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LaVyrle Spencer
Título Original: The Hellion
Copyright: 1984
Digitalização: Joyce
Revisão: Néia
Tommy sabia que Rachel iria voltar para amá-lo e puni-lo.
"Um dia ele vai acabar mal" este era o comentário geral quando Tommy Lee
passava. Todos naquela pequena cidade do Alabama sabiam que ele dirigia
como um louco, bebia até quase cair e vivia rodeado de garotas vulgares.
Mas Tommy Lee tinha uma razão para agir assim. Queria fugir do passado,
esquecer a imagem daquela mulher que o perseguia há vinte e quatro longos
anos: Rachel!
Ela era linda, linda, linda! Meio anjo, meio demônio, terna e, ao mesmo
tempo, cruel. E de repente estava ali, em carne e osso, na frente de Tommy
Lee, chamando-o com sua voz sensual. Tudo iria recomeçar depois de vinte
quatros longos anos.
I
Todo mundo em Russellville sabia que Tommy Lee Gentry dirigia como um
louco, bebia quase até cair e adorava se aventurar em viagens perigosas e
inconseqüentes. Durante o inverno, se metia em caçadas arriscadas. No verão
sumia em seu barco. E vivia desfilando pela cidade num imponente Mercedes
branco, normalmente exibindo uma mulher tão exuberante quanto vulgar. Sim,
suas inúmeras companhias femininas tinham sempre um ar sofisticado, eram
bonitas e jovens, mas totalmente vazias.
— Um dia ele vai acabar mal... — todos comentavam, olhando-o de lado,
com ar de reprovação.
A excentricidade de Tommy Lee chocava a população de mentalidade
religiosa e conservadora daquela cidade do Alabama. Sua maneira
irresponsável de levar a vida provocava horror nas senhoras, que tratavam de
afastar as filhas ingênuas e pacatas das garras daquele "monstro". Só que ele
era um homem muito atraente, e apesar de sua fama não faltavam garotas de
boa família lançando-lhe olhares oferecidos e esperançosos.
Naquela sombria tarde de fevereiro, Tommy Lee não hesitou em dispensar
Mitzy, uma loira de seios fartos e pernas bem torneadas. É que a notícia que
acabara de receber mudara tudo repentinamente. Sentia que precisava ficar a
sós com seus pensamentos.
Com os olhos pregados na estrada, dirigia o Mercedes como se fosse uma
simples extensão de seu corpo, e acelerava, cada vez mais, numa luta
desesperada contra o tempo. Sabia que não havia motivo para correr tanto,
mas talvez estivesse fazendo isso por hábito... ou será que era o reflexo do que
ia em seu coração?
Abriu o porta-luvas e pegou uma lata de cerveja. Jamais saía de casa sem
seu estoque de bebidas. Abriu-a, deu um bom gole, e outro, até esvaziá-la
completamente. Sorriu com ironia. Era assim, sempre assim... Debochava da
própria dor, do destino cruel que a vida lhe traçara.
Do escritório na avenida Jackson até sua casa, próxima do lago Cedar
Creek, havia exatamente quartoze quilômetros, que ele conhecia tão bem
quanto as curvas de um corpo feminino. Os pinheiros altos e velhos que
ladeavam a estrada eram antigos amigos. Suas folhas iam e vinham, secavam e
nasciam novamente, mas eles continuavam lá, imponentes, majestosos, sem se
importarem com o movimento da cidade. Era um ponto que tinham em comum
com Tommy Lee. Estavam sempre ali em seus lugares, mas absolutamente
alheios ao que se passava em volta.
Acendeu um cigarro. Quantos fumava por dia? Dois maços, três? Que
importava? A fumaça branca se levantou no ar, em suaves movimentos
sinuosos. Fazia lembrar uma armadilha feminina, que atraía e destruía ao
mesmo tempo.
Rachel! Subitamente o rosto daquela mulher lhe veio à mente, uma mistura
de ternura e tentação. Rachel! Ela era viúva, agora!
Normalmente Tommy Lee fazia aquele trajeto em nove minutos. Algumas
vezes, em dias mais agitados, tinha conseguido fazer em apenas oito e meio.
Santo Deus, hoje gastaria somente oito minutos, talvez menos!
As curvas se seguiam uma após a outra, até que uma, mais acentuada, fez o
carro derrapar, equilibrando-se em apenas duas rodas. As mãos musculosas de
Tommy Lee se prenderam mais firmemente ao volante, o pé se movimentou
agilmente entre o breque e o acelerador, até que finalmente conseguiu retomar
o controle do automóvel, esboçando um sorriso vitorioso.
Não era a primeira vez que brincava com a morte. Estava acostumado a
emoções violentas. Depois, um homem como ele, que havia vivido
intensamente, não tinha por que temer a morte.
Os pneus guincharam quando virou à direita, tomando a estreita rua
particular que terminava diante daquela magnífica casa de concreto aparente,
cercada por um imenso jardim. Desligou o motor, mas não desceu. Por um
instante ficou contemplando a estranha construção.
A porta de entrada, no fundo de um enorme terraço, era de madeira escura.
Talvez o único toque diferente, perdido naquela estrutura cinzenta. As janelas
de ferro e vidro eram imponentes, mas tristes. Raramente se abriam para a luz
do sol. Três andares frios se elevavam contra o céu, como um monumento de
riqueza e solidão.
Tommy Lee atravessou o jardim com passos lentos e desequilibrados.
Encontrou a porta da frente aberta. Claro! Ninguém ousaria penetrar na sua
mansão. Depois, mesmo que um ladrão roubasse tudo, ele compraria cada
peça novamente. Dinheiro não era problema. Nunca tinha sido. Enriquecer não
passava de uma brincadeira, um jogo fácil, no qual era sempre o vencedor.
Restava saber se isso lhe trazia alguma satisfação pessoal.
Entrou, jogando o casaco de couro preto sobre o luxuoso sofá, escolhido
cuidadosamente por uma decoradora de Memphis. Olhou em volta, sentindo-se
desanimado ao ver os cinzeiros repletos, a lareira suja com restos de lenha e
alguns copos vazios espalhados. Perto do bar, sobre o tapete imaculadamente
branco, uma meia de náilon. Mitzy deixara uma recordação da noite anterior.
Grande droga!
As mulheres entravam e saíam de sua vida como fumaça no ar. Davam-lhe
um prazer momentâneo e nada além disso. Lembrava-se claramente da
expressão das pessoas quando se divorciou pela terceira vez. Irresponsável,
diziam. Mas ele não se abalava. Até gostava de chocar as velhotas que tinham
gasto a vida inteira a servir os maridos, sem nunca se perguntarem se
realmente os amavam.
Amor...
Oh! Rachel... novamente a imagem dela se desenhou na sua mente
atordoada. Conhecia cada detalhe daquele rosto, todos eles fascinantes.
Rachel Talmadge. Um nome tão familiar! Ora, que besteira! Há muito tempo
ela era Rachel Hollls, e isso não podia ser esquecido...
Encheu um copo de uísque. Sem gelo, sem água. Talvez o álcool lhe
trouxesse um pouco de paz. Mas de nada adiantou. A bebida queimou sua
garganta e estômago, e não aliviou sua angústia. Foi até uma das janelas, de
onde avistava o lago Cedar Creek. Lago... ora, aquilo não era exatamente um
lago, com toques românticos e bucólicos. Na verdade, não passava de um
grande reservatório controlado pelas autoridades do Valley Tennessee. Bela
droga!
Procurou alguma coisa para comer, mas nada lhe pareceu atraente. Acabou
por mordiscar um pedaço de salmão ainda semicongelado. Sentia-se só,
terrivelmente só.
O funeral foi num dia ensolarado. O céu estava azul, com pequenas nuvens,
que se movimentavam suavemente. O Mercedes branco estacionou perto dos
outros carros, do lado de fora do cemitério.
Não foi difícil para Tommy Lee localizar Rachel entre as inúmeras pessoas
que rodeavam o jazigo. Observou suas costas magras, cobertas por um vestido
de seda cinza que descia até os joelhos, deixando à mostra o contorno suave
das pernas. Estava amparada pelo braço cuidadoso do pai, mas não
demonstrava fraqueza. Era uma mulher vigorosa, forte e determinada.
"Rachel. Minha Rachel... Ainda estou aqui... esperando", Tommy Lee teve
vontade de dizer. Mas preferiu não se aproximar da multidão. Era melhor ficar
afastado, sob a frondosa nogueira. Afinal, não sabia se estava preparado para
olhar Rachel de frente, sentir seu perfume...
Tantos anos já haviam se passado... vinte e quatro! Sim, ele havia contado
cada dia, cada minuto, cada segundo. Naquela época, quando a tinha nos
braços, quando a beijava com fúria e paixão, era apenas um garoto de
dezessete anos. O tempo fora cruel com ele, acalentando mais e mais as
lembranças ao invés de destruí-las. Só que agora era um homem de quarenta e
um anos e não um adolescente. A vida exigia que tomasse decisões maduras.
Ridículo... ali, a poucos passos de distância de Rachel, sentia-se novamente
como um menino, inseguro e vulnerável.
Apesar dos vinte e quatro anos passados, de todos os erros e desacertos,
seu coração ainda se revoltava dentro do peito com uma intensidade
impressionante. As recordações voltaram como se tudo tivesse acontecido
ontem. A dor era real, absoluta e incontestável. As feridas continuavam
sangrando, e o calor, a paixão desesperada ainda tomavam conta de todo o seu
corpo.
Mais uma vez voltou os olhos para Rachel. Agora ela estava recebendo os
pêsames dos amigos. Havia discrição e delicadeza em seus gestos. Não
chorava, não sorria. Já não usava mais os cabelos longos, que às vezes
arrumava em duas longas tranças caídas pelos ombros. Agora eles eram
curtos, ligeiramente encaracolados. No rosto, não mostrava o frescor da
juventude, mas a elegância de traços maduros e enérgicos. Ela tinha se
transformado numa mulher. Linda, sedutora, loucamente atraente. O corpo
ainda era o mesmo. Sim, ele conhecia bem aquelas curvas bem-feitas. Os
seios, arrepiados pelo vento, revelavam-se eretos contra o vestido. Os quadris
estavam um pouco mais arredondados, mais femininos, muito mais tentadores.
Há quanto tempo não ficava tão perto dela? Durante quantos anos não
desejara ardentemente observá-la, devorá-la com os olhos? Oh! Rachel... Por
quê?
As pessoas começaram a se afastar. Os carros deixavam o cemitério com
seus ruídos surdos. As cabeças estavam baixas, em sentimentos de pesar.
Somente Rachel Hollis e o pai continuaram na beira do túmulo, ajeitando as
rosas brancas sobre o mármore negro.
Tommy Lee permaneceu imóvel, os olhos pregados em Rachel.
Uma borboleta multicolorida teimou em pousar nos cabelos dela, mas, sem
se virar, Rachel a espantou com um gesto rápido. Sua atenção estava
totalmente voltada para as flores. Depois ficou parada algum tempo, olhando
vagamente para a tumba. O pai lhe segurou a mão.
— É melhor irmos agora — disse num tom carinhoso, mas determinado.
Sem hesitar, Rachel se virou. Fazia questão de manter o corpo ereto e a
cabeça erguida. Ela era assim. Não se curvava diante da vida.
— O que diabos ele está fazendo aqui? — A voz do pai dela soou nervosa,
indignada.
Imediatamente os olhos de Rachel percorreram o gramado verde, até a
elevação onde ficava a imensa nogueira. Reconheceu logo a figura esbelta, de
braços cruzados sobre o peito e pernas ligeiramente abertas. Sim, ela o
reconheceria em qualquer lugar do mundo, mesmo que milhões de anos os
tivessem separado.
"Tommy Lee... você veio..."
Os dois ficaram paralisados, olhando-se como se fosse possível derrubar
as terríveis barreiras construídas através do tempo. Tommy Lee estava bem
diferente, mas ainda era sensual e atraente. Usava óculos, agora, e tinha fios
prateados nas têmporas. Os ombros pareciam ainda mais largos e másculos, o
rosto mais duro, as feições mais acentuadas. Ah! como era bonito...
— Venha, Rachel. Precisamos ir. — O pai apertou seu braço, tentando levá-
la até a limusine preta.
Mas não havia força que a tirasse de lá. Toda a sua energia estava voltada
para aquele homem, a quem amara com tanto desespero. Era como se um
magnetismo os unisse. Apesar dos protestos do pai, deu um passo em direção
a Tommy. Suas pernas pareciam se mover sozinhas, comandadas pelo coração.
Seus olhos estavam magicamente colados nele, naquele corpo que lhe ensinara
as delícias do amor.
Tommy Lee também se aproximou. O coração lhe batia no estômago, na
garganta, na cabeça. Há uma eternidade não ficava tão perto dela. Sentia medo
e prazer ao mesmo tempo.
— Como vai, Rachel? — A voz dele era mais profunda e grossa do que ela
se lembrava. A mão, que agora apertava a sua, era tão quente e firme quanto no
passado. Só que, depois de tanto tempo, pareciam maiores, mais vigorosas.
— Obrigada por ter vindo — ela respondeu, procurando não tremer a voz.
Numa cidade pequena como Russellville, era quase impossível evitar uma
pessoa por vinte e quatro anos. Mas Tommy Lee e Rachel haviam conseguido.
Não freqüentavam os mesmos restaurantes nem tinham amigos em comum.
Algumas vezes o encontro fora inevitável, mas nestas ocasiões um deles
sempre se retirava, como se tivessem feito um acordo. Hoje, porém, estavam
frente a frente, olhos nos olhos. Deliberadamente.
Como que voltando à realidade, Tommy Lee desviou o olhar até o velho
Everett Talmadge. Cumprimentou-o com um gesto frio, curvando ligeiramente
a cabeça e murmurando qualquer coisa.
O pai respondeu no mesmo tom, sem disfarçar a animosidade que
alimentava por ele.
— Espero que não se importe por eu ter vindo. — Novamente ele voltou a
atenção para Rachel. — Assim que soube da morte de seu marido, quis lhe
oferecer meus sentimentos pessoalmente.
— Obrigada. Nós... — Ela lançou um olhar para o pai. — Digo, eu estou
muito contente por você ter vindo.
Outra vez ficaram em silêncio. Havia tanta coisa a ser dita, mas as palavras
morriam diante da presença austera de Everett. Depois, se fossem obedecer a
seus sentimentos e instintos, apenas se abraçariam como se o tempo não
tivesse passado. Ambos sabiam disso, mas nada podiam fazer.
— Não conheci Owen pessoalmente — disse Tommy, procurando ser
formal e agir de acordo com a situação, numa tentativa de prolongar aquele
encontro. — Mas toda a cidade diz que era um homem maravilhoso. Sinto
muito. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer...
Rachel baixou os olhos. Estaria chorando?
— Eu... eu sinto muito — Tommy continuou, embaraçado. — Não devia ter
vindo...
Rachel não teve tempo de responder.
— Não podemos mais ficar. — Everett foi severo. Puxou-a pelo braço e ela
se foi. Novamente Rachel estava indo embora, talvez para sempre.
Tommy a seguiu com o olhar. Como era encantadora! Os anos haviam sido
generosos com ela, transformando-a numa mulher cheia de sensualidade e
beleza. Seu andar delicado, os cabelos revoltos pelo vento, as mãos finas e
macias... tudo nela era incrivelmente sedutor.
Instintivamente, procurou o maço de cigarros no bolso do paletó azul-
marinho. Seria bom se também tivesse uma boa dose de uísque. Estava
precisando de forças. Por mais absurdo que fosse, sentia-se como um animal
enjaulado, querendo se desvencilhar das grades, correr, alcançar o que mais
desejava e sendo obrigado a se manter distante e alheio.
Owen Hollis. Como havia sido a vida dela com ele? Eram felizes? Será
que ele fora bom, gentil e afetuoso? Quanto Rachel sofrera, com o câncer do
marido? Por que não tiveram filhos? E o que ela teria contado sobre Tommy
Lee Gentry?
Tommy Lee foi até o túmulo, onde as rosas repousavam calmamente. Olhou
para as duas únicas placas douradas. Owen Hollis. Eulice Talmadge, a mãe de
Rachel. Estava com raiva? Não, não era ódio. Simplesmente uma sensação de
abandono e decepção.
— Por que fez aquilo, Eulice? — murmurou, como se a morta pudesse
ouvi-lo. — Você e seu marido... Até meu pai e minha mãe... Por quê?
A limusine preta parou diante da velha casa da rua Cotako, onde Rachel
havia nascido e crescido. Ajudada pela eficiente mão do pai, ela desceu. Seus
movimentos eram lentos. Talvez esta fosse a primeira vez que podia agir com
tanta lentidão. Desde que Owen ficara doente, há dois anos, só conhecera
correria e tensão. Quantas vezes não chamara a ambulância às pressas?
Quantas noites de insônia? Quantos dias de sofrimento?
Ergueu o olhar para a casa de dois andares, pintada de bege. Uma pequena
escada levava à porta principal, de ferro entalhado, como fora moda nos
velhos tempos. O vitrô da sala, parcialmente encoberto por uma trepadeira,
deixava ver o interior, o sofá estampado. No jardim bem cuidado, ainda
floresciam os narcisos plantados pela mãe. Tantas vezes ela e Tommy Lee
haviam se refugiado sob os galhos para comerem doces antes do jantar. Eram
somente crianças levadas, que riam ao desafiar a autoridade dos pais. Era
divertido! Naquela época, as famílias eram amigas inseparáveis. Mas o
destino tinha destruído tudo, restando apenas as boas lembranças.
Sem resistir, Raquel se virou para a casa vizinha, dos Gentry. Antes era
alegre e festiva. Hoje, sombria e deserta. O longo gramado verde unia as duas
construções. Mas há vinte e quatro anos um imenso muro de pedras as tinha
separado definitivamente. O mesmo muro inviolável que a distanciara de
Tommy Lee.
Os amigos íntimos a esperavam dentro da casa, na tentativa de confortá-la
pela triste perda. Rachel os cumprimentou educadamente, mas logo pediu
licença e se retirou para o quarto. Estava cansada. Confusa também. Encontrar
Tommy Lee e falar com ele depois de tanto tempo havia sido uma experiência
emocionante e perturbadora.
A cama de vime branco ainda era a mesma. As paredes enfeitadas com
posters e bonecas mantinham o mesmo tom rosado. Ali, naquele quarto, Rachel
sonhara com o futuro, fizera planos, chorara e rira sozinha com o travesseiro.
Na escrivaninha de madeira laqueada, o urso de pelúcia marrom, já desbotado
e sem um dos olhos, a contemplava. Tinha sido um amigo leal, que escutara
seus problemas infantis, suas descobertas e alegrias.
Deus... ela estava sorrindo! Voltar no tempo, ainda que só na imaginação,
era delicioso. Naquela época, a felicidade reinava, o amor e a compreensão
pareciam unir profundamente as pessoas. Agora, tudo era diferente.
Num impulso, caminhou até a janela, de onde avistava, por cima do
imponente muro de pedras, a casa dos Gentry. Gaines e Lily, pais de Tommy
Lee, ainda viviam lá. Porém, já não possuíam o mesmo entusiasmo. As janelas
raramente se abriam. Não se ouviam mais suas alegres gargalhadas. Até
mesmo as azaléias que circundavam a casa tinham perdido a cor.
A história dos Talmadge e dos Gentry começava muito antes do que o pai
dela se permitia contar. Porém, tudo estava gravado em velhos álbuns de
fotografia, jogados num canto do sótão.
Os dois casais tinham sido verdadeiros pioneiros da pequena Russellville.
Construíram suas casas, suas fortunas e uma sólida amizade. Os homens
jogavam golfe, as mulheres tênis, e, juntos, partilhavam noites a fio em volta
de uma mesa de buraco. Eulice e Lily ficaram grávidas na mesma época.
Compararam seus enjôos e esperanças, o tamanho das barrigas e escolheram
nomes para seus bebês.
Rachel e Tommy Lee chegaram ao mundo com dois meses de diferença.
Lado a lado, tiveram as mesmas doenças infantis, perderam os dentes de leite,
foram à escola. Adoravam brincar na piscina de plástico que as mães tinham
comprado em sociedade, enquanto elas tomavam chá ou tricotavam. Quando
uma das crianças pegava o brinquedo da outra, as mães ralhavam, obrigando-
as a fazerem as pazes com beijos e carinhos.
Tommy Lee tinha oito anos, quando quebrara o braço, tentando instalar um
telefone improvisado entre seu quarto e o de Rachel. E, uma vez, ela ficara de
cama uma semana com febre alta por tê-lo esperado na chuva para irem
comprar sorvete. E quando os dois pintaram a parede da sala de visitas de
Lily com as canetas e lápis de cor que haviam ganho no Natal? A cinta estalou
no traseiro deles...
As lembranças vinham à mente de Rachel como num filme nítido e claro.
Tinha a impressão de que, se fechasse os olhos, podia ouvir Tommy Lee
chamando-a lá de baixo, como fazia todas as manhãs. Ele acordava cedo e a
obrigava a se levantar também. Nem quando ficaram mais velhos perdeu esse
hábito.
Mesmo com o corpo se formando, os seios crescendo, os quadris mais
acentuados, Rachel saía na janela de camisola e olhos inchados.
— Quero dormir, Tommy. Hoje é domingo! — ela gritava.
— Vamos fazer um piquenique nas montanhas! — Ele sempre tinha idéias
fantásticas e acabava por convencê-la a se levantar. Ah! Como era bom
acordar com a voz de Tommy Lee...
Rachel se debruçou na janela, recostando a cabeça no batente. Eram tantas
as recordações, tão belas e doces...
— Senhorita...
A voz familiar, meiga e amiga, fez com que ela se virasse. Um segundo
depois, estava enfiada no abraço quente e carinhoso da negra, tão gorda quanto
querida.
— Callie Mae... — murmurou, sentindo o cheiro de fritura que sempre
marcara os cabelos secos e carapinhados da preta. — Oh! Callie Mae...
— O que a minha pequena está fazendo aqui em cima? — O sotaque sulista
dela era reconfortante. — Se escondendo?
— Acho que sim. Não tenho paciência para agüentar aquela gente,
comentando sobre a doença de Owen.
— Seu pai está procurando você...
— Já vou descer. Só precisava ficar um pouco sozinha, pensando.
— E olhando por cima daquele muro — os lábios grossos da negra
completaram, com evidente sabedoria.
— Sinto saudade daqueles tempos...
— Eu sei, minha pequena. Eu sei. Mas, de qualquer jeito, não acho certo
que o sr. e a sra. Gentry não tenham ido ao enterro. Já é a segunda vez que
morre alguém da nossa família e eles não comparecem. Isso está errado.
Afinal, num momento de dor, a gente precisa esquecer as mágoas do passado.
— Você está certa, Callie Mae. Qualquer um que tivesse um coração tão
grande quanto o seu pensaria da mesma forma. Acontece que a culpa não é só
dos Gentry. Papai não gostaria de vê-los no cemitério. Sabe disso.
As duas se abraçaram com mais força. Rachel, que não podia esconder
nada da velha, escolheu as palavras e tentou manter um tom firme e
indiferente.
— Tommy foi lá.
A preta não se enganava. Era perspicaz e, acima de tudo, conhecia o
coração de Rachel. Afastou-a de seus braços e olhou-a de frente. Depois
sorriu com os mesmos dentes-brancos, fortes e brilhantes.
— É por isso que minha pequena veio até o quarto, não é?
Rachel não respondeu. Nem precisava. Para Callie Mae não havia
segredos. Era empregada da família desde que Rachel era apenas uma menina
rechonchuda e banguela. Tinha presenciado a amizade dos casais, das crianças
e até a construção do muro, decidida pela morte de Eulice.
— Bem, é melhor não tocar nesse assunto. — Callie balançou a cabeça,
como se estivesse pensando. — Quando terminar de sonhar acordada, vá até a
cozinha. Fiz um bolo de chocolate e torta de amêndoas para você.
— Meus doces prediletos... — Rachel esboçou um sorriso. — Mas não
tenho fome. Obrigada.
— Minha pequena precisa comer. — O tom era maternal, em cuidadosa
zanga. — Está só pele e osso.
— Talvez mais tarde, Callie Mae...
— Muitos pensamentos e pouca comida. — A negra foi se esquivando até
chegar à porta. — Isso não é bom...
O som das vozes dos amigos subia até o quarto. Rachel estava tão cansada!
Talvez, se ficasse um pouco mais ali, eles fossem embora...
Jogou-se na cama estreita, sem se importar em amassar o vestido. Abraçou
o travesseiro e fechou os olhos. Repentinamente o tempo voltou atrás. Tinha
apenas quatorze anos e era uma noite clara, iluminada pela lua prateada e
cheia. Tommy Lee a tinha beijado pela primeira vez. Um beijo de verdade,
como aqueles dos filmes. A língua dele, inexperiente mas sensual, havia
penetrado em seus lábios com certo temor. Fora tão suave, tão maravilhoso!
— Meu Deus... o que estou fazendo? — ela falou sozinha, assustada com a
reação imediata de seu corpo.
Há algumas horas tinha enterrado o marido e, no entanto, só tinha
pensamentos para Tommy Lee. Era direito fazer isso? Não estaria
desrespeitando a imagem de um homem bom e dedicado? Será que dezenove
anos de um casamento bem estruturado não valiam nada?
Sem dúvida, sofreria ao voltar para a casa vazia. Aí sim, sentiria falta de
Owen. Se ao menos tivesse filhos para alegrar seus dias...
Uma batida leve na porta a fez se ajeitar.
— Entre...
— Aí está você... — Everett colocou a cabeça na fresta da porta. —
Marshall veio visitá-la.
— Já vou descer...
Everett entrou e, por um instante, foi absorvido pela suavidade daquele
quarto infantil.
— Vê-la aqui... Oh! Rachel, é como se o tempo não tivesse passado, você
fosse ainda uma menininha e sua mãe estivesse viva. — Soltou um longo
suspiro. — Acho que nunca me acostumarei à falta dela...
Certamente não, Rachel pensou. Mas havia uma maneira de aliviar a dor.
Bastava tocar a campainha da casa ao lado. Ali moravam velhos amigos que
partilharam momentos de alegria quando a mãe sorria pelos cantos da casa. Só
que infelizmente as coisas não eram tão simples assim. Sentimentos de culpa e
ódio se mesclavam, transformando amigos em verdadeiros estranhos.
Só agora ela reparava como o pai tinha uma expressão martirizada pela dor.
Pobre coitado... também havia sido vítima do destino, embora tivesse
cometido erros imperdoáveis. Se pensasse em tudo o que perdera por causa
dele, poderia matá-lo de tanta raiva. Mas ele era apenas um ser humano, com
falhas, orgulhos imbecis e, quem sabe, arrependimentos. E ela o amava.
— Você os vê de vez em quando? — Ela esticou os olhos por cima dos
ombros do pai, apontando a casa do lado.
— Não quero falar sobre isso.
— Ouvi dizer que Tommy não fala mais com eles. É verdade?
— Não sei. — Aquilo perturbava o pai. Os Gentry tinham sido
definitivamente riscados de sua vida. — Nem quero saber. Não é da minha
conta.
— Há vinte e quatro anos...
— Rachel... — O velho corou. — Isso não é hora de falarmos sobre isso.
Você não pode estar preocupada com eles, quando seu marido acaba de
morrer.
Ele tinha razão. Era mesmo uma vergonha. Owen não merecia cair no
esquecimento tão rapidamente. Apesar dos segredos que guardava no coração,
ela sempre havia sido uma esposa dedicada e carinhosa. Devia manter a
mesma postura agora.
— A morte de Owen foi um choque para você, não é? — Era uma pergunta
estranha para uma viúva. Afinal, ela mesma deveria estar desesperada. Mas,
ao contrário, sentia-se aliviada. Os últimos seis meses tinham sido um
verdadeiro inferno. Owen se consumia na cama, definhando dia a dia. O
sofrimento e a dor eram insuportáveis. Várias vezes se surpreendera
desejando a morte dele. Era a única maneira de acabar com as dores sempre
constantes e terríveis.
— Eu tinha muitos planos para ele — Everett disse, baixando a cabeça.
Depois, tomou fôlego. — É melhor descermos. A família Hollis está Ia
embaixo.
— Vá em frente. Preciso me arrumar um pouco.
Sinceramente, não tinha a menor vontade de encarar o olhar vermelho e
sofredor de Frank Hollis. Nem o nariz inchado e úmido de Pearl Hollis.
Talvez fosse egoísmo, mas simplesmente não tinha paciência para aquilo tudo.
Marshall True, elegante e bem vestido como sempre, também estava lá e a
recebeu de braços abertos.
— Rachel, querida, estava preocupado com você. Sei como se sente. E,
quando quiser voltar para sua casa, terei prazer em levá-la.
Uma hora mais tarde, depois de ficar com a família do marido, Rachel
resolveu ir embora. Ia ser duro, sem dúvida. Mas, se tinha que enfrentar a
solidão, era melhor fazê-lo o quanto antes.
Aceitou a carona de Marshall e seguiram em silêncio até o carro esporte
estacionar diante da casa de tijolos à vista.
— Obrigada — ela disse. — Sei que não fui a companhia ideal...
— Compreendo o que está sentindo. Quando Joan morreu, eu também não
tinha a menor vontade de conversar. Parece que uma faca afiada divide a gente
ao meio, não é?
— Não sei... — ela hesitou. — Para dizer a verdade, sinto uma espécie de
alívio. Já não agüentava mais os hospitais, médicos e sofrimento. Será que
estou sendo ingrata ou insensível?
— Não, querida, você está apenas cansada. Dois anos convivendo com um
doente incurável é desgastante.
Marshall era um bom homem. Tinha estado sempre presente nos momentos
de depressão profunda de Owen. Trazia palavras de conforto e esperança.
Ajudava, sem esperar nada em troca.
— Às vezes me sinto culpada — ela resmungou. — Você sabe, cheguei ao
ponto de desejar a morte dele...
— É natural. É difícil vermos as pessoas que queremos bem sofrendo e
morrendo lentamente. Você é humana. Lembre-se disso.
Marshall sempre tinha a palavra certa para o momento. Jamais fazia
críticas, e, mesmo quando aconselhava, agia com tamanha delicadeza e
discrição que era impossível ficar zangada. A amizade entre eles tinha sido
construída através de anos de sofrimento. Talvez por isso fosse tão sólida.
Joan, embora jovem, era uma mulher debilitada, de pouca saúde. Tivera sérias
complicações renais, o que a levara a viver anos e anos na cama.
Owen e Rachel procuravam confortar o amigo, que não via esperanças para
a esposa. Nos últimos dias, quando ela já estava em coma profunda, passavam
horas a fio no hospital, numa tentativa inútil de levar alguma alegria a
Marshall. Daí em diante, tornaram-se inseparáveis.
— Ouvi dizer que você vai viajar — ele disse, abrindo a porta do carro.
— Papai lhe contou, não é?
— Isso mesmo. Ele disse que vai para St. Thomas. A idéia me parece
ótima. Você está precisando relaxar um pouco.
Os dois entraram na casa. Apenas uma palavra era necessária para
descrever a decoração: perfeita! Isso mesmo. Não era luxuosa, nem
sofisticada, mas todos os cantos, por mais escondidos que fossem, tinham
merecido a atenção e o bom gosto da dona. Na sala de estar, ficavam os sofás
sobre o macio tapete de lã de carneiro e as mesas laterais, com peças de prata
e cinzeiros de cristal. Almofadas coloridas davam um toque aconchegante e
acolhedor, assim como os quadros e gravuras dispostos pelas paredes brancas.
A sala de jantar era um pouco mais austera. A mesa retangular tinha
pertencido à avó de Owen e era pesada, escura e imponente. Sobre ela, apenas
um castiçal com cinco velas vermelhas.
— Bem, com dinheiro você não precisa se preocupar. — Marshall a seguiu
até a sala. — O seguro de vida de Owen será liberado dentro de duas
semanas. Quando voltar de viagem, já poderá receber o cheque.
Ele tinha uma companhia de seguros, que construíra com seu próprio
esforço. Marshall era um dos filhos de uma família muito grande e não
conhecera luxo e conforto durante a infância. Começou a trabalhar muito cedo
e graças ao seu trabalho e honestidade conquistara uma vida estável e bem-
sucedida.
— Enquanto estiver fora, darei uma olhada na casa. Posso abrir as janelas
para ventilar e fazer movimento para espantar possíveis assaltantes.
— Não precisa se incomodar... isso vai lhe dar muito trabalho.
Argumentar com ele era perder tempo. Marshall não economizava esforços
para ajudar os outros, principalmente ela. Tinha prometido a Owen, em seu
leito de morte, que cuidaria de Rachel e ia seguir o compromisso à risca.
Houve uma época em que Rachel desconfiou que Owen desejasse que ela e
Marshall se unissem após sua morte. Parecia absurdo, mas o amor de Owen
era tão grandioso que ultrapassava facilmente sentimentos como o ciúme. Ele
queria que ela tivesse uma vida feliz mesmo sem sua presença. Rachel, por sua
vez, sabia que não seria difícil conviver intimamente com Marshall. Tinham
muitos pontos em comum e um estilo de vida bem parecido. E, evidentemente,
já estavam habituados um com o outro.
Antes de sair, Marshall verificou as portas, janelas e percorreu os cômodos
da casa. Estava tudo na mais perfeita ordem. Rachel podia se deitar sem
maiores preocupações.
— Obrigada por tudo. — Ela o beijou longamente no rosto. — Não sei o
que faria sem você.
— Não há nada o que agradecer. Você bem sabe que quando precisar, a
qualquer hora do dia ou da noite, basta discar o meu número. Estarei aqui no
instante seguinte.
Ele era mesmo uma pessoa muito especial.
Rachel acenou da porta e ficou ali parada até que o carro luxuoso
penetrasse na noite escura. Tomou fôlego antes de voltar para dentro. Sabia
que agora enfrentaria o pior de todos os momentos: a certeza da solidão.
A casa estava tão vazia e silenciosa! Até mesmo os gemidos agoniados do
marido faziam falta. Era como se a vida tivesse subitamente abandonado
aquele lugar. Não havia qualquer movimento ou ruído. Oh!... ia ser muito mais
difícil do que supunha.
Apagou as luzes da sala e subiu as escadas lentamente. Ao abrir a porta do
quarto, sentiu um nó apertar sua garganta. A cama de casal estava
impecavelmente arrumada, as flores ainda na mesa-de-cabeceira, junto com os
remédios, os dois porta-retratos... a primeira lágrima correu pelo rosto
cansado de Rachel.
Ainda lutando contra a própria fraqueza, pegou a camisola de cambraia
branca, saiu e fechou a porta. Dormiria no quarto de hóspedes. Não suportaria
deitar na cama onde Owen morrera.
No banheiro, procurou evitar o espelho. Não queria se ver naquele instante
de tristeza. Amanhã poderia renovar forças e enfrentaria melhor a nova
situação. Hoje, só desejava dormir, esquecer, apagar as lembranças e a dor.
Mas o travesseiro não a confortou. Sentindo-se terrivelmente só, deixou que
os soluços explodissem. As lágrimas lhe desciam abundantes pelo rosto.
Todos os músculos do corpo pareciam rijos e tensos. Sentiu medo de tudo, de
continuar viva, de se tornar amarga e solitária, de nunca mais poder entrar no
quarto que dividira com Owen.
Chorou pelos infindáveis dias de sofrimento do marido e por não ter
podido ajudá-lo. Chorou pela menina alegre que fora e pela mulher
desesperada em que havia se transformado. Chorou, pois durante duas décadas
tinha sido casada com um homem maravilhoso e nunca fora apaixonada por
ele.
Chorou, porque seu coração ingrato disparara de emoção ao ver Tommy
Lee no cemitério. E isso era a parte mais difícil de admitir. Sentia-se traindo
Owen e, ao mesmo tempo, sendo traída pela vida.
Por fim, no auge do desespero, chorou pelos filhos que nunca dera a Owen.
E pela criança de Tommy Lee, a quem ela dera a luz.
II
Quatro dias após o funeral, Tommy Lee ainda não se refizera do rápido
encontro com Rachel. Acordou cedo e não estranhou o fato de não estar em sua
cama. Já tinha se acostumado a dormir na sala, encolhido no sofá, depois de
uns goles a mais. Ainda usava o terno de tweed e a gravata.
Olhando para o espelho do banheiro, enquanto escovava os dentes,
sussurrou, desanimado: — Você precisa perder uns quilos, rapaz. Aliás, é
melhor mudar sua vida, largar a bebida e as mulheres e começar a se dedicar a
atividades mais saudáveis.
Era uma recomendação que fazia a si próprio todas as manhãs, mas que
nunca cumpria. De alguma forma, a cerveja estava sempre gelada demais e as
mulheres quentes demais para serem recusadas. A roda-viva continuaria e ele
sabia disso.
De repente, por segundos, a imagem de Rachel surgiu em sua mente. Sentiu-
se envergonhado da vida que levava. Ela, sim, tinha sabido conduzir o próprio
destino. Continuava linda, perfumada e deliciosamente sensual. E se o visse
naquele estado? O que diria? Sem dúvida, ficaria enojada.
Furioso, Tommy Lee deu um soco no espelho.
A estrada até o lago Cedar Creek era linda e inspirava paz. Saía do lado
oeste da cidade, curvando-se sinuosamente pela floresta de pinheiros. O
percurso se estendia no sopé das montanhas Apalaches, que, no fundo,
limitavam a visão.
Por alguma razão inexplicável, Rachel conhecia perfeitamente o caminho,
embora sempre o tivesse evitado. Pelo menos, desde que Tommy Lee
construíra a casa. Era como se o carro fosse dirigido pelo seu coração.
Finalmente entrou na rua particular. Sentiu o estômago se contorcer e
respirou fundo, tentando manter a calma. Diminuiu a marcha e analisou a
mansão de estilo ousado, moderno, de concreto aparente. Estranho... parecia-
lhe tão familiar!
— Você está ficando maluca. — Ela acabou sorrindo. — Como pode se
lembrar de uma casa que nunca viu antes?
Parou o carro diante do terraço. Ajeitou os cabelos e os óculos escuros.
Santo Deus, como estava nervosa! Não devia ter vindo! Pensou em dar meia-
volta, mas o coração não lhe permitiu. Depois lembrou que a filha de Tommy
Lee estaria lá. Era sua proteção e segurança. Tocou a campainha. Ninguém
respondeu.
"Ele deve estar no lago com Beth", pensou logo.
Insistiu outra vez, só por desencargo de consciência. Esperou um pouco,
mas também não teve resposta. Que droga! Tanta emoção, tanta batalha íntima
para nada...
Já ia desistir, quando a porta se abriu. Tommy Lee tinha os cabelos
despenteados, a camisa fora da calça e não usava os óculos. Ficou diante dela,
como se estivesse vendo um fantasma.
— Rachel... Meu Deus... Você veio!
— Foi você quem me convidou, lembra-se? — ela respondeu, sem graça.
— Sei, mas não esperava que aceitasse... — Num impulso, ele tentou se
arrumar, colocando a camisa de volta no lugar e passando os dedos nos
cabelos.
— Espero não estar interrompendo nada — ela disse.
— Claro que não! Meu Deus, nem a convidei para entrar. Entre! Eu estava
dormindo.
Quando a porta se fechou atrás dela, Rachel se viu perdida no meio de uma
grande bagunça. Sobre o sofá, cujas almofadas tinham sido jogadas no chão,
um lençol estampado. Copos sujos por toda parte, cinzeiros, pó, lenha velha na
lareira. Uma completa confusão.
— Não esperava ninguém... — ele se justificou, enquanto recolhia
apressadamente as almofadas.
— Pensei que sua filha estaria aqui.
— Realmente ela vinha passar o fim de semana comigo. Mas a mãe a
proibiu na última hora. — Ele correu os olhos pela sala. — Minha casa está
meio desorganizada, não é mesmo? Bem, eu pretendia vir mais cedo na sexta-
feira e deixar tudo em ordem para a chegada de Beth. Quando ela telefonou
avisando que não viria, não senti ânimo para mais nada.
Rachel nada comentou. Tudo o que poderia dizer era que aquilo estava uma
completa desordem. Mas preferiu continuar calada. Observou que a
arquitetura e a decoração da casa eram maravilhosas, resultado de
competência e bom gosto.
— Mesmo sem Beth por aqui, gostaria que ficasse, Rachel — ele disse,
num tom meigo e terno.
Ela não se moveu. Estava disposta a ficar. Não achou que ele estivesse
mentindo, armando uma cilada para ficarem a sós. Sabia que Tommy Lee era
infantil de vez em quando, mas não chegaria a tal ponto.
— Se me esperar um pouco, vou tomar um banho, está bem? — Tommy Lee
falou — Não vá embora. Estarei de volta dentro de cinco minutos.
Sozinha na sala, Rachel não se sentou. Estudou cuidadosamente cada um
dos quadros fartamente dispostos pelas paredes. Eram caros e de extremo bom
gosto. Aliás, tudo naquela casa parecia luxuoso e requintado. A sala de jantar
era magnífica. O estilo clássico se chocava com o resto, moderno e ousado.
Por isso mesmo criava um clima interessante. Porém, não era uma casa
aconchegante. Ao contrário, era fria e sem vida. Talvez j faltassem algumas
flores e, sem sombra de dúvida, uma boa arrumação.
Deteve o olhar nos copos vazios. Um deles ainda estava suado. Tocou-o
com os dedos: gelado! Cheirou. Gim e uma pedra de gelo derretendo.
A realidade estava diante de seus olhos. Bastava querer enxergá-la. Tommy
Lee era alcoólatra. Talvez bebesse para espantar a solidão ou as mágoas do
passado. Não importava. Na realidade, era dependente do álcool.
Rachel estremeceu, ao imaginar a cena. Tommy Lee com o corpo mole
caído no sofá, e ali ficando até o momento em que ela o acordou, tocando a
campainha. Era deprimente. Talvez não devesse ter vindo...
Perto da lareira encontrou pacotes velhos e vazios de batatas fritas e doces.
Pobre Tommy Lee... nem se alimentava direito. Devia levar uma vida triste e
aborrecida, apesar da fortuna que tinha. Infelizmente o dinheiro não comprava
a felicidade nem a paz de espírito.
— Desculpe tê-la deixado esperar, Rachel.
Assim que ela subiu os olhos até a escada, sentiu um tremor lhe percorrer a
espinha. Tommy Lee estava de short, sem camisa. Ah! Ainda se lembrava dos
pêlos finos e escassos no peito dele. Agora eram espessos e abundantes, e
cobriam até o ventre. As pernas continuavam musculosas e sensuais. Era um
homem imensamente atraente.
— Pensei em nadarmos um pouco — ele disse, se aproximando. — Você
trouxe maiô?
Rachel ainda estava sem voz. Por um instante, surpreendeu-se imaginando o
que se escondia debaixo do short. Será que ainda era tão bonito e vigoroso
como antes? Certamente, bem mais experiente.
— Então, Rachel, não quer nadar?
— Sim... quero dizer, eu trouxe um maiô. Está no carro. Mas pensei que
Beth estaria aqui e...
A relutância dela era óbvia, porém ele não se importou.
— Vou buscá-lo para você.
Não, ela não queria mais vestir o maiô. Iria criar uma situação íntima
demais. O jogo estava começando a ficar arriscado. E agora ela tinha certeza
absoluta de que não queria qualquer tipo de envolvimento. A vida de Tommy
Lee era desregrada, irresponsável e suja. Mas o pior é que se sentia
terrivelmente atraída. Era como se seu corpo inteiro vibrasse simplesmente
por vê-lo com o peito à mostra.
— Rachel... não quer que eu vá pegar seu maiô? — ele insistiu, diante do
silêncio dela.
— Não, eu vou.
Nem ela sabia por que tinha concordado. Talvez precisasse apenas de uma
desculpa para tomar ar, respirar fundo e recuperar as forças. Estava mesmo se
comportando como uma menininha assustada. Mas o que podia fazer contra
isso? Era assim que se sentia...
Ao sair, sentiu o olhar quente e vibrante de Tommy Lee seguindo-a e
detendo-se nos quadris. Não seria fácil resistir a ele por muito tempo. Todo o
seu corpo implorava por carícias, que tinham ficado adormecidas no tempo.
Abriu a porta do carro e sentou-se no banco por um momento. Tinha que se
controlar. Tentou focalizar o rosto do marido, mas simplesmente não
conseguiu. Procurou ainda se convencer de que o amor por Tommy Lee era
coisa do passado, mas isso também não ajudou. A atração era forte e premente
demais.
Repentinamente, lembrou-se dos brincos vermelhos que ele tinha comprado
na loja. Aí, sim, sentiu-se forte. Não queria ser mais uma das conquistas dele.
Mais um troféu, mais um nome na imensa lista.
— Você pode usar o quarto de hóspedes no andar de cima — ele disse,
assim que Rachel voltou.
Pé ante pé ela subiu as escadas. Havia uma sala de distribuição, com sofás
macios. de madeira natural e uma estante onde ficava a televisão e o aparelho
de som. De lá, saíam dois corredores, com portas fechadas e também uma
escada de ferro em espiral, que levava ao último andar. Certamente lá ficava o
quarto de Tommy Lee, de onde a vista deveria ser maravilhosa.
Sem saber qual era o quarto de hóspedes, abriu a primeira porta. Parecia
que ninguém entrava lá há um século! Era um escritório, com escrivaninha de
laca chinesa, sobre a qual pendia um lustre de papel arroz. A cortina de
madeira estava fechada, mas certamente a janela dava para o lago.
Abriu a porta seguinte. Era o quarto de Beth. A cama larga de metal
dourado ficava encostada num dos cantos, com milhões de almofadas em cima,
cada qual de um formato. Em cima da mesinha-de-cabeceira havia um abajur
com cúpula de tecido amarelo e branco, que combinava com a cortina farta
que descia até o chão. O carpete era imaculadamente branco, fofo e macio.
Também havia uma cômoda com cinco gavetas largas e, perto da janela, uma
cadeira de cana da índia, com almofada amarela.
Num relance, Rachel pensou que esta Beth e aquela perdida no passado
tinham se fundido em uma só. Sem resistir, entrou no quarto, sofrendo por vê-
lo fechado e tão sem vida. Devagar, abriu a porta que havia ao lado do
armário. Era o banheiro, no mesmo tom suave de amarelo. Sobre o balcão da
pia, vidros de perfume, xampus e sabonetes pequenos e coloridos, dentro de
um pote de cristal.
Desistiu de procurar pelo quarto de hóspedes. Preferia se trocar lá mesmo,
no banheiro que poderia pertencer à sua própria filha. Por uma razão estranha,
sentia-se bem lá dentro. Aliás, era o único lugar da casa inteira que tinha um
pouco de vida. Todo o resto parecia morto, triste e empoeirado.
Tirou a camiseta e a calça. Depois o sutiã de renda bege e a calcinha. Nua
diante do espelho, observou a cicatriz da cesariana, bem no baixo ventre,
perto dos pêlos. Acariciou-a com a ponta dos dedos. Por lá, havia saído a
única criança que seria realmente sua. Sua e de Tommy Lee. O fruto do amor
deles.
Seus olhos ficaram úmidos. Tantas vezes tinha pensado que mágoas estavam
superadas... e agora... as recordações voltavam dolorosas...
— Não pense nisso — murmurou. — Não há nada que possa ser feito para
mudar o passado.
Voltou a se olhar no espelho. Desta vez, deteve-se nos seios redondos e
pequenos. Ainda se mantinham firmes e eretos, mas certamente não eram os
mesmos de quando tinha dezessete anos. Será que Tommy Lee repararia? Iria
achá-los feios e diferentes?
A cintura continuava fina. Os quadris eram bem mais largos agora, assim
como as coxas. Sentiu medo de exibir-se para Tommy Lee.
— Sua boba — resmungou, fazendo uma careta. — Em primeiro lugar, não
devia estar aqui. Em segundo, não tem nada que se preocupar com a opinião
de Tommy Lee a respeito de seu corpo. Você é uma mulher de meia-idade,
afinal de contas. Comporte-se de acordo. — Rapidamente vestiu o maio e
deixou o quarto, ignorando a opinião do espelho.
Mais uma vez, deteve-se no hall. Olhou demoradamente para a escada em
espiral que levava ao quarto principal, onde certamente havia uma lareira, um
terraço grande com vasos de plantas e o teto angular, destacando a estrutura da
construção.
"Claro", ela pensou, assustada. "É a nossa casa! A que planejamos construir
quando nos casássemos."
Atônita, quase pôde visualizar o quarto de cima. O quarto que seria deles.
Uma das paredes toda de vidro, permitindo a visão total do lago. A cama bem
grande e macia, com espaldar de madeira escura. Sim, era isso mesmo o que
tinha planejado...
Não era à toa que a casa lhe pareceu familiar...
Confusa, resolveu descer correndo. Não queria mais pensar a respeito. Era
capaz de enlouquecer. Bem, talvez estivesse enganada...
— Estou aqui, Rachel — Tommy Lee gritou da cozinha. Havia recolhido os
cinzeiros e copos sujos e lavava-os desajeitadamente. — O que quer tomar?
Cerveja, vinho, vod...
— Limonada — ela respondeu rapidamente. — Tem água e limão em casa,
suponho...
Tommy Lee logo percebeu a repreensão e a ironia. Sem dizer nada,
espremeu o limão num copo longo.
— Açúcar ou adoçante? — perguntou.
— Se Callie Mae ouvisse isso, ficaria furiosa. Açúcar, por favor. Preciso
ganhar uns quilos rapidamente.
Instintivamente, Tommy Lee fitou-a com olhos observadores e penetrantes.
Correu o pescoço esguio, a curva dos ombros, delicada e feminina; desceu
para os seios, parcialmente revelados pelo decote; o ventre reto, quadris bem
desenhados, as coxas roliças e até mesmo os pés pequenos, com unhas
pintadas num suave tom de rosa. Não, ela não precisava de um grama a mais.
Nem a menos. Estava absolutamente perfeita. Deliciosamente atraente.
Ao contrário do que acontecia com a maioria das mulheres, a idade só
havia servido para apurar a beleza clássica e suave de Rachel. É claro que já
não tinha aquele ar angelical e ingênuo. Mas até isso lhe caía bem. Agora
havia malícia e sensualidade em seus olhos. Era uma mulher completa, que
inspirava os pensamentos mais diabólicos...
Por outro lado, mantinha o mesmo jeito, inatingível e sério. Mais até. Agora
era uma mulher completa, respeitada por toda a sociedade. Tinha conseguido
se impor como esposa, mulher e comerciante. Seus gestos e hábitos
ponderados causavam admiração. Possuía um trabalho honesto, ia à igreja aos
domingos, cuidava do jardim e da casa.
E a ele, o que tinha feito o tempo? Era evidente que a vida o havia
transformado num relaxado beberrão. Má reputação, era essa a maior
conquista. Claro, fizera fortuna em pouco tempo. Poucos na cidade gastavam
dinheiro com a mesma facilidade. Mas de que lhe valia isso?
— Está pronta? — Ele sacudiu a cabeça, afastando o pensamento.
— Já vamos nadar?
— Que tal uma volta de lancha antes?
— Hum... parece uma boa idéia.
— Leve seu copo. — Tommy Lee pegou duas latas de cerveja bem geladas.
Saíram pela porta da cozinha, que dava para um gramado imenso, indo
terminar num deck de madeira avermelhada. A lancha branca esperava por
eles.
— Sente-se ali. — Ele indicou o banco de passageiros e logo puxou a
corda que prendia a lancha à terra firme.
Depois sentou-se ao lado de Rachel e, com um simples toque num botão,
acionou o poderoso motor. Suas mãos se firmaram no manche e um segundo
após deslizavam pelas águas claras do lago.
Como uma criança curiosa, Rachel se debruçou para afundar a mão na água.
Depois respirou fundo, deixando que a pureza do ar lhe invadisse o corpo.
Tommy Lee sorriu ao observá-la tão distraída. Era mesmo uma mulher
cheia de mistérios, que ora ficava séria ou embaraçada, ora se transformava
numa doce menina, encantada com a natureza.
Pela primeira vez em muito tempo, ela se sentia feliz. A água calma do
lago, tão brilhante como um espelho, a companhia de Tommy Lee, tudo
contribuía para sua paz e serenidade. Era como se aquela lancha a estivesse
levando para longe dos problemas e da realidade.
Recostou a cabeça no banco e deixou que o vento lhe acariciasse os
cabelos e a face. Ficou com os olhos fechados, inteiramente entregue àquele
momento de tranqüilidade interior. Sentia a alma leve, o coração batendo
suavemente dentro do peito.
Subitamente, porém, a lancha deu uma guinada para a esquerda e a cabeça
de Rachel foi jogada para a frente. Ela arregalou os olhos, que se fixaram
assustados em Tommy Lee.
— Vamos nos aventurar um pouco — ele propôs, com um cigarro entre os
lábios. Depois acelerou violentamente.
— Você sempre gostou de velocidade, não é? — ela comentou, as palavras
distorcidas pelo vento.
— Sempre!
Um minuto depois, a proa se erguia no ar, cortando energicamente a água
límpida. O vento batia forte contra seus rostos, numa fascinante sensação de
liberdade.
— Ainda me lembro de papai lhe dizendo para não correr — Rachel gritou
entre dois sorrisos. — Saíamos de casa, e um quarteirão depois estávamos
praticamente voando.
— Também me lembro. Aliás, nunca me esquecerei daqueles momentos.
Nós éramos tão felizes! — Não havia tristeza ou amargura na voz de Tommy
Lee. Ao contrário, parecia que a recordação lhe era reconfortante e gostosa.
— Ainda adora velocidade — ela comentou, segurando-se no banco.
— Aperte o cinto. Vou dar força total!
A impressão que Rachel tinha é que conquistaria o horizonte em dois
minutos. Era uma sensação incrível, sentir-se completamente solta, livre,
ganhando espaço, voando...
Seu corpo balançava de um lado para o outro. Os cabelos pareciam
bandeiras hasteadas, tremulando ao vento, a respiração entrecortada de tanta
emoção. Era simplesmente delicioso...
Tommy Lee fez uma curva fechada e Rachel caiu em cima dele. Gargalhou.
Parecia brincadeira de criança. Outra curva para o lado oposto e ela voltou
para o lugar e assim foram... direita, esquerda, direita, esquerda...
Era divertido! Rachel ria sem parar e ele correspondia. Finalmente ela se
cansou e apertou o braço de Tommy Lee, num apelo. Já estava com o estômago
saindo pela boca! Mas ele só parou com as curvas, sem diminuir a velocidade.
Então ela segurou a mão dele, apertando-a com força. Olhou-o, como se
implorasse. Ainda estava sorrindo. Lentamente a lancha foi perdendo impulso,
até voltar ao ritmo calmo e suave. Só então Rachel reparou que ainda tinha a
mão sobre a dele.
— É bom vê-la rindo novamente — ele disse, de um modo íntimo,
profundo.
— Há muito tempo não me divertia tanto. Obrigada.
— Se me agradecer outra vez, vou ficar zangado. Eu me sinto feliz por
deixá-la alegre. Acho que faz mais bem a mim do que a você. — Depois tirou
uma lata de cerveja de dentro do isopor. — Quer uma?
—- Prefiro a limonada.
Aquela cerveja gelou o coração de Rachel. Odiava vê-lo bebendo. Reparou
nos cigarros apagados no cinzeiro. Três. Era demais para apenas quarenta
minutos. Realmente, Tommy Lee estava mergulhado em vícios...
— Vamos nadar? — ela sugeriu, sabendo que dentro da água ele não
beberia.
— Tudo o que quiser. Hoje, quem manda é você. Aonde quer ir?
— Não conheço o lago tão bem quanto você.
Ele aumentou a velocidade e um minuto depois estavam bem no meio do
lago. Desligou o motor, olhou para ela e sorriu.
— Aqui? — Rachel perguntou, espantada.
— Prefere outro lugar?
— Bem, pensei que íamos para a margem, numa das praias.
— No meio de toda aquela gente? Tem certeza de que é isso o que quer?
Rachel hesitou. Poderia mentir, mas seus olhos não permitiriam.
— Está bem — concordou. — Aqui é melhor.
— Então vou jogar a âncora.
Rachel não pôde deixar de reparar nos músculos rijos dele ao levantar a
âncora. Um homem de quarenta anos era infinitamente mais sensual que um de
dezesseis. As formas de Tommy Lee haviam se firmado. Os pêlos eram mais
espessos, os músculos mais proeminentes. As pernas — ah! eram seu ponto
fraco — estavam mais grossas agora. Mais poderosas, mais tentadoras.
— Você primeiro! —- ele gritou.
— Não, desta vez os homens irão à frente. Se a água estiver muito fria,
avise-me...
— Bancando a covarde, hein? — Ele soltou uma gargalhada sonora. —
Quem chegar por último é o filho da mula!
Nenhum dos dois se moveu, embora a brincadeira ordenasse assim. É que
aquelas palavras tinham um significado especial. Pertenciam a um tempo feliz,
quando o grupo de amigos saía para nadar no parque central. Ben, o mais
gordo e desajeitado, era sempre o filho da mula. Tommy Lee chegava em
primeiro. Rachel era a segunda. Nossa! Naquela época nada tinham. Nem
milhões, nem luxo. Mas, sem dúvida, carregavam a felicidade nas mãos.
Os dois se olharam demoradamente, tomados pela inesperada recordação.
E, inevitavelmente, outras lembranças vieram junto. Numa das competições,
Tommy Lee e Rachel ganharam muita distância em relação aos seguintes.
Chegaram no parque bem antes dos outros. Para comemorar, se abraçaram e
beijaram.
Foi a primeira vez que ele lhe tocou os seios, num gesto tímido e
envergonhado. Ambos coraram e viraram os rostos. Depois, voltaram a se
beijar.
— Não vou ser a filha da mula! — Rachel falou e se atirou na água, com a
proposital intenção de afastar as lembranças e esfriar o coração.
Tommy Lee a seguiu, mergulhando da proa. Quando emergiu, suspirou de
frio.
— Que água gelada! — reclamou.
— Então sou eu a covarde, não é? Vamos! Não fique aí parado como um
bobo. Vamos nadar!
Rachel disparou na frente. Dava braçadas largas, ritmadas e velozes. No
princípio, Tommy Lee a seguiu. Depois, ofegante, voltou para a lancha e se
estendeu no convés. Ela continuou o exercício. Foi para bem longe e voltou
com um sorriso vitorioso nos lábios.
— Você desistiu rápido demais — brincou.
— Estou fora de forma.
— Não devia. Não com um lago desses bem debaixo de sua casa. Se fosse
você, eu nadaria todos os dias.
— Faz isso em sua piscina?
— Desde o primeiro dia do verão até o último. E quando estou zangada,
sem ter com quem desabafar, mergulho até no inverno. Me faz muito bem.
Ajuda a aliviar as tensões.
— E manter o corpo bonito — ele completou, fitando-a acintosamente.
— Ando magra demais...
— Para mim, está perfeita. — Havia tanta sinceridade nos olhos de Tommy
Lee. Aqueles olhos... Gostava de vê-lo sem óculos. Tinha olhos grandes, e
vivos.
— Lembra-se de quando eu tentava dar a volta na sua cintura apenas com
minhas mãos? — Ele abriu um sorriso cheio de saudade.
— Na época eu teria ficado encantada se tivesse conseguido. Hoje, com
essas suas mãos enormes e meu corpo magricelo, tenho certeza de que seria
possível. Mas isso não me alegraria.
Só serviria para lembrar que preciso me cuidar melhor. Estou definhando.
Tommy Lee ergueu o corpo, sentando-se e apoiando os cotovelos nos
joelhos.
— Definhando! Que palavra horrível, Rachel! Você está ótima, melhor que
naqueles tempos.
— Ora, não pense que me engana. Sei contar e já somei quarenta e um anos.
Não é pouco. As marcas estão bem aqui, espalhadas pelo rosto e pelo corpo.
— Ela baixou os olhos. — Bem, há dois anos não me sentia assim tão acabada
e derrotada. Mas a doença de...
— Foi horrível, não foi? Digo, tratar de Owen, saber que iria morrer de
qualquer forma... Não sei como conseguiu.
— A gente arruma forças não se sabe onde. Simplesmente vai fazendo o que
é preciso, sem querer pensar a respeito. Mas quando as dores pioraram... —
Ela parou de repente, ficou pensativa por alguns instantes, mas logo se
esforçou para voltar a sorrir. — Não estou aqui para falar sobre isso, mas
para esquecer.
— Só mais uma coisa. É muito importante para mim te dizer isso. — Os
dedos dele se entrelaçaram nos dela. — Quando soube que seu marido estava
seriamente doente, quis te procurar, telefonar, dizer qualquer coisa que
pudesse confortá-la. Juro, Rachel, eu queria tanto partilhar o seu sofrimento,
ajudar a aliviar a carga de tensão, nem sei... queria que você soubesse que eu
estava perto, que pensava em você, que estava disposto a dividir os
problemas. Mas logo caí na realidade. O que eu poderia fazer na verdade?
Praticamente nada, não é? Depois, seu pai certamente estava por lá o tempo
inteiro. Se telefonasse, só arrumaria mais problemas para você.
— Oh! Tommy... mesmo que seja tarde demais, obrigada por me contar
isso. Havia dias em que me sentia desesperada, sem um ouvido amigo para me
escutar. Obrigada!
— Segui boa parte de sua vida a distância...
— Eu já desconfiava disso. Também sei alguma coisa da sua, mas só pelo
que lia nos jornais. Jamais ousei passar em frente de sua casa.
— Pois eu passava sempre diante da sua. Normalmente de madrugada.
Então ficava desesperado quando via a luz do quarto da frente acesa.
Imaginava que você e Owen... bem, não importa. Isso já ficou para trás. — Os
dedos dele continuavam acariciando a mão de Rachel e tocaram a aliança,
provocando um certo mal-estar. — Sabe, às vezes eu tinha ódio de nossos
velhos amigos, aqueles que sabiam que tínhamos namorado. Sempre vinham
me falar sobre sua vida. Se soubessem como era difícil para mim escutar tudo
aquilo. Na verdade, ficava curioso, até ansioso por notícias, mas a maioria
das vezes me sentia agredido pelo seu sucesso, pela sua estabilidade
emocional.
Rachel analisou. Tommy Lee era muito mais honesto que ela. Não tinha
medo da verdade. Falava-a abertamente, sem vergonhas nem pudores. Ela
também algumas vezes procurara por notícias, mas não teria coragem de
admitir. Nem agora nem nunca. Era medrosa demais.
— Muitas vezes me perguntei se ele sabia... — Tommy Lee continuou.
— Ele quem? Sabia o quê? De que diabos você está falando?
— Owen... ele sabia de nós?
Por um instante ela se calou. Lembrou-se da cicatriz no ventre, que não
podia ser ocultada do marido.
— Ele sabia?
— Sim... Contei-lhe que tinha tido uma criança, mas não disse quem era o
pai.
— Santo Deus... Ele não ficou curioso, não a encheu de perguntas, não
tentou descobrir?
— Foi um acordo que fizemos nos primeiros dias do casamento. Esse
assunto jamais deveria voltar à tona. E assim foi. Nunca mais conversamos a
respeito.
— Como dizem por aí, seu marido era um homem excepcional. Eu seria
incapaz de viver com uma mulher e com uma dúvida dessas na cabeça. Ele
devia ser mesmo uma pessoa ótima, principalmente por jamais ter colocado
isso como barreira entre vocês.
Tommy Lee estava enganado. Embora ela e Owen nunca falassem a
respeito, a criança vivia no meio deles, incomodando, criando ressentimentos
e remorsos.
— Se você fosse minha mulher, ficaria louco. — Tommy Lee ainda estava
hesitante, sem acreditar no que tinha ouvido.
— Engraçado... pelo que falou na noite em que me contou sobre suas três
mulheres, não me pareceu um sujeito ciumento. Ao contrário...
— É que nenhuma delas era você, Rachel. — Nesse instante Tommy Lee
não resistiu mais. Segurou o rosto dela com ambas as mãos e muito carinho.
Queria beijá-la, mostrar que seus sentimentos eram tão fortes e verdadeiros
quanto antes.
— Não, por favor, não... — Ela se afastou, cheia de temor.
— Até quando você vai me negar? Até que esteja realmente definhando?
Até que pague seu débito com Owen? Até que resolva tirar a aliança do dedo?
— Ainda é muito cedo...
— Rachel, minha querida, não somos mais crianças. Não temos satisfações
a dar a ninguém. A vida está aí, o tempo continua passando. Temos quarenta e
um anos. Já pensou nisso? O que estamos esperando?
Tommy Lee não agüentava mais ficar perto dela sem ao menos tocá-la.
Parecia que o coração queria explodir dentro do peito. O desejo reprimido
por mais de vinte anos aflorava em todas as células numa súplica desesperada.
Era como se cada minuto de espera se transformasse numa agonia amarga e
insuportável.
Sem pensar mais, ele a segurou com força. As mãos prenderam o rosto
dela, obrigando-a a olhá-lo. Já era tempo de parar com aquela brincadeira
infantil, de sentir medo das próprias emoções. Num gesto rápido, beijou
Rachel.
O encontro dos lábios macios e quentes foi sutil e leve. Um beijo breve,
suave e terno, mas tão poderoso que fez os corpos estremecerem num arrepio
de prazer.
Assustada, Rachel se levantou. Procurou dizer alguma coisa, mas estava
muda. Nem sequer conseguiu olhar nos olhos dele. Talvez devesse se sentir
ultrajada e indignada. Mas não, tinha o coração transbordando de afeto. E a
mente confusa. Por um pequeno instante, havia sido invadida por uma sensação
deliciosa de encantamento e satisfação. E isso lhe dava um profundo
sentimento de culpa.
Talvez seus longos anos de convivência do casamento tivessem destruído o
romantismo e as emoções palpitantes. Sim, só podia ser isso. O fato é que
nunca vibrara tanto com um beijo de Owen. Nunca seu coração disparara
como agora. Santo Deus, tinha o corpo todo tomado por uma espécie de calor,
um tremor suave que subia pela espinha.
O beijo havia sido rápido. A língua de Tommy Lee nem ao menos a tocara.
E, ainda assim, fora sensual, mágico, tremendamente excitante e envolvente.
Perdida nos próprios pensamentos, atirou-se na água fria. Não sabia o que
estava fazendo. A única coisa de que tinha certeza era que precisava fugir de
Tommy Lee. Ele a provocava e confundia. Sentia-se atraída e, ao mesmo
tempo, esforçava-se para afastá-lo.
Um minuto depois, Tommy Lee também estava no lago, bem perto dela. Não
deixaria que aquele instante, em que ambos haviam reencontrado a doçura do
contato físico, se perdesse por causa do medo. Para se manter à tona, ele
movimentava as pernas e os braços e inevitavelmente roçava no corpo magro
de Rachel.
— Por que fez isso? — ela perguntou, apenas a cabeça fora d’água.
— Fiz o quê?
— Você me beijou. Não banque o desentendido.
— Bem, agora sou eu que vou dizer quem está fora de forma! Chama aquilo
de beijo? No máximo seria um beijinho à-toa, bem pequeno, sem qualquer
responsabilidade. — Um sorriso maroto surgiu entre os lábios grossos dele.
— Aprendi a fazer melhor que isso nos últimos anos.
— Disso tenho certeza. — Rachel se lembrava das inúmeras mulheres com
quem ele tinha se envolvido. E os benditos brincos vermelhos lhe vieram à
memória. Ficou com raiva. — Quantas mulheres já passaram por sua vida?
— Perdi a conta há muitos anos.
— E tem coragem de admitir isso sem ao menos ficar envergonhado?
— Rachel, você parece a menina mais inocente do mundo. Por que haveria
de sentir vergonha? O que pretendia? Que ficasse a vida inteira esperando?
Ora, isso me faz rir. Não esqueça que as mulheres também me queriam,
estavam disponíveis, se oferecendo como objetos em vitrines. Elas sabiam
muito bem onde e com quem se metiam. Mesmo assim toparam o jogo. Não
sou um monstro conquistador, como me pintaram. Todas as mulheres com quem
andei vieram a mim de livre e espontânea vontade. Elas queriam se deitar na
minha cama e eu simplesmente as levava. O que há de mal nisso?
— De qualquer maneira, também não se pode dizer que é uma atitude
louvável.
— Minha vida foi completamente diferente da sua. Procure entender. Já
disse que tentei três vezes ser feliz ao lado de uma mulher, mas nunca consegui
me satisfazer emocionalmente. Se tivéssemos ficado juntos, tenho certeza de
que tudo seria diferente. Aliás, ainda é tempo. Se você quiser, pode ser a
última, a única mulher de minha vida.
Ela afundou novamente. Não acreditava que Tommy Lee, o insaciável
Tommy Lee, um dia se entregasse a apenas uma mulher. Já estava acostumado
à liberdade, às orgias sexuais. Vivia rodeado de belas mulheres, todas elas
experientes e sensuais. Por que diabos se contentaria com Rachel Hollis?
Depois, era absurdo pensar na possibilidade de ficar com ele. Afinal, não
estava interessada em novos romances. Tinha sido feliz no casamento. Sua
vida amorosa estava encerrada. Não queria procurar problemas.
Quando voltou à tona, os olhos desejosos de Tommy Lee a, esperavam.
Antes que ela pudesse reagir, ele a segurou pela cintura, apertando o corpo
esbelto contra o seu.
Rachel se debateu, mas era impossível separar os dois quadris unidos sob a
água. Sentia as pernas de Tommy Lee roçarem nas suas, numa sensual
intimidade. Jogou a cabeça para trás, tentando escapar dos lábios dele, que a
procuravam desesperadamente.
— Por favor... não me beije outra vez... — implorou.
— Suas palavras não são verdadeiras, Rachel. Conheço muito bem seu
corpo. Ele quer ser acariciado e beijado. Seu coração está batendo forte.
Posso sentir isso.
— Pelo amor de Deus, seja razoável...
— Nunca fui sensato em quarenta e um anos. Por que deveria começar
agora?
— Tommy, estou falando sério, solte-me. Você não tem o direito de me
forçar. Não quero beijá-lo. Não quero!
Foi tão firme que Tommy Lee recuou. Esperaria até o momento em que ela
própria viesse até ele. Não demoraria muito...
— Estou morrendo de fome — ele falou subitamente, como se tivesse
esquecido o antagonismo do minuto anterior. — O que acha de comermos
bacalhau? Conheço um lugar ótimo!
Rachel concordou.
VI
Depois de se trocarem, pegaram o carro e foram para Codfish Comer, um
pequeno e rústico restaurante, de paredes de madeira, poucas janelas e mesas
sem toalhas.
Rachel observou que a maioria dos fregueses eram negros. Alguns
cantavam, acompanhando-se com batidas leves e ritmadas nas mesas. Sem
dúvida, era um lugar totalmente desprovido de luxo.
— Hei, Tommy Lee! — Um negro, beirando os cinqüenta anos abriu um
largo sorriso. — Como é bom ver você outra vez! Por onde andou? Entre e
traga sua mulher.
— Tudo bem, Eugene? — Tommy Lee também sorriu, com evidente afeto.
— Como é, o bacalhau está bom?
— Como sempre!
— Não seja convencido, Eugene — gritou um homem de outra mesa. — Sua
mulher sempre exagera no sal!
O boteco inteiro caiu na gargalhada, diante da cara do dono. Porém, logo
depois, ele ria também. Conduziu Tommy Lee e Rachel para uma das mesas.
As cadeiras eram de plástico vermelho. Horrorosas.
Rachel notou os lustres. Eram mais feios ainda. Sobre o balcão, ficavam
alguns anúncios de cerveja, iluminados a néon verde e vermelho. Era o lugar
mais terrível em que já tinha posto os pés.
— Bem, você não poderá dizer que fiquei tentando criar uma atmosfera
romântica — Tommy Lee disse, sentando. — Esse não é o restaurante mais
sonhador e envolvente que já conheceu, não é?
— Não, acho que não...
— Rachel, não diga nada até que tenha comido, está bem? Antes que ela
pudesse responder, uma mulher de meia-idade, negra, com seios fartos
saltando da blusa amassada, se aproximou com braços abertos. Usava brincos
enormes e tinha um lenço amarrado na cabeça, formando um grande laço no
topo.
— Puxa! Já estava com saudades do garotão mais sexy de Russellville. —
E deu um beijo nos lábios de Tommy Lee!
Rachel arregalou os olhos, chocada. Era a primeira vez que via um branco
e uma negra se beijarem. E aquele branco era Tommy Lee! Esfregou os olhos,
como para ter certeza de que enxergava bem. A mulher continuava estatelada
em sua frente, as mãos penduradas na cintura grossa.
— Dayse... — Eugene gritou de trás do balcão. — Pare de beijar os
fregueses. Desse jeito, não terão tempo de comer o bacalhau.
Novamente todos riram. Apenas Rachel continuava horrorizada, sem
fôlego, sem acreditar no que estava acontecendo.
— Estou acompanhado, Dayse. — Tommy Lee a segurou pelo braço com
extrema naturalidade. — Quero que conheça Rachel.
— Não ligue para mim. — Dayse se virou para Rachel com um jeito alegre
e descontraído. — Beijo esse garoto desde que era um menino. É como um
filho para mim.
— Muito prazer. — A mão de Rachel sentiu os calos da outra.
— Dê o fora agora, Dayse. — Tommy Lee sorria. — E traga duas porções
de bacalhau. Com sal no ponto, entendeu? Ah! Para beber, o de sempre para
mim, e limonada para Rachel.
— Limonada? — Foi a vez da negra ficar assustada. — Não temos essas
coisas por aqui...
— Água pura... — Rachel balbuciou.
Balançando os quadris molengos e fartos, Dayse saiu por uma porta de
vidro que levava à cozinha. Ao passar pelo balcão, tomou um beliscão de
Eugene e riu.
— Como um filho, hein? — Rachel ironizou, ainda sem conseguir encarar
Tommy Lee.
— Isso mesmo.
— Pois é melhor tirar esse batom vermelho dos lábios. A "mamãe" deixou
você todo borrado.
Tommy Lee riu e esfregou o guardanapo de papel na boca.
— Não pense mal de Dayse. Ela é a mulher de Eugene e faz o melhor
bacalhau do mundo.
— Mulher dele? E fica beijando outros homens bem embaixo do nariz do
marido?
— É um velho costume. Dayse beija todos os fregueses e Eugene reclama.
É uma maneira de deixar o ambiente mais alegre e divertido. Somos todos
amigos, afinal.
Mas Rachel continuava abismada. As amizades de Tommy Lee não eram
exatamente o que ela chamaria de finas e educadas. Eram bem diferentes das
suas.
Enquanto esperavam pela comida, Tommy Lee bebeu dois uísques. Outros,
enquanto fazia a refeição. Os pratos foram servidos com abundância, mas
Rachel mal provou.
— Não vai comer mais? — ele perguntou.
— Estou satisfeita. Obrigada.
— Importa-se que fique com sua parte? É até pecado deixar esse bacalhau
sobrar...
Mais uma vez Rachel percebeu que a vida de Tommy Lee era totalmente
desregrada. Bebia demais, comia demais. Não era à toa que andava fora de
forma, sem fôlego para nadar uns poucos metros.
— Há quanto tempo não faz uma refeição decente? — ela perguntou,
lembrando-se dos sacos de doces e salgadinhos que tinha visto na casa dele.
— Não gostou do bacalhau?
— Estava delicioso. Não estou me referindo a hoje. Mas tenho a impressão
de que você não tem uma alimentação regular.
— Não costumo perder muito tempo na cozinha. — Tommy Lee fez uma
pausa. — Você realmente não gostou daqui, não é?
— Já disse que a comida estava muito boa.
— Não precisa ser falsa. Sei o que está pensando. Mas eu a trouxe para que
conhecesse meus amigos, minha vida... sem segredos...
— Sinto muito, mas é justamente isso o que me assusta. Essa gente, esse
lugar...
— Pois eu acho essa gente muito mais autêntica e sincera do que aquele
bando de engomados lá do Country Club.
Rachel ia responder, mas não teve tempo, Um moleque de uns sete anos
veio correndo na direção da mesa e logo se pendurou no pescoço de Tommy
Lee.
— Você demorou para aparecer! — o garotinho reclamou. — Juntei um
monte de pedras, como você mandou. São muito melhores do que as de Daria.
— E derramou na mesa umas dez pedras.
— Você é que estava escondido. — Tommy Lee esfregou a cabeça do
negrinho. — Por que não veio me ver antes?
— Mamãe não deixou. Disse que ia atrapalhar seu jantar. — Voltou os
olhos para as pedras. — Essas são perfeitas. Vão pular mais de onze vezes!
Tommy Lee riu. Depois virou-se para Rachel que evidentemente não estava
entendendo nada.
— Darrel e eu estamos procurando uma pedra que, jogada no lago, toque
onze vezes a água antes de afundar. Já conseguimos uma que pulou nove. Mas
a irmã dele, Daria, fez dez.
— É mentira dela. — O menino se agitou. — Duvido que tenha feito tanto!
Com cuidado, Tommy Lee estudou cada uma das pedras escuras. Uma
delas, bem chata e longa, lhe chamou a atenção. Pegou-a na mão e a examinou
como se fosse a coisa mais importante do mundo.
— Esta aqui parece perfeita — disse num tom sério.
— Verdade? — Darrel soltou um gritinho de excitação. — Vamos jogá-la
no lago agora?
— Está escuro lá fora.
— Então amanhã. Você pode vir amanhã?
— Segunda-feira é dia de trabalho e escola.
— No próximo domingo, então. Prometa que virá! Por favor, Tommy Lee...
— Está bem — ele concordou, diante da animação do garoto.
— Legal! Daria vai perder o campeonato. Nossa pedra é perfeita! Vou
avisar mamãe. Domingo, depois que formos à igreja, iremos ao lago e
jantaremos juntos. Vai ser bárbaro!
Darrel recolheu as pedras e as enfiou de volta no saco de pano. Saiu
correndo, já chamando pela mãe.
— Ele é filho de Eugene e Dayse —; Tommy Lee explicou. — Um danado.
Nunca sossega.
Rachel tinha os olhos baixos. Estava pensativa, calada, absorta nos
próprios pensamentos.
— Alguma coisa errada, Rachel?
— Não... digo... você costuma ir à igreja com eles? Foi isso o que o garoto
disse, não foi?
— Às vezes passo o domingo com eles. Vamos juntos a uma pequena igreja
a mais ou menos um quilômetro daqui. Fica no meio da floresta de pinheiros.
É singela, pobre e cheia de paz. Depois nadamos no lago ou jogamos bola. É
divertido.
— Uma espécie de família adotiva...
— Sim, acho que pode ser isso.
Rachel se comoveu. Este era um novo Tommy Lee a quem desconhecia
completamente. Alguém que abdicava da igreja da cidade, freqüentada por
toda a sociedade local, para ir a uma outra, modesta e pobre. Alguém que tinha
filhos de seu próprio sangue e, no entanto, jogava bola com um moleque
estranho. Alguém que odiava os pais, que não falava com eles, mas que tinha
uma grande afeição por uma família de negros que dirigia um restaurante
imundo nos subúrbios de Cedar Creek.
Tommy Lee era sofrido. Mas, ao contrário do que diziam, tinha um coração
grande, cheio de amor para dar. Não era aquele monstro gelado e calculista
que os boatos criaram. Até mesmo a vida alucinada, cheia de mulheres
vulgares, tinha um lado emocional diferente. Dentro daquele peito, batia um
coração solitário e carente.
Num relance, Rachel se lembrou de Gaines e Lily Gentry. Imaginou o
quanto sofriam por terem perdido o único filho, por estarem eternamente
condenados por um erro do passado.
— Tommy. — A voz dela veio suave e terna. — Por que não procura seus
pais?
Ele a olhou espantado com a inesperada pergunta. Acendeu um cigarro e
baforou, deixando que a fumaça subisse no ambiente já empesteado. Mas não
teve tempo de responder. Eugene vinha em sua direção.
— Com licença, madame. — Sentou-se na cadeira vaga e se virou para
Tommy Lee. — Aqui está mais uma prestação daquele empréstimo.
Com um certo orgulho, o negro colocou as notas amassadas em cima da
mesa, contando-as lentamente.
— Cinco, dez, quinze, vinte dólares.
— Obrigado. — Tommy Lee enfiou o dinheiro no bolso. — E como vai a
máquina de lavar pratos?
— Funcionando como um anjo. Toda noite, Dayse me agradece por não ter
que lavar toda a louça, como fazia antigamente.
Sem dizer mais nada, Tommy Lee escreveu alguma coisa no guardanapo e o
estendeu ao amigo.
— É o recibo? — Eugene perguntou.
— Isso mesmo. "Recebi do sr. Eugene Davis a quantia de vinte dólares
como parte do pagamento do empréstimo para a compra da máquina de lavar
louças." Assinei e coloquei a data embaixo.
— Obrigado. — Eugene guardou o papel no bolso do avental. — Vejo você
na semana que vem. Darrel me disse que virá no domingo. Traga a madame, se
quiser.
— Oh! desculpe, Eugene. Acho que ainda não a apresentei. Esta é Rachel,
uma velha colega de escola, meu primeiro amor.
Haveria um toque de ironia na voz de Tommy Lee? Sem se preocupar,
Rachel esticou a mão para o negro e sorriu.
— Prazer em conhecê-la, srta. Rachel. Gostou do bacalhau?
— O melhor que já comi.
— Então venha no próximo domingo. Agora tenho que voltar para a
cozinha. Obrigado, Tommy Lee. Até a semana.
— Eugene, prepare mais um drinque para mim, está bem? Para viagem —
Tommy Lee pediu.
Novamente sozinhos, Rachel não conteve a curiosidade.
— Se entendi bem, você emprestou dinheiro a ele para que comprasse uma
máquina de lavar pratos, não é?
— Exatamente. O coitado tentou conseguir um empréstimo no banco. Mas
bastou que o olhassem para chegarem à conclusão de que não merecia o
dinheiro. Uma pena...
Ambos sabiam que, como presidente do banco, o pai de Rachel era o
responsável pela aprovação dos empréstimos.
— Quanto custa uma máquina dessas? — ela perguntou, sem dar muita
importância. — Não pode ser muito cara.
— Seiscentos dólares.
— Seiscentos? E ele paga a você apenas vinte por semana?
— Isso quando pode. Às vezes só cinco ou dez dólares. — Ele respondeu
casualmente e, conferindo a conta, deixou uma boa quantia sobre a mesa, como
gorjeta.
Rachel pensou mais profundamente a respeito. Traçou um paralelo entre a
atitude fria e calculista do pai e a sensibilidade de Tommy Lee. E admirou-o
por isso. Na verdade, encantou-se com esse Tommy Lee que pouca gente
conhecia. Essa pessoa que ajudava os amigos e não se importava com
dinheiro.
Ao saírem, ele pegou o drinque no balcão, embalado num copo de plástico
transparente. Brindou a todos e educadamente abriu a porta para Rachel.
A noite estava escura, iluminada apenas pelas estrelas que enchiam o céu
de romance e poesia. O lago dormia quieto e mudo. As folhas das árvores se
moviam com a brisa.
— Desculpe, Tommy. — ela disse assim que entrou no carro. — Você tinha
razão. Eu estava julgando as pessoas antes de conhecê-las. Gostei de seus
amigos e, acima de tudo, gostei de você. Acho que estou descobrindo um novo
Tommy.
— É um erro comum nos seres humanos. Julgarem pelas aparências.
Confesso que também faço isso de vez em quando. Afinal, não podemos nos
culpar por isso. Somos filhos de nossos pais, não é?
— O que quer dizer com isso? Que sou uma réplica de Everett Talmadge?
— Já não sei dizer. — Ele ainda podia ver o espanto dela ao saber que
Eugene pagava somente vinte dólares por semana. — Faz muito tempo que não
estamos juntos. Mas espero que seu pai não tenha deixado marcas profundas
em sua personalidade.
— Ele não é tão ruim quanto você pensa. Cometeu erros, enganou-se, mas
ainda assim é uma boa pessoa.
— O que é uma boa pessoa, Rachel? Alguém que cuida da família, que não
lhe deixa faltar conforto e dinheiro? Talvez... Não estou aqui para julgar o
comportamento dos outros. Nem ao menos me considero capaz para tanto. O
que me choca é que seu pai não esquece nem por um instante que é.o poderoso
presidente do banco. Fica plantado em cima do pedestal, contando os lucros.
Jamais se curva para ver que algumas pessoas humildes precisam de ajuda,
que basta um pequeno empurrão e elas irão para a frente, para o alto. Duvido
que seu pai tenha pensado em verificar as qualidades morais de Eugene antes
de lhe negar o empréstimo. Contentou-se em olhar para as roupas amarrotadas
e logo concluiu que não valia a pena lhe dar seiscentos dólares, não importa o
quanto precisasse. Parece engraçado, não é? Eugene e Dayse são as pessoas
mais honestas e trabalhadoras que já conheci na vida e, no entanto, não têm a
confiança do banco. Realmente fico chocado com isso. Não é justo.
Rachel se calou. Não tinha nada a dizer. Ele estava completamente certo.
Muitas vezes se sentira da mesma forma em relação ao pai. Era um homem que
só tinha tempo para os interesses do banco. Era incapaz de fazer algo que não
lhe trouxesse algum lucro. Talvez por isso tivesse se saído bem na vida e
enriquecido.
Recostou a cabeça no banco e viu Tommy Lee acender um cigarro entre
dois goles da bebida. Aquilo a incomodava. Era estranha aquela sensação de
admirar e repudiar uma mesma pessoa. Ficava fascinada com as atitudes
humanas e sensíveis dele, mas detestava aquele cheiro de álcool e fumo.
Pensava em como estaria o corpo dele por dentro. O fígado provavelmente em
pedaços, lutando contra os terríveis efeitos da bebida. Os pulmões pretos e
doentes, sem fornecer oxigênio necessário para algumas braçadas no lago.
Dava pena! Um homem tão forte e bonito se deixar acabar pelo vício. Era
revoltante.
O automóvel cruzava rapidamente a estrada. Como sempre, ele dirigia com
pouco cuidado, velozmente e segurando o volante com uma das mãos. A outra
estava ocupada com o copo ou com o cigarro. Mesmo assim Rachel se sentia
segura.
Finalmente chegaram em frente da casa dele. Ele a acompanhou até o carro.
— Obrigada por tudo. Foi um dia maravilhoso — ela disse, procurando a
chave dentro da bolsa.
— Você vai voltar outra vez?
— Não sei... na verdade, vim até aqui porque estava me sentindo sozinha,
precisando de alguém para conversar. Mas aconteceu muito mais do que isso
e... é assustador. Não, Tommy, não creio que voltarei a procurá-lo.
— O que quer dizer com isso? Será que terei que fazer tudo de novo?
Segui-la? Cercá-la? Implorar?
— Não é mais fácil me esquecer?
— Você acha que não tentei durante esses malditos vinte e quatro anos? —
Havia um pouco de raiva na voz dele. Uma espécie de revolta e insatisfação.
— Mas você não me saiu da cabeça nem por um dia. O que quer que eu faça?
Que me sente, cruze os braços e espere?
— Bem, eu...
— Olhe aqui, Rachel, não sou mais aquele garoto assustado que deixou
quatro velhos malucos a arrancarem de mim. — Ele segurou os braços dela.
— Vou lutar por você desta vez. Mas preciso que me dê uma chance. Eu a
amo, Rachel. Nunca deixei de amá-la. É tão difícil assim de entender?
— Você não deveria falar desse jeito...
— Mas falo e para quem quiser ouvir. — Ele gritou: — Amo você! Amo
você, Rachel Hollis!
— Pare com isso, Tommy. Alguém pode escutar. — O estômago de Rachel
se contorcia. Nunca havia pensado que passaria por uma situação semelhante.
Mas, ao mesmo tempo, desejava ouvir aquelas palavras. Sim, tinha sonhado
com isso diversas noites, mesmo no leito nupcial. Agora, entretanto, tinha
medo.
— Você achou que podia entrar na minha vida apenas por uma tarde e
depois desaparecer? — Ele continuava falando alto, nervoso e agitado, sem
soltar os braços dela. Apertava-os com tanta força que chegava a doer. —
Você não vai me escapar outra vez. Não vou deixar!
— Largue-me, Tommy — ela implorou, temendo que as lágrimas viessem.
— Há muita coisa no passado que... que...
— Que nos impede de ficar juntos, não é? Pelo amor de Deus, Rachel,
pense um pouco. Se nós dois quisermos, se realmente desejarmos e lutarmos,
ainda poderemos ser felizes.
Imediatamente os lábios entreabertos dele se grudaram na boca de Rachel.
Desta vez a língua veio firme, dura, resoluta.
— Não... — ela sussurrou, procurando fôlego. — Não faça isso...
— Por quê? O que nos proíbe?
— Somos diferentes agora. Nossos estilos de vida simplesmente não
combinam. Não daria certo.
— Posso mudar, Rachel. Juro que sim. — Agora havia humildade e ternura
nas palavras dele. — Se você quiser...
De novo a boca dele, úmida e quente, procurou pela dela. As mãos fortes já
não apertavam com fúria os braços, mas os acariciavam com suavidade e
delicadeza.
— Não me beije — ela pediu com as poucas forças que lhe restavam. —
Vamos nos magoar outra vez. É besteira insistir, quando sabemos que não
daria certo. Por favor, Tommy, não me toque.
— Já disse que posso mudar — ele sussurrou, o cheiro da bebida chegando
ao nariz dela. — Serei do jeito que você quiser. Volte para mim, querida.
— Não ouse me beijar depois de seis drinques! — Agora era ela quem
falava com energia. — Eu não suportaria!
— Você contou? — Ele riu, embora se sentisse angustiado.
— Sim, contei um por um. Duas cervejas na lancha, três uísques no
restaurante e ainda por cima um não-sei-quê no caminho de volta!
— Sou capaz de parar de beber a qualquer hora. Só preciso de uma boa
razão para isso.
— Tommy, seu bobo. — Ela se desvencilhou dos braços dele. — Será que
não percebe? Ninguém precisa lhe dar um motivo para largar a bebida. Ê só
você querer. Todas as respostas estão dentro de nós. É inútil procurá-las em
outro lugar.
— Você é minha resposta...
— Não seja infantil. — Ela hesitou. — Não é só a bebida que me assusta. É
seu modo de vida. Essa sua casa, tão linda e luxuosa parece... parece... Oh!
Tommy, ela parece uma lata de lixo!
— Bem, não estava esperando visitas hoje, muito menos você.
— É exatamente isso o que estou tentando dizer. Visitas não deveriam
importar. Você devia manter a casa limpa por você, para sua própria
satisfação. Como consegue viver no meio de copos e cinzeiros imundos? E
não culpe seus pais também por isso. Eles o educaram muito bem. -
— Rachel...
— Você fala em começar outra vez, em mudanças. Ora, um bom começo
seria abrir aquela porta e varrer aquele chão. Abra as janelas, Tommy. Encha a
geladeira com coisas saudáveis e não apenas latas de cerveja e hambúrgueres
congelados. Ao menos, contrate uma faxineira!
— É tudo o que tem a dizer? — Ele disfarçou a vergonha.
— Tudo na sua vida está errado. Por que não faz exercícios físicos? Por
que não larga esse cigarro fedorento? Aliás, acho que está na hora de parar de
desfilar na frente da minha loja com aquele Mercedes branco. — Ela se calou
por um instante. — E, por favor, não se atreva a entrar na Panache para
comprar brincos vermelhos para uma de suas mulherzinhas!
Ele não evitou o riso e imediatamente Rachel se sentiu ridícula por tocar
naquele assunto. Mas, de qualquer forma, estava aliviada. Pelo menos tinha
botado para fora algo que a incomodava há muito tempo. Alguém precisava
falar a verdade para Tommy Lee, ainda que fosse dolorosa.
— Você acha que eu realmente gosto disso, Rachel? De dirigir como um
louco, de beber, de me ver transformado num homem sem esperanças e sem
destino? Você disse para não jogar a culpa em cima de meus pais pelo tipo de
vida que levo. Mas, na realidade, a culpa deles é grande. Foram eles que
deram nosso bebê, não foram? Isso acabou comigo, com minha alegria de
viver. Foi então que vieram a bebida, as mulheres, os casamentos falidos, os
filhos malcuidados... — Os olhos dele se cravaram nos dela. — Pensa que não
sei como a cidade inteira me chama? Tommy Lee Gentry, o perdido. É esse o
meu apelido, não é? Mas sabe de uma coisa? Não me importo: a mínima com o
que aquela gente engomada do Country Club pensa a meu respeito. Eu os
desprezo e abomino. Você é a única pessoa que me interessa.
— Você vive numa sociedade...
— Para o diabo a sociedade e suas hipocrisias. Foi por causa dela que
perdi nossa filha — ele gritou, cheio de rancor. Depois baixou o tom. — Sabe
por que não a levei para um restaurante fino de Florence? Por que a convidei
para sair de lancha, onde ninguém pudesse nos ver? Ah! Rachel, sei muito bem
o que essas malditas pessoas iriam dizer se nos vissem juntos. A elegante e
discreta viúva Hollis acompanhada do perdido. Eu não podia expô-la a uma
situação embaraçosa dessas, não é?
— Eu não me incomodaria...
— Ah! Você se incomodaria, sim! Dá valor a tudo isso. Qualquer um pode
saber os menores detalhes da sua vida e mesmo assim não encontrará um erro
sequer para comentar. Não tem importância, Rachel. Se para você é
imprescindível que eu aceite as normas sociais, eu mudarei. Farei qualquer
coisa por você.
— Não é tão simples assim — ela argumentou. — Não é o que as pessoas
pensam que me amedronta. Você realmente não é mais o mesmo. Alguma coisa
dentro de você está diferente e sei que é algo que eu não teria forças para
enfrentar.
— É mentira sua. Hoje, durante todo o dia, fiquei observando você. Percebi
seus olhos grudados nos meus, seu corpo me querendo, seu coração
acelerando toda vez que tentei beijá-la.
— Tommy, é melhor esquecermos tudo isso...
— De jeito nenhum! — Novamente ele a agarrou. Desta vez prendeu-a pela
cintura com um dos braços e a outra mão pousou firme na nuca dela. — Você
vai ser minha.
— Solte-me, não se atreva a...
Mas Tommy Lee não deixou que ela falasse. Apertou-a com força, fazendo
os corpos se unirem numa prisão deliciosa. As pernas se entrelaçaram, os
quadris se grudaram e, de repente, as bocas sedentas correspondiam aos
anseios mais secretos.
A língua de Tommy Lee veio como uma chama de fogo, ardente, enérgica,
invencível. Explorou freneticamente os detalhes da boca de Rachel, os dentes,
os lábios, em movimentos rápidos e experientes. A princípio, ela procurou se
esquivar, cerrando os dentes, mas não resistiu por muito tempo. O calor do
desejo tomou todo o seu coração em ondas que subiam e acalentavam seu
coração.
Foi um beijo... longo, erótico, exigente. Um beijo... selvagem, violento,
malicioso. Um beijo que marcaria definitivamente a vida de Rachel.
VII
A mudança de Tommy Lee começou bem cedo, no dia seguinte. Acordou
antes do habitual, calçou sapatos de borracha, vestiu short, enrolou uma toalha
no pescoço e, com muito boa vontade, saiu para correr e se exercitar.
Dez minutos depois, sentia-se miserável. Suava por todos os poros, o corpo
doía, assim como cada um dos músculos. Encostou-se numa das árvores e
tentou encher os pulmões de ar. Ofegava, percebendo o coração
descompassado.
Olhou para trás. Ainda avistava a casa. Quanto teria corrido? Cem,
duzentos metros? Era uma vergonha. Lembrou-se dos tempos em que cobria
diversos quilômetros sem observar qualquer alteração na respiração. Mas
agora estava num estado lastimável.
Arrastou-se de volta. Estava exausto. Enfiou-se debaixo do chuveiro, na
esperança de que a água quente lhe aliviasse a dor muscular. Quase desistia de
bancar o herói. O sacrifício era grande demais.
Porém, logo as palavras repreensivas de Rachel lhe vieram à memória:
"Você deveria nadar todos os dias, tendo o lago bem abaixo de sua casa".
Droga! Amava aquela mulher e tinha que provar que era capaz de se
reencontrar. Suspirando, meteu-se num calção e foi até o lago. Nadou alguns
metros, mas novamente sentiu-se à beira da morte. Não era fácil transformar
de uma hora para a outra todos os hábitos. Era mesmo a maior prova de amor
que podia dar a Rachel!
Mais tarde, telefonou para Liz Scroggins, avisando que chegaria bem tarde
no escritório. Depois, tomando fôlego, pôs-se a arrumar a casa. Não demorou
muito até que se desse por vencido. Jamais imaginou que fosse um trabalho tão
cansativo e pesado.
Faminto, procurou alguma coisa substancial na geladeira. Mas tudo o que
encontrou foram latas de cerveja, vodca, limão e besteiras congeladas.
Engoliu dois copos de água, embora sentisse mais necessidade de uma boa
dose de álcool.
— Diabos, Rachel Hollis, da próxima vez, eu a beijarei sem ter que brigar!
Desanimado, mas ainda resolvido a atingir os objetivos, dirigiu
rapidamente até a Codfish Corner.
— Dayse! — chegou lá em verdadeiro desespero.
— O que houve desta vez, bonitão?
— Preciso de duas coisas urgentes. Uma boa empregada e alguma coisa
para comer agora. Sem calorias. Acabo de iniciar um regime.
Imediatamente a negra lhe serviu verduras cozidas. Sem sal, sem óleo, sem
manteiga. Uma coisa horrível, que mal descia pela goela. Depois, telefonou
para a cunhada, que telefonou para a irmã, que falou com a prima em segundo
grau, a qual aceitou trabalhar para o sr. Gentry. Mas, claro, impôs uma série
infindável de condições. Queria sábados e domingos livres, condução para a
igreja, salário de duzentos dólares por mês e tantas outras coisas que Tommy
Lee quase desistiu. Antes do fim do dia, Georgine estava instalada na casa
dele. Ficou com um pequeno quarto, normalmente reservado para visitas, e
também com a chave do carro menor. Assim poderia ir ao supermercado.
Quando serviu o jantar, Tommy Lee teve vontade de se suicidar. Frango
cozido com legumes. Não tinha gosto de nada e a quantidade não dava nem
para um gato. Era de desanimar!
Maldito regime.
Mais tarde, naquela noite, já deitado, teve vontade de tomar um martíni
seco. Não foi fácil controlar, mas tinha que ser forte e mostrar a Rachel que
estava realmente disposto a mudar de vida. Pensou em telefonar para ela e
contar tudo o que havia feito durante o dia. Também precisava lhe pedir
desculpas pelas palavras cruéis que usara naquela vez em que estiveram
juntos. Afinal, insinuara que, assim como o pessoal do Country Club, ela se
importava com as opiniões dos outros. Não era justo! Mas não teve tempo de
ligar. Adormeceu vestido.
Na terça-feira, telefonou para a Panache, mas Verda informou
educadamente que Rachel não estava. Ele rosnou, com um mau humor
característico das pessoas que estão passando fome. Na quarta-feira, o ritual
continuou e as dores musculares também. Tentou novamente encontrar Rachel
na loja, mas a resposta foi a mesma.
— Como ela pode dirigir um negócio, se nunca está aí? — Foi a pobre
Verda quem ouviu o desabafo.
Na quinta-feira, ele se sentia o último dos homens. Se se abaixava, doía as
costas. Se andava, a barriga da perna parecia querer se soltar do resto do
corpo. O pior de tudo é que não conseguia falar com Rachel em lugar nenhum.
Nem em sua casa, nem na butique. Como ela podia ignorá-lo dessa forma?
Ainda mais depois de todo o sacrifício que ele vinha fazendo!
A sexta-feira encontrou-o ainda mais furioso. O estômago reclamava a falta
de comida, a boca implorava por uma gota de uísque. E a maldita Rachel não
atendia o telefone!
Finalmente decidiu comprar aquela briga. Iria à loja e pediria outro par de
brincos. Se ela queria brincar, ele aceitaria!
Num prato ricamente decorado com frutas, o peru foi levado para a mesa da
sala.
— Gaines? — Lily chamou. — Onde se meteu esse homem?
— Posso ajudar, mamãe? — Tommy Lee e Beth desciam as escadas, rindo,
alegremente.
— Sim... corte o peru. Não sei onde diabos seu pai se enfiou. — Ela voltou
para a cozinha, onde Rachel acabava de preparar as batatas e os legumes.
Não demorou muito tempo até que ouvissem a porta da frente ranger. Logo
depois, veio a voz de Tommy Lee.
— Mamãe, ponha mais um lugar na mesa!
Curiosa, Rachel e Lily foram até a sala, cada uma com um talher na mão.
Gaines tinha um sorriso alegre e vitorioso entre os lábios. Na frente dele,
ainda perto da entrada, estava Everett Talmadge.
— Papai... — Rachel estendeu ambas as mãos. Tinha os olhos úmidos, o
coração cheio de alegria.
— Minha filha...
— Você veio, papai. Você veio...
Abraçaram-se e, naquele instante, Rachel soube que não havia mais nada no
mundo que ela e Tommy Lee não conseguissem. O amor que sentiam tinha
destruído todas as barreiras.
— Bem-vindo, Everett. — Lily sorriu e olhou para o marido com gratidão.
— Como vai, Lily? — Everett ainda estava meio confuso. Virou-se para
Tommy Lee e, como não podia deixar de ser, cumprimentou-o ainda com
alguma frieza.
— Acho que ainda não conhece Beth — Rachel foi logo dizendo.
— Oi! — Com a graça da juventude, a menina acenou.
— Hum... como vai? — O velho ainda mantinha distância.
O jantar foi animado, embora pesasse ainda um pouco de orgulho nos olhos
de Everett. Mas era apenas uma questão de tempo. Rachel e Tommy Lee não
desistiriam. Afinal, faltavam apenas alguns passos.