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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

THIAGO NOLLA DE FREITAS BATISTA


Prof. Dr. Marcos Piason Natali

Trabalho Final de Teoria Literária I: Afropessimismo e teorias críticas de raça


Continuação do conto “O Cometa”, de W.E.B. Du Bois

São Paulo
2022
perdido, renasço
A realidade é algo estranho. Que beira a bizarrice. Afinal, o que é real? Seis semanas atrás, a

realidade havia varrido toda a Nova York, deixando um homem negro e uma mulher branca à

deriva nas outrora abarrotadas ruas de Manhattan, transbordadas com pessoas que se

achavam importantes demais para sequer falar um bom dia – isto é, para quem ousasse ser

diferente do normal e do aceitável.

Seis semanas atrás, Jim Davis se sentia vivo pela primeira vez, engolfado na morte

inesperada de todos aqueles que passavam por ele e lhe diziam: “você não é como os outros,

você é diferente”, provavelmente por nunca ter saído da linha que fora obrigado a percorrer,

impotente e subjugado, mergulhado em uma aceitação cuja iminência de término era

assustadora. Não é nenhuma surpresa que Jim tenha se sentido vivo, prestes a gritar para o

vazio que poderia ser quem quiser e onde quiser, aproveitando os momentos da esperança

dentro da desesperança para abocanhar um pedaço de carne de um restaurante que jamais o

teria recebido em outro momento.

Mas agora a realidade havia se transmutado novamente, reavendo o sentimento

inexplicável de culpabilidade que carregava consigo - inexplicável pelo fato de não ter

qualquer controle pela passagem de um cometa mortal que o deixara solitário com uma

mulher que decerto não o encarava como igual. E, apesar de tê-la salvado de uma provável

morte, ele não era visto como herói, e nem o queria; não queria, entretanto, ser taxado como

um crioulo que, como inúmeros brancos haviam comentado, “poderia ter se aproveitado” de

uma moça de família que foi corajosa o suficiente para sobreviver em meio a condições

perigosíssimas. Nenhum deles estava lá quando tudo aconteceu, retornando a uma cidade

fervilhante sem saber que estava largada às traças e pincelada com centenas de cadáveres que

manchavam o asfalto acinzentado e calombado.


- Jim? - a pergunta o fez sair de um transe profundo, arrancando-o de uma reflexão

que caminhava a lugar nenhum e puxando-o de volta à realidade que enfrentava desde

sempre – Tudo bem?

Jim havia perdido tudo. E a jovem que resgatara de um suntuoso casarão não

compreendia o que ele dizia, não por completo – a perda de tudo acontecera há muito tempo.

O cometa viera apenas como a cereja do bolo, alimentando um medo constante de que a

família que construíra também tivesse ido.

Quando olhou para trás, viu a mulher, Dana, os olhos fundos pelo choro que tentava,

em vão, esconder do marido. Em meio à marca das lágrimas incrustadas em seu rosto, um

semblante de preocupação, os lábios cerrados, com palavras de conforto na ponta língua que

aguardavam a resposta do homem.

Jim sorriu, e não falou nada. Aproximou-se de Dana e a envolveu num abraço, não

muito apertado, não muito descuidado, mas o suficiente para que a sensação agourenta que se

apoderava da casa se dissipasse em uma pulsão paliativa que não causasse mais estresse do

que os dois já tinham enfrentado. Dana o fitou com pena e logo voltou aos afazeres, enfiando

uma touca avermelhada no bolso avental esfarrapado.

O homem suspirou, deixando os braços caírem ao longo do corpo e virando-se para a

porta - Não vá se atrasar – foi a última frase que ouviu antes de fechar a porta atrás de si e

seguir para o portão enferrujado que dava à rua.

Nova York se recuperara rápido da infame tragédia que ganhou manchetes ao redor

do país - a Nova York branca, mais especificamente. Memoriais foram celebrados para

honrar a memória de pessoas importantes demais para serem esquecidas junto aos negros que

foram varridos pelo cometa; homenagens constantes brotavam das vitrines das lojas e dos

quiosques que povoavam a Times Square, desde o raiar do dia ao cair da noite estrelada. Jim
olhava para o céu e sentia um frio na barriga, agora, mas não de medo, e sim de um

pensamento que logo enxotava para os confins de uma mente que clamava pelo gostinho do

viver (por mais agridoce que tenha sido).

Ora, Jim nascera dentro dessa acre sensação, impedido de fugir do cerceamento que

lhe fora imposto desde o berço - ninguém que o entendesse poderia culpá-lo de tal desejo.

Quando um Ford quase o atropelou enquanto atravessa a avenida, ele sacudiu a cabeça

e concentrou-se em chegar ao imponente e assombroso banco que se erguia na Broadway, um

edifício alvo talhado em mármore que engolia qualquer um que dele se aproximasse. Jim

estava de volta à realidade que todos lhe diziam ser o correto, e ele não podia fazer nada

além de aceitá-la e de obedecer à sua rotina exaustiva de fazer a mesma coisa dia após dia,

como o véu translúcido da manhã que banha os arranha-céus de Manhattan.

Ele passou, inerte, pela multidão que se esbarrava para caber nas calçadas estreitas.

Qualquer um que não tivesse conhecimento do que acontecera um mês e meio atrás, jamais

imaginaria que Nova York fora palco de uma atrocidade. Jim não se importava, visto que a

atrocidade que pululava nos fragmentos de sua própria existência datava de muito antes. Mas

estávamos falando dos brancos – e o evento catastrófico tinha mudado o organismo que os

unia, numa série de discursos de falsa empatia que o enojavam pelas declarações proféticas

de união e de recuperação.

A escadaria do banco permanecia idêntica, exceto pelos cadáveres que lá não mais

estavam. Jim voltou-se para a sarjeta à frente do edifício, assombrado pela figura do garoto

que vendia jornais (Espere, agora é outra criança), piscando freneticamente antes de seguir

para a entrada e reavivar o papel de mensageiro que interpretava pelos últimos anos.
Como de costume, relances de olhar o diminuíam pelo fato de simplesmente estar lá -

uma hostilidade não verbalizada que, por breves horas, cessaram de existir. De fato, nada

mudara e tudo voltara ao normal.

- Jim? - por um momento, ele achou que Dana o havia seguido até o banco, com medo

de que ele mudasse de caminho por um motivo qualquer. Mas não era ela, e sim George

Smith, um homem grisalho que havia sido apontado como o novo gerente - Você deve ser o

Jim, certo?

- Sim, senhor – ele respondeu, impassível como fora instruído a ser. Jim quase se

espantou com o sorriso amarelado do corpulento George, como se a demonstração afetuosa

fosse um trabalho impossível de ser realizado.

- Quero que você vá até as câmaras subterrâneas, temos alguns documentos que

precisam ser encontrados.

Tudo normal. Tudo como deveria ser.

Jim apressou-se e se manteve cabisbaixo enquanto navegava entre os executivos e os

clientes animados do banco, que se exaltavam volta e meia relembrando do cometa que

assolara os nova-iorquinos e que ainda demonstrava força descomunal no imaginário dos que

voltaram a habitar a cidade.

Coitadinhos.

- Não tenho ideia de como vamos nos recuperar disso – Jim ouviu uma senhora com

um estonteante vestido esverdeado, sentada em um sofá de couro enquanto tragava o cigarro

– Será que eles sofreram? Mal posso imaginar a reação das famílias quando ficaram sabendo

desse desastre – ela continuou, alheia aos meneios de concordância forçada que uma jovem

pálida lhe jogava.


- Realmente – a jovem respondeu, contando as cédulas mal escondidas na carteira. Por

breves momentos, os olhares dela e de Jim se encontraram. Em um ríspido e notável

movimento, ela cobriu a bolsinha com as mãos e a segurou como se fosse um filho – Mas

tenho de certeza de alguns que não me importaria de terem sumido – ela continuou,

sussurrando em um tom deliberadamente alto para que seu alvo entendesse cada palavra.

Jim encheu o peito de ar e soltou a respiração, sendo essa a única coisa à mão que

poderia fazer para continuar seguindo em frente. Responder à execrável mulher que o

enxergava apenas como um servo de suas necessidades fúteis não era uma opção, e sim uma

sentença de morte. E não poderia deixar que Dana ficasse sozinha, não depois de tudo o que

acontecera semanas atrás - e que havia se reduzido a uma touca que desbotava, paciente, dia

após dia.

Conforme cruzavam os corredores infinitos em direção à porta que dava às câmaras

subterrâneas, Jim se viu esquadrinhando as grossas colunas que despontavam do chão

cristalino e sustentavam um teto apoteótico – uma ode monumental a uma vida que fora

obrigado a enfrentar. Ele não podia deixar de se sentir dentro de um vórtice nostálgico do

maldito meteoro que rasgara os céus da cidade. Ao mesmo tempo, a bola de fogo parecia tão

longe e tão perto, e, por breves horas, mudara tudo o que conhecia. Ele pôde olhar a si

próprio como uma criação divina tal qual outrem. E, num estalar de dedos, fora jogado de

escanteio por “não fazer o mínimo” de ter salvado quem, de fato, era visto como o ápice da

sociedade humana.

Ele poderia jurar que via o rosto de Julia nos vultos que passavam por ele como se

fosse um fantasma, um eco do passado a ser ignorado. Jim não a amava (pelo contrário, seu

coração pertencia a Dana desde o momento em que se viram pela primeira vez), mas não

conseguia tirá-la da cabeça. Afinal, os dois, mergulhados em uma apocalíptica compreensão


de que não nada mais havia, tinham desfrutado do renascimento do mundo juntos, prometidos

a salvarem o que restara. No final das contas, tudo não passou de uma centelha de esperança

frágil e ilusória, que sumiu com a mesma sutileza que viera à tona.

Jim continuava a vê-la, de braços dados com o prometido e o pai, cujos cabelos

lustrosos se assemelhavam ao chão encerado do banco. Mas, espere, ele pensou, estreitando

os olhos. Era ela.

De alguma forma inexplicável, Julia virou o rosto e suas expressões se cruzaram. Jim

queria ter enxergado uma fagulha de gratidão em seu semblante, mas o que encontrou foi um

misto de temor e asco. Ele não entendia o motivo; na verdade, entendia muito bem, mas não

queria aceitar. Apesar ter experimentado aquela sensação de ingratidão antes, o modo como

Julia o encarou alimento um ódio adormecido, que se contorcia dentro de seu âmago e que

quase o fez proferir uma mísera palavra.

Jim desviou o olhar e continuou a seguir o gerente.

- Com licença - uma mulher estridente se aproximou de George, puxando-o pela manga

frouxa do terno risca-giz que usava.

- Sim? - o gerente perguntou, abrindo o mesmo sorriso amarelo de antes. Talvez ele fosse

condescendente com todo mundo, Jim pensou, cruzando as mãos à frente do corpo enquanto

esperava a conversa acabar. Mas o diálogo entre os dois cessou abruptamente quando a

mulher percebeu que o mensageiro ainda estava ali.

- Por que está aqui? - ela perguntou, como se tivesse alguma propriedade sobre Jim - Não

percebeu que estou conversando sobre algo particular com o Sr. Smith?

- Eu...

- Este é Jim, nosso mensageiro. Estava apenas levando-o para pegar alguns documentos.
A mulher revirou os olhos – Tenho certeza de que ele consegue encontrar sozinho, não é

mesmo? - ela terminou a pergunta retórica forçando-se a encarar um homem tão diferente dos

que estava acostumada a conviver.

- Sim, senhora – Jim respondeu, em uma letargia automática.

- Vá indo na frente, Jim. Sei que conhece esse banco melhor do que todos.

Jim fez um meneio breve com a cabeça e continuou em frente, mas não antes de ouvir

a mulher dizer: “acho muita coragem contratar um crioulo para cuidar dos documentos.

Jamais conseguiria dormir tranquila deixando que ele cuidasse de coisas tão valiosas. E deve

ser complexo demais, não? Ficaria mais relaxada se soubesse que o senhor estivesse à

supervisão completa por aqui”.

“Não se preocupe, Sra. Harrison, nada passa batido por mim”.

Jim apressou o passo, mas não o suficiente para atrair atenção indesejada. Deus o

livrasse de ser mal compreendido pelos brancos que fuzilavam qualquer um “diferente” que

cruzasse as portas do banco ou se movimentasse de modo “suspeito” entre os clientes de

longa data daquele antro monetário. Na verdade, apressar o passo foi um exagero; ele se

moveu com mais fluidez até chegar às escadas que levavam à parte de baixo do edifício.

Desceu; pegou as chaves com o escriturário, que não havia se importado o suficiente

para conhecer o nome de Jim; adentrou a escuridão. Ainda podia ouvir o anúncio exasperado

da passagem do cometa ecoando nas paredes. Entretanto, dessa vez, nada aconteceria. Lá no

fundo, Jim tentava se desvencilhar do desejo perigoso de que outro cometa chegasse não

apenas a Nova York, mas quem sabe a mais partes do suposto “país da liberdade” que era os

Estados Unidos. Pensou em Dana, porém, e não sabia o que faria se a perdesse também.
Mesmo com o rápido reerguimento da cidade, ninguém havia trocado as lâmpadas das

câmaras, impulsionado Jim a tatear às cegas por um bloco de escuridão interminável. A

tragédia não o fizera esquecer do que deveria ter pegado naquele lugar quase dois meses

atrás, piscando em sua mente como um outdoor. Tomando o máximo de cautela que

conseguia, ele caminhou, concentrando-se no som de sua respiração e do encontro do soalho

com a sola desgastada do sapato.

Podia jurar que estava sendo observado – mas por quem, se só a ele era destinado a

tarefa inconsequente de desbravar o subsolo?

E, de repente, ele ouviu um baque ensurdecedor. Como se estivesse acostumado à

possibilidade de, novamente, ficar encarcerado dentro do cômodo, Jim não se sobressaltou;

ele ficou parado, os braços pendidos ao lado do corpo, fitando a exata localização da pesada

porta que se fechara atrás dele. Dessa vez, ele sabia como escapar do confinamento – mas ele

queria?

Jim permaneceu imóvel, a expressão impassível, tomado pela pulsão consciente de

não retornar ao andar de cima. Afinal, o que lhe esperava? Dana era a única resposta cabível,

todavia, nas últimas semanas, ela mais não estava do que estava, como se finalmente tivesse

se rendido ao desejo de fundir-se ao único lugar que lhe fornecia conforto e segurança. Ela

não saía mais de casa e parecia absorta pelos pensamentos de quando poderia devolver a

delicada touca a quem pertencia.

Jim olhou em volta, ainda que não conseguisse enxergar um palmo à frente do nariz.

Uma ínfima fresta permitia poucos raios de uma luz trêmula escaparem na escuridão da

câmara. Ele estava sozinho – e saboreava o retorno da brevidade de uma liberdade solitária

que destilara há pouco tempo e que o fazia ansiar por mais. Será que ele estava preso? Ou
será que, entranhado nos confins daquele edifício, finalmente conseguiria ser quem é, e não

quem as pessoas queriam que fosse?

O homem lançou um sorriso aberto ao nada.

Cambaleando pelo espaço, ele chutou um caixote jogado, puxou para perto de si e se

sentou. Momentos depois, suspirou, não em resignação e desistência, mas em alívio.

Tudo está bem, agora.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DU BOIS, W.E.B. O Cometa + O Fim da Supremacia Branca. S.I. São Paulo: Editora
Fósforo, 2021.
HARTMAN, S. Scenes of subjection: Terror, slavery and self-making in Nineteenth-Century
America. S.I. Nova York, Oxford: Oxford University Press, 1997.
HARTMAN, S. The End of White Supremacy, An American Romance by Saidiya Hartman.
Bomb, 05 de junho de 2020. Disponível em: https://bombmagazine.org/articles/the-end-of-
white-supremacy-an-american-romance/. Acesso em: 22 de junho de 2022.
WILDERSON, F.B. et al. Afropessimism: an introduction. 1. ed. Minneapolis: Ratched &
Dispatched, 2017.
WILDERSON, F.B. Afropessimismo. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2021.
FREITAS, K.; MESSIAS, J. O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus
Afropessimismo - as distopias do presente. Imagofagia – Revista de La Asociación Argentina
de Esudios de Cine y Audiovisual. Nº 17, 2018. Disponível em:
http://www.asaeca.org/imagofagia/index.php/imagofagia/article/view/225. Acesso em: 25 de
junho de 2022.

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