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SOCIEDADE E CULTURA ALEMÃ I

TEMA 1
Nota Introdutória
A complexidade dos conceitos de sociedade e cultura corresponde a uma
diversificação das disciplinas historiográficas que se podem distribuir em dois grupos
antagónicos, caracterizados como Ereignisgesichte (que comtempla sobretudo
acontecimentos isolados, importantes decisões políticas e personalidades eminentes
da história sociocultural) e como Strukturgeschichte (que analisa estruturas e
processos gerais). A historiografia alemã do século XIX é dominada por
Ereignisgeschichte, que se debruça principalmente sobre a história política.
Na tradição do idealismo do Estado, consagrado na filosofia de Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831), os historiadores privilegiaram a dimensão política e
nacional, considerando o Estado como sujeito e centro do processo histórico. As
clivagens que se verificam, desde o fim do século XVIII, entre o Estado e uma
sociedade em plena evolução, acabaram por dissociar também o objeto da
historiografia que se dividiu em escolas e tendências divergentes. Assim, em oposição
à corrente da história política numa perspetiva nacionalista, articularam-se, durante a
segunda metade do século XIX, disciplinas como a história social e a história cultural
que privilegiam o estudo duma zona intermediária entre o indivíduo e o Estado, a
sociedade civil, segundo Hegel.
A partir da dupla revolução dos anos 40, esta zona ganha, através do conceito
de sociedade, uma autonomia social e emancipatória, já que representa, face ao
imobilismo das estruturas estatais, as forças dinâmicas da evolução histórica.
Este conceito de sociedade era integrativo e abrangente no sentido de incluir
aspetos políticos, económicos, sociais e culturais, pelo que necessitava, tendo em
conta as ciências sociais emergentes, de uma metodologia e uma perspetivação
historiográfica diferentes. É desta diferenciação crítica da sociedade que surgem
também a teoria socialista de Karl Marx ( 1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) e
a sociologia alemã moderna que deve impulsos decisivos a Max Weber ( 1864-1920) e
Georg Simmel (1858-1918).
Por outro lado, o contexto do recém-formado Reich (1871) e do seu
conservadorismo favoreceu de novo os conceitos idealistas de liberdade, Estado e
personalidade, relegando-se as tendências de reforma e de democratização para
segundo plano. Assim, as correntes reformistas, acusadas de materialismo e
comunismo, foram marginalizadas política e socialmente. Esta marginalização afetou
também a história cultural oitocentista que integrava ainda a economia e a psicologia
social na sequência da perspetiva emancipatória da Aufklärung.
Cap. I. 1.5, “O conceito de cultura: definições”, pp.39-43.
O conceito de cultura: defi nições
Na tradição alemã, o conceito de cultura tem uma história particularmente rica e
controversa ( cf. cap. seguinte). Na perspetiva pragmática dos estudos da sociedade e
cultura alemãs, convém, antes de mais, delimitar uma definição que permita constituir
o próprio objeto de estudo.
A definição de cultura que Klaus P. Hansen defende nas suas recentes publicações
sobre a Kulturwissenschaft ( 1993, 1995), insiste, na sequência de E. B. Tylor (1871), na
aquisição social de saberes e comportamentos. O autor recorre igualmente a Max
Weber que estabeleceu a sociologia como ciência cultural ao insistir no carácter
cultural de todas as manifestações da vida humana desde que se reportem a ideias de
valor (Wertideen). Considerando, no sentido etimológico da palavra, a cultura como
transformação da natureza exterior e interior pelo trabalho segundo as normas da
tradição, Hansen opõe a natureza biológica à cultura do contexto de socialização.
Assim, apenas fenómenos que não servem fins materiais fazem parte da cultura: «Nur
das Geburtstagfeiern, aber nicht das Zähneputzen; nur das Frühstücken, aber nicht die
bei ihm statthabende Ernährung im biologischen Sinne» (Hansen 1995: 119).
Esta antinomia tradicional é problemática porque a natureza biológica do ser
humano manifesta-se sempre como culturalmente formada. Mesmo as atividades mais
«naturais» como comer, dormir e procriar mostram sincrónica e diacronicamente uma
grande diversidade que relega a função biológica e reprodutiva para um papel
secundário: «Menschliche Natur ist nirgends als voraussetzungslose,
ungesellschaftliche, reine Natur gegeben» (Rath 1994: 7). O que é «natural», o que faz
ou não parte da natureza, depende do contexto histórico e está sujeito à mudança,
como documentam, por exemplo, os estudos de Norbert Elias sobre as maneiras e
costumes sociais e a história da paisagem e dos espaços naturais ( cf. Cap. III.4 ).
Por outro lado, ao excluir a economia, o Estado e a política do domínio cultural,
Hansen ignora que os símbolos e rituais ligados às instituições estatais (bandeiras,
visitas oficiais, cerimónias comemorativas, etc.) fazem parte integral do poder político.
A economia também tem aspetos profundamente irracionais que se tornam cada vez
mais evidentes. Esta importância da dimensão simbólica e mítica da produção material
evidenciou-se sobretudo depois do fracasso total do «racionalismo» da economia
planificada de cariz socialista, que, aliás, era acompanhada duma permanente
mitificação e valorização simbólica. A questão crucial levantada pela definição de
Hansen é a de se saber se podemos considerar a dimensão cultural como uma
dimensão «suplementar» atribuída às atividades económicas, sociais e políticas ou se
temos de partir de uma perspetiva dialética: valores, tradições etc. criam e
desenvolvem atividades económicas, políticas e sociais, e estas práticas precisam da
dimensão simbólica para se manter e se desenvolver. Na prática, e mesmo do ponto
de vista histórico, parece impossível separar estas dimensões. Assim o etnólogo
Clifford Geertz propõe que se considere a cultura e a estrutura social como abstrações
diferentes a partir dos mesmos fenómenos.
Kultur ist das Geflecht von Bedeutungen, in denen Menschen ihre Erfahrung
interpretieren und nach denen sie ihr Handeln ausrichten. Die soziale Struktur ist die
Form, in der sich das Handeln manifestiert, das tatsachlich existierende Netz der
sozialen Beziehungen. (Geertz 1987: 99)
O próprio Hansen sublinha que o ser humano produz significados. Por isso, a
história deve incidir não sobre os objetos, mas sim sobre a mudança dos seus
significados. Esta história dos significados, fortemente influenciada pela histoire des
mentalités desenvolvida na França desde os anos 30, permite definir a cultura como
um sistema de estandardizações que abrangem as interações sociais e a comunicação,
mas também os pensamentos e sentimentos individuais. A cultura produz e determina
ideias, sensações e afetos, criando, assim, uma realidade específica. Na socialização do
indivíduo (família, escola, meio ambiente) internalizam-se as normas que orientam o
nosso agir, pensar e sentir, sendo a comunicação e a imitação os principais veículos
desta aprendizagem. Este carácter coletivo dos fenómenos culturais é ainda entendido
por Hansen na senda de Tylor. Convém, no entanto, adotar uma perspetiva mais
dialética, já que mesmo as manifestações e variantes possíveis da individualidade
fazem parte dum repertório coletivo que, por seu lado, se modifica também através de
inovações individuais.
No que diz respeito aos mecanismos do processo cultural, Hansen distingue
três níveis: 1.º os signos e símbolos, 2.º as instituições e 3.º o saber coletivo e as
mentalidades. O autor destaca historicamente três conceitos principais de cultura que
se prendem com uma maior ou menor insistência na função ou na substância da
cultura:
1) O conceito instrumental de cultura, presente sobretudo na
antropologia tradicional, que considera os fenómenos culturais como
determinados por necessidades biológicas: a cultura garante a sobrevivência
da espécie humana. Esta definição, porém, implica uma relação causal
simplista e ignora completamente a interação dialética entre indivíduo e
contexto histórico-cultural.
2) O conceito substancial de cultura que, desde Herder e até hoje,
considera a cultura como entidade ontológica, como substância permanente e
independente das diversas manifestações contextuais.
3) O conceito semiótico que, desde os anos 70, descreve a cultura
como universo de ações simbólicas. Nesta perspetiva, o ser humano aparece
como objeto e sujeito da cultura que transforma uma contingência indiferente
num conjunto coerente de significados. Este conceito, que prevalece também
na etnologia moderna, encontra-se concentrado na definição de Clifford Geertz
que considera a cultura como um sistema simbólico que pretende criar nos
homens disposições e motivações fortes, globais e duráveis, envolvendo ideais/
representações com uma tal aura de facticidade que as disposições e
motivações parecem corresponder totalmente à realidade ( cf. Geertz 1987:
48).
Central em todas estas definições atuais de cultura é o conceito de representação
que permite, segundo Chartier, delimitar e ligar três áreas fundamentais:
• as representações coletivas que, no interior dos indivíduos, reproduzem as
divisões do mundo social e organizam os esquemas de perceção e de
apreciação que permitem classificar, julgar e agir;
• as formas de expressão do ser social e do poder político que se manifestam
nos signos e nas «performances» simbólicas (imagens, rituais, estilizações da
vida);
• a condensação duma identidade ou dum poder garante de continuidade e
estabilidade num representante individual ou coletivo (Vierhaus/Chartier 1995:
49-50, cf. também a introdução em Chartier 1988).
Estas definições podem ser completadas pelas considerações «comportamentais» de
Kroeber/Kluckhohn (cf. Baumhauer 1982: 8 e segs.), para os quais a cultura consiste
em modelos implícitos e explícitos de comportamentos e para comportamentos,
adquiridos e transmitidos através de símbolos e na sua materialização em artefactos.
Os sistemas culturais são, assim, resultado de ações e condicionam, ao mesmo tempo,
futuras ações; a interação entre indivíduo e grupo social é reativa e criativa. Ao longo
da história, os esquemas culturais são adquiridos, modificados e substituídos por
outros. Os autores distinguem vários níveis de culture patteming: os modelos básicos e
sistémicos que prevalecem durante milhares de anos, os modelos secundários mais
instáveis que incluem organizações formais e sistemas de pensamento, e, acima de
tudo, os modelos universais que fornecem o quadro geral para as diferentes culturas e
a sua respetiva produção de valores e símbolos. No interior de cada cultura, podem-se
destacar ainda os modelos genéricos que caracterizam a simbolização, os patterns of
patterns.
O historiador vê-se, assim, confrontado com uma permanente reconstrução coletiva
da realidade material, social e espiritual. Considerada como complexidade organizada
de práticas e sistemas simbólicos, sancionados por um grupo social ou uma sociedade
inteira, a cultura tanto resulta da interação e da comunicação como as determina. Esta
definição é compatível com a perspetiva sistémica de Luhmann que propõe a
substituição do termo «cultura» pelo de «complexo simbólico-semântico». Para
Luhmann, a cultura é um arsenal de temas possíveis para a comunicação, utilizados
nos vários sistemas de interação:
Kultur ist kein notwendig normativer Sinngehalt, wohl aber eine Sinnfestlegung
(Reduktion), die es ermöglicht, in themenbezogener Kommunikation passende und
nichtpassende Beitrage oder auch korrekten bzw. inkorrekten Themengebrauch zu
unterscheiden. (Luhmann 1985: 224-225)
Para resumir as definições citadas numa síntese operacional, podemos dizer que são
essenciais os aspetos seguintes para a abordagem analítica duma determinada
cultura:
• A realidade é uma construção social, uma projeção considerada como
«natural» e «objetiva». O real, a contingência vivencial e factual, estão para
além da representação e simbolização culturais.
• História cultural e teoria cultural devem basear-se numa extensa
fenomenologia dos processos e artefactos que constituem uma cultura, para
descrever depois a mudança dos significados em determinados contextos
sociais e históricos.
• O significado e a função dos elementos culturais não têm existência objetiva,
mas resultam dum contexto comunicacional concreto que a análise pode
reconstruir. Mesmo os símbolos mais convencionais podem, na mesma época,
aparecer em contextos muito divergentes e vestir assim significados variáveis.
Esta variabilidade problematiza, como é óbvio, qualquer «dicionário» de
símbolos como também a semântica histórica tradicional que tenta «fixar»
significados fora do seu contexto concreto.

Estas premissas evitam a redução dos estudos culturais a uma acumulação de saberes
enciclopédicos e permitem tanto analisar a produção social de sentidos ( e a respetiva
materialização em artefactos) quanto salientar a importância destes processos ao nível
concreto e individual. Neste equilíbrio precário entre fenomenologia descritiva e
contextualização funcionalista reside o objetivo principal das ciências culturais que
pretendem reconstruir - e entender, assim, pelo menos parcialmente - realidades
vivenciais alheias e diferentes.

ATIVIDADES PROPOSTAS
1 - Resumir os principais aspetos da definição seguinte de cultura (Vierhaus/ Chartier
1995:16-17).
2 - Comentar a antinomia cultura - natureza na definição seguinte de Sigmund Freud
(1994: 116-117):
Unsere Kultur ist allgemein auf der Unterdrückung von Trieben aufgebaut. Jeder
einzelne hat ein Stück seines Besitzes, seiner Machtvollkommenheit, der aggressiven
und vindikativen Neigungen seiner Persönlichkeit abgetreten; aus diesen Beitragen ist
der gemeinsame Kulturbesitz an materiellen und ideellen Gütern entstanden. Ausser
der Lebensnot sind es wohl die aus der Erotik abgeleiteten Familiengefühle, welche die
einzelnen Individuen zu diesem Verzicht bewogen haben. Der Verzicht ist ein im Laufe
der Kulturentwicklung progressiver gewesen; die einzelnen Fortschritte desselben
wurden von der Religion sanktioniert; das Stück Triebbefriedigung, auf das man
verzichtet hatte, wurde der Gottheit zum Opfer gebracht; das so erworbene
Gemeingut für «heilig» erklart. Wer kraft seiner unbeugsamen Konstitution diese
Triebunterdrückung nicht mitmachen kann, steht der Gesellschaft als « Verbrecher»,
als «outlaw» gegenüber, insofern nicht seine soziale Position und seine
hervorragenden Fahigkeiten ihm gestatten, sich in ihr als grosser Mann, als «Held»
durchzusetzen.

Cap. II.1.4, “Cultura nacional e multiculturalismo”, pp.71-74.


1.4 Cultura nacional e multi culturalismo
1.4.1 A reinvenção da tradição
Confrontados com a catástrofe da segunda guerra mundial, mesmo os vencedores,
sobretudo as gerações mais novas, particularmente ativas nos movimentos de
contestação à ordem vigente nos anos 60, seja na Europa, seja na América, (sobretudo
durante a guerra do Vietname) questionaram-se sobre os fundamentos da sua cultura
ou civilização. Acrescente-se, contudo, que tal orientação tem tido particular
ressonância na prática e investigação anglo-saxónica, seja em função de uma herança
imperial, caso do Reino Unido, seja em função de uma multiculturalidade que existe,
pesem embora todos os esforços de assimilação, como é o caso dos EUA, do Canadá e
da Austrália. É esta evolução que se reflete na política multicultural, nas reflexões e
práticas sobre a coabitação entre culturas e formas de as mesmas comunicarem entre
si. Tal entendimento da palavra cultura ignora um estatuto de superioridade entre as
diferentes realidades culturais, ciente da importância que todo o fenómeno de
transmissão de cultura tem para a realidade social e histórica dos seus diferentes
representantes. A importância dada às particularidades étnicas decorre, de resto, de
uma evolução, que, nos anos 60, colocaria a tónica na diferença, em prol dos direitos
de maiorias ou minorias durante muito tempo silenciadas (caso das mulheres, dos não-
europeus, autóctones). A ideologia do melting pot passou a ser contestada: o modelo
assimilacionista passou a ser visto não como um modo de se assegurar a igualdade,
mas antes como a perversão do mesmo.
1.4.2 A revisão da história
A historiografia passou a ser vista de forma cética, na medida em que a mesma se
fizera em termos predominantemente nacionais e etnocêntricos. Países colonizadores
como a Grã-Bretanha ou a França passaram a interrogar-se sobre os povos
anteriormente silenciados, nos EUA, tratava-se de minorias étnicas, subjugadas pelo
ideário do homem protestante e branco: tais revisões constituíram o eco dos
movimentos pelos direitos cívicos dos negros, ameríndios. Reivindicou-se o direito à
diferença, insinuando-se a perspetiva do relativismo cultural entre aqueles que
operavam a revisão da historiografia.
Tal reflexão assumiria tónicas diferenciadas, consoante a experiência dos respetivos
espaços culturais: na Grã-Bretanha, Holanda ou França tratava-se, mais uma vez, de
refletir sobre as consequências de um passado imperial, na RFA sobre a coabitação,
num país que nunca se vira como sociedade de imigração intensiva, com elementos de
etnias mais ou menos familiares, desde os italianos, aos espanhóis, aos portugueses,
aos turcos ou aos jugoslavos. Redescobriu-se, simultaneamente, os regionalismos,
abafados ou silenciados por um estado-nação mais ou menos nivelador.
1.4.3 A Alemanha multicultural
Também na Alemanha, as correntes multiculturalistas, isto é, aquelas que privilegiam o
direito à coabitação entre diferentes etnias, sem que as mesmas tenham de abdicar da
sua especificidade, têm vindo a ganhar terreno, tornando cada vez mais necessário um
olhar renovado sobre as tradicionais definições de cultura. O facto de a tradição alemã,
sobretudo desde o século XIX, apontar para um nacionalismo cada vez mais étnico e
fechado, decorre de uma evolução histórica particularmente acidentada. Mais do que
nunca esse nacionalismo foi uma construção, tanto mais necessária, quanto a
identidade alemã estava longe de se encontrar consolidada.

Para compreendermos este tema e o articularmos com uma série de questões e


problemas em debate convirá recordar os seguintes aspetos:
a) O III Reich defendeu a sua soberania e a sua política de expansão através de
um nacionalismo eminentemente étnico, acrescido de teorias pseudocientíficas
de uma pretensa «raça alemã» que deveria ser purificada de todos os
elementos a ela estranhos. O facto de a ideia não possuir qualquer fundamento
histórico ou científico é irrelevante, uma vez que foi nela que os nacional-
socialistas fundamentaram as suas políticas.
b) Com o fim da segunda guerra não só a identidade alemã voltou a sofrer um
profundo abalo, como as necessidades do pós-guerra levaram a que a
Alemanha recebesse de bom grado mão-de-obra estrangeira, provinda
predominantemente do Sul da Europa (Itália, Espanha, Grécia, Portugal) e da
Turquia e Jugoslávia, para citar as mais importantes fontes de imigração. A
estadia temporária, que o termo Gastarbeiter pretendia reproduzir,
transformar-se-ia numa estadia definitiva, existindo atualmente já uma terceira
geração dentro das comunidades de imigrantes. Tal realidade viria a entrar em
conflito com a noção de nação alemã, não só a nível jurídico, como a nível
prático. O certo é que estas comunidades, mais ou menos assimiladas, mais ou
menos integradas, trariam um novo colorido ao espaço cultural alemão,
influenciando o seu quotidiano e a sociedade em geral.
c) Se esta situação era vulgar e quotidiana na RFA, já o mesmo não sucedia na
ex-RDA, onde o carácter fechado da sua economia dificultou as trocas de bens,
de ideias e de pessoas. Contudo, há que assinalar que tanto um como o outro
território não possuíam uma tradição imigratória, ao contrário da França ou dos
EUA, questão que, dada a definição essencialmente étnica da cidadania
segundo a Constituição Federal, levanta inúmeros problemas quanto ao
estatuto jurídico desses «estrangeiros» que, há gerações, vivem em território
alemão. Parece, portanto, evidente que o conceito de cidadania em vigor não
se adequa às novas exigências e realidade migratória.
I .4.4 Cultura essência e reinvenção
Tal evolução leva a repensar a interpretação da cultura alemã e de outras culturas
nacionais, numa perspetiva essencialista - como se a identidade étnica, cultural ou
nacional tivesse de constituir um absoluto originário ou um núcleo puro. A identidade
cultural passa antes a ser vista como o resultado de uma interação permanente entre
diferentes realidades culturais, que assim se vão redefinindo e reinventando.
O estudo de uma cultura nacional terá de tomar em consideração essa multiplicidade
de perspetivas, sob pena de impossibilitar uma hermenêutica das realidades
contemporâneas, divididas entre uma crescente globalização e miscigenação e a
consequente necessidade de redefinir a sua diferença específica.

ATIVIDADES PROPOSTAS
• Consulte um dicionário francês, português e alemão e verifique o que consta das
rubricas «cultura» e «civilização», «culto» e «civilizado»; articule os dados obtidos com
o conteúdo desta unidade.
• Leia o seguinte texto de Thomas Mann e comente:
Der Unterschied von Geist und Politik enthalt den von Kultur und Zivilisation, von Seele
und Gesellschaft, von Freiheit und Stimmrecht, von Kunst und Literatur; und
Deutschtum, das ist Kultur, Seele, Freiheit, Kunst und nicht Zivilisation, Gesellschaft,
Stimmrecht, Literatur. Der Unterschied von Geist und Politik ist, zum weiteren Beispiel,
der von kosmopolitisch und international. Jener Begriff entstammt der kulturellen
Sphare der Zivilisation und Demokratie und ist etwas ganz anderes. International ist
der demokratische Bourgeois, moge er überall auch noch so national sich drapieren;
der Bürger ( ... ) ist kosmopolit denn er ist deutsch, deutscher als Fürsten und « Volk»:
dieser Mensch der geographischen, sozialen und seelischen «Mitte» war immer und
bleibt Trager deutscher Geistigkeit, Menschlichkeit und Anti-Politik. (Thomas Mann,
Betrachtungen eines Unpolitischen, « Vorrede»).

CAP. IV.7, [NOTA INTRODUTÓRIA], PP.389-390


A Alemanha, país que ainda está em vias de resolver a questão da sua identidade
nacional, vê-se em finais do século XX confrontada com uma evolução internacional a
que nenhum país se pode furtar: a da globalização.
Saliente-se que essa globalização se articula de forma mais restrita com o projeto de
união europeia a que a Alemanha Ocidental aderiu no pós-guerra, em pleno período
da guerra fria.
Esta articulação faz-se por via de uma crescente internacionalização dos mecanismos
económicos, que tornam irrealistas e ineficazes as economias fechadas sobre si
mesmas, como o decurso dos acontecimentos a Leste, antes de 1989, o veio a
demonstrar.
Se é verdade que à ideia de Europa assistiu à noção de uma identidade cultural e
política - berço do Ocidente e da democracia - também é verdade que os mesmos
valores têm vindo a ser predominantemente protagonizados, já desde a I Guerra
Mundial, pelos EUA, herdeiros legítimos da tradição europeia naquilo que ela tem de
melhor e de pior. Por outro lado, sem a pressão económica, a saber o reconhecimento
dos limites que o Estado-nação impõe ao capitalismo, esse mesmo projeto não se teria
concretizado. Nascida em pleno momento de tensão entre os dois grandes blocos
militares e económicos, os EUA e a URSS, a ideia de uma comunidade europeia
implicou simultaneamente a exclusão de inúmeros países e territórios, como os da
Europa Central, que tiveram um papel relevante para a formação dessa mesma
identidade cultural, ao mesmo tempo que privilegiava os tratados com antigas colónias
europeias ou outros membros da NATO, que, embora ocidentalizados, se inserem
numa tradição cultural distinta, como é o caso da Turquia.

Por outro lado, e se não se reduzir a Europa aos países que aderiram no pós-guerra ao
Tratado do Atlântico, a ideia de uma «identidade europeia» não pode fazer esquecer a
efetiva diversidade desse mesmo espaço cultural, político, económico e social, onde a
multiplicidade de línguas, costumes, hábitos, a diversidade de modelos políticos, as
assimetrias económicas e, dentro de cada país, as desigualdades regionais são
evidentes. Não devem também ser esquecidas as diferentes situações e influências
geográficas - coincidentes com o atraso económico -, designadamente nos países
periféricos, como Portugal, a Grécia ou os países balcânicos, onde essa linha de
demarcação imaginária e culturalmente construída ao longo de séculos (cf. Said 1995)
entre o Ocidente e o Oriente é mais do que ténue, como o atesta o multi-
confessionalismo que preside à diferenciação e eventualmente a conflitos étnicos em
alguns dos países da região balcânica.

É evidente que a nova ordem política decorrente de 1989 leva a que a própria ideia e
os mecanismos de legitimação de uma união europeia sejam repensados, como
sucede, por exemplo, através da inclusão de países da Europa Central e Oriental na
União Europeia (UE), mas a verdade é que a «grande Europa» nunca se encontrou tão
dividida, como hoje, desde a II Guerra Mundial. Veja-se, por exemplo, por detrás de
todas as declarações de intenção e das aparências de uniformidade, o
recrudescimento dos nacionalismos e etnicismos, para além das diferenças ainda
consideráveis entre a Europa Ocidental e Oriental. Contudo, as aparências de
uniformidade também não devem ser subestimadas: a crescente influência dos
modernos meios de comunicação e sobretudo da informática não só aproximam como
uniformizam objetos de consumo e, consequentemente, modelos de comportamento.
É face a este complexo conjunto de problemas e questões que se propõe uma reflexão
sobre a situação histórica e atual da Alemanha na Europa.
Cap. IV.7.2, "A identidade alemã e a Europa na era da
globalização", pp.394-402 [pontos 7.2.1 e 7.2.2]

7.2 A identi dade alemã e a Europa na era da globalização


A posição da Alemanha na Europa, no entanto, não pode ser reduzida às estruturas
políticas e económicas e aos objetivos comunitários. Na sequência duma progressiva
globalização económica e cultural, a vida quotidiana dos alemães mudou
consideravelmente nas últimas décadas. Os fatores mais visíveis desta globalização são
o turismo (nomeadamente com a crescente procura de destinos exóticos e distantes),
que se tornou numa indústria importante com muitos efeitos negativos nos países de
acolhimento (polarização social, prostituição, destruição do ambiente, etc.), e a
presença dos mass media que transformam todos os hábitos sociais.

Assim, a certas horas (transmissão dum jogo de futebol ou dum policial na televisão),
as ruas das cidades alemãs apresentam-se quase desertas, enquanto a televisão
passou a constituir um tema recorrente nas conversas familiares e nos locais de
trabalho. A introdução das televisões privadas (nos anos 80) confundiu definitivamente
consumo e cultura, informação e publicidade. A invasão dum consumismo que
obedece unicamente às leis do mercado e duma realidade mediática que substitui
cada vez mais os ambientes tradicionais (Lebenswelten) introduziu na Alemanha, nos
últimos 40 anos, mudanças socioculturais que ultrapassam as que caracterizavam a
evolução do país desde a Revolução Francesa. Os efeitos concretos destas mudanças já
começam a dissolver a imagem tradicional da Alemanha e da sua história cultural.
A revisão da ordem política e económica que se sucedeu ao ano de 1989, leva a
colocar com maior acuidade o tema da identidade alemã, dado que, nos últimos anos,
à integração europeia em curso desde a Segunda Guerra Mundial se sobrepõem
importantes mudanças globais. Estas mudanças começam a afetar diretamente a
sociedade e a cultura alemãs:
Europaisierung heisst, daB Europa ais grõBere Einheit im Vergleich zu den
Nationalstaaten in immer grösserem Umfang unser Leben bestimmt. Globalisierung
bedeutet, dass diese Entwicklung zugleich eingebettet ist in globalem
Zusammenhange, die ebenso einen immer grösseren Einfluss auf unser Leben nehmen.
(Münch 1995: 14)

Neste contexto, a Alemanha atual apresenta-se como uma sociedade multicultural sob
o predomínio duma única cultura mundial universalista.

7 .2.1 A globalização económica


O triunfo mundial do capitalismo ocidental que, depois da queda do império soviético,
prevalece como modelo único para o rumo futuro das sociedades industrializadas e
não-industrializadas, acelerou substancialmente as tendências de internacionalização,
tanto a nível da produção como da distribuição de mercadorias. As grandes empresas
alemãs operam cada vez mais no estrangeiro (a Siemens, por exemplo, está presente
em 190 países), substituindo o esquema tradicional (produção local e exportação) por
uma rede global de fábricas, filiais e empresas subcontratadas, o que permite alterar
ou mesmo deslocar rapidamente a produção consoante as condições locais sejam mais
ou menos favoráveis.
O volume das transações das maiores empresas do mundo (em grande parte
japonesas e americanas) já ultrapassa o produto interno bruto de muitos países e,
entretanto, concorrem no mercado mundial mais de 40 000 empresas transnacionais.
Em 1995 as empresas transnacionais controlavam já 2/3 do comércio global, sendo
que 1/5 de todos os bens e serviços era comercializado à escala mundial ( cf.
Martin/Schuhmann 1996 relativamente a estes dados).
Esta revolução, cujos efeitos sociais e políticos começam a preocupar a opinião pública
europeia, tornou-se possível graças às novas tecnologias (informática e
telecomunicações), por um lado, e à redução das barreiras administrativas e
financeiras do comércio internacional, por outro.
Por seu turno, a liberalização dos mercados cambiais em 1973, que desde o tratado de
Bretton Woods (1944) estavam sujeitos a paridades fixas, criou um mercado financeiro
que, com o surgimento dos «paraísos financeiros» off-shore, escapa em grande parte
ao controlo dos Estados nacionais.
A redução de receitas fiscais do Estado alemão provocada por esta evasão fiscal (legal)
estima-se em 50 biliões de marcos por ano.
Os principais efeitos negativos da globalização, tal como se verificaram nos últimos
anos, são, pois, os seguintes:
• aumento do desemprego e dos empregos a tempo parcial e mal
remunerados;
• decréscimo do rendimento real das famílias e redução do âmbito de proteção
da segurança social;
• enfraquecimento progressivo das classes médias.

A grande versatilidade do mercado de trabalho, resultante da automatização das


tarefas e da mobilidade dos empregos, transformou radicalmente a situação
económica e social na RFA nos últimos anos.
Assim, entre 1991 e 1994 desapareceram na indústria alemã mais de 1 milhão de
postos de trabalho (só na indústria automóvel mais de 300 000), enquanto a produção
se mantém ou chega mesmo a aumentar. Depois de terem extinto 150 000 postos de
trabalho, as grandes empresas químicas como a Hoechst, a Bayer e a BASF registaram
em 1995 os lucros mais elevados da sua história.
Por outro lado, estas empresas pagam cada vez menos impostos. Enquanto que em
1991 metade dos lucros das empresas se destinava à tributação, em 1995 essa taxa
baixou para 20%. Em 1996 o Deutsche Bank declarou lucros de 4,2 biliões de marcos,
mas conseguiu reduzir a sua contribuição fiscal em 377 milhões de marcos. Em 1983 as
empresas e os trabalhadores por conta própria pagavam ainda 13, 1 % do total de
impostos, mas em 1996 as contribuições daqueles dois grupos já representavam
apenas 5,7% da totalidade das receitas fiscais do Estado alemão e esta tendência
continua a acentuar-se.
Deste modo, a globalização, que, por um lado, aumenta e facilita consideravelmente a
circulação de bens e pessoas e oferece uma série de vantagens práticas (uniformização
de normas técnicas, maior oferta e preços mais baixos na área dos bens de consumo),
enfraquece, por outro, a situação financeira e institucional dos Estados nacionais,
criando novas categorias sociais (working poor, desemprego de longa duração, etc.)
que podem a médio prazo provocar uma grande instabilidade social e política. Por isso
os governos europeus já começam a revalorizar o papel do Estado a nível nacional e a
reivindicar um controlo internacional eficaz das empresas transnacionais.

7 .2.2 A globalização mediáti ca


Uma das consequências da globalização económica é a uniformização das referências
culturais, para o que os modernos meios de comunicação de massas contribuíram
decisivamente.
Enquanto a imprensa escrita (Schriftkultur, Buchkultur) se desenvolveu durante
séculos, a invasão do espaço social pelos novos media (TV, vídeo, informática, etc.)
realizou-se em poucas décadas. A omnipresença da televisão, sobretudo nos anos mais
recentes, com a introdução das transmissões via satélite e cabo, multiplicou ainda a
compra de emissões estrangeiras. Por cada 100 domicílios alemães, a televisão está
presente em 97, a televisão por cabo em 43 e a TV por satélite em 27.
Tendo a imprensa escrita estado predominantemente ligada a iniciativas privadas, o
mesmo não sucedeu com a rádio e a televisão. Reconhecendo o seu papel
determinante na informação e formação do público, os governos europeus tenderam,
inicialmente, a transformá-las num serviço de interesse público, com preocupações
pedagógicas e de esclarecimento político.
Seguindo o modelo da BBC, a maior parte das estações recusavam qualquer submissão
a um padrão político ou económico, caracterizando-se por ser sociedades sem fins
lucrativos, com preocupações de ordem cultural.
Com a crescente tendência para a privatização das emissoras televisivas, o panorama
viria a alterar-se significativamente. Por um lado, constituindo a publicidade a sua
principal fonte de receitas, tais emissoras vêem-se obrigadas a garantir audiências tão
elevadas quanto possível. Para tal, sucedem-se os programas com sucesso garantido,
sem quaisquer critérios de qualidade ou de formação cívica ou cultural. Com o
aparecimento das emissões por cabo e satélite, as mesmas tenderiam a uniformizar
cada vez mais os seus padrões, de modo a garantir audiências a nível internacional.
Tais características não impedem, contudo, a forte concorrência das emissoras norte-
americanas que, dispondo de um vasto público nacional, veem o seu investimento
compensado pelo consumo interno, pelo que podem exportar os seus produtos a
preços baixos.
Como forma de competir com estas, as emissoras europeias, apesar de manterem
alguns programas de características locais e nacionais, com garantias de audiência
interna, viram-se obrigadas a estandardizar os seus produtos a fim de conquistar um
público mais vasto: contudo, os sucessos internos não garantem os lucros que as
referidas emissoras podem hipoteticamente obter a nível internacional.
Surgem assim duas questões: a primeira diz respeito à preservação de uma identidade
local, que não é apenas ameaçada pela união europeia, mas também e sobretudo pela
globalização marcada pelo modelo norte-americano.
A segunda diz respeito à identidade cultural europeia: num momento em que são
dados os últimos passos para uma união monetária, será que a Europa se resumirá a
ser uma correia de transmissão de interesses económicos, incapaz de encontrar uma
política que respeite o local, seja a nível nacional seja regional, ou será que conseguirá
reinventar uma tradição que se caracteriza tanto pelo seu universalismo como pela
diferença?
É também a este nível que a identidade cultural alemã tem de ser repensada,
identidade essa que não pode ignorar os fenómenos introduzidos pelas novas
tecnologias de informação. A Alemanha ocupa, neste campo, um papel
particularmente favorável a nível europeu. A sua situação económica não só lhe
garante ter uma voz de peso decisiva, como afirmar-se a vários níveis. A sua imprensa
escrita é ainda relativamente forte e oferece uma grande variedade temática e formal.
Por outro lado, a própria tradição cultural do espaço alemão não só lhe permite a
manutenção de periódicos locais, como de uma série de jornais de importância
nacional, por vezes, com um público que excede claramente as suas fronteiras, como é
o caso dos semanários Der Spiegel e Die Zeit ou dos diários Frankfurter Allgemeine
Zeitung, Frankfurter Rundschau, Die Welt, Süddeutsche Zeitung ou Taz para não falar
do prestigiado Neue Zürcher Zeitung de proveniência suíça. Todos estes mantêm uma
tradição jornalística de grande qualidade, com destaque para os seus Feuilletons
(secção cultural) sendo, na maioria dos casos, a sua apresentação gráfica
particularmente densa e sóbria, por oposição ao tablóide Bild Zeitung, que conhece,
porém, a maior procura, reforçada de resto com a unificação de 1990. Contudo, a
componente regional não só marca os referidos semanários, como se manifesta numa
série de diários locais, de grande prestígio, como é o caso, por exemplo do referido
Taz, jornal berlinense, constituído por uma cooperativa de jornalistas, que teve um
papel fundamental durante os dias de agitação que antecederam a queda do muro em
1989. Por outro lado, o número de pessoas que falam o alemão, quer como língua
materna, quer como língua estrangeira é um dos maiores na Europa.
O mesmo se pode dizer da televisão. Com quinze canais públicos e privados, a
Alemanha é um dos países com mais espectadores ligados à televisão por cabo e
satélite. Nos anos 80, a Alemanha iniciaria uma política de expansão das suas emissões
a nível internacional, adaptando-se simultaneamente as suas editoras a um mercado
que requeria cada vez mais novas tecnologias mediáticas. Assim, a editora
Bertelsmann é das mais importantes na Europa, possuindo a Alemanha um número
considerável de canais de difusão internacional. É o caso da RTL, Sat 1, Viva de
iniciativa privada, bem como das emissões da televisão pública, como é o caso da
Deutsche Welle. O facto de possuir um público extremamente amplo, justifica a
dobragem de filmes e de programas. E embora assim se uniformizem e
descaracterizem os produtos estrangeiros (com o consequente efeito de fechamento
da sociedade sobre si mesma e sobre as suas próprias língua e cultura), a verdade é
que essa mesma dobragem facilita, ao mesmo tempo, o entendimento dos mais
variados temas por todos os membros da comunidade (aproximando-os assim em
termos culturais), constituindo, paralelamente, uma importante fonte de emprego
para profissionais de diversas áreas.
Contudo, se observarmos a programação da TV alemã poderemos verificar que pouco
ou nada possui que a distinga dos seus congéneres europeus ou norte-americanos. Os
filmes são frequentemente produções de Hollywood ou séries norte-americanas (nas
televisões públicas cerca de metade, nas privadas até 90%) o mesmo sucedendo com
os programas de entretenimento (talk-shows, concursos, etc.) cujos modelos são, na
sua grande maioria, igualmente importados.
Neste sentido, pode afirmar-se que a situação dos media, com a respetiva privatização
e com o fenómeno da globalização, pouco ou nada contribuem para uma redefinição
da identidade cultural europeia que reconheça uma tradição comum e a importância
das diferenças locais: os elementos comuns inspiram-se nos padrões de caça às
audiências norte-americanos, que uniformizam os programas. E pode também
concluir-se que as televisões via satélite ou cabo contribuíram mais para a globalização
do que propriamente para a difusão da cultura alemã na Europa.
É neste contexto que tanto mais se justifica o aparecimento de um projeto televisivo
europeu como é o do canal ARTE (Association Relative à la Télévision Européenne).
Iniciado em 1992 como um projeto franco-alemão, englobando a ARTE Deutschland TV
GmbH - em colaboração com inúmeras televisões e estações radiofónicas alemãs - e a
Sept ARTE, o canal dispõe neste momento duma estrutura mais plural, incluindo a
Bélgica, a Suíça e a Espanha. Definindo-se como uma emissora de interesse público,
sem qualquer recurso à publicidade, a ARTE difunde, para além das produções
próprias, programas de qualidade cultural produzidos em todos os países da Europa. O
artigo 2.º do seu tratado fundador diz explicitamente:
Gegenstand der Vereinigung ist es Fernsehsendungen zu konzipieren, zu gestalten und
durch Satellit oder in sonstiger Weise auszustrahlen oder ausstrahlen zu lassen, die in
einem umfassenden Sinne kulturellen und internationalen Charakter haben und
geeignet sind, das Verstandnis und die Annaherung der Võlker in Europa zu fordem.
(http://www.sdv. fr/arte)
As suas emissões dedicadas ao cinema permitem visionar produtos quer da história do
cinema europeu, quer produções menos divulgadas, designadamente filmes
habitualmente afastados dos circuitos de distribuição. As suas seleções, que
privilegiam aquilo que de melhor se produz na Europa, não ignoram, contudo, as
produções de origem diversa, desde os países não-industrializados às produções norte-
americanas que os circuitos comerciais ignoram. Com noticiários sobre aquilo que no
mundo da arte e da cultura se faz na Europa, (Metropolis, entre outros) as emissões
conseguem dar uma imagem das potencialidades universais e locais do «velho
continente». Resta saber se a sua difusão será assegurada ou se sucumbirá à
concorrência desleal, embora de momento tudo aponte para um aumento de
espectadores, que em 1997 era de vinte milhões em toda a Europa que, neste caso
não se confina aos membros da União Europeia.
Pesem embora os efeitos nefastos da globalização, há que ponderar o discurso
predominantemente pessimista que a intelectualidade europeia sobre a mesma tem
produzido e que lembra o ceticismo dos primeiros dias do cinema. Se é verdade que a
globalização corre o risco de fazer desaparecer as tradições locais, transformando a
Europa e o mundo numa «aldeia» totalmente uniforme, também é certo que,
analisados com maior atenção, os produtos europeus se distinguem, em alguns
aspetos, claramente dos seus equivalentes norte-americanos. Séries como
Schwarzwaldklinik ou Lindenstrafie, por exemplo, duas telenovelas muito populares na
Alemanha, mas de qualidade duvidosa, possuem algumas marcas locais, o que leva a
questionar as vantagens da prioridade absoluta a dar a produções nacionais, se o
critério não se esgotar no economicismo. Por outro lado, há que constatar uma maior
americanização dos media alemães, em confronto com os de proveniência britânica,
onde o sabor inglês de séries como Yes Minister ou Mr. Bean são evidentes. Se é
verdade que, à primeira vista, a MTV não parece oferecer qualquer característica
europeia, o mesmo não será já verdade, se se comparar a sua versão com a norte-
americana ou se se atender aos pequenos coloridos locais detetáveis nas emissões
alemãs e francesa de música popular, onde vozes de rappers franceses, alemães ou
portugueses se fazem ouvir.
A questão do comportamento das audiências deverá também, por seu turno, ser
tomada em linha de conta. Ao contrário do desprezo a que as mesmas foram votadas
pela intelectualidade alemã, na Grã-Bretanha do pós-guerra, elas foram objeto de
atenção redobrada, exatamente como reação a uma excessiva influência norte-
americana que, na altura, se começava a fazer sentir. O Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos de Birmingham, fundado em 1964, desenvolveria um trabalho
pioneiro nesse campo, avançando teses particularmente inovadoras com os seus
estudos sobre os media e o comportamento das audiências. Segundo Stuart Hall
(1993), essas audiências não são forçosamente passivas, mas podem descodificar de
forma diferenciada as mensagens que lhes são impostas.
Por outro lado, estudos nesta área permitiram avaliar a importância dos media na
formação de contraculturas e subculturas, designadamente, através da cultura pop
que, na Grã-Bretanha permitiria recuperar um registo local, como o demonstra
sobejamente a produção dos Beatles, para não falar do reggae, símbolo da minoria
jamaicana e da sua identidade étnica (Gray/McGuigan 1993).
Por outro lado, há que referir que se a globalização uniformiza, também aproxima:
assim a juventude mundial pode dialogar sobre os ícones da cultura rock e trocar
impressões sobre um imaginário que a televisão e o cinema lhe forneceram,
descodificando de forma imaginativa e subversiva aquilo que as grandes empresas lhe
oferecem. Contudo, há que não ignorar que a cultura mediática se encontra
gradualmente mais presa de um sistema financeiro omnipotente que cria
necessidades, gostos e os manipula de forma que a mesma se consiga substituir à
realidade aparentemente mais imediata.
No entanto, os seus efeitos são difíceis de avaliar: depende da capacidade de
descodificação dessas mesmas audiências que, de televisor aceso, podem discutir
sobre o que veem, troçar do que lhes é apresentado ou ignorar aquilo que lhes é
imposto.
Por outro lado, há que assinalar que os discursos pessimistas de perda de identidade
reproduzem noções estereotipadas e essencialistas de uma diferença hipostasiada que
é também ela o resultado de um permanente intercâmbio entre povos. O facto de
existirem McDonalds por todo o mundo, de os adolescentes usarem t-shirts com
alusões a equipas de futebol ou universidades norte-americanas pouco nos diz acerca
do modo como organizam esses símbolos ou vivem essa apropriação.
E, finalmente, recorde-se os efeitos, nem sempre benévolos, da reação à globalização,
que vão desde a defesa da etnicidade local ao tribalismo mais virulento, o que permite
questionar a tão propagada dissolução dos Estados nacionais e a existência de uma
«aldeia global» sempre anunciada e repetidamente adiada.
No campo da globalização estritamente mediática os perigos resultam sobretudo de
uma concentração excessiva em monopólios de informação, com os riscos de às
manifestações mais marginais e inovadoras não ser dada qualquer oportunidade de se
manifestar ou de as mesmas serem rapidamente recicladas e assimiladas segundo os
padrões de consumo necessários à estabilidade do sistema. Note-se que neste campo,
a rádio, dado não carecer de recursos tão onerosos, tem vindo a gradualmente criar
intervenções de teor mais independente, em contraste com a uniformização da
televisão, do cinema e mesmo da indústria discográfica, à exceção de algumas
produções independentes.
O certo é que fenómenos como a crescente importância da cultura audiovisual e da
globalização são incontornáveis, embora as virtualidades do espaço cibernético
possam vir a operar transformações consideráveis neste campo.
Com efeito, a Internet oferece possibilidades incomparavelmente superiores para a
difusão do local. Neste campo assinale-se que a reinvenção da comunicação escrita é
outro dos desafios, bem com da capacidade de manipular e organizar a informação.
Resta saber se a identidade cultural europeia conseguirá afirmar-se nesta dialética da
uniformização e da diferença que as «auto-estradas» da informação permitem e, por
vezes, estimulam.

CONCLUSÃO
Os textos selecionados acima focam aspetos de ordem teórica sobre a sociedade e
cultura alemãs, oferecendo uma perspetiva genérica sobre o que está implicado
pensarmos em termos conceptuais quando nos questionamos sobre a cultura de
determinado espaço geográfico e linguístico. Se os três primeiros capítulos focam a
definição de cultura e de multiculturalismo (que é o AF_Tema1_SCA1 Sociedade e
Cultura Alemãs I Tema 1 - Atividade Formativa @ Cristiana Vasconcelos Rodrigues 6
traço que define a sociedade ocidental dos nossos dias), os dois últimos abordam o
caso específico alemão nos dias de hoje. O propósito de estudarmos questões mais
genéricas é tão somente o de perspctivarmos o estudo da génese da cultura burguesa
na Alemanha do século XVIII (Temas 2 e 3 do roteiro do PUC) dentro do quadro
cultural dos nossos dias, visto que o que se passa no século XVIII é determinante para
compreendermos a matriz multicultural ocidental que determina o espaço cultural de
cada país e a sua relação com os outros países/espaços.

CONCLUSÃO TEMA 1 – Textos Obrigatórios


1. Anote as várias definições do conceito de cultura, de cultura nacional e de
multiculturalismo. Anote as páginas do manual onde cada um dos elementos
isolados surge.

2. Considere o caso alemão: isole aspetos específicos na equação de uma cultura


nacional, localizando-os no tempo. Anote as páginas do manual onde cada um
dos elementos isolados surge.

3. Que questões fundamentais são afloradas na pequena introdução ao cap. IV.7?


(pp.389-390 dos textos)

4. À medida que lê sobre "A identidade alemã e a Europa na era da globalização"


(pp.394-402 dos textos), reflita sobre os aspetos comuns à realidade
portuguesa dos últimos 30 anos, e faça anotações a esse propósito.

1. a) A definição de cultura que Klaus P. Hansen defende nas suas recentes


publicações sobre a Kulturwissenschaft ( 1993, 1995), insiste, na sequência de
E. B. Tylor (1871), na aquisição social de saberes e comportamentos. O autor
recorre igualmente a Max Weber que estabeleceu a sociologia como ciência
cultural ao insistir no carácter cultural de todas as manifestações da vida
humana desde que se reportem a ideias de valor (Wertideen).
b) Considerando, no sentido etimológico da palavra, a cultura como
transformação da natureza exterior e interior pelo trabalho segundo as normas
da tradição, Hansen opõe a natureza biológica à cultura do contexto de
socialização. Assim, apenas fenómenos que não servem fins materiais fazem
parte da cultura: «Nur das Geburtstagfeiern, aber nicht das Zähneputzen; nur
das Frühstücken, aber nicht die bei ihm statthabende Ernährung im
biologischen Sinne» (Hansen 1995: 119). Esta antinomia tradicional é
problemática porque a natureza biológica do ser humano manifesta-se sempre
como culturalmente formada. Mesmo as atividades mais «naturais» como
comer, dormir e procriar mostram sincrónica e diacronicamente uma grande
diversidade que relega a função biológica e reprodutiva para um papel
secundário: «Menschliche Natur ist nirgends als voraussetzungslose,
ungesellschaftliche, reine Natur gegeben» (Rath 1994: 7). O que é «natural», o
que faz ou não parte da natureza, depende do contexto histórico e está sujeito
à mudança, como documentam, por exemplo, os estudos de Norbert Elias
sobre as maneiras e costumes sociais e a história da paisagem e dos espaços
naturais. A questão crucial levantada pela definição de Hansen é a de se saber
se podemos considerar a dimensão cultural como uma dimensão
«suplementar» atribuída às atividades económicas, sociais e políticas ou se
temos de partir de uma perspetiva dialética: valores, tradições etc. criam e
desenvolvem atividades económicas, políticas e sociais, e estas práticas
precisam da dimensão simbólica para se manter e se desenvolver. Na prática, e
mesmo do ponto de vista histórico, parece impossível separar estas dimensões.
O próprio Hansen sublinha que o ser humano produz significados. Por isso, a
história deve incidir não sobre os objetos, mas sim sobre a mudança dos seus
significados. Esta história dos significados, fortemente influenciada pela histoire
des mentalités desenvolvida na França desde os anos 30, permite definir a
cultura como um sistema de estandardizações que abrangem as interações
sociais e a comunicação, mas também os pensamentos e sentimentos
individuais. A cultura produz e determina ideias, sensações e afetos, criando,
assim, uma realidade específica. Na socialização do indivíduo (família, escola,
meio ambiente) internalizam-se as normas que orientam o nosso agir, pensar e
sentir, sendo a comunicação e a imitação os principais veículos desta
aprendizagem. Este carácter coletivo dos fenómenos culturais é ainda
entendido por Hansen na senda de Tylor. Convém, no entanto, adotar uma
perspetiva mais dialética, já que mesmo as manifestações e variantes possíveis
da individualidade fazem parte dum repertório coletivo que, por seu lado, se
modifica também através de inovações individuais.
O autor destaca historicamente três conceitos principais de cultura que se
prendem com uma maior ou menor insistência na função ou na substância da cultura:
1. O conceito instrumental de cultura, presente sobretudo na antropologia
tradicional, que considera os fenómenos culturais como determinados por
necessidades biológicas: a cultura garante a sobrevivência da espécie
humana.
2. O conceito substancial de cultura que, desde Herder e até hoje, considera a
cultura como entidade ontológica, como substância permanente e
independente das diversas manifestações contextuais.
3. O conceito semiótico que, desde os anos 70, descreve a cultura como universo
de ações simbólicas.

c) o etnólogo Clifford Geertz propõe que se considere a cultura e a estrutura


social como abstrações diferentes a partir dos mesmos fenómenos.

Cap. III.1, "«So weit die Deutsche Zunge klingt» - nação,


língua e território", pp.111-131
1.1. Da nação ao nacionalismo
Questões prévias
Termos como «nação», «nacional» ou «nacionalismo» entraram hoje em desuso e em
descrédito no vocabulário político da Europa ocidental e as razões são fáceis de
descortinar.
Trata-se, em primeiro lugar, de razões que estão diretamente relacionadas com a
história europeia mais recente, nomeadamente as guerras, a violência, a devastação e
os excessos políticos de má memória que a Europa conheceu durante a primeira
metade do século XX, precisamente na sequência do exacerbar daqueles sentimentos
nacionalistas.
A título de exemplo do uso e abuso destes termos e da sua importante componente
político-ideológica, recorde-se, no caso português, a conhecida fórmula que até 1974
deveria obrigatoriamente encerrar todo e qualquer documento público - «A bem da
Nação» -, refira-se ainda que o Parlamento, a atual «Assembleia da República», tinha
durante o Estado Novo a designação oficial de «Assembleia Nacional» e sublinhe-se,
por fim, que o partido único que então governava o país se chamava significativamente
«União Nacional».
No caso alemão os termos - e os sentimentos - são bem mais problemáticos e radicais:
a palavra «Nationalismus», por exemplo, tem frequentemente um sentido pejorativo,
remetendo para uma ideologia política extremista, violenta, exacerbada e intolerante,
a ideologia propagada pelo partido nacional-socialista alemão, que foi responsável
direta pelos acontecimentos que levaram à II Guerra Mundial (cf. Alter 1985: 11-12).
Por outro lado, o menor uso que os termos «nação», «nacional» e «nacionalismo»
hoje conhecem tem também a ver, pelo menos em parte, com outra questão: a da
ambiguidade que lhes é inerente uma vez que se constituem no plano de uma lógica
paradoxal da identidade. Quando digo «eu» excluo assim todos os outros do horizonte
de referências para as quais a palavra «eu» remete e, no entanto, cada um dos outros
pode também dizer «eu». Paradoxalmente «eu» podem ser muitos. Do mesmo modo,
podemos usar uma única expressão - por exemplo, «cultura nacional» - e remeter para
realidades tão diversas como sejam a cultura portuguesa, francesa, chinesa,
senegalesa ou tailandesa.
Assim, à semelhança do que sucede com inúmeros conceitos mais abstratos, os termos
«nação», «nacional» ou «nacionalismo», tal como o pronome pessoal «eu», dependem
sempre da perspetiva ou do ponto de vista de quem os diz e do contexto para o qual
remetem. E esta dependência da perspetiva e do contexto - que no caso aqui em
apreciação é de um grau extremo - torna os termos falhas de sentido, ambíguos e, por
isso, muitas vezes inadequados do ponto de vista da economia da língua.
Por razões que têm naturalmente mais a ver com os motivos históricos acima
apontados, a tendência, hoje, é para falar de «países». No entanto, quando os termos
não estão especificamente conotados com um projeto político--ideológico, ou quando
a ambiguidade que lhes é inerente se dissolve em face dos destinatários e do carácter
claramente local (e para uso interno) da informação veiculada, os termos continuam a
ser usados. Exemplo disso mesmo são expressões correntes como «seleção nacional» (
«Nationalmannschaft») ou «feriado nacional» ( «Nationalfeiertag » ).

1.1.1 O conceito de nação


Independentemente das suas atuais limitações e conotações, a verdade é que os
conceitos que têm vindo a ser referidos e o contexto em que eles surgem
desempenham um papel de extraordinária importância na construção da identidade
alemã, pelo que se torna necessário observá-los na sua génese e evolução, primeiro
num âmbito mais alargado europeu e, posteriormente, no contexto mais específico do
espaço alemão.
O conceito de «nação», tal como hoje o entendemos, tem a sua origem nos finais do
século XVIII. A Revolução Francesa teve uma importância e uma influência decisivas,
tanto na fixação como na consolidação, em termos modernos, do conceito em causa.
Convirá, no entanto, salientar que a palavra «nação» já era anteriormente utilizada na
grande maioria das línguas europeias ocidentais. Numa fase inicial, a partir do século
XIV, «nação» - natio, do latim nasci (nascer) - apontava para a origem comum de um
grupo de indivíduos e aplicava-se a uma comunidade étnica ou aos habitantes
oriundos de uma mesma região; porém, sublinhe-se, uma natio não envolvia nesta
primeira fase qualquer tipo de forma organizacional política. Só posteriormente é que
a palavra começa a ocorrer num âmbito e contexto claramente políticos. De facto, a
partir do século XVII o termo «nação» remete também para os nobres que tinham um
estatuto político (de representação) junto da coroa - a «nação francesa», por exemplo,
referia-se exclusivamente ao clero e à aristocracia francesa que tinham acesso direto
ao monarca ( cf. Schulze 1995: 112-113 e 117).
O que daqui interessa reter é que em meados do século XVIII o termo «nação» é
utilizado em dois sentidos diferentes que não se encontram diretamente relacionados
entre si: «nação» tanto remete para as origens comuns de um grupo de indivíduos,
como para a função social e política de representação.
Claramente adaptada à realidade política alemã da época, a definição que Adelung dá
do conceito, no seu Deutsches Worterbuch de 1776, é ainda paradigmática no que diz
respeito à inexistência de uma relação entre a «nação» e o «Estado» ou o poder
político: Nation, die eingebornen Einwohner eines Landes, so fern sie einen
gemeinschaftlichen Ursprung haben, eine gemeinschaftliche Sprache reden, und in
etwas engerem Sinne auch durch eine ausgezeichnete Denk- und Handlungsweise oder
den Nationalgeist sich von andem Võlkerschaften unterscheiden, sie mõgen übrigens
einen einigen Staat ausmachen, oder in mehrere verteilt sein. (apud Schulze 1995: 170)
De algum modo estão já aqui in nuance as componentes essenciais do conceito: língua,
território e origem comuns. Mas a Revolução Francesa haveria ainda de o transformar
radicalmente, especialmente no que diz respeito à fundamental unidade da
componente política que, em Adelung, é considerada irrelevante.
De facto, as mudanças que a Revolução Francesa imprime ao conceito são mudanças
de natureza essencialmente política: ao contrário do que sucedia no passado, depois
de 1789 o termo «nação» passa a designar específica e diretamente o terceiro estado,
ou seja, o povo (a integração da aristocracia e do clero na nação fica assim
condicionada à aceitação, por parte destes, do princípio da igualdade de todos os
cidadãos perante a lei); simultaneamente entende-se que a «nação» se afirma, se
realiza e se espelha no Estado que, desse modo, se torna componente essencial do
conceito, na medida em que lhe confere unidade formal ( cf. Schulze 1995: 168-169).
Uma nação é agora, modernamente, constituída por uma comunidade de indivíduos,
quer dizer, um povo, que partilha uma mesma língua, e que tem usos e costumes, um
passado e um território comuns, comunidade essa que se encontra reunida e
enquadrada em torno de uma forma organizacional de cariz político - o Estado.

1.1.2 Da nação ao nacionalismo


Das componentes acima mencionadas há duas que se revelarão especialmente
importantes e produtivas, no que diz respeito à construção de uma identidade
nacional alemã. Por isso, mas também porque ambas desempenham um papel
fundamental no processo de ideologização do conceito de «nação», isto é, na sua
transformação em «nacionalismo», ser-lhes-á aqui dado o devido relevo: trata-se dos
argumentos que tomam a língua e o passado histórico comuns como os fatores de
união e unidade das nações.
Convirá começar por sublinhar que, relativamente à questão da língua, não se trata
exatamente de um argumento novo. De facto, a primeira onda de nacionalismos
europeus - que ocorre no final da Idade Média e em que se assiste ao nascimento de
Estados-Nações como a França, Inglaterra, Portugal, Espanha e Suécia (cf. Alter 1985:
27) - apoia-se com frequência no argumento de que a uma língua deve
«naturalmente» corresponder uma unidade nacional e política fundamental 1.
1 O termo «nacionalismo» só pode ser usado em relação a esta época com algumas cautelas. De facto,
não se trata exatamente de «nacionalismo» no sentido atual e moderno do termo, na medida em que
lhe falta, pelo menos, uma componente essencial: a consciência e o sentimento de pertença a uma
nação por parte dos indivíduos que a formam.

Neste sentido, não será descabido afirmar que o Estado nasce ao mesmo tempo que a
Nação. O caso espanhol - com a língua castelhana a servir de traço e argumento da
unidade nacional - e o caso português são, a este título, exemplares.
Quando em 1492 Antonio de Nebrija (1441-1522) escreve a primeira Gramática da
Língua Castelhana (que lhe havia sido significativamente encomendada pela Rainha
Isabel, a Católica), dá conta, no prólogo, daquela que foi a sua preocupação em fixar e
normalizar o castelhano como língua franca (e fator de unidade) da «grande nação
espanhola» (repare-se como se está perante uma situação em que a língua determina
a nação ao mesmo tempo que a nação - ou seja, o seu mais alto representante: a
Rainha-determina a língua- leia-se: encomenda a gramática). Mas Nebrija faz mais: ao
afirmar que «siempre la lengua fue compafiera del imperio» está a enveredar por um
tipo de raciocínio argumentativo que apresenta a língua não apenas como fator
determinante da unidade nacional, mas também como traço de união, progresso e
desenvolvimento da Nação, do Estado e do Império.
O mesmo raciocínio haveria de ser repetido e explicado com uma frequência digna de
nota por diversos gramáticos, nomeadamente pelos portugueses João de Barros
(1496-1570) e Fernão de Oliveira (1507-1581). Este último é particularmente explícito
quando afirma na primeira gramática da língua portuguesa publicada em 1536
(Oliveira 1975: 42):
O estado da fortuna pode conceder ou tirar favor aos estudos liberais e esses estudos
fazem mais durar a glória da terra em que florescem. Porque Grécia e Roma só por isto
ainda vivem, porque quando senhoreavam o Mundo mandaram a todas as gentes a
eles sujeitas aprender suas línguas e em elas escreviam muitas boas doutrinas, e não
somente o que entendiam escreviam nelas, mas também trasladavam para elas todo o
bom que liam em outras. E desta feição nos obrigaram a que ainda agora trabalhemos
em aprender e apurar o seu, esquecendo-nos do nosso. Não façamos assim, mas
tomemos sobre nós agora que é tempo e somos senhores, porque melhor é que
ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma ( ... ). 2
2 Este tipo de argumento, que se pode considerar político e nacionalista avant la lettre, não surge nas primeiras
gramáticas alemãs que são significativamente escritas em latim (cf. Stedje 1996: 127). Desde o século XVI até ao
século XVIII a grande preocupação dos gramáticos alemães e os grandes temas das reflexões que tinham por objeto
a língua alemã eram invariavelmente a defesa dessa mesma língua, da sua pureza, beleza e correção.

Este argumento, de resto, sobreviveu até aos dias de hoje, encontrando porventura
uma das suas formas mais apuradas no conhecido aforismo de Bernardo Soares, o
semi-heterónimo pessoano: «minha pátria é a língua portuguesa».
Sublinhe-se, no entanto, que se trata de uma lógica argumentativa de índole
profundamente renascentista que se vai consolidando ao longo do tempo e
simultaneamente transformando o mapa político da Europa. Em 1601, por exemplo,
quando Henrique IV de França se vê obrigado a explicar aos habitantes da cidade de
Buguey a sua integração na coroa francesa, é deste modo que defende o seu ponto de
vista ( o episódio é relatado por Coulmas 1985: 48 e Ortega y Gasset 1985: 85):
Il était «raisonnable» que, «puisque» vous parlez naturellement !e français, vous
fussiez sujets au roi de France. Je veux bien que la langue espagnole demeure a
I'Espagne, l' allemande a l' Allemagne, mais la française doit estre à moi.
A língua transforma-se, pois, num meio para atingir um objetivo político: o da unidade
da nação consubstanciada no poder político de um Estado. De fato, como refere Peter
Alter (1985: 65),
Die Sprache ist das aussere, sichtbare Zeichen all jener Merkmale, die eine Nation von
der anderen unterscheiden. Sie ist der wichtigste Prüfstein, der das Vorhandensein
einer Nation beweist und das Anrecht auf den eigenen Staat begründet.
Ora o que aqui interessa justamente salientar é o processo de ideologização a que o
conceito de nação estava a ser submetido: no início é o elemento «língua» que se
utiliza para sublinhar o que há de comum nos indivíduos que fazem parte de uma
nação; posteriormente é ainda ao argumento «língua» que se recorre no sentido de
justificar o direito à edificação de um Estado moderno; e, finalmente, considera-se que
a «língua» é o fator que proporciona a unidade necessária ao desenvolvimento e
prosperidade futura de um Império.
É, pois, através da língua que a nação se constitui como Estado e é ainda pela língua
que o Estado, transformado em Império, assegura a sua unidade fundamental.
O mesmo sucede no que diz respeito à História, ou seja, em relação ao uso que se faz
do argumento que funda a nação na partilha da memória de um passado comum.
Especialmente na segunda fase dos nacionalismos europeus - a partir de finais do
século XVIII- a reconstrução de um passado glorioso comum é uma das marcas
ineludíveis do processo de ideologização a que o conceito de «nação» estava a ser
progressivamente submetido. Como refere Coulmas (1985: 46)
Eine Vergangenheit wird ( ... ) partiell rekonstruiert, um die Gegenwart als rationale
Fortsetzung erscheinen zu lassen und einer Nation die Rolle des bewusst handelnden
Subjekts der Geschichte zu geben. Die in der Vergangenheit begründete Authentizitat
wird von nationalistischen Bewegungen betont, um das Ziel der Einigkeit und
Unabhangigkeit zu legitimieren.
Esta reconstrução do passado histórico com o objetivo de glorificar a nação e legitimar
o presente é particularmente evidente na mitificação dos ditos «heróis fundadores»
das nações europeias, na sua maioria chefes tribais que resistiram ao poderio de
Roma, como é o caso de Hermano ou Armínio (príncipe dos Queruscos) para a
Alemanha, Vercingetorix (o chefe gaulês) para a França, ou Viriato para os países
ibéricos ( cf. Schulze 1995: 108 e segs.).
Alicerçado nos argumentos «naturais» da partilha de uma língua e de um passado
histórico comuns, o nacionalismo transforma-se assim numa ideologia política avant la
lettre, numa verdadeira religião, especialmente durante o século XIX, época em que,
na fórmula do historiador alemão Thomas Nipperdey, o religioso é secularizado e o
nacional sacralizado (cf. Alter 1985: 15).
Do ponto de vista político deverá, entretanto, sublinhar-se que, na sequência da
Revolução Francesa, por um lado, e da discussão em torno dos argumentos «naturais»
da partilha de uma língua e de um passado histórico comuns, por outro, o
nacionalismo apresenta duas características que, sendo constitutivas do conceito, são
simultaneamente responsáveis pela sua flexibilidade e longevidade, isto é, pelo seu
sucesso em termos mundiais.
No que diz respeito à sua flexibilidade refira-se, em primeiro lugar, que o nacionalismo
é intrinsecamente paradoxal (tal como, de resto, a própria lógica da identidade em que
se baseia): por um lado implica a uniformização da nação através da língua e da
história (e isso é particularmente óbvio no caso da Alemanha, que adiante
analisaremos em pormenor); mas, por outro lado, os nacionalismos europeus são
também, na sua essência e origem, movimentos emancipatórios e anti
discriminatórios, ou seja, verdadeiras apologias do direito à diferença e
autodeterminação dos povos (cf. Coulmas 1985: 43 e 58).
Em segundo lugar, e no que respeita à longevidade do conceito, deve salientar-se que
o nacionalismo se constitui como uma espécie de «grau zero» de todas as outras
ideologias (e utopias) políticas que, por seu turno, se apresentam como propostas de
futuros caminhos para uma sociedade que se encontra já fundamentalmente unida ao
nível da língua e da história.
Inaugurando um espaço sobre o qual as outras ideologias políticas assentam, do qual
dependem e onde encontram o ambiente próprio para se desenvolverem, o
nacionalismo surge assim como um princípio consensualmente universal, como o fator
que «naturalmente» empresta unidade e coesão a qualquer sociedade.

1.1.3 Um conceito europeu


O nacionalismo é, como se verifica, um conceito flexível. E é precisamente essa sua
flexibilidade que lhe assegura longevidade e operacionalidade em termos universais.
Se numa primeira fase o conceito de identidade nacional se jogou essencialmente no
âmbito de argumentos que tinham a ver com a língua, numa segunda fase será o
elemento histórico que conhecerá algum destaque e, mais tarde, o elemento étnico
que, consagrado na noção de raça oriunda das teorias evolucionistas, justificará muitas
das ações dos Estados e das Nações europeias, dentro e fora da Europa.
Em todo o caso, o que interessa aqui sublinhar é que, qualquer que seja o
entendimento do que é uma nação, quer dizer, acentue-se a unidade nacional a partir
de argumentos religiosos, étnicos, linguísticos ou históricos, o conceito de nação é um
conceito essencialmente europeu.
Como refere Ortega y Gasset, toda a consciência de nacionalidade «( ... ) supone otras
nacionalidades en torno, que se han ido formando a la par que la propria y con las que
convive enforma de permanente comparación» (Ortega y Gasset 1985: 75), e esse
estado de «permanente comparação» é particularmente favorecido na Europa, um
espaço comum de convívio profundamente marcado pelas diversidades linguísticas,
históricas, religiosas e étnicas.
Nado e criado na Europa, com a expansão europeia (que ocorre a partir de finais do
século XV e mais sistematicamente durante todo o século XVIII) o nacionalismo
haveria, porém, de constituir um caso de sucesso, também em termos universais. Com
efeito, «der Nationalismus breitete sich mit der Expansion der modernen Zivilisation
über die ganze Welt aus» (Eisenstadt 1991: 33), constituindo um modo
caracteristicamente europeu de encarar a organização da sociedade. A essa expansão
não é alheia a flexibilidade operacional do conceito de «nação», que permite a sua
adaptação a qualquer tipo de sociedade (mesmo àquelas cujo sistema e lógica
organizacional originais pouco tinham a ver com os argumentos fundadores das
nações europeias).
Assim, o mundo que conhecemos hoje é histórica e politicamente moldado e
determinado por este conceito de nação oriundo do espaço europeu. Neste contexto
não surpreende, pois, que a instituição onde se reúnem os representantes dos Estados
da maior parte dos países do mundo se chame precisamente «Organização das Nações
Unidas».

1.2 As nações alemãs


1.2.1 Estados e territórios
No âmbito dos movimentos nacionalistas europeus, da sua história e desenvolvimento
até aos dias de hoje, a Alemanha constitui indubitavelmente um caso sui generis.
Na segunda metade do século XVIII, o território a que nos habituámos a chamar
«Alemanha» é, em traços muito largos, um espaço definido e marcado pela existência
de duas forças que atuam simultaneamente, mas em sentidos opostos. Trata-se, em
primeiro lugar, de uma força que atua no sentido da dispersão política do território
alemão; e trata-se, em segundo lugar de uma força que atua no sentido da união
cultural e linguística daquele mesmo espaço.
O vigor da força que atua no sentido da dispersão política do território manifesta-se
claramente no mapa da Alemanha de meados do século XVIII que a seguir se reproduz
(Boockmann/Schilling 1990: 265):
Trata-se de um espaço territorial atomizado, medievalmente dividido em Estados de
dimensão muito desigual (muitas vezes são apenas pequenos Estados-Cidade), de
entre os quais se destaca uma Prússia que não esconde o seu desejo de hegemonia.
São mais de 360 os Estados autónomos que se encontram, na época, formalmente
agregados em torno do Sacro Império Romano-Germânico (cf. Scheidl 1993: 7).
O lado caricatural desta atomização do espaço em que a língua alemã é, por assim
dizer, considerada língua franca fica bem patente em diversos passos da comédia
Leonce und Lena, de Georg Büchner ( 1813-1837), nomeadamente num (2.º Acto, Cena
1) em que Valerio, uma das personagens, se queixa ao Príncipe Leonce do cansaço
resultante de uma longa caminhada de apenas meio dia em que ambos teriam
atravessado nada mais nada menos do que uma dúzia de Principados, meia dúzia de
Grão-Ducados e um par de Reinos (Büchner 1976: 97-98):
( ... ) Wir sind schon durch ein Dutzend Fürstenthümer, durch ein halbes Dutzend
GroBherzogthümer und durch ein paar Kõnigreiche gelaufen und das in der grõBten
Uebereilung in einem halben Tag ( ... ).
Por muito grotesco que este estado de atomização política possa parecer, a verdade é
que se trata de uma situação que perdurou até à ocupação napoleónica e que, por
conseguinte, haveria de marcar profundamente a ideia de «nação alemã», acentuando
a vertente regionalista da mesma. Aliás, importa referir que só depois de 1500 - e na
sequência da descoberta em 1455 do texto de Tácito sobre a Alemanha (Germania),
que naturalmente constitui um elemento decisivo para a legitimação histórica da
fundamental unidade alemã- é que, em vez de «deutschen Landen» ( «países
alemães»), se passa a designar o espaço alemão por «Deutschland» (cf. Schulze 1995:
142).
Porém, a par desta atomização hierárquica e territorial, assiste-se a uma força e uma
vontade tendencialmente unificadoras desse mesmo espaço alemão. Apoiadas
historicamente pelo uso de uma mesma língua e pelo mito de uma unidade política
outrora existente, essas tendências unificadoras têm origem e encontram igualmente
um eco significativo na solidariedade crescente demonstrada por uma classe, também
ela socialmente a crescer, que é frequentemente designada de «burguesia
esclarecida» (Bildungsbürgertum).
Acrescente-se, no entanto, que esta burguesia esclarecida e nacionalista é
simultaneamente cosmopolita e está especialmente atenta ao que se passa na Europa,
nomeadamente à França pós-revolucionária, assistindo interessada ao desenrolar dos
acontecimentos franceses numa primeira fase, e desiludida (leia-se também traída)
numa segunda fase, por força das invasões napoleónicas que não pouparam o espaço
territorial alemão.
Finalmente, resta sublinhar, como o faz Madame de Stael (Anne-Louise--Germaine
Necker de Stael, 1766-1817) numa obra publicada em 1810 e que se haveria de revelar
importante na discussão pública da identidade alemã e extraordinariamente influente
na projeção europeia da Alemanha - De l 'Allemagne -, que «L' Allemagne, par sa
situation géographique, peut être considérée comme le coeur d'Europe» (Stael 1968: I,
41).
Resumindo, dir-se-ia, pois, que a Alemanha de finais do século XVIII se confronta
problematicamente consigo mesma no centro do espaço político europeu, enquanto
território mal definido e carente de um poder centralizado e forte, rodeado por
potências altamente hierarquizadas como a Rússia, a Inglaterra e a França.
Os testemunhos desse complexo e problemático confronto abundam na literatura de
língua alemã da época:
ln seinem Aufsatz «Über teutschen Patriotismus» (1793) fragte Wieland in bezug auf
die Deutschen: «Wer sind sie? Wer zeigt, wer nennt sie uns?» Er kann sich nicht
entsinnen, so hie/3 es weiter, «das wort Teutsch oder Deutsch ( ... ) jemals ehrenhalber
nennen gehort zu haben». Vier Jahre spater stellen Goethe und Schiller in ihrem
Xenienalmanach auf das Jahr 1797 ahnliche Fragen: «Deutschland? Aber wo liegt es?
Ich wei/3 das Land nicht zu finden. Wo das gelehrte beginnt, hort das politische auf».
(Johnston 1990: 11)
Na verdade, e a julgar pelo que acima fica dito, dir-se-ia que a Alemanha não existia
nem nunca existiu ( cf. Barrento 1989: I, 27 e segs. ). No entanto, os passos acima
citados de Wieland, Goethe e Schiller deverão ser objeto de uma reflexão mais atenta.
Por muito consensual que fosse na Europa da época o conceito de «nação» a verdade
é que importa não esquecer que o século XVIII é o século da crítica. Também da crítica
ao nacionalismo. Tanto mais no caso da Alemanha, um espaço profunda e
tradicionalmente marcado pela divisão política, territorial e confessional.
Neste contexto não surpreende, pois, que as críticas mais radicais ao nacionalismo
sejam justamente provenientes do espaço de língua alemã. É, por exemplo, o que
sucede numa obra que teve a sua primeira edição em 1758 - Vom Nationalstolz- (que
conheceu um sucesso editorial invulgar e foi objeto de inúmeras polémicas), onde o
médico e escritor suíço Johann Georg Zimmermann ( 1728-1795) afirma lapidar: «Die
Liebe des Vaterlands ist freilich in vielen Fallen nicht mehr als die Liebe eines Esels für
seinen Stall» (Zimmermann 1980: 80).
Sublinhe-se, no entanto, que a crítica subjacente aos excertos acima transcritos de
Wieland, Goethe e Schiller não é tão fundamentalista nem tão radical como à primeira
vista se poderia supor, quer dizer, não se refere ao conceito de «nacionalismo» em
abstrato, mas sim à aplicabilidade e à utilidade do conceito de «nação» no caso
específico da Alemanha. De facto, o termo «nacionalismo» tem, no contexto alemão
da época, um sentido frequentemente pejorativo, semelhante ao que hoje tem a
palavra «chauvinismo» ( cf. Dann 1991 : 57), por oposição a «patriotismo» ou «amor
pela pátria».
Estes últimos sentimentos e valores, de pendor claramente positivo e moralizante,
eram aqueles que o burguês nutria pela região de onde era oriundo, pelo seu Estado e
pelo seu soberano. Para a Alemanha da época a pátria (Vaterland) era portanto bem
diferente da nação (Nation):
Mit « Vaterland» war dabei zunachst noch nicht die Summe der einzelnen deutschen
Territorien, sondem haufig nur einer der jeweiligen Kleinstaaten gemeint.
(Giesen/Junge 1991: 273)
Neste patriotismo de carácter local estão as raízes do tradicional regionalismo alemão,
que se prolonga, de resto, até aos dias de hoje3.
3 De facto, e por motivos que obviamente têm também a ver com os acontecimentos da história europeia deste
século (nomeadamente as duas Guerras Mundiais), ainda hoje, na Alemanha, o indivíduo se tende a identificar mais
com o Estado (Land) ou a região onde nasceu do que com a complexa e problemática cidadania alemã. Sobre as
dificuldades inerentes a este «ser-se alemão» vejam-se por exemplo as antologias de Nünning/Nünning (1994) e
Longerich (1990).

À impossibilidade, e em grande parte também à indesejabilidade, de uma união


política contrapunha-se, no entanto, uma fundamental unidade cultural da Alemanha,
como Schiller e Goethe observam no passo atrás transcrito das suas Xénias. A nação
alemã haveria, pois, de ser construída com base nessa comunidade de cultura.

1.2.2 Sprachnati on/Kultumati on: A comunidade da língua e da


cultura
De um ponto de vista cultural não deixa de ser interessante notar que, tendo tido a
Alemanha a importância que teve na Reforma através da figura de Lutero 4, acabou por
inesperadamente adiar o seu «despertar cultural» precisamente até ao século XVIII.
4 O caso de Lutero é, neste contexto, especialmente interessante uma vez que acaba por se tornar paradigmático
da complexa e contraditória identidade nacional alemã. É que Lutero, com a sua tradução da Bíblia, é
simultaneamente responsável pela fixação e uniformização da língua alemã e pela introdução de novas fissuras
confessionais que resultam, em termos políticos, numa maior e mais acentuada divisão dos territórios alemães .
Ora uma burguesia ativa, erudita e culturalmente empenhada como era a alemã, não
poderia deixar de ver este atraso como consequência direta e exemplarmente negativa
da atomizada e feudal estrutura política do território.
Na realidade, e tal como Madame de Stael escreve na obra a que já acima se fez
referência (Stael 1968: I, 55):
L' Allemagne était une fédération aristocratique: cet empire n' avait point un centre
commun de lumieres et d'esprit public; il ne formait pas une nation compacte, et le lien
manquait un faisceau.
Esse elo de união encontrá-lo-ia a Alemanha, em termos sociais, na burguesia e, em
termos culturais, exatamente na língua que essa burguesia falava e muito em
particular na literatura que essa mesma burguesia produzia e consumia nas diversas
«sociedades de leitura» (Lesegesellschaften), que se multiplicam a uma velocidade
vertiginosa durante o século XVIII (cf. Dülmen 1986: 82 e segs.; 150 e segs.), facto,
aliás, que ilustra bem o vigor e o poder de uma classe que, do ponto de vista
sociológico, apresenta um grau de coesão assinalável e se vai progressivamente
impondo na sociedade em virtude da sua formação universitária especializada ( cf.
Schulze 1995: 145 e segs.).
As pátrias alemãs dão assim lugar à nação alemã. Não se trata, porém, ainda, de uma
«nação alemã» unida em torno de um mesmo Estado, mas sim de uma «nação alemã»
reunida em torno de uma mesma língua e cultura ( Kulturnation ).
É a este respeito exemplar um poema - «Des Deutschen Vaterland» - que Ernst Moritz
Arndt (1769-1860), escreve no ano de 1813. Depois de se revelarem infrutíferas as
tentativas de definir política e territorialmente a Alemanha, o autor conclui (apud
Ulmer 1990: 23):
Was ist des Deutschen Vaterland?
So nenne mir das groBe Land!
So weit die Deutsche Zunge klingt
Und Gott im Himmel Lieder singt,
Das soll es sein !
O espaço alemão toma uma forma diferente: as fronteiras políticas e geográficas
diluem-se para darem lugar às fronteiras linguísticas, históricas e culturais, facto
extraordinariamente importante, que justifica muitas das futuras iniciativas e incursões
alemãs no espaço europeu.
Convirá, no entanto, sublinhar que, tal como sucedera na primeira fase dos
nacionalismos europeus, os argumentos da partilha de uma mesma língua e de um
mesmo percurso histórico só com muita dificuldade se aplicam ao caso alemão.
No que diz respeito à história, se é certo que os territórios de expressão alemã
partilham um passado histórico comum, deve acrescentar-se que se trata de um
passado repleto de conflitos, guerras internas e dissensões das mais diversas (por
motivos confessionais, pela política de alianças com as potências europeias, etc.).
No que diz respeito ao argumento da partilha de uma mesma língua, a verdade é que
uma observação mais atenta da Alemanha da época não pode deixar de constatar uma
realidade bem diferente: de facto, o espaço alemão é um espaço onde não só se falam
inúmeros dialetos regionais - muitos dos quais sobrevivem ainda hoje como sejam o
Frísio ( Friesisch), o baixo-alemão (Plattdeutsch), o Suabo (Schwii.bisch) ou o Bávaro
(Bayerisch) 5 - , como também é um espaço profundamente marcado por divisões de
cariz sociolinguístico (as classes mais altas usam entre si o francês como língua franca e
de cultura). A atestar - de uma forma evidentemente caricatural - este plurilinguismo
da nobreza alemã está a conhecida anedota sobre Frederico II da Prússia ( 1712-1786),
de quem se dizia que falava espanhol com Deus, francês em sociedade, italiano na
intimidade e alemão com cavalos e soldados.
5 Refira-se aliás que o termo «alemão» (deutsch) terá surgido na Baviera por volta do século VIII e significava
«língua popular» (Volkssprache). Porém, esta língua falada pelo povo não era de forma nenhuma uma língua
uniforme e homogénea, «sondem eine Vielfalt von germanischen Stammesdialekten, die sich vom gelehrten Latein
der Kirche wie von den romanischen und slawischen SprachenEuropas unterschieden» (Schulze 1995 : 115)

1.3 A nação alemã


Os mitos, como se sabe, criam realidades a partir do nada. Reorganizam o diverso, o
disperso ou o disforme, emprestam-lhes unidade e, desse modo, sentido e forma. Os
argumentos míticos de uma sociedade unida pela partilha de uma língua e de uma
memória histórica comuns, por muito inadequados que as posteriori possam parecer,
não constituem a este título exceção.
Tal como acontecera com a primeira vaga de nacionalismos europeus e tal como
acontecia na França pós-revolucionária - onde a um inventário exaustivo dos dialetos
falados nas províncias rapidamente se sucedeu a proibição dos mesmos, conseguindo-
se assim por decreto a uniformização da língua francesa ( cf. Coulmas 1985: 30) - a
construção da nação alemã iria pois percorrer os caminhos já conhecidos,
nomeadamente utilizando os argumentos que apontavam para a «natural» unidade de
uma sociedade que partilha a mesma língua e cultura, e se revê num passado histórico
comum.
No entanto, por força da especificidade do caso alemão, sob a influência do
pensamento do século XVIII e face aos desenvolvimentos da história europeia mais
recente (revolução e invasões francesas), esses argumentos haveriam de ser agora
revistos a uma outra luz, pensados a partir de uma outra perspetiva.

1.3.1 Língua, cultura e sociedade


À semelhança do que sucedera no Renascimento, durante a primeira fase dos
nacionalismos europeus, a questão da língua (e mais genericamente da linguagem) é
também uma questão central para o pensamento do século XVIII. Mas,
diferentemente do que sucedera naquela época, a mesma questão já não se
equaciona agora em função do binómio latim/línguas vulgares. Ao século XVIII
interessa menos a discussão sobre a «pureza» das línguas, sobre o maior ou menor
afastamento das línguas vulgares em relação ao latim - que, entretanto, caía
progressivamente em desuso nas universidades -, que a investigação sobre a
diversidade das línguas e a origem da linguagem, estes sim, os verdadeiros centros das
atenções setecentistas. Correndo embora o risco de uma generalização e de uma
simplificação excessivas, poder-se-ia, contudo, afirmar que o debate em torno da
origem da linguagem oscilava entre aqueles que defendiam a origem divina daquela
faculdade humana e aqueles que se inclinavam para a origem humana da mesma. No
que diz respeito à diversidade das línguas, as explicações que ocorriam e as hipóteses
que se colocavam eram de índole muito variada, valendo a pena destacar de entre elas
(porventura por ser uma das mais divulgadas desde a Antiguidade Clássica) a tese que
explicava essa diversidade em função de fatores climatéricos. A língua falada numa
região seria diretamente influenciada pelo clima dessa mesma região, de modo que a
diferenças climáticas corresponderiam necessariamente, também, entre outras,
diferenças linguísticas.
Na sequência de Montesquieu (que é um dos grandes divulgadores destas teorias na
Europa do século XVIII), Rousseau pode ser tomado aqui como exemplo daqueles que
à época defendiam esta última posição. Já em 1755, no seu Discours sur l'origine et les
Fondements de l'Inégalité parmi les Hommes, este autor chamava a atenção para a
importância e influência que o clima teria no desenvolvimento diverso da espécie
humana (cf. Rousseau 1984: 116 e segs., 158 e 324) e no Essai sur ['origine des
Langues, escrito entre 1753 e 1761 e que conheceu a primeira edição, póstuma, em
1781, retoma e desenvolve a mesma tese aplicando-a agora à origem e diversidade
das línguas (cf. Rousseau 1990: 89 e segs.). Assim, no Norte, onde a natureza é ávara e
as necessidades se sobrepõem às paixões, a primeira palavra a ser pronunciada por
boca humana teria sido «aidez-moi», enquanto que no Sul, onde a natureza é pródiga
e as paixões dominam, essa primeira palavra teria sido «aimez-moi» 6.
6 Esta antinomia Norte-Sul constitui aliás a base de uma tipologia nacional que se generaliza por toda a Europa a
partir do século XVIII e que tem um papel de relevo na produção literária, nomeadamente na literatura de viagens.

É justamente neste quadro de ideias e neste contexto de mentalidades (que aqui ficam
traçados de uma forma necessariamente muito breve) que surge em 1772 o Ensaio
sobre a Origem da Linguagem, de Herder. Trata-se de um ensaio que no ano anterior
havia sido premiado pela Academia das Ciências de Berlim e que procurava responder
à questão posta a concurso em 1769 pela mesma Academia sobre as «possibilidades»
e os «meios da invenção humana da linguagem».
A frase que abre o Ensaio de Herder constitui sem dúvida uma resposta revolucionária
e, de algum modo também, provocatória às questões colocadas, ao mesmo tempo que
assinala um ponto importante de viragem no que diz respeito à reflexão sobre a
linguagem que se vinha fazendo na época: « Schon als Tier hat der Mensch Sprache»
(Herder 1966: 5). Se a linguagem era, na perspetiva de Herder, uma faculdade
humana, uma capacidade anterior e, fundamentalmente, interior à própria espécie
humana, então (e ao contrário do que sucedia por exemplo com Rousseau), a
diversidade das línguas não poderia ser explicada por fatores externos, climatéricos ou
outros, mas sim apenas por fatores internos (Herder 1966: 108-109, sublinhados no
original):
Er [der Mensch] ist kein Rousseauscher Waldmann: er hat Sprache. Er ist kein
Hobbesischer Wolf: er hat eine Familiensprache. Er ist aber auch in andem
Verhaltnissen kein unzeitiges Lamm. Er kann sich also entgegengesetzte Natur,
Gewohnheit und Sprache bilden - kurz: Der Grund von dieser Verschiedenheit so naher
kleiner Volker in Sprache, Denk- und Lebensart ist - gegenseitiger Familien- und
Nationalhass.
A língua é, pois, entendida como um código, fechado aos inimigos e aberto aos
indivíduos solidários, a mais humana e por isso a principal das fronteiras entre os
homens que, além do mais, eles próprios criaram.
A esta visão fragmentária da realidade linguística e humana, Herder contrapunha, no
entanto, uma ordem e uma unidade que poderiam ser igualmente observáveis:
So wie nach aller Wahrscheinlichkeit das menschliche Geschlecht ein progressives
Ganzes von einem Ursprunge in einer grossen Haushaltung ausmacht, so auch alle
Sprachen, und mit ihnen die ganze Kette der Bildung. (Herder 1966: 104, sublinhados
no original)
Em termos muito gerais dir-se-ia, pois, que as línguas se tinham progressivamente
modificado e afastado dessa origem comum, modificação e afastamento esses a que
não é alheia a vontade dos próprios indivíduos que formam e fazem parte da
comunidade. Deste modo se verificava ainda o carácter «interior» da língua, isto é, o
papel determinante que o indivíduo tem na formação e transformação de uma língua,
ao mesmo tempo que se sublinha a estreita relação existente entre língua e cultura, ou
seja, confirmava-se por último o papel determinante que a língua tem na formação e
transformação do indivíduo, na medida em que esta lhe fornece desde o início o
quadro lógico-mental e as próprias palavras com que expressa os seus pensamentos.
Dito de outro modo: tanto é o homem que cria a língua como é a língua que cria o
homem7.
7 Profundamente influenciado por Herder, Humboldt escreveria mais tarde que não é possível pensar um sem o
outro: «Die Geisteseigenthümlichkeit und die Sprachgestaltung eines Volkes stehen in solcher lnnigkeit der
Verschmelzung in einander, dass, wenn die eine gegeben ware, die andre müsste vollstandig aus ihr abgeleitet
werden konnen. ( ... ) Die Sprache ist gleichsam die ausserliche Erscheinung des Geistes der Volker; ihre Sprache ist
ihr Geist und ihr Geist ihre Sprache, man kann sich beide nie identisch genug denken» (Humboldt 1988: 414-415).

Esta complexa e rica relação entre indivíduo, social, língua e cultura, é a base da
filosofia de Herder, e sem ela dificilmente se poderia compreender o seu pensamento
político:
Herder's central political idea lies in the assertations that the proper foundation of a
sense of collective political identity is not the acceptance of a common sovereign
power, but the sharing of a common culture. For the former is imposed from outside,
whilst the latter is the expression of an inner consciousness. (Barnard 1969: 7)
A comunidade não se funda portanto com base num «contrato negociado» (como
Rousseau sustentava no seu Contrato Social), tem a sua origem, isso sim, numa
vontade, num desejo natural expresso por uma comunidade de indivíduos, talvez
melhor, por cada um deles, que partilham historicamente uma mesma língua e cultura.

l.3.2 História e Políti ca


Na Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX a reflexão sobre a
lingua(gem) não é - nem pode ser considerada - uma reflexão puramente académica,
isto é, desinteressada do ponto de vista político. Na realidade, trata-se quase sempre
de uma reflexão que se inscreve sobre um pano de fundo dominado por preocupações
políticas e nacionalistas.
Essas preocupações tornam-se porventura mais claras ainda no caso de Wilhelm von
Humboldt, seja pela sua participação ativa na vida política alemã, seja pela sua
proximidade em relação ao poder político prussiano ( cf. supra o Cap. II.2, « Bildung e
Erfahrung »).
É assim que em 1813, no ano em que as tropas francesas abandonam derrotadas o
território alemão, se veem de novo transportar para o campo político os argumentos
que apontavam para a «natural» unidade política de um povo que partilha a mesma
língua e cultura, e se revê num passado histórico comum.
Numa longa carta sobre a futura constituição alemã enviada ao seu amigo e ex-
ministro prussiano Freiherr von Stein (1757-1831) Humboldt escreve (1982: 304):
( ... ) das Gefühl, dass Deutschland ein Ganzes ausmacht, [lasst sich] aus keiner
deutschen Brust vertilgen, und es beruht nicht bloss auf Gemeinsamkeit der Sitten,
Sprache und Literatur ( .. . ), sondem auf der Erinnerung an gemeinsam genossene
Rechte und Freiheiten, gemeinsam erkampften Ruhm und bestandene Gefahren, auf
dem Andenken einer engeren Verbindung, welche die Vater verknüpfte, und die nur
noch in der Sehnsucht der Enkel lebt. ( ... ) Die Frage kann also nur die sein: wie soll
man wieder aus Deutschland ein Ganzes machen?
Sublinhe-se que os argumentos relacionados com a comunidade de costumes, língua e
literatura se consideram já um dado adquirido e, por isso mesmo, incontestável.
Interessante é agora o modo como se reforça o argumento relacionado com a partilha
de um passado histórico: Humboldt não só glorifica a memória de um passado comum,
como também transforma uma história nacional numa história familiar, feita de pais e
netos, procurando assim dar mais coesão à imagem de um todo social
indissoluvelmente unido por laços familiares.
Face à sua constante preocupação com a questão dos direitos e das liberdades
individuais, à ideia de que o futuro deve ser a sequência lógica de um presente
reformador, mas não necessariamente revolucionário em relação ao passado histórico
e a partir da constatação dos erros e virtudes dos vários regimes e sistemas políticos
entretanto experimentados (nomeadamente o francês, o italiano e o norte-
americano), Humboldt acaba por concluir na mesma carta: «Die Richtung Deutschlands
ist ein Staatenverein zu sein ( ... )» (Humboldt 1982: 308).
A unidade da Alemanha seria indelevelmente marcada pelo Estado e fundar-se-ia
sempre ao nível da língua, da cultura, dos costumes, enfim, de uma memória histórica
compartilhada desde há séculos, muito embora o mesmo autor admitisse que noutras
condições histórico-culturais seria eventualmente de preferir uma constituição unitária
e um poder estatal centralizado e forte.

1.3.3 Pedagogia políti ca


Bem mais radical é a perspetiva proporcionada por Johann Gottlieb Fichte (1762-
1814), professor da Universidade de Berlim, quando no Inverno de 1807/1808 profere
naquela cidade uma série de catorze conferências que intitula Reden an die Deutsche
Nation. Nessas conferências toma-se perfeitamente claro o modo como a reflexão
académica que se ocupa da linguagem rapidamente se pode transformar num meio
para atingir um objetivo político.
Estes discursos têm lugar porventura num dos piores momentos da história alemã:
com a Prússia aniquilada militarmente desde a Paz de Tilsit (Julho de 1807) e Berlim
ocupada pelas tropas francesas, dir-se-ia que a Alemanha tinha deixado de existir. É
neste contexto que, falando exclusivamente de alemães e a alemães (Fichte 1978: 13),
Fichte se propõe, em primeiro lugar, indagar da possibilidade de uma nova época (leia-
se de um futuro que traga à Alemanha a autonomia e a independência perdidas) e, em
segundo lugar, admitindo e desejando essa possibilidade, indicar os melhores
caminhos que levem à construção desse futuro autónomo.
Logo no primeiro discurso se tornam claras quais as soluções preconizadas para os
problemas que a «nação alemã» enfrenta -
( ... ) eine gänzliche Veränderung des bisherigen Erziehungswesens ist es, was ich, als
das einzige Mittel die deutsche Nation im Dasein zu erhalten, in Vorschlag bringe
(Fichte 1978: 21)
- e quais os objetivos gerais das conferências: « Wir wollen durch die neue Erziehung
die Deutschen zu einer Gesamtheit bilden» (Fichte 1978: 23).
Ao longo dos catorze discursos é pois à construção de uma identidade nacional alemã
que se assiste, neles se sublinham caricaturalmente as semelhanças internas e as
diferenças externas em relação a outros povos e nações, redimensiona-se e, em alguns
passos, profetiza-se uma Alemanha unida do futuro.
O quarto desses discursos tem o significativo título de «Hauptverschiedenheit
zwischen den Deutschen und den übrigen Võlkern germanischer Abkunft» e merece
uma análise mais detalhada. Inaugurando uma série de outros dois que podem ser
considerados o núcleo argumentativo central das conferências, neles pretende
responder-se à pergunta que o título acima deixava já adivinhar: «was ist der
Deutsche, im Gegensatze mit andern Völkern germanischer Abkunft?» (Fichte 1978:
124).
E a resposta encontrada por Fichte é simples: as diferenças entre os alemães e os
outros povos de origem germânica residem na tribo ou na etnia a que pertencem, na
língua que falam, no território que ocupam e na memória de um passado histórico
comum que partilham. Os alemães teriam permanecido nas terras inicialmente
povoadas pela tribo original (Stammvolk) e preservavam assim a língua e a memória de
um passado comum, por oposição aos outros povos que, tendo-se deslocado para
outros territórios e povoado novas terras, necessariamente se desviaram também das
suas origens germânicas.
Para além da ideia de «germanidade» (Deutschheit) que aqui se veicula, o que na
realidade interessa reter é que deste desvio primordial resultam, por exemplo,
consequências políticas extraordinariamente importantes (Fichte 1978: 60):
Der zu allererst, und unmittelbar der Betrachtung sich darbietende Unterschied
zwischen den Schicksalen der Deutschen und der übrigen aus derselben Wurzel
erzeugte Stamme ist der, dass die ersten in den ursprünglichen Wohnsitzen des
Stammvolks blieben, die letzten eine fremde Sprache annahmen, und dieselbe
allmahlich nach ihrer Weise umgestalten. Aus dieser frühesten Verschiedenheit müssen
erst die spater erfolgten, z.B. dass im ursprünglichen Vaterlande, angemessen
germanischer Ursitte, ein Staatenbund unter einem beschrankten Oberhaupte blieb, in
den fremden Landern mehr auf bisherige rõmische Weise, die Verfassung in
Monarchien überging, u. dgl. erklart werden, keineswegs aber in umgekehrter
Ordnung.
Ora esta diferença nos sistemas políticos é provocada quase exclusivamente pelo
desvio linguístico - a língua parece surgir aqui como argumento central -, uma vez que
Fichte entende que a mudança de território não pode, só por si, modificar um povo
que continue a usar a língua original.
Numa primeira análise notar-se-á no conceito de língua que aqui transparece algumas
semelhanças com o carácter «interior» da língua de que falava - Herder,
nomeadamente no que diz respeito à fraca influência de fatores externos na formação
e transformação da mesma. Mas estes pontos de contacto rapidamente se dissipam já
que, em primeiro lugar, Fichte fala exclusivamente da língua alemã e, em segundo
lugar, entende que essa mesma língua não é arbitrária nem convencional. É, isso sim, a
única língua natural que ainda sobrevive. E embora mais uma vez se esteja assim a
sublinhar que o que a comunidade partilha tem pouco ou nada a ver com convenções
ou «contratos negociados», o que está igualmente aqui a ser dito é que a língua alemã
é a língua original, a única língua europeia que mantém uma relação direta com o Real.
Noções como as de «liberdade», «igualdade», «fraternidade» ou «humanidade»
seriam, pois, «verdadeiras» quando pronunciadas na língua alemã e «falsas», na
medida em que resultariam de uma reflexão especulativa, em qualquer outra língua
europeia, nomeadamente na francesa. Desta forma o discurso de Fichte, proferido
naturalmente em alemão, diz que diz a verdade e assim se fecha tautologicamente
sobre si mesmo.
É claro - e este é um aspeto que não deve deixar de ser sublinhado - que os Discursos à
nação alemã são discursos contra o invasor francês que ocupa o território alemão,
sendo nesse sentido discursos tipicamente nacionalistas, de incitamento à revolta e
apologéticos do direito à diferença, independência e autodeterminação do povo
alemão. Contudo, por muito que se considerem estas atenuantes contextuais ou por
muito que se considere que este nacionalismo de Fichte não é incompatível com o seu
cosmopolitismo ( cf. Meinecke 1969: 88), a verdade é que a radicalidade nacionalista
deste filósofo alemão tem já todos os ingredientes que mais tarde viriam a ser
perversamente postos em prática na construção do Estado nacional-socialista alemão
e na política usurpadora de agressão e conquista de territórios levada a cabo pelo
mesmo Estado em meados deste século (cf. adiante o Cap. IV.5).
Concluindo, convirá reter que entre Rousseau e Fichte ficam de algum modo traçadas
as filiações dos dois tipos de nacionalismos que depois do século XVIII haveriam de dar
forma ao mundo político atual: é, por um lado, o nacionalismo de tipo francês e
americano, cuja sociedade se funda a partir de uma base contratual clara - a da
aceitação do princípio que todos os cidadãos são iguais perante a lei; e é, por outro
lado, o nacionalismo de tipo alemão que se baseia na comunidade étnica, de língua,
cultura e história.
Significativamente estas diferenças traduzem-se, ainda hoje, em diferentes
mecanismos jurídicos de aquisição da nacionalidade: no caso alemão a nacionalidade
adquire-se pela consanguinidade (jus sanguinis), no caso francês e americano a
nacionalidade é determinada pelo princípio da territorialidade (jus soli).
Por outro lado, se é certo que todo o nacionalismo é o resultado de uma construção
ideológica, não é menos verdade que o carácter artificial dessa construção se torna
particularmente evidente no caso da Alemanha, que teve de reinventar a sua nação e a
sua identidade nacional ao longo dos séculos XIX e XX. Como certeiramente observa
Seeba a este respeito ( 1986: 154-155),
Paradoxically, the German claims to national unity reflect a long history of political
divisions. ( ... ) The concept of national identity, at least as far as Germany is
concerned, is nothing but, linguistically speaking, a word without a referent. The word
may generate a reality of its own, but it does not reflect a political reality that exists
before, outside, and independently of the concept.
No caso da Alemanha, o conceito de «identidade nacional» acabou, de facto, por
encontrar um referente e a palavra por criar uma realidade nova: a «nação alemã».
Mas precisamente porque se trata de uma realidade criada a partir da palavra, a
construção da «nação alemã» foi feita com base em argumentos e conceitos de cariz
mítico-histórico e estético-literário. Como recorda o mesmo autor (Seeba 1986: 165,
sublinhados no original),
When the famed founder of the discipline called «Germanistik», Jacob Grimm,
published the first volume of his Deutsches Worterbuch (1854-1860) he typically
introduced it as a monumentfor, not of, national identity and with the expressed
understanding that its formation in the German language and literature had no
equivalent in the political reality: «Was haben wir denn gemeinsames als unsere
Sprache und Literatur?»
O carácter estético-literário, e, portanto, retórico e ficcional, deste argumento
fundador da «nação alemã» torna-se óbvio quando confrontado com uma realidade
linguística e dialectal muito diversa e multifacetada, como acima houve oportunidade
de referir.
Por seu turno, o carácter mítico e irrealista de uma Alemanha outrora
harmoniosamente unida e em paz fica bem patente num epigrama de Johann Vogel
(1589-1663) publicado em 1649, do qual se depreende que é mais fácil ver passar um
camelo por uma agulha do que assistir ao nascimento de uma «paz alemã»
(apudWagenknecht 1976: 171):
Was du nit glaubest, das geschiht.
Wie? sol nicht ein Camel durch eine Nadel gehn?
Wann du den Teütschen Fried jetz wider sihst entstehen.
Epigrama irónico e sarcástico, já que é publicado justamente no ano seguinte ao da
assinatura do tratado de paz da Vestefália (1648), que veio pôr termo à Guerra dos
Trinta Anos e assim trazer a paz a um vasto território que desde inícios do século XVI
começava progressivamente a adotar a designação de Heiliges Romisches Reich
Deutscher Nation. Mas é igualmente um epigrama premonitório: não apenas em
relação à história futura da Alemanha, mas sim, também, em relação a todo o espaço
europeu.

Ati vidades propostas


• Leia os textos de Hugo von Hofmannsthal ( «Boicote às línguas estrangeiras?») e de
Thomas Mann ( «A Alemanha e os Alemães») incluídos na revista Runa ( 1992) e
compare o conceito de «Alemanha» que está subjacente a cada um deles.
• Comente o seguinte texto:
Que significa «alemão»?
Ao que parece, essencialmente uma forma de ser, literária e filosoficamente,
contraditória. Ostensivamente contraditória e carregada de tensões, umas vezes
destrutivas, outras produtivas ( ... ). Aquilo que Nietzsche via como um mal - o facto de
a Alemanha se alimentar, «com um apetite nada vulgar ... de coisas contraditórias»
(Ecce Homo) -, parece, afinal, quando visto numa perspetiva histórica mais larga, um
fator de dinamismo e vitalidade. (Barrento 1989: I, 50)
Cap. III.4, "Natureza romântica e identidade nacional",
pp.203- 213
[pontos 4.1, 4.2, 4.3, 4.4 e 4.5]

4.1 A natureza como universo simbólico: o exemplo dos Alpes


Na recente história cultural alemã, o conceito de «natureza» encontra-se intimamente
ligado não só à definição dos espaços públicos e privados que caracterizam a vida
burguesa moderna, mas também a uma identidade nacional problemática que se
exterioriza no mundo. A «descoberta» das altas montanhas como objeto estético e
moral no poema Die Alpen de 1729 do escritor suíço Albrecht von Haller (1708-1777),
o entusiasmo lírico expansivo do Sturm-und-Drang, a paisagem romântica cujos
esquemas estereotipados dominam a perceção da natureza até hoje, o parque inglês e
a sua integração na vida pública do século XIX e os movimentos de evasão e de
protesto, desde o Wandervogel ao Partido dos Verdes e aos ambientes naturais
simulados da indústria turística, são diversos aspetos dum complexo cultural que
apresenta as várias facetas da natureza como objetos sociais com elevado valor
integrativo.
Falar de natureza significa, neste contexto, identificar um universo simbólico que se
articula na produção e apreciação afetiva de objetos, práticas sociais e atitudes
mentais que se projetam no espaço e no tempo.
A natureza não será, como ainda na filosofia materialista e marxista e no positivismo
científico tradicional, uma parte da realidade objetiva, mas, antes de mais, um mundo
simbólico inscrito na realidade, a organização estruturada de determinados elementos
num todo significativo. Nesta perspetiva, a natureza faz sempre parte da cultura e está
sujeita, por conseguinte, à evolução histórica do entendimento e das categorias
estéticas.
O simbolismo da natureza é uma parte importante da tradição ocidental. Neste
sentido, o escritor e filósofo Christian Garve pode considerar os fenómenos naturais
como uma linguagem que precisa, para ser entendida corretamente, da ajuda da razão
filosófica. Se a natureza «fala», a sua voz é suave e precisa de ser reforçada:
Ihre Sprache ist uns anfangs fremd, und wir müssen sie studiren, um sie zu verstehen.
Zuweilen sind ihre Ausdrücke rathselhaft und wir müssen sie auslegen. (1974: 1072)
Garve retoma aqui a metáfora do mundo-livro que remonta às tradições exegéticas do
cristianismo e percorre toda a história cultural do Ocidente. Ainda no fim do século XX
é publicada uma antologia de textos literários com o título significativo Die Sprache der
Landschaft (Schafer/Storch 1993) que se apresenta como continuação da famosa
coletânea Der Deutsche in der Landschaft editada por Rudolf Borchardt em 1927.
No seu posfácio, Borchardt situa a unidade dos textos apresentados (1770--1870) no
contexto duma «história do espírito alemão» (473), documento genuíno dum povo
que, dado o seu carácter nacional, se apropria do mundo inteiro: «der-Deutsche ist
überall zu Haus und nicht zu Haus ( ... ). Die Welt geht in ihn ein, indes er in die Welt
aufgeht». Numa época de recentes nostalgias coloniais, Borchardt perpetua o mito do
domínio cultural alemão:
Der eigener landerverknüpfender und besiedelnder Politik fast ganz Enterbte überblickt
nach Teilung der Erde aus den nur ihm eigenen Höhen des Geistes eine kosmisch
tellurische Verhaltniswelt, die auf keinen Karavellen und Briggs der seefahrenden
Eroberer zu erschiffen war. (Borchardt 1953: 462-463)
Assim, identidade nacional e conceito de natureza revelam uma correspondência
essencial; na apreensão científica e estética realizam-se os ideais expressos no grande
«século do espírito alemão» entre a Aufklärung e a fundação do Reich.
A conceção da natureza-texto tem duas implicações importantes: supõe não só o
espaço natural como um conjunto articulado e inteligível, mas considera também este
entendimento como uma técnica cultural que pode ser aprendida com a ajuda de
especialistas na matéria. Um elemento importante da «leitura» do texto natural é a
identificação dos seus vários elementos significativos. Garve fornece no seu artigo um
catálogo dos topoi da natureza da sua época que remetem para uma ordem inalterável
(ritmo de dia e noite, alternância das estações) e uma tipologia estética da paisagem
na transição da Aufklärung para o Romantismo:
Der Mittag und der Abend, der heisse Sommer und der milde Herbst, die dunklen
Schatten des Waldes, die Gestade eines Flusses oder Sees, das offene Feld, mit
Baumen umkränzte Wiesen, sanft emporsteigende Hügel, und schroffe hohe Felsen;
jede dieser verschiedenen Ansichten hat ihren eigenthümlichen Charakter, ist mit
andern Gemüthsbewegungen verwandt, und ist geschickt, andre Ideen zu erwecken.
(Garve 1974: 1072)
Esta atribuição de elementos naturais a um paradigma estético e filosófico condensa-
se, nas primeiras décadas do século XIX, em universos antinómicos.
Assim, o escritor Daniel Lessmann ( 1793-1831) já pode distinguir, no exemplo da
paisagem, elementos clássicos e românticos e explicar, warum die Nacht und der
Abend romantisch, nicht aber der Tag und der Morgen - der Mond und der Nebel,
nicht aber die Sonne und das Blau des Himmels - eine gothische Kathedrale und eine
verfallene Ritterburg, nicht aber ein attischer Minerventempel und eine römische
Arena - ( ... ) ein naturwilder englischer Garten, nicht aber ein französischer, den die
Scheere dressirt und gelichtet hat. (1828: II, 257 e segs.)
As ideias que a natureza desperta, Garve situa-as, na sequência de Kant, na
semelhança entre natureza e obra de arte. Tal como esta remete para o artista, a
natureza remete para um criador dotado de razão por detrás do mundo visível. As
principais funções atribuídas na Aufklärung ao conceito moderno de natureza, já se
encontram expressas numa carta de 1541 do humanista suíço Konrad Gesner (1516-
1565) sobre a alta montanha:
Welchen Genuss gewahrt es nicht, die ungeheuern Bergmassen zu betrachten und das
Haupt in die Wolken zu erheben! Wie stimmt es zur Andacht, wenn man umringt ist
von den Schneedomen, die der grosse Weltbaumeister andern einen langen
Schöpfungstage geschaffen hat! Wie leer ist doch das Leben, wie niedrig das Streben
derer, die auf dem Erdboden umher kriechen, nur um zu erwerben und spiessbürgerlich
zu geniessen! Ihnen bleibt das irdische Paradies verschlossen. (apud Friedlander 1873:
7)
Esta valorização da paisagem alpina situa-se na linha da teologia da criação, enquanto
a teologia da redenção despreza a vida terrestre e a própria natureza. Admirar a beleza
da paisagem é reconhecer a obra e o poder de Deus. Gesner, que se distinguiu
também como botânico e colecionador (o seu Naturalienkabinett era um dos primeiros
na Europa), atribui um espaço específico (a alta montanha) a este sentimento de
admiração e opõe, assim, a natureza à vida burguesa e materialista; o paraíso terrestre
implica uma sintonia com o espaço natural transcendente que proporciona, ao mesmo
tempo, na aproximação do viandante a Deus, uma superioridade moral.
A ideia kantiana do deus-artista, porém, já é apresentada por Garve como uma
suposição, um desejo secreto do mais profundo coração humano que se pode
descrever, em termos atuais, como necessidade social de reduzir a complexidade e a
contingência do universo. Neste sentido, Goethe insiste na produção de sentido como
fator antropológico universal; o ser humano é organizado de tal maneira que deve
sempre tentar, ao ordenar os objetos convenientemente, criar um mundo adequado à
sua dimensão. A natureza aparece, assim, como fenómeno essencialmente cultural.
Para a simbolização cultural só mais dois exemplos que mostram a disponibilidade
total dos fenómenos para contextos diferentes e, nalguns casos, contrários. No seu
poema de 1729, Haller idealiza o espaço alpino por oposição ao luxo, a riqueza inútil e
a depravação que reinam nas cidades. Na montanha, dominam ainda a antiga
harmonia entre razão e natureza- «Hier herrschet die Vernunft, von der Natur
geleitet» (Haller 1984: 6)- e o ritmo natural duma vida sem excessos e drogas - «Der
Mensch allein trinkt Wein und wird dadurch ein Tier» ( 12). Haller apresenta os Alpes
como lugar dum equilíbrio perfeito - <<Wo nichts, was nötig, fehlt und nur, was nutzet,
blüht»; os habitantes estimam ainda as virtudes ancestrais e dedicam-se inteiramente
ao trabalho:
Die Arbeit füllt den Tag und Ruh besetzt die Nacht;
Hier lasst kein hoher Geist sich von der Ehrsucht blenden,
Des Morgens Sorge frisst des Heutes Freude nie.
Die Freiheit teilt dem Volk, aus milden Mutter-Handen,
Mit immer gleichem Mass Vergnügen, Ruh und Müh.
Kein unzufriedener Sinn zankt sich mit seinem Glücke,
Man isst, man schlaft, man liebt und danket dem Geschicke.
Os Alpes de Haller são a imagem duma sociedade frugal e simples, essencialmente pré-
moderna, em sintonia com o ambiente natural e em dependência total do trabalho
rural que cria e mantém uma ética rigorosa.
Em 1911, o sociólogo Georg Simmel, um dos grandes historiadores dos espaços
culturais da modernidade, baseia a sua antinomia natureza/cultura numa
interpretação sugestiva dos Alpes que seriam símbolo da transcendência e da matéria
caótica ao mesmo tempo, uma absoluta paisagem ahistórica que concentra e reflete
«letzte seelische Kategorien» (apud Schafer/Storch 1993: 69-74):
Das Hochgebirge mit der Unerlostheit und der dumpfen Wucht seiner blossen
materiellen Masse und dem gleichzeitigen überirdisch Aufstrebenden, über alle
Lebensbewegtheit hinaus Verklarten seiner Schneeregion bringt beides in uns zu einem
Klang. Jener Mangel einer eigenen und eigentlichen Bedeutung seiner Form lasst in ihm
Gefühl und Symbol der grossen Daseinspotenzen: dessen, was weniger ist als alle Form,
und dessen, was mehr ist als alle Form - seinen gemeinsamen Ort finden. (ib.: 71)
Não podemos insistir mais aqui na estetização da alta montanha, aliás já bem
estudada (cf. Raymond 1993). Da longa e complexa história da natureza como
universo cultural estruturado, serão abordadas no quadro deste capítulo apenas
quatro linhas temáticas essenciais:
• a dimensão religiosa e moral da natureza transcendente;
• a paisagem romântica e a identidade nacional alemã;
• a natureza burguesa e os seus espaços específicos;
• a função compensatória da natureza.

4.2 Dimensão religiosa e moral da natureza transcendente


Os conceitos de natureza que dominam na segunda metade do século XVIII são ainda
paradigmas europeus que remetem para antagonismos ideológicos comuns. Assim, o
parque geométrico francês corresponde ao absolutismo feudal, enquanto o parque
inglês, que se torna popular na Alemanha no fim do século, projeta e recria uma
natureza autónoma e aparentemente livre.
Filósofos e escritores ingleses como Antony Shaftesbury (1671-1713) e Joseph Addison
(1672-1719) já tinham oposto, em 1711, a expressão de arbitrariedade e escravatura
nos parques aristocráticos às virtudes da natureza «natural» ( cf. Wimmer 1989: 419).
Esta batalha política em termos culturais culmina nas aspirações naturalistas da
Revolução Francesa que tenta impor, entre outros, um novo calendário cujos nomes
contemplam o ritmo das estações e do trabalho rural. Aqui, a natureza fornece um
ponto de referência que permite projeções duma ordem igualitária e harmoniosa ao
contrário da tradicional ordem hierárquica do antigo regime. Sem ter realizado a
revolução burguesa, a Alemanha também já imagina mundos alternativos, onde reine
uma ordem natural, embora ainda pensada no quadro da monarquia absolutista.
Enquanto a literatura e a arte bucólicas estão ainda integradas no contexto
aristocrático, novas formas do sentimento da natureza já se distanciam, em meados do
século, explicitamente deste mundo revoluto. O sentimentalismo de Rousseau
entusiasma a Europa inteira e o mesmo acontece com a natureza heróica dos cantos
de Ossian (1760), filho do suposto bardo celta Fingal, uma mistificação literária de
James MacPherson ( 1736-1796) que teve um êxito extraordinário na Alemanha
(Herder, Goethe) com numerosas traduções até meados do século XIX. Herder inclui
na sua antologia de poesia popular mundial vários cantos de Ossian, que foi
determinante, na sua fusão de antigas tradições populares e dum imaginário
paisagístico sentimental, para o seu conceito de Naturpoesie. Embora situada num
contexto europeu, a receção de Rousseau e de Ossian na Alemanha tem um carácter
específico que enfatiza a dimensão afetiva e moral do fenómeno natural. O programa
pedagógico de Rousseau utiliza a natureza transcendente como enquadramento duma
vida exemplar e os filantropos alemães que, a partir de 177 4 (datada abertura do
Philanthropinum em Dessau por Johann Bernhard Basedow), fundam escolas e
internatos, levam os alunos para passeios educativos que confirmam as lições morais
dos professores. O movimento filantrópico criou também uma literatura infantil e
juvenil e instituiu a educação física e a experiência como parte
integrante da pedagogia.
Por outro lado, o rousseauismo pedagógico já instrumentaliza a natureza no sentido
duma interiorização dos valores burgueses que visam o domínio total do ambiente
exterior e da natureza humana. O panteísmo autónomo e crítico do Sturm-und-Drang,
nomeadamente na obra de Wilhelm Heinse (1746-1803), opõe-se diretamente a este
conceito duma natureza domesticada ao serviço da ideologia burguesa. No seu diário
duma viagem a Itália (1780-1783), Heinse aponta:
Unser heutiges Leben ist in der That nur ein gemachtes Leben, wie Uhrwerk. Es hat gar
die Veränderung, Neuheit und Mannichfaltigkeit nicht mehr wie die Natur. Das beste
Leben muss dem Wetter gleichen, Wind und Regen und Sonnenschein, Sturm und
Erdbeben, Winter und Sommer. Unser Stubensitzen, unsre Regelmäßigkeit bringt uns
um alle Freuden. (1924: 34)
Esta citação radicaliza a crítica de Gesner do materialismo burguês numa antinomia de
vida natural e ordem social. O sonho duma vida diferente, mais espontânea, em
harmonia com uma natureza transformada em dinâmica vital, transforma-se num
topos da crítica social e cultural e antecede a Lebensphilosophie moderna propagada
por Wilhelm Dilthey ( 1883-1911) e Ludwig Klages, um vitalismo antirracionalista que
opõe o criativo ao mecânico, o instinto e a alma ao intelecto. Os últimos resíduos deste
conceito vitalista enfático encontram-se ainda no turismo moderno e na publicidade
que, ao enquadrar os seus produtos num ambiente natural, remete para uma ordem
transcendente e uma simplicidade harmoniosa que já não existem. Sobretudo bens de
consumo poluentes e nocivos (automóveis, tabaco, álcool) são apresentados numa
paisagem intacta e idílica, de preferência à luz quente do pôr de sol, que nega o
contexto industrial que fabrica estes mesmos produtos. As referências à natureza
simbólica na publicidade, porém, evidenciam uma mitologia internacionalizada; a
dimensão nacional - e nacionalista - da paisagem romântica alemã já se dissolveu, nas
últimas décadas, na uniformização do mercado mundial.

4.3 Paisagem românti ca e identi dade nacional alemã


A estética do Romantismo é panteísta e mitológica ao mesmo tempo; na apreensão
poética da natureza revelam-se o significado profundo do universo e o destino do ser
humano. A natureza como unidade de ideia e aparência é essencialmente
comunicativa, a gramática universal do mundo que Novalis imagina, permite múltiplas
interpretações na perspetiva duma unidade primeira, divina.
Assim, o Romantismo realiza uma dupla expansão:
• espacial, ao explorar espaços novos (a floresta, o mar, a Itália arcádica e sensualista);
• temporal, ao reconstruir uma Idade Média idealizada e um passado poético duma
Alemanha mais imaginária do que real.
Esta mitificação é tão eficaz, que os lugares típicos da Alemanha medieval se
transformam rapidamente em ícones do turismo organizado. Basta lembrar a
popularidade do Reno (Rheinromantik) com os seus castelos e lendas, que surgem no
Romantismo alemão como paisagem típica no sentido nacional e poético. Igualmente,
as pequenas cidades medievais como Dinkelsbühl e Rotenburg ob der Tauber fazem as
delícias dos turistas estrangeiros, e até as imitações oitocentistas como o palácio de
Neuschwanstein de Luís II de Baviera (construído entre 1868-1886) continuam a atrair
milhões de turistas todos os anos.
Estes lugares criados pela mitologia romântica determinam ainda em grande parte a
imagem da Alemanha no estrangeiro. A sua eficácia social deve-se a várias razões. Por
um lado, a fusão de tendências filosófico-literárias e tradições populares tem um
elevado valor afetivo. Por outro lado, a paisagem romântica é essencialmente
nostálgica. Ao ignorar a indústria, a poluição e a miséria social da modernidade, o
Romantismo oferece uma reconciliação entre natureza e história e a promessa duma
ordem harmoniosa que, sendo metafísica, está para além do tempo e da morte.
A pintura romântica, da natureza metafísica de Caspar David Friedrich ( 1774--1840) e
Philipp Otto Runge ( 1777-181 O) às cenas idílicas de Ludwig Richter (1803-1884) e
Ernst Moritz Schwind ( 1804-1871 ), ilustra as várias facetas desta tradição que se
transformaram rapidamente em símbolos nacionais.
Ainda hoje em dia, a recorrência do adjetivo «romântico» no turismo alemão lembra
esta identificação cuja «linguagem» repete sempre os mesmos elementos típicos:
castelos e ruínas, casas em madeiramento ( Fachwerk), rios, florestas, árvores como o
carvalho e a tília, com as respetivas tradições populares.
O postulado duma nova mitologia na Frühromantik, que se perfila contra a
fragmentação da vida moderna e o horizonte da industrialização, é essencialmente
utópico e transforma-se no início do século XIX numa mitologia retrospetiva. O
trabalho dos irmãos Grimm será, neste sentido, a reconstrução duma mitologia
popular (contos, lendas e tradições, Kinderund Hausmärchen, 1813-1815). A viragem
do cosmopolitismo cultural setecentista para o projeto duma tradição nacional
anuncia-se já nos respetivos títulos das grandes coletâneas de Herder (Stimmen der
Volker in Liedern, com este título na 2.ª edição de 1807) e dos irmãos Grimm
(Deutsche Sagen, 1816-1818).

4.4 O Reno como cenário românti co


O aproveitamento ideológico dum cenário romântico pode estudar-se também na
história do Reno. Para Georg Forster, a paisagem do Reno é ainda monótona e
cansativa, e, nos sítios mais selvagens, até «melancólica e terrível» (Borchardt 1953:
73-74 ). Com a Revolução Francesa, este rio tinha-se tornado num dos principais
pomos de discórdia entre a França e a Alemanha. Fronteira política entre os dois países
desde 1795, a proximidade da França na outra margem do Reno provocou uma série
de panfletos e de canções com reivindicações territoriais explícitas.
Entretanto, autores ingleses como Ann Radcliff e (1764-1823) e Lord Byron (1788-
1824) já tinham descoberto as ruínas medievais e as paisagens românticas do Reno,
criando com as suas descrições uma nova atração turística para os viajantes ingleses
no continente. Quando o Congresso de Viena, em 1815, atribui a Renânia à Prússia,
estão reunidas as condições para o desenvolvimento do primeiro fenómeno dum
turismo de massas em solo alemão.
Com os barcos a vapor (ligação regular Koln-Mainz a partir de 1827) e a instalação e
uniformização das infraestruturas (hotéis, restaurantes miradouros) e das modalidades
da viagem no Reno, o número de turistas aumenta rapidamente. Em 1836, Karl
Baedeker (1801-1859) publica a Rheinreise von Strassburg bis Rotterdam que está na
origem dos famosos guias turísticos que servem ainda os viajantes atuais. A
romantização da paisagem deve-se às ruínas e aos mitos locais, sendo o mais
conhecido o da Loreley inventado por Brentano e popularizado por Heine e as
numerosas adaptações musicais do seu famoso poema. A Rheinromantik tem
consequências concretas ao nível turístico que continuarão, sem dúvida, pelo século
XXI dentro. A transformação arquitetónica e social duma paisagem pelo turismo pode
estudar-se também na Suíça, na Alemanha do Sul e nas ilhas do Mar do Norte.
Durante o século XIX, o Reno continua, apesar da sua vertente poética, a provocar
emoções políticas. A chamada crise do Reno de 1840 (Rheinkrise ), uma manifestação
reivindicativa do nacionalismo francês e as respetivas respostas líricas do lado alemão,
nomeadamente o «Rheinlied» de Nikolaus Becker de 1840 e a «Wacht am Rhein» de
Max Schneckenburger de 1841, que se tornou numa das canções patrióticas mais
populares até à Primeira Guerra Mundial, leva os dois países à beira duma
confrontação militar.
A concretização monumental da mitificação nacionalista do Reno, que se conjuga sem
problemas com a tradição romântica, é a Germania do Niederwald perto de
Rüdesheim (1883) que atrai ainda, atualmente, dois milhões de turistas por ano, tal
como o Reno, sobretudo a sua parte «romântica» entre Koblenz e Rüdesheim,
continua a movimentar visitantes alemães e estrangeiros em elevado número.

4.5 A fl oresta alemã


Um outro lugar tópico, não menos importante, da identidade nacional alemã é a
floresta. A transformação romântica da floresta num espaço mítico já tem uma longa
pré-história que remonta até à Germania de Tácito ( cf. Schama 1996: 92 e segs.). As
vicissitudes pelas quais este manuscrito passou, são um exemplo da valorização
ideológica dum símbolo nacional. A Germania, verdadeira «certidão de nascimento»
da nação germânica, é descoberta no início do século XV num claustro alemão, levada
para Itália e impressa em Veneza em 1470; a primeira tradução alemã data de 1496. O
regresso do nacional-socialismo às raízes germânicas da Alemanha transforma o livro
de Tácito num símbolo da origem germânica. Numa curiosa troca de promessas e
exigências, o manuscrito entra, na época fascista, numa odisseia entre Hitler e
Mussolini culminando, durante a guerra, no saque do palácio do proprietário italiano
do manuscrito por parte das SS que tentam, em vão, levar o precioso documento outra
vez para a Alemanha. Aparece ainda, em 1943, uma edição alemã com um prefácio de
Heinrich Himmler que, particularmente interessado na legitimação histórica do
nacional-socialismo, insiste na importância do passado e dos anciãos (germânicos)
para um futuro glorioso da Alemanha.
O texto de Tácito tornou-se, assim, num mito da origem nacional, como confirma
também Plínio ao mencionar os carvalhos imensos e intactos nas florestas alemãs que
datam da origem do mundo (vastitas intacta aevis et congenita mundo). A Germania
desta tradição é um mundo natural, sem cidades (por oposição ao império romano),
com uma religião ao ar livre, sem as instituições duma igreja (romana), onde reinam
virtudes bélicas como a agressividade e a força física, mas também sociais como a
simplicidade e a honestidade do homem natural.
Na época do romantismo, que contribuiu largamente para a revalorização mítica da
floresta, grande parte das antigas florestas alemãs já não existem.
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a venda de madeira para a construção naval
inglesa e francesa e a subsequente reflorestação com pinheiros nórdicos mais
lucrativos tinham destruído muitos dos carvalhais no século XIX. O que não impede
minimamente a mitificação do carvalho, como nas nostálgicas encenações do
Gottinger Hainbund (fundado em 1772) à procura dum passado mítico. Com as guerras
de libertação na época de Napoleão, os carvalhos ganharam um simbolismo político
nacional, os voluntários trazem bolotas nos uniformes e as pinturas deste tempo
mostram frequentemente a árvore tradicional alemã. No quadro de Caspar David
Friedrich, Der Chasseur im Walde de 1813, aparece um soldado francês perdido numa
imensa floresta
(uma referência à velha antinomia entre a Alemanha e o mundo galo-românico), e os
irmãos Grimm publicam a partir de 1813 Altdeutsche Wälder 1, antologias de poesia
medieval e de lendas e provérbios populares. O simbolismo da floresta nos Märchen
dos irmãos Grimm mereceria um estudo à parte; a redescoberta da literatura
medieval, o início da filologia germânica e a construção duma tradição popular
permitem, pelo menos ao nível cultural, a formação duma consciência nacional que
politicamente ainda não existe.
1 O termo Walder designa desde o barroco coletâneas de textos diversos, mas ganha no título dos irmãos Grimm
em combinação com o adjetivo altdeutsch conotações específicas.

O mito da floresta como mito fundador da nação alemã continua durante os séculos
XIX e XX. O pintor renano Johann Wilhelm Schirmer (1807-1863), «wesentlich der
vaterlandischen Natur treu» na escolha dos seus motivos no dizer do Brockhaus de
1914, pinta em 1828 um quadro intitulado Deutscher Urwald com imponentes
carvalhos que evocam a tradição da identidade germânica. Por outro lado, o carvalho
que aparece já em Tácito e que é revalorizado no fim do século XVIII como símbolo da
nacionalidade alemã (força, raízes fundas, continuidade e sabedoria), é oposto muitas
vezes à tília, o lugar do sonho amoroso desde a Idade Média. Esta polaridade simbólica
ilustra os dois lados do Romantismo alemão: poesia, sentimento e saber filosófico, por
um lado, e agressividade nacionalista, por outro.
No século XIX começam também as medidas oficiais de proteção das florestas,
nomeadamente dos carvalhos. Como diz Wilhelm Heinrich Riehl (1823-1897),
jornalista, historiador e, nos últimos anos da sua vida, conservador dos monumentos
artísticos e históricos da Baviera, na sua popular Naturgeschichte des Volkes, que se
transforma, com as suas numerosas reedições, num arsenal não só da ideologia anti-
urbana e anti-modernista, mas também do anti-semitismo moderno:
Ein Dorf ohne Wald ist wie eine Stadt ohne historische Bauwerke, ohne Denkmaler,
ohne Kunstsammlungen, ohne Theater und Musik, kurz ohne gemütliche und
künstlerische Anregung. (apud Schama 1996: 131)
Bismarck, o controverso fundador do Reich, afirma ter tomado as suas decisões mais
importantes na solidão, na floresta (Welchert 1965: 10), e o valor identificativo deste
espaço mítico é tão grande e persistente que mesmo Helmut Kohl achou-se obrigado a
apresentar, na conferência mundial das Nações Unidas sobre os problemas do
ambiente em Junho de 1997, uma proposta alemã para a proteção global das florestas.
Artistas contemporâneos como Anselm Kiefer ( cf. Schama 1996: 138 e segs.) e Joseph
Beuys também não fogem a esta tradição. Em 1982, Joseph Beuys (1921-1986)
apresenta a sua contribuição para a documenta, uma conceituada mostra periódica de
arte moderna em Kassel, sob forma dum projeto que prevê a plantação de 7000
carvalhos na cidade, considerando a florestação como «redenção» ao transformar o
mundo «numa grande floresta» (Schama 1996: 141-142). O artista participa também
no congresso fundador do Partido dos Verdes e candidata-se nas suas listas para as
eleições federais de 1980.
Já em 1971, Beuys se tinha referido ao mesmo espaço mítico numa ação direta que
visava ultrapassar as normas tradicionais da comunicação cultural.
Para impedir a transformação duma floresta perto de Düsseldorf em campos de ténis,
Beuys e os seus alunos varreram ritualmente a zona e pintaram cruzes e círculos nas
árvores ameaçadas para evocar os antigos espíritos elementares.
Todas estas ações e manifestações visam ainda a reconciliação romântica de história e
natureza. Em 1965, por exemplo, é publicado um livro sobre Bismarck com o título
significativo Über die Natur, que apresenta o artesão da unidade alemã como amigo
sentimental das flores e animais e grande protetor do meio ambiente (Welchert 1965).
Numa carta à mulher de 1851, Bismarck concretiza os principais elementos do seu
horizonte ideológico:
( ... ) mir ist, als wenn man an einem schönen Septembertage das gelbwerdende Laub
betrachtet; gesund und heiter, aber etwas Wehmut, etwas Heimweh, Sehnsucht nach
Wald, See, Wiese, dir und den Kindern, alles mit Sonnenuntergang und
Beethovenscher Symphonie vermischt.
Cada elemento desta enumeração tem o seu significado tradicional: o mito da família,
o «Heimweh» (palavra tipicamente alemã que permite só traduções aproximativas), a
melancolia que indica a consciência do carácter utópico da natureza idílica, o pôr-do-
sol que continua, até nas suas formas mais trivializadas (postal, publicidade turística e
outra) a iluminar o sentimentalismo burguês, e finalmente Beethoven, como Goethe e
Schiller, uma das grandes figuras diretrizes do humanismo idealista oitocentista.

CONCLUSÃO
Breve explicação: Este segundo conjunto de textos foca a questão da definição de uma
identidade cultural alemã, a partir de um contexto cultural e político muito particular,
uma vez que no século XVIII, na sequência dos muitos conflitos nos dois séculos
anteriores, não podemos afirmar que temos um só estado alemão, ou nação alemã;
pelo contrário, o que existe é uma grande dispersão territorial e política, se bem que
partilhe de uma mesma língua. Por isso, vamos estudar conceitos importantes para a
definição do que é uma nação, um estado, e vamos ver como é que no espaço cultural
de língua alemã estes conceitos são usados em defesa de uma identidade própria, em
épocas diferentes da história da Alemanha, entre os séculos XVIII e XX.

ATIVIDADES
• Isole os traços fundamentais que descrevem a evolução semântica do
conceito de nação. (pp.111-117 dos textos)

• Considere o caso particular alemão na construção de uma identidade


nacional:
o que perceção se tem da dispersão territorial e política e da união
linguística e cultural do espaço alemão? (pp.118-123 dos textos)
o que papel têm a língua, a cultura e a história nesse processo?
(pp.123-131 dos textos)

• Que aproveitamento se fez da natureza e da paisagem natural no processo


de construção de uma identidade nacional alemã? (pp.203-213 dos textos)

Leitura Facultati va
Os 5 textos que disponibilizamos no espaço do Tema 1 de Sociedade e Cultura Alemãs I
constituem cinco boas propostas de leitura facultativa, que ajudam a consolidar o
estudo deste tema. Se o texto de João Barrento é uma reflexão, por um estudioso da
literatura e cultura alemã, sobre a questão da identidade cultural alemã, os restantes 4
textos são elaborados por poetas de língua alemã que com motivações diversas e em
diferentes contextos históricos entre o século XVIII e XX se viram na necessidade de
pensar o que é próprio da cultura e identidade alemã. Constituem, por isso, 4
testemunhos de época (4 fontes, no jargão historiográfico), onde podemos recolher
informação em primeira mão e interpretar como dados históricos, a partir dos quais
podemos tentar compreender, como estudiosos, determinados fenómenos. O texto de
João Barrento é uma reflexão muito aprofundada sobre o que é ser alemão e o modo
como os poetas e escritores alemães se viram na necessidade de se definir como
alemães, entre o século XVIII e XX. É um texto que surge com introdução a dois
volumes de uma antologia de textos documentais sobre a literatura e a cultura alemãs,
e portanto o seu início, entre as páginas 7 e 22, não é o que recomendamos que se
leia; é por um princípio de rigor formal que esta parte se inclui no documento
disponível. O que nos interessa ler é entre as páginas 22 e 51, onde a secção intitulada
"O objeto e a sua problematização" inicia. Barrento vai citando, ao longo da sua
reflexão, muitos autores e testemunhos que nos ajudam a compreender a
complexidade do nosso Tema 1, e por isso mesmo juntamos este texto às leituras de
carácter facultativo.
Quanto aos restantes 4 testemunhos de época, trata-se de 4 reflexões, em 4 tempos
muito particulares, sobre o que importa para a definição de uma determinada cultura
e identidade, neste caso a identidade alemã. Jacob Grimm, no início do século XIX, fala
da importância da história e da poesia (língua) para a consolidação de uma
determinada identidade. Hugo von Hofmannsthal, em pleno início da Primeira Guerra
Mundial (1914), apela ao estudo da diversidade e das diferentes línguas e culturas,
para que a "alma alemã" possa, desta forma, melhor conhecer as culturas que lhe são
alheias e entender, também por essa via, a sua própria cultura. É um texto escrito por
um autor austríaco que se preocupa com a identidade alemã, tal como Grimm cerca de
100 anos antes se preocupa com as raízes da cultura germânica, em tempos também
conturbados e atravessados pelos conflitos que decorrem das invasões francesas.
Thomas Mann tece uma reflexão muito interessante sobre a identidade alemã no
rescaldo da Segunda Guerra Mundial, constituindo por isso mesmo mais um
interessante testemunho do esforço, pelos alemães, de compreenderem o que são e o
que lhes é próprio. Finalmente, Hans Magnuns Enzensberger escreve um interessante
artigo em 1992 sobre a questão alemã, de novo, começando por focar aspetos que não
são próprios dos alemães, mas do homem, e trazendo à reflexão questões que hoje
ainda são atualíssimas e assaltam o "sossego" europeu de modo muito pertinente. São
4 testemunhos que complementam bem o estudo das matérias nos dois conjuntos de
textos de leitura obrigatória.

Exercícios formati vos de elaboração facultati va


Elabore as respostas às questões propostas na página 131 do manual de Alfred Optiz.
Para a primeira destas duas questões, considere não só os textos de Mann e de
Hofmannsthal, mas também o texto de Enzensberger, todos disponibilizados na Sala
de Aula Virtual, no tópico correspondente ao Tema 1 [Hofmannsthal.pdf] [Mann.pdf]
[Enzensberger.pdf]. A segunda destas questões cita precisamente um passo do texto
de João Barrento que também é leitura facultativa deste Tema 1, pelo que se
recomenda a elaboração deste exercício formativo.

TEMA 3
Cap. III. 3. ESPAÇOS: A formação do espaço público
Resumo
Descreve-se o contexto do emergir do espaço público durante o século XVIII como
local onde a burguesia começou a manifestar formas de contrapoder ao regime
absolutista predominante; refere-se a cisão entre a esfera pública e privada em
correlação com as transformações surgidas a nível político, económico e social e
consequentes manifestações no domínio cultural, na vida quotidiana e nas
mentalidades.

Objeti vos
• Associar o emergir do espaço público burguês no século XVIII com as transformações
económicas e sociais suas contemporâneas na Europa e na Alemanha do século XVIII.
• Relacionar o espaço público com o emergir da família burguesa e a correspondente
redefinição da intimidade e redistribuição dos papéis sociais.
• Avaliar o modo como o espaço público se foi afirmando em vários campos, com
particular destaque para o teatro, a música e as sociedades secretas.

3.1 A contracultura burguesa


Embora o século XVIII não possa ser lido unilateralmente como o século da
racionalidade burguesa, como atrás foi referido, também é verdade que, durante o
mesmo, se assistirá ao emergir de uma contracultura decisiva para a futura evolução
da Europa e que se pode resumir esquematicamente do seguinte modo:
• à sociedade absolutista fundada na representação e centralização do poder, a
contracultura burguesa oporá a delegação e divisão de poderes;
• contra a sociedade de corte, regida pela etiqueta e pela contenção,
esquematizadas em códigos racionais e convenções assumidamente artificiais
e, por isso mesmo, tanto mais respeitadas (Elias 1983), a burguesia reivindicará
uma racionalidade, que se baseie na experiência e nos sentidos, e o direito ao
sentimento, à espontaneidade e à sinceridade.
A afirmação de uma contracultura burguesa não teria sido possível sem as
transformações económicas e sociais, associadas com a afirmação do moderno
capitalismo, no seu processo de gradual racionalização, e que também se manifestam
numa evolução essencial nos conceitos de espaço e de tempo.

3.1.1 O tempo
O tempo passa a ser cronometrado, medido: acerta-se a hora pelo relógio, isto é,
segundo normas sociais que não coincidem com a hora solar natural, passando o
tempo a ser contabilizado em termos de lucro, consoante a máxima de Benjamin
Franklin (1706-1790) «tempo é dinheiro».
O aceleramento do ritmo de trabalho, associado à disciplina e à pontualidade
necessárias em função da divisão de trabalho na manufatura, onde os trabalhadores se
agrupam para desempenhar tarefas distintas, mas, por isso mesmo tanto mais
interdependentes, evidencia também uma nova conceção e vivência do tempo,
intimamente associadas às transformações espaciais.
Por outro lado, o tempo cíclico, condicionado por uma visão teocêntrica do mundo que
afastava qualquer ideia de progresso terreno, tempo esse inspirado pelo regresso
permanente das estações e do fluir de uma semana que consagra o domingo como o
dia do repouso e da celebração da transcendência, é substituído por uma noção de
tempo linear, orientado para o futuro, que, constitui a condição de realização do
progresso. As visões escatológicas, que anunciam ou prometem a redenção e o paraíso
no fim dos tempos, são substituídas pela filosofia da história que interpreta o passado
e o presente em função do futuro e enquanto etapas nesse processo de
aperfeiçoamento terreno.

3.1.2 O espaço
O espaço passa a ser concebido como um momento desse universo secularizado: para
a Europa no auge da sua fase colonial, o mundo é, por um lado, mais pequeno, na
medida em que já não existem territórios incógnitos nem terras por cartografar, por
outro, é maior, na medida em que a identidade e o poderio europeus se definem face
ao espaço colonizado.
Subjacentes a esta nova forma de experienciar e definir o espaço, encontram-se as
acima referidas conceções de tempo e de progresso: o espaço não-europeu é
simultaneamente associado a uma distância não apenas espacial, mas também
temporal. Os não-europeus serão potencialmente iguais, mas representam estádios
anteriores da história da humanidade.
Mas esta evolução na conceção do espaço encontra-se também intimamente
associada às novas formas de produção que antecedem e acompanham os primeiros
passos dados na industrialização da Europa - intimamente associada com a nova fase
colonial, em que a Grã-Bretanha se tornará não só o centro da Revolução Industrial
mas também se afirmará como a grande potência mundial -, criando outras divisões
fundamentais para a compreensão daquilo que caracteriza o século XVIII e a sociedade
burguesa: a separação entre espaço público e privado.
A antiga união entre produção e habitação, de que a grande família é o principal
núcleo, como centro de uma economia pré-industrial, isto é, rural, cede gradualmente
o lugar a uma separação entre o domínio da produção e do consumo: a antiga família
rural, que, de resto, sobreviverá ao longo de todo o século XIX e mesmo ainda no
século XX nas zonas menos industrializadas, é o local onde se lavra o terreno e se
fabrica os objetos de consumo necessários que não os que a agricultura fornece. As
primeiras unidades de produção da futura industrialização surgem no seio da família,
onde os tecelões trabalham as matérias-primas que os intermediários lhes fornecem,
permanecendo assim esse trabalho predominantemente doméstico.
Com o incremento da industrialização, surgem as primeiras manufaturas de produção
fora desse mesmo espaço, divisão essa que não só consagra a separação entre a
unidade de produção e de consumo, como a separação entre capital e trabalho: os
assalariados que trabalham as matérias-primas não são proprietários nem destas nem
dos objetos com que as transformam, não lhes pertencendo igualmente o espaço onde
realizam essas mesmas tarefas.
A produção ocupa o lugar essencial na nova ordem económica em expansão, pelo que
para a burguesia o poder, as decisões políticas e económicas serão transferidas para o
escritório, a loja ou a manufatura, cada vez mais separados da esfera de consumo, a
residência.

3.2 Público e privado


3.2.1 Espaço público e iniciati va privada
A noção de um espaço público, tal como começa a emergir durante o século XVIII, em
primeiro lugar e sobretudo, em Inglaterra, decorre de uma viragem essencial. Esse
novo espaço público não coincide com a esfera do Estado, mas constitui antes um local
à margem das instituições coletivas - ou públicas, embora noutro sentido da palavra -,
local esse onde vontades privadas se manifestam na sua individualidade, podendo
opor-se ou contestar a ordem económica e política vigente:
Bürgerliche Öffentlichkeit lasst sich vorerst als die Sphäre der zum Publikum
versammelten Privatleute begreifen; diese beanspruchen die obrigkeitlich
reglementierte Öffentlichkeit alsbald gegen die öffentliche Gewalt selbst, um sich mit
dieser über die allgemeinen Regeln des Verkehrs in der grundsätzlich privatisierten,
aber öffentlich relevanten Sphäre des Warenverkehrs und der gesellschaftlichen Arbeit
auseinanderzusetzen. Eigentümlich und geschichtlich ohne Vorbild ist das Medium
dieser politischen Auseinandersetzung: das öffentliche Räsonnement. (Habermas
1962: 42)
Tal evolução pressupõe, portanto, o aparecimento de uma atividade económica
autónoma que não se inscreve nos tradicionais circuitos de produção e distribuição,
pelo que os seus principais porta-vozes e protagonistas serão os membros oriundos da
burguesia mercantil ou culta, que gradualmente se emancipa económica e
culturalmente.
A divisão entre um espaço público e privado favorece, portanto o emergir de uma
opinião pública, à margem das instituições consagradas, opinião pública que se
manifesta consequentemente como contrapoder. A respetiva institucionalização
conhecerá as suas primeiras manifestações em Inglaterra, com a Glorious Revolution
em 1688 que, depois do primado do regime absolutista dos Stuarts, recuperará o
poder parlamentar, conferindo-lhe agora um cunho diferente, conforme com as novas
necessidades políticas e económicas e consagrando a primeira divisão de poderes: ao
monarca compete apenas a execução (poder executivo) das leis e decisões do
parlamento (poder legislativo).

3 .2.1.1 A sociedade de corte e a representação


A nobreza de corte não conhecia esta cisão, sendo todo o seu quotidiano atravessado
pela encenação de rituais fundamentais para o exercício do poder, que se fundava
essencialmente na representação. A cisão entre aparência e essência, entre simulação
e autenticidade era aí inexistente, uma vez que o poder coincidia em absoluto com a
forma que o exteriorizava.
Tal entendimento do poder manifesta-se tanto na importância do ritual e da pompa
exterior no culto da Igreja católica, como no papel decisivo das regras de encenação do
poder nas cortes absolutistas. Tanto num caso como no outro, a autoridade era
entendida como dependendo fundamentalmente de uma força legitimada a partir de
uma entidade exterior a ela (origem divina do poder do Papa, do imperador ou do
monarca), que os rituais reproduziam.
O poder não é passível de ser delegado, entendimento este que pressupõe uma cisão
entre exercício e legitimidade do poder.

3.2.1.2 Divisão do trabalho e delegação do poder


Tal entendimento do poder passará a ser questionado a partir do momento em que o
mesmo se verá obrigado a auto-legitimar-se, como sucede de forma exemplar no
Leviathan (1651) de Thomas Hobbes (1588-1679), onde a autoridade é descrita como o
resultado de um acordo entre indivíduos que cedem todos os seus direitos com vista à
preservação da paz. O carácter totalitário deste projeto político é-o apenas de forma
aparente, na medida em que a época não conhecia uma noção de individualidade e de
intimidade, como a era burguesa o viria crescentemente a afirmar. Mas, sobretudo, o
que se adivinha na proposta hobbesiana é a distinção entre exercício e legitimidade do
poder. Este só surge legitimado na medida em que passa a depender de um acordo ou
contrato previamente estabelecido entre indivíduos livres e iguais que
voluntariamente abdicam da sua liberdade e igualdade, isto é, consentem na respetiva
delegação, assim tornada forçosamente provisória. Tal conceção da legitimação do
poder pressupõe exatamente a cisão entre a prática do poder e a sua fundamentação
abstrata e teórica, cisão que reproduz a separação entre o domínio prático e do
trabalho e o da teoria individual, cuja distância a família burguesa garantia e tomava
possível.

3.2.1.3 Espaço público e afi rmação da contracultura burguesa


Assim o espaço reorganiza-se em função das novas necessidades de produção e
relações de poder. O poder político do Estado absolutista e das instituições
centralizadoras a ele ligadas conhece uma crescente contestação e pulverização,
sobretudo através dos sectores em que a burguesia letrada consegue afirmar-se com
crescente independência. A imprensa, a literatura, tornam-se focos de uma crescente
afirmação da opinião pública; os cafés, os teatros e as salas de concertos vão-se
enchendo de frequentadores, que livremente dissertam, observam, ajuízam, criando
assim os fundamentos dos correspondentes juízos políticos e estéticos, a partir dos
quais avaliam a ordem vigente, quer a nível social, quer artístico.
Este processo revela como a afirmação desta contracultura burguesa não teria sido
possível sem a gradual criação de novos espaços ou sem a reorganização dos mesmos.
Por outro lado, demonstra até que ponto essa contracultura é também a manifestação
de forças económicas que, na esfera privada, se organizam com crescente soberania
em relação ao domínio da esfera do poder político do Estado absolutista.
Se este processo surgiu de forma precoce em Inglaterra, fruto de uma sociedade
economicamente mais desenvolvida e dos consequentes mecanismos políticos daí
subsequentes, as mesmas tendências também se irão manifestar no continente
europeu, embora com evoluções distintas.
A França terá que aguardar o eclodir da Revolução Francesa para que a respetiva
institucionalização a nível político seja possível, tendo os Estados alemães que esperar
por mais algumas décadas até que a mesma implantação se verifique. Contudo, a
formação de uma intelectualidade consciente da sua diferença constituirá um
elemento decisivo para a afirmação do projeto iluminista nos territórios de expressão
alemã, no decurso do século XVIII.
A burguesia letrada, juristas, conselheiros, funcionários da corte, embora dela
dependentes criam uma cultura própria: contra o direito consuetudinário assiste-se na
Europa - à exceção da Grã-Bretanha, o que prova o modo como a nobreza aí se soube
adaptar, de modo a poder garantir a manutenção dos seus privilégios - a uma
crescente recuperação da tradição do direito romano, que consagra os princípios
legisladores a partir de um texto escrito, que fixa de modo abstrato e universal os
direitos, deveres e penas. A tal recuperação não será estranha a reivindicação por
parte da burguesia do princípio da igualdade - abstrato e universal - contra o privilégio
feudal e nobre - concreto 175 176 e particular. Saliente-se que esta particularidade
não pode ser confundida com a esfera privada que se irá afirmando no espaço
burguês, na medida em que aquela tenderá a garantir a manutenção dos princípios da
nobreza dominante na era feudal, universalizando dentro do seu território particular
os seus privilégios (leis particulares apenas neste sentido).
O emergir desta nova noção de poder faz-se com a afirmação do poder absolutista que
carece do apoio da burguesia de modo a fazer face a outros poderes particulares, pelo
que a monarquia viverá da tensão entre a nova classe emergente e a adaptação da
antiga nobreza feudal às novas necessidades políticas e económicas. Contudo, a
monarquia absolutista caracterizar-se-á pela centralização e concentração dos poderes
que a burguesia numa fase mais avançada, no decurso da afirmação do seu poder
económico, passará gradualmente a contestar, de modo a obter uma
institucionalização mais eficaz e adequada às suas necessidades.
Saliente-se que no espaço de expressão alemã a evolução corresponderá, consoante as
tendências regionalistas desse mesmo território, a uma evolução particular. Assim, os
Estados mais vastos como a Prússia e a Áustria podem até certo ponto equiparar-se
com as modernas monarquias, como o provam de resto as medidas de racionalização
introduzidas nos mesmos, sobretudo durante a vigência dos reinados dos respetivos
déspotas iluminados - Frederico II na Prússia, Maria Teresa e José II na Áustria, -
havendo, contudo, que recordar que estes não contam com a existência de uma
burguesia mercantil autónoma. O mesmo já não sucederá nas cidades livres
hanseáticas, onde as tradições burguesas permitem o florescimento de um ideário
liberal que redefine o exercício do poder, enquanto os pequenos Estados dependentes
sobretudo do poder da corte ainda se mantêm apegados a uma particularidade feudal,
se bem que modernizada, através da imitação de Versalhes. Contudo, a diminuta
importância política e territorial destes últimos, embora promova uma certa
racionalização das estruturas burocráticas corresponde mais a um feudalismo
modernizado do que a uma efetiva reorganização do poder.
No entanto, também nos territórios alemães se fará sentir uma evolução que pode ser
associada com o movimento geral que atravessa a Europa: a prova disso encontra-se
na importância decisiva da imprensa alemã e no crescente aumento de uma faixa de
letrados que se autodefinem como representantes de um esclarecimento necessário à
modernização e ao progresso da sociedade que pretendem influenciar.

3.2.2 Órgãos do espaço público


Locais privilegiados para a expressão de uma opinião pública emergente serão os
cafés, os jornais, as sociedades de leitura, onde se debate os temas mais candentes, se
lê periódicos e romances.
Em Inglaterra são os jornais Tatler (1709-1711) e Spectator (1711-1712, 1714) e The
Guardian (1713) de Joseph Addison e Richard Steele os primeiros órgãos dessa opinião
que se vai formando à margem das instituições e que gradualmente toma a forma de
um contrapoder, no plano literário e estético. Os seus porta-vozes manifestam as suas
opiniões enquanto indivíduos, cientes da importância da sua participação para a
formação de uma opinião pública. Para a formação da mesma contribuem os espaços
neutros, como os cafés e as sociedades de leitura: espaço de passagem entre o local de
trabalho e a residência, estes constituem o pressuposto para que os que nele
convivem e se cruzam possam, temporariamente libertos das pressões económicas,
sociais e familiares, debater livremente os assuntos de importância coletiva.
Também o salon francês representa outra forma de criar um espaço neutro e
relativamente marginal às instituições consagradas pelo regime de Luís XIV. Do mesmo
modo que a etiqueta de corte entra em crise, sobretudo durante o período da
Regência (1715-1723), acentuando-se a tendência durante o reinado de Luís XVI (1754-
1793), o salon, surgido em torno de uma mulher nobre - que, assim revela o estatuto
de liberdade de que as burguesas se verão privadas - permite a reunião num espaço
neutro de nobres e burgueses que privam entre si dada a comunidade de interesses
culturais, literários ou pessoais. Rousseau, plebeu suíço, privará assim num plano de
quase igualdade, com extensão ao domínio íntimo, com representantes da grande
nobreza francesa, que verão com interesse o comportamento exótico desse suíço
camponês e aderirão às suas teorias e prática de uma simplicidade natural, por reação
ao excesso de artificialismo de normas e etiquetas cada vez mais desfasadas da
realidade e assim tornadas praticamente ineficazes.

3.2.3 A transição
Contudo, o século XVIII ainda não conhece a divisão distinta entre esses dois espaços,
patente no modo como as associações de privados (cafés, clubes de leitura,
maçonaria) eram entendidos. O salon francês do século XVIII encarna exatamente esse
espaço híbrido: tendo à sua frente uma mulher culta, o referido espaço, constituía uma
pequena ilha no seio das convenções rígidas da sociedade de corte então já em pleno
declínio 177 178 (época da Regência), onde a dona da casa não só se permitia um
comportamento mais libertino, como podia privar com homens oriundos da burguesia.
Por outro lado, a sociabilidade que constitui um dos traços mais generalizados do
século XVIII ainda não fora contaminada pelo exacerbamento de uma intimidade que,
nas suas manifestações mais radicais raiava a hipocondria. O exemplo de Jean-Jacques
Rousseau, a sua misantropia, aliada à sua obsessiva aspiração de autenticidade, de
transparência (Starobinski 1971), a sua auto-observação, serve para ilustrar esta última
tendência, embora o seu empenhamento social e político, revelem simultaneamente,
o modo como o domínio público, continuava a permanecer um elemento decisivo,
exigindo-se antes para o mesmo idênticos valores que aqueles que se preconizava para
a descoberta individual.
Contudo, esta adequação excessiva não era habitualmente praticada, optando a
burguesia por uma vida oscilante entre o domínio público e privado, deixando, porém,
que as esferas se interpenetrassem e se inspirassem frequentemente.
Tal interpenetração encontrava-se, contudo, reservada aos seres masculinos, os únicos
a terem acesso a ambos. O mito da mulher passiva e do homem ativo conheceu uma
nova legitimação com a reorganização do espaço decorrente da crescente divisão do
trabalho.
Dans l'union des sexes chacun concourt également à l' objet commun, mais non pas de
la même maniere. De cette diversité nait la premiere différence assignable entre Ies
rapports moraux de l'un et de l' autre. L'un doit être actif et fort, l' autre passif e faible:
il faut nécessairement que l' un veuille et puisse, il suffit que l' autre rés is te peu. Ce
principe établi, il s'ensuit que la femme est faite spécialement pour plaire à l'homrne. Si
l'homme doit lui plaire à son tour, c'est d'une nécéssité moins directe: son mérite est
dans sa puissance; il plait par cela seul qu'il est fort. Mais n'est pas ici la loi de
l'amour,j'en conviens; mais c'est celle de la nature, antérieure à l' amour même. Si la
femme est faite pour plaire et pour être subjuguée, elle doit se rendre agréable à
l'homme au Iieu dele provoquer; sa violence à elle est dans ses charmes; c' est par eux
qu' elle doit le contraindre à trouver sa force et à en user. L'art le plus súr d'animer
cette force est de la rendre nécessaire par la résistance. Alors l'amour-propre se joint
au désir, et l'un triomphe de la victoire que l' autre lui fait remporter. De là naissent l'
attaque et la défense, I' audace d'un sexe et la timidité de l'autre, enfin la modestie et
Ia honte dont la nature arma le faible pour asservir le fort. (Rousseau 1966: 466-467)
Com efeito, o mundo público dos cafés e dos jornais é um mundo masculino, onde a
burguesia emergente faz sentir a sua pressão contra o poder absolutista do Estado,
opondo-lhe os seus interesses privados (de acordo com o novo modelo capitalista e
liberal) e os correspondentes modelos a nível político e estético.
A maior parte das ideias que ainda identificamos com as Luzes é sustentada e
fomentada por um debate constante entre congéneres, não só nos cafés, como nas
academias, nas revistas especializadas, seja através da atividade recenseadora, seja da
apreciação crítica. É aí que esses homens, desligados das suas obrigações profissionais,
aparente ou provisoriamente libertos das restrições que a hierarquia social lhes impõe,
privam num espaço recentemente conquistado e reinventado, onde a igualdade
teórica da sua posição é uma condição e um pressuposto fundamental.
A leitura individual não se autossatisfaz, mas é complementada pela discussão dos
temas lançados pelos periódicos. O debate constitui um elemento essencial desta
cultura. Nos cafés discutem-se as ideias lidas nos jornais e revistas à disposição nessas
salas, ideias essas que encontrarão o seu reflexo nas colunas de opinião, nas cartas
abertas.
Estas refletem a individualidade que usa o espaço público que a imprensa em geral lhe
fornece. Esse debate, que se autodefine como um debate entre iguais, desenrola-se
num plano radicalmente diferente daquele que caracteriza a retórica do poder da
corte: teoricamente, não se trata de representar uma camada social ou uma tendência
da sociedade, mas de, usando do próprio entendimento, refletir livremente sobre os
temas surgidos. O participante nesse debate representa-se a si mesmo, enquanto
indivíduo autónomo e pensante, fazendo uso do seu entendimento, tal como Kant o
formula no célebre texto «Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarung?»
Aufklärung ist der Ausgang des Menschen aus seiner selbst verschuldeten
Unmündigkeit. Unmündigkeit ist das Unvermögen, sich seines Verstandes ohne Leitung
eines anderen zu bedienen. Selbstverschuldet ist diese Unmündigkeit, wenn die
Ursache derselben nicht am Mangel des Verstandes, sondern der Entschließung und
des Mutes liegt, sich seiner ohne Leitung eines anderen zu bedienen. Sapere aude!
Habe Mut, dich deines eigenen Verstandes zu bedienen! ist also der Wahlspruch der
Aufklarung. (Kant 1986: 9)

3.2.4 A formação do espaço público na Alemanha do século XVIII


No espaço cultural alemão, foram também a imprensa, as sociedades de leitura, as
academias, a maçonaria e as sociedades secretas que constituíram um local de debate
e de difusão de ideias, a que sobretudo as camadas letradas - minoritárias e
predominantemente burguesas - tiveram acesso.
Os almanaques, a literatura militante e pedagógica das Moralische Wochenschriften
(1740-1760), a filosofia popular de um Mendelssohn, na sua crença na democratização
das Luzes e no papel da instrução, foram armas essenciais neste processo de criação
de um espaço de opinião pública. Crê-se na importância do espaço literário para a
formação de uma opinião pública - expressão de um conjunto de opiniões individuais
que coletivamente se exprimem - a filosofia deverá ser inteligível, recusando o jargão
que a afasta do homem comum - tendência que apenas a partir de Kant se passará a
inverter -, os almanaques e revistas divulgam conselhos de utilidade quotidiana,
recomendações para donas de casa, bem como constituem o foro onde os debates
políticos e científicos se realizam. A separação entre público leitor e autores ainda não
se verificou: os leitores colaboram regular e ativamente com contribuições, como
cartas abertas, emitem opiniões, fomentam e alimentam as polémicas. Os títulos de
algumas Moralische Wochenschriften são eloquentes: Der Patriot (1724-1726, 1728-
1729), jornal de Hamburgo orientado sobretudo segundo o modelo inglês, que terá
conhecido uma tiragem de 6000 exemplares, o famoso Der Biedermann ( 1727-1729),
Die vernünftigen Tadlerinnen (1725/1726) de Gottsched, Freund der Aufklarung und
Menschenglückseligkeit. Eine Monatsschriftfür denkende Leserinnen aus allen
Religionen und Standen (1785 e segs.).
Os periódicos de conteúdo político como o Teutscher Merkur (1773-1810) de Wieland,
o Deutsches Museum (1776 e segs.) de Heinrich Christian Boie (1744-1806), o
Hamburger Politische Journal, a Deutsche Chronik (1774 e segs.) de Christian Friedrich
Daniel Schubart (1739-1791) ou os Staatsanzeigen (1782 e segs.) de August Ludwig
Schlõzer (1735-1809) constituem foros de debate e de contestação política. O
periódico de Schlozer era especialmente temido pelos príncipes alemães que, nalguns
casos, não hesitaram em proceder de forma brutalmente decisiva: o encarceramento
de Schubart durante dez anos é prova disso. Wieland impunha um estilo
particularmente contundente ao reclamar a liberdade da imprensa, que de facto não
existia em qualquer território alemão:
Freyheit der Presse ist Angelegenheit und Interesse des ganzen Menschengeschlechts.
Ihr haben wir hauptsachlich die gegenwartige Stufe von Kultur und Erleuchtung,
worauf der grössere Theil der Europaischen Völker steht, zu verdanken. Man raube uns
diese Freiheit, so wird das Licht, dessen wir uns gegenwartig erfreuen, bald wieder
verschwinden ( ... ). (Wieland 1930: 65)
A tiragem destes jornais era significativa em termos relativos, na medida em que
apenas uma ínfima minoria (10%) da população era alfabetizada, sendo outras revistas
com grande procura a Allgemeine Deutsche Bibliothek de Nicolai (1777 e segs.) e a
Allgemeine Literatur-Zeitung (1785 e segs.), esta sobretudo pelas recensões nela
publicadas. Christoph Meiners e Leo Spitteler editavam em Göttingen o Gottingisches
Historisches Magazin, onde os artigos científicos alternavam com as reflexões políticas,
sendo também este o caso do Gottingisches Magazin der Wissenschaften und
Litteratur (1780-1785) da responsabilidade de Lichtenberg e Forster. Embora nestes
últimos dois casos se tratasse de revistas especializadas, o seu estatuto não se pode
comparar com as suas congéneres nossas contemporâneas: a acessibilidade dos
artigos e a profusão de temas, para não falar da multidisciplinaridade, para que alguns
títulos apontam, são prova disso.
É também neste contexto que às mulheres será concedido um espaço como
destinatárias, como se pode deduzir pelos títulos de algumas Moralische
Wochenschriften. Contudo, as mesmas verão interdito o acesso às sociedades de
leitura, o que não invalida que uma faixa minoritária letrada se dedique a leituras que
não apenas as de romances sentimentais. Assim Caroline Schlegel-Schelling recorda,
em carta a amiga, a leitura de Mirabeau, atitude pouco ortodoxa é certo, para mais
quando se tratava de um protagonista da Revolução Francesa, recomendando mais
tarde ao jovem Friedrich Schlegel a leitura de Condorcet. Simultaneamente a primeira
tradução de The Rights of Man de Thomas Paine é da autoria de uma mulher,
Dorothea Forkel.
O modo como algumas mulheres encontravam no espaço doméstico um local de
debate e de reflexão, que, de certa maneira, reproduzia o ambiente dos espaços
públicos masculinos, como os cafés ou as sociedades de leitura, é testemunhado numa
carta por Caroline:
Die [Menschen], die ich jetzt sehe, sind gut, in mehr wie gewöhnlichem Grade,
gewahren meinem Kopf mehr Nahrung als - er bedarf - oder eigentlich mehr als er
ihnen wieder geben kan [sic], und erleichtern meine Lage durch alle Dienstleistungen
der Freundschaft. Sie Genießen ihr Leben, in dieser schönen Gegend - sie arbeiten und
gehn spazieren und ich theile das alles mit ihnen. Jeden Abend bin ich dort um Thee mit
ihnen zu trinken, die interessantesten Zeitungen zu lesen, die seit Anbeginn der Welt
erschienen sind - raisonniren zu hören, selbst ein bisschen zu schwazen - Fremde zu
sehn u.s.w. (Schlegel-Schelling 1988: 142)

Contudo, tratava-se de uma situação excecional. Só mais tarde os salões femininos


poderão começar a contribuir para o emergir de uma contracultura burguesa na
Alemanha: situados cronologicamente numa fase relativamente posterior, os salões
berlinenses equivalem exatamente a esse espaço neutro, onde a intelectualidade pode
assumir livremente a sua individualidade e humanidade, rompendo com as
convenções sociais que a própria burguesia não ousava maioritariamente pôr em
questão. Os salões de algumas berlinenses judaicas, como Rahel von Varnhagen (1771-
1883) e Henriette Herz, Lemos de solteira, (1764-1847)-uma vez que seu pai era um
famoso médico de origem portuguesa- constituem centros de intercâmbio literário.
Saliente-se, de resto, que o próprio movimento romântico teria sido impensável - pese
embora toda a sua contestação da tradição da Aufklärung - sem esta mesma evolução.
A utopia de alternativas à família tradicional, às convenções matrimoniais burguesas e
ao papel da mulher - de que Caroline Schlegel-Schelling, Henriette Herz e Dorothea
Veit-Schlegel também foram exemplos por excelência- mais não são do que o reverso
da medalha de uma subjetividade exacerbada e da proteção asfixiante que as novas
instituições haviam passado a assegurar.
Mas no tempo que antecede essa primeira grande crise da racionalidade e do
progresso europeus que a Revolução Francesa também trará consigo, ainda se pensa
esse espaço público em vias de ser conquistado como a instância que garante e
permite que o indivíduo faça uso público e ilimitado da sua razão, se manifeste como
ser pensante autónomo, desligado dos seus vínculos sociais e institucionais, a que se
mantém fiel, enquanto funcionário do Estado, como Kant o sublinha.
Zu dieser Aufklarung aber wird nichts erfordert als Freiheit; und zwar die
unschädlichste unter allen, was nur Freiheit heissen mag, nämlich die: von seiner
Vernunft in allen Stücken öffentlichen Gebrauch zu machen. Nun höre ich von allen
Seiten: rasonniert nicht! Der Offizier sagt: rasonniert nicht, sondern exerziert! Der
Finanzrat: rasonniert nicht, sondern bezahlt! Der Geistliche: rasonniert nicht, sondern
glaubt! (Nur ein einziger Herr in der Welt sagt: rasonniert so viel ihr wollt gehorcht!)
Hier ist überall Einschränkung der Freiheit. Welche Einschränkung aber ist der
Aufklarung hinderlich? welche nicht, sondern ihr wohl gar beförderlich? - lch antworte:
der öffentliche Gebrauch seiner Vernunft muss jederzeit frei sein, und der allein kann
Aufklarung unter Menschen zu Stande bringen; der Privatgebrauch derselben aber darf
öfters sehr enge eingeschränkt sein, ohne doch darum den Fortschritt der Aufklarung
sonderlich zu hindern. Ich verstehe aber unter dem öffentlichen Gebrauche seiner
eigenen Vernunft denjenigen, den jemand als Gelehrter von ihr vor dem ganzen
Publikum der Leserwelt macht. Den Privatgebrauch nenne ich denjenigen, den er in
einem gewissen ihm anvertrauten bürgerlichen Posten, oder Amte, von seiner
Vernunft machen darf. (Kant 1986: 11)
Note-se que, para o filósofo, aquilo que contribui para as Luzes é o uso ilimitado da
razão pública, isto é, enquanto exercício do pensar autónomo e individual, sem
quaisquer restrições, posição de resto perfeitamente compatível com a obediência
naquilo que Kant designa, agora numa aceção diferente, de domínio privado, isto é,
enquanto o mesmo homem acede a respeitar as normas vigentes na sociedade ou
grupo profissional ou confessional a que pertence.
É apenas enquanto ser racional, independentemente da ordem a que se pertence, da
profissão que se ocupa (mas não do rendimento que se aufere), que o indivíduo
corporiza urna forma alternativa à sociedade vigente.
Tal posição revela até que ponto o domínio do mundo privado burguês ainda se
encontrava por desenvolver na Prússia fredericiana. Note-se, de resto, que esta cisão
entre uso público e privado da razão lança luz sobre os limites que as Luzes conheciam
na Prússia e noutros territórios alemães, onde o vínculo institucional ao Estado, não
impedindo a expressão pública, apenas prometia reformas graduais sancionadas pela
autoridade a que o «livre» pensador também se encontrava submetido.
Variante da clássica distinção luterana entre liberdade interior e submissão ao poder
secular do senhor territorial, a mesma revela as virtualidades superiores do modelo
calvinista que colocava a autoridade religiosa acima de qualquer autoridade política e
media os poderes senhoriais por parâmetros exteriores à mesma, ao contrário do que
sucedia na confissão evangélica1.
1 Note-se que o modelo de organização da comunidade calvinista pensa a relação entre poder político e poder
religioso de forma radicalmente diferente do modelo luterano. Enquanto este, à semelhança do que sucedera com
a Igreja Anglicana, pressupõe a subordinação da Igreja ao Estado, o modelo calvinista submete o poder político ao
religioso, pelo que contribuirá para fomentar o princípio de uma instância individual e moral, a partir da qual a
prática política e o poder a ela associado podem ser avaliados e contestados.

Contudo, que esta posição não pode ser generalizada prova-o o apelo à liberdade
ilimitada da imprensa de Wieland em 1784, exatamente no mesmo ano em que Kant
publica o referido texto:
So wie es keinen wissenschaftlichen Gegenstand giebt, den man nicht untersuchen, ja
selbst keinen Glaubenspunkt, den die Vernunft wohl beleuchten durfte, um zu sehen,
ob er glaubwürdig sey oder nicht: so giebt es auch keine historische und keine
praktische Wahrheit, die man mit einem Interdikt zu belegen, oder für Kontrebande zu
erklären berechtigt wäre. Es ist widersinnig, Staatsgeheimnisse aus Dingen machen zu
wollen, die aller Welt vor Augen liegen, oder übel zu nehmen, wenn jemand der ganzen
Welt sagt, was einige hunderttausend Menschen sehen, hören und fühlen. (Wieland
1930: 72)
Note-se, contudo, que Georg Forster levantará a questão do modo como na Alemanha
o espaço público não possui o mesmo alcance que conhece na Grã-Bretanha,
salientando a ausência de Gemeingeist, tradução alemã do termo inglês public spirit. A
palavra alemã Gemeingeist começa a difundir-se então, surgindo quer em Forster quer
em Herder, porventura não tanto por influência mútua como recorrendo a um
neologismo que Joachim Heinrich Campe utilizara pela primeira vez no sentido de uma
ação empreendida para o bem-comum, como de resto o Dicionário Grimm ainda
aponta.
(...) schon haben wir siebentausend Schriftsteller, und dessen ungeachtet, wie es keinen
deutschen Gemeingeist giebt, so giebt es auch keine deutsche öffentliche Meinung.
Selbst diese Worter sind uns so neu, so fremd, dass jedermann Erläuterungen und
Definitionen fordert; indess kein Engländer den andern missversteht, wenn vom public
spirit, kein Franzose den andern, wenn von opinion publique die Rede ist. (Forster 1974:
365)
Equivale a dizer que a ausência de um sentido social comum, livremente expresso a
partir das opiniões individuais, reconhecidas e não dominadas ou instrumentalizadas
pelo Estado liberal, constitui o pressuposto da modernização política da Alemanha. A
ausência de Gemeingeist ou de opinião pública deve-se, segundo Forster, à falta de
união política e de uma cidade centralizadora, capaz de levar a cabo essa tarefa de
universalização contra as particularidades territoriais, leia-se, feudais.
Mas o termo öffentliche Meinung ganhará para Forster um significado diferente face à
experiência direta da Revolução Francesa. Se anteriormente a igualdade abstrata e a
individualidade, independentemente do posicionamento social e económico, haviam
sido enfatizados, a opinião pública passará a equivaler agora ao poder e à pressão
violenta que as massas parisienses exercem sobre o governo e a canalização que da
mesma o Governo jacobino, na fase de revolução democrática em França ( 1793-
1794 ), fazia. Mas ela é sobretudo a ferramenta e a alma da Revolução («Werkzeug
und Seele der Revolution», Forster 1990: 602). O modelo liberal britânico cede, em
parte, o lugar a uma vontade geral, inspirada em Rousseau, onde o coletivo tem de
predominar, coletivo esse que só pode assumir a importância que tem pelo facto de
emanar de uma cidade, Paris, que é o centro da França e da Revolução.
É a pressão da opinião pública que explica e legitima a violência revolucionária, cientes
os seus protagonistas de que a situação social, a miséria das massas, a torna
necessária. Recorde-se que será o Governo jacobino que instituirá o sufrágio universal
- relativo na medida em que excluía a população maioritária feminina- e legislará a
abolição da escravatura, radicalizando o potencial utópico das Luzes, que Napoleão
virá a questionar, ao mesmo tempo que institucionaliza a herança revolucionária.
Com efeito será esse Homem abstrato que, ignorando aparentemente a diferença, irá
corporizar, quer os momentos mais emancipatórios, quer os elementos mais
problemáticos ou repressivos das Luzes. A mensagem de libertação é vedada na
prática às humanas de sexo diferente, aos iletrados (aos que não pertencem à
burguesia e nobreza letradas), aos desapossados, aos colonizados: a todos aqueles
que, sem escrita, se verão impedidos de fixar as suas histórias, histórias essas perdidas
numa tradição que vê na oralidade uma manifestação cada vez mais negativa.
Ao espaço público apenas têm acesso os homens, os «brancos», os letrados, os
proprietários, assim se equacionando claramente esta forma de expressão de um
poder com os interesses - então ainda facilmente universalizáveis - da burguesia
masculina e europeia.

3.3 A reorganização do espaço e dos papéis sociais


3.3. l A cisão entre o espaço do trabalho e da família: a
burguesia
A antiga unidade de produção e de habitação e a grande família, como centro dessa
economia, cedem gradualmente o lugar a uma separação cada vez maior entre o
domínio do trabalho (produção) e da residência (consumo), que corresponde, de resto,
a mais uma manifestação da crescente divisão do trabalho na sociedade burguesa. É
assim que a família nuclear poderá erigir-se em espaço privilegiado de um intercâmbio
de carácter exclusivo.
Desligado das suas tarefas profissionais, o burguês pode reencontrar-se consigo
mesmo, erigindo outros critérios que não os da eficácia económica e a produtividade
para imaginar outras formas de se relacionar.
Local onde a autoridade masculina será cada vez mais evidente, o espaço doméstico da
burguesia ficará reservado ao repouso, à meditação, à leitura que, de voz alta passará
cada vez mais a ser feita em voz baixa, tornando-se assim cada vez mais individualizada
e extensiva.
É a descoberta de uma realidade imaginária a substituir o quotidiano feito de rotina,
onde a cada um é concedido o direito de escolher a leitura que mais lhe apraz,
criando-se um espaço de compensação sentimental para a ética do trabalho burguesa,
que, entretanto, encontrara nas virtudes do café um estímulo mais eficaz do que as
propriedades calóricas do chocolate, bebida preferida da nobreza, ou as mais
populares mas anestesiantes do vinho, que, até então, acompanhara as refeições e o
espaço de convívio desde o pequeno almoço ao jantar.
É esta divisão que permite a manifestação de uma dupla moral: se no local de trabalho
é cada vez mais a lei do economicamente mais forte que predomina, no domínio
doméstico, a relação afetiva compensa a opressão exercida no local de trabalho. É a
este espaço que o burguês vai buscar a inspiração para a sua humanidade,
independentemente das hierarquias e das relações de poder, é aí que ele protagoniza
a humanidade abstrata e subjetiva que permite pensar a igualdade entre todos,
independentemente de diferenças de classe, de sexo ou de cor (Horkheimer et al.
1987).

3.3.2 Divisão do trabalho e família


À semelhança da nobreza feudal ou de corte, também as camadas camponesas não
conheciam a distinção entre o domínio público e privado, na medida em que a
organização económica e social da grande família pressupunha a estreita
contaminação entre o local de trabalho (produção) e de habitação (consumo).
Com a crescente dissociação destes espaços, na sequência da Revolução Industrial, os
novos assalariados não conhecerão, porém, nem em termos de mera aparência, a
autonomia da vontade privada como criadores de novos empreendimentos
económicos.
Por sua vez, o espaço doméstico não verá o seu domínio consagrado, dependente
como se encontra da mais estrita necessidade económica. Tal como os homens, as
mulheres ver-se-ão obrigadas ·a abandonar o local doméstico para assim poderem
garantir a sua sobrevivência.
Significativamente, será durante a Revolução Francesa que, com a crescente subversão
da ordem vigente, as mulheres desempenharão um papel decisivo no domínio político,
na medida em que são elas que mais diretamente sentirão no seu quotidiano as
consequências da escassez e da penúria, assim propondo estratégias de ação
alternativas que ameaçavam, por isso mesmo, pôr radicalmente em causa a ordem
política da burguesia masculina, de formação predominantemente jurídica que, em
1789, redigira a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Tal entendimento da política por parte das mulheres questionava de modo radical a
separação entre local de produção e de consumo, pondo em causa a divisão de papéis
dela decorrente, ameaçando o domínio da intimidade, onde ao indivíduo burguês fora
concedida a possibilidade de ser «ele mesmo», ser racional, potencial,
temporariamente liberto das suas obrigações profissionais e hierarquias sociais. Não
será, portanto, de estranhar a proibição dos clubes políticos femininos, bem como a
condenação de toda a atividade política espontânea por parte das mulheres, ao longo
de quase todo o século XIX, um pouco por toda a Europa.
E o século XIX consagrará o modelo burguês da família nuclear, conforme com a ordem
económica e social nele triunfante (cf. Cap. IV2, pontos 2.6 e 2.7)

3.3.3 A redistribuição do espaço domésti co e a inti midade


A possibilidade de um membro de uma família se refugiar no seu quarto, para aí poder
dar largas à sua emoção, a noção de novas formas de poder, que levariam a que, nas
famílias burguesas, se passasse a separar a sala de estar, da sala de visitas, que a
cozinha - local de reunião e de convívio na grande família rural - fosse transferida para
o local mais distante desta última e que o quarto dos pais passasse a ser distinto do
dos filhos, que, por sua vez gradualmente não só teriam um espaço próprio para
brincar, como veriam surgir a diferença de sexo como mais um critério de organização
dos espaços, todas estas transformações constituem momentos essenciais no processo
de criação da intimidade (Shorter 1975).
Se a sala de visitas guarda os traços de uma exterioridade e de uma representação em
regressão, a burguesia inventa a sala de estar, espaço neutro onde toda a família se
reúne, depois de terminadas as diferentes tarefas, conduzidas de forma
crescentemente separada. É aí que os seus membros se entregam aos seus lazeres,
preferindo-se as atividades suscetíveis de serem realizadas em comum, como a música
de câmara, a leitura em voz alta, ou que não interrompam a sociabilidade como o
bordado, o jogo de cartas. Não será, portanto, de estranhar, o ataque aos efeitos
perniciosos da leitura individual e sobretudo de romances: esta não só afastava das
obrigações, como estimulava excessivamente a imaginação, sendo as suas vítimas
preferenciais as mulheres burguesas que, confinadas ao espaço doméstico,
preenchiam por vezes os seus tempos livres com atividades que podiam ser
incontroláveis.
De resto, a sua curiosidade intelectual era frequentemente motivo de troça, como
sucede com Kant, que adivinha nas mulheres o culto das aparências de que a
sociedade burguesa e os adeptos de Rousseau tanto desconfiavam:
Was die gelehrten Frauen betrifft: so brauchen sie ihre Bücher etwa so wie ihre Uhr,
nämlich sie zu tragen, damit gesehen werde, dass sie eine haben; ob sie zwar
gemeiniglich still steht oder nicht nach Sonne gestellt ist. (Kant 1988: 654)

Mas a curiosidade intelectual feminina não só era motivo de troça ou censura, mas
também de complexo de culpa por parte das próprias mulheres, como se pode ler no
seguinte excerto de uma carta da jovem Therese Forster-Huber:
( ... ) Wegen meiner Lektüre habe ich mir bisweilen Vorwürfe gemacht, habe gedacht,
ich sei selbst daran schuld, wenn ich nicht mehr so unbefangen unschuldig war, wie
meine Jahre es mit sich brachten, und es meines Geistes würdig sei. Sie beruhigen mich
um vieles, aber dass Sie mein Lesen zu einem Grund meiner plagenden Unruhe
machen, das ist mir ganz unerwartet; denk ich aber mehr darauf nach, so glaub ich, Sie
haben ziemlich recht. Ich habe mir einmal einen Ton gegeben, der nur der Einzige ist,
der mir gefüllt, was ich höre und antreffe, muss in diesen Ton einstimmen, um mir zu
gefallen, ists dies nicht, so ist mirs gleichgültig und zuwider. Da ich nun wenig finde,
das mir gefüllt, so macht mir vieles Langeweile, ist mir unschmackhaft, und weil ich
immer mehr suche, und nie finde, so bin ich, glaub ich, unruhig. Die vielen Romane, und
andre Schriften, die bloss fürs Herz waren, haben meine Zärtlichkeit gereizt; ich fühle,
dass ich würde glücklich sein, wenn ich einen Gegenstand wüsste, dem ich diese
Zartlichkeit ganz geben könnte, aus dem ich meinen Abgott machen könnte, da ich
aber keine Seele um mich sehe, die mich versteht, muss ich mich Verschließen, mich in
mich selbst hinziehen, ich träume Bloß ein Glück, das ich mir ausschweifend träume, so
wie ich mir kein Gewissen daraus machen würde, Mahomeds Paradies mit
ausschweifender Pracht und Glückseligkeit auszuschmücken, beides sind Traume, und
Unmöglichkeiten. (Huber 1989: 13-14)

Com efeito, Rousseau aconselhava à futura companheira de Emílio, Sofia, a moderação


em tudo, desde os atributos físicos, aos intelectuais, e recomendava como atividade
ideal para qualquer jovem os trabalhos manuais (Rousseau 1966). Certo é que entre a
amamentação, a administração da casa e outros trabalhos manuais, pouco tempo lhe
restava para a leitura, quando esposa e mãe.
A propósito das cartas de Mirabeau, escrevia Caroline à amiga Luise Gotter de Mainz
no ano de 1792:
Liebe Madam Luise, Du könntest doch auch dergleichen [Mirabeaus Schriften] lesen,
wenn Du deine Kleinen, die Dir im Schauspielerakzent vorgelärmt haben, zu Bett
geschickt hast - aber ich weiss dann wirst Du müde ( ... )-denn Du Gute sorgst für Deine
nahen Freunde und bekümmerst Dich nicht um einen hässlichen Bösewicht, wie der
außerordentliche Mirabeau war ( ... ). (Schlegel-Schelling 1988: 138)

3 .4 Espaço domésti co
3.4.l A divisão de trabalho nafamília burguesa: homens, mulheres e
crianças
A igualdade teórica e abstrata postulada no espaço público não invalida, antes
pressupõe outras formas de separação e de hierarquização, mesmo no seio da
burguesia.
A família nuclear burguesa saberá inventar e definir de forma tanto mais eficaz as
formas de opressão patriarcal, reproduzindo-se, a nível doméstico, outras tantas
maneiras de exercer a autoridade sobre os economicamente dependentes: mulheres,
crianças e criados (Horkheimer et al. 1987).
Se esta divisão do espaço constituiu, com efeito, o grande pólo de inspiração para a
invenção de uma racionalidade individual, para uma forma de estar em sociedade mais
«humana», o certo é que a geografia da casa burguesa não esconde o modo como a
«dialética do Iluminismo» (Horkheimer/Adorno 1971) gera o reverso dessa
humanidade sem sexo ou sem idade.
A separação entre mundo público e privado e a subsequente invenção do mundo
doméstico, cria a fronteira entre o mundo masculino e feminino, adulto e infantil,
entre senhores e criados, em suma, marginalizando aqueles que não dispõem de
maioridade política ou biológica.
Reino do sentimento, poupado das agressões da concorrência e da racionalidade
instrumentalizadora do capitalismo, será o local ideal de consumo de literatura
sentimental, bem como de produção da mesma por parte de algumas mulheres mais
ousadas. O mundo doméstico torna-se feminino, reino da mulher burguesa que,
impedida de aceder política e economicamente ao mundo público, se realiza nas
tarefas domésticas, criando filhos e praticando a administração dos bens masculinos.
São estas mulheres que encontram em Rousseau a emancipação possível,
amamentando e educando os futuros cidadãos para uma participação de que
permanecerão excluídas formal e praticamente até ao princípio do século XX.
Por sua vez, esta divisão tanto mais distinta se torna, quanto o corpo se transforma no
local, onde a diferença empiricamente percetível se irá inscrever: a mulher passa a ser
gradualmente encarada não como uma variante de um modelo humano único, mas
como um ser portador de uma diferença biológica irredutível (Gallagher/Laqueur
1987). Assim, quando Rousseau advoga a diferença natural entre os sexos, ainda o faz
socorrendo-se de um conceito abstrato de natureza, em que a diferença biológica é
relativa nesse processo de demarcação e de atribuição de papéis:
En tout ce qui tient au sexe, la femme et l'homme ont partout des rapports et partout
des différences: la difficulté de comparer vient de celle de déterminer dans la
constitution de l 'un et de l' autre ce qui est du sexe et ce qui n'en est pas. Par
l'anatomie comparée, et même à la seule inspection, l' on trouve entre eux des
différences générales qui paraissent ne point tenir au sexe; elles y tiennent pourtant,
mais par des liaisons que nous sommes hors d'état d'apercevoir: nous ne savons
jusqu'ou ses liasons peuvent s' étendre; la seule chose que nous savons avec certitude
est que tout ce qu' ils ont de commun est de l' espece, et que tout que ce qu' ils ont de
différent est du sexe. Sous ce double point de vue, nous trouvons entre eux tant de
rapports et tant d' oppositions, que e' est peut-être une des merveilles de la nature d'
avoir pu faire deux êtres si semblables en les constituants si différemment. (Rousseau
1966: 466)

Ora é exatamente essa natureza comum que será cada vez mais relegada para
segundo plano, legitimando e antecipando o discurso científico a necessidade de o
poder político justificar o afastamento das mulheres enquanto sujeitos de direito
(Gallagher/Laqueur 1987). Kant recusar-lhes-á exatamente esse mesmo direito, tal
como aos assalariados e não-proprietários, medidas que a Constituição francesa de
1791, de resto, também, asseguraria. A caracterização kantiana do sexo feminino
revela tanto os preconceitos de um celibatário como a fonte em que os terá
provavelmente bebido: Jean-Jacques Rousseau.
Weibliche Tugend oder Untugend ist von der männlichen, nicht sowohl der Art als der
Triebfeder nach, sehr unterschieden. - Sie soll geduldig, er muss duldend sein. Sie ist
empfindlich, er empfindsam. - Des Mannes Wirtschaft ist Erwerben, die des Weibes
Sparen. - Der Mann ist eifersüchtig, wenn er liebt; die Frau auch ohne dass sie liebt;
weil so viele Liebhaber, als von andern Frauen gewonnen worden, doch ihrem Kreise
der Anbeter verloren sind.- Der Mann hat Geschmack für sich, die Frau macht sich
selbst zum Gegenstande des Geschmacks für jedermann. (Kant 1988: 654)

Condorcet apela ainda para o carácter secundário dessa diferença para advogar a
legitimidade da maioridade política e pública das mulheres, reproduzindo assim o
discurso da igualdade abstrata, fundada numa racionalidade sem corpo e sem sexo.
Reclamando para as mulheres direitos cívicos e políticos, incluindo-se nestes o direito
ao sufrágio, escreve no seu libelo «Sur I' admission des femmes au droit cité», já
durante a Revolução Francesa, no ano de 1790:
Je demande maintenant qu' on daigne réfuter ces raisons autrement que par des
plaisanteries et des déclamations; que surtout, on me montre entre les hommes et les
femmes une différence naturelle qui puisse légitimement fonder l'exclusion du droit.
(Condorcet 1968: 129)
Mas este marquês republicano inspirava-se noutros modelos que não os que os
adeptos de Robespierre consagravam. E a família burguesa saberá basear-se no
princípio de que a diferença biológica legitima a passividade pública das mulheres.
A proclamação da igualdade abstrata caminha de par com a fixação de uma diferença
irredutível. Se a criança é reconhecida e retratada já não como uma miniatura do
adulto, a ela se dedicando uma pedagogia que confere de forma particularmente
inovadora ao ritmo de desenvolvimento infantil o lugar de direito que ainda
atualmente lhe é reconhecido, inventando-se exatamente então a literatura infantil
(cf. Cap. II.2, ponto 2.2.2), que conhece em Robinson der Jüngere (1779) de J. H.
Campe (1746-1818) um dos seus mais importantes representantes, também é verdade
que a mesma serve de meio para consagrar a divisão de sexos e capacidades.
A garantia da existência de mulheres saudáveis e equilibradas servia uma finalidade: a
de uma procriação tão eficaz quanto possível e não a de um direito próprio.
( ... ) Mütter, denen das künftige Wohl ihrer Kinder am Herzen liegt, können daher von
dem ersten Augenblicke ihrer Empfängnis an, nicht zu aufmerksam auf die Erhaltung
der Gesundheit ihres Leibes und ihres Geistes seyn, können vor jeder Unpässlichkeit,
vor jeder Ausschweifung aus der graden Straße der Tugend und Rechtschaffenheit, und
vor jedem widrigen Affekte, nicht zu sorgfältig sich in Acht nehmen. Nie wird auf einem
kränklichen, faulenden , oder durch Sturmwinde zersplitterten Stamme das zarte, so
eben erst hervorgequollene Knöspchen, zu einem gesunden und starken Fruchtaste
gedeien können. (Campe apud Schmid 1995: 62)
No espaço público e político de que as mulheres, as crianças e os criados se verão
privados, apenas ecoa a voz patriarcal do chefe de família. E nem o direito ao prazer
lhes era autorizado como forma de compensação.

3.5 Espaço público e subjeti vidade


Na Alemanha, o pietismo contribuiu também de forma particularmente relevante, para
a formação de um espaço público. O pietismo, movimento oriundo do luteranismo e
estimulado pela obra de Philipp Jakob Spener ( 1635--1705), Pia Desideria (1675),
desenvolvera-se inicialmente em Frankfurt e mais tarde em Berlim. O movimento
correspondia a uma reação à ortodoxia luterana, que parecera esquecer os elementos
de uma prática da piedade e o sentimento de relação mística com Deus que constituíra
um importante elemento na doutrina de Martinho Lutero.
Os seus principais representantes foram August Hermann Francke (1663-1727) em
Halle e o conde de Zinzendorf (1700-1760). Enquanto o primeiro desenvolveu uma
importante ação social e pedagógica, fundando, por exemplo, em 1710 o célebre
orfanato de Halle (Waisenhaus), o segundo apelava à renovação dos laços
sentimentais e místicos.
Apesar da rivalidade entre pietistas e Aufklärer em Halle, que resultou na expulsão de
Christian Wolff, em 1727, para Marburg, o certo é que o zelo reformador e as
preocupações práticas e pedagógicas de um Francke possuem traços comuns ao
modelo iluminista.
Por outro lado, a importância dada à responsabilização individual do crente na praxis
pietatis contra a ortodoxia instituída libertara energias semelhantes àquelas
catalisadas pelos metodistas e puritanos em Inglaterra.
A responsabilização do indivíduo para com a comunidade passou a constituir uma
alternativa ao espaço burocrático do Estado e um foro de expressão da autonomia.
Sem a influência desta subjetividade renovada pelo pietismo, a crítica religiosa e do
dogma não teriam assumido o radicalismo que caracteriza, por exemplo, as posições
de alguns teólogos como Carl Friedrich Bahrdt (1741-1792) e Karl Leonhard Reinhold
(1758-1823), na sua crítica radical da ortodoxia e da religião, nem a análise psicológica
de um Karl Philipp Moritz, no seu romance Anton Reiser.
Por outro lado, esta subjetividade permitiria às mulheres a descoberta de uma
diferença não biologicamente detetável: a irredutibilidade de uma experiência
encontraria na escrita uma forma de se afirmar, assim adquirindo as mulheres a
possibilidade de fazer ouvir gradualmente a sua voz.
A utilização da carta como meio de expressão privilegiado nesta época constitui mais
um elemento nesta história da invenção da intimidade. A mesma serve de veículo de
comunicação de emoções e de exteriorização de afetos. As fórmulas de cortesia quase
servil cruzam-se com um registo afetivo impensável para o século do racionalismo:
homens e mulheres apenas se distinguem na seleção de temas, havendo por parte das
últimas uma atenção mais virada para o quotidiano sem história, as tarefas
domésticas, as interrupções de momentos dedicados a manifestações de racionalidade
autónoma pelas crianças que impedem a leitura ou a vida contemplativa em geral,
enquanto o mundo masculino é aquele em que se exprime a preocupação com o
mundo das carências económicas, as grandes decisões políticas. Todos revelam,
porém, quase o mesmo à vontade para manifestar o seu amor, dedicação ou verter
lágrimas de emoção.
No entanto, as cartas não se limitam à expressão de afetos nem a ser um veículo de
temas do foro íntimo, mas constituem um instrumento fundamental de debate que,
transcendendo esse domínio, abordam assuntos sociais, científicos e literários e se
alargam, sob a forma de cartas-abertas, polémicas e correspondência científica aos
órgãos de imprensa. Assim a epistolografia, a Briefkultur do século XVIII, foi também
uma das instâncias essenciais para a afirmação do espaço público.

3.6 Sociedades secretas


A maçonaria constitui uma outra instância de importância decisiva para a formação
desta esfera de contrapoder. O espaço privado e delimitado destas sociedades
secretas criava novas relações de dependência e de poder que, se em parte
reproduziam as existentes, também criavam alternativas à ordem vigente, na sua
proclamação da igualdade entre nobres e burgueses, na sua fixação em hierarquias
segundo os méritos que não os do nascimento, a que as provas e ritos iniciáticos
davam corpo. Ser-se homem é mais que ser-se príncipe como Lessing e Mozart o
afirmam, separadamente em Ernst und Falk e Die Zauberflöte. A tolerância, a
educação, a ordem universal do Grande Arquiteto coadunam-se com os ideais
iluministas ou constituem antes o seu eco mais adequado.
A prova de que não se pode, com efeito, identificar as Luzes com a ideologia da classe
burguesa em vias se de emancipar, prova-o também a composição variada das lojas.
Enquanto que em Hamburgo ela era maioritariamente frequentada pela burguesia, nas
cidades residenciais a nobreza era predominante, embora nos centros universitários
imperassem os docentes do ensino superior.
O secretismo das sociedades contrasta com o carácter do debate público e aberto
praticado na imprensa, mas constitui um complemento dele: neste espaço conspira-se
efetivamente contra o carácter ilimitado do poder absolutista, minando-se as bases em
que o mesmo se apoiava.
A proliferação de lojas maçónicas foi tão intensa nos territórios alemães como na Grã-
Bretanha e em França. Hamburgo foi a cidade onde a respetiva atividade mais cedo se
fez sentir através da influência inglesa, contando-se nessa cidade com cinco lojas no
ano de 1778. A Loge Friedrich zu den drei Balken que iniciara a sua atividade em 1778
com 18 membros, contava em 1803 com 103 adeptos.
Na Prússia a maçonaria floresceria sob o reinado de Frederico II, ele próprio maçon, o
mesmo sucedendo com José II da Áustria, sendo Viena um dos seus mais importantes
centros, possuindo 15 lojas. Joseph Haydn (1732-1709) e Mozart são outros célebres
membros da maçonaria, tendo este último, membro da loja Zur Wohltätigkeit,
composto inúmeras peças maçónicas, para não falar nas alusões aos ritos iniciáticos
presentes em Die Zauberflöte.
Mas, em simultâneo, proliferam outras sociedades secretas que não se inspiram tanto
nos princípios fraternais e esclarecidos que marcavam as principais lojas, mas que
promovem o oculto, o irracional: os Rosacruz e os Illuminaten, fundados por Adam
Weishaupt ( 17 48-1830), professor de direito canónico e natural do Sul da Alemanha.
O que é certo é que muitos dos seus membros também privavam nas lojas maçónicas.
Se é verdade que as mesmas adquiriram um carácter gradualmente avesso ao espírito
da Aufklärung, sobretudo depois de o sucessor de Frederico II ter subido em 1786 ao
trono, introduzindo uma política de retrocesso relativamente às reformas do seu
antecessor, o certo é que, inicialmente, estas ordens de pendor místico contavam
entre si, além de nobres, sobretudo com médicos e cientistas, o que mostra até que
ponto a cisão entre o ocultismo e a ciência institucionalizada estava longe de se
cumprir. Entre os seus adeptos contavam-se Goethe, o jovem Forster e o anatomista
Sömmerring, embora os mesmos cedo tenham abandonado o grupo Rosacruz a que
haviam aderido, temendo cabalas e influências secretas por parte dos Jesuítas.
Este dualismo nas tendências das sociedades secretas e o facto de partilharem os seus
membros revela até que ponto a historiografia tem sido parcial na imagem que
forneceu do século XVIII: as Luzes possuem as sombras equivalentes, o irracional
mantém um papel decisivo. Embora gradualmente relegado para um plano não-oficial,
não-institucional, persiste em organizar-se.

3.7 O novo público: teatro e música


O teatro constitui outra vertente que se associará à formação de uma opinião pública
esclarecida: Lessing e Schiller utilizam-no como arma de contestação dos valores da
sociedade de corte predominante, contra a aliança entre a burguesia esclarecida e o
absolutismo de corte que Gottsched ainda representara.
Mas uma vertente essencial é o facto de o teatro se destinar a um público mais amplo
que se desloca às salas, pagando o seu bilhete, criando-se assim uma relação diferente
daquela que existira nas encenações da corte. O público constitui uma nova
autoridade a que o autor e o ator têm de se submeter e de que dependem
economicamente. As opções estéticas de um Lessing não são de modo algum
estranhas a esta evolução. O bürgerliches Trauerspiel apela à individualidade do
público, à transparência de uma comunicação, à espontaneidade dos afetos contra a
contenção das normas de corte.
Por outro lado, a emergência de um público não-especializado, que se desloca às salas
de espetáculos, apenas por economicamente estar em condições de o fazer, cria a
figura do crítico, órgão e voz dessa opinião pública que ensaia os seus primeiros
passos. Lessing corporiza, na sua polémica contra o drama de Gottsched exatamente
esta tendência.
A cisão entre o espaço público e o privado faz-se sentir igualmente no modo como se
praticará a música: entre a sala de concertos, onde o virtuoso, mercê do sistema de
assinaturas, evidencia o seu talento e a sua genialidade, e a sala de estar, com música
de câmara e piano, instrumento individualista que, na sua autonomia harmónica e na
sua robustez física, surgirá como o símbolo da burguesia até finais do século XIX.
As grandes construções sinfónicas, iniciadas por Haydn e levadas por Ludwig van
Beethoven (1710-1827) ao seu expoente máximo, terão a sua contrapartida no
carácter elitista da música de câmara ou no tom intimista dos noturnos para piano e
dos Lieder que reelaboram a lírica subjetiva.
A Heróica (1803) de Beethoven contrapõe-se à sua Mondschein-Sonate (1800/1801); a
grandiosidade épica e o intimismo lírico, dando voz às impressões do artista solitário,
são duas faces da mesma moeda. O virtuosismo do concertista e a construção
sinfónica adaptam-se às necessidades de um público mais vasto e menos conhecedor,
tentando-se captar o ouvinte através de efeitos espetaculares do ponto de vista da
execução e da composição. Mas a associação de indivíduos apresenta o seu reverso: o
isolamento do artista solitário é a outra face do espaço público a que os românticos
darão a devida expressão.
A ópera aburguesa-se: de espetáculo para entretenimento da corte a mesma
transforma-se em diversão para camadas gradualmente mais amplas. Prosseguindo
uma via já iniciada por Christoph Willibald Gluck (1714-1787), a retórica barroca,
sustentada por figuras mitológicas e estilizadas, é substituída por um registo cada vez
mais intimista e sentimental. A Orfeo ed Euridice (1762) sucedem-se Figaro e Susana,
plebeus que contestam a omnipotência dos nobres em As bodas de Fígaro (1786); Don
Giovanni (1787), protagoniza não as virtudes de deuses, mas a hybris demasiado
humana de um nobre que encarna a espécie humana. Por sua vez, a Zauberflote,
representada, em 1791, no Teatro auf der Wieden, espaço independente da ópera
tradicional associada à corte, serve também de pretexto para o libretista, Emanuel
Schikaneder (1751-1812), e o compositor divulgarem, de forma tão aberta quanto o
código maçónico o permitia, os ideais de igualdade e o sacrifício iniciático pela
transparência de um mundo mais fraterno e racional.
É esta herança que Beethoven retomará em Fidelio ( 1805), celebrando a liberdade
recém-conquistada pela humanidade e significativamente invertendo o papel dos
castrati, ao introduzir uma mulher transvestida de homem, a fim de poder libertar o
amado acorrentado pelas forças da opressão.

3.8 Conclusão
Resumindo pode afirmar-se que no espaço cultural alemão se fez sentir, à semelhança
de outros países europeus e pese embora um relativo atraso económico, uma
evolução fundamental na criação de um espaço público.
Antes da Revolução Francesa já se desenhara e consolidara um espaço de debate e de
oposição a que a mesma iria dar a mais perfeita expressão política, abrindo
simultaneamente o caminho para o reforço do papel do génio solitário face à liberdade
cada vez mais institucionalizada e regulamentada.
A nova ordem decorrente das transformações revolucionárias em França,
institucionalizaria e consagraria no Continente europeu algumas das reivindicações
iluministas, para as quais o debate surgido no seio do espaço público foi determinante.
Mas, se a nova realidade herdeira do século XVIII radicalizava as aspirações das Luzes,
também as desvirtuava.
Com efeito, a Revolução Francesa institucionalizou as reivindicações e práticas que
associamos ao emergir do espaço público, sancionando a liberdade de imprensa, de
confissão religiosa, o direito à propriedade, criando uma esfera distante e estanque da
vida íntima, onde tudo seria permitido, desde que não interferisse com o domínio
público.
Mas a tolerância religiosa não encontraria sempre o seu mais adequado equivalente
político e jurídico, a igualdade permaneceria mero postulado jurídico sem a
correspondente prática económica. A igualdade e a liberdade, a identidade e a
diferença e o modo de se articular esses dois elementos seriam o maior dilema e
equívoco com que a nossa contemporaneidade ainda se vê a braços. A igualdade
jurídica, baseada no postulado de uma igualdade abstrata e universal garantiu, - e
garante - o tratamento idêntico de todos os seres, independentemente do sexo, da
origem, das crenças, da cor, mas simultaneamente não escapou à tentação de tornar
esse modelo e essa referência num modelo monolítico e absoluto, em evidente
contradição com o programa tolerante que o inspirara. O «Terror da razão» (Georg
Forster), tudo nivelando e instrumentalizando, não foi descoberta dos críticos e céticos
das Luzes e da modernidade no nosso século (Horkheimer e Adorno), mas algo já
então sentido pelas mulheres, pelos colonizados na Europa e fora dela, pelas minorias
revolucionárias, antes de ser reapropriado e instrumentalizado pelos seus críticos,
entre os quais os mais ferozes adeptos da sociedade do privilégio e da diferença mais
unilateral.
A racionalidade abstrata e utópica gerou, na sua dialética, os apelos mais eloquentes
ao direito à diferença, baseada na origem, no sexo, na cor, criando assim a
possibilidade do moderno discurso nacionalista, feminista, racista em tudo aquilo que
de mais polémico possuem. E sublinhe-se também: o pensamento das Luzes
inscreveria no seu discurso e lógica do poder essa diferença de homem branco,
cristão/protestante, europeu, contra a inferioridade seja da mulher, seja do não-
europeu, segundo uma pretensa norma universal, mas masculina e colonial. Seria na
recuperação dessa diferença marginalizada que os protestos dos dominados se iriam
reunir para denunciar a abstração dessas normas e buscar o fundamento, a inspiração
e a mitologia para a (re)invenção de uma identidade entretanto destruída.
E é também na Revolução Francesa, enquanto institucionalização da modernidade e de
um espaço público centralizado, que vamos encontrar as origens de uma organização
desta esfera até aos nossos dias: a crescente influência e pressão do poder económico
levará a que esses espaços de reflexão e debate cedam gradualmente o lugar a uma
imprensa manipuladora da opinião pública que passa a constituir uma mera correia de
transmissão do poder instituído. A velocidade e a quantidade da informação virão, a
partir do século XIX, prejudicar os elementos críticos do público leitor, cada vez mais
passivo. O aparecimento dos meios audiovisuais viria a revolucionar a imprensa e a
criar as condições para o aparecimento dos modernos meios de comunicação de
massa. A cultura escrita cederia gradualmente o lugar à comunicação audiovisual.
Pesem embora todas as diferenças radicais entre esses dois momentos há que não
esquecer que conceitos como os de opinião pública, espaço público e publicidade,
surgidos no século XVIII, ainda persistem no nosso imaginário social e político e
constituem o modelo segundo o qual inconscientemente ou não medimos a nossa
realidade pós-moderna.

Ati vidades propostas


• Leia o texto de Kant «Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarung?» caracterize o
que o autor entende por uso público e privado da razão e associe estes conceitos com
o de opinião pública no século XVIII.
• Analise Die Zauberflote à luz das teorias abordadas neste capítulo, não esquecendo o
papel das figuras femininas.
• Confronte a definição de Wieland de liberdade de imprensa com o emergir de uma
opinião pública na Alemanha e articule a mesma com o movimento das Luzes no
século XVIII europeu.

4.6 A natureza burguesa e os seus espaços específi cos


A sucessão do jardim francês, reservado à corte e à aristocracia, pelo parque inglês já
mais aberto (o Englische Garten em Munique é instalado no fim do século XVIII) e pelo
passeio público do século XIX mostra a importância ideológica da construção de
espaços «naturais» que completam e refletem a própria organização social. Na época
da Aufklärung, a burguesia privilegia ainda a natureza cultivada e o valor estético do
útil que se prolonga na instituição de museus de história natural. Mas com o
Romantismo, os lugares naturais diversificam-se. Um inventário descritivo da pintura
romântica daria uma ideia bastante completa da extrema variedade de motivos
naturais e das respetivas dimensões simbólicas.
Do panorama abrangente ao olhar da janela aparecem uma série de esquemas
percetivos que situam o observador numa configuração simbólica específica. Assim, o
Wanderer über dem Nebelmeer (1818) de Caspar David Friedrich mostra o sujeito
monumental em face duma paisagem montanhosa iluminada pela luz divina, enquanto
o Monch am Meer de 1809 reduz a figura consideravelmente e apresenta céu e mar
como reflexos da omnipotência natural.

4.6.1 O espetáculo da natureza no Panorama


Enquanto os quadros de Friedrich encontram, sobretudo nos últimos anos da sua vida,
uma certa incompreensão junto do grande público e da crítica, uma outra forma da
pintura paisagística teve, desde o início, um êxito enorme. O Panorama, que surgiu no
fim do século XVIII na Inglaterra e se multiplicou rapidamente por todas as grandes
cidades da Europa central, ilustra bastante bem um novo paradigma da apreensão da
natureza. Uma pintura circular (ou semicircular), instalada num edifício redondo
iluminado por cima e com uma plataforma para os espectadores no centro, criava uma
ilusão de realidade que deve ter, segundo as testemunhas da época, causado uma
impressão avassaladora.
Se os primeiros panoramas na Alemanha são ainda de origem inglesa (Ein grasses
Natur-Gemählde der weltberühmten Stadt London, Hamburg 1799), os pintores
alemães viram-se cedo para este novo medium. Uma primeira tentativa - uma vista de
Roma (Berlin 1800) - levanta ainda problemas técnicos (iluminação) e cognitivos
(habituação à visão circular) ( cf. Oettermann 1980: 144-221 ). Um projeto
panoramático do jovem Caspar David Friedrich ( 181 O) não se concretiza, enquanto o
arquiteto Karl Friedrich Schinkel ( 1781-1841) pinta em quatro meses um grande
Panorama von Palermo ( 1808) que é mostrado depois com grande êxito em Berlim e
outras cidades alemãs.
Os panoramas das décadas seguintes mostram principalmente cidades conhecidas
(Hamburgo, Frankfurt, Roma, mas também Constantinopla e o Cairo), a natureza
selvagem (os vulcões Etna e Vesúvio, os Alpes) e cenas históricas (guerras
napoleónicas). Já em 183 3 aparece o Pleorama des Rheins von Mainz bis St. Goar, no
qual os espectadores, instalados num barco, assistem durante uma hora à passagem
de duas telas laterais com as margens do Reno. A publicidade salienta as vantagens
desta «viagem» (independência do mau tempo e nenhum perigo de naufrágio) e
insiste no aspeto patriótico do tema:
Der Gegenstand als vaterländische Gegend wird nicht nur für alle diejenigen von
Interesse seyn, welche die Reise dahin noch unternehmen wollen, sondern auch für
alle, die bereits dort waren, und denen diese Nachreise nur eine erfreuliche Erinnerung
seyn kann. (apud Oettermann 1980: 169)
Enquanto a popularidade e a subsequente produção de novas telas estagnam a partir
de 1850, a Alemanha vive de 1880 a 1900 um novo apogeu desta arte popular.
Financiados por sociedades anónimas com elevada capacidade financeira, novos
panoramas são instalados nas principais cidades do império e atraem, ao longo destes
anos, mais de 10 milhões de espectadores. Em Hamburgo, concorrem três instituições,
oito em Berlim e em todas as grandes exposições industriais da época são igualmente
mostrados panoramas.
Por outro lado, o panorama corresponde às orientações ideológicas do império. O
patriotismo moderado do Biedermeier transforma-se agora num imperialismo explícito
que, nesta altura, se pratica abertamente na França e na Inglaterra. O National-
Panorama em Berlim mostra de preferência cenas da guerra franco-alemã de
1870/1871, tal como o Sedan-Panorama na mesma cidade que glorifica a batalha
decisiva de Sedan (1.9.1870). Os pintores encarregados do projeto, sob a direção de
Anton von Werner (1843-1915), visitaram clandestinamente o campo de batalha e
estudaram as pinturas francesas sobre o mesmo tema. Concluído em 1883, este
panorama, no qual os espectadores eram instalados numa plataforma rotativa,
estabeleceu-se como uma das grandes atrações turísticas da capital durante 20 anos.
A crítica da época salienta o realismo incomparável, mas também a moderação dos
pintores na representação do sangue e dos cadáveres.
Um outro panorama berlinense, inaugurado em 1885, tematizou durante três anos
cenas das colónias alemãs, nomeadamente uma expedição punitiva nos Camarões,
enquanto a Hohenzollemgalerie glorificou a história prussiana e a marinha alemã. Um
dos panoramas mais lucrativos, porém, foi uma vista de Jerusalém com a crucificação
de Cristo, pintado por Bruno Pigelhein (1884-1894) em 1886, que junta o
monumentalismo pomposo da pintura de salão ao realismo «científico» que garante a
verdade da representação. Assim, a Zeitschrift für Bildende Kunst vê neste panorama o
«triunfo da arte moderna realista»:
Erst das Jahrhundert der exakten Wissenschaft, der Photographie und der Eisenbahnen
ermöglichte die umfassenden Studien, welche die wissenschaftliche Grundlage des
grossen Werkes bilden. Nur ein Künstler, der an Ort und Stelle die gründlichsten
landschaftlichen, volkstypischen und archäologischen Forschungen gemacht hatte,
vermochte den unzähligemale dargestellten Gegenstand in so durchaus neuer Weise
behandeln. (apud Oettermann 1980: 217)
Este realismo significa, no entanto, o fim do panorama. A crescente popularidade da
fotografia e do cinema, que começa a aparecer nas cidades alemãs a partir de 1895,
por um lado, e, por outro, a própria evolução das artes plásticas, que se afastam, com
o expressionismo e a pintura abstrata, cada vez mais do realismo tradicional, levam ao
encerramento dos panoramas.
Os panoramas actuais (Einsiedeln, Altotting e o Bauernkriegspanorama de Wemer
Tübke - pintado de 1976 a 1989 - em Bad Frankenhausen) que atraem milhões de
visitantes, oferecem ainda a possibilidade de viver, embora já num contexto cultural
completamente diferente, uma experiência visual que proporcionou a um século
inteiro a ilusão duma apropriação total da natureza e da história. O ambiente idílico e
o pathos, que dominam a pintura paisagística alemã no século XIX, integram-se sem
grandes problemas na sociedade burguesa; o triunfo económico e político desta
burguesia provoca reações artísticas que põem termo à estética da representação na
qual a mimesis da natureza tinha ainda um papel central.

4.6.2 Espaços naturais recriati vos no século XIX


A comercialização da representação da paisagem, tal como a integração da natureza
no espaço social, pressupõe a separação da cidade e do campo; à expulsão da natureza
das cidades corresponde o seu regresso como espaço verde («soziales Grün») (Konig
1996: 321). A cultura do passeio (Spaziergang) que se estabelece no fim do século
XVIII, exprime as normas burguesas como reprodução mítica duma totalidade que a
prática profissional e comercial nega cada vez mais. Enquanto os primeiros passeios
públicos são ainda instalados por iniciativa dos soberanos, os burgueses do século XIX
começam a criar Verschönerungsvereine e outras associações filantrópicas que
financiam novos espaços recriativos e terapêuticos. A abertura do Prater em Viena
(1766) e do Tiergarten em Berlim (1772) ao grande público é acompanhada pela
exigência burguesa de criar novos jardins públicos. A instalação destes jardins tomou-
se possível, no início do século
XIX, com a remoção dos muros e fortificações que circundavam as cidades.

Na base deste movimento para fora está a exploração das zonas rurais à volta das
cidades:
Die Aneignung der Heimat, der Spaziergang in die vertraute Umgebung, war für die
Zeit um 1800 das eigentlich Neue. Mit Ausflügen, Picknicks, Landpartien und
Spaziergängen wurde die Umgebung erkundet. (König 1996: 15)
Ao contrário do passeio aristocrático, que representava ainda a hierarquia da corte, o
Spaziergang do burguês integra os espaços naturais numa nova ética do trabalho e do
descanso correspondente. A estética da natureza completa e substitui a prática
religiosa por hábitos que consolidam a família (Sonntagsspaziergang) e a pretendida
harmonia de natureza interior e exterior.
Por outro lado, a cultura do passeio instituiu também uma diferenciação genérica de
papéis sociais e dos respetivos corpos (masculino e feminino); a vida nos espaços
naturais prolonga e diversifica os esquemas essenciais da sociedade burguesa que se
delimita tanto da aristocracia improdutiva como do povo inculto. O saneamento básico
das cidades, que se realiza no decorrer do século XIX, inclui também as zonas verdes
dentro e fora das cidades que se encontram ainda cheias de lixo, excrementos e
cadáveres animais. A natureza recriativa exige pureza e limpeza, a sua estética não
tolera os incómodos da civilização e ainda menos os resíduos (humanos e materiais) da
produção industrial.
A preferência pela natureza idílica explica-se também pelo facto de na Alemanha
nunca ter existido uma cultura urbana como em Roma ou, na modernidade, em Paris e
Londres. Formas reduzidas desta urbanidade moderna verificam-se unicamente em
Viena, capital do império Austro-Húngaro, e na Berlim do fim-de-século e dos anos
vinte. O que predomina numa Alemanha industrializada tardiamente é a pequena
cidade, o lugar duma vida burguesa pacata e idílica, tal como aparece na pintura do
Biedermeier e nos quadros ainda muito populares de Carl Spitzweg (1808-1885).
Esta ausência duma cultura urbana moderna traz consigo a valorização dos espaços
naturais, não só das florestas, mas também do pequeno quintal arrendado nos
arredores da cidade. Esta instituição tipicamente alemã, o Schrebergarten ou
Kleingarten que surge a partir de 1864, assim denominado em memória do médico e
pedagogo Daniel Gottlob Moritz Schreber (1808-1861 ), existe ainda em muitas regiões
da Alemanha; a sua estrutura característica ( cerca de 300m2) que junta o agradável
(flores, sombra, sossego, relva, um pequeno pavilhão em madeira) ao útil (legumes e
fruta, trabalho ao ar livre), é uma versão em miniatura do sonho burguês duma
harmonia total entre trabalho e natureza, espaço saudável e vida humana.
A parcela individual numa zona «verde pública» (que tem, desde 1919, o seu próprio
estatuto jurídico) recria em poucos metros quadrados um universo aparentemente
intacto e controlável. Mas, com a expansão demográfica e espacial das cidades e a
poluição do ambiente, o Schrebergarten torna-se numa forma obsoleta de evasão e a
progressiva industrialização dos lazeres cria outros cenários naturais que são
comercializáveis de uma forma muito mais rentável e eficaz.

4.7 A natureza compensatória


Em face do aspeto representativo do parque barroco, por um lado, e da função crítica
do conceito de natureza na ideologia burguesa, por outro, não é de admirar que o
jardim ocupe um lugar importante na discussão pública do século XVIII (cf. Wimmer
1989: 426 e segs.). Para os teóricos ingleses, o gardening torna-se uma forma de arte,
e os filósofos alemães acompanham esta valorização da Gartenkunst, que implica
igualmente uma nova visão global da natureza.
No poema «Der Spaziergang» de Friedrich Schiller, o viandante, «entflohn des
Zimmers Gefangnis/Und dem engen Gesprach», refugia-se numa sagrada e eterna
natureza que se apresenta nas suas mais variadas manifestações como uma
«Freundliche Schrift des Gesetzes, des menschenerhaltenden Gottes». Para Schiller, a
relação entre o ser humano e a natureza está sujeita à evolução histórica; a
«liberdade» da era burguesa permite não só uma nova apreciação estética da
natureza, mas implica também, para quem esquece as suas leis, o perigo do caos e da
anarquia social.
Numa perspetiva mais concreta, o filósofo Christian Cay Lorenz Hirschfeld (1742-1792),
cuja Theorie der Gartenkunst (5 vols., 1779-1785) marcou fortemente a estética da
natureza no fim do século XVIII, salienta a função compensatória do ambiente natural
da paisagem serena e agradável do Heeschenberg perto de Kiel:
Dieser Ort schien nach seinem Charakter und nach seinen Wirkungen vorzüglich von
der Natur zum Ruheplatz eines Geistes bestimmt, der von den grossen Geschäften der
Welt zurückkehrt zu der Einsamkeit des geliebten Landes, der seinen Abend im eigenen
ruhigen Schatten feiern will, unter dem Nachgenuss seiner öffentlichen Verdienste, und
unter der stillen Wonne eines wohltätigen Privatlebens. Kein Sturm der Höfe, kein Zwist
der Könige mehr; die ganze Welt scheint von hier aus besänftigt und befriedigt. Alle
Szenen umher winken ihm Ruhe und sanfte Erquickung zu. (Borchardt 1953: 15)

Integrada no ritmo da vida pública e privada, esta paisagem carece das características
do prospeto romântico: «Keine prachtige, der Bewunderung oder des Erstaunens
würdige Gegenstande, keine Gebürge, keine Felsen, keine von ihnen herabhangende
Walder, keine Aussichten auf die Unermesslichkeit des Meeres» (ib.: 14 ), mas a
solidão da floresta e o «silêncio da natureza que respira paz» e harmonia.
Nas descrições de Hirschfeld perfilam-se claramente as duas vertentes da função
compensatória da natureza, tal como prevalecem até hoje: o aspeto pitoresco,
grandioso e terrível dos fenómenos naturais que provoca emoções fortes e será, por
isso, reservado para ocasiões especiais, e a natureza amena e agradável cujos efeitos
benéficos são integrados na vida quotidiana.
Neste sentido, o arquiteto paisagista Leberecht Migge ( 1881-1935) exige a
participação ativa dos utentes na plantação do jardim (Garten-Dilettan-tismus) a fim de
compensar os efeitos nocivos e destrutivos da civilização moderna. O povo devia
aproveitar os jardins públicos também durante a semana - « Wir brauchen keine
Sonntagsgarten» (Wimmer 1989: 364) - e por isso ter o direito de pisar a relva, brincar
e dançar no jardim e tomar banho nos lagos.
A participação ativa na instalação e utilização do jardim está também no centro das
atividades das associações que se organizam depois da morte do já citado médico
Schreber. Mas estes pequenos quintais ou hortas fora da cidade, concebidos como
uma alternativa às formas pouco saudáveis da vida urbana, tomam-se, também, com a
revolução industrial e o crescimento acelerado dos centros urbanos, num meio de
evasão que opõe o trabalho profissional muitas vezes desgastante ao Feierabend
recriativo. Curiosamente, esta prática é retomada ultimamente pelas famílias turcas
nas zonas industriais do Ruhr que instalam em terrenos abandonados uma pequena
Heimat onde podem cultivar os legumes tradicionais e conviver com família e amigos
(cf. a reportagem «Türkische Garten>> de Frauke Hunfeld e Brigitte Kraemer no
Zeitmagazin de 18.4.1997, pp. 42-47): «Wir Türken sind ein Teil des Ruhrgebiets
geworden», diz um destes turcos que passaram mais tempo na Alemanha do que na
Turquia, «Deutschland hat uns verandert, und wir haben Deutschland verandert.
Meine Enkelkinder sollen hier gross werden» (ib.: 47).
A função compensatória do ambiente natural do Schrebergarten é ainda resultado
dum trabalho individual que transforma, planta e recolhe os frutos deste esforço. O
que se paga é a ocupação do terreno e não os efeitos benéficos do jardim. Recriar
estes efeitos num ambiente artificial já permite um acesso mais rápido às
compensações que a natureza pode oferecer, e isto a números elevados de pessoas
que podem ainda escolher entre cenários diferentes.
A simulação de ambientes naturais, porém, não é só uma manifestação do processo de
modernização, como afirma Grossklaus (1993: 14). As funções por ele apontadas
(anular a distância temporal e geográfica, transformar espaços longínquos e diferentes
em espaços interiores simultâneos) já se verificam em épocas pré-industriais; simular
um ambiente aparentemente natural é uma técnica cultural com uma longa tradição.
As fontes, grutas e lagos do parque barroco eram tão artificiais como as colinas e
riachos do parque inglês. As paisagens turísticas modernas, porém, obedeciam aos
imperativos duma indústria que formou e transformou cidades e regiões inteiras. Mas,
neste contexto, o carácter artificial do ambiente natural era ainda camuflado, a
transição impercetível. A redução considerável da superfície agrícola e florestal na
segunda metade deste século, a mecanização da agricultura e o baixo valor estético e
afetivo das monoculturas exigem novas formas de encenação.
Uma destas formas é o aproveitamento e a transformação da natureza concreta em
realidade mediática. Desde 1994, vários canais de televisão apresentam durante o dia
inteiro as «sete maravilhas do mundo», transportando também o público alemão para
os lugares mais espetaculares do planeta. Por outro lado, já está em elaboração, desde
1985, uma rede informática chamada Terravision, um projeto americano-alemão que
pretende nada mais nada menos do que criar um segundo mundo digitalizado que
permita viajar no tempo e no espaço, isto é, através das suas representações
arquivadas e preparadas para uma utilização interativa.
Mas também o turismo em zonas exóticas, antes exclusivamente reservadas a uma
clientela rica (Caraíbas, Pacífico, etc.), por um lado, e a instalação de grandes parques
de lazer (Freizeitparks) na Alemanha, por outro, visam um alargamento da oferta
paisagística. Assim o Grugapark de Essen, uma das instalações mais antigas deste
género, incluiu não só um jardim japonês, americano e mediterrânico, mas também
uma paisagem alpina com cascata.
A publicidade (cf. GrugaparkAktuell, 8.ª edição, Junho-Julho 1997, p. 4) insiste
particularmente na função compensatória deste conjunto:
Warum in die Feme schweifen, im Grugapark Essen erleben Sie eine Reise durch die
Welt. Mit exotischen Tieren und Pflanzen in einer der grossten Freizeitanlagen - eine in
Jahrzehnten gewachsene idyllische Parklandschaft für Ruhe und Erholung, Sport und
Spiel, Frohsinn und Abenteuer. Vergessen Sie den grauen Alltag. Gönnen Sie sich ein
paar schone Stunden.
Os novos parques que, por razões de clima e poluição industrial, são instalados em
grande parte em áreas cobertas, também incluem elementos tropicais e exóticos
(plantas, animais, temperatura adequada), estruturas de divertimento (parques
aquáticos, instalações desportivas, etc.) e de consumo (cafés, bares, restaurantes,
supermercados) e recriam, assim, um conjunto harmonioso de «natureza», férias e
consumo.
Enquanto a multiplicação dos canais de televisão e a evolução rápida da realidade
virtual, que oferecem não só desporto, música e informação, mas também viagens e
descobertas, limitam o espectador a uma realidade mediática integrada no ambiente
familiar, a excursão para os novos parques tem ainda uma dimensão concreta e
sensual que explica o êxito destes empreendimentos. A fórmula para estas «novas»
experiências é a do Erlebnistourismus (e, na sua variante mais exclusiva, do Abenteuer-
und Risikotourismus) que deve proporcionar o que a monotonia da vida quotidiana já
não fornece. O «Erlebnis», a experiência da diferença e da alteridade é, porém,
reduzido à disponibilidade de elementos estandardizados e a uma regularidade que
limita também o valor afetivo dum ambiente acessível para toda a gente, a horas
certas e preço fixo.
Por outro lado, o novo Freizeitpark é um fenómeno internacional (nos países
industrializados) que prescinde largamente de componentes regionais e nacionais em
favor de ambientes estereotipados na sequência da globalização da civilização
ocidental. Esta uniformização da natureza simulada resulta, sem dúvida, como
Grossklaus salienta ( 1993), da perda de espaços naturais e da destruição geral do
ambiente, mas a desconexão atual de natureza e identidade nacional, cuja
identificação teve tantos efeitos duvidosos na Alemanha, poderia ter também
consequências positivas. Além de proporcionar descanso e divertimento, estes
parques podem transformar-se em lugares de encontro e convívio que permitam
também a participação em manifestações culturais, sem as barreiras sociais que
limitam o público das instituições tradicionais como a ópera e o teatro. A integração de
ambientes naturais e culturais pode favorecer novas formas de interação social e, até,
uma relação diferente com o espaço a que se chama Heimat.
A redefinição deste conceito, isento das antigas conotações ideológicas, já se verifica
na literatura e crítica (a nova Heimatliteratur, sobretudo na Áustria e na Suíça) e no
cinema. Um papel pioneiro nesta valorização da Heimat no contexto da história do
quotidiano e da cultura popular teve o filme Heimat de Edgar Reitz que, rodado de
1981 a 1984, apresenta em mais de 15 horas o mundo limitado da terra natal e, ao
mesmo tempo, a instrumentalização e a destruição deste ambiente idílico e dos
respetivos sentimentos. Nesta perspetiva, Reitz cita o filme Heimat (1938) de Carl
Froelich (1875-1953), um cineasta ao serviço do nacional-socialismo, que reivindicou o
conceito para a ideologia fascista. Reitz remete, pelo contrário, para a dimensão
utópica de um mundo que, tal como a paisagem romântica, não deixa de ter uma
função crítica e compensatória na atual comercialização global da vida social e cultural.

CONCLUSÃO:
O primeiro dos textos selecionados acima (Cap. III.3) constitui grande parte do estudo
do Tema 3, que trata da descrição mais detalhada do que se começa por definir e
apelidar de "contracultura burguesa" (p.171). O texto vai descrevendo fatores
considerados vitais para caracterizar esta cultura burguesa, de que todos somos hoje
ainda herdeiros e beneficiários, digamos. O atributo de "contra" refere-se ao facto de a
burguesia no século XVIII (e também XIX) se ter autodeterminado socialmente,
constituindo um contrapoder ao poder instituído, este último de raiz nobre /
aristocrática. Assim, o manual de Opitz trata, antes de mais, da profunda alteração que
se verifica no modo de se ver o tempo e o espaço (pp.171-173), continuando depois
com a explicação aturada dos conceitos-chave para entendermos a sociedade
moderna e contemporânea: "público" e "privado".
Na verdade, o que verificamos a partir do século XVIII um pouco por toda a Europa é
uma espécie de mudança de perspetiva, de olhar, em relação à sociedade — esta
passa do mundo de representação codificado da sociedade aristocrática ao mundo da
intimidade privada da sociedade burguesa. Poderíamos fazer uma longa tabela de
comparação entre os espaços e códigos comportamentais burgueses e aristocráticos
para entender melhor esta alteração profunda. Apesar de haver sempre uma zona
nebulosa, onde os códigos se confundem e são comuns, há de facto diferenças
profundas. O mundo burguês divide-se entre o público e o privado, sendo este último
de algum modo um reflexo do primeiro, se bem que, para o homem burguês de família
patriarcal, o mundo doméstico privado seja também o seu refúgio face ao espaço
público, onde desempenha papéis sociais codificados. O mundo do trabalho (público) e
o mundo da família (privado) são outro modo de refletir esta dupla valência da vida
burguesa. Esta longa descrição bem detalhada entre público e privado decorre entre as
páginas 173 e 184 do manual.
Depois o texto parte para a descrição, também detalhada, dos papéis sociais (pp.185-
192). Aqui explica-se mais em detalhe o espaço do trabalho e o da família, sempre
pensando que as categorias do tempo e do espaço que são descritas de forma mais
teórica nas pp.171-173 têm aqui um reflexo prático. Numa outra vertente destes
papéis sociais encontramos, finalmente, alguns espaços importantes da vida burguesa
pública: as sociedades secretas, os teatros e concertos… (pp.192-195).
Entre as pp.195-197 tece-se uma conclusão que é muito importante para fecharmos o
estudo do espaço público.
O segundo texto (Cap. III.4.6, pp.213-221) constitui uma descrição dos espaços
públicos de entretenimento da burguesia, no século XVIII e XIX. O papel da natureza, o
Panorama e o passeio público são os espaços de eleição aqui descritos, constituindo
um complemento significativo à explicação da organização da vida burguesa no século
XVIII-XIX.

ATIVIDADES
1 - Leia o capítulo III.3. do Manual considerando as indicações de leitura que se
seguem:
 Isole os traços que definem o chamado "espaço público", os seus locais de
manifestação e agentes envolvidos, por contraste ao espaço representativo da
corte (pp.173-184 do Manual)

 Que reorganização dos papéis sociais e dos espaços se verifica ao longo do


século XVIII, com o emergir da contracultura burguesa? (pp.185-192 do
Manual)

 Qual a importância das sociedades secretas e do espaço público da música e do


teatro no firmar de uma contracultura burguesa? (pp.192-197 do Manual)
2 - Leia o capítulo III.4.6. do Manual, tendo em mente a resposta à pergunta que se
segue:
• Que papel tem a natureza no plano de afirmação da cultura burguesa nos
séculos XVIII e XIX? (pp.213-221 do Manual)

2.2.2. Segundo conjunto de textos de leitura obrigatória


As leituras que vamos fazer de seguida, depois dos textos do manual de Opitz, são uma
vez mais fontes documentais, ou seja, fontes de época, que requerem um tipo de
leitura algo diverso. Esta leitura tem como objetivo complementar o estudo teórico do
manual de Optiz, extraindo, se possível, os elementos concretos que nos levam a
adensar e a compreender o que estudámos mais em teoria através de Optiz.
Leia os textos seguintes, na ordem em que se encontram alinhados: Gottsched, Johann
Christoph, “A felicidade burguesa da virtude e do bom senso!” (1727-1728), in
Literatura Alemã. Textos e Contextos (1700-1900), vol.1, Lisboa: Ed. Presença, 1989,
pp.67- 70.
Breve explicação e orientações de leitura e estudo: Johann Christoph Gottsched foi
uma figura importante na consolidação da educação burguesa, se assim podemos
falar, na medida em que publicou variadíssimos textos e artigos em revistas que
tinham como principal objetivo a formação da cultura burguesa. O texto que damos a
ler é disso um testemunho irrefutável: constitui um verdadeiro manual de
procedimentos para se atingir o que constitui uma das maiores crenças da sociedade
burguesa do século XVIII — a felicidade. A propósito deste objetivo, o texto dá-nos
matéria de sobra sobre a cultura burguesa, desde os valores morais, passando pela
autoridade da família burguesa, os hábitos de leitura, sempre sob o jugo da Razão e da
Moral.
Propomos que tente isolar os elementos que caracterizam os valores burgueses, os
hábitos de uma vida que conduz à verdadeira felicidade.

Krünitz, Johann Georg (ed.), “Família patriarcal” (1781) [entrada de Oeconomische


Encyclopädie], in Literatura Alemã. Textos e Contextos (1700-1900), vol.1, Lisboa: Ed.
Presença, 1989, pp.71-72.
Breve explicação e orientações de leitura e estudo: Temos aqui o testemunho do
modelo de vida e de família burguesa. O texto é suficientemente claro para
entendermos os papéis sociais que são atribuídos a cada elemento da família
burguesa, sendo recomendável que extraia a descrição dos mesmos de forma a
entender como no século XVIII se modelou a cultura familiar burguesa.
Schiller, Friedrich, “A distribuição de papéis na sociedade burguesa - Das Lied von der
Glocke!" (1799), in Literatura Alemã. Textos e Contextos (1700-1900), vol.1, Lisboa: Ed.
Presença, 1989, pp.73-76.
Breve explicação e orientações de leitura e estudo: O poeta Friedrich Schiller,
sobejamente conhecido na história literária alemã, não fi só poeta, nem filósofo, mas
uma figura matricial da cultura alemã do século XVIII-XIX. Bastará, a título de exemplo,
pensarmos que é o autor do "Hino da Alegria" que foi adotado por Beethoven no final
da sua 9ª Sinfonia, e o seu nome é dado ao maior arquivo literário alemão, a Sociedade
Schiller, sediado na sua terra-natal, Marbach. O que propomos que faça com a leitura
deste recurso é encontrar os elementos que descrevem a valorização das pequenas
coisas do quotidiano burguês: o valor do trabalho (Pai), o valor da economia (Mãe) e o
valor de uma tradição (filhos). Este pequeno mundo microcósmico descrito no poema
constitui uma espécie de reflexo do grande mundo. O texto de João Barrento que está
na nota de rodapé da página 73 é suficiente para entendermos o valor testemunhal
deste poema de Schiller para a consolidação do estudo deste Tema 3.

2.3. Apresentação dos recursos de leitura facultati va


Os 3 textos que disponibilizamos no espaço do Tema 3 de Sociedade e Cultura Alemãs I
ajudam a consolidar o estudo deste tema (v. recursos, atrás neste documento).
O poema de Bürger foca precisamente o conflito, ou luta de poder, entre a sociedade
burguesa e o poder político nas mãos do aristocrata.
O texto de Rebmann vai um pouco no mesmo sentido, apontando para uma sociedade
desigual, pautando a sua crítica uma vez mais pelo valor da felicidade. Finalmente, o
texto de Knigge foca o confronto entre os direitos instituídos pelo poder dos príncipes
e a voz popular, o seu direito de escolher quem deve governar, dando voz às
reivindicações fundamentais da Revolução Francesa.

3. Exercícios formati vos de elaboração facultati va


a) Elabore o comentário proposto no final do capítulo do Manual (p.197). Para aceder
ao texto de Kant, "Was ist Aufklärung", poderá descarregá-lo na Sala de Aula Virtual
(Tema 2), em formato PDF [Kant.pdf]. b) Baseando-se nos textos de leitura obrigatória
(Gottsched, Krunitz e Schiller) elabore um retrato da família burguesa do século XVIII,
suas características e valores.

EFOLIO GLOBAL
Parte I
Considere o seguinte excerto, por Lessing, sobre «A educação
do género humano»:
«§ 81. Acaso o género humano nunca haverá de chegar ao grau
supremo da razão e da pureza? Nunca?
§ 82. Nunca? Não permitas, Senhor na Tua infinita Bondade, que eu
pense semelhante blasfémia! - A educação tem o seu objectivo: não
menor no género humano do que no homem individual. O que é
educado, é educado para alguma coisa.
§ 83. As perspectivas lisonjeiras que o educador abre ao jovem: a
honra, o bem-estar, que se lhe apresentam - o que são mais do que
meios de o educar a ser homem, um homem que seja capaz de fazer o
seu dever, mesmo que estas perspectivas de honra e de bem-estar se
não concretizem.
§ 84. Estes são os objectivos que a educação humana deve atingir: e a
divina não os alcançaria? O que a arte consegue com cada um não
haveria de conseguir a Natureza com todos? Blasfémia! Blasfémia!
§ 85. Não. Virá, virá certamente o tempo da perfeição, em que o
homem, quanto mais a sua razão se sentir convicta de um futuro
sempre melhor, menos terá necessidade de solicitar a esse futuro como
que motivações para as suas acções: em que fará o bem porque é o
bem e não porque lhe são atribuídas recompensas arbitrárias que
outrora serviram simplesmente para fixar e fortalecer o seu olhar
vacilante, de modo a que reconhecesse as recompensas interiores,
melhores.»

Responda às seguintes questões, não excedendo o limite de


150 palavras em cada pergunta:
1. Descreva como vem expressa, no excerto acima, a dimensão
individual e colectiva da educação.
2. Descreva o enquadramento moral que Lessing atribui à
educação humana no excerto acima.

Parte II
Responda de forma aprofundada e rigorosa à seguinte
questão, não excedendo o limite máximo de uma página e
meia da folha de resolução:
Leia atentamente o excerto que se segue e que conhece dos
materiais que leu a propósito do estudo da cultura burguesa do
século XVIII na Alemanha:
«De acordo com a própria natureza das coisas, todo o pai de família
deve antes do mais ter autoridade suficiente para impor à sua mulher
e aos seus filhos o sentido do trabalho, da ordem e da poupança.
Estas são as três qualidades fundamentais de qualquer casa bem
organizada, e sem elas até o mais esforçado chefe de família acabará
por se arruinar. E elas são também aquelas que melhor contribuem
para o bem comum. A ordem e a poupança são o suporte das famílias
e a razão do seu bem-estar, coisa a que um Estado nunca pode ficar
indiferente; mas o trabalho dos seus habitantes é a verdadeira base da
riqueza de um país.» (J. G. Krünitz)
Numa reflexão aprofundada sobre as palavras de Krünitz, explique
em que medida são o reflexo da cultura burguesa alemã do século
XVIII.
O e-Fólio Global de Sociedade e Cultura Alemãs I propõe responder de forma
directa e concisa a duas questões, a partir da leitura de um excerto de Lessing, e
num segundo momento da prova pede uma reflexão mais aprofundada sobre a
cultura burguesa alemã do século XVIII a partir da leitura de um texto de Krünitz.
Em relação à primeira das duas perguntas sobre o texto de Lessing, o autor
começa por tecer uma relação de afinidade entre o desígnio de perfeição e o que
ele chama de "grau supremo da razão e da pureza", numa perspectiva
esperançada de se caminhar para um "futuro sempre melhor", o que por si só
reflecte o optimismo iluminista e a crença de que o homem de facto poderia
ambicionar a perfeição, ou seja, alcançar a felicidade. No excerto, este desígnio
de educar para alcançar a perfeição é necessário ao nível individual (nos
momentos em que Lessing fala "no homem individual", no "homem capaz de fazer
o seu dever", e na dimensão "interior" deste processo; mas também é necessário
ao nível colectivo, como resultado da educação individual, e no parágrafo 82 isso
é expresso de forma literal – é tão necessário ao nível individual como colectivo,
quando se fala do "género humano". Na verdade, Lessing tece um reflexo entre as
duas dimensões, defendendo-se que a educação do indivíduo serve a
comunidade, e vice-versa. Em relação à segunda questão, de facto, há a
expressão de um determinado quadro moral, ético, que molda as ideias de
Lessing sobre a educação do género humano. Pois não se concebe alcançar a
perfeição sem uma firme conduta moral, numa mesma perspectiva de reflexo
entre o indivíduo e a sociedade/comunidade em que vive. E esta conduta moral
vem expressa sobretudo no parágrafo 85, mas já no parágrafo 83 se indicia um
dever no agir humano que é independente das recompensas que o possam
premiar individualmente, favorecendo acima de tudo o bem comum; no parágrafo
85 afirma-se o valor do bem por ele mesmo, por si próprio, como objectivo
individual e colectivo, em linha com o desejo de se alcançar a perfeição. A
educação, ao alcance de todos, será o meio principal para se concretizar este
desígnio.
No que diz respeito à pergunta de desenvolvimento, a citação de Krünitz
pretende somente inspirar um comentário que possa identificar os vários aspectos
inerentes à organização da cultura burguesa nas duas esferas da sua
concretização: o espaço público, onde o "trabalho" do cidadão contribui para o
país e para o "bem comum", e o espaço privado, onde a família burguesa como
que reflecte o investimento no bem comum, fomentando os valores de base para
uma sociedade que se idealiza como justa e sediada no reconhecimento do valor
do indivíduo, rumo à promessa de felicidade - são esses valores os do "trabalho,
ordem e poupança". Aspectos fundamentais como a "autoridade" e a ordem
também estão aqui sublinhadas, podendo desenvolver-se o comentário no sentido
da racionalidade burguesa, onde o tempo e o espaço são devidamente definidos e
espartilhados, ao serviço do progresso. Há nas palavras de Krünitz não só a
confirmação da cisão entre o espaço do trabalho e da família - o início de uma
era onde o espaço doméstico é, por excelência o espaço do consumo, e o local de
trabalho por excelência o espaço da produção; a dupla ética burguesa, que no
trabalho se rege pela lei do economicamente mais forte, e em família se dedica à
reflexão humanista, ao repouso e reencontro de si mesmo, ao recolhimento e à
preservação dos afectos e do seu valor compensatório face à pressão do trabalho.
Por último, sublinhe-se que a citação de Krünitz enfatiza a importância da
conduta individual para a colectividade, a relação de reciprocidade entre o
Estado e o indivíduo, cada um dos indivíduos que o fazem.
De um modo geral os resultados desta turma ficaram aquém da média geral dos
e-Fólios; ou seja, muitos de Vós baixaram um pouco na qualidade do
desempenho, e um dos motivos principais é o facto de não terem percebido o que
se pedia, pese embora demonstrarem o estudo que fizeram das matérias, facto
que é sempre valorizado; mas infelizmente não chega para obter um resultado
mais positivo, faltaria responder efectivamente ao que se pede, para além de
identificar o tema sob avaliação. Portanto, a turma em geral teve problemas de
compreensão do que se pedia nas perguntas, que resultaram em respostas que
muitas vezes se desviaram da tarefa proposta.
Em relação à primeira parte da prova, muitos de Vós ocnseguiram isolar bem as
dimensões individual e colectiva da educação, em particular a relação refelxiva
entre ambas, fundamental para se entender as ideias expressas ao longo do
excerto; Lessing, ao focar a educação do indivíduo, tem na linha do horizonte do
seu texto o bem comum colectivo, da comunidade, e não está preocupado com o
proveito individual. Isto, porque racionalmente se concebe que, estando a
sociedade bem servida pelos seus cidadãos, cada indivíduo estará, certamente,
bem enquadrado e reconhecido no seu papel particular. E agora voltando-nos
mais para a segunda resposta, a educação orientada pelo desígnio "da razão e da
pureza" será, por conseguinte, o meio fundamental para se evitar o que Lessing
diz ser o "olhar vacilante" dos que procuram as "motivações" ou "recompensas
arbitrárias" para a sua acção — é aqui que reside a concepção moral expressa no
excerto. Falar da tolerância religiosa de Lessing, ou das suas perspectivas dentro
do campo da religião, não só não é claro no excerto citado, como é uma
justificação secundária para se identificar, no excerto, o enquadramento moral
ou ético expresso. Isso desviou um pouco o olhar do que se pedia na questão.
Em relação à pergunta de desenvolvimento, é importante que se perceba que o
excerto de Krünitz não inspira somente que se reflicta sobre os papéis sociais na
ordem burguesa do século XVIII; muitos de vós votou-se a falar da desigualdade
entre homem e mulher e do seu reflexo ao nível social (muito menos
desenvolvido!), a partir da família patriarcal que se poderá identificar no
excerto, desenvolvendo o raciocínio para o capitalismo eventualmente professo
pela burguesia de Setecentos (sendo que, em bom rigor, não podemos falar de
"capitalismo", mas sim de "liberalismo", conceito muito mais direccionado em
termos históricos e oportuno, mas nem é bem disso que se pede para se
desenvolver nesta questão); ora, esta realidade, se bem que encontra as suas
sementes no século XVIII, não é, por si só, o século XVIII burguês de que Krünitz
nos fala no excerto. Há mais detalhes que inspirariam uma reflexão mais rigorosa
e detalhada sobre o que consitui a cultura basilar burguesa do século XVIII na
Alemanha, muito para além da desiguladade sócio-económica e dentro do seio da
família burguesa. Aqui também houve algumas confusões, levando o tema da
desiguldade de género ao tema da sdesigualdade social, em que certas mulheres
(não da camada burguesa…) se vêem obrigadas a sair de casa para trabalhar, por
sobrevivência – esta questão, por exemplo, não vem directamente chamada à
reflexão proposta na pergunta. E, como esta, houve mais confusões no
tratamento do tema, muitas vezes de costas voltadas para o excerto de Krünitz.
Os exercícios pedidos neste e-Fólio Global avaliam dois aspectos no desempenho
dos estudantes: um aspecto relacionado com o efectivo conhecimento da
matéria, o domínio dos conceitos envolvidos, e outro aspecto relacionado com as
competências de leitura, de exposição por escrito, de aplicação dos
conhecimentos; valorizo sempre os conhecimentos demonstrados, mas expô-los
por si mesmos, sem olhar ao que se pede é o mesmo que estarem a escrever
indiscriminadamente sobre o que quer que seja, sem mostrar que sabem aplicar
os conhecimentos que adquiriram com o estudo das matérias, como se estivessem
de costas voltadas para os excertos citados nos enunciados. Os excertos de
Lessing e Krünitz não estão somente a ilustrar as perguntas, mas, pelo contrário,
as perguntas referem-se à leitura dos excertos, os excertos são para serem
cuidadosamente lidos e efectivamente utilizados no corpo de cada uma das
respostas, não podem ser ignorados. Muitos de Vós falaram de cor e por vezes de
modo confuso sobre os assuntos, nem sequer olharam para as citações, nem
retiraram delas a matéria útil para elaborarem as vossas respostas. Tal
aproximação penhora, desde logo, a avaliação do aspecto das competências.

Responda às seguintes perguntas, não excedendo, em cada uma, o limite de 200


palavras:
1. Das várias componentes que constituem o moderno conceito de nação, qual a que
considera mais importante? Justifique.
2. Descreva como se gera o nacionalismo e quais as suas principais características.
3. Explique como os conceitos de nação e de nacionalismo são próprios do espaço
europeu
1. A que considero mais importante é a língua. Na construção de uma identidade
nacional alemã, a língua, o elemento comum a um grupo de indivíduos que fazem
parte de uma nação (povo), assume um papel muito importante, como fator de união
e unidade da nação. Segundo Peter Alter, a linguagem é o sinal externo e visível de
todas as características que distinguem uma nação da outra. É o critério mais
importante que prova a existência de uma nação e estabelece o direito ao próprio
estado.
Ainda que os indivíduos pertencentes a uma nação não se encontrem no
mesmo território, a língua comum a estes, identifica-os como pertencendo a
determinada nação e distingue-os de outras nações. Antonio de Nebrija, ao escrever a
primeira Gramática da Língua Castelhana (encomendada pela Rainha Isabel, a
Católica), teve o cuidado em fixar e normalizar o castelhano como língua franca da
nação espanhola. Ele vai ainda mais longe ao afirmar que a língua sempre foi
companheira do império. A língua não é apenas um fator de união e unidade nacional,
mas também de progresso e desenvolvimento da Nação, do Estado e do Império.

2. O nacionalismo gera-se a partir da ideologização do conceito de nação. Ou seja, um


grupo de indivíduos com uma língua e passado comuns, que compartilham um certo
território, e que têm uma visão de um futuro em comum e que acreditam que esse
futuro será melhor se se mantiverem unidos, e que considera a nação a que pertence,
melhor que as demais nações. As suas principais características são a flexibilidade e a
longevidade. A flexibilidade na medida em que é intrinsecamente paradoxal, quando
por um lado uniformiza a nação através da língua e da história comuns, e por outro,
valoriza o direito à diferença e autodeterminação dos povos.
E a longevidade, na medida em que o conceito em questão se constitui como uma
espécie de «grau zero» de todas as outras ideologias (e utopias) políticas referenciadas
como propostas de futuros caminhos para uma sociedade unida ao nível da língua e da
história.

3. O conceito de nação é um conceito essencialmente europeu. Segundo Ortega y


Gasset, toda a consciência de nacionalidade supõe outras nacionalidades ao seu redor,
que se formaram ao mesmo tempo que a sua e com as quais convive em estado de
permanente comparação. Este estado de permanente comparação é especialmente
favorecido na Europa, um espaço comum de convívio marcado pelas diversidades
linguísticas, históricas, religiosas e étnicas.
Também o conceito de nacionalismo, foi nascido e criado na Europa, com a
expansão europeia, em finais do século XV e até ao século XVIII. Expandiu-se por todo
o mundo, deixando marcas históricas e políticas reconhecidas ainda hoje.

BIBLIOGRAFIA
OPITZ, Alfred (Coord.) (1998), Sociedade e Cultura Alemãs, Lisboa, Universidade
Aberta. (pp.111-131)

(Professora) O e-Fólio A consiste em três questões relativamente concretas, cujas


soluções se encontram no Manual de Alfred Opitz et. al., no contexto da fixação
e discussão dos conceito de nação e de nacionalismo (pp.111ss.). As respostas
envolvem as competências de leitura e compreensão dos materiais de estudo
sobre determinadas temáticas.
A primeira resposta pede uma opinião fundamentada, não simplesmente as várias
componentes que constituem o conceito moderno de nação. De entre estas
componentes estão: o povo, a língua, os usos e costumes, o território, e o
passado histórico comuns, o seu papel na definição do Estado, a sua
ideologização e os factores de união / unidade para a consolidação do conceito
de nação. A segunda resposta implica um exercício de súmula sobre o que se leu
no Manual de Opitz sobre como se gera o nacionalismo e quais as suas
características. Basicamente o que está em causa na resposta é considerar que i)
o nacionalismo decorre de um processo de ideologização dos componentes que
constituem o conceito de nação, ou a ideia de nação (por exemplo, tornar a
língua ou o passado histórico factores constitutivos de uma ideologia política); e
que ii) as características da flexibilidade e da longevidade garantem que o
nacionalismo seja o que o manual descreve como "princípio consensualmente
universal", aplicável a qualquer sociedade. Na terceira e última resposta espera-
se uma resposta muito simples: o facto de a Europa conviver há séculos com a
diversidade linguística, histórica, religiosa e étnica explica como os conceitos de
nação e nacionalismo são próprios do espaço europeu.

Na primeira questão, a fundamentação que alguns de Vós deram para a escolha


de um dos componentes que faz o moderno conceito de "nação" havia que ter
cuidado a filtrar a informação que o manual nos dá a bem da argumentação; ou
seja, por muito que aprecie uma opinião pessoal, a questão recai completamente
sobre a informação que o manual nos dá sobre estes temas, e havia que usar essa
informação para responder com a vossa opinião pessoal; é uma opinião informada
conceptualmente o que se está a avaliar aqui, e não simplesmente a opinião
pessoal, baseada numa perspectiva de senso comum e ignorando o que se
aprendeu no manual. É óbvio que historicamente a língua tem sido um
componente vital para garantir a coesão nacional, tendo sido usada no passado
para a transformação dos Estados em impérios. Mas usar este argumento sem o
circunscrever historicamente é deturpar a informação do manual, dando a
impressão de que hoje seria, ainda, possível através da língua consolidar impérios
ou grande Estados… sabemos, além do mais, da realidade complexa na Europa em
algumas das suas fronteiras, ou dentro das fronteiras de um mesmo país, como
por exemplo em Espanha, ou em Chipre, ou no Reino Unido, para dar alguns
exemplos mais ou menos paradigmáticos destas questões hoje em dia; mas a
própria Alemanha é um exemplo sobejamente paradigmático de todas estas
questões. Não se pode considerar que a Língua tem a vantagem de consolidar um
império… porque hoje em dia não se vê com bons olhos a ambição de se criar
grandes impérios… há que ler com cuidado a matéria que o manual descreve,
para não cometer alguns lapsos de leitura e incorrer em equívocos indesejáveis.
Não podemos dispensar a história de todos estes componentes, a sua maior ou
menor importância em alguns momentos do passado europeu, mas é importante
circunscrever historicamente alguns dos factos associados a estes componentes,
sejam eles a língua, o território, ou o passado (história) comum; tal não significa
que se reorte o histprial de cada um dos componentes, pelo contrário! Não é isso
o que se pede aqui para se fazer. Também é importante que se diga que não era
obrigatório escolher-se um só destes componentes, mas sim fundamentar a
escolha, ou não, de um sobre os outros. E apreciei os casos em que uma
fundamentação baseada na experiência pessoal foi dada, mas não seria o
bastante, pois é importante mostrar que se domina bem e se faz bom uso de
todos os conceitos envolvidos nesta matéria. A segunda questão não pede a
definição de nacionalismo, mas sim como se gera o nacionalismo e quais as suas
características fundamentais. Alguns de Vós demoraram-se a definir o
nacionalismo, o que dispersou totalmente o foco da questão, infelizmente. Na
última questão de um modo geral não houve grandes dificuldades na turma a
responder.
Efolio B - Trabalho a desenvolver
Releia com atenção os excertos abaixo, retirados de um texto de Friedrich Schiller dado
a ler no Tema 2 de SCA I, "Sobre a educação estética do homem (oitava carta)", de
1795: SOBRE A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DO HOMEM (OITAVA CARTA)
A razão realizou o que lhe cabe realizar quando encontra e formula a lei; executá-la é
obra da vontade corajosa e do sentimento vivo. Se a verdade há-de atingir a vitória na
luta com forças antagónicas, terá ela própria de transformar-se primeiro em força e
constituir um instinto como seu representante no mundo dos fenómenos: pois que os
instintos são as únicas forças motoras no mundo sensível. Se ela até agora provou tão
pouco a sua força vitoriosa, isso não está na razão, que não foi capaz de a revelar, mas
no coração, que se fechou a ela, no instinto, que não actuou em favor dela. […] Dado
que a explicação não está nas coisas, tem por conseguinte de existir algo nos espíritos
dos homens que se oponha à aceitação da verdade, por mais que ela brilhe, e a adopção
da mesma, por mais convincente que tenha sido. Um velho sábio sentiu-o; está contido
naquela expressão tão significativa: sapere aude. Ousa ser sábio! É necessária a energia
da coragem para combater os obstáculos que tanto a preguiça da natureza como a
cobardia do coração opõem ao ensinamento. […] Não basta assim que todo o
esclarecimento da razão só mereça respeito na medida em que reflui no carácter; de
certo modo, ele brota também do carácter, porque o caminho para a cabeça tem de ser
aberto através do coração. A exigência mais premente da nossa época é a formação da
capacidade de sentir, não só porque se transforma num meio de tornar actuante um
melhor conhecimento da vida, mas também porque desperta para uma melhoria desse
conhecimento. Faça um comentário a estes excertos, isolando a sua mensagem e a
importância da mesma para a nossa compreensão do que foi a época das Luzes.
O enunciado do e-Fólio B propõe uma tarefa única de elaboração de um
comentário crítico a partir de um excerto de Friedrich Schiller, retirado das suas
cartas "sobre a educação estética do homem", onde se possa descrever a
mensagem desse mesmo excerto e a sua importância para a nossa compreensão
do que foi a época das Luzes. Mas desta vez há algumas recomendações de ordem
mais prática no encunciado do e-Fólio, que têm o intuito único de clarificar o que
está em causa fazer-se neste e-Fólio, para não haver malentendidos. Estas
recomendações apontam para os passos fundamentais de uma leitura atenta do
excerto de Schiller, com a identificação de tudo o que nele possa haver que
mereça atenção para o isolamento da mensagem nele expressa, com um exercício
de exposição dessa mesma mensagem, e depois com um exercício de cruzamento
da mensagem de Schiller com uma secção do manual de Opitz onde se
introduzem alguns conceitos e ideias de base sobre o Iluminismo.
O excerto de Schiller apresenta um conjunto de ideias que se ligam a duas
palavras-chave do século das Luzes: razão e sentimento. Schiller defende aqui a
ideia matricial de Kant, citada de resto na expressão "sapere aude!", sobre a
importância vital de o indivíduo do século XVIII se autodeterminar pelo uso da
razão. Mas acrescenta uma leitura sua sobre a resistência que este processo
emancipatório tem conhecido, ou seja, sobre o facto de ainda haver muito
trabalho a fazer a favor do esclarecimento generalizado, da educação do homem
no século XVIII. Schiller defende a componente do sentimento como vital a este
processo, isolado em palavras do texto como "coração", "energia da coragem",
"carácter", "capacidade de  sentir". Assim, Schiller defende que a razão, por si só,
não basta para conseguir realizar o desígnio da educação, contido na expressão
kantiana "sapere aude!". O manual de Optiz fala deste aspecto, isolando duas
correntes que na época foram importantes para se entender que o processo de
emancipação social e cultural do cidadão (do burguês) não se deve somente ao
uso da razão e à racionalização, mas também à importância de se reconhecer no
sentimento a energia de uma vontade de saber que não se encontra na razão, por
si só, a favor de uma formação íntegra e completa do indivíduo no século XVIII: o
sentimentalismo e o sensualismo.
De um modo geral todos observaram os conselhs que vinham descritos no
enunciado, mas houve quem tenha dispersado a sua atenção por outros recursos
e, com isso, tenham também feito uma gestão menos feliz dos conteúdos na
resposta, dando um espaço demasiado magro ao texto de Schiller, que era de
facto o centro da resposta. Alguns de Vós também cederam à tentação de
descrever o que foi e como se define e quais os representantes do Iluminismo na
Europa, o que levou a respostas muito teóricas e afstadas da tarefa pedida, que
se centrava numa leitura atenta do excerto de Schiller e no cruzamento das
ideias aí expressas com os princípios basilares do Iluminismo. Há um pequeno
mal-entendido que convém aqui esclarecer: o Iluminismo não é um movimento de
ideias total e exclusivamente centradas no uso e defesa da Razão, ignorando o
Sentimento ou a Sensibilidade. Não, e Schiller é um dos representantes deste
movimento de ideias, simplesmente tem a sua perspectiva, como Rousseau,
Locke, Kant, Montesquieu, Berkeley, Humboldt, Herder, entre tantos outros
nomes, terão as suas. O Iluminismo é feito de todas estes nomes e as suas ideias
não são estanques ou definitivas, mas são a matéria diversidifcada com que se faz
o Iluminismo. Schiller defende realmente um equilíbrio de forças entre Razão e
Sentimento, num tempo em que se verifica que, como ele defende, a Razão por
ela mesma não terá a força suficiente para operar a transformação de
mentalidades e garantir a formação completa do ser humano. Neste aspecto,
poderá pensar diferente de Kant, cujas ideias ele discute na obra de onde são
oriundos os excertos citados no enunciado do e-Fólio; e poderá ter assumido uma
posição crítica face à violência gratuita da Revolução Francesa, pois esse é o sinal
de que quando seguimos desenfreadamente os instintos sentimentais podemos vir
a arrepender-nos das nossas acções imponderadas. As cartas de Schiller são uma
proposta de equilíbrio entre o bom uso da Razão e o uso temporado do
Sentimento, mas esta questão não é o centro da resposta. Muitos de Vós resolveu
falar das críticas a Kant e à Revolução Francesa, pois porventura leram
informações sobre esta obra de Schuiller; mas isso não era o foco da questão
neste e-Fólio; o foco era lerem com atenção a mensagem e isolarem as ideias
destes excertos citados no enunciado (e só estes!) e tentarem ver como é que são
um reflexo do espírito iluminista (porque o são, definitivamente). Se se dominar
a matéria que se estudou nesta unidade curricular, não há muitas dúvidas sobre
que caminho se tem de fazer para cumprir em pleno com o que é pedido neste e-
Fólio. Com a matéria menos estudada podemos recorrer a soluções que só nos
afastam de um bom desempenho.

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