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RETRATO

DUAS OPÇÕES ANGELA MERKEL


“Parece-me lógico
DE LEITURA DA REVISTA haver paridade
de género em todas
Pode escolher as áreas”
como prefere ler NESTA ENTREVISTA,
CÂNDIDA E EXCLUSIVA,
a edição mensal: A CHANCELER ALEMÃ FALA
SOBRE FEMINISMO, O SEU
em formato pdf, ESTATUTO DE MULHER
POLÍTICA E AS FRUSTRAÇÕES
DOS CIDADÃOS DA ANTIGA
com primazia RDA POR OS SEUS MÉRITOS
NÃO TEREM SIDO
para o grafismo, ou VALORIZADOS DEPOIS
DA REUNIFICAÇÃO

em formato de texto, É uma tarde de inverno, cinzenta mas


amena em Berlim Na noite anterior [15 de
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confortável dos artigos porta-voz do Governo,


over
À hora combinada,
ve
da quase
nada, qu
entramos no escritório
rit
Steffen Seibert.
ao segundo,
da chanceler.

ou caixas completos, Angela Merkel parece


calma, talvez um
are concentrada e
pouco tensa – não por
m po
causa da entrevista;
sta provavelmente
ro pelo

basta carregar. chumbo ao acordo do do Brexit


com a União Europeia].
B [negociado
op a]. Mas esta
entrevista irá centrar-se
-se sobretudo na
Pode escolher o corpo chanceler. Merkel convida-nos
sentarmo-nos a uma
nvid
ma longa
a
lon de mesa de
conferências, e serve-nos
no café.
ve-nos ca Fomos
de letra mais adaptável avisados de que a entrevista
ntrevis
ev
minutos. E 45 minutoss depois,
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duraria 45
chegaria ao
fim.
ao seu gosto Die Zeit: Senhora chanceler, quando
anunciou
ou a intenção
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ção de abandonar a
presidência
esidên da União Democrata-Cristã
ta-Cr
(CDU),
DU) eu escrevi no Die Zeit [em outubro
CDU)
de 2018]
018] um
u artigo de despedida muito
NAVEGAÇÃO INTUITIVA pessoal
– no qual realçava, nomeadamente, quão
► Deslize para navegar importante foi a sua liderança para muitas
alemãs no Leste. Gosta de ser admirada
nesta perspetiva do Leste?
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S SUMÁRIO
MARÇO 2021
04 Editorial

06 Fontes
08 Cartoons

10 Retrato
Marcus Rashford

Compreender
SUÍÇA
14 Confinamento de luxo
HISTÓRIA
44 A injeção que
“transformava”
pessoas em vacas

ÁFRICA DO SUL
45 Quando a vacina
é uma miragem

CHINA
48 Wuhan já seguiu
em frente
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- O Courrier Internacional é publicado sob licença da
Courrier International S.A. - Sede: 80, Boulevard Auguste
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Ana Cardoso Pires/Campo das Estrelas, Ana Marques,
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Maria Alves, Mariana Afonso, e Mariana Passos e Sousa
18 A guerra dos gasodutos mas serão sustentáveis? REVISÃO Maria João Carvalhas, Rui Carvalho e Teresa Machado
Colaboradores da revisão: Margarida Robalo e Sónia Graça
INFOGRAFIA: Álvaro Rosendo.
BREXIT TESTEMUNHOS SECRETARIADO: Sofia Vicente (Direção), Teresa Rodrigues
(Coordenadora), Ana Paula Figueiredo
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20 Com as Malvinas 55 Contaminados Claire Carrard (Diretora de Redação),
isoladas, a Argentina ou não, em Wuhan Sophie-Anne Delhomme (Diretora de Arte)
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MARÇO 2021 - N.º 301


E
A

EDITORIAL
R U I T AVA R E S G U E D E S
QUANDO A QUALIDADE
rguedes@visao.pt VENCE A IDEOLOGIA
Se alguma lição a pandemia nos deu, ao nível global, foi a de que, em períodos
de crise extrema e perante uma ameaça inesperada, a forma e a qualidade de
governação são muito mais importantes do que a ideologia de quem governa. Ao
longo dos últimos meses, percebemos, também, que não é o tamanho do Estado
que faz a diferença, mas, antes, a sua resistência, agilidade e eficácia. Aliás, mais
do que um Estado dominador e, porventura, asfixiante ou superprotetor, o que
mais interessa ter, nestes momentos, é um Estado digno e merecedor de confiança,
capaz de conseguir a cooperação dos seus cidadãos, apesar dos erros e acidentes de
percurso que possam ocorrer.
O último ano constituiu, para todos os efeitos, um teste global e simultâneo à
capacidade de governação de cada país e, em particular, à robustez dos seus sistemas
de saúde. E foi fácil perceber algumas diferenças nos resultados de cada um. De um
modo geral, os países com estruturas estatais mais fortes e unificadas, sob lideranças
assertivas e com uma comunicação direta com os cidadãos, conseguiram melhores
resultados do que aqueles onde a Administração Pública foi perdendo importância e
as clivagens políticas estão mais disseminadas e presentes no discurso quotidiano.
No combate à frente sanitária da pandemia, revelou-se que os bons resultados
foram obtidos quer em países democráticos, como Taiwan, Coreia do Sul e Nova
Zelândia, quer em sistemas autoritários, como o Vietname ou a China. Da mesma
maneira, os piores resultados também afetaram, sem distinção, democracias,
ditaduras e países em que a deriva autoritária é cada vez mais forte. Nalguns
casos, percebeu-se até como, em 2020, os eleitores desses países castigaram ou
recompensaram nas urnas o trabalho dos seus governantes. Eis dois exemplos
gritantes: as vitórias esmagadoras obtidas pelos partidos de Moon Jae-in e de Jacinda
Ardern, nas legislativas da Coreia do Sul, em abril, e da Nova Zelândia, em outubro.
Num interessante ensaio publicado na Nikkei Asia, o académico filipino Richard
Heydarian identificou três principais fatores que, inter-relacionados, explicam
o êxito de determinados governos no combate à pandemia. Para isso, pegou nos
exemplos de Taiwan e do Vietname – uma democracia vibrante e um regime
comunista autoritário – e encontrou os mesmos pontos em comum. O primeiro é
a coesão social, necessária para que população aceite as regras de distanciamento
social e coopere livremente no objetivo de combater a propagação do vírus.
O segundo é a qualidade da liderança política, sustentada em administrações que
souberam privilegiar a Ciência e a educação pública como pedras basilares da sua
atuação. O terceiro é a força e a qualidade das instituições do Estado, única forma de
garantir assistência adequada aos cidadãos, de protegê-los economicamente e, em
simultâneo, de manter a produtividade industrial mais ou menos intacta, apesar da
recessão global.
No entanto, se a resposta destes países foi exemplar, na primeira fase da
pandemia, resta saber agora como se vão comportar na etapa decisiva em que nos
COURRIER INTERNACIONAL encontramos: a imensa tarefa logística de vacinar toda a população e, a seguir,
App para tablets. tomar as medidas necessárias para reabrir a economia e a sociedade, sem receio de
Disponíveis na Applestore novos surtos.
e na Googleplay Já se percebeu, nomeadamente no caso do Reino Unido, que alguns dos erros
as aplicações necessárias. cometidos no início da pandemia não estão a ser repetidos no processo de vacinação.
Por outro lado, também é por demais evidente que a tarefa de distribuição de
vacinas e de seleção de quem deve tomá-la é de um elevado nível de complexidade,
o que exige a cooperação de todos e pressupõe, para a sua concretização, a existência
de instituições fortes e qualificadas. Mais uma vez, portanto, a qualidade da
governação irá sobrepor-se à ideologia de quem governa. E, no fim deste processo,
cá estaremos para o comprovar – já vacinados.

4 MARÇO 2021 - N.º 301 ILUSTRAÇÃO DE AJUBEL, PARA EL MUNDO, MADRID


F FON T E S
ESTE MÊS NO
e uma cobertura rigorosa da Ásia.
Reportagens, análises, investiga-
ção – sobretudo na área econó-
mica – fazem desta publicação
uma fonte preciosa para quem
acompanha a atualidade regional.
asia.nikkei.com
THE CONVERSATION
LONDRES, REINO UNIDO Lançada
em 2013, a versão britânica deste
site de notícias é a segunda a ser
disponibilizada, após o lança-
mento do site australiano em
2011. Iniciativa sem fins lucrati-
WAKAT SÉRA
OUAGADOUGOU, BURKINA FASO
Lançado em 2017, este é um site
de notícias do Burkina Faso. Além
dos artigos noticiosos, oferece
frequentemente análises intransi-
gentes. www.wakatsera.com
LE TEMPS
LAUSANNE, SUÍÇA Nascido em
março de 1998, a partir da fusão do
New Daily, do Journal de Genève
e do Lausanne Gazette, este título
de centro-direita, valorizado pelo
mundo empresarial, apresenta-se
vos, aborda uma vasta gama de como o diário de referência da
A temas: política, economia, cultura, Suíça francófona. Dedica grande
ambiente, ciência, artes... É uma parte da sua atenção aos assuntos
THE NEW YORK TIMES plataforma participativa que con- internacionais, sem esquecer o
NOVA IORQUE, EUA Com mil 1 vida os membros da comunidade universo económico e cultural.
jornalistas e 27 delegações no académica a participar e a publicar www.letemps.ch
estrangeiro, é o principal diário do conteúdos. theconversation.com/uk DIE ZEIT
país, no qual podem ler-se all the THE DIPLOMAT HAMBURGO, ALEMANHA É a
news that’s fit to print (“todas as TÓQUIO, JAPÃO Esta revista online publicação de referência alemã
notícias dignas de serem publi- internacional, lançada em 2002, e uma autoridade além-Reno.
cadas”). A família Ochs, que em diz oferecer aos seus leitores “aná- Este grande e exigente jornal de
1896 assumiu o controlo deste lises e comentários de qualidade” informação e de análise política
jornal criado em 1851, continua à sobre os principais acontecimen- distingue-se também pelo seu
frente desta publicação de cen- tos na Ásia e no resto do mundo. grafismo e iconografia muito
tro-esquerda. www.nytimes.com Os temas em que mais investe apreciados. Tolerante e liberal, sai
1 SOUTH CHINA MORNING POST são os da geopolítica na região da às quintas-feiras. www.zeit.de
HONG KONG, CHINA Fundado Ásia-Pacífico, defesa e serviços 3 PENGUIN NEWS
em 1903, o principal diário em secretos, ambiente, segurança PORT STANLEY, MALVINAS Criado em
língua inglesa de Hong Kong é humana e desenvolvimento, artes, 1979, este jornal, de uma vintena
propriedade de Jack Ma (Ma Yun), 2
tendências sociais e cultura popu- de páginas, é o único das ilhas
o dono do gigante de comércio lar. the-diplomat.com Malvinas. É publicado uma vez
eletrónico chinês Alibaba, desde WEIXIN (WECHAT) por semana, à sexta-feira. Mistura
abril de 2016. O jornal permanece SHENZHEN, CHINA O meio de co- notícias locais com as internacio-
de leitura indispensável para os municação mais popular na China. nais, bem como inúmeros artigos
que seguem a China, em geral, e O grupo Tencent, a que pertence de opinião. penguin-news.com
Hong Kong, em particular. esta aplicação de mensagens por 4 DER SPIEGEL
www.scmp.com texto, som ou imagem, tem mais HAMBURGO, ALEMANHA Uma
UNHERD de mil milhões de contas. Mas grande revista de informação,
LONDRES, REINO UNIDO Fun- WEIXIN é também uma plataforma lançada em 1947, extremamente
dado, em 2017, por Timothy de blogues que dá um espaço de independente e que revelou vários
Montgomerie, ex-assessor do relativa liberdade aos chineses, num escândalos políticos. Desde a sua
primeiro-ministro Boris Johnson, ambiente mediático sempre muito criação, escolheu a linha do jorna-
comentador e um dos criadores controlado. Aqui, encontram-se, lismo de investigação e declarou
do Centre for Social Justice, think- por vezes, reportagens, testemu- guerra à corrupção e ao abuso de
-tank conservador de Londres, nhos, opiniões, relatados por inter- poder. www.spiegel.de
este site britânico baseou o seu 3 nautas, fazendo de WEIXIN um meio JUTARNJI LIST
nome num jogo duplo de pala- de comunicação vibrante, embora ZAGREB, CROÁCIA Criado após a
vras. Diz que se dirige a pessoas não escape à censura. weixin.qq.com independência da Croácia, o Jornal
que “rejeitam a mentalidade de THE SYDNEY MORNING HERALD da Manhã, de orientação liberal,
grupo” (herd, em inglês) e que SYDNEY, AUSTRÁLIA Lançado em é o segundo jornal diário do país.
procura “oferecer uma plataforma 1831, com o nome The Sydney Oferece reportagens e crónicas
para ideias, pessoas e lugares, Herald, o diário de centro-es- de qualidade, tendo expandido as
de que nunca se ouviu falar” querda é lido principalmente por suas colunas a muitos escritores
(unheard-of). www.unherd.com executivos e profissionais com croatas. Faz parte do principal
2 NIKKEI ASIA mais de 35 anos. Atualizado grupo de Imprensa croata, Hanza
TÓQUIO, JAPÃO Conhecida, até continuamente, o seu site inclui a Media, que inclui o influente
setembro de 2020, como Nikkei maioria dos artigos publicados na semanário Globus, o maior diário
Asian Review, a revista em língua sua versão em papel. Três milhões local, Slobodna Dalmacija, bem
inglesa e com sede em Tóquio de pessoas visitam-no, todos os como vários títulos na Imprensa
mantém a mesma linha editorial meses. www.smh.com.au feminina. www.jutarnji.hr
4
6 MARÇO 2021 - N.º 301
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DOS VELHOS RIVAIS
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O NOVO HOMEM
QUE É POSSÍVEL AMAR MAIS E MAIS!”
A CIÊNCIA E OS MISTÉRIOS
É FAMOSAS SURPREENDIDAS COM DECLARAÇÕES DE AMOR Como a tensão entre os dois gigantes por causa de um conflito fronteiriço
Histórias de aventuras,
adrenalina e velocidade

MAIS RICO DO MUNDO


nos Himalaias pode ter implicações ao nível mundial
O ESTRANHO SINTOMA DA COVID-19 ESTÁ A AJUDAR-NOS A PERCEBER MELHOR O NOSSO João Paulo Sousa e ENSAIO DE KISHORE MAHBUBANI
Adriana Gomes
THE INDIAN EXPRESS, NIKKEI ASIA, SHUN PO, OPEN
SENTIDO MENOS VALORIZADO, MAS O MAIS AFETADO PELA PANDEMIA
COMO IDENTIFICAMOS OS ODORES MUNDO MELHOR PANDEMIA EUA CIÊNCIA
SIMÃO OLIVEIRA

Sinta-se em casa
HISTÓRIAS DE QUEM PERDEU A CAPACIDADE DE CHEIRAR Raquel Núria Mia
AS REINFEÇÕES A FOME ESCONDIDA A VERDADEIRA CCARNAVAL QUEM SÃO AS ESTRELAS DO PENSAR o amanhã e decorar o futuro, exercícios de estilo
PPARTIDAS À DISTÂNCIA
Prates Madruga Relógio
QUE EXPLICAM QUE ATINGE RAZÃO POR QUE
L I G A D A S À NATUREZ A
Como o fundador
C f d d da d Tesla
Tesla
l conseguiu,
conseguiu
i em plena
l pandemia,
pandemia
d i e João
Murillo
e Vasco
Silva
e Diogo
Beja Marta Faial THE VOICE KIDS • SELEÇÃO 2021 as peças mais desejadas • PISTAS para espaços
ultrapassar Jeff Bezos no topo da tabela dos milionários
e Gonçalo
da Câmara A IMUNIDADE MILHÕES SONHAMOS acolhedores • PEDRO D'OREY, um novo olhar sobre a casa
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JORNAL
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DE LETRAS, TIMOR, TERCEIRO ANDAMENTO


ARTES E Entrevista sobre o seu novo romance, NÚMERO 6

IDEIAS e crítica de Teresa Sousa de Almeida


PÁGINAS 12 A 15
Ano XL * Número 1314 * De 10 a 23 de fevereiro de 2021

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FEV/MAR 2021 | NÚMERO 16


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2021 de roubo
deixa Cristina Ferreira e Diogo Valsassina
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• €1 (cont.) Raul põe Zeca na PRISÃO
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SOB PRESSÃO

EMPREGO
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GEORGE ORWELL,
distopias em tempo de pandemia
CONTRA AS TIRANIAS
TODA
A VERDA
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sobre os
FALSA, O FINAL
DA VILÃ

Caíram no domínio público e regressam, com redobrada atualidade, muitas


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MENTIROSA AVC, ENFARTES E DIABETES

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edições de 1984 e outras obras do grande escritor. Apresentação de Jacinta

eAMBICIOSA Eduarda sofre queda FATAL


NOVEMBRO 2020

Maria Matos e textos de Henrique G. Cancela, Jaime Rocha, Jorge Bastos


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PÁGINAS 23 A 25

Os presidentes da I República • Como o Estado Novo manipulava o processo DECLARA-SE a Ruben Rua salva a vida da mãe
CONTINENTE – €5,00

E UM DELES Casamentos,
C asa
samm
• Os candidatos contra o regime: Norton de Matos, Quintão Meireles e Humberto DA INFÂNCIA DIFÍCIL À SURDEZ CRIATIVA DOR CIÁTICA AZIA ALIMENTAÇÃO DESEJO INOVAÇÃO MÉDICA ENTREVISTA COM O PRÉMIO NOBEL
BEL DA FÍSICA
RODA
Delgado • O colégio eleitoral depois de Delgado • A primeira campanha em liberdad Eduardo Lourenço e a Justiça, por J. N. Cunha Rodrigues PÁGINAS 27 E 28 A VIDA E A OBRA MAGISTRAL DO GÉNIO QUE MARCOU A MÚSICA OCIDENTAL, “AMO-O até nas “Ela não é vítima Prevenir e tratar
a lesão do maior
O que põe o
estômago a
As alergias
mais comuns,
O que mudou
na forma
Novas terapias
e técnicas
trocas
troocas no
tr
e mo
morte
Guia para
n altar NAMORADOS Romeu envolve-se
com Linda e declara-se
• O confronto Eanes-Soares Carneiro • O duelo Soares-Freitas CONFINADOS
NOS 250 ANOS DO SEU NASCIMENTO suas IMPERFEIÇÕES” nenhuma” nervo do corpo
humano
arder e como
o evitar
os sintomas
e os casos graves
de viver
a sexualidade
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França
sem vacinas...
No país de Pasteur, nenhum
laboratório gaulês conseguiu
desenvolver uma vacina contra a
Covid-19, apesar dos esforços do
velho druida: “Estou a pesquisar Amigos improváveis?
esta poção, estou a procurá-la...” O abraço entre Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, e Khalifa bin Zayed
CHAPPATTE, PARA LE TEMPS, al Nahyan, líder dos Emirados Árabes Unidos. “Isto não é o que tu pensas”
LAUSANNE, SUÍÇA BLEIBEL, PARA THE DAILY STAR, BEIRUTE, LÍBANO

8 MARÇO 2021 - N.º 301


Culpas repartidas
“As nossas prateleiras estão vazias e a culpa
é vossa”, acusam-se, mutuamente, Ursula
von der Leyen e Boris Johnson, depois de a UE
ter ficado sem vacinas e de ter ameaçado com
sanções o Reino Unido, após o Brexit
SCHRANK, PARA BUSINESS POST, DUBLIN, IRLANDA

Fuga ao fisco
No depósito dos impostos, há sempre
dinheiro que escapa... para paraísos fiscais,
como o denunciado agora no Luxemburgo
SONDRON, PARA L’AVENIR, NAMUR, BÉLGICA

MARÇO 2021 - N.º 301 9


R R E T R ATO

Marcus Rashford

O avançado
que defende os pobres
O JOGADOR DO MANCHESTER UNITED FEZ COM QUE O GOVERNO BRITÂNICO
CEDESSE, POR TRÊS VEZES NUM ANO, NO TEMA DA PRECARIEDADE ALIMENTAR.
GRAÇAS A ELE, CRIANÇAS DESFAVORECIDAS PUDERAM BENEFICIAR DE REFEIÇÕES

‘‘M
GRATUITAS DURANTE AS FÉRIAS ESCOLARES

ostrem-me uma criança de 7 quanto ao futuro que aguarda os aprendi- referências. Ao fim de uma longa troca
anos e eu dir-vos-ei que adulto ela será”, zes de futebolistas, Horrocks cita o antigo de correspondência por email, Rashford
diz o provérbio. Mas no futebol nunca se treinador da seleção de Inglaterra Howard explicou-me que tinha precisado de con-
consegue verdadeiramente saber quais as Wilkinson: “Creio que a sorte é quando a centrar-se “em qualquer coisa que trans-
crianças dessa idade que virão a tornar-se, preparação encontra a ocasião.” formasse o negativo em positivo e ajudasse
ou não, jogadores profissionais. Em todo “É exatamente esse o tipo de sorte que aqueles que mais precisam”. É como se essa
o caso, quando ele procura recordar-se da o Marcus teve ao longo da sua carreira”, pausa forçada tivesse lembrado a Rashford
criança que Marcus Rashford era, há uma acrescenta Horrocks. “Ele soube apro- como a sua vida de futebolista poderia ser
coisa de que Dave Horrocks, que foi o seu veitar as ocasiões – marcou dois golos precária. Juntemos a isso a pandemia e
primeiro treinador, se lembra muito bem. durante o primeiro encontro que teve no o confinamento, e teremos a génese do
Quando Rashford chegou ao Fletcher Manchester United e um outro ao fim de seu ativismo.
Moss Rangers, um clube de bairro em Man- apenas três minutos de jogo na primei- “Quando Marcus ouviu dizer que as
chester, era um rapazinho magricela de 5 ra partida que disputou com a equipa de escolas iam fechar, a primeira coisa em
anos. Desde o início, foi aquele género de Inglaterra – porque se andava a preparar que ele pensou foi: ‘O que vão comer as
miúdo que deixava toda a sua energia no para isso desde sempre. Acontece o mesmo crianças desfavorecidas?’”, conta Kelly
terreno. Sempre que Horrocks o levava com a obra de beneficência que ele leva Hogarth, responsável pelas relações pú-
a casa, depois do treino, Marcus entrava atualmente a cabo. Quando a ocasião se blicas e amigo do jogador. “‘Se não pude-
para o banco traseiro do carro e mergu- apresentou, ele estava preparado.” rem ir à escola e se fecharem os breakfast
lhava imediatamente num sono profundo. clubs [clubes de pequeno-almoço, numa
Quando chegavam, o miúdo saltava para Aproveitar a oportunidade tradução literal, onde as crianças recebem
a rua, já repousado, pegava numa bola e Se o destino desempenhou algum papel uma refeição tendencialmente gratuita,
recomeçava a treinar-se no canteiro com no sucesso da luta pela mudança que este antes de irem para as aulas], o que hão de
relva que havia em frente à casa dele. jovem de 23 anos leva a cabo há um ano, fazer?’.” Subentende-se: o que tal encer-
Horrocks, que ao longo de 25 anos viu então ele surgiu, talvez, sob a forma de ramento teria significado para mim quando
passar centenas de crianças pelo clube, dupla fratura de fadiga nas costas que o tinha 7 anos?
tem muito a dizer sobre a estreita fronteira jogador contraiu em janeiro de 2020. Ficou Rashford aplicou toda a energia que
que separa os dois ou três moços que se sem poder treinar-se durante dois me- habitualmente dedicava ao seu treino a
tornariam milionários na Premier Lea- ses. O ritmo intenso da preparação física procurar informar-se sobre o assunto. Em
gue daqueles que ficaram pelas valetas. O tinha sido a constante que definia a sua outubro de 2019, lançou uma campanha
talento nem sempre é o fator decisivo e, vida e, de súbito, o jogador perdeu as suas de distribuição de bens alimentares aos
jovens sem-abrigo de Manchester, mas
o escasso resultado dessa ação deixou-o
JORNAL AUTOR DATA TRADUTOR muito frustrado. Procurou, então, um
R The Observer Tim Adams 17.01.2021 Jorge Pires meio de prestar auxílio em maior escala,
Londres
e as pistas que seguiu levavam-no inces-

10 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTO: GETTYIMAGES


MARÇO 2021 - N.º 301 11
R E T R ATO

santemente à organização FareShare, que


distribui refeições a 11 mil associações de
beneficência e a bairros.
Quando os contactou com o intuito de
fazer um donativo importante, o presiden-
te explicou-lhe que a organização recolhia
bens alimentares em todas as fases da ca-
deia de fornecimento, desde o agricultor ao
supermercado, e usava-os como cimento
para agregar todas as outras associações:
uma boa refeição numa escola de futebol,
durante as férias, garantiria às crianças
Cronologia uma alimentação que, talvez, elas não ti-
Datas de uma vessem em casa. Quanto mais Rashford
batalha aprendia sobre esta forma de ação, mais
ela ecoava no que ele vivera quando era
2020 criança, no seio de uma família de cinco
16 de junho filhos criados por uma mãe solteira.
Uma semana após ter
rejeitado o prolongamento, Milhões em donativos
durante as férias de verão, As repercussões do mediático apelo de
do sistema de refeições Rashford em prol da FareShare, durante
gratuitas servidas nas escolas a pandemia, foram imediatas: uma coleta
aos alunos desfavorecidos, de fundos permitiu angariar 20 milhões
o governo faz marcha-atrás, de libras [22,5 milhões de euros]. “Nos
face à pressão da campanha anos anteriores, o máximo de donativos
de Marcus Rashford. Mais entregues pelo público tinha sido 200
de um milhão de crianças mil libras”, prossegue Lindsay Boswell,
recebem vales de compras em o presidente da organização.
supermercados. O mundo do futebol não é somente um
dos mais autenticamente meritocráticos de “Quando Marcus ouviu dizer que as
7 de novembro Inglaterra: os jogadores que nele evoluem, escolas iam fechar, a primeira coisa em
No termo de uma campanha como Rashford, aprendem, nos pequenos que ele pensou foi: ‘O que vão comer
levada a cabo pelo futebolista clubes de bairro, que as responsabilidades as crianças desfavorecidas?’”, conta
nas redes sociais, apoiada em relação à coletividade são indissociáveis Kelly Hogarth, amigo do jogador
por uma petição que recebeu do sucesso. Para Rashford, isso inclui o FOTO GETTY IMAGES
um milhão de assinaturas, o bairro em que ele nasceu, no Sul de Man-
executivo cede pela segunda chester. O futebolista não precisou de que
vez. No final de outubro, os lhe lembrassem que a sua glória assenta E, sobretudo, ele nunca se esqueceu
deputados conservadores nos muitos pequenos sacrifícios feitos dos sacrifícios da sua mãe. Melanie May-
tinham bloqueado a pelas pessoas que o rodeiam. Os melho- nard trabalhava como balconista numa
distribuição de vales, durante res amigos dele continuam a ser os dois casa de apostas e, no fim do seu dia de
as férias de Natal. vizinhos com quem ia ao breakfast club trabalho, ainda ia fazer limpezas em es-
da escola em que andavam e o jogador tabelecimentos comerciais para tentar
2021 ostenta no ventre uma tatuagem da casa garantir um teto para Marcus e os quatro
13 de janeiro onde cresceu, que, na época, era um dos irmãos e irmãs. Na carta que endereçou
Encerradas por causa de maiores complexos de habitações sociais ao primeiro-ministro Boris Johnson para
um terceiro confinamento da Europa. lhe pedir que as refeições gratuitas con-
nacional, as escolas inglesas
recebem como missão
... tinuassem a ser distribuídas às crianças,
durante as férias, escreveu: “A história
fornecer bens alimentares que me trouxe até aqui é demasiado banal:
aos beneficiários de refeições Uma das coisas que Marcus a minha mãe trabalhava a tempo intei-
gratuitas, por intermédio de Rashford descobriu é ro, com um salário mínimo, para que nós
empresas subcontratadas, que o tema do acesso tivéssemos sempre uma boa refeição na
em vez dos vales de compras. mesa à noite. Mas isso não era suficiente.
Mas as fotografias das magras à alimentação suscita A nossa família dependia dos breakfast
rações recebidas pelos alunos, sempre muita emoção. clubs, das refeições gratuitas que eram
divulgadas designadamente servidas na cantina, e os bancos alimen-
por Marcus Rashford,
Pensa utilizar isso para tares e a sopa dos pobres eram locais que
obrigam, mais uma vez, Boris que as prioridades e o nós conhecíamos bem.”
Johnson a mudar de rumo: os rumo da retoma não sejam Se quisermos encontrar uma luz de es-
pais podem de novo beneficiar perança no país face a este sombrio inver-
de vales de compras no valor eliminados a pretexto no, deitemos uma olhadela às mensagens
de 17 euros por semana. da austeridade que foram publicadas na conta do Twitter

12 MARÇO 2021 - N.º 301


O PRIMEIRO
SUPERJOGADOR
ATIVISTA
Raras são as críticas que visem
a ação de Marcus Rashford, no
Reino Unido. Só o tabloide DAILY
MAIL, num artigo, se arriscou
a chamar a atenção para os
investimentos imobiliários de
milhões de libras deste jogador de
23 anos, condecorado pela rainha,
no outono passado. “Acusações
de hipocrisia que foram acolhidas
com um encolher de ombros:
tais ataques não são nada em
comparação ao que lhe gritam ao
sábado, nos estádios”, sublinha
THE OBSERVER. Por seu lado, o
site londrino UNHERD recorda
que este jogador natural de
Manchester é apoiado por uma
poderosa máquina, a agência Roc
Nation Sports International, que
foi criada em 2008 pelo rapper
Jay-Z. “A empresa dedica-se a
projetos ligados à justiça social:
pagou a caução dos manifestantes
do Black Lives Matter nos
de Rashford. São escritas por estudantes contrariando a intransigência do governo, EUA, no último verão, lançou
que coletaram algum dinheiro, por asso- enchiam as primeiras páginas dos jornais. campanhas que tiveram grandes
ciações de bairro que organizaram distri- Cerca de uma semana depois, Johnson repercussões mediáticas”, entre
buições de alimentos, por municípios que efetuava um volte-face e prometia 400 as quais a de Rashford. “Até há
reforçaram os seus dispositivos de auxílio milhões de libras [cerca de 450 milhões de pouco tempo, os ingleses não
aos mais desprotegidos, por empresas que euros] para apoiar as famílias em dificulda- esperavam grande coisa dos seus
se aliaram ao este movimento generoso. des até ao final de 2021. Deve notar-se que, futebolistas”, recorda o UNHERD.
quando anunciou o atual confinamento, Durante a década de 2000, era
Opinião pública vs. Parlamento o primeiro-ministro cerceou a manobra para escândalos, como as disputas
Após se ter deixado driblar por Rash- aos que pretendiam reabrir o debate ao conjugais, que eles se mostravam
ford, nos últimos meses, o governo de apresentar-lhes a manutenção das refei- mais dotados.” E depois chegou
Boris Johnson vai agora ter de escolher ções gratuitas como sendo uma evidência. Marcus Rashford. “Para os
em que equipa pretende jogar, e depressa. Uma das coisas que Marcus Rashford profissionais experientes do
Durante o debate parlamentar de outubro descobriu no ano passado é que o tema marketing desportivo, a campanha
passado, sobre o segundo prolongamento do acesso à alimentação suscita sempre dele criou um precedente
do programa de refeições gratuitas para muita emoção. Pensa utilizar isso para em Inglaterra”, conclui esta
as crianças desfavorecidas, uma parte dos que as prioridades e o rumo da retoma, publicação conservadora.
deputados conservadores aliou-se a fim de que se seguirá à presente crise, não se-
bloquear Rashford. Um deles afirmou que, jam eliminados a pretexto da austeridade,
na sua circunscrição, assegurar a gratui- como sucedeu aquando da anterior crise,
tidade das refeições escolares através de em 2008.
vales equivalia a dar dinheiro aos “bordéis Para Boswell, da FareShare, esse seria
e aos vendedores de droga”. o melhor resultado possível da extraor-
O Parlamento rejeitou o prolonga- dinária campanha de Rashford: “Talvez
mento. Nessa mesma noite, Rashford comecemos, finalmente, a ver os grandes
começou a dar-se conta do efeito da sua partidos políticos a defrontarem-se para
campanha no Twitter, perante as centenas erradicar o mais depressa possível a pobre-
de mensagens enviadas por restaurantes za alimentar no Reino Unido. Isso faz-me
e empresas de todo o Reino Unido e que olhar para o espelho e pensar: ‘Muito bem,
respondiam à votação dos deputados ofe- tenho 60 anos. O que eu fazia quando ti-
recendo eles próprios alimentos gratuitos nha a idade do Marcus?’ Talvez a grande
para as famílias em dificuldade. lição que nós temos a aprender com ele
No dia seguinte, as histórias de pessoas é que devemos todos apontar mais para
e de comunidades que vinham a público, acima.”

MARÇO 2021 - N.º 301 13


SUÍÇA
Confinamento de luxo
em St. Moritz
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS NÃO POUPOU A CONFEDERAÇÃO SUÍÇA,
MAS OS BILIONÁRIOS DOS PAÍSES VIZINHOS NÃO HESITARAM
EM REFUGIAR-SE NAS SUAS ESTÂNCIAS LUXUOSAS

DER SPIEGEL HAMBURGO


Suíça

A
A crise do coronavírus não traz apenas más Abertos ao lado do “buraco negro”
notícias. Sente um súbito desejo de pre- A Suíça oferece aos turistas abastados o
sentear-se com um quarto no hotel Cresta que o resto do mundo lhes tem negado
Palace para a passagem de ano? “Nunca há meses. O gerente do hotel, Tauss, um
tivemos tantos pedidos de última hora”, jovem inteligente de Estugarda, aprecia
explica Markus Tauss, o gerente do esta- a política liberal adotada pelas autorida-
belecimento. Este hotel de 4 estrelas em des suíças. Ao ver o que se passa do outro
Celerina, não muito longe de St. Moritz, lado da fronteira, fica surpreendido por Em St. Moritz, a indústria hoteleira
tem vindo a acolher os seus hóspedes desde “estarmos sempre abertos, enquanto na e de restauração espera uma
1906. Hoje em dia, mesmo em tempo de Alemanha há muito tempo que estão num queda de 50% na sua faturação
pandemia, os hóspedes podem desfrutar buraco negro”. FOTO GETTY IMAGES
do buffet do pequeno-almoço enquanto “Tratamos os mortos como se eles não
observam o teleférico de esqui que passa fossem a nossa preocupação”, escreve o
mesmo atrás do hotel. Quem gosta de al- jornal regional Die Südostschweiz, apesar
turas pode também subir até à montanha de haver mais de 7 900 mortes relacionadas pela privação. No Badrutt’s Palace Hotel,
Piz Nair, com cerca de 3 055 metros de com o coronavírus na Suíça. O sentimento poderia comprar uma garrafa de vinho de
altitude. Às 15 horas, no salão do hotel, de indiferença tomou conta de todo o país, Borgonha por 21 mil euros, para o jantar
servem-se os petits fours, acompanha- bem como uma “estranha indulgência” de Ano Novo.
dos por uma melodia de piano. Depois, para com todos aqueles que se recusam a O gerente do Cresta Palace, na Celeri-
a sauna e a piscina também estendem os fazer sacrifícios face à crise. É tudo culpa na, duvida da eficácia das medidas rigo-
braços até si. Por fim, para o jantar, pode dos lobbies da economia que atuam nos rosas tomadas pelos países vizinhos. Ele
escolher por entre quatro restaurantes. bastidores. acredita mais no seu método: é obrigatório
Para aqueles que gostariam de trans- O responsável pela saúde pública no o uso de máscara nas áreas comuns do
formar o monótono inverno de pandemias cantão a que St. Moritz e Celerina perten- hotel e há uma câmara de vigilância no
num exílio de luxo em Engadina e que têm cem também lamenta o elevado número corredor para medir a temperatura cor-
os meios necessários para o fazer, o Cresta de vítimas − pouco antes de anunciar que poral dos seus hóspedes. E, se surgir um
Palace dispõe de um pacote de ofertas: toda as atividades nos hotéis e os teleféricos caso positivo, o hotel dispõe de quartos
a época de inverno, ou seja quatro meses, continuariam a funcionar. Enquanto qua- de isolamento especialmente equipados.
pela modesta quantia de 55 555 francos se todas as camas de cuidados intensivos
suíços (51 360 euros). Estão incluídos o estão ocupadas no cantão de Grisões, no Zonas de alto risco?
pequeno-almoço, a possibilidade de mu- luxuoso St. Moritz continuamos a ter os As medidas de proteção são definidas pela
dar para uma suíte júnior e o desconto de “reis do mundo”, ao estilo do Titanic. direção do Hospital Oberengadin. É lá, na
50% no serviço de lavandaria. E, por cada Embora seja um pouco mais discreta do sala 121 B da ala dos cuidados intensivos,
dia sem sol, recebe uma compensação de que o habitual, a clientela, especialmen- que os pacientes mais graves são ligados
100 francos (92 euros). te alemã e italiana, dificilmente é afetada a um ventilador. Deitado de barriga para
baixo, um idoso está a dormir, rodeado de
enfermeiras. Os pacientes com Covid-19
AUTOR DATA TRADUTORA requerem quase cinco vezes mais cuidados
F Walter Mayr 10.01.2021 Susana Martins do que os outros pacientes, afirma o diretor
da clínica, Beat Moll. As suas equipas estão

16 MARÇO 2021 - N.º 301


50 km ALEMANHA

FRANÇA Zurique
LI. ÁUSTRIA
47° N
Berna Chur
Davos
S U Í Ç A CANTÃO

COURRIER INTERNATIONAL
DOS GRISÕES

Genebra St. Moritz


ITÁLIA

entanto, a ser absorvido. Em St. Moritz,


por outro lado, a indústria hoteleira e de
restauração espera uma queda de 50% na
sua faturação, explica Marijana Jakic, di-
retora da empresa Tourismus. Neste ano,
tendo sido canceladas as corridas de ca-
valos e o polo equestre no lago coberto de
gelo, é tempo de aproveitar para fazer esqui
e golfe no gelo, tudo isto acompanhado
pelas iguarias da cozinha do restaurante
Balthazar, de Allegra Gucci, e tantas outras
coisas. “Queremos voltar às origens de St.
Moritz, à sua loucura.”
Para saber até que ponto o coronavírus
DESTA VEZ, AS VERDADEIRAS CELEBRAÇÕES DO ANO está a perturbar a vida dos ricos em St.
Moritz, é melhor fazer esta questão no
NOVO NÃO TIVERAM LUGAR NOS HOTÉIS, MAS NAS BELAS estádio que acolheu os Jogos Olímpicos
de Inverno em 1928, o Olympiastadion St.
VILLAS NA ENCOSTA DE SUVRETTA, A COLINA Moritz. Rolf Sachs, filho do colecionador,
DOS BILIONÁRIOS, ONDE FICAM OS CLÃS ITALIANOS patrono e folião Gunter Sachs, vive no edi-
fício sob a antiga bancada. Em St. Moritz,
DOS AGNELLI, GUCCI E LORO PIANA, OS HERDEIROS o nome desta família evoca memórias de
Aristóteles Onassis, Brigitte Bardot, o xá
DO ARMADOR GREGO STAVROS NIARCHOS do Irão e o marajá de Hyderabad.
Rolf Sachs, herdeiro de uma fortuna
exaustas: “Estamos a trabalhar há quase um afortunados vieram no início deste ano multimilionária, dá-nos as boas-vindas
ano, sem parar e sem ver a luz ao fundo do e ficaram hospedados por muito mais com a mão estendida. “Já o tive” − o co-
túnel, sempre no limite.” tempo. Parece que, enquanto a pande- ronavírus −, diz com um sorriso. Sachs é
O que deve ser feito? Pôr-se um fim à mia abranda, é cada vez mais tentador um artista e o nome de uma instituição
exceção suíça? Dizer “não” aos visitantes estar em teletrabalho em frente aos picos em St. Moritz: é presidente honorário do
que vêm desfrutar da cozinha de excelência e cobertos de neve. clube de bobsleigh, um dos assessores da
do prazer dos desportos de inverno, quando Neste ano, as verdadeiras celebrações Cresta Run e um rosto familiar na mais
vêm de países definidos − sem exceção − do Ano Novo não tiveram lugar nos hotéis, alta sociedade.
como zonas de alto risco, mas cujos cidadãos mas nas belas villas na encosta de Suvre- No dia anterior, Sachs jantou “com
mais ricos são bem-vindos neste país? tta, a colina dos bilionários. É aqui que se Niarchos”, o bilionário herdeiro da dinas-
O problema nem é tanto a abertura de encontram as residências da aristocracia tia dos armadores. Nesta noite, foi “con-
hotéis e de teleféricos, explica Beat Moll, financeira mundial, em ruas proibidas aos vidado para uma festa de aniversário”,
mas o facto de “ainda não conhecermos intrusos, a menos que sejam identificados continua Sachs, que desfruta dos seus úl-
os agentes causais deste vírus”, ou seja as como mordomos, fornecedores ou equipas timos dias na Suíça, sendo que se desloca
formas de propagação do vírus. A eficácia de limpeza. Ali ficam os clãs italianos dos com regularidade entre Roma, Londres e
das medidas tomadas na Suíça é dificultada Agnelli, Gucci e Loro Piana, os herdeiros St. Moritz. “Porque as pessoas são liberais
pela publicação constante de novas dire- do armador grego Stavros Niarchos, mas nesta questão e prestam muita atenção à
tivas, muitas vezes contraditórias, pelos também os recém-afortunados, como o higiene”, explica ele. “Tenho amigos de
cantões e pelo governo federal. A tudo isto indiano Lakshmi Mittal ou o bilionário Berlim que se refugiaram aqui.”
junta-se a proximidade com a Itália: “Os russo Andrei Melnichenko. Ele próprio almoça habitualmente
primeiros 10 ou 15 doentes detetados na “apenas com algumas pessoas”. E como
Suíça vinham da região da Lombardia.” Voltar à loucura? está a correr do lado da restauração? “Ago-
Em novembro, só no aeroporto de Embora o coronavírus também tenha es- ra cozinhamos nós próprios”, conta Sachs.
Samedan, houve duas vezes mais chega- palhado o seu véu de obscuridade por esta “Comprei dois fogões de campismo, frito
das do que no ano anterior. Os visitantes encosta, o impacto na atividade está, no os meus ovos e acrescento-lhes trufas.”

MARÇO 2021 - N.º 301 17


Energia

BALCÃS
LCÃS
A guerra
dos gasodutos
Rússia, Turquia e Azerbaijão acabam m de inaugurar vários gasodutos que
atravessam os Balcãs. Ao mesmo tempo, mpo, os EUA estão ansiosos por enviar
o seu gás liquefeito para a Croácia.
oácia. Tensão comercial à vista?
Jutarnji
rnji List
Zagreb
greb

O mercado europeu do gás

O está agitado, e a batalha entre


os maiores produtores e ex-
portadores não parece estar a
ser muito agradável. Desde os primeiros
dias de 2021 que os interesses dos grandes
fornecedores se cruzaram, sobretudo os
dos russos, norte-americanos e azeris. A
1 de janeiro, o gasoduto Balkan Stream foi
inaugurado, na Sérvia. Estendendo-se da
fronteira búlgara até à fronteira húngara,
faz parte da Turkish Stream, um gasoduto
russo-turco através do qual a [empresa
russa] Gazprom abastecerá os Balcãs e a
Europa Central. Nesse mesmo dia, um
petroleiro dos EUA atracou no terminal
de gás natural liquefeito (GNL), na ilha de
Krk, na Croácia, com a sua carga.
Mas o gás norte-americano não se
destina apenas à Croácia: a Hungria, a
Ucrânia e outros países poderiam tam-
bém beneficiar deste. A Hungria compra
11,2 mil milhões de metros cúbicos de gás
à Gazprom, todos os anos. Ao ligar-se ao de metros cúbicos de gás do Azerbaijão,
Azerbaijão
terminal de GNL na ilha de Krk, a Hun- a Itália conseguirá reduzir a sua depen-
gria poderia reduzir a sua dependência dência da Gazprom em um terço, à qual
em relação ao gás russo. adquire atualmente 22,1 mil milhões de
Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro metros cúbicos de gás.
búlgaro Boyko Borisov anunciou a “diver-
sificação do mercado do gás” através da Movimentações a norte
...
inauguração do Gasoduto Transadriático Assim que se abordaram os problemas
(TAP), uma secção do Gasoduto Transa- que a Gazprom poderá vir a enfrentar Os dois projetos russos,
natoliano (TANAP) através do qual o gás no futuro, devido ao aumento da con- Nord Stream 2 e Turkish
do Azerbaijão chegará à Europa, passando corrência no mercado do gás na Europa, Stream, estratégicos
pela Geórgia, Turquia, Bulgária, Grécia, a Dinamarca anunciou que, a partir de
Albânia e alcançando, por fim, a Itália atra- 15 de janeiro, iria começar a trabalhar no tanto política como
vés do mar Adriático. A Itália é o segundo Nord Stream 2 nas suas águas territoriais. economicamente, são
maior importador de gás russo, a seguir à A construção do gasoduto russo-alemão
Alemanha. Ao comprar oito mil milhões foi suspensa, no final de 2019, devido às
a última oportunidade
para a Rússia se
estabelecer na Europa
AUTOR DATA TRADUTORA
F Vlado Vurusic 10.01.2021 Susana Martins como importante
fornecedor de gás

18 MARÇO 2021 - N.º 301 ILUSTRAÇÃO DE KAZANEVSKY, UCRÂNIA


COURRIER INTERNATIONAL
500 km Mar Outros gasodutos
Báltico em utilização
NOR.

1
am
SUÉCIA EST. RÚSSIA

tre
Nord Stream 2

rd S
(em construção)
LET.

No
DINAMARCA
LITU.
RÚ.

REINO BIELORRÚSSIA
UNIDO ALEMANHA POLÓNIA
BÉ.
R. CHECA
ESL.
UCRÂNIA
ÁUS.
HUN. MOL.
FRANÇA Balkan Stream
ROMÉNIA
Terminal Mar
GNL de Krk CRO. SÉRVIA h Cáspio
BULGÁRIA Turkis
m
ITÁLIA Strea GEÓRGIA
ESP. Gás ALB.
americano TANAP
TAP
GRÉCIA TURQUIA
AZERBAIJÃO

sanções impostas pelos EUA às empresas dependência dos países da Europa do Leste. ...
que trabalhavam no projeto. Entretanto, Até 2025, a Polónia poderá já não estar de-
o governo
gove
v rno do estado alemão Meclembur- pendente dos produtos energéticos russos, A Itália é o segundo maior
go-Pomerânia Ocidental criou um fundo bem como os Países Bálticos. A Polónia, a
para terminar a construção do gasoduto Estónia, a Letónia e a Lituânia opõem-se importador de gás russo,
(no caso de continuarem as sanções dos fortemente ao projeto Nord Stream 2, por a seguir à Alemanha. Ao
EUA), para conseguir poupar os 11 mil este os deixar de fora, embora lhes tenha comprar oito mil milhões
milhões de dólares investidos até agora sido proposta a sua participação.
no projeto, por parte de empresas alemãs de metros cúbicos de gás
e europeias. O gasoduto passará por este Última oportunidade da Rússia do Azerbaijão, a Itália
estado federal quando deixar de estar sub- Os dois projetos russos, Nord Stream 2 e
merso, pelo que é do interesse de todos Turkish Stream, estratégicos tanto polí-
conseguirá reduzir
os envolvidos neste projeto torná-lo uma tica como economicamente, são a última a sua dependência
realidade. Caso as 100 empresas dos 12 oportunidade para a Rússia se estabelecer da Gazprom em um terço
países europeus, das quais uma boa me- na Europa como importante fornecedor
tade é alemã, falhassem, arriscar-se-iam de gás, segundo alguns estudos. Além do
a perder mais de mil milhões de dólares benefício económico, isto permitir-lhe-ia
já investidos. reforçar a sua presença política em regiões A Grécia importa atualmente 2,41 mil
Pela primeira vez, a Alemanha está fora do seu alcance, devido à sua adesão à milhões de metros cúbicos de gás russo,
a comprar mais de metade do seu gás UE e à NATO. Um dos objetivos da Rússia e a Bulgária 2,39 mil milhões. Apenas a
à Rússia, enquanto, até 2016, o volume é contornar a Ucrânia, através da qual a Sérvia duplicará as suas importações de
das suas importações foi pouco mais de maior parte do seu gás continua a fluir para gás russo, mas a um preço mais amigável:
40 por cento. Além disso, a Alemanha a União Europeia. A Rússia quer, assim, 155 dólares por mil metros cúbicos, em
ainda adquire à Rússia uma quantidade marginalizar a Ucrânia e torná-la menos vez de 240 dólares. Resta saber o valor
significativa de petróleo e de carvão (o atrativa para os interesses ocidentais. das concessões políticas com que a Sérvia
que lhe permitiu reduzir a sua produção No entanto, os russos estão agora a selou o acordo.
de carvão). Como o projeto Nord Stream 2 competir com o gás liquefeito norte-ame- Sem dúvida, 2021 será marcado pela
visa fazer da Alemanha a plataforma para ricano [o Qatar e a Argélia também estão “guerra do gás” entre os maiores forne-
a distribuição de gás russo na Europa Oci- em jogo] e com o Azerbaijão, que tem vindo cedores do mercado europeu. Há quem
dental e Central, é difícil acreditar que a a apalpar o terreno deste mercado “con- acredite que a Gazprom poderá baixar
Alemanha possa desistir de um projeto quistado” há já algum tempo. De acordo ainda mais os seus preços para conseguir
tão significativo para a sua economia. A com os meios de comunicação alemães, o desviar os clientes do gás liquefeito nor-
capital, Berlim, aguarda ansiosamente por terminal de gás natural liquefeito da ilha te-americano, mais caro. Não obstante,
um acordo sobre o gasoduto com a admi- de Krk poderia garantir praticamente o na atual situação económica, é legítimo
nistração de Joe Biden, a qual, permita-me abastecimento total da Croácia: poderiam perguntar-nos se a Rússia será capaz de
relembrar, não é mais flexível em relação passar por este terminal 2,6 mil milhões manter esta tarifa durante muito tempo.
a este assunto do que a administração do de metros cúbicos, ao passo que a Croácia Em 2020, de acordo com o jornal russo
antigo Presidente, Donald Trump. importa atualmente 2,82 mil milhões de Gazeta.ru, a Rússia exportou mais gás, mas
É verdade que 40% do gás que chega à metros cúbicos da Rússia. O mesmo se com menos ganhos do que em 2019, devido
União Europeia provém ainda da Rússia. aplica à Grécia e à Bulgária, que reduzirão à epidemia Covid-19. Moscovo espera um
No entanto, as suas importações excede- a sua dependência da Gazprom em cerca aumento na faturação assim que a crise
ram os 60%, há 15 anos, devido à elevada de 40 por cento. sanitária terminar.

MARÇO 2021 - N.º 301 19


Disputa
BRASIL

ARGENTINA
URU.

Oceano Pacífico

E
Buenos Aires

CHIL
BREXIT Oceano
Atlântico

Com as Malvinas Ilhas Malvinas/

COURRIER INTERNATIONAL
/Ilhas Falkland
(Reino Unido)

isoladas, 1 000 km

Buenos Aires
aproveita argentino julga que os últimos aconte-
cimentos “evidenciam todo o potencial
de uma aproximação entre as Malvinas e
A saída do Reino Unido da União Europeia deixou “esquecido” este arquipélago a Argentina continental”.
do Atlântico que não faz parte da nova união alfandegária. Será esta uma boa Entre as prioridades dos britânicos no
Atlântico Sul está a base militar instala-
ocasião para a Argentina voltar a reivindicar o território?
da nas Malvinas, após a guerra de 1982,
que lhes serve de porta de entrada para a
Ámbito Financiero (excertos)
Antártida e para a passagem entre os dois
Buenos Aires
oceanos. No entanto, quando foi preciso
defender os interesses dos malvinos diante
de Bruxelas, Londres fez-se notar entre
Mesmo que não se traduza, de tos da sua pesca (principalmente lulas). os ausentes.

M imediato, numa aproximação


com a Argentina, alguma coisa
Do mesmo modo, a carne de carneiro, a
segunda maior exportação das Malvinas,
Por outro lado, sem uma aproximação
com a Argentina, os malvinos jamais terão
manifestamente se rompeu, está presentemente submetida a uma taxa a segurança jurídica ou o apoio regional
no seguimento do Brexit, entre os kelpers de 42%, e o arquipélago deixará de bene- que lhes são necessários para se lançarem
[alcunha dada aos habitantes das Malvinas] ficiar das quotas e das ajudas europeias. na exploração de hidrocarbonetos, como
e o Reino Unido. Com o divórcio britânico- O risco de desmoronamento económico tentam fazer sem sucesso há anos.
-europeu, os habitantes deste arquipélago, é uma realidade. Mas, de momento, continua a reinar
ocupado de forma ilegítima desde 1833, a desconfiança, herdada daquela guerra
encontram-se de facto abandonados, e Desconfiança crescente que foi uma trágica invenção da ditadura
as suas principais fontes de rendimento Reduzidas mais do que nunca a uma coló- militar – ao ponto de as autoridades mal-
estão em risco. Entre outros indícios dessa nia, as Malvinas correm o risco de perder o vinas terem recusado a oferta de ventila-
rutura, houve o artigo de opinião publi- principal mercado de exportação para os dores que a Argentina lhes fez no início
cado na sexta-feira, 8 de janeiro, por Lisa seus produtos haliêuticos que representam da pandemia.
Watson, a chefe de redação do diário local 60 % do PIB. E os prejuízos não se ficam No Ministério dos Negócios Estrangei-
Penguin News, sob um título eloquente: por aí: a partir de agora, os barcos de pesca ros, ninguém se deixa iludir: aquilo que
“Responder com boa educação a um golpe espanhóis, que até então pagavam as suas Lisa Watson descreve, aquele sentimento
baixo” (ver caixa). licenças de exploração às Malvinas, passarão de abandono por parte dos britânicos – em
Esta escaramuça não passou desperce- a comprá-las à Argentina. particular dos conservadores que haviam
bida ao ministério argentino dos Negócios “As negociações do Brexit e as suas prometido jamais largar a colónia – é par-
Estrangeiros que vê nela uma ocasião para consequências mostram a obsolescên- tilhado por uma boa parte da sociedade
fazer com que os malvinos compreendam cia do estatuto colonial do arquipélago kelper, o que não significa, porém, que
que Londres está demasiado longe e que e a necessidade de o Reino Unido e de esta se vá lançar nos braços de Buenos
eles teriam todo o interesse em pôr de lado a Argentina encetarem um diálogo que Aires. Mas, com o tempo, uma política
as suas reservas em relação à Argentina. permita resolver o diferendo em torno da coerente, uma política de Estado distante
A colónia – que desde o dia 1 de janei- soberania das Malvinas”, estima Daniel das manobras políticas habituais, poderia
ro deixou de ser reconhecida pela União Filmus, secretário de Estado encarregado fazer a diferença.
Europeia como um “território britânico das Malvinas, da Antártida e do Atlântico Se, por um lado, a reivindicação cons-
ultramarino” e que não beneficia, por- Sul, no Ministério dos Negócios Estran- tante da Argentina em relação àquele ter-
tanto, do acordo que foi assinado com o geiros argentino. ritório, a falta de legitimidade da invocação
Reino Unido – tem agora de pagar direitos Sem comentar a evolução das relações do seu direito à autodeterminação e a sua
alfandegários de 6% a 18% para poder ex- entre os habitantes das Malvinas e o go- demografia demasiado reduzida para tal
portar, para os 27 países da UE, os produ- verno britânico, este alto-funcionário reivindicação já apontavam nesse senti-
do, por outro, o Brexit veio recordar aos
malvinos o que custa ser uma colónia. A
AUTOR DATA TRADUTOR democracia argentina terá os seus defeitos,
F Marcelo Falak 11.01.2021 Jorge Pires é certo, mas tem muito mais para lhes
oferecer.

20 MARÇO 2021 - N.º 301


Cólera nas ilhas
Um editorial do único jornal do arquipélago acusou Boris Johnson de infantilizar os malvinos
Penguin News
Port Stanley (Malvinas)

O Brexit aconteceu, portanto. E julgo que esta questão seus postulados complexos. Apesar dessa provocação,
é particularmente exasperante para nós, nas Malvinas, nunca perdi completamente a minha calma a respeito do
porque, não tenhamos medo das palavras, nós somos Brexit, tanto nas redes sociais como no Twitter; receava
de uma boa educação a toda a prova, pelo menos em vir a ser citada pela Imprensa argentina que se regozija-
público. ria com qualquer ataque aos procedimentos democráti-
Sempre admitimos que o Brexit dizia sobretudo respeito cos britânicos. Mas, na verdade, estávamos efetivamente
àqueles que viviam no Reino Unido. A nossa reação, in- conscientes de que o Brexit teria repercussões negati-
felizmente, foi tipicamente britânica: não quisemos me- vas nas Malvinas. Claro que o Reino Unido também irá
ter-nos em confusões. Ao mesmo tempo, exprimimos enfrentar consequências nefastas, mas, pelo menos, os
clara e dignamente que o Brexit teria para nós grandes britânicos puderam negociar as condições da sua infeli-
repercussões. Sabemos bem que ele implicará taxas al- cidade.
fandegárias orçadas entre 6% e 18 % sobre as exportações A ironia desta história é que, a prazo, as Malvinas sairão
de pescado para a União Europeia (UE) – ou seja, uma melhor do que o Reino Unido.
redução de rendimento que poderia atingir 10 milhões de Mas, até ao fim, não perdemos nada da nossa cortesia,
libras – e uma taxa média de 42% sobre as exportações de mesmo quando o Boris Johnson nos infantiliza, os nossos
carne também para a União Europeia. pedidos e argumentos não são evocados junto da União
Mas continuámos a mostrar-nos bem-educados. Europeia e ninguém se preocupa com a nossa sorte face à
No Twitter, os partidários da saída da UE tiveram a ar- saída da União Europeia.
rogância de explicar-me a conjuntura do meu país e da O resultado está a anos-luz daquilo que desejávamos,
minha economia. “De facto”, afirmaram, o Brexit é forço- mas apegamo-nos a uma reação bem elevada: esta-
samente uma boa coisa para as Malvinas que acabarão mos enervados e desapontados. Porém, o que sentimos é
por tirar proveito disso. Não souberam dizer-me as van- mais do que desapontamento. Esta situação é merdosa e
tagens de uma forte redução dos nossos rendimentos. injusta. Estarei eu a ser mal-educada? Desculpem, julgo
Aparentemente, o meu pequeno cérebro de mulher não que se justifica.
está à altura da compreensão das sofisticadas noções dos Lisa Watson

ILUSTRAÇÃO DE PARESH NATH, PARA KHALEEJ TIMES, DUBAI MARÇO 2021 - N.º 301 21
Repressão

NICARÁGUA
Prisioneiros
em casa
Muitos opositores do regime autoritário do Presidente Daniel Ortega estão
confinados nas suas casas: a polícia impede-os de sair, mesmo
sem qualquer mandado judicial
de Karen e de Edward, foi impedida
Confidencial de sair quando saía para comprar pão
ManáguA e leite. “Estamos detidos na nossa
casa sem qualquer explicação”,
lamenta Karen Lacayo. Nessa
Martha Alvarado recorda a ela foi eleita, no seu bairro, representante noite, durante as celebrações

M alegria que sentiu quando foi


informada de que iria receber
suplente da coligação da oposição Aliança
Cívica para a Justiça e a Democracia, a in-
da passagem de ano, a polícia
continuou a patrulhar. “Eles
um prémio no Dia Internacio- timidação policial aumentou. “Agora, vêm tinham uma atitude ameaça-
nal da Mulher, a 8 de março de 2020. Um todos os dias, fazem patrulhas em fren- dora, queriam impedir-me de
sentimento que não demorou a transfor- te da minha casa, intimidando qualquer sentar-me em frente da minha
mar-se em raiva: na véspera da cerimónia, um que se queira aproximar”, diz. “Não casa”, diz. “Vai para casa, vai para
várias patrulhas da polícia estacionaram me deixam ir para a rua. Só saem ao fim casa, era tudo o que eles diziam.”
no exterior de sua casa, impedindo-a de da tarde, por isso sou praticamente uma Antes, costumavam deixá-la sair de
sair. Às seis da manhã do dia 7 de março, os prisioneira.” Deixam sair os dois filhos, casa, mas seguiam-na para onde quer que
polícias colocaram-se frente ao portão de mas seguem-nos assim que estão na rua. ela fosse. “Uma vez, em Manágua, deti-
sua casa para impedirem que alguém saísse “É uma perseguição permanente a toda a veram-me e obrigaram-me a entrar no
ou entrasse. Ela protestou, mas um dos família”, lamenta. autocarro para Masaya. Acompanharam-
oficiais convidou-a a ir para casa. “Temos A 31 de dezembro de 2020, às cinco ho- -me, tiraram-me fotos”, prossegue. Mas
ordens”, justificou. ras da manhã, a polícia veio fazer uma bus- ela não tem qualquer intenção de desistir.
Não era a primeira vez que Martha ca à casa, sem mandado, sem explicações. “Vamos continuar a resistir até que o meu
Alvarado estava presa. O episódio recor- Mais uma vez, foi-lhe dito que se tratava irmão e todos os prisioneiros políticos sejam
dou-lhe os nove longos dias que ela passou de “ordens superiores”. “Em casa”, conta, libertados”, diz. “O facto de haver polícias
fechada na igreja de San Miguel de Masaya, “todos vivemos sob stresse devido a esta postados em frente da minha casa não me
em novembro de 2019, quando ela e outras situação. Deixei a polícia entrar para que ela impedirá de continuar a protestar e a lutar.”
mulheres iniciaram uma greve de fome para entendesse que não estamos a fazer nada O regime de Daniel Ortega e da mu-
exigir a libertação de membros das suas de errado, que não somos delinquentes.” lher, Rosario Murillo, vice-presidente,
famílias, prisioneiros políticos. Dezenas “Não basta terem o meu irmão preso,
de polícias, encorajados pela multidão de têm de vir chatear-me! Estão a seques-
sandinistas, tinham impedido a distribuição trar-me na minha própria casa... estes
de alimentos aos que apoiavam os grevis- malditos assassinos!”, disparou, no dia Censura
tas, dentro da igreja, não os deixando sair. 12 de dezembro, Karen Lacayo, irmã do
Martha Alvarado exigia a libertação do prisioneiro político Edward Lacayo, num
em todas
filho Melkissedex Antonio López, que en- vídeo que filmou com o telemóvel. A fa- as direções
tretanto foi libertado. “A ditadura manteve diga e o desespero levaram Karen Lacayo a Em breve, deverá ser definitiva-
o meu filho atrás das grades, durante 186 opor-se aos agentes da polícia que vigiam a mente aprovada uma reforma
dias”, disse. “Andei pelas ruas [a manifes- sua casa em Masaya – uma cidade da região da Constituição. Esta permitirá
tar-me], estive em greve de fome, fechada metropolitana de Manágua. Mas o pesade- a aplicação de penas de prisão
na igreja de São Miguel, e agora impedem- lo não se ficou por aí. “Estou fechada em perpétua para assuntos vagos,
-me de sair de minha casa.” minha casa há 40 dias”, sublinha. tais como “incitamento ao ódio”.
Desde então, os polícias passaram a ir à Karen Lacayo lamenta não poder levar Esta é uma “nova arma legal que
sua casa no distrito VII da capital, Manágua, uma encomenda ao irmão, detido desde ameaça a oposição”, denun-
às sextas-feiras, sábados e domingos. Fica- 15 de março de 2019. Às seis da manhã do cia o diário histórico LA PRENSA.
vam horas “a vigiar, a intimidar-me”. E, a dia 31 de dezembro, a polícia de choque Reforma após reforma, uma vez
partir de 4 de dezembro de 2020, quando cercou-lhe a casa. Esthela Rodríguez, mãe assumidos os poderes legislativo
e judicial, o Presidente Daniel
Ortega, antigo guerrilheiro e há
AUTOR DATA TRADUTORA 14 anos de poder, não para de
F Yader Luna 11.01.2021 Helena Araújo amordaçar qualquer voz crítica
do seu regime autoritário.

22 MARÇO 2021 - N.º 301 ILUSTRAÇÃO DE VLAHOVIC, SÉRVIA


tem mantido a pressão sobre os opositores
em várias cidades nicaraguenses, desde o
movimento de protesto social que eclodiu
AUSTRÁLIA
em 2018 – mais de 300 mortos em nove
meses. Mas, desde meados dos anos 20, as
autoridades têm recorrido prontamente ao Em busca
das línguas
método de fechar as pessoas em suas casas.
O regime está, assim, a reagir à mobili-
zação dos partidos da oposição com vista
a possíveis eleições e procura reprimir a
resistência dos cidadãos contra o Estado
aborígenes
perdidas
Autores e intelectuais de origem aborígene estão a reapropriar-se
das línguas dos seus antepassados, há muito negligenciadas ou mesmo
proibidas. Um conforto crucial face às perdas culturais dos seus povos
The Sydney Morning Herald
Sydney

“Antes de descobrir que era Mas Jacinta queria saber mais sobre a

A aborígene, pensava que vinha


do espaço”, conta Jacinta To-
bin. A sua pele clara provém
língua que os seus avós, tias-avós e tios-
-avôs não estavam autorizados a falar, sob
pena de serem levados pelos whitefellas
policial. “A ditadura continua a expandir das raízes irlandesas do pai. A sua herança (“homens brancos” – segundo algumas
os seus métodos de repressão e de violações aborígene, do lado da mãe, liga-a a Yarra- estimativas, entre 20 mil e 25 mil crianças
dos direitos humanos, mantendo muitos mundi, chefe da tribo Richmond, perto de aborígenes foram retiradas às suas famílias
adversários presos nas suas casas”, subli- Sydney, e a Bennelong, um homem conhe- para serem criadas em internatos durante
nha Vilma Núñez, presidente do Centro cido na história australiana por ter servido a primeira metade do século XX). Começou
Nicaraguense de Direitos Humanos (Ceni- de intermediário entre os povos indígenas a aprender a sua língua materna visitando
dh). “O objetivo é impedir que as pessoas de Port Jackson e os colonos britânicos a velha tia Edna Watson, a oeste de Sydney.
se mobilizem para uma possível eleição, [durante os primeiros contactos em 1788]. O primeiro conselho da tia foi: começar
além de também semear o terror entre a A mulher de 40 anos ainda desem- pelos nomes de lugares aborígenes. Ao
população.” penha este papel de correio, ensinando percorrer a lista dos subúrbios de Syd-
A primeira vez que a polícia nacional dharug, a língua aborígene falada na bacia ney com nomes aborígenes, rapidamente
tentou prender a opositora Ivania Álvarez, de Sidney (acredita-se que cerca de 700 notou o lirismo da língua. Assim, Bondi
membro do conselho político da Unab – dialetos estavam em uso antes de 1788). [lê-se Bondai], o som de uma onda, Coo-
Unidade Nacional Azul e Branco, outro Esta música dotada de bom ouvido apren- gee, uma alga marinha, ou por extensão,
órgão coordenador da oposição, foi a 25 deu a língua de Sydney, e hoje ensina-a um lugar fedorento, Parramatta, o lugar
de setembro de 2019. “A minha casa es- principalmente através das canções. onde dormem as enguias, Cronulla, o lugar
teve cercada durante mais de dez horas, “As crianças aprendem canções num das conchas cor de rosa.
impedindo-nos de irmos à manifesta- instante – como a maioria dos adultos –, “Grande parte do nosso vocabulário
ção”, recorda. Ivania Álvarez tinha saído porque o canto é a forma mais rápida de baseia-se nas onomatopeias e imita os sons
na noite anterior, mas a família teve de memorizar novas palavras. Para estudar associados às aves e a outros animais no
ficar lá dentro. A presença policial inten- o francês, por exemplo, começa-se por nosso país. A palavra para um canguru em
sificou-se sempre que foram organizadas cantar o Frère Jacques. A maioria das pes- dharug é buru e evoca o som que ele faz
manifestações ou atividades de oposição. soas fica surpreendida ao descobrir que quando salta. O meu clã, os Buruberongal,
Um dia, um polícia à paisana ameaçou-a já conhece algumas palavras de dharug: era os gal (gente) pertencente (beron) aos
para que ela não saísse. “Ele fez o gesto de wallaby, wombat, woomera [hélice de cangurus (buru).”
quem desenha uma arma”, conta. Depois lança], boomerang, bunyip [criatura da “Dois terços da nossa tribo foram di-
disso, as perseguições tornaram-se uma mitologia aborígene], coo-ee, que significa zimados nos cinco anos que se seguiram
ocorrência diária. Eles “acompanhavam- ‘estou aqui’, e até boogie (tomar banho ou à chegada dos colonos europeus. A lín-
-na” quando ela ia às compras ou saía para nadar), como em boogie board [prancha gua teve tanta dificuldade em sobreviver
comer algures. “Assim que saía, era parada de surf].” como o povo, confrontado com a varíola,
na rua”, explica. “No dia 24 de dezembro,
fiquei retida durante várias horas ao sol.
Tento não dar qualquer importância. Eles AUTORA DATA TRADUTORA
não vão parar o nosso movimento, já não F Helen Pitt 26.11.2020 Helena Araújo
tenho medo”, conclui.

MARÇO 2021 - N.º 301 23


Austrália

a raiva, os massacres e os envenenamen- descrever o nosso ambiente. E, através tanto em inglês como numa língua aborí-
tos”, sublinha. [Estima-se que existiam da linguagem, deu-nos uma identidade”, gene. Uma forma de iniciar os jovens leito-
400 mil aborígenes em 1788, e apenas 31 observa. res nas línguas aborígenes. Kirli Saunders,
mil em 1911]. Desde a publicação, em 2014, do livro membro do júri dos Prémios Literários
de Bruce Pascoe, Dark Emu. Black Seeds: do Primeiro-Ministro para Jovens, disse
Trabalho de resgate Agriculture or Accident, tem havido um na ocasião estar muito satisfeita com o
Ao fazer um estudo mais detalhado da es- interesse crescente nas línguas das Pri- número recorde de nomeados aborígenes.
trutura da língua, Jacinta descobriu o livro meiras Nações da Austrália. Este livro, “Foi verdadeiramente gratificante ver a
da professora Jakelin Troy, The Sydney publicado pela Magabala Books, uma descolonização da nossa cena literária.
Language. Um livro que Jakelin Troy, uma editora aborígene, e que vendeu mais de Quando se aprende uma língua aborígene,
antropóloga linguística do povo Ngarigo, 300 mil exemplares, desafiou alguns dos descobre-se a vantagem de ter palavras
escreveu numa tentativa de ressuscitar as preconceitos profundamente enraizados para descrever coisas de que o mundo
cerca de 200 línguas indígenas do Sudes- na Austrália branca. ocidental carece.”
te da Austrália. “Fiquei chocada ao saber Programas da cadeia ABC com grande Palavras como ngununggula, que em
que não havia registo da gramática e do audiência, tais como Gardening Australia gundungurra significa “andar e trabalhar
vocabulário utilizados pelas pessoas da e The Sound, que destacaram a região abo- ao mesmo tempo”, uma expressão que a
minha região. Havia apenas uma recolha rígene em que foram filmados, bem como escritora não conhecia até ter começado
de velhas notas manuscritas meio rasga- o novo livro de Pascoe, Loving Country. a estudar a língua dos seus antepassados,
das”, explica a professora universitária, A Guide to Sacred Australia, permitiram aos 27 anos. “Tinha ouvido alguns cânticos,
que é agora diretora de investigação em a um vasto público a aprendizagem das mas agora enquanto trabalhava e cami-
Estudos Indígenas na Universidade de línguas aborígenes. nhava ao longo do rio Shoalhaven, perto
Sidney. de Bundanon, tive a impressão de estar a
Os manuscritos a que se refere são Jovens talentos literários ouvir as vozes dos meus antepassados...
o trabalho de Patyegarang, uma jovem A literatura dos indígenas australianos Eles pareciam estar a dizer-me que era
indígena. Aos 15 anos, ensinou palavras também contribui para isto, segundo altura de aprender a sua língua.”
na língua local ao tenente William Dawes Kirli Saunders. Esta escritora de 29 anos Muitos nativos foram privados desta
[um dos poucos britânicos que defenderam originária do povo Gunai foi nomeada a ligação espiritual com a terra que o uso da
o povo aborígene e membro da Primeira Mulher Aborígene do Ano 2020 de Nova língua proporciona. Foram criados sem o
Frota, o nome dado aos primeiros 11 navios Gales do Sul, pela sua contribuição para saber. Tara June Winch, 36 anos, escritora
que trouxeram os primeiros prisioneiros a preservação das línguas das Primeiras Wiradjuri, ganhou o prémio Miles Franklin
para a ilha]. As notas de Dawes constituem Nações, principalmente através da poesia. 2020 pelo seu livro The Yield. Ela apela aos
ainda hoje a principal fonte de informa- Em Bindi, um livro de ficção para adoles- governos federal e estaduais para promo-
ção sobre a língua primitiva de Sydney. centes publicado em novembro de 2020, verem a aprendizagem da língua materna
Patyegarang ia à cabana do oficial à noite ela usa palavras de gundungurra, a língua nos currículos escolares. Foi-lhe negada
para lhe ensinar vocabulário relacionado indígena falada na região das Terras Altas a oportunidade de aprender wiradjuri, a
tanto com partes do corpo como com as do Sul, onde cresceu. língua dos seus antepassados paternos, até
relações humanas. Algumas palavras não Bindi é um dos muitos títulos das edi- que, aos 20 anos, viajou para Nova Gales
tinham equivalente em inglês, tais como ções Magabala Books que foram publicados do Sul para escrever um livro. “A apren-
putuwa, que significa aquecer as mãos
junto ao fogo e depois transmitir o calor
apertando as mãos de outra pessoa nas O escritor Bruce
suas próprias. Pascoe é, atualmente,
Linguisticamente falando, a maioria uma das vozes mais
das línguas aborígenes é polissintética influentes na Austrália
[as diversas partes da frase contraem-se, FOTO GETTY IMAGES
formando uma só palavra extensa] e tem
prefixos e sufixos tais como o “-tta” de
Parramatta e Cabramatta, que se referem
a lugares onde foram encontradas enguias
e vermes comestíveis de água doce, res-
petivamente. “As línguas estão ligadas à
terra: os Gadigals têm muitas palavras
relacionadas com conchas e rios influen-
ciados pela maré. Os Dharugs, por outro
lado, têm um vocabulário muito rico sobre
peixes de rio, pássaros e outros animais”,
explica Jakelin Troy.
As línguas indígenas da Austrália
sempre estiveram intimamente ligadas
ao país, precisa Darren Charlwood, agen-
te do património cultural aborígene nos
jardins botânicos reais e artista Wiradjuri.
“No início, o país deu-nos a língua para

24 MARÇO 2021 - N.º 301


Línguas aborígenes da Nova Gales do Sul
QUEENSLAND
Brisbane
Karenggapa Muruwari
Wadigali
Bundjalung Racismo
i

Kamilaroi
al

FONTES: RECONCILIATION NSW, INDIGENOUS SERVICES (STATE LIBRARY OF NSW)


estrutural
jig

Malyangaba
nd

Barundji
Ba

30°
n Wailwan
Sul
Quando James Cook
bo

desembarcou, em 1770, na Ilha


ai

Wiljali
li
ga

Biripi
on
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de Possessão no Estreito de
i

W
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Da

rin
i

Torres, declarou a soberania da


dj

Ba
in

Área do
rk

Darug coroa britânica sobre a Austrália


Ba

Wiradjuri
Meru Oriental. Uma apropriação
Sydney que se estenderia ao resto do
Gundungurra território a partir de 1788. Mais
de dois séculos depois, Eddie
VITÓRIA Yuin Koiki Mabo, um habitante
Ngarigo
Camberra da Ilha do Mar no Estreito de
A U S T R Á L I A Torres, desafiou em tribunal
Melbourne o mito legal da terra nullius
(território sem um mestre) que
400 km justificava a sua anexação. Foi
preciso esperar até 21 de janeiro
de 1992 para que o Supremo
Tribunal de Justiça invalidasse
dizagem da língua apareceu-me como um à beira da extinção e temos de agir rapi- esta mentira ao reconhecer
conforto, um belo prémio de consolação damente para as preservar”, diz. que os aborígenes se tinham
relativamente a tudo o que a nossa família Hoje, espera que a próxima Década das estabelecido no continente
wiradjuri tinha perdido”, diz ela. Línguas Indígenas a ser lançada pelas Na- insular há mais de 65 mil anos.
Anita Heiss, outra escritora de língua ções Unidas para 2022-2032, uma iniciativa A 10 de dezembro do mesmo
wiradjuri e professora de comunicação para tentar preservar as línguas amea- ano, o primeiro-ministro,
na Universidade de Queensland, partilha çadas, chame a atenção para as línguas Paul Keating, apelou a
este sentimento. Criada em Matraville, aborígenes. Um pouco como o movimento uma introspeção do país
foi a primeira da sua família a estudar a Black Lives Matter fez crescer o interesse e a reconhecer a violência
sua língua materna. Em 2018, inscreveu- pelas relações raciais na Austrália. “O re- do passado colonial. Esta
-se na licenciatura de Língua, Cultura e sultado positivo destas notícias negativas introspeção é ainda parcial,
Património Wiradjuri na Universidade é um reconhecimento da complexidade tanto que “o sonho australiano
Charles Sturt em Wagga Wagga (“Lugar das nossas línguas e da nossa cultura. As é baseado no racismo”,
dos Corvos”). “Eu tinha 50 anos, tinha línguas aborígenes estão, finalmente, a como observa o jornalista
escrito 16 livros e muitos outros textos, ser reconhecidas como parte da paisagem aborígene Stan Grant na
era comentadora, conferencista, marato- australiana.” sua autobiografia Tell It to
nista. Mas nem os meus conhecimentos, Segundo Joe Davison, um poeta de lín- the World. Atualmente, os
nem as minhas criações, nem a minha vida gua gadigal que contribuiu para o último povos indígenas representam
em sociedade me tinham preparado para álbum da banda australiana Midnight Oil, apenas 3% da população e,
aprender a língua wiradjuri. [...] À beira The Makarrata Project, o impacto dado a de acordo com Stan Grant,
dos yung (‘lágrimas’) pelos desânimos e estas línguas pela música de bandas como são ainda amplamente
fracassos, olhei para a pilha de documen- Warumpi, Yothu Yindi e Dr G. Yunupin- considerados como “um
tos amontoados ao meu lado na cama e gu poderia permitir que certas palavras incómodo”. Por exemplo,
disse em voz alta: ‘Nunca vou conseguir’”, aborígenes entrassem na cultura pop. Sob em 2019, o acesso ao cume
escreveu mais tarde. o título Welcome to Gadigal Land, ele lê do Uluru Rock foi fechado
Mas persistiu. Os progressos chegaram um dos seus poemas, Mudjaru ngaya pelas pessoas proprietárias do
no dia em que um dos seus professores lhe wunyang, que poderia ser traduzido como sítio. Ultrajados, os visitantes
explicou que o sucesso na aprendizagem “Desculpem a minha má pronúncia”. afluíram ao local em massa,
viria quando os seus antepassados sou- “É como dizer aos meus antepassados: ignorando a santidade deste.
bessem que ela estava pronta e quando ela ‘Olhem, isto é a melhor coisa que posso
aceitasse que tinha um longo caminho a fazer agora no meu esforço para devolver
percorrer. “É preciso olhar para o mapa da vida [à língua].’ Gostaria que muitos de
Austrália indígena como se fosse um mapa nós aceitássemos o desafio, mas estou feliz
da Europa, com muitas línguas e dialetos por ter conseguido que a língua dos meus
diferentes, canções, danças e costumes antepassados gadigal fosse ouvida nesta
tradicionais. Mas as nossas línguas estão canção.”

MARÇO 2021 - N.º 301 25


Indústria

ALEMANHA
A longa
sombra
da Tesla
Elon Musk construiu uma imensa fábrica de viaturas elétricas
nos campos de Brandeburgo. A toda a pressa, acotovelando
as regras e as reticências locais
The Guardian
Londres

Há já dez meses que Silas Hei- Ao abrigo do anonimato, os responsá-

H neken sobrevoa com o seu dro-


ne o maior estaleiro de obras
veis políticos referem o que têm de fazer
ao patrão da Tesla, o qual, segundo dizem,
em curso na Alemanha e publi- poderia muito bem ter ido instalar-se na
ca os vídeos no YouTube. Sob o pseudónimo Ásia, onde o custo da mão de obra é mais
de Tesla Kid, este adolescente de 14 anos baixo, e onde as exigências em matéria de
constituiu uma rede com várias dezenas de ambiente e as normas de construção são
milhares de subscritores. Todas as semanas menos estritas.
eles acompanham os progressos das obras Se os proprietários fundiários fazem
da GigaFactory de Elon Musk que brota da parte daqueles que esfregam as mãos, uma
terra arenosa [do Land] de Brandeburgo, a vez que os preços dos terrenos passaram
sudeste de Berlim, a altíssima velocidade. a valer dez vezes mais desde o anúncio de
“É um grande visionário, que tem Elon Musk em novembro de 2019, o projeto
ideias ambiciosas e conseguiu pô-las também conta com numerosos opositores.
em prática”, diz Silas Heineken. A ins- A maioria destes explica que gostam de
talação da gigantesca fábrica de viaturas Grünheide precisamente porque se tra-
elétricas perto de Grünheide, a pequena ta de um local sossegado. Estão atónitos
cidade adormecida onde ele vive, é uma com a rapidez a que as obras progridem
incrível oportunidade para a região, julga – sobretudo nos vídeos de Silas Heineken
este estudante que tentou aproximar-se que mostram a construção da fundição, da
de Elon Musk em bicicleta aquando da fábrica de moldagem, da oficina de pin-
última visita que este fez ao local. tura e da cadeia de montagem – e com a
É de longe a maior implantação in- superfície arborizada que já desapareceu.
dustrial nesta zona desde há um século. “Grünheide alberga nove mil almas na
Jörg Steinbach, ministro do Trabalho de orla de uma zona protegida. Elon Musk
Brandeburgo, acha que a região tem, as- quer transformá-la numa cidade de 40
sim, a oportunidade “de se transformar mil habitantes que ficará parecida com
num centro da revolução energética na Wolfsburg”, lamenta Werner Klink, refe-
Alemanha e na Europa”. Elon Musk com- rindo-se à cidade nova que foi construída
prometeu-se a criar dez mil empregos e 200 quilómetros a oeste de Berlim nos anos
a fabricar cerca de 500 mil veículos por 1930 para fabricar as viaturas Volkswagen.
ano, a começar pelo Model Y da Tesla, e
também a construir a maior fábrica de Licenças depois...
baterias do mundo no mesmo local. A Werner Klink é membro da Iniciativa Ci-
sua visão dará a conhecer este recanto dadã de Grünheide, uma associação que
da Alemanha. faz campanha contra o projeto. Normal-

AUTORA DATA TRADUTOR


F Kate Connolly 05.01.2021 Jorge Pires

26 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTOS: GETTY IMAGES


A Tesla comprometeu-se a
plantar três vezes mais árvores
do que aquelas que abateu para
construir a sua fábrica gigante
FOTO GETTY IMAGES

MARÇO 2021 - N.º 301 27


Indústria

mente, as obras demoram tempo, “devido deburgo] no valor de 100 milhões de euros “Musk não tem medo de correr ris-
a todas as autorizações que é preciso obter para cobrir os eventuais custos de restauro cos e aposta que ninguém lhe ordenará a
e aos regulamentos que se devem acatar ecológico: no dia 18 de dezembro, um tri- demolição da sua fábrica, tanto mais que
antes mesmo de colocar a primeira pe- bunal decidiu que esse motivo justificava está em jogo um grande número de em-
dra”, diz ele. Mas Elon Musk optou por a interrupção das obras. Os advogados da pregos”, afirma Werner Klink, geofísico
uma via que é muito pouco conforme aos Tesla interpuseram um recurso para adiar a aposentado.
métodos alemães: as obras primeiro, as data-limite de pagamento, revelou o jornal Segundo ele, a velocidade a que os edi-
licenças depois. alemão Der Tagesspiegel. fícios saíram da terra não permitiu que
“Mesmo que as autoridades lhe digam Apesar da apresentação de 360 ob- se inspecionasse bem o local. “Existe um
para interromper as obras, ele já terá cau- jeções, as autoridades autorizaram Elon risco considerável de que o nivelamento
sado demasiados estragos para que se possa Musk a prosseguir com as obras, afirmando de terras provoque uma contaminação
esperar que volte a repor o local como que ele o fazia por sua conta e risco. O que dos lençóis freáticos. Um metro abaixo
estava”, deplora Werner Klink. “Foram não é raro na Alemanha, mas ainda assim da superfície há água salgada, e parece
causados danos imensos e irreversíveis na é inédito para um projeto desta dimensão. que o nível dela está a subir. Se acabar por
Natureza e, potencialmente, nos lençóis se misturar com a água doce, será uma
de água subterrâneos, na floresta, na flora catástrofe.”
e na fauna.”
Cem hectares de pinheiros (ou seja,
... Ecologistas divididos
aproximadamente a superfície de 26 Em dezembro [de 2020], teve lugar uma
campos de futebol) foram já arrasados, e
Elon Musk manifestação em frente às instalações da
outros 86 hectares sofrerão provavelmente comprometeu-se a criar Axel Springer em Berlim, após este editor
a mesma sorte em conformidade com uma dez mil empregos e a alemão ter prestado homenagem à “ambi-
decisão judicial proferida em dezembro. ção [de Musk] em tornar o mundo melhor”
Os obstáculos que se erguem diante da fabricar cerca de 500 atribuindo-lhe o seu prémio epónimo. Os
Tesla são o lagarto-dos-cepos e a cobra-lisa mil veículos por ano, defensores do clima e do ambiente tinham-
[uma serpente], duas espécies silvestres -se deslocado até lá, designadamente os
que foram postas em destaque pela União
a começar pelo Model membros da Nabu, da Sociedade de Pro-
Alemã para a proteção da Natureza (Nabu) Y da Tesla, e também a teção das Espécies e da rede associativa
e que estão no cerne da batalha jurídica construir a maior fábrica Grüne Liga (Liga Verde).
para que se interrompam as obras.
Soma-se a isso a questão de uma conta de baterias do mundo
a pagar à Agência do Ambiente [de Bran- no mesmo local

28 MARÇO 2021 - N.º 301


Contexto
Um sucesso
paradoxal
Como explicar que a Tesla, com as
suas viaturas elétricas de alta gama,
se tenha tornado em 2020 o maior
construtor automóvel mundial em
termos de capitalização bolsista
produzindo tão poucos veículos?
A cotação da empresa na Bolsa
“levantou voo” no ano passado
(+740 %), impelida pela confiança
dos investidores no seu CEO, Elon
Musk, constata o WALL STREET JOURNAL.
Valorizada em mais de 800 mil
milhões de dólares, a Tesla atingiu em
março de 2020 um milhão de veículos
produzidos, entregou meio milhão
deles ao longo do mesmo ano, e a sua
cotação é “211 vezes mais elevada do
que os lucros do ano justificariam”.
Mas a empresa, nascida em 2003
e cujo nome presta homenagem ao
inventor Nikola Tesla, “é uma história
bonita”, daquelas que os investidores
adoram. Elon Musk desenvolve a
sua “visão” das indústrias disruptivas
– a Tesla fabrica viaturas elétricas
e painéis fotovoltaicos. Ora “as
viaturas elétricas e a energia solar
Norbert Hess, porta-voz do pequeno “Grünheide alberga nove mil almas são promovidas pelos governos
Partido Ecologista-Democrata (ÖDP) no na orla de uma zona protegida. Elon do mundo inteiro como fazendo
Brandeburgo, acusou os Verdes alemães Musk quer transformá-la numa parte da solução para as alterações
[que estão no poder integrados na coli- cidade de 40 mil habitantes que climáticas”. A Bolsa interessa-se
gação de Angela Merkel] de terem “traído ficará parecida com Wolfsburg", mais pelo “potencial de crescimento
o seu juramento” ao contribuírem para dizem os críticos do que pela análise pormenorizada
acelerar o projeto. Muitos aspetos do pro- FOTO GETTY IMAGES dos fluxos de tesouraria” da Tesla. E
jeto estão mal definidos, explica ele. Por quando, em 14 de janeiro, a autoridade
que razão não se considerou implantar ainda mais a comunicação. Esta última norte-americana da segurança
as instalações na zona mineira da Lusá- passa essencialmente por tweets sucin- rodoviária (NHTSA) exigiu a recolha
cia, situada no Sul do Brandeburgo, que tos e assinados pelo próprio Elon Musk, de 158 mil Model S e Model X que
procura um novo propósito desde que a como sucedeu antes do Natal, quando apresentavam um problema de
Alemanha decidiu abandonar definitiva- ele escreveu simplesmente: “Obrigado segurança, isso não afetou a cotação
mente o carvão? pergunta ele. “Os terrenos ao Brandeburgo e a Grünheide”, após o da empresa, nem a bonita história dos
onde existem minas a céu aberto já estão presidente do município ter reiterado o investidores com a Tesla.
desnaturados”, diz Norbert Hess. apoio à GigaFactory ao dar o seu aval a uma
Os Verdes, que estão no poder no rede de transportes públicos ao redor da
Brandeburgo, saúdam o projeto de uma obra, que integra um sistema de estacio-
fábrica de viaturas elétricas, porque, se- namento partilhado para os funcionários.
gundo eles, se trata de uma solução viável Werner Klink ainda não se encontrou
para substituir o motor diesel e porque com Musk, que vem ocasionalmente ver
permite a criação de empregos na região. como avança a obra. “Não tenho neces-
A Tesla, por seu lado, esquiva-se a sidade nem vontade de o conhecer”,
intervir nos meios de comunicação. A especifica. Mas já tem uma alcunha para
empresa tentou exprimir as suas boas os sicofantas e os lacaios do milionário:
intenções, comprometendo-se a plantar “SchliessMuskelkriecher”, expressão
três vezes mais árvores do que aquelas que que integra o nome do patrão da Tesla
abateu e a construir vedações para proteger entre as palavras alemãs para “esfíncter”
os lagartos e as serpentes. Também instalou e “lambe-cus”. “Em todo o caso, é
um gabinete de informação no centro da assim que o nosso grupo vê as coisas,
cidade, mas este não está aberto regular- ainda que eu admita que é um pouco
mente. A pandemia da Covid-19 limitou grosseiro.”

MARÇO
MAR
MA
MAR
A
ARÇO

ÇO
O 202
20
2
2021
021 - N.
02 N
N.º
.º 30
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0 29
29
PANDEMIA
DIFERENÇAS
NO COMANDO
BUROCRACIA PESADA, ADMINISTRAÇÕES DESATUALIZADAS: A GESTÃO
DA CRISE DA SAÚDE REVELOU PROFUNDAS FALHAS NO APARELHO DE
ESTADO DE MUITOS PAÍSES EUROPEUS, COM CONSEQUÊNCIAS NA PERCEÇÃO
DA OPINIÃO PÚBLICA FACE ÀS VACINAS. EXATAMENTE O CONTRÁRIO DO
QUE SE OBSERVOU EM TAIWAN OU NA COREIA DO SUL. UM ANO APÓS O
INÍCIO DA PANDEMIA, VOLTAMOS AO LOCAL ONDE TUDO COMEÇOU, PARA
TENTAR ENCONTRAR A RESPOSTA ÀS PERGUNTAS: O QUE FEZ A CHINA PARA
TRAVAR A DISSEMINAÇÃO DO VÍRUS? OS MÉTODOS RADICAIS QUE PEQUIM
UTILIZOU SERÃO SUSTENTÁVEIS A LONGO PRAZO?
Pandemia

TAIWAN
O êxito de uma
democracia digital
Ágil e transparente, o Governo de Taipé obteve da população todo o apoio para um método de luta
contra a Covid-19 assente na quarentena e no uso da internet
The Diplomat
Tóquio

AUTOR DATA TRADUTORA


F Marc Marmino e Layne 27.01.2021 Maria Alves
Vandenberg

32 MARÇO 2021 - N.º 301 ILUSTRAÇÃO DE TJEERD ROYAARDS, HOLANDA


ser, em grande medida, uma anomalia. P e q u e n a va g a
Alguns observadores propuseram explica-
ções, evocando designadamente o regime
Taoyuan em
político, a geografia ou a demografia de alarme por
Taiwan. Mas, dado que o vírus foi conti- causa de...
do quer por países democráticos (como a dois casos
Nova Zelândia e Taiwan) quer por Estados
autoritários (como o Vietname), o regime Depois de vários meses sem casos
político não parece ser uma garantia de de Covid-19, a cidade onde se situa
sucesso na luta contra a Covid-19. o aeroporto internacional de Taiwan
Além disso, embora o êxito de Taiwan enfrenta um novo surto. O presidente
tenha sido atribuído, de início, ao seu ca- do município respondeu a perguntas
ráter insular, esta afirmação prematura do semanário XinXinwen.
foi desmentida assim que outras ilhas do “Mais dois casos foram hoje
mundo (como o Reino Unido) se viram confirmados!” Foi com estas
confrontadas com uma explosão de infe- palavras que Cheng Wen-tsan,
ções. Da mesma forma, dizer que os bons presidente da câmara de Taoyuan,
resultados de Taiwan se devem também entrou na sala onde era esperado, a
ao facto de ter uma população pequena 24 de janeiro, para uma entrevista
(24 milhões de habitantes) é esquecer o com um jornalista do semanário
sucesso de países maiores (como a Repú- taiwanês XinXinwen. A sua cidade
blica Popular da China). é a mais afetada por uma nova vaga
Uma explicação mais plausível está de Covid-19. Começou no dia 12,
nas lições que Taiwan [excluída da Or- depois de meses sem ocorrências em
ganização Mundial da Saúde/OMS, por Taiwan. Cheng é frontal: “Ainda não
pressão de Pequim, que não reconhece vimos o fim.”
a soberania da ilha] aprendeu com cri- O diretor do Centro de Comando
ses de emergência sanitária anteriores e, Central das Epidemias (CCCE), Chen
principalmente, com as transformações Shih-chung – que é também ministro
ocorridas na sequência de uma experiência da Saúde – acaba de anunciar a
traumática após a primeira epidemia de maior operação de confinamento em
SARS (síndroma respiratória aguda grave). Taiwan, desde há um ano: em redor
O país que enfrentou o SARS-CoV-1, do Hospital Central de Taoyuan,
em 2003, a gripe suína H1N1, em 2009, e
onde foram identificados vários casos,
o coronavírus MERS-CoV, originário do
transmitidos localmente, todos os
Médio Oriente, em 2015, pôs em prática
pacientes recentes e quem os visitou,
capacidades institucionais de urgência
ou seja, cerca de 5 000 pessoas,
depois de todas estas crises, salienta um
foram incluídos numa cerca sanitária.
grupo de académicos do King’s College,
Logo no início, o ministro avisou o
em Londres, num relatório recente. Em-
bora tenha causado apenas 37 mortos em
presidente da câmara de que Taoyuan
Taiwan, o SARS de 2003 forçou o país a
seria um local crucial para conter a
empreender uma série de mudanças, na
pandemia. “Taoyuan é, para Taiwan,
liderança, na comunicação da crise, na a linha avançada na luta contra a
estrutura de comando, na preparação do Covid”, salienta Cheng Wen-tsan.
setor da saúde pública e na utilização das Este município vizinho da capital
tecnologias. acolhe o aeroporto internacional,
Taiwan registou recentemente No plano prático, na sequência dos cinco centros penitenciários, um deles

T o seu primeiro caso de infeção


com uma nova variante de Co-
casos gerados pelo SARS-CoV-1, Taiwan
armazenou equipamento de proteção indi-
a Prisão de Taipé, várias unidades
do exército... enumera o autarca.
“Além disso, quem deixa a ilha e a
vid-19, mas, entre 12 de abril vidual (EPI) já prevendo um próximo vírus
e 22 de dezembro, a ilha Formosa não re- respiratório. Resultado: quando começou ela regressa tem de passar aqui a sua
gistou qualquer caso. A realidade é que a epidemia de Covid-19/SARS-CoV-2, quarentena. Também os nossos 11
as estatísticas taiwanesas são únicas no havia máscaras disponíveis para todos os hospitais receberam 20% de todos os
mundo: 843 casos − e apenas sete óbitos taiwaneses, que as usaram sem reclamar, casos detetados.”
−, 746 dos quais importados. E tudo sem evitando um confinamento generalizado. O semanário pergunta a Cheng se
ter sido necessário impor qualquer con- Estas precauções, tomadas logo de início, toda a atenção agora centrada sobre
finamento. foram decisivas e permitiram a Taiwan si favorecerá a sua carreira política. Ele
Nos debates dos investigadores sobre enfrentar a crise com normalidade. responde: “A luta contra a epidemia
as razões por que os governantes da Ásia O recurso às altas tecnologias, sobre- não acabou. Cada novo caso que
do Leste têm sido mais bem-sucedidos tudo à vigilância eletrónica, contribuiu registamos atrasa o desfecho da
do que os seus homólogos ocidentais a igualmente para o êxito de Taipé. A ilha crise. Não faz sentido falar de política
conter a epidemia, Taiwan continua a dispõe de um sistema de rastreamento dos nestas condições.”

MARÇO 2021 - N.º 301 33


Pandemia

contactos de elevado nível, garantindo que tempo que demorou a dar seis passos no considerado particularmente intrusivo por
quem chega do estrangeiro não provocará corredor do hotel. Em todo o caso, foram outros países e culturas.
contágios locais. O sistema permite juntar aplicadas menos de mil multas, e a taxa Falta saber por que os países da Ásia
20 a 30 contactos de um caso confirma- de cumprimento das regras é elevada (es- do Leste aceitam melhor a vigilância di-
do, colocando-os em quarentena. Por ele tima-se em 99,7%), como testemunham gital instaurada pelos seus governos do
passaram, até ao momento, mais de 340 os 253 casos sem transmissão local. que os Estados ocidentais. Entre as teorias
mil pessoas. Mesmo com um sistema tecnológico que circulam, algumas referem o passado
avançado, o respeito por parte do público autoritário de Taiwan e a forte herança
Cultura política singular das medidas anti-Covid e da vigilância cultural do confucionismo, mas estas abor-
O dispositivo de vigilância digital an- eletrónica foi um fator determinante na re- dagens têm sido criticadas e considera-
ti-Covid inclui o elemento crucial da dução da disseminação do vírus. E, apesar das irrelevantes. Porque se a tecnologia
“barreira eletrónica”, uma aplicação de das preocupações estrangeiras em relação se tornou um pilar da democracia, isso
rastreamento que localiza os telemóveis à proteção de dados, não se verificou em deve-se, indiscutivelmente, à experiência
por triangulação dos sinais emitidos, assim Taiwan nenhuma violação significativa dos taiwaneses adquirida em situações de
permitindo que o Governo faça cumprir da vida privada. emergência sanitária e à confiança que eles
as quarentenas. Ao utilizar cartões SIM Na sua grande maioria, os taiwaneses depositam num Governo cada vez mais
taiwaneses, o Centro de Comando Central aceitam ser vigiados porque a técnica uti- transparente. Estes fatores essenciais mol-
das Epidemias (CECC) garante que os re- lizada é a da triangulação de dados e não a daram a cultura política singular de Taiwan
cém-chegados à ilha se isolam em espaços do GPS, sistema de posicionamento global desde o primeiro surto de Covid-19.
vigiados, onde são contactados por tele-
fone para avaliar o seu estado de saúde. ... Uma receita única
A intervalos regulares, funcionários Durante a presidência de Ma Ying-jeou
locais vão verificando a presença dos via- É quase impossível (2008-2016), muitos taiwaneses criti-
jantes nos seus locais de quarentena; se replicar a receita do êxito cavam a opacidade deste dirigente [do
não responderem a tempo, alguém lhes partido nacionalista Kuomintang] que
irá bater à porta do quarto de hotel. Foi
de Taiwan para travar a procurava aprofundar os laços económi-
o que aconteceu a Milo Hsieh, que, tendo pandemia. Mesmo com cos com Pequim, temendo que isso impli-
ficado sem bateria de telemóvel, foi con- um manual fornecendo casse riscos em termos de segurança. Em
tactado por quatro vigilantes em menos 2014, surgiu o Movimento Girassol para
de uma hora. as chaves para uma luta travar um acordo de serviços e comércio,
Tal como acontece noutros países, a bem-sucedida contra a submetido ao Parlamento em Taipé, que
violação da quarentena pode comportar o permitiria a companhias chinesas inves-
pagamento de multas pesadas, que podem
doença, poucos países, tir mais nas indústrias taiwanesas [o que,
ir até 35 mil dólares [29 mil euros]. Cita-se se algum, seriam capazes para muitos opositores, significaria um
muitas vezes o exemplo de um homem em de recriar a cultura atentado à autonomia de Taiwan].
quarentena que teve de pagar uma multa O governo seguinte, dirigido por Tsai
de 3 500 dólares [2 900 euros] por ter aban-
política única da ilha Ing-wen [membro do Partido Democrata
donado o seu quarto por oito segundos, o Formosa Progressista, eleita para a Presidência da

34 MARÇO 2021 - N.º 301


Coreia do Sul
Confiança reforçada
O sucesso deste país da Ásia do Leste no combate à atual crise
pandémica deve-se à união dos seus habitantes e ao apoio que
Em Taipé, a vida corre quase dão aos poderes públicos, segundo o semanário SISA-IN, de Seul.
normal, mas as precauções Em maio de 2020, quando a Coreia do Sul era considerada um
são permanentes modelo na contenção da Covid-19, a revista semanal SISA-IN
FOTO GETTY IMAGES realizou uma sondagem para explicar este sucesso. E resumiu
em preâmbulo a opinião largamente partilhada pela Imprensa
ocidental: “O caso sul-coreano estaria ligado ao ‘modelo chinês’,
caracterizado pelo autoritarismo, pelo coletivismo e pela presença
de um Governo coercivo que controla a liberdade individual.
No extremo oposto estaria o ‘modelo ocidental’, isto é, uma
sociedade aberta, respeitadora dos direitos dos seus cidadãos
e que duvida, constantemente, do poder instituído, valores que
devem ser preservados, mesmo que se corra o risco de menor
eficácia na luta contra a pandemia.”
No entanto, a conclusão deste inquérito à opinião pública foi
clara: “O autoritarismo nada tem que ver com o respeito pelas
regras de saúde.” Pelo contrário, o semanário de Seul diz que a
“cidadania democrática” e o “individualismo igualitário” são o
segredo do êxito sul-coreano. “As pessoas valorizam a liberdade
individual, mas pensam que ela só é possível numa comunidade
de qualidade, na qual investem o seu tempo e energia.
República em 2016 e reeleita por esmaga- Os sul-coreanos parecem encarar a atual crise sanitária
dora maioria em 2020, com um programa um pouco como uma guerra. Anima-os uma espécie de
contra a unificação com a China Conti- fraternidade das trincheiras.” Além disso, têm mais confiança
nental], decidiu utilizar meios inovadores no sistema: 39% declararam que o Estado sul-coreano é mais
para vigiar e envolver os cidadãos. competente do que os dos países ocidentais e 31% que está ao
Este aspeto da cultura política de- mesmo nível do que estes.
sempenhou um papel importante na luta Em dezembro de 2020, quando uma terceira vaga de SARS-
contra a Covid-19: vimos, por exemplo, CoV-2 atingia a nação – que continua a ser a que regista menos
taiwaneses a fornecer os seus próprios da- mortes, com 26 óbitos por milhão de habitantes –, a SISA-IN
dos para poderem encontrar o mais rapi- realizou outra sondagem para aferir a evolução da opinião pública.
damente possível stocks de EPI, evitando No total, 67% dos inquiridos continuavam convictos de que o seu
assim uma corrida às máscaras. Governo está a reagir bem face à pandemia. Quanto ao equilíbrio
A programadora de software Audrey entre a luta contra o vírus e a economia, 66% dos sul-coreanos
Tang, que participou no Movimento Giras- aprovam a política que tem sido seguida pelas autoridades.
sol em 2014, olha para a tecnologia como A revista constata, porém, que, “em seis meses, as questões se
solução. Hoje ministra para o Digital (um tornaram mais complexas: quais são os setores da população
cargo criado em 2016), ela quer fazer da mais sacrificados nesta guerra contra a epidemia? Com quem
internet uma componente saudável de uma se deve a sociedade preocupar primeiro? Quem deve saldar as
democracia que funciona. Um dia por se- contas? A política é capaz de lidar com este problema?”
mana, ela encontra-se com cidadãos e de- Observa-se agora um “desenvolvimento inquietante”, dado
pois publica a transcrição de cada reunião. que 89% dos sul-coreanos acham que as autoridades devem
É um nível de transparência gover- penalizar os que não usarem máscara, contra 47%, em maio.
namental raro, mesmo nas democracias À questão sobre se o Governo deve ajudar os pequenos
representativas mais liberais. Este modelo comerciantes, os trabalhadores com contratos precários, os
de “democracia digital” permite aos cida- jovens que procuram emprego, as pequenas e médias empresas,
dãos chegar a um consenso sobre deter- o número de respostas afirmativas caiu de 12 para 21 pontos em
minadas questões e controlar melhor os relação a maio.
seus eleitos. Reforça também a confiança A revista lamenta o enfraquecimento dos laços de solidariedade,
entre a sociedade civil e o Governo, o que se mas recorda que 51% das pessoas ouvidas para este inquérito
revelou muito benéfico para Taiwan assim admitiram ter necessidade de ajuda e que 49% se mostraram
que começou a pandemia de Covid-19. dispostas a ajudar – representando estas últimas uma
É, no entanto, quase impossível re- percentagem “maior do que se poderia esperar”.
plicar a receita do êxito de Taiwan para
travar a pandemia. Mesmo com um ma-
nual fornecendo as chaves para uma luta
bem-sucedida contra a doença, poucos
países, se algum, seriam capazes de recriar
a cultura política única da ilha Formosa.

MARÇO 2021 - N.º 301 35


Pandemia

REINO UNIDO
A falência
de todo
o Estado
britânico
O governo de Boris Johnson não é o único responsável pelo pesado balanço
de vítimas da Covid-19. Tendo perdido o hábito de enfrentar crises graves,
o aparelho burocrático do país mostra-se incapaz de enfrentar a pandemia
UnHerd
Londres

Em 1940, imediatamente após a resposta do nosso executivo à Covid-19

E queda de França e a humilhante


retirada do Exército britânico
foi igual à reação do governo em tempo
de guerra, na medida em que dezenas de
de Dunquerque, três, então milhares [111 mil no início de fevereiro] dos
anónimos, jornalistas britânicos* publica- nossos compatriotas já morreram devido
ram à pressa um pequeno e polémico livro, a uma série de erros catastróficos. A falta
Guilty Men [Os Culpados]. Nele denun- de previsão, a incapacidade de mobilizar
ciaram a complacência, a incompetência todos os recursos do Estado, a incompetente
e a total ausência de uma visão estratégica governação e uma sucessão de fracassos
por parte das elites políticas britânicas que, que poderiam em larga medida ter sido
menos de um ano após a guerra ter come- evitados, tudo isto evoca a cadeia de desas-
çado, se arriscavam a perdê-la. tres sofridos pela Grã-Bretanha durante os
O governo recusou levar a sério a amea- três primeiros anos da II Guerra Mundial.
ça crescente até ser demasiado tarde. Mes- Mas, afinal, quem são “os culpados” da
mo quando a guerra se tornou inevitável, pandemia do SARS-CoV-2?
alegam os autores de Guilty Men, o exe- Como sublinha o jornalista Tom Mc-
cutivo não conseguiu mobilizar todos os Tague, na edição de agosto da revista The
recursos do Estado, cedendo ao pânico de Atlantic, foi todo o Estado britânico que
prejudicar a economia. O sistema britâni- se revelou deficiente, porque o nosso país
co de compra e de fornecimento de bens, “encontrou o meio de ser, simultaneamen-
vital para continuar a guerra, foi incapaz te, hipercentralizado e fraco ao centro”. O
de fazer face aos desafios que enfrentava, problema não está apenas neste governo
e o executivo só viu urgência em retificar conservador, embora, lamentavelmente,
a situação quando a derrota total já era ele tenha fracassado, mas em toda a supe-
quase certa. restrutura que o rodeia – a Função Pública,
A dura verdade é que “a mão inerte e as autoridades sanitárias, os media. O Estado ...
burocrática da Função Pública, associada britânico e o seu para-Estado parasita são
à benévola vontade de alguns dos nossos totalmente incompetentes. destaqueBus nem
ministros em poupar esforços, desde que Foi precisamente este mal-estar que publicaet, qui
pudessem manter o público calmo, banhan- o vilão, por excelência, da nossa casta de
do-o nas águas calmas e reconfortantes do especialistas, Dominic Cummings [an- ius; nonum, ne es
otimismo, pôs-nos em perigo”. tigo conselheiro do primeiro-ministro egerfectum esis egit,
A analogia com a situação que vivemos Boris Johnson e mal-amado devido aos
hoje em dia é de uma clareza dolorosa. A seus métodos controversos] identificou,
fecum te poenam ta
vestrarid in siderfitus,
que cuperum detid
AUTOR DATA TRADUTORA
F Aris Roussinos 05.01.2021 Maria Alves ne que et; is? inpro ad
stiVivid sit. Batoressen

36 MARÇO 2021 - N.º 301


quando escreveu, em 2014: “Não temos Contraponto
um problema com demasiado cinismo. O Vacinação,
problema é que confiamos demais em pes-
soas e em instituições que não estão aptas
“um dos raros
a exercer um tão grande controlo. Quando sucessos”
confrontado com a ‘névoa da guerra’ em de Londres
sistemas não lineares, como o financeiro, as
epidemias ou o terrorismo, o atual sistema “Aqui está um número deprimente: a cada
só consegue reagir com preguiça, pânico, 30 segundos, um paciente com Covid-19
caos e erros.” é internado num hospital inglês. Mas eis o
Operando no coração do Estado britâ- antídoto: a cada 30 segundos, mais de 70
nico, Cummings há muito que identificara pessoas também são vacinadas”, escrevia o
as falhas críticas deste – não é, pois, de diário THE TIMES, em finais de janeiro. Desde
surpreender que tenha sido afastado [ces- então, os internamentos baixaram, mas o
sou funções em novembro de 2020], já que programa de vacinação permanece “um
representava uma ameaça à sobrevivência dos raros sucessos do país desde o início da
do lóbi de Westminster. pandemia”.
É lamentável que as suas sugestões Em apenas dois meses, mais de dez milhões
de reforma sofram do que o escritor Paul de britânicos receberam pelo menos uma dose
Kingsnorth designou, num ensaio, como da vacina. “O Reino Unido é, finalmente, o
a tendência persistente para se acreditar número um em qualquer coisa na Europa”,
em remédios tecnológicos rápidos, em vez entusiasmou-se o jornal londrino.
de soluções simples e testadas pelo tempo. Para explicar este avanço num continente
onde a campanha de vacinação tarda a
Deixar passar o vírus arrancar, a Imprensa britânica elogia, em
Rodeado de funcionários infelizes, Cum- particular, a eficácia das autoridades da saúde.
mings concluiu que o problema é a todo- “A estrutura centralizada do Serviço Nacional
-poderosa, mas ineficaz, burocracia do de Saúde, o National Health Service (NHS),
Estado e que a solução está nos merca- tem permitido uma distribuição eficaz das
dos e nos gigantes das novas tecnologias. doses”, avalia o FINANCIAL TIMES.
Ora, a reação planetária à Covid-19 prova Os britânicos podem ser vacinados em cerca
o contrário: a solução passa, seguramente, de 1 500 centros de vacinação, incluindo
pelo Estado. Como um parasita, o mercado estádios, catedrais e até supermercados. O
depende tanto do Estado para sobreviver Reino Unido distinguiu-se porque abandonou
como os nómadas das estepes dependem rapidamente os starting blocks [“pacotes
dos agricultores sedentários. Não se trata iniciais”], ao assinar acordos de princípio
de corsários da mitologia neoliberal, por- com quatro empresas farmacêuticas, no
que há uma dependência total do dinheiro verão passado. “Em relação a este dossier, ao
dos contribuintes que o Estado injeta no contrário de outros na crise atual, os poderes
mercado para corrigir os seus erros. públicos demonstraram espírito de iniciativa”,
Na passada primavera, apresentaram- anota o jornal da City.
-nos a pandemia como um teste entre as A 2 de dezembro, duas semanas antes da
democracias liberais e o autoritarismo. To- União Europeia (UE), o regulador britânico
davia, o sucesso das democracias da Ásia do medicamento [equivalente ao Infarmed
do Leste, como a de Taiwan e a da Coreia em Portugal] autorizou a utilização da vacina
do Sul, deixou evidente que a distinção da Pfizer-BioNTech. “Isso permitiu, logo na
crucial está entre burocracias funcionais semana seguinte, a entrega ao Reino Unido
e burocracias ineptas. de cerca de um milhão de doses”, explica o site
Talvez valha a pena realçar que Taiwan, norte-americano POLITICO.
a Coreia do Sul e Israel, que também tem Outra vantagem, para os britânicos, foi o
sido bem-sucedido, estão rodeados de vizi- facto de a vacina da AstraZeneca-Oxford
nhos inimigos e que, por esse motivo, têm ser um produto nacional, o que reduz
experiência em mobilizações militares em sobressaltos na cadeia de abastecimento.
massa. Quanto a nós, aninhados na nossa Finalmente, segundo os media, a prioridade
ilha, no recanto mais pacífico do continente dada à administração de um máximo de
europeu, perdemos a aptidão necessária primeiras doses – mesmo que isso signifique
para avaliar a ameaça, tal como acontecia esperar 12 semanas para a inoculação da
aos pássaros incapazes de voar que ha- segunda – explica em boa parte o número
bitavam as ilhas outrora virgens e elevado de pessoas vacinadas. Esta estratégia
que, descuidadamente, caíam nos levanta, porém, uma questão, segundo o
braços de marinheiros famintos. diário THE GUARDIAN: “A Pfizer afirma só ter
Uma nação insular, à qual dados relativos ao nível de proteção para três
só se pode aceder por alguns semanas, entre a primeira e a segunda doses.

ILUSTRAÇÃO DE LAUZAN, CHILE MARÇO 2021 - N.º 301 37


Pandemia

pontos de passagem, poderia muito bem Além disso, não deixa de ser um para- O objetivo principal não é renaciona-
ter fechado as suas fronteiras logo na pri- doxo que o governo esteja, ao mesmo tem- lizar os bens públicos com o estatuto que
mavera ou, pelo menos, ter posto a fun- po, envolvido num combate para proteger tinham há uma geração – isso seria ape-
cionar um sistema de controlo sanitário e o Estado britânico do separatismo escocês nas um benefício secundário. O objetivo
de quarentena para os viajantes vindos do [uma sondagem do jornal The Times dá ao é reconstruir uma classe de funcionários
exterior – o que, ao fim de quase um ano Partido Nacional Escocês 71 dos 129 lugares efetivamente capaz de administrar o Esta-
de pandemia, ainda não foi tentado, por do Parlamento de Edimburgo, nas eleições do e de gerir grandes projetos de infraes-
incrível que pareça [agora já é obrigatório de maio próximo, e a primeira-ministra truturas, em vez de se limitar a distribuir
apresentar um teste negativo à Covid para escocesa, Nicola Sturgeon, reafirmou que contratos urgentes, a preços inflacionados,
se entrar no Reino Unido, e os cidadãos vai reivindicar um mandato para um novo a amigos e aproveitadores do setor privado
de alguns países “arriscam-se” a nem ter referendo sobre a independência]. Se nos escolhidos ao acaso.
autorização de entrada]. basearmos no seu desempenho recente, Para restaurar as suas capacidades, o
Tal como o governo antes da II Guerra podemos duvidar da própria existência Estado necessita de prática. Se os franceses
Mundial, que, com um encolher de om- do Estado britânico. e os chineses constroem as nossas centrais
bros, achava que “o bombardeiro acabaria elétricas e administram as nossas infraes-
sempre por passar”, o atual Estado britâ- Liberdades fictícias truturas de transporte, não é porque her-
nico decidiu que o vírus também acabaria Somos governados, sim, mas por um Esta- daram uma singular capacidade genética,
por passar e que não adiantava travar a sua do negativo, capaz de aprovar mais e mais mas porque preservaram os seus Estados e,
propagação. leis para impedir as pessoas de agir, mas em consequência disso, estes sabem fazer
Esta derrota tem muitos progenitores, incapaz de, em concreto, tomar as deci- realmente qualquer coisa.
a começar pela guerra cultural debilitan- sões mais singelas e as mais importantes. Como um país em desenvolvimento,
te nascida do referendo [de 2016] sobre o Quem pode criticar os eleitores escoceses dependemos de outros para realizar o que
Brexit. Se o governo tivesse tomado medi- ou galeses de quererem separar-se deste deveríamos ser nós a fazer – e, talvez, como
das e simples e alcançáveis, na primavera sistema inútil que ocupa a carapaça oca um país em desenvolvimento, devêsse-
passada, os gritos da nossa estúpida classe do Estado britânico? mos convidar os burocratas taiwaneses
de comentadores contra “a ilha fascista e Não deixa de ser uma tragicomédia ou sul-coreanos a efetuar uma auditoria
chuvosa” que se tornou a “Grã-Bretanha do que os principais consultores neolibe- à nossa Função Pública para nos sugerir
Brexit” teriam causado algum desconforto rais tenham diagnosticado precisamente melhoramentos, como se eles fossem ad-
a Boris Johnson: o seu maior erro foi o de a ausência total de capacidade do Estado ministradores coloniais caridosos que vêm
não ter compreendido que a opinião desta britânico. Na lógica destes, ao degrada- libertar-nos da nossa ignorância e da nossa
gente não tem qualquer importância, como rem o Estado, eles tornar-se-iam mais superstição ideológica.
o provaram os últimos resultados eleito- livres. Só que, confinados por um Esta- Antes de mais, porém, devemos desem-
rais. Dispondo de uma robusta maioria no do incompetente e inábil desde que esta baraçar-nos do governo que desiludiu o país
Parlamento, o governo poderia ter agido crise começou, há quase um ano, ficou em plena crise. Boris Johnson cumpriu a
de imediato e de maneira decisiva, o que claro que essas supostas liberdades são missão que a História lhe confiou: concre-
seria posteriormente recompensado por puramente fictícias. São elas que, agora, tizou o Brexit. Chegou agora o momento de
parte de uma nação grata. nos aprisionam. ele sair de cena, assim como aqueles que o
A função, e principal dever, do Estado A solução só pode ser esta: reconstruir, rodeiam e os funcionários incompetentes
é garantir a segurança dos seus cidadãos; o mais rapidamente possível, as capacida- que ele dirige.
toda a sua autoridade deriva desse contrato des do Estado britânico através de novos À semelhança do que escreveram os
com a nação. No entanto, em vez do Leviatã e ambiciosos projetos de infraestruturas autores de Guilty Men, em 1940, “os ho-
tão caro a Thomas Hobbes [matemático e públicas e de um programa imediato de mens que agora reparam as brechas das
filósofo inglês do século XVII], o Estado nacionalização das indústrias e dos se- nossas paredes não devem trabalhar com
britânico moderno parece um gigantesco tores-chave, exatamente como fizemos aqueles que deixaram ruir essas mesmas
e resmungão diretor de recursos humanos durante a II Guerra Mundial, lançando paredes”.
com o país a seus pés, sempre a avisar que ainda uma reforma profunda que reduza Depois de ganha a batalha, os erros de
qualquer ação decisiva é impossível. o número de funcionários públicos. Dunquerque conduziram a uma refundação
total do Estado britânico. Se o Estado bri-
tânico de 2021 for incapaz de se reformar
após os erros cometidos durante esta crise
pandémica, então seguramente que não
merece sobreviver.

*O livro foi publicado sob o


pseudónimo Cato, e os três jornalistas
eram Michael Foot, futuro líder do
Partido Trabalhista (1980-1983); Frank
Owen, deputado liberal, entre 1929
e 1931, e depois diretor dos jornais
Evening Standard e Daily Mail; e
Peter Howard, um conservador que
foi também dramaturgo e capitão da
seleção inglesa de râguebi.

38 MARÇO 2021 - N.º 301


Israel
Um sistema mais eficaz do que parecia
O termo hebraico “Koupot Holim” designa os fundos de se- para União Europeia, segundo algumas fontes), um número
guros de saúde ligados ao sistema socialista que esteve na não confirmado pelo governo. Quanto às farmacêuticas, estas
base da criação de Israel, em 1947. São quatro em todo país, obtiveram como contrapartida um amplo acesso aos dados da
estando o maior, o Clalit, associado à grande central sindical vacinação.
Histadrut, e cada um deles cobre toda a população israelita. “Com uma população pequena, quase todos os serviços de
Com clínicas em todas as aldeias, em cada “kibbutz” [co- saúde digitalizados e uma campanha de vacinação executada
muna agroindustrial] ou bairro, estes seguros tornaram-se o rapidamente com a ajuda do Exército, o exemplo e os dados de
instrumento mais eficiente para levar a cabo uma campanha Israel constituem um complemento útil para cientistas, labo-
de vacinação célere. Uma campanha ainda mais eficaz porque ratórios farmacêuticos e legisladores”, observa o diário THE NEW
cada paciente é seguido por um sistema informático centra- YORK TIMES.
lizado. A realidade, destaca o GLOBES, é que Israel conduziu o maior
O resultado está à vista: em 22 de janeiro, um mês após estudo mundial sobre os efeitos da vacina Pfizer. De uma
o início da inoculação, mais de um quarto dos nove milhões amostra de 715 427 pessoas que receberam as duas doses, só
de habitantes de Israel tinha sido vacinado contra a Covid-19, 317 contraíram Covid-19, ou seja 0,14%, e apenas 16 tiveram de
incluindo 80% de idosos. [Desde 3 de fevereiro, todos os cida- ser hospitalizadas, isto é 0,002 por cento.
dãos com idade superior a 16 anos podem ser também vaci- O diário HAARETZ, próximo da oposição, resumiu a primeira
nados.] parte da campanha de vacinação numa manchete: “Um su-
Este sucesso, lembra o diário económico GLOBES não era cesso, mas também um fracasso do governo em tudo o resto.”
óbvio. Segundo estatísticas da Organização para o Comércio E isto sobretudo porque a ajuda económica não chegou sufi-
e Desenvolvimento Económicos (OCDE), o orçamento da cientemente rápido nem em quantidade suficiente para so-
saúde em Israel representa cerca de 1% do Produto Interno correr as inúmeras empresas muito afetadas por esta crise do
Bruto (PIB), muito abaixo da média dos países-membros da SARS-CoV-2.
instituição. As estatísticas de Israel em termos de profissionais [Netanyahu tem sido também duramente criticado,
de saúde e camas de hospital também são inferiores. dentro e fora do país, por a campanha de vacinação excluir
Foi, pois, preciso contar com o papel crucial dos fundos de “quase todos” os cerca de três milhões de palestinianos
seguros e com o facto de o governo, e, em particular, o primei- da Cisjordânia que ainda aguardam pelas primeiras doses.
ro-ministro, Benjamin Netanyahu, ter posto em marcha uma “Esta disparidade gerou um grande debate sobre a respon-
campanha muito agressiva, comprando muito cedo doses de sabilidade de Israel como potência ocupante”, segundo a lei
vacinas aos laboratórios Pfizer-BioNTech e Moderna (des- internacional, anotou THE NEW YORK TIMES. Na Faixa de Gaza,
de junho, no caso do segundo), provavelmente a um preço controlada pelo movimento islâmico Hamas, mas total-
elevado – a agência noticiosa Reuters anunciou, no início de mente bloqueada por Israel, a situação dos dois milhões de
janeiro, uma tabela de 30 dólares por dose (face aos 12 euros habitantes é ainda mais incerta.]

MARÇO 2021 - N.º 301 39


Controvérsia

VACINAÇÃO
OBRIGATÓRIA,
UMA ESTRATÉGIA
SENSATA?
Agora que em muitos países está em marcha a vacinação contra
a Covid-19, a pergunta surge com naturalidade: deve esta ser obrigatória?
Os prós e contras, segundo dois académicos
The Conversation
Londres

A vacinação contra a Covid-19 deve ser obrigatória,

SIM,
pelo menos para alguns grupos da população. Por isso,
a recusa da vacinação deveria acarretar sanções, como
multas ou restrições à liberdade de circulação. É doloroso mas
aceitável impor restrições ao nível individual para evitar o so-
frimento da maioria. Quanto mais sofrimento coletivo se evitar,
PORQUE mais moralidade haverá para impor comportamentos individuais.
A vacinação tem pouquíssimos riscos de afetar a saúde das
PROPORCIONA pessoas ou causar mortes. Vacinas como as da Pfizer, AstraZeneca
ou Moderna, que impedem em 90 a 95% dos casos que os sinto-
IMUNIDADE mas se desenvolvam, dão boas hipóteses de travar ou reduzir a
propagação do vírus – e à custa de sacrifícios individuais mínimos.
DE GRUPO Compare-se com o confinamento, que é obrigatório. Tal como
a vacinação, protege os mais vulneráveis. Mas, ao contrário da
vacinação, o confinamento tem sérias implicações individuais e
sociais. Não faz sentido decretar a obrigatoriedade do confinamento
e recusar a vacinação obrigatória. Os efeitos positivos desta última
são muito maiores e têm custos económicos e sociais mais baixos.
Além disso, a vacinação obrigatória garante que os riscos
associados à obtenção da imunidade de grupo sejam distribuídos
equitativamente pela população. A imunidade de grupo bene-
AUTORES DATA TRADUTORA ficia a sociedade como um todo, pelo que é natural que todos
F Alberto Giubilini 30.12.2020 Ana Marques partilhem a sua quota-parte de responsabilidade e ajudem a
e Vageesh Jain alcançar tal objetivo.

40 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTO: GETTY IMAGES


NÃO,
PORQUE
É INEFICAZ
E ARRISCADA
A vacinação obrigatória não aumenta automaticamente
a imunização da população. Um estudo financiado pela
União Europeia sobre epidemias e pandemias, realizado
vários anos antes do surto de Covid-19, não encontrou provas que
corroborassem esta teoria. Centrando-se nos países bálticos e escan-
dinavos, o estudo mostra que, “quando a vacinação é obrigatória,
não se vacina mais gente do que em países vizinhos ou comparáveis
onde essa obrigação legal não exista”.
Segundo o Conselho de Nuffield sobre Bioética, a vacinação obri-
gatória pode ser justificada no caso de doenças altamente contagiosas
e graves. Embora a Covid-19 seja contagiosa, as autoridades de saúde
pública britânicas não a classificam como uma doença infeciosa grave,
uma vez que a taxa de mortalidade continua a ser relativamente baixa.
A sua gravidade está intimamente relacionada com a idade, re-
sultando daí uma perceção altamente variável da vulnerabilidade dos
diferentes grupos etários. A taxa de mortalidade é estimada em 7,8%
acima dos 80 anos, mas é apenas de 0,0016% para crianças até aos 9
anos. Em democracia, tornar a vacinação obrigatória para milhões
de cidadãos jovens e saudáveis, que se sentem relativamente seguros
perante a Covid-19, seria eticamente questionável e politicamente
arriscado.
Os receios do público sobre a eficácia de vacinas produzidas sob
pressão são perfeitamente legítimos. Um estudo abrangendo 70 mil
britânicos mostra que só 49% se dispõem a ser vacinados assim que
isso seja possível. Sondagens norte-americanas dão resultados se-
melhantes. Isto não quer dizer que a maioria das pessoas se oponha
às vacinas.
Apesar das promissoras manchetes na Imprensa, ainda não há dados
suficientes. Os primeiros ensaios clínicos só começaram em abril do
ano passado, pelo que os dados de longo prazo ainda são limitados.
Não sabemos quanto tempo dura a imunidade – nenhum dos ensaios
Claro que a imunidade de grupo também poderia ser con- ainda nos disse a que ponto a vacina impede a transmissão da doença.
seguida através de meios menos coercivos, como campanhas de Ignorar estas apreensões seria contraproducente. Além disso,
sensibilização. Ainda assim, quanto maior for a taxa de vacinação, não é claro que a vacinação obrigatória seja a melhor ferramenta para
menor é a probabilidade de, no futuro, descermos abaixo do lutar contra os grupos antivacinas, que influenciam 58 milhões de
limiar crítico da imunidade de grupo. Temos de fazer tudo o que pessoas em todo o mundo. As motivações do populismo científico e
estiver ao nosso alcance para nos protegermos desta emergência, do populismo político são as mesmas. Os movimentos antivacinas não
sobretudo porque custa tão pouco evitá-la. confiam nos especialistas ou na indústria e desconfiam sobretudo dos
Aumentar o grau de confiança e melhorar a taxa de vacinação Estados. A vacinação obrigatória não só enfrentaria alguma obstinação
através de uma melhor informação é uma intenção nobre, mas como traria água ao moinho da causa antivacinas.
uma estratégia arriscada. A simples divulgação da informação No início da década de 1990, a poliomielite era endémica na Índia:
sobre as vacinas nem sempre convence e pode mesmo minar todos os dias, entre 500 e mil crianças ficavam paralíticas. Em 2011, o
a confiança das pessoas. Pelo contrário, verificou-se que, em vírus tinha sido erradicado. Isto não foi conseguido através da coerção,
Itália, as políticas de vacinação coerciva resultaram [desde 2017, mas através do envolvimento sistemático da comunidade, da atenção
foi alargado o número de vacinas obrigatórias de 4 para 10 para especial dada a grupos populacionais com necessidades específicas,
os jovens até aos 16 anos]. de um trabalho de informação e educação, do reforço das cadeias de
O uso obrigatório do cinto de segurança provou ser eficaz abastecimento locais e, por último mas não menos importante, da
na redução das mortes nas estradas. O seu uso generalizou-se, concertação com os líderes políticos e religiosos.
apesar do risco (muito baixo) da sua utilização. Vamos olhar para A vacinação obrigatória raramente se justifica. A generalização das
a vacinação como um cinto de segurança que nos protegerá da novas vacinas anti-Covid exigirá tempo, comunicação e confiança.
Covid-19, e mesmo como um cinto muito especial que protege Seria uma pena perder a compostura tão perto do fim do jogo.
os outros e nós mesmos.
Vageesh Jain, médico de Medicina da Saúde Pública no Instituto
Alberto Giubilini, médico no Centro de Ética Uehiro, Nacional de Investigação em Saúde (NIHR, University College
da Universidade de Oxford (Reino Unido) London – Reino Unido)

MARÇO 2021 - N.º 301 41


Pandemia

melhor. Enquanto Emmanuel Macron se


FRANÇA continua a apresentar como um monarca,
os seus compatriotas são tratados como

Porque ignorantes. Como faltavam máscaras no


mercado, o Governo disse que eram inú-
teis para a “população em geral”, pois esta

crescem os
não seria capaz de as usar adequadamente.
Alguns meses depois, o uso da máscara foi
finalmente imposto nas escolas, em es-

antivacinas?
paços fechados e na maioria dos centros
das cidades.
Segundo Laurent-Henri Vignaud,
esta infantilização das pessoas reforçou
o sentimento de desconfiança. As epide-
Se os franceses são os campeões mundiais do sentimento antivacinas, é mais por
mias geralmente aumentam a adesão à
desconfiarem do Governo do que da medicina. Para conquistar a confiança dos vacinação, pois as pessoas tendem a es-
cidadãos, as autoridades sanitárias terão de ser mais humildes. Isto se quiserem quecer os argumentos clássicos contra as
reduzir o impacto desse tipo de desinformação vacinas, perante a necessidade. É por isso
que este historiador está preocupado com
Die Zeit a dimensão dos movimentos antivacinas
Hamburgo em França.
A geógrafa Lucie Guimier fez a cartogra-
fia dos franceses mais hostis à vacinação. Ao
Com poucas palavras, Mauri- fiar no Governo e nas instituições. Ora princípio, eram fundamentalmente “católi-

C cette levou o seu país ao rubro.


Há alguns dias, esta residente
de um Ehpad [lar para idosos
as sondagens indicam que os franceses
são os europeus mais desconfiados em
relação aos seus líderes, o que também é
cos fundamentalistas”, espalhados por todo
o território e liderados por conservadores
e religiosos ultranacionalistas. Agora, se-
com necessidades especiais], de 78 anos, evidenciado por movimentos de protesto gundo a investigadora, é principalmente
foi a primeira francesa a receber a vacina da como os Coletes Amarelos, que reuniram a região de Marselha a mais resistente às
Covid-19. Na altura da picada resmungou, centenas de milhares de manifestantes. vacinas. A cidade é o reduto do especialista
“Ah, é preciso aguentar isto” Ou terá sido: Enquanto Angela Merkel se prepara para em doenças infeciosas Didier Raoult, cujas
“Ah, é mesmo preciso tomar a vacina?” completar o seu quarto mandato, nenhum previsões de um rápido desaparecimento da
Os movimentos antivacinas, convencidos Presidente francês foi reeleito nos últimos epidemia provaram estar erradas, mas que
de que tinham ouvido esta segunda fra- 20 anos. “Basicamente, a desconfiança na muitos franceses ainda consideram mais
se, afirmam que a septuagenária recebeu vacina contra a Covid-19 é uma moção de credíveis do que as do Ministério da Saúde.
a injeção contra a sua vontade. O resto do censura ao Governo”, afirma o historiador Didier Raoult é de tal forma admirado
vídeo mostra claramente que Mauricette francês Laurent-Henri Vignaud, que tem que no Natal alguns seguidores colocaram
tinha dado o seu consentimento, o que estudado os movimentos antivacinas em a sua efígie nos presépios. Durante o verão,
não impediu milhares de internautas de todo o mundo. afirmou que não seria vacinado contra a
partilharam teorias da conspiração. A atitude francesa parece paradoxal: Covid-19, porque a doença “não mata”,
Enquanto na Alemanha a controvérsia “Como esperamos sempre muito do nosso embora a França tenha acumulado mais
é por haver poucas vacinas disponíveis, em Governo, as desilusões são maiores.” Se- de 60 mil vítimas. Apesar da sua errada
França, o que falta são pessoas dispostas gundo Laurent-Henri Vignaud, o próprio previsão, o marselhês ainda é muito po-
a recebê-las. Apenas 40% da população Governo alimenta estas expectativas, ao pular: reivindica a sua independência e de-
[desde 6 de janeiro este número mudou, apresentar-se ao povo como um salvador nuncia regularmente as estreitas relações
ver caixa] afirma estar pronta para ser omnisciente. No início da crise de saúde, que alguns dos seus colegas mantêm com
imunizada contra a Covid-19, a taxa mais Emmanuel Macron apresentou-se como a indústria farmacêutica.
baixa do mundo. Os franceses sempre de- um líder guerreiro, um soberano que não Muitos franceses aprovam esta crítica,
monstraram uma certa desconfiança em permitia dúvidas e foi impondo novas regras em resposta a vários escândalos de saúde,
relação às vacinas, mas a sua inclinação quinzenalmente. Entre estas, a redução como o Mediator, tratamento para a dia-
para a vacinação diminuiu ainda mais com das deslocações a um quilómetro de raio, betes considerado responsável por 2 100
a pandemia. obrigação que os franceses tiveram de res- mortes. Estão ainda em curso processos
“Talvez tenhamos as pessoas mais es- peitar durante três meses. Nas primeiras judiciais contra os Laboratórios Servier,
túpidas da Terra”, comenta ironicamente horas da epidemia, declarou a partir do acusados de ocultar efeitos colaterais gra-
o diário Libération. Sociólogos e cientistas Palácio do Eliseu que a França estava “em ves, mas também contra a Agência Nacio-
políticos concordam no apontar do prin- guerra” com o vírus, mas que iria vencer nal para a Segurança dos Medicamentos e
cipal impulsionador deste ceticismo: ser e conquistar um “pós-mundo”. A França Produtos de Saúde, que ignorou os alertas
vacinado significa implicitamente con- ainda espera pelo advento deste mundo de muitos médicos. A subestimação dos
efeitos adversos da vacina contra a gripe
A também é regularmente citada. Quando
AUTORA DATA TRADUTORA a epidemia eclodiu em 2009, o Ministério
F Annika Joeres 07.01.2021 Ana Marques da Saúde francês encomendou 70 milhões
de doses.

42 MARÇO 2021 - N.º 301


O vírus H1N1 acabou por revelar-se Talvez Emmanuel Macron esteja a ter – “Aceita vacinar-se contra uma
menos perigoso do que o esperado, en- dificuldades em convencer os seus com- doença potencialmente mortal?”
quanto os efeitos secundários da vacina patriotas a confiarem nas instituições por – “Antes morrer!”
foram mais graves do que o estimado. Uma ele próprio dar mais crédito às empresas ILUSTRAÇÃO DE CHAPPATTE,
vez que o Estado ilibou os fabricantes de privadas do que à administração pública. PARA LE TEMPS, LAUSANNE

qualquer responsabilidade, tem agora de O Presidente pediu à empresa de consul-


compensar várias centenas de franceses toria McKinsey para organizar a logística Laurent-Henri Vignaud. [No dia 3 de ja-
que desenvolveram narcolepsia após a da campanha da vacina. Como resultado neiro] Le Journal du Dimanche, próxi-
vacinação. [no início de janeiro], a França tinha va- mo da maioria presidencial, publicou um
Foi neste contexto que, no outono, cinado apenas alguns milhares de pessoas, retrato do Chefe de Estado acompanhado
Emmanuel Macron confiou a direção da sua enquanto noutros países da OCDE, incluin- pelo subtítulo: “A ira de Macron.” Este
campanha de vacinação a um ex-lobista da do a Alemanha, havia centenas de milhares apelava a uma aceleração da campanha
Abbott, um dos maiores grupos farmacêuti- ou mesmo milhões de doses injetadas. Além de vacinação. Uma cólera surpreendente
cos do mundo. Nem sequer tentou esconder disso, a vacinação dos idosos das Ehpad por parte de um Presidente com amplos
o conflito de interesses, facilmente visto no revelou-se muito complicada. poderes e que desenvolve no conselho
LinkedIn. Só depois de muitas críticas por Segundo o site noticioso Mediapart, de Defesa as estratégias para combater
ter escolhido um lobista é que Emmanuel desde o início da crise, Emmanuel Macron a Covid-19.
Macron o substituiu por Alain Fischer, co- contratou empresas de consultoria, como “Para as pessoas mudarem de ideias, o
nhecido médico parisiense. Por seu lado, a McKinsey, para determinar o número de Governo tem de ser mais humilde”, afirma
este expressou todas as reservas possíveis testes que poderiam ser realizados pelos Laurent-Henri Vignaud. Mas, segundo ele,
em relação à vacina, incluindo incertezas laboratórios. É uma tarefa que noutros ainda estamos muito longe disso. Em quase
quanto à duração da sua eficácia, à falta países cabe ao Governo. Ora durante anos, todos os discursos, congratulamo-nos com
de informação sobre as consequências a os mesmos consultores tinham defendido o facto de a França ter “o melhor sistema
longo prazo, ou ao facto de ainda não lhe a redução de pessoal e camas nos hospitais de saúde do mundo”. Esta alegação é tão
ter sido disponibilizada a consulta de toda públicos a pretexto da racionalização dos banal quanto questionável. O lançamento
a documentação dos fabricantes. serviços. da campanha de vacinação também não foi
Se este discurso é apropriado para um Em resposta às críticas mordazes ao modesto. Mauricette estava rodeada por
cientista, as palavras do “Sr. Vacina” do ritmo lento da campanha de vacinação, muitos médicos e enfermeiras quando foi
Governo alimentaram as dúvidas dos mais Emmanuel Macron voltou a assumir o inoculada e o acontecimento foi transmi-
céticos. Após a sua intervenção, muitos papel de salvador. E, por isso, irá, mais tido em direto. Perante tal encenação, os
comentadores disseram que se tinham uma vez, desiludir as expectativas dos conspiracionistas ainda têm dias brilhantes
sentido obrigados a ser vacinados. franceses, segundo o cientista político pela frente.

MARÇO 2021 - N.º 301 43


Pandemia

HISTÓRIA afiado que usava para raspar a pele dos pacientes. À sua direita estava

A injeção que
um órfão felpudo, carregando um recipiente de “vacina quente saída
diretamente da vaca”, que Jenner usava para raspar o braço do infeliz
aterrorizado. A cena era dominada por uma pintura que remetia para

‘transformava’
o relato bíblico da veneração do bezerro de ouro pelos judeus sob
as ordens de Arão. Um pouco mais à direita, uma mulher grávida,

pessoas
rodeada por pessoas cobertas de tumores com formas bovinas, vo-
mitava uma pequena vaca.
A hostilidade suscitada por Jenner acabou por diminuir, mas, em

em vacas
1853, os debates recomeçaram com vigor quando o governo tornou
obrigatória a vacinação de todos os recém-nascidos. Uma medida de
saúde sensata, mas que gerou controvérsia furiosa, causando motins
e manifestações. Os opositores de ambos os lados digladiavam-se em
torno de duas questões: relação entre riscos clínicos e benefícios, e o
Desde 1796, no Reino Unido, as campanhas de vacinação direito do Estado ditar o comportamento dos indivíduos.
desencadearam receios irracionais e despertaram hostilidade Os opositores da vacinação tinham argumentos fortes. O pro-
tanto entre a população como entre os especialistas cedimento era longo, doloroso e, às vezes, fatal. O médico raspava
o braço dos bebés, aplicava pus preparado com antecedência e, oito
History Today (excertos) dias depois, recolhia pus das novas pústulas, reciclado para tratar
Londres o próximo paciente. Os pais poderiam ter concordado mais pron-
tamente em submeter os seus descendentes a este teste se tivessem
a certeza de que era sinónimo de imunidade. Contudo, não havia

N
No final do século XVIII, quando Edward Jenner (1749- provas indiscutíveis disto.
1823) apresentou a ideia da inoculação contra a varío- A fúria era exacerbada por conflitos sobre a causa da varíola.
la tornou-se motivo de riso e foi retratado como um Devia-se a um germe específico que emanava dos miasmas do ar
charlatão. Os seus rivais, ciumentos, foram rápidos a fétido? Todos os reformadores acreditavam que era essencial limpar
denunciarem a sua falta de qualificações profissionais, os subúrbios sobrelotados e insalubres, mas alguns especialistas em
e um crítico feroz foi ao ponto de imaginar que os filhos de Jenner se saúde, incluindo Florence Nightingale, acreditavam que as regras de
transformariam em vacas depois de vacinados: “E ali, mordiscando higiene eram suficientes.
cardos, estavam Jem, Joe e Mary/Na frente, oh, que horror! os botões A partir daí, declarar que os pobres eram culpados por viverem de
rebentando nas casas para saírem os chifres...” forma irresponsável e espalharem doenças devido à sua incapacidade
A técnica do Jenner parecia bizar- de permanecerem limpos e se alimentarem
ra e o seu programa de testes era, na adequadamente, representava apenas um
melhor das hipóteses, escasso. Tendo passo, que alguns deram facilmente.
verificado que os leiteiros eram apa- Com a explosão populacional e a de-
rentemente imunes à varíola depois de mocratização da sociedade, toda a Eu-
apanhar a variante bovina da doença, ropa vivia o medo da decadência pessoal
embarcou numa experiência pouco or- e nacional. Os opositores da vacinação
todoxa. Primeiro, inoculou o filho do carregavam na tecla do chauvinismo e do
jardineiro com pus tirado da pústula racismo, insistindo em que as vacinas iriam
de uma mulher com varíola de vaca. poluir, dizimar e contaminar a população.
Dois meses depois, expô-lo delibera- A “raça anglo-saxónica, outrora a mais
damente à varíola. O rapaz sobreviveu, bela das raças, afundar-se-á, atormen-
saudável, assim como um punhado de tada pelo efeminamento, doença e morte
outras pessoas: Jenner estava pronto prematura”, afirmavam.
para generalizar o novo procedimento. No final do século XIX, na esperança
Na altura, os médicos já usavam a de acalmar os espíritos, o governo aprovou
variolização, um antídoto turco impor- uma lei que permitia aos pais recusarem
tado por Mary Wortley Montagu, que a vacinação. Para tal, bastava-lhes con-
passava pelo contágio com uma forma leve da doença para estimular vencer um magistrado de que tinham a convicção “na sua alma e
a imunidade. Inusitado, mas geralmente eficaz. consciência” de que a vacinação representava um risco para a saú-
F Em vez disso, Jenner pretendia contaminar or- de dos filhos. Isto agravava ainda mais o ressentimento nas classes
ganismos humanos com materiais biológicos vindos trabalhadoras, que viam a vacinação como uma forma adicional de
de uma criatura considerada inferior na hierarquia opressão. A isto somava-se a questão dos direitos das mulheres: as
AUTOR divina, o que desafiava as convenções. As suspeitas sufragistas estavam divididas sobre se as mães podiam ou não tomar
Patricia Fara
pareciam ser confirmadas pelas más reações dos tal decisão.
pacientes. A vacinação era incipiente, provavelmen- Em 1908, as autoridades reconheceram que as mulheres eram
te devido à higiene médica questionável da época. capazes de tomar decisões responsáveis. Isto aumentou a possibi-
dATA
01.01.2021 Numa caricatura implacável, James Gillray lidade de as vacinas, das quais muitas crianças não beneficiavam,
brincava com os medos dos seus contemporâneos, serem recusadas: uma medida que nada teve de positivo para a saúde
encenando um dispensário apinhado. No centro do pública, mas que, no entanto, foi um pequeno passo em frente para
TRAdUTORA
Ana Marques palco, Jenner empunhava o instrumento metálico a igualdade entre homens e mulheres.

44 MARÇO 2021 - N.º 301


Numa morgue, em Pretória, é colocada um aviso no cadáver de um doente morto com Covid 19 FOTO GETTY IMAGES

ÁFRICA DO SUL O primeiro ano desta crise sanitária


mostrou que a riqueza de um país não
o protegia necessariamente do vírus. A

Quando a arrogância e a ignorância de alguns dos


avisos custaram caro aos países mais ricos
do mundo, mas, agora, o dinheiro está a

vacina é uma dar-lhes vantagens inegáveis.


Nos últimos meses, fizeram múltiplos
acordos com os laboratórios farmacêuticos

miragem
para garantir que têm o suficiente para
vacinar as suas populações, várias vezes.
A China e a Rússia conduziram os próprios
ensaios clínicos e lançaram campanhas de
Enquanto todos os países mais ricos começaram a vacinar as suas populações, vacinação em massa.
África permanece a grande esquecida das vacinas. A única solução, a curto prazo, Mas um país como a África do Sul en-
para os seus habitantes é participar em ensaios clínicos contra-se numa posição muito descon-
fortável, porque não pode esperar nada da
The New York Times caridade. Com o seu governo praticamente
Nova Iorque falido e metade da população a viver na
pobreza, a África do Sul é considerada de-
masiado rica para beneficiar de vacinas
Dentro de alguns meses, perto enviadas para os países ocidentais que as baratas por parte de organizações de ajuda

D de um milhão de doses da va-


cina contra a Covid-19 deverá
encomendaram por centenas de milhões
de euros. Nenhuma foi posta de lado para
internacional. “Se não é suficientemente
rico mas também não é suficientemente
começar a sair diariamente de a África do Sul. O país não deverá ter as pobre, está encurralado”, diz Salim Abdool
uma fábrica na África do Sul, o país mais suas primeiras doses disponíveis até mea- Karim, epidemiologista que dirige o con-
duramente atingido pela pandemia no dos de 2021. Entretanto, espera-se que os selho nacional de combate ao coronavírus.
continente africano. Mas estas doses serão Estados Unidos da América, o Reino Unido Os países de rendimento baixo e médio,
provavelmente expedidas para um centro e o Canadá tenham vacinado já mais de que não podem pagar os preços do mer-
de distribuição na Europa, antes de serem 100 milhões de pessoas. cado livre, juntaram-se numa complexa
iniciativa de partilha de vacinas denomi-
nada Covax. No âmbito desta iniciativa,
AUTORES DATA TRADUTORA os líderes sul-africanos esperam receber
F Matt Apuzzo e Selam 28.12.2020 Helena Araújo
as suas primeiras doses da vacina até ao
Gebrekidan
próximo verão. Para muitos sul-africanos,

MARÇO 2021 - N.º 301 45


Pandemia

...
a forma mais rápida de se vacinarem é Com um governo falido privados com empresas farmacêuticas.
voluntariando-se para participarem em Muitos sul-africanos desconfiam das em-
ensaios clínicos. e metade da população presas farmacêuticas e estão preocupados
No mês passado, quando o Reino Unido a viver na pobreza, com a corrupção generalizada no governo.
iniciou a sua campanha de imunização, a África do Sul é No final de contas, é, no entanto, o
dezenas de pessoas deixaram a sua cabana dinheiro que vai fazer a diferença. O go-
em Masiphumelele Township, no Sul da considerada demasiado verno sul-africano sabia desde o início que
Cidade do Cabo, para irem à Fundação de rica para beneficiar de não tinha meios para fazer o mesmo que
Saúde Desmond Tutu. os países ricos que encomendaram doses
Esperaram horas para poderem parti-
vacinas baratas e de de vacinas antes de estas serem aprovadas
cipar no ensaio clínico da vacina que está ajuda internacional pelas autoridades sanitárias.
a ser desenvolvida pela Johnson&Johnson. “Como estes países se apressaram a
“As pessoas no topo da pirâmide, as que tomar as primeiras doses de vacinas, nem
têm poder, terão acesso à vacina”, pro- sequer começámos a olhar para o catá-
fetizou Mtshaba Mzwamadoda, um pai, logo”, suspira Ames Dhai, professor de
de 42 anos, que vive num abrigo feito de Numa entrevista recente com jornalis- Bioética e membro do conselho consultivo
chapa ondulada com a mulher e três filhos. tas, os responsáveis da Covax apresentaram de vacinação.
“Talvez consigamos ser vacinados em 2025. o seu programa como “a única solução glo- Esta não é a primeira vez que tal acon-
É por isso que nos viemos inscrever [no bal para esta pandemia”. “Precisamos de tece na África do Sul. Um exemplo disso é a
ensaio clínico]”, diz Mzwamadoda. “Esta mais doses e precisamos de mais dinheiro, vacina contra o vírus do papiloma humano
é a minha única oportunidade.” mas temos uma estratégia clara para asse- (HPV), que pode prevenir o cancro do colo
Katherine Gill, investigadora da sida gurar dois mil milhões de doses iniciais”, do útero, mas que é praticamente inexis-
e responsável por este ensaio clínico, dá diz Seth Berkley, diretor-executivo da Gavi, tente na África do Sul. As reservas desta
mostras de uma certa contenção. Nos anos a Vaccine Alliance (uma organização inter- vacina são tão baixas que a OMS pediu aos
90, quando os investigadores estavam a nacional de ajuda à vacinação das crianças países ricos que suspendessem temporaria-
desenvolver tratamentos antirretrovirais nos países carenciados). No entanto, tal mente as suas campanhas de vacinação em
para o VIH, os sul-africanos afluíram aos como os vários líderes da iniciativa, ele rapazes, para que outros países pudessem,
ensaios clínicos sabendo que esta era a continua a recusar revelar os pormeno- pelo menos, vacinar as raparigas.
única forma de eles poderem beneficiar res dos acordos com as empresas farma- Para Abdool Karim, diretor do conse-
dos medicamentos. “Se tivesses dinheiro, cêuticas, argumentando que são segredos lho nacional de combate ao coronavírus, o
poderias comprar os tratamentos. Se eras comerciais. A Covax também não revelou governo deve dar provas de discernimento
demasiado pobre, estavas condenado”, a natureza dos acordos assinados indivi- na escolha da vacina [contra a Covid-19]
resume Venter. “E é exatamente isso que dualmente com os países participantes. correspondente às necessidades da sua po-
vai acontecer de novo.” “Eles concordam em comprar algo pulação. “Por exemplo, faz pouco sentido
A iniciativa Covax foi criada para evitar com o dinheiro dos contribuintes, mas recorrer à vacina da Pfizer, que requer
isto mesmo. Os países que não conseguem nós não temos qualquer controlo sobre o elevados custos de transporte e de arma-
obter vacinas no mercado livre podem preço”, sublinha Fatima Hassan, defensora zenamento a temperaturas muito baixas,
participar nela, recebendo-as assim. Os dos direitos humanos. “A Covax diz que o quando alternativas mais baratas e mais
peritos de saúde sul-africanos reconhecem preço é honesto, mas nós não o sabemos. simples estão no horizonte”, diz.
que a Covax é essencial mas também é Onde está a transparência em tudo isto?” Uma vez que o governo não encomen-
uma fonte de profundas frustrações. Os O acordo é atrativo para os países que dou previamente doses aos laboratórios
governos têm de pagar primeiro sem sa- receberão a vacina por quase nada. Mas a privados, o seu fabricante local, a Aspen
berem quando e que vacina irão receber. A África do Sul está a pagar quase 140 mi-
Covax dá-lhes uma estimativa do custo da lhões de dólares para receber da Covax,
vacina por dose, mas deixa-os com poucos o suficiente para vacinar cerca de 10% da
recursos se o custo final se revelar muito sua população, incluindo os trabalhadores A África do Sul é o país
mais elevado. Os países têm de suportar de saúde e as pessoas mais vulneráveis. O com mais mortes por Covid-19
o risco total se a vacina que receberem governo espera vacinar os restantes 50 mi- no continente africano
não for eficaz. lhões da sua população através de acordos FOTO GETTY IMAGES

46 MARÇO 2021 - N.º 301


Pharmacare, poderá ter de produzir pri-
meiramente vacinas para outros países e
A longa espera
só depois poderá satisfazer as necessidades Quando serão entregues as primeiras doses do famoso soro?
locais. “Vamos participar nos vossos en- Enquanto o número de doentes com Covid-19 sobe em flecha,
saios clínicos, vamos produzir as vossas os mais pobres esperam desesperadamente
vacinas, mas não sabemos se teremos
acesso a elas”, observa Hassan. Wakat Séra
A Johnson&Johnson prometeu vender Ouagadougou
a sua vacina ao preço de custo e fornecer
meio bilião de doses à Covax para ajudar África terá de esperar que os bons samaritanos europeus, norte-
os países mais pobres. O diretor-executivo americanos ou chineses lhes façam chegar alguns frascos da vacina contra
da Aspen, Stephen Saad, disse estar orgu- a Covid-19. Apesar das polémicas em torno da vacina contra o coronavírus,
lhoso deste compromisso. Reconheceu, os primeiros pacientes já receberam as primeiras gotas preciosas, nos
contudo, que não havia garantias para a Estados Unidos da América, Reino Unido, Canadá, Rússia, China e
África do Sul. noutros lugares. Enquanto isto, África, o berço da Humanidade mas
Este país, onde o número de conta- também das doenças e da pobreza, ainda se interroga quanto ao destino
minações com Covid-19 ultrapassou um que lhe estará reservado.
milhão, enfrenta agora a sua segunda vaga No entanto, as estatísticas do número de pessoas doentes sobem em
de infeções. Os funcionários de saúde pú- flecha. As campanhas eleitorais e os escrutínios passaram por lá [no
blica estão particularmente preocupados Burkina Faso, realizaram-se eleições presidenciais em novembro; a
com a emergência de uma variante po- Nigéria, a Costa do Marfim, a Guiné e a República Centro-Africana
tencialmente mais contagiosa. também tiveram eleições nos últimos três meses], escoando marés
Na povoação, no entanto, teme-se um humanas que derrubaram todos os gestos que nos protegem do vírus.
novo confinamento. A primeira e extre- Mesmo a mais simples destas medidas, lavar as mãos com sabão e usar
mamente rigorosa contenção devastou máscara, foi ignorada. Em muitas escolas, faculdades e liceus, passa-se o
a economia e forçou muitos residentes mesmo, como se a Covid-19 fosse uma mentira do dia 1 de abril.
a fecharem-se em barracos construídos E a vacina tarda em chegar!
ao lado uns dos outros, onde dezenas de É gratuita e não obrigatória nos países “atrás do mar” [a norte do
famílias se viram a partilhar casas de banho Mediterrâneo], mas em África nem sequer sabemos quanto é que ela nos
e pontos de água. vai custar. No continente negro, se conseguirmos obtê-la, a inoculação
“É impossível manter a distância fí- do líquido salva-vidas será obrigatória ou voluntária? Uma coisa é certa,
sica, aqui”, diz Mzwamadoda. Está, por a demonização da vacina e os laivos de paternalismo de outras épocas e
isso, a contar com a vacina, esperando ter que viciaram o debate sobre o tema, como as mil e uma fake news sobre o
recebido o verdadeiro tratamento e não o assunto, continuarão a pesar na balança.
placebo. “Quero voltar a ter a minha vida No entanto, trata-se de salvar vidas em risco!
anterior”, diz ele. Embora os números [de contaminações] tenham aumentado
No dia seguinte à injeção, Mzwama- dramaticamente, os africanos agarram-se invariavelmente à fórmula
doda acordou a sentir-se bem. Depois de consagrada: “Deus está connosco.” Certamente, para um crente em
falar com a mulher, os dois decidiram que Deus ou nos poderes ancestrais, a fé é um fator determinante e mesmo
ela iria à clínica do dr. Gill, no dia seguinte, vital. Só que esquecemos que as nossas religiões mais importantes, neste
para também se tornar voluntária. Mas caso o catolicismo e o islamismo, vieram até nós de continentes onde está
alguns dias mais tarde, Gill soube que a em curso a corrida pela vacina contra a Covid-19. Será que Deus fugiu
Johnson&Johnson já não estava à procura destes países para vir para aqui, no quentinho das igrejas e das mesquitas
de novas pessoas. africanas, cheias de gente, todos os domingos e sextas-feiras?
Os resultados começavam a chegar, “Ajuda-te, e o céu ajudar-te-á”, diz o provérbio. Mesmo que as previsões
o que era uma boa notícia, mas também dramáticas anunciadas pelos principais peritos da Organização Mundial
significava que todos aqueles que viessem, da Saúde (OMS), no início da pandemia, se tenham revelado erradas
de agora em diante, para a instituição te- [relativamente a África], é tempo de voltar a respeitar os gestos que nos
riam de ser reenviados para casa. protegem e, sobretudo, começar a correr atrás da vacina, quer ela se chame
Moderna, Pfizer, Sputnik V, AstraZeneca, Sinopharm ou Sanofi.
E mesmo que a doença esteja essencialmente disseminada nos chamados
países poderosos, a lógica e a assistência às pessoas em perigo exigiriam
que os nossos eternos “benfeitores” pensassem em fazer a vacina fluir
para África, que nem sabe sequer se saiu da primeira vaga ou se está na
segunda ou na terceira. A OMS tinha prometido a África pelo menos 220
milhões de doses, depois de uma vacina ter sido aprovada! Será que esta
promessa se mantém? A resposta vale uma dose da vacina!

AUTOR DATA TRADUTORA


F Morin Yamongbe 06.01.2021 Helena Araújo

MARÇO 2021 - N.º 301 47


Pandemia

Wuhan
já seguiu
em
frente
Os habitantes da cidade chinesa onde surgiram os
primeiros casos de Covid-19 assistem a concertos,
vão a restaurantes e não olham para trás. É esta a
filosofia de uma população que se viu livre de um
vírus mortífero e está ansiosa por esquecê-lo.
South China Morning Post
(excertos)
Hong Kong

É uma quarta-feira fria em Wuhan e o bar

É Vox Livehouse, famoso pelos seus concertos


de rock, está a abarrotar de jovens que vie-
ram para uma festa. “Esta noite, esqueçam
todas as vossas preocupações. Vamos apenas dançar
e ficar pedrados”, exorta o vocalista da banda local
Mad Rat. O público responde com energia redobrada.
Mistura-se por entre a multidão, abana a cabeça ao
ritmo da música, ergue punhos no ar. Nenhuma dis-
tância física é respeitada. As máscaras são usadas sob
o queixo ou nem sequer existem.
Enquanto vários países lutam contra novas vagas
de Covid-19 e impõem restrições mais severas, a vida
continua a todo o vapor em Wuhan, capital da província
de Hubei, no Centro da China, o ponto de partida da
pandemia: os restaurantes e os cinemas enchem-se
de gente, as ruas estão animadas, e organizam-se no-
vamente grandes conferências. São raros os estigmas
visíveis da pandemia, embora permaneça encerrado
o mercado grossista de Huanan, onde os 19 primeiros
casos da doença foram identificados há um ano.
Os cartazes informativos foram retirados. A cidade,
cujos habitantes estiveram confinados durante 76 dias
[de janeiro a abril de 2020] até serem todos testados, não
regista um único caso de infeção local há vários meses.
A recuperação está bem encaminhada e muitos
não desejam recordar os meses sombrios do início de
2020. “Raramente penso na epidemia e abstenho-me
de falar dela, a menos que seja necessário”, explica
Lin Wenhua, que, durante a crise, se ofereceu como
motorista voluntário para acompanhar profissionais de
saúde ou transportar medicamentos aos que não podiam
deslocar-se ao hospital. “São apenas os média que têm

AUTOR DATA TRADUTORA


F Zhuang Pinghui 01.01.2021 Maria Alves

48 MARÇO 2021 - N.º 301


...
A recuperação está bem encaminhada e muitos
não desejam recordar os meses sombrios do
início de 2020. “Raramente penso na epidemia
e abstenho-me de falar dela, a menos que seja
necessário”, explica Lin Wenhua

Em janeiro de 2020, a cidade


de Wuhan ficou conhecida em
todo o mundo como o epicentro
da pandemia de Covid-19
FOTOS HECTOR RETAMAL/GETTY IMAGES

MARÇO 2021 - N.º 301 49


Pandemia

interesse em celebrar este suposto primeiro aniversário. Nós


queremos, principalmente, esquecer tudo e seguir em frente.”
“Realizaram-se pelo menos dois telefilmes sobre aquele pe-
ríodo e eu só consegui vê-los durante cinco minutos”, admite
Xiao Ya, professora de 38 anos, que teve de esperar vários dias
até encontrar camas de hospital disponíveis para ela e seus fa-
miliares, no início de fevereiro de 2020. “Ver aquelas imagens
é insuportável. De que vale reviver tudo aquilo? Deveríamos só
pensar que uma nova vida está a começar.” Xiao conta que os
pais recuperaram da doença, mas que a mãe insiste em ficar em
casa, apesar de ter superado a provação. “Só sai se formos no
meu carro. Recusa-se a andar de transportes públicos.”
Zhang Huaxue, que também reside em Wuhan, diz-nos que
o pai, Zhang Luyi, um antigo combatente, de 60 anos, sobrevi-
vente da Covid-19, precisou de oxigénio em casa depois de ter
tido alta do hospital e que continua a sofrer de fadiga e dores
pulmonares. “Muitos [dos mais de 11 milhões de habitantes da
cidade] sentiram que o confinamento obrigatório foi uma grande Um casal dança num parque junto do rio
injustiça e que, de início, os meios médicos eram limitados. Yangtze, em Wuhan, em maio de 2020,
Hoje, porém, acho que devemos olhar para o futuro.” mês em que a China, pela primeira vez,
“Wuhan é uma metrópole com muitas faculdades de Medi- comunicou não ter registado quaisquer
cina e muitos hospitais de grande dimensão”, salienta Zhang. novos casos de Covid-19
“Teria sido melhor que o coronavírus tivesse aparecido, pela FOTOS HECTOR RETAMAL/GETTY IMAGES
primeira vez, numa outra capital de província? Provavelmente
não. Espero que se tenha aprendido a lição, para que a Ciência e
a gestão urbana possam avançar, em vez de ficarmos a remoer
o passado.” Em todo o caso, ele faz questão de sublinhar que só rava uma cama de hospital foi uma experiência que, depois do
pensa deste modo porque os pais sobreviveram: os que perderam confinamento, a inspirou a tornar-se voluntária. “A epidemia
entes queridos mais chegados continuam magoados. deixou-nos mais solidários e amigos”, realça Xiao. As pessoas
recuperaram a confiança, e algumas garantem que a cidade é
Gente mais solidária agora “a mais segura do mundo”, embora as autoridades locais
Chen Xi, 18 anos, ainda está traumatizada pelo caos que teste- continuem em estado de alerta devido ao inverno.
munhou nos hospitais, em janeiro de 2020. Ela afirma ter visto O uso da máscara e o controlo da temperatura corporal
uma senhora idosa desmaiar à sua frente, e não consegue apagar permanecem obrigatórios nos locais públicos. À entrada de
essa imagem da mente. “O tempo de espera era tão longo e toda centros comerciais, hospitais, aeroportos e estações ferroviá-
a gente estava muito doente. Não sei se essa mulher sobreviveu, rias, agentes de segurança verificam os códigos QR da saúde
mas penso nela frequentemente. Por vezes, até sonho com ela”, de toda a gente. [O código é gerado por uma nova aplicação
confessa. móvel que classifica os cidadãos como “verde” (sem motivo
Se os habitantes de Wuhan pagaram um preço elevado pela para isolamento), “amarelo” (exigindo sete dias de isolamento)
epidemia, os que sobreviveram revelam que esse período também ou “vermelho” (14 dias de isolamento), com base no risco de
expôs a qualidade das pessoas. Xiao ficou contente por os seus terem contraído o vírus.]
colegas a terem tratado com naturalidade quando ela regressou Ao lado dos elevadores, há lenços de papel e cotonetes para
à escola, em maio. Num jantar para marcar o reencontro, ela que os utilizadores primam os botões com eles. Nos hospitais,
pôde estar presente sem máscara, tal como eles. os funcionários são regularmente examinados e os pacientes
Ter sido ajudada por pessoas do seu bairro quando procu- têm de apresentar resultados negativos de testes Covid antes de

50 MARÇO 2021 - N.º 301


...
“Wuhan é uma metrópole com muitas faculdades de Medicina e
muitos hospitais de grande dimensão”, salienta Zhang. “Teria sido
melhor que o coronavírus tivesse aparecido, pela primeira vez,
numa outra capital de província? Provavelmente não”
entrarem nas instalações. Nos últimos meses de 2020, regista- Uma mulher chamada Li, que vende caranguejo-real pro-
ram-se focos infeciosos em portos onde estivadores transportam veniente do Canadá e lagosta oriunda dos Estados Unidos da
produtos congelados importados do estrangeiro, assim como América, explica que os trabalhadores da companhia Sijimei
em mercados grossistas semelhantes àquele onde começou a são frequentemente testados e obrigados a apresentar um teste
crise sanitária mundial. Covid negativo antes de serem autorizados a recolher os seus
No mercado de mariscos de Baishazhou, onde se comer- produtos na alfândega. No interior do mercado, é exigido a todos
cializam produtos importados, o acesso aos diferentes setores os vendedores que nunca retirem a máscara. “Tenho sempre uma
é rigorosamente vigiado, e os empregados usam equipamento caixa de máscaras no meu escritório, por isso, estou preparada
de proteção individual. Através de altifalantes, avisa-se que para qualquer eventualidade”, observa Li. “Se alguém nos vir
nenhum produto pode estar à venda sem um relatório de ins- sem máscara, somos repreendidos ou obrigados pela direção do
peção, e que ninguém deve retirar as máscaras faciais. mercado a pagar uma multa de 50 a 100 yuans [6 a 12 euros].”

MARÇO 2021 - N.º 301 51


Pandemia

Resultados
tangíveis,
mas serão
sustentáveis?
O Estado chinês mostrou ter o poder de impor medidas draconianas
e eficazes, para travar a disseminação da Covid-19 ou reduzir
a poluição. Só que as campanhas de motivação política servem
objetivos de curto prazo, e manter o que conseguiu até agora
constituirá, para Pequim, um verdadeiro desafio.
Nikkei Asia
Tóquio

Os dirigentes chineses podem sentir-se orgulhosos do

O modo como enfrentaram a pandemia de Covid-19 em


2020. Assim que reconheceram a gravidade da crise,
adotaram uma série de medidas, mobilizando rapida-
mente recursos e capacidades à sua disposição. Em dez semanas, o
Estado conseguiu travar a propagação do vírus. No início de abril,
quando a maior parte das regiões do mundo ainda enfrentava as
dores da pandemia, a China já estava a caminho da recuperação
social e económica.
A resiliência do Estado chinês também ficou evidente com
a resposta que as autoridades deram à crise ambiental. Graças a
uma série de campanhas de ação pública contra a poluição atmos-
férica, a China foi capaz de reduzir para metade a concentração
de partículas finas (o poluente atmosférico mais nocivo para a
saúde), entre 2013 e 2019, enquanto os Estados Unidos da América
precisaram de 20 anos, desde a aprovação da lei sobre a qualidade
do ar (Clean Air Act) em 1970, para alcançar aquela meta.
Parece que também terá sido essa melhoria rápida da qualidade
do ar que levou o Presidente chinês, Xi Jinping, a comprometer-se,
perante uma sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em
setembro de 2020, a atingir a neutralidade carbónica até 2060.
No entanto, como as campanhas de forte motivação política
servem geralmente objetivos de curto prazo, manter o que con-
seguiu até agora constituirá, para Pequim, um verdadeiro desafio.
É muito frequente que, terminada uma campanha daquele tipo,
se volte de imediato aos velhos hábitos, pois é quase impossível
obter mudanças de fundo no modo como operam as autoridades
locais, em tão pouco tempo.
Os líderes chineses estão determinados a ultrapassar tal obstá-
culo, abrindo caminho e institucionalizando essa nova abordagem
de mobilização. Por exemplo, para manter uma taxa de contágio
por Covid-19 de nível zero em todo o país, o regime desenvol-
veu um modelo de ação que associa a prevenção e o controlo das
doenças a uma convocação rápida das autoridades locais para
ultrapassarem surtos epidémicos esporádicos.

AUTOR DATA TRADUTORA


F Yanzhong Huang* 05.01.2021 Maria Alves

52 MARÇO 2021 - N.º 301


...
Para manter uma taxa de contágio por
Covid-19 de nível zero em todo o país, o regime
desenvolveu um modelo de ação que associa
a prevenção e o controlo das doenças a uma
convocação rápida das autoridades locais para
ultrapassarem surtos epidémicos esporádicos

Em janeiro de 2021, exatamente um


ano depois de declarado o surto de
Covid-19, milhares de chineses
divertem-se na noite de Wuhan
FOTOS HECTOR RETAMAL/GETTY IMAGES

MARÇO 2021 - N.º 301 53


Pandemia

50 milhões de pessoas até meados de fevereiro. [O Ano Novo


lunar, com as suas reuniões familiares, ocorre este ano a 12 de
fevereiro].

“Diplomacia da vacina”
Os esforços desenvolvidos para obter uma imunidade coletiva
estão, porém, comprometidos pela falta de entusiasmo dos
cidadãos chineses em se deixarem vacinar, dada a ausência de
casos de Covid-19 no país, e pela ânsia do regime em expedir
vacinas para o estrangeiro no âmbito da sua “diplomacia da
vacina”. [Em janeiro, empresas chinesas estavam a realizar a
terceira fase de estágio de várias vacinas em pelo menos 16 países,
incluindo Argentina, Marrocos, Turquia, Filipinas, Paquistão,
México e Arábia Saudita.]
Enquanto todos estes objetivos em conflito persistirem, a
China continuará a proibir praticamente todas as entradas no
seu território, para respeitar o princípio de “contágio zero”,
mesmo depois do regresso à normalidade previsto para o outono
de 2021 nos países ocidentais.
O mesmo tipo de objetivos em conflito pode ser encontrado
Os exercícios físicos matinais voltaram na luta contra a poluição. As comunidades locais apressaram-se
a ser rotina nos parques da cidade a dar um impulso ao crescimento económico, para compensar
FOTOS HECTOR RETAMAL/GETTY IMAGES os prejuízos causados pela crise de Covid-19. Contudo, numa
economia que continua a ser alimentada pela indústria pesada
De acordo com este plano, à mínima ocorrência de um caso e pelo carvão, os progressos registados no combate à poluição
de Covid-19, procede-se de imediato ao rastreamento dos con- estão comprometidos, e as grandes cidades industriais do Norte
tactos, a uma operação de testes em massa e ao confinamento da China poderão ter dificuldade em atingir as metas de redução
de bairros ou cidades de alto risco. Em outubro, após ter sido da poluição fixadas para este inverno.
detetada uma dúzia de casos ligados a um hospital em Qingdao, Assim sendo, em dezembro, quando se aproximava o final
na província oriental de Shandong, o governo local obrigou toda de 2020, as comunidades locais começaram a decretar racio-
a população da cidade – ou seja, 11 milhões de pessoas – a fazer namentos, numa tentativa desesperada de atingir os objeti-
testes de despistagem em apenas cinco dias [o mesmo método vos fixados em matéria de economia energética e redução das
havia sido aplicado, em outubro, aos 4,7 milhões de habitantes emissões de carbono. Como os postes de iluminação pública
de Kashgar, no ocidente da província de Xinjiang, onde vive a foram desligados e as fábricas encerradas para poupar energia
perseguida minoria muçulmana uigur, e em várias localidades em várias províncias, não podemos deixar de ter uma sensa-
de Hebei, no Norte do país, já em janeiro deste ano.] ção de déjà-vu, quando a maioria das atividades económicas
Da mesma forma, o Presidente Xi está convencido de que foi interrompida em consequência das austeras medidas de
a China poderá manter os céus azuis graças a esforços diligen- confinamento aplicadas em fevereiro e março.
tes de controlo das nuvens de poluição. Uma série de novos Queira-se ou não, os confinamentos e os cortes de eletricidade
dispositivos já foi instalada, com supervisão centralizada do são a prova de um Estado, por um lado, extraordinariamente
organismo responsável pela proteção do ambiente e o trabalho resiliente e, por outro, fundamentalmente deficiente.
de responsáveis locais.
Com esta mobilização institucional, o Governo central pro-
cura reforçar o sentido de responsabilidade dos funcionários
públicos e fazer com que as suas práticas alinhem, de forma
duradoura, com as opções políticas dos dirigentes. Isto não é,
de forma alguma, um pensamento positivo. Senão vejamos:
em quase três décadas de determinação do Estado em ditar
o controlo demográfico, a política do filho único [aplicada de
maneira coerciva] foi de tal modo interiorizada pela sociedade
chinesa que a taxa de fertilidade permanece baixa, apesar de,
em 2016, o Governo já ter levantado tais restrições.
Esta abordagem vertical marcada pela predominância do * Yanzhong Huang, especialista em China e saúde global,
Estado tem, todavia, os seus inconvenientes. Como apenas pres- é autor de Governing Health in Contemporary China e
tam contas aos superiores hierárquicos, os funcionários públicos Toxic Politics: China’s Environmental Health Crisis and
tendem a ter mão pesada no cumprimento dos objetivos fixados Its Challenge to the Chinese State. É também investigador
para as suas campanhas. Além disso, as autoridades têm de no Council on Foreign Relations, um think tank com
conciliar, entre os numerosos pedidos, medidas concorrentes. sede em Nova Iorque; professor e diretor de Ciências de
Por exemplo, a política de “contágio zero” revela-se cada Saúde Global na School of Diplomacy and International
vez mais onerosa devido ao ressurgimento de pequenos surtos Relations da Seton Hall University, em South Orange,
epidémicos de Covid-19. As vacinas representarão uma solu- Nova Jérsia (EUA); e fundador-diretor do Global Health
ção mais rentável para o problema. Nesse sentido, em meados Governance: The Scholarly Journal for the New Health
de dezembro, a China lançou uma campanha visando vacinar Security Paradigm.

54 MARÇO 2021 - N.º 301


Pandemia

Uma das médicas da equipa


clínica enviada para Wuhan chora na
hora do regresso, após se ter contido
o surto epidémico, em abril de 2020
FOTO HECTOR RETAMAL/GETTY IMAGES

Contaminados
ou não, em Wuhan
todos foram afetados
A vida dos habitantes da capital da província de Hubei ficou virada do avesso com o primeiro
confinamento da pandemia Covid-19. A sua história em cinco retratos

Weixin | WeChat (excertos)


Shenzhen

YUN XIAOHUAN,
Queriam que ele contasse como se ofere- aqueles jornalistas que os foram entrevistar,
cera para ser motorista durante a epidemia o marido era uma pessoa boa.
UM HERÓI VULGAR em Wuhan, no preciso momento em que a Na época em que trabalhava em Shen-
Eles discutiram. Xiaoli ficou furiosa e ati- sua mulher dava à luz, para felicidade da zhen, Yun Xiaohuan já se havia destaca-
rou-lhe um telefone à cara. Yuan Xiaohuan família. Ele não podia estar a contar com do, sem cobrar nada, por ajudar a reparar
não disse nada e, com o couro cabeludo a compreensão de Xiaoli. bicicletas abandonadas em toda a parte,
ferido, foi sozinho até ao hospital para ser Enquanto os jornalistas aguardavam na num gesto que foi objeto de um documen-
tratado. A ferida era superficial e o médico sala, a mulher de Yun só saiu do quarto com tário. Durante o confinamento, o mesmo
limitou-se a enfaixar-lhe a cabeça. Mas Yun o bebé às 10 horas, fazendo beicinho e sem realizador foi a Wuhan para filmá-lo no
Xiaohuan ficou bastante irritado quando, no sequer se dar ao trabalho de se maquilhar. seu duplo papel de motorista voluntário
dia seguinte, recebeu a visita de jornalistas. No entanto, aos olhos de estranhos, como de profissionais de saúde e de jovem pai
de um “bebé da epidemia”.
A verdade é que Xiaoli detesta esta dupla
AUTOR DATA TRADUTORA identidade do marido. “Na vossa opinião,
F Yue Shu 29.12.2020 Maria Alves o que é mais importante: a comunidade ou
a família?”, pergunta, recusando-se a falar

MARÇO 2021 - N.º 301 55


Pandemia

...
das condições em que deu à luz em plena Um ano depois, nos Hankou e Hanyang]. O médico, por seu
epidemia. Ela tem 23 anos e é originária turno, informara que poderia aliviar grande
da província de Guangxi, no Sul da China, seus pesadelos, o sr. parte das dores da sra. Zhao se ela fosse,
mas o casamento obrigou-a a mudar-se Zhao ainda vê a cidade todos os dias, levar injeções de analgésicos.
para a província central de Hubei, onde Como fazer?
não tem familiares nem amigos. Xiaoli não
de Wuhan paralisada Depois de muitos esforços, a filha do
ficou completamente sozinha durante a pela epidemia. Em 23 de casal, que morava longe, conseguiu enviar
gravidez, porque o marido estava lá, mas janeiro de 2020, facto um motorista voluntário que se encarre-
ele saía de casa muito cedo e só regressava à gou do transporte. Mas, como o acesso à
noite. Os seus dias eram, por isso, passados inédito, uma cidade ponte estava bloqueado, o sr. Zhao teve de
no TikTok e no WeChat, as únicas janelas com mais de 11 milhões arranjar uma cadeira de rodas e, sete dias
que ela tinha para o exterior. de habitantes ficou por semana, enfrentando intempéries, o
Naquelas aplicações, Xiaoli via como, a septuagenário conseguiu fazer com que a
cada dia, aumentava o número de con- confinada mulher atravessasse o rio para ser tratada.
tágios assim como o de pedidos de ajuda Apesar de todos estes esforços, a sra.
feitos por pessoas desesperadas. Presa em Zhao acabou por morrer, um dia depois de
casa, ela não podia sair para fazer compras, ser levantado o confinamento e quando o
e os estabelecimentos de takeaway já não marido havia, finalmente, encontrado uma
aceitavam encomendas. No entanto, tinha Ambos com 70 anos, formavam um casal cama de hospital. O sr. Zhao não pôde or-
de cuidar de duas vidas. E, durante esse que suscitava admiração. Na companhia ganizar uma cerimónia fúnebre, mas ficou
tempo, o que fazia o marido? um do outro, fizeram viagens pelo mundo feliz por ter conseguido recuperar os restos
Ele estava quase seguramente na sua inteiro. Tinham personalidades compatí- mortais da mulher. Ele reparou como era
viatura, à porta de um hospital de Wuhan, veis e objetivos profissionais que os uniam. enorme a fila de pessoas que esperavam
à espera de que um/uma médico/a ou um/ Consideravam-se sortudos e esperavam diante da funerária, no dia em que a sra.
uma enfermeiro/a necessitassem que ele poder viver juntos ainda por muito mais Zhao morreu.
os/as levasse a algum lado. Mas, e o que anos, mas a epidemia, que apareceu no

CHENG,
aconteceria se ele fosse infetado com o ví- final de 2019, mudou tudo. Todos os dias,
rus e contagiasse o seu bebé? Xiaoli tentou arrancadas aos seus sonhos por números
detê-lo, mas todos os meios de transporte assustadores, as pessoas iam percebendo O DESAPARECIDO E SEM UM ADEUS
estavam paralisados. Sem pessoas como o a turbulência que ameaçava a existência O filho de Yan Xiaowen nem tem uma cam-
seu marido, muitos profissionais de saúde de cada uma delas. Até mesmo o senhor pa com o seu nome. Cheng morreu em 29
não teriam conseguido ir de casa para o hos- e a senhora Zhao, ainda poupados pelo de janeiro de 2020. O pai, em isolamento
pital, muitos doentes não seriam cuidados coronavírus. depois de ter contraído Covid-19, não foi
a tempo. Sem falar dos bens doados que, Um ano depois, nos seus pesadelos, o sr. autorizado a acompanhá-lo nos seus der-
vindos de todos os cantos do país, preci- Zhao ainda vê a cidade de Wuhan paralisada radeiros momentos e, depois da morte do
savam de chegar ao seu destino! O marido pela epidemia. Em 23 de janeiro de 2020, filho, pediram-lhe apenas que assinasse
é, pois, um ser extraordinário, um herói! facto inédito, uma cidade com mais de 11 uma autorização para a cremação, o que ele
E, se não fosse a gravidez, sem dúvida de milhões de habitantes ficou confinada. Não acabou por fazer à falta de outra solução.
que ela o admiraria ainda mais... se podia sair nem regressar. Embora Zhao A última lembrança que Yan tem de
Um ano depois, Yun Xiaohuan deixou e a mulher planeassem deslocar-se a Hong Cheng é a da separação de ambos, antes
de brincar ao herói altruísta. Grato pelos Kong, para ela continuar com a terapia para da festa da primavera. Para a ocasião, ele
diplomas de honra e um prémio de três o cancro, tiveram de cancelar a viagem, tinha obrigado Cheng a ir a um salão cor-
mil yuans [338 euros] que a sua empresa e o estado de saúde dela rapidamente se tar o cabelo e a vestir uma camisa nova e
lhe atribuiu, regressou a uma vida normal, deteriorou. Ele bem ligou para todos os limpa. Para Yan, este filho era toda a sua
feita de pequenas discussões diárias com hospitais da cidade, perguntando se havia vida, apesar de, com uma doença cerebral,
Xiaoli sobre o biberão do bebé ou outras uma cama disponível para a mulher, em Cheng ser incapaz de, aos 17 anos, falar,
ninharias. Yun não entende a angústia da fase terminal, mas não obteve qualquer andar, pensar e ter emoções como uma
mulher. É certo que, devido à pandemia, resposta positiva. À força de muito insistir, pessoa normal.
não a pôde acompanhar durante os dias o Wuhan Union Hospital aceitou acolhê-la, Num noticiário televisivo, Yan Xiaowen
que precederam o parto, não pôde se- mas já estava a romper pelas costuras com apercebeu-se do rosto lívido de Cheng
guir a evolução do seu bebé... e não teve doentes com Covid-19. quando o colocaram numa ambulância.
de suportar os choros diários da criança. Por falta de uma cama, a sra. Zhao só Durante as sete semanas em que o sr. Yan
Mas, graças a ele e aos esforços de muitas pôde beneficiar de um tratamento palia- foi separado à força do “[meu] bebé”, por
outras pessoas que agiram de igual modo, tivo dos mais rudimentares. E quando ela estar em isolamento, Cheng permaneceu
a cidade conseguiu recuperar a serenidade e o marido quiseram voltar a casa, após trancado em casa como numa prisão, sem
há muito perdida. os tratamentos, descobriram que seria que ninguém cuidasse dele. O sr. Yan ficou
impossível: todos os meios de transporte a saber que o filho morrera por uma fria

ZHAO,
estavam parados. Ora, o hospital situa-se certidão de óbito. Quando contraiu o ví-
em Hankou e a casa deles fica em Wuchang, rus, ele previu o pior, incluindo a própria
O VIÚVO INCONSOLÁVEL do outro lado da ponte que atravessa o rio morte, se os tratamentos não resultassem.
O sr. Zhao não imaginava que a morte da Yangtzé, a uma dezena de quilómetros de Nunca ele imaginara que Cheng, o seu filho
mulher seria tão rápida, apesar de saber distância [Wuhan é uma área metropo- nascido no ano da epidemia de SARS, em
que ela sofria de um cancro no fígado. litana que inclui as cidades de Wuchang, 2003, iria morrer no ano da Covid-19...

56 MARÇO 2021 - N.º 301


JIA NA,
Weibo. A realidade, porém, foi muito mais A nova rotina nos primeiros tempos
dura. Ela tinha pouquíssimas provisões. da pandemia em Wuhan: testar a
A ENFERMEIRA COMBATENTE Houve um dia em que só lhe restava meio temperatura sempre que se entrava
Quando soube dos resultados do teste Co- nabo para comer. em qualquer lugar
vid, Jia Na teve a impressão de que tudo se No seu blogue, ela aconselhou a que não FOTO HECTOR RETAMAL/GETTY IMAGES
desmoronava em seu redor. Reviu, imedia- se tivesse medo da doença e que fossem
tamente, cada um dos seus gestos no serviço seguidas as recomendações no que toca
de urgência onde trabalhava, incapaz de à prevenção. Naquela altura, ela tinha 1,6 último, Zhizhuhou recebeu, em Pequim,
descobrir qual tinha sido o problema. Havia milhões de seguidores na sua conta pessoal o Prémio Especial 2020, concedido pelo
sido diagnosticada na véspera do Ano Novo no Weibo, e os grandes media, entre eles o semanário Xin Zhoukan, pelo melhor vídeo
chinês. Naquela altura, todos os hospitais da jornal oficial do Partido Comunista Chinês, chinês consagrado à luta contra a epide-
cidade estavam sobrelotados com o fluxo de Diário do Povo, falavam dela. No Hospital mia e publicado num meio de comunicação
pacientes e as camas a começarem a faltar. do Povo da Universidade de Wuhan, ela pessoal. Durante a epidemia, Zhizhuhou
Após um momento de reflexão, disse tornou-se uma enfermeira famosa. explorou com a sua câmara todos os cantos
para si mesma que seria melhor deixar a Em 12 de maio de 2020, o Dia dos Enfer- e recantos da cidade, ao percorrer, como
outros os lugares disponíveis no hospital meiros, Jia Na recebeu a visita de um colega motorista voluntário, dois mil quilómetros
e optou por isolar-se em casa, tomando que trabalhava na unidade de cuidados in- com o seu automóvel. Hoje, pode dizer-se
os medicamentos que lhe haviam sido tensivos do seu hospital. Apaixonaram-se. que a sua vida regressou à normalidade.
receitados. A sua decisão foi saudada nas O homem pelo qual ela tanto esperara nos Terminado o confinamento, os habi-
redes sociais, onde a jovem enfermeira de momentos mais difíceis da epidemia tinha, tantes de Wuhan sentiram-se libertados:
25 anos foi retratada como uma lutadora finalmente, chegado. alguns lançaram-se num consumo desen-
destemida, desejosa de ajudar os que estava freado, para compensarem o que lhes fal-

ZHIZHUHOU,
em maior dificuldade e disposta a combater tou; outros ficaram maravilhados por vol-
o vírus sozinha. tarem a beber um copo juntos. As pessoas
No site chinês Weibo, podemos encontrar A TESTEMUNHA PARA O MUNDO puderam, por fim, sair da bolha familiar e
um diário pormenorizado que Jia Na escre- No mesmo período, um blogue no Wei- reencontrar e abraçar os amigos. No bar
veu sobre a sua quarentena domiciliária. bo, gerido por alguém com o pseudónimo Le 18, a música está alta e a festa animada.
Ficamos com a impressão de que tinha Zhizhuhou (literalmente, “o macaco-a- O dono constata, com prazer, o regresso
boas condições e um espírito ainda mais ranha”), ofereceu uma janela para que o dos jovens ao seu estabelecimento, onde
positivo do que antes de ser contagiada. mundo exterior visse o que se passava em nascem e terminam aventuras amorosas.
Valeu-lhe o envio regular de mensagens de Wuhan. Também permitiu que o seu criador O ano de 2020 acabou. A vida retoma
felicitação e de encorajamento por parte se desse a conhecer e conquistasse quatro o seu curso, com altos e baixos. Mas o que
de outros internautas que a seguiam no milhões de seguidores. Em 21 de novembro importa? O sol de 2021 eclipsará tudo!

MARÇO 2021 - N.º 301 57


58 MARÇO 2021 - N.º 301
Aula de medicina no anfiteatro
do Hospital Universitário
de Santo Spirito, em Roma,
conforme publicado na revista
L’Illustrazione Italiana,
em dezembro de 1890
FOTO GETTY IMAGES

SAÚDE
Porque a medicina
trata as mulheres
como homens?
CROMOSSOMAS, CICLO MENSTRUAL, METABOLISMO... O CORPO DAS
MULHERES NÃO FUNCIONA EXATAMENTE COMO O DOS HOMENS, MAS,
NA MEDICINA, ESTES SÃO TOMADOS COMO NORMA

THE OBSERVER LONDRES

MARÇO 2021 - N.º 301 59


Saúde

e de “terapias dirigidas”, é impossível ler


este livro sem ficar estupefacto/a por os

Q
cientistas não terem levado em conta mais
cedo este fator.
O presente artigo é redigido [em pleno
confinamento no Reino Unido] poucas se-
manas após a publicação do livro – ainda
que Sex Matters não possa beneficiar do
lançamento nos moldes previstos. Na rea-
lidade, Alyson McGregor está mais ativa do
que nunca no Serviço de Urgência devido
à Covid-19.
Ora os dados sobre a Covid-19 indicam
que, também aqui, nos encontramos pe-
rante uma doença que afeta mulheres e ho-
mens de forma diferente – embora vários
países, entre os quais os Estados Unidos da
América e o Reino Unido, tenham tardado
a divulgar números pormenorizados em
função do sexo dos pacientes. Segundo
esses dados, a pandemia poderá ter sido
duas vezes mais mortífera nos homens do
Quando estava a terminar a sua formação Conta-nos: “Isto passou-se há uns 15 que nas mulheres. No Reino Unido, um
em Medicina de Urgência na Universidade anos, quando começámos a perceber que estudo efetuado a partir de quatro mil casos
de Brown (Rhode Island), alguém pergun- os ataques cardíacos não se manifestam da pelo Office for National Statistics [equi-
tou a Alyson McGregor que especialidade mesma forma entre homens e mulheres. valente ao INE] apontou para o mesmo
escolheria. As mulheres descreviam sintomas dife- rácio, enquanto números do New York
“Pensa-se sempre que um médico deve rentes e apresentavam um prognóstico City Department of Health and Mental Hy-
ter uma área preferida. Respondi: ‘Escolho menos favorável. Comecei a pensar: mas giene [equivalente ao Ministério da Saúde
a medicina feminina’, recorda McGregor. então, se somos diferentes neste domínio, para o estado de Nova Iorque] mostram
Os meus interlocutores pensaram: ‘Ah, vai é provável que sejamos diferentes noutros que os homens representam mais de 61%
para ginecologia-obstetrícia.’” Resultado: também. Quanto mais estudava o assunto dos mortos por Covid-19. Uma das causas
a dra. Alyson McGregor, recém-formada, mais clara se tornava a sua importância. possíveis reside na diferença de compor-
passou a ser a médica responsável por to- Em medicina desinteressámo-nos pelas tamentos – na China, por exemplo, entre
dos os exames da bacia sempre que estava mulheres por uma razão muito simples: os homens há muito mais fumadores. Mas
de serviço na Urgência deste hospital de partimos dos homens para estabelecer a as diferenças biológicas também têm o
Rhode Island, principal centro de trauma- norma, e quem sofreu com isso foram as seu papel.
tologia do estado, porque pensavam que mulheres.” Por um lado, os estrogénios [hormonas
se interessava especialmente pelo tema. presentes em muito maior quantidade nas
“Agora rio-me, mas foi a partir desse mo- Primazia do modelo masculino mulheres] contribuem para estimular o
mento que me apercebi da existência de Alyson McGregor expõe a questão no seu sistema imunitário; por outro, o facto de as
uma ideia pré-concebida, segundo a qual novo livro, Sex Matters [“O Sexo Impor- mulheres possuírem dois cromossomas X,
a saúde feminina se resume à reprodução. ta”, não traduzido para português]. A con- com uma forte densidade de genes ligados
Ou seja, as mulheres são homens ‘com clusão principal é a de que os corpos das à imunidade, pode ser a causa principal da
mamas e trompas’.” mulheres são diferentes dos corpos dos diferença. (Verificou-se, igualmente, que
Mas isso não era propriamente o que homens, nomeadamente a nível celular. os indivíduos maioritariamente afetados
interessava a Alyson McGregor. Por me- No entanto, o nosso modelo médico ba- pela SARS [síndrome respiratória aguda
dicina feminina, entendia a saúde global seia-se em conhecimento obtido a partir de grave] e a MERS [síndrome respiratória
das mulheres, em que cada célula con- células de indivíduos do sexo masculino, do Médio Oriente] eram homens). “Apelo
tém cromossomas do feminino [um par quer se trate de humanos, quer de animais. a todos os países no sentido de começa-
de cromossomas X], que influenciam cada Além disso, existem imensos elementos rem a recolher dados sobre a Covid-19
uma das funções do organismo. Queria que merecem reflexão: por exemplo, as em função do sexo, para podermos dis-
perceber de que modo essas diferenças doenças que não conseguimos explicar por, desde já, desse conhecimento”, pede
– que dizem respeito às hormonas, aos nas mulheres ou os medicamentos que Alyson McGregor.
tecidos, aos sistemas e às estruturas – se têm efeito nos homens mas são inúteis
refletem em cada doença, o que implica ou, até, perigosos, quando não mortais, Origens antigas
tratamentos específicos. As doenças car- na outra metade da população. Quando A crer nesta tese [para explicar esta forma
diovasculares mostraram-lhe o caminho. tanto se fala de “medicina personalizada” de sexismo na medicina], há que recuar
aos primórdios da investigação médica
sistemática, quando se estabeleceu que
AUTORA DATA TRADUTORA as mulheres em idade fértil deviam ser
F Anna Moore 24.05.2020 Ana Marques excluídas dos ensaios clínicos – o que
retirava, à partida, a diferença de sexos

60 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTO: GETTY IMAGES


NOS PRIMÓRDIOS DA INVESTIGAÇÃO MÉDICA SISTEMÁTICA,
ESTABELECEU-SE QUE AS MULHERES EM IDADE FÉRTIL Alyson McGregor apresenta o exemplo
DEVIAM SER EXCLUÍDAS DOS ENSAIOS CLÍNICOS de uma paciente na casa dos 40 anos que,
devido a dores nas costas, se viu envolvi-
– O QUE RETIRAVA, À PARTIDA, A DIFERENÇA DE SEXOS da numa espiral medicamentosa clássica:
analgésicos, depois soporíferos, depois
DO CAMPO DE ANÁLISE hormonas esteroides, depois ansiolíticos
e, finalmente, antibióticos para uma cis-
tite. Na opinião da médica, foi justamente
do campo de análise. Essa decisão funda- momentos do ciclo menstrual, o que pode esse cocktail que provocou a morte sú-
mentava-se na necessidade de as proteger; apresentar alguns perigos. bita da paciente, por paragem cardíaca,
todavia, para a profissão médica e a indús- Particularmente assustador é o efeito fenómeno “bem mais frequente do que
tria farmacêutica, o método apresentava a dos tratamentos no nosso intervalo QT– a muitos médicos reconhecem”. Um estudo
vantagem de acelerar o trabalho, torná-lo duração da contração cardíaca. O QT da alemão demonstrou que 66% das pessoas
mais rápido e mais barato e, sobretudo, de mulher já é mais longo do que o do homem que sofrem de síndrome do QT longo são
excluir variáveis incómodas como os ciclos devido ao aumento dos níveis de testoste- mulheres – e, destas, 60% dos casos estão
menstruais e as alterações hormonais. rona nos rapazes, durante a adolescência. associados à toma de medicamentos.
Em Sex Matters, Alyson McGregor Verifica-se que numerosos medicamentos “A hidroxicloroquina, medicamento
estabelece uma lista de casos em que os prescritos — analgésicos, antidepressivos, [muito mediatizado ultimamente] em fase
fármacos existentes podem ser inefica- anti-histamínicos, antibióticos – apresen- de ensaio clínico para tratamento da Co-
zes nas mulheres. Estas metabolizam de tam, como efeito secundário, o prolonga- vid-19, também apresenta, como efeito
forma diferente as moléculas (o que se mento progressivo do QT. Em mulheres secundário, o alongamento do intervalo
deve a diversas razões, em primeiro lugar que acumulam vários tratamentos (e, esta- QT. Antes de a prescrever a uma mulher
hormonas diferentes e funcionamentos tisticamente, é mais provável as mulheres é aconselhável medir o seu QT, mas essa
enzimáticos diferentes), o que significa tomarem vários medicamentos), o risco hipótese nem sequer tem sido equaciona-
que certas substâncias se mantêm mais desses prolongamentos acumulados pode da”, afirma McGregor. A médica constata
tempo no seu organismo ou podem re- ir de uma simples arritmia até uma para- ainda que, na corrida à vacina contra a
velar-se menos eficazes em determinados gem cardíaca súbita e consequente morte. Covid, são levados em conta os protocolos

MARÇO 2021 - N.º 301 61


Saúde

de investigação clássicos (células masculi- que doenças autoimunes como o lúpus


nas, animais machos, nenhuma distinção apareçam com muito maior frequência
homem-mulher na análise dos ensaios com em mulheres. Mas a probabilidade de o
seres humanos), o que poderá conduzir a diagnóstico ser psiquiátrico e não físico é
perigosas lacunas no conhecimento obtido. muito superior nas mulheres do que nos
homens (crise de ansiedade e não crise
Desigualdade na crise cardíaca cardíaca), assim como é muito mais pro-
Alguns aspetos tratados em Sex Matters vável que as mulheres recebam conselhos
já são sobejamente conhecidos. A British relativos ao seu modo de vida do que in-
Heart Foundation lançou uma campanha dicação para realizar um exame radio-
com uma duração de três anos [iniciada lógico quando apresentam síndrome do
há cerca de um ano e meio] para esbater intestino irritável – e, no caso das “doen-
aquilo a que chama de “desigualdades ho- ças de senhoras” como a endometriose,
mens-mulheres perante a crise cardíaca” provavelmente receberão como resposta
– uma mulher britânica tem um risco su- que as dores são “normais”.
perior em 50% de um primeiro diagnóstico
errado e, mesmo quando corretamente Dor minimizada
diagnosticada, é muito menos provável que Amanda Williams, responsável pelo depar-
receba o tratamento que a poderia salvar. tamento de Psicologia Clínica no Univer-
Uma das razões para isso reside no facto sity College, de Londres, reconhece que as
de os sintomas das mulheres nem sempre dores das mulheres são, frequentemente,
se enquadrarem nos modelos centrados minimizadas. Na sua opinião, “isto está
nos homens. Nestes, a placa [de ateroma] demonstrado em estudos com pacientes.
tende a acumular-se, o que provoca uma Os analgésicos são menos prescritos às
rutura das artérias. Nas mulheres a placa mulheres. Quando um homem se queixa
tende a erodir-se progressivamente, tor- de uma dor, pensa-se que tem dores for-
nando os vasos progressivamente mais tes. Quando uma mulher afirma que tem
rígidos e menos flexíveis. muitas dores, conclui-se que tem uma dor
Julie Ward é enfermeira-chefe no Ser- mínima e que está a exagerar.”
viço de Cardiologia na British
Heart Foundation. Trabalhou
para o grupo parlamentar in- AS DORES DAS MULHERES SÃO, FREQUENTEMENTE,
dependente no âmbito da cam-
panha da fundação. Explica: “A MINIMIZADAS. OS ANALGÉSICOS SÃO MENOS PRESCRITOS
gestão das doenças coronárias
é um assunto de homens. As ÀS MULHERES. QUANDO UM HOMEM SE QUEIXA DE UMA DOR,
mulheres são tratadas por ho-
mens, que se baseiam em in-
PENSA-SE QUE TEM DORES FORTES. QUANDO UMA MULHER
vestigação efetuada em homens AFIRMA QUE TEM MUITAS DORES, CONCLUI-SE
por homens. A nossa campanha
visa, nomeadamente, encorajar QUE TEM UMA DOR MÍNIMA E QUE ESTÁ A EXAGERAR
mais mulheres britânicas a par-
ticiparem em ensaios clínicos e
incentivar mais mulheres a tornarem-se Segundo Amanda Williams, esta ten-
cardiologistas.” dência deriva do darwinismo e da crença
Também no tratamento da dor as mu- numa longa “cadeia de seres” que situa os
lheres saem a perder. Estudos epidemio- homens no topo da hierarquia e as mu-
lógicos mostram que as mulheres são mais lheres em baixo. A forma como era vista a
atreitas à dor, quer se trate de enxaqueca dor refletia o poder e o estatuto social. “Os
ou de distúrbios musculoesqueléticos. Um negros suportavam sevícias e condições
dos primeiros motivos está na interação de vida atrozes, logo, eram considerados
de hormonas sexuais, neurotransmis- menos sensíveis à dor. Quanto às dores
sores (dopamina, serotonina) e sistema de parto, significavam que as mulheres
nervoso central. (Um estudo efetuado em eram hipersensíveis, propensas à histeria.” organismo nacional que se propõe integrar
transexuais demonstrou que metade das Os brancos europeus ocupavam o meio o conhecimento sobre sexo e género no
pessoas que fazem a transição de mulher virtuoso da escala. ensino da medicina e na prática clínica.
para homem registam uma diminuição A situação é pouco animadora, mas Observa: “Já houve uma enorme evolu-
da dor crónica). Alyson McGregor mantém a convicção de ção. Quando comecei a falar do assunto
Por outro lado, os cromossomas X das que as coisas estão a mudar. Atualmente, ninguém percebia do que se tratava nem
mulheres provocam reações imunitárias é uma conceituada especialista em sexo e alcançava toda a importância do tema.
agressivas, muito eficazes para combater género na Medicina de Urgência da Univer- Mas quase todos os médicos são sensíveis a
as doenças, mas que têm tendência para sidade de Brown, e uma das cofundadoras números e, atualmente, existem imensos
atacar o próprio organismo. Isso explica do Sex and Gender Health Collaborative, dados que mostram como a diferença dos

62 MARÇO 2021 - N.º 301


sexos pode ser importante. Hoje, quando significativa, ainda que a amplitude da Médico a examinar uma mulher,
falo destas questões, as reações são muito aposta pareça desmedida. Reconhece, sa- nos anos 20 do século passado
diferentes.” tisfeita: “A tarefa é colossal, sim. Não vou FOTO GETTY IMAGES
Alyson McGregor escreveu Sex Ma- mentir. Qualquer hipótese baseia-se na
tters para sensibilizar um público mais hipótese anterior e assim sucessivamente,
vasto para o problema. “O assunto é e foram sempre homens que formularam
demasiado importante para podermos essas hipóteses. Infelizmente, temos de
esperar que a mudança venha do topo partir da estaca zero. Mas acredito que
da hierarquia”, defende. Calcula que dez existe uma obrigação moral para com
anos serão suficientes para uma mudança metade da população.”

MARÇO 2021 - N.º 301 63


Ciência

ANTROPOLOGIA
Um outro
olhar sobre
o tamanho
A Ciência explica a diferença de altura entre as mulheres e os homens
essencialmente pela seleção sexual. E se houvesse outras causas?
Le Temps
Lausanne

Quando era criança, Holly machos maiores do que elas. Estes dois

Q Dunsworth jogava basque-


tebol e sonhava ser alta e es-
elementos combinados teriam excluído
os homens mais baixos, sacrificados no
belta para poder voar até ao altar da evolução.
cesto. “Estava no bom caminho”, explica. Mas será esta explicação suficiente?
Depois apareceu-me o período. Vi os ra- Louise Barrett, antropóloga da Universi-
pazes ficarem cada vez mais altos e o meu dade de Lethbridge (Canadá) e autora de
crescimento parar.” vários artigos sobre dimorfismo sexual,
A aspirante a jogadora de basquetebol, acredita que “são necessárias provas e da-
agora professora de Antropologia Física dos mais fortes para fundamentar uma
na Universidade de Rhode Island, estava teoria da evolução masculina baseada em
longe de imaginar que iria publicar, al- comportamentos e traços específicos. No
gumas décadas depois, um artigo acerca entanto, em tudo o que li, os argumentos
das razões biológicas do seu crescimen- são muitas vezes fracos. Não quer dizer
to demasiado breve na adolescência. Um que a seleção sexual deva ser completa-
texto que questiona a teoria da seleção mente excluída da evolução, mas até hoje
sexual, avançada durante 150 anos, para as provas nesse sentido são inexistentes.”
explicar a diferença de altura entre homens Holly Dunsworth acredita que encon-
e mulheres. trou uma explicação melhor. A sua pesqui-
Desenvolvida pelo naturalista britânico sa, publicada em maio passado na revista
Charles Darwin no seu livro The Filiation Evolutionary Antropology, centra-se no
of Man and Gender Selection, publicado desenvolvimento ósseo e no estrogénio,
em 1871, a teoria da seleção sexual con- hormona sexual produzida pelos ovários
tinua a ser a explicação mais aceite para e, em menor quantidade, pelos testículos.
o dimorfismo sexual. O estrogénio tem uma influência decisiva
“As diferenças entre machos e fêmeas no crescimento ósseo.
na Natureza são explicadas pela seleção Durante a infância, meninos e meninas
sexual, através de dois mecanismos princi- crescem mais ou menos à mesma veloci-
pais: a competição entre machos e a esco- dade. Mas com a puberdade, tudo muda:
lha das fêmeas”, afirma Michel Raymond, os ovários aumentam consideravelmente
professor de Biologia Evolutiva Humana a produção de estrogénio para preparar
na Universidade de Montpellier (França). o primeiro período, resultando daí um
Os machos maiores, mais fortes e mais aumento do desenvolvimento das carti-
combativos teriam assim vantagem rela- lagens de crescimento e o alongamento
tivamente aos seus congéneres, no que rápido dos ossos. Eis a razão pela qual as
respeita a conquistar as fêmeas, enquan- raparigas são geralmente maiores do que
to estas teriam uma atração natural por os rapazes, no início da adolescência.

AUTOR DATA TRADUTORA


F Romain Raynaldy 12.10.2020 Ana Marques

64 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTO: GETTY IMAGES


Mas como um nível muito elevado de
hormonas também acelera a ossificação das
cartilagens, este crescimento é de curta
duração nas meninas, enquanto os rapazes
continuam a produzir os seus estrogénios
a um ritmo constante e, portanto, a cres-
cer durante vários anos. Isto explicaria
as diferenças de altura na idade adulta.

Seleção sexual?
Michel Raymond não está convencido com
esta explicação: “Esclarece bem como as
hormonas afetam a altura, mas não res-
ponde à questão do porquê. Em termos de
evolução, a diferença de altura não pode
ser neutra. Se em qualquer população o
homem é sempre mais alto do que a mu-
lher, então deve existir uma razão.”
Marcia Ponce de Leon, paleantropolo-
gista da Universidade de Zurique (Suíça),
... discorda. “Pressupostos como ‘tal animal
evoluiu por tal razão’ são muito comuns,
Durante a infância, e tendemos a aceitar certas explicações
devido à sua aparente simplicidade, em
meninos e meninas vez de exigirmos provas científicas reais”,
crescem mais ou lamenta. “Nunca há uma única respos-
menos à mesma ta para uma pergunta sobre a evolução.
Precisamos de diferentes perspetivas e de
velocidade. Mas, dados fiáveis.”
com a puberdade, Como ela própria salienta, esta é apenas
tudo muda: os uma tese, mas o mero questionamento da
palavra darwiniana é visto como um ato
ovários aumentam de rebelião, tingido de feminismo – um
consideravelmente termo usado por Michel Raymond para
descrever o artigo de Holly Dunsworth.
a produção de “Quanto tantos cientistas se agarram à
estrogénio para teoria de que a seleção sexual é a única
preparar o primeiro explicação, quem não concorda é visto
como anticiência, como uma feminista
período, resultando que não sabe o que está a dizer.”
daí um aumento do Louise Barrett acredita que “assim que
desenvolvimento das se estuda como os homens e as mulheres
diferem, cai-se na política”. Segundo ela,
cartilagens explicações simplistas da evolução “man-
de crescimento e o têm a fantasia da ordem natural das coisas.
Seríamos programados para ser assim”.
alongamento rápido Por isso, é fácil cair nos clichés do género:
dos ossos “As mulheres são mais carinhosas, por isso
das raparigas querem ser enfermeiras. E não importa se
um cientista informático ganha mais do
que uma cientista informática. Parte-se
do princípio de que ela não está a fazer o
trabalho corretamente.”
Num mundo científico ainda domi-
nado maioritariamente por homens, “as
perspetivas das mulheres estão a ganhar
terreno, mas muito lentamente e enfren-
tando uma forte resistência dos homens
e, infelizmente, de algumas mulheres”,
observa Marcia Ponce de Leon. “Quando
se é uma cientista, há que lutar para mu-
dar hábitos e criar novas formas de fazer
perguntas.”

FOTO GETTY IMAGES


MARÇO 2021 - N.º 301 65
BARACK
OBAMA
“A narrativa
e a literatura
são mais essenciais
do que nunca”
O EX-PRESIDENTE DOS EUA RELEMBRA AS LEITURAS QUE ALIMENTARAM
O SEU ESTILO MAS QUE TAMBÉM FORJARAM O HOMEM EM QUE SE TORNOU,
AS SUAS CONVICÇÕES E OS SEUS COMPROMISSOS. UMA ENTREVISTA
CONDUZIDA PELO FAMOSO CRÍTICO LITERÁRIO DO NEW YORK TIMES
MICHIKO KAKUTANI APÓS A PUBLICAÇÃO DAS MEMÓRIAS DE BARACK
OBAMA, INTITULADAS UMA TERRA PROMETIDA

THE NEW YORK TIMES NOVA IORQUE

Barack Obama na biblioteca da


Harvard Law Review, em 1990
FOTO GETTY IMAGES

66 MARÇO 2021 - N.º 301


Barack Obama

dom que aperfeiçoou durante os seus anos


como assistente social e professor de Di-

O
reito Constitucional.
A propósito dos seus autores norte-
-americanos favoritos, o ex-Presidente
nota que partilham algumas caraterísticas
comuns: “Quer seja Whitman, Emerson,
Ellison ou Kerouac, todos presidem ao seus
destinos e abraçam as contradições. Pa-
rece-me que está no nosso ADN, e tem
estado desde o início, porque vimos de
todo o lado e contemos multidões. Esta tem
sido sempre a promessa da América, e é
isso que por vezes a torna tão conflituosa.”
As reflexões de Obama sobre literatura,
política e história estão enraizadas na sua
juventude de leitor insaciável. Durante a
sua adolescência no Hawai, leu autores
afro-americanos como James Baldwin,
O livro Uma Terra Prometida, as me- crita do seu livro e o papel formativo que a
Ralph Ellison, Malcolm X, Langston Hu-
mórias de Barack Obama publicadas em leitura desempenhou desde a adolescência,
ghes, Richard Wright, Zora Neale Hurston
novembro, é diferente de qualquer outra moldando as suas ideias sobre política e
e W. E. B. Du Bois para assegurar a sua
autobiografia presidencial, quer se olhe história, mas também o seu estilo literário.
“educação como homem negro nos Estados
para o passado... ou mesmo para o futuro. Fala dos autores que admira e que o inspi-
Unidos da América”. E quando iniciou os
O livro reconstitui realmente os seus anos raram, o caminho que o levou a encontrar
estudos na Universidade de Columbia, no
na Casa Branca e pormenoriza as priorida- a sua voz como autor, mas também o papel
início dos anos 80, pôs de lado os seus
des da sua administração, desde a reforma da narrativa ao serviço da empatia radical,
hobbies de juventude – desporto, festas,
ociosidade – para se tornar “uma pessoa
dos cuidados de saúde até à recuperação para recordar às pessoas o que têm em
séria”.
económica, passando pelas alterações comum – os sonhos, aborrecimentos e as
climáticas. Mas este livro é também um tristezas da vida quotidiana que muitos
Coloca esta expressão entre aspas
autorretrato introspetivo, escrito na prosa partilham apesar das divisões políticas.
porque, explica, “fiz isto num estado
fluida e premonitória que fez do seu pri- de espírito tenebroso e tornei-me uma
meiro livro, My Father’s Dreams (1995), Procura de fio condutor espécie de eremita durante alguns anos.
uma fascinante saga familiar. Eu ia à escola, passeava por Nova Iorque,
Barack Obama fala devagar e pesa as
normalmente sozinho, lia e escrevia no
A história da sua passagem à vida adul- palavras, mas exprime-se com a fluidez
ta tomava aí forma de uma longa medi- informal que carateriza os seus livros:
meu diário. Interrogava-me sobre as mi-
tação sobre a sua identidade
e a questão racial. Do mesmo
modo, Uma Terra Prometida “COMO MUITOS OUTROS, QUANDO PENSO NA APRENDIZAGEM
apoia-se no improvável percur-
so de Barack Obama – à margem DA MINHA ESCRITA E NAQUELES QUE IMITEI, A VOZ QUE ME VEM
da paisagem política, ele é im- SEMPRE À MENTE É A DE JAMES BALDWIN. EU NÃO TINHA O SEU
pelido para a presidência e con-
ta os seus dois primeiros anos TALENTO, MAS, COMO ELE, TINHA UMA HONESTIDADE MORDAZ
na Casa Branca – para explorar
certas dinâmicas de mudança E UMA ALMA GENEROSA. TODOS OS SEUS LIVROS
e renovação que moldaram a
história americana durante
ME INFLUENCIARAM ENORMEMENTE”
250 anos.
Este relato testemunha o talento narra- vai e vem livremente entre o íntimo e o
tivo de Barack Obama, mas também a sua político, o anedótico e o filosófico. Quer
convicção de que nestes tempos de divisões fale de literatura, de acontecimentos po-
“a narrativa e a literatura são mais essen- líticos recentes ou das estratégias da sua
ciais do que nunca”, acrescentando que administração, as suas observações, tal
“precisamos de tornar explícito uns aos como a sua prosa, são animadas pela sua
outros quem somos e para onde vamos”. capacidade de encontrar um fio condutor
Durante a nossa entrevista telefónica entre fatores sociais, culturais e históricos,
no final de novembro, Obama evoca a es- e de contextualizar ideias complexas – um

AUTORA DATA TRADUTORA


F Michiko Kakutani 08.12.2021 Helena Araújo

68 MARÇO 2021 - N.º 301


Todos os livros de Barack Obama foram não têm qualquer responsabilidade – de
escritos à mão, em blocos de notas questionar a sua identidade. Encontrei-me,
FOTO GETTY IMAGES de repente, em bairros onde as pessoas fa- O peso das palavras
ziam o que podiam para pagar as contas,
nhas convicções mais profundas e sobre proteger os filhos, manter os laços sociais; É um dos marcos da vida política
o sentido a dar à minha vida”. estas pessoas tinham, muitas vezes, sido americana: uma declaração
Fazia “muitas listas naquela altura”, despedidas. A minha missão era ajudá-las. de política geral, um exercício
diz. “Ouvia falar de um livro, lia-o, e se ele E a sabedoria, a força, a coragem, o bom obrigatório para cada Presidente.
fizesse referência a outro livro, ia procu- senso de todas elas lembrou-me que eu Em 2015, o discurso do Estado
rá-lo. E, por vezes, contentava-me com o estava a passar para segundo plano ao fazer da União aconteceu a 20 de
que encontrava nas estantes de livros em este trabalho.” janeiro. No dia seguinte, a revista
segunda mão porque tinha um orçamento THE ATLANTIC colocou online uma
bastante apertado.” Inspiração literária infografia muito completa que
Lia tudo: clássicos de Hemingway, Em Chicago, Obama começou a escre- regista a frequência de certas
Dostoyevsky, Cervantes, romances como ver contos curtos, relatos melancólicos, palavras nos 224 discursos do
Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, e contemplativos inspirados por alguns Estado da União proferidos pelos
The Golden Notebook, de Doris Lessing, ou dos seus encontros no âmbito do traba- presidentes americanos.
ainda os livros de Robert Stone. Leu obras lho de ação social. Com estas histórias e o Esse trabalho demonstrou que as
filosóficas, poéticas e históricas, assim diário que continuava a escrever, cultivou mulheres fizeram uma entrada
como biografias, memórias e outras como as qualidades literárias que encontramos tardia nos textos presidenciais:
Gandhi’s Truth, de Erik Erikson, sobre as em Uma Terra Prometida: um sentido de com exceção de George
origens do ativismo não violento. fixação e um estado de espírito; uma forte Washington, foi preciso esperar
Não só era um leitor voraz, como ab- autocrítica da sua candidatura presiden- por Abraham Lincoln para que o
sorvia e digeria as ideias que encontrou em cial: “ ...estava eu ainda e sempre a tentar género feminino fosse evocado.
todos estes livros, para depois assimilar provar o meu valor aos olhos de um pai A palavra “mulheres” passou
aquelas que conseguia relacionar com o que me tinha abandonado, a mostrar-me quase um século sem ter sido
seu percurso e os seus valores. Nessa altura, digno das esperanças que a minha mãe pronunciada. Ao contrário, os
recorda Obama, “tudo estava impregnado tinha depositado em mim, deslumbrada índios desapareceram do léxico
de uma gravidade existencial”, e só re- de amor pelo seu único filho?[p. 104]”; e presidencial... talvez substituídos
cuperou o seu sentido de humor quando um presente para os retratos incisivos de por “nativos americanos”. Quanto
chegou a Chicago e começou a trabalhar Dickens, conselheiros estrangeiros, elei- às palavras mais frequentemente
como assistente social. tos e líderes estrangeiros. Ele observa em utilizadas por Barack Obama
“Dei um passo atrás. Conhecemos bem Vladimir Putin, então primeiro-ministro nos seus discursos, elas são
o umbiguismo dos jovens que se levam de- da Rússia, “uma indiferença exercida na “americanos” e “nós”.
masiado a sério, que se dão ao luxo – porque voz, indicando que estava habituado a estar

MARÇO 2021 - N.º 301 69


Barack Obama

“A PRIMEIRA COISA QUE ME VEM À MENTE É A POESIA


DE WHITMAN, O GRANDE GATSBY, DE FITZGERALD,
AS VINHAS DA IRA, DE STEINBECK, A CANÇÃO DE SOLOMON,
DE MORRISON, PRATICAMENTE TODOS OS HEMINGWAY
OU FAULKNER, E PHILIP ROTH, CUJOS ROMANCES CAPTAM
AS TENSÕES DOS GRUPOS ÉTNICOS QUE PROCURAM
ASSIMILAR TANTO O QUE SIGNIFICA SER AMERICANO
COMO O QUE SIGNIFICA PERMANECER UM ESPECTADOR”

éramos e como era o mundo à nossa volta,


de dizer os locais onde nos encaixamos e
onde não nos encaixamos”.
Mais tarde, querendo pôr as suas his-
tórias no papel e encontrar uma voz que
refletisse o seu diálogo interior, Obama
estudou os autores que admirava. “Como
muitos outros, quando penso na apren-
rodeado de subordinados e suplicantes [p. civis] em março de 2015 e o discurso após dizagem da minha escrita e naqueles que
575]”, e, ao mesmo tempo, um homem o massacre de nove paroquianos afro-a- imitei, a voz que me vem sempre à mente
que encenava as suas fotografias “com a mericanos por um supremacista branco na é a de James Baldwin. Eu não tinha o seu
meticulosidade de um adolescente no Ins- igreja de Charleston, na Carolina do Sul, talento, mas, como ele, tinha uma hones-
tagram [p. 570]”. em junho de 2015. Esta determinação em tidade mordaz e uma alma generosa; ele
As leituras de Obama nos seus 20 e 30 encontrar “a esperança perante a incerteza” tinha aquela faculdade paradoxal de olhar
anos, associadas ao amor a Shakespeare e continua a alimentar hoje o seu otimismo – para as coisas com franqueza e manter a
à Bíblia, assim como o fervoroso estudo de esperança levada pela mobilização de uma compaixão mesmo por aqueles que des-
Lincoln, Martin Luther King e Reinhold nova geração, cuja força era incontestável prezava, desconfiava ou que o enfureciam.
Niebuhr, moldaram a sua perspetiva sobre nas grandes manifestações [contra a vio- Todos os seus livros me influenciaram
a História: os Estados Unidos da América lência policial e pela justiça racial] que se enormemente.”
aparecem como um país em constante devir seguiram à morte de George Floyd. Barack Obama foi também inspirado
onde, nas palavras do ativista antiescla- por escritores cujas opiniões políticas di-
vagista Theodore Parker, frequentemente Sonhos e diferenças comuns feriam das suas, por exemplo V.S. Naipaul.
citado por Martin Luther King, “o arco do O íntimo e o político estão estreitamente Embora exasperado pela “defesa rabugenta
universo moral é longo, mas tende para ligados na literatura afro-americana – das do colonialismo” deste nobelizado autor
a justiça”. primeiras narrativas de escravos até às auto- britânico, Obama diz-se fascinado com os
Olhando para o passado – o imenso pe- biografias de Frederick Douglass e Malcolm argumentos de Naipaul, que “em poucos
cado da escravatura e as suas repercussões X – e enquanto o jovem Obama edificava traços, sabia esboçar um retrato, partir de
sentidas até ao presente – ao mesmo tempo a sua base filosófica, escrevia também in- uma história individual, de uma aventura
que apela ao trabalho para aproximar o país tensamente no seu diário, uma reflexão ou de um acontecimento, e ligá-los a temas
de uma terra prometida, Martin Luther sobre a dissonância racial, social e familiar e correntes históricas mais vastas”.
King e John Lewis [figura da luta pelos di- da sua própria vida. E acrescenta: “Há fragmentos de certos
reitos civis e antigo congressista democrata Segundo ele, os americanos têm os mes- autores que de alguma forma copiamos –
da Geórgia] colocavam o movimento dos mos sonhos e são capazes de ultrapassar picamos, colamos e, com o tempo, acaba-
direitos civis numa continuidade histó- as suas diferenças – uma convicção que mos por ter treino suficiente para sentir
rica, invocando o longo caminho bíblico, articulou mais tarde no discurso de 2004 confiança.”
do sofrimento à redenção. na Convenção Nacional Democrática que o
A análise destes pensadores e ativistas introduziu na cena política – e que não só faz O exemplo de Lincoln
levou ao que Obama chama a lição “nie- eco do final do romance Homem Invisível, O académico Fred Kaplan, autor de uma
buhriana”, segundo a qual podemos ter de Ralph Ellison (onde o narrador conclui biografia de Abraham Lincoln, traça parale-
“uma perspetiva lúcida do mundo e das que “a América é tecida de muitas fibras” los entre Lincoln e Barack Obama: sublinha
suas realidades – crueldades, pecados, ga- e que “o nosso destino é tornarmo-nos a sua escrita virtuosa e o seu “temperamen-
nância e violência – e, apesar de tudo, não um só e ainda assim diverso”), mas que to ideal” para a presidência – estoicismo,
desistir da esperança e das potencialidades, constitui também uma parte intrínseca da flexibilidade e vontade de ouvir múltiplas
erigidas num ato voluntário e numa aposta sua história familiar, uma vez que a mãe perspetivas.
no futuro”. É uma convicção profunda que nasceu no Kansas e o pai cresceu no Quénia. Tal como a de Lincoln, a voz de Oba-
anima os discursos mais fortes de Obama, No liceu, diz Obama, ele e uma “mati- ma – em pessoa e por escrito – é elástica,
em particular o discurso comemorativo do lha de amigos” – muitos dos quais se sen- ao mesmo tempo familiar e eloquente,
50º aniversário da Marcha Selma [o culmi- tiam à margem – descobriram que “contar divertida e reflexiva, e dá lugar tanto a
nar do movimento de luta pelos direitos histórias era uma forma de explicar quem argumentos de senso comum como a
meditações melancólicas (as cataratas do teriores. Considera que o computador dá Best-seller
Niágara evocavam a Lincoln a fugacidade “uma máscara enganadora a pensamentos
do ser vivo; um desenho numa pirâmide mal trabalhados”, razão pela qual os seus O primeiro volume das memórias do
egípcia levou Obama a dizer que o tempo rascunhos são escritos à mão em blocos de 44º presidente dos Estados Unidos da
reduz a pó todos os esforços humanos). notas. Faz depois as primeiras revisões e América foi publicado em novembro.
Os dois presidentes – juristas dotados alterações ao transcrever estes textos para Com uma colossal primeira tiragem:
de uma sensibilidade poética – forjaram as o computador, fazendo assim uma primeira três milhões de exemplares só para
suas identidades e os seus caminhos naquilo edição do texto. Nota que é “muito meticu- o mercado dos EUA. O livro cobre
que Fred Kaplan chama “o cadinho da lin- loso” na escolha de canetas e que a altura “parte da vida política inicial [de
guagem”. Obama foi marcado na infância mais propícia para escrever é entre as 22h Barack Obama] e da sua campanha
pela “singularidade da sua ascendência” e a e as 2 horas: “Acho que o mundo está a presidencial de 2008 e termina com a
navegação entre vários mundos, dando-lhe ficar mais pequeno, e isso é bom para a morte de Osama bin Laden, em 2011.
a impressão de ser “um ornitorrinco ou uma minha imaginação. É um pouco como se Foi publicado simultaneamente em 25
criatura imaginária, […] inseguro do lugar tudo estivesse envolto em escuridão e um línguas (em Portugal, pela Objetiva).
que [ele] ocupava no mundo [p. 26]”. Mas raio metafórico iluminasse a secretária e “O que é invulgar nas memórias de
o processo da escrita, salienta, ajudou-o a a página.” um Presidente é que o sr. Obama não é
“integrar todos estes fragmentos de mim Enquanto escrevia Uma Terra Prome- apenas um político, ele é também um
num todo relativamente completo”, per- tida, Obama não leu muito, talvez porque escritor”, escreveu o NEW YORK TIMES,
mitindo-lhe ter, com o tempo, “uma ideia tivesse receio de “encontrar pretextos para na altura do seu lançamento. Os livros
bastante boa” de quem era. procrastinar”, talvez porque se deixa engo- anteriores de Barack Obama (Dreams
Este recuo sobre si próprio manifestou- lir pelos livros que mais gosta e pelas vozes from My Father e The Audacity of
-se então num ar calmo e controlado; foi dos seus autores. Mas assim que terminou as Hope) tinham sido ambos elogiados
também esta qualidade que lhe permitiu suas memórias, não tardou a abrir o último pelas suas qualidades literárias.
sair da Casa Branca – uma espécie de panela romance da sua amiga Marilynne Robinson,
de pressão – sem ter perdido a sua escrita Jack, a ver uma nova temporada da série
matizada e autocrítica. The Handmaid’s Tale, e o último livro do
escritor, dramaturgo e argumentista Ayad
Pesquisa facilitada Akhtar, Homeland Elegies, a que Obama
Obama explica que não teve tempo, durante chama “um exame poderoso e profundo
a presidência, para manter um diário, mas da política e comportamento americanos
rabiscava a história dos momentos cruciais. no nosso tempo”.
Recorda a altura em que, numa viagem a Pergunto-lhe que recomendações lite-
Copenhaga para uma cimeira sobre o clima, rárias faria a alguém que acabou de chegar
ele e a secretária de Estado Hillary Clinton aos Estados Unidos da América e está an-
se infiltraram numa reunião dos líderes sioso por compreender este país complexo
da China, do Brasil, da Índia e da África e, por vezes, desconcertante? soltaram-se, desfizeram-se por razões que
do Sul porque eles estavam “a evitar e a “A primeira coisa que me vem à mente Tocqueville antecipou”, e que “a atomiza-
fugir a um compromisso que anos mais é a poesia de Whitman, O Grande Gatsby, ção, a solidão e a desintegração do coletivo”
tarde resultaria no Acordo de Paris”. No de Fitzgerald, As Vinhas da Ira, de Steinbe- enfraqueceram a democracia.
final da reunião, escreveu imediatamente ck, A Canção de Solomon, de Morrison, “Não é preciso estar colado aos canais
o ambiente da cena e o que tinha sido dito praticamente todos os Hemingway ou de notícias para ter a impressão, por vezes,
– ele sabia que aquilo daria, mais tarde, Faulkner, e Philip Roth, cujos romances de estar fechado numa Torre de Babel onde
uma boa história. captam tanto as tensões dos grupos étnicos nem sequer conseguimos ouvir as vozes
Obama nota que há 20 anos teria pre- que procuram assimilar tanto o que sig- dos vizinhos”, diz. Mas se a literatura e a
cisado de um exército de documentalistas nifica ser americano como o que significa arte são capazes de “lembrar-nos a nossa
para escrever memórias presidenciais mas, permanecer um espectador.” loucura e os nossos e preconceitos, o nosso
graças à internet, basta-lhe agora “digitar Quanto aos ensaios, aconselha as auto- egoísmo e a nossa miopia, os livros, as obras
‘Obama’ e uma data ou um assunto num biografias de Frederick Douglass e de Mal- de arte e as histórias podem também lem-
motor de busca para encontrar instanta- colm X, Walden, de Henry David Thoreau, brar-nos das alegrias, esperanças e beleza
neamente todos os artigos – ou consultar Self Reliance, de Emerson, o discurso de que nos unem”.
[os seus] discursos, [a sua] agenda ou [as Lincoln na sua segunda investidura [em “Quer estejamos a falar de arte ou
suas] aparições públicas. A escrita propria- 1865], e A Letter from a Birmingham Jail, política, ou simplesmente a colocar um
mente dita não tem sido por isso menos escrita por Martin Luther King. E Da De- pé à frente do outro todos os dias, é útil
lenta e laboriosa. mocracia na América, de Tocqueville, que procurar essa alegria onde ela está, e fazer
“É algo em que insisto muito e tento nos lembra que “a América encarnava real- prevalecer a esperança sobre o desespero.
transmitir às minhas filhas e a qualquer mente uma rutura com o velho mundo. Todos vemos as coisas de forma diferente,
pessoa que me faz perguntas sobre a escrita: Isto é algo que hoje tomamos por garantido mas acredito que o otimismo em que me
é preciso começar. É preciso pôr as palavras ou que perdemos de vista, especialmente baseei é, geralmente, o resultado de uma
por escrito. Porque nada é mais aterrador porque setores inteiros da cultura moderna capacidade de apreciar o justo valor dos
do que a página em branco”, diz. encarnavam plenamente certos elementos outros – especialmente as minhas filhas,
Barack Obama escreveu Uma Terra da América”. a minha família e os meus amigos. Mas são
Prometida – o primeiro de dois volumes Para Obama, os últimos anos mos- também as vozes que habitam os livros e as
sobre a sua presidência – tal como traba- traram que “os laços normativos que nos canções que nos lembram que não estamos
lhou nos seus discursos ou nos livros an- unem – expectativas e valores comuns – sozinhos.”

MARÇO 2021 - N.º 301 71


Natureza

INDONÉSIA
Turismo de
luxo ameaça
ilha de Komodo
Os investidores e o governo tencionam transformar
as Pequenas Ilhas da Sunda, onde vivem os dragões-de-komodo,
num destino de luxo. Para grande desgosto dos habitantes
que co-habitam com o lagarto gigante
Tempo
Jacarta

Com o corpo a pingar de suor, Grandes investimentos

C Dani balança a pá e atira terra


para preencher o buraco das
Nesta ilha, a Komodo Wildlife detém uma
concessão para desenvolver o turismo de
fundações de 54 pilares de vida selvagem numa área de 274,13 hec-
betão. O calor é abrasador nesta tarde de tares. A licença foi emitida a 23 de setem-
novembro de 2020 na Ilha de Padar, uma bro de 2014. Segundo os planos, a empresa
terra desabitada no Parque Nacional de Ko- construirá 382 villas, três spas, cinco cafés,
modo, nas Pequenas Ilhas da Sunda Orien- uma piscina e várias instalações turísticas
tal. Dani, natural de Bali, trabalha para a a um custo estimado de 669 mil milhões
companhia Komodo Wildlife Ecotourism, de rupias [39 milhões de euros]. Isto com
participando na construção de escritórios, a bênção do governo, pretendendo trans-
de uma cantina para os empregados e de formar este arquipélago que abriga animais No parque nacional
um armazém de 400 metros quadrados. com 45 milhões de anos num destino de de Komodo, apenas três
A 1 de novembro de 2020, a empresa luxo ao modelo dos safaris em África. das 47 ilhas são habitadas
inaugurou este estaleiro com uma ce- Três outras ilhas do parque nacional FOTO GETTY IMAGES
rimónia tradicional, convidando os ha- deverão receber grandes investidores. Na
bitantes das ilhas de Komodo e de Rinca. ilha de Komodo, a Komodo Wildlife obteve
No Parque Nacional de Komodo, apenas também uma concessão de 151,94 hectares
três das 47 ilhas são habitadas. A ilha de à vida selvagem de Komodo. A empresa
Komodo, a maior, estende-se por 32,169 Segara Komodo Lestari detém uma licença
hectares, metade da superfície de Jacarta. na ilha de Rinca, e a Synergindo Niagatama
Seguem-se Rinca e Papagarang. Padar fica na ilha de Tatawa. Concessões válidas por
a duas horas de lancha de Labuhan Bajo 55 anos.
[a cidade portuária na ponta ocidental da A Komodo Wildlife começou a cons-
ilha das Flores]. trução no final de 2020, seis anos após a
Dani vê, por vezes, dragões-de-komo- emissão da licença. O governo não a revo-
do a correr em direção ao vale em busca de gou, apesar de o Regulamento nº 98/2010
abrigo e comida. De acordo com os arqui- do Ministério das Florestas exigir que as
vos do Parque Nacional de Komodo, seis empresas iniciem a construção no prazo
lagartos gigantes vivem nos 1 400 hectares de um ano após a emissão de uma licença.
da ilha de Padar. Mas, neste dia, nenhum “Continuam a deparar com protestos”, diz
está à vista. O calor sufocante transforma Wiratno, diretor de Conservação de Recur-
este pedaço de terra submersa numa teia de sos Naturais e Ecossistemas do Ministério
pontos negros. Reflete-se nas águas verdes do Ambiente e das Florestas para justificar
como uma miragem. Seca. Árida. o atraso. De facto, desde 2018, os habitantes

AUTOR DATA TRADUTORA


F Não assinado 02.01.2021 Helena Araújo

72 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTO: GETTY IMAGES


MAR DAS
Ilha
Tatawa FLORES
8° 30’ Labuhan Bajo
Sul
I N D O N É S I A
Ilha de
Komodo Ilha Papagarang
Ilha das
Ilha de a Flores
inc
Padar eR
ad
Ilh
FONTE: OPENSTREETMAP CONTRIBUTORS

P e q u e n a s I l h a s d a S u n d a

OCEANO
ÍNDICO
20 km

Parque Nacional de Komodo

MARÇO 2021 - N.º 301 73


Natureza

das três ilhas têm vindo a manifestar-se O projeto pretende transformar


maciçamente contra os vários planos de este arquipélago, que abriga
desenvolvimento no Parque Nacional de animais com 45 milhões de anos,
Komodo. Preocupados com o facto de se- num destino de luxo ao modelo
rem afastados do projeto de transformação dos safaris em África
de Komodo e das suas ilhas vizinhas num FOTO GETTY IMAGES
destino turístico de alto nível com uma taxa
de entrada estimada de mil dólares por pes-
soa. Como poderiam os 1 818 habitantes da
ilha de Komodo competir com as grandes ponsáveis do Parque Nacional de Komodo e
empresas? Hoje em dia, a maioria ganha a o governador das Pequenas Ilhas da Sunda
vida a vender lembranças ou vendendo os Oriental, Viktor Laiskodat. De acordo com
seus serviços como guias. a ata, Viktor Laiskodat está alegadamente
a planear a transferência dos residentes de
Deslocalização forçada? Komodo para a ilha de Rinca.
Em 1965, a ilha de Komodo foi declarada Mesmo sem recolocação forçada dos
reserva natural pelo governo indonésio. Em habitantes, a deslocalização das barracas
1980, tornou-se um parque nacional sob turísticas obrigará de facto os ilhéus a mu-
conselho da Agência dos Estados Unidos darem-se, porque as duas horas que demo-
da América para o Desenvolvimento In- ram a chegar a Rinca a partir de Komodo
ternacional (USAID). Uma tragédia para os impedirão os comerciantes de fazerem
ilhéus. Em nome da conservação, as suas al- viagens de ida e volta durante o dia. “O
deias foram agrupadas num único enclave, povo de Rinca vende produtos semelhan-
cobrindo uma área de apenas 17 hectares. tes. Vamos fazer-lhes concorrência! Não
As suas terras foram confiscadas. Ficaram pode ser”, diz Abdul Malik, um residente
privados do direito de praticar agricultura da ilha de Komodo.
e pesca, exceto em certas zonas marítimas
limitadas. Aqueles que tentaram resistir Impacto ambiental
foram presos [a ditadura de Suharto (1966- Estas objeções e a rejeição expressa pelos
1998) estava então no poder]. O governo da insulares nos últimos seis anos atrasaram
altura pressionou-os a voltarem-se para a construção de infraestruturas turísticas
o setor turístico. por parte das empresas detentoras de con-
Hoje, Wiratno afirma que os habitantes cessões. Só em outubro de 2020, quando
não serão deslocados. “É um rumor falso”, uma imagem de um dragão-de-komodo
diz. “Onde encontraríamos o financiamento em frente a um camião de construção do
para deslocar tantas pessoas?” Segundo Ministério das Obras Públicas circulou nas
ele, o governo vai limitar-se a organizar os redes sociais, é que a opinião pública se
stands de venda dos ilhéus de uma forma apercebeu de que as obras tinham de facto
mais ordenada para os tornar conformes começado. A fotografia, que se tornou viral,
com os critérios do turismo de luxo. Devem foi tirada na ilha de Rinca que acolhe 1 607
ser agrupados na ilha de Rinca, a duas horas humanos e 1 050 dragões-de-komodo nos
de barco a partir de Komodo. Os rumores seus 20 721 hectares.
sobre a deslocação das populações não se O momento capturado por esta fotogra-
espalharam por acaso. Foram ampliados fia é histórico. É a primeira vez que um ca-
depois da divulgação da ata da reunião mião, ou outro equipamento de construção,
realizada a 23 de julho de 2019 entre res- entra no habitat do dragão-de-komodo.
Este encontro assinala também a transi-
ção deste pequeno arquipélago localizado
... a oeste da Ilha das Flores de refúgio para
os dragões durante milhões de anos para
Em 1965, a ilha de Komodo uma zona turística de valor estratégico
foi declarada reserva nacional, sob o controlo do Estado e de
natural pelo governo grandes empresas.
O recente investimento febril para re-
indonésio. Em 1980, configurar o Parque Nacional de Komodo
tornou-se um parque levou a UNESCO a reagir. Em 1991, a or-
ganização aceitou a proposta do governo
nacional sob conselho indonésio de inscrever o sítio na Lista do
da Agência dos EUA Património Mundial. “Estamos a pedir uma
para o Desenvolvimento avaliação do impacto ambiental, antes de o
plano de desenvolvimento avançar”, disse
Internacional (USAID). o representante da UNESCO, em Jacarta,
Uma tragédia para os ilhéus numa carta à Tempo.

74 MARÇO 2021 - N.º 301


MARÇO 2021 - N.º 301 75
Cultura

homem estão juntos numa sala, mas cada


um para seu lado. Ele está a ler o jornal.
Ela quase lhe vira as costas enquanto
toca algumas notas de piano sem grande
convicção. Nos meus quadros favoritos,
Morning Sun, datado de 1952 e Office in a
Small City, de 1953, uma mulher sentada
numa cama banhada pelo sol e um homem
num pequeno escritório, ambos olham
pela janela; observam o mundo, ou pelo
menos os fragmentos do mundo de que
se apercebem.
Hopper não era de modo algum um
estranho em vida: o Museu Whitney e o
Metropolitan Museum of Art (Met), dois
dos maiores museus norte-americanos,
compraram a sua obra desde os anos 30,
ARTE e o MoMA organizou uma retrospetiva
da sua obra durante essa década. Desde

A melancolia a sua morte, a sua fama tem provado ser


duradoura.
No final de 2020, Hopper voltou a estar

contagiosa
mais uma vez no centro das atenções. No
outono, o centro de arte Artechouse de
Nova Iorque organizou uma exposição
reinterpretando Nighthawks. Os artis-

de Edward tas, Noiland Collective, instalaram NHK


S4220 Bar Illusion no lugar dos bares onde
as pessoas se reuniam antes da pandemia.

Hopper As personagens foram substituídas por


uma espécie de hologramas e os visitantes
podiam colocar-se no centro da instalação
As obras do pintor americano estão a receber uma atenção renovada devido e ver a sua silhueta projetada na obra. Os
à epidemia de Covid-19. Frequentemente sozinhos ou isolados, os seus artistas explicaram que viram um paralelo
entre o mundo representado na pintura
personagens remetem-nos para a nossa solidão atual
– a angústia e a apreensão associadas à
Segunda Guerra Mundial – e o nosso.
New Statesman
Londres E não são os únicos. A 5 de de fevereiro,
Del Ray Artisans, uma galeria de arte na
Uma mulher e dois homens não quiseram reunir-se com a família e Virgínia, abriu uma exposição intitula-

U estão sentados ao balcão de


um bar. A iluminação na rua
os amigos para as festas do fim de ano,
temendo que estes contactos pudessem
da After Edward Hopper: Variations on
Loneliness and Isolation, na qual artistas
e no estabelecimento diz-nos propagar o vírus. Não organizámos serões contemporâneos reinventam Hopper. Em
que é noite. Cada um tem uma chávena para o Ano Novo, preferindo ficar em casa Covid Nighthawks reimagined, Kelly Mac-
de café. A mulher e um dos homens estão e apreciar uma refeição e um programa Conomy reinterpreta a cena, mas a mu-
sentados lado a lado, sem se saber se se de televisão com contagem decrescente. lher, os dois homens e as chávenas de café
conhecem ou se acabaram de se conhecer. Foi assim que passámos a maior parte do
O outro homem está sozinho. O empregado ano: em isolamento.
do bar, como todos os homens que traba- É precisamente o isolamento que Ho-
...
lham atrás de um balcão, está ocupado. pper pinta tão bem. Em Automat, 1927,
Isto é Nighthawks (1942), um dos célebres uma mulher está sentada sozinha à mesa. Se os artistas se voltam
quadros de Edward Hopper, um dos mais Tem um café e, embora haja outra cadeira novamente para Hopper é
famosos pintores norte-americanos. à sua frente, não se sabe se ela está à es- nomeadamente porque o
Hopper viveu de 1882 a 1967, mas pera de alguém ou se esse alguém nunca
as suas obras hoje fazem eco do nosso chegará. Early Sunday Morning, de 1930, seu trabalho recorda que
estado de espírito. O ano 2021 come- retrata várias lojas desertas – é dia, mas já passámos por tempos
çou, perseguido pela pandemia. Mui- os sinais são obscuros. Em Room in New
tos norte-americanos não puderam ou York, pintado em 1932, uma mulher e um
difíceis, no passado.
As suas criações foram
enraizadas num tempo
AUTORA DATA TRADUTORA
F Emily Tamkin 07.01.2021 Helena Araújo angustiante, assustador
e solitário como o nosso

76 MARÇO 2021 - N.º 301


Hopper viveu de 1882 a 1967,
mas as suas obras hoje fazem
eco do nosso estado de espírito

desapareceram. A sala está agora vazia. A


galeria afirma que “os artistas apresentam
as suas interpretações do que é tipicamente
americano no imaginário de Hopper: a
perseverança, a coragem, a diversidade e
um espírito igualitário face à adversidade,
ao empobrecimento e à injustiça social”.
Se os artistas se voltam novamente
para Hopper é nomeadamente porque
o seu trabalho recorda que já passámos
por tempos difíceis, no passado. As suas
criações foram enraizadas num tempo
angustiante, assustador e solitário como
o nosso. Aqui estamos de novo, décadas
mais tarde.
Além disso, as suas pinturas são fre-
quentemente evocativas de uma conexão
humana, apesar do isolamento. A mulher
de Automat pode ter-se sentido como se
tivesse sido a primeira mulher a sentar-se
sozinha à mesa num local público, embora,
claro, não tenha sido esse o caso. Gosto
desta pintura porque esta mulher está a
experimentar algo que é novo para ela, mas
que nada tem de único. Se gosto tanto de
Morning Sun e Office in a Small City, é
porque individualmente estes trabalhos
mostram uma pessoa isolada do resto do
mundo, mas juntos realçam tudo o que
temos em comum. A nossa solidão apro-
xima-nos.
Sinto-me um pouco menos solitário
quando penso nisso. Gostaria de entrar na
moldura de Morning Sun e tranquilizar a
mulher sentada na cama. Se ela esperar
um ano, um homem estará num escritório
numa pequena cidade fazendo a mesma
coisa que ela fez. E se não posso, digo a mim
mesmo que em todos os Estados Unidos da
América e em todo o mundo, as pessoas
estão a fazer a mesma coisa que eu. Fico
de fora e assim crio uma ligação com um
quadro mais vasto.
Se olharmos fixamente os quadros de
Hopper em tempo de pandemia, pode-
mos ver as semelhanças entre ontem e
hoje, mas também as diferenças. Já não
me identifico apenas com a solidão das
figuras de Nighthawks, também as invejo.
Ao contrário de nós, eles podem esfregar
ombros com estranhos nos balcões dos
bares. De todas as coisas que me inspi-
raram nos quadros de Hopper, a inveja
nunca fizera parte delas.

MARÇO 2021 - N.º 301 77


Cultura

JAPÃO com um martelo, deixando-o incapaz de se


alimentar durante vários dias, exatamente
como ele o desenhou na sua manga. Víti-

Vício do sexo ma de alucinações – acreditava ter visto


pessoas à sua volta a fazer sexo em público
–, consultou um psiquiatra. Diagnóstico:

chega à manga uma forte suspeita de dependência sexual,


incluindo uma incapacidade de controlar
os seus impulsos. A conselho do médico,
participou então num grupo de discussão
Com base na sua experiência, o japonês Ryuta Tsushima desenhou uma em que todos partilhariam os seus proble-
manga sobre a dependência sexual. Um assunto delicado de abordar – e que mas no que diz respeito ao sexo. Alguns são
faz soar o sexismo que ainda impregna fortemente a sociedade japonesa agressores sexuais, outros não conseguem
deixar de se prostituir. No início, consi-
Asahi Shimbun dera-os “diferentes” dele, mas ao ouvi-
Tóquio -los exprimir-se francamente, consegue

O herói, Ryuta Tsushima, mul- funcionava à base de adrenalina. Tinha enfrentar os seus problemas. Percebe que

O tiplica relações sexuais com


muitas parceiras. Quando a
namorada, que suspeita das
medo de desistir do sexo”, conta.
Ryuta Tsushima levava o seu papel de
mangaka (artista de banda desenhada)
está a tentar dominar as mulheres através
do sexo. Um desejo de dominação que vem
da sua baixa autoestima. Também con-
suas infidelidades, o agride à martelada, muito a sério; chegou a dormir no escri- segue confidenciar que, na sua primeira
acaba por pedir ajuda. O médico evoca tório durante dias seguidos, e as noites infância, foi vítima de abuso sexual pelo
então uma suspeita de “vício sexual”. em branco eram frequentes. Apesar da pai alcoólico.
Ryuta enfrenta-o, examina a sua vida e qualidade do seu trabalho, ele não se deu “Queixar-se e chorar são passos ne-
avança para o tratamento. conta disso, e os editores que se vergaram cessários para a cura. Quando confessava
Este é o enredo da manga “Tornei- ao artista eram detestáveis. Entre o medo que tinha estes problemas sexuais, muitas
-me viciado em sexo”. A publicação da de não conseguir fazer nome no meio e o vezes considerava-se normal, porque sou
sua versão final pela editora especializada baixo salário, podia partilhar as despesas homem, e não me escutavam com serieda-
Shueisha, que começou em março passado diárias com a namorada, mas era como de. É importante poder falar francamen-
na revista de manga para jovens Grand viver às suas custas. Tinha perdido toda a
Jump, continuou depois na Grand Jump autoconfiança. A única coisa que o manteve ...
Mecha, bimensal. Embora seja uma obra vivo foi o sexo; deixou-se arrastar numa
de ficção, baseia-se na experiência do au- espiral infernal que o deixou desgostoso Ao falar de sexo sem
tor, Ryuta Tsushima, 43 anos – que, desde consigo próprio após cada relação sexual, tabus, Ryuta Tsushima
os 20, teve relações sexuais com muitas mas era incapaz de desistir.
mulheres, que conheceu na internet. “Eu Há alguns anos, a namorada agrediu-o
espera dar aos leitores
a oportunidade de
enfrentarem e de
AUTOR DATA TRADUTORA
F Kayoko Sekiguchi 03.10.2020 Helena Araújo abordarem os seus
problemas sexuais

78 MARÇO 2021 - N.º 301 FOTO: GETTY IMAGES


te”, explica Ryuta Tsushima. Decidiu então O comportamento sexual problemático de clichés íntimos afirmam ter cometido
fazer desenhos da sua própria experiência, afeta tanto os homens como as mulheres. estes crimes sob a influência de impulsos
a fim de tornar mais conhecido este pro- Mas sem uma definição clara da expressão sexuais incontroláveis.
blema. Intitulada “Tornei-me viciado em “dependência sexual”, existem opiniões “Entre eles, há muitos que se conside-
sexo”, esta manga apareceu pela primeira divergentes entre os especialistas quanto ram superiores às mulheres, que têm valo-
vez numa série, de abril de 2018 a fevereiro à adequação do termo “dependência” a res machistas. Olhar para a violência sexual
de 2020, no site Weekly Playboy News, este fenómeno. Na sua Assembleia Geral apenas do ângulo dos impulsos sexuais leva,
da editora Shueisha. de 2019, a Organização Mundial da Saúde por vezes, a uma visão errada da natureza de
(OMS) acrescentou a expressão “compor- tal violência. É também necessário trabalhar
Subtitulo? tamento sexualmente compulsivo” à sua sobre a discriminação, que está embutida
Pensava que receberia sobretudo críticas Classificação Internacional de Doenças nos valores da sociedade japonesa”, diz
de pessoas que o acusavam de se esconder (CID-11), para referir a dificuldade em Takayuki Harada, professor na Universidade
atrás da doença, mas os fãs também lhe controlar os impulsos que afetam a vida de Tsukuba e especialista em psicologia dos
escreveram para lhe dizer que, graças a quotidiana. Como resultado, esta desor- criminosos (ajudou a criar um programa
ele, tinham iniciado uma terapia. “É uma dem é cada vez mais reconhecida em todo para prevenir a recorrência de agressões
alegria ver que a manga pode ajudar as o mundo. sexuais nas prisões). “As causas do vício

Há alguns anos, a
namorada agrediu-o com
um martelo, exatamente
como Ryuta Tsushima
desenhou na sua manga

pessoas. Isso deu-me força. Saber que sou Akiyoshi Saito supervisionou a man- sexual não podem ser generalizadas”, nota.
útil repara a minha autoconfiança.” Mais ga de Ryuta Tsushima. Assistente social A personalidade, o ambiente, a resistência
tarde, perante as reações, e a pedido do psiquiátrico e assistente social, está en- ao stresse, por exemplo, são todos fatores
próprio autor, a manga foi revista e publi- volvido, há 15 anos, num programa para estreitamente interdependentes.
cada numa “versão final”, em dezembro. prevenir a recorrência de agressões sexuais Harada observa também que a dificul-
A psicologia do herói é retratada de forma (exposição, fotos roubadas, pedocrimi- dade no tratamento destas perturbações
mais fina nesta versão [que apareceu] em nalidade, etc.), na clínica Enomoto, no reside frequentemente no facto de a re-
forma de livro. distrito de Toshima, Tóquio. De acordo petição dos atos – experimentada como
“Desenhei esta manga para o homem com Saito, há duas categorias principais de forma de aliviar o stresse ou satisfazer a
que eu era antes, aquele que estava per- dependência sexual. A primeira, que con- necessidade de dominação – vir a desem-
dido no sexo. Gostaria que fosse lido por siste em relações de risco com um grande penhar um papel importante para a pessoa.
prazer e, ao mesmo tempo, para aumentar número de parceiros ou, por exemplo, na “É uma armadilha em que indivíduos que
a consciência sobre o vício sexual”, diz acumulação de dívidas através de relações têm poucos meios para levantar o moral
Ryuta Tsushima. Ao falar de sexo sem baseadas em dinheiro, não é criminal- caem facilmente quando estão em apuros.
tabus, espera também dar aos leitores a mente punível. A segunda, por outro lado, Uma vez curados, precisam de ter mais
oportunidade de enfrentarem e abordarem diz respeito a atos criminosos tais como escolhas, pensando na vida que querem
os seus problemas sexuais, mas também expor-se, tirar fotografias roubadas ou levar, questionando o seu futuro”, explica.
de ultrapassarem os valores sexistas que pedocriminalidade. O especialista diz que o baixo núme-
subjazem às relações entre homens e mu- Estes comportamentos, explica, repre- ro de estabelecimentos de saúde à escala
lheres. “Para que não haja mais vítimas de sentam geralmente uma tentativa de eli- nacional é problemático: “O setor médico
violência sexual, devemos evitar a criação minar o sofrimento psicológico – stresse da precisa de se livrar dos seus preconceitos e
de carrascos. Gostaria que os homens que vida diária, sentimentos de autorrejeição, encarar como seu dever a prestação deste
têm uma visão distorcida do sexo lessem a etc. – ou de satisfazer uma necessidade de tipo de cuidados.” E acrescenta: “É im-
minha manga como medida preventiva”, dominação ou satisfação. Por outro lado, portante trabalhar para assegurar que os
acrescenta ele. voyeus, exibicionistas e outros violadores perpetradores não criem novas vítimas.”

MARÇO 2021 - N.º 301 79


L L I V RO S
O HOMEM POR DETRÁS DOS NÚMEROS
Nos últimos anos, poucas pessoas influenciaram tanto a opinião
pública sobre a nossa perspetiva do mundo e da sua evolução
quanto o sueco Hans Rosling, um comunicador admirável com
um discurso baseado apenas em factos e estatísticas, e cujo livro
Factfulness se tornou um best-seller instantâneo a nível global
e um dos mais citados por personalidades relevantes do nosso
tempo. A verdade é que a fatia maior desse êxito do médico e
educador público só ocorreu depois da sua morte, através das
sucessivas traduções do livro que deixou como legado. Embora
as suas conferências TED Talks já tenham reunido também
milhões de visualizações por essa internet fora, a sua história
ainda permanecia relativamente desconhecida. O que era, de
Leituras que nos ajudam
a compreender o mundo atual facto, uma absoluta injustiça, visto que os seus 69 anos na Terra
foram ricos em acontecimentos, inspiradores e dignos de ficarem
registados. Ele próprio também teve consciência disso e, nos seus
últimos meses de vida, conhecedor da doença incurável de que
padecia, dedicou-se à escrita da sua autobiografia, com a ajuda
da jornalista Fanny Hargestam. O título não podia ser mais bem
escolhido. De facto, com a sua leitura, percebemos como a vida
que vivemos é determinante para nos ajudar a olhar o mundo
que nos rodeia. A sua experiência em Moçambique – recheada
de pormenores riquíssimos – dá-nos, por exemplo, a verdadeira
dimensão de como os pontos de vista se alteram com a geografia
e com a comunidade onde nos inserimos. Uma história com
boa leitura e que, ao mesmo tempo, nos desafia a viver uma vida
diferente – com melhor compreensão do mundo.

COMO APRENDI A COMPREENDER O MUNDO


De Hans Rosling, com Fanny Hargestam
Tradução de Marta Pinho (da edição em língua inglesa)
TEMAS E DEBATES

RISO NEGRO
“A sátira desempenha um papel importante numa democracia
saudável e um papel vital numa democracia ameaçada”, escreveu
o NEW YORK TIMES no arranque de um texto sobre Jonathan Swift, o
autor celebrizado pelas Viagens de Gulliver, mas que foi, no seu
tempo, uma celebridade, autêntico herói irlandês, pelas suas sátiras
mordazes, que lhe fizeram muitos inimigos, mas também uma
legião de admiradores. Um dos seus panfletos mais célebres chega
agora pela primeira vez em tradução portuguesa, e a estrear uma
nova coleção de Livros Negros da editora Guerra & Paz, com o título:
Os Benefícios de Dar Peidos. Como assinala o editor, na introdução,
este é um texto que “aconselha as modestas damas de 1722 a
não se torcerem em pudores, encorajando-as a libertarem-se de
aragens e ventosidades, única forma de protegerem a saúde, que
os então novos costumes de beber chá e café poriam em perigo”.
No mesmo volume surge também um dos textos mais célebres de
Swift, Uma Proposta Modesta, considerada por alguns “uma sátira
brutalmente brilhante”, em que o autor, numa prosa notável, sugere,
com aparente seriedade, que a melhor forma de a Grã-Bretanha lidar
com a superpopulação da Irlanda é a de começar a vender as crianças
irlandesas como carne. A prova, como assinala Manuel S. Fonseca na
introdução, de que o riso pode também ser feroz e angustiante.

OS BENEFÍCIOS DE DAR PEIDOS


De Jonathan Swift
Tradução de Ana Relvas França
GUERRA & PAZ - LIVROS NEGROS

80 MARÇO 2021 - N.º 301


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PORSCHE
A Porsche comemora o 25º aniversário do seu roadster com
um modelo especial de aniversário: o Boxster 25 Years.
A edição limitada é restrita a 1.250 unidades em todo o
mundo e é baseada no modelo GTS 4.0, o qual é alimentado
por um motor boxer de seis cilindros com 4,0 litros de
capacidade e 294 kW (400 cv).

CASA ERMELINDA FREITAS


PREMIADA NA COMPETIÇÃO
GILBERT & GAILLARD 2021
QUE DECORRE EM FRANÇA
A Casa Ermelinda Freitas foi premiada
na mundialmente famosa competição
Gilbert & Gaillard 2021 (Especialistas
em Vinhos desde 1989), que decorre
em França com 7 Medalhas de Ouro,
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MURALHA DA CHINA
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homenageia a Grande Muralha da
China, o maior monumento do mundo
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Maravilhas mundiais. Um Tributo à
Grande Muralha articula a influência
cultural deste feito impressionante da
arquitetura defensiva ancestral e das
três dinastias que a construíram - de
Qin a Han à Dinastia Ming.
LG RECEBE NÚMERO
Ú RECORDE
DE PRÉMIOS NA PRIMEIRA EDIÇÃO DIGITAL
DE SEMPRE DO CES
Este reconhecimento foi liderado pelo Best of CES
Award do Engadget (o programa oficial de prémios do
CES) na categoria de TV para a LG OLED pelo sétimo
ano consecutivo; em 2021.
F FLASHBACK

H
O IMUTÁVEL JEFF BEZOS
Ao longo do último quarto de
século, Jeff Bezos conseguiu
transformar um negócio de
venda de livros online num dos
maiores impérios tecnológicos
do planeta, o que abalou e
redefiniu, por completo, as
regras do comércio eletrónico
e impôs os serviços de cloud
no centro de qualquer empresa
com uma atividade baseada no
armazenamento e transmissão
de dados. Agora, aquele que
chegou a ser o homem com
a maior fortuna alguma vez
acumulada no mundo prepara-
se para abandonar a liderança
executiva da Amazon, para
concentrar a sua atenção e
energia, segundo explicou numa
carta aos seus funcionários, em
novos produtos e em projetos
como os fundos filantrópicos
Day 1 e Bezos Earth, a empresa
espacial Blue Origin e o jornal
WASHINGTON POST. Durante
todos estes anos, Jeff Bezos
foi responsável por grandes
mudanças na vida de milhões de
pessoas no mundo, conforme
atestam as muitas capas de
revista em que foi protagonista,
como influenciador e como
génio da gestão. No entanto, ao
olhar para estas capas, percebe-
se que, se o mundo mudou,
Bezos tentou sempre controlar a
sua imagem pública e manter-
se o mais igual que conseguia –
até a escolha do lado da cara que
oferecia aos fotógrafos e a pose
que pretendia.

82 MARÇO 2021 - N.º 301


G U I A M E N S A L

N A Ú LT I M A S E M A N A D E C A D A M ÊS C O M A V I S Ã O

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