S SUMÁRIO

MARÇO 2023
05 Editorial

06 Cartoons

08 Retrato
Anastasia Biefang

Atual
Conhecer
REPORTAGEM
42 El Aguán, o vale da morte

CHINA
48 A população envelhece
antes de enriquecer
PROPRIETÁRIA Courrier International S.A.
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Courrier internacional

DIRETOR Rui Tavares Guedes

EUROPA
Saber
EDIÇÃO N.º 325 DIRETOR DE ARTE João Carlos Mendes
TRADUÇÃO Ana Marques, Helena Araújo, Jorge Pires,
10 Christine Lagarde: Maria Alves, Margarida Bak Gordon
Quando uma palavra SAÚDE REVISÃO Rui Carvalho e Teresa Machado
Colaboradores da revisão: Margarida Robalo e Sónia Graça
errada pode custar 50 O dilema da menopausa INFOGRAFIA: Álvaro Rosendo
milhões SECRETARIADO: Sofia Vicente, Ana Paula Figueiredo
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EUA Claire Carrard (Diretora de Redação),
HAITI 56 A luta dos cabelos Sophie-Anne Delhomme (Diretora de Arte)
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS:
16 “Os mortos zumbem brancos Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte
na minha cabeça” Edifício Fernão de Magalhães, nº8, 2770-190
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da frente rroseiro@trustinnews.pt Mariana Jesus (Gestora de Marca)

FRANÇA
Capa 22 Reforma aos 62 anos?
Ilustração de João Carlos Os franceses têm toda
Mendes, com fotos a razão!
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JAPÃO
24 Os filhos das seitas
MUNDO ÁRABE
Courrier
Internacional
26 Nem filhos
TELEGRAMA nem casamento
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a cocaína?
Imprensa mundial que
nos ajudam a compreender
o mundo pelo olhar 30 Porque a Colômbia quer
dos outros.
quebrar o tabu?
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34 Está na hora de legalizar
36 Equador torna-se um
narco-Estado
38 México acumula
fracassos face aos cartéis
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Planeta 360º
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4 MARÇO 2023 - N.º 325 MARÇO 2023 - Nº 325

E
A

A CORAGEM DE TENTAR
FAZER DIFERENTE
EdITORIAL Quando se insiste sempre na mesma estratégia e na repetição do mesmo tipo
de ação, já sabemos que iremos obter os resultados do costume. “Não há maior
R U I TAVA R E S G U E D E S evidência de insanidade do que fazer a mesma coisa, dia após dia, e esperar
rguedes@visao.pt resultados diferentes”, terá afirmado até Albert Einstein, que, como sabemos, tinha
aquela capacidade rara de conseguir aliar um génio brilhante a uma extraordinária
habilidade para produzir frases que perduram na nossa memória coletiva.
Há quase meio século que o mundo tem feito, todos os dias, a mesma coisa no
combate às drogas duras e ao narcotráfico. E, como avisava Einstein, temos obtido
também sempre os mesmos resultados. A realidade é muito diferente da ilusão
que, às vezes, os filmes e as séries de televisão nos podem transmitir: mesmo que
Pablo Escobar tenha sido abatido e El Chapo esteja a cumprir uma pena de prisão
perpétua, a verdade é que os “narcos” continuam a ganhar a guerra. Mesmo tendo
capturado os cabecilhas e aniquilado alguns cartéis, o tráfico de droga continua a
ser um negócio altamente lucrativo e que cresce de ano para ano. O Cato Institute
calcula que as drogas criem receitas da ordem dos 600 mil milhões de dólares por
ano. E isto, como refere aquela instituição, “apesar dos muitos milhares de milhões
de dólares que Washington e outros governos gastam anualmente para o tentar
interromper”.
O desastre da guerra contra a droga é evidente, por isso, para qualquer
observador independente. Em especial, quando sabemos que as Nações Unidas
tinham estabelecido, em 1998, o objetivo de alcançar um “mundo livre de drogas”
até 2008, e, na realidade, o que se vê é um negócio a crescer e o consumo a
aumentar. Segundo os números oficiais, em 1990 as plantações de coca na Colômbia
ocupavam uma área de 40 mil hectares. Em 2022, últimos números conhecidos, a
área é cinco vezes superior: 204 mil hectares. E isto apesar das operações militares,
das muitas prisões e das toneladas de glifosato despejadas por meios aéreos nos
terrenos rurais, sempre que surge uma plantação suspeita.
Por outro lado, se a lógica da proibição é a de fazer reduzir o consumo, porque
a oferta fica mais cara, por ser penalizada, o que temos visto nas últimas décadas
é que essa regra não se verifica. Antes pelo contrário: o que todos os estudos
demonstram é que, por mais que o preço suba, o consumo não diminui. Ou seja:
na prática, o combate às drogas duras tem feito aumentar o preço do produto, mas
não conseguiu fazer diminuir a procura. Ora, se a procura continua a aumentar e
o preço também, é fácil perceber como o negócio é cada vez mais lucrativo para
os traficantes e penalizador para quem insiste em repetir os mesmos métodos de
sempre. Até porque, nos países mais atingidos pelo narcotráfico, como a Colômbia,
Peru, Equador e México, os muitos milhões de euros gastos no combate aos “narcos”
são também os muitos milhões de euros que depois ficam a faltar para responder aos
problemas de saúde, educação e na qualidade de vida das populações.
Foi essa realidade que levou o Presidente da Colômbia, Gustavo Petro, a alertar
o mundo para a necessidade de alterar a forma como se deve encarar o combate
à droga, considerando que não vale a pena continuar a penalizar e a perseguir os
pobres camponeses colombianos, mas tentar atacar antes as bases do negócio e
enfrentar todo o problema no âmbito de uma emergência de saúde pública.
“Por detrás do vício em cocaína e nas drogas, por detrás do vício em petróleo e
COURRIER INTERNACIONAL no carvão, está o verdadeiro vício desta fase da História humana: o vício no poder
Disponíveis nas lojas irracional, no lucro e no dinheiro. Essa é a enorme maquinaria mortal que pode
da Apple e da Google extinguir a Humanidade”, afirmou Petro, perante a Assembleia Geral das Nações
as aplicações necessárias Unidas, um par de meses depois de ter tomado posse. “Como Presidente de um
dos países mais bonitos do mundo, e um dos mais ensanguentados e violentados,
proponho-vos acabar com a guerra contra as drogas e permitir que o nosso povo
viva em paz”, sublinhou.
O apelo está feito. A resposta, naturalmente, não será fácil. Mas chegou o
momento de iniciar uma discussão que não pode ser mais adiada. Até porque há
bons exemplos de como a despenalização pode ter resultados favoráveis, como
sucedeu com as drogas leves, onde Portugal foi pioneiro. É preciso fazer diferente.
Ou, pelo menos, tentar.

FOTO: GETTYIMAGES MARÇO 2023 - N.º 325 5

C CARTOONS

Greves em França
“Os caminhos de ferro franceses ainda são
a empresa mais pontual em matéria de greves...”
HERMANN, PARA TRIBUNE DE GENÈVE, SUÍÇA
Deriva autoritária
“Tenho a sensação de que a
sociedade israelita se está a
extremar à direita...”
LANGER, PARA MONGOLIA,
BARCELONA, ESPANHA

6 MARÇO 2023 - N.º 325

 Novos tempos modernos
A utopia da semana dos quatro dias pode
estar cada vez mais próxima?
ALEX, PARA LA LIBERTÉ, FRIBURGO, SUÍÇA Jogo de equilíbrio
Como sobreviver à inflação,
semana a semana
MARTIRENA, CUBA

MARÇO 2023 - N.º 325 7

R R E T R ATO
Demasiado “trans”
para a Bundeswehr?
PRIMEIRA MULHER TRANS À FRENTE DE UM BATALHÃO, ANASTASIA
Q
BIEFANG FOI, DURANTE MUITO TEMPO, A EMBAIXADORA DA POLÍTICA
DE ABERTURA DO EXÉRCITO ALEMÃO. SANCIONADA PELO CONTEÚDO
DO SEU PERFIL NO TINDER, DECIDIU PROCESSAR A INSTITUIÇÃO
uando Anastasia Biefang se viu
à frente de um batalhão de mais de 800
soldados, homens e mulheres, pensou
chegara o dia, que finalmente conseguira.
Sabia, porém, que os olhares irritados e os
comentários sarcásticos não haviam desa-
parecido no seu quartel brandeburguês do
381º Informationstechnikbataillon [unidade
que pertence à defesa cibernética da Bun-
deswehr], situado em Storkow, a cerca de
60 quilómetros de Berlim. “Olhavam para
mim como se eu fosse um animal exótico,
nem mais nem menos”, resume, com um
sorriso forçado.
Anastasia é a primeira mulher trans
numa posição de comando na Bundeswehr.
Numa instituição na qual, até 2000, ho-
mens e mulheres eram despromovidos
ou despedidos logo que assumissem a
sua homossexualidade. A passagem do
comando para as mãos de Anastasia, em
2017, não só parecia significar que, de certa
forma, chegara ao auge da sua carreira
como também parecia ser um símbolo
da tolerância e abertura de um Exército
moderno. Porém, rapidamente se tornou
evidente que Anastasia e a instituição em-
pregadora tinham noções opostas no que
respeita ao nível de tolerância aceitável.
Hoje em dia, prepara-se para fazer
uma queixa contra a Bundeswehr junto
do Tribunal Constitucional alemão.
JORNAL AUTORA
R Die Zeit Larissa Kögl
Hamburgo (excertos)
8 MARÇO 2023 - N.º 325
ANASTASIA BIEFANG
Anastasia Biefang responde às nos-
sas perguntas no grande sofá verde da
sua sala de estar, em Friedrichshain [um
bairro berlinense]. Ao seu lado, dois gatos
sphynx choramingam, pedindo comida a
cada oportunidade. Anastasia tem o cabelo
escadeado dos lados. Fez a barba, mas não
tirou os pelos das pernas. As suas unhas
dos pés estão pintadas a vermelho, mas
não pintou as das mãos. Veste uns calções
e uma t-shirt justa, ambos pretos. No seu
braço direito, uma tatuagem com a forma
de uma borboleta colorida; no esquer-
do, um arco-íris. Hoje em dia, Anastasia
está empenhada em ganhar visibilidade.
É vice-presidente da associação QueerBw
[comunidade queer da Bundeswehr] e é
enquanto tal que responde ao jornal Die
Zeit: “Escondi-me durante 20 anos, tanto
na vida profissional como na pessoal”,
confessa.
“Libertação súbita”
Entrou para a Bundeswehr aos 20 anos
e, nessa altura, ainda era um homem aos
olhos do Estado. Fez formação para ser
oficial no Estado-Maior e, depois, com-
bateu no Afeganistão, antes de se tornar
oficial de referência no Ministério da De-
fesa. Foi apenas em 2015, aos 40 anos, que
saiu do armário e assumiu a sua identidade
trans. Diz que nesse momento sentiu uma
DATA TRADUTORA
18.10.2022 Margarida Bak
Gordon
“libertação súbita”. O seu supervisor à
época reagiu bem. Aceitou que passasse
a responder por “tenente-coronel Anas-
tasia Biefang”. A transição de género não
parecia afetar a carreira. Dois anos depois,
foi nomeada chefe do batalhão.
Aquelas e aqueles que servem na Bun-
deswehr podem escolher responder por
“soldado” no masculino ou no feminino.
Contudo, existe ainda um conjunto de re-
gras estritas, que dita, no seio da institui-
ção, os comportamentos a ter caso uma
pessoa seja um homem ou uma mulher.
Anastasia Biefang, porém, não entra em
nenhuma das duas categorias – e também
não quer entrar.
Recorda um incidente que ocorreu no
outono de 2021. Depois de ter Covid-19,
voltou ao quartel com uma barba de três
dias. O tratamento hormonal atenua
a pilosidade facial, mas não a erradica
completamente. Os colegas, homens e
mulheres, mostraram-se incomodados.
Estaria Anastasia autorizada a vir para o
trabalho assim, sendo ela uma mulher?
Noutra ocasião, um oficial superior orde-
nou-lhe que retirasse os brincos à frente
de todos os colegas, partindo do princípio
de que Anastasia era um homem.
E estas não são obviamente as úni-
cas regras que Anastasia quebra, sem,
no início, estar necessariamente ciente
disso. Em 2019, uma captura de ecrã do
seu perfil no Tinder circulou pelo quartel
e acabou por ir parar ao escritório do seu
superior à data. Na descrição biográfica,
lia-se: “Espontânea, voluptuosa, trans,
FOTO: GETTYIMAGES
aberta, à procura de sexo. Aberta a todos
os géneros.”
Para a Bundeswehr, uma descrição
destas é incompatível com o “dever de
boa conduta”, tal como é definido no pa-
rágrafo 17 da Soldatengesetz [lei relativa ao
estatuto dos militares], que estipula que,
mesmo fora do serviço, o comportamento
do soldado deve “estar de acordo com a
reputação, estima e confiança que carac-
terizam a Bundeswehr”. Assim, Anastasia
recebeu um aviso por incumprimento da
conduta.
O tribunal disciplinar, junto do qual
Anastasia apresentou a queixa, deu razão
ao superior: o perfil no Tinder vinha lançar
dúvidas sobre a sua “integridade moral”
e o seu comportamento também iria pre-
judicar a imagem da Bundeswehr. Então,
a instância superior, o Tribunal Adminis-
trativo Federal, reconheceu a legitimidade
para uma sanção disciplinar mínima.
...
Às vezes sente que é
apenas um fantoche para
a Bundeswehr, o símbolo
da abertura e tolerância
da instituição. “Mas
assim que descobriram
o meu perfil no Tinder, a
tolerância acabou”, afirma
“Padrões elevados”
Os juízes constataram que um oficial
superior deve seguir “padrões parti-
cularmente elevados de integridade”.
Assim, relativamente à procura de par-
ceiros sexuais em aplicações de encontros
online, deviam ser evitadas formulações
que “possam dar a falsa impressão de in-
disciplina sexual”, declarou o tribunal
de Leipzig. Ainda hoje, Anastasia não
faz ideia do que isto quer dizer. A partir
dessa altura, mudou o nome do seu perfil
no Twitter para “Anastasia ‘indisciplina
sexual’ Biefang”. Alguns olham para esta
decisão como uma provocação, mas ela
fala de militantismo. O que a irrita mais
são os argumentos utilizados pelo tribunal.
“A leviandade moral que me é atri-
buída é simplesmente falsa. Sim, tenho
relações sexuais extraconjugais, mas não
engano a minha mulher. Temos um acor-
do, e eu cinjo-me a ele. Para mim, isso é
ser íntegra moralmente”, explica.
Também a incomoda o dever de “boa
conduta” que figura na Soldatengesetz.
“Será que nos podem explicar o que se
entende por ‘boa conduta’? O que é, em
bom rigor, uma ‘boa conduta’? E quem
decide?”, pergunta Anastasia. O regula-
mento remonta aos anos 1950 e baseia-
-se, na sua opinião, em princípios morais
absolutamente retrógrados.
Assim, ela quer levar o seu caso ao
Tribunal Constitucional, com o apoio da
GFF [Sociedade para as liberdades civis],
uma ONG que considera a sanção aplicada
a Anastasia uma ameaça ao direito funda-
mental de autodeterminação sexual. Aliás,
lançou uma petição, na qual se exige uma
revisão do dever de boa conduta fora do
serviço do Exército, e designou-a assim:
“Demasiado queer para a Bundeswehr?”
Ao lhe perguntarem se mudou de
comportamento depois do incidente,
Anastasia responde imediatamente que
não. “Não, isso é exatamente o que eles
querem. ‘Não fales demasiado alto, não
te vistas com muitas cores, não sejas
demasiado queer.’ Mas eu não lhes vou
dar esse prazer.” Após o sucedido, al-
guns militares queer passaram a ser mais
cuidadosos com a imagem que projetam,
comenta Anastasia.
Quando saiu do armário, sentiu-se,
finalmente, livre e com “uma tremenda
força interior”, confessa. Atualmente,
vê-se de novo prisioneira, mas numa
posição diferente. “Não quero viver de
acordo com os códigos heteronormativos.
Quero seguir o meu caminho”, continua.
Às vezes sente que é apenas um fan-
toche para a Bundeswehr, o símbolo da
abertura e tolerância da instituição. “Mas
assim que descobriram o meu perfil no
Tinder, a tolerância acabou”, afirma.
Quando lhe perguntamos se alguma vez
ponderou mudar de profissão, Anastasia
responde: “Adoro o Exército. Sei o que
sirvo, os valores da nossa sociedade, dos
quais fazem parte, já agora, a diversidade e
a tolerância. Gostaria de tentar, pelo meu
país – em todos os sentidos.”
MARÇO 2023 - N.º 325 9
 CHRISTINE
LAGARDE
Quando uma
palavra errada
pode custar
milhões
O BANCO CENTRAL EUROPEU É UMA INSTITUIÇÃO-CHAVE NA
LUTA CONTRA O AUMENTO DOS PREÇOS. COMO É A VIDA DA SUA
PRESIDENTE, A FRANCESA CHRISTINE LAGARDE – PORVENTURA,
A MULHER MAIS INFLUENTE DO MUNDO

Der Spiegel
Hamburgo

FOTOS: GETTYIMAGES
 Europa
S
São exatamente 7h05 quando a assessora – inalar, manter, expirar – para relaxar.
de imprensa de Christine Lagarde recebe Mas, nessa manhã, tinha um documento,
a informação: ela deverá chegar a qual- de quatro páginas e meia, para trabalhar.
quer instante ao local de encontro, uma O argumento do seu economista-chefe
estação de serviço Aral, brilhantemente [irlandês], Philip Lane, para uma nova
iluminada, não muito longe da sua casa subida de 75 pontos base.
[em Frankfurt]. Lá fora, ainda está escuro, Nessa quinta-feira, 27 de outubro de
a estação deserta. Passam dois minutos, e 2022, o BCE já tinha aumentado a sua taxa
surge um Mercedes prateado na esquina. de juro diretora pela terceira vez conse-
É o seu carro oficial. cutiva – de 1,25% para 2%, depois de ter
Christine Lagarde é presidente do Banco permanecido inalterada em 0%, durante
Central Europeu (BCE) há três anos, a pri- seis meses consecutivos, até julho passa-
meira mulher a dirigir a instituição e uma do. Ao fazê-lo, procura travar a subida dos
das mulheres mais poderosas do mundo. preços. A taxa de inflação da Zona Euro foi
Ao estabelecer taxas de juro-chave, ela de 9,9% [em setembro], e nada preocupa
pode fazer ou quebrar fortunas, influenciar mais os europeus, no momento, do que a
mercados, preços de ações e obrigações, escalada dos preços. Para o BCE, há muito
taxas de câmbio. Uma palavra errada na tempo que a fasquia não estava tão elevada.
sua boca pode custar milhares de milhões. Este banco é o garante da estabilidade da
“Bom dia”, diz [ao entrarmos no segunda moeda mais importante do mun-
seu carro]. “Bem-vindo ao carro.” Está do, depois do dólar, e emprega mais de 3
sentada atrás do banco do passageiro. 500 pessoas. É o único dos maiores bancos
Tem a camisa por fora das calças. Está a centrais a representar uma área monetá-
começar um dos dias mais importantes ria e não apenas um país. Trata-se de uma
da sua agenda como presidente, um “dia organização que, além dos peritos, poucas
de alta pressão”, como lhe chama. É o pessoas compreendem como funciona.
dia em que o conselho dos governado- Quando o carro oficial de Christine La-
res do BCE se reúne, o órgão supremo garde chega à praça do BCE em Frankfurt,
do banco que, de seis em seis semanas, ela sabe que vai ser fotografada. A camisa
fixa as taxas de juro de referência para a ainda não está enfiada dentro das calças.
Europa. Ali, sentam-se duas mulheres e Esta é a única liberdade que a presidente se
23 homens: ao lado de Christine Lagarde, permite todas as manhãs, um pequeno luxo
cinco membros da comissão executiva de conforto, antes de começar a trabalhar.
do BCE e os banqueiros centrais dos 19 Confessa: “Quando estou no meu carro,
Estados que adotaram o euro até à data. ainda estou relaxada. Ainda posso usar a
Normalmente, antes de ir para o escritó- camisa por cima das calças.”
rio, faz alguns exercícios de ioga ashtanga Esta peculiaridade de moda pode ser
AUTOR DATA TRADUTORA
F Marc Hujer 04.11.2022 Helena Araújo
12 MARÇO 2023 - N.º 325
um detalhe, mas os detalhes, aprendeu ela
desde que assumiu o cargo de presidente,
podem ter uma grande importância.
Faltam cinco minutos para atraves-
sar o salão deserto, ainda mergulhado na
escuridão. Lagarde passa uma porta de
emergência, aberta por um segurança,
apanha o elevador para o 40.º andar da
torre sul, onde, atrás de mais duas portas
de segurança, no fundo de um corredor in-
terminável, tem finalmente a sua secretária
à espera. Cumprimenta-a calorosamente,
entra no seu gabinete e eclipsa-se por um
breve momento para a casa de banho, atrás
da mesa de trabalho. Quando regressa, a
camisa está impecável.
A partir desse momento, tem uma boa
meia hora para continuar a rever o docu-
mento. Depois disso, o conselho do BCE
reunir-se-á para fixar a taxa de referência,
à qual os bancos comerciais podem pedir
empréstimos ao banco central.
Esta taxa não é a única ferramenta que
o BCE tem para combater a inflação, mas
é a mais relevante. Se o BCE aumentar as
taxas, o custo do empréstimo do BCE irá
aumentar para os bancos comerciais, que
irão, então, procurar passar o aumento do
custo do crédito para os seus clientes. Al-
guém que queira contrair um empréstimo,
para comprar um imóvel, por exemplo,
pode esperar pagar mais. Em suma, torna-
-se agora mais difícil comprar – o que está
a fazer baixar os preços ou, pelo menos,
a fazê-los subir mais lentamente do que
no passado.
Nesta quinta-feira, a maioria dos espe-
cialistas espera um aumento de 0,75 pontos
percentuais na taxa de orientação. Este não
é o tipo de decisão tomada de ânimo leve: ao
agir de surpresa, os bancos centrais correm
sempre riscos elevados. Algumas decisões já
desencadearam grandes crises económicas,
como a crise da dívida latino-americana
do início dos anos 80, a crise imobiliária
e o crash do mercado bolsista no final dos
anos 80, no Japão, ou ainda as crises no
México e na Ásia, alguns anos mais tarde. Os
investidores tendem a exagerar na reação
e a copiar-se uns aos outros.
Uma coruja franco-atiradora
Lagarde não deve dizer nem muito, nem
pouco. O anúncio das taxas é uma pequena
obra-prima de comunicação. [Às 7h50,]
Ela sobe as escadas para o 41.º andar. Os
membros do conselho estão à espera, em
grupos compactos, fora da sala de reuniões,
de café na mão.
Lagarde já os tinha recebido todos no dia
anterior, de manhã, para uma “troca informal
de opiniões” sobre vários assuntos; à tarde,
para duas apresentações de 15 minutos, cada

“NÓS SOMOS OS GUARDIÕES DO EURO,
E A NOSSA MISSÃO É GARANTIR A ESTABILIDADE
DOS PREÇOS, ASSEGURAR QUE O EURO ESTEJA
DISPONÍVEL E SEJA RECONHECIDO EM TODOS
OS PAÍSES-MEMBROS DA ZONA”
uma delas seguida de uma troca de opiniões
sobre a evolução do mercado e a situação eco-
nómica; e finalmente, à noite, para o “jantar
dos governadores”, na sala do restaurante da
torre norte do BCE, onde falaram de quase
tudo – exceto do montante exato da taxa.
Para isso, foi necessária uma proposta
oficial do economista-chefe do BCE, que tra-
balhou nela durante muitos dias, em consulta
com a presidente, antes de a finalizar, na
quarta-feira à noite. “Ele gosta de trabalhar à
noite”, conta, sorridente, Christine Lagarde,
sobre Philip Lane, o seu economista-chefe.
“Já eu sou uma madrugadora.”
Às 23h, diz, já estava na cama. Deixou o
jantar dos governadores antes de qualquer
outra pessoa, renunciando aos charutos e ao
petit cognac, a que muitos governadores de
bancos centrais se entregam depois do jantar.
De manhã, às 4h30, meia hora depois de se
levantar, estava a olhar para o texto que Philip
Lane lhe enviara e a felicitar-se por não ter
ficado a fumar com os outros. Também pode
ter as suas vantagens isolar-se do grupo.
“Eu fui sempre uma franco-atiradora”,
confessa Christine Lagarde. Sempre foi a
primeira – e muitas vezes a única mulher
– a subir ao topo, mas tem estado quase in-
variavelmente sozinha. Durante seis anos,
presidiu ao destino da firma de advogados
norte-americana Baker McKenzie; depois, em
França, aos ministérios do Comércio Externo,
Agricultura e Finanças [sob as presidências
de Chirac e Sarkozy]. Finalmente, durante
ILUSTRAÇÃO DE MOHR, PARA HANDELSBLATT, DUSSELDORF
oito anos, foi a primeira mulher a dirigir o
Fundo Monetário Internacional (FMI) em
Washington.
“Eu, a menina francesa, era a chefe de
uma firma de advogados norte-americana”,
conta. “Seja no Ministério da Economia, da
Agricultura ou na chefia do FMI, estava sem-
pre rodeada de doutores de Economia, apesar
de eu própria não ter um doutoramento em
Economia. Quando vim para o BCE, não tinha
experiência de bancos centrais.”
E prossegue: “Esta é a minha vida. Tem
sido sempre assim.” E, para dizer a verdade,
não está a ir mal. “Quando as pessoas não
esperam que saibamos o que elas sabem,
quando pensam que não falamos a sua língua,
mas falamos, podemos realmente virar isso
a nosso favor. Podemos surpreendê-las.”
Aproxima-se das mesas altas, onde estão
sentados os banqueiros centrais dos 19 Esta-
dos-membros, 19 semblantes carrancudos.
No início, não notam a sua presença. Lagar-
de põe a mão no ombro de um deles. “Eles
devem portar-se bem”, sorri. Obviamente,
não tinham compreendido que haveria um
jornalista entre eles naquele dia. Olham para
Lagarde, os seus rostos distendem-se e co-
meçam a brincar. Um deles lembra-lhes,
então, que estamos a viver um “período de
inflação alta”. “Não devemos ser vistos [nos
meios de comunicação social] a rir”, diz. E
todos desatam a rir.
Quando Lagarde substituiu o seu pre-
decessor, o italiano Mario Draghi, há três
anos, muitos queixaram-se do mau ambien-
te no conselho. Este estava dividido entre
os “falcões”, que eram geralmente a favor
de aumentar as taxas, e as “pombas”, que
preferiam mantê-las baixas. Draghi era uma
pomba e, até ao final do seu mandato, em
outubro de 2019, prosseguiu uma política
nesse sentido. Os falcões, entre os quais o
presidente do Bundesbank alemão, senti-
ram-se ignorados, e o humor no conselho
deteriorou-se com o tempo. Christine La-
garde deixou claro, desde o início, que não
queria ser colocada em nenhum dos campos.
Que não era nem um falcão nem uma pomba,
inventando para si mesma uma nova cate-
goria, a da coruja, associada, entre outras
coisas, à inteligência. Como resultado, fo-
ram-lhe dadas corujas de peluche, que agora
se amontoam no seu escritório.
O momento alto
Às 8h em ponto, Lagarde entra na sala de
reuniões do conselho, com vista panorâmica
sobre Frankfurt. Atrás dela estão as torres
de escritórios do centro da cidade, acima
o “teto europeu”, um mapa estilizado da
Europa, o mesmo que se encontra nas no-
tas bancárias. Senta-se numa das poltronas
de couro bege, em frente à mesa redonda
à volta da qual os membros do conselho já
tomaram os seus lugares, e abre a sessão. Dá
as boas-vindas a todos, cumprimenta um
participante à distância e passa a palavra ao
seu economista-chefe, Philip Lane. O que for
dito durante as próximas três horas e meia
permanecerá confidencial. Todos os não-
-membros do conselho foram convidados
a abandonar a sala.
Após o intervalo do almoço – que ela
fez no seu escritório –, recebe os seus cola-
boradores mais próximos (incluindo Philip
Lane) para discutir a conferência de imprensa
iminente. Não pode dizer as coisas como lhe
apetece, pois a mais pequena palavra pode ter
um impacto nos preços, nos mercados. Con-
firma: “O clímax é a conferência de imprensa.
É o momento em que as pessoas esperam que
você envie uma mensagem muito específica.
Se enviar um sinal na direção errada, isso
pode ter consequências graves.”
Aconteceu-lhe uma vez, durante o seu
mandato, quando explicou que não era função
do BCE reduzir a diferença de rendimentos
entre as obrigações dos governos italiano e
alemão [cuja economia é considerada mais
estável]. Os investidores pensavam que o BCE
tinha invertido a sua posição e vendido as
suas obrigações italianas, cujo preço caiu,
até que Lagarde esclareceu o assunto numa
entrevista. Tinha aprendido a lição.
A conferência de imprensa é realizada
numa sala que dá diretamente para o salão.
Está equipada como um estúdio de televi-
MARÇO 2023 - N.º 325 13
 Europa
são, com câmaras, iluminação e bastidores.
Lagarde quer saber para que câmara deve
olhar para as perguntas que não virão da sala,
mas dos jornalistas que se ligarão por vídeo.
Quer saber quem vai ver o quê da sua cara,
e parece tensa.
“Vai sair-se bem, como de costume”,
tranquiliza-a o diretor de palco. “Obriga-
do”, sorri Lagarde. “Mais [elogios], mais!”
Depois, pede água. “Falta apenas um minu-
to”, avisam. Lagarde respira fundo. O seu
momento de ioga.
O que interessa, nessa quinta-feira, é a
frase com a qual o BCE estabelece o quadro
para a subida de taxas que acabou de ser
decidida. A frase é a seguinte: “O conselho
do BCE espera aumentar ainda mais as taxas
de juro.”
Em si mesma, esta frase não é nada de
extraordinário. Mas, nas suas últimas “de-
cisões de política monetária”, tomadas em
setembro, quando o BCE aumentou a taxa
de juro diretora em 0,75 pontos percentuais,
foi ouvida a seguinte frase: “Nas próximas
reuniões, esperamos aumentar ainda mais
as taxas de juro.” Este “durante as próximas
reuniões” tem desaparecido desde então.
Para o leigo, isto não muda muito à primeira
vista, mas, para os mercados, é uma fonte
de conjetura. Será que o BCE quer dizer que
as taxas serão aumentadas em menos do que
o previsto em setembro?
Lagarde toma o seu lugar atrás do púlpito,
em frente a uma parede azul, rodeada pelo
seu assessor de imprensa e pelo seu vice-
-presidente, e cumprimenta os jornalistas
presentes. Agora, tem de ler a “declaração
de política monetária”, o documento pre-
parado pelo seu economista-chefe. Respira
um pouco, cada palavra deve estar certa. É
então que percebe que o teleponto não está
a funcionar.
Mais tarde, quando tudo isto tiver passa-
do, recordará aquele momento em que exa-
minava o teleponto e não conseguia ver nada.
Se não tivesse colocado a versão manuscrita
na pasta por precaução, poderia ter tido de
dizer: “Desculpe, temos de interromper a
conferência de imprensa. O teleponto não
está a funcionar.” Nem sequer quer pensar
no que teria acontecido na altura.
De alguma forma, consegue manter a
calma. Ninguém repara que está a ler da sua
folha, e, após alguns minutos, o teleponto
regressa. Tudo o que resta, agora, são as
perguntas dos jornalistas, um teste final de
credibilidade. Pode falar de política monetária
de modo espontâneo?
BCE explicado às crianças
Durante uma hora, Lagarde submete-se ao
exercício. Domina o assunto, fala livremente,
repetindo sempre a mesma linguagem. Novas
14 MARÇO 2023 - N.º 325
“SE AS PESSOAS NÃO COMPREENDEM
O QUE DIGO, COMO PODEM CONFIAR EM MIM?
HOJE EM DIA, AS PESSOAS NÃO CONFIAM
NAS PESSOAS QUE SE EXPRESSAM DE UMA FORMA
DEMASIADO COMPLICADA”
intervenções sobre taxas. Progressos signifi-
cativos. Novas intervenções sobre taxas. Em
cada pergunta, voltamos ao ponto de partida.
Com a sua missão cumprida, volta ao
40.º andar, onde recebe, por instantes, os
membros do conselho de administração, que
a felicitam pelo seu desempenho e verificam
a evolução das taxas nos seus telefones. Os
preços permanecem estáveis – apenas o euro
caiu um pouco em relação ao dólar –, sem
grandes flutuações, sem catástrofes. É já um
primeiro sucesso.
Christine Lagarde vê brevemente o seu
companheiro, Xavier Giocanti, que viera
na noite anterior de Marselha, com o filho,
para assistir a um jogo da Liga dos Campeões
entre o Olympique de Marselha e o Eintracht
Frankfurt. Depois, volta ao escritório, para
trabalhar. E acrescenta: “As medidas que
acabamos de tomar, hoje, não terão um im-
pacto direto nos preços nos próximos meses.
Provavelmente, levará 18 meses para que
tenham o seu pleno efeito. E isto tem de ser
explicado; caso contrário, as pessoas não
entenderão porque estamos a aumentar as
taxas quando provavelmente já estamos a
entrar numa recessão.”
Para ela, que tem sido frequentemente
acusada de estar menos à vontade com os
números do que outros, por não ter uma
longa experiência num banco central, ex-
plicar questões técnicas em termos sim-
ples e sem jargões não é isento de risco.
Os analistas não gostam que ela fale outra
língua, mais simples do que a dos mercados,
com os seus códigos imutáveis que lhe dão
segurança.
Mas Lagarde sente que é seu dever ten-
tar. Caso contrário, diz, nunca será criada
confiança para uma instituição que desem-
penha, atualmente, um papel crucial na vida
quotidiana das pessoas.
“Se as pessoas não compreendem o que
digo, como podem confiar em mim? Hoje
em dia, as pessoas não confiam nas pessoas
que se expressam de uma forma demasiado
complicada.”
Tem mais uma reunião e, depois, voa-
rá para Dublin, onde se encontrará com
o ministro das Finanças irlandês [Paschal
Donohoe] e o presidente do Banco Central
[Gabriel Makhlouf], e participará num debate
televisivo – uma audiência completamente
diferente, à qual terá de explicar as coisas
de outro modo.
Isto era o que Lagarde costumava fazer
quando era advogada. Sempre testou os seus
argumentos com os seus filhos, para ver se
conseguia fazer-se entender. E se ela tivesse
de explicar a missão do BCE às crianças? Sen-
tada no seu sofá, em Frankfurt, reflete uns
instantes e, depois, responde: “Provavelmen-
te, pedir-lhes-ia para tirarem uma nota da
sua carteira, se a tiverem, e perguntar-lhes-ia
o que veem no lado superior esquerdo da
nota. Eles veriam a minha assinatura ou a
assinatura do meu predecessor. E eu diria:
‘Nós somos os guardiões do euro, e a nossa
missão é garantir a estabilidade dos preços,
assegurar que o euro esteja disponível e seja
reconhecido em todos os países-membros
da Zona. E que as crianças de Itália que vão
para França e as da Alemanha que vão para a
Irlanda podem pagar com a mesma moeda.
Porque todos nós fazemos parte do mesmo
clube, que é respeitado e valorizado em todo
o mundo.’”
De seguida, levanta-se. Talvez esta expli-
cação não seja apenas uma explicação para
crianças.
C O N T E Ú D O PAT R O C I N A D O
CARRO NOVO? NÃO COMPRE, SUBSCREVA
A CUPRA criou um serviço de subscrição para o seu novo carro 100% eléctrico, o Born.
Por 399 euros por mês, livra-se de todas as coisas chatas de ser proprietário de um carro – manutenção,
seguros, desvalorização, etc. – e fica só com as boas.
B
arcelona, Zwickau e Lapónia são
os berços do novo CUPRA Born,
o primeiro veículo 100% eléctrico
da marca e que vem revolucionar o con-
ceito de propriedade. Com o objectivo de
atrair as gerações mais jovens, a CUPRA
disponibiliza o Born através de contra-
tos de subscrição, com uma mensalidade
que inclui a utilização do veículo e outros
serviços associados. Uma opção moderna
e ecológica para quem se preocupa com os
efeitos que o consumismo e as emissões de
carbono têm no planeta. Com uma entra-
da ajustada e uma renda mensal a partir de
399 euros, a campanha de renting (aluguer
operacional) inclui manutenção completa,
seguros, assistência em viagem, linha de
apoio 24 horas e inspecção periódica. O
contrato tem uma duração de 60 meses e/
ou 75 mil quilómetros. O CUPRA Born é
o primeiro carro da marca a ser entregue
ao cliente com um conceito CO2 neutro. A
cadeia de fornecimento é abastecida com
energia de fontes renováveis e as restantes
emissões são compensadas com investi-
mentos ambientais. Além disso, partes do
carro que são fabricadas com materiais
reciclados; os tecidos, por exemplo, são
elaborados utilizando plásticos poluentes
recolhidos no mar. Mas o CUPRA Born é
muito mais do que um veículo ecológico. É
um verdadeiro carro desportivo com 204
cavalos e um design arrojado, mas orgâni-
co e elegante – muito longe daquelas
linhas futuristas típicas dos carros eléctri-
cos. Não é por acaso que o Born recebeu o
troféu Volante de Cristal 2022 nas catego-
rias de Carro Eléctrico e Carro Desportivo.
Como se isso não bastasse, recebeu clas-
sificação de segurança mais alta da Euro
NCAP revelando-se um dos veículos mais
seguros do mercado. É mesmo um carro
que foi criado para se distinguir em tudo
o que é importante. Desenhado e desen-
volvido em Barcelona, na sede da CUPRA,
em Martorell, e produzido na fábrica de
Zwicknau, na Alemanha, o Born foi bus-
car inspiração para o seu design à Lapónia.
Não na sua versão mais idílica, mas na sua
forma mais crua: a pedras, a madeira, os
minerais, o clima extremo. Lá foi ideal-
izada a cor Aurora Blue, exclusivamente
criada para este modelo e inspirada na au-
rora boreal. De lá veio também o som que
o Born emite ao avançar pela estrada, ba-
seado em sons naturais como o ruído das
folhas, o ranger de pedregulhos ou o vento
soprando contra o cobre. Se toda esta con-
versa sobre a Lapónia lhe está a dar ânsias
de road trip, saiba que tem acesso a mais
de 310 mil pontos de carregamento pú-
blicos em toda a Europa, incluindo 10 mil
carregadores rápidos, em mais de três mil
locais. Com uma autonomia de mais de
400 quilómetros e carregamentos a ficar
abaixo dos 15 euros (dependendo da rede e
tipo de carregamento utilizados), as próx-
imas férias ficam por… É fazer as contas.
Descubra mais em:
cupraofficial.pt
 América
HAITI
“Os mortos
zumbem na minha
cabeça”
Violência de gangues, roubos, poder político decadente…
Este país das Caraíbas vive num caos indescritível
Le Nouvelliste
Port-au-Prince
Já há mais de uma hora que
J ando às voltas neste quarto
com nove metros quadra-
dos. Pesam-me as pálpebras
de desgosto. O Sol que entra pela janela
e aquece o quarto encharca o meu rosto
de suor. Sinto-me num deserto de tédio.
Controlo os passos que dou. Um. Dois. Três.
Quatro. Ando para trás e para a frente,
entre a minha pequena biblioteca e o cesto
da roupa suja. Custa-me a viver. Respiro
tristeza. Uma tristeza infinita. Várias se-
manas sem o mínimo motivo nem para rir,
nem para chorar, nem para ouvir as más
notícias da rádio. De tempos a tempos, vou
à sala para, por entre todos os barulhos,
identificar os passos de um eventual visi-
tante. Cada vez que um cão ladra, que uma
porta range, que se ouve um murmúrio de
uma voz, espero a chegada de um amigo.
Um amigo que me traz boas notícias. Um
amigo que me dirá que é tempo de festa,
que a cidade reencontrou a sua verdadeira
face, que amanhã as crianças irão à escola.
Nesta manhã, ao telefone, a minha
sobrinha perguntou-me se iria à escola
na segunda-feira. Mergulhado num silên-
cio perturbador, os olhos cansados, olhei
para o horizonte com desgosto, como se a
minha resposta estivesse no azul do céu.
“Diz-me, titio.” Silêncio. “Digo-te hoje
à noite, Loudemia. Eu ligo-te. Tem um
bom-dia. Adoro-te. Beijinhos.”
Quando desliguei o telefone, fiquei
destroçado. O meu coração parecia uma
ferida aberta. Tive vergonha de, hoje em
dia, nem isto a família poder dar à mi-
nha sobrinha. Há várias semanas que o
governo adiou indefinidamente o início
do ano letivo.
AUTOR DATA
J Marc Sony 17.10.2022
Ricot
16 MARÇO 2023 - N.º 325
Já não tenho coragem para carregar
todas estas incertezas. Passo os meus dias
nesta triste cama, às vezes com a companhia
de um velho livro. Madame Bovary ou A
Promessa, que estou a ler neste momento.
Mas, como hei de ler um livro numa cidade
a transbordar de lágrimas? Como ler numa
cidade onde a injustiça, a fome e a miséria
não preocupam ninguém? Numa cidade
onde a violação é permitida pelo Estado
[que aceita a violência dos gangues]? Uma
cidade esquecida, abandonada pelo mundo.
Aqui, o amanhecer não traz nenhuma pro-
messa, a não ser desespero, querido Romain
Gary. Todas as manhãs, abro bem os olhos
para o que me atormenta. Olho pela janela
à procura dos gritos de uma ave ensande-
cida ou do rumor de uma festa. Sempre os
mesmos ruídos: as balas dos polícias e dos
chefes dos gangues, as notícias no rádio
da vizinha, alguns – poucos – vendedores
ambulantes e, ao longe, o som dos canos
de escape das motas.
A cidade está triste como uma criança
doente. O meu coração bate desalmada-
mente perante a minha impotência hu-
mana. O sofrimento embriaga-me. As
lágrimas escorrem-me timidamente pelo
corpo, escorregam sobre os lençóis. As
minhas lágrimas têm um gosto amargo.
Na semana passada, recebi cá em casa
dois amigos tão atormentados quanto eu. ...
Fartos de estar em Péguy-Ville [nos arre-
dores de Port-au-Prince], atravessaram No meu bairro, tenho a
várias barricadas e vieram ter comigo. impressão de caminhar
Falámos de literatura, história, religião
e política. entre o mundo dos vivos
Quando partiram, ficou-me um gosto e o dos mortos. Os mortos
amargo no coração. Entre nós, alguma
coisa tinha mudado, mas não sabíamos
da minha família. Os
mortos dos vizinhos. Os
mortos dos desconhecidos.
TRADUTORA Agora, cada um carrega
Margarida Bak Gordon
em si uma morte

o quê. Os tempos que vivemos são uma
praga. Ficamos demasiado velhos para a
nossa idade. Um coração de 60 anos num
corpo de 20 é perturbador – assustador.
Noite cerrada. Domingo. Já não consigo
ver pela janela o rosto da minha cidade.
As mãos tremem de medo e deixam cair
Flaubert. Abro a porta para ir passear um
pouco por Morne Lazare. Esticar as per-
nas. Caminho, dando pequenos passos,
calmamente.
O som dos passos ecoa no chão. Nunca
tinha ouvido os meus passos. Porém, não
me assustam. Tenho vontade de enfrentar a
vida por entre o escuro fúnebre da cidade.
Quero encarar os giyon [“maldições”] que
recaem sobre nós. Ando pela rua deserta
como um velho cão raivoso.
E o amanhã, como será?, pergunto-me.
Ainda estarei aqui? A minha sobrinha já
poderá ir à escola? Não tive coragem de
lhe telefonar à noite como prometido. Do
que será o amanhã? Ainda haverá mortos?
Quantos? Dezenas, como em La Saline [o
massacre de 2018]? Centenas, como em
Cité Soleil [julho de 2022]? E as manifes-
O país está em crise política permanente
desde o assassínio do Presidente Jovenel
Moïse, a 7 de julho de 2021
FOTO: GETTYIMAGES
tações? E o dechoukay [“saque”]? E os
gangues? Quando tudo isto vai acabar?
Terá a cidade forças para estender a
mão ao desconhecido insensível pedin-
do-lhe um pouco de esperança? Que ver-
gonha! No meu bairro, tenho a impressão
de caminhar entre o mundo dos vivos e o
dos mortos. Os mortos da minha família.
Os mortos dos vizinhos. Os mortos dos
desconhecidos. Agora, cada um carrega em
si uma morte. Uma morte que assombra o
espírito. Trazemos estas mortes nos nossos
olhares, nos nossos gestos mas também
nas nossas sombras.
Os mortos zumbem na minha cabe-
ça. São faladores, os mortos. Clamam
por justiça e pedem sangue. O sangue
dos assassinos. A minha cabeça explode.
Quero berrar para acordar os zombies:
“Liberdade!”
Próximos capítulos
Rumo a uma
intervenção
externa?
Desde que o gangue armado
com mais poder no Haiti, o G9,
assumiu o controlo do principal
porto – perto de Port-au-Prince
– que há falta de tudo no Haiti.
Falta principalmente combustível,
usado para produzir eletricidade,
e isso está a paralisar o país,
nomeadamente os fornecedores
de água potável e os hospitais.
Simultaneamente, há uma
grande escassez de alimentos nas
lojas, consequência da falta de
gasolina e também dos bloqueios
de estradas pelos gangues –
responsáveis por raptos diários
para posteriores pedidos de
resgate. A situação é sobretudo
mais delicada nos hospitais,
especialmente desde outubro,
quando deflagrou uma epidemia
de cólera. Paralelamente, o país
passa por uma crise política, após
o assassínio do Presidente Jovenel
Moïse, a 7 de julho de 2021. Desde
então que o detestado primeiro-
ministro Ariel Henry exerce a
função de Chefe de Estado, na
ausência total de um acordo da
classe política quanto a uma
transição. Ariel Henry já pediu
aos “parceiros internacionais (…) o
destacamento imediato de forças
armadas especializadas” para
fazer face à crise de segurança em
que vive o país.
Em outubro de 2022, Henry
pediu à Organização das Nações
Unidas (ONU) e aos países
amigos que enviassem tropas
para combater os gangues. No
final de janeiro, o secretário-geral
da ONU, António Guterres,
enfatizou a urgência do envio de
forças armadas para protegerem
a população e garantirem a
segurança nas estradas para a
ajuda humanitária. Apesar disso,
parece que ninguém quer assumir
essa responsabilidade. “Os riscos
são altos, as probabilidades de
sucesso são duvidosas”, explica
Judith Vorrath, da Fundação de
Ciência e Política, da Alemanha,
citada pela DEUTSCHE WELLE.
MARÇO 2023 - N.º 325 17
 Ásia

Os pertences de uma família

CAMBOJA prestes a serem retirados, pelos

Angkor perde
militares, da zona de Angkor
FOTO: GETTYIMAGES

os habitantes vendia arroz. As autoridades ordena-

ram-lhe que demolisse imediatamente
As autoridades demolem casas e lojas e expulsam a pequena loja, “matando” a sua fonte de
impiedosamente milhares de pessoas que viviam no local. rendimento. Diz-nos: “Estão a fazer tudo
muito depressa. Estou em choque.” Para
Realojados a cerca de 20 quilómetros dali, os vendedores, assim como para aqueles
veem-se agora sem recursos que ficaram sem rendimentos por causa
VOD da falta de turismo, durante a pandemia,
(excertos) Phnom Penh a ideia de recomeçar do zero é assustadora
– sobretudo nas terras virgens situadas no
município de Run Ta Ek, no distrito de
A noite cai em Angkor-Vat. Ao de Angkor os seus habitantes. As pessoas Banteay Srei [a cerca de 20 quilómetros

A anoitecer, no lado sul do gran-

de fosso do templo, ouve-se o
burburinho tranquilo da vida
na aldeia. Estamos em Trapeang Ses [no
Camboja], uma aldeia que se estende ao
longo de uma estrada, que segue paralela
ao complexo de Angkor-Vat. Seng conversa
com os vizinhos. A aldeia é uma das que
serão demolidas, no seguimento da decisão
da Autoridade para a Proteção e a Gestão
de Angkor e região de Siem Reap (APSARA)
e do Ministério do Ordenamento do Ter-
ritório em retirar do parque arqueológico
AUTORES DATA
F Andrew Haffner 28.10.2022
e Phin Rathana
entrevistadas para esta reportagem não
se recusam a obedecer às ordens do go-
verno. Algumas encontram consolo na
promessa oficial de atribuição de terrenos
e títulos de propriedade fora do parque,
mas ainda não se sabe como vai ser feita
a relocalização.
“Concordo, as nossas construções de-
vem desaparecer, mas o processo está a ser
demasiado rápido”, afirma Seng. Mostra-
-nos a casa e uma pilha de tábuas. É o que
resta da sua loja. As lágrimas começam a
cair-lhe pelo rosto. Entre outras coisas,
TRADUTORA
Margarida Bak Gordon
do local turístico].
A incerteza ainda paira quanto à ex-
tensão destes realojamentos. As casas e
as lojas situadas perto do reservatório
de água de Srah Srang, na parte este do
parque arqueológico, foram já evacuadas,
enquanto Trapeang Ses e outras zonas se
encontram neste momento a meio do
processo. Embora o governo tenha dito
que esta campanha é sobretudo motivada
pelas preocupações da UNESCO, a orga-
nização não assumiu a responsabilidade e
está a deixar o assunto para a APSARA [a
cidade antiga de Angkor está inscrita na
lista de Património Mundial da UNESCO
desde 1992.]
O primeiro-ministro Hun Sen elogia
o local do realojamento, defendendo-o

18 MARÇO 2023 - N.º 325


CAMPO DE ANGKOR
Bayon
Reservatório
de Srah Srang
Templo
de Angkor Wat
Trapeang Ses
Cidade de
Siem Reap
PROVÍNCIA
DE SIEM REAP
5 km
Lago Tonle Sap
como futuro modelo de urbanismo sus-
tentável no Camboja. Run Ta Ek deverá
receber seis mil famílias, declarou a 13
de setembro. “Run Ta Ek deixará de ser
rural. No futuro, conhecerão um Run Ta
Ek modernizado e transformado.”
A zona para onde estas pessoas serão
realojadas, uma extensão de 1 300 hec-
tares situada a 23 quilómetros do parque
arqueológico de Angkor, é pouco povoada.
O terreno, em grande parte coberto por
uma floresta esparsa, está a ser desbra-
vado, enquanto os trabalhadores tratam
de infraestruturas básicas.
Chegámos ao local no dia 8 de setem-
bro. Uma equipa cava um buraco na terra
argilosa. Um dos trabalhadores conta-nos
que já estão há três anos a trabalhar na-
quela área e que o lago deverá servir para
abastecer de água a futura população. No
momento em que visitámos o terreno, este
parecia uma pedreira, com água turva es-
tagnada no meio, de um branco leitoso
e argiloso.
As autoridades desmentem que esta
campanha de evacuação seja uma expulsão
e repetem que os habitantes do parque têm
saído de forma voluntária. Long Kosal, o
porta-voz da APSARA, insiste: “Não se
deve pronunciar a palavra ‘expulsão’. As
pessoas saem pelo próprio pé. Esse termo
não está correto.”
Ora, há alguns meses que a APSARA
pressiona as pessoas [por vezes analfa-
betas] a registar as suas impressões di-
gitais em documentos que provam que
estes concordam com a demolição das
suas casas e lojas. As pessoas em questão
dizem não terem verdadeiramente uma
escolha, sobretudo porque, se resistirem,
se arriscam a não receber nem terras nem
títulos de propriedade em Run Ta Ek,
como contrapartida. Seng não é o único
que perdeu a principal fonte de rendi-
Run Ta Ek
nova cidade
onde os deslocados
do campo de Angkor
estão a ser realojados do mês, Hun Sem anunciou que o local
iria ser uma cidade-satélite moderna.
Prometeu oferecer materiais de cons-
13° 24’
Norte
trução às famílias realojadas, assegurou
que estas teriam acesso a um programa de
apoio específico, destinado aos realojados,
e solicitou aos organismos de microfinan-
ciamento que propusessem empréstimos
FONTE : OPENSTREETMAP AND CONTRIBUTORS
a juros baixos a esta população.
Ainda que algumas infraestruturas
estejam já em construção, o projeto de
CAMBOJA Run Ta Ek estava longe da fase de con-
clusão quando o visitámos. À exceção de
uma ecoaldeia, construída em 2010 para
acolher antigos habitantes de Angkor e
promover o turismo rural, pouco mais
há além de esboço de estradas no meio
da terra lamacenta.
A ecoaldeia é composta por cem casas,
mentos. “Quando aceitámos partir, não construídas sobre palafitas, à volta de um
sabíamos que a loja seria a primeira a ser lago. Rai Sanon é professor nas escolas e
demolida”, queixa-se Nan diante de sua vive nesta aldeia, há quase 11 anos. Atual-
casa. Nan vende caldo de cana-de-açúcar mente, apenas metade das casas está ocu-
na periferia de Bayon, o templo com as pada. “Algumas pessoas não sabem o que
caras de Buda. Pediu-nos para usar um fazer se viverem aqui. Não têm emprego e
pseudónimo para poder falar abertamente os filhos estudam em Siem Reap.”
connosco. Segundo ela, os habitantes do Nesta zona, uma recente disputa de
parque terão dificuldade em adaptar-se à terras opôs dezenas de famílias, que se
vida em Run Ta Ek. “A maioria das pessoas queixam de estar a ser realojadas para da-
não tem dinheiro para construir uma casa. rem lugar aos recém-chegados de Angkor.
A Covid-19 só acabou agora, e ninguém [No Camboja, os conflitos fundiários são
esteve a ganhar dinheiro.” As tábuas da comuns.]
casa dela estão velhas. Será que sobrevi- A paisagem está a mudar. Uma fila de
verão à mudança? camiões transporta areia e gravilha em
Enquanto fala, um grupo de funcio- estradas de terra vermelha. Numa das
nários demole lojas no outro lado. extremidades do estaleiro, cruzámo-nos
Estima-se que no Parque Angkor, com trabalhadores de construção civil que
uma área com 400 hectares onde se si- nos disseram estar a construir um hos-
tua a maior parte dos templos de Siem pital. Lá perto, há um conjunto de casas
Reap, vivam vários milhares de pessoas. erigidas para receber antigos habitantes
Segundo as autoridades, algumas aldeias, de Siem Reap, despejados em 2020, no
como, por exemplo, Trapeang Ses, foram seguimento da ampliação de estradas.
construídas ilegalmente e correm o risco Muitas destas casas, que são na maioria
de comprometer o estatuto de Património pequenas estruturas em chapa metálica,
Mundial da Humanidade do parque. têm um letreiro a dizer “Vende-se”. O
Uma porta-voz da UNESCO respondeu, lugar é muito sossegado. Sambo Phalla e
por email, dizendo que a gestão de Angkor Has Heang estão entre os poucos habitan-
é “da total responsabilidade do Estado”. tes que se avistam no exterior. Segundo
De passagem por Run Ta Ek, no início eles, era muito mais fácil ganhar a vida em
Siem Reap. Falam-nos, entre risos, das
... dificuldades com que depararam em Run
Ta Ek, nos últimos dois anos. A maioria
Para os vendedores, das pessoas realojadas partiu, entretanto.
Phalla jura que tem razão: “É muito duro
assim como para viver aqui.”
aqueles que ficaram Sendo raros os empregos remunera-
dos, Heang tem, por vezes, dificuldades
sem rendimentos por em aguentar-se. Ao início, havia pessoas
causa da falta de turismo suficientes para ganhar dinheiro com a
durante a pandemia, loja. Mas agora já não é esse o caso. “Uma
vez construída a casa”, conta, “não havia
a ideia de recomeçar mais nada a fazer, não havia trabalho, e
do zero é assustadora as pessoas foram embora”.
MARÇO 2023 - N.º 325 19
 Europa

UCRÂNIA
O inferno mais
perto da frente
De Kharkiv a Izium, passando por arredores de Donetsk,
a região de Kramatorsk e a sitiada Bakhmut, um jornalista
húngaro relata a ferocidade dos combates e o calvário dos
habitantes, agora que se assinala o primeiro aniversário da
guerra iniciada pela Rússia
Válasz Online
Budapeste

As árvores cobertas de neve No bairro popular de Saltivka, no

A são maravilhosas. Contornan-

do os dois lados da estrada, elas
têm a aparência de um círculo
natural. No topo, em cartazes iluminados
por lâmpadas LED, azuis e amarelas, pisca
a mensagem ! Tradução:
“Tudo isto será Ucrânia!” Seguindo em
frente, estaremos em Kharkiv. Diante de
nós, um camião reboca um obus polaco.
O AHS Krab inspira respeito. Contor-
namo-lo aos poucos. Será este obus um dos
17 recém-fornecidos à Ucrânia ou estará
de volta à frente de batalha, após ter sido
reparado? Seja como for, é uma das armas
ocidentais mais importantes entregues
a Kiev. Mas ainda faltam algumas para
“tudo voltar a ser Ucrânia”.
Em tempo de paz, Kharkiv tinha 1,5
milhões de habitantes. Erigidas durante a
era soviética, tem várias zonas industriais,
como a fábrica de geradores Turboatom
que, antes da guerra, se situava na Aveni-
da Moskovskyi. Desde maio de 2022, esta
rodovia de seis faixas chama-se Avenida
dos Heróis de Kharkiv. E por um bom
motivo: foi aqui que o mito da alegada
“libertação” de ucranianos de língua russa
se desmoronou da forma mais espetacular.
Chegámos às proximidades da admi-
nistração regional, a Praça da Liberdade.
Quando foi bombardeada, no início da
guerra, o mundo percebeu o que estava
a acontecer na Ucrânia. Uma peça de ar-
tilharia cravada no solo evoca esse episó-
dio e este local passou a ser para selfies
de agradecimento. Queremos tirar uma
fotografia, e uma loira posa para nós sem
que lhe tenhamos pedido.
AUTOR DATA
F Szabolcs 20.01.2023
Vörös
Nordeste de Kharkiv, poucos edifícios
permanecem de pé. Vestígios de incên-
dios, vidros de janelas partidos, entradas
obstruídas, uma estação de serviço e um
mercado em destroços... A vida ainda não
quer voltar para aqui [a cidade continua
a ser alvo de bombardeamentos russos],
exceto o Elétrico 31, que vem fazer inversão
de marcha. Amigos fotografam-se junto
às mais impressionantes ruínas. Quanto a
nós, seguimos para a frente de combate de
Druzhkivka, perto de Kramatorsk.
Os soldados da 59.ª Brigada Terrestre
Ucraniana esperam-nos em Pokrovsk. No
mapa, a distância parece-nos curta, mas
ainda são 60 quilómetros e uma hora e meia
de estrada. O Donbass é enorme, mesmo
as partes preservadas, que se mantêm sob
controlo ucraniano.
Alerta em Kramatorsk
Viramos para sudoeste, perto de Kostian-
tynivka. Antes do dia 24 de fevereiro de
2022, quando a guerra se limitava a esta
região, o comboio rápido 712, proveniente
de Kiev, ainda por aqui circulava. Agora,
só vai até à estação de Kramatorsk, a uma
distância de 30 quilómetros, apesar de um
ataque, em 8 de abril do ano passado, ter
causado pelo menos 60 mortos e mais de
uma centena de feridos [entre milhares
de pessoas que, após o apelo das autori-
dades, se preparavam para sair da cidade,
onde funciona a principal base do Exército
ucraniano].
Em Kostiantynivka, a estação é um
fantasma. Apenas algumas chaminés fu-
megantes testemunham a vida nesta loca-
TRADUTORA
Maria Alves
lidade. Nos prédios residenciais Khrush-
chevka, de cinco andares [típicos da era
soviética], as luzes só esporadicamente
se acedem, apesar da manhã cinzento-
-escura. Cruzamo-nos com mais veículos
militares do que civis. O pantógrafo do
elétrico ondula sobre a estrada.
A 25 quilómetros de Donetsk [onde, no
dia 12 de fevereiro, segundo responsáveis
ucranianos, a Rússia “perdeu toda a 155ª
Brigada de Infantaria Naval, um corpo de
elite russo, ao atacar Vuhledar, a cidade de
minas de carvão na região], encontramos
uma aldeia cujo nome não conseguimos
escrever.
Na orla desta misteriosa povoação,
trincheiras cavadas na floresta são ocu-
padas pelos soldados de artilharia da
59.ª Brigada. Anteriormente, estiveram
a combater em Mykolaiv. A poucos dias
do início da guerra, foram mobilizados
para a zona de Kherson, na fronteira com
a Crimeia, porque, testemunha um deles,
“era óbvio que se estava a preparar alguma
coisa”. A vala treme com a potência de
um gerador elétrico. A temperatura é de
dezasseis graus. Oferecem-nos chá. Tiros
de canhão ecoam à nossa volta. Ninguém
se incomoda.
O tenente e comandante de bateria só
revela a sua alcunha: Vohnik, “o fogo”.
Alistou-se em 2019. “Desde 24 de fevereiro
que tenho mais responsabilidades para
com os meus soldados. Por outro lado,
falo menos com a minha família. Ela sabe

20 MARÇO 2023 - N.º 325


que nem sempre estou disponível porque,
a qualquer momento, posso receber uma
missão e as comunicações ficam bloquea-
das, mas todos os meus familiares morrem
de preocupação. Vohnik balbucia mais uma
frase, logo interrompida pelo seu rádio.
Drones que inspecionam os arredores
identificaram uma unidade de 20 mili-
tares russos. Os artilheiros ucranianos
correm pela trincheira e, em menos de
um minuto, retiram os obuses D-20 es-
condidos debaixo dos galhos. Carregam
os dispositivos e executam a ordem de
disparo. E repetem. O obus é soviético e
septuagenário, mas funciona. O disparo
faz tremer o chão e levanta a neve que caiu.
Missão cumprida, armas na horizontal,
camuflagem reinstalada.
Quando não estão na frente de batalha,
os soldados vivem em casas abandona-
das dos moradores que fugiram. Pagam
as despesas, mas em troca beneficiam de
um teto que os protege. E os proprietários
estão seguros de que não haverá roubos.
Ganham todos.
A missão de Bakhmut
Os militares prometem-nos, sem certe-
za, que iremos observar o disparo de um
Grad [lançador múltiplo de rockets dos
tempos da União soviética]. Decidimos
ficar. Tatiana, de 26 anos, cuida dos feridos.
Oferece-nos café e biscoitos na cozinha
de uma casa de campo. Não se queixa e já
está habituada ao perigo, mas ignora por
Artilheiros ucranianos
na frente de batalha
FOTO: GETTYIMAGES
quanto tempo mais vai a guerra durar. A
jovem diz que, na vida civil, ouvia mais
comentários depreciativos do que agora
que está rodeada de soldados. Um deles
é o marido.
No pátio de uma casa vizinha, um Grad
repousa sob uma rede de camuflagem. É
impossível saber quando será utilizado.
Frustrados, acompanhamos vários mi-
litares até um campo próximo. Aparen-
temente, a carreira de tiro vai ser aqui
instalada.
A noite está prestes a cair no Leste da
Ucrânia. Às 16 horas, mal conseguimos ver
um palmo à nossa frente. A temperatura
desce. O frio apodera-se de nós. Por volta
das 16h30, aparece finalmente a silhueta
de um camião KrAZ-260. Um soldado no
lugar do condutor acena-nos.
Alguns segundos depois, corremos
juntos com dois operadores do Grad em
direção às coordenadas recém-comuni-
cadas. O motorista conduz às cegas, com
os faróis desligados, e estaciona o veícu-
lo. O artilheiro que o acompanha mede
a trajetória do projétil e põe o Grad em
posição, à luz da sua lanterna. Logo depois
desliga-a, e destrói a nossa esperança de
captar uma bela imagem.
Passados alguns minutos, os soldados
lançam os mísseis, que voam com estron-
do ao encontro do seu objetivo. Temos de
partir imediatamente, para evitar uma
resposta precisa dos mísseis balísticos
russos.
O hospital de Druzhkivka está a abar-
rotar. É um dos primeiros lugares em
que os soldados feridos nas batalhas em
Bakhmut são estabilizados. Diariamente,
chegam uma média de 45. Aqui, fazem-se
a cirurgias simples, porque as mais graves
exigem, no mínimo, uma transferência
...
Quando não estão na
frente de batalha, os
soldados vivem em
casas abandonadas dos
moradores que fugiram.
Pagam as despesas, mas
em troca beneficiam de
um teto que os protege
para Kramatorsk. Por estes dias, os jorna-
listas dificilmente são bem-vindos. Depois
de uma reportagem num centro de saúde
de Bakhmut, este sofreu um ataque de
mísseis. Para o Exército, a ligação é óbvia.
Um segurança compreende a nos-
sa consternação, até porque os feridos,
que fumam numa esplanada iluminada
enquanto a neve cai, nos pedem uma
fotografia. Chega uma ambulância. Os
companheiros de um soldado ferido por
estilhaços carregam-no numa maca. O
guarda desvia propositadamente o olhar
apenas por uns segundos. Fazemos duas
fotografias naquele preciso instante, e
depois ele interrompe-nos. O seu chefe
repreende-o.
Mesmo tentando, os preparativos para
Bakhmut são uma missão impossível. Des-
de o outono que os russos cercam a cidade
[que tinha cerca de 70 mil habitantes antes
da guerra], apesar de não ter importância
estratégica. É aqui que culmina o absurdo
do banho de sangue que dura há um ano.
Para o líder do grupo de mercenários
Wagner, Yevgeny Prigozhin, a conquista da
cidade tornou-se uma questão pessoal, que
poderá converter-se em capital político.
[Em 11 de fevereiro, numa entrevista a um
blogger russo, citada pelo diário britânico
The Guardian, Prigozhin reconheceu que
os ucranianos, “bem treinados”, estão a
resistir em Bakhmut e admitiu que a Rússia
vai precisar de “um ano e meio ou dois
anos” para assumir o controlo total do
Leste da Ucrânia – o que, comentaram os
analistas, é uma “má notícia para Vladimir
Putin, ansioso por uma vitória” no primei-
ro aniversário da guerra. Prigozhin terá,
segundo fontes ocidentais, “cerca de 50
mil homens envolvidos nos combates, 40
mil dos quais antigos prisioneiros russos,
mobilizados para a frente e sem qualquer
treino”.]
Em resultado [de ferozes e incessan-
tes batalhas], já não há casas intactas em
Bakhmut. Haverá apenas o suficiente para,
com todos os escombros espalhados pela
rua, reconstruir a calçada que foi arrasada.
Aperta-se o cerco
Tiros ecoam a cada dois, três segundos,
na cidade e nos arredores. Basta ouvir um
apito – e nós ouvimos – que logo temos de
nos esconder nos primeiros abrigos que
encontramos. Depois, é rezar para não
ser atingido. Foi nisto que terá pensado
uma unidade de transporte de vítimas, a
circular num carro de combate norte-a-
mericano M113, que só fez uma paragem
para transferir gasóleo para a pick-up de
uma unidade de outros camaradas. Logo
depois, os dois veículos seguem viagem.
MARÇO 2023 - N.º 325 21
 Europa
Num dos lados da praça principal, um
homem desmonta um móvel para trans-
formá-lo em fonte de calor. Vassili, de 65
anos, nasceu Vladimir, em território russo
da antiga URSS, e mudou-se para Bakh-
mut em 1979. Considera-se ucraniano e
queixa-se de que o conflito só interessa aos
poderosos, numa alusão aos Estados Unidos
da América, à União Europeia e à Rússia.
“Espero que esta merda acabe um dia”,
brada Vassili. “O mais importante é Bakh-
mut permanecer na Ucrânia, para termos a
oportunidade de a reconstruir. Por exem-
plo, a nossa Casa da Cultura, onde demos
a conhecer artistas de Moscovo e de São
Petersburgo.”
Enquanto fala, os olhos de Vassili en-
chem-se de lágrimas. A sua tarefa é vigiar os
frigoríficos de uma empresa, onde montou
numa guarita limpa e aquecida. Evoca a
idade de ouro de Bakhmut, enquanto os
canhões rugem ao ritmo de uma guerra
mundial: “Era uma cidade muito bonita,
com muitas fábricas. Tínhamos uma fábrica
de champanhe e a nossa fábrica de máqui-
nas fornecia as minas [de sal] da região.”
Algumas ruas mais adiante, entramos
num centro de ajuda humanitária. Água
engarrafada fervida amolece o macarrão
para uma sopa instantânea. No meio da
sala, há um fogão de ferro. Atrás de um
balcão, há comida, ração para animais e
medicamentos. Ficámos a saber, espan-
tados, que ainda vivem pelo menos cinco
mil civis em Bakhmut.
A instituição é administrada por Olek-
sandr e Yulia, um casal que veio da cidade
de Mariupol. Anja, uma antiga vizinha
que regressou da Alemanha, ajuda-os.
Os civis que permaneceram em Bakhmut
conseguem aqui conversar e manter-se em
contacto com as famílias, graças à ligação
à internet.
É como se fosse uma ilha de normali-
dade no meio de uma explosão de loucura.
“Nunca imaginei que isto pudesse acon-
tecer”, afirma Oleksandr. “Vivemos um
momento complicado, mas temos fé em
Deus. Só fecharemos [o centro] se os russos
entrarem na cidade.” Nesse dia, o grupo
Wagner estava apenas a uma distância de
dois quilómetros.
A vida regressa a Izium
Os russos ainda não ocupam Bakhmut,
mas capturaram Soledar [15 quilómetros
a nordeste, uma pequena cidade outrora
conhecida pelas minas de sal e que, antes
da guerra, tinha 11 mil habitantes. Isso
deixou mais vulneráveis as tropas ucra-
nianas, e Kiev reconheceu a derrota em
19 de janeiro. Em 12 de fevereiro, o grupo
Wagner reivindicou também a conquista de
22 MARÇO 2023 - N.º 325
Krásnaya Gorá, uma aldeia nas imediações
de Bakhmut].
À beira da estrada nacional, uma fila de
ambulâncias aguarda por feridos. Mal nos
afastámos, algo embateu no lado direito
do nosso carro. Não foi uma pedra, mas
a explosão de uma bomba, que caiu num
campo 200 metros atrás de nós.
Mais adiante, à saída de Chassiv Yar,
oficiais militares da Alfândega realizam
exercícios de ataque. O orgulho da uni-
dade é um veículo blindado doado pelo
Canadá. Vindos de Bakhmut, regressam
à frente dentro de meia hora e sentem-se
motivados. Alguns até se riem.
A estrada para Izium passa por setores
reconquistados após a contraofensiva em
Kharkiv [em setembro-outubro de 2022].
Por toda a parte, veículos militares re-
duzidos a nada e aldeias completamente
devastadas. O Mosteiro de São Jorge loca-
liza-se antes da fronteira entre os oblasts
[regiões administrativas] de Kharkiv e de
Donetsk. No pátio, caixas de munições
e uniformes esfarrapados. Nas paredes,
buracos de balas. A igreja está em ruínas.
A parte amarela da sua torre sineira des-
taca-se, aqui e ali, entre os escombros.
Em Izium, a vida regressa lentamente
ao seu ritmo, mas bairros inteiros tor-
naram-se inabitáveis, após cinco meses
de ocupação russa. Os vidros das janelas
da igreja partiram-se. Mísseis racharam
ao meio blocos de apartamentos. “A vala
comum? Fica na Rua Shakespeare, tal como
o cemitério”, esclarece um agente da po-
lícia, sem pestanejar.
Uma atmosfera macabra reina numa
floresta de coníferas, onde foram exuma-
dos 400 cadáveres em setembro, após a
retirada dos militares russos. [Em outu-
bro, o número de exumações ascendia a
536, todas de civis, incluindo mulheres
e crianças, informaram as autoridades
ucranianas, que alegam ter encontrado
ainda “dezenas de câmaras de tortura e
centros de detenção, onde prisioneiros fo-
ram mantidos em condições desumanas.]
Estes vestígios continuam à vista. Ar-
repiamo-nos. As pessoas executadas du-
rante a ocupação russa foram, entretanto,
sepultadas no cemitério, mas as cruzes
ainda permanecem de pé na vala comum.
No meio desta necrópole está um carro
funerário destruído. Desapareceram as
árvores de um dos talhões. Nunca tínha-
mos visto tamanha destruição. Mas Izium
foi libertada, e o preço da sua liberdade
diante dos nossos olhos.
De regresso a Kiev, deixamos Kharkiv
em direção a Poltava. As árvores cobertas
de neve ao longo da estrada são sempre
maravilhosas.
FRANÇA
Reforma
aos 62
anos? Os
franceses
têm toda
a razão
O autor do artigo tem uma proposta:
fazer com que os 10% mais bem
remunerados trabalhem, digamos,
até aos 67 anos. Como pagam
mais impostos, isso poderá ajudar
a refinanciar o sistema de pensões.
Quanto aos outros, que se divirtam
enquanto podem
Financial Times
Londres
O trajeto das manifestações em
O Paris passa ao longo do nosso
boulevard. É este o ciclo de
vida em França: a cada quatro
ou cinco anos, o governo tenta que todos
trabalhem mais e, então, surge um grande
movimento popular de protesto (*) para
matar o projeto pela raiz.
O Presidente, Emmanuel Macron, quer
agora passar a idade mínima da reforma
dos 62 para os 64 anos [e a máxima para
os 67, ou forçar 43 anos de descontos,
para evitar penalizações], e o desafio re-
lançado. Um dia destes dias, esgueirei-me
do meu prédio, contornando a banca do
Partido Comunista, instalada junto ao meu
portão, empurrando uma densa turba de
manifestantes. Entre os cartazes vi este:
“Morrer a trabalhar, nem por Macron nem
pelos patrões”. A minha posição, muito
anglo-saxónica, era que os
F franceses deveriam confor-
mar-se com a realidade.
Hoje em dia, um francês
AUTOR
Simon Kuper de 62 anos pode viver até
aos 85 e aproveitar o que
dATA é, sem dúvida, a reforma
07.02.2023 mais longa da história da
Humanidade. Se trabalhar
TRAdUTORA até aos 65, ainda lhe sobram
Maria Alves 20 anos para o boules [jogo

da petanca], sempre pensei assim. Mas a
minha vida em França tem sido uma longa
série de tomadas de consciência: no que diz
respeito a questões importantes – a guerra
no Iraque, a energia nuclear, o queijo –, os
franceses tendem a ter razão. Por isso, mu-
dei de ideias sobre as pensões de reforma.
Os franceses estão a mostrar ao mundo
o caminho certo, ao criarem uma nova e
gloriosa idade da vida: a primeira década
de ouro da reforma. Todos deviam seguir
o seu exemplo. O paraíso para os pensio-
nistas franceses é uma invenção recente.
Em 1970, Simone de Beauvoir denunciava
que a sociedade trata as pessoas mais ve-
lhas como “lixo” e impõe-lhes condições
de vida “miseráveis”. Então, em 1981, [o
socialista] François Mitterrand ascendeu
à Presidência com uma nova visão: “Por
fim, viver”. Foi ele que reduziu a idade da
reforma dos 65 para os 60 anos.
Muitos franceses continuam a apo-
sentar-se antes de chegarem aos 60 anos.
Dado que há muitas empresas a afastar os
trabalhadores mais velhos, França “não
está longe de deter o recorde mundial de
taxa de inatividade entre os maiores de
55 anos”, crê a economista Claudia Senik
[professora catedrática na Universidade
Sorbonne, em Paris].
As reformas em França dividem-se,
pois, em duas fases distintas. A segunda
fase é brutal: o declínio, a viuvez, o lar de
idosos, a morte. Mas o ideal dos franceses é
a idade de ouro, de cerca de dez anos, que
vem antes: entram na casa dos 60, deixam
o emprego, os filhos estão crescidos, os
pais muitas vezes já morreram e, por uma
vez na vida, podem fazer exatamente o
que querem.
Quando os franceses se reformam, a
sua saúde começa por melhorar, presu-
mivelmente porque fazem mais exercício
físico, explica Claudia Senik. São poucos
os que ficam deprimidos: em 2003, só 9%
das pessoas inquiridas numa sondagem
ILUSTRAÇÃO: GETTYIMAGES
do Instituto Nacional de Estatística (Insee)
descreveram a reforma como um período
mau. E se tivermos em conta que, de um
modo geral, já não têm de ajudar financei-
ramente os filhos nem pagar empréstimos,
os pensionistas franceses gozam de um
nível de vida médio mais elevado do que
os que continuam a ser uma força ativa.
Pensionistas felizes
Uma pensionista que eu conheço rega-
la-me com histórias encantadoras sobre
os seus invernos na Índia, onde ela e as
amigas fazem festas como se fossem ado-
lescentes de mochila às costas. Danièle
Laufer, no seu livro L’Année du phénix
(“O Ano da Fénix”), cita outros reforma-
dos felizes: alguns começam o dia com
um pequeno-almoço no jardim, que se
prolonga por duas horas; outros visitam,
por duas vezes, a mesma exposição para se
poderem lembrar dela; outros vão ainda
à procura de amores antigos. Há homens
que se reinventam como voluntários e
mulheres que se dedicam à arte de se-
rem avós.
Uma boa parte da vida adulta dos fran-
ceses é estruturada ao serviço da década
dourada. Muitos começam a sonhar com
a reforma logo aos 20 anos. Agora, só 21%
dos franceses considera que o trabalho
ocupa um lugar “muito importante” nas
suas vidas – eram 60% nos anos 1990,
...
Os franceses estão a
mostrar ao mundo
o caminho certo, ao
criarem uma nova e
gloriosa idade da vida:
a primeira década de
ouro da reforma
segundo a Fundação Jean-Jaurès. A vida
profissional é, atualmente, pontuada por
172 trimestres de contribuições (para os
que nasceram depois de 1973), dando di-
reito a uma pensão completa financiada
pelo Estado. O valor que o contribuinte
paga dificilmente corresponde ao que o
Estado lhe dará no final. Em França [onde
há 42 regimes de reforma,
incluindo os regimes espe-
ciais de que beneficiam os
funcionários públicos], os
fundos privados de pen-
sões são raros, além de
que a reforma tem de ser
igualitária.
Compreendo os argumentos de Ma-
cron a favor de uma alteração da idade da
reforma. Porém, a atual generosidade do
sistema nacional de pensões só é modera-
damente insustentável: o envelhecimento
da população é mais lento em França do
que nos países vizinhos; o seu rácio dí-
vida pública-produto interno bruto é de
112,5% (inferior ao dos Estados Unidos da
América), e prevê-se que o valor total das
pensões pagas se deverá manter estável em
termos de percentagem do PIB, porque as
reformas não continuam a acompanhar
o aumento dos salários.
Algumas mudanças justificam-se – por
exemplo, encorajar os seniores a trabalhar
pelo menos a tempo parcial, como já fa-
zem 400 mil persistentes. Mas é intrigante
ver ministros, economistas e líderes em-
presariais a exortar a todo o mundo que
continue a trabalhar. Os que aconselham
isto já são as pessoas mais bem pagas e
com mais esperança de vida em França.
Ao contrário da maioria dos trabalhadores,
os seus empregos oferecem-lhes estatuto
e prazer.
Eis a minha proposta para as pensões
de reforma em França: fazer com que os
10% mais bem remunerados trabalhem,
digamos, até aos 67 anos. Como pagam
mais contribuições, isso poderá ajudar a
refinanciar o sistema. Quanto aos outros,
que se divirtam enquanto podem.
(*) No dia 11 de fevereiro, segundo os
organizadores, só em Paris terão protestado
500 mil pessoas. Foram mais de 2,5
milhões em todo o país. As marchas têm
sido lideradas pelos dirigentes das oito
principais centrais sindicais – incluindo
a Confederação Francesa Democrática
do Trabalho (CFDT), que tem dado o
benefício da dúvida ao governo. No ar
ficou a ameaça de uma greve geral, que
irá “paralisar França”, em 7 de março, se
Emmanuel Macron “permanecer surdo
face à mobilização popular”.
MARÇO 2023 - N.º 325 23
 Ásia

Um dos muitos casamentos

coletivos da seita Moon
FOTO: GETTYIMAGES

chão para a acordar. Mesmo depois de ve-

rem as suas bolhas de varicela inflamadas,
os adultos diziam apenas: “O processo de
purificação está em curso.” Outras práticas
incluíam vivenciar “o mundo dos mortos”.
Deram-lhe a beber um líquido, que o guru
verteu num copo, e ela sofreu violentas
alucinações. Sabe agora que a drogaram.
Saki não conseguia ter tempo para fazer
os deveres da escola em casa. As notas
foram piorando. O simples facto de ir às
aulas era o bastante para lhe causar urti-
cária, porque temia ser questionada pelos
professores.
Casa, escola, Aum. Neste dia a dia,
JAPÃO Saki foi sendo imbuída da ideia do fim

Os filhos das seitas

do mundo, com o advento do Armagedão
(batalha final entre o Bem e o Mal). Pouco
depois de entrar no Secundário, ela e a mãe
deixaram tudo para trás e ingressaram na
Após o assassínio de Shinzo Abe, os japoneses ficaram chocados comunidade como monjas.
com as revelações sobre os laços entre a seita Moon e os círculos
do poder. O jornal Mainichi Shimbun dedicou uma série de Um ataque mortífero
artigos aos descendentes de seguidores de cultos religiosos. Março de 1995. Em Tóquio, os seguidores
da Aum Shinrikyo pulverizam com gás
A jovem Saki, que pertenceu ao grupo Aum Shinrikyo (“Verdade sarin, um veneno mortal para os nervos,
Suprema”), deixa-nos aqui o seu testemunho várias carruagens de três linhas de metro,
Mainichi Shimbun que se cruzam na estação de Kasumigaseki.
Tóquio O ataque causou a morte de 14 passageiros
e funcionários da estação [a décima quarta
Está imenso frio no sopé do tua, mas do karma de uma das tuas vi- vítima morreu recentemente]. Mais de seis

E monte Fuji. De noite e so-

zinha, ela caminha no meio
de outros discípulos adultos.
Interiormente, solta gritos de angústia:
“Quero ir embora, quero ir embora...” Ela
tem varicela, sente-se febril e cambaleia.
“Porque tenho de fazer isto?”, protesta.
Ninguém lhe liga.
Saki, chamemos-lhe assim, está agora
na casa dos 40 anos e é uma ex-seguidora
de segunda geração da seita Aum Shinrikyo
(“Verdade Suprema”). Quando era miúda,
a mãe levava-a a um dojo, [local dedicado
ao treino de artes marciais e à meditação],
na região de Kanto [no Centro do Japão].
“Olha, eu também consigo fazer isso.”
Alegrava-se quando a felicitavam no ioga.
Quando começou, pensou que seria uma
aprendizagem como outra qualquer, mas
estava longe de imaginar que a esperava
uma tragédia.
A mãe convertera-se, depois de pro-
blemas conjugais. Ficou arrasada com a
infidelidade do marido. “A culpa não é
AUTOR
F Yuki Noguchi
das passadas.” A explicação dada pelos
discípulos da seita acalmou-a. Também
sentiu que as técnicas de respiração que
praticava ajudaram a melhorar as suas
alergias crónicas. Foi então que mergu-
lhou neste dogma.
Saki esforçava-se por seguir uma roti-
na de ascetismo, durante quase o dia, aos
sábados e domingos, e à noite durante a
semana. Os mantras (cânticos ou recita-
ções) do guru fundador, gravados numa
cassete e tocados em loop, ela entoava-os
sentada na posição de lótus.
Assim que entrou na escola secundária,
os exercícios tornaram-se mais difíceis.
Saki frequentava um centro do grupo Aum
na cidade de Fujinomiya [município de
Shizuoka]. Durante uma prática coletiva
de dez dias, por exemplo, era obrigada
a caminhar ao breu e no frio da noite, e
quase caiu numa ravina. Outras vezes,
tinha de recitar sutras durante a noite,
permanecendo sempre na mesma posição.
Se adormecesse, um responsável batia no
DATA TRADUTORA
04.01.2023 Maria Alves
mil outras pessoas ficaram intoxicadas.
Saki vivia no centro religioso isolada
de todas as informações, por isso não teve
conhecimento daquele ataque. Durante
as rusgas ao edifício onde se encontrava,
revistaram-lhe os pertences. “Vêm sub-
meter-nos à inquisição, porque fazemos
o Bem.” Ela acreditou nesta declaração
dos adultos e apresentou-se à polícia com
uma identidade falsa, dizendo que tinha
20 anos, quando era apenas estudante do
Secundário.
Em maio de 1995, o suposto comandi-
tário do ataque, Chizuo Matsumoto (tam-
bém conhecido como Shoko Asahara), foi
preso. Seria depois condenado à morte e
enforcado. A seita foi aniquilada. Saki saiu
em liberdade e foi acolhida por familiares.
A seguir, veio o inferno.
“Disseram-me que tudo em que in-
vesti, arriscando a minha vida, era mau.
Desespero e um sentimento indescritível
de perda.” Mesmo aqueles que a rodeavam
eram cruéis com ela: “És uma vergonha
para a família. Aderir à Aum fez de ti uma
criminosa.”
Saki mudou de escola, mas não con-
seguia acompanhar devidamente as aulas.
Tentou ignorar as provocações dos colegas

24 MARÇO 2023 - N.º 325

da sua idade sobre o culto a que perten-
ceu. Ainda assim, conseguiu fazer uma
amiga. Tornaram-se próximas a ponto de
combinarem vestir casacos iguais. Confiou
nela, pensando que a entenderia: “No pas-
sado, eu fiz parte da seita Aum...” A mãe
da amiga interferiu e ordenou-lhe: “Não
quero que a vejas mais!” Saki enviou-lhe
muitas cartas, mas de nenhuma obteve
resposta. Depois disto, da sua boca não
sai nenhum som. Quando tenta falar, não
consegue conter as lágrimas.
Saki abandonou o Secundário e tran-
cou-se em casa, incapaz de enfrentar as
imagens da televisão, em que se falava
constantemente do ataque ao metro de
Tóquio. Não tinha com quem conversar,
porque a mãe trabalhava e passava muito
tempo ausente. Um dia, quando ela re-
gressou do emprego, Saki caiu em cima
dela, gritando: “Porque estamos aqui?”
Cansou-se de não ter um lugar em que
se sentisse bem.
Por fim, Saki pediu a um parente que a
levasse de volta para a seita e enamorou-se
novamente. Ali, pelo menos, alguém sem-
pre falava com ela. “Conversavam comigo.
Eu não pedia mais do que isso”, lembra-se.
Só lá esteve cerca de dois anos, até que
decidiu seguir em frente e afastar-se de
novo da organização. A partir de então,
não mais os contactou.
“Crianças transparentes”
Treze penas de morte, incluindo a de
Chizuo Matsumoto, por uma série de cri-
mes cometidos pelo grupo Aum Shinrikyo.
Todos os acusados foram executados em
julho de 2018.
Por vezes, Saki ainda sente remorsos.
Havia um jovem da sua idade, com quem se
dava bem, também um seguidor de segun-
da geração. Enquanto ela retomou os estu-
dos por correspondência, para “controlar
a própria vida”, trabalhando ao mesmo
tempo, ele não conseguiu readaptar-se à
sociedade e lamentou o seu destino.
“O que estás a dizer? Vamos lá, cora-
gem!”, animou-o ela. Mas o jovem sui-
cidou-se dias depois. “Sonhei que tinha
sido sequestrado pela seita”, disse. Em-
...
Em certos casos, quem
entra numa organização
religiosa por causa de
algum tormento ou sob
influência dos pais não
consegue sair, mesmo
que queira
Liberdade em questão
Em nome da liberdade de religião, as seitas beneficiam de grande autonomia no Japão.
Esta é a conclusão a que se chegou depois do assassínio de Shinzo Abe, em julho de
2022. Aos investigadores que o interrogaram, Tetsuya Yamagami, o desempregado
de 40 anos que disparou sobre o primeiro-ministro com uma arma de fogo por ele
fabricada, justificou que agiu “movido pelo rancor” por causa dos laços que Abe
mantinha com a seita Moon, ou Igreja da Unificação.
A família do presumível assassino teria ficado na ruína por causa das doações que a
mãe, “iludida com as promessas de salvação e de remissão dos pecados”, fizera à seita
fundada, em 1954, na Coreia do Sul por Sun Myung Moon. Ela oferecera a casa onde
moravam, terrenos e quase todos os bens, estimados em cerca de 100 milhões de ienes
(perto de um milhão de euros).
De facto, embora condenados por duas vezes por “venda fraudulenta de objetos
religiosos”, os autodenominados “unificacionistas” nunca viram as suas atividades
restringidas. Sendo a liberdade religiosa garantida pela Constituição japonesa, os poderes
públicos e os meios de comunicação social “não puderam intervir”, diz, citado pelo
diário MAINICHI SHIMBUN, Yoshihide Sakurai, historiador de religiões, na Universidade de
Hokkaido, De acordo com a BBC, a seita Moon chegou ao Japão em 1958, supostamente
por iniciativa do antigo primeiro-ministro Nobusuke Kishi, avô materno de Shinzo Abe.
O grupo é descrito como “uma variação da teologia cristã baseada na ideia de que, ao
pecarem, Adão e Eva falharam no plano divino e o mundo precisa de um novo Messias –
que seria Moon.” Este morreu em 2012, aos 92 anos, com uma fortuna avaliada em 900
milhões de dólares.
Presença em Portugal
Famosa por celebrar casamentos coletivos, a seita expandiu-se em vários países –
incluindo Portugal. Em fevereiro de 1992, o semanário O INDEPENDENTE revelava que
os moonies tentaram controlar o Partido da Solidariedade Nacional (PSN), extinto seis
anos depois. Quando um dos vice-presidentes, Nelson Mendes, admitiu ter pertencido
a este culto, o único deputado do chamado “partido dos reformados”, Manuel Sérgio,
eleito em 1991, prometeu afastar todos os militantes “unificacionistas”.
A seita tem uma forte presença na América Latina, sobretudo no Brasil, onde a
família Moon chegou a ser proprietária de grandes extensões de terra numa “zona
estratégica” na fronteira com o Paraguai (o que “assustou o Exército brasileiro”), segundo
a revista ISTOÉ. A família é dona de uma fábrica de armas, de um clube de futebol e do
jornal THE WASHINGTON TIMES, entre centenas de outros negócios, adianta a BBC. Mas,
aparentemente, é do Japão que provêm 70% dos fundos que administra, de acordo
com o jornal THE WASHINGTON POST. Uma parte desses fundos é obtida com a venda de
“objetos com supostos poderes espirituais”, fabricados por empresas da família Moon.
A Igreja da Unificação, agora dirigida pela viúva do fundador, Hak Ja Han Moon, clama
ter “cerca de três milhões de fiéis” em todo mundo, mas especialistas estimam que o
número real varia “entre 50 mil e 600 mil”.
Ramificações do grupo Aum
O governo nipónico iniciou, entretanto, uma investigação que visa dissolver a seita
do “reverendo” Moon, à qual estarão vinculados (através de contributos financeiros
para campanhas eleitorais) pelo menos 179 dos 379 deputados do Partido Liberal
Democrático, PLD, no poder). Se isso acontecer, a congregação que o atual primeiro-
ministro, Fumio Kishida, admite ser “problemática para a sociedade” perderá o estatuto
de organização religiosa isenta de impostos.
Até agora a única seita extinta no Japão foi a Aum Shinrikyo (“Verdade Suprema”),
registada oficialmente em 1987, apesar do parecer de vários especialistas de cultos
religiosos. De inspiração budista, este grupo ultraviolento, criado em 1984 por Shoko
Asahara (nascido Chizuo Matsumoto), ficou conhecido por ter cometido vários crimes e
atos terroristas (sequestrava, perseguia e matava opositores), o mais violento dos quais
foi um ataque com gás sarin no metro de Tóquio, em 1995, que matou 14 pessoas e
intoxicou mais de seis mil.
Foram presos mais de 150 suspeitos. Em 1996, a Justiça ordenou a extinção do grupo. Os
seus líderes, condenados à morte após um longo processo, foram executados em 2018.
Ainda assim, ramificações da seita, fundadas por discípulos de Asahara/Matsumoto,
continuam ativas, designadamente o grupo Aleph, que terá uns “1 650 seguidores”,
segundo a polícia japonesa.
MARÇO 2023 - N.º 325 25
 Ásia

bora se sentisse encurralado, falou até ao

fim por telefone com Saki. “Não consegui
compreender a profundidade do seu so-
frimento”, admitiu Saki. Ela reprovou-se
por isso, e este sentimento não lhe permite
ouvir de novo o som da sua voz.
Quando tais memórias vêm à tona – a
morte daquele amigo e o facto de ela ter
voltado para a seita Aum durante algum
tempo –, Saki não pode deixar de pensar
nos seguidores da seita Moon [cujo nome
completo é Federação da Família para a Paz
Mundial e a Unificação, ou simplesmente
Igreja da Unificação]. Está em curso uma
investigação, instaurada pelo governo,
com vista a uma ordem de dissolução.
Saki reflete: “Em alguns casos, quem
entra numa organização religiosa por causa
de algum tormento ou sob influência dos
pais não consegue sair, mesmo que quei-
ra. Gostaria que as pessoas entendessem
que somos apenas humanos, como todo
o mundo.”
Depois disto, ela teve o cuidado de
esconder que havia pertencido ao grupo
Aum. Com pouca vida social e discussões
superficiais no trabalho, Saki achava que,
de alguma maneira, seria capaz de so-
breviver. Só depois da prisão de Tetsuya
Yamagami, o presumível assassino do
primeiro-ministro Shinzo Abe, ao ouvir
a sua história e o seu sofrimento, causado
pela doutrinação da mãe [na seita Moon],
é que deixou de guardar os segredos para
si própria.
“Ele não é o que eu era?” Saki começou
então a escrever nas redes sociais sobre
o que os seguidores da segunda geração
poderão sentir. “Éramos crianças trans-
parentes.” Quando um deles se afastava da
seita, mesmo quando se queixava a antigos
discípulos sobre a sua dolorosa situação,
estes limitavam-se a dizer “E então?” e
ignoravam-no. MUNDO ÁRABE
Nem filhos nem
Se da parte dos adultos a adesão a um
dogma foi uma escolha, já da parte das
crianças houve um cativar para uma ideo-

casamento
logia sem que estas a pudessem avaliar.
Numa balança, o tempo perdido não pesa
da mesma forma. “Até podíamos pedir
ajuda, mas os adultos não nos tinham em Muitas e muitos jovens árabes recusam casar e ter
consideração. Estávamos vivos, mas a nos- filhos por causa do aquecimento global, que é uma das
sa existência tornou-se transparente.”
Saki acha que ainda deve haver mui-
preocupações centrais das novas gerações
tos seguidores de segunda geração que, Raseef22
Beirute
tal como ela no passado, não têm cora-
gem para falar. “Os que morreram, os que
sofrem psicologicamente e são incapazes
de se reintegrar na sociedade, as crian-
ças que desconhecem o mundo. Gostaria
AUTORA DATA TRADUTORA
que os adultos percebessem a devastação F Doaa Ahmed 01.10.2022 Margarida Bak Gordon
causada e viessem falar connosco, uma e
outra vez.”

26 MARÇO 2023 - N.º 325


“Não queremos trazer mais
N uma criança para este mun-
do sobreaquecido.” É este o
estado de espírito de Rouwai-
da Mahmoud, 26 anos, e de Sayed Ali, 35
anos. Vivem na província de Gharbeya,
no Egito [no delta do Nilo, cerca de 100
quilómetros a norte do Cairo], depois de
terem passado os dois primeiros anos da
sua vida de casados na Alemanha, para que
Sayed Ali pudesse concluir os estudos em
Engenharia Mecânica. E foi lá que foram
surpreendidos pelo clima, que não corres-
pondia, de todo, ao que tinham imaginado.
Foi um choque constatar que mesmo na
Europa está muito calor.
Puseram-se, então, a pensar bastante
sobre o que seria a vida no futuro, para
as crianças de hoje em dia, e chegaram
à conclusão de que é melhor adiar, por
agora, a ideia de ter filhos.
A perturbação climática cresce
entre os jovens casais
FOTO: GETTYIMAGES
Desde aí, a questão climática está no
topo das preocupações de Rouwaida. Ela
diz que quer contribuir para limitar o im-
pacto das alterações climáticas, mesmo
que isso signifique fazer sacrifícios. E como
leu que o aumento demográfico agrava a
situação, para si, está fora de questão ter
mais de uma criança.
Sarah tem 24 anos e vive no Cairo. Di-
plomada há dois anos em Gestão, pondera
não se casar. Conhece bem a vida da sua
mãe, que é professora na escola pública
e que, além da sua profissão, tem de pre-
parar três refeições por dia e cuidar da
casa: limpar, varrer, lavar a loiça, lavar
a roupa…
A tudo isto acresce a memória que Sa-
rah tem dos momentos em que a sua mãe
tinha também de gerir os cortes de água
e eletricidade – que aumentam com as
vagas de calor e com as chuvas torrenciais,
ligadas às alterações climáticas.
“Estou no limite do cansaço quando
chego a casa depois do trabalho, sobre-
tudo quando tenho de fazer o caminho de
volta em dias de calor asfixiante”, conta.
“Imagine o que seria se fosse casada. Teria
as mesmas obrigações [domésticas] que
a minha mãe.”
Ansiedade climática
Uma sondagem internacional recente [rea-
lizada pela ONG Avaaz], que inquiriu dez
mil jovens entre os 16 e os 25 anos em dez
países, revela que 59% se sentem muito
ou mesmo extremamente inquietos em
relação às alterações climáticas e 45%
sentem que a ansiedade climática afeta
a sua vida de forma negativa.
Muitos expressam também preocupa-
ção relativamente ao fracasso dos governos
em arranjar soluções para o problema. As-
sim, quatro em cada dez jovens inquiridos
...
A consciência
ambiental tem vindo
a aumentar entre os
jovens da região. Um
estudo mostra que
estes participam cada
vez mais em iniciativas
pelo clima
disseram estar relutantes em ter filhos.
No mundo árabe, o Conselho da Ju-
ventude Árabe para a Mudança Climática
[AYCCC] acredita que os jovens do Médio
Oriente e do Norte de África estão na linha
da frente no que diz respeito às conse-
quências do aquecimento global. Mas,
diz também o relatório, são as questões
políticas e sociais que mais os preocupam
neste momento.
É verdade que a consciência ambien-
tal tem vindo a aumentar entre os jovens
da região. Um outro estudo mostra que,
de facto, estes participam cada vez mais
em iniciativas pelo clima e querem con-
tribuir para a causa. Por exemplo, 65%
dos jovens emiradenses gostariam que
fossem tomadas medidas para proteger
o ambiente.
Ahmed Mahrous tem 35 anos e vive no
Nordeste do delta do Nilo. Também ele se
pôs a duvidar do objetivo de se casar e ter
filhos. Enquanto gerente de uma cadeia
de lojas, desespera ao ver jovens casais
que se deparam com preços cada vez mais
exorbitantes quando vão às compras.
É importante explicar que uma das
causas desta inflação é precisamente o
aumento das temperaturas. Isto porque
queijos, produtos lácteos e bolos se estra-
gam cada vez mais nos armazéns, o que
resulta em perdas impossíveis de com-
pensar, a não ser através de uma subida
dos preços.
Assim, as alterações climáticas vão
escorregando progressivamente para o
nosso dia a dia, com impacto sobretudo
nas condições laborais. É isso que se passa
com Mohamed Abdel Qawi, 35 anos, que
trabalha no setor da construção, noutra
cidade do Nordeste do delta do Nilo. In-
terrogado sobre a vontade de constituir
família, diz que já não vê essa ideia com
o mínimo de entusiasmo.
Não aguenta as muitas horas de tra-
balho sob um calor abrasador e viu-se
obrigado a reduzir o seu horário laboral.
Tanto é assim que, no ano passado, perdeu
o seu irmão mais velho, que trabalhava
no mesmo edifício. Este sofreu uma inso-
lação, que lhe causou febre durante uma
semana, e não sobreviveu.
Segundo Bissent Ismaïl, conselheira
conjugal e familiar, atualmente há mesmo
uma parte dos jovens a distanciar-se da
possibilidade de, um dia, vir a casar. E
um dos principais motivos para tal é a
perturbação climática. Assim é porque,
diz ela, depois de muito tempo ignorada,
a crise do clima é, agora, uma realidade
que testemunhamos na prática. E as suas
consequências são tão graves que já não
é possível ignorar o problema.
MARÇO 2023 - N.º 325 27
 Deve-se legalizar
a cocaína?
DECLARADA HÁ MEIO SÉCULO, A GUERRA CONTRA AS DROGAS,
ESPECIALMENTE A COCAÍNA, É A MAIS LONGA DOS NOSSOS TEMPOS
– E REVELA SER UM FIASCO: OS CARTÉIS CONTINUAM A ESPALHAR
O TERROR. AGORA, GUSTAVO PRETO, PRESIDENTE DA COLÔMBIA,
PROPÕE UMA FORMA DIFERENTE DE COMBATER OS “NARCOS” E DE
ACABAR COM OS MASSACRES. SERÁ QUE A SOLUÇÃO PASSA PELA
DESPENALIZAÇÃO DO “PÓ BRANCO”?

FOTOS: GETTYIMAGES
 Droga

Porque
a Colômbia
quer quebrar
o tabu
Cinquenta anos de guerra contra a cocaína e
milhares de milhões gastos não serviram de nada,
segundo o Presidente colombiano Gustavo Petro,
que sugere a legalização, mas com precaução
El País América
México
De Bogotá

Nos balcões, a caixa regista- O momento revela-se propício. O novo

N dora foi substituída por balan-

ças. Em algumas pequenas e
remotas aldeias colombianas,
no meio da floresta tropical amazónica, as
pessoas pagam as suas compras em pasta
de cocaína – um produto intermédio entre
a folha de coca e a cocaína.
As notas e as moedas, só vistas na te-
levisão, são uma raridade por ali. Quanto
custa uma cerveja? 1,4 gramas, 60 cênti-
mos de dólar. Um quilo de carne? O dobro.
Um telemóvel? 194 gramas, ou seja um
pouco mais de 80 dólares.
Os habitantes destas longínquas zonas
produtoras de cocaína acumulam quilos
e quilos de coca. Acabam por vendê-los
a um intermediário, que fará com que
cheguem a discotecas de Nova Iorque,
Madrid ou Roma, depois de o seu valor
ser multiplicado por 100. Neste pequeno
mundo rural, onde se demora vários dias
a chegar de barco, a droga parece estar
de facto legalizada. Poderá o movimento
espalhar-se para o resto do país? E daí
para o resto do mundo?
O maior produtor mundial de cocaína
deu início ao debate. “Se há algum país
que vai debater este assunto, esse país será
a Colômbia. Nenhum outro o vai fazer”,
diz Catalina Gil Pinzón, especialista em
política de drogas na Open Society Fou-
ndations, a rede de fundações criada por
George Soros.
Presidente da Colômbia, Gustavo Petro,
pede insistentemente o fim da guerra
contra a droga, lançada pelo Presidente
Richard Nixon em 1971, há mais de 50 anos.
Segundo a opinião geral, utilizar o Or-
çamento do Estado para perseguir os gran-
des traficantes e erradicar os campos de
coca não funcionou. Quando se pulveriza
com o glifosato a plantação numa colina,
esta reaparece noutra. Como resultado, as
quantidades de cocaína que chegam aos
Estados Unidos da América atingiram um
recorde em 2021, ao mesmo tempo que a
Colômbia produziu mais cocaína do que Utilizar o Orçamento do Estado para
nunca. Washington desperdiçou dez mil perseguir os grandes traficantes e erradicar
milhões de dólares nos últimos 20 anos os campos de coca não funcionou
em políticas infrutíferas. FOTO GETTYIMAGES
Os primeiros a compreender o valor da
legalização são os responsáveis das finanças nica acha difícil vê-lo fazer o mesmo com
públicas. O diretor da autoridade fiscal e prisioneiros detidos por posse de cocaína.
aduaneira da Colômbia, Luis Carlos Reyes, Petro teve esta ideia.
que reporta ao Ministério das Finanças, Porém, apesar do seu entusiasmo ini-
disse-o claramente: “Precisamos de le- cial, Petro [ainda] não apostou firmemente
galizar e de tributar a cocaína.” na legalização. O antigo guerrilheiro queria
Não há muito tempo, Gustavo Petro comprar terras improdutivas e dá-las aos
já havia partilhado entusiasticamente nas camponeses – esta seria a primeira grande
redes sociais um editorial publicado em The reforma agrária do país –, e assim criaria
Economist, em que Joe Biden era acusado uma indústria alimentar e desencorajaria
de ser demasiado tímido no capítulo das os agricultores a participarem no tráfico
drogas. O Presidente norte-americano de cocaína. O seu ministro da Justiça ne-
acabara de perdoar seis mil prisioneiros gou categoricamente que o governo teria a
condenados por posse de uma pequena intenção de seguir por este caminho [o da
quantidade de canábis, mas a revista britâ- legalização]. Nenhum Presidente, para já,
quer ser visto como “amigo das drogas”.

AUTOR DATA TRADUTORA Caminhos alternativos

F Juan Diego 22.10.2022 Helena Araújo As políticas alternativas nem sempre fo-
Quesada ram bem-sucedidas no passado. Catalina

30 MARÇO 2023 - N.º 325

 Os norte-
-americanos
não acreditam
O plano de Gustavo Petro para
acabar com a guerra contra a
droga e alcançar a “paz total”
no país é “bom demais para ser
verdade”?, interroga o VICE NEWS.
De acordo com o site norte-
americano, que entrevistou
várias fontes, incluindo agentes
da DEA, a agência de combate
à droga dos EUA, muitos
observadores “dizem-se céticos”.
Sanho Tree, um especialista
em política de combate à droga
do Institute for Policy Studies,
um think-tank de Washington,
compara o desafio que Petro
enfrenta “aos esforços feitos
no sentido de se acabar com
o cultivo de papoilas num
Afeganistão controlado pelos
talibãs”, sublinha o VICE NEWS.
Segundo ele, a quantidade de
território colombiano fora do
controlo do governo é maior do
que o Texas e a Califórnia juntos.
E sem controlo governamental, a
coca continuará a proliferar.

Principais rotas de tráfico da cocaína (2016-2020)

Europa
Oriental
Europa
América Central
do Norte e Ocid.
Para o Leste Sudeste
e o Sudeste da Europa
Asiático Médio Oriente
Norte e Sudoeste da Asiático Leste
México de África e Sudeste
e América Caraíbas Asiático
Central África
Central
e Ocidental
África

Países
Para andinos
a Oceânia
COLÔMBIA
América África
do Sul do Sul
Oceânia

Volume de apreensões (estimativa) :

Fraco Moderado Forte
FONTES: THE ECONOMIST, UNODC

MARÇO 2023 - N.º 325 31

 Droga

Apoio
regional
A proposta de Gustavo Petro
para acabar com a “guerra
contra a droga” foi bem
recebida pelos principais
países visados, incluindo os
Estados Unidos da América.
Numa recente visita a Bogotá,
para se encontrar com o
Presidente colombiano, o
secretário de Estado norte-
americano Antony Blinken
disse: “Apoiamos fortemente
a abordagem global do
Presidente Petro através da
justiça, desenvolvimento,
proteção ambiental e redução
da oferta e da procura.” O apoio
mais notável veio do Presidente
esquerdista do México, Andrés
Manuel López Obrador,
cujo ministro dos Negócios
Estrangeiros criticou, tal como
Petro, a “campanha lançada
pelo [Presidente dos EUA]
Richard Nixon, que declarou
guerra às drogas”. “A única Gil Pinzón especifica: “Enquanto houver Gustavo Petro pediu, na ONU, para
coisa que conseguimos com um mercado mundial para a cocaína, isto se tentar novas abordagens na luta
isto é que agora todos os que não vai funcionar. Independentemente do contra a droga
se encontram ligados ao tráfico que fizermos, não conseguiremos travar FOTO GETTYIMAGES
estão armados, enquanto o o consumo. As drogas nem sempre levam
consumo não desce nem vai a um consumo problemático, à overdose As enormes quantias gastas na guerra
descer.” Colômbia e México ou à morte.” contra os cartéis poderiam ser usadas para
concordaram em convocar Considera essencial que se pare de es- financiar a investigação sobre os efeitos
uma conferência internacional tigmatizar o consumo. Se a cocaína fosse da droga, bem como campanhas de in-
com os Chefes de Estado de venda livre, as pessoas teriam a opção formação e o acesso aos serviços de saúde,
latino-americanos para de a consumir ou não, como é o caso do diz a investigadora.
“redefinirem a política contra as álcool e do tabaco. Além disso, há muito O tráfico deste pó branco gerou orga-
drogas”. poucos estudos sobre o vício causado por nizações criminosas capazes de enfrentar
esta droga. com armamento pesado os militares, como

Área cultivada
(em hectares)
Produção de cocaína
(em toneladas)
Evolução 2020-2021 62 % do cultivo da coca
Área plantada está concentrado em Nariño,
no Norte de Santander,
250 000 1 600 com coca e em Putumayo
FONTE: GABINETE DA ONU CONTRA A DROGA E A CRIMINALIDADE

2021
1 400 toneladas
1 400 + 43 %
200 000
1 200
NORTE
DE SANTANDER
1 000
150 000

800 VENEZUELA
Bogotá
204 000 Potencial produção
100 000 hectares 600 de cloridrato de cocaína NARIÑO COLÔMBIA

400
PUTUMAYO
50 000 + 14 % EQUADOR
200 BRASIL

0 0 PERU
2010 2012 2014 2016 2018 2020 2021

32 MARÇO 2023 - N.º 325

se viu no México e na Colômbia. Crimi-
nosos como El Chapo Guzmán e Pablo
Escobar são lendários.
Os funcionários e os políticos das re-
giões produtoras de cocaína estão à mercê
deste poder sombrio, que constitui um
Estado dentro do Estado. A legalização
poderia enfraquecer os cartéis, que per-
deriam a principal fonte de rendimento.
“Não acabaria com eles, mas as suas fi-
nanças ficariam duramente afetadas”, diz
Juan Carlos Garzón, investigador associado
da Fundación Ideas para la Paz [FIP, um
grupo de reflexão colombiano]. Segundo
este, é à luz da legalização da canábis para
uso recreativo que se deve avaliar uma
eventual despenalização da cocaína: “Não
se trata de vendê-la em supermercados.
Será necessária uma regulamentação clara
e firme, que gere uma riqueza legalizada.”
A cocaína é certamente a droga para
a qual uma regulamentação será mais
complicado. De acordo com um estudo do
instituto britânico Transform Drug Policy
Foundation, o desafio é bem complexo,
pois existe uma gama de produtos à base de
coca, desde folhas não processadas ao crack
fumável, passando pela cocaína em pó.
A sua utilização está associada aos
prazeres dos ricos, quando na realida-
de afeta uma parte muito mais vasta da
população. O estudo precisa: “À medida
que se torna mais barata e mais acessível,
será imperativo regular a sua utilização.
A política de saúde pública deve ter como
objetivo a redução dos danos causados por
este consumo.”
Diz-se muitas vezes, na Colômbia, que
se os Estados Unidos da América culti-
vassem coca, o mundo seria invadido por
estabelecimentos “McCocaine”. Mas é
exatamente o contrário. Os países pro-
dutores e os Estados consumidores olham
para o problema de um ângulo diferente.
Os Estados Unidos da América contam as
suas overdoses, a América Latina conta
as mortes relacionadas com a violência e
vê as suas democracias desestabilizadas.
Trata-se claramente de um problema
internacional. A regulamentação na Co-
lômbia não faria muito sentido sem que os
países consumidores fizessem o mesmo. O
mercado colombiano é muito pequeno, e
as organizações criminosas continuariam
a ganhar milhões com o tráfico de droga
clandestina.
A descriminalização não é para já,
mas o simples facto de este assunto, até
agora tabu, estar a ser discutido abre já a
primeira porta. Quando chegar a altura,
poderemos dizer, então, que estas aldeias
colombianas no meio do nada foram as
pioneiras.
Um perigo populista
Para a direita colombiana, a proposta “populista” de Gustavo Petro
corre o risco de deixar isolado internacionalmente.
Nem todos na Colômbia concordam com a proposta do Presidente Gustavo
Petro em avançar para a “regularização” das drogas, especialmente cocaína,
cujo maior produtor mundial é precisamente este país sul-americano.
O discurso proferido na ONU, a 20 de setembro, pelo primeiro Presidente de
esquerda da Colômbia, no qual apelou a uma mudança do modelo de guerra
contra as drogas, empreendido nos anos 70 pelo Presidente dos Estados
Unidos da América Richard Nixon, pôs a direita ao ataque. Entre as principais
vozes que se opuseram ao discurso presidencial está a do seu antecessor,
Iván Duque Márquez. Num mundo onde quase todos os países abraçaram
a proibição, “se um único país decidir legalizar todas as drogas, então este
tornar-se-á um refúgio para os traficantes de droga”, disse, numa entrevista
ao diário EL TIEMPO.
E enquanto faz campanha a favor de um abrandamento das restrições ao
consumo da marijuana, o ex-Presidente insurge-se contra a proposta de
descriminalizar a cocaína, mencionada sem convicção por Gustavo Petro e
parte da sua administração: “Algumas drogas não podem ser legalizadas,
porque destroem o ser humano, destroem o cérebro e podem representar um
dano maior para a sociedade.”
Outros críticos do Presidente acusam de “populismo” o governo, cujas
propostas não têm consistência, um termo retomado pelo ex-vice-presidente
Francisco Santos, no site INFOBAE, ou pelo ex-prefeito de Bogotá, Enrique
Peñalosa, no Twitter: “Este populismo foi-lhe bem útil na campanha [eleitoral]
na Colômbia, mas ao nível internacional não levado a sério.”
Da mesma forma, o jornalista colombiano John Mario González, num
artigo publicado no LOS ANGELES TIMES, fala criticamente sobre “os perigos do
populismo na luta contra a droga”. Segundo este cronista, o acordo de paz
assinado com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), em
2016, já mostrou que negociar com os vários atores da cadeia do narcotráfico
leva a um aumento das plantações de coca. Isto acontece porque muitos deles
“têm pouco ou nenhum interesse em reduzir o cultivo de coca”.
Acima de tudo, se se tomar uma decisão sem uma mudança completa
por parte da comunidade internacional, “o mais provável que aconteça na
Colômbia será um fiasco retumbante, que resultará em mais violência e em
milhares de mortes”.
Gustavo Petro:
“Avançar para a regulação”
Num forte discurso na ONU e denunciando o fracasso da guerra contra
as drogas, o primeiro Presidente de esquerda da Colômbia apelou a uma
mudança radical na forma como o problema é tratado
É um discurso que vai fazer História. A 20 de setembro de 2022, o primeiro
Presidente de esquerda da Colômbia, Gustavo Petro, falou na ONU sobre o
fracasso da guerra contra a droga, lançada pelo Presidente norte-americano
Richard Nixon, em 1971. De acordo com o diário EL TIEMPO, o Chefe de Estado
disse: “A guerra contra a droga falhou. [...] Houve um aumento no consumo
de drogas letais; das drogas leves passámos para as drogas duras; houve
um genocídio no meu continente, e milhões de pessoas no meu país foram
condenadas à prisão”. Gustavo Petro explicou depois o seu raciocínio numa
entrevista dada à televisão: “Avançar para a regulamentação é a palavra
certa [...]. Não é tanto a liberalização ou a legalização total, porque muitas
substâncias são absolutamente destrutivas, mas trata-se de uma forma
diferente de lidar com o problema, que não incluir armas, como se fosse uma
guerra. Temos de olhar para esta questão como ela é, uma doença”.
EL TIEMPO / BOGOTÁ
MARÇO 2023 - N.º 325 33
 Droga
Está na hora
de legalizar
Enquanto esta mercadoria for ilegal nos países ricos,
os grandes consumidores, os gangues de cocaína
continuarão a ser poderosos
The Economist
Londres
“Isto não faz qualquer sen- modo mais geral, à guerra contra a droga.
I tido”, disse Joe Biden a 6 de
outubro, depois de ter conce-
A proibição não está a funcionar – e isso
é sobretudo verdade no caso da cocaína.
dido amnistia a cerca de seis Desde que Richard Nixon lançou [em
mil norte-americanos condenados por 1971] a “guerra contra as drogas”, as rotas
terem consigo uma pequena quantidade de cocaína para os Estados Unidos dis-
de marijuana. Embora seja totalmente pararam. A produção mundial em 2020
legalizada [nos 21 estados norte-ame- atingiu um recorde de 1 982 toneladas,
ricanos], ao nível federal a canábis ain- de acordo com os últimos números, pro-
da é considerada tão perigosa quanto a vavelmente subestimados. Isto apesar de
heroína, e ainda mais do que o fenta- décadas de medidas implacáveis e dispen-
nil, dois opiáceos cujo consumo levou à diosas para se reduzir os fornecimentos.
morte por overdose de mais de cem mil Entre 2000 e 2020, os Estados Unidos da
norte-americanos no ano passado. Mas América investiram dez mil milhões de
as palavras de Biden aplicam-se, de um dólares na Colômbia para conter a produ-
AUTOR DATA TRADUTORA
F Não assinado 12.10.2022 Helena Araújo
34 MARÇO 2023 - N.º 325
ção, pagar ao Exército colombiano para
pulverizar as plantações com herbicida
[glifosato] ou arrancar plantas de coca
à mão. Em vão: quando se erradica a
cocaína de uma colina, ela desloca-se
para outra.
Os países mais afetados são os que
produzem e traficam, pois os lucros da
droga alimentam a violência. A taxa de
homicídios na Colômbia é três vezes
superior à dos Estados Unidos da Amé-
rica; no México, é quatro vezes maior.
Em algumas zonas, os gangues de droga
são tão ricos e estão bem armados que
competem com o Estado, dando à polí-
cia e aos funcionários uma escolha entre
plata [dinheiro] e plomo [chumbo]: ou
se deixam subornar ou são assassinados.
Droga menos perigosa
Dois Presidentes, o colombiano Gus-
tavo Petro e o peruano Pedro Castillo,
reclamam mudanças de atitude. Petro
apela ao fim da mobilização da polícia
para reprimir os produtores de coca, des-
criminalizando a produção de folhas de
coca e permitindo que os colombianos
consumam cocaína com toda a segurança.
São boas ideias, mas os gangues da cocaína
continuarão poderosos enquanto o seu
produto for ilegal nos países ricos, que
são os grandes consumidores, incluindo
os Estados Unidos da América.
Meias-medidas, tais como não perse-
guir os consumidores de cocaína, não se-
 rão suficientes. Se a produção permanecer
ilegal, os criminosos encarregar-se-ão Apreensões de cocaína no mundo
dela, e a descriminalização do consumo (em milhares de toneladas)
irá indubitavelmente aumentar a procura
América do Sul América Central e Caraíbas
e tornar o seu negócio ainda mais ren-
América do Norte Europa Resto do mundo
tável. A verdadeira solução passa pela
legalização total, permitindo aos não 1,5
criminosos fornecer um produto estri-
tamente regulamentado e fortemente “Acabar com
tributado, como fazem os produtores de a guerra
uísque e de tabaco (a publicidade deve,
no entanto, ser interdita).
contra a
A cocaína legal seria menos perigosa. droga para
De facto, os produtores não a cortariam respirar 1,2

com outros pós brancos, e a sua dosa- em paz”

gem seria claramente indicada no ró-
tulo, tal como acontece com as garrafas
de uísque. Nos EUA, desde 2010 que as
mortes resultantes do consumo de co-
caína quintuplicaram, principalmente
porque os traficantes a cortaram com o
fentanil, uma substância mais barata e
mais perigosa.
A legalização da cocaína iria refrear as
ameaças dos cartéis. Claro que alguns se
voltariam para outras atividades, mas a
perda desta fonte de rendimento limitaria
a sua capacidade de recrutar, comprar
armas de última geração e subornar fun-
cionários. Isto reduziria a violência em
torno das drogas um pouco por toda a
parte, especialmente na América Latina,
a região mais afetada.
Se a cocaína estivesse livremente dis-
ponível, mais pessoas a consumiriam.
Para alguns, será uma escolha: snifar
uma substância, que eles sabem que é
má para a saúde, só porque têm prazer
nisso. No entanto, a cocaína é viciante. A
este nível, não há muitos estudos com-
parativos entre a cocaína e o álcool ou
o tabaco. São necessários mais estudos
e uma ação mais determinada no tra-
“Acabar com a guerra contra
a droga para respirar em
paz” foi a manchete do diário
de esquerda PUBLIMETRO, a 0,9
21 de setembro de 2022,
um dia depois do discurso
do Presidente colombiano
Gustavo Petro na ONU.
Sob a foto do primeiro líder
esquerdista do país, o jornal
dizia que “a guerra contra a 0,6
droga”, lançada pelo Presidente
norte-americano Richard
Nixon, nos anos 70, “falhou e
não vale a pena prolongá-la e
ver mais pessoas a morrer”.
0,3
0
2010 2012 2014 2016 2018 2020
FONTES: GABINETE DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
A DROGA E A CRIMINALIDADE; THE ECONOMIST

tamento da dependência. Isto poderia

ser financiado em grande medida com
o dinheiro que se pouparia na “guerra
contra a droga”.
Em privado, muitos responsáveis
reconhecem que a proibição não é me-
lhor do que nos tempos de Al Capone.
Mas, por enquanto, a legalização pare-
ce ser politicamente impossível: na sua
maioria, os decisores políticos não
querem ser vistos como alguém
que é brando em relação às
drogas. Mas os defensores
da legalização devem con-
tinuar a sua ofensiva. Os
benefícios – cocaína menos
perigosa, ruas mais seguras,
maior estabilidade política
na América Latina – com-
pensam de longe os custos.

ILUSTRAÇÃO DE ARCADIO PARA PRENSA LIBRE, COSTA RICA MARÇO 2023 - N.º 325 35
 Droga

Equador
O Equador agora é também

O alvo das organizações mafiosas

ligadas ao tráfico de cocaína.

torna-se um
Os violentos confrontos nas
prisões, que desde o início de 2021 leva-
ram à morte de 419 reclusos, são apenas

narco-Estado
A violência associada à cocaína colombiana
está a aumentar fortemente no país andino.
Ligados aos cartéis mexicanos, os gangues
procuram corromper as forças de ordem
e o mundo político
Ojo Público
Lima
a ponta do icebergue.
O atentado à bomba numa zona den-
samente povoada da cidade costeira de
Guayaquil, o bairro Cristo del Consuelo,
em meados de agosto, matou cinco pes-
soas e fez quase 20 feridos. Tratar-se-á de
represálias após uma apreensão de droga
recorde ocorrida alguns dias antes nesse
mesmo bairro.
Os analistas concordam que o Equador
se tornou um ator incontornável nas rotas
de cocaína. O coronel Mario Pazmiño, an-
tigo diretor dos Serviços de Informações
militares, concorda: “O país tornou-se
um santuário para as redes mafiosas in-
ternacionais.”
“A Colômbia produz cerca de 1 200
toneladas de droga por ano”, diz o antigo
chefe da luta contra os estupefacientes,
Gilberto Giovanni Ponce, e cerca de 500
toneladas provêm dos departamentos de
Nariño e de Putumayo. A polícia equato-
riana estima que metade desta produção
acaba em território equatoriano para ser
exportada. Os departamentos colombianos
fazem fronteira com as províncias equato-
rianas de Esmeraldas (no Pacífico), Carchi
(nos Andes) e Sucumbíos, na Amazónia.
Desde a assinatura do acordo de paz na
Colômbia com as FARC (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia), em 2016,
que um grupo de militantes armados tem
recusado aceitar o processo de paz e con-
tinuado a traficar drogas.
Após a dissolução dos grupos locais,
a Frente Oliver Sinisterra, formada por
dissidentes das FARC, impõe-se em am-
bos os países. O antigo líder, Walter Pa-
tricio Arizala, apelidado de El Guacho,
agora falecido, foi responsável pelo rapto
e assassínio de três jornalistas do diário
equatoriano El Comercio, em 2018. A
investigação mostrou que o grupo uti-
lizava embarcações semissubmersíveis
para transportar cocaína
F no oceano Pacífico.

Mortes violentas duplicam

AUTOR Atualmente, o crescimento
María Belén
Arroyo do tráfico de droga é visí-
vel no aumento da violência
DATA nas cidades associadas ao
16.10.2022 tráfico de droga. Em 2019,
aproximadamente 82 to-
TRADUTORA neladas de cocaína foram
Maria Alves apreendidas e o número de

36 MARÇO 2023 - N.º 325 ILUSTRAÇÃO DE DARÍO PARA EL IMPARCIAL, MÉXICO

mortes violentas no Equador era de sete Os dois gangues disputam com a or-
200 km
em cada 100 mil habitantes. ganização criminosa Los Choneros – o es
d
No ano passado, as apreensões triplica- braço logístico do cartel mexicano de

n
A
ram. De janeiro a maio de 2022, os volumes Sinaloa – o controlo total das rotas do NARIÑO COLÔMBIA
de cocaína confiscados excederam os de tráfico de droga no Equador. Esta riva-

s
do
2019, de acordo com o relatório do chefe lidade surgiu no final de 2020, quando
ESMERALDAS CA* PUTUMAYO
da polícia de combate à droga, Gilberto o líder do grupo, Jorge Luis Zambrano,
Equador
Giovanni Ponce. conhecido como Rasquiña, foi assassi- SUCUMBÍOS

ira
Quito
Ao mesmo tempo, a taxa de mortes nado, depois de libertado da prisão. Após

he
violentas duplicou, com a média nacio- a sua morte, a organização dissolveu-se,
Prisão de

dil
nal a subir para 15 por cada 100 mil habi- e começou uma onda de mortes dentro Cotopaxi

Cor
tantes. Em áreas de alto risco, como em e fora das prisões.
Esmeraldas, há 49 mortes por cada 100 De acordo com os relatórios da polí-
Guaiaquil
mil habitantes. Em Guayaquil, a polícia cia, Leandro Norero terá tentado apro- EQUADOR

local estima, sem dar números oficiais, que
75% da violência nas ruas está associada
ao tráfico de drogas.
As prisões do Equador tornaram-se
zonas sem lei. As atividades criminosas
são organizadas a partir dos seus recintos,
e é aí que os assassínios são ordenados.
Em fevereiro de 2002, a Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos (CIDH)
apresentou o seu relatório sobre a situação
das pessoas presas no Equador. O relató-
rio menciona conflitos “entre gangues de
criminosos pelo controlo das prisões, uma
situação motivada principalmente pelos
lucros económicos obtidos no tráfico ile-
gal”. Ao mesmo tempo, o relatório revela
que a falta de vigilância “facilita a entrada
de drogas e de armas nos estabelecimentos
prisionais”.
Um dos episódios mais recentes teve
lugar a 3 de outubro, na prisão de Coto-
paxi. Um motim fez 16 mortos e 43 feridos.
Entre os mortos estava Leandro Norero,
preso por tráfico de droga e lavagem de
dinheiro.
O nome de Leandro Norero não é
desconhecido no Peru. A 5 de fevereiro
de 2020, foi acusado de tráfico de droga
agravado. Os advogados apresentaram
uma certidão de óbito devido à Covid-19 e
fotos do falecido. As autoridades judiciais
encerraram o caso. Mas era tudo mentira.
Norero fingiu a sua morte para escapar à
acusação e fugir para o Equador.
O seu nome e rosto fizeram manchetes,
quando foi capturado, no final de maio de
2022, após uma busca, durante a qual a
polícia confiscou 24 barras de ouro e vários
milhares de dólares em dinheiro. Foi preso
e transferido para a prisão de Cotopaxi.
Norero é acusado de ter criado um con-
glomerado composto por sete empresas.
Os lucros financiavam as operações dos
gangues Los Lobos e Chone Killers. Estes
tratavam da parte logística do comércio de
drogas, com ligações ao cartel mexicano
Jalisco Nueva Generación, de acordo com
documentos dos Serviços de Informação.
ximar-se de Los Choneros após a morte
de Zambrano, com o intuito de assumir
a liderança, mas falhou. Depois, apoiou
financeiramente a quadrilha Los Lobos,
ligada ao cartel mexicano Jalisco Nueva
Generación.
Os violentos tumultos na prisão de
Cotopaxi deixaram sequelas. Passados
dois dias, deu-se outro massacre como
retaliação, desta vez na prisão Litoral, em
Guayaquil, fazendo 13 mortos.
A prisão de Norero ocorreu no coração
de uma área de luxo de Guayaquil, numa
propriedade avaliada em dois milhões de
dólares. O proprietário é outro equatoria-
no, Xavier Jordán, que esteve implicado
num caso de corrupção no governo de Le-
nín Moreno (2017-2021). De acordo com
a investigação, Xavier Jordán enriqueceu
ao aceitar subornos de contratos públicos
durante a pandemia. Está atualmente em
fuga.
Droga e corrupção
A relação entre Norero e Jordán evidencia
as ligações entre o tráfico de droga e a
corrupção. Mas uma fotografia, publicada
neste ano, revela a existência de um tercei-
ro cúmplice: Ronny Aleaga, deputado da
Assembleia na legislatura anterior (2017-
2021), reeleito até 2024.
A foto mostra Aleaga, de 38 anos,
com o irmão, na piscina da residência
de Xavier Jordán, em Miami. Depois da
sua divulgação, Ronny Aleaga alegou que
a foto foi tirada num ambiente privado e
que esta não constituía qualquer prova do
seu envolvimento em atividades ilegais.
A influência dos traficantes de dro-
ga na política equatoriana estendeu-se
também a outras instituições. Em mea-
dos de dezembro de 2021, o embaixador
norte-americano Michael J. Fitzpatrick
anunciou que o seu país tinha decidido
retirar os vistos aos “narcogenerais” e
expressou a sua preocupação em relação
à infiltração de traficantes nas forças de
segurança.
COURRIER INTERNATIONAL
Oceano
Pacífico
PERU
*CA. CARCHI
A máfia
albanesa
implanta-se
Os gangues que operam no
Equador têm ligações não
só com os cartéis mexicanos
mas também com os
grupos dos Balcãs. A prova
está na presença forte de
intermediários albaneses no
país andino. “A Albânia era um
país pobre; agora é um narco-
Estado”, diz um jornalista
albanês, na revista equatoriana
VISTAZO. E os narcóticos
albaneses vão diretamente à
fonte para obterem cocaína
antes de a espalharem pela
Europa. O mais famoso deles,
Dritan Rexhepi, é apelidado
de “cabecilha incontestável”
e “czar da cocaína”. Preso em
Quito, em 2014, e condenado
a 13 anos de prisão, foi
libertado em 2021. Em prisão
domiciliária, desapareceu no
mapa. Os albaneses não estão
presentes apenas no Equador;
estão também “na Colômbia,
no México e no Peru”, sublinha
o site de investigação INSIGHT
CRIME.

MARÇO 2023 - N.º 325 37

 Droga
Pelo menos cinco oficiais da polícia
foram informados de que os seus vistos
para entrar nos Estados Unidos da América
foram cancelados. Entre estas altas paten-
tes encontrava-se um general que tinha
estado à frente da unidade de combate à
droga, Marco Villegas.
Foi Gilberto Giovanni Ponce quem o
substituiu. Durante o seu mandato, entre
janeiro e maio de 2022, 61 toneladas de
drogas foram apreendidas nos portos. As
máfias do tráfico de droga no Equador estão
a lutar pelo controlo dos eixos rodoviários
e dos portos.
A resposta do Estado está a começar
a dar frutos. Felipe Ochoa, diretor-ge-
ral-adjunto de operações do Serviço Na-
cional de Alfândegas do Equador (Senae),
explicou que, até ao final de 2022, ficou
concluída a instalação de scanners para
analisar o que está nos contentores. En-
tão, a partir de um centro de comando,
agentes especializados poderão verificar a
carga, sem conhecer o porto ou o conten-
tor específico que estão a analisar. Isto irá
protegê-los de possíveis ameaças.
Em fevereiro de 2023, realizar-se-ão
eleições municipais (municípios, provín-
cias, etc.) no Equador. Alguns académicos
têm receio de que o crime organizado esteja
a tentar estabelecer-se no seio do Esta-
do, pondo determinadas pessoas nestas
posições de poder.
Para Fernando Carrión, investigador
da Faculdade Latino-Americana de Ciên-
cias Sociais, o Equador tem um problema
central: o fracasso das instituições, o que
se reflete numa falta de estabilidade das
autoridades prisionais e ministeriais.
Já em 2014...
Em 2014, ex-Presidentes e muitas
personalidades internacionais
assinaram um relatório no qual
defendiam uma “mudança radical”
na abordagem ao tema da droga.
Entre as recomendações entregues
à ONU, os signatários propunham
políticas mais humanas e menos
repressivas. Personalidades como
o antigo secretário da ONU, Kofi
Annan, os ex-Presidentes Fernando
Henrique Cardoso (Brasil), Ernesto
Zedillo (México), César Gaviria
(Colômbia) e Jorge Sampaio
(Portugal), o bilionário britânico
Richard Branson e o escritor Mario
Vargas Llosa, entre outros, estavam
entre os signatários.
38 MARÇO 2023 - N.º 325
México
acumula
fracassos face
aos cartéis
Em 20 anos, o país passou de uma
repressão total para uma abordagem mais
preventiva. Mas nada funcionou, devido a
falhas institucionais
El Universal
Cidade do México
O país, nos últimos 20 anos, tendenciosa da lei. Deve-se reconhecer,
O assistiu a um aumento da
violência, assim como à sua
no entanto, que o balanço de Calderón
não foi completamente negativo. Esta po-
banalização. Aparentemente, lítica repressiva conseguiu, ainda assim,
nenhuma política pública – seja a “guer- resultados importantes. Até ao final do
ra contra o narcotráfico” do Presidente mandato, a criminalidade estava a descer:
Felipe Calderón [2006-2012] seja o pro- dos homicídios intencionais (em 2011, a
grama “Abraços, não tiroteios” [Abrazos, taxa de homicídios tinha subido para 19,37)
no balazos] do atual Presidente, Andrés ao desaparecimento de pessoas, passando
Manuel López Obrador, conhecido como por extorsão de fundos, raptos, assalto à
Amlo – conseguiu restaurar a paz no nosso mão armada e outros delitos.
país. Então, por que motivo tanto as es- Conseguiu igualmente desmantelar os
tratégias repressivas como as preventivas maiores grupos mafiosos. Agora, a estra-
falharam? tégia preventiva, o outro modelo nesta
O modelo ofensivo, implementado luta contra a violência, centra-se mais
por Felipe Calderón entre 2006 e 2012, nas causas que geram violência e pre-
prometia não deixar nenhum crime ou ato tende reconstruir o tecido social, graças
de violência impune e usar a força para a diferentes diagnósticos e abordagens,
caçar e punir os criminosos. por forma a eliminar o crime e a violência
Esta política de guerra frontal não foi desde o início, mas também através de
propriamente bem-sucedida. O Estado uma aplicação mais rápida da lei.
começou a implementar a sua política de
tolerância zero sem dispor de provas sufi- Aproveitar o melhor
cientes, sem preparação e sem orçamento. Quatro anos após a implementação da
Além disso, não beneficiava do apoio da política preventiva do governo de Amlo,
sociedade civil e estava a braços com um o resultado não é o ideal, muito pelo con-
grave problema de corrupção dentro das trário. Se é verdade que o indicador-chave
próprias instituições. de medição da violência, a taxa de homicí-
Não é, portanto, surpreendente que dios, diminuiu, também não se pode negar
a taxa de homicídios intencionais tenha que os desaparecimentos, a extorsão, a
disparado em flecha e aumentado de 10,89 violência de género, a agressão e o tráfi-
por cada 100 mil habitantes, em 2006, para co humano, entre muitos outros crimes,
18,33, em 2012, com um número incal- atingiram máximos históricos. Além dis-
culável de casos de violações dos direitos so, o crescimento e a ascensão de grupos
humanos, graças aplicação arbitrária e mafiosos, o seu envolvimento em ativida-
AUTOR DATA TRADUTORA
F Francisco Rivas 22.10.2022 Helena Araújo
 Incrível! Lá dentro há
cerca de 3 000 quilos da
mais pura cocaína!...
Avisa a sede de que
acabámos de capturar um
camião com 1 500 quilos
de droga...
Estou sim, capitão!
Foi um êxito enorme.
Capturamos uns 500
quilos!...
des legais e ilegais e a sua interferência no
processo eleitoral mostram que o Estado
está a perder terreno, e isto já para não
falar do facto de este governo acumular
mais violações dos direitos humanos do
que os dois últimos governos juntos.
Então, por que motivo esta política de
“abraços” falhou? Por que razão a impu-
nidade atingiu níveis históricos, porque
ILUSTRAÇÃO DE LANGER PARA MONGOLIA, BARCELONA
as instituições, como a polícia e o sistema
judicial, se deterioraram em quatro anos?
Porque a corrupção aumentou? Porque os
recursos dedicados a este programa estão
a diminuir e por que razão nada foi feito
para enfraquecer a estrutura económica
do crime organizado e a sua influência
na sociedade?
Em suma: o falhanço das instituições,
a ausência de uma estratégia a longo prazo
por parte do Estado, a sua falta de envolvi-
mento e de autocrítica, para se melhorar o
que poderia ser melhorado, têm impedido
que estas duas políticas deem frutos. Os
seus resultados são insuficientes, senão
mesmo inexistentes.
Devemos resignar-nos e considerar
que o México é mesmo um Estado à deriva?
Certamente que não. Devemos pegar no
melhor de ambas as abordagens e adap-
tá-las às diferentes realidades nacionais,
desmantelar as redes de corrupção, con-
trariar a influência económica e política
destes criminosos, não hesitar em cola-
borar com outros países e atribuir os re-
cursos necessários, garantindo que todos
podemos viver em segurança.
Verbatim
Kassandra
Frederique
“O legado da guerra contra a droga
é devastador. Destruiu famílias,
literalmente. Desmoronou as
economias de muitos países no
mundo inteiro. Tudo isto para o
bem de alguns e sem nunca pôr
as questões de saúde em primeiro
lugar. E também não se pode dizer
que tenha havido grandes sucessos
em termos de segurança... As
drogas têm sido apresentadas
como demónios. O principal
argumento é elas fazerem mal e,
portanto, devem ser eliminadas
da face da Terra. Não haveria outra
possibilidade. É unidimensional.”
Kassandra Frederique, diretora
da ONG norte-americana Drug
Policy Alliance, em entrevista ao
EL PAÍS, a 13 de novembro de 2022
MARÇO 2023 - N.º 325 39
 Droga
Antuérpia
e Roterdão
inseguras
As autoridades estão sobrecarregadas
face ao rápido crescimento do mercado
de cocaína e da violência que este gera.
Revista de Imprensa
“Incêndios criminosos, cock- relacionados com o crime organizado”,
relata o jornal De Morgen, a quem a cri-
I tails molotov, tiroteios, rap-
tos, granadas, liquidações”: o minóloga Charlotte Colman (Universidade
Gazet van Antwerpen, o diário de Gante) explica que os motivos que estão
de Antuérpia, enumera cada um dos epi- por detrás destes factos são geralmente os
sódios de violência ligados ao tráfico de mesmos: “intimidação, avisos ou repre-
droga, que ocorreram nos últimos anos sálias” entre os grupos rivais.
na cidade portuária e arredores. E “a lista Ora, as quantidades de droga, e as so-
é interminável”. O número aproxima-se mas envolvidas, multiplicaram nos últi-
dos 200, em sete anos. No verão passado, o mos anos. Em 2013, o volume de cocaína
contador atingiu o pico: “Todos os dias, ou apreendida no porto de Antuérpia ainda
quase todos, os media relataram incidentes rondava as quatro toneladas; neste ano,
AUTOR DATA TRADUTORA
F Sem autor 22.10.2022 Helena Araújo
40 MARÇO 2023 - N.º 325
Legenda
FOTO GETTYIMAGES
as autoridades esperam passar a marca
simbólica das 100 toneladas. A cidade belga
é agora a principal porta de entrada para o
tráfico de cocaína na Europa, posicionan-
do-se à frente de Roterdão. “Uma medalha
de ouro que o nosso país bem dispensava”,
comentou o jornal flamengo.
“O porto de Antuérpia é enorme, e
apenas uma pequena parte dos milhões
de contentores que ali entram pode ser
verificada”, explica o De Volkskrant. Na
maioria das vezes, as mercadorias chegam
da América Latina, escondidas em carre-
gamentos de fruta, e partem “quase inte-
gralmente para os Países Baixos”, mesmo
do outro lado da fronteira. “Há algumas
famílias a viver em Antuérpia que gerem o
transporte”, continua o diário holandês,
“mas os grandes cartéis estão nos Países
Baixos, de onde depois distribuem a droga
para a Europa”.
“Nos Países Baixos, o ajuste de contas
pelo tráfico de droga são moeda corrente”,
comenta o jornal flamengo Het Nieuws-
blad, adiantando que os homicídios asso-
ciados à droga se situam entre os 15 e os
30, por ano. Isto, porém, não impediu que
os assassínios do advogado Derk Wiersum
(em 2019) e do jornalista Peter R. De Vries
(em 2021) gerassem uma onda de choque,
sublinha o popular diário, porque os dois
homens “não pertenciam a este mundo
subterrâneo, não estavam envolvidos em
nenhum crime”.
 “Em comparação ao vizinho holandês,
a situação na Bélgica é [portanto] bastante
mais calma”, observa o Volkskrant, mas há
receios de que as coisas estejam a mudar, já
que as autoridades são ultrapassadas pela
amplitude do fenómeno. A polícia, a justiça
e as autoridades aduaneiras queixam-se da
falta de recursos humanos e financeiros.
Será mesmo grave?
Após a onda de violência deste verão, fo-
ram muitas as reações na Imprensa belga.
Para alguns, como o advogado de Antuér-
pia Walter Damen, que falava ao diário
De Standaard, é necessário agir do lado
da procura e entender os consumidores,
que são cada vez mais, que têm “sangue
nas mãos”.
A menos que, sugeria o editor do mes-
mo jornal, olhemos para o problema de
outro prisma. As análises das águas re-
siduais de Antuérpia são suficientes para
perceber que o “espírito dos tempos” mu-
dou, observava: em cinco anos, os vestí-
gios de cocaína duplicaram. O uso desta
droga já se expandiu tanto que se duvida
que a já largamente ineficaz “guerra às
drogas” tenha apoio público suficien-
te para continuar a ter expressão. Sem
defender diretamente a legalização, ele
acredita que chegou o momento de, co-
letivamente, nos perguntarmos “se ainda
consideramos o consumo da cocaína algo
de muito grave”.
É esta mesma constatação do fracasso
da guerra contra a droga e da impotência
das autoridades face à violência associada
ao tráfico que levou o presidente da Câ-
mara de Amesterdão a apelar à “despe-
nalização da cocaína” e à “regulação do
mercado”, como revela o Telegraaf. No
sentido contrário, o presidente da Câma-
ra de Antuérpia apela, sobretudo, a mais
recursos policiais e judiciais.
A emissora pública flamenga VRT ouviu
vários peritos que se pronunciaram sobre
a questão da legalização ou da descrimina-
lização. Para eles, isto é geralmente uma
forma de controlar o mercado e a com-
posição da substância em circulação, e, a
médio prazo, de puxar o tapete aos trafi-
cantes. Mas nem todos estão convencidos
da legalização das drogas duras, sublinha
a VRT “Se tiver uma overdose, não terá
uma segunda oportunidade”, defende um
toxicologista.
Em qualquer um dos casos, salienta a
criminologista Charlotte Colman, tal me-
dida só fará sentido se for implementada
pelo menos ao nível europeu. “Não deve-
rá constituir um fator de atração, como
aconteceu com as coffee shops holandesas
na altura.”
Califórnia:
o lado negro
da canábis
Proliferação de plantações
ilegais, violência,
trabalhadores explorados,
intoxicações... Seis anos após
a legalização do uso recreativo
da canábis na Califórnia,
o LOS ANGELES TIMES revela o
lado negro da questão. “Os
centros de cultivo clandestino
estão agora a invadir aldeias
espalhadas por todo o
estado”, observa o diário, que
acrescenta: “Os residentes
dizem viver aterrorizados,
perto de campos armados até
aos dentes. As organizações
criminosas operam com
uma impunidade quase total,
arrendando terrenos nos
quais constroem até uma
centena de estufas. A polícia,
ultrapassada, só consegue
destruir uma ínfima parte
destas explorações, cujas
atividades reiniciam passados
poucos dias”.
Uma montanha
de pó
“Há 40 anos, devido à produção
excessiva de leite, a Europa
viu-se enterrada em manteiga.
Agora, é a Antuérpia que
está enterrada de cocaína”,
critica o diário belga GAZET
VAN ANTWERPEN. Entre outros
problemas, este afluxo
representa um grande desafio
logístico: a Bélgica apreende
tanta droga que não consegue
desfazer-se dela com a rapidez
suficiente.
Em princípio, a mercadoria
apreendida é queimada, mas,
devido a restrições técnicas
e a normas ambientais, os
incineradores não conseguem
acompanhar o ritmo, adverte o
jornal. É preciso instalar novos
equipamentos. Entretanto, a
droga é armazenada, e esta
acumulação “está a atingir
proporções alucinantes.
Atualmente, dezenas de
toneladas de cocaína estão à
espera de serem destruídas
nos hangares aduaneiros”. Ora,
dado o seu valor no mercado,
as autoridades têm receio de
que grupos criminosos tentem
apoderar-se dela.
 El Aguán,
o vale da morte
NESTA REGIÃO DAS HONDURAS, RICA EM ÁGUA DOCE, OS
CAMPONESES MORREM OU ACABAM NA PRISÃO POR OUSAREM
ERGUER-SE CONTRA UMA PODEROSA EMPRESA MINEIRA QUE LHES
POLUI OS RIOS. RELATO DE UMA LUTA DESIGUAL

Revista 5W
Barcelona

FOTOS: GETTYIMAGES
 Reportagem
S
“Se ao menos uma instituição, uma orga-
nização, seja ela qual for, pudesse tirar-nos
disto!” O grito de ajuda vem de Jeremías
Martínez, um agricultor hondurenho de
67 anos, que teme pela vida. Não confia
nas autoridades do seu país, ainda que
este beneficie de ajuda externa. A porta da
casa é deixada aberta, enquanto ele conta
a sua história. Diz que é para apanhar o
ar fresco da noite, mas também para ver
se alguém se aproxima. Em breve ficará
escuro no campo, e ele receia que alguém
leve a cabo as ameaças de morte proferidas
contra si.
Jeremías vive com a esposa, Lidia, na
aldeia de La Concepción, na região de
Bajo Aguán, costa norte das Honduras.
Cumpriu três anos e três meses de prisão
por se opor às atividades de uma empresa
mineira de exploração de ferro no monte
Botaderos, onde nascem, pelo menos, 30
rios que irrigam o vale de El Aguán. Foi
libertado em fevereiro de 2022, mas não
sai de casa, nem voltou a trabalhar nas suas
terras. Receia que alguém se queira vingar.
“De onde vêm as ameaças? Da com-
panhia mineira.”
A empresa Los Pinares, que pertence
a uma das famílias mais ricas e influentes
das Honduras e da América Central, a do
empresário Lenir Pérez e da sua esposa,
Ana Isabel Facussé, denunciou Jeremías
Martínez às autoridades, por bloquear,
entre agosto e outubro de 2018, a estrada
que estava a construir para transportar
o minério para fora da jazida. A queixa
abrangia cerca de 30 outros agricultores,
acusados de fogo posto, sequestro e outros
AUTORA
F Soraya Constante
44 MARÇO 2023 - N.º 325
crimes alegadamente cometidos durante
a mobilização. A maioria dos arguidos é
de El Guapinol, uma aldeia [vizinha de La
Concepción] que se tornou um símbolo da
defesa do rio que tem o seu nome. Foram
eles que lutaram mais duramente contra
a empresa mineira, porque consomem a
água do rio.
Jeremías entregou-se à polícia em
novembro de 2018, convencido da sua
inocência. Esta não foi a primeira vez
que se viu confrontado pelas autoridades
que governam de facto as Honduras. Já
nos anos 90, fora apanhado na máquina
judicial quando se recusou a vender as
suas terras a empresas agroalimentares
com projetos no Bajo Aguán. Foi então
vítima de perseguição e pagou um preço
elevado pela sua luta em favor da terra.
“Mataram o meu filho mais velho.
Morreu a lutar pela terra”, diz o campo-
nês. Para de falar, dominado pela emoção.
Quando recomeça a contar a sua história,
diz que os seus outros filhos tiveram de
deixar o campo: quatro foram para os Es-
tados Unidos da América e outros dois
fundaram lares fora de La Concepción.
Por todas estas razões, Jeremías vive
agora sozinho com a esposa e receia pela
sua segurança. A defesa da água já tirou a
vida a um camponês seu conhecido, que
tinha participado no bloqueio da estrada e
recusava render-se, como outros fizeram.
Chamava-se Arnold Morazán, e a família
deixou o vale de El Aguán. Foi baleado na
sua casa de El Guapinol, em 2020, enquanto
os restantes ativistas estavam na prisão.
Jeremías continua: “A minha mulher tem
DATA TRADUTORA
24.11.2022 Helena Araújo
mais medo do que eu. Ela quer que me vá
embora por uns tempos.”
Jeremías conta que, na prisão, escre-
veu um corrido [uma espécie de balada,
de origem mexicana]. E canta o primeiro
verso: “Eu era um prisioneiro na Ceiba
[uma prisão no Norte do país]/ Por ter
defendido os agricultores/ A quem querem
confiscar a terra/ Para vender aos ricos/
Mas eu parei aquela onda/ E fiz muitos
inimigos.”
Mortes, ameaças e pressões
Nenhum dos governos hondurenhos que
chegaram ao poder desde que os milita-
res o tomaram, nos anos 80, foi capaz de
conter a violência.
O número de assassínios de ativistas
ambientais aumentou durante a última
década. Entre as vítimas estava Berta
Cáceres, uma das mais conhecidas ati-
vistas ambientais ameríndias do país,
que foi morta em 2016, por defender as
suas terras ancestrais contra a constru-
ção de uma central hidroelétrica que teria
danificado o ambiente. O assassínio foi
amplamente condenado no estrangeiro
e revelou até que ponto os ativistas am-
bientais nas Honduras estavam sujeitos a
pressões e ameaças.
A Presidente hondurenha Xiomara
Castro está no poder há um ano, e o seu
plano de reconstrução do país permane-
ceu no papel. Um dos assassínios que mais
deram que falar foi o de Carlos Escaleras.
As autoridades admitiram negligência no
julgamento, que está agora a ser revisto,
após 25 anos de impunidade.
Escaleras foi assassinado a 18 de outu-
bro de 1997. Os carrascos foram procurá-
-lo no seu negócio familiar, uma garagem
de reparação de automóveis. Como não
o encontraram, anunciaram que iriam

NENHUM DOS GOVERNOS HONDURENHOS QUE
CHEGARAM AO PODER DESDE QUE OS MILITARES
O TOMARAM, NOS ANOS 80, FOI CAPAZ DE CONTER
A VIOLÊNCIA NESTA REGIÃO. O NÚMERO D
E ASSASSÍNIOS DE ATIVISTAS AMBIENTAIS AUMENTOU
DURANTE A ÚLTIMA DÉCADA
esperar por ele lá fora. Supostamente,
queriam fazer-lhe uma pergunta sobre
um pneu. Não o conheciam. Quando ele
chegou, na sua mota, por volta das seis
horas da tarde, perguntaram ao guarda
se era o patrão. O guarda acenou com a
cabeça, eles entraram e dispararam-lhe
três vezes nas costas, sob o olhar do filho.
Um dos inimigos de Carlos Escaleras
era Miguel Facussé [o sogro de Lenir Pé-
rez, proprietário da empresa mineira Los
Pinares, que morreu em 2015], que tinha
tentado montar uma fábrica de óleo de
palma nas margens do rio Tocoa e não con-
seguiu, devido aos protestos organizados
pelo ativista. Foi com este mesmo Miguel
Facussé que os camponeses e defensores da
terra de Bajo Aguán lutaram, a partir dos
anos 70. Ele faz parte de uma das famílias
“turcas”, assim chamadas por causa das
suas origens árabes [distantes], que ga-
nharam dinheiro nas Honduras e exercem
influência na vida política do país.
Houve um tempo em que as lutas no
Bajo Aguán eram sobre quem tinha direito
às terras mais altas e menos propensas a
inundações, e a vantagem recaía nos pri-
meiros ocupantes. Isaías de la O. Mejía,
um camponês de 78 anos, que pede que
se coloque um ponto após a inicial do seu
HONDURAS
Para
La Ceiba
15° 30’
Norte
Concessões de mineração
primeiro apelido (“porque é mais bonito”),
recorda este passado sem ameaças nem
armas. Tinha 33 anos quando decidiu vir
para o vale com a esposa e quatro filhos,
instalando-se perto do rio Guapinol.
A sua migração foi encorajada pela re-
forma agrária de 1974, que atraiu milhares
de camponeses que viviam nas zonas áridas
do Sul do país e aderiram ao projeto de
colonização agrícola, que distribuiu mais
de 20 mil hectares de terra para o cultivo
de óleo de palma e de toranja.
Apesar de ter levado quatro ou cinco
anos para as palmeiras darem fruto, e de
os hondurenhos nunca terem visto uma
toranja, foram formadas cerca de 50 coo-
perativas de agricultores. Contudo, em
1992, as leis agrárias foram alteradas, e
os camponeses ficaram sozinhos. O en-
tão Presidente, Rafael Leonardo Callejas
[1990-1994], líder do Partido Nacional,
conservador, autorizou a comercialização
das terras que lhes pertenciam. Como re-
sultado, os milhares de hectares cuidado-
samente cultivados passaram rapidamente
para as mãos de novos proprietários.
As transações não foram justas. Os
camponeses foram forçados a vender,
como recorda Isaías de la O., na altura
presidente da Federação das Cooperativas
Mar das
Caraíbas
FONTE: WWW.MINERIAHONDURAS.COM, WWW.OPENSTREETMAP.ORG
DEPARTAMENTO
DE COLÓN
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La Concepción Tocoa
Guapinol
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Sabá
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P .N. DA MONTANHA DE BO
Município de Tocoa
de Reforma Agrária do Vale de El Aguán:
“Fizeram pressão sobre as cooperativas.
Disseram-nos que, se não certificássemos
os nossos produtos, o Estado iria recupe-
rar as nossas terras; que a reforma agrária
estava podre, que era melhor recuperar
alguma coisa e vender.”
Foi o início da violência e das divi-
sões no Bajo Aguán. Alguns dirigentes de
cooperativas foram forçados a sair a troco
de dinheiro; outros foram simplesmente
expulsos “à espingarda”, continua Isaías:
“No nosso país, a Justiça sempre esteve
do lado das armas. Muitos foram sujeitos
a pressões dos enviados de Miguel Facus-
sé. Um dia, levantei-me e disse-lhes que
queríamos 120 milhões de lempiras [4,6
milhões de euros], ou seja, um milhão para
cada um dos 120 membros da coopera-
tiva. Eles não disseram nada; apenas se
levantaram e saíram sem apertar a mão
de ninguém.”
Hoje, só se mantêm 14 das 54 coope-
rativas originais de Bajo Aguán: “Temos
crescido em confiança e ainda estamos
aqui.”
Os agricultores de El Guapinol des-
confiam muito dos estranhos que entram
nesta cidade, cujos três mil habitantes se
conhecem quase todos. O eixo principal é
uma rua pavimentada que conduz à estrada
que liga as aldeias da região com Tocoa, o
maior município desta parte da costa norte
das Honduras, da qual dependem aldeias
como La Concepción e El Guapinol. Todos
os veículos que passam são conhecidos,
exceto alguns táxis, mas há sempre alguém
a observar onde os passageiros saem.
Estas precauções são indispensáveis. Os
camponeses que foram presos por se terem
mobilizado contra a atividade da empresa
mineira, libertados em fevereiro de 2022,
não abandonam a aldeia, por medo de se-
MARÇO 2023 - N.º 325 45
 Reportagem
rem fuzilados. Foi-lhes dito, através de
mensagens anónimas, que a sua luta deve
terminar e dar lugar ao “progresso” que
a empresa mineira representa.
Luta pela água
El Guapinol tem uma área comum na en-
trada da aldeia, plantada com 124 hectares
de palmeiras e 16 de mogno. A maioria
dos habitantes trabalha lá. Além disso, os
agricultores têm as suas próprias parcelas
individuais, onde plantam as sementeiras
básicas que alimentam a comunidade e,
quando a colheita é boa, vendem o ex-
cedente. A água que chega aos pátios das
casas é recolhida por tubagens que vêm
do rio e de um riacho próximo. Foram os
habitantes que construíram o seu próprio
sistema de água.
Todos aqueles que concordaram em
falar connosco dizem que se sentem sozi-
nhos na sua luta. “Estamos a pedir ao novo
governo de Xiomara Castro que faça algo”,
diz um dos ativistas, Daniel Márquez, que
espera que a presidente de esquerda se
interesse pelo destino dos camponeses. Por
enquanto, a sua maior preocupação é que
a empresa mineira polua ainda mais a água
de Guapinol e force os habitantes a deixar
a terra pela qual os seus pais lutaram. A
água dos canos que vem do rio é muitas
vezes castanha, mas eles não querem que
a situação se agrave.
Daniel tem aqui uma casa, que cons-
truiu após seis anos de trabalho nos Esta-
dos Unidos da América e onde vive com a
46 MARÇO 2023 - N.º 325
mulher. Não tem terra própria, mas aluga
um terreno de meio hectare para plantar
o milho e o feijão de que necessita. Se a
colheita for boa, o proprietário cobra-lhe
mil lempiras [menos de 39 euros] e, se não
for tão boa, metade.
O agricultor passa um dia a trabalhar
nas terras que aluga e outro dia, a ajudar
outra pessoa na sua terra ou no campo
comunal de palma, onde pode ganhar cerca
de 200 lempiras [sete euros]. Desta forma,
consegue ganhar algum dinheiro.
“Quase todas as famílias aqui têm
alguém nos Estados Unidos da América.
[Estaria disposto a voltar?] Sim, há muitas
pessoas a olhar para os EUA. Muitos parti-
ram porque tinham medo. Eu vou esperar
alguns meses. Temos muito medo da luta,
vamos ver como corre. [Tem medo de quê?]
Aqui, hoje, estamos em conflito com esta
empresa mineira. Mesmo que não faça-
mos nada, mesmo que não protestemos,
eles podem criar-nos problemas. [Como
é o ambiente depois da prisão?] Hoje, há
muitas disputas por causa da companhia
mineira. Os que trabalham para esta em-
presa metem-se no caminho da nossa luta,
porque querem trabalhar, enquanto nós
somos contra a destruição da nossa mon-
tanha, dos nossos rios. [O que significa,
para si, a luta pela água?] Olhe, para mim,
a água é a nossa vida. Sabe porque é que
estamos a lutar por isto? Porque eu co-
nheço a Guatemala, conheço o México,
passámos por lá quando fomos para norte,
e não há água lá. Aqui, como veem, temos
muita. Temos de fazer um esforço para a
defender; é a vida dos nossos filhos, dos
nossos netos. [Mas nem todos são desta
opinião.] Sim, há pessoas que trabalham
para a empresa mineira; eu não as enten-
do. São bem pagas, é verdade, mas estão
a hipotecar o futuro. São os jovens que lá
trabalham, são os únicos a ser contratados.
E, quando se casarem, quando formarem
uma família, a água estará poluída.”
Dois outros ativistas têm os seus
próprios negócios: uma barbearia e uma
pequena piscina para eventos. Durante
os dois anos e meio em que estiveram
na prisão, perderam quase todos os seus
investimentos. O primeiro, José Avelino,
38 anos, nasceu na aldeia. Os seus pais
chegaram aqui pela fronteira com El
Salvador, oriundos de uma região seca:
“Se o rio secar, a terra tornar-se-á árida,
como lá em baixo. Teríamos de emigrar
para outro país, pelas mesmas razões do
que os nossos pais.”
O segundo, Kevin Romero, 33 anos,
é o mais novo do grupo e o que mais so-
freu na prisão, porque a esposa estava
grávida. Depois de ser libertado, foi ao
encontro da filha, que já tinha 2 anos. A
menina nasceu com um problema renal
que precisa de ser monitorizado; por isso,
vão regularmente ao hospital, que fica a
cinco horas de distância. Hoje, a filha é a
sua prioridade máxima. Não passam muito
tempo em casa, pois a sua casa é uma das
primeiras à entrada da aldeia, e têm medo
de ser alvejados.

Compensações sociais
Os diplomas escolares das crianças, uma
imagem de um dia feliz da família junto a
uma cascata, uma imagem do dia do seu
casamento: todos eles são emoldurados e
pendurados na casa de madeira de Julio Cé-
sar Hernández, um camponês de 47 anos,
que vive com a mulher nas montanhas de
Botaderos. Os filhos já não estão em casa;
mudaram-se para os Estados Unidos da
América há um ou dois anos. Tal como
ele fez quando tinha pouco mais de 20.
Graças ao trabalho desses três anos e
meio no país do Norte, os Hernándezes
puderam comprar os 72 hectares de terra
e as poucas cabeças de gado que lhes per-
mitem viver. Hoje, César Hernández é o
presidente da sua comunidade, cerca de
60 casas espalhadas pelas montanhas, e o
responsável pelas relações com a empresa
mineira Los Pinares. Ele e os seus cons-
tituintes aceitaram de bom grado a pre-
sença da empresa, porque esta construiu
a estrada que lhes permite comercializar
o leite das vacas.
Los Pinares também construiu sani-
tários públicos, renovou a igreja, equi-
pou algumas salas de aula e providenciou
trabalho para vários residentes. Cerca de
350, de acordo com Roxana Letona, que
trabalha com as comunidades na área de
influência da mina. Ela fala em nome da
empresa e assegura que a mina e a fábrica
de acondicionamento [que trata da “pele-
tização” do minério de ferro] ainda estão
em construção. “Os investimentos sociais
NO EL GUAPINOL, O RIO É CONSTANTEMENTE
MONITORIZADO POR DUAS MULHERES,
QUE PERMANECEM NAS SUAS MARGENS DESDE
O AMANHECER ATÉ AO ANOITECER. A ÚNICA CIÊNCIA
QUE USAM CONSISTE EM EXAMINAR A ÁGUA,
PARA VER SE ESTÁ SUFICIENTEMENTE LIMPA
PARA LAVAR A ROUPA QUE LHES É DADA
são da vontade da empresa e não geram
rendimentos [uma vez que a mina e a fá-
brica ainda não estão em funcionamen-
to]”, precisa. E acrescenta que Los Pinares
recrutou 250 empregados localmente,
pessoas das áreas circundantes.
A estrada pavimentada para a mina,
que foi bloqueada pelos camponeses de El
Guapinol e outras aldeias em 2018, leva
quase uma hora a percorrer. Os únicos
veículos nesta via são grandes camiões
cobertos. Diz-se que transportam apenas
terra, pois a extração de óxido de ferro
ainda não começou. Os funcionários com
rádios e coletes refletores controlam o trá-
fego nos pontos mais estreitos da estrada.
Os camiões levantam uma nuvem de pó,
enquanto um camião-cisterna mantém
a estrada molhada, para não perturbar a
população circundante.
Heriberto Alemán fala em nome da
empresa mineira. Descreve-se a si próprio
como um defensor dos Direitos Humanos
e representante de uma nova organização
que “monitoriza” as atividades da empre-
sa mineira: “El Guapinol está localizado
muito a jusante, compreende? Não vejo
porque é que a mina os incomoda. [Sim,
mas a água deles desce desta montanha.]
Nós assegurámos a proteção de todas as
nascentes. Há apenas um lugar onde a
estrada atravessa o que se tornará o rio
Guapinol, e ali construímos uma canali-
zação. Além disso, as comunidades dedi-
cam-se à agricultura e à pecuária, já não
existe vegetação original; é um erro dizer
que se trata de uma reserva natural.”
A primeira paragem é em La Laguna,
onde a empresa mineira construiu uma
escola. Depois, paramos uma segunda vez
para ver mais crianças felizes, de uniforme.
E, finalmente, somos deixados numa canti-
na privada que serve algumas refeições aos
trabalhadores da mina. Os donos, Aníbal e
Kely Pineda, são um jovem casal que estava
interessado em abrir um negócio como
este, já que Aníbal tinha passado algum
tempo nos Estados Unidos da América e
trabalhado num restaurante italiano.
Tudo parece aceitável: é a compensa-
ção habitual das empresas mineiras. Tudo,
exceto os três bloqueios com seguranças
privados, armados com espingardas, que
encontramos ao longo da estrada. No úl-
timo posto de controlo, estamos parados
porque não temos autorização para entrar
no buraco da mina propriamente dito.
“É propriedade privada da empresa.
[Quantos guardas trabalham aqui?]
Aqui, somos dois. [E você passa a
noite aqui? Vejo luzes…] Sim. [Quanto
lhe pagam por este trabalho tão duro?]
Doze mil lempiras por mês (cerca de 460
euros) [Como se chama?] Afaste-se, vem
aí um camião.”
A luta pela água em El Guapinol e nou-
tras aldeias é legalmente fundamentada.
Rita Romero fala em nome do comité mu-
nicipal para a defesa dos bens comuns
e públicos do Departamento de Tocoa.
Questiona a legalidade de um projeto
que reduziu a área protegida do monte
Botaderos a 200 hectares, um território
que foi então concedido a Los Pinares.
Isto aconteceu no final de 2013.
Tudo é muito opaco: sob a presidência
de Juan Orlando Hernández, do Partido
Nacional, que cumpriu dois mandatos,
entre 2014 e 2022, houve acordos de con-
fidencialidade para não revelar a escala
do projeto.
No El Guapinol, o rio é constante-
mente monitorizado por duas mulheres,
que permanecem nas suas margens desde
o amanhecer até ao anoitecer. A única
ciência que usam consiste em examinar
a água para ver se está suficientemen-
te limpa para lavar a roupa que lhes é
dada. Vivem em barracos perto do rio,
e as suas famílias são as mais pobres da
aldeia. Nem sequer possuem um pedaço
de terra; ganham algum dinheiro cobran-
do 150 ou 200 lempiras [cinco ou sete
euros] por cada cuba de roupa lavada.
“Estamos na graça de Deus”, diz uma
das lavadeiras. Porque, por vezes, a água
do rio transporta “apenas lama”, e elas
nem um cêntimo conseguem ganhar.
MARÇO 2023 - N.º 325 47
 Demografia

muitos cidadãos, que desejavam ter filhos.

CHINA No entanto, só a queda contínua da taxa de

A população
fecundidade (devido a uma mudança de
mentalidades) e o declínio demográfico já
são uma tendência persistente ou até mesmo

envelhece antes
irreversível.
Há dois fatores em jogo: o primeiro, a
política do filho único por casal, que vigorou

de enriquecer
durante muitos anos na China [em 2016,
foi substituída por um limite de dois filhos
e, em 2016, foi abandonada]. Esta política,
O gigante chinês chegou à posição menos invejável: uma imposta em 1979 pelo Partido Comunista
Chinês (PCC), no momento em que avançou
pirâmide etária invertida – há mais idosos do que jovens. Num para reformas e uma maior abertura, foi
país em declínio demográfico, os adultos, aqueles que produzem justificada pelo receio de que um rápido
e consomem, serão suficientes para preservar o estatuto crescimento populacional impedisse o país
de “fábrica do mundo”? de atingir as metas de industrialização e de
modernização, diminuindo a acumulação
Lianhe Zaobao de capital. Tentou-se, assim, por todos os
Singapura meios (incluindo a aplicação de pesadas
multas ou o recurso a abortos forçados),
limitar uma expansão demográfica.
No final do ano passado, se- Este ponto de viragem acontece mais Entre 1979 e 2015, de acordo com as

N gundo os dados mais recentes,

divulgados pelo Departamento
Nacional de Estatística, a Chi-
na tinha 1 411 750 000 (mil quatrocentos e
onze milhões, setecentos e cinquenta mil
habitantes), ou seja menos 850 mil, porque
o número de nascimentos foi inferior ao de
mortes. Pela primeira vez desde a Grande
Fome (1961) [resultante de uma reforma
agrária forçada e da industrialização ur-
bana, que terá causado entre 15 milhões e
55 milhões de mortos e imposto menos 15
milhões a 30 milhões de nascimentos], a
população chinesa regista um crescimento
demográfico negativo.
AUTOR DATA
F Editorial não 19.01.2023
assinado
cedo do que previam os governantes chi-
neses. Além disso, os demógrafos estão
convencidos de que o envelhecimento da
população, a par deste declínio, é uma ten-
dência importante, que terá um impacto
permanente na economia nacional e até
mundial.
A pandemia Covid-19 [que, segundo
vários investigadores, terá causado 1,5
milhões de mortos e não apenas os 83 150
reconhecidos pelas autoridades] foi res-
ponsável, em pouco tempo, pelo aumento
da taxa de mortalidade chinesa; desferiu
um duro golpe no mercado de trabalho e
na mobilidade, e interrompeu os planos de
TRADUTORA
Maria Alves
estatísticas oficiais, a política do filho úni-
co foi muito eficaz: evitou 400 milhões de
nascimentos. A taxa de fecundidade caiu de
5,54 filhos por mulher, quando a República
Popular da China foi criada em 1949, para
1,07 em 2022.
Note-se ainda que, numa cultura que
favorece os meninos em detrimento das me-
ninas, a política do filho único teve o efeito
de modificar a relação da masculinidade,
isto é o rácio entre homens e mulheres na
estrutura da população. [Em 2020, já era
evidente o desequilíbrio de género: havia
mais 34,9 milhões de homens do que de
mulheres.]
A verdade é que, com a política do filho
único, aumentaram o aborto, o abandono
ou a morte pós-natal de um grande número
de bebés do sexo feminino, o que reduziu
consideravelmente o número de mulheres

48 MARÇO 2023 - N.º 325

 Um inexorável declínio demográfico

FONTE: ONU, POPULATION DIVISION, “WORLD POPULATION PROSPECTS 2022”

Variação anual da população na Índia e na China (1950 a 2100)
(em milhões)

20

15

10
1979
Início
5 da política
do filho único
0

1958-1960
–5 Política 2019 China
do grande Início
– 10 salto da pandemia
em frente de Covid-19
– 15 Estimativas Projeções

1950 2000 2022 2050 2100

Há muitos anos que não nasciam
tão poucos bebés na China
FOTO: GETTYIMAGES
em idade reprodutiva, nas duas ou três dé-
cadas seguintes. A renovação de gerações
deixou de estar garantida, e alguns especia-
listas evocam “uma queda no precipício”,
quando falam deste fenómeno.
Mulheres independentes
O segundo fator para o declínio da fecun-
didade pode ser encontrado no desenvolvi-
mento económico da China: em concreto,
na decisão de o governo favorecer as áreas
urbanas em detrimento das rurais.
Em 2021, o número de chineses resi-
dentes citadinos inscritos nos registos civis
aumentou para 46,7% da população, e a
taxa de urbanização – calculada a partir do
número efetivo de moradores permanentes
– fixava-se em 64,72%. [Indivíduos com
residência civil “rural” podem viver em
cidades sem nunca ali estarem registados,
o que se repercute na política social que
lhes é aplicada.]
Se no campo, onde há mais espaço para
viver e cuidar dos negócios, as crianças são
consideradas uma força de trabalho poten-
cial, nas cidades, onde o espaço é menor,
as crianças revelam-se um fardo financeiro
para muitas famílias, principalmente devido
aos custos elevados da educação e da saúde.
Além disso, como aconteceu em todas
as sociedades industrializadas, quando per-
ceberam que as reformas e a abertura do
país melhoravam o seu nível de educação
e o estatuto social, as mulheres chinesas
tornaram-se de certo modo independentes
financeiramente, o que baixou de forma
acentuada o desejo de serem mães. Come-
çaram a ter cada vez menos filhos, ou nem
isso, o que provocou uma queda na taxa de
fecundidade. Em todo o caso, o principal
problema não é tanto a diminuição do nú-
mero de habitantes em valor absoluto, mas
o envelhecimento da população. Graças ao
desenvolvimento económico e ao progres-
so científico e tecnológico, a esperança de
vida na China continua a aumentar [78,2
anos, dados relativos a 2021, publicados pela
Comissão Nacional de Saúde em Pequim],
tal como a proporção de pessoas com mais
de 60 anos, na população total.
Estas pessoas são agora 264,02 milhões,
revelou o VII Censo Nacional de 2021, ou
seja 18,70% do total, enquanto os chineses
com menos de 14 anos são 263,38 milhões,
ou 17,95%. Como a proporção da popula-
ção idosa é maior do que a das crianças, a
estrutura normal da pirâmide etária está,
portanto, invertida.
O avanço da Índia
Logo que foi anunciada oficialmente a di-
minuição da população chinesa, a reação
dos meios de comunicação social mundiais
foi sublinhar que a Índia, o segundo país
mais populoso do mundo, irá provavel-
mente roubar o primeiro lugar à China, já
em 2023. [As Nações Unidas preveem uma
...
Os demógrafos estão
convencidos de que
o envelhecimento da
população chinesa é uma
tendência importante,
que terá um impacto
permanente na economia
nacional e até mundial
troca de posições até 1 de julho próximo:
a Índia com 1 429 milhões de habitantes;
a China com 1 426 milhões.]
A realidade é que, na Índia, a população
continua a crescer e permanece relativa-
mente jovem. Dados oficiais de 2021 indicam
que os menores de 14 anos representam
25,69%, e os que têm 60 ou mais anos cons-
tituem apenas 10,1%. Embora também com
tendência para cair, a taxa de fecundidade
na Índia, que era de 2,159 filhos em 2022,
permanece acima do índice de renovação
[fixado em 2,05].
Os adultos de meia-idade numa po-
pulação são sinónimos de competências
sólidas e de grande produtividade. Os jo-
vens representam poder de consumo. As
crianças são o futuro. Se há uma redução
destes dois últimos grupos, na estrutura
demográfica chinesa, isso não é de todo um
bom presságio para o poder de consumo e
o futuro do país.
O envelhecimento da população não irá
pesar apenas no orçamento nacional, devido
às despesas com pensões de reforma e com
a saúde, mas afetará igualmente a posição
da China como “fábrica do mundo” e o seu
poder de atração, junto de investidores es-
trangeiros, como um gigantesco mercado
de consumo.
É certo que este fenómeno afeta todo o
Leste da Ásia, mas na China ele ocorre antes
de terminar a fase de enriquecimento: o
rendimento per capita é inferior a 13 mil
dólares [cerca de €12,6 mil], ao passo que,
nas sociedades com economias maduras e
desenvolvidas, como o Japão, a Coreia do
Sul ou Taiwan, ultrapassa os 30 mil dóla-
res [€28 mil]. Isto poderá ter repercussões
duradouras, que não devem ser subestima-
das, quer para a estabilidade social da China
quer para a situação económica vindoura
na região do Indo-Pacífico.

MARÇO 2023 - N.º 325 49

O dilema da
menopausa
NOVOS DADOS LANÇARAM UMA NOVA LUZ SOBRE
A TERAPIA HORMONAL DE SUBSTITUIÇÃO (THS)
PARA A MENOPAUSA. MAS A DECISÃO DE A TOMAR
DEVE BASEAR-SE NA ESCOLHA ESCLARECIDA DE
CADA UM

New Scientist
Londres

FOTOS: GETTYIMAGES
 Saúde
E
Eu conseguia gerir as mudanças de humor. éguas grávidas, foi patenteado, no início
E até os suores noturnos, as menstruações da década de 1940, para tratar afronta-
irregulares e as flutuações na minha libi- mentos e suores noturnos, os sintomas
do, que umas vezes era tão eufórica como mais comuns da menopausa. Há muitos
numa adolescente e, noutras, tão baixa outros, desde palpitações cardíacas a dores
como numa solteirona. Porém, quando nas articulações, passando por nevoeiro
a menopausa afetou as minhas funções mental, ansiedade e depressão.
cerebrais, o copo encheu. Se o envelheci- As THS podem proporcionar um ex-
mento “natural” significava ter de desistir celente alívio destes sintomas. Contudo,
do trabalho de que gostava porque não a sua utilização tem sido contestada des-
conseguia refletir, então estava conde- de que um grande ensaio randomizado
nada. Era tempo de passar para a terapia e controlado foi interrompido em 2002,
hormonal de substituição (THS). porque os resultados iniciais sugeriram que
Em poucas semanas, voltei a ter reser- a combinação de estrogénio e progestero-
vas de energia que pensava não ter mais. na pode estar ligada a um risco acrescido
A vontade de voltar para a cama a meio de cancro da mama, ataque cardíaco ou
da manhã desapareceu e foi substituída AVC. O “Million Women Study” (Estudo
por uma mente clara e um renovado en- do Milhão de Mulheres), publicado no ano
tusiasmo pela vida. seguinte, concluiu que a THS foi respon-
A transformação foi dramática. Tanto sável por mais 20 mil cancros mamários
assim que, com uma nova acuidade men- numa década.
tal, uma das minhas primeiras iniciativas A tempestade mediática que se seguiu
foi mergulhar na literatura científica para convenceu milhões de mulheres na meno-
tentar compreender o que me estava a pausa a rasgar as suas receitas e desenco-
acontecer. Terei sido vítima de um de- rajou os médicos de prescrever novas. Nos
clínio hormonal relacionado com a idade, cinco anos seguintes, a toma de THS caiu
que eu tinha sido suficientemente esperta para metade em todo o mundo e permane-
para atacar na origem? E, acima de tudo, ce baixa, hoje em dia. Enquanto se estima
ao tomar a THS, estaria eu a preservar que 75% das mulheres na menopausa apre-
a minha saúde a longo prazo ou a com- sentam sintomas, no Reino Unido apenas
prometê-la? 14% fazem terapia hormonal, diz Louise
Todas estas são questões que os in- Newson, uma médica de clínica geral e
vestigadores tentam esclarecer há mais especialista em menopausa da Newson
de 80 anos, desde que a Food and Drug Health, em Stratford-upon-Avon.
Administration (FDA) aprovou a primeira Esta relutância poderia ser compreen-
terapia hormonal de substituição. Prema- sível se as histórias de medo fossem ver-
rin, feito de estrogénio retirado da urina de dadeiras, mas desde a publicação destes
AUTORA DATA TRADUTORA
F Caroline 31.08.2022 Helena Araújo
Williams
52 MARÇO 2023 - N.º 325
dois estudos, as suas metodologias têm
sido questionadas, e novas pesquisas têm
reavaliado os riscos, tendo em conta outros
fatores do estilo de vida, como o consumo
de álcool e a obesidade. Mas a questão de
usar ou não tratamento hormonal não é
apenas uma questão estatística; faz par-
te de debates sociais mais amplos acerca
da submedicalização dos “problemas das
mulheres”, em que, como diz a investi-
gadora de Ginecologia Martha Hickey, da
Universidade de Melbourne (Austrália),
“todos usam o argumento feminista”. Não
admira, portanto, que já não compreen-
damos nada.
Efeitos incapacitantes
A confusão vem, em parte, do facto de a
menopausa marcar o fim do período fértil
para as mulheres, mas a queda resultante
nos níveis de estrogénio tem implicações
muito para além da função reprodutiva.
Na menstruação anterior ao início da
menopausa natural, que se confirma um
ano após a cessação final do período, o
corpo passa por uma fase de flutuações
hormonais, à medida que os ovários veem
o seu stock de folículos secretores de es-
trogénios diminuir e reagem pior a outras
hormonas que estimulam a ovulação. Isto
é conhecido como perimenopausa. É nesta
fase, quando os ciclos menstruais podem
continuar, que as mulheres começam a
experimentar uma gama desconcertante
de sintomas. Para as que tiveram os seus
ovários removidos e estão a avançar dire-
tamente para a menopausa, estes sintomas
podem ocorrer durante a noite.
Nem toda a gente tem sintomas graves
da menopausa relacionada com a idade, e
algumas pessoas não têm sequer nenhum.
De acordo com a British Menopause Socie-
ty, 25% das mulheres afetadas queixam-se
de sintomas graves. Segundo Martha Hi-
ckey, isto não se aplica em todo o lado: em
África e na Ásia, há uma grande diversidade
de sensações relatadas pelas mulheres.
Ainda que o motivo destas diferenças
não seja claro, não há dúvida de que a me-
nopausa pode ter efeitos incapacitantes.
Hoje em dia, cada vez mais investigadores
e ativistas estão a pedir para repensar a
forma de a gerir.
Alguns consideram os sintomas da
menopausa uma espécie de grito bio-
lógico de ajuda. Isto deve-se à falta de
estrogénio, que, além do seu papel na re-
produção, está envolvido em importantes
processos orgânicos, da regeneração da
estrutura óssea e da pele à regulação dos
níveis de colesterol e açúcar no sangue.
Os estrogénios contribuem igualmente
para a elasticidade dos vasos sanguíneos,
 Expressão
livre, debate
lançado
No Reino Unido, os
documentários Sexo, Mitos e
a Menopausa e Sexo, Mente
e Menopausa, de Davina
McCall, transmitidos no
Canal 4, em março de 2021 e
maio de 2022 respetivamente,
ajudaram a libertar as
vozes das mulheres sobre a
fase tabu das suas vidas: a
menopausa e os sintomas
debilitantes que, por vezes, as
acompanham.
Alguns até acreditam que
as emissões de televisão,
elogiadas pela antiga
apresentadora do Big Brother,
contribuíram para um
aumento da procura da THS.
“O número de prescrições de
THS duplicou em cinco anos,
para 500 mil prescrições por
mês. Em anos anteriores,
a escassez foi atribuída a
problemas de produção e
fornecimento, mas, nos
últimos anos, a indústria
tem argumentado que mais
mulheres estão à procura
destes tratamentos”, observa
o THE GUARDIAN.
Esta corrida aos
A UTILIZAÇÃO DAS THS TEM SIDO CONTESTADA DESDE
medicamentos suscitou um QUE UM GRANDE ENSAIO FOI INTERROMPIDO EM 2002,
debate acalorado. Martha
Hickey, professora de PORQUE OS RESULTADOS INICIAIS SUGERIRAM QUE
Obstetrícia e Ginecologia na
Universidade de Melbourne, A COMBINAÇÃO DE ESTROGÉNIO E PROGESTERO
na Austrália, e três colegas NA PODE ESTAR LIGADA A UM RISCO ACRESCIDO
apelaram, nas colunas do
BRITISH MEDICAL JOURNAL, DE CANCRO DA MAMA, ATAQUE CARDÍACO OU AVC
para que a menopausa não
fosse sistematicamente
medicalizada. “Elas a renovação e manutenção das conexões relacionadas com o cérebro. A pesquisa
argumentam que tratamentos cerebrais e o metabolismo da glicose no de Brinton mostra que o estrogénio aju-
eficazes como a THS são cérebro. É esta última função que mais da a regular o metabolismo da glicose no
essenciais para as mulheres interessa a Roberta Brinton, investiga- cérebro, tendo todas as áreas do cérebro
que sofrem de sintomas dora da Universidade do Arizona, em recetores de estrogénio, das que controlam
angustiantes, mas que ‘a Tucson. a memória às zonas associadas à regu-
medicalização pode fazer De facto, sublinha, a maioria dos sin- lação emocional. Em ratos, a deficiência
aumentar a apreensão e tomas da perimenopausa são de origem de estrogénio reduz significativamente a
ansiedade das mulheres sobre neurológica: os fluxos de calor devem-se capacidade do cérebro de produzir energia,
esta fase natural da vida’”, a perturbações no centro de regulação resultando numa diminuição de 15% a 25%
relata a CNN. térmica no hipotálamo; os núcleos su- na atividade química cerebral.
praquiasmáticos [também no hipotálamo] Poderá ser esta a causa do nevoeiro
regulam o sono; as alterações no humor mental e do cansaço que me levou a pro-
e na memória estão, em grande medida, curar cuidados médicos? Segundo Roberta

MARÇO 2023 - N.º 325 53

 Saúde
ALGUNS CONSIDERAM OS SINTOMAS DA MENOPAUSA
UMA ESPÉCIE DE GRITO BIOLÓGICO DE AJUDA. ISTO DEVE-
-SE À FALTA DE ESTROGÉNIO, QUE, ALÉM DO SEU PAPEL
NA REPRODUÇÃO, ESTÁ ENVOLVIDO EM IMPORTANTES
PROCESSOS ORGÂNICOS, DA REGENERAÇÃO
DA ESTRUTURA ÓSSEA E DA PELE À REGULAÇÃO
DOS NÍVEIS DE COLESTEROL E AÇÚCAR NO SANGUE
Brinton, é possível. Os sintomas cogni-
tivos podem ser o resultado de o cérebro
se esforçar para funcionar.
As suas pesquisas sugerem que, quando
o fornecimento de estrogénio já não é rea-
bastecido, o cérebro acaba por se adaptar,
mas a um custo elevado: como metaboliza
menos bem a glicose, vai procurar energia
nas gorduras, sendo uma das fontes mais
imediatas a matéria branca nas bainhas
de mielina que rodeiam os neurónios e
aceleram a transmissão de informação no
cérebro. Um estudo conjunto de Roberta
Brinton e Lisa Mosconi, da Universidade
de Cornell, em Ithaca, Nova Iorque, su-
gere que tal pode contribuir para algumas
54 MARÇO 2023 - N.º 325
das patologias observadas na doença de
Alzheimer.
Significa isto que qualquer pessoa com
sintomas cognitivos deve tomar terapia
hormonal para prevenir a deterioração das
funções cerebrais a longo prazo? “É uma
questão de escolha pessoal”, diz Roberta
Brinton. “Mas não é necessariamente do
nosso melhor interesse fazê-lo.”
Opiniões dividem-se
Tudo isto parece preocupante, mas nem
todos os investigadores têm a mesma in-
terpretação sobre o que estes distúrbios
no metabolismo do cérebro realmente
provocam. Afinal, nem todas as mulheres
que não são tratadas para a menopausa
são atingidas pela demência.
Roberta Brinton e a sua equipa di-
vulgaram recentemente resultados que
indicam, no entanto, que a THS ajuda
o cérebro a ultrapassar esta mudança
metabólica e, assim, a reduzir o risco de
doença neurológica. Ao seguir mais de 350
mil mulheres em terapia durante cinco
anos, descobriram que a THS faz baixar o
risco de doença de Alzheimer, doença de
Parkinson, esclerose múltipla e doença do
neurónio motor (a forma mais comum é a
esclerose lateral amiotrófica [ou doença
de Charcot]).
No entanto, outro estudo com o mesmo
número de sujeitos, retirados do Biobank
do Reino Unido, sugere que, enquanto os
picos de estrogénio na idade adulta (devido
a fatores como tomar a pílula contracetiva
ou gravidez) protegeram contra a doença
de Alzheimer, a adição de THS ou não fez
diferença ou fez aumentar ligeiramente o
risco global de demência.
A este respeito, nada é muito mais
claro. E quanto ao aumento do risco de
cancro da mama? Desde que foi estabe-
lecido, nos anos 80, que a suplementa-
ção apenas com estrogénio faz aumentar
o risco de cancro endometrial, todas as
mulheres que tomam THS também re-
cebem progesterona para compensar o
espessamento do revestimento uterino.
Mas este tratamento parece agravar li-
geiramente o risco de cancro da mama.
Para nos guiarmos neste labirinto, ve-
jamos o risco base de desenvolver cancro
da mama. De acordo com a British Meno-
pause Society, entre os 50 e os 55 anos, na
ausência da THS, o risco é de cerca de 13
por cada 1 000 mulheres. Análises mais
recentes estimam que a adição de estro-
génios e progesterona HST combinados
à equação faz aumentar este risco entre 3
e 7 casos por 1 000 depois de cinco anos
de toma. Só com estrogénio, o risco ou é
reduzido em 2 por 1 000 ou aumentado
em 3 por 1 000, dependendo do estudo.
John Stevenson, endocrinologista con-
sultor no Royal Brompton Hospital, em
 Tabu
no trabalho
“Nenhuma mulher deve ter de
limitar as suas ambições de carreira
porque tem [sintomas relacionados
com] a sua menopausa ou porque
está grávida”, diz Neel Shah,
diretor clínico da Clínica Maven,
especializada em telemedicina
para a saúde da mulher, ao site
QUARTZ. No entanto, um relatório
de 2021 da Sociedade Fawcett, uma
organização de defesa da igualdade
de género, em Londres, revela que
mais de metade das mulheres
e dos homens transgénero na
menopausa diz que os seus
sintomas os tornaram menos
propensos a candidatar-se a uma
promoção. Pior ainda, algumas
pessoas até abandonaram os
empregos. Segundo um inquérito
publicado no ano passado, pela
JAPAN BROADCASTING CORPORATION
(NHK), quase um quinto dos
inquiridos japoneses disse ter
desistido ou considerado desistir
por causa dos sintomas da
menopausa, o que resultou numa
“perda de 420 mil milhões de ienes
[quase três mil milhões de euros]
para a economia”, relata a revista
científica NATURE. “Sem apoio, as
mulheres estão a sair no auge da
sua experiência”, disse à Bloomberg
Rachel Suff, do Chartered Institute
of Personnel and Development
(CIPD), que reúne profissionais de
gestão de recursos humanos.
É por tudo isto que cada vez
mais mulheres querem que a
menopausa deixe de ser vista como
um tabu, especialmente no local
de trabalho. No Reino Unido, por
exemplo, muitos empregadores
introduziram políticas específicas
para o efeito. A 22 de novembro,
o NHS England (serviço nacional
de saúde britânico) publicou o
seu primeiro guia de recursos
humanos destinado a apoiar os
colegas na menopausa, permitindo,
nomeadamente, o trabalho flexível.
Dito isto, conclui a NATURE, “os
sintomas da menopausa duram
apenas pouco tempo e diminuem
com a idade. Para muitas
mulheres, os anos que se seguem
a esta etapa estão entre os mais
produtivos e gratificantes das suas
carreiras”.
A THS FAZ AUMENTAR LIGEIRAMENTE O RISCO
DE DESENVOLVER CANCRO DA MAMA. ESTE RISCO
É “MUITO PEQUENO, MAS EXISTE, E NÃO PODE SER
IGNORADO”, DIZ JOHN STEVENSON. CONTUDO, OUTROS
FATORES QUE AFETAM O RISCO DE DESENVOLVER
ESTE CANCRO DEVEM SER TIDOS EM CONTA
Londres, salienta que, com ou sem HST,
as hipóteses de evitar o cancro da mama
são significativas.
Em suma, a THS faz aumentar ligei-
ramente o risco de desenvolver cancro da
mama. Este risco é “muito pequeno, mas
existe, e não pode ser ignorado”, diz John
Stevenson. Contudo, outros fatores que
afetam o risco de desenvolver este cancro
devem ser tidos em conta. Por exemplo,
durante cinco anos, beber quatro a seis
unidades [40-60 gramas] de álcool por
dia é responsável por mais 8 a 11 casos por
1000, enquanto a obesidade causa mais
10 por 1000.
Além disso, a análise dos dados de
acompanhamento do controverso estudo
de 2002 mostrou que, embora o risco de
cancro tenha subido, não houve qualquer
aumento do risco de mortalidade, com
todas as causas incluídas, nos 18 anos após
o fim da investigação.
Outras pesquisas apoiam estes resulta-
dos, e uma análise da THS indica que esta
pode mesmo prevenir doenças cardiovascu-
lares, especialmente no caso de mulheres que
começaram o tratamento antes dos 60 anos.
Além disso, dado que a queda dos níveis de
estrogénio agrava o risco de osteoporose, foi
demonstrado que a THS limita as fraturas
ósseas em mulheres na pós-menopausa.
Significa isto que todas as pessoas na pós-
-menopausa beneficiariam em tomar THS,
quer tenham ou não sintomas?
“Não”, diz John Stevenson.
“Para alguém que é assintomático e
não está em risco acrescido de osteoporose
ou doença cardiovascular, o tratamento
hormonal não tem benefícios e apenas
riscos.”
Louise Newson discorda: “Se anun-
ciássemos que tínhamos um medicamento
que diminuía a mortalidade por doenças
cardiovasculares, osteoporose e depressão
clínica, e que também era barato, todos
questionariam por que razão não era re-
ceitado a todas as mulheres.”
Porém, há um ponto sobre o qual todos
concordam: qualquer pessoa que procure
informação sobre a THS deve ter acesso
a informação imparcial e atualizada. Isto
parece simples, mas não é fácil compreen-
der todas as subtilezas. Em Inglaterra, a
primeira orientação oficial para os médi-
cos generalistas só foi publicada em 2015.
Ainda hoje, lamenta Louise Newson, mui-
tas pacientes que desejam submeter-se a
tratamento hormonal veem o seu pedido
recusado pelos médicos.
A investigação futura irá clarificar a
relação benefício/risco. Uma das prin-
cipais críticas de muitos dos estudos
atualmente utilizados para avaliar o risco
é que estes envolvem pessoas que já estão
na menopausa. Trabalhos mais recentes
mostram que o início da terapia hormo-
nal em meados dos 40 anos pode ser mais
benéfico, especialmente para as doenças
cardiovasculares. Roberta Brinton obteve
resultados preliminares que indicam que
a THS precoce também pode ter efeitos
positivos no cérebro.
No futuro, poder-se-ão igualmente
desenvolver terapias direcionadas, hor-
monais e não hormonais, concebidas para
contornar certos recetores de estrogénio
na mama e, simultaneamente, os de outros
órgãos. Brinton acredita que a THS pode
evoluir para uma medicina personalizada,
que tem em conta os fatores de risco de
uma pessoa e ataca diretamente os seus
sintomas.
“Precisamos realmente de oferecer às
mulheres uma medicina de precisão, para
que elas já não estejam limitadas a uma
escolha binária, mas possam ter acesso
ao que funciona melhor.”
Por agora, o melhor conselho para
qualquer pessoa à beira da menopausa
parece ser pesar os prós e os contras do
tratamento hormonal – possivelmente,
mesmo antes de os sintomas surgirem –
com o seu médico e escolher a solução
que menos a assuste. Para mim, nada é
mais aterrador do que a ideia de estar num
estado em que não teria sequer energia
para refletir. Para mim, os riscos da THS
valem bem a pena.
Consulte o seu médico antes de iniciar
qualquer tratamento.
MARÇO 2023 - N.º 325 55
 Saúde

A luta
anos, tinha a sensação de que estava a
esconder a sua verdadeira identidade. O
romper com a normalidade, que a pande-

dos cabelos mia trouxe, deu-lhe coragem para deixar

de pintar o cabelo e para fazer um corte

brancos
curto. No trabalho, fizeram-lhe perguntas.
Estaria doente? Deprimida? Seria a crise
dos 40? Aos colegas, respondeu assim:
“Não, é mesmo de propósito.”
Influenciadas pelos confinamentos e encorajadas pelas lutas de Quando o seu cabeleireiro cancelou
emancipação, cada vez mais mulheres deixam as madeixas de a marcação, em dezembro de 2020, após
cabelo grisalho à vista. A discriminação, porém, não desapareceu testar positivo à Covid-19, Sheri Boom
Holm decidiu deixar de aparecer, durante
The Wall Street Journal (excertos) uns tempos, no salão. Aos 61 anos, ficou
Nova Iorque surpreendida ao descobrir que, ao natural,
o seu cabelo tinha uma bela tonalidade
prateada – e que isso lhe dava um forte
sentimento de autoconfiança. Começou
Maria Colsey Heard, de 54 longa deliberação, gozar com tudo isto. a vestir-se com cores mais vivas e expe-

M anos, observa a nova fotografia

de perfil. Os seus cabelos enca-
racolados, outrora pintados de
loiro, estão agora grisalhos. Esta advogada
de Silver Spring (Maryland), que sente um
misto de choque e de exaltação, explica:
“Foi como se a minha idade biológica me
olhasse nos olhos, de repente apercebi-me
de que ‘Ena! Estou mesmo na casa dos
50’.” No entanto, diz que se sentiu livre
ao assumir que entrou numa nova fase da
sua vida: acabou-se o dinheiro gasto e o
tempo perdido na poltrona do cabeleireiro.
“Vou apresentar o meu novo ‘eu’”,
pensou, ao publicar a fotografia no Linke-
dIn.
À medida que mais e mais mulheres
voltam ao escritório [após confinamentos
e períodos de teletrabalho obrigatórios],
algumas ostentam o novo visual “sal e pi-
menta”. Esta é uma transformação física
que implica que nos aceitemos como so-
mos, na verdade, desconstruindo estereó-
tipos e reconquistando alguma confiança.
Logo no início da pandemia, confinadas
ao espaço de casa e confrontadas com o
fecho dos cabeleireiros, muitas mulhe-
res aproveitaram para deixar os cabelos
voltarem ao seu aspeto natural e verem
se isso lhes agradaria. Feita a experiência,
algumas ficaram muito satisfeitas com o
resultado.
Sabem que os preconceitos em relação
às mulheres mais velhas existem, que al-
gumas pessoas poderiam ver no cabelo gri-
salho um sinal de que estão a descuidar-se
ou de que já não conseguem acompanhar
o ritmo das homólogas mais jovens. Mas
elas decidiram, em alguns casos após uma
AUTORA DATA
J Rachel 26.09.2022
Feintzeig
“É arriscado, mas ao mesmo tempo
é ótimo”, diz Joan C. Williams, diretora
do Center for WorkLife Law [um centro
jurídico para a vida no trabalho] da Escola
de Direito Hastings, da Universidade da
Califórnia, onde estuda a questão do género
no trabalho. Ela própria adotou o estilo
grisalho, há uns dez anos. Se, por um lado,
jovens celebridades, como a cantora Ciara
e a manequim Cara Delevingne, apare-
cem em público com os caracóis prateados
como afirmação no mundo da moda, por
outro lado a apresentadora canadiana Lisa
LaFlamme enfrentou uma situação muito
diferente, quando assumiu os seus cabelos
brancos. Depois de o canal [CTV News] ter
rescindido o contrato no início de 2022,
algumas marcas mostraram-se solidárias,
como, por exemplo, a cadeia de fast-food
Wendy’s Canada, cuja mascote [conhecida
pelo seu cabelo de um vermelho-vivo]
ficou grisalha. O ex-empregador de Lisa
LaFlamme afirmou que a idade [58 anos],
o sexo e os cabelos grisalhos dela não ti-
nham em nada influenciado a decisão de
rescisão do contrato.
Precious Norman-Walton, que traba-
lha no ramo dos seguros, alisa e pinta o
cabelo de castanho-avermelhado há anos.
Ouviu alguns colaboradores a comentarem
até que ponto uma colega mais velha teria
“energia” suficiente para lhe ser confiada
uma nova conta e a gozarem com os ca-
belos brancos de uma candidata. Por que
razão deixaria que o seu cabelo – que já
estava polvilhado de “sal e pimenta” aos
30 anos – fosse o centro das atenções ou,
pior, se tornasse um obstáculo?
Esta habitante de Plano, Texas, de 43
TRADUTORA
Margarida Bak Gordon
rimentou um novo batom.
“As gerações mais novas não prestam
atenção às pessoas mais velhas”, diz. “Por
isso, mais vale aceitar o cabelo grisalho e
vestir um casaco fúchsia”, defende esta
habitante de Saint Paul, no Minnesota.
“Com o tempo, começamos a sentir-
-nos melhor assim.”
Naturalmente, encontrei também
mulheres que não se sentiam confiantes
o suficiente sem as suas madeixas balayage
e a sua cor habitual. Dizem ter medo do
efeito das raízes nas reuniões via Zoom
e que isso as impediria de conseguir um
determinado posto de trabalho, uma pro-
moção ou outra oportunidade. Algumas
foram aconselhadas por outras colegas a
parar de envelhecer. Chi Dong, uma conse-
lheira financeira e professora em Plano, no
Texas, assumiu o cabelo grisalho durante
um ano, ao fim do qual lhe bastaram três
horas para voltar a ficar loira. A culpa foi
de um comentário da sócia.
Contactei Julie Marie Totsch, de 54
anos, programadora informática em
Racine, no Wisconsin, na véspera da sua
ida mensal ao cabeleireiro, onde deixa a
módica quantia de 120 dólares [cerca de
€124], de cada vez que lá vai. “Gostaria
que todas nós acordássemos amanhã de
manhã e disséssemos ‘Já chega’”, confes-
sa. O problema é que Julie não quer que
os colegas achem que ela está a planear
desistir ou que está perto da reforma.
“Se assumisse os meus cabelos grisa-
lhos, estaria constantemente a lembrar-
-me de que sou a mais velha da equipa”,
afirma.
As inquietações destas mulheres não
são infundadas, confirma Louise Pendry,
investigadora na Universidade de Exeter,
no Reino Unido, onde estuda as discri-
minações laborais associadas à idade. As
crianças, a partir dos 3 anos, interiorizam

56 MARÇO 2023 - N.º 325 ILUSTRAÇÃO DE FALCO, CUBA

 estereótipos negativos a respeito da idade,
diz, e, em particular, a ideia de que as
pessoas idosas são incompetentes.
As mulheres, independentemente
... da idade, são igualmente consideradas
menos competentes do que os homens,
Um estudo revelou que acrescenta a investigadora de Estudos
de Género, Joan C. Williams, e isso cria-
as mulheres não viam -lhes um duplo obstáculo a partir de certa
nenhum inconveniente idade. Num estudo não publicado, Louise
em contratar mulheres Pendry e um coautor descobriram que as
mulheres inquiridas não viam nenhum
de cabelo grisalho, inconveniente em contratar mulheres de
enquanto os homens cabelo grisalho, enquanto os homens se
mostraram menos dispostos a fazê-lo.
se mostraram menos Carly Riordan, blogger, encolhe os om-
dispostos a fazê-lo bros ao ler os comentários depreciativos
de alguns dos seguidores. Aos 33 anos, esta
habitante de Nova Jersey ostenta uma ma-
deixa cinzenta, há vários anos, e divide-a
ao meio, de um lado e do outro do rosto,
para realçar o efeito. “Não estou a ficar
grisalha prematuramente”, diz. “Apenas
não escondo os meus cabelos brancos.”
A verdade é que gosta de se ver assim.
Sem essa madeixa, o seu cabelo castanho-
-escuro parece-lhe desinteressante: há
tantas jovens mães magras, como ela,
no Instagram hoje em dia. O cabelo gri-
salho marca a diferença. Além disso, em
qualquer profissão que implique contacto
com o público, há sempre quem encontre
falhas. “O que realmente importa é o que
eu gosto”, conclui.
MARÇO 2023 - N.º 325 57
 Conflito

Os direitos da marca Frida

O Kahlo são um verdadeiro te-

souro. E um tesouro pelo qual
têm vindo a lutar, há quase dez
MÉXICO anos, a família da artista mexicana e uma

quem quer ficar

empresa panamenha.
A história começou em 2004, quando
o único herdeiro da pintora [1907-1954],

com a marca
a sobrinha Isolda Pinedo [que morreu em
2007], vendeu a marca à Frida Kahlo Cor-
poration [FKC], uma empresa com sede

Frida? no Panamá, na qual a família tem uma

participação de 49%, pertencendo o resto
a um empresário venezuelano.
A imagem da artista mexicana tem sido usada em No entanto, Mara Romeo e Mara de
garrafas de tequila, t-shirts, bonecas e ténis. Há dez Anda, filha e neta de Isolda Pinedo, de-
pressa descobriram que o acordo assinado
anos que os herdeiros denunciam o uso da marca pela estava a ser “sistematicamente violado”.
Frida Kahlo Corporation, cujo principal acionista é Desde então, têm tentado recuperar o con-
venezuelano. Uma história extravagante trolo da empresa.
Durante dez anos, as queixas, as acu-
El País México sações e os recursos mútuos têm-se mul-
México tiplicado. O caso mais sonante desta saga
data de 2018: os herdeiros tinham obtido
a suspensão da comercialização de uma
boneca Barbie, com uma longa silhueta e
AUTORA DATA TRADUTORA as famosas tranças, que a Mattel [empresa
F Constanza 17.07.2022 Helena Araújo norte-americana especializada em brin-
Lambertucci quedos e jogos] disse ter sido inspirada na

58 MARÇO 2023 - N.º 325


pintora mexicana, com a autorização da
Frida Kahlo Corporation.
Os tribunais mexicanos instauraram
ações cautelares e as vendas foram inter-
rompidas no México, mas a boneca, de
edição limitada, continuou a ser vendida
no resto do mundo até se esgotarem os
stocks. “Frida era tudo menos uma Barbie,
era uma mulher com os seus defeitos”,
disse Mara de Anda.
No final, um juiz mexicano levantou
as medidas contra a Frida Kahlo Corpo-
ration, uma vez que o tribunal se decla-
rou “incompetente” no caso, de acordo
com a decisão proferida em dezembro de
2021 e a que tivemos acesso. No entanto,
os procedimentos continuam pendentes
em vários países, incluindo no Panamá e
em Espanha. Entretanto, ambos os lados
afirmam ser proprietários da marca co-
mercial Frida Kahlo (e apenas da marca
comercial, não do trabalho) e acusam-se
de estarem a “enganar o público”.
Em 2004, o venezuelano Carlos Do-
rado, um homem de negócios do setor
cambial, tomou a iniciativa e contactou
a família da artista. A 15 de dezembro,
nasceu a Frida Kahlo Corporation, uma
sociedade limitada, estabelecida no Pa-
namá, com um capital de 90 mil dólares,
de acordo com o registo comercial deste
país centro-americano.
Os proprietários são dois panamenhos,
Harmodio Herrera Villareal e Carolina Te-
jada de Carney, que também estão liga-
dos, entre outras, a empresas registadas
nas Seychelles, Bahamas e Malta, como o
Consórcio Internacional de Jornalistas de
Investigação (ICIJ) apurou. Carlos Dorado
é o presidente da FKC, e Mara Romeo, a
sobrinha-neta da artista, é a secretária
da empresa.
Em 2005, Mara Romeo assinou um
acordo de parceria com a Frida Kahlo Cor-
poration, em nome da mãe Isolda Pinedo.
Segundo a empresa, a família compro-
meteu-se, em troca de uma quantia não
revelada, a ceder “todas as marcas e os
direitos na sua posse, bem como aqueles
que adquirir no futuro, à escala mundial,
sem qualquer limitação”. O contrato “é
válido e totalmente eficaz”, disse a FKC.
De acordo com os representantes dos
descendentes da artista, este contrato,
contudo, apenas prevê o uso da marca
para quatro categorias, nomeadamente
joias, produtos de lavandaria, artigos de
papelaria e bebidas alcoólicas.
A imagem de Frida Kahlo
transformou-se num
ícone mundial
FOTO: GETTYIMAGES
A exploração da marca só pode “ser
prolongada sob o controlo e com a aprova-
ção da família”, acrescenta um porta-voz
dos descendentes. No entanto, a empresa
panamenha “solicitou autorizações para
continuar a atividade, o que a família recu-
sou”, defendendo que a FKC “está a fazer
um uso completamente ilegal” da marca.
Proteger ou adulterar?
Desde a assinatura do acordo, a Frida Kahlo
Corporation tem emitido licenças de uso
da marca a várias empresas. Durante anos,
o ícone da pintura tem sido mais do que
apenas uma artista: o marketing trans-
formou a pintora latino-americana mais
conceituada de sempre em café, tequila,
t-shirts, bonecas, ténis, velas, brincos...
As últimas parcerias assinadas pela
FKC também transformaram Frida numa
efígie para a marca britânica de bijuteria
Tatty Devine, o fabricante de equipamen-
to desportivo Puma e as adegas chilenas
Viña Carmen.
A FKC insiste-se que “não se pode
pedir de novo o que se vendeu”. Beatriz
Alvarado, porta-voz de Carlos Dorado,
o acionista maioritário da empresa, diz:
“A sra. Isolda Pinedo e família puseram a
Frida à venda, e nós comprámo-la, porque,
para nós, esta era uma forma de proteger
o património cultural de um país que nos
é querido e no qual trabalhamos muito.”
O cliente, acrescenta, “respeita tudo o que
foi acordado nos acordos”, e a empresa é
vítima de “uma campanha de difamação
nos media”.
A disputa será julgada em tribunal,
uma vez que as duas partes parecem irre-
conciliáveis. Para a família, Mara Romeo é
“a única pessoa com direito a decidir sobre
a exploração da mercadoria Frida Kahlo”
e a única responsável por uma imagem de
marca e por avaliar se esta está “de acordo”
com a artista, “com o seu estilo de vida,
os seus valores, o que ela representa”.
Para o acionista maioritário, “a marca
pertence à Frida Kahlo Corporation”, e
a empresa está “empenhada em manter
vivo o legado” da pintora e em “dar a
conhecer a imagem desta mulher que se
tornou um ícone”.
Entretanto, o valor da empresa está a
aumentar. Este é provavelmente o único
ponto em que as partes estão de acordo :
há um espólio a render.
MARÇO 2023 - N.º 325 59
 Cinema

O “regresso” de Imelda Marcos,

através de um filme
FOTO: GETTYIMAGES

te anos em que governou o país. O filme

FIIPINAS ganhou inúmeros prémios nas Filipinas.

Crónica de um mau
A ditadura é, atualmente, objeto de um
revisionismo por parte de Bongbong Mar-
cos [a alcunha dada a Ferdinand Marcos

melodrama
Dois filmes sobre a ditadura de Ferdinand Marcos (1965-1986)
concorreram nas bilheteiras filipinas. A divergência entre eles
espelha a crise que o país atravessa
Nikkei Asia
(excertos) Tóquio
Quando os filipinos deixam O primeiro filme, intitulado Katips [de
Q o seu país, sem saber quando
irão voltar, é costume fazerem
uma despedida, ou seja, uma
Vince Tañada], é uma comédia musical
adaptada a partir de uma peça de teatro
que data de 2016. O título faz referência
festa com comida e pessoas amigas. Eu, a uma sociedade revolucionária local do
antes de trocar as Filipinas por França, século XIX, mas a obra descreve um gru-
numa noite tempestuosa de agosto, fui ao po de estudantes universitários filipinos
cinema sozinha e vi dois filmes, cada um que protestam contra a imposição da lei
com duas horas de duração, que ilustram marcial pelo Presidente Ferdinand Marcos
bem a crise política que se vive no país. em 1972 – um momento-chave dos vin-
AUTORA DATA TRADUTORA
F Criselda 14.09.2022 Maria Ferreira
Yabes
Jr., filho do ditador deposto em 1986], que
ganhou as eleições presidenciais em maio e
pôde assim reinstalar a dinastia Marcos. Na
minha opinião, o género comédia musical
e a mediocridade do enredo de Katips não
se enquadram nos horrores da ditadura de
Marco, mesmo se o filme inclui cenas de
morte e violação. E também não percebi
por que razão não parava de chover.
Sinto-me culpada por embirrar com
um filme que conta a história de estudantes
...
Sem o mínimo esforço
para fugir do ridículo,
o filme afirma que a
multidão que cerca o
palácio presidencial
está em cólera porque
“o povo venera os
Marcos”, e não porque
se quer ver livre deles

60 MARÇO 2023 - N.º 325

 Bio
O clã Marcos
em cinco datas
1965
Ferdinand Marcos é eleito
Presidente das Filipinas.
1972-1981
Lei marcial. A luta contra o comunismo
é utilizada como pretexto para instaurar
um regime ditatorial e uma onda de
repressão que se traduz em milhares de
mortos.
1986
Uma revolta popular faz cair o regime,
esfacelado pela corrupção.
1989
Ferdinand Marcos morre no Havai, onde
se encontrava exilado. A viúva Imelda
Marcos obteria o direito de regressar ao
arquipélago pouco depois, em 1991.
junho de 2022
Eleito em maio, Ferdinand Marcos Jr.
torna-se Presidente.
que arriscaram a própria vida em nome da
liberdade nos anos 1970, mas, se Katips
fosse mais eficaz em termos dramáticos,
talvez tivesse enfurecido as autoridades.
O nosso país afunda-se em águas agitadas,
pois os triunfantes fiéis de Marcos estão
determinados a afogar a sua história num
mar de propaganda distribuída pelo Face-
book, pelo Youtube e pelo TikTok.
Já em relação ao segundo filme, esse,
fez-me rir. Maid in Malacañang [“Uma
jovem em Malacañang”, de Darryl Yap]
relata os últimos dias da família Marcos
no Palácio de Malacañan, em Manila, antes
de fugir para o Havai, no seguimento da
revolta popular de 1986.
Explosão de kitsch
Antes de comprar um bilhete, tinha bebido
um copo e enviado mensagens a amigos
para perguntar o que tinham achado.
Como se ir ver este filme fosse uma questão
de saúde – como fumar ou beber dema-
siado. Já sabia que seria uma apologia da
época de Marcos, mas não estava à espera
desta explosão de kitsch: interpretação
dos atores exagerada, passagens extrema-
mente rápidas da comédia ao melodrama,
e retratos gloriosos de Ferdinand Marcos
e da sua bela esposa Imelda, em cada ca-
pítulo do filme.
O que tem piada é que a jovem que
o título evoca é Imee, a filha mais ve-
lha de Ferdinand Marcos. Esta aparece
como a protegida do seu pai, enquanto
Bongbong, seu irmão, é retratado como
um jovem fraco e desajeitado que tenta,
a todo o custo, chamar a atenção do pai.
O filme foi escrito e realizado por Darryl
Yap mas mais parece que estamos a as-
sistir a uma obra de propaganda de Imee
Marcos [que trabalhou como consultora
durante a rodagem e, de acordo com al-
guns jornalistas filipinos, terá inclusive
coproduzido o filme].
De repente, passei de uma descrição
dececionante da resistência à lei marcial
para uma representação grotesca dos úl-
timos dias da família Marcos no palácio
presidencial – visto, supostamente, a
partir do interior. Sem o mínimo esfor-
ço para fugir do ridículo, o filme afirma
que a multidão que cerca o palácio pre-
sidencial está em cólera porque “o povo
venera os Marcos”, e não porque se quer
ver livre deles.
Aguentei-me, cena revisionista após
cena revisionista. Quando a mentira se
tornava demasiado difícil de suportar,
aliviava-me rindo e gritando “Não é
verdade!.” No entanto, saí do cinema a
saber que o meu país está nas mãos dos
baduy, um adjetivo em calão filipino que
significa ordinário ou grosseiro.
Talvez seja por isso que suporto a ideia
de abandonar o país por tempo indeter-
minado. Se a população filipina se pu-
desse dar ao luxo de se vir embora, faria
o mesmo que eu. Quantas vezes já ouvi
amigos dizerem aos seus filhos: “Se po-
des ir embora, vai! Constrói o teu futuro
longe daqui.”
Em Maid in Malacañang, a persona-
gem Imelda Marcos preguiça na cama com
o terno [vestido tradicional filipino] e o
penteado bouffant icónicos. Está prestes
a partir para o exílio, mas chafurda em
fantasias de regresso ao poder. Ao seu
lado, um par de sapatos de salto alto, um
entre os milhares que possui, com “2022”
gravado nas solas.
O escritor Nick Joaquin [1917-2004]
descreve bem estes últimos momentos em
Malacañang: foram encontrados sapatos,
calças e fraldas com restos de excrementos
na casa de banho dos Marcos, após a sua
fuga, descrevia num livro sobre a revolu-
ção popular. “Faz sentido saber que uma
das últimas coisas que Ferdinand Marcos
fez no palácio tenha sido profaná-lo.”
Os Marcos estão de volta, em todo o
seu esplendor de baduy. É este o destino
das Filipinas: o melodrama que vimos no
cinema pode mesmo tornar-se realidade.
Confronto no
grande ecrã
“O confronto faz lembrar o de David
e Golias”, observa o MANILA TIMES.
Estreado inicialmente em dezembro
de 2021, Katips voltou aos cinemas
filipinos no dia 3 de agosto, a pedido
do realizador, Vince Tañada, para não
deixar a Maid in Malacañang, e a essa
reescrita da história do clã Marcos,
o monopólio dos ecrãs. Pequeno
filme contra uma enorme produção,
para o diário filipino o desenlace
deste combate parecia inevitável.
Katips teria mesmo ido ao tapete
neste retorno às salas, assegura o
jornal em outro artigo, ao mesmo
tempo que vencia os Famas (prémios
equivalentes aos Oscars) nas
categorias de Melhor Filme e Melhor
Realizador. Como lembra o portal
de notícias Philippine Star, Katips foi
proibido a menores de 16 anos, por
causa das “cenas brutais de tortura”.
As violações e os abusos infligidos a
opositores ao regime, retratados no
filme, fizeram correr muita tinta.
Contudo, vários jornalistas alertam
para a veracidade do que se vê no ecrã,
tendo eles próprios sido vítimas ou
conhecendo pessoas próximas que
o foram. É esse o caso da cronista e
ativista pelos direitos humanos Maria
Ceres P. Dovo, que, no Philippine
Daily Inquirer, explica como ver
Katips a fez reviver “flashes do
passado”, transportando-a de volta a
uma época em que “algumas pessoas
foram verdadeiramente corajosas, e
em que jovens, valentes e audaciosos,
desafiaram os limites em nome da
liberdade”.
MARÇO 2023 - N.º 325 61
planeta
360
UGANDA
Um oleoduto
controverso
Aberração ecológica para a Europa, uma oportunidade para África, o
novo oleoduto ugandês é polémico mesmo antes da sua construção.
E materializa os paradoxos da política climática global
The Continent
Joanesburgo
A União Europeia não o quer.
A Nem os ambientalistas. Mas a
Tanzânia e o Uganda não de-
sistem: o projeto do gasoduto
da África Oriental será concretizado de
qualquer forma, e não são eles os maus
da fita.
Desde a descoberta de depósitos de
petróleo “comercialmente viáveis”, na
parte ocidental do Uganda, em 2006, o
governo ugandês tem procurado uma for-
ma de levar este ouro negro ao resto do
mundo. A sua solução é um oleoduto de
1 443 quilómetros, o Oleoduto de Petróleo
Bruto da África Oriental (EACOP, na sigla
inglesa), que atravessará o Uganda e o
Norte da Tanzânia, terminando no porto
de Tanga. A sua construção custará 5 mil
milhões de dólares e será o gasoduto aque-
cido mais comprido do mundo. Também
trará ao Uganda e à Tanzânia vários biliões
de dólares em receitas, de que eles bem
precisam. Pelo menos, é isso que promete.
Numa altura em que as alterações
climáticas ameaçam todo o planeta, este
megaprojeto de transporte de combustível
fóssil encarna, na perfeição, as comple-
xidades e paradoxos da política climática
global. A construção do gasoduto, em si,
ainda não começou; apenas algum tra-
balho foi feito na Tanzânia para a criação
de infraestruturas logísticas, tais como
habitações para os trabalhadores e áreas de
armazenamento. Mas o projeto já suscitou
uma oposição maciça em todo o mundo.
Em setembro passado, o Parlamento
Europeu aprovou uma resolução [não vin-
AUTOR DATA
F Assad Mugenyi 12.11.2022
62 MARÇO 2023 - N.º 325
culativa] pedindo a paragem das atividades
de exploração e extração no Uganda. Os
eurodeputados apelaram igualmente à
comunidade internacional para “exercer
a máxima pressão sobre as autoridades
ugandesas e tanzanianas”, por forma
a proteger os ecossistemas sensíveis, a
exortaram o gigante petrolífero francês
TotalEnergies a adiar o trabalho, pelo me-
nos, por um ano e a considerar projetos
alternativos baseados em energias reno-
váveis. A companhia petrolífera estatal
China National Offshore Oil Corporation
é o outro grande ator envolvido no em-
preendimento. A resolução da UE relançou
a campanha #StopEACOP, apoiada por
260 organizações da sociedade civil em
todo o mundo.
Estas associações apresentaram pe-
tições aos líderes mundiais, incluindo
o Papa Francisco e o Presidente francês
Existe uma indignação
palpável entre os funcionários
ugandeses, que sentem que
a UE está a ser insolente ao
acusá-los de não protegerem
o ambiente. Eles afirmam
que o continente africano é
responsável por apenas 3,8%
das emissões globais
de carbono
TRADUTORA
Helena Araújo
Emmanuel Macron, e organizaram pro-
testos no Uganda e na Europa. Dizem que
o projeto irá ignorar os direitos humanos
e as comunidades locais, que serão ex-
propriadas, e que representa uma ameaça
para o abastecimento de água da região.
De acordo com um estudo recente
do Climate Accountability Institute, o
EACOP irá também duplicar as emissões
anuais de CO2 do Uganda e da Tanzânia.
“A TotalEnergies deve abandonar este
monstruoso projeto, que irá agravar a
crise climática, desperdiçar milhares de
milhões de dólares, os quais poderiam ser
utilizados muito melhor, e causar estra-
gos, nas comunidades humanas e na vida
selvagem, ao longo do percurso”, disse
o fundador do instituto, Richard Heede.
Hipocrisia e arrogância
O governo ugandês não concorda com
esta análise. Diz que o Uganda já está
a fazer muito mais do que a Europa na
utilização de energias renováveis, sendo
80% da energia consumida no país pro-
veniente de fontes renováveis, tais como
a hídrica, solar e biomassa. Acrescenta
que as emissões totais do Uganda desde
1750 são menos de 1% das emissões da
Bélgica, a sede da União Europeia (UE).
E insiste em dizer que o novo gasoduto
fornecerá os fundos para investir ainda
mais em energia renovável e que o aumen-
to do fornecimento de energia também
ajudará a preservar as florestas do país,
que são sumidouros cruciais de carbono:
se as pessoas tiverem acesso à eletricida-
de, não precisarão de cortar árvores para
aquecimento, que é uma das principais
causas da desflorestação.
Existe uma indignação palpável entre
os funcionários ugandeses, que sentem que
a UE está a ser insolente ao acusá-los de
não protegerem o ambiente. Eles afirmam
que o continente africano é responsável
por apenas 3,8% das emissões globais de
carbono e que este valor é empolado pela
África do Sul, um dos maiores poluidores
do mundo. A Europa, prosseguem, tem
três vezes menos pessoas do que África e
emite mais do dobro de CO2. Além disso,
construiu a sua prosperidade através da
queima indiscriminada de combustíveis
fósseis, e foi isso que levou o mundo para
a embrulhada em que se encontra hoje. No
entanto, não propõe partilhar esta pros-
peridade com o Uganda ou a Tanzânia,
para os encorajar a abandonar o gasoduto.
A intervenção do Parlamento Europeu
“representa o auge do neocolonialismo
e do imperialismo contra a soberania do
Uganda e da Tanzânia”, reagiu Thomas
Tayebwa, presidente-adjunto do Parla-
ILUSTRAÇÃO DE BOLIGAN, PARA “EL UNIVERSAL”, MÉXICO
 SUDÃO DO SUL
ETIÓPIA

UGANDA
Hoima Bulisa
Kampala QUÉNIA
Equador

REPÚBLICA Lago
DEMOCRÁTICA Vitória Nairóbi
DO CONGO RU.

BU. Oleoduto da África Oriental

Abreviaturas: Mombaça
BU. Burundi Singida Tanga
MA. Malawi
RU. Ruanda Dodoma
Dar es Salaam

COURRIER INTERNATIONAL
TANZÂNIA Oceano
Índico
ZÂMBIA

250 km
MA.
MOÇAMBIQUE

mento do Uganda. O Uganda também

não se esquece de que, quando a Europa
temia pelo seu próprio abastecimento
energético, devido à invasão da Ucrânia
pela Rússia, os seus líderes não tiveram
escrúpulos em aumentar a sua dependên-
cia de combustíveis sujos como o petróleo
e o gás. “Isto é pura hipocrisia, disse o
Presidente ugandês Yoweri Museveni. Não
aceitaremos que haja uma regra para eles
e outra para nós.”
Para Dickens Kamugisha, diretor do
Instituto Africano para a Governação da
Energia, uma ONG sediada em Kampala, o
ultraje do governo ugandês é compreen-
sível, mas não é benéfico. “A arrogância
não nos vai ajudar”, adverte.
Os europeus podem ser hipócritas,
mas isso não significa que o gasoduto da
África Oriental seja uma coisa boa para
o Uganda. “Os mais de 5 mil milhões de
dólares, necessários para a sua constru-
ção, virão do Ocidente ou da China. En-
tão, quer que as pessoas lhe emprestem
dinheiro mas não lhe façam perguntas?
Sejam humildes!.”
A retórica, insiste, seria mais justifica-
da se se pudesse confiar no governo ugan-
dês para cumprir todas as suas promessas e
remover as outras barreiras que impedem
os cidadãos de terem eletricidade.
Porque não importa quanta eletrici-
dade o Uganda produz se 8 em cada 10
pessoas não estiverem ligadas à rede. E
todos aqueles biliões que fazem as pessoas
sonhar não mudarão nada se acabarem
nos bolsos das elites dominantes.
O governo promete que o gasoduto
trará benefícios económicos sem prece-
dentes ao Uganda, mas “os esforços para
combater a corrupção dão-nos razões para
duvidar disso”, diz Winnie Ngabiirwe,
diretora da ONG Global Rights Alert.
planeta
360
RECICLAGEM
Da lata ao tijolo
No Mali e no Burkina Faso, estão a surgir iniciativas
para recolher, separar e transformar os resíduos plásticos
Sahelien.com
Bamako
São 9h43 no bairro Nagrin de
S Uagadugu [no Burkina Faso].
Como acontece todas as ma-
nhãs, está na hora de Fatima-
ta Ouédraogo se dedicar à sua ocupação
diária. E é de bom humor que ela executa
alguns passos de dança antes de ir recolher
os detritos plásticos.
Na faixa verde que atravessa o bairro, a
sexagenária dirige-se para um caixote do
lixo improvisado. “Normalmente, depois
dos batismos, as pessoas vêm aqui despejar
os sacos de água e outras coisas. Aconte-
ce o mesmo depois dos casamentos. Os
lixos domésticos são também despejados
AUTOR
F Mohamed Nakanabo, Agaïcha
Kanouté, Mody Kamissoko
64 MARÇO 2023 - N.º 325
aqui. É no meio disto tudo que eu apanho
e vendo.”
Aqui, um quilograma de sacos é ven-
dido por 100 francos CFA [o franco CFA,
de Comunidade Financeira de África, é a
moeda de oito estados], o equivalente a
0,15 euros. Quanto às latas, Fatimata vende
as três por 100 francos. Segundo ela, é um
mercado que não é mau de todo: “Muitas
vezes, posso recolher e vender por 750 ou
1 000 francos [de 1,15 euros a 1,52 euros].
Para as latas, também há algumas pessoas
que pagam. O mesmo para as caixas. Chego
a vendê-las por 1 000 ou 1 500 francos [de
1,52 euros a 2,29 euros]. Quando somar
DATA TRADUTORA
11.10.2022 Helena Araújo
Os plásticos podem
permanecer na Natureza
por mais de 100 anos, sem
degradação. Eles têm um
impacto na vegetação, no
paisagismo, na estética geral
da cidade, no ser humano
e no ambiente, em termos
de saúde
tudo, está feito o negócio e toda a gente
fica contente.”
Após a venda, a mercadoria é nor-
malmente levada a Mohamed Zongo e
aos irmãos, que a separam para depois a
venderem a empresas de processamento.
“Nós recebemos muitas coisas. Várias ve-
zes, os ferros são misturados com plástico,
alumínio e sapatos. Nós pegamos nisto
tudo e colocamos o ferro de um lado e o
plástico do outro. Depois desta triagem,
um camião é trazido para transportar os
bens para a empresa que faz o proces-
samento. Algumas pessoas vêm direta-
mente comprar-nos o plástico”, explica
o sucateiro.
Em Uagadugu, existem vários locais
de processamento de resíduos plásticos.
Visitámos os líderes da recolha de lixo,
uma associação de jovens com mais de 50
membros. Transforma os resíduos plásticos
em pedras de pavimentação e briquetes.
“Após a recolha, tentamos separá-lo.
Classificamos por cor e por qualidade.
Mesmo que sejam detritos, existem di-
ferentes qualidades. Quando chegamos
às nossas instalações, tentamos ordenar
o nosso material. Primeiro, colocamos
óleo usado nos nossos diferentes moldes
e tentamos derreter os resíduos...”, diz
Issouf Ouédraogo, presidente da associa-
ção. Quando a procura é elevada, podem
produzir uma centena de pavés (pavi-
mento reciclado) por dia.
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planeta
360
Tal como em Uagadugu, a gestão de resíduos
continua a ser um desafio em Bamako [Mali].
Com uma equipa de cerca de 40 jovens, o
empresário Moussa Seydou Konaté está a
tentar desempenhar o seu papel, conceben-
do caixotes de lixo feitos à base de materiais
reciclados. “O primeiro passo é recolher as
garrafas e depois limpá-las e perfurá-las.
Em seguida, temos uma unidade de solda-
dura que faz o suporte dos contentores.”
Um perigo real
Estes contentores são feitos para guardar
o lixo, para melhor o gerir, mas também
reduzem o desperdício através da quanti-
dade de material utilizado no seu fabrico.
“O contentor grande leva 72 latas, o pe-
queno 32. Se fizer as contas com os três,
dois e quatro contentores de triagem, é
apenas uma questão de multiplicar os 72
pelo número de contentores. Num mês,
muitas vezes acabamos com 500 a 2 000
contentores produzidos" [explica] Moussa
Seydou Konaté.
E acrescenta: “Hoje, em termos de
garrafas, reciclamos muito, não é só o lixo
que produzimos. Começámos a produzir
pedras de pavimentação, que também são
feitas de plástico triturado, e outras coisas,
como hortas móveis, que também estão a
vender bem.”
Devido ao seu lugar na vida quotidiana
das pessoas e à sua capacidade de durabili-
dade na Natureza, os sacos de plástico são
um perigo real, como explica a professora
investigadora Moussa Thiam: “Os plásticos
podem permanecer na Natureza por mais
de 100 anos, sem degradação. Eles têm um
impacto na vegetação, no paisagismo, na
estética geral da cidade, no ser humano e
no ambiente, em termos de saúde.”
Após a realização de vários estudos,
Moussa Thiam e os seus colegas propõem
soluções. “No que diz respeito à redução
na fonte, isto virá com a educação, a cons-
ciência, a mudança de comportamento e de
mentalidade. Mas, acima de tudo, também
com políticas de acompanhamento. [...] Em
relação à reutilização e reconversão, existem
três tipos de utilização. Usamos uma parte
como ligação. Em vez de cimento, utiliza-
mos plásticos derretidos. Quanto aos outros
aspetos que estamos a desenvolver com a
equipa de investigação, vão no sentido da
utilização destes materiais como substitutos
das argamassas, areia, cascalho no betão
convencional…”
No Burkina Faso e no Mali, as leis que
proíbem a produção, importação, comer-
cialização e distribuição de sacos não bio-
degradáveis dificilmente são aplicadas, e os
resíduos, especialmente plásticos, conti-
nuam a acumular-se.
66 MARÇO 2023 - N.º 325
JAPÃO
Carne sob
ameaça
Com o uso de um pequeno número de machos
reprodutores na pecuária, os problemas de
desenvolvimento dos vitelos estão a aumentar.
Nihon Keizai Shimbun
Tóquio
Quem diz wagyu [literal-
Q mente, “carne japonesa”]
diz carne marmorizada [com
mais qualidade e sabor]. Desde
a liberalização das importações de carne
bovina, em 1991, o Japão tem-se con-
centrado no mercado de alta gama para
competir com a produção estrangeira.
Mas a crescente consanguinidade, causada
pela supremacia da carne marmorizada,
e as mudanças do mercado, incluindo um
número crescente de consumidores que
se volta para a carne vermelha magra,
estão a forçar a mundialmente famosa
marca wagyu a procurar um caminho
sustentável para o seu futuro.
“Quando comecei como agricultor
há 40 anos, a taxa de acidentes era mais
baixa”, recorda um agricultor da cidade
de Shin’onsen, no Norte da província de
Hyogo [cuja capital é Kobe], com uma
expressão de preocupação no rosto. O
que ele chama “acidentes” são abortos
espontâneos e problemas de desenvol-
vimento em bezerros. A sua incidência
está a registar um ligeiro mas inexorável
aumento.
Em Shin’onsen, mais de 50 famílias
de criadores consagram-se à reprodu-
ção e engorda de gado [da raça] Tajima.
Quando a carne cumpre as normas, é co-
mercializada como Kobe beef, a marca
de melhor qualidade de wagyu negro. As
preocupações que afligem a “terra santa”
da carne japonesa estendem-se a toda a
indústria. De acordo com a Mútua Agrícola
de Hyogo, em 2017, naquela prefeitura,
AUTOR DATA
F Toshihisa Tamura 25.09.2022
5,2% dos fetos e vitelos morreram ou
não se desenvolveram devido a doença
ou acidente, uma proporção que aumen-
tou em 1,8 pontos percentuais em 30 anos.
Existem muitas causas, e as mudanças no
ambiente da criação são uma delas, mas
a indústria aponta o dedo à homogenei-
zação genética.
“A consanguinidade excessiva pode le-
var a problemas de fertilidade e desenvol-
vimento reduzidos”, explica Kenji Oyama,
investigador da Universidade de Kobe e
especialista em wagyu. Esta consangui-
nidade excessiva é uma consequência da
supremacia do marmoreio [elevada de-
posição de gordura intramuscular, que
confere sabor e suculência]. Desde a libe-
ralização das importações, o Japão tem-se
concentrado na produção de carne com
infiltração de gordura. O wagyu corres-
pondente ao grau A5 [a maior densidade
de marmoreio] representava cerca de 14%
da produção total em 1995; em 2021, este
número tinha atingido os 46%.
Para obter esta carne densamente
marmorizada, os produtores preferem
usar sémen de machos específicos na in-
seminação artificial, que produzirá mais
TRADUTORA
Helena Araújo
FOTO: GETTYIMAGES

facilmente [animais com] infiltração de
gordura. De acordo com o Ministério da
Agricultura, Florestas e Pescas, mais de
30% dos 310 mil vitelos comercializados
em 2018 nasceram do esperma de apenas
cinco machos. Os 15 melhores criadores
criaram 60% dos bezerros, muitos deles
consanguíneos.
A fim de preservar a sua marca, a pre-
feitura de Hyogo tem a política de não
cruzar o seu gado com o de outras prefei-
turas. O coeficiente de consanguinidade,
que mede aquele grau de parentesco, su-
biu quase 10 pontos nos últimos 30 anos,
atingindo 25,4% em 2018, quase três vezes
a média nacional. Kenji Oyama faz soar o
alarme: “Os problemas que ocorrem na
província de Hyogo poderão no futuro
afetar todo o país.”
Os genes que resultam numa fraca
marmorização são gradualmente eli-
minados pela mão humana. “Genes que
desaparecem perdem-se para sempre”,
diz o professor Tetsuro Nomura, da Uni-
versidade de Sangyo, em Quioto. Este es-
pecialista em genética considera perigoso
depender de genes específicos. Se não hou-
ver espaço para a diversidade e a seleção
de raças, torna-se impossível responder
às mudanças do mercado e do ambiente.
Uma trágica lição sobre as conse-
quências da homogeneização genética
pode ser encontrada na história mundial.
Na Irlanda do século XIX, uma doença
infeciosa assolou a cultura da batata, o
alimento básico da dieta local. “Devido
à uniformidade genética, nenhuma plan-
ta foi capaz de resistir à doença”, conta
Tetsuro Nomura. Estima-se que a Fome
da Batata, como é conhecida, matou mais
de um milhão de pessoas. A escassez de
alimentos fez com que muitos irlande-
ses emigrassem; os descendentes são os
irlando-americanos.
Repensar e diversificar
A indústria pecuária já começou a res-
ponder. Fumio Mukai, presidente da
sociedade nacional de registo de wagyu,
apela a que a preeminência do marmo-
reio seja repensada. A cada cinco anos,
a associação organiza uma competição,
o Salão Nacional da Qualidade Wagyu,
que tem sido apelidado de “Olimpíadas
de Wagyu”. Desde a edição de outubro,
em Kagoshima [no Sudoeste do arqui-
pélago], foram incluídos outros critérios
de avaliação, para além do marmoreio,
para encorajar a diversificação do gado,
incluindo o teor de ácido oleico, que dá
à wagyu o seu sabor caraterístico.
Em abril de 2020, a prefeitura de
Hyogo já tinha introduzido o ácido oleico
nos critérios de avaliação para a carne
de vaca Kobe. Outras regiões produto-
ras também estão a tomar medidas. A
Para obter esta carne
densamente marmorizada,
os produtores preferem usar
sémen de machos específicos
na inseminação artificial, que
produzirá mais facilmente
[animais com] infiltração
de gordura
província de Tottori [vizinha de Hyogo],
por exemplo, está agora a ter em conta
o glicogénio [um carboidrato complexo]
na carne vermelha.
Com a consciência pública das ques-
tões de saúde, a popularidade da carne
vermelha magra está a aumentar, ano após
ano, no Japão. Na primeira metade da dé-
cada de 2010, houve um boom na carne
maturada – que é deixada a descansar du-
rante várias semanas a uma temperatura
e humidade controladas para melhorar o
seu sabor. Houve também o surgimento
de um novo tipo de restaurante, chamado
“meat bar”, que destaca os atrativos da
carne vermelha magra.
Além disso, a sobrealimentação de
animais, um método utilizado pelos
agricultores para aumentar a marmori-
zação da carne, está a chamar a atenção
internacional para a questão do bem-estar
animal. Os produtores estão gradualmente
a diversificar as suas estratégias e alguns a
especializar-se em carne vermelha magra.
“Se os consumidores começarem a ter
em consideração outros elementos para
além do marmoreio, os locais de produção
também mudarão”, diz Tomohiro Nakaya-
ma, CEO da Meattech, uma empresa de
consultoria de gado sediada em Tóquio.
O montante das exportações de
produtos agrícolas, florestais e da pesca
passou, pela primeira vez, a marca dos 7
mil milhões de euros em 2021. O objetivo
declarado do governo de “35 mil milhões
de euros até 2030” é agora suportado pela
depreciação do iene. A wagyu distinguiu-
-se da carne de vaca estrangeira para se
tornar a força motriz do made in Japan.
A sua sustentabilidade também poderia
determinar o futuro da indústria alimentar
japonesa.
MARÇO 2023 - N.º 325 67
planeta
360
EUA
Baleias de volta
a Nova Iorque
As águas que banham a Grande Maçã nunca estiveram tão limpas,
em cem anos. Das ostras aos cetáceos, a vida marinha está
novamente a prosperar
The Economist
Londres
Os norte-americanos ainda
O são capazes de cooperar com
paciência e ambição? Sim:
as águas de Nova Iorque são
prova disso. De uma só vez, foram vis-
tas recentemente nove baleias-jubarte,
soprando e saltando em frente aos arra-
nha-céus, como se disputassem a selfie
mais espectacular.
As baleias-comuns e as baleias-fran-
cas têm sido vistas em número impres-
sionante, assim como golfinhos-roazes,
tubarões-tecelão, tubarões-martelo, fo-
cas, caranguejos-azuis e cavalos-mari-
nhos. As ostras, que tinham praticamente
desaparecido há décadas, agarram-se às
paredes de retenção ao longo de Coney
Island Creek, em Brooklyn, e aos pilares
da Ponte Governador Mario Cuomo sobre
o rio Hudson, quase 20 milhas a norte
da cidade. Há também muitos humanos
na água.
Esquecemo-nos frequentemente, com
a linha do horizonte bloqueada por ar-
ranha-céus, mas a metrópole de Nova
Iorque é um arquipélago, uma franja da
América do Norte que se estende até ao
Atlântico. Apenas um dos seus cinco bair-
ros (o Bronx) está no continente.
Os três rios que atravessam a cidade
e o porto onde afluem estão hoje mais
limpos do que o estiveram em cem anos.
Este complexo está, aliás, a tornar-se o
grande parque descentralizado de Nova
Iorque. Os nova-iorquinos remam no rio
Hudson, pavoneiam-se pelo Harlem, com
a música ao rubro, tomam banhos de sol
nos convés dos seus reluzentes barcos a
AUTOR DATA
F Não assinado 01.09.2022
68 MARÇO 2023 - N.º 325
motor, correm em jet skis debaixo da
ponte de Brooklyn, surfam ao amanhecer
ao largo dos blocos Far Rockaway, em
Queens, e depois apanham a linha A do
metro para ir trabalhar.
E saem de barco para observar as
baleias de Brooklyn. “É fantástico”, diz
Howard Rosenbaum, que cresceu em Nova
Iorque quando uma única baleia avistada
ao largo de Long Island era um grande
acontecimento.
Howard Rosenbaum dirige o programa
Ocean Giants [Os Gigantes do Oceano] na
Wildlife Conservation Society [Sociedade
de Preservação da Vida Selvagem], que
tem as instalações no Jardim Zoológico
do Bronx. “Já trabalhei em todas as bacias
oceânicas e as pessoas associam o avista-
mento destes animais a outras regiões do
mundo. Mas eles estão a acontecer aqui
mesmo, perto de casa.”
Acredita que o regresso das baleias mamíferos marinhos e terrestres, para
está relacionado com vários fatores: a combater ataques de navios e para as-
Lei da Qualidade da Água de 1972, a Lei segurar que as baleias sejam tidas em
das Espécies Ameaçadas de Extinção de conta na instalação de futuros parques
1973, e uma iniciativa multiestatal, com eólicos no mar.
décadas de existência, destinada a refrear Alguns nova-iorquinos sempre fo-
a pesca excessiva de um dos alimentos ram sensíveis a isto. O escritor Herman
preferidos das baleias, a Brevoortia Melville ficou maravilhado com a forma
tyrannus. como os habitantes da “cidade na ilha de
Howard Rosenbaum antecipou-se a Manhattan” foram atraídos para o ocea-
levantar questões sobre a presença de no. “Passeie pela cidade numa sonhado-
baleias, na área de Nova Iorque, no início ra tarde de Sabbat”, escreveu em Moby
dos anos 2000. O projeto de investigação Dick. O que vê? Sentinelas silenciosas,
da Sociedade de Preservação amadure- plantadas por toda a cidade, milhares e
ceu à medida que um maior número de milhares de homens estão congelados
animais foi observado. Agora, trabalha em sonhos oceânicos.”
para desarmar conflitos entre grandes O sonho continuou um século de-
pois, em 1951, quando o escritor Joseph
Mitchell publicou um famoso ensaio no
The New Yorker, intitulado The Bottom of
TRADUTORA
Helena Araújo the Port (O Fundo do Porto). Mas, nessa
altura, as pessoas já estavam a ver “bolhas
ILUSTRAÇÃO DE COST, PARA “LE SOIR”, BRUXELAS

de gás tão grandes como bolas de ces-
to a rebentar à superfície” – “bolhas de
lama” vindas das profundezas. O porto
tinha sido uma lixeira, uma fábrica e uma
autoestrada durante demasiado tempo.
Ostras resistentes
Peguemos na ostra, mais discreta que
a baleia mas também glamorosa à sua
maneira. Alguns biólogos estimam que
metade das ostras do mundo estivera em
tempos no porto de Nova Iorque. Algumas
tinham até 30 centímetros de compri-
mento, de acordo com os testemunhos
dos primeiros europeus que ali chegaram.
Parques de ostras sucediam-se ao lon-
go de Brooklyn, Queens e o perímetro de
toda a Manhattan. A ilha Ellis chama-
va-se ilha das Ostras. As ostras de Nova
Iorque eram apreciadas nos restaurantes
de Londres, e as famílias que dirigiam o
negócio construíram enormes mansões
em Staten Island, onde as suas frotas de
escunas [veleiro de dois mastros] estavam
ancoradas.
Mesmo após a remoção dos parques
de ostras, no final do século XVIII, de-
terminados empresários mantiveram o
comércio durante cem anos. Mas a polui-
ção disparou. Após casos de febre tifoide
terem sido atribuídos a ostras do porto
de Nova Iorque, em 1916, o Conselho de
Saúde da cidade proibiu a ostreicultura.
Algumas ostras selvagens resistiram.
Joseph Mitchell encontrou-as aqui e ali
durante o tempo em que estudou o porto.
Se elas estão agora a regressar, é graças à
motivação popular e a projetos privados.
Desde 2014, uma organização sem fins
lucrativos, a Billion Oyster Project, tem
vindo a trabalhar com o objetivo de ter
mil milhões de ostras no porto até 2035.
Recentemente, contabilizou 100 milhões
de ostras e, com a ajuda de milhares de
O regresso das baleias está
relacionado com vários
fatores: a Lei da Qualidade
da Água de 1972, a Lei das
Espécies Ameaçadas de
Extinção de 1973, e uma
iniciativa multiestatal, com
décadas de existência,
destinada a refrear a
pesca excessiva de um dos
alimentos preferidos das
baleias, a Brevoortia tyrannus
voluntários, está a plantar 50 milhões de
ostras por ano. Uma ostra, no final do
seu crescimento, filtra quase 200 litros
de água por dia.
O Billion Oyster Project conta em
parte com mergulhadores formados pela
Harbour School (Escola Portuária), uma
escola secundária pública que ministra
educação sobre meios marinhos, para
além dos cursos tradicionais. Os mer-
gulhadores dizem que o fundo do porto
permanece coberto de “lama”, que di-
ficulta a visibilidade. Autêntica “maré
negra”, mas, perto dos recifes de ostras,
essa visibilidade subaquática atinge quase
quatro metros.
Sabendo disto, ninguém vai querer
provar uma ostra do porto de Nova Ior-
que. E ainda há muito a fazer. Cerca de
60% dos esgotos da cidade misturam
águas residuais com o transbordo de
águas pluviais. Quando as estações de
tratamento são sobrecarregadas por for-
tes chuvas, Nova Iorque esvazia os seus
dejetos para as vias navegáveis. Como
regra, é arriscado entrar na água durante
três dias após chover. Limpar a água de
Nova Iorque e equilibrar as necessida-
des dos animais e dos seres humanos é
o trabalho de gerações.
A boa notícia é que esta missão está
a decorrer há uma geração e, apesar da
ameaça das alterações climáticas, a ten-
dência é para melhorar.
A situação assume, por vezes, contor-
nos extraordinários. Em agosto, Howard
Rosenbaum estava num barco de 10 me-
tros a observar uma baleia-jubarte, perto
da ponte entre Brooklyn e Staten Island,
quando viu algo preto e branco, quase
do tamanho do barco, a aproximar-se da
superfície. Levou-lhe um momento para
perceber, e depois admitir, que estava a
olhar para uma jamanta.
MARÇO 2023 - N.º 325 69
planeta
360
PERU
A 5 000 metros,
a alpaca é a vida
Nas alturas dos Andes peruanos, perto de Cusco, as comunidades
quéchuas criam o primo do lama, segundo técnicas ancestrais
Somos
Lima
Acariciados por ventos e cre-
A púsculos dourados, os glacia-
res, lagoas e prados de elevada
altitude do Peru constituem
o território de uma das mais numerosas
populações de alpacas (Vicugna pacos)
do país. Aqui, nas aldeias de Phinaya e
de Sallani, milhares destes camelídeos
são criados por famílias que, há várias
gerações, perpetuam a antiga tradição
da pastorícia.
“A alpaca é toda a minha vida. É ela
que nos mantém por aqui. A comida que
compramos, a educação dos nossos filhos,
é ela que nos dá. Ela é tudo para nós”,
diz Yolanda Quispe Higuera, 40 anos, co-
munera na aldeia de Phinaya e guarda no
parque regional ACR Ausangate.
Os comuneros são os membros de uma
comunidade agrícola, em que o acesso aos
recursos é garantido em troca de um certo
número de contribuições, um tipo de or-
ganização espalhada pelos Andes. Criada
em 2019, e colocada sob a supervisão das
autoridades regionais do departamento
de Cusco, esta “área de conservação re-
gional” (ACR) é uma reserva preciosa de
água, com 13 picos cobertos de neve e a
imponente lagoa Sibinacocha. Existem aí
102 espécies de aves e mamíferos, assim
como 307 espécies de plantas, algumas
das quais constituem prados de altitude
de grande diversidade. É aqui que as al-
pacas pastam.
Característica da região, esta extraor-
dinária biodiversidade é um tesouro valio-
so face à crise climática. Aqui, as comuni-
dades empenhadas na proteção ambiental
e na criação sustentável de alpacas estão
AUTORA DATA
F Illa Liendo Tagle 14.06.2022
70 MARÇO 2023 - N.º 325
a construir um futuro melhor. Brancas,
castanhas ou cinzentas, as curiosas alpacas
vêm ao encontro do visitante, assim que
atravessamos a passagem de Jahuaycate, a
uma altitude de 5 070 metros. Na ausência
de culturas capazes de resistir à geada,
neve e chuva que caracterizam estes picos,
são os camelídeos que tornam possível
a vida das aldeias andinas do distrito de
Pitumarca: a venda de lã de alpaca é a
sua única fonte de rendimento. A 4 890
metros acima do nível do mar, é a alpaca
que torna possível a presença humana: ela
fornece à população local não só a lã mas
também a sua carne e o combustível – o
excremento seco.
Tradição protege ambiente
Em quíchua, “criar” diz-se uyway, mas
a palavra tem um significado mais amplo,
mais generoso. As famílias alpaqueras
criam o animal com paciência e ternura
– mas, ao mesmo tempo, as alpacas tam-
bém criam, à sua maneira, estes homens
e mulheres.
A criadora Domitila Cono Bedoya, 30
anos, também é comunera nesta comuni-
dade e guarda de parque no ACR. Ela conta:
“Comecei muito pequena a acompanhar a
minha mãe aos pastos. Hoje, trabalho na
melhoria genética do meu rebanho. Iniciei
a criação seletiva há quatro anos, e hoje
aumentei o preço das minhas alpacas em
um terço: a sua lã é de melhor qualidade.”
A domesticação da alpaca nos Andes
peruanos remonta a mais de 7 000 anos.
Como Elmo León recorda no seu livro 14
000 años de alimentación en el Perú, as
escavações arqueológicas mostraram que o
TRADUTORA
Helena Araújo
A domesticação animal foi criado des-
da alpaca nos de o início pela sua lã.
Andes peruanos Todos os anos, ao
remonta a mais selecionar os melhores
de 7 000 anos machos e fêmeas para
reprodução, ao rodar
as pastagens onde o rebanho se alimenta
para melhor preservar o solo, ao cuidar
da manutenção das nascentes, a família
de Domitila perpetua esta tradição mile-
nar. Tudo isto com um desejo constante
de adaptação aos novos desafios, e hoje
em dia, em particular, à crise climática.
Com rebanhos de 200, 500 ou 1 000
cabeças, estas aldeias andinas estão em-
penhadas em proteger o ambiente. A alta
qualidade da lã de alpaca produzida é a
prova disso.
Esta preocupação com a natureza inclui
a proteção dos pastos, como o fizeram os
seus antepassados. Os criadores de hoje
retomaram assim a prática do pastoreio
rotativo em áreas delimitadas, para dar
tempo à vegetação para se renovar e for-
necer comida de qualidade às alpacas.
Salomé Huillca Mallku, 61 anos, que
acaba de se instalar ao pé da grandiosa
lagoa Sibinacocha, explica: “A criação de
alpaca é uma tradição na nossa região,
FOTO: GETTYIMAGES
sempre foi assim. E, para aproveitar ao
máximo os nossos pastos, a minha família
e eu somos um pouco nómadas, mudan-
do-nos, de quatro em quatro meses, para
a nossa segunda casa.”
Don Salomé é um dos comuneros
mais antigos da região. Fala em quíchua
e diz-nos que em fevereiro, na altura do
Carnaval, algumas famílias ainda praticam
a challasqa. Durante esta cerimónia tra-
dicional, os habitantes dão graças à alpaca
que os sustenta e rezam à Pachamama
[Mãe Terra] para que as jovens alpacas
nasçam saudáveis: num coro de cânticos
alegres, uma chuva de pétalas de flores e
serpentinas multicoloridas é atirada aos
rebanhos.
Durante a challasqa, os homens tam-
bém agradecem aos picos e glaciares que
os rodeiam, particularmente à montanha
Ausangate, considerada por muitos como
a maior apu – “montanha sagrada” – desta
parte sul dos Andes peruanos. De acordo
com muitas lendas, a alpaca terá nascido
nas entranhas do Ausangate.
Atualmente, a alpaca desempenha
um papel fundamental na preservação do
estilo de vida andino. A continuação do
pastoreio e da comercialização da lã anda
de mãos dadas com uma melhor proteção
dos frágeis ecossistemas andinos.
Tal como no princípio da reciprocidade
que se coloca o uyway entre o homem e
o animal, também existem laços estrei-
tos entre a agricultura alpaca e o futuro
do Peru e do planeta. Face às ameaças e
desafios das alterações climáticas, os co-
muneros e as comuneras do ACR Ausan- Atualmente, a alpaca
gate são baluartes para proteger os 23 700 desempenha um papel
hectares de glaciares e 35 300 hectares
de pastagens de montanha que fazem um fundamental na preservação
trabalho valioso na captação e filtragem da do estilo de vida andino.
água armazenada no subsolo. As pastagens A continuação do pastoreio
andinas também contribuem para a luta
contra o aquecimento global ao captura- e da comercialização da lã
rem CO2 da atmosfera. anda de mãos dadas com uma
Há séculos que estas comunidades an-
dinas têm vindo a perpetuar a agricultura
melhor proteção dos frágeis
pastoral alpaca a uma altitude de mais de ecossistemas andinos
4 000 metros. Esta é uma atividade eco-
nómica sustentável, especialmente se os
criadores puderem aceder a melhores e
novos mercados para vender a sua pro-
dução de lã, e uma forma promissora de
proteger estes ecossistemas de grande al-
titude. Este é o compromisso que Yolanda,
Domitila, Don Salomé e outros renovam
todos os dias.
MARÇO 2023 - N.º 325 71
 ECOBREVES
planeta

360
AS GRANDES E AS PEQUENAS HISTÓRIAS SOBRE O MEIO AMBIENTE

ECOSSISTEMA
A AMEAÇA DOS RATOS

Os ratos estão a desestabilizar os recifes de

coral e a afetar o comportamento das suas
espécies endémicas. Baseado num artigo na
revista NATURE, o site Mongabay traça esta
longa cadeia de consequências.
Quando os humanos chegaram às ilhas
tropicais, também permitiram que os
clandestinos se instalassem lá. “Os ratos
e outros roedores entram frequentemente
em barcos. Durante centenas de anos, eles
colonizaram ilhas no mundo”, explica o
site ambiental Mongabay, que adianta que
a presença destes roedores invasivos em
certas ilhas tem, por efeito dominó, afetado
o comportamento dos peixes nos recifes
circundantes.
“Quando espécies invasivas, como o rato-
preto, se instalam nas ilhas [...], regalam-
se com ovos e pintos de aves marinhas e
dizimam as populações das ilhas”, explica. E
quando há uma redução no número de aves,
diminui o número de excrementos, ricos em
nutrientes, e que favorecem o crescimento
de algas, plantas que servem de alimento
aos peixes. Por outras palavras, sem
excrementos suficientes, os peixes do recife
XADREZ podem não ser capazes de se alimentar
POLUIÇÃO IMPEDE CONCENTRAÇÃO adequadamente. E, ainda, afetar o seu
comportamento, prossegue o Mongabay,
Se jogar xadrez em ar saturado, com dióxido de carbono ou partículas finas, poderá que destaca casos de maior agressividade
ter dificuldade em tornar-se campeão mundial. É o que diz um estudo citado pelo entre os animais devido à escassez de
diário britânico THE GUARDIAN. “Os grandes jogadores de xadrez cometem mais alimentos.
erros quando a poluição do ar é elevada”, diz o jornal. Estas mudanças no ecossistema podem
Os resultados são de um estudo, originalmente publicado na revista MANAGEMENT ter, inclusive, repercussões para os seres
SCIENCE sob o título “Qualidade do ar interior e tomada de decisões estratégicas”, humanos. Dena Spatz, cientista na Pacific
que, utilizando modelos informáticos, mostra que “com uma modesta subida Rim Conservation, aponta, por exemplo, as
do nível de partículas finas, a probabilidade de os jogadores cometerem um alterações na “saúde da pesca nos recifes,
erro aumenta em 2,1% e a importância destes erros aumenta em 10,8%”. Um que são importantes fontes de proteína
crescimento de 10 microgramas de partículas finas por metro cúbico é suficiente para os seres humanos”. A solução? Mais
para aumentar a taxa de erro. esforços e recursos na erradicação dos ratos
Para chegar a esta conclusão, os cientistas estudaram o desempenho de 121 das ilhas.
jogadores de xadrez, em três torneios, de sete etapas, na Alemanha, em 2017, 2018
e 2019. Mais de 30 mil jogadas foram analisadas e comparadas com “jogadas
ótimas” determinadas pelo Stockfish, um motor de xadrez, gratuito e de código
aberto, utilizado para calcular a melhor jogada num jogo.
Nos torneios foram instalados sensores para medir dióxido de carbono, partículas
finas PM2,5 (2,5 microns ou menos) e temperatura. Depois de tomar em
consideração outros fatores, como o ruído e as diferenças de temperatura, bem
como de analisar quase 20 anos de dados sobre campeonatos alemães de xadrez,
os investigadores não têm dúvidas: “Quando as pessoas estão expostas a níveis
mais elevados de poluição atmosférica, cometem mais erros, e estes erros são
mais graves”, sublinha Juan Palacios, um dos coautores da publicação.
Dados que, cada vez mais, os campeões de xadrez, tais como Magnus Carlsen,
estão a ter em conta na sua preparação e que podem ter consequências na
organização de torneios de xadrez.

72 MARÇO 2023 - N.º 325

 AUSTRÁLIA
MINA REJEITADA
PARA PROTEGER
CORAIS

Pela primeira vez na sua

história, a Austrália impediu o
desenvolvimento de uma mina
de carvão, ao abrigo de uma
lei de proteção ambiental e
preservação da biodiversidade.
Tanya Plibersek, a ministra do
Ambiente e da Água, disse
que o projeto representava um
risco demasiado grande para
a Grande Barreira de Corais,
BIODIVERSIDADE riachos de água doce e lençóis
freáticos locais, relata o THE
BORBOLETAS-MONARCA RECUPERAM
SYDNEY MORNING HERALD.
Uma decisão inédita, uma vez
As fascinantes borboletas migratórias, que percorrem quatro que, como salienta o site da
mil quilómetros por ano, entre o Canadá e o México, fizeram BBC, “embora os governos
a sua tradicional escala de inverno na Califórnia, onde os estaduais já tenham rejeitado
voluntários realizaram a sua contagem anual. Os números são propostas antes, esta é a
encorajadores, mas as espécies em vias de extinção ainda não primeira vez que um ministro
estão fora de perigo. federal do Ambiente usa os seus
No século passado, milhões de monarcas agarravam-se aos poderes para o fazer”.
ramos de eucaliptos em Monterey Bay, Califórnia, para passar o O sítio mineiro em questão
inverno antes de continuarem a viagem ao México. Mas em 2020, fica em Queensland, a apenas
os voluntários da Sociedade Xerces, que organiza a contagem 10 quilómetros da orla da
Grande Barreira de Corais,
anual da população nos “santuários” californianos, estavam Património Mundial da
pessimistas quanto ao futuro da majestosa borboleta laranja e UNESCO. “O projeto teria
preta, com menos de dois mil espécimes contados. O declínio envolvido a construção de dois
observado desde o início do século, atribuído às alterações poços abertos para extrair até
climáticas e à destruição do habitat da borboleta, parecia 10 milhões de toneladas de
inexorável. carvão por ano”, diz o site da
No entanto, o ano 2021 trouxe uma esperança renovada, com uma televisão australiana ABC. Estava
população estimada de quase 250 mil espécimes, impulsionada destinado para funcionar durante
por condições naturais e climáticas ótimas na Costa Oeste norte- cerca de 20 anos, e o carvão
-americana. E a contagem de 2022 parece confirmar a tendência, extraído seria exportado para a
com uma população estimada de mais de 335 mil indivíduos. produção de aço, mas também
para cozinhar.
Embora estes números sejam muito encorajadores, “eles ainda
estão abaixo da meta anual de 500 mil monarcas, contados em
cinco anos seguidos, o que é necessário para a recuperação da
espécie”, observa a edição norte-americana do EL PAÍS. O diário
espanhol salienta que a monarca continua na lista das espécies
ameaçadas, na qual é considerada “em perigo”, a duas categorias
de distância da “extinção”.
Segundo os especialistas, este inseto é muito resistente e
capaz de se reproduzir muito rapidamente, se as condições
forem adequadas. Mas as alterações climáticas, com as suas
ondas extremas de frio - ou calor -, apresentam um desafio de
adaptação cada vez mais difícil.
A monarca enfrenta também a destruição do seu habitat pelas
atividades humanas, privando a espécie “dos seus locais de
reprodução e das plantas de que se alimenta”, assinala o EL PAÍS.
“No México, uma das principais ameaças à espécie é o abate
ilegal de árvores, que está a dizimar aquelas em que as borboletas
hibernam”, aponta o diário.

FOTOS: GETTYIMAGES MARÇO 2023 - N.º 325 73

 BOMBAIM
Surpreendente
ninho de flamingos
TODOS OS INVERNOS, UMA ONDA DE AVES LIMÍCOLAS PERCORRE
AS MARGENS DA CIDADE INDIANA, UMA DAS MAIS POPULOSAS
DO MUNDO. O FENÓMENO, QUE É RECENTE, COMEÇA A SER
ESTUDADO POR CIENTISTAS E LEVANTA MUITAS QUESTÕES SOBRE AS
ESPECIFICIDADES E A EVOLUÇÃO DOS ECOSSISTEMAS URBANOS

Hakai Magazine
Vitória (Canadá)

FOTOS: GETTYIMAGES
 Natureza
A
Ainda nem são 8 horas da manhã e o sol já
bate intensamente sobre o pequeno barco
ancorado a um quilómetro da margem
oriental de Thane Creek, uma enseada que
separa a cidade insular de Bombaim do
continente indiano. Um trapo amarelo,
utilizado como ponto de referência pelos
cientistas, agita-se ao vento à frente da
fiada de mangais que percorre a costa.
Atrás das árvores, entreveem-se edifícios
altos por entre a névoa de poluição; diante
deles veem-se milhares de flamingos, e
mais vão chegando de outros lugares de
poiso próximos.
À medida que o sol se ergue, a maré
desce e a parte mais baixa da baía recua,
deixando à vista os lodaçais que alimen-
tam os flamingos. O exército cor-de-rosa
avança.
No pequeno barco, Mrugank Prabhu
pega na máquina fotográfica que tem no
saco, instala o telescópio e começa a con-
tar. Este cientista trabalha para a Sociedade
de História Natural de Bombaim (BNHS),
uma associação antiga, com 139 anos, que
se dedica à conservação de espécies e à
proteção da biodiversidade por toda a
Índia. O organismo coordena uma am-
biciosa missão de observação a dez anos
que pretende compreender um fenóme-
no único: todos os invernos, bandos de
milhares de flamingos-rosados e de fla-
mingos-pequenos [também cor-de-rosa]
dirigem-se para Bombaim, formando um
mar rosa sobre um fundo de arranha-céus,
pontes e refinarias de petróleo na baía de
Thane Creek, que se estende ao longo de
26 quilómetros.
AUTORA
F Vaishnavi
Chandrashekhar
76 MARÇO 2023 - N.º 325
vista, desastrosas para a natureza, mas
que se tornam, na realidade, uma dádiva
para algumas espécies. Aliás, por detrás do
ccinzento [urbano] esconde-se uma imensa
rriqueza biológica”, explica Sunjoy Monga,
um naturalista local com muita experiên-
u
ccia, membro da BNHS, que encabeçou um
eestudo sobre a fauna em Bombaim.
V
Vida e ambiente
H
Hoje em dia, os flamingos estão a mudar
a abordagem ecológica da cidade, mos-
ttrando o quanto a vida selvagem pode
ccontribuir para a proteção do ambiente,
mesmo em meios onde está sujeita a uma
m
pressão extrema. Estas aves tornaram-se
p
uma fonte de orgulho para os habitantes
u
lo
locais. Nos últimos tempos, os cidadãos
ttêm organizado anualmente festivais e
ccorridas dedicados ao tema dos flamin-
gos, para sensibilizar a população quanto à
g
importância das zonas húmidas da região.
im
Em 2018, o governo local decidiu criar uma
E
rreserva natural para flamingos-rosados e
flamingos-pequenos, numa área de quase
fl
1 700 hectares, na baía e suas margens.
Porém, estas aves espantosas ainda
se
s encontram sob ameaça, neste caso
por uma ponte que está em construção
p
na parte inferior de Thane Creek, onde
n
a água do rio corre em direção ao porto
de Bombaim. Financiada pela autorida-
d
de regional encarregada do planeamento
d
do território, a investigação da BNHS – a
d
p
primeira, com uma duração tão longa, a
sser levada a cabo numa zona urbana, no
país – tem como objetivo determinar o
Esta convergência sazonal é fonte de impacto da construção desta ponte e de
deslumbramento em Bombaim, mas tam- outros empreendimentos, monitorizando
bém é algo misteriosa. o número de flamingos e a sua evolução
Foi apenas nos anos 1990 que os fla- biológica, bem como as características
mingos começaram a chegar em quantida- bioquímicas da baía.
de a Bombaim. A propósito, o crescimento A meio caminho, a investigação já re-
da cidade, nos anos 1970 e 1980, levou a velou algumas surpresas: na realidade, por
um aumento no volume de esgotos não enquanto, as aves limícolas parecem estar
tratados que fluíam em direção a Thane a adaptar-se bem à construção da ponte,
Creek, o que favoreceu a proliferação de uma vez que continuam presentes a cerca
algas – o principal alimento dos flamin- de 500 metros do estaleiro. Contudo, as
gos. A zona transformou-se, assim, numa mesmas mudanças ambientais que con-
manjedoura para os pernaltas, cujo nú- tribuíram para as atrair para o local estão
mero aumentou ao longo das últimas duas a alterar os lodaçais de uma forma que
décadas, passando de 10 mil, em 2007, poderia pôr em risco o futuro destas aves.
para cerca de 130 mil, este ano. Temos tendência a associar as grandes
Segundo os especialistas, este fenó- aglomerações de flamingos aos lagos sal-
meno ilustra a riqueza e a complexidade gados e alcalinos do Quénia e da Tanzânia.
dos ecossistemas costeiros urbanos na E, embora estes possam sobreviver tanto
Índia. Por vezes, “as atividades huma- em habitats de água doce quanto de água
nas criam condições que são, à primeira salgada, o flamingo-pequeno só se encon-
tra em habitats de água salgada, e a sua
espécie é considerada “quase ameaçada”
DATA TRADUTORA pela União Internacional para a Conser-
06.12.2022 Margarida Bak Gordon vação da Natureza (UICN). De facto, é na
Índia que se encontra a maior população

OS FLAMINGOS ESTÃO A MUDAR A ABORDAGEM
ECOLÓGICA DA CIDADE, MOSTRANDO O QUANTO
A VIDA SELVAGEM PODE CONTRIBUIR PARA A PROTEÇÃO
DO AMBIENTE, MESMO EM MEIOS ONDE ESTÁ SUJEITA
A UMA PRESSÃO EXTREMA. ESTAS AVES TORNARAM-SE
UMA FONTE DE ORGULHO PARA OS HABITANTES LOCAIS
de flamingos-pequenos fora do continen-
te africano, principalmente nos desertos
salgados do estado de Gujarat [a norte de
Bombaim].
Ainda que os registos históricos do
flamingo em Bombaim sejam escassos,
um documento de 1891 menciona a sua
presença ocasional, como ave de arriba-
ção, na região. Pensa-se que os bandos
de flamingos que chegam, hoje em dia,
provenham, em grande parte, de áreas
de reprodução no estado de Gujarat, a
cerca de 600 quilómetros dali. A propó-
sito, seis aves, que foram equipadas com
transmissores de localização em março [de
2022], migraram de Bombaim para essa
região. Como explica Mrugank Prabhu, os
investigadores da BNHS estão a contar com
a instalação de mais transmissores, para
descobrir, nos próximos anos, os outros
destinos dos flamingos.
Entretanto, e graça aos esforços da
BNHS para anilhar estas aves, os cien-
tistas já puderam verificar que algumas
delas regressam a Bombaim, ano após ano.
Desde o momento em que alguns flamingos
descobriram esta zona de alimentação rica
em fezes, muitos outros se juntaram. É
como se tivessem memória dos lugares,
observa Mrugank Prabhu.
A área em questão é delimitada, a oeste,
por 400 km2 de instalações portuárias e
nucleares, e, a leste, por arranha-céus
e outro porto. No meio, contudo, ainda
existem zonas da natureza que prosperam:
estima-se que vivam, nos 7 km2 de loda-
çal de Thane Creek, 65 espécies de aves
migratórias, e que outras 100 espécies de
aves habitem os mangais circundantes.
Concerto de cornetas
Para terem uma ideia do número de fla-
mingos, Mrugank Prabhu e a sua equipa de
oito pessoas levam binóculos e telescópios
e vão de barco contar as aves ao longo de
um transecto de um quilómetro, marcado
por bandeiras coloridas penduradas nos
mangais. À entrada da baía, que tem vários
quilómetros de largura, os membros da
equipa, cada um num barco, têm de remar
mais perto da costa, para que consigam lá
estar no momento da chegada das aves,
quando a água recua. Desta forma, podem
posicionar-se no meio da ação e fazer uma
contagem fiável. Para o conseguirem, têm
assim de esperar horas, parados naquele
local, até ao próximo ciclo de maré.
Vistos de perto, os flamingos não são a
tal massa cor-de-rosa uniforme. Estamos
em abril e muitos dos jovens flamingos-
-pequenos têm uma cor cinzenta-esbran-
quiçada e ainda não adquiriram os tons
rosados. Os flamingos-rosados são mais
altos que os flamingos-pequenos, mas,
embora constituam uma população maior
a nível mundial, aqui estão, sem dúvida,
em menor número. Se, ao longe, poderia
soar-nos a um concerto de cornetas, ao
aproximarmo-nos ouvimos os guinchos
de cada um, lembrando sons diferentes,
desde flatos a grunhidos de porco.
Estas aves alimentam-se continua-
mente, percorrendo os lodaçais, pro-
curando comida no solo com os bicos e
extraindo-a da água lamacenta com o
próprio sistema de filtração. Enquan-
to os flamingos-rosados têm uma dieta
variada, que inclui mexilhões, camarões e
cianobactérias (também conhecidas como
“algas azuis-esverdeadas”), os flamingos-
-pequenos comem principalmente cia-
nobactérias. Ora, as cianobactérias estão
presentes em grandes quantidades nos
lodaçais de Thane Creek, mais do que nou-
tras baías do estado, explica Reshma Pitale,
a bióloga marinha que lidera a equipa da
BNHS que monitoriza a qualidade da água
e do solo na baía. Aliás, a densidade das
cianobactérias parece aumentar a partir
de novembro, precisamente quando os
flamingos começam a chegar.
Para Pawan K. Dadheech, professor
de Microbiologia na Universidade Cen-
tral do Rajastão e coautor de um estudo
internacional, realizado em 2016, sobre a
alimentação do flamingo-pequeno, trata-
-se de um processo lógico. Na realidade,
explica, o flamingo-pequeno prefere um
certo tipo de cianobactérias, as Arthros-
pira, ou Spirulina, que precisam de água
alcalina.
Embora Thane Creek esteja cheia dessas
algas, as chuvas das monções [no verão]
diluem a água da baía, baixando a sua al-
calinidade e, portanto, a quantidade de
cianobactérias presentes. Por outro lado,
quando em setembro as chuvas param e
as temperaturas sobem, “as condições são
favoráveis à produção de [ciano] bactérias,
especialmente de Arthrospira”. Os testes,
realizados pela equipa da BNHS, deverão
clarificar esta teoria, no próximo ano.
No entanto, não é apenas por haver
mais comida – devido à água dos esgo-
tos – que os flamingos são atraídos para
esta zona. Ao examinar com atenção as
imagens de satélite da baía, Mrugank
Prabhu observou que, a partir dos anos
1980, houve um aumento brutal dos de-
pósitos de lama, que estão na origem dos
grandes lodaçais – lugares de eleição dos
flamingos. Os pescadores mais velhos con-
firmam esta transformação, recordando
que antes podiam caminhar na areia da
praia, que ocupava grande parte da baía
nos anos 1970 e 1980. Atualmente, a areia
desapareceu e deu lugar à lama. Segundo
Mrugank Prabhu, os depósitos de lama
são de certeza consequência do acumular
de entulho e de águas de esgoto, resul-
tantes da expansão urbana nas margens
orientais, que são empurrados para a baía
pelas monções.
A presença de outras aves limícolas
migratórias em Thane Creek pode estar
também a aumentar, embora seja preci-
MARÇO 2023 - N.º 325 77
 Natureza
so recolher dados, durante mais alguns
anos, para confirmar esta tendência, diz
o investigador. O caso das pequenas aves
limícolas é interessante, explica, porque
tanto o lugar de origem quanto o lugar
destino são muitas vezes um mistério.
Não se sabe, por exemplo, de que região
do Ártico provém o pilrito-pequeno, que
atravessa a baía todos os anos. Em junho
de 2021, um pilrito-de-bico-comprido,
que nidifica na Sibéria, foi avistado a 4 500
quilómetros de distância – em Tianjin, na
China –, depois de ter sido anilhado aqui.
Em abril [de 2022], uma perna-vermelha-
-comum, anilhada em 2018 pela equipa
da BNHS, foi encontrada na Rússia.
Rota migratória
A região de Bombaim parece ser uma
paragem importante no eixo migratório
da Ásia Central, uma rota de migração
de aves entre o oceano Ártico e o oceano
Índico, explica Mrugank Prabhu, e prova-
velmente sempre foi assim. A campanha
de anilhagem levada a cabo no contexto
da investigação, com mais de 15 mil aves
anilhadas desde 2018, deverá fornecer-nos
mais informação sobre as rotas percorridas
por estes animais.
Mrugank Prabhu e a sua equipa pla-
neiam também analisar as áreas de repro-
dução dos flamingos no estado de Gujarat,
durante o próximo ano, para ver se existem
fatores que os poderiam levar a procurar
alimento noutro lugar. Será que uma per-
turbação do habitat de reprodução poderia
forçar os flamingos a permanecerem em
Bombaim todo o ano, e não apenas de
forma sazonal? É pouco provável, tendo
em conta a violência das monções na re-
gião e o stresse de um ambiente urbano
agitado, afirma o cientista: “Em relação
à reprodução, é completamente diferente
[da alimentação]. Os flamingos precisam
de um lugar seguro e isolado, onde não
serão incomodados. Também é necessário
que haja muita lama para construírem os
montículos que se tornarão mais tarde os
ninhos.” Com pouca precipitação e uma
localização remota, os desertos salgados
de Gujarat são um espaço mais seguro para
a nidificação.
Paradoxalmente, em Bombaim, os
lodaçais dos quais os flamingos depen-
dem estão agora a ser ameaçados pelo
desenvolvimento excessivo de mangais
– crescimento também influenciado pelos
nutrientes dos esgotos. Como os mangais
não se podem expandir para o interior
da cidade, crescem na baía, explica-nos
Mrugank Prabhu. Imagens de satélite,
mostram que os mangais, reduzindo a
largura da via fluvial, podem invadir os
78 MARÇO 2023 - N.º 325
lodaçais. Porém, sabemos que os mangais
são um tampão essencial contra as marés
das tempestades e a subida do nível das
águas; e servem também de viveiros para
os peixes. O abate foi proibido no estado
de Maarastra, em 2018, após dezenas de
anos de batalhas legais para impedir a sua
destruição. Devido a essa proibição, os
responsáveis pela reserva de flamingos
de Thane Creek não podem remover os
rebentos dessas plantas sem a autorização
do tribunal.
A complexidade dos ecossistemas cos-
teiros e urbanos desafia por completo a
visão tradicional da proteção ambiental
– incluindo o valor das normas gerais de
conservação – e põe em evidência a im-
portância do estudo da BNHS, defende K.
S. Gopi Sundar, um cientista da associa-
ção Seva Mandir, de Udaipur, na Índia.
“Os ecossistemas urbanos na Índia não
são bem percebidos”, diz. A abordagem à
conservação adotada inspirou-se frequen-
temente na experiência do Ocidente ou
na gestão florestal, quando, na realidade,
as condições são diferentes, sublinha o
investigador. Por exemplo, a diversidade
de aves nas zonas urbanas na Índia é em
geral muito maior do que nos países com
climas temperados. “Não podemos usar
um manual europeu para gerir as nossas
zonas húmidas.”
Os habitats costeiros são meios di-
nâmicos, influenciados tanto pela terra
quanto pelo mar, acrescenta Reshma Pi-
tale. Os solos e a biodiversidade de Thane
Creek mudam a montante e a jusante, e
consoante as marés e as estações do ano.
Além disso, embora a poluição seja bené-
fica para os flamingos, é mortal para os
peixes. A diversidade de peixes na baía
colapsou a partir dos anos 1980, passan-
do de 22 espécies identificadas, no início
dos anos 1990, para 12, em 2000, segundo
um estudo realizado nesse mesmo ano. As
causas deste declínio são, por um lado, a
poluição industrial das décadas anteriores,
e, por outro, o aumento dos esgotos e ou-
tros detritos ao longo das últimas décadas.
As alterações na quantidade e na com-
posição da lama podem também ter afetado
os organismos presentes nos lodaçais. As-
sim, nos últimos dois anos, Reshma Pitale
e a sua equipa observaram uma misteriosa
explosão de espécies exóticas de bivalves.
“Será que isto mudará o meio, eliminando
outros organismos?”, pergunta a bióloga.
“Não sabemos o que vai acontecer!.”
Protetores do mangal
No dia 22 de abril, Dia da Terra, um peque-
no grupo de residentes da classe média-al-
ta reuniu-se num trilho que acompanha
um mangal denso em Nova Bombaim, a
cidade que fica na margem oriental da
enseada de Thane Creek. Este mangal e
também os outros mangais, e as lagoas
rasas circundantes, são lugares de descanso
para os flamingos quando a maré alta co-
bre os lodaçais. Os habitantes da cidade,
todos membros da rede de cidadãos Save
Navi Mumbai Environment, que trabalha
para proteger mangais e zonas húmidas da
área, apresentam-se, contando como se
tornaram ativistas pela proteção do am-
biente. Para muitas destas pessoas, foi a
destruição dos espaços verdes, perto dos
domicílios, que as afetou numa primeira
fase. Um profissional, que trouxe o filho
pequeno consigo, explica que se juntou à
causa depois de ter visto desaparecer uma
lagoa perto de casa, devido a um projeto de
desenvolvimento urbano. Outro homem
conta que foi com a mulher ao Quénia,
há uns anos, para observar flamingos no
lago Nakuru, sem saberem que também
existiam na sua própria cidade. “Fomos
tão estúpidos!”, admite.
Depois do encontro, Sunil e Shruti
Agarwal, os cofundadores da rede Save
Navi Mumbai Environment, levam-me
para o seu apartamento, que fica numa das
centenas de torres construídas ao longo
das zonas húmidas da baía. Da varanda
do 13.º andar, vemos os mangais que fi-
zeram com que Sunil e Shruti se tornas-
sem ativistas pelo ambiente, e também
se avistam, quando a maré está alta, os
flamingos – motivo de adesão à causa para
outras pessoas.
Depois de se ter mudado para aquele
apartamento em 2013, a família Agarwal
teve de travar uma batalha contra o des-
bravamento de terras, levado a cabo para
construir um novo empreendimento de
habitação e um campo de golfe, naque-

SERÁ QUE O ‘HABITAT’ CHEIO DE VIDA DAS ZONAS
HÚMIDAS, ONDE INTERESSES HUMANOS
E MOTIVAÇÕES ECOLÓGICAS CONCORREM, PODERÁ
CONTINUAR A ACOLHER ESTAS AVES NOS ANOS
QUE AÍ VÊM? OS HABITANTES DA METRÓPOLE ASSIM
O ESPERAM, CLARO. EM TODO O CASO, POR AGORA,
OS FLAMINGOS TRAZEM UM TOQUE INESPERADO
DE BELEZA E DE ESPERANÇA À CIDADE ACINZENTADA
las zonas húmidas. Na altura, os vizinhos
disseram que não havia qualquer hipótese
de vencer a batalha, uma vez que o pro-
motor do projeto era uma filial do grande
grupo empresarial Adani. Mas, em 2018, o
Supremo Tribunal de Bombaim embargou
a obra, o que, para este casal, foi já uma
primeira grande vitória. Desde então, têm
vindo a lutar contra outros projetos de
desenvolvimento urbano em zonas hú-
midas vizinhas, e procuram sensibilizar
a população para a importância da bio-
diversidade local. Envolveram o filho e a
filha, bem como amigos, na organização
de festas no bairro, com jogos e atividades
para crianças e uma maratona anual, para
informar as pessoas sobre a situação dos
flamingos-rosados e dos flamingos-pe-
quenos – chama-se Run for Flamingos
e, em 2020, inscreveram-se nela cerca
de duas mil pessoas. “As zonas húmidas
não poriam ninguém a correr…”, nota
Surabhi, a filha dos Agarwal.
Os responsáveis pela reserva, gerida
pela autoridade florestal nacional, estão
também a promover o turismo de peque-
na escala, centrado nos flamingos, com
a esperança de educar o público sobre
as ameaças a estas aves e ao seu habitat.
Antes da pandemia de Covid-19, um
novo centro de educação marinha e de
passeios de barco, para ver os flamingos,
atraía perto de 17 mil visitantes por ano,
e recebia inclusive autocarros cheios de
crianças vindas da escola, explica Virendra
Tiwari, o funcionário sénior da autoridade
florestal que está à frente da reserva. O
departamento lançou um plano de gestão
da reserva ambicioso que prevê medidas de
segurança acrescidas, para impedir qual-
quer construção ilegal, a criação de um
grande museu nas margens da baía e mais
barcos para passear – mas não demasiados,
para não perturbar as aves. O responsável
espera que a recente classificação, segun-
do os critérios da Convenção de Ramsar
[um tratado assinado em 1971] da reser-
va como “zona húmida de importância
internacional”, venha também limitar a
destruição das “zonas húmidas satélite”.
Estas últimas, designadas de lugares de
repouso, encontram-se fora da reserva
de 16,8 km2, mas são consideradas parte
de uma zona-tampão bastante maior, de
48 km2, da qual se deverá garantir uma
“utilização sensata”.
Se, por um lado, a pandemia impli-
cou a suspensão de inúmeras atividades
na reserva, por outro, fez crescer a po-
pularidade dos flamingos-rosados e dos
flamingos-pequenos. Aquando do confi-
namento de 2020, aos habitantes de Nova
Bombaim, presos dentro das suas casas,
restava-lhes contemplar o espetáculo que
representavam milhares de aves limíco-
las, nidificando na maré-cheia, mesmo
ali debaixo das suas janelas. Nesse ano, a
aparição dos flamingos foi particularmente
espetacular, percorrendo um céu subi-
tamente limpo, lembra Shruti Agarwal.
As fotografias e os vídeos de flamingos
tornaram-se virais, até em redes sociais
fora do país.
Maravilha acidental
Embora o flamingo seja um totem bas-
tante útil para a ecologia local, também
pode ser reduzido a um símbolo esvaziado
de significado, como constata a família
Agarwal. Por exemplo, no final de 2021, o
município decidiu batizar Nova Bombaim
de “Flamingo City” [“a cidade do Flamin-
go”], espalhando estátuas desta ave pelas
ruas e representando-a em murais. Mas
as organizações locais não impediram o
avanço dos projetos de desenvolvimento
nas zonas húmidas. Se o governo decidir
salvar as zonas húmidas, “serei a primeira
a sair à rua, mascarada de flamingo cor-
-de-rosa”, promete Shruti.
No lodaçal onde me encontro com
Mrugank Prabhu, o sol atingiu o ponto
mais alto e a maré está a subir. Os flamin-
gos recuam, pavoneando-se, em direção
à costa, sugando alimento à medida que
se deslocam. Enquanto a maré avança, vai
trazendo consigo lixo da cidade (pacotes
de batatas fritas, garrafas de cerveja, caixas
de medicamentos ou chinelos desempa-
relhados). Mrugank Prabhu tira as últimas
notas, arruma o telescópio e pega no remo,
pronto a remar contra as fortes correntes
da pré-monção. As contas do dia de la-
bor: 15 mil flamingos só no seu transecto.
À sua volta, alguns voam, esticando-se
como tacos de hóquei cor-de-rosa, para
alcançar os seus poleiros. O seu voo colo-
rido tem um certo lado fantasmagórico,
contrastando com a atmosfera enevoada
e com os arranha-céus.
Os flamingos de Bombaim são uma
maravilha acidental, que nasceu inad-
vertidamente na frágil interseção de dois
mundos: a cidade e a natureza. Será que o
habitat cheio de vida das zonas húmidas,
onde interesses humanos e motivações
ecológicas concorrem, poderá continuar
a acolher estas aves nos anos que aí vêm?
Os habitantes da metrópole assim o es-
peram, claro. Em todo o caso, por agora,
os flamingos trazem um toque inesperado
de beleza e de esperança à cidade acin-
zentada.
MARÇO 2023 - N.º 325 79
L L I V RO S
Leituras que nos ajudam
a compreender o mundo atual
Fuga para
a eternidade
Em abril de 1944, apenas dois meses antes
do desembarque das tropas aliadas nas
praias da Normandia, Rudolf Vrba, com
apenas 19 anos, alcançou uma proeza
quase singular: foi um dos poucos judeus
que conseguiu escapar do campo de
concentração de Auschwitz. Mas não só:
uma vez cá fora, ele escreveu, juntamente
com o seu companheiro de fuga, Fred
Wetzler, um relatório pormenorizado sobre
tudo o que se passava nos campos de
extermínio de judeus, criados pelos nazis.
Esse relatório chegou às mãos de Roosevelt
e de Churchill, e, segundo algumas fontes,
terá sido determinante para acelerar o
avanço das tropas aliadas, que, dessa
maneira, salvaram mais de 200 mil vidas.
A história de Vrba é agora contada, de uma
forma quase cinematográfica (no bom
sentido) e com rigor jornalístico, neste livro
que se lê quase de um fôlego – porque é
impossível parar ao fim de cada página.
O MESTRE DA FUGA
DE JONATHAN FREEDLAND
Tradução de João Pedro Tapada
BERTRAND EDITORA
80 JANEIRO 1999 - N.º 325
Os
monopolistas
Do início do século XVII até ao
final do século XIX, o mundo
foi dominado por grandes
companhias de comércio
monopolistas, que eram,
em simultâneo, os agentes
principais da expansão colonial
europeia. Essas companhias
estenderam-se por todo o lado,
assumindo o controlo de vastos
territórios e de muitos povos.
Sempre de uma forma ditatorial,
entrando em guerra com quem
lhes quisesse fazer frente. A sua
atividade comercial era garantida
através de exércitos próprios,
com os quais controlavam os
poderes locais e subjugavam
qualquer resistência. Nos
territórios que dominavam, as
pessoas eram vistas unicamente
como empregadas, clientes
ou concorrentes. Este livro
reúne as histórias de seis
desses monopólios, através
dos seus maiores líderes: Jan
Pieterszoon, da Companhia
Neerlandesa das Índias
Orientais; Pieter Stuyvesant,
da Companhia Neerlandesa
das Índias Ocidentais; Robert
Clive, da Companhia Inglesa
das Índias Orientais; Aleksander
Baranov, da Companhia Russo-
Americana; George Simpson, da
Companhia da Baía de Hudson,
e Cecil Rhodes, da Companhia
Britânica da África do Sul. Em
certa medida, o mundo em que
hoje vivemos ainda está moldado
por eles.
OS REIS MERCADORES
DE STEPHEN R. BOWN
Tradução de Mário Dias Correia
TEMAS E DEBATES
A guerra
por dentro
A notícia da invasão da Polónia pelas
forças alemãs, em 1939, que marcou
o início da II Guerra Mundial, foi dada,
em primeira mão, pela jornalista
britânica Clare Hollingworth. Poucos
anos depois, o princípio do fim
dessa mesma guerra – a invasão da
Normandia pelas tropas aliadas –
foi relatado, em primeiro lugar, pela
repórter norte-americana Martha
Gellhorn. Ou seja: dois acontecimentos
fundamentais do século XX chegaram
pela primeira vez ao conhecimento
do público graças ao trabalho de duas
mulheres, que foram, também, duas
extraordinárias correspondentes de
guerra. Nesses tempos, elas não só
desafiaram os perigos inerentes a um
cenário de batalha, como também
foram obrigadas a superar os inúmeros
obstáculos que lhe eram colocados,
num mundo quase inteiramente
masculino. “Não quero mulheres como
correspondentes de guerra no meu
exército!”, terá até gritado o comandante
britânico Bernard Montgomery, quando
Hollingworth chegou a Trípoli para se
“juntar” às tropas e relatar o confronto
com os alemães comandados por
Rommel. A realidade é que as
mulheres foram decisivas para contar a
verdade do que aconteceu na II Guerra
Mundial. As histórias de seis delas,
incluindo Gellhorn e Hollingworth,
são fascinantes e, ainda por cima,
muito bem contadas neste livro – que
se lê com prazer e com uma profunda
sensação de admiração pelo trabalho
e a vida destas correspondentes de
guerra.
AS ENVIADAS ESPECIAIS
DE JUDITH MACKRELL
Tradução de Isabel Pedrome
CASA DAS LETRAS
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MONTBLANC E FERRARI CRIAM UM NOVO

INSTRUMENTO DE ESCRITA DE EDIÇÃO LIMITADA
A Montblanc e a Ferrari unem-se para apresentar o mais recente
colecionável criado em parceria com a Ferrari Design, em homenagem
ao novo modelo da linha Icona: o Ferrari Daytona SP3.
Uma proeza na produção de instrumentos de escrita Montblanc,
condizente com o design e o desempenho do novo Daytona SP3, a
Edição Limitada Montblanc Ferrari Stilema SP3 assinala o mais recente
capítulo da parceria entre a pioneira em instrumentos de escrita
Montblanc e a lenda automóvel Ferrari.

IWC SCHAFFHAUSEN APRESENTA NOVO RELÓGIO

COM CALENDÁRIO: O PORTOFINO COMPLETE CALENDAR
Depois de levar o icônico calendário perpétuo de volta à linha Portofino, a IWC
Schaffhausen apresenta três novos modelos com calendário e complicações
de data. Ao destacar o extenso know-how e a experiência da fabricante suíça
de relógios de luxo na engenharia de complicações funcionais e robustas,
essas referências também refletem o código de design casual e elegante que
distingue a linha Portofino desde a sua criação, em 1984.

DECIDIDAMENTE BOUCHERON.
SINGULARMENTE MASCULINO!
Boucheron Singulier é um convite para uma viagem
ao coração da Maison, onde a tradição se funde
na modernidade. O resultado são criações que
ecoam o seu tempo. Singulier reflete este universo
num perfume ousado e equilibrado, reinventando
o tradicional acorde amadeirado com elegância e
espírito contemporâneo.

GANT FOOTWEAR APRESENTA

COLEÇÃO PRIMAVERA-VERÃO 2023
A nova coleção da GANT Footwear continua a inspirar-se no estilo
de vida da costa Oeste dos EUA, recuperando as silhuetas mais
icónicas dos anos 80. O fascínio pelas corridas de iates explodiu
nesta época e influenciou o interesse geral pela vela e pelo estilo de
vida náutico. Este estilo é o leit motiv para mergulhar nos arquivos
históricos das décadas de 80 e 90, ao encontro de modelos
premium e mais casuais, como parte natural da coleção.
F FLASHBACK

H
IMAGINAR O FUTURO
Em junho de 2022, a THE
ECONOMIST foi uma das
primeiras revistas, em todo o
mundo, a ir para as bancas (e
assinantes) com uma capa
desenhada por um programa
de Inteligência Artificial – um
artifício que, entretanto, foi
repetido por uma série de outras
publicações, um pouco por
todo o lado, após a “explosão”
do ChatGPT. A verdade, no
entanto, é que há muito tempo
que o tema da Inteligência
Artificial está presente nas
capas das grandes publicações
internacionais. Com uma
evolução notável: durante
décadas, as capas eram quase
sempre com robôs – utilizando,
até, a célebre imagem do filme
Metropólis, do realizador alemão
Fritz Lang, como sucedeu com
a THE ECONOMIST. Agora, com a
Inteligência Artificial cada vez
mais no centro das nossas vidas,
as capas evoluíram para outros
conceitos.

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