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UM ROSTO DE MULHER

LaVyrle Spencer
Título Original: The Hellion

Copyright: 1984

Digitalização: Joyce

Revisão: Néia
Tommy sabia que Rachel iria voltar para amá-lo e puni-lo.
"Um dia ele vai acabar mal" este era o comentário geral quando Tommy Lee
passava. Todos naquela pequena cidade do Alabama sabiam que ele dirigia
como um louco, bebia até quase cair e vivia rodeado de garotas vulgares.
Mas Tommy Lee tinha uma razão para agir assim. Queria fugir do passado,
esquecer a imagem daquela mulher que o perseguia há vinte e quatro longos
anos: Rachel!
Ela era linda, linda, linda! Meio anjo, meio demônio, terna e, ao mesmo
tempo, cruel. E de repente estava ali, em carne e osso, na frente de Tommy
Lee, chamando-o com sua voz sensual. Tudo iria recomeçar depois de vinte
quatros longos anos.
I
Todo mundo em Russellville sabia que Tommy Lee Gentry dirigia como um
louco, bebia quase até cair e adorava se aventurar em viagens perigosas e
inconseqüentes. Durante o inverno, se metia em caçadas arriscadas. No verão
sumia em seu barco. E vivia desfilando pela cidade num imponente Mercedes
branco, normalmente exibindo uma mulher tão exuberante quanto vulgar. Sim,
suas inúmeras companhias femininas tinham sempre um ar sofisticado, eram
bonitas e jovens, mas totalmente vazias.
— Um dia ele vai acabar mal... — todos comentavam, olhando-o de lado,
com ar de reprovação.
A excentricidade de Tommy Lee chocava a população de mentalidade
religiosa e conservadora daquela cidade do Alabama. Sua maneira
irresponsável de levar a vida provocava horror nas senhoras, que tratavam de
afastar as filhas ingênuas e pacatas das garras daquele "monstro". Só que ele
era um homem muito atraente, e apesar de sua fama não faltavam garotas de
boa família lançando-lhe olhares oferecidos e esperançosos.
Naquela sombria tarde de fevereiro, Tommy Lee não hesitou em dispensar
Mitzy, uma loira de seios fartos e pernas bem torneadas. É que a notícia que
acabara de receber mudara tudo repentinamente. Sentia que precisava ficar a
sós com seus pensamentos.
Com os olhos pregados na estrada, dirigia o Mercedes como se fosse uma
simples extensão de seu corpo, e acelerava, cada vez mais, numa luta
desesperada contra o tempo. Sabia que não havia motivo para correr tanto,
mas talvez estivesse fazendo isso por hábito... ou será que era o reflexo do que
ia em seu coração?
Abriu o porta-luvas e pegou uma lata de cerveja. Jamais saía de casa sem
seu estoque de bebidas. Abriu-a, deu um bom gole, e outro, até esvaziá-la
completamente. Sorriu com ironia. Era assim, sempre assim... Debochava da
própria dor, do destino cruel que a vida lhe traçara.
Do escritório na avenida Jackson até sua casa, próxima do lago Cedar
Creek, havia exatamente quartoze quilômetros, que ele conhecia tão bem
quanto as curvas de um corpo feminino. Os pinheiros altos e velhos que
ladeavam a estrada eram antigos amigos. Suas folhas iam e vinham, secavam e
nasciam novamente, mas eles continuavam lá, imponentes, majestosos, sem se
importarem com o movimento da cidade. Era um ponto que tinham em comum
com Tommy Lee. Estavam sempre ali em seus lugares, mas absolutamente
alheios ao que se passava em volta.
Acendeu um cigarro. Quantos fumava por dia? Dois maços, três? Que
importava? A fumaça branca se levantou no ar, em suaves movimentos
sinuosos. Fazia lembrar uma armadilha feminina, que atraía e destruía ao
mesmo tempo.
Rachel! Subitamente o rosto daquela mulher lhe veio à mente, uma mistura
de ternura e tentação. Rachel! Ela era viúva, agora!
Normalmente Tommy Lee fazia aquele trajeto em nove minutos. Algumas
vezes, em dias mais agitados, tinha conseguido fazer em apenas oito e meio.
Santo Deus, hoje gastaria somente oito minutos, talvez menos!
As curvas se seguiam uma após a outra, até que uma, mais acentuada, fez o
carro derrapar, equilibrando-se em apenas duas rodas. As mãos musculosas de
Tommy Lee se prenderam mais firmemente ao volante, o pé se movimentou
agilmente entre o breque e o acelerador, até que finalmente conseguiu retomar
o controle do automóvel, esboçando um sorriso vitorioso.
Não era a primeira vez que brincava com a morte. Estava acostumado a
emoções violentas. Depois, um homem como ele, que havia vivido
intensamente, não tinha por que temer a morte.
Os pneus guincharam quando virou à direita, tomando a estreita rua
particular que terminava diante daquela magnífica casa de concreto aparente,
cercada por um imenso jardim. Desligou o motor, mas não desceu. Por um
instante ficou contemplando a estranha construção.
A porta de entrada, no fundo de um enorme terraço, era de madeira escura.
Talvez o único toque diferente, perdido naquela estrutura cinzenta. As janelas
de ferro e vidro eram imponentes, mas tristes. Raramente se abriam para a luz
do sol. Três andares frios se elevavam contra o céu, como um monumento de
riqueza e solidão.
Tommy Lee atravessou o jardim com passos lentos e desequilibrados.
Encontrou a porta da frente aberta. Claro! Ninguém ousaria penetrar na sua
mansão. Depois, mesmo que um ladrão roubasse tudo, ele compraria cada
peça novamente. Dinheiro não era problema. Nunca tinha sido. Enriquecer não
passava de uma brincadeira, um jogo fácil, no qual era sempre o vencedor.
Restava saber se isso lhe trazia alguma satisfação pessoal.
Entrou, jogando o casaco de couro preto sobre o luxuoso sofá, escolhido
cuidadosamente por uma decoradora de Memphis. Olhou em volta, sentindo-se
desanimado ao ver os cinzeiros repletos, a lareira suja com restos de lenha e
alguns copos vazios espalhados. Perto do bar, sobre o tapete imaculadamente
branco, uma meia de náilon. Mitzy deixara uma recordação da noite anterior.
Grande droga!
As mulheres entravam e saíam de sua vida como fumaça no ar. Davam-lhe
um prazer momentâneo e nada além disso. Lembrava-se claramente da
expressão das pessoas quando se divorciou pela terceira vez. Irresponsável,
diziam. Mas ele não se abalava. Até gostava de chocar as velhotas que tinham
gasto a vida inteira a servir os maridos, sem nunca se perguntarem se
realmente os amavam.
Amor...
Oh! Rachel... novamente a imagem dela se desenhou na sua mente
atordoada. Conhecia cada detalhe daquele rosto, todos eles fascinantes.
Rachel Talmadge. Um nome tão familiar! Ora, que besteira! Há muito tempo
ela era Rachel Hollls, e isso não podia ser esquecido...
Encheu um copo de uísque. Sem gelo, sem água. Talvez o álcool lhe
trouxesse um pouco de paz. Mas de nada adiantou. A bebida queimou sua
garganta e estômago, e não aliviou sua angústia. Foi até uma das janelas, de
onde avistava o lago Cedar Creek. Lago... ora, aquilo não era exatamente um
lago, com toques românticos e bucólicos. Na verdade, não passava de um
grande reservatório controlado pelas autoridades do Valley Tennessee. Bela
droga!
Procurou alguma coisa para comer, mas nada lhe pareceu atraente. Acabou
por mordiscar um pedaço de salmão ainda semicongelado. Sentia-se só,
terrivelmente só.

O funeral foi num dia ensolarado. O céu estava azul, com pequenas nuvens,
que se movimentavam suavemente. O Mercedes branco estacionou perto dos
outros carros, do lado de fora do cemitério.
Não foi difícil para Tommy Lee localizar Rachel entre as inúmeras pessoas
que rodeavam o jazigo. Observou suas costas magras, cobertas por um vestido
de seda cinza que descia até os joelhos, deixando à mostra o contorno suave
das pernas. Estava amparada pelo braço cuidadoso do pai, mas não
demonstrava fraqueza. Era uma mulher vigorosa, forte e determinada.
"Rachel. Minha Rachel... Ainda estou aqui... esperando", Tommy Lee teve
vontade de dizer. Mas preferiu não se aproximar da multidão. Era melhor ficar
afastado, sob a frondosa nogueira. Afinal, não sabia se estava preparado para
olhar Rachel de frente, sentir seu perfume...
Tantos anos já haviam se passado... vinte e quatro! Sim, ele havia contado
cada dia, cada minuto, cada segundo. Naquela época, quando a tinha nos
braços, quando a beijava com fúria e paixão, era apenas um garoto de
dezessete anos. O tempo fora cruel com ele, acalentando mais e mais as
lembranças ao invés de destruí-las. Só que agora era um homem de quarenta e
um anos e não um adolescente. A vida exigia que tomasse decisões maduras.
Ridículo... ali, a poucos passos de distância de Rachel, sentia-se novamente
como um menino, inseguro e vulnerável.
Apesar dos vinte e quatro anos passados, de todos os erros e desacertos,
seu coração ainda se revoltava dentro do peito com uma intensidade
impressionante. As recordações voltaram como se tudo tivesse acontecido
ontem. A dor era real, absoluta e incontestável. As feridas continuavam
sangrando, e o calor, a paixão desesperada ainda tomavam conta de todo o seu
corpo.
Mais uma vez voltou os olhos para Rachel. Agora ela estava recebendo os
pêsames dos amigos. Havia discrição e delicadeza em seus gestos. Não
chorava, não sorria. Já não usava mais os cabelos longos, que às vezes
arrumava em duas longas tranças caídas pelos ombros. Agora eles eram
curtos, ligeiramente encaracolados. No rosto, não mostrava o frescor da
juventude, mas a elegância de traços maduros e enérgicos. Ela tinha se
transformado numa mulher. Linda, sedutora, loucamente atraente. O corpo
ainda era o mesmo. Sim, ele conhecia bem aquelas curvas bem-feitas. Os
seios, arrepiados pelo vento, revelavam-se eretos contra o vestido. Os quadris
estavam um pouco mais arredondados, mais femininos, muito mais tentadores.
Há quanto tempo não ficava tão perto dela? Durante quantos anos não
desejara ardentemente observá-la, devorá-la com os olhos? Oh! Rachel... Por
quê?
As pessoas começaram a se afastar. Os carros deixavam o cemitério com
seus ruídos surdos. As cabeças estavam baixas, em sentimentos de pesar.
Somente Rachel Hollis e o pai continuaram na beira do túmulo, ajeitando as
rosas brancas sobre o mármore negro.
Tommy Lee permaneceu imóvel, os olhos pregados em Rachel.
Uma borboleta multicolorida teimou em pousar nos cabelos dela, mas, sem
se virar, Rachel a espantou com um gesto rápido. Sua atenção estava
totalmente voltada para as flores. Depois ficou parada algum tempo, olhando
vagamente para a tumba. O pai lhe segurou a mão.
— É melhor irmos agora — disse num tom carinhoso, mas determinado.
Sem hesitar, Rachel se virou. Fazia questão de manter o corpo ereto e a
cabeça erguida. Ela era assim. Não se curvava diante da vida.
— O que diabos ele está fazendo aqui? — A voz do pai dela soou nervosa,
indignada.
Imediatamente os olhos de Rachel percorreram o gramado verde, até a
elevação onde ficava a imensa nogueira. Reconheceu logo a figura esbelta, de
braços cruzados sobre o peito e pernas ligeiramente abertas. Sim, ela o
reconheceria em qualquer lugar do mundo, mesmo que milhões de anos os
tivessem separado.
"Tommy Lee... você veio..."
Os dois ficaram paralisados, olhando-se como se fosse possível derrubar
as terríveis barreiras construídas através do tempo. Tommy Lee estava bem
diferente, mas ainda era sensual e atraente. Usava óculos, agora, e tinha fios
prateados nas têmporas. Os ombros pareciam ainda mais largos e másculos, o
rosto mais duro, as feições mais acentuadas. Ah! como era bonito...
— Venha, Rachel. Precisamos ir. — O pai apertou seu braço, tentando levá-
la até a limusine preta.
Mas não havia força que a tirasse de lá. Toda a sua energia estava voltada
para aquele homem, a quem amara com tanto desespero. Era como se um
magnetismo os unisse. Apesar dos protestos do pai, deu um passo em direção
a Tommy. Suas pernas pareciam se mover sozinhas, comandadas pelo coração.
Seus olhos estavam magicamente colados nele, naquele corpo que lhe ensinara
as delícias do amor.
Tommy Lee também se aproximou. O coração lhe batia no estômago, na
garganta, na cabeça. Há uma eternidade não ficava tão perto dela. Sentia medo
e prazer ao mesmo tempo.
— Como vai, Rachel? — A voz dele era mais profunda e grossa do que ela
se lembrava. A mão, que agora apertava a sua, era tão quente e firme quanto no
passado. Só que, depois de tanto tempo, pareciam maiores, mais vigorosas.
— Obrigada por ter vindo — ela respondeu, procurando não tremer a voz.
Numa cidade pequena como Russellville, era quase impossível evitar uma
pessoa por vinte e quatro anos. Mas Tommy Lee e Rachel haviam conseguido.
Não freqüentavam os mesmos restaurantes nem tinham amigos em comum.
Algumas vezes o encontro fora inevitável, mas nestas ocasiões um deles
sempre se retirava, como se tivessem feito um acordo. Hoje, porém, estavam
frente a frente, olhos nos olhos. Deliberadamente.
Como que voltando à realidade, Tommy Lee desviou o olhar até o velho
Everett Talmadge. Cumprimentou-o com um gesto frio, curvando ligeiramente
a cabeça e murmurando qualquer coisa.
O pai respondeu no mesmo tom, sem disfarçar a animosidade que
alimentava por ele.
— Espero que não se importe por eu ter vindo. — Novamente ele voltou a
atenção para Rachel. — Assim que soube da morte de seu marido, quis lhe
oferecer meus sentimentos pessoalmente.
— Obrigada. Nós... — Ela lançou um olhar para o pai. — Digo, eu estou
muito contente por você ter vindo.
Outra vez ficaram em silêncio. Havia tanta coisa a ser dita, mas as palavras
morriam diante da presença austera de Everett. Depois, se fossem obedecer a
seus sentimentos e instintos, apenas se abraçariam como se o tempo não
tivesse passado. Ambos sabiam disso, mas nada podiam fazer.
— Não conheci Owen pessoalmente — disse Tommy, procurando ser
formal e agir de acordo com a situação, numa tentativa de prolongar aquele
encontro. — Mas toda a cidade diz que era um homem maravilhoso. Sinto
muito. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer...
Rachel baixou os olhos. Estaria chorando?
— Eu... eu sinto muito — Tommy continuou, embaraçado. — Não devia ter
vindo...
Rachel não teve tempo de responder.
— Não podemos mais ficar. — Everett foi severo. Puxou-a pelo braço e ela
se foi. Novamente Rachel estava indo embora, talvez para sempre.
Tommy a seguiu com o olhar. Como era encantadora! Os anos haviam sido
generosos com ela, transformando-a numa mulher cheia de sensualidade e
beleza. Seu andar delicado, os cabelos revoltos pelo vento, as mãos finas e
macias... tudo nela era incrivelmente sedutor.
Instintivamente, procurou o maço de cigarros no bolso do paletó azul-
marinho. Seria bom se também tivesse uma boa dose de uísque. Estava
precisando de forças. Por mais absurdo que fosse, sentia-se como um animal
enjaulado, querendo se desvencilhar das grades, correr, alcançar o que mais
desejava e sendo obrigado a se manter distante e alheio.
Owen Hollis. Como havia sido a vida dela com ele? Eram felizes? Será
que ele fora bom, gentil e afetuoso? Quanto Rachel sofrera, com o câncer do
marido? Por que não tiveram filhos? E o que ela teria contado sobre Tommy
Lee Gentry?
Tommy Lee foi até o túmulo, onde as rosas repousavam calmamente. Olhou
para as duas únicas placas douradas. Owen Hollis. Eulice Talmadge, a mãe de
Rachel. Estava com raiva? Não, não era ódio. Simplesmente uma sensação de
abandono e decepção.
— Por que fez aquilo, Eulice? — murmurou, como se a morta pudesse
ouvi-lo. — Você e seu marido... Até meu pai e minha mãe... Por quê?

A limusine preta parou diante da velha casa da rua Cotako, onde Rachel
havia nascido e crescido. Ajudada pela eficiente mão do pai, ela desceu. Seus
movimentos eram lentos. Talvez esta fosse a primeira vez que podia agir com
tanta lentidão. Desde que Owen ficara doente, há dois anos, só conhecera
correria e tensão. Quantas vezes não chamara a ambulância às pressas?
Quantas noites de insônia? Quantos dias de sofrimento?
Ergueu o olhar para a casa de dois andares, pintada de bege. Uma pequena
escada levava à porta principal, de ferro entalhado, como fora moda nos
velhos tempos. O vitrô da sala, parcialmente encoberto por uma trepadeira,
deixava ver o interior, o sofá estampado. No jardim bem cuidado, ainda
floresciam os narcisos plantados pela mãe. Tantas vezes ela e Tommy Lee
haviam se refugiado sob os galhos para comerem doces antes do jantar. Eram
somente crianças levadas, que riam ao desafiar a autoridade dos pais. Era
divertido! Naquela época, as famílias eram amigas inseparáveis. Mas o
destino tinha destruído tudo, restando apenas as boas lembranças.
Sem resistir, Raquel se virou para a casa vizinha, dos Gentry. Antes era
alegre e festiva. Hoje, sombria e deserta. O longo gramado verde unia as duas
construções. Mas há vinte e quatro anos um imenso muro de pedras as tinha
separado definitivamente. O mesmo muro inviolável que a distanciara de
Tommy Lee.
Os amigos íntimos a esperavam dentro da casa, na tentativa de confortá-la
pela triste perda. Rachel os cumprimentou educadamente, mas logo pediu
licença e se retirou para o quarto. Estava cansada. Confusa também. Encontrar
Tommy Lee e falar com ele depois de tanto tempo havia sido uma experiência
emocionante e perturbadora.
A cama de vime branco ainda era a mesma. As paredes enfeitadas com
posters e bonecas mantinham o mesmo tom rosado. Ali, naquele quarto, Rachel
sonhara com o futuro, fizera planos, chorara e rira sozinha com o travesseiro.
Na escrivaninha de madeira laqueada, o urso de pelúcia marrom, já desbotado
e sem um dos olhos, a contemplava. Tinha sido um amigo leal, que escutara
seus problemas infantis, suas descobertas e alegrias.
Deus... ela estava sorrindo! Voltar no tempo, ainda que só na imaginação,
era delicioso. Naquela época, a felicidade reinava, o amor e a compreensão
pareciam unir profundamente as pessoas. Agora, tudo era diferente.
Num impulso, caminhou até a janela, de onde avistava, por cima do
imponente muro de pedras, a casa dos Gentry. Gaines e Lily, pais de Tommy
Lee, ainda viviam lá. Porém, já não possuíam o mesmo entusiasmo. As janelas
raramente se abriam. Não se ouviam mais suas alegres gargalhadas. Até
mesmo as azaléias que circundavam a casa tinham perdido a cor.
A história dos Talmadge e dos Gentry começava muito antes do que o pai
dela se permitia contar. Porém, tudo estava gravado em velhos álbuns de
fotografia, jogados num canto do sótão.
Os dois casais tinham sido verdadeiros pioneiros da pequena Russellville.
Construíram suas casas, suas fortunas e uma sólida amizade. Os homens
jogavam golfe, as mulheres tênis, e, juntos, partilhavam noites a fio em volta
de uma mesa de buraco. Eulice e Lily ficaram grávidas na mesma época.
Compararam seus enjôos e esperanças, o tamanho das barrigas e escolheram
nomes para seus bebês.
Rachel e Tommy Lee chegaram ao mundo com dois meses de diferença.
Lado a lado, tiveram as mesmas doenças infantis, perderam os dentes de leite,
foram à escola. Adoravam brincar na piscina de plástico que as mães tinham
comprado em sociedade, enquanto elas tomavam chá ou tricotavam. Quando
uma das crianças pegava o brinquedo da outra, as mães ralhavam, obrigando-
as a fazerem as pazes com beijos e carinhos.
Tommy Lee tinha oito anos, quando quebrara o braço, tentando instalar um
telefone improvisado entre seu quarto e o de Rachel. E, uma vez, ela ficara de
cama uma semana com febre alta por tê-lo esperado na chuva para irem
comprar sorvete. E quando os dois pintaram a parede da sala de visitas de
Lily com as canetas e lápis de cor que haviam ganho no Natal? A cinta estalou
no traseiro deles...
As lembranças vinham à mente de Rachel como num filme nítido e claro.
Tinha a impressão de que, se fechasse os olhos, podia ouvir Tommy Lee
chamando-a lá de baixo, como fazia todas as manhãs. Ele acordava cedo e a
obrigava a se levantar também. Nem quando ficaram mais velhos perdeu esse
hábito.
Mesmo com o corpo se formando, os seios crescendo, os quadris mais
acentuados, Rachel saía na janela de camisola e olhos inchados.
— Quero dormir, Tommy. Hoje é domingo! — ela gritava.
— Vamos fazer um piquenique nas montanhas! — Ele sempre tinha idéias
fantásticas e acabava por convencê-la a se levantar. Ah! Como era bom
acordar com a voz de Tommy Lee...
Rachel se debruçou na janela, recostando a cabeça no batente. Eram tantas
as recordações, tão belas e doces...
— Senhorita...
A voz familiar, meiga e amiga, fez com que ela se virasse. Um segundo
depois, estava enfiada no abraço quente e carinhoso da negra, tão gorda quanto
querida.
— Callie Mae... — murmurou, sentindo o cheiro de fritura que sempre
marcara os cabelos secos e carapinhados da preta. — Oh! Callie Mae...
— O que a minha pequena está fazendo aqui em cima? — O sotaque sulista
dela era reconfortante. — Se escondendo?
— Acho que sim. Não tenho paciência para agüentar aquela gente,
comentando sobre a doença de Owen.
— Seu pai está procurando você...
— Já vou descer. Só precisava ficar um pouco sozinha, pensando.
— E olhando por cima daquele muro — os lábios grossos da negra
completaram, com evidente sabedoria.
— Sinto saudade daqueles tempos...
— Eu sei, minha pequena. Eu sei. Mas, de qualquer jeito, não acho certo
que o sr. e a sra. Gentry não tenham ido ao enterro. Já é a segunda vez que
morre alguém da nossa família e eles não comparecem. Isso está errado.
Afinal, num momento de dor, a gente precisa esquecer as mágoas do passado.
— Você está certa, Callie Mae. Qualquer um que tivesse um coração tão
grande quanto o seu pensaria da mesma forma. Acontece que a culpa não é só
dos Gentry. Papai não gostaria de vê-los no cemitério. Sabe disso.
As duas se abraçaram com mais força. Rachel, que não podia esconder
nada da velha, escolheu as palavras e tentou manter um tom firme e
indiferente.
— Tommy foi lá.
A preta não se enganava. Era perspicaz e, acima de tudo, conhecia o
coração de Rachel. Afastou-a de seus braços e olhou-a de frente. Depois
sorriu com os mesmos dentes-brancos, fortes e brilhantes.
— É por isso que minha pequena veio até o quarto, não é?
Rachel não respondeu. Nem precisava. Para Callie Mae não havia
segredos. Era empregada da família desde que Rachel era apenas uma menina
rechonchuda e banguela. Tinha presenciado a amizade dos casais, das crianças
e até a construção do muro, decidida pela morte de Eulice.
— Bem, é melhor não tocar nesse assunto. — Callie balançou a cabeça,
como se estivesse pensando. — Quando terminar de sonhar acordada, vá até a
cozinha. Fiz um bolo de chocolate e torta de amêndoas para você.
— Meus doces prediletos... — Rachel esboçou um sorriso. — Mas não
tenho fome. Obrigada.
— Minha pequena precisa comer. — O tom era maternal, em cuidadosa
zanga. — Está só pele e osso.
— Talvez mais tarde, Callie Mae...
— Muitos pensamentos e pouca comida. — A negra foi se esquivando até
chegar à porta. — Isso não é bom...
O som das vozes dos amigos subia até o quarto. Rachel estava tão cansada!
Talvez, se ficasse um pouco mais ali, eles fossem embora...
Jogou-se na cama estreita, sem se importar em amassar o vestido. Abraçou
o travesseiro e fechou os olhos. Repentinamente o tempo voltou atrás. Tinha
apenas quatorze anos e era uma noite clara, iluminada pela lua prateada e
cheia. Tommy Lee a tinha beijado pela primeira vez. Um beijo de verdade,
como aqueles dos filmes. A língua dele, inexperiente mas sensual, havia
penetrado em seus lábios com certo temor. Fora tão suave, tão maravilhoso!
— Meu Deus... o que estou fazendo? — ela falou sozinha, assustada com a
reação imediata de seu corpo.
Há algumas horas tinha enterrado o marido e, no entanto, só tinha
pensamentos para Tommy Lee. Era direito fazer isso? Não estaria
desrespeitando a imagem de um homem bom e dedicado? Será que dezenove
anos de um casamento bem estruturado não valiam nada?
Sem dúvida, sofreria ao voltar para a casa vazia. Aí sim, sentiria falta de
Owen. Se ao menos tivesse filhos para alegrar seus dias...
Uma batida leve na porta a fez se ajeitar.
— Entre...
— Aí está você... — Everett colocou a cabeça na fresta da porta. —
Marshall veio visitá-la.
— Já vou descer...
Everett entrou e, por um instante, foi absorvido pela suavidade daquele
quarto infantil.
— Vê-la aqui... Oh! Rachel, é como se o tempo não tivesse passado, você
fosse ainda uma menininha e sua mãe estivesse viva. — Soltou um longo
suspiro. — Acho que nunca me acostumarei à falta dela...
Certamente não, Rachel pensou. Mas havia uma maneira de aliviar a dor.
Bastava tocar a campainha da casa ao lado. Ali moravam velhos amigos que
partilharam momentos de alegria quando a mãe sorria pelos cantos da casa. Só
que infelizmente as coisas não eram tão simples assim. Sentimentos de culpa e
ódio se mesclavam, transformando amigos em verdadeiros estranhos.
Só agora ela reparava como o pai tinha uma expressão martirizada pela dor.
Pobre coitado... também havia sido vítima do destino, embora tivesse
cometido erros imperdoáveis. Se pensasse em tudo o que perdera por causa
dele, poderia matá-lo de tanta raiva. Mas ele era apenas um ser humano, com
falhas, orgulhos imbecis e, quem sabe, arrependimentos. E ela o amava.
— Você os vê de vez em quando? — Ela esticou os olhos por cima dos
ombros do pai, apontando a casa do lado.
— Não quero falar sobre isso.
— Ouvi dizer que Tommy não fala mais com eles. É verdade?
— Não sei. — Aquilo perturbava o pai. Os Gentry tinham sido
definitivamente riscados de sua vida. — Nem quero saber. Não é da minha
conta.
— Há vinte e quatro anos...
— Rachel... — O velho corou. — Isso não é hora de falarmos sobre isso.
Você não pode estar preocupada com eles, quando seu marido acaba de
morrer.
Ele tinha razão. Era mesmo uma vergonha. Owen não merecia cair no
esquecimento tão rapidamente. Apesar dos segredos que guardava no coração,
ela sempre havia sido uma esposa dedicada e carinhosa. Devia manter a
mesma postura agora.
— A morte de Owen foi um choque para você, não é? — Era uma pergunta
estranha para uma viúva. Afinal, ela mesma deveria estar desesperada. Mas,
ao contrário, sentia-se aliviada. Os últimos seis meses tinham sido um
verdadeiro inferno. Owen se consumia na cama, definhando dia a dia. O
sofrimento e a dor eram insuportáveis. Várias vezes se surpreendera
desejando a morte dele. Era a única maneira de acabar com as dores sempre
constantes e terríveis.
— Eu tinha muitos planos para ele — Everett disse, baixando a cabeça.
Depois, tomou fôlego. — É melhor descermos. A família Hollis está Ia
embaixo.
— Vá em frente. Preciso me arrumar um pouco.
Sinceramente, não tinha a menor vontade de encarar o olhar vermelho e
sofredor de Frank Hollis. Nem o nariz inchado e úmido de Pearl Hollis.
Talvez fosse egoísmo, mas simplesmente não tinha paciência para aquilo tudo.
Marshall True, elegante e bem vestido como sempre, também estava lá e a
recebeu de braços abertos.
— Rachel, querida, estava preocupado com você. Sei como se sente. E,
quando quiser voltar para sua casa, terei prazer em levá-la.
Uma hora mais tarde, depois de ficar com a família do marido, Rachel
resolveu ir embora. Ia ser duro, sem dúvida. Mas, se tinha que enfrentar a
solidão, era melhor fazê-lo o quanto antes.
Aceitou a carona de Marshall e seguiram em silêncio até o carro esporte
estacionar diante da casa de tijolos à vista.
— Obrigada — ela disse. — Sei que não fui a companhia ideal...
— Compreendo o que está sentindo. Quando Joan morreu, eu também não
tinha a menor vontade de conversar. Parece que uma faca afiada divide a gente
ao meio, não é?
— Não sei... — ela hesitou. — Para dizer a verdade, sinto uma espécie de
alívio. Já não agüentava mais os hospitais, médicos e sofrimento. Será que
estou sendo ingrata ou insensível?
— Não, querida, você está apenas cansada. Dois anos convivendo com um
doente incurável é desgastante.
Marshall era um bom homem. Tinha estado sempre presente nos momentos
de depressão profunda de Owen. Trazia palavras de conforto e esperança.
Ajudava, sem esperar nada em troca.
— Às vezes me sinto culpada — ela resmungou. — Você sabe, cheguei ao
ponto de desejar a morte dele...
— É natural. É difícil vermos as pessoas que queremos bem sofrendo e
morrendo lentamente. Você é humana. Lembre-se disso.
Marshall sempre tinha a palavra certa para o momento. Jamais fazia
críticas, e, mesmo quando aconselhava, agia com tamanha delicadeza e
discrição que era impossível ficar zangada. A amizade entre eles tinha sido
construída através de anos de sofrimento. Talvez por isso fosse tão sólida.
Joan, embora jovem, era uma mulher debilitada, de pouca saúde. Tivera sérias
complicações renais, o que a levara a viver anos e anos na cama.
Owen e Rachel procuravam confortar o amigo, que não via esperanças para
a esposa. Nos últimos dias, quando ela já estava em coma profunda, passavam
horas a fio no hospital, numa tentativa inútil de levar alguma alegria a
Marshall. Daí em diante, tornaram-se inseparáveis.
— Ouvi dizer que você vai viajar — ele disse, abrindo a porta do carro.
— Papai lhe contou, não é?
— Isso mesmo. Ele disse que vai para St. Thomas. A idéia me parece
ótima. Você está precisando relaxar um pouco.
Os dois entraram na casa. Apenas uma palavra era necessária para
descrever a decoração: perfeita! Isso mesmo. Não era luxuosa, nem
sofisticada, mas todos os cantos, por mais escondidos que fossem, tinham
merecido a atenção e o bom gosto da dona. Na sala de estar, ficavam os sofás
sobre o macio tapete de lã de carneiro e as mesas laterais, com peças de prata
e cinzeiros de cristal. Almofadas coloridas davam um toque aconchegante e
acolhedor, assim como os quadros e gravuras dispostos pelas paredes brancas.
A sala de jantar era um pouco mais austera. A mesa retangular tinha
pertencido à avó de Owen e era pesada, escura e imponente. Sobre ela, apenas
um castiçal com cinco velas vermelhas.
— Bem, com dinheiro você não precisa se preocupar. — Marshall a seguiu
até a sala. — O seguro de vida de Owen será liberado dentro de duas
semanas. Quando voltar de viagem, já poderá receber o cheque.
Ele tinha uma companhia de seguros, que construíra com seu próprio
esforço. Marshall era um dos filhos de uma família muito grande e não
conhecera luxo e conforto durante a infância. Começou a trabalhar muito cedo
e graças ao seu trabalho e honestidade conquistara uma vida estável e bem-
sucedida.
— Enquanto estiver fora, darei uma olhada na casa. Posso abrir as janelas
para ventilar e fazer movimento para espantar possíveis assaltantes.
— Não precisa se incomodar... isso vai lhe dar muito trabalho.
Argumentar com ele era perder tempo. Marshall não economizava esforços
para ajudar os outros, principalmente ela. Tinha prometido a Owen, em seu
leito de morte, que cuidaria de Rachel e ia seguir o compromisso à risca.
Houve uma época em que Rachel desconfiou que Owen desejasse que ela e
Marshall se unissem após sua morte. Parecia absurdo, mas o amor de Owen
era tão grandioso que ultrapassava facilmente sentimentos como o ciúme. Ele
queria que ela tivesse uma vida feliz mesmo sem sua presença. Rachel, por sua
vez, sabia que não seria difícil conviver intimamente com Marshall. Tinham
muitos pontos em comum e um estilo de vida bem parecido. E, evidentemente,
já estavam habituados um com o outro.
Antes de sair, Marshall verificou as portas, janelas e percorreu os cômodos
da casa. Estava tudo na mais perfeita ordem. Rachel podia se deitar sem
maiores preocupações.
— Obrigada por tudo. — Ela o beijou longamente no rosto. — Não sei o
que faria sem você.
— Não há nada o que agradecer. Você bem sabe que quando precisar, a
qualquer hora do dia ou da noite, basta discar o meu número. Estarei aqui no
instante seguinte.
Ele era mesmo uma pessoa muito especial.
Rachel acenou da porta e ficou ali parada até que o carro luxuoso
penetrasse na noite escura. Tomou fôlego antes de voltar para dentro. Sabia
que agora enfrentaria o pior de todos os momentos: a certeza da solidão.
A casa estava tão vazia e silenciosa! Até mesmo os gemidos agoniados do
marido faziam falta. Era como se a vida tivesse subitamente abandonado
aquele lugar. Não havia qualquer movimento ou ruído. Oh!... ia ser muito mais
difícil do que supunha.
Apagou as luzes da sala e subiu as escadas lentamente. Ao abrir a porta do
quarto, sentiu um nó apertar sua garganta. A cama de casal estava
impecavelmente arrumada, as flores ainda na mesa-de-cabeceira, junto com os
remédios, os dois porta-retratos... a primeira lágrima correu pelo rosto
cansado de Rachel.
Ainda lutando contra a própria fraqueza, pegou a camisola de cambraia
branca, saiu e fechou a porta. Dormiria no quarto de hóspedes. Não suportaria
deitar na cama onde Owen morrera.
No banheiro, procurou evitar o espelho. Não queria se ver naquele instante
de tristeza. Amanhã poderia renovar forças e enfrentaria melhor a nova
situação. Hoje, só desejava dormir, esquecer, apagar as lembranças e a dor.
Mas o travesseiro não a confortou. Sentindo-se terrivelmente só, deixou que
os soluços explodissem. As lágrimas lhe desciam abundantes pelo rosto.
Todos os músculos do corpo pareciam rijos e tensos. Sentiu medo de tudo, de
continuar viva, de se tornar amarga e solitária, de nunca mais poder entrar no
quarto que dividira com Owen.
Chorou pelos infindáveis dias de sofrimento do marido e por não ter
podido ajudá-lo. Chorou pela menina alegre que fora e pela mulher
desesperada em que havia se transformado. Chorou, pois durante duas décadas
tinha sido casada com um homem maravilhoso e nunca fora apaixonada por
ele.
Chorou, porque seu coração ingrato disparara de emoção ao ver Tommy
Lee no cemitério. E isso era a parte mais difícil de admitir. Sentia-se traindo
Owen e, ao mesmo tempo, sendo traída pela vida.
Por fim, no auge do desespero, chorou pelos filhos que nunca dera a Owen.
E pela criança de Tommy Lee, a quem ela dera a luz.
II
Quatro dias após o funeral, Tommy Lee ainda não se refizera do rápido
encontro com Rachel. Acordou cedo e não estranhou o fato de não estar em sua
cama. Já tinha se acostumado a dormir na sala, encolhido no sofá, depois de
uns goles a mais. Ainda usava o terno de tweed e a gravata.
Olhando para o espelho do banheiro, enquanto escovava os dentes,
sussurrou, desanimado: — Você precisa perder uns quilos, rapaz. Aliás, é
melhor mudar sua vida, largar a bebida e as mulheres e começar a se dedicar a
atividades mais saudáveis.
Era uma recomendação que fazia a si próprio todas as manhãs, mas que
nunca cumpria. De alguma forma, a cerveja estava sempre gelada demais e as
mulheres quentes demais para serem recusadas. A roda-viva continuaria e ele
sabia disso.
De repente, por segundos, a imagem de Rachel surgiu em sua mente. Sentiu-
se envergonhado da vida que levava. Ela, sim, tinha sabido conduzir o próprio
destino. Continuava linda, perfumada e deliciosamente sensual. E se o visse
naquele estado? O que diria? Sem dúvida, ficaria enojada.
Furioso, Tommy Lee deu um soco no espelho.

No fim da avenida Jackson ficava a pequena butique de Rachel. O nome,


Panache, era pintado em letras douradas sobre a porta de vidro. Na vitrine,
viam-se alguns vestidos bonitos e sofisticados. Quando Rachel abriu a loja, há
dez anos, ninguém acreditava que teria sucesso. Afinal, numa cidade com
população de apenas dez mil habitantes era difícil vender roupas caras e
elegantes. Mas seu extremo bom gosto conquistara a todos. Agora, ela era uma
conhecida e respeitada comerciante.
Por três dias, Tommy controlou a imensa vontade de passar em frente à
butique. Mas naquele dia não resistiu. Ao invés de parar diante de seu
escritório, continuou pela avenida. Era engraçado... há anos evitava aquele
trajeto e agora ali estava ele, nervoso e ansioso.
Diminuiu a marcha, e olhou. Lá estava Verda McElroy, abrindo as portas
para mais um dia de trabalho. Mas de Rachel nem sinal.
Deu a volta pela rua paralela e foi para o escritório, que ocupava dois
andares de um dos prédios mais requintados da cidade. Na verdade, ele nem
precisava daquele aparato todo para conduzir seus negócios. Podia bem
resolver tudo de casa, usando o telefone. Mas pelo menos assim tinha um lugar
para ir.
Liz Scroggins sorriu ao vê-lo, como fazia todas as manhãs. Divorciada,
trinta e cinco anos de idade e belos olhos azuis, era a secretária mais eficiente
das redondezas. Mais que isso, era uma boa amiga.
— Bom dia, Liz.
— Bom dia, sr. Gentry.
A sala de Tommy Lee era imensa. Ele gostava de espaço. Duas das paredes
eram cobertas por estantes repletas de livros, que jamais eram consultados. A
mesa, colocada de costas para a janela sem cortinas, tinha tampo de cristal e
pés de ferro. Um sofá, duas poltronas e uma mesinha formavam um segundo
ambiente. Ali, grandes quantias de dinheiro passavam de um bolso para outro,
principalmente para o de Tommy Lee. Afinal, ele era o mais eficiente
construtor e administrador de imóveis da região.
— Posso entrar, sr. Gentry? — Lis não precisava da resposta. O ritual era
sempre o mesmo. Recados primeiro, ordens do dia depois.
— Muldecott telefonou do banco de Florence — ela começou, consultando
o bloco em sua mão. — O sr. Trudeau também ligou. É da companhia de
engenharia Sheffield. Pediu para entrarmos em contato com ele o mais breve
possível. Ah! sua filha também telefonou. Parecia ansiosa por encontrá-lo.
— Só isso?
— Até agora, só.
— Estou esperando umas ações de Hensley, hoje. Avise-me assim que
chegarem.
— Pois não.
— Obrigado, Liz.
Ela se retirou, e imediatamente Tommy Lee pegou o telefone.
— Docinho? É papai.
— Pai! — A voz do outro lado era vibrante. — Você não imagina! o que
aconteceu! Marianne Wills vai dar uma festa incrível para inaugurar a piscina
e eu fui convidada.
— Isso é ótimo, não é?
— Também acho, mas mamãe não quer me deixar ir. Só porque alguns
meninos foram convidados. Ela disse que ainda sou muito jovem para essas
coisas. Não é absurdo, pai? Além do mais, todas as minhas amigas irão e elas
têm quartoze anos como eu. — Ela mudou o tom. — Será que você podia falar
com mamãe? Peça a ela...
— Meu doce, você sabe muito bem que sua mãe nunca escuta o que digo.
— Por favor...
— Beth, se eu ficar do seu lado, só vou piorar a situação. Com jeito você e
sua mãe chegarão a um acordo. Discuta o problema como adulta, sem choros
nem lamentações.
— Discutir, discutir... é só isso o que eu e ela temos feito ultimamente...
— Eu sei, eu sei...
— Papai — houve um breve silêncio —, detesto ficar aqui. Por que não
posso ir morar com você? Seríamos muito mais felizes.
— Já falamos sobre isso mil vezes, não é?
— Mas...
— Sua mãe jamais aceitaria, Beth.
O silêncio foi mais longo e pesado desta vez.
— Você não me quer! — a menina acusou com determinação. — Você não
me ama!
— Isso não é verdade, meu doce. Como pode dizer um absurdo desses?
Sabe muito bem que se eu pudesse a traria para cá nesse exato momento. Mas
é simplesmente impossível. Já pensou quantos problemas insolúveis
criaríamos? — Tommy Lee conhecia as artimanhas da filha. Sabia que, no
fundo, ela tinha certeza de ser tremendamente amada. Mas, ainda assim, as
palavras da garota o feriam. — Escute, Beth, se acaso sua mãe permitir que vá
a festa, eu lhe darei um biquíni novo, está bem?
— Verdade, papai? — A zanga passou logo. — Quero um vermelho, bem
pequenininho.
— Mandarei um cheque de cinqüenta dólares, e assim você poderá
escolher o modelo que preferir. — Talvez ele estivesse comprando a filha, ou
disfarçando um sentimento de culpa. Mas não tinha tempo de pensar sobre isso
agora. — Bem, trate de fazer as pazes com sua mãe. Lembre-se, você é quase
uma mulher e precisa agir com maturidade. Use argumentos fortes para
convencê-la. Mas — ele frizou — a decisão é dela, e você tem que respeitar.
— Vou tentar, pai. Mas ela é...
— Sua mãe está fazendo o melhor que pode. Lembre-se disso.
Por que ele defendia Nancy? Essa era uma pergunta difícil de responder.
Depois de desligar, tentou se concentrar no trabalho. Mas logo foi
interrompido pelo rosto de Liz que surgiu em sua frente.
— Você sabe que não deveria mandar outro cheque de cinqüenta, não é? —
Ela sorria, sem perder o ar de reprovação.
— Você não perde a mania de escutar minhas conversas...
— A porta estava aberta. Além disso, alguém precisa lhe dizer as verdades
de vez em quando.
Ela tinha razão e Tommy Lee ficou calado.
— Meu ex-marido me deixa maluca de vez em quando — Liz continuou
com o mesmo jeito crítico. — Toda vez que as crianças vão visitá-lo, voltam
impossíveis, querendo comprar tudo o que vêem pela frente. Resultado: eu
passo a ser um carrasco aos olhos dos meninos. Nada do que falo está certo.
Só o pai tem razão. Só ele é bonzinho e compreensivo. Ah!... tenho vontade de
mandá-los para o pai de uma vez por todas.
— Talvez seja isso que eu quero que Nancy faça...
— Mesmo? — Liz duvidou. — Um homem com seu estilo de vida... O que
faria com uma garota de quatorze anos?
— Bem, a casa é grande demais para mim. Parece vazia, cheia de ecos...
— Isso quando você está sozinho dentro dela, o que é raro, segundo me
consta.
Liz também sabia ser maliciosa. Embora fosse discreta, conhecia a fama de
Tommy Lee e já fora apresentada a pelo menos meia dúzia de suas aventuras.
Nesses momentos, quando um brilho maldoso lhe surgia nos olhos e a face
corava levemente, Liz se tornava uma mulher incrivelmente sensual. E Tommy
se sentia atraído... reparava nos lábios grossos e macios, e pensava na
carência sexual que ela devia sentir. Mas logo ele esfriava a cabeça
novamente. Afinal, Liz era uma grande amiga e excelente secretária. E
qualquer envolvimento poderia pôr fim a essas duas coisas preciosas.
— A reunião na Assembléia está marcada para as onze horas. — Ela
também voltou ao tom profissional. Não arriscaria o alto salário que recebia
por uma noite de sexo.
— Está bem. Obrigado, Liz.
Outra vez sozinho, Tommy Lee foi até a janela. Do outro lado da rua, a meio
quarteirão de distância, ficava o Banco de Russellville, cujo presidente era
Everett Talmadge. O mesmo banco do qual ele se afastara para conduzir os
negócios na cidade de Florence, a quarenta quilômetros dali.
Depois de uma exaustiva reunião na Assembléia, com discussões
prolongadas sobre áreas de zoneamento e construção de prédios, Tommy Lee
afrouxou o nó da gravata. Tinha vencido mais uma vez, mas isso já não o
satisfazia. Estava totalmente acostumado ao sucesso profissional.
Antes de voltar ao escritório passou em frente à Panache. Seu coração
disparou ao ver a mulher alta que saía de lá. Mas não... não era Rachel. Santo
Deus, ele estava agindo como uma criança!
Ao entrar no escritório passou por Liz, sem dizer uma palavra. Por que
estava tão nervoso? Por que Rachel o assustava tanto?
Pegou o telefone, fingindo firmeza. Mas logo recolocou o aparelho no
gancho. Parecia um adolescente sem experiência, tremendo de medo de ser
recusado. Acendeu um cigarro, deu uma tragada e fechou a porta. Desta vez,
Liz não iria ouvir...
Discou o número devagar. Sabia-o de cor.
— Panache. Bom dia.
"Droga! Por que Rachel não atendeu?"
— Por favor... — Ele controlou a voz. — A sra. Hollis está?
— Não, senhor. Posso ajudá-lo em alguma coisa?
— Não, obrigado. Telefonarei mais tarde.
Desligou. A palma da mão estava suada. A testa também. Para onde tinham
ido seus experientes anos de orgias? Por que se sentia tão inseguro? Droga!
Uma hora mais tarde, telefonou novamente.
— Eu gostaria de falar com a sra. Hollis — disse.
— Sinto muito mas ela não virá à loja hoje.
— Oh... eu ligarei amanhã então.
— Quer deixar algum recado?
— Não, não. Obrigado.
Era melhor voltar ao trabalho. Sem dúvida, não era seu dia de sorte. Além
disso, precisava agir com mais calma. Afinal, fazia só uma semana que Rachel
ficara viúva.
De uma das gavetas tirou o mapa das redondezas da cidade para estudar um
novo e grandioso projeto. Pretendia construir um prédio de requinte, que
atendesse à necessidade da sociedade local. Mas seus olhos se detiveram no
bairro onde Rachel morava. O dedo acariciou o papel, numa atitude boba,
infantil.
Aquela terra lhe pertencera há muito tempo. Ele mesmo a dividira em lotes,
providenciara instalação de água, esgoto e iluminação e depois revendera por
bom preço a outro construtor, o qual erguera várias casas, uma das quais fora
comprada por Owen Hollis.
Também sabia exatamente em qual verão Rachel tinha comprado a piscina
de fibra acrílica. Conhecia o paisagista que fizera o jardim. Coincidência ou
mais uma indiscrição do destino? Destino.
Naquela noite, depois de muito pensar, tomou coragem e telefonou para a
casa de Rachel. O aparelho tocou dezoito vezes. Definitivamente, ela não
estava. E também não estava na loja nos dias que se seguiram. Aquilo já havia
se tornado uma obsessão, um martírio insuportável.

Everett esperou muito tempo pela filha no aeroporto. Os vôos estavam


atrasados devido à chuva. Assim que a viu, deu-lhe um forte abraço e a levou
para casa. Ela parecia mais animada, um corado saudável no rosto.
— Quer uma xícara de café? — ela ofereceu.
— Café me tira o sono.
— Chá, talvez.
— Não, querida, obrigado. Já é tarde. Acho que não posso ficar muito
tempo.
Rachel não tinha certeza se desejava ou não que o pai lhe fizesse
companhia. Por um lado, a casa vazia a angustiava, mas, ao mesmo tempo, era
difícil encontrar assunto para conversar com ele. De qualquer forma, a decisão
não foi dela. Pouco depois, o pai se despedia.
Completamente só, fez um balanço da viagem. Embora tivesse se esforçado
para passear e se libertar da angústia dos últimos meses, chegou à conclusão
de que aquelas duas semanas só tinham servido para adiar o sofrimento de
solidão que teria que enfrentar. Agora era preciso encarar a realidade, sem
Owen, sem filhos, sem alegria.
Foi até a geladeira e serviu-se de club-soda. Um copo só! Era esquisito!
Durante quase vinte anos, preparara dois, um com limão, outro sem. Agora era
um copo, uma pessoa, um corpo na cama. Era o retrato trágico da solidão.
Quando o telefone tocou, deu um salto. Quem ligaria àquela hora da noite?
Não importava. Uma voz amiga seria bem-vinda.
— Alô — atendeu com alguma alegria.
— Como vai? — Não era Marshall. Nem o pai. Nem qualquer voz
conhecida.
— Quem está falando?
— Tommy Lee. — A resposta foi imediata, direta, seca.
Por um instante, Rachel desejou que não passasse de uma brincadeira de
mau gosto. Estremeceu. O coração desavisado veio parar na garganta. Tommy
Lee...
__ Você ainda está aí? — Ele parecia igualmente tenso.
— Sim, sim... desculpe... não esperava que fosse você.
— Oh! — Silêncio. — Estava aguardando outra chamada?
— Não... não.
O assunto não vinha. As vozes estavam cortadas, breves, meio fracas.
— Você esteve viajando...
— Sim, fui a St. Thomas.
— Gostou?
— É um lugar maravilhoso. Março é o mês da seca. Não peguei chuva nem
um dia.
Outra vez o silêncio pesou. Não tinham nada a falar? Ou simplesmente não
sabiam por onde começar?
— Não esperava vê-lo no cemitério — Rachel disse por fim.
— Eu sei.
— Significou muito para mim.
— Verdade? — A voz dele se encheu de ternura. Repentinamente voltou a
ser o dócil e querido Tommy Lee, que encantava e surpreendia.
— Bem... eu...
— Quero falar com você. — Agora ele foi objetivo, embora o tom terno
permanecesse.
— Estou ouvindo.
— Pessoalmente, Rachel.
Ela entrou em pânico. A última coisa que desejava agora era ver Tommy
Lee e tocar em velhas feridas. Se sucumbisse nesse momento, perderia
totalmente o controle de sua vida. Não era hora de enfrentá-lo. Talvez um dia...
— Não posso — foi tudo que conseguiu dizer.
— Por que não? Temos muito a dizer, não é mesmo? Tanta coisa ficou para
trás, condenada ao esquecimento. Não é justo, Rachel. Simplesmente
merecemos explicações. Precisamos conversar.
— Escute, Tommy, o que está feito, está feito. Não podemos mudar o
passado. De nada vai adiantar tocarmos em antigas mágoas. Não somos mais
os mesmos, não somos mais um par de adolescentes apaixonados. Somos
diferentes agora. — Ela hesitou. Nem sabia onde tinha arrumado forças para
ser tão firme. — Por favor, não me telefone mais. Já tenho problemas
suficientes. Na verdade, estou enfrentando um pedaço muito difícil de minha
vida. Preciso me acostumar com uma nova e triste situação. Eu lhe peço, não
me procure mais.
Começou a chorar. Ainda segurava o fone e, a duras penas, tentava ocultar
os soluços. Talvez estivesse derramando lágrimas pela perda de Owen e de
sua tranqüilidade. Talvez pelo simples fato de negar um desejado encontro
com Tommy Lee.
— Sinto muito, Rachel — ele balbuciou. — Não pretendia magoá-la, nem
fazê-la chorar. Só liguei para saber como você estava passando e dizer que
andei pensando em...
— Por favor, preciso desligar.
— Está bem.
— Adeus, Tommy.
Ele ficou quieto e não desligou. Rachel podia escutar sua respiração
descontrolada e hesitante. Acabou por colocar o fone de volta no gancho,
sentindo-se ao mesmo tempo culpada e aliviada.
Resolveu dormir no quarto de hóspede novamente. Não só por medo da
solidão, como também para respeitar a memória do marido. Afinal, não era
direito deitar-se na cama de casal quando tinha outro homem no pensamento. E
Tommy Lee estava realmente gravado em sua mente. Recordações do passado
dançavam em sua memória, num misto de prazer e dor. Viu-o no funeral, mais
velho, igualmente atraente e sensual. Lembrou-se da infância, da juventude, da
voz atordoada dele no telefone... Sim, Tommy Lee não estava apenas em sua
memória. Fazia parte de sua vida.

Com o começo da primavera, as freguesas correram à Panache, a fim de


comprar os modelos mais recentes. Foi um dia cansativo para Rachel, o
primeiro depois de duas semanas de ausência. Na verdade, Verda tinha se
revelado uma excelente substituta. Durante a viagem, não deixou que as vendas
caíssem, recebeu o novo estoque e até pôs em dia a contabilidade da loja.
— Ah! já ia me esquecendo. — Verda arrumava suas coisas para ir embora.
Anoitecia. — Um homem ligou diversas vezes procurando por você enquanto
estava em St. Thomas.
— Deixou algum recado? O nome?
— Não. Mas ligava diariamente. Às vezes, duas ou três vezes no mesmo
dia.
Tommy Lee. Só podia ser ele.
— Se ligar outra vez, posso facilmente reconhecer a voz — Verda ainda
disse.
Isso não! Era só o que faltava! Se alguém naquela cidade soubesse que
Tommy Lee andava telefonando para ela, adeus sossego.
Rachel se esforçou para parecer natural.
— Disse o que queria?
— Nunca disse nada, a não ser que telefonaria de novo. Por fim, avisei que
você estaria de volta hoje, que tinha ido viajar.
Então, ele sabia quando ela estaria de volta. Isso significava que o
telefonema da noite anterior não fora casual, mas planejado, esperado. Bem,
felizmente tinha sido clara, pedindo que não a procurasse mais.
E realmente Tommy Lee não a procurou. Por duas semanas sentiu uma
insuportável angústia no peito. Por fim, ele não resistiu. Tinha que vê-la!
Estava decidido. Tomou um banho rápido e barbeou-se. Escolheu a melhor
loção, a mais cara. Ao escovar os cabelos, desejou que não estivessem tão
brancos. Recriminou-se por não ter feito um bom regime e perdido os malditos
cinco quilos.
Vestiu-se com cuidado, coisa que raramente fazia. Calça marrom, camisa
branca e um blazer bege. Verificou a opinião do espelho. Estava pronto. E
incrivelmente nervoso.
Não havia sinal de vida no andar de baixo da casa de Rachel. Apenas uma
luz débil, fraca, vinha da janela de cima. Talvez ela estivesse deitada, lendo,
enfiada numa camisola transparente. A simples hipótese fez o corpo de Tommy
reagir. Bem, era melhor pensar que ela estava no quarto que partilhara com o
marido, perdida entre saudades e recordações. Não! Isso era pior. Sentia
ciúme. Santo Deus, comportava-se como um idiota!
Estacionou o Mercedes sob uma árvore frondosa. Desceu.
Acendeu um cigarro. Não podia nem queria voltar atrás. Já era tempo de
conversarem, por mais doloroso que fosse. Respirou fundo e tocou a
campainha.
Rachel levou uma eternidade para atender. Por duas vezes, ele pensou em
fugir como uma criança assustada. Mas as pernas não se moviam. Acabou por
jogar o cigarro fora. Nunca uma espera fora tão angustiante.
Um ruído leve na maçaneta da porta. Ela estava abrindo. Enfim chegara o
momento... Rachel... Rachel...
Aquele vestido de linha lilás deixava Rachel ainda mais bonita. O decote
não era profundo, mas, ainda sim, revelava o contorno suave dos seios.
Também os quadris bem delineados se pronunciavam. No rosto, apenas um
toque delicado de maquilagem. Sem exagero, sem extravagância.
— Tommy...
Era evidente que ela estava surpresa. Tinha os olhos arregalados e a voz
trêmula. Não se moveu, nem ao menos abriu toda a porta. Permaneceu quieta,
como uma maravilhosa estátua grega. Fria, mas sensual.
— Tudo bem, Rachel? — ele disse, quando conseguiu respirar novamente.
A presença dela era terrivelmente perturbadora. E aquele perfume... Ainda era
o mesmo?
— Estou bem e você? — Ela continuava paralisada, como que guardando a
privacidade da casa.
— Posso entrar?
Uma nuvem de preocupação e dúvida cruzou o olhar de Rachel. Avistou o
Mercedes parado bem em frente à casa. E se alguém o visse? Quais não
seriam os comentários no dia seguinte? Atordoada, voltou os olhos para
Tommy Lee. E resolveu. Sim, ela o deixaria entrar.
— Só por um minuto — disse em advertência.
Uma espécie de encantamento e deslumbre invadiu Tommy Lee ao entrar
pela primeira vez naquela casa. A decoração harmoniosa, as flores, o jeito
aconchegante e organizado, tudo era uma extensão da personalidade cativante
de Rachel.
— Não quer se sentar? — ela convidou, num tom bastante formal.
Sem dizer nada, Tommy Lee se acomodou em um dos sofás.
Ela se sentou no outro e cruzou as pernas, exibindo descuidadamente os
joelhos.
— Há muito tempo não entro na casa de um Talmadge — ele comentou,
procurando algum assunto.
— Meu nome é Hollis — ela corrigiu. Sem dúvida, não estava disposta a
facilitar aquela conversa.
— Não vou me esquecer.
— Espero que não. — Um breve silêncio marcou os lábios de Rachel. —
Pensei que havia lhe pedido para não me procurar mais...
— Eu tentei, Rachel, juro. Mas foi simplesmente impossível. Temos tanto
para falar!
— Acho que não...
— Não? — Ele foi firme. — Fomos as pessoas mais unidas e apaixonadas
do mundo. Depois, ficamos vinte e quatro longos anos separados e você me
diz que não temos nada para falar? Ora, Rachel, preciso saber de sua vida,
como foi seu casamento, quanta alegria, quanta dor sentiu. É uma necessidade!
— Você não faz parte disso, Tommy. Sinto muito.
— Está bem... concordo. — Ele respirou fundo. Se ela queria jogar, ele
ditaria as regras. — Não vou me intrometer na sua intimidade. Não me
interessa. Mas há um lado da sua vida que é meu também. Isso você não pode
negar.
Rachel se calou e baixou os olhos. Sim, em algum lugar do passado, Tommy
Lee conquistara definitivamente um pedaço da vida dela. E permanecia vivo,
latente, vibrante até hoje.
— Por onde começamos? — Tommy Lee usou um tom firme.
Ela não sabia a resposta. Havia tantas dúvidas, tantas questões que jamais
tiveram respostas...
Tommy Lee percebeu que a havia deixado totalmente confusa. Talvez fosse
melhor agir com mais delicadeza e cuidado. Rachel certamente estava
sofrendo. Não era fácil para ela tocar em assuntos condenados ao
esquecimento.
— Sua casa é muito bonita — disse Tommy Lee, tratando de quebrar a
tensão da conversa. No momento oportuno, voltaria ao assunto principal. —
Você tem peças muito finas. Certamente Owen ganhava bem no banco.
— É verdade. Papai e ele se davam muito bem.
— Owen era o vice-presidente, não é?
— Você está bem informado.
— Há muito pouca coisa que não sei sobre você, Rachel.
— É difícil manter segredos numa cidade pequena como esta. — Rachel
procurou evitar o tom íntimo do comentário. Mas o rubor em seu rosto a
denunciou. Tinha compreendido muito bem a mensagem.
Instintivamente, Tommy Lee acendeu um cigarro. Precisava fazer alguma
coisa com as mãos.
— Sei que você está morando perto do lago — ela comentou.
— Isso mesmo. Quando construí minha casa, pensaram que eu estava
completamente maluco. Hoje, muitas pessoas me invejam.
— E você gosta disso, não é?
— Da inveja dos outros?
— De ser excêntrico, anticonvencional.
— Não sei... pelo menos faz passar o tempo.
— Passatempo... é assim que chama três casamentos e três divórcios?
Os olhos deles se encontraram por um segundo. Finalmente estavam
penetrando em suas intimidades, seus conflitos e desilusões. Era perigoso,
emocionantemente perigoso.
— Isso a incomoda, Rachel? O fato de eu ter me casado três vezes a
incomoda? É por isso que está tão tensa?
— Estou tensa porque mal acabei de ver meu marido morrer de câncer. Isso
deixaria qualquer um tenso!
Droga! O que ele tinha feito? Rachel ainda não estava preparada para um
confronto. Por Deus, ela estava chorando...
— Sinto muito — ele balbuciou, lutando para não correr para o lado dela e
aconchegá-la nos braços. — Rachel, minha querida, sinto muito...
— Não sou mais sua querida, Tommy Lee. Precisa enfiar isso na sua cabeça
oca. Você não tinha nada o que fazer aqui, principalmente depois de eu ter lhe
pedido para não vir. Não faz nem um mês que meu marido faleceu. Foram
dezenove anos de convivência. Isso significa alguma coisa, não é?
Ela se levantou, indo até uma das janelas. Da manga tirou um lenço e
enxugou as lágrimas. Por um momento, Tommy Lee ficou sem ação,
simplesmente observando o contorno suave das costas dela. Depois caminhou,
até chegar bem perto de sentir-lhe o perfume adocicado.
— Perdoe-me, Rachel. Não vim aqui para aborrecê-la. Seria a última coisa
que faria na vida. Acontece que estou num inferno. Há anos venho vivendo
num verdadeiro inferno e só você pode me ajudar. Não ficarei em paz
enquanto não conversarmos sobre o passado, sobre o que aconteceu entre nós.
— Tocou a nuca dela, num gesto temeroso. — Vire-se para mim. Por favor. Há
muito tempo espero por esse encontro. Você não pode me dar as costas agora.
Entre o medo e a urgência, Rachel se virou. Olhou-o longamente, sem saber
se eram estranhos ou íntimos. Deus! O passado deveria estar esquecido e
nunca estivera tão presente...
— Quando a vi no cemitério, pensei que estava tão bonita quanto
antigamente — ele começou, sem desviar o olhar. — Mas me enganei. Você
está mais linda que nunca, Rachel.
— Tenho quarenta e um anos e isso não embeleza ninguém. Além do mais,
os últimos dois anos e particularmente os seis meses finais me deram várias
rugas e cabelos brancos. Não, Tommy, não é Rachel Hollis que você acha
bonita, mas Rachel Talmadge, e essa não existe mais. É ela que você está
procurando, e não a mim.
— Você está errada. Não estou atrás de uma garotinha que perdi há vinte e
quatro anos. Só quero saber o que aconteceu a ela e por quê.
Novamente seus olhos se encontraram. Desta vez, porém, havia carinho e
ternura. Algo que o tempo não tinha conseguido matar. Por um instante, Tommy
Lee pensou que ia abraçá-la, beijá-la, deixar o sentimento aprisionado por
tantos anos explodir como um rojão. Mas sabia que, se fizesse isso, Rachel o
expulsaria. Era preciso respeitá-la e agir friamente, por mais difícil que fosse.
— Por que me procurou agora, Tommy?
— Não estava disposto a esperar mais um ano, e mais outro. Já perdi muito
tempo...
— Mas Owen...
— Ele se foi. É por isso que estou aqui.
Ela fez menção de se afastar, mas Tommy Lee se colocou mais próximo.
— Rachel, desculpe se estou sendo direto demais. Sinto muito não lhe ter
dado tempo suficiente para chorar a perda de seu marido. Mas também tenho
quarenta e um anos. Procure entender.
Sim, ela entendia perfeitamente bem. Tommy Lee tinha esperado a morte de
Owen e não ficaria nem mais um dia aguardando, mesmo que isso fosse
grosseiro e, de certa forma, um desrespeito. Na realidade, ele não tinha o
direito de estar naquela casa. Nem de deixar o Mercedes branco estacionado
onde qualquer um podia ver. Muito menos o direito de tocar em feridas,
mágoas reprimidas desde que tinham dezessete anos. Mas Tommy Lee não
arredaria pé e ela sabia disso.
— Quero saber o que aconteceu a você, Rachel.
— Por que não pergunta a seus pais? Eles também entraram no jogo, tanto
quanto os meus.
— Eu lhes perguntei há muito tempo, mas jamais tive uma resposta. Depois,
cansei. Nunca mais falei com eles.
— Sei disso. — Num impulso, Rachel tocou o braço dele. Sabia que todos
tinham pago um preço alto demais pelos erros. — Será que já não os fez sofrer
o suficiente? Não se sente vingado?
— Vingança... se ao menos isso me aliviasse os anos de sofrimento. Nunca
perdoarei meus pais. Nunca! — Tommy Lee respirou fundo. — Não sou tão...
tão magnânimo quanto você, Rachel. Você soube desculpar seus pais. Eu não.
Rachel caminhou lentamente até o sofá, mas não se sentou. Também não
estava fugindo de Tommy Lee. Precisava apenas pensar e escolher as palavras
certas. Um gosto amargo surgiu em sua boca. Em um minuto, todas as dores e
mágoas se juntaram de uma vez em seu coração. Tudo aquilo que havia
reprimido durante anos veio à tona.
— Você acha que nunca me sinto desesperada? — ela disse. — Você
imagina que nunca culpei meus pais por tudo? Meu Deus... há momentos em
que penso que vou odiá-los para sempre. Quantas vezes sonhei que matava
meu pai, que o apunhalava pelas costas, covardemente? Não foi isso o que ele
fez a nós? De alguma maneira, Tommy, nossos pais nos mataram. E foram
covardes também. Maldosamente covardes!
A verdade estava dita. Jamais se permitira ir tão longe. A mágoa que sentia
tinha permanecido trancada em seu coração durante anos. Mas agora...
— Você, Rachel? — Tommy Lee estava surpreso, quase espantado. —
Sempre a vejo junto de seu pai. Parecem tão amigos...
— Aparências.
Rachel lançou um longo olhar para aquele homem de óculos e cabelos
grisalhos. Sentiu pena dele e de si mesma. Ambos tinham sido ludibriados,
enganados, roubados...
De repente, ele tomou uma decisão.
— Esta sala está me deixando constrangido, Rachel. Será que não podemos
conversar no jardim ou na cozinha? Qualquer lugar, menos aqui.
Ela concordou. Sabia que o momento da verdade tinha chegado. Afinal,
conversar sobre o passado era algo que um devia ao outro.
III
Ao contrário da cozinha de Tommy Lee, a de Rachel era limpa, organizada,
com tudo em perfeita ordem. No centro havia uma mesa redonda com quatro
cadeiras de vime. Num dos cantos, a geladeira, o fogão, depois a pia de aço,
sob um grande vitrô. Havia muitos armários, forno de microondas, máquina de
lavar pratos. Numa das paredes alguns quadros de natureza-morta davam calor
à decoração. Tommy Lee puxou uma das cadeiras.
— Quer beber alguma coisa? — Rachel perguntou, abrindo a geladeira.
— O mesmo que você.
Talvez pela força do hábito, ela preparou dois club-sodas.
— Limão?
— Não muito, obrigado.
Os copos eram altos e finos. Rachel entregou um a ele e se sentou do outro
lado da mesa, de frente para Tommy Lee.
— É difícil falar alguma coisa depois de tanto tempo — ela começou,
esfregando nervosamente os dedos no copo úmido pelo gelo. — Estivemos tão
distantes...
— Você nunca saiu do meu pensamento, Rachel. Nem mesmo quando era
casado.
Ela deu um gole e ele a imitou. Havia uma tensão no ar, um medo que vinha
de seus corpos aflitos. A simples proximidade entre eles era constrangedora.
As palavras pareciam morrer em suas bocas, ainda que, houvesse muito a ser
dito.
— Então... — disse ele, quebrando o silêncio. — Para onde você foi?
— Eles me mandaram para uma escola particular em Michigan.
— Michigan?
— Isso mesmo.
— Eles pensaram em tudo, não é? — Um sorriso irônico cravou-se no rosto
de Tommy Lee. — Eu jamais a encontraria em Michigan.
— Foi uma decisão cômoda para nossos pais. Com certeza, seria fácil nos
manter afastados. Por outro lado, não teriam que dar maiores explicações aos
amigos.
— Claro... você precisava ir para uma escola famosa, a fim de terminar o
colegial e se preparar para a universidade. Não haveria perguntas, suposições,
malícias e problemas...
— Exato. — Rachel soltou um longo suspiro. — Depois, com a conta que
papai tinha no banco, ninguém suspeitaria. Era um luxo pelo qual minha
família podia pagar.
— Michigan... — ele ruminou. — Tantas vezes eu quis saber...
Rachel prendeu a respiração. Evitou olhar para ele, pois sabia exatamente
qual seria a próxima pergunta.
— Foi lá que teve o bebê?
— Foi. — A voz dela era fraca. Por muito anos imaginara como seria esse
momento, mas jamais pensou que tanta emoção lhe invadisse o corpo. Medo,
remorso e dor se mesclaram subitamente. Também o ódio brotou violento.
Ódio de um dia ter sido levada por idéias que não eram suas. Ódio por não ter
agido com coragem e determinação. Ódio por se sentir absolutamente
impotente para corrigir os erros.
— O que era? — ele perguntou.
— Uma menina.
Os lábios de Tommy Lee se entreabriram, como se fossem deixar escapar
um doloroso grito. Tirou os óculos e fechou os olhos. Os músculos de seu
rosto se retorceram assim como o coração. Levou as mãos à cabeça, os dedos
penetrando nos cabelos.
Depois, atendendo a uma necessidade premente de seu ser desceu a mão até
encontrar a de Rachel. Segurou com força os dedos magros e finos. Ela
correspondeu, num misto de carinho e angústia.
— Sinto muito — ela sussurrou, quase sem forças. — Eles me prometeram
que contariam a você.
Ele continuou em silêncio., acariciando aquela mão delicada e feminina,
que ainda exibia a aliança dourada. Certamente não era assim que tinha
imaginado tocar Rachel, mas naquele instante o instinto sexual estava morto.
Só havia pesar e dor.
— Eles me contaram — Tommy balbuciou. — Meu pai me chamou em seu
escritório e disse que você tinha tido uma menina. Foi num dia de primavera.
Que nunca esquecerei. Mas, de qualquer forma, queria ouvir isso de sua boca.
Não sei por quê.
— Ela nasceu no dia dezenove de abril.
Olharam-se longamente. Se estivessem casados, aquele seria um dia de
comemoração. O aniversário da filha.
— Por que nunca me escreveu? — Ele se endireitou na cadeira, mas por
dentro continuava partido em mil pedaços.
— Escrevi muitas vezes. Nem sei quantas. Algumas cartas enviei, outras,
mais desesperadas, joguei fora. Mas sabia que não deixariam você recebê-las.
Também sabia que você nunca me encontraria.
— Droga! Eles eram tão poderosos! Os donos do mundo. Os nossos donos!
— Bem nós os víamos dessa forma. Eles conseguiram nos convencer que a
adoção era o único caminho aceitável para a criança. E nós aceitamos, Tommy
Lee. Confiávamos em nossos pais.
— Até hoje me pergunto por que não nos revoltamos, por que não fugimos...
— Éramos apenas crianças assustadas. Tínhamos sido criados para estudar,
trabalhar e bem mais tarde casar. Só então viriam os filhos. Estávamos
apavorados, lembra-se? Foi mais fácil confiar na experiência e sabedoria
deles...
— Sabedoria... foi um golpe sujo. Eles destruíram nossas vidas! Mandaram
você para Michigan...
— E nunca me senti tão só como lá.
— Eu também pensei que fosse morrer de tanta solidão e desgosto. Durante
noites a fio, caminhava imaginando que a encontraria numa das ruas da cidade.
Procurava em todos os cantos, em todos os rostos. Até o dia em que me
convenci de que a tinham tirado de mim definitivamente.
Ainda estavam de mãos dadas. Era uma espécie de apoio.
— Eles me mantiveram lá até terminar o colegial — Rachel disse. —
Depois fui para a Universidade do Alabama.
— Exatamente quando eu estava em Auburn. Era impossível nos
encontrarmos. Aqueles malditos traçaram muito bem cada etapa do plano.
Houve um longo silêncio, cheio de dor e pesar. Ambos mantinham as
cabeças baixas, como se quisessem digerir tudo aquilo que ficara entalado na
garganta por muitos anos.
— E quanto à família que adotou o bebê? Você sabe alguma coisa a
respeito deles? — Tommy Lee balbuciou.
A resposta demorou. Por um instante, Rachel pensou que não fosse capaz de
suportar o assunto. De que adiantava falar sobre algo que jamais poderia ser
mudado? Só serviria para reavivar velhas feridas. Mas ele merecia uma
explicação. Tanto quanto ela, sofria tremendamente. Era o pai, afinal de
contas.
— Um casal da Igreja Batista a adotou — disse por fim. — Ambos
formados em universidade. Já tinham uma filha adotiva, três anos mais velha.
Moravam em Flint.
— É tudo o que sabe?
— Naquela época, não me diziam muitas coisas.
— Nem mesmo o nome da menina?
Rachel baixou os olhos. Se não se controlasse, cairia num pranto
convulsivo, desesperado.
— Você não sabe que nome deram à nossa filha? — ele insistiu.
— Que importância tem isso agora? — ela murmurou. Não queria falar a
respeito. As decisões tomadas por uma garota de dezessete anos,
completamente confusa, perdida e assustada, não deviam ser lembradas. Não
agora.
— Por favor, Rachel, eu preciso saber o que você sabe. Não estou pedindo
muito, não é?
— Eles deixaram que eu escolhesse o nome. — A voz dela era frágil,
indecisa. — Chamei-a de Beth.
— Meu Deus... — Tommy Lee perdeu o controle. Escondeu o rosto entre as
mãos. O coração parecia sangrar dentro do peito. — Rachel, por favor,
preciso beber algo mais forte que club-soda...
Ela se levantou. Normalmente não servia bebidas alcoólicas, mas Owen às
vezes ganhava uma ou outra garrafa de uísque dos clientes, as quais nunca
eram abertas. Foi até a despensa em silêncio. Seus passos eram inseguros e
trêmulos. A agonia estava presente em cada gesto.
— Uísque está bem? — perguntou ao voltar.
— Qualquer coisa...
— Gelo?
— Duas pedras.
Ela preparou a bebida, sem encará-lo.
— Você desaprova a minha necessidade de álcool, não é? — Tommy Lee
percebeu o modo frio com que ela derramava o líquido sobre o gelo.
— Não tenho nada a ver com sua vida...
— Mesmo assim, desaprova. Mas é a única maneira de enfrentar esse
momento, Rachel. O choque é muito duro. — Fez uma pausa. — Por que Beth?
Por que esse nome?
Era uma pergunta tola. Os dois se lembravam nitidamente das noites que
haviam partilhado dentro do carro esporte de Tommy Lee. Depois de
aplacarem a fúria do desejo, os corpos nus abraçavam-se e faziam planos para
o futuro. Naquele carro, parado sob o céu estrelado, o amor tomava forma e os
unia. Muitas vezes imaginavam os nomes de seus filhos. Beth. A primeira
menina se chamaria Beth.
— Eu... nós... — Rachel mal conseguia falar. — Eu tinha apenas dezessete
anos e era completamente apaixonada por você. Não sei por que, mas chamar
a nossa menina de Beth me pareceu importante na época. Talvez fosse uma
maneira de me sentir perto dela, mesmo sabendo que jamais a veria de novo.
Ele deu um gole, deixando a bebida queimar a boca toda antes de engolir.
— Também tenho uma filha chamada Beth — disse.
— Eu sei.
— Sabe?
— Sim, o nascimento de todos os seus filhos foi publicado na coluna social
do Franklin County Times. Você tem um rapaz de dezenove anos, chamado
Michael; outro de dezessete, Doyle e... uma menina... de quatorze... chamada
Beth. — Ela parou por um instante. — Por que lhe deu esse nome?
— Você quer a verdade ou uma mentira?
— Eu não teria perguntado se não quisesse a verdade.
Tommy Lee respirou fundo. Procurou os olhos de Rachel. E ela
correspondeu.
— Eu tinha vinte e sete anos — ele começou, a voz firme — e estava
completamente apaixonado por você.
— Como pode dizer uma coisa dessas? — Ela se levantou, chocada. —
Você era casado, Tommy!
— Por isso lhe perguntei se preferia ouvir uma mentira.
— Meu Deus... você fala como se não tivesse amado sua mulher, digo,
nenhuma das três.
— Houve momentos em que pensei gostar delas. Acho que sim... Não sei.
Como diabos posso saber?
— Tommy, você concebeu filhos com duas delas! Isso não é brincadeira!
Outras vidas foram envolvidas. Como pode dizer que nem ao menos sabia se
as amava ou não?
— Entenda, Rachel, eu era apenas um... um... garotão irresponsável quando
me casei com Rosamond. Tinha acabado de me formar e ela parecia uma
mulher perfeita para quem pretendia sossegar na vida. Boa dona-de-casa,
acomodada, gentil. O que mais eu podia querer? Amor? Ora, já tinha perdido a
pessoa que amava. Sabia que não encontraria outra. Foi assim que me casei
pela primeira vez. Os filhos vieram naturalmente.
— Quer dizer que não queria os meninos?
— Sei que você está abismada com tudo isso, mas a verdade é que nunca
realmente desejei as crianças. Quando nasceram, me senti contente, mas nada
além disso. Claro, procurei ser bom pai, atencioso, dedicado. Mas hoje
admito que falhei. Aliás, venho falhando a vida inteira. Carrego milhões de
culpas, das quais nunca me perdoarei. O casamento foi um desastre completo.
É simplesmente impossível conviver intimamente com alguém que não se ama.
Uma pena. Todos sofreram, principalmente os dois garotos.
— Imagino...
— Hoje são meninos problemáticos, que fogem das responsabilidades, não
querem estudar nem trabalhar... Sei que a culpa é minha... e de Rosamond
também. Talvez, se tivéssemos nos amado de verdade, soubéssemos ser
melhores pais.
— Eles moram com a mãe?
— Sim, em Mobile.
— Costuma vê-los com freqüência?
— Não... Quando estamos na mesma sala, o ambiente pesa. É péssimo.
— Os meninos ao menos escrevem para você?
— Só quando precisam de dinheiro.
O coração de Rachel se encheu de compaixão. Tommy Lee parecia
solitário. O coitado tinha perdido dois dos filhos de uma maneira talvez pior
do que ela tinha perdido Beth. Era terrível. Certamente o destino havia sido
mais cruel com ele.
— E quanto à sua filha... — Rachel murmurou.
— Beth é uma boa menina. Gosta de mim. Mas infelizmente não temos
muito contato. Ela também mora com a mãe, com quem não se dá muito bem.
Às vezes penso em trazê-la para perto de mim. Mas tenho medo de destruir o
amor que nos une. Definitivamente não sou bom pai. Não sei lidar com a
paternidade...
— Sua filha... Beth — era difícil para Rachel pronunciar aquele nome — é
do segundo casamento, não é?
— Isso mesmo. — Ele fez uma pausa. — Sabe por que me casei com
Nancy? Ela me fazia lembrar você. A cor do cabelo era a mesma, e quando ria
baixava a cabeça do jeito que você faz. Foi outro engano. Minha lista de erros
é enorme, Rachel. O fato é que antes de um ano de casado percebi que Nancy
tinha muito pouco em comum com você. Era fraca, supérflua, preocupada
apenas com besteiras. Mesmo assim, agüentei o casamento por alguns anos.
Talvez por medo de me sentir só outra vez.
Rachel sorriu. Embora desaprovasse completamente o comportamento dele,
ainda assim se sentia lisonjeada. Sabia que em cada palavra havia um elogio
para ela.
— E quanto à sua terceira mulher, Sue Ann? — ela quis saber.
— Parece piada, não é mesmo? A cidade inteira comenta até hoje meu
casamento com Sue Ann Higgenbotham. Acho que foi um tipo de "menopausa"
masculina. A idade do lobo, da reafirmação, como disseram alguns...
Imediatamente Rachel se lembrou daquela garota vulgar, com cabelos
cacheados caindo pelas costas e rosto. Era quinze anos mais jovem que
Tommy Lee e famosa na cidade toda por seu liberalismo, principalmente com
os homens. Lembrou-se também da raiva que sentira ao ler a notícia no jornal.
— Você tinha que escolher alguém tão mais jovem? — O tom de Rachel foi
irritadiço. -— E, ainda por cima, aquele tipo de mulher?
— Ficou aborrecida?
— Claro! Não entendia como um homem podia se deixar agarrar pelas
unhas daquela... daquela... mulherzinha. O pior é que as pessoas não
esqueceram que nós dois crescemos juntos. Aí me encheram de perguntas
embaraçosas. Ninguém compreendia por que você daria um lar àquela mulher,
se tudo o que precisava era lhe pagar um bom jantar. Você sabe, ela costumava
recompensar muito bem os homens com quem saía. O que queria provar? Era
apenas mais uma maneira de chocar a sociedade?
— Não sei... acho que simplesmente queria encontrar nela a juventude que
eu tinha perdido.
— Mas você era tão novo... Tinha trinta e cinco, não é?
— Hum... você realmente sabe todos os detalhes da minha vida... — Um
pouco de malícia e contentamento se misturaram nos olhos dele.
— Bem... eu... é apenas uma questão de contas. Sempre fui ótima aluna de
matemática, lembra-se?
— De qualquer maneira, eu não me sentia jovem quando casei com Sue
Ann. Para falar a verdade, já era velho e sem esperanças quando me formei na
universidade e me casei pela primeira vez. Minha juventude e alegria de viver
se foram, você sabe quando.
— Isso não importa agora. —- Ela se encabulou. — Mas ainda acho que
Sue Ann foi uma forma que você arranjou de agredir seus pais.
— Como podia agredi-los se naquele tempo já não falava com eles?
— As ações são mais fortes que as palavras. Você escolheu a pior garota da
cidade e, na minha opinião, foi para mostrar a seus pais como era infeliz,
como seria melhor se eu e você...
— Se tivéssemos ficado juntos, com nossa filha — ele completou.
— Isso mesmo.
— Talvez você tenha razão... depois do que nos aconteceu, sempre tive uma
estranha necessidade de humilhar meus pais, de provar que estavam totalmente
errados.
— Eu entendo. Também me senti assim algumas vezes. Mas não podemos
nos esquecer de que eles também são humanos, cheios de falhas e defeitos. Por
mais difícil que seja, hoje eu acredito que tudo o que fizeram foi pensando em
nosso bem.
— Mas o erro foi grande demais, Rachel. Eles nos roubaram a
possibilidade de sermos felizes. Nunca consegui encontrar a paz, a alegria,
nada!
Rachel não podia dizer o mesmo. Embora nunca tivesse se apaixonado por
Owen, havia sido feliz a seu lado. Não sentia amor por ele, mas uma amizade
tão sólida e segura que tornava o relacionamento suave e agradável.
— Porque você nunca teve filhos com Owen? — Tommy Lee leu o
pensamento dela.
— Não podíamos. — Era outro assunto difícil para ela. — Alguns casais
sofrem de uma espécie de incompatibilidade física. Era nosso caso.
Tommy Lee ficou comovido com mais aquela ironia do destino. Rachel
havia engravidado no passado e não lhe permitiram ficar com o filho. Depois,
quando teve condições de dar um lar excelente a quantas crianças quisesse,
não engravidou mais.
— Você não fez qualquer tratamento? — ele perguntou.
— Diversos. Fui a mais de dez especialistas. Cheguei até a consultar o
maior nome no assunto, em Chicago. Tomei remédios, e fiz tantos exames que
nem gosto de lembrar. Mas os filhos, que tanto desejei, nunca vieram...
— É uma história triste... — ele falou depois de um breve silêncio.
— Sim, mas me acostumei a conviver com ela.
Tommy Lee encolheu os ombros. A única criança que Rachel havia dado à
luz estava em algum lugar de Flint, Michigan. Era terrível...
— Oh! Rachel, eu me sinto culpado. Primeiro, porque você deveria ter tido
esse problema comigo e não com seu marido. Depois, porque tive três filhos,
os quais vi crescer e, na verdade, nunca fui. pai deles. Você teria sido uma
mãe maravilhosa, compreensiva e terna.
— Talvez... mas é tarde demais para pensar nisso, não é?
Num impulso, ela se levantou, recolhendo os copos e colocando-os em
cima da pia. A conversa tinha terminado, ainda que Tommy Lee tivesse mais
mil perguntas a fazer. Para ele seria muito difícil voltar a evitá-la agora,
depois de uma conversa tão franca. Sentia-se novamente tão perto, tão íntimo
dela, com medo de perdê-la e de seguir a vida sozinho...
— Estou muito cansada, Tommy — ela disse. — Acho que já é hora de...
— Você não precisa dizer mais nada. Já estou de saída. Obrigado pelo
drinque. Obrigado por tudo, Rachel.
Caminharam lado a lado até a porta. As palavras não eram mais
necessárias. A comunicação se limitava a troca de olhares tímidos, mas
profundos.
— Gostaria de vê-la novamente — ele disse.
— Não... é melhor não...
— Por quê?
— É muito doloroso para mim.
— Hoje foi difícil, eu concordo. Mas podemos dar um jeito nisso, não é?
— Sinto muito...
— Bem, só quero que saiba que esta noite foi muito importante para mim.
Pela primeira vez, em muitos anos, me senti um ser humano sensível.
— Também achei bom termos conversado...
Ela abriu a porta, mas Tommy não se moveu. Continuou estático, admirando
a feminilidade dela, que durante infindáveis noites lhe dominara os sonhos.
Mais uma vez desceu o olhar pelo corpo magro e bem delineado. Como
desejava aquela mulher!
— Talvez possamos jantar juntos uma noite dessas — voltou a insistir.
— Desculpe, mas a resposta é não. — Rachel bem sabia que não era
apenas um jantar puro e simples que Tommy Lee queria. Ela mesma tinha
certeza de que. se saísse com ele, estaria inevitavelmente envolvida.
— Está bem. Não vou forçá-la. Boa noite, Rachel.
Tommy Lee deu um passo à frente, mas não em direção à porta. Chegou bem
perto daquela mulher perfumada e sedutora. Sua mão, que até ali se controlara,
subiu até o rosto de Rachel, acariciando-lhe levemente a pele macia.
Ela estremeceu, mas não recuou. Sentir o toque dos dedos de Tommy Lee
era absolutamente delicioso. Mas, quando ele se aproximou mais, o hálito de
uísque a fez voltar à realidade. Tommy Lee não era mais o mesmo. E as
mudanças jamais poderiam ser esquecidas.
— Por favor... não... — Embora a voz fosse débil, ela foi categórica e se
afastou.
Tommy Lee não se virou para trás ao ir embora.
IV
Durante os dias que se seguiram, Rachel tentou por todos os meios tirar
Tommy Lee do pensamento. Mas, nas horas mais estranhas, ele lhe vinha à
lembrança com uma nitidez impressionante. Então, procurava se concentrar em
algum livro ou mesmo na arrumação da casa.
Algumas vezes se distraía com as visitas inesperadas do pai ou de
Marshall, que já tinha as filhas crescidas e casadas e podia aparecer de vez
em quando. Mas Tommy Lee não lhe saía da cabeça.
Callie Mae a ajudava três vezes por semana, deixando sua geladeira
sempre cheia de doces e tortas. Porém, o apetite de Rachel continuava fraco, e
ela comia apenas o suficiente para sobreviver.
— Desse jeito, você vai ficar um palito — a negra dizia, em tom maternal e
carinhoso.
— E você quer que eu fique gorda como uma porca, não é? — Rachel
zombava, mas no fundo sabia que andava perdendo peso demais.
Dia a dia ele encontrava forças para enfrentar a nova realidade e expulsar
de uma vez por todas o medo da solidão. Resolveu redecorar o quarto de
casal. Assim, não se lembraria da doença de Owen cada vez que abrisse a
porta. Era uma maneira de reagir.
Todas as sextas-feiras, ela, o pai e Marshall jantavam fora, num dos
melhores clubes de Florence. Apesar de Rachel se sentir grata pela atenção
deles, havia momentos em que ficava cansada e sem disposição para agüentar
a mesma conversa. Marshall era bem parecido com Owen — racional,
sensato, equilibrado. Mas, sem dúvida, um tanto enfadonho.
Durante os jantares, ele sempre falava de seu passatempo predileto.
Jardinagem. A princípio, Rachel prestava atenção, mas no fim da noite mal
escutava os problemas das orquídeas ou a maneira correta de aguar as
begônias. O pai também era pessoa de um assunto só. Dinheiro, investimentos,
letras de câmbio...
Isso fazia com que Rachel sentisse ainda mais a falta de crianças. Esses
dias seriam bastante diferentes se um ou dois adolescentes barulhentos
enchessem sua casa. Gostaria de encontrar raquetes de tênis espalhadas no
chão, manchas de pés sujos pelo tapete... Sim, seria bem diferente...
Felizmente, passava as manhãs e tardes na loja. Estava orgulhosa do seu
trabalho. A contabilidade revelava os excelentes resultados e o mérito disso
era quase que integralmente seu.
A Panache tinha um clima francês. A primeira sala, onde os vestidos eram
exibidos em vitrines cuidadosamente arrumadas, era toda carpetada num suave
tom de verde. Do lado esquerdo ficavam as prateleiras de espelho e vidro,
com as bijuterias mais finas da cidade. No fundo, a escrivaninha, de madeira
laqueada da mesma cor do tapete, sobre a qual nunca faltava um vaso de
flores.
A segunda sala servia para as clientes experimentarem as roupas. Era
espaçosa e toda forrada de espelhos, de forma a permitir uma visão total do
vestido. Havia apenas uma cadeira irlandesa num dos cantos.
A vida profissional de Rachel obedecia a uma rotina. Acordava às sete,
abria a loja às nove e ia ao correio às onze. Raramente saía para almoçar.
Contentava-se com um iogurte ou uma fruta que devorava na própria loja,
enquanto lia o jornal.
As tardes eram mais variadas. Fazia contatos com as confecções, cuidava
da contabilidade ou simplesmente ajudava as clientes. E, religiosamente, às
quinze para as quatro, ia ao banco do pai depositar a quantia ganha no dia.
Voltava apenas para fechar a butique junto com Verda.
Em casa, aos poucos, as coisas iam mudando. Finalmente o quarto ficou
pronto. Mandara forrar as paredes com chamalote de seda rosa-rei, que
combinava perfeitamente com a nova colcha, um tom mais claro. Perto da
janela, fez uma pequena prateleira, onde cultivava plantas, e que dava um ar
primaveril ao ambiente. Pendurou novos quadros nas paredes, comprados na
galeria mais fina da cidade. E por fim embutiu a televisão numa das partes do
armário. Embora a decoração fosse um tanto jovial, sentia-se bem ali. Estava
satisfeita e, acima de tudo, livre das amargas lembranças dos últimos dias de
Owen.
Numa tarde de abril, Verda e Rachel estavam junto à escrivaninha da loja,
discutindo a viagem a Dálias, onde aconteceria uma grande feira de modas.
Quando o telefone tocou, Verda atendeu, como sempre fazia. Mas logo depois
arregalou os olhos e fez mil gestos para a outra, que ficou sem entender.
— É para você — Verda acabou dizendo, passando o fone para Rachel.
Numa voz baixa, temerosa, acrescentou: — É ele!
— Quem?
— Aquele homem que lhe telefonou um monte de vezes enquanto estava em
St. Thomas. É ele! Tenho certeza! Aquele que nunca disse o nome...
O estômago de Rachel se contorceu. Sabia muito bem quem estava do outro
lado da linha, mas fez o possível para não deixar transparecer o nervosismo.
— Alô!
— Rachel?
— Sim...
— Tenho pensado muito em você...
Droga! O que ela diria agora? Verda estava ali perto.
— Deseja alguma coisa? — ela falou.
— Sim. Quero que venha à minha casa. As comportas do lado foram
abertas e o nível da água está debaixo da minha janela. Você não gostaria de
ver?
— Desculpe, mas não tenho tempo.
— Como sabe, se ainda não marquei um dia?
— Quando, então? — Rachel lançou um olhar para Verda, cujos ouvidos
estavam indiscretamente aguçados.
— Sexta-feira à noite.
— Não posso. Já tenho compromisso.
Era absurdo trocar um programa com Tommy Lee por um jantar com o pai e
Marshall!
— Não acredito em você. — Um riso irônico veio do outro lado da linha.
— Mas não tem importância. Tentarei outro dia.
— Não será necessário.
— Farei isso, queira você ou não. Até logo, Rachel.
Verda seguiu todos os gestos de Rachel até que desligasse. Depois, com
evidente curiosidade, iniciou o interrogatório.
— Quem era ele, afinal? O que queria? Por que não disse o nome antes?
— Calma, Verda! Não era ninguém importante. Apenas um amigo,
oferecendo os pêsames pela morte de Owen.
— Pêsames? Hum... isso me pareceu mais um convite, alguém querendo
marcar um encontro.
— Não seja boba. — Rachel se esforçou para não corar. — Você está
deixando a imaginação ir longe demais. Não tenho idade para ficar marcando
encontros secretos, nem para ser perseguida por um homem. Além disso, sou
viúva há apenas dois meses. Não tenho o menor interesse em romances e
duvido que desperte algum desejo nos homens.
— Agora quem está bancando a boba é você. Afinal, ainda é uma mulher
muito atraente e aposto como esse homem foi tremendamente insistente.
— Esqueça o assunto, Verda. Já disse que não é nada sério. — Nervosa,
Rachel abriu um dos catálogos. — Vou marcar minha passagem. O que você
acha deste hotel?
Felizmente o telefonema foi esquecido.
Mas Tommy Lee não estava disposto a esquecer coisa alguma. No dia
seguinte, quando Rachel caminhava para o banco, a fim de fazer os depósitos
de praxe, ficou parado diante de seu escritório, seguindo-a com o olhar.
Durante anos ela havia feito o mesmo percurso e raramente se viam. Quando,
por uma terrível coincidência, ele saía do escritório no momento em que ela
passava por ali, fingia não vê-la. Agora, estava lá, deliberadamente esperando
por ela.
Rachel o avistou e pensou que fosse tropeçar de tão trêmulas que ficaram
suas pernas. Apressou o passo, mas, com o canto dos olhos, percebeu um
sorriso irônico nos lábios de Tommy Lee. Também notou que ele a devorava
com os olhos, como se pudesse enxergar através do vestido de seda azul.
Entrou no banco atordoada. Ele tinha o incrível poder de tirá-la fora do sério!
Durante três dias o Mercedes branco passou em frente da Panache a menos
de dez quilômetros por hora Arrastava-se diante da vitrine... Se ao menos
fosse um carro comum como todos os outros! Desse jeito, não levaria muito
tempo até que a cidade inteira começasse a comentar.
Tommy Lee era ainda uma criança, usando táticas infantis... Mas, de alguma
forma, aquilo cativava Rachel, e diversas vezes, no final da tarde, ela se
surpreendia observando a rua através da porta de vidro, à espera do carro
dele. Também ela tinha atitudes adolescentes...
Na sexta-feira, Tommy Lee a esperou novamente. Desta vez bem em frente
ao banco. Conversava com dois homens, ambos formalmente vestidos. Parecia
estar lá por acaso, mas tudo havia sido meticulosamente planejado.
— Como vai, sra. Hollis? — Ao vê-la ele abriu um sorriso e acenou.
— Bem, e você, Tommy Lee? — Ela o olhou espantada. Logo depois os
dois homens pediram licença e foram embora. — O que você está tentando
fazer, pondo-se assim no meio do meu caminho?
— A calçada é pública, não é?
— Tommy, não estou aqui para brincadeiras — ela sussurrou, com medo de
ser ouvida. — Além disso, é ridículo você ficar me chamando de sra. Hollis
quando todo mundo sabe que crescemos juntos.
— Pensei que Rachel seria um tratamento íntimo demais...
— Pare com isso! O que diabos deu em você? — Ela já ia se virando, mas
voltou atrás. — Outra coisa. Pare de passar em frente de minha loja como se
estivesse seguindo um cortejo!
Ele riu, o que a deixou ainda mais irritada.
— Estou avisando, Tommy Lee Gentry, pare de brincar comigo!
— Que tal discutirmos isso no fim de semana? — Ele não se alterou,
continuava rindo.
— De jeito nenhum!
— Por quê?
— Minha agenda está lotada.
— Não acredito em uma palavra sequer, Rachel. Diga rápido, com quem
vai sair esta noite?
— Com meu pai. — Desta vez ela se sentiu vitoriosa. — Vamos jantar em
Florence.
— É verdade, então?
— Claro. E não posso desmarcar com ele, dizendo que resolvi sair com
você.
— Amanhã... podemos sair amanhã.
— Tenho que trabalhar na butique. Dei o dia de folga para Verda.
— Então domingo.
Parecia uma idéia esplêndida, mas a resposta de Rachel tinha que ser a
mesma.
— Não, Tommy. Vou à igreja no domingo.
— À tarde?
— Não, o culto é de manhã.
— Então, estamos combinados. Sairemos juntos no domingo à tarde.
— Não vou sair com você, Tommy. Não quero e não posso sair com você.
Será que preciso ser mais clara que isso? — As palavras saíram numa
explosão. Era o império do medo. Embora se sentisse loucamente atraída por
ele, tinha receio do homem no qual ele havia se transformado. A bebida, a
maneira irresponsável como levava a vida a assustavam. Era preciso se
convencer de que Tommy Lee não era mais o mesmo. Aquele a quem amava
desaparecera há muito tempo.
Porém, naquela noite, durante o jantar, sentiu falta dele, e até mesmo um
certo arrependimento por ter recusado o convite. Estava mesmo ficando
maluca! Nunca a conversa de Marshall e do pai lhe pareceu tão cansativa e
sem interesse. Tudo teria sido muito mais fácil se Tommy Lee não a tivesse
procurado...
— Você está melancólica hoje — Marshall comentou ao levá-la para casa.
— Tive um dia muito cansativo!
— Entendo... você está se dedicando ao trabalho de corpo e alma para
aliviar a dor da morte de Owen.
Não, Marshall não entendia nada! Na verdade, ela tinha aceitado a perda do
marido com inabalável naturalidade. Claro que sentia saudades da companhia
dele, da segurança, do apoio que ele lhe dava, mas dizer que estava sofrendo
seria pura hipocrisia. O pobre Marshall não podia imaginar que a confusão
emocional em que se encontrava era devido à luta desesperada que travava
para se manter afastada de Tommy Lee. Isso sim a deixava melancólica e
aflita.
— Você tem reagido muito bem — ele continuou. — Faz bem preencher o
tempo com trabalho. Estou orgulhoso de sua atitude diante da vida. — Um tom
diferente marcou a voz de Marshall. Talvez carinhoso demais. Entre
desajeitado e temeroso, ele a beijou no rosto. O beijo também foi diferente.
Não era apenas o gesto amigo de sempre, mas ligeiramente sensual.
Rachel instintivamente recuou. Detestava pensar que Marshall se sentia
atraído por ela. Ficaria numa situação profundamente incômoda se tivesse que
recusá-lo. Era melhor não deixar que o relacionamento chegasse nesse ponto.
Ele era apenas um bom amigo. Nada além disso.
Durante alguns dias, Rachel não viu mais Tommy Lee. Talvez ele tivesse
finalmente desistido de importuná-la. Quem sabe, já conquistara outra mulher.
Droga! Estava com ciúme. Não conseguia pensar nele com outra! Era
revoltante. Ao mesmo tempo que desejava se ver livre dele, queria-o perto,
sob seu domínio. Era loucura...
Mas, na quarta-feira, Tommy Lee reapareceu.

A loja estava para fechar. Rachel tinha acabado de voltar do banco e


arrumava uns papéis na escrivaninha. Verda passava o aspirador, como era a
rotina de todo fim de tarde.
Quando a porta se abriu, Rachei congelou.
Tommy Lee estava irresistivelmente sensual. Arrebatador. Usava terno
escuro, de uma fazenda rústica, que lhe caía excepcionalmente bem. Sobre a
camisa branca, uma gravata bordo. Os cabelos estavam meio despenteados, o
que lhe dava um ar infantil e displicente. Entrou e sorriu formalmente,
cumprimentando as duas mulheres com indiferença.
— Pois não. Deseja alguma coisa? — Verda, sempre eficiente, foi logo
perguntando.
— Brincos — ele respondeu secamente.
— Os que temos estão expostos naquelas prateleiras. Se se interessar por
algum, avise-me.
Rachel teve que se controlar para não deixar escapar um grito de raiva.
Aquele maldito tinha vindo à sua loja para comprar um presente para outra
mulher. Era um desaforo!
Sem prestar a menor atenção nela, Tommy Lee analisou cada um dos
brincos. Parecia uma escolha difícil, cuidadosa, talvez até carinhosa Rachei
estava a ponto de entrar em pânico.
— Quero estes aqui — ele disse por fim, virando-se para Verda.
— Os vermelhos?
— Isso mesmo.
— São para orelhas furadas. Ela usa esse tipo?
— Bem... não sei. Na verdade, nunca reparei se tinha as orelhas furadas ou
não. Senão servirem, posso trocar?
— Sinto muito, mas a lei estadual não permite trocas nesse caso.
— Não tem importância. Custa apenas nove dólares. Se não servir, jogo
fora.
Rachel ficou tensa com aquela conversa. Tommy Lee não tinha o direito de
comprar presentinhos para suas vagabundas naquela loja, sob seus olhos! Não
era justo! E por que nem olhara para ela? Por que não a cumprimentara de uma
forma especial, mais atenciosa? E ela, por que estava tão irritada? Não era
isso o que queria? Distância de Tommy Lee?
— Quer que embrulhe para presente, suponho? — ela disse, adiantando-se
a Verda. Não se mostraria abalada pelo desprezo e petulância dele. Agiria
como profissional, atendendo a um cliente comum. Era bem isso o que Tommy
Lee merecia. Se ele pensava que ficaria embaraçada, estava muito enganado!
— Sim — disse ele, no mesmo tom seco. — Um embrulho bem bonito. É
para alguém especial.
Rachel teve vontade de atirar a caixa na cabeça dele. Mas, com grande
esforço, sorriu. Não se daria por vencida. Embrulhou pacientemente, colocou
a fita verde e o adesivo da loja.
— Aqui está. São nove dólares.
— Aceita cartão de crédito? — ele perguntou, irreverentemente.
— Qualquer um deles. — Foi até a registradora e martelou, as teclas.
Descontou todo o ódio nas coitadas. Depois entregou o formulário para que
ele assinasse. Reparou na letra máscula e regular, nos dedos grossos e fortes,
na mão musculosa.
Nesse momento Verda terminou a limpeza e saiu para levar o aspirador
para o depósito, que ficava nos fundos da loja.
— A loja abre amanhã? — Tommy Lee perguntou com indiferença.
— Não... — Imediatamente Rachel percebeu que tinha cometido um erro
tático grave. — Digo, sim.
— Não quer esquiar no lago comigo amanhã? — Um novo Tommy Lee
surgiu de repente. Intenso, provocante e quente. Subitamente a frieza e
irreverência desapareceram. Agora só havia sensualidade e desejo.
— Não... — ela murmurou, surpreendida pela inesperada mudança de
comportamento.
— Venha à minha casa, por favor... No domingo...
— Já disse que não...
— Escute, Beth estará lá. Não ficaremos sozinhos. Você não correrá
nenhum risco. Prometo ser um perfeito cavalheiro.
— Tommy... — Mas ela não teve tempo de terminar. Verda estava de volta,
com os ouvidos apurados de sempre. Assim, se limitou a entregar o pacote nas
mãos dele. — Tenha um bom fim de semana — disse, sabendo que ele
compreenderia a mensagem.
— Obrigado. O mesmo para você. — Tommy Lee se virou para a outra: —
Até logo e obrigado.
— Não há de quê. — Verda abriu um sorriso largo. — Volte sempre.
Assim que ele saiu, Rachel caiu sentada na cadeira. Respirou fundo,
tentando recuperar as forças. Ainda estava furiosa.
— Sra. Hollis? — Verda tinha um ar desconfiado. — O que está
acontecendo?
— Como assim?
— Este homem é Tommy Lee Gentry, não é?
— Sim, mas o que há de errado nisso?
— Bem, a voz, o jeito de falar são os mesmos. — Verda ficou pensativa. —
Tenho certeza. É o homem que lhe telefonou mil vezes. É ele, não é?
— Pelo amor de Deus, Verda, você está imaginando coisas. — Rachel fez
um esforço sobre-humano para não demonstrar insegurança. — O que um
homem como Tommy Lee Gentry haveria de querer comigo?
— Ora, o que ele quer com todas as mulheres!
— Eu não sabia que você sabia algo sobre ele...
— Quem nessa cidade não sabe? — Verda soltou uma gargalhada. —
Afinal, já andou com mais da metade das mulheres daqui...
Rachel tentou sorrir, mas os lábios não se moveram. Detestava escutar
aquelas histórias sobre ele. Sentia ciúme, mas não era só isso. Não gostava da
má fama que ele tinha criado.
— Você tem certeza de que não era ele? — Verda insistiu.
— Esqueça isso! Além do mais, já é tarde. Quer passar a noite inteira aqui?
— Rachel brincou, procurando mostrar-se desatenta.
— É engraçado... — Verda pegou a bolsa resmungando.
— Eu podia jurar que era ele... A voz é tão parecida... Rachel não saiu com
ela. Precisava pensar um pouco antes de voltar para casa. Era evidente que já
corria risco. Verda não tinha se convencido. Qualquer passo em falso e toda a
cidade saberia que Tommy Lee estava atrás dela. Pior que isso, entretanto, era
a maneira alucinada como seu coração reagia à presença dele. Droga!
— Rachel Hollis — ela sussurrou sozinha —, você sabe qual é a fama
desse homem. Não ouviu o que Verda disse? Ele já andou com quase todas as
mulheres da cidade. É isso o que quer para você? Ser mais uma na lista?
Lembre-se, ele agora é só um conquistador. Não se deixe envolver. É um jogo
perigoso demais. Caia fora!
V
Sem dúvida, a primavera era a estação mais bonita em Russellville. A
maioria das casas não tinha muros na frente, formando uma imensa calçada de
grama verde. Os jardins eram muito bem cuidados, com flores multicoloridas
que encantavam os olhos. A prefeitura também tratava de manter as praças
bem tratadas, o que era o orgulho de toda a cidade.
O jardim da casa de Rachel era igualmente bonito. Ela mesma fazia questão
de podar as plantas. Só às vezes chamava o jardineiro, quando queria alguma
reforma. Azaléias brancas e vermelhas circundavam toda a cerca dos fundos e
as laterais, mantendo sua privacidade. Havia também palmeiras altas,
pinheiros e diversos canteiros de margaridas, sua flor predileta. A piscina
ficava no meio do gramado. Perto dela, duas mesas redondas de madeira
branca com guarda-sóis amarelos que combinavam com as almofadas das
cadeiras e das espreguiçadeiras.
Porém, naquela ensolarada tarde de domingo, Rachel não conseguia ver
nenhum encanto em seu jardim. Com um maio azul, estendeu-se numa das
espreguiçadeiras e fechou os olhos. Nem o sol forte conseguiu aquecer seu
coração solitário. Pensou em nadar um pouco. Muitas vezes as braçadas
ritmadas aliviavam sua angústia. Entretanto, sabia que a água fria não a
ajudaria desta vez.
A fisionomia sedutora de Tommy Lee não lhe saía do pensamento, numa
mistura de prazer e tensão. O convite dele ainda estava de pé: "Venha à minha
casa no domingo". Era isso o que ele havia dito, e parecia simplesmente
irrecusável, — Será que você não percebe que está se metendo numa tremenda
confusão? — Rachel sussurrou para si mesma.
— Esqueça esse homem. Ele é atraente demais, perigoso demais.
Mas sua mente teimava em focalizá-lo. Via nitidamente os olhos agitados
por trás dos óculos, o nariz afilado, os lábios carnudos. Tommy Lee estava
bem mais velho, maltratado pelo tempo e pela vida. Mas os lábios não tinham
se alterado. Continuavam provocantes e sensuais como sempre.
— Nada me impede de fazer uma visita a um amigo — ela voltou a
murmurar. — O que há de errado nisso, afinal? Sou uma mulher livre, sem
compromissos. Além disso, Tommy é apenas um amigo, um velho amigo.
Ainda não estava convencida, entretanto. Sabia muito bem que no fundo do
coração não era amizade o que sentia. Ainda se lembrava da reação de seu
corpo quando Tommy Lee tentara beijá-la. Tinha desejado ardentemente
aquele beijo. Se não fosse o maldito cheiro da bebida...
— A filha dele estará lá. — Outra vez, pôs-se a falar sozinha. — O que
poderá acontecer? Nada. Absolutamente nada. É somente uma visita de
cortesia. Você estará protegida dele e de si mesma.
Então se levantou com determinação. Já estava cansada de ser racional e
ponderada. Tinha o direito de seguir seu coração, nem que fosse apenas uma
vez. Não estava indo atrás de emoções fortes. Nada disso. Queria apenas
companhia para nadai-no lago. Ninguém poderia condená-la por isso.
Rapidamente, enfiou-se embaixo do chuveiro. Quando percebeu, estava
usando um dos sabonetes franceses que tinha comprado há alguns meses. Até
então tinham sido guardados para uma ocasião especial, que nunca aconteceu.
O perfume era delicioso, ligeiramente adocicado.
Maquilou-se um pouco. Aos quarenta e um anos, era preciso ajudar a
natureza. Afofou os cabelos e escolheu uma roupa esporte. Calça branca e uma
camiseta listada de vermelho, que marcava sua cintura bem-feita.
Tirou todos os maiôs da gaveta. Nenhum lhe pareceu adequado. Queria algo
diferente, que a favorecesse. Bem, talvez tivesse tempo de passar na Panache.
E assim fez. Vazia, a loja parecia diferente, triste e cheia de sombras. Não
importava. Desejava apenas um maio bem bonito. Na sala dos espelhos,
experimentou vários. Um biquíni ficou muito bem, pois seu corpo ainda era
firme, rijo e bem delineado. Porém, achou que era sexy demais. Seria melhor
algo mais discreto. Acabou por pegar um inteiriço, preto, com decote nas
costas.
Olhou-se por todos os ângulos. Bem, talvez Callie Mae tivesse razão,
estava mesmo magra demais. De qualquer forma, sentia-se bem naquele maio.
Colocou-o na sacola.

A estrada até o lago Cedar Creek era linda e inspirava paz. Saía do lado
oeste da cidade, curvando-se sinuosamente pela floresta de pinheiros. O
percurso se estendia no sopé das montanhas Apalaches, que, no fundo,
limitavam a visão.
Por alguma razão inexplicável, Rachel conhecia perfeitamente o caminho,
embora sempre o tivesse evitado. Pelo menos, desde que Tommy Lee
construíra a casa. Era como se o carro fosse dirigido pelo seu coração.
Finalmente entrou na rua particular. Sentiu o estômago se contorcer e
respirou fundo, tentando manter a calma. Diminuiu a marcha e analisou a
mansão de estilo ousado, moderno, de concreto aparente. Estranho... parecia-
lhe tão familiar!
— Você está ficando maluca. — Ela acabou sorrindo. — Como pode se
lembrar de uma casa que nunca viu antes?
Parou o carro diante do terraço. Ajeitou os cabelos e os óculos escuros.
Santo Deus, como estava nervosa! Não devia ter vindo! Pensou em dar meia-
volta, mas o coração não lhe permitiu. Depois lembrou que a filha de Tommy
Lee estaria lá. Era sua proteção e segurança. Tocou a campainha. Ninguém
respondeu.
"Ele deve estar no lago com Beth", pensou logo.
Insistiu outra vez, só por desencargo de consciência. Esperou um pouco,
mas também não teve resposta. Que droga! Tanta emoção, tanta batalha íntima
para nada...
Já ia desistir, quando a porta se abriu. Tommy Lee tinha os cabelos
despenteados, a camisa fora da calça e não usava os óculos. Ficou diante dela,
como se estivesse vendo um fantasma.
— Rachel... Meu Deus... Você veio!
— Foi você quem me convidou, lembra-se? — ela respondeu, sem graça.
— Sei, mas não esperava que aceitasse... — Num impulso, ele tentou se
arrumar, colocando a camisa de volta no lugar e passando os dedos nos
cabelos.
— Espero não estar interrompendo nada — ela disse.
— Claro que não! Meu Deus, nem a convidei para entrar. Entre! Eu estava
dormindo.
Quando a porta se fechou atrás dela, Rachel se viu perdida no meio de uma
grande bagunça. Sobre o sofá, cujas almofadas tinham sido jogadas no chão,
um lençol estampado. Copos sujos por toda parte, cinzeiros, pó, lenha velha na
lareira. Uma completa confusão.
— Não esperava ninguém... — ele se justificou, enquanto recolhia
apressadamente as almofadas.
— Pensei que sua filha estaria aqui.
— Realmente ela vinha passar o fim de semana comigo. Mas a mãe a
proibiu na última hora. — Ele correu os olhos pela sala. — Minha casa está
meio desorganizada, não é mesmo? Bem, eu pretendia vir mais cedo na sexta-
feira e deixar tudo em ordem para a chegada de Beth. Quando ela telefonou
avisando que não viria, não senti ânimo para mais nada.
Rachel nada comentou. Tudo o que poderia dizer era que aquilo estava uma
completa desordem. Mas preferiu continuar calada. Observou que a
arquitetura e a decoração da casa eram maravilhosas, resultado de
competência e bom gosto.
— Mesmo sem Beth por aqui, gostaria que ficasse, Rachel — ele disse,
num tom meigo e terno.
Ela não se moveu. Estava disposta a ficar. Não achou que ele estivesse
mentindo, armando uma cilada para ficarem a sós. Sabia que Tommy Lee era
infantil de vez em quando, mas não chegaria a tal ponto.
— Se me esperar um pouco, vou tomar um banho, está bem? — Tommy Lee
falou — Não vá embora. Estarei de volta dentro de cinco minutos.
Sozinha na sala, Rachel não se sentou. Estudou cuidadosamente cada um
dos quadros fartamente dispostos pelas paredes. Eram caros e de extremo bom
gosto. Aliás, tudo naquela casa parecia luxuoso e requintado. A sala de jantar
era magnífica. O estilo clássico se chocava com o resto, moderno e ousado.
Por isso mesmo criava um clima interessante. Porém, não era uma casa
aconchegante. Ao contrário, era fria e sem vida. Talvez j faltassem algumas
flores e, sem sombra de dúvida, uma boa arrumação.
Deteve o olhar nos copos vazios. Um deles ainda estava suado. Tocou-o
com os dedos: gelado! Cheirou. Gim e uma pedra de gelo derretendo.
A realidade estava diante de seus olhos. Bastava querer enxergá-la. Tommy
Lee era alcoólatra. Talvez bebesse para espantar a solidão ou as mágoas do
passado. Não importava. Na realidade, era dependente do álcool.
Rachel estremeceu, ao imaginar a cena. Tommy Lee com o corpo mole
caído no sofá, e ali ficando até o momento em que ela o acordou, tocando a
campainha. Era deprimente. Talvez não devesse ter vindo...
Perto da lareira encontrou pacotes velhos e vazios de batatas fritas e doces.
Pobre Tommy Lee... nem se alimentava direito. Devia levar uma vida triste e
aborrecida, apesar da fortuna que tinha. Infelizmente o dinheiro não comprava
a felicidade nem a paz de espírito.
— Desculpe tê-la deixado esperar, Rachel.
Assim que ela subiu os olhos até a escada, sentiu um tremor lhe percorrer a
espinha. Tommy Lee estava de short, sem camisa. Ah! Ainda se lembrava dos
pêlos finos e escassos no peito dele. Agora eram espessos e abundantes, e
cobriam até o ventre. As pernas continuavam musculosas e sensuais. Era um
homem imensamente atraente.
— Pensei em nadarmos um pouco — ele disse, se aproximando. — Você
trouxe maiô?
Rachel ainda estava sem voz. Por um instante, surpreendeu-se imaginando o
que se escondia debaixo do short. Será que ainda era tão bonito e vigoroso
como antes? Certamente, bem mais experiente.
— Então, Rachel, não quer nadar?
— Sim... quero dizer, eu trouxe um maiô. Está no carro. Mas pensei que
Beth estaria aqui e...
A relutância dela era óbvia, porém ele não se importou.
— Vou buscá-lo para você.
Não, ela não queria mais vestir o maiô. Iria criar uma situação íntima
demais. O jogo estava começando a ficar arriscado. E agora ela tinha certeza
absoluta de que não queria qualquer tipo de envolvimento. A vida de Tommy
Lee era desregrada, irresponsável e suja. Mas o pior é que se sentia
terrivelmente atraída. Era como se seu corpo inteiro vibrasse simplesmente
por vê-lo com o peito à mostra.
— Rachel... não quer que eu vá pegar seu maiô? — ele insistiu, diante do
silêncio dela.
— Não, eu vou.
Nem ela sabia por que tinha concordado. Talvez precisasse apenas de uma
desculpa para tomar ar, respirar fundo e recuperar as forças. Estava mesmo se
comportando como uma menininha assustada. Mas o que podia fazer contra
isso? Era assim que se sentia...
Ao sair, sentiu o olhar quente e vibrante de Tommy Lee seguindo-a e
detendo-se nos quadris. Não seria fácil resistir a ele por muito tempo. Todo o
seu corpo implorava por carícias, que tinham ficado adormecidas no tempo.
Abriu a porta do carro e sentou-se no banco por um momento. Tinha que se
controlar. Tentou focalizar o rosto do marido, mas simplesmente não
conseguiu. Procurou ainda se convencer de que o amor por Tommy Lee era
coisa do passado, mas isso também não ajudou. A atração era forte e premente
demais.
Repentinamente, lembrou-se dos brincos vermelhos que ele tinha comprado
na loja. Aí, sim, sentiu-se forte. Não queria ser mais uma das conquistas dele.
Mais um troféu, mais um nome na imensa lista.
— Você pode usar o quarto de hóspedes no andar de cima — ele disse,
assim que Rachel voltou.
Pé ante pé ela subiu as escadas. Havia uma sala de distribuição, com sofás
macios. de madeira natural e uma estante onde ficava a televisão e o aparelho
de som. De lá, saíam dois corredores, com portas fechadas e também uma
escada de ferro em espiral, que levava ao último andar. Certamente lá ficava o
quarto de Tommy Lee, de onde a vista deveria ser maravilhosa.
Sem saber qual era o quarto de hóspedes, abriu a primeira porta. Parecia
que ninguém entrava lá há um século! Era um escritório, com escrivaninha de
laca chinesa, sobre a qual pendia um lustre de papel arroz. A cortina de
madeira estava fechada, mas certamente a janela dava para o lago.
Abriu a porta seguinte. Era o quarto de Beth. A cama larga de metal
dourado ficava encostada num dos cantos, com milhões de almofadas em cima,
cada qual de um formato. Em cima da mesinha-de-cabeceira havia um abajur
com cúpula de tecido amarelo e branco, que combinava com a cortina farta
que descia até o chão. O carpete era imaculadamente branco, fofo e macio.
Também havia uma cômoda com cinco gavetas largas e, perto da janela, uma
cadeira de cana da índia, com almofada amarela.
Num relance, Rachel pensou que esta Beth e aquela perdida no passado
tinham se fundido em uma só. Sem resistir, entrou no quarto, sofrendo por vê-
lo fechado e tão sem vida. Devagar, abriu a porta que havia ao lado do
armário. Era o banheiro, no mesmo tom suave de amarelo. Sobre o balcão da
pia, vidros de perfume, xampus e sabonetes pequenos e coloridos, dentro de
um pote de cristal.
Desistiu de procurar pelo quarto de hóspedes. Preferia se trocar lá mesmo,
no banheiro que poderia pertencer à sua própria filha. Por uma razão estranha,
sentia-se bem lá dentro. Aliás, era o único lugar da casa inteira que tinha um
pouco de vida. Todo o resto parecia morto, triste e empoeirado.
Tirou a camiseta e a calça. Depois o sutiã de renda bege e a calcinha. Nua
diante do espelho, observou a cicatriz da cesariana, bem no baixo ventre,
perto dos pêlos. Acariciou-a com a ponta dos dedos. Por lá, havia saído a
única criança que seria realmente sua. Sua e de Tommy Lee. O fruto do amor
deles.
Seus olhos ficaram úmidos. Tantas vezes tinha pensado que mágoas estavam
superadas... e agora... as recordações voltavam dolorosas...
— Não pense nisso — murmurou. — Não há nada que possa ser feito para
mudar o passado.
Voltou a se olhar no espelho. Desta vez, deteve-se nos seios redondos e
pequenos. Ainda se mantinham firmes e eretos, mas certamente não eram os
mesmos de quando tinha dezessete anos. Será que Tommy Lee repararia? Iria
achá-los feios e diferentes?
A cintura continuava fina. Os quadris eram bem mais largos agora, assim
como as coxas. Sentiu medo de exibir-se para Tommy Lee.
— Sua boba — resmungou, fazendo uma careta. — Em primeiro lugar, não
devia estar aqui. Em segundo, não tem nada que se preocupar com a opinião
de Tommy Lee a respeito de seu corpo. Você é uma mulher de meia-idade,
afinal de contas. Comporte-se de acordo. — Rapidamente vestiu o maio e
deixou o quarto, ignorando a opinião do espelho.
Mais uma vez, deteve-se no hall. Olhou demoradamente para a escada em
espiral que levava ao quarto principal, onde certamente havia uma lareira, um
terraço grande com vasos de plantas e o teto angular, destacando a estrutura da
construção.
"Claro", ela pensou, assustada. "É a nossa casa! A que planejamos construir
quando nos casássemos."
Atônita, quase pôde visualizar o quarto de cima. O quarto que seria deles.
Uma das paredes toda de vidro, permitindo a visão total do lago. A cama bem
grande e macia, com espaldar de madeira escura. Sim, era isso mesmo o que
tinha planejado...
Não era à toa que a casa lhe pareceu familiar...
Confusa, resolveu descer correndo. Não queria mais pensar a respeito. Era
capaz de enlouquecer. Bem, talvez estivesse enganada...
— Estou aqui, Rachel — Tommy Lee gritou da cozinha. Havia recolhido os
cinzeiros e copos sujos e lavava-os desajeitadamente. — O que quer tomar?
Cerveja, vinho, vod...
— Limonada — ela respondeu rapidamente. — Tem água e limão em casa,
suponho...
Tommy Lee logo percebeu a repreensão e a ironia. Sem dizer nada,
espremeu o limão num copo longo.
— Açúcar ou adoçante? — perguntou.
— Se Callie Mae ouvisse isso, ficaria furiosa. Açúcar, por favor. Preciso
ganhar uns quilos rapidamente.
Instintivamente, Tommy Lee fitou-a com olhos observadores e penetrantes.
Correu o pescoço esguio, a curva dos ombros, delicada e feminina; desceu
para os seios, parcialmente revelados pelo decote; o ventre reto, quadris bem
desenhados, as coxas roliças e até mesmo os pés pequenos, com unhas
pintadas num suave tom de rosa. Não, ela não precisava de um grama a mais.
Nem a menos. Estava absolutamente perfeita. Deliciosamente atraente.
Ao contrário do que acontecia com a maioria das mulheres, a idade só
havia servido para apurar a beleza clássica e suave de Rachel. É claro que já
não tinha aquele ar angelical e ingênuo. Mas até isso lhe caía bem. Agora
havia malícia e sensualidade em seus olhos. Era uma mulher completa, que
inspirava os pensamentos mais diabólicos...
Por outro lado, mantinha o mesmo jeito, inatingível e sério. Mais até. Agora
era uma mulher completa, respeitada por toda a sociedade. Tinha conseguido
se impor como esposa, mulher e comerciante. Seus gestos e hábitos
ponderados causavam admiração. Possuía um trabalho honesto, ia à igreja aos
domingos, cuidava do jardim e da casa.
E a ele, o que tinha feito o tempo? Era evidente que a vida o havia
transformado num relaxado beberrão. Má reputação, era essa a maior
conquista. Claro, fizera fortuna em pouco tempo. Poucos na cidade gastavam
dinheiro com a mesma facilidade. Mas de que lhe valia isso?
— Está pronta? — Ele sacudiu a cabeça, afastando o pensamento.
— Já vamos nadar?
— Que tal uma volta de lancha antes?
— Hum... parece uma boa idéia.
— Leve seu copo. — Tommy Lee pegou duas latas de cerveja bem geladas.
Saíram pela porta da cozinha, que dava para um gramado imenso, indo
terminar num deck de madeira avermelhada. A lancha branca esperava por
eles.
— Sente-se ali. — Ele indicou o banco de passageiros e logo puxou a
corda que prendia a lancha à terra firme.
Depois sentou-se ao lado de Rachel e, com um simples toque num botão,
acionou o poderoso motor. Suas mãos se firmaram no manche e um segundo
após deslizavam pelas águas claras do lago.
Como uma criança curiosa, Rachel se debruçou para afundar a mão na água.
Depois respirou fundo, deixando que a pureza do ar lhe invadisse o corpo.
Tommy Lee sorriu ao observá-la tão distraída. Era mesmo uma mulher
cheia de mistérios, que ora ficava séria ou embaraçada, ora se transformava
numa doce menina, encantada com a natureza.
Pela primeira vez em muito tempo, ela se sentia feliz. A água calma do
lago, tão brilhante como um espelho, a companhia de Tommy Lee, tudo
contribuía para sua paz e serenidade. Era como se aquela lancha a estivesse
levando para longe dos problemas e da realidade.
Recostou a cabeça no banco e deixou que o vento lhe acariciasse os
cabelos e a face. Ficou com os olhos fechados, inteiramente entregue àquele
momento de tranqüilidade interior. Sentia a alma leve, o coração batendo
suavemente dentro do peito.
Subitamente, porém, a lancha deu uma guinada para a esquerda e a cabeça
de Rachel foi jogada para a frente. Ela arregalou os olhos, que se fixaram
assustados em Tommy Lee.
— Vamos nos aventurar um pouco — ele propôs, com um cigarro entre os
lábios. Depois acelerou violentamente.
— Você sempre gostou de velocidade, não é? — ela comentou, as palavras
distorcidas pelo vento.
— Sempre!
Um minuto depois, a proa se erguia no ar, cortando energicamente a água
límpida. O vento batia forte contra seus rostos, numa fascinante sensação de
liberdade.
— Ainda me lembro de papai lhe dizendo para não correr — Rachel gritou
entre dois sorrisos. — Saíamos de casa, e um quarteirão depois estávamos
praticamente voando.
— Também me lembro. Aliás, nunca me esquecerei daqueles momentos.
Nós éramos tão felizes! — Não havia tristeza ou amargura na voz de Tommy
Lee. Ao contrário, parecia que a recordação lhe era reconfortante e gostosa.
— Ainda adora velocidade — ela comentou, segurando-se no banco.
— Aperte o cinto. Vou dar força total!
A impressão que Rachel tinha é que conquistaria o horizonte em dois
minutos. Era uma sensação incrível, sentir-se completamente solta, livre,
ganhando espaço, voando...
Seu corpo balançava de um lado para o outro. Os cabelos pareciam
bandeiras hasteadas, tremulando ao vento, a respiração entrecortada de tanta
emoção. Era simplesmente delicioso...
Tommy Lee fez uma curva fechada e Rachel caiu em cima dele. Gargalhou.
Parecia brincadeira de criança. Outra curva para o lado oposto e ela voltou
para o lugar e assim foram... direita, esquerda, direita, esquerda...
Era divertido! Rachel ria sem parar e ele correspondia. Finalmente ela se
cansou e apertou o braço de Tommy Lee, num apelo. Já estava com o estômago
saindo pela boca! Mas ele só parou com as curvas, sem diminuir a velocidade.
Então ela segurou a mão dele, apertando-a com força. Olhou-o, como se
implorasse. Ainda estava sorrindo. Lentamente a lancha foi perdendo impulso,
até voltar ao ritmo calmo e suave. Só então Rachel reparou que ainda tinha a
mão sobre a dele.
— É bom vê-la rindo novamente — ele disse, de um modo íntimo,
profundo.
— Há muito tempo não me divertia tanto. Obrigada.
— Se me agradecer outra vez, vou ficar zangado. Eu me sinto feliz por
deixá-la alegre. Acho que faz mais bem a mim do que a você. — Depois tirou
uma lata de cerveja de dentro do isopor. — Quer uma?
—- Prefiro a limonada.
Aquela cerveja gelou o coração de Rachel. Odiava vê-lo bebendo. Reparou
nos cigarros apagados no cinzeiro. Três. Era demais para apenas quarenta
minutos. Realmente, Tommy Lee estava mergulhado em vícios...
— Vamos nadar? — ela sugeriu, sabendo que dentro da água ele não
beberia.
— Tudo o que quiser. Hoje, quem manda é você. Aonde quer ir?
— Não conheço o lago tão bem quanto você.
Ele aumentou a velocidade e um minuto depois estavam bem no meio do
lago. Desligou o motor, olhou para ela e sorriu.
— Aqui? — Rachel perguntou, espantada.
— Prefere outro lugar?
— Bem, pensei que íamos para a margem, numa das praias.
— No meio de toda aquela gente? Tem certeza de que é isso o que quer?
Rachel hesitou. Poderia mentir, mas seus olhos não permitiriam.
— Está bem — concordou. — Aqui é melhor.
— Então vou jogar a âncora.
Rachel não pôde deixar de reparar nos músculos rijos dele ao levantar a
âncora. Um homem de quarenta anos era infinitamente mais sensual que um de
dezesseis. As formas de Tommy Lee haviam se firmado. Os pêlos eram mais
espessos, os músculos mais proeminentes. As pernas — ah! eram seu ponto
fraco — estavam mais grossas agora. Mais poderosas, mais tentadoras.
— Você primeiro! —- ele gritou.
— Não, desta vez os homens irão à frente. Se a água estiver muito fria,
avise-me...
— Bancando a covarde, hein? — Ele soltou uma gargalhada sonora. —
Quem chegar por último é o filho da mula!
Nenhum dos dois se moveu, embora a brincadeira ordenasse assim. É que
aquelas palavras tinham um significado especial. Pertenciam a um tempo feliz,
quando o grupo de amigos saía para nadar no parque central. Ben, o mais
gordo e desajeitado, era sempre o filho da mula. Tommy Lee chegava em
primeiro. Rachel era a segunda. Nossa! Naquela época nada tinham. Nem
milhões, nem luxo. Mas, sem dúvida, carregavam a felicidade nas mãos.
Os dois se olharam demoradamente, tomados pela inesperada recordação.
E, inevitavelmente, outras lembranças vieram junto. Numa das competições,
Tommy Lee e Rachel ganharam muita distância em relação aos seguintes.
Chegaram no parque bem antes dos outros. Para comemorar, se abraçaram e
beijaram.
Foi a primeira vez que ele lhe tocou os seios, num gesto tímido e
envergonhado. Ambos coraram e viraram os rostos. Depois, voltaram a se
beijar.
— Não vou ser a filha da mula! — Rachel falou e se atirou na água, com a
proposital intenção de afastar as lembranças e esfriar o coração.
Tommy Lee a seguiu, mergulhando da proa. Quando emergiu, suspirou de
frio.
— Que água gelada! — reclamou.
— Então sou eu a covarde, não é? Vamos! Não fique aí parado como um
bobo. Vamos nadar!
Rachel disparou na frente. Dava braçadas largas, ritmadas e velozes. No
princípio, Tommy Lee a seguiu. Depois, ofegante, voltou para a lancha e se
estendeu no convés. Ela continuou o exercício. Foi para bem longe e voltou
com um sorriso vitorioso nos lábios.
— Você desistiu rápido demais — brincou.
— Estou fora de forma.
— Não devia. Não com um lago desses bem debaixo de sua casa. Se fosse
você, eu nadaria todos os dias.
— Faz isso em sua piscina?
— Desde o primeiro dia do verão até o último. E quando estou zangada,
sem ter com quem desabafar, mergulho até no inverno. Me faz muito bem.
Ajuda a aliviar as tensões.
— E manter o corpo bonito — ele completou, fitando-a acintosamente.
— Ando magra demais...
— Para mim, está perfeita. — Havia tanta sinceridade nos olhos de Tommy
Lee. Aqueles olhos... Gostava de vê-lo sem óculos. Tinha olhos grandes, e
vivos.
— Lembra-se de quando eu tentava dar a volta na sua cintura apenas com
minhas mãos? — Ele abriu um sorriso cheio de saudade.
— Na época eu teria ficado encantada se tivesse conseguido. Hoje, com
essas suas mãos enormes e meu corpo magricelo, tenho certeza de que seria
possível. Mas isso não me alegraria.
Só serviria para lembrar que preciso me cuidar melhor. Estou definhando.
Tommy Lee ergueu o corpo, sentando-se e apoiando os cotovelos nos
joelhos.
— Definhando! Que palavra horrível, Rachel! Você está ótima, melhor que
naqueles tempos.
— Ora, não pense que me engana. Sei contar e já somei quarenta e um anos.
Não é pouco. As marcas estão bem aqui, espalhadas pelo rosto e pelo corpo.
— Ela baixou os olhos. — Bem, há dois anos não me sentia assim tão acabada
e derrotada. Mas a doença de...
— Foi horrível, não foi? Digo, tratar de Owen, saber que iria morrer de
qualquer forma... Não sei como conseguiu.
— A gente arruma forças não se sabe onde. Simplesmente vai fazendo o que
é preciso, sem querer pensar a respeito. Mas quando as dores pioraram... —
Ela parou de repente, ficou pensativa por alguns instantes, mas logo se
esforçou para voltar a sorrir. — Não estou aqui para falar sobre isso, mas
para esquecer.
— Só mais uma coisa. É muito importante para mim te dizer isso. — Os
dedos dele se entrelaçaram nos dela. — Quando soube que seu marido estava
seriamente doente, quis te procurar, telefonar, dizer qualquer coisa que
pudesse confortá-la. Juro, Rachel, eu queria tanto partilhar o seu sofrimento,
ajudar a aliviar a carga de tensão, nem sei... queria que você soubesse que eu
estava perto, que pensava em você, que estava disposto a dividir os
problemas. Mas logo caí na realidade. O que eu poderia fazer na verdade?
Praticamente nada, não é? Depois, seu pai certamente estava por lá o tempo
inteiro. Se telefonasse, só arrumaria mais problemas para você.
— Oh! Tommy... mesmo que seja tarde demais, obrigada por me contar
isso. Havia dias em que me sentia desesperada, sem um ouvido amigo para me
escutar. Obrigada!
— Segui boa parte de sua vida a distância...
— Eu já desconfiava disso. Também sei alguma coisa da sua, mas só pelo
que lia nos jornais. Jamais ousei passar em frente de sua casa.
— Pois eu passava sempre diante da sua. Normalmente de madrugada.
Então ficava desesperado quando via a luz do quarto da frente acesa.
Imaginava que você e Owen... bem, não importa. Isso já ficou para trás. — Os
dedos dele continuavam acariciando a mão de Rachel e tocaram a aliança,
provocando um certo mal-estar. — Sabe, às vezes eu tinha ódio de nossos
velhos amigos, aqueles que sabiam que tínhamos namorado. Sempre vinham
me falar sobre sua vida. Se soubessem como era difícil para mim escutar tudo
aquilo. Na verdade, ficava curioso, até ansioso por notícias, mas a maioria
das vezes me sentia agredido pelo seu sucesso, pela sua estabilidade
emocional.
Rachel analisou. Tommy Lee era muito mais honesto que ela. Não tinha
medo da verdade. Falava-a abertamente, sem vergonhas nem pudores. Ela
também algumas vezes procurara por notícias, mas não teria coragem de
admitir. Nem agora nem nunca. Era medrosa demais.
— Muitas vezes me perguntei se ele sabia... — Tommy Lee continuou.
— Ele quem? Sabia o quê? De que diabos você está falando?
— Owen... ele sabia de nós?
Por um instante ela se calou. Lembrou-se da cicatriz no ventre, que não
podia ser ocultada do marido.
— Ele sabia?
— Sim... Contei-lhe que tinha tido uma criança, mas não disse quem era o
pai.
— Santo Deus... Ele não ficou curioso, não a encheu de perguntas, não
tentou descobrir?
— Foi um acordo que fizemos nos primeiros dias do casamento. Esse
assunto jamais deveria voltar à tona. E assim foi. Nunca mais conversamos a
respeito.
— Como dizem por aí, seu marido era um homem excepcional. Eu seria
incapaz de viver com uma mulher e com uma dúvida dessas na cabeça. Ele
devia ser mesmo uma pessoa ótima, principalmente por jamais ter colocado
isso como barreira entre vocês.
Tommy Lee estava enganado. Embora ela e Owen nunca falassem a
respeito, a criança vivia no meio deles, incomodando, criando ressentimentos
e remorsos.
— Se você fosse minha mulher, ficaria louco. — Tommy Lee ainda estava
hesitante, sem acreditar no que tinha ouvido.
— Engraçado... pelo que falou na noite em que me contou sobre suas três
mulheres, não me pareceu um sujeito ciumento. Ao contrário...
— É que nenhuma delas era você, Rachel. — Nesse instante Tommy Lee
não resistiu mais. Segurou o rosto dela com ambas as mãos e muito carinho.
Queria beijá-la, mostrar que seus sentimentos eram tão fortes e verdadeiros
quanto antes.
— Não, por favor, não... — Ela se afastou, cheia de temor.
— Até quando você vai me negar? Até que esteja realmente definhando?
Até que pague seu débito com Owen? Até que resolva tirar a aliança do dedo?
— Ainda é muito cedo...
— Rachel, minha querida, não somos mais crianças. Não temos satisfações
a dar a ninguém. A vida está aí, o tempo continua passando. Temos quarenta e
um anos. Já pensou nisso? O que estamos esperando?
Tommy Lee não agüentava mais ficar perto dela sem ao menos tocá-la.
Parecia que o coração queria explodir dentro do peito. O desejo reprimido
por mais de vinte anos aflorava em todas as células numa súplica desesperada.
Era como se cada minuto de espera se transformasse numa agonia amarga e
insuportável.
Sem pensar mais, ele a segurou com força. As mãos prenderam o rosto
dela, obrigando-a a olhá-lo. Já era tempo de parar com aquela brincadeira
infantil, de sentir medo das próprias emoções. Num gesto rápido, beijou
Rachel.
O encontro dos lábios macios e quentes foi sutil e leve. Um beijo breve,
suave e terno, mas tão poderoso que fez os corpos estremecerem num arrepio
de prazer.
Assustada, Rachel se levantou. Procurou dizer alguma coisa, mas estava
muda. Nem sequer conseguiu olhar nos olhos dele. Talvez devesse se sentir
ultrajada e indignada. Mas não, tinha o coração transbordando de afeto. E a
mente confusa. Por um pequeno instante, havia sido invadida por uma sensação
deliciosa de encantamento e satisfação. E isso lhe dava um profundo
sentimento de culpa.
Talvez seus longos anos de convivência do casamento tivessem destruído o
romantismo e as emoções palpitantes. Sim, só podia ser isso. O fato é que
nunca vibrara tanto com um beijo de Owen. Nunca seu coração disparara
como agora. Santo Deus, tinha o corpo todo tomado por uma espécie de calor,
um tremor suave que subia pela espinha.
O beijo havia sido rápido. A língua de Tommy Lee nem ao menos a tocara.
E, ainda assim, fora sensual, mágico, tremendamente excitante e envolvente.
Perdida nos próprios pensamentos, atirou-se na água fria. Não sabia o que
estava fazendo. A única coisa de que tinha certeza era que precisava fugir de
Tommy Lee. Ele a provocava e confundia. Sentia-se atraída e, ao mesmo
tempo, esforçava-se para afastá-lo.
Um minuto depois, Tommy Lee também estava no lago, bem perto dela. Não
deixaria que aquele instante, em que ambos haviam reencontrado a doçura do
contato físico, se perdesse por causa do medo. Para se manter à tona, ele
movimentava as pernas e os braços e inevitavelmente roçava no corpo magro
de Rachel.
— Por que fez isso? — ela perguntou, apenas a cabeça fora d’água.
— Fiz o quê?
— Você me beijou. Não banque o desentendido.
— Bem, agora sou eu que vou dizer quem está fora de forma! Chama aquilo
de beijo? No máximo seria um beijinho à-toa, bem pequeno, sem qualquer
responsabilidade. — Um sorriso maroto surgiu entre os lábios grossos dele.
— Aprendi a fazer melhor que isso nos últimos anos.
— Disso tenho certeza. — Rachel se lembrava das inúmeras mulheres com
quem ele tinha se envolvido. E os benditos brincos vermelhos lhe vieram à
memória. Ficou com raiva. — Quantas mulheres já passaram por sua vida?
— Perdi a conta há muitos anos.
— E tem coragem de admitir isso sem ao menos ficar envergonhado?
— Rachel, você parece a menina mais inocente do mundo. Por que haveria
de sentir vergonha? O que pretendia? Que ficasse a vida inteira esperando?
Ora, isso me faz rir. Não esqueça que as mulheres também me queriam,
estavam disponíveis, se oferecendo como objetos em vitrines. Elas sabiam
muito bem onde e com quem se metiam. Mesmo assim toparam o jogo. Não
sou um monstro conquistador, como me pintaram. Todas as mulheres com quem
andei vieram a mim de livre e espontânea vontade. Elas queriam se deitar na
minha cama e eu simplesmente as levava. O que há de mal nisso?
— De qualquer maneira, também não se pode dizer que é uma atitude
louvável.
— Minha vida foi completamente diferente da sua. Procure entender. Já
disse que tentei três vezes ser feliz ao lado de uma mulher, mas nunca consegui
me satisfazer emocionalmente. Se tivéssemos ficado juntos, tenho certeza de
que tudo seria diferente. Aliás, ainda é tempo. Se você quiser, pode ser a
última, a única mulher de minha vida.
Ela afundou novamente. Não acreditava que Tommy Lee, o insaciável
Tommy Lee, um dia se entregasse a apenas uma mulher. Já estava acostumado
à liberdade, às orgias sexuais. Vivia rodeado de belas mulheres, todas elas
experientes e sensuais. Por que diabos se contentaria com Rachel Hollis?
Depois, era absurdo pensar na possibilidade de ficar com ele. Afinal, não
estava interessada em novos romances. Tinha sido feliz no casamento. Sua
vida amorosa estava encerrada. Não queria procurar problemas.
Quando voltou à tona, os olhos desejosos de Tommy Lee a, esperavam.
Antes que ela pudesse reagir, ele a segurou pela cintura, apertando o corpo
esbelto contra o seu.
Rachel se debateu, mas era impossível separar os dois quadris unidos sob a
água. Sentia as pernas de Tommy Lee roçarem nas suas, numa sensual
intimidade. Jogou a cabeça para trás, tentando escapar dos lábios dele, que a
procuravam desesperadamente.
— Por favor... não me beije outra vez... — implorou.
— Suas palavras não são verdadeiras, Rachel. Conheço muito bem seu
corpo. Ele quer ser acariciado e beijado. Seu coração está batendo forte.
Posso sentir isso.
— Pelo amor de Deus, seja razoável...
— Nunca fui sensato em quarenta e um anos. Por que deveria começar
agora?
— Tommy, estou falando sério, solte-me. Você não tem o direito de me
forçar. Não quero beijá-lo. Não quero!
Foi tão firme que Tommy Lee recuou. Esperaria até o momento em que ela
própria viesse até ele. Não demoraria muito...
— Estou morrendo de fome — ele falou subitamente, como se tivesse
esquecido o antagonismo do minuto anterior. — O que acha de comermos
bacalhau? Conheço um lugar ótimo!
Rachel concordou.
VI
Depois de se trocarem, pegaram o carro e foram para Codfish Comer, um
pequeno e rústico restaurante, de paredes de madeira, poucas janelas e mesas
sem toalhas.
Rachel observou que a maioria dos fregueses eram negros. Alguns
cantavam, acompanhando-se com batidas leves e ritmadas nas mesas. Sem
dúvida, era um lugar totalmente desprovido de luxo.
— Hei, Tommy Lee! — Um negro, beirando os cinqüenta anos abriu um
largo sorriso. — Como é bom ver você outra vez! Por onde andou? Entre e
traga sua mulher.
— Tudo bem, Eugene? — Tommy Lee também sorriu, com evidente afeto.
— Como é, o bacalhau está bom?
— Como sempre!
— Não seja convencido, Eugene — gritou um homem de outra mesa. — Sua
mulher sempre exagera no sal!
O boteco inteiro caiu na gargalhada, diante da cara do dono. Porém, logo
depois, ele ria também. Conduziu Tommy Lee e Rachel para uma das mesas.
As cadeiras eram de plástico vermelho. Horrorosas.
Rachel notou os lustres. Eram mais feios ainda. Sobre o balcão, ficavam
alguns anúncios de cerveja, iluminados a néon verde e vermelho. Era o lugar
mais terrível em que já tinha posto os pés.
— Bem, você não poderá dizer que fiquei tentando criar uma atmosfera
romântica — Tommy Lee disse, sentando. — Esse não é o restaurante mais
sonhador e envolvente que já conheceu, não é?
— Não, acho que não...
— Rachel, não diga nada até que tenha comido, está bem? Antes que ela
pudesse responder, uma mulher de meia-idade, negra, com seios fartos
saltando da blusa amassada, se aproximou com braços abertos. Usava brincos
enormes e tinha um lenço amarrado na cabeça, formando um grande laço no
topo.
— Puxa! Já estava com saudades do garotão mais sexy de Russellville. —
E deu um beijo nos lábios de Tommy Lee!
Rachel arregalou os olhos, chocada. Era a primeira vez que via um branco
e uma negra se beijarem. E aquele branco era Tommy Lee! Esfregou os olhos,
como para ter certeza de que enxergava bem. A mulher continuava estatelada
em sua frente, as mãos penduradas na cintura grossa.
— Dayse... — Eugene gritou de trás do balcão. — Pare de beijar os
fregueses. Desse jeito, não terão tempo de comer o bacalhau.
Novamente todos riram. Apenas Rachel continuava horrorizada, sem
fôlego, sem acreditar no que estava acontecendo.
— Estou acompanhado, Dayse. — Tommy Lee a segurou pelo braço com
extrema naturalidade. — Quero que conheça Rachel.
— Não ligue para mim. — Dayse se virou para Rachel com um jeito alegre
e descontraído. — Beijo esse garoto desde que era um menino. É como um
filho para mim.
— Muito prazer. — A mão de Rachel sentiu os calos da outra.
— Dê o fora agora, Dayse. — Tommy Lee sorria. — E traga duas porções
de bacalhau. Com sal no ponto, entendeu? Ah! Para beber, o de sempre para
mim, e limonada para Rachel.
— Limonada? — Foi a vez da negra ficar assustada. — Não temos essas
coisas por aqui...
— Água pura... — Rachel balbuciou.
Balançando os quadris molengos e fartos, Dayse saiu por uma porta de
vidro que levava à cozinha. Ao passar pelo balcão, tomou um beliscão de
Eugene e riu.
— Como um filho, hein? — Rachel ironizou, ainda sem conseguir encarar
Tommy Lee.
— Isso mesmo.
— Pois é melhor tirar esse batom vermelho dos lábios. A "mamãe" deixou
você todo borrado.
Tommy Lee riu e esfregou o guardanapo de papel na boca.
— Não pense mal de Dayse. Ela é a mulher de Eugene e faz o melhor
bacalhau do mundo.
— Mulher dele? E fica beijando outros homens bem embaixo do nariz do
marido?
— É um velho costume. Dayse beija todos os fregueses e Eugene reclama.
É uma maneira de deixar o ambiente mais alegre e divertido. Somos todos
amigos, afinal.
Mas Rachel continuava abismada. As amizades de Tommy Lee não eram
exatamente o que ela chamaria de finas e educadas. Eram bem diferentes das
suas.
Enquanto esperavam pela comida, Tommy Lee bebeu dois uísques. Outros,
enquanto fazia a refeição. Os pratos foram servidos com abundância, mas
Rachel mal provou.
— Não vai comer mais? — ele perguntou.
— Estou satisfeita. Obrigada.
— Importa-se que fique com sua parte? É até pecado deixar esse bacalhau
sobrar...
Mais uma vez Rachel percebeu que a vida de Tommy Lee era totalmente
desregrada. Bebia demais, comia demais. Não era à toa que andava fora de
forma, sem fôlego para nadar uns poucos metros.
— Há quanto tempo não faz uma refeição decente? — ela perguntou,
lembrando-se dos sacos de doces e salgadinhos que tinha visto na casa dele.
— Não gostou do bacalhau?
— Estava delicioso. Não estou me referindo a hoje. Mas tenho a impressão
de que você não tem uma alimentação regular.
— Não costumo perder muito tempo na cozinha. — Tommy Lee fez uma
pausa. — Você realmente não gostou daqui, não é?
— Já disse que a comida estava muito boa.
— Não precisa ser falsa. Sei o que está pensando. Mas eu a trouxe para que
conhecesse meus amigos, minha vida... sem segredos...
— Sinto muito, mas é justamente isso o que me assusta. Essa gente, esse
lugar...
— Pois eu acho essa gente muito mais autêntica e sincera do que aquele
bando de engomados lá do Country Club.
Rachel ia responder, mas não teve tempo, Um moleque de uns sete anos
veio correndo na direção da mesa e logo se pendurou no pescoço de Tommy
Lee.
— Você demorou para aparecer! — o garotinho reclamou. — Juntei um
monte de pedras, como você mandou. São muito melhores do que as de Daria.
— E derramou na mesa umas dez pedras.
— Você é que estava escondido. — Tommy Lee esfregou a cabeça do
negrinho. — Por que não veio me ver antes?
— Mamãe não deixou. Disse que ia atrapalhar seu jantar. — Voltou os
olhos para as pedras. — Essas são perfeitas. Vão pular mais de onze vezes!
Tommy Lee riu. Depois virou-se para Rachel que evidentemente não estava
entendendo nada.
— Darrel e eu estamos procurando uma pedra que, jogada no lago, toque
onze vezes a água antes de afundar. Já conseguimos uma que pulou nove. Mas
a irmã dele, Daria, fez dez.
— É mentira dela. — O menino se agitou. — Duvido que tenha feito tanto!
Com cuidado, Tommy Lee estudou cada uma das pedras escuras. Uma
delas, bem chata e longa, lhe chamou a atenção. Pegou-a na mão e a examinou
como se fosse a coisa mais importante do mundo.
— Esta aqui parece perfeita — disse num tom sério.
— Verdade? — Darrel soltou um gritinho de excitação. — Vamos jogá-la
no lago agora?
— Está escuro lá fora.
— Então amanhã. Você pode vir amanhã?
— Segunda-feira é dia de trabalho e escola.
— No próximo domingo, então. Prometa que virá! Por favor, Tommy Lee...
— Está bem — ele concordou, diante da animação do garoto.
— Legal! Daria vai perder o campeonato. Nossa pedra é perfeita! Vou
avisar mamãe. Domingo, depois que formos à igreja, iremos ao lago e
jantaremos juntos. Vai ser bárbaro!
Darrel recolheu as pedras e as enfiou de volta no saco de pano. Saiu
correndo, já chamando pela mãe.
— Ele é filho de Eugene e Dayse —; Tommy Lee explicou. — Um danado.
Nunca sossega.
Rachel tinha os olhos baixos. Estava pensativa, calada, absorta nos
próprios pensamentos.
— Alguma coisa errada, Rachel?
— Não... digo... você costuma ir à igreja com eles? Foi isso o que o garoto
disse, não foi?
— Às vezes passo o domingo com eles. Vamos juntos a uma pequena igreja
a mais ou menos um quilômetro daqui. Fica no meio da floresta de pinheiros.
É singela, pobre e cheia de paz. Depois nadamos no lago ou jogamos bola. É
divertido.
— Uma espécie de família adotiva...
— Sim, acho que pode ser isso.
Rachel se comoveu. Este era um novo Tommy Lee a quem desconhecia
completamente. Alguém que abdicava da igreja da cidade, freqüentada por
toda a sociedade local, para ir a uma outra, modesta e pobre. Alguém que tinha
filhos de seu próprio sangue e, no entanto, jogava bola com um moleque
estranho. Alguém que odiava os pais, que não falava com eles, mas que tinha
uma grande afeição por uma família de negros que dirigia um restaurante
imundo nos subúrbios de Cedar Creek.
Tommy Lee era sofrido. Mas, ao contrário do que diziam, tinha um coração
grande, cheio de amor para dar. Não era aquele monstro gelado e calculista
que os boatos criaram. Até mesmo a vida alucinada, cheia de mulheres
vulgares, tinha um lado emocional diferente. Dentro daquele peito, batia um
coração solitário e carente.
Num relance, Rachel se lembrou de Gaines e Lily Gentry. Imaginou o
quanto sofriam por terem perdido o único filho, por estarem eternamente
condenados por um erro do passado.
— Tommy. — A voz dela veio suave e terna. — Por que não procura seus
pais?
Ele a olhou espantado com a inesperada pergunta. Acendeu um cigarro e
baforou, deixando que a fumaça subisse no ambiente já empesteado. Mas não
teve tempo de responder. Eugene vinha em sua direção.
— Com licença, madame. — Sentou-se na cadeira vaga e se virou para
Tommy Lee. — Aqui está mais uma prestação daquele empréstimo.
Com um certo orgulho, o negro colocou as notas amassadas em cima da
mesa, contando-as lentamente.
— Cinco, dez, quinze, vinte dólares.
— Obrigado. — Tommy Lee enfiou o dinheiro no bolso. — E como vai a
máquina de lavar pratos?
— Funcionando como um anjo. Toda noite, Dayse me agradece por não ter
que lavar toda a louça, como fazia antigamente.
Sem dizer mais nada, Tommy Lee escreveu alguma coisa no guardanapo e o
estendeu ao amigo.
— É o recibo? — Eugene perguntou.
— Isso mesmo. "Recebi do sr. Eugene Davis a quantia de vinte dólares
como parte do pagamento do empréstimo para a compra da máquina de lavar
louças." Assinei e coloquei a data embaixo.
— Obrigado. — Eugene guardou o papel no bolso do avental. — Vejo você
na semana que vem. Darrel me disse que virá no domingo. Traga a madame, se
quiser.
— Oh! desculpe, Eugene. Acho que ainda não a apresentei. Esta é Rachel,
uma velha colega de escola, meu primeiro amor.
Haveria um toque de ironia na voz de Tommy Lee? Sem se preocupar,
Rachel esticou a mão para o negro e sorriu.
— Prazer em conhecê-la, srta. Rachel. Gostou do bacalhau?
— O melhor que já comi.
— Então venha no próximo domingo. Agora tenho que voltar para a
cozinha. Obrigado, Tommy Lee. Até a semana.
— Eugene, prepare mais um drinque para mim, está bem? Para viagem —
Tommy Lee pediu.
Novamente sozinhos, Rachel não conteve a curiosidade.
— Se entendi bem, você emprestou dinheiro a ele para que comprasse uma
máquina de lavar pratos, não é?
— Exatamente. O coitado tentou conseguir um empréstimo no banco. Mas
bastou que o olhassem para chegarem à conclusão de que não merecia o
dinheiro. Uma pena...
Ambos sabiam que, como presidente do banco, o pai de Rachel era o
responsável pela aprovação dos empréstimos.
— Quanto custa uma máquina dessas? — ela perguntou, sem dar muita
importância. — Não pode ser muito cara.
— Seiscentos dólares.
— Seiscentos? E ele paga a você apenas vinte por semana?
— Isso quando pode. Às vezes só cinco ou dez dólares. — Ele respondeu
casualmente e, conferindo a conta, deixou uma boa quantia sobre a mesa, como
gorjeta.
Rachel pensou mais profundamente a respeito. Traçou um paralelo entre a
atitude fria e calculista do pai e a sensibilidade de Tommy Lee. E admirou-o
por isso. Na verdade, encantou-se com esse Tommy Lee que pouca gente
conhecia. Essa pessoa que ajudava os amigos e não se importava com
dinheiro.
Ao saírem, ele pegou o drinque no balcão, embalado num copo de plástico
transparente. Brindou a todos e educadamente abriu a porta para Rachel.
A noite estava escura, iluminada apenas pelas estrelas que enchiam o céu
de romance e poesia. O lago dormia quieto e mudo. As folhas das árvores se
moviam com a brisa.
— Desculpe, Tommy. — ela disse assim que entrou no carro. — Você tinha
razão. Eu estava julgando as pessoas antes de conhecê-las. Gostei de seus
amigos e, acima de tudo, gostei de você. Acho que estou descobrindo um novo
Tommy.
— É um erro comum nos seres humanos. Julgarem pelas aparências.
Confesso que também faço isso de vez em quando. Afinal, não podemos nos
culpar por isso. Somos filhos de nossos pais, não é?
— O que quer dizer com isso? Que sou uma réplica de Everett Talmadge?
— Já não sei dizer. — Ele ainda podia ver o espanto dela ao saber que
Eugene pagava somente vinte dólares por semana. — Faz muito tempo que não
estamos juntos. Mas espero que seu pai não tenha deixado marcas profundas
em sua personalidade.
— Ele não é tão ruim quanto você pensa. Cometeu erros, enganou-se, mas
ainda assim é uma boa pessoa.
— O que é uma boa pessoa, Rachel? Alguém que cuida da família, que não
lhe deixa faltar conforto e dinheiro? Talvez... Não estou aqui para julgar o
comportamento dos outros. Nem ao menos me considero capaz para tanto. O
que me choca é que seu pai não esquece nem por um instante que é.o poderoso
presidente do banco. Fica plantado em cima do pedestal, contando os lucros.
Jamais se curva para ver que algumas pessoas humildes precisam de ajuda,
que basta um pequeno empurrão e elas irão para a frente, para o alto. Duvido
que seu pai tenha pensado em verificar as qualidades morais de Eugene antes
de lhe negar o empréstimo. Contentou-se em olhar para as roupas amarrotadas
e logo concluiu que não valia a pena lhe dar seiscentos dólares, não importa o
quanto precisasse. Parece engraçado, não é? Eugene e Dayse são as pessoas
mais honestas e trabalhadoras que já conheci na vida e, no entanto, não têm a
confiança do banco. Realmente fico chocado com isso. Não é justo.
Rachel se calou. Não tinha nada a dizer. Ele estava completamente certo.
Muitas vezes se sentira da mesma forma em relação ao pai. Era um homem que
só tinha tempo para os interesses do banco. Era incapaz de fazer algo que não
lhe trouxesse algum lucro. Talvez por isso tivesse se saído bem na vida e
enriquecido.
Recostou a cabeça no banco e viu Tommy Lee acender um cigarro entre
dois goles da bebida. Aquilo a incomodava. Era estranha aquela sensação de
admirar e repudiar uma mesma pessoa. Ficava fascinada com as atitudes
humanas e sensíveis dele, mas detestava aquele cheiro de álcool e fumo.
Pensava em como estaria o corpo dele por dentro. O fígado provavelmente em
pedaços, lutando contra os terríveis efeitos da bebida. Os pulmões pretos e
doentes, sem fornecer oxigênio necessário para algumas braçadas no lago.
Dava pena! Um homem tão forte e bonito se deixar acabar pelo vício. Era
revoltante.
O automóvel cruzava rapidamente a estrada. Como sempre, ele dirigia com
pouco cuidado, velozmente e segurando o volante com uma das mãos. A outra
estava ocupada com o copo ou com o cigarro. Mesmo assim Rachel se sentia
segura.
Finalmente chegaram em frente da casa dele. Ele a acompanhou até o carro.
— Obrigada por tudo. Foi um dia maravilhoso — ela disse, procurando a
chave dentro da bolsa.
— Você vai voltar outra vez?
— Não sei... na verdade, vim até aqui porque estava me sentindo sozinha,
precisando de alguém para conversar. Mas aconteceu muito mais do que isso
e... é assustador. Não, Tommy, não creio que voltarei a procurá-lo.
— O que quer dizer com isso? Será que terei que fazer tudo de novo?
Segui-la? Cercá-la? Implorar?
— Não é mais fácil me esquecer?
— Você acha que não tentei durante esses malditos vinte e quatro anos? —
Havia um pouco de raiva na voz dele. Uma espécie de revolta e insatisfação.
— Mas você não me saiu da cabeça nem por um dia. O que quer que eu faça?
Que me sente, cruze os braços e espere?
— Bem, eu...
— Olhe aqui, Rachel, não sou mais aquele garoto assustado que deixou
quatro velhos malucos a arrancarem de mim. — Ele segurou os braços dela.
— Vou lutar por você desta vez. Mas preciso que me dê uma chance. Eu a
amo, Rachel. Nunca deixei de amá-la. É tão difícil assim de entender?
— Você não deveria falar desse jeito...
— Mas falo e para quem quiser ouvir. — Ele gritou: — Amo você! Amo
você, Rachel Hollis!
— Pare com isso, Tommy. Alguém pode escutar. — O estômago de Rachel
se contorcia. Nunca havia pensado que passaria por uma situação semelhante.
Mas, ao mesmo tempo, desejava ouvir aquelas palavras. Sim, tinha sonhado
com isso diversas noites, mesmo no leito nupcial. Agora, entretanto, tinha
medo.
— Você achou que podia entrar na minha vida apenas por uma tarde e
depois desaparecer? — Ele continuava falando alto, nervoso e agitado, sem
soltar os braços dela. Apertava-os com tanta força que chegava a doer. —
Você não vai me escapar outra vez. Não vou deixar!
— Largue-me, Tommy — ela implorou, temendo que as lágrimas viessem.
— Há muita coisa no passado que... que...
— Que nos impede de ficar juntos, não é? Pelo amor de Deus, Rachel,
pense um pouco. Se nós dois quisermos, se realmente desejarmos e lutarmos,
ainda poderemos ser felizes.
Imediatamente os lábios entreabertos dele se grudaram na boca de Rachel.
Desta vez a língua veio firme, dura, resoluta.
— Não... — ela sussurrou, procurando fôlego. — Não faça isso...
— Por quê? O que nos proíbe?
— Somos diferentes agora. Nossos estilos de vida simplesmente não
combinam. Não daria certo.
— Posso mudar, Rachel. Juro que sim. — Agora havia humildade e ternura
nas palavras dele. — Se você quiser...
De novo a boca dele, úmida e quente, procurou pela dela. As mãos fortes já
não apertavam com fúria os braços, mas os acariciavam com suavidade e
delicadeza.
— Não me beije — ela pediu com as poucas forças que lhe restavam. —
Vamos nos magoar outra vez. É besteira insistir, quando sabemos que não
daria certo. Por favor, Tommy, não me toque.
— Já disse que posso mudar — ele sussurrou, o cheiro da bebida chegando
ao nariz dela. — Serei do jeito que você quiser. Volte para mim, querida.
— Não ouse me beijar depois de seis drinques! — Agora era ela quem
falava com energia. — Eu não suportaria!
— Você contou? — Ele riu, embora se sentisse angustiado.
— Sim, contei um por um. Duas cervejas na lancha, três uísques no
restaurante e ainda por cima um não-sei-quê no caminho de volta!
— Sou capaz de parar de beber a qualquer hora. Só preciso de uma boa
razão para isso.
— Tommy, seu bobo. — Ela se desvencilhou dos braços dele. — Será que
não percebe? Ninguém precisa lhe dar um motivo para largar a bebida. Ê só
você querer. Todas as respostas estão dentro de nós. É inútil procurá-las em
outro lugar.
— Você é minha resposta...
— Não seja infantil. — Ela hesitou. — Não é só a bebida que me assusta. É
seu modo de vida. Essa sua casa, tão linda e luxuosa parece... parece... Oh!
Tommy, ela parece uma lata de lixo!
— Bem, não estava esperando visitas hoje, muito menos você.
— É exatamente isso o que estou tentando dizer. Visitas não deveriam
importar. Você devia manter a casa limpa por você, para sua própria
satisfação. Como consegue viver no meio de copos e cinzeiros imundos? E
não culpe seus pais também por isso. Eles o educaram muito bem. -
— Rachel...
— Você fala em começar outra vez, em mudanças. Ora, um bom começo
seria abrir aquela porta e varrer aquele chão. Abra as janelas, Tommy. Encha a
geladeira com coisas saudáveis e não apenas latas de cerveja e hambúrgueres
congelados. Ao menos, contrate uma faxineira!
— É tudo o que tem a dizer? — Ele disfarçou a vergonha.
— Tudo na sua vida está errado. Por que não faz exercícios físicos? Por
que não larga esse cigarro fedorento? Aliás, acho que está na hora de parar de
desfilar na frente da minha loja com aquele Mercedes branco. — Ela se calou
por um instante. — E, por favor, não se atreva a entrar na Panache para
comprar brincos vermelhos para uma de suas mulherzinhas!
Ele não evitou o riso e imediatamente Rachel se sentiu ridícula por tocar
naquele assunto. Mas, de qualquer forma, estava aliviada. Pelo menos tinha
botado para fora algo que a incomodava há muito tempo. Alguém precisava
falar a verdade para Tommy Lee, ainda que fosse dolorosa.
— Você acha que eu realmente gosto disso, Rachel? De dirigir como um
louco, de beber, de me ver transformado num homem sem esperanças e sem
destino? Você disse para não jogar a culpa em cima de meus pais pelo tipo de
vida que levo. Mas, na realidade, a culpa deles é grande. Foram eles que
deram nosso bebê, não foram? Isso acabou comigo, com minha alegria de
viver. Foi então que vieram a bebida, as mulheres, os casamentos falidos, os
filhos malcuidados... — Os olhos dele se cravaram nos dela. — Pensa que não
sei como a cidade inteira me chama? Tommy Lee Gentry, o perdido. É esse o
meu apelido, não é? Mas sabe de uma coisa? Não me importo: a mínima com o
que aquela gente engomada do Country Club pensa a meu respeito. Eu os
desprezo e abomino. Você é a única pessoa que me interessa.
— Você vive numa sociedade...
— Para o diabo a sociedade e suas hipocrisias. Foi por causa dela que
perdi nossa filha — ele gritou, cheio de rancor. Depois baixou o tom. — Sabe
por que não a levei para um restaurante fino de Florence? Por que a convidei
para sair de lancha, onde ninguém pudesse nos ver? Ah! Rachel, sei muito bem
o que essas malditas pessoas iriam dizer se nos vissem juntos. A elegante e
discreta viúva Hollis acompanhada do perdido. Eu não podia expô-la a uma
situação embaraçosa dessas, não é?
— Eu não me incomodaria...
— Ah! Você se incomodaria, sim! Dá valor a tudo isso. Qualquer um pode
saber os menores detalhes da sua vida e mesmo assim não encontrará um erro
sequer para comentar. Não tem importância, Rachel. Se para você é
imprescindível que eu aceite as normas sociais, eu mudarei. Farei qualquer
coisa por você.
— Não é tão simples assim — ela argumentou. — Não é o que as pessoas
pensam que me amedronta. Você realmente não é mais o mesmo. Alguma coisa
dentro de você está diferente e sei que é algo que eu não teria forças para
enfrentar.
— É mentira sua. Hoje, durante todo o dia, fiquei observando você. Percebi
seus olhos grudados nos meus, seu corpo me querendo, seu coração
acelerando toda vez que tentei beijá-la.
— Tommy, é melhor esquecermos tudo isso...
— De jeito nenhum! — Novamente ele a agarrou. Desta vez prendeu-a pela
cintura com um dos braços e a outra mão pousou firme na nuca dela. — Você
vai ser minha.
— Solte-me, não se atreva a...
Mas Tommy Lee não deixou que ela falasse. Apertou-a com força, fazendo
os corpos se unirem numa prisão deliciosa. As pernas se entrelaçaram, os
quadris se grudaram e, de repente, as bocas sedentas correspondiam aos
anseios mais secretos.
A língua de Tommy Lee veio como uma chama de fogo, ardente, enérgica,
invencível. Explorou freneticamente os detalhes da boca de Rachel, os dentes,
os lábios, em movimentos rápidos e experientes. A princípio, ela procurou se
esquivar, cerrando os dentes, mas não resistiu por muito tempo. O calor do
desejo tomou todo o seu coração em ondas que subiam e acalentavam seu
coração.
Foi um beijo... longo, erótico, exigente. Um beijo... selvagem, violento,
malicioso. Um beijo que marcaria definitivamente a vida de Rachel.
VII
A mudança de Tommy Lee começou bem cedo, no dia seguinte. Acordou
antes do habitual, calçou sapatos de borracha, vestiu short, enrolou uma toalha
no pescoço e, com muito boa vontade, saiu para correr e se exercitar.
Dez minutos depois, sentia-se miserável. Suava por todos os poros, o corpo
doía, assim como cada um dos músculos. Encostou-se numa das árvores e
tentou encher os pulmões de ar. Ofegava, percebendo o coração
descompassado.
Olhou para trás. Ainda avistava a casa. Quanto teria corrido? Cem,
duzentos metros? Era uma vergonha. Lembrou-se dos tempos em que cobria
diversos quilômetros sem observar qualquer alteração na respiração. Mas
agora estava num estado lastimável.
Arrastou-se de volta. Estava exausto. Enfiou-se debaixo do chuveiro, na
esperança de que a água quente lhe aliviasse a dor muscular. Quase desistia de
bancar o herói. O sacrifício era grande demais.
Porém, logo as palavras repreensivas de Rachel lhe vieram à memória:
"Você deveria nadar todos os dias, tendo o lago bem abaixo de sua casa".
Droga! Amava aquela mulher e tinha que provar que era capaz de se
reencontrar. Suspirando, meteu-se num calção e foi até o lago. Nadou alguns
metros, mas novamente sentiu-se à beira da morte. Não era fácil transformar
de uma hora para a outra todos os hábitos. Era mesmo a maior prova de amor
que podia dar a Rachel!
Mais tarde, telefonou para Liz Scroggins, avisando que chegaria bem tarde
no escritório. Depois, tomando fôlego, pôs-se a arrumar a casa. Não demorou
muito até que se desse por vencido. Jamais imaginou que fosse um trabalho tão
cansativo e pesado.
Faminto, procurou alguma coisa substancial na geladeira. Mas tudo o que
encontrou foram latas de cerveja, vodca, limão e besteiras congeladas.
Engoliu dois copos de água, embora sentisse mais necessidade de uma boa
dose de álcool.
— Diabos, Rachel Hollis, da próxima vez, eu a beijarei sem ter que brigar!
Desanimado, mas ainda resolvido a atingir os objetivos, dirigiu
rapidamente até a Codfish Corner.
— Dayse! — chegou lá em verdadeiro desespero.
— O que houve desta vez, bonitão?
— Preciso de duas coisas urgentes. Uma boa empregada e alguma coisa
para comer agora. Sem calorias. Acabo de iniciar um regime.
Imediatamente a negra lhe serviu verduras cozidas. Sem sal, sem óleo, sem
manteiga. Uma coisa horrível, que mal descia pela goela. Depois, telefonou
para a cunhada, que telefonou para a irmã, que falou com a prima em segundo
grau, a qual aceitou trabalhar para o sr. Gentry. Mas, claro, impôs uma série
infindável de condições. Queria sábados e domingos livres, condução para a
igreja, salário de duzentos dólares por mês e tantas outras coisas que Tommy
Lee quase desistiu. Antes do fim do dia, Georgine estava instalada na casa
dele. Ficou com um pequeno quarto, normalmente reservado para visitas, e
também com a chave do carro menor. Assim poderia ir ao supermercado.
Quando serviu o jantar, Tommy Lee teve vontade de se suicidar. Frango
cozido com legumes. Não tinha gosto de nada e a quantidade não dava nem
para um gato. Era de desanimar!
Maldito regime.
Mais tarde, naquela noite, já deitado, teve vontade de tomar um martíni
seco. Não foi fácil controlar, mas tinha que ser forte e mostrar a Rachel que
estava realmente disposto a mudar de vida. Pensou em telefonar para ela e
contar tudo o que havia feito durante o dia. Também precisava lhe pedir
desculpas pelas palavras cruéis que usara naquela vez em que estiveram
juntos. Afinal, insinuara que, assim como o pessoal do Country Club, ela se
importava com as opiniões dos outros. Não era justo! Mas não teve tempo de
ligar. Adormeceu vestido.
Na terça-feira, telefonou para a Panache, mas Verda informou
educadamente que Rachel não estava. Ele rosnou, com um mau humor
característico das pessoas que estão passando fome. Na quarta-feira, o ritual
continuou e as dores musculares também. Tentou novamente encontrar Rachel
na loja, mas a resposta foi a mesma.
— Como ela pode dirigir um negócio, se nunca está aí? — Foi a pobre
Verda quem ouviu o desabafo.
Na quinta-feira, ele se sentia o último dos homens. Se se abaixava, doía as
costas. Se andava, a barriga da perna parecia querer se soltar do resto do
corpo. O pior de tudo é que não conseguia falar com Rachel em lugar nenhum.
Nem em sua casa, nem na butique. Como ela podia ignorá-lo dessa forma?
Ainda mais depois de todo o sacrifício que ele vinha fazendo!
A sexta-feira encontrou-o ainda mais furioso. O estômago reclamava a falta
de comida, a boca implorava por uma gota de uísque. E a maldita Rachel não
atendia o telefone!
Finalmente decidiu comprar aquela briga. Iria à loja e pediria outro par de
brincos. Se ela queria brincar, ele aceitaria!

Rachel estava em Dálias participando da famosa feira de moda. Contatou


fornecedores, pediu descontos, lutou por cada centavo. Sua situação era
complicada, pois não podia comprar grandes quantidades. Numa cidade
pequena como Russellville, nenhuma mulher ficaria alegre em ver seu modelo
no corpo de outra.
Dálias estava quente, seca e solitária. À noite, ela ia para o hotel e jantava
no próprio quarto. Lembrava-se sempre de Tommy Lee, especialmente no final
do dia, quando se enfiava na camisola, ligava o rádio e deitava na cama larga.
Será que ele tinha construído aquela casa tão linda pensando nos planos que
ambos tinham traçado juntos no banco traseiro do carro, mil anos atrás? Tudo
levava a crer que sim. Parecia loucura. Como podia um homem levantar um
monumento daqueles para uma mulher casada com outro?
Pensou nele, morando naquele imenso casarão vazio, rodeado por sonhos e
esperanças que nunca se concretizariam. Ele tinha mesmo esperado, dia após
dia, ano após ano, que ela ficasse livre de novo?
Lembrou que aquela tarde, depois do passeio no lago, quando entraram em
casa para trocar de roupa e irem ao Codfish Corner, ele parou no pé da
escada, olhou-a bem fundo nos olhos e disse de uma forma doce, meiga,
adorável: "Você não imagina quantas vezes sonhei em vê-la aqui nesta casa,
exatamente como agora".
Ela não respondeu. Foi um momento de magnetismo e magia. Mais um, num
dia repleto de surpresas e emoções. Teve vontade de dizer que havia
reconhecido aquela casa, que sabia que era a mesma que um dia tinham
planejado ter, mas preferiu ficar calada: Mais uma vez o medo a venceu.
Talvez, se tivesse seguido o impulso, não resistisse e pedisse para ver o
quarto do terceiro andar. O quarto de Tommy Lee. O quarto que podia ser dos
dois.
Rachel voltou a Russellville no sábado. Estava cansada da viagem e dos
negócios. Mas o mau humor piorou quando soube que Tommy Lee havia
telefonado diversas vezes para a loja e, pior que isso, tinha passado por lá
para comprar um novo par de brincos. Rosa-choque, dessa vez.
Naturalmente, Verda descobriu que Tommy Lee e o homem do telefone, que
jamais dava o nome, eram a mesma pessoa. A situação ficava delicada. Verda
tinha boca grande, a língua comprida e não hesitaria em espalhar para a cidade
inteira o que estava acontecendo.
Aborrecida, Rachel resolveu ir ao cabeleireiro. Talvez fosse uma fraqueza
feminina, mas toda vez que se sentia chateada precisava se arrumar. Mudou o
penteado, para um corte mais exótico e mais jovial. Saiu do salão um pouco
mais animada.
Resolveu não trabalhar durante a tarde. Afinal, tivera uns dias agitados em
Dálias. Merecia umas horas de descanso.
Como o dia estava claro e o sol brilhava quente, vestiu um maiô e foi para
a piscina. Colocou um velho chapéu para proteger o penteado e se estendeu
numa espreguiçadeira. Começou a ler um romance, mas foi logo interrompida
por uma voz alta, zangada, que vinha bem do seu jardim.
— Posso saber por que diabos você não atende a campainha? — Tommy
Lee vociferava. Usava calça de brim e camisa xadrez e parecia furioso.
Ela se virou rapidamente, cobrindo o corpo com a toalha. Pensou no chapéu
sobre a cabeça. Devia estar horrível! O creme que passara no rosto, o maiô
antiquado, folgado demais...
— Como entrou aqui?
— Pulei a cerca como um garoto levado, depois de tocar mais de dez vezes
a porcaria da campainha.
— Não ouvi nada.
— Nem os trinta e sete telefonemas que fiz durante os últimos dias? Que
droga, Rachel, como uma pessoa pode entrar em contato com você? O que fez
esse tempo todo? Ficou aí estirada, sem se importar se o mundo estava
desabando do lado de fora?
Rachel se levantou, fingindo calma. Ajoelhou-se ao lado da piscina e
brincou com a água fria. Não via motivos razoáveis para dar atenção a ele.
Afinal, tinha invadido sua casa, gritando feito um louco. Era mesmo um
malcriado!
— Fale comigo, Rachel! — ele continuou, irritado.
— Não o convidei para vir aqui. Por favor, vá embora.
— Vá para o inferno, Rachel Hollis! — Ele ainda sentia os músculos
doloridos. Já tinha perdido dois quilos e se envaidecia como se fossem vinte.
Tudo isso por uma mulher que teimava em não ser agradável. Ela nem ao
menos havia notado! Droga!
— Você vai comigo ao Codfish Corner amanhã — ele anunciou no mesmo
tom irado.
— Eu?
— Você também foi convidada, lembra-se?
Ela não alterou o comportamento. Nem olhava para aquele homem mal-
humorado e sem educação.
— Rachel... — Ele se aproximou. — Passei a semana inteira procurando
você para dizer que já estou mudando minha vida e também para pedir
desculpas por algumas coisas que disse. Que droga! Por que diabos não
atendeu o telefone?
Ela continuou impassível.
— Quer fazer o favor de prestar atenção no que estou dizendo! Largue essa
porcaria de água por um instante!
— Já disse que não admito que entrem assim na minha casa. Saia, Tommy.
— Você é mesmo uma mocinha do Country Club, não é? Uma garotinha de
sociedade, esnobe, fresca e metida. Droga. Mil vezes droga!
— Sabe quantas vezes já me xingou desde que colocou os pés aqui? — Ela
tentou manter a mesma frieza, mas já estava ficando irritada.
— Você precisa é de umas boas palmadas para aprender a respeitar os
outros. — Ele se aproximou tanto que Rachel ficou com medo de apanhar.
Tommy Lee não ousaria, não ousaria...
Mas ele estava fora de si. Os olhos pareciam saltar das órbitas. Claro que
não bateria em Rachel. Nunca teria coragem de machucá-la, por mais furioso
que estivesse. Ainda a via como uma flor delicada e frágil, apesar da
personalidade firme e do seu jeito irônico de encará-lo. Mas lhe daria uma
lição.
Num golpe certeiro, empurrou-a para dentro da piscina. Rachel tombou
como um pesado saco de batatas. Afundou até encostar os joelhos no fundo.
Engoliu água, voltou à tona tossindo.
— Meu cabelo! — foi a primeira coisa que conseguiu dizer. — Paguei
vinte dólares para arrumá-lo e veja o que você fez. Seu estúpido!
Ficou vermelha de tanto ódio. Tinha vontade de trucidar aquele idiota, sem-
vergonha! Maldito fosse!
Embora continuasse zangado, Tommy Lee não pôde deixar de rir ao vê-la
naquele estado. O chapéu vermelho flutuava na água todo amassado e
desmantelado. O creme branco que tinha no rosto estava misturado ao rímel
preto e lhe descia pelo rosto inteiro. Rachel, pela primeira vez na vida, estava
horrível. Já não era a magnífica viúva Hollis que desfilava imponente pelo
clube. Agora não passava de uma mulher comum. Do jeito que ele mais
gostava.
— Você ri, porque as hienas riem de tudo! — ela esbravejou, debatendo-se.
E ele riu mais ainda. Mas acabou escorregando e caindo na piscina.
Sapatos, meias, calça, camisa... Tommy Lee se molhou inteirinho. Nem um
centímetro do corpo escapou.
— Saia imediatamente da minha piscina — ela gritou. — Saia daqui!
— A última vez que a vi tão zangada foi há muito tempo, você se lembra?
— Ele ainda se divertia a valer. — Tinha treze anos e lhe perguntei se já tinha
ficado menstruada alguma vez. Você ficou tão corada que pensei que seu rosto
fosse explodir. Depois, me acertou um tapa no rosto e disse que nunca mais
queria me ver, que me odiava. Não passou um ano e dizia que me amava e me
beijava feito uma gata assanhada ...
— Você é mesmo um perdido! A cidade inteira tem razão. Não entendo o
que as mulheres vêem em você...
— Quer que lhe mostre? — A malícia foi evidente.
— Fique longe de mim, seu maníaco sexual! E vá embora da minha casa!
— É isso mesmo o que vou fazer. Não posso ter qualquer tipo de interesse
por uma mulher que não tem carne, apenas pele sobre osso...
— E eu também não gosto de homens barrigudos e flácidos!
Tommy Lee fingiu não escutar. Feito um molambo, saiu da piscina, deixando
uma poça por onde passava. Antes de ir embora, tirou algumas notas da
carteira e as colocou sobre a mesa.
— Vinte dólares? É isso o que você falou, não é? Aqui está. Vá ao
cabeleireiro novamente. Adeus, magrela.
Magrela... era só o que faltava! Aquele idiota tinha vindo fazer o que em
sua casa? Insultá-la? Não bastava chamá-la de garotinha de sociedade?
Magrela era demais...
Depois pensou melhor. Ele tinha vindo ali para mostrar que mudara de
vida. Foi isso o que disse. E ela, por que nem se importou? Por que não lhe
deu uma chance?
Droga! Estava mesmo confusa.

Na segunda-feira de manhã, um pacote chegou pelo correio em nome de


Rachel. Curiosa, ela o abriu imediatamente e encontrou um secador de cabelos
e um bilhete: "Aprenda a arrumar os cabelos sozinha e então estará preparada
para o imprevisto".
Não tinha assinatura.
Bem, nem precisava!
Indignada, ela o embrulhou outra vez e o mandou de volta. Também não
esqueceu de escrever uma nota, igualmente sarcástica: "Use-o você mesmo
para secar suas roupas, quando cair na piscina de outra mulher".
Na outra semana, quando Rachel chegou em casa, encontrou um imenso
buquê de rosas brancas intercaladas com galhos de pinheiro.
"Desculpe. Rachel", dizia o cartão. "Descobri que você estava em Dálias.
Quer jantar em minha casa na sexta-feira?"
Ela guardou o cartão no bolso, para evitar a curiosidade de Callie Mae. A
mulher esticava os olhos e procurava descobrir alguma coisa na expressão de
Rachel. Mas de nada adiantou. Rachel controlou todos os músculos para
parecer fria e indiferente.
Durante toda a semana, Tommy Lee esperou ansioso pela resposta, que não
veio.
Sentiu-se um tolo. Há dias vinha comendo a comida sem gosto, sem
calorias e sem gordura de Georgine. Corria e nadava todas as manhãs. A
barriga já não saltava na roupa. Os músculos pareciam mais rijos e fortes.
Nem uma gota de álcool, nem um cigarro além da cota de quinze estabelecida.
Afinal, por que estava fazendo tudo isso? Por uma mulher que não lhe dava a
mínima? Valeria a pena? Ou era um idiota lutando pelo impossível?
— O mundo está cheio de mulheres — ele falou consigo mesmo no caminho
para casa, depois de uma reunião com clientes. — Por que insistir com uma
que só me diz não? Olhe para os lados, rapaz. Em cada esquina há uma mulher
bonita, louca para ter um homem. Será que nenhuma delas o atrai? Seu
problema, meu caro, é que nunca procurou uma do tipo decente. Procure a
mulher certa e não terá problemas.
Desviou o trajeto. Quando percebeu, parava em frente à casa de Liz.
— Sr. Gentry... — Ela ficou espantada ao vê-lo.
Tommy Lee sorriu. Realmente Liz Scroggins era uma mulher de classe. Sem
as roupas de trabalho, formais e clássicas, ficava ainda mais atraente. Naquela
noite, usava calça justa de algodão, que combinava com o tom suave da blusa
de mangas curtas. Tinha os cabelos loiros soltos, descendo até alcançarem os
ombros, e nenhuma maquilagem nó rosto claro. Exalava um perfume delicado.
— Quer jantar comigo? — ele foi direto ao assunto.
— Hoje?
— Por que não? Trabalhamos juntos há seis anos e nunca tivemos
oportunidade de sairmos. Além disso, tenho andado meio nervoso ultimamente
e é você quem agüenta meus maus humores. Acho que merecemos um belo
jantar num restaurante requintado.
— Não sei... Os meninos estão em casa e certamente não encontrarei
alguém que fique com eles.
— Deixe-os com seus pais.
— Bem...
— Volto para apanhá-la daqui a meia hora, está certo?
— Não quer entrar e esperar aqui dentro?
— Ainda vou tomar um banho — Ele sorriu mais alegre. — Estamos
combinados, então?
— Vou dar um jeito nas crianças.
Jantaram num excelente restaurante mexicano. Pela primeira vez em muitos
dias, Tommy Lee apreciou a comida. Tinha se livrado da dieta de Georgine. E
certamente ganhou algumas gramas que havia perdido com muito esforço. Mas
não pediu nenhuma bebida alcoólica.
Durante a refeição a conversa foi animada e cheia de sorrisos sinceros. De
vez em quando seus olhos se encontravam, revelando a tensão sexual que os
atraía há anos. Mas não era só isso. Descobriram que gostavam do mesmo tipo
de filmes e teatros. E também das mesmas músicas. Contaram casos antigos,
lembranças dos tempos de infância. Discutiram política e esporte. Liz
dominava com facilidade e graça qualquer assunto. Normalmente concordava
com ele. E sorria o tempo todo. Era uma companhia extremamente agradável.
Passava das duas da manhã quando a deixou em casa. Nem tinha sentido o
tempo passar.
— Obrigada, sr. Gentry. Foi um jantar maravilhoso e uma noite
inesquecível.
— Não acha que já é tempo de mudarmos esse tratamento formal? — ele
adocicou a voz, como fazia com todas as mulheres. Era uma tática infalível. —
Por que não me chama simplesmente de Tommy Lee?
— Eu não poderia...
— Hoje não sou o patrão, mas seu amigo, Liz... um amigo especial, que a
quer muito bem.
— Nesse caso, obrigada novamente... Tommy Lee. — Ela enfiou a chave na
fechadura.
— Já vai entrar?
— Tenho que estar no escritório às oito amanhã. Meu chefe é muito
exigente.
— Garanto que ele não se importará com um pequeno atraso, Tommy Lee
reparou que a expressão dela mudou..O sorriso desapareceu dos lábios, dando
lugar a uma sensualidade que se revelou no rosto. Era evidente que estava
envolvida, que desejava um contato mais íntimo com ele. Na verdade, há
muito tempo ambos se sentiam atraídos. Já era hora de verificar o que
realmente existia.
Lentamente, Tommy Lee a tocou no pescoço, trazendo-a até bem perto.
Fechou os olhos e encostou os lábios nos dela, numa carícia leve.
Porém, Liz era honesta o suficiente para se afastar.
— Não... acho que não — ela disse como se estivesse respondendo a uma
pergunta.
— O quê?
— Não é isso o que você quer.
— Não?
— Não, não é. — Ela balançou suavemente a cabeça admitindo sua
frustração. — Sei que tanto eu quanto você passamos muito tempo querendo
saber o que sentíamos em relação ao outro. A atração sempre foi inegável.
Mas agora tenho certeza de que não é a mim que você quer. Há outra mulher...
— Quem?
— Rachel Hollis.
— Como sabe? — ele se espantou.
— Eu o conheço bem. Afinal, são seis anos de convivência diária. Além
disso, já observei diversas vezes você se esconder atrás da janela na hora em
que a sra. Hollis ia ao banco. Sei que ficava seguindo cada passo dela,
olhando-a de longe, desejando-a sem poder se aproximar. Há um certo modo
de olhar... um jeito... você sabe, quando um homem está apaixonado...
Tommy Lee estava chocado. As mulheres eram mesmo surpreendentes. Liz
parecia ler o pensamento dele, penetrar sua alma, descobrir os segredos mais
bem guardados.
— Ultimamente vi que conversou com ela algumas vezes na rua — Liz
continuou. — E, sempre que isso acontecia, voltava para o escritório com ar
de frustração. Isso só pode ser amor.
Tommy Lee tentou dizer alguma coisa. Mas que palavras usaria para uma
mulher que acabara de beijar e que sabia que ele amava outra?
— Não se sinta culpado. — Novamente ela leu o pensamento dele. — Não
estou me sentindo mal pelo que aconteceu entre nós. Era importante fazermos
este teste. Mas sou só uma substituta e isso não me satisfaz. Prefiro continuar a
ser uma boa secretária do que uma fraca substituta.
— Nunca pensei que você fosse tão perspicaz — ele balbuciou, meio
encabulado.
Liz perdeu todo o ar erótico e sensual. Num instante, voltava a ser a velha
amiga compreensiva e cordata. Era assim que os olhos de Tommy Lee a viam.
E ficava feliz por isso.
— Quer falar a respeito? — ela sugeriu. — Por que não entra um pouco?
Faço um café delicioso e as crianças não estão em casa.
Ele aceitou. Seria bom discutir com uma pessoa imparcial. Depois, há
muito tempo resolvia os próprios problemas sozinho. Seria excelente ouvir
uma palavra amiga.
Sentou-se num sofá de dois lugares, que ficava de frente para uma janela
grande. Liz fez café e logo se pôs a seu lado.
— Então... não tenho razão? — Ela deu um gole. — É Rachel Hollis que
quer, não é?
— Sim, mas acho que não ando com sorte. Ela está me evitando.
— E você está pensando em desistir...
— Às vezes fico desanimado.
— Nem parece o mesmo Tommy Lee Gentry que conheço. Você nunca parou
no meio do caminho. Sempre encontrou forças para lutar e vencer. Lembra-se
daquele terreno do lado norte da cidade? Ninguém acreditava que seria seu.
Mas você foi em frente, galgou cada centímetro do caminho, gritou, brigou e
conseguiu.
— Com as mulheres não é tão fácil assim.
— Você é a última pessoa no mundo que tem o direito de falar isso. Sei
muito bem quantos nomes femininos estão em sua agenda de telefones.
— Oh! Liz... o problema é que Rachel é diferente das outras. Simplesmente
não consigo forçar uma situação. Quero ser sincero, honesto, ser o que
realmente sou. Quero que me aceite como sou, entende? Mas acho que ela está
se deixando levar pela imagem que criaram de mim. Não está olhando para
dentro dos meus olhos, não.quer saber como é meu coração. Nem sei... quanto
mais falo, mais confuso me parece.
— Ela o ama?
A pergunta o pegou de surpresa. Muitas vezes tinha procurado a resposta e
até hoje ainda não tinha certeza.
— Sim, acho que sim — disse por fim.
— Então, ela está com medo.
— Medo?
— Claro! Olhe só para seu passado. Veja quantas mulheres já passaram por
suas mãos. Isso assusta qualquer mulher decente. Ninguém quer se arriscar a
ser mais uma na vida de um homem.
— Bem, não posso mudar o que já está feito.
— Mas pode lutar por ela. Se ela realmente o ama, deve estar querendo
apenas mais segurança. Não quer se entregar sem ter certeza de ser amada, de
não passar de mais uma em sua vida. Não desista.
— Você acha?
— Tenho certeza.
Tommy Lee levou aquela frase até em casa. "Não desista. Mostre quem
realmente você é. Prove que a ama com sentimentos verdadeiros e sinceros."
Confiava em Liz. Afinal, era uma mulher inteligente e sensível. Ou melhor,
uma feiticeira que lia pensamentos.

Quando Rachel chegou em casa no dia seguinte encontrou um saco plástico


preto em frente à porta de entrada. Parecia lixo. Intrigada, apalpou-o.
Alumínio? Latas? Abriu-o. Duas latas de cerveja vazias e um bilhete. "Você
venceu, Rachel. Não bebo mais. O que mais tenho que fazer para conquistar
sua confiança?"
Nem o secador de cabelos, nem as flores tiveram o mesmo efeito. Quando
ela se deu conta, estava chorando. Abraçou as latas como se fossem jóias.
Segurou-as bem perto do peito, ainda que fossem velhas e sujas. Aquilo
representava uma mudança real na vida de Tommy Lee. Um esforço que fazia
para se aproximar dela. Era maravilhoso.
— Ouvi o barulho do carro... — Callie Mae abria a porta quando viu os
olhos molhados de Rachel. — O que aconteceu? O que são essas latas?
— Oh! Callie Mae... Minha vida está toda errada...
— Não há nada de errado, minha pequena. — A mulher segurou-a pelo
braço numa atitude carinhosa. — Você vai entrar e contar tudo para mim.
— Não... não posso. — Rachel se levantou, mas as lágrimas não cessaram.
As latas continuavam apertadas em suas mãos.
— Claro que pode. Comece me dizendo o que significam essas latas sujas.
— Um presente... um presente de Tommy Lee.
— Hum... então é isso. Não precisa dizer mais nada. Sei o que sentem um
pelo outro. Sempre soube.
— Mas não vai dar certo. É impossível. — Rachel caiu nos braços da
velha. Não tinha forças para se controlar. — Ele é um conquistador. Todos
sabem disso...
— Dos piores...
— E não conseguiu segurar nenhum dos três casamentos. Nenhum...
— É bem verdade.
— Não vai à igreja há anos. — Isso Rachel sabia que era mentira, mas
ajudava a desabafar.
— Pelo menos uns quinze...
— E dirige como um louco...
— É... aquele Tommy Lee não toma jeito. — Callie Mae acariciava
ternamente os cabelos de Rachel. Tinha a voz pausada, suave e meiga.
— Você precisa ver a casa dele. Parece um cesto de lixo! Uma imundície!
— É mesmo?
— Está vendo, é impossível conviver com um homem assim. Não quero
nada com ele. Juro que não. — Rachel chorava e soluçava, mas as palavras
não eram convincentes.
— E minha pequena Rachel também tem que se lembrar que o sr. Owen
morreu há muito pouco tempo. — O tom de Callie Mae era o mesmo. Quente e
reconfortante. — E seu pai morreria de desgosto se soubesse que você e
Tommy Lee estão se encontrando novamente. E todos nós sabemos que a
Bíblia Sagrada nos ensina a respeitar pai e mãe, sem perguntar se estão certos
ou errados. E você sabe que o sr. Everett é um dos homens mais dignos da
cidade. Dirige o banco, dá conselhos, tudo com muita seriedade. A palavra
dele é muito importante. Pena que não tenha muitos amigos, não é? Bem, de
qualquer forma, dizem na cidade que você está saindo a ele. Também é
respeitada por todos, não é? Não é fácil deixar tudo isso, só por causa de um
homem como Tommy Lee. Você só tem a perder. Precisaria de muito amor,
muito amor, pequena Rachel.
Callie Mae tinha um modo diferente de mandar mensagens. Costumava falar
o contrário e Rachel compreendeu onde a velha queria chegar. Não, ela não
queria ser como o pai.
Tommy Lee era um conquistador, mau marido, mau motorista, mau
religioso... era preciso muito amor para aceitá-lo. Muito amor.
VIII
Para total surpresa de Rachel, Tommy Lee apareceu na igreja na manhã do
domingo seguinte. Estava parado bem perto da porta principal que se abria
num imenso arco. Ao vê-lo, Rachel tropeçou nos degraus. Reparou que ele
usava óculos novos, semelhantes aos antigos, mas com lentes mais claras.
Sentiu o rosto corar. Não tinha mais idade para isso! Era ridículo! Mas, por
uma razão inexplicável, simplesmente não conseguiu tirar os olhos dele.
Tommy Lee estava deslumbrante. Lindo, arrebatador. A pele mostrava um tom
bronzeado e saudável. Parecia mais magro naquele terno azul-claro. Estava
absolutamente irresistível.
Não soube dizer quanto tempo ficou paralisada, olhando-o fixamente, até
que percebesse a morena a seu lado. Era alta, esguia, de modos delicados e
femininos. Tinha cabelos compridos e lisos, que desciam até quase a cintura.
Usava um vestido discreto, de linhas retas, num tom leve de rosa. Era linda e
evidentemente adorava aquele homem. Parecia orgulhosa de estar a seu lado.
Pousava ternamente o braço no dele, com evidente carinho.
A brisa soprou mais forte e os cabelos da morena esvoaçaram como uma
nuvem leve. As orelhas pequenas e bem delineadas apareceram, e nelas, duas
contas vermelhas. Os brincos! Os malditos brincos!
"Oh! Não..." Rachel congelou por dentro. "Essa tem idade para ser filha
dele..."
Logo depois, a garota fez um trejeito com os lábios que fazia lembrar Lily
Gentry. E os olhos? Eram redondos, espertos, do mesmo tom castanho-claro
dos de Tommy Lee.
Rachel respirou fundo e sentiu o coração acelerar. Aquela menina, tão
suave e delicada, podia ser sua filha, em outras circunstâncias. Era Beth!
Ordenou às pernas que se movessem. Mas elas continuaram imóveis. Sabia
que metade da cidade a observava. Era terrível. Pensou em disfarçar, sorrir,
qualquer coisa, mas simplesmente não teve forças para mover um músculo
sequer. Apenas os olhos se fixavam ora na linda Beth, ora em Tommy Lee.
Nesse instante, Everett Talmadge se aproximou. Tinha acabado de
estacionar o carro, e ao ver a filha ficou nervoso, não escondendo sua
desaprovação.
Felizmente Tommy Lee e Beth entraram na igreja.
— Rachel, pelo amor de Deus, mexa-se — o pai falou em tom aborrecido.
— Todo mundo está olhando.
Era verdade. Dezenas de pares de olhos curiosos se voltavam para a porta,
para a figura pálida e desconcertada de Rachel. Ela se aprumou, apoiou-se no
braço do pai e caminhou pelo corredor da igreja, escolhendo um banco na
frente. Nunca o culto demorou tanto. Rachel não conseguia se acomodar,
estava agitada, sem encontrar posição para as pernas e mãos. De vez em
quando procurava Tommy Lee. Por fim, percebeu que estava dois bancos mais
atrás. Everett a cutucou nervoso...
Como sempre, Gaines e Lily Gentry assistiam ao sermão. Pobres coitados...
certamente estavam atônitos por verem o filho lá depois de tanto tempo. E a
neta também. Deviam sofrer terrivelmente por não poderem trocar uma
palavra com eles. Finalmente os fiéis se retiraram pelo corredor central.
Everett não soltava o braço da filha, numa espécie de prisão. Mas ela teve
tempo de ver Tommy Lee passando reto diante dos pais, como se não os
conhecesse. Beth hesitou, entretanto. Certamente confusa, mas seguiu os passos
do pai e entrou no Mercedes branco parado bem em frente.
— O que está havendo entre você e Gentry? — Everett perguntou assim que
ligou o motor.
— Nada...
— Nada? Ora, Rachel, não pense que nasci ontem. O que significou então
aquela cena patética nas escadarias da igreja?
— Que cena, papai? Nem ao menos falei com Tommy Lee.
— Nem precisava. Pode estar certa de que amanhã a cidade inteira estará
comentando.
De repente as palavras de Callie Mae vieram ao pensamento de Rachel. O
pai era mesmo um homem respeitado e fazia qualquer coisa para manter a
reputação. Também se lembrou do que Tommy Lee havia dito. Não, ela não
queria ficar igual ao pai.
— A cidade, a cidade... — reclamou, revirando os olhos. — É só nisso que
você pensa, não é? Ninguém tem nada a ver com minha vida. Não me importo
com o que digam.
— Não seja tola, minha filha. Você é uma das pessoas mais respeitadas de
Russellville e...
— Pare com isso... Não acredito nas mesmas coisas que você...
— Pois é melhor não ver mais Tommy Lee Gentry, entendeu o que eu disse?
Não o veja mais. Nunca mais.
Foi uma ordem. O pai seria sempre assim. Autoritário, voluntarioso, um
vencedor. Nem notara que o tempo tinha passado e que agora a filha tinha
quarenta e um anos, era viúva e dona do próprio destino.
— Não tenho dezessete anos, pai. Já sei o que fazer de minha vida.
— Não importa quantos anos tenha, ainda é minha filha. Tenho a obrigação
moral de impedi-la de fazer bobagens. — Ele desviou o olhar da avenida por
um instante. — Compreenda, Rachel, seu marido morreu há pouquíssimo
tempo e você está se metendo com um... um... tipo perdido como aquele
Gentry!
— Por que você acha que ele ficou assim?
— Não é isso o que estamos discutindo.
— Não? — Ela sorriu com desprezo e ironia. — Sabe o que estamos
discutindo? Que o fabuloso presidente do maior banco da cidade não pode ter
uma filha que se envolva com o louco Tommy Lee Gentry!
— Admite que está tendo um romance com ele?
— Não foi isso o que eu disse, mas, se quiser, posso me envolver com
qualquer homem de Russellville ou do mundo. Sou uma mulher livre, lembra-
se?
— Mas esse Gentry não vale nada... Bebe como um marginal, casou-se três
vezes...
— Não é esse o problema e você sabe muito bem disso. Você tem medo de
que eu e Tommy fiquemos juntos novamente, porque isso o obrigaria a
enfrentar sua própria culpa.
— Minha culpa? — O velho ficou indignado. Gesticulava sem parar. —
Vocês dois desgraçaram minha vida uma vez e acham que não foi suficiente?
Ainda tem coragem de dizer que a culpa é minha?
— Pois saiba que foi você quem desgraçou a nossa vida. — Ela procurou
manter a calma. Aquele assunto era uma amarga tortura. — Foi exatamente o
que fez, quando me mandou para Michigan, alegando que o que tinha
acontecido era imperdoável, sujo e nojento. Para mim e para Tommy, não foi
sórdido ou imoral. Foi bonito, papai. Nós nos amávamos.
— Fiz o melhor, fizemos o que achamos melhor para todos — ele se
justificou, de maneira evasiva. Desta vez, não olhou para a filha.
— Então, por que nunca mais falou com os Gentry? O que aconteceu, afinal
de contas? Tenho o direito de saber, não acha?
O pai não respondeu. Estacionou o carro em frente à casa de Rachel e abriu
a porta para que ela descesse.
— Não podemos falar sobre isso? — ela pediu, em tom de súplica.
— Não há nada a dizer.
A resposta foi simples, direta e não deixou margem para argumentos. Um
minuto depois a limusine preta partia.
Rachel ainda se sentia deprimida naquela tarde, quando Marshall apareceu
para a costumeira visita do domingo.
— O que houve com você? — Imediatamente ela percebeu a expressão
melancólica do amigo.
— Tive uma briga horrível com Carolyn.
— Uma briga? — Ela nem acreditou. Era impossível imaginar que o
cordial Marshall conseguisse levantar a voz para alguém, especialmente para
a filha.
— Estou precisando de companhia. Não quer dar uma volta? — ele disse,
de cabeça baixa.
Rachel não podia negar, embora preferisse ficar sozinha com os próprios
pensamentos. Sua vida andava confusa, e hoje havia tido uma manhã bastante
conturbada. Mas devia atenção a Marshall. Afinal, fora ele quem a ajudara nos
momentos mais difíceis. Acabou por concordar.
Ele dirigia com cuidado e pegou a avenida Phill Campbell, do lado sul da
cidade. Quando virou à direita em direção ao parque Dismals, Rachel o olhou,
curiosa.
— Dismals? É um lugar tão triste...
— Há anos não vou lá. E você?
— Desde que era criança.
— Importa-se de caminharmos um pouco entre as rochas?
— Não, claro que não.
Passaram pelo guarda, pagaram a taxa e entraram no vasto parque, todo
cortado por vielas estreitas e sinuosas. Era um lugar silencioso, pacífico e
triste, onde a vegetação abundante se confundia com as rochas escuras. À
direita, ficava o pequeno museu, uma construção antiga, com janelas e portas
de madeira escura.
A brisa era suave e refrescante. O sol descia no céu, anunciando o fim do
dia com tons avermelhados, num quadro raramente igualado. O cheiro forte de
musgo parecia penetrar os pulmões, limpando-os de todas as impurezas da
cidade.
Pararam o carro ao lado da rocha Grotto, a maior delas, cujo interior era
oco e tinha servido de abrigo para os primitivos há mais de dez mil anos.
Sentaram-se num tronco de árvore caído no chão, que media pelo menos
cinqüenta centímetros de diâmetro. Lá perto passava um riacho límpido que,
na época da cheia, fornecia água para o lago ao lado da casa de Tommy Lee.
Marshall estava evidentemente nervoso. Entrelaçava os dedos, estalava-os
e agitava a cabeça sem parar.
— Desabafe, meu amigo — ela o incentivou. — O que aconteceu entre
você e Carolyn?
Ele suspirou fundo e não respondeu. Olhou-a com o canto dos olhos, como
se não tivesse coragem de falar. Por muito tempo ficou em silêncio e Rachel o
respeitou. Observava-o com carinho, sabendo que estava sofrendo.
— Rachel... ouvi uma coisa hoje que me deixou completamente perturbado.
— Sim...
— Bem, pode ser apenas um boato. Sabe como são as cidades pequenas.
—- Sim...
Ele parou novamente, embora Rachel tivesse se esforçado para deixá-lo à
vontade. Não a encarava, não sorria nem se mexia. O coitado parecia mais
uma rocha, cravado no meio do parque.
— Bem... — Por fim, ele tentou um tom sério, mas tudo o que conseguiu foi
melancolia na voz. — Ouvi dizer que você anda saindo com Tommy Lee
Gentry.
— Quem lhe contou isso?
— O carro dele foi visto em frente a sua casa.
— Sou amiga de Tommy há muitos anos — ela falou, o mais friamente
possível.
— Não importa... sabe que tipo de gente ele é, não sabe?
Subitamente, Rachel se revoltou com aquela expressão. Já estava cansada
de ver dedos acusadores apontando para o nariz de Tommy Lee. Todos,
naquela maldita cidade, sempre que podiam o caluniavam e censuravam,
jamais se interessaram em saber o que ia dentro do seu coração, jamais
desconfiariam que do outro lado do lago ele ajudava uma família pobre de
negros e que ia à igreja regularmente. Era mais fácil e mais divertido
chamarem-no de perdido.
— Não, Marshall, não sei que tipo de gente ele é. Poderia me explicar? —
Havia desprezo e uma ponta de raiva nos olhos dela.
— Ora, todos sabemos que teve mulheres de todos os cantos da região.
Nunca levou a vida a sério. Casou-se nem sei quantas vezes, só por
brincadeira, só para se exibir. Ê um louco, um...
— Por acaso foi meu pai que mandou você falar essas coisas para mim?
— Não! Claro que não. Ouvi comentários na cidade e não acreditei. Por
isso estou aqui. Para ouvir a verdade clara e direta da sua própria boca.
Agora Rachel percebia o motivo da briga dele com a filha. Provavelmente
Carolyn, jovem e com um coração feminino e sensível dentro do peito, havia
defendido o direito de Rachel ser feliz com o homem que bem entendesse.
Marshall, defensor dos velhos tradicionalismos e convenções sociais,
certamente tinha se revoltado.
A raiva dela cresceu ainda mais. Agora não estava brava apenas por
Tommy Lee, mas por ver sua vida especulada. Detestava ser objeto de
discussão de outras pessoas, principalmente quando tocavam em sua
intimidade.
— Não se preocupe comigo. — Ela cerrou os dentes. — Sei muito bem
onde tenho a cabeça.
— Por favor, não fique aborrecida comigo. Sinceramente, não queria
magoá-la.
— Sei disso, Marshall, mas mesmo assim não acho que você ou qualquer
pessoa desta cidade tenha o direito de se meter nas minhas decisões. A vida é
minha. Será que ninguém se dá conta disso?
— Sempre pensei que fosse seu amigo...
— Claro que é, mas mesmo assim.
— Amigos devem falar francamente — ele argumentou, completamente
desconcertado.
— Está bem, Marshall. Pode dizer o que está pensando. — De alguma
maneira, Rachel pressentiu que não devia ter lhe dado essa chance. Mas era
melhor acabar de uma vez por todas com aquilo.
Ele cruzou as pernas longas e desajeitadas. Assumiu um ar solene e sério.
Passou a mão na testa, tentando disfarçar a angústia que exalava por todos os
poros e, finalmente, balbuciou as primeiras palavras: — Não ia lhe dizer nada
por enquanto. Mas, quando ouvi sobre você e Tommy Lee, tomei a decisão.
Não é fácil para mim. O assunto é delicado demais. Você pode ficar chocada.
— Tenho mais de quarenta anos e duvido que alguma coisa me choque,
Marshall.
— Bem, o fato é que Owen e eu éramos bons amigos. Você bem sabe disso.
Ele me contou que durante os últimos meses da doença, vocês... vocês... digo,
vocês não tinham qualquer tipo de vida sexual...
— É verdade. — Rachel não se alterou, embora temesse o que estava por
vir.
— Bem, você é uma mulher, nova, saudável, normal e certamente tem
necessidades, desejos...
— Onde quer chegar?
— Bem, talvez esteja vulnerável demais e se deixe envolver por um tipo
como aquele Tommy Lee Gentry.
Ela riu, o que o embaraçou ainda mais. Mal sabia ele o que realmente se
passava entre ela e Tommy Lee. O passado, a filha, o magnetismo que não
deixou de existir nem por um minuto durante os vinte e quatro anos de total
separação...
— Não quero parecer matemático demais — ele continuou. — Mas é quase
tão simples e claro quanto uma conta de somar. Sou um homem solitário e
você também está disponível. Desde que Owen morreu, venho pensando que
podíamos nos casar e...
— Casar? — Rachel quase tombou para trás. Mas a mão firme de Marshall
a segurou e não soltou.
— Não imaginava que ia ficar tão surpresa — ele disse. — Nunca
desconfiou que eu a amava mesmo antes de Owen morrer?
— Marshall!
— Por favor, não me olhe com essa cara de espanto. Sei que não sou um
galã, mas amo você e posso dar-lhe uma vida segura. Serei bom para você.
Disso Rachel não tinha dúvidas. A vida ao lado daquele homem pacato
seria absolutamente segura, pacífica e... completamente desprovida de
qualquer emoção. Já se imaginava ajudando-o a podar e adubar as plantas, as
visitas rotineiras aos filhos casados, a absoluta falta de paixão. Mas como
dizer isso agora? Como recusar a proposta sem deixá-lo envergonhado? Como
evitar que se magoasse?
— Faz tão pouco tempo que perdi Owen... — foi a resposta vaga que ela
encontrou.
— Sei disso... realmente não tinha intenção de tocar no assunto tão cedo.
Mas, quando ouvi os rumores, fiquei apavorado. Tive medo de perdê-la.
— Oh! Marshall...
— Sempre pensei que você já desconfiava dos meus sentimentos. Às vezes
sentia-me um traidor, um canalha por desejar tão ardentemente a esposa de um
amigo. Era como se estivesse faltando com a lealdade. Mas não podia evitar.
Era mais forte que eu. — As mãos dele seguraram as de Rachel com mais
intensidade. — Rachel... nem sei como isso foi acontecer. Afinal... Oh!
Rachel... nunca ao menos a beijei...
E os lábios entreabertos dele pousaram sobre os dela. Foi um choque.
Beijar o velho e cordato amigo Marshall. Era o mesmo que fazer aquilo com
um irmão. Não havia sexualidade ou prazer. Apenas a consciência daquela
língua em movimentos lerdos e pouco excitantes.
— Não... por favor, não — ela pediu, tentando se livrar da boca molhada
dele.
— Eu a amo, Rachel. — E ele não parou. Beijou-a com mais vigor,
forçando a língua entre os lábios dela, obrigando-a a corresponder.
— Ainda é cedo demais. — Ela o afastou, desta vez com mais empenho,
mas ainda assim ele insistiu, procurando apertar o corpo dela contra o seu.
Rachel se sentiu ultrajada. Não queria aquele homem, não o desejava, não
admitiria que a forçasse a beijá-lo. Nem parecia a mesma pessoa, que jamais
tinha atitudes ousadas.
— Pare, Marshall — ela foi categórica, repudiando-o com as mãos e
cotovelos. Virou o resto e teve vontade de limpar a boca.
— Sei que você tem as mesmas necessidades que eu, Rachel. — Ele agora
a olhava de frente. — Se não está pronta para um novo casamento, eu entendo.
Mas não pode dizer que não precisa de um homem. Só lhe peço para não se
fixar em um perdido como Gentry!
Rachel ficou louca de raiva. Indiretamente Marshall estava propondo que
se tornassem amantes. E, direta e claramente, insinuara que Tommy Lee já
tinha ocupado essa posição. E o pior era que, como toda aquela gente, havia
chamado Tommy pelo velho e terrível apelido.
— O que faz você pensar que é tão melhor que Tommy? — ela esbravejou,
revoltada.
— Rachel... desculpe... não me entenda mal... se não me quer podemos ser
amigos. Não quis ofendê-la. Por favor...
Mas não havia mais jeito. Sem dizer nada, Rachel se levantou e caminhou a
passos firmes até o carro. Colocou-se no banco, braços cruzados, fervendo de
ódio. Era hora de voltar para casa.
Durante todo o trajeto ficou calada. Ele também. Parecia que o silêncio ia
desabar sobre suas cabeças. Algumas vezes ela percebia o olhar suplicante e
desesperado de Marshall, mas estava resolvida a não se incomodar com
aquilo. Talvez fosse o fim de uma boa amizade.
Entrou pela porta da cozinha, depois de se despedir friamente. Engoliu um
copo de água, como para refrescar a confusão. Logo, Tommy Lee invadiu sua
memória. A ele sim gostava de beijar! Como era diferente, alucinante,
devastador... Como seu corpo tinha reagido ao toque mágico daquela língua
experiente.
Se a população toda de Russellville comentava o possível envolvimento
dos dois, por que só ela teimava em evitá-lo? Tommy Lee não era um animal
como diziam. Nem ela estava atrás de simples satisfação sexual como
Marshall insinuara. Não! Havia amor em seu coração. Um amor tão poderoso
que resistira a muitos anos de separação.
Com o coração tumultuado, pegou o telefone. Discou cada um dos números,
com aflita expectativa.
— Alô. — A voz profunda lhe acariciou os ouvidos. — Gentry falando.
— Hollis falando — respondeu ela, em tom de brincadeira.
— Rachel? — O jeito dele fez Rachel imaginá-lo se levantando da cadeira,
sem conseguir acreditar.
— Sim.
— Rachel... — ele voltou a murmurar, desta vez com suavidade e ternura.
— Recebi três presentes bastante curiosos nas últimas semanas. Por acaso
não sabe nada a respeito, sabe?
— Eu? Claro que não.
—- Os cartões não vieram assinados.
— Hum... que espécie de homem faria uma coisa dessas?
— É exatamente isso o que gostaria de saber.
Ela ouviu o barulho do isqueiro e a baforada.
— Então, o que ele lhe mandou? — Tommy Lee riu.
— Um secador de cabelos, duas dúzias de rosas brancas e latas velhas de
cerveja. — Logo depois ela se derreteu. — Oh! Tommy, obrigada pelas flores.
Eram lindas!
— Escute, Rachel, eu lhe devo desculpas. Agi feito um idiota na sua casa,
jogando-a dentro d'água daquela maneira. Sinto muito. Agora compreendo por
que de vez em quando você tem vontade de me matar.
Nenhum dos dois abriu a boca por algum tempo. Mas o silêncio não era
incômodo ou pesado. Era apenas uma outra forma de revelarem como se
sentiam.
— Você me convidou para jantar na sexta-feira — ela disse, por fim. —
Mas não disse qual sexta-feira. Será que estou muito atrasada para aceitar?
— Atrasada? Por Deus... — A alegria dele vinha da alma.
— Você realmente aceita?
— Se ainda quiser minha companhia...
— Nossa! Não tenho pensado em outra coisa. A próxima sexta, está bem?
— Perfeito.
— Na minha casa.
— Para mim, está ótimo.
— Ah! Rachel, nem posso acreditar. — Ele fez uma pausa. — E garanto
que o jantar será dos melhores.
— Você mesmo pretende fazê-lo?
— Não e saiba que esta é a sua sorte.
Sua filha?
Não! Beth foi á um show com as amigas.
Então, você me pega aqui na loja?
— Prefiro buscá-la em sua casa. Às seis e meia, está bem? Ah! Rachel...
prometo me comportar como um verdadeiro cavalheiro.
Assim que desligou, Tommy Lee mal cabia em si de tanta alegria.
"Ela disse sim!", pensou, sem evitar um sorriso. "É sua chance de mostrar
como pode ser gentil e educado, Tommy Lee. Nada de beijos forçados, nem
assuntos indiscretos, nem palavras ásperas. Ela disse sim!"
IX
A noite estava clara, fresca, com uma meia-lua pregada no céu. Durante
toda a semana, Rachel se angustiou, pensando na roupa que ia usar, o que
deveria falar e como agiria. Exatamente como se fosse um primeiro encontro.
Era esquisito sentir-se assim tão infantil, principalmente tendo passado por
tantos momentos duros durante a vida, coisas que amadureceriam qualquer
pessoa. Mas era inevitável. Cada vez que pensava em Tommy Lee, a cabeça
parecia flutuar, cheia de expectativa e emoção.
Mesmo agora, às seis horas, continuava sem saber que vestido colocar.
Estava nua em frente ao armário, olhando cada um dos modelos. Não queria
parecer formal demais, porém, deveria estar atraente, bonita e charmosa.
Finalmente, depois de experimentar seis roupas diferentes, escolheu uma
saia de chamalote lilás e uma blusa de seda branca, cujo decote, em farto
babado, ia até a metade do busto. O cinto, que acentuava a curva delicada da
cintura, era um pouco mais escuro que a saia e da mesma cor dos sapatos.
Seis e quinze. Maquilou-se levemente. Apenas o suficiente para realçar os
traços e encobrir as primeiras rugas prematuras em volta dos olhos. Perfumou-
se.
Seis e meia. Da janela do quarto, viu o Mercedes branco estacionar bem em
frente à porta. Tommy Lee desceu, ajeitando o blazer marrom. Acendeu um
cigarro, o que denunciava que estava tão nervoso quanto ela.
A campainha tocou e Rachel desceu as escadas correndo. Para ela, aquela
noite seria o marco da libertação. Já não se importava com os comentários
alheios, nem com a recente morte do marido. Amava aquele homem e queria
que ele soubesse disso. Saberia mostrar com toda a energia de seu corpo
sedento.
Assim que a porta se abriu, as palavras sumiram da boca dos dois. Ficaram
simplesmente se olhando, como se fosse a primeira vez que se vissem. E de
alguma maneira era mesmo. Tommy Lee estava completamente diferente. O
rosto mais magro revelava os traços másculos com precisão. Parecia mais
alto, mais musculoso, mais jovem e, acima de tudo, muito mais sedutor.
— Você está ótimo! — ela falou num impulso, e logo depois percebeu o
rosto corar.
— Obrigado. — Ele também ficou sem jeito, embora uma ponta de vaidade
tenha brilhado por trás dos óculos. — Mas você me deixou sem o que dizer.
Está simplesmente... perfeita. Ainda mais bonita do que quando tinha dezesseis
anos.
— Entre um pouco, Tommy. Preciso pegar minha bolsa. Ele a observou
enquanto subia as escadas. Aquele andar de Rachel sempre o fascinara.
Parecia deslizar suavemente, com leveza incomum. Os quadris balançavam
ligeiramente... uma tentação, um gosto de pecado. Como conseguiria passar a
noite inteira sem tocá-la? Não seria fácil. Mas estava disposto a provar que
realmente sabia respeitar uma mulher. Uma mulher chamada Rachel.
Quando ela voltou, carregava a bolsa numa das mãos. Sorriu com aqueles
dentes brancos e brilhantes que sempre encantara os olhos de Tommy Lee. Era
uma mulher excepcional. Não a deixaria fugir, escapar-lhe novamente.
— Acho que depois de tantos anos de casada, perdi a prática de sair com
rapazes — ela disse ainda sorrindo.
— Você está se saindo muito bem.
Ele não tinha visto nada ainda, Rachel pensou. Assim que tentasse beijá-la,
ela permitiria e, mais que isso, corresponderia com todo o ardor que guardara
durante vinte e quatro anos.
Seria uma noite inesquecível. A melhor de todas, onde a verdadeira Rachel
se entregaria aos braços do homem que amara em silêncio por tanto tempo.
Durante o caminho, conversaram sobre a época da infância, a piscina de
plástico, os piqueniques no jardim. Riram e se divertiram.
— Tenho algumas fotos em casa — ele comentou. — Você era uma
gracinha, com aquelas pernas tortas e magras.
— Eu não tinha pernas tortas.
— Tinha, sim, mas sempre me encantaram.
Rachel sabia exatamente a que fotografias ele se referia. Naquela época,
quando não tinham mais que seis anos, os pais os perseguiam com a câmara.
Cada sorriso, cada gesto, tudo estava documentado. Hoje, eram só lembranças
de um tempo que não voltaria mais.
Assim que entrou na casa de Tommy Lee, Rachel notou o cheiro fresco de
eucalipto. O ambiente reluzia de tão limpo. Havia flores nos vasos e música
suave tocava. Nenhum copo sujo, nenhum cinzeiro repleto de bitucas. Lançou-
lhe um olhar de aprovação. Estava fascinada, comovida.
— Espere aqui — ele disse, e foi até a porta da cozinha. — Georgine! —
chamou.
Um minuto depois, a jovem estava diante de Rachel, exibindo um uniforme
branco impecável.
— Georgine, esta é Rachel Hollis, uma velha colega de escola — ele fez as
apresentações. — Rachel, quero que conheça Georgine, meu anjo protetor
contra a perdição.
— Já conheço a sra. Hollis de vista. Ê dona de uma loja de roupas no
centro da cidade.
— Isso mesmo. — Rachel estendeu a mão para a outra. — Parabéns, você
conseguiu milagres nesta casa.
— Obrigada. — Virou-se para o patrão. — Já estão prontos para os
drinques?
Os drinques eram misturas deliciosas de suco de abacaxi com coco,
servidos em copos finos e altos com pedras de gelo e duas cerejas. Rachel deu
o primeiro gole. Não tinha álcool.
— Hum... delicioso — ela exclamou.
— O que acha de tomarmos o aperitivo no terraço? Está tão quente...
Realmente a noite estava convidativa, com um cheiro de romance no ar.
Sentaram-se frente a frente, em duas poltronas de palha com almofadas macias
estampadas em diversos tons de verde. O telhado do terraço descia
abruptamente terminando em colunas de concreto, nas quais milhares de vasos
estavam pendurados e, pela primeira vez em muito tempo, bem cuidados.
— Sua casa é linda — ela comentou vagamente, olhando em volta.
— Você gosta?
— Demais.
Ele hesitou por algum tempo. Depois, a olhou firmemente sem esconder a
emoção.
— Eu a construí para você, Rachel.
— Sei disso. Eu a reconheci no instante em que pus os pés aqui.
— Verdade?
— Era impossível confundir.
— E o que pensou?
— Ora... que eu era casada com Owen quando você a construiu. — Ela não
evitou o sorriso.
Tommy Lee se levantou, recostando-se numa das colunas, com o copo na
mão. Seus olhos se perderam na noite, assumindo uma expressão vaga,
distante, mas não menos atraente.
— Você se lembra como costumávamos sonhar com nossa casa? — disse,
como que falando sozinho. — Faz tanto tempo...
— Ela é exatamente como planejamos: à beira do lago, moderna, arrojada...
— Com portas e janelas grandes como você queria e bem ampla, como eu
queria.
— Um jardim florido, uma lancha nos fundos... — Ela misturou a
recordação com a realidade. Eram a mesma coisa.
— E o nosso quarto... com um terraço largo e uma porta de vidro tão grande
que ocupasse toda a parede.
— Oh! Tommy, você se lembra de tudo... — Ela pensou que fosse chorar. A
primeira vez que vira a casa, sentira medo e angústia brotar no seu peito
assustado. Hoje, era como se fosse a realização de um sonho.
— É claro que me lembro. — Ele se aproximou, fazendo um esforço sobre-
humano para não apertá-la contra si. — Durmo em nosso quarto todas as
noites. Ele é seu, Rachel. Nosso.
Nesse instante Georgine os interrompeu. Demorou algum tempo até que
percebessem a presença da empregada.
— Preferem jantar aqui fora, sr. Gentry?
— Não, vamos para dentro.
De alguma forma, Rachel se decepcionou. Não queria pensar em comida.
Só tinha vontade de ficar ao lado de Tommy Lee, recordando e, quem sabe,
deixando explodir os sentimentos que a tomavam por completo.
Mas, quando viu a mesa de jantar, uma nova onda de satisfação tomou conta
dela. Tudo tinha sido cuidadosamente preparado. No centro, uma peça de prata
sustentava um grande arranjo de flores campestres. Dois castiçais com velas
azuis combinavam com os guardanapos. Os copos eram de um cristal puro, os
talheres de prata estavam finamente dispostos ao lado dos pratos, que
certamente tinham pertencido a algum ancestral de Tommy Lee.
Estava perfeito.
— Então, conseguiu que a pedra de Darrel pulasse onze vezes? — ela
perguntou, servindo-se da entrada de mariscos.
— Sim, o próximo passo é encontrar uma que pule doze. Assim,
venceremos Daria.
Tommy Lee não continuou a conversa. Preferiu ficar calado, olhando para
aquela mulher suave e bela que tinha a sua frente. Parecia uma ilusão. Era
como se pudesse acordar de uma hora para outra e descobrir que não passava
de um sonho. Rachel, a querida, a amada Rachel estava em sua casa...
— Sabe de uma coisa? — ele disse. — Vi você se tornar uma mulher
madura. E confesso que algumas vezes fiquei zangado com isso, com vontade
de telefonar para sua casa e perguntar por que não ficava feia e grisalha como
as outras. Mas os anos iam passando e você estava cada dia mais linda...
— Assim vou acabar ficando embaraçada — ela brincou, sem ter outra
coisa para dizer.
— É verdade, Rachel. Você está absolutamente encantadora.
— Vamos mudar de assunto, está bem?
— Hum... o meu predileto é falar sobre você, mas já que insiste, escolha
um tema.
— Beth.
— Qual das duas?
— A sua — ela respondeu, com certo constrangimento. — Ela está
morando com você, não é?
— Já faz duas semanas. — Tommy Lee não escondeu o orgulho nem a
alegria. Tinha um sorriso entre os lábios. — Hoje foi ao cinema com alguns
amigos, gente do bairro. Parece que pretende se matricular na escola daqui.
— Puxa! Você deve estar mais feliz que nunca...
— Bem, é uma nova oportunidade de ser um pai verdadeiro. Sei que no
começo não será fácil. Nunca convivemos intimamente. Teremos alguns dias
tensos, com ajustes necessários, mas acredito que vai dar certo.
— Como... Como... — Rachel gaguejou, mas logo se recuperou. — Acho
que não é da minha conta...
-— Quer saber como foi que ela veio parar aqui em casa, não é?
— Não me sinto no direito de perguntar.
— Quero que saiba, Rachel. Entre nós não pode haver segredos, certo?
Nancy e ela nunca se deram bem, principalmente depois que Beth se tornou
uma mocinha. A mãe é superprotetora, insegura, cheia de receios e incapaz de
deixar que seu passarinho saia do ninho para o primeiro vôo. Tentou manter
Beth sob suas asas e isso foi um choque para a pobrezinha. As brigas foram se
sucedendo cada vez com mais freqüência, até o dia em que Beth fugiu de casa.
Ficou desaparecida por três dias. Você não imagina o que passei. Os piores
pensamentos vieram à minha cabeça. Foi horrível. Finalmente a encontramos
na casa de campo de uma amiga e achamos melhor que viesse ficar comigo
para ver se se adaptava.
— Isso quer dizer que ela pode ficar aqui indefinidamente?
— Sim, se se sentir mais feliz. A decisão é dela, embora eu vá me esforçar
o máximo para tê-la perto de mim.
— Acha que conseguirá?
— Nesse momento, Rachel, não há nada impossível para mim.
O efeito dessas palavras permaneceu presente durante toda a refeição.
Tommy Lee não se serviu das batatas e pegou apenas uma colher de arroz. Era
evidente que controlava o peso e parecia satisfeito com isso.
Conversaram sobre a Panache e sobre tantas coisas que mal perceberam o
tempo passar. As opiniões de Rachel eram sensatas e ponderadas. Parecia
estudar todas as possibilidades antes de tomar qualquer decisão. Tommy Lee,
ao contrário, era mais impulsivo. Todos os negócios eram feitos segundo seu
instinto, seu faro. E davam certo.
— Não vai querer sobremesa? — ela perguntou, servindo-se da torta de
sorvete.
— Não, obrigado.
Então ela teve certeza de que Tommy Lee estava levando a reforma pessoal
a sério. Não era para menos. Sua vida tinha mudado subitamente. Tanto Rachel
quanto Beth, duas mulheres inevitavelmente importantes, entraram nela, de
formas diferentes. E ele se esforçava para se adaptar. Estava conseguindo.
Certamente já conquistara a confiança de uma. Rachel estava encantada.
Ela sentiu de repente o sangue correr mais rapidamente nas veias. Olhava-o
para admirá-lo. Por dentro e por fora. Tommy Lee era o homem mais atraente e
sensual que conhecia. Especialmente esta noite estava irresistível. Era também
o mais firme no caráter, o mais sensível, o mais honesto.
Assim que Georgine tirou os pratos de sobremesa e pediu licença para se
retirar e dormir, Rachel perguntou intrigada: — Georgine está morando aqui?
— Sim, num dos quartos de hóspedes.
— Oh!... — então, Tommy Lee não podia mais trazer suas mulheres para
dentro...
— Durante a semana — ele completou. — Tem folga aos sábados e
domingos.
— Oh! — Agora Rachel pensava se numa noite de sábado ele a levaria
para o sofá macio... Arrepiou-se ao pensar naquilo... Mas logo se lembrou de
que havia alguém mais na casa: Beth. Aliás, ela certamente chegaria do cinema
dentro em breve. E isso significava que lhe restava pouco tempo para beijos e
carícias. Por que Tommy Lee não havia tentado ainda?
— Gostaria de tomar café na sala? — ele perguntou, acendendo um cigarro.
— Sim... está bem. — Rachel não pôde deixar de se imaginar estirada no
tapete macio, nua ao lado daquele homem magnificamente sensual. Talvez
tivesse chegado a hora. O ambiente era romântico, a lareira acesa, única luz, a
música leve e melódica...
Mas Tommy Lee se limitou a servir uma xícara para cada um. Sentou-se
perto dela, mas não a tocou.
Rachel ficou profundamente decepcionada.
Quando a levou para casa, Tommy Lee acendeu o último cigarro da noite.
Estava tenso. Tivera que controlar cada músculo, cada batida cardíaca para
resistir aos encantos de Rachel. Diversas vezes pensou em esquecer tudo e se
atirar em cima dela, arrancar-lhe a roupa, beijar-lhe o corpo inteiro.
Principalmente hoje, que ela estava maravilhosa. Exalava sensualidade e
malícia.
Mas ele tinha mantido a promessa. De vez em quando olhava para Rachel,
imaginando como ela deveria estar satisfeita com aquilo. Nem ao menos
encostara o dedo no corpo dela. Deus sabe a que duras penas... Mas
finalmente era um cavalheiro, digno daquela mulher tão doce e suave.
— Tommy... quem é Mitzy?
— O quê? — Ele ficou tão surpreso que mal entendeu a pergunta.
— Quem é ela?
— Alguém com quem saí algumas vezes. Nada importante. Onde ouviu falar
dela?
— Verda comentou qualquer coisa e fiquei curiosa. Não há mais nada entre
vocês? — Ela estava confusa. Imaginou que ele poderia estar ainda envolvido
com outra mulher. Por isso, não tinha tentado se aproximar.
— Acho que nunca houve nada entre nós. — ele respondeu, sem se dar
conta da suposição de Rachel. — Tive muitas mulheres, mas nunca pertenci a
alguma.
— Hum...
— Isso a aborrece?
— De certa maneira.
— Por quê?
— Não seja indiscreto, Tommy — ela brincou.
— Combinamos que não existiriam segredos lembra-se?
— Bem, eu me aborreço porque não gosto de vê-lo perder as energias nos
braços de uma mulher qualquer. Só isso.
Tommy Lee riu ironicamente. Sabia que ela estava desviando o assunto.
Gostava disso. Rachel ficava ainda mais bonita quando se sentia embaraçada.
— E quanto a Marshall True? — Ele foi direto e claro.
— M... Marshall?
— As pessoas andaram comentando... Jantares no clube, visitas aos
domingos...
— Bem...
— Sem segredos.
— Não quero ver Marshall na minha frente.
— Algum motivo especial? — O gosto amargo do ciúme incomodou
Tommy Lee.
— Ele tentou me passar uma cantada.
— E você não gosta que os homens ajam dessa maneira, não é?
— Não gostei quando Marshall agiu dessa maneira.
Nesse momento, pararam em frente à casa de Rachel. A rua estava deserta.
As luzes das casas vizinhas apagadas. Eram quatro horas da madrugada.
Rachel não desceu e Tommy Lee não desligou o motor.
— Pelo que está dizendo, suponho que nunca tenha tido um romance
extraconjugal — ele disse, com estranha naturalidade.
— Não, nunca!
— Nem no fim?
— Acho que não suportaria o sentimento de culpa. — Rachel procurou ser
natural, mas era evidente que estava impressionada com a pergunta.
— E agora, Rachel?
— Agora?
— Você é daquele tipo de viúva que se sente infiel ao marido por se
interessar por outro homem?
Agora ela entendia onde Tommy Lee queria chegar. Não, não teria qualquer
sentimento de culpa, nem de infidelidade se dormisse com outro homem.
Estava livre, disponível, disposta a se deitar na.cama dele. Sem remorsos nem
receios.
— Muito obrigado por esta noite maravilhosa — despediu-se Tommy Lee,
vendo que a resposta não vinha. Ainda agia como perfeito cavalheiro, sem
forçar nada. Nem ao menos uma resposta.
Rachel, entretanto, ficava cada vez mais confusa. O que estava acontecendo
ao insaciável Tommy Lee Gentry? Por que não a tomava nos braços?
— Por que... Por que... — Ela não teve coragem de perguntar.
— Diga, Rachel?...
— Por que... não me falou que os brincos vermelhos eram para Beth? —
Foi a única coisa que lhe veio à mente.
Ele riu.
— Queria que pensasse o pior de mim — respondeu, sem desviar o olhar.
— Para quê?
— Para que descobrisse logo o que sente por mim.
— E quais são meus sentimentos?
— Essa pergunta é você mesma quem tem que responder.
Ela sabia a resposta. Sim, estava gravada em todos os poros do corpo, em
cada célula. Amava-o. Desejava-o com loucura e paixão. Sentia-se tão atraída
que era capaz de se oferecer, de se dar, de se entregar total e completamente
como já fizera aos dezesseis anos... Mas como admitir isso agora? Justamente
quando ele não se mostrava interessado em qualquer contato físico?
— Está bem, Rachel, você não precisa dizer nada. Apesar de tudo, do
passado, do presente, da nossa idade, ainda não sabe o que sente por mim, não
é? — Um toque de tristeza marcou as palavras dele.
— Não é isso... — Ela hesitou. Havia tanta coisa a ser dita, jamais tivera
os sentimentos tão claros, tão à flor da pele. — Por que não desliga o motor
do carro?
— O quê?
— Você não quer entrar? Não quer conversar mais um pouco? Entende o
que estou tentando dizer, Tommy? Você nem ao menos desligou o motor.
Parece ansioso para ir embora. Oh! droga, não sei explicar...
— Por que não o desliga você mesma? — Era exatamente isso o que
Tommy Lee queria. Rachel tinha que vir até ele sozinha, sem ser obrigada.
Ela não compreendeu bem, mas, seguindo o instinto, virou a chave. O
silêncio foi como uma carícia aos seus ouvidos. A lua continuava brilhando
com a mesma intensidade prateada. E Tommy Lee continuava resistindo.
Rachel se acomodou melhor no banco, sentando-se sobre uma das pernas,
de forma a ficar de frente para ele. Não era bem isso o que queria. Por ela,
estaria em seus braços.
Tommy Lee, por sua vez, já não agüentava mais reprimir tanto desejo. O
carro parecia acolhedor. Fazia lembrar os velhos tempos em que abrigava os
corpos frenéticos, inundados de prazer e sexo. Teve que prender as mãos sob
as pernas para que não tocassem os joelhos tentadores de Rachel. Maldita
promessa!
— Tommy...
— Diga.
— Há algumas horas estou tentando arrumar uma forma de fazer uma
pergunta...
— Fale, Rachel. Não sinta receio.
— Eu... não estou compreendendo. Você está diferente, esquisito...
— Como assim?
Ela nem sabia por onde começar. Tinha medo de se ferir com a resposta.
Mais que isso, sentia-se oferecida, tal qual as mulheres que já tinham passado
pela cama dele. Ainda podia ouvi-lo dizer que todas elas o desejavam, que se
dispunham a se entregar, mesmo sabendo que ele nada daria em troca. Não
queria ser mais uma, não suportaria se igualar às outras. Mas que droga, como
entender o surpreendente comportamento de Tommy Lee?
— O que está havendo, Rachel? Por que está com medo de fazer a
pergunta?
— Por que... Por que não se aproximou de mim hoje? — O coração dela
batia acelerado. Estava insegura, atordoada, até mesmo envergonhada. — Por
que não tentou me beijar? Digo, todas as vezes que estivemos juntos...
— Você quer?
— Não sei... digo, por um lado não posso negar a imensa atração que existe
entre nós. Eu o desejo, Tommy. Mas, ao mesmo tempo, tenho medo de parecer
uma viúva solitária. E não é só isso. Você é experiente demais e isso me
assusta.
— Experiente?
— Isso... às vezes fico imaginando quantas mulheres já beijou, com quantas
já se deitou e sinceramente fico com medo. Dentro do coração, desejo estar
com você, mas, quando penso melhor, fico apavorada. Não quero ser outro
nome em sua agenda.
— Já lhe disse mil vezes que elas não passaram de brincadeira.
— Eu sei, mas...
— Rachel, é você que quero. É você que sempre quis. A vida inteira
procurei por alguém que me satisfizesse, que me desse paz e que me
incendiasse o corpo como você. Mas, na verdade, não há ninguém no mundo
inteiro que me alucine tanto.
— Então... por que nem me tocou hoje à noite, eu estava em sua casa, bem
ali, esperando, esperando...
— Rachel... Repita isso. Repita mil vezes. — Ele não se conteve. Ela
estava vindo até ele, chamando-o, querendo-o com a mesma paixão de anos
atrás. Abraçou-a com ardor, deslizando as mãos pela seda da blusa. O perfume
e a beleza de Rachel lhe penetravam as entranhas, excitavam, enlouqueciam.
Aquela mulher era quente, macia, deliciosa. A mais linda, a mais suave, a mais
sensual...
— Hum... — ela resmungou, apoiando a cabeça no peito largo. — Já tinha
me esquecido dessa sensação...
— Eu nunca esqueci, meu amor. Nem por um instante. — Os lábios dele
percorreram lentamente os cabelos de Rachel, a testa, os olhos. Era tão
excitante que ela foi vagarosamente levando a cabeça para trás, os olhos
fechados, e ofereceu a boca entreaberta.
A língua bravia e destemida de Tommy Lee não hesitou em penetrar a doce
caverna escura. Primeiro, sugou-lhe os lábios e, com extrema habilidade,
explorou os detalhes daquela boca macia e úmida. Foi um beijo longo, cheio
de sensualidade.
— Oh! Tommy.
Ele não a soltou. Percebia o coração de Rachel descompassado e o corpo
todo trêmulo. Desceu a língua pelo pescoço delgado, atrevendo-se até o fim do
decote. Suas mãos pareciam descontroladas, querendo entrar pela carne dela,
senti-la completamente.
Quando Tommy Lee a beijou na orelha, brincando com o lóbulo ou enfiando
a língua nas reentrâncias, ela pensou que não fosse suportar tanto prazer.
Gemeu, embora tivesse vontade de gritar de tanta satisfação. Há muitos anos
não se via tão excitada, tão possuída por alguém.
Como uma gata selvagem, cravou as unhas no peito dele. Emaranhou os
dedos nos pêlos que escapavam pela camisa aberta. Beijou-o mais de novo,
desta vez forçando a própria língua na boca dele. Ah! que boca doce e
mágica...
— Não vamos conseguir parar — ela sussurrou, com o resto de consciência
que tinha.
— Não quero parar...
— Tommy Lee... há tanta coisa que nos impede.
Mas as mãos dele continuavam as carícias. Apertaram o seio rijo,
reconhecendo-lhe o contorno, o bico ereto, a maciez. A outra mão, mais
ousada, procurou o zíper da saia.
— Por favor, Tommy Lee... não faça isso...
— Nós dois queremos, Rachel. Pertencemos um ao outro. Por que adiar?
Os beijos dele eram cada vez mais violentos e enérgicos, fazendo todo o
corpo de Rachel estremecer e vibrar. Era impossível parar... impossível.
— Estamos em frente de casa — ela alertou, ofegante e sem forças. —
Alguém pode nos ver...
— Há vinte e quatro anos, você não tinha medo.
— Não ficaria bem se os faróis da polícia nos iluminassem agora. — Ela
não evitou um sorriso. — Meu Deus, duas pessoas adultas, fazendo sexo no
carro...
Ele se afastou ligeiramente. A mesma sensação de quando eram
adolescentes lhe invadiu os ossos. Os limites que Rachel sempre impunha, o
medo que sentia, o ponto a que se deixavam chegar, para depois serem
obrigados a frear subitamente. Era o paraíso. E depois o inferno. Era a loucura
do desejo. E depois a frustração. Era a fúria da paixão e a terrível volta à
realidade. Era como conter o mar num aquário.
X
Saíram do carro abraçados. Precisavam tomar um pouco de ar para acalmar
seus corpos afogueados. Porém, não queriam se despedir. A noite, a primeira
em que se encontraram realmente, ainda não tinha terminado.
Caminharam sob a copa das árvores em silêncio. As palavras não eram
necessárias, tudo já estava dito. Era como se o tempo não tivesse, passado,
como se jamais tivessem se separado, como se seus corpos estivessem
acostumados um com o outro.
A mão de Tommy Lee pousava ternamente nos ombros de Rachel, num gesto
protetor e carinhoso. Ela o segurava pela cintura e deixava a cabeça se apoiar
entre o peito e o braço dele. Tudo era paz e serenidade. O mundo lhes
pertencia.
Voltaram para a casa de Rachel. Era a hora da despedida.. Por quê? Por que
dizer adeus agora, quando seus corpos imploravam por mais carinhos? Por
que se enganarem, se a única verdade de suas vidas era o amor que sentiam?
— Rachel... Rachel... — As palavras de Tommy Lee se misturavam aos
beijos. E à medida que a língua experiente e selvagem dele ia se tornando
mais vibrante, as pernas de Rachel amoleciam, tremiam... Encostou-se na
parede, sentindo o corpo de Tommy Lee contra o seu.
O beijo relembrou a sensualidade que sempre existira entre eles, e o desejo
que nunca conseguiram resistir. A sensação era a mesma. Deliciosa, mágica,
envolvente.
Experimentaram as brincadeiras do passado. A leve mordida nos lábios, a
troca de línguas, a pressão dos dentes a se roçarem. Era como reviver a
adolescência e, ao mesmo tempo, descobrir as vantagens da maturidade. Sim,
porque Tommy Lee era agora muito mais experiente e habilidoso. Embora seus
movimentos fossem instintivos, havia o toque de sabedoria e do conhecimento.
Algo que fascinava e proporcionava um imenso prazer.
Sentindo o corpo todo corresponder às carícias, Rachel o puxou para mais
perto. Ficou presa entre ele e a parede fria. Ah! o corpo de Tommy Lee,
totalmente colado ao seu, era forte, rijo, estonteante.
— Rachel, ainda não consigo acreditar... depois de tantos anos, tanto
sofrimentos...
— Oh! Tommy. .
Ela se sentia como um pássaro retornando ao ninho. Como suas formas se
encaixavam! Com que perfeição divina se insinuavam...
Tommy Lee ainda segurava os seios pequenos e redondos. Brincava com os
mamilos apertando-os entre o polegar e o indicador, até que ficassem duros e
proeminentes. Depois voltava a pegá-los inteiros, como se fosse possível
engoli-los com a mão. Mas aquela blusa... era como uma barreira que o
impedia de sentir o calor da pele, sua maciez...
A mão fina de Rachel percorria delicadamente a nuca dele. Usava apenas a
ponta dos dedos e as unhas. Era enlouquecedor. Provocava arrepios e desejos
incontroláveis. Sim, ela também havia aprendido alguma coisa nesses anos...
Quando finalmente suas bocas se afastaram, em busca de fôlego, Tommy
Lee a abraçou.
— Sabe quantas vezes fizemos isso? — Ele estava ofegante e tenso.
— Demais para lembrar. Cem, duzentas... mil?
Seus lábios se uniram novamente, num beijo suave e leve.
— Lembra-se da última vez, Rachel?
— Não...
— Tínhamos ido a uma festa no Muscle Shoal. Você usava uma blusa
quadriculada verde, cujos botões ficaram abertos o tempo inteiro. Estava
engordando por causa da gravidez.
Ela se aconchegou mais nos braços dele, com uma maravilhosa sensação de
segurança e proteção. Agora parecia tão fácil relembrar o passado. Era até
bom. O sofrimento havia desaparecido.
— Você se lembra de tudo, não é? — sussurrou, o peito repleto de amor.
— De tudo que se relaciona a você. O cheiro da pele, a cor dos olhos, o
tamanho dos seios, o movimento dos quadris...
Naquele momento, parecia tão simples amar Tommy Lee, tão inevitável e
maravilhoso! Havia algo nele, em sua boca, em seu corpo, que eram como
impressões digitais inconfundíveis, inalteráveis. O gosto, o cheiro, não do
perfume mas da própria pele, o jeito agitado de mexer a língua e de acariciar
os seios...
Novamente o ardor do desejo tomou-os por completo. Os olhos se
encontraram, numa promessa de prazer. As mãos voltaram a procurar
desesperadamente as curvas, em movimentos alucinados. Os quadris se uniram
e Rachel logo sentiu o sexo dele, ereto e rijo.
Instintivamente, os quadris dela se balançaram, roçando, querendo sentir-
lhe os contornos e detalhes. Tommy Lee suspirou, ofegou, como se um fogo lhe
queimasse as entranhas.
— Rachel... prometi a mim mesmo que não a apressaria. Mas não vou
resistir...
Ela também estava sem ar, sem forças, apenas com a magia do prazer
queimando seu corpo, seu coração. Santo Deus, tinha pensado que os quarenta
e um anos lhe dariam domínio sobre o desejo e a excitação?
— E eu jurei que não iria além de alguns beijos... Oh! Tommy, faz tanto
tempo que não me sinto assim. Tanto tempo... — Beijou-o na nuca. — Agora,
em seus braços, tudo é diferente. E tão delicioso, tão provocante, tão difícil de
parar...
— Não há por que parar — ele sussurrou, procurando suas coxas.
— Seria a coisa mais sensata a fazer. Sou viúva há apenas alguns meses.
Temos uma atração muito forte e, de repente, isso pode se transformar em
hábito...
— Eu acho, Rachel — ele a beijou nos olhos —, que já se transformou —
beijou-a no nariz — e agora nunca mais vamos poder parar — beijou-a na
boca.
As pernas de Tommy Lee se insinuaram entre as dela, abrindo-as. Seus
sexos se encontraram, ainda que separados pelas roupas. Mas a urgência se
tornou mais evidente. Os tremores mais fortes e a respiração mais
descontrolada.
— Não devemos continuar — ela resmungou, entre os beijos que molhavam
sua boca.
— Mas é tão bom... tão tentador... exatamente como eu lembrava.
— É perigoso demais.
— A vida é perigosa. — Sem dizer mais nada, ele avançou a mão por
debaixo da blusa. Encontrou-a sem sutiã. Apalpou os seios e, em provocantes
movimentos, foi até o ventre e desceu ainda mais para baixo, já se insinuando
para dentro da saia. Quando atingiu a calcinha, Rachel o deteve.
— Não, Tommy...
E para sua surpresa ele parou subitamente. Afastou-se um pouco, sem
deixá-la. Olhou-a com carinho e ternura, depois de um beijo suave na testa.
— Lembra-se da primeira vez? — perguntou num sussurro.
— Sim. Foi embaixo de um pinheiro e eu estava morrendo de medo.
— Eu também.
— Verdade? Nunca imaginei isso. Você parecia tão confiante, como se
soubesse tudo o que deveria fazer.
— Pois não sabia nada além de você. — Ele não evitou um sorriso. —
Claro, aprendi muitas coisas depois...
— Eu também. — Rachel o olhou de frente e sério. — Por exemplo,
aprendi que seria ridículo se alguém nos apanhasse aqui, a esta hora, fazendo
o que estamos fazendo...
— Todo mundo faz essas coisas. — A malícia era infantil e divertida.
— Mas não na porta da minha casa!
— Você está me provocando outra vez, não é? Como nos velhos tempos...
— Provocando?
— Sabe do que estou falando. Você levou muito tempo me excitando, me
deixando louco de desejo, até o dia em que permitiu...
— Bem, naquela época eu tinha medo de ficar grávida, de estar sendo
imoral... Pensamento de criança...
— E agora, Rachel, o que a detém?
Ela pensou por um instante. Depois, com a ponta do dedo, percorreu os
lábios dele, a curva do nariz, e sorriu.
— Há uma parte de mim que o deseja profundamente, Tommy. É aquela que
se lembra do primeiro beijo, das noites que passamos em seu carro. Aquela
que sonhou com você, que se sente loucamente atraída. Porém, há outra parte
de mim que se assusta, que procura repudiá-lo e afastá-lo. É quando me
lembro de suas mulheres, de seus casamentos, de sua vida desregrada. É
quando percebo que há muitas coisas contra nós, que já não somos os mesmos,
que seria arriscado demais nos envolvermos.
— E qual das duas partes é a vencedora? — Um beijo estalou na orelha de
Rachel.
— Ainda não sei... Certamente meu lado racional equilibrado deveria se
sobrepor. Afinal, não sou uma criança que age de acordo com as emoções. O
tempo me ensinou a pensar, a analisar, a não me deixar arrastar pelo coração.
— Está me mandando embora?
— Não, eu não seria capaz. Não agora. — Ela apertou a cintura dele. —
Mas também não sei se é certo nos beijarmos assim. Principalmente nos
arriscando a sermos apanhados pela vizinhança.
— Por que não entramos, então?
— Tommy...
— Está bem. Compreendo. Vamos para seu jardim, então. Lá ninguém nos
verá.
— Mas...
— Não quero ir embora, Rachel. O dia está quase clareando e nunca
tivemos a oportunidade de ficarmos juntos até o sol raiar. Lembra-se, você
tinha que chegar em casa antes da meia-noite. Era horrível. Pelo menos aos
quarenta e um, temos essa chance.
Ela concordou, sabendo que estava entrando num jogo perigoso. Abraçados
como dois namorados, caminharam até os fundos. Os primeiros pássaros
cantavam, anunciando mais um dia. De um lado a luz morria no horizonte. De
outro, o céu clareava.
Ficaram em pé, frente a frente, olhos nos olhos, mãos unidas. Era como se
contemplassem aquele instante, sem acreditar que estavam juntos novamente.
— Eu a amo, Rachel — ele disse com a voz mais doce e sincera do mundo.
— Uma vez lhe disse isso. Faz pouco tempo e estava zangado. Não é jeito de
falar. Eu a amo e vou repetir isso mil vezes.
Ela pensou que fosse chorar. Sentiu as lágrimas lhe brotarem na alma.
Ouvir Tommy Lee dizer que a amava... parecia um sonho que a perturbara
durante muitos anos. Agora era real, honesto e deliciosamente verdadeiro.
Novamente seus corpos se colaram, respondendo aos apelos de seus
corações. Bocas, mãos e pernas se entrelaçaram. Línguas se acariciaram, numa
sensação magnífica de carinho e prazer.
De repente, os olhos de Tommy Lee se voltaram para a piscina. Não disse
nada. Um sorriso maroto surgiu entre seus lábios, e um segundo depois tirava
o paletó.
— Tommy! Não! — Ela logo percebeu a intenção dele. — Não na piscina!
Tommy, não se atreva! Isso é loucura!
Mas ele não se importou. Continuava sorrindo, cheio de malícia e sedução.
Arrancou a camisa, jogando-a no gramado orvalhado. Abriu o cinto.
— Não vou entrar na água com você! — ela gritou, sem saber o que
realmente queria. Vê-lo se despindo daquele jeito era loucamente provocante.
]á sentia toda a excitação da situação...
A calça dele estava na grama, revelando o corpo viril e másculo, coberto
apenas pela cueca de algodão branco. O coração de Rachel veio parar na
boca. Ao mesmo tempo que tentava se convencer de que aquilo não estava
direito, desejava se atirar nos braços dele, sentir seu corpo colado naquele
corpo...
— Não tire nem mais uma peça — ela o alertou, sem conseguir desviar os
olhos dele.
— Venha, Rachel — ele chegou mais perto, a voz melosa e envolvente —,
vai ser divertido.
— Não!
— Já fez isso antes?
— Nunca e não pretendo começar agora.
Mas ele chegou ainda mais perto. Rachel pensou em correr, mas as pernas
não se moveram. Um beijo decidido invadiu sua boca. A pele quente de
Tommy Lee a envolveu inteira. Como resistir?
— Tire a roupa, Rachel...
— Não posso — ela murmurou. — Não é direito...
— Tire a roupa ou vai ficar toda molhada.
— Você não teria coragem...
— Não? — O mesmo sorriso malicioso ressurgiu no rosto bonito dele.
— Tommy! — Ela procurou ser firme. — Se não parar imediatamente com
isso vou me trancar em casa, telefonar para a polícia e avisar que há um
homem nu no meu jardim querendo usar a piscina sem permissão!
Os lábios entreabertos dele a calaram. As mãos astutas e determinadas
procuraram os botões da blusa.
— Não ouse me despir! — Pânico e excitação se misturavam em Rachel.
Desejava se entregar àquele homem, fazer amor na piscina... Ah! era tão
erótico e sensual. Mas, santo Deus, aquilo era uma verdadeira loucura!
— Está bem, você venceu — ele disse por fim.
— Não vai mais tirar minha roupa?
— Não. — Ele riu. — Você vai para a água como está.
— Tommy!
Porém, já era tarde. Ele a tomou nos braços, carregando-a como se fosse
leve como uma pluma.
— Não faça isso — ela implorou, percebendo que estavam se aproximando
cada vez mais da água gelada.
— Tire ao menos os sapatos — ele pediu.
— Tommy, seu louco, ponha-me no chão!
Ele desceu o primeiro degrau da piscina.
— A escolha foi sua. Vai molhar os sapatos.
Nesse instante Rachel sentiu a água molhar seu traseiro. Arrepiou-se
instintivamente e apertou-se contra o corpo de Tommy Lee, agarrando-se a seu
pescoço.
— Hum... que gostoso — ele comentou, brincando, excitado.
Desta vez Rachel afundou um pouco mais. As mãos de Tommy Lee a
seguravam com deliciosa força.
— O cloro vai estragar minha roupa — ela ainda disse, sabendo que não
tinha a menor chance de escapar.
— Mande-me a conta.
Rachel desistiu. Cedeu à vontade daquele homem e do seu corpo. Por que
ser sempre razoável e sensata? Por que não seguir os anseios do corpo e da
alma ao menos uma vez? Sim, desejava ficar na piscina, nua, iluminada apenas
pela frágil luz do fim da madrugada.
Afundaram completamente, deixando os corpos soltos. Agora foi Rachel
quem o prendeu nos braços, beijando-o com fúria e paixão.
— Seu louco — sussurrou, enquanto tirava os sapatos, que ficaram
flutuando.
— Um louco que constrói casas loucas, tem sonhos loucos e está
loucamente apaixonado por uma mulher.
Lentamente, como se fosse um ritual exótico, Tommy Lee abriu um por um
os botões da blusa dela. Os seios saltaram, firmes e rijos. Ainda estava escuro
e ele não podia vê-los direito. Mas suas mãos decifravam cada centímetro e
exploravam todos os detalhes. Depois, beijou-os longamente, passando a
língua molhada pelos bicos, pelo vale quente e ofegante.
Rachel o apertou contra si, assaltada por tremores de prazer. Acariciava as
costas dele, os cabelos, a nuca, como se pudesse afagar-lhe o corpo todo de
uma só vez.
Por baixo d'água suas pernas se entrelaçaram, seus quadris, em movimento
ritmado e sensual, se uniam e colavam. A água os envolvia, dando uma
sensação de leveza e lentidão.
A boca dela se abriu para receber a língua dele. As unhas roçaram as costas
largas e fortes, descendo até a cueca, acariciando as nádegas rijas. Depois
fizeram a curva dos quadris, indo até o ventre peludo.
Tommy Lee arquejou.
E Rachel não parou. Não podia mais parar. Entre a emoção e o desejo,
tocou levemente o membro viril dele. Sentiu-lhe a força e a sensualidade.
Estremeceu e, sem conseguir se conter, apalpou com mais firmeza.
Ah! Amava aquele homem. Amava-o inteiro, por completo. Cada
centímetro daquele corpo a excitava. Era como uma febre, um calor
insuportável que lhe tomava o corpo, que percorria as veias e inundava o
coração.
— Quero fazer amor com você. — Ele quase não tinha voz. Grunhia como
um animal selvagem absolutamente envolvido pelo desejo. — Quero fazer
tudo o que éramos jovens demais para saber fazer. Durante vinte e quatro anos
desejei tê-la nos braços, Rachel...
E as mãos dele abriram o zíper da saia, que também flutuou, abandonada.
Rachel pensou que não fosse suportar o toque dos dedos sob a calcinha. Era
um delírio, uma alucinação, uma deliciosa sensação de prazer. Ela gemia e
sussurrava, sem conseguir se controlar. As pernas se abriam sozinhas,
instintivamente, permitindo carícias mais profundas, mais ousadas, mais
tentadoras.
— Rachel, eu a amo... Tive medo de nunca mais poder lhe dizer isso.
A voz dele, quente e pausada, a deixava ainda mais perturbada. Os beijos
ardentes se misturavam aos murmúrios descompassados. Os corpos sedentos e
apaixonados se mexiam e se esfregavam, numa procura incessante de mais
proximidade. As pernas se cruzaram. As dele entre as dela. As dela entre as
dele. Seus sexos estavam unidos, ainda que as peças íntimas mantivessem uma
mínima distância.
— Oh! Tommy... era impossível esquecer... Eu o amei tanto.
— Diga que me ama agora, hoje... sempre...
— Eu... Oh! — Ela roçou os lábios nos dele. — Eu o amo cada vez mais,
Tommy...
Uma onda de desejo e ardor percorreu o corpo de Tommy Lee. Depois de
tantos anos de espera, finalmente tinha Rachel. Ela o amava. E se entregava
como uma flor para o sol. Depois de vinte e quatro anos de angústia, ela lhe
daria a felicidade, ela faria reviver seus sentimentos mais puros e ricos.
— Hum... — Tommy Lee murmurou, enquanto beijava o lóbulo da orelha
dela. — Se soubesse as coisas que desejo fazer com você... coisas que éramos
inocentes demais para saber.
— Eu... eu...
— Dei-lhe uma filha, mas nunca um prazer inesquecível. Sabia disso?
Prazer. A simples palavra a excitava...
— Venha cá, Rachel. — Ele a tomou nos braços, fazendo-a sentar, na beira
da piscina, as pernas afundadas na água.
Lentamente começou a beijá-la nas pernas. Começou pelos joelhos. Depois
foi subindo pelas coxas, obrigando-as a se abrirem, a se oferecerem para ele.
— Tommy...
Ele pousou dois dedos nos lábios dela. As palavras não eram necessárias.
Apenas seus corpos, naquela incrível linguagem muda, eram os donos da
verdade.
Com delicadeza e habilidade, ele tirou a calcinha de renda dela. Quase se
perdeu de excitação ao deparar com o triângulo de pêlos negros, molhados e
excitados. Como o corpo de Rachel era lindo! Como o tinha desejado! Quantas
noites não passara em claro a imaginá-lo!
A boca de Tommy Lee, trêmula e experiente, acariciou-a. Enrolou-se nos
pêlos, os dentes roçando-os. A língua surgiu de repente, fogosa, ardente.
Surpresa e absolutamente fora de seu controle, Rachel prendeu a cabeça
dele com as mãos. Apertou-a entre as pernas e deixou o corpo cair no cimento
frio. Sentia-se toda tensa, os músculos duros, a respiração cortada. Não
controlou um gemido longo e descontrolado.
O clímax veio subitamente. O ventre de Rachel se contorceu, os quadris se
movimentaram freneticamente. O rosto se contraiu, os olhos se fecharam, a
boca ficou entreaberta. E as mãos continuaram pressionando a cabeça de
Tommy Lee, trazendo-a para perto de sua intimidade, para dentro de seu
coração.
— Eu a amo, Rachel Talmadge. — Inconscientemente ele a chamou como
antes.
Então Tommy Lee a penetrou. Denso, preciso, experiente, o membro dele
alcançou as entranhas de Rachel, provocando um novo êxtase, ainda mais forte
e poderoso.
XI
Os dois mergulharam na água e se acariciaram.
— Mostre-me seu quarto — ele pediu, num tom infantil.
Ela sabia que era uma proposta para passarem juntos as últimas horas antes
do dia nascer, abraçados, envoltos no manto suave do sono.
Enxugaram-se entre beijos e carinhos, usando as toalhas que Rachel
costumava guardar no salão dos fundos. Cobriram-se e foram para dentro.
— Este é o quarto. — Ela fez um gesto, como se estivesse num palco.
Tommy Lee ficou parado no meio, entre a cama e a cômoda. Ainda estava
escuro, as venezianas fechadas. Mas podia sentir o perfume dos saches e
perceber o contorno dos móveis.
— Aqui que você dormia com Owen?
— Sim, mas reformei tudo.
— Tudo?
— Até eu mesma.
Desta vez o beijo foi mais longo. Tommy Lee a segurou nos braços,
passando as mãos nas costas dela e fazendo a toalha cair.
— Acenda a luz, Rachel.
— Por quê?
— Quero ver você. — Ele sorriu rememorando. — Fizemos amor nem seis
quantas vezes e nunca a vi inteira. Estávamos sempre dentro do carro,
escondidos entre as árvores e nunca a vi totalmente despida. Nem mesmo hoje.
Acenda a luz.
Ela hesitou. Já não era mais a menininha de corpo perfeito. Sentiu medo dos
quarenta e um anos e também da cicatriz da cesariana. Ficou insegura e sem
saber como agir.
— Por favor, Rachel...
Lentamente, ela foi até o interruptor. A curiosidade de também ver o corpo
de Tommy Lee venceu o medo. Tinha o coração descompassado, mas, se
realmente amava aquele homem, não deveria ter vergonha ou receio. Apertou a
tecla.
Por alguns momentos, ficaram parados, e a poucos passos de distância,
descobrindo-se com os olhos, percorrendo os detalhes até então ocultados.
— Você é linda, Rachel — ele disse, sem desviar os olhos. — Perfeita
demais para este mundo.
Então se aproximou, como se quisesse explorar melhor as minúcias e
pormenores das curvas dela. Mas, quando chegou perto do triângulo negro,
deu um passo atrás. Ficou pálido, as pupilas dilatadas, o coração pulsando.
— O que é isso? — perguntou.
Era a cicatriz e Rachel estremeceu, sem nada responder.
— Uma cesariana ... foi assim que teve o bebê, não foi?
— Isso não importa agora.
— Não? — Tommy Lee balançou a cabeça, esfregando a mão na testa com
evidente nervosismo. — Tudo o que se relaciona a você e ao nosso bebê me
interessa. Então foi uma cesariana...
Ela quis responder, mas as palavras haviam desaparecido. Tinha o corpo
inteiro tenso, as pernas bambas, a emoção percorrendo as veias.
Automaticamente, ele estendeu a mão para tocar aquela marca horizontal.
Havia delicadeza e ternura em seus dedos. Talvez também um pouco de receio
e tristeza.
— O nosso bebê. — Ele não tinha voz. Murmurava. — Meu Deus, a nossa
filha...
Num gesto rápido, espontâneo e cheio de dor, Tommy Lee caiu de joelhos
no chão, aos pés de Rachel, encostando a cabeça no ventre dela. Beijou a
cicatriz, com pura ternura.
— Eu desejei tanto ter casado com você, Rachel — sussurrou, segurando os
quadris redondos. — Ela era nossa filha e eu a queria. Tinha planos de cuidar
de vocês duas, de ter outros filhos, vê-los crescer, ficar velho ao seu lado...
— Eu sei, meu querido, eu sei... — Ela o afagou, percebendo uma lágrima
gelada a lhe descer pela face.
— Com quem se parecia?
Rachel fechou os olhos e suspirou.
— Tinha cabelos escuros como os seus. — E tocou os cabelos dele. —
Olhos acinzentados, bem grandes e redondos, e uma boquinha linda, bem-feita,
bem contornada...
— Oh! Rachel...
— Só a carreguei uma vez... Só uma...
Era uma tortura, um sofrimento atroz e cruel. O passado revivia. A dor era a
mesma, igualmente intensa e desesperada. A sensação de impotência, de
perda.
Abraçaram-se com força, como se procurassem apoio e conforto. Rachel
enterrou o rosto molhado de lágrimas no peito dele e sentiu seu coração
desesperado, batendo num ritmo de terror e opressão.
— Tiraram tudo de mim... a minha Rachel, a nossa filha. Deus, o que me
restou?
Fizeram amor com impetuosidade e ardor. Em cada gesto havia algo de
feroz e selvagem. Era o que tinham a dar um para o outro: seus corpos e as
malditas lembranças.
O sol queimava lá fora e o relógio de Rachel avisava que eram nove horas.
Não tinha conseguido dormir nem por um minuto. Passara o tempo inteiro
observando Tommy Lee, em seu sono agitado e intranqüilo.
— E agora, Rachel? — Quando acordou, Tommy Lee se recostou no
travesseiro e acendeu um cigarro. — O que faremos agora?
— Não sei...
Ele deu uma tragada profunda e esticou as pernas. Olhou-a fixamente.
— Vamos nos casar — disse sem hesitar. — Como devíamos ter feito há
vinte e quatro anos.
— Oh! Tommy... não podemos...
— Por quê? Está preocupada com aquilo que as pessoas vão dizer?
Rachel não respondeu. Aquela pergunta tinha ficado em sua mente o tempo
todo, mesmo quando se apertavam um contra o outro.
— Ainda não confia em mim, não é? — Agora ele tinha um ar aborrecido,
triste. — Não consegue se esquecer dos meus três casamentos, nem da lista de
amantes que tive, nem dos comentários que fazem a meu respeito. Você tem
medo de que eu continue bebendo e dirigindo, sem me importar com a vida.
Não é isso, Rachel?
Ela se sentou na cama. Estava confusa e desorientada.
— Não fuja, Rachel. Realmente acha que estou com você apenas por uns
instantes? Por que tem medo, afinal de contas?
— Oh! Tommy... — Desta vez, ela se levantou e ele não a impediu.
— Você não consegue acreditar que estou mudando... — ele acusava, com
um tom de mágoa e aborrecimento. —' Procure entender, Rachel, até agora
nada me importava. Não me preocupava em morrer num desastre de carro ou
com uma cirrose no fígado. A vida não tinha significado. Eu não tinha por que
nem por quem lutar. Agora é diferente. Você me importa. Até mesmo eu... Meu
Deus, a minha vida se tornou importante de uma hora para outra. Fique
comigo, meu amor. Não me deixe depois de tantos anos de espera.
Rachel vestiu o robe de seda cor-de-rosa e sentou-se na beira da cama.
Evitou encará-lo, pois também não queria olhar para dentro de si mesma.
— Temos que ser honestos um com o outro — ela disse, a cabeça baixa. —
Será que não estamos simplesmente querendo recuperar a juventude que
deixamos para trás?
— Não posso responder por você, mas sei o que está no meu coração. Eu a
quero, Rachel. Sempre quis. Mesmo durante esses vinte e quatro anos, eu a
desejei como um louco. Muitas vezes me surpreendia seguindo-a de longe,
vendo-a passar de carro ou caminhando pela calçada até o banco de seu pai.
A simples menção do pai a fez congelar por dentro. Sem perceber,
escondeu o rosto entre as mãos.
— Ainda tem medo de Everett, não tem? — a voz dele era baixa, mas
incisiva.
Ela não queria aceitar isso, mas se apavorava ao imaginar a reação do pai
se soubesse dessa noite. Sim, tinha medo, pavor. Everett era poderoso,
autoritário, e sabia perfeitamente como magoar as pessoas. Até a própria filha.
— Casando comigo, você se vingaria de todos, não é mesmo? — ela
pensou alto. — Provaria a todos o engano que cometeram ao nos separar.
Outra vez, Rachel levou as mãos ao rosto. Desta vez o pânico era real,
quase palpável. Tommy Lee passara vinte e quatro anos de sua vida atirando
sobre os pais a culpa do que havia acontecido. Não colocara limite nas suas
vinganças. Torturara-os com precisão e requinte. Casar com Rachel seria o
golpe final e decisivo. Era uma bela oportunidade.
Pensar nisso a levava à loucura. Simplesmente não podia acreditar que
Tommy Lee fosse capaz de usá-la de uma maneira tão sórdida. Mas a
possibilidade existia e era terrível.
— É isso o que pensa? — Revolta e indignação marcaram as palavras dele.
— Acha que me valeria de você apenas para insultar aqueles velhos?
— Deus! — ela gritou em desespero. — Não sei o que pensar. Tudo seria
tão mais simples se você fizesse as pazes com seus pais e eles com o meu.
Mas, do jeito que está, é tão complicado!
Notando a angústia dela, Tommy Lee a abraçou. Acariciou-lhe os cabelos e
os ombros. Amparou-a e confortou-a.
— Há algumas coisas que não posso mudar — disse suavemente. — Mas
aquelas que posso, já mudei. Eu a amo, Rachel. Sempre a amei. Você tem que
acreditar! Não é a bebida, os carros imponentes ou as inúmeras amantes que
me interessam. Aliás, nunca me interessaram realmente. Eram apenas uma
válvula de escape. Sempre a quis e nunca a pude ter. Oh! Rachel, estou tão
cansado dessa vida de falsidades. Fique comigo e me dê um pouco de paz...
Os soluços cortaram a voz de Rachel. Chorava convulsivamente.
Derramava lágrimas que não existiram na morte do marido nem nunca.
Chorava por aquele homem, pelo medo que tinha, por não saber como agir.
— Rachel, eu a amo... Confie em mim...
— Também o amo... Oh! Deus... como posso resistir? Eu o amo demais,
Tommy...
Ele a beijou levemente, mas logo se levantou com estranha determinação.
Era como se tivesse adquirido vida nova, como se as dores tivessem
subitamente desaparecido. Sorriu.
— Você sabe... — disse, meio brincando. — Nossa filha já tem idade
suficiente para ter seus próprios filhos. Já pensou nisso? Em algum lugar de
Michigan, podemos ter netos.
— Tommy, não estou preparada para ser avó!
— Bem, você realmente não agiu como uma...
Rachel riu, diante da malícia dele. Gostava de vê-lo assim, descontraído e
alegre. Sentia-se bem a seu lado, segura, feliz.
— Alguma vez pensou em procurar nossa Beth? — Ele acendeu outro
cigarro e se sentou na cama.
— Sim, mas nunca por muito tempo. Seria difícil vê-la e talvez nem tivesse
coragem de lhe falar. Depois, de que adiantaria? Ela tem pais que a amam e a
quem deve amar também. Se soubesse da verdade, certamente ficaria chocada.
Talvez fosse uma revelação tão dramática que não conseguisse suportar.
— Acho que você tem razão. — Ele ficou sério e quieto por alguns
minutos, mas logo um sorriso maroto apareceu. — Rachel, suponha que você
esteja grávida agora...
— Grávida? — ela se espantou e riu ao mesmo tempo.
— Por que não? Ainda é nova e saudável. E, que eu saiba, não tomou
nenhuma medida preventiva...
— Tenho problemas...
— Só com Owen, lembra-se? Se já tivemos um filho, podemos ter outros.
— Você está completamente maluco. — Agora ela ria pra valer.
— Não seria tão ruim assim. Teríamos que nos casar de qualquer forma.
Imagine só a cara de nossos pais ao vê-la entrando na igreja com a barriga até
aqui. — Ele fez uma mímica engraçada.
Rachel se divertiu com aquilo, mas pouco depois estava séria outra vez.
— Quarenta e um anos é demais para se ter um filho.
— Quem disse isso?
— É o que eu acho.
— Sei que não fui bom pai até hoje. Mas sempre pensei que, se tivesse
casado com você, se amasse minha esposa, saberia lidar melhor com os filhos.
Dizem que uma família harmoniosa é a base para crianças fortes e felizes.
Pense nisso, está bem? Talvez tenhamos a chance de sermos uma família. Eu,
você e Beth.

Uma hora depois, Rachel colocava as roupas molhadas na secadora.


Depois, pegou o telefone.
— Panache, bom dia!
— Verda, aqui é Rachel.
— Puxa, que azar não ter telefonado cinco minutos antes! Seu pai esteve
aqui.
— Verdade! O que queria?
— Tomar o café da manhã junto com você. Nada de importante. Disse que
voltaria mais tarde.
— Está bem. Como vai o movimento hoje?
— Duas clientes, nenhuma venda.
— Vou chegar mais tarde. Talvez só depois do almoço.
— Tudo bem. Não se preocupe.
— Até depois, então.
Desligou e foi para a cozinha. Queria ter um café da manhã especial.
Colocou a mesa, escolhendo frutas frescas, leite, geléia e pão. Depois foi
preparar os ovos.
— Posso usar sua escova? — A voz de Tommy Lee veio do andar de cima.
— Claro. Está na gaveta debaixo da pia. Gosta de bacon?
— Adoro — ele gritou. — Mas engorda!
Não importava. Pelo menos hoje, Tommy Lee tinha direito a uma refeição
farta e gostosa. Colocou na frigideira quatro fatias longas e finas. Sentia-se
completamente feliz.
Ouviu passos na sala e foi sorrindo até lá. Queria abraçar Tommy Lee
novamente...
Mas foi Everett quem encontrou. Estava vermelho de raiva, os olhos
esbugalhados, as mãos na cintura.
— Papai!
— Passei por aqui para tomarmos o café da manhã juntos — disse ele, num
tom frio, gelado.
Nesse instante, Rachel ouviu a porta do banheiro se abrindo. O ar parecia
lhe faltar nos pulmões. Não conseguia pensar, falar, nada. Estava paralisada,
amedrontada, tensa.
Tommy Lee desceu as escadas. Degrau por degrau. Rachel sentiu cada
segundo daquela espera. Olhou para o pai, que continuava em pé, o mesmo
desgosto estampado no rosto envelhecido.
Quando Tommy Lee chegou, usava apenas uma toalha azul enrolada na
cintura. Ainda tinha os cabelos molhados.
— O que temos aqui! — Everett estava a ponto de explodir de ódio, mas
foi irônico como sempre. — Ora, é óbvio. O pior conquistador da cidade
atacando a mais vulnerável viúva...
— Espere aí! — Tommy Lee e Rachel se revoltaram ao mesmo tempo.
— Não é bem assim, papai — foi ela quem terminou.
— Cale a boca, Rachel. — O pai a olhou com desprezo e indignação.
Virou-se para Tommy Lee. — Como ousa colocar os pés na casa de minha
filha?
— Não sabia que era preciso permissão para visitar uma mulher de
quarenta e um anos de idade!
— Visitar? Parece que você fez muito mais que uma simples e ingênua
visita! — Everett não conseguiu controlar os nervos. — Já não basta ter
carregado para sua cama todas as mulheres da região? Por que veio se meter
com minha filha? Fique sabendo que ela não é uma das suas vagabundas...
— Rachel é uma mulher decente. — Tommy Lee procurou não se alterar. —
O fato de eu estar aqui não altera isso.
— Certamente não é o que os vizinhos pensam.
— Pare com isso, papai! — Rachel gritou.
— Será que você não tem nenhum respeito por si mesma, nem por Owen?
— ele continuou, enfurecido. — Faz só alguns meses que seu marido...
— Pare de jogar Owen na minha cara! — Rachel se descontrolou. — Estou
farta disso, entendeu? Dei a você o genro que queria e agüentei todos os anos
de casamento sem reclamar. E foi muito chato, sabia? Não o amava. Isso
algum dia fez diferença para você? Mas agora já não é importante. Fui fiel e
dedicada àquele homem, só que não pretendo cultuar sua memória
indefinidamente. Ele está morto e sou uma mulher livre, independente e adulta!
— É por isso que vai se jogar numa lata de lixo como esse Gentry.
Tommy Lee chegou a seu limite. Avançou contra o velho, esticando o dedo
diante do seu nariz.
— Escute aqui, Talmadge, você não vai mais se meter na minha vida nem na
de Rachel. Você controla o banco e seus funcionários, mas não é o dono de
nossas vidas!
— Vou interferir quantas vezes precisar. — Everett deu um passo atrás. —
Não posso deixar que minha filha cometa o mesmo erro duas vezes.
— O erro foi seu! — Tommy Lee esbravejou. — Só que não consegue
admitir, não é mesmo? É doloroso demais confessar que arrancou de nós algo
que não lhe pertencia. A vergonha e o remorso devem ser um fardo bem
pesado. E o pior é que não há como consertar esse maldito engano, Talmadge.
Você tenta esquecer, mas nunca conseguirá dormir em paz. Sabe que cometeu
um grande e imperdoável erro. Mas estou de volta, outra vez na vida de sua
filha, e você será obrigado a suportar a própria culpa!
— Não se atreva a me condenar pelas besteiras que, vem fazendo, Gentry.
Você arruinou sozinho sua vida, com a bebida e as mulheres vulgares!
Angustiado, Tommy Lee passou os dedos nos cabelos úmidos. Balançou a
cabeça em desespero, certo de que seria impossível mostrar a verdade àquele
velho.
— Como pode ser tão cego? — disse, calmo, mas cheio de revolta. — Será
que não vai enxergar aquilo que está diante de seus olhos? Rachel e eu nunca
deveríamos ter nos separado. Tentamos lhe dizer isso há vinte anos mas você,
meu pai e minha mãe não escutaram. Não precisavam escutar, não é mesmo?
Sabiam o que fazer conosco. Eram os donos do nosso destino...
— Ainda bem que agimos daquela forma. — Everett ergueu a cabeça com
altivez. — O que teria sido dela, casada com um bêbado cheio de amantes?
— Rachel foi a única mulher importante de toda a minha vida. Eu sempre a
quis.
— E parece que a conseguiu desta vez. — O sarcasmo de Everett era
aguçado. — Aliás, fez questão que toda a cidade soubesse, deixando aquele
maldito Mercedes branco em frente à casa dela durante toda a noite!
— Você fala como se minha vontade não contasse — foi a vez de Rachel
falar. Não mediu as palavras nem a indignação. — Caso queira saber, fui eu
quem convidou Tommy para entrar. Aliás, você é a única pessoa que não devia
estar aqui dentro. Ao ver o carro dele lá fora, devia ter tido a decência de não
nos interromper!
— Tenho o direito paterno...
— Não me venha com essa, papai. Você violou minha privacidade. Isso é
falta de respeito! Esta casa é minha. Faço o que bem entender aqui dentro. E
você não pode simplesmente abrir a porta e começar a ditar regras.
— Será que não se importa com o que as pessoas possam pensar?
— Não me importo nem um pouquinho. Passei metade da vida seguindo
normas de um código moral que não existe. E foi você quem me enfiou esses
conceitos absurdos na cabeça. Mas já não sou criança. Olhe para mim, papai!
Está vendo meu rosto? Pois saiba que é o rosto de uma mulher madura, que
quer cuidar da própria vida, sem interferência nem sermões moralistas. Eu
mudei e Tommy também mudou. Será que não entende?
Everett baixou a cabeça e deu alguns passos indecisos.
— Tudo o que sei é que me envergonho de você. Como pode, menina?
Passei todos esses anos protegendo-a e é assim que me responde? Voltando
para Gentry?
— Pelo amor de Deus, será que não pode deixar de pensar nos seus
sentimentos e pensar nos meus? Por que não pergunta o porquê de eu estar com
Tommy?
O velho desceu lentamente o olhar pelo corpo nu e másculo de Tommy Lee.
— Tenho até medo de fazer essa pergunta — disse. — Algo me diz que
ficaria chocado com a resposta.
— Eu amo Tommy. — Rachel tinha a cabeça erguida, a voz firme e os olhos
claros. — Será que não pode aceitar isso e esquecer o passado?
Houve um silêncio longo. Rachel foi para perto de Tommy e segurou-lhe a
mão. Os dedos se entrelaçaram.
— Como pode falar em amor? — O velho ainda resistia. — Você está se
iludindo, deixando-se levar pela lábia sedutora desse tipo...
Os dentes de Tommy Lee rangeram. Sua mão prendeu a de Rachel com mais
força.
— Pois eu acho que é você quem está se iludindo, Talmadge — ele disse
—, porque é a única maneira de conviver com a decisão errada que tomou há
vinte e quatro anos.
O velho se calou. Depois, fixou os olhos naquelas mãos unidas. Ficou
furioso...
— Marshall seria... — ele ia começar a falar, mas Rachel o interrompeu de
imediato.
— Papai, você não vai continuar escolhendo os homens de minha vida.
Marshall é a cópia exata de Owen, e, por mais difícil que seja admitir, Owen
não foi capaz de me fazer feliz. — Fez uma pausa breve. — Tommy me pediu
em casamento.
— Você não pode fazer isso. — O pai empalideceu de repente.
— Já disse que o amo.
— O que você ama é uma fantasia da adolescência. — Agora Everett falava
em tom baixo, tentando convencê-la. — Mas hoje temos que enfrentar a vida
real. Você mesma falou que é uma mulher madura. Será que não percebe que
está se envolvendo com um homem que já teve três esposas?
Para surpresa de Tommy Lee, Rachel sorriu. Estava absolutamente segura.
Não hesitou nem por um segundo sequer.
— Vou embora daqui! — O velho estava fora de controle. Pisava com força
o chão a cada passo. Rachel o seguiu.
— Da próxima vez que vier me visitar, queira ter a gentileza de bater na
porta.
Quando finalmente ela se viu livre, percebeu que suas pernas tremiam.
Nunca em toda a vida havia desafiado o pai daquele jeito. Sempre temera um
confronto direto. Mas, de alguma forma, encontrara forças e estava satisfeita.
— Sinto muito, querida. — Tommy Lee a esperava com os braços abertos.
Aconchegou-a no peito.
— Você não tem culpa de nada. Papai simplesmente não tinha o direito de
invadir minha casa e insultá-lo daquela maneira.
— Ele está desesperado. É doloroso para um homem como ele se ver
diante das conseqüências de um erro do passado, que sempre procurou
esquecer.
— Será que não podia tornar a situação mais fácil? Por que não pensa na
minha felicidade? Por que não aceita a minha escolha.
— Talvez tenha ciúme. — O dedo de Tommy Lee subiu pela espinha dela.
— Duvido... papai nunca se importou com Owen ou Marshall.
— Porque podia controlá-los.
Ela suspirou fundo e o puxou até o sofá. Estava tão cansada de lutar!
Durante tantos anos as pessoas vinham se magoando, mantendo segredos,
evitando assuntos. Por que não relaxavam? Por que não aprendiam a conviver
pacificamente com as lembranças, por mais amargas que fossem?
— Oh! Tommy, você se lembra de quando éramos crianças? Tudo era tão
diferente. Nossas mães nos traziam chá gelado depois do jogo de tênis e nos
mandavam colocar casacos quando saíamos à noite. Puxa... como tudo pode
ter mudado tanto? Às vezes me pergunto se não teria sido mais fácil se mamãe
estivesse viva. Ela era o oposto de meu pai.
— E eles eram como minha segunda família.
Rachel se recostou no ombro dele, ouvindo o compasso do coração. Amá-
lo e casar-se com ele jamais seria suficiente. Enquanto as hostilidades
continuassem, não teriam serenidade e paz.
— Tommy...
— Sim...
— Quero fazer um acordo com você.
— De que tipo?
— Ainda... ainda quer se casar comigo?
Um beijo longo e úmido na nuca dela foi a resposta.
— Pois bem — ela continuou. — Eu me caso, se prometer que vai ver seus
pais e que fará as pazes com eles.
Sentiu os músculos dele se enrijecerem. Não houve qualquer comentário,
apenas um silêncio pesado e assustador.
— Escute, Tommy, não banque meu pai. Não seja tão duro e perverso.
Claro que ele não gostou da comparação. Ficou embaraçado. E sentiu-se
obrigado a ouvir as explicações dela.
— A única forma de sermos realmente felizes é encontrarmos um ambiente
de paz e harmonia. E isso só vamos conseguir através do perdão. Você acabou
de dizer que papai está apavorado em admitir o próprio erro. E você, será que
não está agindo do mesmo modo? Por quanto tempo mais vai condenar seus
pais? Não é mais saudável pôr um fim em tudo isso?
— Mas Rachel...
— Vi o desespero no rosto de sua mãe, lá na igreja. Ela sente sua falta e o
ama muito. Você é o único filho e Beth é neta dela. Por que não formamos uma
só família, feliz e contente?
Tommy Lee permaneceu calado.
— Quero lhe contar uma coisa, que nunca tive oportunidade — ela
prosseguiu. — Seus pais foram contra minha ida a Michigan. Foi mamãe quem
me falou, pouco antes de morrer. Ela sempre discordou da briga entre os dois
casais, mas nada podia fazer, pois meu pai apoiava. Você sabe, ele é
voluntarioso e na maioria das vezes convence os outros a seguir seus planos.
Foi exatamente isso o que fez com seus pais, que acabaram concordando com
a adoção. Durante muitos anos, achei que a culpa de todos era igual. Mas, na
verdade, foi meu pai o maior responsável. Ele controlou a todos. Olhe,
Tommy, se eu posso perdoar meu pai, por que não tenta perdoar os seus?
Ele continuou calado.
— Posso ajudá-lo. — Rachel não media esforços para convencê-lo. — Irei
com você, se quiser. Nós dois juntos teremos alguma chance de mostrar como
é fácil desculpar e esquecer. Alguém tem que dar o primeiro passo. Podemos
até desencadear uma reação em cadeia...
— Não vai dar certo — ele murmurou, depois de um suspiro.
— Pense bem, se conseguirmos atingir o coração de seus pais, se nos
mostrarmos felizes e cheios de perdão, certamente eles também desculparão
meu pai. Uma coisa puxa a outra...
— E quanto a nós dois? — Ele hesitou por um instante. — Você esquece
que expulsou Everett de dentro de sua casa?
— Deixe que eu cuido daquele velhote. Há uma coisa que você precisa
saber a respeito dele. Aquela fúria toda, a respeitabilidade, a preocupação
com as outras pessoas, tudo não passa de uma máscara, uma forma de defesa.
Sei que por trás de tanta dureza existe um coração mole. Então, aceita o
acordo?
Tommy Lee se levantou, com ar pensativo. Mas Rachel não o deixou
escapar. Seguiu-o pela sala.
— É um pedido muito difícil... — ele disse por fim.
Rachel o obrigou a encará-la. Colocando-se na sua frente, segurou o rosto
másculo com as duas mãos. Havia carinho e amor no gesto, mas também um
bocado de intransigência.
— Gostaria que tudo fosse como antes — a voz dela era meiga, idealista,
esperançosa.
— Nunca mais será daquele jeito...
— Mas poderá ser melhor do que está. Pense bem... eu, você, nossos pais
e... Beth. Acha certo negarmos à menina o carinho dos avós, só porque nos
magoaram no passado?
— Você tem razão, Rachel, mas...
— Os avós sempre têm influência nos jovens e vice-versa. Além disso... —
Ela lhe deu um beijo estalado no pescoço. — Você disse que faria qualquer
coisa por mim...
Na cozinha, o bacon queimava e espalhava o cheiro forte por toda a casa,
Rachel e Tommy Lee correram para salvar o que ainda restava. Mas era tarde,
tudo o que encontraram foram tiras negras e esfumaçadas. Riram juntos e se
abraçaram.
— Você vai mesmo se casar comigo? — Ele não acreditava. Um sonho
acalentado durante vinte e quatro anos poderia de repente se tornar realidade?
— Eu o amo e não quero mais ficar sem você.
Ele se afastou um pouco para olhar aquele rosto que tantas. vezes invadira
sua memória em noites solitárias e tristes. Agora podia tocá-lo e beijá-lo
quando bem entendesse. E foi o que fez. Roçou os lábios na testa dela, no nariz
pequeno e afilado, pálpebras, até chegar aos lábios macios e suaves.
— Rachel Gentry — ele murmurou. — Minha Rachel...
— Toda sua, Tommy... como sempre fui.
De repente, ele deu um passo atrás. Olhou-a bem no fundo dos olhos. Havia
felicidade e alegria em seu rosto.
— Quando nos casaremos? — Mas estava ansioso demais para esperar
pela resposta. — Assim que encontrarmos um juiz de paz. Ah! quero ter uma
lua-de-mel, você precisa arrumar alguém para substituí-la na loja. Outra
coisa... em qual casa quer morar? Não me importaria de mudar para cá, se
você preferir. Mas... Oh! Rachel... a nossa casa à beira do lago, com janelas
grandes...
— Espere um pouco, mocinho... Não estamos nos esquecendo de alguma
coisa? Não acha que deveríamos falar com Beth em primeiro lugar? Afinal,
seremos uma só família.
— Beth... Oh! Ela vai adorar você!
XII
"Problemas à vista", foi o que Tommy Lee concluiu ao chegar em casa, às
onze e meia do dia seguinte. A fisionomia abatida de Beth não deixava
dúvidas.
— Onde passou a noite? — ela tinha um tom amargo na voz e enfiou as
mãos nos bolsos da calça jeans.
— Oh!... — Ele precisava de algum tempo para pensar numa resposta
razoável. —: Ficou acordada esperando por mim?
— Imagine só! Isso é coisa que os pais deveriam fazer! Georgine queria
uma carona para casa e, como a porta de seu quarto estava fechada, ela
resolveu me acordar. Quando fui chamá-lo, vi que a cama nem tinha sido
tocada.
Tommy Lee ainda procurava algo sensato para dizer, quando a empregada
entrou na sala com cara de poucos amigos. O ambiente estava terrivelmente
tenso.
— Já preparei o café, limpei a casa e telefonei para minha família avisando
que chegaria tarde — ela reclamou, sem disfarçar a raiva.
— Desculpe, Georgine. Se você estiver pronta, posso levá-la
imediatamente.
— Se eu estiver pronta... — ela resmungou, saindo pela porta da cozinha.
Na verdade, Tommy Lee não gostava muito dela. Era petulante e vivia
fazendo exigências. Mas agora, com Beth em casa, precisava mais do que
nunca dos serviços da empregada. Não tinha escolha.
— Não quer ir comigo, docinho? — perguntou à filha, tentando parecer
meigo.
— Não.
— Poderíamos conversar no caminho.
— Não vou.
— Está bem. Estarei de volta em meia hora e passaremos o dia inteiro
juntos.
Não seria fácil contornar aquela situação. Beth estava visivelmente
revoltada, e sem querer dar-lhe uma chance. Exigiria explicações e seria
preciso dá-las.
Durante o percurso, Tommy Lee procurou ser gentil com a empregada.
— Sinto muito, Georgine, por não ter podido trazê-la mais cedo.
— As desculpas não deveriam ser para mim, mas para sua filha. Uma
menina tão nova como ela... O que não estará pensando?
O pior era que Tommy Lee sabia exatamente o que passava pela cabecinha
ingênua da filha. Acostumado com a liberdade, nem havia se lembrado dela na
noite passada. Como pensar em qualquer coisa nos braços quentes e
carinhosos de Rachel? Mas Georgine tinha razão. Uma garota de quatorze anos
é bastante vulnerável. Certamente Beth estava decepcionada com ele.
Quando voltou para casa, encontrou a filha diante do fogão, fritando uns
ovos. Reparou nos cabelos longos, presos num rabo-de-cavalo. Seu corpo já
era quase de mulher. Tinha cintura fina e os seios começavam a marcar a
blusa. Era linda e, sem dúvida alguma, dentro de dois ou três anos se tornaria
irresistível.
Rachel também tinha pouco mais de quatorze quando despertou amor nele.
Meio menina, meio mulher. Uma idade maravilhosa, que misturava
ingenuidade e malícia.
— Ainda está brava comigo, não é? — ele perguntou, um pouco
constrangido.
Não teve resposta.
— Não quer nem falar?
Beth sacudiu os ombros, mas não abriu a boca.
— Querida, sinto muito...
Agora ela se virou. Os olhos estavam cheios de mágoa e ressentimento.
— Depois do show, convidei alguns amigos para conhecer você. Eles
esperaram mais de duas horas e meu pai simplesmente não apareceu.
— Já disse que sinto muito. Não vai acontecer de novo. Prometo.
— Onde você estava?
Foi a vez de Tommy Lee cair no silêncio. Tinha vontade de dizer que
passara a noite com a mulher que amava, mas qual seria a reação da filha?
Talvez criasse um ódio tão grande por Rachel que dificultasse tudo mais tarde.
— Você estava com uma mulher, não é? — ela acusou.
— Beth... tenho quarenta e um anos de idade.
— Sei quem é ela — Beth estava furiosa. — Aquela da porta da igreja, não
é?
— Por que acha isso? — Tommy Lee quase perdeu a fala.
— Ora, papai, não sou mais uma criancinha idiota. Vi muito bem como ela
olhou para você.
— Seu nome é Rachel... — ele balbuciou. — E a primeira coisa que quero
que saiba é que estou apaixonado por ela.
— Eu sei... — não havia compreensão na afirmativa da garota. — Mamãe
sempre disse que você gostava de outra mulher. Por isso se divorciou. E por
isso também não tenho uma família como todo mundo.
— Não vou discutir a opinião de sua mãe, Beth. Está fora de questão.
As lágrimas inundaram os olhos dela. Tommy Lee ficou completamente
desconcertado. Aproximou-se, procurando abraçá-la, mas ela lhe virou as
gostas.
— Não entendo... — ela resmungou entre soluços. — Mamãe ficou brava
comigo só porque me viu beijando um rapaz. Eu gostava dele e ele de mim.
Mas você... você... pode passar a noite toda fora e ninguém diz nada. Por quê?
Isso quer dizer que aos quarenta e um tudo é permitido e aos quatorze um
simples beijo é proibido?
Tommy Lee sabia que aquele beijo havia sido o motivo da fuga da filha.
Nancy pegara-a em flagrante e aprontara um verdadeiro escândalo. Então ela
fugiu. Mas o que dizer agora Como explicar que as situações eram
completamente diferentes? Ele sempre quisera uma segunda oportunidade para
ser pai. Só que não imaginava que podia ser tão difícil.
— Querida... O que estou tentando dizer é que, aos quarenta e um anos, uma
pessoa tem melhores condições de arcar com as conseqüências de seus atos.
Sua mãe errou. Não há nada de mal em beijar um rapaz aos quatorze anos. Foi
exatamente com essa idade que comecei a beijar as garotas. Aliás, você sabe
quem foi a primeira?
Ela se virou, com olhos arregalados e curiosos.
— Rachel Talmadge. Era esse seu nome de solteira — ele disse.
— Você... você a conhece há tanto tempo assim?
— Desde que éramos bebezinhos.
Mas, ao invés da revelação impressionar Beth, só fez com que se tornasse
ainda mais inacessível. Tommy Lee já não sabia mais o que fazer, nem o que
falar. Era evidente que a filha estava enciumada, com medo de perdê-lo. Será
que não compreendia que em seu coração havia lugar para as duas?
"Santo Deus", ele pensou. "Será que Rachel e eu nunca teremos um pouco
de paz?"
Beth colocou os ovos num prato. Não lhe ofereceu, como sempre fazia.
— Você não gosta de falar sobre Rachel, não é? — ele perguntou.
— Eu preferia que mamãe tivesse sido sua primeira namorada. Talvez
ainda estivessem casados e felizes.
Como entender uma garota de quatorze anos, filha de pais separados e
tendo que enfrentar a nova namorada do pai? Beth era possessiva, não
dividiria com ninguém o amor dele.
Naquela tarde, levou-a para fazer compras. Mas isso de nada adiantou para
aliviar a tensão. A menina observava cada atitude dele. Desconfiava de todos
os olhares.

Na manhã do domingo, quando foram à igreja e viram Rachel, Beth


literalmente se pendurou no braço dele. Então, Tommy Lee disse que iria até o
escritório pegar uns papéis que havia esquecido. Naturalmente era só desculpa
para passar alguns minutos na casa de Rachel. Mas Beth imediatamente
resolveu que iria com ele. O plano falhara.
Finalmente à noite, ele escapou para o quarto e de lá telefonou para Rachel,
O som doce da voz dela o acalmou.
— Estou morrendo de saudades — ele disse num suspiro.
— Eu também. Tentei telefonar à tarde, mas não havia ninguém em casa.
— Fui esquiar com Beth e alguns amigos. Estou procurando ser bom pai,
mas tenho a impressão de que teremos um problema sério pela frente.
— Ela não me aceita.
— Isso mesmo. Toma conta de mim o tempo todo, como se tivesse medo de
me perder. Não sei mais o que fazer. Foi horrível. Quando cheguei em casa
naquele dia, sem ter dormido aqui, foi um choque.
— Contou-lhe sobre nós?
— Ela descobriu sozinha.
— Como?
— Chamou-a de "a mulher da porta da igreja".
— Hum...
— Oh! Rachel... preciso ver você. Só há um lugar onde eu gostaria de estar
agora.
— Onde?
— Em sua cama — o tom foi sensual, carinhoso, deliciosamente
provocante.
— Gostaria de vê-lo também. Não pode passar por aqui, nem que seja por
meia hora?
— Receio que não. Prometi a Beth que assistiríamos a um filme na TV.
— Quando nos encontraremos, então?
— Amanhã à tarde. Pegarei você na loja.
— Não, venha direto para minha casa. Pode ficar para jantar?
— Acho que não. — Outro suspiro encheu a boca de Tommy Lee. — Beth
vai me preparar um prato especial.
— Fica para outra vez. — Ela pensou por um momento. — Onde você está
agora?
— No quarto.
— Nosso quarto?
— Sim, Rachel... nosso quarto, nossa cama.
Subitamente a conversa tomou um rumo sensual, quase erótico. Recordaram
aquela noite, mencionando detalhes íntimos. Falaram sobre o que fariam e o
que tinham vontade de fazer numa cama. Sentiam-se excitados, envolvidos e
loucamente apaixonados.
— Oh! Tommy... não vejo a hora de morar com você. Eu o amo tanto...
— Repita, Rachel. Acho que ainda não consigo acreditar nisso.
— Amo você, meu querido.
Ele fechou os olhos, absorvendo as palavras.
— Quero casar com você o mais rápido possível — disse suavemente.
— Eu também. Mas... e Beth? Já falou com ela sobre nossos planos?
— Não tive chance.
— Ela realmente ficou zangada com aquela noite, não é? Também sou
culpada. Deveria ter me lembrado dela. Fui eu quem não deixou você ir
embora.
— Rachel, minha querida, você não tem culpa. Nem eu, nem Beth. A
situação está um pouco confusa agora, mas vamos dar um jeito. Seremos uma
família feliz. Juro!
— Espero que sim...

O relógio parecia não andar no dia seguinte. Os minutos eram longos


demais. Durante a tarde, Rachel mal conseguiu se concentrar no trabalho. Só
pensava que dentro em pouco estaria nos braços de Tommy Lee, recebendo
aquele corpo másculo e viril.
O Mercedes já estava estacionado em frente da casa quando ela chegou. E
Tommy Lee a esperava na porta. Tinha um ar ansioso e estava mais lindo que
nunca.
Rachel mal teve tempo de tirar a bolsa do carro. Logo os braços dele a
envolveram num delicioso abraço. Ela afundou os seios no peito largo e
musculoso e as mãos entre os cabelos escuros.
A língua dele percorreu o contorno dos lábios de Rachel com insistência e
suavidade. Depois, penetrou boca adentro,numa urgência própria dos amantes.
O corpo de Rachel reagiu com arrepios e tremores. Suas mãos apertaram a
nuca e desceram pelas costas dele, para prendê-lo como se jamais fosse
libertá-lo.
— Alguma vez você imaginou que estaríamos juntos novamente? — ele
sussurrou, ainda abraçado ao corpo frágil dela...
— Nunca...
Um sorriso os iluminou. Outro beijo, igualmente longo e profundo, uniu
suas bocas. Mas os braços continuavam se tocando numa busca incessante de
carinho.
Então Callie Mae surgiu na porta. Sob um dos braços carregava uma tigela
com uma massa escura dentro. E a mão livre não parava de bater o conteúdo
nem por um segundo.
— Veja só se não é aquele Tommy Lee que costumava comer os biscoitos
antes do jantar... — O carinho dela era inconfundível.
Rachel e Tommy Lee se entreolharam. Riram e depois ele foi abraçar a
velha negra.
— Callie Mae! — exclamou, cheio de alegria. — Como é bom ver você de
novo!
— Meu Deus... — O beiço dela se abriu num sorriso. — Parece até que
voltamos aos velhos tempos... Você e a srta. Rachel... juntos... rindo... A glória
divina sempre encontra seus caminhos. — Fez uma pausa breve, contemplando
os dois. — Ainda bem que criaram juízo nessas cabeças. Já era tempo de
ficarem juntos outra vez.
— Você acha mesmo? — Tommy Lee fez expressão de seriedade só para
provocá-la.
— Por Deus... Vocês foram criados um para o outro. Foi . isso o que os
anjos quiseram...
Os três seguiram até a cozinha. Realmente era como se os anos não
tivessem passado. Estavam felizes como há muito não acontecia. Riam e
brincavam, como duas crianças e uma babá controlando o comportamento.
Tudo como antes. Absolutamente feliz.
— O que está cozinhando? — Tommy Lee perguntou a Callie Mae,
esticando os olhos por cima dos ombros dela.
— Biscoitos de chocolate. — Ela riu. — Cheios de nozes dentro, como
você gosta, menino.
— Ora! Vai ser duro resistir. — E roubou um deles, ainda quente, logo
ganhando um tapa na mão.
— Hei! ainda temos uma hora antes do jantar — ela resmungou. — Esse
moleque nunca vai mudar... A srta. Rachel é quem deveria comer doces. Está
magrinha...
— Oh! não... — Rachel se pendurou em Tommy Lee. Então ele teve uma
idéia. Sussurrou alguma coisa no ouvido de Rachel e ela riu, respondendo no
mesmo tom secreto.
Callie Mae, cujo pecado maior era a curiosidade, estava desesperada.
Esticava os olhos, aguçava os ouvidos, mas nada conseguia saber.
— Parem com isso, crianças. É coisa que Deus não gosta.
— Devemos contar a ela? — Tommy Lee lançou um olhar cúmplice a
Rachel.
— Não sei... o que você acha?
— Poderia falar — Callie Mae os estimulou, sorrindo.
— Sra. Callie Mae... — Tommy Lee se aprumou e engrossou a voz. Segurou
Rachel pelo ombro. — Você vai ter um novo emprego.
— O quê? Eu... um novo... — A boca da velha se abriu de espanto. Os
olhos ficaram úmidos, cheios de receio e dúvida.
— Na minha casa. — Tommy Lee a abraçou.
— Eu... — Ela pensou um pouco enquanto secava as lágrimas com o
avental. — Estou entendendo... vou trabalhar para vocês dois...
— Isso mesmo. — Rachel abriu um sorriso brilhante. — Vamos nos casar.
— Deus seja louvado! — Callie Mae estalou um beijo nos rosto deles.
Rachel e Tommy Lee sorriam como duas crianças. Antes de sair da cozinha,
ele roubou outro biscoito e foi novamente repreendido. Aquela velha era uma
segunda mãe. Tinha no coração a bondade esquecida pelos homens.
— A cidade toda vai ficar sabendo — Rachel comentou, já conhecendo a
língua comprida da empregada.
— Você se importa?
— Nem um pouco.
A boca de Tommy Lee estava com gosto de chocolate. E os dedos sujos
acabaram por manchar a blusa de Rachel sobre o seio.
— Tenho que me trocar — ela sussurrou, presa nos braços dele. — Veja só
o que você fez, seu doido...
— Vai para o quarto?
— Onde mais?
— Acha que Callie Mae ficaria muito chocada se eu subisse com você?
— Bem, um dia terá que se acostumar...
Inesperadamente, sem dizer nada, Tommy Lee carregou-a no colo, subindo
as escadas a passos lentos, dando-lhe beijos ardentes.
Só a deixou quando chegaram na cama, mas não se deitou.
Em frente dela, começou a tirar a roupa.
— Você sempre foi um pouco exibicionista — ela brincou, já sentindo a
reação do próprio corpo.
— Não gosta?
— Sou louca por você!
Pouco depois, o corpo nu de Tommy se estendeu ao lado do dela. As mãos
habilidosas lhe tiraram a blusa suja, a calça justa, o sutiã e por fim a calcinha.
Não havia lugar, não havia hora, só os sussurros e as expressões de
prazer...
XIII
Durante uma semana, Tommy Lee e Rachel se encontraram secretamente,
nas horas em que Beth ia para a escola e que o trabalho permitia. Mesmo
assim, quando estavam juntos, o amor era tão forte e incontrolável que
compensava a longa separação.
Num fim de tarde, ele passou na butique inesperadamente, e logo foi dando
um beijo apaixonado na boca de Rachel.
— Tudo bem, querida? Tenho que ir a Atlanta a negócios. Estou a caminho
do aeroporto. Só voltarei amanhã à noite.
Verda estava boquiaberta com a cena. Não tirava os olhos espantados do
casal.
— Atlanta? — Rachel nem teve tempo de tirar os óculos que usava quando
forçava demais a vista.
— Vou comprar umas terras para construir edifícios populares. Se quiser
falar comigo, estarei no Hotel Sheraton.
— Boa viagem, e boa sorte. — Ela o acompanhou até a porta, ainda sob o
olhar vigilante de Verda.
— Gostaria de ficar mais tempo com você, mas o avião sai em meia hora.
Um outro beijo colou suas bocas, diante da perplexa Verda.
Na mesma noite, Rachel telefonou para o Sheraton. Conversaram
demoradamente, livres da fiscalização de Beth. O negócio havia dado certo.
Como sempre, Tommy Lee conseguira o que queria.
— Você não imagina o choque de Verda ao ver nosso beijo! — Rachel
comentou.
— O que ela disse?
— Tem certeza de que quer saber?
— Claro!
— Ela olhou bem para mim e falou: "Não sabia que ele estava atrás de
você!"
— E você acha que estou?
— Não, meu querido, você está do meu lado, dentro do meu coração.
Na noite seguinte, ele estava de volta. Entre o aeroporto e sua casa, parou
para ver Rachel. Trocaram beijos e carícias, mas não tiveram tempo de fazer
amor. Beth estava esperando-o para jantar.
— Sinto muito, Rachel. Minha vontade era ficar toda a noite aqui, mas é
melhor dar atenção a Beth.
— Entendo. Nem há por que pedir desculpas. — Ela pensou um pouco. —
Mas não acha que seria conveniente nos apresentar uma a outra? Pelo menos
assim terei uma chance de provar que não estou tentando roubá-lo dela.
— Tem razão.
— Quando, então?
— Hum... Este fim de semana.
Mas, na sexta-feira, Rachel teve uma surpresa desagradável na loja. Fazia a
contabilidade,-sentada atrás da escrivaninha, perdida entre números e papéis,
quando três garotas entraram. Era estranho, pois o tipo de roupa da Panache,
clássica, formal e cara, raramente agradava a adolescentes...
Ela sorriu ao vê-las, como de hábito. Mas logo se espantou ao reconhecer
Beth entre elas. Felizmente, Verda se adiantou para atendê-las.
— Olá, meninas. Procuram alguma coisa?
— Estamos só olhando — uma delas disse, enrolando um chiclete na boca.
— Preciso comprar alguma coisa para minha avó.
E as três sufocaram o riso.
Rachel estremeceu. Sabia que aquela visita era uma provocação, uma
declaração de guerra. Achou melhor não se levantar e fingir que não havia
percebido a presença delas. Verda arrumaria um jeito de lidar com aquelas
diabinhas desafiantes.
Porém, a curiosidade foi maior. Quis analisar o rosto daquela que poderia
ser sua filha, e que, aliás, dentro de pouco tempo partilharia com ela o mesmo
teto. Os cabelos eram realmente bonitos, do mesmo tom escuro dos de Tommy
Lee. Estavam despenteados, mas mesmo assim enfeitavam o rosto. A boca era
bem vermelha, de lábios ligeiramente caídos nos cantos, como os de Lily
Gentry. O nariz, este sim era desconhecido. Grande, mas bem-feito.
Provavelmente puxara à mãe.
— Olhe só como fico com este aqui! — Uma delas, a mais alta, colocou um
vestido sóbrio em frente ao corpo. As outras caíram na gargalhada.
Verda estava perdendo a paciência. Retorceu o nariz e lançou um olhar
cansado à patroa. Mas, como duas delas experimentavam chapéus, não teve
alternativa a não ser lhes dar atenção.
Enquanto isso, Beth olhava as bijuterias expostas nas prateleiras de vidro.
Rachel a observava, pensando numa forma de se apresentar. De repente, viu
que a menina pegava uma pulseira de prata e a escondia sob a blusa.
A boca de Rachel se abriu instintivamente para protestar. Mas ficou muda,
parecendo congelada. Nesse instante, Beth a encarou. Havia desafio e raiva
em seus olhos. Era evidente que provocava Rachel, que tinha roubado a
pulseira apenas para testá-la.
O que fazer agora?
Nem teve tempo de reagir. Um segundo depois, sem. tirar os olhos de
Rachel, Beth falou às outras duas: — Vamos, meninas, nem nossas avós se
interessariam por estas roupas.
Saíram entre risos e comentários. Rachel permaneceu imóvel, chocada e
totalmente deprimida. Apoiou a cabeça entre as mãos, tentando colocar os
pensamentos em ordem. Nem conseguiu escutar as reclamações de Verda.
Por que o mundo inteiro tinha que botar empecilhos na vida dela e de
Tommy Lee? Por que sempre encontravam pela frente barreiras poderosas que
os impediram de ser felizes? Por quê? Que mal haviam feito? Só o que
desejavam era viver em paz, casar e repartir seu amor com Beth. Mas tudo
indicava que não seria possível. Mais uma vez o sonho ameaçava ser
destruído...
Recostou-se melhor na cadeira, apoiando o pé sobre a escrivaninha. Algo
que jamais tinha feito.
Maldita garota! Será que não percebia o quanto o pai já tinha sofrido? Não
entendia que esse ciúme só o prejudicava?
Bem, agora era preciso tomar uma decisão. Contaria a Tommy Lee sobre a
pulseira ou não?

O domingo amanheceu ensolarado. Rachel fez questão de colocar o vestido


mais elegante que tinha para ir à igreja. Era um modelo clássico, discreto e
pouco ousado. O colar de pérolas deu o toque final.
Já ia saindo de casa, quando resolveu telefonar para o pai. Afinal, se
Tommy Lee estava disposto a enfrentar Lily e Gaines, ela também deveria
manter um clima de cordialidade com Everett. Ele foi frio e distante no
telefone, mas ela fingiu nem notar. Pediu-lhe que viesse apanhá-la em casa
para irem juntos à igreja.
Ele veio. Vitória!
Rachel entrou no carro com o mesmo sorriso de sempre. Beijou-o
carinhosamente no rosto, mas Everett não retribuiu o cumprimento.
— Obrigada por me pegar, papai. Tommy ia fazer isso, mas estava um
pouco atrasado. Sua filha está morando com ele e você sabe como as mulheres
levam tempo para se arrumar. Vou ser apresentada a ela depois da igreja e
pretendemos almoçar juntos.
Ele simplesmente lançou-lhe um olhar de desaprovação e desprezo. Não
abriu a boca. Certamente queria fazer uma greve de silêncio, mas Rachel não
permitiria.
— Ah! estou tão nervosa! O que achou da roupa que escolhi? Claro que
quero causar boa impressão, já que vamos morar todos na mesma casa.
Nenhum comentário. Apenas o silêncio pesado e desconcertante. Rachel foi
em frente.
— Beth, a garota, é adorável. Pelo menos é isso o que Tommy vive falando.
Já está no colégio daqui e parece que está se dando muito bem. Tem várias
amigas. Você a conhece. É aquela morena que estava com Tommy na porta da
igreja, lembra-se? Não há dúvidas de que tem o formato da boca dos Gentry.
Ela é bem bonita.
Everett não demonstrava qualquer interesse. Guiava com calma, sem tirar
os olhos da estrada. Rachel puxou o espelho e o batom, pintando os lábios.
— Beth se maquila demais. Todas as meninas de quartoze anos têm essa
mania de parecerem mais velhas. Gostaria de ensiná-la como se pintar de
acordo com a idade.
Ela estampou um sorriso no rosto, mas de nada serviu para descongelar o
coração do pai. A batalha seria árdua.
— E você, papai, o que tem feito?
Pela primeira vez, ele lhe lançou um olhar.
— O que diabos está acontecendo com você? — rosnou, cheio de rancor.
— Estou feliz. Só isso. Não é assim que as pessoas se sentem quando estão
apaixonadas?
O velho grunhiu com evidente sarcasmo.
— Não seja cínico, sr. Talmadge — ela brincou. — Você está cometendo
um grande erro. Gostaria de conhecer Beth? Afinal, vai ser sua neta.
— Rachel!
— Bem, talvez tenha razão. É melhor deixá-la se acostumar comigo antes.

Quando chegaram à igreja, Rachel sentia-se exausta de tanto falar, de lutar


contra as barreiras impostas pelo pai. Mal sabia que o pior ainda viria. Beth
estava agarrada ao braço de Tommy Lee numa atitude possessiva e
determinada. A guerra continuava.
Finalmente, quando o culto terminou, Rachel tomou fôlego e atravessou a
pequena multidão indo até Tommy Lee.
— Rachel, como vai? — Ele estendeu a mão educadamente, embora seus
olhos escuros a devorassem com devoção.
— Bem. E você, Tommy?
— Já conhece minha filha, Beth? — Ele puxou a menina pela mão.
— Olá, Beth. — O coração de Rachel parecia querer saltar do peito. —
Estava ansiosa por conhecê-la. Seu pai vive falando em você.
— Olá — a outra respondeu tão friamente que podia congelar todo o
ambiente.
— Ela é tão bonita quanto você disse, Tommy. Os olhos são seus, a boca de
sua mãe.
— Ah, sim, minha menina é linda. — Tommy Lee agradou a filha. —
Rachel, gostaria de almoçar conosco?
— Sim, claro. — Ela fingiu estar surpresa, como se não soubesse que cada
palavra havia sido cuidadosamente planejada.
Naturalmente, Beth torceu o nariz. Nem ao menos fez questão de disfarçar a
raiva.
Rachel não hesitou em tomar o assento de trás no carro. Era preciso mostrar
à garota que não estava interessada em tirar seu lugar. Pouco adiantou. Durante
o caminho apenas ela e Tommy Lee conversaram.
Escolheram um restaurante italiano, de ambiente alegre. Beth pediu lasanha,
Tommy Lee e Rachel preferiram uma salada completa, à moda napolitana.
As xícaras de café já estavam na mesa, quando Rachel tirou da bolsa uma
caixa pequena, embrulhada em papel de seda verde-claro. Estendeu-a a Beth.
— Trouxe uma lembrancinha da minha loja para você.
Pela primeira vez, a menina ficou tensa. Olhou para o pai, para Rachel,
para a caixa, e não a pegou. Era como se não acreditasse.
— É um presente? — balbuciou. — Para mim?
— Apenas algo que seu pai me disse que gostava.
— Abra, querida. — Tommy Lee sorriu.
Hesitantes, as mãos dela desataram o nó da fita de cetim, rasgaram o papel
de seda e por fim abriram a caixinha. Brincos de prata, pequenos e delicados,
estavam lá dentro. Tinham o mesmo desenho da pulseira roubada. Beth
empalideceu, como se perguntasse a Rachel se ela realmente não tinha contado
nada a Tommy Lee.
— Obrigada — murmurou em seguida.
— Quando tinha sua idade, não podia usar brincos — Rachel disse. — Era
a mentalidade da época. Lembro-me das brigas com mamãe toda vez que
tentava usar uma coisa nova. Você sabe, batom, meias de náilon, salto alto...
— Sua mãe tinha razão. — Tommy Lee deu risada, provocando Rachel. —
Lembro-me da primeira vez em que apareceu com batom. Minha nossa, estava
horrível! Era mais vermelho que um tomate maduro e estava todo borrado!
— Pois pensei que houvesse gostado!
— Naquela época, preferia vê-la subindo nas nogueiras junto com o resto
da turma!
— Lembra-se de quando caiu de uma delas? A mais alta, lá do jardim...
— Nunca vou esquecer. Passei as férias todas com o braço engessado. —
Ele pensou um pouco. — E o nosso telefone direto, do seu quarto para o meu...
nunca pudemos instalá-lo.
— Pois é... tivemos que continuar usando o de casa, apesar dos protestos
dos nossos pais! — Rachel notou que a garota acompanhava a conversa,
embora com pouco interesse. Virou-se para ela: — Seu pai era um demônio.
Sabe o que costumava fazer?
E desatou a contar as peripécias da infância de Tommy Lee. Falou dos
sapos escondidos sob a mesa da professora de matemática; das pescarias no
aquário do sr. Hoover; das brincadeiras de detetive, quando ele se escondia
nos carros dos vizinhos para ouvir o que conversavam. Mas só ela e Tommy
Lee se divertiam com as recordações. Beth não mostrava o menor entusiasmo.
O encontro tinha chegado ao fim e o saldo era baixo. A resistência da
menina continuava firme, impenetrável, inviolável. Ao se despedir, agradeceu
novamente o presente, mas não houve um mínimo de carinho na voz. Apenas
educação. Nada além disso.
— Não funcionou... — Rachel tirou os sapatos, jogando-os para os lados.
Caiu sentada no sofá de sua sala, exausta.
— Ela se portou como uma boba! — Tommy Lee acendeu um cigarro e
também se estatelou numa poltrona.
— Não a culpe, querido. Ela só precisa de algum tempo para me aceitar.
— Não entendo! Simplesmente bancou a rude, a cruel, quando, na verdade,
é dócil e meiga... Será que não percebe o quanto a magoou?
— Beth está somente lutando por seu amor. Não quer dividi-lo e eu
represento uma ameaça. Todas as mulheres, não importa a idade, são
ciumentas de seus homens. Precisamos ser pacientes...
Mas Tommy Lee já tinha gasto muitos anos esperando pacientemente uma
chance de ficar com Rachel. Ninguém tinha o direito de adiar aquela
felicidade aguardada por tanto tempo. Nem mesmo a filha, por mais que a
amasse.
Ao chegar em casa, encontrou Beth com novo humor. Sorria. Beijou-o
ternamente, abraçando-o com força.
— Oi, papai. Comprei sorvete para nós. Não quer um pouco?
— Estou de regime — ele respondeu friamente, jogando as chaves do carro
sobre a mesa da cozinha.
— Bem, talvez prefira uma fruta...
— Beth, não preciso de ninguém para tomar conta de mim! Temos uma
empregada em casa, portanto você não precisa ficar me agradando com
esses... subterfúgios domésticos! — ele explodiu. — Quero apenas que seja
minha filha!
— Bem, pensei que já fosse...
— Então comece a agir como tal! Esse seu ciúme absurdo está me deixando
cansado.
— Pelo que vejo, ela andou metendo idéias na sua cabeça!
— Ela tem nome. — Tommy Lee não escondeu a zanga. — É Rachel e acho
bom tratá-la com mais cortesia da próxima vez em que estiverem juntas.
— Eu não...
— Ainda não acabei! Caso queira saber, Rachel foi a primeira a desculpar
sua grosseria. Não me meteu idéias na cabeça, como acabou de dizer. Ela
estava pronta a perdoar sua agressividade. Mas eu não!
— Quando ela está por perto, você nem repara em mim — a garota
argumentou, num tom choroso.
— Isso não é verdade e você sabe!
— Não é? Durante o dia inteiro vocês dois ficaram babando aquelas
histórias ridículas do tempo em que eram crianças. Fiquei de fora.
— O que me diz das suas respostas curtas e indelicadas quando ela tentou
saber dos seus passeios e amigos? Você fez questão de ficar de fora. Como
acha que Rachel se sentiu, esforçando-se para ser sua amiga e recebendo
apenas pontapés?
— Nunca serei amiga dela. Nunca!
— Beth...
— Sei muito bem quem é ela. Vi as fotografias que tem aos milhares! Tem
mais fotos dela do que de mim ou de minha mãe.
— Nós crescemos juntos...
— Mamãe sempre me falou que você tinha um amor no passado que não lhe
saía da cabeça. Por isso se casou três vezes. Por isso saía com outras
mulheres. A culpa é dela, dessa maldita Rachel! Se ela não existisse, minha
vida poderia ser bem diferente. Talvez tivesse um pai e uma mãe juntos...
como todo mundo... e também... Oh!...
Ela caiu num pranto convulsivo. Derrubou o prato de sorvete no chão e saiu
correndo escada acima.
— Beth, espere, Beth...
— Volte para a sua preciosa Rachel. Deixe-me em paz! Volte para ela!
Ele pensou em segui-la e lhe contar a verdadeira história da vida de
Rachel. Mas como uma menina de quatorze anos reagiria àquela dura
realidade? Certamente Nancy havia criado preconceitos na mente da filha.
Contar-lhe sobre sua gravidez aos dezesseis anos de idade poderia chocá-la
profundamente e criar uma impressão errada de Rachel. Puxa! Como era
difícil ser pai!
XIV
O outono chegou, mudando a paisagem. As árvores amarelaram, as folhas
caíram, o céu se tornou mais escuro. Apenas as atitudes hostis de Everett e
Beth não se alteraram.
Em outubro, Rachel colocou a casa à venda. Talvez isso ajudasse o pai a se
conscientizar de que ela ia se mudar para a beira do lago. Algumas vezes se
encontrou com Beth na casa de Tommy Lee, mas logo que podia a garota se
esquivava para o quarto, evitando maiores contatos.
A casa foi vendida e ela e Tommy Lee marcaram a data do casamento para
o sábado seguinte ao dia de Ação de Graças. Mas o tempo ia passando, o
feriado se aproximava e os dois ainda encontravam resistência por parte dos
outros. Sabiam que seria difícil começar uma vida em comum, naquele clima
de insatisfação e agressividade.
Já tinham feito tudo o que podiam. Não aceitariam adiar mais uma vez o
casamento. Portanto, era chegada a hora da decisão.
Naquela tarde, o vento soprava violento e frio. Tommy Lee saiu do
escritório e foi para o Banco Municipal de Russelville. Passou pelos caixas e
pelo gerente a passos firmes. Entrou no elevador e subiu até o terceiro andar.
— Quero falar com Everett Talmadge — disse com autoridade à
recepcionista, que ficava numa mesa bem na entrada de uma imensa sala
carpetada de cinza.
— Um momento, por favor — ela pegou o interfone. — A quem devo
anunciar?
— Tommy Lee Gentry.
Havia dois sofás, mas ele não se sentou. Estava agitado demais. Deu uma
tragada no cigarro que já tinha queimado inteiro. Apagou-o.
— Alguém quer vê-lo — a secretária disse segurando o fone. — Tommy
Lee Gentry.
Houve um silêncio por algum tempo. Depois, a moça afastou o fone do
ouvido e se virou delicadamente para ele.
— O sr. Talmadge está ocupado no momento.
— Diga-lhe que quero fazer um depósito.
— Mas...
— Diga-lhe!
Obediente e um pouco assustada, ela voltou a falar com o patrão. A
resposta não tardou.
— Os depósitos são feitos no térreo, com qualquer dos caixas, sr. Gentry.
— Pois vou fazer este pessoalmente com o presidente. Obrigado.
Decidido, ele atravessou a imensa sala, abrindo a pesada porta dupla de
madeira, para entrar numa sala maior ainda. As paredes eram inteiras
recobertas de estantes, num ambiente austero e sóbrio. No fundo ficava a mesa
do presidente, toda entalhada em madeira natural. Atrás dela, a fúria de
Everett Talmadge.
— É preciso um pouco mais do que uma secretária para me impedir a
entrada! — Tommy Lee apoiou ambas as mãos na mesa do velho, encarando-o
a poucos centímetros de distância.
— Os depósitos são feitos embaixo.
— Não me venha com essa! Pensa que vai escapar, que não vai me ouvir?
Pois está enganado, sr. presidente.
— Não preciso do seu dinheiro em meu banco. Nem quero. — O velho se
levantou, enfrentando a cólera de Tommy Lee.
— Não é por causa de dinheiro que estou aqui e você bem sabe disso. De
qualquer forma, vou abrir uma conta. Estou farto de dirigir até Florence, só
por causa de um desentendimento de há vinte anos. Naquela época, você
queria provar que era mais forte. Pois bem, fiz parte do seu jogo absurdo. Mas
aqui estou, depois de ter conquistado uma posição financeira invejável.
Sozinho, sem sua maldita ajuda. Só no ano passado girei mais de meio milhão
de dólares no banco de Florence. Se para confiar em mim precisa ver meus
extratos, não se constranja. Agora estarão em seu próprio banco!
— Se não parar com essa gritaria, vou chamar o segurança — Everett
alertou.
— Vá em frente. Tem todo o direito de me expulsar de sua sala, mas não da
vida de sua filha. — Tommy Lee retirou as mãos ameaçadoras da mesa dele.
Abaixou o tom: — Pelo amor de Deus, será que não compreende? Nós nos
amamos e vamos nos casar, você aprove ou não. Não seria mais fácil se
vivêssemos todos em harmonia?
Talmadge não respondeu. Deu as costas, virando-se para a janela, como se
o movimento da rua fosse mais importante que aquela conversa.
— Santo Deus, homem, será que não é capaz de compreender? — Tommy
Lee continuou: — Eu a pedi em casamento e ela aceitou. Ninguém vai nos
impedir. Mas que droga, parece que estamos lutando contra todo mundo: você,
minha filha... Gostaríamos que você nos apoiasse. Porém, mesmo sem isso,
nos casaremos no próximo sábado.
O velho se virou lentamente. Os olhos se fixaram friamente em Tommy Lee.
Cruzou os dedos abaixo da barriga, mexendo ironicamente os polegares.
— E... por quanto tempo pretendem ficar casados? — A pergunta foi uma
acusação.
— Sei que meu passado não é dos melhores. Mas isso não importa, uma vez
que Rachel confia em mim a ponto de querer casar.
— Ela está confusa. Na verdade, sempre esteve, por causa daquele
desgraçado romance entre vocês.
— Será que não podemos ter um pouco de calma e falar a respeito disso?
Tentar ignorar tudo o que aconteceu não adianta nada... Olhe... — Tommy Lee
se sentou numa cadeira bem em frente à escrivaninha. — Olhe, não vou fazer
drama, nem julgar ninguém. Eu e Rachel tivemos um bebê ilegítimo e o demos
em adoção contra nossa vontade. Carreguei muito ódio por causa disso, mas
aprendi a conviver com as lembranças amargas. Rachel também. Tudo o que
queremos é deixar que o passado permaneça no passado e não atrapalhe mais
nossa vida.
Talmadge ficou calado. Não com o orgulho de sempre, mas porque as
palavras simplesmente fugiam de sua boca.
— Não percebe o que eu e você estamos fazendo a Rachel?
— Tommy Lee não se deteve. — Ela está entre dois homens que ama. Não
podemos deixá-la escolher um entre nós. Seria doloroso demais para ela.
Porém, uma coisa posso lhe garantir. Se a escolha for necessária, ficará
comigo. E você, Talmadge, não estará perdendo?
— Está propondo que esqueçamos tudo, todos esses anos de divergências?
— O dedo do velho batia na mesa, em ritmo nervoso.
Tommy Lee levou algum tempo para responder. Levantou-se, abotoando o
paletó. Já se preparava para ir embora.
— Vou fazer sua filha feliz — disse com férrea convicção. — Já disse que
o casamento é sábado que vem. Você está convidado. E mais uma coisa!
Rachel me pediu para avisar-lhe que já arrumou um comprador para a casa.
Vai se mudar para a minha, na beira do lago. Callie Mae concordou em
trabalhar para nós. — Fez uma longa pausa para respirar fundo. — Se algum
dia você se resolver... teremos prazer em recebê-lo em nossa casa.
Tommy Lee seguiu em direção à porta.
— Ah! — virou-se pela última vez. — Passarei num dos caixas para fazer
o depósito.

Rachel estava um pouco atrasada. O sinal bateria em poucos minutos.


Acelerou com mais determinação, firmando as mãos enluvadas na direção.
Desligou o rádio. Precisava de silêncio para se preparar.
Finalmente estacionou diante do colégio, perto dos ônibus escolares. Saiu
do carro, sem travar a porta, e ficou na calçada, tentando parecer calma.
Enfim, a sineta tocou, fazendo com que uma centena de alunos invadissem a
rua, carregados de livros e correndo como era próprio da idade. Entre eles,
reconheceu o rosto corado de Beth. Vinha acompanhada de uma das meninas
que estiveram na loja. Foi esta quem primeiro avistou Rachel.
— Hei, Beth... tem alguém aí esperando por você.
Beth seguiu a direção dos olhos da amiga e, assim que viu Rachel, parou.
— Olhe... — a outra continuou: — A gente se fala amanhã, tá? — E
desapareceu.
Beth seguiu em direção ao ônibus de cabeça baixa, com a evidente intenção
de passar por Rachel sem lhe dirigir palavra.
— Você vai pegar uma carona comigo hoje. — Rachel tinha uma certa
autoridade na voz, que impediu a passagem da menina.
— Quem disse?
— Eu disse... a não ser, é claro, que prefira que eu faça um escândalo na
frente de seus amigos. Mas, de qualquer jeito, você vai entrar naquele carro.
Agora.
A menina pensou, olhando em volta e percebendo que um grupo de rapazes
escutava a conversa. Por timidez, medo ou costume de obedecer, atravessou a
rua e entrou no carro. Mas, naturalmente, não perdeu a pose de adolescente
rebelde.
Rachel ligou o motor e fez a manobra. Porém, não pegou o caminho do lago.
— Já se apaixonou alguma vez, Beth?
Não houve resposta, embora Rachel tivesse certeza de ter captado
totalmente a atenção da garota. Também sabia que estava lidando com alguém
que enfrentara a mãe por um beijo.
— Qual é o problema? — continuou, apesar do silêncio. — Alguém disse
que uma menina de quatorze anos não pode amar? Pois se lhe falaram algo
parecido, saiba que é uma grande bobagem. Eu me apaixonei aos quatorze.
Para ser franca, tinha um pouco mais. Quinze. Não faz muita diferença, não é?
O farol ficou vermelho e Rachel parou.
— Apaixonei-me por seu pai. Ele era um rapaz e tanto. O mais bonito e
inteligente da cidade. Foi uma surpresa para todos, pois havíamos crescido
juntos. Naturalmente você já sabe parte da história, já que escutou nossas
recordações naquele almoço. Mas quero lhe mostrar algumas coisas, que são
importantes tanto para mim quanto para ele. Não se importa de perder alguns
minutos antes de chegar em casa, não é?
Percebeu os olhos castanhos pousarem sobre ela, mas logo depois voltarem
para a janela. Certamente Beth tinha sido tomada de surpresa e não sabia como
agir. Rachel virou na rua Cotako e estacionou diante das duas casas vizinhas,
tão familiares e conhecidas. Desligou o motor.
— A casa da esquerda é onde seu pai nasceu e se criou. Seus avós ainda
vivem aí. E aquela outra é onde meu pai mora. Está vendo a janela lá em
cima? Era do meu quarto. E aquela outra, bem ali, a do quarto de seu pai. Viu?
Nós morávamos realmente perto.
Beth seguia o dedo de Raquel, sem conseguir disfarçar o interesse. Não
fazia comentários, entretanto.
Depois de alguns momentos, Rachel ligou o carro novamente e subiu a
colina, em direção ao parque municipal.
— Lembro-me do primeiro dia que fomos à escola, levados pelas mãos de
nossas mães. Não sei quem estava mais apavorado. Eu ou ele. Houve uma vez,
também, tínhamos uns dez anos, em que Tommy avançou contra o diretor do
colégio, porque ele tinha dado uma bronca injusta em mim. Engraçado... nem
me recordo do motivo...
Chegaram ao parque, sob a sombra dos pinheiros altos e antigos. O lago,
pequeno mas brilhante, continuava o mesmo. Lindo!
— Passamos muitas horas brincando aqui. A piscina de plástico já era
pequena demais. Então vínhamos nadar no verão. Eu tinha um medo danado de
mergulhar de cabeça. Foi seu pai quem me ensinou.
A alameda Waterloo cruzava todo o parque, acabando num beco romântico,
repleto de árvores imensas, pássaros e uma velha trepadeira florida que
assistira às noites de amor de Tommy Lee e Rachel dentro do carro.
Era hora de contar a Beth o que realmente havia acontecido. Rachel encheu
os pulmões de ar.
— Bem, acho que se pode dizer que foi exatamente aqui que eu e seu pai
nos apaixonamos. Costumávamos parar o carro entre as árvores, onde ninguém
pudesse nos ver, e falávamos sobre casamento. — Rachel sorriu ao lembrar.
— Não éramos muito mais velhos que você, como já disse, e adorávamos
fazer planos, escolher os nomes de nossos futuros filhos, imaginar nossa casa.
Hum... a casa teria que ser bem grande e moderna, à beira do lago. Nosso
quarto seria o maior, com terraço e porta de vidro, para estarmos sempre perto
da natureza. Engraçado, não é?
Rachel se ajeitou no banco.
— Nossos pais sempre pareceram felizes com o namoro. Mas quando eu
tinha dezesseis anos... descobri que estava grávida.
Beth se virou num impulso. Olhou-a espantada, com evidente surpresa. Mas
Rachel não parou.
— Bem, Tommy e eu ficamos desesperados no começo, mas não demorou
muito até que nos apaixonássemos pela idéia. Seria maravilhoso ver nascer o
fruto do nosso amor. Éramos jovens demais para tanta responsabilidade, só
que isso não nos assustava. Terminaríamos os estudos e trabalharíamos ao
mesmo tempo. Queríamos nos casar.
Beth continuava atônita, embora seus olhos tivessem voltado a se fixar na
janela.
— Porém, quando contamos a nossos pais... bem, aí todos os sonhos foram
por água abaixo. Eles decidiram que a melhor coisa a fazer era doar a criança
para outra família. Então me mandaram para Michigan, onde seu pai não
pudesse me encontrar. Tive o bebê, segurei-o uma só vez e nunca mais o vi.
Beth empalideceu. Talvez quisesse falar alguma coisa, mas encontrou mais
segurança no silêncio.
— Eu queria a criança, mas naquela época não podia impor minha vontade.
Era uma menina linda, que chorava manso, sem fazer muito barulho. Deixaram
que eu lhe desse um nome e, naturalmente, escolhi aquele que seu pai e eu
sempre sonháramos para nossa primeira menina. Chamei-a de Beth.
Agora foi a vez de Rachel evitar os olhos agudos da garota. Se movesse um
músculo sequer, talvez não tivesse forças para continuar.
— A decisão de entregar o bebê teve conseqüências trágicas. Remorso,
culpa, ressentimento, ódio, mágoa. Acho que poderia passar um tempão
enumerando todas as sensações que perseguiram a mim e seu pai durante todos
esses anos. Além do mais, nossos pais nunca mais se falaram. Construíram um
muro horrível entre as casas e a amizade se acabou. Tommy... bem, ele jogou a
culpa em cima dos próprios pais. Condenou-os pela infelicidade em que se
afundou, pelos três casamentos que não deram certo, por tudo o que queria ser
e nunca teve oportunidade. Você sabe, seu pai tentou ser feliz, mas nunca
encontrou uma mulher que o realizasse como homem e como pessoa. Quanto a
mim... tive um casamento bom. Mas meu marido e eu nunca pudemos ter filhos.
Naturalmente, culpei os velhos por isso. Se estivesse ao lado do seu pai,
certamente teria uma casa repleta de crianças.
Pela primeira vez o olhar das duas se encontrou. Mas não por muito tempo.
Logo Beth virou o rosto.
— Foram vinte e quatro anos de separação, até que meu marido morreu.
Então, Tommy e eu nos encontramos e vimos que, apesar do longo tempo, de
todo o sofrimento... ainda nos amávamos com a mesma intensidade. — Rachel
suspirou. — O amor é mesmo esquisito, não é? Como pode resistir a tantas
coisas?
Finalmente, o carro parou diante da imensa casa de concreto aparente,
rodeada de árvores seculares e com uma varanda bem ampla na frente.
— Esta é a casa que sonhamos ter um dia — foi a última coisa que Rachel
disse.
— Alguma vez a viu de novo... a outra Beth? — Estas foram as primeiras
palavras da garota. Havia emoção em cada sílaba, em cada som sufocado por
lágrimas iminentes.
— Não, mas já superei a vontade. Não vou perturbar a vida dela.
— Meu pai também me deu esse nome...
— Sim...
— E a outra Beth é minha irmã.
— Isso mesmo. Por favor, Beth, procure entender... — A mão de Rachel
tocou o ombro da garota. — Não quero tirar seu pai de você. Ele tem amor
suficiente para dar a nós duas, Quero dividir você com ele. Se tudo tivesse
sido diferente, você mesma poderia ser minha filha. É claro que o lugar dela
está reservado em meu coração. Você não vai substituir a criança que perdi.
Também não pretendo, nem conseguiria, substituir sua mãe. Não é isso o que
quero. Mas podemos ser amigas. Preciso só de uma chance para gostar de
você, para fazê-la gostar de mim. Faça um esforço. Por seu pai, pela
felicidade dele.
O queixo magro de Beth tremia, num empenho inútil de impedir o pranto.
Mas logo as lágrimas lhe molharam as faces coradas.
— Rachel... — atirou-se nos braços dela — sinto muito... não sabia...
— Claro que não sabia... — Rachel afagou os cabelos longos. Se não se
controlasse, choraria também.
— Mamãe sempre disse coisas horríveis a seu respeito. Eu odiava você,
porque acreditava que papai e ela não eram felizes por sua culpa...
— Ainda é tempo de corrigirmos os erros. Tanto seu pai quanto eu
cometemos enganos terríveis. Ele já pagou um preço bem alto pelos dele.
Perdeu três filhos. A outra Beth e os dois garotos. Durante anos viveu se
culpando por ser mau marido. Hoje, você tem na mão a oportunidade que ele
precisa para uma nova tentativa. Dê-lhe esta chance, Beth.
— Como fui tola...
— Sim, acho que foi.
— Será que algum dia papai vai me desculpar?
— Claro. Basta que fique feliz com o nosso casamento.
— Ah! sim... — Um brilho de contentamento surgiu entre as lágrimas. — já
estou feliz por vocês. O que mais posso fazer? Bem, talvez pudesse ser a dama
de honra ou a madrinha. Você aceitaria?
— Oh!... — Rachel não encontrou palavras para responder. Também estava
emocionada. Pela primeira vez em muito tempo sentia-se próxima da
felicidade plena. Finalmente a vida sorriria para ela e Tommy Lee.
De repente, Beth se afastou um pouco, limpando as lágrimas com a manga
da blusa. Olhou para Rachel com olhos ternos.
— Você não contou a papai aquilo... aquilo que fiz em sua loja, não é?
— Não, não disse nada. Confesso que fiquei numa situação terrível,
acordada a noite toda, pensando a respeito. Mas de que adiantaria perturbá-lo
com uma besteira daquelas? Seu pai já tem problemas demais para se
preocupar com algo que tinha que ser resolvido entre eu e você.
— Não sei como fui fazer aquilo. Foi tão imbecil...
— Você estava lutando comigo, tinha medo e é compreensível. Mas a luta
terminou. Juntas, poderemos fazer seu pai feliz e isso é a coisa mais
importante para nós, não é mesmo?
Beth estava sorrindo. Ficava ainda mais bonita quando exibia aqueles
dentes grandes e brancos.
— Espere aqui! — ordenou subitamente, pulando fora do carro, sem ao
menos fechar a porta. Atravessou correndo o jardim, entrando porta adentro.
Confusa, Rachel a esperou voltar, o que não demorou mais de dois minutos.
— Devolva isso à prateleira de sua loja. — Satisfeita, Beth estendeu a
pulseira.
— Não é preciso...
— Não quero ficar com ela. Não é minha. Sinto-me envergonhada só de
pensar na bobagem que fiz. Por favor, Rachel, leve-a de volta.
— Está bem. — Rachel colocou a bijuteria na bolsa. — Ah! da próxima
vez que tivermos algum problema, por favor, discuta, exponha suas idéias,
fale, dialogue. Não esconda nada.
— Problema?...
— Bem, você não está pensando que nossa vida vai ser um mar de rosas
daqui para frente, não é? Afinal, somos três adultos que nunca vivemos juntos.
Teremos alguns problemas de adaptação. Mas, com amor e muita conversa,
saberemos contorná-los. Tanto seu pai quanto eu não temos muita experiência
em cuidar de filhos. Não vai ser fácil. Certamente cometeremos alguns erros.
Mas, toda vez que você se sentir aborrecida, fale conosco. Estaremos de
coração aberto, prontos para escutá-la. É uma promessa que lhe faço.
— Vocês também... se algum dia eu bancar a tola outra vez, avisem-me. —
Beth riu, curvando a cabeça de um jeitinho tímido.
— Combinado. Há mais uma coisa que devemos acertar. Você se importaria
se dispensássemos Georgine? Seu pai e ela não se entendem muito bem...
— Também não gosto dela.
— Ótimo. Há outra pessoa que temos em mente para substituí-la. É Callie
Mae. Trabalhou para minha família desde que eu era uma garotinha, e eu e
Tommy Lee sempre fomos a luz de seus olhos. É uma velhota adorável. Você
vai gostar dela.
— Ela sabe de tudo?
— Sim, acompanhou a história toda, passo por passo. Agora está muito
contente por vir trabalhar para nós e, principalmente, por ter outra garota para
tomar conta.
— Oh! Rachel... Acho que... bem... — Beth parecia incapaz de expor seus
novos sentimentos. — Puxa! parece mentira, mas de repente não vejo a hora
que chegue sábado!
Num último abraço, forte e carinhoso, mostrou que a amizade das duas se
consolidaria ainda mais no futuro.

Tommy Lee e Rachel decidiram ir juntos à casa de Gaines e Lily Gentry.


Verda acabava de guardar o aspirador quando ele entrou pela porta da loja.
Como vinha direto do trabalho, usava terno de tweed e gravata. O vento tinha
despenteado seus cabelos, o que lhe dava um ar infantil e atraente.
Como sempre, o coração de Rachel se encheu de alegria ao ser beijada.
Não era apenas uma recompensa pelos inúmeros anos de separação, mas uma
alegria do presente, do amor que sentia.
— Está pronta, querida?
— Quase. Só mais um minuto. — Os últimos papéis foram colocados na
gaveta. Agora só faltava guardar os vestidos experimentados pela cliente das
cinco horas.
Verda já se habituara à presença de Tommy Lee. Não se chocava mais com
os beijos longos que ele atirava na boca da patroa. Achava até que formavam
um casal simpático, embora conhecesse o passado negro dele. De qualquer
forma, ele era tão atraente e gentil que não era difícil entender a paixão que
despertara em Rachel. Além do mais, Tommy Lee pareciatão apaixonado...
Que coisa engraçada! Depois de três casamentos como podia estar assim
entusiasmado com um quarto?
Verda, como a maioria das pessoas da cidade, jamais compreenderia. A
história verdadeira de Tommy Lee e Rachel pertencia somente a eles. Com o
tempo, calariam a boca de todos. Mostrariam ao mundo a força de seu amor.
Um amor tão maravilhoso que superara o tempo e as mais árduas barreiras.
Poucos minutos depois, o Mercedes branco estacionava na rua Cotako.
Tommy Lee levou algum tempo até desligar o motor. Não escondia o
nervosismo. Acendeu um cigarro, num gesto mecânico, automático.
— Tem certeza de que quer que eu vá junto? — Rachel foi doce e meiga.
— Sim.
— Tem certeza de que não prefere falar com eles sozinho?
— Preciso de você, Rachel.
— Está bem. Então vamos.
Foi uma sensação esquisita ficarem parados diante da porta esperando que
alguém a abrisse. Afinal, durante muitos anos entravam e saíam de lá sem
cerimônia. A mão de Tommy Lee apertava os dedos de Rachel, com evidente
aflição. Estava tenso, nervoso. A espera parecia não terminar nunca. Cada
segundo pesava.
Finalmente a porta se abriu. Rachel segurou a mão dele com mais força,
numa tentativa de lhe dar apoio e confiança. O rosto de Lily foi surgindo aos
poucos pela fresta que aumentava vagarosamente. A tensão crescia no mesmo
ritmo da emoção.
Por um instante a mulher ficou pasma, os olhos arregalados, a boca dura. A
mão continuava presa à maçaneta, o rosto deformado pela surpresa. Não
conseguiu dizer uma palavra se quer.
— Olá, mamãe.
Tommy Lee finalmente quebrou o silêncio.
A velha continuava muda. Olhou para o filho, depois para Rachel, e de
novo para o filho.
— Olá, Lily — Rachel também estava um pouco atordoada.
— O-Olá... — finalmente a voz da sra. Gentry lhe escapou pelos lábios.
— Queríamos conversar um pouco com você e papai.
— Claro, claro. — Ela deu um passo atrás, liberando a passagem. —
Entrem.
O interior da casa não tinha mudado nada. Os mesmos móveis nos mesmos
lugares. Talvez um pouco mais escuros e envelhecidos. Mas ainda
conservavam aquele aconchego dos velhos tempos.
— Bem... que surpresa. — A pobre Lily balançava o corpo magro, sem
saber para onde ir. — Foi... Puxa! Não querem se sentar? Onde ele está...
Gaines!...
Houve um minuto de silêncio. Todos pareciam perturbados.
— Lily! — A voz grossa veio do andar de cima. — Onde estão meus
chinelos?
— Oh! esse homem... sempre perdendo alguma coisa. Vocês me dão licença
por um minuto? — Meio cambaleante, ela chegou aos pés da escada. —
Gaines, desça. Temos visitas.
— Quem?
— Venha ver.
Um minuto depois o rosto pálido de Gaines Gentry surgia na sala. Ao ver o
filho, ficou parado, boquiaberto, num total espanto. Não se movia. Nem um
passo à frente, nem atrás.
— Bem, isso é o que chamo de surpresa. — Finalmente, recuperou a fala.
Aproximou-se.
— Como vai, papai? — Tommy Lee se levantou, mas não estendeu a mão.
— Espero não estar interrompendo seu jantar.
— Não... não. Ainda não tínhamos começado. Sua mãe nem pôs a mesa.
Sabe como ela é, sempre atrasada.
Novamente o silêncio encheu a sala. Olhares se cruzavam, mas todos se
sentiam incapazes de falar.
— Rachel... — Foi então que Gaines notou a presença dela.
— Como vai, Gaines? — Rachel era a única que sorria.
— Gostaria de conversar com vocês por um minuto — Tommy Lee disse.
— Sim... — Gaines se sentou.
— Não querem um café, um refrigerante? — Lily continuava em pé,
ligeiramente trêmula.
— Obrigada, mamãe. Não ficaremos por muito tempo.
Silêncio. O casal velho no sofá. Rachel e Tommy Lee em poltronas
separadas. Olhares vagos, aflitos e esperançosos. Nervosismo. Medo.
Insegurança.
Tommy Lee pigarreou, limpando a garganta. Era o começo de um caminho
de paz. E, se Deus permitisse, o fim de uma trágica história de orgulho e
incompreensão. Rachel cruzou os dedos. Rezou em pensamento.
— Então... — Tommy Lee resolveu acender outro cigarro. — Como vão
vocês?
— Bem! — os velhos responderam simultaneamente.
— Eu também. Estou morando à beira do lago.
— Sabemos...
— Minha filha está comigo.
— Sua filha? — Lily desencostou da poltrona, jogando o corpo para a
frente.
— Sim, aquela que vocês viram na igreja há algumas semanas.
— Hum... ela é bem bonitinha — Gaines comentou. Novamente as palavras
morreram no ar.
— Rachel e eu temos nos encontrado freqüentemente nos últimos meses...
Depois que seu marido morreu. — Tommy Lee procurou uma maneira de
começar o assunto.
— Oh! sim... — Gaines disse. — Soubemos da notícia, Rachel. Sentimos
muito. Um homem tão jovem...
— Bem... sim... — Rachel ficou sem saber o que dizer. Não podia se
mostrar muito triste pela morte do marido, pois o novo casamento seria
comunicado dentro de alguns instantes. Também não queria deixar o velho sem
graça. — Tommy tem me ajudado muito desde então.
Respirou, aliviada.
— E Rachel também me ajudou. — Estendendo a mão até encontrar a dela,
Tommy Lee aproveitou a deixa. — Estou refazendo minha vida. Há muito
tempo venho me comportando como um selvagem, mas Rachel me fez ver as
coisas melhor.
Gaines e Lily logo perceberam o carinho que havia entre eles. Mas
deixaram o olhar cair no tapete.
— É por isso que estou aqui — Tommy Lee continuou. — Rachel e eu...
nós... — Mas parou em seguida. Revirou-se na poltrona, limpou o suor da
testa. — Que diabos! — murmurou, sem forças.
— Vamos nos casar — Rachel veio em seu auxílio.
— Isso mesmo. — Por fim Tommy Lee retomou o tom firme. — No
próximo sábado. Ela aceitou o pedido, desde que eu viesse aqui e conversasse
com vocês.
Nenhum som entrou naquela sala. Apenas o cheiro da comida esquecida no
fogão.
— Casar! — Lily foi a primeira a reagir.
— Eu a amo — Tommy Lee declarou, lançando um olhar doce para Rachel.
— Nunca deixei de amá-la. Tê-la de volta em minha vida me deu forças para
mudar um monte de coisas, largar a bebida, as viagens alucinadas...
Lily sorriu. Gaines balançava a perna.
— Rachel é muito mais esperta que nós três juntos. — Tommy Lee não
perdeu a palavra. — Foi ela quem notou a loucura que estávamos fazendo.
Todos nós. Não há mais por que nos culparmos por erros do passado. O que
está feito, está feito. Não vamos mudar. Portanto, é melhor esquecermos o que
ficou para trás. Estou disposto a isso. E vocês?
— Oh!... Tommy... — Lily tinha a voz trêmula, mal segurando o choro. —
Fiz tantas preces. Rezei tanto...
— Por que não veio a mim, então?
— Teimosia, orgulho... — foi Gaines quem respondeu. — Culpa.
— Rachel e eu queremos pôr um ponto final em tudo isso. A vida está,, nos
dando uma segunda chance de ficarmos juntos. É o que importa. Beth vai
morar conosco. Não é a mesma que perdemos, mas seremos uma família feliz.
E... e queremos que vocês conheçam sua neta.
Lily não suportou mais. Atirou-se nos braços do filho, as lágrimas
escorrendo pelo rosto. Tremia e sussurrava palavras que ninguém
compreendia. Nem era preciso.
Gaines também se levantou e, quando a esposa lhe deu uma chance, apertou
Tommy Lee contra o peito cansado e arqueado pela dor e pelo tempo.
— Filho...
Ninguém conseguiu conter a emoção e as lágrimas. Até mesmo Tommy
derramou uma, solitária, mas imensamente sentida. Rachel também foi
abraçada e novamente aceita como a segunda filha. Era mais um passo na
estrada da felicidade.
— Vocês... — Lily foi a única que ficou chorando por mais de meia hora.
Simplesmente não conseguiu se controlar.
— Terça-feira é o dia de Ação de Graças... Vocês, por acaso, têm alguma
coisa planejada? Senão, talvez pudessem jantar aqui em casa e trazer a nossa
netinha... Beth.
Rachel e Tommy Lee trocaram olhares. Na verdade, tinham combinado
preparar um peru, comê-lo à beira do lago e levar a mudança de Rachel para a
casa. Mas...
— Claro que aceitamos — Rachel respondeu de imediato. — Não é,
Tommy?
— Sim... claro. Não tínhamos nada planejado...
Pouco depois, deixavam a velha casa. No coração levavam a alegria do
perdão e a esperança de um futuro risonho.
— O que faremos do nosso peru? — ele perguntou ao abrir a porta do
carro. — E suas coisas? Quando vamos levá-las para nossa casa?
— O peru vai para o freezer. — Rachel sorriu. — E a mudança será
romanticamente feita depois da meia-noite.
Pela janela do automóvel Rachel viu a nogueira de onde o pequeno Tommy
Lee tinha caído, quebrando o braço. Acima dela, a janela do quarto do pai, de
onde vinha a única luz acesa da casa. O único sinal de vida.
Sentiu pena do velho Everett Talmadge, um homem escondido atrás do
orgulho, que já tinha perdido os amigos e corria o risco de perder a própria
filha.
— Você acha que algum dia ele vai nos aceitar? — perguntou, sem desviar
os olhos daquela janela triste.
— Você acredita em milagres? — foi a resposta de Tommy Lee.
XV
Era terça-feira, dia de Ação de Graças. Chovia e ventava. Mas dentro da
casa dos Gentry o fogo na lareira aquecia. O cheiro do peru assado invadia a
sala. Era tentador.
Lily e Gaines estavam ansiosos, felizes e parecendo mais jovens. Ele, como
sempre, não achava a gravata. Ela reclamava. E ambos esperavam o resto da
família. Era um dia de muita, muita felicidade.
Finalmente a campainha tocou. Os velhos se entreolharam, correndo juntos
para a porta.
Beth estava na frente, Rachel e Tommy Lee mais atrás. Os três sorriam.
Lily olhou para a menina longamente, antes de lhe dar um beijo carinhoso
no rosto. Adorou-a, achou-a linda. Era sua neta, a filha de Tommy Lee. Pensou
que fosse chorar, mas aquela não era uma noite para lágrimas. Abraçou o filho
tão amado e Rachel, a quem sempre quisera tão bem.
Gaines fez o mesmo.
— Você tem razão, papai. Eles são uns amores. — O comentário de Beth
fez com que todos dessem risada, o que deixou seu rosto vermelho.
Pouco depois estavam reunidos na sala, entre álbuns de fotografias. Para
cada uma delas, havia uma história que Lily contava com detalhes engraçados.
Beth ria ao ver o pai de calça curta, geralmente sujo dos pés à cabeça.
Tinha cara de malandro. Isto é, o que se podia ver do rosto, pois normalmente
os cabelos despenteados lhe cobriam a expressão infantil.
— Não disse que você tinha pernas tortas? — Tommy Lee cutucou Rachel,
que acabou por dar risada, ao ver a foto em que posava de maiô de bolinhas
amarelas. Não devia ter mais que cinco anos.
— Tommy, por que não leva sua filha para conhecer seu quarto? — Lily
sugeriu.
— Isso, papai, por favor...
Abraçados, os dois subiram as escadas. Rachel e Lily foram para a cozinha
dar os últimos retoques no peru.
Sozinho na sala, Gaines voltou a folhear os álbuns. Havia muitas
lembranças de Everett e Eulice. Bons tempos aqueles...
"Quem começou essa coisa toda?", ele se perguntou. "Eu ou Everett? Faz
tanto tempo... como posso saber? Dois teimosos, é isso o que somos. Quando
mandamos nossos filhos para longe, arrancamos de nós mesmos a felicidade.
A vergonha e a culpa vinham à tona cada vez que nos víamos, cada vez que
tínhamos que enfrentar a cara do outro. Por isso foi mais fácil construir o muro
e não nos falarmos mais." Gaines afundou a cabeça entre as mãos. "Eu e você
temos cabeça dura, Everett. Estamos agindo como duas mulas. Acho que já é
hora de alguém tomar uma atitude."
Resoluto, tirou os óculos, deixando-os sobre a mesa. Vestiu o casaco,
levantando a gola de forma a cobrir o pescoço. Saiu, fechando a porta atrás de
si.
Pena ter que dar a volta pela rua. Era bem mais fácil quando não havia o
muro feio. Mas não tinha outro jeito. Quando viu, estava tocando a campainha
da casa do velho amigo.
Levou muito tempo até que Everett Talmadge atendesse. Afinal, não estava
acostumado a receber ninguém. A vida o tinha deixado solitário, abandonado
por todos.
Ao deparar com Gaines, os olhos do velho quase saltaram das órbitas. Já
estava de pijama.
— Posso entrar por um momento?
Hesitante, confuso e atordoado, Everett abriu a porta.

Num prato ricamente decorado com frutas, o peru foi levado para a mesa da
sala.
— Gaines? — Lily chamou. — Onde se meteu esse homem?
— Posso ajudar, mamãe? — Tommy Lee e Beth desciam as escadas, rindo,
alegremente.
— Sim... corte o peru. Não sei onde diabos seu pai se enfiou. — Ela voltou
para a cozinha, onde Rachel acabava de preparar as batatas e os legumes.
Não demorou muito tempo até que ouvissem a porta da frente ranger. Logo
depois, veio a voz de Tommy Lee.
— Mamãe, ponha mais um lugar na mesa!
Curiosa, Rachel e Lily foram até a sala, cada uma com um talher na mão.
Gaines tinha um sorriso alegre e vitorioso entre os lábios. Na frente dele,
ainda perto da entrada, estava Everett Talmadge.
— Papai... — Rachel estendeu ambas as mãos. Tinha os olhos úmidos, o
coração cheio de alegria.
— Minha filha...
— Você veio, papai. Você veio...
Abraçaram-se e, naquele instante, Rachel soube que não havia mais nada no
mundo que ela e Tommy Lee não conseguissem. O amor que sentiam tinha
destruído todas as barreiras.
— Bem-vindo, Everett. — Lily sorriu e olhou para o marido com gratidão.
— Como vai, Lily? — Everett ainda estava meio confuso. Virou-se para
Tommy Lee e, como não podia deixar de ser, cumprimentou-o ainda com
alguma frieza.
— Acho que ainda não conhece Beth — Rachel foi logo dizendo.
— Oi! — Com a graça da juventude, a menina acenou.
— Hum... como vai? — O velho ainda mantinha distância.
O jantar foi animado, embora pesasse ainda um pouco de orgulho nos olhos
de Everett. Mas era apenas uma questão de tempo. Rachel e Tommy Lee não
desistiriam. Afinal, faltavam apenas alguns passos.

O casamento foi naquela pequena e singela igrejinha de que Tommy Lee


tanto gostava. Não convidaram ninguém. Apenas os pais, Eugene, Dayse e,
claro, Beth.
Everett não compareceu. Era esperar demais dele. Um dia, que certamente
não estava longe, venceria seu próprio orgulho. Bastava que fossem pacientes.
Depois da cerimônia, houve um jantar íntimo na casa dos Gentry. Mas
Tommy Lee e Rachel quase não aproveitaram. Estavam ansiosos demais para
se verem a sós.
Antes mesmo da sobremesa, os dois se despediram. Não esperariam nem
mais um segundo. Seus corpos e corações tinham urgência de se encontrarem
naquela primeira noite de casados.
Tommy Lee tinha reservado a suíte presidencial do melhor hotel de
Florence. Mas, para surpresa de Rachel, o Mercedes branco seguiu em
direção oposta.
— Onde estamos indo? — ela perguntou, espantada.
— Espere e verá.
Não demorou muito para que Rachel se visse na entrada do Parque
Municipal.
— Tommy...
Ele sorriu e pegou a alameda Waterloo, estacionando no fim dela, entre as
árvores frondosas, debaixo da velha trepadeira florida.
— Você não está pretendendo passar nossa noite de núpcias aqui, não é? —
Ela sabia que, com Tommy Lee, tudo era possível.
— Por que não? Foi bem aqui que tudo começou...
— Você e suas idéias malucas...
Os beijos ardentes a calaram.
Amaram-se na noite escura. Os corpos se uniram em um só. As almas se
entrelaçaram. Não havia mais Rachel e Tommy Lee. Mas um novo ser. único,
completo e muito, muito feliz.

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