pronto. Mas nunca o deixe no
copo; parece tanto com chá, você não saberia a diferença e se alguém
bebesse seria um desastre.
Ele encheu a bolsa e pendurou novamente. O tamborilar contínuo
das gotas caindo acompanhava com seu ritmo a música constante do
manancial e acentuava o cheiro de madeira úmida.
— Meu Deus, Karl, você mesmo inventou? —James perguntou, seus
olhos abrangendo tudo.
— Não, meu pai me ensinou; ele também me ensinou como fazer a
casa do manancial quando eu era um menino como você.
— Em Boston obtínhamos água de alguns barris que ficavam atrás
da casa e se enchiam de água todos os dias.
— Nunca teve gosto de água doce. Esta é a melhor água que já bebi.
Ei, Anna, venha provar.
James passou a concha para sua irmã, enquanto Karl observava
ansiosamente. Anna nunca tinha provado água tão doce. Estava tão
gelada que seus dentes doeram e Karl riu enquanto esfregava os dedos
para aquecê-los. Mas isso não a impediu de beber, enquanto Karl a
olhava com prazer.
—É boa—, disse ela, quando terminou o último gole.
— Fica muito perto da casa e ainda mais perto do local onde ficará
a nova casa de troncos. Tão boa, tão fresca, tão perto de casa, que um
menino tem poucas desculpas para não ficar limpo, certo? Acho que
talvez seja hora de encher alguns baldes e deixar a água esquentar para
uso posterior. O que você acha, James?
— Quer dizer tomar banho? —O menino perguntou.
O tom de sua voz fez Karl perguntar:
— Você tem problemas para tomar banho?
—Bem, eu nunca gostei disso, — admitiu James.
— Que resposta para um girino. Anna, o que você ensinou a esse
menino? Na Suécia, um menino aprende bem desde o início que na
natureza os animais se lavam para se manterem saudáveis. Um menino
deve fazer o mesmo.
Mas James disse:
— Anna também não gosta muito.
— Não? —Karl disse, sem se conter. Percebeu que um garoto de
treze anos poderia ser um verdadeiro incômodo para uma irmã mais
velha—. Bem, se você tiver apenas um barril no quintal, é um problema.
Não existe esse problema aqui. Neste local temos o manancial, a lagoa e
o riacho; há muita água para todos.
Anna teria empurrado James no manancial. Era verdade que
odiava o banho, mas ele tinha o direito de descobri-la na frente de Karl?
— Venha. Encha um balde, garoto, e leve para casa. Esta noite
vamos mimá-lo um pouco e aquecer a água. Na maioria das vezes, não a
aqueço. É revigorante e dá vontade de se esforçar para se aquecer
imediatamente.
Com os baldes cheios, voltaram para casa cansados e, graças a Deus,
a questão do banho foi deixada de lado por enquanto. Anna percebeu que
Karl havia ficado do lado de fora, ao lado do banco que ela presumia que
serviria para apoiar o balde. Ele se barbeava antes do jantar, enquanto a
garota examinava os utensílios da cozinha e espiava barris, potes e jarras.
Havia alguns alimentos estranhos que Anna não conseguia identificar e
alguns que eram básicos.
Um grito veio de fora e ela percebeu que James devia estar fazendo
a mesma coisa que Karl. Os dois entraram, os rostos radiantes e
penteados; o mesmo certamente era esperado dela. Mas não havia
privacidade ali, e ela não estava disposta a deixar a água gelada escorrer
por sua pele.
O jantar foi simples. Karl colocou tudo sobre a mesa e mostrou a
Anna onde as coisas eram guardadas. Comeram carne fria, que ele
trouxe do manancial numa caçarola; pão, que ele afirmava ter feito ele
mesmo, embora Anna nem pudesse imaginar onde; queijo, feito com
leite de sua própria cabra. Anna nunca tinha provado queijo de cabra e o
achava doce e saboroso. Claro, James trouxe à tona, novamente, um
assunto que Anna queria evitar.
—Você não espera que Anna saiba fazer queijo, não é, Karl?
—Não, — ele respondeu, evitando os olhos dela—. Mas terei que
ensiná-la. Não é muito difícil. Há um canto na lareira que mantém o leite
quente o tempo suficiente para assar. De manhã, irei buscar a cabra no
meu amigo, Dois Chifres. Então teremos leite fresco no café da manhã.
Você já ordenhou uma cabra, James?
—Nunca, — James respondeu. —Vai me ensinar?
— É a primeira coisa que farei de manhã. Talvez Anna queira
aprender também.
“Talvez Anna não queira”, pensou a citada, enquanto o irmão
continuava com as perguntas.
—Por que você tem uma cabra? Por que não uma vaca, como todo
mundo?
—As vacas são muito caras aqui e gostam de se perder na floresta,
como os porcos. Então você tem que ir buscá-las toda vez que for a hora
de ordenhá-las. As cabras são como animais de estimação. Elas não vão
tão longe e são uma ótima companhia.
— Nunca me ocorreu pensar em uma cabra como um animal
doméstico.
— Talvez sejam os melhores. São leais e tranquilas e não comem
muito. Durante as nevascas de inverno, em várias ocasiões, tive muito a
agradecer a minha Nanna por me ouvir falar e nunca reclamar quando
lhe disse como estou impaciente com os vizinhos e como sinto falta da
minha família na Suécia e como acho que a primavera nunca vai
chegar... Nanna apenas mastiga seu bolo e me apoia.
Seus olhos se voltaram para Anna enquanto ele falava, e depois
para o menino.
— É esse o nome da cabra? Nanna?
— Sim. Você vai gostar quando a conhecer.
— Não posso esperar. Me diga mais. Diga-me o que mais vamos
fazer amanhã, além de ordenhar a cabra.
Karl riu baixinho da ansiedade do jovem, tão parecida com a sua
quando ele chegou a este lugar.
— Amanhã começaremos a cortar as árvores para fazer a casa de
toras, mas acho que você não ficará tão feliz no final do dia como agora.
—Anna vai ajudar também?
—Isso depende de Anna—, disse Karl.
Anna ergueu os olhos rapidamente, ansiosa para não ser excluída
de nada que pudesse tirá-la desta cabana miserável e dar-lhe uma
chance de estar ao sol.
—Poderia fazer algo, Karl? —Ela perguntou, temerosa de que a
deixassem olhando o leite no canto da lareira. Mas Karl só leu felicidade
no tom de sua pergunta.
—Anna vai ajudar também—, disse Karl—. Até para três, o trabalho
será árduo.
—Então, estávamos certos e você ficará feliz em me ter aqui—,
disse James com alguma arrogância.
— Sim, acho que sim. Amanhã ficarei feliz em ter você aqui.
Mas naquela noite não era assim. Embora Karl gostasse de
conversar com o menino, ele não conseguia esquecer que a hora de
dormir se aproximava. O fogo crepitava na lareira. Karl esticou as
pernas, recostou-se na cadeira e tirou o cachimbo e a bolsa de tabaco do
bolso.
Anna acompanhou seus movimentos e aprendeu algo novo: Karl
fumava cachimbo.
Ele o carregava muito devagar, conversando com James sobre a
cabana e o que seria necessário para construí-la. A fumaça do cachimbo
flutuava preguiçosamente, e James apoiou o queixo cada vez mais sobre
a mão. De vez em quando, os olhos de Karl se voltavam para Anna, que
rapidamente desviava o olhar para o fogo. Lá, o caldeirão preto que Karl
enchera de água depois do jantar estava pendurado na lareira.
James se reanimou quando Anna se levantou para pegar os poucos
pratos que eles haviam usado, mas voltou a cabecear novamente.
A cadeira de Karl rangeu quando ele se levantou e disse:
— O menino vai cair, se eu não preparar a cama logo. Irei ao celeiro
e trarei um forcado de feno.
Anna voltou os olhos para Karl, tentando não parecer uma garota
arisca de dezessete anos.
—Sim—, disse ela.
Ele a deixou lá, abstraída, e em poucos minutos voltou com um
forcado de madeira carregado com feno perfumado.
—Cresce naturalmente nas pradarias—, disse Karl, olhando
ligeiramente para Anna. Imediatamente ele começou a arrumar o feno e
cobriu-o com uma pele de búfalo.
James imediatamente mergulhou na cama improvisada, enquanto
Karl, apoiado no forcado, o observava.
—Você acha que vai ter tempo de tirar os sapatos antes de
adormecer, garoto?
James humildemente tirou os sapatos.
Mais uma vez, os olhos de Karl encontraram os de Anna por um
segundo.
— Vou levar o forcado para o seu lugar.
Quando ele se foi, Anna foi até o caldeirão, provou a água e
descobriu que estava esquentando rápido demais.
— Anna?
Ela se assustou com o nome dela e se virou; não percebeu que Karl
havia retornado.
— Sim?
Karl estava ciente de que eles não tiveram a chance de falar
sozinhos, de se conhecerem. Ele procurou em sua mente,
desesperadamente, tentando encontrar algo que lhes desse uma chance.
Não é lógico que uma mulher se assuste ao ouvir a voz de seu homem,
pensou ele.
— Você quer uma xícara de chá?
— Chá? — Anna repetiu estupidamente. — Ah, chá ... Sim. — O
alívio era evidente em sua voz.
— Sente-se, vou prepará-lo para você e lhe ensinar como fazer.
Ela se sentou e o observou entrar e sair pela sala; de vez em
quando, ela lançava um olhar ansioso para o irmão, que estava muito
confortável, enrolado na cama de feno. Por fim, Karl trouxe as duas
xícaras para a mesa e entregou-lhe a sua.
—Pétalas de rosa—, disse ele calmamente.
— Do que? —Ela ergueu os olhos, assustada.
— O chá é feito com pétalas de rosa. Você deve primeiro esmagá-
las contra o fundo da xícara e, em seguida, adicionar a água quente.
— Ah.
— Você nunca tomou chá de rosas antes?
— O único chá que tomei foi... bem, chá. Chá de verdade. Mas não
muito frequentemente.
— Aqui há um pouco de chá de verdade e também café. Mas o chá
de rosas é muito melhor. Quando o inverno é muito longo, as pétalas de
rosa protegem você do escorbuto. —Ele se perguntou por que estava
falando sobre flores. Mas sua língua obedecia às suas próprias leis—.
Pétalas de frutos silvestres produzem o mesmo efeito, mas não são tão
abundantes aqui quanto as rosas. —Anna tomou um gole de chá. —Você
gostou?
Ela o achou delicioso, o que deixou Karl satisfeito.
—Anna—, disse ele, apoiando-se em um cotovelo na mesa, —há
tanto aqui em Minnesota que é impossível explicar a você como nossa
vida pode ser bela. Eu poderia dar um passeio na floresta agora e trazer
tantas ervas para o chá que você não se lembraria delas amanhã de
manhã. Existem morangos silvestres, camomila, tília, salsify... Você já
experimentou confrei? — Ela balançou a cabeça e Karl prometeu: —Vou
te ensinar a fazer chá de confrei. É tão bom que o planto no meu jardim.
Vou te mostrar como seca. Eu sei que você vai gostar muito.
—Claro que sim, Karl—, disse ela. De repente, ela percebeu que ele
estava tão nervoso quanto ela.
— Tenho tanto para te mostrar, Anna... Você já tentou pegar um
robalo com a vara e sentiu que puxava o cabo até machucar sua mão?
Você vai adorar pescar, Anna, e o menino também. Em Skane, onde
cresci, meu pai e eu pescávamos muito, assim como meus irmãos. Talvez
haja mais peixes aqui do que na Suécia, além de aves de caça e veados.
Anna, uma vez vi um alce na minha floresta. Eu não sabia o que era, mas
meu amigo Dois Chifres me contou. Era magnífico.
—Você já imaginou um lugar que te oferecesse tanto? No outono,
bandos de gansos chegam do Canadá. São tantos que um único homem
pode derrubar um a cada tiro. E como as coisas crescem aqui, Anna!
Você não vai acreditar. Batatas são do tamanho de melões, melões do
tamanho de abóboras e abóboras...
De repente, Karl parou, percebendo que estava vendo-se
contornando o mato tocando sua música favorita.
—Acho que estou tagarelando como esquilos—, disse ele
timidamente, notando que as mãos de Anna estavam tensas em sua
xícara.
— Está bem. Você se esqueceu de mencionar os esquilos, de
qualquer maneira. —Sua resposta fez os dois sorrirem. Então Anna olhou
para a caneca e disse calmamente: —Isso é muito diferente de Boston. Já
estou percebendo a diferença. Acho que é um bom lugar para James e ele
parece gostar.
O silêncio pairou no ar por um instante antes de Karl perguntar
com calma:
— E você, Anna? O que você acha?
Eles se estudaram sobre a mesa, enquanto o fogo iluminava apenas
parte de seus rostos, deixando a outra parte submersa nas sombras.
Desse modo, pareceu a Karl e Anna que apenas metade de cada um se
tornava visível para o outro, por enquanto. Havia tanto que ainda estava
nas sombras e só o tempo traria à luz!
—Leva... tempo para se acostumar com... — Anna baixou o olhar. —
Mas, aos poucos, acho que vou me acostumar.
Karl se perguntou o que Anna queria que ele dissesse e como
deveria dizer. Depois de um momento, tudo o que ele podia perguntar
era:
— Você está cansada, Anna?
A garota girou os olhos para James, que ainda não tinha se mexido.
—Um pouco—, ele respondeu hesitantemente.
— A água está quente.
Na verdade, estava quente o suficiente para fazer chá de rosas.
Juntos, eles olharam para a nuvem pálida de vapor subindo do caldeirão.
— Mas tudo que tenho é sabonete caseiro.
— Oh está bem! —Ela disse com muita veemência.
Karl não se mexeu e Anna ficou colada à cadeira.
— A bacia está no banco, lá fora. Eu vou encher para você.
— Obrigado.
Ele pegou o caldeirão e o levou para fora.
Quando Anna saiu, Karl havia desaparecido na escuridão. Se lavou
mais rápido do que nunca; Mesmo odiando o banho, ela tinha que
admitir que era mais do que tolerável sacudir a sujeira da viagem. Olhou
para a clareira, mas viu apenas alguns vaga-lumes pairando no escuro.
Houve um relincho quase imperceptível vindo do celeiro. Então tudo
ficou quieto.
Ela correu para dentro de casa, encontrou sua camisola no baú,
vestiu-a e congelou, sem saber o que fazer; olhou primeiro para James,
dormindo no chão, e depois para a cama. Decidida, ela caminhou até ela,
ergueu a pele de búfalo e ajoelhou-se no colchão.
Mas de repente ela ficou quieta quando ouviu um rangido: era a
casca de milho enchendo o colchão. "Meu Deus! O que é isso?" Com
cuidado, moveu o joelho e ouviu o rangido novamente. Não havia outro
lugar para ir; então ela se decidiu, deslizou para a cama e cobriu-se até o
pescoço.
A porta abriu e fechou, expandindo e estreitando sua sombra nas
paredes de adobe; Karl largou o tarugo de madeira com um baque e
inseriu cuidadosamente a corda pendurada do lado de fora. Ele
caminhou até o lado da cama incapaz de ignorar o cacho de trevo que
ainda estava lá, do dia anterior. Anna o seguiu com os olhos enquanto se
inclinava perto de sua cabeça para retirar as ervas.
—É o trevo doce—, disse ele.
—Tem um lindo perfume—, Anna acrescentou com voz
estrangulada.
— É o melhor perfume de toda Minnesota. —Só então ele conseguiu
engolir. —Oh, Anna, era para te dar as boas-vindas, mas depois que eu
saí pensei que talvez não devesse ter feito. Eu pensei... — Ele olhou para
o trevo em suas mãos. —Eu pensei que te assustaria.
—Não... não, não me assustou.
Mas seu corpo estremeceu a tal ponto que o cobertor também
tremeu. Karl se voltou para a lareira e jogou as ervas ali. Anna os
observou queimar; eles iluminaram a sala momentaneamente e
destacaram a silhueta de Karl. Com as mãos nos quadris, o homem
estudava o fogo enquanto a garota estudava suas costas. Então ele se
inclinou para empilhar o carvão, enviando faíscas pela chaminé. Ele
hesitou, ajoelhando-se e perdido em pensamentos, enquanto a
iluminação da sala diminuía para um brilho fraco. Mas ele não podia
fazer mais nada, não tinha para onde ir, exceto para a cama. Nervoso, ele
passou a mão pelos cabelos.
Os olhos de Anna estavam fixos no brilho pálido do fogo quando
Karl voltou para a cama e, dando as costas para ela, despiu-se e deitou-se
ao lado dela. A casca rangeu novamente. O colchão cedeu sob seu peso e
Anna sentiu uma força ameaçadora empurrá-la em sua direção. Ela
tensionou os músculos dos ombros para evitar que isso acontecesse.
Eles estavam de costas, olhando para as toras no telhado.
Finalmente, Karl virou o rosto para Anna, estudou seu perfil e
murmurou:
— Olhe para mim, Anna, enquanto ainda há luz suficiente para ver.
Anna olhou para ele com os olhos arregalados e assustados,
lembrando daquela outra vez. Ela tentou se concentrar no rosto de Karl,
mas apenas a memória vívida de Saul McGiver voltou à sua mente junto
com seu terror e vergonha.
—É difícil acreditar que você finalmente está aqui—, murmurou
Karl—. Nosso triste começo... Quero esquecer. Quero fazer as coisas
certas com você, quero que tudo fique bem.
Anna estava até com medo de engolir, ainda mais por assim dizer.
Karl se perguntou se a jovem notaria seu constrangimento. Ele
pegou a mão dela, levou-a ao peito e pousou-a sobre o coração
palpitante, pegando-a de surpresa.
“Seu coração está batendo tão loucamente quanto o meu”, Anna
pensou em descrença.
— Você é tão jovem, Anna. Dezessete anos... quase uma menina,
quando eu esperava uma mulher.
—Dezessete anos é... é o suficiente—, ela murmurou em um tom
tenso.
— Você sabe o que está dizendo, Anna? — ele duvidava que ela
realmente entendesse.
Anna se perguntou se ela realmente havia entendido.
Ela disse o que se sentiu compelida a contar a um marido que tinha
todos os direitos sobre ela. Sabendo qual era o seu dever, ela respondeu
dessa forma. Mas ela não sabia qual seria a resposta de Karl. Ela se sentia
presa entre as memórias do passado e o medo do futuro. Enquanto eles
falassem, nada aconteceria, então continuou:
— Eu conheço muitas meninas que se casaram aos dezessete anos.
Mas não era verdade. Ela só conhecia muitas mulheres
desmazeladas, dedicadas a essa profissão e que, aos trinta, trinta e cinco
ou quarenta anos, haviam perdido todas as esperanças de se casar.
— Anna, na Suécia essas coisas não são feitas: dois estranhos que
decidem se casar, como nós. Se morássemos na Suécia e eu te
encontrasse pela primeira vez na aldeia, te compraria uma fita de seda e
talvez iríamos conversar e rir um pouco. Teria a oportunidade de dizer a
si mesma: “Sim, eu acho que gosto que Karl me dê fitas de seda” ou “Não
vou mais aceitar que Karl me dê fitas de seda”. Mas se você aceitasse as
fitas com um sorriso e as colocasse no bolsinho que pendura de seu
cinto, te levaria a conhecer a mim e me faria vir por ti de onde eu venho.
Sempre pensei em cortejar uma garota como meus irmãos faziam em
Skane.
Ele acariciou a mão de Anna, lembrando-se disso, enquanto seu
coração batia mais rápido.
Toda a opinião que Anna tinha sobre os homens neste elemento - a
cama - estava influenciada pelo tipo de lugar em que ela cresceu, entre
pessoas para quem o corpo era um negócio e nada mais. Aos poucos,
porém, ela percebeu que Karl estava tão inseguro quanto ela quanto a
isso e que seu coração batia não apenas de excitação, mas também de
incerteza.
—Eu costumava imaginar algo assim também—, ela admitiu, —
quando era mais jovem.
— Claro, todas as garotas gostam. Eu planejava me casar com uma
garota loira com suas tranças presas sob um pequeno chapéu branco
engomado com pregas profundas; uma menina que usava um avental
bordado, com os laços cruzados na faixa da cintura, na véspera de San
Juan Bautista. Nossas famílias estariam presentes e haveria dança e
risos, muitos, muitos risos.
Sua voz se tornou melancólica, pensativa.
Anna também estava ficando melancólica. Mas ela sabia muito bem
que não queria nada com a dança e as risadas que ela observara em sua
tenra idade. Elas estavam totalmente fora do ambiente afetivo que
cercava Karl em sua terra natal. Anna nunca teve chapéu engomado,
nem avental de menina com laços cruzados; Em sua aldeia, os jovens
nunca a cortejaram ou deram-lhe fitas; Eles nunca sorriram para ela ou a
convidaram para ir a sua casa para conhecer seus pais. Ela não era uma
jovem afetada por ataques de autopiedade, mas naquele momento teve
que se controlar para não cair em um.
Mas Karl era bonito, honesto e sincero, e o murmúrio de sua voz
no escuro convidava Anna a expressar alguns de seus sonhos de infância
em voz alta.
— Sonhei em me casar em St. Mark. Sempre me senti bem em St.
Mark. Às vezes, sonhava que me casaria com um soldado de botas altas,
tranças e dragonas.
— Um soldado, Anna? — Karl sabia que estava longe de ser um
soldado.
— Bem, sempre houve soldados em Boston. Às vezes eu os via
passar.
Tudo se acalmou; as sombras da noite e a mão de Karl ficaram
imóveis.
— Não há soldados aqui—, disse Karl, desapontado.
— Não há tranças loiras também—, Anna respondeu timidamente,
surpreendendo o marido novamente.
Karl engoliu em seco.
— Eu acho que posso sobreviver sem tranças loiras—, ele
murmurou.
Anna sentiu o peito de Karl pesar sob sua palma. Apesar de sua
aparente cordialidade, ela estava com medo de dar a resposta que seu
marido esperava, embora um soldado em dragonas fosse a coisa mais
distante de sua mente no momento.
Karl rolou para o lado da cama e a encarou de frente.
— Acho que estou indo rápido demais, Anna, desculpe. — Ele pegou
a mão de sua esposa e beijou sua palma; seus lábios quentes, sua
respiração suave roçou-a por um breve momento; depois pousou a mão
no travesseiro, onde antes estavam as folhas do trevo—. Mas eu fiquei
sozinho por tanto tempo, Anna... Eu não tinha ninguém para conversar,
ninguém para tocar, ninguém para me tocar. Houve momentos em que
pensei que estava morrendo. Às vezes, eu trazia a cabra, quando
começavam as nevascas de inverno, e falava com ela e também com os
cavalos. É bom tocar no focinho aveludado ou acariciar as orelhas da
cabra, mas não é a mesma coisa. Sempre sonhei em ter com quem
conversar, em ouvir outra voz que não o balido da minha cabra.
Ele levou a mão de Anna aos lábios novamente, mas de uma
maneira diferente, como se o calor dela fosse sua salvação. Ele fez seus
dedos acariciarem seus lábios e percorrerem seu rosto de tal forma que
Anna se sentiu glorificada, sabendo que ela não merecia isso. Karl
sussurrou com voz rouca:
— Oh, Anna, Anna, sabes o quão bem me faz o contato dos seus
dedos?
Então Karl pressionou a palma da mão contra sua bochecha. Era
quente e suave, e Anna se lembrou de como era quando percebeu o
contorno. As pontas dos dedos roçaram as sobrancelhas, depois as
pálpebras fechadas. Anna sentiu um leve tremor e desejou que houvesse
luz para poder capturar aquela visão surpreendente: um homem que
guardava uma emoção tão profunda dentro de si.
— Eu nunca soube... você nunca me contou todas essas coisas em
suas cartas.
— Pensei que te assustaria. Anna, eu não quero te assustar. Você é
quase uma menina e eu fiquei sozinho por muito tempo.
—Mas eu fiz um pacto, Karl—, disse ela com determinação.
— Ainda assim, você está tremendo, Anna.
—Você também, — ela murmurou.
“Sim”, pensou Karl, “tremo um pouco de ansiedade, um pouco de
timidez, outro pouco de medo de assustá-la”. Era sua primeira vez e ele
queria que fosse por consentimento mútuo; ainda mais: por amor
mútuo. Ele poderia esperar um pouco para conseguir essas coisas dela,
mas ele estava sozinho por muito tempo para esperar mais. Ele colocou
uma mão em volta do pescoço dela, acariciou seu queixo com o polegar,
maravilhado com a suavidade de sua pele em comparação com a dele.
— Posso te beijar, Anna?
— Um homem não precisa de permissão para beijar sua própria
mulher—, ela sussurrou.
Karl se apoiou em um cotovelo e acariciou os lábios dela com o
polegar, esperando que ela não estivesse com tanto medo.
Anna estava tensa esperando que a pior parte viesse. Mas não foi
assim. Tudo era diferente com Karl. Diferente da maneira como esperou
e a tocou suavemente primeiro, como se para garantir que ele não a
machucaria. Diferente quando ele se aproximou dela com cuidado,
fazendo a casca soar em um tom confidencial. Diferente quando, com o
polegar ainda nos lábios, lhe deu tempo de dizer não. Diferente quando
ele mal tocou os lábios de Anna nos dele.
Não havia força nem luta nem medo; apenas um leve contato da
carne com a carne, uma união de respirações, uma introdução. E seu
nome, "Anna", sussurrado em sua boca como ninguém nunca tinha dito
antes. Os dedos de Karl cravaram ternamente em seu cabelo atrás da
cabeça enquanto ela entendia coisas novas sobre este homem.
Karl esperou pacientemente por uma resposta de Anna. A garota
ergueu ligeiramente o queixo e aproximou ainda mais os lábios dos de
Karl. Novamente seus lábios se encontraram, mais quentes, mais
próximos, permitindo que Anna se soltasse enquanto confiava mais nele.
Pela primeira vez, Anna teve vontade de responder a um homem.
Mas quando Karl deslizou a mão por suas costelas, ela enrijeceu, incapaz
de controlar a reação. Karl afastou a boca de Anna, preocupado em fazer
a coisa certa, ao perceber que a garota estava protegendo o peito com os
braços.
— Anna, eu não quero te apressar. Agora temos tempo, se não o
tivemos antes.
Embora aliviada, Anna se sentiu tola e estranha. Seu coração saltou
em seu peito enquanto ela procurava desesperadamente por algo para
dizer. Ela sentia, todavia sobre ela, o hálito quente de Karl acariciando
seu rosto. Ele cheirava a sabão de barbear e tabaco, mas seus lábios
tinham um leve sabor de pétalas de rosa.
“Como posso temer um homem que gosta de rosas?”, pensou. No
entanto, ela estava com medo; sabia muito bem o que os homens faziam
às mulheres. Este homem, com toda sua força, poderia fazer isso
confortavelmente, se quisesse. Em vez disso, ele se afastou e ela não
sentiu mais o sopro de sua respiração em seu nariz.
— Eu... sinto muito, Karl—, disse ela. Então acrescentou, hesitante,
— Obrigado.
A decepção tomou conta dele. Mesmo assim, ele acariciou a pele
aveludada de sua bochecha com o dedo indicador calejado, em um gesto
breve e tranquilizador.
— Temos muito tempo. Durma agora, Anna.
Em seguida se deitou de lado na cama, incapaz de relaxar porque
agora ele sabia como era o contato de sua pele.
Anna rolou de lado, de frente para a parede, se aconchegou e se
enrolou no cobertor. Mas uma sensação estranha tomou conta dela,
como se ela tivesse feito algo errado e não soubesse o quê. Ela se sentiu
como antes, quando havia começado a chorar. Finalmente, se virou um
pouco, olhou por cima do ombro e murmurou:
— Boa noite, Karl.
— Boa noite, Anna—, disse ele com voz abafada.
Mas para Karl não foi uma boa noite. Estava mais rígido do que
uma estátua; ele queria pular da cama, correr no ar úmido da noite e se
refrescar; falar com os cavalos, mergulhar a cabeça na fonte de água
gelada do manancial, ele não sabia bem o quê! Em vez disso, ele
permaneceu imóvel, acordado, porque agora sentia o toque da pele de
Anna, o gosto de sua língua, o peso de seu minúsculo corpo que deixou
sua marca na outra metade do colchão de casca. “Quanto tempo?”,
perguntou-se com tristeza. "Quanto tempo vou levar para cortejar
minha própria esposa?
CAPÍTULO 6
De manhã, Karl foi procurar a cabra antes que James e Anna
acordassem. Quando ele voltou, eles já estavam de pé, vestidos e em
apuros. Ao ouvir o som do sino da cabra, eles se entreolharam
desesperadamente através da fumaça. Anna se abanou com a mão na
frente dos olhos e nariz, sem sucesso.
— Oh não, acho que ele já está de volta—, lamentou.
— É melhor, — observou James.
Um momento depois, Karl apareceu na porta.
— O que vocês dois estão fazendo? Incendiando a casa?
— O adobe não... — Anna tossiu. — Adobe não queima.
— Então eu tive sorte e não perdi minha casa. Você já ouviu falar
do amortecedor?
Claro que sim. Cada fogão de ferro fundido tinha um amortecedor
em seu duto, mas eles não achavam que a casa de Karl tinha um. Karl
entrou na fumaça da lareira, fez os ajustes necessários e os levou para
fora enquanto o ar clareava.
— Vejo que terei de vigiá-los a cada dois minutos para que não
tenham problemas—, disse ele com bom humor.
— Achamos que seria conveniente manter o fogo aceso.
— Sim, seria assim se tivessem feito um bom fogo em vez de uma
fogueira. Mas isso será útil quando tiverem que espantar os mosquitos.
Parecia que Karl estava disposto a usar a paciência que havia
prometido.
— Esta noite vou mostrar como fazer um bom fogo. Agora venham
conhecer a Nanna.
James se apegou à cabra, imediatamente, e o animal pareceu
responder a ele.
— Nanna, este é James—, disse Karl afetuosamente, curvando a
orelha da cabra—. E se esse jovem ordenha uma cabra tão bem quanto
faz o fogo, eu voltaria para os índios, se estivesse em seu lugar —
murmurou ele no ouvido de Nanna.
Anna riu e por fim Karl olhou-a diretamente nos olhos, a mão
ainda brincando com a orelha rosada da cabra. Sorrindo, ele disse:
— Bom dia, Anna.
— Bom dia—, respondeu Anna.
Seus olhos deslizaram para os dedos de Karl enquanto eles
acariciavam o animal, que inclinava a cabeça cada vez mais. Enquanto
isso, Karl continuava olhando para Anna.
— Você pode fazer bolos? —ele perguntou.
— Não.
— Você sabe ordenhar a cabra, então?
— Não.
— Você pode fritar bacon e cozinhar polenta na gordura?
— Talvez, eu não estou certa.
— Bem, estamos nos entendendo.
Foi assim que a tarefa de ordenhar a cabra pela manhã coube a
James, uma vez que Karl lhe ensinou; e a Anna, a de cozinhar o milho na
gordura, enquanto Karl trazia água do manancial para os cavalos, para
usar em casa e se lavar fora.
Karl se lavou perto da porta. Desde o início, Anna ficou intrigada se
ele tiraria a camisa e aguentaria a água gelada sem tremer. Karl pegou a
navalha e a afiou, enquanto o menino não parava de olhar para ele.
— Dói fazer a barba, Karl? —ele perguntou.
— Só se a lâmina não estiver afiada. Uma navalha bem afiada
facilita o corte. Espere até eu mostrar como afiar o machado. Cada vez
que um lenhador sai, ele deve carregar a pedra de amolar e usá-la a cada
hora. Eu tenho muito para te ensinar.
— Oh! Não posso esperar.
— Você terá que aguardar. Pelo menos até terminarmos com o
bacon e o cereal que sua irmã fez.
— Ei, Karl...
— Sim?
James baixou a voz.
— Acho que Anna nunca cozinhou isso antes. Com certeza deu
errado.
— Nesse caso, não devemos dizer a ela. E se a primeira vez que
você afiar o machado não o fizer bem, também não vamos contar.
Realmente não havia se saído bem. O bacon havia queimado e o
milho estava pegajoso. Para surpresa de todos, Karl não fez comentários.
Em vez disso, ele falou sobre como o dia estava lindo, o que esperava
fazer e como era agradável comer em companhia. Mas Karl e James
pareciam estar gostando de algo muito particular que Anna não podia
compartilhar. Ainda assim, ela estava satisfeita com a maneira como
Karl parecia aceitar seu irmão.
Era um dia privilegiado, de cores brilhantes: o azul do céu e o
verde das árvores reverberaram com o reflexo dourado da luz solar. O
sol ainda não havia alcançado a periferia da clareira quando os três
saíram. Dos ganchos acima da lareira, Karl tirou o machado e entregou a
machadinha a Anna. James aceitou orgulhosamente o rifle mais uma vez.
— Venha—, disse ele—. Primeiro, mostrarei onde ficará nossa
cabana.
Ele caminhou pela clareira até a base de pedras que formava um
retângulo de quinze por quinze pés. Quando ele subiu até a base, colocou
um pé em uma de suas pedras e apontou para um local com a ponta de
seu machado.
— A porta estará aqui, voltada para o leste. Usei minha bússola,
uma boa casa deve ser perpendicular à Terra.
Virando-se para Anna, ele disse:
— Não haverá chão sujo nesta casa, Anna. Aqui teremos pisos de
madeira reais. Arrastei as pedras das terras ao longo do riacho; as mais
planas que consegui encontrar, para suportar as toras de base.
Então ele se virou e, com um leve movimento, deslizou o suave e
curvo cabo do machado sobre sua mão. Apontando novamente, ele disse:
— Eu mesmo limpei este local e coloquei as toras ao longo da trilha
até os lariços. —A dupla fileira de toras continuava avançando como
trilhos de ferrovia, desaparecendo entre as árvores—. Em minhas terras,
tenho o lariço virgem mais reto do mundo. Com toras assim, teremos
uma casa firme, vocês verão. Não vou usar estrutura de madeira, mas
toras inteiras, apenas achatadas para caber na medida certa, para que as
paredes sejam grossas e quentes.
Os troncos e as molduras de madeira não diziam nada a Anna, mas
ela podia ver pela floresta densa quanto trabalho havia dado a Karl para
limpar aquele caminho largo.
— Venham, colocaremos o arreio nos cavalos e começaremos.
Enquanto caminhavam para o celeiro, Karl perguntou:
—Você já montou uma parelha, garoto?
— Não... não senhor, — James respondeu, ainda olhando para as
toras por cima do ombro.
— Se você quer ser um bom carroceiro, primeiro deve aprender a
colocar os arreios. Eu vou te ensinar agora, — Karl disse decisivamente
—. A sua irmã também. Pode chegar a hora em que você precise saber.
Eles entraram no estábulo e Karl saudou os animais com palavras
carinhosas. Ele caminhou até eles e deu um tapinha no traseiro e no
pescoço; finalmente, ele esfregou a pele entre seus olhos. O celeiro era
pequeno e o espaço apertado.
— Venha—, Karl disse a Bill. Mas o cavalo estava muito calmo
esperando por mais carícias —. Venha—, repetiu Karl, mais sério,
espremendo o corpo entre o animal e a parede e dando uma forte
palmada em Bill para fazê-lo obedecer, mas não machucá-lo. Bill se
moveu, enquanto Anna ficou pasma ao ver como Karl ousou cravar seu
corpo entre um animal tão grande e a parede sólida do celeiro.
Karl estava despreocupado, confiante. Ele disse a James:
— Um cavalo que não sabe o que “Venha” significa precisa de um
vocabulário um pouco mais amplo. —Mas, mesmo enquanto dizia isso,
um sorriso brincava em seus lábios e suas mãos enormes alisaram a pele
do cavalo com carinho. —Lembre-se disso, garoto. E lembre-se de que os
cavalos falam mais do que palavras; as palavras são tão importantes
quanto o tom. O tom diz muito. As mãos falam mais. Um cavalo aprende
a confiar primeiro nas mãos e depois no próprio homem.
Durante todo esse tempo, as mãos de Karl correram ao longo do
dorso do animal, pousaram na cruz, deslizaram até os ombros, deram
tapinhas nos flancos e voltaram à cabeça. Ele olhou nos olhos de Bill e
disse:
— Você sabe do que estou falando, hein, Bill?
Ele conduziu o cavalo perto dos dois grossos ganchos de madeira
onde pendiam os arreios.
— Os cavalos são míopes, sabe, garoto? É por isso que um
movimento ao longe os afasta e, como não conseguem ver com clareza,
eles desconfiam. Mas se você mostrar a eles de perto, eles ficam calmos.
— Primeiro, a coleira—, continuou Karl. Ele ergueu o oval de couro
—. Isso é de Bill. — Ao ouvir seu nome, o animal balançou a cabeça e Karl
falou com ele: — Sim, você sabe que estou falando de você. Aqui está sua
coleira, amigo curioso. — Ele pacientemente mostrou ao animal o couro
antes de passá-lo sobre sua cabeça enquanto instruía os dois aprendizes
—. Devem ter cuidado para não confundir as coleiras, porque se as
coleiras erradas forem fixadas em um cavalo, eles sentirão dor no ombro
e no pescoço. Um cavalo se acostuma com sua própria coleira, assim
como você se acostuma com seus próprios sapatos. Você não daria a um
soldado que deve marchar as botas de outro soldado, daria, James?
— Não, senhor, claro que não, — James respondeu, ainda
observando Karl enquanto ele segurava a coleira atrás do pescoço de Bill
e puxava-a com firmeza até os ombros do enorme percheron.
Passando sua enorme mão entre o cavalo e a coleira, Karl
continuou:
— Tem que se ajustar, mas não muito. Você deve ter certeza disso,
porque se a traqueia for pressionada, o cavalo pode sufocar. Se estiver
muito frouxa, o atrito da correia irá irritá-lo machucar seus ombros.
Quando ele baixou o primeiro arreio do suporte na parede, seus
músculos ficaram tensos. Aproximando-se de Bill pela esquerda, Karl
posicionou o forcado na coleira, prendeu-o com a guia, caminhou até o
flanco do cavalo e ajustou a sela. Então ele deu um passo à frente para
prender a guia do peito no forcado. Antes de qualquer movimento, ele
deslizou a mão pelo corpo do animal e o acalmou com palavras suaves.
Bill estava imóvel; apenas um leve movimento dos olhos indicava que ele
estava acordado.
Karl instruiu os dois aprendizes usando o mesmo tom de voz que
usava para falar com Bill. As palavras eram instrutivas e calmantes e
transmitiam serenidade. Continuando ele segurou a barriga e, enquanto
Karl fazia tudo isso, Anna se sentia hipnotizada pelos movimentos
suaves das mãos dele no corpo do cavalo, por aquela voz no ouvido do
animal e no dela. Ela se pegou pensando repentinamente sobre aquela
noite e como seria se Karl a tratasse como Bill.
Ela se sobressaltou, percebendo que Karl havia colocado o bocado
no cavalo. Enquanto ele deslizava as rédeas pelos vários anéis de freio,
lhe perguntou se ela achava que poderia fazer tudo isso.
— Não, não sei. Acho que se conseguir tirar aquela coisa pesada da
parede, posso fazer o resto.
— Vou ter que alimentá-la bem para adicionar músculos aos seus
ossos—, disse Karl.
Anna descobriu que era capaz de olhar para ela de uma forma
engraçada, o que tornava seu comentário mais uma piada do que uma
crítica.
Em vez disso, James se gabou, muito seguro de si:
— Acho que consigo, Karl. Posso provar?
Com uma risada, Karl entregou ao menino a tarefa de selar Belle.
James lutou com o peso do arreio, mas com a ajuda de seu professor, ele
cometeu poucos erros ao amarrar o cavalo.
— Você tem uma memória muito boa.
Karl parabenizou James quando ele terminou sua tarefa. O menino
olhou para a irmã com prazer, como se tivesse inventado a arte de
pastorear.
Karl pacientemente explicou como e por que anexar a cadeira de
balanço de carvalho redonda às duas travessas menores. No centro
estava a braçadeira e, por fim, tudo estava pronto para a pesada
corrente de toras. Era um dispositivo enorme.
Mais uma vez, Anna podia ver a força dentro daquele homem
enquanto levantava a bobina de correntes e a arrastava para prendê-la
na braçadeira. Enquanto se ajoelhava para prender o gancho de rolagem
a um elo da corrente, ele disse:
— Ao sair sem carga, como agora, não deixe o gancho pendurado
na ponta da corrente. Ele pode se enredar nas raízes e, assim, ferir os
cavalos. —Ele se levantou e tocou o flanco quente do animal novamente
—. Sempre pense nos cavalos primeiro. Sem eles, um homem aqui se
sente impotente.
— Sim, s... s... senhor! —James respondeu.
Karl olhou para Anna por um breve momento e ela respondeu com
uma saudação militar, repetindo:
— Sim, s... s... senhor!
Karl sorriu. Ela parecia corajosa, apesar de seus ombros estreitos e
magreza. Hoje ela usava um vestido tão inadequado quanto ontem para
as tarefas fora de casa. Logo aprenderia. Assim que o trabalho
começasse, ela descobriria que roupas simples eram mais adequadas e
sua escolha seria diferente.
Enquanto isso, finalmente chegara o momento com que Karl havia
sonhado: o momento de ir juntos, marido e mulher, ao encontro de suas
árvores; para trabalhar ao sol e construir o seu futuro. Os três partiram
pela manhã de Minnesota. No meio do sol nascente, eles estavam
subindo a trilha de arrasto atrás da parelha. Os cavalos, com seu andar
medido e passadas longas, definiam o ritmo. Com as mangas enroladas
até o cotovelo, Karl segurava as quatro rédeas, reclinando-se da cintura
para cima para conter o puxão dos cavalos. O homem e a sua parelha
eram um só, cada um bem temperado e com músculos prontos para o
importante trabalho que os esperava.
Anna, apesar das pernas longas, foi obrigada a alongar os passos
para não ficar para trás. A saia longa roçava a grama matinal e logo ficou
molhada até os joelhos. Ela ignorou, ouvindo, cheirando, saboreando o
dia. A manhã tinha sua própria música, tocada pelo despertar da vida
selvagem, o rangido do couro, o chiar das correntes, o bater dos cascos.
O orvalho ainda estava espesso e a terra estava perfumada com o
perfume do verão. Havia o eterno cheiro de mofo de folhas mortas e o
hálito vivificante de vegetação renovada. Vidoeiros, faias, bordos,
nogueiras, olmos, choupos e salgueiros estavam cheios de vida.
Karl estava apontando e nomeando cada árvore ("um tipo de
madeira para cada uso que o homem deseja dar") como se nunca
pudesse exaurir aquela riqueza que possuía, não importa quantas vezes
a tivesse calculado.
— É engraçado... — Anna murmurou—. Sempre pensei que madeira
era só madeira.
— Ah! Quanto você tem que aprender. Cada madeira tem sua
própria personalidade. Cada árvore tem uma característica que a torna...
humana, individual. Aqui em Minnesota, um homem não precisa se
preocupar em não ter a árvore certa para suas necessidades.
Eles chegaram ao lugar dos lariços, pinheiros altos e esguios com
troncos escamosos e copas em camadas, balançando nas nuvens da
manhã.
— E esses são meus lariços—, disse Karl com orgulho, erguendo os
olhos—. Mais de cinco metros de tronco antes de começar a desbastar—,
comentou com orgulho—. Você percebe o que eu digo? É o melhor. Uma
cabana com mais de cinco metros está bem para você?
Ele olhou para Anna, perguntando-se se ela acreditava que ele
poderia construir uma casa tão grande.
— Isso é grande? — Ela perguntou, também olhando para o topo
dos lariços.
— A maioria tem quatro metros. Alguns têm quatro e meio.
Depende das árvores. Aqui, onde o homem tem lariço... aqui... um
homem tem muito. — Karl fez outra pausa—. Muito mais do que
suficiente.
Ao baixar o olhar para o tronco dos lariços, Anna percebeu que
Karl a observava e sentiu um arrepio.
— Muito. Suficiente, —ela disse suavemente, concordando com
Karl—. Cinco metros é muito.
Karl olhou para James como se de repente tivesse se lembrado de
que estava ali.
— E muito trabalho. Vamos, garoto, vou te mostrar como cortar
uma árvore.
Ele pegou seu machado e se aproximou do lariço; Caminhou ao
redor, medindo, estimando o curso de sua queda, olhando para cima e
para baixo, calculando o peso dos galhos. Depois de pensar por um
momento, ele disse:
— Sim, este é bom. Tem trinta e cinco centímetros de diâmetro.
Lembre-se agora, garoto: a tarefa será mais fácil se as árvores forem do
mesmo tamanho. Antes de começar, você deve levar em consideração o
vento.
James olhou para o céu e disse:
— Mas não há vento.
— Bom! Agora você levou isso em consideração. Se houver vento,
deve ser calculado a partir do primeiro golpe do machado.
Anna observava e apenas ouvia pela metade enquanto Karl
pacientemente descrevia os princípios básicos da extração de madeira.
Ela estava bastante absorvida pelo efeito que Karl tinha sobre seu irmão.
James bebia cada uma de suas palavras e até mesmo
inconscientemente imitava a maneira como Karl ficava com as pernas
afastadas enquanto os dois olhavam para o tronco alto e planejavam
como derrubá-lo. Quando James lhe fez uma pergunta, Karl passou a
bota sobre as agulhas de pinheiro que cobriam o chão para abrir um
pequeno espaço. Então ele quebrou um galho resistente e se ajoelhou
para fazer um desenho simples no chão com ele.
Anna sorriu outra vez quando James imitou o homenzarrão,
ajoelhado em uma perna e apoiando o cotovelo na outra, em um gesto
viril. Mas as costas de James pareciam muito mais esguias perto das de
Karl enquanto os dois se inclinavam para estudar o desenho. Karl
mostrou a ele onde estavam os entalhes, que ele chamou de "cortes";
Então ele explicou que o primeiro entalhe que fariam na árvore seria do
lado oposto à direção de sua queda. Anna prestou ainda menos atenção
às explicações quando Karl se espreguiçou, deixando as costas da camisa
tão apertadas que ameaçaram se partir em duas. Os olhos da garota
caíram para a cintura de Karl, hipnotizada ao ver uma pequena faixa de
pele exposta quando sua camisa foi puxada para cima. Os quadris de Karl
eram estreitos, mas suas coxas projetavam-se para fora ao se ajoelhar
assim.
Quando Karl se virou, Anna olhou para os lariços. Justo nesse
momento, James surpreendeu Karl ao dizer a palavra "cortes" e
perguntar onde eles deveriam ir e a que profundidade deveriam ser.
Karl sorriu para James e olhou para Anna, instruindo o menino
enquanto o provocava. Então ele disse:
— Aprendi a derrubar árvores - muitas, muitas árvores - na Suécia,
com meu pai e meus irmãos, e aqui, neste lugar, antes de você chegar. É
preciso muita prática para fazer essas coisas.
“Ele é tão paciente”, Anna pensou com admiração. Até mesmo sua
voz e atitude eram pacientes, assim como a expressão em seu rosto.
"Mesmo se eu pudesse ler e escrever, qualquer menino ficaria muito
mais feliz em ter um professor como Karl." Anna não era muito
tolerante. O rosto de James irradiava puro prazer enquanto ele estudava
o desenho simples, tentando memorizar as lições.
Karl se levantou, apoiando-se no machado. Movia-se com
agilidade, o machado sempre na mão, parte integrante de sua postura.
Anna começou a entender o significado das palavras: "para onde vai o
homem, vai o machado". Karl usava isso como uma extensão de si
mesmo.
Embora a ferramenta fosse pesada, Karl a segurava pela ponta do
cabo, perpendicular ao corpo, medindo a distância entre ele e a árvore.
As veias de seu braço saltavam como rios azuis que desapareciam na
manga enrolada de sua camisa. Os poderosos músculos do antebraço
pareciam ter bordas quadradas. Karl explicou que o primeiro corte tinha
que ser horizontal, na altura da cintura, e ele balançou levemente para
mostrar. Girando seus quadris e ombros, Anna podia ver cada músculo
se tensionar, e sentiu a força daquele corpo bem treinado.
Karl ergueu a ferramenta e deslizou o cabo pela palma da mão até
que a lâmina do machado pousou na ponta de sua mão. Ele então
apontou com a ponta afiada:
— Leve sua irmã para lá. Quando uma árvore cai, ela pode se tornar
uma assassina, se você subestimar. A tora pode se partir e saltar muito
longe, tão rapidamente que um garoto ágil como você não conseguiria
escapar.
Ele voltou seus olhos azuis para Anna, que baixou os dela e seguiu
James rapidamente.
Uma vez que estavam a uma distância segura, Karl começou a falar
palavras que estava acostumado a ouvir desde menino.
— Um homem que vale seu peso deve saber exatamente onde a
árvore vai cair. Alguns dizem que se você cravar um prego no chão, um
bom sueco digno de sê-lo consegue enterrá-lo com o tronco da árvore
que cai.
Sorrindo, ele encontrou uma raiz nodosa e apontou o machado
para ela novamente.
— Está vendo aquela raiz ali perto do carvalho? Bem, vai se dividir
em duas.
Ele se voltou para o lariço. Desde seu primeiro movimento, Anna se
sentiu transportada. Karl ergueu o machado, girou-o primeiro para a
esquerda e depois para a direita, enquanto ela continuava a observar.
Em um movimento fluido, ele manipulou a ferramenta em um ritmo
perfeito, sua mão direita deslizando para encontrar a esquerda no
momento certo do impacto. Com a facilidade de uma longa experiência,
ele ia e vinha da direita para a esquerda, fazendo com que as farpas
voassem alto pelo ar. O ritmo era implacável e os olhos de Karl nunca
deixaram o tronco da árvore. O machado produzia um som sibilante ao
rasgar o ar, e um golpe percussivo cada vez que o aço encontrava a
madeira.
Anna e James não puderam deixar de olhar para cima quando os
cortes cada vez mais profundos começaram a sacudir a árvore. Um
grande tremor também começou a sacudir o estômago de Anna. O
homem, o machado, o movimento, a árvore - tudo contribuiu para um
espetáculo inebriante que acelerou seus batimentos cardíacos e a forçou
a segurar o estômago com as duas mãos. Então, a angustiante crise final
começou e, lentamente, o tronco áspero começou a se inclinar. Karl
apoiou a lâmina do machado contra a árvore novamente, empurrou e
recuou. Ele se virou para olhar seus dois aprendizes, que estavam de
queixo para cima. Anna apertou a barriga, enquanto o menino tinha as
mãos cruzadas sobre a cabeça em uma espécie de êxtase. A ponta do
machado deslizou para descansar na mão de Karl enquanto o tronco
balançava, tremendo, e finalmente cedeu com um estrondo final de
casca e miolo, até que o rugido de galhos e folhagens veio no momento
em que a árvore desabou, com um estrondo infernal, na terra cheia de
agulhas.
O relinchar dos cavalos mal foi ouvido; então houve o silêncio mais
poderoso que Anna já ouvira. Ela olhou para Karl através das partículas
de poeira suspensas nos feixes de luz e o encontrou olhando para ela
com um leve sorriso no rosto. Ele estava muito calmo, sempre com o
machado, como se fosse outra pessoa que tivesse derrubado aquela
árvore; relaxado, um joelho dobrado, dedos enrolados em torno do cabo
do machado, uma fina camada de poeira caindo sobre seus ombros, uma
chuva de galhos de lariço caindo perto dele.
E para onde olhasse... em todos os lugares ... a fragrância
inebriante do lariço: doce, fresco e vital.
Antes que ela pudesse controlar, a sensação completa que a
embargava se refletiu em seus olhos. Talvez, pela primeira vez na vida,
ela tivesse se dado conta da beleza como um todo. Naquele breve
instante, Karl Lindstrom pôde ler no rosto de Anna e soube que ela
sentiu o mesmo que ele quando a árvore caiu no chão e pousou com a
parte mais distante na raiz nodosa do carvalho: satisfação.
Naquele momento, James apareceu, o que quebrou o feitiço;
Saltando e agitando os braços, ele se virou para Karl e exclamou:
— Que ótimo! É algo sensacional! Quando posso fazer o mesmo?
Karl riu da maneira usual e, com seu machado, deu um tapinha no
estômago de James.
— Acho que você não vai derrubar muitas antes de perguntar
quando pode parar. Não é, Anna? —Não queria quebrar o clima de
afinidade que se criou entre os dois.
— Quantos você pode derrubar antes de parar? —Anna perguntou,
aproximando-se, ainda fascinada com o que tinha visto.
—Quantos precisar—, respondeu Karl, —enquanto meus dois
assistentes cuidam dos galhos menores e arrastam as toras pelo
escorregador. Agora devemos cuidar de podar a árvore e cortá-la.
— Cortar? —James se aventurou a perguntar.
— Cortar a árvore no comprimento que precisamos.
Se puseram a trabalhar juntos, usando o machado e a machadinha
para podar os galhos irregulares do lariço. Anna recebeu a tarefa de
arrastar os galhos ainda mais e formar uma pilha.
Quando a árvore ficou limpa, Karl mediu com o comprimento do
machado, fez um pequeno entalhe de cinco metros e se sentou nele.
Agarrando o machado novamente, ele saltou sobre a casca áspera, seu
peso perfeitamente equilibrado entre seus dois pés, espaçado a uma
certa distância, e o entalhe estava a meio caminho entre suas botas.
Desta vez, ele falou entre movimento e movimento, explicando a James
que os dois cortes que ele faria, um de cada lado do tronco, deveriam
formar um ângulo de quarenta e cinco graus entre eles.
O machado disparou e investiu repetidamente. A cada golpe, Karl
inclinava-se cada vez mais para baixo até que, dobrando-se na altura da
cintura, seguiu cortando. Imediatamente, com a agilidade de um
macaco, ele se virou, curvando levemente os dedos dos pés para manter-
se sobre o tronco, enquanto afiava o corte oposto com golpes precisos.
Ele pulou da árvore, deixando para trás as partes cortadas, cada uma
com uma extremidade em forma de V.
Quatro outras árvores foram derrubadas e cortadas.
— Um bom lenhador não destrói a floresta, ele apenas a limpa—,
explicou Karl—. De modo que pegamos uma árvore daqui, outra dali,
outra de além.
Depois que as toras foram podadas e agora estavam prontas para o
transporte, Karl mostrou a técnica adequada para levantar a carga,
dobrando os joelhos em vez das costas. Com grande esforço, ele levantou
a ponta de um tronco e James jogou a corrente pesada atrás dele.
Quando os cavalos foram trazidos, Karl deu as instruções:
— Enganche a carga perto da gangorra, garoto, como eu te mostro;
dessa forma, arrastar é mais fácil para os animais.
Acompanhado pelo som da corrente quando o enorme gancho caiu
no elo, Karl avisou:
— Quando você faz isso sozinho, você deve ficar de lado enquanto
trabalha. Só um tolo se interpõe entre a parelha e a carga.
Então Karl deu um único comando e os cavalos puxaram a carga
até o fim da trilha de derrapagem. Enquanto se movia, Karl continuou a
instruir o jovem, que se adaptou ao ritmo dos passos do homem,
esticando as pernas de maneira forçada.
— Quando estiver arrastando carga, você deve pensar antes de dar
a ordem de virar. Sempre mantenha um ângulo de tiro amplo para
proteger seus cavalos. Quanto mais reto o caminho, mais fácil será o
trabalho para eles.
Voltando com os cavalos para o segundo tronco, a voz de Karl
mudou; apenas um leve clique fez os cavalos se moverem. Mas como a
carga estava pesada, Karl falava com eles em tons melódicos:
— Quieto... ago... ra.
E os dóceis animais flexionaram seus ombros maciços, inclinando-
se para sua carga, os músculos trabalhados pacientemente, conforme
ordenado. E era o mesmo a cada novo tronco: conselhos ao menino e
ordens à parelha, cada um tratado com o respeito devido à sua
inteligência e habilidade.
Nunca em sua vida Anna tinha visto seu irmão tão feliz. Ele
absorvia cada palavra que Karl dizia, ajoelhava-se e sentava-se quando
Karl o fazia, prestava atenção quando Karl explicava, caminhava em
passadas largas, imitando-o. Finalmente, Karl entregou-lhe as rédeas e
disse-lhe para levar a parelha ao próximo tronco; então o menino
perguntou com uma expressão ansiosa nos olhos:
— De verdade, Karl?
— Claro. Você quer ser carroceiro, certo?
— S... s... sim, senhor... mas...
— Os cavalos devem aprender a se acostumar com você. Algum dia
tem que começar.
James enxugou as palmas das mãos nas calças.
—Estarei ao seu lado—, garantiu Karl—. Você simplesmente tem
que segurar as rédeas como eu mostrei, sem puxá-las. Belle e Bill sabem
o que fazer. Eles vão te ensinar tanto quanto eu, você vai ver.
O menino pegou o couro macio em suas pequenas mãos e disse, em
um tom amoroso:
— Tran… qui… los, ago… ra.
Com os primeiros passos dos cavalos, os olhos de James se
arregalaram de espanto.
Mas Karl falou com ele, dando-lhe confiança, como fazia com Belle
e Bill.
— Você está indo bem, garoto, deixe eles manterem a cabeça...
Sim... bem... Agora rédea esquerda, devagar... devagar... bom.
Quando os cavalos estavam perto do próximo tronco, James
começou a sorrir. Seu coração deu um salto no peito de excitação. Karl
também parecia satisfeito.
— Você vai se sair bem desde que não se apoie nas toras ou
caminhe ao lado delas, uma vez que começamos a arrastar pelo caminho
com as toras localizadas nas laterais. Se a ponta de um tronco atingir
uma árvore, ele pode voar e quebrar suas pernas como se elas não
fossem nada além de lenha. Sempre ande atrás da carga.
— Sss... sim senhor, eu vou lembrar.
Instruções adicionais foram necessárias quando a carga de toras
foi presa com uma corrente em cada extremidade, antes de ser rebocada
pelo caminho até o local da futura cabana. Todos eles marcharam juntos
com a primeira carga. Karl permitiu que James tomasse as rédeas,
mostrando-lhe a velocidade correta e a importância de evitar os tocos
que ladeavam a estrada aberta e eram perigosos para os cavalos e para o
condutor. Ele também explicou como mantinha a inclinação suave para
evitar o risco de uma carga atingir os jarretes dos cavalos.
Quando as toras foram descarregadas na clareira, Karl lavou os
cavalos e explicou que eles nunca deveriam receber água gelada com
corpos quentes. Em vez disso, ele usou a água retirada naquela manhã.
Ele os alimentou com feno e grãos e os lavou novamente; finalmente, ele
permitiu que os cavalos descansassem. Os três entraram em casa para
almoçar.
Após o almoço, James conduziu a parelha, descarregada, para a
trilha do caminho. Karl ficou satisfeito ao ver que o menino se lembrou
de prender o gancho nos elos antes de sair. Karl e Anna o seguiram; ele,
encharcado de suor e carregando seu machado e rifle; ela, com seu nariz
rosado, carregando a machadinha e uma cesta para recolher pequenos
pedaços de madeira.
— Você é um bom professor, Karl — disse Anna, observando suas
botas esmagarem a grama a cada passo, incapaz de encontrar seus olhos.
— O menino é rápido e teimoso—, Karl respondeu modestamente,
olhando para a frente.
— Nunca o vi tão feliz. —Anna olhou para ele furtivamente.
— Não? —Olhos azuis fitaram o rosto de Anna, que se movia ao lado
dele, as duas sombras juntas ao sol do meio-dia.
— Não, — Anna disse pensativa. — Ele nunca esteve perto de um
homem antes.
— E seu pai?
Ele olhou para Anna, mas a garota desviou o olhar para James e os
cavalos.
— James nunca conheceu seu pai.
— E você?
Ela olhou para ele por um momento antes de admitir:
— Eu também não. —Então ela se abaixou sem perder o ritmo,
pegou uma varinha e começou a esfregar a ponta com a unha.
— Sinto muito, Anna. As crianças devem conhecer seus pais. Eu
mesmo não teria sido capaz de vir aqui e começar este tipo de vida sem
os sábios ensinamentos de meu próprio pai.
— E agora você está ensinando tudo para James, — Anna disse,
pensativa novamente.
— Sim, tenho sorte.
— Sorte? —A jovem perguntou.
— Que homem não se sentiria sortudo se pudesse manter vivo tudo
o que lhe foi ensinado, passando para outro aluno ansioso por aprender?
— Então, estou perdoada, Karl, por trazê-lo sem avisar antes?
— Já te perdoei mil vezes, Anna — disse Karl. Ele se perguntou se
alguma vez havia realmente se incomodado com o jovem.
— Você realmente gosta de ensiná-lo?
— Sim muito.
— James aprendeu muito esta manhã, e eu também.
— Foi uma manhã memorável. Especialmente pelo que fui capaz de
ensinar-lhes. —Ele olhou para os ombros magros do menino, que
conduzia os animais na frente deles; então, ele percebeu a magnífica
floresta que os cercava; finalmente olhou bem nos olhos de Anna e
terminou dizendo: — Na manhã em que começamos a construir nossa
cabana de toras.
Havia uma expressão serena em seu rosto, a expressão de um
homem que sabe onde esteve, onde está e para onde vai.
Para Anna, que nunca teve o privilégio de tal conhecimento,
aquela expressão falava claramente da paz interior obtida simplesmente
por conhecer a si mesmo.
“Não, eu não sei quem era meu pai. Não sei de onde venho, não sei
onde vou acabar quando Karl souber do meu segredo. Mas agora está
tudo bem. Sim, muito bem”, pensou ela, e continuou caminhando ao
lado do marido para continuar o trabalho naquele dia de sol, enquanto
as farpas voavam novamente pelo ar, perfumando-o, e o som do
machado voltava das paredes estofadas em verde daquela floresta que os
cercava.
CAPÍTULO 7
O trio se uniu a uma rotina de machado, poda, içamento,
enganchamento e conduzir conforme o dia avançava. O sol estava
batendo em seus ombros. Karl tirou a camisa e trabalhou com o peito nu.
Anna não conseguia evitar que seus olhos deslizassem, de vez em
quando, para a cabeça dourada, o torso bronzeado, os quadris estreitos,
os braços curvos. Seus movimentos bem poderiam ser os de um
dançarino. O torso de Karl, semelhante aos lariços, afinava do ombro ao
quadril. Os músculos de seus braços se destacavam, endurecendo com o
movimento, e ressaltavam os nervos em seu pescoço. As veias em seus
braços eram claramente definidas cada vez que ele mantinha o machado
suspenso sobre sua cabeça em seu ponto mais alto. Por trás, Anna
observava enquanto os músculos de seus ombros aumentavam a cada
golpe da lâmina, relaxando quando Karl relaxava, e logo voltavam a
afrouxar.
De vez em quando, Karl se abaixava para remover um pedaço de
tronco ou galho do cabo do machado, equilibrando-se com o pé traseiro.
Então o olhar de Anna foi atraído para o lugar onde a sombra da coluna
desaparecia nas calças de Karl.
Às vezes, sem aviso, Karl se virava e a encontrava olhando para ele;
Anna então baixava o olhar, rapidamente, notando o cabelo dourado em
seu peito que descia por seu abdômen.
— Você está cansada, Anna? —Perguntava Karl. — Está com calor,
Anna? Tome algo.
A jovem desviava os olhos e olhava para o caminho de toras.
Logo outra árvore caia com estrondo e os dois estavam gostando
da emoção que isso produzia. Naquele momento, seus olhos mal se
encontraram e começaram a trabalhar lado a lado; ele, com seu
machado, e ela, com sua machadinha; galhos foram removidos enquanto
James continuava a arrastar a carga com a parelha.
A certa altura, Karl ergueu os olhos de sua tarefa e disse:
— Suas bochechas vão queimar. Aqui está meu chapéu.
Ele lhe colocou o chapéu de palha manchado, que ainda retinha
seu perfume.
— Uma vez eu tive um chapéu de palha—, disse Anna,
concentrando-se no trabalho—. Uma das mulheres em... alguém que eu
conhecia me deu, mas ele já estava velho quando a dona decidiu se
desfazer dele. — Ela arrancou outro galho e acrescentou: — Tinha uma
fita rosa em volta do topo.
— Chapéus com fitas rosa são raros aqui em Minnesota.
— Não importa, tanto faz—, disse ela, e começou a arrastar uma
carga de galhos em direção à pilha de arbustos.
Karl notou dois círculos escuros sob os braços de Anna e disse:
— Há um lugar fundo no meu riacho, onde todos podemos nos
refrescar ao pôr do sol.
— Qual a profundidade? — Ela perguntou, sem ter certeza do que
ele queria dizer com "nos refrescar". Que roupas usariam?
— A água cobre sua cabeça.
— Não sei nadar.
— Te ensinarei.
— A agua é fria?
— Não tanto quanto a água do manancial.
— Ah, é melhor que seja assim!
— Você vai tentar, então?
Finalmente ela parou de puxar os galhos e olhou para ele.
— Vamos ver.
— Você realmente não gosta de tomar banho?
Desconfortável agora, ela se lançou mais uma vez contra um galho.
— Nunca tivemos que fazer isso antes. Quero dizer, ninguém nunca
nos forçou. Não havia ninguém para nos dizer o que fazer.
— E sua mãe? — Karl perguntou surpreso.
Anna se sacudiu com tanta violência que teve que se levantar para
recuperar o equilíbrio.
— Nada poderia preocupá-la menos—, disse ela, seu tom
inexpressivo.
Quando Anna e James fizeram sua última viagem colina acima, as
sombras já haviam se alongado e seus passos encurtados. Eles
cambaleavam atrás de Karl, que marchava em passos largos, confiantes e
vigorosos.
Observando o par de assistentes enrugados, Karl riu.
— Vá para casa, vocês dois, mas não queimem nada. Estarei de volta
assim que terminar com os cavalos. — Sabia bem como eles estavam
cansados depois do dia que tiveram.
Karl teve que acender o fogo e preparar a comida. Ele ensinou a
James a maneira correta de acender o fogo e a Anna a preparar um
ensopado. Por Deus! Os dois olhavam para ele com indiferença, quase
dormindo em suas cadeiras. Quando a carne de veado, os nabos e as cebolas
estavam fervendo na lareira, Karl não pôde deixar de rir de seus
companheiros cansados novamente.
— Se eu não fizer nada para acordá-los, terei que comer o guisado
eu mesmo. E eu já tinha muitas refeições solitárias. Venham! — Ele deu a
cada um um leve toque com o cotovelo—. Acho que é hora de ir nadar.
Os dois seguiam sentados exaustos enquanto Karl juntava roupas
limpas e algumas flanelas para secar.
— Vamos, tragam suas roupas e me sigam.
— Karl, você é uma mula implacável! —Anna reclamou, em uma
onda de intimidade.
— Sim, eu admito—, ele concordou com um sorriso. — E você,
Anna, é uma mula cansada.
Envergonhada, ela teve que segui-lo e ordenou que James fizesse o
mesmo.
O grupo contornou a margem do córrego, um caminho estreito
usado por índios e animais no passado. O riacho sussurrante borbulhava
entre seixos em alguns lugares e fluía mais suavemente em outros. Na
maior parte de sua extensão, ele poderia ser cruzado em um único salto.
Karl os conduziu a um lugar onde, com a ajuda de castores, uma lagoa
serena se formou acima de um dique. Samambaias e avencas roçavam os
joelhos, enquanto esporas espiavam sob as folhas.
A última coisa que Anna desejaria no mundo era entrar naquela
água gelada.
— Você faz isso todos os dias? — Ela perguntou a Karl. Seu marido
já estava tirando a camisa.
— Todos os dias durante o verão. No inverno, uso meu próprio
banheiro, onde não descanso até estar limpo, como na Suécia.
— Você é obcecado por limpeza?
Ele olhou para ela, camisa na mão, enquanto ela não fez nenhum
movimento para se despir.
— As pessoas tomam banho para se manterem limpas.
— Claro—, disse Anna sem convicção.
— Porque não…? — De repente, ele se sentiu tímido. — Por que
você não coloca suas coisas no meio dos salgueiros enquanto James e eu
entramos na água?
Sem dizer nada, Anna dirigiu-se ao abrigo.
—Vamos, James, — ela ouviu depois de dois salpicos—. Vamos nos
esconder atrás da represa do castor enquanto sua irmã entra na água.
Anna ficou de roupa interior e saiu furtivamente do esconderijo.
Os homens se foram e deixaram suas roupas empilhadas. Anna hesitou.
Um único dedo na água confirmou o que ela suspeitava: a água estava
congelada! "Mantenha-se limpa", disse ela a si mesma, fazendo uma
careta ao mergulhar.
Quando ela gritou, houve risos; então James a chamou:
— Venha, Anna. Não é tão ruim quando você se acostuma e se
move um pouco.
Anna se sentou e gritou novamente:
— James Reardon e Karl Lindstrom, são dois mentirosos e eu os
odeio!
Em resposta, uma risada alta foi ouvida acompanhada pelo chilrear
de alguns pássaros que, empoleirados nos galhos, observavam esses
humanos tolos removerem sua plumagem antes de se banharem.
— Já estou dentro, podem sair! — gritou.
Quando Karl e James apareceram e foram até ela, ela não teve
escolha a não ser mergulhar até o pescoço. Ela não queria que nenhum
deles notasse seus mamilos ásperos através do tecido fino que a cobria.
— James, você é um traidor! — Anna brincou—. Você nunca gostou
de tomar banho mais do que eu.
— É diferente quando você mergulha bem fundo. — A cabeça de
James desapareceu de repente, um sorriso em seus lábios. — Eu te
desafio a mergulhar, Anna!
— Ah sim? — Corajosamente, ela mergulhou, mas rapidamente se
inclinou para fora, tremendo e balbuciando. Com os olhos ainda
fechados, ela repreendeu Karl de brincadeira—: Odeio o seu riacho, Karl
Lindstrom! Você não pode aquecê-lo para mim?
— Vou descer para fazer o pedido. — Ele balançou os pés e se atirou
de cabeça, revelando por um milissegundo um pequeno pedaço de pele
branca. Ele apareceu imediatamente e exclamou: — Sinto muito, Anna!
Os castores discordam. Não pode estar mais quente.
Ele se aproximou da jovem, nadando em grandes braçadas sem
nenhum esforço.
— Venha, vou levá-los até a beira do dique e depois nadar de volta
para a praia. Não tenha medo.
Ele a pegou pelas mãos sob a água e tirou seus pés do fundo,
lentamente. Anna deslizou para baixo, engolindo água. Karl sorriu ao
ver como as gotas haviam grudado em seus cílios e cabelos.
— Não me leve muito longe—, ela implorou.
— Não te preocupes. Acha que vou arriscar sua vida agora que você
está aqui?
— Talvez—, ela gaguejou—. O que você vai fazer com uma mulher
que não sabe cozinhar um guisado?
— Eu posso fazer várias coisas—, Karl disse baixinho para que
James não pudesse ouvi-lo. Sua boca e a de Anna estavam meio
submersas na água. Eles se moviam levemente, de mãos dadas, olhando
nos olhos um do outro, os cílios grudados na água, os cabelos penteados
para trás e a pele brilhando por causa do ocasional fio d'água que os
sulcava.
— E uma mulher que não sabe amassar pão?
— Ela pode ser ensinada—, ele gaguejou, a água cobrindo seus
lábios.
— Nem faz sabão?
— Ela pode ser ensinada—, repetiu.
— Para fazer ou usar?
— As duas coisas. — Ela abriu a boca, encheu-a de água e jogou-a
entre os olhos.
— Seu tirano sueco! — gritou. O seguiu, mas Karl afundou
rapidamente, perto de James.
— Seja boazinha e eu vou te ensinar a nadar de novo—, disse Karl
provocativamente.
— Por quê? Se eu não gosto da sua lagoa miserável, de qualquer
maneira.
Mas uma expressão séria cruzou o rosto de Karl. Então ele apontou
bem atrás dela e perguntou a James, — Não é uma tartaruga?
A pobre Anna quase quebrou a nuca lutando na água. Suas mãos
agarraram a água desesperadamente enquanto ela lutava para sair. Em
seu caminho para a costa, seus calções caíram para revelar suas nádegas
brancas. Então ela se virou e gritou com eles com raiva, com as mãos nos
quadris:
— Karl Lindstrom, não pense que vou entrar na água de novo! Não
foi nada divertido!
Mas Karl e James bateram palmas na superfície da água com um
prazer quase ofensivo, caindo para trás, como tolos, enquanto Anna se
perdia no mato. Mortificada e trêmula, ela se sentou na grama e
envolveu seus próprios braços ao redor dela enquanto os dois homens
subiam à superfície e submergiam para explorar o perímetro ao redor da
represa do castor. Embrulhada, ela ficou lá, até que Karl nadou até ela.
— Vamos, Anna. Eu não vou mais te provocar.
Anna cruzou as mãos sobre o peito. Seus mamilos pareciam, agora,
pontas de lança.
— Eu tenho que ir te buscar? — Karl ameaçou e deu mais um passo
à frente. O olhar de Anna caiu para o nível onde a água contornava os
quadris de Karl e revelava as depressões logo abaixo dos ossos do
quadril.
— Não, estou indo!
Anna saltou, mergulhou e se atreveu a ir mais longe do que antes.
Karl a ensinou a rolar de costas e agitar as mãos ao lado do corpo, como
um peixe usando as nadadeiras. Mas deitada assim, enquanto o braço de
Karl a sustentava por trás, seus seios pareciam duas ilhas cobertas
apenas por um véu de algodão, fino como uma nuvem, escondendo as
olheiras mais escuras. Com um movimento rápido, ela rolou de bruços
novamente.
Anna e Karl foram à deriva até a beira do dique e nadaram várias
vezes em direção à costa. Em uma ocasião, voltando para a costa, ela
passou por cima das ondas e entrou em pânico quando sentiu que seus
pés estavam vazios. Karl a segurou por trás com uma rápida flexão de
seu braço de aço, e novamente os pés dela tocaram a areia. Mas a mão de
Karl permaneceu em Anna muito depois de o perigo ter passado; Ele
acariciou suas costelas, tocou a base de seus seios e puxou-a para sua
própria nudez sob a água.
Então James se aproximou e Karl a soltou. Os três foram em
direção à costa.
Quando Karl anunciou que o ensopado deveria estar pronto, Anna
ficou surpresa ao descobrir que ela havia esquecido seu cansaço
enquanto eles brincavam. Cada um foi separadamente se secar e se
vestir, e então caminharam juntos a caminho da casa. Não foram
sozinhos, pois foram acompanhados pelo canto dos pássaros e o coaxar
das rãs que vinham orquestrar àquela hora do crepúsculo.
Um cheiro agradável os saudou da porta. Karl gostou
especialmente da refeição ao observar Anna e James devorarem o
ensopado, o suficiente para dois ursos. Antes de os pratos serem
esvaziados pela última vez, James começou a cabecear e logo sua irmã o
seguiu. Karl rapidamente os levou para a cama.
Já era noite cheia quando Karl acendeu o cachimbo e se dirigiu ao
estábulo. Belle e Bill, bufando lentamente, mudaram de posição,
satisfeitos e o cumprimentaram do estábulo. Eles sabiam quem havia
entrado; eles reconheciam o visitante como parte integrante de si
mesmos. A mão macia acariciou as partes largas entre os olhos.
Finalmente, conforme o tabaco do cachimbo se tornava mais penetrante
à medida que ia morrendo, Karl disse em voz profunda:
— É vigorosa, minha Anna. O que você acha, Bill? Não é tão fácil de
domar quanto sua Belle, hein?
Na casa de adobe escura, Karl largou o cachimbo e se despiu. Ele se
acomodou nas mantas envolventes. Com um gesto automático, ele
estendeu a mão para rodear Anna, que estava dormindo. Ele a puxou
para si, sentindo satisfação e necessidade. Ele pensou nos seios de Anna
e se lembrou de como os tinha visto na água. Estavam tão perto agora,
em seu braço... Tudo o que ele tinha que fazer era correr seu braço
lentamente, deslizar sua mão para cima, e ele estaria tocando seu peito
finalmente. Como ele queria acariciá-la, saber como era aquele primeiro
contato!
Mas Anna dormia, totalmente exausta, enquanto Karl sofria,
atormentado por seu senso de justiça. Quando ele se uniu a Anna, ele
queria que fosse algo compartilhado. Ele a queria acordada, consciente,
receptiva e sensível.
Isso poderia esperar. Havia esperado todo esse tempo para aliviar
sua solidão. O que os três compartilharam hoje seria o suficiente por
agora. Isso e o toque de seu corpo adormecido, curvado sobre sua
própria barriga, e a textura de seu cabelo, onde ele apoiou a cabeça,
acima de suas costas.
CAPÍTULO 8
Anna acordou com uma miríade de sons: o canto confuso dos
pássaros, que mais parecia uma tagarelice sem melodia, os golpes de
machado, vozes masculinas, uma risada repentina. A cama estava vazia
ao seu lado. Também o colchão no chão. A porta da cabana estava
aberta, dando boas-vindas ao longo raio de sol, que se espalhava pelo
chão como um fio de ouro. Ela cerrou os punhos, esticou-se e se
contorceu, saboreando a essência de tudo: sons, sol, conforto.
Ao se levantar, encontrou um quarto improvisado: um canto
separado do resto do quarto por um cobertor pendurado em uma corda.
Quando Karl entrou, ele a viu por trás. Ele olhou para ela com
apreço, enquanto Anna enfiava a cabeça atrás da cortina para investigar
seu canto privado.
— Bom dia, Anna.
Anna se virou para ele para encontrá-lo sorrindo para ela, a luz do
sol atrás dele, abraçando uma carga de lenha contra o peito. Na outra
mão ele carregava seu machado, como sempre.
— Bom dia, Karl. — Ela estava de pé, os dedos dos pés enrolados no
chão de terra, a camisola amarrotada, o cabelo totalmente indomável.
Karl não poderia ter gostado mais da aparência dela.
De repente Anna percebeu que os dois estavam sorrindo
estupidamente: ele, com mais de dez quilos de madeira em um braço;
ela, com um cobertor cruzado na frente de seus olhos. Ela olhou para a
corda da qual estava pendurado, sacudiu o pano para ver seu
comprimento e perguntou:
— Você remodelou sua casa para mim?
Karl riu e respondeu:
— Acho que sim.
Então ele foi até a lareira com a carga.
— Obrigada — Anna disse para suas costas poderosas enquanto se
inclinava, fazendo soar a madeira.
Karl se virou e deu uma rápida olhada em seus seios e depois no
rosto de Anna.
— Eu devia ter pensado nisso ontem, com o menino aqui e tudo.
Anna, perturbada, tendo seguido a direção dos olhos de Karl,
imediatamente perguntou:
— Você estava ensinando ele a usar o machado?
— Sim, com algo menor que um lariço em pé.
— Como fez?
James entrou naquele momento e respondeu à pergunta.
— Olha, Anna! Eu cortei quase toda madeira que Karl trouxe.
— Quase toda? — Karl repetiu inclinando a cabeça.
— Bem... pelo menos metade.
Os três riram em uníssono; então James perguntou:
— Que balde devo usar para o leite?
— Qualquer um dos que estão no manancial—, respondeu Karl,
apontando para o lugar.
Antes de sair correndo, animado e ansioso, James murmurou:
— Você estava certo, Karl. Nanna voltou para casa sozinha para ser
ordenhada, e ela veio direto para mim e cheirou minha mão como se
soubesse que eu cuidaria dessa tarefa de agora em diante.
Anna entendia o quanto esse lugar, essas responsabilidades, esse
homem significavam para um garoto de treze anos; Ela também
percebeu como seria bom para seu irmão crescer e se tornar um homem,
levando uma vida assim.
— James está tão feliz, Karl! — Ela exclamou, não encontrando
outra maneira de expressar isso.
— Eu também—, respondeu Karl, virando-se para olhá-la por cima
do ombro; então ele se agachou para retomar a tarefa de acender o fogo.
Quando a jovem desapareceu atrás da cortina, Karl ficou intrigado
ao ver seus pés descalços aparecendo por baixo, e esqueceu o que estava
fazendo. Ele observou a camisola cair enrolada em torno de seus
tornozelos, a protuberância do cobertor aqui e ali. Os pés de Anna se
voltaram para o tronco, que havia sido deixado atrás do cobertor. Então
ela pareceu se equilibrar em um pé.
— Ai!
A exclamação veio da lareira.
— Karl?
— O que houve?
— Nada.
— Então por que você gritou "ai"?
— Acho que haverá um pouco de pele queimando com o fogo, só
isso.
Anna manteve as mãos paradas. “Karl fez um movimento errado
com o machado?” Ela se perguntou, pensativa. "Karl?" Então, olhando
para seus pés descalços e o espaço entre a cortina e o chão, ela abriu um
largo sorriso.
Quando o fogo já estava queimando, Karl perguntou:
— Você sabe fazer panquecas?
— Não.
— Você saberá depois de hoje. Achei que poderia desistir das
tarefas de cozinha assim que você chegasse e me dedicar a ser nada mais
que um lenhador. Mas primeiro terei de ensinar você a fazer panquecas.
Anna fez uma careta. Ela preferia as tarefas da floresta às da
cozinha, mas fechou o último botão e saiu para enfrentar seu destino
doméstico.
— Então me mostre como fazer uma panqueca—, ela ordenou em
um tom afetado de autoridade.
— Anuuuh! — Ele exclamou ao vê-la, exagerando na pronúncia de
seu nome. — O que é isso que você está vestindo?
— Calças. — Ela as tocou com as mãos.
— Calças? Sim, vejo que são calças mas... você é mulher.
— Karl, ontem minhas saias molharam até os joelhos antes de
chegar aos lariços. E elas se enrolaram nos galhos e me fizeram tropeçar
e estão manchadas de resina por tê-las arrastado pelo arbusto. E... e você
estava tornando meu trabalho mais difícil, então decidi experimentar
uma calça de James. Veja! — Ela se virou—: Ficam bem em mim!
— Sim, entendo, mas não sei o que pensar. Na Suécia você não
encontraria nenhuma dama de calças, nem mesmo escondida no
armário.
— Tolices! — Ela respondeu rapidamente, mas em um tom gentil. —
Na Suécia, com certeza há tantos homens para construir as casas que
eles não precisam das mulheres para ajudá-los, certo?
— Sim, é verdade—, ele admitiu relutantemente. — Mas, Anna, eu
não sei, com essas calças ...
— Bem, eu sei. Eu sei que não quero tropeçar nessas saias
encharcadas. Além disso, quem vai me ver, exceto você e James?
Karl não conseguiu apresentar um argumento lógico. Ele havia
considerado seus vestidos inadequados. Mas calças? Ele não pôde deixar
de dizer:
— Suponho que não havia ninguém em Boston para impedir você
de andar de calças quando você queria, certo?
Anna olhou para ele e depois desviou o olhar. Encontrou a cama
ainda desfeita e começou a esticar os lençóis.
— Fazia quase tudo o que queria lá.
— Estou certo disso. E você não quis aprender a fazer massa de
panqueca?
— Aqui estou—, disse Anna, e estendeu os braços com as palmas
para cima, — pronta para aprender. Mas não posso prometer que goste.
Karl explicou que precisou adaptar a receita da mãe para fazer
panquecas suíças finas e leves, porque precisava ficar sem ovos.
Ele parecia tão ridículo, esse Karl enorme, de pé ao lado da mesa,
batendo a massa da panqueca, que Anna não pôde deixar de provocá-lo.
Ao longo da aula, ela se recusou a ficar séria, enquanto Karl lhe dava
instruções, usando medidas curiosas.
— Duas palmas cheias de farinha.
— Palmas de quem? Tua ou minha? — Ela o provocou.
— Duas pitadas de sal.
— Eu teria que pedir tuas palmas e dedos emprestados quando for
fazer, porque são de tamanhos diferentes dos meus.
— Bastante bicarbonato de sódio, fermento, para encher meia
casca de avelã.
— E se eu nunca tivesse visto uma avelã? — Ela perguntou
maliciosamente.
Ele lhe prometeu mostrar-lhe uma, em breve, se se endireitasse e
prestasse atenção, embora o próprio Karl tivesse que fazer o possível
para permanecer sério.
— Um pedaço de bacon do tamanho de duas nozes, mais ou menos.
— Finalmente, nozes, algo que eu conheço. É a primeira medida
útil que você me deu.
— Sem ovos—, disse ele, desanimado. — Não há galinhas, não há
ovos.
— Sem ovos? — Anna fingiu lamentar. — O que eu vou fazer? Tenho
certeza de que minhas panquecas ficarão duras como pedras, sem ovos.
Karl fez um grande esforço para se conter para não beijar aquele
rostinho travesso. Ele prometeu que logo sairiam em busca de ovos de
guaco. Depois vinha o leite de cabra.
— O suficiente para dar consistência.
Anna observou a mistura de perto, mantendo a cabeça no caminho
para que ele não pudesse ver, e alertou-o quando parecia que a mistura
estava "pronta".
As panquecas acabaram sendo uma refeição luxuosa,
especialmente cobertas de mel, que Karl explicou ter sido feito ali
mesmo na primavera, com resina extraída de seus próprios bordos. Logo
ele iria ensiná-la a fazer.
Anna perdeu seu passeio a cavalo naquela manhã porque teve que
ficar para lavar a louça e raspar o leite de cabra do fundo do balde de
madeira com aquele sabão amarelo nojento que queimava sua pele. Estava
ficando cada vez mais claro para Anna por que um homem precisava de
ajuda aqui neste deserto. Quem, em sã consciência, não gostaria que alguém
cuidasse das tarefas desagradáveis da casa?
Mas, uma vez fora da cabana, ela recuperou o ânimo. Lá fora, era
onde ela mais gostava: quando o vento bagunçava seus cabelos; quando
os cavalos espirravam e balançavam a cabeça impacientemente; quando
via James satisfeito porque ele tinha ajudado com o arreio, outra vez, e
ela se lembrava de tudo claramente; quando Karl pegava seu machado e
os cinco partiam para encontrar os lariços novamente.
Eles perseguiram um bando de guacos naquela manhã, e Karl
abateu um daqueles pássaros velozes e esquivos com uma pedra, rindo
quando descobriu Anna agachada, cotovelos cobrindo as orelhas de
terror.
— É só um guaco—, disse ele, — meu corajoso garotinho de calça.
— Só um guaco? Parecia um furacão.
— Na próxima vez que você ouvir, saberá que são apenas asas e
você não precisará se esconder como um rato.
A facilidade com que Karl derrubou o pássaro convenceu Anna de
que ele era um atirador talentoso, junto com tudo o mais. Ele removeu
as tripas imediatamente. Ao meio-dia ele terminou de fazer, enquanto
James assistia e aprendia, e Anna sentia náuseas.
Karl estava radiante de orgulho quando mostrou a eles onde
guardava o arroz da Índia. Esse cereal também era obtido localmente,
em um atoleiro de terras próprias, na região nordeste. Ele colocou o
arroz de molho em água fervente, prometendo um jantar saboroso. Em
seguida, mostrou-lhes como rechear o guaco com o arroz aromático,
como embrulhar tudo em folhas úmidas de bananeira e colocar na
grelha junto com a batata-doce embrulhada da mesma forma. Ele
também os ensinou a adoçar a batata-doce com xarope de bordo; a
comida estaria muito saborosa quando voltassem do banho.
Anna se sentiu menos cansada naquela noite e também um pouco
mais disposta a afundar naquela água fria. Enquanto Karl e James, com
água até o peito, jogavam pedras rosa encosta abaixo e se concentravam
para ver onde caíam para que pudessem recuperá-las mais tarde, Anna
respirou fundo, deslizou sob a água atrás de Karl e mordeu seu
tornozelo. Karl gritou. Anna o ouviu claramente sob a água e veio à
superfície, gritando e cuspindo água pela boca. Karl formou um
redemoinho de areia ao saltar e chutar o suposto ataque.
— Oh, Karl! Você é tão estranho! — Disse Anna ofegante. — Você
tem medo de um peixinho que não dá nem metade da comoção de um
punhado de guacos.
Mas um olhar de Karl foi o suficiente para que ela soubesse que a
guerra dos jogos havia estourado. Ele se agachou, estreitou os olhos
ameaçadoramente e começou a deslizar com o rosto na altura da água
como um crocodilo; só se via seus olhos enquanto ele avançava
silenciosamente. A garota recuou, protegendo-se com as mãos.
— Karl... não... Karl... só estava brincando! — Anna sacudiu e
chutou desesperadamente, rindo e gritando, tentando se livrar de Karl.
James gritou:
— Pegue-a! É isso aí, Karl!
— James, merda, eu sou sua irmã! Você deveria estar do meu lado!
— Anna gritou, batendo as mãos na água. Olhou por cima do ombro e viu
que não havia conseguido escapar.
— Pega ela, Karl! Ela disse "merda" para mim.
— Eu ouvi. Você não acha que uma mulher com tal boca deve ser
punida?
— Sim! Sim! — O irmão desleal gritou com entusiasmo e
aproveitando cada minuto.
— Traidor! — Anna exclamou em aborrecimento enquanto Karl
avançava, um brilho selvagem em seus olhos. De repente, ele
desapareceu; Anna deu uma volta completa, mas encontrou apenas
pequenas ondulações que cruzavam a superfície.
— Para onde foi? Karl? Onde você está…?
Emergindo como uma baleia, Karl se lançou sobre Anna, pegando
com o ombro atrás dos joelhos e erguendo-a no ar enquanto a floresta
rugia com seu grito. Foi atirada de cabeça para baixo e caiu com um
baque ignominioso. Ela veio à tona com seu cabelo revolto, o que
provocou risadas estrondosas dos homens, em profunda camaradagem.
— Parece-me que criei um novo monstro marinho.
Karl apontou para Anna, que vinha ao ataque com os dedos
retorcidos e rosnando; seu rosto estava lindo através daquele
emaranhado de cabelos pingando. Karl fingiu não conseguir se defender
quando a jovem o agarrou com as duas mãos atrás da cintura e o
cambaleou. As coisas pioraram para Anna quando ela caiu para trás e
Karl estava sentado em cima dela. Debaixo d'água, seus braços
deslizaram pelo corpo molhado de Karl e fizeram contato com outras
partes de seu corpo além do estômago.
Com grande rapidez, ele girou na água e a segurou contra o peito;
Juntos, eles subiram de repente à superfície, como um gêiser, rindo um
na cara do outro.
— Oh, Anna, meu monstrinho! — Ele exclamou. — O que eu estava
fazendo antes de você chegar?
Todos foram para a cama na mesma hora naquela noite, o quarto
impregnado de fumaça de tabaco e camaradagem. Quando as cascas
silenciaram seu som, a voz lânguida de James soou:
— Boa noite, Karl. Boa noite, Anna.
— Boa noite—, os dois desejaram juntos.
Então Karl pegou a mão de Anna e, com o polegar, desenhou
círculos em sua palma. Finalmente, ele a puxou para mais perto,
rolando-a para o lado enquanto fazia o mesmo.
— Está cansada? — Ele murmurou muito perto de seus lábios.
— Não—, ela respondeu em um sussurro, pensando: "Não, não, não!
Não estou nem um pouco cansada”.
— Ontem fiquei desapontado quando você foi dormir tão cedo.
— Eu também, — ela murmurou, abalada por suas palavras simples
e o toque de seu polegar áspero acariciando-a suavemente. Seu
batimento cardíaco acelerou quando ela sentiu a palma da mão queimar
onde Karl a acariciou. Eles ficaram quietos, seus olhos arregalados, seus
narizes quase se tocando, suas duas respirações juntas.
James suspirou e o dedo de Karl parou de se mover. A respiração
aqueceu o rosto de Anna. Com um leve movimento, Karl fez seus narizes
se tocarem. Silenciosamente, ele deixou o toque falar por ele enquanto a
sensação de uma necessidade mais intensa percorria seu corpo. O aperto
na mão de Anna tornou-se quase doloroso. Seus lábios se aproximaram
em um movimento fugaz.
Faça isso de novo, Karl, com mais força, pensou ela, o coração
batendo forte. Ficaram imóveis, como duas crianças, joelho com joelho,
nariz com nariz, lábios com lábios, respiração com respiração,
envolvidos naquela sensação crescente de bem-estar produzida pela
simples proximidade.
— Hoje foi tudo tão bom, Anna, ter você e o menino aqui. Eu sinto...
eu sinto tantas coisas, — ele murmurou.
— Que tipo de coisas?
— Coisas sobre nós três—, ele sussurrou roucamente, desejando
poder expressar melhor o que sentia. — Trabalhar junto com a madeira é
bom; comer juntos, nadar. Eu me sinto... me sinto totalmente inteiro.
— É... isso que faz você se sentir assim? Trabalhar juntos e tudo
mais? — Ela empurrou o polegar de Karl para acariciar sua palma com a
dela. Por um breve momento, Anna parou de sentir seu hálito quente em
seu rosto, então o ouviu engolir em seco.
— Você se sente assim também?
— Acho que sim. Eu não sei... Karl. Só sei que aqui é diferente de
Boston. É melhor. Nunca tivemos que trabalhar antes. Trabalhar aqui,
ajudar você... não sei. Realmente não parece um trabalho.
Queria acrescentar coisas que ela não sabia dizer, coisas sobre seu
sorriso, suas piadas, sua paciência, seu amor por este lugar, que de
alguma forma começara a se infiltrar nela, até a paz serena da exaustão
da noite anterior, uma exaustão gratificante como nunca antes. Mas
essas eram todas as coisas que Anna apenas sentia, ainda incapaz de
colocar em palavras.
— Faz tanto tempo que sonhei com sua presença aqui para me
ajudar com a cabana. É assim que pensei que seria. Sair juntos pela
manhã, trabalhar o dia todo, descansar juntos à noite. Eu sinto... como é
bom rir de novo, rir juntos.
— Você me faz rir com tanta facilidade, Karl.
— Isso é bom. Gosto de ver você rir. Você e o menino.
— Karl?
— Mmm...?
— Nunca tivemos motivo para rir. Aqui, porém, é diferente.
Ele estava satisfeito por ter sido capaz de proporcionar a ela tal
satisfação, algo que Karl não pretendia. Ele sentiu que as palavras de
Anna não eram apenas uma expressão de alegria; ele sentiu que eram
um convite ao afeto. Sem dizer nada, ele se moveu e prendeu parte do
lábio superior entre os dela, como se dissesse: "chegue mais perto".
Anna cedeu e suas bocas se encontraram suavemente, mal abertas,
hesitantes, esperançosas; no entanto, o gesto lento, voluntariamente
deixando a outra boca se mover primeiro, denotavam uma atitude
infantil. Houve apenas aquele beijo casto na primeira noite. Mas aquele
beijo foi gestado com o sol nascente, foi anunciado pelo "bom dia"
daquela manhã, quando Karl segurou sua carga de lenha e Anna segurou
a cortina em seu canto privado. A certeza daquele beijo foi crescendo ao
longo do dia, alimentada pelas brincadeiras, o bom humor e a crescente
familiaridade entre eles.
Lentamente, Karl endireitou os joelhos para se aproximar. Desta
vez, ele aprisionou completamente os lábios de Anna, sem exigir uma
resposta a princípio, mas, aos poucos, sua língua quente e úmida
começou a subir a borda dos lábios da garota como se quisesse provar
algum resíduo de açúcar ali depositado. Ele sentiu então, sob sua própria
língua, a boca de Anna se abrir pela primeira vez. Encorajado agora, ele
pegou sua nuca e a puxou para o beijo, brincando com sua língua para
tirá-la da passividade. O que Karl esperava era alguma dica, algum
movimento, algum sinal de encorajamento. Sua exploração foi
respondida por Anna e ela também endireitou as pernas.
Cautelosamente, Anna pousou a mão na bochecha de Karl. Ela
nunca o havia acariciado antes. O toque da mão dela em sua pele deu a
Karl uma excitação difícil de controlar. Anna sentiu a tensão nos
músculos da bochecha quando Karl abriu a boca ainda mais. Sua língua
entrou na boca de Anna com ainda mais força, enquanto ela sentia o
movimento na palma da mão e na bochecha.
A jovem nunca havia experimentado o beijo como algo agradável.
Agora havia despertado nela o conhecimento de que as coisas poderiam
ser diferentes de como ela as pensava. E não havia nada de sórdido ou
desagradável nisso. Não sentia vontade de afastar aquele homem, sua
pele não o rejeitava, as lágrimas não feriam seus olhos. Prevalecia o
sentimento de que esse homem a estava homenageando e,
consequentemente, dignificando o ato que se propunham realizar.
Adivinhava em Karl o espanto crescente que experimentava ao conduzi-
la passo a passo em direção à concreção final. Anna sentiu que ela
também crescia e se expandia como as pétalas de uma flor até que a
beleza do botão se revelava.
Relaxando os músculos lentamente, Karl encostou-se ao peito de
Anna e descansou ali, para ver qual seria sua resposta.
Mas Anna apenas colocou a mão na pele nua de seu ombro e tocou
o contorno dos músculos. Ela se lembrava muito bem daquela parte do
seu corpo, depois de tê-lo visto trabalhando ao sol nos últimos dois dias.
Karl enterrou o rosto no travesseiro que havia recheado com taboa
para Anna, encantado com aquela mão exploradora que deslizava por
suas costas. Mas ele precisava de mais; então ele arqueou o corpo e
soltou a outra mão da moça, que estava presa sob seu peso. Vendo que
Anna não parecia entender o que ele necessitava, ele mesmo pegou a
mão dela e levou-a ao ombro. Então ele se recostou no corpo de Anna
com a cabeça escondida no travesseiro.
Anna trouxe à mente a vívida memória da expressão no rosto de
Karl quando ele disse a ela que havia trazido Nanna para dentro de casa
para lhe fazer companhia no inverno. Ela também se lembrou da
maneira como a mão de Karl brincava com a orelha da cabra. Ela nunca
tinha imaginado que os homens precisassem desses toques simples.
Os anos de solidão se dissipavam com cada toque da mão em sua
pele. Seus corações unidos no forte abraço, falavam daquela necessidade
de carinho que ambos abrigaram por tanto tempo. Dentro de Anna, que
também sentia falta de afeto por muitos anos, uma voz desesperada lhe
advertia que ela poderia perder todo aquele calor assim que Karl levasse
o ato ao clímax. Mas era lindo poder se identificar com outro ser
humano, e ela não conseguiu evitar que suas mãos continuassem, por
mais algum tempo, acariciando as costas de Karl.
— Oh, Anna! O que você está fazendo comigo? — Ele disse
roucamente, endireitando-se de repente e segurando os braços dela com
as duas mãos. — Você sabe o que está fazendo comigo? — Ele sussurrou
tão ferozmente que Anna se perguntou se ela tinha ido longe demais.
Mas com o movimento de Karl, o colchão rangeu e eles ouviram James
rolar na cama. A cabeça de Karl deu um salto em alerta.
Eles esperaram um momento e então Anna murmurou:
— Acho que sei, Karl, mas... — Havia recebido de James o respiro de
que precisava. Ela mesma estava confusa, querendo e temendo ao
mesmo tempo ir mais longe. — Karl, eu gostaria... — Ela nunca teve tanto
medo de ferir os sentimentos de alguém. Era algo novo para Anna, essa
preocupação com Karl. Ela sabia que precisava ser muito cuidadosa.
Apenas três dias se passaram. — Sinto que a cada dia conseguimos nos
conhecer um pouco mais e melhor, mas acho que precisamos de mais
tempo.
O que ele mais temia aconteceu: ele a pressionou demais. Agora ele
sabia que os dois gostavam um do outro. No entanto, ele tentou ver tudo
do ponto de vista de Anna. Talvez ela estivesse com medo de se
machucar. Ele não podia culpá-la por isso.
— Eu não deveria ter te pressionado tanto—, ele admitiu. — Só
pensei em tocar em você, mas acho difícil me controlar.
— Karl, não seja tão duro consigo mesmo. Eu gostei e está tudo bem
que você me tocou e beijou. Estou te conhecendo melhor porque posso
responder às tuas carícias, como qualquer mulher ao marido. Por favor
me entenda ...
Ela realmente não sabia como dizer o que queria. Ela queria, sim;
no entanto, ela precisava adiar o momento da consumação porque temia
que Karl a achasse desprezível mais tarde e isso significaria o fim desse
interlúdio de adaptação que ela estava desfrutando.
Ela também queria ser cortejada por mais algum tempo. Não tinha
nada a ver com ser virgem ou não. Anna era uma mulher e, como tal,
tinha sonhado com um noivo de uniforme com dragonas. Como explicar
para Karl que não era o uniforme que importava, que ela precisava
aproveitar um pouco mais desse período prévio? Anna queria ser
cortejada estando casada. Até para ela parecia absurdo. Ela tinha que
tentar explicar.
— Você sabe o que eu quero?
— Não, Anna, o quê? — Karl achou que daria qualquer coisa a ela,
desde que não adiasse indefinidamente.
— Quero mais dias como o de hoje... antes. Quero rir e brincar e nos
olhar e... ah, não sei! As coisas que teríamos feito se o encontro tivesse
sido na Suécia e você tivesse me dado essas fitas. Acho que todas as
garotas esperam isso, como conversamos sobre isso outra noite. Você
me entende, Karl?
— Eu entendo, mas por quanto tempo?
A voz de Karl perdera intensidade e Anna pensou que talvez já o
tivesse convencido.
— Oh, muito pouco, Karl. Tempo suficiente para você ser meu
cortesão em vez de meu marido. O necessário para nos conhecermos
melhor e poder desfrutar deste prelúdio.
— Então o que você quer é rir e... — Karl não conseguia pensar na
palavra exata.
— Flertar? — Anna terminou de dizer.
— Flertar, uma verdadeira palavra americana.
— Sim, talvez seja bom para nós dois.
— Você é uma garota rara, Anna. Você me escreve cartas
concordando em ser minha noiva por correspondência, sem me
conhecer, e agora me pede para flertar com você. O que vou fazer com
essa garota loira como o uísque?
— Deve fazer o que eu peço—, disse Anna sedutora, algo novo sobre
ela.
— Vai ser como você quiser, Anna. Mas primeiro deixe-me beijar
você como antes, apenas uma vez.
CAPÍTULO 9
Anna conseguiu o que queria, mas de uma forma muito sutil,
durante os dias que se seguiram. Karl agia da maneira mais espontânea,
fazendo-a corar, afastar-se ou espiar para ver se James estava olhando.
Karl tirava o enorme lenço vermelho do bolso da cintura para secar o
pescoço e o torso ao sol, sem olhar uma única vez para Anna, mas
sabendo muito bem que ela observava seus músculos se moverem.
Anna se abaixava para pegar um monte de gravetos e apontar os
bolsos de trás da calça de James para Karl, da maneira mais inocente. Ele
tirava o chapéu de palha (Anna fizera um chapéu para ela quando
percebeu que Karl precisava do dele), enxugava a testa com o braço,
olhava com dificuldade por causa do sol e dizia:
— Está quente hoje. — Sem malícia? Anna achava que não.
Afastando o cabelo atrás da nuca, Anna assentia:
— Acho que sim.
Na lagoa, seus jogos se tornaram mais envolventes; Com a desculpa
de que Karl estava ensinando Anna a mergulhar e nadar, seus corpos
roçavam com mais assiduidade.
Aqueles dias de sol e alegria entre os lariços prenunciavam muitos
mais por vir. Mas um dia a chuva os acordou e os lariços foram
momentaneamente esquecidos. Karl olhou para a garoa cinzenta depois
do café da manhã, acendeu o cachimbo pensativamente e foi ao celeiro
procurar um forcado e pegar minhocas. Em seguida saiu com James
carregando as varas de pescar.
Anna estava sozinha na casa do manancial lavando legumes,
furiosa por não ter ido. Resmungando, tirava as ervilhas do balde e as
jogava na panela. “Ervilhas!” Ela protestou silenciosamente. "Eu tenho
que ficar aqui, limpando os vegetais enquanto aqueles dois vão pescar
robalo."
De repente, a luz lá fora escureceu. Anna olhou para cima e gritou.
Havia um grupo de índios no portão do manancial, seus rostos escuros e
impenetráveis e Anna deu um pulo e espalhou as ervilhas por toda parte.
Tinham o cabelo oleoso e os usavam em caudas trançadas; eles estavam
cobertos por pele de veado puída.
O mais próximo da porta sorriu, mostrando os dentes ao vê-la tão
assustada. Todos pareciam estar esperando que ela saísse. O que mais
poderia fazer? Superando seus medos, ela saiu para a névoa.
— Cabelo de Raposa—, grunhiu Sorriso de Dentes Grandes.
Anna ficou parada na garoa sem saber o que fazer enquanto os
índios olhavam para seu cabelo. Teria que agir como se fosse a coisa
mais natural do mundo conversar com um índio ali, ou dirigir-se
rapidamente para a cabana onde certamente a seguiriam?
— Anna—, ela os corrigiu, — Anna Lindstrom. — Ela mesma ficou
surpresa com o nome.
Sorriso de Dentes Grandes lançou um olhar curioso para um de
seus amigos que tinha o rosto de um velho búfalo e o corpo de um jovem
cervo.
— Cabelo de Raposa—, repetiu Sorriso de Dentes Grandes, com um
aceno de cabeça.
Cara de Búfalo sorriu. Ele tinha dentes magníficos para um rosto
tão feio.
— Cabelo de Raposa casar com Cabelo Branco, juntos fazem o bebê
listrado como o filhote de gambá.
Todos riram muito ao ouvir isso.
— O que querem? — Anna disse com raiva—. Se tudo o que vieram
fazer aqui foi zombar do meu cabelo, podem ir embora! Se querem ver
meu marido, ele não está aqui. Terão que vir em outra hora. — Ela estava
tremendo em suas calças, mas seria uma tola se permitisse que eles
entrassem em seu próprio terreno e a fizessem de boba.
— Tonka Squaw! — Disse um deles. Anna poderia jurar que o tom
era de aprovação, embora ela não pudesse dizer o porquê.
— O que querem? — Ela perguntou novamente, em um tom
indelicado.
— Tonka Squaw? — Um índio perguntou a Cara de Búfalo. — Como
saber ela ser mulher?
Eles pareciam se divertir com a calça da garota, e apontavam e
falavam em seu jargão incompreensível enquanto observavam a
vestimenta. A raiva de Anna aumentou quando ela viu que eles
continuavam falando como se ela não estivesse ali.
— Falem em Inglês! — Ela perdeu a cabeça. — Maldição! Se vão
entrar é melhor que falem em inglês! Eu sei que podem, porque Karl me
disse!
— Tonka Squaw! — Disse outro, com um largo sorriso.
— Cospe fogo! — Disse outro.
Então eles riram de suas calças novamente.
— Bem, se não fossem tão rudes, eu os convidaria a esperar Karl lá
dentro, mas, maldito seja, se vou deixá-los entrar quando tudo que estão
fazendo é zombar de mim.
Ela se virou rapidamente e se dirigiu para a cabana; todos eles a
seguiram em silêncio. Na porta, ela os desafiou:
— Quem entrar aqui é melhor esquecer as minhas calças e guardar
para si comentários ofensivos!
Todos entraram, seguindo Anna de perto. Sem dizer nada, eles se
agacharam e se sentaram de pernas cruzadas em frente ao fogo. Anna se
perguntou o que deveria fazer para entretê-los.
Ela decidiu que o melhor curso de ação era a própria ação.
Ela fingiu estar muito ocupada preparando o jantar, e assim, talvez
eles se cansassem de vigiá-la e fossem embora. Já teve problemas, em
outra ocasião, quando fez uma espécie de bolo com ingredientes picados,
que cozinhou no tripé em vez de no forno. Ela vasculhou o cérebro,
tentando se lembrar da receita que Karl lhe ensinou, e pensou que ela
iria estragar tudo. Mas não se importava. Qualquer coisa para estar
ocupada e distrair o grupo. Mas os índios continuavam conversando,
rindo de vez em quando, como se o que Anna estivesse fazendo fosse a
coisa mais engraçada do mundo.
Ela preparou uma mistura de abobrinha e vinagre em uma panela
de barro que colocou sobre a mesa enquanto ia buscar uma colher limpa.
Virando-se, ele viu que um dos índios, com o nariz de castor, estava
enfiando a mão na panela. Sem pensar, ele bateu nos nós dos dedos com
a concha de madeira.
— Pare com isso! — Ela perdeu a cabeça—. Que modos são esses?
Como se atreve a entrar na minha casa e colocar sua mão grande e suja
na minha comida e comer nas minhas costas? Sente-se e fique fora do
meu caminho e talvez, apenas talvez, eu lhe dê um pouco do meu bolo
quando estiver pronto! Nesse ínterim, coloque suas mãos onde elas
pertencem!
Os companheiros de Nariz de Castor riram com vontade. Enquanto
ele apertava os nós dos dedos, os outros apertavam suas costelas,
gargalhando e repetindo continuamente:
— Tonka Squaw. Tonka Squaw.
— Quietos! Vocês não são melhores que ele—, advertiu, brandindo
a colher—. Vieram sem serem convidados.
Ela se ocupou em preparar o bolo, perturbada pela presença dos
cinco índios sentados que a observavam. Até agora, eles pareciam
respeitar sua coragem. Enquanto funcionasse, ela continuaria fazendo
isso. De qualquer maneira, ela não tinha outra defesa contra seu medo.
Antes de terminar de mexer, ela sabia que havia estragado tudo de
novo. Mas ela foi colocando para fritar na frigideira como se fosse uma
iguaria epicurista. Os índios a olhavam e murmuravam entre si,
intrigados com esse complicado método de cozinhar. As panquecas
saíram mais achatadas do que o nariz de Nariz de Castor, mas era tarde
demais. Continuou fritando até a massa acabar. Como estavam, ela as
colocou na maior bandeja de madeira que tinha e disse:
— Agora, se tiverem paciência, vou fazer um chá para você.
Ela colocou a travessa na mesa, vigiando os índios para não atacar
a comida antes que ela mandasse. Olharam para os bolos com olhos
famintos, mas nenhum se aventurou a tocá-los, lembrando-se da fúria
com que a garota havia batido a colher de pau nos nós dos dedos de
Nariz de Castor.
Enquanto batia e cobria as pétalas de rosa com água, lembrou-se
de que elas evitavam o escorbuto, disse Karl; Anna se perguntou por que
diabos ela teria que salvar aqueles índios rudes da doença. Quando a
infusão ficou pronta, surgiu o problema de onde encontrar xícaras
suficientes para servir os cinco juntos, mas ela descobriria.
Ela foi até a porta, parou e, voltando-se para os homens sentados,
advertiu-os com o dedo:
— Não se atrevam a tocar nos bolos até eu voltar!
Então ela correu para o manancial para pegar uma concha e alguns
jarros vazios.
Quando voltou, ouviu seus murmúrios guturais e começou a
despejar o chá no bule, nas duas jarras e nas três xícaras, tornando tudo
aquilo em uma grande cerimônia. Ela morreria antes de beber daquele
bule. Ela entregou a Cara de Búfalo, aquele que zombou de suas calças.
Deixaria que ele bebesse do bule! Ela era uma dama e usaria a xícara,
com ou sem calça.
Esse, então, era o espetáculo que esperava Karl e James em seu
retorno do riacho; estavam pingando água, mas trouxeram uma pesca
incrível de robalos. Anna reinava suprema, a única do grupo sentada em
uma cadeira. A seus pés estavam os cinco índios, cabelos oleosos
cobertos de pele de veado, bebendo chá de rosas - nada menos! - E
comendo os bolos mais horríveis que Karl já vira; comendo-os e fazendo
gestos de aprovação como se fossem comida de anjos.
Anna olhou para Karl, e ele sentiu que a jovem estava assustada e
seus ombros relaxaram de alívio com a visão. Há quanto tempo os índios
estão lá?
— Cabelo Branco! Ah! — Um deles o cumprimentou.
— Olá, Dois Chifres! — Karl respondeu—. Vejo que conheceu minha
esposa.
Dois Chifres era o melhor amigo de Karl; foi ele quem Anna
insultou, fazendo-o beber o chá do bule. Mas ela não parecia se
importar.
— Tonka Squaw! — Dois Chifres repetiu.
— Tonka Squaw! — Eles disseram em coro, se isso poderia ser
chamado de coro.
— Isso mesmo, — Karl concordou com uma careta, levantando uma
sobrancelha e a temperatura de Anna também.
— Tonka Squaw vestir como Cabelo Branco. Como saber se ela é
uma squaw?
Karl riu.
— Eu sei o que está dentro.
“Então”, Anna pensou, “Tonka Squaw” significa uma mulher
usando calças. Espere até eu encontrar você sozinho, Karl Lindstrom! "
Todos riram do comentário de Karl, embora o olhar severo de
Anna lhe dissesse que ele havia se apressado em fazer piadas sobre as
calças dela na frente de seus amigos.
— Eu trouxe peixe. Todos vão ficar para o jantar—, disse Karl.
“Era o que faltava”, Anna pensou. "Entreteve seus amigos rudes a
tarde toda, e ele não consegue pensar em uma ideia melhor do que me
forçar a aguentá-los durante o jantar também!"
— Anna pode jogar mais algumas batatas no fogo—, acrescentou
Karl.
Isso é exatamente o que Anna fez. Havia atingido o auge da raiva.
Ela saiu para pegar mais batatas, batendo os pés no chão. Anna sabia que
os índios gostavam de batata e pão branco, tão diferente do que eles
faziam com milho. Ela voltou e jogou as batatas na brasa sem se
preocupar em embrulhá-las em folhas de bananeira. Ela não queria ficar
encharcada indo colher folhas de bananeira para agradar aquele bando
de índios insolentes!
Karl começou a limpar o peixe na mesa. Os índios expressaram sua
desaprovação, o que alimentou ainda mais a fúria de Anna.
— Por que Tonka Squaw não limpar os peixes? Cabelo Branco
sentar e fumar cachimbo com os amigos.
— Anna não é muito boa em limpar coisas—, explicou Karl,
deixando-a ainda mais irritada—. Ela nunca aprendeu a limpar peixes. É
a primeira vez que trazemos peixes desde que ela veio para cá.
— Mal começo para um casamento—, foi o consenso geral do
grupo.
Anna deduziu que nunca veriam um índio que se respeitasse,
limpando peixes, se ele tivesse uma esposa que fizesse isso por ele. Ela
começou a se sentir menos ressentida com Karl por tê-la dispensado
dessa tarefa abominável. Ela foi buscar água no manancial e concordou
em lavar cada filé depois que Karl os raspasse com a faca.
Os índios admitiram James em seu círculo; Eles o apelidaram de
Olhos de Gato porque ele tinha olhos verdes, algo novo para eles.
Quando eles pegaram seus cachimbos, eles incluíram James em seu
convite para fumar.
— Oh não, não! — Anna se opôs—. Não vão lhe ensinar nenhum
desses hábitos ruins em sua idade. Ele ainda é um menino.
Eles observaram o menino tirar a mão do cachimbo e mais uma vez
expressaram sua aprovação, dizendo: "Tonka Squaw." Mas quando
chegou a hora de fritar o peixe, eles se divertiram às custas do grande
sueco branco, cuja esposa não sabia fazer uma coisa tão simples como
aquela. Eles, porém, comeram sua porção e deliciaram-se
principalmente com as batatas. As únicas batatas que comeram foram as
selvagens; não tão deliciosas quanto as que o homem branco cultivava.
Quando a refeição terminou, Anna ficou lavando os pratos,
enquanto os homens sentaram-se em círculo fumando seus cachimbos
novamente. Anna se perguntou se os índios demorariam muito a partir
porque ela estava cansada de ser chamada de Tonka Squaw depois de
cada movimento, cansada de ser examinada em suas calças e criticada
por não cumprir os deveres que aqueles tiranos impunham às suas
mulheres.
Mas eles se foram, finalmente, muito depois de escurecer, e Anna
se perguntou como eles encontrariam o caminho no escuro. Karl os
acompanhou até a porta e todos os cumprimentaram com as palmas das
mãos levantadas. Eles fizeram o mesmo com James, mas nem mesmo
olharam para Anna, o que a fez sentir uma nova explosão de raiva,
depois que ela os convidou.
Quando Karl entrou, ele percebeu que Anna estava furiosa, então a
deixou sozinha. Ele e James conversaram sobre os índios. Karl tinha
certeza de que mais cedo ou mais tarde eles viriam dar uma olhada em
sua nova mulher.
Anna se arrastou para a cama de frente para a parede, zangada
com Karl por chamá-la de squaw. Ela estava farta daquele apelido que os
índios haviam usado o tempo todo.
Depois de apagar o fogo e deixar a cabana às escuras, Karl deitou-
se ao lado dela. Em vez de entender sua sugestão e deixá-la sozinha, ele
se inclinou sobre seu ombro para sussurrar em seu ouvido:
— Minha Tonka Squaw está brava com o marido?
Fervendo de indignação, Anna sussurrou:
— Não se atreva a me chamar de squaw de novo! Já tive o suficiente
por um dia! Com você e com aqueles seus amigos índios tiranos!
— Sim tem razão. Somos tiranos chamando você de Tonka Squaw.
Talvez você não mereça, afinal.
Karl a deixou pensando. Anna virou um pouco a cabeça na direção
dele e perguntou, por cima do ombro:
— Eu não mereço?
— Sim. Você acha que merece?
— Bem, como eu poderia saber? Que significa?
— Significa "Grande Mulher" e é o melhor elogio que um índio
pode lhe fazer. Você deve ter feito algo para fazê-los pensar que você é
realmente forte.
— Forte? — Finalmente, todas as emoções reprimidas naquela
tarde e naquela noite começaram a vir à tona—. Karl, fiquei tão
apavorado quando os vi aparecer no portão da casa do manancial que
espalhei as ervilhas em vinte hectares ao redor!
— É por isso que as ervilhas estão cobrindo o degrau da frente?
— Fiquei apavorada—, ela repetiu, buscando sua compaixão.
— Eu disse que eles eram meus amigos.
— Mas eu nunca os havia visto antes. Não sabia quem eles eram.
Aquele com o sorriso cheio de dentes zombou do meu cabelo; então Dois
Chifres ridicularizou minhas calças. Tudo que pude fazer foi colocá-los
no lugar deles por serem tão rudes comigo... e na minha própria casa.
— Eu já imaginava. Você não está acostumada com os costumes
deles. Os índios respeitam a autoridade. Quando você os coloca no lugar
deles, também se coloca no seu; é quando eles admiram você.
— A sério? — Ela perguntou, surpresa.
— Por isso chamaram você de Tonka Squaw, Grande Mulher,
porque você os obrigou a se comportar, embora estejam acostumados a
dominar as mulheres.
— De verdade?
— De verdade.
Anna não conseguiu conter o riso.
— Oh, Karl, você sabe o que eu fiz? Bati em Nariz de Castor com
tanta força com a colher de pau que, antes de escurecer, meus dedos
estavam cobertos de manchas pretas e azuis.
— Você fez isso? — Ele perguntou, perturbado por esta mulher que
ele tinha por esposa.
— Bem, ele pôs a mão suja dentro da panela onde estava a comida!
— Então você bateu nele com a colher de pau?
— Sim, Karl, eu bati—, disse Anna, rindo agora—. Foi horrível o que
eu fiz, não foi? — Sua risada cresceu ao pensar em sua própria
imprudência.
— Parece que você é o tipo de mulher que esses índios gostariam
de ter, cuidado! Alguém para mantê-los afastados.
— Oh vamos! — Anna exclamou—. Esqueça de me chamar de Tonka
Squaw, agora. Eu gosto de Anna, não importa que tipo de mulher ela
seja.
— Tonka—, Karl reiterou.
— Bem, deve ter parecido que eu estava me divertindo, mas repito
que fiquei totalmente apavorada. Também fiquei furiosa com eles
porque riram das minhas calças e do meu cabelo.
— Eles riram do seu cabelo também? — Perguntou Karl.
— Do seu e do meu, eu acho.
Tarde demais ela percebeu que havia entrado em um tópico que
era melhor evitar.
— Que disseram?
Karl estava ansioso para ouvir o resto.
— Nada.
— Nada?
— Nada.
Mas no escuro, Karl se inclinou e disse, perto do lóbulo:
— Quando você diz que não é nada, eu sei que é alguma coisa. Mas
talvez seja algo que você não quer que seu marido saiba.
Anna riu quando ele beliscou sua bochecha.
— Algo assim—, admitiu.
— Que tal você limpar o peixe da próxima vez que eu trouxer para
casa? — Ele brincou—. Aposto que você adoraria.
Karl sentiu, através dos lábios zombeteiros, as bochechas de Anna
se transformarem em um sorriso.
— Que tal dar um soco nos nós dos dedos com a colher de pau?
Afinal, é Tonka Squaw que você está ameaçando.
— Não estou apavorado, como você pode ver, — ele sussurrou
contra as bochechas dela—. Estou tremendo por outra coisa.
— Por que você está tremendo agora, Cabelo Branco? — Anna
sussurrou de volta.
A mão de Karl se estendeu, procurando.
— Estou tremendo de tanto rir ao pensar nesses índios tontos que
pensam que eu tenho uma Grande Mulher. — A mão exploradora
encontrou o peito; quase cabiam em uma colher.
Anna agarrou a mão dele e levou-a à boca.
— Acho que tenho que provar que esses índios estão certos—, disse
ela, e mordeu a mão de Karl.
Quando Karl gritou alto, James perguntou o que estava
acontecendo ali.
— Tonka Squaw está mostrando que é mais tonka do que
realmente é.
— Uma das razões que inicialmente me enfureceram, sobre seus
amigos índios, foi que eles ficaram muito confortáveis sem pedir permissão
—, Anna o informou alegremente.
Karl a abraçou com tanta força dessa vez que a dominou. As cascas
começaram a fazer barulho enquanto os dois se abraçavam e rolavam,
rindo e brincando. Eles terminaram em um beijo, com Karl sussurrando
em seu ouvido:
— Ah, Anna. Você é algo grande.
— Mas não tonka? — Ela murmurou, sabendo que o peito que Karl
aprisionava estava longe de ser grande.
— Não importa—, disse a voz no escuro. E Anna sorriu feliz.
De manhã, quando se levantaram, encontraram dois faisões
pendurados na porta. Como os índios os caçaram antes do nascer do sol
era um mistério. Mas Karl explicou que os índios haviam escolhido essa
forma de agradecer a Anna por sua hospitalidade. Era também sua
homenagem a ela, sua aprovação por ser Tonka Squaw, sua recepção e
seu previsível senso de honra. Os índios nunca pegavam nada sem dar
algo em troca.
CAPÍTULO 10
Anna e Karl estavam casados há duas semanas. Eles descobriram que
eram compatíveis em inúmeros aspectos e incompatíveis em outros. Como
todos os recém-casados, eles gradualmente revelavam partes de si mesmos.
Talvez a coincidência mais encorajadora fosse que ambos gostavam do
fresco e saudável hábito de provocar, que era mantido diariamente.
A principal falha que Karl encontrou em Anna foi que ela
abominava o trabalho doméstico. Se dependesse dela, estaria fora do
nascer ao pôr do sol, deixando o trabalho doméstico ir para o inferno.
Quando a deixavam sozinha porque tinha que se ocupar da casa, ela
ficava de mau humor e mostrava sua língua irlandesa afiada apenas para
que ele soubesse que ela não gostava dessa faceta do casamento.
Se havia uma coisa que Anna não tolerava em Karl, era sua
perfeição. Por mais bobo que parecesse, até mesmo para seus ouvidos,
isso a recordava que perto dele, ela devia parecer quase uma ignorante.
Anna tinha que descobrir algo que Karl não sabia ou não conseguia
descobrir como fazer, algo que ele não poderia ensinar a James ou a ela
como fazer. Ele tinha todas as virtudes que um homem poderia ter: ele
era amoroso, paciente, gentil... Oh, a lista continuava em sua mente, até
que às vezes Anna se sentia totalmente inadequada comparando-se a ele.
Mas Karl nunca reclamava. Quando Anna se enfurecia, o marido a
acalmava com seu bom humor de sempre. Quando a garota se irritava com
sua própria inexperiência, Karl explicava pacientemente que em uma casa
havia muito a aprender e que isso levaria tempo. Perdia horas preciosas do
trabalho na cabana de toras para lhe ensinar as lições intermináveis que o
padre Pierrot lhe havia aconselhado a dar, embora Anna soubesse com que
fervor Karl queria passar todo o tempo construindo a nova casa.
Mas, especialmente quando se tratava de ir para a cama, Karl
mostrava mais paciência do que qualquer mulher recém-casada tinha o
direito de pedir ao marido, e Anna sabia disso. O flerte e a insinuação
não poderiam durar para sempre. E isso foi revelado uma noite depois
de ter tido uma sessão mais despreocupada na lagoa, onde Anna tinha
sido mais brincalhona do que de costume. Uma vez na cama, Anna ainda
se sentia expansiva e sedutora.
— Sabe de uma coisa? — sussurrou.
— Que?
— Eu nunca te beijei.
— Mas nós nos beijamos todas as noites.
— Você me beijou todas as noites. Agora é hora de eu beijar você.
Ela esteve pensando sobre isso, como seria ser a instigadora. Mas
sabia que precisava ser cuidadosa. Qualquer ação de sua parte
despertava mais e mais respostas de Karl, à medida que o tempo
passava.
Karl estava completamente surpreso, porque não sabia com que
nova travessura viria a seguir.
— Venha então, me beije. Me portarei bem.
Ele se deitou com as mãos cruzadas atrás do pescoço. Anna o
surpreendeu, ajoelhando-se ao lado dele. Embora estivesse escuro, ele a
imaginou ali como uma menina em uma camisola, ajoelhada ao lado
dele, com o nariz cheio de sardas. Se ele pensasse nela dessa maneira,
como uma criança, talvez pudesse suportar o tormento de passar mais
uma noite.
Felizmente, Anna deu-lhe apenas um beijo leve. Mas ela colocou as
duas mãos em seu peito. Depois do beijo, eles ficaram quietos.
“Estou brincando com fogo”, Anna pensou, “mas é muito
divertido”. A pele de Karl estava nua, quente, coberta por um
emaranhado de cabelo. O batimento cardíaco era perceptível sob as
palmas das mãos de Anna e, por um momento, ela não soube o que fazer.
Ela queria que ele fizesse amor com ela ou não? Havia momentos
durante o dia, ao observá-lo com o machado ou quando ele acariciava os
cavalos ou jogava água na nuca, em que tinha que suprimir o desejo de
acariciar aquela bela pele.
No escuro ele era apenas uma sombra, uma voz, mas uma sombra
calorosa, uma voz rouca. Agora, ela sabia a cor de sua pele velada pela
escuridão, o brilho de seu cabelo descansando no travesseiro tão perto
dela. Ela nem mesmo precisava tocá-los para se lembrar deles, mas a
lembrança a atormentou e suas mãos se afastaram e acariciaram as
ondulações de seu torso enquanto ela falava.
— Karl?
— Hmm?
“Como uma única sílaba pode soar tão tensa?”, Anna se perguntou.
— O que você pensou a primeira vez que me viu?
— Que você era muito jovem e muito magra.
Anna puxou seu cabelo, Karl deu um pulo, mas manteve as mãos
atrás da cabeça.
— Quer uma esposa velha e gorda? — Ela brincou.
— Na Suécia as garotas são um pouco mais rechonchudas.
— Um pouco mais gordas, hein? — Ela o sentiu encolher os ombros
se desculpando, e Anna prometeu, fingindo sinceridade—: Vou tentar
engordar por você, Karl. Acho que não vai demorar muito, a julgar pela
forma como estou comendo. Mas vou demorar muito mais para
envelhecer.
Karl sorriu no escuro.
— Eu casei com uma garota que vai me provocar até a morte?
Ela massageou o peito de Karl mais uma vez, como se estivesse
amassando uma pasta.
— Sim, sou uma jovem brincalhona e magra. Vou provocar você
sem piedade.
Ela sentou-se sobre os calcanhares, nunca tirando as mãos de suas
costelas, porque ela poderia descobrir mais pelo que sentia sob as
palmas do que à luz do dia.
Karl riu baixinho, satisfeito, como sempre, com o humor dela. O
silêncio caiu de novo, e Karl teve que se controlar para não perguntar o
que ele sempre achou que não teria importância. Ultimamente, no
entanto, desde que Anna havia começado esse jogo de mantê-lo em
suspenso, a questão tinha ganhado importância, até agora ele não
conseguia se conter:
— O que você pensou quando me viu? — A voz soou ligeiramente
rouca.
Ela se lembrou daquele primeiro dia. O rosto espreitando para fora
da carroça, a mão enorme deslizando a boina sobre sua cabeça em um
movimento lento, o olhar de admiração infantil em suas belas feições
quando Karl olhou para ela pela primeira vez. Ela se lembrou de que seu
coração batia furiosamente, como agora.
— Que você mentiu para mim—, ela respondeu com uma voz suave.
— Eu!
— Sim, por não ter feito mérito de sua aparência em suas cartas.
Os dedos de Anna roçaram o mamilo de Karl. Estava mais duro do
que um seixo e, de repente, ela pensou: "Os dos homens ficam tão duros
assim?" Rapidamente, ela puxou os dedos e se perguntou se eles estavam
duros porque Karl estava excitado ou se ficavam assim o tempo todo.
Seus próprios seios estavam tão apertados que doíam.
Uma onda de vaidade tomou conta de Karl ao ouvir as últimas
palavras de Anna. Ah, como ela lhe acariciava o peito...! “Então ela me
acha agradável”, ele pensou. Em seguida, sentindo-se culpado com o
pensamento, ele murmurou:
— É o que está dentro que importa.
— É o interior que importa, mas há outras coisas que importam
também. — Essas coisas estavam se tornando cada vez mais importantes
à medida que as mãos de Anna tocavam Karl.
— Que outras coisas? — Ele não resistiu em perguntar.
— Tamanho, forma, cores, características, rostos...
— Acho... que você tem razão—, admitiu Karl, lembrando-se do
discurso do Padre Pierrot sobre o assunto na noite anterior ao
casamento.
— Pensei muito em como você seria, enquanto James e eu
estávamos viajando para Minnesota. Quando cheguei e te vi pela
primeira vez, fiquei satisfeita. Gostei do que vi, mas me lembro de ficar...
bem, surpresa com o seu tamanho. Bem... isso me assustou um pouco.
A mão de Anna seguia deslizando pelo peito de Karl, causando
arrepios em ambos os braços.
— Você é um homem grande, Karl—, ela murmurou no escuro.
— Como meu pai—, respondeu ele.
Então Anna mediu a largura de seu peito com as mãos estendidas.
— Sete mãos de largura—, contou.
— É por usar o machado.
Onde a mão de Anna se detinha, o coração de Karl batia
perigosamente. No entanto, ele não se mexeu; então Anna levantou as
mãos para envolver um de seus bíceps.
— E você é tão forte.
Com a voz áspera, Karl sussurrou:
— Limpei muita floresta.
— Como seu pai? — Ela baixou a voz.
— Sim, como meu pai. — Estava tremendo.
— E este é o pescoço do seu pai? — Ela perguntou, envolvendo-o
com as duas mãos, mas incapaz de uni-las. A pele de Karl arrepiou.
— Acredito.
— Eu não posso abarcá-lo com minhas mãos. Eu queria fazer isso
para ver como era.
Karl pensou que se ela continuasse assim por mais tempo, Anna
aprenderia a sentir mais do que apenas seu pescoço. Mas então ela tocou
seu cabelo.
— Você tem o cabelo tão loiro... Nunca vi um cabelo tão loiro.
— Eu sou sueco—, ele a lembrou desnecessariamente.
— E todos os suecos pensam tão mal de si mesmos? — Ela
perguntou, pensando, “agora, Karl, por favor, agora”.
Ele permaneceu imóvel, atordoado pelas sensações despertadas
pelo toque dela.
— Só posso falar por mim mesmo—, disse ele com a voz embargada.
— E dizer que sua cara não assustava ninguém?
— Sim.
Lhe tocou sua têmpora, então pousou a mão em sua larga bochecha
e traçou a linha da sobrancelha com a ponta de um dedo.
— O que significa dizer tal coisa sobre um rosto como este? Que a
tua cara não assusta ninguém!
Seguiu-se um longo e intenso silêncio e parecia que um trovão,
produzido pela expansão daqueles dois corações, perfurava as paredes
da cabana e reverberava na noite agitada.
— Eu te assusto?
— Não, Karl, certamente não—, ela sussurrou, tocando levemente
os lábios dele com as pontas dos dedos.
O peito de Karl estava tão apertado que ele mal conseguia respirar.
— Eu pareço com minha mãe.
— Sua mãe é uma linda mulher.
O peito de Karl se expandiu mais do que nunca.
Anna sabia exatamente o que estava fazendo, o que estava
acontecendo com Karl. E ela também sabia que era injusto. Mas ela havia
descoberto o poder eterno da feminilidade e não conseguia resistir a
exercê-lo. ‘Eu sou implacável”, ela pensou. “Eu sei o que está
acontecendo com seu corpo e sei que hoje isso não levará a nada. No
entanto, não posso resistir a seduzi-lo, sabendo que o submeti à minha
vontade”.
Ela o havia forçado muito, sua vontade poderia ser quebrada a
qualquer momento. Karl estivera deitado o tempo todo com os braços
cruzados atrás da cabeça, mas agora colocou a mão no ombro de Anna,
no escuro, e apertou com força. Ele a segurou com aquele aperto de ferro
até que, delicadamente, subiu em cima dela e a obrigou a se deitar de
costas com um beijo que mostrava que, para ele, o jogo havia acabado.
“Oh Deus, Karl, pensei que isso duraria até de manhã”, Anna disse
a si mesma.
A boca de Karl era quente e grande e seu beijo faminto. Sua língua
tocou a dela e então se moveu em um círculo sobre seus lábios. Sob sua
língua, Anna sentiu a pele macia e delicada dos lábios internos de Karl e,
bem no fundo de seu corpo, um estremecimento fez suas partes
inferiores explodirem de desejo. Karl passou a língua pelos dentes dela,
explorou a lacuna entre eles e o lábio superior. Ele moveu a mão ao
longo da curva de sua cintura, deslizou para cima como se procurasse
satisfazer um vazio e encheu a palma da mão com o peito da jovem
enquanto com a outra mão a pegava por trás da cabeça.
Descansando a cabeça contra o lado do nariz de Anna, ele implorou
com voz rouca:
— Anna, não brinque comigo assim. Eu esperei muito tempo.
“Diga a ele agora”, ela se ordenou. Mas era como tocar o céu ser
acariciada, por fim, daquela forma íntima e total. A mão que derrubava
árvores, que atrelava os cavalos e segurava o machado como se fosse um
brinquedo de criança, era agora terna em sua insistência; massageando-
lhe os seios, provocava em Anna a vontade de se entregar totalmente às
carícias daquela mão calejada.
— Oh, Anna, você é uma menina ou uma mulher? Você é tão
quente...
Com ternura, ele continuou acariciando seus seios, embriagado por
esse contato tão desejado e sentindo seus mamilos duros e eretos.
— Oh, Karl, infelizmente sou os dois! Espere, Karl!
— Chega de esperar, Anna. Não tenha medo. — A mão dele subiu
por suas costelas e acariciou seu quadril enquanto ele cobria sua boca
com a dele.
Anna percebeu que Karl não era o único enganado; ela também
tinha se enganado. Ela o desejava com tanto fervor que estimulando-o,
ela também se estimulou e todo aquele jogo já era uma tortura
impossível de suportar. Anna apertou a mão de Karl com força.
— Karl, me desculpe... espere! Eu não deveria ter começado isso
esta noite. Tenho o período.
A mão de Karl interrompeu as carícias e ele se afastou tenso. Anna
ouviu o suspiro profundo que ele exalou antes de se afastar com um
gemido audível e bater em sua testa com as costas do pulso. Ela pensou
ter ouvido o rangido de seus dentes.
— Por que você não me contou, Anna? — Ele perguntou
nervosamente. — Por que justo esta noite? — Seu descontentamento era
evidente.
Anna percebeu a fúria mal controlada quando ele se afastou dela e
se recostou mais uma vez com os braços sob a cabeça.
— Desculpe, Karl. Eu não percebi. — Apenas um profundo silêncio
recebeu sua resposta—. Não fique bravo. Eu... eu também não gosto
disso. — Em uma atitude defensiva, se virou para seu lado da cama, se
aconchegou sob a manta e a segurou com os braços.
— Você sabia e ainda assim começou o jogo.
— Eu disse que sinto muito, Karl.
— Estou jogando seu jogo há duas semanas. Eu tive o suficiente.
Acho que o que você fez não tem graça nenhuma.
— Não fique bravo.
— Não estou bravo.
— Sim, está. Eu não farei isso novamente.
Ele olhou para a escuridão por um longo tempo; era óbvio que ele
estava furioso com ela. Então ele perguntou:
— Quanto tempo dura esse período das mulheres?
— Mais alguns dias—, ela murmurou.
— Alguns? Mais dois, Anna? — Ele perguntou deliberadamente. Ela
estava encurralada, mas só podia responder:
— Sim, mais dois.
Ela percebeu que com aquelas palavras estava se comprometendo a
uma certa data. Daqui a duas noites, seu destino estaria decidido. Tudo
dependia do que Karl poderia ou não descobrir sobre seu passado, uma
vez que fizessem amor.
— Muito bom—, disse Karl determinado, — mais dois dias.
Anna não conseguia definir quais eram seus medos. Não estava
realmente pensando: "Se Karl descobrir a verdade, ele vai me mandar de
volta”. Sabia que não o faria. No entanto, a culpa e a incerteza a
impeliram a se proteger contra sua provável raiva. Sua única
salvaguarda era mostrar que ela era valiosa naquele lugar, que Karl
pensasse que era indispensável. Anna admitiu que havia muito a provar
naqueles dois dias.
Começou na manhã seguinte tentando fazer panquecas. Quando
Karl e James voltaram das tarefas matinais, encontraram a intrépida
Anna prestes a despejar uma parte da mistura na frigideira.
— Posso finalmente me dedicar à minha tarefa de lenhador? — Karl
perguntou com um sorriso, enquanto Anna nervosamente enxugava as
mãos nas calças.
— Talvez—, disse ela hesitante, e teria derramado a mistura na
frigideira sem untá-la, se não fosse pelo aviso de Karl.
Enquanto cozinhava e virava as panquecas, percebeu que não se
pareciam em nada com as de Karl. As dele eram planas e sem cor. Mas
Anna serviu primeiro a Karl de qualquer maneira e correu para preparar
a segunda rodada para James.
Karl olhou para aqueles espécimes achatados com bordas
onduladas. Muito leite, ele pensou, e pouco bicarbonato de sódio. Mas
ele comeu aquela porção e depois outra, sem criticar.
Quando Anna deu a primeira mordida, sua mandíbula ficou imóvel.
Karl e James se entreolharam com o canto dos olhos, tentando não rir.
Imediatamente ela cuspiu o pedaço no prato, enojada.
— Ah! — Ela exclamou. — É como um casco de vaca.
Os outros dois finalmente riram alto, enquanto Anna se censurava
desgostosa.
— Achei que fosse te surpreender, mas sou muito burra para
lembrar uma receita simples. É horrível! Não sei como conseguiram
comer tantas!
— Estavam duras, não estavam, James? — Karl perguntou entre
acessos de riso.
James mostrou a língua e revirou os olhos para cima.
— Não se atreva a me provocar porque eu fracassei, Karl
Lindstrom! Pelo menos eu tentei! E você pode guardar sua língua,
pirralho! — Ela gritou com James.
Karl silenciou a risada, mas seu peito continuava tremendo.
— Você foi a primeira a dizer que parecia um casco de vaca, —
James a lembrou.
— Eu posso dizer! — Ela perdeu a cabeça—. Você não! — Ela puxou
o prato da mesa e deu as costas para os dois.
— Diga a sua irmã para não jogar fora as sobras—, disse Karl em
voz alta atrás de Anna. — Podemos usá-las para ferrar os cavalos.
Mas quando Anna se virou para Karl, ele já havia se dirigido para a
porta. A panqueca passou perto de sua cabeça e atingiu o pátio, de onde
Nanna se aproximou, cheirou com curiosidade e acredite ou não! Ela
seguiu seu caminho sem demonstrar interesse. Anna ficou na porta, com
as mãos na cintura, gritando atrás de Karl, que estava se afastando da
clareira:
— Muito bem! Você é talentoso, o que eu fiz de errado?
— Talvez você tenha esquecido o bicarbonato de sódio—, gritou
ele, divertido, sem nem se virar.
Anna chutou com força a panqueca que estava no chão, suja de
terra, e se virou para a porta, murmurando:
— Bicarbonato de sódio! Uma tonta que se esquece do bicarbonato
de sódio!
Para completá-lo, Karl se virou e acrescentou:
— E você colocou muito leite!
Karl observou enquanto a bunda esguia de Anna se virava e entrava
na casa novamente. Na noite anterior, ele suspeitou que Anna havia mentido
para ele para adiar um pouco mais. Mas agora ele sabia que era verdade.
Karl tinha várias irmãs e lembrava-se das inexplicáveis explosões de raiva
que as sacudiam ciclicamente.
Anna estava tão brava consigo mesma que queria chorar. Depois de
todas as promessas que ela fez para agradar Karl, veja o que ela
cumpriu! Brandindo a tigela e jogando a panqueca nela, como se fosse
sua culpa. Aquelas panquecas estavam horríveis!
A refeição do meio-dia foi ainda pior porque deveria ter sido mais
fácil. Tudo o que ela precisava fazer era cortar o pão e fritar os bifes de
veado. Ela se ofereceu para voltar mais cedo da floresta para preparar o
fogo e começar a cozinhar a carne, para que estivesse pronta quando os
homens com o carregamento de lenha retornassem.
As fatias de pão saíram em forma de cunha. Os bifes de veado, que
pareciam tão saborosos crus, tinham sido queimados por fora e
pingavam sangue frio por dentro. Ninguém mencionou a má qualidade
da comida. Mas os bifes mal se tocaram.
Afinal, a inaptidão de Anna na cozinha tinha um propósito. Ela
ficou tão furiosa que trabalhava como uma máquina o dia todo para se
livrar da frustração. Naquela tarde, graças à energia excessiva dela, ela e
James conseguiram acompanhar o trabalho de Karl, árvore por árvore.
Nos trinta minutos que Karl levou para derrubar uma árvore, Anna
limpou os galhos de outro lariço e James deslizou uma carga encosta
abaixo. Período do mês ou não, Anna provaria que era boa para alguma
coisa.
No final do dia, o estômago de Anna começou a roncar como um
porco-espinho zangado. Karl estava muito perto e, quando a ouviu, não
pôde deixar de sorrir. No entanto, ele continuou trabalhando, de peito
nu e muito divertido.
Anna não aguentava mais. Quando a próxima árvore caiu com
estrondo no silêncio, ela olhou para Karl e, embora fosse mais cedo do
que o normal, perguntou-lhe:
— Karl, podemos voltar mais cedo hoje?
— Por quê? — Ele perguntou, machado na mão e indo para a
próxima árvore.
— Porque estou com tanta fome que não tenho forças para cortar
outro galho.
— Eu também—, disse James do outro lado do lariço. Mas ele
lançou um olhar cauteloso para sua irmã, admitindo isso.
— Eu também—, disse Karl, tentando não fazer uma careta.
De repente, a situação ficou cômica para Anna. Todos lá
trabalhando, enquanto ela grunhia, protestava e se enfurecia. Ela sabia
que devia ser a primeira a rir. Ela começou com uma risada fraca e
afetada, mas antes de entender completamente o que estava
acontecendo, James deu uma risadinha e então Karl também riu.
Imediatamente Anna fez um barulho deselegante com o nariz e os três
caíram na gargalhada.
A garota caiu no meio da serragem em um ímpeto irreprimível de
alegria. Karl ficou com um pé no toco e a outra mão no machado, rindo
com o rosto voltado para o céu azul; de sua parte, James correu até Anna
por entre os galhos da árvore caída e se ajoelhou, ele também, no meio
da serragem. Os corvos devem tê-los ouvido, pois eles se juntaram à
canção cacofônica da floresta. Os três riram até que seus estômagos
começaram a roncar mais e mais. Anna finalmente se sentou, fraca e
exausta, mas contente. Karl olhou para ela com aprovação; a serragem
salpicou seu cabelo, duas olheiras de suor sob os braços, manchas de
casca de árvore no queixo. Nunca tinha visto nada mais bonito.
— Não acho que estava errado a primeira vez que confundi você
com um filhote de urso ainda molhado atrás das orelhas, Anna. Olha
como você está! Minha esposa não deveria ser assim, sentada no chão de
calças e coberta de serragem por toda parte.
Mas pelo jeito que ele sorriu para ela, Anna percebeu que ela havia
sido perdoada pela noite passada. Fazendo beicinho para ele, ela
perguntou:
— Podemos ir agora, Karl?
— Agora mesmo?
— Agora, agora mesmo!
— Mas temos que podar e cortar esta árvore primeiro, e...
— E aí você vai ter que me enterrar! Por favor, vamos agora, estou
morrendo de fome, Karl, morrendo!
— Muito bem. — Karl riu. Ele puxou o machado do cinto e o
estendeu para Anna. — Vamos lá.
Anna olhou para aquele seu marido e apreciou o rosto sorridente e
bronzeado, emoldurado pelos cachos úmidos perto das têmporas. Ela se
perguntou como ela conseguiu ter tanta sorte. Seu coração saltou de
alegria quando ela olhou para ele, segurando o machado com firmeza e
sorrindo para ela com aquele olhar de olhos azuis. Com um sorriso
tímido, ela agarrou a machadinha com as duas mãos e Karl puxou para
ajudá-la a se levantar, em meio a uma chuva de estilhaços. Anna
praticamente voou pelo ar antes de pousar contra Karl, que a segurou
com o braço livre e puxou-a de encontro a seu quadril, sorrindo com os
olhos enquanto a observava.
James olhou para eles com prazer e enquanto se afastava disse: —
Vou trazer Belle e Bill.
Karl baixou o braço, mas olhou para o cabelo de Anna e estendeu a
mão.
— Você está um desastre—, disse ele, sorrindo enquanto tirava com
golpe um galho de pinheiro dela.
Ela apoiou o dedo indicador na têmpora de Karl e seguiu o fio de
suor escorrendo até a ponta do cabelo dele.
— Você também—, ele respondeu. Então ela colocou o dedo na
ponta da língua, ainda olhando para ele com seus olhos castanhos, antes
de se virar coquete. Os olhos de Karl se arregalaram com aquele gesto.
Os cinco começaram a descer a encosta. Anna dizia que a parelha
nunca tinha se movido tão devagar; se não se apressassem, ela cairia
morta nas toras no meio do caminho. Mas Karl a lembrou de não
apressar os cavalos, por precaução. Anna caminhava rapidamente à
frente de Karl, balançando os quadris provocativamente.
— O que você preparou para o jantar? — Seu marido perguntou
atrás dela.
Anna lançou fogo pelo olhar e continuou sua marcha enquanto o
repreendia:
— Não seja engraçado, Karl.
— Acho que é outra pessoa que está sendo engraçada aqui. E se não
tomar mais cuidado com as piadas, vai acabar cuidando da cozinha hoje.
Anna se virou e saltou em direção a Karl, implorando com uma voz
suplicante:
— Eu faria qualquer coisa por uma refeição decente preparada por
outra pessoa, para variar.
— Qualquer coisa? — Ele perguntou sugestivamente. Ele alongou
seus passos para alcançar Anna, que, ignorando sua dica, continuou
caminhando rapidamente em direção ao jantar. — Venha aqui, Anna, —
ele ordenou em um tom gentil.
— O que?
— Eu falei para você vir, você tem serragem na calça.
Anna se virou para inspecionar seu traseiro o melhor que pôde
enquanto continuava descendo a encosta. Mas Karl a alcançou e Anna
sentiu a mão dele roçar seu traseiro, enviando pequenos arrepios de
antecipação por seu estômago e seios. Depois de tocá-la, Karl colocou a
mão na cintura da garota e gentilmente a puxou para seu quadril.
Balançando seu machado sobre um ombro, eles caminharam juntos em
direção à clareira.
Naquela noite, comeram fatias saborosas de presunto porque foi a
coisa mais rápida que Karl inventou. Ele o baixou de uma das vigas da
casa do manancial, de onde estava pendurado como um morcego.
Ensinou à sua mulher a fazer um molho com o sumo do fiambre, leite e
farinha, com que acompanhavam umas batatas cozidas que Anna sabia
muito bem descascar; esse primeiro pequeno sucesso doméstico a
encheu de orgulho.
Durante a preparação do jantar, Karl lhe avisou:
— Estamos ficando sem pão. Acho que amanhã vou te ensinar a
amassar mais.
Com o coração partido, ela lamentou:
— Oh não! Se não posso fazer panquecas, com certeza vou estragar
o pão.
— Vai demorar, mas você vai aprender.
Ela ergueu as mãos em um gesto impotente.
— Mas há tanto para lembrar, Karl. Tudo o que você me ensina tem
ingredientes diferentes. Não consigo aprender tudo.
— Dê a si mesma tempo e você aprenderá.
— Mas você vai se cansar de eu estragar sua comida preciosa,
quando você tem que trabalhar tanto para consegui-la.
— Você está muito impaciente consigo mesma, Anna. Estou
reclamando? — Ele perguntou, e ergueu seus olhos azuis para ela.
— Não, Karl, mas eu só queria poder aprender mais rápido para
que você não tenha que fazer tudo. Se as coisas dessem certo desde o
início, você me deixaria só sem pensar que eu queimaria sua casa junto
com o jantar. Oh! Ainda não limpei a bandeja do café da manhã.
— Com um pouco de areia é mais fácil—, aconselhou Karl.
A areia funcionou e Anna exibiu orgulhosamente o recipiente
renovado. Mais tarde, porém, quando o presunto parecia e cheirava
loucamente delicioso, Anna parou na porta, segurando a tigela de
batatas descascadas contra o estômago.
— Karl?
Karl ergueu os olhos para ver que ela estava brincando
distraidamente com um pedaço de casca enrolada, torcendo-a no dedo
indicador.
— O que foi, Anna?
Ela estudou a casca cuidadosamente.
— Se eu pudesse ler, você poderia me escrever coisas para que eu
pudesse cozinhar direito. Quero dizer... — Ela olhou para ele com
expectativa—. Quero dizer, então não importaria se a memória me
falhasse. — E novamente ela baixou os olhos para a tigela.
— Nada de errado com sua memória, Anna. Com o tempo, tudo
ficará mais fácil.
— Mas você me ensinaria a ler, Karl? — Os olhos da garota se
voltaram para ele. — Só o suficiente para saber os nomes das coisas,
como farinha e bacon... e bicarbonato de sódio.
Um sorriso terno e compreensivo iluminou o rosto de Karl.
— Anna, eu não vou mandar você fazer as malas porque você
esqueceu o bicarbonato de sódio nas panquecas. Você já deveria saber,
minha pequena.
— Já sei. É só que você faz tudo tão bem e eu não posso fazer nada
sem você me observando passo a passo. Eu quero fazer as coisas certas
para você.
O que ele mais queria fazer naquele momento era ir até a porta,
pegar a tigela de batatas, pegá-la nos braços e beijá-la até o presunto
queimar.
— Você não sabe que é suficiente para mim que você queira fazer?
— Sim? — Os olhos grandes e infantis se arregalaram de espanto.
— Claro que sim. — Ele ficou satisfeito com o sorriso de Anna.
— Mas você me ensinaria a ler mesmo assim, Karl?
— Talvez no inverno, quando o tempo está melhor.
— A essa altura, posso ter queimado toda a sua preciosa farinha—,
disse ela com ar malicioso.
— Mas então teremos uma nova colheita. — Ela caminhou com a
tigela até a porta, feliz agora.
— Anna...
— Que?
— Guarde as cascas. Vamos plantar as que têm brotos e ver se a
temporada é longa o suficiente para nos dar uma segunda colheita. Nós
vamos precisar disso.
Ela se virou para estudá-lo cuidadosamente.
— Há algo que você não sabe, Karl?
— Sim— respondeu—. Não sei como vou aguentar até amanhã à
noite.
Naquela noite, ele a ensinou a fazer fermento com a água das
batatas e um punhado de frutas secas de lúpulo. A isso acrescentou um
estranho xarope que, segundo Karl, era extraído da polpa da melancia,
rica fonte de açúcar. O açúcar que Karl tirou do bordo era forte demais
para o pão. É por isso que ele fervia polpa de melancia todo verão e a
mantinha em potes, cobertos com cera de abelha dissolvida.
Eles deixaram os ingredientes do fermento no fogo da lareira, e ali
pernoitaram. Todos os três saborearam resquícios de néctar de
melancia, uma iguaria que Anna e James nunca tinham provado antes.
— Posso me servir de mais, Karl? — Perguntou James.
Karl esvaziou o jarro na xícara do menino.
— Está delicioso—, Anna confirmou.
— Tenho muitas outras coisas deliciosas para te mostrar.
Minnesota tem prazeres infinitos a nos oferecer.
— Você estava certo, Karl. É realmente uma terra de fartura.
— Logo as framboesas silvestres estarão maduras. Isso é realmente
uma delícia!
— Que mais? — Perguntou James.
— Amoras silvestres também. Você sabia que quando a Amora está
verde é de cor vermelha?
James ficou confuso por um momento, então riu.
— É um enigma ao contrário: o que é vermelho quando está verde?
— Mas quando está madura, fica preta como a pupila do olho de
uma cascavel—, disse Karl.
— Existem cascavéis aqui? — Anna perguntou com espanto.
— Há umas pequenas. Mas não vi muitas. Tive que matar apenas
duas desde que vim aqui. Mas, como as cobras comem os irritantes
roedores nos campos, não gosto de matá-las. Mas a cascavel é uma
praga, é por isso que preciso.
Anna sentiu um calafrio. Eles não foram tomar banho antes do
jantar porque estavam com pressa para comer. Karl sugeriu um banho
agora, mas a menção de cobras fez Anna se decidir pela bacia. James
também concordou que naquela noite ele iria pular o banho.
Quando eles estavam enfiados na cama, Anna foi a primeira a
sussurrar, como sempre:
— Karl?
— Hmm?
— Já pensou em um fogão para a nova casa?
— Não, Anna. Estive muito ocupado e isso saiu da minha mente.
— Não da minha.
— Você acha que um fogão vai te fazer uma cozinheira melhor? —
Ele perguntou, divertido.
— Bem, pode ser—, ela se atreveu a responder.
Mas Karl riu.
— Bem, pode ser! — Ele repetiu—. E poderia muito bem não ser, e
Karl Lindstrom teria gasto seu bom dinheiro por nada.
Um pequeno punho o atingiu no peito.
— Talvez possamos fazer um acordo, você e eu. Primeiro Anna
aprende a cozinhar decentemente, depois Karl compra um fogão para
ela.
— Sério, Karl?
Mesmo no sussurro, a voz de Anna soou com entusiasmo.
— Karl não é mentiroso. Claro que é verdade.
— Oh, Karl...
Ela estava animada só de pensar nisso.
— Mas eu irei julgar se você cozinha bem.
Anna ficou parada no escuro com um sorriso nos lábios.
— Vou fazer um bom pão amanhã. Já verás!
— Sou eu que vou fazer um bom pão amanhã. Você vai ver como eu
faço.
— Está bem. Eu vou observar. Mas desta vez vou me lembrar de
tudo, como James, — ela prometeu. — Você vai comprar esse fogão antes
do fim do mês, vai ver.
Já se imaginava com um fogão de ferro: seria maravilhoso
descobrir que cozinhar não era uma coisa tão odiosa, e aí tudo sairia
bem.
— Karl?
— Hmm...?
— Como você faz pão sem forno?
— No forno de barro lá fora. Você nunca o viu?
— Não. Onde está?
— Na parte de trás, ao lado da pilha de toras.
— É aquele monte de lama seca?
— Sim.
— Mas não tem porta!
— Vou fazer uma porta selando tudo com argila úmida depois de
colocar os pedaços de pão dentro.
— Você quer que eu fique toda suja de barro toda vez que eu fizer
pão, pelo resto da minha vida?
— O que eu quero é que você venha aqui e feche a boca. Eu disse
que pensaria no fogão e pensarei. Estou ficando cansado de falar sobre
pão, barro e fogões.
Então ela encontrou um lugar para se aninhar nos braços de Karl e
fez o que lhe foi dito: fechou a boca. Quando Karl tentou beijá-la, Anna
não quis abrir a boca. Ele tentou novamente de maneira mais persuasiva,
mas encontrou apenas uma boca que sorria com os lábios selados.
— O que é isso? — Perguntou Karl.
— Estou fazendo o que prometi fazer. Jurei obedecer ao meu
marido, certo? É por isso que, quando me dizem para fechar a boca, eu
fecho.
— Bem, seu marido ordena que você abra outra vez.
E Anna obedeceu de bom gosto.
CAPÍTULO 11
Fazer o pão acabou sendo um processo mais complicado do que
Anna imaginava, especialmente porque eles tinham que fazer quatorze
peças de uma vez, o suficiente para duas semanas.
Pela manhã, a preparação do lúpulo havia se transformado em um
monte de bolhas efervescentes que precisavam ser filtradas por uma
peneira de crina de cavalo; o líquido caia no que Karl chamou de "caixa
de massa", um tronco oco de nogueira preta com pernas. Tinha que
adicionar água, gordura e muita, muita farinha. Anna entrou em ação
naquele momento, amassando lado a lado com Karl. Antes de misturar
toda a farinha, seus braços doíam como se ela tivesse trabalhado com o
machado de Karl, e não com a massa do pão. A caixa tinha uma tampa
côncava feita também de madeira vazada; Quando a massa ficou pronta,
foi armazenada ali e deixada perto do calor da lareira para crescer.
— E agora você sabe amassar pão—, disse Karl.
— Você sempre faz tantos?
— É mais fácil, do que ter que amassar todos os dias. Seus braços
estão cansados?
—Não—, ela mentiu.
Era uma mentirinha inocente, pois ela não queria que Karl a
considerasse fraca demais para a tarefa.
— Bem, vamos ver o lariço que deixamos no chão ontem.
Esse dia foi diferente dos outros. Não houve troca de brincadeiras
leves entre Anna e Karl. Como que por acordo, evitavam os olhares,
evitavam o contato e até a palavra.
Porque esse era o dia!
Eles subiram a trilha de derrapagem atrás de Belle e Bill. Hoje, Karl
pegou as rédeas em vez de entregá-las a James. Era reconfortante
segurar aquelas rédeas, que lhe eram familiares; era bom focar nas
costas dos cavalos, também familiares, quando os olhos tentavam se
desviar para Anna. Era fácil para ele dar ordens ternas, mas severas, aos
animais; no entanto, ele não conseguiu encontrar nada para conversar
com Anna.
Ainda assim, ele estava ciente de cada movimento de Anna. Ele não
precisava olhar na direção dela para sentir cada gesto, cada barulho que
ela fazia. O farfalhar de suas calças roçando na grama da manhã, a
rápida inclinação de sua cabeça quando um faisão chamou sua atenção, o
balanço rítmico da cesta que carregava em suas mãos, o balanço natural
de seus quadris, o gesto de alerta quando ela encontrou um esquilo, a
maneira como olhava o bichinho enquanto ele passava, a determinação
em sua postura quando ia trabalhar com os galhos, a maneira como
levou a jarra à boca quando parou para beber água, a maneira como ela
secou os lábios com as costas da mão, a curva das costas quando se
abaixou para encher a cesta, a maneira como levou um graveto ao nariz
antes de deixá-lo cair, a pausa para empurrar o cabelo para trás quando
sentiu calor na nuca, o jeito como ela sorria, tranquilizando James,
quando James parecia perguntar a ela silenciosamente, "Por que essa
mudança repentina entre você e Karl?"
Anna também experimentou uma sensação de contentamento
mútuo com Karl, como se um diapasão de repente tivesse soado em seu
corpo e vibrado em uníssono com o de Karl, executando o novo
movimento de uma sinfonia que começara duas semanas antes.
Esse primeiro movimento, com o frescor do allegro, reverberou e
se perdeu no alto dos lariços. Foi substituído por um adágio sensual que
os pegou em seu ritmo lento e medido. Até o machado de Karl parecia
acompanhar esse ritmo mais moderado, marcando com seu baque os
minutos restantes até o anoitecer. Era como se Anna estivesse ao lado de
Karl, lado a lado, como antes.
Anna sentia cada movimento seu, embora ela não tivesse olhado
diretamente para ele durante toda a manhã. A mão de Karl no quadril de
Belle e a maneira como ele acariciava, descuidadamente, o quadril de
Anna; o tapinha no ombro antes de sair para agarrar o cabo do machado;
a maneira como ele estufou o peito e aquele último olhar antes de
erguer o machado pela primeira vez naquele dia; respiração profunda, a
maneira de prender a respiração no tórax antes do balanço flexível
inicial; depois a simetria do movimento, os cabelos loiros ao sol
balançando com o impulso de cada golpe; o queixo erguido quando a
árvore estremece, o piscar dos olhos quando a casca se quebra e o
estremecimento de satisfação quando a árvore cai; a maneira como a
camisa era desabotoada com uma das mãos, os ombros girados para trás
para se livrar da vestimenta, o cabo apoiado na virilha enquanto o torso
era despido e a camisa voava pelo ar; mãos abertas pegando o machado
mais uma vez, fazendo-o soar; o silêncio repentino quando James
apontou para algo, sem palavras; Karl, agachado como um gato, pegou
seu rifle e apontou para um esquilo que estava empoleirado em uma
árvore como se estivesse hipnotizado esperando para servir de jantar
naquela noite; o rebote do tiro, que mal sacudiu o ombro de Karl; o olhar
perplexo quando, abaixando o rifle e apoiando a coronha perto do pé,
descobriu que o esquilo havia escapado ileso.
Este foi um dos poucos momentos em que os olhos de Karl
encontraram os de Anna. A garota desviou o olhar e virou a cabeça para
que pudesse sorrir ante o tiro perdido sem que ele percebesse.
Durante aquele longo dia, seus pensamentos pairaram sobre temas
paralelos.
“O que Anna vai pensar de mim?”
“O que Karl vai pensar de mim?”
"Viria nadar comigo?"
"Karl vai querer que eu vá nadar."
"É melhor eu me barbear de novo."
"É melhor eu lavar minha cabeça."
"Eu gostaria de poder lhe oferecer um sabonete melhor."
"Eu gostaria de ter uma camisola menos rústica."
"O jantar será interminável."
"Eu dificilmente terei fome."
"Eu vou para o celeiro?"
"Vou para a cama primeiro?"
"Nunca houve dias mais longos."
"Nunca houve dias tão curtos."
"Anna vai resistir?"
"Karl vai exigir de mim?"
"É tão pequena."
"É tão grande."
"O que as mulheres precisam?"
"Será terno?"
"Vai perceber que esta é a minha primeira vez?"
"Vai perceber que esta não é a minha primeira vez?"
"Devo esperar o menino dormir?"
"James, vá dormir cedo!"
"Certamente vai querer que diminua o fogo."
"James vai ver com o fogo."
"As cascas vão fazer barulho!"
"Oh, essas cascas barulhentas!"
"Vou tirar a camisola dela?"
"Karl vai tirar minha camisola?"
"Minhas mãos são tão calosas."
"Minhas mãos ficaram ásperas."
"E se eu a fizer sofrer?"
"Vai doer como da primeira vez?"
"Notará minhas dúvidas?"
"Notará meus medos?"
"Haverá sangue."
"Não haverá sangue."
"Espero fazer bem."
"Espero que ele não suspeite."
Ao meio-dia eles amassaram a massa e Karl lhe mostrou como dar
forma aos pães. Ele polvilhou a assadeira de ferro forjado com fubá antes
de preparar o primeiro pão. Karl disse que, como eles tinham lariços
suficientes para começar a cortar, eles não voltariam para a floresta
naquela tarde. Se Anna quisesse, ela poderia arrancar as ervas secas do
jardim, que haviam sido relegadas ao esquecimento nos últimos tempos.
Eles também tiveram que plantar as cascas de batata antes que
secassem, e era necessário preparar o fogo com madeira dura para o
assado.
Consequentemente, Karl se encarregou de cortar a madeira e
Anna, do pomar. Por Deus! Anna não conseguia distinguir as ervas
daninhas das ervas comestíveis; Em vez disso, ela acabou arrancando o
confrei de Karl, que era muito mais alto do que o resto e não parecia um
vegetal. Sem saber de seu erro, ela continuou sua tarefa até que Karl
veio lhe mostrar a profundidade de plantar as cascas. Ele olhou ao redor
do local e depois para a pilha de ervas daninhas e perguntou:
— Onde está meu confrei?
— Que? — Anna perguntou.
— Meu confrei. Há muito pouco tempo crescia aqui, ao longo desta
linha.
— Você quer dizer aquela coisa longa e fina?
— Sim.
— Isso é... confrei?
Karl olhou novamente para a pilha de ervas daninhas, depois para
Anna, e se abaixou para pegar a planta murcha.
— É isso?
— Receio que sim.
— Oh não!
Em qualquer outro dia, eles teriam rido de alegria com o que Anna
fez. Mas hoje eles estavam muito conscientes um do outro. Anna deu de
ombros e Karl, olhando para o confrei, sorriu para ela. Ele a tocou e
disse:
— É um vegetal resistente. Acho que pode sobreviver apesar de
seus cuidados. Vou colocá-lo de volta no lugar, mas vai precisar de muita
água para voltar a crescer.
— Eu vou buscá-la—, Anna ofereceu, e correu para o manancial.
Foi saltando por entre as fileiras de vegetais, enquanto Karl
observava seu cabelo loiro uísque tremer a cada salto, completamente
alheio ao confrei murcho em sua mão.
Ela voltou com um balde cheio. Karl fez um buraco, esperou
enquanto Anna despejava a água, depois se ajoelhou para replantar a
erva e passar o solo úmido sobre as raízes com a sola do sapato enorme.
Acima dele, Anna segurava a alça de corda do balde de madeira com as
duas mãos, hipnotizada pela visão de suas costas nuas e a coluna
desaparecendo sob suas calças. Ele havia estado usando o machado antes
de se aproximar e uma película de suor brilhava em seus ombros. O
cabelo da nuca estava úmido e crespo rebelde com o calor. Ele se
levantou, pegou o balde, ergueu-o e bebeu até se fartar; Ele limpou a
boca com as costas da mão e disse: — Tenho que voltar ao trabalho.
Anna desejou poder ajudá-lo com o machado em vez de afundar
cascas de batata no chão. Ao mesmo tempo, era preocupante estar ao
lado de Karl hoje. Talvez fosse bom estar cada um trabalhando por conta
própria.
O sol estava baixo e os pombos começaram a ficar inquietos. O dia
ficou mais frio à medida que os pássaros voavam ao redor da borda da
clareira e sobre o telhado da casa do manancial, fazendo sons roucos e
arrulhos suaves. As andorinhas alegres iam à fonte para beber e molhar
seus tufos vermelhos ali. As andorinhas do celeiro mergulhavam em
rajadas azul-acinzentadas em perseguição aos insetos noturnos,
dispersando a nuvem cinza de mosquitos. Libélulas se afastaram dos
brotos de batata e se perderam no espaço, prontas para dobrar suas asas
de chiffon à noite. Os vermes abandonaram a sua perambulação
incessante pelas plantas de couve, curvando as costas uma última vez e
desaparecendo nas folhas onde os pássaros famintos não os conseguiam
encontrar.
Karl também curvou as costas pela última vez. Deixando o cabo do
machado deslizar para a palma da mão, ele inspecionou a primeira
fileira de toras, que já estava arrumada. Anna tinha ido para o
manancial.
— Bem, o que você acha, garoto?
— Acho que estou cansado.
— Cansado demais para caminhar até a mina de argila?
— Onde está?
— Subindo um trecho rio acima. Precisamos de argila fresca para
selar o forno de argila.
— Claro, vou com você, Karl.
— Boa. Pergunte a sua irmã se ela também quer ir. E diga a ela para
trazer um balde vazio do manancial.
James achou que Karl poderia ter feito essas perguntas
pessoalmente a Anna, mas os dois haviam se comportado de forma
estranha e reservada a tarde toda, como se tivessem tido alguma
altercação. Então James gritou:
— Ei Anna! Karl quer saber se você quer vir conosco pegar argila!
Anna estava fechando a porta e se virou para o irmão. Karl estava
atrás de James, observando-a.
— Diga que sim a Karl—, respondeu ela.
— Ele disse para trazer um balde.
A garota se virou para procurá-lo.
Anna levava o balde, James a pá e Karl o rifle. O homem marchava
na frente enquanto explicava:
— Faisões estão se alimentando, enchendo o bucho de cascalho ao
longo do riacho. Eu quero que fiquem atrás de mim, no caso de
encontrarmos um.
Os irmãos se lembraram de como Karl havia errado o tiro naquela
manhã.
Eles caminharam em fila única ao longo do caminho gasto em direção
ao riacho. Mas no meio do caminho eles encontraram um porco-espinho
ocioso indo na mesma direção. Ele marchava descuidadamente sobre as
pernas enormes e arqueadas, farejando a estrada com o nariz achatado até
que sentiu que tinha companhia. Então, dando um bufo de advertência,
enfiou a cabeça entre as patas dianteiras e balançou a cauda, protegendo seu
estômago pequeno e sem espinhos.
— Deem a essa criatura bastante espaço livre—, advertiu Karl,
abrindo caminho ao redor do roedor espinhoso—. Vale lembrar que
compartilhamos a floresta com ele e que ele gosta de saborear o sal das
mãos dos homens. Por isso sempre recomendo pendurar o machado no
final do dia. Se for deixado, ele pode devorar o cabo suado em muito
pouco tempo. E leva tempo para moldar o cabo de um machado.
Eles caminharam para um lugar onde uma espessa camada de
argila, sulcada por numerosas pegadas, jazia ao pé dos salgueiros.
Intrigado, James se ajoelhou para investigar de quem eram as pegadas.
Ele e Karl ficaram agachados por um longo tempo inspecionando as
marcações enquanto Karl as identificava:
— Guaxinim, gambá, rato, lontra, porco-espinho de garras longas.
Mas nada de coelhos ou marmotas porque, segundo Karl, eles só
precisavam da umidade das folhas carregadas com o orvalho da manhã.
Assim que todas as perguntas de James foram satisfeitas, eles encheram
o balde com argila e voltaram através da luminosa carícia esmeralda da
floresta.
Quando chegaram à clareira, encontraram a fornalha acesa com os
carvões de madeira dura; Karl os pegou, deixando apenas o tijolo em
chamas que irradiava calor de dentro. Depois de inserir os pães, ele
rapidamente selou a abertura com punhados de argila úmida, alisando,
moldando, umedecendo, alisando novamente; Fios amarelos grossos
escorreram pelos dedos de Karl e escorreram pelas costas de suas mãos.
Havia algo sensual neste espetáculo e Anna teve dificuldade em
tirar os olhos dele. Ela se lembrou das inúmeras vezes em que vira Karl
tocar os cavalos e da noite em que ele acariciou seus seios. Era como se
lava ardente corresse por suas entranhas enquanto ela observava, por
trás de Karl, como ele realizava essa tarefa. Ela baixou os olhos para a
nuca, depois para os ombros, que mudavam com os movimentos
circulares largos na nova parede do forno de barro. Anna se lembrou do
sal de Karl em sua língua quando pegou com o dedo aquela gotinha que
brilhava em sua têmpora.
De repente, Karl se virou de sua posição agachada para olhar para
Anna. Ele olhou para o rosto da garota, que ficou vermelho como uma
melancia madura. Anna rapidamente desviou o olhar para suas próprias
mãos, que ainda seguravam a sujeira do jardim sob as unhas.
Uma onda de ansiedade sacudiu Karl, que se virou para dar uma
última batidinha no forno.
— Vamos abri-lo de manhã e ter pão fresco no café da manhã.
— Isso parece ótimo—, disse Anna, seu rosto ainda corado, seu
olhar fixo na parede do celeiro do outro lado.
Karl se sentou e espreguiçou o corpo.
— Com toda certeza, os índios estarão presentes em quinze
quilômetros ao redor. Eles podem sentir o cheiro dos produtos assados a
vinte hectares de distância.
— De verdade? — James perguntou com entusiasmo. — Gosto dos
índios. Podemos nadar agora?
Karl respondeu ao menino, mas olhando para Anna.
— Anna teme as cobras desde que as mencionei.
— Não, é mentira! — Ela exclamou—. Sim! Estou com medo delas,
mas... quero dizer... bem, vejamos. Estou entediada com o jardim de
qualquer maneira.
Karl se controlou para não sorrir. Nada fazia Anna reagir, exceto
um desafio lançado em seu próprio estilo. Enquanto ele olhava para o
rosto dela atentamente, ele disse:
— Também estou entediado com o forno.
Mas sua esposa girou com tanta pressa que ele não conseguia ver
se ela ainda estava corando.
— Vamos então—, disse James, liderando o caminho.
Uma verdadeira sensação de timidez tomou conta de Karl e Anna,
acentuando sua expectativa e apreensão ao anoitecer.
O que James estava pensando? Anna estava preocupada, sabendo
exatamente o quão reservados que haviam sido durante grande parte do
dia. Mas não havia mais remédio. James poderia pensar qualquer coisa.
No entanto, de certa forma, James acabou sendo a bênção que o padre
Pierrot havia previsto. Enquanto eles falavam com ele, eles se
comunicavam através dele. Como sempre acontece com os amantes, o
importante não era o que foi dito, mas o que não foi dito.
— Nunca vi uma cobra a essa hora da tarde. Elas procuram comida
durante o dia e não nadam.
— Não sou eu que estou preocupado com elas, é a Anna.
— Se eu achasse que havia perigo, não os levaria para a lagoa.
— James, vai devagar! Você está indo muito ligeiro!
— Não sou eu. É o Karl. Calma, Karl! Anna não consegue
acompanhar.
— Oh, eu estava muito rápido?
— Ei Anna! Venha aqui, no fundo, conosco.
— Não, hoje não.
— Por quê?
— Vou lavar minha cabeça.
— Lavar a cabeça! Você sempre disse que odiava esse sabonete
gorduroso!
— Deixe sua irmã em paz, garoto.
— Você está se barbeando de novo, Karl? Você já se barbeou esta
manhã.
— Deixe-o em paz, James.
— Estou com fome depois desse banho! Passe-me o ensopado.
— Claro... aqui está.
— Ei, o que acontece não comem esta noite?
— Eu não estou com muita fome.
— Eu também não.
— Ei, Anna, você ficou muito quieta o dia todo.
— Você acha?
— Sim. Por que isso?
— Eu arranquei o confrei de Karl e ele parece estar com raiva de
mim.
— É por isso que estão com raiva um do outro?
— Eu não estou bravo com Anna.
— Eu não estou bravo com Karl.
— Ajude sua irmã a lavar a louça. Ela teve um dia muito difícil hoje.
— Eu também.
— Faça o que eu digo, James. Vou cuidar dos cavalos.
— O que há para fazer lá fora, se já os levou para dormir no
celeiro?
— Deixe Karl em paz, James.
— Bem, diabos! Tudo que fiz foi perguntar.
— Prepare a cama, sim?
No estábulo, Karl acendeu seu cachimbo, mas este acabou
esquecido com seu perfume de tabaco e intocado.
— Oi, Belle. Vim dizer boa noite—. Karl acariciou seu pescoço e
crina e esfregou seus cabelos ásperos com os dedos até que Belle virou a
cabeça gigantesca com curiosidade. — O que você acha, senhora? Você
acha que ela já vai estar na cama?
Belle abriu e fechou os olhos, na escuridão. Mas esta noite nem
Belle nem Bill poderiam tranquilizar Karl.
— Ah, bem...— o homem suspirou—. Boa noite para vocês dois.
Ele bateu na garupa de ambos e caminhou lentamente em direção
à casa. Ele pegou a corda do passador entre os dedos. Ele fez uma pausa
pensativo, então se virou para a bacia e lavou as mãos para remover o
cheiro dos cavalos.
De volta à casa, ele encontrou James ainda acordado. O tempo
passou como caracóis de casca mole em uma manhã fria. Anna escovou o
cabelo, enquanto James parecia mais interessado do que nunca em
erguer paredes de toras. Suas perguntas eram intermináveis, Karl
respondia a todas, mas por fim se sentou, ergueu os cotovelos no ar,
contorceu o corpo e bocejou da maneira mais convincente.
— Não me diga—, James avisou—, amanhã é outro dia... eu sei! Mas
não estou nem um pouco com sono.
Anna sentiu um tremor no estômago.
— Bem, Karl sim. E ele não pode passar a noite entretendo você,
então vá para a cama, irmãozinho.
Finalmente, James se jogou na cama.
— Vou remover o carvão—, disse Karl.
Ele se ajoelhou, ouviu o som da tampa do baú se abrindo atrás dele
e ficou onde estava, atiçando o fogo, abanando com as mãos até que
finalmente as cascas falassem.
Karl se levantou, tirou a camisa das calças, passou por cima dos pés
de James e mergulhou nas sombras profundas que envolviam a cama,
dele e de Anna. Karl se perguntou se as batidas de seu coração fariam as
cordas ranger. Certamente uma comoção tão violenta como a dele
abalaria o mundo inteiro!
Toda a sua vida culminava nisso: deitar ao lado dessa mulher,
dessa garota, dessa virgem; seu pai o havia ensinado muito bem como
ser um homem neste mundo, em todos os aspectos, menos nesse. Seu pai
lhe havia transmitido um profundo respeito pelas mulheres, mas, além
disso, muito pouco. Ele aprendera com seus irmãos mais velhos que esse
aspecto do casamento era desagradável para algumas mulheres,
principalmente porque lhes causava dor, principalmente na primeira
vez. Como fazer Anna se divertir, essa era sua preocupação. Como
conduzi-la com ternura, como tranquilizá-la... “O que Anna está
pensando, aí tão quieta? Havia vestido a camisola? Não seja bobo,
homem, é claro que ela vestiu! Esta noite não é diferente. Sim, é isso! Há
quanto tempo estou aqui tremendo como um colegial?”
— Vem aqui.
Anna o ouviu murmurar e o sentiu levantar o braço e colocá-lo ao
redor dela. Anna ergueu a cabeça, o braço de Karl a puxou e deslizou sob
seu corpo. Muito gentilmente, ele esfregou suas costas através da
camisola em círculos cada vez maiores. Anna sentiu um arrepio
percorrer sua espinha. Por um breve momento, Karl hesitou na base de
sua espinha, depois continuou a acariciá-la com movimentos suaves até
Anna relaxar um pouco. Habilmente, ele a virou até que sua orelha
estivesse pressionada contra seu bíceps.
Anna sentiu a batida de seu próprio coração explodir dentro de sua
cabeça. Há quanto tempo ela havia estado deitada de costas rígida,
pedindo aos músculos para relaxarem? Agora, lentamente, a mão dele
cumpria o que sua vontade havia falhado. “Cale a boca”, disse a si
mesma, “ou vai ouvir você respirar como uma lebre e vai perceber o
quanto você está apavorada”. Mas respirar pelo nariz era ainda pior.
Então, quando os lábios de Karl tocaram os dela, eles já estavam
separados.
Ele a puxou completamente para seu beijo. Ele encontrou os lábios
de Anna sensíveis e ansiosos. No meio do beijo ele teve que engolir.
“Idiota!”, pensou ele. "O menino deve ter sentido você engolir de lá." A
saliva se acumulou em sua boca e ele teve que engolir mais uma vez. Mas
então Anna engoliu em seco também. Karl parou de se preocupar. E não
houve mais problema.
Karl a segurou com um só braço, e Anna estava com as mãos
apoiadas levemente em seu peito. Enquanto o beijo se prolongava e se
alongava, Anna começou a mexer os dedos timidamente, como se
acabasse de perceber que a pele de Karl estava ao seu alcance. Ela
acariciou os cabelos sedosos que tinha visto tantas vezes ao sol. Era
como uma penugem com uma textura muito macia que contrastava com
o músculo forte de onde emergia. Esses pequenos movimentos aguçaram
os sentidos de Karl e despertaram nervos que ele achava que não tinha.
De repente, Anna roçou seu mamilo levemente. Karl pegou a mão dela e
colocou-a novamente onde o contato lhe dera imenso prazer.
Imediatamente sentiu aqueles dedinhos vibrarem em seu peito como
borboletas, e Anna se perguntou o que Karl estava esperando.
Karl esperava que as mãos de Anna o rodeassem, que ela soltasse
os seios que protegia com modéstia. Finalmente Karl sussurrou:
— Envolva-me com seus braços, Anna.
Os braços encontraram o caminho, as mãos brincaram com os
músculos das costas. Karl apoiou a palma da mão onde o peito de Anna
saltava. Anna manteve as mãos paradas. Toda ela ficou ali esperando,
esperando, exalando seu hálito quente na bochecha de Karl, até que a
carícia parecia a queda de uma pena.
Levemente, ele roçou as costas dos dedos sobre o mamilo ereto.
Parecia que o universo inteiro estava prendendo a respiração junto com
Anna e Karl, quando ele começou a procurar os botões, os encontrou e os
separou um a um com movimentos muito lentos. “Você não está se
movendo, Anna”, ele pensou. "Deixe-me sentir seu calor." Anna não
resistia, ela aceitava seu toque.
Karl deslizou a mão das costelas ao peito por dentro da roupa. Lhe
acariciou a mandíbula com o polegar, depois a nuca, abraçou-a
brevemente e novamente colocou a palma da mão entre seus seios,
saboreando o encanto de fazê-los esperar, desejarem.
Anna fechou os olhos e suspirou ao sentir a mão acariciar seu peito
nu, contê-lo, envolvê-lo, excitando seus centros nervosos. Levado pela
maravilha da descoberta, a mão de Karl percorreu a pele de Anna, tão
diferente da sua. Os seios eram suaves, incrivelmente macios, como as
pétalas de uma rosa selvagem. No entanto, contraído ali com força
insuspeitada.
— Anna—, ele respirou, seus lábios muito próximos aos dela—, você
é tão quente, tão macia aqui...— Ele apertou ternamente a carne macia—.
Tão dura aqui... — Ele pegou o mamilo duro e ereto, acariciou-o
suavemente, segurou-o entre os dedos, extasiado— Como eu desejava
este momento!
A jovem jazia com a boca muito perto da de Karl, sentindo suas
palavras na pele; sua única resposta foi submeter-se às suas carícias,
enquanto ele aprendia o belo mistério que envolve o homem e a mulher.
Como se ela fosse seu altar, ele passou a adorar, com profunda
reverência, a bondade daquela oferta.
Dentro de Anna estava crescendo a convicção do respeito inato que
aquele homem sentia pelo ato em que ambos haviam embarcado; então,
quando Karl deslizou sua camisola pelos ombros, a virtude já flutuava
entre eles antes mesmo de os corpos se unirem. Karl acariciou seus
cabelos, seus ombros, pegou a mão que estava atrás dele e beijou a
palma; ele finalmente a empurrou de volta para o travesseiro.
Então ele se abaixou para fazer o que havia sonhado por tanto
tempo: beijou seus seios, ele e ela surpresos com as sensações que os
inundavam. Uma língua tenra, quente e faminta roçava, esfregava,
sentia. Lábios ardentes e ansiosos envolviam, fechavam, incendiavam.
Anna sentiu uma sede incrível enquanto Karl chupava seu seio. Ela
sabia qual era a sede física que causava o desejo intenso de beber água
fresca e corrente. Ela sabia qual era a sede emocional que evocava visões
de carne quente e trêmula. Tudo se transformou em uma angústia
maravilhosa até que a cabeça caiu para trás por impulso natural. As
costelas se ergueram, as costas arqueadas, as mãos encontraram a
cabeça do homem. Karl fez um gemido baixo quando os dedos de Anna
se entrelaçaram em seu cabelo. As mãos da jovem puxaram com
impaciência, então caíram em suas bochechas e apalparam as lacunas,
para sentir melhor como ele tomava posse de sua carne através daquele
beijo. A boca faminta criava em Anna uma confusão total de sensações
conflitantes. Ela estava ao mesmo tempo saciada, mas com sede,
satisfeita, mas com fome, exausta, mas fortalecida, lânguida, mas vital,
relaxada, mas tensa.
Karl passou o rosto pelo corpo de Anna enquanto ela se deleitava
com o ritmo ocioso que ele havia estabelecido. Ele a sentiu se esticar
como um gato quando seus lábios tocaram o espaço entre suas costelas.
Como se aquele gesto desencadeasse algo mágico, Anna ergueu os braços
sobre a cabeça, arqueando-se ainda mais com tal langor que ele não
esperava. Os quadris eram redondos e quentes, os buracos pequenos e
macios sob a palma da mão de Karl. Lentamente, suavemente, ele esticou
o corpo ao lado de Anna e seus lábios se encontraram novamente,
enquanto ela envolvia o círculo apertado de seus braços em volta dos
ombros de Karl.
— Karl...— ela murmurou, e esperou até que, finalmente, Karl
encontrasse o mistério que Anna guardava naquelas dobras preciosas de
calor.
— Oh, Anna...— A voz de Karl era áspera; sua boca estava enterrada
entre o travesseiro e a orelha de Anna—. Eu não posso acreditar no que
você é.
Sua mente se encheu de hosanas com a descoberta dessa mulher e
a maneira de reagir às suas carícias. Ele esfregou sua própria orelha
contra a boca de Anna, sentindo que seu toque era, finalmente, aceito
dentro dela.
— É tão diferente...— Anna murmurou—. Eu estava tão assustada ...
— Anna, eu nunca vou te machucar.
Deliciado com sua aceitação, Karl a explorou até o limite de sua
resistência. Ele a cobriu com o comprimento de seu corpo, pensando:
“Anna, Anna, não posso acreditar que você é do jeito que é! Você não me
rejeita nem me faz sentir inexperiente, como eu temia”. Ele empurrou
seus quadris em direção a ela, causando um rangido que ecoou pela sala.
Ansiosamente, ele a agarrou pelo pescoço, pressionou a orelha de Anna
contra sua boca e sussurrou com voz rouca:
— Anna, vamos lá fora... por favor.
Ele inclinou a cabeça para os lábios da garota.
— Sim—, ela murmurou.
Karl saiu da cama e encontrou as roupas no escuro; Anna voltou a
vestir a camisola, encontrou os botões e sentiu a mão de Karl puxá-la
para fora da cama. Por causa do barulho, a voz sonolenta de James veio
do chão:
— Karl, é você?
— Sim, sou eu e Anna. Queremos conversar um pouco, então vamos
dar uma volta. Durma, James.
Eles trancaram a porta atrás de si e deslizaram descalços pela
grama molhada, as pernas tremendo a cada passo. O luar derramou-se
sobre suas cabeças como creme fresco, enquanto caminhavam
lentamente em direção ao celeiro, sem se tocar. Anna sentiu Karl puxar
seu braço e ergueu os olhos para ele, o rosto e o cabelo iluminados pela
luz da lua, a borda dos lábios emoldurada pela sombra. Karl parou,
passou o braço pelos ombros da esposa e a cobriu com o cobertor que
havia tirado do canto quando saíram para ter privacidade. Anna se
agarrou ao pescoço dele enquanto ele a levantava do chão, separando
seus pés e se inclinando para trás para se equilibrar. A camisa de Karl
estava desabotoada entre os dois. A garota acariciou os músculos dos
ombros dentro da camisa. Quando ele beijou seu pescoço, ela se arqueou
para o céu escuro da noite.
"Eu faria essa primeira parte durar a noite toda, se pudesse",
lamentou. As curvas e planícies do corpo de Anna estavam coladas ao
dele, insinuantes, enquanto ele a segurava.
— Só o seu contato, Anna...
Ela apagou suas palavras com um beijo, suas mãos brincando atrás
das costas, até que ele a abaixou. Seus pés tocaram o orvalho, e então os
dois, de mãos dadas e com o cobertor flutuando entre eles, correram
para o celeiro.
Karl a conduziu pela mão em meio a escuridão com cheiro de feno,
mostrando-lhe o caminho. Anna ouviu o sacudir do cobertor, o leve
farfalhar do tecido enquanto o estendia sobre o feno. Ela encontrou os
botões da camisola, mas as mãos dele avidamente pararam as dela e
agarraram seus pulsos com um aperto imperioso. Sem compaixão, ele
pressionou seus braços ao lado do corpo e apertou os botões.
— Este é o meu trabalho—, disse ele—. Eu quero que toda a alegria
desta noite seja minha. — Ele baixou a roupa até os ombros dela,
encontrou seus pulsos novamente e os trouxe para seu estômago—. Bom
desde o início, Anna, como tem que ser.
Sem palavras, ela fez o que ele pediu, com as mãos tremendo, até
que ficaram nus, um de frente para o outro.
O sangue corria por seus ouvidos. Eles saborearam aquele
momento de hesitação antes de Karl agarrar seus ombros com suas mãos
fortes, puxá-la para perto de si e colocá-la no feno.
Karl se mostrou ágil, autoritário e excitado enquanto a segurava e
beijava com um fervor que ela não tinha imaginado, em todos os lugares.
Os braços de Anna o seguravam; seus lábios o procuravam; seu corpo se
arqueava. Em cima dela, ele manteve o equilíbrio, se acomodava.
— Anna, eu não quero te machucar, minha pequena.
Jamais teria esperado uma preocupação tão sensível e sincera.
— Tudo bem, Karl—, disse ela, não pensando mais em atrasar o
encontro final dos corpos.
Karl pairou por um momento, hesitando, então encostou-se
levemente nela. Ele sentiu as mãos de Anna encontrarem seus quadris e
moveram-se suavemente sobre eles. Mais uma vez, ele esperou seu sinal,
lentamente, demorando. Anna se moveu e foi ao seu encontro. Juntos,
eles encontraram o ritmo. Ambos falaram seus nomes no meio da noite
escura, enquanto respiravam pesadamente. Seus movimentos tornaram-
se um balé cheio de graça, fluidez e harmonia perfeitamente
sincronizados na coreografia criada pela mão mestra da natureza. Karl
ouviu o som de seus próprios gemidos de prazer quando o clímax se
aproximou. Anna soltou um grito inaudível e Karl parou de se mover,
desabando.
— Não... não...— Anna exclamou.
Karl recuou, assustado. A jovem atraiu-o para si.
— O que foi, Anna?
— Está bom... por favor.
Anna disse a ele, em uma linguagem antiga como os séculos, para
se soltar, até que o tempo, o tom e o ritmo chegaram dentro dela, dando
sentido à sua existência. E junto com suas idas e vindas, Karl também
estremeceu e desabou, e baixou a cabeça até enterrá-la, exausto, no
pescoço de Anna.
Ela o segurou ali, acariciando, com veemência, o cabelo úmido
atrás de sua nuca, perguntando-se se não haveria problema em chorar,
se era algo que ela tinha permissão para fazer. Pois seu peito estava
prestes a explodir. Seu nariz formigou e suas glândulas salivares se
encheram. Então, horrorizada, ela explodiu em um único soluço de
partir o coração que ecoou pelo celeiro e alarmou Karl.
— Anna! — Ele exclamou, com medo de tê-la machucado
acidentalmente. Ele caiu de lado, arrastando Anna com ele. Mas ela virou
a cabeça com força e cobriu os olhos com um braço. — O que é, Anna?
Que te fiz? — Aflito, ele se afastou e acariciou o braço que ela segurava
sobre os olhos.
— Nada—, ela engasgou.
— Por que você está chorando então?
— Eu não sei... eu não sei...— Ela realmente não sabia.
— Você não sabe? — Ele perguntou.
Silenciosamente, ela balançou a cabeça, incapaz de desvendar esse
mistério sozinha.
— Eu te machuquei?
— Não.
Ele acariciou seus cabelos com aquela mão enorme, sem saber o
que fazer.
— Eu pensei...— Ele implorou—, Diga-me, Anna.
— Aconteceu uma coisa boa, Karl. Algo que eu não esperava.
— E isso te faz chorar?
— Sou uma tonta.
— Não... não, Anna... não diga isso.
— Achei que você não ficaria feliz comigo.
— Não, Anna, não. Por que você pensa isso?
Mas ela não conseguia explicar o verdadeiro motivo.
Inacreditavelmente, ele não pareceu ter notado.
— Eu é que pensei que não tinha me saído bem. Pensei nisso o dia
todo e fiquei preocupado. E agora aconteceu e nós sabíamos como, Anna.
Nós sabíamos. Não é incrível como isso aconteceu? Como sabemos?
— Sim é fantástico.
— Seu corpo, Anna, como você é feita, como nos comunicamos—.
Ele a tocou com reverência—. É um milagre.
— Oh, Karl, como chegou a ser assim? —Lhe apertou contra ela
quase desesperadamente, como se tivesse ameaçado deixá-la.
— Como eu sou?
— Você é... eu não sei... você é tão maravilhado com tudo. As coisas
significam tanto para você... É como se você sempre procurasse o lado
bom das coisas.
— Você não está procurando o lado bom também? Você não
esperava que isso fosse bom?
— Não como você, acho que não, Karl. Minha vida não era muito
boa até que encontrei você. Você é a primeira coisa boa e verdadeira que
já aconteceu comigo, exceto James.
— Isso me faz feliz. Você me fez feliz, Anna. Tudo está muito
melhor já que você está aqui. E pensar que nunca mais terei que ficar
sozinho...
Então ele deu um suspiro, um profundo suspiro de satisfação, e
escondeu o rosto no pescoço da garota mais uma vez. Eles ficaram em
silêncio por um tempo para prolongar o momento. Anna tocou o braço
que Karl tinha preguiçosamente apoiado nela e acariciou o cabelo e os
pelos do peito. Karl colocou um pé no tornozelo de Anna para contê-la.
Eles começaram a falar preguiçosamente, de onde suas bocas se
encontravam: o queixo, a nuca, o peito do outro.
— Achei que fosse morrer antes do fim do dia.
— Você também, Anna?
— Hmm. Eu também. Você também?
— Eu me preocupava com as coisas mais inusitadas.
— Eu não sabia se tinha que olhar para você ou te ignorar.
— Fiquei preocupado com aquelas cascas, o dia todo.
— De verdade?
Karl acenou com a cabeça e ela riu docemente.
— E você não?
Anna riu novamente.
— Não sei o que teria feito se você não quisesse sair.
— Fiquei tão aliviada quando você perguntou.
— Vou me apressar para terminar a cabana de toras, então James
terá um lugar para ele.
Eles ficaram em silêncio, pensando sobre isso. Anna perguntou
imediatamente:
— Karl, sabe de uma coisa?
— O que?
— Você mentiu esta noite.
— Eu?
— Você disse ao James que íamos dar um passeio. Uma vez você
disse: "Não há nada que torne Karl Lindstrom um mentiroso." Mas não
foi assim.
— Pode acontecer de novo—, advertiu Karl.
E realmente aconteceu.
CAPÍTULO 12
No instante em que abriu os olhos, James percebeu que estava tudo
bem entre Anna e Karl. Para começar, hoje era o primeiro dia em que
Karl não tinha se levantado antes de Anna e saído do quarto, para que
ela pudesse sair da cama, se lavar e se vestir sem se sentir
desconfortável. Quando James abriu os olhos e se esticou para olhar por
cima do ombro, ele descobriu que sua irmã e seu cunhado ainda estavam
enfiados na cama. James pensou ter ouvido murmúrios e risos. O menino
se sentiu rodeado por uma agradável sensação de segurança. Tudo era
terrível quando Karl e Anna estavam tensos. Mas hoje, James percebeu,
hoje seria um daqueles dias bons de que ele tanto gostava.
Karl estava naquele momento deitado cara a cara com sua esposa e
a segurava pelos dois seios.
— Os dois juntos nem sequer enchem uma mão—, sussurrou Karl.
— Você não pareceu se importar na noite passada—, Anna
devolveu em outro sussurro.
— Eu disse que me importava?
Anna murmurou, imitando um forte sotaque sueco:
— Se você quer uma esposa que tenha peitos como svandías, você
terá que regressar a Svecia. Esta aqui tem apenas dois pequenos
morangos.
Karl teve que esconder o rosto para abafar o riso; então ele
mergulhou em seus dois pequenos peitos.
— Mas Anna, eu te disse que os morangos eram meus favoritos—,
disse ele assim que pôde.
— Não me engane! Eu conheço você!
— Um homem não pode deixar de ter seus favoritos.
— Sim, a favorita diz que isso é brincadeira. Este homem deve se
lembrar que, se não tivesse mãos como platus soperus, elas estariam
cheias agora.
Karl foi abalado por outro acesso de riso. Sob suas mãos, ele sentiu
os seios de Anna se contraírem também.
— E se você não estivesse ocupada sendo engraçada com seu
marido, você estaria com as mãos ocupadas—. Ele pegou a mão pequena
e a colocou em seus genitais.
— Sim, claro—, disse Anna, aperfeiçoando seu sotaque sueco—. É
um tonto, como eu disse. Em pleno sol e seu cunhado no piso, ele acorda
como um pepino maduro.
Desta vez, eles não conseguiram esconder o riso. Eles riram
ruidosamente quando Karl prendeu Anna naqueles braços poderosos, e
os dois rolaram na cama, transbordando de alegria.
— O que vocês dois estão fazendo aí? — James perguntou do chão.
— Estamos falando de horticultura—, respondeu Karl.
— Tão cedo de manhã? — James não se enganou. Ele sabia que as
coisas iriam bem de agora em diante.
— Sim, eu estava dizendo a Anna o quanto eu gosto de morangos, e
ela estava me dizendo o quanto ela gostava de pe...— Anna cobriu sua
boca com as mãos e sufocou o resto da palavra.
James continuou ouvindo mais risos e as cascas soaram como
nunca antes, acompanhadas por ruídos e protestos nesta jocosa batalha.
Mas James sabiamente manteve as costas para a cama enquanto se
levantava e ia se lavar. Ele tinha um sorriso desenhado de orelha a
orelha.

KARL ESTAVA CERTO; OS ÍNDIOS APARECERAM na clareira antes


do café da manhã e olharam ansiosamente para o forno. Graças a Deus,
havia apenas três deles desta vez, então havia apenas um pedaço de pão
para dividir. Karl carregou seu machado para fora. Anna, James e os três
visitantes assistiram Karl abrir a tampa do forno. Os quatorze pães eram
marrom-dourados e ainda quentes.
— Tonka Squaw cozinha um bom pão—, disse Dois Chifres quando
ele o provou.
— Dois chifres caçam faisões bons—, Anna devolveu.
E com essas palavras eles fizeram as pazes. Karl não achou
necessário esclarecer quem cozinhou o pão. Em vez disso, ele permitiu
que Anna desfrutasse da admiração que os índios demonstravam por ela.
Para eles, ela sempre seria Tonka Squaw, Grande Mulher, e Karl estava
orgulhoso por ela ter conquistado aquele título honroso. Agora que
Anna entendia sua importância, ela se sentia mais próxima a eles.
Era estranho para a jovem que Karl tivesse dito que, apesar da
amizade, os índios roubariam comida se a casa não fosse protegida. Mas
assim como os índios não acreditavam que alguém fosse dono dos
pássaros do ar, também não acreditavam que alguém fosse dono do trigo
da terra. Se eles quisessem pão branco, eles viriam e o teriam. Se eles
quisessem batatas brancas, eles viriam e as comeriam. Mas seu senso de
honra os manteria longe do local, se vissem que a porta estava trancada
com a madeira.
O café da manhã com os índios fez com que o trabalho começasse
mais tarde naquela manhã, mas não importava. Os três estavam de bom
humor porque naquele dia estavam começando a cortar as toras e não
havia nada, naquele momento, que pudesse excitá-los mais. Anna estava
radiante. Karl, cheio de ânimo. James, ansioso. Com o trabalho de todos,
naquele dia, as paredes da cabana começaram a levantar-se.
Karl trouxe seu enxó muito afiado e começou a cortar, enquanto
explicava essa arte, que Anna e James acharam muito perigosa. De pé em
um tronco de lariço, Karl deu golpes curtos que roçavam a ponta de suas
botas. Anna ficou apavorada ao ver que, a cada movimento, a lâmina
atingia a madeira sob suas botas. Karl deu um passo à frente meros sete
centímetros após cada golpe, abrindo caminho ao longo do tronco e
deixando para trás uma superfície lisa e cremosa.
— Karl, você vai se machucar—, ela o repreendeu.
— Você acha? — ele perguntou. Deu uma olhada para a madeira
trabalhada e levantou a ponta da bota—. Um verdadeiro lenhador é
capaz de partir a sola de sua bota em duas camadas sem tocar na
madeira abaixo dela ou nos dedos dentro da bota. Quer que te mostre?
— Não! — Anna gritou—. Você e seu orgulho de lenhador...!
— Mas é assim mesmo, Anna.
— Não me importa. Prefiro você com dez dedos e não com um
prêmio por partir solas.
— Sua irmã gosta dos meus dedos, então não posso mostrar a ela
que eles estão seguros. — Então, virando-se para Anna, ele disse: —
Venha, ajude James e eu a rodar este tronco.
Os três se esforçaram, usando cordas com as quais deram voltas no
tronco sobre a superfície plana para que Karl pudesse levantá-lo. Então,
com não mais do que seis golpes hábeis, ele cortou meia fenda
retangular a cerca de 20 centímetros da extremidade do tronco. Ele fez o
mesmo na outra extremidade, e os três trabalharam juntos para levantá-
lo e colocá-lo na base. Tudo se encaixou perfeitamente.
Durante aqueles dias, conforme as paredes cresciam, Karl fazia
alusões sexuais até ajustando as fendas. Foram dias de trabalho
esmagador, de roupas encharcadas de suor, de músculos quentes e
doloridos, mas de satisfação.
Para Karl, tudo era motivo de satisfação. Seja quando estava
ensinando James a maneira correta de afundar a parte cega da
machadinha no entalhe para afiá-la, ou para medir as distâncias entre as
fendas no comprimento do machado, ou para encaixar a nova tora na
velha, ou quando paravam para beber água da fonte. Viver a vida era
precioso para Karl. Em tudo o que fazia, transmitia a lição mais
importante: a vida não deve ser perdida. Cada pessoa obtinha da vida o
que havia dado. As tarefas mais árduas, feitas com entusiasmo,
ofereceriam inúmeras recompensas.
Depois que uma nova fileira de toras era erguida, Karl subia na
parede, bem acima de suas cabeças, dava um golpe estrondoso e dizia:
— Vai ser uma casa magnífica! Percebem como os lariços são
verticais?
Suado, com o cabelo grudado nas laterais da cabeça, os músculos
quentes e trêmulos com o grande esforço de colocar a tora no lugar
certo, ele encontrava a glória nessa honrosa tarefa.
Abaixo de Karl, Anna levantava os olhos, protegendo-se do clarão
com um braço, cansada além de qualquer limite imaginável, mas pronta
para ajudar a subir outro tronco, sabendo que uma vez que o esforço
fosse alcançado, seu peito ficaria inchado de satisfação, aquela gloriosa
satisfação que só Karl lhe ensinara a sentir.
Um dia, lá de baixo, ela gritou para o marido:
— Isso é algo magnífico, admito, mas acho que é uma gaiola
magnífica!
Na verdade, parecia uma gaiola. Embora os entalhes na madeira
fossem profundos, havia lacunas entre as toras. Anna sabia muito bem
que cabanas eram construídas assim, mas as piadas de Karl eram
contagiosas e a pegaram.
— Eu conheço um passarinho que vou colocar lá e dar de comer até
engordar!
— Como uma galinha para a feira?
— Oh não! Esta galinha não está à venda.
— Enfim, se você quiser engordá-la dentro da gaiola, terá um
grande problema, pois esqueceu a porta!
Karl riu com vontade, a cabeça erguida para o céu azul, onde o sol
o refletia em seus raios.
— É uma galinha muito inteligente por ter notado tal coisa, e eu,
um sueco muito tolo por ter esquecido de construir a porta.
— Ou as janelas!
— Ou as janelas—, Karl admitiu, jogando junto—. Você terá que
olhar para fora através dos troncos.
— Como posso olhar para fora, se não consigo entrar?
— Você vai ter que subir pelo teto, eu acho.
— Algo muito fácil em uma casa sem telhado!
— A galinha quer experimentar?
— Experimentar, o que?
— A gaiola?
— Quer dizer entrar?
— Isso, entre.
— Mas como?
— Sobe aqui, minha garota magrinha, e eu vou te mostrar como.
— Subir aí em cima? — Parecia muito alto de onde Anna estava.
— Eu tive que te ver o tempo todo com essas calças horríveis; será
a primeira vez que você apreciará seus benefícios. Você não terá
dificuldade em escalar as paredes. Venha.
Anna não era o tipo de recuar diante de um desafio. E aí estava!
Apoiando uma mão em cima da outra, um pé em cima do outro.
— Tenha cuidado! As galinhas não podem voar!
Ela escalou doze troncos e Karl agarrou a mão dela para ajudá-la a
deslizar uma perna pela parede. Claro, ela colocou a perna para trás em
vez de na frente do corpo e estava prestes a puxar o marido. Mas Karl
rapidamente escorregou para trás e Anna conseguiu escalar com
segurança. O mundo parecia magnífico daquela altura! Ela podia ver as
fileiras perfeitas de vegetais no jardim. O trigo se estendia como um mar
verde ondulante abaixo dela. Como pareciam largas as costas de Bill e
Belle! Ela não os imaginava assim. No telhado da casa, junto à chaminé,
havia um ninho de esquilos. E o caminho que saía da clareira era tão
estreito e sombrio!
A voz de Karl soou atrás de Anna:
— Isso é tudo nosso, Anna. Temos abundância, certo?
Inclinando-se para frente, ele circulou sua cintura e puxou-a para
suas coxas, apertando-a com força e apoiando a cabeça de lado em seu
ombro. Karl cheirava a madeira fresca, suor, cavalos, couro e muitas
coisas maravilhosas.
Karl esfregou suas costelas sob os seios, enquanto Anna estendia a
mão para trás para descansar a mão em seu ombro musculoso.
— Sim, Karl. Agora eu entendo quando você fala de abundância.
Não tem nada a ver com quantidades, tem?
Em resposta, ele a segurou ainda mais forte e murmurou:
— Venha, vamos descer para dentro.
Karl virou o corpo e começou a descer.
Eles desceram juntos até que estivessem dentro das quatro novas
paredes. O sol penetrava pela madeira e formava, por dentro, barras de
luz e sombra que se projetavam em ângulo sobre rostos, ombros e
cabelos.
Era como uma catedral verdejante com teto azul celeste. Um lugar
aconchegante e privado, inundado pela fragrância penetrante, limpa e
fresca da madeira. O olhar de ambos se dirigiu para o alto. Acima das
paredes, uma franja de galhos balançava levemente com a brisa de
verão. Então eles olharam para baixo. O vento soprava através das
paredes irregulares, os pássaros preguiçosos cantavam nos olmos, o
riacho zumbia no manancial.
As faixas de sol e sombra cruzavam tudo: o torso nu de Karl, o
rosto sardento de Anna, a casa humilde onde logo haveria uma porta,
uma janela, uma lareira, um sótão e uma cama. Anna se apertou contra
Karl, que abriu os braços e fechou os olhos. Os braços da garota
envolveram o corpo riscado pelo sol, que se reanimou pelo peso leve
contra suas pernas. Com as bocas juntas, eles giraram em um círculo,
não pensando no que estavam fazendo, mas respondendo à necessidade
de se moverem juntos, firme e harmoniosamente.
— Ah, Anna, como seremos felizes aqui! — Ele disse finalmente,
seus lábios descansando contra seu cabelo.
— Diga-me onde será nossa cama—, disse Anna.
Karl a conduziu a um canto onde a única decoração era uma
coleção de folhas, galhos e grama.
— Aqui—, ele apontou, imaginando-a—. Aqui vou fazer o buraco
para a lareira. E aqui estará a escada que levará ao sótão. E aqui vou
colocar o aparador. Você gostaria de ter um armário na sua cozinha,
Anna? Eu posso fazer isso de bordo; Já escolhi uma boa árvore. E também
pensei em uma cadeira de rede; Sempre quis ter uma. Com meu enxó
posso modelar um bom assento e fazer um encosto com varas flexíveis
que vou obter do salgueiro. Você não pode imaginar como essa cadeira
vai ser linda!
Anna não pôde deixar de sorrir para ele; ele compartilhava sua
alegria, embora ela tivesse preferido um fogão de ferro a um guarda-
roupa e uma cadeira de rede. Mas ela não disse isso; ela não queria
manchar o entusiasmo de Karl.
— Quando começamos a fazer? —Anna perguntou.
— Logo—, ele murmurou—. Primeiro, a madeira para o cume deve
ser trazida da floresta. Eu já a escolhi.
— Quando estará pronto, Karl? Quando podemos nos mudar?
— Você está ansiosa, minha pequena?
— Estou cansada de mentir para James sobre todas aquelas
caminhadas que temos feito ultimamente.
Ele a abraçou contra o peito novamente e riu no pescoço da garota;
com a boca pousada ali, inalou e adorou o sal da sua transpiração,
produto do trabalho. Ele baixou o braço até os quadris de Anna e puxou-
a para mais perto dele. Em seguida, envolveu as nádegas da garota com
as mãos, embora não houvesse necessidade de pressioná-la contra sua
vontade; as duas vontades se fundiram em uma. Ela passou a amar o
toque daquele corpo moldado contra o dela, procurando-a tão
ansiosamente quanto ele.
— Se minha Tonka Squaw sustentar a mentira, seu irmão
perceberá perfeitamente, desta vez, que não vamos passear em plena luz
do dia e com a cabana meio construída.
— Já que ele vai saber a verdade de qualquer maneira, essa Tonka
Squaw irá lhe contar a verdade: que seu enorme e fogoso cunhado está
cuidando da plantação de pepino.
As duas risadas ecoaram pelas paredes da cabana.
A instalação do cume foi uma ocasião auspiciosa, pois foi a
primeira oportunidade de James de demonstrar sua coragem como
carroceiro. Era uma tarefa arriscada e Anna podia ver seu irmão dar uma
olhada no topo das paredes de vez em quando; como ele puxava a carga,
inalando profundamente e bufando com exagero, estufando as
bochechas e afastando o cabelo da testa.
O lariço que Karl havia escolhido era um gigante imponente, mais
comprido do que qualquer outro. Ele estava lá, esperando, ao lado da
cabana. Encostadas na fileira mais alta de toras estavam quatro árvores
mais finas, seus galhos removidos e suas superfícies brancas e brilhantes
ao sol.
As pesadas correntes estavam amarradas à braçadeira e James
sentiu suas mãos suar. Nunca em sua vida ele quis agradar a um homem
mais do que queria agradar Karl hoje. James enxugou a testa e olhou
para a cabana novamente; ele gostaria que houvesse outro homem para
ajudar Karl e para ele ter um pretexto. Mas, ao mesmo tempo, o desafio
aumentava seu desejo de fazer melhor.
James vasculhou sua memória para se lembrar das lições que Karl
lhe havia ensinado sobre a importância de tranquilizar os cavalos com
palavras gentis quando eles trabalhavam. Mas sua voz soou em falsete
quando ele tentou falar com Belle calmamente. Os animais, acostumados
a trabalhar lado a lado, estavam inquietos agora que estavam separados,
amarrados a cada extremidade da longa cobertura. Muito raramente
eram solicitados a responder separadamente a qualquer comando;
Consequentemente, Belle inconscientemente se voltou para Bill, e James
ordenou:
— Afaste-se! Afaste-se!
Mas o nervosismo tornava sua voz muito aguda.
Do outro lado da estrada, Karl explicou:
— Rapaz, não esqueça que você está falando apenas com a Belle,
mas que o Bill também pode ouvir suas ordens. Quando você der uma
ordem, use o seu nome.
James engoliu em seco e tentou rever tudo o que Karl lhe ensinara:
“Os cavalos têm uma audição altamente desenvolvida; Se você gritar
com um animal, é para descarregar. As ordens calmas, mas firmes são
melhores."
— Segure as rédeas com força até que eu dê o sinal, então vamos
colocá-los para começar juntos—, instruiu Karl—. Lembre-se: se você
deixá-los muito soltos, perderemos o cume em uma derrapagem!
Inconscientemente, Anna torceu os punhos, como se fosse ela e
não seu irmão quem segurava as rédeas. Seu próprio coração estava
disparado tão rápido quanto o de James. Ela lançou a Karl um olhar
rápido; Sua confiança em James mostrou-se na maneira relaxada como
ele se levantou e na expressão calma em seu rosto quando ele se dirigiu
ao garoto para animá-lo.
— Quantas vezes você dirigiu a parelha, garoto? — Karl perguntou
agora.
— Muitas vezes. Todos os dias desde que cheguei aqui.
— E alguma vez falhou?
— Não senhor.
— E você já falhou com eles?
— Não senhor.
— Quantos estão em uma parelha?
— O que? — O rosto de James mostrou surpresa com a pergunta.
— Uma parelha. Quantos estão em uma parelha?
— D... dois, claro.
— Até agora você lidou com dois percherons bem crescidos. Agora
você só precisa dirigir a metade, não é?
James hesitou por um momento e respondeu:
— Certo. — Apesar de saber que ali estava o problema.
— Um homem que pode arrastar um cume e colocá-lo no lugar,
pode fazer qualquer coisa com sua parelha. — E com essas palavras, Karl
foi atrás de Bill.
Nunca antes Karl usou o termo "homem" para se referir a James.
Ao escutá-lo nesse momento, sabendo que aquele era um trabalho de
homem, James tentou corresponder à confiança que depositaram nele.
As rédeas pareciam escorregadias. O suor escorria pelo pescoço e
seus tornozelos tremiam. As ancas de Belle eram tão grandes que as
fracas rédeas de couro não podiam contra ela se decidisse se libertar.
Segurando-as com força, James se perguntou desesperadamente se havia
esquecido de prender algum elo na corrente ao revisá-la. As correias que
suportam todo o peso da carga seriam grossas e fortes o suficiente? Mas
era tarde demais para corrigir um erro, agora que as correntes tensas
começaram a puxar e a ponta solta desapareceu com um estrondo.
James olhou para Karl. O grandalhão piscou para ele. Então ele deu
o sinal de silêncio, e os dois, o homem e o menino, falaram:
— Levante-se, Belle! Levante-se, Bill!
A princípio houve um relincho de protesto, depois um som seco
quando o cume se apoiou nas toras verdes. Os peitos dos percherons
estavam tensos dentro do arnês, e James deu o primeiro passo,
recostando-se, como vira Karl fazer. Primeiro, o rangido da madeira
verde ecoou pela clareira; então o gemido das toras sob aquele peso.
— Levante-se, Belle! — James ordenou, enquanto o animal sentia a
pressão aumentar em seu peito. O cavalo ergueu a cabeça com o esforço
e seus passos foram ficando mais curtos e mais altos. — Levante-se,
Belle! Vamos lá!
O cume - seis metros de peso mortal e esmagador - deslizou
firmemente, horizontalmente, para o céu.
Os cavalos continuaram se movendo. Eles não podiam mais se ver
porque a cabana os separava. O mesmo aconteceu com os condutores.
Agora eles só podiam ver uma extremidade do cume; imaginaram os
demais subindo, movendo-se, aproximando-se da amarração até que,
quando os pulmões dos cavalos pareciam prestes a explodir por dentro,
veio um som surdo, mas suave, e a voz de Karl do outro lado da cabana.
— Conseguimos, rapaz, conseguimos!
James esqueceu de si mesmo então, soltou um "Urra!", E saltou
pelo ar, fazendo a assustada Belle pular para o lado com pequenos
passos.
Anna soltou a respiração presa e correu de alegria, tão animada
quanto James com o seu sucesso.
— Conseguiu! Conseguiu! — Ela cantou, extremamente satisfeita
com seu progresso como carroceiro.
— Eu consegui, certo?
— Com uma ajudinha da Belle.
— Isso mesmo—, admitiu James, e riu novamente.
— Oh, Belle, meu velho amor! — O menino exclamou e beijou sua
barriga.
Naquele momento, Karl se aproximou.
— O que é isso? Meu cunhado beijando meu cavalo?
A pergunta os fez cair na gargalhada novamente.
— Eu consegui, Karl—, disse James com orgulho.
— Com certeza que sim. Você pode ensinar alguns suecos que
conheço uma ou duas coisas sobre como deslizar um cume.
James sabia que esse era o melhor elogio que ele poderia esperar
de Karl. Ambos olharam para o poste, corretamente posicionado no
lugar.
— Fiquei com muito medo, Karl.
— Às vezes temos que fazer coisas, tenhamos medo ou não. Poder
dizer depois: "Tive muito medo", torna o homem maior, não menor.
— Nem imagino o quanto fiquei apavorado quando estava com
aquelas rédeas nas mãos.
Tal admissão não pode deixar de divertir Karl. Ele sorriu e
acrescentou:
— Eu também estava apavorado. Sempre fico quando o cume sobe.
Mas nós conseguimos, não?
— Com certeza que sim.
CAPÍTULO 13
A elevação do cume foi o catalisador do relacionamento
enriquecedor entre Karl e James. Depois daquele dia, uma afinidade
muito intensa surgiu entre eles como James nunca havia experimentado
antes com outro homem; de sua parte, Karl tinha apenas compartilhado
esse relacionamento com seus irmãos mais velhos.
Eles descobriram que podiam falar mais como iguais após o teste
de James como carroceiro. A facilidade com que trabalhavam,
aprendiam e ensinavam juntos criou, ao mesmo tempo, fluência na
comunicação. Eles logo se viram falando sobre seus sentimentos,
memórias e desejos mais íntimos.
Karl contou a James inúmeras histórias sobre sua vida na Suécia,
de sua família unida e amorosa, da profunda solidão que experimentou
durante aqueles dois anos antes de ele e Anna chegarem. Karl chegou a
confessar como era maravilhoso não ter que dormir mais sozinho, não
ter que comer sozinho.
Eles sempre falavam sobre Anna. James não tinha dúvidas de que
Karl amava sua irmã. Esse conhecimento deu-lhe uma segurança que
sempre faltou em sua vida. Assim protegido, ele começou a crescer como
homem.
Muito lentamente, Karl conseguiu fazer com que ele lhe contasse
sobre o tipo de vida que ele e Anna levaram antes de chegarem lá. Mas
havia coisas que James não dizia; espaços em branco não preenchidos,
como se fossem desagradáveis demais para serem lembrados. Um desses
espaços em branco era sua mãe. Cada vez que Karl mencionava isso para
ele, o menino se escondia atrás de uma barreira tão palpável quanto as
paredes da cabana. Anna também não falava muito sobre sua mãe.
Mas Karl ficou sabendo de fragmentos aqui e ali que lhe deram a
certeza de que os jovens não queriam revelar muito sobre aquela mulher
chamada "Bárbara". Ele não forçou o assunto, mas trouxe a palavra
"Boston" para a conversa na esperança de induzir James a contar o que
ele queria sobre seu passado.
Durante todo esse tempo, houve inúmeras tarefas que Karl teve
que ensinar a Anna, James ou ambos. Por exemplo, coleta de cera dos
favos de mel; cera, ao que parecia, era tão importante quanto alvejante.
Eles o reservariam até o outono na esperança de matar um urso gordo
que lhes forneceria bastante gordura para misturar com cera e fazer
velas. A cera também era usada para proteger arreios, conservar alguns
alimentos e em preparações medicinais.
Karl mostrou a Anna como ferver roupas, esfregá-las na tábua de
lavar e colocá-las para secar nos arbustos. Lavar era uma tarefa árdua
para Anna. Ela reclamava que o sabão queimava suas mãos, até que
finalmente Karl as examinou mais de perto e descobriu que a moça havia
contraído o que é chamado de “doença da pradaria”, comum a muitos
recém-chegados a essas regiões. Era uma doença misteriosa que não
tinha cura e bastava esperar que a coceira e a inflamação diminuíssem, o
que fazia Anna e James se coçarem, muito incômodos. Karl disse a Anna
que não tinha nada a ver com o sabão, mas com a terra dos cultivos. Isso
não encorajou muito a jovem, visto que lavar e cuidar do jardim eram
suas duas tarefas principais.
Karl pediu ajuda aos índios e fez o que a esposa de Dois Chifres lhe
disse. Ele fez uma pomada com gordura e folha de louro; Pegou alguns
daqueles galhos em forma de lança e depois esmagou as folhas secas, das
quais obteve um pó fino que misturou com a gordura. Anna aplicou à
noite e James também. Às vezes, eles tomavam banho com pó de louro e
água.
Parecia que a tarefa de saber tudo sobre cavalos era interminável.
O mero cuidado com os arreios já era uma exigência. Eles precisavam ser
lavados com cuidado; a transpiração apodrecia o couro tão rapidamente
quanto os gases da urina, se o celeiro não fosse mantido limpo. Karl não
tinha forja, então os cavalos não tinham ferraduras. Consequentemente,
era necessário manter os cascos sempre em perfeitas condições. Várias
doenças poderiam afetar os cavalos, se as patas não fossem mantidas
limpas, se os cascos não fossem cortados ou se o estábulo fosse
abandonado.
Um dia James estava no estábulo cuidando dos cavalos e, como
sempre, ele se abaixou para observar mais de perto cada movimento de
Karl ao ensiná-lo a maneira correta de segurar a pata e forçar o cavalo a
dobrar o joelho. Agachado, segurou a pata gigante do animal e utilizou
uma ferramenta especial para retirar a sujeira e os seixos da rã, ou seja,
a parte oca e esponjosa do casco.
— Estou muito satisfeito com sua atuação como ferrador—, disse
Karl, observando-o—. Você aprendeu quase tão rápido quanto liderar
uma parelha. Se eu não conhecesse você, diria que você sabia conduzir
cavalos antes de vir para cá.
— Nem um pouco, nunca fiz—, disse James. Então, lembrando-se de
algo, acrescentou: — Bem, sim, uma vez. Um homem de Boston que me
deixou dirigir sua carruagem apenas uma vez.
— E eu pensei que você nunca tinha comandado uma parelha...—
Karl brincou.
— Bem, não era uma parelha. Era apenas um cavalo. Mas que
animal! Era um dos baios mais bonitos que já vi. Coche e cavalo pareciam
muito estranhos com aquelas tiras de couro vermelho. Às vezes, eu
caminhava ao redor do celeiro para dar uma olhada. E, finalmente, tive
sorte. Não consigo imaginar como Saul me deixou tocar no cavalo
naquele dia. Até então, ele nunca tinha permitido que eu me
aproximasse do animal, mesmo se eu me oferecesse para levá-lo para o
estábulo de graça. Eu não podia acreditar... De repente ele veio e me
disse para sair para dar uma volta se eu quisesse.
Karl continuou com a aula e conversa simultaneamente, tentando
fazer suas perguntas parecerem casuais.
— Você deve se certificar de que a rã está livre de sujeira, ou o
cavalo pode contrair a doença chamada afta. Então... se você conhecia
esse homem... Saul, por que ele não deixou você cuidar do cavalo dele
antes?
— Bem, eu realmente não o conhecia muito. Era mais como... eu
não sei. Ele era um dos amigos de Bárbara e é como se estivesse
interessado em Anna depois que Bárbara morreu.
— Ele era um homem jovem então, da idade de Anna?
— Não. Ele tinha pelo menos a idade de Barbara.
— Assim que a rã estiver limpa, deve-se verificar as paredes do
casco para ver se não há rachaduras. — Karl pegou a lâmina, inclinou-se
e apoiou o enorme casco nas coxas—. Mas de qualquer maneira, quando
sua mãe foi embora, Saul ainda era seu amigo?
— Eu disse que ele não era realmente um amigo. Ele nunca quis que
estivéssemos por perto quando ele estava com Barbara. Ela nos mandava
passear sempre que ele ia vê-la.
— Uma vez cortados os cascos, você deve limá-los—. Karl pegou a
lima: — Mas Saul ofereceu-lhe uma carona naquele dia com esse cavalo e
carruagem estranhos?
— Sim! Eu o levei para uma corrida pelo campo. Se você tivesse
visto como eu trotei e como os caras olhavam para mim! Lá estava eu, o
pirralho de Bárbara, atrás daquele lindo cavalinho. Foi ótimo, Karl,
garanto!
“O pirralho de Barbara?”, pensou Karl. Mas ele não queria
interromper a primeira aproximação da vida de James em Boston. Em
vez de argumentar com aquela frase estranha, Karl simplesmente
balançou a cabeça:
— Sim, admito que deve ter sido ótimo. Agora observe isso e veja
como eu moldo este casco para que Bill fique de pé. E o que Anna disse
sobre essa caminhada atrás do grande trotador?
— Oh, Anna não estava comigo.
— Não? A pobre Anna perdeu semelhante prazer?
— Ela estava nervosa e disse que não confiava no baio. Ele era
muito agitado para seu gosto e me deixou ir sozinho.
— Anna deveria ter mostrado mais bom senso e não deixar você
sair sozinho com esse cavalo, se era tão espirituoso.
— Ela imaginou que nada aconteceria, eu acho. Ela disse que seria
uma pena perder aquela boa oportunidade e ficar sem ela. Desta vez, ela
ficou, embora Saul estivesse lá.
A lima mastigava regularmente enquanto Karl moldava o casco.
— E Ana, o que ela achava desse Saul?
— Ela nunca gostou muito.
— Mas ele se apaixonou por Anna, hein?
— Oh, Karl, você está com ciúmes? É cômico. Você não deve ter
ciúmes de Saul. Você não sabe! Anna corria para se esconder quando ele
estava por perto. Ela dizia que ele lhe dava arrepios.
James sorriu para a carranca de Karl, sabendo que não tinha
motivo para estar com ciúmes. Anna nunca havia gostado de outro
homem antes de Karl; disso ele tinha certeza.
Mas Karl não ficou aliviado. Ele forçou um sorriso e riu para não
desapontar James; mas o som, emitido da parte superior de sua
garganta, foi estranho. Ele tentou imaginar Anna parada ao lado de um
homem que lhe dava calafrios, um homem de quem ela sempre se
escondia, enquanto James passeava naquela carruagem extravagante.
Ele trouxe aquela imagem à sua mente, mas imediatamente a rejeitou.
Segundo as aparências, ele estava absorvido pelo casco e o
examinava criticamente, quando perguntou:
— Imagino que Saul fosse um homem rico, hein? Essa carruagem
altamente decorada era importante.
— Eu acho que sim. Ele também usava roupas extravagantes.
Uma sensação de intenso calor e desconforto percorreu o corpo de
Karl.
— Venha, garoto, tente aparar este casco enquanto eu te observo.
Mas não foi James que ele viu, mas Anna, ao lado de um dândi
chamado Saul, enquanto James partia com o cavalo.

KARL PARECIA RESERVADO, NAQUELA NOITE. Quando Anna


perguntou como James tinha estado com os cavalos, ele se virou para ela
com um olhar ausente, e a jovem teve que repetir a pergunta.
Todos foram para a lagoa como de costume; no entanto, Karl não
era o mesmo homem engraçado de sempre. Ele nadou com intenso vigor,
para a frente e para trás, na parte funda, e deixou Anna e James brincar
na costa, se quisessem. Anna se aproximou de Karl, já que ele sabia
nadar onde não podia, e o incentivou a brincar em um canto da represa
do castor; mas ele disse a ela para deixá-lo sozinho naquela noite, que
ele não estava com vontade de brincar.
Mais tarde, na cama, ele murmurou algo semelhante; Ele disse a ela
que teve um dia muito difícil, suspirou, virou-se de lado e deu as costas
para ela. Imediatamente, Anna o abraçou por trás e acomodou seu corpo
contra o de Karl. Mas por um longo tempo, ele não pegou a mão dela. Ele
só fez isso quando a garota tentou acariciá-lo; então ele apertou com
tanta força que Anna teve que retirar os dedos com um grito de dor. A
mão de Karl ficou coberta com o unguento da "doença da pradaria",
então ele se levantou para encontrar um pano com o qual esfregou a
pele, fazendo um som de irritação inconfundível de aborrecimento.
Anna finalmente adormeceu, mas Karl apenas cochilava de vez em
quando. Cada vez que ele adormecia, algum comentário anterior de
Anna ou James surgia em sua mente, trazendo um significado oculto.
Como as peças de um quebra-cabeça, várias coisas se encaixaram. Mas
quando a imagem se formou em sua mente, o que ele viu foi Anna
parada ao lado de um homem, da idade de sua mãe, vestindo um terno
extravagante, enquanto James se afastava na carruagem.
Culpado, Karl abriu os olhos no escuro para rejeitar a visão que
sugeria algo sobre Anna, algo que ele não podia admitir. Mas então as
palavras de James vieram novamente: "aquele homem dava calafrios
nela". Depois: "desta vez Anna ficou, embora Saul estivesse lá."
O amanhecer já se aproximava no horizonte quando Karl
finalmente começou a busca intensa por algo que ele tinha resistido a
noite toda: a lembrança da primeira noite em que ele e Anna fizeram
amor. Era terrível que ele suspeitasse de tal coisa. Mesmo assim, ele
permitiu que aquela noite voltasse à sua memória. Coisas que ele não
conseguia ver devido à sua superexcitação agora assumiam outro
significado. Principalmente três coisas que faltaram em sua relação com
Anna: dor, resistência e sangue.
Karl se perguntou se ele estava certo. Como ele poderia saber se
Anna havia sentido dor? Talvez ela tenha escondido dele. Mas ele se
lembrou de novo quando disse a Anna: "Não quero machucar você". O
que ela respondeu? O que exatamente ela disse? Ele pensou que era algo
como, "Tudo bem, Karl."
Ele imediatamente se lembrou de outra coisa que Anna havia dito:
"Algo bom aconteceu, Karl, algo que eu não esperava." Ele passou o
braço pela testa e viu que estava suando. Outra lembrança o assaltou,
distintamente. Lá dentro, antes de partir para o celeiro, suas palavras
foram: "É tão diferente, Karl...". “Diferente de quê?”, ele se perguntou
agora. "Oh Deus, diferente de quê?"
Quando não aguentou mais aquele tormento, levantou-se e foi para
o estábulo; Belle e Bill olharam para ele com olhos inquisitivos, mas ele
não os tocou. Ele apenas ficou ali, com as mãos nos bolsos, olhando para
a frente, sem ver.

— QUANDO VAMOS FAZER O BURACO PARA A PORTA? — Anna


perguntou, alegre e despreocupada como sempre.
— Quando o telhado estiver pronto—, respondeu Karl.
— Você tem que se apressar, certo? — Ela disse coquete, inclinando
a cabeça.
Em vez de dar um tapinha no queixo dela ou o beliscão malicioso,
Karl girou nos calcanhares e a deixou olhando para James para ele
explicar por que seu marido de repente se tornara tão distante.
James procurou em sua memória para descobrir se havia algo que
pudesse ter chateado Karl. Mas ele não encontrou nada. Ele estava
prestes a revelar o segredo de Bárbara, mas não achava que Karl fosse o
tipo de homem que poderia culpá-los se descobrisse quem Bárbara
realmente era. Não era típico de Karl; ele era bom demais para fazer tal
coisa. No entanto, James tinha algumas dúvidas sobre a conversa sobre
Saul. Seria possível que Karl estivesse com ciúme apesar de tudo? Não
pode ser isso! Afinal, ele lhe disse que Anna não tolerava Saul. Isso era
motivo suficiente para Karl se acalmar.
O distanciamento taciturno de Karl tornou-se mais evidente com o
passar dos dias. Anna estava tentando tirá-lo de suas "tristezas", como
ela os chamava. Mas Karl não se deixou enganar e nem mesmo sorria.
Ele encontrou desculpas para não fazer amor, até que uma noite mudou
de ideia; mas ele tratou Anna tão agressivamente que ela ficou
perturbada com sua falta de ternura durante o ato. Abalada e magoada,
Anna não se atreveu a perguntar o que o estava incomodando. Já tinha
perguntado a ele antes, mas ele se recusou a responder.
Enquanto isso, Karl também passou noites sem dormir e dias
torturantes. Cada vez ele acumulava mais evidências em sua mente
contra Anna. Como era típico dele, não disse nada a ela e continuou com
o assunto, dando voltas na cabeça; lhe outorgava o benefício da dúvida.
Mas ele acabou considerando que o que suspeitava era verdade. Havia
muitas coincidências, coisas que ele nunca tinha associado à vida de
Anna ou à sua mãe antes. Karl percebeu que não poderia continuar
assim, pois até seu rosto estava começando a mostrar os estragos da
falta de sono e da preocupação. Puxado entre o medo e a necessidade,
ele devia saber a verdade.
Anna estava no quintal, esfregando roupas na tábua; novamente
ela vestiu uma calça de James. Karl mal se lembrava do vestido que ela
usava naquele dia, quando chegou na carroça de suprimentos de Long
Prairie. Naquela manhã, revirando o baú, enquanto Anna estava no
quintal, ele voltou a recordá-lo.
Ele o estava estudando agora enquanto ela trabalhava. Seu cabelo
caía ao redor dela enquanto ela esfregava. Oh, aquele cabelo cor de
uísque com o qual ele havia sonhado tanto em todos aqueles meses de
espera solitária... Ele empurrou esse pensamento de lado e
silenciosamente deu um passo atrás de sua esposa.
— Anna, quem é Saul? — Ele perguntou simplesmente.
Ele viu seus ombros enrijecerem e ela ergueu a cabeça, acenando
com as mãos nervosamente.
Anna sentiu como se um punho gigante tivesse esmagado seu
estômago. Ela percebeu que estava agarrada à tábua de lavar e forçou as
mãos a se moverem novamente, seu olhar caindo para a fonte.
— Saul? — Ela perguntou em um tom que deveria ser casual.
— Quem é?
— Era um… um dos amigos de Bárbara.
— James disse que estava interessado em você.
— James disse isso?
Anna enterrou o queixo no peito e fingiu estar absorta na lavagem.
Karl moveu-se para o lado dela e agarrou seu cotovelo, fazendo-a
se virar para ver seu rosto.
O rosto de Anna estava vermelho e seu queixo tremia sob os lábios
entreabertos. Seu olhar horrorizado e hesitante foi para o primeiro
botão da camisa de Karl, mas foi inexoravelmente atraído para os olhos
assombrados de seu marido.
— Ele estava interessado em você? — Karl perguntou, sua voz
estranha e dolorida.
— Disse que ele era amigo da Bárbara e não meu.
— Que tipo de amigo? — Seu polegar pressionou contra sua pele
lisa.
— Apenas um amigo—, disse ela.
Ela puxou o braço e se virou para encarar a fonte.
Karl tentou fazer com que ela olhasse para ele, inclinando-se à sua
frente, mas Anna teimosamente não ergueu os olhos e voltou a lavar
com uma energia frenética.
— Um amigo que mandava você e James para fora quando queria
ficar sozinho com sua mãe?
A mesma pontada percorreu os músculos de seu estômago
novamente.
— James disse isso?
— Sim, ele disse isso!
Maldito seja, James! Como pôde?" Os dentes de Anna morderam a
pele macia de seu lábio inferior interno para parar o tremor.
— Ele também disse que você tinha medo desse Saul... que te dava
calafrios.
— Acho que sim! Minha pele arrepiava cada vez que eu olhava para
ele.
Ela começou a esfregar violentamente agora; As palavras de Karl
trouxeram de volta lembranças sórdidas que fizeram seu estômago
revirar.
— Então você mandou James dar uma volta na carruagem
extravagante e ficou sozinha com esse homem que te arrepiava? Por
quê?
Não conseguia encontrar o que dizer. O que ela poderia dizer? "Por
favor, me ajude, James... alguém, me ajude a fazê-lo entender."
Mas Karl entendia muito bem. Com voz de ferro, ele acrescentou:
— Diga-me por que um homem rico com um belo cavalo trotando
altivo e carruagem de couro vermelho deixaria um menino de treze anos
ir embora em sua carruagem, quando antes nunca deixara o menino
guardar o cavalo no estábulo.
As pálpebras de Anna tremeram.
— Como eu poderia saber?
— Você saberia, então, por que a irmã desse menino não
aproveitou a oportunidade para passear com ele, quando isso
significaria evitar o homem que a fazia se arrepiar?
— Por favor, Karl ...
Anna baixou as pálpebras. Mas dessa vez Karl fez com que ela
olhasse diretamente para ele.
— Anna, homens ricos assim não cortejam costureiras e filhas órfãs
sem motivo.
— Ele não estava me cortejando!
Os olhos de Anna se abriram e ela sustentou seu olhar
defensivamente. Ela leu a verdade no rosto de Karl: ele estava tão
enojado quanto ela.
Karl falou com resignação:
— Não acho que estava cortejando você, um homem da idade de
sua mãe, aquela mãe que você chama apenas de Bárbara. Por que você
não a chamava de "mãe" como qualquer outro filho?
Não respondeu.
— Ela não era uma simples costureira? Ela não queria que homens
como Saul soubessem que ela era mãe de dois filhos? Era ruim para seus
negócios informá-los?
Anna fechou as pálpebras novamente. Ela não poderia enfrentar
aquele rosto honesto enquanto Karl adivinhava sua culpa.
— Ela era costureira, Anna, ou isso é outra mentira?
Como ela não respondeu, ele continuou:
— Onde você conseguiu o dinheiro para a passagem de James e
suas roupas novas?
As bochechas de Anna estavam queimando e seu estômago doía
tanto que ela pensou que iria vomitar ali mesmo. Karl enfiou os dedos
enormes nas bochechas dela.
— Que tipo de vestido você guarda aí que não quer que eu veja?
Enquanto as lágrimas rolavam pelo rosto de Anna e molhavam os
dedos de Karl, a última e mais terrível das mentiras veio à tona. Porque
agora era óbvio que essas perguntas foram respondidas. E uma vez que
foram respondidas, não era necessário formulá-las.
No entanto, Karl tentou outro duvidoso começo:
— Na primeira noite que fizemos amor, Anna ...
Mas ele não conseguiu terminar de percorrer aquela distância que
o impedia de descobrir o que não queria descobrir. Ele ficou em silêncio.
Ele largou a mão que segurava suas bochechas, virou-se e caminhou pelo
caminho até o celeiro, onde James estava trabalhando nos cascos de
Belle hoje.
Quando Karl entrou correndo, James olhou para ele, talvez
esperando um elogio. Em vez disso, Karl disse carrancudo:
— Rapaz, preciso que me diga a verdade.
James ergueu os olhos da perna áspera em suas coxas.
— Sua mãe era costureira?
A lima pendeu inutilmente da mão do menino. Seus olhos estavam
arregalados.
— Não... senhor—, ele sussurrou.
— Você sabe o que ela fazia para viver?
A pergunta foi disparada como um tiro de espingarda.
James engoliu em seco. A pata de Belle caiu no chão.
— Sim... sim, senhor—, ele sussurrou novamente e olhou para os
pés de Karl.
Karl não podia e não precisava perguntar mais. Como ele poderia
forçar esse alegre garoto de 13 anos a identificar sua mãe com uma
prostituta, e muito menos a sua irmã, a quem James amava muito mais
do que amava sua mãe?
A voz de Karl tornou-se mais terna.
— Isso é tudo, garoto. Esse casco é muito uniforme. Daqui posso ver
que tem o mesmo ângulo do metacarpo. Quando você terminar com
Belle, você pode levá-la para buscar forragem um pouco. Será um
prêmio por estar tão quieta com você.
— Sim... sim, senhor.
Mas as palavras foram apenas balbuciadas. James ainda estava
olhando para o chão.

ANNA SE MOVEU O RESTO DO DIA EM UMA CONFUSÃO de


emoções. Primeiro ela evitou os olhos de Karl, depois tentou capturar
seu olhar, mas percebeu que ele não se dignava a olhar para ela. Na
privacidade da cabana, a rejeição deliberada se tornou mais evidente,
pois Karl evitava até mesmo o mais leve toque de roupa entre os dois. Ela
se odiava por tê-lo desapontado.
Ao cair da noite, a angústia havia se apoderado dela
completamente, matando a pouca autoconfiança que ela ganhou passo a
passo durante aquele curto período como esposa de Karl.
Naquela noite, quando o peso de Karl foi adicionado ao dela nas
cascas, nem um único rangido foi ouvido. Karl estava deitado de costas,
rígido. Depois do que pareceu uma eternidade, ele cruzou as mãos sob a
cabeça. Seu cotovelo roçou o cabelo de Anna e ela sentiu Karl se mover
com cuidado para evitar o menor toque.
Depois de ficar ao seu lado daquela forma rígida enquanto ela
pôde, Anna percebeu que um dos dois tinha que dar o primeiro passo
para a reconciliação. Reunindo coragem, ela se virou e apoiou a palma
da mão suplicantemente na parte interna do bíceps de Karl.
Como se o contato fosse algo sujo, Karl deu um pulo e virou o corpo
para o outro lado, deixando-a desanimada, com um nó na garganta e
lágrimas nos olhos.
“Oh meu Deus, o que eu fiz? Karl, Karl, volte para mim. Deixe-me
mostrar o quanto eu sinto muito. Deixe-me sentir seus braços fortes em
volta do meu corpo, me perdoe. Por favor, amor, vamos ser como antes."
Mas esse distanciamento foi total. Não o sofreu apenas naquela
noite, mas durante os dias e noites que se seguiram. Ela sofreu com um
silêncio resignado, sabendo que merecia aquela dor. Se os dias eram uma
tortura, as noites eram ainda piores; a escuridão lhe lembrou de sua
intimidade anterior, a alegria que eles depositaram e encontraram
naquela união, a paixão perdida, perdida para sempre... para sempre...
James sabia que muitas noites se passaram desde a última
caminhada noturna de Anna e Karl; Ele ficou surpreso, então, com o som
da porta depois que foram para a cama. Então ele percebeu que era
apenas Karl que havia saído. Anna estava lá; ele rolou na cama e
suspirou.
Com o coração partido por causar tudo isso, James pensou que
talvez pudesse resolver o problema. Se ele saísse para explicar a Karl que
não era culpa deles o que sua mãe tinha sido, que Anna odiava tudo isso,
que ela havia jurado que ele teria uma vida melhor; talvez, então, Karl
não se sentisse tão mal.
James vestiu as calças rapidamente e saiu. Ele cruzou a clareira até
o estábulo, mas uma vez dentro, lembrou-se de que os cavalos estavam
lá fora, onde ele mesmo os havia deixado naquela tarde. Ele tinha
certeza de que Karl estava com os cavalos.
Tinha razão. Mesmo de lá, ele podia ver o perfil de Karl, ao lado de
um dos animais. Quando ele se aproximou, ele viu que era Bill. O luar
destacava as marcas na testa de Bill e a brancura do cabelo de Karl à
noite. James podia ver como Karl tinha o rosto enterrado no pescoço do
cavalo e os dois punhos cerrados na crina áspera.
Antes que Karl percebesse sua presença, James ouviu os soluços
abafados contra o cavalo no meio da noite. Nunca tinha visto um homem
chorar. Não sabia que homens choravam. Ele pensava que era a única
criança no mundo que chorava. Mas agora havia Karl na frente dele; este
homem que ele amava tanto quanto sua irmã, ou mais, este homem
chorava inconsolavelmente, pateticamente, agarrando-se à crina de Bill.
O som do choro dele quebrou a bolha de segurança que protegia
James mais e mais desde que ele tinha vindo morar na única casa que ele
conheceu. Temeroso, sem saber o que fazer, ele se virou e correu em
direção à casa, em direção ao catre no chão; ele se jogou ali com o
coração martelando no peito, engolindo as lágrimas que também queria
derramar, esperando para ouvir os passos tranquilizadores de Karl
enquanto ele voltava para a cama com Anna. Mas James não chorou. Não
chorou. Alguém, naquele lugar, não devia chorar.
CAPÍTULO 14
Anna e James começaram a preencher as paredes. Eles faziam
viagem após viagem até o depósito de argila para trazer material que
então misturavam com grama seca do prado. Com isso, eles cobriram os
espaços entre as toras. O "mal da pradaria" que afetava os irmãos
piorou. Karl, enquanto isso, ainda estava trabalhando no telhado,
usando galhos de salgueiro menores para a primeira camada. Estes eram
presos ao cume através de furos feitos com uma broca e fixados com
pedaços de árvores jovens.
Desde que Karl fizera as primeiras perguntas sobre Saul, não houve
mais piadas na hora de dormir para quebrar a monotonia e aliviar a
carga daqueles dias de trabalho árduo. James, ciente do distanciamento
entre sua irmã e seu cunhado, sofria as consequências tanto quanto eles.
Ele ficava deitado no catre, esperando ouvir o som de seus sussurros,
suas risadas suaves e até mesmo o barulho de cascas, tremendo
secretamente.
De seu lugar ao lado de Karl, Anna o sentia rolar enquanto fingia
estar dormindo. Esperava pelas lágrimas, que vinham todas as noites
para lhe fazer companhia junto com os soluços; mas ela os engolia e
sufocava até que a respiração de Karl se tornava profunda e uniforme.
Só então as lágrimas rolavam por seu rosto e se acumulavam em seus
ouvidos antes de molhar a coberta, até que, em desespero, ela se virava e
enterrava o rosto no travesseiro, deixando escapar soluços reprimidos.
Ao lado dela, Karl estava bem acordado, os braços vazios e ansiosos
para envolver a Anna de antes. Mas o tolo orgulho sueco o mantinha
indiferente e agressivo.
O dia em que Karl abriu a porta estava longe do que ele havia
imaginado. “Este será um momento para comemorar: o dia em que
Anna, James e eu entraremos em casa pela primeira vez”, ele pensou.
Mas Anna estava magra e cansada, com manchas roxas sob os olhos.
James, silencioso e com passo pesado, não sabia como agir entre os dois.
Karl, por sua vez, se mostrava eficiente e amigável.
O arco foi aberto voltado para o leste, como Karl havia prometido.
Mas quando eles entraram pela primeira vez, não foi entre barras de luz
e sombra como antes. As vigas do teto estavam no lugar agora e muitas
das lacunas haviam sido preenchidas. A única luz penetrava pela arcada.
Anna achou a cabana sombria. Com cuidado, ela evitou ir para o canto
onde os dois se beijaram, ou onde, Karl dissera, ficaria a cama.
James fingiu estar interessado e começou a andar por aquele
espaço fechado, exclamando:
— Uau! É três vezes o tamanho da casa de adobe!
— Mais de três vezes, incluindo o sótão.
— Eu nunca tive um lugar só para mim antes—, disse James.
— É hora de começarmos a trabalhar e parar de sonhar com sótãos.
Há muito a fazer antes de construí-lo. Você está disposto a buscar as
pedras, garoto?
— Sim... senhor.
— Bom! Engancha Belle e Bill, então. Vou sair com você e mostrar
onde está a pilha.
Com uma sensação de fatalismo, Anna partiu com os dois homens
para ajudar James a carregar as pedras em uma espécie de carroça que
Karl explicou ser o assento e os patins do trenó que costumava puxar no
inverno. Karl mostrou a eles onde estava a pilha de pedras, a leste das
plantações, e voltou para a cabana; os dois irmãos ficaram lutando com a
árdua tarefa naquela manhã. Sim, era assim que parecia para Anna hoje:
uma tarefa cansativa. Toda a bela motivação se foi.
Enquanto James dirigia o trenó de volta à clareira, com Anna ao
seu lado, os dois estavam tristes e cansados.
Anna quase rastejou para a clareira, depois para a porta da cabana.
Estava mais claro agora, pois Karl estava usando seu machado para fazer
o buraco na lareira.
Sentindo que ela estava atrás, ele se virou para encontrá-la
observando seu trabalho.
— Você está construindo a lareira agora, Karl? — Ela perguntou.
— Sim. Uma casa deve ter lareira.
“E uma noiva deve ser virgem, certo Karl?”, pensou Anna. Ela
estava destinada a cozinhar, aquecer água, fazer sabão e ferver roupas
usando apenas a lareira pelo resto da vida. Então Karl, a quem Anna
considerava incapaz de ser vingativo, estava se vingando. Ela queria
gritar: “Não faça isso, Karl! Eu não tive escolha, e sinto muito... sinto
muito!”
Karl, com o coração partido, voltou ao trabalho. Ele se lembrou de
como ficou feliz quando planejou a construção desta lareira. Ele sonhara
tanto em trazer Anna a este lugar, deitá-la em frente ao fogo ardente, no
inverno rigoroso, brincar com ela, pressioná-la contra seu corpo, se
embrulhar tanto na pele de búfalo quanto adormecer sem preocupação,
ali, no chão.
As pedras da lareira subiam uma a uma, solitariamente.
Chegou o dia em que Karl anunciou que deveriam ir ver se o lúpulo
estava maduro. Ele disse a James. Ele falava muito pouco com Anna,
embora, quando o fazia, sempre fosse amigável. Mas não era gentileza o
que Anna queria. Ela queria o Karl que provocava, bajulava e balbuciava
tanto sobre os desastres que ela fazia quando cozinhava. Agora, embora
suas refeições não tivessem melhorado, Karl não fazia comentários; ele
simplesmente comia, imperturbável; se levantava da mesa e saía com
seu machado ou rifle no ombro. Ele continuou a ensinar a Anna as coisas
que ela precisava saber, mas as lições eram desprovidas da diversão e da
alegria que as caracterizavam.
Portanto, foi para James que Karl anunciou:
— Acho que devemos ir ver como está o lúpulo. Se quisermos pão
no próximo inverno, seria conveniente ir agora.
— Eu engancho Belle e Bill? — James perguntou ansiosamente.
Durante todos aqueles dias, ele tentou fazer o impossível para
fazer Karl sorrir, mas sem sucesso.
— Sim. Sairemos assim que terminar de ordenhar a Nanna.
Quando chegou a hora de partir, Anna percebeu que eles não iam
apenas buscar uma carga de materiais de construção. Os cavalos
olharam para a estrada pela primeira vez desde que ela e o irmão
chegaram. Ela caminhou até a porta e ficou nas sombras, para que Karl
não a visse. Ela se perguntou para onde eles estavam indo. De repente,
ela ficou com medo de que a deixassem ali sozinha, porque ninguém
havia lhe falado nada. Karl trouxe algumas cestas de vime e as colocou
no carrinho. Anna o observou se virar para James e então o menino
trotou até a casa de adobe. Anna se afastou da porta.
— Karl disse que é hora de ver como está o lúpulo. Ele me disse
para perguntar se você vem também.
O coração de Anna cantava e chorava ao mesmo tempo. Karl não
tinha intenção de deixá-la, então, mas ele mesmo não a convidou. Ela
largou a pá no balde de madeira e parou apenas para fechar a porta atrás
dela.
Quando chegou a carroça, Karl já estava na boleia. Ele olhou para a
casa por um momento, e as esperanças de Anna logo foram frustradas:
ele não estendeu a mão para ajudá-la a subir. Ao contrário, enquanto
Anna subia por um lado, Karl descia pelo outro; Em seguida, foi até a
pilha de toras e pegou uma sólida, que cruzou na frente da porta.
— Por que você não me lembrou, Karl? — Ela perguntou,
preocupada em nunca ser o tipo de esposa de que Karl precisava. Ela não
conseguia se lembrar de algo tão simples como trancar a porta com um
tronco.
— Não importa—, respondeu ele.
Com tristeza, Anna pensou: “Não, não importa. Nada importa mais,
não é, Karl?”
Os frutos do lúpulo selvagem já estavam maduros. Os pesados caules
se agarravam com seus filamentos curvos às árvores que os sustentavam, e
cada trepadeira enroscava no sentido horário, como era típico do lúpulo;
Karl havia explicado a eles que essa era uma das maneiras de identificá-lo.
Os ramos crespos e pegajosos, de um verde amarelado como papel, estavam
carregados de frutos duros e roxos. Juntos, eles os recolheram e encheram
os cestos com mais do que precisavam.
— Pelo que parece, vamos comer muito pão neste inverno—, disse
Anna.
— Vou vender a maior parte do lúpulo. Dá um bom dinheiro —,
explicou Karl.
— Em Long Prairie? — Anna perguntou.
— Sim, em Long Prairie—, respondeu Karl, sem lhe dar nenhuma
pista de quando faria a viagem.
Quando os três estavam prontos para partir com seus cestos
transbordando, Anna se abaixou para tocar um novo caule que estava
saindo do pé da planta-mãe; Karl dera o nome de "segmentos" àquelas
pequenas ventosas.
— Karl, já que você não tem lúpulo em seu terreno, por que não
pegamos esses segmentos e testamos se eles se adaptam?
— Já fiz. Mas eles morreram.
— Por que não tentamos de novo?
— Se você quiser... mas eu não trouxe nada para desenterrá-los.
— E seu machado? Você não poderia apenas usá-lo para
desenraizar?
A expressão de Karl era de horror.
— Com meu machado? — Ele estava apavorado com a ideia de seu
precioso machado se misturando com torrões de terra—. Não ocorre a
nenhum homem apoiar o machado no chão. O machado é usado apenas
para madeira.
Sentindo-se boba, Anna olhou para os segmentos e exclamou, em
voz baixa:
— Oh! — Mas ela se ajoelhou, determinada a obter a planta de
alguma forma. — Vou ver se consigo desenterrá-lo com as mãos, então.
Para surpresa de Anna, Karl se ajoelhou ao lado dela e juntos
cavaram, tentando chegar à base da raiz. Fazia dias que eles não
trabalhavam tão juntos e cada um estava ciente das mãos do outro
cavando e arranhando para liberar a raiz do broto de lúpulo. Anna
procurou desesperadamente agradar a Karl, em alguma medida. Ela
sabia que se a raiz se firmasse e crescesse, seria como fazer uma
oferenda a Karl.
— Vou regar todos os dias—, prometeu.
Virando-se para ela, Karl a encontrou ajoelhada e pôde ler outras
promessas em seus olhos. Ele desviou o olhar e disse:
— É melhor embrulharmos em musgo para não secar antes de
chegarmos.
Ele saiu em busca do musgo, deixando Anna com promessas
morrendo em seus olhos e em seu coração.
Naquele momento, James apareceu, vindo da carroça com uma
cesta.
— Você pegou uma planta?
— Sim. Karl me ajudou.
— Eu não acho que vai crescer, se Karl não conseguiu...— James
acrescentou.
O comentário despreocupado de James quase levou Anna às
lágrimas. Talvez ele esteja certo, ela pensou. Ainda assim, ficava
angustiada ao ver que James era tão devotado a Karl que mal tinha
tempo de se preocupar com como ela estava se sentindo ou de tentar
animá-la, como sempre fazia no passado.
Karl voltou com o musgo e cobriu a raiz; então ele se levantou e
disse:
— É melhor você pegar dois, Anna.
— Dois?
— Sim. — Ele ficou tímido de repente—. O lúpulo cresce em duas
plantas: a planta masculina e a planta feminina; se você pegar o macho,
terá frutos melhores, desde que ele decida crescer.
— Como você sabe que este é fêmea? — Anna perguntou.
Seus olhos se encontraram por um instante e se afastaram. Então
Karl se aproximou para mostrar a ela os poucos espinhos que pendiam
da planta-mãe.
— Pelas pontas—, explicou. Ele estendeu um dedo e tocou uma
panícula—. Os das fêmeas são mais baixos, cerca de cinco centímetros. —
Ele foi até outra planta, agarrando-se a uma árvore próxima, e passou a
mão pela panícula. Tinha cerca de quinze centímetros de comprimento
—. Os dos machos são mais longos.
Em seguida, ele se virou rapidamente, pegou uma cesta e saiu,
deixando Anna desenterrar o rebento masculino sozinha, se quisesse.
Determinada, a garota liberou o segundo ramo e carregou-o para a
carroça, evitando olhar para Karl. Ela enrolou o musgo em volta da
planta, junto com a outra, enquanto Karl esperava pacientemente que
ela entrasse na carroça. Chova ou faça sol, Anna faria essas duas plantas
crescerem!
Quando eles estavam mais da metade do caminho para casa, Karl
parou os cavalos.
— Resolvi construir o telhado com telhas de cedro—, anunciou—.
Embora as árvores não sejam minhas, não acho que sejam propriedade
de ninguém; então não vou tirar a madeira de nenhum dono. Não usarei
mais do que uma única árvore para as telhas de toda a casa e a
derrubarei rapidamente.
Todas as coníferas pareciam iguais para Anna. Mas assim que Karl
começou a trabalhar com o machado, ela percebeu que o cheiro era
diferente. A fragrância do cedro era tão forte que ela se perguntou se
isso os intoxicaria. Mais uma vez, ela foi capaz de contemplar a beleza e
a graça do corpo de Karl enquanto ele empunhava seu machado. Ela não
o viu derrubar nenhuma árvore desde que se separaram. O espetáculo a
tocou como algo mágico; era como se o desejo de quebrar a barreira que
existia entre eles estivesse fermentando na boca do estômago.
De repente, ela percebeu que Karl havia diminuindo o ritmo de seu
corte e isso era algo que ele nunca fazia.
Ele deu mais dois golpes e cada um foi respondido por um eco. Mas
quando ele parou o machado, o eco continuou. Ele ficou alerta como um
galo para o cacarejar de uma galinha. Ele virou a cabeça, pensando que
estava imaginando coisas, mas os golpes continuaram em algum lugar,
indo para o norte.
Anna e James também os ouviram e ficaram atentos.
— Você ouviu isso? — Perguntou Karl.
— É apenas um machado—, disse James.
— Só um machado, garoto? Apenas um machado! Você sabe o que
isso significa?
— Vizinhos? — James se aventurou a perguntar, com um sorriso
nos lábios.
— Vizinhos—, Karl confirmou, — se tivermos sorte.
Foi o primeiro sorriso verdadeiro que Anna viu no rosto de Karl em
todos esses dias. Ele ergueu o machado novamente, desta vez se
forçando a manter seu próprio ritmo, tentando não se apressar, pois isso
acabaria cansando um homem e reduzindo sua força.
O eco parou por um momento. Os três imaginaram um homem
desconhecido, interrompendo seus golpes de machado para ouvir o eco
do machado de Karl, alcançando-o através da floresta.
O golpe distante juntou-se novamente ao de Karl, mas desta vez
como um eco que soou entre as machadadas de Karl; os dois lenhadores
falavam um com o outro em uma língua que apenas um homem da
floresta poderia entender. Eles regulavam a velocidade de tal forma que
havia perguntas e respostas de ida e volta.
Clack! O machado de Karl soava.
Cloc! Vinha a resposta.
Clack!
Cloc!
Clack!
Cloc!
Essa conversa sem palavras continuou, e Karl agora estava
trabalhando com um sorriso nos lábios. Quando ela deu um passo para
trás para ver o cedro despencar, Anna ficou tão deslumbrada como a
primeira vez que testemunhou esse espetáculo.
A ansiedade de Karl também atingia Anna. Quando o silêncio
estrondoso explodiu em seus ouvidos, os olhos do homem foram
atraídos para a jovem, como sempre. Ele a encontrou radiante em meio
ao silêncio perfumado, e não pôde deixar de sorrir de volta.
O machado do outro lenhador quebrou o silêncio.
— Oh! — James exclamou.
— Pegue a cesta e pegue os pedaços de cedro—, disse Karl—,
enquanto eu limpo a árvore. Lascas de cedro são boas para afastar os
percevejos. Alguns no baú manterão as mariposas longe. Se apresse!
Nunca, desde que conheceu Karl, ela o vira correr. Mas agora Anna
também estava com pressa.
Enquanto ela recolhia os cacos, Karl a surpreendeu novamente,
sugerindo:
— Experimente chupar um galho.
Ela fez isso, e James também.
— É doce! — Anna exclamou admirada.
— Sim, muito doce—, concordou Karl. Mas ele estava pensando no
doce som do machado distante.
Eles não tiveram muita dificuldade em encontrar a origem do som.
Eles descobriram um novo caminho que a aveleira havia escondido de
suas vistas quando passaram por ali essa manhã insalubre. Agora ele se
tornou claramente visível, aproximando-se de outra direção.
Conduzidos pelo som do machado, eles se aproximaram, atraídos como
metal por um ímã.
E foi assim que encontraram um homem sólido de meia-idade,
trabalhando com os lariços ao longo do novo caminho sem árvores. Eles
pararam a carroça, enquanto o homem deixava deslizar o cabo do
machado escorregar por sua mão, assim como Karl fazia quando parava
de usar o machado. Ele estava usando um gorro de lã semelhante ao de
Karl. Então, ao ver Anna, ele o tirou e foi até a carroça.
Karl desceu sozinho e estendeu a mão ao se aproximar do homem.
— Eu ouvi seu machado.
— Sim, ouvi o seu!
As duas mãos enormes se encontraram. “Sueco!”, pensou Karl.
“Sueco!", pensou Olaf Johanson.
— Eu sou Karl Lindstrom.
— E eu sou Olaf Johanson.
— Eu moro uns seis ou sete quilômetros, subindo esta estrada.
— Eu moro a cerca de quinhentos metros desta estrada.
Anna observou com espanto enquanto os dois se
cumprimentavam, incapaz de acreditar que fosse possível encontrar
outro sueco tão perto. Os dois riram, apertando aquelas mãos enormes
de lenhador de tal forma que Anna se sentiu feliz, sabendo o quanto Karl
sentia falta de seus compatriotas.
— Você está morando neste lugar? — Perguntou Karl.
— Sim, com toda a minha família.
— Se ovem outros machados—. Karl olhou na direção do som.
— Sim. Eu e meus meninos estamos derrubando árvores para fazer
a cabana.
O sotaque sueco de Johanson era mais forte do que o de Karl.
— Também estamos fazendo nossa cabana. Esta... esta é a minha
família. — Karl se voltou para a carroça—. Esta é minha esposa, Anna, e
seu irmão, James.
Olaf Johanson acenou para eles e se aproximou para apertar as
mãos antes de colocar o gorro de lã de volta.
— Oh, minha Katrene ficará feliz em te ver! Ela e nossas filhas,
Kerstin e Nedda, diziam para mim: "E se não tivermos vizinhos ou
amigos?" As três acham que vão morrer de solidão. Como pode alguém
morrer de solidão em uma família tão grande como a nossa? — Ele
terminou com uma risada.
— Você tem uma família realmente grande? — Perguntou Karl.
— Sim. Tenho três meninos grandes e duas filhas, talvez não tão
grandes, mas bonitas e fortes. Precisaremos de uma cabana grande,
tenho certeza disso.
Karl riu, satisfeito com a notícia.
— Vamos. Têm que conhecer Katrene e os meninos. Não podem
imaginar a surpresa que levo para casa para o jantar!
— Venha em nossa carroça.
— Com prazer! —Johanson concordou e subiu na carga de cedro—.
Esperem até que os vejam! Eles vão pensar que estão sonhando! — Karl
riu novamente.
— Abatemos um cedro para fazer telhas, mas acho que o retiramos
de suas terras. Eu não sabia que haviam se estabelecido aqui, ou teria
pedido sua permissão.
— Qual a importância de um cedro entre vizinhos? — Olaf
exclamou com uma voz de trovão. — O que significa um cedro em meio a
tanta abundância? — Ele acenou com a mão em direção à floresta.
— É uma boa terra, esta Minnesota. É muito semelhante à Suécia.
— Acho ainda melhor. Nunca vi tais lariços.
— Com eles, as paredes ficam retas—, concordou Karl.
Quando chegaram à clareira estreita onde os machados ainda
tocavam, os dois homens estavam na glória.
Havia uma carroça coberta com uma lona ali, e evidências claras de
que a família vivia em condições difíceis desde que chegou. Itens
domésticos estavam espalhados ao redor da lareira, móveis fora de uso, em
cercados improvisados que abrigavam uma variedade de animais. Havia
baús, roupas de cama e roupas ventiladas, espalhadas no chão, penduradas
nas rodas das carroças ou espalhadas nos arbustos.
Uma mulher mexia algo em uma panela pendurada em um tripé
sobre o fogo. Outra estava descendo da traseira da carroça coberta de
lona. Uma garota da idade de James estava selecionando Blueberry. Na
borda da clareira, três costas largas podiam ser vistas, movendo-se no
mesmo ritmo dos machados. Todos pararam o que estavam fazendo
imediatamente. Olaf chamou o grupo com vozes e gestos, e todos eles
vieram de lugares diferentes e contornaram a carroça quando ela parou.
— Katrene, olha o que achei para você! — Olaf gritou enquanto
pulava da parte de trás da carroça—. Vizinhos!
— Vizinhos! —A mulher exclamou, enxugando as mãos no avental
ornamentado.
— Vizinhos suecos! — Olaf gritou mais uma vez, como se fosse o
responsável pela existência daquela nacionalidade.
Na verdade, a clareira estava cheia de suecos. Todos pareciam
estar conversando ao mesmo tempo. Todos, exceto Anna e James, para
dizer a verdade. Finalmente, Karl se livrou dos apertos de mão quentes
para ajudar Anna a descer.
— Esta é minha esposa, Anna—, disse ele, — mas ela não fala sueco.
As vozes pareciam um lamento.
— E este é o irmão dela, James.
Certamente eram bem-vindos, mas Anna se irritou com a maneira
como todos conversavam naquela língua estrangeira que ela não
conhecia. Eles falaram com Anna e James em inglês.
— Vão ficar aqui e comer conosco. Há o suficiente para todos!
— Obrigada—, respondeu Anna.
Olaf apresentou toda a sua descendência, do mais velho ao mais
novo. Katrene, sua esposa, era uma mulher robusta que acompanhava
tudo o que ela dizia com uma risada alegre. Parecia muito com a imagem
que Anna fizera da mãe de Karl, com base em suas descrições. A alegre
Katrene tinha tranças, avental, bochechas como maçãs e olhos
dançantes que nunca escureciam.
Erik, o filho mais velho, parecia ter a idade de Karl. Na verdade, ele
se parecia com Karl em muitos aspectos, mas era mais baixo e não tão
bonito.
Kerstin, a filha mais velha, foi a próxima. Era uma jovem réplica de
sua mãe. Depois vieram Leif e Charles, dois jovens de cerca de vinte e
dezesseis anos.
Por último, houve a Nedda, de quatorze anos, que fez James emitir
uma voz de falsete quando disse "olá".
Anna pensou que nunca em sua vida tinha visto um grupo familiar
tão saudável. Com bochechas rosadas, corpo vigoroso e sólido, até as
mulher. Todas as cabeças loiras saudaram e gesticularam para que os
recém-chegados se sentassem nas toras perto do fogo, pois não havia
outros lugares ali. Vozes animadas trocaram notícias sobre a Suécia com
Karl, que lhes deu informações sobre Minnesota.
Conforme as conversas continuavam, Anna e James ouviram
aquele jargão ininteligível e sorriram com o entusiasmo de todos. Anna
olhou ao redor do círculo de cabeças loiras. Uma em particular chamou
sua atenção e a deixou desconfortável com o cabelo solto em volta da
cabeça.
A filha mais velha, Kerstin, foi até a grande panela de ferro fundido
e começou a mexer a comida, que exalava um cheiro muito tentador. Por
trás, Anna observava a cabeça com aquelas tranças perfeitas que
pareciam costuradas no couro cabeludo de Kerstin. Elas pareciam tão
dolorosamente limpas! As tranças começavam do centro e terminavam,
como a coroa de uma deusa romana, em uma guirlanda perfeita na nuca.
Kerstin usava um vestido elegante e um avental imaculado, que ela teve
o cuidado de não estragar no fogo ao se abaixar para mexer essa iguaria
desconhecida que cheirava tão bem.
Anna, nas calças do irmão, de repente se sentiu uma moleca. Ela
escondeu as mãos atrás das costas; elas estavam feridas por terem
trabalhado na terra. As mãos de Kerstin estavam tão limpas quanto seu
vestido. Ela se movia com eficiência ao redor do fogo, sabendo com
certeza o que estava fazendo com a comida.
A comida acabou sendo algo incrível. Anna se perguntou de onde
eles conseguiram esses produtos. Karl ficou com água na boca quando
descobriu o pão de centeio crocante. Manteiga! De fato, havia manteiga
porque os Johansons tinham várias vacas. O ensopado era carne de
veado; Anna nunca tinha provado algo tão delicioso. Era aromático,
picante e saboroso. Eles comeram cevada cozida no molho e um bolo de
frutas tentador coberto com Blueberry e creme delicioso.
Karl estava saboreando sua segunda fatia de bolo quando Katrene
riu:
— Você gosta desse bolo de frutas, Karl?
Já não era o Sr. Lindstrom, mas Karl!
— Kerstin o fez. Ela é uma boa cozinheira, minha Kerstin, —
Katrene sussurrou.
Anna fez o possível para manter o sorriso no rosto.
Karl acenou com a cabeça em aprovação para Kerstin, reconheceu
seu talento com gentileza e continuou a comer. O visitante não pode
deixar de compartilhar sua colheita de lúpulo com os Johansons. Ele deu
a Katrene um balde cheio.
Quando terminaram de comer e as mulheres se preparavam para
lavar a louça, Anna se ofereceu para ajudar, mas elas não quiseram saber
de nada, pois a consideravam uma visitante. Eles só gostariam de estar
em sua companhia naquele dia. A ajuda de Karl com seu machado não
seria recusada, mas eles a aceitariam no dia seguinte. Hoje era um dia de
festa. Todos concordaram que, quando a cabana começasse, a
construção seria feita em tempo recorde. “Como na Suécia”, todos
disseram com alegria e, ali mesmo, decidiram que assim que a casa
estivesse habitável, iriam todos juntos terminar o sótão, o telhado e o
piso da casa de Karl e Anna.
Acabaram ficando para jantar e partiram com a promessa de voltar
cedo no dia seguinte para correr com a cabana. Katrene acenou para eles
com suas bochechas de maçã, arredondadas em seu sorriso habitual, e
gritou algo para Karl em sueco.
— O que ela disse? — Anna perguntou.
— Ela disse para não tomar café antes de sair porque vai fazer
panquecas suecas com morangos que trouxeram da Suécia!
Anna não conseguiu conter o ciúme que a alegria produziu na voz
de Karl. E ficou ainda pior quando James adicionou:
— Oba! Espero que sejam tão boas quanto o bolo de frutas. Isso foi
ótimo! Não, Karl?
— Como os que minha mãe fazia— disse Karl.
— Onde eles conseguiram os morangos? — Perguntou James.
— Aqui crescem em todos os lugares. Sabe? Há um terreno cheio na
parte noroeste de minhas terras, mas como estávamos tão ocupados com
a cabana, não fui ver se eles estavam maduros. Acho que já devem estar
prontos.
— Ótimo, Karl! Anna poderia fazer um bolo de frutas com nossos
morangos?
— Acho que não seria a mesma coisa sem aquela rica nata das vacas
do Olaf—. Em seguida, acrescentou: — Eu tinha esquecido o quanto o
leite de vaca é mais doce do que o leite de cabra.
— Se Nanna ouvisse você, ela pararia de dar leite a você, só para se
vingar—, brincou James.
Karl riu.
— Nanna é uma cabra esperta, mas eu não acho que seja tanto.
— Amanhã voltaremos com certeza, certo? — James perguntou
ansiosamente.
— Sim. Claro que sim. Como na Suécia, será um por todos e todos
por um. Com nossa ajuda, os Johansons terão sua casa pronta em dois ou
três dias.
— Dois ou três dias! — James exclamou incrédulo.
— Com seis homens e duas parelhas, se levantará como fermento—,
previu Karl.
— Eu queria que não fosse tão rápido. Eu gosto de comer lá—, disse
James com entusiasmo—. Mal posso esperar para experimentar essas
frutas.
— Eu acho que você vai gostar delas. Elas têm gosto de Suécia.
Ao ouvir essas palavras, Anna jurou que por mais saborosas que
fossem aquelas panquecas de morangos, ela não iria gostar delas de
forma alguma!
Quando foram para a cama, Karl falou com Anna, algo que não
fazia na cama desde que haviam se distanciado.
— É maravilhoso ter vizinhos novamente e ouvir sueco.
— Sim, eles são amáveis—, disse Anna, sentindo que tinha que
acrescentar algo.
— Vou sair mais cedo para ajudá-los com a cabana. Você vem,
Anna?
Ele não disse: "Você deve estar pronta de manhã cedo, Anna", ou
"Devemos partir amanhã cedo, Anna". Apenas: "Você vem, Anna?"
Metade dela queria gritar com ele para apenas ir ver seus amigos
suecos que podiam fazê-lo rir e sorrir enquanto sua esposa não. Mas ela
estava muito sozinha para enfrentar um dia sem a companhia de
ninguém, com muito ciúme de toda a família Johanson para confiar Karl
a eles por um dia inteiro, sem ela.
— Claro que vou. Eu não perderia as panquecas de frutas
vermelhas suecas por nada!
Karl detectou um tom sarcástico em sua voz, mas atribuiu isso a
nada mais do que sua timidez quando se tratava de cozinhar.
Mais uma vez, Anna prometeu a si mesma que, mesmo que aquelas
panquecas fossem tão leves que flutuassem sozinhas da frigideira para
seu prato, e as frutas fossem tão saborosas que lhe davam água na boca,
ela não admitiria que gostava delas!
Apesar de tudo, ela gostou delas no mesmo dia em que as
experimentou.
A refeição matinal na casa dos Johansons foi um sucesso. As
panquecas eram de ovo, leves e deliciosas; os morangos, o complemento
perfeito para a excelente cozinha de Katrene. Anna não pôde deixar de
dar os parabéns a Katrene. Por mais ciumenta que ela tivesse de sua
condição de suecos, era impossível não apreciá-los. Eles eram realmente
uma família alegre de se visitar. Até a habilidosa Kerstin tinha um
charme ingênuo.
O riso, pelo que Anna podia ver, era tão comum entre os Johansons
quanto seu gosto por panquecas. Os suecos riam de tudo o que faziam.
Provocar também era natural entre os dois irmãos mais velhos. Entre os
irmãos e irmãs, é claro, estavam aumentando. Nedda ficava muito feliz
quando James estava por perto, mas ela os aceitava com tons rosados que
deixavam todos mais alegres.
Da mesma forma, esses gigantes louros achavam o trabalho tão
natural quanto respirar. Se Anna tinha ficado hipnotizada ao ver Karl
trabalhando com seu machado, ela ficou ainda mais agora, vendo
aqueles homens - Olaf, Erik, Leif, Charles e Karl - balançando seus
machados e enxós como se estivessem afugentando insetos. Nos dois
dias seguintes, Anna viu um grupo de homens trabalhando juntos como
parceiros, construindo uma cabana, no melhor da tradição sueca.
Eles se harmonizavam como as rodas de uma engrenagem
enquanto trabalhavam: arrastando, talhando, entalhando, levantando
toras; às vezes, dois troncos subiam ao mesmo tempo em paredes
opostas. Anna descobriu que Karl era um mestre na arte de fazer telhas
de madeira. Orgulhava-se da rapidez com que trabalhava a cerne do
cedro com o macete e a cunha para obter as telhas, que eram
imediatamente levantadas e colocadas no telhado.
Leif, de 20 anos, apoiava Karl, e entre os dois eles conseguiram
colocar rapidamente as telhas nas vigas do teto.
Erik parecia ter um talento especial para trabalhar a medula da
madeira. Ele partia cada pedaço com precisão e deixava a superfície lisa
como se um jato de água a tivesse erodido por cinquenta anos.
Olaf estava ocupado fazendo buracos para a lareira e a porta.
A tarefa de carregar as pedras coube a James. Mas Nedda
trabalhava com ele, e o menino parecia gostar.
Anna e Kerstin recolheram lama para rebocar as paredes (agora
eles permitiram que Anna ajudasse). Katrene cozinhava e de vez em
quando trazia aos trabalhadores um balde de água e uma jarra, para
observar o progresso que faziam de passagem; ela também contribuiu
com seus comentários, em sueco melodioso, ao sentimento geral de
cordialidade.
No final do primeiro dia, Charles pegou seu violino e todos
dançaram na clareira enquanto o dourado e o púrpura se fundiam a
oeste atrás das árvores. Olaf e Katrene faziam uns magníficos passos de
dança, Kerstin dançou com os irmãos e Nedda também. Demorou um
pouco para convencer James a tentar. Olaf e Leif, os dois, tentaram
persuadir Anna, mas a moça confessou que nunca havia sido ensinada a
dançar e não tinha tanta coragem quanto o irmão, embora quisesse
aprender de todo o coração. Mas era com Karl e não Olaf ou Leif que ela
queria aprender.
Karl dançou com todas as mulheres da família Johanson. Quando
ele fez par com Kerstin, Anna continuou batendo palmas,
acompanhando o violino, se forçando a conter a tempestade de emoções
que surgia cada vez que os dois falavam um com o outro. Enquanto eles
giravam felizes pela clareira iluminada pelo fogo, rindo, as saias de
Kerstin esvoaçando em todo o seu voo quando ela as erguia, Anna
novamente se sentiu desanimada com esse novo talento demonstrado
pela jovem sueca e que lhe faltava. .
Depois de rejeitar Karl, Erik conseguiu tirá-la para dançar e
arrastá-la para a folia geral. Não era realmente tão ruim, apesar de quão
pouco feminina se sentia, dançando em volta do círculo em suas calças.
Ela gostaria de ter um vestido como o de Kerstin, embora tivesse
decidido não usar o dela por considerá-lo impróprio.
O trabalho na cabana continuou no dia seguinte e eles
conseguiram terminar o piso. Eles tocaram violino novamente para
batizar a nova casa com música e dança. Desta vez, Anna participou
todas as vezes que foi convidada. Karl a convidou para dançar várias
danças, mas ela se sentia estranha em comparação com as outras
mulheres, especialmente Kerstin, que erguia a saia e ria muito enquanto
se virava e fazia figuras com seus passos leves.
Embora Karl não dançasse com Kerstin mais do que com as outras
mulheres, Anna teve a impressão de que, toda vez que erguia a cabeça,
encontrava Kerstin se movendo nos braços de Karl. Ao final de uma
dança muito alegre e de ritmo vertiginoso, todos riam sem fôlego,
enquanto continuavam girando; Anna olhou por cima do ombro de Olaf
e viu Karl girando com Kerstin em seus braços, até que os pés da garota
levantaram do chão e suas saias levantaram. Kerstin estava rindo
levemente quando Karl a soltou. Então ela colocou a mão na testa e
ajeitou uma mecha de cabelo que nem estava fora do lugar.
— Oh, Anna! Que bom dançarino Karl é! Isso me deixa exausta! —
Ela disse, e pegou o braço dela.
Anna mordeu a língua para suprimir uma frase que já estava em
seus lábios: “Sim! Isso me exauriu também!”
Naquela noite, Anna ficou acordada muito depois de Karl cair em
um sono profundo. Ela reviveu os eventos dos últimos dois dias com os
Johansons. Cada palavra entre Karl e Kerstin ia adquirindo um caráter
pessoal. Cada elogio que Karl fazia a Kerstin por suas refeições
aumentava seu ressentimento sem piedade. Cada passo leve durante a
dança parecia provocativo. Cada vez que ela se lembrava daquele último
abraço vertiginoso, ficava mais íntimo. Não havia dúvida. Ao lado de
Kerstin, Anna se sentia tão pequena quanto uma erva em um jardim de
rosas.
“Bem”, ela pensou com raiva, “se ele quer ficar com sua adorável e
gordinha Kerstin, deixe-o ficar com ela! Maldito seja! Não vou ficar
olhando enquanto ele celebra servilmente cada movimento seu. Eles
disseram que teriam um dia curto de trabalho amanhã e que não
precisam mais de mim de qualquer maneira. Por que vou atrapalhar?
Mesmo se eu estivesse lá, não faria diferença daria no mesmo se eu fosse
um tronco, por causa da atenção que eles me dão. Eles falam sueco perto
de mim, como se eu fosse realmente um tronco! Sou apenas o toco que
eles deixam para trás quando seus preciosos lariços acabam de ser
derrubados! Bem, eu serei uma inútil, mas eu não tenho que ficar parada
e deixar suas enormes botas suecas e preciosos machados suecos me
passarem na cara!”
CAPÍTULO 15
No dia seguinte, Anna acordou cedo o suficiente para preparar o
café da manhã para Karl e James. Ela fez isso antes que eles pudessem
protestar. “Que comam o que eu preparo para eles, gostem ou não! Eles
podem muito bem ficar sem seus morangos por uma manhã!” Anna deu
a James um olhar severo: o menino estava ansioso para ir. “Parece que
ele também está fisgado por uma dessas beldades suecas”, Anna pensou
com amargura, e isso a deixou ainda mais infeliz.
— Depressa, Anna, temos de ir—, disse Karl.
Mas não foi tão recompensador para ela quanto ela imaginou
responder:
— Eu não vou hoje.
— Você não vai? — Karl parecia desapontado, o que marcou um
ponto a seu favor. — Por que, Anna?
— Acho melhor cuidar do jardim. Os vegetais estão estragando lá
fora. Em todo caso, não há muito o que fazer na cabana, então não farei
falta.
— Vamos, Karl! — James gritou da carroça—. Se apresse!
— Tem certeza, Anna? — Perguntou Karl—. Não gosto de deixar
você aqui sozinha.
Ela tinha que mostrar a ele que ela era tão capaz quanto a
habilidosa Kerstin Johanson... especialmente quando ela ficava sozinha o
dia todo sem depender de um homem para protegê-la.
— Não seja bobo, Karl. Eu tenho um rifle para me proteger, certo?
Foi o dia mais longo da vida de Anna. Ela chorou e secou, Ela secou e
chorou, até que pensou que ia matar os vegetais com o sal das lágrimas. Ela
trabalhou duro, mas durante todo o dia foi atormentada por imagens de Karl
e Kerstin. Ela imaginou Karl parabenizando Kerstin, balançando a cabeça,
pelo bolo de frutas. Ela o imaginou dizendo como gostava daquelas tranças
douradas, penteadas com capricho sobre sua linda cabeça sueca. Ela até
imaginou os dois falando sueco e sentiu uma angústia ainda maior por não
poder compartilhar com Karl aquela língua que ele tanto amava. De vez em
quando, ela se lembrava de Karl chamando-a de "minha galinha magrinha"
e se culpava por sua magreza. Não havia muito que ela pudesse fazer sobre
sua magreza ou sua incapacidade de cozinhar, mas pelo menos ela poderia
tomar um banho! Se Karl gostava que suas mulheres cheirassem a sabonete
de soda cáustica, que fosse!
Ela tomou banho e esperou, mas o Sol ainda estava alto no
horizonte. Foi naquele momento, com a luz do sol começando a filtrar-se
pela fileira de árvores no oeste, que Anna teve a brilhante ideia de como
agradar Karl.
Ela iria encontrar sua valiosa plantação de morangos e escolher
um monte para si. Incentivada pela ideia de ocupar o tempo até o
retorno e, ao mesmo tempo, fazer algo certo, ela pegou um balde de
madeira e saiu. Ela seguiu o caminho familiar para o lago dos castores e
contornou o riacho ao norte para uma área rasa, que ela cruzou para ir
para o noroeste em busca das frutas.
Ela observou o Sol de perto, calculando sua descida, sabendo que
quando ela contornasse o horizonte, deveria estar de volta em casa para
o retorno de Karl e James.
A menos de vinte minutos do riacho, ela encontrou os morangos.
Eles eram grandes, vermelhos e pegajosos como os mosquitos que
pairavam ao redor. Nunca os mosquitos a atacaram assim! Mesmo que
ela socasse o ar e os esmagasse, eles continuaram a atacando antes que
ela tivesse tempo de afastá-los. Por um momento, ela teve que sair da
vegetação rasteira. Mas Karl queria os morangos e ela os pegaria para
ele. Ela foi de um lugar para outro e colheu morangos até o balde estar
quase cheio; Ela nunca teria imaginado que os morangos fossem tão
pesados.
O sol já estava baixo e era hora de voltar. Ela ouviu o gorgolejar do
riacho e foi na direção dele. Os mosquitos se tornaram ameaçadores
agora que a noite se aproximava, mas ela tentou ignorá-los. Ela estava
carregando seu balde, contornando o curso do riacho sinuoso, até que
ela chegou a uma curva de onde o riacho virou para o norte.
Ela não se lembrava de ter passado por aquele lugar quando saiu
em busca dos morangos. Bem, com o Sol à sua direita, ela tinha certeza
de estar indo na direção certa. Mas quando ela refez seus passos, chegou
a uma bifurcação onde aquele riacho encontrava outro, e os dois
pareciam seguir seu curso para o norte. O riacho que Anna conhecia
corria para o sul, sudoeste!
O balde parecia chumbo, o sol já estava baixo e o crepúsculo se
aproximava. Anna pegou um galho de salgueiro e se abanou o melhor
que pôde para espantar os mosquitos. As rãs começaram a coaxar e os
mosquitos continuaram a picá-la. Chegou um momento em que Anna
não suportava os grasnidos ou as mordidas por mais um minuto. No
momento em que ela admitiu que estava completamente perdida, um
leve tom laranja tingia o céu a oeste, destacando as silhuetas escuras das
árvores que pairavam sobre ela como dedos negros ameaçadores.

KARL E JAMES VOLTARAM DA CASA DOS JOHANSONS esperando


encontrar fumaça saindo da chaminé e um bom jantar quente junto à
lareira. Mas as cinzas mal estavam quentes e não havia sinal de comida.
Karl saiu para o jardim e viu que o solo acabara de ser revolvido. Ele foi
para a nova cabana e entrou; Estava escuro e a luz do sol estava
diminuindo. Ele não viu nada nos cantos mais afastados.
— Anna...— ele chamou—. Está aí? — Mas apenas o canto suave dos
pássaros respondeu, cantando através da lareira parcialmente aberta—.
Anna...
Ele encontrou James na clareira.
— Ela não está na casa do manancial—, disse James.
— Eu já percebi.
— Pode estar no celeiro.
— Também não está lá. Eu não a encontrei.
O coração de Karl começou a bater forte.
— Talvez ela tenha ido para a lagoa.
— Sozinha? — James perguntou incrédulo.
— É o único lugar em que consigo pensar.
Eles pegaram o rifle e se dirigiram para a lagoa. Karl não conseguia
explicar por que Anna não carregava a arma com ela; era a hora em que
os animais selvagens procuravam comida. Karl sabia que na lagoa era
muito provável encontrar todos os tipos de animais bebendo: criaturas
com garras, dentes e chifres e... Mas não havia animais na lagoa; nem
Anna.
Ele não conseguia pensar em nenhum outro lugar onde pudesse
estar. Entristecido, ele começou a voltar. James estava à beira das
lágrimas. Ele caminhava na frente de Karl, perscrutando a escuridão da
floresta, esperando ver sua irmã surgir das sombras. Quando chegaram à
cabana, o sol já tinha se posto e faltava apenas uma hora de luz muito
fraca para distinguir qualquer coisa.
— Talvez ela esteja descendo a estrada para os Johansons—, disse
James, esperançoso.
— Nós a teríamos visto, se ela tivesse vindo nos encontrar.
As sobrancelhas loiras de Karl se arquearam em sinais de
preocupação.
— Para onde vai aquele outro caminho lá em cima?
— É apenas a trilha que leva ao Forte Pembina, no Canadá. Por que
iria por esse caminho?
— Karl, estou apavorado—, disse James, os olhos arregalados de
medo.
— Quando você fica apavorado, é quando você deve preservar
todos os seus sentidos, garoto.
— Karl, eu sei que Anna tem chorado muito ultimamente.
Karl sentiu como se James tivesse deixado uma marca quente com
o atiçador no meio do peito. Seus dentes cerraram e ele olhou fixo.
— Fique quieto e me deixe pensar.
James fez o que ele pediu, mas não acalmou seus nervos quando
viu Karl ir de um lugar para outro na sala, esfregando a testa e não
dizendo nada. Karl acendeu a lareira, ajoelhou-se e olhou para o fogo.
Finalmente, quando James pensou que não poderia suportar o silêncio
nem mais um segundo, Karl deu um pulo e explodiu:
— Conte os baldes!
— O que?
— Conte os baldes do manancial, garoto! Agora!
— Sim... senhor!
James saiu imediatamente enquanto Karl corria para o celeiro para
ver se havia algum balde lá.
Eles se encontraram novamente na clareira onde a escuridão já
reinava.
— Quatro—, relatou James.
— Três—, disse Karl—. Falta um!
— Falta um?
— Se ela levou um balde, deve ter ido buscar alguma coisa. O que?
Uma carga de argila para cobrir as aberturas? Não, já estivemos no
depósito de argila. Morangos? Não, ela não sabe onde eles crescem...
Espere!
Ambos imediatamente pensaram a mesma coisa.
— Você nos disse que morangos crescem no setor noroeste de suas
terras.
— Isso! Tire a parelha de novo, garoto, e vá até os Johansons. Se
Anna se perdeu na floresta, todos vão precisar procurá-la. Essas florestas
são perigosas à noite.
Karl preparou alguns pavios de taboa, acendeu-os, entregou-os a
James e ordenou:
— Diga aos Johansons para virem imediatamente. Traga tochas e
rifles. Depressa, garoto!
— Sim... senhor.
Sabendo que não adiantava sair sozinho, que um homem pouco
podia fazer na floresta, Karl tentou manter a calma enquanto esperava
que James voltasse com os Johansons. Enquanto isso, ele continuou a
montar tochas de longa duração, que o grupo faria em sua busca pela
floresta. Ele as amarrou em grupos de oito para que cada um tivesse um
suprimento para usar nas costas. Finalmente, James voltou com os
Johansons.
Eles não perderam tempo fazendo perguntas, exceto aquelas que
Karl teve que responder para garantir que ninguém se perdesse na
floresta enquanto eles procuravam por Anna.
— Vamos percorrer a área do riacho em todas as direções.
Karl explicou que eles caminhariam em um ângulo de noventa
graus em relação ao lago. — Vamos nos espalhar, apenas uma tocha de
distância entre nós. Não perca de vista as tochas ao seu lado. Se uma
delas apagar, sinalizem para o mais próximo. Se encontrarem Anna,
espalhe a notícia ao longo da linha. Quando chegarmos ao ponto mais
distante que Anna poderia ter alcançado, dispararei um único tiro. Isso
significa que todos vão virar à direita e caminhar oitocentos passos
antes de retornar ao riacho.
— Não se preocupe, Karl—, disse Olaf, — vamos encontrá-la.
— Peguem cinza dos baldes e esfregue no rosto e nas mãos—,
ordenou Karl, — ou os mosquitos vão comer vocês vivos. Quando
encontrarem Anna, terão que usar seu rosto e suas mãos para esfregar
nela com as cinzas. Imagino que estará cheia de picadas.
Eles seguiram Karl e James pela floresta, ao longo do riacho
sussurrante, cada vez mais fundo, até que Karl deu a ordem para se
espalhar. Eles caminharam as margens do riacho, no meio da noite
murmurante; apenas a luz bruxuleante das tochas distantes encorajava
corações temerosos.
Todos pensavam em como Anna estaria sozinha em algum lugar,
sem cinzas para se proteger dos perniciosos mosquitos, sem uma tocha
para lembrá-la de que havia outros a quem ela pudesse chamar, sem um
rifle para se proteger dos rondadores noturnos que povoavam a selva.
Eles forçaram seus olhos e ouvidos, gritaram até que suas gargantas
secaram e suas vozes ficaram roucas.
Karl e James encheram sua mente com imagens desesperadas de
Anna machucada, Anna chorando, Anna morta, enquanto eles
procuravam.
Karl censurou-se por tê-la deixado sozinha em casa e não ter
insistido para que ela fosse com eles. Ele pensou no pomar, sem ervas
daninhas e com um nó se formando em sua garganta. Ele pensou em seu
afastamento e no motivo que o causou; a última vez que fizeram amor.
Ele pensou nas palavras de James: "Eu sei que Anna tem chorado muito
ultimamente." Ele também sabia que Anna tinha chorado muito
ultimamente.
Por que ele não fez o que o padre Pierrot tão sabiamente
aconselhou? Por que ele não discutiu o assunto com Anna quando teve a
chance? Em vez disso, ele deixou não apenas a noite surpreendê-lo com
raiva; ele permitiu que também caísse sobre Anna, perdida em algum
lugar da floresta, quando a raiva entre eles persistia. E se ele nunca a
encontrasse novamente ou se fosse tarde demais quando a encontrasse,
seria tudo culpa dele.
"Anna, onde você está? Prometo que tentarei aceitar isso, Anna, se
você voltar aqui em segurança. Pelo menos vamos conversar e encontrar
uma maneira juntos de esquecer isso. Anna onde está você Anna, me
responda."
Mas não foi Karl quem a encontrou. Foi Erik Johanson. Ele não a
encontrou correndo pela floresta em direção a sua tocha, mas buscou os
olhos avermelhados dos lobos, ouvindo os uivos penetrantes diante dele,
muito antes dos olhos das feras perfurarem a noite.
Os lobos cercavam a árvore que Anna tinha escalado, apavorada,
com medo de que seus membros entorpecidos cedessem, com medo de
que ela adormecesse e caísse. Abaixo, as mandíbulas estalavam e o
lamento lhe disse que os animais persistiam na tentativa de alcançá-la,
saltando em direção ao tronco. Havia apenas três. Quando Erik mostrou
os dentes e acenou com a tocha sobre sua cabeça, os lobos recuaram.
Mas os três ainda estavam lá, ameaçadores, até que Erik atacou com sua
tocha um par de olhos avermelhados, e por fim todos eles se afastaram
como sombras em movimento.
— Aqui! — Erik gritou para o grupo mais próximo, então ergueu os
olhos e os braços—. Anna você está bem?
Antes que ela pudesse responder ou deslizar para baixo da árvore
até ele, Anna viu um dos lobos avançar, novamente, em direção a Erik, e
gritou seu nome.
Erik se virou abruptamente, enfiou a tocha nos olhos famintos e
raivosos e queimou o pelo da fera, que ele pensava ser apenas uma
ameaça vazia. Sentindo o cheiro, o animal se dirigiu para as profundezas
da floresta para se juntar aos outros dois antes de desaparecer na
escuridão para sempre.
A essa altura, outra tocha havia chegado para repelir as Bacantes, e
depois outra. Karl havia se posicionado no centro do flanco, então
quando o informe o alcançou, já havia quatro outras tochas lá que
ajudaram Anna a descer em segurança pela árvore.
Karl alcançou o círculo de luz onde encontrou Anna soluçando e
aconchegada nos braços fortes de Erik Johanson. As lágrimas corriam
por suas bochechas e lavavam seu rosto. Fios finos de lágrimas e cinzas
riscavam sua pele. Erik fez o que Karl mandou: esfregou o próprio rosto
e as mãos em Anna assim que a encontrou. Mas a garota se agarrou ao
pescoço de Erik em um abraço apertado, que se recusava a afrouxar.
Erik olhou por cima da cabeça de Anna quando Karl entrou no
círculo de luz, preso nos braços da garota, sem saber o que dizer ou
fazer. Karl se atormentou com imagens das bochechas e mãos de Erik
esfregando o rosto de Anna. Ele sentiu um aperto estranho no estômago
e quis gritar para Erik tirar os braços dela.
— Parece estar bem—, Erik assegurou a Karl. Então sua voz ficou
mais doce quando ele falou perto do ouvido da garota—. Anna, Karl está
aqui agora. Você pode ir com ele agora.
Mas Anna não pareceu ouvir e, se ouviu, não pareceu registrar as
palavras. Ela se agarrou a Erik como se sua vida dependesse dele.
Karl observava com o coração tão aliviado que a repentina
liberação de medo fez seu estômago tremer. James apareceu de repente
e se jogou sobre a irmã; Ele a abraçou por trás com o rosto enterrado nas
costas de Anna, tentando controlar as lágrimas. E todo esse tempo, Anna
estava agarrada a Erik Johanson.
Kerstin observava, estranhando, como Karl ficava atrás, não
querendo tirar a esposa dos braços do irmão. Isso confirmou sua
suspeita de que algo estava errado entre os Lindstrom.
Finalmente, Karl falou:
— Anna, você vai afogar o pobre Erik.
Mas era Karl quem parecia estar se afogando. Ele se aproximou,
esperando que ela se virasse para ele.
Ao ouvir sua voz, Anna ergueu a cabeça. Karl podia ver seu rosto
manchado de cinzas, tremeluzindo à luz da tocha, enquanto ela olhava
para o dele também. Quando sua voz familiar veio de trás da máscara
cinza, a garota disse com um gemido:
— Karl?
— Sim, Anna.
Eles continuaram hesitando. Anna parecia uma pobre menina, suja
e indefesa, o rosto pálido e inchado, por trás do cinza das cinzas, das
picadas e das lágrimas. O cabelo era uma explosão de fios cor de uísque e
raminhos de morango. À luz da tocha, os olhos avermelhados pareciam
enormemente grandes. As lágrimas corriam silenciosamente e caíam de
suas bochechas para sua camisa, na qual formaram manchas sujas onde
a roupa pendia frouxamente de seu corpo esguio. Ele lutou para firmar o
peito, mas não conseguia respirar sem tremer. Ela ergueu as costas da
mão e passou-a pelo nariz, deixando cair os braços em aflição.
Ela nunca quis tanto que uma pessoa a tocasse... apenas a tocasse...
como precisava agora que Karl fizesse. Pestilenta, desprezível,
arrependida, ela agora estava diante dele; Ela tremia por dentro e suas
pernas vacilavam, sabendo que, mais uma vez, ela falhou em
corresponder às expectativas de Karl.
— Você nos deu um grande susto, Anna! — Disse Karl, cansado, mas
aliviado.
Anna sufocou suas palavras entre soluços.
— Eu... ia jun... juntar... algu... uns... morangos para... seu jan...
tar...
Com esse apelo de partir o coração, Karl foi dominado pela
tristeza. Abrindo os braços, ele a segurou contra seu peito largo,
incluindo James em seus braços também; O rifle frio e duro de Karl atrás
da cabeça de Anna pressionou-a ainda mais contra ele.
— Os lobos... vieram, Karl—, ela soluçou.
— Está tudo bem, Anna. Tudo está bem—, ele a acalmou.
Mas ela continuou:
— E... os... mosquitos são... terr ... terrí... veis.
— Bem bem…
— O... b... balde... se de... derra... mou... , Karl.
— Anna, não fale agora.
— O b... b... balde se... derrama... mou, Karl.
Karl teve que apertar as pálpebras.
— Eu sei, eu sei—, disse ele, puxando-a em seus braços.
— Mas... eu... os mor... morangos...
— Haverá outros.
— O ria... riacho ia... ia para o nor... norte e n... não pude...
— Anna, Anna, você está segura agora.
— Oh, Karl. Sinto muito. Eu sin... eu... sinto muito, Karl.
— Sim, Anna, eu sei.
Lágrimas estavam se acumulando na borda de seus olhos.
— Não… não me de… ixe ir embora, Karl, eu sei… me desculpe.
— Não te deixarei ir. Venha, Anna, devemos ir para casa agora.
Mas Anna não conseguia se desfazer do abraço. Ela chorou
descontroladamente contra o pescoço dele até que Karl finalmente
entregou o rifle a James e ergueu Anna em seus braços.
Cercado por tochas, ele a levou para casa. Antes de chegar, Anna
adormeceu nos braços de Karl, embora a pressão em seu pescoço não
diminuísse. Apesar de seu tamanho e condição física, Karl também
estava um pouco mole quando chegou à cabana.
Eles ainda estavam todos lá, esperando, depois que Karl a colocou
na cama; Desejaram-lhe o melhor, mas não decidiram partir, com medo
de serem necessários. Karl garantiu que haviam feito mais do que o
necessário e, ao sair, agradeceu a todos com apertos de mão e abraços.
Antes de partir, Olaf sugeriu:
— Karl, talvez não devêssemos vir amanhã para ajudá-lo com a
cabana. Podemos esperar e voltar depois de amanhã. Anna não está se
sentindo bem e pode precisar de um dia de descanso. Fique com ela até
que ela melhore, e voltaremos depois de amanhã.
Katrene o aconselhou:
— Passe uma pasta grossa de bicarbonato de sódio nas mordidas
para que Anna não se sinta tão irritada.
— Sim, Katrene. Eu vou fazer o que você me disse. E acho que você
está certo, Olaf. Um dia ou mais não é tão importante. Terminaremos o
trabalho na minha cabana depois de amanhã.
— Estaremos todos aqui então, não se preocupe—, Erik assegurou-
lhe.
Cada um dos Johansons fez um comentário reconfortante
enquanto a família partia. Charles disse:
— Descanse agora e não se esforce amanhã também.
Katrene adiciona em sueco:
— Não se esqueça, o bicarbonato de sódio tira a coceira.
Karl sorriu e prometeu não esquecer. Leif disse:
— Tenho certeza que ela vai ficar bem, Karl. Todos nós vamos
pensar nela até nos encontrarmos.
— Estaremos aqui com nossos machados afiados, depois de
amanhã, bem cedo—, disse Olaf, e deu um tapa nas costas dele, como se o
tivesse dado a um de seus filhos.
Erik demorou.
— Lamento que você não tenha sido o primeiro a encontrá-la, Karl.
Seus olhos diziam: “Ela não estava pensando em quem estava
segurando, não me leve a mal, amigo." Os olhos de Karl gratificaram o
jovem com um sorriso cansado, que dizia: "Você não deve se preocupar."
Finalmente, Kerstin se aproximou. Ela pousou o braço sobre o de
Karl e olhou-o diretamente nos olhos azuis preocupados. Ela também
falou em sueco.
— Karl—, disse ela, — mamãe está certa em aconselhar você sobre o
bicarbonato de sódio, mas isso não vai resolver tudo o que há de errado
com Anna. Acho que há algo errado com seu coração. Seja o que for,
você é quem pode ajudá-la, Karl.
— Não somos casados há muito tempo—, ele murmurou—. Ainda
temos que nos acostumar com algumas coisas.
— Não vou te dizer mais nada, agora. Vejo que você também está
confuso. Apenas lembre-se disso: as diferenças não podem ser
superadas, se você as mantiver dentro de si.
Suas palavras foram essencialmente as mesmas do padre Pierrot.
— Eu vou lembrar. Obrigado, Kerstin.
Nedda foi a única que não se despediu de Karl, pois ela e James
haviam caminhado para o celeiro, enquanto os outros permaneceram na
entrada da casa de adobe. Eles estavam parados sob a luz das estrelas
naquela noite suave de verão. Uma dorminhoca cantou uma canção
monótona na escuridão das árvores. Os morcegos desceram e voaram
pelo ar, guinchando como ratos, enquanto os sempre presentes chilreios
dos grilos soavam como o dedilhar de violinos de uma só corda.
A mão de James pousou na cerca; Nedda foi encorajada a colocar
sua mão na dele e disse:
— Estou feliz porque a encontramos. Nunca imaginei como seria
terrível perder um irmão ou irmã.
— Eu também não. Com Anna, estivemos juntos toda a nossa vida.
O que quero dizer é que ela sempre esteve lá, cuidando de mim. Nunca
parei para pensar em como seria terrível não tê-la.
Nedda retirou a mão, mas continuou olhando para o rosto de
James.
— Onde estão sua mãe e seu pai?
— Mamãe morreu e meu ...
Ele engoliu em seco e tomou a viril decisão de confiar a verdade a
Nedda, sem se importar com o que sentia. Ele sabia muito bem como as
mentiras dele e de Anna haviam ferido Karl. Ele decidiu, por si mesmo,
ser honesto desde o início e evitar se enredar nos tentáculos das
mentiras.
— Nunca conhecemos nosso pai, nem Anna nem eu. E é melhor
você saber a verdade, Nedda. É quase certo que nascemos de um pai
diferente. Você sabe, minha mãe nunca nos quis, nenhum de nós dois. É
por isso que Anna e eu tínhamos que ficar tão perto; caso contrário,
estaríamos totalmente sozinhos.
Nedda ficou pasma de que uma mãe não amava seus filhos.
— Anna deve ser muito especial para você, eh?
— Claro que é—. James nem percebeu que sua resposta parecia
como se tivesse vindo de Karl—. O que quero dizer é que, bem, é muito
mais especial quando alguém não é do seu próprio sangue... eles...
James não conseguiu terminar. Ele se lembrava de todas as vezes
que Anna o protegeu em St. Mark ou prometeu que tentaria encontrar
uma vida melhor para os dois. Ele se lembrou de como se recusou a
deixá-lo sozinho quando veio se encontrar com Karl. Ele também pensou
na última vez em que a viu sofrendo, impotente para encontrar uma
resposta para si mesmo.
— Te entendo. Anna nem é sua irmã, mas ela te ama como é, certo,
James?
O menino raspou o chão com a ponta da bota, olhando para baixo,
tomado por uma estranha sensação de mal-estar. Ele assentiu. Ele
pensou por um momento e então perguntou tristemente, olhando para
as estrelas:
— Nedda, o que faz as pessoas que se amam não quererem que o
outro saiba?
— Quer dizer sua mãe?
— Não, ela não! Eu nunca me importei muito com isso. É de Karl e
Anna que estou falando. Há... há algo errado com eles e eu daria
qualquer coisa para ajudá-los, mas não sei como. Demônios! Eu também
não sei o que é.
— Eles brigam?
— Aí está o inexplicável. Não! — James parecia frustrado—. Se eles
discutissem, talvez eles se acomodassem. Em vez disso, se tratam de uma
forma... não sei como explicar. Gentil, eu diria. Você sabe, como sua mãe
e seu pai, quando eles riem e ele a provoca e tudo mais.
— Sim, meu pai é um grande brincalhão.
— Vê? É assim que Anna e Karl eram quando chegamos aqui. Sabe?
Eles só se casaram no verão. Eles pareciam se dar tão bem e então eu
disse algo e...— Ele engoliu em seco, pensando que daria qualquer coisa
para esconder a verdade que ele revelou quando sem pensar deixou
escapar tudo que sabia para Karl—. Acho que causei toda essa raiva entre
eles porque disse a Karl algo que ele não consegue esquecer.
— Sobre a Anna?
— Não. É por isso que não consigo entender essa bagunça. Era
sobre nossa mãe. Ela era... era...
— O quê, James?
— Prostituta—, disse ele por fim, esperando que Nedda corresse
horrorizada para sua família. Em vez disso, ela ficou ao lado dele.
— Não sei o que é isso.
— Mas Nedda, você é um ano mais velha que eu!
— Mas eu não sei o que é. Meu inglês ainda não é muito bom.
Existem palavras que ainda não aprendi. — James procurou uma
maneira de explicar. Nedda entendeu seu problema e disse:
— Não importa, James.
— Bem, Karl se importa. E se ele não soubesse, tudo ficaria bem
entre ele e Anna. Ao mesmo tempo, não acho que Karl se voltaria contra
Anna por não gostar de nossa mãe. Ele é um homem justo. Não o faria.
— Você ama muito o Karl, não é?
— Quase tanto quanto Anna. É...— Mas era impossível resumir tudo
o que ele sentia por Karl—. Nos deu a única casa que já tivemos. Eu só
desejo que façam as pazes e sejam felizes novamente.
— Eles ficarão bem, James. Eu sei que eles ficarão bem.
James se virou para encará-la.
— Obrigado por ouvir, de qualquer maneira, e por nos ajudar a
encontrar Anna.
— Não seja tonto.
— Eu imagino... imagino que pareci um bobo, pelo jeito como me
comportei quando encontramos Anna, mas, bem...
Ficou envergonhado por Nedda o ter visto agarrado à saia da irmã,
como um bebê.
Mas Nedda disse algo maravilhoso para ele que o fez esquecer
como se agarrou à irmã e chorou.
— Quer saber, James?
— O que?
— Estou feliz que isso aconteceu.
— Feliz?
— Sim. Porque você fez todo o caminho até minha casa sozinha, no
escuro.
— Não é tão longe—, disse James com orgulho oculto.
— No escuro... e sozinho—, ela insistiu.
— Por que você está feliz?
— Porque agora que você fez uma vez, você pode fazer a qualquer
hora... Ir até minha casa, quero dizer.
— Posso?
— Seguro. Você não tem que esperar a chegada de Anna e James.
Vejo você depois de amanhã, James.
Então ela se juntou a sua família e James os acompanhou até a
carroça.
Quando os Johansons foram embora, Karl deu um tapa no ombro
dele.
— Você fez um trabalho de homem hoje—, disse ele para elogiá-lo.
— Sim... senhor—, James respondeu, incapaz de expressar tudo o
que estava em seu coração.
Eles ficaram em silêncio por um momento antes de Karl lhe dizer:
— Nedda é uma menina adorável.
— Sim... senhor—, disse James novamente. Ele engoliu em seco e
acrescentou judiciosamente: — Eu gostaria de ver Belle e Bill agora, se
você não se importa, Karl.
— Não há problema. Trate de não fumar o cachimbo como eu. Sua
irmã não gostaria.
— Não te preocupes. Eu tenho que refletir.
— Vou deixar a porta destrancada.
— Boa noite, Karl.
— Boa noite rapaz.
Da cama, Anna observou Karl quando ele entrou. Ele foi até a
lareira e parou. Ele apoiou as bochechas nas duas mãos, cravou as pontas
dos dedos nos olhos e suspirou profundamente enquanto passava as
mãos pelo rosto e as deixava cair. Seus ombros estavam curvados para
frente.
— Karl?
Karl virou a cabeça.
— Anna, você está acordada? — Ele disse, e caminhou até a cama.
— Faz um tempo. Enquanto você e Kerstin murmuravam em sueco
lá fora. Do que estavam falando, Karl?
— De você.
— O que disseram sobre mim?
— Ela disse que você precisaria de bicarbonato de sódio para as
mordidas. — Mas Anna não acreditou nele. Lágrimas saltaram de seus
olhos.
— Só estou te causando problemas, Karl. Também aos Johansons.
— Eles são boas pessoas. Eles não se importam.
— Mas a mim importa, Karl. Eu nunca deveria ter vindo aqui.
Ela olhou para os joelhos de Karl, de pé ao lado da cama.
Ele não sabia o que responder. Por um lado, havia o profundo afeto
que sentia por Anna; do outro, a ferida profunda que ela infligira a ele.
Sim, a dor persistia. Ele ansiava pelos dias antes que a verdade fosse
descoberta.
— É tarde para pensar nisso agora—, disse ele—. Seu rosto ainda
está manchado de cinzas, Anna. É melhor você se lavar antes de dormir
novamente. Tem água quente.
Anna teve dificuldade em se levantar e Karl a pegou pelo cotovelo
para ajudá-la. O toque de Karl, aquela consideração gentil (embora ele
não a contradisse quando ela lamentou ter vindo) a levou à beira das
lágrimas novamente. Mas ela conseguiu se controlar e saiu para lavar o
rosto, pescoço e mãos no escuro.
Ela voltou e se escondeu atrás da cortina para colocar a camisola. A
cortina agora estava pendurada como um estandarte e era uma
lembrança constante da noite em que Karl a tinha rasgado para levar
com eles para o celeiro.
Ele estava esperando por ela quando ela saiu.
— Fiz uma pasta de bicarbonato de sódio e água—, disse ele—. Isso
vai aliviar sua coceira por esta noite.
Timidamente, ela colocou as mãos no rosto, tocando-o, sentindo-o.
Mesmo sem espelho, ela percebeu que estava inchado.
— Estou uma bagunça.
— Aqui, isso vai te ajudar.
— Obrigado, Karl.
Ela se sentou na beira da cama e aplicou a pasta no rosto.
— Tenha cuidado para não atingir seus olhos—, alertou.
— Vou ter cuidado.
Karl parecia impaciente; Ele se sentia estranho parado ali,
esperando que ela terminasse e se deitasse, para ir para a cama também.
Anna aplicou a pasta no rosto, pescoço e costas das mãos. Mas a
pasta precisava secar para ser eficaz. Sentada lá, esperando, ela começou
a mover seu corpo; Ela tentou alcançar o centro das costas, mas não
conseguiu.
— Karl, fui mordida em todo lugar. Coce minhas costas—, ela disse,
se contorcendo.
Karl se sentou na beira da cama atrás dela. Enquanto ele coçava
suas costas, Anna coçou o tornozelo, os braços e o peito.
— Sim. Eles te atacaram bastante, pequena—, disse ele. Quando ele
percebeu o que havia dito, seus dedos pararam de se mover.
De repente, Anna também ficou quieta e esqueceu as mordidas por
um momento, enquanto permitia que as carícias a invadissem.
Mas a coceira começou novamente; então, ela perguntou:
— Karl, você poderia colocar um pouco de pasta nas minhas
costas?
Houve uma longa pausa enquanto Karl olhava para os ombros dela,
lembrando-se de como suas mãos os acariciavam em momentos de
paixão. Por fim ele engoliu em seco e disse:
— Passe-me o pote.
Anna o entregou a ele, desabotoou a camisola e puxou-a para
baixo; suas costas ficaram expostas enquanto ela segurava a camisola
sobre os seios. Desde seu distanciamento, ela não tinha estado tão nua
ante ele. Ela imaginou os olhos de Karl contemplando sua nudez e se
lembrou daquelas mãos ternas no meio das carícias; a cada dia crescia
seu desejo fervoroso de que Karl a tocasse como antes. Ela esperou, seu
coração martelando no peito e seus nervos tremendo, aquele primeiro
contato com seu corpo depois de tantos dias solitários. Quando chegou,
foi frio e Anna se assustou; ela rapidamente se amaldiçoou e fez o
possível para parecer calma na frente dele.
Havia vergões do tamanho de ervilhas por todo o dorso, brancos
no centro com um círculo vermelho ao redor. Quando tocou o primeiro
com a pasta fria, Anna jogou os ombros para trás.
— Desculpe—, Karl murmurou.
Quando ele viu suas costas nuas, lembranças de saudade foram
reacendidas nele. Ele lutou para manter a calma enquanto a massageava,
cuidando para que seus olhos não se demorassem na sombra de sua
coluna, onde a camisola afundava, nem se desviaram mais para baixo,
onde Karl sabia que uma sombra convidativa o aguardava. Ele preencheu
todos os vergões que pôde ver. Naquele momento, ele sentiu um aperto
no estômago e seu coração começou a bater descontroladamente, mas
ele ergueu a mecha de cabelo que cobria sua nuca e encontrou mais dois
vergões.
Anna se inclinou para trás e levantou o cabelo da nuca para que
Karl pudesse ver os vergões escondidos. Com o coração batendo forte,
ela se perguntou se ele a consideraria sensual em uma posição tão
sedutora. Como se repudiasse esse possível pensamento, Anna apertou
ainda mais a camisola contra os seios, ansiando por aquelas carícias que
haviam sido derramadas sobre ela em tempos passados.
O cabelo que crescia na nuca era fino e ondulado. Karl nunca tinha
visto isso antes porque Anna sempre usava o cabelo solto.
— Você deve deixar secar—, disse ele com voz rouca.
Sentada ali, segurando o cabelo, sentindo o quadril de Karl contra
sua nádega na beira da cama, ela se perguntou se ele estava
experimentando os mesmos sentimentos opressores que ela: sexual,
impulsivo, latejante. Mas Karl estava sentado rígido como uma estátua e,
finalmente, seu cabelo caiu nas costas. Anna colocou a mão em seu
ombro e disse:
— Tem mais alguns aqui. Passe-me o pote.
Sem palavras, Karl entregou a ela, com cuidado para não tocar em
seus dedos. Ele viu como a camisola descia até a cintura, como ela erguia
o queixo para se olhar; ele observou seus cotovelos se moverem quando
esfregou a pasta na pele. Ele não precisava vê-la de frente para se
lembrar. Ele sentiu o sangue correr por seu interior e um enorme peso
apertou seu peito. Ele tentou pensar nela do jeito que pensava quando
escrevia suas cartas, como sua pequena Anna, aquela com o cabelo de
uísque. Ainda sentindo o desejo engolfá-lo, ele se pegou imaginando
quantos outros a teriam visto empurrar o cabelo para a frente, de uma
forma tão sedutora. Mas sem se importar com quantos outros haviam
sido, ele colocou a mão em volta da nuca da jovem e acariciou levemente
seus cabelos.
Anna fechou os olhos e recostou-se; Ela ergueu o queixo e apoiou-
se firmemente na mão estendida atrás do pescoço. Parecia quente,
mesmo através de seu cabelo; transmitia desespero e esperança ao
mesmo tempo; Anna queria se virar para Karl e ser pega em seus braços
indulgentes. Mas o convite tinha que vir dele.
— Anna—, ele sussurrou, sua voz embargada pela emoção—. Há
coisas sobre as quais precisamos conversar.
— Não posso continuar assim por muito tempo—, ela conseguiu
dizer, apesar das lágrimas.
— Eu também não.
— Então porque não falamos?
Ela podia sentir sua própria respiração lutando para subir à
garganta, depois de passar pelo coração, que ameaçava afogá-la com seu
grito.
— Eu não posso esquecer, Anna—, disse ele desesperadamente.
— Você não quer esquecer. Você quer continuar me lembrando
disso e me fazer lembrar também, para que eu nunca esqueça que já
errei. —Seus olhos permaneceram fechados.
— É isso que estou fazendo?
— Eu acho... eu acho que sim.
Seguiu-se um longo minuto silencioso; apenas sons de grilos, fogo
e respiração eram ouvidos.
— Você pode me culpar? — Ele perguntou.
Anna sentiu a dor dessa pergunta crescer em seu próprio coração.
Ela ainda estava encostada nele, o cabelo quente agora, onde Karl o
segurava na nuca.
— Não—, ela murmurou.
— Você achou que se eu percebesse, deixaria passar?
— Não.
— Tentei tirar da cabeça. Mas está aí, Anna. Espera por mim a cada
minuto, quando estou acordado, e não consigo esquecer.
— Você acha que eu posso?
— Não sei. Eu não te conheço bem o suficiente para saber essas
coisas sobre você.
— Bem, eu não posso, Karl. Eu também não consigo esquecer. Mas
daria tudo para que nunca tivesse acontecido.
— Mas isso é impossível.
— Então ele estará sempre conosco?
— Você é minha esposa, Anna! Minha esposa! — Ele disse
intensamente, apertando a nuca dela—. Eu te tomei por esposa,
pensando que você era pura. Você sabe o que significa para um homem
saber que houve outros antes?
Magoada, envergonhada, ela sentiu suas palavras perfurarem seu
coração. Então, durante todo esse tempo, ele pensou que era totalmente
inescrupulosa.
— Não houve outros, Karl, apenas um.
Raiva e dor fervilharam dentro dele.
— Apenas um? Diz para mim que foi apenas um? Seria o mesmo
dizer que o relâmpago só é fogo depois de ter caído sobre mim. Você
sabe que foi isso que eu senti naquele dia? — A mão pressionou ainda
mais sua nuca, causando-lhe dor—. Eu senti um raio me atingir, apenas
não foi gentil o suficiente para me matar. Em vez disso, me deixou
queimado e com bolhas—. Karl tirou a mão do cabelo dela, como se
sentisse aquela sensação agora.
— Karl, eu não queria que você descobrisse—, disse ela sem jeito—.
Eu pensei...
— Você não acha que eu já sei? Você não tem que dizer isso. Sei
que você pensou que eu era um idiota quando não percebi naquela noite
no celeiro. Karl idiota! Verde como grama na primavera. Achei que
estávamos aprendendo juntos naquela noite.
A angústia venceu Anna, intensificada por sua necessidade de que
ele acreditasse nela.
— Estávamos aprendendo.
— Não minta mais para mim. Eu te perdoei todas as outras
mentiras que descobri. Mas esta é difícil para mim perdoar. Não sei se
algum dia serei capaz.
— Karl, você não entende...
— Não, eu não entendo, Anna—. Sua voz tremia quando ele a
elevou—. Sou daqueles que não acreditam em vender o que só se ganha
com amor. Eu me perguntei muitas vezes: “Por que Anna fez isso? Como
ela pode?" Você sabia que eu até pensei que se você tivesse feito isso
com um homem que você ama, seria errado se não te perdoasse? Mas
fazendo isso por dinheiro, Anna...— Sua voz falhou. Quando ele a
recuperou, ela parecia pesada e abatida—. Ele pagou você, Anna, não foi?
Ela apenas balançou a cabeça e baixou o queixo contra o peito.
— Um homem que tinha idade para ser seu pai...
Suas palavras tinham o tom dolorido de lamento.
— Não faça isso consigo mesmo, Karl—, ela finalmente sussurrou.
— Não é Karl quem faz isso a si mesmo; foi você quem fez isso
comigo—. Sua voz moribunda a seguiu, matando-a, fazendo-a sangrar de
pesar. — Como pensei em você, na minha pequena Anna, aquela com o
cabelo de uísque! Todos esses meses esperando por você, pensando em
como seria ter você aqui, construir a cabana de toras e ter você ao meu
lado para que eu nunca mais fique sozinho. Você sabe como me sinto
solitário agora? Era muito melhor... aquele tipo de solidão que eu tinha
antes de você chegar. Esta agora... há dias em que não consigo tolerar
isso.
O terror tomou conta dela, mas ela sabia que tinha que fazer essa
pergunta.
— Quer que eu vá, Karl?
Karl suspirou.
— Não sei mais o que quero. Fiz a promessa de amar e honrar você
e selei essa promessa com um ato de amor. Não acho que essa promessa
possa ser anulada e enviada de volta. No entanto, não posso honrá-la.
Estou dividido, Anna.
Como da primeira vez, ao ouvir seu nome falado em seus lábios
com aquele amado sotaque sueco, ela sentiu que o amava mais do que
nunca.
— Assim que te vi, no primeiro dia, soube que assim que você se
sentiria se descobrisse a verdade.
— Você não percebeu pelas minhas cartas que...?
— Sobre como você é tolerante, Karl?
Ambos entenderam como isso soava falso agora.
— Que eu poderia aceitar as coisas, Anna. Você entende? Se você
tivesse me contado antes, eu teria aceitado.
— Não, Karl. Você não teria. Mesmo você não é tão magnânimo.
Você acha que se eu tivesse escrito a você que era filha de uma
prostituta e tinha um irmão por quem era responsável, você nos teria
trazido aqui voluntariamente?
Posto dessa forma, Karl também duvidou de qual teria sido sua
reação.
— Karl, acho que é hora de te contar tudo sobre Boston.
— Eu não quero ouvir isso. Já ouvi o suficiente sobre Boston para
uma vida inteira. Eu odeio essa palavra.
— Se você odeia, imagine como me sinto quando falo sobre isso.
— Então não faça isso!
— Devo fazê-lo. Bem, se eu não fizer isso, você nunca vai entender
sobre minha mãe.
— Não foi sua mãe que me decepcionou, Anna. Foi você.
— Mas ela faz parte disso, Karl. Você tem que saber para me
entender.
Quando Karl se sentou em silêncio, Anna interpretou isso como
uma aceitação. Engolindo a respiração e tremendo, ela começou:
— Ela nunca teve tempo para nós. Éramos apenas o produto de
seus erros de cálculo, dois de seus erros. E em sua profissão, fomos os
piores erros que ela poderia ter cometido. Ela nunca nos deixou
esquecer isso. "Onde estão esses dois filhos meus, agora?", Exclamava
ela, até que todos começaram a nos chamar de "filhos da Bárbara".
“Nunca sabíamos com certeza, mas não era preciso muita
imaginação para pensar que talvez James e eu sejamos meio-irmãos.
Existe a possibilidade de sermos filhos de pais diferentes. Mas de onde
viemos, isso não importava para nós. Aprendemos cedo a depender um
do outro. Ninguém mais estava nos ajudando de qualquer tipo, então só
conseguimos isso de nós mesmos.
“Você estava certo sobre algo, Karl. Ela nunca quis que a
chamássemos de "mãe" por medo de assustar seus clientes. Ela precisava
parecer jovem e agir como uma jovem para manter os homens
interessados. Às vezes esquecíamos e a chamávamos de "mãe"; ela ficava
furiosa. A última vez que isso aconteceu, eu tinha cerca de onze anos.
Uma das outras mulheres havia me dado uma pena usada para o meu
cabelo e corri até minha mãe para contar a ela.
“Essa foi a primeira vez que vi... Saul. Ele estava com minha mãe
quando corri para encontrá-la, chamando por ela. Eu estava muito
animada e esqueci de dizer "Bárbara" para ela. Quando ela me ouviu
chamá-la de "ma", ela me repreendeu bem ali na frente daquele homem.
Curiosamente, com aquele episódio ficou provado que Bárbara não
perderia seus clientes tão rápido como ela pensava, apenas se
inteiravam de que ela tinha dois meninos.
“Saul sempre esteve por perto daquele dia em diante, mais do que
eu gostaria. Ele assistiu e esperou enquanto eu crescia, eu só nunca
soube que ele esperava que eu tivesse cerca de quinze anos. A partir daí,
tentei não atrapalhar. Você não cresce em um lugar como aquele sem
conhecer a expressão faminta no rosto de um homem, desde muito
jovem.
“Foi nessa época que Barbara adquiriu a doença que todas as
mulheres de sua profissão temem. Ela decaiu muito rapidamente e
perdeu a beleza, a força e os clientes. Depois que ela morreu, seus
amigos - se você pode chamá-los assim - deixariam James e eu
passarmos as noites. Mas quando os quartos estavam ocupados, eles nos
mandavam dar um passeio. É por isso que eu conhecia o interior da
Igreja de St. Mark. Ficamos lá quando não havia outro lugar para ir. Pelo
menos ninguém nos expulsava de lá.
“Procuramos trabalho, Karl, realmente procuramos. Fazia os
vestidos para as mulheres locais - elas sempre tiveram que ter a roupa
certa - e foi por isso que aprendi a costurar. Elas me pagavam muito
pouco pelo trabalho, não dava para nós. Por isso, quando comecei a
escrever para você, disse que era costureira. Foi a única coisa que me
ocorreu.
“E você adivinhou sobre os vestidos também. Eram os que aquelas
mulheres descartavam. Eles eram melhores do que nada, então eu os
peguei. Imagino que você entenda agora por que prefiro usar as calças
de James.
“Bem, tivemos que lutar com unhas e dentes, James e eu. Então ele
começou a roubar carteiras e comida do mercado, e as mulheres da casa
começaram a me encorajar a me juntar a elas.
“Foi nessa época que James encontrou seu anúncio no jornal.
Pareceu ser um intervalo de sorte em nossas vidas. E quando você
respondeu sua primeira carta, não podíamos acreditar que a sorte estava
do nosso lado. Sabíamos muito bem que eu estava longe de ser sua
primeira candidata como esposa. Mas tudo em que podíamos pensar era
mentir sobre minhas condições até que você percebesse e fosse tarde
demais para me rejeitar.”
“Claro, eu estava com medo de dizer a você que tinha um irmão. Eu
estava em uma posição bastante desfavorável para sobrecarregar você
com isso também. Tive medo de que você dissesse as coisas que
realmente disse naquele primeiro dia, quando percebeu que James
estava comigo: ele é uma boca extra para alimentar, um corpo extra
para vestir, mas acima de tudo, ele é uma invasão de nossa privacidade.
Os homens que vi na minha vida queriam privacidade. James e eu
sabíamos disso desde que éramos crianças. Quando os homens
entravam, nós saíamos! Mas eu simplesmente sabia que não poderia
desistir.
“Então James e eu decidimos que ele viesse aqui sem você saber a
verdade. Meu problema é que você enviou o dinheiro para apenas uma
passagem e não tive como pagar pela dele. James tem treze anos e está
crescendo como uma erva daninha; as roupas não cabem de um dia para
o outro. Eu me contive com o que elas me deram, mas não havia
ninguém que pudesse passar roupas para James. Ele precisava de botas,
calças, camisas e dinheiro para a passagem. Era hora de ir embora e não
tinha recebido o dinheiro.
Anna respirou fundo, tremendo, e continuou:
— Ele... era um homem muito rico, Saul. Continuou voltando para o
lugar depois que Barbara morreu e eu sabia que um dos motivos era eu.
Todo esse tempo, Anna estava sentada com a camisola abraçada ao
peito e caída para trás. Agora ela puxou e fechou, como se quisesse se
proteger.
Atrás dela, Karl colocou a mão em seu ombro e inclinou os dedos
para frente, na pequena depressão perto de seu pescoço.
— Não continue, Anna.
Mas Anna tinha que terminar. Se ela queria que Karl a perdoasse,
ele precisava saber exatamente o que estava perdoando.
— Mandei chamá-lo e ele apareceu em sua extravagante
carruagem de couro vermelho, acreditando que seu dinheiro o tornava
palatável. Mas eu o odiei desde que eu conseguia me lembrar e aquele
dia não foi diferente, foi apenas pior.
Por trás, Karl percebeu que Anna começou a chorar baixinho, de
novo.
— Não siga! — Ele murmurou furiosamente.
Ele cruzou um braço na frente de Anna e apertou o braço dela. Seu
próprio antebraço estava apoiado na garganta de Anna, e ele pôde sentir
quando ela engoliu. Ele a puxou para si, contra seu coração
convulsionado de dor, segurando-a com aquele aperto de aço, querendo
que a garota parasse de dizer coisas que ele não queria ouvir.
— Ele pagou para usar um dos quartos do que foi nossa única casa
na vida, a minha e a de James. Quando ele me trouxe, eu sabia que todos
os outros sabiam e tive vontade de gritar que não era nada como aquelas
mulheres. Mas não pude fazer mais nada. Achei que algum milagre de
última hora me salvaria, mas não houve milagre. Ele era grande e pesado
e suas mãos estavam suadas e ele ficava dizendo, o tempo todo, quanto
tempo fazia desde que ele possuía uma virgem e quanto ele iria me
pagar e... e...
— Anna, pare, por favor, pare! Por que você continua?
— Porque você tem que saber. Embora eu tenha consentido, foi
contra a minha vontade. Você deve saber que eu estava enojada! Saiba
que foi horrível e triste e doloroso e degradante e quando tudo acabou,
eu queria morrer. Em vez disso, peguei seu dinheiro e vim até você,
trazendo meu irmão comigo.
“Quando cheguei aqui, mesmo que você parecesse uma pessoa
amável, Karl, revi aquele episódio, pensando em como doeria, como
seria horrível passar por aquilo de novo. Apenas nada era igual, Karl.
Com você, foi saudável e bom. Com você, foi... foi... como se eu me
sentisse mais e não menos. Oh Karl, aprendi com você. Você tem que
acreditar em mim. Você me ensinou, você tirou meu medo de mim e fez
tudo parecer bonito. E quando tudo acabou, fiquei aliviada por você não
ter adivinhado a verdade sobre mim.
Eles deixaram o silêncio cair sobre eles. Pensamentos pesados e
indesejados os encheram enquanto se sentavam na beira da cama, o braço
de Karl ainda cruzado sobre o peito de Anna.
Anna sentia-se exausta, vencida por tal cansaço que o trabalho na
cabana e no jardim parecia leve em comparação. Ao inclinar a cabeça
para a frente, seus lábios pousaram no antebraço grosso de Karl e ela
pôde sentir o cabelo sedoso e a firmeza do músculo. Há quanto tempo
seus lábios não o tocavam!
A voz de Karl finalmente chegou, lenta, cansada e abatida.
— Anna, eu entendo melhor agora. Mas devo pedir-lhe que
compreenda também o que acontece comigo; o que eles me ensinaram a
acreditar, em como mamãe e papai eram. Foi uma educação totalmente
diferente da sua. As regras pelas quais fui guiado não permitiam a
existência de um modo de vida como o de sua mãe. Eu tinha a idade que
você tem agora quando descobri essas coisas. E agora, aprendi tanto e
em tão pouco tempo que tenho que passar tudo por um filtro e me
acostumar. Admitir verdades como a sua me coloca em uma luta comigo
mesmo e devo encontrar minhas respostas. Preciso de mais tempo,
Anna. Peço que me dê mais tempo, Anna.
Ele sentia vontade de beijar o cabelo dela, mas não conseguia. As
imagens que Anna acabara de apresentar a ele eram muito recentes e
dolorosas. Elas haviam aberto feridas que precisavam ser curadas.
— James me disse o tempo todo que você era um bom homem, que
eu deveria lhe contar a verdade de uma vez, toda a verdade eu quero
dizer. Mas James ignora o que eu acabei de dizer.
— Ele é um bom menino. Nunca me arrependi de você ter trazido.
— Farei qualquer coisa para que você sinta o mesmo por mim. Não
sou muito boa no que se faz aqui, mas farei o possível para aprender.
Anna não parava de pensar em Kerstin, com suas tranças loiras,
suas roupas impecáveis, suas qualidades e sua língua sueca. E em... pelo
que parecia... sua virgindade. Todas essas coisas que Karl teria
encontrado em uma esposa, se ao menos tivesse esperado mais um mês
antes de trazer Anna.
Karl respirou fundo.
— Eu sei que você vai, Anna. Você já conquistou muito. Você
aprendeu muito e se esforça tanto quanto seu irmão. Eu posso ver com
meus próprios olhos.
— Mas não chega, não é?
Em resposta, Karl apertou seu braço e retirou o dele.
— Devíamos tentar dormir um pouco, Anna. Foi uma jornada muito
longa.
— Muito bem, Karl—, disse ela obedientemente.
— Venha, vá para a cama e tente dormir.
Karl segurou o cobertor e Anna escorregou de seu lado. Ele
rapidamente tirou as roupas e se deitou de costas, com um suspiro de
cansaço. Naqueles dias, Karl usava sua roupa interior como uma
armadura.
Não foi apenas a picada do mosquito que manteve Anna acordada.
Foi também a dor do arrependimento.
CAPÍTULO 16
Embora Anna e Karl não tenham se reconciliado, eles alcançaram
pelo menos um status quo que mantiveram para o dia seguinte. A
verdade absoluta sobre Boston, revelada por Anna, significava uma
trégua, após a qual ela esperava uma anistia total. Mas Karl esperava sua
oportunidade, refletindo sobre tudo o que Anna havia dito e tentando
aceitar.
No dia seguinte, ele levou Anna e James para pescar. Era a
atividade perfeita de que Karl precisava para ter tempo para pensar. Eles
passaram um dia que Karl estimou estar longe de ser desagradável,
exceto pelas picadas de mosquito de Anna. Ele atribuiu seu mau humor
ao desconforto da coceira intensa, enquanto seu corpo reagia às toxinas
às quais não estava acostumado, sendo Anna do Leste. Isso não melhorou
em nada o humor da garota, quando Karl disse que, com o passar do
tempo, sua imunidade a mordidas aumentaria. Por volta do meio-dia,
seu corpo coçava como se tivesse sarna. Ela experimentou a pasta de
bicarbonato de sódio, mas não ajudou muito. No final da tarde, feridas
em carne viva começaram a aparecer em sua pele por causa de
arranhões; Karl teve pena de Anna e anunciou que iria a Dois Chifres
para perguntar à esposa o que poderia aliviar as mordidas de Anna.
Ele voltou com um molho de milho que descarregou, descascou e
moeu em um moedor de especiarias. Ele raspou uma palha chata,
espalhou os grãos de milho moídos sobre ela e colocou no fogo até que
os grãos começassem a pular de calor. Em seguida, pegou uma frigideira
fria e amassou o milho quente até que soltasse um azeite leve e de cheiro
agradável. Quando o azeite esfriou, ele instruiu Anna a aplicá-lo em sua
pele.
Mas ele não se ofereceu para tratar os ferimentos nas costas. Anna
não gostava de ter que pedir a ele. Ele sabia muito bem que ela não
poderia sozinha! De pé com a camisa levantada, segurando-a atrás do
pescoço, ela ouviu Karl dizer, perto dela:
— A esposa de Dois Chifres me pediu para dizer à Mulher Tonka
que tomasse banho em uma solução de água e tabaco da Índia na
próxima vez que ela fosse colher morangos, para que os mosquitos não a
piquem.
— Imagino que você tenha dito a ela que não será necessário, já
que a Mulher Tonka não ficará tão ansiosa para colher morangos a
partir de agora.
Quando foram para a cama, Anna lamentou seu comentário ácido.
Em compensação, agradeceu a Karl por pedir ajuda aos índios e preparar
o azeite. Ela pensou que ele, talvez, a beijaria e diria que não havia sido
nenhum incômodo. Mas ele apenas comentou:
— Os índios têm resposta para tudo. Boa noite, Anna.
Ela se perguntou com raiva se os índios teriam uma resposta para
um marido teimoso que nunca cedia. Anna havia se desculpado,
explicado, suplicado; no entanto, Karl se recusava a perdoá-la. Essa
consideração gentil a estava matando!
Maldito seja ele e seu azeite de milho! Ela não queria seu azeite, o
que ela queria era seu suor! E o queria em sua própria pele!

NO DIA SEGUINTE, QUANDO OS JOHANSONS vieram, como


prometido, para ajudar na cabana dos Lindstrom, Anna estava prestes a
explodir de raiva. Depois da despedida fria de Karl na noite anterior,
havia ocasiões em que Anna odiava o marido e outras em que se odiava.
Sua preocupação era parecer uma idiota incompetente quando tivesse
que preparar comida para aquele batalhão de pessoas. Ela também
estava preocupada em parecer uma moleca ao lado de Kerstin, sempre
tão perfeita. Também pensava que ela ficaria muito irlandesa perto de
Kerstin, tão loira e tão sueca. Outra de suas preocupações era soar tão
inglesa no meio de todos os Johansons.
Mas Katrene e Kerstin deram a ela apenas uma olhada no dia
seguinte, e a primeira de suas preocupações se dissipou. Dava tanta pena
vê-la com a pele coberta de vergões e crostas, com as mãos danificadas
pela doença da pradaria, que mãe e filha se ofereceram para trabalhar
na cozinha e preparar a comida. Observando as duas suecas trabalhando
na cozinha como se tivessem nascido para isso, Anna se sentiu, mais
uma vez, desajeitada, estúpida e mais irritada do que nunca. As deixou
no comando e foi se ocupar das tarefas menores.
Katrene sugeriu que Anna aplicasse uma mistura de cera de abelha
quente e azeite doce em suas mãos; a garota se sentia culpada por sua
irritabilidade com aquela mulher bem-intencionada. Quando ela disse
que não sabia se Karl tinha azeite doce, Kerstin imediatamente ofereceu
a ela.
— Se você não tem, venha na minha casa que eu te dou.
As defesas de Anna desmoronaram com esta oferta generosa.
Kerstin era uma mulher doce e afetuosa, totalmente indigna das duras
críticas mentais que Anna vinha fazendo contra ela.
— Obrigado, Kerstin. Você sempre está me tirando de problemas.
— É para isso que servem os vizinhos.
Depois disso, Anna e as mulheres tiveram um dia agradável,
conversando sobre inúmeros assuntos.
Enquanto isso, os homens estavam do lado de fora, completando o
trabalho de telhas e piso. No final do dia, o violino foi trazido novamente
e a dança serviu de batismo para outra nova casa. Até a dança irritou
Anna, no entanto. Ela se sentiu inferior novamente na frente das outras
mulheres. Para piorar, quando Karl dançou com ela, ele manteve
distância, como se Anna fosse queimá-lo ou algo assim. Tudo o que ela
podia fazer era ferver de indignação, mas em silêncio.
"O que acha? Que vai se contagiar com meus pecados, se ele chegar
muito perto?" pensou.
Eles estavam tentando recuperar o fôlego entre dança e dança
quando Katrene perguntou:
— Quando você vai se mudar, Karl?
— Não antes de instalar as janelas e encaixar a porta.
— Janelas! — Katrene exclamou.
— Eles vão ter janelas? — Perguntou Nedda. — Janelas de vidro?
— É claro que terei janelas, assim que for a Long Prairie para
comprar as molduras e os vidros—, disse Karl.
Isso foi uma surpresa completa para Anna. Ela presumiu que eles
teriam o mesmo material opaco da casa de adobe. Karl nunca mencionou
que pretendia colocar janelas de vidro.
— Oh, que sorte você tem, Anna! — Disse Kerstin, obviamente
impressionada.
As janelas de vidro eram o maior luxo que havia na fronteira. Não
era segredo que os índios não podiam nem acreditar na existência de um
material pelo qual uma pessoa pudesse ver. Os índios passavam horas
olhando maravilhados para qualquer janela de vidro que encontravam.
— Acho que você tem sorte—, acrescentou Katrene como um eco às
palavras da filha—. Eu pensaria que estava morando em um castelo se
Olaf me comprasse janelas de vidro.
— Você não me disse que queria janelas de vidro quando passamos
por Long Prairie, mãe—, disse Olaf.
— Achei que custariam mais dinheiro do que poderíamos pagar.
— Mas eu perguntei o que você queria quando estávamos lá. Você
deveria ter dito: "Janelas de vidro, Olaf." — Ele piscou para Nedda, que
piscou de volta. — Se sua mãe joga as cartas direito, talvez ela tenha suas
janelas de vidro.
— Olaf Johanson, você está tirando sarro de mim! Você decidiu que
teremos janelas de vidro?
— Não, acho que vou com o Karl só para tomar um pouco de ar.
— Olaf Johanson, não sei se já conheci um sueco tão teimoso. Você
sabe que sugeri as janelas quando estávamos em Long Prairie—, disse
Katrene, mas riu, como era seu costume.
— Mas eu não sabia que teríamos vizinhos de quem teríamos que
nos gabar.
Katrene se aproximou do marido com o punho levantado e quando
a luta acabou, eles estavam dançando novamente, acompanhados pelo
violino do filho.
Mais tarde, na cama, Anna disse baixinho:
— Karl?
— Mmm?
Anna imitou o sotaque sueco de Katrene Johanson quando disse:
— Não me disse que teríamos janelas vi-i-i-drio.
— Você não me perguntou—, respondeu ele. Havia um sorriso em
sua voz, mas ainda estava ausente.
As tentativas de Anna de conquistá-lo com humor foram frustradas
e sua impaciência aumentou. Mais uma vez, Katrene e Kerstin se
destacaram na cozinha como Anna nunca sonharia em ser capaz.
A viagem ao povoado não era feita sem um plano pré-concebido.
Ele não ia lá com frequência, pois a viagem era muito longa. O verão
estava chegando ao fim. Mesmo que estivessem ansiosos para trazer
suas janelas de vidro, uma viagem não era feita sem considerar, ao
mesmo tempo, outros negócios importantes em Long Prairie.
Conseqüentemente, havia que esperar a colheita.
O trigo estava maduro e precisava ser colhido para ser levado ao
moinho para um suprimento de farinha de inverno enquanto Karl estava
na cidade. O arroz da Índia e as bagas de cranberry eram produtos
lucrativos e facilmente disponíveis nas terras de Karl. Essa fruta, em
particular, tinha alta demanda no Leste, registrando um dólar por
alqueire, enquanto as batatas registravam apenas quatorze centavos o
alqueire. Estes últimos eram reservados para uso familiar no inverno,
junto com nabos e rutabagas, que podiam ser colhidos posteriormente. A
colheita lucrativa e os grãos comestíveis deveriam ser colhidos com
prioridade.
Karl, James e Anna começaram cortando e varrendo os campos de
trigo; era uma tarefa cansativa, apesar de terem uma plantação pequena.
Karl, que empunhava a foice, cruzava o chão repetidas vezes com
aqueles gigantescos dentes curvos movendo-se à sua frente, enquanto
ele balançava os ombros ao sol, ritmicamente. Os dentes do ancinho
eram de aço sólido e o cabo, feito de forte cinza verde, também era
muito pesado.
Anna mais uma vez admirou a resistência do marido. A enorme
foice parecia uma extensão do homem. Como um plugue com a corrente
conectada, assim que a ferramenta tocava suas mãos, Karl a empunhava
sem reclamar, com um ritmo inquebrável por horas a fio.
O trigo era enrolado em feixes que eram amarrados com tiras de
fibras retiradas do próprio cereal. Mas eles não se amarravam sozinhos,
pensou Anna, vencida pela exaustão. O trabalho exigia muita inclinar-se
e agachar-se, embora não tanto esforço como cortar e raspar.
Se cortar e enfardar quebrava suas costas, descascar os grãos a
deixava sem alma. Anna estava na clareira, chicoteando os grãos no
chão, coberto com um pano muito fino; A garota jurou que a partir de
agora comeria pão apenas dia sim, dia não para economizar farinha,
visto o trabalho que custava para produzi-la. Seus ombros nunca doeram
tanto quanto depois de bater nos grãos com o mangual.
Mas por fim os sacos de aniagem estavam cheios e prontos para
serem carregados; Karl anunciou que o que faltava fazer era colher os
frutos silvestres e partiria para a aldeia.
As bagas estavam na floresta, onde não havia trilhas. Karl havia
inventado uma carroça, que poderia ser puxada por um único cavalo,
pela floresta, carregada com as cestas de frutas. Karl e seus dois
assistentes colheram as frutas com as mãos e receberam muitos
visitantes curiosos durante os dias em que cuidaram dessa tarefa. Os
pântanos pareciam ser o lugar favorito de muitos animais selvagens que
talvez estivessem com raiva porque saqueadores humanos usurpavam
sua comida. Karl estava com a arma em mãos, enquanto colhiam os
frutos, sempre atento para afastar os ursos-negros, que consideravam
seu território.
Um dia, quando o grupo estava ocupado colhendo as frutas, James
perguntou:
— Por que não vamos para a cabana, Karl?
— Porque ainda não acabou.
— Mas acabou! Só faltam a porta e as janelas.
— Não podemos viver em uma casa sem porta, e tenho estado
muito ocupado para fazer isso. E sem janelas, fica muito escuro por
dentro. Teríamos que usar muitas velas.
— As janelas da casa de adobe são tão grossas que pouca luz entra
por elas. Além disso, também usamos velas lá.
— É costume fazer a porta no final—, disse Karl inflexivelmente—,
e não posso fazer a porta se ainda não tiver as janelas.
— Bem, eu me mudaria para a cabana sozinho, mesmo sem porta
ou janelas. Não posso esperar!
Karl olhou para Anna, mas ela ainda estava colhendo frutas e
parecia não ter ouvido nada.
— Quando a porta for fechada pela primeira vez, estará com a casa
pronta. Prometi a Anna um armário de cozinha, que ainda não fiz.
Anna olhou para onde eles estavam.
— Bem, eu gostaria que você se apressasse para que possamos
morar—, continuou James—. Eu gostaria de poder dormir lá esta noite.
— Sem porta, animais selvagens podem entrar para dormir com
você.
— Não no sótão! Eles não poderiam entrar lá!
James ficou repentinamente excitado com a ideia, pensando que
levaria apenas algumas horas antes de usar seu sótão pela primeira vez.
Mas Karl foi inflexível contra a ideia.
— Você vai esperar até que tenhamos uma porta como deveria, e
janelas e móveis. Então, todos nós nos mudaremos para a casa de
troncos juntos.
O rosto de Karl estava vermelho como frutas vermelhas. Na
verdade, ele queria que James ficasse na casa de adobe, em seu lugar no
chão, por outros motivos também. Quer admitisse ou não para si mesmo,
ele falou com o garoto de forma mais dura do que gostaria. O menino
desviou o olhar, enquanto Anna também se concentrava em sua tarefa.
— Não vai demorar muito agora—, disse Karl em um tom mais
gentil—. Assim que terminarmos com as frutas, Olaf e eu partiremos
para a aldeia.
— Posso ir com você? — Perguntou James.
Anna queria perguntar a mesma coisa.
— Não, você vai ficar com sua irmã. Olaf e eu estaremos com a
carroça cheia quando comprarmos as janelas e trouxermos nossa
farinha para o inverno. Existem coisas mais úteis que você e Anna
podem fazer aqui, em vez de ir para a cidade.
Anna ficou tão desapontada que teve que virar as costas para
esconder o brilho em seus olhos. Karl a tratara com gentileza desde a
conversa, mas agora ela sentia que o marido queria fugir dela por alguns
dias. Ela se virou para olhar furtivamente para Karl, mas congelou. Do
outro lado da clareira, na orla dos salgueiros, estava um enorme urso
preto. Ele estava de pé nas patas traseiras, cheirando o ar como se
tivesse sabor.
— Karl ...— Anna murmurou.
Olhando para cima, Karl encontrou os olhos assustados de Anna
fixos em algo atrás dele. Instintivamente, ele sabia o que veria. Mas o
rifle estava a alguma distância e havia uma cesta de frutas na frente
dele. James, sem saber o que estava acontecendo, continuou colhendo as
frutas.
— Quanto tempo leva para moer a farinha?
— Passe-me o rifle, garoto—, disse Karl com uma voz muito suave,
mas firme.
James ergueu os olhos, então os direcionou para onde eles estavam
olhando e empalideceu.
— Passe-me o rifle, garoto, agora! — Karl exclamou em um tom
tenso e contido.
Mas James estava apavorado com o que estava diante dele. O urso
os viu, pôs-se de quatro e foi embora para o mato com um rosnado que
fez Anna estremecer.
— Rapaz, quando eu mandar você me passar o rifle, não quer dizer
na próxima terça! — Karl disse em um tom que nem Anna nem James
tinham ouvido antes.
— Eu... sinto muito, Karl.
— Chegará o momento em que dizer "sinto muito" será inútil!
Karl continuou falando em um tom afiado que de alguma forma
fazia seu sotaque sueco se destacar mais do que o normal.
James parou na frente do homenzarrão, paralisado, com um monte
de frutinhas esquecidas na mão.
— Você sabe o quão rápido um urso pode correr?
A pergunta foi disparada contra James, sem cerimônia.
— Nã... não, senhor.
— A primeira lição que te ensinei foi que quando eu mandar você
me entregar o rifle, você não deve amarrar primeiro o cadarço. Sua vida
e a de sua irmã dependem de quão rápido você se move! Se aquele urso
tivesse decidido que não gostava que nos servíssemos de suas frutas, ele
não teria parado para amarrar os cadarços! Além disso, você ficou
observando todo o nosso estoque de velas e carne se perder!
— Eu... sinto muito, Karl, — James disse hesitantemente.
O sangue que antes parecia ter desaparecido de seu rosto agora
voltou a um vermelho intenso e ardente. O estigma da vergonha
queimava seu estômago.
Mas Karl continuou atacando-o.
— Eu avisei que ursos vêm a este lugar, para que você ficasse
preparado se isso acontecesse!
James olhou para os joelhos de Karl, perplexo com essa torrente de
palavras que surgiram de repente do nada. O menino estava duplamente
confuso, pois não esperava tal coisa de Karl, que geralmente era tão
paciente, tão compreensivo. Incapaz de se defender, James saiu
correndo.
— Volta aqui, garoto! — Karl gritou—. Onde você pensa que está
indo? Se encontrar com aquele urso?
James parou ante a ordem de Karl, sem olhar para ele, relutante
em ser punido, na frente de sua irmã, dessa forma injusta. A raiva
injustificada de Karl trouxe lágrimas aos seus olhos.
— Ele disse que sentia muito! — Anna gritou abruptamente.
— Eu disse que os arrependimentos não bastavam!
De repente, uma represa estourou dentro de Anna, e ela começou a
responder, indignada.
— Claro! Nada é suficiente para você, Karl! O que é suficiente? Quer
que eu pegue a arma e vá atrás do urso sozinha? Isso seria o suficiente
para você, Karl?
Anna nunca tinha visto o rosto de Karl tão vermelho.
— Eu não espero que você faça uma coisa dessas. Espero que ele aja
como um homem quando precisa, e não que fique preso nas botas,
incapaz de se mover.
— Bem, James não é um homem—, gritou Anna, desafiando o
marido, com as mãos na cintura—. Ele é um menino de treze anos e
nunca tinha visto um urso na vida. Como você quer que reaja?
— Não me diga como ensinar o menino, Anna! Este é um trabalho
de homem!
— Oh claro que isso é trabalho de homem! Se você pudesse, ainda
estaria lá, gritando com ele, dizendo-lhe coisas sobre seu urso estúpido
até que o fizesse chorar, mas eu não vou deixar! Ele é meu irmão e se eu
não o defender, ninguém o fará. James é incapaz de responder errado, e
você sabe disso!
— Eu disse para ficar fora disso, Anna.
— Ao diabo, se o farei! — Ela retrucou, seus olhos brilhando
desafiadoramente—. Ele rastejou atrás de você durante todo o verão,
sempre fazendo o que você pedia; E agora que é a primeira vez que ele
fez algo errado, você salta sobre ele como se ele fosse um tolo ignorante.
Como você acha que se sente? Como poderia saber o quão rápido um
urso corre? Como poderia estar pensando nas suas preciosas velas de
sebo, quando vê à sua frente um monstro negro, de pé nas patas
traseiras, pela primeira vez na vida?
— Teria sido a última vez em sua vida, se o urso tivesse pensado em
correr em nossa direção ao invés de entrar na floresta. Você parece não
perceber isso, Anna!
— E você parece não perceber que o está tratando como se ele
tivesse cometido o pior crime do século, quando ele só reagiu como
qualquer garoto de treze anos teria feito!
— Custou-nos comida suficiente para alimentar a nós e aos
Johansons durante todo o inverno!
— Ah, os Johansons! Naturalmente, você não podia deixar de trazê-
los para a nossa conversa!
— É verdade! Essa comida poderia alimentá-los também.
— Aposto que você adoraria arrastar até aqui o corpo de um urso,
para oferecê-lo a Kerstin com umas fitas vermelhas adornando sua
cabeça!
— O que isso significa, Anna? O que você está dizendo?
Seus punhos estavam cerrados e seus olhos eram ameaçadores.
— Significa exatamente o que você pensa que significa! Que você se
preocupa mais em lisonjear Kerstin do que em ficar aqui conosco. Claro,
quem poderia culpar você, quando Kerstin faz uma comida tão deliciosa
e tem aquelas lindas tranças suecas loiras?
Karl ergueu o nariz para o céu e bufou.
— Pelo menos, quando estou com os Johansons, não tenho uma
mulher imprudente ao meu lado que me censura porque eu corrijo um
menino quando ele merece!
— Ele não merece e você sabe disso, Karl Lindstrom!
— Como você pode saber? Como pode saber? Ele veio para cá tão
verde quanto as folhas de blueberry, e eu o ensinei durante todo o verão.
Até agora ele não se saiu tão mal, me ouvindo!
— Até agora! Mas não, neste momento. Ele não tem que ouvir você
agora! Por que deveria quando você é um tolo teimoso, um cabeça dura e
um louco?
Karl ergueu as mãos no ar. Os dois esqueceram que James estava
ali, ouvindo-os, observando enquanto eles se encaravam como galos com
pescoços arqueados.
— Sim. Você sabe o que diz quando me chama de idiota. Você é
especialista em encontrar tolos, não é, Anna? Um tolo ansioso que fica
corado!
A boca de Anna estava apertada e seus olhos se estreitaram quando
ela gritou:
— Você pode ir direto para o inferno, Karl Lindstrom!
— É assim que te ensinam a falar de onde você vem? Com que dama
me casei! Tem a língua de um marinheiro! Bem, deixe-me dizer uma
coisa, Anna. Eu já estou no inferno. Estou no inferno há semanas! E você
acha que Boston foi um inferno para você...
— Deixe Boston fora disso! Não tem nada a ver com isso!
— Tem muito a ver com isso!
— Você não pode esquecer, certo? Posso trabalhar até me cansar!
Eu posso cozinhar em... em sua estúpida casa enfumaçada, descascando
seu maldito trigo até que meus ombros não possam se endireitar,
esfregando roupas com seu sabão de soda cáustica podre e colhendo
morangos até eu desejar morrer e você não dá a mínima! Ainda sou
Anna, a caída, não sou? Não importa o que eu faça, você quer me punir
porque não quer admitir para si mesmo que talvez... talvez... eu tivesse
uma justificativa. Talvez você esteja errado em usar esse episódio contra
mim o tempo todo. Mas você não pode voltar atrás e admitir que o mais
santo de todos, o justo e bom Karl Lindstrom se rebaixou! Bem, deixe-me
dizer-lhe uma coisa! Você é um sueco imenso e teimoso e não sei por que
estou me sacrificando para tentar agradá-lo!
— Existe alguma esposa que pensa que pode agradar o marido
usando calças? Sim, suas calças...
— Deixe minhas calças fora da questão! — Ela disse furiosamente—.
Você sabe por que eu uso calças. Vou usá-las até que grudem nos meus
ossos antes de colocar esses vestidos! Acho que me lembro que tempos
atrás você gostou do jeito que minhas calças se ajustavam!
— Isso foi há muito tempo, Anna—, respondeu ele, mais calmo.
— Segu-u-u-u-ro—, respondeu ela, usando um sotaque sueco
exagerado, agora, como uma arma ferida—. Fo - o - o - i antes da bel - a -
a - Kerstin se mud - ar - ar – ar - para perto com se - u - u bolo de frutas e
seu pe- i – i – ito.
Anna colocou a mão no quadril e balançou provocativamente
enquanto arrastava as vogais, provocando Karl até que sua raiva se
transformou em fúria.
— Anna, você está indo longe demais! — gritou.
— Eu? — Anna gritou—. Sou eu que estou indo longe demais? — Ela
deliberadamente chutou um balde de frutinhas e espalhou o conteúdo
aos pés de Karl. — Não longe o suficiente para escapar de você! Mas vou
tentar fazer isso, Karl! Já verás!
Parado no meio da pilha de frutas, Karl gritou as costas de Anna:
— Anna, volte aqui!
Mas Anna arrastou James e o forçou a andar mais rápido.
— Anna, aquele urso está lá na floresta! Volte aqui!
— Nenhum urso iria querer me tocar com suas garras mais do que
você gostaria! — Anna gritou por cima do ombro.
— Anna... volte... Droga! Volte aqui! — Gritou Karl, que nunca tinha
insultado uma mulher em sua vida.
Mas Anna saiu correndo furiosa.
Karl arrancou o gorro da cabeça e jogou-o no chão, mas sabia que
nada traria Anna de volta. Ele se abaixou para pegar as frutas espalhadas
e colocá-las na cesta, observando as figuras diminuírem e
desaparecerem no pântano. Se ele deixasse as frutas lá, o urso
certamente voltaria para liquidar a colheita mais valiosa de Karl e todos
os lucros que vinham com ela. Também não podia abandonar o cavalo,
com o cavalo amarrado atrás, carregado com a colheita do dia. A melhor
coisa que ele poderia fazer era jogar o que pudesse rapidamente na
cesta; carregar a carroça e ir atrás daquela esposa rebelde que se
afastava com o bumbum vestido com aquelas calças estranhas,
desafiando-o a cada passo.
Raiva e preocupação deixaram seu rosto vermelho. A mulher não
tinha ideia do perigo que ela e seu irmão corriam ao atravessar a floresta
com aquele urso à espreita! Ele finalmente conseguiu segurar a carga e
conduziu Belle através do pântano com tal velocidade que o cavalo
resistiu em suas pernas precárias, enquanto sofria os gritos injustos de
seu dono pela primeira vez em sua vida.
Quando ele chegou à clareira, Anna e James já estavam lá há um
tempo. Aliviado por encontrá-los seguros quando ele chegou, algo
explodiu dentro dele quando ele se aproximou da casa como o senhor da
guerra.
— Mulher, não faça mais isso! — Ele gritou, apontando o dedo para
ela.
— Eu não sou surda! — Anna retrucou.
— Você não é surda, mas parece que está muda! Você sabe o que
aquele urso poderia ter feito com você? Você colocou em perigo não
apenas sua vida, mas também a da criança. Foi algo tolo e estúpido o que
você fez, Anna!
— Bem, o que você esperava de uma mulher tola e estúpida?
— Aquele urso teria feito você em pedaços! — explodiu.
Com as mãos nos quadris, os olhos desafiadores, o desprezo nos
lábios, Anna lançou-lhe palavras que não pretendia dizer.
— E você teria se importado, Karl?
O rosto de Karl parecia ter sido atingido por um pano sujo depois
de ter sido usado para limpar a louça.
Anna soube imediatamente que havia se superado, mas havia
muita raiva, orgulho e tristeza acumulados dentro dela para voltar atrás
nas palavras. Os olhos azuis de Karl se arregalaram de surpresa; então
ele baixou as pálpebras para esconder sua dor. As bochechas douradas
subiram de tom por trás de sua expressão de descrença.
Eles se encararam por cima da rústica mesa de madeira, e uma vida
inteira se passou nesses poucos momentos tensos. Na verdade, toda a
vida de um casamento. Anna observou os músculos relaxarem um a um,
libertando-se do controle de Karl sobre eles. Quando Karl se virou para
pegar uma bolsa e enchê-la de comida, já havia muito tempo que Anna
pedia desculpas honrosas. Ela o observou ir até o baú, levantar a tampa,
tirar algumas mudas de roupas limpas e colocá-las na bolsa. Ele circulou
para não roçar em Anna e foi até a lareira, onde guardava seus projéteis.
Ele pegou um punhado de balas de chumbo e as jogou em uma bolsa de
couro. Imediatamente ele cruzou a sala, evitando Anna, pegou a arma,
que havia deixado ao lado da porta ao entrar, e saiu de casa
resolutamente.
Anna ficou olhando para ele enquanto Karl cruzava a clareira,
furioso. Imediatamente ele parou, no meio do caminho, fez uma curva
fechada e voltou para a casa; ele bateu com a arma na lareira, esvaziou o
saco de munição ali e partiu novamente.
Anna continuou a observá-lo das sombras profundas da casa. Karl
desapareceu no estábulo antes de sair com Belle e Bill; amarrou a
parelha à carroça, carregada com os sacos de trigo, os nabos e todas as
cestas de frutas vermelhas, e saiu andando sem sequer olhar para trás.
Já era quase noite. Anna não se questionou, na hora, onde Karl
passaria a noite antes de partir para a cidade. Quando ela percebeu isso,
ela caiu no colchão de cascas e chorou.
O pobre James ficou com as mãos penduradas ao lado do corpo até
não aguentar mais ver e ouvir sua irmã naquele estado. Desamparado,
ele saiu para subir a escada de acesso ao sótão. Lá, finalmente, ele
também poderia chorar.
CAPÍTULO 17
Foi a primeira vez que Karl ficou feliz em deixar sua casa desde que
ela foi construída. Ele observou as costas largas de Belle e Bill,
repetidamente, e teve que se esforçar para afrouxar as rédeas. Ele tentou
apagar as palavras ásperas de Anna de sua mente e então se forçou a
lembrar exatamente como ela as havia falado. Ele tentou esquecer suas
próprias respostas agressivas. Então, de uma forma mais humana, ele
pensou em outras respostas que poderia ter dado - mais nítidas, mais
dolorosas, mais justas - que teriam servido melhor para colocá-la em seu
lugar.
Ele se perguntou onde era o lugar de Anna. Ele disse a si mesmo
que havia cometido um erro ao trazê-la aqui. Pensando no menino, ele
reconheceu que estava errado. As palavras cruéis que ele disse a James
causaram a Karl uma dor que ele não se lembrava de sentir há muito,
muito tempo. Como ele tinha sido injusto com o menino, repreendendo-
o por algo que em realidade existia entre ele e Anna! Até agora Anna
estava certa. Ele havia tratado seu irmão de uma maneira imperdoável.
Karl admitiu que amava o menino como se ele fosse um filho.
Durante todo o verão, foi uma coisa muito boa ter James trabalhando ao
seu lado; o menino o seguia com aqueles olhos tão arregalados que
falavam de como ele estava ansioso por aprender, por agradar. E como
tinha funcionado bem. Não havia nada pelo que Karl pudesse culpá-lo.
Mas, ao pensar em Anna, Karl descobriu que estava mais disposto a
colocar o fardo da culpa nela do que em si mesmo. As palavras dolorosas
que a garota havia falado queimavam suas entranhas. Ela o chamou de
sueco enorme e estúpido e o provocou imitando sua língua.
Sou sueco, pensou ele. “É errado eu falar minha língua nativa com
os Johansons? Isso traz apenas algo do lugar que amei, que ainda amo,
do lugar onde nasci? É errado eu sentar à sua mesa e comer as refeições
que me trazem a imagem da minha mãe cozinhando, colocando a
comida na mesa, dando um leve tapinha na mão de quem se aproxima de
uma tigela antes de papai sentar-se?"
Ele ansiava pelo consolo que seu pai, tão compreensivo, lhe
oferecia; Karl nunca se tornaria um mestre tão bom quanto ele. Se seu
pai estivesse lá, o ajudaria a ver as coisas com mais clareza. Seu pai
costumava fumar seu cachimbo, ao mesmo tempo que refletia, pesava
um lado e o outro de qualquer questão antes de dar conselhos. Seu pai o
ensinou que essa era a maneira mais sábia. No entanto, hoje Anna havia
zombado daquela lentidão deliberada, chamando-a de estúpida.
Mas o que mais doeu foi a última coisa que Anna disse sobre o urso,
insinuando que ele se importava tão pouco com ela que tal coisa não
importaria para ele. Karl sabia que suas palavras eram armas, armas que
Anna empunhava instintivamente, sem premeditação. No entanto, como
quem se magoa com as palavras de outrem, Karl não admitia qualquer
justificativa.
Nos Johansons, as velas estavam acesas na nova casa de toras e
todos estavam sentados à mesa. Quando ouviram a carroça de Karl
parar, toda a família largou a comida para cumprimentá-lo e trazê-lo
para dentro.
— Olá, Karl. Isso é uma surpresa—, cumprimentou Olaf.
— Achei que poderíamos sair mais cedo pela manhã, se eu viesse
aqui e dormisse, talvez, em sua carroça esta noite.
— Mas claro, Karl, claro. Mas você não vai dormir em nenhuma
carroça; você vai dormir na casa que ajudou a construir.
— Não, não quero incomodar ninguém—, garantiu ele.
— Se você quer incomodar alguém, experimente dormir na
carroça, Karl Lindstrom! — Katrene o repreendeu, balançando um dedo
na frente dele, como se ele fosse um menino travesso.
A mesa era como sua própria família na Suécia. Havia muitas
risadas, muita comida, muitos sorrisos, mãos grandes indo de um lugar
para outro, uma boa fogueira acesa e, como um deleite para os ouvidos
de Karl, sua amada língua sueca.
Karl percebeu que estava mais ciente do que nunca da presença de
Kerstin. Ele sempre a viu como mais um membro da família. Mas a
acusação injusta de Anna o fez vê-la com outros olhos. Kerstin riu
quando foi procurar mais comida na lareira e puxou o cabelo de Charles
quando ele a repreendeu por deixar as tigelas vazias. O brilho do fogo
iluminou a coroa dourada de suas tranças, e Karl se perguntou se Anna
não estava certa: ele estivera ciente da feminilidade de Kerstin o tempo
todo? Quando a jovem se inclinou para frente entre dois ombros largos
para colocar uma tigela de madeira sobre a mesa, Karl viu o perfil de seu
peito contra a luz do fogo. Mas Kerstin percebeu o olhar dele quando ela
se virou, e Karl rapidamente colocou seus pensamentos onde deveriam
estar.
Quando o jantar acabou, veio a alegria suprema de compartilhar o
cachimbo. Uma fumaça perfumada flutuava no ar - epílogo do jantar,
prelúdio do pôr-do-sol - enquanto as mulheres colocavam a cabana em
ordem; lavavam a louça e varriam o chão com uma vassoura de pau de
salgueiro. A conversa foi atrasada. Katrene, Kerstin e Nedda tiraram os
aventais; Karl lembrava muito bem que isso era o que sua mãe e suas
irmãs faziam. Elas sempre usavam um avental muito ornamentado,
como o que Kerstin havia removido.
— Pai—, disse ela nesse momento—, você já encheu o nariz de Karl
de fumaça por muito tempo—. Quero levá-lo para fora para tomar um
pouco de ar fresco por um tempo.
Karl olhou para Kerstin, assustado. Eles nunca tinham estado
sozinhos antes. Ele pensou que estar juntos agora, depois do que estivera
pensando durante o jantar, não era uma boa ideia.
— Vamos, Karl, quero mostrar a você o novo curral que fizemos
para os gansos—, disse ela com indiferença. Ela agarrou seu xale e saiu
da casa, deixando Karl sem escolha a não ser segui-la.
O que ele poderia fazer a não ser se desculpar e ir atrás dela? As
tábuas de madeira recém-cortadas estavam brancas sob o céu noturno.
Sim, havia um novo curral, mas não era sobre isso que conversaram.
— Como está Anna? — Kerstin começou, sem preâmbulos.
— Anna? — Perguntou Karl—. Anna está bem.
— Anna está bem? — Kerstin repetiu, mas a inflexão em sua voz
deixou claro o que ela queria dizer—. Karl, sua casa fica a menos de meia
hora da estrada. Não havia necessidade de você economizar meia hora,
ficando em nossa casa esta noite.
— Não, é verdade—, admitiu.
— Então—, Kerstin continuou—, eu estava certa. Anna não está tão
bem quanto você quer que eu pense.
Karl concordou. Os gansos soltaram cacarejos suaves ao se
acomodarem em seus peitos rechonchudos, que pareciam inchar ainda
mais enquanto se agachavam no chão. Havia um casal, um ganso e uma
gansa. Karl observou enquanto eles se contorciam em busca de conforto,
aconchegados juntos até que finalmente o ganso enfiou a cabeça sob a
asa da gansa.
— Karl, preciso te perguntar uma coisa—, disse Kerstin em tom
natural.
— Sim...— Karl disse distraidamente, ainda observando os pássaros.
— Você gosta de mim?
Karl sentiu o calor subir pelo pescoço antes mesmo de olhar
Kerstin nos olhos.
— Bem... sim, claro que gosto de você—, respondeu ele, sem saber o
que dizer.
— E agora vou te perguntar outra coisa—, disse ela, e olhou nos
olhos dele com tanta firmeza que Karl hesitou—. Me ama?
Karl engoliu em seco. Nunca em sua vida uma mulher foi tão
ousada com ele. Ele não sabia o que dizer sem ferir seus sentimentos.
Kerstin sorriu e ergueu as palmas das mãos.
— Então, você me deu sua resposta. Você respondeu a si mesmo.
Não me amas—. Ela se afastou e pousou as mãos na cerca—. Perdoe-me,
Karl, se falo tão diretamente com você. Mas acho que já era hora. Hoje,
durante o jantar, acho que vi você me olhar de um jeito que uma mulher
intui... um jeito, digamos, diferente. Mas é por causa de algo que
aconteceu entre você e Anna, e não entre você e eu.
— Eu... sinto muito, Kerstin, eu te ofendi.
— Oh, pelo amor de Deus, Karl, não seja bobo. Eu não fiquei
ofendida. Se as coisas fossem diferentes, eu teria ficado orgulhosa. Mas
não estou dizendo para você se sentir desconfortável. Estou dizendo isso
para fazer você falar sobre o que está acontecendo entre você e Anna.
— Dissemos palavras terríveis um ao outro—, admitiu.
— Pareceu-me, e me perdoe novamente, Karl. Não finjo falar como
se você me achasse muito inteligente. Não é isso. Mas assim que conheci
Anna, percebi que essa luta estava chegando. Eu senti como se ela
tivesse ciúmes de mim. Entre as mulheres, há coisas que são
imediatamente percebidas. Percebi imediatamente que isso iria trazer
divergências entre vocês. Hoje, quando te vi entrar, pensei que era isso
que tinha acontecido. Anna finalmente disse algo a Karl. Tenho razão?
— Sim—, disse ele, olhando para os gansos.
— E você saiu de repente, como um sueco teimoso, para vir aqui
para descarregar?
Kerstin estava certa em chamá-lo de sueco teimoso, porque ela
também era. Ela estava mostrando isso agora, não lhe dando trégua. Ele
ainda foi capaz de aceitar seu assédio com um sorriso benevolente.
— Estou um pouco confuso com a Anna, e queria sair um pouco
para pensar.
— Tudo bem pensar, desde que você pense em coisas que são
certas. O que acho que você estava pensando em casa hoje, durante o
jantar, não era certo, Karl.
— Eu não sabia que o que eu estava pensando era tão perceptível, e
sinto muito, Kerstin. Eu estava errado. Foi Anna quem colocou essas
coisas na minha cabeça—. Mas de repente ele parou, arrependido e
confuso—. Oh, não é o que parece... Eu admiro você, Kerstin, mas...
— Eu entendo o que você está dizendo, Karl. Te entendo. Continue
sobre Anna.
— O motivo da nossa briga foi...— Mas Karl começou a arrastar suas
palavras.
— Não precisa me dizer, acho que algumas coisas que incomodam
Anna eu já adivinhei. Eu os senti quando você veio aqui com ela pela
primeira vez. Mas, Karl, você deve olhar para todos nós com os olhos de
Anna. Percebi como ela se sentiu naquele dia vindo aqui, com todos nós
animados e falando sueco e ela não entendendo uma única palavra. Toda
aquela conversa sobre nosso país e todas as coisas que amamos lá.
Quando falamos inglês, é isso que ouve. E então, quando fomos para sua
casa, aprendi muitas outras coisas sobre sua Anna. Ela sente que não
pode agradá-lo porque as coisas em casa são uma tarefa difícil para ela.
Era óbvio que, quando mamãe e eu trabalhamos em sua cozinha, Anna
queria se sentir confortável nela, como nós. Algo me diz que Anna não
tem experiência nas coisas que me ensinaram desde que eu era criança.
— Anna teve uma educação diferente da nossa.
— Eu imaginei. Sua maneira de vestir revela isso e muito mais.
— Ela cresceu em Boston e não teve uma mãe como a sua ou a
minha. — Era ainda difícil mencionar a palavra Boston agora.
— Boston fica longe daqui. Como você conheceu ela?
— Isso é parte do nosso problema. Anna e eu não nos conhecemos
antes de nos casarmos. Eu... nós concordamos em nos casar por meio das
cartas que escrevemos um para o outro. Aqui na América, Anna seria
chamada de "minha noiva por correspondência".
— Já ouvi falar dessas coisas, mas não sabia de vocês dois.
— Nós nos casamos apenas no início do verão.
— Mas Karl, são recém-casados!
Karl pensou por um momento.
— É verdade—, disse ele, embora lhe parecesse que a tensão entre
ele e Anna já existia há muitos anos.
— E têm alguns problemas, como todos os recém-casados:
acostumar-se um com o outro.
— Parece haver muita coisa a que nunca nos acostumamos.
— Oh, Karl, acho que você está enfatizando o negativo. Tiveram sua
primeira luta. Você é muito duro com Anna e consigo mesmo. As coisas
levam tempo, Karl. Vocês não tiveram muito.
— Por que Anna diria uma coisa dessas sobre... bem, sobre você e
eu?
Kerstin era uma garota que lidava bem com as coisas.
— O que ela disse, Karl?
— Que eu...— Ele se encostou na cerca e esfregou uma de suas mãos
enormes na palma da outra—. Que prefiro estar aqui, contigo, com a tua
torta de fruta e as tuas tranças, do que estar com ela.
Kerstin riu, o que surpreendeu Karl.
— Oh, Karl, é tão simples! Você é um pouco burro, eu acho. Anna
vê você vindo aqui, em direção a tudo que é familiar para você, e eu
represento tudo o que você deixou para trás, na Suécia. Naturalmente,
Anna pensa que você quer essas coisas, quando vê como você fica alegre
e feliz quando está conosco. Não percebe que somos todos nós que te
fazemos feliz, e não só eu. Você sabe o que ela me pediu para fazer
quando estávamos na sua casa?
— Não, mas acho que ela queria que você a ensinasse a fazer pão
bem.
— Aí está, Karl! Você vê! Ela tenta agradá-lo por todos os meios,
mas essas coisas são difíceis para ela. Não, não foi isso que ela me pediu
para fazer. Ela queria aprender a fazer tranças no cabelo.
Karl se virou para Kerstin, genuinamente surpreso.
— Tranças? —Ele repetiu—. Minha Anna com tranças?
— Sim, tranças, Karl. Agora, por que você acha que uma mulher
com lindos cabelos ondulados como os de Anna iria querer prendê-los
com essas tranças horríveis?
Karl ficou em silêncio.
— Karl, por que você acha que ela saiu para colher morangos para
você?
Mas ele estava absorto, tentando imaginar Anna com tranças, o
que não combinaria com ela.
— Não seja bobo—, continuou Kerstin—. Anna te ama muito. Uma
garota irlandesa que se esforça tanto para parecer sueca porque acha
que é isso que seu homem quer... Bem, Karl, você não vê?
— Mas eu nunca disse a ela que ela precisava colher morangos ou
usar tranças para me agradar. Uma vez, há muito tempo, cheguei a dizer
a ela que as tranças não eram importantes.
— Há muito tempo, Karl? A quanto tempo? Antes de eu vir?
— Seguro. Mas qual a importância disso?
— O que importa é que Anna o vê mais feliz em nossa casa do que
na sua. Até eu vejo isso. Teria que ser o contrário.
— Tem coisas que você não sabe, Kerstin.
— Sempre haverá, Karl. Sempre existem. Conheço uma mulher
apaixonada quando a vejo e sei que Anna está se esforçando para
agradar você. Mas também percebo que você não permite que te agrade,
por algum motivo. É por isso que Anna acusa você de que gosta mais de
mim do que dela.
Karl abaixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos ásperas, os
cotovelos apoiados na cerca.
— Anna teria que saber que não é verdade—, afirmou.
— Por quê? Agora que você a deixou, com raiva? É ela quem, talvez,
esteja sofrendo mais do que você agora, se perguntando onde você
estará e quando retornará. Você tem que voltar e colocar as coisas em
ordem com ela, Karl.
Karl sabia que a jovem estava certa. Ele então admitiu o resto das
transgressões daquele dia.
— Eu também gritei com o menino hoje. Não me comportei bem
com nenhum deles, acho.
— Então, o que há de errado em você se desculpar quando voltar,
Karl? James precisa saber que as pessoas cometem erros. As pessoas nem
sempre usam o bom senso em tudo o que fazem. Tenho certeza que o
menino... e Anna também... vão entender e perdoar você.
— Anna disse que ainda não havia se afastado o suficiente de mim e
me acusou de não me importar se o urso a matasse.
— Claro, eu apostaria que ela disse isso. Mas isso é apenas parte da
história. A parte que você deixou de fora é o que aconteceu antes. Eu
nem preciso que você me diga para saber que vocês dois disseram coisas
que não tinham intenção de dizer. Mas, Karl, você deve se lembrar que
Anna também é humana; portanto, ela comete erros. É muito provável
que ela esteja arrependida agora.
“Sim, Anna se arrepende agora e não pode tolerar o outro, até que
eu a perdoe”, pensou Karl. Ele colocou a cabeça nas mãos e se lembrou
de Anna na noite em que foi encontrada subindo na árvore, encurralada
por lobos. Ele se lembrava de como soluçava nos braços dele, dizendo
sem parar: “Sinto muito, Karl. Sinto muito".
Naquele momento, ele sabia que não era porque ela estava perdida,
não apenas por causa disso, que ela estava pedindo perdão. Ela estava
dizendo a ele o quanto lamentava por tudo: as mentiras, as coisas que
ele via como falhas domésticas dela, mas acima de todas as coisas que ele
não podia - não, agora Karl sabia que a verdade é que ele não queria -
perdoar.
E ele, um sueco teimoso, rejeitou deliberadamente o pedido de
desculpas dela, acreditando mais em si mesmo do que nela. Quão certo
sua mãe lhe ensinou que a arrogância é abominável! Por não aceitar os
esforços honestos de Anna para agradá-lo, ele se acreditava melhor do
que ela. E ele se agarrou à sua teimosia por algo que Anna fizera, em
meio ao desespero, muito antes de ele a conhecer.
— Sabe Karl—, Kerstin estava dizendo—, estive refletindo e acho
que você não poderia ter escolhido um momento melhor para ir
comprar as janelas. Acho que alguns dias longe de Anna será muito bom
para vocês dois.
CAPÍTULO 18
James já era capaz de acender uma boa fogueira. Ele poderia obter
da madeira lâminas tão finas como o papel, assim como Karl. Ele poderia
tirar faíscas da pedra na primeira tentativa. Ele poderia atiçar o fogo
sem abafar a primeira chama e adicionar pedaços de madeira até que as
chamas crescessem. E durante todo esse processo, não houve nenhum
vestígio de fumaça na casa de adobe.
Mas percebendo que estava agachado, olhando para o fogo recém-
aceso - como vira Karl tantas vezes - ele se sentou imediatamente e deu
as costas para a lareira.
— Por que ele agiu assim, Anna? — Ele perguntou, derrotado.
— Oh, James, não tem nada a ver com você—, Anna respondeu, em
um tom doce e resignado—. É algo entre ele e eu. Algo que precisamos
reparar, só isso.
— Mas ele estava tão bravo comigo, Anna.
A dor era intensa, transparecia em sua voz.
— Não, não é bem assim. Ele estava furioso comigo.
Anna olhou para o fogo pensativamente. Ela podia ver as costas
zangadas de Karl enquanto ele se afastava da clareira; ela teve vontade
de chamá-lo e pedir desculpas pelas palavras com que o magoara
cruelmente, quando ele merecia todo o seu amor e respeito.
— Por quê?
— Eu não posso te contar tudo. Vem comer.
Os dois irmãos sentaram-se à mesa, muito tristes, mas não
conseguiam comer. Ambos estavam com raiva, mas ao mesmo tempo
ansiavam pela presença do homem que fez que esse... esse... fosse sem
dúvida um lar.
— Tem a ver com o que a Barbara era, não tem?
— De certa forma, sim.
— Eu nunca teria adivinhado isso de Karl. Quero dizer... — James
parou, confuso, mas continuou—. Bem, ele é quase... quase o homem
mais perfeito que conheço. Ele não parece o tipo de pessoa que pode nos
culpar por quem ela era.
Anna acariciou sua mão.
— Oh, James, ele não nos culpa. Eu juro que não. Não por isso, na
verdade. A coisa é comigo. Não posso... bem, não sei como me comportar
neste lugar. Não sei cozinhar direito, vestir-me bem ou pentear o cabelo
direito; Não sei nada do que uma esposa deveria saber. Barbara não me
ensinou muito sobre tudo isso, e tudo o que eu tento dá errado.
Ela olhou para o fogo e as lágrimas estiveram prestes a subir
quando se lembrou dos desastres que havia causado, tentando agradar a
Karl.
— Como os morangos—. Ela ergueu as mãos desamparadamente,
depois as deixou cair entre os joelhos—. Eu queria tanto colher aqueles
morangos, James. Eu queria fazer isso por ele. E como tudo isso acaba?
Eu me perco e ele tem que vir me encontrar e me levar até em casa e
colocar aquela pasta de mosquito em mim, como se eu fosse uma
menina.
— Mas não foi sua culpa, Anna—, James disse a ela, ficando do lado
dela—. Não é por isso que ele ficou furioso.
Anna encolheu os ombros e suspirou.
— Não que ele esteja bravo comigo, James. Em vez disso, ele está
desapontado. Ele acreditava que poderia tolerar sua decepção ao saber
das mentiras contadas por aquelas cartas. Mas é mais forte do que ele.
Não tenho nada que Karl precise em uma esposa.
— Mas nós nos divertimos muito no começo e ele não pareceu se
importar que você demorasse um pouco para aprender as tarefas aqui.
— Isso foi antes de os Johansons se mudarem para perto da
estrada. Desde que Kerstin veio para este lugar, Karl prefere ficar em sua
casa à nossa.
— Isso não é verdade, Anna. Eu não acho que seja verdade.
— Bem, Kerstin pode fazer tudo. Ela sabe fazer torta de morango,
não é magrinha, tem tranças, é loira e fala sueco.
— É isso que te deixa nervosa, Anna? — James perguntou, seus
olhos arregalados de espanto—. Bem, no dia em que estivemos na casa
dela sem você, Karl quase não prestou atenção nela. Eles nos convidaram
para jantar e Karl disse que não, achando que seria melhor voltar para
casa jantar.
— De verdade? — Anna se sentiu um pouco mais animada.
— Sim claro.
Mas em seguida decaiu novamente.
— Vê? Ele não tinha nada preparado para ele na primeira vez que
ele sai e volta para casa, na esperança de encontrar uma refeição quente.
Em vez disso, ele me encontra escalando um bordo perdido na floresta,
com uma matilha de lobos à espreita—. Ela quase começou a chorar
novamente, pensando neste novo fracasso—. Karl nem comeu naquela
noite—, ela se censurou.
— Não tinha em consideração a comida nesse dia. Tenho certeza
disso. Quando chegamos em casa e ele não encontrou você, bem, você
não sabe como ele estava com o coração partido. Ele queria esconder,
mas percebi. Ele correu por todos os lugares, pela cabana, pelo celeiro e
por todos os lugares para procurar você. Quando você não apareceu e
ficou escuro, pensei, por um momento, que ele iria começar a chorar
outra vez.
— Outra vez? —Anna interrompeu, os olhos arregalados em
descrença.
— Oh, esqueça—, disse James, concentrando-se em raspar uma
mancha de molho seco do joelho de sua calça.
— Você já viu Karl chorar?
— Não importa, Anna—. Ele raspou com mais força, cuidando para
não levantar os olhos.
— Quando? — Anna insistiu, e James olhou para ela suplicante.
— Anna, Karl não sabe que eu o vi e não acho que deva te contar.
— James, você tem que me dizer. Há tantas coisas que Karl e eu
precisamos resolver entre nós! Não podemos fazer isso até que saibamos
coisas como esta... como quando um faz o outro chorar.
James ainda estava hesitante, mas depois de considerar o que Anna
disse a ele, ele decidiu que não haveria problema em contar a ela.
— Foi na noite em que ele saiu furioso do celeiro e me perguntou
diretamente se Bárbara era costureira. Quando eu disse não, ele me
perguntou se eu sabia o que ela fazia para viver. Tudo que eu disse a ele
foi sim, e pensei que ele me faria dizer o que ela era. Mas ele apenas me
disse que tinha feito um bom trabalho com as patas de Belle e foi
embora. Eu nunca disse a ele, Anna. Sério, eu não disse a ele. Mais tarde
eu saí, quando o ouvi se levantar no meio da noite. Decidi que contaria a
ele e explicaria como você odiava o que Barbara fazia e que mentiu por
mim. Mas não tive oportunidade de dizer nada a ele porque de repente o
encontrei na clareira. Ele estava lá, ao lado dos cavalos, e quando me
aproximei por trás o ouvi chorar. Ele estava... ele estava agarrado à crina
de Belle... e... — a voz de James foi sumindo até virar um sussurro baixo.
Ele arranhou algo na mesa com a unha do polegar—. Anna, nunca vi um
homem chorar. Não sabia que homens choravam. Não diga a ele que eu
disse a você, hein?
— Não, James, não vou contar a ele. Te prometo.
Anna acariciou sua mão.
— Anna, eu sei que Karl gosta de você mais que de Kerstin. Caso
contrário, por que choraria?
— Não sei—. Ela pensou por um momento—. Kerstin é muito bonita
—, Anna admitiu com inveja—. E tem mais do que pele e ossos, do jeito
que Karl gosta.
— Você está bem do jeito que está e se Karl não pensa assim, é ele
que está errado!
Ali estava o que pensava que havia perdido de seu irmão. Ela tinha
sido uma tola em acreditar que só porque James admirava Karl com
fervor crescente, seus sentimentos por ela haviam diminuído. Mas no
momento decisivo, quando se tratava de Karl a criticando, lá estava
James, pronto para lutar por Anna e defendê-la, como sempre fizera.
— Oh, James, meu bebê, obrigada—, disse ela, usando o nome que
costumava chamá-lo quando ele era um pirralho correndo atrás de suas
saias, nariz escorrendo, pelas ruas de Boston.
— Anna...— James disse depois de observar o fogo cuidadosamente
para evitar o choque confuso de sentimentos que o fizeram se sentir
como um homem quando sua irmã o chamou de "bebê—. Você acha que
vai voltar?
— Claro que ele vai voltar. Esta é sua casa.
— Ele não pegou o rifle, Anna. Ele deixou aqui para nós.
— Oh, não seja bobo. Se você está preocupado com esse... com esse
puma que está lá, entre os pinheiros, você sabe muito bem que Olaf está
com ele, e Olaf com certeza tem sua arma.
— Bem, você me chama de bobo quando parece que a mesma ideia
também passou pela sua cabeça, ou você não teria mencionado.
— Karl é o homem mais cuidadoso que já conheci em minha vida. E
um dos lenhadores mais cautelosos também. Agora você deve acreditar
em mim, aquele puma é a última coisa com que devemos nos preocupar.
No entanto, quando Anna foi para a cama, ela ficou deitada por
horas imaginando o cheiro daqueles pinheiros; suas narinas coçaram,
como se esperasse encontrar o cheiro de fera na escuridão da cabana,
como se pudesse avisar Karl que o perigo estava sobre ele. O travesseiro
estava ao lado dela, inflado e vazio. Ela o cravou no centro com o punho,
imaginando que Karl havia saído por um minuto. Pela enésima vez desde
que Karl descobrira a verdade, Anna soltou um apelo silencioso de sua
garganta dolorida: "Sinto muito, sinto muito, Karl, me perdoe." Esta
noite ela acrescentou: “Por favor, não vá com ela, Karl. Por favor volte
para mim".
Adormeceu. Acordou pensando em Karl, chorando sobre a crina de
seu cavalo. Anna sabia que ele havia chorado por causa dela. “Sinto
muito, Karl”, ela pensou atormentada.
Ela tinha adormecido novamente, mas se sentou como se uma
corda pendurada no teto a estivesse segurando. Algo estava errado!
Assim que ela pensou sobre isso, ela ouviu a voz de James, estridente e
aterrorizada.
— Anna, você está acordada? Há algo lá fora! Escuta!
Ela congelou: ela podia ouvir arranhões e batidas na porta do outro
lado. Parecia que algo estava tentando comer o painel.
— James, venha aqui! — Ela implorou em um sussurro, querendo
tê-lo perto o suficiente para envolver seus braços em volta dele e sentir
como se ele estivesse com ela no escuro.
— Eu tenho que pegar o rifle—, James respondeu, também baixinho
—. Eu tenho que me controlar, como Karl me ensinou.
Ela o ouviu colidir com um balde ou tigela na lareira. Ela o ouviu
pegar a bolsa de munição que Karl havia deixado quando voltou para
casa naquela tarde.
— James, já está carregado! — Ela avisou—. Karl sempre o mantém
carregado e ele não atirou no urso hoje!
— Eu sei, mas devo estar pronto para não perder tempo se precisar
atirar uma segunda vez.
— Oh, James—, ela disse em um lamento—, você acha que tem que
atirar pelo menos uma vez?
— Não sei, Anna. Mas devo estar pronto. Karl disse isso.
Eles sentiram um rosnado vindo de fora, como se um homem
estivesse levantando algo pesado.
— Você acha que é um homem, James?
— Não! Shhh!
Mas quando parou, ela sentiu o intruso arranhando os suportes de
madeira.
— A corda da barra está do lado de dentro?
O pânico apoderou-se dela novamente. Se a corda estivesse
pendurada do lado de fora, tudo o que o intruso tinha que fazer era
puxar para levantar a barra que fechava a porta. Ela ouviu seu irmão ir
até a porta, com cuidado, no escuro; enquanto isso, ela prendeu a
respiração só de pensar que James estava tão perto do que havia do
outro lado.
— Está dentro—, James murmurou, e se afastou da porta. Um tanto
aliviada, Anna colocou os pés no chão de terra e disse:
— Eu vou para lá. Não aponte o rifle nesta direção.
— Não se preocupe, ele está apontando diretamente para a porta.
— Mas você não pode ver nada. Que pensas fazer?
— O que eu não posso ver, eu posso ouvir. Eu saberei, se ele a
derrubar.
— Se... derrubá-la? É grande…? O que você acha que é isso?
— Acho que é aquele urso, Anna.
— Mas um urso nunca veio aqui antes. Por que viria agora?
— Não sei, mas pelo barulho que faz, é algo grande.
— Shhh! Ouça, parece que está se afastando.
Eles ouviram batidas novamente, e então o rosnado e o uivo
inconfundíveis de um urso. Houve uma grande comoção e então o som
de vasos quebrando; então um rugido mais alto.
— Ele está na casa do manancial, Anna. Ele está comendo alguma
coisa lá!
— Bem, deixe-o comer. Quem se importa? Pelo menos não está nos
comendo!
— Anna, eu tenho que sair e atirar nele.
— Por Deus, não seja estúpido! Deixe-o pegar o que quiser, mas não
saia.
— Karl disse que uma vez que o urso encontrar comida, voltará e
saqueará você de novo e de novo, quando conhece o lugar. Ele vai voltar,
a menos que eu atire nele.
— James, por favor, não saia. Esqueça que Karl disse que você não
pegou a arma a tempo hoje. Ele não pensou no que estava dizendo. Era
comigo que ele estava com raiva, eu disse a você.
— Devo ir. Isso agora não tem nada a ver com Karl. Tem um urso lá
fora! E se ocorrer a ele voltar outro dia, quando não estivermos seguros
dentro de casa?
Do lado de fora veio o som de madeira quebrando.
— Não, James, não vá. Está tão escuro que você não conseguirá ver
mesmo.
— O luar vai me iluminar.
— Não, não há luz.
— Pegue as tochas, então, Anna. Traga as tochas que Karl fez
quando você se perdeu. Elas estão encostadas no canto atrás do balde de
cinzas. Pegue uma e acenda; Quando eu der a ordem, você deve fazer o
que eu digo. Você tem que levantar a barra e trazer a tocha alguns
centímetros à minha frente para que o urso não veja nada atrás dela.
Assim que eu atirar, você larga e corre, Anna!
— Não o farei! Não vamos sair com nenhuma tocha, nem vou deixá-
la cair ou fugir. Nós ficaremos aqui.
— Vou fazer isso sem você, Anna, se necessário—, disse seu irmão,
o bebê. A firmeza do aço em sua voz fez Anna entender que James faria o
que ele dizia.
— Tudo bem, vou trazer a tocha, mas, James, se você errar o
primeiro tiro, vai correr comigo.
— Tudo bem, Anna. Te prometo. Agora corra para acender a tocha
antes que ele escape!
Anna acendeu a pedra e a faísca tornou-se uma chama laranja
acima das taboas enquanto os dois caminhantes noturnos, de olhos
arregalados, se entreolhavam.
— Nós vamos conseguir, Anna—, disse James—. Temos o rifle, não
ele.
— Tenha... cuidado, James. Você me promete que vai fugir assim
que atirar?
— Eu prometo. Mas, Anna...
— O que?
— Não será necessário. Eu prometo a você também.
Anna levantou o pesado trinco enquanto cada fibra de seu corpo
tremia tão violentamente que ela pensou que fosse bater a porta, apesar
de seus esforços para ficar quieta. A porta rangeu suavemente uma só
vez. O empurrou com o cotovelo e lançou a tocha na frente dela.
O urso estava bebendo xarope de melancia como se estivesse no
paraíso dos ursos. Quando a luz atingiu seus olhos, ele balançou a cabeça
preguiçosamente; Ele parecia um ser humano, dividido entre o desejo de
terminar aquela bebida apetitosa e a ameaça de ser interrompido por
sua intrusão. Tomou a decisão errada; Sua longa língua serpenteou pelo
líquido rosa mais uma vez e a arma explodiu, derrubando James no chão.
O menino se levantou e correu em direção à porta da frente da casa
antes de voltar do seu torpor, passo a passo com Anna, que havia se
esquecido de apagar a tocha. Eles bateram a porta com força, trancaram-
na e encostaram-se nela com o peito arfante, abraçando-se, tentando
ficar parados, ouvindo... ouvindo... ouvindo.
Tudo o que ouviram foi silêncio.
— Acho que você acertou nele — sussurrou Anna.
— Ele pode estar atordoado. Espere mais um pouco—. Eles se
abraçaram pelo que pareceu uma hora—. Anna... — James finalmente
murmurou.
— O que?
— Não queime meu cabelo com essa coisa!
Ficaram assim por tanto tempo que a tocha se apagou. O
comentário de James aliviou um pouco a tensão, e eles decidiram
acender outra tocha e sair para ver se o urso estava realmente morto.
Anna levou a tocha e James recarregou o rifle antes de sair
furtivamente.
Quando os dois viram o que tinham feito, começaram a rir de
alívio. O urso estava meio dentro e meio fora do que tinha sido a casa do
manancial. O enorme corpo negro estava esticado sobre a pequena
piscina de onde sempre tiravam água. O sangue jorrando do buraco na
cabeça fluía rio abaixo. Os restos de jarras e vasos estavam espalhados
por toda parte. O urso havia deixado alguns baldes de madeira em
pedaços. As paredes que não haviam sido quebradas pelo animal
desabaram com a explosão da arma, que Karl carregou para usar "contra
o urso".
— James, você conseguiu!
— Eu consegui—, ele repetiu sem fôlego, percebendo a situação—.
Eu consegui?
— Você conseguiu, meu irmãozinho! — Anna exclamou, e jogou os
braços em volta do pescoço dele novamente.
— Meu Deus, consegui! — James gritou.
— E sabe de uma coisa?
— Sim, eu sei. Minha bunda dói. O rifle chuta como uma mula.
James se esfregou enquanto os dois riam alegremente.
— Não, não era isso que eu ia dizer. Eu ia dizer: aqui está nosso
suprimento de velas de sebo para o inverno, e há comida suficiente para
alimentar nossa família e os Johansons durante todo o inverno.
James estava radiante e não conseguia parar de bater no joelho
como Olaf costumava fazer.
— Advinha outra coisa—, Anna continuou.
— Que mais?
— Não temos cavalos para mover esse monstro que está no meio de
nosso manancial e que vai começar a apodrecer antes que Karl volte, e
nenhum deles, nem o urso nem o manancial, serão os mesmos
novamente.
James riu alto. Então Anna começou a rir de James quando o viu fora
de controle; imediatamente, James começou a rir quando viu Anna fora de
controle. Antes que percebessem, os dois irmãos haviam caído de joelhos,
cansados do enorme alívio após o tremendo susto, e porque já eram quatro
da manhã.
Depois de um tempo, Anna disse:
— Amanhã teremos que ir à casa do Olaf para ver se um dos
meninos pode nos ajudar a estripar este enorme animal e pendurá-lo em
uma corda. Devemos também descobrir o que mais fazer com ele.
— Não tenho certeza, Anna, mas acho que não podemos esperar
tanto. Acho que precisamos remover as tripas agora ou a carne
estragará.
— Agora? — Anna exclamou, com uma expressão de nojo.
— Acho que sim, Anna.
— Mas James, ele está lá, deitado na água fria da nascente. Isso não
vai mantê-lo fresco?
— A carne tem que sangrar imediatamente. Eu sei disso porque
Karl me ensinou. Ele disse que o que é feito com um animal na primeira
meia hora após sua morte é o que faz a diferença entre a carne boa e a
carne ruim.
— Oh, James, argh! Temos que colocar as mãos nessa coisa?
— Não sei de que outra forma podemos estripá-lo. Se não o
fizermos, Karl vai voltar apenas para encontrar outra bagunça que
montamos.
Anna finalmente se convenceu de que a coisa certa precisava ser
feita.
— Existem mais algumas tochas no canto; Eu vou trazê-las.
— E traga algumas facas também. Vou pegar a pedra oleada que
Karl usa para afiar o machado. Acho que vamos precisar.
Anna se virou antes de cruzar a porta e exclamou:
— Karl vai ficar tão orgulhoso de você, James—. Ela também estava
orgulhosa de seu irmão, seu bebê, como nunca sonhou que poderia estar.
— De você também, Anna. Estou certo.
Por alguma razão inexplicável, Anna lembrou-se de que havia
esquecido os gomos de lúpulo naquele dia e prometeu regá-los pela
manhã. Assim que estriparam aquele urso, dormiram um pouco, foram
pedir ajuda aos meninos e se encarregaram de desenterrar as batatas e
os nabos e os rutabagas e...
“Não”, pensou, “lidarei primeiro com os segmentos do lúpulo”. É a
primeira coisa que ela faria pela manhã ao se levantar. Essas plantas não
murchariam!
CAPÍTULO 19
Três dias depois, Karl Lindstrom viajava para o norte, seguindo um
caminho que já dava sinais claros da aproximação do outono. O
impressionante escarlate do primeiro sumagre cintilava nas margens da
estrada. As avelãs pareciam marrons e espessas. Karl se lembrou de que
havia prometido a Anna mostrá-las. Assim que ele terminasse com a
cabana, ele a traria para aquele lugar. Enquanto isso, ele parou a
carroça, pegou um punhado de avelãs e colocou-as no bolso. Ele passou
mais uma vez pelo lugar onde estavam os pinheiros; Karl sabia que
madeira maciça serviria para o aparador de Anna. Ele teria que voltar
àquele lugar para cortar a árvore e cortar a madeira assim que tivesse
um dia livre; com ela, ele faria os móveis que prometera a Anna.
Um faisão alçou voo, quando o barulho dos cavalos interrompeu
seu banho de poeira à beira da estrada. O pássaro correu, deixando um
lampejo de vermelho, preto e verde iridescente enquanto lutava para se
abrigar, com um movimento gracioso, e cantava: "C - a - a - a!"
“Atiraria nele e o levaria para comer em casa”, pensou Karl, “mas
não estou com meu rifle. O faisão pode esperar que James atire nele.”
Não, Karl não tinha sua própria arma. Mas ele tinha um rifle, sim.
Mas o primeiro tiro teria que ser de James. Era um rifle de repetição
Henry, o que fez Karl sorrir de expectativa. Tinha que compensar o
menino. A arma seria um começo. Karl se imaginou com o jovem
caminhando em uma manhã outonal, com as armas penduradas nos
ombros, em um silêncio amigável, perseguindo faisões, atirando neles e
levando-os para casa, para Anna.
Em seguida, ele ensinaria Anna a encher o pássaro com pão e suas
próprias avelãs silvestres. Karl supôs que deveria ensiná-la a fazer pão
novamente, agora que ela usaria o fogão de ferro fundido.
Karl sorriu. Ele balançou as rédeas. Mas tanto Belle quanto Bill
viraram as vendas em sua direção, como se perguntando por que a
pressa. Eles marchavam em direção à casa em um ritmo acelerado e
estavam tão ansiosos para chegar lá quanto ele.
Quando os cavalos seguiram seu próprio caminho algum tempo
depois, Karl quis desacelerar em vez de acelerá-los. Mas a parelha se
recusou obstinadamente a aceitar a ordem. À frente, Karl viu a familiar
clareira entre as árvores, depois o deslizamento de toras e, em sua base,
a bela cabana que ele, Anna e James construíram juntos. Justo ao lado,
ele viu alguns sacos de batatas, bem arrumados. Fora, na grama, havia
cestos de vime com uvas, um tanto secas e enrugadas, em vias de se
transformar em passas. Fumaça estava saindo da chaminé da casa.
Mas faltava alguma coisa. Karl examinou a clareira mais uma vez e
percebeu com um sobressalto que a casa do manancial estava faltando.
Havia desaparecido! Havia dois baldes no local e algumas rutabagas que
pareciam meio lavadas. Vários jarros estavam submersos na areia, como
sempre. Mas a própria construção havia desaparecido no ar. Sentia um
aroma que enchia o ar e fazia seu nariz enrugar; ele não conseguia
imaginar o que era que cheirava tanto a urso. Os cavalos pareciam
farejar algo também, balançando a cabeça e a crina até que Karl teve que
dizer:
— Quie-e- e-tos. Estamos em casa. Vocês sabem como reconhecê-la.
Nem Anna nem James estavam à vista quando Karl parou a carroça
perto da cabana. Lá estava ela, a casa dos seus sonhos. Enquanto
diminuía a velocidade dos cavalos, ele se perguntou novamente se não
tinha destruído aqueles sonhos para sempre, ou se ele, Anna e o menino
poderiam consertá-los. Ele tentou acalmar os nervos, enquanto
amarrava os animais ao poste e falava com eles:
— Vocês vão ter que esperar um pouco, até eu descarregar tudo
isso.
Os cavalos lhe disseram muito claramente que estavam
impacientes para chegar ao estábulo.
Indo para a parte de trás da carroça, Karl olhou para a casa de
adobe. James estava parado na frente da porta, as mãos nos bolsos,
olhando para ele. Karl parou abruptamente e olhou para o menino. Ele
sentiu uma pontada repentina atrás de seus olhos ao ver James parado
ali, sem fazer nenhum movimento para se aproximar ou cumprimentá-
lo de alguma maneira. Karl tentou falar, mas sua língua estava grudada
no céu da boca. Finalmente, ele ergueu a mão em saudação. Ele sentiu o
coração bater na garganta enquanto esperava que James respondesse. O
menino tirou a mão do bolso e a ergueu silenciosamente.
— Me viria bem um pouco de ajuda para descarregar a carroça,
garoto—, disse Karl.
Sem dizer uma palavra, James se aproximou, observando seus
sapatos levantando poeira do chão no caminho. Ele parou atrás da
carroça e olhou para Karl, silencioso como antes. Tolamente, Karl
conseguiu dizer:
— Eu tenho trigo moído.
— Bom—, disse James. Mas o tom foi de contralto—. Bom, — ele
repetiu, desta vez em uma voz mais profunda.
— Teremos muita farinha para o inverno—. Karl se lembrou
daquela vez em que disse que o menino seria mais uma boca para
alimentar.
— Que bom.
— Consegui as janelas para a cabana.
James acenou com a cabeça como se dissesse, "Sim, sim, estou
vendo."
— Tudo bem por aqui?
Os olhos de Karl deram uma rápida olhada em direção à casa e
então pararam em James.
— Sim—, respondeu ele. Depois de uma pausa, ele continuou: —
Pensamos que você voltaria ontem.
— Demorou um dia para moer a farinha. Eles estavam ocupados na
fábrica e tivemos que esperar a nossa vez.
“Será que pensavam que ele não voltaria?”, perguntou-se Karl.
"Era isso que pensavam?"
— Ah!
Eles ficaram lá, esperando, o homem bronzeado e o menino
magricela, seus corações explodindo de remorso e amor; no entanto,
nenhum deles poderia dizer, ainda, o que desejava dizer.
— Bem, é melhor descarregarmos—, disse Karl.
— Sim.
Karl subiu na carroça para remover a tábua traseira, mas quando
apoiou as mãos, não a soltou. Em vez disso, ele se agarrou à madeira,
como uma tábua de salvação. Ele fechou os olhos. O menino ainda não se
mexia, perto do cotovelo de Karl.
— Rapaz, eu... sinto muito—, Karl murmurou. Então ele inclinou a
cabeça para trás e olhou para o céu de outono. O contorno das nuvens
estava borrado.
— Eu também, Karl—, disse James. Pela primeira vez em sua vida,
sua voz era forte e masculina.
— Você não tem que se desculpar, garoto. O culpado sou eu, Karl!
— Não, Karl. Eu deveria ter lhe dado o rifle, como você pediu.
— A arma não teve nada a ver com isso.
— Sim, Karl. Foi a primeira lição que você me ensinou. "Apresse-se
e pegue a arma como se sua vida dependesse disso, porque
provavelmente depende."
— Eu estava errado naquele dia. Eu estava louco... minha mente
estava cheia de coisas sobre Anna, e nós não estávamos nos dando bem,
então eu descontei em você.
— Não importa, realmente.
— Sim. Importa e muito.
— Não. Eu já não me importo. Aprendi uma lição naquele dia. Eu
acho que precisava disso.
— Eu também aprendi uma lição—, disse Karl.
Olhando para cima, Karl encontrou os olhos verdes do menino à
beira das lágrimas e percebeu como seu próprio pai deve ter se sentido
quando se despediu pela última vez.
— Senti sua falta, garoto. Eu senti sua falta nesses três dias.
James piscou e uma lágrima descontrolada rolou pelo seu rosto, as
mãos ainda nos bolsos.
— Nós... também sentimos sua falta.
Tomando a iniciativa, Karl desprendeu a mão da carroça e se virou
em um movimento repentino para abraçar o menino contra o peito
cheio de emoção. Os braços de James agarraram Karl. Este último
segurou a cabeça com as mãos, olhou para o rosto e disse:
— Desculpe, garoto. Sua irmã estava certa. Você sempre fez bem o
que eu te ensinei. Um homem não pode pedir para ter alguém melhor do
que você ao seu lado.
James se pressionou contra o peito e liberou suas emoções contidas
em uma torrente de palavras, sufocadas contra a camisa de Karl.
— Achamos que você não voltaria. Procuramos por você o dia todo
ontem e veio a noite e você não estava com seu rifle e sabíamos do puma
...
Karl achou que seu coração fosse explodir.
— Olaf estava comigo. Você sabia, garoto—. Mas Karl embalou
James em seus braços e sentiu seu jovem coração bater contra o seu—. E
ele tinha sua arma. Além disso... um homem seria mais do que tolo se
não voltasse para um lugar como este, com tudo o que tem.
— Oh, Karl, nunca mais vá embora. Tive tanto medo... eu... —
Encostado no peito daquele homem, sentindo o cheiro de seu corpo,
aquela mistura de cavalo, tabaco e segurança, as palavras que
queimavam seu coração não podiam mais ser contidas—. Amo você, Karl
—, disse ele. Então, envergonhado, ele se virou, com o olhar fixo no chão,
e enxugou os olhos na manga.
Karl baixou o braço, segurou-o pelos ombros e, obrigando-o a olhar
para o rosto, disse:
— Quando você diz a um homem que o ama, não precisa se
esconder atrás da manga. Eu também te amo, garoto, nunca se esqueça
disso.
Finalmente, os dois sorriram. Então Karl enxugou os olhos com a
manga e voltou para a carroça.
— Agora, você vai me ajudar a descarregar a carroça ou peço à sua
irmã para me ajudar?
— Eu vou te ajudar, Karl.
— Você pode levantar um saco de farinha? — Perguntou Karl.
— Olha como eu o faço!
Eles descarregaram a farinha e as janelas, que foram colocadas
cuidadosamente entre os sacos de farinha. Enquanto segurava um
precioso painel de vidro, Karl disse:
— Comprei cinco. Uma para cada lado da porta e uma para cada
parede. Um homem tem que ver todas as suas terras pelas janelas—,
disse ele, e entrou na cabana de toras. Ao sair, ele disse:
— Vejo que colheram as batatas enquanto eu estava fora.
— Sim, Anna e eu.
— Onde está? — Karl perguntou enquanto seu coração dançava
dentro do peito.
— Está preparando a comida. — Agora foi a vez de Karl dizer:
— Ah! — Então ele saltou de volta para a carroça e disse—: Ajude-
me com este par de sacos, garoto. Vamos levá-los para a casa e Anna.
James puxou um saco e revelou uma caixa de madeira. Ele leu as
palavras nele: "New Haven Arms Company". Ele puxou o segundo saco e
as palavras "Norwich, Connecticut" ficaram visíveis. Suas mãos
afrouxaram sobre o saco, que teria caído de lado se Karl não a tivesse
segurado. Os olhos verdes de James de repente encontraram os olhos
azuis de Karl.
— Um homem se sai melhor com sua própria arma—, disse Karl
apenas.
— Sua própria arma? — James repetiu em dúvida.
— Você não concorda?
— S... claro, Karl.
James olhou para baixo; ele queria tocar na caixa, mas estava com
medo. Ele ergueu os olhos novamente.
— Escolhi um que tinha a culatra de nogal; Ele se adapta às suas
mãos como as calças às suas nádegas. É a medida certa para um menino
do seu tamanho.
— Sério, Karl? — James perguntou incrédulo, ainda sem remover a
embalagem—. É realmente para mim?
— Eu te ensinei tudo, exceto caça. É hora de começarmos. O
inverno está chegando.
James já estava com a caixa nas mãos. Ele saltou da carroça e
correu pela clareira, suas longas pernas saltando em direção à casa de
adobe, gritando:
— Anna! Anna! Karl me comprou um rifle! Só meu, Anna! Só meu!
Karl esperou que a garota aparecesse na porta, mas ela não o fez.
Ele pendurou um dos sacos no ombro e se dirigiu para a casa, na qual
James havia desaparecido.
James estava como um louco, falando alto, repetindo que Karl
havia comprado uma arma para ele. Anna estava feliz por seu irmão.
— Oh, James, eu te disse, não disse?
Anna observara de dentro enquanto Karl e James faziam as pazes.
Não era necessário que soubesse o que foi dito. Vê-los abraçados assim,
em plena luz do dia, fez seu coração explodir.
A jovem olhou para cima, agora que a forma de Karl preenchia a
porta e bloqueava a luz do dia atrás de seus ombros largos. Uma
sensação estranha e fraca tomou conta dela. Karl parecia um deus
nórdico gigante, com o saco de farinha pendurado no ombro e os
músculos do peito com cicatrizes, parado ali, sem decidir entrar. Anna
foi dominada por uma timidez repentina. Ela ansiava por correr para
encontrá-lo e dizer: — Abraça-me, Karl—, para sentir aqueles braços
fortes e curtidos pressionando-a contra seu peito largo.
— Olá, Anna—, ele disse suavemente.
Ele não tinha pensado que sentiria tanto a falta dela, mas seu
coração revelou o quão vazio aqueles dois dias pareceram. Ele percebeu
que Anna também estava tensa e nervosa.
Quando ela falou, sua voz tremeu.
— Oi, Karl.
Anna se perguntou se ele ficaria ali a tarde toda na porta.
— Você está em casa—, ocorreu-lhe dizer. Parecia fora do lugar.
— Sim estou em casa.
— James me disse que você trouxe um rifle para ele.
— Sim. Um garoto precisa ter sua própria arma, então comprei
para ele a melhor, um Henry de repetição. Mas não deve usar esse
machado para abrir a embalagem. Vá pegar o martelo de desempacotar,
garoto, como eu te ensinei.
— Sim senhor!
James obedeceu e quase levou Karl pela frente.
Havia algo cozinhando no fogo e Anna começou a mexer. Karl
sentiu o saco pesar em seu ombro, então deu um passo atrás da esposa e
o colocou no chão. A proximidade de Karl fez o pulso de Anna disparar
ainda mais, mas ela continuou mexendo a comida para se manter
ocupada; então cobriu a panela e disse:
— Vou pegar alguns gravetos na pilha de madeira para colocar
embaixo do saco.
— Isso pode esperar—, disse Karl, endireitando-se.
— Mas vai encher de bichos... — Anna foi até a porta.
— Não tão rápido.
Suas palavras e o tom de súplica infantil a pararam no meio do
caminho para a porta. Ela se virou para encarar Karl; então ela olhou
para ele e ele devolveu o olhar, enquanto o tempo retrocedia
vertiginosamente para a última vez que eles se enfrentaram naquele
pequeno espaço.
— Tenho algumas coisinhas na carroça, que você poderia me
ajudar—. Ele olhou se desculpando para a panela—. Isso levará apenas
um minuto.
Ela acenou com a cabeça, sem falar, e se virou para a porta.
Karl estava confuso. “Ela tem medo de mim?”, perguntou-se, com a
esperança se esvaindo. “Sou o culpado que Anna só pense em escapar de
mim, como um esquilo de olhos castanhos, toda vez que eu chego perto?
Pensa que eu fui até Kerstin para me vingar?”
Quando ele se aproximou de Anna para subir na carroça, ela correu
para abrir espaço para ele. Karl pegou um pacote de trás do assento,
voltou para a extremidade aberta da carroça e olhou para aquele cabelo
cor de uísque.
—Aqui—, disse ele, e esperou que ela olhasse para ele para lhe
entregar o pacote—. Estas são algumas coisas que pensei que você
precisaria.
Finalmente Anna ergueu os olhos e Karl largou o pacote.
— O que é? — Anna perguntou enquanto o cortava.
— Coisas necessárias—, foi tudo o que disse.
Os olhos de Anna se arregalaram de espanto quando Karl se
afastou, segurando em sua mente a imagem da alegria inegável da
garota.
Anna se esforçou para não parecer atordoada. Ninguém nunca lhe
deu um presente antes. Mas Karl não disse que era um presente, ela
pensou. “Talvez sejam apenas temperos ou coisas para a nova cozinha.
Mas é suave. Se dobra e há um nó no meio.” Um barulho de ferro
interrompeu seus pensamentos: Karl estava arrastando algo preto e
pesado da frente da carroça. Houve outro som metálico quando colidiu
com outras coisas dentro. Uma por uma, ele arrastou todas as peças de
ferro do fogão até o final da carroça, antes de pular agilmente e erguer o
maior. O queixo de Anna caiu.
James saiu do celeiro naquele momento, polindo a coronha do rifle
com a manga da camisa. Ele viu Karl desaparecer na cabana com um
pacote.
— O que é isso? — Ele perguntou.
Karl se virou lentamente, seu rosto aparecendo por trás da peça de
ferro.
— É o novo fogão de Anna—, respondeu ele. Então, sem dizer uma
palavra, ele desapareceu na cabana.
“O novo fogão de Anna?”, pensou a garota.
“O novo fogão de Anna!”
“O novo fogão de Anna!”
Em caso de haver respondido: “É a nova tiara de diamantes de
Anna”, Karl não poderia ter surpreendido mais sua esposa. Ela seguiu
cada movimento de Karl com os olhos enquanto ele carregava partes do
fogão para a nova casa. A alegria cresceu em seu peito até que ela
pensou que sua camisa iria estourar nas costuras. Ela reprimiu a vontade
de seguir os passos de Karl e ver onde ficava o fogão e como conectava as
peças. Em vez disso, ela apenas ficou lá enquanto Karl ia e vinha,
cuidando de seu trabalho com cuidado e mantendo o olhar desviado de
sua esposa. Por último, o tubo apareceu debaixo do assento da carroça.
Era preto prateado, brilhante, limpo. Anna não aguentava mais.
— Posso pegar esses pacotes, Karl? — Ela perguntou. "Posso tocar
no meu fogão? Posso tocar neste presente? Mesmo que seja uma parte...
para ter certeza de que meus olhos não me enganam."
— Você não tem que me ajudar. Eu queria que você carregasse
apenas aquele pequeno pacote.
— Oh, mas eu gostaria!
Karl parou, entendeu e entregou as seções do tubo do fogão; o
prazer aumentou nele ao vê-la tão feliz. As sardas ficavam lindas sob os
olhos castanhos animados.
— Tem mais, Anna—, disse ele.
— Mais?
— Sim. Quando se compra um novo fogão, parece que eles incluem
essas novas panelas. Dizem que cozinham melhor que as de ferro
fundido e são mais leves de carregar. Elas estão na caixa.
— Novas panelas? — Anna perguntou, incapaz de acreditar nele.
— Na caixa—, repetiu Karl, gostando de sua descrença.
— Elas são de cobre?
— Não, um material chamado louça japonesa.
— Louça japonesa?
— Dizem que os alimentos não queimam tão facilmente como o
cobre e não enferrujam como o ferro porque estão cobertas de verniz.
Ouvindo falar de comida queimada, os olhos de Anna pousaram no
pacote. Abstraída, ela raspou o papel com a unha, lembrando-se de todas
as vezes em que queimara os jantares do pobre marido. Karl observou
enquanto Anna baixava os olhos e se perguntou o que ele havia dito,
desta vez, para desapontá-la.
Imediatamente, James interveio.
— Nossa, Karl! Anna tem sua cozinha e todas aquelas panelas e eu
estou com o rifle! Eu gostaria que você fosse à cidade com mais
frequência!
Karl forçou um sorriso.
— As panelas são inúteis se não tiverem comida dentro.
— Quando vamos caçar?
— Quando a cabana estiver pronta e tivermos colhido todos os
vegetais.
— Os legumes estão prontos. Anna e eu os colhemos enquanto você
estava fora.
— Nabos também? — Karl perguntou surpreso.
— Claro que nabos também. Nós os lavamos e guardamos no porão,
e Anna agora está cozinhando alguns para o jantar.
— Ah sim? — Karl olhou para sua esposa, que estava corando. —
Minha Onnuh está cozinhando nabos?
Cada vez que Karl a chamava de "minha Onnuh", assim, o sangue
batia em suas bochechas. Mas James ainda estava balbuciando.
— Você estava certo sobre os nabos. Nunca vi tão grandes na
minha vida!
— Que te disse? — Karl o repreendeu alegremente. Então, baixando
a voz, repetiu—: Nabos, he?
Mas quando Karl foi para a cabana com a caixa de panelas no
ombro, Anna se virou para James e ordenou a ele em um sussurro
nervoso:
— James Reardon, não meta o nariz no meu ensopado de nabo, está
me ouvindo?
— O que foi que eu disse? — James perguntou, surpreso com o
ataque repentino de Anna em seu comentário.
— Não te preocupes! — Ela sussurrou para ele—. Os nabos são
assunto meu!
Naquele momento, Karl voltou. Ele ergueu um pouco as calças na
altura da cintura e então se virou para o lugar vazio onde a casa da
primavera ficava.
— Eu estava esperando que me contassem o que havia acontecido
com o manancial. Mas como não me dizem nada, devo perguntar.
Os nabos foram esquecidos, enquanto Anna e James se
entreolharam com um sorriso astuto e cúmplice.
— A casa foi destruída, Karl—, James disse com a maior
simplicidade.
— Como é que se destrói uma casa? Enquanto estamos sentados ali
com os baldes?
— Eu a fiz voar para o céu quando atirei no urso.
Mesmo que vivesse tanto quanto os bordos virgens de Karl, com
sua abundância de néctar, James nunca esqueceria o doce néctar daquele
momento... a expressão no rosto de Karl, seu queixo caiu em descrença,
seu próprio orgulho crescente, sua satisfação por ter feito o comentário
como se fosse de passagem, de uma forma tão viril.
E se Karl vivesse tanto quanto seus bordos, ele sempre levaria na
memória a impressão daquele momento: o menino segurando o novo
Henry de repetição, tentando parecer indiferente quando o orgulho
irradiava de seu semblante; suas mãos ossudas colocando o rifle em
posição à sua frente, como se dissessem: "Isso não é nada difícil."
— Um urso?
— Certo.
— Você matou um urso?
— Bem, não sozinho. Anna e eu atiramos nele juntos—, disse James.
Não havia indiferença simulada agora. As palavras jorravam por trás do
largo sorriso em seus lábios—: Não é, Anna? Estávamos dormindo e
sentimos todos aqueles ruídos e arranhões e parecia que alguém estava
tentando morder a porta, então tentamos descobrir o que era e
imediatamente se dirigiu para a casa do manancial e você deveria ter
ouvido todo aquele barulho, Karl! Acho que ele teve dificuldade para
passar pela porta e, quando o fez, partiu-a em mil pedaços e foi aí que
ouvimos todo aquele barulho e ele começou a beber o caldo das
melancias, depois de ter partido quase todos os potes. Então, eu disse a
Anna para acender uma das tochas que sobraram de quando ela se
perdeu, e Anna a carregou na frente de nós dois para cegar o urso para
que pudesse disparar um bom tiro nele, antes que a fera tivesse a chance
de pensar duas vezes. Porque uma vez você disse que quando um urso
sabe onde encontrar comida, ele volta de vez em quando, e a única
maneira de pará-lo é matando-o; Então foi isso que eu fiz, Karl. Eu o
acertei bem no meio dos olhos e não sobrou muito da cabeça depois que
eu terminei! — Finalmente, James parou, sem fôlego.
Karl estava pasmo. Ele inclinou os ombros e a cabeça para a frente.
— Você e Anna fizeram tudo isso?
— Certamente que sim. Mas você sobrecarregou o rifle e ele explodiu
a parede oposta, completamente. Também me fez voar, não foi, Anna? —
Mas antes que sua irmã pudesse acenar com a cabeça, James foi rápido em
adicionar—, Mas Anna me fez prometer que assim que eu disparasse o
primeiro tiro, eu correria para me proteger em casa o mais rápido que
minhas pernas permitissem. Juro para você, Karl, não tinha certeza se meus
pés ainda estavam saudáveis depois que a arma me jogou no chão. Você me
disse que ela chutava, mas eu não esperava que ela chutasse como uma
mula!
Karl estava começando a registrar o impacto de tudo isso. E se
James tivesse falhado? Se a arma não tivesse disparado? Ele sentiu um
nó no estômago ao imaginar as cenas mais horríveis.
— Rapaz, você sabia que foi só a minha explosão que me fez soltar
a minha fúria sobre você, daquela vez no pântano, quando eu disse que
você estava demorando com o rifle. Mesmo se você tivesse deixado o
urso comer tudo ali, eu não o teria repreendido, desde que os tivesse
encontrado a salvo quando voltasse.
— Mas estamos seguros—, raciocinou o menino.
— Sim, estão seguros, mas por causa do meu comportamento tolo,
fiz você correr o risco de se provar, quando todo esse tempo você estava
fazendo isso.
— Não foi por causa do que aconteceu no pântano, Karl, realmente.
Foi... bem... não sei como dizer. Era um pouco como quando você diz a
Anna: "A porta deve estar voltada para o leste." Tudo que eu conseguia
pensar era: "Um homem deve proteger sua casa."
Uma vez proferida, a maturidade dessa declaração simples atingiu
James diretamente. Ele já havia começado a cruzar o limiar da idade
adulta.
— Karl...— James disse agora, de repente certo da verdade do que ia
dizer—. Eu teria feito isso de qualquer maneira, mesmo se não tivesse
visto um único pântano ou uma única baga em minha vida.
Anna olhou para os únicos dois homens que amava; chegaram a
um acordo entre si e traçaram o caminho para um futuro marcado pelo
respeito e pela solidariedade. Apesar de sua imensa alegria, seu coração
clamava por alcançar um nível semelhante de compreensão com Karl.
Mas a trégua entre eles seria adiada por mais um momento, pois Karl
estava dizendo, com um leve sorriso:
— Bem, agora me mostre aquele urso cuja cabeça você explodiu e
que só veio negociar um pouco de calda de melancia.
James sorriu e saltou, dizendo:
— Ele está aqui atrás da casa de adobe. Queríamos colocá-lo onde
você não pudesse ver da entrada e surpreendê-lo quando estivéssemos
prontos.
Karl começou a segui-lo, mas percebeu que Anna havia ficado para
trás.
— Não vem, Anna? — Ela hesitou um momento antes de Karl
acrescentar—: A que leva as tochas também deve vir. Se não fosse por
você, não haveria tochas na casa.
“Ele estava brincando com ela?”, Anna se perguntou; seu coração
deu um pequeno salto. Oh, ele estava brincando com ela por se perder
na plantação de morango! Há quanto tempo Karl não brinca com ela!
Karl se virou para seguir James, e Anna olhou para as botas de cano
alto do marido, lembrando-se do primeiro dia em que se conheceram;
como ela tinha ansiado por olhar para o rosto dele, mas só conseguia
andar, os olhos fixos nas botas, imaginando o que Karl pensaria dela.
Enquanto caminhavam pela casa de adobe, Karl viu não apenas o
corpo do urso preto pendurado em uma árvore; Havia também um veado
macho de cauda branca, pendurado pelos calcanhares. Karl parou e
olhou para a cena sem acreditar, enquanto Anna e James sorriam
conscientemente. A reação de Karl foi exatamente a que eles haviam
imaginado.
— Mas de onde veio esse veado?
— Oh, é de Anna—, James disse casualmente, sufocando uma
risada.
— Vocês dois estão cheios de surpresas hoje.
— Bem, na verdade, o cervo foi uma surpresa para nós também—,
admitiu James.
Anna estava mexendo na terra com a ponta do sapato.
— Quer me contar o que aconteceu? — Ele olhou sua esposa nos
olhos.
— Diga a ele, James.
— Alguém me diga, não importa quem seja.
— A razão pela qual Anna não quer te contar é que ela tem medo
que você fique zangado com ela por causa das batatas.
— Que batatas?
— As que os índios roubaram.
A confusão de Karl aumentava a cada minuto. No entanto, Anna
ainda estava brincando com seu sapato no chão, e Karl sabia que não ia
tirar nada dela.
— Vejo que devo perguntar de novo—, disse Karl, jogando junto—.
Quais batatas os índios roubaram?
James completou a história.
— As da Horta. Colhemos todas as batatas, lavamos e colocamos em
sacos de estopa, mas esquecemos o que você nos falou sobre os índios:
que levam o que querem, desde que não esteja protegido. Acho que, no
fundo, nunca acreditamos em você. Então, arrumamos todos aqueles
sacos de batata contra a parede da cabana, sem pensar que havia pressa
em colocá-los no porão. Nós os deixamos durante a noite, e quando nos
levantamos na manhã seguinte, um dos sacos havia sumido. Imaginamos
que os índios o tenham levado.
“Anna tinha certeza de que você ficaria bravo porque disse que
precisávamos de todas as batatas para enfrentar o inverno. Enfim, ela
estava muito preocupada e não sabíamos como pegar as batatas de volta.
Então esta manhã quando nos levantamos, aquele cervo apareceu, ali,
perto do urso. Vejo que os índios são exatamente como você os
descreveu, Karl. Eles têm o senso de honestidade mais estranho que eu já
conheci. O cervo deve ser a forma como nos compensaram pelas batatas
que levaram.
— Claro que é isso. Acho que terão que comer mais carne do que
batatas neste inverno, só isso. Poderia fazer uma pergunta?
— Claro—, James respondeu.
— Se Anna ficou tão apavorada com os sacos de batata que
desapareceram, por que o resto ainda está aí?
— Porque nenhum de nós poderia levá-los para o porão. Achamos
que as batatas estariam arruinadas se as arrastássemos e as jogássemos
de lado. Fizemos o que podíamos para trazê-las aqui. Assim, Anna pegou
um pedaço de madeira da pilha e empalou-o na frente dos sacos durante
a noite. Disse que se os índios gostavam tanto de batata, que as levassem
e ela comeria os nabos!
— Mas eu pensei que Anna não gostasse de nabos—, disse Karl,
olhando para ela.
Aliviada por Karl não parecer se importar muito com as batatas
roubadas, Anna se atreveu a olhar para ele, mas insistiu em ficar calada.
Karl voltou sua atenção para as duas árvores.
— Isso explica sobre o veado. Mas como lidaram com esse outro
monstro?
Encorajado pelo jogo, James respondeu:
— Oh, foi muito difícil subi-lo lá, não foi, Anna?
Ela estava perto de Karl há tempo suficiente para resistir ao
impulso de fazer uma brincadeira com ela!
— Agora não tentem me dizer que vocês dois amarraram aquele
urso lá em cima, não dois magricelas...— Mas Karl imediatamente se
corrigiu—: Não dois filhotes como você.
James não podia esperar mais para continuar sua história. Como
antes, as palavras jorraram, como o manancial da terra, perto deles. Sem
interrupções.
— Quando atiramos nele, o urso caiu na nascente e percebemos
que estávamos em apuros. Se o deixássemos lá, a água apodreceria
rapidamente; Peguei seu machado e derrubei as paredes restantes, e
Anna e eu retiramos as tripas ali mesmo. Anna sentiu náuseas, mas eu
disse a ela que, do contrário, a carne não serviria mais pela manhã.
Lavamos bem o corpo e deixamos lá; Então, a primeira coisa que fizemos
de manhã foi ir à casa de Olaf, e Erik veio com a parelha e o pendurou
aqui com a polia e o cordame. Erik diz que o animal deve pesar cento e
setenta quilos. O que você acha?
Mas Karl estava pensando: “Anna arrancou as vísceras do urso? No
meio da noite, à luz de tochas, vestida com sua camisola, talvez? Minha
Anna limpou aquele urso? Anna, que ficou enjoada ao ver como um
guaco era recheado?”
— Eu diria mais como duzentos quilos—, Karl finalmente
respondeu.
— Talvez ele tivesse chegado a duzentos com a cabeça. Claro que
Erik nunca o viu com a cabeça. Rimos muito quando ele veio até o
manancial e encontrou o urso sem cabeça. Enquanto subíamos, Erik
repetia: “Ótimo! Vocês dois conseguiram um enorme e belo tapete de
urso!”
Muito satisfeito com sua história, James continuou a divagar. Ele
continuou repetindo "Erik isso" e "Erik aquilo" até que Karl ficou
irritado ao ouvir aquele nome tantas vezes. Mais tarde, quando soube
que Erik tinha ficado para almoçar, Karl lembrou-se de como Anna se
agarrou ao pescoço do vizinho, na noite em que ele a resgatou dos lobos.
Mas assim que James começou a falar sobre isso, Anna lembrou que
tinha nabos cozinhando e se dirigiu para a casa.
“Maldito seja, James!”, pensou ela enquanto se afastava. "Tem que
continuar e continuar, como se Erik tivesse ficado aqui o dia todo!"
Durante o jantar, Karl e James conversaram sobre ursos e rifles.
Eles deram uma olhada mais de perto no Henry de repetição calibre 44:
como a arma aguentava quinze tiros em seu compartimento de tubo,
como o ajuste apertado da coronha impedia que o gás escapasse e como
essa nova arma logo substituiria os obsoletos Sharps de Karl. Terminada
a refeição, o Henry ocupou o lugar dos pratos. Os dois homens
desmontaram o rifle, peça por peça, e o remontaram, enquanto Anna
ouvia palavras estranhas novamente e era deixada de fora da conversa:
câmera, bloqueio, cunha, gatilho, coronha, amortecedor. A garota
começou a ficar impaciente.
A noite chegou e Anna ficou curiosa para descobrir o que havia no
pacote que Karl trouxera para ela. Com toda a excitação do fogão e das
panelas e do rifle e do urso e do veado, o pacote havia sido esquecido. Na
hora do jantar, quando todos estavam em casa, Anna decidiu que abriria
quando estivesse sozinha. Enquanto isso, o pacote permaneceu na cama,
fechado.
Mas Karl a surpreendeu ao dizer:
— Devo verificar os cavalos. Você vem comigo, Anna?
Anna pegou um casaco, pois as noites estavam mais frescas agora.
Além disso, assim ela teria um lugar para colocar as mãos
sobressalentes. Ela as enfiou nos bolsos e dobrou as lapelas do casaco
uma sobre a outra. Karl acendeu o cachimbo e eles caminharam até o
celeiro. Na metade, Karl disse:
—Você esteve muito ocupada enquanto eu estava fora.
— Assim foi.
— Pensei que quando chegasse em casa teria que colher as batatas
e os nabos.
— Oh, isso foi ideia do James. Ele comentou que você disse a ele que
eles estavam prontos; caso contrário, eu não teria notado. Lamento que
os índios tenham levado as batatas.
— Vejo que não precisaremos delas. Percebo como estavam
ocupados quando olho em volta e vejo como a colheita foi boa. Haverá
muito para o inverno, muito...
— Bem, é um alívio. Não tinha certeza de quão importante era um
saco de batatas. Mas James se esqueceu de dizer que ainda havia algumas
rutabagas e cenouras para arrancar. Ainda não terminamos com os
vegetais.
— Sim, os vejo ali fora. Mas eles vão aguentar. As cenouras gostam
de ficar na terra para se adoçarem, depois das primeiras geadas; era o
que meu pai costumava dizer. Ainda temos muito tempo.
Perto do celeiro, eles se viraram. Anna sentiu que seus pés não
queriam levá-la lá. Ela se virou e começou a vagar, como que por
acidente, na direção do pomar, que estava banhado pelo luar; seus raios
branco-azulados destacavam o contorno da parte visível das cenouras,
as folhas das rutabagas e as vinhas de abobrinha.
— Fiquei impressionado ao chegar em casa e encontrar aquele urso
pendurado na árvore. Você foi tão corajosa quanto o garoto, ao
encorajá-lo a sair, sem saber o que o esperava.
— Não me senti nem um pouco corajosa. Se dependesse de mim,
teríamos ficado onde estávamos, imaginando o que havia lá fora. Não foi
minha ideia abrir a porta.
— Mas você fez, Anna. O que quero dizer é que você fez.
Anna encolheu os ombros magros.
— O que mais poderia fazer? Deixar James sair sozinho? Eu lhe digo
que aquele menino é teimoso como uma mula. Se você o tivesse visto,
Karl... Ele estava disposto a sair sozinho, se eu não o acompanhasse. Eu
disse a ele que não me importava se o urso comesse tudo ali, mas ele
estava decidido. Ele repetia: "Karl diz isso" e "Karl diz aquilo", e não
havia como mudar de ideia.
Karl ficou comovido ao perceber a influência que exercia sobre o
menino e em que medida James respeitava seus ensinamentos.
— Ele é um ótimo menino—, disse ele pensativamente.
— Sim.
— Anna, se algo tivesse dado errado e o urso tivesse machucado
algum dos dois, eu não teria sido capaz de suportar.
As palavras amargas e impensadas que ela havia dito a Karl sobre o
urso voltaram para assombrá-la. Elas a machucaram mais, agora, do que
machucaram Karl quando ela as disse. Ela lutou para encontrar as
palavras certas, precisando desesperadamente que as coisas corressem
bem entre eles novamente.
— Karl... o que eu disse antes de você partir... sobre o urso...
— Ouça-me, Anna. Foi minha própria estupidez que o trouxe aqui.
Já pensei sobre isso e não consigo entender por que um urso veio aqui
para fazer tanta confusão, quando nunca antes o havia feito. É porque eu
estava com muita raiva quando saí do pântano, que não usei o bom
senso. Acho que devo ter deixado um rastro de frutas vermelhas até
nossa porta. Quando um homem perde a cabeça dessa maneira, ele não
consegue raciocinar. Acho que foi isso que fiz naquele dia. Até coloquei
em perigo meu próprio cavalo, fazendo-o marchar em um ritmo
acelerado, sem ferraduras. E quando me apressei, espalhei as bagas,
porque devia ter coberto os cestos e não o fiz. Em vez disso, tolamente
conduzi o urso em direção à nossa casa, como se o tivesse convidado
com as frutas. Logo em seguida saí e os deixei sozinhos para cuidar do
animal.
— Isso não é verdade, Karl. Acho que você diz isso agora, por causa
do que eu disse antes de você partir. Eu nunca deveria ter dito essas
palavras e me arrependi assim que saíram da minha boca. Não foi minha
intenção, Karl.
Ela olhou para ele com pesar.
— Isso foi o que Kerstin disse.
— Kerstin? — Anna ergueu as sobrancelhas com irritação—. Você
contou a Kerstin o que eu disse?
O rosto de Anna parecia brilhar no escuro.
— Nós conversamos, Kerstin e eu. Ela me disse que você era
humana e que falava sem pensar, como todos fazemos às vezes.
A ideia de Karl trocando confidências com Kerstin a magoou tão
profundamente que Anna pulou a cerca e sentou-se de costas para Karl,
de modo que não pudesse ver seu rosto ao luar. “Ele deve estar mais
perto de Kerstin do que eu pensava”, pensou ela, para falar com ela
sobre nossos casos particulares.
— Você passou a noite nos Johansons, Erik disse.
“Erik disse”, pensou Karl, deprimido.
— Sim. Eles ficaram muito felizes em me receber.
“Certamente!”, Anna pensou amargamente. "Especialmente um
dos Johansons."
— Karl—, Anna começou, querendo deixar a questão de Kerstin de
lado para poder fazer as pazes, — obrigada pelo fogão.
— Você não tem que me agradecer, Anna. Kerstin me chamou de
sueco teimoso, e eu sei que fui, pois dizia que não precisávamos de
cozinha. Conversamos muito, Kerstin e eu, e ela me fez ver que
deveríamos ter uma.
Anna ficou tensa com essas palavras. Ela ficou profundamente
magoada ao pensar que Karl havia decidido comprar a cozinha apenas
quando a deliciosa Kerstin achou que ele deveria! Não porque sua
própria esposa o tivesse pedido. Toda a alegria que ela sentia se foi. Ela
se pegou pensando que queria atacar Karl e machucá-lo, para se vingar.
— Você se atreveu a estripar aquele animal, Anna? — Karl disse
com admiração.
— Eu me sentia enojada o tempo todo! — Ela respondeu
abruptamente—. Não quero cheirar um urso enquanto viver!
Confuso com sua frieza repentina, Karl continuou:
— Você vai ter que cheirar este por um tempo. Amanhã James e eu
teremos que lidar com a carne. Então você tem que derreter o sebo antes
de preparar as velas para o inverno.
— Eu acho que isso significa que vai demorar mais alguns dias
antes de abrir a porta da cabana. Quanto tempo mais, Karl?
— Amanhã vou trabalhar com a carne. Vai demorar um dia para
fazer as janelas. E quem sabe mais um dia para fazer a porta e colocar o
fogão. E teremos que tirar as coisas da casa de adobe também, e terei que
preparar as novas camas de corda e o aparador que prometi para a
cozinha.
Anna saltou da cerca, alisou as calças e disse em tom cortante:
— Bem, o aparador pode esperar. Eu quero que você me tire
daquela casa de adobe assim que puder. Estou farto daquela lareira
fedorenta e de viver como um texugo na sua toca!
Surpreso, Karl não pôde deixar de se perguntar o que causou
aquela mudança em Anna quando ela se sentou na cerca. Ela tinha sido
tão doce assim que eles deixaram a casa... E ela não mencionou nada
sobre o pacote que ele trouxe para ela.
Quando Karl foi para a cama, Anna já estava lá. Ele queria com toda
sua alma segurá-la em seus braços e acabar com essa luta. Mas ela estava
longe, do outro lado da cama. Tentando amolecê-la, Karl murmurou:
— Anna, você gostou do que eu trouxe no pacote?
— Oh, eu não tive tempo de abri-lo, ainda—, ela retrucou, e Karl
retirou a mão que estava prestes a acariciar suas costas.
Anna podia sentir o cheiro do cachimbo, que ainda pairava no
cabelo de Karl. Inclinando-se tristemente ao lado dele, ouviu um assobio
inconfundível: era a coruja de orelhas compridas, olhos amarelos e rosto
avermelhado, que estava empoleirada em um galho, acima da pilha de
madeira: “gui-i-i-i, iu, gui-i-ii, iu”. Quando Anna não conseguiu mais
fingir que estava dormindo, ela afundou de volta no colchão, como Karl.
Foi então que surgiu a pergunta.
— Você preparou comida para Erik? — Perguntou Karl.
Anna sentiu seu coração bater, com um ritmo como o canto de
uma coruja.
— Bem, Erik nos ajudou com o urso. O que mais poderia fazer?
Mas agora, um novo sinal de esperança renasceu em Anna. Karl
estava aparentemente com ciúmes.
CAPÍTULO 20
Na manhã seguinte, Karl e James saíram de casa para instalar,
perto do manancial, uma tábua na qual cortariam o urso.
Assim que eles saíram, Anna pegou o pacote e abriu-o com dedos
ansiosos. Dentro, ela encontrou o que tanto desejava. Havia um corte de
um lindo tecido rosa, vários carretéis de linha e um sabonete de
camomila. Quando ela abriu o pano, o sabonete, que estava entre as
dobras, caiu, e Anna o pegou com uma das mãos, surpresa. Ela o levou ao
nariz; ele tinha um cheiro fresco, floral e feminino. Levantando o
guingão, ela percebeu que também estava impregnado com o mesmo
perfume.
Ela olhou para suas calças. Então ela olhou para a nova cabana, da
porta aberta da casa de adobe. Ela pensou nas janelas de vidro e se
perguntou se a intenção de Karl era que o tecido fosse usado nas
cortinas. Ele quis dizer isso quando se referiu às coisas necessárias?
Quem espiaria pela janela, de fora, naquela solidão, exceto algum
guaxinim ou um pombo?
Anna ficou desapontada com as intenções de Karl. Teria desejado
tanto que o tecido fosse algo pessoal! Lembrando-se do último
comentário de Karl na noite anterior e da maneira como ele perguntou
sobre Erik quando ele ficou para jantar, ela poderia jurar que seu marido
estava com ciúmes. No entanto, por que ele se mostrava tão
entusiasmado com Kerstin, quando tinha ciúmes de Erik? Não fazia
sentido.
Não havia dúvida sobre o significado pessoal do sabonete
perfumado. E, afinal, Karl entregou o pacote a ela sem impor nenhuma
restrição. Talvez Anna pudesse usar a ocasião para preencher a lacuna
entre os dois, de uma vez por todas. Foi ela quem recebeu o presente
com frieza e, consequentemente, o desprezou. Seria possível que Karl
esperasse que Anna desse o primeiro passo?
Um plano começou a se formar em sua mente.
Empolgada, ela estendeu o pano sobre a cama e começou a medi-lo,
com a palma da mão aberta e apoiando o nariz. Ela descobriu que havia
mais do que ela pensava. O suficiente para as cortinas e um vestido?
Sorrindo para si mesmo, ela pensou: “Meu Deus! Se o tecido der, vou
estar igual às minhas cortinas!”
Karl viu Anna cruzar a clareira e entrar na cabana. O que estaria
fazendo lá? Talvez tenha ido admirar o fogão, pensou ele, esperançoso.
Ele estava tão orgulhoso de ter comprado o fogão para ela... Com aquele
gesto, Karl esperava conquistá-la, dizer que a aceitava. No início, Anna
parecia muito satisfeita. Mais tarde, porém, no jardim, algo aconteceu.
Ele se lembrou dos olhos de Anna, grandes e redondos como os de um
cocker spaniel, quando o viu pousar os pacotes. Ele se lembrou do tom
cortante de sua voz mais tarde, e percebeu que sua intenção havia sido
frustrada.
Ele se virou para continuar seu trabalho, mantendo um olho na
entrada da cabana para ver Anna quando ela saísse novamente.
Anna estava lá dentro, medindo os painéis de vidro, encostada na
parede da lareira. Um pouco depois, voltando para a casa, do outro lado
da clareira, viu Karl interromper o corte da carne para olhar em sua
direção. Ela foi encorajada a acenar para ele e continuou seu caminho,
para começar a cortar as cortinas. Quando Karl e James chegaram para
almoçar, havia guingão por toda parte. Anna já tinha dois comprimentos
cortados para cada janela e estava ocupada com a agulha e a linha.
— Obrigada pelas coisas necessárias, Karl—, disse ela com renovada
doçura—. Elas serão cortinas magníficas.
Karl sentiu-se fraco. Cortinas? Lá, no meio do deserto? Mas ele não
podia contar a Anna que comprara o tecido para fazer vestidos para ela.
Se o fizesse, Anna se sentiria como se o tivesse desapontado novamente,
cortando aquele tecido para as cortinas. Ele continuou seu trabalho
naquela tarde, muito desanimado. Ele teria que continuar a vê-la com
aquelas calças pelo resto do inverno? Ou ele teria tempo para outra
viagem à cidade antes de começar a nevar?
Assim que Karl e James saíram, Anna pegou o vestido sem costura
para servir de modelo. Ela iria adaptá-lo; acrescentaria altura ao pescoço
e afrouxaria as mangas para torná-lo mais prático; a saia a deixaria mais
armada, mais no estilo dos vestidos que Katrene e Kerstin usavam.
Naquela tarde ela conseguiu cortar as partes do vestido novo. Mas por
alguns dias, tudo que Karl viu ao chegar em casa foi sua esposa,
costurando as cortinas. Anna escondia o vestido, fácil de dissimular, sob
os painéis sobre seu colo.
Karl e James tiveram que cuidar não só de picar a carne do animal,
mas também de processar as duas peles. Karl ensinou James a descarnar
o couro, esticando-o sobre uma árvore caída, mas ainda presa ao tronco.
Juntos, eles tiraram toda a gordura e nervos; em seguida, rasparam a
superfície com as ferramentas adequadas, enquanto Karl advertia o
menino para não marcar o couro nem expor as raízes do pelo. A tarefa
era cansativa e o cheiro desagradável. Depois que as peles foram
submersas em uma solução de alvejante, onde permaneceriam por dois
dias, os dois homens se prepararam para um banho na lagoa.
Anna recusou o convite para se juntar a eles. Ela disse que iria ficar
e ter o jantar pronto para eles. Decepcionado, Karl se perguntou como
fazer com que Anna fizesse as coisas que eles gostavam de fazer juntos.
Ele queria perguntar a Anna se ela havia encontrado o sabonete dentro
do pano, mas tinha medo de ofendê-la: a garota poderia pensar que o
marido estava insinuando que precisava do sabonete.
Consequentemente, nem Karl nem Anna disseram nada sobre sabonete
de camomila. Mas ele detectou o cheiro de sabonete caseiro e pensou
que sua esposa desprezava sabonete perfumado; ela certamente estava
usando o outro - que Anna tinha sido inflexível sobre chamar de "sebo" -
apenas para irritá-lo.
No dia seguinte, porém, Karl pareceu descobrir algo sobre Anna,
que passou a chamar de "atrevido". Era como se a garota estivesse
brincando sobre algo que ele não entendia muito bem. Caminhava pelo
lugar com um ar inegável de satisfação. Por que, ele não conseguia
descobrir.
Naquele dia ele começou a inserir as janelas. Era um trabalho
delicado, exigindo grande precisão na hora de fazer cada uma das
aberturas, pois se fossem muito grandes, os marcos ficariam muito
soltos quando a temperatura os fizesse expandir, e se fossem muito
pequenos, os vidros provavelmente quebrariam quando os marcos se
contraíssem. Após fazer a primeira abertura, Karl foi até a tora, onde as
toras de álamo amarelo estavam empilhadas. Embora o ar do outono
estivesse frio, Karl afrouxou a camisa, pois fazia calor ao sol. Vendo que
precisava afiar o machado, tirou a pedra e foi trabalhar, quando viu
Anna sair do manancial com uma jarra e subir a rampa até onde ele
estava. Ele a observou se aproximar, sem prestar muita atenção em seu
trabalho. Ele se perguntou o que Anna estava fazendo atualmente.
Houve momentos em que a garota parecia praticar a arte de flertar com
ele. No entanto, na noite anterior, ela foi a primeira a se acomodar ao
lado dele na cama. Ele estava totalmente confuso, sem saber o que Anna
queria dele. Agora lá estava ela, subindo a rampa com uma jarra cheia de
água, vestida com aquelas calças odiosas. Ele estava cansado de vê-las.
Quando ela se aproximou, entregou-lhe o jarro e disse:
— Karl, pensei que você estaria com sede, aqui no sol.
Ela levantou os olhos timidamente e olhou para a testa suada de
Karl e os fios úmidos de cabelo que corriam por ela.
— Obrigado, Anna, estou com sede—. Ele pegou o recipiente e
olhou para ela por cima da borda, enquanto erguia a cabeça e bebia—.
Como estão suas cortinas? — Ele devolveu a caneca.
— Bem—. Ela pendurou o jarro no dedo indicador e o balançou
como o pêndulo de um relógio, a outra mão repousando
provocativamente em seu quadril—. E como estão suas janelas?
— Bem—. Ele fez o possível para reprimir um sorriso.
Anna olhou em volta inocentemente e olhou para as toras, o
machado e a pilha de lascas.
— O que você está preparando aqui?
— Estou partindo esse choupo amarelo para fazer as molduras das
janelas.
Anna olhou em volta, viu uma pilha de pedras nas proximidades e
perguntou:
— Posso ficar um pouco observando?
Não ocorreu a Karl por que Anna iria querer ficar lá, mas ele
assentiu. Ele estava usando duas cunhas e um pequeno martelo de
madeira. Anna sentou-se no monte de pedras que sobraram da lareira,
observando Karl trabalhar. Era um tanto desconcertante tê-la sentada
ali, com aquela máscara de inocência cobrindo o rosto. Ele queria saber o
que estava tramando.
Ele ergueu o machado, afundou-o na ponta de um tronco e inseriu
a cunha, tomando cuidado para que não houvesse nós que pudessem
desviar a fenda. Quando o primeiro pedaço caiu, ele o pegou, olhou para
Anna e disse:
— O choupo amarelo é muito fácil de partir. A única coisa a ter em
mente é que não há nós onde os galhos costumavam crescer.
Anna estava sentada despreocupadamente nas pedras, as pernas
cruzadas e um pé balançando.
— Eu não sou James, Karl—, ela disse em um tom doce como o mel
—. Não preciso aprender a arte de fazer mesas. Só saí para olhar, só isso.
Gosto de ver você trabalhar com a madeira.
— De verdade? — Karl perguntou, erguendo as sobrancelhas em
espanto.
Anna continuou balançando um pé e deixou seu olhar vagar sobre
o marido de uma forma muito sugestiva.
— Sim, eu gosto. Parece não haver nada que você não possa fazer
com a madeira. Adoro ver suas mãos trabalhando com um pedaço, como
agora. Me faz pensar que você está acariciando-o.
Karl deixou cair a mão da tábua de madeira recém-cortada como se
de repente ela tivesse soltado pedaços. Anna deu uma risada leve e se
acomodou em seu assento improvisado, puxou os cotovelos para trás e
ergueu o peito.
— Seus ombros nunca se cansam, Karl?
— Os ombros? — Ele repetiu como um papagaio.
— Às vezes eu olho para você e não acredito que você trabalha
tanto tempo com seu machado e não se cansa—. Ela brincava com o
cabelo de vez em quando, levantando-o sobre a nuca e deixando-o cair.
— Um homem faz o que deve ser feito—, disse Karl, tentando se
concentrar em sua tarefa.
— Mas você nunca reclama.
— O que eu ganho reclamando? Uma tarefa leva certas horas de
trabalho, a reclamação não encurta essas horas.
Seus olhos seguiram cada movimento sinuoso e convidativo dos
músculos, sua voz arrastando provocativamente.
— Acho que você não reclama porque você gosta muito do que faz.
Karl manteve os olhos e as mãos ocupados com o álamo, mas uma
sensação alarmante pressionou seus nervos. Ele sabia que Anna estava
brincando com ele como o gancho de uma vara longa e resistente. Até
agora ele havia evitado ser pego por ela, mas era a primeira vez que ela
flertava tão abertamente.
Ela se inclinou para trás e o estudou por um momento com os
olhos estreitos, antes de dizer em um sussurro:
— É como olhar para uma dançarina, quando te vejo com seu
machado. Pensei nisso desde o primeiro dia em que te vi. Cada um de
seus movimentos é suave e elegante.
Tudo o que Karl conseguiu dizer foi:
— Foi assim que meu pai me ensinou; assim ensino ao garoto.
Seu rosto estava tão vermelho quanto parecia? Ele continuou a
trabalhar enquanto Anna seguia sentada, esticada ao sol, sem fazer
nada, olhando para ele de cima a baixo, até que Karl pensou que ele
perderia o controle do machado.
Finalmente a garota suspirou. Então ele cerrou os punhos e esticou
os braços ao lado do corpo em uma pose final sugestiva.
— Oh! — Ela exclamou com uma risada, enquanto movia uma das
pedras, que começou a rolar, arrastando outras com ela. Ela se levantou,
colocou as mãos nos joelhos e empurrou os seios e as nádegas para fora.
Exalou um suspiro.
— Bem, será melhor eu ir...
— Não se mexa, Anna! — Ele murmurou, em um tom de
advertência.
De repente, Karl desviou os olhos para a base do monte e olhou
para o local, tateando o chão em busca do machado.
A cobra não fazia nenhum som, não havia dado qualquer indicação
de que estava ali, tomando sol nas pedras. Mas quando parte da pilha
desabou, a víbora foi imediatamente exposta. Assustado e na defensiva,
o réptil se enrolou em torno de seu próprio corpo e ergueu a cabeça em
um arco oblíquo, anunciando o ataque iminente.
Anna olhou para baixo, seguindo os olhos de Karl assim que a
cauda enorme começou seu zumbido de alerta. Seu estômago se contraiu
e suas pernas se contraíram quando ela foi confrontada com aqueles
olhos amarelo-enxofre e pupilas elípticas de demônio.
Tudo aconteceu tão rápido que Anna mal teve tempo de o medo
paralisá-la. A mão de Karl encontrou o machado às cegas e, no segundo
seguinte, a cascavel se partiu em dois pedaços que não paravam de pular
e se contorcer enquanto Anna gritava, incapaz de tirar os olhos das
listras marrons e amarelas que serpenteavam pelo ar em contorções
grotescas de morte. Antes que a cobra mutilada caísse sem vida no chão,
os braços de Karl envolveram Anna e uma de suas mãos enormes
agarrou sua cabeça enquanto ele a erguia do monte de pedras.
— Anna... Oh meu Deus, Anna—, ele exclamou, sua boca
pressionada contra o cabelo da garota.
Anna foi tomada por soluços e, em seguida, por terríveis tremores
espasmódicos.
— Está tudo bem agora, Anna. A matei.
— Seu machado, Karl—, ela lamentou incoerentemente.
— Sim, eu a matei com meu machado. Não chore, Anna.
James veio correndo colina acima, atraído pelos gritos de Anna,
que perfuraram o ar silencioso da clareira, como o grito de uma coruja
branca.
— Karl, o que aconteceu? — gritou.
— Havia uma cobra. Mas está tudo bem agora. Eu já a matei.
— Anna está bem? — James perguntou, apavorado.
— Sim. Ela está segura—. Mas Karl continuou segurando-a contra
seu corpo.
Anna continuou nomeando o machado de forma incoerente,
enquanto Karl tentava acalmá-la. Ele queria levá-la até a pilha e
acomodá-la lá, mas o pânico a tinha paralisado.
— Seu machado—, ela gritou novamente.
— Anna, a cobra já está morta. E você está bem.
— Mas, K... Karl... — ela soluçou—, seu machado está... está no me...
meio... da sujeira.
E assim era. O aço afiado tão precioso, que nunca havia tocado em
nada além da madeira, tinha o cotillo meio enterrado no chão. Karl
olhou para ele por cima da cabeça de Anna, então fechou os olhos com
força e segurou o corpo trêmulo da esposa contra o peito.
— Sh... Anna, não importa—, ele sussurrou.
— Mas você d... você disse...
— Anna, por favor—, ele implorou—, não fale mais e deixe-me
abraçá-la.
Não havia chance de tentar uma abordagem íntima com Anna esta
noite. Ela estava em tal estado de agitação quando Karl a colocou na
cama que ele se sentiria culpado até de tocá-la com uma mão.
Karl e James estavam sentados, examinando os sinos que o menino
tinha separado dos restos do réptil. Quando James perguntou por que
uma cobra apareceu nesta época do ano, Karl explicou que, ao contrário
da crença popular, esses répteis não podiam suportar o calor do sol.
Durante o verão quente, eles se escondiam atrás das pedras. Mas quando
o outono ficava menos intenso, eles saíam para se aquecer, como se para
armazenar calor antes de hibernar.
— Além disso, eles se preparam para o inverno—, concluiu ele,
olhando para a cama onde Anna ainda tremia.
— Como nós, Karl, eh?
— Sim. Como nós, rapaz.
James também olhou para Anna e perguntou:
— Karl, quando vamos nos mudar?
— Talvez amanhã. Tenho que instalar o fogão, terminar de colocar
mais uma janela e fazer a porta. Mas eu vou cuidar disso, se você cuidar
de lavar os couros e deixar pronto para esticar depois. Acho que está na
hora de Anna ter sua cabana de madeira.
Mas no dia seguinte não terminaram o que haviam se proposto,
embora os dois trabalhassem como dínamos.
Algo disse a Karl que esta noite não era o momento certo para
fazer as pazes com Anna. Mais uma noite... mais uma noite, e eles
estariam na cabana pela primeira vez. Então ele faria o que ele mais
queria no mundo.
Durante aquele dia e o seguinte, quando ele ergueu os olhos,
muitas vezes encontrou Anna olhando para ele, fosse da clareira ou da
cabana, era a mesma coisa. Karl sabia que ela estava ansiosa por aquela
primeira noite também, quando eles dormiriam na casa que construíram
juntos.
Anna levou algo para ele beber novamente enquanto ele se sentava
ao sol na soleira da porta da cabana, alisando as tábuas para a porta.
Anna entrou na casa e, depois de permanecer ali por um tempo, muito
quieta e silenciosa, Karl a encontrou olhando para o sótão acima dela;
era branco e cheiroso, e tinha sua própria escada, que levava à cavidade
do sótão.
Naquele último dia, Karl instalou o fogão. As diferentes partes se
encaixam exatamente como as peças de um quebra-cabeça, mas Anna
não parecia gostar disso como ele pensava. Ela ficou um pouco tímida
depois que Karl matou a cobra e a segurou nos braços enquanto ela
gritava e tremia.
James estava trançando as cordas de sua cama enquanto Anna
trabalhava na dela e de Karl. Ele os ensinou a tecer e amarrar as fibras
vegetais grossas para formar uma corda grossa e forte.
Em um momento em que os dedos de James se enredaram e o
tecido se soltou, o menino perguntou a Anna como ela conseguia fazer
isso com tanta facilidade.
— Não me pergunte—, respondeu ela—. Pergunte ao Karl. Se há
alguém que sabe o que fazer com cordas de cama, é Karl.
Mas Anna em nenhum momento levantou a cabeça; Ela ainda
estava tecendo sua própria corda, sentada no meio do chão da cabana,
de pernas cruzadas e coberta por aquelas calças horríveis. Até James
poderia ter suspeitado de um trocadilho, se Anna fosse mais engraçada
ou mais animada. Mas a garota apenas mordeu o lábio enquanto se
dedicava à sua tarefa.
Enquanto isso, Karl terminou com a porta. Ele usou o carvalho
inquebrável, o que lhe deu muito mais trabalho para cortar do que
qualquer outra madeira, devido à sua dureza. Karl trabalhou com muita
paciência, dando forma aos painéis e alisando-os, montando barras
transversais onde os painéis caberiam.
Depois do almoço, James e Anna começaram a mover seus
pertences pessoais para a nova casa. Eles carregaram pratos, tigelas e
barris meio vazios, deixando os barris cheios de farinha para Karl. Karl
observou-os passarem em fila por ele enquanto fechava a porta e
ajustava o último pino de madeira. Então ele começou a amarrar as
cordas que haviam se soltado, pois só precisavam ser ajustadas para
virar camas.
Anna, um pouco retraída, às vezes um pouco tímida, continuava a
carregar coisas para a cabana. Em uma dessas viagens, ela parou no
caminho para endireitar as costas, depois de carregar uma trouxa
pesada. Karl a observou enfiar a blusa dentro das calças, respirando
fundo e jogando o peito para frente, e ficar assim por um tempo, sem
perceber que a estava observando. Então ela pareceu suspirar (embora
daquela distância ele não pudesse ouvir nenhum suspiro) e enfiou a mão
na calça, na frente e atrás, para reajustar ostensivamente a barra da
camisa.
Ao fazer todos esses movimentos, ela estava de perfil para Karl.
Justamente quando ele começou a pensar que Anna, talvez, o tivesse
visto, a garota ergueu a cabeça e o descobriu com as mãos ociosas no
trabalho e os olhos ocupados em sua silhueta. Ela se afastou
abruptamente e quase com culpa, desapareceu na casa de adobe.
Depois que Anna saiu, Karl considerou o que vira. Em que ponto
sua silhueta ossuda se suavizou e moldou seus contornos? Há quanto
tempo essa mulher curvilínea está se escondendo dentro das calças
masculinas? Karl sorriu ao pensar em Anna como cozinheira e percebeu
que a garota fazia bem em comer suas refeições, embora ela própria as
tivesse criticado.
Anna estava observando James puxar o cobertor que serviu para
separar o "quarto" até agora. Quando seu irmão se afastou do baú, Anna
se ofereceu para ajudá-lo.
— Vou te ajudar a dobrar.
— Bom.
Cada um pegou duas pontas e estendeu-as; o espaço na estreita
cabana de adobe mal dava para desdobrar o cobertor.
— James, tenho um favor para lhe pedir.
— Certo. O que é, Anna?
— É muito egoísta—, alertou ela.
— Não brinque, Anna. Eu não acredito—, ele disse, e deu a ela um
sorriso cúmplice.
— Mas é verdade. Principalmente porque escolhi hoje te pedir o
favor.
— Bem, pergunte-me! — Ele disse feliz.
— Quero que pergunte a Karl se ele deixa você liderar a parelha até
os Johansons assim que terminarmos o trabalho.
— Você quer dizer esta noite?
— Não, esta tarde—, Anna disse a ele, sentindo-se desconfortável
com a sugestão, pois James certamente adivinharia suas intenções.
— O que você precisa de lá?
Eles se aproximaram quase peito a peito, dobrando o cobertor.
— Eu não preciso de nada de lá.
— Por que tenho que ir?
— Para mantê-lo fora de casa por um tempo—, disse Anna, e corou.
— Mas, Anna...
— Eu sei eu sei. Hoje nos mudamos para a casa de toras e... Eu disse
que era egoísta. Você deve perder nossa primeira refeição preparada na
nova cozinha e nosso primeiro jantar na cabana, juntos.
— Mas porque? — James perguntou, desapontado.
Anna estava procurando uma maneira de explicar, sem muitos
detalhes.
— James, as coisas tem estado... Preciso ficar um pouco a sós com o
Karl.
— Ah! — Ele disse, tendo um repentino vislumbre do que estava
acontecendo—. Bem... nesse caso, com certeza. Vou embora assim que
puder.
— Escute, irmãozinho — disse Anna, tocando-o no braço —, sei que
é injusto pedir a você esta noite, mas acredite em mim, tem que ser esta
noite. Karl e eu temos que esclarecer certas diferenças que existem
entre nós e que estão arruinando nosso relacionamento há muito tempo.
Tenho medo de que, se não colocarmos as coisas em ordem agora, elas
vão se arrastar para sempre e eu não aguentaria... Oh, James, me sinto
muito mal por pedir isso a você esta noite—. De repente, ela caiu na
cama de corda e baixou os olhos para o chão, abatida—. Eu sei que você
queria se mudar, tanto quanto nós. Acredite em mim, eu não pediria se
não fosse absolutamente necessário. Não posso explicar tudo para você,
James... — ela ergueu os olhos suplicante—. Mas tem que ser hoje, esta
noite.
— O que devo dizer a ele? Bem, eu nunca pedi a ele para sair com a
parelha antes, sozinho.
— Diga a ele que quer ir visitar Nedda.
— Nedda? — O pomo de adão de James começou a tremer.
— Estou muito errada em pensar que isso não te incomoda?
— Visitar Nedda? — James parecia surpreso com a ideia, mesmo
que ele próprio estivesse imaginando a situação desde que Anna sugeriu
—. Não, não me incomodaria de forma alguma! Mas você acha que Karl
vai me deixar?
— Porque não? O próprio Karl ensinou você a lidar com a parelha.
Ele confia em você com Belle e Bill. De qualquer forma, você foi para os
Johansons na noite em que me perdi na floresta e chegou bem.
— Sim, não é? — Ele se lembrou de como Nedda ficara orgulhosa
dele na época.
— Isso não é tudo que preciso de você, James.
— Que mais?
— Primeiro preciso que você leve Karl para fora de casa por uma
hora ou mais, se puder.
— Como eu poderia fazer isso? Não vai querer deixar a nova
cabana.
— Você pode pedir para ele te acompanhar até a lagoa para tomar
banho. Faça que brinque como antes, lembra? Isso o manteria ocupado
por um tempo.
— O que você vai fazer enquanto estamos fora?
Anna se levantou, o cobertor dobrado sobre o braço. Ela correu um
dedo pelo tecido, maliciosamente. Então ela deu a seu irmão um sorriso
cúmplice que o garoto logo aprenderia a interpretar.
— James, isso é segredo de mulher. Se você tem idade suficiente
para visitar Nedda, também sabe que um homem não pede a uma
mulher que lhe revele todos os seus segredos.
James corou um pouco, mas não tinha certeza de algo e não pôde
deixar de perguntar.
— Anna, devo... devo perguntar aos Johansons se posso ficar para
dormir?
— Não, James, não pergunte. Eu sei que você esperou muito tempo
para poder dormir em seu próprio sótão. Você não tem que ficar até o
pôr do sol. Estaremos aguardando seu retorno até então.
— Ótimo, Anna.
— Você irá fazer isto? — A garota perguntou, sem fôlego.
— Claro que farei. Lamento não ter me dado conta sozinho. De
agora em diante, se Karl me deixar ir dessa vez, vou sair sozinho com
mais frequência. Gosto de ir visitar nossos vizinhos. Além disso —
acrescentou ele, enfiando o polegar no bolso de trás e olhando para o
chão quase com culpa —, eu faria qualquer coisa para ver você e Karl
como eram antes. Eu sei que as coisas estiveram ruins entre vocês por
um longo tempo, e eu não gosto disso. Eu só... só queria que fôssemos
todos felizes como antes.
Anna sorriu e apoiou o braço no longo e duro antebraço de James
para forçá-lo a tirar a mão do bolso para que ela pudesse pegá-la.
— Escuta, irmãozinho, há muito tempo que não te digo, a culpa é
minha e não tua... mas eu te amo.
— Por Deus! Eu sei—, ele disse, um sorriso fraco em seus lábios—.
Eu também.
Anna colocou os braços ao redor dele, incluindo o cobertor em seu
abraço quando o puxou contra ela. Ela tinha que esticar mais o braço,
agora, para alcançar o pescoço de James porque ele havia crescido. Ela
percebeu que seu irmão havia crescido não só fisicamente, mas também
emocionalmente neste verão, pois ele não fez nenhum movimento para
recusar a carícia. Ele se permitiu ser apertado e abraçado de volta,
silenciosamente desejando que o que Anna planejara para aquela tarde
desse certo.
Anna se separou de James.
— Obrigado, irmãozinho.
— Boa sorte, Anna—, James desejou a ela.
— A você também. Você tem um sueco teimoso lá fora. Se ele
decidir que não quer ir para o lago, será muito difícil mantê-lo fora da
clareira.
Colocar a porta recém-cortada era algo simbólico para todos eles,
mas principalmente para Karl. Quando finalmente a girou nas
dobradiças de madeira, Karl parou na abertura e olhou primeiro para
dentro da cabana e depois para fora.
— Olhando para o leste—, disse ele com satisfação, e olhou além de
suas plantações, em direção à orla da floresta, que ainda não havia sido
despovoada.
— Como você sempre disse—, James confirmou.
Karl se virou para esfregar os painéis da porta com a mão.
— Muito bom, bom carvalho robusto—, disse ele, e bateu na porta.
— Também como você disse.
— Como eu disse, garoto, e nunca se esqueça disso.
— Não vou esquecer, Karl.
Karl olhou rapidamente para Anna.
— E você não terá esquecido o que me fez prometer: que seria a
primeira a colocar o cordão do trinco por dentro.
Satisfeita por Karl ter se lembrado de algo que fazia parte daqueles
sonhos sussurrados no escuro, os primeiros dias do verão passado, Anna
se animou e as cores subiram alegremente em suas bochechas. Mas ela
ainda se conteve, perguntando-se se isso significava uma reconciliação.
Aquela maneira de olhar para ela, de ficar ali, na porta, com a luz vindo
de trás dele e transformando seus cabelos em um halo dourado, do jeito
que a lembrava daqueles segredos murmurados há tanto tempo...
— Então, Sra. Lindstrom—, disse Karl—, por que não experimenta a
sua nova porta?
Preocupada agora, ela se apressou em fazer isso.
— Bem, vocês dois entrem. Claro que não vou passar o cordão do
ferrolho, deixando meus dois homens favoritos aí na soleira!
Karl e James entraram. James fechou a porta. Karl ergueu a barra e
a colocou no lugar. Anna puxou a corda com os dedos até que uma
pequena bola encheu o buraco e caiu dentro.
— Você fez isso? — Anna perguntou, segurando a bola de madeira
entre os dedos—. Ela é tão bem formada!
— Não. É uma avelã. Prometi que lhe mostraria uma avelã.
Anna sorriu travessa.
— Mas os esquilos vão comer direto do cordão.
— Os esquilos também têm que comer. Portanto, deixe-os. Vou
pegar outra. Tenho muitas.
Ela olhou Karl no rosto, mantendo seu rosto inexpressivo, mas
sincero, ao dizer:
— Sim, Sr. Lindstrom, acredito em você.
James observou Anna e Karl parecerem ter esquecido que ele
estava ali. Subitamente excitado, ele pensou que teria problemas para
convencer Karl a se afastar da clareira, mas não pelos motivos que Anna
havia dado. O menino interrompeu o êxtase do casal sugerindo:
— Karl, por que você não acaba de montar aquele fogão e vamos
tomar um banho?
— Um banho? Quando acabamos de entrar na cabana? Um homem
precisa de tempo para se acostumar com seu lar.
— Mas estou com um pouco de pressa, Karl.
Karl não queria tirar os olhos de Anna, mas o menino insistia.
— Está com pressa? O que é que te apressa? Todos esses dias
estávamos correndo para terminar a cabana. Agora que está feito, é hora
de relaxar e se desfrutá-la.
— Bem, eu gostaria... Quero te perguntar uma coisa, Karl.
— Bem, pergunte.
Anna havia se afastado e estava manipulando as tampas das
panelas. Ela nunca deve ter acendido um fogo em um fogão de ferro,
pensou Karl, então se aproximou para ajudá-la.
— Posso levar a parelha até os Johansons? — Perguntou James.
Karl girou nos calcanhares e olhou surpreso para o menino.
— A parelha?
— Sim... gostaria... gostaria de visitar a Nedda.
— Hoje?
— Bem, sim… O que acontece hoje?
James enfiou os polegares de volta nos bolsos da calça.
— Mas hoje é o dia em que vamos fazer nossa primeira refeição
juntos. Anna vai cozinhar em seu novo fogão.
— Hoje é a primeira chance que tenho de estar livre. Trabalhamos
na cabana a maior parte do verão. E quando não era a cabana que nos
mantinha ocupados, era a colheita ou os cascos dos cavalos ou qualquer
outra coisa. O que mais você quer que eu faça hoje? — James parecia
realmente irritado.
Anna se virou, sorrindo com a inteligência do irmão e pensando:
“Bom, James! Você pode ser um bom advogado se se empenhar nisso!”
Karl ficou totalmente surpreso. Ele não havia percebido que o
menino queria se afastar do local. Se havia uma coisa que Karl não tinha
notado, era que James merecia ter um tempo livre. Sem querer, James
atingiu o ponto mais fraco daquele imenso sueco.
— Bem, nada—, Karl admitiu—. Não há nada que você precise fazer
aqui. Terminamos com tudo.
— Então, por que não posso ir? — James soava como se o
estivessem acossando.
— Eu não disse que você não podia ir.
— É a parelha, Karl? Você não confia em mim para lidar com ela
sozinho?
— Tenho total confiança em você.
— Bem, posso levá-la, então?
— Sim. Eu acho que você pode. Mas e o jantar?
— Eu comeria com os Johansons, se você não se importa. Assim eu
poderia voltar mais cedo.
— Mas Anna talvez tenha planejado algo especial na nova cozinha.
— Sem ofensa, Anna, mas vai demorar para se acostumar com o
fogão, como aconteceu com a lareira. Prefiro comer na casa de Katrene.
Te incomoda?
Anna quase riu alto. Todo esse tempo ela pensou que seu irmão
havia esquecido a arte da persuasão, mas agora ela se dava conta que ele
era um gênio.
— Não eu não me importo. Haverá outras refeições em casa.
— Eu não acho que Katrene se importe, também, e eu amo a
comida que ela faz.
Anna pensou: "Bem, irmãozinho, basta, basta!"
— Eu gostaria de sair o mais rápido possível, Karl, mas primeiro
preciso falar com você. Achei que você gostaria de ir para a lagoa
comigo. Eu gostaria de me lavar antes de sair, de qualquer maneira.
— Não estava nos meus planos de ir para a lagoa. Não poderíamos
conversar aqui?
— Eu... eu... eu gostaria de ter uma conversa de homem para
homem.
“Bravo!”, pensou Anna.
— Bem... bem, claro—, disse Karl, e olhou para Anna com hesitação.
Quando Karl olhou para ela, Anna o encorajou:
— Ouçam, vocês dois vão. A água é demais para mim agora. Acho
que não consigo entrar na água fria. Vou ficar aqui para me divertir com
meu novo brinquedo—, disse ela, apontando para o fogão.
Karl teve que aceitar a situação.
— Traga suas roupas limpas, garoto. Vamos embora agora e você
pode ir para a casa dos nossos vizinhos mais tarde, antes do jantar, como
queria.
James subiu até o sótão, onde suas roupas estavam
cuidadosamente arrumadas ao lado da cama de corda com seu novo
colchão de palha.
No andar de baixo, Karl voltou os olhos para Anna.
— Gostaria que você viesse conosco, mas acho que o menino está
tramando alguma coisa.
Ele não é o único, Karl, Anna pensou, antes de dizer:
— É a primeira vez que ele visita uma garota. Pode estar nervoso, e
o banho o acalmará. Você se lembrará de sua primeira vez, Karl.
Havia algo diferente em Anna hoje. Havia algo quase provocativo
naquele comentário inocente a seu marido. Anna continuou a manipular
os utensílios ao redor do fogão enquanto falava, mas ouvir suas palavras
trouxe à mente a lembrança vívida daquela primeira vez. Sua primeira
vez com Anna... Aquela incrível maravilha de sua primeira vez com Anna
...
— Sim, eu me lembro—, disse ele—. Eu estava muito nervoso.
— Diga isso a ele então, Karl. Assim, ele saberá que não é o único a
se sentir assim—, disse Anna.
Finalmente ela olhou para ele. Havia desafio em seu olhar agora?
As palavras foram ditas com grande simplicidade, mas o que estava
escondido por trás delas? Ela estava falando sobre si mesma e sua
primeira vez com ele, Karl tinha certeza disso. Anna tinha alguns
pedaços de madeira nas mãos e a expressão em seu rosto era
completamente natural. Com toda essa conversa, eles não acenderam o
fogo. O primeiro fogo no fogão ainda não tinha sido aceso.
— Vou acender o fogo antes de ir—, disse Karl, sentindo o nó na
garganta se soltar.
Ele pegou a lenha que Anna lhe entregou e se virou para acender o
fogo do fogão que havia trazido para sua esposa, pensando: “Sempre
acenderei o fogo para você, Anna. Que idiota fui por mantê-lo guardado
por tanto tempo!
James desceu as escadas com estrépito e foi até Anna. Ele passou
um braço em volta dos ombros dela, da maneira mais natural, como um
irmão mais velho faria.
— Então agora você finalmente tem seu fogão de ferro. Espero que
funcione.
“Não se preocupe, querido irmãozinho, tenho certeza de que vai
funcionar”, Anna pensou.
Depois que o fogo foi aceso, os dois homens saíram. Karl teve o
cuidado de não olhar muito para a esposa na presença do menino. Ele
sentia, de repente, que estava queimando por dentro, e ele teve que se
conter para que James não notasse.
Anna os observou partir. Quando chegaram à beira da clareira, a
garota gritou:
— Karl!
Ele se virou e a viu ali, na porta da cabana, uma mão sobre os olhos
para se proteger do clarão.
— Sim, Anna?
— Você levaria um pouco de água para regar minhas plantas de
lúpulo quando você passar por lá?
Karl ergueu a mão, num gesto mudo de assentimento, e foi até o
manancial buscar um balde. Anna sabia que seus segmentos já haviam
crescido lá na floresta.
CAPÍTULO 21
Anna entrou em ação no instante em que suas figuras
desapareceram pelo caminho que conduzia à lagoa. Aquela velha e
familiar sensação de insegurança novamente apertou seu estômago.
Cada nervo do corpo, cada músculo, cada fibra queria que isso
funcionasse. Ela só conseguia pensar em agradar a Karl. Quanto tempo
tinha? Bastava esperar que a água esquentasse no fogão?
Ela estava atenta ao primeiro zumbido da chaleira enquanto
colocava a casa em ordem. Ela pendurou apressadamente as cortinas em
postes de salgueiro flexíveis. Em seguida, ela colocou sobre a mesa uma
toalha que combinava, os pratos, talheres e as canecas. Ela usou minutos
preciosos para correr até a beira do campo, onde flores silvestres
cresciam, e pegar um buquê. Ela o colocou em uma jarra de barro grossa
no centro da mesa: era um buquê colhido naquela parte de Minnesota
tão querida a Karl. Havia margaridas lilases de florescência tardia, lírios
com um centro mais escuro, gálio branco que parecia uma trama de
filigrana, varas douradas emplumadas, lisimáquias roxo profundo,
estrelas rosa fosforescentes flamejantes e, por último... o mais
importante... Anna inseriu cachos perfumados de trevo amarelo no
buquê. Parada a alguma distância, ela parou um momento para apreciar
o que havia feito com suas próprias mãos, imaginando o que Karl diria
quando entrasse e o visse.
Mas o tempo tinha asas; a água já estava quente agora. Ela tomou
banho, usando o sabonete de camomila perfumado pela primeira vez.
Imediatamente ela se apressou em seu vestido novo. Seu cabelo rebelde
emaranhado entre seus dedos, seus cachos rebeldes resistiram aos
esforços de Anna para dobrá-los. Mas a garota insistiu com os dedos
trêmulos.
Quando Anna e a cabana finalmente estavam em ordem, ela deu
uma última olhada em seu pequeno espelho. Ela se olhou criticamente e
sentiu suas bochechas corarem. Ela largou o espelho e apertou a barriga
com as duas mãos, lutando para ficar calma, para se acalmar, pensando
que estava fazendo a coisa certa. Mais uma vez, as dúvidas a assaltaram.
Supondo que Karl fosse conquistado por seus esforços, como ela ousaria
enfrentá-lo? De repente, ela pensou em James entrando na cabana e
descobrindo a evidência de sua sedução aberta, e ela sabia que não
poderia encará-lo enquanto olhava para as cortinas, a toalha de mesa, o
vestido novo.
Quando ela os ouviu voltar, ela se escondeu atrás de uma cortina
no canto. Ela se sentou no baú e levantou as pernas do chão para que
eles não soubessem que ela estava ali. Em agonia, ela pressionou os
joelhos contra o peito e fechou os olhos, esperando para ouvir seus
comentários assim que entrassem.
James estava falando na hora.
— ... porque escurece mais cedo essas noites, então eu vou voltar
correndo...
Anna não precisava olhar para James para saber que ele estava
surpreso ao ver aquela mesa. O silêncio foi mais eloquente antes de
James dizer em um tom atordoado:
— Meu Deus! Karl, olhe isso!
Karl não fez nenhum som. Ela o imaginou parado no arco,
segurando a roupa suja, uma das mãos apoiada, talvez, na beira da nova
porta.
— Flores, Karl—, James disse quase com reverência, enquanto o
coração de Anna ameaçava sufocá-la—. E as cortinas... pendurou as
cortinas.
Karl seguia sem pronunciar uma palavra.
— Achei bobagem perder tanto tempo com cortinas, mas são
lindas, não é certo?
— Sim. Elas estão realmente lindas—, disse Karl finalmente.
Anna encostou a cabeça na parede, ali em seu cantinho, respirando
tão silenciosamente quanto podia para que não suspeitassem de sua
presença.
— Eu me pergunto onde ela está—, disse James.
— Eu… eu imagino que andará em algum lugar.
— Eu… acho que sim. Bem, é melhor eu pentear meu cabelo antes
de sair.
— Sim, vá pentear seu cabelo enquanto eu coloco os arreios em
Belle e Bill.
— Não precisa, Karl. Eu posso fazer isso sozinho.
— Tudo bem, garoto. Não tenho mais nada para fazer até que Anna
volte de onde está.
— Bem, Karl, eu agradeço.
Demorou uma eternidade para James subir as escadas, assobiando
entre os dentes, e depois descer. Quando Anna pensou que não poderia
demorar mais um minuto, ela ouviu o eco de seus passos, marchando
para a porta e depois se afastando. De fora, ela ouviu suas vozes,
novamente.
— Obrigado, Karl.
— Não é nada. Você fez isso muitas vezes por mim. Não é nada.
— Bem, Karl. Agora vou cuidar dos cavalos sozinho—. Eles riram
juntos; então Anna ouviu Karl dizer:
— Lembre-se do que eu te disse—. Anna sorriu para si mesma.
— Bem, diga olá ao Olaf e a todos, de minha parte e de Anna.
— Eu vou, e não se preocupe. Vou cuidar muito bem de Belle e Bill.
— Isso não me preocupa. Já não.
— Te vejo mais tarde, Karl.
— Até logo. Passe bem
— Seguro. Adeus.
“Agora é a hora”, Anna pensou. “Agora, enquanto Karl ainda está
lá fora. Deveria sair e ficar perto do fogão para quando ele voltar.” Mas
era impossível para ela mover as pernas. “Minha saia enrugou sentada
aqui, apertando meus joelhos com muita força”, ela pensou com raiva.
“Eu deveria ter um avental como o de Katrene. Oh, por que não pensei
em fazer um avental?”
Ela esperou muito tempo e ouviu os passos de Karl no chão. Alguns
passos e ele parou. Ele estava olhando para a mesa? Está se perguntando
onde estou? Ele vai pensar que sou uma garotinha estúpida quando
descobrir que eu estava me escondendo atrás da cortina o tempo todo?
Ela pressionou as mãos nas bochechas, mas as palmas estavam tão
quentes quanto o rosto. Ela colocou os pés no chão e abriu as cortinas.
Ela sentiu algo pular e torcer na boca do estômago, como se ele tivesse
sapos vivos dentro.
Karl estava parado com as mãos nos bolsos, estudando a mesa. O
movimento da cortina quando ela saiu chamou sua atenção, e ele olhou
para cima. Lentamente, tirou as mãos do bolso; lentamente, ele as
trouxe para os lados do corpo.
Anna ficou parada, segurando o cobertor.
Nenhum deles sabia o que dizer, especialmente Karl.
Sobre o que falaria? Da mesa, tão encantadoramente posta, com
aquela toalha de mesa florida imaculada e botões frescos que Anna havia
colhido e colocado tão habilmente quanto sua mãe? Ou ele deveria
mencionar as cortinas que sua esposa tinha pendurado nas janelas? O
encantaram, embora tivesse ficado desapontado no início, que ela
desperdiçou o guingão rosa com elas. Falaria sobre o vestido costurado
para surpreendê-lo, simples, de mangas compridas, saia larga e que
combinava com as novas cortinas rosa? O cabelo, talvez, aquele lindo
cabelo irlandês ondulado, cor de uísque, amarrado em tranças trançadas
que terminavam em uma coroa na cabeça?
Karl procurou em sua mente a palavra certa. Mas, assim como na
primeira vez que a viu, ele encontrou apenas uma palavra que poderia
dizer. Ele a soltou, como sempre fazia, em um tom de perplexidade, de
espanto, de revelação, um tom que implicava uma resposta a tudo o que
via diante dele, uma pergunta sobre tudo o que se desenrolava diante de
seus olhos. Tudo o que Karl tinha, tudo o que ele era, tudo o que
esperava ser, estava encapsulado nessa palavra:
— Onnuh?
Anna engoliu em seco, mas permaneceu com os olhos arregalados,
insegura. Ela baixou a cortina; então cruzou as mãos atrás das costas.
— Como foi na lagoa, Karl? — Ela perguntou.
Inacreditavelmente, Karl não respondeu.
— A água estava gelada? — Ela tentou de novo nervosamente.
Felizmente, dessa vez Karl foi capaz de responder.
— Não muito fria.
Sua testa e bochechas estavam brilhantes, limpas e bronzeadas.
O cabelo estava recém penteado. O sol do fim da tarde refletido por
uma de suas preciosas janelas, destacando a pele lustrosa e fazendo o
cabelo parecer mais dourado. Anna teve a impressão de sentir o cheiro
do frescor do outro lado da sala.
— Parece que James não teve problemas.
— Não. Foi tudo bem.
As mãos de Anna doíam. De repente, ela percebeu que suas mãos
doíam. Com grande esforço, ela as soltou e as tirou do esconderijo.
— Bem... — ela disse, e ergueu as palmas das mãos em um leve
gesto nervoso.
Karl estava com um nó na garganta.
— Você esteve muito ocupada enquanto James e eu estávamos na
lagoa.
— Um pouco—, Anna respondeu tolamente.
— Mais do que um pouco, eu acho.
— Bem, é a nossa primeira refeição e...
— Sim.
Houve silêncio.
— Então, você e James conversaram?
— Sim. Não sei se o ajudei, na verdade. Eu não sou muito bom em
cortejar uma mulher, — ele disse, e colocou as mãos de volta nos bolsos.
Anna sentiu como se sua língua estivesse paralisada.
Eles ficaram ali, acompanhados apenas pelo crepitar das toras no
fogão, até que finalmente Karl acrescentou:
— Ele parecia um pouco menos nervoso quando saiu. A conversa
deve ter feito bem a ele.
— Isso pensei.
— Sim.
Anna procurou desesperadamente por algo para dizer.
— Bem, ele não parecia se importar em perder o jantar conosco.
— É verdade.
— Graças a Deus Nedda está aqui—. Assim que ele disse isso, ele
mordeu a língua—. Bem... — disse Karl, o mesmo que Anna um momento
antes.
— Você está com fome, Karl?
Comer era o que ele menos pensava, mas respondeu:
— Sim, estou sempre com fome.
— Já comecei a preparar a comida, mas preciso fazer alguns
retoques de última hora.
— Não há pressa.
— Podemos tomar chá enquanto esperamos.
— Isso seria bom.
— Chá de rosas? — Ela perguntou, sentindo o pomo-de-adão de
Karl se contorcer enquanto ele engolia.
— Sim, gosto de chá de rosas.
— Bem, sente-se e eu vou fazer para você.
Ela gesticulou em direção à mesa decorada, sua mão trêmula, e
com esforço, ela se dirigiu para o fogão. Karl empurrou a cadeira para
trás, mas ficou de lado, observando Anna tirar o recipiente da prateleira
improvisada na parede ao lado do fogão.
— Eu gostaria de ter feito o aparador para quando nos mudamos—,
disse Karl.
— Oh, não importa. Haverá muito tempo para fazer isso quando
vier o tempo frio e você não tiver tanto trabalho. Acho que desfrutará
sentir o cheiro de madeira, enquanto trabalha na casa.
— Eu tenho uma árvore escolhida.
— Ah, que tipo?
— Eu me decidi por um pinheiro nodoso. Os nós parecem joias
quando você lustra a madeira. A menos que você prefira carvalho ou
bordo, Anna. Eu poderia usar qualquer um.
Karl observou a saia balançar enquanto Anna pegava a chaleira e a
enchia com água fervente. A garota se virou naquele momento e disse:
— Oh não, Karl. O pinheiro está muito bom—. Mas girou rápido
demais e teve que segurar a tampa da chaleira para evitar que voasse.
Karl se preparou para ajudá-la caso ela caísse de seu lado—. Sente-se,
Karl, e tentarei não queimar você com o chá.
Karl pensou em puxar a cadeira para ela se sentar, mas Anna não
foi para lá. Ela ficou ao lado da cadeira do marido, esperando que ele se
acomodasse. Quando ele fez isso, ela se abaixou para servir o chá, e Karl
pôde sentir o nítido cheiro de camomila ao seu redor.
Enquanto enchia a xícara, ela se desculpou:
— Lamento que não seja chá de confrei. Mas acho que você não
teria me pedido porque temos pouco.
— Não importa que o confrei tenha secado. Podemos encontrar a
planta selvagem na floresta e transplantá-la na primavera.
— Mas você me disse que confrei era o seu favorito.
— Eu também gosto de chá de rosas.
Anna serviu-se de chá e sentou-se em frente ao marido.
— A primeira bebida que você me ensinou a fazer—, disse ela,
levantando sua caneca—. Aqui, pelo chá de rosas—. Ela brindou,
esperando com a caneca levantada.
Karl acompanhou o movimento dela e bateu com a caneca na dela,
lembrando-se da primeira noite, quando fez um chá para acalmá-la
antes de ir para a cama.
— Pelo chá de rosas—, ele também brindou.
Eles levaram as canecas aos lábios, olhando um para o outro,
primeiro; então eles desviaram o olhar para a borda das xícaras.
— Quando você fez tudo isso? — Karl perguntou, olhando para a
cabana.
Anna deu de ombros, embora ainda mancasse da corrida.
— As flores são… gosto das flores nesse vaso.
— Obrigado.
— E aquela toalha de mesa também.
— Obrigado.
— E as cortinas. Você combina as cortinas, Anna—, ele disse,
sorrindo.
A garota sorriu também. Engraçado como eles pensavam o mesmo.
— Estou um pouco escondida entre as cortinas. Você deve procurar
para me encontrar.
— Acho que não, Anna—, disse ele—. As cortinas e a toalha de mesa
são de guinga, mas seu vestido parece diferente.
“Malditas sejam minhas mãos!”, Anna pensou enquanto colocava
uma no pescoço para alisá-lo, sorrindo como uma colegial boba.
— Já estava pensando em fazer uma segunda viagem à cidade para
trazer mais guingão, se não quisesse ver você de calça todo o inverno.
— Você me trouxe para vestidos, então?
— Fiquei um pouco desapontado ao ver que você usou tudo para as
cortinas.
— Não toda.
Karl fez um gesto com sua xícara, como o de um esgrimista
tocando a espada de seu mestre com a ponta da sua. Anna levantou a
chaleira para encher a caneca.
— O vestido é lindo, Anna.
O chá se agitou na chaleira, a caminho da xícara.
— De verdade? — Ele perguntou, como se só agora descobrisse.
— Muito mais bonito que calças.
Anna não pôde deixar de provocá-lo um pouco.
— Porém, eu já tinha me acostumado com essas calças.
— Eu também.
— Não brinque, Karl—, disse ela.
— Eu, brincando? — Ele perguntou.
— Não sei. Me parece.
— Então você não quer que eu te provoque mais?
“Oh, sim!”, Gritava seu coração, “como você fazia antes”. Mas teve
que dizer:
— Não essa noite—. Ela queria que Karl lesse o resto em seus olhos.
Karl acenou com a cabeça silenciosamente.
— Tenho algumas coisas para fazer. Sente-se aqui e desfrute do seu
chá enquanto eu...
Mas o resto não foi ouvido. Ela se levantou, desconfortável,
sabendo que ele observaria cada movimento seu. Ela pegou a nova
frigideira e colocou-a no fogão. Puxou uma tigela e um batedor e
quebrou alguns ovos, batendo-os contra a borda da tigela.
— Onde você conseguiu os ovos? — Perguntou Karl.
— Com Katrene... quando fomos pedir ajuda a Erik por causa do
urso. Mas eu estava guardando para esta noite.
Ele ficou, novamente, em silêncio, observando-a bater os ovos e
depois adicioná-los aos outros ingredientes secos que ela já havia
preparado em outra tigela. Anna sorveu o leite, sentindo os olhos de Karl
em suas costas. Terminada a mistura, quase errou e jogou um pouco na
assadeira, sem untar. Mas no último momento ela se lembrou, lambuzou
a frigideira e olhou para trás; ela percebeu que Karl estava observando
cada movimento dela. O chiar da gordura já chiava quando Anna de
repente se lembrou do pote de geleia de Blueberry, guardado no porão.
— Oh, esqueci uma coisa! Volto em seguida!
Ela saiu correndo de uma maneira nada elegante, dobrou a esquina
da casa e lutou com a porta do porão. Ela desceu as escadas, enrolando-
se nas saias e temendo que sua panqueca sueca queimasse. Ela
encontrou o pote de geleia e o pegou; Ela trancou a porta do porão e
voou para dentro de casa, onde foi saudada pelo cheiro de massa
queimada. Ela se esqueceu de pegar um pegador de panela e se queimou
no cabo da panela quando queria tirá-la do fogo.
Karl havia assistido ao que acontecia, sem saber se levantava-se e
virava a panqueca ou deixava Anna fazer do seu jeito. Lhe custou um
grande esforço ficar ali e deixar a massa queimar.
Mas imediatamente o barulho da frigideira preencheu o silêncio na
casa silenciosa. Anna baixou o queixo até o peito e Karl viu, por trás,
como seus cachos lutavam para escapar das tranças na nuca. Ele
percebeu que a garota levantava o antebraço para passar sobre seus
olhos, e ele percebeu que ela estava chorando.
Ele se levantou, agarrou a panela com a alça e jogou a panqueca
fora. Ele voltou e colocou a panela no fogão; Ele ficou atrás de Anna,
pegou seus braços e apertou-os suavemente.
— Eu estrago tudo que toco—, lamentou ela.
— Não, Anna—, disse ele, encorajando-a—. Você não arruinou as
cortinas, nem a mesa, nem o vestido, não é?
— Mas, olhe para isso. Katrene me ensinou como fazê-las, fiz tudo
o que ela me disse para fazer e tudo acabou sendo um desastre.
— Você se preocupa demais, Anna. Você tenta tanto que as coisas a
perturbam. Há mais massa para fritar?
Anna acenou com a cabeça, envergonhada e tentando não
reclamar.
— Coloque um pouco na panela e comece de novo.
— Para que? Elas serão um desastre novamente. Nada do que faço
funciona para mim.
Doeu vê-la tão abatida. Se ele não pudesse ajudá-la a ter sucesso
nessa empreitada, que era tão vital para os dois, ele temia que esse lindo
começo que Anna havia criado só levasse ao fracasso. Ele precisava fazê-
la sorrir um pouco e tentar mais uma vez. Embora Anna tivesse pedido a
ele para não provocá-la esta noite, ele tinha que brincar de alguma
forma.
— Talvez a primeira não tenha sido um desastre tão grande, afinal;
Nanna comeu desta vez.
Anna olhou para a porta e lá estava Nanna, seu rosto feliz voltado
para eles, triturando a panqueca queimada com os dentes. Anna deu
uma risada triste, enxugou os olhos com as costas dos pulsos, pegou a
tigela e despejou uma porção da massa na frigideira mais uma vez.
Enquanto isso, Karl se sentou à mesa.
Este lote resultou perfeito, mas Karl não sabia até que Anna trouxe
o prato para a mesa.
— Gostaria de esperar que suas panquecas fossem feitas, para que
as comêssemos juntos—, disse ele.
— Mas estas estão quentes.
— Você pode usar o forno do novo fogão para mantê-las aquecidas
enquanto prepara as suas.
— Muito bem, Karl. Se você diz…
Seu fracasso por não atingir a perfeição começou a doer menos
quando ela colocou as panquecas no forno e fez as outras. Ao fazer isso,
ouviu Karl se levantar e colocar duas velas acesas, uma de cada lado das
flores. Anna voltou com os dois pratos. O sol já havia se posto; velas
eram bem-vindas agora que o crepúsculo se aproximava.
— Você vê... como é fácil? — Karl disse diplomaticamente quando
Anna se sentou em frente a ele novamente. Agora você fez ótimas
panquecas.
— Oh, Karl, não diga isso. O maior idiota do mundo pode fazer
panquecas.
— Você não é a maior idiota do mundo, Anna.
Nesse momento, ele se arrependeu de chamá-la de idiota no dia em
que brigaram; ele percebeu agora como aquelas palavras dolorosas
aumentaram seu senso de inadequação.
— Bem, quase—, disse Anna, olhando para seu prato.
— Não—, ele insistiu—, nem de longe. — Eles se olharam por um
momento, antes de Karl dizer: — É geleia de blueberry que você tem aí
ou você não quer que eu saiba?
— Oh! Sim, claro! — Ela entregou a ele—. Mas não fui eu que fiz.
Katrene fez e deu para mim.
— Pare de se desculpar, Anna—, ele ordenou suavemente.
Da maneira mais natural, ele cobriu as panquecas com calda de
blueberry e começou a comer, olhando para ela do outro lado da mesa, o
rosto calmo como a água da lagoa. Nunca em sua vida Karl teve que se
forçar a comer, como naquele momento. Se dependesse dele, a cabra
poderia entrar e comer todas as panquecas, doces e tudo, direto do
prato; ele não se importaria nem um pouco. Mas por Anna, ele tinha que
comer aquelas panquecas e pedir mais.
Anna comeu com relutância; Karl era um ator melhor do que ela.
Ela saltou, grata, para ir fritar mais quando o marido pediu. Quando ela
trouxe o segundo lote, a luz das velas havia criado uma atmosfera de
intimidade e desconcerto, delineando cada gesto que cruzava seus rostos
enquanto se olhavam - quase o tempo todo em silêncio, agora - através
das panquecas e geleia, as xícaras e o chá de rosas, as margaridas e as
lisimaquias, o guingão e o trevo perfumado.
Ao terminar, Karl recostou-se e apoiou um braço nas costas da
cadeira.
— Você nunca me disse o que achou dos meus presentes, Anna.
Aqueles olhos azuis a estudavam de tal forma que a garota sentiu
que suas pernas tinham, naquele momento, a consistência da geleia de
Katrene.
— Agradeci pelo fogão, Karl, adoro cozinhar, você sabe disso muito
bem.
— Não estou falando do fogão.
— O guingão?
— Sim. O guingão.
— O guingão... Eu amei o guingão. Faz com que o lugar pareça mais
alegre.
— Eu queria te comprar um chapéu com fita rosa, mas Morisette
não tinha nesta época do ano.
— De verdade? — Ela ficou surpresa, e a preocupação de Karl a
comoveu.
— De verdade. E eu tive que trazer o sabonete para você.
Anna começou a estudar a toalha da mesa, raspando a borda com a
unha.
— Eu adorei o sabonete, Karl. É... é algo tão especial...
— Tive dificuldade em tirar essas palavras da sua boca.
— Foi difícil para mim fazer com que você comprasse para mim—,
Anna disse docemente, e pensou em todas as palavras amargas que
foram ditas naquele dia em que Karl partiu furioso.
— Na noite em que o trouxe para casa você não pareceu se
importar.
— Eu o estava reservando.
— Para hoje à noite?
— Sim. — Anna baixou os olhos.
— Como os ovos para as panquecas?
A garota não respondeu.
— Há quanto tempo você está planejando esta noite? — Anna
apenas deu de ombros. — Quanto tempo? — Ele repetiu.
Os olhos cheios de lágrimas brilharam por um instante à luz das
velas quando ela olhou para ele suplicante.
— Oh, Karl, você voltou para casa naquela noite e tudo que você
falou foi sobre Kerstin.
— E talvez eu fale sobre Kerstin com frequência. É nossa amiga,
Anna. Você pode entender isso? Isso me fez ver as coisas com mais
clareza, me fez falar sobre coisas que só um verdadeiro amigo pode fazer
você ver.
Anna apoiou a testa nas mãos e tentou conter as lágrimas.
— Não quero falar sobre Kerstin—, disse ela, cansada.
— Mas para falar sobre nós, devo falar sobre Kerstin.
— Por que, Karl? — Ela olhou para ele mais uma vez, diretamente
no rosto. — Por que ela é a única entre nós? Por que ela é quem você
ama?
— É isso que você pensa, Anna?
— Bem, o que eu devo pensar quando, desde que ela veio, você
poderia ter tudo ao seu alcance, se apenas tivesse esperado mais
algumas semanas antes de me trazer aqui para casar com você?
— Essas são suas palavras, Anna, não minhas.
— Bem, elas são a verdade—, ela insistiu caprichosamente—. Você
acha que eu não percebo como você se sente quando está no Johanson's?
Isso mostra, Karl. Você parece... feliz, sorri, fala sueco, come panquecas
suecas como se estivesse de volta a Skane!
Karl se inclinou para a frente, apoiou os braços na beira da mesa e
olhou bem nos olhos dela.
— Ouça-me, Anna, e ouça-se. Você disse há pouco sobre a casa dos
Johansons. Foi isso que Kerstin me fez ver. É a casa dos Johansons que
me deixa feliz. Sim, sou feliz lá, mas não se trata apenas de Kerstin, mas
de todos os Johansons. Mas ela me fez ver como isso afetou você. É por
isso que devo falar de Kerstin.
Anna se sentou em frente a Karl, seus ombros magros curvados
para frente, as mãos entrelaçadas entre os joelhos.
— Karl—, disse ela reclamando, — nunca poderei ser Kerstin,
mesmo que tentasse mais de mil vezes.
Quebrou seu coração pensar que ele a fez se sentir tão insegura.
Mas, ao mesmo tempo, tocou-o ao ver que Anna, levada pelo amor e pelo
desejo de se fazer amada, havia chegado ao ponto de tentar ser o que ela
pensava que Karl queria.
— Anna, Anna, — ele disse profundamente comovido, — Eu não
quero que seja.
De repente, ela ficou confusa.
— Mas você disse ...
— Eu disse muitas coisas que teria sido melhor não ter dito, Anna.
— Mas Karl, ela é tudo que você queria para você, tudo que eu
fingia ser... e muito mais! Ela tem vinte e quatro anos e sabe cozinhar,
administrar uma casa, cuidar de um jardim e falar sueco e...
— E usa tranças? — Karl terminou, sorrindo e olhando rapidamente
para o cabelo de Anna.
— Sim! — Anna disse amargamente—. E usa tranças.
— Então você pensou que iria tentar ser como ela e não deu certo?
— Sim! Eu não sabia mais o que fazer!
Sua voz denotava a mais profunda infelicidade. Karl era tão bonito,
sentado ali ao brilho da vela, falando tão bem. Cada vez que encontrava
aqueles olhos azuis, ela queria voar sobre a mesa para beijá-lo. Em vez
disso, ela olhou para a saia, colocando as mãos nas dobras do tecido rosa
para evitar que escorregassem para Karl.
— Você não achou, Anna, que talvez eu devesse mudar, e não você?
— Ele perguntou com uma voz carinhosa.
— Você? — Ela ergueu a cabeça e riu ironicamente—. Mas se você é
perfeito. Qualquer mulher seria uma tola em pretender que você
mudasse. Não há uma única coisa neste mundo que você não saiba ou
não tente fazer, que você não tente aprender. Você é tolerante, e tem...
você tem senso de humor e se preocupa tanto com as coisas e é honesto
e... eu não vi, ainda, que algo te quebrasse. Não descobri nada que você
não possa fazer.
— Exceto perdoar, Anna—, ele admitiu antes que a sala escura
caísse em silêncio.
Perturbada, Anna pegou a xícara, que estava vazia. Mas Karl
segurou a mão dela por um momento; ela a retirou e segurou-a entre os
joelhos.
— Até isso, Karl—, disse ela—. Você não teria que fazer isso se
tivesse esperado Kerstin, tenho certeza.
— Mas eu não estava esperando Kerstin. Esse é o ponto. Eu tinha
você e não fui capaz de esquecer essa coisa que você não podia mudar, e
tentar te perdoar. Eu teimosamente me apeguei ao meu orgulho sueco
bobo por todas essas semanas. Eu não conseguia ver que, até que não te
perdoasse por essa coisa, você não poderia se orgulhar de nada do que
fez.
— Karl, não posso mudar o que fiz.
Aqueles olhos luminosos o olharam suplicantes, e ele sabia que sua
esposa não deveria se sentir assim.
— Eu sei, Anna. É algo que Kerstin me fez ver. Isso me fez ver que
eu estava errado em guardar rancor contra você por isso.
— Você... você conversou sobre isso com Kerstin também? — Ela
perguntou, atordoada.
— Não, Anna, não—, Karl a assegurou—. Conversamos sobre outras
coisas. Sobre o bolo de frutas e sobre uma garota irlandesa que quer usar
tranças suecas. Isso me fez ver que você estava tentando compensar
coisas que não mereciam, que estava tentando ser outras coisas que não
precisa ser. Isso me fez ver que você estava se esforçando tanto para me
agradar, que estava tentando ser sueca por mim.
Karl se levantou da cadeira e se apoiou em um joelho na frente de
Anna.
— Anna—, disse ele, colocando as duas mãos nos joelhos da esposa,
— Anna, olhe para mim.
Vendo que ela não fez nenhum movimento, ele colocou um dedo
sob seu queixo e o ergueu. Seu olhar penetrou aqueles grandes olhos
castanhos, onde gotas brilhantes lutavam para aparecer.
— Hoje você fez tudo isso para me agradar. As belas cortinas de
algodão, as flores e este vestido—. Ele levantou a mão até a gola da roupa
e a pegou entre os dedos. Elevou os olhos para o cabelo, e um tom
infinitamente terno tingiu sua voz—: E estas terríveis tranças que não te
caem bem porque tem um magnífico cabelo de cor de uísque, que se
obstina em dobrar-se e escolhe balançar livremente, como deveria ser.
Você faz tudo isso para ganhar aquilo que era seu por direito, desde
sempre. Só que fui teimoso demais para dar a você. Você sabe o que é
isso, Anna?
Anna pensou que Karl se referia ao direito ao seu corpo, o ato de
amor, mas ela não podia responder a isso. Em vez disso, ela ficou em
silêncio.
— É o seu orgulho, Anna, — ele continuou. — Você entende o que
eu estou dizendo?
Ela encolheu os ombros infantilmente.
— Estou dizendo que quando entrei nesta cabana hoje, me senti
pequeno e culpado pelo que fiz você fazer aqui. Você tentou dessa forma
tão sua, que a torna tão querida para mim, minha pequena Anna, para
me agradar. Você tem tentado todas essas semanas. Sou eu quem está
obrigando você a fazer uma coisa dessas.
— Não... você não gosta, Karl?
— Ah, Anna, minha pequena Anna, gosto tanto que me dá vontade
de chorar. Mas eu não mereço.
— Oh, Karl, você está errado. Você merece...
Ele cobriu sua boca com a ponta dos dedos para silenciá-la.
— Você é quem merece tudo, Anna. Mais do que eu dei a você. Não
é suficiente que eu tenha pegado meu machado e derrubado árvores
para construir uma casa; que tenha trabalhado a terra e produzido
comida para nossa mesa; que tenha comprado um novo fogão e um
sabonete. Uma casa só é um lar por causa das pessoas que nela vivem.
Uma casa é um lar quando há amor. E então, se eu te der todas essas
coisas, que importância tem se eu não me entrego?
Com aquele seu jeito orgulhoso e honrado, Karl manteve o olhar
fixo no rosto de Anna enquanto dizia tudo isso. Quando um homem fala
sobre coisas que significam muito para ele, ele não tenta esconder isso
em seu rosto. Ali, diante de Anna, toda a dor, o desejo e a necessidade
que Karl Lindstrom sentia se manifestavam nus na expressão daqueles
olhos sobre os da garota, daqueles lábios enquanto falava, até mesmo
daquelas mãos que agora acariciavam seus cabelos rebeldes, a gola,
depois a saia de algodão estendida sobre os joelhos.
— Todos esses meses, enquanto planejava a casa de toras, sonhei
com essa primeira noite que passaríamos aqui e como seria. Pensei em
ter vocês aqui e sentarmos à mesa juntos, conversando sobre muitas
coisas, como sempre fazíamos depois do jantar. E sempre sonhei com um
grande fogo na lareira, e em fazer amor diante dela. Agora, Anna, eu
descubro que, por causa da minha estupidez, quase perdi essas coisas
pelas quais trabalhei tanto. Mas eu as quero, Anna, quero todas elas, do
jeito que estão esta noite. Esta mesa linda que você preparou, e você,
com este vestido engomado, e...
Mas desta vez foi Anna quem pousou os dedos trêmulos nos lábios
do marido para silenciá-lo.
— Então por que você fala tanto, Karl? — Ela murmurou com uma
voz suave, trêmula e ansiosa.
O desejo naqueles olhos falava de paixão, antes mesmo que ele
tomasse o rosto de Anna entre as duas mãos e lentamente a puxasse
para si. Lábios separados, olhos fechados, Karl tocou a boca de Anna na
dele hesitantemente enquanto ela se sentia tonta demais para se mover.
— Perdoe-me, Anna—, ele sussurrou com voz rouca, — perdoe-me
por todas essas semanas.
Anna olhou para aqueles olhos azuis, desejando que aquele
momento durasse para sempre.
— Oh, Karl, não há nada a perdoar. Eu sou aquele que deveria pedir
desculpas.
— Não—, respondeu Karl—, você pediu há muito tempo, na noite
em que foi colher morangos para mim.
Ainda ajoelhado, ele empurrou as mãos dela e enterrou o rosto
nelas, ali em sua saia. Ele precisava tanto que ela o acariciasse, para
assegurar-lhe que ela o perdoou... Anna olhou para a cabeça de Karl, as
mechas loiras ondulando no oco sombreado de sua nuca. O amor brotou
de seus olhos e turvou a imagem de Karl à sua frente.
Em seu interior, Anna entendeu que Karl precisava ouvir aquelas
palavras que ela, somente ela, poderia dizer a ele. Karl, que era todo
gentileza, carinho e ternura... Aquele homem precisava de sua
absolvição por uma transgressão que só ela havia cometido. Anna sentiu
o rosto de Karl na palma de sua mão e moveu a outra para entrelaçar os
dedos em seu cabelo loiro.
— Eu te perdoo, Karl—, ela disse suavemente.
Ela obteve a resposta para suas palavras na expressão daqueles
olhos azuis, quando Karl ergueu a cabeça para olhá-la mais uma vez.
Então a expressão em seu rosto mudou completamente; tornou-se
mais sereno, mais intenso. Karl se levantou e, pegando-a pelos braços,
forçou-a a se levantar. Ele a puxou para seu peito e se inclinou para
beijá-la, agarrando-se aos braços da garota como se fossem uma tábua
de salvação. Imediatamente, ele soltou os braços dela e os colocou em
volta do próprio pescoço, querendo que ela se agarrasse a ele também.
Anna se juntou a Karl em um beijo ávido, selvagem e tumultuoso
que a sacudiu da cabeça aos pés. Dentro da boca aberta de Anna, a língua
de Karl saboreava o gosto salgado das lágrimas misturadas ao beijo,
acariciava a língua da garota com a sua, engolia o sal de sua tristeza,
tomava posse dela, para que Anna já nunca mais chorasse por causa
dele.
— Não chore, Anna—, ele sussurrou em seu ouvido, cobrindo seu
rosto de beijos, segurando sua cabeça com as duas mãos, como se
temesse que pudesse escapar dele—. Nunca mais, Anna—, ele prometeu.
Ele enxugou as lágrimas com os lábios e então procurou o calor da nuca
dela; Ele se inclinou em direção a ela novamente, seu rosto descansando,
agora, no oco de seus seios cobertos pelo algodão. Ele continuou a
deslizar para baixo enquanto a beijava, até que se ajoelhou, seu rosto
pressionado, agora, contra seu estômago, e imerso na fragrância de
camomila—. Anna, eu te amo mais do que você pode imaginar.
Anna jogou a cabeça para trás e fechou os olhos quando o marido
reclinou a cabeça sobre ela; Karl a segurou com uma mão, enquanto a
outra correu para cima e para baixo em seu corpo, quente, firme e
possessivamente, desde a depressão nas costas até as cavidades atrás dos
joelhos.
— Por quanto tempo, Karl? — Ela perguntou insaciável, submersa
em uma onda de sensualidade, sob as carícias de Karl—. Diga-me... diga-
me tudo que você sonhou em me dizer muito antes de eu chegar.
Sua voz soou como um murmúrio alegre enquanto aquelas mãos
enormes continuavam a explorar suas curvas.
— Eu te amei antes de saber que você existia, Anna. Amei seu
sonho. Comecei a amar você antes de deixar os braços da minha mãe. Te
amava quando encontrei esta terra para onde te traria, enquanto
cortava a lenha para te construir esta casa, enquanto fazia a colheita
para ti, enquanto acendia o fogo para ti... Sempre soube que estavas à
minha espera em algum lugar.
— Karl, levante-se—, ela sussurrou suplicante—. Esperei tanto para
sentir você me abraçando novamente...
Ele se levantou lentamente, passando as mãos por suas pernas,
quadris, costelas. A boca de Anna aguardava ansiosamente seu retorno.
Eles se abraçaram e se tocaram: rosto, cabelo, ombros, seios,
língua, quadris. Anna foi finalmente capaz de tocar as costas de Karl e
colocar a mão dentro de sua calça.
— Eu não posso acreditar que você finalmente está me deixando
tocar em você—, disse ela, sem fôlego. Sua voz soou estranha até para
seus próprios ouvidos: excitada, ansiosa, rouca.
— Você nunca me pediu... nunca, Anna—. Seus olhos estavam
fechados, ele respirava pesadamente.
— Karl, você não sabe como eu olhava para você quando você
estava curvado na frente do fogo, como eu desejava passar minhas mãos
pelo seu corpo, como agora.
— E eu olhava para você dentro dessas calças e queria colocar
minhas mãos aqui...— Ele acariciou seus seios, sua barriga—. E aqui... e
aqui...
— Você também não precisa me perguntar, Karl—, ela sussurrou,
quando as mãos de Karl a soltaram.
— Anna, eu quero acender o fogo, agora. Você quer olhar para mim
enquanto me curvo para acendê-lo?
— Sim—, ela sussurrou.
— Sempre sonhei com fogo.
— Sim... sim...— ela murmurou. A espera parecia uma agonia
alegre.
— Mas eu não quero que você me pergunte nada enquanto acendo.
— Não vou perguntar nada, Karl—, ela sussurrou contra os lábios
do marido—. Acenda o fogo para mim, mas se eu não posso pedir, você
também não pode.
— Só uma coisa, Anna, mas agora...
Em vez de perguntar o que era, Anna se moveu sinuosamente
contra Karl, adaptando suas próprias curvas às dele, prometendo com
seu corpo o que não dizia em palavras.
— Tranque o trinco, Anna, e feche aquelas cortinas que achei que
não iríamos precisar.
Ele teve que forçá-la a se separar e empurrá-la em direção à porta
enquanto ia até a lareira e se ajoelhava diante dela. Ele obteve aparas de
madeira dourada das toras. Ele ouviu o som das cortinas enquanto
corriam sobre os postes de salgueiro. Ao se abaixar para pegar a faísca,
ele sentiu o barulho da avelã balançando na corda contra o sólido painel
de carvalho da porta. Com o rosto voltado para o fogo, ele acrescentou
mais lenha para alimentar a chama crescente; Então ele ouviu o som de
cascas atrás dele, e então um barulho estranho no chão. Mas ele
continuou olhando para o fogo, ajoelhado, até que a mão de Anna
deslizou lentamente por suas costas, pescoço, ombros; Em seguida,
desceu pelas costas, cada vez mais para baixo, nas calças, até que as abas
da camisa fossem puxadas para fora. Lá ela acariciou a pele nua, seus
dedos se espalharam, forçando-o a fechar os olhos e se aquecer no calor
das carícias.
— Como contemplei estes ombros ao sol! — Ela murmurou.
Ela ergueu a camisa o mais alto que pôde e deslizou as mãos para
cima; Em seguida, seus lábios desceram para a pele quente de seus
ombros. Apoiado em um joelho, um braço solto, Karl deixou cair a testa
em seus bíceps, enquanto Anna corria a língua por suas costas nuas.
— Você nunca saberá como os contemplava!
Karl se virou para encará-la e a viu ajoelhada atrás dele sobre o
pesado cobertor de pele de búfalo que ela havia arrastado da cama.
As mãos de Karl moveram-se para os quadris de Anna, que o
pressionaram sedutoramente.
— Você os contemplou como eu contemplei esses quadris, quando
se moviam dentro das calças? — Agora as mãos dele deslizaram ao longo
de suas costelas, até os seios, novamente.
Anna se apertou contra a palma de sua mão, seu corpo inteiro
invadido pela excitação.
— Estava equivocado? — Ela perguntou.
Apesar de segurar o firme seio da garota com uma das mãos, ele
respondeu:
— Só há uma maneira de verificar isso, quando a memória falha.
Ele brincou com os botões de seu vestido enquanto Anna mordia o
lábio.
— A memória não consegue lembrar o que os olhos não viram, Karl
—, ela murmurou, e se atreveu a colocar a mão na parte interna do
joelho, enquanto Karl estava ajoelhado à sua frente.
— Mas você trabalhou tanto para fazer seu lindo vestido de guinga,
é uma pena que tenha tão pouco uso.
À medida que os botões foram soltos um a um, sua respiração ficou
mais agitada.
— Prefiro ficar deitada quieta no chão do que você amassar e
esmagar meu vestido—, ela sussurrou contra os lábios de Karl.
— Você prefere isso? — Ele perguntou através do beijo.
— Você disse sem perguntas, Karl.
— Não são perguntas, Anna. São respostas.
Então a mão de Karl encontrou o calor de seus seios e seguiu o vale
entre suas costelas até o lugar quente que ansiava por seu toque.
Anna piscou uma vez quando o toque daquela mão tirou seu
fôlego. Com os olhos abertos novamente, a garota moveu a mão para
tocá-lo; era sua vez de obter as respostas.
Cada um se apoiou nas mãos do outro. Karl está comovido,
explorando. Anna fazia o mesmo. Eles se beijaram, se tocaram, fizeram
perguntas apenas com as mãos.
— Quente...— Karl murmurou no ouvido de Anna.
— Duro... — Anna murmurou em resposta.
— Bela...— disse ele, sabendo antes de ver.
— Belo... — ela respondeu, sabendo também.
Eles perderam o equilíbrio e se seguraram. Eles o recuperaram e se
separaram, olhando profundamente para a luz do fogo que os iluminava.
E então houve apenas sensações vivas.
Luz e calor acompanhavam os movimentos de Karl. As mãos
cuidaram dos botões restantes do vestido; então eles caíram em um
gesto sugestivo quando ele se ajoelhou na frente dela, as pernas
ligeiramente separadas. Calor e luz acompanharam os dedos de Anna
enquanto eles desabotoavam a frente de sua camisa, então caía para os
lados de seu corpo, obedientemente. Os ombros sedosos de Anna ficaram
expostos quando Karl baixou o vestido, e o reflexo das chamas parecia
dançar ao lado de seu corpo. A pele dourada de Karl foi exposta quando
a garota, respondendo ao seu gesto, pegou a camisa nas mãos e a
arrebatou. Olhos amorosos, quando Karl pegou a bainha da combinação
com as duas mãos e a empurrou para cima até que ela teve que levantar
os braços. Olhares arrebatadores enquanto eles permaneciam ajoelhados
ali, deixando a alegria invadi-los. O tempo continha a respiração
enquanto Karl lentamente, superando a última barreira, deslizava as
mãos pelos quadris de Anna e a despia de sua última roupa. Anna sentiu
o tempo pulsar dentro de seu peito, enquanto Karl acariciava suas coxas,
mais uma vez ajoelhado diante dela, esperando, em meio ao brilho
dourado das toras em chamas. A força do amor, contida durante aquele
longo verão, empurrou-a para mais perto daquele homem para libertá-lo
do último freio de fios tecidos que separavam seus corpos.
E, por fim, apenas dois amantes permaneceram, ajoelhados diante
do brilho daquelas chamas que delineavam suas silhuetas; feixes de luz
laranja iluminavam metade de cada corpo, captavam o brilho nos olhos
de um e o enviavam, dançando, para o outro; olhos que se abriam, se
maravilhavam, se adoravam, se absorviam.
Quando Karl finalmente conseguiu erguer os olhos para Anna, ele
contemplou ali um assombro reprimido, comparável ao seu. Comovido,
ele se esqueceu e falou com ela em sueco. A cadência embaladora soou
como uma canção aos ouvidos de Anna, embora ela não entendesse o
significado das palavras.
Como pode rir desse tom suave e musical? Agora ela sabia que fazia
parte do Karl que ela adorava, assim como aquele corpo musculoso,
aquele rosto bronzeado, sua paciência e sua bondade inata. De repente,
ela sentiu a necessidade de entender aquelas palavras musicais que Karl
havia falado com ela em um tom tão reverente.
— O que você disse, Karl? — Ela perguntou, erguendo os olhos
nublados de lágrimas para ele.
Deslizando um dedo por sua mandíbula, ao longo da borda de luz
que emoldurava seu queixo, pescoço, peito, estômago, coxa e joelho, ele
disse a ela, desta vez em inglês:
— Anna, você é linda.
— Não, diga em sueco. Ensine-me a dizer isso em sueco.
Ela observou como os lábios de Karl formavam aqueles sons
estranhos. Ele tinha lábios lindos, curvos, um tanto grossos, e pareciam
sensuais quando ele repetia:
— Du ar vacker, Anna.
Tocando os lábios de Karl, Anna repetiu:
— Du ar vacker, Karl.
Os dedos de Anna ainda acariciavam sua pele quando Karl disse:
— Jag alskar dig.
Pela maneira como ele fechou os olhos enquanto falava essas
palavras, franzindo os lábios e pressionando a mão na boca, Anna sabia
antes de repeti-las o que significavam.
— Jag alskar dig, Onnuch, — ele repetiu, fazendo o coração de Anna
bater descontroladamente ao ouvir aquele belo Onnuh.
— Jag alskar dig—, disse Anna suavemente, em sueco que soava a
ianque, mas revelava o significado das palavras, independentemente do
idioma—. O que foi que eu disse, Karl? — Ela perguntou em um sussurro.
— Você disse que me amava.
Ela pegou o rosto do marido nas mãos e o beijou.
— Jag alskar dig—, ela repetiu—. Jag alskar dig. Jag alskar dig, Karl—.
Ela o beijou apaixonadamente por todos os lados até que o forçou a
fechar os olhos.
Os dois corpos quentes se encontraram. Karl a empurrou para
baixo, lentamente, até que Anna sentiu a suavidade da pele de búfalo sob
ela e a firmeza do corpo de Karl acima, presa entre as duas texturas.
Ele a abraçou, acariciou, beijou; ele pôde perceber o que mais lhe
causava prazer, quando a garota sorria, se aninhava, arqueava o corpo e
gemia. Com as mãos e a língua, ele a conduziu à beira de um abismo
diante do qual Anna começou a tremer, esperando a queda final que a
levaria a um paroxismo. Mas os sons roucos que Anna deixou escapar de
sua garganta o advertiram para conduzi-la mais devagar, prolongando o
prazer que encontravam um no outro.
Karl rolou de costas e esticou o corpo. Ele recebia cada toque de
Anna, apreciando o toque daquelas mãos e daqueles lábios em seu
próprio corpo em chamas, conforme o contato se tornava mais íntimo.
De repente, Anna subiu em Karl, fazendo-o sentir a pressão quente
e firme de seus seios, estômago e quadris. As tranças caíram e os fios de
cabelo emolduraram aquele rosto juvenil, como um halo de fogo. Karl
encontrou um fio solto e o soltou ainda mais com os dedos enquanto ela
o seguia, beijando seu pescoço e peito, movendo-se sinuosamente para
baixo. Logo, Karl esqueceu as tranças.
Os dois corpos se enroscaram juntos, mudaram de posição, se
beijaram, provaram, tentaram insacientemente conseguir tudo o que
podiam. Eles deram cada parte do corpo livremente, permitindo que os
sentidos se expandissem além do prazer.
— Diga-me de novo, Anna—, ele exclamou apaixonadamente, uma
mão enredada no cabelo da garota, a outra acariciando a parte mais
profunda dela, enquanto ela se movia ritmicamente—. Diga-me que você
me ama como eu te amo.
— Jag alskar dig. Eu te amo, Karl, — ela disse em um tom quase
selvagem, enfatizando o significado desse ato que eles agora
compartilhavam.
Mais uma vez, encontraram a recordada magnificência da primeira
vez, a harmonia na fusão dos corpos quando Karl a penetrou, a leveza do
movimento quando se juntaram em um ritmo mútuo de fluxo e refluxo.
Eles transgrediram as barreiras da língua e criaram uma própria,
feitas de sons amorosos: murmúrios sem palavras, respiração irregular,
silêncios latejantes, gemidos de prazer. Quando a força e a plasticidade
os levaram ao paroxismo do prazer, eles se expressaram em linguagem
universal: o tremor e o grito masculino profundo, a resposta feminina
abafada. Então eles desabaram juntos, exaustos, em um silêncio
poderoso; apenas o crepitar e chiar do fogo compartilhavam essa
comunhão total.
Karl descansou sob Anna, em paz depois de todo esse tempo. A
garota acariciou seu cabelo úmido atrás da nuca. Os ombros de Karl
estavam secando com o calor do fogo e aqueles dedos delgados. Sua boca
estava enterrada no pescoço de Anna.
Depois de descansar assim por um longo tempo, Anna falou com
ele, seu olhar para o teto, onde as sombras dançavam.
— Karl, sabe o que você parece?
Ela se perguntou se ousaria contar a ele; Ainda assim, estava lá, em
sua mente, estava lá desde a primeira vez que ela o tocou, mesmo antes
de tocá-lo.
— Você é como o cabo do seu machado quando para de usá-lo.
Karl se sentou para olhar seu rosto.
— Como o cabo do meu machado? — Ele perguntou, surpreso.
— Doce, quente, longo, resistente, curvado... e, como você disse
uma vez, flexível.
— Já não, não sou mais—, disse ele, sorrindo.
— Eu sabia que você riria de mim se eu contasse.
— Sim—, ele respondeu, e beijou o nariz dela—. De agora em
diante, vou provocar minha Anna para que ela nunca se esqueça de
como é o cabo de um machado.
— Oh, Karl...— Mas Anna começou a rir.
— Como eu senti falta dessa risada! — Karl exclamou.
— Como senti falta das suas piadas!
Eles sorriram, olhando um para o rosto do outro.
— Oh, Anna, você é ótima—, disse ele, enormemente feliz.
Imediatamente ele deixou seu olhar vagar por aquele rosto e cabelo
queridos.
— O que sou eu? — Anna perguntou.
Mas era difícil para ele compará-la com qualquer coisa que ele
conhecia. Nada a superava.
— Eu não sei o que você é. Eu só sei o que você não é. Você não é
sueca, então não deve usar essas tranças horríveis nesse cabelo irlandês
que pertence a você. Eu queria desamarrá-las, mas as deixei piores—.
Então, vendo-a preocupada, ele a tranquilizou—: Não, agora não, Anna.
Está tentadora, apesar do desastre de teu cabelo, então deixe isso pra lá.
E você não é gorda, não é uma boa cozinheira e não é a melhor em
cuidar de uma horta, mas eu não me importo, Anna. Eu te amo do jeito
que você é.
— Tudo bem, Karl—, disse ela, e passou os braços em volta do
pescoço do marido—. Eu prometo a você que nunca mudarei.
— Bom!
— Mas, Karl...
— Sim?
— Se você vai se dar ao trabalho de me ensinar a ler e escrever
neste inverno, pode me ensinar nas duas línguas, desde o início.
Karl só conseguiu rir e beijá-la novamente.
— Oh, Anna, você é imprevisível.
Quando os sons da noite diminuíram e até os animais noturnos
pareciam ter adormecido, Anna e Karl se juntaram a eles.
— Tire o ferrolho para quando o garoto voltar, Anna — disse Karl,
levantando o pesado cobertor de búfalo e levando-o para a cama no
canto.
Anna abriu a porta e olhou para a noite por um momento.
— Karl, eu nunca entendi realmente o que você fez deste lugar e
tudo que abunda aqui, até que eu pensei que tinha perdido você. Mas
agora, eu sei. Eu realmente sei.
— Venha para a cama, Anna.
A garota sorriu para ele por cima do ombro, depois fechou a porta
e caminhou sobre as tábuas do piso de madeira recém-cortadas em
direção à luz de velas ao lado da cama.
Karl estava esperando por ela.
No centro da cama, entre os dois travesseiros, havia um único
ramo de trevo perfumado, arrancado do buquê que decorava a mesa de
jantar, onde a geleia de Blueberry secava em dois pratos esquecidos.
SOBRE A AUTORA
LAVYRLE SPENCER nasceu em 1943 e começou trabalhando como
professora, mas sua paixão pela leitura lhe fez voltar-se por inteiro ao
seu trabalho como escritora. Publicou seu primeiro livro em 1979 e
desde então tem conquistado êxito atrás de êxito.
Vive em Stillwater, Minnesota, com seu marido em uma preciosa
casa vitoriana. Eles geralmente escapam para uma cabana rústica que
tem no meio do profundo bosque de Minnesota. Entre seus hobbies se
incluem a jardinagem, viajar, cozinhar, tocar guitarra e piano
eletrônico, fotografar e observar a natureza.
Lavyrle Spencer é uma das mais prestigiadas escritoras de novelas
românticas, dentro do gênero histórico ou contemporâneo com mais de
15 milhões de cópias vendidas.
Sumário

TEU CARINHO
FICHA TÉCNICA
DEDICATÓRIA
NOTA HISTÓRICA
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
SOBRE A AUTORA

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