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São Paulo
2022
perdido, renasço
A realidade é algo estranho. Que beira a bizarrice. Afinal, o que é real? Seis semanas atrás, a
realidade havia varrido toda a Nova York, deixando um homem negro e uma mulher branca à
deriva nas outrora abarrotadas ruas de Manhattan, transbordadas com pessoas que se
achavam importantes demais para sequer falar um bom dia – isto é, para quem ousasse ser
Seis semanas atrás, Jim Davis se sentia vivo pela primeira vez, engolfado na morte
inesperada de todos aqueles que passavam por ele e lhe diziam: “você não é como os outros,
você é diferente”, provavelmente por nunca ter saído da linha que fora obrigado a percorrer,
assustadora. Não é nenhuma surpresa que Jim tenha se sentido vivo, prestes a gritar para o
vazio que poderia ser quem quiser e onde quiser, aproveitando os momentos da esperança
inexplicável de culpabilidade que carregava consigo - inexplicável pelo fato de não ter
qualquer controle pela passagem de um cometa mortal que o deixara solitário com uma
mulher que decerto não o encarava como igual. E, apesar de tê-la salvado de uma provável
morte, ele não era visto como herói, e nem o queria; não queria, entretanto, ser taxado como
um crioulo que, como inúmeros brancos haviam comentado, “poderia ter se aproveitado” de
uma moça de família que foi corajosa o suficiente para sobreviver em meio a condições
perigosíssimas. Nenhum deles estava lá quando tudo aconteceu, retornando a uma cidade
fervilhante sem saber que estava largada às traças e pincelada com centenas de cadáveres que
que caminhava a lugar nenhum e puxando-o de volta à realidade que enfrentava desde
Jim havia perdido tudo. E a jovem que resgatara de um suntuoso casarão não
compreendia o que ele dizia, não por completo – a perda de tudo acontecera há muito tempo.
O cometa viera apenas como a cereja do bolo, alimentando um medo constante de que a
Quando olhou para trás, viu a mulher, Dana, os olhos fundos pelo choro que tentava,
em vão, esconder do marido. Em meio à marca das lágrimas incrustadas em seu rosto, um
semblante de preocupação, os lábios cerrados, com palavras de conforto na ponta língua que
Jim sorriu, e não falou nada. Aproximou-se de Dana e a envolveu num abraço, não
muito apertado, não muito descuidado, mas o suficiente para que a sensação agourenta que se
apoderava da casa se dissipasse em uma pulsão paliativa que não causasse mais estresse do
que os dois já tinham enfrentado. Dana o fitou com pena e logo voltou aos afazeres, enfiando
porta - Não vá se atrasar – foi a última frase que ouviu antes de fechar a porta atrás de si e
Nova York se recuperara rápido da infame tragédia que ganhou manchetes ao redor
do país - a Nova York branca, mais especificamente. Memoriais foram celebrados para
honrar a memória de pessoas importantes demais para serem esquecidas junto aos negros que
foram varridos pelo cometa; homenagens constantes brotavam das vitrines das lojas e dos
quiosques que povoavam a Times Square, desde o raiar do dia ao cair da noite estrelada. Jim
olhava para o céu e sentia um frio na barriga, agora, mas não de medo, e sim de um
pensamento que logo enxotava para os confins de uma mente que clamava pelo gostinho do
Ora, Jim nascera dentro dessa acre sensação, impedido de fugir do cerceamento que
lhe fora imposto desde o berço - ninguém que o entendesse poderia culpá-lo de tal desejo.
Quando um Ford quase o atropelou enquanto atravessa a avenida, ele sacudiu a cabeça
edifício alvo talhado em mármore que engolia qualquer um que dele se aproximasse. Jim
estava de volta à realidade que todos lhe diziam ser o correto, e ele não podia fazer nada
além de aceitá-la e de obedecer à sua rotina exaustiva de fazer a mesma coisa dia após dia,
Ele passou, inerte, pela multidão que se esbarrava para caber nas calçadas estreitas.
Qualquer um que não tivesse conhecimento do que acontecera um mês e meio atrás, jamais
imaginaria que Nova York fora palco de uma atrocidade. Jim não se importava, visto que a
atrocidade que pululava nos fragmentos de sua própria existência datava de muito antes. Mas
estávamos falando dos brancos – e o evento catastrófico tinha mudado o organismo que os
unia, numa série de discursos de falsa empatia que o enojavam pelas declarações proféticas
de união e de recuperação.
A escadaria do banco permanecia idêntica, exceto pelos cadáveres que lá não mais
estavam. Jim voltou-se para a sarjeta à frente do edifício, assombrado pela figura do garoto
que vendia jornais (Espere, agora é outra criança), piscando freneticamente antes de seguir
para a entrada e reavivar o papel de mensageiro que interpretava pelos últimos anos.
Como de costume, relances de olhar o diminuíam pelo fato de simplesmente estar lá -
uma hostilidade não verbalizada que, por breves horas, cessaram de existir. De fato, nada
- Jim? - por um momento, ele achou que Dana o havia seguido até o banco, com medo
de que ele mudasse de caminho por um motivo qualquer. Mas não era ela, e sim George
Smith, um homem grisalho que havia sido apontado como o novo gerente - Você deve ser o
Jim, certo?
- Sim, senhor – ele respondeu, impassível como fora instruído a ser. Jim quase se
- Quero que você vá até as câmaras subterrâneas, temos alguns documentos que
clientes animados do banco, que se exaltavam volta e meia relembrando do cometa que
assolara os nova-iorquinos e que ainda demonstrava força descomunal no imaginário dos que
Coitadinhos.
- Não tenho ideia de como vamos nos recuperar disso – Jim ouviu uma senhora com
– Será que eles sofreram? Mal posso imaginar a reação das famílias quando ficaram sabendo
desse desastre – ela continuou, alheia aos meneios de concordância forçada que uma jovem
movimento, ela cobriu a bolsinha com as mãos e a segurou como se fosse um filho – Mas
tenho de certeza de alguns que não me importaria de terem sumido – ela continuou,
sussurrando em um tom deliberadamente alto para que seu alvo entendesse cada palavra.
Jim encheu o peito de ar e soltou a respiração, sendo essa a única coisa à mão que
poderia fazer para continuar seguindo em frente. Responder à execrável mulher que o
enxergava apenas como um servo de suas necessidades fúteis não era uma opção, e sim uma
sentença de morte. E não poderia deixar que Dana ficasse sozinha, não depois de tudo o que
acontecera semanas atrás - e que havia se reduzido a uma touca que desbotava, paciente, dia
após dia.
cristalino e sustentavam um teto apoteótico – uma ode monumental a uma vida que fora
obrigado a enfrentar. Ele não podia deixar de se sentir dentro de um vórtice nostálgico do
maldito meteoro que rasgara os céus da cidade. Ao mesmo tempo, a bola de fogo parecia tão
longe e tão perto, e, por breves horas, mudara tudo o que conhecia. Ele pôde olhar a si
próprio como uma criação divina tal qual outrem. E, num estalar de dedos, fora jogado de
escanteio por “não fazer o mínimo” de ter salvado quem, de fato, era visto como o ápice da
sociedade humana.
Ele poderia jurar que via o rosto de Julia nos vultos que passavam por ele como se
fosse um fantasma, um eco do passado a ser ignorado. Jim não a amava (pelo contrário, seu
coração pertencia a Dana desde o momento em que se viram pela primeira vez), mas não
a salvarem o que restara. No final das contas, tudo não passou de uma centelha de esperança
frágil e ilusória, que sumiu com a mesma sutileza que viera à tona.
Jim continuava a vê-la, de braços dados com o prometido e o pai, cujos cabelos
lustrosos se assemelhavam ao chão encerado do banco. Mas, espere, ele pensou, estreitando
De alguma forma inexplicável, Julia virou o rosto e suas expressões se cruzaram. Jim
queria ter enxergado uma fagulha de gratidão em seu semblante, mas o que encontrou foi um
misto de temor e asco. Ele não entendia o motivo; na verdade, entendia muito bem, mas não
queria aceitar. Apesar ter experimentado aquela sensação de ingratidão antes, o modo como
Julia o encarou alimento um ódio adormecido, que se contorcia dentro de seu âmago e que
- Com licença - uma mulher estridente se aproximou de George, puxando-o pela manga
- Sim? - o gerente perguntou, abrindo o mesmo sorriso amarelo de antes. Talvez ele fosse
condescendente com todo mundo, Jim pensou, cruzando as mãos à frente do corpo enquanto
esperava a conversa acabar. Mas o diálogo entre os dois cessou abruptamente quando a
- Por que está aqui? - ela perguntou, como se tivesse alguma propriedade sobre Jim - Não
percebeu que estou conversando sobre algo particular com o Sr. Smith?
- Eu...
- Este é Jim, nosso mensageiro. Estava apenas levando-o para pegar alguns documentos.
A mulher revirou os olhos – Tenho certeza de que ele consegue encontrar sozinho, não é
mesmo? - ela terminou a pergunta retórica forçando-se a encarar um homem tão diferente dos
- Vá indo na frente, Jim. Sei que conhece esse banco melhor do que todos.
Jim fez um meneio breve com a cabeça e continuou em frente, mas não antes de ouvir
a mulher dizer: “acho muita coragem contratar um crioulo para cuidar dos documentos.
Jamais conseguiria dormir tranquila deixando que ele cuidasse de coisas tão valiosas. E deve
ser complexo demais, não? Ficaria mais relaxada se soubesse que o senhor estivesse à
Jim apressou o passo, mas não o suficiente para atrair atenção indesejada. Deus o
livrasse de ser mal compreendido pelos brancos que fuzilavam qualquer um “diferente” que
longa data daquele antro monetário. Na verdade, apressar o passo foi um exagero; ele se
moveu com mais fluidez até chegar às escadas que levavam à parte de baixo do edifício.
Desceu; pegou as chaves com o escriturário, que não havia se importado o suficiente
para conhecer o nome de Jim; adentrou a escuridão. Ainda podia ouvir o anúncio exasperado
da passagem do cometa ecoando nas paredes. Entretanto, dessa vez, nada aconteceria. Lá no
fundo, Jim tentava se desvencilhar do desejo perigoso de que outro cometa chegasse não
apenas a Nova York, mas quem sabe a mais partes do suposto “país da liberdade” que era os
Estados Unidos. Pensou em Dana, porém, e não sabia o que faria se a perdesse também.
Mesmo com o rápido reerguimento da cidade, ninguém havia trocado as lâmpadas das
tragédia não o fizera esquecer do que deveria ter pegado naquele lugar quase dois meses
atrás, piscando em sua mente como um outdoor. Tomando o máximo de cautela que
Podia jurar que estava sendo observado – mas por quem, se só a ele era destinado a
possibilidade de, novamente, ficar encarcerado dentro do cômodo, Jim não se sobressaltou;
ele ficou parado, os braços pendidos ao lado do corpo, fitando a exata localização da pesada
porta que se fechara atrás dele. Dessa vez, ele sabia como escapar do confinamento – mas ele
queria?
não retornar ao andar de cima. Afinal, o que lhe esperava? Dana era a única resposta cabível,
todavia, nas últimas semanas, ela mais não estava do que estava, como se finalmente tivesse
se rendido ao desejo de fundir-se ao único lugar que lhe fornecia conforto e segurança. Ela
não saía mais de casa e parecia absorta pelos pensamentos de quando poderia devolver a
Jim olhou em volta, ainda que não conseguisse enxergar um palmo à frente do nariz.
Uma ínfima fresta permitia poucos raios de uma luz trêmula escaparem na escuridão da
câmara. Ele estava sozinho – e saboreava o retorno da brevidade de uma liberdade solitária
que destilara há pouco tempo e que o fazia ansiar por mais. Será que ele estava preso? Ou
será que, entranhado nos confins daquele edifício, finalmente conseguiria ser quem é, e não
Cambaleando pelo espaço, ele chutou um caixote jogado, puxou para perto de si e se
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