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CONTRATO DE COMODATO

Encontra-se regulado nos artigos 1129º e ss. o contrato de comodato, que corresponde ao
empréstimo de coisas determinadas. O comodato diferencia-se da locação por lhe faltar o cariz
oneroso, bem como do mútuo, por incidir sobre coisas determinadas e não sobre coisas fungíveis.
Características qualificativas do contrato de comodato
1. O comodato como contrato real quoad constitutionem
O artigo 1129º define o comodato como “o contrato pelo qual uma das partes entrega”, o que faz
naturalmente pressupor o seu cariz real quoad constitutionem. Assim, antes da entrega da coisa
não se encontra constituído qualquer contrato de comodato, pelo que não poderá ser exigida a
entrega da coisa em comodato. Nada impede, no entanto, as partes de celebrarem um contrato-
promessa de comodato, mas esse contrato não estará sujeito à execução específica referida no artigo
830º, por esta não ser aplicável em sede de contratos reais quoad constitutionem.
2. O comodato como contrato não formal
Não se encontra estabelecida na lei qualquer forma para o contrato de comodato, pelo que ele será
naturalmente considerado como não formal, nos termos do artigo 219º, mesmo que respeite a bens
imóveis. Não é argumento em sentido contrário a exigência de forma escrita para o arrendamento
urbano (1069º),levando a que um contrato gratuito tenha uma forma menos solene que o seu
correspondente oneroso.
3. O comodato como contrato gratuito
O comodato é um contrato gratuito, uma vez que apesar de fazer surgir obrigações para o
comodatário, referidas no artigo 1135º, nenhuma dessas obrigações se apresenta como contrapartida
da utilização da coisa por parte do comodante. A gratuitidade constitui alias uma característica
essencial do contrato de comodato, pelo que, se for estipulada qualquer contraprestação como
contrapartida do uso da coisa, o contrato passará a ser qualificado como de locação se essa
contraprestação tiver natureza pecuniária ou como um contrato atípico nas restantes situações.
A gratuitidade do comodato não é, porém, afetada se for estabelecido algum encargo, uma vez que
nesse caso não existe qualquer contraprestação, mas antes uma restrição ao benefício concedido ao
comodatário.
4. O comodato como contrato não sinalagmático
Apesar de fazer surgir obrigações para ambas as partes, não existe qualquer nexo de
correspetividade entre essas obrigações, pelo que o comodato tem que ser considerado como
um contrato bilateral imperfeito, não sinalagmático.
A formação do contrato
1. Processo de formação do contrato de comodato
Sendo um contrato real quoad constitutionem, o comodato apenas se considera perfeito com a
entrega da coisa, não sendo o simples consenso idóneo para produzir para o comodante a obrigação
de entregar a coisa.
Caso, no entanto, o acordo seja seguido da entrega, ele considera-se vinculante juridicamente,
definindo as obrigações das partes e determinando o uso da coisa pelo comodatário. Se não ocorrer
entrega, o acordo não deixa de ser juridicamente relevante como elemento da facti species
negocial, podendo assim originar uma responsabilidade pré-contratual pelo interesse contratual
negativo.
2. Capacidade e legitimidade das partes
A questão da capacidade e da legitimidade para a celebração de contratos de comodato deve ser
resolvida face à sua qualificação como ato de administração ordinária ou extraordinária. A
melhor posição é a de que o comodato é um ato de administração ordinária para o comodatário
e um ato de administração extraordinária para o comodante.
Em termos de capacidade, poderão celebrar contratos de comodato todos os que não sejam
abrangidos por alguma incapacidade, como a resultante de menoridade ou de medida de
acompanhamento. Mesmos certos comodatos poderão ser abrangidos no âmbito das exceções à
incapacidade e praticados pelo próprio incapaz, como nas hipóteses referidas no artigo 127º ou em
geral no artigo 145º/1.
Em termos de legitimidade, pode celebrar contratos de comodato quem seja titular de qualquer
direito de gozo sobre a coisa, designadamente o proprietário e o usufrutuário, mas não o
locatário (1038º/f), nem o depositário (1189º), nem o próprio comodatário (1135º/f), salvo havendo
autorização do proprietário.
Objeto do contrato
Conforme expressamente dispõe o artigo 1129º, podem ser objeto do comodato tanto coisas móveis
como imóveis. As coisas móveis não podem, no entanto, corresponder a coisas consumíveis como
o dinheiro, a menos que delas se pretenda fazer uma utilização atípica como no caso do comodato
ad pompam vel ostentationem. Já as coisas fungíveis não consumíveis podem ser objeto de comodato se
se estabelecer a obrigação de restituição da eadem res, já que no caso contrário estar-se-á antes perante
um mútuo.
Obrigações do comodante
a) Obrigação de não perturbar o uso da coisa pelo comodatário – uma vez que se trata de
um contrato gratuito as obrigações do comodante são extremamente limitadas. Ao contrário
do que sucede com a locação, o comodato nem sequer institui uma obrigação de o
comodante assegurar o gozo da coisa para os fins a que esta se destina, não sendo assim
atribuída ao comodatário qualquer garantia de idoneidade da coisa para os fins do contrato.
A sua obrigação é antes puramente negativa, não correspondendo a assegurar o uso da coisa,
nem mesmo a mantê-la em estado de servir aos fins para que foi emprestada, mas apenas a
comportar-se de modo a que por ação sua não venha o comodatário a sofrer privação
do uso da coisa.
b) Obrigação de reembolso de benfeitorias – Uma outra obrigação do comodante é ainda a
de restituir as benfeitorias ao comodatário. O artigo 1138º estabelece que o comodatário é
equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja efetuado na coisa
emprestada. Desta solução resulta que o comodatário tem direito a ser indemnizado das
benfeitorias necessárias que haja realizado bem como levantar as benfeitorias úteis,
se tal puder ser efetuado sem detrimento da coisa, havendo lugar à restituição do
enriquecimento por despesas no caso contrário (1273º). O comodatário não tem, no entanto,
direito ao levantamento de benfeitorias voluptuárias (1275º).
Direito do comodatário
a) Direito de uso da coisa – o comodatário adquire um direito pessoal de gozo sobre os
bens objeto de comodato. Esse direito é, porém, normalmente limitado ao uso da coisa, já
que o artigo 1132º refere expressamente que só por força de convenção expressa o
comodatário pode fazer seus os frutos colhidos. Tendo o direito do comodatário
natureza pessoal, não pode ser oposto ao titular de um direito real maior sobre o bem. O
direito do comodatário apenas prevalece contra outros direitos pessoais de gozo se tiver sido
constituído em primeiro lugar (407º). O comodato confere, porém, ao comodatário a posse
da coisa, o que lhe permite a tutela possessória dessa situação (1133º/2).
b) Direito de retenção – a lei confere igualmente direito de retenção ao comodatário, que se
encontra previsto no artigo 755º/e). Em caso de exercício deste direito, o comodatário
deixa, porém, de poder usar e fruir a coisa comodada, ficando apenas com os direitos
referidos nos artigos 758º e 759º. Se o comodatário, a pretexto do direito de retenção,
continuar a proceder ao uso e fruição da coisa verifica-se uma situação de enriquecimento
sem causa à custa do comodante (473º), que terá à restituição correspondente (479º).
Obrigações do comodatário
1) Obrigação de guardar e conservar a coisa emprestada – as obrigações do comodatário
encontram-se referidas no artigo 1135º. Esta obrigação acaba assim por se subdividir em
duas, sendo a primeira a de guardar e a segunda a de conservação. A obrigação de
conservação consiste em manter o bem no estado em que foi recebido, salvas as
deteriorações causadas pelo uso prudente. A obrigação de guarda tem um conteúdo mais
amplo, implicando uma atividade de vigilância direta, destinada não apenas a
prevenir eventuais deteriorações da coisa, mas também em salvaguardar a posição
subjetiva do comodante em relação a esta. O comodatário está sujeito a um regime
especial de diligência em relação À sua obrigação de custódia da coisa, a que se refere o
artigo 1136º, o qual difere do critério geral da diligencia do bom pai de família, segundo as
circunstancias do caso, previsto nos artigos 799º/2 e 487º/2. Efetivamente, o comodatário
responde se podia salvar a coisa, mediante o sacrifício de coisa própria de valor não
superior, o que corresponde a um critério de diligência diferente. Aplica-se, no enanto, ao
comodatário a presunção de culpa do artigo 799º/1, pelo que caberá ao mesmo demonstrar
que não poderia ter evitado a perda ou deterioração da coisa.
2) Obrigação de facultar ao comodante o exame da coisa emprestada – a instituição desta
obrigação visa permitir ao comodante controlar o bom estado da coisa, e aplicação que
dela está a ser feita pelo comodatário, podendo em consequência dessa averiguação
determinar a resolução do contrato (1140º) ou exigir responsabilidade pelos danos
causados na coisa emprestada (1136º). O direito de exame ao comodatário não pode,
porém, ser exercido em termos excessivos, sob pena de se pôr em causa a obrigação do
comodante de se abster de atos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário.
3) Obrigação de não aplicar a coisa a fim diverso daquele a que ela se destina – é normal
no contrato de comodato a determinação do fim a que se destina a coisa emprestada, com
base no qual se delimita o direito de uso ao comodatário. As partes devem, por isso, proceder
à sua estipulação contratual. Só se não o fizerem, e das respetivas circunstâncias não resultar
o fim a que a coisa empresta se destina, é que passa a ser permitido ao comodatário aplicá-
la a quaisquer fins lícitos, dentro da função normal das coisas de igual natureza (1131º).
4) Obrigação de não fazer da coisa emprestada uma utilização imprudente – esta
obrigação encontra-se explicitada no artigo 1043º/1, aplicável ao comodato por força do
artigo 1137º/3, que estabelece que “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter
e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma
prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato”. O dever de não efetuar uma
utilização imprudente corresponde assim para o comodatário a um dever de manutenção
da coisa no mesmo estado em que foi recebida, uma vez que o comodato não deve
implicar para o comodante qualquer deterioração da coisa.
5) Obrigação de tolerar quaisquer benfeitorias que o comodante queira realizar na coisa
– uma vez que a lei não distingue a que benfeitorias se refere, parece que poderão estar em
causa tanto benfeitorias necessárias, como úteis ou voluptuárias, o que se compreende, uma
vez que sendo o comodato um contrato gratuito, dele não deve resultar a afetação do direto
de realização de benfeitorias pelo proprietário. Contudo, o direito do comodante em realizar
as benfeitorias não pode representar uma privação do uso da coisa por parte do
comodatário, uma vez que nesse caso estar-se-ia perante um abuso de direito.
6) Obrigação de não proporcionar a terceiro o uso da coisa, exceto se o comodante o
autorizar – é vedado ao comodatário proporcionar o uso da coisa a terceiro, seja qual for o
título jurídico pelo qual o faça, a não ser após o obtido consentimento do comodante.
Caso o comodatário desrespeite a sua obrigação, incorrerá em responsabilidade contratual
perante o comodante nos termos gerais (798º).
7) Obrigação de avisar imediatamente o comodante, sempre que tenha conhecimento
de vícios na coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo, ou que terceiros arrogam
direitos em relação a ela, desde que o facto seja ignorado do comodante – trata-se de
uma obrigação que é imposta ao comodatário em virtude de lhe ser atribuída a posse da coisa
emprestada, concretizada na imposição de um aviso ao comodante, sempre que o
comodatário venha a ter conhecimento de riscos para a coisa.
8) Obrigação de restituir a coisa emprestada, findo o contrato – trata-se de uma obrigação
que tem por fonte o contrato e não depende da qualidade de proprietário do comodante.
Parece, por isso, dever aplicar-se ao comodato o regime do artigo 1192º, pelo que não
poderá, em princípio, o comodatário recusar a restituição ao comodante com o
fundamento de que este não é proprietário da coisa, nem tem sobre ela outro direito.
A obrigação de restituição do comodatário não abrange apenas a coisa, mas também os
respetivos frutos, a menos que o comodatário tenha sido autorizado a fazê-los seus
(1132º).
O regime das perturbações da prestação no comodato
Em relação ao comodato, verifica-se, como normalmente sucede nos contratos gratuitos, que o
elemento da gratuitidade conduz a uma moderação no regime de responsabilidade do
comodante em caso de perturbações da prestação, derivada da existência de vícios ou limitações do
seu direito em relação a essa coisa ou de vícios da própria coisa.
Essa moderação resulta da ausência de uma garantia especifica em relação a qualidades da coisa
que nos contratos gratuitos é prestada tal como é, o que conduz a que a responsabilidade do
comodante seja normalmente limitada ao dolo, a menos que ele tenha expressamente assumido
outro tipo de responsabilidade (1134º).
Extinção do contrato
O contrato de comodato pode extinguir-se, nos termos gerais, por caducidade, denúncia ou
resolução.
Em relação à caducidade do comodato, ele pode extinguir-se em primeiro lugar pelo decurso do
prazo, se as partes o estipularam expressamente. Mesmo que tal não tenha acontecido, a lei presume
a existência de um prazo no comodato, em resultado da determinação pelas partes do uso da
coisa. Apenas se não foi ficado prazo para a restituição, nem determinado o uso da coisa, é que o
comodatário é obrigado a restituí-la logo que seja exigida (1137º/2).
O contrato caduca ainda por morte do comodatário, nos termos do artigo 1141º. Assim, se falece
o comodatário, mesmo que tenha sido estipulado um prazo de vigência do empréstimo e esse prazo
ainda não tenha decorrido, os seus herdeiros são obrigados a restituir imediatamente ao
comodante a coisa emprestada. Já não se prevê, porém, idêntica solução para a morte do
comodante, ocorrendo em consequência discussão sobre se, nessa hipótese, os herdeiros estão
obrigados a respeitar o prazo estabelecido no contrato, uma vez que neles sucedem, ou se poderão
exigir do comodatário a imediata restituição da coisa. ML admite a primeira solução, podendo, no
entanto, os herdeiros do comodante resolver o contrato se para isso tiverem justa causa (1140º).
Ainda que tenha sido estipulado um prazo, o comodante pode resolver o contrato se para tanto
tiver justa causa (1140º). Ora, conforme tem sido defendido na nossa doutrina, neste conceito de
justa causa inclui-se, não apenas a falta de cumprimento das obrigações do comodatário, mas
também a necessidade da coisa emprestada, por parte do comodante.

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