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CONSTRUÇÃO APÓS O ESTRAGO CAUSADO

PELA LAVA JATO E PELA PANDEMIA, O SETOR CLUBE DE REVISTAS


SEGURANÇA A BÁRBARA EXECUÇÃO DE
MÃE BERNADETE É MAIS UM CAPÍTULO DA
PREVÊ FORTE RETOMADA COM O NOVO PAC VIOLÊNCIA QUE ASSOLA A BAHIA, RECORDISTA
E PROGRAMAS ESTADUAIS DE HABITAÇÃO DE ASSASSINATOS E DE LETALIDADE POLICIAL
ANO XXIX N° 1274 R$ 31,90
30 DE AGOSTO DE 2023

PODRIDÃO
JOIAS, GOLPISMO, SUBORNO DE GARIMPO, NEPOTISMO…
A OBRA DE MILITARES EXIGE “CORTAR NA
CARNE”, MAS QUEM OUSA CHEGAR A TANTO?
MINO CARTA: QUANDO O CAPITÃO-DO-MATO VESTIU FARDA
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em situação de vulnerabilidade por meio de
25 projetos nas áreas de cultura, esporte,
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3 0 D E A G O S T O D E 2 0 2 3 • A N O X X I X • N ° 1 2 74

A Bahia figura na
liderança das mortes
violentas e no topo do
ranking da letalidade
policial. Pág. 28

6 A SEMANA 28 B A H I A A execução
9 CÉLIA XAKRIABÁ de Mãe Bernadete Nosso Mundo
é mais um capítulo 38 E Q U A D O R O empresário
da violenta novela que liberal Daniel Noboa
Ensaio assombra os baianos surpreende no primeiro
10 M I N O C A R TA Os 3 2 M A R I A R I TA K E H L turno das eleições
capitães-do-mato são

Plural
42 R E I N O U N I D O Assassina
33 ALDO FORNAZIERI
os precursores dos em série de bebês, a
militares nativos enfermeira Lucy Letby
Economia só foi detida após anos

48
Seu País 34 P R I VAT I Z A Ç Õ E S de suspeitas e alertas ARQUIVOS
O novo
20 D E S E N V O LV I M E N T O Eletrobras e refinarias 46 A R G E N T I N A Na visão SOBRE
PAC e projetos estaduais mostram-se inconfiáveis anarcocapitalista de
de habitação pavimentam e praticam preços Milei, o peso é apenas O HOJE
a retomada da construção astronômicos uma sombra do dólar
RETRATOS FANTASMAS, EXIBIDO EM
ISTOCKPHOTO E HANS GUNTER FLIEG/IMS

24 D R O G A S Supremo está
prestes a liberar o consumo CANNES, OFERECE UMA RADIOGRAFIA
recreativo de Cannabis, DE MUDANÇAS BRUSCAS OCORRIDAS
mas o cultivo em larga NAS CIDADES BRASILEIRAS
escala para fins medicinais DESONRA FARDADA
segue no limbo jurídico 50 M O S T R A Gunter Flieg desvela o sonho
O ESCÂNDALO DAS JOIAS E AS
industrializante do País 52 L I V R O S O humor
CONFISSÕES DO HACKER WALTER é arma antiextremismo 54 T H E O B S E R V E R
Capa: Pilar Velloso. DELGATTI ARRASTAM A IMAGEM DAS A vida real da atriz Adèle Exarchopoulos
Fotos: iStockphoto FORÇAS ARMADAS PARA A LAMA 57 A F O N S I N H O 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) política do café com leite. Nem os gaúchos
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
com mais de dois neurônios falam em
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis separatismo, seja de que tipo for.
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
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Cesar Augusto Hulsendeger
REVISOR: Hassan Ayoub
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
ORGULHO E PRECONCEITO
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, Excelente e oportuno o artigo de
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, Luiz Gonzaga Belluzzo comentan-
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., do as “preconceituosas ignorâncias” de
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes, Romeu Zema. O governador revela-se
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo um cidadão desligado da nossa história,
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
e mais ainda da história do Nordeste, to-
CARTA ONLINE
da ela pontilhada de corajosas e lúcidas
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira manifestações em favor do País e do
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
nosso povo. Minas Gerais, tão rica políti-
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana SIGA AS JOIAS ca e culturalmente, não o merece.
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) Já sofremos a pecha do complexo Elisabeto Ribeiro Gonçalves
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
REDES SOCIAIS: Caio César de vira-latas. Agora, temos um ex-
SITE: www.cartacapital.com.br -presidente que adota a Lei de Gerson ERRO DE CÁLCULO
na cara dura e, ainda por cima, mente, A população recusa-se a responder
ao dizer que sempre jogou dentro das ao Censo do IBGE. Fiz o curso para
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
“quatro linhas da Constituição”. Só se for trabalhar na pesquisa, mas a dificuldade
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 as linhas imaginárias provenientes do em falar com as pessoas é enorme.
seu delírio de poder. Maura Bertoli
PUBLISHER: Manuela Carta
DIRETOR EXECUTIVO: Marcelo Romão José Carlos Gama
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene Quem confia em alguma coisa que
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
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A CARTILHA DE FEDER o desgoverno anterior fez? Há
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios Muito se fala sobre o uso da tecno- uma necessidade urgente de se fazer
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Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva
logia na educação, mas pouco se um novo Censo no próximo ano.
fala em como ela deve ser aplicada. Re- Dionísio Rogério
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RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
nato Feder é mais um que acredita que
enio@gestaodenegocios.com.br tablets e livros digitais são a solução, Não sou o mais experiente em
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto, Censos, mas trabalhei no de 2010
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
mas as escolas não estão preparadas
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267, para isso. Falta o básico. Antes é preciso e também no de 2022. A diferença é ab-
agholanda@Agholanda.com.br
melhorar a remuneração dos professo- surda. Os problemas foram muitos e o
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br res, a infraestrutura e criar métricas pa- IBGE está de parabéns por ter comple-
ra medir o desempenho dos alunos. tado a pesquisa em condições tão ad-
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda.
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. Maurício Nunes versas. Para mim, o principal problema
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 foi a falta de orçamento para a pesquisa.
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se A AULA DE STEDILE Pabllo Valle
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou A CPI serviu para enaltecer e es-
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel clarecer o que significa o MST. Se A principal falha foi a desvaloriza-
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584, ção dos recenseadores, que rece-
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
Ricardo Salles tivesse um mínimo de
acordo com a Lei de Imprensa. vergonha, nem sairia de casa. biam atrasado, sem vale-transporte,
Maria Cinto sem vale-alimentação. Trabalhavam em
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) condições precárias, em lugares perigo-
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos João Pedro Stedile destroçou a hor- sos e de difícil acesso.
da bolsonarista. Embora não tenha Fillipe Borborema
a mesma veia humorística de Flávio Dino,
conseguiu nos fazer rir daqueles imbecis. AMPLIAÇÃO DOS BRICS?
Bianor Cochi A criação de uma moeda
comum pelos BRICS sofrerá toda
TIRO NO PÉ sorte de retaliações dos EUA, uma vez
Partido Novo, ideias velhas. Seus in- que a hegemonia do dólar estaria forte-
tegrantes, como o governador mente ameaçada.
Romeu Zema, parecem saudosistas da João Alberto Rodrigues

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C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 5
CLUBE DE REVISTAS

A Semana
Petróleo na
Amazônia Vaza Jato/ Pena
Um parecer da Advocacia-
-Geral da União deu novo
de homicida
fôlego à tentativa da O hacker Walter Delgatti Neto
Petrobras e do Ministério é condenado a 20 anos de prisão
de Minas e Energia de
obter um aval do Ibama

O
para explorar petróleo na
Margem Equatorial. A estatal juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara
pretende perfurar um poço
Federal Criminal do Distrito Fe-
cerca de 175 quilômetros
da foz do Rio Amazonas. deral, condenou na segunda-feira
Segundo a AGU, uma 21 o hacker Walter Delgatti a
Avaliação Ambiental de 20 anos de prisão no âmbito da Operação
A dura sentença
Área Sedimentar “é acima Spoofing. Os crimes atribuídos a Delgatti in- veio logo após o
de tudo um instrumento
cluem invasão de dispositivo informático, or- hacker implicar
de auxílio, de apoio ao Bolsonaro na CPI
licenciamento ambiental, ganização criminosa, lavagem de dinheiro e
do 8 de Janeiro
e não um fim em si mesma”. interceptação de comunicações, razão da ele-
Ao negar a solicitação original vada pena, comparável àquela de quem pra-
da petroleira, em maio, tica um homicídio doloso. A decisão atinge
o Ibama apontou, entre
ainda outros seis acusados pela invasão de
outros fatores, a ausência
desse estudo de impacto. celulares de autoridades, a exemplo dos pro-
curadores da finada Operação Lava Jato. Delgatti entregou as mensagens à equipe
A ação dos hackers deu origem à série de re- do Intercept, então comandada pelo jornalis-
portagens conhecida como “Vaza Jato”, publi- ta norte-americano Glenn Greenwald, ven-
cada pelo site Intercept em parceria com vá- cedor do Pulitzer de 2014, sem nada cobrar. É
rios veículos de comunicação. As matérias ex- uma situação radicalmente distinta das acu-
puseram o conluio da força-tarefa da Lava Jato sações contra a deputada bolsonarista Carla
em Curitiba, liderada por Deltan Dallagnol, Zambelli, a quem Moro tentava proteger na
com o então juiz Sergio Moro, para prender CPI. A parlamentar é acusada de pagar 40
Lula a qualquer custo. O magistrado chegou a mil reais ao hacker para invadir sistemas do
indicar uma testemunha contra o presidente, a Judiciário e encomendar uma devassa no
pedir a inclusão de uma prova contra outro réu e-mail e no celular de Alexandre de Moraes,
e a propor uma inversão de fases da operação. ministro do Supremo.
Depois de ser chamado de “criminoso con- Delgatti chegou a apresentar comprovan-
tumaz” pelo hacker na CPI do 8 de Janeiro, tes de transferências bancárias feitas por as-
Moro celebrou a sentença e chamou Delgatti sessores de Zambelli que somam 13 mil reais.
de “mentiroso contumaz”. Convenientemente, O restante, emenda o candidato a delator, foi
esqueceu-se de lembrar que a Suprema Corte o pago em dinheiro vivo. Além disso, o hacker
considerou um juiz parcial e anulou as conde- reuniu-se com Jair Bolsonaro, com o presi-
nações contra Lula. Até hoje, as mensagens in- dente do PL, Valdemar Costa Neto, e com a
terceptadas pelo grupo são usadas por réus da cúpula do Ministério da Defesa para fabricar
Lava Jato para anular processos conduzidos ao dúvidas sobre a confiabilidade do sistema
arrepio da lei. Provas obtidas por meios ilegais eleitoral. A turma nega qualquer ilegalidade,
não podem ser usadas para condenar ninguém, mas não oferece uma explicação convincente
razão pela qual Moro e Dallagnol seguem im- para ter dado tanta atenção a um “mentiroso
punes. Mas podem justificar absolvições. contumaz” em plena campanha eleitoral.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
30.8.23

Morre Francisco
Orçamento/ Adeus, camisa de força Dornelles
Congresso aprova novo arcabouço fiscal e põe fim ao teto de gastos de Temer
Presidente de honra
do Progressistas, o

N
ex-governador do Rio de
a terça-feira 22, o Congresso Na- zado pela Câmara e pelo Senado, o texto ago-
Janeiro Francisco Dornelles
cional aprovou o novo arcabou- ra segue para a sanção presidencial. morreu na quarta-feira 23,
ço fiscal, conjunto de regras que O arcabouço estabelece que as despesas aos 88 anos. Nascido em uma
permite o crescimento das des- devem crescer num ritmo menor que a arre- família com forte vocação
pesas públicas acima da inflação, desde que cadação, até o limite de 70%. Assim, seria política – era primo de
segundo grau de Getúlio
o aumento da arrecadação suporte o cus- possível reduzir o endividamento do Estado.
Vargas e sobrinho de
to adicional. Com isso, o governo Lula enter- Haverá, porém, um piso e um teto. Os gastos Tancredo Neves e Castelo
ra de vez o teto de gastos criado há seis anos deverão crescer ao menos 0,6% em termos Branco –, o mineiro de Belo
por Michel Temer e que, na prática, congela- reais (acima da inflação), mesmo que a recei- Horizonte também foi
va os investimentos por 20 anos, mesmo em ta dos tributos não permita esse aumento. secretário da Receita Federal
no governo do ditador João
um cenário de expansão da economia. Avali- Por outro lado, não podem exceder 2,5%,
Figueiredo, ministro da
ainda que a expansão da econo- Fazenda de José Sarney
mia suporte um gasto maior. Des- e ocupou as pastas da
sa forma, não haveria restrição Indústria e Comércio e do
desmedida do orçamento em Trabalho e Emprego nas
gestões de Fernando
tempos de crise e tampouco gas-
Henrique Cardoso. A causa
tança desenfreada no período de da morte não foi divulgada
bonança. As novas regras conti- pelo Hospital Pró-Cardíaco,
nuam bastante restritivas, mas no Rio, onde Dornelles estava
representam inegável avanço em internado desde maio.
relação à camisa de força imposta
por Temer no fim de 2016.

O governo Lula conseguiu aprovar


a proposta com folgada maioria

Justiça/ GOLPE DESVELADO


TRF-1 ARQUIVA DENÚNCIA CONTRA DILMA ROUSSEFF POR “PEDALADAS FISCAIS”

Em 2020, durante uma entre- foram apenas a “justificativa diz que não sabia, diz que sa-
RICA RDO ST UCK ERT/PR, ZECA RIBEIRO/AG.
CÂ M A R A E M A RCOS OLIV EIR A /AG. SEN A DO

vista ao programa Roda Viva, formal”. O “motivo real”, emen- bia, diz que ela deveria saber,
da TV Cultura, Michel Temer dou o magistrado, foi “a perda que deveria ter confrontado
tropeçou nas palavras e cha- de sustentação política”. Agora, seus ministros. Nenhuma des-
mou de golpe quatro vezes o vejam só, o Tribunal Regional crição de dolo”, sustentou
movimento que depôs Dilma Federal da 1ª Região decidiu Eduardo Lasmar, defensor da
Rousseff. Dois anos depois da manter o arquivamento de uma ex-presidente petista, durante
sequência de “atos falhos” do denúncia de improbidade admi- o julgamento. A decisão unâni-
emedebista, o ministro Luís Ro- nistrativa contra Dilma por con- me dos desembargadores da
berto Barroso, do Supremo Tri- ta das tais pedaladas. 10ª Turma do TRF1, pelo ar-
bunal Federal, reconheceu em “O Ministério Público não quivamento do caso, apenas
um artigo que as “pedaladas conseguiu imputar uma con- prova que Temer não cometeu
fiscais”, usadas pelo Congresso duta à presidente da Repúbli- um ato falho, mas fez uma O impeachment da ex-presidente
para justificar o impeachment, ca. Muito pelo contrário. Ora, confissão. Foi golpe mesmo. foi baseado em crime inexistente

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 7
CLUBE DE REVISTAS
A Semana

Ameaça
neutralizada Guatemala/ Frescor democrático
A eleição de Arévalo põe fim a um período obscuro da história do país
Dois meses após liderar o
motim do grupo mercenário

B
Wagner contra a cúpula
ernardo Arévalo, do Movimento
militar do governo russo,
Yevgueni Prigozhin morreu Semilla, de centro-esquerda, ele-
na queda de um jato Embraer geu-se presidente da Guatemala
Legacy 600, de fabricação no domingo 20, com 58% dos vo-
brasileira, nos arredores tos. Até junho, ele figurava nas pesquisas
de Moscou. O avião dirigia-se
com apenas 3% das intenções de voto. Com
a São Petersburgo no
momento em que despencou uma agenda anticorrupção e de inclusão so-
das alturas. Aliados do cial, o sociólogo surpreendeu ao conquis-
empresário de 62 anos tar uma vaga para o segundo turno e, na vo-
acusam o presidente Vladimir tação decisiva, derrotou a conservadora ex-
Putin pela morte. Com base
-primeira-dama Sandra Torres, do União
em um vídeo divulgado nas
redes sociais, espalham pelo pela Esperança.
Telegram que a aeronave foi A meteórica ascensão de Arévalo deve-se,
abatida em voo. Todos os em parte, ao cenário de perseguição política
passageiros e tripulantes instaurado no país pelo atual presidente,
morreram na queda, entre
Alejandro Giammattei, um direitista que
eles o principal comandante
militar do Wagner, Dmitri encerra seu mandato com baixíssimos índi-
Utkin. Diante da proximidade ces de aprovação. Aparelhado pelo governo,
do episódio com a insurreição o Judiciário impediu a candidatura de di-
do grupo mercenário, o versos opositores do regime que apareciam
Kremlin pode até negar,
mais bem posicionados nas pesquisas,
mas dificilmente conseguirá
escapar das acusações abrindo caminho para o crescimento dos
de queima de arquivo. nanicos na disputa.
Antes disso, em maio, um dos jornais de
maior circulação da Guatemala, El Periódico,
foi empastelado e seu presidente, José Rubén Indiretamente,
Zamora, acabou preso, logo após a publicação o novo presidente
de denúncias de corrupção no governo. Deze- foi beneficiado
pela perseguição
nas de ativistas, juristas e jornalistas busca- política no país
ram exílio no exterior para escapar da re-
pressão aos dissidentes políticos.
O próprio Arévalo quase teve a candidatu- a imagem da elite política guatemalteca.
ra cassada dez dias após garantir sua O presidente eleito é filho de Juan José
passagem para o segundo turno. Um Arévalo, que governou o país de 1945 a 1951,
tribunal ordenou a suspensão do Semilla, dando início à chamada “primavera democrá-
ofensiva revertida pouco depois, diante dos tica”, uma década marcada por eleições trans-
ruidosos protestos contra a decisão. Fartos parentes e reformas sociais. O período foi in-
da corrupção no governo e da perseguição terrompido por um golpe apoiado pelos EUA,
L U I S A C O S TA /A F P

aos opositores de Giammattei, a população em 1954, que depôs o presidente progressista


optou pela alternativa apresentada pelo Jacobo Arbenz Guzmán. Bernardo Arévalo
partido de Arévalo, um dos poucos não en- nasceu quatro anos depois no Uruguai, um
volvidos nos escândalos que desgastaram dos países em que seu pai se exilou.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CÉLIA XAKRIABÁ
CLUBE DE REVISTAS
Professora e primeira deputada federal
indígena eleita por Minas Gerais

Reparação histórica

mos pensar o porquê de sermos os pri- tências, assim como a transmissão de


► Finalmente os povos meiros habitantes do País, mas, nas no- valores errados. Torturadores, perse-
indígenas, quilombolas e meações dos prédios em nossos territó- guidores e assassinos não merecem ser
rios, os últimos a ser consultados. homenageados. Acabou! Com o nosso
do campo terão autonomia O racismo da ausência manifesta-se projeto de lei, prestamos respeito aos po-
para homenagear seus também quando tentam apagar as nos- vos indígenas, quilombolas e do campo.
próprios heróis ao nomear sas histórias, impondo sobre elas as tra- Falamos aqui de um projeto que busca
jetórias de pessoas externas, invasores reparar violências do passado, mas que é
as escolas em suas terras de memórias. Quantas de nossas crian- inovador ao trazer a importância de uma
ças frequentaram e ainda frequentam educação territorializada e que conside-
escolas com nomes de pessoas estra- ra as culturas locais, as tradicionalida-

N
a última semana fizemos his- nhas a elas, nomes estrangeiros? Quan- des e especificidades de cada povo e co-
tória na Câmara dos Deputa- do pesquisam sobre esses nomes, per- munidade. A autonomia que buscamos é
dos. Fizemos valer a nossa his- cebem que são pessoas que na verdade uma reparação histórica com povos sem-
tória ao legislar em favor da nossa cul- agiram de maneira prejudicial contra pre esquecidos.
tura e dos nossos próprios heróis e hero- seus povos. Agora são as lideranças de cada re-
ínas. O nosso Projeto de Lei 3148/2023 gião as homenageadas: os pais, os avós
foi aprovado por unanimidade, sendo o Como sempre digo, quem tem nome que araram e cuidaram da terra, que en-
primeiro reconhecido pelo nosso man- tem história. E o nosso projeto tem o tenderam os ciclos das águas e os tempos
dato desde a posse da Bancada do Co- objetivo de eternizar no espaço do ter- de plantar e colher. Serão as rezadeiras,
car. Um de seus princípios centrais é ritório o que já é eterno no espaço da as parteiras, as mulheres da ciência tra-
a autonomia. O projeto dá autonomia memória, a história daqueles e daque- dicional que trouxeram tantas vidas pa-
às escolas indígenas, quilombolas e do las que com suas vivências se torna- ra este planeta. Serão homenageados os
campo na escolha de seus nomes. Nos ram uma inspiração. O primeiro livro perseguidos por lutarem pela terra, mui-
territórios, já nomeamos nossas insti- que li foi de meu avô. A primeira maté- tas vezes sem nenhum conhecimento es-
tuições com a nossa cultura, mas é pre- ria que tive foi a história das minhas li- colar, mas que entregaram a vida para
ciso fazer disso algo oficial. deranças. Com o nosso projeto deseja- que tantos outros pudessem viver bem
É mais que importante, é essencial mos evocar a lembrança de quem cul- e estudar com dignidade.
assegurar às escolas indígenas, qui- tivou a resistência, nossas memórias e As escolas indígenas poderão ganhar
lombolas e do campo a emancipação e sentimento de pertencimento. não somente nomes de pessoas, mas
a liberdade de batizar suas instituições Nosso projeto de lei também quer também suas cosmovisões, os modos de
públicas de ensino, com nomes que real- proibir expressamente que torturado- vida e tradições. Significa que uma esco-
mente tenham significado para essas co- res e violadores de direitos humanos la pode ter o nome de uma árvore, de um
munidades. Falamos aqui de um processo venham a ser nomeados nos prédios es- pássaro, de um rio, grafados no idioma de
de reparação, que considera as culturas e colares públicos. Quem retira a humani- cada etnia. A natureza também será con-
tradicionalidades do nosso povo. dade e a dignidade dos corpos não pode templada e homenageada. Para nós, não
Por anos fomos desconsiderados. Nos- receber a honra de apadrinhar prédios se trata apenas de seres humanos, mas de
sos heróis foram invisibilizados. Mas he- que acolherão os sonhos e a vida das nos- todos os seres vivos e não vivos que pos-
rói não é só aquele que usa capa, mas o sas crianças. Entendemos que assim aca- sibilitam que hoje estejamos aqui, coe-
B A P T I S TÃ O

personagem que dedica sua vida à cons- bamos com a normalização da violência xistindo e resistindo. •
trução de pontes para o futuro. Precisa- contra os nossos corpos e nossas exis- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 9
CLUBE DE REVISTAS
Ensaio

O capataz
vestiu farda
Como se deu a criação de um exército de ocupação interna
em lugar de zelador das fronteiras
P O R M I N O C A R TA

Q
ual seria a data mais gurava na visão positivista de progresso. em republicano foi obra do golpe do ma-
adequada para ini- Não é por acaso que patrono destas rechal Deodoro, logo substituído por Flo-
ciar este texto? Esco- chamadas Forças Armadas é Caxias, ge- riano Peixoto. Pretendeu-se assim fundar
lho o momento da nocida do povo paraguaio subjugado pe- uma república fardada a favor da escravi-
chegada ao Brasil de las baionetas dos mais fortes. A partir da dão, que se constitui, inexoravelmente, na
D. João VI, rei de Por- demonstração do poder absoluto, sempre maior desgraça brasileira.
tugal em fuga na imi- a serviço da casa-grande, os homens ar- Os golpes militares para manter o
nência da invasão do mados de chicote vestiram uniformes, co- status quo desejado e imposto pelos es-
país pelas tropas napoleônicas comanda- mo se pretendessem conferir dignidade cravagistas ritmam o enredo do País, até
das pelo general Junot. As vitórias colhi- à sua atuação useira e vezeira. A própria se parecerem com o diapasão da própria
das pelo Corso, dos Alpes às pirâmides, transformação do sistema monárquico História. Derradeiro pareceu ser o golpe
como escreveu Alessandro Manzoni, es-
palharam pelo planeta a lição redentora

ISTOCKPHOTO, ACERVO DA BIBLIOTECA NACIONAL, HENRIQUE BERNADELI/


da Revolução Francesa. O soberano luso,
ao transferir a corte de Lisboa para a sua

A C E R V O D A A M A N , J E A N - B A P T I S T E D E B R E T/ C O L E Ç Ã O I TA Ú C U LT U R A L
maior colônia, simboliza a recusa da con-
temporaneidade mundial naquele exato
instante, a perdurar até hoje.
Além de jamais tomar banho, D. João
VI marcava sinistramente aquela discre-
pância que o tempo não curaria. Estabe-
leceu-se assim a escravidão mais dura-
doura da História e o primado da chiba-
ta dos capatazes e dos capitães-do-ma-
to a serviço da casa-grande, incumbidos
de capturar escravos fugidos e matar ín-
dios. A demonstração tão peremptória da
ferocidade colonizadora está claramente
na origem dos futuros comportamentos
de um exército de ocupação chamado pa-
ra garantir a ordem interna em lugar das
fronteiras da imensa colônia. A ordem fi- A escravidão criou o monstro

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Quando a tropa napoleônica


alcançou Portugal, D. João VI
exportou seu atraso para o Brasil

Deodoro, segundo a hagiografia fardada

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 11
CLUBE DE REVISTAS
Ensaio

O golpe de 1964
gerou no Brasil
uma ditadura de
vinte e um anos,
cujas consequências
perduram até hoje

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

juristas, Sergio Moro e Deltan Dallagnol,


desferiram aquela ação chamada Lava Ja-
to, criminosa de todos os pontos de vista,
de sorte a prender Lula para alisá-lo das
eleições de 2018 e eleger o energúmeno
demente Jair Bolsonaro. Está claro que
nada disso aconteceria em um país civili-
zado e democrático, sendo evidente, além
do mais, a doença que acometia o eleito.
Atos como este por aqui são rotina. De fa-
to, o Brasil digeriu tranquilamente aque-
le pleito e os seus jornalistas se apressa-
ram a respeitar o evento, qual fosse típi-
co de uma realidade democrática. Nem
por isso o script sofre alterações, todos vi-
vem o pesadelo como um sonho comum,
sem o menor abalo, de sorte a tornar es-
pecialmente difícil onde mora o delírio.

F
irma-se uma pavorosa confu-
são. O País e o seu povo confun-
dem, sem o mais pálido sintoma
de sobressalto, a normalidade
com o caos. Uma análise fria, mas infeliz-
mente correta, iria necessariamente obri-
gar a percepção de que vivemos fantasma-
goricamente uma fantasia monstruosa e
acachapante, sem nos darmos conta da re-
alidade dos fatos. O barco encalhou e a de-
riva está cada vez mais próxima. •

de 1964, destinado, segundo os golpistas,


a pôr a casa em ordem para devolvê-la en-
tão ao poder civil. Tratava-se de hipócri-
tas estrategistas de uma pretensa paz. O
cenário da política nativa não cessou de
ecoar o ruído e a poeira dos golpes, e ain-
da de tentativas frustradas de golpe, em
uma sequência apressada e espantosa.
E VA R I S T O S Á /A F P E A R Q U I V O N A C I O N A L

Depois da primeira eleição de Lula, fo-


mos obrigados a assistir à derrubada de
A R Q U I V O / E S TA D Ã O C O N T E Ú D O,

Dilma Rousseff, democraticamente elei-


ta e segregada à força no Palácio da Al-
vorada por um surfista emérito como
Michel Temer, corrupto até a medula e
até hoje livre de surgir em cena com ex-
pressão de pacificador ilibado.
Dois facínoras apresentados pe-
la maioria da mídia brasileira como Temer: surfista do golpe e corrupto contumaz, sempre impune

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 13
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

Ao depor com trajes


militares, Cid contribui
para enlamear ainda mais
a imagem do Exército

Desonra
fardada
ÀS VÉSPERAS DO 7 DE SETEMBRO, AS FORÇAS
ARMADAS ESTÃO NO FUNDO DO POÇO, METIDAS EM
NUMEROSOS ESCÂNDALOS. LULA ATIRA BOIAS

por A NDR É BA R ROCA L

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

O
tenente-coronel do vernista acredita que chegou a hora de os
Exército Abimael militares “cortarem na carne” e punirem
Alves Pinto Júnior ALÉM DAS JOIAS E quem merece. O que se vê, porém, são si-
é do Paraná, mas DO 8 DE JANEIRO, nais dúbios. O governo prepara as come-
trabalha na Ama- HÁ MILITARES morações do Dia da Independência para
zônia. Em sua área que as luzes estejam sobre as Forças Ar-
de atuação há uma ENVOLVIDOS COM madas. Certas decisões recentes do pre-
estação ecológica, a Juami-Puruá, onde GARIMPO ILEGAL sidente Luiz Inácio Lula da Silva servi-
o garimpo ilegal avançou a partir de 2019. E EPISÓDIOS ram para afagar a tropa, caso do pacote
“Local que tem muito ouro aqui na Ama- DE NEPOTISMO de investimentos públicos lançado em 11
zônia, muito ouro mesmo”, disse ele cer- de agosto. “O governo não pode continuar
ta vez, em uma mensagem de áudio obtida refém de uma instituição marcada pela
pela Polícia Federal. “Vou juntar muito di- tradição golpista”, declarou a Associação
nheiro mesmo, mas muito dinheiro mes- to é de 21 mil. Em uma operação da PF Brasileira dos Estudos de Defesa após a
mo, por mês, cara. E a gente tem que cui- em junho, a Jurupari, foram apreendi- divulgação dos 52,8 bilhões de reais des-
dar dessas balsas daí dele.” As balsas eram das planilhas de pagamentos feitos a Al- tinados aos quartéis pelo “novo PAC”.
de Pedro Marcondes, dono de uma loja de ves Pinto com um casal preso. A operação O recente depoimento do hacker
carros em Curitiba. Em 11 de outubro de foi tentativa dos federais, segundo fontes Walter Delgatti à CPI do 8 de Janeiro con-
2020, Marcondes foi preso em flagrante, da PF, de contornar a inação do Ministé- tribuiu para compreender até que ponto
em Rondônia, com 60 gramas de ouro. No rio Público Militar diante das atividades chegou o “golpismo” de certos militares.
celular dele, a PF descobriu pistas de um do tenente-coronel. Delgatti contou como tinha sido uma reu-
esquema de garimpo. Três dias depois, já As atividades de muitos fardados na nião com Bolsonaro em 10 de agosto de
solto, Marcondes foi assassinado. A apa- era Bolsonaro exigem inação. Joias des- 2022, no Palácio da Alvorada. O assunto
rente queima de arquivo foi prenunciada viadas do patrimônio público, sabotagem foram as urnas eletrônicas. O candida-
certa vez por Alves Pinto. “Se o Pedrinho das urnas eletrônicas, tentativa de golpe to à reeleição pediu ajuda para violá-las e
fosse pego, ele praticamente iria perder a em 8 de janeiro… Eis um breve resumo da provar que eram fraudáveis, suspeita re-
vida dele”, disse em outra mensagem. obra que, agora, deixa as Forças Armadas latada por CartaCapital à época. “A par-
O militar era da engrenagem garim- na lama. Um retrato visto às vésperas de te técnica eu não entendo, então irei en-
peira. Um informante. Avisava a turma uma data cara aos quartéis, o 7 de Setem- viá-lo ao Ministério da Defesa, e lá, com
do esquema quando fosse haver opera- bro. Em Brasília, gente do alto escalão go- os técnicos, você explica tudo isso”, teria
ção do Exército, da PF e dito Bolsonaro a Delgatti.
do Ibama. “Acabei de falar “Eu fui levado até o minis-
aqui com o meu camarada e tério pela porta do fundo.
a missão da segunda briga- É um portão grande, atrás.
da, que é do pessoal de São Eu entrei com o carro lá e já
Gabriel da Cachoeira, real- desci no elevador.”
M A RCOS OLIV EIR A /AG. SEN A DO E LUL A M A RQUES/A BR

mente tá subindo o rio na- A Defesa integrava uma


quela direção, tá bom? En- comissão que o Tribu-
tão seria bom ele (Pedri- nal Superior Eleitoral ha-
nho) sair de lá por enquan- via criado para atestar a
to, tá? Cerca de dois... três segurança das urnas. Seu
dias”, alertou. “Vamos li- homem na comissão era
vrar ele todo santo dia de o general Heber Garcia
ser pego”, afirmava em ou- Portella, chefe da área de
tra mensagem. Nesta, ele defesa cibernética do Exér-
cobrou seu preço: “No mí- cito. O relatório final do mi-
nimo uns 20 mil? Isso para nistério sobre as urnas, di-
ser muito baixo”. Significa- vulgado em 9 de novembro,
ria dobrar sua renda men- uma semana após a vitória
sal. Seu salário no Exérci- Na CPI, Delgatti expôs a trama militar para desacreditar as urnas eletrônicas de Lula, era ardiloso: não

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 15
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

apontava fraude nem a descartava. Ser- CAI A CONFIANÇA do quando foi à pasta no tempo do gene-
viu para embalar os sonhos golpistas da- ral Nogueira. Segundo ele, não há regis-
queles acampados na porta de quartéis. NAS FORÇAS tros escritos ou em vídeo da presença do
Após encontrar Bolsonaro, Delgatti te- ARMADAS EM 2023 hacker por lá. Múcio quer os nomes pa-
ria sido levado à Defesa no mesmo dia Em % ra individualizar condutas e punir quem
por um coronel da reserva do Exérci- merecer. A PF diz que os nomes fazem
80
79
to, Marcelo Costa Câmara. Este era um 74 parte de inquéritos sigilosos, só o Supre-
70
dos assessores mais próximos de Bolso- mo Tribunal Federal poderia liberá-los.
naro, um dos oito homens escolhidos pa- 60
Múcio recorreu ao STF. Certas declara-
ra a equipe de assessores, pagos com ver- ções suas o colocam no time favorável a
ba pública, a que teria direito depois de 50 “cortar na carne militar”. “Interessa às
deixar o poder. Forças Armadas que essas coisas sejam
40
todas esclarecidas”, disse na quarta-feira

D
elgatti disse ter ido mais 30 23, após reunir-se com o diretor da PF, o
quatro vezes ao minis- 23 delegado Andrei Rodrigues. “Precisamos
20 18
tério e ter sido o cérebro dar uma satisfação à sociedade”, prosse-
do relatório de novem- 10 guiu, “desejamos ajudar nas punições.”
bro. Seus contatos se- 3 2 Um dia após as declarações bombás-
riam com pessoas da área de Tecnologia 0
Dezembro/2022 Agosto/2023
ticas do hacker, Múcio participou do 74º
da Informação e com o próprio ministro aniversário da Escola Superior de Guer-
de então, o general Paulo Sérgio Nogueira Confia (muito ou pouco) Não confia ra, no Rio. Telefonou para Lula dali. A
de Oliveira. Ele botou em cena mais um NS/NR seu lado estava o chefe do Exército, o ge-
militar. Marcelo Gonçalves de Jesus seria neral Tomás Miguel Ribeiro Paiva. Era
Fonte: Pesquisa Genial/Quaest
ponte do hacker com o então comandan- de 21 de agosto de 2023. uma sexta-feira. O boletim do Exército
te do Exército, o general Marco Antônio publicou naquele dia uma “ordem frag-
Freire Gomes. Jesus é um coronel da re- mentária” de Tomás. Segundo a dire-
serva, amigo de um amigo de Bolsonaro, triz, o Exército é “instituição de Esta-
o major Vitor Hugo, ex-deputado federal do” e “apartidária” e seus integrantes
por Goiás. Assim que pendurou a farda, “devem pautar suas ações pela legalida-
foi ganhar dinheiro com a, digamos, ex- de”. Diretriz que criou ainda um grupo de
periência nos quartéis e em Brasília, a fim trabalho para estudar o aumento do sa-
de engordar o salário militar, hoje de 27,8 lário na caserna. Múcio e Lula ficariam
mil. Em março de 2020, abriu uma em- mais de duas semanas sem se falar pes-
presa, a MGJ Consultoria em Segurança soalmente. No domingo 20, o presidente
e Comércio Exterior, e tem feito negó- viajaria à África, só voltará dia 28, justa-
cios com o Poder Público. Em setembro mente quando Múcio deixará o Brasil pa-
de 2022, por exemplo, selou um contra- ra compromissos no Peru, na Venezuela e
Amigo de Bolsonaro, Jesus tinha
to com o Ministério da Economia para na Colômbia. Ele e Lula só estarão simul-
contratos com o governo. O tenente-
fornecer suprimentos à Zona Franca de -coronel Pinto Jr. alertava garimpeiros taneamente em Brasília em 5 de setem-
Manaus. Faz lembrar aqueles militares- bro. Em razão do Dia da Independência e
-consultores metidos em venda de vaci- dos vários rolos dos militares, seria bom
nas descobertos pela CPI da Covid. que ambos conversassem antes das via-
Três dias após ir à CPI, o hacker foi con- gens. Múcio foi ao Alvorada no sábado 19
denado a 20 anos de cadeia no caso que o de agosto e levou Paiva e os chefes da Ma-
deixou famoso, o da Vaza Jato. Sentença rinha, Marcos Sampaio Olsen, e da Ae-
do juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara Federal ronáutica, Marcelo Damasceno Kanitz.
Criminal de Brasília. O bolsonarismo diz Segundo relatos no governo, a reu-
que ele mente. Será? O ministro da Defe- nião no Alvorada abordou joias, urnas, 8
sa, José Múcio, pediu à Polícia Federal os de Janeiro, 7 de Setembro e investimen-
nomes de quem Delgatti teria encontra- tos em Defesa. O trio de comandantes

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

teria se mostrado a favor de punir farda- Jair e Michelle Bolsonaro transformaram mão na cabeça de Pazuello e seus moti-
auxiliares militares em contrabandistas de joias
dos que merecerem. O que se percebe em vos foram declarados sigilosos por um sé-
Brasília é um esforço para que não signifi- culo. Vieram a público em fevereiro deste
que condenar os militares como institui- concluída na quinta-feira 24. Falta de ano, por decisão da Controladoria-Geral
ção. A imagem deles piorou em oito me- transparência é costume entre os mili- da União. Eram vergonhosos.
ses de Lula, conforme uma pesquisa da tares, vide o caso da participação do ge-

F
segunda-feira 21 do instituto Quaest. De neral Eduardo Pazuello em uma moto- alta transparência, sobra
dezembro para cá, caiu de 79% para 74% ciata de Bolsonaro em maio de 2021, no nepotismo. A Fundação
o número de brasileiros que confiam nas Rio. Pazuello era general da ativa (e mi- Habitacional do Exército, a
Forças Armadas muito ou um pouco, en- nistro da Saúde). Os regulamentos da ca- Poupex, foi criada em 1983
quanto subiu de 18% para 23% o total dos serna proíbem fardado da ativa em ativi- para facilitar a moradia da
AL AN SANTOS/PR, REDES SOCIAIS E CMP/COPESP/EB

que não confiam nada. Ao se examinar os dades político-eleitorais. O general No- tropa verde-oliva. Em dezembro de 2020,
dados com base no voto para presidente, gueira, então chefe do Exército, passou a possuía 1,3 mil funcionários. Destes, 95
vê-se que o tombo na imagem é obra dos eram militares, dos quais 12 generais e
eleitores de Bolsonaro. A provável expli- 55 coronéis. Do total de empregados, 221
cação para o sentimento dos simpatizan- O EXÉRCITO tinham parentes nas Forças Armadas
tes do capitão é que eles esperavam um ou na Defesa. Foi uma descoberta do
golpe militar contra a derrota nas urnas e
ENCOMENDOU UMA Tribunal de Contas da União, órgão au-
a posse do petista. “Houve uma socializa- PESQUISA PARA xiliar do Congresso na vigilância do go-
ção da suspeição”, resume um ministro. AFERIR OS DANOS verno. Em maio passado, o TCU deu 90
O Exército quer uma pesquisa pró- À SUA IMAGEM POR dias para a Poupex tomar “as providên-
pria sobre sua imagem e preparou uma cias cabíveis” diante dos “indícios con-
licitação de 173 mil. Não prestou infor-
173 MIL REAIS tundentes de nepotismo”. Curiosidade:
mações sobre ela para esta reportagem, a determinação baseia-se em um decre-

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 17
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

to contra o nepotismo no serviço públi- No Dia da Independência, o presidente Vieira da Silva. Continha 1.055 itens.
pretende deixar os holofotes para os militares.
co baixado por Lula em 2010. É uma forma de ajudá-los a se reerguer
Nenhum era pedra preciosa.
No esforço para salvar a imagem dos Cid está preso desde 3 de maio, em ca-
quartéis, o general Tomás procurou o pre- ráter preventivo, por causa do cartão de
sidente da CPI do 8 de Janeiro, deputado Entre vários documentos que a comissão vacina imerecido que ele arrumou para
Arthur Maia, do União Brasil da Bahia. obteve na Presidência, há um e-mail de Bolsonaro em 2022. Na investigação do
Tomaram café da manhã na quarta-feira 27 de outubro de 2022, enviado por um caso das joias, o juiz Alexandre de Moraes,
23. Múcio estava junto. “O que me foi afir- tenente, Cleiton Henrique Holzschuk, do Supremo, quebrou os sigilos bancário
mado o tempo inteiro é que o que impor- para outro, Osmar Crivelatti, ambos do e fiscal do casal Bolsonaro, como queria
ta ao Exército é que tudo seja esclarecido”, Exército. O texto dizia que, na véspe- a PF. A CPI armou uma devassa financei-
relatou o deputado após o café. Para emen- ra, Bolsonaro havia ganhado joias em ra sobre Cid capaz de ajudar a esclarecer
dar que “o fato de alguns militares, pes- Teófilo Otoni, cidade mineira, e que esta- tanto o financiamento dos atos golpistas
soas físicas, terem eventualmente se en- vam em um cofre. “A pedido do TC Cid”, de 8 de janeiro quanto o destino da gra-
volvido” no 8 de Janeiro “tem que ser to- escreveu Holzschuk, “as pedras não de- na de joias. “A classe que mais me decep-
talmente separado das Forças Armadas”. vem ser cadastradas e devem ser entre- cionou chama-se militar. Eu perdi a fé no
gues em mãos para ele”. “TC Cid” é o te- meio”, diz o senador Jorge Kajuru, do PSB

M
aia é contra a CPI nente-coronel do Exército Mauro César de Goiás, autor de um pedido ao Coaf, ór-
debruçar-se sobre Barbosa Cid, chefe dos ajudantes de ordem gão federal de combate à lavagem de di-
“joias”. A comissão de Bolsonaro na Presidência. Holzschuk e nheiro, sobre as finanças de Cid. Ao de-
esbarrou em um Crivelatti eram do time de Cid. O inventá- por à CPI em 11 de julho, o tenente-coro-
episódio de joias rio dos presentes recebidos por Bolsonaro nel estava de farda. Era uma orientação
aparentemente embolsadas pelo ca- na Presidência foi feito em dezembro de do Exército, conforme o próprio Exército
sal Bolsonaro, e há militares no enredo. 2022 por um capitão da Marinha, Marcelo havia informado em uma nota. Dois dias

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

depois, a força se desdisse, em um do- referência às batalhas contra invasores


cumento ao Ministério Público Militar: holandeses no Nordeste no século XVII.
“Não houve orientação formal”. Na quin- O Exército propagandeia que nasceu ali,
ta-feira 24, Cid depôs em uma CPI do Le- antes do Brasil, cujo marco zero é 1822.
gislativo de Brasília sobre o 8 de Janeiro “E veio participando, goste-se ou não,
e mais uma vez estava com traje militar. aprove-se ou não, da formação da nossa
O dia 7 de setembro é visto nas cúpu- nacionalidade (…), ajudou a construir a
las das Forças Armadas como uma opor- sociedade”, emendou o general, que foi o
tunidade de limpar a farda, virar a pági- número 2 do Exército no governo Dilma
na de adesão ao bolsonarismo e realçar e chefe do GSI com Michel Temer.
a face profissional e apartidária. É o que

E
diz uma autoridade governamental. Um ra um debate promovido
civil envolvido nas reuniões preparató- pelo PT sobre o famigerado
rias do desfile diz perceber incômodo dos artigo 142 da Constituição,
militares com o fato de que o presidente aquele que define o pa-
é Lula. O Palácio do Planalto, conta um pel das Forças Armadas
ministro, planeja a comemoração para e dá margem à interpretação de que há
transmitir a ideia de que o petista tem o golpe militar dentro da lei. “As Forças
comando da tropa e que há união nacio- Armadas têm tradição de luta contra os
nal. Nos dois últimos anos, a data serviu brasileiros, não têm tradição de luta con-
aos propósitos pessoais de Bolsonaro, tra as potências interessadas nas rique-
com a conivência da caserna. Em 2021, zas do Brasil”, comentou no debate um
o capitão chamou Alexandre de Moraes, historiador especializado em militares,
do Supremo, de “canalha” e disse que não Manuel Domingos Neto, ex-deputado fe-
cumpriria mais decisões do juiz. Em deral pelo Piauí. Ele prega uma reforma
2022, fez um comício nos festejos. profunda no papel das Forças Armadas,
Ainda conforme a fonte civil, o gover- para que elas se atenham a proteger a
no tem preparado o Dia da Independên- Múcio quer individualizar as condutas e punir nossa soberania e as nossas fronteiras e
quem merecer, preservando a imagem das Forças
cia para os holofotes ficarem sobre os mi- logo lançará um livro sobre o tema, inti-
litares. É uma forma de ajudá-los. Lula tulado O Que Fazer Com o Militar.
em sido generoso com os quartéis. No Brasil. Evidência de que se sente acima Os fardados querem ter voz política,
“novo PAC”, separou 52,8 bilhões de reais do País e com o direito de se meter na po- não querem se ater às suas funções típi-
para investir nelas até 2030, dos quais lítica. “A história das nossas Forças Ar- cas. “É impossível imaginar que os mi-
27,8 bilhões dentro do seu atual mandato, madas se confunde com a história do po- litares não tenham participação políti-
até 2026. Não foi um gesto isolado de boa vo brasileiro desde 1648, desde os episó- ca”, afirmou Ecthegoyen. “Preocupa-me
vontade. Um decreto presidencial de 16 dios de Guararapes”, disse o general da muito a questão da representatividade,
de agosto aumentou em até 70% o valor reserva Sérgio Etchegoyen na Câmara como resolver o problema da representa-
das diárias pagas a militares em serviço dos Deputados em 16 de agosto. Foi uma tividade. Quem vai representá-los?” Eis
J O É D S O N A LV E S /A B R E R I C A R D O S T U C K E R T/ P R

fora de Brasília. No fim de junho, venceu aí uma ideia que leva à conclusão de que
um decreto que entregava a uma equipe o Brasil, de fato, convive com um “Parti-
temporária da PF a segurança do presi- NO NOVO PAC, do Militar”, como diz um fardado crítico
dente. A escolta voltou a ser feita por mi- contundente da politização das cúpulas
LULA RESERVOU
litares, como era até 2022. O que não im- hierárquicas das Forças Armadas, o co-
pede Lula de ter um delegado por perto, a 52,8 BILHÕES DE ronel da reserva Marcelo Pimentel de
pedido dele. Nem que a primeira-dama, REAIS PARA A Souza. O único, aliás, punido nos últi-
Rosângela da Silva, a Janja, insista em ter DEFESA, MAIS DO mos anos em razão da politização dos
para si uma segurança civil. quartéis. Politização que ele criticava,
QUE TERÁ A SAÚDE
O Dia da Independência é uma data ca- não que defendia.
ra ao Exército, mas a tropa verde-oliva OU A EDUCAÇÃO Quem mais será punido daqui em
enfatiza a ideia de que nasceu antes do diante? •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 19
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Base sólida
DESENVOLVIMENTO O novo PAC e diversos
projetos estaduais de habitação popular
pavimentam a retomada da construção
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L

P
aralisia de investimentos, do Rio de Janeiro. Com as promessas de
alta do petróleo, Lava Jato, 1,7 trilhão de reais em investimentos e
pandemia. Provavelmente, geração de 4 milhões de empregos di-
nenhum outro setor sentiu retos e indiretos, o PAC 3, lançado este
tanto a sucessão de reveses mês, está na raiz do otimismo do setor,
sofridos pela economia brasileira nos úl- mas o número de obras previstas em ou-
timos anos quanto a construção. Na tra- tros projetos, como o novo Plano Diretor
vessia do alto do pódio – estima-se que, do Rio de Janeiro, também anima: “A ex-
em seu auge, as obras para a Copa de pectativa é muito boa, porque temos ho-
2014 e a Olimpíada de 2016 geraram 3,5 je uma perspectiva real de queda na taxa
milhões de postos de trabalho – ao fun- de juros e também uma sinalização clara
do da crise que quebrou empresas e ani- do governo federal com investimentos de
quilou empregos, os ramos de constru- infraestrutura em áreas como mobilida-
ção civil e pesada tiveram de mostrar re- de, aeroportos e saneamento”.
siliência e se readaptar para sobreviver.
O tempo ruim pode, porém, ter ficado Há, ainda, a perspectiva de um for-
para trás. Ao menos é isso que esperam te investimento em habitações de interes-
empresários e trabalhadores do setor, se social, acrescenta Hermolin. “Além do
animados com o lançamento do novo PAC 3, tem o novo Minha Casa Minha Vi-
Programa de Aceleração do Crescimento da e os programas de habitação estaduais”,
pelo governo federal e outros projetos de observa, dando os exemplos dos projetos
habitação que começam a ser criados nos lançados em São Paulo, Paraná, Goiás e
estados. Apesar do recuo de 8,5% na ge- Espírito Santo. “Isso começa a se prolife-
ração de empregos no primeiro semes-
tre de 2023, na comparação com o ano
passado, a expectativa é de que o segun-
do semestre seja a pedra fundamental
da retomada da construção. Abalado pela Lava
“Há um conjunto de boas notícias
Jato e pela pandemia,
que nos levam a ser otimistas quanto
a uma forte recuperação”, diz Cláudio o setor voltou a gerar
Hermolin, presidente do Sindicato da In- mais empregos que
dústria de Construção Civil (SindusCon) a indústria e o agro

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 28
NESTA Bahia. O bárbaro assassinato de
SEÇÃO Mãe Bernadete expõe os índices
epidêmicos de violência no estado

Impacto. O PAC 3 prevê 4 milhões de


postos de trabalho diretos ou indiretos.
As obras da Copa e das Olimpíadas
empregaram 3,5 milhões de operários

rar pelo Brasil e é uma excelente notícia.”


De acordo com os dados do Cadastro
Geral de Empregados e Desempregados,
o Caged, há dois anos a construção figu-
ra entre os setores que mais geram em-
pregos. Entre janeiro e junho de 2023,
mesmo com a desaceleração das contra-
tações, foram criados 169.531 novos pos-
tos de trabalho, deixando o setor atrás
somente de serviços (599.454 empregos)
e à frente de indústria (135.361) e agro-
pecuária (86.837). Ainda é uma recupe-
ração tímida em face das demissões que
se contaram às centenas de milhares no
fim da década passada: “Sofremos um
baque muito grande no período poste-
rior à Copa e à Olimpíada, ainda agrava-
do por questões como a crise da Lava Ja-
to ou, no caso específico do Rio, a crise do
petróleo, diz Hermolin. Logo em seguida
veio o período crítico da pandemia, mas
este acabou por revelar uma importan-
te resiliência do setor.

“Conseguimos manter 85% dos can-


teiros em atividade. Se não tivéssemos
conseguido, o desemprego teria sido muito
maior na pandemia. Isso fez também com
que no pós-pandemia tenha havido uma
retomada mais rápida”, diz Hermolin.
TCHÉLO FIGUEIREDO/GOV M T E A RQUIVO/A BR

Apesar de não ser uma atividade essen-


cial, a construção “é um indicativo im-
portante de vulnerabilidade social, por-
que emprega grande quantidade de mão
de obra da base da pirâmide”, emenda.
Um estudo divulgado pela CUT e pelo
Dieese em 2021 revelou que a construção
foi um dos setores da economia nacional
que sofreram maior prejuízo econômi-
co em consequência da Operação Lava
Jato, com a perda de 1,1 milhão de pos-

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 21
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

tos de trabalho em um universo nacio-


nal de 4,4 milhões de trabalhadores que
ficaram desempregados graças à “cruza-
da anticorrupção” comandada pelo en-
tão juiz Sergio Moro, mais tarde consi-
derado “parcial” e “incompetente” pelo
Supremo Tribunal Federal.
A expectativa dos trabalhadores, ago-
ra, é de que esses postos sejam gradual-
mente recuperados. “O relançamento
do PAC terá impactos positivos na gera-
ção de empregos e renda, retomando o
desenvolvimento sustentável do Brasil
com obras de infraestrutura”, diz Sérgio
Nobre, presidente nacional da CUT. O lí-
der sindical diz esperar que o PAC reco-
loque o País no caminho do crescimen-
to: “A ação política da Lava Jato resultou
num conjunto grande de obras paradas
e no fim do PAC que, além de melhorar a
logística do País, eliminou gargalos exis-
tentes na infraestrutura e melhorou a
vida da classe trabalhadora num círculo
virtuoso de geração de emprego e renda”.

Durante a cerimônia de lançamento


do PAC 3, realizada no Theatro Muni-
cipal do Rio, Nobre afirmou que a Lava
Jato não pode ser esquecida, pois os tra- que giram a economia de vários setores”. te Eficiente e Sustentável (349 bilhões).
balhadores “não podem nunca mais per- O parlamentar ressalta a modernização Reimont lembra que, de 2016 a 2018,
mitir que isso aconteça no nosso país”. O que será necessária ao setor para a execu- as principais empreiteiras brasileiras
presidente da CUT acrescentou que, ao ção dos projetos previstos. “O PAC é um perderam 85% de sua receita líquida,
término do segundo mandato de Lula, o programa moderno de desenvolvimento que despencou de 71 bilhões de reais pa-
“setor de engenharia e infraestrutura era para o Brasil e tem compromissos claros ra 10,6 bilhões. Um dos grandes desafios
composto de grandes empresas brasilei- com o meio ambiente e a justiça social”, do governo, avalia o deputado, é levar as
ras de alta tecnologia”, mas que, infeliz- diz, ao citar os investimentos nos eixos empresas nacionais de volta à “posição
mente, essa realidade “foi destruída pe- Cidades Sustentáveis e Resilientes (610 de excelência não só no mercado interno,
la trupe de Curitiba”. bilhões de reais), Transição e Seguran- mas também no mundial”, da qual goza-
No Congresso Nacional, a expectativa ça Energética (540 bilhões) e Transpor- vam antes da crise: “Essa trajetória exi-
também é grande pela retomada da pro- tosa, inclusive em mercados disputadís-
dução e dos empregos na construção. In- simos como o norte-americano, foi bru-
tegrante da Comissão do Trabalho da Câ- talmente abalada pela Lava Jato, que cri-
mara, o deputado federal Reimont Otoni, “Com juros altos, minalizou, demonizou e quase destruiu
do PT, se diz otimista: “Quase todas as o investidor acha essas empresas. As perdas provocadas fo-
ações dos nove eixos do PAC 3 incluem ram de tal ordem que levantaram a sus-
um número extraordinário de obras que
melhor deixar o peita de que a operação serviu às grandes
movimentam tanto a construção pesa- dinheiro parado”, empreiteiras internacionais”. Para o pe-
da como a construção civil, grandes ge- alerta Hermolin, do tista, a construção já deixou o mau mo-
radoras de empregos diretos e indiretos e SindusCon do Rio mento para trás: “Historicamente, o de-

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

do”, afirma Cláudio Hermolin. A cons-


trução, alerta o dirigente do SindusCon,
demanda investimentos de grande vo-
lume e com retorno de longo prazo, com
projetos que têm, em média, 5,2 anos de
duração: “Quando a taxa de juros está al-
ta, há um aumento no custo do capital e,
quanto mais essa taxa diminui, mais au-
menta o interesse do investidor em colo-
car seu dinheiro na produção, o que, con-
sequentemente, diminui o nosso custo”.

Hermolin lembra que a Selic também


afeta o custo do crédito imobiliário, im-
portante para a aquisição da casa pró-
pria e uma ferramenta fundamental pa-
ra boa parte da população. “Temos um es-
tudo que mostra que a cada meio ponto
porcentual a menos nos juros do crédi-
to imobiliário, são inseridas 500 mil fa-
mílias no mercado consumidor de imó-
veis. Quando diminui o valor da presta-
ção da casa própria, há mais gente com
capacidade de pagar”, diz. Já Sérgio No-
bre afirma que o corte de meio ponto na
Selic “ainda é pouco para reerguer a eco-
nomia brasileira com mais rapidez”.
Planos. Lula busca Para celebrar o bom momento, os prin-
reaquecer o mercado cipais atores do setor participarão, entre
de trabalho. Hermolin, os dias 19 e 21 de setembro, do Rio Cons-
do SindusCon do Rio, e trução Summit, que reunirá na capital
Sérgio Nobre, da CUT,
fluminense 180 convidados e promove-
cobram uma redução
mais significativa da rá debates e palestras para um púbico es-
Selic para favorecer timado em 5 mil pessoas. Hermolin res-
P R E F E I T U R A D E S Ã O J O S É D O R I O P R E T O / G O V S P, R O B E R T O

o crédito imobiliário salta que não será uma feira, mas um “de-
P A R I Z O T T I / C U T, S I N D U S C O N R J E R I C A R D O S T U C K E R T / P R

bate de conteúdos” para cimentar a re-


cuperação esperada. “Traremos de volta
discussões relevantes como sustentabi-
lidade, novas tecnologias e qualificação
da mão de obra. Vamos discutir ainda a
sempenho do setor no Brasil acompanha uma condição sine qua non para que tu- relação do público com o privado. É um
par e passo o desempenho da economia. do dê certo na retomada da construção evento que marcará a retomada do pro-
Portanto, a recuperação econômica que no Brasil é a continuidade da queda nos tagonismo da indústria da construção.” A
vem sendo promovida pelo governo Lu- juros. “A taxa alta impede investimen- expectativa do SindusCon é de que o en-
la já tem impactos positivos, mesmo an- tos mais significativos no setor. Com a contro possibilite novos investimentos:
tes do início das obras do PAC 3. Estamos Selic a 13,25% ao ano, o empreendedor, “Passadas as incertezas, inclusive em re-
recuperando o Brasil, os setores econô- obviamente, fica pensando se vale a pe- lação às eleições, temos vários indicado-
micos e as esperanças do povo”. na correr o risco de investir na produção res de um horizonte de crescimento mais
Entre trabalhadores e empresários, ou se é melhor deixar o dinheiro para- acelerado para o setor”. •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 23
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Pela metade
grante com pequenas quantidades de
entorpecentes. Segundo recente pes-
quisa do Ipea, a maioria dos processa-
dos são homens (87%), jovens (72%) e
DROGAS Supremo está prestes a liberar negros (67%). Metade deles possuía al-

o consumo recreativo de Cannabis, guma anotação criminal anterior, e so-


mente em 17% dos casos havia menções
mas o cultivo em larga escala para fins sobre o envolvimento com facções cri-
minosas. Com a liberação da maconha,
medicinais segue no limbo jurídico espera-se uma significativa redução do
POR MARIANA SER AFINI número de presos no Brasil, que no fim
de 2022 possuía a terceira maior popu-
lação carcerária do mundo (832,9 mil),
atrás apenas de EUA e China.

O
Na avaliação de Guilherme Carnelós,
Supremo Tribunal Fede- rável à descriminalização. Cogita-se au- presidente do Instituto de Defesa do Di-
ral deve retomar, na quin- torizar o porte de até 60 gramas da er- reito de Defesa, a Suprema Corte dará
ta-feira 24, após a conclu- va e o cultivo de seis mudas fêmeas em uma enorme contribuição à sociedade
são desta reportagem, o ambiente doméstico. Seria um inegável se apresentar um parâmetro claro pa-
julgamento que pode li- avanço. Um em cada três detentos no ra distinguir usuários de traficantes.
berar a posse de maconha para consu- Brasil foi acusado por tráfico de drogas, “Isso não pode continuar sob a análise
mo recreativo. Por ora, o placar é favo- e muitos deles acabaram presos em fla- subjetiva de delegados, até porque exis-

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

te um racismo institucional muito claro passos trôpegos no Brasil. As seis mudas Artesanal. O exorbitante preço nas
nas corporações policiais.” Se o suspeito de plantas fêmeas que podem ser libera- farmácias estimula a produção doméstica
do canabidiol, óleo derivado da erva
é negro e vive num bairro pobre, acres- das são insuficientes para manter trata-
centa o advogado, é grande a possibili- mentos prolongados de pacientes que fa-
dade de ser considerado traficante, mes- zem uso do canabidiol e de outras subs-
mo que tenha sido flagrado com uma pe- tâncias extraídas da erva. titucionalidade do artigo 28 da Lei de
quena quantidade de drogas. No caso de Ainda assim, o advogado Felipe Drogas de 2006, a prever punições a
suspeitos brancos abordados em bairros Nechar, coordenador jurídico da Asso- quem “adquirir, guardar, tiver em de-
de classe média ou rica, o tratamento é ciação Divina Flor e integrante da Co- pósito, transportar ou trouxer consi-
radicalmente distinto, são tratados co- missão de Direito Médico e Sanitário go, para consumo pessoal, drogas sem
mo usuários. “O determinismo geográfi- da OAB de Mato Grosso do Sul, acredi- autorização ou em desacordo com a de-
E B E T O F I G U E I R O A / M A N D AT O I VA N M O R A E S

co e racial exerce um papel muito forte.” ta que os pacientes têm razões para ce- terminação legal”, a decisão deverá ser
P R E F E I T U R A D E V O LTA R E D O N D A / G O V R J

lebrar. Uma vez reconhecida a incons- modulada para beneficiar quem faz
A despeito dos impactos positivos da tratamentos com Cannabis. “Da mes-
decisão no sistema carcerário, muitos ma forma, devem surgir novas políticas
especialistas se ressentem com a falta públicas nas áreas de saúde e seguran-
de atenção dispensada pelos ministros Seis mudas de ça pública sem aquela visão dogmática
da Suprema Corte com a Cannabis me- da Guerra às Drogas. O proibicionismo
dicinal. Desde que foi concedido o pri-
maconha não são causou mais danos que benefícios.”
meiro habeas corpus para cultivo da er- suficientes para Nechar ressalta que a produção de
va com a finalidade de produzir medica- manter a maioria medicamentos ou fitoterápicos está
mentos, em 2016, o debate avançou em dos tratamentos sujeita ao controle da Agência Nacional

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 25
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

de Vigilância Sanitária, a Anvisa, res-


ponsável por estabelecer os critérios de
boas práticas no manejo e fabricação.
Hoje, a Cannabis é utilizada para tra-
tar numerosas doenças, do câncer à de-
pressão, passando por síndromes raras
e casos agudos de epilepsia. O paciente
precisa, porém, obter um habeas corpus
na Justiça para produzir o seu próprio
medicamento. Caso contrário, ficará
refém dos elevados preços cobrados
pela indústria farmacêutica no Brasil.
Um frasco de canabidiol, óleo extraí-
do da planta de maconha, pode cus-
tar mais de 2,5 mil reais nas pratelei-
ras das farmácias, a depender da con-
centração de princípio ativo presente
na solução. Muitos recorrem à impor-
tação do produto, mas ainda assim os
valores são salgados e as remessas po-
dem demorar a chegar, levando a inter-
rupções no tratamento dos pacientes.

Quando o paciente não tem a inten-


ção de produzir o próprio remédio ou
não possui estrutura adequada para o
cultivo, a alternativa é buscar o amparo
de associações autorizadas por decisões
judiciais a plantar e extrair derivados
da Cannabis. Quem participa dessas or-
ganizações explica que elas fazem o que
o Estado deveria fazer: acolher e dar so-
luções para os pacientes com doenças
graves. Nechar defende a fabricação
artesanal não só pelo baixo custo, mas
também pelo “efeito relaxante da prá-
tica da jardinagem”, que pode até con- Pioneira. Margarete Brito foi a primeira da será necessário recorrer ao Judiciá-
tribuir para o tratamento. “Melhor que brasileira a obter autorização judicial para rio, com pedidos de habeas corpus, pa-
cultivar a erva com finalidade medicinal
maconha no SUS é maconha no quintal, ra cultivar a quantidade necessária de
inúmeros pacientes acabam por reali- mudas para a maior parte dos tratamen-
zar terapia ocupacional com o manejo tos. Isso porque a Lei 399/15, que versa
de suas plantas”, argumenta. ral existente hoje na sociedade. “Poder sobre o plantio, produção e distribuição
Presidente da Comissão de Direito falar abertamente sobre o assunto é o comercial da Cannabis em larga escala,
Canábico da OAB de Pernambuco, Sér- primeiro passo para demonstrar às pes- está parada na Câmara Federal desde
gio Eduardo Urt Almeida de Moraes ava- soas que não se trata de uma droga tão 2021, sem previsão de avançar.
lia que a decisão do STF não terá impac- nociva como foi apregoado ao longo dos “Se, no futuro, a Lei 399/15 for apro-
to sobre a produção em larga escala das anos. Isso, sem dúvida, já é uma grande vada, não será mais permitido o recur-
associações. Abre, porém, espaço para vitória.” Mesmo com seis plantas fêmeas so do habeas corpus, porque a indús-
avançar no debate longe do pânico mo- liberadas, acrescenta o especialista, ain- tria farmacêutica e as associações te-

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

rão autorização para cultivar a planta Mais de 3,5 mil ceu com uma síndrome genética rara,
em larga escala. A produção individual chamada CDKL5, doença que causa
não será mais possível”, explica Moraes.
pacientes ganharam convulsões frequentes no início da in-
“Esse movimento mexe com muito di- habeas corpus para fância. Ao pesquisar sobre a moléstia,
nheiro. Não estamos falando só da in- fabricar seus descobriu o caso de uma criança que
dústria farmacêutica, mas também da próprios remédios obteve bons resultados com um tra-
venda ilegal, do narcotráfico. Os labo- à base de Cannabis tamento à base de Cannabis nos EUA.
ratórios estão ansiosos pela regulação.” Na clandestinidade, Brito arriscou-se
Outra questão em debate é a obrigato- a importar o óleo e viu a qualidade de
riedade de os planos de saúde oferece- vida da filha melhorar da água para o
rem tratamentos com Cannabis e seus vinho em pouco tempo. Foi então que
derivados. “Atualmente, é preciso acio- Desde que passou a ser permitida a recorreu à Justiça para obter a libera-
nar o Judiciário, que vai decidir caso a importação de medicamentos pron- ção de plantar e produzir o medicamen-
caso. Os planos não são, a priori, obri- tos derivados da maconha, a demanda to por conta própria. O que era uma pe-
gados a custear os tratamentos, ainda nunca parou de crescer. Em 2015, foram quena horta, num apartamento de 70
que seja possível importar ou comprar emitidas 481 liberações para compra no metros na capital fluminense, virou
certos produtos na farmácia.” exterior. Neste ano, foram 66 mil apenas uma plantação de larga escala no inte-
Na rede pública, o SUS é que deveria no primeiro semestre. Para a plantação rior do Rio de Janeiro. Hoje, a advoga-
garantir o acesso dos pacientes aos me- própria existem mais de 3,5 mil habeas da produz medicamentos e fitoterápi-
dicamentos à base de Cannabis. O tema corpus vigentes no País. Além disso, dez cos para mais de 7,5 mil pacientes.
é debatido atualmente na Comissão de associações, em seis estados, estão auto-
Direitos Humanos da Câmara Federal, rizadas a produzir os remédios. Brito vê com bons olhos o avanço da
e 14 estados aprovaram leis que permi- A primeira pessoa a obter um habeas pauta no STF, mas ainda é pessimista
tem o uso de Cannabis na saúde pública. corpus para a produção individual no sobre o impacto da decisão na vida de
“A demanda é muito alta. Passou da ho- Brasil foi a advogada Margarete Brito, milhares de pacientes brasileiros que
ra de ser acolhida de forma séria, com que atua na associação Apepi. Ela bus- hoje utilizam a Cannabis. “É uma vitó-
políticas públicas”, diz Moraes. cava tratamento para a filha, que nas- ria imensa a possibilidade do cultivo de
seis plantas em casa. Até porque libe-
rar o porte, e não o cultivo, seria uma
forma de empurrar as pessoas para o
narcotráfico”, pondera. “Mesmo assim,
tenho dúvidas de que vamos avançar
mais, pois a força dos proibicionistas é
muito grande em Brasília. Basta confe-
rir como transcorreu o debate sobre o
assunto no Senado na semana passada.”
Na quinta-feira 17, o presidente do Se-
nado, Rodrigo Pacheco, manifestou in-
cômodo com o julgamento da Suprema
Corte. Segundo o parlamentar, a deci-
ARQUIVO/STF E ARQUIVO PESSOAL

são de liberar ou proibir o consumo de


entorpecentes compete ao Legislativo,
e não ao Judiciário. “Em sua declaração,
Pacheco demonstra que o proibicionis-
mo ainda é muito forte dentro da Casa.
Por lá, há quem queira restringir ainda
mais”, observa Brito. “Esse tema virou
um cabo de guerra entre os poderes, e
Voto. Gilmar Mendes defendeu a descriminalização de usuários de todas as drogas quem sai prejudicado são os pacientes.” •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 27
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Seu País

Rastro de sangue
bilidade, em nome do Estado brasileiro.
Nós não podemos aceitar essas falhas”,
lamentou Sílvio Almeida, ministro dos
Direitos Humanos.
BAHIA A execução da ialorixá Bernadete O secretário de Justiça da Bahia, Felipe
Pacífico é mais um capítulo da violenta Freitas, também reconhece a fragilidade
do programa. “A morte de uma defensora
novela que assombra os baianos de direitos humanos é inaceitável, ainda
mais se ela vinha sendo ameaçada. O go-
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A verno federal e o da Bahia estão revisan-
do todos os protocolos de proteção. Uma
tragédia como essa precisa fazer com que

O
a gente aprimore o programa, aprimore as
brutal assassinato da ialo- ções estruturais não permitem a pro- medidas de proteção, aperfeiçoe as ações
rixá Bernadete Pacífico, lí- teção das pessoas. Não queremos mais de policiamento em todo o País.”
der quilombola da comuni- mártires. Queremos que os defensores
dade Pitanga dos Palma- dos direitos humanos possam atraves- Sílvio Almeida cobra do governo baia-
res, em Simões Filho, re- sar esse caminho em direção a uma so- no uma explicação sobre o alto índice de
gião metropolitana de Salvador, coroa a ciedade mais justa vivos e juntamente violência no estado, principalmente a le-
condição de insegurança pela qual os conosco. Eu assumo a minha responsa- talidade em decorrência da ação policial.
baianos são submetidos e consolida a No início de agosto, após o assassinato de
Bahia como o estado mais violento do 31 pessoas durante uma ação policial, Al-
Brasil, conforme revelado, em julho, pe- meida acionou a Ouvidoria Nacional de
lo Fórum Brasileiro de Segurança Pública Direitos Humanos para apurar o caso
em seu Anuário, a mapear a violência no e para acompanhar a atuação da PM da
País. Mãe Bernadete, como era conhecida, Bahia, considerada a mais letal do País,
foi executada na quinta-feira 17 com 14 ti- superando até mesmo a do Rio de Janeiro.
ros dos mais de 20 disparados pelos as- Em julho, foram registradas 64 mor-
sassinos, que até a conclusão desta repor- tes por parte de policiais baianos, de
tagem não haviam sido identificados. O acordo com levantamento feito pelo Ins-
motivo do crime continua um mistério. tituto Fogo Cruzado. Em 2022, segun-
A principal linha de investigação do o Fórum de Segurança Pública, a po-
aponta para uma disputa de terra, uma lícia baiana matou ao menos 1.464 “sus-
vez que a área do quilombo desperta co- peitos”, enquanto, no Rio de Janeiro, o
biça de ruralistas, interessados tanto na saldo foi de 1.330 mortes. Os dois esta-
exploração de madeira quanto no merca- dos, juntos, contabilizaram no ano pas-
do imobiliário. A ialorixá vinha receben- sado 43% dos homicídios em decorrên-
do ameaças de morte há seis anos e, de- cia da intervenção policial. Em meio ao
pois do assassinato do seu filho Gabriel, caos, o governo estadual minimiza os da-
outra respeitada liderança quilombola, dos da violência ao tentar desclassificar
foi incluída no Programa de Proteção de o Anuário de Segurança Pública e sair em
Testemunha. O crime está sendo inves- defesa da Polícia Militar, sob a justifica-
tigado, sob sigilo, tanto pela Polícia Ci- tiva de sempre haver danos colaterais no
vil da Bahia quanto pela Polícia Federal. combate ao crime organizado.
“O Brasil é um país tão absurdo que, Em nota circulada depois da divulga-
mesmo quando fazem ameaças a um de- Barbárie. Mãe Bernadete foi assassinada ção do Anuário, a Secretaria de Seguran-
fensor dos direitos humanos, as condi- com 14 dos mais de 20 tiros disparados ça Pública afirmou que “não coloca ho-

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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micídio, latrocínio ou lesão dolosa segui- coordenador do Programa Direito e Rela- Morticínio. Em 2022, foram registradas
da de morte praticados contra um ino- ções Raciais e membro do Afro Gabinete 1.464 mortes decorrentes de intervenção
policial na Bahia, o maior número do País
cente na mesma contagem dos homici- de Articulação Institucional e Jurídica, o
das, traficantes, estupradores e assal- Aganju, os mais de 16 anos dos sucessivos
tantes, entre outros criminosos, mor- governos do PT na Bahia deram continui-
tos em confrontos com a polícia”. Ques- dade à mesma linha adotada nos governos “Assistimos desde 2007, quando Jaques
tionado por CartaCapital, o órgão desta- carlistas, liderados pela oligarquia coman- Wagner assumiu o primeiro governo, uma
cou a “alta produtividade” dos policiais dada pelo já falecido Antônio Carlos Ma- escalada nessa direção. Em vários mo-
que, “mesmo assim, diariamente, aca- galhães, legitimando a violência policial. mentos tivemos reuniões com Wagner, de-
bam conduzindo as mesmas pessoas, que pois com Rui Costa, questionando as es-
ISTOCKPHOTO E ARQUIVO/CONAQ

na maioria das vezes acumulam diver- colhas, apontando outros caminhos, su-
sas passagens pelo mesmo tipo de crime”. gerindo outras possibilidades. Algumas
O estado figura na políticas foram adotadas na contramão
Segundo a secretaria, houve redução de tudo que foi historicamente defendi-
de mortes violentas no estado: foram re-
liderança das mortes do pelo PT na Bahia. Uma delas foi desa-
gistradas 6.666 em 2016, ante 5.167 casos violentas e também tivar um grupo de repressão ao crime or-
no ano passado. Para Samuel Vida, pro- no topo do ranking ganizado”, lembra Vida, destacando que, à
fessor da Faculdade de Direito da UFBA, da letalidade policial época, a principal modalidade de violência

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 29
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Seu País

Aplausos. Após chacinas policiais, o jogo de futebol. “É como um artilheiro de”, disse. “Há uma situação muito esqui-
governador Jerônimo Rodrigues saiu em frente ao gol que tenta decidir, em sita na Bahia, porque temos um governo
em defesa da atuação da Polícia Militar
alguns segundos, como é que ele vai do PT desde 2007 que negligencia a se-
botar a bola dentro.” A justificativa, co- gurança pública de uma forma geral, mas
mo em outros casos, foi de que as víti- em particular a violência policial. Se fosse
que atingia a população negra era produ- mas tinham envolvimento com o crime um governo bolsonarista, seria comple-
zida por grupos de extermínio. “Uma das organizado, alegação depois desmenti- tamente natural, mas, realmente, num
primeiras medidas de Wagner foi acabar da. “Dos 12 jovens, somente um deles ti- governo de esquerda é uma situação trá-
com esse grupo e remeter a apuração dos nha uma passagem policial por briga no gica”, desabafa o cineasta Bernard Attal,
crimes de extermínio para uma delegacia Carnaval, algo que pode acontecer com diretor do filme O Descanso, que relata
especializada em proteção à vida, que aca- qualquer baiano”, denuncia Vida, desta- a história de mais uma vítima da polícia
bou por diluir esse trabalho”, diz o pesqui- cando que o ex-governador apoiou o pa- baiana. O documentário de 2014 narra
sador, ressaltando que o governo Wagner cote anticrime de Sergio Moro, a propor o desaparecimento de Geovane, um jo-
nem sequer trocou o Comando da Polícia o chamado excludente de ilicitude, espé- vem negro da periferia de Salvador, que
Militar que herdou do seu antecessor, o go- cie de carta branca à polícia para matar. foi abordado e morto pela PM baiana.
vernador Paulo Souto, mantendo a mesma “A polícia baiana tem um procedimen-
linha de atuação policial. Terceiro governador petista a coman- to específico de atuação em determinados
Um dos episódios mais relevantes que dar o estado nos últimos anos, Jerônimo espaços urbanos, que é direcionado a cer-
marcam a violência policial na Bahia nas Rodrigues saiu em defesa da polícia quan- tos setores da população, a subcidadania.
gestões petistas é a Chacina Cabula, de do uma equipe de jornalistas fazia uma Nesses espaços, a abordagem policial po-
2015, que deixou o saldo de 12 mortos. reportagem sobre a violência na Bahia. de se iniciar com a muito comum agres-
Na época, o então governador Rui Costa “Respeitem a nossa Polícia Militar, o que são verbal e culminar com a eliminação
comparou a atuação dos policiais a um vocês estão fazendo é irresponsabilida- física. O policiamento é militarizado, os-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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tensivo e belicoso, aspectos que na ativi- “Se fosse um governo ploração comercial de maneira danosa.”
dade policial têm sido os responsáveis pe- João Jorge, presidente da Fundação
la maior letalidade”, analisa o sociólogo
bolsonarista, seria Palmares, lembra que o histórico de vio-
Antônio Lima, autor dos livros Ras- natural, mas num lência na Bahia perpassa todos os gover-
tros de Fogo e Sangue e Rotas Alteradas. de esquerda é uma nos, mas que teve uma escalada princi-
Mariana Possas, professora do Depar- situação trágica”, palmente na era Bolsonaro. “Depois de
tamento de Sociologia da UFBA e pesqui- desabafa o cineasta ouvir o presidente falar tanto em armas
sadora do Laboratório de Estudos Sobre Bernard Attal e propagar a violência, olha aí o preço que
Crime e Sociedade, classifica como um a sociedade brasileira está pagando. Es-
“grande mal-entendido” o discurso de tamos nos matando. A Bahia virou uma
que o papel da polícia é combater crime, máquina de matar pessoas pretas e po-
ainda que se produza violência, narrativa bres. Nos bairros ‘nobres’, nunca vemos
que, muitas vezes, é adotada também por pensar o papel da polícia na sociedade. gente sendo atingida por uma bala perdi-
governadores. “É, no fundo, não mexer O cientista político Cláudio André de da, parece que há um escudo invisível.”
na estrutura. E mexer estruturalmente Souza, professor da Universidade da In-
significa produzir algum tipo de contro- tegração Internacional da Lusofonia A secretária de Promoção da Igualda-
le, observar e fiscalizar o serviço da po- Afro-Brasileira (Unilab), reconhece os de Racial da Bahia, Ângela Guimarães,
lícia, exigindo, por exemplo, como meta elevados índices de violência na Bahia, também atribui o aumento da violência
de desempenho, a redução da letalidade”, mas explica que não se trata de um pro- ao governo Bolsonaro e diz não haver res-
afirma. “Somos um país recordista de ho- blema localizado e cita o estímulo à vio- posta fácil, nem mágica, para resolver os
micídios, que também tem a polícia mais lência durante os quatro anos do gover- ataques contra a população negra e peri-
violenta. Esses números fazem parte de no Bolsonaro. Referindo-se ao assassi- férica no estado. “Atuamos por meio de
um mesmo fenômeno. A gente olha a po- nato de Mãe Bernadete, ele afirma exis- campanhas de enfrentamento ao racis-
lícia combater determinadas facções e tir um clima de impunidade que impe- mo no sentido de transformar um cons-
acha que isso vai reduzir os homicídios, ra no País, mais um incentivo para os ciente coletivo, porque, na prática, na vi-
quando, na verdade, só aumenta”, acres- criminosos. “Há uma perseguição, um são de grande parte da população, ainda
centa Possas, lembrando que, para pensar cenário que se acirrou ainda mais por vigora uma compreensão de que violên-
no problema da violência na Bahia, assim conta do bolsonarismo, que legitimava cia se combate com mais violência”, la-
como no País como um todo, é preciso re- a ocupação irregular da terra e sua ex- menta. “A gente combate violência com
distribuição de renda, com geração de
emprego, com educação de qualidade,
com acesso a equipamentos públicos, de
saúde, de cultura, de esporte e de lazer.”
Pressionado, Jerônimo Rodrigues
tenta minimizar o desgaste e vem apre-
sentando medidas para reduzir as esta-
tísticas de violência. Uma delas é a im-
plantação de câmeras nas fardas dos po-
liciais, recurso que deve ser instalado já
REDES SOCIAIS E FEIJÃO ALMEIDA /GOVBA

nos próximos meses. Nas últimas sema-


nas, ele tem participado de eventos para
entrega de viaturas e armamento às cor-
porações. “Estamos entregando viaturas
para toda a Bahia, algumas semiblinda-
das. Estamos fazendo agenda constan-
te de segurança pública”, disse o gover-
nador na terça-feira 22, em evento para
a entrega de veículos e equipamentos no
Ex-governadores. Rui Costa e Jaques Wagner também minimizaram a violência policial município de Teixeira de Freitas. •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 31
MARIA RITA KEHL
CLUBE DE REVISTAS
Psicanalista e escritora, foi integrante da Comissão Nacional da
Verdade. É autora, entre outros, de O Tempo e o Cão, vencedor
do Jabuti de 2010, e Tempo Esquisito (2023), ambos pela Boitempo

Inimigo interno

a divulgação do relatório da CNV ficou o número delas. Depois, percebendo que


► A militarização de muito comprometida. As polícias conti- pegou mal, recuou da decisão. Mesmo as-
nossas polícias tem, como nuam militares. Os “autos de resistência” sim, menos da metade das mortes causa-
continuam a justificar assassinatos. Não das pela PM no Guarujá e em Santos têm
efeito nada secundário,
em nossos bairros, leitores. Raramente imagens capazes de identificar os assas-
o fato de produzir homens entre membros de nossas famílias. Mas sinos. Escrevi “assassinos”, porque a atri-
preparados para guerrear nas favelas, nas periferias do Brasil. Suas buição das polícias – a não ser em casos de
vítimas mais frequentes: os pobres e, en- defesa pessoal – não é matar, mas deter.
contra... o próprio povo
tre os eles, de “preferência” os negros. Lembremos do pedreiro Genivaldo,
A última chacina que abalou, não digo preso em uma abordagem de trânsito.
o Brasil (infelizmente, muita gente apoia Ele já estava detido, dentro do cambu-

O
relatório final da Comissão Na- os crimes cometidos pelas Polícias Mili- rão. Mas, num requinte de crueldade, um
cional da Verdade traz reco- tares), mas boa parte da população, pro- dos agentes da Polícia Rodoviária Federal
mendações às polícias brasi- duziu 18 mortes. Os leitores já devem ter lançou uma bomba de gás lacrimogêneo
leiras. Uma delas é a desmilitarização identificado a Baixada Santista, no litoral dentro da caçamba onde haviam jogado
das forças. O leitor já parou para pensar paulista, onde a polícia promoveu o mas- Genivaldo. O rapaz morreu asfixiado.
por que nossas polícias são militares? sacre mais escandaloso das últimas dé- Como agiria uma polícia não milita-
O preparo dos policiais que deveriam cadas. Os agentes dispensam os ritos le- rizada? Não é difícil imaginar. Sua atri-
proteger a população equivale ao pre- gais para condenar cidadãos, sejam cri- buição não seria a de lutar contra a popu-
paro dos soldados que vão para a guer- minosos comuns ou meros suspeitos. lação negra e pobre. Seria a de deter um
ra? O leitor pode pensar que este “deta- Embora a PM não tenha a atribuição de criminoso pego em flagrante, ou mesmo
lhe” não tem importância. Mas tem. A julgar criminosos, os membros da corpo- um “suspeito”, e entregá-lo à justiça. O
atribuição das polícias é proteger os ci- ração não parecem ter constrangimen- que é muito diferente de encarregar-se
dadãos. O preparo militar tem outro fo- to algum em punir com a pena de mor- de fazer justiça com as próprias mãos.
co: preparar atiradores capazes de aba- te um número incontável de “suspeitos”. Os policiais não fazem isso nos bairros
ter inimigos em um conflito armado. “nobres”, e sim nas comunidades pobres
A militarização de nossas polícias Em retaliação ao assassinato de um onde também moram. Nas ruas escuras
tem, como efeito nada secundário, o fa- policial, 16 moradores de bairros perifé- das periferias, os PMs cumprem seu de-
to de produzir homens preparados para ricos da Baixada Santista foram assassi- ver de vingança e atiram no entregador
guerrear contra... o próprio povo. O pre- nados por PMs. Entre eles, um indigen- de pizza. Atiram no menino que espera-
texto é sempre o mesmo: alega-se “resis- te, um pedreiro, um garçom. A justificati- va a noiva no ponto de ônibus, nos anôni-
tência seguida de morte”. Não importa se va é sempre a legítima defesa, mesmo que mos que conversam desprevenidos numa
a pessoa assassinada estivesse desarma- o suposto assassino não tenha resíduos esquina qualquer. No motoboy que fugiu
da. Aliás, um dos procedimentos que ten- de pólvora nas mãos. Além disso, segun- assustado – quem mandou fugir? E nin-
tam justificar o tal “auto de resistência” do reportagem da Folha de S.Paulo, a PM guém, a não ser os familiares das vítimas,
consiste em colocar uma arma na mão do demorou cerca de cinco horas para infor- reprova a polícia pelas execuções sumá-
defunto para forjar um inexistente con- mar as mortes que ela causou no Guarujá. rias desses “suspeitos”.
fronto. Quem se importa em verificar O uso de câmeras nas fardas dos poli- Por fim, o arbítrio e a truculência com
a existência de resíduos de pólvora nas ciais tem o efeito de reduzir os crimes co- que tratam a população pobre contribui
mãos deste que supostamente teria re- metidos por PMs. O governador paulis- para o prestígio dos chefes do crime, que
B A P T I S TÃ O

sistido a tiros à abordagem policial? ta, quando candidato em 2022, prome- às vezes se oferecem às comunidades co-
Depois do golpe fantasiado de legali- teu abolir o seu uso. Começou por cortar mo única alternativa de proteção. •
dade contra a presidente Dilma Rousseff, o orçamento para a compra, congelando redacao@cartacapital.com.br

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ALDO FORNAZIERI
CLUBE DE REVISTAS
Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros,
de Liderança e Poder (Contracorrente)

Diversidade na Suprema Corte

cisa levar em conta critérios empíricos trutural, os direitos civis dos negros são
► Lula deveria escolher relativos a uma representação da diversi- violados recorrentemente pelo Estado, pe-
uma ministra negra dade, da regionalidade e do quadro social los agentes públicos, pelas polícias e pe-
dos grupos carentes de direitos. lo Judiciário. Os negros padecem de uma
e nordestina para ocupar
Como tribunal constitucional, a prin- brutal desigualdade de renda e de acesso
a vaga de Rosa Weber, cipal função do STF consiste em ser “a ao emprego, à educação, à saúde, à habi-
prestes a se aposentar guarda da Constituição”. O constituciona- tação e à cultura. O mesmo ocorre com as
lismo moderno, assentado nas contribui- mulheres, marcadas por uma história de
ções de John Locke, de Montesquieu e dos desigualdade de gênero. São vítimas da
Artigos Federalistas na base da Constitui- violência machista, sexual, moral e do fe-

A
escolha de ministros do Supre- ção dos EUA, estabelece que o princípio minicídio. Os avanços recentes que ocor-
mo Tribunal Federal tem sus- fundante da Constituição democrática- reram em relação aos direitos desses dois
citado questionamentos acer- -republicana é a garantia de direitos. Es- grupos estão longe de ser satisfatórios.
ca da conveniência dos escolhidos. A in- se mesmo princípio estabelece um cará- As estatísticas mostram que 56% da
dicação é uma prerrogativa do presiden- ter vinculante entre os direitos de liberda- população é de negros e 51% de mulhe-
te da República, que encaminha o no- de, igualdade e justiça. A igualdade refere- res. Até hoje, apenas três negros foram
me para aprovação do Senado. De acor- -se a dois sentidos: igualdade perante a lei ministros do STF. A Suprema Corte tam-
do com o artigo 101 da Constituição, a e equidade material, vinculada à Justiça. bém somou apenas três mulheres. Ne-
Corte deve ter 11 ministros escolhidos nhuma delas negra.
entre cidadãos com mais de 35 e menos A efetividade e a garantia dos direi- Outro recorte é o da desigualdade
de 70 anos. O critério qualificador pa- tos fundamentais são entrelaçadas com regional. O Nordeste concentra 47,9%
ra a seleção é simples e genérico: preci- uma teia complexa de circunstâncias his- da população pobre brasileira, o Norte
sa considerar alguém que tenha “notá- tóricas relativas à realidade política, eco- 26,1%, o Sudeste 17,8%, o Centro-Oes-
vel saber jurídico e reputação ilibada”. nômica, social e cultural. Geralmente, há te 5,7% e o Sul 2,5%. O Nordeste abriga,
A “reputação ilibada” é fácil de verificar uma defasagem entre o que as Constitui- porém, 26,9% dos habitantes. Dos atuais
pelo histórico do indicado, mas o “notá- ções estabelecem e a efetividade dos direi- 11 ministros do STF, sete vieram do Su-
vel saber jurídico” carece de definição tos. A gradação dessa defasagem depende deste, dois do Sul, um do Nordeste e um
precisa. Três critérios poderiam ser as- da realidade de cada país. do Centro-Oeste. Uma representação
sumidos como definidores do “notável No Brasil, a defasagem entre a garantia equânime por região indica que o Nor-
saber jurídico”: 1. Títulos acadêmicos, formal e a garantia efetiva de diretos é mui- deste deveria ter três ministros. Há uma
como doutorado. 2. Experiência na ma- to elástica para a maioria da população. A super-representação do Sudeste, que de-
gistratura com ingresso por concurso natureza da hegemonia política exerci- veria ter de quatro a cinco ministros.
público. 3. Obras publicadas sobre direi- da no aparato do Estado e nos três pode- Ao se considerar a finalidade princi-
to público e direito constitucional, cam- res é a principal causa da desigualdade de pal da Constituição, a garantia de direi-
pos precípuos da atuação do STF. direitos e da desigualdade social. O lugar tos fundamentais, a conclusão de caráter
Além dos critérios legalmente defini- social, econômico, político, cultural e re- mais universalizante a que se chega é a de
dos, a indicação de um ministro para o ligioso ocupado pelos sujeitos em posição que, com a aposentadoria de Rosa Weber, o
STF precisa levar em conta outros cri- de poder condiciona a forma de conceber presidente Lula deveria indicar uma mu-
térios relativos ao momento histórico, e ver o mundo e suas ideologias. E essas lher negra e nordestina para ocupar uma
ao quadro geral dos direitos de cidada- também condicionam a realidade objeti- cadeira de ministra no STF. Uma mulher
nia, à conjuntura política e aos aspectos va nos seus aspectos econômicos e sociais. cujo perfil, qualificações, compromissos
da distribuição regional dos integrantes Dois grupos majoritários sofrem carên- e história se coloquem em linha com as
B A P T I S TÃ O

da Corte Suprema. Ou seja, mais do que o cias enormes de direitos: as pessoas ne- demandas de direitos aqui apontadas. •
“notório saber jurídico”, a indicação pre- gras e as mulheres. Além do racismo es- alfornazieri@gmail.com

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 33
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Um fiasco
indisfarçável
PRIVATIZAÇÕES Eletrobras e refinarias
mostram-se inconfiáveis e praticam
preços astronômicos ao consumidor
P O R C A R LO S D R U M M O N D

N
ão dá mais para esconder o governo parece ter entendido a mudança
enorme fracasso da inicia- de clima, como indicam a decisão de ex-
tiva privada na gestão de cluir ações remanescentes na Eletrobras
empresas desestatizadas, a do programa de desestatização e a assina-
exemplo da Eletrobras e das tura, com a 3R Petroleum, de um acordo
refinarias que pertenciam à Petrobras. O de preferência, e precedência, na recom-
apagão da terça-feira 15 e os recordes de pra de 22 campos de produção de petró-
preços dos combustíveis alcançados por leo e da refinaria Clara Camarão. Trata-
refinarias como a Clara Camarão, do Rio -se, ao que tudo indica, de uma tentati-
Grande do Norte, com a gasolina mais ca- va de reverter, ou ao menos minimizar,
ra do País em julho, deixam claro que, se os estragos do desinvestimento de ativos
não é sensato condenar toda e qualquer estatais estratégicos para o Brasil, apre- panhia de energia elétrica do País, que
privatização, adotar a posição oposta, is- sentado como condição para o aumen- não considera necessário nem mesmo
to é, defender essa solução como fórmula to da eficiência, mas que se mostrou, na responder a um ofício da autoridade à
geral a ser aplicada à economia, pode ser prática, uma operação para maximização qual está subordinada, o Ministério de
uma temeridade, ainda mais se as deses- de resultados para os novos proprietários Minas e Energia. O pedido, em julho, do
tatizações afetam a segurança energética. das empresas privatizadas. ministro substituto Efrain Pereira da
Neste mês, o topo do pódio da gasolina O governo brasileiro não tem mais ne- Cruz ao então presidente da Eletrobras,
mais cara do País foi ocupado por outra re- nhuma ascendência sobre a maior com- Wilson Ferreira Júnior, de suspensão
finaria privada, a Acelen, da Bahia, segun- do plano de demissão voluntária de fun-
do o Observatório Social do Petróleo. De cionários, ficou sem resposta. A empre-
acordo com o Instituto Brasileiro de De- sa não se dignou nem mesmo a acusar o
fesa do Consumidor, a conta de luz no Bra- O evidente fracasso recebimento desta e de outras solicita-
sil é a segunda mais cara do mundo. de várias alienações ções semelhantes encaminhadas pelo
O insucesso de várias alienações do órgão regulador, a Aneel, por entidades
patrimônio público abrandou o mantra
do patrimônio público de trabalhadores e pelo atual vice-pre-
pró-privatização da mídia e reforçou o abrandou o mantra sidente e ministro do Desenvolvimento,
clamor pela necessidade de reestatiza- pró-desestatização Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin,
ção entre sindicatos de trabalhadores. O ecoado pela mídia durante o governo de transição.

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Energia elétrica. Demissões em


massa retardam o diagnóstico do apagão.
O trabalho terceirizado e precarizado
faz os acidentes dispararem no setor

Na direção oposta do cuidado necessá-


rio a uma operação de importância fun-
damental para a economia e a sociedade,
a empresa, sob comando do capital finan-
ceiro especulativo, personificado no gru-
po 3G, o mesmo acusado de provocar a cri-
se da Lojas Americanas, integrado pelos
CPTM/GOVSP E MME

empresários Jorge Paulo Lemann, Car-


los Alberto Sicupira e Marcel Telles, atin-
giu um recorde de redução de pessoal. De
15.658 funcionários em 2018, a Eletrobras
passou para 8.118 em 2022, segundo res-

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 35
CLUBE DE REVISTAS
Economia

salta o memorial encaminhado, em junho, O governo declarou


por sete entidades de trabalhadores ao Mi-
nistério do Trabalho. Para este ano, estão
preferência na
programados mais 1.551 desligamentos na recompra da refinaria
companhia, de acordo com o relatório de Clara Camarão
administração do ano passado.
Segundo a Associação dos Empregados
da Eletrobras, a identificação das causas
do apagão poderá demorar mais que an- mente um mês para formar um eletricis-
tes da venda da empresa ao setor privado, ta. “Nessas condições, o trabalhador vai
devido à falta de quadro técnico experien- a campo sem nenhuma condição de tra-
te e capacitado até mesmo para diagnos- balho”, chama atenção Ferreira da Silva.
ticar os motivos do colapso. “A Eletrobras Para piorar, houve mudança nas nor-
demitiu e continuará demitindo. Ela não mas, com a reforma trabalhista de 2017,
se preocupou, em nenhum momento, em no governo Temer, e agora é permitido
repor as vagas de forma técnica, de mo- que as próprias terceirizadas façam o
do que o trabalhador tenha noção clara treinamento dos empregados. O resulta-
de onde é que estão entrando, que se tra- do, em alguns casos, são treinamentos que
ta de um sistema bem complexo e que re- ocorrem só no papel. “Fui conversar com
quer experiência e treinamento. A empre- alguns trabalhadores que não receberam
sa não está preocupada com isso”, alertou treinamento algum, mas tinham certifi-
Francisco Ferreira da Silva, diretor do cado. Isso é muito sério, pode provocar
Sindicato dos Trabalhadores na Indús- mortes. Há muitos mutilados, com as fa-
tria e Comércio de Energia no Estado de
Mato Grosso do Sul, representante da Fe-
deração dos Urbanitários do Centro-Oes-
te e Norte, em audiência pública sobre o
impacto das demissões na Eletrobras,
realizada na Câmara dos Deputados.

A Eletrobras e outras companhias


do setor “passam batidas” em relação às
normas regulamentadoras 10, 35, 6 e 1,
do Ministério do Trabalho e Emprego,
a estabelecer condições mínimas de se-
gurança e saúde para os trabalhadores,
normas de segurança para trabalho em
locais elevados como torres de transmis-
são, execução de trabalho com equipa-
mentos de proteção individual e medi-
das de prevenção em segurança e saúde
do trabalho. “Entre as distribuidoras,
só as estatais Cemig e a Copel – a última
acaba de ser privatizada – asseguram um
bom treinamento”, disse o sindicalista.
A Cemig dedica mais de seis meses para
formar um técnico. Empresas terceiri-
zadas formam o mesmo tipo de profis-
sional em apenas 40 dias, e gastam so-

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

trabalhos. “O número de empregados da


Chesf caiu de 4.547 em 2016 para 2.694
em 2022”, observa Soares. “Neste ano,
2023, há 400 demissões programadas.”
As consequências são trágicas. “No
ano passado, a Chesf teve acidentes fatais.
Dois trabalhadores, Fabiano Januário dos
Santos e Tenisson de Jesus, caíram de tor-
res de 45 metros de altura. Houve a opção
de não fazer a manutenção de forma ade-
quada, adiando sempre. Os funcionários
das terceirizadas foram surpreendidos e
pagaram com suas vidas”, dispara Soares.
Há muitos acidentes, acrescenta o sindi-
calista, em deslocamentos com veículos
velhos, sem condições de trafegar com se-
gurança. Os acidentes com afastamento,
em 2022, romperam o limite de tolerân-
cia de 106 e explodiram para 2.995.

O deputado Bohn Gass, do PT do Rio


Grande do Sul, chamou atenção para a ca-
lamidade das privatizações com o exemplo
da LMTE Linhas de Macapá Transmisso-
Exemplos. A gasolina mais cara do País O número de terceirizados na Com- ra de Energia, empresa privada encarre-
vem de refinarias privatizadas. O apagão panhia Hidro Elétrica do São Francisco, gada do suprimento de energia na região
no Amapá em 2020 gerou uma multa de controlada da Eletrobras, chegou a 3.455 e responsável pelo apagão de 2020. “A em-
3 milhões de reais, mas custou 80 milhões
em 2022 e o quadro próprio tem apenas presa foi multada em 3 milhões de reais.
2.200 empregados. A Chesf tem só oito Nós votamos uma Medida Provisória para
engenheiros e 20 técnicos de segurança apoiar o povo do Amapá. O Brasil pagou 80
mílias à míngua, por conta de treinamen- para os oito estados do Nordeste, estan- milhões de reais”, diz o deputado. “Isso é
to precário”, dispara Ferreira da Silva. É do Rio Grande do Norte, Alagoas e Ser- crime. É preciso reestatizar a Eletrobras.”
preciso, acrescenta o sindicalista, que o gipe sem nenhum engenheiro nem téc- Há duas semanas, a Procuradoria-
novo governo traga de volta o Ministério nico para dar conta das linhas de trans- -Geral da República defendeu no Supre-
do Trabalho com força de fiscalização. missão, usinas e subestações. mo Tribunal Federal a procedência de
Segundo o dirigente, nenhuma empre- Um dos principais impactos da priva- uma ação da Advocacia-Geral da União
sa privada se preocupa com o cliente. Há tização é a demissão com fechamento de em defesa de maior poder de voto do go-
estados com distribuidoras que passaram postos de trabalho e sem a transmissão de verno na Eletrobras. Por conta de mano-
por cinco grupos. Quando falta energia em conhecimento indispensável para man- bras consideradas indefensáveis na pre-
uma casa, se não tem um hospital ou outro ter a qualidade dos serviços. Além disso, paração da privatização, o Estado brasi-
grande consumidor por perto, a população há terceirização crescente, precarização leiro tem 43% das ações, mas apenas 8%
A G Ê N C I A P E T R O B R A S E G O VA P

fica cinco ou seis dias sem energia elétrica. e redução da qualidade dos serviços, au- dos votos. Se o governo quiser reestatizar
Nas periferias, o povo pobre fica desaten- mento de acidentes, inexistência ou bai- a companhia, terá de pagar três vezes o
dido. Para Wellington Soares, diretor do xa qualidade dos equipamentos de se- maior preço oferecido por outro compra-
Sindurb-PE e integrante do Coletivo Na- gurança, deficiência na fiscalização dos dor. Os diretores aumentaram seus salá-
cional dos Eletricitários, há enorme preo- serviços, desconhecimento dos procedi- rios de 60 mil para 360 mil reais por mês,
cupação dos trabalhadores com o aumen- mentos, baixa remuneração, baixa quali- e cada conselheiro recebe 200 mil reais
to dos acidentes de trabalho, principal- dade dos alojamentos e alimentação ina- por participação em reunião, denunciou
mente após a privatização da Eletrobras. dequada, falta ou falha na supervisão dos o presidente Lula em rede social do PT. •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 37
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Mais um outsider
EQUADOR Filho do “Magnata da Banana”, o azarão Daniel Noboa
vai disputar o segundo turno com a esquerdista Luisa González
POR RODRIGO MARTINS

E
m uma eleição atípica, macu- largou na dianteira da corrida presiden- los equatorianos por seu império bana-
lada pelo assassinato de um cial no Equador, com 33,4% dos votos vá- neiro, o neófito deputado eleito em 2021
presidenciável e diversos ou- lidos. Enfrentará no segundo turno, em figurava com um porcentual de único dí-
tros atentados políticos, a es- 15 de outubro, o empresário liberal Da- gito até poucas semanas antes do pleito.
querdista Luisa González, niel Noboa, um outsider que surpreendeu Agora já é visto como favorito por alguns
candidata do Revolução Cidadã e respal- com 23,5% dos sufrágios no domingo 20. analistas que apostam em sua capacida-
dada pelo ex-presidente Rafael Correa, Proveniente de uma das famílias mais ri- de de herdar votos de candidatos conser-
confirmou o favoritismo nas pesquisas e cas da América Latina, reconhecida pe- vadores derrotados.

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 42
Reino Unido Gestores de hospital
NESTA ignoraram os alertas sobre Lucy
SEÇÃO Letby, a enfermeira infanticida

Estratégias. Noboa apela aos eleitores


mais jovens. González instiga a nostalgia
do bem avaliado governo de Rafael Correa

uma única e breve passagem pela Assem-


bleia Nacional, o empresário beneficiou-
-se do enorme recall político de seu pai,
Álvaro Noboa, conhecido como o “Mag-
nata da Banana”, que disputou a Presi-
dência da República cinco vezes.
Desde que Lasso dissolveu a Assem-
bleia Nacional e antecipou as eleições
gerais para escapar de um processo de
impeachment por corrupção, o Equador
mergulhou em um cenário de instabili-
dade e violência política sem preceden-
tes. Após o assassinato do presidenciável
Fernando Villavicencio, em 9 de agosto,
o presidente decretou estado de exceção,
mas mesmo com a mobilização das For-
ças Armadas para reforçar a segurança
dos candidatos não foi possível interrom-
per a onda de ataques.

Jornalista de formação, Villavicencio


vinha sendo ameaçado por um dos princi-
No único debate presidencial, realiza- ca jovem e revigorante que não é mancha- pais cartéis de drogas equatorianos, Los
do uma semana antes da votação, Noboa da pelo conflito”, avaliou a pesquisadora. Choneros, incomodados com o feroz dis-
teve um bom desempenho e acabou fa- “A juventude optou pela alternativa de curso do candidato contra o que chamava
vorecido pela intensa troca de acusa- Daniel Noboa”, celebrou o candidato, du- de “narco-Estado”. Suas propostas mira-
ções entre candidatos mais bem posicio- rante uma coletiva de imprensa logo após vam na militarização dos portos para con-
nados nas pesquisas. Durante a campa- a confirmação de seu nome. “Não seria a trolar o narcotráfico, na criação de uma
nha, ele procurou distanciar-se das pro- primeira vez que uma nova proposta dá Unidade Antimáfia com apoio interna-
vocações entre apoiadores e oponentes de uma volta no establishment eleitoral”, cional e na construção de um presídio
Correa. Em vez disso, apresentou-se co- acrescentou, referindo-se a si mesmo. de segurança máxima para os crimino-
mo um candidato antissistema, com dis- Para variar, a pose de outsider tem chei- sos mais perigosos. Um dia após o atenta-
curso focado na geração de empregos. Es- ro de engodo. Embora tenha no currículo do, Estefany Puente, postulante ao Parla-
sa postura angariou a simpatia de eleito- mento, foi atingida por um tiro de raspão
res mais jovens, não identificados com a no braço esquerdo após uma dupla de pis-
velha polarização política em torno do ex- toleiros disparar contra seu carro. Passa-
-presidente socialista, observa Caroline Na dianteira da dos quatro dias, Pedro Briones, líder re-
Avila, especialista em comunicação po- gional do Revolução Cidadã, foi executado
corrida presidencial,
REDES SOCIAIS

lítica da Universidad de Azuay, ao Wa- em sua casa, na cidade de Esmeraldas, na


shington Post. Mesmo não sendo o candi- a ex-deputada prova fronteira com a Colômbia. Três dias an-
dato mais associado ao tema da seguran- que o correísmo tes da votação, o próprio Noboa precisou
ça pública, ele “oferece um tipo de políti- segue vivo no país interromper uma caminhada após ouvir

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 39
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Medo. Zurita, o substituto do candidato


executado, compareceu às urnas com
colete à prova de balas e capacete

disparos no meio da multidão. Felizmen-


te, não houve mortos nem feridos.
A despeito do banho de sangue promo-
vido por sicários do narcotráfico, a popu-
lação não se deixou intimidar. O pleito te-
ve participação recorde. Ao todo, 82,26%
dos 13,4 milhões de cidadãos aptos a vo-
tar compareceram às urnas no domingo
20. Em algumas cidades, os eleitores en-
frentaram longas filas para acessar as ca-
bines de votação, após passarem por re-
vistas corporais e detectores de metais.
Muito além da insatisfação com os ru-
mos políticos do país, a presença massi-
va de eleitores desnuda o inconformis-
mo com a violência que tomou de assal-
to o país nos últimos anos, fruto da guer-
ra travada, nas ruas e nos presídios, por
grupos criminosos financiados por car-
téis mexicanos e colombianos. Os dados
são aterradores. Até 2018, o Equador re-
gistrava 9,8 homicídios a cada 100 mil ha-
bitantes. No ano passado, a taxa subiu pa-
ra 25,9, quase o dobro de 2021. A barbárie
afetou duramente a indústria do turis-
mo, setor vital da economia equatoriana.

Como era de se esperar, o debate elei-


toral acabou contaminado pela série de Correa atribuiu a morte do concorrente a perseguição judicial semelhante à en-
atentados. Christian Zurita, o substituto um complô para impedir a vitória de sua frentada por Lula, no Brasil, e Cristina
de Villavicencio, fez questão de compare- candidata, Luisa González, logo na pri- Kirchner, na Argentina. Desde 2017 vi-
cer ao local de votação com colete balísti- meira votação. “Ele estava em quarto ou ve na Bélgica, país de origem de sua es-
co e capacete. Apesar de entrar na disputa quinto nas pesquisas, não ia ganhar nun- posa, Ann Malherbede. A Justiça equa-
faltando dez dias para as eleições, ele fi- ca, então era mais útil morto do que vivo. toriana solicitou a extradição do ex-pre-
cou em terceiro lugar, com 16,47% dos vo- E para nos prejudicar, já que somos seus sidente, para que ele cumprisse pena de
tos – as cédulas eleitorais ainda traziam a arquirrivais”, afirmou o ex-presidente à oito anos de prisão, mas o pedido foi ne-
foto do presidenciável assassinado. “Nas Folha de S.Paulo. “Agora há uma campa- gado. Em abril deste ano, o governo bel-
eleições passadas usei o TikTok, desta vez nha brutal nas redes culpando-nos pela ga reconheceu seu status de refugiado.
venho com colete à prova de balas”, emen- morte. Quem ganha com isso é a extre- O episódio é usado pelo socialista como
dou o nanico candidato Xavier Hervas, ma-direita, pois sabiam que íamos ven- prova de que foi vítima de lawfare duran-
com a proteção por baixo da camisa. Ele cer no primeiro turno.” te a gestão de Lenin Moreno, ex-aliado
amealhou 0,5% dos votos. Acusado de cobrar propinas de gran- que se voltou contra o padrinho após
Uma semana após o atentado contra des empresas e condenado à revelia por chegar ao poder. “É um alívio. Quando
Villavicencio, o ex-presidente Rafael corrupção, Correa se diz vítima de uma te dão essa proteção, isso mostra que vo-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Cabo eleitoral. O ex-presidente tem


uma base fiel, mas também enfrenta uma
enorme rejeição em setores da sociedade

de 45 anos deve estimular, nos eleitores,


o sentimento de nostalgia em relação ao
governo de Correa (2007 a 2017), quan-
do as taxas de homicídio eram baixas e
o boom no mercado de commodities per-
mitiu retirar milhões de equatorianos da
situação de pobreza. “Vamos ter aquela
pátria novamente, com esperança, digni-
dade e segurança”, discursou a candidata
após o encerramento da votação.

A eleição, convém ressaltar, é para um


mandato-tampão de um ano e meio. Co-
mo o presidente Guilherme Lasso acio-
nou o dispositivo da “morte cruzada”, na
qual renuncia ao cargo ao mesmo tempo
que dissolve a Assembleia Nacional, o no-
vo líder eleito só ficará no poder até maio
de 2025, quando está prevista a realiza-
ção de nova disputa presidencial.
Em um plebiscito simultâneo, quase
59% dos eleitores equatorianos votaram,
no domingo 20, pelo fim da exploração de
petróleo em uma de suas maiores jazidas,
o Parque Nacional Yasuní, considerado o
coração da Amazônia equatoriana. A vo-
tação foi celebrada pelo Yasunidos, grupo
ambiental que coletou 757 mil assinatu-
cê está sendo perseguido”, disse Correa Refugiado na ras e enfrentou uma longa batalha judi-
à agência France Presse. cial para obrigar a Justiça Eleitoral a re-
Bélgica, Rafael
Se, por um lado, Daniel Noboa tende alizar a consulta popular.
a atrair os eleitores de candidatos con-
Correa atribui o O parque abriga, em mais de 1 milhão
servadores, a exemplo do direitista Jan assassinato de um de hectares, ao menos 2 mil espécies de
N ATÁ L I A G A R C I A / U N I V E R S I D A D E N A C I O N A L

Topic (14,69% dos votos válidos), por ou- rival a um complô árvores e arbustos e 610 espécies de pás-
tro, é inegável que o correísmo mantém contra sua candidata saros, sem contar com as demais espé-
uma base forte e leal. Sozinho, o partido cies. A exploração do chamado “Bloco
D E Q U I L M E S E G A L O P A G U AY / A F P

Revolução Cidadã obteve 39,32% dos vo- 43” ocorre desde 2016. O governo Lasso,
tos para a Assembleia Nacional, um de- que sempre atuou em defesa das perfura-
sempenho superior ao de Luisa González ções, estima que a jazida seja responsável
na corrida presidencial. É possível que, por 12% dos 466 mil barris de petróleo
com o arrefecimento da violência política produzidos por dia pelo país. Com a deci-
no Equador, a candidata volte ao incon- são, a Petroecuador tem prazo de um ano
teste favoritismo que tinha antes da onda para encerrar os trabalhos e remover to-
de atentados. Para tanto, a ex-deputada do o maquinário do bioma amazônico. •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 41
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Anjo da morte
Condenada à prisão perpétua
pelo assassinato de sete recém-nascidos,
a enfermeira Lucy Letby só foi removida
do posto após anos de alertas e suspeitas
P O R J O S H H A L L I DAY

E
m um canto discreto de um As decisões desses executivos serão al-
café em Chester, o doutor vo de um inquérito que examinará o que
Stephen Brearey relembra o eles sabiam, a partir de quando e por que
momento exato em que co- nenhuma investigação foi ordenada sobre
nectou Lucy Letby a uma sé- o crescente número de mortos até julho
rie de mortes incomuns de bebês na uni- de 2016, mais de um ano depois que se
dade neonatal onde trabalhavam. Foi nu- soube da presença de Letby em uma sé-
ma reunião com a chefe de enfermagem rie de mortes inexplicadas. Após a con-
e dois outros colegas, em 2 de julho de denação da enfermeira na sexta-feira 18,
2015. “Não pode ser Lucy. Ela é boazi- o Observer revela hoje que os detetives
nha”, disse aos outros. Passados oito começaram a contatar outras famílias
anos, a “Lucy boazinha” de 33 anos pas- cujos filhos podem ter sido prejudicados
sará o resto de sua vida na prisão após ser por ela. A investigação examina os regis- visão urgente. Os bebês – dois meninos e
condenada pelo assassinato de sete be- tros de mais de 4 mil bebês nascidos no uma menina, com menos de uma semana
bês e tentar matar outros seis. Hospital Condessa de Chester e no Hos- de vida – eram saudáveis, apesar de pre-
Por meio de entrevistas exclusivas, pital Feminino de Liverpool em seis anos. maturos. Um quarto bebê – a irmã gêmea
descoberta de documentos confidenciais de um dos meninos – quase morreu após
internos e meses de reportagens no tribu- A história de como Letby foi finalmen- seu quadro se deteriorar repentinamente.
nal real de Manchester, o Observer pode te detida começa em junho de 2015. Três Não havia causa óbvia para as mortes,
hoje contar toda a história de como foram bebês recém-nascidos morreram na uni- por isso Brearey convocou uma reunião
levantadas preocupações sobre Letby du- dade neonatal em 14 dias. Brearey, o pe- com Alison Kelly, chefe de enfermagem
rante meses, até que ela foi finalmente re- diatra-chefe da unidade, realizou uma re- do hospital, e Eirian Powell, gerente da
movida da linha de frente do atendimen- unidade neonatal, em 2 de julho. Houve
to em julho de 2016. apenas uma enfermeira de plantão nos
O fracasso dos executivos do hospital quatro incidentes inexplicáveis. O nome
em tomar medidas urgentes custou a vi- O fracasso dos dela era Lucy Letby.
da de ao menos dois bebês – dois irmãos executivos do Letby, então com 25 anos, trabalha-
de trigêmeos, assassinados com 24 horas va na unidade neonatal havia cinco. Ela
de diferença – e prolongou os ataques de
hospital em adotar era querida pela equipe, qualificada pa-
Letby a outros recém-nascidos no Hos- medidas urgentes ra cuidar dos bebês em terapia intensiva
pital Condessa de Chester, no noroeste custou a vida de ao e frequentemente se oferecia para traba-
da Inglaterra. menos dois bebês lhar em turnos extras. Até abril de 2016,

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Em pele de cordeiro. A “Lucy Boazinha”,


como descreviam colegas, tentou matar
outros seis bebês. O número de vítimas
pode ser ainda maior que o revelado

morava num alojamento de funcionários


a curta caminhada da unidade, o que era
conveniente para trabalhar no turno da
noite. Isso lhe deu cobertura para seus
L IN DS E Y PA R N A BY/A F P E R ED ES SO CI A IS

crimes, pois havia menos funcionários


nesse horário.
Letby realizou muitos de seus ataques
momentos após os pais ou enfermeiras
saírem do berçário. Em uma ocasião, qua-
se foi pega em flagrante. Uma mãe chegou
à unidade neonatal por volta das 21 horas
com leite materno para seus filhos gêmeos,
quando viu Letby de pé junto de uma das
incubadoras. Havia sangue fresco ao re-

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 43
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Nosso Mundo

Coragem. O doutor Stephen Brearey a exigirem o afastamento da enfermeira.


arriscou sua carreira para denunciar a Isso ocorreu, porém, um ano depois que
enfermeira por trás das mortes suspeitas um executivo soube pela primeira vez
da associação de Letby com as mortes.
A essa altura, ela havia assassinado sete
dor da boca do bebê, e ele gritava de dor. crianças e tentado matar outras seis, tor-
Quando a mãe perguntou a Letby o que nando-a a pior assassina infantil em sé-
estava acontecendo, a enfermeira garan- rie da história britânica moderna. O que
tiu que o bebê estava bem: “Confie em veio a seguir é descrito pelos médicos co-
mim. Sou uma enfermeira”. Em outubro mo um pesadelo kafkiano, no qual seus
de 2015, cinco meses após Letby ter sido alertas foram descartados e eles foram
conectada pela primeira vez às mortes tratados com desconfiança.
inexplicáveis, sete bebês tinham morrido
em circunstâncias incomuns – mais que o Essa atitude veio de cima para baixo, a
dobro da taxa de mortalidade em um ano. começar pelo diretor-executivo do hospi-
Letby foi considerada culpada pelo as- tal, Tony Chambers. “Estava falando so-
sassinato de cinco dessas crianças. Os bre todas as preocupações em uma de nos-
outros dois casos foram investigados pe- sas reuniões com os executivos, no início
la polícia, mas não chegaram a nenhum de julho de 2016, e a resposta de Chambers
julgamento. Outra revisão, em outubro foi: ‘Bem, isso seria muito conveniente’”,
de 2015, descobriu novamente que Letby lembra Brearey. O executivo sugeria que
foi a única integrante da equipe presente os colapsos incomuns foram resultado de
nas mortes inexplicáveis. Mas a conexão cuidados inadequados, e não de danos de-
com Letby foi considerada apenas coin- liberados. Ao Observer, ele disse que suas
cidência, segundo Brearey. declarações foram “retiradas de contex-
to”. “Também disse que havia um núme-
Letby, que já havia assassinado cin- ro significativo de fatores a serem consi-
co bebês, foi autorizada a ficar na unida- derados, incluindo demanda, acuidade,
de. Médicos veteranos, dispostos a dar à atendimento clínico, pessoal e ambiente.”
enfermeira o benefício da dúvida, esta- Apesar das preocupações com Letby,
vam cada vez mais preocupados. Pedi- ela foi transferida para o escritório de ris-
ram a um especialista independente, co e segurança do paciente do hospital.
Nimish Subhedar, uma revisão dos ca- Não está claro quem tomou a decisão de
sos. Ele descobriu que os bebês estavam transferi-la nem quanto tempo ela ficou
estáveis quando se deterioraram repen- lá. Mas o fato prova, segundo os médicos,
tinamente e que todos não responderam hospital produziu um documento de duas que suas preocupações sobre Letby fo-
ao tratamento que salvava vidas. páginas respondendo às preocupações de ram tratadas “com desprezo”. Os execu-
Brearey enviou o relatório ao diretor- Brearey e seus colegas. Foi a primeira vez tivos finalmente solicitaram mais duas
-médico do hospital, Ian Harvey, no iní- que alguém, além dos médicos, iniciou revisões em julho de 2016. Ambas con-
cio de fevereiro de 2016 e solicitou uma uma revisão formal dos casos. Começava cluíram que várias das mortes precisa-
reunião urgente. Ela demorou três meses assim: “Não há nenhuma evidência con- vam de investigação forense. Harvey, o
para ocorrer. Este, segundo Brearey e ou- tra LL (Lucy Letby) além da coincidência”. diretor-médico, e Chambers, o executi-
tros médicos, é o ponto em que a ação de- Somente em junho de 2016 Letby foi vo-chefe, disseram numa reunião com
veria ter sido tomada. A conexão de Letby removida da unidade neonatal, após as- médicos, em janeiro de 2017, que Letby
com as mortes agora era mais que ape- sassinar dois irmãos trigêmeos saudáveis fora considerada inocente e retornaria à
nas uma coincidência, mas parece que num espaço de 24 horas. Foram suas 12ª unidade neonatal em semanas.
nada foi feito. e 13ª vítimas. Segundo John Gibbs, outro Brearey e seus colegas consultores fica-
Em maio de 2016, quando Letby havia pediatra consultor da unidade, este foi o ram surpresos. Não apenas Letby foi auto-
assassinado cinco bebês, um gerente de “ponto de inflexão” que levou os médicos rizada a retornar à unidade, como os mé-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

dicos receberam ordens de pedir descul- Letby sempre estaria entre 200 e 300. O da Criança F
pas a ela por levantar suspeitas. Dois con- era 4.657. Os resultados também mostra-
sultores, Brearey e o doutor Ravi Jayaram,
se oferecia para vam um nível muito baixo de peptídeo C.
foram instruídos a entrar num processo trabalhar à noite, Era uma prova conclusiva de que ele ha-
de mediação com a enfermeira. Disse- longe dos olhares via sido envenenado. Letby colocou in-
ram-lhes que o pai dela havia ameaçado de colegas e pais sulina em sua bolsa de alimentação um
citá-los ao Conselho-Geral de Medicina, dia após injetar fatalmente ar na corren-
a menos que retirassem suas acusações. te sanguínea de seu irmão gêmeo. Foi
Diante da ameaça de ação disciplinar, um milagre a Criança F ter sobrevivido.
os médicos enviaram a Letby um pedido ticiário da tevê, após sua prisão em ju-
de desculpas cuidadosamente redigido em lho de 2018. O detetive Paul Hughes dis- Letby foi presa cinco meses depois,
28 de fevereiro de 2017. Três meses depois, se ao Observer que as informações de em 4 de julho de 2018. Em poucas sema-
após semanas de reuniões angustiantes Brearey e seus colegas foram “o fio de nas, dois dos altos executivos – Cham-
sobre como evitar que Letby voltasse ao ouro” para sua investigação. “Eles foram bers e Harvey – deixaram o hospital. Kelly,
trabalho, Brearey e seus colegas contata- muito corajosos em se apresentar e co- a primeira a saber da conexão de Letby com
ram a polícia de Cheshire. Foi essa reu- locaram isso à frente de suas carreiras.” mortes incomuns, partiu logo depois. Ne-
nião, em 27 de abril de 2017, que desenca- Se havia uma arma fumegante neste nhum dos dirigentes foi obrigado a depor
deou uma das mais complexas investiga- caso, ela foi descoberta por um dos co- no julgamento de dez meses, mas espera-se
ções dos últimos tempos na Grã-Bretanha. legas de Letby. Em fevereiro de 2018, que todos cooperem com o inquérito que
O colega de Brearey, Jayaram, disse Brearey estava debruçado sobre a tela do se seguirá. Gibbs, um pediatra consultor
que “poderia ter dado um soco no ar” computador quando viu algo incomum. que deu provas para o julgamento de Letby,
quando o então superintendente-chefe Um bebê, conhecido como Criança F, ti- disse que os executivos devem explicar por
da delegacia, Nigel Wenham, disse que nha sofrido um grave colapso na unidade, que não agiram antes. “As coisas pode-
suas preocupações eram “algo com que em agosto de 2015, um dia após a morte riam ter sido feitas de maneira diferente.”
(a polícia) tem de se envolver”. Letby es- inesperada de seu irmão gêmeo. No últi- Letby é a terceira mulher na Grã-Bre-
tava a apenas seis dias de voltar à unida- mo parágrafo da carta de alta havia uma tanha a receber uma pena de prisão per-
de neonatal. Ela nunca mais pisou na en- linha sobre seu nível de insulina e o nível pétua. Ela foi considerada culpada de se-
fermaria. Os médicos só a viram nova- de outro hormônio chamado peptídeo C. te acusações de assassinato e sete de ten-
mente quando sua foto apareceu no no- Em leituras normais, o nível de insulina tativa de homicídio, relacionadas a seis
bebês. O júri não conseguiu chegar a um
veredicto sobre seis outras acusações de
tentativa de homicídio.
Harvey, o ex-diretor-médico do hos-
CHRISTOPHER FURLONG/GE T T Y IM AGES/A FP E REDES SOCIAIS

pital, disse que ajudaria no inquérito “da


maneira que puder”, e emendou: “Eu quis
que as revisões e investigações fossem
feitas, para que pudéssemos contar aos
pais o que havia acontecido com seus fi-
lhos”. Kelly, ex-chefe de enfermagem do
hospital, afirmou que também coopera-
ria totalmente com o inquérito. “É im-
possível imaginar a dor sofrida pelas fa-
mílias envolvidas.” Chambers, o ex-exe-
cutivo-chefe, acrescentou: “Realmente
sinto muito pelo que todas as famílias
passaram. Vou cooperar total e aberta-
mente com qualquer investigação”. •

Justiça. Familiares das vítimas exigem a responsabilização dos gestores omissos Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 45
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Nosso Mundo

Os devaneios
“mais uma”. Mais uma, entre as tantas que
acometeram a economia dos hermanos no
século XX e na aurora do século XXI.

de Javier Milei
O leitor atento e interessado certamen-
te guarda na memória os prodígios de
Martínez de Hoz nos anos 1970. Empol-
gado com a abundância de petrodólares –
ARGENTINA No anarcocapitalismo tal como seu colega brasileiro Mário Hen-
do candidato de extrema-direita, o rique Simonsen – o “Mago de Hoz” pro-
moveu a valorização do peso. As duas ex-
peso é apenas uma sombra do dólar periências de valorização cambial e endi-
vidamento externo naufragaram no ma-
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO
remoto da crise da dívida dos anos 1980.
Nascida dos escombros da crise da
dívida, a conversibilidade de Domingo

L
Cavallo, uma velharia colonial, foi rein-
eio no jornal O Globo, edição prevalecem a angústia diante das condi- ventada no início dos anos 1990 para ti-
de domingo 20 de agosto: ções do presente e a descrença nas possi- rar a Argentina da hiperinflação. Um pe-
“Todos os dias, o jovem ar- bilidades de melhora no futuro. so valia um dólar. A euforia dos primeiros
gentino Amaru Carrasco, de Nesse ambiente social, Javier Milei anos de plata dulce desapareceu com a su-
24 anos, trabalha das 6 da tar- está a desfiar um rosário de soluções, diz cessão de crises financeiras na periferia
de à meia-noite na rua, com uma bicicle- ele, anarcocapitalistas. Elas começam do capitalismo: primeiro o México, logo
ta que comprou usada, como entregador. com a dolarização da economia, seguem depois a Ásia, culminando na desvalori-
Amaru estudou alguns anos de jornalis- o seu curso prometendo o desmonte do zação brasileira de 1999, o começo do fim.
mo, mas não terminou o curso numa fa- Banco Central, a criação do Ministério
culdade particular de Buenos Aires, en- do Capital Humano para substituir os Isto significou a fixação do câmbio,
tre outros motivos, pelo alto custo da Ministérios da Educação e da Saúde. Es- com conversibilidade plena da moeda,
mensalidade. O jovem mora, com a mãe, sas medidas estariam amparadas na ra- tanto na conta de transações correntes
no bairro de San Cristóbal, região de dical abertura financeira e comercial da quanto na conta que registra o movimen-
classe média da capital argentina. Quan- economia, providências naturalmente to de capitais. Na prática, entregaram as
do é perguntado se não tem medo de vo- acompanhadas por parrudas políticas funções de administração do crédito, de
tar no candidato de extrema-direita Ja- de austeridade. provedor de liquidez e de “prestamista
vier Milei nas eleições presidenciais des- Vamos recordar. Em 1991, para fugir às de última instância” ao Federal Reserve.
te ano, responde com outras perguntas: agruras de um sistema monetário destruí- Os defensores da Conversibilidad ima-
‘Medo de quê? Não tenho proteção ne- do pela hiperinflação, os argentinos ado- ginavam, além disso, que o novo regime
nhuma do Estado, nem férias, nem déci- taram o regime Conversibilidad. O país es- cambial iria infundir mais confiança aos
mo terceiro. Sofro a violência na rua to- trebuchava nas garras de mais uma crise investidores estrangeiros, melhorando
dos os dias, já roubaram minha bicicle- cambial. É preciso acentuar a expressão as condições de financiamento em moe-
ta duas vezes. Tenho medo é de continu- da forte para o país de moeda fraca, não
ar assim e de que nada mude. O que mais conversível. Sendo assim, os eventuais de-
pode piorar para pessoas como eu?’” sequilíbrios em transações correntes po-
Javier Milei exprime o desespero e a O presidenciável deriam ser, num primeiro momento, com-
desesperança diante da crise econômi- pensados pela entrada de capitais, com
ca e social que transtorna a sociedade ar-
exprime o desespero uma redução dos diferenciais de juros,
gentina. Não é de hoje. É longa a traje- e a desesperança dos entre os pagos nos Pampas e os lá de fora.
tória que vem encaminhando a vida dos argentinos diante da O compromisso duro e implacável
portenhos para uma situação em que grave crise econômica com a taxa fixa e o avanço da abertura

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Medo de quê? O eleitor não enxerga


a ameaça representada por Milei porque
já se sente completamente desamparado

bém, levaram os detentores de moedas


não conversíveis a desfechos desagradá-
veis. No Volume II do Tratado da Moeda,
Keynes afirma que em um sistema mo-
netário internacional dominado pela li-
vre movimentação de capitais “a taxa de
juro de um país é fixada por fatores ex-
ternos e é improvável que o investimen-
to doméstico alcance o nível de equilí-
brio”, ou seja, um valor compatível com
o melhor aproveitamento dos fatores de
produção disponíveis.

A Argentina vem se debatendo entre


as ilusões da “dolarização” e a realidade
da hiperinflação e do declínio econômi-
co. Tudo para continuar merecendo a
confiança dos mercados financeiros. Es-
tes, ao que tudo indica, preferem atender
aos sinais emitidos pelo Federal Reserve
e fogem dos papéis argentinos, enquanto
os possuidores de riqueza locais aumen-
tam em suas carteiras a proporção dos ati-
vos denominados em dólares.
comercial permitiriam a operação “da lei títulos de dívida emitidos para possuí- Loucura maior é ignorar que a adoção
de um só preço”, reduzindo progressiva- -los. Se assim fosse, dentro de um prazo desses regimes cambiais e monetários
mente os diferenciais de inflação e de ta- razoável, a ação dos novos investimen- provoca irreversibilidades: o peso não é
xas de juro entre o país e o resto do mun- tos e a melhora da eficiência imposta pela fraco nem forte. Simplesmente não exis-
do, tornando cada vez mais importantes concorrência externa levariam à recupe- te mais, é apenas uma sombra do dólar.
as expectativas de valorização dos ativos ração sólida da balança comercial e à re- No fim de 2001, afetada pela desvalo-
domésticos, enquanto forma de atração dução do déficit em transações correntes. rização brasileira de 1999, a aventura da
do capital forâneo. Esse regime iria requerer, como é re- conversibilidade com taxa de câmbio fixa
Nesta visão, o “desaparecimento” do conhecido, a imobilização da política mo- – apimentada com permissão de depósi-
risco de desvalorização cambial aumen- netária, na medida em que as condições tos em moeda estrangeira – terminou na
taria o grau de substituição entre ativos de liquidez da economia deveriam ser de- tragicomédia do “corralito”. Os titulares
domésticos e ativos estrangeiros. Ou se- terminadas pelos ingressos líquidos de dos depósitos em moeda forânea corre-
A L E JA N D RO PAG NI/A F P

ja, a redução drástica do risco cambial capitais, com preservação de um volume ram aos bancos, desesperados, à procura
determinaria maior integração entre o apropriado de reservas cambiais. de dólares que estavam, sim, escritura-
mercado financeiro nacional e o merca- Os deslocamentos da finança em livre dos em suas contas, mas escasseavam em
do internacional, melhorando, aos olhos movimentação funcionaram na contra- espécie nos cofres. O Banco Central da
dos investidores estrangeiros, a qualida- mão dos devaneios do cachorrinho que Argentina, como é sabido, só podia emi-
de dos “nossos” ativos reprodutivos e dos inspira Javier Milei. Dia sim, outro tam- tir pesos desvalorizados. •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 47
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Arquivos
sobre o hoje
CINEMA Retratos Fantasmas, exibido em
Cannes, oferece uma radiografia das
mudanças bruscas das cidades brasileiras
P O R A N A PAU L A S O U S A

D
as 3,4 mil salas de cinema grafia das mudanças bruscas e ruidosas
existentes no Brasil, só 370 que vão transformando as cidades brasi-
não ficam em um shopping leiras, Retratos Fantasmas pode ser defi-
center. E dos 75 milhões de nido também como um “filme de cinema”.
ingressos vendidos este Entrado nos 50 anos, Mendonça junta-se
ano no País, só 1 milhão foi para um filme ao rol de diretores que, em certo momento
brasileiro. Tais dados, embora exteriores da carreira, tomam o próprio ofício como
a Retratos Fantasmas, não deixam de ro- matéria narrativa. Os Fabelmans (2022),
çar alguns dos sentidos presentes no novo de Steven Spielberg, é um exemplo recen-
trabalho de Kleber Mendonça Filho. te de autobiografia que se encaixa na ideia das imagens – ou por aquilo que, nos pri-
Exibido pela primeira vez no Festival de cine-memória. mórdios da indústria, se chamava truca-
de Cannes, em maio, e em cartaz no Bra- gem – estão impressos nesse documentá-
sil e em Portugal desde a quinta-feira 24, Mendonça, diretor das ficções O rio que ele prefere não enquadrar na ca-
Retratos Fantasmas é descrito, no texto Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e teogria documentário.
de divulgação, como um filme cujo per- Bacurau (2019) – vencedor do Prêmio do Ao nascer como projeto, Retratos Fan-
sonagem principal, o centro do Recife, é Júri em Cannes – foi crítico, programador tasmas chamava-se Os Cinemas do Cen-
“revisitado através dos grandes cinemas de cinema da Fundação Joaquim Nabuco tro do Recife. Acontece que, no meio do
que serviram como espaços de convívio e hoje é curador-chefe do Cinema do Ins- caminho, havia não uma pedra, mas ou-
durante o século XX”. tituto Moreira Salles. tro filme. “Quando faz um filme, você
Como escreve o pesquisador norte- Sua cinefilia e seu gosto pela artesania tem de ouvi-lo. Ele fala coisas”, diz, por
-americano Edward Epstein no livro O Zoom, a CartaCapital, na manhã seguin-
Grande Filme, em 1947, 90 milhões de te a uma das muitas pré-estreias realiza-
americanos, de uma população de 151 das nas últimas semanas.
milhões, iam todas as semanas ao cine- “Não quero E o que o filme sobre as salas e sobre
ma. Havia então mais cinemas que far- o senhor Alexandre, projecionista do Art
mácias no país. No filme de Mendonça,
parecer o tiozão, Palácio, disse é que faltava a si mesmo um
as salas revividas por meio de imagens mas acho muito pouco mais de alma. E foi assim que entra-
de arquivo e relatos nos levam a essa era. digno defender a ram em cena outro lugar e outra pessoa: o
Declaração de amor às imagens e radio- sala de cinema” apartamento onde o diretor cresceu, viveu

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 52
NESTA Livro. O Presidente Pornô
SEÇÃO ridiculariza, sem dó, a
extrema-direita brasileira

bre o ato de ir ao cinema a partir de cons-


truções e estruturas arquitetônicas”.
“Não quero parecer o tiozão, mas
acho muito digno defender a sala de
cinema”, diz. “Acredito na soma. Somar
experiências é sempre muito bom. Não
quero cortar a sala e ir direto para o
streaming. Quero que o filme tenha to-
do tempo que ele precisa na sala e que de-
pois chegue ao streaming, vá para a tevê
fechada e então para a televisão aberta,
se alguém quiser comprar.”

Retratos Fantasmas terá, inclusive,


uma cópia em 35 milímetros, feita em
Londres. “Essa cópia é, obviamente, um
gesto simbólico”, diz, puxando o fio de
outro tema que se justapõe à produção,
o dos arquivos. “Parte do nosso investi-
mento foi apresentar os arquivos da me-
lhor maneira possível”, diz. “E isso custa
dinheiro. Há uma tendência a se usar o
material como ele está, no YouTube ou
no VHS, e eu não queria isso.”
Um dos arquivos a surgir na tela com
forte carga emocional é aquele em que a
mãe do diretor aparece dando uma en-
e filmou por décadas e sua mãe, a historia- Cine-memória. No novo trabalho do trevista sobre suas pesquisas em uma re-
dora Joselice Jucá, que morreu em 1995. diretor Kleber Mendonça Filho, as velhas portagem da TV Globo. Mendonça tinha
salas do rua do Recife são revividas por
“Esse momento (de reflexão sobre essa imagem em VHS e disse desconfiar
meio de imagens de arquivo e relatos
os caminhos do filme) coincidiu com o de que, no acervo da Globo, seria possível
processo de mudança da nossa família encontrá-la em 16 milímetros.
do apartamento. De repente, comecei a “Passamos mais de um ano vendo a
gostar muito da ideia de explorar aque- imagem em baixa resolução e então, em
le lugar. Tínhamos 20 anos de imagens abril, chegou o arquivo em alta definição.
do apartamento, e isso me pareceu uma Foi um choque. É como se, durante qua-
oportunidade incrível de fazer um exer- se dois anos de montagem, eu tivesse a
JOÃO CARLOS L ACERDA E VICTOR JUCÁ

cício da montagem”, diz. “O filme deixou mediação da imagem em baixa resolução


assim de ser um filme de teoria e virou e, com a sua chegada em alta resolução,
um filme de coração. E o apartamen- ela se aproximasse mais de mim. E ain-
to que ocuparia cinco minutos passou a da teve outro estágio, que foi a correção
ocupar 25 minutos.” de cor. Aí ela veio ainda mais para perto.
À memória familiar se somam reflexões Foi muito impressionante.”
sobre o espaço urbano, tema relevante em Retratos Fantasmas deixa evidente
sua obra, e sobre o cinema como experiên- que fazer filmes, para Mendonça, não é
cia partilhada em um mesmo espaço por um prolongamento da vida. É algo con-
um conjunto de pessoas: “O filme fala so- comitante a ela. •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 49
CLUBE DE REVISTAS
Plural

O êxtase
das coisas
EXPOSIÇÃO A reunião de 180 fotografias
de Hans Gunter Flieg, de 100 anos,
desvela o sonho industrializante do País
P O R A M A N DA Q U EI R Ó S

H
ans Gunter Flieg tinha 16 Manifesto do Partido Comunista (1848).
anos quando foi obrigado a “Flieg nos faz refletir sobre o quan-
se mudar com a família pa- to esta cidade que se quis moderna con-
ra o Brasil. O ano era 1939 seguiu lidar com questões mais profun-
e, com o início da Segunda das”, diz o curador Sergio Burgi, coorde-
Guerra Mundial, sua Alemanha natal nador de fotografia do IMS. “Essas ques-
não era um lugar seguro para um judeu tões ganham especial relevância no con-
como ele viver. texto contemporâneo, em uma sociedade
Na condição de refugiado em uma pós-industrial, baseada em algoritmos e
São Paulo em franca ascensão econômi- comunicação digital, na qual os produtos
ca, o jovem viu a fotografia industrial e continuam sólidos, mas os elementos da
publicitária – que despontou a partir de cultura desmancham no ar.”
meados dos anos 1940 – como uma for-
ma de pagar as contas. Desde 2006, a instituição guarda
O senso estético apurado e o rigor for- cerca de 35 mil imagens em preto e branco
mal fizeram, porém, com que seus regis- produzidas pelo fotógrafo, que aprendeu
tros dos produtos e bastidores de empre- os princípios da linguagem na Alemanha
sas como Pirelli, Mercedes-Benz e Nadir com Grete Karplus, do Museu Judaico de
Figueiredo se tornassem símbolos de Berlim. No Brasil, seu senso de observa-
um país esperançoso por ser visto como ção foi burilado por meio do contato com
ícone de modernidade. revistas como a Life, e seus conhecimen-
Esse imaginário construído ao longo tos técnicos foram aprofundados com os
de 40 anos de carreira conduz a exposição
Flieg. Tudo Que É Sólido, aberta no Institu- livros de Paul Wolff, propagador da câme-
to Moreira Salles (IMS), em São Paulo, na ra Leica de 35 mm, responsável pela po-
terça-feira 22. Trata-se tanto de celebrar “Flieg nos faz refletir pularização do registro em série.
os 100 anos do fotógrafo, completados em sobre o quanto esta Outras influências que se somam a es-
julho, quanto de revisitar sua obra em um sa bagagem reverberam os ecos de mo-
cidade que se quis
momento histórico no qual vigoram rela- vimentos do início do século XX, por ele
ções produtivas e trabalhistas bem dife- moderna conseguiu presenciados quando ainda vivia na Eu-
rentes de outrora. Vem daí o título da mos- lidar com questões mais ropa. É o caso da Bauhaus, em sua exal-
tra, alusão à célebre frase de Karl Marx no profundas”, diz Burgi tação à forma e funcionalidade dos obje-

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Precisão. A construção do Ginásio do Ibirapuera (à esq.), em 1955, e o interior do


Moinho Jaguaré, em retrato de 1956, são exemplares de sua busca pelo rigor formal

A exposição no IMS destaca esses as- dos como itens a ser admirados e deseja-
pectos em 180 registros selecionados sob dos por si só, sem qualquer artifício. Co-
a supervisão do fotógrafo, que vive reclu- mo diz Burgi, é como se Flieg buscasse o
so. Eles foram divididos em três eixos te- “êxtase das coisas”.
máticos, possibilitando um panorama de “Essas imagens vão se descolando da
suas principais áreas de atuação. sua condição documental para adquirir
O primeiro faz um mergulho em tra- um papel mais amplo de reflexão sobre
balhos realizados dentro de fábricas, res- o processo de representação do mundo”,
saltando linhas e formas do maquinário diz curador. Foi assim que a obra de Flieg
industrial da época, como se vê na foto de começou a ser encarada também como
operários ofuscados pela dimensão es- trabalho artístico.
cultórica dos equipamentos da Indústria
Elétrica Brown Boveri ou nas curvas e Esses novos sentidos convivem lado
texturas das tubulações do interior das a lado com uma produção pautada, em
instalações do Moinho Jaguaré. princípio, por demandas meramente co-
Já o foco do segundo segmento é a ar- merciais e cujo resultado era imprescin-
quitetura industrial, com a documenta- dível para manter ativa uma carteira de
ção de prédios icônicos para a socieda- clientes desejosos de ter seus negócios
tos, e da Nova Objetividade Alemã, na de- de paulista da época, entre os quais o Gi- chancelados pela força da imagem.
fesa da fotografia como a forma mais po- násio do Ibirapuera, a sede do Masp e a “A imagem é essencial no processo de
tente de materializar o mundo. fábrica da Biscoitos Duchen, em Guaru- viabilização daquele ciclo econômico na
HANS GUNTER FLIEG/IMS

Tudo isso ganha corpo, por exemplo, lhos, construída com base em um projeto medida em que leva à realização do consu-
na precisão com a qual Flieg lida com os de Oscar Niemeyer (1907-2012). mo”, diz Burgi. “Mas Flieg construía isso
elementos presentes na composição do A publicidade é o coração do terceiro com grande refinamento. Esta exposição
quadro ou mesmo na forma como subli- eixo, voltado aos “retratos” de produtos. é uma homenagem à qualidade dessa pro-
nha as melhores características de um Neles, pneus, ferramentas, máquinas de dução e nos lembra que fotografia é sem-
objeto em jogos de claro e escuro. escrever e jarras de vidro são apresenta- pre documento, história e linguagem.” •

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 51
CLUBE DE REVISTAS
Plural

A racionalidade
Mas a originalidade do romance se re-
vela, acima de tudo, na forma como essa

à brasileira
realidade é transformada num universo
relativamente próprio, ou seja, nos proce-
dimentos narrativos por meio dos quais
Bruna Othero produz o real, em vez de
LIVROS Pode o humor ser uma boa arma simplesmente reproduzi-lo.
No início dos anos 1960, Adorno censu-
para desnudar os desvarios da extrema- rou Brecht pelo modo como este mobili-
-direita? Bruna Othero aposta que sim zava o humor para tornar visível a medio-
cridade dos líderes fascistas. Para Adorno,
P O R FÁ B I O M A S C A R O Q U E R I D O * tal postura pecaria pelo menosprezo aos
inimigos, cujos triunfos acabariam sendo
vistos como resultado de uma alucinação

Q
coletiva imune à explicação racional.
ual o papel do humor dian- apresentada ao imperador e à imperatriz. É verdade que, por vezes, O Presiden-
te dos absurdos produzi- Eleito, Bestianelli não hesita em dar um te Pornô parece flertar com essa tenta-
dos pela extrema-direita golpe, com o apoio das “Forças Mamadas”, ção ao esculacho simbólico das persona-
contemporânea? À serie- em nome da luta contra o “comecuísmo”. gens mais abjetas. É o que se observa, por
dade do tema não deveria No último ato, ele próprio acaba derruba- exemplo, na referência constante à dimen-
corresponder um trata- do após uma revolta popular, à qual sucede são “pornográfica”, quando não escatoló-
mento rigoroso e racional, capaz de com- o governo de uma “frente ampla”. gica, de Bestianelli. Há passagens que os-
preender o fenômeno em vez de torná-lo Qualquer semelhança com a realidade cilam entre o hilário e o excessivo.
objeto de escárnio? Ou o humor pode ser não é, evidentemente, mera coincidência.
um instrumento eficaz para desnudar os A própria autora adverte de saída: “Todos No entanto, visto no conjunto, o roman-
despropósitos da direita mais extrema? os acontecimentos políticos narrados nes- ce quase sempre escapa dessa armadilha.
São essas questões que nos vêm à mente te livro ocorreram, ocorrem e ocorrerão E se isso acontece é, entre outras coisas,
quando lemos O Presidente Pornô, primei- na história republicana do Brasil”. porque a narrativa mantém o leitor aten-
ro romance da jovem poeta mineira Bruna to para o fato de que, no fim das contas,
Kalil Othero. Aqui, a visão depreciativa é o absurdo pode ser constitutivo do real.
deliberada e permanente. Em pequenos Nesse sentido, a reconstrução do real pela
capítulos, escritos tanto em prosa quanto ficção é uma forma de mostrar – pelo seu
em poesia, com um pé no presente e outro reverso humorístico – que o caráter irra-
no passado, Bruna vai revelando aspectos cional do que vivemos é um desdobramen-
da derrocada recente do “Plazil”, um dos to possível da “racionalidade” à brasileira.
vários neologismos presentes no texto. O filósofo holandês Baruch Spinoza
Trata-se de uma espécie de romance dizia que, para compreender, era preci-
dramatúrgico, cuja narrativa – escrita qua- so dispensar tanto o riso quanto o choro.
se sempre em minúsculas – é estruturada Lançando mão de uma prosa inovadora,
em três atos. Enquanto o primeiro ato dá Bruna nos entrega um livro cuja leitura
conta da disputa eleitoral, o segundo passa nos faz rir para não chorar. Mas é justa-
pela trajetória pessoal do “Segundo-Sar- mente assim que ela nos ajuda a compre-
nento do Exércuto” Bráulio Garrazazuis ender aspectos de um país que, como dis-
Bestianelli, o candidato vitorioso do Par- O PRESIDENTE PORNÔ se o poeta, nunca foi para principiantes. •
tido Armamentista Ufanista, o PAU. O Bruna Kalil Othero. Companhia das
Letras (248 págs., 74,90 reais)
terceiro, por fim, chega ao período de seu *Fabio Mascaro Querido é professor
governo. Ao longo do romance, a peça é de Sociologia na Unicamp.

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VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA

O Tenente Quetange, de Iúri Tyniánov


(1894-1943), ganha, pela 34 (96 págs.,
53 reais), uma bem-vinda reedição. A nove-
la gira em torno do supostamente falecido
Tenente Siniukháiev, cuja improvável sina
servirá de mote, nas hábeis mãos do autor,
para um retrato mordaz da burocracia.

Do lançamento de Quando Me Descobri


Negra, oito anos atrás, a sua reedição (Fós-
foro, 104 págs., 44,90 reais), Bianca San-
tana tornou-se um nome de proa dos movi-
mentos identitários. E é certo que sua abor-
dagem do racismo contribuiu para a qualifi-
cação dos debates sobre o tema no País.

Passada na ditadura, a trama de O Mensa-


geiro (Editora Bagai, 312 págs., 59,90
reais), de Rafic Ayoub, tem como protagonis-
ta Tárik, filho de um imigrante libanês que
MAURO FIGA

lutou pela independência de seu país. Além


do pai, Tárik terá como figura definidora da
Trocadilhos. A autora mineira, que é também poeta, nos faz rir da derrocada do “Plazil” formação de seu caráter Carlos Marighella.

C A R TAC A P I TA L — 3 0 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 53
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Plural

A vida real de Adèle


Adèle Exarchopoulos, que estreou
no cinema aos 13 anos, ao lado de Jane Birkin, chega
aos 29 como a estrela do provocativo Passagens
P O R G U Y LO D G E

REDES SOCIAIS

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CLUBE DE REVISTAS

Trajetória. Desde que foi premiada em Kechiche, ela interpretava uma colegial las gráficas e prolongadas com Léa
Cannes pela atuação em Azul É a Cor mergulhada em um relacionamento lésbi- Seydoux. Essas cenas, usando órgãos se-
Mais Quente, tornou-se um dos rostos
co volátil com uma estudante de arte mais xuais protéticos, mas sem dublês, foram
mais requisitados de sua geração
velha. Então uma novidade no festival de muito controversas, e Kechiche foi acu-
Cannes, ela e a outra estrela, Léa Seydoux, sado de explorar as jovens estrelas. Adèle

P
dividiram a Palma de Ouro com Kechiche. estava decidida a fazer de Passagens uma
ara Adèle Exarchopoulos, o Adèle ganharia ainda um prêmio César. experiência diferente.
primeiro gosto do estrelato Seu último filme é um triângulo “Eu disse a Ira Sachs que não tenho
teve, literalmente, sabor de amoroso de emoções agudas: o requin- problemas com uma cena de sexo, mas
Toblerone. À época com 13 tado drama de relacionamento de Ira que não queria que vissem meu corpo
anos, a jovem parisiense ha- Sachs, Passagens, que está em cartaz nos como viram antes”, diz. “Ira não estava
via acabado de ser escolhida para partici- cinemas e chegará depois à plataforma especialmente interessado em ver meus
par de seu primeiro filme, Les Boites (As MUBI. No novo longa-metragem, ela in- seios e meu corpo. Sua intenção era captar
Caixas), estreia de Jane Birkin na direção, terpreta Agathe, professora que se inter- duas pessoas de culturas diferentes que
e foi convidada para ir à casa do ícone. põe entre o cineasta polissexual Tomas não conseguiam colocar em palavras seu
“Fui ao banheiro lavar as mãos”, lem- (Franz Rogowski) e seu parceiro. desejo. Concordamos em não tratar a ce-
bra Adèle, “e vi, pela primeira vez, uma ba- Fiel ao estilo do roteirista e diretor na como um menino descobrindo o amor
nheira com pés de garra, com uma tigela americano, Passagens é um filme de sen- com uma menina. A cena era mais sobre
de mini-Toblerones ao lado. Pensei: ‘Por timentos crus e intimidade física. Na tela, duas pessoas tentando se buscar, em uma
que alguém come chocolate enquanto to- o caso entre Adèle e Rogowski se desenro- sedução mútua. Há algo realmente físico
ma banho? Isso é muito legal!’ E Jane dis- la por meio de diálogos violentos e cenas entre Franz e mim, mas também ficou
se: ‘Você quer dormir aqui? Pode tomar de sexo explícito. Nos Estados Unidos, al- claro, entre nós, quais eram os limites.”
banho e comer uns chocolates’.” gumas cenas desagradaram aos responsá-
Essa lembrança a faz sorrir. Estamos veis pela classificação indicativa, que re- Isso não significa, contudo, que ela
conversando via Zoom, menos de um mês servam à produção um certificado NC-17, tenha sido pega de surpresa no filme de
após a morte de Jane, aos 76 anos, em Pa- comercialmente restritivo. Kechiche. Diz que, na verdade, estava
ris. Adèle lembra-se dela com carinho: Adèle não vê nada de provocativo no despreparada para o processo de revelar
“Foi a primeira pessoa que me deu uma filme. “Todos passamos por esse tipo de o filme ao mundo e para os comentários
chance. Era boa, gentil e amorosa”. atração sensual, na qual conhecemos uma que provocou. “Hoje, com mais maturi-
pessoa e sabemos que vamos fazer sexo dade, sei que foi uma experiência mui-
Elas se reencontrariam ao longo dos com ela. E isso é uma sensação estranha”, to dura no sentido do comprometimen-
anos, mas nada ficaria gravado em sua diz. “Talvez não seja tão bom. Talvez você to que nos pediram em algumas cenas”,
mente como a filmagem de Les Boites, em fique desapontada. Mas você sabe que vai conta. “E, provavelmente, a controvérsia
espaços fechados. “Cinema é viver coisas acontecer. E isso é emocionante.” prejudicou o projeto e a beleza dele. Está-
intensas com as pessoas por um certo pe- As cenas de sexo com Rogowski são vamos fazendo algo que pertencia a nós.”
ríodo de tempo. Depois todos voltam para as mais abertas que filmou desde aque- Apesar de todas as lembranças confli-
suas vidas normais”, descreve. “No fim, é tantes, o filme ainda lhe é caro. “Tenho
como uma minimorte. Você deixa de com- muito amor por Kechiche”, diz. “Foi uma
partilhar aquela intimidade, mas guarda filmagem da qual saí dizendo a mim mes-
um carinho eterno por aquelas pessoas.” “Eu disse a Ira Sachs ma: ‘Não poderia ter sido melhor’. E isso
Adèle, que está com 29 anos, passou por que não tenho é muito, muito raro quando você é uma
muitas histórias de amor desde então. E problemas com uma atriz. Foi, de certa forma, como filmar a
nem por isso passou a senti-las menos vida, como fazer um documentário sobre
profundamente. Aos 19, ela estreou como
cena de sexo, mas minha própria personagem.”
protagonista com uma atuação impressio- que não queria que Dez anos depois, Adèle é uma atriz
nante em Azul É a Cor Mais Quente (2013). vissem meu corpo mais confiante e, ao mesmo tempo, mais
No filme dirigido por Abdellatif como viram antes” recatada, diz. Isso aconteceu depois de

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CLUBE DE REVISTAS
Plural

Personagene. certo. Tentei esporte, mas era muito pre-


Em Passagens guiçosa. Depois tive uma aula de impro-
(2023); Azul É a Cor
visação e gostei muito. Para mim, era
Mais Quente (2013)
e, ainda menina, em apenas um playground onde eu poderia
Les Boites (2007) ser um vegetal ou poderia ser Maria An-
tonieta. Então um dia apareceu um di-
retor de elenco e disse: ‘Alguém quer fa-
zer um teste?’ Eu pensei: por que não?”

Mesmo após o sucesso de Azul..., a


adolescente não via a atuação como muito
ter se tornado mãe de Ismael, nascido em ras depois, vou à Sony e me dizem a mes- mais que uma brincadeira. “Sinceramen-
2017, fruto de um relacionamento com o ma coisa. Ligo para meu pai de novo: ‘Ok, te, foi só quando me tornei mãe que dis-
rapper francês Mamadou Coulibaly – o nunca vou trabalhar aqui’.” Ela ri. “É se a mim mesma: Ok, isso é um trabalho”,
Doums. “Eu me sentia mais livre antes de interessante. Você só tem de aprender.” diz. “Antes eu ligava para meu pai e dizia:
ser mãe”, diz. “Agora que sou mãe, não é Criada no 19º distrito de Paris, filha ‘Papai, estão me pagando para comer doce
que esteja mais tímida, mas vejo a intimi- de uma enfermeira e de um professor e jogar fliperama’. Agora é diferente, mas
dade como algo sagrado a oferecer – seja a de violão polivalente, Adèle começou a tento manter aquele prazer e inocência.”
uma personagem, seja a alguém na vida.” atuar por acaso. “Eu não sabia nada sobre A alegria de habitar outras pessoas
Passagens é um dos poucos filmes em teatro. Meu pai adorava assistir a filmes ainda não envelheceu. “Fazer filmes é
inglês feitos por Adèle desde que ganhou em DVD, mas isso é tudo”, conta. “Meus para pessoas que se entediam rápido: é
fama – outro, o drama político A Última pais diziam: você pode escolher uma ati- diferente a cada vez, você tem de correr
PYRAMIDE DISTRIBUTION, IMOVISION /WB E MUBI

Fronteira, de Sean Penn, não lhe caiu tão vidade. Tentei tocar violão, mas não deu riscos, cruzar personagens com uma mo-
bem. E o reino dos sucessos de bilhete- ral muito diferente da sua e ter empatia
ria de Hollywood alcançado por Seydoux por elas, mesmo que você odeie alguma
não é algo por que anseie. parte delas. Isso faz com que eu me sin-
“Depois de Azul..., consegui uma agen- “Cinema é viver ta realmente rica por dentro.”
te americana, que me disse: ‘Ok, você tem coisas intensas com E nos dias mais difíceis – digamos, de-
de vir para LA e fazer reuniões’”, relem- as pessoas por um pois de filmar uma cena de sexo inten-
bra. “Então fui para a Paramount, Sony, sa – como ela relaxa? “Do jeito francês”,
Spielberg, tudo. E todos me disseram: tra-
certo período de diz, divertida. “Você faz uma piada e fu-
balharemos juntos um dia. Após a pri- tempo. Depois, ma um cigarro.” •
meira reunião, ligo para meu pai: ‘Vou todos voltam para
trabalhar com a Paramount!’ Duas ho- suas vidas normais” Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

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AFONSINHO
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Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Emoções mundiais
Vemos a concentração, a decepção e a las são campeãs também nas categorias
► O fim da Copa comemoração, seja em provas explosivas, Sub-20 e Sub-17. Tudo isso é resultado da
do Mundo Feminina de “tiro curto”, seja nas extenuantes ma- forma altamente profissional com que os
ratonas. Os “passarinhos” pele e osso, em clubes conduzem as carreiras das atletas.
e o Mundial de sua maioria africanos, dos 10 mil metros A solidez da caminhada da seleção es-
Atletismo estampam, são inacreditáveis em sua capacidade de panhola foi construída com muitos percal-
nas transmissões, a resistência e perseverança. ços. Tais percalços culminaram, inclusi-
Também foi emocionante ver a nor- ve, com uma paralisação no meio da tra-
imagem do que significa te-americana Sha’Carri Richardson. jetória. Havia uma insatisfação no grupo
a garra esportiva Ela parecia custar a entender o que ha- com as desigualdades dentro da seleção.
via conquistado, depois de haver supera- O fim também acabou sendo perturba-
do as favoritas na prova dos 100 metros do pelo gesto intempestivo do “cartolão”

O
Mundial de Atletismo, a ser rasos. Sha’Carri, com o tempo de 10s65, ao beijar na boca a craque da sua seleção.
encerrado no domingo 27 em tornou-se campeã mundial. O impressionante nível do Mundial da
Budapeste, na Hungria, tem Nova Zelândia e da Austrália consolidou
tido emoções a valer. Nas diversas mo- Também na Europa, acompanhamos definitivamente, sob todos os aspectos, o
dalidades em disputa, vemos serem o Mundial de Futebol Feminino. A vitória futebol feminino. Resta agora partirmos
colocadas à prova todas as valências da Espanha não deixou nenhuma dúvida para a afirmação do esporte sem distin-
físicas do ser humano, levadas aos seus quanto à sua superioridade neste momen- ção de gêneros.
limites máximos em cada etapa e, prin- to, tanto no que diz respeito aos clubes do Por estas bandas, por fim, vamos al-
cipalmente, nas decisões finais. país quanto de sua seleção. Não foi fácil a ternando altos e baixos, como de hábi-
Acompanhando algumas provas, co- decisão diante da seleção inglesa, na final, to. Nossos clubes se dividem entre Bra-
mo salto em distância, os famosos 100 mas o time espanhol fez o gol da vitória. sileirão, a Copa do Brasil, a Sul Ameri-
metros rasos e os 10 mil metros, vi cenas Cabe lembrar que as seleções espanho- cana e a Libertadores. Enquanto isso, na
marcantes, não só do altíssimo de- Europa, vão se iniciando as dispu-
sempenho esportivo, mas da emo- tas. Os árabes, por sua vez, entram
ção que toma conta dos atletas. “de sola” no calendário mundial e
Também essa emoção é leva- os americanos “comem pelas bei-
da ao limite. Tanto nas provas fe- radas”, mineiramente.
mininas quanto nas masculinas, a Por falar nisso, o Athletico Pa-
imagem da garra é exposta de ma- ranaense anuncia as obras de aca-
neira impressionante. Podemos es- bamento do seu magnífico estádio
tar distantes, acompanhando aque- rubro-negro, e o time dá uma “ra-
les momentos decisivos pela televi- teada”, como quase sempre acon-
são, mas nos sentimos perto daqui- tece aos clubes que encaram a em-
lo que os atletas estão vivenciando. preitada da casa nova.
Por mais que eles cheguem prepa- No campo das Sociedades
B A P T I S TÃ O E J E W E L S A M A D /A F P

rados, até – mesmo em termos emo- Anônimas de Futebol (SAF), a úl-


cionais – quando se está em uma tima polêmica nasceu das críticas
disputa final dentro de um cam- do ex-presidente do Corinthians
peonato dessa relevância é como Andrés Sanchez sobre a situação
se o perfil de cada atleta explodis- financeira do Botafogo – em sua
se. No rosto de cada um deles surge marcha surpreendente e alegre na
a expressão máxima das emoções, liderança do Brasileirão. •
de acordo com as individualidades. Veloz. Sha’Carri Richardson venceu os 100 metros rasos redacao@cartacapital.com.br

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