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VAMOS VOLTAR
A CONFIAR NA CIÊNCIA?
Os cientistas viram a sua credibilidade questionada
com a pandemia, mas o mundo está agora dependente
do êxito das vacinas que eles desenvolveram.
Com uma certeza e uma lição para o futuro: o nosso saber
depende cada vez mais do saber dos outros
MIT TECHNOLOGY REVIEW, THE GUARDIAN, GAZETA WYBORCZA
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S SUMÁRIO
JANEIRO 2021
06 Fontes
08 Cartoons
10 Retrato
Maia Sandu
Olhar
Courrier internacional
Ligue 21 870 50 50
Dias úteis, das 9h às 19h.
VALHA-NOS A CIÊNCIA
Nunca se assistiu a nada igual ou até sequer parecido. Quando soaram as primeiras
badaladas de 2020, em nenhum centro de investigação do planeta existia a mais
pequena informação sobre um vírus que, algumas semanas depois, seria batizado
como SARS-CoV2 e acabaria por alastrar-se por todo o mundo. Tudo começou a
EDITORIAL mudar, a 3 de janeiro, quando chegaram a um laboratório de Xangai as amostras de
um patógeno que, provavelmente, era o causador da estranha e repentina doença
R U I T AVA R E S G U E D E S que se alastrava na cidade Whuan. Em apenas 40 horas, um grupo de investigadores
rguedes@visao.pt conseguiu sequenciar o genoma do novo vírus e perceber que ele pertencia à família
SARS, fazendo assim soar os alarmes. Quase de imediato, o virologista-chefe
Zhang Yongzhen introduziu os dados genéticos do vírus no Centro Nacional de
Informações sobre Biotecnologia, um organismo internacional administrado pelo
Instituto de Saúde dos EUA, e ainda escreveu um artigo que enviou para a revista
científica Nature, mesmo contrariando as instruções de Pequim para que não fossem
divulgadas informações, ainda não totalmente confirmadas, sobre a nova doença. A
10 de janeiro, Zhang Yongzhen foi ainda mais longe: pediu a um seu colega virologista
australiano para divulgar o resultado da investigação da sua equipa, com a sequência
do genoma do vírus causador da Covid-19 – que passou, assim, a estar disponível na
plataforma virological.org para os cientistas de todo o mundo.
A informação alastrou-se pelo planeta quase à mesma velocidade com que o vírus
se foi propagando. Um pouco por todo o lado, à medida que percebiam o que estava
a acontecer, milhares de cientistas abandonaram as tarefas em que se encontram
envolvidos e concentraram-se no estudo do novo vírus, graças à informação
difundida por Zhang Yongzhen.
Em escassos meses foram escritos dezenas de milhares de artigos científicos
relacionados com os efeitos do vírus e a Covid-19. Só na biblioteca médica PubMed
encontram-se listados 74 mil artigos, todos naturalmente redigidos em 2020 –
mais do dobro do que, ao longo de décadas, foi escrito sobre o sarampo, a cólera,
a poliomielite e outras doenças. Nunca na história da Humanidade uma doença foi
estudada tão depressa por tantas pessoas e em todos os cantos do mundo.
O mais surpreendente, também, é que não foi preciso esperar muito tempo para
que se conseguissem obter alguns resultados considerados impossíveis até há poucos
anos. Nos laboratórios da empresa de biotecnologia Moderna foram necessários
apenas dois dias para se desenvolver a vacina que, segundo os últimos dados, maior
eficácia demonstrou nos ensaios clínicos. Na Alemanha, também bastaram poucas
semanas para os investigadores da BioNTech, também eles especialistas na nova
tecnologia mRNA, ultimarem a vacina que, agora, está a ser fabricada pela Pfizer e
que foi a primeira a receber autorização de urgência dos principais organismos de
regulação dos medicamentos. Ou seja: a descoberta da tão aguardada vacina foi feita
em tempo absolutamente recorde e só não chegou mais depressa às pessoas porque,
naturalmente, teve de passar pelos imprescindíveis ensaios clínicos e as diversas
etapas para se poder comprovar que era eficaz e que não apresentava riscos para a
saúde de quem a tomasse.
A Ciência funcionou bem em 2020, como esta sequência de acontecimentos bem
o demonstra. Paradoxalmente, este foi também o ano em que, porventura, mais
cresceu a desconfiança sobre o trabalho dos cientistas, tantas vezes denegridos nas
redes sociais e em diversos fóruns de comunicação. Também foi o ano em que todo o
tipo de “especialistas” em doenças ou vírus mais vezes foram chamados aos órgãos de
comunicação social para darem a sua opinião ou, tantas vezes, apresentarem as suas
“previsões” para o futuro. Tivemos também, demasiadas vezes, cientistas com visões
COURRIER INTERNACIONAL opostas nas estratégias de combate à pandemia e a enfrentarem as suas diferenças de
App para tablets. opinião com o mesmo ardor de quem discute o jogo de futebol da véspera. Tivemos
Disponíveis na Applestore também estudos, análises e recomendações que um dia apontavam numa direção e,
e na Googleplay no dia seguinte, propunham o seu contrário.
as aplicações necessárias. É preciso saber arrefecer os ânimos. Perceber, acima de tudo, que a “opinião”
de um especialista não é mais do que isso: uma opinião. Perceber também que já não
estamos na era dos homens milagrosos. As vacinas desenvolvidas pela Moderna e
pela BioNTech, por exemplo, exigiram a colaboração de centenas de pessoas, todas
altamente especializadas. Hoje, cada vez mais é assim que se faz Ciência: um trabalho
de equipa, reunindo o melhor de cada um, que depois terá de ser inspecionado,
questionado e validado por outros especialistas, também altamente qualificados. É a
Ciência que nos pode salvar.
ILUSTRAÇÃO DE LANGER, PARA CLARÍN, BUENOS AIRES JANEIRO 2021 - N.º 299 5
F FON T E S
ESTE MÊS NO
jornal de quatro páginas desti-
nado “aos investidores honestos
e aos corretores respeitáveis”, é
hoje o diário financeiro e econó-
mico de referência na Europa. Foi
comprado pelo grupo japonês
Nikkei, em 2015. Tem mais de
600 jornalistas distribuídos por
mais de 40 países. www.ft.com
DER STANDARD
VIENA, ÁUSTRIA Fundado, em
1988, com o objetivo de se tornar
tinua à frente desta publicação de
centro-esquerda. www.nytimes.com
A América voltou
Como o mundo reage ao regresso
dos EUA ao multilateralismo
WOLVERTON, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
MAIA SANDU
I
TORNOU-SE, AOS 48 ANOS, A PRIMEIRA PRESIDENTE DA MOLDÁVIA. MAS
SERÁ CAPAZ DE LIDAR COM UM GOVERNO HOSTIL E COM O PARLAMENTO?
gor Dodon [Presidente socialista ces- Maia Sandu à segunda volta. Só a região
sante] é passado, porque se julgou capaz autónoma de Gagaúzia [tradicionalmente
de apagar os vestígios da sua corrupção pró-russa] e a cidade de Taraclia parecem V i s t o da U c r â n i a
com detergente geopolítico. Tentou, por
todos os meios, ignorar os maus resultados
ter ficado presas no passado e votado es-
magadoramente em Dodon, incapazes de
UM BOM SINAL
da primeira volta das eleições (1 de no- imaginar que poderia haver vida depois Os meios de comunicação ucranianos
vembro, obteve 440 mil votos contra os dele. acompanharam de perto as duas
488 mil de Maia Sandu), tocando a música O candidato dito independente apa- voltas das eleições presidenciais no
de uma “política externa equilibrada”. drinhado pelos socialistas avisou que de- seu pequeno vizinho a sudoeste e,
Tentou também assustar os cidadãos, di- fenderia a sua “vitória” [contestando os em geral, congratularam-se com o
zendo que Maia Sandu destruiria o bom resultados], mas a sua derrota foi de tal sucesso de Maia Sandu, que, recorda o
relacionamento que tinha construído com ordem que até Moscovo, que alegara que JORNAL DEN, “defende uma orientação
a Rússia, mas as pessoas não se deixaram o Ocidente tentara manipular as eleições pró-europeia sem comprometer
intimidar pela sua demagogia. presidenciais da Moldávia, ficou sem pa- as relações com Moscovo”. Na sua
As imagens do Presidente cessante a lavras. Dodon não tem nada a defender, já opinião, o principal problema do país
aceitar subornos de Vlad Plahotniuc [con- nem consegue consolar-se com a ideia de é a corrupção. Mas, para ser bem-
troverso oligarca, presidente do Partido ter obtido mais votos do que Maia Sandu -sucedido, é essencial “que o novo
Democrata] pesaram mais do que a de- dentro das fronteiras naturais do país, Presidente, aproveitando a mobilização
voção à Rússia, teatral ao ponto de ser como tinha feito após a primeira volta. das forças pró-europeias, organize
grotesca, do candidato dito independente A diferença final foi de mais de 260 eleições legislativas antecipadas
Dodon. mil votos! Representou uma mobilização para obter uma maioria pró-europeia
A servilidade de Dodon ao testar a sem precedentes, não só dos eleitores da no Parlamento”.
Sputnik V, a vacina russa contra a Co- diáspora moldava como daqueles que No entanto, não se devem esperar
vid-19, foi constrangedora mesmo no permaneceram no país, contra Dodon e agitações espetaculares, escreve o
seio da comunidade russa étnica. O fac- a favor de Maia Sandu. DIÁRIO DE KIEV: “Analistas políticos
to de ter perdido estrondosamente em Esta é mais uma prova de que alguns do Kremlin preveem que Sandu
Chisinau, capital do país, prova que uma dos 315 mil eleitores que votaram na prossiga uma política antirrussa mais
grande fatia do eleitorado de língua russa primeira volta em Renato Usatîi ou em pronunciada do que o seu antecessor,
se afastou dele. Violeta Ivanov, a candidata do Partido Sor mas esta mudança será muito mais
O movimento contra os subornos lan- [nacionalista pró-russo], se recusaram, à diluída no tempo do que na Ucrânia
çado por Renato Usatîi [o candidato do segunda volta, a votar em Dodon, apesar após a revolução e a anexação russa
Nosso Partido, um partido da esquerda da retórica pró-Kremlin do ex-Presidente. da Crimeia.”
populista em terceiro lugar após a primeira Esta eleição presidencial equivale a um Para a Ucrânia, continua o DEN,
volta] também desempenhou algum papel. verdadeiro referendo contra a corrupção, “a vitória de Maia Sandu é um bom
Grande parte do seu eleitorado votou em contra a política de isolamento e vassa- sinal. E é de esperar que o sucesso
de um candidato pró-europeu na
Moldávia reflita uma tendência geral na
JORNAL AUTOR DATA TRADUTORA região e que, após esta vitória, as forças
R Ziarul national - Chisinau Nicolae Negru 16.11.2020 Ana Marques pró-europeias na Ucrânia também
levem a melhor”.
COURRIER INTERNATIONAL
externa equilibrada”. Se Dodon tivesse incluindo Roménia, Ucrânia,
tido algum bom senso, dignidade, honra, União Europeia, Rússia e EUA
se tivesse sido um Presidente responsá- FOTO DE GETTY IMAGES
vel, como afirma, teria renunciado no dia
seguinte à primeira volta. Pelo contrário, Maia Sandu ganhou porque é o símbolo
recorreu à violência verbal, incitando ao da luta contra a corrupção e a favor do UCRÂNIA
Dn
ódio, semeando a discórdia no eleitorado. europeísmo. Agora, as dificuldades co- ies
tre TRANSFERÊNCIAS
Tudo o que lhe resta fazer é acalmar os meçarão para a líder do partido Ação e (secessionista)
Pr
ut
seus cães de guarda e ir embora. O grande Solidariedade (PAS), pois chegou a hora
problema, para nosso grande infortúnio, de cumprir as promessas eleitorais. Está MOLDÁVIA
é que se considera insubstituível. ciente, e ela própria reconheceu, que a Tiraspol
vitória não pertence apenas ao PAS e que
... a equipa que vai formar deve ser mais re- Chisinau
presentativa da Moldávia do que dos seus ROMÉNIA
Maia Sandu ganhou colegas do partido.
Obrigada a lutar contra a resistência do
porque é o símbolo da trio Dodon-Plahotniuc-Sor [que compõe o
UCRÂNIA
Análise
O islamismo
político é a base da
‘‘guerra santa”
A recente série de atentados na Europa não deixa margem para dúvidas:
a jihad assenta numa ideologia totalitária comparável ao nazismo
e ao comunismo dos gulag
FRANÇA
Como travar
esta guerra?
Responsáveis em Paris garantem que já está em marcha uma ofensiva
contra os islamistas. Mas ignora-se o seu modo de atuação e as
capacidades que o país tem para empreender esse combate
Islamismo
Guiana Francesa, na sinistra colónia penal
de Caiena, onde [o capitão judeu injus-
tamente condenado por traição] Alfred
rima
Dreyfus foi aprisionado e a qual inspirou
Henri Charrière, ex-presidiário, a publicar,
em 1969, o livro Papillon [no qual narra a
sempre
sua fuga espetacular, em 1935].
O Artigo 16 da Constituição da Vª Re-
pública prevê que, quando as instituições
com
da República, a independência da nação ou
a integridade do seu território estiverem
gravemente ameaçadas, o Presidente deve
terrorismo
tomar as medidas exigidas nestas circuns-
leis tâncias. O chefe de Estado dispõe, para isso,
de poderes muito importantes.
Privação de O último Presidente a invocar o Artigo
nacionalidade 16 foi o general Charles de Gaulle, em 1961, Enganámo-nos sobre esta ideologia,
durante a guerra da Argélia. Mas será que adverte o editorialista do diário
não é solução Emmanuel Macron tem vontade de passar argelino Liberté. A sua própria
das palavras aos atos?
Depois de um atentado, “como essência é a de propagar o ódio
reação impulsiva, até são Medo dos estudantes e conquistar o poder
compreensíveis” os apelos a leis Em teoria, uma “Guantánamo à francesa”
severas para, mais facilmente, poderia ser constitucional, mas de modo LIBERTÉ ARGEL
privar da nacionalidade os suspeitos algum seria realista. Provocaria uma re-
de terrorismo. “Mas esta não é a jeição enorme, ou talvez uma sublevação,
resposta certa, quer do ponto de nas cidades. Um conflito desta natureza
vista jurídico, político ou moral”, poderia alastrar-se para além das frontei-
escreve na sua coluna de opinião ras do Hexágono, em particular, ao Reino Viena, habituada a estar nos
no diário DER STANDARD, de Viena,
o politólogo austríaco Rainer
Unido, à Bélgica e à Alemanha. Será que
Macron tem ideias melhores? V primeiros lugares do ranking
das cidades onde se vive melhor
Bauböck, codiretor da plataforma Depois de três crianças assassinadas [em 2 de novembro, um aten-
europeia GLOBALCIT [Global numa escola judaica em Toulouse, de outras tado islamista causou aqui dois mortos]. A
Citizenzhip Observatory, que 130 pessoas mortas por bombistas suicidas Universidade de Cabul, um oásis de apren-
investiga e analisa os direitos de no Teatro Bataclan, de mais 86 mortas no dizagem no Afeganistão, país devastado
cidadania e as leis eleitorais em atentado em Nice, de um padre degolado pela desculturação islamista [no mesmo
todo o mundo]. Quando um Estado na igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray e dia, 22 pessoas foram mortas, num ataque
retira a nacionalidade a um cidadão, do massacre (12 mortos) na sede do Charlie reivindicado pelo autoproclamado “Estado
qual é o objetivo? É transferir a sua Hebdo, o Governo assegura que todos os Islâmico” ou Daesh]. O terrorismo islamista
responsabilidade para outro Estado. dias impede novos ataques. Mas não é fácil ataca tanto quanto pode, onde mais fere a
Ora, “se todos os países aplicarem confirmar tais afirmações. beleza, o espírito, o saber, a ordem... Em
esta lógica, seguir-se-á uma corrida Após o feriado de Todos os Santos, na resumo, ele tem dois inimigos: a ciência e a
entre eles para se desembaraçarem reabertura das escolas, era suposto estas vida. Não se deve acreditar que o islamismo
de um radicalizado à mínima dedicarem a manhã a uma aula de moral e visa, em particular, a França, a América
suspeita. E isso não só põe em cidadania “reforçada”, em homenagem a ou a Áustria. Ou que odeia especialmente
risco a cooperação internacional Samuel Paty. No entanto, os diretores dos o Presidente francês, Emmanuel Macron,
na luta contra o terrorismo, como estabelecimentos de ensino alertaram que, ou o primeiro-ministro israelita, Benja-
enfraquece também o Estado de nas escolas com muitos alunos muçulma- min Netanyahu. O islamismo não tem um
direito e favorece a estratégia de nos, tais aulas não seriam dadas. alvo ou um inimigo permanente: só tem
recrutamento de jihadistas, que Havia o receio de que alguns dos alunos alvos oportunos e inimigos momentâneos.
assenta na tese de que são eles as filmassem as aulas com os seus telemóveis O seu braço armado, carne
vítimas”. e publicassem os vídeos no YouTube, o que para canhão barata, nu- F
seria inconveniente para o Presidente Ma- tre um ódio errante: este
cron. Esta volta de 180 graus era previsível. segue o objetivo que os
Deveria ter havido um minuto de silêncio seus mestres e mentores AUTOR
Mustapha
e uma lição de uma hora, mas isso não se célebres lhe indicaram, Hammouche
verificou em todas as escolas. Nalgumas, diretamente, ou lhe su-
as mais sensíveis, o minuto de silêncio só geriram, mediaticamente. DATA
foi observado nas salas dos professores. Estas diversas autori- 05.11.2020
Se o Estado francês tem medo de estu- dades ideológicas que ins-
dantes do ensino secundário, quais são as piram as tropas assassinas TRADUTORA
hipóteses de vencer o terrorismo? organizadas em exércitos, Maria Alves
Um perigo global
Foi para beneficiar desta estratégia de “pei-
xe-piloto” [espécie carnívora que acompa-
nha tubarões e outros peixes graúdos para se
alimentar dos restos das suas presas] – que
consiste em tirar partido do terror semea-
do pelo terrorismo sem correr o risco de
eventuais contragolpes – que foi inventado
o subterfúgio do islamismo “moderado”.
O islamista “moderado” não corre, pelo
menos nem sempre, o risco de pregar ou
praticar a violência terrorista: mas não
ousa condená-la nem virar-lhe as costas!
Mesmo quando ataca em terras do Islão, o
terrorismo só é combatido em nome dos
valores humanos.
O islamismo é só um e, na sua essência,
cultiva a necessária extensão terrorista.
Como ideologia, tem uma vocação expan-
sionista. A sua estratégia de conquista as-
senta no ódio elevado à categoria de valor.
O seu credo é semear o caos, para impor
a sua ordem sobre os escombros da que
destruiu. Onde quer que possa.
Onde não pode, o islamista recorre a
ataques terroristas para fomentar o ódio,
que mantém vivo o “moral das tropas” nas
suas fileiras. O seu alvo é, então, facilmente
identificável: a ordem resultante do génio
humano, isto é, da ciência, da arte, da har-
monia social...
Antes de exportar o seu terrorismo, o
islamismo testou-o no seu meio sociocul-
tural. A sua força é a de fazer crer que a
proteção contra o terrorismo não está em
combatê-lo. Está, sim, nas posições “con-
ciliadoras” que desde há 30 anos florescem.
Por natureza, um perigo global exige
uma reação global.
ILUSTRAÇÃO DE KOUNTOURIS, PARA EFIMERIDA TON SYNKTATON, ATENAS JANEIRO 2021 - N.º 299 21
Ásia
A China marca
No entanto, a Parceria Económica Regional
Abrangente constitui um verdadeiro passo
em frente, na medida em que harmoniza
pontos
as disposições relativas às regras de origem
anteriormente estabelecidas pelos vários
acordos firmados no âmbito da ASEAN.
Estabelece também regras regionais para
permitir que os bens intermédios [produtos
Quinze países da Ásia e do Pacífico assinaram utilizados na manufatura de outros bens]
um acordo comercial que já foi classificado possam ser originários de qualquer um dos
como uma “vitória do multilateralismo”. 15 membros.
Será também uma consolidação da hegemonia Neste ponto, os benefícios económi-
cos esperados são muitos. Segundo um
de Pequim na região? estudo do Peterson Institute for Interna-
tional Economics, liderado por Peter Petri
THE ECONOMIST LONDRES e Michael Plummer, algumas projeções
admitem que daqui resulte um aumento
do PIB global, no valor de 186 mil milhões
de dólares por ano até 2030 (em compa-
ração com os 147 mil milhões de dólares
induzidos pelo CPTPP). Os ganhos seriam
particularmente significativos para a Chi-
na, Japão e Coreia do Sul.
Mudar o padrão
A China também não ficará a perder, ainda
O O processo foi tão longo como
o seu nome é ingrato. Mas os 15
da Associação de Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN) e outros países da região Ásia-
que por outros motivos. Tendo promovido
o seu primeiro acordo comercial multila-
países asiáticos que assinaram a Par- -Pacífico, caso da Austrália, China, Japão, teral, Pequim pode aparecer como o maior
ceria Económica Regional Abrangente Nova Zelândia e Coreia do Sul. defensor do comércio livre, enquanto
(RCEP), numa cerimónia virtual emitida a O RCEP cruza-se com outro importante os Estados Unidos da América perdem
partir de Hanói, a 15 de novembro, podem tratado comercial regional, o Acordo Global influência económica na região e estão
gabar-se de ter batido vários recordes. e Progressivo para a Parceria Transpacífico enredados numa guerra comercial com
O RCEP é, de facto, o maior acordo (CPTPP). Assinado em 2018 por 11 países, o o gigante asiático. O primeiro-ministro
comercial multilateral do mundo e só texto, originalmente denominado Parce- chinês, Li Keqiang, mostrou-se visivel-
não atinge outra dimensão por a Índia se ria Transpacífico (TPP), deveria incluir os mente satisfeito com a assinatura do RCEP,
ter afastado há um ano. Após oito anos de Estados Unidos da América, mas Donald que classificou como uma “vitória para
“negociação com sangue, suor e lágrimas”, Trump, mal acabado de chegar à presi- o multilateralismo e o comércio livre”.
nas palavras do ministro do Comércio da dência, decidiu não aderir. Num arroubo lírico, até lhe chamou “um
Malásia, Mohamed Azmin Ali, representa Enquanto os dois acordos eram nego- raio de sol e esperança num céu nublado”.
uma vitória da cooperação regional, numa ciados, os norte-americanos minimizavam O RCEP vai levar a uma reorientação
altura em que a pandemia Covid-19 abala o RCEP, considerando-o um pacto medío- do comércio chinês na Ásia. O padrão
a economia global. cre à século XX, centrado nas barreiras tradicional das cadeias de abastecimento
No entanto, esta vitória é tudo menos aduaneiras e em medidas rudimentares fornecendo fábricas dispersas por vários
consensual. Para alguns, o RCEP carece de liberalização. Já o TPP ia mais além, países asiáticos, que depois produzem bens
de ambição, sendo pouco mais do que um incluindo questões como o ambiente ou manufaturados, exportados para países
acordo simbólico. Para outros, é um marco a legislação laboral, sem esquecer regras ocidentais, está a mudar. Segundo o Ins-
decisivo na construção de uma nova ordem para as empresas estatais.
mundial marcada pelo domínio da China É verdade que o RCEP é menos ambi-
sobre o resto da Ásia. cioso: é o que costuma acontecer quando ...
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. um acordo reúne países muito ricos (Japão
O RCEP não é o prenúncio de uma libera- e Singapura) e muito pobres (Laos e Bir- O acordo reúne países
lização espetacular do comércio na Ásia. mânia). O tratado erradica, muito prova-
Começou como um esforço de racionaliza- velmente, 90% das barreiras aduaneiras, muito ricos (Japão e
ção: coordenar, no quadro de um tratado mas fá-lo a prazo: 20 anos contados a partir Singapura) e muito
alargado, vários acordos parcelares de co- da sua entrada em vigor – o que só acon-
mércio livre abrangendo os dez membros tecerá depois de o texto ter sido ratifica-
pobres (Laos e Birmânia)
e irá erradicar, muito
provavelmente, 90%
AUTOR DATA TRADUTORA
F Não assinado 17.11.2020 Ana Marques das barreiras aduaneiras,
dentro de 20 anos
A Índia
à margem
Quinze países da Ásia-Pacífico
tentam unir-se num gigantesco
acordo de comércio livre, mas
a Índia, com os seus 1,38 mil
milhões de habitantes, continua
à margem. “O país participou
nas negociações da Parceria
Económica Regional Abrangente
(RCEP) desde 2013”, lê-se no
Indian Express, mas retirou-se
em novembro de 2019, invocando
“questões importantes por
resolver”.
Perante o regresso da tensão
com a China, nomeadamente
nos Himalaias, e a pandemia, o
subcontinente está mais do que
nunca “à defesa” relativamente
ao Império do Meio. O seu líder
nacionalista, Narendra Modi,
temia, por exemplo, que o acordo
RCEP permitisse que produtos
chineses baratos inundassem o
mercado indiano.
Por outro lado, a Índia teme as
“barreiras não tarifárias impostas
por países como a China” e o
efeito destas nas exportações.
Confrontada com uma recessão
sem precedentes desde o
confinamento, por causa da
Covid-19, a Índia joga o trunfo
da autonomia e prometeu
recentemente “20 mil milhões de
dólares em incentivos financeiros
para empresas produtoras
locais”, a fim de se proteger das
importações estrangeiras, refere o
jornal Business Standard.
A Índia mantém-se fiel ao seu
tradicional não alinhamento
tituto de Finanças Internacionais, sediado mundo em que o poder económico, político externo. No entanto, os 15
em Washington, no primeiro semestre de e militar da China esmague o resto da Ásia. signatários do RCEP dizem
2020, os países da ASEAN tornaram-se É precisamente por isso que a admi- estar prontos “para retomar
no maior parceiro comercial da China, à nistração Obama estava tão empenhada no negociações”, lê-se no jornal
frente da União Europeia. TPP. Mas é pouco provável que os EUA de Economic Times, uma vez que
O RCEP foi assinado na Cimeira Virtual Joe Biden procurem aderir ao RCEP, pois Deli não enjeita oficialmente a
da ASEAN, e o bloco asiático irá vê-lo como o novo Presidente dos EUA tem outras vontade de se lhes vir a juntar.
uma confirmação da eficácia de negocia- batalhas para travar. O mais certo é que
ções lentas e graduais, sejam estas sobre a Ásia prossiga o seu caminho, balizado
comércio ou soberania no mar do Sul da por uma crescente influência da China e
China. No entanto, a longo prazo, alguns por um relativo desinteresse dos Estados
dos signatários receiam o advento de um Unidos da América.
ILUSTRAÇÃO DE EVA VÁSQUEZ, PARA EL PAÍS, MADRID JANEIRO 2021 - N.º 299 23
Economia
Trabalho
Países ricos
precisam
de imigrantes
Os fluxos migratórios nos países industrializados estimulam
o crescimento económico e demográfico. Mas a pandemia travou-os
espanha
Um fator de prosperidade
PIB por habitante “Ilhas-
-prisão”
(2019, em milhares de dólares e de acordo com aparidade de poder de compra)
125
100
Curva
tendencial para
75
ALEMANHA
EUA migrantes
FRANÇA
Clandestinos estão a afluir
50 AUSTRÁLIA
às ilhas Canárias, mas o Ministério
JAPÃO do Interior espanhol recusa qualquer
CANADÁ
transferência para centros
25
de acolhimento na Península Ibérica
e, por conseguinte, para outros
REINO UNIDO
0 países da UE
0 20 40 60 80 100
O SABER,
ESSA
INTELIGÊNCIA
COLETIVA
Partindo de uma experiência que envolveu milhares
res de
cientistas, fica demonstrado que, na atual sociedade
dade
complexa, o nosso saber depende cada vez mais do o saber
dos outros e da confiança que neles depositamos
mos
30 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
artigo, apercebi-me de que o saber depende
tanto da confiança e das relações sociais como
dos livros académicos e das observações.
Saber em comunidade
Há 35 anos, o filósofo John Hardwig publi-
cou um artigo sobre a “dependência epis-
témica” [traduzido por Desidério Murcho
em 2018], expressão que designa a nossa
dependência relativamente ao saber dos
outros. O artigo mantém toda a atualidade,
numa altura em que a sociedade e o saber
são cada vez mais complexos.
Geralmente, definimos o saber como
“crença verdadeira justificada” – factos
que podemos sustentar através de dados
e um raciocínio lógico. Ora, à nossa escala
individual, raramente dispomos de tempo
e competências para justificarmos as nos-
sas crenças. Então, o que compreendemos
realmente quando dizemos saber alguma
coisa? Das duas, uma, explicava Hardwig:
ou grande parte do nosso saber apenas
pode ser detida por uma comunidade, e
não um indivíduo, ou os indivíduos podem
“saber” coisas que não compreendem ca-
balmente (e tendia mais para este segundo
postulado).
Isto pode parecer uma questão filo-
sófica abstrata. Afinal, seja o que for que
entendamos por “saber”, é evidente que
o que sabemos depende de outras pessoas.
“Se a questão fundamental é ‘quem detém
o conhecimento?’, isso não faz sentido e,
na verdade, não me interessa”, explica
Steven Sloman, especialista em psicologia
cognitiva na Universidade Brown e coautor
de The Knowledge Illusion [“A ilusão do
saber”, não traduzido para português].
“Se, em contrapartida, perguntarmos
‘em que nos baseamos para pretender
saber determinadas coisas?’ e ‘em quem
podemos confiar?’, então esta pergunta
torna-se urgente.”
A retirada de dois artigos sobre a Covid-19
publicados em junho passado, nas revistas The
Lancet e New England Journal of Medicine,
devido à confiança cega de investigadores num
colaborador pouco sério, é um exemplo do que
acontece quando a dependência epistémica é
mal gerida. E a avalancha de desinformação
sobre assuntos como as vacinas, as alterações
climáticas e a Covid-19 põe diretamente em
32 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
causa a dependência epistémica, sem a qual saiba de todos estes assuntos? Um fenómeno cientistas conheciam perfeitamente o fenó-
nem a Ciência nem a sociedade, como um de corrosão microbiana quase provocou meno; ao segundo, afirmou que se tratava
todo, podem funcionar. uma fuga no nosso tubo de feixe eletrónico de um fenómeno para o qual não existia
e, neste caso, o problema prendia-se com explicação; ao terceiro, que se tratava de
Partilhar competências biologia. Tudo se torna demasiado compli- um fenómeno conhecido mas classificado
Um livro de física experimental de 1786 cado para que uma única pessoa consiga como confidencial pelo departamento de
ocupava-se tanto de astronomia como de acompanhar tudo.” Defesa. De seguida, cada indivíduo avaliou
geologia, zoologia, medicina e botânica. Um episódio em particular veio pôr em a sua compreensão do fenómeno; os do pri-
Nessa altura, um leitor podia dominar o evidência a interdependência da equipa. meiro grupo atribuíram a si próprios uma
conjunto de conhecimentos humanos em Durante os primeiros oito anos de funcio- avaliação superior aos dos outros grupos,
todos esses domínios. Hoje, são domínios do namento, o Ligo não detetou qualquer onda como se o simples facto de o fenómeno
saber bem distintos, cada um dos quais, por gravitacional; depois, entre 2010 e 2015, poder ser compreendido significasse que
sua vez, gerou subdomínios. Atualmente, é encerrou para atualização dos aparelhos. já o compreendiam.
impossível possuir um saber enciclopédico. Dois dias após ser reaberto, captou um sinal Mas apropriar-se do saber dos outros
Para obter qualquer resultado fora de que era “tão belo que ou se tratava de um não é tão tonto como parece. Em 1987, o
um domínio de ponta, os cientistas são maravilhoso presente ou era suspeito”, psicólogo Daniel Wegner referiu um as-
obrigados a partilhar as suas competên- conta Peter Saulson, físico na Universi- peto da cognição coletiva a que chamava
cias. As colaborações multiplicaram-se dade de Syracuse, que dirigiu a Colabora- “memória transacional”, conceito que se
à medida que novas tecnologias como a ção Científica Ligo de 2003 a 2007. Seria baseia no facto de cada um de nós saber
internet vieram facilitar as comunicações. possível que alguém tivesse introduzido determinadas coisas e saber igualmente
Entre 1990 e 2010, o número médio de au- um sinal falso? Após várias verificações, quem possui outro tipo de conhecimentos.
tores de um artigo científico passou de 3,2 os investigadores concluíram que nenhum Outros investigadores que estudam a
para 5,6. Em 2015, um artigo sobre a massa indivíduo conseguia, só por si, dominar memória transacional pediram a grupos de
do bosão de Higgs era atribuído a mais de suficientemente o sistema na sua totali- três pessoas que montassem um aparelho de
cinco mil autores. dade para conseguir sabotá-lo. Um ato de rádio. Alguns grupos tinham-se preparado
Em 2016, o artigo que anunciava a pri- pirataria credível exigiria a intervenção de para a tarefa em equipa, enquanto nou-
meira deteção de ondas gravitacionais pelo um pequeno exército de pessoas mal-in- tros grupos uma ou mais pessoas se tinham
Ligo era subscrito por mais de mil inves- tencionadas. “Imaginar uma equipa de ge- preparado individualmente. Os primeiros
tigadores. Será que todos compreendem niozinhos do mal era uma ideia ridícula”, recorreram mais à memória transacional,
cabalmente cada aspeto daquilo que assi- continua Saulson. Assim, concluiu-se que privilegiando a especialização, a coordena-
naram? “Creio que muitos compreendem o sinal era real e provinha da colisão de dois ção e a confiança. Além disso, cometeram
o essencial a um nível muito elevado”, buracos negros. “Acabou por prevalecer metade dos erros dos restantes, durante
garante David Reitze, físico no Caltech e um argumento sociológico”, conclui. a fase final.
diretor executivo do Ligo, a propósito dos Nenhum membro destes trios tinha
resultados da equipa. Mas a grande ques- Ilusão da explicação profunda mais capacidade para montar um apare-
tão prática reside no seguinte: “Como é É frequente sobrestimarmos a nossa capa- lho de rádio do que aqueles que se tinham
possível saber que esse detetor comple- cidade para explicar determinadas coisas. preparado individualmente. No entanto,
xo, que comporta centenas de milhares Chama-se a isso “ilusão da explicação pro- enquanto grupo – o modo normal de fun-
de elementos, componentes eletrónicas e funda”. Numa série de experiências, foi cionamento dos seres humanos –, o sucesso
canais de dados, se comporta corretamente pedido aos participantes que avaliassem deveu-se à sua dependência epistémica.
e mede verdadeiramente o que pensamos a sua compreensão do funcionamento de
que está a medir?” E prossegue: “É isto Perguntar sempre
dispositivos e de fenómenos naturais, como
que devia preocupar centenas de pessoas os fechos-éclair e o arco-íris. Depois, ti-
Reconhecer que o nosso saber depende
[enquanto equipa]”. nham de tentar explicá-los. Confrontadosdo saber dos outros permite retirar vários
Segundo Joseph Giaime, que dirige as com a própria ignorância, a autoavaliação
ensinamentos. O mais simples consiste
instalações de Livingston, mais de metade desceu em flecha. em tomar consciência de que se domina
menos bem do que se pensava
RECONHECER QUE O NOSSO SABER DEPENDE DO SABER DOS OUTROS determinado assunto. Portanto,
PERMITE RETIRAR VÁRIOS ENSINAMENTOS. O MAIS SIMPLES CONSISTE operguntas melhor é perguntar – mesmo
idiotas.
EM TOMAR CONSCIÊNCIA DE QUE SE DOMINA MENOS BEM DO QUE SE Reconhecer a sua dependên-
cia epistémica pode, igualmente,
PENSAVA DETERMINADO ASSUNTO. PORTANTO, O MELHOR tornar um debate mais rico. Num
artigo de 2013, Peter Sloman es-
É PERGUNTAR – MESMO PERGUNTAS IDIOTAS tudou o papel da “ilusão da ex-
dos coautores do artigo nunca pôs os pés Esta ilusão assenta, sem dúvida, naquilo plicação profunda” na polarização política.
em nenhuma das instalações do obser- a que Steven Sloman chama “compreensão Cidadãos norte-americanos começaram
vatório, visto o seu papel não o exigir. E por contágio”. Noutra série de experiências, por avaliar a sua compreensão – e aprova-
frisa que, para justificar os resultados do os participantes foram divididos em três ção – das políticas de saúde e fiscais, assim
observatório, uma pessoa deveria dominar grupos, a quem foram dadas informações como outros dossiers sensíveis. Depois,
diversos aspetos da Física, da Astronomia, diferentes sobre um fenómeno natural fic- tinham de explicar os pormenores dessas
da Eletrónica e da Engenharia Mecânica. tício, como rochas fosforescentes. O inves- políticas. Ao longo do exercício, quanto
“Existirá no mundo uma única pessoa que tigador garantiu ao primeiro grupo que os mais aumentava a sensação de não as com-
Lembra-se, decerto, que há poucos meses, tanto em França o professor Didier Raoult, que afirmou as suas verdades sem
como em diversos países asiáticos, a uso da máscara não era nunca emitir qualquer dúvida, é disso exemplo acabado. “Pode ser
recomendado para todos. A mensagem inicial da Organização tentador, em tempos de crise, oferecer certezas apenas – mas, por
Mundial da Saúde (OMS) frisava apenas a necessidade da definição, um perito tem a obrigação de saber em que momento
máscara em ambientes médicos, onde os pacientes infetados confessar dúvidas, além de dever ter plena consciência da natureza
podiam tossir diretamente ou perto do pessoal de saúde. transitória dos nossos conhecimentos”, continuam os dois autores.
Nessa altura, sabia-se muito pouco sobre este novo vírus, e os Para Roxanne Khamsi, jornalista da WIRED, o problema prende-se
peritos pensavam que se comportaria de forma semelhante ao mais com o facto de as decisões – recolher obrigatório, duração
da gripe. Estávamos ainda muito longe do consenso sobre os da quarentena, distância de segurança, etc. – serem apresentadas
aerossóis que emitimos quando respiramos, o que levou a OMS, como baseadas em provas científicas sólidas que raramente são
desde então, a considerar que “o uso da máscara faz parte das divulgadas. E acrescenta: na primavera, já havia cerca de quatro mil
medidas essenciais para travar a transmissão e salvar vidas”. publicações sobre a Covid-19 por semana, e os próprios cientistas
Mas estas reviravoltas nos discursos das autoridades públicas andavam um pouco perdidos com tanta informação. Em que se
lançaram a confusão e minaram a confiança que a população nelas basearam, então, as autoridades para tomar as suas decisões?
depositava. “Quando as autoridades de saúde apresentam norma atrás de
“O principal problema decorre do ar de segurança com que foram norma, sem justificação clara e científica, esses conselhos acabam
anunciadas decisões inoportunas”, consideram Stuart Ritchie, por parecer arbitrários e voláteis. Isso corrói a confiança do público
psicólogo, e Michael Story, cocriador de uma aplicação que e torna mais difícil a aplicação de regras que fazem sentido – para
ajuda a tomar decisões, num artigo que ambos assinaram no site esta pandemia e para qualquer assunto relacionado com saúde
UNHERD. “Quando se toma determinada decisão sem referir as pública no futuro.”
necessárias reservas, torna-se muito difícil, ao mudar a situação, Acresce que a retirada hipermediatizada de estudos publicados em
recuar sem perder a face.” duas das mais conceituadas revistas médicas mundiais, em junho,
Para estes autores, a crise de confiança que atravessamos é também terá tido impacto na confiança do público na Ciência.
da responsabilidade dos próprios peritos, que não souberam Para o THE GUARDIAN, “poderá ser extremamente prejudicial num
comunicar as incertezas e asassu
sumi
mirr a su
assumir suaa ig
igno
norâ
rânc
ncia
ia. Em FFra
ignorância. ranç
nçaa,
França, ambi
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ambientete em
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muititaa ge
muita gent
ntee já n
gente não
ão cco
o
confia nos cientistas”.
ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE JANEIRO 2021 - N.º 299 35
Ciência
O analfabetismo
estatístico
pode ser fatal
Somos bombardeados, há meses, com números e conceitos estatísticos
de todo o tipo. É imperioso que saibamos interpretá-los
36 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
Autor
Carlo Rovelli
É físico e filósofo da ciência, autor
de obras de divulgação científica
de sucesso internacional. Trabalha
atualmente no Centro de Física
Teórica de Luminy, em Marselha.
SETE PERGUNTAS
É SEGURA A
VACINA DA PFIZER
E DA BIONTECH?
O resultado provisório sobre a eficácia da vacina,
anunciado pelos dois laboratórios, é sensacional.
Mas ainda não podemos pôr de lado a máscara
REVISTA DE IMPRENSA
doenças e assegurar a eficácia nas mino- da Pfizer em particular –, demonstra clínico”, informa o site MEDICAL XPRESS.
rias mais afetadas, nomeadamente nos otimismo: “Mesmo uma vacina parcial- Estes dados são necessários para a EMA
Estados Unidos da América. mente eficaz pode ter um efeito signifi- redigir o parecer no qual se baseará
cativo durante uma pandemia.” a Comissão Europeia para poder dar
Quanto tempo dura a proteção? consentimento à comercialização da
“Será eficaz durante alguns meses, Qual é o calendário antes vacina.
como acontece com a vacina da gripe? da colocação no mercado Entretanto, a Pfizer e a sua associada
Ou, como nos casos da rubéola ou da da vacina da Pfizer/BioNTech? anunciaram que conseguiriam produzir
varíola, a imunidade será permanen- A fase III vai prosseguir, mas a Pfizer 50 milhões de doses da vacina em 2020 e
te?”, interroga, no WALL STREET JOURNAL, já anunciou que vai solicitar à FDA um máximo de 1,3 mil milhões de doses
Gregory Poland, diretor do grupo de autorização de utilização com caráter de em 2021. “Mas ainda não decidiu de que
investigação sobre vacinas da Mayo urgência por volta da terceira semana forma serão essas doses repartidas entre
Clinic. É ainda muito cedo para saber. de novembro. Nessa altura, os partici- países”, revela o BUSINESS INSIDER.
No entanto, no estado atual do conhe- pantes terão sido seguidos durante dois “E, se os investigadores quiserem
cimento sobre a resposta do sistema meses, em média, como exige a Agência consultar os dados relativos aos ensaios
imunitário ao SARS-CoV-2, é provável Americana dos Medicamentos. clínicos da vacina da Pfizer, serão ine-
que a proteção da vacina não se estenda Caso a autorização seja concedida, vitáveis alguns compromissos”, conclui
por muitos anos. esse procedimento permitirá acelerar a NATURE. “Neste momento, precisamos
“Se o ensaio durar ainda alguns me- o processo de homologação e, depois, a de uma vacina que funcione”, ainda que
ses, teremos oportunidade de responder produção. Do outro lado do Atlântico, possa não ser eficaz após alguns meses
a essa pergunta”, insiste, na NATURE, Rafi a Agência Europeia de Medicamentos ou não impeça a transmissão do vírus,
Ahmed, imunologista na Universidade (EMA) já recebeu informações da Pfizer/ salienta Florian Krammer, que insiste:
Emory, em Atlanta. Será necessário BioNTech, que estão a ser analisadas, “Precisamos de uma vacina para voltar-
esperar para ter a certeza de que a pro- “mas não recebeu os dados do ensaio mos a uma vida normal.”
teção dura, pelo menos, alguns meses.
A INUTILIDADE
DE NOVAS
DESCOBERTAS
Para dar resposta aos grandes desafios contemporâneos como as alterações
climáticas ou as desigualdades, já não é necessária a Ciência, defende, à laia
de provocação, este físico polaco. Tanto mais que a Ciência atravessa
uma profunda crise de credibilidade, reconhecimento e governação
42 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
lares. Mesmo que algum dia conseguíssemos ninguém e nunca sairão da esfera científica.
descobrir uma vacina que impedisse, por E, mesmo nesta esfera, comunicar os resul-
exemplo, o desenvolvimento de determina- tados de modo a chegarem aos potenciais
dos tumores, bastaria que nas redes sociais Autor destinatários não é tão simples assim, tendo
alguém dissesse que provoca o autismo para em conta os 2,5 milhões de artigos científicos
dissuadir a população de a utilizar.
Desde 1980 não surgiu nenhuma família
Piotr Wasylczyk publicados todos os anos.
Conscientemente ou não, a grande
de antibióticos. Os novos tratamentos não É professor-investigador na área da maioria dos investigadores, em especial
passam de modificações de compostos co- Física na Universidade de Varsóvia no campo das ciências naturais, continua a
nhecidos, o que poderá provocar o apare- e na University College London, trabalhar seguindo o paradigma do alqui-
cimento de estirpes bacterianas totalmente Reino Unido. Especialista em mista que pensa que, graças à descoberta de
resistentes aos medicamentos e o regresso a lasers e em materiais e minirrobôs uma substância ou tecnologia, chegaremos
uma situação em que mesmo infeções benig- que reagem à luz, participa, na a um ponto de viragem que, se tudo correr
nas podem ter consequências muito graves. Polónia, em diversas iniciativas bem, mudará a vida de muitas pessoas. No
Fica bem patente, pelo exposto, a com- de divulgação dos resultados entanto, as experiências das últimas décadas
plexa articulação entre Ciência, indústria e da investigação e de difusão da mostram que nunca se conseguiu descobrir
política. As empresas farmacêuticas não estão Ciência. Este polémico texto a pedra filosofal que irá garantir a vida ou a
interessadas em investir na investigação de sobre a utilidade da Ciência e dos prosperidade eterna (ou, senão eterna, pelo
novos compostos; mesmo que fosse desco- investigadores suscitou inúmeras menos mais duradoura).
berto um superantibiótico, as autoridades reações na comunidade científica. As descobertas da natureza da luz, dos
poderiam preferir não o colocar no mercado, eletrões e da estrutura atómica da matéria
conservando-o antes como arma de último lançaram os fundamentos da eletrónica, dos
recurso. bem como sobre as condições necessárias lasers e dos computadores. A compreensão
para que os jovens tenham prazer em apren- dos mecanismos da vida das células permitiu
Conclusões injustificadas der e desenvolver as áreas da sua predileção. perceber as causas de numerosas doenças
Da fase da investigação até às consequências Todavia, as escolas e universidades parecem e encontrar meios de as tratar. Parece que
nas práticas sociais, passando pela inter- não ter mudado um milímetro em 100 anos hoje, por hábito, continuamos a acreditar
pretação e a comunicação dos resultados, e nem sempre formam pessoas responsáveis, que esta época fantástica prosseguirá.
a nutrição é bem elucidativa do fracasso da empáticas e com capacidade para pensar de É difícil prever (sobretudo o futuro…),
Ciência, como se vê pela epidemia de obesi- forma autónoma. mas parece que a descoberta da massa do
dade que afeta praticamente todos os países bosão de Higgs, a compreensão da evolução
do mundo. As recomendações alimentares Bolha isolada? dos buracos negros e a formulação de uma
começaram a ser publicadas nos EUA nas Qual é, então, o verdadeiro impacto na vida teoria das cordas coerente não terão qualquer
décadas de 1950 e 1960 em resposta ao súbito real das centenas de milhares de publicações impacto sobre as nossas vidas. Talvez o perío-
aumento, observado após a Segunda Guerra produzidas por universidades e centros de do da História da nossa civilização em que a
Mundial, de mortes causadas por doenças investigação de todo o mundo nos domínios Ciência contribuiu para melhorar as nossas
cardiovasculares. Um novo exame dos re- da pedagogia e das ciências da educação? Po- vidas e nos tornou mais humanos graças à
sultados de experiências da época revelou, dem as descobertas existir numa bolha isolada descoberta de determinados fenómenos da
porém, uma série de práticas duvidosas. da realidade das sociedades que financiam Natureza esteja a acabar.
Verificaram-se diversos casos de con- os investigadores? Claro que, com dinheiro, As taxas de mortalidade dos recém-nas-
clusões injustificadas e interpretadas de tempo e métodos cada vez mais aperfeiçoados cidos, após as quedas impressionantes que
modo arbitrário, por exemplo, ignorando é sempre possível colocar questões e procu- precederam o final do século XX, estagnaram
os resultados que não correspondiam às hi- rar respostas; mas acontece que, na maioria nos últimos 20 anos nos países desenvolvi-
póteses iniciais, como na relação esperada dos casos, essas respostas não interessam a dos [à escala mundial os números diferem:
entre consumo de ácidos gordos saturados segundo a Organização Mundial da Saúde,
e doenças cardiovasculares. a taxa de mortalidade até aos 5 anos baixou
Esta prática, a que veio associar-se o lóbi ... 59%, entre 1990 e 2019]. É verdade que a
dos produtores alimentares, nomeadamente esperança de vida ainda está a crescer de
de carne de bovino, conduziu à formulação Parece que os cientistas forma linear, mas tomámos consciência da
de recomendações em muitos pontos con- importância da qualidade de vida, para além
trárias ao conhecimento contemporâneo
deixaram aos políticos e da sua duração. O que acontecerá se, um
da fisiologia humana. Não obstante, foram às multinacionais o poder dia, a esperança de vida atingir os 200 anos
inscritas nos manuais de formação dos futu- de decidir o destino do e o número de pessoas que necessitam de
ros médicos. Entraram, também, na cultura cuidados permanentes for muito superior
de massa – “Não ponhas muita manteiga na mundo, como se o seu ao dos efetivos com capacidade para prestar
torrada ou as tuas artérias vão ficar entupidas papel se limitasse a fornecer esses cuidados?
pelo colesterol” – e influenciam os compor-
tamentos quotidianos de milhões e milhões
os brinquedos: armas Crise de credibilidade
de pessoas em todo o mundo. cada vez mais sofisticadas, Cada vez mais investigadores estão alerta-
No âmbito da pedagogia, é cada vez maior sistemas informáticos dos para as crises da Ciência, neste início
o nosso conhecimento sobre o desenvolvi- do século XXI.
mento intelectual, emocional e social dos
que permitem controlar Primeira crise: a da credibilidade. Não
seres humanos, em particular na infância, as sociedades conseguimos apresentar de forma convin-
cente os nossos argumentos em debates Máquina administrativa orientador passava dias inteiros no labora-
sobre as vacinas, as alterações climáticas A terceira crise é a da governação, com gran- tório a ensinar-me a fazer ajustes. Hoje, uma
ou a alimentação. Não existe, hoje, uma de responsabilidade nas outras duas. Para relação deste tipo tornou-se praticamente
ciência única. Se falarmos a um colega de aqueles que ainda imaginam os cientistas impossível, visto os professores estarem de-
investigações que comprovam os efeitos como uns excêntricos alheados da vida quo- masiado ocupados a preparar pedidos de
das emissões de gases com efeito de estufa tidiana, de bata branca e com os cabelos em financiamento, a elaborar relatórios e nas
sobre o clima, poderemos ouvir que tam- pé, bastariam uns poucos dias numa univer- suas funções como membros de comissões
bém existem investigadores que pensam o sidade ou num instituto de investigação para de avaliação.
contrário [e, todavia, há consenso sobre o se desenganarem. Os cientistas passam horas Ao mesmo tempo, o culto do crescimento
assunto: já em 2013, um artigo publicado no a lutar contra uma máquina administrativa obriga as universidades a solicitarem cada
Environmental Research Letters mostrava cujos braços penetram em todas as etapas vez mais financiamentos para disporem de
que 97% dos 11 944 artigos científicos pu- do trabalho de investigação. mais recursos e mais pessoal. Há, portan-
blicados entre 1991 e 2011 concluíam que o A governação tecnocrática tem ainda to, em todo o mundo, uma enorme procura
aquecimento climático existe na realidade e mais impacto nas decisões tomadas quoti- de investigadores, em especial em início de
é de origem humana]. Até hoje, pensávamos dianamente pelos investigadores. Já que as carreira, que é parcialmente preenchida por
que a verdade (tal como a entendemos em instituições, e os próprios investigadores, jovens chineses e indianos.
termos científicos) se defendia por si só. Ora são avaliados com base no número de artigos Por outro lado, abrem-se oportunidades
já não é assim, sobretudo perante aqueles que publicados, quais os assuntos e problemas para fazer coisas interessantes e viver aven-
têm interesse em que ela não seja defendida. que vale a pena desenvolver para maximizar a turas intelectuais. Para construir foguetões
Também perdemos a influência que tí- avaliação? Só um louco escolheria enveredar já não é indispensável trabalhar num orga-
nhamos no mundo. Alguns investigadores li- por um projeto arriscado que, ao fim de al- nismo público como a NASA ou a Agência
gados ao projeto Manhattan, Espacial Europeia, já existe
relativo ao aperfeiçoamento a empresa SpaceX. No meu
da primeira bomba atómi- Os brasileiros são os mais céticos domínio, a ótica e os lasers,
ca, passaram parte da vida a A confiança do público nos cientistas (em % dos entrevistados)
o próprio Facebook já está
ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE JANEIRO 2021 - N.º 299 45
Os bravos
das vacinas
HÁ QUATRO DÉCADAS, A VARÍOLA FOI DECLARADA ERRADICADA PELA
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, APÓS UMA INTENSA CAMPANHA
DE VACINAÇÃO QUE CHEGOU ÀS ZONAS MAIS REMOTAS DO MUNDO.
UMA LIÇÃO PARA O COMBATE À ATUAL PANDEMIA?
F O T O S W H O
Marcha de apoio à
vacinação em 1963,
em Nova Deli, Índia
FOTO: WHO
O programa de erradicação da
varíola da OMS no Afeganistão
envolveu quatro equipas, cada
uma responsável por uma zona
geográfica, que cobriram o país,
inoculando os habitantes das
cidades, mas também os das
aldeias mais remotas e as tribos
nómadas. O equipamento foi
fornecido pela OMS, a vacina
produzida na União Soviética
e as equipas criadas pelo
governo afegão. Em 1970, quase
quatro milhões de afegãos
foram vacinados e a varíola foi
erradicada no território
FOTO: WHO / PAUL ALMASY
JANEIRO 2021 - N.º 299 51
Em alguns países africanos,
a vacinação da varíola foi
acompanhada, em 1970, da vacina
BCG, contra a tuberculose
FOTO: WHO
Q
viam deixar no solo, para sempre, grande
parte das reservas. Frisam também a ne-
cessidade de proteger os seus acionistas,
preparando-se para um endurecimento
das políticas ambientais.
BP dá o exemplo
A BP é a figura de proa desta conversão
a toda a brida. A companhia britânica
anunciou que ia multiplicar por dez os
seus investimentos nas atividades com
baixas emissões nos próximos dez anos,
à razão de 4,2 mil milhões de euros anuais,
reduzindo ao mesmo tempo em 40 % a
sua produção de gás e petróleo. A anglo-
-neerlandesa Royal Dutch Shell, a italiana
Quando as cotações do petróleo estão em vos do Acordo de Paris e, logo, de conter Eni, a francesa Total, a espanhola Repsol e
queda e cresce o receio das alterações o aumento das temperaturas mundiais a norueguesa Equinor estabeleceram ob-
climáticas, a BP, a Royal Dutch Shell e abaixo de 2 °C relativamente aos níveis jetivos da mesma ordem. Algumas destas
outras empresas europeias vendem ao da era pré-industrial. companhias reduziram os dividendos para
desbarato as suas reservas, tentam re- investir nas novas energias.
duzir drasticamente as emissões e in- Ameaça climática Já no final dos anos 90 e inícios de 2000,
vestem biliões nas energias renováveis. As grandes empresas de petróleo e gás eu- sob a direção do diretor-executivo de en-
Já a Chevron e ExxonMobil seguem uma ropeias e norte-americanas reconhecem tão, John Browne [apresentou a demissão
orientação totalmente diferente. Os dois publicamente que as alterações climáticas em 2007], a BP tinha avançado no sentido
gigantes americanos apostam duplamente constituem uma ameaça e que lhes cabe um da transição; no entanto, os resultados do
no petróleo e no gás natural, e só a conta- papel importante numa transição energética setor das renováveis foram desanimadores
-gotas investem em projetos inovadores cuja amplitude é comparável à Revolução e a companhia acabou por deixar cair o
que permitam reduzir as emissões – por Industrial. Em contrapartida, os ritmos que slogan “Beyond Petroleum” [“Para lá do
exemplo, centrais nucleares de pequena escolheram para transformar as suas ope- petróleo”]. Hoje, a situação é diferente.
dimensão e dispositivos de captura do rações não poderiam ser mais diferentes. Segundo John Browne, o Acordo de Paris
dióxido de carbono da atmosfera. “Não obstante o aumento das emissões marcou uma viragem, o modelo económi-
Por aqui percebemos as profundas e a pressão da opinião pública para com- co das energias renováveis é mais sólido e
diferenças na forma como a Europa e os bater as alterações climáticas, as grandes os investidores exercem mais pressão. Em
Estados Unidos da América abordam as companhias petrolíferas americanas apos- setembro, a BP e a Equinor anunciaram
alterações climáticas, ameaça planetária tam no gás e no petróleo a longo prazo, uma parceria no sentido de implantar
que, segundo grande parte dos investi- enquanto as suas concorrentes europeias e explorar parques eólicos ao longo das
gadores, contribui para a frequência e a privilegiam um futuro elétrico”, resume costas de Nova Iorque e do Massachusetts.
gravidade de catástrofes como os incêndios David Goldwyn, ex-coordenador para os Do ponto de vista dos diretores das
florestais e os furacões. Enquanto os diri- assuntos energéticos internacionais do companhias norte-americanas, passar às
gentes europeus dão prioridade absoluta ao Departamento de Estado no mandato de energias renováveis seria de loucos. Trata-
combate às alterações climáticas, Donald Barack Obama. -se de um setor pouco rentável que, na sua
Trump fala de “embuste”. Para os ecologistas, e até para alguns opinião, deve ser reservado às empresas
Numa altura em que os governos têm investidores de Wall Street, os gigantes públicas e aos fornecedores de energias
dificuldade em adotar políticas climáticas norte-americanos fizeram, claramente, alternativas. Pensam, aliás, que os preços
eficazes e coordenadas, as escolhas das a escolha errada. Em agosto, a Storebrand do gás e do petróleo vão subir à medida
empresas petrolíferas – com a sua situa- Asset Management, a mais importante so- que a pandemia da Covid-19 enfraquecer.
ção financeira robusta, a sua competência ciedade de gestão de ativos da Noruega, Para já, a Exxon e a Chevron vão con-
técnica, a sua experiência na gestão de desvinculou-se da ExxonMobil e da Che- tinuar a fazer aquilo em que são mestres:
grandes projetos de engenharia e o seu vron. O próprio Larry Fink, dono da Bla- perfuração de xisto na bacia do pérmico no
poder de lobbying – podem pesar no prato ckRock, número um à escala mundial na Texas e no Novo México, extração offshore
da balança. Das suas opções vai depender gestão de ativos, considerou as alterações em águas profundas e comercialização de
a nossa capacidade de atingir os objeti- climáticas um “fator determinante para gás natural. Neste momento, inclusiva-
mente, a Chevron está em vias de adquirir
uma empresa de menor dimensão, a Noble
AUTORA DATA TRADUTORA Energy, para aumentar as suas reservas.
F Clifford Krauss 22.09.2020 Ana Caldas “A nossa estratégia não passa por se-
guir os europeus”, confirma Daniel Droog,
Como produzir hidrogénio O código de cores permite identificar o modo de produção do hidrogênio
FONTE : BLOGUE DE CÉDRIC PHILIBERT (Centro de Energa & Clima de Ifrite, autor de
Aqui estão alguns dos processos para gerar este gás e sua natureza mais ou menos ecológica (verde)
CH O O H CH
CO 2 Oxigénio O Hidrogénio H
Vapor Água H O Hidrogénio H
de água H O Hidrogénio H Carbono
“Perspectives d’une stratégie hydrogène pour l’Union Européenne”
sólido C
Eletrólise
Termólise Pirólise
recordar que existem diversas centrais nu- O setor do hidrogénio apresenta ou- África
Frigorífico
cleares e a energia que produzem é das mais tra vantagem para a Rússia: a produção
baratas. Acontece, porém, que a energia e exportação deste gás criariam um estí-
nuclear não é muito bem vista na UE. A mulo adicional para o desenvolvimento da
a energia
Alemanha, por exemplo, está a pensar re- rede de transporte de gás e, em particular,
nunciar totalmente à produção de energia para a construção do gasoduto mártir Nord
nuclear até 2022, e o lóbi ecologista condena Stream II. “Suponha que propomos à Euro-
solar
com veemência o hidrogénio “nuclear”. pa utilizar essa rede para o transporte não
O hidrogénio “azul” é produzido a só de gás natural mas também da mistu-
partir do metano; este constitui, em si ra metano e hidrogénio. Isso respeitaria
mesmo, uma componente do gás natural, o espírito do Pacto Ecológico Europeu e
numa percentagem que varia entre 70% e talvez permitisse reduzir a desconfiança
98%. Do ponto de vista económico, tudo dos reguladores europeus relativamente A Youmma propõe, em regime
parece perfeito: o chamado processo de ao projeto”, acrescenta Alexeï Gromov. de locação com opção de compra,
reforma a vapor é muito menos oneroso do Tanto mais que os gasodutos modernos, um frigorífico destinado a quem
que a eletrólise e consome bastante menos como o Turkish Stream ou o Nord Stream, não tem acesso à rede elétrica.
energia. Ponto negativo: emite dióxido de permitem adicionar ao gás natural até 20%
Os pagamentos são feitos por
carbono [um gás com efeito de estufa] o de hidrogénio do volume total de gás que
que é contrário à neutralidade climática, circula na conduta. Alguns meios de co- smartphone
razão de ser do entusiasmo pelo hidrogé- municação citam fontes da Gazprom que
nio. É possível resolver parcialmente este afirmam que seria possível aumentar até CNN ATLANTA
problema com a ajuda de um dispositivo 70% a quota-parte de hidrogénio nas con-
que capta o CO2, mas não passa de uma dutas do gasoduto Nord Stream.
resposta parcial, já que as tecnologias de Peritos há que consideram o transpor-
armazenamento subterrâneo de CO2 [a te da mistura de metano e hidrogénio um
grande escala] ainda não estão afinadas. método fiável e que já provou ser seguro.
Acresce que a utilização das tubagens para
Europa obrigada a comprar o hidrogénio poderia dar resposta a um Sob o sol escaldante da Áfri-
A Gazprom apresenta outra solução, de-
fendida pelos seus representantes em de-
problema ecológico: atualmente, a UE pro-
move uma campanha contra as emissões S ca subsariana é praticamente
impossível conservar produ-
clarações e entrevistas: um novo método de metano, cujo papel para o aquecimento tos frescos sem refrigeração.
de produção de hidrogénio sem emissões climático seria mais significativo do que o O problema é pôr a funcionar frigoríficos
de CO2. Trata-se da dissociação térmica do CO2. Logo, a redução da percentagem de numa região onde cerca de 600 milhões
(termólise) do metano sem oxigénio, deste metano nas tubagens permitiria, simulta- de pessoas vivem sem rede elétrica.
modo formando hidrogénio e carbono só- neamente, reduzir as emissões poluentes. É aqui que entra em cena a Youmma.
lido sob a forma de fuligem, que pode ser Todavia, há que levar em consideração Esta empresa brasileira desenvolveu um
recolhida e utilizada como matéria-prima também os argumentos contra. Constantin frigorífico solar associado a um sistema
noutras indústrias. A empresa monopolis- Simonov frisa que “transportar hidrogénio de pré-pagamento que seduz numero-
ta estaria há vários anos a trabalhar nesta ou metano não é a mesma coisa. É tecni- sas pequenas empresas. Na realidade, um
via, a solo mas também em parceria com camente possível, mas para isso impõe-se frigorífico permite reduzir o desperdício
empresas europeias, em particular alemãs. modificar o projeto. Careceria de novas ne- alimentar, armazenar medicamentos em
Até lá, queira ou não queira, a Europa gociações e autorizações, e iríamos ouvir boas condições e, no caso de lojas, con-
vai ter de comprar hidrogénio. Os seus argumentos como ‘Mas porque terá este servar os produtos frescos durante mais
recursos em energias renováveis são in- gasoduto de passar pelo mar Báltico? E se tempo, explica André Morriesen, respon-
suficientes para produzir as quantidades explode?’ É que até hoje não se construiu sável pela investigação e desenvolvimento
de gás necessárias, e será difícil, a curto nada de semelhante…”. na Nidec Global Appliance, empresa-mãe
prazo, colmatar esse défice. “A UE sabe que Mantém-se a dúvida: quem garantirá da Youmma. Dos quase dois mil frigoríficos
é necessária uma ou duas décadas”, explica a produção de hidrogénio a partir do gás vendidos desde o lançamento da Youmma,
Alexeï Gromov, diretor do departamento russo? Em Bruxelas prevalece o princípio em 2019, aproximadamente 80% desti-
das energias do Instituto das Finanças e da de que o combustível deve ser produzido o navam-se a pequenas empresas, precisa.
Energia. “Até 2040, para desenvolver ener- mais perto possível do consumidor. Então, O sistema de refrigeração deste pe-
gia a hidrogénio, os europeus dependem se os fornecedores de tecnologia e os pro- queno frigorífico de 100 litros foi conce-
essencialmente das importações.” dutores de hidrogénio são todos europeus, bido para utilização sem
Esta dependência é um maná para as a Rússia ficará, mais uma vez, relegada para rede elétrica. Segundo a F
empresas russas que poderiam, ainda que o papel de “bomba de combustível”. Nidec, consome um quar-
temporariamente, inscrever-se no movi- Obviamente, o Kremlin tem outras am- to da eletricidade de um
AUTOR
mento da inovação energética e tornar-se bições. O roteiro apresentado ao governo frigorífico normal, o que Nell Lewis
fornecedores de hidrogénio ou de maté- prevê garantir as capacidades de produ- significa que pode ser
ria-prima para a sua produção. Talvez até ção de hidrogénio e o desenvolvimento de alimentado através de
DATA
se pudesse, como propõe Alexeï Gromov, tecnologias limpas: motores a hidrogénio, um pequeno painel so- 16.10.2020
renovar as relações entre a Europa e a Rússia transportes públicos movidos a hidrogé- lar ligado a uma bateria,
no setor energético para as duas ou mesmo nio, etc. O objetivo é criar todo um setor deste modo reduzindo os TRADUTORA
três próximas décadas. destinado, também, ao mercado interno. custos. A bateria permite Ana Caldas
A
Nisto, são “um reflexo da história
colonial e do apartheid”, uma época em
que as espécies estrangeiras − bem como
os povos − eram consideradas superio-
res, diz Adelaide Chokoe, uma arbori-
cultora do município de Joanesburgo. No
início dos anos 2000, o governo sul-
-africano proibiu mesmo a plantação de
novos jacarandás nas cidades, alertando
para o perigo que esta espécie invasora
representava para a flora local.
A autorização destas árvores tam-
bém há muito que põe em evidência
as desigualdades sociais. Os outrora
subúrbios brancos de Joanesburgo têm
tantas árvores e espaços verdes que a
cidade é muitas vezes descrita como “a
maior floresta urbana feita pelo Homem”
A primeira vez que testemunhei a flo- didos.” Numa outra, uma jovem mulher (um título que pode ser contestado pelos
ração dos jacarandás em Joanesburgo aparece em frente de jacarandás numa especialistas, mas na verdade a Natureza
coincidiu com uma revolução. Estáva- nuvem de pó e gás lacrimogéneo. “Des- nesta cidade ocupa um lugar impressio-
mos em outubro de 2015 e, enquanto os culpe o incómodo”, diz o seu cartaz. nante). Entre outubro e novembro, as
jacarandás espalhavam os seus longos “Estamos a tentar mudar o mundo.” flores de jacarandás enchem de manchas
ramos carregados de panículas azuis, os Os jacarandás têm sido sempre azuis e violeta as copas destes bairros.
estudantes manifestavam-se no campus símbolos excelentes. A sua floração é tão Comparem com os bairros de lata da
de Witwatersrand, a maior universidade espetacular como breve. As suas flores periferia, onde a maioria dos habitantes
da cidade, para protestar contra o forte duram apenas algumas semanas, antes − negros − viviam isolados, e não verão
aumento das propinas. Em poucos dias, de a primavera dar lugar ao implacável muitas árvores. Adelaide Chokoe, por
o que começou como uma revolta de verão do hemisfério sul e o ano chegar exemplo, cresceu não muito longe de
alguns milhares de estudantes tinha- ao fim. É também por esta razão que, na Pretória, onde existem mais de 50 000
-se tornado uma mobilização nacional. maior parte da África Oriental e Austral, jacarandás. Mas ela não desfrutou muito
Passara quase um quarto de século desde os estudantes associam estas flores ao deles porque, “com o apartheid, foi dada
que o apartheid fora abolido na África do tempo de exames. De acordo com um prioridade aos bairros brancos para a
Sul, então porque é que as desigualdades ditado sul-africano, se o jacarandá esti- plantação de árvores”. Chegada à idade
se tinham agravado?, perguntavam os ver em flor e ainda não tiveres começado adulta, ela nunca esqueceu esta diferen-
manifestantes. a estudar, lamento, mas vais falhar nos ça. “Quando se vive com estas discre-
Alguns dias mais tarde, todas as exames. pâncias, quando se vê quem tem acesso
grandes universidades do país tinham aos espaços verdes e aos parques e quem
cessado as suas atividades. Numa ma- Símbolo da Natureza não tem, diz-se a si próprio que também
nhã da semana seguinte, juntei-me ao Em 2020, os jacarandás adquirem uma se quer mudar tudo isso.”
desfile dos jovens manifestantes que nova forma de simbolismo. Embora Em 2014, o governo sul-africano
marchavam sob um calor escaldante nas tenhamos vivido muito deste ano petri- voltou atrás na proibição de plantar
largas avenidas rodeadas de jacarandás ficados, estas flores lembram-nos de que novos jacarandás. Em termos de espécie
que conduzem aos Union Buildings, a a Natureza nunca se detém. “Isto lem- não nativa, estas árvores têm a vantagem
sede do governo, em Pretória. Tinham- bra-nos que há uma época para tudo”, de não exigir demasiada manutenção e
-se reunido para exigir ao Presidente diz Laurice Taitz-Buntman, editora do são na realidade relativamente inofen-
Zuma que parasse com os aumentos das guia Johannesburg In Your Pocket, que sivas (desde que sejam plantadas longe
propinas escolares a nível nacional. E ele realiza um concurso anual de fotogra- de qualquer massa de água). No verão,
cedeu. fia sobre o tema dos jacarandás. “Estas os seus longos ramos fornecem áreas de
Olhando para as minhas fotografias, árvores estavam lá em 2019, e estarão lá sombra e no inverno deixam filtrar a luz.
reparei que muitas delas tinham jaca- em 2021.” “Não hesito em dizer aos meus
randás ao fundo. Uma foto mostra uma À imagem dos colonos britânicos compatriotas que cada um de nós está
mulher com óculos de sol redondos, em que os plantaram por todo o seu império tão intimamente ligado à terra deste belo
pé, diante de um jacarandá florido, com colonial em África, os jacarandás vêm do país como o estão os célebres jacarandás
um cartaz na mão que diz: “Fomos ven- estrangeiro, e nem sempre foram bem- de Pretória”, disse o Presidente Nelson
Mandela no seu discurso de tomada
de posse em 1994. E pouco importa se,
AUTORA DATA TRADUTORA tecnicamente, ele fazia referência a uma
F Ryan Lenora Brown 03.11.2020 Helena Araújo espécie importada − os jacarandás fazem
parte da identidade deste país.
Angola
Um adeus aos baobás
Uma silhueta emblemática de África, cas, que começaram há quatro anos com
a árvore baobá está a morrer. “Adeus, o aparecimento de cabanas e barracas,
baobás” foi a manchete do JORNAL DE AN- estão agora a dar lugar a construções de
GOLA no final de setembro, exibindo uma cimento”.
destas árvores gigantes e quase imortais. No JORNAL DE ANGOLA, um jornalista e
“Uma das árvores mais antigas do planeta, ensaísta angolano, Adebayo Vunge, ex-
cujos exemplares mais antigos podem ter pressa a sua “indignação” pelo desapare-
entre 1 100 e 2 500 anos, vê o seu futuro cimento “destas árvores milenares, sím-
cada vez mais ameaçado em Angola.” bolos da nossa identidade, profundamente
O “Santuário dos Baobabs”, uma enorme enraizadas na nossa cultura”: “Olhem,
reserva que foi criada perto da capital para isto não está a acontecer longe de casa,
salvar esta árvore, “está agora a sofrer de na Amazónia ou em qualquer outra parte
um abate sem precedentes” sob a pressão do mundo − o que merece igualmente
da expansão urbana. a nossa consternação. Ocorre aqui, na
A reserva está a ser devastada à medida nossa terra, diante dos nossos olhos e da
que as pessoas se mudam para cá. O nossa indiferença. Isto não é possível... Isto
diário explica que “as ocupações anárqui- não pode acontecer.”
Analisar o preço
Longe de pensar na ruína, os agricultores es-
peram que este ano o café lhes traga cerca de
nove mil milhões de pesos [mais de dois mil
milhões de euros], um número nunca antes
visto. Segundo Álvaro Jara-
millo, diretor-geral do Comité F
dos Produtores de Café de An-
tioquia, a produção nacional
AUTOR
deverá ultrapassar largamente Germán Izquierdo
os 14 milhões de sacos, e isto
pelo sexto ano consecutivo [no
DATA
final de outubro, a produção 25.09.2020
estabilizou nos 13,9 milhões
de sacos, uma queda de 2% TRADUTORA
em relação ao ano anterior]. Helena Araújo
Para analisar o preço do café, é neces- Realidades diferentes de quatro milhões de cafeeiros. No auge da
sário olhar para sul, ou seja, em direção ao Este ano, devido à Covid-19, foram insta- colheita, a empresa emprega 1 500 traba-
Brasil, o maior produtor mundial. O preço lados lavatórios e mangueiras para a lava- lhadores. Longe da principal zona de pro-
do grão colombiano depende, em grande gem das mãos. É necessário distanciamento dução de café, Sven Erik Alarik cultiva a sua
medida, das contingências do cultivo no social e preencher um registo à entrada de marca numa quinta em Moniquirá, no de-
grande vizinho. “Eles acabam de anunciar cada exploração. partamento de Boyacá [no Centro do país].
uma colheita histórica de 65 milhões de Se a colheita é melhor [na região de O seu pai sueco chegou à aldeia nos anos 70 e
sacos, o que não é bom para nós”, explica Antioquia], as realidades são diferentes de instalou-se lá definitivamente. Os produtos
Jaramillo. uma região da Colômbia para outra. Assim, Sven, vencedores do prémio do melhor café
Este ano, a grande colheita [de se- a cultura do café é rainha no departamen- de Boyacá em 2018, são classificados como
tembro a dezembro] está a acontecer em to de Antioquia: nos seus 125 municípios cafés premium [de qualidade superior].
circunstâncias especiais: a pandemia fez [cantões], 95 produzem as pequenas bagas No território de Boyacá vivem pequenos
subir os preços do café; a taxa de câmbio vermelhas. A sua produção chega ao segun- cultivadores que possuem uma média de
dólar/peso está a beneficiar os exportado- do lugar, a seguir à de Huíla [no Sul do país] 1,3 hectares, como 96% dos produtores de
res; e, finalmente, a procura mundial de que, ao contrário de outras regiões, tem café do país. Todas as semanas, Sven recebe
café aumentou 2,2% ao ano nos últimos duas colheitas do mesmo volume por ano. chamadas de agricultores que gostariam de
cinco anos, de acordo com a Organização Nas montanhas andinas de Caldas [a sul trabalhar na sua quinta. “Nas cidades da
Internacional do Café [que agrupa os prin- de Antioquia], no município de Chinchiná, região, há muitos desempregados, prontos
cipais produtores]. Na própria Colômbia, encontramos as colheitas de La Meseta, a a fazer qualquer tipo de trabalho no cam-
o consumo aumentou em três por cento. maior fazenda de café da Colômbia. Nos po”, explica. Sven combinou com outro
Os bons preços encheram de otimis- seus mais de 800 hectares crescem cerca agricultor a contratação de colhedores para
mo os produtores de café. Desde meados as duas quintas, para que possa haver mais
de setembro, as explorações não param. trabalho.
Os apanhadores móveis, que percorrem Apesar das crises – quedas de preços ou
o país após a colheita, chegam às estações doenças do cafeeiro –, o café continua a ser
de autocarros desde Sucre, Bolívar, Nariño ... um símbolo da Colômbia. Atualmente, mais
e outros locais onde o café não é colhido de 540 mil famílias vivem dele numa área
neste momento [a colheita estende-se ao Apesar das crises total de 853 mil hectares, distribuídos por
longo de todo o ano, segundo o clima das – queda de preços ou 23 departamentos. José Eliécer continua a
regiões no país]. acreditar no café, tal como fazia quando era
Dependendo da exploração, os produ- doenças do cafeeiro –, adolescente e usava os seus sapatos [do uni-
tores pagam-lhes entre 400 e 600 pesos o café continua a ser um forme] do colégio para participar nas colhei-
por quilo. Cada trabalhador agrícola colhe tas das quintas de outras pessoas. Quando lhe
uma média de 120 quilos. Os mais experien-
símbolo da Colômbia. perguntam se, em tempos difíceis, alguma
tes, os chamados “foguetes”, são capazes Atualmente, mais de 540 vez pensou em desistir, responde: “Nunca.
de colher 300 quilos de café num só dia. mil famílias vivem dele, Este trabalho é um verdadeiro compromisso.
Os colhedores dormem nas quintas, que Cada exploração de café que fecha significa
cobram entre oito mil e mil pesos [entre numa área total muitas pessoas que nunca mais conseguirão
1,8 e 3,6 euros] por noite e três refeições. de 853 mil hectares encontrar trabalho.”
Itália
...
Nas zonas montanhosas,
a apanha de cogumelos
é uma tradição secular,
mas foi só no século XX
que começou a gerar
rendimentos.
A necessidade de regular
o setor foi, portanto,
finalmente sentida
TREVOR
Q
sociedade racista ideal”.
“Lá, onde nasci e cresci, faziam-nos
acreditar que não tínhamos quaisquer
direitos”, continua Noah. “Lembro-me
de que, nós miúdos, adorávamos ver sé-
ries policiais norte-americanas em que
os polícias diziam: ‘Tem o direito de per-
manecer calado. Tudo o que disser pode
e será usado contra si em tribunal. Tem
o direito a um advogado.’ Adorávamos
repetir estas frases. No nosso país os po-
lícias não falavam assim.”
Noah pondera as palavras quando fala
de violência policial nos dias de hoje e nas
mortes trágicas de Breonna Taylor e George
Floyd. Em finais de maio, pouco depois da
morte de Floyd, o humorista publicou uma
Quando nos fala da questão racial nos EUA, – Vão-nos mandar parar. mensagem desiludida sobre a deterioração
Trevor Noah não se refere a George Floyd, – Como assim? Como é que sabes? das relações intercomunitárias, afirmando
Philando Castela ou Sandra Bland. Está a – Estou a perceber pela forma da con- que os acontecimentos recentes provavam
contar-nos a sua própria história, ou seja dução. Vão mandar-nos parar. que o suposto pacto social entre brancos
a de Noah, que sofre de insónias crónicas e – Tu estás é paranoico. e negros nos EUA era um embuste.
é impaciente por natureza. Durante horas – OK. “Pensem nas pessoas que pouco ou
percorre o Twitter, troca galhofas com os E é claro que nos fizeram sinal para nada têm e dizem: ‘Vou respeitar as regras
seus amigos sul-africanos no WhatsApp e parar.” do jogo, mesmo não tendo nada, porque
toma apontamentos para eventual utiliza- O agente inclinou-se para ver a carta de mesmo assim quero que a sociedade fun-
ção num qualquer episódio do Daily Show condução de Noah e os papéis do veículo. cione.’ Alguns membros desta sociedade,
[programa satírico de que é apresentador “Quando reparou no meu amigo, aquele nomeadamente os negros, continuam a ser
desde 2015 no canal Comedy Central]. grande homem branco parecido com o testemunhas de que o pacto que fizeram
Este comediante cuja imagem se trans- Clark Kent, ficou surpreendido e disse: com a sociedade não está a ser respei-
formou nos últimos meses – trocou o fato ‘Ah, OK. O que vão fazer esta noite? Para tado... Quando vemos George Floyd no
e a gravata por uma camisola com capuz onde vão?’ David disse qualquer coisa e chão, estamos a ver um homem a morrer.
e um corte afro – recebe-nos envergan- logo a seguir o polícia disse: ‘OK, boa-noite Ninguém merece morrer assim, sob a bota
do uma simples t-shirt preta e calças de meus senhores’.” E ficámos livres para de um homem que jurou respeitar a lei. É
ganga. E fala-nos de um encontro que teve seguir viagem. caso para perguntar de que pacto social
com a polícia há alguns anos. O seu amigo David estava estupefacto. ou contrato estamos a falar?”
“Quando cheguei aos EUA era cons- “Não queria acreditar. ‘Mas porque nos Esta diatribe de 18 minutos que foi vi-
tantemente mandado parar pela polícia”, mandaram parar?’ perguntava. ‘Não te sualizada mais de nove milhões de vezes no
explica, sentado em frente a uma webcam esqueceste de fazer pisca, não tens ne- YouTube foi filmada no seu apartamento
no seu apartamento de Nova Iorque, numa nhuma luz fundida?’” Noah ainda se ri em Hell’s Kitchen (em Nova Iorque). É
manhã de julho. “Nem sequer ligava muito ao relembrar a sua reação. “Eu não me aí que o humorista está confinado desde
ao assunto, sendo oriundo de um país onde senti minimamente indignado, nem irri- meados de março e faz a emissão do Daily
toda a gente está sempre a ser interpelada tado. Estava mais intrigado pelo facto de – Social Distancing – Show com a ajuda
pela polícia.” David, um amigo branco de o polícia me ter mandado seguir quando de uma centena de autores, editores, di-
Noah, é bastante mais cético em relação reparou em quem estava no banco do lado. retores, produtores e gráficos – também
à realidade deste racismo constante. “Ó A sua atitude mudou no mesmo instante. eles em confinamento.
meu! Tu já foste parado mais vezes nos E pensei: ‘Bem, isto é interessante.’” O humorista Stephen Colbert, que
últimos seis meses do que eu na vida “Uma das coisas boas do apartheid”, também começou a fazer emissões a partir
toda!”, brinca. acrescenta Noah a seguir, sem qualquer de casa para o seu Late Show, continua a
Um dia, David estava no Range Rover ironia, “é que não tínhamos qualquer ser o mais visto nesta categoria (segunda
de Noah, no lugar do pendura, à chegada a ilusão sobre a ausência de liberdade ou parte da emissão noturna) com, uma média
Pasadena. “Tínhamos um carro da polícia sobre a injustiça da situação. Se olhássemos de três milhões de espectadores, ou seja
atrás, conta Noah, e eu disse ao David: para as leis do apartheid conseguíamos mais um milhão do que Jimmy Fallow, na
NBC, ou Jimmy Kimmel, na ABC.
Durante a pandemia, Trevor Noah con-
AUTOR DATA TRADUTORA seguiu um feito impensável há alguns anos:
F Ron Stodghill 17.09.2020 Ana Marques fazer de um negro da geração Y, originário
R
AP ARTH EID É Q UE NÃ O TÍNHAMOS QUALQUE
DO
“UMA DAS COISAS BOAS U SO BR E A INJU ST IÇA DA SITUAÇÃO.
NCIA DE LIBERDAD E O
ILUSÃO SOBRE A AUSÊ D CO NS EG UÍAMOS PERCEBER QUE
ERAM
AS LEIS DO AP ARTH EI
SE OLHÁSSEMOS PARA DA HO LA ND A, UM PO UCO DA AUSTRÁLIA,
O
DIFERENTES: UM POUC
IMPORTADAS DE PAÍSES S JU NTAR AM TU DO E ACRESCENTARAM
S SUL-AFRICANO
UM POUCO DOS EUA. O CIED AD E RA CISTA IDEAL”, IRONIZA
RA CRIAR A SO
UM TOQUE PESSOAL PA
PODE
UMA SÉRIE
HISTÓRICA
IGNORAR
A VERDADE?
A quarta temporada da série The Crown, que retrata
a monarquia britânica durante o reinado de Isabel II,
é criticada por ter tomado demasiadas liberdades
em relação a factos históricos
SIM,
de fuligem – a menos que seja verdade, e nesse caso é simples-
mente fantástico! Também não acreditamos que ela tenha dito
à sua primeira-ministra para ir a casa mudar de roupa em plena
caçada. Sabemos muito bem que os seus diálogos não são trans-
crições de conversas reais e que esta série não é um documen-
PARA INTERESSAR tário. Certamente, alguns millennials apreciam os avisos, mas
OS MAIS NOVOS
The Daily Telegraph
não somos tão estúpidos a ponto de pedir que nos esclareçam
antes de cada episódio de que “todos estes acontecimentos não
Londres aconteceram realmente”.
Apesar de todas estas inexatidões, esta série consegue, bri-
lhantemente, deixar-nos curiosos sobre este período da História.
Inspirou-me a aprender muito mais. O que aconteceu realmen-
te no Domingo Sangrento? Quem foi Lord Mountbatten e que
P
influência teve ele sobre Carlos? Será que Margaret Thatcher
declarou realmente que não queria nenhuma mulher no seu
ara as gerações mais jovens que, como eu, estão a assistir à governo? E ela tinha realmente a voz rouca de uma mulher que
quarta temporada da série, o resultado não é tão catastrófico fumara 40 cigarros por dia desde os seis anos?
para a imagem da monarquia. O facto é que a maioria das pessoas É precisamente o facto de ter de destrinçar a realidade da
com menos de 30 anos não sabe muito sobre os membros mais ficção que torna as coisas interessantes. Portanto, sim, é lamen-
velhos da família real. Desde esta série, isso mudou do dia para tável que a série insista sobre a vida pessoal dos protagonistas
a noite e todos começaram a falar sobre os ocupantes do Palácio ao ponto de mal evocar o seu verdadeiro trabalho. E estou certo
de Buckingham. Graças à Netflix. de que alguns factos históricos foram desviados desnecessaria-
Tomemos o exemplo do príncipe Carlos, o nosso futuro rei. mente. Mas há alguns que fariam bem em não perder de vista
O que as pessoas da minha geração sabem sobre ele pode pro- o essencial – nomeadamente o autor de uma divertida carta ao
vavelmente ser contado pelos dedos de uma mão. Ele é filho da nosso jornal para quem “a representação das técnicas de pesca
Rainha, pai dos príncipes Guilherme e Harry, marido de Camilla do príncipe Carlos é absolutamente inadmissível”. O essencial
e ex-marido de Diana. E é dono de muitas colmeias. É espantoso resume-se a isto: a família real encontra-se manifestamente
– e tocante – descobrir que o seu tio-avô, Lord Mountbatten, num ponto crucial da sua história. Nós, os jovens, podemos ter
morreu num ataque do IRA (Exército Republicano Irlandês) [em apenas vagas memórias de Lady Di, mas temos acompanhado
1979] quando Charles era apenas um jovem. com interesse os últimos desenvolvimentos nas declarações
Cenas como estas fazem da série um espetáculo cativante. do príncipe André, o Megxit e a alegada disputa entre os dois
Mas elas também perturbam os idosos, que as veem como um irmãos [Guilherme e Harry]. Tal como no passado, os críticos da
atentado à História nacional, porque os jovens tendem a tomar família real encontrarão sem dúvida na série novas razões para
o que a série Netflix diz como verdade divina. Presos aos seus a odiar. Outros verão novas nuances e ficarão antes intrigados.
smartphones e incapazes de abrir um livro, os jovens simples- Ficaremos curiosos de saber mais sobre estas personagens
mente não sabem a diferença entre verdade e ficção! que desempenharam um papel tão importante na História e
É uma forma de condescendência intelectual e geracional identidade do nosso país, que conviveram com os primeiros-
Claro que não pensamos que a Rainha tenha realmente levado -ministros e se tornaram os guardiões da tradição e dos pro-
tocolos numa época de grande instabilidade sem, no entanto,
se tornarem celebridades de plástico. E, acima de tudo, que
enfrentam os mesmos problemas conjugais e familiares do co-
AUTORA dATA TRAdUTORA
F Ellen Lister 22.11.2020 Helena Araújo mum dos mortais. Quem sabe, até pode ser que comecemos a
achá-los simpáticos.
NÃO,
paganda. Como subentende Peter Morgan, o seu filme pode não ser
exato, mas pretende partilhar uma verdade profunda: a família real
foi desagradável com Diana e guardava-lhe rancor. Ser-nos-á dito em
breve que eles ordenaram a sua morte? Vamos assistir, como Oliver
Stone fez em JFK, à falsificação das circunstâncias da sua morte?
É DESINFORMAÇÃO
The Guardian
Todos sabemos que Shakespeare tomava certas liberdades com
a História. Os escritores continuam a tentar corrigir a sua inter-
Londres pretação fantasiosa, da qual Ricardo III sofreu particularmente. A
maioria dos romancistas históricos, nomeadamente Hilary Mantel,
Q
estão a tentar provar a sua versão dos factos. Tolstoi também aplicou
este método em Guerra e Paz. É aceite que a História distante teve
uando ligar a sua televisão esta noite, imagine a notícia tempo para pôr os seus assuntos em ordem.
não ser apresentada por um jornalista, mas interpretada É por isso que deve ser diferente para a História moderna, porque
por atores. Um sósia de Boris Johnson ataca furiosamente a sua ela está demasiado próxima do que deve permanecer sagrado – o
noiva, Carrie Symonds; Dominic Cummings vomita num caixote momento em que testemunhamos os acontecimentos. É impen-
do lixo; e alguém íntimo da Rainha desaparece. No final, a BBC sável que haja uma verdade para historiadores e jornalistas, que
explica que tudo isto é “inspirado na realidade” e diz esperar que fazem o trabalho preliminar, e outra verdade que é classificada de
tenha gostado. A série The Crown consagrada à realeza britânica liberdade artística.
é aplaudida pelas representações dos seus atores e ferozmente A mentira é muito mais interessante. Mas não tinha, no entanto,
criticada pelas suas imprecisões, quase todas elas depreciativas qualquer razão de ser, uma vez que existem muitas ocasiões – como
para pessoas vivas ou recentemente falecidas. A quarta tempo- mostra a interpretação de Helen Mirren – em que os membros da
rada, transmitida na Netflix, parece ter apostado na invenção e família real agiram mal. Peter Morgan poderia ter feito passar a sua
no ultraje. O seu escritor, Peter Morgan, admite-o: “Por vezes, mensagem sem se afastar da verdade.
é preciso renunciar à exatidão, mas nunca à verdade.” As leis sobre o respeito da vida privada, a difamação e a calúnia
Esta distinção parece perigosa. O retrato de Isabel II interpre- têm sido ampliadas ao longo do tempo, para proteger os indivíduos
tado por Helen Mirren em The Queen (2006) era pouco lisonjeiro, contra o aumento da vigilância e das intrusões. A maioria das pessoas
mas parecia uma reconstituição plausível do período da morte de apoia esta legislação e está a utilizá-la cada vez mais. The Crown
Diana. O ar rígido e amargurado de Olivia Colman [que interpreta tomou liberdades sabendo perfeitamente que os Windsor sempre
a Rainha nas temporadas de The Crown] assemelha-se mais a uma foram reticentes à ideia de recorrer à justiça. A liberdade artística
paródia, e mistura o verdadeiro e o falso. É tudo uma invenção. é, por isso, tão cobarde como descomplicada.
As palavras e as ações das pessoas vivas foram fabricadas para Desvirtuar a História significa enraizar a desinformação. Para
se adequarem a uma intriga que poderia ter sido escrita pelos as legiões de ciberguerreiros internacionais, a mentira é um desvio
admiradores mais fervorosos de Diana. legítimo. Para os provocadores e mentirosos, para os conspiradores
A família real é bastante capaz de se proteger e normalmen- de esquerda e os anti-Vaxx de direita, são represálias contra o poder.
te fá-lo. Mas não sei se posso dizer o mesmo da História, em Para documentaristas que acham os factos demasiado insípidos, não
particular da contemporânea. O mérito das séries dramáticas suficientemente esmagadores, a manipulação da História beneficia
documentais repousa inteiramente na sua veracidade. Temos de de um trunfo mágico: liberdade artística.
estar convencidos da sua exatidão, caso contrário é uma perda Quando chegar a vez da regulação das redes sociais, alguém
de tempo, não? irá conceber um sistema para enquadrar e contextualizar o acesso
aos ecrãs. Espero que consigamos escapar ao equivalente a uma
comissão de censura cinematográfica, mas são de facto necessárias
AUTOR dATA TRAdUTORA
F Simon Jenkins 17.11.2020 Helena Araújo regulamentações. Não é muito mais complicado do que colocar um
ícone no canto do nosso ecrã. Que se chamaria “F de ficção”.
Vida
Caminhar,
a grande evasão
Durante o confinamento, uma jornalista londrina encontrou um conforto
e uma alegria inesperados ao percorrer as ruas da sua cidade. Descobriu
que as virtudes da caminhada não se encontram apenas na zona rural
marcha é libertadora, escreve [o fícios das caminhadas urbanas. “[Andar] As excursões na cidade revelaram-se
Usar a cabeça
É possível aperfeiçoar a sua marcha para
melhorar a sua saúde mental? Sim, garante
Cooley. Ele propõe uma técnica chamada
5-4-3-2-1, para evitar que o turbilhão de
pensamentos impeça de tirar proveito do
conheci). Lugares que ela amava e que me Outro truque, acrescenta ele, é olhar passeio: ao caminhar, destaque cinco coi-
tinha ensinado a olhar e a compreender. para cima. Foi isso que o historiador de sas que vê, perceba quatro coisas (talvez
Mesmo nas ruas vazias, consolei-me ao arquitetura Alec Clifton-Taylor aconse- o vento na sua cara), ouça três sons, sinta
descobrir que o edifício Lloyd’s do arqui- lhou há 40 anos em Six English Towns, dois odores e um gosto. “É um exercício
teto Richard Rogers ainda se encontrava uma série de televisão que se tornou um muito rápido que liga os seus sentidos com
na Lime Street. Embora quase deserto, o clássico. Se olhar para o topo dos edifícios o mundo à sua volta”, explica. Se a nos-
Barbican [um centro cultural da City] es- e estudar tudo enquanto caminha, prova- sa vida é caótica, podemos voltar de um
tava tão forte e robusto como nunca. E se velmente sentirá mais alegria do que se se passeio e constatar que estávamos tão do-
gostava de caminhar sozinha, caminhar mover rapidamente com os olhos colados minados pelo stresse que apenas passámos
com amigos era o meu maior prazer. A ao chão”, explicava este incansável cami- de um ponto A para um ponto B... Tente
conversação vinha facilmente e, por um nhante urbano. envolver os seus sentidos [5-4-3-2-1] se
qualquer mecanismo, a sensação de avançar Os awe walks aceitam este conselho. for necessário, especialmente se os seus
levantava as minhas inibições. Esta moda recente surge na sequência de pensamentos estiverem virados para o
um estudo realizado por investigadores interior. Esta técnica permite evadir-se.”
Olhar para cima! da Universidade da Califórnia, em São De acordo com Summerton, uma
Claro que estava a mergulhar no passado, Francisco, que constatou que as pessoas das melhores formas de tirar o máximo
o que não é necessariamente mau quando que, ao caminhar, são confrontadas com partido de um passeio é acelerar o ritmo.
se lida com o luto ou com uma situação a “imensidão física” e a “novidade” – por “Sabe-se que se andarmos mais depressa,
de perigo de vida como uma pandemia, exemplo, frente a monumentos históricos ficamos melhor. Dizemos às pessoas que o
explica-me Nick Summerton. Clínico ge- ou edifícios imponentes – mudam a perce- Anjo da Morte anda a cerca de duas milhas
ral ligado à Ramblers Walkers Association, ção do seu lugar no mundo. “A ideia é que (3 km) por hora. Se conseguirem andar
recomenda procurar conforto em vestígios alguns passeios são bons para a mente. O mais depressa, é menos provável que ele
romanos como os que podem ser vistos no ‘uau!’ reflete que a caminhada traz algo de as apanhe.” A maior vantagem de andar
Barbican [com um vestígio de uma muralha magnífico”, explica Summerton. a pé – e a maior satisfação que ela pro-
nas proximidades] ou aqueles que estão Ora, os monumentos históricos e os porciona – é a sua simplicidade. Este ano,
integrados no tecido urbano das cidades de edifícios imponentes encontram-se ge- nós, os habitantes da cidade, aproveitámos
Chester ou York, por exemplo: “Os romanos ralmente no centro da cidade. O que fazer frequentemente o confinamento para nos
sofreram a peste antonina [com o nome da quando se está preso nos subúrbios e se aperfeiçoarmos; temos aprendido frene-
dinastia Antonina no século II d.C.]. Quan- precisa de uma solução rápida? ticamente línguas estrangeiras e a treinar
do se está nestes locais, pode-se meditar Além das excursões à City, fiz várias músculos, aparentemente incapazes de vi-
sobre o facto de uma civilização anterior vezes a Capital Ring Walk durante o ve- ver sem realizar algo. Caminhar é precisa-
ter passado por aqui – e ter sobrevivido.” rão. É um trilho completamente circular, mente o oposto. Ninguém ganha, ninguém
A propósito, Summerton observa que as sinalizado apenas por postes, que percorre fica melhor (exceto aqueles que recuperam
vendas dos Pensamentos de Marco Au- os subúrbios de Londres. Estou agora inti- a sua força física), e não há pressão para
rélio, um texto estoico escrito na altura, mamente familiarizada com o troço entre fazer algo mais complicado do que pôr um
aumentaram quase 30% nos primeiros Streatham, no sul, e Eltham no sudeste – pé à frente do outro. Andar a pé é a melhor
meses de 2020. uma sucessão de campos desportivos, es- forma de escape na cidade.
A CHINA JÁ GANHOU?
De Kishore Mahbubani
LG WING
O tão esperad
esperado LG Wing,
o mais recente smartphone
da empresa sulsu coreana,
já chegou a Portugal.
Po
Já disponível nas
n lojas
para que os
nacionais, par
consumidores portugueses
possam assim comprovar a
oferta diferenciada
diferenc
do primeiro equipamento
eq
CABEÇA DE TOIRO do Explorer Project,
Pr
BULL’S TEMPTATION a estratégia da marca
Reserva Tinto, é uma edição que vai dar novos
no horizontes
especial, pensada e dedicada aos à indústria de mobile.
apreciadores de carnes vermelhas.
Este vinho, da colheita de 2018,
é feito a partir das castas Syrah
e Alicante Bouschet.
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O
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FOOTWEAR é uma das melhores surpresas
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gosta de andar sempre confortável, revelando
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com as tendências atuais, os ténis
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H
PRESIDENTES DO ANO
A eleição da personalidade do ano tem
sido, ao longo de quase um século, um
dos momentos mais icónicos da revista
TIME. Em 2020, a distinção coube a Joe
Biden e Kamala Harris, o Presidente
e a vice-presidente eleitos, num dos
sufrágios mais conturbados de sempre,
mas que criou também um sinal de
esperança para os EUA e para o mundo.
Os inquilinos da Casa Branca têm sido,
naturalmente, muito representados na
galeria de personalidades do ano da TIME
– alguns mais do que uma vez, como
sucedeu com Franklin Delano Roosevelt,
Harry Truman, Lyndon Johnson, Ronald
Reagan e Bill Clinton
82 JANEIRO 2021 - N.º 299
EPAL e Bordallo Pinheiro
Na mesa dos portugueses
há mais de um século
jarro