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internacional
Julho 2023
NÚMERO 329 | MENSAL | €5,20 (Cont.)
Á F R I C A : A N O VA C O R R I D A A O S R E C U R S O S N AT U R A I S

EUROPA
O GRANDE
REGRESSO
DOS ESPIÕES
POLITIKEN, DER SPIEGEL

TECNOLOGIA
QUEM VAI
GUARDAR
AS NOSSAS
MEMÓRIAS
NA INTERNET?
HAARETZ

ÁFRICA
A NOVA CORRIDA
AOS RECURSOS NATURAIS
A estratégia dos EUA para tentar contrariar o domínio da China
no continente que concentra 30% dos minerais do mundo. Como
Moscovo ganha influência com os mercenários do grupo Wagner
Julho 2023

THE ECONOMIST, DAILY MAVERICK

S SUMÁRIO

JULHO 2023
04 Editorial

06 Cartoons
Dossier
ESPIONAGEM
46 Agentes (pouco) secretos
PROPRIETÁRIA Courrier International S.A.
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Courrier International S.A. - Sede: 80, Boulevard Auguste
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DIRETOR Rui Tavares Guedes

EDIÇÃO N.º 329 DIRETOR DE ARTE João Carlos Mendes
08 Retrato TRADUÇÃO Ana Marques, Helena Araújo, Jorge Pires,
48 A Europa entrou na Maria Alves, Margarida Bak Gordon
Ron DeSantis REVISÃO Rui Carvalho e Teresa Machado
década dos espiões Colaboradores da revisão: Margarida Robalo e Sónia Graça
INFOGRAFIA: Raquel Leal

Atual 52 Alemanha com pés

SECRETARIADO: Sofia Vicente, Ana Paula Figueiredo
COURRIER INTERNATIONAL Arnaud Aubron (Diretor),
de barro Claire Carrard (Diretora de Redação),
VENEZUELA Sophie-Anne Delhomme (Diretora de Arte)
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS:
12 A revolução Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte
56 A Rússia isola-se
da desigualdade Edifício Fernão de Magalhães, nº8, 2770-190
no Polo Norte Paço de Arcos – Telefone.: 218 705 000
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18 O Sul quer destronar as nossas memórias? Maria João Costa (Diretora Coordenadora de Publicidade)
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de Produção), Nuno Carvalho, Nuno Gonçalves e Paulo Duarte
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JULHO 2023 - N.º 329 3

E
A

EDITORIAL
R U I T AVA R E S G U E D E S
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ÁFRICA EM BUSCA DO FUTURO
Há muito tempo que a história de África tem estado intimamente ligada às
consequências das guerras e dos conflitos que ocorrem fora do seu território.
Sempre sob o mesmo prisma: como um território que, graças aos seus recursos
humanos e naturais, as potências globais de turno vão tentando explorar.
O apogeu da corrida pelos recursos de África ocorreu no século XX, quando
quase todo o continente era uma imensa colónia, retalhada entre os europeus.
Depois, em consequência dos equilíbrios de força surgidos após as duas guerras
mundiais, os países africanos foram ganhando a sua independência. No entanto,
embora tenham conseguido libertar-se politicamente dos seus invasores, nem
sempre foram capazes de cortar com os laços de dependência. E, um pouco por todo
o lado, os países continuaram a desbaratar os seus recursos, sem que esse negócio
tivesse qualquer impacto na vida das populações ou no desenvolvimento sustentado
das suas economias.
Após ter sido um dos territórios mais flagelados pelos conflitos por procuração
durante a Guerra Fria, África continua hoje a ser disputada por todos os países que
buscam um maior protagonismo numa hipotética nova ordem mundial. A China
soube, depressa, aproveitar-se do vazio deixado pelo fim do conflito entre os EUA e
a União Soviética. E, para suportar as suas políticas de desenvolvimento económico,
conseguiu estabelecer fortes relações comerciais e de investimento em muitos
países africanos, que lhe permitiu passar a ter um acesso privilegiado a recursos
naturais, mas também a criar novos e importantes clientes para as suas empresas de
construção de infraestruturas.
Perante o poder que a China foi ganhando no continente, depressa outros países
tentaram, nos últimos anos, restabelecer elos perdidos ou, no mínimo, não perder a
corrida pelos seus recursos. Agora, Washington procura contrabalançar a presença
de Pequim em África, ao mesmo tempo que Moscovo – fruto dos anos em que apoiou
diversos movimentos anticolonialistas durante a Guerra Fria – vai estendendo os
seus tentáculos militares, através dos mercenários do grupo Wagner, para garantir
o acesso a ouro e outros minerais raros, decisivos para a indústria atual. A Índia
também tem multiplicado o seu protagonismo, nomeadamente ao longo da costa
oriental, enquanto Israel é um ator cada vez mais importante, graças a uma moeda
de troca muito apreciada por todos os governos: o acesso à sua tecnologia de
espionagem.
Apesar de estarem a confluir neste momento em África diversos interesses
geopolíticos, económicos e sociais, a verdade é que se torna cada vez mais evidente
que o continente vai desempenhar um papel fundamental no futuro. Isto porque
não só os seus recursos naturais são decisivos para o desenvolvimento económico
mundial, mas também porque serão absolutamente insubstituíveis no combate às
alterações climáticas. E, finalmente, a sua demografia tem todas as condições para se
impor de uma forma diferente no panorama global – assim o resto do mundo saiba
compreender a oportunidade que isso representa.
COURRIER INTERNACIONAL Segundo as contas de Jack A. Goldstone e de John F. May, dois investigadores
App para tablets. da Universidade George Mason, nos EUA, ao longo deste ano de 2023 um terço das
Disponíveis na Applestore crianças de todo o mundo vai nascer em África. Em consequência, no ano de 2040,
e na Googleplay um terço dos jovens entre 15 e 24 anos serão africanos. E os reflexos na economia e
as aplicações necessárias. na sociedade vão ser obrigatoriamente transformadores, quando se prevê, na mesma
progressão, que até 2050 a população ativa de África seja cinco vezes maior do que
a europeia e ultrapasse também a da Índia e da China em conjunto. Esta imensa
força de gente jovem será, inevitavelmente, um capital de enorme importância num
mundo em que os países desenvolvidos estão cada vez mais envelhecidos e com
dificuldades de assegurarem a substituição da sua mão de obra. Se conseguir resolver
os conflitos internos e, em simultâneo, aproveitar as vantagens da tecnologia, África
será, de certeza, um dos motores do futuro.

4 JULHO 2023 - N.º 329 FOTO: GETTYIMAGES

C CARTOONS

Mais gelo, por favor!

Em breve, o Ártico
vai perder grande parte da sua
superfície gelada, devido
ao aquecimento global
ALEX, PARA LA LIBERTÉ, FRIBURGO,
SUÍÇA
Sarkozy em tribunal
Juiz: “Um ano de prisão!”. Nicolas Sarkozy: “Não ouço nada!”.
Como o ex-Presidente de França tem escapado à cadeia, com pena suspensa
SONDRON, PARA L’AVENIR, NAMUR, BÉLGICA

6 JULHO 2023 - N.º 329

 Sem comando
A Europa face a uma nova crise
de imigrantes e de refugiados.
Uma realidade incontornável
FINN GRAFF, NORUEGA

O preço da vitória
Recep Tayyip Erdogan voltou
a ser eleito Presidente da Turquia,
mas isso não melhora
o seu currículo em matéria
de direitos humanos
JOEP BERTRAMS, PARA DE GROENE
AMSTERDAMMER, HOLANDA

JULHO 2023 - N.º 329 7

R R E T R ATO
O país mágico
de Ron DeSantis
COM OS OLHOS POSTOS NA CASA BRANCA, O GOVERNADOR REPUBLICANO
DA FLÓRIDA PRETENDE REMODELAR A AMÉRICA À IMAGEM DAQUILO QUE
QUER PARA O SEU ESTADO: DESIGUAL, ANTIWOKE E REACIONÁRIO
O título do livro do governador da Flóri-
da, Ron DeSantis, que ele está a promover
energicamente por todo o país, é menos
importante do que o seu subtítulo. The
Courage to Be Free [“A Coragem de Ser
Livre”] é um título banal, igual ao de um
livro escrito pelo ator Charlton Heston,
um grande defensor do direito de possuir
armas de fogo. Já o subtítulo do livro, Flo-
rida’s Blueprint for America’s Revival
[“A Flórida, Um Modelo para Relançar a
América”], revela bem as ambições na-
cionais de DeSantis.
Enquanto o antigo Presidente Donald
Trump regressou à campanha com o seu
desgastado slogan Make America Great
Again [“Devolver a grandeza à América”],
Ron DeSantis propõe-se “Transformar a
América na Flórida” – um lema usado
em bonés, bandeiras e outros produtos
de merchandising.
O governador republicano afirma que
no Sunshine State [“Estado do brilho do
sol”, apelido da Flórida] o futuro já é bri-
lhante graças a ele. Se for, de facto, can-
didato às presidenciais de 2024, vai dizer
JORNAL AUTOR
R The Guardian David Smith
Londres
8 JULHO 2023 - N.º 329
EUA
que conseguirá repetir esta proeza, um
estado americano atrás do outro. A Flórida,
segundo a sua teoria, é uma incubadora
de ideias conservadoras que funcionam.
Agita esta cenoura à frente do nariz dos
republicanos, que estão fartos de perder
para Trump e procuram um salvador. Ron
DeSantis escreve no seu livro que, quando
foi eleito governador pela primeira vez, em
2018, os eleitores democratas registados
na Flórida superavam os republicanos em
300 000. Em outubro passado, um mês
antes da sua reeleição como governador,
os eleitores republicanos registados supe-
ravam os democratas em 300 000.
“O que a Flórida fez foi criar um mode-
lo de governação que produziu resultados
tangíveis, ao mesmo tempo que infligiu
uma bofetada na cara das elites estabele-
cidas que arrastaram a nossa nação para
o abismo”, salienta Ron DeSantis no seu
livro.
Os seus críticos, no entanto, ques-
tionam se a sua obsessão com as guerras
culturais (“a Florida será o túmulo do
wokismo”, gosta de dizer) é tão popular
DATA TRADUTORA
10.04.2023 Helena Araújo
como parece. Também argumentam que,
com todos os seus problemas climáticos,
económicos e sociais, a Flórida está lon-
ge de ser o paraíso que DeSantis gosta de
retratar.
“Na verdade, é um modelo para pes-
soas que querem abusar do seu poder para
atacar aqueles que discordam das suas po-
líticas”, comenta o congressista democrata
da Flórida Maxwell Frost, o mais jovem
membro do Congresso de Washington.
“O que estamos a exportar da Flórida é o
fascismo. Esperemos que a maior parte
dos residentes do estado vejam este jogo.”
Governador do terceiro estado mais
populoso dos EUA, Ron DeSantis, de 44
anos, impôs limites ao ensino da raça e da
sexualidade nas escolas, obrigando algu-
mas a retirar livros das suas bibliotecas.
Proibiu também a participação de rapari-
gas transgénero em competições desporti-
vas escolares, redesenhou o mapa político
do estado a favor dos republicanos, atacou
a Disney e outras empresas que desafiam
a sua ideologia e reprimiu os protestos do
movimento Black Lives Matter.
Depois houve a pandemia de Covid-19.
Durante os primeiros meses, o governador
contentou-se em seguir os conselhos das
autoridades sanitárias, fechando as praias,
os bares e as escolas da Flórida. Mas, no
 Ron DeSantis com a mulher, após ser
reeleito para governador da Flórida,
com uma vitória esmagadora
FOTO GETTYIMAGES
início de 2021, fez uma reviravolta: rea-
briu as escolas antes dos outros estados
e proibiu a imposição de máscaras e va-
cinas nas empresas e na função pública.
Quando os meios de comunicação social
questionaram a sua metodologia, DeSantis
ripostou com agressividade, para gáudio
de uma base popular que adora “irritar os
esquerdistas”.
No ano passado, DeSantis angariou
fundos recorde para a sua campanha de
reeleição e ganhou a reeleição com quase
20% de vantagem sobre o seu oponente
democrata, num estado que chegou a ser
considerado indeciso. E elogiou o facto de
a sua vitória confirmar a popularidade das
suas ideias na Flórida.
“Projeto de ódio e racismo”
Os republicanos detêm agora uma maioria
esmagadora na legislatura da Flórida e di-
tam as suas prioridades através de projetos
ou leis que visam impor aos professores
os pronomes que podem utilizar com os
seus alunos nas aulas, facilitar a posse e
o porte de armas, tornar o estado inós-
pito para os imigrantes ilegais e proibir
os espectáculos de drag queen.
Asseguram que é graças ao programa
DeSantis que a Flórida é o primeiro destino
de migração interna dos Estados Unidos.
Cerca de 319 000 pessoas mudaram-se para
lá no ano passado, enquanto a Califórnia
foi o Estado que perdeu mais habitantes,
com 343 000 partidas.
Para Christian Ziegler, presidente do
Partido Republicano da Flórida, “o que
estamos a ver é que as pessoas estão a
sair de outros estados que têm ideolo-
gias, opiniões e políticas completamente
... opostas. Califórnia, Nova Iorque – toda a
gente está a deixar esses estados e a vir
Governador do terceiro para o nosso. Isto confirma que o modelo
estado mais populoso da Flórida funciona. Se a Flórida fosse
um telemóvel, seria provavelmente o
dos EUA, Ron DeSantis, iPhone, da Apple. Toda a gente o quer,
de 44 anos, impôs limites toda a gente o compra e toda a gente se
vira para ele”.
ao ensino da raça Segundo Ziegler, esta atração expli-
e da sexualidade ca-se em parte pela abordagem “pró-li-
nas escolas, obrigando berdade” do governador Ron DeSantis
durante a pandemia, que permitiu que
algumas a retirar livros as empresas e o turismo recuperassem
das suas bibliotecas mais rapidamente do que noutros locais,
JULHO 2023 - N.º 329 9
 R E T R ATO

e pelo seu apoio à cruzada republicana

pelos “direitos dos pais”.
Os detratores de DeSantis têm uma
visão completamente diferente. Recordam
que a Flórida sempre foi atrativa, graças ao
seu clima soalheiro e à ausência de imposto
local sobre o rendimento. A pandemia e
o desenvolvimento do teletrabalho tor-
naram o estado ainda mais apelativo para
quem foge das grandes cidades caras, como
Nova Iorque.
Falando a partir de Sarasota, Ziegler
também defendeu a política controversa de
DeSantis sobre o ensino da história racial
nos Estados Unidos. “Do meu ponto de
vista, posso dizer-lhe que nos ensinaram
as injustiças da escravatura. Falaram-nos
dos esforços heroicos de Harriet Tubman
ou de Martin Luther King”, diz. “Isso é
muito diferente da Teoria Crítica da Raça,
onde se tenta apresentar a ideia de que
toda a gente na sociedade é oprimida ou
opressora, ou que a cor da sua pele é su-
ficiente para o tornar preconceituoso ou
odioso.”
Esta é, na verdade, uma apresentação
falaciosa da Teoria Crítica da Raça, que
estuda a forma como o racismo foi con-
sagrado na lei americana e noutras insti-
tuições, assegurando o domínio branco.
Não é ensinada de forma sistemática nas
escolas públicas.
Os progressistas contestam a ideia de
que o foco de DeSantis nas guerras cultu-
rais seja eficaz. “O que ele está a vender é
um projeto de ódio e racismo”, condena
Brandon Wolf, assessor de imprensa do ro habitação, num estado que enfrenta
grupo de direitos LGBTQI Equality Florida furacões e tempestades mais violentos,
e sobrevivente do tiroteio na discoteca gay devido à crise climática.
Pulse em 2016. “Ron DeSantis é honesto “A questão do fabuloso sucesso da
numa coisa, que é o facto de estar a tentar Flórida é uma questão que só tem de per-
arduamente vender ao resto do país o lixo guntar às pessoas que já não dormem à
autoritário usado na Flórida.” noite por causa do custo da habitação e
Wolf explica que, por baixo do verniz do perigo representado pelos furacões”,
de prosperidade apregoada pelo governa- acrescenta Wolf. “Pergunte-lhes se acham
dor, há muitas zonas cinzentas no estado. que a Flórida é o estado mais próspero e
Paraíso dos reformados, a Flórida tem o ... livre do país.”
pior sistema de saúde para os idosos dos 50 A educação é um bom exemplo. En-
estados americanos. É um dos dez estados quanto DeSantis faz um espetáculo político
que se recusaram a alargar o Medicaid,
Na Flórida, Ron DeSantis ao falar sobre o ensino das questões raciais,
o programa público de seguro de saúde promulgou, a 13 de abril, de género e da identidade sexual, o estado
para pessoas com baixos rendimentos, de uma lei que proíbe todos enfrenta uma grave falta de professores
acordo com o Affordable Care Act [a Lei nas suas escolas públicas, há muito sub-
de Cuidados Acessíveis, ou Obamacare,
os abortos após as seis financiadas.
aprovada por Obama]. semanas de gravidez, Tim Canova, professor de Direito na
Ao mesmo tempo, o custo de vida dis- apesar de a maioria Universidade Nova Southeastern, em Fort
parou. Na Flórida, os preços dos imóveis Lauderdale, explica: “Os professores são
aumentaram 80% nos últimos cinco anos. dos seus eleitores se opor mal pagos, as suas equipas são escassas e
E é cada vez mais caro fazer um segu- a essa medida o currículo é ditado pelas autoridades.”

10 JULHO 2023 - N.º 329 ILUSTRAÇÃO DE HACHFELD


“Política extremista”
Os dados recolhidos pela Data for Progress,
uma organização de sondagens de esquer-
da, também lançam dúvidas sobre a viabi-
lidade das políticas ultraconservadoras de
DeSantis noutros estados além da Flórida e
mostram que os eleitores independentes de
todo o país se inclinam esmagadoramente
a favor dos democratas em questões rela-
cionadas com as guerras culturais.
“A maioria dos americanos prova-
velmente gosta do clima na Flórida. Mas
certamente não gosta das políticas apre-
sentadas pelo governador DeSantis e pe-
los legisladores republicanos do estado,
particularmente em alguns dos temas da
guerra cultural que são agora predomi-
nantes nos média de extrema-direita”,
afirma Danielle Deiseroth, diretora do
Data for Progress. Na sua opinião, “esta
política extremista vai afastar imediata-
mente muitos eleitores. As mulheres, em
particular.”
Os resultados das eleições legislativas
intercalares de 2020 parecem confirmar
este facto, com os candidatos da ala di-
reita do Partido Republicano a obterem
apenas um pequeno número de votos de
eleitoras, em parte devido à sua posição
ultrajante em questões como o aborto.
Na Flórida, Ron DeSantis promulgou, a
13 de abril, uma lei que proíbe todos os
abortos após as seis semanas de gravidez,
apesar de a maioria dos seus eleitores se
opor a essa medida.
Rick Wilson, um estratega republica-
no cuja família vive na Flórida há cinco
gerações, é muito crítico de DeSantis.
Mas também fundou o Lincoln Project,
uma organização anti-Trump, com sede
em Tallahassee, e duvida de que a Flórida
possa servir de laboratório para as ideias
de um renascimento republicano.
Recorda o fracasso da campanha pre-
sidencial de 2016 do governador repu-
blicano do Texas, Rick Perry. “Ele che-
gou a dizer: ‘Eu sou o campeão, comigo
Washington vai funcionar como o Texas.'’
Era essa a essência do seu discurso… E
caiu que nem um tordo.”
Longe de ser um projeto para o fu-
turo da América, a Flórida seria “a caixa
de Petri das más ideias”, segundo Rick
Wilson. “Entre alguns dos conservado-
res com quem falei, começa-se a ouvir
coisas como: ‘Preferia que ele fizesse
mais para reduzir os impostos em vez
de tratar da proibição de livros, que fa-
lasse mais da interferência do estado
em vez de propor que o estado casti-
gue as pessoas.’ Num mundo de Maga
[uma alusão ao slogan de Trump: Make
America Great Again], este discurso
autoritário funciona bastante bem. Mas,
mais uma vez, é difícil ser mais Trump
do que Trump.”
Esta tendência autoritária preocupa
os ativistas, que acusam DeSantis e os
seus aliados de terem proposto proje-
tos de lei para tornar mais rigorosos os
requisitos de registo eleitoral, a fim de
marginalizar os eleitores de cor. O seu
modelo, argumentam, representaria uma
ameaça fundamental aos direitos civis
se fosse exportado para fora da Flórida.
Para Jasmine Burney-Clark, funda-
dora da Equal Ground, uma associação
que promove o envolvimento cívico dos
negros, “neste estado, as pessoas de cor,
especialmente os negros que se viram sob
ataque, não sentem que este seja um mo-
delo de sucesso, liberdade ou libertação.
Se sonha com um mundo de supremacia
branca, ódio e políticas racistas, então
esta é realmente uma agenda perfeita
para o resto do país.”
Em guerra
com a Disney
No meio de um coonflito
mediatizado com os deputados
estaduais e com Ron DeSantis,
a THE WALT DISNEY COMPANY
anunciou, a 18 de maio, que
abandonava o projeto de
construção de um campus
de cerca de 900 milhões de
dólares perto do seu parque
temático na Flórida, relata o THE
WALL STREET JOURNAl. Trata-se de
mais um passo na guerra entre
o grupo icónico e o governador
republicano da Flórida.
No ano passado, a empresa
causou a ira do governador
republicano quando denunciou
um projeto de lei que restringia
o ensino de temas relacionados
com a orientação sexual e
a identidade de género nas
escolas primárias da Flórida.
Ron DeSantis, por seu lado,
passou à ofensiva em abril,
tentando assumir o controlo
de Reedy Creek, um distrito
fiscal especial que permite à
Disney gerir autonomamente
os terrenos onde se situam
os seus parques temáticos
e hotéis, perto de Orlando:
tentou cancelar um acordo de
desenvolvimento de 30 anos
que a Disney tinha assinado
dois meses antes. A Disney
retaliou com uma ação judicial,
que qualificou de “vingança
direcionada” contra DeSantis
por o punir de ter exercido a sua
“liberdade de expressão”.
“DeSantis fez da rixa com a
Disney o pilar da sua identidade
política” observava o VOX na
altura. Um dos aspetos-chave
da sua campanha é a vontade de
enfrentar as empresas woke. Ser
visto como tendo sido derrotado
por uma delas enfraqueceria a
sua candidatura”.
JULHO 2023 - N.º 329 11
VENEZUELA
A revolução
da desigualdade

ALGUNS VIVEM UMA VIDA DE LUXO, MAS MUITOS OUTROS TÊM DE

SE DESENVENCILHAR PARA SOBREVIVER. UM PARADOXO NO PAÍS
DA REVOLUÇÃO SOCIALISTA, QUE PROMETERA ACABAR COM O
FOSSO ENTRE RICOS E SUBNUTRIDOS

The New York Times

Nova Iorque
 Na capital, uma loja vende ma-

N
las Prada e um televisor de 110
polegadas que custa 115 000 dó-
lares. Não muito longe, abriu
um concessionário da Ferrari
e um novo restaurante oferece
aos gourmets mais abastados
a possibilidade de saborearem
uma refeição sentados no topo
de uma grua gigante com vista para a cidade.
“Quando foi a última vez que fez algo pela primeira
vez?”, pergunta ao microfone o animador do restaurante
aos clientes entusiasmados, que cantam ao som de uma
canção dos Coldplay. Não, não estamos no Dubai nem
em Tóquio, mas em Caracas, a capital da Venezuela, onde
uma revolução socialista prometeu a igualdade e o fim
da burguesia.
Há uma década, a economia venezuelana implodiu,
provocando uma partida massiva de migrantes, numa
das piores crises da História Moderna da América Latina.
Hoje, no entanto, há sinais de que o país está a entrar, de
modo preocupante, numa nova normalidade, com bens
de uso quotidiano facilmente disponíveis, uma pobreza
que começa a regressar e bolsas de riqueza a aparecer
onde menos se esperava.
O governo socialista do Presidente autoritário Nicolás
Maduro encontra-se assim à frente de uma economia em
nítida melhoria, confrontado com uma oposição que luta
para se unir. Além disso, os Estados Unidos aliviaram as
sanções petrolíferas que tinham contribuído para as di-
ficuldades financeiras do país. No entanto, uma grande
parte da população continua a viver em condições difíceis
e, apesar de uma redução na hiperinflação que paralisou a
economia, os preços continuam a triplicar todos os anos
e a taxa de inflação é das mais elevadas do mundo. Desde
que o governo aliviou as restrições à utilização do dólar
americano para remediar o colapso da economia venezue-
lana, a atividade comercial está a recuperar naquele que
já foi o Estado mais rico da região.
O resultado de tudo isto é uma divisão cada vez mais
marcante entre os ricos, de um lado, e os carenciados, do
outro, e uma das sociedades mais desiguais do mundo, de
acordo com o prestigiado Estudo Sobre as Condições de
Vida na Venezuela (Encovi), do Instituto de Investiga-
ção Económica e Social da Universidade Católica Andrés
Bello, em Caracas.
Nicolás Maduro vangloria-se de um crescimento eco-
nómico anual de 15% no ano passado, acompanhado de
um aumento das receitas fiscais e das exportações, mas
alguns economistas salientam que o número é enganador
porque se segue a anos de declínio.
Embora a pobreza tenha diminuído pela primeira vez
em sete anos, com apenas metade da população a viver na
pobreza, contra 65% em 2021, o inquérito Encovi mos-
tra também que os venezuelanos mais ricos são 70 vezes
mais ricos do que os mais pobres, o que coloca o país ao
nível de alguns países africanos, campeões mundiais em
disparidades.
A utilização do dólar americano é frequentemente
reservada a pessoas ligadas a serviços governamentais ou

AUTORES DATA TRADUTORA

F Isayen Herrera 21.03.2023 Helena Araújo
e Frances Robles
Vendedora de ervas medicinais,
num mercado de Caracas JULHO 2023 - N.º 329 13
FOTOS GETTYIMAGES
 Venezuela

envolvidas em atividades ilícitas. No en-

tanto, de acordo com um estudo realizado
no ano passado pela Transparency Interna-
tional [Transparência Internacional], um
organismo de vigilância da corrupção, as
atividades ilegais, como o contrabando de
alimentos, gasóleo, seres humanos e gás,
representavam mais de 20% da economia
venezuelana.
Embora alguns bairros de Caracas es-
tejam cheios de pessoas capazes de com-
prar uma gama cada vez maior de produtos
importados, uma em cada três crianças na
Venezuela sofria de subnutrição em maio de
2022, de acordo com a Academia Nacional
de Medicina. As Nações Unidas estimam
que, desde 2015, pelo menos sete milhões
de venezuelanos abandonaram o país por
não aguentarem mais.
Apesar do novo slogan do governo de
Maduro de que “a Venezuela recuperou”,
muitos cidadãos continuam a ter de sobre-
viver com o equivalente a apenas alguns
dólares por dia, enquanto os funcionários
do setor público saem à rua para protestar
contra os baixos salários.

O suficiente para comer

“Tenho de fazer malabarismos para sobre-
viver”, diz María Rodríguez, de 34 anos,
que trabalha como assistente de laborató-
rio em Cumaná, uma pequena cidade 400
quilómetros a leste da capital. Para poder
pagar a alimentação e as propinas da filha,
tem de se dedicar a uma atividade extra de
venda de produtos de beleza e conta com
a ajuda financeira da família e dos amigos.
Yrelys Jiménez, uma educadora de in-
fância em San Diego de los Altos, meia hora
de carro a sul de Caracas, descreve a sua
situação com humor, dizendo que o seu
salário de dez dólares por mês lhe garante
“o suficiente para comer hoje e não ter fome
amanhã” (note-se que no restaurante onde
se pode tomar uma refeição a mais de 45
metros de altura, o menu custa 140 dólares).
Apesar destas dificuldades, Nicolás Ma-
duro, cujo gabinete se recusou a responder
às nossas perguntas, sublinha sobretudo a
melhoria dos indicadores económicos do
país. “O doente parece estar a recuperar. O
seu estado de saúde parou de se deteriorar e
já anda e corre”, declarou o Presidente num
discurso recente, comparando a Venezuela
a um doente hospitalizado que recuperou
subitamente.
É preciso dizer que a mudança na estra-
tégia dos Estados Unidos em relação à Ve-
nezuela funcionou a favor do seu governo.
Depois de este último ter concordado em
retomar as conversações com a oposição
em novembro passado, a administração
Biden concedeu à Chevron uma licença de
perfuração renovável por seis meses, auto-
rizando-a a extrair petróleo na Venezuela.
O acordo estipula, no entanto, que os lucros
devem ser utilizados para pagar as dívidas
do governo venezuelano à Chevron.
De facto, apesar de os Estados Unidos
continuarem a proibir as compras à com-
panhia petrolífera nacional, a Venezuela
aumentou as suas vendas de petróleo no
mercado negro para a China, através do
Irão, segundo especialistas em energia.
Por outro lado, Nicolás Maduro está
também a sair do seu isolamento na América
Latina, graças à viragem da região para a
esquerda, que conduziu a um descongela-
mento das relações. A Colômbia e o Brasil,
ambos dirigidos por líderes de esquerda
recentemente eleitos, restabeleceram re-
lações diplomáticas. Em particular, o novo
Presidente colombiano, Gustavo Petro, tem
vindo a mostrar a sua simpatia por Nicolás
Maduro, com quem se encontrou em várias
ocasiões, ao mesmo tempo que dá o seu
apoio a um acordo de importação de gás
venezuelano.
Após a recente dissolução do governo
paralelo criado pela oposição, o Presiden-
te Maduro parece confiante no seu futuro
político, tendo em vista as eleições pre-
sidenciais previstas para o próximo ano.
É certo que a taxa de inflação de 234%
registada no ano passado coloca a Venezuela
em segundo lugar no mundo neste domí-
nio, atrás do Sudão, mas esta taxa não se
compara com a hiperinflação registada em
2019, quando explodiu para 300 000%, se-
gundo o Banco Mundial. A par do aumento
da produção e dos preços, a Venezuela está
também a assistir a um aumento das receitas
provenientes do petróleo, o seu principal
produto de exportação. Com cerca de 700
mil barris por dia, a produção do país é
superior à do ano passado, apesar de ter
sido duas vezes mais elevada em 2018 e
quatro vezes mais em 2013, nota Francis-
co Monaldi, investigador da Universidade
Rice, em Houston, especializado em Política
Energética da América Latina.
O facto de o governo venezuelano ter
flexibilizado as restrições ao dólar facilitou
a utilização de dinheiro enviado do estran-
geiro por algumas pessoas. Na verdade,
isso muitas vezes não resulta na troca de
dinheiro. De facto, os venezuelanos com
meios estão a utilizar cada vez mais apli-
cações digitais como o Zelle para pagar

14 JULHO 2023 - N.º 329

bens e serviços com dólares depositados
em contas fora do país.
No entanto, as autoridades americanas
acreditam que o quadro económico da Ve-
nezuela é um pouco enganador. De acordo
com o vice-secretário de Estado adjunto
[para a América do Sul] Mark A. Wells, “eles
têm sido capazes de lidar com muitos dos
problemas causados pelas sanções através
da dolarização da economia, e parecem ser
capazes, ao longo do tempo, de atingir um
nível que beneficia principalmente as eli-
tes, mas os pobres ainda são muito, muito,
pobres”. Por isso, acrescenta, “não se pode
dizer que tudo está mais estável ou que tudo
melhorou”.
Oposição dispersa
Nicolás Maduro chegou ao poder há quase
dez anos, tendo sido eleito pela última vez
em 2018, numa votação considerada por
muitos fraudulenta e repudiada por grande
parte da comunidade internacional.
Com muitas pessoas convencidas de que
Nicolás Maduro tinha ganhado de forma
fraudulenta, a Assembleia Nacional aca-
bou por considerar a Presidência vazia e
usou uma disposição da Constituição para
nomear um novo líder, Juan Guaidó. Este
antigo líder estudantil foi então reconhe-
cido por dezenas de países, incluindo os
Estados Unidos, como o líder legítimo da
Venezuela.
Mas esta figura de proa de um governo
paralelo, que controlava contas financeiras
congeladas no estrangeiro, não tinha qual-
quer poder no interior do país. Assim, em
dezembro, a Assembleia Nacional destituiu-
-o das suas funções, pondo fim ao governo
provisório. Uma decisão vista por alguns
observadores como um impulso para Ni-
colás Maduro. Várias figuras da oposição já
anunciaram a sua intenção de concorrer às
eleições primárias previstas para outubro,
embora muitos analistas políticos duvidem
de que o Presidente permita que as eleições
se realizem corretamente.
Para Juan Guaidó, “o que Maduro tem
hoje à sua frente é uma oposição díspar e
dispersa. Tem também contra si a maioria
da população. Continua a ser um ditador
sem apoio popular, com uma economia
destruída pela sua própria mão. Professores,
enfermeiros, idosos e trabalhadores estão
a manifestar-se neste preciso momento”.
Mesmo pessoas como Eugenia Mon-
Embora a pobreza tenha diminuído pela
primeira vez em sete anos, os mais ricos são
70 vezes mais ricos do que os mais pobres
FOTOS: GETTYIMAGES
salves, proprietária de uma empresa de
material médico em Caracas e que mandou
as suas duas filhas para escolas públicas,
estão frustradas com o rumo que o país
está a tomar. Embora pertença à classe
média-alta, diz que tem de ter sempre
cuidado com a forma como gasta o seu
dinheiro. Come fora de vez em quando e
já foi a algumas das novas lojas de luxo da
cidade, mas nunca compra nada: “A grande
maioria dos venezuelanos está a viver uma
situação complicada, muito complicada.”
Eugenia Monsalves considera que Ma-
duro e a sua equipa governamental têm de
sair, mas teme que os melhores candidatos
tenham sido forçados ao exílio ou desa-
creditados. Lamenta que a oposição não
se tenha unido em torno daquilo de que
mais precisa: um líder capaz de dinami-
zar o eleitorado. “É o que eu mais quero,
como muitos outros venezuelanos”, diz.
“Mas sem um candidato único com um
programa claro, vai ser difícil.”
JULHO 2023 - N.º 329 15
 Europa

UNIÃO EUROPEIA
A aposta
irrecusável
de Ursula
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen,
está a ponderar candidatar-se a um segundo mandato
à frente do executivo europeu. Uma decisão que não está
isenta de consequências para o Parlamento
Der Spiegel
Hamburgo

Será que ela avança? Para já, a A verdadeira questão, no entanto, não

S democrata-cristã Ursula von

der Leyen ainda não confirmou
a intenção de candidatar-se a
um segundo mandato à frente da Comis-
são Europeia, o braço executivo da União
Europeia (UE). No entanto, todos os eu-
rodeputados, funcionários e diplomatas
que trabalham ao seu lado, em Bruxelas,
são unânimes: ela quer.
São muitos os factos que corroboram
esta hipótese. Segundo vários deputados
europeus, os colaboradores mais próximos
da presidente começaram a sondar-lhe
o estado de espírito e a elogiá-la em pri-
vado. Perante os jornalistas, a Comissão
Europeia sublinha discretamente as falhas
de Manfred Weber, o presidente do Par-
tido Popular Europeu (PPE) – a aliança
dos partidos conservadores da União – e
principal rival de Ursula, pelo menos no
campo político.
Por outro lado, o historial de Von der
Leyen fala a seu favor. Depois de um início
caótico, foi capaz de conduzir eficazmente
a Europa aquando da crise da Covid-19.
Também lhe devem ser atribuídos os
créditos pela unidade europeia face à
guerra na Ucrânia – uma harmonia que
surpreendeu muitos comentadores. Se de-
cidir demitir-se, não será certamente por
causa de um balanço pouco satisfatório.
Ursula von der Leyen está à frente da
Comissão Europeia desde 2019. As pró-
ximas eleições europeias ocorrerão em
junho de 2024, e os membros da Comissão
serão renovados ao mesmo tempo da sua
presidente.
AUTOR DATA
F Ralf Neukirch 17.04.2023
é se a presidente tenciona candidatar-se
novamente, mas quais seriam as conse-
quências de tal decisão para o Parlamento.
Será o fim do princípio do Spitzenkan-
didat [literalmente “cabeça de lista”],
que os deputados europeus têm tentado
impor, sem grande sucesso, até à data?
Ou será que a candidatura de Ursula von
der Leyen representa a última esperança
de esta proposta ser bem-sucedida?
De acordo com o Tratado da União
Europeia, é o Parlamento que deve ele-
ger o presidente da Comissão Europeia,
sob proposta do Conselho Europeu, ou
seja, dos Chefes de Estado e de governo.
Porém, na prática, os órgãos diretivos do
Conselho Europeu chegam previamente
a acordo, e o Parlamento não tem outra
alternativa senão dar o parecer favorável.
A instauração de um sistema de ca-
beças de lista tinha como objetivo agitar
as águas. A ideia era tão simples quanto
revolucionária: apenas aqueles que tives-
sem liderado a sua família política, nas ele que acabou por conquistar o cobiçado
eleições europeias, poderiam ser eleitos cargo, após a vitória do seu partido nas
para a presidência da Comissão Europeia, eleições, e o Parlamento saiu vencedor.
e o feliz vencedor seria aquele cujo par- Na altura, falou-se muito de demo-
tido obtivesse a maioria no Parlamento cratização e de transparência. Dizia-se
Europeu. O Conselho só teria de validar que a simplificação do processo poria
esta nomeação. fim às negociações clandestinas, a que
Este novo sistema foi testado em 2014, os governos se dedicavam. Na verdade,
e tudo parecia funcionar nessa altura. Os o que o Parlamento pretendia era sobre-
sociais-democratas escolheram Martin tudo inverter o equilíbrio de poderes,
Schulz, então presidente do Parlamen- tornando-se a única instituição capaz
to, para os representar, enquanto o PPE de influenciar o órgão mais importante
apostava em Jean-Claude Juncker, antigo de Bruxelas.
primeiro-ministro do Luxemburgo. Foi Mas, por altura das eleições seguintes,
cinco anos mais tarde, os Chefes de Estado
e de governo deixaram bem claro que não
TRADUTORA iriam renunciar ao seu poder assim tão
Helena Araújo facilmente. No final das eleições euro-
peias, Manfred Weber, o então cabeça de

16 JULHO 2023 - N.º 329


lista do PPE, via-se como o sucessor de
Jean-Claude Juncker. Porém, o Conselho
Europeu apoiou fortemente a candidatura
de Ursula von der Leyen, proposta por
Emmanuel Macron – embora esta não
tenha participado na votação.
Após duras negociações, o Parlamento
acabou por aceitar a proposta, dando as-
sim um tiro no próprio pé. O princípio do
Spitzenkandidat parecia estar condenado
a ir para o lixo.
Mas estará mesmo morto e enterrado?
Os partidos vão designar cabeças de lista
para as próximas eleições? Ainda nada é
certo. O PPE e os Verdes tencionam utili-
zar este princípio e os sociais-democratas
alemães do SPD gostariam de seguir o mo-
delo, mas terão de convencer os aliados
europeus, alguns dos quais ainda céticos.
Uma candidatura de
Ursula von der Leyen seria
também uma boa notícia
para o Parlamento Europeu
FOTO: GETTYIMAGES
Entre os liberais, Emmanuel Macron está
a dar o mote e, em 2019, deixou bem claro
o que pensa da ideia – nada de bom.
A salvadora
Contra todas as probabilidades, é a própria
Ursula von der Leyen que pode salvar o
sistema de Spitzenkandidat, depois de ter
contribuído para o pôr em curto-circui-
to, da última vez. Mas a sua candidatura
seria muito diferente das de Juncker e de
Schulz, há quase dez anos. Se quisesse,
poderia entrar no escrutínio como número
um do PPE. Friedrich Merz, líder da União
Democrata-Cristão alemã (CDU), já lhe
deu o aval, e Markus Söder, da União So-
cial-Cristã (CSU) da Alemanha, conside-
rou-a uma “candidata natural” ao cargo.
Mas mesmo que seja nomeada líder
do PPE, Ursula von der Leyen continuará
a ser a candidata dos líderes europeus.
Afinal, foram eles que a escolheram há
quatro anos. Será que Emmanuel Macron
vai apresentar o nome da atual presidente
para um segundo mandato? Sem lhe ga-
rantir a vitória, essa posição aumentaria
consideravelmente as hipóteses de sucesso.
Os potenciais adversários de Ursula
terão de ter a força necessária para se
apresentarem ao Conselho Europeu, sob
pena de sofrerem o mesmo destino do que
Manfred Weber. Os melhores candidatos
seriam, portanto, aqueles que têm uma
longa experiência no governo – de pre-
ferência antigos primeiros-ministros ou
Presidentes.
Em breve, apenas os que poderão agra-
dar aos Chefes de Estado e de governo
poderão ser nomeados como spitzenkan-
didat. “O Conselho Europeu deixou claro
que pretende continuar a ser ele a escolher
os candidatos à presidência da Comissão
... europeia”, afirma um alto-funcionário
do PPE. Os eurodeputados não vão poder
O historial de Von der fazer nada. Já pouco resta das ambições
Leyen fala a seu favor. do Parlamento, que sonhava em poder
designar, sozinho, o presidente da Co-
Depois de um início missão Europeia.
caótico, foi capaz O princípio do cabeça de lista permite,
no entanto, que os deputados tenham uma
de conduzir a Europa maior influência na escolha do candidato.
na crise da Covid-19 Deste ponto de vista, uma candidatura de
e de manter a unidade Ursula von der Leyen seria também uma
boa notícia para o Parlamento Europeu.
europeia na guerra O Spitzenkandidat está morto. Viva o
na Ucrânia Spitzenkandidatin!
JULHO 2023 - N.º 329 17
 Dinheiro

MOEDA
O Sul quer
destronar
o dólar
A desdolarização do sistema monetário
internacional poderia representar a libertação
da “ditadura” do domínio monetário
norte-americano, defende a aliança dos BRICS.
Mas isso não é assim tão simples
Mail & Guardian
Joanesburgo

O debate sobre a desdolarização A implementação desta moeda inse- “É quase como um relógio: sempre

O ressurge mais ou menos a cada

dois anos. Ultimamente, tem
sido o grupo dos BRICS – Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul – a apelar
à criação de uma nova moeda de reserva.
Ao pôr em causa o domínio do dólar, que,
de qualquer forma, está a desaparecer, esta
nova moeda oferece aos mercados emer-
gentes a esperança de se verem menos vul-
neráveis face às decisões políticas tomadas
pelos Estados Unidos da América.
Numa altura em que o mundo está à
beira de uma nova crise económica e a Rús-
sia é alvo de sanções financeiras, o apelo à
desdolarização parece ser mais popular do
que nunca. No início de abril, Alexander
Babakov, vice-presidente da Duma [Par-
lamento russo], anunciou a criação de uma
nova moeda, que será discutida na cimeira
dos BRICS, em Durban, África do Sul [no
mês de agosto].
AUTORA DATA
F Sarah Smit 17.04.2023
re-se na vontade de este grupo de países
reformar o sistema financeiro mundial,
que critica por conferir privilégios exor-
bitantes aos Estados Unidos da América.
Resta saber se os BRICS, que não conse-
guiram afirmar-se enquanto alternativa
que prometeram ser, são a aliança certa
para destronar o dólar.
Jim O’Neill, o economista que cunhou
o acrónimo BRIC em 2001, escreveu re-
centemente que este bloco deveria ex-
pandir-se e desafiar o domínio do dólar.
Os BRICS – que agora incluem a África
do Sul, uma evolução que Jim O’Neill não
previu – ponderam incluir a Arábia Sau-
dita e o Irão. “A dimensão da economia
norte-americana pode estar a diminuir
em relação a outras que estão a crescer,
nomeadamente a chinesa e a indiana, mas
o dólar mantém-se dominante em muitos
domínios das finanças”, explica.
TRADUTORA
Helena Araújo
que a Reserva Federal norte-americana
[o banco central] embarca num período
de aperto monetário ou de afrouxamento,
as consequências para o valor do dólar são
consideráveis, os efeitos são devastadores
para cada dólar de dívida em dólares que
outros países têm, e isto desestabiliza a
política monetária destes, muito mais do
que as decisões nacionais”, acrescenta.
Quando O’Neill concebeu esta aliança,
que combinava o poder do Brasil, da Rús-
sia, da Índia e da China, estas economias
emergentes estavam destinadas a grandes
feitos. Ele previu que todas, exceto o Brasil,
cresceriam mais depressa do que a média
dos G7 [países ricos] nos dez anos após 2001.
Na sua opinião, o crescimento dos BRICS,
e da China em particular, produziria um
efeito importante na política monetária e
fiscal mundial.
Publicado dois anos após a criação do
euro, o texto de Jim O'Neill sugeria que
chegara o momento de se reforçar politi-
camente esta divisa como moeda [de reser-
va], tal como o iene japonês, que, além do
dólar, são os mais transacionados. A força

18 JULHO 2023 - N.º 329


Numa altura em que o mundo
está à beira de uma nova
crise económica, o apelo
à desdolarização parece ser
mais popular do que nunca
FOTO: GETTYIMAGES
da moeda norte-americana deveria então
constituir um desafio importante para os
países emergentes.
O domínio do dólar, nos últimos 80
anos, remonta aos Acordos de Bretton
Woods [resultado da conferência com
o mesmo nome, realizada em julho de
1944], que permitiu a 44 países criar um
sistema internacional de taxas de câmbio.
Neste sistema, que entrou em vigor em
1958 e terminou no início dos anos 70 [em
agosto de 1971, Richard Nixon pôs fim à
convertibilidade do dólar em ouro, para
fazer face aos colossais défices orçamentais
dos Estados Unidos da América], o dólar
era a única moeda convertível em ouro,
estando as demais divisas indexadas ao
seu valor. O dólar tinha sido eleito para
ser figura central do sistema, porque o
Reino Unido fora tão afetado durante a II
Guerra Mundial que a libra esterlina estava
fora da equação.
Após o colapso de Bretton Woods, o
sistema monetário mundial transformou-se
gradualmente, mas o dólar continuou a ser
a moeda internacional dominante por de-
feito. Como já não está indexado ao ouro, o
apoio de que beneficia baseia-se, em grande
medida, na confiança do poder económico
dos Estados Unidos da América.
Mundo a mudar, devagar
Há quem critique o domínio do dólar, por
este tornar o sistema monetário interna-
cional fundamentalmente instável e in-
justo, levando a taxas de câmbio voláteis,
desequilíbrios macroeconómicos e crises
financeiras frequentes.
No final da década de 1990, o aumento
das taxas de juro nos Estados Unidos da
América fez subir o dólar e levou ao co-
lapso das moedas nacionais, bem como ao
aumento das dívidas em dólares em países
como o México, a Tailândia, a Indonésia,
a Coreia do Sul, a Rússia e a Argentina,
o que desencadeou corridas às divisas e
colapsos financeiros.
A criação de um novo sistema financeiro
estava no centro do projeto dos BRICS. Na
sua primeira cimeira, em Ecaterimburgo,
na Rússia, em 2009, os líderes compro-
meteram-se a reformar as instituições fi-
nanceiras internacionais, para que estas
refletissem melhor a evolução da economia
mundial. A África do Sul aderiu à aliança,
um ano mais tarde. Também em 2009, o
Presidente russo Dmitry Medvedev expres-
sou a sua ambição de criar uma moeda de
reserva mundial.
Entretanto, embora o dólar tenha man-
tido o domínio, a sua quota nas reservas
internacionais diminuiu, segundo estudos
recentes. De acordo com um relatório do
Fundo Monetário Internacional (FMI),
publicado no ano passado, o sistema de
reservas internacionais tem-se caraterizado
por uma erosão gradual do dólar, ao longo
dos últimos 20 anos.
Este declínio tem lugar em duas dire-
ções: “Um quarto para o renminbi chinês
[yuan] e três quartos para as moedas de
...
É perfeitamente
possível conseguir-se
uma alternativa
ao dólar. O que
é menos claro é se
os BRICS – e uma
eventual aliança
que incluiria a Arábia
Saudita – são a melhor
forma de o fazer
países mais pequenos, que desempenham
um papel mais limitado como moedas de
reserva”, afirma-se no relatório.
Os esforços da China para internacio-
nalizar a sua moeda contribuíram para esta
tendência. No final do mês passado, a China
e o Brasil concordaram em abandonar o
dólar e em favorecer as moedas de cada um
nas suas transações comerciais. E, desde as
sanções a Moscovo, que o yuan substituiu
o dólar como a moeda mais transacionada
na Rússia.
“O mundo está a mudar”, afirma Sa-
nisha Packirisamy, economista do [fundo
de investimento] Momentum Investmen-
ts. “A contribuição dos Estados Unidos da
América para o PIB mundial está a dimi-
nuir, e a quota dos mercados emergentes,
sobretudo da China, na economia mundial
está a aumentar”, explica. No entanto, é
provável que demore algum tempo até que
outra moeda ultrapasse o dólar, uma vez
que este continua a dominar o mercado
cambial, acrescenta.
Em 2000, a introdução do euro desen-
cadeou semelhante debate sobre a possi-
bilidade de este vir a substituir o dólar,
salienta. O exemplo do euro demonstrou
que é difícil formar uma união monetária,
porque os países envolvidos têm dinâmicas
diferentes em termos de emprego, inflação
e fiscalidade. “No que diz respeito aos países
dos BRICS, estes têm antecedentes dife-
rentes, perspetivas de crescimento muito
variadas, taxas de inflação muito desiguais,
dinâmicas de mercado laboral muito di-
ferentes e as reformas estão a decorrer a
ritmos também eles muito diferentes”,
esclarece Sanisha Packirisamy.
É perfeitamente possível conseguir-
-se uma alternativa ao dólar, defende o
investigador de economia política Patrick
Bond. O que é menos claro é se os BRICS
– e uma eventual aliança BRICS Plus, que
incluiria a Arábia Saudita – são a melhor
forma de o fazer.
Em 2014, os líderes dos BRICS assinaram
um memorando em que se estabelecia um
Fundo de Reserva de Emergência, ao qual
os membros poderiam recorrer em caso de
dificuldades financeiras. Esta alternativa
ao FMI ainda não está operacional.
Patrick Bond salienta que os BRICS tam-
bém não conseguiram criar uma alternativa
às três principais agências de notação fi-
nanceira. Também não apresentaram uma
alternativa às duas instituições de Bretton
Woods – o FMI e o Banco Mundial. Em vez
disso, defendem uma estratégia de “assi-
milação financeira subimperialista” através
do seu Novo Banco de Desenvolvimento.
“Falam à esquerda e andam à direita”,
conclui.
JULHO 2023 - N.º 329 19
 China
CHINA
A grande
mudança
geracional
Dias a fazer sapatos, num emprego estável, com a possibilidade
de realizar horas extraordinárias? Não, obrigado, respondem cada
vez mais os jovens chineses, para quem a ideia de um
“bom emprego” já não corresponde à dos seus pais
Weixin Shenzhen
Foi assim que Kiki, uma jo-
F vem empregada de entregas
ao domicílio, passou o seu
25.º aniversário: de pé às 7h,
começou a entregar encomendas a partir
das 8h, foi para casa, por volta das 13h,
para comer qualquer coisa ‒ mas nada de
bolo de aniversário, apenas uma tigela de
noodles [símbolo] de longevidade ‒, antes
de voltar ao trabalho perto das 17h, até às
21h. O seu marido também é motorista de
entregas de takeaway, mas faz dias ainda
mais longos.
Há apenas um ano, eram ambos operá-
rios numa fábrica de bicicletas em Tianjin
[a sudeste de Pequim]. Trabalhavam das
8h às 18h, de segunda a sábado, um ritmo
aparentemente mais lento do que o atual,
em que o casal nunca tira um dia de fol-
ga. Mas quando perguntam ao marido de
Kiki porque deixaram os seus empregos
na fábrica, ele responde laconicamente:
“Não se ganhava nada!”
Foi Yang Yu ‒ também ele um antigo
trabalhador de Tianjin que se tornou entre-
gador de comida, profissão que exerce há
cinco anos em Pequim ‒ quem apresentou
o negócio a Kiki.
Nos últimos anos, as novas ativida-
des de entregador de comida, estafeta ou
motorista de VTC [veículo de aluguer com
com condutor] têm sido frequentemente
apresentadas como uma verdadeira reser-
va de emprego para os desempregados.
Mas também se tornaram um “aspirador”,
esvaziando, cada vez mais, as fábricas de
trabalhadores e agravando a escassez de
mão de obra nestes outros setores.
De acordo com os dados fornecidos
AUTORA DATA
F Xin Xiaotong 06.03.2023
20 JULHO 2023 - N.º 329
pelo Gabinete Nacional de Estatísticas
no final de 2021, 200 milhões de pessoas
estavam a trabalhar em “emprego fle-
xível” [freelancer] na China, incluindo
13 milhões de trabalhadores de entregas
de comida. Entretanto, o Ministério dos
Recursos Humanos e da Segurança Social
prevê que, até 2025, cerca de 30 milhões
de postos de trabalho poderão ficar por
preencher nos dez principais setores da
indústria transformadora chinesa. Na ta-
bela trimestral sobre as profissões mais
necessitadas de trabalhadores, publica-
da a cada três meses pelo ministério, as
profissões relacionadas com a indústria
transformadora representam cerca de
40% das mais afetadas.
Não é segredo que os jovens não gostam
das fábricas tradicionais! Ao visitar várias
de calçado em Jinjiang, na província de
Fujian (no Sudeste da China), verifiquei
que a maioria dos trabalhadores tinha mais
de 50 anos. “Nós, que nascemos nos anos
60 ou 70, nessa altura estávamos a lutar
para entrar na fábrica [que proporciona-
va estabilidade no emprego e benefícios].
Mas, agora, os jovens na casa dos 20 ou 30
anos fazem de tudo para sair”, diz Cai, que
gere uma fábrica de calçado em Jinjiang.
Para onde vão estes jovens trabalha-
dores? De acordo com um documento,
publicado em março de 2022 pela Fede-
ração dos Sindicatos de Guangzhou, em
2021 havia cerca de 80 000 trabalhadores
de entregas de comida na cidade, 68,4%
dos quais tinham menos de 25 anos. Já
em 2020, o gerente de uma fábrica em
Jinjiang, Ouyang Qun’er, confessara-me:
“Em vez de trabalharem numa fábrica, os
TRADUTORA
Helena Araújo
jovens de hoje ainda preferem sair para
entregar comida.”
Como me explicou Kiki, quando ela e o
marido trabalhavam como aprendizes de
soldador na fábrica de bicicletas recebiam
alimentação e alojamento no local e, no
momento em que se demitiram, ganhavam
cada um cerca de 6 000 iuanes líquidos [800
euros] por mês. Desde que Kiki trabalha
em Pequim como entregadora de comida,
o seu rendimento mensal é, em média, de
8 000 iuanes e o do marido de mais de 10
000 iuanes, com rendimentos muito mais
elevados no verão do que no inverno.
Por 800 iuanes [cerca de 100 euros],
ambos alugaram um pequeno apartamento
independente, com cozinha e casa de ba-
nho, numa aldeia situada para lá da quarta
circular sul de Pequim. As suas despesas
mensais (excluindo a renda) não ultrapas-
sam os 2 000 iuanes. Assim, o casal ganha
cerca de 3 000 iuanes a mais por mês do
que quando trabalhava na fábrica.
Quanto a Yang Yu, o salário mais do
que duplicou em relação à altura em que
trabalhava como operário, na cidade natal,
por apenas 4 000 iuanes por mês. Nos úl-
timos anos, tem notado uma mudança de
mentalidade, entre as pessoas da sua idade,
em relação a este assunto. Anteriormente,
na cidade natal, era comum considerar-se
“sensato trabalhar como operário durante
alguns anos, para poupar dinheiro antes
de se tornar independente”. Agora, ser
estafeta de comida é visto como a melhor
forma de construir um pé-de-meia: “Sinto
que 70% das pessoas à minha volta estão
a fazer este trabalho”, diz ele.
A concorrência da internet
Ainda de acordo com a Federação de Sin-
dicatos de Guangzhou, a maioria dos tra-
balhadores do setor ganhava, em média,
em 2021, mais de 100 000 iuanes por ano
(8 300 iuanes por mês, ou cerca de 1 100
euros por mês) em Guangzhou.
Embora a atividade não pague tão bem
nas cidades mais pequenas, onde os esta-
fetas não são necessariamente mais bem
pagos do que nas fábricas, a vantagem é que
o período de aprendizagem do trabalho é
muito mais curto, ao passo que nas fábricas
é preciso ganhar anos de experiência para
que o salário melhore.
Segundo o documento publicado pela
federação, nas grandes fábricas o salário
médio anual de um operário ou de um agen-
te de serviço é de 48 660 iuanes, o de um
técnico qualificado é de 75 425 iuanes, o de
um diretor técnico é de 101 370 iuanes e o de
um gerente é de 202 485 iuanes. Verifica-se,
portanto, que numa fábrica é preciso ser,
pelo menos, diretor técnico para ganhar

tanto como um entregador de refeições.
Esta atividade de entrega de refeições
é representativa da era dos pequenos em-
pregos, tais como os motoristas de VTC, os
estafetas, etc. Por detrás do seu apareci-
mento está um problema fundamental: nos
últimos anos, a indústria transformadora
chinesa tem enfrentado a concorrência,
não de fábricas de outros setores, mas de
plataformas da internet e da nova economia.
Na China, a indústria assenta tradicio-
nalmente na mão de obra intensiva, com
margens de lucro relativamente baixas. “A
indústria transformadora tradicional já não
tem a capacidade de reduzir outros custos
em benefício dos seus recursos humanos,
razão pela qual os aumentos salariais têm
sido baixos nos últimos cinco ou dez anos”,
diz Song Bo, investigador do setor na em-
presa de consultoria MIR.
Por outro lado, o valor acrescentado
criado pelo setor terciário, materializado
pela internet, aumentou claramente, com
taxas de crescimento anuais superiores às
do setor secundário. Como salienta Song
Bo, a indústria transformadora é a mais
pressionada pelas alterações do mercado,
enquanto o setor dos serviços é afetado de
forma mais lenta. “Por exemplo, se o preço
das matérias-primas aumentar, as empre-
ILUSTRAÇÃO DE PUDLES, PARA “FINANCIAL TIMES”, LONDRES
sas a montante e a jusante transferirão a
pressão para as empresas de transformação
no meio da cadeia. Estas não terão outra
opção senão poupar nos custos de pessoal,
minimizando os aumentos salariais.”
De acordo com Zhao Xiaohui, um espe-
cialista em recursos humanos na indústria,
com a mudança da situação económica,
tanto a nível interno como global, as em-
presas têm vindo a registar flutuações muito
maiores na produção nos últimos dois anos.
E devido à deterioração das perspetivas de
exportação e ao encurtamento dos prazos
de encomenda há uma elevada rotação de
pessoal na indústria transformadora. “O
facto de as empresas terem frequentemente
...
As novas atividades
de entregador de
comida, estafeta ou
motorista tornaram-
se um “aspirador”,
esvaziando, cada vez
mais, as fábricas
de trabalhadores
de contratar e despedir trabalhadores au-
menta insidiosamente os custos da mão de
obra e reduz a atratividade destas empre-
sas para quem procura emprego”, explica
Zhao Xiaohui.
Neste contexto, a única forma de os
simples operários aumentarem o salário
é prolongar o seu horário de trabalho em
detrimento do descanso. “Ganho 100 ou
300 iuanes por dia. Mas para chegar aos 300
iuanes tenho de trabalhar sem parar um
minuto, e até fazer horas extraordinárias.
Quando chego a casa, só me apetece ir para
a cama”, diz um trabalhador temporário,
de vinte anos, de uma fábrica em Yanshi, na
província de Henan (no centro da China).
Wu Minghai, gerente da fábrica de cal-
çado Xtep em Jinjiang, conta-nos o caso de
um recruta de vinte anos que, depois de ter
recebido o seu primeiro salário, nunca mais
pôs os pés na fábrica. Quando lhe pediu
uma explicação, o jovem respondeu: “Estou
cansado, preciso de descansar.” Wu acei-
tou a sua demissão. Mas, alguns dias mais
tarde, ficou surpreendido por o encontrar
a trabalhar numa oficina. “Gastei tudo, por
isso voltei para ganhar algum dinheiro”,
diz o empregado, nada incomodado.
Wu diz que os jovens são “muito difíceis
de lidar”: “O que lhes interessa são boas
condições de trabalho, alojamento confor-
tável e muitos benefícios, não o dinheiro
que podem ganhar. Como os pais, nascidos
nos anos 60 ou 70, ainda estão a trabalhar,
não têm pressão financeira.”
Valor à liberdade
Na realidade, a verdadeira razão deste fe-
nómeno reside no facto de o modelo de
produção tradicional já não estar adaptado
aos nossos tempos. Os valores que outrora
prevaleciam nas fábricas (“trabalhar até
morrer, mesmo que isso signifique morrer
no trabalho”) são relegados para o século
passado. As fábricas podem publicar nu-
merosos vídeos no TikTok ou no Kuaishou,
apresentando como modelo de virtude
aquele que faz horas extraordinárias sem
parar durante todo o ano, e promovendo o
espírito de trabalho dos operários, mas os
jovens não estão claramente convencidos.
Estes últimos questionam cada vez mais
a utilização generalizada das horas extraor-
dinárias. Na internet, é frequente encontrar
comentários do género: “Se somos pagos à
peça, por que razão o meu patrão me obriga
a fazer horas extraordinárias?” Ou ainda:
“É apenas um trabalho. Porque tenho de
estar preso à fábrica?”
Alguns trabalhadores também sofrem as
consequências das deficiências do sistema
de remuneração da fábrica. “Éramos pagos
à peça, mas muitas vezes, na mesma ofici-
JULHO 2023 - N.º 329 21
 China

22 JULHO 2023 - N.º 329


Entre o trabalho nos serviços e nas fábricas, os jovens chineses escolhem
os empregos onde, acreditam, podem ter maior autonomia
FOTO: GETTYIMAGES
...
Muitos internautas
dizem que os jovens não
querem trabalhar nas
fábricas porque “não
suportam o trabalho
duro e preferem viver
à custa dos pais”. Mas
entregar comida é
também muito físico
na, as pessoas recebiam salários diferentes
pelo mesmo trabalho”, diz Kiki. Segundo
ela, a elevada taxa de abandono dos jovens
deve-se também à falta de equidade nas
fábricas: “Aquele que conseguiu fazer con-
tactos pode ganhar mais dinheiro, enquanto
os últimos a chegar saem por baixo.”
Estes problemas não existem na en-
trega de comida, uma vez que o sistema
informático regista o número de enco-
mendas entregues, sem possibilidade de
favoritismo. No entanto, há preocupações
quanto à falta de proteção dos direitos dos
entregadores. Yang Yu explicou-me que
nenhum entregador ‒ quer exerça o seu
trabalho como atividade secundária ou
principal ‒ tem um salário de base ou co-
bertura da segurança social. Apenas têm
um seguro, mas que são obrigados a pagar
do seu próprio bolso (2,50 iuanes por dia).
Muitos internautas dizem que os jovens
não querem trabalhar nas fábricas porque
“não suportam o trabalho duro e o sofri-
mento e preferem viver à custa dos pais”.
Mas entregar comida é tão físico como tra-
balhar numa fábrica, uma vez que têm de
correr de uma residência para outra sob
todas as condições climatéricas, e tendo
sempre em conta o prazo de entrega. Yang
Yu calcula que, para ganhar mais de 8 000
iuanes, tem de fazer todos os dias a mes-
ma quantidade de trabalho que faria numa
fábrica. Então, por que motivo os jovens
continuam a preferir ser estafetas?
Porque não é apenas o salário que lhes
interessa e, como diz Ouyang Qun’er, os
jovens também valorizam a “liberdade”.
Um antigo operário, que veio para Pequim
no início de 2022 para trabalhar numa fá-
brica de automóveis, tornou-se entregador
em outubro. Explica que, quando entrega
refeições, pelo menos vê o sol e respira ar
fresco; não é como na fábrica, onde passa os
dias à luz de lâmpadas incandescentes, num
ambiente deprimente. A vida numa fábrica
pode ser desanimadoramente monótona,
e Yang Yu achava-a de facto aborrecida:
“Tínhamos o mesmo ritmo sete dias por
semana, durante todo o ano. A fábrica
destrói o moral.” Aliás, jurou nunca mais
lá voltar.
JULHO 2023 - N.º 329 23
 Assalto aos
minerais africanos
NUM CONTINENTE ONDE A CHINA DOMINA A EXPLORAÇÃO DE
RECURSOS COMO O NÍQUEL, O COBRE, O LÍTIO E O COBALTO, OS
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA QUEREM AGORA RECUPERAR
TERRENO E COMPETIR COM O SEU RIVAL. ANGOLA E MOÇAMBIQUE
JÁ BENEFICIARAM DE DOIS GRANDES INVESTIMENTOS

The Economist (excertos)

Londres
 África
A
A Mining Indaba é a maior conferência
sobre mineração em África. A edição deste
ano, que em fevereiro decorreu na Cida-
de do Cabo, África do Sul, atraiu a mais
representada delegação norte-americana
de sempre, incluindo altos funcionários
da Casa Branca e dos departamentos de
Estado, do Comércio e da Energia. A im-
portância desta delegação diz muito sobre
o apetite dos Estados Unidos da América
(EUA) pelos “50 minerais críticos” que
consideram essenciais para reduzir as
emissões de CO2 e, subsequentemente,
criar empregos amigos do ambiente.
Embora a procura por parte dos EUA
seja global, África é um campo de caça
privilegiado: contém cerca de 30% dos
recursos minerais do mundo. E, ao com-
prometerem-se a fazer mineração de ma-
neira diferente – em comparação com o
que a China faz agora e o que o Ociden-
te fazia no passado –, os EUA garantem
que ajudarão a transformar as economias
africanas. “A transição energética é uma
oportunidade para uma transição africa-
na”, assegura Amos Hochstein, enviado do
Presidente Joe Biden para todas as questões
relacionadas com a segurança energética.
Para os norte-americanos, África ajuda
a resolver dois problemas: o primeiro é
a escassez global de minerais, que serão
necessários para que o planeta alcance
os seus objetivos climáticos. A Agência
Internacional de Energia, organismo ofi-
cial de previsão, estima que, em 2040,
os fabricantes de tecnologias de energia
limpa precisarão de 40 vezes mais lítio,
AUTOR
F Não assinado
26 JULHO 2023 - N.º 329
25 vezes mais grafite e cerca de 20 vezes
mais níquel e cobalto do que em 2020.
A procura de metais de terras-raras – 17
elementos químicos perdidos em re-
cantos esotéricos da tabela periódica
de Mendeleiev, usados em tudo, desde
peças magnéticas de turbinas eólicas até
aviões de combate – poderá ser sete vezes
maior, até ao final da próxima década.
O segundo problema, pelo menos para o
Ocidente [a Europa importa 100% destes
elementos críticos], é o controlo despro-
porcional da China das cadeias da abas-
tecimento. Pequim refina 68% do níquel
mundial, 40% do cobre, 59% do lítio e
73% do cobalto, segundo um relatório
divulgado pelo think-tank Brookings
Institution, com sede em Washington.
“Nos últimos quinze anos, a China teve
rédea livre enquanto o resto do mundo
dormia”, lamentou o sul-africano Brian
Menell, CEO da TechMet, empresa de sas chinesas eram donas de quinze das
mineração. dezanove minas de cobalto do país (ou
Embora a China seja menos domi- detinham participações). A decisão de
nante na extração mineira, área em que permitir que uma empresa norte-ame-
as suas empresas enfrentam a concor- ricana vendesse uma das maiores minas
rência de grandes multinacionais, res- de cobalto e cobre do antigo Zaire a uma
ponsáveis ocidentais temem que, sem companhia chinesa, em 2020, é agora
fornecimentos adicionais, seja difícil às considerado um enorme ato de estupidez.
suas empresas alimentar os novos cen- De pouco vale que os fabricantes de bate-
tros de processamento downstream que rias estejam a tentar usar menos cobalto,
esperam construir em países amigos. principalmente devido a problemas ope-
O cobalto, usado em baterias, deixou racionais na RDC. “Não podemos deixar
um gosto amargo aos Estados Unidos da que a China se torne um cartel como a
América. Em 2020, na República Demo- OPEP na exploração de um dos minerais
crática do Congo (RDC), fonte de cerca mais essenciais”, avisa um alto funcionário
de 70% da produção mundial, as empre- norte-americano, referindo-se à Organi-
zação dos Países Exportadores de Petróleo.
DATA TRADUTORA Grafite de Moçambique
28.02.2023 Maria Alves É possível identificar três eixos princi-
pais na política dos EUA. O primeiro é
 ÁFRICA É UM CAMPO DE CAÇA PRIVILEGIADO: CONTÉM
CERCA DE 30% DOS RECURSOS MINERAIS DO MUNDO.
E, AO COMPROMETEREM-SE A FAZER MINERAÇÃO
DE MANEIRA DIFERENTE – EM COMPARAÇÃO COM
A CHINA –, OS EUA GARANTEM QUE AJUDARÃO
A TRANSFORMAR AS ECONOMIAS AFRICANAS
um esforço multilateral no qual parti-
cipam aliados ocidentais. Em junho de
2022, José Fernandez, subsecretário de
Estado norte-americano para o Cresci-
mento Económico, Energia e Ambiente,
anunciou a criação da Minerals Security
Partnership (MSP), que integra todos os
países do G7, a Austrália, a Coreia do Sul,
a Noruega, a Suécia, a Finlândia e a Co-
missão Europeia.
Esta parceria, liderada pelos EUA, ain-
da agora começou. A ideia principal é a
ILUSTRAÇÃO DE GADO, QUÉNIA
de que os membros apoiem as próprias
empresas e proponham projetos de mi-
neração respeitadores dos mais elevados
padrões ambientais, sociais e de gover-
nança corporativa (ESG) [sigla inglesa para
Environmental, Social and Governance].
Este apoio pode assumir a forma de
lóbi diplomático no país onde a mina será
explorada, financiamento para o proje-
to ou ajuda para ali atrair investimentos
privados. Mesmo que não se restrinja a
projetos em África, a parceria foi discutida
por representantes da RDC, de Moçambi-
que, da Namíbia, da Tanzânia e da Zâmbia
que, em 2022, participaram num encontro
em Nova Iorque.
Naquela reunião, o secretário de Estado
Antony Blinken destacou a importância de
uma mina de grafite em [Balama, distrito
da província de Cabo Delgado], Moçambi-
que, cujo proprietário [australiano, Syrah
Resources] recebeu um empréstimo [de
197 milhões de dólares] da Administra-
ção Biden com o objetivo específico de
reduzir o risco de conflito na região ao
criar empregos para os habitantes locais.
O grafite produzido será enviado para
processamento no estado do Louisiana.
[Os EUA “dependem a 100% do grafite
importado”, segundo o Departamento de
Energia, porque a China “produz quase
todo o grafite de alta pureza necessário
para o fabrico de baterias de lítio”].
JULHO 2023 - N.º 329 27
 África
Contexto
Pragmatismo face à rivalidade
entre a China e os EUA
Cortejados pelas duas
grandes potências, os
estados africanos tentam
jogar com a rivalidade
sino-americana, como
fizeram o Djibuti e o
Quénia recentemente.
No Níger, e mais am-
plamente em África,
os Estados Unidos da
América devem “ter uma
abordagem totalmente
holística e global, na qual
a segurança é absoluta-
mente necessária, mas
não suficiente. Impor-
tância da boa governa-
ção, das instituições, da
criação de oportunidades
para os cidadãos dos
países da região – é esta
a abordagem global ao
desafio da segurança que
devemos enfrentar.”
Durante a primeira
viagem de um secretário
de Estado ao Níger,
Antony Blinken, em
entrevista à AFP, expôs
assim o novo paradigma
norte-americano em
África. O retorno dos
Estados Unidos da
América será feito do
ponto de vista da luta
contra o terrorismo,
é claro, mas essa
abordagem por si só
não será suficiente.
Washington parece ter
medido os limites de
uma doutrina insuficiente
de segurança total num
continente tão cortejado.
Isto porque, em África,
a potência rival chinesa
conseguiu desenvolver
uma influência económi-
ca essencial, por meio de
empréstimos de desen-
volvimento e construção
de infraestruturas. E se
Washington denunciou
os contratos unilaterais
e a “armadilha da dívida
chinesa” em que ficaram
presos alguns estados
africanos, o facto é que a
28 JULHO 2023 - N.º 329
China conseguiu cavar o esse pedido, Nairobi re-
seu sulco no continente corra a uma construtora
e deixar uma marca que pública chinesa, que,
poderá perdurar durante portanto, interviria de
muitos anos. forma sensível para os
Presos neste confronto interesses norte-ame-
iminente de poderes ricanos.
entre Pequim e Washing- Mas os Estados Unidos
ton, os estados africanos da América têm os mei-
parecem ter medido uma os para essa recusa? O
linha de ação estreita que diário norte-americano
lhes permite jogar com recorda que o Quénia é
essa rivalidade. “um aliado fundamen-
Assim, em dezembro, tal”, nomeadamente na
o South China Morning guerra contra o grupo
Post (SCMP) indicou que terrorista Al-Shabaab,
o Djibuti tinha decidido considerado pelo Exército
suspender o pagamento norte-americano como
da sua dívida a dois dos “o mais ativo franchising
seus principais credores, da Al-Qaeda no mun-
a China e o Kuwait. Com
esta decisão unilateral, OS NORTE-AMERICANOS COSTUMAM SER VISTOS
o país jogou com a sua
localização geográfica, COMO CONDESCENDENTES, QUANDO ALERTAM OS
essencial para as
ambições chinesas. AFRICANOS PARA OS PERIGOS DE ACORDOS COM A
“O Djibuti tem sido CHINA. “ELES NÃO PERCEBEM NADA DA NOSSA POLÍTICA.
um centro crucial para
a iniciativa das Novas O SUCESSO DA CHINA É QUE AS SUAS EMPRESAS
Rotas da Seda da China,
o plano de infraestrutura CONSEGUEM ACABAR OS TRABALHOS A TEMPO
multibilionário por detrás DA PRÓXIMA ELEIÇÃO”, SUBLINHA UM RESPONSÁVEL
de muitos megaprojetos
em todo o continente”,
lembrou o SCMP. do”. Este assunto é ainda O segundo eixo da política norte-
E é justamente a presen- mais delicado porque -americana envolve projetos de de-risking
ça de tantas instalações Nairobi, depois de ter [redução de risco] das suas agências de
que pode estar por detrás favorecido por muito desenvolvimento, à semelhança do que
dessa decisão, incluindo tempo os laços econó- têm feito em setores como a agricultura
uma “multidão” de bases micos com a China, está ou a energia. O terceiro eixo implica uma
militares que podem agora a distanciar-se de diplomacia mais ativa em África. Desde
proteger o Djibuti de Pequim. Segundo o diário que Joe Biden recebeu mais de 40 líderes
qualquer repercussão queniano THE DAILY NATI- africanos na Casa Branca, em dezembro,
chinesa. ON, os primeiros gestos vários altos funcionários norte-ameri-
O Quénia também do novo Presidente, canos, incluindo a secretária do Tesouro,
jogou nessa rivalidade William Ruto, indica- Janet Yellen, têm visitado o continente
sino-americana. De vam “uma preferência africano. Biden anunciou que efetuaria a
acordo com o WALL STREET por relações diplomáti- sua primeira visita em 2024.
JOURNAL, os Estados cas mais estreitas com
Unidos da América es- as nações ocidentais”. Sucesso em Angola
tão presos num dilema Várias decisões tomadas O corredor do Lobito é um primeiro
estratégico, depois de têm bastado para irritar sucesso diplomático. Há décadas que se
Nairobi ter pedido que a China, a começar pela falava na reabilitação da ferrovia para o
pagassem “pela ex- publicação parcial de transporte de cobre da RDC e da Zâmbia
pansão da base con- um contrato público que para o porto do Lobito, na província an-
junta antiterrorista” em revela condições particu- golana de Benguela. Esta rota é muito mais
Manda Bay. Washington larmente desfavoráveis rápida do que o habitual trajeto rodoviá-
teme que, se rejeitar no Quénia. rio para o porto sul-africano de Durban.
 África

Ao cobrirem com verniz diplo-

ANÁLISE A mático as alianças forjadas no

terreno pelos mercenários do
grupo Wagner, as viagens do

A expansão ministro dos Negócios Estrangeiros de

Moscovo, Sergei Lavrov, a Bamako (Mali)
e a Cartum (Sudão), a 7 e a 9 de fevereiro,

dos mercenários aumentaram as tensões naquela que parece

ser agora a segunda frente da guerra da
Rússia com o Ocidente.
Como diz o historiador francês Gérard

russos Prunier, o exército privado Wagner “está a

comer a carcaça da Françafrique”, o deca-
dente império neocolonial de França. No
O grupo Wagner, braço armado do Kremlin, aproveita-se final de janeiro [depois de, em agosto de
dos laços estreitos criados entre a URSS e o continente durante 2022, terem sido forçadas a sair do Mali,
a descolonização e a Guerra Fria para “comer a carcaça onde estiveram uma década], as tropas
da Françafrique”. Paris está consciente dos perigosos francesas receberam ordens para se retirar
desequilíbrios regionais de outro bastião, o Burkina Faso.
O nervosismo dos Estados Unidos cres-
Daily Maverick ce face ao risco de o grupo se transformar
Joanesburgo numa ameaça geopolítica, com toda uma
série de regimes militares antiocidentais a
dividirem África ao meio, do oceano Atlân-
AUTOR DATA TRADUTORA tico ao Mar Vermelho. A 27 de janeiro, o
F Phillip van 08.02.2023 Maria Alves departamento do Tesouro dos Estados
Niekerk
Unidos rotulou o grupo fundado por Ye-

30 JULHO 2023 - N.º 329

 vgeny Prigozhin de “organização criminosa
transnacional”, à cabeça de “uma rede sis-
temática de execuções sumárias, violações,
tortura e outras formas de violência física”,
no Mali e na República Centro Africana.
Os Estados Unidos estão a tentar que o
grupo seja expulso da Líbia, onde combate
ao lado do general rebelde Khalifa Haf-
tar, e do Sudão, onde se aliou ao general
Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido por
“Hemedti”, em negócios de mineração e
operações bélicas transfronteiriças.
Washington está cada vez mais cons-
ciente de que o Wagner não é um simples
bando de aventureiros a lutar contra jiha-
distas e a explorar minerais. Ele representa
de facto a Rússia – como bem demonstrou
o segundo safari africano de Lavrov este
ano (embora a agenda de viagens do chefe
da diplomacia de Moscovo também reflita
o facto de ter deixado de ser bem-vindo
nas capitais mundiais que costumava fre-
quentar.)
Yevgeny Prigozhin é agora um senhor da
guerra em três continentes (se incluirmos
a Síria), um vigarista que já foi pequeno,
mas se elevou ao cume do poder e da ce-
lebridade graças à sua brutal vontade de
lutar contra inimigos, alimentando dezenas
de condenados no moedor de carne ucra-
niano. [Com milhares de soldados russos
mortos, o líder do Wagner foi autorizado a
recrutar nas prisões russas. Segundo a BBC,
terá visitado pessoalmente várias cadeias,
prometendo aos reclusos que poderiam
regressar a casa livres, com as sentenças
anuladas, se sobrevivessem seis meses a
lutar na Ucrânia.] Há quem acredite que
Prigozhin poderá até tornar-se o próximo
patrão do Kremlin, ou pelo menos um “fa-
zedor de reis” se Vladimir Putin tiver um
fim desagradável.
Propaganda eficaz
Este ano, o Papa Francisco visitou a Re-
pública Democrática do Congo e o Sudão
do Sul, dois países assolados por conflitos
endémicos. Foi efusivamente recebido –
mais de um milhão de pessoas se juntaram
em Kinshasa para ouvir a sua mensagem de
paz. Peregrinos caminharam durante oito
dias para receber a sua bênção em Juba.
Estas são sociedades africanas onde a Igreja
O GRUPO WAGNER ESTÁ A GANHAR PORQUE LEVA
ARMAS, HELICÓPTEROS E MÃO DE OBRA MILITAR PARA
REGIÕES DE ÁFRICA ONDE O COLAPSO DA ORDEM CIVIL
E O DESAPARECIMENTO DAS ANTIGAS FRONTEIRAS
COLONIAIS DEIXARAM UM VAZIO QUE TEM VINDO
A SER PREENCHIDO POR JIHADISTAS E BANDIDOS
Católica continua a ser a única organiza-
ção com credibilidade, projeção nacional
e uma mensagem de esperança – a par dos
anglicanos no Sudão do Sul.
Francisco conquistou os corações das
pessoas, mas podemos repetir a pergunta
de Josef Estaline – “Quantas divisões tem
o Papa?” –, quando, em 1939, escarneceu
da ideia do ministro francês dos Negócios
Estrangeiros, Pierre Laval, sobre uma
eventual bênção do Vaticano a uma aliança
franco-soviética face à ameaça nazi, antes
da Segunda Guerra Mundial.
Esta parece ser a questão. O grupo
Wagner está a ganhar porque leva armas,
helicópteros e mão de obra militar para
regiões de África onde o colapso da or-
dem civil e o desaparecimento das antigas
fronteiras coloniais deixaram um vazio que
tem vindo a ser preenchido por jihadistas
e bandidos.
O ataque do grupo Wagner à presença
de França em África é acompanhado de uma
campanha de propaganda que alimenta o
ódio contra a ex-potência colonial, retra-
tando as tropas de Paris como invasores
predatórios que roubam as riquezas do
continente e escravizam o seu povo.
Um vídeo que circula amplamente nas
redes sociais e no Telegram russo mostra
A amizade entre o Mali e a Rússia,
através dos respetivos ministros dos
Negócios Estrangeiros
FOTO GETTYIMAGES
uma cobra gigante envergando a bandeira
tricolor francesa e anunciando que quer
conquistar África inteira, enquanto esque-
letos assustadores se declaram demónios
enviados pelo Presidente francês, Emma-
nuel Macron. Os valentes combatentes do
grupo Wagner chegam então para resgatar
os soldados africanos desse terrível destino.
Além do seu exército privado e de um
lendário restaurante em São Petersburgo,
frequentado por mafiosos e oligarcas, que
lhe rendeu o apelido de “chefe de Putin”,
Prigozhin é também dono da Internet Re-
search Agency (IRA), uma fábrica de trolls
responsável pela partilha de notícias fal-
sas e mentiras divisivas em mais de uma
dúzia de países africanos. Foi igualmente
indiciado pelo ex-procurador especial
norte-americano Robert Mueller por ter
interferido nas eleições presidenciais de
2016, nos Estados Unidos, para favorecer
Donald Trump.
A ofensiva de propaganda está a re-
velar-se eficaz, sobretudo entre os jovens
da África Ocidental, porque há bases para
isso. Ela traz à tona atrocidades cometidas
pelas forças francesas em décadas passadas,
mas nunca esquecidas. Qualquer intelectual
na África Ocidental francófona que hoje
interpelarem irá falar-vos do assassínio,
supostamente com cumplicidade de Pa-
ris, de Thomas Sankara, ex-Presidente do
Burkina Faso, ou do golpe de 1969 no Mali
que derrubou o socialista Modibo Keita,
JULHO 2023 - N.º 329 31
 África
falecido num campo de detenção [em maio
de 1977, depois de envenenado pelos seus
sequestradores].
Até mesmo o comicamente terrível
“imperador” Jean-Bédel Bokassa, da Repú-
blica Centro Africana, testemunhou como
o seu pai foi espancado até à morte, por se
opor aos trabalhos forçados nas florestas
impostos pelas autoridades francesas, os
quais contribuíram para que a sua mãe
morresse de fome.
Ruanda, a alternativa?
Nos últimos anos, ressurgiu a amargura
sobre o destino dos tirailleurs, os soldados
africanos que, durante a Primeira Guerra
Mundial, lutaram nas trincheiras ao serviço
de França, mas foram esquecidos quando
o conflito terminou. A zona monetária
francesa CFA tem sido criticada como um
vestígio do imperialismo.
A guerra de informação da Rússia,
enquanto se aproveita daquele passado,
também dissemina teorias de conspiração
que fomentam a crença generalizada de que
os terroristas islamistas na África Ocidental
estão a ser patrocinados por França e pelos
Estados Unidos.
É triste que uma organização como o
grupo Wagner, que age de acordo com as
características mais primitivas da explo-
ração colonial e que cometeu atrocidades
bem documentadas contra aldeões africa-
nos, possa reivindicar uma posição moral
elevada. Este é um exército que filmou e
divulgou nas redes sociais imagens de um
dos seus membros a ser executado com uma
marreta. O que isto significa é a retirada
de França. As tropas que saíram do Mali
foram acolhidas pelo Presidente do Níger,
Mohamed Bazoum, que está sob pressão e
não quer acomodar novos refugiados vindos
do Burkina Faso.
A propaganda do grupo Wagner parece
indicar que o seu próximo alvo é a Costa
do Marfim, a potência económica da África
francófona, onde o mandato do Presiden-
te, Alassane Ouattara, termina em 2025.
Prigozhin está também a cortejar Sassou
32 JULHO 2023 - N.º 329
Nguesso, no Congo Brazzaville. Avançar
para qualquer um destes dois países sig-
nifica mover este exército de mercenários
do Sahel para a costa atlântica, mais perto
das riquezas petrolíferas do golfo da Guiné.
A luta de França para resistir a este ata-
que violento obrigou-a a procurar novos
aliados, entre eles o Presidente do Ruanda,
Paul Kagamé, um velho inimigo que acusou
França de possibilitar o genocídio de tutsis
por extremistas hutus entre 7 de abril e 15
de julho de 1994.
[A 28 de maio, durante uma visita oficial
a Kigali – depois de um périplo “sem grande
entusiasmo popular”, segundo a imprensa
francesa, por Angola, Gabão, Congo-Bra-
zzaville e Congo-Kinshasa –, Emmanuel
Macron homenageou as quase 800 mil ví-
timas ruandesas, dizendo: “Reconheço as
nossas responsabilidades. França não foi
cúmplice, mas por muito tempo prevaleceu
o silêncio sobre o apuramento da verdade.”
Não pediu desculpas, referindo que só os
sobreviventes “podem talvez perdoar”. Ka-
gamé elogiou as palavras de Macron como
um ato de “imensa coragem”.]
O Ruanda poderá oferecer uma força
africana disciplinada, que tem sido bem-
-sucedida no combate ao terrorismo jiha-
dista – e isso deita por terra o principal
argumento do grupo Wagner. Será que
Kagamé poderá ser convencido a ocupar
a vaga deixada pelos franceses no Burkina
Faso e a manter o grupo Wagner de fora?
Um académico africano comentou:
“Prigozhin é um durão, mas há um du-
rão ainda maior em África.” [Uma alusão a
Kagamé, que tem sido acusado de desesta-
bilizar a vizinha República Democrática do
Congo por, supostamente, cobiçar as suas
riquezas. Em abril, durante uma viagem ao
Benim, à Guiné-Bissau e à Guiné-Cona-
cri, Kagamé disse: As potências ocidentais
“queixam-se da presença da Rússia e da
Os mercenários russos têm
conseguido aliados em muitos
países africanos, como o Mali
FOTO: GETTYIMAGES
Geopolítica
As apostas
ocultas
do conflito
no Sudão
A Rússia e os Emirados Árabes Unidos são no-
tórios apoiantes do general Hemedti, no conflito
que estalou este ano no Sudão. O ouro, abundante
no país, explica em parte esse apoio. Em particular,
permitiu ao grupo paramilitar russo financiar as
suas operações no continente africano.
O ouro é o “combustível” do conflito no Sudão.
É certo que a população sudanesa é dramatica-
mente pobre, mas o subsolo do país está repleto
de “recursos significativos em petróleo, ouro e
outros minerais preciosos como prata, ferro”,
detalha o jornal belga LE SOIR.
Com a secessão do Sudão do Sul em 2011, que
privou Cartum de “75% das suas reservas de
petróleo”, o país voltou-se para a exploração de
ouro, cujas principais minas se situam no Darfur.
Hemedti, natural dessa região, estabeleceu o
controlo sobre o tráfico do metal precioso, tor-
nando-se assim o homem mais rico do país.
Os apetites russos e dos emirados por ouro
explicam em parte o seu apoio ao general He-
medti. Mesmo antes do conflito, o ouro sudanês
inundou o mercado interno dos Emirados. Por
meio de um sistema complexo, “Dubai, um
dos principais centros de comércio de ouro do
mundo, forneceu os meios para trocar esse ouro
por dinheiro. Mais uma vez, os Emirados Árabes
Unidos emergiram como um importante centro
que liga os atores locais às potências globais”, diz
o MIDDLE EAST EYE.
RÚSSIA QUER MONOPÓLIO DO PETRÓLEO
Quanto aos interesses russos, o grupo Wagner
enriqueceu graças às concessões de ouro no
Sudão, observa o site PAN-ÁRABE. Este ouro
sudanês também lhe permitiu financiar as
suas operações no continente africano. Esses
links explicam que, desde o início do conflito
entre Hemedti e Al-Burhan, o grupo Wagner
forneceu mísseis às RSF para o apoiarem na
sua luta contra o exército do país, segundo
informações da CNN.
Mas a Rússia tem outro interesse no Sudão, um
interesse geoestratégico. Moscovo quer cons-
truir uma base naval em Port Sudan para a ligar
à sua base em Tartous, na Síria, e estender a sua
influência no Mar Vermelho. O objetivo, analisa
o THE NEW ARAB, é “dominar assim o tráfego ma-
rítimo do Mediterrâneo ao oceano Índico”.
No entanto, lembra a imprensa saudita, quem
detém o Mar Vermelho detém “a principal
artéria de exportação de petróleo”, por onde
transitam 4,5 milhões de barris por dia. A Rús-
sia, se conseguir estabelecer essa base, poderá
então “controlar a oferta mundial de petróleo e
aumentar a sua influência na política energética
dos países do golfo”, senão do mundo.
China em África, mas porque têm elas o Investigação
direito de estar aqui e outras não?”]
Chineses assassinados
A importância do Sudão na República Centro-Africana:
Como prémio, o Sudão está um passo à o constrangimento de Pequim
frente dos países do Sahel dilacerados por
conflitos: é uma nação árabe na encruzilha-
e a sombra de Wagner
da entre a África Central, o Corno de África O massacre de nove trabalhadores na República Centro-Africana questiona a capacidade
e o Médio Oriente, e ainda um parceiro da China de proteger os seus cidadãos no exterior. Se o grupo Wagner foi apontado,
crucial do Egito. Pequim nega qualquer envolvimento russo, em nome da sua aliança com Moscovo
Em outubro de 2021, o movimento re-
O que realmente aconteceu no dia 19 de março, numa mina de ouro na República
volucionário civil que conduzia o país para
Centro-Africana? Mais de três meses depois, o NEW YORK TIMES voltou a dar conta do
a democracia foi expulso por uma junta
assassinato de nove mineiros, de nacionalidade chinesa, perto da aldeia de Chimbolo,
militar, agora dividida entre o seu Presi-
a nordeste de Bangui, a capital. Nesse dia, segundo o diário americano, um grupo de
dente, o general Abdel Fattah al-Burhan,
homens armados invadiu uma mina de ouro pertencente ao Gold Coast Group.
chefe do exército nacional e velho aliado do
Esta empresa chinesa é, segundo a descrição do NEW YORK TIMES, “uma das muitas
Cairo, e o vice-presidente, general Heme-
pequenas empresas mineiras chinesas que têm procurado nos últimos anos extrair ouro
dti, que tinha como patrono os Emirados
da República Centro-Africana”.
Árabes Unidos. [Até iniciarem uma guerra
Logo após o ataque, várias questões foram levantadas. Mais de uma dúzia de soldados
em abril, ambos mantinham laços com o
centro-africanos deveriam proteger o local. No entanto, no dia do ataque, apenas quatro
grupo Wagner, garantem fontes regionais
deles, todos sobreviventes ao ataque, guardavam as instalações.
citadas pelo diário The New York Times.]
Outro mistério: as vítimas não foram identificadas, e os seus corpos foram cremados logo
Um antigo mercador de camelos, Heme-
após o atentado. Além disso, os corpos foram colocados pelos assaltantes com o rosto
dti comanda um poderoso exército de mer-
virado para baixo, como quem está a enviar uma mensagem.
cenários, a Força de Reação Rápida (RSF),
Após os assassinatos, as reações oficiais foram rápidas. As autoridades centro-africanas
que sucedeu à milícia Janjaweed [criada
acusaram depressa o grupo rebelde da Coligação de Patriotas pela Mudança (CPC)
pelo antigo ditador Omar al-Bashir para,
de ter orquestrado “inquestionavelmente” este massacre. Mas este negou qualquer
em 2003, eliminar uma rebelião de povos
envolvimento e apontou para o grupo mercenário russo Wagner.
africanos não árabes] em Darfur. Hemedti
Notoriamente apoiado pelo Kremlin, o grupo Wagner está presente na República
foi uma figura central num tiroteio recente
Centro-Africana desde 2018, onde extrai diamantes, ouro e madeira, com o aval
pelo controlo de minas de diamantes na
interessado das autoridades do país. O grupo paramilitar russo, por sua vez, negou
República Centro Africana. [É também dono
qualquer envolvimento, culpando o grupo rebelde.
de uma mina de ouro no Sudão, e o grupo
A China, após este massacre, repatriou cerca de 80 cidadãos, informa o NEW YORK
Wagner é um dos seus parceiros. Através da
TIMES. Mas Pequim refutou firmemente a hipótese do envolvimento da Rússia nesses
empresa Meroe Gold, subsidiária da M-In-
assassinatos, acreditando mesmo que essas acusações tentam minar as relações
vest, de que Prigozhin é dono, segundo uma
sino-russas. O caso é ainda mais embaraçoso porque ocorreu um dia antes da visita
investigação da CNN, o ouro “sai do país
de Xi Jinping a Moscovo.
para o porto sírio de Latakia, onde Moscovo
Para os analistas internacionais, este caso continua a revelar a “crescente desconexão
tem uma grande base aérea, e serve para
entre as ambições económicas da China e o seu aparato de segurança no exterior,
reforçar as reservas russas, ameaçadas pelas
que depende de uma manta de retalhos de exércitos, mercenários e empresas locais
sanções internacionais” e necessárias para
para proteger os trabalhadores chineses”. No entanto, esses trabalhadores enfrentam
continuar a guerra na Ucrânia.]
ameaças crescentes em países como a Nigéria e a República Democrática do Congo,
As RSF são parecidas com o grupo Wag-
relata a pesquisa.
ner: com os seus combatentes [recrutados
O caso é sobretudo indicativo de uma possível divergência de interesses entre a China
para as guerras no Iémen e na Líbia], fazem
e a Rússia no continente africano.
negócios e muito dinheiro. Os homens de
O grupo Wagner está cada vez mais ativo em África, em busca de recursos para contornar
Hemedti entraram na República Centro
as sanções ocidentais impostas à Rússia após a invasão da Ucrânia. No entanto, observa
Africana com os de Prigozhin e agora estão,
Alessandro Arduino, especialista em segurança chinesa do King’s College entrevistado
aparentemente, a ameaçar o Chade, um
pelo NEW YORK TIMES, se “Wagner e a China têm o mesmo interesse em explorar África,
país numa difícil transição desde a morte
Wagner prospera no caos, enquanto a China precisa de estabilidade”.
do seu líder, Idriss Déby, em 2021.
Tudo isto conduziu a uma intensa ronda
de contactos diplomáticos. [Antes da guerra apoiante de Burhan, esteve em Washing- A 21 de janeiro também o Presidente
entre Hemedti e Burhan] Os dirigentes de ton para conversações com responsáveis egípcio, Abdel Fattah El-Sisi, se deslocara
N’Djamena, Cartum e Bangui reuniram-se da Administração Biden, advertindo-os a Cartum. Em fevereiro, seguiu-se o minis-
para discutir a degradação da situação na contra Hemedti e a organização de Pri- tro israelita dos Negócios Estrangeiros, Eli
região fronteiriça onde se encontram o Su- gozhin. Os EUA exigiram de imediato Cohen, e logo depois Sergei Lavrov, interes-
dão Ocidental (Darfur), o Chade e a Repú- ao Sudão a expulsão do braço armado sado numa base naval [em Port Sudan, que
blica Centro Africana. O principal ponto do Kremlin [e mais recentemente, em oferecerá à Rússia acesso ao Mar Vermelho].
da ordem de trabalhos era se haveriam ou abril, acusaram o grupo Wagner de Podemos apostar que nenhum daqueles en-
não de envolver o grupo Wagner. fornecer mísseis terra-ar às RSF, para contros serviu para falar de direitos humanos
Em janeiro, o chefe dos serviços poder continuar a extração e a expor- ou de restaurar a democracia. A verdade é
secretos sudaneses, Mohamed Subir, tação de ouro.] que começa de novo a cheirar a Guerra Fria.

JULHO 2023 - N.º 329 33

 África

MARROCOS
Um castigo
exemplar
Aos 11 anos, Sanaa foi violada, durante vários meses,
por três homens, numa zona rural e pobre do reino.
Quando os agressores foram condenados, em primeira instância,
a penas insignificantes, uma pujante sociedade civil exigiu
justiça, para resgatar a infância roubada da menina
El País (excertos)
Madrid

Sanaa já sabe abrir uma tornei- de audiências. “A tensão no tribunal, as

S ra e acender a luz. Está tam-

bém a aprender a ler e a es-
crever. Em breve, vai iniciar a
formação profissional para ser cabeleireira.
Vive num internato com outras meninas.
“Acaba de completar 13 anos, mas
pensa como uma jovem de 24”, diz Amina
Khalid, secretária-geral da Insaf, associa-
ção marroquina de ajuda a mulheres em
situação de vulnerabilidade, que acom-
panha Sanaa. “Tornou-se mãe à força e
tem de cuidar de um bebé nascido de atos
de violência sexual.”
Quando tinha 11 anos, Sanaa foi repe-
tidamente violada durante vários meses,
na sua casa, numa aldeia de Marrocos,
de onde nunca tinha saído, por três ho-
mens que a ameaçaram de morte se ela
os denunciasse. A gravidez revelou uma
tragédia rural, que escandalizou o país
inteiro.
Num primeiro julgamento, os agresso-
res foram condenados [em 20 de março] a
uma pena irrisória de dois anos de prisão.
Sanaa parecia condenada ao infortúnio,
mas a sociedade civil do reino mobilizou-
-se como nunca e exigiu justiça. E ganhou
o processo: o Tribunal da Relação de Rabat
pronunciou [em 13 de abril] sentenças
de 10 a 20 anos de prisão contra os que
privaram Sanaa da infância.
“Ela voltou a sorrir e recuperou a co-
ragem, mas ter de enfrentar de novo os
violadores em tribunal reavivou as suas
piores memórias e desencadeou uma
crise de histeria”, conta Amina Khalid.
De casaco cor de laranja e calças azuis,
Sanaa chegou muda e cabisbaixa à sala
AUTOR DATA
F Juan Carlos Sanz 16.04.2023
togas negras [de dezenas de advogados,
que lhe ofereceram os serviços] e os uni-
formes da polícia desestabilizaram-na.”
A ativista Amina Khalifa, de 50 anos, é
uma das três mulheres que melhor perso-
nificam a reação da sociedade civil marro-
quina à história da menina violada numa
aldeia de antanho. A primeira salvadora
foi Siham Dich, esteticista, de 39 anos.
Em 2022, quando ia registar uma quei-
xa no tribunal, viu uma garotinha com
um bebé que mal conseguia segurar nos
braços. Era Sanaa.
“O seu olhar perdido chamou-me a
atenção”, disse Siham, depois de conhe-
cido o veredito que aumentou as penas
dos réus. A família dela contou-me uma
história que parecia um pesadelo. Chorei
todas as lágrimas que tinha o meu cor-
po ao tomar conhecimento do destino
terrível daquela inocente. Como uma
criança seria capaz de criar um bebé?”
A sua voz treme de indignação: “Tentei A casa de Sanaa fica perto de Tiflet, 65
falar com ela, mas ela só olhava para o quilómetros a leste de Rabat, e apenas a
vazio. Não parecia perceber o que lhe poucas dezenas de quilómetros do bairro
estava a acontecer. Os pais ficaram tão ultramoderno de Hay Riad, onde se situa
perturbados que nem pensaram em pedir o novo tribunal da capital de Marrocos,
um advogado nomeado pelo tribunal.” mas a séculos de distância de um reino
moderno.
Um destino cruel Siham Dich lançou um grito de alarme
Esta simples cidadã, sem qualquer ligação nas redes sociais. “Assim que tomámos
aos serviços sociais do país, foi visitar conhecimento desta situação, fomos visi-
Sanaa, à sua aldeia, para a ajudar. “Ela tar a família à aldeia e decidimos cuidar da
morava numa casa pequena e rudimentar menina e do bebé”, revela Amina Khalid.
com os pais, a avó e os quatro irmãos”. A secretária-geral da Insaf foi a segunda
Siham Dich descreve uma cabana exígua, salvadora de Sanaa.
num lugarejo com meia dúzia de barracas “Inscrevemo-la num estabelecimento
no meio da floresta. de novas oportunidades para crianças que
não frequentaram a escola”, diz Amina
Khalid. “Está agora num internato com
TRADUTORA alunos da sua idade e só vai a casa aos fins
Maria Alves de semana.” Sanaa teve sorte, acrescenta.
“A família, e a avó em particular, cuida do

34 JULHO 2023 - N.º 329 ILUSTRAÇÃO DE FALCO, CUBA


SANAA COSTUMAVA FICAR EM CASA SOZINHA.
COM MEDO DE QUE ELA FOSSE VIOLADA A CAMINHO
DA ESCOLA, A FAMÍLIA NUNCA A MATRICULOU. TODOS
SUPUNHAM QUE A MENINA ESTARIA SEGURA NA ALDEIA
bebé enquanto ela estuda. Geralmente,
os pais afastam-se das meninas violadas
e das mães solteiras.”
A socióloga e escritora Soumaya
Naamane-Guessous, que ouviu falar de
Sanaa através da Insaf, lançou o terceiro
grito, que retirou a opinião pública da
letargia. A carta aberta, que endereçou
ao ministro da Justiça, Abdellatif Ouahbi,
confrontou toda a sociedade marroqui-
na com o destino cruel vivido por uma
criança no Marrocos profundo. “A viola-
ção abjeta de uma menina de 11 anos, um
julgamento escandaloso!”, insurgiu-se.
“Sr. ministro da Justiça, denuncio uma
injustiça inaceitável. [...] S., paralisada
pelas ameaças dos algozes, permanece em
silêncio [e] terá de viver toda a vida com
uma ferida aberta. Terá de amar um filho,
fruto de uma violência imunda. Terá de
enfrentar o olhar da sociedade, que nem
sempre é clemente. O filho, um inocente
que não pediu para nascer, será sempre
considerado um cidadão ilegítimo.”
Sanaa costumava ficar em casa sozi-
nha, enquanto o pai apascentava o gado
ou ia ao mercado e a mãe trabalhava nos
campos. Com medo de que ela fosse vio-
lada a caminho da escola, localizada a
mais de sete quilómetros da habitação,
a família nunca a matriculou. Todos su-
punham que a menina estaria segura na
calma rural da aldeia.
Acontece que três vizinhos, um deles
familiar afastado, abusaram dela durante
vários meses. Submeteram-na a viola-
ções em grupo, cada vez mais frequentes.
Sanaa ficou apavorada com as ameaças
dos agressores. Eles sabiam quando ela
ficava sozinha, graças às informações
de outra garota da mesma idade. Siham
Dich, a primeira benfeitora de Sanaa,
está convencida de que, “se não tivesse
engravidado, eles teriam continuado a
violá-la”.
Explosão de solidariedade
Como foi possível condenar, em primei-
ra instância, aqueles homens só a dois
anos de prisão por atos tão graves? Em
Marrocos, a pena mínima por violação
é cinco anos de cadeia, podendo chegar
aos 30, se a vítima for menor e se houver
“desfloramento”. Mas os juízes recorre-
ram a muitas circunstâncias atenuantes
e invocaram as “condições sociais” dos
arguidos (a extrema pobreza), a “ausência
de antecedentes criminais” e a “severi-
dade da pena legalmente prevista face
aos factos incriminados”.
Segundo um estudo realizado em
2020 pelo coletivo feminista Masakta-
ch, as sentenças por violação proferidas
em Marrocos não ultrapassaram os cinco
anos de prisão em 80% dos julgamentos
em primeira instância.
“Quase todo o país se pôs no lugar
desta menina, que ninguém parecia que-
rer ajudar”, comove-se Amina Khalid.
“Assistimos a uma explosão de solidarie-
dade popular. A reação da Justiça, que
corrigiu a sentença com extraordinária
rapidez, mostra que a mobilização deu
certo. O presidente do tribunal recusou-
-se a suspender a audiência, depois de
quebrado o jejum do Ramadão, ao anoi-
tecer, e prolongou as deliberações por
quase 12 horas.”
Em Rabat, o Tribunal da Relação [que
julga recursos proferidos em primeira
instância] acabou por condenar Abde-
louahed B., de 29 anos, a duas décadas
de prisão, por “sequestro de menor” e
“atentado ao pudor com violência”. Um
teste de ADN provou ser ele o pai do fi-
lho de Sanaa. Karim A., de 36 anos, e o
sobrinho Youssef Z., de 22, também mo-
radores no vilarejo, foram condenados,
cada um e pelos mesmos crimes, a uma
década na cadeia. Terão ainda de pagar
à vítima 140 mil dirhams (€12 400), a
título de indemnização. O julgamento do
recurso não menciona, porém, o crime de
JULHO 2023 - N.º 329 35
 África
contexto
Feministas vs. islamitas
A próxima reforma do Código de Família,
em Marrocos, terá de corresponder aos
anseios de uma sociedade dividida. Talvez
o rei, Mohammed VI, se apresente como
árbitro.
Uma nova reforma do Código do Direito
de Família, ou Mudawana, foi iniciada
por Mohammed VI, em 30 de julho de
2022, o Dia do Trono. A primeira revisão,
promulgada em 2004, foi descrita no jornal
académico CAHIERS DE L’ORIENT como
“uma revolução jurídica e social, visando
a igualdade de direitos”, “um verdadeiro
desafio institucional e educativo”, que fez
entrar o reino de Marrocos “numa nova
era de modernidade e de consagração
da mulher, enquanto indivíduo de parte
inteira”.
Considerado “inalterável por descender de
escrituras divinas”, o Direito de Família foi
codificado em texto jurídico em 1958, no
reinado de Mohammed V, o “pai da nação
marroquina moderna”, influenciado pelos
princípios do rito maliquita do Islão sunita,
a doutrina predominante no Magrebe,
que se afirma “totalmente fiel à tradição
clássica do Islão. O modelo patriarcal e a
influência do marido sobre a mulher foram
os princípios fundadores do Mudawana,
assentes na lei (xária) e na jurisprudência
(fiqh) islâmicas.
Em 2004, a revisão deste texto muito
conservador dividiu o povo e os políticos
antes e depois da sua aplicação. Não
obstante a indefinição dos seus contornos,
a futura reforma também já está a
agitar a nação. Associações feministas
querem quebrar barreiras em temas
como casamento, divórcio e herança,
mas organizações islamitas mantêm-se
irredutíveis no conservadorismo.
Mohammed VI, o monarca que é também,
constitucionalmente, o “Comandante dos
Fiéis”, vai ter de lidar com duas dinâmicas
opostas: a que aspira a uma modernização
do estatuto pessoal, impulsionada
pela feminização da sociedade, e a
que se mantém apegada a valores
conservadores. Segundo os primeiros
elementos disponíveis, a nova reforma do
Mudawana poderá contemplar a abolição
do casamento de menores (a idade
mínima legal é 18 anos), o reconhecimento
dos testes de ADN para se atestar a
paternidade e, eventualmente, o direito
das mulheres a uma herança igual à dos
homens.
36 JULHO 2023 - N.º 329
Para Abdelilah Benkirane, antigo chefe
de governo e líder do Partido da Justiça e
do Desenvolvimento (PJD, islamita), não
pode haver igualdade na herança, porque
isso estaria em “clara contradição com o
texto sagrado [Corão]”, escreve o jornal
TELQUEL. Uma sondagem, publicada em
17 de março, parece indicar que ele tem
razão. Numa amostra de 1 200 adultos,
78% consideraram que “qualquer reforma
do Código de Família destinada a promover
a igualdade de género deverá basear-se na
xária, a lei islâmica”.
Além destas divisões, Marrocos enfrenta
ainda um clima de turbulência social e
económica, que transformou o ressenti-
mento em “raiva” – contra “insuficientes
postos de trabalho, uma inflação galopante
e serviços de segurança opressivos”, como
constatou Nicolas Pelham, corresponden-
te para o Médio Oriente da revista britânica
THE ECONOMIST. O jornalista que Rabat
expulsou em 2002, quando fazia uma
reportagem para a BBC, comprovou que o
rei está ausente, distante, passando longas
e dispendiosas temporadas no estrangeiro,
sendo cada vez mais criticado.
O jornal israelita HA’ARETZ, num artigo
assinado por Zvi Bar’el, descreve o rei
como “um homem doente [foi operado ao
coração em 2020] que passa mais tempo
em Paris do que no próprio país – dando
instruções aos assistentes e ao primeiro-
ministro por telefone ou Zoom”. A saúde,
acrescenta, não é o único problema.
Recentemente, num encontro com
amigos, foi “filmado em estado de
embriaguez”, e o vídeo apareceu nas
redes sociais. Este escândalo precedeu
outro, depois de três pugilistas alemães,
de origem marroquina, os irmãos Zuaiter,
também referidos no artigo de Pelham,
terem sido fotografados na companhia do
rei no seu palácio, onde se instalaram. Os
irmãos terão “usado as fotografias para seu
benefício – comprando terrenos a baixo
preço e obtendo licenças”, graças aos laços
com Mohammed VI.
Ambivalente, segura por uma linha ténue,
levada a cabo por uma sociedade civil em
plena ebulição, considerada por certos
meios de comunicação próximos do rei
como “necessariamente despolitizada”,
a reforma do Mudawana talvez possa
oferecer ao herdeiro de Hassan II a
oportunidade de servir de árbitro e de
conciliador.
AS SENTENÇAS POR
VIOLAÇÃO PROFERIDAS
EM MARROCOS NÃO
ULTRAPASSARAM
OS CINCO ANOS DE
PRISÃO EM 80% DOS
JULGAMENTOS EM
PRIMEIRA INSTÂNCIA
violação, embora este conste do Código
Penal marroquino.
A infância de Sanaa foi violada por três
homens, durante meses. O pano de fundo
desta tragédia é a situação socioeconó-
mica miserável da família. “Ela deveria
deixar a aldeia para se esquecer do que
aconteceu e integrar-se na sociedade”,
salienta Amina Khalid. “O Ministério da
Solidariedade e Inclusão Social prometeu
ajuda, mas ainda nada fez. O mesmo se
passa com o anúncio feito pelo Ministério
da Justiça, de que seriam agravadas as
penas contra violadores e de que seria
imposto aos juízes um limite ao uso de
circunstâncias atenuantes. Uma coisa
é certa: neste caso, a nossa associação
jamais abandonará Sanaa.”
Amina Khalid destaca a criação de
um movimento com o objetivo de rever
a lei sobre violência sexual e também o
Mudawana (Código da Família), sujeito a
uma primeira reforma, promulgada por
Mohammed VI, no início do reinado, há
quase 25 anos. O objetivo é corresponder
melhor à evolução da sociedade marro-
quina.
Visivelmente transtornado com a
dimensão dos acontecimentos, o pai de
Sanaa, Mohamed, admitiu no tribunal de
Rabat que a família não esperava que o
primeiro veredito fosse tão brando. “Ficá-
mos chocados”, afirmou. “A minha filha
já sofreu muito, e os danos psicológicos
de que ainda padece são muito graves.”
Agradeceu também às associações que
deram apoio e ajudaram na educação da
menina. “Não temos nada, mas, Alham-
dulillah [graças a Deus], muitas pessoas
estão agora connosco.”
Quanto a Siham Dich, a primeira mu-
lher a estender a mão à menina violada na
aldeia de antanho, lamenta: “Como sou
solteira, a lei marroquina não me permi-
te cuidar de Sanaa como se fosse minha
filha. Mas ela é uma criança inocente e
perdida, e, se for preciso, moverei o céu
e a terra para a ajudar.”
 HERANÇAS
qual o homem recebe o dobro da parte
da mulher”, explica a advogada Ghizlane
Mamouni.

Um dos últimos No entanto, a regra consagrada no Có-

digo de Família que é particularmente mais

tabus condenada por constituir uma desigualda-

de sucessória é a da ta’sib, ou herança por
agnação (consanguinidade por varonia).
Marrocos planeia uma nova reforma do Código da Família, Ela prevê que os parentes mais próximos
desatualizado pela feminização da sociedade. Mas persistem – irmãos e primos em primeiro grau - de
grandes obstáculos, em parte devido a um extremo um falecido que não tenha filhos [ou apenas
filhas] se tornem seus herdeiros.
conservadorismo religioso. “A ta’sib não consta do Corão, mas
Le Soir apenas de algumas correntes específicas
Bruxelas da fiqh [jurisprudência islâmica]”, esclarece
Ghizlane Mamouni, que é também presi-
dente da associação Kif Mama Kif Baba.
Uma medida de precaução Entre os signatários está a teóloga Esta regra, acrescenta, “só se justificava na

U para qualquer eventualidade.

“Somos três irmãs. O nosso pai
pôs tudo o que tinha em nosso
nome, para que, na hora de herdar, não
fôssemos prejudicadas”, diz Sanaa, de 30
anos, residente em Casablanca. “Ele não
queria que os irmãos ficassem na posse da
maior parte dos seus bens.”
Embora o princípio da igualdade esteja
consagrado na Constituição de 2011, as dis-
paridades em matéria de herança continuam
a ser um dos últimos tabus dos direitos das
mulheres em Marrocos. Um osso duro de
roer que, desde há dez anos, ressurge de vez
em quando, tornou-se nas últimas sema-
nas um confronto ideológico entre os que
defendem a evolução da sociedade e franjas
conservadoras apegadas a um sistema que
vigora há séculos.
A liderar a oposição ao projeto de re-
forma está o Partido da Justiça e do Desen-
volvimento (PJD, islamista), que ocupou o
poder durante uma década até ser derrotado
nas eleições legislativas de 2021. Num co-
municado à imprensa, divulgado no final
de fevereiro, descreveu as reivindicações
de igualdade como um “desenvolvimento
perigoso” e uma “ameaça à estabilidade
nacional”, podendo “enfraquecer um dos
pilares da paz social e familiar”.
Dez dias depois, um grupo de trabalho
heterogéneo formado por figuras intelec-
tuais publicou um documento intitulado
simplesmente Liberdades Fundamentais.
Nele são apresentadas propostas a favor das
liberdades individuais, incluindo alterações
à questão da herança, a sua distribuição
equitativa entre homens e mulheres, mesmo
quando os cônjuges não são muçulmanos
- agora excluídos do processo.
AUTOR DATA
F Mehdi Mahmoud 12.04.2023
progressista e feminista Asma Lamrabet
[bióloga de profissão e autora do estudo “A
classificação dos conceitos de não violên-
cia contra a mulher no Corão e na Suna”,
onde afirma que “a violência e o domínio
exercidos sobre as mulheres devem-se a
costumes e tradições, não aos textos re-
ligiosos”].
Em 2018, e devido às suas posições a
favor da reforma do direito sucessório, Asma
Lamrabet foi obrigada a renunciar ao cargo
de diretora do Centre d’études féminines em
islam (CERFI, Centro de Estudos Femininos
no Islão, que integra a Rabita Mohammadia
dos Ulemas de Rabat, uma associação cria-
da pelo rei Mohammed VI, em 2006, para
promover um “Islão tolerante”.]
“A questão da herança sempre foi um
tabu e quem ousou sugerir a alteração das
regras tem sido vítima de ameaças e até de
excomunhão”, lamenta Nouzha Skalli, que
foi ministra do Desenvolvimento Social,
Família e Solidariedade, entre 2007 e 2012.
Falta de coragem
O assunto divide a opinião pública, em es-
pecial pelo prisma religioso. Uma sondagem
publicada em maio de 2022 pela Organização
Marroquina dos Direitos Humanos e pela
associação de Mulheres Marroquinas para a
Investigação e o Desenvolvimento indicou
que 44% das pessoas (de 1200 inquiridos)
rejeitam qualquer alteração no que toca à
herança.
O ordenamento jurídico marroquino em
matéria sucessória assenta numa referência
dupla: religião e direitos humanos. “Apesar
das leituras teológicas que tendem para a
igualdade total na herança, em Marrocos
continua a ser sagrada a regra segundo a
TRADUTORA
Maria Alves
época em que apenas os homens tinham
obrigações e responsabilidades no cuidado
da família.”
Uma lógica que se baseava num siste-
ma tribal há muito desapareceu a favor da
família nuclear, até mesmo da monoparen-
talidade. Em 2020, segundo dados do Alto
Comissariado para o Planeamento, 16,7%
dos agregados familiares em Marrocos eram
chefiados por mulheres.
Nouza Skalli vê nisto a persistência de
uma “injustiça particularmente flagrante”.
Ela considera que a aplicação desta regra
“obsoleta” é “incompatível com as novas
realidades sociais”. Na sua opinião, “é um
dispositivo que desestabiliza profundamente
as famílias, mas sobretudo as mulheres e,
em especial, as mais vulneráveis. Da noite
para o dia, há viúvas que são expulsas de
suas casas ou privadas dos seus bens, em
benefício de pessoas que, por vezes, nem
sequer conhecem”.
Este ano de 2023 pode ser o início da
mudança. Ao dedicar-lhe uma grande parte
do seu discurso no Dia do Trono, no final
de julho de 2022, o rei Mohammed VI abriu
caminho a uma reforma abrangente do Có-
digo Penal e do Moudawana – o Código da
Família, que já havia sido revisto em 2004
e onde figura o direito sucessório – para
garantir mais igualdade entre homens e
mulheres.
A reformulação do Moudawana em
matéria de herança continua, porém, a ser
objeto de um ângulo morto a nível políti-
co. “Há falta de coragem”, apesar de “uma
maioria parlamentar muito confortável se
definir como progressista”, critica Ghizlane
Mamouni. “Os partidos políticos parecem
estar à espera de uma arbitragem régia, com
recurso à Constituição, como aconteceu
em 2004, quando foi criada uma comissão
real. Mas esperar significa deixar mulhe-
res e crianças a viver por mais tempo em
situações de precariedade e injustiça.”

JULHO 2023 - N.º 329 37

 Olhar

Marte na Terra
OS HUMANOS NUNCA FORAM AO PLANETA VERMELHO, MAS
HÁ ANOS QUE ANDAM A ESTUDAR, EM MISSÕES DA NASA COMO
DA AGÊNCIA ESPACIAL EUROPEIA, O LOCAL MAIS PARECIDO NA
TERRA: UM SEGMENTO DO RIO TINTO, COM CERCA DE 50 KM DE
EXTENSÃO, A OESTE DE SEVILHA, ONDE A NATUREZA PARECE
SER… DE OUTRO MUNDO
Fotos de Octávio Passos – Getty Images

38 JULHO 2023 - N.º 329

JULHO 2023 - N.º 329 39
 Olhar

40 JULHO 2023 - N.º 329

 Após anos
de pesquisas,
os cientistas
descobriram
que a origem da
aparência marciana
do rio deve-se à
sua composição
química ácida única,
com uma grande
presença de jarosita,
um sulfato de ferro
e potássio – mineral
também descoberto
em Marte. Além
disso, o Planeta
Vermelho e o rio
Vermelho também
contêm grandes
quantidades de
gás metano. Por
isso, segundo a
BBC, se existisse
água em Marte,
provavelmente ela
seria muito parecida
com a que se
observa no rio Tinto

JULHO 2023 - N.º 329 41

 Olhar

Vista aérea das

minas de Rio Tinto

42 JULHO 2023 - N.º 329

JULHO 2023 - N.º 329 43
 Olhar

44 JULHO 2023 - N.º 329

 Os “Pináculos”
no reservatório
de Gossan, nas
minas de Rio Tinto,
província de Huelva,
Espanha. Uma
paisagem marciana
no planeta Terra

JULHO 2023 - N.º 329 45

 Agentes
(pouco) secretos
A GUERRA NA UCRÂNIA TEM VINDO A PROVOCAR,
DESDE HÁ VÁRIOS MESES, VAGAS DE EXPULSÕES
E CONTRAEXPULSÕES DE DIPLOMATAS RUSSOS E DOS SEUS
HOMÓLOGOS OCIDENTAIS, COMPARÁVEIS AOS NÍVEIS DA GUERRA
FRIA. ESTAS MANOBRAS SÃO APENAS A PARTE VISÍVEL DE UM REFORÇO
DA ATIVIDADE DOS SERVIÇOS SECRETOS RUSSOS
NA EUROPA E NO RESTO DO MUNDO, AFIRMAM ESPECIALISTAS
CITADOS POR MEIOS DE COMUNICAÇÃO OCIDENTAIS. OS AGENTES
DE MOSCOVO NÃO SÃO, PORÉM, OS ÚNICOS A MOBILIZAREM-SE NESTE
SENTIDO. IGUAL ENERGIA É DESPENDIDA PELA CHINA E PELO IRÃO,
NA PERSEGUIÇÃO DE DISSIDENTES E PROCURA DE TECNOLOGIAS
AVANÇADAS. A EUROPA, GOSTE OU NÃO, ENTROU DE FACTO
NA “DÉCADA DOS ESPIÕES”

FOTOS: GETTYIMAGES
 Espiões

A Europa entrou na
década dos espiões
Dois grandes casos recentes mostram que à Rússia interessa
principalmente o maior dos países nórdicos, candidato à adesão
à NATO. Para o chefe da contraespionagem sueca, trata-se
de uma rivalidade entre regimes totalitários e democracias,
e não de um regresso à Guerra Fria.
Politiken
Copenhaga

A julgar pela amplitude dos contra o Estado, embora seja claramente

A casos de espionagem, a Rús-

sia está muito mais ocupada
em infiltrar-se na sociedade
sueca do que na dinamarquesa. Ou então
o aparelho de intelligence sob as ordens
do ex-oficial do KGB Vladimir Putin teve
menos sorte deste lado da ponte de Ore-
sund, que liga a Dinamarca à Suécia.
Em pouco mais de dez anos, ape-
nas duas sentenças foram proferidas na
Dinamarca, no âmbito da lei que pune
pequenos delitos de espionagem: uma, foi
a condenação de um professor finlandês
da Universidade de Copenhaga; a outra,
a condenação de um jovem russo, enge-
nheiro químico na Universidade Técnica
da Dinamarca. Este recebeu uma pena
de três anos de prisão e deportação, de-
pois de um julgamento à porta fechada
em Aalborg, no Norte da península da
Jutlândia.
A Suécia, pelo contrário, só nos úl-
timos meses registou dois casos muito
invulgares, com um antigo funcionário
do Säpo, o serviço de segurança nacional,
condenado a prisão perpétua, e um casal
russo preso numa operação espetacular*.
Este casal é suspeito de ter agido como
uma célula adormecida durante vários
anos, quase como os [Jennings] da série
televisiva The Americans.
No mais recente relatório anual do
Säpo, a Rússia é apontada, inquestiona-
velmente, como a maior ameaça à Suécia,
e isto numa altura em que este pais, após
décadas de neutralidade, bate à porta da
NATO [o pedido de adesão está pendente
da ratificação pela Turquia e pela Hun-
gria]. Os métodos russos incluem a propa-
gação de teorias da conspiração e retórica
AUTOR
F Hans Davidsen-Nielsen
demasiado tarde para impedir que a Suécia
se junte à aliança militar ocidental, depois
da Finlândia, que se tornou, a 4 de abril,
o mais novo membro.
“São imprevisíveis as ações de um
regime que não hesita em correr gran-
des riscos”, lê-se no relatório do Säpo
sobre a Rússia, o qual também considera
a China “uma ameaça crescente a longo
prazo” e o Irão “uma ameaça tangível à
segurança”. Estas potências estrangeiras,
adianta o documento, “dedicam recursos
significativos à aquisição ilegal de tecno-
logias sofisticadas na Suécia. A agressão
da Ucrânia, em particular, aumentou a
necessidade de a Rússia obter tecnologia
para manter a sua capacidade militar.”
Como responsável pela contraes-
pionagem no Säpo desde 2015, Daniel
Stenling passou pela desagradável ex-
periência de ter uma “toupeira” na sua
própria agência em Estocolmo. Trata-se
de Peyman Kia, 42 anos, sueco de ascen-
dência iraniana, que trabalhou durante
anos no equivalente sueco ao PET [serviço
de segurança do Estado da Dinamarca], televisão SVT que este caso “foi um dos
enquanto colaborava secretamente com mais danosos para a história da Suécia,
o GRU [agência militar de espionagem, porque, apesar dos desmentidos, os dois
criada pelos bolcheviques em 1918 como irmãos terão fornecido a Moscovo a lis-
estrutura rival do KGB na União Soviética]. ta completa de todos os operacionais do
Em 19 de janeiro, Peyman Kia foi Säpo”.]
condenado a prisão perpétua por um Como houve recurso da sentença,
tribunal de Estocolmo, perante o qual Daniel Stenling não pôde adiantar mais
compareceu juntamente com o irmão sobre o julgamento do ex-funcionário do
mais novo, Payan, de 35 anos, por terem Säpo, vigiado desde 2017 e detido há dois
fornecido documentos ultraconfidenciais anos. Em primeira instância, o réu foi
ao GRU, em troca de centenas de milhares condenado por ter usado o seu telemóvel
de coroas suecas, entre 2011 e o final de para fotografar documentos secretos que
2021. [Joakim von Braun, especialista em depois foram transmitidos aos russos pelo
espionagem, disse à estação pública de seu irmão, condenado a nove anos e dez
meses de cadeia.
“Este é um caso que levamos muito
DATA TRADUTORA a sério”, garante Daniel Stenling ao Po-
09.03.2023 Maria Alves litiken. “Também vimos quais as conse-
quências para a nossa segurança inter-

48 JULHO 2023 - N.º 329


OS SERVIÇOS SECRETOS OCIDENTAIS ESTÃO AGORA
MAIS INTERESSADOS NA CONTRAESPIONAGEM DO
QUE NA LUTA CONTRA O TERRORISMO, COM A RÚSSIA
A REPRESENTAR A AMEAÇA PRINCIPAL E A CHINA
O ADVERSÁRIO NÚMERO UM A LONGO PRAZO
na, para a podermos melhorar. Temos
mantido contactos regulares com serviços
de espionagem estrangeiros sobre as cir-
cunstâncias do processo, mas, até que
a justiça finalmente se pronuncie, não
posso afirmar com certeza que a pessoa
é realmente uma ‘toupeira’.” [Depois
desta entrevista, Peyman Kia admitiu
parcialmente, no recurso, os factos de
que era acusado.]
Segundo o último relatório anual do
Säpo, ainda persistem os antigos métodos
de obtenção de segredos, com recurso a
redes humanas por parte de potências
estrangeiras. Os russos têm feito enor-
mes esforços para identificar e recrutar
potenciais agentes entre quem se mostra
motivado/a, financeira ou ideologicamen-
te, ou desiludido/a com as suas carreiras,
procurando vingança.
As principais ameaças
Um dos grandes especialistas sobre esta
matéria, Michael Jonsson, vice-diretor
da Agência Sueca para a Investigação em
Defesa (FOI), escreveu, na revista Politi-
co, que não apenas a Suécia, mas toda a
Europa, entrou na “década dos espiões”.
Ação como
nos filmes
Na madrugada de 22 de novembro
de 2022, soldados de uma unidade
de elite do Exército sueco desceram
de dois helicópteros Black Hawk e
entraram pela janela da residência
do casal Sergey Skvortsov e Elena
Koulkova, enquanto carros da
polícia montavam um cerco,
relatou o jornal londrino THE
GUARDIAN. Foi uma operação
de “grande complexidade e
cronometrada ao segundo”,
disse ao diário sueco AFTONBLADET
o diretor da Polícia Nacional,
Stefan Hector, porque o objetivo
era preservar todas as provas,
para que “não fossem destruídos
computadores” ou eliminados
documentos pela “sanita”.
Skvortsov e Koulkova, ambos
na casa dos 60 anos, cidadãos
oriundos dos Urais e residentes
na Suécia desde 1997, habitavam
numa moradia no subúrbio de
Nacka, a leste de Estocolmo.
Também são donos de uma casa
na Rua Zorge, em Moscovo, “um
verdadeiro ninho de agentes do
GRU”, a espionagem militar russa,
segundo o site de investigação
BELLINGCAT. Tinham várias pequenas
empresas que “importavam
e exportavam componentes
eletrónicos para navios e aviões”.
Utilizavam frequentemente as
redes sociais russas para partilhar
fotografias das suas viagens de
turismo à Itália e à Noruega.
Deixaram de o fazer em 2013,
altura em que se terão tornado
espiões de Moscovo. Foi em 2016
que o casal começou a ser vigiado
pelos serviços secretos suecos,
porque uma das suas empresas
era “controlada a 100%”por outra
com sede em Chipre, propriedade
de um agente russo, expulso de
França por espionagem em 1981,
informou o diário LE MONDE. A
Procuradoria-Geral da Suécia
acusou o engenheiro Skvortsov de,
nos últimos dez anos, ao serviço do
GRU, ter levado a cabo “atividades
de espionagem ilegais e graves”,
contra a Suécia e os EUA. Ficou em
prisão preventiva. A matemática
Koulkova foi considerada cúmplice
e pagou uma fiança para sair em
liberdade.
JULHO 2023 - N.º 329 49
 Espiões

O número de casos lembra a Guerra Fria,

que terminou oficialmente em 1991 com
o colapso da URSS.
De 2010 a 2021, foram condenadas
por espionagem, em diferentes países
europeus, 42 pessoas. Nos últimos anos,
porém, o número de julgamentos aumen-
tou exponencialmente, em particular nos
países bálticos [Estónia, Letónia e Lituâ-
nia]. No ano passado, sete russos e três
chineses foram condenados por atividades
clandestinas, mas estes casos represen-
tam apenas a ponta do icebergue, porque
muitas vezes resultam em deportações.
Em abril de 2022, a Dinamarca ex-
pulsou quinze pessoas que trabalhavam
na Embaixada da Rússia em Copenha-
ga, porque, segundo os serviços secre-
tos militares nacionais (FE), realizavam
atividades de espionagem em território
dinamarquês, operando sob cobertura
diplomática. [Em 13 de abril de 2023, Oslo
expulsou também 15 “falsos diplomatas”
e Moscovo retaliou expulsando 10 no-
ruegueses.]
Como se vê, os serviços secretos oci-
dentais estão agora mais interessados na
contraespionagem do que na luta contra

DE 2010 A 2021, FORAM CONDENADAS POR

ESPIONAGEM, EM DIFERENTES PAÍSES EUROPEUS,
42 PESSOAS. NOS ÚLTIMOS ANOS, PORÉM, O NÚMERO
DE JULGAMENTOS AUMENTOU EXPONENCIALMENTE,
EM PARTICULAR NOS PAÍSES BÁLTICOS: ESTÓNIA,
LETÓNIA E LITUÂNIA

o terrorismo, com a Rússia a representar
a ameaça principal e a China o adversá-
rio número um a longo prazo, segundo
Michael Jonsson.
O Säpo tem cerca de 1 400 funcio-
nários, mais do que o PET dinamarquês.
Daniel Stenling, chefe da contraespiona-
gem na Suécia, não quis dizer quantos
deles deambulam pelas ruas de Estocolmo,
para vigiar as tentativas de recrutamento
por parte dos russos e outras atividades
ilegais. Refere apenas que a sua área de
responsabilidade beneficiou de recursos
adicionais significativos, em resposta à
intensificação dos esforços desenvolvidos
nos últimos anos pela Rússia, mas tam-
bém pela China e pelo Irão, em relação a
todos os segmentos da sociedade sueca. A
contraespionagem serve para isso mesmo.
“Resta saber se é realmente um regres-
so à Guerra Fria”, afirma Daniel Stenling.
“É certo que as tensões aumentaram, e
que isso é acompanhado por um reforço
das atividades de espionagem. Estamos
a testemunhar uma corrida global para
obter informações entre Estados tota-
litários e países [democráticos] como a
Suécia e a Dinamarca. Na sua opinião, os
russos estão extremamente interessados
em saber quais os moldes do esperado
acordo entre a Suécia e a NATO [Estocolmo
acredita que poderá tornar-se membro
antes do final deste ano, o mais tardar] e
quais as consequências desta adesão para
os sistemas de armas e o estacionamento
de tropas no reino.
[Em março, o embaixador russo em
Estocolmo, Viktor Tatarintsev, avisou que
a Finlândia e a Suécia vão tornar-se “alvos
legítimos para retaliação”, porque, depois
da adesão à Aliança Atlântica, “a extensão
total das fronteiras entre a Rússia e a NATO
irá quase duplicar”.] “A ameaça russa é a
mais concreta, porque está diretamente
ligada à guerra na Ucrânia”, reconhe-
ce Daniel Stenling. “[Moscovo] carece
de tecnologia para robustecer as Forças
Armadas. Mas não devemos também
esquecer-nos da China, que está muito
interessada na alta tecnologia, na ciência
e nas grandes indústrias de exportação
da Suécia. Os chineses querem ser líderes
mundiais.”
Dito isto, e a acreditar no Kremlin,
os países ocidentais também não hesitam
em espiar na direção oposta. Disse re-
centemente o Presidente Vladimir Putin,
num discurso perante os seus serviços
secretos (FSB): “As agências de espiona-
gem do Ocidente sempre estiveram ativas
na Rússia e estão a mobilizar mais pes-
soal e outros recursos contra nós. Somos
obrigados a reagir em conformidade.”

50 JULHO 2023 - N.º 329

Hungria
Paredes com ouvidos
em Bruxelas
Na capital belga, “centenas de espiões russos e
chineses operam na cidade onde até as paredes
têm ouvidos”, observa a revista húngara HVG. Os
agentes estrangeiros “não vêm apenas de Estados
hostis, como a Rússia, a China ou o Irão”, mas
também de “países amigos, incluindo membros
da União Europeia”, acrescenta.
Para enfrentar esta situação, a Sûreté de l’État
belga [único serviço de espionagem e segurança
do reino] “não tem pessoal”, e os serviços de
contraespionagem nacionais “só foram ativados
depois da invasão russa da Crimeia em 2014, dos
atentados de Paris de 2015 e dos de Bruxelas, em
2016”.
Ainda que a capital belga acolha as sedes
do Conselho Europeu, da Comissão Europeia,
do Parlamento Europeu e da NATO, “não existe
ainda uma CIA europeia ou uma organização que
reúna os serviços dos 27 Estados-membros da
UE”, salienta a HVG
Ucrânia
“Toupeiras”
e traidores
A invasão da Ucrânia pela Rússia agravou
o conflito entre os serviços secretos dos dois
países. Mesmo antes da revolução de Maidan
(Praça da Independência) em 2014, que forçou
a demissão e fuga de Viktor Yanukovych, o
Presidente aliado do Kremlin em Kiev, o FSB russo
(antigo KGB soviético) já havia conseguido infiltrar
profundamente as estruturas do Estado ucraniano.
Desde que as tropas russas avançaram sobre a
Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, o FSB e o seu
congénere ucraniano, SBU, confrontam-se a todos
os níveis. Mas a verdade, informa o jornal digital
ucraniano URAINSKA PRAVDA, num longo artigo
dedicado a este tema, é que o atual confronto não
se iniciou quando a guerra foi declarada. Já existia
antes da revolução de Maidan.
Em que consiste o “trabalho do Serviço de
Segurança da Federação Russa (FSB) no território
da Ucrânia?” É responsável pelo “recrutamento
de agentes, por homicídios, atos terroristas e
ciberataques”, mas também pela “nomeação de
‘fantoches’ para posições-chave nos territórios
ocupados e pela luta contra as opiniões pró-
ucranianas”, escreve o URAINSKA PRAVDA.
Os agentes russos, prossegue este diário de
Kiev, “infiltraram-se nas estruturas estatais mais
fechadas do [nosso] país, tinham agentes no
Ministério do Interior, na polícia judiciária, entre
o clero (cristão ortodoxo), entre deputados e
cidadãos comuns, que estavam dispostos a trair os
interesses da Ucrânia”.
O própria SBU não escapou. Em fevereiro deste
ano, “começou em Kiev o julgamento de Oleh
Kulinich, ex-chefe da estação do SBU na Crimeia,
por suspeita de alta traição”. É acusado de,
“seguindo ordens dos seus contactos russos, ter
ocultado informações sobre o plano do Kremlin
para a invasão em 24 de fevereiro de 2022, após a
ocupação da Crimeia”.
De acordo com o SBU, as atividades do FSB
na Ucrânia “são anteriores à revolução” de
2014. Investigações revelaram que, “durante a
presidência de Yanukovych”, os serviços secretos
russos ter-se-ão infiltrado “no Conselho de
Segurança e Defesa (RNBO)”, graças ao vice-
secretário, Volodymyr Sivkovych, “ele próprio
um antigo membro do KGB soviético, citado no
processo da matança [pelo menos uma centena de
vítimas nos brutais confrontos entre manifestantes
e forças antimotim] em Maidan”, em 2014.
O FSB também recebeu tarefas novas “nos
territórios recentemente ocupados”, onde os
“seus agentes têm poderes ilimitados: nomeiam
novas autoridades, proíbem manifestações pró-
ucranianas, escolhem ‘jornalistas’ para divulgarem
propaganda, pressionam líderes empresariais e
funcionários públicos que se recusam a cooperar.
Vigiam ainda os representantes de serviços
ucranianos. A ‘polícia’ também é controlada
pelo FSB”. São ainda os “yazukas, modo como os
soldados russos designam os agentes
do FSB na zona ocupada”, que exercem “pressões
sobre os trabalhadores da central de Enerhodar
[na cidade de Zaporíjia], para que eles colaborem
com a Rosatom, a agência nuclear russa”.
Graças a todo este dispositivo, conclui o URAINSKA
PRAVDA, “os russos planearam ‘tomar Kiev em
três dias’ – falharam, mas continua a ser vital o
problema das ‘toupeiras’ e traidores no SBU e
noutras estruturas estatais, militares e civis. Porque
os agentes do FSB, especialmente os que integram
círculos dirigentes, podem prejudicar a luta das
Forças Armadas ucranianas.”
República Checa
A guerra na Ucrânia
corre mal
aos espiões russos
Em abril de 2021, o governo checo foi um dos
primeiros na Europa a expulsar diplomatas
russos em grande número: dezoito funcionários
da Embaixada da Rússia em Praga, suspeitos de
envolvimento na explosão mortífera de um depósito
de munições, alguns anos antes. O diário DENIK N
refere que “mais de 400 supostos agentes foram
desmascarados e expulsos por países da União
Europeia”, desde que começou a invasão russa da
Ucrânia, em fevereiro de 2022. A espionagem russa
sofreu o que este jornal designa de “o golpe mais
duro desde o fim da Guerra Fria”.
“A UE, os Estados Unidos da América e os aliados
ocidentais não se limitam a conceder um apoio
muito visível à Ucrânia; estão também a agir
intensamente – e com menos visibilidade –, para
paralisar esta rede [de alegados espiões].”
Reino Unido
Espiões
de aluguer
Numa reportagem conduzida
em parceria com o Bureau of
Investigative Journalism e pu-
blicada a 11 de março, How our
elite troops became spies for
hire (“Como as nossas tropas
de elite se tornaram espiões
de aluguer”), o semanário THE
SUNDAY TIMES deu conta de uma
tendência preocupante no Rei-
no Unido: a fuga de militares e
agentes secretos para o setor
privado. “São espiões, soldados
ou polícias que foram treinados
em operações clandestinas pelo
Estado britânico, à custa dos
contribuintes”, diz este jornal
dominical. No setor privado,
ganham fortunas com as com-
petências em que se especia-
lizaram e que agora usam para
defender Estados autocráticos,
oligarcas e grande empresas.
Desde seguir veículos a en-
cenar entrevistas de emprego
falsas até ao roubo de dados
pessoais em contentores do
lixo, os seus métodos radicais
visam influenciar decisões
sobre processos nos tribunais,
de vários milhões de euros.
“Os Royal Courts of Justice
em Londres, hoje um centro
internacional de disputas judi-
ciais, são o epicentro do setor da
espionagem industrial”, refere o
jornal conservador. “As empre-
sas de detetives que recrutam
os antigos espiões e militares
são atraentes para poderosas
companhias estrangeiras e
nações que podem comprar
todo o arsenal de processos de
justiça modernos.” O seu único
objetivo: a vitória a qualquer
preço. “Em resultado disto, os
tribunais britânicos acabam
muitas vezes por aceitar provas
adquiridas de forma dúbia –
correspondência eletrónica
pirateada, documentos obtidos
de forma fraudulenta e depoi-
mentos de testemunhas su-
bornadas”, critica o THE SUNDAY
TIMES. Alertados, os deputados
britânicos planeiam, “pela
primeira vez, regulamentar o
setor, através de um projeto de
lei, apresentado em janeiro.”
JULHO 2023 - N.º 329 51
 Espiões
Alemanha com pés
de barro
Os serviços secretos germânicos são motivo de chacota
no mundo da espionagem. Em causa estão o amadorismo
e os escândalos que envolvem os seus próprios agentes
Der Spiegel (excertos)
Hamburgo
Quem empurra a porta do pe-
Q queno museu da Rua Haber-
saathstraße, no bairro de
Berlim-Mitte, mergulha num
mundo que dificilmente vemos, a não ser
em filmes de espionagem: um sapato com
um compartimento secreto no calcanhar,
um guarda-chuva equipado com uma câ-
mara escondida, uma caneta esferográfica
com microfone embutido.
O Bundesnachrichtendienst (BND),
Serviço Federal de Informação, também
exibe equipamentos mais modernos num
centro para visitas, ao lado da sua sede:
por exemplo, um cinto de explosivos que
os seus agentes roubaram a islamistas no
Afeganistão, ou ainda uma centrifugadora
de urânio que, misteriosamente, chegou
às mãos do BND.
Em breve, os visitantes poderão ver, à
vontade e sem hora marcada, a exposição
da espionagem alemã. A mensagem que
o BND quer passar é a seguinte: somos
um serviço moderno, transparente, que
não esconde os seus bons resultados.
Resta saber se esta operação de relações
públicas dará frutos. A reputação do ser-
viço já havia sido seriamente manchada,
e um escândalo de traição, que acaba de
rebentar no próprio coração do BND, não
ajuda em nada: num momento em que se
trava uma guerra na Europa, um agente
altamente colocado terá, supostamente,
passado segredos de Estado a Moscovo.
A este caso soma-se uma série de fa-
lhanços, azares e outras desgraças dentro
do BND. Quando os talibãs assumiram o
poder no Afeganistão, em 2021, o serviço
de espionagem alemão já se encontrava
numa situação embaraçosa. É claro que os
seus analistas previram a queda de Cabul.
Mas não que ela fosse tão rápida.
O fiasco na Ucrânia é um vexame ain-
da maior. Embora os Estados Unidos da
AUTORES
F Maik Baumgärtner, Martin Knobbe,
Roman Lehberger, Fidelius Schmid
e Wolf Wiedmann-Schmidt
52
América e o Reino Unido tenham alertado,
repetidamente, para a iminência de uma
invasão russa, o BND mostrou-se cauteloso
durante muito tempo. Foi graças a um
dossiê com documentos secretos nor-
te-americanos – e não alemães – que o
vice-chanceler federal, Robert Habeck,
soube a 23 de fevereiro de 2022 que a guerra
iria começar nessa noite. Um emissário
de Washington entregou-lhe um envelo-
pe contendo as informações, como num
romance de espionagem. O BND não se
A REPUTAÇÃO DO BND SOFREU CONSIDERAVELMENTE
QUANDO SE DESCOBRIU UMA “TOUPEIRA” NAS SUAS
FILEIRAS. ESPECIALISTAS NÃO CONSEGUEM EXPLICAR
COMO É QUE INFORMAÇÕES TÃO SECRETAS PODEM
TER SAÍDO TÃO FACILMENTE. A ISTO SOMOU-SE UMA
SUPERVISÃO, NO MÍNIMO, INCOMPLETA DOS FUNCIONÁRIOS
encontrava em tão maus lençóis desde as fiável e de longo prazo”. Por agora, no
revelações de Edward Snowden [de que a entanto, o que este serviço federal faz
Agência de Segurança Nacional (NSA) dos é principalmente controlo de danos,
Estados Unidos da América estava a usar a depois do caso de espionagem interna
Alemanha como uma placa giratória para que o abalou.
espiar o Velho Continente]. Erich Schmidt-Eenboom, 69 anos, re-
cebe-nos na cave de um prédio residencial
O espião Carsten L. em Weilheim, na Baviera, onde montou o
O diretor do BND, Bruno Kahl, deveria seu escritório. Há anos que este homem
conduzir a sua agência por águas me- é um apaixonado por serviços secretos.
nos agitadas. Se o antecessor, Gerhard Por sorte, é na sua cidade que vive a pre-
Schindler, tinha como lema “sem risco, sumível “toupeira” Carsten L. [detido em
não tem graça”, Kahl, um advogado es- 23 de dezembro de 2022]. A pé, estamos a
pecializado em Direito Administrativo, menos de vinte minutos da pequena casa
adotou um método bem mais moderado. geminada daquele antigo agente do BND,
Internamente, levou a cabo uma vasta agora atrás das grades. “Se, em tempos
reforma estrutural, definindo como ob- de paz, isto era grave, é ainda mais em
jetivo a emergência de um “BND reativo, tempos de guerra, obviamente”, comenta
Schmidt-Eenboom.
Como responsável do gabinete de in-
DATA TRADUTORA formações eletrónicas do BND, Carsten L.
10.03.2023 Maria Alves teve acesso a dados altamente confiden-
ciais recolhidos em todo o mundo, por
 Noruega
Recorde de
expulsões
Nunca antes a Noruega expulsara
tantos diplomatas de uma só vez.
Quinze pessoas, mais de um terço do
corpo diplomático da Embaixada da
Rússia em Oslo, foram declaradas
“personae non gratae”, a 13 de abril.
O embaixador, Teimuraz Ramishvili,
diplomata de carreira, não foi visado,
noticiou o jornal VERDENS GANG, com
sede em Oslo.
As ações daqueles “falsos diplomatas
russos” constituíam “uma ameaça aos
interesses noruegueses”, assegurou a
ministra dos Negócios Estrangeiros, a
trabalhista Anniken Huitfeldt.
De início, este país membro da
NATO e fronteiriço com a Rússia,
referiu que as expulsões não estavam
relacionadas com acontecimentos
específicos; apenas refletiam
uma intensificação generalizada
das atividades dos agentes
russos na Noruega. No entanto,
Os EUA não levam a sério o sigilo posteriormente, informações
Orquestrada por Jack Teixeira, técnico informático da Guarda Nacional divulgadas pelos “media” nacionais
do Massachusetts, a fuga de centenas de documentos confidenciais apresentaram um retrato mais
do Pentágono deixou, em abril, o mundo da espionagem em alvoroço. concreto das ações dos suspeitos.
Contudo, segundo Edward Luttwak, respeitado analista militar do site Por exemplo, um encontro num
UNHERD, o verdadeiro escândalo reside no facto de a grande maioria parque de Oslo em que um “falso
daqueles documentos não ser realmente “top secret”. diplomata” estaria a “tentar recrutar”
“Grandes quantidades de documentos pseudossecretos surgem um empresário norueguês.
sempre que um funcionário de uma embaixada, de um consulado ou Pelo menos cinco dos 15 falsos
do Departamento de Estado acrescenta um comentário aos extensos diplomatas expulsos foram
resumos diários das informações de vários meios de comunicação social identificados como agentes dos
produzidos por todos os postos diplomáticos dos EUA espalhados pelo serviços de “intelligence” da Rússia.
mundo”, diz Luttwak, historiador norte-americano de origem romena. “O frio entre Oslo e Moscovo é agora
“E se o comentário for feito por alguém que trabalha numa estação local glacial”, analisou no seu site, a rádio e
da CIA (basta que alguém teça um comentário crítico da América), esse televisão pública da Noruega, NRK.
acrescento trivial tornar-se-á ‘supersecreto’, mesmo que 99% do seu “A novidade é que a Noruega agiu
conteúdo permaneça acessível ao público, como material de ‘código por sua iniciativa, sem se basear em
aberto’, para todos os membros da organização o verem.” incidentes conhecidos ou em ações
semelhantes dos seus aliados.”
A 26 de abril, tal como prometido,
satélite, comunicações de rádio e internet. Markus R. foi condenado a oito anos de o Kremlin ordenou a expulsão,
Também terá roubado segredos de Estado prisão. num espaço “curto” de tempo,
a serviços estrangeiros. “Poder recrutar O processo de Carsten L., explica Wol- de dez diplomatas noruegueses,
alguém como ele foi um jackpot para fgang Krieger, é de uma outra enverga- considerados “indesejáveis na
Moscovo.” dura. “Ele estava muito bem colocado na Rússia”, e ameaçou tomar outras
O historiador Wolfgang Krieger foi o hierarquia do BND e tinha informações medidas em resposta às “ações
especialista nomeado pelo tribunal para muito confidenciais.” Pouco antes da sua hostis” de Oslo.
um dos casos de espionagem que mais detenção, havia sido promovido a respon-
abalaram o BND: Markus R., um funcio- sável pela segurança do pessoal do BND
nário do arquivo, entregou centenas de em Berlim. Nesse cargo, tinha a respon-
documentos confidenciais à CIA. Mas só sabilidade de testar se os funcionários da
foi descoberto em 2014, quando ofere- agência eram confiáveis. “Foi como fazer
ceu também os seus serviços aos russos. entrar a raposa no galinheiro.”

JULHO 2023 - N.º 329 53

 Espiões

[Em janeiro, foi detido por ‘cumplicida-

de na traição’ um novo suspeito, Arthur E.,
empresário de 31 anos, que terá fornecido
aos serviços secretos russos os dados reco-
lhidos por Carsten L.. Em outubro do ano
passado, já havia sido demitido o diretor
da Autoridade Federal de Segurança Ciber-
nética (BSI), Arne Schönbohm, nomeado
pelo governo de Angela Merkel em 2016,
depois de uma reportagem da emissora ZDF
questionar os seus laços com uma empresa
ligada a espiões russos.]

Salvar a honra
O BND viveu mal as semanas que ante-
cederam a guerra na Ucrânia. Há muito
que se orgulhava de obter informações em
primeira mão sobre o que acontecia em
Moscovo. “Graças à sua perícia, o BND foi
sempre considerado um dos raros serviços
secretos a entender bem a Rússia”, escre-
veu o seu antigo chefe, Gerhard Schindler,
num livro publicado em 2020. Provou-se
que era um pensamento ilusório.
A ilusão durou até fevereiro de 2022.
O BND começou então a julgar que uma
guerra era possível, ao constatar que
haviam sido concluídos os preparativos
para uma invasão. Mas será que Vladimir
Putin iria realmente avançar? Em 23 de
fevereiro, o chefe do BND, Bruno Kahl,
estava em Kiev e tencionava encontrar-se
com os colegas ucranianos no dia seguinte.
Estava plenamente consciente do risco,
garantiria mais tarde.
O que Kahl seguramente não esperava
era que a guerra fosse começar no meio da
sua visita. Naquela mesma noite, funcio-
nários do BND na Embaixada da Alema-
nha em Kiev apressaram-se a destruir os
documentos confidenciais. Kahl partiu na
manhã seguinte num comboio de viaturas
que logo se viu bloqueado por colunas de
refugiados. Demorou 36 horas a atravessar
a fronteira para entrar na Polónia. Nessa
altura, os seus agentes esperavam – tal
como muitos outros – uma vitória rápida
da Rússia. Mais uma vez, estavam seria-
mente enganados.
O BND salvou a honra ao obter infor-
mações na fonte, transmitindo-as aos seus
aliados. Intercetou comunicações via rádio
de soldados russos, confirmando atrocida-
des cometidas contra civis. Os ucranianos ASSASSÍNIOS EXTRAJUDICIAIS, COMO OS QUE SÃO
também receberam assistência discreta do LEVADOS A CABO PELA CIA OU PELA MOSSAD, SÃO
BND, com dados de localização e outras
informações de interesse militar. INIMAGINÁVEIS NA ALEMANHA. EM COMPARAÇÃO
No entanto, a reputação do BND sofreu
consideravelmente quando se descobriu COM OUTRAS AGÊNCIAS DE ESPIONAGEM, AUGUST
uma “toupeira” nas suas fileiras. Espe-
cialistas não conseguem explicar como é
HANNING, UM ANTIGO CHEFE DO BND, ACREDITA
que informações tão secretas podem ter QUE A INTELLIGENCE ALEMÃ ATUA COMO “UM
saído tão facilmente. A isto somou-se
uma supervisão no mínimo incompleta VEGETARIANO ENTRE CARNÍVOROS”
54 JULHO 2023 - N.º 329 “A vigilância eletrónica está em todo o lado… e neste momento há alguém a espiar-nos… Cucu!” ILUSTRAÇÃO DE FABER, LUXEMBURGO
dos funcionários. A última inspeção a
Carsten L. durou quatro anos e ninguém
se preocupou em explorar pistas para as
suas simpatias pela extrema-direita. Em
julho de 2022, ele recebeu a certificação
do BND com a menção “confiável”.
Este caso não é o único, relacionado
com a extrema-direita, que hoje mancha
a imagem do BND. Um dos responsáveis
pela antena de Bad Aibling, na Baviera,
terá ocultado ao empregador a ligação dos
seus filhos adultos a círculos radicais. No
início de outubro de 2022, durante uma
inspeção noturna na A92, perto de Muni-
que, agentes da polícia mandaram parar
um Opel Corsa. O carro era um verdadeiro
arsenal ambulante; além de uma espingar-
da, Max e Leo B. transportavam também
um machado, uma boa dúzia de pistolas
de alarme, uma besta, várias bombas in-
cendiárias, um capacete das Wehrmacht
[Forças Armadas do III Reich] e uma faca
gravada com as letras “SS” [ramo militar
do partido nazi].
Será que os filhos de um funcionário do
BND planeavam um ataque? É o que novas
investigações sugerem. Nós ficámos a saber
que os dois irmãos teriam armazenado
produtos químicos e outros ingredien-
tes para produzir uma bomba. Segundo
o programa Kontraste do canal ARD e a
rádio pública bávara Bayerischer Rund-
funk, investigadores revistaram a casa de
férias da família e aqui encontraram um
busto de Adolf Hitler.
Depois de tudo isto, aumentaram os
apelos a mais reformas nos serviços secre-
tos. Mas os parceiros estrangeiros têm a
impressão de que os colegas alemães estão
prisioneiros de restrições burocráticas e
regulamentares. O historiador Wolfgang
Krieger, que integrou uma comissão inde-
pendente sobre a história do BND, descreve
a gestão dos serviços de espionagem ger-
mânicos como “uma exceção”. Nos Esta-
dos Unidos da América, na Grã-Bretanha,
em Israel, em França ou na Holanda, os
serviços secretos são “parte integrante da
política moderna” – aqui são “um mal ne-
cessário”, observa. “Adaptamo-nos muito
bem aos maus resultados.”
A maior parte dos serviços secretos é
capaz de organizar respostas em caso de
ataques cibernéticos para paralisar ser-
vidores estrangeiros, por exemplo. Os
alemães ainda não podem permitir uma
reação tão musculada. Assassínios extra-
judiciais, como os que são levados a cabo
pela CIA ou pela Mossad, são inimagináveis
na Alemanha. Em comparação com outras
agências de espionagem, August Hanning,
um antigo chefe do BND, acredita que a
intelligence alemã atua como “um vege-
tariano entre carnívoros”.
Pequim, campo de batalha
Uma vasta campanha contra presumíveis espiões está em marcha
na capital chinesa e uma alteração à legislação foi já aprovada, pela
primeira vez desde 2014, para se adaptar às tecnologias modernas,
em particular a segurança cibernética.
Em 26 de abril, após três dias de deliberações, o Comité Permanente
da Assembleia Popular Nacional [ou Congresso Nacional do Povo,
o órgão supremo de poder estatal] votou a favor de uma nova versão
da lei de contraespionagem, proibindo a transferência de qualquer
informação relacionada com a segurança e interesses nacionais, e
ampliando também a definição do que é espionagem.
Embora a assembleia não tenha divulgado o texto completo da lei,
a China News Service (CNS, a segunda maior agência noticiosa
estatal depois da Xinhua) informou que “documentos, dados,
materiais e itens relacionados com a segurança e interesses
nacionais” passarão a ser protegidos como segredos de Estado.
A lei revista não define o que se enquadra na “segurança” ou
“interesses nacionais”, mas expande a definição de espionagem
para incluir “ataques informáticos contra organismos estatais
ou infraestruturas críticas de informação”. Segundo a CNS, as
autoridades poderão doravante exigir “acesso a dados e informações
sobre bens pessoais”, além de “proibir a passagem [de suspeitos]
pelas fronteiras” da China.
A nova versão da lei entrará em vigor a 1 de julho, de acordo com a
Rádio Nacional da China. A alteração da lei, anota, por seu turno, o
semanário japonês NIKKEI TIMES, coincide com a revelação de vários
casos marcantes.
Um dos casos mais emblemáticos é o de Dong Yuyu. Após
mais de um ano de detenção, este antigo subdiretor da secção
“Comentários” do diário oficial GUANGMING RIBAO, que aqui
trabalhava desde 1987 e não escondia as suas ideias liberais, foi
acusado de espionagem, revelou a família à imprensa norte-
americana.
Segundo o diário THE NEW YORK TIMES, Dong Yuyu foi preso, em
fevereiro de 2022, enquanto almoçava com um diplomata japonês,
e nunca mais ninguém o viu. Mantinha contactos frequentes
com diplomatas estrangeiros para escrever os seus comentários
políticos. A família diz que a única prova fornecida pela acusação
baseia-se naqueles encontros.
Em 24 de abril, o titular da pasta da Segurança do Estado, Chen
Yixin, ordenou uma inspeção às instalações do seu ministério em
Pequim, para “reprimir seriamente” ações de espionagem, segundo
o jornal SOUTH CHINA MORNING POST, com sede em Hong Kong.
A capital chinesa vai, pois, tornar-se o “principal campo de batalha”
para reprimir “atos de infiltração, subversão e espionagem”, declarou
o ministro. [Em maio, segundo a CNN, as autoridades de Tóquio
pediram à China que libertasse um cidadão japonês, de 50 anos,
funcionário da multinacional farmacêutica Astellas Pharma, detido
em Pequim, em março, sob suspeita de ser espião. O funcionário,
não identificado, foi o 16.º cidadão japonês detido, desde 2015, por
alegada espionagem, revelou a agência nipónica Kyodo, citada pela
BBC.
Ainda em maio, John Shing-Wan Leung, um cidadão dos Estados
Unidos da América com residência permanente em Hong Kong,
78 anos de idade, foi condenado a prisão perpétua por suspeita de
espionagem. Havia sido detido em 15 de abril de 2021. Ao revelar
a sentença, o tribunal que o julgou à porta fechada não especificou
as acusações, referindo apenas que haviam sido arrestados os bens
pessoais do condenado, no valor de 500 mil iuanes (66 mil euros)].
JULHO 2023 - N.º 329 55
 Ciência

56 JULHO 2023 - N.º 329

 COOPERAÇÃO
A Rússia isola-se
no Polo Norte
Desde que começou a guerra na Ucrânia, aumentaram as
tensões entre Moscovo e os seus parceiros no Ártico. A perda
desta cooperação vital compromete os esforços para enfrentar
os riscos ambientais que se avolumam na região
Yale Environment 360 (excertos)
New Haven

Foi em 2008 que o biólogo os esforços de cooperação internacional

F Eric Regehr e os seus colegas

do US Fish and Wildlife Ser-
vice [responsável pela gestão
e proteção da vida selvagem nos Estados
Unidos da América (EUA)] começaram a
estudar os ursos-polares a partir da cos-
ta norte-americana do mar de Chukchi,
localizado entre o Alasca e a Rússia. No
entanto, como o aquecimento da região
e a diminuição crescente do gelo marinho
na costa do Alasca tornaram perigosos os
pousos de helicópteros, ele percebeu que
teria de encontrar outra base para a sua
equipa recolher dados sobre a saúde e o
tamanho da população de ursos.
A remota ilha de Wrangel, 900 qui-
lómetros a nordeste de Moscovo, era a
alternativa ideal: uma grande parte dos
ursos-polares do mar de Chukchi refu-
gia-se ali durante o verão, e a Federação
Russa assinara, em 2000, um acordo com os
Estados Unidos da América para proteger
aquele habitat. A colaborarem no terreno,
cientistas russos e norte-americanos con-
seguiram confirmar, em 2016, que aqueles
3 000 animais pareciam estar bem, apesar
da diminuição rápida do gelo marinho e da
caça de subsistência dos indígenas.
Depois de um hiato de dois anos, cau-
sado pela pandemia de Covid-19, Eric Re-
gehr, agora investigador na Universidade
de Washington, estava ansioso por voltar a
trabalhar na ilha de Wrangel. Mas, quando
a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro
de 2022, os seus planos mudaram abrup-
tamente – assim como os de praticamente
todos os governos, instituições académicas
e institutos científicos sem fins lucrativos
que trabalhavam com colegas russos. De
repente, foram suspensos quase todos
com a Rússia no Ártico – fossem estudos
acerca dos ursos-polares e das baleias, ou
pesquisas sobre pesca comercial, degelo do
permafrost [o solo que passa o ano inteiro
congelado e cobre 25% da superfície ter-
restre do Hemisfério Norte], diminuição
do gelo marinho, ecologia das turfeiras
ou incêndios florestais.
“Uma grande parte do que precisamos
de saber sobre estes impactos está pres-
tes a perder-se”, lamenta Eric Regehr. “É
difícil imaginar como seremos capazes de
retomar a ciência sem o financiamento
governamental e não governamental que
nos era atribuído, a nós e aos russos, e
sem podermos estar ali a trabalhar com
os cientistas deles.”
A cessação desta colaboração cientí-
fica ocorre num momento precário para
o Polo Norte: há um incremento dos ris-
cos ambientais associados à perda de gelo
marinho, poluição e transporte; a Rússia
e os outros Estados da Região Ártica pro-
puseram novas linhas fronteiriças ao longo
da Plataforma Continental da ONU, para
poderem reivindicar uma maior fatia do
leito marinho do oceano Ártico [o mais
pequeno da Terra em extensão territorial];
e as turfeiras continuam a arder, depois de
um ano de incêndios florestais sem prece-
dentes, que aumentaram drasticamente
as emissões de gases de efeito estufa na
Rússia – o quarto maior emissor do mundo.
“O Ártico é, desde há muito, um mo-
delo de otimismo e cooperação interna-
cional”, diz o norte-americano Evan T.
Bloom, que hoje é investigador no Wilson
Center, em Washington, e no passado foi
diplomata, responsável durante quase
trinta anos pela governação do Ártico.

Militar russo no Ártico

FOTO: GETTYIMAGES AUTOR DATA TRADUTORA
F Ed Struzik 07.02.2023 Maria Alves

JULHO 2023 - N.º 329 57

 Ciência

ALASCA
(EUA) Círcu
lo P
ola
r

Ár
Ilha Wrangel

t ic
(Rússia)

o
EUA CANADÁ O C E A NO Ilha de Samoylov
Á RT IC O
POLO FEDERAÇÃO
NORTE RUSSA
FONTE: NATIONAL SNOW AND ICE DATA CENTER

GRONELÂNDIA Svalbard
(Dinamarca)
(Spitsbergen)
(Noruega)

ISLÂNDIA FI.
NORUEGA
750 km DINAMARCA
SUÉCIA
Membro permanente
Membre permanent dudoConseil
Conselho
de l’Arctique
do Ártico
Extensão delagelo
Étendue de marinho
banquise en em março
mars 2023de 2023 FI. Finlândia

“Foi necessário interromper a cooperação
devido à crise [na Ucrânia], mas não pode
haver progresso em relação às questões
pan-árticas sem participação russa.”
Colaboração suspensa
A colaboração científica no Ártico remonta
pelo menos aos tempos da Guerra Fria. Três
anos após a Crise dos Mísseis de Cuba [em
1962], representantes da União Soviética
participaram na primeira de uma série de
reuniões circumpolares para estudar os
ursos-brancos, em grave declínio devido à
caça excessiva. A União Soviética assinou a
Convenção Internacional para a Prevenção
da Poluição Marinha por Navios, aplicada
desde 1973. E, no mesmo ano, subscreveu
o Acordo Internacional de Preservação
do Urso-Polar, assinado por cinco países
[além da Rússia, a Noruega, a Dinamarca,
o Canadá e os EUA], que entrou em vigor
três anos depois.
Os russos trabalharam sempre em
estreita colaboração com a Organização
Marítima Internacional e com a Organi-
zação Mundial de Meteorologia, a qual
estabelece o quadro da cooperação no
que diz respeito ao tempo, ao clima e
aos ciclos da água, no Ártico e no resto
do mundo. Estas duas agências [da ONU]
também desempenham um papel impor-
tante no Conselho do Ártico, o principal
organismo intergovernamental respon-
sável pela cooperação entre os seus oito
Estados-membros [Canadá, Dinamarca,
EUA, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia
e Suécia]. O Conselho, cuja presidência
cabe, rotativamente, por um período
de dois anos, a cada um dos países que
o compõe, reúne-se regularmente para
tratar de assuntos relacionados com o de-
senvolvimento sustentável e a proteção
do ambiente.
Hoje, esta colaboração está basicamen-
te suspensa, em parte porque os outros
sete Estados-membros do Conselho corta-
ram todas as comunicações com a Rússia.
Outros projetos foram igualmente inter-
rompidos, quando cientistas empregados
por organizações governamentais e não
governamentais fugiram da Rússia, foram
silenciados pelas autoridades de Moscovo
ou se viram privados do conhecimento, das
infraestruturas e dos fundos internacionais
de que precisavam para continuarem o
trabalho em conjunto.
Um relatório encomendado, em outu-
bro de 2022, pelo gabinete da então pri-
meira-ministra finlandesa, Sanna Marin,
identificou as consequências da invasão
russa da Ucrânia para a cooperação inter-
nacional no Ártico, reconhecendo que,
embora a situação ainda possa mudar,
“uma coisa é certa, não haverá regresso
à realidade pré-guerra”.
Na opinião de Evan Bloom, a perda da
Rússia como cooperante e membro ativo
do Conselho do Ártico terá sérias repercus-
sões, já que o país possui metade da massa
terrestre do Ártico, tem jurisdição sobre a
...
De repente, foram
suspensos quase
todos os esforços
de cooperação
internacional com
a Rússia no Ártico –
fossem estudos acerca
dos ursos-polares e das
baleias ou pesquisas
sobre pesca comercial
maior parte do oceano Ártico, abriga quase
metade da população da região e supervi-
siona grande parte do seu desenvolvimento
económico. A guerra interrompeu ainda
vários projetos de cooperação ambiental
em território russo. A Rússia tem mais tur-
feiras do que qualquer outro país. Ricas
em carbono, muitas destas turfeiras foram
severamente degradadas pela exploração
mineira e pela agricultura, por práticas
florestais e extração de petróleo e gás. As
alterações climáticas também as tornaram
mais vulneráveis a incêndios. Em 2010, re-
gistaram-se mais de 30 mil fogos florestais
em mais de 20 regiões da Rússia. Este tipo
de incêndios e a degradação das turfei-
ras são atualmente culpados por 5% das
emissões de gases de efeito estufa do país.
Após a desastrosa temporada dos fogos
de 2010, a Alemanha mobilizou fundos e
peritos para ajudar a reparar os regimes
hidrológicos que fornecem água aos di-
versos pântanos e charcos da Rússia, per-
mitindo reter o carbono que eles contêm.
No entanto, assim que a Rússia invadiu
a Ucrânia, vários institutos germânicos,
entre eles a Fundação Michael Succow
para a Proteção da Natureza, retiraram
o seu apoio.
Antes de começar a guerra, estavam
a ser conseguidos progressos significati-
vos para restaurar as turfeiras, assegura
Tatiana Minayeva, cientista da [única or-
ganização global sem fins lucrativos dedi-
cada à conservação das zonas húmidas],
Wetlands International, que trabalhara
anteriormente para o governo russo como
investigadora e consultora. Agora que são
diminutas as probabilidades de a coopera-
ção ser reatada, ela espera que os fundos
restantes concedidos por doadores inter-
nacionais sejam usados para repor outras
turfeiras na Europa Central e Oriental.

58 JULHO 2023 - N.º 329


Fuga de cientistas
A maioria das turfeiras na Federação Russa
está congelada no permafrost, que ali der-
rete mais rapidamente do que noutros paí-
ses do Ártico. Uma grande parte dos dados
disponíveis sobre este degelo provém do
Alfred Wegener Polar and Marine Research
Institute, com sede na Alemanha, que, em
fevereiro de 2022, retirou o seu apoio à es-
tação de investigação da ilha de Samoylov,
no delta do Lena, na Sibéria. Aquela estação
pode hospedar missões com até vinte cien-
tistas, recolhendo dados confiáveis sobre
o permafrost desde 1998.
Depois de a Rússia invadir a Geórgia, em
2008, e a Crimeia, em 2014, o Conselho do
Ártico encontrou maneiras de contornar as
crises sem interromper o diálogo com Mos-
covo. E as organizações sem fins lucrativos
que ali tinham delegações ou mantinham
laços estreitos com o país ajudaram a pre-
servar abertas essas linhas de comunicação
não oficiais, quando o próprio Conselho
não queria ou não podia fazê-lo.
A situação é, agora, bem diferente, sa-
lienta Clive Tesar, antigo chefe de comu-
nicações e relações externas do Programa
Ártico Global do Fundo Mundial para a Na-
tureza (WWF, World Wild Fund). Muitos
desses canais não oficiais estão atualmente
fechados ou foram silenciados. E porque os
outros sete Estados-membros do Conselho
do Ártico não comunicam com a Rússia, di-
ficilmente a cooperação não governamental
poderá continuar ou avançar.
O WWF está presente na Rússia desde a
década de 1980. Naquela época, financiou a
criação [no krai de Krasnoiarsk] da Reserva
Natural Estatal do Grande Ártico, a maior
reserva natural do continente euro-asiático
[com 41 692 quilómetros quadrados]. Desde
então, a mais importante organização de
conservação do mundo esteve envolvida
em mais de mil projetos de campo, alguns
dos quais permitiram a proteção de uns 518
mil quilómetros quadrados de territórios
únicos, a maioria deles localizados nas re-
giões árticas e subárticas. “Será muito difícil
este trabalho entrar nos eixos se a guerra
prosseguir”, alerta Clive Tesar.
Evan Bloom, que ajudou a fundar o
Conselho do Ártico e foi o principal ne-
gociador dos Estados Unidos da América
nas conversações para, em 2016, criar a
Depois de anos de cooperação
científica, agora cresce a
desconfiança entre todos
FOTO: GETTYIMAGES
maior reserva marinha protegida do mundo
[1,57 milhões de quilómetros quadrados],
no mar de Ross, na Antártida, enfrentou
muitas crises internacionais. Ele acha que
o futuro da investigação no Ártico “não
é completamente sombrio”. O trabalho
multilateral irá continuar no Canadá, no
Alasca, na Gronelândia e em Ny-Alesund,
na ilha norueguesa de Spitsbergen. Mas, se
a situação na Ucrânia piorar, “os proble-
mas na administração do Ártico poderão
agravar-se ainda mais”.
Mesmo que o Conselho do Ártico ar-
ranje uma maneira de se reconciliar com
Moscovo, ou encontre uma via diferente,
é quase impossível imaginar um retorno
à normalidade pré-guerra para a comu-
nidade de investigadores. Porque muitos
dos melhores cientistas do Ártico na Rússia
fugiram do país ou estão à procura de meios
para emigrar.
Entre eles está Olga Shpak, bióloga
marinha ucraniana que trabalhou para o
Instituto Svertsov de Ecologia e Evolução,
ligado à Academia Russa das Ciências, mas
que desistiu da sua investigação, na prima-
vera de 2022, para se tornar voluntária na
frente de batalha em defesa da terra-natal.
“A minha vida mudou dramaticamente
a 24 de fevereiro [dia da invasão russa]”,
declarou Olga Shpak numa reunião, em
outubro, do Council for the Advancement
of Science Writing [CASW, fundação global
sem fins lucrativos que, de Seattle, nos EUA,
apoia cientistas e jornalistas]. “A minha
prioridade não é a Ciência, nem o Ártico,
nem as baleias. A minha prioridade são
as pessoas.”
JULHO 2023 - N.º 329 59
 Internet, o que
fazes com as nossas
memórias?POR VEZES, TEMOS A SENSAÇÃO DE QUE A INTERNET E O GOOGLE
SE LEMBRAM DE TUDO E QUE TUDO O QUE PUBLICAMOS ONLINE
FICARÁ LÁ PARA SEMPRE. MAS NADA PODE ESTAR MAIS LONGE DA
VERDADE. ARQUIVAR MILHARES DE MILHÕES DE PÁGINAS É UM
DESAFIO DANTESCO. QUEM O DEVE FAZER? SÃO PRECISAS CÓPIAS
DE SEGURANÇA DE TUDO? E PARA QUE FINS?

Haaretz
FOTOS: GETTYIMAGES Telavive
 Tecnologia
H
Heidi Taaseh perdeu o filho Shachar durante a Operação Margem
Protetora, lançada por Israel em 2014, na Faixa de Gaza. A conta
de Facebook criada em sua honra tornou-se o precioso reposi-
tório das memórias da família: havia fotografias publicadas por
amigos, páginas comemorativas e mensagens de conhecidos.
Tudo desapareceu abruptamente [em outubro de 2022] quando
a conta foi, primeiro, pirateada, depois, bloqueada e, finalmen-
te, apagada. “Foi um choque, como se alguém tivesse matado
Shachar uma segunda vez. Havia tantas coisas importantes na
sua conta, tantas coisas bonitas”, confessa Heidi.
Casos semelhantes surgem frequentemente nos computadores
da Israel Internet Association [Associação Israelita da Internet],
e as mensagens são por vezes deconcertantes. “Estou desolado.
Havia longas conversas com o meu companheiro desaparecido
e, em geral, recordações destes últimos dez anos”, lamenta uma
utilizadora do Instagram que já não tem acesso à sua conta. “Toda
a minha vida estava lá... Peço-lhe... Estou desesperada”, escreve
outra. “Estas contas têm um valor imenso e inestimável”, “É o
trabalho da vida do meu pai”, “Foi-se tudo”, testemunham outros.
É evidente que as nossas memórias digitais – pessoais e ou-
tras – são frágeis. Em várias ocasiões, nos últimos dois meses,
parecia que o futuro do Twitter estava por um fio. Se a empresa
alguma vez fechar as portas sem ter planificado fazer cópias de
segurança dos seus arquivos, quase 20 anos de informação podem
esfumar-se. A plataforma que cobriu guerras e revoluções, que
deu origem a movimentos como o #MeToo, pode levar consigo
toda a nossa memória social e cultural quando desaparecer.
A História ensina-nos que esta preocupação não é infundada.
Quem se lembra hoje do Myspace, que há menos de 20 anos era a
primeira rede social do mundo, com 250 milhões de utilizadores
só nos Estados Unidos da América, e que tinha mais sucesso do que
o Google? Na sequência de uma falha durante uma transferência
para novos servidores em 2016, o Myspace perdeu a maior parte
do conteúdo que havia sido publicado pelos seus utilizadores. A
ágora virtual desapareceu: fotos, posts, vídeos, blogues, 12 anos
de conteúdos e 50 milhões de músicas publicadas por milhões
de artistas – tudo se perdeu.
Talvez seja altura de pôr em causa a ideia generalizada de que o
Google se lembra de tudo e que, com uma pitada de iCloud, Dro-
pbox e Google Drive, estaríamos prontos para a eternidade. Será
que a Imprensa online, por exemplo, está devidamente arquivada
AUTOR DATA TRADUTORA
F Itay Mashiach 22.12.2022 Helena Araújo
62 JULHO 2023 - N.º 329
para as gerações futuras? E os sites, blogues, fóruns e outras redes
sociais onde passamos a vida? As nossas memórias estão seguras
ou as nuvens que as alojam vão dissipar-se e desaparecer numa
bela manhã?
Yoram Hacohen, diretor-geral da Israel Internet Association,
perdeu, ele próprio, muitos dos documentos que escreveu com
o software de processamento de texto Einstein Writer quando
era estudante. O problema que isto levanta está, segundo ele,
“no centro de um fenómeno conhecido como a 'idade das trevas
digital' (em inglês, digital dark age)”. Explica: “A Humanida-
de, que dispõe hoje de meios para reconstituir uma informação
enterrada no subsolo há quatro mil anos, poderá ter muito mais
dificuldade em reconstituir a que foi registada digitalmente há
apenas 40 anos.”
Em 2015, o [engenheiro americano] Vint Cerf, um dos pais
da Internet, sublinhou o risco de grande parte da memória do
século XXI nunca ser transmitida às gerações futuras. A tecnologia
evolui a uma velocidade vertiginosa e os programas tornam-se
obsoletos em poucos anos. Não há garantia de que amanhã ainda
possamos ler os ficheiros que gravamos hoje. "Sem sequer nos
apercebermos, como se nada tivesse acontecido, estamos a atirar
todos os nossos dados para o que corre o risco de se tornar um
buraco negro de informação", dizia Vint Cerf ao The Guardian
na altura.
A comparação com a Idade Média pode parecer absurda na
era do Big Data, mas quem já encontrou disquetes dos anos 90 e
caixas de fotografias amarelecidas dos anos 30 no vazio sanitário
de sau casa sabe: quem ri por último, é quem ri melhor.
O tempo de vida dos sites web é muito mais curto do que a
maioria das pessoas pensa, adverte Anat Ben-David, especialista
em Internet e redes sociais na Universidade Aberta de Israel.
"As pessoas têm a impressão de que tudo o que está na Internet
é eterno, quando, na maior parte dos casos, a informação não
fica lá mais de 18 meses."
Os sites já não respondem, as ligações não levam a lado ne-
nhum, os endereços são abandonados. A Rede está a desintegrar-se
rapidamente à nossa volta, mas geralmente não nos apercebemos
disso, diz Anat Ben-David. Mesmo que um sítio continue ope-
racional, tem de ser atualizado para aparecer nos resultados de
pesquisa, que preferem sempre o novo ao antigo.
"Mesmo quando há vários milhões de resultados [para uma
consulta], o Google não apresenta resultados para além do milé-
simo. Por isso, mesmo que a informação esteja lá, não a veremos,
porque não é considerada relevante."
O Internet Archive, uma organização sem fins lucrativos fundada
em 1996, dá uma resposta, pelo menos parcial, ao problema dos
"links mortos". O Internet Archive é um web robô que vasculha
o ciberespaço e regista as páginas que encontra. Até à data, foram
guardados cerca de 760 mil milhões de sites, que são regularmente
atualizados a vários intervalos. O site da associação inclui uma
ferramenta chamada Wayback Machine [“máquina do tempo”],
que permite aos utilizadores verem como era um determinado
site numa determinada data. Em tempos, isto incluía até páginas
que foram posteriormente apagadas da Internet.
Por exemplo, pode ver-se o que a Wayback Machine encontrou
quando visitou a página inicial do site do Knesset [Parlamento
israelita] às 11h02 do dia 13 de fevereiro de 1997 (e não é visual-
mente bonito). Ou como era a página inicial da edição hebraica
do diário Ha' Aretz a 8 de outubro de 1999 (não é muito melhor).
Em 2013, uma análise de publicações online nos domínios do
direito e das políticas públicas revelou que muitas das ligações
que apareciam nas notas de rodapé - essas referências valiosas
que permitem aos académicos verificar se a informação que estão

a ler é realmente exacta - já não levavam a lado nenhum. Seis
anos após a sua publicação, quase metade das referências citadas
já não estavam acessíveis.
Ben-David tem uma infinidade de exemplos perturbadores,
como a "revolta das tendas" de 2011 contra o elevado custo de
vida em Israel. "Tente simplesmente encontrar um conteúdo
original criado em conexão com o movimento nesse ano. Não
vai encontrar nada", garante. É certo que é possível encontrar
certos sites no Internet Archive, mas, acrescenta, "o próprio site
[original], como fonte primária, a coisa em si que existia na altura,
com os seus anúncios e as suas ligações a outros sites, e todo o
ecossistema mediático que o acompanhava, tudo isso é efémero".
Em casos extremos, o legado digital de uma nação inteira pode
ser destruído num instante. Em 30 de março de 2010, a extensão
".yu" (aquilo a que se chama um "domínio de topo") foi eliminada
da base de dados de endereços e todos os sites da antiga Jugoslávia
desapareceram. Num artigo que escreveu sobre o assunto, Anat
Ben-David explica que, embora algumas páginas possam ter sido
preservadas no Internet Archive, não são acessíveis através da
ferramenta de pesquisa, a menos que se saiba o endereço exato
(por alguma razão, a Rússia ainda gere a extensão da União So-
viética, ".su").
O que guardar
A questão da preservação da memória digital não deve ser ig-
norada, diz Sharon Ringel, da Faculdade de Comunicação da
Universidade de Haifa. Para além disso, continua, temos de nos
perguntar onde, enquanto sociedade, queremos armazenar a
nossa informação e a quem a confiamos. E o que é que vale real-
mente a pena preservar entre o volume infinito de informação
que produzimos.
Em 2018, Sharon Ringel entrevistou executivos de 30 grupos
de media dos Estados Unidos. A grande maioria deles, desco-
briu, não estava preocupada em preservar a produção digital
para as gerações futuras - tanto de jornalistas como de clientes:
"Os jornalistas acham que o importante é o que está a acontecer
SERÁ QUE A IMPRENSA ONLINE ESTÁ
DEVIDAMENTE ARQUIVADA PARA
AS GERAÇÕES FUTURAS? E OS SITES,
BLOGUES, FÓRUNS E OUTRAS REDES
SOCIAIS ONDE PASSAMOS A VIDA? AS
NOSSAS MEMÓRIAS ESTÃO SEGURAS
OU AS NUVENS QUE AS ALOJAM VÃO
DISSIPAR-SE E DESAPARECER?
agora - as notícias são o que há de novo. Não
é essa a sua responsabilidade. E eu não os
censuro. Os jornalistas não podem carregar
a história às costas".
Os jornais seguem os seus próprios in-
teresses, claro, e nem sempre pensam na
questão da preservação. Em 2014, quando
o BuzzFeed quis elevar o seu nível de se-
riedade jornalística, apagando alguns dos
conteúdos mais disparatados que publicava,
limitou-se a apagar 4 000 artigos. Em 2017 [numa nota diferen-
te], o empresário [americano] Joe Ricketts comprou uma rede
de sites de notícias locais [a rede Gothamist, que inclui blogues
como Chicagoist e LAist]. Com a aproximação da data de aquisi-
ção, os artigos que o criticavam desapareceram dos arquivos das
publicações em causa (embora não se saiba quem os fez desapa-
recer). E quando os seus empregados quiseram sindicalizar-se,
Ricketts encerrou todos os sites do grupo de um dia para o outro,
sem mais demoras. Os arquivos do grupo só puderam ser salvos
graças a outros grupos de comunicação social que decidiram
comprá-los. O caso levou a Freedom of the Press Foundation
[uma ONG americana que defende a liberdade de imprensa] a
criar arquivos para os jornais particularmente vulneráveis ao
"problema dos bilionários".
"A conservação dos meios de comunicação digitais não se
limita a guardar os artigos em si", nota Sharon Ringel. Cita o
exemplo do caso de corrupção conhecido como "Caso 4000" nos
tribunais israelitas, que envolveu [a companhia telefónica nacio-
nal] Bezeq e [o site de notícias] Walla. No centro deste caso estão
artigos favoráveis ao [primeiro-ministro] Benyamin Netanyahu
publicados no Walla [em troca de favores, por volta de 2012-2016].
Ainda é possível encontrar os artigos, mas a sua localização no
site não foi arquivada. Quanto tempo é que este ou aquele artigo
favorável a Netanyahu ou à sua família permaneceu na primeira
página? Quando é que foi destacado no site e quando é que foi
relegado para as profundezas? "Temos a informação, mas já não
temos o contexto", lamenta Sharon Ringel.
No Ynet [um dos principais sites de notícias de Israel], es-
tamos conscientes da importância desta questão desde o início.
Há anos que os redatores do site, que pertence ao [diário] Yediot
Aharonot, imprimem capturas de ecrã do site e arquivam-nas
sempre que os títulos mudam.
A questão de saber onde se encontra um artigo num site pode
também interessar às gerações futuras, por razões que ainda não
conseguimos compreender. "Há, por exemplo, estudos em que
se pergunta aos americanos o que sabiam sobre o que estava a
JULHO 2023 - N.º 329 63
 Tecnologia
“Este site está inacessível”:
medidas contra as ligações
podres
Num artigo publicado, em 2021, na revista científica
australiana COSMOS, Mark Pesce conta a sua descoberta da
web, por volta de 1993. “No início, era apenas uma lista: uma
página de nomes e ligações a sites, no site do Cern, o primeiro
site e o berço da rede. Clicava metodicamente em cada
ligação da lista [...]. Em sete dias, estava feito. Tinha visitado
toda a web”.
Mas em apenas alguns meses, o engenheiro américo-austra-
liano ficou sobrecarregado. “Todos os dias eram acrescentados
mais sites à lista do que eu podia explorar fisicamente. Pouco
tempo depois, a pessoa responsável pela atualização desistiu
– o crescimento da web era exponencial e nenhum arquivista
conseguiria acompanhar o ritmo.”
Em 1994, ano em que foi lançado o motor de busca Yahoo!,
existiam cerca de três mil sites web. Dez anos mais tarde, em
2004, ano em que o Facebook foi criado, havia 51,6 milhões.
Atualmente, são quase dois mil milhões.
Dos links que Mark Pesce tinha marcado nos seus “favoritos”
em 1995, quase nada resta. “A maior parte deles já não leva a
nada ou a um sítio com o mesmo nome mas completamente
diferente. Em menos de uma geração, a visão que eu
tinha dos primórdios da web – um lugar muito pessoal,
específico e relevante – está essencialmente em processo de
decomposição.”
E o engenheiro apela a uma tomada de consciência coletiva
do fenómeno conhecido como LINK ROT, quando um URL é
apagado ou modificado. “Qualquer organização que publique
na web deve garantir que, mesmo depois de uma mudança
dos sistemas informáticos, os dados existentes permanecem
disponíveis e acessíveis para sempre através dos mesmos
URL. Não podemos deixar que a nossa História desapareça
assim. Pelo menos, se quisermos compreender como
chegámos aqui e para onde vamos.”
64 JULHO 2023 - N.º 329
acontecer na Europa durante o Holocausto", explica Ringel. "Al-
guns deles admitem que o assunto chegou a aparecer nos me-
dia, mas que foi abafado pelo resto da informação, nas páginas
interiores. Enquanto o assunto não estava na primeira página,
não se falava dele". Como é que os historiadores de amanhã vão
medir o impacto das catástrofes de hoje?
"Há vários anos que nos interrogamos como recolher e sal-
vaguardar a memória digital e a criação cultural", comenta Oren
Weinberg, diretor da Biblioteca Nacional de Israel. "Como a nossa
capacidade de produzir informação é muito maior do que no
passado, os processos de "seleção natural" tornaram-se muito
mais complexos. Qualquer pessoa pode publicar um poema por
sua conta - mas será que é digno de ser preservado da mesma
forma que outra obra que tenha sido sujeita a um escrutínio pro-
fissional? O que é que esta questão nos diz sobre a forma como
protegemos a nossa memória cultural?"
A instituição sabe que grande parte do património cultural
de Israel, do qual é guardiã, já não está materializado em forma
física. Nos últimos anos, para garantir a segurança, a Biblioteca
Nacional de Israel, tal como as bibliotecas da maioria dos países
do mundo, tem arquivado todos os sites do país pelo menos uma
vez por ano. Os "coletores" da instituição começaram agora [em
dezembro de 2022] a sua recolha anual, fazendo cópias de todos
os sites sob o domínio ".il".
"Há um debate permanente sobre se a Internet deve ou não
ser arquivada", explica Oren Weinberg. Atualmente, temos ten-
dência a gastar muito dinheiro nisso, porque é um mundo novo
e é melhor não perder nenhuma informação. Estamos hoje a
investir mais de meio milhão de shekels [130 mil euros] por ano".
Weinberg também está preocupado com outros possíveis
efeitos da desmaterialização nas funções tradicionais da Biblio-
teca Nacional:
"Se, no passado, recebia um arquivo em papel como, por
exemplo, as notas do poeta à margem, mostrando as rasuras que
podem testemunhar o percurso criativo do autor, hoje em dia as
pessoas sentam-se em frente a um software de processamento
de texto. Mesmo que guarde versões, uma boa parte do processo
criativo desaparece pelo caminho".
Missão arriscada
Perante este problema, a instituição cultural teve a ideia de lançar
um projeto estranho e original que consiste em "identificar au-
tores promissores enquanto são jovens e, com a sua colaboração,
preservar a sua obra, correspondência e fotografias ao longo da
vida", segundo a descrição do projeto. "Esta missão é um pouco
arriscada", explica a apresentação, "uma vez que é impossível ter
a certeza de que um jovem considerado 'promissor' acabará por
se tornar uma pessoa criativa, cuja obra, mesmo em retrospetiva,
será considerada única e digna de ser preservada".
Motivado pela leitura de todas estas histórias de informação
perdida e de cultura a desfazer-se em fumo, decidi descer fisica-
mente à cave do edifício Ha'Aretz, em Telavive, na esperança de
ser reconfortado entre as prateleiras reais dos arquivos em papel
do jornal, pequenas gavetas onde os artigos são arquivados por
assunto desde a Segunda Guerra Mundial, e as pastas que reúnem
todos os números do jornal em papel desde 1919.
Mas, mesmo aqui, a ameaça da tecnologia digital é palpável. A
preservação dos jornais está a perder terreno e, nos últimos dois
anos, a prática de encadernar os números externamente deixou
de se aplicar. Hoje, apenas são guardados num armazém. "É uma
ação de retaguarda para todos nós", admite Nirit Mitrani, diretor
dos arquivos. O armazenamento físico está a perder terreno por
razões financeiras".

NÃO PRECISAMOS DE GUARDAR TUDO, MAS TEMOS DE
TER CONSCIÊNCIA DO QUE ESTÁ SALVAGUARDADO,
DO QUE NÃO ESTÁ E DE QUEM É RESPONSÁVEL POR O
FAZER. OS RECEIOS DE UMA "IDADE MÉDIA DIGITAL" SÃO
BEM FUNDAMENTADOS, E É UMA CONSCIÊNCIA QUE
NOS DEVE ESTIMULAR A AGIR, SEJA DE QUE FORMA FOR
Aqueles que não desistem estão a agir. Em 2014, o jornalista
Hadi Al-Khatib criou o Arquivo Sírio [“Archive syrienne”] em
Berlim, com o objetivo de preservar todos os documentos digi-
tais relacionados com os crimes de guerra cometidos na Síria,
prevendo futuros julgamentos. Até à data, o arquivo recolheu
mais de 3,5 milhões de vídeos. A guerra na Síria pode parecer o
conflito mais reportado da história, mas está a desaparecer da rede
a uma velocidade vertiginosa. Uma grande parte do trabalho da
associação consiste em proteger e validar os conteúdos publicados
todos os dias no YouTube, Facebook, Twitter e Instagram, que
depois são eliminados pelas plataformas devido às suas próprias
normas de representação da violência.
Os testemunhos recolhidos desta forma já foram utilizados
num processo de 2020, num tribunal especial alemão, contra o
governo sírio pela alegada utilização de armas químicas contra
civis durante a guerra. Entretanto, o Arquivo Sírio deu origem à
associação Mnemonic, que recolhe o mesmo tipo de arquivos para
relatar crimes de guerra cometidos no Iémen, Sudão e Ucrânia, e
oferece formação a jornalistas e defensores dos direitos humanos
para os ajudar a manter uma memória digital em zonas de conflito.
Iniciativas da sociedade civil como esta têm como objetivo pro-
teger a memória digital e evitar que ela seja distorcida no futuro. Na
sequência da invasão russa da Ucrânia, levantaram-se vozes que
apelavam à preservação do património cultural ucraniano, que se
encontrava em perigo. Centenas de bibliotecários e arquivistas de
todo o mundo arregaçaram as mangas, arquivando até à data cerca
de 5000 sites pertencentes a estabelecimentos de ensino ucranianos.
Quando Anat Ben-David fala em assumir a responsabilidade
pela nossa memória digital (chama-lhe "contra-arquivo"), pode
A “excrementação”
da web
A ameaça aos seus arquivos é indicativa
de um processo geral de degradação, se
não mesmo de decomposição da web.
O jornalista, escritor de ficção científi-
ca e ativista britânico-canadiano Cory
Doctorow utiliza o termo “enshittificação”
(degradação das plataformas online), ou
seja, “excrementação” ou “merdificação”
para descrever esta situação. Na sua opi-
nião, isto é particularmente verdade para
as redes sociais mais populares e para as
grandes plataformas como a Google e a
Amazon, que foram desacreditadas por
conteúdos patrocinados e conduzidas por
algoritmos cada vez mais hipnóticos.
“Estaremos condenados à ‘excrementa-
ção’?” pergunta o THE GUARDIAN. “Para já,
sim. O modelo de negócio da publicidade
direcionada responsável por esta deriva
sem sentido poderia ser proibido por lei,
mas isso parece improvável num mundo
neoliberal. Há ainda a esperança de que
esta ‘excrementação’ acabe por repelir os
utilizadores e os consumidores, a ponto de
estes lhe virarem as costas. Mas ainda é
preciso que eles se lembrem de que ou-
tras realidades são possíveis – que houve
um tempo em que as coisas
eram diferentes.”
não ser militância, mas soa a isso mesmo. "O contra-arquivo é
uma tentativa de reafirmar o lugar dos arquivos públicos na era
da mediação algorítmica", diz. "Lembrar que esta informação
é pública e que, mesmo que as plataformas afirmem que lhes
pertence, ainda há formas de a devolver ao público".
Para Anat Ben-David, a situação atual é uma ilustração do
"colonialismo de dados": o ocupante colonial seriam neste caso
as multinacionais e os recursos naturais explorados, os dados que
recolhem através do rastreio das nossas atividades online - os
nossos desejos, as nossas relações sociais e praticamente tudo
o que fazemos.
"Em Imagined Communities [Comunidades Imaginadas, Edi-
ções 70], Benedict Anderson [historiador irlandês, especialista no
Sudeste Asiático, 1936-2015] fala do mapa, do museu e do arquivo
como as três instituições que organizam o conhecimento para a
população indígena e lhes dizem o que pode saber sobre si própria",
conta o professor, que acrescenta: "O que estou a tentar explicar,
pela minha parte, é que o Facebook e outras plataformas estão a
fazer a mesma coisa e estão a tornar-se arquivos colonialistas".
"Os jornais e as bibliotecas que são movidos pelo interesse
público têm um papel a desempenhar na definição do que é um
arquivo histórico", conclui Anat Ben-David. Penso que isto é
necessário para iniciar um debate público sobre esta questão e
sobre a forma como escrevemos a nossa história. Não precisa-
mos de guardar tudo, mas temos de ter consciência do que está
salvaguardado, do que não está e de quem é responsável por o
fazer. Os receios de uma "Idade Média digital" são bem funda-
mentados, e é uma consciência que nos deve estimular a agir,
seja de que forma for."
JULHO 2023 - N.º 329 65
 Pedro
Almodóvar
“A minha relação
com a literatura
é marcada
por uma grande
infidelidade”
NO LIVRO EL ÚLTIMO SUEÑO, O CINEASTA ESPANHOL REVELA-SE
COMO NUNCA. NELE, FALA DA SUA VIDA E DA RELAÇÃO ENTRE
“O VIVIDO, O ESCRITO E O FILMADO” NAS SUAS OBRAS

El País
Madrid

FOTOS: GETTYIMAGES
 Entrevista
N
No escritório, as histórias ganham pó em
velhos dossiers azuis, que Lola García, a
fiel assistente “em muitas áreas”, resgatou
do caos das sucessivas mudanças. “Não
estava satisfeito com o meu desempenho
como escritor. Achava as minhas histórias
infantis e pudicas. No entanto, quando as
reli, fiquei agradavelmente surpreendido.
Encontrei-me nelas. No final, continuo a
ser a mesma pessoa”, diz Pedro Almodóvar
(73 anos, nascido em Calzada de Calatrava,
na província de Ciudad Real), a partir da
sua produtora, El Deseo, em Madrid.
Enquanto terminava a curta-me-
tragem Estranha Forma de Vida, um
western queer estreado em Cannes, o
cineasta decidiu finalmente publicar El
Último Sueño (Reservoir Books), no qual
reúne os contos que escreveu entre 1967
e 2023. As suas histórias desenrolam-se
nos pátios de La Mancha, nos colégios
dos salesianos e nos bares de convívio de
La Movida madrilena. Refletem a relação
profunda entre “o vivido, o escrito e o
filmado”, que serviram de vasos comu-
nicantes para as suas obras.
Diz que esta antologia é “o
mais próximo que tem de uma
autobiografia”. O que nos revela
sobre a sua vida?
Por mais estranho que pareça, tenho
a impressão de que me revelo mais atra-
vés da escrita do que através do cinema,
embora tenha feito um filme como Dor e
Glória, em que a personagem de Antonio
[Banderas] é muito parecida comigo: a
AUTOR DATA
F Alex Vicente 07.04.2023
68 JULHO 2023 - N.º 329
Bio
Nascido em 1949, em
Calzada de Calatrava, uma
aldeia de La Mancha, no
centro de Espanha, Pedro
Almodóvar estava destinado
a ser padre. Aos 8 anos,
os pais enviaram-no para
um colégio interno católico.
Porém, descobriu o cinema
e, aos 17, mudou-se para
Madrid. Figura central do
movimento La Movida dos
anos 70, escreveu artigos,
bandas desenhadas e
contos, fundou um grupo
de glam rock e fez filmes
amadores. Em 1980, Pepi,
Luci, Bom e Outras Garotas
como a Mamã, a sua
primeira longa-metragem,
lançou a sua carreira de
cineasta.
TRADUTORA
Helena Araújo
mesma profissão, a mesma casa... Algo
da minha intimidade transparece nas mi-
nhas histórias. Estou a abrir a porta a uma
parte da minha vida de que nunca falei.
Sinto que a literatura precisa de contar
as histórias mais pessoais. No cinema, há
mais paredes atrás das quais nos podemos
esconder, e isso dá-me coragem. Talvez
não mostre o meu passado, mas sou uma
pessoa modesta.
Sempre se sentiu um escritor?
Desde criança que tenho vontade de
escrever, mas isso não faz de mim um
escritor, e publicar este livro também não
faz de mim um escritor. Não me enver-
gonho dele e acho que vale a pena lê-lo.
Mas a grande literatura é outra coisa. Tudo
o que quero é que os meus livros sejam
divertidos. É isso que peço. Em todo o
caso, o facto de ter começado a escrever
muito novo ajudou-me muito a criar os
argumentos. Esta experiência deu-me
ferramentas e agilidade.
As suas histórias serviram de
embriões para futuros filmes, como
Má Educação, Fala com Ela e
Dor e Glória. São como que bebés
prematuros numa incubadora, que
saem quando chega a altura certa.
É exatamente isso, um banco de
embriões, que guardo no computador.
Escrevi Dor e Glória em apenas três me-
ses, porque o filme juntava três histó-
rias preexistentes: o primeiro desejo de
uma criança de 9 anos, o meu reencontro
com um antigo colega ator e uma obra de
microteatro, La Adicción, que eu tinha
escrito para uma atriz-realizadora e que
nunca se concretizou. Em todo o caso,
não é uma ciência exata. Por várias oca-
siões comecei a fazer adaptações e depois
abandonei-as, porque não funcionavam.
Na realidade, o cinema é um género que
não gosta muito de adaptações, mesmo
quando se trata da própria vida. São mun-
dos diferentes. São raros os projetos que
se concretizam.
No conto Vida e Morte de
Miguel, descreve a vida como
uma contagem decrescente para
a morte. Esta é uma visão muito
fatalista da existência, sobretudo
se tivermos em conta que a
personagem tem apenas 18 anos.
Tem algo que ver com o facto de viver
numa aldeia... Escrevi esta história numa
Olivetti que a mãe me deu, no pátio da
casa de família, em Madrigalejo (Cáceres),
com um coelho esfolado pendurado ao
lado. Foi inspirada por este mal-estar,
associado à vida num lugar a que não
pertencia. Se não tivesse saído, teria ido
parar à prisão ou ter-me-ia suicidado.
“À MEDIDA QUE O TEMPO PASSA, NÃO CONSIGO LIDAR
COM A QUESTÃO DA PASSAGEM DO TEMPO. SINTO-ME
COMO SE AINDA FOSSE UMA CRIANÇA, E NÃO DIGO ISTO
COMO SENDO ALGO POSITIVO. SOU TERRIVELMENTE
IMATURO NESTA MATÉRIA”
Aos 17 anos, disse aos meus pais que ia
para Madrid, o que deu origem à maior
discussão que alguma vez tivemos. Como
ainda era menor, o pai ameaçou man-
dar-me para a Guarda Civil. Disse-lhe
que fizesse o que quisesse, que eu iria na
mesma. A força da minha determinação
deve tê-los assustado...
Para si, ficar na aldeia significava
morrer?
Sim, morrer a todos os níveis. As al-
deias que me perdoem, porque acho que o
atual regresso à vida rural é maravilhoso,
mas crescer numa aldeia no pós-guerra
foi como viver no Faroeste. Não quer dizer
que negue La Mancha ou a Extremadura,
regiões que aparecem muito nos meus
filmes, mas sou um citadino inveterado.
Seria inconcebível para mim voltar a viver
numa aldeia.
Nas entrelinhas, sente-se o
sentimento de rejeição que advém
do facto de ser uma criança
diferente.
Quando digo, em Dor e Glória, que
não sou o filho que a minha mãe queria
e que me arrependo de ter sido uma de-
silusão, na verdade não estou a pensar
nela, mas em toda a aldeia, na forma
como olhavam para um rapaz homos-
sexual. Ainda não sabemos muito bem o
que somos, mas compreendemos mui-
to bem o que nos dizem. É muito difícil
sofrer tal rejeição, quando se é criança.
Deixa-nos uma marca profunda.
Em algumas histórias, podemos ver
traços da sua educação religiosa.
Por exemplo: a primeira história
que escreveu, que não aparece no
livro, é sobre um cordeiro...
E a segunda sobre a Imaculada Con-
ceição. [Risos.] Ainda bem que não as
guardei. Sinto-me um pouco envergo-
nhado por causa da fé que revelam. De
facto, eu queria ser crente, tentei mesmo
acreditar em Deus e na piedade, mas não
deu certo. Foram os padres que me tor-
naram ateu. Pode ver a minha raiva e o
meu anticlericalismo em histórias como
A Visita, que inspirou Má Educação, 40
anos mais tarde. É uma vingança contra
a minha escola e os abusos que lá foram
cometidos. Se não há milhões de quei-
xas em Espanha, é porque somos muito
puritanos e temos vergonha de admitir
os factos.
Em todo o caso, a ideia de Deus desa-
pareceu completamente em prol do ce-
rimonial e do ritual. O teatro ao vivo é o
aspeto da religião que mais me interessa.
Era assim com a mãe e as minhas irmãs.
As mulheres que vivem em La Mancha
não vão à missa. A religião da minha mãe
consistia em ir a ermidas com as amigas
para honrar os seus santos preferidos, o
que não tem nada que ver com a ideia de
um Deus que ameaça mandar-nos para
o inferno.
Segundo as suas palavras, El Último
Sueño, escrito no dia do funeral
da sua mãe, é o melhor texto que
alguma vez escreveu.
Talvez estivesse um pouco emocio-
nado nesse dia... [Risos.] Mas acredito
sinceramente que são as melhores cinco
páginas que eu alguma vez escrevi. O pro-
blema é que, para atingir esta qualidade,
a minha mãe teve de morrer. Nunca mais
me senti o mesmo. Ainda hoje, quando
as releio, fico comovido.
A partir desse momento, os seus
filmes estão cheios de espectros
JULHO 2023 - N.º 329 69
 Entrevista
de mães e de cenas em hospitais.
O sonho da tempestade que a sua
mãe lhe contou, antes de morrer,
reflete-se, se não explicitamente,
pelo menos simbolicamente nos
filmes.
Sim, foi um ponto de viragem. Desde
que fiz Fala com Ela que o meu trabalho se
tornou mais sério. Nos últimos filmes, re-
nunciei a todas as minhas assinaturas, como
as canções ou os elementos que aligeiram
o enredo. Os filmes estão cada vez mais
austeros, e até eu me tornei mais sombrio
e melancólico, mais incerto e temeroso.
Diria que faz um cinema de órfãos?
É curioso, porque todos nós pensa-
mos que sabemos o que é ser órfão, até
que isso nos acontece. De repente, somos
invadidos por um sentimento de soli-
dão imensa, pela sensação de não termos
mais ninguém que nos proteja. Ao mesmo
tempo, apercebemo-nos de que estamos
a caminhar para a própria morte. A ideia
da morte aterroriza-me, é algo que ain-
da não integrei nem compreendi. É um
grande problema, porque, à medida que
o tempo passa, não consigo lidar com a
questão da passagem do tempo. Sinto-me
como se ainda fosse uma criança, e não
digo isto como sendo algo positivo. Sou
terrivelmente imaturo nesta matéria.
Chus Lampreave para Negros
Hábitos, Lluís Homar para Abraços
Desfeitos, Marisa Paredes para A
Flor do Meu Segredo… Por que
razão os seus filmes têm tantos
escritores?
É interessante, porque, nestes três
exemplos, os autores escrevem sob pseu-
dónimo: Concha Torres, Harry Cane e
Amanda Gris. Penso que isso reflete um
desejo de não ser eu próprio. Por volta de
2000, pensei em escrever com outro nome,
com a vaga ilusão de que assim me sentiria
mais livre, mas o meu irmão proibiu-me.
Fascinam-me as histórias de Boris Vian
e de Romain Gary, que publicaram livros
com nomes falsos; ou de J.D. Salinger e
de Elena Ferrante, que nunca mostraram
o rosto e se mantêm escondidos envoltos
em mistério. Para um cineasta, por outro
lado, a imagem é essencial.
Qual foi a importância de Patty
Diphusa, a estrela do romance
pornográfico, que criou em 1979 e
que se tornou muito popular nos
anos 80?
Fiquei muito surpreendido com o
sucesso destes textos, não estava nada
à espera. Foi puro frenesim, uma prova
da mudança explosiva que ocorreu no
nosso país. Eu tinha escrito estas colu-
nas para a revista Vibraciones. Ficaram
70 JULHO 2023 - N.º 329
Uma longa
história de amor
com Cannes
Foi um dos ídolos do Festival de Cannes.
Neste ano, Pedro Almodóvar apresentou
a sua curta-metragem em língua inglesa,
que foi exibida fora de competição.
Estranha Forma de Vida é protagonizada
por Ethan Hawke e Pedro Pascal, e conta
com a participação do ator português José
Condessa. Almodóvar descreve a curta
como um western queer, em resposta ao
filme de Ang Lee, de 2005, O Segredo de
Brokeback Mountain. O caso de amor de
Almodóvar com Cannes remonta a 1999,
quando ganhou o prémio de realização
com Tudo sobre a Minha Mãe. Em 2004,
Má Educação foi exibido como filme
de abertura, uma estreia para um filme
espanhol. Em 2006, ganhou o prémio de
argumento por Voltar. E o último prémio:
Cannes nomeou o cineasta presidente
do júri em 2017. Almodóvar entregou a
Palma de Ouro ao sueco Ruben Östlund
pela sua longa-metragem O Quadrado.
Dois anos depois, regressou com
Dor e Glória, uma obra muito intimista
que valeu a um dos seus atores
preferidos, Antonio Banderas, o galardão
de Melhor Ator.
Filmes
emblemáticos
Almodóvar é um realizador muito
prolífico. Entre as cerca de 20 longas-
-metragens que realizou, algumas
marcaram pontos de viragem na sua
obra. Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas
como a Mamã, de 1980, lançou a sua
carreira. Em 1982, começou a trabalhar
com Antonio Banderas em Labirinto
de Paixões, seguindo-se, em 1987, a
colaboração com Rossy de Palma em
A Lei do Desejo, um filme-chave na
sua vida, que mostra a visão do desejo
do cineasta. Um ano mais tarde, com
Mulheres à Beira de um Ataque de
Nervos, obteve o seu primeiro sucesso
crítico e comercial, ganhando o prémio
de Melhor Argumento no Festival de
Veneza. Seguiram-se, em 1999 e 2002,
Tudo sobre a Minha Mãe e Fala com
Ela, ambos vencedores de um Oscar,
que exploram a relação entre mãe e
filho. O cineasta tornou-se depois mais
autobiográfico com filmes inspirados
na sua infância, como Má Educação,
em que relata o seu tempo num colégio
interno católico, e Voltar, em 2006. Mais
recentemente, Dor e Glória é o retrato de
um realizador atormentado no final da
sua carreira.
conhecidas graças ao periódico La Luna,
de Madrid, e acabaram por ser traduzidas
em várias línguas.
Escreveu-as sob o efeito de drogas?
Por vezes sim, quando me distraía
e me esquecia de que tinha de entregar
um texto. A seguir, acabava-o à pressa,
enquanto o estafeta o ia buscar. Nessa
altura, consumia cocaína.
Nota-se no seu estilo...
Depois deixei a cocaína, a seguir o
café e finalmente o chá. Era disso que eu
precisava na altura, mas não recomendo
drogas para escrever.
Patty Diphusa é para si o que Emma
Bovary era para Flaubert?
Não, não é. Inspirei-me numa atriz
conhecida, uma amiga, mas que não pode
ser identificada. Uma vez ficou zangada
comigo, porque pensou que eu tinha en-
trado em demasiados pormenores e ela
receou que as pessoas a reconhecessem,
mas acho que isso não é possível. Estas
histórias estão imbuídas do hedonismo
da época, tal como os meus primeiros
filmes. Embora hoje me interesse pela
memória histórica, os meus primeiros
filmes cortaram a ditadura, que nem se-
quer aparece como sombra nem memória.
Quer dizer, ainda assim tem o
policial estuprador da casa ao
lado, em Pepi, Luci, Bom e Outras
Garotas como a Mamã.
É verdade. Não consegui completa-
mente, tem razão, mas estava a negar a
presença de Franco e da ditadura. Gostava
de deixar claro que não foi um caso de
esquecimento, foi uma postura artística
minha, quando comecei a escrever. Lem-
brava-me perfeitamente da ditadura: vivi
durante anos, 25 anos, sob o regime de
Franco, o que não é pouco. O ambiente era
sufocante. Foi em resposta a esse período
que escrevi Patty Diphusa.
Mesmo em criança já era um
grande leitor. Que autores
marcaram a sua juventude?
As minhas irmãs costumavam com-
prar livros, por correspondência, no catá-
logo das Galerias Preciados. Aos 10 anos,
encomendei os meus primeiros livros: O
Lobo das Estepes, de Hermann Hesse, e
Um Certo Sorriso, de Françoise Sagan.
Mais tarde, apaixonei-me por Henry Ja-
mes e por Virginia Woolf, que li depois
de chegar a Madrid; por Truman Capote
com A Sangue Frio e Boneca de Luxo;
por Marguerite Duras e J.M. Coetzee, e
os latino-americanos Julio Cortázar, José
Donoso e Mario Vargas Llosa, exceto as
obras dos últimos 25 anos, que não li,
em parte porque me interessam menos.
Aliás, isso é uma estupidez, porque eu
“NOS ÚLTIMOS FILMES, RENUNCIEI A TODAS AS MINHAS
ASSINATURAS, COMO AS CANÇÕES OU OS ELEMENTOS
QUE ALIGEIRAM O ENREDO. OS FILMES ESTÃO CADA VEZ
MAIS AUSTEROS, E ATÉ EU ME TORNEI MAIS SOMBRIO
E MELANCÓLICO, MAIS INCERTO E TEMEROSO”
sou daquelas pessoas que acham que há
o escritor ou o cineasta, por um lado, e
a pessoa, por outro, e que estes nunca se
devem misturar.
E quanto à literatura mais recente?
Gosto de Éric Vuillard e de Leila Slima-
ni, a quem dediquei um texto, Memória de
Um Dia Vazio, neste livro. Também tenho
notado um fenómeno interessante em
Espanha: jovens escritoras que rejeitam
a cidade e começam a levar uma vida má
num lugar solitário, como Sara Mesa ou
Eva Baltasar. Gostaria muito de adaptar
Boulder, de Eva Baltasar. Estou a pensar
em como abordá-lo e transformá-lo num
filme. Ainda não encontrei uma forma,
mas sou muito persistente. É uma escri-
tora muito dura e original. O seu livro foi
oferecido a uma realizadora francesa, que
o recusou, por isso vou tentar.
Depois há os autores que
inspiraram os seus filmes, como
Ruth Rendell em Em Carne Viva,
Thierry Jonquet em A Pele Onde
eu Vivo e Alice Munro em Julieta.
É conhecido pelas suas adaptações
muito livres...
É verdade, a minha relação com a li-
teratura é marcada por uma grande infi-
delidade. Alice Munro é uma das minhas
escritoras preferidas. O desafio passou
por adaptar as suas histórias ao contexto
espanhol. A cultura familiar canadiana
não é nada parecida com a nossa. Se a filha
de uma mulher espanhola desaparecesse
aos 18 anos, ela moveria o céu e a terra
para a encontrar.
Nos anos 90, descobri o thriller de
Jonquet, numa viagem de avião, e achei-o
brilhante. Tentei adaptá-lo, mas toda a
parte do sadomasoquismo afastou-me
do livro. Informei-me, mas não consegui
fazê-lo, porque me repugnava. E se há
coisa que nunca se deve fazer é escrever
enquanto se está a julgar as personagens.
Voltei a fazê-lo 20 anos depois, substi-
tuindo o sadomasoquismo pela transgé-
nese. De repente, funcionou...
O que pôs fim à sua colaboração
com Lucia Berlin, cuja obra,
Manual para Mulheres de
Limpeza, devia ter adaptado?
Abandonei o projeto com muita dor,
embora o guião já estivesse escrito. Quan-
do descobri Lucia Berlin, senti que tinha
encontrado a minha alma gémea. Enviei o
livro à Cate Blanchett, que me respondeu
dizendo que queria participar no projeto
como atriz, produtora e realizadora. Em
janeiro de 2022, tudo estava pronto para
filmar, mas a Cate só estava disponível na
primavera. Embora me sentisse comple-
tamente livre e apoiado, encontrei-me
num sistema de produção que não era
o meu. Pude escolher a cor da alcatifa e
até me ofereceram para recriar Oakland
digitalmente, mas não fiquei convencido.
E depois tive problemas de costas...
Disse para mim mesmo que se tratava de
um nível de produção exorbitante e que este
projeto ia frustar-me. No ano passado, teria
empreendido o projeto com a inconsciência
do entusiasmo, mas agora, apesar de ser
muito difícil, tenho de recusar. Sinto-me
particularmente culpado em relação à Cate,
odeio-me por tê-la abandonado.
JULHO 2023 - N.º 329 71
Encontro marcado
em ZZYZX...
no meio do nada
NO DESERTO CALIFORNIANO DE MOJAVE, AO FUNDO DE UMA ESTRADA A
QUE SE CHAMOU, BIZARRAMENTE, “ZZYZX”, ENCONTRAMOS UM LUGAR
COM O MESMO NOME, TAMBÉM ELE MISTERIOSO. HOJE EM DIA, O SÍTIO – QUE
EM TEMPOS FOI A SEDE DA PEQUENA COLÓNIA DE UM CHARLATÃO DE ALTO
GABARITO – ATRAI CIENTISTAS E MARGINAIS
SFGATE (excertos)
São Francisco
 Viagem Baker Para
Las Vegas
(169 km)

15 te
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EUA

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CALIFÓRNIA

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Para
Los Angeles
(290 km)
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FONTE: OPENSTREETMAP AND CONTRIBUTORS

35° 08’ N D
Zzyzx

A
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e
Francisco

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rio seco
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Mo
Uma piscina, com a forma de um crucifixo, cheguei num bonito dia de inverno. Não se

to
Lei
está em decomposição sob o sol do deserto. avistava vivalma, parecia que estava noutro 3 km
Oceano Los Angeles

À sua volta, há cinco tanques de betão em
ruínas, onde outrora havia quem se lavasse,
esperando livrar-se de todos os pecados.
A água mineral quente, que se dizia provir
de um rio subterrâneo sagrado, atraía as
almas desesperadas em busca de salvação
para este lugar perdido no desolado deserto
californiano. Hoje em dia, uma parte da
piscina afunda-se no leito de um antigo
lago, em cujas margens foi erigida uma
estranha povoação.
Aqui, estendendo-se ao longo de quase
cinco mil hectares, foi construído o sonho
de Curtis Springer [1896-1985], um célebre
vigarista e ocupante ilegal sem rival. Sprin-
ger dizia-se médico, profeta, professor,
mineiro – mas, na verdade, não chegava
a ser nenhuma dessas coisas. Acabou por
ser apanhado nas suas artimanhas e teve de
abandonar o seu pequeno império ilegal nos
confins do deserto. Foram este caso insólito,
os dois filmes de terror aqui gravados e o
estranho nome do local que me atraíram,
pela primeira vez, ao cruzamento da estra-
da Zzyzx com a rodovia interestadual n.º
15, cerca de uma hora a leste de Barstow.
E, independentemente do campeão dos
vigaristas e da piscina sinistra, descobri
que este sítio [que deu o nome à estrada]
é, depois de percorridos sete quilómetros,
um fenómeno natural único no mundo.
Um verdadeiro oásis no deserto.
Ao fim de cinco quilómetros, a estrada
transforma-se num caminho de gravilha
que segue delineando um promontório
rochoso. Ladeado de palmeiras, o trilho
conduz eventualmente ao famoso conjunto
de edifícios que marca o fim do percurso. Eu
AUTOR DATA
F Andrew Chamings 24.01.2023
planeta, longe da autoestrada percorrida
por milhares de pessoas todos os dias, entre
Los Angeles e Las Vegas.
A imagem mais impressionante de
Zzyzx é a do lago Tuendae, um perímetro
de água do tamanho de um campo de fute-
bol. E mais longe, atrás das palmeiras [que
ladeiam o lago artificial], o longo leito do
lago, branco e seco, estende-se até às mon-
tanhas conhecidas por Devil’s Playground
– o “campo de jogo do diabo”. “É um lugar
especial”, diz-me o biólogo Terry McGlynn.
“À noite, há escorpiões, raposas, coiotes,
coelhos e ovelhas selvagens a vaguear por
aqui. É de cortar a respiração.” McGlynn
dirige o Centro de Estudos do Deserto (DSC)
da Universidade do Estado da Califórnia,
que está instalado e funciona há quase 50
anos em Zzyzx, esse curioso local com um
passado historicamente relevante, outrora
denominado Soda Springs. Estudantes e
investigadores ali permanecem ao longo de
semanas, nas margens do lago seco Soda
[diferente do lago Tuendae] – um leito de
um branco luminoso, que é o que resta
do lago Mojave. Há indícios que provam
que os povos indígenas terão começado
a habitar as margens do lago há cerca de
dez mil anos.
“Trata-se da bacia do rio Mojave, que
corre de oeste para este, desde as mon-
tanhas de San Bernardino”, explica-me
Jason Wallace, chefe de operações do DSC e
herpetologista. “Isto é um tanto contrário
à tendência, se compararmos com a maior
parte dos sistemas fluviais [que desembo-
cam no oceano Pacífico].” Seco à superfície,
o rio Mojave ainda está ativo no subsolo,
TRADUTORA
Margarida Bak Gordon
do
Pacífico
prossegue Wallace. “Não muito abaixo do
leito do lago, ainda há água.”
Os estudantes perfuram as rochas para
descobrir vestígios paleoclimáticos, acom-
panham os trajetos das ovelhas selvagens,
monitorizam as populações de répteis e
fazem análises hidrológicas às antigas fontes
naturais que atraem as pessoas à região há
milhares de anos. “Vêm geólogos do mundo
inteiro”, diz McGlynn.
“É uma janela verdadeiramente úni-
ca sobre a história do tempo.” Ouve-se
dizer recorrentemente que o local é uma
aldeia-fantasma abandonada, mas, na rea-
lidade, Zzyzx é um centro de investigação
ativo, ligado à Universidade do Estado da
Califórnia em Fullerton, e dispõe de cer-
ca de 60 camas para receber estudantes e
investigadores.
A sumptuosa atração central de Zzyzx,
o lago Tuendae, é o habitat do galeirão-a-
mericano, da libelinha e de muitas aves
migratórias que ali fazem uma paragem para
matar a sede na sua longa viagem através
do deserto. É também um dos três únicos
sítios onde se pode encontrar o “Mohave
tui chub” [cujo nome científico é Gila bi-
color mohavensis], um peixe protegido
e em vias de extinção. “Nunca os vemos.
Vivem no fundo do lago”, explica McGlynn.
“Em alguns anos, vêm grupos monitori-
zá-los, verificar que ainda existem e que
estão bem.”
O misterioso Curtis Springer
Porém, há qualquer coisa estranha nesta
superfície de água de forma retangular,
rodeada por palmeiras com um espaça-
mento idêntico entre si. É quase demasiado
perfeita. Mas entende-se que assim seja,
uma vez que este lago de águas cristalinas é,

74 JULHO 2023 - N.º 329 FOTOS: GETTYIMAGES

afinal, um artifício construído pelo homem.
E o homem em causa é, aparentemente,
indissociável de todas as histórias que en-
volvem estes espaços. “Não há nenhuma
fotografia que o prove”, aponta McGlynn.
“Mas tudo aponta para que o lago tenha
sido obra de Springer.”
Nascido em 1896, no Alabama, Curtis
Springer começou por se afirmar como
conferencista e, mais tarde, foi pregador
na rádio e um fervoroso promotor de pro-
dutos dietéticos. Fazendo-se passar por
médico, Springer metia ao bolso dinheiro
de estudantes curiosos que vinham assistir
às suas conferências com a esperança de
descobrir os segredos para levar uma vida
sana e devota. Em 1930, num YMCA em
Scranton, Pensilvânia, Springer organizou
um curso em que assegurava estar ligado ao
“departamento de extensão da academia
nacional”, uma universidade totalmente
fictícia. Entre as outras sessões de forma-
ção que promovia estavam, por exemplo,
“Como afastar a doença e saborear a ale-
gria de viver” e “Escolher um esposo para
sempre”.
Uma das burlas praticadas regular-
mente por Springer – seja dando aulas,
oferecendo amostras dos seus alimentos
miraculosos ou convidando pessoas a vi-
rem, depois, tomar banho à sua piscina no
deserto – consistia em não pedir dinheiro
numa primeira fase, mas, mais tarde, fazer
propostas aliciantes ao seu público para
juntar algum rendimento. Tinha o hábito
de interromper as conferências a meio para
recolher “donativos” e propunha sessões
privadas no resto do dia, a 25 dólares por
pessoa.
Um artigo publicado em 1935 pelo Jour-
nal of the American Medical Association
[uma publicação célebre da mais importante
associação de médicos dos EUA], intitulado
“Curtis Howe Springer: um vigarista e as
suas panaceias”, dizia que Springer trilhou
um caminho repleto de mentiras em mui-
tas cidades da costa este e do centro-oeste
norte-americano, no início da década de
1930, extorquindo dinheiro para supostas
aulas e fugindo, exibindo inúmeros títulos
fictícios ao longo do processo.
Springer lançou também uma revista
com um nome bizarro, intitulada Sym-
posium Creative Psychologic, que foi
considerada “sem sentido” pela Ameri-
can Medical Association (AMA). No auge
da sua glória radiofónica, o seu programa
era transmitido em mais de 200 estações
nos EUA e em cerca de uma centena no
estrangeiro. Springer afirmava ter 14 mi-
lhões de ouvintes por semana, e talvez não
andasse muito longe disso. O seu programa
era um misto de sermões (apresentava-se
como pastor metodista, mas veio a saber-se
mais tarde que, quando muito, ter-se-á
ordenado a si próprio), canções religiosas,
orações violentas contra os perigos do álcool
e testemunhos de consumidores entusiastas
acerca das suas curas milagrosas.
Estas últimas, que o viriam a pôr atrás
das grades, incluíam o seu famoso “chá an-
tediluviano”, uma mistura à base de laxante
com um nome inspirado no dilúvio bíblico,
um “cocktail de Hollywood”, um trata-
mento para as hemorroidas (que custava
...
A imagem mais
impressionante é a
do lago Tuendae, um
perímetro de água
do tamanho de um
campo de futebol onde,
de noite, vagueiam
escorpiões, raposas e
coiotes
25 dólares), e o “Mo-Hair”, um remédio
para a calvície que, mais tarde, se veio a
verificar não ser mais do que uma decocção
de dois ingredientes: lama e petróleo.
Concessão mineira
Nos seus vários anúncios, conferências e
emissões radiofónicas, Springer acres-
centava, depois do seu nome, a descrição
“formado em Medicina” e afirmava possuir
um doutoramento – alegação que foi des-
mentida pela AMA após uma investigação.
Ele nunca se “diplomou numa faculdade
séria, nem em Medicina nem noutro domí-
nio”. No começo da década de 1940, talvez
com esperança de escapar à AMA, ao fisco
ou a quem exigia o reembolso das aulas
que nunca chegaram a acontecer, Springer
instalou-se em Los Angeles.
Mais tarde, contou que, enquanto lá
estava, encontrou, num alfarrabista em
Hollywood, um pequeno panfleto de 25
cêntimos sobre “as fontes minerais da costa
do Pacífico”. Lá dentro, descobriu um sítio
intitulado “fontes termais de Fort Soda”, no
deserto de Mojave. Incapaz de identificar o
local no mapa, foi para o deserto, a mais de
320 quilómetros da sua casa em Hollywood,
e conseguiu encontrar a nascente, que se
alimentava do rio Mojave subterrâneo, na
periferia do antigo lago Soda, que secou.
Na altura, esta área era um bosque desa-
bitado, sem nada além de velhas minas de
bicarbonato e vestígios de Fort Soda, um
antigo acampamento militar espanhol e
mais tarde norte-americano, onde deze-
nas de indígenas norte-americanos foram
mortos na década de 1860.
Springer e a sua mulher, Helen, fizeram
um requerimento para obter uma conces-
são mineira de 13 por oito quilómetros de
terras do Estado e começaram a construir
aquilo que tornaria o pregador famoso para
sempre. Para erigir o seu projeto ambicioso,
Springer voltou a Los Angeles, onde recru-
JULHO 2023 - N.º 329 75
 Viagem
tou pessoas em situação de sem-abrigo em
Skid Row [um dos bairros onde há, ainda
hoje, uma das concentrações mais elevadas
de pessoas em situação de sem-abrigo no
país], que foram com ele para o deserto
ajudá-lo a encontrar a nascente e a cons-
truir aquilo a que posteriormente chamou
Soda Springs. O próprio Springer admite
ter trazido “centenas” de homens de Skid
Row para construir o empreendimento, pa-
gando-lhes com alojamento e alimentação.
Foi, em certa medida, em tom de brin-
cadeira que chamou ao local “Zzyzx”, para
que tivesse sempre “a última palavra em
questões de saúde”. O nome foi oficialmente
reconhecido, embora não sem controvér-
sia, pelo conselho fiscal do condado de San
Bernardino, em 1965, e assim surgiu o agora
lendário letreiro verde na estrada n.º 15. Os
trabalhadores de Springer construíram o
“hotel” – os dormitórios atualmente uti-
lizados pelos estudantes – na praça central
da povoação, a que ele chamou “Avenida
dos Sonhos”.
O primeiro anúncio da estância termal
apareceu em novembro de 1945, no Los
Angeles Times, e propunha viagens de
autocarro até Zzyzx, desde hotéis de Los
Angeles, prometendo banhos de lama, de
sol e de água mineral, e gelados artesanais,
numa “atmosfera abertamente cristã”.
Springer era, desde sempre, um fervoroso
adepto da proibição, razão pela qual nunca
se serviu álcool naquele lugar.
O fenómeno fez um enorme sucesso,
em grande parte por causa do custo apa-
rentemente baixo. “Aceitamos que paguem
o que Deus vos permitir”, dizia o anúncio.
Mas isso era mentira. Springer cobrava 50
dólares por semana à grande maioria dos
clientes, mesmo que tenha acontecido
oferecer a estada a alguns visitantes que
apresentavam cartas do seu “pastor, padre
76 JULHO 2023 - N.º 329
...
Na década de 1950, o
local contava com um
estúdio de gravação,
uma serralharia, uma
tipografia e até um
aeródromo privado,
chamado Zyport
ou rabino” que provavam que, efetivamen-
te, “não tinham dinheiro”.
Eram, na sua maioria, reformados do
Sul da Califórnia, que se via saírem dos au-
tocarros no local, que podia acolher 140
clientes ao mesmo tempo, todos em busca
de uma purificação no deserto, ouvindo a
palavra divina transmitida por Springer,
enquanto desfrutavam de curas medicinais
com águas termais. E, para alguns dos visi-
tantes, funcionava, aparentemente. “Sofria
de uma artrite tão acentuada numa das mi-
nhas mãos que mal a conseguia mexer”, di-
zia [em julho de 1970] uma cliente anónima
de 89 anos, num artigo do New York Times
intitulado “Zzyzx, uma estância termal em
expansão”. “Agora, vejam”, acrescentava,
antes de “levantar sem esforço a sua mão
enrugada”.
Durante toda a década de 1950, os tra-
balhadores de Zzyzx continuaram a desen-
volver o sonho de Springer no deserto. A
um dado momento, o local contava com
um estúdio de gravação, uma serralharia,
uma tipografia e até um aeródromo pri-
vado, chamado Zyport, a partir do qual
a estrela da rádio viajava semanalmente
para Hollywood, para publicitar a sua nova
atração. A estância termal estava também
equipada com um sistema de som e um
altifalante, através do qual Springer dava
um sermão duas vezes por dia, quando não
estava ocupado a gravar o seu programa de
rádio. Numerosos anúncios publicitários
do local afirmavam que a água purificadora
que jorrava do rio subterrâneo para a pis-
cina em forma de cruz e para as bacias era
naturalmente “quente”. No entanto, como
se trata de Springer e da Zzyzx, é preciso
desconfiar das aparências. “Ele aquecia a
água e dizia que eram ‘fontes termais’”,
conta, entre risos, McGlynn. “Tinha um
gerador a gasóleo para aquecer a água e,
depois, dizia: ‘Oh! São fontes minerais
quentes.’”
“A narrativa era a de que a água vinha
de uma ‘fonte purificadora’”, explica Mc-
Glynn, e, não sendo efetivamente nefasta
para a saúde, era basicamente intragável
devido ao seu teor mineral. “A água estava
realmente a purificar as pessoas, provo-
cando-lhes diarreia.”
O princípio do fim
As coisas começaram a correr mal no final
da década de 1960, quando Springer per-
mitiu que aqueles que tinham feito grandes
doações construíssem casas no terreno,
que tecnicamente ainda era propriedade do
estado da Califórnia. O contrato de arren-
damento de Springer, assinado em 1944,
não previa a ocupação ou o aproveitamento
do terreno para lá dos limites acordados, e
Springer fez tudo menos explorar minas.
Em 1967, Charles Hillinger, um repór-
ter do Los Angeles Times, publicou vários
artigos que descreviam Springer como um
vigarista que vivia num terreno que não lhe
pertencia. Em 1968, Springer foi preso no
local e cumpriu 49 dias de uma pena total
de 90 dias, sob 65 acusações de publicida-
de enganosa e falsas declarações. Uma das
acusações referia que o seu tratamento para
as hemorroidas, que custava 25 dólares, não
tinha qualquer efeito, e outra relatava que
Springer vendia alimentos simples, como
aipo e cherovia, como “suplementos dieté-
ticos” de preço elevado. Foi ainda acusado
de declarar, falsamente, que a sua dieta
“curava o cancro”.
Depois de ter cumprido a pena, regres-
sou às termas e manteve o seu negócio,
apesar das cartas enviadas pelo Estado a
lembrá-lo de que devia 34 mil dólares de
renda. O facto de ter sido condenado tam-
bém chamou a atenção para a Zzyzx e atraiu
ainda mais jornalistas àquela parte remota.
Em 1974, já após seis anos de processos
judiciais, o estado da Califórnia conseguiu
finalmente expulsar Springer da cidade
que ele tinha batizado, mas que nunca
lhe pertencera.
Dois anos mais tarde, o local foi trans-
formado num centro de investigação
universitário, que ainda se encontra em
funcionamento hoje em dia. Em 1976, no
dia da inauguração do centro, enquanto
os jornalistas se reuniam e as câmaras
filmavam, Springer entrou no recinto,
desafiando a ordem do tribunal.
“O superocupante de 80 anos”, descre-
via um apresentador regional, “respondeu
a perguntas na margem do lago que ele
próprio construiu e vangloriou-se de ter
oferecido, ao longo dos anos, milhões de
dormidas e refeições gratuitas.” À frente
das câmaras, provocou, dizendo: “Acre-
dito que esta propriedade pertence a Deus.
Não vou abandoná-la. Vou lutar até que
o inferno gele e já não reste nenhum cão
para ser enforcado.”
Aquela seria a última ida de Springer a
Zzyzx – embora o pregador tenha contesta-
do a decisão de expulsão até ao fim dos seus
dias. Curtis Springer morreu a 19 de agosto
de 1985, em Las Vegas, aos 88 anos. “Acho
inacreditável que não haja uma biografia
ou um filme sobre o que fez”, confessa-me
McGlynn. “Não há muitas pessoas que te-
nham ouvido falar dele.”
Dois filmes de terror foleiros – um dos
quais, protagonizado por Katherine Heigl,
detém o título nada invejável de filme com
menor bilheteira de sempre – têm como
cenário a estrada Zzyzx. Ambos foram lan-
çados em 2006, e, por isso, um deles [o que
é protagonizado por Heigl] foi forçado a uma
grafia incorreta – Zzyzyx Road –, o que só
veio aumentar a confusão em torno deste.
Parece lógico escolher este sítio como
cenário para um filme de terror. A paisagem
cinematográfica e a sensação de desolação
são adequadas aos westerns modernos,
com as suas histórias de sangue e terror. De
facto, nas minhas pesquisas para este arti-
go, descobri dois acontecimentos trágicos
que ocorreram no local, ambos reais, mas
esquecidos, e ambos envolvendo os filhos
adolescentes de Curtis Springer.
O primeiro teve lugar em dezembro
de 1952, quando um dos seus filhos, Terry
Foster Springer, de 16 anos, foi acordado a
meio da noite por uma agitação num cur-
ral de cabras. O jovem Springer disse que
pensava que um gato selvagem andava a
rondar o gado e disparou a sua carabina
.22 LR na direção do barulho. Ao fazê-lo,
matou um homem chamado Roberto De
La Armendariz. O filho de Springer nunca
foi preso ou acusado pelo incidente.
Poucos meses depois, em 1953, o filho
mais velho de Springer, Charles, de 19 anos,
morreu num acidente estranho enquanto
caçava coelhos com uns amigos. De acor-
do com um obituário publicado no Daily
American, Springer saltou do camião em
que se encontrava para abater um coelho
ferido com a coronha da sua espingarda. “O
cano da espingarda soltou-se da coronha
e disparou uma bala, que atingiu no pul-
mão o pobre jovem.” Charles Springer terá
morrido pouco tempo depois, a caminho
do hospital de Barstow.
Em quase 50 anos, a piscina em forma de
crucifixo manteve-se praticamente intacta.
McGlynn considera que a sua existência,
no meio do centro de investigação, é um
“inconveniente aliciante”. Talvez por causa
da sua história ou do seu isolamento, o local
tem ocasionalmente atraído, nos últimos
anos, pessoas que tentam escapar ao siste-
ma. “É como um íman; estamos no fim de
uma estrada com um nome curioso, o que
faz com que as pessoas se interessem. Somos
alvo de vandalismo com regularidade. Há
gente que vem e mexe onde não deve”, diz
Wallace. “Pensam que está abandonado.
Levam coisas e, quando se apercebem, di-
zem: ‘Oh, peço desculpa. Não me apercebi
de que estava aqui alguém. Levo apenas
esta motosserra.’ É uma loucura.”
Wallace conta que, durante a pandemia,
o local se tornou um lugar de destino para
alguns. “Não sabiam para onde ir. Pensa-
vam: ‘Tenho de ir. Vou para o deserto.’ E,
depois, começavam os problemas.”
“Há gente que anda por aí, em pleno
verão, com meia garrafa de água, sem saber
para onde vai ou o que está a fazer. Mas
o deserto terá sempre a última palavra.”
Pergunto a McGlynn se a atmosfera em
Zzyzx não é um pouco estranha à noite.
“Para mim, não, mas acho que, para alguns
visitantes, é. Há um silêncio incrível”, diz
ele. “Para mim, é extremamente tranquilo.”
Há algo de inegavelmente estranho na
paisagem do fim da estrada Zzyzx. Quan-
do me afasto, os membros de uma banda
punk, com ar perdido, saem de um Ford
Mustang com o nome da banda. Debaixo
das palmeiras, observam as estruturas
empoeiradas construídas por Springer,
à procura de um local perfeito para tirar
uma fotografia.
“Deus há de providenciar”, disse Sprin-
ger a um repórter, alguns anos antes de ser
expulso da pequena cidade que construíra.
“Se jogarmos o jogo com honestidade, acho
que o grande chefe lá de cima corrigirá as
injustiças. É nisso que acredito.”
JULHO 2023 - N.º 329 77
 ECOBREVES
planeta
360
AS GRANDES E AS PEQUENAS HISTÓRIAS SOBRE O MEIO AMBIENTE
ÁRTICO
JÁ É TARDE PARA SALVAR O GELO
“A investigação mostra que é demasiado tarde para salvar o gelo marinho de verão
do Ártico, e os cientistas dizem que temos de nos preparar para os fenómenos
meteorológicos extremos que provavelmente ocorrerão em todo o Hemisfério
Norte.” É com esta notícia sombria que começa um artigo do THE GUARDIAN, numa
alusão às conclusões de um estudo baseado em observações de satélite e análises
de atribuição, publicado na revista Nature Communications.
Há décadas que, à medida que o nível de CO2 na atmosfera aumenta, conduzindo
a uma subida da temperatura, o gelo marinho que flutua no oceano Ártico tem
vindo a diminuir e a reduzir a sua extensão. Estudos anteriores já tinham tentado
prever quanto tempo demoraria até que não houvesse gelo marinho no Ártico
no final do verão. De acordo com o novo estudo, que avalia vários cenários, mesmo
que as emissões de gases com efeito de estufa diminuam lentamente, o primeiro
setembro sem gelo poderá ocorrer já em 2030, “cerca de dez anos mais cedo do
que os investigadores tinham previsto anteriormente”, insiste o NEW YORK TIMES.
“Podemos certamente esperar ver verões sem gelo no Ártico. Tal como as coisas
estão, parece inevitável”, comentou Mark Serreze, diretor do Centro Nacional
de Dados sobre a Neve e o Gelo, em Boulder, EUA, ao WASHINGTON POST.
“A questão sempre foi saber quando é que isso vai acontecer.”
De acordo com o novo estudo, “90% do degelo é resultado do aquecimento global
provocado pelo Homem, sendo o restante resultado de fatores naturais”, refere
o THE GUARDIAN. Estudos anteriores mostraram também que o extremo norte
já aqueceu quatro vezes mais depressa do que a média global, um fenómeno
conhecido como “amplificação do Ártico”, o qual deverá acelerar ainda mais.
“A amplificação do Ártico vai ser mais rápida e mais forte”, adverte Seung-Ki Min,
climatologista da Universidade de Tecnologia de Pohang, na Coreia do Sul,
e coautor do estudo, ao NEW YORK TIMES. Isto significa que as repercussões também
serão mais rápidas, porque os efeitos da falta de gelo marinho no final do verão
no Polo Norte vão estender-se muito para além desta região. O que
se avizinha, alertam os investigadores, é um aumento dos fenómenos
meteorológicos extremos que se verificam atualmente, como as vagas de calor,
os incêndios florestais e as inundações.
78 JULHO 2023 - N.º 329
BIODIVERSIDADE
CONTROLO DA POLUIÇÃO
RECUPERA ADN
Os dispositivos de controlo da poluição atmosférica
estão a desempenhar uma segunda função, até agora
desconhecida mas crucial, nos esforços para salvar
a biodiversidade mundial: a recuperação
de fragmentos de ADN.
Um dos maiores desafios que o planeta enfrenta é
a perda acelerada de biodiversidade, que ameaça o
funcionamento dos ecossistemas à escala global. Até
ao momento, a falta de infraestruturas tem impedido
os cientistas de quantificar estas perdas em grande
escala, mas os dados recolhidos acidentalmente por
sensores que monitorizam a poluição atmosférica
podem vir a fornecer uma solução inesperada.
Num estudo publicado na revista CURRENT BIOLOGY,
uma equipa de investigadores de universidades
canadianas e britânicas afirma ter descoberto uma
forma engenhosa de catalogar a biodiversidade.
“Uma grande fonte de informação já existe sob a
forma de ADN ambiental (eDNA), que tem sido
inadvertidamente recolhido durante décadas nos
filtros de milhares de estações de monitorização
da qualidade do ar ambiente em países de todo o
mundo”, resume o site PHYS.ORG.
O eDNA provém de células, resíduos e sangue
presentes no ar, na água ou no solo. Os métodos
utilizados para o detetar revolucionaram o trabalho
sobre a fauna nas últimas décadas: já não é necessário
capturar fisicamente os animais para confirmar a sua
presença, os investigadores podem simplesmente
analisar o ADN que deixam para trás.
Para comprovar as suas afirmações, os investigadores
analisaram amostras de ADN de duas estações de
controlo da poluição atmosférica em Inglaterra e na
Escócia. “Os dados examinados a partir das primeiras
amostras recolhidas foram melhores do que qualquer
outra técnica de biodiversidade que alguma vez vi”,
afirma ao THE GLOBE AND MAIL a bióloga Elizabeth
Clare, da Universidade de York, em Toronto, que
liderou o trabalho. Foram identificadas “mais de 180
espécies de vertebrados, insetos, plantas e fungos”,
refere o diário canadiano.
 SAÚDE
PLÁSTICO RECICLADO
TRANSMITE TOXINAS

Os plásticos reciclados e reutilizados

em contacto com os alimentos são
“vetores de propagação de substâncias
químicas preocupantes”, segundo um
estudo publicado pelo THE GUARDIAN.
É que, explica, estes acumulam e libertam
“centenas de toxinas perigosas, como o
estireno, o benzeno, o bisfenol, os metais
pesados, o formaldeído e os ftalatos”.
Os autores do estudo, que analisaram
centenas de publicações científicas sobre
plástico e plástico reciclado, alertam para
o facto de que “as substâncias químicas
perigosas podem acumular-se nos
materiais reciclados e depois migrar para
os alimentos, levando a uma exposição
humana crónica”, citando como exemplo
as garrafas de plástico de politereftalato
de etileno (PET).
O estudo surge num contexto de debate
sobre a forma de reduzir a quantidade de
resíduos de plástico que assolam o planeta,
contextualiza o THE GUARDIAN.
“A indústria petroquímica, alguns governos
JAPÃO e numerosos grupos ambientalistas
MORANGOS TÊM CUSTO EXORBITANTE PARA O CLIMA têm feito pressão para melhorar a
reciclabilidade dos plásticos”, salienta o
No Japão, a procura cada vez mais precoce deste fruto diário. Mas os investigadores sublinham
vermelho obriga os agricultores a aquecer as suas que melhorar a qualidade da reciclagem
dos materiais envolve riscos. Por exemplo,
estufas em pleno inverno. Os combustíveis fósseis que foram identificados 53 produtos químicos
utilizam contribuem para o aquecimento global. E, no utilizados no plástico PET reciclado,
verão, é o transporte que aumenta a fatura climática, “muitos dos quais descobertos
uma vez que os morangos chegam de outros locais. nos últimos dois anos”.
“Chegámos a um ponto em que, para muitas pessoas,
é normal comer morangos no inverno”, diz Satoko
Yoshimura, produtora de morangos em Minoh, não
muito longe de Osaka, citada pelo THE NEW YORK TIMES.
É claro que a fruta e os legumes são cultivados em
estufa em todo o mundo. Mas a indústria japonesa de
morangos levou esta lógica tão longe que a maioria dos
produtores deixou de cultivar morangos nos meses mais
quentes, a época normal de produção, porque era muito
menos rentável. Em vez disso, no verão, o país importa
uma grande parte dos seus morangos.
Tradicionalmente, o mercado dá grande importância aos
produtos hatsumono (“início da estação”), desde o atum
ao chá e ao arroz. Uma fruta ou legume que se qualifique
como hatsumono pode atingir um preço várias vezes
superior ao normal e, por vezes, até gerar uma cobertura
mediática febril. Atualmente, a corrida aos hatsumono
estendeu-se aos morangos. De acordo com as análises
das emissões de gases com efeito de estufa associadas
a diferentes culturas no Japão, a pegada de carbono dos
morangos é cerca de oito vezes superior à das uvas
e mais de dez vezes em relação à das tangerinas.

FOTOS: GETTYIMAGES JULHO 2023 - N.º 329 79

L L I V RO S
Laços
escondidos
Antropólogo cultural de renome,
Xygalatas leva-nos, neste livro,
numa jornada profunda pelas
complexidades e significados
das práticas rituais em diferentes
culturas do mundo. Com
uma mistura habilidosa de
pesquisa académica e narrativa
envolvente, o autor guia-
nos por um terreno repleto
de descobertas e reflexões.
Ao longo das suas páginas,
Xygalatas argumenta de forma
Leituras que nos ajudam
convincente que os rituais
a compreender o mundo atual desempenham um papel
fundamental na construção da
identidade individual e coletiva,
na transmissão de tradições
culturais e no estabelecimento
de conexões sociais. Para nos
explicar as diversas formas
de ritual, o autor transporta-
nos para lugares tão diversos
quanto uma aldeia remota na
Amazónia, um templo sagrado
na Índia e uma cerimónia de cura
numa comunidade aborígene
na Austrália. Os relatos
pessoais são complementados
por uma pesquisa rigorosa,
fundamentada em teorias
antropológicas e estudos
A complexidade científicos, com Xygalatas a
do amor desmistificar alguns mitos e a
dar nova luz sobre os rituais.
Com mestria, o escritor sul-africano
galardoado com o Prémio Nobel da Literatura
de 2003, conta-nos a história de um virtuoso RITUAL
pianista polaco, intérprete de Chopin, que fica DE DIMITRIS XYGALATAS
deslumbrado por uma patrona das artes, em Tradução de Pedro Vidal
Barcelona. A narrativa de Coetzee é rica em TEMAS & DEBATES
detalhes, numa história de amor marcada por
várias tensões: as diferenças de gostos, de
idades e de referências culturais. E apresenta
uma originalidade que, por si só, dá uma outra
dimensão à obra: esta variação moderna e
irónica da lendária história de amor entre Dante
e Beatriz é, aqui, contada através da perspetiva
precisa, sincera e incisiva da protagonista
feminina. “Liberto de convenções literárias,
Coetzee escreve não para fornecer respostas,
mas para formular grandes perguntas”,
resumiu, com propriedade, o THE ECONOMIST.
A escrita de Coetzee captura, mais uma vez,
a complexidade das emoções humanas.
O POLACO
DE J. M. COETZEE
Tradução de J. Teixeira de Aguilar
D. QUIXOTE
80 JULHO 2023 - N.º 329
Viagem
a um país que
já não existe
Publicado pela primeira vez em
1936, este pequeno livro cedo se
destacou pela análise perspicaz
e pela forma como o autor soube
explorar, com profundidade, a
experiência de uma visita à União
Soviética. Estruturada como um
diário de viagem, a obra permite
ao leitor acompanhar de perto as
impressões e os pensamentos
do autor enquanto ele explora a
realidade socialista. Ao partilhar
as interações com as pessoas, a
burocracia estatal e as realidades
quotidianas da vida soviética, Gide
revela as contradições e tensões
inerentes ao sistema. A sua análise
crítica é meticulosa e abrangente,
permitindo-nos compreender
tanto as conquistas como as falhas
da experiência socialista. Gide
explora os desafios enfrentados
pelo povo russo e como eles se
adaptaram às circunstâncias da
revolução e da construção do
socialismo. E descreve, de forma
atrativa, os contrastes marcantes
entre a propaganda oficial e a
realidade vivida pelas pessoas.
A obra permanece como um
documento histórico fascinante
e uma reflexão profunda sobre
a relação entre o indivíduo e o
coletivo, a liberdade e a opressão,
a política e a moralidade.
REGRESSO DA URSS
DE ANDRÉ GIDE
Tradução de João van Zeller
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SILVIO NO ALVO
Na segunda vez que chegou
à chefia do governo de Itália,
em 2001, Silvio Berlusconi foi
imediatamente chumbado,
de forma pública, pela revista
THE ECONOMIST. “Porque Silvio
Berlusconi é incapaz de liderar
a Itália”, titulava a revista,
na capa, o que enfureceu o
então primeiro-ministro, que
avançou com um processo por
difamação. Mas sem resultado:
em setembro de 2008, o
tribunal de Milão absolveu a
revista e condenou Berlusconi
ao pagamento das custas do
processo. A verdade é que, ao
longo das últimas três décadas,
a THE ECONOMIST foi sempre
uma das vozes mais críticas a
Berlusconi. À semelhança do
que acontecia também em Itália,
com a L’ESPRESSO. No entanto,
apesar das críticas da imprensa,
Berlusconi conseguiu ser
uma das personalidades mais
decisivas da política italiana. E
uma das principais ameaças à
sua democracia.

82 JULHO 2023 - N.º 329

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