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Janeiro 2021 NÚMERO 299 | MENSAL | €5 (Cont.)


VA M O S V O LTA R A C O N F I A R N A C I Ê N C I A ?

VAMOS VOLTAR
A CONFIAR NA CIÊNCIA?
Os cientistas viram a sua credibilidade questionada
com a pandemia, mas o mundo está agora dependente
do êxito das vacinas que eles desenvolveram.
Com uma certeza e uma lição para o futuro: o nosso saber
depende cada vez mais do saber dos outros
MIT TECHNOLOGY REVIEW, THE GUARDIAN, GAZETA WYBORCZA

DESAFIO ENERGIA TREVOR NOAH


A EUROPA FACE COMO “QUEREM FALAR
AO ISLAMISMO PREPARAR DE RACISMO?
Janeiro 2021

RADICAL O PÓS-PETRÓLEO FALEM COMIGO”


DER STANDARD, THE SPECTATOR, LIBERTÉ THE NEW YORK TIMES, PROFIL, CNN WSJ. MAGAZINE
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RETRATO

DUAS OPÇÕES ANGELA MERKEL


“Parece-me lógico
DE LEITURA DA REVISTA haver paridade
de género em todas
Pode escolher as áreas”
como prefere ler NESTA ENTREVISTA,
CÂNDIDA E EXCLUSIVA,
a edição mensal: A CHANCELER ALEMÃ FALA
SOBRE FEMINISMO, O SEU
em formato pdf, ESTATUTO DE MULHER
POLÍTICA E AS FRUSTRAÇÕES
DOS CIDADÃOS DA ANTIGA
com primazia RDA POR OS SEUS MÉRITOS
NÃO TEREM SIDO
para o grafismo, ou VALORIZADOS DEPOIS
DA REUNIFICAÇÃO

em formato de texto, É uma tarde de inverno, cinzenta mas


amena em Berlim Na noite anterior [15 de
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ao sétimo andar. Aqui se juntará a eles o

confortável dos artigos porta-voz do Governo,


over
À hora combinada,
ve
da quase
nada, qu
entramos no escritório
rit
Steffen Seibert.
ao segundo,
da chanceler.

ou caixas completos, Angela Merkel parece


calma, talvez um
are concentrada e
pouco tensa – não por
m po
causa da entrevista;
sta provavelmente
ro pelo

basta carregar. chumbo ao acordo do do Brexit


com a União Europeia].
B [negociado
op a]. Mas esta
entrevista irá centrar-se
-se sobretudo na
Pode escolher o corpo chanceler. Merkel convida-nos
sentarmo-nos a uma
nvid
ma longa
a
lon de mesa de
conferências, e serve-nos
no café.
ve-nos ca Fomos
de letra mais adaptável avisados de que a entrevista
ntrevis
ev
minutos. E 45 minutoss depois,
d
duraria 45
chegaria ao
fim.
ao seu gosto Die Zeit: Senhora chanceler, quando
anunciou
ou a intenção
ando
ção de abandonar a
presidência
esidên da União Democrata-Cristã
ta-Cr
(CDU),
DU) eu escrevi no Die Zeit [em outubro
CDU)
de 2018]
018] um
u artigo de despedida muito
NAVEGAÇÃO INTUITIVA pessoal
– no qual realçava, nomeadamente, quão
► Deslize para navegar importante foi a sua liderança para muitas
alemãs no Leste. Gosta de ser admirada
nesta perspetiva do Leste?
entre páginas < ANTERIOR 4 / 60 SEGUINTE >

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S SUMÁRIO
JANEIRO 2021
06 Fontes
08 Cartoons

10 Retrato
Maia Sandu
Olhar

46 Os bravos das vacinas


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12 O desafio democrático europeias preparam INFOGRAFIA: Álvaro Rosendo.
ANÁLISE a era pós-petróleo SECRETARIADO: Sofia Vicente (Direção), Teresa Rodrigues
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4 JANEIRO 2021 - N.º 299 JANEIRO 2021 - N.º 299


E
A

VALHA-NOS A CIÊNCIA
Nunca se assistiu a nada igual ou até sequer parecido. Quando soaram as primeiras
badaladas de 2020, em nenhum centro de investigação do planeta existia a mais
pequena informação sobre um vírus que, algumas semanas depois, seria batizado
como SARS-CoV2 e acabaria por alastrar-se por todo o mundo. Tudo começou a
EDITORIAL mudar, a 3 de janeiro, quando chegaram a um laboratório de Xangai as amostras de
um patógeno que, provavelmente, era o causador da estranha e repentina doença
R U I T AVA R E S G U E D E S que se alastrava na cidade Whuan. Em apenas 40 horas, um grupo de investigadores
rguedes@visao.pt conseguiu sequenciar o genoma do novo vírus e perceber que ele pertencia à família
SARS, fazendo assim soar os alarmes. Quase de imediato, o virologista-chefe
Zhang Yongzhen introduziu os dados genéticos do vírus no Centro Nacional de
Informações sobre Biotecnologia, um organismo internacional administrado pelo
Instituto de Saúde dos EUA, e ainda escreveu um artigo que enviou para a revista
científica Nature, mesmo contrariando as instruções de Pequim para que não fossem
divulgadas informações, ainda não totalmente confirmadas, sobre a nova doença. A
10 de janeiro, Zhang Yongzhen foi ainda mais longe: pediu a um seu colega virologista
australiano para divulgar o resultado da investigação da sua equipa, com a sequência
do genoma do vírus causador da Covid-19 – que passou, assim, a estar disponível na
plataforma virological.org para os cientistas de todo o mundo.
A informação alastrou-se pelo planeta quase à mesma velocidade com que o vírus
se foi propagando. Um pouco por todo o lado, à medida que percebiam o que estava
a acontecer, milhares de cientistas abandonaram as tarefas em que se encontram
envolvidos e concentraram-se no estudo do novo vírus, graças à informação
difundida por Zhang Yongzhen.
Em escassos meses foram escritos dezenas de milhares de artigos científicos
relacionados com os efeitos do vírus e a Covid-19. Só na biblioteca médica PubMed
encontram-se listados 74 mil artigos, todos naturalmente redigidos em 2020 –
mais do dobro do que, ao longo de décadas, foi escrito sobre o sarampo, a cólera,
a poliomielite e outras doenças. Nunca na história da Humanidade uma doença foi
estudada tão depressa por tantas pessoas e em todos os cantos do mundo.
O mais surpreendente, também, é que não foi preciso esperar muito tempo para
que se conseguissem obter alguns resultados considerados impossíveis até há poucos
anos. Nos laboratórios da empresa de biotecnologia Moderna foram necessários
apenas dois dias para se desenvolver a vacina que, segundo os últimos dados, maior
eficácia demonstrou nos ensaios clínicos. Na Alemanha, também bastaram poucas
semanas para os investigadores da BioNTech, também eles especialistas na nova
tecnologia mRNA, ultimarem a vacina que, agora, está a ser fabricada pela Pfizer e
que foi a primeira a receber autorização de urgência dos principais organismos de
regulação dos medicamentos. Ou seja: a descoberta da tão aguardada vacina foi feita
em tempo absolutamente recorde e só não chegou mais depressa às pessoas porque,
naturalmente, teve de passar pelos imprescindíveis ensaios clínicos e as diversas
etapas para se poder comprovar que era eficaz e que não apresentava riscos para a
saúde de quem a tomasse.
A Ciência funcionou bem em 2020, como esta sequência de acontecimentos bem
o demonstra. Paradoxalmente, este foi também o ano em que, porventura, mais
cresceu a desconfiança sobre o trabalho dos cientistas, tantas vezes denegridos nas
redes sociais e em diversos fóruns de comunicação. Também foi o ano em que todo o
tipo de “especialistas” em doenças ou vírus mais vezes foram chamados aos órgãos de
comunicação social para darem a sua opinião ou, tantas vezes, apresentarem as suas
“previsões” para o futuro. Tivemos também, demasiadas vezes, cientistas com visões
COURRIER INTERNACIONAL opostas nas estratégias de combate à pandemia e a enfrentarem as suas diferenças de
App para tablets. opinião com o mesmo ardor de quem discute o jogo de futebol da véspera. Tivemos
Disponíveis na Applestore também estudos, análises e recomendações que um dia apontavam numa direção e,
e na Googleplay no dia seguinte, propunham o seu contrário.
as aplicações necessárias. É preciso saber arrefecer os ânimos. Perceber, acima de tudo, que a “opinião”
de um especialista não é mais do que isso: uma opinião. Perceber também que já não
estamos na era dos homens milagrosos. As vacinas desenvolvidas pela Moderna e
pela BioNTech, por exemplo, exigiram a colaboração de centenas de pessoas, todas
altamente especializadas. Hoje, cada vez mais é assim que se faz Ciência: um trabalho
de equipa, reunindo o melhor de cada um, que depois terá de ser inspecionado,
questionado e validado por outros especialistas, também altamente qualificados. É a
Ciência que nos pode salvar.

ILUSTRAÇÃO DE LANGER, PARA CLARÍN, BUENOS AIRES JANEIRO 2021 - N.º 299 5
F FON T E S
ESTE MÊS NO
jornal de quatro páginas desti-
nado “aos investidores honestos
e aos corretores respeitáveis”, é
hoje o diário financeiro e econó-
mico de referência na Europa. Foi
comprado pelo grupo japonês
Nikkei, em 2015. Tem mais de
600 jornalistas distribuídos por
mais de 40 países. www.ft.com

DER STANDARD
VIENA, ÁUSTRIA Fundado, em
1988, com o objetivo de se tornar
tinua à frente desta publicação de
centro-esquerda. www.nytimes.com

THE CHRISTIAN SCIENCE


MONITOR
BOSTON, EUA Por causa das difi-
culdades financeiras, este tabloi-
de, fundado em 1908 em Boston
e lido de costa a costa nos EUA,
deixou de ter edições diárias em
papel a 27 de março de 2009,
concentrando esforços na página
de internet. Todavia, continua a
o The New York Times da Áus- produzir uma versão semanal
A tria, o diário descreve-se como em papel. www.csmonitor.com
1 “liberal e politicamente indepen-
dente”, embora seja considerado NIKKEI ASIAN REVIEW
THE GUARDIAN de centro-esquerda. É um dos TÓQUIO, JAPÃO O Nikkei está a
LONDRES, REINO UNIDO Lançado mais importantes jornais de reforçar a sua cobertura da Ásia,
em 1821, é o jornal de referência Viena e dos mais citados pela dedicando uma publicação se-
da intelligentsia, dos profes- Imprensa internacional. Os seus manal à região. Relatórios, análi-
sores e dos sindicalistas. De suplementos são variados e ses e inquéritos – especialmente
orientação centro-esquerda, criativos. económicos – fazem desta
mostra-se muito crítico em derStandard.at publicação uma fonte valiosa
relação ao Governo conser- para se seguir a atualidade. Uma
vador. Ao contrário dos outros 2 MIT TECHNOLOGY REVIEW forma de o grupo de Imprensa
dois diários de referência, optou CAMBRIDGE, EUA Fundada em japonês Nikkei se diversificar,
por ter um site de acesso livre, o 1899, esta revista está instalada oferecendo assim conteúdos em
qual partilha com a sua edição no campus do célebre Massa- inglês. asia.nikkei.com
dominical, The Observer. chusetts Institute of Technology
www.theguardian.com (MIT). É a revista dos engenhei- SEMANA
2 ros, dos cientistas e dos homens BOGOTÁ, COLÔMBIA Esta revista
1 THE ECONOMIST de negócios que querem conhe- foi criada, em 1982, por Felipe
LONDRES, REINO UNIDO Fundada cer as novas tendências tecno- López Caballero, uma figura de
em 1843, é a bíblia de todos lógicas e as decisões políticas na destaque no mundo da Impren-
aqueles que se interessam matéria. www.technologyreview.com sa independente na Colômbia.
pela atualidade internacional. Liberal, é respeitada pela inde-
Abertamente liberal, defende 3 GAZETA WYBORCZA pendência, pela modernidade e
o livre comércio, a mundializa- VARSÓVIA, POLÓNIA Fundada por pela qualidade dos seus artigos,
ção, a imigração e o liberalismo Adam Michnik, em maio de o que a torna uma das melhores
cultural. Nenhum artigo é 1989, a “A Gazeta Eleitoral” é, revistas semanais da América
assinado. www.economist.com em termos de tiragem, o maior Latina. Desde os seus primeiros
diário da Polónia, excluindo-se números, denunciou corajosa-
THE WALL STREET JOURNAL os tabloides. Aberta a diferentes mente, num contexto perigoso,
NOVA IORQUE, EUA É a bíblia do sensibilidades económicas, pro- o poder dos cartéis de drogas e o
mundo dos negócios. Re- move, no que respeita às grandes de Pablo Escobar, em particular.
compensado com 36 prémios escolhas da sociedade, uma Po- www.semana.com
Pulitzer, é sobretudo apre- 3 lónia liberal, tolerante e europeia.
ciado pelas suas análises dos O suplemento da segunda-feira, 4 THE SPECTATOR
mercados financeiros e pelo Duzy Format, cultiva a tradição LONDRES, REINO UNIDO Uma ver-
acompanhamento das novas da reportagem literária à moda dadeira instituição da Imprensa
tendências nas áreas da gestão polaca. wyborcza.pl britânica, fundada em 1828, o
e dos negócios. Desde que, em que faz dela a mais antiga revista
julho de 2007, foi comprado THE NEW YORK TIMES do mundo, é uma referência
pelo grupo News Corp., de NOVA IORQUE, EUA Com mil semanal para os intelectuais e
Rupert Murdoch, este diário jornalistas e 27 delegações no dirigentes conservadores, mas
evoluiu para uma fórmula mais estrangeiro, é o principal diário também para os eurocéticos:
generalista. www.wsj.com do país, no qual podem ler-se all apoiou a saída do Reino Unido da
the news that’s fit to print (“todas União Europeia, no referendo de
FINANCIAL TIMES as notícias dignas de serem 2016 que conduziu ao Brexit. O
LONDRES, REINO UNIDO Fun- publicadas”). A família Ochs, seu diretor mais famoso, de 1999
dado em 1888, com o nome que em 1896 assumiu o controlo a 2005, foi Boris Johnson, atual
London Financial Guide, um deste jornal criado em 1851, con- primeiro-ministro. www.spectator.co.uk
4
6 JANEIRO 2021 - N.º 299
C CARTOONS

O fim Não toquem no botão


A queda de Donald Trump… O círculo vicioso da Hungria e da Polónia,
por ele próprio por causa do direito de veto na União Europeia
CHAPPATTE, PARA LE TEMPS, TOM, PARA TROUW, AMESTERDÃO
LAUSANNE

8 JANEIRO 2021 - N.º 299


Destruir tudo
Trump e os sete anões
BERTRAMS, PARA DE GROENE AMSTERDAMMER,
HOLANDA

A América voltou
Como o mundo reage ao regresso
dos EUA ao multilateralismo
WOLVERTON, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

JANEIRO 2021 - N.º 299 9


R R E T R ATO

MAIA SANDU

A luz ao fundo do túnel?


APÓS DUAS VOLTAS NAS ELEIÇÕES, A PRÓ-EUROPEIA MAIA SANDU

I
TORNOU-SE, AOS 48 ANOS, A PRIMEIRA PRESIDENTE DA MOLDÁVIA. MAS
SERÁ CAPAZ DE LIDAR COM UM GOVERNO HOSTIL E COM O PARLAMENTO?

gor Dodon [Presidente socialista ces- Maia Sandu à segunda volta. Só a região
sante] é passado, porque se julgou capaz autónoma de Gagaúzia [tradicionalmente
de apagar os vestígios da sua corrupção pró-russa] e a cidade de Taraclia parecem V i s t o da U c r â n i a
com detergente geopolítico. Tentou, por
todos os meios, ignorar os maus resultados
ter ficado presas no passado e votado es-
magadoramente em Dodon, incapazes de
UM BOM SINAL
da primeira volta das eleições (1 de no- imaginar que poderia haver vida depois Os meios de comunicação ucranianos
vembro, obteve 440 mil votos contra os dele. acompanharam de perto as duas
488 mil de Maia Sandu), tocando a música O candidato dito independente apa- voltas das eleições presidenciais no
de uma “política externa equilibrada”. drinhado pelos socialistas avisou que de- seu pequeno vizinho a sudoeste e,
Tentou também assustar os cidadãos, di- fenderia a sua “vitória” [contestando os em geral, congratularam-se com o
zendo que Maia Sandu destruiria o bom resultados], mas a sua derrota foi de tal sucesso de Maia Sandu, que, recorda o
relacionamento que tinha construído com ordem que até Moscovo, que alegara que JORNAL DEN, “defende uma orientação
a Rússia, mas as pessoas não se deixaram o Ocidente tentara manipular as eleições pró-europeia sem comprometer
intimidar pela sua demagogia. presidenciais da Moldávia, ficou sem pa- as relações com Moscovo”. Na sua
As imagens do Presidente cessante a lavras. Dodon não tem nada a defender, já opinião, o principal problema do país
aceitar subornos de Vlad Plahotniuc [con- nem consegue consolar-se com a ideia de é a corrupção. Mas, para ser bem-
troverso oligarca, presidente do Partido ter obtido mais votos do que Maia Sandu -sucedido, é essencial “que o novo
Democrata] pesaram mais do que a de- dentro das fronteiras naturais do país, Presidente, aproveitando a mobilização
voção à Rússia, teatral ao ponto de ser como tinha feito após a primeira volta. das forças pró-europeias, organize
grotesca, do candidato dito independente A diferença final foi de mais de 260 eleições legislativas antecipadas
Dodon. mil votos! Representou uma mobilização para obter uma maioria pró-europeia
A servilidade de Dodon ao testar a sem precedentes, não só dos eleitores da no Parlamento”.
Sputnik V, a vacina russa contra a Co- diáspora moldava como daqueles que No entanto, não se devem esperar
vid-19, foi constrangedora mesmo no permaneceram no país, contra Dodon e agitações espetaculares, escreve o
seio da comunidade russa étnica. O fac- a favor de Maia Sandu. DIÁRIO DE KIEV: “Analistas políticos
to de ter perdido estrondosamente em Esta é mais uma prova de que alguns do Kremlin preveem que Sandu
Chisinau, capital do país, prova que uma dos 315 mil eleitores que votaram na prossiga uma política antirrussa mais
grande fatia do eleitorado de língua russa primeira volta em Renato Usatîi ou em pronunciada do que o seu antecessor,
se afastou dele. Violeta Ivanov, a candidata do Partido Sor mas esta mudança será muito mais
O movimento contra os subornos lan- [nacionalista pró-russo], se recusaram, à diluída no tempo do que na Ucrânia
çado por Renato Usatîi [o candidato do segunda volta, a votar em Dodon, apesar após a revolução e a anexação russa
Nosso Partido, um partido da esquerda da retórica pró-Kremlin do ex-Presidente. da Crimeia.”
populista em terceiro lugar após a primeira Esta eleição presidencial equivale a um Para a Ucrânia, continua o DEN,
volta] também desempenhou algum papel. verdadeiro referendo contra a corrupção, “a vitória de Maia Sandu é um bom
Grande parte do seu eleitorado votou em contra a política de isolamento e vassa- sinal. E é de esperar que o sucesso
de um candidato pró-europeu na
Moldávia reflita uma tendência geral na
JORNAL AUTOR DATA TRADUTORA região e que, após esta vitória, as forças
R Ziarul national - Chisinau Nicolae Negru 16.11.2020 Ana Marques pró-europeias na Ucrânia também
levem a melhor”.

10 JANEIRO 2021 - N.º 299


Maia Sandu prometeu um diálogo
lagem face à Rússia, a chamada “política aberto com todos os países, União Europeia Rússia

COURRIER INTERNATIONAL
externa equilibrada”. Se Dodon tivesse incluindo Roménia, Ucrânia,
tido algum bom senso, dignidade, honra, União Europeia, Rússia e EUA
se tivesse sido um Presidente responsá- FOTO DE GETTY IMAGES
vel, como afirma, teria renunciado no dia
seguinte à primeira volta. Pelo contrário, Maia Sandu ganhou porque é o símbolo
recorreu à violência verbal, incitando ao da luta contra a corrupção e a favor do UCRÂNIA
Dn
ódio, semeando a discórdia no eleitorado. europeísmo. Agora, as dificuldades co- ies
tre TRANSFERÊNCIAS
Tudo o que lhe resta fazer é acalmar os meçarão para a líder do partido Ação e (secessionista)
Pr
ut

seus cães de guarda e ir embora. O grande Solidariedade (PAS), pois chegou a hora
problema, para nosso grande infortúnio, de cumprir as promessas eleitorais. Está MOLDÁVIA
é que se considera insubstituível. ciente, e ela própria reconheceu, que a Tiraspol
vitória não pertence apenas ao PAS e que
... a equipa que vai formar deve ser mais re- Chisinau
presentativa da Moldávia do que dos seus ROMÉNIA
Maia Sandu ganhou colegas do partido.
Obrigada a lutar contra a resistência do
porque é o símbolo da trio Dodon-Plahotniuc-Sor [que compõe o
UCRÂNIA

luta contra a corrupção Governo e detém a maioria no Parlamento,


estando as próximas eleições legislativas Mar
e a favor do europeísmo. marcadas para 2023], a Presidente Maia 80 km Negro

Agora, as dificuldades Sandu cometeria um erro grave se limitasse Superície : 33 851 km 2


começarão, pois chegou as suas escolhas aos quadros do PAS. A (Superície da Bélgica : 30 528 km2
partir de hoje, tem um crédito a pagar: o da População: 2,7 milhões de habitantes
a hora de cumprir as confiança obtida a 15 de novembro, o mais PIB por habitante (2019):
13 574 dólares (França: 49 135)
promessas eleitorais pesado de todos os créditos possíveis.

JANEIRO 2021 - N.º 299 11


ISLAMISMO
O DESAFIO
DEMOCRÁTICO
OS ATENTADOS DE NOVEMBRO DE 2020 EM CONFLANS-SAINTE-HONORINE E NICE,
EM FRANÇA, E EM VIENA, NA ÁUSTRIA, REVELARAM O QUÃO COMPLEXAS SÃO AS
RESPOSTAS QUE DEVEM SER DADAS AO TERRORISMO ISLAMISTA. SERÁ A LEI SOBRE
O SEPARATISMO QUE A FRANÇA PLANEIA ADOTAR A BOA (E ÚNICA) ESTRATÉGIA?
COMO PODEM OS ESTADOS RESISTIR À IDEOLOGIA TOTALITÁRIA QUE SERVE DE
BRAÇO ARMADO DOS JIHADISTAS?

12 JANEIRO 2021 - N.º 299


Polícia em Viena, após
os atentados de novembro
FOTO DE GETTY IMAGES
JANEIRO 2021 - N.º 299 13
Europa

Análise

O islamismo
político é a base da
‘‘guerra santa”
A recente série de atentados na Europa não deixa margem para dúvidas:
a jihad assenta numa ideologia totalitária comparável ao nazismo
e ao comunismo dos gulag

DER STANDARD VIENA

D Depois de um grave atentado


que, em 4 de novembro, causou
principalmente determinados setores da
população: os cristãos “infiéis”, os yazidis
cinco mortos e 22 feridos em Viena, [considerados hereges pelos extremistas],
capital da Áustria, os média insisti- os alevitas [seguidores de um ramo do Islão
ram nos debates de anos anteriores sobre xiita cuja doutrina inclui rituais pré-islâmi-
a radicalização de alguns muçulmanos. cos] e todos os muçulmanos que concebem
Partindo da questão de saber o que leva um e praticam a sua fé de maneira diferente
jovem a cometer tais atos, vemos desfilar da dos “combatentes de Deus”.
os mesmos argumentos justificativos: dis- Sabemos ainda que, desde os atentados
criminação pela “maioria da sociedade”, de 11 de Setembro de 2001, nos Estados
ausência de perspetivas, humilhação social. Unidos da América, a capacidade de re-
Também se evoca uma mesquita ligada a correr à violência e ao terrorismo combina
salafistas onde, devido às causas acima perfeitamente com um bom nível de edu-
mencionadas, o jovem se radicaliza. cação e um estatuto social privilegiado [por
Estas análises não são suficientes nem exemplo, os nove bombistas suicidas que,
plausíveis, porque não têm em conta uma no domingo de Páscoa de 2019, causaram
série de factos. Antes de mais, seria con- mais 250 mortos em três igrejas e três hotéis
veniente tentar perceber as razões por do Sri Lanka pertenciam às classes média Homenagem aos mortos
que são, exclusivamente, muçulmanos e alta; dois eram filhos de um dos homens nos atentados de Viena
que reagem com violência terrorista à mais ricos do país, e um destes estudara FOTO GETTY IMAGES
discriminação por parte da restante so- Engenharia Aeroespacial na Universidade
ciedade, à ausência de horizontes e ao de Kingston, no Reino Unido]. Os argu-
aviltamento social. mentos invocados não são, pois, suficientes ...
Além disso, o terrorismo não afeta ape- para explicar o terrorismo dos islamistas
nas o Ocidente. Ele visa também, e sobre- fundamentalistas, nem resistem sequer O terrorismo não afeta
tudo, os países onde os que se tornaram a uma análise profunda e imparcial das apenas o Ocidente.
fanáticos não são a minoria nem estão ex- ciências sociais.
postos a experiências de discriminação. Em Ele visa também, e
Cabul (Afeganistão), em Bagdade (Iraque), Ideologia vs. discriminação sobretudo, os países
em Alepo (Síria), em Istambul (Turquia) A tentativa de explicar este terrorismo com
ou no Cairo (Egito), o terrorismo ataca más experiências na sociedade (discrimi-
onde os que se tornaram
fanáticos não são a
minoria nem estão
AUTORA DATA TRADUTORA
F Nina Scholz 08.11.2020 Maria Alves expostos a experiências
de discriminação

14 JANEIRO 2021 - N.º 299


nação, falta de educação, humilhação) e da violência em meios da extrema-direita, Vinte anos de fanatismo
com as atitudes subsequentes (intolerância, temos perfeita consciência disso e tentamos Os muçulmanos fundamentalistas fazem
sentimento de superioridade em relação aos dissecar o ambiente ideológico. exatamente o mesmo, à escala mundial,
que pensam e vivem de maneira diferente) Seria bom olhar para este fenómeno de quando cometem atentados contra os “in-
já era errada quando, pela primeira vez, o um ponto de vista histórico, pois a Histó- fiéis”, quando atacam as sociedades das
terrorismo ganhou manchetes na Europa. ria está repleta de exemplos de ativismo e nossas democracias abertas e pluralistas,
Não se trata de negar que os fatores supra- cegueira ideológica. Basta pensar no na- a seus olhos ímpias e em não conformi-
citados desempenham um papel nas ideias cional-socialismo [de Hitler] e no entu- dade com o seu Deus. Fazem-no também
e nas ações das pessoas. Mas esta verdade siasmo de inúmeros homens e mulheres quando, nos países de maioria muçulmana,
de La Palice não é o cerne da questão. que, infelizmente, se mostraram dispostos procuram homogeneizar a sociedade em
É a ideologia do Islão político funda- a tudo. O fanatismo dos comunistas foi, nome do Islão – muitas vezes, com o apoio
mentalista que leva indivíduos a cometer entre outras coisas, legitimado pela pre- de camadas significativas da população.
atentados como os de Viena ou de Paris, tensa boa causa dos gulag, descritos como O extremismo religioso, a intolerância
a certeza de estarem a combater por uma necessidade histórica. e a disposição para usar a violência tam-
causa totalmente justa. Subestimamos, Os adeptos dessas ideologias estavam bém se manifestam, lamentavelmente,
sistematicamente, a força das ideias – convencidos de que travavam um combate no seio das sociedades muçulmanas e das
neste caso, a convicção político-religio- justo e de que agiam como convinha para comunidades muçulmanas europeias, que
sa. Poderemos surpreender-nos, porque, defender uma causa que, em última análise, alinham sempre com os terroristas quando
quando analisamos, por exemplo, as causas salvaria o mundo inteiro. se trata de tomar posição em relação aos

JANEIRO 2021 - N.º 299 15


Europa

homossexuais, aos ateus, aos judeus, aos


que criticam o Islão e aos muçulmanos
que não cumprem à risca as interdições
e os mandamentos religiosos, decidindo
por si próprios se querem, por exemplo,
seguir ou não o jejum do Ramadão [o mês
mais sagrado do calendário islâmico].
Após cerca de 20 anos de fanatismo
islamista na Europa, é tempo de não nos
limitarmos a considerar apenas o jihadis-
mo, mas também a ideologia que está por
trás dele – a ideologia do Islão político. E
é hora de a levarmos tão a sério quanto
outras ideologias totalitárias.
Os jihadistas não são os únicos a divi-
dir o mundo em muçulmanos e não mu-
çulmanos, a imaginar uma comunidade
muçulmana mundial ideal, a propagar
a superioridade muçulmana, a rejeitar
Autora a democracia liberal, os direitos huma-
nos universais e a separação entre Igreja
(Mesquita) e Estado – os islamistas or-
Nina Scholz todoxos que dominam amplamente as
Federações Muçulmanas [estruturas
Politóloga alemã, Nina Scholz é
análogas ao Conselho Francês do Culto
autora, com o historiador Heiko
Muçulmano – CFCM] fazem o mesmo. É
Heinisch, de Alles für Allah.
nelas que os jihadistas se podem apoiar
Wie der politische Islam unsere
para disseminar a sua propaganda.
Gesellschaft verändert [Viena
Todos eles partilham, de igual modo, o
2019; “Tudo por Alá. Como o Islão
discurso sobre uma comunidade muçul-
político transforma as nossas
mana que enfrenta, há 1 400 anos, opressão
sociedades”, não traduzido em
e perseguição. A promoção deste papel de
português]. Num outro artigo
vítima, em paralelo com a glorificação do
publicado no jornal Frankfurter
imperialismo islâmico, está solidamente
Allgemeine Zeitung, dois dias após
ancorada no discurso do Islão político
o atentado em Viena, os autores
desde a fundação da Irmandade Muçul-
alertaram para a proliferação na
mana [no Egito], em 1928, tanto entre os
Europa de institutos de ensino do
ortodoxos como entre os jihadistas.
Islão, como o IESH, em Château-
Estes pregam uma abordagem teoló-
Chinon (França), ou o EIHW, em
gica inspirada na abundante literatura da
Frankfurt (Alemanha), este criado
“guerra santa”, não apenas para legitimar a
por iniciativa da Comunidade
resistência sob a forma de jihad, mas tam-
Muçulmana Alemã (DMG).
bém para afirmar que esse é um dever dos Patrulha nas ruas de Viena
Em sintonia com o que tem
crentes, quando o Islão e os muçulmanos FOTO GETTY IMAGES
defendido Emmanuel Macron, o
correm perigo. E este é um argumento
Presidente francês, Nina Scholz
que está à mão de semear.
e Heiko Heinisch apelam à
O discurso de grupos islamistas or-
dissolução destes institutos, que
todoxos, como a Irmandade Muçulma-
se apresentam como “opção
na ou o Millî Görüs [“Visão Nacional”,
...
alternativa” à formação de imãs [os
movimento político-religioso criado na
que lideram a oração] e teólogos
Turquia e considerado o maior da diás- A História está repleta
muçulmanos sob controlo de
Estados europeus.
pora muçulmana no Ocidente], também de exemplos de ativismo
legitima os que pretendem recrutar jovens e cegueira ideológica.
para a jihad, exortando-os à mobilização
face ao perigo. Basta pensar no nacional-
Deveríamos preocupar-nos muito mais -socialismo de Hitler e no
com a ideologia do Islão político, com os
sermões nas mesquitas ligadas a muitas das
entusiasmo de inúmeros
grandes federações muçulmanas. Como homens e mulheres
numerosos estudos confirmam, essas que, infelizmente, se
prédicas estão frequentemente muito
próximas dos fundamentos ideológicos mostraram dispostos
dos terroristas. a tudo

16 JANEIRO 2021 - N.º 299


APELO
“TEMOS DE TRAVAR O ISLÃO POLÍTICO!”
Face ao islamismo que mata, face ao extremismo que se enraíza “pode ser considerado ofensivo designar, claramente, os culpados e
nas comunidades muçulmanas da Europa, não devemos ficar os seus motivos”. “O Islão político representa um perigo grave para o
calados. É este o apelo presente num abaixo-assinado de vários nosso país. Constitui um obstáculo à integração, com consequências
intelectuais alemães, publicado em 30 de outubro no diário DIE incalculáveis. É preciso agir preventivamente no plano político, com
WELT, em reação aos mais recentes atentados terroristas em França. vigor e de modo responsável, mesmo no que concerne ao extremismo
Não é uma constatação que se limita à França, escrevem religioso. É hora de encarar as questões da imigração e de não nos
os signatários: o extremismo religioso começa antes de um deixarmos intimidar por apreciações infundadas de pretensa hostilidade
assassínio ser cometido e aninha-se em meios impermeáveis ao Islão, de ‘islamofobia’ ou de ‘racismo antimuçulmano’. Tal como as
aos nossos valores. As suas expressões aparentemente anódinas, restantes comunidades religiosas num Estado laico, também o Islão
como recusar um aperto de mão ou desrespeitar um professor, tem de aprender a aceitar as críticas justificadas, designadamente o
necessitam de “outras respostas que não apenas mesas-redondas humor e a sátira.”
e a autorização do burkini na escola”. Os signatários deste apelo formulam seis pedidos, que vão do reforço
Mas não basta ver, é preciso querer. Porque, na Alemanha, da investigação académica sobre o Islão político à criação de uma
verificamos que os que saem em massa à rua contra o racismo comissão no Ministério da Administração Interna, ou ainda ao fim da
permanecem mudos quando se trata da violência islamista, pois cooperação com os representantes do Islão político.

JANEIRO 2021 - N.º 299 17


Europa

FRANÇA

Como travar
esta guerra?
Responsáveis em Paris garantem que já está em marcha uma ofensiva
contra os islamistas. Mas ignora-se o seu modo de atuação e as
capacidades que o país tem para empreender esse combate

THE SPECTATOR LONDRES

A França está sob ameaça. talmente. Ou, como me diz um amigo

A Samuel Paty, professor de


História na escola de Bois-
francês: “Não somos muito bons a vencer
guerras.”
-d’Aulne, foi decapitado num Em outubro, antes de começar esta
bairro tranquilo de Conflans-Sainte-Ho- nova vaga de atentados, o Presidente fran-
norine, nos arredores de Paris, depois de cês, Emmanuel Macron, fez um discurso
ter mostrado aos alunos uma caricatura de tom excecionalmente duro contra os
de Maomé que o jornal satírico Charlie islamistas, o que gerou indignação de
Hebdo publicara em 2015. Outras três muçulmanos e da esquerda.
pessoas foram assassinadas na basílica A análise de Macron era boa, mas con-
de Notre-Dame na cidade de Nice. tinua a ser demasiado teórica. Como é que
A França “está em guerra” contra “o ele tenciona travar esta guerra? Ignoramos
separatismo” islamista, declarou o mi- tudo sobre o seu modus operandi. Sim,
nistro da Administração Interna, Gérald é verdade que mobilizou militares para
Darmanin. É certo que a polícia reagiu reforçar os efetivos da polícia, mas isso
imediatamente, com rusgas em meios não será suficiente.
islamistas, mas, com 20 mil pessoas con- O Exército francês está esgotado de-
sideradas de risco pelos serviços secretos pois de seis anos de impasse no Sahel, na
e centenas de mesquitas que pregam um luta contra os islamistas. Os soldados da
Islão radical – e a cada dia que passa ga- Operação Sentinela não têm formação
nham novos adeptos –, estas são apenas nem estão equipados para conduzir mis-
medidas superficiais. sões de vigilância policial. E nem sempre
Se esta é uma guerra, a República são fiáveis. Quanto aos polícias, são mal
Francesa não está em muito boa forma. pagos e sentem-se desmoralizados. ...
Darmanin reconhece que haverá outros Opor uma defesa estática a um terro-
atentados, mas não especifica como po- rismo móvel é o mesmo que construir uma Os subúrbios-gueto de
derão ser evitados. Linha Maginot [que a França construiu ao
O escritor Michel Houellebecq, no seu longo das fronteiras com a Alemanha e a Macron, onde ninguém
romance Submissão, imagina que as elites Itália, após a Primeira Guerra Mundial, respeita as ordens de
francesas irão acabar por colaborar com entre 1930 e 1936] como baluarte contra
os islamistas, em vez de os atacar fron- uma ideologia.
confinamento para
conter a pandemia
Covid-19, estão em
AUTOR DATA TRADUTORA
F Jonathan Miller 07.11.2020 Maria Alves plena ebulição. Cidades
e vilas estão no limite

18 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE RUBEN, HOLANDA


Os subúrbios-gueto de Macron, onde “Guantánamo à francesa” pelo partido Os Republicanos [LR, antiga
ninguém respeita as ordens de confinamen- Alguns interrogam-se sobre como Macron União para um Movimento Popular (UMP),
to para conter a pandemia da Covid-19, es- pôde impedir que o novo coronavírus cir- principal oposição de direita, liderada pelo
tão em plena ebulição. Cidades e vilas estão culasse pela França, enquanto terroristas ex-Presidente Nicolas Sarkozy], exige uma
no limite. A França já tem muitos problemas vão e vêm com toda a impunidade. Segundo “Guantánamo à francesa” [numa alusão à
com os seus próprios cidadãos radicaliza- o barómetro de segurança Fiducial-Odoxa base militar onde os EUA mantêm encar-
dos para conseguir vigiar os tchetchenos, realizado para o diário Le Figaro, 26% dos cerados suspeitos de terrorismo].
os tunisinos ou os sírios que continuam a eleitores confiam no Governo para resolver a “O islamofascismo é um vírus”, decla-
chegar. Graças a Schengen [tratado europeu questão do terrorismo – uma descida de 7% rou, por seu turno, o presidente da câmara
de 1985, que permite a livre circulação entre numa semana e de 18% em relação a julho. de Nice, Christian Estrosi. “Estas pessoas
os países signatários], as fronteiras prati- Para isolar os indivíduos sinalizados são verdadeiras bombas-relógio.”
camente deixaram de existir, e milhares de como sendo perigosos, sem serem con- Mesmo que a ideia pareça rebuscada,
presumíveis islamistas circulam por este denados por delitos específicos, Éric Ciotti, muitos concordam que a França poderia
espaço sem serem detetados. deputado pela região dos Alpes-Marítimos exportar o seu problema para a Ilha do Dia-

JANEIRO 2021 - N.º 299 19


Europa

bo, atualmente abandonada, ao largo da Argélia

Islamismo
Guiana Francesa, na sinistra colónia penal
de Caiena, onde [o capitão judeu injus-
tamente condenado por traição] Alfred

rima
Dreyfus foi aprisionado e a qual inspirou
Henri Charrière, ex-presidiário, a publicar,
em 1969, o livro Papillon [no qual narra a

sempre
sua fuga espetacular, em 1935].
O Artigo 16 da Constituição da Vª Re-
pública prevê que, quando as instituições

com
da República, a independência da nação ou
a integridade do seu território estiverem
gravemente ameaçadas, o Presidente deve

terrorismo
tomar as medidas exigidas nestas circuns-
leis tâncias. O chefe de Estado dispõe, para isso,
de poderes muito importantes.
Privação de O último Presidente a invocar o Artigo
nacionalidade 16 foi o general Charles de Gaulle, em 1961, Enganámo-nos sobre esta ideologia,
durante a guerra da Argélia. Mas será que adverte o editorialista do diário
não é solução Emmanuel Macron tem vontade de passar argelino Liberté. A sua própria
das palavras aos atos?
Depois de um atentado, “como essência é a de propagar o ódio
reação impulsiva, até são Medo dos estudantes e conquistar o poder
compreensíveis” os apelos a leis Em teoria, uma “Guantánamo à francesa”
severas para, mais facilmente, poderia ser constitucional, mas de modo LIBERTÉ ARGEL
privar da nacionalidade os suspeitos algum seria realista. Provocaria uma re-
de terrorismo. “Mas esta não é a jeição enorme, ou talvez uma sublevação,
resposta certa, quer do ponto de nas cidades. Um conflito desta natureza
vista jurídico, político ou moral”, poderia alastrar-se para além das frontei-
escreve na sua coluna de opinião ras do Hexágono, em particular, ao Reino Viena, habituada a estar nos
no diário DER STANDARD, de Viena,
o politólogo austríaco Rainer
Unido, à Bélgica e à Alemanha. Será que
Macron tem ideias melhores? V primeiros lugares do ranking
das cidades onde se vive melhor
Bauböck, codiretor da plataforma Depois de três crianças assassinadas [em 2 de novembro, um aten-
europeia GLOBALCIT [Global numa escola judaica em Toulouse, de outras tado islamista causou aqui dois mortos]. A
Citizenzhip Observatory, que 130 pessoas mortas por bombistas suicidas Universidade de Cabul, um oásis de apren-
investiga e analisa os direitos de no Teatro Bataclan, de mais 86 mortas no dizagem no Afeganistão, país devastado
cidadania e as leis eleitorais em atentado em Nice, de um padre degolado pela desculturação islamista [no mesmo
todo o mundo]. Quando um Estado na igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray e dia, 22 pessoas foram mortas, num ataque
retira a nacionalidade a um cidadão, do massacre (12 mortos) na sede do Charlie reivindicado pelo autoproclamado “Estado
qual é o objetivo? É transferir a sua Hebdo, o Governo assegura que todos os Islâmico” ou Daesh]. O terrorismo islamista
responsabilidade para outro Estado. dias impede novos ataques. Mas não é fácil ataca tanto quanto pode, onde mais fere a
Ora, “se todos os países aplicarem confirmar tais afirmações. beleza, o espírito, o saber, a ordem... Em
esta lógica, seguir-se-á uma corrida Após o feriado de Todos os Santos, na resumo, ele tem dois inimigos: a ciência e a
entre eles para se desembaraçarem reabertura das escolas, era suposto estas vida. Não se deve acreditar que o islamismo
de um radicalizado à mínima dedicarem a manhã a uma aula de moral e visa, em particular, a França, a América
suspeita. E isso não só põe em cidadania “reforçada”, em homenagem a ou a Áustria. Ou que odeia especialmente
risco a cooperação internacional Samuel Paty. No entanto, os diretores dos o Presidente francês, Emmanuel Macron,
na luta contra o terrorismo, como estabelecimentos de ensino alertaram que, ou o primeiro-ministro israelita, Benja-
enfraquece também o Estado de nas escolas com muitos alunos muçulma- min Netanyahu. O islamismo não tem um
direito e favorece a estratégia de nos, tais aulas não seriam dadas. alvo ou um inimigo permanente: só tem
recrutamento de jihadistas, que Havia o receio de que alguns dos alunos alvos oportunos e inimigos momentâneos.
assenta na tese de que são eles as filmassem as aulas com os seus telemóveis O seu braço armado, carne
vítimas”. e publicassem os vídeos no YouTube, o que para canhão barata, nu- F
seria inconveniente para o Presidente Ma- tre um ódio errante: este
cron. Esta volta de 180 graus era previsível. segue o objetivo que os
Deveria ter havido um minuto de silêncio seus mestres e mentores AUTOR
Mustapha
e uma lição de uma hora, mas isso não se célebres lhe indicaram, Hammouche
verificou em todas as escolas. Nalgumas, diretamente, ou lhe su-
as mais sensíveis, o minuto de silêncio só geriram, mediaticamente. DATA
foi observado nas salas dos professores. Estas diversas autori- 05.11.2020
Se o Estado francês tem medo de estu- dades ideológicas que ins-
dantes do ensino secundário, quais são as piram as tropas assassinas TRADUTORA
hipóteses de vencer o terrorismo? organizadas em exércitos, Maria Alves

20 JANEIRO 2021 - N.º 299


distribuídas em comandos ou dispersas em
solitários desesperados, são de uma grande
heterogeneidade doutrinal, mas têm uma
convergência estratégica real.
É o mesmo Leviatã que, tal como o
monstro mitológico [do Antigo Testamen-
to], pode ser um dragão, uma serpente ou
um crocodilo. O islamismo é um deles. E,
mesmo que algum dos seus afiliados se
abstenha de defender a violência, não o
faz por seguir uma cultura pacifista, mas
porque avança abrigado atrás do escudo
do terror.
Às vezes, como acontece com o mo-
vimento Irmandade Muçulmana, estas
autoridades abstêm-se e agem conforme
exigem as circunstâncias. Vejamos o caso
do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan,
cujo regime islamorepublicano, apesar de
beneficiar de um estatuto de “democracia”,
recorre ocasionalmente a legiões terroris-
tas, quer na Síria quer na Líbia, para servir
os seus interesses hegemónicos.

Um perigo global
Foi para beneficiar desta estratégia de “pei-
xe-piloto” [espécie carnívora que acompa-
nha tubarões e outros peixes graúdos para se
alimentar dos restos das suas presas] – que
consiste em tirar partido do terror semea-
do pelo terrorismo sem correr o risco de
eventuais contragolpes – que foi inventado
o subterfúgio do islamismo “moderado”.
O islamista “moderado” não corre, pelo
menos nem sempre, o risco de pregar ou
praticar a violência terrorista: mas não
ousa condená-la nem virar-lhe as costas!
Mesmo quando ataca em terras do Islão, o
terrorismo só é combatido em nome dos
valores humanos.
O islamismo é só um e, na sua essência,
cultiva a necessária extensão terrorista.
Como ideologia, tem uma vocação expan-
sionista. A sua estratégia de conquista as-
senta no ódio elevado à categoria de valor.
O seu credo é semear o caos, para impor
a sua ordem sobre os escombros da que
destruiu. Onde quer que possa.
Onde não pode, o islamista recorre a
ataques terroristas para fomentar o ódio,
que mantém vivo o “moral das tropas” nas
suas fileiras. O seu alvo é, então, facilmente
identificável: a ordem resultante do génio
humano, isto é, da ciência, da arte, da har-
monia social...
Antes de exportar o seu terrorismo, o
islamismo testou-o no seu meio sociocul-
tural. A sua força é a de fazer crer que a
proteção contra o terrorismo não está em
combatê-lo. Está, sim, nas posições “con-
ciliadoras” que desde há 30 anos florescem.
Por natureza, um perigo global exige
uma reação global.

ILUSTRAÇÃO DE KOUNTOURIS, PARA EFIMERIDA TON SYNKTATON, ATENAS JANEIRO 2021 - N.º 299 21
Ásia

Comércio do por cada um dos 15 países signatários.

A China marca
No entanto, a Parceria Económica Regional
Abrangente constitui um verdadeiro passo
em frente, na medida em que harmoniza

pontos
as disposições relativas às regras de origem
anteriormente estabelecidas pelos vários
acordos firmados no âmbito da ASEAN.
Estabelece também regras regionais para
permitir que os bens intermédios [produtos
Quinze países da Ásia e do Pacífico assinaram utilizados na manufatura de outros bens]
um acordo comercial que já foi classificado possam ser originários de qualquer um dos
como uma “vitória do multilateralismo”. 15 membros.
Será também uma consolidação da hegemonia Neste ponto, os benefícios económi-
cos esperados são muitos. Segundo um
de Pequim na região? estudo do Peterson Institute for Interna-
tional Economics, liderado por Peter Petri
THE ECONOMIST LONDRES e Michael Plummer, algumas projeções
admitem que daqui resulte um aumento
do PIB global, no valor de 186 mil milhões
de dólares por ano até 2030 (em compa-
ração com os 147 mil milhões de dólares
induzidos pelo CPTPP). Os ganhos seriam
particularmente significativos para a Chi-
na, Japão e Coreia do Sul.

Mudar o padrão
A China também não ficará a perder, ainda
O O processo foi tão longo como
o seu nome é ingrato. Mas os 15
da Associação de Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN) e outros países da região Ásia-
que por outros motivos. Tendo promovido
o seu primeiro acordo comercial multila-
países asiáticos que assinaram a Par- -Pacífico, caso da Austrália, China, Japão, teral, Pequim pode aparecer como o maior
ceria Económica Regional Abrangente Nova Zelândia e Coreia do Sul. defensor do comércio livre, enquanto
(RCEP), numa cerimónia virtual emitida a O RCEP cruza-se com outro importante os Estados Unidos da América perdem
partir de Hanói, a 15 de novembro, podem tratado comercial regional, o Acordo Global influência económica na região e estão
gabar-se de ter batido vários recordes. e Progressivo para a Parceria Transpacífico enredados numa guerra comercial com
O RCEP é, de facto, o maior acordo (CPTPP). Assinado em 2018 por 11 países, o o gigante asiático. O primeiro-ministro
comercial multilateral do mundo e só texto, originalmente denominado Parce- chinês, Li Keqiang, mostrou-se visivel-
não atinge outra dimensão por a Índia se ria Transpacífico (TPP), deveria incluir os mente satisfeito com a assinatura do RCEP,
ter afastado há um ano. Após oito anos de Estados Unidos da América, mas Donald que classificou como uma “vitória para
“negociação com sangue, suor e lágrimas”, Trump, mal acabado de chegar à presi- o multilateralismo e o comércio livre”.
nas palavras do ministro do Comércio da dência, decidiu não aderir. Num arroubo lírico, até lhe chamou “um
Malásia, Mohamed Azmin Ali, representa Enquanto os dois acordos eram nego- raio de sol e esperança num céu nublado”.
uma vitória da cooperação regional, numa ciados, os norte-americanos minimizavam O RCEP vai levar a uma reorientação
altura em que a pandemia Covid-19 abala o RCEP, considerando-o um pacto medío- do comércio chinês na Ásia. O padrão
a economia global. cre à século XX, centrado nas barreiras tradicional das cadeias de abastecimento
No entanto, esta vitória é tudo menos aduaneiras e em medidas rudimentares fornecendo fábricas dispersas por vários
consensual. Para alguns, o RCEP carece de liberalização. Já o TPP ia mais além, países asiáticos, que depois produzem bens
de ambição, sendo pouco mais do que um incluindo questões como o ambiente ou manufaturados, exportados para países
acordo simbólico. Para outros, é um marco a legislação laboral, sem esquecer regras ocidentais, está a mudar. Segundo o Ins-
decisivo na construção de uma nova ordem para as empresas estatais.
mundial marcada pelo domínio da China É verdade que o RCEP é menos ambi-
sobre o resto da Ásia. cioso: é o que costuma acontecer quando ...
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. um acordo reúne países muito ricos (Japão
O RCEP não é o prenúncio de uma libera- e Singapura) e muito pobres (Laos e Bir- O acordo reúne países
lização espetacular do comércio na Ásia. mânia). O tratado erradica, muito prova-
Começou como um esforço de racionaliza- velmente, 90% das barreiras aduaneiras, muito ricos (Japão e
ção: coordenar, no quadro de um tratado mas fá-lo a prazo: 20 anos contados a partir Singapura) e muito
alargado, vários acordos parcelares de co- da sua entrada em vigor – o que só acon-
mércio livre abrangendo os dez membros tecerá depois de o texto ter sido ratifica-
pobres (Laos e Birmânia)
e irá erradicar, muito
provavelmente, 90%
AUTOR DATA TRADUTORA
F Não assinado 17.11.2020 Ana Marques das barreiras aduaneiras,
dentro de 20 anos

22 JANEIRO 2021 - N.º 299


Contexto

A Índia
à margem
Quinze países da Ásia-Pacífico
tentam unir-se num gigantesco
acordo de comércio livre, mas
a Índia, com os seus 1,38 mil
milhões de habitantes, continua
à margem. “O país participou
nas negociações da Parceria
Económica Regional Abrangente
(RCEP) desde 2013”, lê-se no
Indian Express, mas retirou-se
em novembro de 2019, invocando
“questões importantes por
resolver”.
Perante o regresso da tensão
com a China, nomeadamente
nos Himalaias, e a pandemia, o
subcontinente está mais do que
nunca “à defesa” relativamente
ao Império do Meio. O seu líder
nacionalista, Narendra Modi,
temia, por exemplo, que o acordo
RCEP permitisse que produtos
chineses baratos inundassem o
mercado indiano.
Por outro lado, a Índia teme as
“barreiras não tarifárias impostas
por países como a China” e o
efeito destas nas exportações.
Confrontada com uma recessão
sem precedentes desde o
confinamento, por causa da
Covid-19, a Índia joga o trunfo
da autonomia e prometeu
recentemente “20 mil milhões de
dólares em incentivos financeiros
para empresas produtoras
locais”, a fim de se proteger das
importações estrangeiras, refere o
jornal Business Standard.
A Índia mantém-se fiel ao seu
tradicional não alinhamento
tituto de Finanças Internacionais, sediado mundo em que o poder económico, político externo. No entanto, os 15
em Washington, no primeiro semestre de e militar da China esmague o resto da Ásia. signatários do RCEP dizem
2020, os países da ASEAN tornaram-se É precisamente por isso que a admi- estar prontos “para retomar
no maior parceiro comercial da China, à nistração Obama estava tão empenhada no negociações”, lê-se no jornal
frente da União Europeia. TPP. Mas é pouco provável que os EUA de Economic Times, uma vez que
O RCEP foi assinado na Cimeira Virtual Joe Biden procurem aderir ao RCEP, pois Deli não enjeita oficialmente a
da ASEAN, e o bloco asiático irá vê-lo como o novo Presidente dos EUA tem outras vontade de se lhes vir a juntar.
uma confirmação da eficácia de negocia- batalhas para travar. O mais certo é que
ções lentas e graduais, sejam estas sobre a Ásia prossiga o seu caminho, balizado
comércio ou soberania no mar do Sul da por uma crescente influência da China e
China. No entanto, a longo prazo, alguns por um relativo desinteresse dos Estados
dos signatários receiam o advento de um Unidos da América.

ILUSTRAÇÃO DE EVA VÁSQUEZ, PARA EL PAÍS, MADRID JANEIRO 2021 - N.º 299 23
Economia

Trabalho

Países ricos
precisam
de imigrantes
Os fluxos migratórios nos países industrializados estimulam
o crescimento económico e demográfico. Mas a pandemia travou-os

NIKKEI ASIA TÓQUIO

Nos 53 países mais ricos, o Produto


Interno Bruto (PIB) per capita
é maior onde a percentagem
de imigrantes é também maior
FOTO: GETTY IMAGES

Os fluxos migratórios foram

O travados pela conjunção de dois


fatores: a pandemia Covid-19 e
o crescimento da xenofobia nos
países ricos. Estes veem-se agora confron-
tados com um risco de declínio demográfico
que pode enfraquecer as suas economias.
A 27 de setembro, um referendo na
Suíça rejeitou a suspensão da liberdade
de circulação entre a Federação e a União
Europeia (UE). Defendido pelos naciona-
listas conservadores da União Democrática
Central (UDC), o projeto foi rejeitado por
maioria devido ao seu possível impacto
numa economia já abalada pela crise pan-
démica. A UDC queria restaurar o direito
soberano de o país controlar a imigração, na
linha dos promotores do Brexit [no Reino
Unido], no referendo de 2016.
Aceitar ou rejeitar a imigração é uma
questão historicamente recorrente. Em
1882, os Estados Unidos da América aprova-
ram uma lei sobre a exclusão dos chineses,
AUTORA DATA TRADUTORA
F Kazuya Manabe 20.10.2020 Ana Marques por causa dos receios dos eleitores de que
et Kaori Yoshida os recém-chegados lhes pudessem roubar

24 JANEIRO 2021 - N.º 299


os empregos. Em 1965, a Lei de Imigração cado de trabalho aumenta a produção em
aboliu as quotas e abriu portas. Durante 1% num prazo de cinco anos”. Economias
o mandato do Presidente Donald Trump, com mão de obra mais diversificada são
Washington voltou a fechá-las parcial- mais fortes, conclui o FMI.
... mente. Enquanto muitos países fecham fron-
Nos 53 países mais ricos, o Produto In- teiras por causa da pandemia, muitos estão
No Japão, onde os terno Bruto (PIB) per capita é maior onde com falta de mão de obra.
a proporção de imigrantes é maior. Nos Estados Unidos da América, agri-
imigrantes representam Há quem argumente que os imigran- cultores do Texas e do Oklahoma têm tido
apenas 2% da população tes concorrem com os trabalhadores locais dificuldade em fazer as colheitas este ano,
e a taxa de fertilidade é por empregos mal pagos. No entanto, se- por causa do novo coronavírus. As restri-
gundo um estudo [2014] de Giovanni Peri, ções fronteiriças reduziram consideravel-
baixa, há falta de mão professor de Economia na Universidade mente o número de trabalhadores sazonais.
de obra. Na Alemanha, a da Califórnia, a influência da imigração Desde que Donald Trump tomou posse,
Chanceler Angela Merkel no rendimento de curto prazo é “quase as pequenas falências multiplicaram-se.
nula”. Segundo ele, “os trabalhadores locais Foram 580 no ano agrícola 2019-20, um
afirmou que, “sem mão respondem à chegada de imigrantes, espe- aumento de 8% face ao ano anterior.
de obra qualificada cializando-se em profissões mais centradas Segundo a American Farm Bureau
na comunicação e nas tarefas cognitivas, Federation, a mão de obra representa 35
suficiente, as empresas que complementam o trabalho realizado a 48% dos custos de produção neste se-
não podem desenvolver- pelos imigrantes” (ver gráfico). tor, severamente afetado pela escassez de
se”. E, “se não houver Em abril passado, o Fundo Monetário imigrantes. E estima que as restrições à
Internacional (FMI) publicou um estudo que concessão de vistos só permitam a entrada
imigrantes, poderão ser concluiu que “um aumento de um ponto de menos de 4% da mão de obra necessá-
elas a ter de emigrar” percentual no peso dos imigrantes no mer- ria. O crescimento populacional dos países

JANEIRO 2021 - N.º 299 25


Economia

espanha
Um fator de prosperidade
PIB por habitante “Ilhas-
-prisão”
(2019, em milhares de dólares e de acordo com aparidade de poder de compra)

125

100
Curva
tendencial para
75
ALEMANHA
EUA migrantes
FRANÇA
Clandestinos estão a afluir
50 AUSTRÁLIA
às ilhas Canárias, mas o Ministério
JAPÃO do Interior espanhol recusa qualquer
CANADÁ
transferência para centros
25
de acolhimento na Península Ibérica
e, por conseguinte, para outros
REINO UNIDO
0 países da UE
0 20 40 60 80 100

FONTE : “NIKKEI ASIA”, NAÇÕES UNIDAS; BANCO MUNDIAL


(2019, em % de imigrantes na população) EL PAÍS MADRID

População de países industrializados


(em mil milhões de habitantes) Fluxos usuais de migração A crise migratória que se vive
1,3
A nas ilhas Canárias, com mais
de 18 mil pessoas salvas, este
ano, em águas territoriais es-
1,2
panholas, tornou-se um verdadeiro barril
Decréscimo de pólvora social e político. O cais do porto
1,1 da imigração de Arguineguín – na cidade de Mogán,
no Sul da Gran Canaria – está saturado
1 Previsão pelo constante afluxo de migrantes que
tentam chegar ao arquipélago em barcos
1970 1980 1990 2000 2010 2020 2030 2040 2050 improvisados. Alguns são redirecionados
para centros de acolhimento temporários,
incluindo instalações militares ou antigas
instalações militares, ou para hotéis que
mais avançados deve-se à imigração. Os Segundo um estudo do professor Stein a pandemia esvaziou.
dados da ONU mostram que, entre 2000 Vollset, da Universidade de Washington, O Governo não consegue chegar a acor-
e 2019, a sua população aumentou 7%, ou em 2100, a taxa de fertilidade na maio- do sobre a forma de resolver esta crise. A
seja, 82 milhões de pessoas, das quais 35 ria dos países ricos será inferior a 2,1 – o equipa do ministro da Inclusão, das Migra-
milhões vieram de países emergentes. Em que significa que a população começará ções e da Segurança Social, José Luis Escri-
2019, 91,7 milhões de imigrantes de países a diminuir. O estudo explica: “Políticas vá, está a contar com as transferências para
emergentes instalaram-se em países ricos generosas de imigração podem ajudar a a península para aliviar
(ver gráfico). manter o peso demográfico e o crescimento a pressão sobre as ilhas F
Se a imigração parasse, a população económico” nestes países. Canárias. Mas o ministro
de países industrializados começaria a No Japão, onde os imigrantes repre- do Interior, Fernando
diminuir logo no ano seguinte, dizem as sentam apenas 2% da população e a taxa Grande-Marlaska, rejei- AUTOR
María Martín, Carlos E.
Nações Unidas. Em 2030, teriam menos de fertilidade é baixa, há falta de mão de ta liminarmente a ideia Cué, Guillermo Vega
24 milhões de habitantes. A sua população obra. Na Alemanha, a chanceler Angela de permitir a entrada de
passaria de 1,3 mil milhões, hoje, para 1,2 Merkel afirmou que “sem mão de obra um grande número de DATA
mil milhões, em 2050. Em comparação, se qualificada suficiente, as empresas não migrantes na península. 20.11.2020
os fluxos migratórios continuassem como podem desenvolver-se”. E, “se não hou- Com o volume atual de
antes, o pico da população seria atingido ver imigrantes, podem ser elas a ter de chegadas e o número TRADUTORA
em 2036 e não em 2020. emigrar”. limitado de partidas, a Ana Marques

26 JANEIRO 2021 - N.º 299


O fluxo de migrantes aumentou
exponencialmente, em 2020,
para as ilhas Canárias, situadas
a cerca de 100 quilómetros
da costa africana
FOTO GETTY IMAGES

saturação ameaça as ilhas principais. Além os migrantes em situação irregular que


COURRIER INTERNATIONAL

disso, os hotéis representam uma solução recebe. As deportações, que acabam de


temporária e dispendiosa, sem contar com ser retomadas para a Mauritânia e para
PORTUGAL
a rejeição que ela suscita numa parte da ESPANHA Marrocos, e que deverão recomeçar para
população e nos hoteleiros das Canárias. o Senegal, apenas resultam num número
As únicas transferências autorizadas Oceano limitado de regressos.
são feitas em grupos de 30 ou 40 pessoas Atlântico O presidente do Cabildo de Gran Cana-
que viajam semanalmente de barco ou ria [a administração local da ilha], Antonio
avião, de acordo com alguns dos responsá- MARROCOS Morales, garante que colocou a questão
veis pelo cuidado daqueles que acabaram ILHAS CANÁRIAS durante uma reunião com a comissária
(Espanha) 30°
de chegar. Ylva Johansson e o ministro Fernando
N
O problema ultrapassa as fronteiras da Grande-Marlarska, durante a sua visita a 6
península. A União Europeia e parceiros ARGÉLIA de novembro: “Deixei claro ao comissário
como a França, que absorve um grande SARA 300 km que não iríamos aceitar transformar-nos
OCIDENTAL
volume de migrantes que entram ilegal- numa ilha-prisão, mas só recebi respostas
mente no território espanhol, estão a exer- evasivas. O problema das deportações foi
cer pressão sobre Espanha, para que este um assunto tabu durante essa reunião.
país trave o trânsito, para o continente, de A Europa não quer falar sobre isso.”
migrantes que desembarcaram nas ilhas ... Esta questão já se transformou num
Canárias. A comissária da UE para os As- grave problema político. A grande preo-
suntos Internos, a sueca Ylva Johansson, A dificuldade com que cupação é que o Vox, o partido de ex-
deixou isso bem claro durante a sua visita se confronta Espanha trema-direita, esteja a instrumentalizar
ao arquipélago, na companhia de Fernan- esta crise para alimentar o seu discurso
do Grande-Marlaska a 6 de novembro. – como, aliás, todos os xenófobo. [A 23 de novembro, a formação
“As pessoas que não necessitam de uma seus parceiros europeus radical falou de uma “invasão migratória
proteção internacional, os migrantes eco- organizada” e apelou à deslocação de na-
nómicos, devem ser devolvidos aos seus
– é que não consegue vios da Marinha nacional, para impedir os
países”, salientou. enviar de volta para migrantes de chegarem ao arquipélago.]
A dificuldade com que se confron- os seus países todos os A pressão está a aumentar. E as trans-
ta Espanha – como, aliás, todos os seus ferências em massa para a península ainda
parceiros europeus – é que não consegue migrantes em situação não são uma verdadeira solução para o
enviar de volta para os seus países todos irregular que recebe Governo.

JANEIRO 2021 - N.º 299 27


28 JANEIRO 2021 - N.º 299
PODEA CIÊNCIA
CONTINUAR A
AJUDAR-NOS?
SERÁ QUE OS CIENTISTAS DEIXARAM AOS POLÍTICOS E ÀS MULTINACIONAIS O PODER DE
DECIDIREM O DESTINO DO MUNDO? A PERGUNTA FAZ SENTIDO NUMA ALTURA EM QUE
CIRCULA TODO O TIPO DE TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO E EM QUE A GESTÃO, POR VEZES
ERRÁTICA, DA PANDEMIA MINOU A CONFIANÇA NOS PERITOS. NO ENTANTO, A CIÊNCIA
– E O CONHECIMENTO DO MUNDO QUE ESTA NOS OFERECE – PERMITE, MAIS DO QUE
NUNCA, APREENDER UMA SOCIEDADE CADA VEZ MAIS COMPLEXA. PARA ISSO, PORÉM,
É PRECISO TOMAR CONSCIÊNCIA DE QUE O NOSSO SABER DEPENDE DO SABER DOS
OUTROS – TAL COMO AS VACINAS O DEMONSTRAM

Fabrico de vacinas contra


a poliomielite, em 1962,
num laboratório do Instituto
Pasteur, em Paris
FOTO DE GETTY IMAGES

JANEIRO 2021 - N.º 299 29


Ciência

O SABER,
ESSA
INTELIGÊNCIA
COLETIVA
Partindo de uma experiência que envolveu milhares
res de
cientistas, fica demonstrado que, na atual sociedade
dade
complexa, o nosso saber depende cada vez mais do o saber
dos outros e da confiança que neles depositamos
mos

MIT TECHNOLOGY REVIEW (EXCERTOS) CAMBRIDGE (EUA)


EUA)

E Em julho passado, Joseph Giai-


me, professor de Física na Uni-
simples: o que significa,
ca, afinal, “sa-
ber alguma coisa”? Até que ponto
versidade do estado de Luisiana e nder o mundo,
é possível compreender
no Caltech (Instituto de Tecnologia quando uma parte tão ão importante
da Califórnia), falou-me de uma das ex- do nosso conhecimentonto assenta em
periências científicas mais complexas do elementos de prova e em argumen-
mundo. A partir do seu iPad, mostrou-me, tos aduzidos por outros?
tros?
através do Zoom, a sala de controlo do Ligo Esta questão não interessa ape-
(Observatório de Ondas Gravitacionais nas à comunidade científica.
entífica. Há do-
por Interferómetro Laser), vasto projeto mínios cada vez maisais complexos,
de investigação em colaboração, baseado e atualmente temos acesso a mais
[em Livingston] no Luisiana e [em Han- informação e mais pareceres
areceres de pe-
ford] no estado de Washington. Em 2015, ritos do que alguma a vez tivemos.
o Ligo foi o primeiro observatório a detetar Ao mesmo tempo, porém,orém, perante
diretamente ondas gravitacionais criadas uma polarização política
lítica cada vez
pela colisão de dois buracos negros a 1,3 mais exacerbada e uma
ma avalancha de
mil milhões de anos-luz. opiniões competentes,es, torna-se difícil
Cerca de 30 enormes ecrãs mostram distinguir as fontes e os dados fiáveis. Os
o progresso das suas diversas vertentes. progressos médicos,, o discurso político, a
O sistema acompanha permanentemente gestão de empresas e numerosos aspetos da
dezenas de milhares de fluxos em tempo bam-se no modo como
vida quotidiana estribam-se
real. Alguns ecrãs representam a dispersão avaliamos e distribuímos
uímos o saber.
da luz pelos sistemas óticos e há quadros Sobrestimamos enormemente a capaci-
de dados que registam as vibrações dos dade do indivíduo para
ara gerar conhecimento
instrumentos decorrentes de atividades e subestimamos, na a mesma proporção, o
sísmicas e humanas. papel da sociedade para aceder ao mesmo.
Eu estava interessado em visitar este Sabemos que o gasóleo
eo não é um combustível
projeto labiríntico, em que colaboram adequado aos motores res a gasolina e que as
centenas de cientistas especializados em otossíntese, mas sere-
plantas realizam a fotossíntese,
domínios de ponta, para tentar responder mos capazes de definirnir o que é o gasóleo ou
a uma pergunta aparentemente bastante ante a preparação deste
a fotossíntese? Durante

AUTOR DATA TRADUTORA


F Matthew Hutson 21.10.2020 Ana Caldas

30 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
artigo, apercebi-me de que o saber depende
tanto da confiança e das relações sociais como
dos livros académicos e das observações.

Saber em comunidade
Há 35 anos, o filósofo John Hardwig publi-
cou um artigo sobre a “dependência epis-
témica” [traduzido por Desidério Murcho
em 2018], expressão que designa a nossa
dependência relativamente ao saber dos
outros. O artigo mantém toda a atualidade,
numa altura em que a sociedade e o saber
são cada vez mais complexos.
Geralmente, definimos o saber como
“crença verdadeira justificada” – factos
que podemos sustentar através de dados
e um raciocínio lógico. Ora, à nossa escala
individual, raramente dispomos de tempo
e competências para justificarmos as nos-
sas crenças. Então, o que compreendemos
realmente quando dizemos saber alguma
coisa? Das duas, uma, explicava Hardwig:
ou grande parte do nosso saber apenas
pode ser detida por uma comunidade, e
não um indivíduo, ou os indivíduos podem
“saber” coisas que não compreendem ca-
balmente (e tendia mais para este segundo
postulado).
Isto pode parecer uma questão filo-
sófica abstrata. Afinal, seja o que for que
entendamos por “saber”, é evidente que
o que sabemos depende de outras pessoas.
“Se a questão fundamental é ‘quem detém
o conhecimento?’, isso não faz sentido e,
na verdade, não me interessa”, explica
Steven Sloman, especialista em psicologia
cognitiva na Universidade Brown e coautor
de The Knowledge Illusion [“A ilusão do
saber”, não traduzido para português].
“Se, em contrapartida, perguntarmos
‘em que nos baseamos para pretender
saber determinadas coisas?’ e ‘em quem
podemos confiar?’, então esta pergunta
torna-se urgente.”
A retirada de dois artigos sobre a Covid-19
publicados em junho passado, nas revistas The
Lancet e New England Journal of Medicine,
devido à confiança cega de investigadores num
colaborador pouco sério, é um exemplo do que
acontece quando a dependência epistémica é
mal gerida. E a avalancha de desinformação
sobre assuntos como as vacinas, as alterações
climáticas e a Covid-19 põe diretamente em

SABEMOS QUE O GASÓLEO NÃO É UM COMBUSTÍVEL ADEQUADO AOS


MOTORES A GASOLINA E QUE AS PLANTAS REALIZAM A FOTOSSÍNTESE,
MAS SEREMOS CAPAZES DE DEFINIR O QUE É O GASÓLEO OU A
FOTOSSÍNTESE? O SABER DEPENDE TANTO DA CONFIANÇA E DAS
RELAÇÕES SOCIAIS COMO DOS LIVROS ACADÉMICOS E DAS OBSERVAÇÕES

JANEIRO 2021 - N.º 299 31


Ciência

32 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
causa a dependência epistémica, sem a qual saiba de todos estes assuntos? Um fenómeno cientistas conheciam perfeitamente o fenó-
nem a Ciência nem a sociedade, como um de corrosão microbiana quase provocou meno; ao segundo, afirmou que se tratava
todo, podem funcionar. uma fuga no nosso tubo de feixe eletrónico de um fenómeno para o qual não existia
e, neste caso, o problema prendia-se com explicação; ao terceiro, que se tratava de
Partilhar competências biologia. Tudo se torna demasiado compli- um fenómeno conhecido mas classificado
Um livro de física experimental de 1786 cado para que uma única pessoa consiga como confidencial pelo departamento de
ocupava-se tanto de astronomia como de acompanhar tudo.” Defesa. De seguida, cada indivíduo avaliou
geologia, zoologia, medicina e botânica. Um episódio em particular veio pôr em a sua compreensão do fenómeno; os do pri-
Nessa altura, um leitor podia dominar o evidência a interdependência da equipa. meiro grupo atribuíram a si próprios uma
conjunto de conhecimentos humanos em Durante os primeiros oito anos de funcio- avaliação superior aos dos outros grupos,
todos esses domínios. Hoje, são domínios do namento, o Ligo não detetou qualquer onda como se o simples facto de o fenómeno
saber bem distintos, cada um dos quais, por gravitacional; depois, entre 2010 e 2015, poder ser compreendido significasse que
sua vez, gerou subdomínios. Atualmente, é encerrou para atualização dos aparelhos. já o compreendiam.
impossível possuir um saber enciclopédico. Dois dias após ser reaberto, captou um sinal Mas apropriar-se do saber dos outros
Para obter qualquer resultado fora de que era “tão belo que ou se tratava de um não é tão tonto como parece. Em 1987, o
um domínio de ponta, os cientistas são maravilhoso presente ou era suspeito”, psicólogo Daniel Wegner referiu um as-
obrigados a partilhar as suas competên- conta Peter Saulson, físico na Universi- peto da cognição coletiva a que chamava
cias. As colaborações multiplicaram-se dade de Syracuse, que dirigiu a Colabora- “memória transacional”, conceito que se
à medida que novas tecnologias como a ção Científica Ligo de 2003 a 2007. Seria baseia no facto de cada um de nós saber
internet vieram facilitar as comunicações. possível que alguém tivesse introduzido determinadas coisas e saber igualmente
Entre 1990 e 2010, o número médio de au- um sinal falso? Após várias verificações, quem possui outro tipo de conhecimentos.
tores de um artigo científico passou de 3,2 os investigadores concluíram que nenhum Outros investigadores que estudam a
para 5,6. Em 2015, um artigo sobre a massa indivíduo conseguia, só por si, dominar memória transacional pediram a grupos de
do bosão de Higgs era atribuído a mais de suficientemente o sistema na sua totali- três pessoas que montassem um aparelho de
cinco mil autores. dade para conseguir sabotá-lo. Um ato de rádio. Alguns grupos tinham-se preparado
Em 2016, o artigo que anunciava a pri- pirataria credível exigiria a intervenção de para a tarefa em equipa, enquanto nou-
meira deteção de ondas gravitacionais pelo um pequeno exército de pessoas mal-in- tros grupos uma ou mais pessoas se tinham
Ligo era subscrito por mais de mil inves- tencionadas. “Imaginar uma equipa de ge- preparado individualmente. Os primeiros
tigadores. Será que todos compreendem niozinhos do mal era uma ideia ridícula”, recorreram mais à memória transacional,
cabalmente cada aspeto daquilo que assi- continua Saulson. Assim, concluiu-se que privilegiando a especialização, a coordena-
naram? “Creio que muitos compreendem o sinal era real e provinha da colisão de dois ção e a confiança. Além disso, cometeram
o essencial a um nível muito elevado”, buracos negros. “Acabou por prevalecer metade dos erros dos restantes, durante
garante David Reitze, físico no Caltech e um argumento sociológico”, conclui. a fase final.
diretor executivo do Ligo, a propósito dos Nenhum membro destes trios tinha
resultados da equipa. Mas a grande ques- Ilusão da explicação profunda mais capacidade para montar um apare-
tão prática reside no seguinte: “Como é É frequente sobrestimarmos a nossa capa- lho de rádio do que aqueles que se tinham
possível saber que esse detetor comple- cidade para explicar determinadas coisas. preparado individualmente. No entanto,
xo, que comporta centenas de milhares Chama-se a isso “ilusão da explicação pro- enquanto grupo – o modo normal de fun-
de elementos, componentes eletrónicas e funda”. Numa série de experiências, foi cionamento dos seres humanos –, o sucesso
canais de dados, se comporta corretamente pedido aos participantes que avaliassem deveu-se à sua dependência epistémica.
e mede verdadeiramente o que pensamos a sua compreensão do funcionamento de
que está a medir?” E prossegue: “É isto Perguntar sempre
dispositivos e de fenómenos naturais, como
que devia preocupar centenas de pessoas os fechos-éclair e o arco-íris. Depois, ti-
Reconhecer que o nosso saber depende
[enquanto equipa]”. nham de tentar explicá-los. Confrontadosdo saber dos outros permite retirar vários
Segundo Joseph Giaime, que dirige as com a própria ignorância, a autoavaliação
ensinamentos. O mais simples consiste
instalações de Livingston, mais de metade desceu em flecha. em tomar consciência de que se domina
menos bem do que se pensava
RECONHECER QUE O NOSSO SABER DEPENDE DO SABER DOS OUTROS determinado assunto. Portanto,
PERMITE RETIRAR VÁRIOS ENSINAMENTOS. O MAIS SIMPLES CONSISTE operguntas melhor é perguntar – mesmo
idiotas.
EM TOMAR CONSCIÊNCIA DE QUE SE DOMINA MENOS BEM DO QUE SE Reconhecer a sua dependên-
cia epistémica pode, igualmente,
PENSAVA DETERMINADO ASSUNTO. PORTANTO, O MELHOR tornar um debate mais rico. Num
artigo de 2013, Peter Sloman es-
É PERGUNTAR – MESMO PERGUNTAS IDIOTAS tudou o papel da “ilusão da ex-
dos coautores do artigo nunca pôs os pés Esta ilusão assenta, sem dúvida, naquilo plicação profunda” na polarização política.
em nenhuma das instalações do obser- a que Steven Sloman chama “compreensão Cidadãos norte-americanos começaram
vatório, visto o seu papel não o exigir. E por contágio”. Noutra série de experiências, por avaliar a sua compreensão – e aprova-
frisa que, para justificar os resultados do os participantes foram divididos em três ção – das políticas de saúde e fiscais, assim
observatório, uma pessoa deveria dominar grupos, a quem foram dadas informações como outros dossiers sensíveis. Depois,
diversos aspetos da Física, da Astronomia, diferentes sobre um fenómeno natural fic- tinham de explicar os pormenores dessas
da Eletrónica e da Engenharia Mecânica. tício, como rochas fosforescentes. O inves- políticas. Ao longo do exercício, quanto
“Existirá no mundo uma única pessoa que tigador garantiu ao primeiro grupo que os mais aumentava a sensação de não as com-

JANEIRO 2021 - N.º 299 33


Ciência

A gestão da pandemia minou


a confiança nos peritos
As reviravoltas nas instruções dadas e a falta de transparência sobre os seus fundamentos
lançaram a confusão entre a população. Quem paga as favas: os cientistas.

Lembra-se, decerto, que há poucos meses, tanto em França o professor Didier Raoult, que afirmou as suas verdades sem
como em diversos países asiáticos, a uso da máscara não era nunca emitir qualquer dúvida, é disso exemplo acabado. “Pode ser
recomendado para todos. A mensagem inicial da Organização tentador, em tempos de crise, oferecer certezas apenas – mas, por
Mundial da Saúde (OMS) frisava apenas a necessidade da definição, um perito tem a obrigação de saber em que momento
máscara em ambientes médicos, onde os pacientes infetados confessar dúvidas, além de dever ter plena consciência da natureza
podiam tossir diretamente ou perto do pessoal de saúde. transitória dos nossos conhecimentos”, continuam os dois autores.
Nessa altura, sabia-se muito pouco sobre este novo vírus, e os Para Roxanne Khamsi, jornalista da WIRED, o problema prende-se
peritos pensavam que se comportaria de forma semelhante ao mais com o facto de as decisões – recolher obrigatório, duração
da gripe. Estávamos ainda muito longe do consenso sobre os da quarentena, distância de segurança, etc. – serem apresentadas
aerossóis que emitimos quando respiramos, o que levou a OMS, como baseadas em provas científicas sólidas que raramente são
desde então, a considerar que “o uso da máscara faz parte das divulgadas. E acrescenta: na primavera, já havia cerca de quatro mil
medidas essenciais para travar a transmissão e salvar vidas”. publicações sobre a Covid-19 por semana, e os próprios cientistas
Mas estas reviravoltas nos discursos das autoridades públicas andavam um pouco perdidos com tanta informação. Em que se
lançaram a confusão e minaram a confiança que a população nelas basearam, então, as autoridades para tomar as suas decisões?
depositava. “Quando as autoridades de saúde apresentam norma atrás de
“O principal problema decorre do ar de segurança com que foram norma, sem justificação clara e científica, esses conselhos acabam
anunciadas decisões inoportunas”, consideram Stuart Ritchie, por parecer arbitrários e voláteis. Isso corrói a confiança do público
psicólogo, e Michael Story, cocriador de uma aplicação que e torna mais difícil a aplicação de regras que fazem sentido – para
ajuda a tomar decisões, num artigo que ambos assinaram no site esta pandemia e para qualquer assunto relacionado com saúde
UNHERD. “Quando se toma determinada decisão sem referir as pública no futuro.”
necessárias reservas, torna-se muito difícil, ao mudar a situação, Acresce que a retirada hipermediatizada de estudos publicados em
recuar sem perder a face.” duas das mais conceituadas revistas médicas mundiais, em junho,
Para estes autores, a crise de confiança que atravessamos é também terá tido impacto na confiança do público na Ciência.
da responsabilidade dos próprios peritos, que não souberam Para o THE GUARDIAN, “poderá ser extremamente prejudicial num
comunicar as incertezas e asassu
sumi
mirr a su
assumir suaa ig
igno
norâ
rânc
ncia
ia. Em FFra
ignorância. ranç
nçaa,
França, ambi
am bien
ente
ambientete em
em qu
quee mu
muititaa ge
muita gent
ntee já n
gente não
ão cco
o
confia nos cientistas”.

34 JANEIRO 2021 - N.º 299


preender, mais moderadas eram as suas quando se questiona o seu conhecimento.
colisão de dois buracos negros em 2015, foi
posições. Com efeito, não é possível de- Num artigo de 2001, intitulado “Experts:
também observada por radiotelescópios,
fender posições firmes sobre bases frágeis. telescópios de raios gama, telescópios de
Which Ones Should You Trust?” [“Peritos:
Ninguém compreende o Obamacare, nem em quem confiar?”], Alvin Goldman, pro-raios X e telescópios para a luz visível. Tal
sequer o próprio Obama, brinca Sloman. “É observação apenas foi possível porque os
fessor de Filosofia na Universidade Rutgers,
demasiado longo, demasiado complicado. propunha utilizar o indicador da “superio-
detetores Ligo e Virgo [em Itália] parti-
É mais fácil resumi-lo nalguns slogans que ridade dialética”. Num debate entre dois
lhavam os seus dados, o que lhes permitiu
deixam escapar 99,9% do essencial.” peritos, aquele que exibe “relativa rapidez
situar rapidamente o local da colisão.
Mas a dependência episte-
O CONHECIMENTO NÃO SE FRAGMENTA ENTRE INDIVÍDUOS. TALVEZ mológica também apresenta in-
convenientes. Basta pensar no
NÃO SEJAMOS CAPAZES DE DEFINIR A FOTOSSÍNTESE, MAS FAZEMOS custo da renovação do pessoal
PARTE INTEGRANTE DO ECOSSISTEMA, QUE PODE NÃO SÓ DEFINI-LA nas empresas. Quando uma pes-
soa que constitui um elo essencial
MAS TAMBÉM EXAMINÁ-LA À ESCALA MAIS ÍNFIMA E MANIPULÁ-LA de um projeto sai da empresa,
perdem-se elementos de saber e
A BEM DE TODOS. AFINAL, O QUE SABE CADA UM DE NÓS? competências coletivas que ne-
SABE O QUE OS OUTROS SABEM nhum outro membro, sozinho,
pode compensar. Para concluir
O artigo fundador de Hardwig sobre a e desembaraço” e contra-argumenta mais a visita ao Ligo, Joseph Giaime mostra-me
dependência epistémica permite chegar a facilmente poderá considerar-se como o uma placa afixada no seu gabinete. Em 2016,
outra conclusão. A ideia, aparentemente que domina perfeitamente o assunto. No o prémio Física Fundamental foi atribuído
evidente, segundo a qual a racionalidade entanto, este indicador não deixa de ter à Colaboração Científica Ligo. “Testemunha
consiste em pensar pela própria cabeça falhas – ter resposta para tudo não é, for- uma nova era das ciências, em que as gran-
“configura um ideal romântico perfeita- çosamente, positivo. des equipas podem, em conjunto, ganhar
mente irrealista”, frisou o autor. Se obede- O artigo expunha outros quatro índices prémios”, comenta.
cêssemos a esse ideal, nunca conseguiríamos de fiabilidade do parecer de um perito: a As recompensas adaptam-se à forma
senão “manter crenças relativamente mal aprovação de outros peritos; referências como a Ciência funciona, hoje em dia. Os
informadas e grosseiras” a que teríamos ou reputação; provas de tendenciosidade investigadores sempre dependeram uns
chegado sozinhos. Em vez de pensar por ou de conflito de interesses; histórico dos dos outros para colmatar lacunas do sa-
nós, devíamos confiar nos peritos, mais ain- resultados anteriores. Embora reconhe- ber, mas a especialização e a colaboração
da do que já confiamos. Para ser racional, é cendo que cada um dos indicadores tem desenvolveram-se consideravelmente e
tão importante aconselhar-se como pensar o seu senão, considerava que o mais útil integram redes internacionais de peritos
pela própria cabeça. Se não aprofundarmos era o referido em último lugar. Ainda que de determinadas disciplinas. A Colabora-
um pouco determinado assunto, acaba- a apreciação dos títulos e trabalhos possa ção Científica Ligo envolve centenas de
remos por engolir o que nos oferecerem. parecer incidir mais sobre a pessoa do que pessoas, muitas das quais nunca se encon-
Para verificar um facto, o melhor é sobre elementos concretos, isso não é ne- traram. Utilizam instrumentos e conhe-
ver se diversos peritos o validam. “Sou cessariamente negativo: “Parece-me muito cimentos desenvolvidos por milhares de
diabética, mas nunca me lembraria de mais fácil avaliar a credibilidade de alguém outras pessoas, que, por sua vez, confiam
procurar dados sobre um ensaio clínico do que tentar dominar todo o saber que nos instrumentos e conhecimentos de
e analisá-los”, afirma Gabriela González, possui. É mil vezes mais cómodo.” Quanto milhões de outras. Esta organização não
física na Universidade de Luisiana, que às referências universitárias: “Talvez eu seja acontece por acaso: passa por sistemas
também dirigiu a Colaboração Científica elitista, mas parece-me que um diploma técnicos e sociais aperfeiçoadíssimos que
Ligo. Em vez disso, procura um consenso de uma instituição conceituada significa trabalham lado a lado. A confiança gera
médico nos artigos de atualidade sobre alguma coisa.” elementos de prova que, por sua vez, ge-
potenciais tratamentos. Pode também Em última análise, o conhecimento tem ram confiança, e assim sucessivamente. O
acontecer que um perito independente tanto que ver com elementos de prova como mesmo acontece com a sociedade, no seu
verifique declarações de outro perito. No com confiança. A dependência epistémica todo. Se comprometermos os sistemas de
domínio científico, este é o processo de mostra a importância de partilhar os traba- prova e de confiança que nos reforçam, a
avaliação pelos pares. No Ligo, há comités lhos em curso. Antes dos interferómetros, nossa capacidade de saber e fazer seja o
que avaliam cada fase de cada experiência. numa época em que os físicos tentavam que for desmoronar-se-á.
Podem recorrer a peritos independentes detetar a passagem de ondas gravitacionais E talvez possamos ver aqui uma lição
que mergulharão em códigos escritos por pela vibração de barras de alumínio, pro- mais vasta, porventura filosófica: sabemos
outros, ou apenas colocar algumas dúvidas tegiam zelosamente os seus dados brutos e muito menos do que pensamos, mas ao
muito específicas. Os investigadores que partilhavam apenas as listas de deteções que mesmo tempo sabemos mais. O conheci-
analisam dados combinados utilizam em pensavam ter efetuado. Depois, começaram mento não se fragmenta entre indivíduos.
paralelo vários algoritmos, todos escritos a confiar mais uns nos outros e a colaborar Talvez não sejamos capazes de definir a fo-
por pessoas diferentes. mais intimamente. Se os físicos do Ligo tossíntese, mas fazemos parte integrante do
e outros detetores tivessem mantido os ecossistema que pode não só defini-la mas
Em quem confiar? métodos anteriores, afirma Giaime, “po- também examiná-la à escala mais ínfima
Outra forma de verificação, que utiliza- díamos ter passado ao lado da descoberta e manipulá-la a bem de todos. Afinal, o
mos instintivamente na vida quotidiana, do século” – a fusão, em 2017, de duas que sabe cada um de nós? Sabe o que os
consiste em ver como as pessoas reagem estrelas de neutrões que, ao contrário da outros sabem.

ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE JANEIRO 2021 - N.º 299 35
Ciência

O analfabetismo
estatístico
pode ser fatal
Somos bombardeados, há meses, com números e conceitos estatísticos
de todo o tipo. É imperioso que saibamos interpretá-los

THE GUARDIAN (EXCERTOS) LONDRES

N No instituto onde eu trabalhava


há uns poucos anos, uma doença
numa universidade. Nós, professores, que
sabemos tudo sobre todos os assuntos,
rara e não infeciosa atingiu cinco tínhamos cometido um erro estatístico
colegas, um após outro. A notícia grosseiro. Estávamos convencidos de que
provocou natural preocupação e procu- um número de doentes “superior à média”
rou-se a causa do problema. O edifício exigia uma explicação.
tinha albergado, no passado, um labora-
tório de biologia, pelo que pensámos que Raciocínio probabilístico
pudesse tratar-se de uma contaminação A vida está cheia de casos semelhantes.
química, mas nada permitia confirmar As estatísticas são frequentemente mal
essa hipótese. compreendidas. A atual pandemia obri-
Uma noite, ao jantar, falei do caso a gou-nos a basear-nos num raciocínio pro-
um amigo, matemático, que perguntou: babilístico – os governos, que aconselham
“Há quatrocentos mosaicos no chão desta um comportamento baseado em previsões
divisão; se eu atirar ao ar cem grãos de estatísticas, e a população, que calcula o
arroz, achas que vão cair cinco grãos em risco de apanhar o vírus se participar em
cada mosaico?” A resposta, obviamente, atividades coletivas. O nosso desconhe-
foi negativa. A experiência foi repetida cimento das estatísticas é especialmente
várias vezes e, em todas, havia sempre perigoso nos dias que correm.
um mosaico com dois, três, quatro, cin- Utilizamos quotidianamente um ra-
co ou mesmo mais grãos. Porque é que ciocínio probabilístico e a maioria de nós
esses grãos de arroz “lançados ao acaso” compreende vagamente conceitos como
não caem de forma homogénea, à mesma médias, variabilidade e correlações. Mas
distância uns dos outros? utilizamo-los de forma aproximativa e,
Justamente porque caem ao acaso e há frequentemente, cometemos erros. As
sempre grãos indisciplinados que caem estatísticas afinam estes conceitos, dan- e estatística: de forma simples, na escola
em mosaicos onde já há outros grãos. De do-lhes uma definição mais precisa, o que primária e com maior profundidade na
repente, olhei com outros olhos para o nos permite, por exemplo, avaliar com escola secundária. O raciocínio de tipo
estranho caso dos cinco colegas doentes. segurança se um medicamento ou um probabilístico ou estatístico é uma fer-
O facto de terem adoecido no local de tra- edifício são perigosos ou não. ramenta potente de avaliação e análise.
balho não significava, obrigatoriamente, A sociedade obteria vantagens signifi- Não a ter à nossa disposição deixa-nos
que este estivesse contaminado. Esse ins- cativas se as crianças aprendessem as ideias indefesos. Não ser claro sobre noções
tituto onde eu trabalhava estava inserido fundamentais da teoria da probabilidade como média, variabilidade, flutuações e
correlações é como não saber fazer uma
conta de multiplicar ou de dividir.
AUTOR DATA TRADUTORA A falta de familiaridade com as estatís-
F Carlo Rovelli 26.10.2020 Ana Caldas ticas leva muitas pessoas a confundirem
probabilidade e imprecisão. No início da

36 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
Autor

Carlo Rovelli
É físico e filósofo da ciência, autor
de obras de divulgação científica
de sucesso internacional. Trabalha
atualmente no Centro de Física
Teórica de Luminy, em Marselha.

Na década de 1930, o filósofo e mate-


mático Bruno de Finetti introduziu uma
ideia que se revelou fundamental para
compreender a probabilidade: para ele, a
probabilidade não se refere a um sistema (o
dado, o átomo em decomposição, o tempo
que fará amanhã), mas ao conhecimento
que dele temos. Quando dizemos que a
probabilidade de chover amanhã é elevada,
expressamos o nosso grau de ignorância
sobre as condições atmosféricas.
Sabemos muitas coisas, mas ignoramos
ainda mais. Não sabemos quem vamos en-
contrar amanhã na rua, não conhecemos
as causas de muitas doenças nem as leis
físicas mais fundamentais que regem o
universo. Não sei se, caso apanhe o vírus,
sobreviverei. Mas essa falta de conheci-
mento não significa que não sabemos nada,
e as estatísticas são um instrumento eficaz
para nos orientar quando não estamos na
posse de todas as informações, ou seja,
quase sempre.
Hoje, as taxas de mortalidade, de
infeção e o R efetivo [número médio de
pessoas infetadas por cada doente] estão na
ordem do dia. Se dominássemos melhor as
estatísticas e a probabilidade, estaríamos
mais apetrechados para compreender o
que sabemos da pandemia mas também
para tomar decisões mais acertadas, por
exemplo, no equilíbrio dos riscos e na
avaliação da segurança de determinados
pandemia, os cientistas encarregados de meteorológicas ou da sociologia. Tomemos comportamentos. Nenhum comporta-
cartografar e modelizar a propagação do dois exemplos: é graças às estatísticas que mento nos previne totalmente contra a
vírus no Reino Unido foram acusados de sabemos que fumar faz mal à saúde e que infeção, mas também não existe forma de
apresentar estimativas e não uma des- o amianto mata. garantir, com toda a certeza, que vamos
crição precisa da gravidade da doença. apanhar esta doença.
Todavia, essas críticas a propósito das Estatísticas ajudam a orientar Num mundo tão incerto, é tolice pre-
suas “previsões incertas” decorrem de O que é, afinal, a probabilidade? A defini- tender ter certezas absolutas. Geralmente,
um mal-entendido, porque é justamente ção tradicional assenta na “frequência”: quem as tem acaba por ser o menos fiável.
quando é preciso gerir a incerteza que as se lançarmos um dado centenas de vezes, Contudo, isso não significa que estejamos
estatísticas se revelam úteis. obteremos o 1 uma em cada seis vezes, o numa ignorância total. Entre a certeza e
Sem probabilidade nem estatísticas não que resulta numa probabilidade de 1/6. a incerteza absoluta, existe um espaço
poderíamos beneficiar da medicina mo- Outra conceção de probabilidade pren- precioso, e é nesse espaço que tomamos
derna, da mecânica quântica, das previsões de-se com a propensão. decisões e vivemos.

JANEIRO 2021 - N.º 299 37


Ciência

SETE PERGUNTAS

É SEGURA A
VACINA DA PFIZER
E DA BIONTECH?
O resultado provisório sobre a eficácia da vacina,
anunciado pelos dois laboratórios, é sensacional.
Mas ainda não podemos pôr de lado a máscara

REVISTA DE IMPRENSA

38 JANEIRO 2021 - N.º 299


O O anúncio dos laborató-
rios Pfizer (americano) e
Porém, segundo declarou à Scien-
ce, o investigador Peter Hotez prefere
no grupo placebo”, alerta, na NATURE,
Paul Offit, especialista em vacinas na
BioNTech (alemão) do dia 9 aguardar um pouco antes de abrir a gar- Universidade da Pensilvânia, que integra
de novembro foi uma verda- rafa de champanhe. “Membro de uma a comissão consultiva da FDA, a qual
deira bomba. Segundo os resultados equipa de investigadores que trabalham deverá no próximo mês avaliar a vacina.
preliminares da terceira fase de ensaios no desenvolvimento de uma vacina con- “Isso significaria que a vacina consegue
clínicos, a sua candidata a vacina contra tra o SARS-CoV-2, o vírus na origem da prevenir o aparecimento desses casos.”
a Covid-19 teria uma eficácia de 90 por Covid-19, Peter Hotez exprime o sen- Do mesmo modo, não se sabe se a
cento. Um resultado impressionante timento de inúmeros cientistas quando vacina reduz o risco de hospitalização
que toda a Imprensa mundial noticiou. adverte que, apesar dessa ‘aparente boa ou até de morte, observa Maria Elena
E alguns países como o Japão, o Reino notícia, é sempre difícil ler nas entreli- Bottazzi, codiretora do Texas Children’s
Unido, o Canadá, ou a própria União nhas de um comunicado de imprensa’, Hospital Center for Vaccine Develop-
Europeia já celebraram acordos de for- sobretudo quando não estamos na posse ment, quando interrogada pelo BUSINESS
necimento para obter doses do precioso dos dados em que o mesmo se baseia”, INSIDER. Acresce que o estudo apenas
elixir, anuncia o Nikkei Asia. lê-se na revista científica. levou em consideração pessoas que
Com efeito, neste momento, ne- apresentavam sintomas e que tinham
nhuma publicação científica testado positivo. “Isto significa que não
permite descodificar estes é claro se a vacina protege igualmente
resultados, já que os dados contra os casos assintomáticos”, conti-
em bruto não são públicos. nua o BUSINESS INSIDER.
Para saber o que foi feito,
temos de nos contentar com A vacina impede
o protocolo apresentado antes a transmissão do vírus?
do início do ensaio e confiar Uma vacina que bloqueasse a trans-
na palavra dos laboratórios missão do vírus permitiria pôr termo
através do seu comunicado de rapidamente à pandemia. Para tal, teria
imprensa. de prevenir também os casos assinto-
Oiçamos ainda Jesse máticos ou as formas muito ligeiras da
Goodman, antigo responsável doença, coisa que não está provada. Na
científico da Agência Americana NATURE, Florian Krammer, virologista
dos Medicamentos (FDA), em na Icahn School of Medicine de Mount
que dirigiu também o serviço Sinai, em Nova Iorque, e que é simulta-
de vacinas antes de trabalhar na neamente um dos 43 538 participantes
Universidade Georgetown, que no ensaio, opina que “será difícil deter-
afirmou à Science: “Há ainda minar se a vacina da Pfizer, ou outras na
muitos aspetos a resolver.” Veja- última fase dos ensaios, podem produ-
mos os principais. zir esse resultado, pois para isso seria
necessário testar sistematicamente os
Esta vacina protege participantes nos ensaios”. E acrescenta:
contra todas as formas “É impossível fazê-lo a 45 mil pessoas.”
da doença, ligeiras e graves? Em suma, não se sabe se a vacina
É difícil responder neste mo- impede a transmissão. E, noutro artigo,
mento. O comunicado não fornece o BUSINESS INSIDER avisa: já que se ignora
qualquer pormenor sobre a natureza se a vacina impede a transmissão, o me-
das infeções contra as quais a vacina lhor é não deitar fora as máscaras! Maria
protege. Quando se faz um ensaio Elena Bottazzi expressa a sua preocupa-
deste tipo, compara-se o número de ção: “Espero que as pessoas não pensem
doentes no grupo a quem foi inje- que a vacina é a solução milagrosa para
tado um placebo com o número de todos.”
doentes no grupo vacinado. E convém
analisar a repartição das infeções A vacina é eficaz para todos
(quantos infetados apresentam uma os grupos de pessoas?
forma severa da doença e quantos Mais uma vez, não dispomos de da-
apresentam sintomas ligeiros) para dos suficientes para podermos pronun-
perceber realmente o alcance de prote- ciar-nos. “Não sabemos como [a vacina]
ção da vacina. funciona nas pessoas idosas”, observa a
“Gostaríamos de ver, pelo me- SCIENCE. Conviria também garantir que
nos, alguns casos graves de Covid-19 a vacina protege pessoas com outras

AUTOR DATA TRADUTORA


F Não assinado 30.11.2020 Ana Caldas

ILUSTRAÇÕES DE MARTIRENA, CUBA JANEIRO 2021 - N.º 299 39


Ciência

doenças e assegurar a eficácia nas mino- da Pfizer em particular –, demonstra clínico”, informa o site MEDICAL XPRESS.
rias mais afetadas, nomeadamente nos otimismo: “Mesmo uma vacina parcial- Estes dados são necessários para a EMA
Estados Unidos da América. mente eficaz pode ter um efeito signifi- redigir o parecer no qual se baseará
cativo durante uma pandemia.” a Comissão Europeia para poder dar
Quanto tempo dura a proteção? consentimento à comercialização da
“Será eficaz durante alguns meses, Qual é o calendário antes vacina.
como acontece com a vacina da gripe? da colocação no mercado Entretanto, a Pfizer e a sua associada
Ou, como nos casos da rubéola ou da da vacina da Pfizer/BioNTech? anunciaram que conseguiriam produzir
varíola, a imunidade será permanen- A fase III vai prosseguir, mas a Pfizer 50 milhões de doses da vacina em 2020 e
te?”, interroga, no WALL STREET JOURNAL, já anunciou que vai solicitar à FDA um máximo de 1,3 mil milhões de doses
Gregory Poland, diretor do grupo de autorização de utilização com caráter de em 2021. “Mas ainda não decidiu de que
investigação sobre vacinas da Mayo urgência por volta da terceira semana forma serão essas doses repartidas entre
Clinic. É ainda muito cedo para saber. de novembro. Nessa altura, os partici- países”, revela o BUSINESS INSIDER.
No entanto, no estado atual do conhe- pantes terão sido seguidos durante dois “E, se os investigadores quiserem
cimento sobre a resposta do sistema meses, em média, como exige a Agência consultar os dados relativos aos ensaios
imunitário ao SARS-CoV-2, é provável Americana dos Medicamentos. clínicos da vacina da Pfizer, serão ine-
que a proteção da vacina não se estenda Caso a autorização seja concedida, vitáveis alguns compromissos”, conclui
por muitos anos. esse procedimento permitirá acelerar a NATURE. “Neste momento, precisamos
“Se o ensaio durar ainda alguns me- o processo de homologação e, depois, a de uma vacina que funcione”, ainda que
ses, teremos oportunidade de responder produção. Do outro lado do Atlântico, possa não ser eficaz após alguns meses
a essa pergunta”, insiste, na NATURE, Rafi a Agência Europeia de Medicamentos ou não impeça a transmissão do vírus,
Ahmed, imunologista na Universidade (EMA) já recebeu informações da Pfizer/ salienta Florian Krammer, que insiste:
Emory, em Atlanta. Será necessário BioNTech, que estão a ser analisadas, “Precisamos de uma vacina para voltar-
esperar para ter a certeza de que a pro- “mas não recebeu os dados do ensaio mos a uma vida normal.”
teção dura, pelo menos, alguns meses.

A vacina não apresenta riscos?


Segundo a SCIENCE, “até hoje, o en-
saio não revelou qualquer problema de
segurança de maior”. As várias fases de
um ensaio clínico permitem garantir a
inocuidade do produto injetado. E a fase
III, a última, deve abranger pessoas em
número suficiente para verificar se sur-
gem eventuais efeitos secundários relati-
vamente raros ou pouco preocupantes.
Mesmo após a homologação, as
vacinas exigem avaliação minuciosa, na
também chamada “fase IV”. De facto, os
efeitos indesejáveis podem ser demasia-
do raros para serem detetados durante
o ensaio clínico, mas suficientemente
graves para que a vacina seja imprópria
para utilização generalizada.
“Importa, do mesmo modo, conti-
nuar a seguir durante vários anos as pes-
soas que receberam a vacina”, informa a
BLOOMBERG. É possível que passe bastante
tempo até que sejam identificados
alguns efeitos indesejáveis. O acompa-
nhamento a longo prazo pode ser tanto
mais necessário quanto a tecnologia
ARN mensageiro utilizada nesta vacina
nunca, até hoje, foi experimentada em
humanos.

Bom, mas afinal trata-se


de uma boa notícia?
Claro! Susanne Hodgson, do Insti-
tuto Jenner da Universidade de Oxford,
que trabalha na investigação de vacinas
e falou à NEW SCIENTIST dos ensaios de va-
cinas contra a Covid-19 em geral – não

40 JANEIRO 2021 - N.º 299


Ciência

A INUTILIDADE
DE NOVAS
DESCOBERTAS
Para dar resposta aos grandes desafios contemporâneos como as alterações
climáticas ou as desigualdades, já não é necessária a Ciência, defende, à laia
de provocação, este físico polaco. Tanto mais que a Ciência atravessa
uma profunda crise de credibilidade, reconhecimento e governação

GAZETA WYBORCZA (EXCERTOS) VARSÓVIA

U Uma radiografia custa poucos


dólares e entre a descoberta, em
raios X em viaturas que se deslocavam até às
frentes de combate para examinar feridos.
de investimentos significativos, os fracos
progressos obtidos em 20 anos no domí-
1895, dos raios X pelo físico ale- As imagens por ressonância magnética nio da imagem não permitem excluir que a
mão Wilhelm Röntgen e a sua apli- custam cem vezes mais; só um aparelho pode próxima tecnologia, se chegar a aparecer,
cação na medicina, passou um ano apenas. custar um milhão de dólares. Passaram três produza imagens a um custo de dez mil dó-
Assim, durante a Primeira Guerra Mundial, décadas entre a compreensão dos fenómenos lares cada, o que estará ao alcance de muito
Maria Sklodowska-Curie [conhecida como físicos em que se baseia o seu funcionamento poucas pessoas.
Madame Curie] pôde instalar aparelhos de e a comercialização dos aparelhos. Apesar Outro exemplo: uma dose de nusiner-
sen, medicamento moderno produzido nos
EUA para tratamento da atrofia muscular
espinhal [doença hereditária que provoca a
AUTOR DATA TRADUTORA atrofia dos músculos], custa 70 mil euros. O
F Piotr Wasylczyk 26.09.2020 Ana Caldas desenvolvimento deste medicamento durou
dez anos e custou mais de mil milhões de dó-

42 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE
lares. Mesmo que algum dia conseguíssemos ninguém e nunca sairão da esfera científica.
descobrir uma vacina que impedisse, por E, mesmo nesta esfera, comunicar os resul-
exemplo, o desenvolvimento de determina- tados de modo a chegarem aos potenciais
dos tumores, bastaria que nas redes sociais Autor destinatários não é tão simples assim, tendo
alguém dissesse que provoca o autismo para em conta os 2,5 milhões de artigos científicos
dissuadir a população de a utilizar.
Desde 1980 não surgiu nenhuma família
Piotr Wasylczyk publicados todos os anos.
Conscientemente ou não, a grande
de antibióticos. Os novos tratamentos não É professor-investigador na área da maioria dos investigadores, em especial
passam de modificações de compostos co- Física na Universidade de Varsóvia no campo das ciências naturais, continua a
nhecidos, o que poderá provocar o apare- e na University College London, trabalhar seguindo o paradigma do alqui-
cimento de estirpes bacterianas totalmente Reino Unido. Especialista em mista que pensa que, graças à descoberta de
resistentes aos medicamentos e o regresso a lasers e em materiais e minirrobôs uma substância ou tecnologia, chegaremos
uma situação em que mesmo infeções benig- que reagem à luz, participa, na a um ponto de viragem que, se tudo correr
nas podem ter consequências muito graves. Polónia, em diversas iniciativas bem, mudará a vida de muitas pessoas. No
Fica bem patente, pelo exposto, a com- de divulgação dos resultados entanto, as experiências das últimas décadas
plexa articulação entre Ciência, indústria e da investigação e de difusão da mostram que nunca se conseguiu descobrir
política. As empresas farmacêuticas não estão Ciência. Este polémico texto a pedra filosofal que irá garantir a vida ou a
interessadas em investir na investigação de sobre a utilidade da Ciência e dos prosperidade eterna (ou, senão eterna, pelo
novos compostos; mesmo que fosse desco- investigadores suscitou inúmeras menos mais duradoura).
berto um superantibiótico, as autoridades reações na comunidade científica. As descobertas da natureza da luz, dos
poderiam preferir não o colocar no mercado, eletrões e da estrutura atómica da matéria
conservando-o antes como arma de último lançaram os fundamentos da eletrónica, dos
recurso. bem como sobre as condições necessárias lasers e dos computadores. A compreensão
para que os jovens tenham prazer em apren- dos mecanismos da vida das células permitiu
Conclusões injustificadas der e desenvolver as áreas da sua predileção. perceber as causas de numerosas doenças
Da fase da investigação até às consequências Todavia, as escolas e universidades parecem e encontrar meios de as tratar. Parece que
nas práticas sociais, passando pela inter- não ter mudado um milímetro em 100 anos hoje, por hábito, continuamos a acreditar
pretação e a comunicação dos resultados, e nem sempre formam pessoas responsáveis, que esta época fantástica prosseguirá.
a nutrição é bem elucidativa do fracasso da empáticas e com capacidade para pensar de É difícil prever (sobretudo o futuro…),
Ciência, como se vê pela epidemia de obesi- forma autónoma. mas parece que a descoberta da massa do
dade que afeta praticamente todos os países bosão de Higgs, a compreensão da evolução
do mundo. As recomendações alimentares Bolha isolada? dos buracos negros e a formulação de uma
começaram a ser publicadas nos EUA nas Qual é, então, o verdadeiro impacto na vida teoria das cordas coerente não terão qualquer
décadas de 1950 e 1960 em resposta ao súbito real das centenas de milhares de publicações impacto sobre as nossas vidas. Talvez o perío-
aumento, observado após a Segunda Guerra produzidas por universidades e centros de do da História da nossa civilização em que a
Mundial, de mortes causadas por doenças investigação de todo o mundo nos domínios Ciência contribuiu para melhorar as nossas
cardiovasculares. Um novo exame dos re- da pedagogia e das ciências da educação? Po- vidas e nos tornou mais humanos graças à
sultados de experiências da época revelou, dem as descobertas existir numa bolha isolada descoberta de determinados fenómenos da
porém, uma série de práticas duvidosas. da realidade das sociedades que financiam Natureza esteja a acabar.
Verificaram-se diversos casos de con- os investigadores? Claro que, com dinheiro, As taxas de mortalidade dos recém-nas-
clusões injustificadas e interpretadas de tempo e métodos cada vez mais aperfeiçoados cidos, após as quedas impressionantes que
modo arbitrário, por exemplo, ignorando é sempre possível colocar questões e procu- precederam o final do século XX, estagnaram
os resultados que não correspondiam às hi- rar respostas; mas acontece que, na maioria nos últimos 20 anos nos países desenvolvi-
póteses iniciais, como na relação esperada dos casos, essas respostas não interessam a dos [à escala mundial os números diferem:
entre consumo de ácidos gordos saturados segundo a Organização Mundial da Saúde,
e doenças cardiovasculares. a taxa de mortalidade até aos 5 anos baixou
Esta prática, a que veio associar-se o lóbi ... 59%, entre 1990 e 2019]. É verdade que a
dos produtores alimentares, nomeadamente esperança de vida ainda está a crescer de
de carne de bovino, conduziu à formulação Parece que os cientistas forma linear, mas tomámos consciência da
de recomendações em muitos pontos con- importância da qualidade de vida, para além
trárias ao conhecimento contemporâneo
deixaram aos políticos e da sua duração. O que acontecerá se, um
da fisiologia humana. Não obstante, foram às multinacionais o poder dia, a esperança de vida atingir os 200 anos
inscritas nos manuais de formação dos futu- de decidir o destino do e o número de pessoas que necessitam de
ros médicos. Entraram, também, na cultura cuidados permanentes for muito superior
de massa – “Não ponhas muita manteiga na mundo, como se o seu ao dos efetivos com capacidade para prestar
torrada ou as tuas artérias vão ficar entupidas papel se limitasse a fornecer esses cuidados?
pelo colesterol” – e influenciam os compor-
tamentos quotidianos de milhões e milhões
os brinquedos: armas Crise de credibilidade
de pessoas em todo o mundo. cada vez mais sofisticadas, Cada vez mais investigadores estão alerta-
No âmbito da pedagogia, é cada vez maior sistemas informáticos dos para as crises da Ciência, neste início
o nosso conhecimento sobre o desenvolvi- do século XXI.
mento intelectual, emocional e social dos
que permitem controlar Primeira crise: a da credibilidade. Não
seres humanos, em particular na infância, as sociedades conseguimos apresentar de forma convin-

JANEIRO 2021 - N.º 299 43


Ciência

cente os nossos argumentos em debates Máquina administrativa orientador passava dias inteiros no labora-
sobre as vacinas, as alterações climáticas A terceira crise é a da governação, com gran- tório a ensinar-me a fazer ajustes. Hoje, uma
ou a alimentação. Não existe, hoje, uma de responsabilidade nas outras duas. Para relação deste tipo tornou-se praticamente
ciência única. Se falarmos a um colega de aqueles que ainda imaginam os cientistas impossível, visto os professores estarem de-
investigações que comprovam os efeitos como uns excêntricos alheados da vida quo- masiado ocupados a preparar pedidos de
das emissões de gases com efeito de estufa tidiana, de bata branca e com os cabelos em financiamento, a elaborar relatórios e nas
sobre o clima, poderemos ouvir que tam- pé, bastariam uns poucos dias numa univer- suas funções como membros de comissões
bém existem investigadores que pensam o sidade ou num instituto de investigação para de avaliação.
contrário [e, todavia, há consenso sobre o se desenganarem. Os cientistas passam horas Ao mesmo tempo, o culto do crescimento
assunto: já em 2013, um artigo publicado no a lutar contra uma máquina administrativa obriga as universidades a solicitarem cada
Environmental Research Letters mostrava cujos braços penetram em todas as etapas vez mais financiamentos para disporem de
que 97% dos 11 944 artigos científicos pu- do trabalho de investigação. mais recursos e mais pessoal. Há, portan-
blicados entre 1991 e 2011 concluíam que o A governação tecnocrática tem ainda to, em todo o mundo, uma enorme procura
aquecimento climático existe na realidade e mais impacto nas decisões tomadas quoti- de investigadores, em especial em início de
é de origem humana]. Até hoje, pensávamos dianamente pelos investigadores. Já que as carreira, que é parcialmente preenchida por
que a verdade (tal como a entendemos em instituições, e os próprios investigadores, jovens chineses e indianos.
termos científicos) se defendia por si só. Ora são avaliados com base no número de artigos Por outro lado, abrem-se oportunidades
já não é assim, sobretudo perante aqueles que publicados, quais os assuntos e problemas para fazer coisas interessantes e viver aven-
têm interesse em que ela não seja defendida. que vale a pena desenvolver para maximizar a turas intelectuais. Para construir foguetões
Também perdemos a influência que tí- avaliação? Só um louco escolheria enveredar já não é indispensável trabalhar num orga-
nhamos no mundo. Alguns investigadores li- por um projeto arriscado que, ao fim de al- nismo público como a NASA ou a Agência
gados ao projeto Manhattan, Espacial Europeia, já existe
relativo ao aperfeiçoamento a empresa SpaceX. No meu
da primeira bomba atómi- Os brasileiros são os mais céticos domínio, a ótica e os lasers,
ca, passaram parte da vida a A confiança do público nos cientistas (em % dos entrevistados)
o próprio Facebook já está

(International Science Survey 2019-2020)


defender o desarmamento. a recrutar pessoal.
De modo algum Pouco Muito Sem resposta
Hoje, não conheço nenhum
físico empenhado numa BRASIL Futuro radioso?
missão comparável. Parece O efeito secundário de uma
FRANÇA
que os cientistas deixaram situação económica em que
aos políticos e às multina- EUA há pessoas que dispõem de
cionais o poder de decidir RÚSSIA capitais consideráveis resi-
o destino do mundo, como POLÓNIA de no desenvolvimento da
se o seu papel se limitasse cultura startup. Por desfas-
REINO UNIDO
FONTE : PEW RESEARCH CENTER
a fornecer os brinquedos: tio, grandes fortunas estão
armas cada vez mais sofisti- SUÉCIA dispostas a arriscar somas
cadas, sistemas informáticos ÍNDIA consideráveis nas investi-
que permitem controlar as gações em voga, ainda que
Média
sociedades. A perda de cre- dos 20 países as hipóteses de sucesso se-
dibilidade prende-se com o do painel jam mínimas. Inúmeros
desaparecimento do debate Nota: as gradações de cores ajudam a situar os países em relação à mediana jovens deixam-se arrastar
público e, até, com a recusa por essas empresas que fre-
em comunicar o que se passa quentemente degeneram
nos laboratórios e a forma como é utilizado guns anos, pode não conduzir aos resultados (fraudes, cultura do secretismo, desperdí-
o dinheiro público. esperados e não contribuir em nada para os cio), como sucedeu no caso Elizabeth Holmes
A segunda crise tem que ver com a re- relatórios de atividade. e a sua empresa Theranos (uma verdadeira
produtibilidade. O método científico moder- Assim, otimizamos as ações para enganar golpada). Acreditamos facilmente que isto
no assenta na ideia de que uma experiência o sistema. Pesar o risco das investigações pode enfraquecer os organismos públicos
realizada hoje poderá ser repetida amanhã, iniciadas não é muito grave, mesmo que não de investigação.
daqui a uma semana ou um ano e que, se as favoreça o progresso. Mas pode simulta- Por último, a Ciência também é afetada
condições se mantiverem iguais, os resul- neamente conduzir àquilo que em literatura por uma crise ligada ao sistema económico.
tados obtidos serão idênticos. Entre 2011 e científica se chama “práticas discutíveis em Se, um dia, conseguirmos dominar a fusão
2015, um grupo de investigadores repetiu investigação”, como acrescentar injustifi- nuclear, talvez esta tecnologia de produção
100 experiências de psicologia que, em 2008, cadamente autores às publicações e não limpa e ilimitada de energia elétrica venha
tinham sido publicadas em revistas concei- levar em conta dados que não corroboram a ser alvo de um embargo e o país de ori-
tuadas. Apenas em um terço dos casos os as hipóteses propostas. gem não esteja disponível para partilhar o
resultados obtidos foram os mesmos que nas A aspiração ao igualitarismo e acesso seu conhecimento com o resto do mundo.
experiências originais. universal ao Ensino Superior conduz, inevi- Esse país poderia, até, recorrer a patentes
Vemos também, neste momento de tavelmente, à degradação do nível do ensino, e outras armas jurídicas para bloquear a
pandemia, que mesmo as revistas de maior dos recursos do saber e das qualificações sua utilização e tentar dominar o mercado
prestígio [nomeadamente The Lancet] pu- das novas gerações de investigadores. Há mundial da energia.
blicaram resultados baseados em dados não 20 anos, quando estava a construir sistemas Em termos de progresso científico, a
fiáveis e tiveram de retirar esses artigos. de laser para o meu doutoramento, o meu rutura data, grosso modo, dos anos 1970.

44 JANEIRO 2021 - N.º 299


O laser e a ressonância magnética terão Claro que as técnicas de transmissão e as desigualdades. Nem os físicos, nem
sido, porventura, as duas últimas grandes e acumulação das informações mudaram os biólogos, nem os químicos resolverão
invenções ao serviço da Humanidade. Se radicalmente, mas sobretudo em benefício esses problemas, independentemente do
um engenheiro dessa época ressuscitasse de meios de comunicação associados à nível de perfeição das células fotovoltai-
ficaria bastante surpreendido ao ver que o indústria publicitária – os primeiros para cas, dos ecrãs planos, dos medicamentos e
mundo mudou tão pouco, pese embora as modelar as nossas escolhas políticas e ali- dos plásticos biodegradáveis para os quais
visões de um futuro radioso elaboradas nessa mentar permanentemente a ideia de que se possam ter contribuído.
década dos dois lados da cortina de ferro. Os passa, algures, algo de muito importante Estou moderadamente pessimista
nossos automóveis e aviões continuam a ser que não podemos perder, a segunda para quanto ao futuro da Ciência. Talvez as
alimentados a derivados do petróleo, gastam prometer a satisfação através do consumo. próximas publicações científicas mais
aproximadamente o mesmo combustível e Ora, os problemas que enfrentamos são não façam do que alimentar a cacofonia
andam à mesma velocidade. Não evoluímos de natureza muito diferente dos proble- no meio da qual é cada vez mais difícil
na forma como ensinamos, produzimos rou- mas da época da Revolução Industrial e da perceber aquilo que é importante e ne-
pa e alimentos, construímos casas, fábricas informação que ocupou grande parte do cessário.
e igrejas. Até a forma como aproveitamos os século XX. O aumento colossal do volume Em lugar de procurar uma nova te-
tempos livres é mais ou menos a mesma – a de conhecimentos e de progresso técnico rapia miraculosa, talvez ganhássemos em
única diferença é que cada vez dispomos de daí decorrente permitiu mudar a vida de pressionar os governos no sentido de lan-
menos tempos livres... populações inteiras, que tiveram acesso, çarem campanhas agressivas contra a má
A grande promessa da robótica não se a uma escala até então inédita, a fontes alimentação. Em vez de procurar materiais
cumpriu: a vasta maioria das fábricas, da de energia, sistemas de saúde, alimentos, com propriedades fantásticas, exijamos
produção agrícola, dos transportes, dos meios de transporte e comunicação, bens que sejam construídas habitações confor-
serviços, continua a recorrer sobretudo ao culturais. Porém, as sociedades também táveis e económicas com os materiais de
trabalho manual. Quem sabe se os veículos estão cada vez mais cientes de que, em que dispomos. Para dar resposta a estes
autónomos, caso se generalizem, concreti- breve, terão de enfrentar a solidão, a desin- desafios, a Ciência tal como a praticamos
zarão parcialmente essa promessa. formação, a decomposição da democracia hoje é perfeitamente dispensável.

ILUSTRAÇÃO DE TOMASZ WALENTA, PARA THE WALL STREET JOURNAL, NOVA IORQUE JANEIRO 2021 - N.º 299 45
Os bravos
das vacinas
HÁ QUATRO DÉCADAS, A VARÍOLA FOI DECLARADA ERRADICADA PELA
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, APÓS UMA INTENSA CAMPANHA
DE VACINAÇÃO QUE CHEGOU ÀS ZONAS MAIS REMOTAS DO MUNDO.
UMA LIÇÃO PARA O COMBATE À ATUAL PANDEMIA?
F O T O S W H O

A ajudar, em 1970, o carro da brigada de vacinas


a chegar ao seu destino, no Bangladesh
FOTO DE WHO / TAMBARAHALLI S. SATYAN
46 JANEIRO 2021 - N.º 299
JANEIRO 2021 - N.º 299 47
No início da década de 1960,

N os principais focos de varío-


la estavam concentrados na
Ásia, sendo responsáveis por
milhares de mortos todos os anos. Essas
áreas endémicas eram uma ameaça não só
para os países onde se concentravam mas
também para o resto do mundo, devido
ao contágio. Foi então que a Índia lançou a
maior campanha nacional de erradicação
da varíola do mundo. A ação teve início no
final de 1962 e, em março de 1964, já tinham
sido inoculadas 224 milhões de pessoas,
com a vacina liofilizada recomendada pela
Organização Mundial da Saúde para uso
nos trópicos – para fazer face às muitas
solicitações, a Índia passou a produzir
também a vacina, com o auxílio da OMS
e da UNICEF. Em Nova Deli, foi lançada
uma campanha especial de propaganda,
realizadas centenas reuniões públicas e até
se organizaram marchas de apoio à vacina.
A partir de 1967, a OMS lançou gran-
des e bem-sucedidas campanhas para a
erradicação da varíola, enviando equipas
para os locais mais remotos do planeta,
tentando rastrear os casos de infeção que
ainda pudessem existir e – por causa de
viajantes desprevenidos – transformar-
-se em epidemias violentas. A partir daí,
em quatro anos, a doença foi eliminada na
América Latina e bastaram, depois, outros
quatro para derrotar o último bastião da
doença na Ásia.
As equipas multinacionais da OMS
viraram-se então para a Somália, onde o
vírus ainda resistia. Em dezembro de 1979,
na sede da OMS, Genebra, a erradicação
da varíola no mundo foi certificada pela
Comissão Global, um painel independente
de cientistas selecionados de 19 nações.

Marcha de apoio à
vacinação em 1963,
em Nova Deli, Índia
FOTO: WHO

48 JANEIRO 2021 - N.º 299


Vacinação numa escola
da Argentina, em 1960, e a
jovens mulheres na República
Democrática do Congo, em 1970
FOTO: UNICEF /SPEISER E WHO/UN

JANEIRO 2021 - N.º 299 49


50 JANEIRO 2021 - N.º 299
Dois membros de uma equipa
móvel da OMS a vacinar
quem encontravam pelo
caminho, em 1972, na Etiópia
FOTO: WHO /PAUL ALMASY

O programa de erradicação da
varíola da OMS no Afeganistão
envolveu quatro equipas, cada
uma responsável por uma zona
geográfica, que cobriram o país,
inoculando os habitantes das
cidades, mas também os das
aldeias mais remotas e as tribos
nómadas. O equipamento foi
fornecido pela OMS, a vacina
produzida na União Soviética
e as equipas criadas pelo
governo afegão. Em 1970, quase
quatro milhões de afegãos
foram vacinados e a varíola foi
erradicada no território
FOTO: WHO / PAUL ALMASY
JANEIRO 2021 - N.º 299 51
Em alguns países africanos,
a vacinação da varíola foi
acompanhada, em 1970, da vacina
BCG, contra a tuberculose
FOTO: WHO

52 JANEIRO 2021 - N.º 299


Preparação das vacinas contra
a varíola, no Instituto Razi, em
Teerão, em 1976
FOTO: WHO /D. L. DERIAZ

Ação de esclarecimento sobre


o funcionamento da vacina, em
1970, numa escola do Vietname
FOTO: WHO /PAUL ALMASY

JANEIRO 2021 - N.º 299 53


ENERGIA
COMPANHIAS
EUROPEIAS
PREPARAM A ERA
PÓS-PETRÓLEO
OS GIGANTES EUROPEUS DO OURO NEGRO INVESTEM BILIÕES
NAS ENERGIAS RENOVÁVEIS, ENQUANTO OS SEUS CONCORRENTES
DOS EUA SE AGARRAM AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS

THE NEW YORK TIMES (EXCERTOS) NOVA IORQUE

54 JANEIRO 2021 - N.º 299


JANEIRO 2021 - N.º
ILUSTRAÇÃO 55
299 IMAGES
DE GETTY
Energia

as perspetivas de rentabilidade a longo


prazo das empresas”.
Por seu lado, os donos das companhias
aéreas declararam que a era dos combustí-
veis fósseis está a chegar ao fim e que pre-

Q
viam deixar no solo, para sempre, grande
parte das reservas. Frisam também a ne-
cessidade de proteger os seus acionistas,
preparando-se para um endurecimento
das políticas ambientais.

BP dá o exemplo
A BP é a figura de proa desta conversão
a toda a brida. A companhia britânica
anunciou que ia multiplicar por dez os
seus investimentos nas atividades com
baixas emissões nos próximos dez anos,
à razão de 4,2 mil milhões de euros anuais,
reduzindo ao mesmo tempo em 40 % a
sua produção de gás e petróleo. A anglo-
-neerlandesa Royal Dutch Shell, a italiana
Quando as cotações do petróleo estão em vos do Acordo de Paris e, logo, de conter Eni, a francesa Total, a espanhola Repsol e
queda e cresce o receio das alterações o aumento das temperaturas mundiais a norueguesa Equinor estabeleceram ob-
climáticas, a BP, a Royal Dutch Shell e abaixo de 2 °C relativamente aos níveis jetivos da mesma ordem. Algumas destas
outras empresas europeias vendem ao da era pré-industrial. companhias reduziram os dividendos para
desbarato as suas reservas, tentam re- investir nas novas energias.
duzir drasticamente as emissões e in- Ameaça climática Já no final dos anos 90 e inícios de 2000,
vestem biliões nas energias renováveis. As grandes empresas de petróleo e gás eu- sob a direção do diretor-executivo de en-
Já a Chevron e ExxonMobil seguem uma ropeias e norte-americanas reconhecem tão, John Browne [apresentou a demissão
orientação totalmente diferente. Os dois publicamente que as alterações climáticas em 2007], a BP tinha avançado no sentido
gigantes americanos apostam duplamente constituem uma ameaça e que lhes cabe um da transição; no entanto, os resultados do
no petróleo e no gás natural, e só a conta- papel importante numa transição energética setor das renováveis foram desanimadores
-gotas investem em projetos inovadores cuja amplitude é comparável à Revolução e a companhia acabou por deixar cair o
que permitam reduzir as emissões – por Industrial. Em contrapartida, os ritmos que slogan “Beyond Petroleum” [“Para lá do
exemplo, centrais nucleares de pequena escolheram para transformar as suas ope- petróleo”]. Hoje, a situação é diferente.
dimensão e dispositivos de captura do rações não poderiam ser mais diferentes. Segundo John Browne, o Acordo de Paris
dióxido de carbono da atmosfera. “Não obstante o aumento das emissões marcou uma viragem, o modelo económi-
Por aqui percebemos as profundas e a pressão da opinião pública para com- co das energias renováveis é mais sólido e
diferenças na forma como a Europa e os bater as alterações climáticas, as grandes os investidores exercem mais pressão. Em
Estados Unidos da América abordam as companhias petrolíferas americanas apos- setembro, a BP e a Equinor anunciaram
alterações climáticas, ameaça planetária tam no gás e no petróleo a longo prazo, uma parceria no sentido de implantar
que, segundo grande parte dos investi- enquanto as suas concorrentes europeias e explorar parques eólicos ao longo das
gadores, contribui para a frequência e a privilegiam um futuro elétrico”, resume costas de Nova Iorque e do Massachusetts.
gravidade de catástrofes como os incêndios David Goldwyn, ex-coordenador para os Do ponto de vista dos diretores das
florestais e os furacões. Enquanto os diri- assuntos energéticos internacionais do companhias norte-americanas, passar às
gentes europeus dão prioridade absoluta ao Departamento de Estado no mandato de energias renováveis seria de loucos. Trata-
combate às alterações climáticas, Donald Barack Obama. -se de um setor pouco rentável que, na sua
Trump fala de “embuste”. Para os ecologistas, e até para alguns opinião, deve ser reservado às empresas
Numa altura em que os governos têm investidores de Wall Street, os gigantes públicas e aos fornecedores de energias
dificuldade em adotar políticas climáticas norte-americanos fizeram, claramente, alternativas. Pensam, aliás, que os preços
eficazes e coordenadas, as escolhas das a escolha errada. Em agosto, a Storebrand do gás e do petróleo vão subir à medida
empresas petrolíferas – com a sua situa- Asset Management, a mais importante so- que a pandemia da Covid-19 enfraquecer.
ção financeira robusta, a sua competência ciedade de gestão de ativos da Noruega, Para já, a Exxon e a Chevron vão con-
técnica, a sua experiência na gestão de desvinculou-se da ExxonMobil e da Che- tinuar a fazer aquilo em que são mestres:
grandes projetos de engenharia e o seu vron. O próprio Larry Fink, dono da Bla- perfuração de xisto na bacia do pérmico no
poder de lobbying – podem pesar no prato ckRock, número um à escala mundial na Texas e no Novo México, extração offshore
da balança. Das suas opções vai depender gestão de ativos, considerou as alterações em águas profundas e comercialização de
a nossa capacidade de atingir os objeti- climáticas um “fator determinante para gás natural. Neste momento, inclusiva-
mente, a Chevron está em vias de adquirir
uma empresa de menor dimensão, a Noble
AUTORA DATA TRADUTORA Energy, para aumentar as suas reservas.
F Clifford Krauss 22.09.2020 Ana Caldas “A nossa estratégia não passa por se-
guir os europeus”, confirma Daniel Droog,

56 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE HADDAD


vice-presidente responsável pela transição mento de um consórcio de investimento
energética na Chevron. “A nossa estratégia no valor de mil milhões de dólares [Oil
passa por descarbonizar os nossos ativos do and Gas Climate Initiative], cujo objetivo
modo mais rentável possível, integrando consiste em reduzir as emissões nos setores
paulatinamente novas tecnologias e novas petrolífero e do gás.
formas de energia. Mas não vamos pedir “Falta-nos um grande avanço tec-
aos nossos investidores que sacrifiquem nológico, e faz parte do meu trabalho ir
os seus lucros ou que se comprometam, procurá-lo”, resume Barbara Burger, pre-
a trinta anos, com dividendos incertos.” sidente da Chevron Technology Ventures,
O grupo garante que recorre cada vez que emprega 60 dos 44 mil funcionários
mais às energias renováveis para as suas da Chevron. “A transição será progressiva
necessidades operacionais. Acrescenta e evolutiva, vai durar décadas.”
que está a reduzir as emissões de meta-
no, poderoso gás com efeito de estufa, e Aposta na investigação
que dedicou mais de 1,1 mil milhões de A Exxon, que se mantém igualmente
dólares [930 milhões de euros] a diversos longe das energias renováveis, investiu
projetos que visam captar e armazenar o em aproximadamente um terço das ca-
dióxido de carbono, para evitar que este ... pacidades mundiais (bastante limitadas)
seja libertado na atmosfera. de fixação de carbono, uma técnica que
O seu ramo de capital de risco, a Che- A BP anunciou que ia consome tanta energia e é tão dispendio-
vron Technology Ventures, investe em sa que poucas empresas estão dispostas a
startups como a Zap Energy, que concebe
multiplicar por dez os apoiar projetos de grande envergadura. O
reatores modulares a fusão nuclear que seus investimentos nas grupo investe mil milhões de dólares por
não emitem gases com efeito de estufa e atividades com baixas ano em investigação e desenvolvimento,
limitam os resíduos radioativos. Ou como sobretudo no aperfeiçoamento de novas
a Carbon Engineering, que capta o CO2 da emissões nos próximos tecnologias e em processos mais eficazes
atmosfera e o transforma em combustível. dez anos, à razão de 4,2 para reduzir as emissões.
A Chevron Technology Ventures gere dois Um desses projetos consiste em uti-
fundos com uma dotação total de 200 mi-
mil milhões de euros lizar o dióxido de carbono emitido pelas
lhões de dólares [170 milhões de euros], ou anuais, reduzindo ao atividades industriais para alimentar uma
seja, cerca de 1% das despesas em capital mesmo tempo em 40 % pilha de combustível – é uma forma de
que o grupo consagrou, no ano passado, reduzir as emissões e, simultaneamente,
à exploração. Um fundo distinto, de 100 a sua produção de gás aumentar a produção de energia. Com a
milhões de dólares, participa no financia- e petróleo participação da Universidade da Califór-

JANEIRO 2021 - N.º 299 57


Energia

nia, Berkeley, e do Laboratório Nacional ro


Futuro
de Lawrence Berkeley, a Exxon acaba de
anunciar um “grande progresso” no aper-
feiçoamento de materiais que permitem
captar o CO2 de centrais a gás com menos
A Rússia quer
aquecimento e refrigeração do que com
os métodos atuais.
O grupo aposta também em biocom-
dominar
bustíveis à base de algas para os veículos
pesados e os aviões. Acresce que os ve-
getais absorvem o CO2 por fotossíntese,
o hidrogénio
mecanismo que os investigadores tentam
acelerar produzindo mais óleo a partir de O ambicioso plano russo de produção
o e distribuição deste gás visa,
algas. “A primeira etapa é a investigação
nomeadamente, a exportação
ação para a Europa
científica, e é impossível estabelecer uma
data para uma descoberta”, comenta Vijay
Swarup, vice-presidente responsável pela PROFIL MOSCOVO
COVO
investigação e desenvolvimento na Exxon.
A investigação em fusão, algas e captu-
ra de CO2 teve início há algumas décadas,
e muitos climatologistas receiam que a
exploração comercial destas tecnologias
ainda exija mais algumas. “As companhias
petrolíferas não darão nenhum passo que
possa prejudicá-las”, afirma David Keith,
professor de Física Aplicada em Harvard e Neste verão foram tornados Economics & Next Generation Research do
fundador da Carbon Engineering.
Alguns analistas consideram que aque- N públicos nada menos do que
dois documentos relativos à fu-
banco suíço Julius Baer, em 2035 as energias
renováveis deverão ser superiores a 75%
las empresas fazem bem em não precipitar tura indústria do hidrogénio na [do cabaz energético].
a conversão, pois o legislador norte-ame- Rússia: o plano estratégico para a energia Neste
Nest
Ne ste
e contexto
cont
contex
exto
to o h
hidrogénio
idrogénio terá um
ricano não lhes oferece estímulo suficiente 2035, aprovado a 9 de junho, e o projeto papel fundamental, visto a sua combustão
para romper com o modelo existente. “Se de desenvolvimento da energia movida a não libertar dióxido de carbono, mas apenas
significar verdadeiramente o fim do gás hidrogénio na Rússia para 2020-2024. vapor de água. E, em termos de utilização,
e do petróleo, alguém se esqueceu de in- O primeiro anuncia a ambição de figu- poderá perfeitamente substituir o gás na-
formar os consumidores”, ironiza Raoul rar entre os principais países produtores tural. Atualmente, este é utilizado como
LeBlanc, vice-presidente da IHS Markit, de hidrogénio. Será necessário exportar combustível na indústria química e, ao mes-
gabinete de estudos e consultoria. Na sua 200 mil toneladas em 2024 e dois milhões mo tempo, como fonte de energia, sendo
opinião, mesmo que as vendas de veícu- de toneladas até 2035. O segundo, apre- aproveitado pelas centrais térmicas para
los elétricos aumentem, serão necessárias sentado no final de junho pelo Ministério produzir eletricidade e alimentar a rede.
décadas para substituir os milhões de au- da Economia, prevê um enquadramen- Houve algumas tentativas de utilização
tomóveis a motor térmico que estão em to legislativo e técnico para a produção, de metano como combustível automóvel,
circulação. transporte, armazenamento e consumo mas sem sucesso na Europa. Em contra-
E será necessário o mesmo espaço de do hidrogénio, assim como a promoção de partida, o hidrogénio é considerado um
tempo, se não mais, para substituir as projetos-piloto na produção e exportação. combustível promissor e limpo, adaptado
grandes frotas de veículos pesados, aviões A Gazprom e a Rosatom serão os prin- aos transportes. Um relatório da associação
e navios que utilizam energias fósseis. A cipais produtores, estando as primeiras Hydrogen Council (que engloba mais de 90
procura de petróleo nos próximos 30 ou 40 unidades de produção de hidrogénio pre- empresas da Europa, América e Ásia, entre
anos deverá ser suficientemente forte para vistas para 2024. Para tal, serão utilizadas as quais a Shell, a BP, a Total, a Toyota e a
que a Exxon e a Chevron ganhem dinheiro instalações de extração e transformação de Mitsubishi) afirma a necessidade de con-
com a exploração das suas reservas, estima gás natural [cuja principal componente é seguir passar para o hidrogénio, até 2050,
Dieter Helm, economista na Universidade o metano], bem como centrais nucleares. cerca de 400 milhões de automóveis, 15 a
de Oxford e autor, em 2017, de Burn Out. As motivações do Kremlin são eviden- 20 milhões de veículos pesados e cinco mi-
The Endgame for Fossil Fuels [“Esgotado. tes: a Europa já não esconde a intenção de lhões de veículos usados como transportes
Fim do jogo para os combustíveis fósseis”, avançar na via da descarbonização. públicos.
não publicado em português]. No âmbito do Pacto Ecológico Europeu, O hidrogénio é já utilizado na indústria
No entanto, Helm pensa que o progres- na próxima década, um bilião de euros será química e, dentro de algum tempo, deverá
so tecnológico tornará obsoletas todas as mobilizado para esse fim. Segundo Norbert substituir o gás natural nas centrais térmi-
empresas petrolíferas dentro de algumas Ruecker, responsável pelo departamento cas, o que permitirá compensar as flutuações
décadas, numa economia mundial que será
dominada pela eletricidade, o armaze-
namento e a bateria, a impressão em 3D AUTOR DATA TRADUTORA
e a robótica, entre outros. “As empresas F Vladislav Grinkevitch 07.09.2020 Ana Caldas
petrolíferas acabarão por se extinguir.”

58 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE WALENTA, POLÓNIA


so de produção, os excedentes de energia
permitirão produzir hidrogénio, o qual, Contexto
por sua vez, será utilizado para a produção
de eletricidade. Trata-se de uma solução Alimentar
provisória, mas é melhor do que nada. esperanças
Num relatório com o título Perspetivas
da energia a partir de hidrogénio, peritos Perante os desafios climáticos e de
da agência Bloomberg garantem que, em transição energética, o hidrogénio
2050, o hidrogénio cobrirá 24% das ne- permite alimentar esperanças. Esta
cessidades de energia a nível mundial. Os molécula pode ser utilizada quer no
prognósticos do Hydrogen Council preveem setor dos transportes, por veícu-
que o hidrogénio ocupará 18% do mercado los equipados com uma pilha de
das energias, enquanto a transição para o combustível quer, sobretudo, como
hidrogénio exigirá investimentos mun- “vetor energético” para a produção
diais da ordem dos 20 a 25 mil milhões de de eletricidade, sempre reduzindo
dólares anuais. Previsões menos otimistas as emissões de gases com efeito de
apontam para que o hidrogénio cubra 12% estufa. Todavia, para a solução ser
do cabaz energético dos Estados Unidos verdadeiramente “verde”, é necessá-
da América, da União Europeia (UE) e do rio que o hidrogénio seja produzido a
Reino Unido num prazo de 30 anos. Em partir de uma fonte descarbonizada.
todo o caso, é muito! “Nos Estados Unidos da América, a
Mas há hidrogénio e hidrogénio. Como vitória do candidato democrata, Joe
explica o diretor do fundo nacional para a Biden, em novembro, beneficiaria
segurança energética, Constantin Simonov, a opção do hidrogénio. O seu
os europeus dividem o hidrogénio em três programa de combate às alterações
grupos, consoante o modo de extração: climáticas prevê um montante de
verde, azul e amarelo [também o cinzento, o 400 mil milhões de dólares para
castanho e o negro estão incluídos no código as energias limpas, entre as quais
de cores que, no entanto, não é consensual]. o hidrogénio”, relata o WALL STREET
das energias renováveis,
renováveis nomeadamente O hidrogénio mais “correto”, eleito pelos JOURNAL. A Europa não lhe fica atrás.
do parque eólico. Com efeito, consoante ecologistas e os funcionários europeus, é No início de setembro, a França
os períodos (quando os ventos são fortes o chamado “verde”. É produzido a partir anunciou, no âmbito do seu plano de
e contínuos), as eólicas produzem energia de eletricidade, produzida também ela a recuperação, que iria investir 7,2 mil
excedentária e, quando tal acontece, o seu partir de energias renováveis – solar e eólica milhões de euros, ao longo de dez
custo torna-se negativo, mas na maior parte – e por um processo de eletrólise da água. anos, para desenvolver a produção
dos casos a energia verde apresenta um O hidrogénio russo pertence às catego- de hidrogénio, um passo na sua
custo bastante elevado. rias azul e amarela, e os peritos alimentam ambição de se tornar líder mundial
O hidrogénio dará resposta, em parti- dúvidas quanto a estes grupos. Na realida- no fabrico de eletrolisadores. Já a
cular, ao problema do armazenamento das de, o hidrogénio “amarelo” é igualmente Alemanha anunciou, em junho,
energias renováveis, que de há dez anos a extraído por eletrólise, mas com a ajuda que vai dedicar nove mil milhões
esta parte os engenheiros europeus tentam de eletricidade produzida por uma central de euros à estratégia nacional do
resolver. Resumindo: em períodos de exces- nuclear. É a coutada da Rosatom. Há que hidrogénio.

Como produzir hidrogénio O código de cores permite identificar o modo de produção do hidrogênio

FONTE : BLOGUE DE CÉDRIC PHILIBERT (Centro de Energa & Clima de Ifrite, autor de
Aqui estão alguns dos processos para gerar este gás e sua natureza mais ou menos ecológica (verde)

CH O O H CH
CO 2 Oxigénio O Hidrogénio H
Vapor Água H O Hidrogénio H
de água H O Hidrogénio H Carbono
“Perspectives d’une stratégie hydrogène pour l’Union Européenne”

sólido C

Eletrólise
Termólise Pirólise

MetanoCH4 CINZENTO AZUL AMARELO VERDE AZUL?


(gás natural) ou
MetanoCH4
(gás natural)
Eletricidade
Reforma de a vapor de metano
Este processo térmico é atualmente o mais Eletrólise da água Decomposição térmica do metano
utilizado . Consome muita energia e A origem da corrente elétrica usada neste processo eletroquímico determinará O processo desenvolvido pela Gazprom consiste
gera dióxido de carbono. Dependendo se há a cor do hidrogénio produzido: amarela para as centrais nucleares, verde para as na refinação do metano, principal elemento do
ou não captura de CO2, o hidrogénio será eólicas ou solares combustível fóssil a que chamamos gás natural
classificado como azul ou cinzento

JANEIRO 2021 - N.º 299 59


Energia

recordar que existem diversas centrais nu- O setor do hidrogénio apresenta ou- África

Frigorífico
cleares e a energia que produzem é das mais tra vantagem para a Rússia: a produção
baratas. Acontece, porém, que a energia e exportação deste gás criariam um estí-
nuclear não é muito bem vista na UE. A mulo adicional para o desenvolvimento da

a energia
Alemanha, por exemplo, está a pensar re- rede de transporte de gás e, em particular,
nunciar totalmente à produção de energia para a construção do gasoduto mártir Nord
nuclear até 2022, e o lóbi ecologista condena Stream II. “Suponha que propomos à Euro-

solar
com veemência o hidrogénio “nuclear”. pa utilizar essa rede para o transporte não
O hidrogénio “azul” é produzido a só de gás natural mas também da mistu-
partir do metano; este constitui, em si ra metano e hidrogénio. Isso respeitaria
mesmo, uma componente do gás natural, o espírito do Pacto Ecológico Europeu e
numa percentagem que varia entre 70% e talvez permitisse reduzir a desconfiança
98%. Do ponto de vista económico, tudo dos reguladores europeus relativamente A Youmma propõe, em regime
parece perfeito: o chamado processo de ao projeto”, acrescenta Alexeï Gromov. de locação com opção de compra,
reforma a vapor é muito menos oneroso do Tanto mais que os gasodutos modernos, um frigorífico destinado a quem
que a eletrólise e consome bastante menos como o Turkish Stream ou o Nord Stream, não tem acesso à rede elétrica.
energia. Ponto negativo: emite dióxido de permitem adicionar ao gás natural até 20%
Os pagamentos são feitos por
carbono [um gás com efeito de estufa] o de hidrogénio do volume total de gás que
que é contrário à neutralidade climática, circula na conduta. Alguns meios de co- smartphone
razão de ser do entusiasmo pelo hidrogé- municação citam fontes da Gazprom que
nio. É possível resolver parcialmente este afirmam que seria possível aumentar até CNN ATLANTA
problema com a ajuda de um dispositivo 70% a quota-parte de hidrogénio nas con-
que capta o CO2, mas não passa de uma dutas do gasoduto Nord Stream.
resposta parcial, já que as tecnologias de Peritos há que consideram o transpor-
armazenamento subterrâneo de CO2 [a te da mistura de metano e hidrogénio um
grande escala] ainda não estão afinadas. método fiável e que já provou ser seguro.
Acresce que a utilização das tubagens para
Europa obrigada a comprar o hidrogénio poderia dar resposta a um Sob o sol escaldante da Áfri-
A Gazprom apresenta outra solução, de-
fendida pelos seus representantes em de-
problema ecológico: atualmente, a UE pro-
move uma campanha contra as emissões S ca subsariana é praticamente
impossível conservar produ-
clarações e entrevistas: um novo método de metano, cujo papel para o aquecimento tos frescos sem refrigeração.
de produção de hidrogénio sem emissões climático seria mais significativo do que o O problema é pôr a funcionar frigoríficos
de CO2. Trata-se da dissociação térmica do CO2. Logo, a redução da percentagem de numa região onde cerca de 600 milhões
(termólise) do metano sem oxigénio, deste metano nas tubagens permitiria, simulta- de pessoas vivem sem rede elétrica.
modo formando hidrogénio e carbono só- neamente, reduzir as emissões poluentes. É aqui que entra em cena a Youmma.
lido sob a forma de fuligem, que pode ser Todavia, há que levar em consideração Esta empresa brasileira desenvolveu um
recolhida e utilizada como matéria-prima também os argumentos contra. Constantin frigorífico solar associado a um sistema
noutras indústrias. A empresa monopolis- Simonov frisa que “transportar hidrogénio de pré-pagamento que seduz numero-
ta estaria há vários anos a trabalhar nesta ou metano não é a mesma coisa. É tecni- sas pequenas empresas. Na realidade, um
via, a solo mas também em parceria com camente possível, mas para isso impõe-se frigorífico permite reduzir o desperdício
empresas europeias, em particular alemãs. modificar o projeto. Careceria de novas ne- alimentar, armazenar medicamentos em
Até lá, queira ou não queira, a Europa gociações e autorizações, e iríamos ouvir boas condições e, no caso de lojas, con-
vai ter de comprar hidrogénio. Os seus argumentos como ‘Mas porque terá este servar os produtos frescos durante mais
recursos em energias renováveis são in- gasoduto de passar pelo mar Báltico? E se tempo, explica André Morriesen, respon-
suficientes para produzir as quantidades explode?’ É que até hoje não se construiu sável pela investigação e desenvolvimento
de gás necessárias, e será difícil, a curto nada de semelhante…”. na Nidec Global Appliance, empresa-mãe
prazo, colmatar esse défice. “A UE sabe que Mantém-se a dúvida: quem garantirá da Youmma. Dos quase dois mil frigoríficos
é necessária uma ou duas décadas”, explica a produção de hidrogénio a partir do gás vendidos desde o lançamento da Youmma,
Alexeï Gromov, diretor do departamento russo? Em Bruxelas prevalece o princípio em 2019, aproximadamente 80% desti-
das energias do Instituto das Finanças e da de que o combustível deve ser produzido o navam-se a pequenas empresas, precisa.
Energia. “Até 2040, para desenvolver ener- mais perto possível do consumidor. Então, O sistema de refrigeração deste pe-
gia a hidrogénio, os europeus dependem se os fornecedores de tecnologia e os pro- queno frigorífico de 100 litros foi conce-
essencialmente das importações.” dutores de hidrogénio são todos europeus, bido para utilização sem
Esta dependência é um maná para as a Rússia ficará, mais uma vez, relegada para rede elétrica. Segundo a F
empresas russas que poderiam, ainda que o papel de “bomba de combustível”. Nidec, consome um quar-
temporariamente, inscrever-se no movi- Obviamente, o Kremlin tem outras am- to da eletricidade de um
AUTOR
mento da inovação energética e tornar-se bições. O roteiro apresentado ao governo frigorífico normal, o que Nell Lewis
fornecedores de hidrogénio ou de maté- prevê garantir as capacidades de produ- significa que pode ser
ria-prima para a sua produção. Talvez até ção de hidrogénio e o desenvolvimento de alimentado através de
DATA
se pudesse, como propõe Alexeï Gromov, tecnologias limpas: motores a hidrogénio, um pequeno painel so- 16.10.2020
renovar as relações entre a Europa e a Rússia transportes públicos movidos a hidrogé- lar ligado a uma bateria,
no setor energético para as duas ou mesmo nio, etc. O objetivo é criar todo um setor deste modo reduzindo os TRADUTORA
três próximas décadas. destinado, também, ao mercado interno. custos. A bateria permite Ana Caldas

60 JANEIRO 2021 - N.º 299


que este eletrodoméstico funcione um dia sobretudo, às pequenas empresas. Kioko
e meio sem sol. Mwange é proprietário de uma venda na
Os clientes [africanos] pagam diaria- aldeia de Kithungo, no Leste do Quénia.
mente por telefone à M-Kopa, empresa Desde que se rendeu ao frigorífico Youmma
de energia solar do Quénia [que propõe as vendas cresceram, o que lhe permite
serviços e produtos num sistema de pré- compensar o aluguer diário. “Agora pos-
-pagamento por smartphone]. Os novos so conservar o leite durante dez dias”,
clientes fazem um pagamento por conta confessa. “A clientela aumentou e, mais
no valor de 100 dólares [85 euros]. O mon- importante, as pessoas confiam na qua-
tante fixo diário, que varia entre 1 dólar e lidade do leite que lhes vendo.”
1,5 dólares [de 85 cêntimos a 1,20 euros], Embora existam outras soluções de
inclui ainda um sistema de iluminação refrigeração através da energia solar mais
solar e cobre a instalação de um painel acessíveis na África subsariana, trata-se
fotovoltaico no telhado. Caso o utilizador frequentemente de grandes câmaras fri-
não pague, o frigorífico deixa de funcionar. goríficas partilhadas – como a ColdHubs,
Quando estão totalmente pagos – ao na Nigéria, ou a Solar Freeze, no Quénia
fim de dois anos, mais ou menos –, tanto o – utilizadas maioritariamente para arma-
frigorífico solar como a instalação perten- zenar produtos após as colheitas ou nos
cem definitivamente ao cliente. A M-Kopa mercados.
reconhece que, feitas as contas, este sai O mercado do frigorífico solar deverá
mais caro do que um frigorífico normal, desenvolver-se com a melhoria da rede de
mas o sistema de iluminação e o acesso distribuição e graças ao pré-pagamento,
permanente a eletricidade gratuita, fora prossegue Teresa Le.
da rede, compensam. ... Este frigorífico pode “mudar a vida”
O sistema de pré-pagamento “é prático das famílias rurais e “libertar as mulheres”
para as famílias [rurais] ou para as em- Este frigorífico pode que, não raras vezes, têm de caminhar
presas que têm fluxos de tesouraria instá- durante horas todos os dias para se des-
veis, por exemplo, quando os rendimentos “mudar a vida” das locarem ao mercado, acrescenta André
dependem das colheitas”, explica Teresa famílias rurais e “libertar Morriesen, da Youmma. Graças ao frigorí-
Le, especialista em alterações climáticas fico, podem adquirir os produtos em maior
e energia no Programa das Nações Uni-
as mulheres” que, não quantidade e poupar tempo e dinheiro.
das para o Desenvolvimento. Apesar de raras vezes, têm de Neste momento, a Youmma comercializa
associado a sistemas de micropagamento caminhar durante horas os seus frigoríficos no Uganda e no Quénia
como o da M-Kopa, o frigorífico solar não e está a tentar expandir-se para a Nigéria,
deixa de ser caro para as pessoas comuns,
todos os dias para se a Tanzânia, a Zâmbia, a Costa do Marfim
o que explica que o seu sucesso se deva, deslocarem ao mercado e o Senegal.

ILUSTRAÇÃO DE KAZANEVSKY, UCRÂNIA JANEIRO 2021 - N.º 299 61


ÁRVORES
QUANDO
OS JACARANDÁS
FLORESCEM
PARA O MUNDO O TEMPO PARECE TER FICADO SUSPENSO DESDE QUE A PANDEMIA COVID-19
ATINGIU O PLANETA. MAS, NA ÁFRICA DO SUL, OS BELOS JACARANDÁS
VOLTARAM A FLORESCER, INDIFERENTES AO VÍRUS E AO DRAMA DE
MILHÕES DE PESSOAS. AS ÁRVORES, QUE OCUPAM UM LUGAR ESPECIAL
NA HISTÓRIA DO PAÍS, LEMBRAM-NOS, ASSIM, ALGO DE MUITO SIMPLES:
O MUNDO CONTINUA A GIRAR

THE CHRISTIAN SCIENCE MONITOR BOSTON

62 JANEIRO 2021 - N.º 299


JANEIRO 2021 - N.º 299 63
Árvores

-vindos. A maioria dos jacarandás da


África do Sul foi importada da América
Latina na viragem do século XX.

A
Nisto, são “um reflexo da história
colonial e do apartheid”, uma época em
que as espécies estrangeiras − bem como
os povos − eram consideradas superio-
res, diz Adelaide Chokoe, uma arbori-
cultora do município de Joanesburgo. No
início dos anos 2000, o governo sul-
-africano proibiu mesmo a plantação de
novos jacarandás nas cidades, alertando
para o perigo que esta espécie invasora
representava para a flora local.
A autorização destas árvores tam-
bém há muito que põe em evidência
as desigualdades sociais. Os outrora
subúrbios brancos de Joanesburgo têm
tantas árvores e espaços verdes que a
cidade é muitas vezes descrita como “a
maior floresta urbana feita pelo Homem”
A primeira vez que testemunhei a flo- didos.” Numa outra, uma jovem mulher (um título que pode ser contestado pelos
ração dos jacarandás em Joanesburgo aparece em frente de jacarandás numa especialistas, mas na verdade a Natureza
coincidiu com uma revolução. Estáva- nuvem de pó e gás lacrimogéneo. “Des- nesta cidade ocupa um lugar impressio-
mos em outubro de 2015 e, enquanto os culpe o incómodo”, diz o seu cartaz. nante). Entre outubro e novembro, as
jacarandás espalhavam os seus longos “Estamos a tentar mudar o mundo.” flores de jacarandás enchem de manchas
ramos carregados de panículas azuis, os Os jacarandás têm sido sempre azuis e violeta as copas destes bairros.
estudantes manifestavam-se no campus símbolos excelentes. A sua floração é tão Comparem com os bairros de lata da
de Witwatersrand, a maior universidade espetacular como breve. As suas flores periferia, onde a maioria dos habitantes
da cidade, para protestar contra o forte duram apenas algumas semanas, antes − negros − viviam isolados, e não verão
aumento das propinas. Em poucos dias, de a primavera dar lugar ao implacável muitas árvores. Adelaide Chokoe, por
o que começou como uma revolta de verão do hemisfério sul e o ano chegar exemplo, cresceu não muito longe de
alguns milhares de estudantes tinha- ao fim. É também por esta razão que, na Pretória, onde existem mais de 50 000
-se tornado uma mobilização nacional. maior parte da África Oriental e Austral, jacarandás. Mas ela não desfrutou muito
Passara quase um quarto de século desde os estudantes associam estas flores ao deles porque, “com o apartheid, foi dada
que o apartheid fora abolido na África do tempo de exames. De acordo com um prioridade aos bairros brancos para a
Sul, então porque é que as desigualdades ditado sul-africano, se o jacarandá esti- plantação de árvores”. Chegada à idade
se tinham agravado?, perguntavam os ver em flor e ainda não tiveres começado adulta, ela nunca esqueceu esta diferen-
manifestantes. a estudar, lamento, mas vais falhar nos ça. “Quando se vive com estas discre-
Alguns dias mais tarde, todas as exames. pâncias, quando se vê quem tem acesso
grandes universidades do país tinham aos espaços verdes e aos parques e quem
cessado as suas atividades. Numa ma- Símbolo da Natureza não tem, diz-se a si próprio que também
nhã da semana seguinte, juntei-me ao Em 2020, os jacarandás adquirem uma se quer mudar tudo isso.”
desfile dos jovens manifestantes que nova forma de simbolismo. Embora Em 2014, o governo sul-africano
marchavam sob um calor escaldante nas tenhamos vivido muito deste ano petri- voltou atrás na proibição de plantar
largas avenidas rodeadas de jacarandás ficados, estas flores lembram-nos de que novos jacarandás. Em termos de espécie
que conduzem aos Union Buildings, a a Natureza nunca se detém. “Isto lem- não nativa, estas árvores têm a vantagem
sede do governo, em Pretória. Tinham- bra-nos que há uma época para tudo”, de não exigir demasiada manutenção e
-se reunido para exigir ao Presidente diz Laurice Taitz-Buntman, editora do são na realidade relativamente inofen-
Zuma que parasse com os aumentos das guia Johannesburg In Your Pocket, que sivas (desde que sejam plantadas longe
propinas escolares a nível nacional. E ele realiza um concurso anual de fotogra- de qualquer massa de água). No verão,
cedeu. fia sobre o tema dos jacarandás. “Estas os seus longos ramos fornecem áreas de
Olhando para as minhas fotografias, árvores estavam lá em 2019, e estarão lá sombra e no inverno deixam filtrar a luz.
reparei que muitas delas tinham jaca- em 2021.” “Não hesito em dizer aos meus
randás ao fundo. Uma foto mostra uma À imagem dos colonos britânicos compatriotas que cada um de nós está
mulher com óculos de sol redondos, em que os plantaram por todo o seu império tão intimamente ligado à terra deste belo
pé, diante de um jacarandá florido, com colonial em África, os jacarandás vêm do país como o estão os célebres jacarandás
um cartaz na mão que diz: “Fomos ven- estrangeiro, e nem sempre foram bem- de Pretória”, disse o Presidente Nelson
Mandela no seu discurso de tomada
de posse em 1994. E pouco importa se,
AUTORA DATA TRADUTORA tecnicamente, ele fazia referência a uma
F Ryan Lenora Brown 03.11.2020 Helena Araújo espécie importada − os jacarandás fazem
parte da identidade deste país.

64 JANEIRO 2021 - N.º 299 FOTOS: GETTY IMAGES


Quénia

A figueira centenária foi salva


É “um ícone”, escreve o diário queniano organização responsável por um enorme dezenas de árvores. A figueira cente-
THE STANDARD. Um senhor muito velho, projeto de desenvolvimento na capital nária era uma figueira a mais: a ameaça
imenso e imponente, que assenta num queniana, relata THE STANDARD. mobilizou os defensores do ambiente,
dos principais eixos de Nairobi. Estava A figueira tornou-se um símbolo da que veem a “cidade verde” sê-lo cada
quase a ser decapitado. tensão entre a preservação ambiental vez menos. Para alguns, é uma parte
Esta figueira centenária pode finalmente e o desenvolvimento da megalópole. da alma desta terra que está em jogo,
esperar viver ainda durante mais algu- Em outubro, as autoridades anunciaram explica o NEW YORK TIMES: “Nem todas as
mas décadas. Alguns “tinham medo de que a árvore seria cortada ou deslocada árvores têm o mesmo estatuto”, recorda
que a beleza desta árvore desaparecesse. para dar lugar à via expressa de Nairobi, Peter Kiarie Njoroge, um ancião da tribo
Estou aqui para vos assegurar que esta uma autoestrada construída pela China Kikuyu [maioritária no Quénia], que vê
árvore será salva e que, seja o que for que por 550 milhões de dólares. Um grande a figueira como “uma casa de Deus” e a
se passar aqui, nada lhe acontecerá”, dis- projeto que deverá aliviar o conges- casa dos seus antepassados. Este último
se Mohammed Badi, diretor-geral dos tionamento na capital. Mas este local diz, virando o pescoço para admirar as
Serviços Metropolitanos de Nairobi, uma de construção já levou à eliminação de folhas gigantes, “é como um guardião”.

Angola
Um adeus aos baobás
Uma silhueta emblemática de África, cas, que começaram há quatro anos com
a árvore baobá está a morrer. “Adeus, o aparecimento de cabanas e barracas,
baobás” foi a manchete do JORNAL DE AN- estão agora a dar lugar a construções de
GOLA no final de setembro, exibindo uma cimento”.
destas árvores gigantes e quase imortais. No JORNAL DE ANGOLA, um jornalista e
“Uma das árvores mais antigas do planeta, ensaísta angolano, Adebayo Vunge, ex-
cujos exemplares mais antigos podem ter pressa a sua “indignação” pelo desapare-
entre 1 100 e 2 500 anos, vê o seu futuro cimento “destas árvores milenares, sím-
cada vez mais ameaçado em Angola.” bolos da nossa identidade, profundamente
O “Santuário dos Baobabs”, uma enorme enraizadas na nossa cultura”: “Olhem,
reserva que foi criada perto da capital para isto não está a acontecer longe de casa,
salvar esta árvore, “está agora a sofrer de na Amazónia ou em qualquer outra parte
um abate sem precedentes” sob a pressão do mundo − o que merece igualmente
da expansão urbana. a nossa consternação. Ocorre aqui, na
A reserva está a ser devastada à medida nossa terra, diante dos nossos olhos e da
que as pessoas se mudam para cá. O nossa indiferença. Isto não é possível... Isto
diário explica que “as ocupações anárqui- não pode acontecer.”

JANEIRO 2021 - N.º 299 65


Cidades

Café J José Eliécer Sierra espera que


2020 seja “o ano da redenção”.
A grande colheita já começou. Na

As incertezas sua quinta, localizada nas colinas de


Pueblo Rico (departamento de Antio-
quia, Noroeste de Espanha), as árvores estão

de um tesouro carregadas de bagas vermelhas [conhecidas


como “cerejas”] e agitam-se à passagem dos
25 trabalhadores encarregues da colheita

nacional que, de olhar afiado e gestos seguros, sele-


cionam as bagas maduras. Tal como centenas
de agricultores, José Eliécer está habituado
às dificuldades de uma cultura que requer o
fervor de um amante. Nos 25 anos em que
A pequena baga vermelha pequena é cultivada em várias regiões tem produzido café, “houve períodos bons,
da Colômbia, tornando o país um dos principais produtores mundiais. médios e maus”, como em 2019, quando o
Mas mesmo que o ano 2020 pareça excecional, a saúde do setor continua saco [de 125 kg] era comercializado a 500 mil
sujeita às flutuações dos preços nos mercados internacionais pesos [cerca de 115 euros]. Hoje, a situação
melhorou. Nos últimos seis meses, o preço do
café manteve-se acima do milhão de pesos e
SEMANA BOGOTÁ os agricultores têm muita esperança de que
a colheita no final do ano, que representa
70% da produção, seja a melhor desde há
muito tempo.
Frágeis e inconstantes, os preços sobem
e descem com uma facilidade desconcer-
tante. O problema não é novo. Em 1888,
por exemplo, o líder [do Partido Liberal]
Rafael Uribe que dirigia a maior empresa
de café do departamento de Cundinamarca
[no centro do país], dizia a propósito das
dificuldades enfrentadas pelos produtores
de café: “Aqueles que cultivam café vivem
num clima mais incerto e arriscado do que
os engordadores de gado ou os produtores
de batata. Enquanto eles plantam café ou
fazem a sua primeira colheita, o cenário dos
preços pode mudar drasticamente.”
Mais de 130 anos depois, José Eliécer
sublinhava numa declaração à Imprensa,
em 2019, que o fosso entre os custos de pro-
dução e os preços de venda não parava de
aumentar: “Produzir um saco de café custa
800 mil pesos [185 euros], e nós vendemos
por menos de 700 mil pesos. Isso é uma perda
de cerca de 100 mil pesos por saco. Estes
preços podem levar-nos à falência.”

Analisar o preço
Longe de pensar na ruína, os agricultores es-
peram que este ano o café lhes traga cerca de
nove mil milhões de pesos [mais de dois mil
milhões de euros], um número nunca antes
visto. Segundo Álvaro Jara-
millo, diretor-geral do Comité F
dos Produtores de Café de An-
tioquia, a produção nacional
AUTOR
deverá ultrapassar largamente Germán Izquierdo
os 14 milhões de sacos, e isto
pelo sexto ano consecutivo [no
DATA
final de outubro, a produção 25.09.2020
estabilizou nos 13,9 milhões
de sacos, uma queda de 2% TRADUTORA
em relação ao ano anterior]. Helena Araújo

A produção de café é uma das imagens da Colômbia FOTO GETTY IMAGES


A pandemia fez subir os preços do café. A taxa de câmbio dólar/peso está a beneficiar os exportadores FOTO GETTY IMAGES

Para analisar o preço do café, é neces- Realidades diferentes de quatro milhões de cafeeiros. No auge da
sário olhar para sul, ou seja, em direção ao Este ano, devido à Covid-19, foram insta- colheita, a empresa emprega 1 500 traba-
Brasil, o maior produtor mundial. O preço lados lavatórios e mangueiras para a lava- lhadores. Longe da principal zona de pro-
do grão colombiano depende, em grande gem das mãos. É necessário distanciamento dução de café, Sven Erik Alarik cultiva a sua
medida, das contingências do cultivo no social e preencher um registo à entrada de marca numa quinta em Moniquirá, no de-
grande vizinho. “Eles acabam de anunciar cada exploração. partamento de Boyacá [no Centro do país].
uma colheita histórica de 65 milhões de Se a colheita é melhor [na região de O seu pai sueco chegou à aldeia nos anos 70 e
sacos, o que não é bom para nós”, explica Antioquia], as realidades são diferentes de instalou-se lá definitivamente. Os produtos
Jaramillo. uma região da Colômbia para outra. Assim, Sven, vencedores do prémio do melhor café
Este ano, a grande colheita [de se- a cultura do café é rainha no departamen- de Boyacá em 2018, são classificados como
tembro a dezembro] está a acontecer em to de Antioquia: nos seus 125 municípios cafés premium [de qualidade superior].
circunstâncias especiais: a pandemia fez [cantões], 95 produzem as pequenas bagas No território de Boyacá vivem pequenos
subir os preços do café; a taxa de câmbio vermelhas. A sua produção chega ao segun- cultivadores que possuem uma média de
dólar/peso está a beneficiar os exportado- do lugar, a seguir à de Huíla [no Sul do país] 1,3 hectares, como 96% dos produtores de
res; e, finalmente, a procura mundial de que, ao contrário de outras regiões, tem café do país. Todas as semanas, Sven recebe
café aumentou 2,2% ao ano nos últimos duas colheitas do mesmo volume por ano. chamadas de agricultores que gostariam de
cinco anos, de acordo com a Organização Nas montanhas andinas de Caldas [a sul trabalhar na sua quinta. “Nas cidades da
Internacional do Café [que agrupa os prin- de Antioquia], no município de Chinchiná, região, há muitos desempregados, prontos
cipais produtores]. Na própria Colômbia, encontramos as colheitas de La Meseta, a a fazer qualquer tipo de trabalho no cam-
o consumo aumentou em três por cento. maior fazenda de café da Colômbia. Nos po”, explica. Sven combinou com outro
Os bons preços encheram de otimis- seus mais de 800 hectares crescem cerca agricultor a contratação de colhedores para
mo os produtores de café. Desde meados as duas quintas, para que possa haver mais
de setembro, as explorações não param. trabalho.
Os apanhadores móveis, que percorrem Apesar das crises – quedas de preços ou
o país após a colheita, chegam às estações doenças do cafeeiro –, o café continua a ser
de autocarros desde Sucre, Bolívar, Nariño ... um símbolo da Colômbia. Atualmente, mais
e outros locais onde o café não é colhido de 540 mil famílias vivem dele numa área
neste momento [a colheita estende-se ao Apesar das crises total de 853 mil hectares, distribuídos por
longo de todo o ano, segundo o clima das – queda de preços ou 23 departamentos. José Eliécer continua a
regiões no país]. acreditar no café, tal como fazia quando era
Dependendo da exploração, os produ- doenças do cafeeiro –, adolescente e usava os seus sapatos [do uni-
tores pagam-lhes entre 400 e 600 pesos o café continua a ser um forme] do colégio para participar nas colhei-
por quilo. Cada trabalhador agrícola colhe tas das quintas de outras pessoas. Quando lhe
uma média de 120 quilos. Os mais experien-
símbolo da Colômbia. perguntam se, em tempos difíceis, alguma
tes, os chamados “foguetes”, são capazes Atualmente, mais de 540 vez pensou em desistir, responde: “Nunca.
de colher 300 quilos de café num só dia. mil famílias vivem dele, Este trabalho é um verdadeiro compromisso.
Os colhedores dormem nas quintas, que Cada exploração de café que fecha significa
cobram entre oito mil e mil pesos [entre numa área total muitas pessoas que nunca mais conseguirão
1,8 e 3,6 euros] por noite e três refeições. de 853 mil hectares encontrar trabalho.”

JANEIRO 2021 - N.º 299 67


Conflito

Itália

A guerra D De repente, flashes de luz ilu-


minam a madeira espessa ainda
envolta na escuridão da noite. São

dos cogumelos apanhadores de cogumelos porcini


que, antes do nascer do sol e infringindo a
lei, procuram o seu caminho com tochas
através das florestas dos Apeninos. Vieram
para atacar os Boletus edulis, antecipando
Pneus furados, roubos ou confrontos, nas montanhas dos Apeninos vale a concorrência.
tudo para apanhar os preciosos cogumelos porcini. Um desafio culinário, Nos últimos anos, o ritual de outono
mas sobretudo económico, que ameaça a serenidade da região de recolha das iguarias do mato está a
transformar-se numa imensa razia. Com
tensões cada vez mais vivas, e cenas dig-
DOMANI ROMA nas do Faroeste. Hoje, aqueles que inva-
dem a montanha à noite estão sujeitos a
ver, entre
en outras coisas, os pneus furados,
as fechaduras
fech das portas revestidas de
cola ou os bens roubados. Estes atos de
vandalismo são comuns em todos os Ape-
vandal
ninos toscano-emilianos
t e culminaram,
numa madrugada, numa rixa na flores-
ta de Albareto,
A na província de Parma,
entre u um residente nos arredores e um
“silvicultor” lombardo. Os dois homens
“silvic
disputavam uma área de cogumelos.
disput
Há já alguns anos que, graças às condi-
ções cl
climáticas favoráveis, se assiste a uma
surpreendente sobreprodução espontâ-
surpre
nea de cogumelos, mesmo a baixa altitu-
de. Hoje,
Ho um quilo de cogumelos porcini
F frescos é vendido a um preço médio de 15
euros p por quilo. Uma perspetiva simpá-
tica para
pa aqueles que conseguem encher
AUTOR os cestos,
cest especialmente num contexto
Francesco Ddradi
de cris
crise económica. Assim, mesmo as
pessoas que nunca vão às montanhas são
pessoa
DATA seduzidas por esta promessa de lucros
seduzi
01.11.2020
fáceis. Nas florestas, é portanto a corrida
para ver
v quem chega primeiro para co-
TRADUTORA
Helena Araújo lher, p porque o cogumelo cresce à noite.
Os cogumelos porcini crescem em
toda a Itália e em outros países europeus,
especialmente nos Balcãs. Contudo, os
especi
conhe
conhecedores dizem que é na região de
Emilia
Emilia-Romagna, mas também na Lu-
nigiana e na Garfagnana, na Toscânia,
nigian
que ex existem os melhores cogumelos.
Os “exemplares”
“e mais notáveis en-
contram-se na região de Parma, e mais
contra
particularmente no Vale do Taro, com
particu
o seu F Fungo di Borgotaro, que ostenta o
rótulo de Indicação Geográfica Protegida
Europeia (IGP).
Europ
Nestas zonas montanhosas, a apanha
Ne
de cog
cogumelos é uma tradição secular,
mas fo foi só no século XX que começou
a gera
gerar rendimentos. A necessidade de
regular o setor foi, portanto, finalmente
regula
sentida.
sent
n id A primeira reserva de apanha
de cog
cogumelos, explica Antonio Mortali,
um silv
silvicultor do consórcio de comunas

68 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE KAZANEVSKY, UCRÂNIA


parmesanas, foi criada em 1964 no Vale do Uma pessoa que conheço mostrou-me negócio”, diz Davide Mori. “No vale do
Taro. Este consórcio é uma organização um mapa com seis mil pontos GPS! A Taro, algumas pessoas venderam parcelas
jurídica invulgar: os bosques e as terras floresta não tem mais segredos. Não é de floresta a lombardos, na sua maioria de
montanhosas são propriedade coletiva ético.” O GPS arruinou as amizades. E Bergamo, que assim adquiriram o direito
dos habitantes das aldeias locais, todos esse não é o único problema. de apanhar cogumelos em quantidades
ligados a uma sede de concelho comum “Com todo o lixo e plástico deitados ilimitadas, e depois a pessoas de Milão e
situada a jusante. fora”, lamenta Andrea Coloretti, que dos arredores. Como resultado, os rendi-
No vale elevado do Taro, existem 30 apanha cogumelos desde a infância, o mentos dos habitantes da área estão a di-
comunas; autorizam os seus habitantes bosque está a deteriorar-se. “Numa ma- minuir. E as pessoas colocam as suas vidas
a cortar madeira para seu uso pessoal e nhã de sábado, fui ao vale de Valbona às em perigo, saem no nevoeiro, perdem-se
a apanhar cogumelos sem limite. É uma 6h30 da manhã. Quando cheguei, havia ou escorregam e magoam-se. Também
forma de garantir um rendimento para a 40 carros e pessoas na floresta com tochas intervimos para lhes prestar socorro,
população e manter a montanha habitada. e até uma célula fotoelétrica. E, depois, reforçando a ajuda da Proteção Civil.”
Mas o Boletus também atrai turistas encontramos cogumelos todos pisados Mas, por vezes, a ajuda chega demasiado
de outros lugares. Os citadinos podem porque no escuro não os veem.” tarde. Dois colhedores morreram este ano
apanhar até 3 kg de cogumelos em tro- Na província de Reggio Emilia, em nos Apeninos: um homem de 79 anos,
ca da aquisição de uma licença diária de Ospitaletto, foram encontrados quatro na província de Reggio Emilia e um de
acesso à floresta, que custa 13, 15 ou 20 carros com apanhadores de cogumelos 51 anos, em Lunigiana.
euros, dependendo das zonas. Aos fins “externos” com todos os pneus furados.
de semana, dez mil pessoas afluiram ao “É um sinal de uma exacerbação de ten-
vale do Taro; durante toda a estação, são sões”, diz Pierluigi Fedele, comandante
200 mil. da polícia de Parma e especialista
“O melhor ano foi 2013”, diz Antonio em Micologia [especialidade da
Mortali. “Vendemos 60 mil licenças, num biologia que estuda os fun-
total de cerca de um milhão de euros. No gos]. “Descobrimos que
ano passado, foram 30 mil licenças por um velho montanhês
cerca de meio milhão de euros. E o dobro estava a colocar cola
dos recolhedores – infelizmente, porque nas fechaduras dos
há muito abuso e pouco controlo.” carros. Durante os
Isto não deixa de criar tensões. Porque controlos deste ou-
embora o bolo de Boletus tenha aumenta- tono, apreendemos
do, as fatias são cada vez menores, espe- 400 quilos de cogumelos e passámos
cialmente para as pessoas da montanha. 15 mil euros de multas.”
“Esta atividade traz quatro mil a cinco mil Os guardas ecológicos voluntários da
euros”, diz Mortali. Mas algumas famílias associação ambiental Legambiente (Gela)
ganham mais de 20 mil euros por estação. também efetuam controlos. “Aplicámos
“O equilíbrio começou a deteriorar-se 40 sanções, normalmente de 50 euros por
há 15 anos”, explica Paolo, que combi- falta de licença, apreendendo todos os
na a sua paixão pelos cogumelos com a cogumelos colhidos”, diz Davide Mori,
caça. “Antes, os produtores de cogumelos presidente da Gela de Parma. “Por vezes,
costumavam manter os seus locais em aplicamos multas de 200 euros por colher
segredo até estarem à beira da morte. cogumelos em grandes quantidades não
Depois vieram os telefones via satélite e autorizadas. Podíamos também aumen-
o GPS. As pessoas, especialmente as da tar o montante das multas, mas o nosso
cidade e das aldeias abaixo, começaram objetivo é educativo.”
a mencionar os locais com cogumelos, a O problema é que os cogumelos
passar os seus mapas, e até a vendê-los. são “uma paixão que se tornou um

...
Nas zonas montanhosas,
a apanha de cogumelos
é uma tradição secular,
mas foi só no século XX
que começou a gerar
rendimentos.
A necessidade de regular
o setor foi, portanto,
finalmente sentida

JANEIRO 2021 - N.º 299 69


N
Perfil

TREVOR

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NOAH
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JANEIRO 2021 - N.º 299 71


Perfil

perceber que eram importadas de países


diferentes: um pouco da Holanda, um
pouco da Austrália, um pouco dos EUA.
Os sul-africanos juntaram tudo e acres-
centaram um toque pessoal para criar a

Q
sociedade racista ideal”.
“Lá, onde nasci e cresci, faziam-nos
acreditar que não tínhamos quaisquer
direitos”, continua Noah. “Lembro-me
de que, nós miúdos, adorávamos ver sé-
ries policiais norte-americanas em que
os polícias diziam: ‘Tem o direito de per-
manecer calado. Tudo o que disser pode
e será usado contra si em tribunal. Tem
o direito a um advogado.’ Adorávamos
repetir estas frases. No nosso país os po-
lícias não falavam assim.”
Noah pondera as palavras quando fala
de violência policial nos dias de hoje e nas
mortes trágicas de Breonna Taylor e George
Floyd. Em finais de maio, pouco depois da
morte de Floyd, o humorista publicou uma
Quando nos fala da questão racial nos EUA, – Vão-nos mandar parar. mensagem desiludida sobre a deterioração
Trevor Noah não se refere a George Floyd, – Como assim? Como é que sabes? das relações intercomunitárias, afirmando
Philando Castela ou Sandra Bland. Está a – Estou a perceber pela forma da con- que os acontecimentos recentes provavam
contar-nos a sua própria história, ou seja dução. Vão mandar-nos parar. que o suposto pacto social entre brancos
a de Noah, que sofre de insónias crónicas e – Tu estás é paranoico. e negros nos EUA era um embuste.
é impaciente por natureza. Durante horas – OK. “Pensem nas pessoas que pouco ou
percorre o Twitter, troca galhofas com os E é claro que nos fizeram sinal para nada têm e dizem: ‘Vou respeitar as regras
seus amigos sul-africanos no WhatsApp e parar.” do jogo, mesmo não tendo nada, porque
toma apontamentos para eventual utiliza- O agente inclinou-se para ver a carta de mesmo assim quero que a sociedade fun-
ção num qualquer episódio do Daily Show condução de Noah e os papéis do veículo. cione.’ Alguns membros desta sociedade,
[programa satírico de que é apresentador “Quando reparou no meu amigo, aquele nomeadamente os negros, continuam a ser
desde 2015 no canal Comedy Central]. grande homem branco parecido com o testemunhas de que o pacto que fizeram
Este comediante cuja imagem se trans- Clark Kent, ficou surpreendido e disse: com a sociedade não está a ser respei-
formou nos últimos meses – trocou o fato ‘Ah, OK. O que vão fazer esta noite? Para tado... Quando vemos George Floyd no
e a gravata por uma camisola com capuz onde vão?’ David disse qualquer coisa e chão, estamos a ver um homem a morrer.
e um corte afro – recebe-nos envergan- logo a seguir o polícia disse: ‘OK, boa-noite Ninguém merece morrer assim, sob a bota
do uma simples t-shirt preta e calças de meus senhores’.” E ficámos livres para de um homem que jurou respeitar a lei. É
ganga. E fala-nos de um encontro que teve seguir viagem. caso para perguntar de que pacto social
com a polícia há alguns anos. O seu amigo David estava estupefacto. ou contrato estamos a falar?”
“Quando cheguei aos EUA era cons- “Não queria acreditar. ‘Mas porque nos Esta diatribe de 18 minutos que foi vi-
tantemente mandado parar pela polícia”, mandaram parar?’ perguntava. ‘Não te sualizada mais de nove milhões de vezes no
explica, sentado em frente a uma webcam esqueceste de fazer pisca, não tens ne- YouTube foi filmada no seu apartamento
no seu apartamento de Nova Iorque, numa nhuma luz fundida?’” Noah ainda se ri em Hell’s Kitchen (em Nova Iorque). É
manhã de julho. “Nem sequer ligava muito ao relembrar a sua reação. “Eu não me aí que o humorista está confinado desde
ao assunto, sendo oriundo de um país onde senti minimamente indignado, nem irri- meados de março e faz a emissão do Daily
toda a gente está sempre a ser interpelada tado. Estava mais intrigado pelo facto de – Social Distancing – Show com a ajuda
pela polícia.” David, um amigo branco de o polícia me ter mandado seguir quando de uma centena de autores, editores, di-
Noah, é bastante mais cético em relação reparou em quem estava no banco do lado. retores, produtores e gráficos – também
à realidade deste racismo constante. “Ó A sua atitude mudou no mesmo instante. eles em confinamento.
meu! Tu já foste parado mais vezes nos E pensei: ‘Bem, isto é interessante.’” O humorista Stephen Colbert, que
últimos seis meses do que eu na vida “Uma das coisas boas do apartheid”, também começou a fazer emissões a partir
toda!”, brinca. acrescenta Noah a seguir, sem qualquer de casa para o seu Late Show, continua a
Um dia, David estava no Range Rover ironia, “é que não tínhamos qualquer ser o mais visto nesta categoria (segunda
de Noah, no lugar do pendura, à chegada a ilusão sobre a ausência de liberdade ou parte da emissão noturna) com, uma média
Pasadena. “Tínhamos um carro da polícia sobre a injustiça da situação. Se olhássemos de três milhões de espectadores, ou seja
atrás, conta Noah, e eu disse ao David: para as leis do apartheid conseguíamos mais um milhão do que Jimmy Fallow, na
NBC, ou Jimmy Kimmel, na ABC.
Durante a pandemia, Trevor Noah con-
AUTOR DATA TRADUTORA seguiu um feito impensável há alguns anos:
F Ron Stodghill 17.09.2020 Ana Marques fazer de um negro da geração Y, originário

72 JANEIRO 2021 - N.º 299


da África do Sul, a nova coqueluche da útil do que jogar à defesa.” Em retrospe- “Entre os melhores conselhos que re-
América. tiva, é como se durante toda a vida Noah cebi, esteve o de um velho negro que veio
Noah tem a vantagem de ter um públi- se tivesse estado a preparar para o papel falar comigo depois de um espetáculo e
co familiarizado com as redes sociais; no que hoje desempenha. Filho de mãe negra me disse: ‘Trevor, eu e a minha mulher
seu canal de YouTube, a cadeia do Daily sul-africana e pai branco suíço-alemão, gostamos muito do teu humor, mas há
Show conta com 8,1 milhões de assinaturas Noah navega facilmente entre fronteiras uma coisa sobre este país que deves saber.
pagas. Os vídeos de Noah são frequente- raciais e culturais e sabe expor e questio- Vão dizer-te que só há dois partidos po-
mente visualizados mais de um milhão de nar os seus paradoxos. Em criança, Noah líticos, os republicanos e os democratas.
vezes nos dias posteriores à sua publicação. foi sempre o forasteiro, o intérprete, o Não é frequente dizê-lo, mas a verdade é
Trevor Noah faz parte das personalidades intermediário. que existem três. Há os republicanos, os
negras mais influentes nos meios de co- “Cresci entre uma família branca e ou- democratas e os negros. Nunca esqueças
municação social contemporâneos. Aos 36 tra negra e eu era o mediador”, explica. isso.’ E foi-se embora.”
anos, este sul-africano ganhou o jackpot “Frequentei uma das primeiras escolas que Desde muito novo, Noah percebeu que
da cultura pop norte-americana. Fator deixaram de ser integralmente brancas há poucas verdades absolutas no mundo.
diferenciador: a sua capacidade de tratar após o fim da segregação. Andava de um Na maioria dos casos, há nuances que re-
os horrores da condição humana sem jogar lado para o outro entre a minha mãe e os fletem os limites das nossas experiências
a carta da indignação. meus professores brancos. Tanto ia à igre- individuais. Nas suas memórias, Born a
“Não é só ser uma revolução. É o facto ja branca como à igreja negra, e a minha Crime: Stories From a South African Chil-
de acontecer durante uma pandemia”, mãe dizia: ‘Não percebo. Podes traduzir dhood [Sou Um Crime: Nascer e Cres-
refere Michelle Wolf, antiga colaboradora o que as pessoas dizem nesta igreja?’ Saí cer no Apartheid, editado pela Tinta da
do Daily Show. É inédito. “Trevor tem algo do meu país de origem porque ansiava China], publicado em 2016, Noah narra
único: extrapolar a partir de uma situação por um lugar onde me sentisse em casa. o terrível absurdo da sua infância, vivida
e dar-nos uma perspetiva e uma leitura Mas acabei por aceitar o facto de, pelos numa sociedade fraturada. Fala também
diferentes.” vistos, ter nascido para ser intermediário. do impossível número de equilibrismo da
Para Bryan Stevenson, militante pela Habituei-me cada vez mais a desempenhar sua mãe, tentando desempenhar simulta-
justiça social e autor de Just Mercy : A este papel: ‘Olá brancos! Se querem falar neamente o papel de protetora, confidente
Story of Justice and Redemption (“Ape- de raça e racismo podem falar comigo. e mentora.
nas compaixão: uma história de justiça e Vamos lá!’” Patricia Nombuyiselo Noah ensinou ao
redenção”, não editado em português), No início da carreira, Noah tanto atuou filho que as regras existem para ser de-
Trevor Noah distingue-se sobretudo pela em pequenas aldeias como em grandes safiadas. Com uma condicionante: que se
sua franqueza em relação à América bran- cidades, o que lhe permitiu ver de perto respeite Jesus e se reze pela salvação das
ca, quando “tantas figuras e atletas ne- um país que só conhecia dos livros e da nossas almas. Uma posição extraordinária
gros parecem ter dificuldade em tomar televisão. “Vivi nos EUA dois anos e meio, para uma mulher negra de etnia xhosa que
posições fortes com medo das reações que antes de ter uma oportunidade no Dai- sofreu na pele as humilhações do apar-
isso suscite”, continua Stevenson. “O que ly Show. Durante esse tempo passei por theid. Apesar de religiosa, era uma rebelde
eu gosto no Trevor é que não se importa 49 estados – só não fui ao Alasca. Estava e uma livre pensadora. Depois de crescer
se está a dizer coisas desagradáveis ou se sempre na estrada. Vi o país de perto, sem num gueto pobre do Soweto, começou a
pode perder o emprego. Prefere fazer algo artifícios.” trabalhar como secretária e aos 20 anos

R
AP ARTH EID É Q UE NÃ O TÍNHAMOS QUALQUE
DO
“UMA DAS COISAS BOAS U SO BR E A INJU ST IÇA DA SITUAÇÃO.
NCIA DE LIBERDAD E O
ILUSÃO SOBRE A AUSÊ D CO NS EG UÍAMOS PERCEBER QUE
ERAM
AS LEIS DO AP ARTH EI
SE OLHÁSSEMOS PARA DA HO LA ND A, UM PO UCO DA AUSTRÁLIA,
O
DIFERENTES: UM POUC
IMPORTADAS DE PAÍSES S JU NTAR AM TU DO E ACRESCENTARAM
S SUL-AFRICANO
UM POUCO DOS EUA. O CIED AD E RA CISTA IDEAL”, IRONIZA
RA CRIAR A SO
UM TOQUE PESSOAL PA

JANEIRO 2021 - N.º 299 73


Perfil

conseguia alugar casa em Joanesburgo.


Até o nascimento de Trevor, em 1984,
foi um ato de contestação: a lei sul-afri-
cana proibia casamentos inter-raciais e
ela convenceu o então namorado, um
restaurador suíço-alemão, a terem um
filho sem obrigações em troca.
Desde o início que era uma relação
difícil. Com medo de ser presa por sexo
inter-racial ou ver Trevor raptado, Patricia
escondeu o filho durante a maior parte da
infância. Aos fins de semana fingia ser uma
empregada doméstica para poder levar
o filho ao outro lado da cidade visitar o
pai. Depois houve um padrasto e as visi-
tas passaram a ser menos frequentes. O
pai mudou-se para a Cidade do Cabo e o
contacto perdeu-se.
Durante a adolescência, Noah traba-
lhou à noite como DJ, o que lhe permitiu
ganhar dinheiro e reputação. Não tardou
que começasse a fazer rádio, comédia e
stand-up.
Uma noite em Joanesburgo estava com
um primo e um amigo e foi convidado a
subir ao palco. Contou algumas histórias,
como a de um amigo que fumava charros,
e de um prestamista que também reparava
televisões. A plateia ficou cativada. “Tre-
vor nunca foi um comediante; aconteceu
tudo por acaso”, reconhece Sizwe Dhlomo,
amigo de longa data, também animador
de rádio e televisão. “Não tinha um cên-
timo no bolso, porque não experimentar?
E saiu-se melhor do que a maioria.”
Anos mais tarde, Noah esgota salas na
África do Sul, aparece em reality shows,
anima festas de gala e lança o seu pró-
prio talk show. Começa a ser conhecido
além-fronteiras e decide que é altura de
ir tentar a sorte nos Estados Unidos.
Pouco depois de chegar ao país, Noah
é convidado do Tonight Show de Jay Leno.
Uma estreia para um comediante sul-afri-
cano. Uma aparição no programa de David
Letterman (apresentador de outro pro-
grama da noite) no ano seguinte chamou
a atenção dos produtores do Daily Show, “ENTRE OS MELHORES
CONSELHOS QUE RECE
que mostraram o vídeo a Jon Stewart. Mais
O DE UM VELHO NEGRO BI, ESTEVE
tarde, Stewart dirá numa entrevista ao
QUE VEIO FALAR COM
Hollywood Reporter que considerou ime-
DE UM ESPETÁCULO E M IGO DEPOIS
diatamente Noah para seu sucessor. “Sim”, E DISSE: ‘TREVOR, EU E A
afirmou Stewart na altura, “é o tipo que MULHER GOSTAMOS M MINHA
UITO DO TEU HUMOR, M
um dia ficará no meu lugar”.
Já nem nos lembramos disso, mas há COISA SOBRE ESTE PAÍS AS HÁ UMA
QUE DEVES SABER. VÃO
cinco anos, antes da chegada de Trevor
QUE SÓ HÁ DOIS PARTID DIZER-TE
Noah, parecia insensato confiar as rédeas OS POLÍTICOS, OS REPU
do Daily Show a um jovem animador
E OS DEMOCRATAS. NÃ BLICANOS
sul-africano, desconhecido do público. O É FREQUENTE DIZÊ-L
Quando Noah se estreou, a 28 de setem- A VERDADE É QUE EXIS O, MAS
TEM TRÊS. HÁ OS REPU
bro de 2015, Jon Stewart, na altura com
OS DEMOCRATAS E OS BLICANOS,
52 anos, era o rei incontestado deste tipo
NEGROS. NUNCA ESQUE
de emissão, com as suas tiradas a serem ÇAS ISSO.’
E FOI-SE EMBORA”
74 JANEIRO 2021 - N.º 299
Bio
Trevor Noah
Comediante, humo-
repetidas um pouco por todo o país, dos rista e apresen- ram espectadores durante a presidên-
bares às salas de reuniões. tador de televisão cia de Trump, o mesmo sucedeu com os
Não conseguindo imaginar que pudesse nasceu em 1984, em programas humorísticos e políticos – de
haver um sucessor para o seu ídolo, alguns Joanesburgo. Em Stephen Colbert a John Oliver, passan-
fãs inveterados de Stewart afastaram-se do 2015, substituiu Jon do por Bill Maher. Todos beneficiaram,
Daily Show sem dar tempo a Noah de se Stweart à frente de em graus diferentes, do “efeito Trump”.
afirmar. Depois começaram a atirar farpas. um dos programas Com Trevor Noah, o Daily Show teve um
Trevor Noah não se zangava frequente- satíricos norte-a- ano bom: recebeu seis nomeações para os
mente, não era tão engraçado e sobre- mericanos mais Emmy e, em finais de abril, o formato da
tudo não era suficientemente bom para conhecidos, The emissão passou de 30 para 45 minutos.
substituir Jon Stewart. “Se houve alguma Daily Show. É tam- O sucesso do programa deu a Noah
coisa para a qual ninguém me conseguiu bém autor de uma muito mais do que algum dia poderia ter
preparar foi a tempestade mediática que autobiografia cómica sonhado na África do Sul. No ano pas-
se seguiu. Era como se as pessoas assinas- publicada em 2016: sado comprou uma casa de 20 milhões
sem a minha sentença de morte à minha Sou Um Crime: de dólares em Bel Air – com um aquário
frente. Era assustador”, relembra Noah. Nascer e Crescer no de dois mil litros na sala. Os estúdios da
Foi criticado por o seu humor não ser Apartheid (edições Paramount Players estão a preparar um
nem suficientemente negro nem compas- Tinta da China) filme sobre a sua vida, com Lupita Nyong’o
sivo, o tipo de remoques que irritam Noah. no papel da sua mãe. O contraste com a
“Tem graça, porque quando Jon Stewart, pobreza que conheceu na África do Sul
meu amigo e mentor, estava prestes a não podia ser maior.
abandonar o programa, perguntei-lhe “A minha mãe era do género de pôr
porque se ia embora e ele respondeu: água no fundo das garrafas vazias de ke-
‘Estou farto e zangado. Acho que o pro- tchup para as conseguir usar até à última
grama merece alguém com a tua juven- gota”, explica. Às vezes tínhamos cereais
tude e energia para o levar a bom porto. para o pequeno-almoço, mas não tínhamos
Alguém que invente tiradas cómicas para leite. Por isso não dou nada por adquirido.
fazer chegar informações ao público. Um A minha mãe dizia sempre: ‘Vais trabalhar
dia vai haver coisas que te irritam, mas no duro e hás de ter tudo o que te falta hoje.
aproveita enquanto isso não acontecer.’ E é E sabes que mais? Vais poder ter orgulho
o que tenho feito.” Nem todos estavam de em ti quando o fizeres.’”
acordo. “Havia sempre gente a perguntar Para Noah, que passou parte da in-
porque não era mais agressivo. E eu pedia fância escondido e junto de uma família
para me explicarem o que os enervava e, com poucos meios, a pandemia traz-lhe
já agora, por que razão me deveria irritar? recordações curiosas. “Em criança, cresci
Vocês vivem numa das economias mais numa espécie de quarentena. Não podia
prósperas do planeta, têm o primeiro sair para brincar com os outros meni-
Presidente negro da História, há tanta nos. A minha liberdade de movimentos
coisa a mudar.” era limitada e não compreendia porquê.
Jem Flanz, produtora-executiva do Diziam-me: ‘Não podes sair.’ E eu vivia
programa, acrescenta: “Se Trevor tinha assim e aceitava. Por isso, durante o con-
ideias claras desde a primeira hora, o finamento, disse sempre às pessoas que
programa tinha uma tradição sólida de tinha a sorte de ter o que comer e estar
pertinência temática. Fundimos uma coisa bem de saúde.”
e outra e começámos a abordar os temas Em contrapartida, o confinamento
que Trevor queria, da violência policial privou Noah de uma das suas principais
aos escândalos da FIFA. Todas as nossas fontes de inspiração, o contacto com as
escolhas de narrativa, títulos, reportagens pessoas comuns. “Como apresentador
e convidados são guiados por esta ideia.” do Daily Show, podia estar na estrada
Um ano depois, durante a convenção todas as semanas, fazer o espetáculo de
nacional republicana (2016), Noah encon- Louisville (Kentucky) a Springfield (Mis-
tra o seu próprio ritmo e faz ressoar uma souri), de Filadélfia (Pensilvânia) a Balti-
voz mais internacional na paisagem po- more (Maryland), ou em Atlanta (Geórgia).
lítica norte-americana. Donald Trump, Ia a toda a parte, houvesse lá muitos ou
brinca Noah, assemelha-se aos ditadores poucos fãs. Onde me quisessem ver, eu
africanos. “Vendo bem as coisas, parece fazia o espetáculo. E o público mudava,
que Donald Trump encarnou as piores dependendo de onde estava.”
pragas de África. Pensa como um ditador Não é “uma questão de afinidades po-
africano. Faz trafulhices como um prínci- líticas mas de pessoas. Aqui aprendo uma
pe nigeriano. Ameaça os seus adversários coisa, noutro sítio outra. E assim procuro
como um líder egípcio e da sua boca saem construir um mosaico complexo em vez de
horrores dignos do ébola.” um bloco monolítico. É isso que adoro fazer
Se os canais de informação ganha- nos EUA: descobrir o país autêntico”.

JANEIRO 2021 - N.º 299 75


Controvérsia

PODE
UMA SÉRIE
HISTÓRICA
IGNORAR
A VERDADE?
A quarta temporada da série The Crown, que retrata
a monarquia britânica durante o reinado de Isabel II,
é criticada por ter tomado demasiadas liberdades
em relação a factos históricos

Margaret Thatcher a participar num jogo com a cara manchada

SIM,
de fuligem – a menos que seja verdade, e nesse caso é simples-
mente fantástico! Também não acreditamos que ela tenha dito
à sua primeira-ministra para ir a casa mudar de roupa em plena
caçada. Sabemos muito bem que os seus diálogos não são trans-
crições de conversas reais e que esta série não é um documen-
PARA INTERESSAR tário. Certamente, alguns millennials apreciam os avisos, mas
OS MAIS NOVOS
The Daily Telegraph
não somos tão estúpidos a ponto de pedir que nos esclareçam
antes de cada episódio de que “todos estes acontecimentos não
Londres aconteceram realmente”.
Apesar de todas estas inexatidões, esta série consegue, bri-
lhantemente, deixar-nos curiosos sobre este período da História.
Inspirou-me a aprender muito mais. O que aconteceu realmen-
te no Domingo Sangrento? Quem foi Lord Mountbatten e que

P
influência teve ele sobre Carlos? Será que Margaret Thatcher
declarou realmente que não queria nenhuma mulher no seu
ara as gerações mais jovens que, como eu, estão a assistir à governo? E ela tinha realmente a voz rouca de uma mulher que
quarta temporada da série, o resultado não é tão catastrófico fumara 40 cigarros por dia desde os seis anos?
para a imagem da monarquia. O facto é que a maioria das pessoas É precisamente o facto de ter de destrinçar a realidade da
com menos de 30 anos não sabe muito sobre os membros mais ficção que torna as coisas interessantes. Portanto, sim, é lamen-
velhos da família real. Desde esta série, isso mudou do dia para tável que a série insista sobre a vida pessoal dos protagonistas
a noite e todos começaram a falar sobre os ocupantes do Palácio ao ponto de mal evocar o seu verdadeiro trabalho. E estou certo
de Buckingham. Graças à Netflix. de que alguns factos históricos foram desviados desnecessaria-
Tomemos o exemplo do príncipe Carlos, o nosso futuro rei. mente. Mas há alguns que fariam bem em não perder de vista
O que as pessoas da minha geração sabem sobre ele pode pro- o essencial – nomeadamente o autor de uma divertida carta ao
vavelmente ser contado pelos dedos de uma mão. Ele é filho da nosso jornal para quem “a representação das técnicas de pesca
Rainha, pai dos príncipes Guilherme e Harry, marido de Camilla do príncipe Carlos é absolutamente inadmissível”. O essencial
e ex-marido de Diana. E é dono de muitas colmeias. É espantoso resume-se a isto: a família real encontra-se manifestamente
– e tocante – descobrir que o seu tio-avô, Lord Mountbatten, num ponto crucial da sua história. Nós, os jovens, podemos ter
morreu num ataque do IRA (Exército Republicano Irlandês) [em apenas vagas memórias de Lady Di, mas temos acompanhado
1979] quando Charles era apenas um jovem. com interesse os últimos desenvolvimentos nas declarações
Cenas como estas fazem da série um espetáculo cativante. do príncipe André, o Megxit e a alegada disputa entre os dois
Mas elas também perturbam os idosos, que as veem como um irmãos [Guilherme e Harry]. Tal como no passado, os críticos da
atentado à História nacional, porque os jovens tendem a tomar família real encontrarão sem dúvida na série novas razões para
o que a série Netflix diz como verdade divina. Presos aos seus a odiar. Outros verão novas nuances e ficarão antes intrigados.
smartphones e incapazes de abrir um livro, os jovens simples- Ficaremos curiosos de saber mais sobre estas personagens
mente não sabem a diferença entre verdade e ficção! que desempenharam um papel tão importante na História e
É uma forma de condescendência intelectual e geracional identidade do nosso país, que conviveram com os primeiros-
Claro que não pensamos que a Rainha tenha realmente levado -ministros e se tornaram os guardiões da tradição e dos pro-
tocolos numa época de grande instabilidade sem, no entanto,
se tornarem celebridades de plástico. E, acima de tudo, que
enfrentam os mesmos problemas conjugais e familiares do co-
AUTORA dATA TRAdUTORA
F Ellen Lister 22.11.2020 Helena Araújo mum dos mortais. Quem sabe, até pode ser que comecemos a
achá-los simpáticos.

76 JANEIRO 2021 - N.º 299


A forma como Isabel II e
Margaret Thatcher aparecem
na série faz dividir as opiniões
FOTO NETFLIX

Distorcer a História significa transformar a realidade em pro-

NÃO,
paganda. Como subentende Peter Morgan, o seu filme pode não ser
exato, mas pretende partilhar uma verdade profunda: a família real
foi desagradável com Diana e guardava-lhe rancor. Ser-nos-á dito em
breve que eles ordenaram a sua morte? Vamos assistir, como Oliver
Stone fez em JFK, à falsificação das circunstâncias da sua morte?
É DESINFORMAÇÃO
The Guardian
Todos sabemos que Shakespeare tomava certas liberdades com
a História. Os escritores continuam a tentar corrigir a sua inter-
Londres pretação fantasiosa, da qual Ricardo III sofreu particularmente. A
maioria dos romancistas históricos, nomeadamente Hilary Mantel,

Q
estão a tentar provar a sua versão dos factos. Tolstoi também aplicou
este método em Guerra e Paz. É aceite que a História distante teve
uando ligar a sua televisão esta noite, imagine a notícia tempo para pôr os seus assuntos em ordem.
não ser apresentada por um jornalista, mas interpretada É por isso que deve ser diferente para a História moderna, porque
por atores. Um sósia de Boris Johnson ataca furiosamente a sua ela está demasiado próxima do que deve permanecer sagrado – o
noiva, Carrie Symonds; Dominic Cummings vomita num caixote momento em que testemunhamos os acontecimentos. É impen-
do lixo; e alguém íntimo da Rainha desaparece. No final, a BBC sável que haja uma verdade para historiadores e jornalistas, que
explica que tudo isto é “inspirado na realidade” e diz esperar que fazem o trabalho preliminar, e outra verdade que é classificada de
tenha gostado. A série The Crown consagrada à realeza britânica liberdade artística.
é aplaudida pelas representações dos seus atores e ferozmente A mentira é muito mais interessante. Mas não tinha, no entanto,
criticada pelas suas imprecisões, quase todas elas depreciativas qualquer razão de ser, uma vez que existem muitas ocasiões – como
para pessoas vivas ou recentemente falecidas. A quarta tempo- mostra a interpretação de Helen Mirren – em que os membros da
rada, transmitida na Netflix, parece ter apostado na invenção e família real agiram mal. Peter Morgan poderia ter feito passar a sua
no ultraje. O seu escritor, Peter Morgan, admite-o: “Por vezes, mensagem sem se afastar da verdade.
é preciso renunciar à exatidão, mas nunca à verdade.” As leis sobre o respeito da vida privada, a difamação e a calúnia
Esta distinção parece perigosa. O retrato de Isabel II interpre- têm sido ampliadas ao longo do tempo, para proteger os indivíduos
tado por Helen Mirren em The Queen (2006) era pouco lisonjeiro, contra o aumento da vigilância e das intrusões. A maioria das pessoas
mas parecia uma reconstituição plausível do período da morte de apoia esta legislação e está a utilizá-la cada vez mais. The Crown
Diana. O ar rígido e amargurado de Olivia Colman [que interpreta tomou liberdades sabendo perfeitamente que os Windsor sempre
a Rainha nas temporadas de The Crown] assemelha-se mais a uma foram reticentes à ideia de recorrer à justiça. A liberdade artística
paródia, e mistura o verdadeiro e o falso. É tudo uma invenção. é, por isso, tão cobarde como descomplicada.
As palavras e as ações das pessoas vivas foram fabricadas para Desvirtuar a História significa enraizar a desinformação. Para
se adequarem a uma intriga que poderia ter sido escrita pelos as legiões de ciberguerreiros internacionais, a mentira é um desvio
admiradores mais fervorosos de Diana. legítimo. Para os provocadores e mentirosos, para os conspiradores
A família real é bastante capaz de se proteger e normalmen- de esquerda e os anti-Vaxx de direita, são represálias contra o poder.
te fá-lo. Mas não sei se posso dizer o mesmo da História, em Para documentaristas que acham os factos demasiado insípidos, não
particular da contemporânea. O mérito das séries dramáticas suficientemente esmagadores, a manipulação da História beneficia
documentais repousa inteiramente na sua veracidade. Temos de de um trunfo mágico: liberdade artística.
estar convencidos da sua exatidão, caso contrário é uma perda Quando chegar a vez da regulação das redes sociais, alguém
de tempo, não? irá conceber um sistema para enquadrar e contextualizar o acesso
aos ecrãs. Espero que consigamos escapar ao equivalente a uma
comissão de censura cinematográfica, mas são de facto necessárias
AUTOR dATA TRAdUTORA
F Simon Jenkins 17.11.2020 Helena Araújo regulamentações. Não é muito mais complicado do que colocar um
ícone no canto do nosso ecrã. Que se chamaria “F de ficção”.

JANEIRO 2021 - N.º 299 77


Cidades

Vida

Caminhar,
a grande evasão
Durante o confinamento, uma jornalista londrina encontrou um conforto
e uma alegria inesperados ao percorrer as ruas da sua cidade. Descobriu
que as virtudes da caminhada não se encontram apenas na zona rural

FINANCIAL TIMES LONDRES

marcha é libertadora, escreve [o fícios das caminhadas urbanas. “[Andar] As excursões na cidade revelaram-se

A filósofo francês] Frédéric Gros


em La Marche, Une Philosophie
aumenta o fluxo sanguíneo para o cérebro,
o que tem uma série de efeitos positivos
tão benéficas como as caminhadas no cam-
po, com benefícios que variaram de acor-
[Caminhar, Uma Filosofia, na cognição: criatividade, resolução de do com os caminhantes. As pessoas que se
edição brasileira na editora É Realizações], problemas, libertação emocional. Cami- sentiam sozinhas diziam que as suas vidas
um manifesto para uma vida não sedentá- nhar ajuda a melhorar o humor e permite eram melhores [desde que andavam], in-
ria. Ele tem razão, obviamente, mas há um abrir-se, autorizar-se a partilhar as coisas.” dependentemente do local onde andavam.
problema: mais de metade da população Geralmente, associa-se caminhada e boa “Observou-se uma melhoria acentuada
mundial vive em cidades. Como nos liber- saúde ao campo, mas a cidade pode ser na saúde mental [dos participantes], a sua
tamos no meio de uma pandemia, quando igualmente revigorante, segundo Cooley: ansiedade diminuiu, a sua confiança au-
se está longe das zonas rurais? “[Os efeitos positivos] não têm muito que mentou”, explica Cooley. “Algumas pessoas
Como muitos dos londrinos que estão ver com o lugar – trata-se de mudanças que não estavam integradas na sociedade
cansados dos ecrãs, comecei a andar pela fisiológicas provocadas pelo movimento.” passaram então a ser voluntárias e a aceitar
cidade este ano. Sair para o ar livre e an- um emprego remunerado.”
dar pelos passeios permitiu-me acalmar o Movimento libertador A caminhada urbana é mais do que
meu desejo de viajar e de me encontrar “no Cooley e a sua equipa passaram um ano a um substituto improvisado das viagens
meio do mundo”, nas palavras de Frédé- estudar um grupo de caminhadas de Lei- ao campo. No fundo da minha tristeza,
ric Gros. A minha mãe morreu durante os cester criado por terapeutas ocupacionais tive o prazer de ir em passeios a partes de
primeiros meses da pandemia e eu estava para pessoas com doenças mentais. Pro- Londres que tinha visitado em criança com
de luto – uma forma de isolamento em si curou saber se a caminhada na cidade os a minha mãe (que foi uma das pessoas mais
– por isso, embora o sul de Londres possa beneficiava tanto como a caminhada no apaixonadas pela cidade que alguma vez
não ser tão atrativo como os Alpes Suíços campo. As suas conclusões são o tema de
(que, segundo Gros, eram o local preferido um artigo a ser publicado na revista Ecop-
de caminhada de Nietzsche), segui os seus sychology. “Presumia que os passeios mais ...
conselhos. verdes teriam um efeito [positivo] maior”,
Gros tinha razão: caminhar tem sido confessa Cooley. A sua hipótese baseava-se As caminhadas na cidade
libertador, quer sozinho quer com outros, na “teoria da restauração da atenção”: a revelaram-se tão benéficas
mesmo nesta cidade, que é uma das mais ideia de que se pode reduzir a fadiga men-
densamente povoadas do mundo. E a Ciên- tal e melhorar a concentração, passando quanto as do campo, com
cia confirma-o. “Os estudos comprovam- tempo no mundo natural. “Mas as conclu- benefícios que variam de
-no e os benefícios vão longe”, diz Sam sões foram espantosas. Não era tão preto
Cooley, um psicólogo que estuda os bene- no branco quanto isso.”
acordo com os caminhantes.
As pessoas que se sentiam
sozinhas dizem que, agora
AUTORA DATA TRADUTORA
F Helen Barrett 06.11.2020 Helena Araújo que começaram a andar,
as suas vidas são melhores

78 JANEIRO 2021 - N.º 299 ILUSTRAÇÃO DE GETTY IMAGES


tradas principais, campos de golfe, zonas
industriais e loteamentos, a maior parte dos
quais estão ligados por grandes complexos
habitacionais do século XX.
É claro, a paisagem nem sempre foi
magnífica. Mas deu-me a oportunidade de
descobrir o King John’s Walk [“o caminho
do rei João sem Terra”], que liga o Palácio de
Eltham a Mottingham: um direito de pas-
sagem antigo e pacífico que originalmente
permitia à família real juntar-se para as suas
caçadas. De um lado desfruta-se de um
vasto panorama da capital, perfeitamente
silencioso e muito mais extenso daquele
que é oferecido a partir da Parliament Hill
[uma área de parqueamento] no noroeste de
Londres. Gostei de tentar distinguir deste
local o edifício do Lloyd’s e o Barbican [que
fica muito mais a norte].

Usar a cabeça
É possível aperfeiçoar a sua marcha para
melhorar a sua saúde mental? Sim, garante
Cooley. Ele propõe uma técnica chamada
5-4-3-2-1, para evitar que o turbilhão de
pensamentos impeça de tirar proveito do
conheci). Lugares que ela amava e que me Outro truque, acrescenta ele, é olhar passeio: ao caminhar, destaque cinco coi-
tinha ensinado a olhar e a compreender. para cima. Foi isso que o historiador de sas que vê, perceba quatro coisas (talvez
Mesmo nas ruas vazias, consolei-me ao arquitetura Alec Clifton-Taylor aconse- o vento na sua cara), ouça três sons, sinta
descobrir que o edifício Lloyd’s do arqui- lhou há 40 anos em Six English Towns, dois odores e um gosto. “É um exercício
teto Richard Rogers ainda se encontrava uma série de televisão que se tornou um muito rápido que liga os seus sentidos com
na Lime Street. Embora quase deserto, o clássico. Se olhar para o topo dos edifícios o mundo à sua volta”, explica. Se a nos-
Barbican [um centro cultural da City] es- e estudar tudo enquanto caminha, prova- sa vida é caótica, podemos voltar de um
tava tão forte e robusto como nunca. E se velmente sentirá mais alegria do que se se passeio e constatar que estávamos tão do-
gostava de caminhar sozinha, caminhar mover rapidamente com os olhos colados minados pelo stresse que apenas passámos
com amigos era o meu maior prazer. A ao chão”, explicava este incansável cami- de um ponto A para um ponto B... Tente
conversação vinha facilmente e, por um nhante urbano. envolver os seus sentidos [5-4-3-2-1] se
qualquer mecanismo, a sensação de avançar Os awe walks aceitam este conselho. for necessário, especialmente se os seus
levantava as minhas inibições. Esta moda recente surge na sequência de pensamentos estiverem virados para o
um estudo realizado por investigadores interior. Esta técnica permite evadir-se.”
Olhar para cima! da Universidade da Califórnia, em São De acordo com Summerton, uma
Claro que estava a mergulhar no passado, Francisco, que constatou que as pessoas das melhores formas de tirar o máximo
o que não é necessariamente mau quando que, ao caminhar, são confrontadas com partido de um passeio é acelerar o ritmo.
se lida com o luto ou com uma situação a “imensidão física” e a “novidade” – por “Sabe-se que se andarmos mais depressa,
de perigo de vida como uma pandemia, exemplo, frente a monumentos históricos ficamos melhor. Dizemos às pessoas que o
explica-me Nick Summerton. Clínico ge- ou edifícios imponentes – mudam a perce- Anjo da Morte anda a cerca de duas milhas
ral ligado à Ramblers Walkers Association, ção do seu lugar no mundo. “A ideia é que (3 km) por hora. Se conseguirem andar
recomenda procurar conforto em vestígios alguns passeios são bons para a mente. O mais depressa, é menos provável que ele
romanos como os que podem ser vistos no ‘uau!’ reflete que a caminhada traz algo de as apanhe.” A maior vantagem de andar
Barbican [com um vestígio de uma muralha magnífico”, explica Summerton. a pé – e a maior satisfação que ela pro-
nas proximidades] ou aqueles que estão Ora, os monumentos históricos e os porciona – é a sua simplicidade. Este ano,
integrados no tecido urbano das cidades de edifícios imponentes encontram-se ge- nós, os habitantes da cidade, aproveitámos
Chester ou York, por exemplo: “Os romanos ralmente no centro da cidade. O que fazer frequentemente o confinamento para nos
sofreram a peste antonina [com o nome da quando se está preso nos subúrbios e se aperfeiçoarmos; temos aprendido frene-
dinastia Antonina no século II d.C.]. Quan- precisa de uma solução rápida? ticamente línguas estrangeiras e a treinar
do se está nestes locais, pode-se meditar Além das excursões à City, fiz várias músculos, aparentemente incapazes de vi-
sobre o facto de uma civilização anterior vezes a Capital Ring Walk durante o ve- ver sem realizar algo. Caminhar é precisa-
ter passado por aqui – e ter sobrevivido.” rão. É um trilho completamente circular, mente o oposto. Ninguém ganha, ninguém
A propósito, Summerton observa que as sinalizado apenas por postes, que percorre fica melhor (exceto aqueles que recuperam
vendas dos Pensamentos de Marco Au- os subúrbios de Londres. Estou agora inti- a sua força física), e não há pressão para
rélio, um texto estoico escrito na altura, mamente familiarizada com o troço entre fazer algo mais complicado do que pôr um
aumentaram quase 30% nos primeiros Streatham, no sul, e Eltham no sudeste – pé à frente do outro. Andar a pé é a melhor
meses de 2020. uma sucessão de campos desportivos, es- forma de escape na cidade.

JANEIRO 2021 - N.º 299 79


L L I V RO S
O COMBATE DO SÉCULO
Escrito antes da pandemia, este é um livro em que o seu
autor, um reputado e influente ex-diplomata de Singapura,
tenta mais uma vez provocar os crentes nas virtudes
infinitas do sistema ocidental, forçando-os, dessa maneira,
a olhar de forma diferente para a organização política
e social chinesa. Em entrevistas e escritos posteriores,
Kishore Mahbubani afirma que o tempo só lhe tem dado
razão. “A gestão incompetente do mundo ocidental face à
pandemia vai acelerar a mudança do eixo de poder para a
Ásia”, escreveu na revista The Economist. Embora não responda
Leituras que totalmente à pergunta provocadora do título do livro, o autor
nos ajudam desenha, de forma sagaz, o duelo existente entre a China
a compreender e os EUA, sob um ponto de vista que, no mínimo, tem de
o mundo atual ser considerado estimulante. Segundo afirma, os líderes
norte-americanos acreditam que a rivalidade com a China
é apenas uma repetição da Guerra Fria que mantiveram
com a União Soviética. Portanto, estão convencidos de
que, mais tarde ou mais cedo, a superpotência do mercado
livre e amante da liberdade acabará por derrotar a ditadura
comunista. Só que, para Mahbubani, os papéis estão, desta
vez, invertidos: os EUA são a superpotência inflexível,
ideológica e sistematicamente desafiada, enquanto a China é
a rival adaptável, pragmática e estrategicamente inteligente.
“A América está a comportar-se como a União Soviética,
e a China a comportar-se como a América”, escreve ele.
Portanto, o resultado será, no mínimo, incerto.

A CHINA JÁ GANHOU?
De Kishore Mahbubani

Tradução de Paulo Tavares e de Sara M. Felício


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Ao longo de toda a sua História, Portugal foi, como afirmam os
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de Portugal ao e com o mundo, desde a pré-história até à recente
emigração portuguesa dos anos da Troika. De certa maneira,
capítulo a capítulo, o leitor acaba por ser convidado o repensar o
passado, numa perspetiva global e abrangente. Em suma: uma obra
fascinante, de consulta obrigatória, só possível graças à colaboração
de quase oito dezenas de autores, todos eles de créditos firmados.

HISTÓRIA GLOBAL DE PORTUGAL


Direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva

Coordenação de João Luís Cardoso, Carlos Fabião, Bernardo


Vasconcelos e Sousa, Cátia Antunes e António Costa Pinto
TEMAS E DEBATES

80 JANEIRO 2021 - N.º 299


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F FLASHBACK

H
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sido, ao longo de quase um século, um
dos momentos mais icónicos da revista
TIME. Em 2020, a distinção coube a Joe
Biden e Kamala Harris, o Presidente
e a vice-presidente eleitos, num dos
sufrágios mais conturbados de sempre,
mas que criou também um sinal de
esperança para os EUA e para o mundo.
Os inquilinos da Casa Branca têm sido,
naturalmente, muito representados na
galeria de personalidades do ano da TIME
– alguns mais do que uma vez, como
sucedeu com Franklin Delano Roosevelt,
Harry Truman, Lyndon Johnson, Ronald
Reagan e Bill Clinton
82 JANEIRO 2021 - N.º 299
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