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Ailton Krenak - Aldo Fornazieri - Boaventura de Sousa Santos - Christian Dunker - Gilberto Maringoni

Helena Nader - Heloísa Starling - José Sócrates - Luiz Gonzaga Belluzzo - Macaé Evaristo
Marcos Coimbra - Mino Carta - Nathan Caixeta - Pedro Serrano - Priscila Cruz - Rita von Hunty
Sergio Machado Rezende - Tereza Campello
ANO XXVIII N° 1240 R$ 27,90
28 DE DEZEMBRO DE 2022

Edição de fim de ano


NA CONTRAMÃO
DO MUNDO O BRASIL GANHA CONFIANÇA NO FUTURO
INÊS249
Exercite sua solidariedade!
Sua contribuição vai ajudar famílias e crianças
em situação de vulnerabilidade por meio de
25 projetos nas áreas de cultura, esporte,
educação e segurança alimentar.

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Associações do Pessoal CEF Associações do Pessoal CEF
Índice 28 de dezembro de 2022 • Ano XXVIII • N° 1240

A liderança de Lula
precipita confiança
no futuro. Pág. 6

6 Mino Carta 33 Ailton Krenak 56 Boaventura de


O Brasil anda na contramão O Brasil bolsonarista Sousa Santos
do mundo, sob risco nuclear vive um colapso moral Lula tem quatro medidas
10 Priscila Cruz 36 Helena Nader essenciais para cumprir
Não há mais espaço para
A ciência é peça-chave 58 Gilberto
desperdícios na educação
para o desenvolvimento Maringoni
14 Pedro Serrano 40 Christian Dunker A diplomacia terá desafios
Lavajatismo e bolsonarismo
Sem justiça, é impossível diferentes de 20 anos atrás
seguem à espreita
18 Heloisa Starling superar o luto da pandemia 62 Sergio
A assombração ideológica 42 Tereza Campello Rezende
invocada por bolsonaristas A desigualdade impede Abre-se nova janela de
22 Marcos Coimbra o crescimento sustentável oportunidades ao Nordeste
Governar será mais difícil 46 José Sócrates 66 Alberto Villas
para Lula que em 2003 Em 2023 começa a Uma trilha sonora para
24 Macaé Evaristo corrida pela sucessão
os novos tempos
Não bastam ministros negros, 50 Rita von Hunty 70 Darc Costa
é preciso combater o racismo Lembro de Gramsci, ao pensar
A quem exatamente a
28 Luiz Gonzaga nos próximos quatro anos
Belluzzo 52 Aldo Fornazieri economia deve servir?

Com novo figurino, o “Velho Cap” O novo presidente terá 72 Charge


DOUGL AS M AGNO/A FP

produz as mesmas crises de navegar em águas turvas Por Venes Caitano

CAPA: PILAR VELLOSO. FOTO: ISTOCKPHOTO

C E NT R A L D E A T ENDI M ENT O F A L E C O NO SCO : HTTP : //A TE N D IM E N TO. CA RTA CA P ITA L . COM . BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Cartas Capitais
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) Parabéns ao PSOL por estar
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
nessa concertação da unidade po-
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis pular, para barrar o ascenso da
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
trajetória fascista.
REVISOR: Hassan Ayoub Lauriberto Cassao
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Celso Amorim, Ciro Gomes,
Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, Emmanuele Baldini,
Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos, Hélio de Almeida, O PSOL está caminhando para se-
Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, Lucas Neves,
Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
dimentar um partido de vanguarda
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., progressista. Pode, inclusive, colher al-
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, gumas vitórias nas próximas eleições,
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo
pois seus filiados amadureceram diante
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
das dificuldades que o PT enfrentou.
CARTA ONLINE Guilherme Santana
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITORES: Alisson Matos e Brenno Tardelli
TRAJETÓRIA VITORIOSA
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva, DERROTA ANUNCIADA Não existe páreo para Lula,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana Desde que abdicamos do futebol
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) tanto que Bolsonaro entrou para
arte pelo futebol de resultados, o
ESTAGIÁRIOS: Beatriz Loss e Sebastião Moura a história como o primeiro presidente
REDES SOCIAIS: Caio César resultado é este.
SITE: www.cartacapital.com.br a não conseguir a reeleição, mesmo
Ricardo Fernandes
com toda a compra de votos, uso massi-
vo da máquina pública, igrejas evangéli-
BOLSA-ESTUPRADOR cas, agronegócio etc.
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. As iniciativas retrógradas contra
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 Victor Gesta
as mulheres e os direitos reprodu-
PUBLISHER: Manuela Carta tivos vão além do que está sendo denun- RICOS NO IMPOSTO
DIRETOR DE OPERAÇÕES: Demetrios Santos ciado. Essa turma parece desejar a es- DE RENDA
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene
tatização do útero. O chamado Estatuto
ANALISTA DE CIRCULAÇÃO: Ismaila Alves O que impressiona é ver pobre de-
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo do Nascituro é um enorme retrocesso,
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios fendendo o direito do rico de não
confere a um embrião a mesma proteção
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
pagar muito imposto e ainda se preocu-
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva do Estado que qualquer outro cidadão
par com o patrimônio alheio. O pobre de
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: nascido. Daqui a pouco vai ser possível
direita não precisa ser estudado, deve é
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fazer um seguro de vida em seu nome e,
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Tem de aumentar os impostos so-
bre grandes fortunas. Na Europa,
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O NÚCLEO eles cobram impostos altíssimos e a so-
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www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 para o governo Lula ser efetivo nas
Isabel Cristina
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responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
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rada e organizada que a liderada pelo in-
acordo com a Lei de Imprensa. tratam esses impostos como custos de
fantil presidente por ora em retirada.
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP produção, repassam o valor para o preço
Claudio Latorraca
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) das mercadorias. Ao cabo é o consumi-
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
dor – sobretudo o mais pobre – quem
GRILO FALANTE efetivamente paga a conta.
O PSOL faz-se necessário para o
Antonio Emilio
PT não ceder demais ao Centrão.
Fábia Gablou

MISTO
Não é hora de dividir! O PSOL é im-
prescindível para o futuro governo.
Eliana Rossi

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C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 5
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

A pantomima
patética e caríssima
Enquanto se alarga o risco de uma guerra nuclear,
o Brasil parece habilitado a escapar da desgraça
POR MINO CA RTA

P
apa Francisco, reforma- co de um conflito nuclear. O exército do resiste em solidão. O Ocidente envia ao
dor da Igreja Católica, novo czar Putin desfere uma guerra pa- governo de Kiev dinheiro, armas, man-
acaba de escrever uma ra se afastar da Europa e agride a Ucrâ- timentos, apoio moral, embora, na prá-
carta de demissão. Per- nia com o intuito de se apossar das mar- tica, se limite ao papel de observador de
gunto aos meus espanta- gens do Mar Negro. A Ucrânia, agredida, uma derrocada inevitável.
dos botões: Em vão cogitou-se de uma
está doente ou percebe o acer- mediação chinesa e Putin
to das profecias de Mala- se apressou a também rejei-
quias? A cavaleiro dos dois tar a intervenção do papa.
milênios depois de Cristo, o Seu exército avança, chega a
monge irlandês formulou sua transpor as fronteiras da Po-
mensagem profética a respei- lônia e redobra seus ataques.
to do destino de todos os pa- Para alguns povos, o fim do

P O L Í C I A F E D E R A L D A B É L G I C A E K I R I L L K U D R YAV T S E V / A F P
pas, de Roma e do mundo. mundo já começou. Temo
Último pontífice seria o 112º, que o papa esteja convencido E M I L I A N O L A S A L V I A / A F P, R E D E S S O C I A I S , I S T O C K P H O T O ,

ou seja, papa Francisco, pastor da inutilidade dos seus apelos


et nauta, pastor e navegador. à paz, como se a palavra final
No último ato do Apocalipse, coubesse a Malaquias.
desapareceria juntamente
com Roma e o mundo, a bola Quando falo da Irlanda, refi-
de argila a girar elipticamen- ro-me à maior porção da ilha,
te em torno do Sol. não incluída a força dentro dos
Enquanto isso, a lideran- confins do Reino Unido. É uma
ça de Lula atinge o seu nível terra de literatura esfuziante,
máximo e precipita confian- de Jonathan Swift, inventor de
ça no futuro. O Brasil anda Gulliver e das suas viagens ex-
na contramão do mundo, a traordinárias, e James Joyce,
viver no fio da navalha o ris- A dinheirama destinada a cofres diversos implora pela vingança do destino que condensou a vida do seu

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mundo

Consendam quo
dollabore plam que
laboriore porem

Malaquias foi mensageiro do futuro


de destruição no mesmo instante
em que os homens provavam sua
vocação para o castigo

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 7
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Todo exibicionismo de uma vassa do cardeal Paul Marcinkus e a la- do Catar, dados irresistivelmente a
ditadura que tortura os pobres
para favorecer os ricos
vagem de dinheiro mafioso por parte do desrespeitar os direitos humanos, tor-
IOR, Banco do Vaticano. Mesmo assim, turadores exímios de quem protesta. E
Francisco levou o confronto de vencida ainda vale acrescentar o comportamen-
Ulysses em um único dia. Faço questão de com a expressão mais plácida estampa- to do presidente da França, Emmanuel
acentuar que a Irlanda é pátria também da da no rosto. Agora, a refrega envolve um Macron, que precipitadamente se des-
melhor cerveja preta do mundo, ideal para mundo cada vez mais doente. loca para Doha na qualidade de torce-
noitadas alegres que não são as de agora. dor fanático da seleção derrotada. Pe-
GIUSEPPE CACACE /A FP E ISTOCK PHOTO

De todo modo, as profecias de Mesmo o campeonato mundial de noso desempenho de um jovem afoito.
Malaquias, já contemplado pela hagio- futebol, independentemente da quali- Surge nos vídeos uma maleta cheia de
grafia católica e proclamado santo, ao dade excepcional de jogadores do por- dinheiro até a borda, símbolo de uma tra-
longo dos séculos revelaram-se certei- te de Lionel Messi e Kylian Mbappé, moia a provar a corrupção esportiva que
ras. E ninguém como Francisco sabe mergulha novamente na corrupção, já também é social, política e moral. Jorna-
disso. Valente e sagaz, Francisco já ven- praticada pela quadrilha de Havelange, listas italianos demonstraram que o di-
ceu a sua primeira batalha contra a Cúria Teixeira e Blatter. O sucessor, o suíço nheiro chegou às mãos de parlamenta-
Romana nascida à sombra de João Paulo Infantino, não é CEO de uma gran- res europeus, entre eles cidadãos da pe-
II, tolerante em relação a inúmeros peca- de multinacional, é um monumental nínsula. À luz de uma visão objetiva da
dos, entre os quais figuram a atuação de- vendilhão do Mundial aos príncipes situação mundial, vale dizer, como os lo-

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mundo

cutores de antanho, que somos obriga- que o rumo encerra. Recomendava


dos a assistir a uma formidável “melée
melée na Spinoza, o filósofo judeu que se salvou
área”. Atacantes e defensores se aglome- SIM, A FRANÇA ao fugir de Portugal e dos autos de fé
ram diante do gol ameaçado, cada da qual NÃO É A PÁTRIA para se refugiar na Holanda e afirmar
envolvido na tentativa de cumprirr o com- DO FUTEBOL, a sua lição de vida: “Nem fé, nem me-
promisso a que foi chamado. Cada da um a EM VÃO do”. Preciosa recomendação que nos le-
seu modo, há mesmo quem finjaa um es- va a evitar a palavra esperança, a qual,
MACRON TORCEU
forço muito superior à sua vontade,
ade, no por si, não esconde a dúvida. Preferi-
DESESPERADAMENTE
aguardo das trajetórias que a bola
ola será mos confiança, a afirmar um sentimen-
PELOS DERROTADOS
capaz de tomar. De antemão, sabe-se
e-se que to surgido da convicção.
ela é por demais caprichosa. O medo origina-se da nossa fragilida-
de confrontada com a eternidade de um
Notável discrepância manifesta-seesta-se universo sem-fim, onde tempo e espaço,
entre o Brasil e o mundo. Sortee nossa, invenções do ser humano para justificar
ganhamos, subitamente, razões es bem- a si próprio, não existem. Certo é viver a
-postas de confiança no futuro, no mes- vida como ela é. No nosso caso, na con-
mo momento em que o mundo caminha
aminha tramão de uma crise mundial, preferi-
no sentido oposto, com todos oss riscos mos confiar do que esperar. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 9
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Depois da
Na avaliação da especialista, é indis-
pensável melhorar a capacidade de ges-
tão e buscar mais recursos para o setor,
nessa ordem. “Não dá para inverter a se-
quência: primeiro, arranjar mais dinhei-

tormenta
ro e, depois, ver onde aplicar. É como se
fosse uma dança de salão. O casal gestão
e financiamento precisa estar entrosa-
do.” Cruz acrescenta que o Brasil não po-
de mais perder tempo. “É hora de fazer
Em meio ao calamitoso quadro uma escolha: vamos direcionar mais re-
da educação, o próximo governo terá cursos para o orçamento secreto ou para
a educação? Para isenções fiscais ou para
de buscar mais recursos sem descuidar a ciência e tecnologia?” Confira a seguir a
da gestão, avalia Priscila Cruz entrevista concedida a CartaCapital.

A MARIANA SERAFINI CartaCapital: Lula tem condições


de recompor o orçamento da educação?
Priscila Cruz: O governo Bolsonaro des-

O
truiu a educação pública, a situação é de
cenário é desolador. governo tenha atenção redobrada ao pla- terra arrasada. O problema não se resume
Para 2023, Jair Bolso- nejar os investimentos na educação pú- ao orçamento anêmico. Houve o abandono
naro reservou 5,9 bi- blica. “Não dá para desperdiçar recursos de diversas áreas, que demandarão ainda
lhões de reais para a em projetos que não trarão resultados sig- mais recursos nos próximos anos apenas
educação básica, va- nificativos para os alunos”, afirma Cruz, para recuperar o que tínhamos antes. Da-
lor 34% inferior ao or- mestre em Administração Pública pela rei um exemplo singelo: não houve investi-
çamento deixado por Temer e a menor Harvard Kennedy School of Government. mento para a renovação do banco de per-
verba em 11 anos. As universidades fede- guntas do Enem. Segundo um diagnósti-
rais, que chegaram a retardar a retomada co do próprio Inep, responsável pela orga-
das atividades presenciais por falta de re- nização da prova, talvez não seja possível
cursos para pagar despesas básicas, co- realizar o próximo exame por falta de ma-
mo água e luz, seguem na penúria. Mais terial para preencher os cadernos de pro-
de 200 mil pesquisadores sofreram atra- va. Percebe a dimensão do estrago? Não
sos no pagamento de bolsas de mestra- basta, portanto, recompor o orçamen-
do e doutorado. Diversos órgãos do Mi- to. É preciso assegurar um investimen-
nistério da Educação foram sucateados to adicional para arrumar minimamen-
ou completamente abandonados. “É co- te o Ministério da Educação, o Inep, a Ca-
EDUARDO AIGNER/MDS E REDES SOCIAIS

mo se você tivesse uma casa destruída pes, que financia pesquisas nas universi-
por um tornado. Depois de reerguê-la, dades. Alguns órgãos terão de ser recons-
ainda terá de equipá-la”, compara Pris- truídos completamente. É como se você
cila Cruz, presidente-executiva e cofun- tivesse uma casa destruída por um tor-
dadora do movimento Todos pela Edu- nado. Depois de reerguê-la, ainda terá de
cação, que integra a equipe de transição equipá-la. Precisaremos ter muita paciên-
do presidente Lula. cia para cobrar resultados da gestão Lula.
Diante do calamitoso cenário e do aper- CC: Ainda é factível aquela meta de
to fiscal imposto pelo teto de gastos pú- “Parece que um tornado devastou o MEC”, investir 10% do PIB no setor, como pre-
blicos, a especialista defende que o novo diz a presidente do Todos pela Educação vê o Plano Nacional de Educação?

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Educação

“O PROBLEMA
NÃO SE RESUME
AO ORÇAMENTO
ANÊMICO. HOUVE
O ABANDONO DE
DIVERSAS ÁREAS,
QUE DEMANDARÃO
AINDA MAIS
VERBAS APENAS
PARA RECUPERAR
O QUE TÍNHAMOS
ANTES”

PC: Não gosto desse tipo de mensuração


arbitrária. Precisa investir aquilo que é
necessário, e avançar ao longo do tempo.
Agora é urgente recompor o orçamento.
Estados e municípios tiveram queda na
arrecadação tributária por conta dessa
alteração nas regras do ICMS sobre com-
bustíveis, uma das cortesias eleitorais de
Bolsonaro. Não dá para fazer um salto
de investimento a curto prazo, porque as
redes estaduais e municipais, e do pró-
prio Ministério da Educação, precisam
ter capacidade financeira de arcar com
as despesas. Simplesmente, fixar um va-
lor mágico, como uma meta isolada de to-
do o resto, não vai trazer os resultados
que a educação tanto precisa. Antes de
tudo, o Brasil precisa assegurar que to-
da criança que esteja na escola perma-
neça nela e conclua o Ensino Médio com
todas as aprendizagens a que tem direi-
to. Para isso, é preciso ter recursos e po-
Ao menos 5 milhões
de crianças ficaram
líticas públicas bem implementadas. Se
fora da escola será necessário investir 6%, 8% ou 12%,
durante a pandemia, isso será avaliado conforme a realidade
segundo o Unicef
de cada momento.
CC: Diante desse quadro de aper-
to fiscal e com o teto de gastos públi-

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 11
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

cos ainda vigente, o que precisa ser fei-


to para melhorar a qualidade da educa-
ção básica e recuperar conteúdo perdi-
do na pandemia?
PC: É por isso que insisto nesse ponto: a
recomposição orçamentária precisa vir
acompanhada de boas políticas públicas.
Não dá para desperdiçar recursos em pro-
jetos que não trarão resultados significa-
tivos para os alunos brasileiros. Em ou-
tras palavras, é preciso melhorar a capa-
cidade de gestão e buscar mais recursos,
nessa ordem. Não dá para inverter a se-
quência: primeiro, arranjar mais dinhei-
ro e, depois, ver onde aplicar. É como se
fosse uma dança de salão. O casal gestão
e financiamento precisa estar entrosado.
CC: Com a pandemia, 5 milhões de
crianças ficaram fora da escola em
2020, segundo o Unicef. Esses alunos
retornaram ou cresceu a evasão escolar?
PC: Não houve divulgação de dados nos
últimos anos por parte do Inep. Salvo en-
gano, o governo apresentou indicadores
apenas da Educação Infantil. Estamos
no escuro, sem saber a real dimensão do
problema. O mesmo ocorre em relação à
aprendizagem. Por conta da pandemia,
houve uma discrepância muito grande
na participação dos estados e municípios
nas avaliações do Ideb e do Saeb. Não te-
mos, portanto, um diagnóstico preciso
da defasagem educacional provocada pe-
la Covid. Há, porém, uma percepção de
que a evasão aumentou muito, sobretu-
do no Ensino Médio.
CC: Na sua avaliação, quais deveriam
ILO/A PE X IM AGES E UNIV ERSIDA DE DE TORON TO

ser as ações prioritárias do governo?


PC: Logo de saída, é preciso fazer a re-
estruturação institucional do MEC, da
Caps, do Inep e do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação. Uma
segunda tarefa é restituir o pacto fede- do pela pandemia. É preciso lançar uma tiva importante é fortalecer a Secreta-
rativo na educação básica. O presidente política emergencial de recomposição da ria da Primeira Infância e trazê-la para
Lula, de forma acertada, anunciou várias aprendizagem, conduzida de forma tri- a estrutura da Presidência da República.
vezes durante a campanha a intenção de partite, entre União, estados e municí- Ali teríamos o berço de diversas políticas
convidar os governadores para uma reu- pios. O próprio Todos Pela Educação tem educacionais. No fundo, governar é de-
nião específica, para tratar de educação um documento bastante extenso e deta- finir prioridades. A alocação orçamen-
básica e desse atraso educacional causa- lhado a respeito do tema. Outra inicia- tária é uma boa forma de medir a prio-

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Educação

mento. Não existe discordância em rela-


ção a isso. Há, porém, visões diferentes
em relação aos caminhos para se chegar
nesse resultado, o que, convenhamos, é
muito salutar em uma democracia.
CC: Estima-se que o Brasil investe
em torno de 1% do PIB com Ciência e
Tecnologia, enquanto nações como a
Coreia do Sul aplicam mais de 4%. Não
corremos o risco de perder o bonde do
desenvolvimento?
PC: Com certeza. Vivemos em um país
rico, mas com muitos pobres. Então,
como a gente aumenta a classe média?
Como podemos transformar o Brasil
em uma nação de renda média alta? O
País não pode cair na armadilha de ser
um mero exportador de produtos de bai-
xo valor agregado. Para crescer com boa
distribuição de renda, é preciso inves-
tir em capital humano, em ciência, em
tecnologia. Temos um potencial criati-
Para se desenvolver, o Brasil o professor. Acho que existe uma preo- vo enorme, que poderia contribuir pa-
se inspira no excludente Catar
cupação muito grande com todas as di- ra a geração de riqueza ao povo. Preci-
ou no inclusivo Canadá?
mensões do problema. Pode não existir samos sair dessa estrada de terra esbu-
consenso na equipe de transição sobre racada e entrar numa autoestrada, pa-
ridade dada por um governo a determi- alguns pontos, mas existem muitas con- ra avançar mais rápido. E essa estrada
nada área. Logo no início do mandato, vergências. Uma delas é de que a escola asfaltada é a educação, o investimento
será possível verificar se Lula prioriza precisa ser um ambiente saudável para no capital humano. É hora de fazer uma
mais a educação do que o antecessor, se as crianças, para os alunos e professores. escolha: vamos direcionar mais recur-
ele vai realmente recompor o orçamento Tem de ser um lugar de aprendizagem, de sos para o orçamento secreto ou para a
do MEC, se vai ao menos buscar um ní- desenvolvimento profissional docente. A educação? Para isenções fiscais ou para
vel de investimento próximo do que tí- escola tem de ser bem gerida, ter investi- a ciência e tecnologia?
nhamos há quatro anos. CC: Em que medida o baixo investi-
CC: Há tempos existe uma dispu- mento em
e educação contribui para per-
ta entre os defensores de metas de petuar as desigualdades no Brasil?
desempenho para as escolas, com in- “MELHORAR OS PC: Melhorar
Me os indicadores educacio-
centivos financeiros para quem se sair INDICADORES nais faz com que a gente tenha crescimen-
melhor, e aqueles que focam na melho- EDUCACIONAIS econômico casado com distribuição de
to econô
ra das condições de trabalho do profes- FAZ COM QUE Podemos ter outro projeto de país,
renda. P
sor, que não poderia ser punido pelos A GENTE TENHA exemplo do perseguido pelo Catar, que
a exemp
problemas de aprendizagem dos alu- possui uuma elite riquíssima e uma gigan-
CRESCIMENTO
nos, também influenciados por ques- tesca mmassa de miseráveis. Assim como
ECONÔMICO CASADO
tões sociais. Como a senhora enxer- podemos nos guiar pela experiência de
podemo
ga esse debate? Esses pontos de vis-
COM DISTRIBUIÇÃO países mmais igualitários, como Noruega
ta são realmente inconciliáveis? DE RENDA” Canadá. Esses dois países decidiram,
e Canad
PC: Não é bem assim. Não existem gru- algum momento da sua história, que
em algu
pos monoliticamente separados, um que educação, ciência e tecnologia seriam os
educaçã
defende o aluno e outro preocupado com motores do seu desenvolvimento. •
motore

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 13
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Serpente de
duas cabeças
Lavajatismo e bolsonarismo, irmanados na
destruição do Estado de Direito, continuam à espreita
POR PEDRO SERRANO*

O
Estado Democrático tiana daquele que decide sobre a exceção reitos fundamentais e da democracia. 
de Direito ampara-se e suspende direitos.  A premissa essencial é a de que os mais
em determinadas di- A lógica do lícito-ilícito, própria do Di- recentes mecanismos de exceção pos-
mensões materiais e reito, foi superada por uma lógica absolu- suem uma lógica distinta dos Estados
formais que podemos tamente distinta. A referida exceção ca- totalitários de outrora. Consoante acu-
resumir em suprema- racteriza-se, ainda, pela simplificação rada análise de Ernst Fraenkel do tota-
cia da Constituição, juridicidade, demo- da decisão, a qual é desprovida de qual- litarismo do século XX, a emergência do
cracia, República, separação das funções quer mediação real pelo Direito, e por por ele intitulado Estado dual pressupu-
estatais e garantia dos direitos funda- uma provisoriedade inerente. Não se
mentais. A conformação do poder políti- trata de extinguir o Direito, mas de sus-
co e a organização da so- pendê-lo em situações
ciedade pelo Estado De- específicas com finali-
mocrático de Direito são, Pedro Serrano dades extrajurídicas. A
nesses termos, condição Professor de Direito desumanização leva-
de realização da justiça Constitucional e da a efeito pela exceção
em sua acepção plena. de Teoria Geral do ocorre escolhendo o ini-
Entretanto, o Estado Direito na Graduação, migo e nomeando-o. É a
de Direito e a democracia no Mestrado e no linguagem que desuma-
J O R G E A R A Ú J O / F O L H A P R E S S E E VA R I S T O S Á /A F P

sucumbem ao agir sobera- Doutorado da PUC-SP. niza o inimigo por meio


no em decorrência, dentre do enquadramento em
outros fatores, da forte in- determinada categoria
fluência do positivismo analítico que, las- supressora de qualquer individualidade.
treado no paradigma subjetivo-idealista
(esquema sujeito-objeto) e na pureza me- A análise do autoritarismo líqui-
todológica, alargou os limites da discricio- do, assim intitulado por não se assu-
nariedade do agente estatal dotado do po- mir como tal, não ser uniforme e mi-
der decisório. Nesse contexto, diversos es- nar, em intensidades variadas, os âm-
paços civilizatórios foram minados pelo bitos da vida democrática, impõe apro-
agir soberano de matriz lavajatista e bol- fundada avalisção dos fatores de de-
sonarista, consoante concepção schmit- sestabilização e de subversão dos di-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Justiça

A República de Curitiba, sob o comando de nha a coexistência de Estado-norma e de fis distintos de autoritarismo. Por inexis-
Dallagnol e Moro, pretendia instituir um novo
poder no Brasil. Das suas ruínas, restam os
um Estado de prerrogativas: de um lado, tir uma declaração de suspensão de direi-
zumbis acampados nas portas dos quartéis normas relativas às relações privadas e tos, há uma liquidez. As medidas de exce-
ao sistema de justiça visavam, essencial- ção são fragmentárias no sistema e convi-
mente, garantir previsibilidade e conti- vem com decisões democráticas. Os direi-
nuidade do sistema capitalista, ao passo tos são suspensos de fato e de forma frau-
que, no campo dos direitos fundamen- dulenta e não de modo declarado. Foram
tais, prevalecia a exceção pela suspensão essas premissas que nos levaram a cunhar
do Direito e da Constituição. Para nós, a expressão autoritarismo líquido para,
a semelhança entre a cláusula de plenos com ela, nos referirmos às medidas de ex-
poderes do artigo 48 da Constituição de ceção no interior das rotinas democráti-
Weimar com o Ato Institucional nº 5 de cas e da processualística penal que, imer-
1968 é cristalina. sas em medidas fragmentadas e cirúrgi-
Hoje em dia, nos deparamos com per- cas, são acionadas sob uma aparência de

HOJE EM DIA, A OPERACIONALIZAÇÃO


DE GOVERNOS AUTORITÁRIOS OCORRE
POR MEIO DA RELAÇÃO PARASITÁRIA
COM A LÓGICA DEMOCRÁTICA

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 15
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

juridicidade. A medida de exceção é Di-


reito no plano estrutural, mas não é Di-
reito no plano funcional.
Identificamos, em manifestações des-
sa natureza, um poder que se apresenta
de forma bruta e, por consequência, por
sua não autolimitação, nem mesmo por
qualquer regra de racionalidade ou coe-
rência. Ademais, as referidas medidas de
exceção, muito além de representarem
mera violação a determinado direito sub-
jetivo, fulminam a própria relação que se
estabelece entre o Estado e os indivíduos
em termos civilizatórios e, por essa razão,
subvertem o próprio Estado de Direito e
a democracia constitucional. Por essas
razões, consignamos que a operaciona-
lização de governos autoritários ocorre,
na contemporaneidade, por meio de uma
relação parasitária com a lógica democrá-
tica, pela aparência de respeito às institui-
ções, à democracia e ao Estado de Direito. 

Ao contrário da brusca interrupção


do Estado Democrático para a instaura- democracia e contra os direitos humanos ca. Em países como os latino-americanos,
ção de um Estado de exceção, convivem e fundamentais pelo lavajatismo e pelo providos de Constituições analíticas, boa
um Estado Democrático de Direito sub- bolsonarismo, isso por meio de medidas parte das decisões sobre os diversos cam-
vertido, que se realiza apenas abstrata- de exceção típicas do autoritarismo líqui- pos da vida pública, da vida em comunida-
mente, e um Estado de exceção que, mes- do, ainda que substancialmente adensa- de e dos comportamentos humanos acaba
mo lastreado em técnica de governança das, a grande tarefa para o futuro é ga- transferida do âmbito legislativo para o ju-
permanente de exceção, não se assume rantir a consolidação e a efetividade da risdicional. Nesse cenário, a Operação La-
como tal. Portanto, uma das característi- democracia e dos direitos. va Jato inseriu-se no contexto dos proces-
cas do contemporâneo autoritarismo es- Especificamente com relação ao lava- sos penais de exceção, bem como na mate-
tá, em vez da interrupção do Estado De- jatismo, insta consignar que nos ensina rialização da presença do Estado autoritá-
mocrático de Direito pela instauração de a clássica dogmática que a obediência à rio no interior das rotinas democráticas. 
um Estado totalitário, na inserção de me- racionalidade jurídica – especialmente Os processos penais de exceção torna-
canismos típicos da exceção no interior da em seus caracteres passividade, vincula- ram-se, sobretudo a partir da década de
rotina democrática. Tais mecanismos se ção ao Direito, imparcialidade e dever de 1990, em relevante manifestação do au-
hospedam na estrutura estatal na forma fundamentação – confere ao sistema de toritarismo estatal por meio da adoção de
de um autoritarismo líquido que convive justiça uma qualificação técnico-jurídi- mecanismos tais como encarceramento
com medidas democráticas e legítimas.  ca que legitimaria toda e qualquer técni- em massa, fracassada guerra às drogas,
O autoritarismo líquido, tanto quan- ca decisória. Entretanto, a teoria da deci- banalização na utilização das prisões pro-
to o adensamento típico do Estado auto- são jurídica, o que inclui a judicial, não se visórias, seletividade da punição crimi-
ritário, é nefasto. Confere ao Estado um subsome, como pretende a vetusta pro- nal, desrespeito aos direitos e garantias
poderio que, diluído na rotina democrá- cessualística, à mera compreensão de penais e processuais penais, espetacula-
tica, enfraquece os mecanismos de con- tais aspectos.   rização e condenação midiática, hiperno-
trole social do poder, bem como da sua Ao Judiciário cabe, nas democracias mia e apropriação privada da linguagem
instrumentalidade. Diante do quadro de contemporâneas, a última palavra em pelo aplicador da norma. A perseguição
recrudescimento das investidas contra a termos de interpretação da ordem jurídi- de líderes políticos por meio de processos

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Justiça

A deusa Themis fechou os olhos para os


desmandos das corporações, poder paralelo
que ameaça as liberdades e o próprio País

quências do deslocamento do poder so-


berano do povo para aquele que toma pa-
ra si a possibilidade de, inclusive pela mo-
bilização de afetos públicos e em solapa-
mento da verdade e da coesão social, de-
cidir sobre a exceção. Trata-se do antído-
to contra a gradual fragilização dos direi-
tos fundamentais, dos espaços e dos sen-
tidos da democracia e, por fim, da relação
de pertencimento à sociedade. 

O enfrentamento à gradual fragiliza-


ção dos espaços e dos sentidos da demo-
cracia e da relação de pertencimento à so-
ciedade requer que desnudemos os artifí-
cios de um autoritarismo de diluição e en-
fraquecimento do pacto civilizatório e da
coesão social. Medo, ódio, ressentimen-
to, decepção, raiva e angústia foram, co-
mo nunca, capturados pelo soberano por
penais de exceção pelo lavajatismo desa- voco de ativismo judicial ou outras for- meio de narrativas pretensamente racio-
guou no autoritarismo de matriz bolsona- mas de decisionismo. nais e legitimadoras da imposição de me-
rista, cujo adensamento foi o mais deleté- O olhar para o futuro pressupõe, antes canismos de segregação e violência, em
rio desde o fim da ditadura. Os processos de tudo, o reconhecimento dos nossos re- prejuízo da pluralidade e da tolerância. 
penais de exceção fulminaram o princí- centes fracassos, a insuficiência dos nos- A reconstrução, bem como o olhar pa-
pio da imparcialidade nos seus aspectos sos manuais clássicos e a falibilidade das ra o futuro, requer incondicional com-
mais basilares, o que assumiu feições par- nossas instituições. É fundamental, ain- promisso com a democracia e com os
ticularmente nefastas com a vulgarmente da, compreender as causas e as conse- direitos fundamentais. O lavajatismo e
conhecida Operação Lava Jato, no âmbito bolsonarismo desenharam-se por iné-
o bolson
da qual houve, em especial, severo com- ditas e ddesafiadoras formas e discursos,
prometimento da imparcialidade da ju- nos leva a alertar que a história hu-
o que no
risdição, inclusive por meio da materia- A PERSEGUIÇÃO mana n não ocorre em fases estanques, co-
lização de características incontestes da DE LÍDERES vezes a descrição didática em perí-
mo às vez
identificação de um inimigo e suspensão POLÍTICOS POR transparece ao inadvertido. Ao con-
odos tra
de direitos pela suposta ameaça que ele MEIO DE PROCESSOS trário, eela se revela pelos processos com-
representaria ao Estado. PENAIS DE EXCEÇÃO plexos, nos quais elementos de confor-
BOT EL HO/BR A ZIL PHOTO PRESS/A FP

A exceção materializada em referidas PELO LAVAJATISMO mação p política e social do período ante-
F EL L IP E SA M PA IO/S T F E RICA R D O

fraudes não se identifica, ao menos ex- podem ser – e comumente são – iden-
rior pod
DESAGUOU NO
clusiva ou indistintamente, com a discri- tificados nos subsequentes. Inexistem,
tificado
cionariedade judicial, própria das con-
AUTORITARISMO inclusive, garantias contra retrocessos
inclusiv
cepções analíticas do Direito, com o er- DE MATRIZ involuções civilizatórias. Só há ordem
e involu
ro judicial (error in judicando ou error in BOLSONARISTA mera descrição histórica, bem como
na mer
procedendo), com a figura do juiz solip- tentativas de sua compreensão pe-
nas ten
sista que decide segundo sua consciên- manuais escolares. Na história vivi-
los man
cia ou, ainda, com qualquer caso inequí- prevalece o caos. •
da prev

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 17
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Utopia
regressiva
O bolsonarismo invoca uma assombração
ideológica, mitificação histórica reacionária
POR H ELOISA M U RGEL S TA R LING*

N
as primeiras décadas a instalação do arbítrio, o professor de-
do século XXI, em cidiu-se a agir do único modo que sabia e
um futuro não mui- puxou a ponta do fio principal da trama
to distante, Souza, do livro. Vai relatar aos outros os aconte-
um professor de His- cimentos de um passado recente que
tória, residente na mostram quando foi que o Brasil se tor-
cidade de São Paulo, foi nou – ou se tornará – um
aposentado punitiva- país aviltado por uma
mente da universidade. forma moderna de tira-
Personagem de Não Ve- Heloisa Murgel nia, onde tudo se destrói
rás País Nenhum, o se- Starling em troca de nada.
gundo volume da trilogia Historiadora, cientista “Tudo parecia tão
que Ignácio de Loyola política e professora promissor nos Abertos po presente que exibe, de maneira qua-
titular da Universidade
Brandão escreveu sobre Oitenta”, relembrava o se rigorosamente descritiva, o momen-
Federal de Minas Gerais.
o Brasil contemporâneo, professor de História. E to preciso em que o esforço civilizatório
O texto foi publicado
o professor vivia em tem- arrematava irônico, co- entre nós se interrompeu e se degradou.  
originalmente na
pos sombrios quando a mo quem deseja espan- A tarefa da distopia é acionar o sinal
edição de dezembro
história era reescrita dia do Suplemento tar a melancolia: “Quem de alarme. Em 1868, o pensador inglês
após dia – desde a ascen- Pernambucano. diria que tudo ia acabar John Stuart Mill chamou de “distopia”
são súbita de um gover- assim, num clima de ri- a descrição ficcional de um governo es-
nante que, primeiro, de- dícula e subdesenvol- magadoramente opressivo, projetado
gradou a democracia e, vida ficção científica?” no futuro. Claro que não era uma previ-
depois, a destruiu. Souza, contudo, insis- O Brasil é o ponto de mirada de Loyola são, mas uma advertência. “Contemplem
tia em desmontar na sala de aula os pro- Brandão, e Não Verás País Nenhum bor- nosso futuro, caso não sejam revistas as
cedimentos e a técnica de poder utiliza- ra a divisa entre a história e a ficção pa- nossas ações”, ele argumentou em dis-
dos pelo chefe de Estado para manipular ra assombrar a imaginação dos leitores, curso ao Parlamento inglês. Mill recor-
e falsificar os fatos históricos e apregoá- porque há nele a imagem vívida de uma reu à luz da distopia com o propósito de
-los à população. Talvez um pouco culpa- distopia: uma sociedade projetada no fu- revelar os disfarces do poder arbitrário
do por não ter feito grande coisa contra turo e saturada de ingredientes do tem- que a Grã-Bretanha utilizava para man-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Pensamento

O ESFORÇO
SISTEMÁTICO DE
CORROMPER A
VERACIDADE DOS
ACONTECIMENTOS
TORNA POSSÍVEL
MODELAR CERTO
PASSADO

ter seu controle sobre a Irlanda. Sua in-


tuição lhe dizia que as pessoas precisam
enxergar concretamente o que é a tirania
para conseguirem identificar os elemen-
tos que estão na raiz dos acontecimentos
capazes de converter países inteiros em
regimes de opressão. “Isto é uma disto-
pia”, a forma distorcida – ou adoecida –
de um lugar, definiu em seu discurso. E
insistiu: “É o nosso horizonte, se não fi-
zermos nada a respeito”.

A definição de Stuart Mill revela o


A distopia de Bolsonaro serve de alerta e permite contemplar de fato os riscos de uma pino que faz a distopia funcionar como
tirania. Mas a história não é destino, afiança Evaldo Cabral de Mello. A escolha é nossa uma espécie de dobradiça capaz de co-
nectar ficção e história. Acionar a imagi-
M A R C E L O C A M A R G O /A B R E PAT R Í C I A S A N T O S / F O L H A P R E S S

nação é essencial para despertar no leitor


o senso de conclusão: isso poderia ter si-
do evitado. Não é que a ficção consiga ver
mais do que a história – mas ela permi-
te ver mais intensamente. Uma distopia
põe no caminho do historiador os sinais
daquilo que de algum modo está acon-
tecendo, ao nosso lado, e em algum pon-
to do horizonte distante – e seu tom ca-
racterístico de advertência premonitória
oferece a oportunidade de refletir sobre
o que estamos fazendo hoje.
O historiador, por seu lado, demons-
tra o que sabe sobre o passado. História
não é destino, explicou Evaldo Cabral de

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 19
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Fraudar a história é a maneira de criar uma de se dirigir ao passado para compreen- É fácil entender as razões que
realidade paralela. Presente e futuro são
definidos pelo que se supõe ter sido o passado
der a nós mesmos. E retornar, em segui- levam governantes com vocação para
da, aos nossos assuntos contemporâneos autocratas a fraudar a história como
com as classes de perguntas que preci- técnica essencial de poder destinada a
Mello: o acontecimento teve início, a con- sam ser feitas, além do lastro de uma no- produzir uma realidade fictícia. A par-
juntura é imprecisa, o evento ainda não va e decisiva compreensão acerca de pro- tir de 2018, o bolsonarismo – a linguagem
se definiu. Tudo pode ocorrer – ou pode blemas muito antigos. ideológica de Bolsonaro – forneceu a uma
ocorrer nada, como ele diz. E a escolha é fatia considerável da sociedade brasileira
nossa. Recorrer ao passado para pensar o sistema de explicação da realidade, or-
com ele permite avaliar padrões de ação e ganizou uma visão de mundo, disparou
estruturas de poder, considerar soluções QUANDO AS LINHAS o chamado da mobilização. Também en-
executáveis para problemas concretos do DIVISÓRIAS ENTRE tendeu que certo passado bem falsifica-
presente e perscrutar futuros alternati- VERDADE E FRAUDE do e alinhavado ideologicamente poderia
vos. “Compreender um momento é ver a FICAM INDISTINTAS, ser uma forte motivação política, mais
possibilidade de participar da criação de DEIXA DE EXISTIR poderosa até que uma guinada de futu-
outro momento”, escreveu o historiador UMA BASE ro. O futuro está por nascer, é inexisten-
Timothy Snyder. Sem se resignar a certa FACTUAL PARA te. O passado reescrito é irrefutável. Evi-
nostalgia por outras épocas e sem se dei- SE QUESTIONAR dentemente, esse jogo retórico depende
xar dominar pela ilusão de que no tem- de falsificação histórica – ninguém res-
O PODER
po cronológico existe lugar para a repe- taura o passado, ainda menos aquele que
tição – o tempo não é retilíneo, e a Histó- nunca existiu. Mas o esforço sistemáti-
ria é ingovernável. O presente costuma co de corromper a veracidade dos acon-
ser o desencadeador eficaz desse impulso tecimentos torna possível modelar cer-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Pensamento

to passado e fazer dele o cartão- postal de base factual para se questionar o poder.
uma visão de mundo reacionária. A mentira permite reescrever a histó-
Aliás, é pela reescrita fraudulenta da ria e a democracia pode cair por corro-
história que o mecanismo de funciona- são, porque ninguém mais sabe ao certo
mento de uma utopia regressiva pôde ser quais são os limites – ela é livre de fideli-
construído pelo bolsonarismo e assimi- dade em relação a todo o conteúdo apre-
lado pela massa de seguidores. O presen- sentado. Não há contas a prestar, não
te e o futuro são definidos em função do existe contraditório ou a necessidade
que se supõe ter sido. É pura negativida- de debater posições divergentes. O his-
de, mas se materializa numa formulação toriador é um perigo para as tiranias, ar-
utópica: o que já foi e deve ser pode vir a gumentava a pensadora política Hannah
ser. Portanto, é preciso partir rumo ao Arendt, porque seu trabalho se sustenta
Brasil do passado, estrategicamente an- em uma única modalidade de verdade – a
corado na idealização da ditadura. Uma verdade factual. Significa fazer a osten-
utopia regressiva é uma espécie de as- tação pública de fatos que não podem ser
sombração ideológica – uma mitificação modificados pela vontade de quem ocupa
histórica reacionária. O presente imedia- “Contemplem o nosso futuro, caso não o poder, nem podem ser demovidos a não
to é o tempo do desfazimento: tempo de sejam revistas as nossas ações”, discursou ser por força de mentiras cabais. Por es-
decadência religiosa, corrupção em ma- Stuart Mill. O historiador é um perigo sa razão, seu contrário não é o erro, nem
para as autocracias, dizia Hannah Arendt
téria de política, degradação no plano dos a ilusão, nem a opinião, e sim a falsida-
costumes, perda de privilégios, frustra- de deliberada, a mentira. Arendt explica-
ção de expectativas, insegurança social. va que eliminar a verdade factual faculta
Contém, a cada dia, muito ressentimento, ao governante dar um passo no sentido
mais passado e menos futuro. As mani- do totalitarismo. A produção da verdade
festações do imaginário político que ani- passa a ser função exclusiva do Estado – e
mam o espírito utópico são regressivas aquilo que esclarece acontecimentos so-
porque o lugar de sua realização já teria ciais, econômicos ou políticos está sem-
ocorrido. A esperança está posta para a pre oculto. Só pode ser revelado pelo lí-
sociedade, só que virada ao avesso. Agar- der, o único capaz de desvendar os segre-
rada ao passado, ela secreta as imagens do dos do poder e expô-los ao povo.
que seria uma espécie degenerada de uto- Os brasileiros sabem hoje como morre
pia: não mais o melhor estado de uma Re- a democracia. Nos últimos anos, desco-
pública, como imaginou Thomas Morus. brimos chocados que a democracia nun-
Revela a Tirania, o reverso da República. ca está garantida de uma vez por todas –
se suas defesas forem baixadas, o cami-
A história tem uma função estratégi- nho estará desimpedido para o retorno
ca para a democracia. Ela define um re- às formas políticas da tirania. E o futu-
ferencial concreto e rigoroso para ave- ro também depende das perguntas que
L O N D O N S T E R E O S C O P I C C O M P A N Y, G U N T H E R

riguação dos acontecimentos que se re- se pode fazer à história. Conhecer onde
ADLER/MUNCHNER MUSEUM E ARC/MGM

latam, indica qual a relevância das evi- cidade histórica for eliminada, as pes- estão fincadas em nosso passado as raí-
dências que tornam verificável um even- soas acreditam no que querem ouvir ou zes da liberdade e da democracia é par-
to ocorrido no passado, deixa claro que naquilo que lhes parece ser mais conve- te de um legado. Atua contra a solidão e a
fato histórico não é invenção. Nas opera- niente em determinada circunstância; indiferença e esboça para o presente al-
ções de método da história cabem diver- tudo se resume a uma questão de opi- gumas das maneiras como renasce a de-
sas modalidades reconstitutivas do pas- nião e à melhor versão em curso. As con- mocracia. Vai dar trabalho, decerto. Mas
sado, que são fabricadas a partir de um sequências são imediatas para o funcio- é o começo de uma grande oportunida-
artesanato próprio: interpretações, ar- namento da democracia: quando as li- de. Então, é necessário agir. Nenhum de
gumentos, hipóteses. Se os fatos forem nhas divisórias entre verdade e fraude nós sabe por quanto tempo uma socie-
manipulados e a confiança na sua vera- ficam indistintas, deixa de existir uma dade consegue sobreviver sem futuro. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 21
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Sem direito
(ou quis) se apresentar como candidato.
Fossem nossas elites menos assanha-
das no golpismo, provavelmente Lula es-
taria agora a encerrar uma longa passa-

de errar
gem pelo governo federal. Após Dilma
concluir seu segundo mandato e ele o ter-
ceiro, a eleição de 2022 teria sido comple-
tamente diferente. O risco de retrocesso
As condições de governabilidade autoritário talvez inexistisse, talvez fos-
se irrelevante a parcela da sociedade per-
são mais adversas do que em 2003 dida em irracionalidade e obscurantismo,
talvez a estupidez fosse pequena. Talvez
POR MARCOS COIMBR A* as Forças Armadas tivessem se tornado
democratas e decentes. Talvez os bispos
oportunistas não passassem de exceção.

S
empre que se refere à eleição res golpistas, expoentes do Judiciário e Não foi o que aconteceu de 2015 em
de 2002, Lula se lembra de outras aristocracias do serviço público, diante. Os ricos e poderosos perceberam
um sentimento que o tomou com o endosso a distância de Washing- que podiam explorar as dificuldades que
logo após conhecer a vitória. ton e da burguesia internacional, não deu a situação internacional criava para a
Estava obrigado a acertar. trégua aos governos do PT. economia brasileira, bem como os pro-
Não podia se dar ao luxo de Não era apenas para reduzir os ataques blemas que o governo Dilma enfrentava
tentar e, a depender das circunstâncias, que poderia sofrer (e que sofreu de fato) depois de uma reeleição difícil, com o la-
errar. Sua responsabilidade era maior do que Lula não podia errar. Mais importan- vajatismo dando verossimilhança ao de-
que a de qualquer antecessor, oriundo do te, para ele, era o dever de não decepcionar nuncismo e “justificativa moral” à cam-
patriarcado rico e branco. Herdeiro de o povo pobre, que, em um gesto de cora- panha para derrubá-la. A velha coalizão
uma oligarquia nordestina, Fernando gem, se dispusera a votar em alguém com derrotada nas quatro eleições anteriores
Collor fez o que fez e permaneceu vivo na sua biografia e trajetória. Na cultura polí- e a caminho de perder mais uma (a que
política por 30 anos. Representante ilus- tica brasileira, elitista e antidemocrática, Lula teria vencido em 2018, se não fosse
tre da intelectualidade sua vitória foi a prova de alvo da sucessão de atos de força que o ti-
paulista, nunca faltou a autoconfiança da maio- raram do páreo) retomou o poder.
Fernando Henrique Car- Marcos Coimbra ria da população. Ao vo- Lula volta ao governo seis anos depois
doso a condescendência Sociólogo e diretor tar em seu nome, o povo do golpe contra Dilma, cinco anos depois
dos ricos e poderosos. do Instituto Vox Populi. mostrou que acreditava de ter sido preso, quatro anos depois que
Nunca lhe negaram apoio, ser possível que um su- Michel Temer saiu do Planalto com seus
pois o viam como igual. jeito comum, semelhan- larápios. Quando acaba o governo do per-
Lula sabia que não se- te a cada um, pudesse ser sonagem lastimável que se aproveitou do
ria tratado com a mesma tolerância, co- bom presidente da República, igual ou golpismo de nossa burguesia e de seu in-
mo ficou demonstrado desde quando mal melhor que um doutor. Ignorava velhas cessante esforço para desmoralizar as
havia começado a governar. Com pou- (e ridículas) crenças incutidas em sua for- esquerdas e acabar com a figura de Lu-
co mais de um ano na Presidência, teve mação, como a de que era preciso saber fa- la. Bolsonaro é seu filhote e sempre es-
de enfrentar ataque duríssimo, anteci- lar inglês para governar o Brasil. teve à disposição para atacar as institui-
pando outros com os quais ele e Dilma Lula tomou posse e assumiu o governo ções e conquistas da democracia. De vez
Rousseff seriam alvejados dali em dian- em 2003 com o sentimento de que não po- em quando, rosnava e ameaçava morder
te, no ritmo de quase um por ano. Uma dia falhar. E não falhou, aos olhos da maio- a mão do dono. Lula volta para adminis-
coalizão de políticos de direita, empre- ria, que não apenas o aprovou com louvor, trar um País em condições muitos pio-
sários, imprensa conservadora, milita- como também o reconduziu quando pôde res do que recebeu em 2003. O capitão e

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Terceiro ato

Lula vai mesmo


pendurar as
chuteiras após
quatro anos?

sua gangue mantiveram um único com- tamento de uma parte grande da popu- Depois da vitória de Lula contra José
promisso desde 2019 e deixam o gover- lação. É fato que nem todos aqueles que Serra em 2002, não tivemos zumbis pe-
no provavelmente satisfeitos com a de- votaram nele são assim, mas, a tomar pe- las ruas, não houve empresários flagra-
sorganização, a bagunça e a sujeira que lo que continuamos a ver após a eleição, dos a custear o golpismo, não apareceram
se tornaram regra na sociedade e no Es- são bem mais do que uma minoria insig- cafajestes ameaçando magistrados, não
tado. As centenas de milhares de mor- nificante. Também é fato que Bolsonaro se multiplicaram ataques de brutamon-
tes provocadas pela pandemia e a volta contribuiu para o aumento desse fenôme- tes contra artistas, funcionários públicos
da fome são os monumentos à sua obra. no, tanto numérico quanto de radicalida- continuaram a cumprir com seus deveres.
de. Seu exemplo contribuiu para que ca- Nenhum candidato eleito pelos partidos
Há outra consequência da interven- da idiota, em cada aldeia, se sentisse em- derrotados se ofereceu como porta-voz de
ção autoritária que derrubou Dilma, poderado para gritar mais, bater mais. Se autoritários, nazistas e fascistas.
prendeu Lula e produziu Bolsonaro. É alguém como ele pode chegar à Presidên- O contingente dessa turma cresceu nos
menos dramática que o caos social em cia, o céu é o limite para a idiotia. últimos anos. Não sabemos quanto, mas
que o povo pobre vive e menos festeja- ninguém
ningué duvida que a ponto de tornar
da que a alegria dos ricos em seus condo- problemática
problem a hipótese de que um bom
mínios na Flórida. Mas, por pior que se- governo,
governo como o que Lula certamente fa-
ja o saldo dos últimos seis anos, conser- LULA SABE: SUA rá, bastará
bast para nos levar a ser, outra vez,
tar o setor público e restaurar as condi- RESPONSABILIDADE uma sociedade
so politicamente civilizada.
ções para que a economia brasileira volte NO TERCEIRO Em 2022,
202 a barbárie foi derrotada por pe-
a crescer é menos difícil do que recupe- MANDATO É quena margem.
m O que nos reservará 2026?
RICARDO STUCKERT

rar a saúde moral e mental da sociedade. MUITO MAIOR Se Lu


Lula estava certo, em 2002, ao pen-
Não foi o capitão quem produziu a mis- sar que não podia errar, mais certo está
tura tóxica de egoísmo, indiferença, vio- quando pensa que, agora, sua responsa-
lência, preconceito e intolerância que ho- bilidade é maior. Ainda bem que o Bra-
bilidad
je caracteriza o pensamento e o compor- tem. •
sil o tem

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 23
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Lugar de negro
é onde ele quiser
Não basta criar ministérios específicos para
combater o racismo estrutural, diz Macaé Evaristo
A FABÍOLA MENDONÇA

O
descaso pelo ensino pú- escola, em especial a pública, na pers- cismo me levou a participar de movimen-
blico está no cerne do pectiva dos direitos humanos? tos sociais, do movimento negro, a mili-
racismo estrutural, Macaé Evaristo: Essa questão tem a tar na educação. Fui trabalhar na perife-
afirma Macaé Evaristo, ver com a minha própria história. A es- ria de Belo Horizonte, numa região com
recém-eleita deputada cola pública foi muito importante pa- o menor IDH da cidade, com muita fome.
estadual em Minas ra mim, mas também foi um lugar onde Pensar política pública, política educa-
Gerais e uma das maiores referências na convivi com o racismo, o preconceito, a cional, é olhar para os sujeitos, não adian-
militância negra e na defesa da educação desigualdade. Sei os desafios de ser pobre ta só pensar em um projeto, uma política.
universal. Na entrevista a seguir, Evaristo e lutar para estudar. A consciência do ra- Falam muito dos conteúdos, das métri-
analisa a pequena presença dos negros nos cas, dos resultados, mas pouco das con-
espaços de poder e diz que não basta criar dicionalidades, de estabelecer condições
diciona
pastas “segmentadas” para contemplar as “A GENTE QUER objetivas para as crianças terem uma tra-
objetiva
minorias e os excluídos. “A gente quer es- ESTAR NO BNDES, jetória dde sucesso. É preciso combater o
tar no BNDES, quero a presença negra na QUERO A PRESENÇA racismo na escola, olhar para essas famí-
Petrobras, no Ministério da Economia. imersas num racismo institucional,
lias ime
NEGRA NA
Tem uma questão que é muito séria no ra- segregadas em bairro sem nenhuma qua-
segrega
cismo brasileiro. Quando a gente alcança
PETROBRAS, NO lidade dde vida. As crianças chegam na es-
algum espaço de poder, você pode olhar, o MINISTÉRIO DA precisam ser alimentadas, pois não
cola e pr
poder já não está muito ali. A nossa luta é ECONOMIA, ONDE condição física devido à fome. E isso
têm con
desconstruir o racismo, fazer o poder es- ESTÁ O PODER” marca p profundamente o jeito de o educa-
tar onde nós estamos”.  pensar a política. O empobrecimento
dor pen
Brasil é uma construção social e polí-
no Bras
CartaCapital: Como pensar a Não se é pobre por natureza, mas pe-
tica. Nã

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Desigualdade

la desigualdade social. O racismo e o pa- A educação é instrumento para perpetuar então como manter um teto de gastos que
a Casa-Grande e a senzala, diz a educadora
trimonialismo institucional estão na raiz não permite garantir direitos mínimos?
da estruturação do capitalismo no Brasil. Atacar escola pública é atacar seus sujei-
tos. A desconstrução é tamanha que, hoje,
CC: A senhora costuma dizer que a des- o ataque se dá sob a formação de professo-
qualificação da escola pública é uma es- res, na tentativa de retirar as universida-
tratégia do racismo estrutural. Por quê? des do processo de formação de professo-
ME: Existe no Brasil um processo de cons- res e colocar isso na mão do setor privado.
trução da desigualdade, da segregação, da CC: Qual deveria ser a política públi-
exclusão, a partir da escola pública. A gen- ca para os povos originários?
te vê no noticiário as contradições. Dizem ME: O primeiro ponto é respeitar a Con-
ser preciso investimento em educação, venção 169 da OIT. Qualquer política pú-
mas, quando se sugere eliminar o teto de blica para a população indígena precisa ser
gastos, o mercado fica nervoso. Mas ner- discutida com ela. Bolsonaro não reconhe-
vosos estamos nós, trabalhadores e traba- ceu essas populações, queria avançar so-
ISTOCKOPHOTO E REDES SOCIAIS

lhadoras. Queremos que os nossos filhos bre os territórios e reverter a demarcação


tenham direito à escola pública e acesso de terras. Declarou guerra a essas popula-
a uma universidade de qualidade. Preci- ções. O presidente Lula comprometeu-se
samos do SUS e do Sistema Único de As- com o Ministério dos Povos Originários e
sistência Social. O desmonte foi produ- tivemos neste ano parlamentares indíge-
zido em todos os níveis, da creche à pós- nas eleitas para a Câmara, esperamos que
-graduação. Todos os setores da socieda- isso faça diferença. O Brasil precisa garan-
de concordam, a educação é direito. Ora, tir os direitos e a cidadania às etnias.

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 25
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

CC: A senhora acha que o próximo va numa perspectiva de pensar a diversi- A gente precisa dialogar com a pluralida-
governo será capaz de mudar os rumos dade de maneira afirmativa. A gente tem de da sociedade brasileira e para isso pre-
da educação? de combater o racismo no Brasil. É preci- cisa de um Ministério da Educação que
ME: O que sempre faltou na educação foi so olhar para a educação quilombola, pa- compreenda essa diversidade.
investimento. Os governos Lula e Dilma ra as relações étnico-raciais, as diretrizes CC: Ter um ministério para os povos
inverteram essa lógica, ousaram ao in- curriculares nacionais, educação indíge- originários ou de igualdade racial é sufi-
vestir nas escolas públicas, nas univer- na, de jovens e adultos. Eles zeraram o fi- ciente para atender a essa representa-
sidades, na constituição de institutos fe- nanciamento da educação de jovens e al- tividade, como propõe o governo eleito?
derais. Muita gente ficou horrorizada ao fabetização de adultos no País. Tínhamos EM: Não, não é suficiente. É importan-
ver os filhos de porteiro aprovados no en- o monitoramento da frequência escolar, te o Ministério dos Povos Originários,
sino superior. É um equívoco o Ministé- era uma condicionalidade para transfe- da Igualdade Racial, mas isso não con-
rio da Educação separar, criar uma sub- rência de renda do programa Bolsa Famí- templa a presença negra e indígena no
secretaria para as escolas cívico-milita- lia. Eles zeraram qualquer apoio e finan- governo. Não queremos ficar segregados
res, pois sempre tivemos a Secretaria de ciamento para esse monitoramento. No em uma ou outra pasta, precisamos de
Educação Básica, que articula as ações governo Dilma, conseguimos monitorar presença em outros ministérios, ter po-
com estados e municípios. A outra se- 95% da frequência mensal dos estudan- lítica de saúde para a população negra,
cretaria, de educação continuada, alfa- tes beneficiários do Bolsa Família. No no Ministério da Educação ter o moni-
betização, diversidade e inclusão, cujo fo- Auxílio Brasil não conseguem, não che- toramento da implementação da lei de
co era a redução das desigualdades, atua- gam a 60% dos estudantes beneficiados. cotas e acompanhar a política de assis-

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Desigualdade

CC: Durante a campanha de Lula, a di-


versidade não ficou clara. Não se viam
nas fotos negros, indígenas, LGBTQIA+.
Apareciam poucas mulheres, não havia a
pluralidade, a diversidade da sociedade.
ME: É preciso, antes, compreender a
construção desses lugares, pensar na for-
mação dos partidos. O PT é uma legenda
grande, de massas, com processos, vamos
dizer, populares de discussão. Mas tam-
bém perpetua vários vícios da sociedade,
entre eles o machismo e o racismo. É mui-
to recente na história do PT eleger mais
de uma parlamentar negra. Em Minas Ge-
rais, pela primeira vez, elegemos três mu-
lheres negras para a Assembleia Legisla-
tiva e uma para a Câmara dos Deputados.
No geral, elegemos uma. Muitas vezes
eles querem nos reduzir. A gente precisa
entender quem está no topo das estrutu-
ras partidárias. Não são negros. Temos de
alçar outros lugares da estrutura partidá-
ria. E esse processo, que se dá internamen-
te nos partidos, se materializa no palan-
que. Não vai ter um palanque com negros
e indígenas se na estrutura não tem ne-
gros nem indígenas. Se no PT é assim, nos
outros partidos é pior. Então, quem nos vê
no palanque ou numa entrevista de Lula,
muitas vezes não imagina o quão duro é
tência estudantil. Como os estudantes Houve avanço na representação chegar ali. É ter de sair quase na guerra fí-
parlamentar de indígenas, negros
das escolas públicas, indígenas e pretos e mulheres. Mas ainda é pouco
sica. É triste, mas é a verdade. A gente faz
têm acesso à assistência estudantil? Is- microrrevoluções cotidianas, transforma
J EFFERSO N RU DY/AG. SEN A DO E CH RISTIA N O A N TO N U CCI/GOV M T

so para falar só no campo da educação. progressivamente, mas falta um longo ca-


Mas a gente quer estar no BNDES, que- minho. A gente viu a guerra que se deu nes-
ro a presença negra na Petrobras, no Mi- te ano nno financiamento de candidaturas
nistério da Economia. Tem uma questão “SÓ ELEGEMOS UM negras e de mulheres. Somos contra o fi-
muito séria no racismo. Quando a gen- NÚMERO MAIOR nanciamento privado de campanha. Eles
nanciam
te alcança algum espaço de poder, ob- DE MULHERES (políticos tradicionais)
(polític tradicionais são todos herdei-
serve, o poder não está muito ali. A elite E HOMENS NEGROS ros e ac
acham não ser necessário o finan-
brasileira sempre atua para o poder es- NESTA ELEIÇÃO ciamento
ciamen público. Sabe por quê? Porque
tar onde ela está. Onde nós negros esta- eles passaram
pas a vida inteira pendurados
PORQUE TIVEMOS
mos, nunca está o poder. A nossa luta é no orçamento
orça público. Nós não, não tive-
O FINANCIAMENTO
desconstruir o racismo no Brasil, fazer o mos direito
dir nem à escola pública. Então,
poder estar onde nós estamos. A luta dos PÚBLICO DE só elegemos
elege um número maior de mulhe-
movimentos populares, de mulheres, do CAMPANHA” res e homens
ho negros nesta eleição porque
MST, dos movimentos negro e indígena. tivemos o financiamento público de cam-
Esta é a construção de um poder popu- panha. Caso
C contrário, não teríamos con-
lar, com a nossa cara.  dições de
d disputar a eleição. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 27
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Sob nova direção


O “Velho Cap” testa um novo figurino,
mas produz as mesmas crises de sempre
POR LU IZ GONZ AGA B ELLUZ ZO E N ATH A N CAIX ETA*

NONONON

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Economia

E
m sua coluna no New dical incerteza é inflamado pela incapaci- rio e desatar a recessão, desconsidera com-
York T imes, Pau l dade de as economias conterem o proces- pletamente as perturbações que as medi-
Krugman cuidou do so inflacionário que assola, praticamen- das convencionais de política econômica
mais recente desastre fi- te, todos os países impactados pela desor- podem causar nas condições de avaliação
nanceiro promovido pe- ganização das condições de oferta global da riqueza capitalista.
la inventividade da tur- durante o período pandêmico.
ma dos mercados. A última trombada da O contexto da guerra russo-ucraniana A interdição ideológica neoliberal
finança ocorreu no território das cripto- impõe ao espaço europeu uma situação de que assola os governos e as instituições
moedas. Um ano atrás, escreveu desorganização econômi- internacionais – escolta-
Krugman, “o Bitcoin e outras criptomoe- ca que não se assistia des- dos pela mídia – tem en-
das estavam sendo vendidos a preços re- de o fim da Segunda Guer- Nathan Caixeta contrado uma rota única
cordes, com um valor de mercado combi- ra Mundial, com a consti- Graduado em para a solução das insta-
nado de cerca de 3 trilhões de dólares; tuição de mercados para- Economia pela bilidades globais, aque-
anúncios brilhantes com celebridades – lelos de fontes energéti- Facamp e mestrando las que rastejam na su-
o mais infamante, o ‘Fortune Favors the cas. A consistente valori- em Desenvolvimento perfície e as que se mo-
Brave’ de Matt Damon – encheram as mí- zação do dólar em relação Econômico pela vem nos subterrâneos
dias. Políticos, incluindo, infelizmente,  o às demais moedas, decor- Unicamp. das estruturas do “Velho
prefeito de Nova York, correram para se rente dos aumentos su- Cap”. Vamos lá: preconi-
alinhar com o que parecia ser a coisa do cessivos da taxa de juros zam o aumento alinhado
futuro. Céticos foram informados que, norte-americana, pressiona as economias das taxas de juro pelos Bancos Centrais,
simplesmente, não entenderam coisa do resto do mundo a operarem ajustes re- conciliado ao novo ciclo de asfixia sobre
alguma. Desde então, os preços dos ativos cessivos para conter os desequilíbrios en- os gastos públicos, maiores flexibiliza-
cripto despencaram, enquanto um tre os saldos comerciais e a fuga de capi- ções nas relações de comércio e do tra-
número crescente de instituições entrou tais rumo aos títulos públicos dos EUA. balho e a privatização do que resta das
em colapso em meio a alegações de A ideologia dominante que impera nas empresas públicas.
escândalo. A implosão da FTX, que parece mentes dos comandantes dos tesouros na- Os dilemas que envolvem a política eco-
ter usado o dinheiro dos depositantes na cionais e Bancos Centrais, diante do dile- nômica dos países capitalistas refletem a
tentativa de sustentar uma empresa ma entre estancar o processo inflacioná- insuficiência de instrumentos à disposi-
relacionada, fez a maioria das manchetes,
mas é apenas uma desgraça em uma lista
que não para de crescer”.
Os mercados financeiros globais acen-
deram o sinal de alerta ao se depararem
com o espectro de uma nova crise que
MEGA N BRIGGS/GE T T Y IM AGES/A FP E ISTOCK PHOTO

ronda o espaço-mundo da finança capi-


talista. Nas principais praças financeiras
do mundo, a memória da grande crise fi-
nanceira de 2008 ainda cutuca os neurô-
nios da turma que se aboleta nas mesas de
operação para formar “posições vendidas
ou compradas”. Convém, neste momento,
analisar as condições que norteiam a ava-
liação da riqueza capitalista diante das in-
quietações dos mercados.
O risco da deflação generalizado de ati-
vos é crescente, assim como as expectati-
vas de recessão global. Este cenário de ra- O combustível dispara pela guerra na Ucrânia. As criptomoedas derretem

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 29
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

ção dos governos para lidar com as crises


do capitalismo em suas múltiplas formas
de expressão. Os instrumentos convencio-
nais de política econômica fundamentam
suas hipóteses no poder de autorregulação
dos mercados, premissa que acomoda os
interesses dos mercados financeiros em-
penhados em exercer seu poder de ditar os
rumos das políticas econômicas. A pluto-
cracia supranacional promove, nas déca-
das neoliberais, a sujeição dos Estados na-
cionais à tirania da finança globalizada.

Os fantasmas de John M. Keynes e


do velho Karl Marx assombram os pro-
fetas neoliberais que se debatem, uma
vez mais, com a tal da moeda, fenômeno
crucial das economias capitalistas, não
por acaso expurgado das teorias tradi-
cionais. A dimensão monetária move,
simultaneamente, a acumulação, o pro-
gresso técnico e, em contrapartida, de-
forma as dimensões humanas das rela-
ções sociais, substituindo-as pelo despo-
tismo da concorrência desenfreada en-
tre os indivíduos, ansiosos por demarcar
suas identidades pela acumulação mone-
tária ou do consumismo desmedido.
O desarranjo socioeconômico inten-
sifica-se na medida em que a dinâmica
da acumulação monetária empreende a das condições de liquidez dos ativos e das investimento em máquinas, equipamen-
concentração da riqueza e da renda so- dívidas privadas que carregam determi- tos e mais trabalhadores quanto a aqui-
cial. Esse fenômeno desvela o “modo de nada expectativa de valorização. A forma- sição de títulos de propriedade que cons-
ser” do capitalismo, cuja dinâmica repro- ção dos ativos depende da contratação de tituem a forma par excellence da riqueza
dutiva supõe a subordinação das formas dívidas para fundar tanto as posições de privada (ações, títulos de dívida, deriva-
privadas da riqueza à forma geral, inexo- tivos etc.).
et As expectativas acerca da va-
ravelmente monetária. É a existência do lorização
lorizaçã desses ativos são postas diante
dinheiro que cria e determina as relações da incerteza
incer quanto à transformação das
de produção, exploração do trabalho, de A PLUTOCRACIA formas privadas da riqueza na forma uni-
troca e consumo. Por isso mesmo, para SUPRANACIONAL versal, isto
i é, em dinheiro.
que o circuito de formação da renda so- PROMOVE A Desse modo, tanto a autorrealização
Dess
cial se efetive, em primeiro lugar, as deci- SUJEIÇÃO DOS das expectativas
exp de valorização da rique-
sões de investimento que põem em mar- ESTADOS À TIRANIA za quanto
quan sua depreciação acelerada refle-
A RIS MESSINIS/A FP E A FP

cha o exército de trabalhadores depen- DA FINANÇA tem a ansiedade


an dos agentes privados em
de, necessariamente, da avaliação sobre o GLOBALIZADA validar socialmente sua riqueza ao con-
destino do estoque de riqueza capitalista. duzi-la ao encontro da forma monetária.
O processo avaliativo da riqueza capi- Ocorre que,
q se o capitalismo é movido pe-
talista depende, por seu turno, da percep- lo amor ao dinheiro, como fenômeno que
ção dos detentores da riqueza a respeito modula as ações humanas no capitalismo,

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Economia

no parágrafo seguinte: “A dívida pública


dota o dinheiro da capacidade criadora
(de riqueza)”, permitindo que o crédito
monetário adiantado para o circuito pro-
dutivo presida as condições de explora-
ção do trabalho e geração de valor.
O sistema bancário desempenha pa-
pel fundamental nesse processo, pois é
responsável pela avaliação do “grau de
liquidez” dos ativos privados. Essa ava-
liação acaba por se refletir na composi-
ção da taxa de juros corrente que serve
de parâmetro tanto para a avaliação de
viabilidade dos investimentos quanto do
valor presente da riqueza patrimonial.

Há que se destacar:  a aceleração do


processo de acumulação “financeiriza-
da” do mesmo modo em que empreende
a tendência estrutural de redundância
do trabalho, ao elevar o exército de tra-
balhadores desempregados, também ex-
cita a dependência contraditória entre a
valorização da riqueza mobiliária priva-
da e o endividamento público.
O Estado não sucumbiu indefeso à
avalanche neoliberal, mas moldou sua
própria forma de atuação em resposta à
necessidade de sua atuação histórica co-
O conflito bélico vai atravessar mo “financiador”, em primeira instân-
o ano. Marx pontuava: “O crédito cia, do processo de acumulação de capi-
público é a religião do capital”
tal e “garantidor, em última instância, da
estrutura patrimonial detida pelos pro-
a incerteza do trânsito entre as formas pri- prietários privados da riqueza social.
vadas da riqueza para a forma monetária As perturbações recentes nos merca-
oferece o prêmio de liquidez como aman- dos financeiros refletem, precisamente, o
te. Isso explica a paixão do capital em se temor sobre a capacidade de liquidação do
desquitar dos títulos privados para se aca- estoque de riqueza patrimonial que pre-
salar à dívida pública, a concubina insepa- serva em sua composição um volume ex-
rável do dinheiro, a liquidez par excellence. traordinário vindo diretamente do cres-
No capítulo 24 d’O Capital, Marx é ca- cimento do balanço dos Bancos Centrais,
tegórico ao afirmar que “o crédito públi- desde a grande crise de 2008, por meio
co é a religião do capital”, pois o papel fi- das sucessivas rodadas de “relaxamento
nanceiro do Estado garante a constitui- monetário” representadas pelas iniciati-
ção do processo de endividamento pri- vas de Quantitative Easing (QE).
vado, portanto, do trânsito entre a forma Quanto maior a liquidez “doada” pelos
geral da riqueza para as formas particu- Bancos Centrais ao setor financeiro pri-
lares e o retorno das formas particulares vado, mais elevadas as expectativas de
para a forma geral. Nas palavras de Marx, valorização da riqueza administrada sob

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 31
A
RECONSTRUÇÃO Economia
DO
BRASIL

O exército de trabalhadores precários


continua a crescer, resultado da
interdição ideológica neoliberal

tais condições favoráveis de liquidação. O


crescimento das expectativas de valoriza-
ção desses estoques de riqueza pós-2008,
temperado pelo impulso tecnológico da
quarta revolução industrial, revelou com
nitidez acachapante o percurso de desen-
volvimento recente do intelecto-genérico,
a força que submete as novas formas do
trabalho ao regime da finança globaliza-
da pela dimensão comunicativa-informa-
cional. Nessa dimensão, o “Velho Cap” re-
vigora o véu monetário que encapa as re-
lações mercantis, ocultando, quase com-
pletamente, o corpo social exposto ao “in-
ferno da miséria urbana e da precariza- bre a inflação é causado pela depressão da dois fatores aceleram a fuga desesperada
ção”, como pontuou Franco Bifo Berardi. renda social. Os impactos da avaliação in- para liquidação dos ativos, pressionando
correta sobre as origens da inflação pelos tanto os estoques de dívida quanto a ri-
Ainda que facilitadas as condições de Policy Makers refletem-se no oferecimen- queza mantida na forma de ativos priva-
liquidez, a fração dessa liquidez escoada to de um remédio que alivia as agonias da dos à demanda crescente por moeda. Cabe
para o setor produtivo destinou-se, so- doença, enquanto acelera as comorbida- ao Estado servir ao aumento da demanda
bretudo, às iniciativas de superacelera- des patogênicas do “Velho Cap”. por moeda, na dupla cruzada de expansão
ção do progresso técnico, ao desenvol- O aumento da incerteza sobre a capa- dos gastos e do endividamento público.
vimento da dimensão comunicativa-in- cidade de liquidação dos ativos privados As iniciativas dos Bancos Centrais em
formacional do capital. A geração de em- impõe, simultaneamente, o crescimento elevar as taxas básicas de juro e prometer
pregos respondeu, com raras exceções, da taxa de juros correntemente praticada a redução de seus passivos agem na con-
à expansão da massa de trabalho precá- nas operações privadas de crédito e a dete- tramão dos interesses coletivos de ma-
rio, resultado do impulso à substituição rioração das condições de refinanciamen- nutenção do nível de emprego e da ren-
de postos de trabalho tradicionais pelos to dos estoques privados de dívida. Esses da social, servindo aos interesses parti-
adventos da robótica avançada, da inte- culares daqueles que se antecipam à crise
ligência artificial, das biotecnologias e da operando “vendidos” em relação ao pâ-
automação e digitalização acelerada dos nico dos mercados. Por consequência, a
trabalhos manuais. OS PROCESSOS realocação da riqueza capitalista em di-
O resultado desse processo foi a se- INFLACIONÁRIOS, reção aos títulos públicos autorrealiza a
miestagnação das taxas de crescimento MOTIVADOS PELA profecia de deflação dos ativos e das dívi-
das economias, enquanto a acumulação DESORGANIZAÇÃO das privadas anunciada pela elevação da
financeira de riqueza prosseguiu acelera- DA OFERTA GLOBAL, taxa de juros dos títulos públicos.
da e centrada nos mecanismos de espe- NÃO PODEM SER Sob o comando do “Velho Cap”, a dire-
culação e arbitragem financeira, oportu- COMBATIDOS PELO ção tomada pelos Bancos Centrais, ao san-
nidades oferecidas pelo “capital barato” cionar a direção da “fuga generalizada pa-
REMÉDIO DA
R E N AT O L U I Z F E R R E I R A

ofertado pelos Bancos Centrais. ra liquidez” e incendiar a realocação da ri-


POLÍTICA
Os processos inflacionários, motiva- queza privada sob condições de liquidação
dos pela desorganização da oferta glo- MONETÁRIA desfavoráveis, conduz à concentração da
bal, não podem ser combatidos pelo remé- riqueza e ao domínio dos interesses pri-
dio da política monetária. O único efeito vados sobre as funções públicas, sociais e
da elevação recente das taxas de juro so- monetárias do Estado. •

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
A
RECONSTRUÇÃO Sustentabilidade
DO
BRASIL

N
ascido, em 1953, na
região do vale do
Rio Doce, em Minas
“Não se trata Gerais, Ailton Krenak
de salvar a
cresceu na floresta e,
Terra, mas de
nos salvarmos”, ainda muito jovem,
afirma fez da defesa da natureza a sua vida. Na
Assembleia Constituinte de 1987, tomou o
microfone para clamar pelo direito dos
indígenas e pelo respeito à sua comunidade.
Enquanto discursava, passava tinta preta
de jenipapo no rosto – para os Krenak, um
símbolo de luto.
Fazia então cinco anos que o primeiro
indígena, Mário Juruna, tinha sido elei-
to para o Congresso Nacional. A segunda
eleição de um indígena aconteceria apenas
em 2018, quando Joênia Wapichana assu-
miu como deputada federal por Roraima.
Em 2023, sete candidatos autodeclarados
indígenas ocuparão o Congresso.
Dentre eles há dois bolsonaristas –
que, obviamente, não representam as
causas dos povos originários –, três re-
presentantes do PT e duas afiliadas ao
PSOL: Sônia Guajajara e Célia Xakriabá.
“É, sem dúvida, motivo de celebração po-
dermos usar o termo bancada indígena”,
diz Krenak, ativista ambiental de proje-
ção internacional e um dos organizado-
res da Aliança dos Povos da Floresta.

À beira
Doutor honoris causa pela Universida-
de Federal de Juiz de Fora, autor de livros
de sucesso e conferencista requisitado,
Krenak tenta equilibrar seu modo de ser
e viver com as demandas de um mundo ve-

do abismo
loz e afoito por vozes como a sua. “É mais
fácil dizer sim do que dizer não, né?”, res-
ponde, quando questionado sobre os con-
vites que, não raro, se acumulam e se so-
brepõem. “Às vezes, vira uma confusão”,
As cidades estão doentes e o Brasil admite, sorriso mais de moleque do que de
pensador. Embora passe hoje muito tempo
N E T O G O N Ç A LV E S

bolsonarista vive um colapso moral, em grandes cidades e esteja habituadíssi-


diz o ativista Ailton Krenak mo aos ambientes de vidro e mármore dos
hotéis, Krenak, mesmo nesses lugares, pa-
A ANA PAULA SOUSA rece procurar um fiapo de natureza com

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 33
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

o qual ele possa se conectar. “As flores de


plástico não morrem”, cita, com ar de tro-
ça, a letra dos Titãs, enquanto roça os de-
dos no vaso sobre a mesa do café da ma-
nhã do hotel onde concederá entrevista a
CartaCapital. “Não tem tato, não tem chei-
ro. Para mim é até ofensa.” Vê então, ao seu
lado, uma espada-de-iansã. Leva os dedos
à planta de verdade e sorri.
Krenak, no dia da conversa, estava em
São Paulo para participar de um evento
cinematográfico, o BRLab. Paralelamen-
te, encaixava na agenda entrevistas pa-
ra a divulgação de seu novo livro: Futuro
Ancestral. O novo volume forma um trípti-
co com os muito bem vendidos Ideias para
Adiar o Fim do Mundo (2019) e A Vida Não
É Útil (2020). “São as minhas reflexões
em forma de texto.” Os títulos dos capítu-
los são bem mais sugestivos do que Futuro
Ancestral contém: Saudações aos Rios,
Cartografias para Depois do Fim, Cidades,
Pandemias e Outras Geringonças, Alianças
Afetivas e O Coração no Ritmo da Terra. “Os
rios, esses seres que sempre habitaram os
mundos em diferentes formas, são quem
me sugere que, se há futuro a ser cogitado,
esse futuro é ancestral, porque já estava Em São Paulo,
eu “piso em
aqui”, escreve nas primeiras páginas. pessoas”, lamenta
No presente que Krenak enxerga, o fu-
turo está em risco. A continuarmos neste
ritmo de destruição, ele mal pode ser co- aqui e agora. O nosso futuro está na Terra. todos nos envolver e entender que preci-
gitado, na verdade. “O Homo sapiens, a es- CC: Quais são as suas expectativas, samos de todos os outros organismos pa-
pécie, está entrando em extinção”, repete, na questão ambiental e a um possível ra que seja mantida a experiência comum
sem alterar o tom de voz, mas com ênfase. desenvolvimento sustentável, em rela- de estarmos vivos. Não tem como a gen-
ção ao novo governo? te experimentar a vida, se não estivermos
CartaCapital: Para começar, pode AK: Lula, ao ser eleito, foi saudado por supridos por toda essa oferta de bem-es-
explicar o título do seu novo livro? chefes de Estado do planeta inteiro. De- tar que organismos não humanos – mui-
Ailton Krenak: Somos todos aculturados pois de um governo predatório, em to- tos dos quais nem vemos – nos oferecem. O
FÁ BIO T EIX EIR A /A N A DO LU AG EN CY/A FP

pela ideia de que existe um pra trás, um dos os sentidos que se possa imaginar, e homem acha que ele pode apenas ficar vi-
agora e um pra frente. Temos o agora, mas em meio à distopia que vivemos, com cri- vo, sem pagar nenhuma conta e, com isso,
a gente não suporta esse agora, então ima- se climática, pandemia e guerra, a eleição a caminhada humana deixa em torno de
gina um futuro ou pensa no passado. As de Lula foi um alívio. Como tenho dito, ela si um deserto. Quando falo dessas coisas,
conferências do clima têm discutido o ris- trouxe um pouco de oxigênio para todos. não se trata de salvar a Terra, mas de nos
co da extinção, mas esse risco foi anuncia- Agora, sobre o que você pergunta... Pri- salvarmos. Não falo apenas dos índios,
do na Eco-92. Tudo que a gente precisava meiro, temos de substituir a palavra de- mas de todos nós. 
saber estava ali. Mas a gente não fez nada e senvolvimento pela palavra “envolvimen- CC: E o que acha da criação do
continuou destruindo tudo, em nome des- to”. É de envolvimento que se trata. Eu não Ministério dos Povos Originários?
sa voracidade moderna. Nosso tempo é o acredito em desenvolvimento. Devemos AK: A população indígena estava

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Sustentabilidade

ameaçada de genocídio por este governo em uma de suas marchas mais importan-
criminoso que agora acaba. Então, só esse uniu evangélicos e muçulmanos. E
tes, uni
gesto de anunciar a criação de um minis- “NÃO ENTENDO bronca dos norte-americanos com is-
a bronc
tério voltado para a questão indígena pre- DE ONDE VEM so não eera porque eles eram evangélicos,
cisa ser elogiado. A partir do início do go- ESSA IDEIA DOS porque eram negros. Essas pessoas,
mas por
verno, vamos ver como ele será, na práti- aqui no Brasil, estão que nem os hebreus
BRANCOS DE QUE
ca. Porque ele nasce do zero, e vai precisar enfiando papelzinho no muro. Isso só se
enfiand
O SOFRIMENTO
de orçamento e de estrutura. Outra ques- explica por algum abismo cognitivo. Vi-
tão política: o Estado precisa decidir o que
ENSINA ALGUMA vemos um colapso moral. São sonâm-
fazer com as terras indígenas. Quem está COISA. NÃO bulos q que zanzam por aí sem saber para
sendo roubado, quando um particular pega QUERO APRENDER onde esestão indo ou o que estão fazendo.
as terras dos índios, se é o próprio Estado. NADA À CUSTA acusam o próximo governo de proje-
Eles acu
E quando se destrói a floresta, estamos DE SOFRIMENTO” banheiros unissex. E são terraplanis-
tar banh
destruindo todos nós. Mas, quando o pre- Essa gramática fascista maluca me
tas. Ess
sidente se dispõe a criar um Ministério dos fez até pperder a minha fé em disco voador
Povos Originários, acredito que haja um ((risos).
(risos
s).
). Mas
Ma é melhor que enfiar bilheti-
comprometimento com essas questões. nhos em muro, né? Imagina se eu escre-
CC: No livro você pergunta: “Como vo um bilhete e o general Braga Netto lê? 
atravessar os muros das cidades? Quais AK: Precisamos de um escândalo, com CC: Acredita numa reconfiguração do
possíveis implicações poderiam existir as pessoas em transe, batendo as cabeças Estado Democrático de Direito?
entre comunidades humanas que vivem nos muros, rezando juntos. Tenho cha- AK: A Colômbia, um Estado pan-ama-
na floresta e as que estão enclausura- mado esse movimento de ecumenismo zônico, enfrentou uma situação na qual
das nas metrópoles?” Como você se fascista, porque reúne católico, evangé- o presidente que se elegeu teve de compor
sente em relação a essa possibilidade lico... Eles rezam e pedem golpe. Quando forças e criar uma governança plurina-
quando está em São Paulo? a gente olha pra isso, e olha também para cional. A gente tem experiência no Chile,
AK: Ontem à noite, andando a pé por aqui essas pessoas nas ruas de São Paulo, re- na Bolívia, e isso tudo tem sido discuti-
(na região da Rua Augusta, em São Paulo), montando nas ruas as casas de onde fo- do em busca do exercício da democracia,
saindo do (Espaço Itaú de) cinema e vol- ram expulsas, a gente entende que está à mas de uma democracia capaz de cons-
tando para o hotel, eu pisava em pessoas. beira do abismo. O Martin Luther King, truir novas configurações na sociedade. 
A cidade está doente e, se isso for natura- CC: Como foi sua experiência pandê-
lizado, a cidade, como experiência social, mica, um dos temas do livro?
morrerá. Quando venho para São Paulo, fi- AK: Em algum momento, quando fa-
co com gripe, fico com febre, com erisipe- lávamos sobre essa travessia que todos
la, catapora (risos). Você vê o Padre Júlio enfrentamos, alguém me perguntou: “O
Lancelotti? Ele, muitas vezes, tem a ex- que a Covid-19 nos ensinou?” Ora, por
pressão exaurida. Uma pessoa não pode que alguém acha que a pandemia deve-
apenas doar. Doar exaure. Precisamos re- ria nos ensinar alguma coisa? A pande-
ceber também. Vivemos um tempo muito mia não veio para ensinar nada, mas pa-
árido, mas não podemos nos esquecer de ra devastar as nossas vidas. O que eu digo
que a produção de afeto é recíproca. Tem é que não entendo de onde vem essa ideia
aquela música (É Tudo Pra Ontem) em que dos brancos, de que o sofrimento ensina
o Emicida e o Gilberto Gil cantam o frag- alguma coisa. Não quero aprender nada
mento de um mito do povo Krenak. Viver à custa de sofrimento. Uma coisa que sei
é partir, voltar e repartir. Viver é partir, sobre a pandemia é que a nossa acomoda-
voltar e repartir. Esses versos são uma ção psicológica ao ambiente virtual, in-
FUTURO ANCESTRAL
brincadeira com as palavras, mas eles fa- tensificada nesse período, não deve ser
Ailton Krenak. Companhia das Letras
lam também sobre a circulação de afeto.   (128 págs., 34,90 reais)
saudável. Quando temos uma tela entre
CC: A circulação de afeto para en- nós, não estamos conversando direta-
frentar a circulação de ódio... mente uns com os outros. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 35
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

A base da ciência
Sem educação e pesquisa, o Brasil nunca
realizará seu potencial de desenvolvimento
P O R H E L E N A B . N A D E R * 

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Tecnologia

O
Brasil nos últimos de econômica, que produz o desempre- Petrobras e Embraer, duas gigantes
mundiais nascidas do planejamento,
anos buscou afastar- go em larga escala em vários pontos do
inovação e esforço concentrado
-se de forma sistemá- planeta. É muito difícil fazer julgamen-
tica dos valores demo- tos claros e uníssonos quando existem
cráticos. Este é mais sociedades tão divididas. to sustentável seja alcançado, é funda-
um ano que deve en- Infelizmente, o mesmo ocorre no Bra- mental harmonizar três elementos cen-
trar para a história como um período dra- sil, com consequências semelhantes. Es- trais: o social, o econômico e o ambien-
mático na vida social, política e econômi- te cenário em nada contribui com a bus- tal. Esses elementos estão interligados e
ca do País, com a perda dos valores éticos ca por saídas que levem o País de volta ao são cruciais para o bem-estar dos indiví-
e morais. Foi e tem sido crescimento, à educação duos e das sociedades.
difícil para todos, em es- universal e com qualida-
pecial para quem defen- Helena B. Nader de, ao desenvolvimen- Nesse sentido, a erradicação da pobre-
de educação, ciência, cul- Presidente da Academia to científico e tecnoló- za em todas as suas formas e dimensões é
tura, direitos humanos, Brasileira de Ciências gico, em prol de uma na- um requisito indispensável. Precisamos
meio ambiente, saúde. (ABC), presidente de ção mais justa, inclusiva, avançar em uma agenda econômica que
Quando olhamos pa- honra da Sociedade sustentável e que busca o envolva a geração de oportunidades pa-
ra fora vemos um mun- Brasileira para o bem-estar de todos. ra todas e todos, de forma sistêmica, so-
do no qual, apesar de to- Progresso da Ciência Repito aqui o depoi- lidária e justa.  E, na minha visão, educa-
dos os avanços científi- (SBPC), professora mento que fiz quando ção e ciência, tecnologia e inovação são os
cos e tecnológicos, ape- titular da Universidade da minha posse, neste motores para que a sociedade brasileira
sar da globalização, da Federal de São Paulo ano, como presidente da alcance a equidade.
EMBRAER E AGÊNCIA PETROBRAS

esperança de uma so- (Unifesp). Academia Brasileira de Temos de lembrar, no entanto, que edu-
ciedade mais pacífica, Ciências. O desenvolvi- cação e ciência são atividades recentes na
interligada e tolerante, mento sustentável foi de- história do nosso país. Enquanto, na Amé-
ocorrem conflitos de toda ordem. Into- finido pelas Nações Unidas como aquele rica Espanhola, as primeiras universida-
lerância com a diversidade de gênero, ra- que atende às necessidades do presente des surgiram no Peru e no México em 1551,
ça e religião, violência urbana, diásporas sem comprometer a capacidade das gera- aqui no Brasil, as primeiras escolas só co-
e terrorismo. A intolerância com os imi- ções futuras de atender às suas próprias meçaram quando da imigração da famí-
grantes convive com o medo da fragilida- necessidades. Para que o desenvolvimen- lia real portuguesa, em 1808. A partir des-

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 37
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

De 1985 para cá, o Brasil melhorou sua bém mostra que o Brasil e a UE apresen- no Brasil foram de apenas 1,21% (2019).
posição no ranking internacional de
produção científica, apesar dos percalços
tam 2,4% das publicações científicas en- O Brasil figura ao lado das principais
volvendo coautoria entre os setores aca- economias do mundo, situando-se entre
dêmico e empresarial, enquanto esses a 9ª ou 12ª posição, a depender dos indi-
se período e com a proclamação da Inde- valores para a Coreia do Sul equivalem cadores. A ciência brasileira foi funda-
pendência e estabelecimento do império a 3,9% e 4,4% para a Alemanha. Mais de mental para que o País alcançasse essas
foram criados institutos e escolas que são 90% dessa produção científica tem sua posições, desde a agricultura até a pro-
referência até hoje em educação e ciência. origem nas universidades públicas, fede- dução de petróleo e gás. Isso não se deu
Apesar de a nossa trajetória científica rais e estaduais e em institutos públicos. por acaso, mas por investimentos de lon-
ser recente, devemos salientar que o de- go prazo na pesquisa básica e fundamen-
sempenho da ciência brasileira tem sido Alguns outros dados relevantes pa- tal até a tecnológica. Foi assim na agri-
bastante relevante nas últimas décadas. ra que possamos entender melhor a ur- cultura, com o estabelecimento das pri-
Em 1985, os trabalhos científicos publi- gência para investimento em educação e meiras escolas no fim do século XIX e
cados nas bases de dados da Scopus ou da CT&I. Em 2022, o Brasil ficou em 59º lu- início do século XX, como a Escola Agrí-
Web of Science representavam perto de gar entre 63 nações no Ranking Mundial cola da Bahia (1875), a Escola Agrícola
0,35% da produção mundial. Hoje o Bra- de Competitividade (Fórum Econômico Luiz de Queiroz (1901), e outras que for-
sil responde por em torno de 2,8% des- Mundial) e na competitividade digital maram a base para a construção da Em-
sas publicações. Demos maior visibilida- fomos para a 52ª posição (International presa Brasileira de Pesquisa Agropecuá-
de à nossa ciência, com o aumento de co- Institute for Management Development). ria (Embrapa), em 1973, tornando o Bra-
autorias internacionais de 30,8% (2015) Já no Índice Global de Inovação entre sil uma potência agrícola na produção de
para 35,2% (2019), ainda inferior àquela 132 nações ocupamos a 54ª posição. De grãos como soja e frutas, entre outros. A
da Argentina (50,5%), da média da Amé- acordo com o Banco Mundial, enquan- ciência e a tecnologia do Centro de Pes-
rica Latina (40,85%) ou da União Euro- to os gastos com pesquisa e desenvol- quisas da Petrobras (Cenpes) e das uni-
peia (46,5%), de acordo com o relatório da vimento (P&D) como porcentagem do versidades brasileiras permitiram des-
Unesco de 2021. O mesmo relatório tam- PIB mundial foram de 2,63% (2020), cobrir petróleo em águas ultraprofun-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Tecnologia

das. Exemplos dos impactos da ciência contramão


contram do mundo no que se refere a
na balança comercial brasileira não fal- investimentos
investim em Pesquisa e Desenvol-
tam, como o desenvolvimento e a produ- NÃO PODEMOS vimento
viment (P&D).
ção de aeronaves, a automação bancária, ESQUECER: Ainda,
Aind é importante corrigir em perto
o uso da biodiversidade brasileira para EDUCAÇÃO E de 66% os valores das bolsas de mestra-
a indústria de cosméticos e inteligência CIÊNCIA NÃO do e doutorado,
dout congeladas desde 2013,
artificial e robótica, entre outros. Ciên- SÃO GASTOS, MAS para recompor
re o poder aquisitivo. Pre-
cia, tecnologia e inovação são responsá- cisamos
cisamo formar pessoal qualificado pa-
INVESTIMENTOS
veis por grande parte do PIB brasileiro.  ra o nosso
nos mercado de trabalho. Mas, nos
O mundo onde vivemos está em trans- últimos anos, estamos assistindo a uma
formação, seja pela alteração do uso e co- diminuição
diminu na busca pela pós-gradua-
bertura do solo, seja pela alteração dos ção, em função da baixa remuneração e
fluxos biogeoquímicos, desastres natu- dos cortes em investimentos em CT&I.
rais, escassez de água, mudança de há- uma posição bastante fragilizada no ce- De acordo com o IBGE, o Brasil acumu-
bitos alimentares, mudanças climáticas, nário global. De acordo com relatório da la há sete anos diminuição no número de
perda de biodiversidade, poluição global União Europeia, o investimento em pes- empresas industriais. Há, portanto, ne-
(rios, oceanos, terra, ar) e urbanização. E quisa pública tem um retorno de três a oi- cessidade urgente da reindustrialização.
essas mudanças afetam a saúde local e to vezes do valor aplicado e entre 20% e Por exemplo, o setor industrial da saú-
global, pelo aumento ou aparecimento de 75% das inovações não poderiam ter si- de pode desempenhar papel estratégico
novas doenças infecciosas e doenças não do desenvolvidas sem a contribuição da no processo de reindustrialização e mo-
comunicáveis, pela segurança alimentar, pesquisa pública. O próprio Fundo Mo- dernização tecnológica do País, ao mes-
saúde mental, educação e trabalho. So- netário Internacional afirma, em recen- mo tempo que gera milhões de empre-
mente com ciência poderemos enfrentar te relatório, que o investimento em pes- gos, substitui importações, reduz as de-
esses desafios que se apresentam. quisa básica pode ajudar formuladores sigualdades e, principalmente, garante
O que vimos nos últimos anos no Bra- de política a acelerar o crescimento eco- maior bem-estar a todos os brasileiros.
sil foram, porém, cortes crescentes na nômico pós-Covid, pois é insumo essen- Sem uma política de modernização e am-
educação e CT&I que nos colocam em cial para inovação. O Brasil caminha na pliação de nossa base produtiva e tecno-
lógica, provavelmente o acesso universal
da população à saúde ficará, no entanto,
comprometido. Esse mesmo racional po-
de ser aplicado a outras áreas do chama-
do setor empresarial.

Lembro que sem investimento em edu-


cação não teremos ciência, tecnologia e
inovação. O Banco Mundial coloca em seu
Relatório de Desenvolvimento Mundial
de 2018: “Os alunos de hoje serão os ci-
dadãos, líderes, trabalhadores e pais de
amanhã.  Portanto, uma boa educação é
IS TO CK P H OTO E A RQ U I VO/ EM B R A PA

um investimento com benefícios dura-


douros”. A posição da economia brasilei-
ra nos mostra que recursos existem, mas
faltam prioridades. Estamos começando
um novo momento, no qual acredito que
educação e ciência serão de fato conside-
radas e tratadas como políticas de Estado.
O mantra continua a ser: educação e ci-
O planeta está em transformação e enfrenta vários riscos. A pesquisa tornou-se mais essencial ência não são gastos, mas investimentos. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 39
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Luto infinito
bada e morreu sem contato com a famí-
lia, essa experiência fica um pouco conti-
da. Para muitos, o processo do luto ficou
suspenso, porque essa parte não estava
disponível. A todos que passam por esse
Não há como superar centenas de milhares momento recomendo o livro O Lugar, de
de mortes evitáveis para a Covid-19 sem Annie Ernaux, que relata o luto da auto-
ra em relação ao pai. O processo envolve
justiça e reparação, alerta Christian Dunker uma espécie de pesquisa sobre quem era
a pessoa que se foi. E como essa memória
acontece? As coisas lembram, as cartas

C
lembram, os lugares lembram, as pala-
om 2,7% da população quanto algo não acontecer, como a reve- vras lembram, e o outro também me faz
mundial, o Brasil con- lação de quem mandou matá-la, meu lu- lembrar, por ângulos e afetos diferentes,
centrou mais de 10% do to não termina.” Na entrevista a seguir, mas complementares. Com a pandemia,
total de mortes por Co- Dunker fala sobre a superação dos trau- no entanto, as pessoas estão mais distan-
vid-19 em todo o plane- mas da pandemia e as perspectivas para tes, o que retarda a elaboração do luto.
ta. O negacionismo de as novas gerações. CC: Quando o luto de fato termina?
Jair Bolsonaro, o atraso na entrega de va- CD: Para a psiquiatria, esse processo
cinas e a negligência estatal em prover CartaCapital: O Brasil soma qua- leva 15 dias. Caso contrário, tome anti-
tratamento adequado aos pacientes – fal- se 700 mil mortos por Covid-19. Além depressivo. Na verdade, cada um tem o
tou até oxigênio nos hospitais de Manaus das famílias enlutadas, estima-se que seu tempo. Alguns levam meses, outros
– provocaram centenas de milhares de 130 mil crianças e adolescentes fica- demoram anos, pode ser que a dor nun-
mortes evitáveis. As famílias enlutadas ram órfãos na pandemia. Qual é o im- ca passe. Mas, respondendo à pergun-
nem sequer tiveram a oportunidade de pacto disso para a sociedade e a nos- ta, feita anteriormente por Freud, o lu-
se despedir das vítimas da pandemia sa subjetividade? to termina quando ele se articula sim-
adequadamente. Pior, o País comporta- Christian Dunker: Acabei de finalizar bolicamente com os lutos anteriores da
-se como se nada tivesse acontecido, uma um livro sobre o tema, intitulado Lu- sua vida. Quando perdi minha mãe, co-
negação do luto que só prolonga o sofri- tos Finitos e Lutos Infinitos. É uma ten- mecei a lembrar do meu pai, que eu ha-
mento coletivo. tativa de juntar o luto como experiên- via perdido 15 anos antes. Ao lembrar do
A análise é de Christian Dunker, pro- cia individual, de per- meu pai, veio à memória
fessor do Instituto de Psicologia da USP da de uma pessoa que- a imagem de minha avó…
e pós-doutor em Psicologia Clínica pe- rida, com esse proces- A questão é como você
la Manchester Metropolitan University, so no qual o meu luto guarda a perda recente
que acaba de concluir um livro sobre o te- se encadeia no luto do em relação às anterio-
ma. O psicanalista explica que o luto en- outro, e do outro no do res, em uma espécie de
volve entender o significado da perda re- seguinte, e assim in- cadeia. No momento em
cente em relação às anteriores, um proces- definidamente. Clini- que você consegue lidar
so que se completa na relação com outros camente, isso é um fa- com essas memórias com
enlutados. Quando se trata de um trauma to relevante. Quando a pouco peso, sem que ela
coletivo e existe a percepção de que a mor- gente se enluta, preci- atravanque a sua alma de
te poderia ser evitada, só é possível encon- sa contar com o luto do tal maneira que você mal
trar paz após algum tipo de reparação. outro. Mas, quando não consegue se mexer, isso
“Há lutos que a gente não quer ver o é possível ver o corpo representa o término do
fim”, afirma. “Não quero concluir o meu nem acompanhar di- luto, que o Freud chama-
luto, por exemplo, por Marielle Franco. reito o enterro, quan- O psicanalista acaba de va de “momento de liber-
Então entro em um luto infinito. En- do a pessoa ficou entu- concluir um livro sobre o tema dade”, por nos fazer sen-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Sociedade

Os familiares das
vítimas sequer
puderam se despedir
adequadamente

tir mais leves. É como se tivesse passado CC: Por falar no Brasil que deseja- Sonharam, de Cacau Rodhen. Mesmo
a dor e ficado apenas a saudade. No en- mos, o que será dessa geração que antes da pandemia, essa geração já se via
tanto, se a gente pensa o luto como pro- concluiu o Ensino Médio e entrou na sem rumo. O documentário ouve estu-
cesso social, ele só vai terminar quando faculdade em meio à pandemia? Eles dantes de escolas públicas do Brasil in-
você conseguir, dentro de sua comuni- tiveram prejuízos em sua formação e teiro e expõe a falta de perspectivas que
dade, fazer esse encadeamento coletivo. começam a retomar o convívio social você mencionou. Por mais que tenhamos
CC: Como assim? agora, mas em um país arruinado, com mais negros nas universidades públicas –
CD: Há lutos que a gente não quer ver o poucas perspectivas de futuro, não? que estão em ruínas, mas estão abertas –,
A L E X A N D RE SCH N EID ER /G E T T Y IM AG ES/A FP E T EDX GUA RU L H OS

fim. Não quero concluir o meu luto, por CD: Vamos ver o filme Nunca me não é uma coincidência que o processo de
exemplo, por Marielle Franco. Então en- desmonte do ensino superior público te-
tro em um luto infinito. Enquanto algo ocorrido exatamente quando as uni-
nha oco
não acontecer, como a revelação de quem versidades se tornaram mais inclusivas.
versida
mandou matá-la, meu luto não termina. “A PERGUNTA Sim, o ssistema de cotas está funcionando,
A grande questão, em relação à pande- DE FUNDO DE ainda não demos condições para es-
mas ain
mia, é quem vai pagar a conta de cente- UM JULGAMENTO jovens sonharem. Dentro da máqui-
ses jove
nas de milhares de mortes evitáveis. Re- DOS CRIMES neoliberal, a única perspectiva depois
na neol
comendo a todos o filme 1985, Argentina. DA PANDEMIA faculdade é encontrar um emprego e
da facu
Obrigatório. Temos muito o que apren- É: ‘QUE NOVO massacrado dentro da empresa. Os jo-
ser mas
der com os hermanos. Eles julgaram os dizem “eu não quero isso”, e com ra-
vens diz
BRASIL A GENTE
crimes da ditadura, e não se trata de re- Eles olham para os adultos e enxer-
zão. Ele
vanchismo. Julgamento é reparação. Na
QUER?’”, AFIRMA pessoas queixosas, depressivas, me-
gam pes
prática, a pergunta de fundo de um julga- dicalizadas. Por que desejariam se trans-
dicaliza
mento dos crimes da pandemia é: “Que formar eem um sujeito desse tipo? •
novo Brasil a gente quer?” – A Mari
Mariana Serafini

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 41
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Âncora fiscal
“A desigualdade é o principal fator que impede o Brasil
de crescer de forma sustentável”, avalia Tereza Campello
A RODRIGO MARTINS

E
ncarregado de analisar as “E desnutrição infantil? Além das conse- para o Auxílio Brasil e o Vale-Gás. Todos
contas do Ministério da quências biológicas, dos impactos na re- os demais programas estavam abando-
Cidadania, o Grupo de de hospitalar, incontáveis estudos pro- nados, na penúria. É isso mesmo? Qual
Trabalho de Desenvolvi- vam que uma criança mal alimentada é a dimensão do estrago causado pelo
mento Social e Combate tem graves prejuízos na aprendizagem, al- governo Bolsonaro?
à Fome da equipe de go que pode comprometer todo o seu futu- Tereza Campello: Na verdade, a sena-
transição de Lula identificou um cenário ro. Alguém do mercado precificou isso?” dora foi um pouco otimista nessa avalia-
desalentador. Não havia recursos sufi- ção. Com o valor reservado no Orçamento,
cientes para pagar o Bolsa Família de 600 CartaCapital: Recentemente, a se- só daria para pagar o Vale-Gás até meados
reais e a verba disponível para o Vale-Gás, nadora Simone Tebet afirmou que os re- de 2023. No caso do Auxílio Brasil, seria
cortesia eleitoral de Bolsonaro, acabaria cursos do Ministério da Cidadania esta- possível oferecer apenas um benefício de
no primeiro semestre. Na área de servi- vam reservados quase exclusivamente 405 reais, e não de 600 reais, valor pro-
ços socioassistenciais, a verba despencou metido pelos dois candidatos que dispu-
96%, comprometendo o atendimento nos taram o segundo turno. Na área de servi-
Centros de Referência em Assistência So- ços socioassistenciais, a situação é de ca-
cial (Cras), em abrigos de crianças e ido- lamidade, a verba despencou 96%. Nos
sos e em centros de acolhimento para mu- 5.570 municípios brasileiros, há um con-
lheres vítimas de violência, entre outros junto de equipamentos mantidos com re-
equipamentos essenciais. cursos do governo federal, em regime de
Não fosse a liberação de despesas so- copartipação. São abrigos de criança e ido-
ciais acima do teto, o colapso da rede de sos, unidades que acolhem jovens em con-
proteção social seria iminente, avalia a ex- flito com a lei, mulheres vítimas de violên-
-ministra Tereza Campello, integrante do cia, programas de erradicação do trabalho
comitê. Na entrevista a seguir, ela apre- infantil e escravo. Na minha gestão, esse
senta um diagnóstico da situação deixa- conjunto de serviços era da ordem de 8 bi-
da pela equipe de Bolsonaro, explica co- lhões de reais, em valores corrigidos pela
mo pretende superar a chaga da fome, a inflação. O mínimo para manter o aten-
fustigar 33 milhões de brasileiros, e apon- dimento, em condições precárias, com fi-
ta fatores que nunca entram nas contas las, é 2,5 bilhões. Sabe quanto eles reser-
dos propagandistas da austeridade fiscal. varam? Apenas 49 milhões de reais.
“Os fiscalistas pensam no curtíssi- CC: Se o mínimo necessário para
mo prazo. Qual foi o custo de não ter ofe- essas unidades abrirem as portas é
recido vacina contra a Covid a tempo? “Os fiscalistas pensam no curtíssimo de 2,5 bilhões de reais, o que daria pa-
Quantas vidas foram perdidas?”, provoca. prazo”, lamenta a ex-ministra ra fazer com 49 milhões?

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Desenvolvimento Social

“OS PAGAMENTOS
INDEVIDOS DE
AUXÍLIO GERARAM
UM PREJUÍZO DE 6,6
BILHÕES DE REAIS”

assistentes sociais. O TCU apontou,


porém, pagamentos indevidos a 3,5
milhões de famílias incluídas em agos-
to, no início da campanha eleitoral, um
prejuízo bilionário aos cofres públicos.
TC: Sim, é verdade. Houve muita fraude.
Mais de 79 mil militares receberam bene-
fícios indevidamente. É um número altís-
simo, se levarmos em conta que as Forças
Armadas têm cerca de 360 mil homens na
ativa. Estranha-me o fato de a mídia não
ter se interessado em investigar esse caso
a fundo. Teve muita gente que nunca foi
pobre e recebeu auxílio, entre eles aquele
empresário que insultou Gilberto Gil no
Catar. Teremos trabalho para identificar
os aproveitadores e recuperar o dinhei-
ro. É preciso, porém, separar o joio do tri-
go. Tenho motivos para acreditar que mi-
TC: Esse valor daria para manter esses “Alguém precificou o custo lhões de brasileiros pobres foram induzi-
de deixar 33 milhões de
serviços por uma semana. Na verdade, dos ao erro pelo próprio governo.
JHON Y PINHO/AGIF/A FP E ROBERTO ST UCK ERT FIL HO/PR

brasileiros passando fome?”


há tempos o governo federal não cumpre CC: Como assim?
suas responsabilidades. Se essas unida- TC: Houve uma inexplicável multiplica-
des ainda estão abertas, é porque as pre- TC: Na verdade, eles estão entregando o ção das famílias unipessoais, compos-
feituras ou os governos estaduais bancam carro com o tanque vazio, a centenas de tas de uma só pessoa, nos últimos meses.
com recursos próprios. E a tragédia não quilômetros de qualquer posto de gasoli- O solitário indivíduo em situação de rua
para por aqui. O programa de cisternas, na, e com os quatro pneus furados. De for- também tinha direito ao Bolsa Família,
por exemplo, que a gente chegou a gastar ma proposital. Só que o prejuízo não será mas o cálculo do benefício era per capita.
1 bilhão de reais por ano, tem 2,6 milhões arcado só pelo governo. Quem vai sofrer No nosso programa, não fazia diferença se
de reais previstos. É um valor irrisório, só é a população mais pobre e vulnerável. você vivia sozinho ou com mais pessoas, o
para não fechar a dotação orçamentária. CC: Ao lançar o Auxílio Emergencial valor pago por beneficiário era o mesmo. O
CC: Para justificar a gastança no pe- na pandemia, a atual gestão parece governo Bolsonaro destruiu essa lógica de
ríodo eleitoral, Bolsonaro disse que não ter abandonado o Cadastro Único. Os equidade. O Auxílio Brasil tem um valor
iria “deixar o tanque cheio” para o pró- beneficiários passaram a se inscre- fixo por família, não importa o número de
ximo governo. ver por aplicativo, sem a triagem de integrantes dela, e muitos brasileiros, por

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 43
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

O ônus de excluir milhões de anos. Regras diferentes, valores distin- TC: A reestruturação do mercado de tra-
beneficiários incluídos indevidamente no
Auxílio Brasil ficará para o governo Lula
tos. O povo ficou desnorteado. balho formal, por sinal, foi o que mais
CC: Qual foi o impacto disso nos co- contribuiu para a superação da insegu-
fres públicos? rança alimentar no Brasil, mais que o
estratégia de sobrevivência, declararam TC: Pelos cálculos dos técnicos da equi- Bolsa Família. Sempre me perguntam
viver sozinhos para que o cônjuge também pe de transição, em torno de 6,6 bilhões sobre as novidades nos programas so-
pudesse receber. Como não houve campa- de reais. Levará tempo para corrigir essas ciais, mas o maior desafio será recuperar
nha de esclarecimento, não podemos acu- distorções no Cadastro Único. Passada a aquilo que foi destruído por Bolsonaro.
sá-los de fraude. Além disso, o cadastro no eleição, eles sorrateiramente publicaram Ele nem sequer reconhecia a gravida-
aplicativo foi mal concebido, deixou mui- uma instrução normativa para fazer a re- de da fome, dizia que 33 milhões de fa-
ta gente em dúvida e não havia a quem re- visão cadastral de 3,2 milhões de benefi- mintos era um número superestimado,
correr para buscar informações corretas. ciários, mas jogou a bucha para o próxi- que não via ninguém pedindo comida na
CC: Até porque a triagem do assis- mo governo. O ônus de retirar do cadastro porta da padaria, mas também não apre-
tente social deixou de existir. O bene- aqueles que estão recebendo auxílio inde- sentava qualquer estudo para rebater o
ficiário passou a ser responsável pelo vidamente recairá sobre as nossas costas. dado. Eu espero que, após desocupar o
próprio cadastro no aplicativo. CC: Em 2014, quando o Brasil saiu Palácio da Alvorada, ele volte a frequen-
TC: Exatamente, e qual foi o resulta- do Mapa da Fome, a Organização das tar padarias, porque sou sempre aborda-
do? Em 2018, antes de Bolsonaro assu- Nações Unidas para a Alimentação e a da por pessoas pedindo um pãozinho, um
mir, havia 1,8 milhão de famílias uni- Agricultura (FAO) destacou a importân- litro de leite. O primeiro passo para su-
pessoais, com um único integrante, no cia do Bolsa Família, mas deixou claro perar um problema é reconhecer que ele
cadastro do Bolsa Família. Esse núme- que o êxito era decorrente de um con- existe. O compromisso de Lula é vencer a
ro saltou para 5,5 milhões em julho de junto de políticas públicas, como a valo- fome no tempo mais curto possível.
2022, um aumento de 197%. O mais es- rização do salário mínimo, o Programa CC: Como fazer isso?
pantoso é o Ministério da Cidadania não de Aquisição de Alimentos e o reforço TC: Não tem mistério, é retomar o
ter notado a diferença. Ainda assim, in- das merendas escolares. Mas o cha- trabalho que vínhamos fazendo. Não
sisto: não acredito que essas pessoas agi- mado mercado parece só aceitar o são só os 600 reais do Bolsa Família, é
ram de má-fé. Ocorreram oito mudan- Bolsa Família fora do teto de gastos, reforçar a merenda escolar, retomar os
ças profundas nos programas de trans- como se ele fosse suficiente para re- incentivos à agricultura familiar, criar
ferência de renda nos últimos quatro solver a questão. estímulos para o agronegócio produzir

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Desenvolvimento Social

alimentos, e não somente commodities social é o motor da economia, estimula o


para exportação. A FAO sempre desta- mercado interno”. Não adianta falar, os
mercad
cou um ponto: o problema do Brasil nun- “OS FISCALISTAS fiscalistas nunca incluem isso na conta,
fiscalis
ca foi a escassez de alimentos, e sim a falta IGNORAM O FATO também ignoram o fato de que, ao aque-
e també
de renda para comprá-los. Se você me per- DE QUE, AO AQUECER demanda por produtos e serviços, o
cer a de
guntasse qual foi o principal motivo para A DEMANDA, O Estado aarrecada mais por meio de tribu-
a volta da fome, eu diria que foi a desestru- ESTADO ARRECADA tos. Não adianta olhar só para a ponta dos
turação do mercado de trabalho, sobretu- gastos, é preciso olhar para a arrecadação.
MAIS POR MEIO
do após a reforma do Temer, que empur- Alguns p podem argumentar que esse estí-
rou milhões de brasileiros para a infor-
DE TRIBUTOS. SÓ mulo à ddemanda interna tem fôlego curto,
malidade e os empregos precários. Hoje, ENXERGAM A PONTA mas são os fiscalistas que pensam no cur-
a grande maioria trabalha mais e ganha DAS DESPESAS, tíssimo prazo. Qual foi o custo de não ter
menos. É lógico que a pandemia agravou NUNCA DA oferecido vacina contra a Covid a tempo?
oferecid
o cenário, mas a pobreza e a fome vinham ARRECADAÇÃO” Quantas vidas foram perdidas? E a des-
Quanta
crescendo antes de o Coronavírus chegar nutrição infantil? Além das consequên-
nutriçã
aqui. Bolsonaro só reforçou esse processo. biológicas, dos impactos na rede hos-
cias biol
CC: Guedes furou o teto de gastos pitalar, incontáveis estudos provam que
em quase 800 bilhões de reais nos úl- uma criança mal alimentada tem graves
timos quatro anos, mas não víamos o Não percebem que o empobrecimento prejuízos na aprendizagem, algo que pode
“mercado” espernear tanto como ago- do povo destrói o mercado doméstico? comprometer todo o seu futuro. Alguém
ra, em meio aos esforços de Lula para TC: É cansativo pregar no deserto, repe- do mercado precificou isso? Essa conta
viabilizar os programas sociais. Consigo tir sempre o mesmo discurso: “Para ca- a gente só vai pagar daqui dez, 15 anos,
entender os motivos que levam banquei- da real investido no Bolsa Família, retor- quando esse menino entrar no mercado
ros e investidores a defender esse fis- na 1,8 real no PIB. Outros benefícios as- de trabalho. Mas, olhe, eu não gosto de en-
calismo draconiano, mas os empresá- sistenciais, como o BPC, geram o mesmo cerrar uma entrevista assim, tão para bai-
rios escapam à minha compreensão. efeito multiplicador. O desenvolvimento xo. Posso acrescentar uma observação?
CC: Fique à vontade.
TC: Lembra-se da Anna Peliano? Ela
morreu de câncer no ano passado, era
uma socióloga brilhante. Montou o pri-
meiro Mapa da Fome no Brasil, que
subsidiou a luta de Herbert de Souza, o
Betinho. Foi ainda secretária-executiva
do Comunidade Solidária. Bem, ela cos-
tumava dizer que as políticas públicas es-
tavam sujeitas a avanços e retrocessos,
mas nunca retornavam ao patamar an-
G O V S P E F E L I P E B A R R O S / P R E F E I T U R A D E I TA P E V I

terior. De fato, quando a gente analisa em


uma perspectiva mais ampla, de 40 ou 50
anos, vemos que o Brasil avançou muito
em termos sociais. Hoje, ainda estamos
atordoados com o estrago causado por
Bolsonaro, mas tenho certeza de que se-
remos capazes de retomar o caminho da
inclusão e do desenvolvimento social. •

A reestruturação do mercado de trabalho


contribuiu para tirar o País do Mapa da
Fome e para estimular a economia

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 45
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Janeiro
de 2027
Quando o novo governo tomar posse,
começa a corrida pela sucessão
POR JOS É SÓC R ATES *

L
ula vai tomar posse em cli- político, perde. Só a moderação e o respei-
ma de festa popular. É jus- to democrático serão capazes de garantir
to. Em última análise, ao que o bloco político de direita seja eleito-
povo compete defender a ralmente competitivo. Assim sendo, a es-
democracia e foi exata- colha deve ser radical. Cortar com Bolso-
mente o que aconteceu na naro, cortar com os apelos à intervenção
eleição presidencial. Todavia, apesar do militar, cortar com a nostalgia da ditadu-
júbilo, é impossível ignorar certa sensa- ra e com a pretensão de que só a direita re-
ção de que uma geração política encontra presenta os valores do genuíno povo bra-
neste governo uma última oportunidade sileiro, colocando a esquerda, sua adver-
de servir ao País. Nos pró- sária, como um não po-
ximos quatro anos, a di- vo que deveria ou se ren-
reita e a esquerda deverão der ou ser banida do País.
José Sócrates
escolher novas lideranças No fundo, a escolha
Ex-primeiro-ministro
e todos sabemos como es- não podia ser mais cla-
de Portugal.
sas escolhas vão marcar a ra: transformar o popu-
B O U L O S 2 0 2 2 , E VA R I S T O S Á /A F P E R E D E S S O C I A I S

política brasileira dos lismo bolsonarista numa


E D U A R D O O G ATA / H A D D A D 2 0 2 2 , L E A N D R O PA I VA /

próximos 20 anos. Por minoria no espaço da di-


mais injusto que seja, no momento em que reita brasileira. A tarefa, convenhamos,
o novo governo tomar posse, toda a polí- não é fácil. Nada fácil. Principalmente,
tica estará a pensar no próximo. A políti- porque exige um caminho sem ambigui-
ca vive de antecipação e adora especular dades. Um caminho sem meio-termo. Me-
sobre o futuro. Impossível resistir. tade do caminho não é caminho nenhum.
A direita tem a escolha mais impor- E quem quiser a vida sossegada, para o di-
tante a fazer – e também a mais difícil. zer como disse um poeta português, o me-
De forma simples, trata-se de escolher lhor é ficar quieto e fugir da batalha. Isso
entre Jair Bolsonaro e a democracia. De- vai exigir luta e coragem e trabalho e de-
NONONON

vemos esperar que a direita brasileira te- sassombro. A tarefa é tão simples como
nha aprendido a lição: sem apelo ao centro pesada, transformar a direita brasileira

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Poder

É DA NATUREZA DA
POLÍTICA. ELA VIVE
DA ANTECIPAÇÃO
E DA ESPECULAÇÃO

numa direita democrática. Se isso for pos-


sível (e, sinceramente, não sei se será pos-
sível fazê-lo em tão pouco tempo), trata-
-se de transformar os inimigos de hoje em
cordiais adversários de amanhã. Quem o
fizer merecerá o respeito de todos, da di-
reita que poderá ambicionar formar um
bloco social majoritário e disputar a vi-
tória eleitoral. E da esquerda, que passa-
rá a competir eleitoralmente sem medo
da violência política. Mais uma vez, a ta-
refa é digna de respeito – trazer a direita
de volta ao espaço democrático.

A empreitada exige novo programa e


novo discurso. Mas exige, sobretudo, uma
liderança à altura dos tempos. Quem? Não
sei, não conheço suficientemente a geo-
grafia partidária da direita para fazer
apostas que mereçam crédito. Mas sei
que Simone Tebet ganhou as suas espo-
ras nestas eleições. Sei que lutou para ser
candidata e conseguiu, que lutou por se
afirmar eleitoralmente num contexto po-
lítico muito difícil e que conquistou um
inesperado e promissor terceiro lugar. E,
talvez mais importante, sem temer o que
viria a seguir, decidiu-se imediatamente
pelo apoio incondicional a Lula, o que sig-
nificou uma ruptura total com Bolsona-
ro, com o bolsonarismo e com tudo aqui-

Tebet fincou sua bandeira durante


NONONON

a eleição. Haddad e Dino disputam


espaço a partir do governo. Boulos
talvez prefira subir degrau por degrau

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 47
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

lo que este representa. Nestas eleições, Si- sempre a esquerda valoriza como devia.
mone Tebet mostrou que sabe lutar e que Quanto aos nomes, o exercício de ante-
sabe enfrentar, e saber enfrentar, mais do cipação é ainda temerário, mas nem por
que conceder, é um ponto importante do isso menos interessante. Não há dúvida
ethos do personagem político. O espaço de que quatro anos na política brasileira
que ela ocupa na política brasileira não lhe soam a eternidade. Julgo, no entanto, que
foi oferecido, mas conquistado. O mínimo não arrisco nada se disser que há hoje três
que podemos dizer é que é preciso contar nomes indiscutíveis que figurarão na gre-
com ela na batalha pela liderança da di- lha de partida: Fernando Haddad, Flávio
reita. Vamos ver, vai ser lindo de seguir. Dino e Guilherme Boulos. Haddad tem do
Depois, a esquerda. Este é o primeiro seu lado a legitimidade da anterior eleição
governo de esquerda que começa sem um presidencial e a dignidade com que travou
candidato óbvio em futuras eleições. As- batalha tão desigual. Tem também do seu
sim sendo, no momento em que toma pos- lado a oportunidade de conduzir bem as fi-
se o novo governo, começa também a ba- nanças do País no cargo que agora vai ocu-
talha pela sucessão. É a vida. Pode obje- par, o que constituirá um ativo importan-
tar-se que também não havia candidato te para o futuro. Flávio Dino tem uma lon-
quando Lula foi presidente pela segun- ga carreira política em cargos parlamenta-
da vez, no segundo mandato. Sim, é ver- res e executivos. Foi senador e governador,
dade, mas desta vez muita gente espera- o que faz dele um político experimentado.
va que ele fosse de novo candidato com Sua cultura política e a segurança com que
qualquer revisão constitucional (que, fe- se exprime o transformam num valor se-
lizmente, não existiu) ou que escolhesse guro da política brasileira. Finalmente, é
o sucessor. Agora, desta vez, acho que ne- preciso falar de Boulos, que, no momento
nhuma das duas situações vai acontecer. em que escrevo, não sabemos ainda se cor-
Nem se candidatará de novo nem escolhe- re por dentro ou por fora do governo, só me
rá sucessor. A sua entrada na história, para parece certo que correrá, visto que tem co-
citar um clássico da política brasileira, exi- ragem de sobra para não virar a cara a ne-
ge um certo afastamento dessas decisões. nhuma disputa política. Tem do seu lado
algumas caraterísticas que fazem dele um
E não havendo sucessor óbvio, a bata- dos nomes mais promissores da esquerda
lha da liderança da esquerda começa no brasileira – é jovem, é popular e tem uma
primeiro momento em que começa o go-
verno. E o governo é uma boa oportuni-
dade para resolver problemas de lideran- AS LIBERDADES
ça. Em primeiro lugar, estar no governo POLÍTICAS, AS
permite uma justa e leal disputa pela su-
GARANTIAS
cessão baseada nas capacidades que os di-
CONSTITUCIONAIS extraordinária história de vida. Se não es-
ferentes candidatos mostrarem no exer- extraor
cício das funções. Em segundo lugar, es- INDIVIDUAIS, NÃO tiver no governo,
g exercerá com brilho o seu
tar no governo permite manter um nível SÃO LIBERDADES lugar de deputado federal por São Paulo, o
de unidade interna que é mais difícil na BURGUESAS, SÃO mais votado
vo na eleição. Claro que tudo po-
oposição. O exercício do poder convida à PRINCÍPIOS de mudar
muda e que surpresas surgirão. Toda-
responsabilidade. Mas a primeira vanta- FUNDADORES DO via, estes
este são os três nomes que ocupam a
gem é a mais importante – estar no go- ESTADO DE DIREITO linha de partida. O único voto que pode-
verno permite escolher a liderança com mos fazer
faz é desejar que a disputa seja leal
base na competência executiva e ser um e que conduza,
co no fim, à unidade política
bom governante é condição para ser um que foi um
u dos grandes fatores do suces-
bom candidato, característica que nem so eleitoral
eleito da esquerda nos últimos anos.

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Poder

Sem a caneta e sem a exposição do


cargo, Bolsonaro tem futuro político
incerto. Mito “morto”, mito posto?

tiva. Não acredito que qualquer fim social,


por mais nobre que seja, possa ser alcança-
do com sacrifício da liberdade individual.
Dito de forma talvez mais concreta, não
acredito no sacrifício das garantias consti-
tucionais modernas em nome de finalida-
des coletivas. No meu ponto de vista, que
resulta também da minha experiência de
vida, nada de bom pode ser conseguido pa-
ra a sociedade se não mantivermos esse
mínimo de autonomia que faz de nós so-
beranos únicos de um espaço, limitado, é
certo, mas indispensável à nossa afirma-
ção como indivíduos dotados de razão.

Nesse sentido, entristece-me profun-


damente ver largos setores da esquerda
confundirem, propositadamente, o li-
beralismo clássico do século XVIII com
o que se convencionou chamar de neo-
liberalismo. Não, não são a mesma coi-
sa. O primeiro nasceu como pensamen-
to revolucionário contra o privilégio e pe-
la igualdade. O segundo afirmou-se como
movimento reacionário contra o Estado
de Bem-Estar Social e contra o chamado
“perigo do comunismo”. O primeiro é fi-
lho da Revolução Francesa, o segundo é
produto da Guerra Fria e da reação polí-
tica contra a intervenção estatal na distri-
buição de recursos. Não são apenas épo-
cas históricas diferentes, são coisas dife-
rentes. Coisas diferentes que a esquerda
não devia confundir. Em síntese, o que
Estar no governo é uma vantagem para re- da, reformas de igualdade. No fundo, po- quero dizer neste momento em que a es-
solver crises de sucessão. A partir da opo- deremos dizer assim: a tarefa da esquer- querda regressa ao poder é que as liber-
sição é mais difícil. da é dar continuidade ao esforço de criar dades políticas, as garantias constitucio-
A esquerda procurará uma nova lide- um Estado de desenvolvimento e um Es- nais individuais, não são liberdades bur-
rança, mas será, talvez, justo dizer que sua tado social. E de uma vez por todas aca- guesas, são princípios fundadores do Es-
tarefa política é mais simples, porque não bar com a ideia de que a liberdade é ape- tado de Direito. Quando nos tiram os di-
se trata de mudar radicalmente o seu pro- nas uma condição para a segurança das reitos individuais, nada mais é garantido.
AL AN SANTOS/PR

grama ou o seu discurso, mas de dar con- operações financeiras. Alguém disse, com graça, que a esquerda
tinuidade ao esforço reformista que ani- Quando me perguntam qual é o prin- não perde a oportunidade de perder uma
ma o atual governo. Reformas de cresci- cípio político que considero mais impor- oportunidade. Espero que não perca es-
mento, reformas de distribuição de ren- tante, costumo responder de forma nega- ta. Feliz ano-novo, Brasil. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 49
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Pessimismo
sempre possível, bem como outra filoso-
fia, e que a questão do que é “possível”
é justamente a questão mais urgente de
qualquer debate. (III) Louis Althusser e

na ideia...
sua importante contribuição para o de-
bate sobre ideologia no marxismo. Pa-
ra o francês, a tarefa da ideologia socia-
lista é garantir que o indivíduo, embora
Lembro de Gramsci, ao refletir ciente da desimportância de suas ações
autônomas, se conscientize da possibili-
sobre os próximos quatro anos dade de agir de forma transformadora na
sociedade. (IV)Por fim, mas igualmen-
POR RITA VON H U NT Y * te importante, lembremos da formula-
ção de Theodor Adorno ao indagar se
seria possível escrever poesia depois de

B
Auschwitz ou se a experiência da barbá-
om, veja você, este não é ques e o excerto acima foi dito brilhan- rie deveria reconfigurar a ideia de civili-
um texto simples de ser temente por este colega de campo políti- zação, e, portanto, alterar radicalmente
escrito. Antes de come- co e de trabalho, vamos a algumas ideias. a forma de fazer poesia.
çá-lo, vale contar uma Para começar, é preciso fazer uma dis-
pequena anedota: mi- tinção entre desejo/fantasia e expectati- Acredito ser importante começar as-
nha editora, Ana Paula va. Os primeiros são aqueles que nos mo- sim, para que possamos olhar, com sin-
Sousa, me pediu um texto sobre as ex- vem, que nos fazem projetar, imaginar e ceridade, para o cenário desenhado
pectativas para o governo federal que te- construir a realidade, e a mim eles são ex- diante de nós. Ao longo de 2022, em uma
remos pelos próximos quatro anos no cepcionalmente caros. A segunda é uma série de colunas para CartaCapital, bus-
Brasil (salvo cenários muito atípicos). Ao forma mais pragmática e menos encan- quei dar contorno às limitações que a an-
receber seu pedido, eu respondi: “Mas, tada de olhar para a conjuntura e ana- tiga política de alianças gerida pelo PT
Ana... minhas expectati- lisá-la. Quando desejo e em um contexto tão desalentador quan-
vas estão tão baixas, vale pragmatismo se contra- to este que enfrentaremos. Não acredito
mesmo um texto?”, ao Rita von Hunty põem como num divór- que nada além do mínimo será possível,
que ela rapidamente res- Professor, youtuber, cio, não há mais campo pragmaticamente falando, mas acredito
pondeu: “Talvez valha fa- palestrante e colunista para a disputa política. que os próximos quatro anos serão deci-
lar disso exatamente”. de CartaCapital. Vencem os tecnocratas sivos para a história democrática do Bra-
De primeira, o que me e “governar” vira sinô- sil. Serão anos em que deveremos lutar
ocorreu ao pensar sobre nimo de “administrar”, pela contínua politização e organização
“expectativas” e “gover- em sentido bem especí- da nossa classe, para que os anos vindou-
no Lula-Alckmin” foi citar um amigo, fico e restrito, algo como “manter a coi- ros possam ser de avanço e não de mais
também comunicador social que desen- sa em ordem”. retrocesso. O governo de transição tem
volve importante trabalho de divulgação Bem, e logo de cara, há quatro autores/ apontado e descoberto a profundidade
científica nas áreas de filosofia e semióti- ideias que eu gostaria que ficassem co- do buraco no qual o País foi afundado du-
ca, Senhorita Bira. Em um tuíte recente, mo pano de fundo deste texto. (I) Anto- rante os últimos seis anos de gestão mar-
brincou: “As únicas duas coisas que espe- nio Gramsci e sua formulação sobre a cadas por políticas de desmonte e des-
ro do governo Lula são leite a 3 reais e Bol- concepção socialista do processo revo- truição do Estado. Estamos falando de
sonaro preso. Ele, a mulher dele, os filhos lucionário ser dependente do otimismo pontos como uma dívida de 5 bilhões de
dele, quem um dia tocou na mão dele, se da vontade e do pessimismo da razão, em reais com os órgãos internacionais, entre
bobear até a Luciana Gimenez”. Mas, co- consonância. (II) Felix Guattari e sua ur- eles ONU, OMC e OIT. Contratos absur-
mo o pedido é por um texto de 6 mil to- gência em pensar que outra economia é dos no valor de 172 milhões de reais em

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Expectativa

OUTRA
REALIDADE É
POSSÍVEL E UMA
DAS NOSSAS
TAREFAS É
MOBILIZAR
O DESEJO, A
CONSCIÊNCIA E
O TRABALHO DE
CLASSE EM UM
SENTIDO, O DA SUA
EMANCIPAÇÃO

a sede da Polícia Federal e se aproximar


do hotel no qual Lula estava hospedado.
Tudo isso com a inquietante ausência de
resposta das forças de segurança do Dis-
trito Federal. Até a data de envio do tex-
to, ninguém foi detido ou responsabiliza-
do pelos ocorridos na capital do País. Dife-
rentemente dos episódios do Capitólio es-
tadunidense, aqui parece que um calhor-
da pode incitar seu séquito alucinado por
Otimista na ação, defendia quatro anos a deslegitimar eleições, des-
o pensador italiano respeitar resultados e provocar caos em ci-
dades e rodovias. Tudo acabará em pizza.

bebedouros e guindastes para o Minis- tação ambiental e o descaso mortal com Nos caracteres que me restam, tento
tério da Mulher, Família e Direitos Hu- os povos originários. retomar a ideia central: devemos ser rea-
manos. Um orçamento de 500 mil reais Acho que se soma às descobertas do listas com o cenário pela frente, mas de-
para a prevenção de desastres naturais. grupo de trabalho o pesadelo que Brasí- sejar e demandar o impossível faz par-
O grupo de trabalho de Minas e Ener- lia tem vivido desde a diplomação de Lu- te de ser realista. Nosso horizonte não
gia estima um impacto de 500 bilhões la e Alckmin como os 39ºs presidente e pode ser que a chapa Lula-Alckmin faça
de reais a ser herdado pela chapa Lula- vice-presidente da República. Um grupo com que as coisas voltem ao que eram.
-Alckmin, no que diz respeito à energia terrorista organizado, com o já conhecido Foi exatamente essa “normalidade” que
elétrica. Isso porque ainda não começa- “uniforme verde-amarelo”, causou tumul- produziu o bolsonarismo. Outra reali-
mos a falar sobre a defasagem das bolsas to, medo e instabilidade em setores da ci- dade é possível, e uma das nossas tare-
de pesquisa, o desmonte da ciência, o su- dade ao incendiar veículos e ônibus, espa- fas mais urgentes é mobilizar o desejo, a
cateamento das verbas para educação e a lhar botijões de gás próximo a focos de in- consciência e o trabalho da nossa classe
AFP

questão mais urgente de todas: a devas- cêndio e postos de gasolina, tentar invadir em um sentido, o da sua emancipação. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 51
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Em águas turvas
Em meio à enxurrada de problemas econômicos, Lula terá o desafio
de reformar a administração pública e a estrutura tributária
POR ALDO FORNAZIERI*

L
ula inicia seu terceiro go- aparelhada e desestruturada para favore- privilégios, estão extraviadas na politiza-
verno, em janeiro, com cer todo tipo de crime: invasão de terras ção e tomadas de indisciplinas. Governo
uma aluvião de desafios. indígenas, desmatamento, garimpo ilegal, e Congresso precisarão encontrar um ca-
Relatórios do Tribunal de extração ilegal de madeira, consorciação minho para reestruturar as Forças Arma-
Contas da União e das do tráfico de armas e de drogas com to- das visando fechar as portas para a politi-
equipes técnicas da tran- das essas atividades criminosas, transfor- zação e a indisciplina e para superar sua
sição chamam atenção para as áreas de- mando a região numa terra sem lei. intromissão nos assuntos civis, subordi-
vastadas durante o governo Bolsonaro. O Na área da Saúde, a destruição também nando-as ao comando do poder civil. Já a
TCU indica 29 áreas com graves indícios é assustadora: descontrole e falta de esto- Polícia Federal, por ter resistido às inves-
de fraude, desperdício de ques, vacinas e remédios tidas de Bolsonaro, foi a que mais sofreu
recursos, abusos de auto- vencidos, falta de verbas os impactos que atingiram sua estrutura-
ridade, má gestão e a ne- para o SUS e para a Far- ção, seu funcionamento interno, seu qua-
cessidade de mudanças Aldo Fornazieri mácia Popular, descala- dro de pessoal e seus recursos.
drásticas e urgentes. Al- Professor da Fundação bro e destruição na po-
guns problemas são Escola de Sociologia lítica nacional de vaci- Juntamente com a restauração da ca-
crônicos, mas foram agra- e Política de São Paulo nação etc. Na Educação, pacidade das instituições do Estado e da
e autor de Liderança
vados na atual gestão. A na Ciência e Tecnologia, reconstrução das políticas públicas, ou-
e Poder (Editora
quantidade e a complexi- na Cultura, no Transpor- tro grande desafio do governo consiste
ContraCorrente).
dade dos desafios reque- te, na Assistência Social, em garantir a efetivação dos principais
rem foco em duas coisas: nas obras públicas, na compromissos de campanha orientados
a definição de prioridades habitação, enfim, em to- para as áreas de proteção social, de com-
e a competência técnica e política para en- das as áreas, o mesmo dano, o mesmo des- bate à fome e ao desemprego. Garantir os
frentar e solucionar problemas. leixo, a mesma erosão do serviço público e recursos para o retorno do Bolsa Famí-
O primeiro desafio tem uma dimensão das próprias instituições do Estado. lia durante os quatro anos é o maior dos
geral: recompor a capacidade de funciona- Nas áreas de controle, segurança e De- desafios nessa frente. Durante a campa-
mento de instituições e de políticas deli- fesa, a situação não é menos dramática. Na nha, Lula prometeu que daria priorida-
beradamente destruídas por Bolsonaro e Receita e na Polícia Rodoviária Federal de ao social, mas com responsabilidade
seus operadores. Aquelas que não foram ocorreram aparelhamentos e desvios de fiscal. Essa equação não poderá ser des-
destruídas acabaram aparelhadas para fa- função. A PRF precisará passar por uma feita, até para não desalinhar a política e
vorecer os interesses políticos do bolsona- profunda reestruturação, com a abertura a economia, que devem andar em para-
rismo e de grupos criminosos. Repare o de processos administrativos e possíveis lelo, com o crescimento da segunda pa-
complexo caso da Amazônia. A Funai foi expurgos. As Forças Armadas, eivadas de ra garantir recursos para o financiamen-

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Conjuntura

Para tocar a sua agenda, Lula precisa


de Arthur Lira, que acumulou poder
em excesso na gestão Bolsonaro

O PRESIDENTE
PROMETEU DAR
ISTOCK PHOTO E M A RIN A R A MOS/AG. CÂ M A R A

PRIORIDADE
AO SOCIAL, COM
RESPONSABILIDADE
FISCAL. ESSA
EQUAÇÃO NÃO
PODERÁ SER
DESFEITA

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 53
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

to das políticas estratégicas do governo


e o adequado funcionamento do Estado.
Nesse sentido, a área econômica preci-
sará de um freio de arrumação. Será ne-
cessário buscar uma nova âncora fiscal em
substituição ao teto de gastos, assim como
adotar medidas que favoreçam a redução
da inflação e dos juros, com o estancamen-
to da elevação dos custos da dívida pública.
O Brasil, por outro lado, encontra-se
diante de uma possibilidade extraordi-
nária de reverter as décadas de desindus-
trialização. Essa oportunidade é propor-
cionada pelos impactos que a pandemia
provocou nas cadeias produtivas globais e
nos sistemas de logística, acarretando di-
ficuldades de funcionamento e elevação
de custos. Alguns setores privados de pro-
dução de manufaturas, mecânicos e ele-
troeletrônicos já perceberam essa opor-
tunidade, retomando investimentos.

Governo, setor privado, universida-


des e centros de excelência precisam bus-
car uma diretriz estratégica convergen-
te de industrialização e desenvolvimento,
capturando e impulsionando a oportuni-
dade que as circunstâncias oferecem. Es-
sa diretriz precisa se estruturar a partir
de um movimento integrativo de alguns anêmicos em termos de mudanças estru- Investir no complexo industrial
da saúde é estratégico para
conceitos orientados para o futuro. turais. Na gestão Temer-Bolsonaro, o País o desenvolvimento nacional
O eixo central desse movimento inte- teve reformas regressivas. O Brasil não
grativo deve consistir na adoção de tec- mudará de forma significativa apenas com
nologias e modos de produção e de trans- políticas sociais compensatórias. As duas A reforma administrativa deveria
formação sustentáveis, com baixa emis- principais reformas que se fazem neces- orientar-se por alguns eixos. O primei-
são de CO2 e de outros componentes po- sárias são a tributária e a administrativa. ro é combater os privilégios inescrupulo-
luentes. Esse eixo deve integrar a inova- A reforma tributária não pode ser uma sos do setor público. O segundo, fechar os
ção na busca de vantagens competitivas, o mera, embora necessária, racionalização gargalos da corrupção sistêmica incrus-
desenvolvimento e a incorporação de tec- da cobrança de tributos. O seu cerne de- tada na administração pública. Mas é ne-
nologias digitais e a geração de empregos ve consistir na sua natureza redistributi- cessário também modernizar a máquina
E PEDRO VIL EL A /GE T T Y IM AGES/A FP
FA RM A N GUIN H OS/AG ÊN CIA FIOCRUZ

qualificados com o incremento da produ- va, para que ela possa incidir no combate pública, torná-la menos custosa, menos
tividade e redução das desigualdades so- às desigualdades. Hoje, o sistema tribu- burocrática, mais eficiente, mais trans-
ciais. A melhora do ensino em todos os ní- tário é regresso: quem ganha menos pa- parente, incorporando tecnologias digi-
veis e um elevado investimento em pes- ga mais e quem ganha mais paga menos tais em larga escala para que a cidada-
quisa e ciência são pressupostos de um ou quase nada. É um sistema violento de nia seja mais respeitada em seus direitos.
novo processo de industrialização. concentração de renda. No aspecto fede- Na seara política, os desafios não são
Imbricado com os problemas sociais e rativo, a reforma deveria orientar-se para menores. A frente de partidos que apoiou
econômicos está o desafio das reformas. um sentido descentralizador, fortalecen- Lula na campanha elegeu 138 deputados,
Os governos petistas anteriores foram do a capacidade dos Estados e municípios. número insuficiente até mesmo para bar-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Conjuntura

partidos,
partido incluindo o PT, para a sua recon-
dução na
n presidência da Câmara.
SE A ECONOMIA, A Ocorre que Lira vem agregando enor-
Ocor
RENDA E O EMPREGO poder, transformando o Brasil nu-
me pod
CRESCEREM,O nação com duas cabeças políticas:
ma naç
BOLSONARISMO Lula e Lira. Esta situação estabelece
TENDE A SE uma rerelação de dependência do gover-
ESVAZIAR. EM no em rrelação ao Congresso. Essa depen-
UM CENÁRIO DE dência, somada à composição majoritá-
DIFICULDADES, uma base parlamentar, implica-
ria de u
custos a pagar: cargos no governo,
rá cust
A OPOSIÇÃO GANHA
verbas orçamentárias e negociação de
FORÇA E PODE
pautas a serem aprovadas no Congresso.
SE RADICALIZAR A dep
dependência de um governo (ou líder)
a forças auxiliares
a ou mercenárias sempre
provoca a redução do poder desse governo.
Redução
Reduçã de alternativas a escolher, de es-
paço de manobra e de liberdade de decisão.
rar um processo de impeachment. Mas,
aparentemente, Lula não terá dificulda- Se no plano institucional se configura
des para agregar uma maioria parlamen- essa situação de dependência em relação
tar. Com 257 deputados terá maioria sim- às forças do centro conservador, no pla-
ples. Poderá também contar não só com a no da sociedade terá de se ver qual será
boa vontade de Rodrigo Pacheco, que bus- o comportamento da oposição bolsona-
cará a reeleição para a presidência do Se- rista. Há quem acredite que o bolsonaris-
nado e cujo partido, o PSD, deverá compor mo se esvaziará. Mas a possibilidade de
a base lulista, mas também de Arthur Li- uma oposição radicalizada e de teor gol-
ra, que tem o apoio de um amplo leque de pista não deve ser descartada, conforme
indicam as manifestações pós-eleitorais.
O grau de radicalização do bolsonaris-
mo dependerá do grau de êxito ou de difi-
culdades do governo, particularmente na
economia. Um quadro de crescimento da
economia, da renda e do emprego provo-
cará uma tendência mais forte de esva-
ziamento do bolsonarismo. Um quadro
de baixo crescimento, desemprego e in-
flação poderá estimular a radicalização.
Qual o papel dos movimentos sociais e
populares diante desse cenário? Ao mes-
mo tempo que apoiam as pautas progres-
sistas do governo, os movimentos não de-
vem ficar na sua dependência. Devem
construir sua autonomia organizativa e
de ação, pois somente esta poderá garan-
tir direitos nos momentos agudos de cri-
ses. O impeachment de Dilma e os retro-
cessos com Temer e Bolsonaro ensinam
essa lição. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 55
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Estado de
Rousseff foram de desastre social, des-
truição ambiental, polarização ideoló-
gica para além dos limites democráticos,
empobrecimento coletivo, perda de sobe-

espírito
rania, instrumentalização religiosa, ter-
rorismo estatal, policial e midiático, sub-
versão institucional (Justiça e Forças Ar-
madas). O resultado foi o colapso quase
total da democracia já de si de baixa in-
O Brasil, entre uma memória inquietante tensidade. O medo instalou-se nos corpos,
e uma antecipação auspiciosa nos mínimos de sobrevivência e na mani-
festação de opiniões. Chegou a assumir o
POR BOAVENTUR A DE SOUSA SANTOS* paroxismo do pânico paralisante, da fu-
ga em vez da resistência. 

O alívio chegou perto do fim do ano e

V
sob a forma do resgate in extremis. Da atu-
erdadeiramente nun- tecipação auspiciosa são o espelho da es- ação dos tribunais superiores à eleição de
ca vivemos no futuro perança sem medo, a memória reconfor- Lula tudo foi in extremis. Que tipo de ante-
(nem no passado). Por tante e a antecipação sinistra são o espe- cipação pode resultar daqui? Que propó-
outro lado, o que cha- lho da perda e dos limites impostos por sitos? Que decisões? Ouso pensar que, no
mamos presente é determinações, imposições ou fatalida- caso do Brasil, a antecipação é tanto mais
apenas o momento de de, a memória inquietante e a antecipa- auspiciosa quanto é consabidamente frá-
interface entre a memória reconfortante ção auspiciosa são o espelho da resistên- gil. As equipes de transição que preparam
ou inquietante do que fomos e a antecipa- cia e das possibilidades, da desestabiliza- o programa do novo governo mostram is-
ção, auspiciosa ou sinistra, do que vamos ção dos limites, das imposições e dos de- so mesmo pela sua enorme heterogenei-
ser. Os finais de ano prestam-se a que es- terminismos. No nível individual, este é dade. Alguns dos seus integrantes pode-
se momento, sempre pre- o tempo em que cada in- riam estar em qualquer outra transição,
sente, se manifeste sob a divíduo, grupo social ou e até em transições de sinal contrário. Se
forma de interpela- Boaventura sociedade tenta definir a alguns maximizam as possibilidades, ou-
ção. Nisso consistem os de Sousa Santos sua condição existencial. tros vincam os limites, se uns veem em
balanços e os planos. A Diretor emérito do É à luz dela que se afir- Lula uma renovada subjetividade políti-
enigmática dinâmica Centro de Estudos mam propósitos e se to- ca constituinte, mandatada pelos que nele
temporal centrada no que Sociais da Universidade mam decisões. Nos tem- votaram, outros o consideram como uma
já não vivemos e no que de Coimbra. pos de globalização fra- subjetividade política constituída pelas
nunca viveremos ocorre turada e fraturante em alianças a que tem de recorrer para po-
tanto no nível individual que vivemos, outro ní- der governar. Dá a impressão de que uma
quanto no nível social. Centro-me no so- vel de avaliação condiciona todos os níveis praga de amnésia (ao estilo da cegueira do
cial, mas a análise é válida, com adapta- anteriores. Refiro-me à escala do mundo e romance de Saramago) invadiu as reuni-
ções, em todos os níveis da vida humana. do planeta. Qual é a condição existencial ões, os acordos, as notícias e as consciên-
A memória e a antecipação não são coi- do Brasil neste fim de 2022? cias. De repente, o golpe institucional em
sas distintas. São modos diferentes de Eu ousaria pensar que a condição exis- curso desde 2016, a perseguição política
avaliar a condição existencial em razão tencial da maioria do povo brasileiro é de- mais grosseira e o impeachment mais es-
do medo e da esperança que ela suscita. terminada por uma memória inquietan- candaloso da história política contempo-
A memória inquietante e uma antecipa- te e uma antecipação auspiciosa, pois rânea nunca existiram. O problema é que,
ção sinistra são o espelho do medo sem es- consiste num equilíbrio instável entre o quando está tudo em branco, é tão fácil es-
perança, a memória reconfortante e a an- medo e a esperança. Os anos pós-Dilma crever como apenas sujar.

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Pensata

QUATRO MEDIDAS
ESSENCIAIS: PUNIR
OS GOLPISTAS,
REFORMAR
A JUSTIÇA,
DISTINGUIR
OS AMIGOS DE
SEMPRE DAQUELES
DE OCASIÃO E
CONTROLAR O
TEMPO POLÍTICO

perspectiva da defesa da democracia e da


justiça social, o sistema judiciário foi glo-
balmente, nos últimos anos, um protago-
nista ou um acelerador do desastre. Pe-
sem embora a atuação corajosa in extremis
de alguns magistrados e o ativismo não
menos corajoso das magistradas que le-
varam a cabo o Fórum Social Mundial
Justiça e Democracia, o sistema judiciá-
rio, se não for profundamente reformado,
será no período que agora se inicia parte
do problema do Brasil e não parte da so-
lução. Por agora, há golpismo à solta no in-
terior do sistema.
Em face disto, seria de aconselhar, nes- tivo nomear para procurador-geral da Re-
te momento decisivo, que o Brasil político pública alguém de inegável prestígio inte- Privilegiar os amigos de sempre. Os
aprendesse com os povos indígenas o modo lectual, muito preparado, com forte e sóli- amigos de sempre são os deserdados das
de olhar o futuro. Eles sempre olham o fu- da formação humanista, com visão garan- elites patrimonialistas que governam o
turo virados para o passado. Se o Brasil as- tista do processo penal e com sólida cons- Brasil. Os amigos de agora são, por exem-
A C E R V O M U S E U B O I J M A N S VA N B E U N I N G E N / R O T E R D Ã

sim fizesse, quatro ideias mestras se impo- ciência democrática. Alguém que, quando plo, os EUA, que colaboraram ativamente
riam para orientar as propostas políticas: os golpistas governavam, teve a coragem para destruir a economia, a democracia e
punir ou neutralizar os golpistas, refor- de criticar a Operação Lava Jato e a subse- a soberania do Brasil via Lava Jato e não
mar profundamente o sistema judiciário, quente e escandalosa inércia do procura- só, e que agora, por meras razões de polí-
distinguir bem entre os amigos de agora e dor-geral desses últimos anos. Por outro tica interna, se assumem como sinceros
os amigos de sempre e privilegiar sempre lado, não se imagina que uma figura tão aliados de Lula da Silva.
esses últimos, controlar o tempo político.  sinistra e caricata como Olavo de Carva- Controlar o tempo político. O presiden-
Punir os golpistas. O País esteve à bei- lho, mas muito mais perigosa que ele, se te Lula tem credibilidade para nos primei-
ra do colapso democrático e a vitória elei- mantenha à frente de qualquer serviço ros meses limpar o Brasil do lixo autori-
toral de Lula não neutralizou os golpistas, público sem responder pelos danos cau- tário que se acumulou. Se esperar muito
apenas os obrigou a falar mais baixo e a sados e ilegalidades praticadas. Refiro-me para o varrer, corre o risco de ser varrido
mudar de tática. Com eles à solta não ha- ao general Augusto Heleno.  por ele. Neste momento, esquecer o pas-
verá governabilidade possível. É impera- Reformar o sistema judiciário. Visto da sado é arriscar deixar escapar o futuro. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 57
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

O mundo
é outro
A diplomacia brasileira, enfraquecida,
enfrentará desafios diferentes de 20 anos
P O R G I L B E R T O M A R I N G O N I * 

A
eleição de Lula altera décadas atrás, quando Lula chegou ao Pla-
o panorama político nalto pela primeira vez, o unilateralismo
da América Latina e de Washington não reina absoluto diante
as perspectivas para de uma Rússia devastada pelos anos Yelt-
o futuro imediato. “O sin e uma China que começava a se colo-
clima do País mu- car como ator internacional de enverga-
dou”, afirmou o vice-presidente eleito, dura. A guerra ao terror desviara o foco
Geraldo Alckmin. A frase, que guarda do Departamento de Estado para ações
forte dose de subjetividade, parece esten- no Oriente Médio, Iraque e Líbia em es-
der-se além-fronteiras. pecial, e Afeganistão. A
“As pessoas ao redor do América Latina, secun-
mundo estão esperando Gilberto Maringoni darizada pela diploma-
que você não apenas sal- Professor de Relações cia imperial, encontrou
ve a Amazônia, mas tam- Internacionais da UFABC aí a oportunidade de
bém salve o planeta”, es- e coordenador do criar laços de confiança
creveu na New Yorker o Observatório de Política entre países que elegiam
jornalista estadunidense Externa e Inserção governos marcados por
Jon Lee Anderson, ao re- Internacional um vago discurso antili-
latar uma conversa com do Brasil (Opeb). beral e colocavam agen-
o ex-presidente, logo das sociais no centro de
a p ó s s u a v it ór i a . suas ações, formando o
Anderson, autor, entre outros, do alen- que, imprecisamente, se denominou on-
tado Che, Uma Biografia, não parece exa- da rosa. O reiterado êxito eleitoral das
gerar. Em um cenário carente de lideran- administrações do PT, dos Kirchner, de
ças globais de envergadura, à exceção tal- Hugo Chávez, de Evo Morales, de Rafael
vez de Xi Jinping, Vladimir Putin e do Correa e da Frente Ampla uruguaia deu-
SAUL LOEB/A FP

papa Francisco, Lula destaca-se. É o úni- -se a partir de políticas públicas torna-
co entre os quatro que foi eleito de forma das possíveis pela alta dos preços das
livre e direta pela população. commodities entre 2004 e 2014, o que fa-
Diferentemente do panorama de duas voreceu o balanço de pagamentos de ca-

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Geopolítica

minerais na pauta das exportações. A si-


tuação indica perda de competitividade
O BRASIL ESTÁ e consolida uma tendência reprimari-
APRISIONADO À zante, o que fortalece o caráter periféri-
CONDIÇÃO DE co da economia nacional. A isso se soma
IMPORTADOR DE a aprovação do teto de gastos, em 2016,
MANUFATURADOS, que condena o País a um ajuste fiscal per-
O QUE REDUZ OS manente, impossibilitando qualquer po-
lítica desenvolvimentista consistente. O
HORIZONTES DA
Brasil fica aprisionado à condição de im-
POLÍTICA EXTERNA portador de manufaturados, o que reduz
os horizontes da política externa.

O País exerceu, nos anos Lula, um pa-


pel de crescente influência global, bus-
da um, até a emergência da crise de 2008. cando ter voz nos organismos multilate-
Tais administrações enfrentaram um rais e colocando-se como articulador na
paradoxo. Alegaram buscar distância das conformação do G-20 e do BRICS. Sem
diretrizes econômicas mercadistas, esbo- liderar propriamente uma tendência al-
çaram maior ativismo estatal, reafirma- ternativa, buscou, no entanto, ocupar os
ram as soberanias nacionais, mas não lo- limites do sistema internacional como
graram alterar estruturalmente o pano- um articulador continental decisivo e
rama econômico e social de seus países. presença qualificada entre os países do
Aplicaram programas pontuais de socor- Sul global. Apesar de ter mantido a his-
ro à pobreza, sem projetos estruturantes tórica bandeira por um assento perma-
de um novo modelo de desenvolvimento. nente no Conselho de Segurança da ONU,
A política externa dos dois primeiros para o qual as chances de êxito são redu-
governos Lula caracterizou-se por sua zidas, soube adaptar essa demanda para
postura desenvolvimentista e multilate- uma justa reivindicação pela democrati-
ralista. O País teve uma aproximação in- zação das instâncias de poder mundial.
tensa com a África, a Ásia e os países ára- A situação atual é qualitativamen-
bes, consolidando a universalização da te distinta. O mundo é pautado por um
política externa brasileira. enfrentamento entre EUA e China, que
Há duas décadas, os principais parcei- começou como guerra comercial no go-
ros comerciais do Brasil eram, pela or- verno Trump e avança para o de dispu-
dem, Estados Unidos, Argentina e Chi- ta geopolítica de envergadura. No docu-
na. Os termos da equação praticamente mento oficial Estratégia de Segurança
se inverteram e a sequência agora com- Nacional, divulgado no início de outu-
preende a primazia da China, seguida de bro, a Casa Branca demonstra que Mos-
Estados Unidos e Argentina. Embora si- cou e Pequim estão cada vez mais alinha-
gamos com crescentes superávits na ba- dos entre si, apesar de terem desafios dis-
lança comercial, há uma preponderân- tintos. Enquanto a Rússia “desrespeita de
cia absoluta de commodities agrícolas e forma imprudente as leis básicas da or-
dem internacional”, a China “é (nossa)
A China de Jinping e os EUA de única concorrente que tem a intenção de
Biden reeditam a Guerra Fria, mas a
primeira está em melhores condições remodelar a ordem internacional, incre-
do que a antiga União Soviética mentando (seu) poder econômico, diplo-

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 59
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

mático, militar e tecnológico para alcan- pantes nas economias locais. Em 2018,
çar tal objetivo”. Ou seja, de concorrente Andrés Manuel López Obrador chega à
no mercado o país asiático passa à condi- NA DISPUTA ENTRE Presidência do México, seguido pelo re-
Presidê
ção de inimigo estratégico, numa reedi- EUA E CHINA, torno ddo peronismo à Casa Rosada, com
ção torta dos termos da Guerra Fria. Am- O BRASIL PRECISARÁ Alberto Fernández. O país enfrenta ago-
bos os lados pressionam os países da peri- EXERCER ra uma grave crise financeira, com alta
feria a alinhamentos nítidos. Nesse qua- A UM SÓ TEMPO inflacionária e desaceleração econômi-
inflacio
dro delicado, o Brasil precisará exercer a ca. As eeleições presidenciais bolivianas,
NEUTRALIDADE
um só tempo neutralidade e protagonis- outubro de 2020, na prática, reverte-
em outu
E PROTAGONISMO 
mo diante do novo conflito Leste-Oeste. golpe de Estado de 2019, com o êxi-
ram o go
Desde o golpe parlamentar de 2016, os Luis Arce. A essas mudanças pode-
to de Lu
governos que sucederam àquele de Dilma agregar a eleição de Pedro Castillo
mos agr
Rousseff utilizaram de forma limitada a Peru, em junho de 2021. O futuro de
no Peru
política externa como instrumento es- sua gestão é para lá de incerto. Castillo
tratégico para o desenvolvimento inter- nismos da ONU, como a Organização não tem maioria parlamentar e seu par-
no. O que se viu, especialmente a partir Mundial da Saúde (OMS) e a Comissão tido, Peru Livre, rompeu há meses com a
de Bolsonaro, foi a subordinação da di- de Direitos Humanos. A expressão sín- administração federal, gerando uma in-
plomacia a acenos ideológicos à extrema- tese dessas iniciativas foi proferida pelo terminável sucessão de crises.
-direita global. O Brasil dos últimos seis ex-chanceler Ernesto Araújo, em 2020,
anos retraiu sua capacidade de interven- ao se vangloriar de o País ter se isolado a As grandes mobilizações de 2019 e
ção, abdicou de participar de organiza- ponto de ocupar a posição de pária global. 2020 no Chile resultaram na convocação
ções como a União das Nações Sul-Ame- Quais as perspectivas para os pró- e na eleição de uma Assembleia Consti-
ricanas (Unasul) e a Comunidade de Es- ximos quatro anos? Os sinais regio- tuinte e na vitória de Gabriel Boric, em
tados Latino-Americanos e Caribenhos nais são dados por vitórias importan- 2021. Dificuldades na gestão política e
(Celac), retraiu sua presença no BRICS tes da centro-esquerda na América La- ofensiva conservadora levaram o gover-
e no Mercosul e criou arestas em orga- tina, seguidas por turbulências preocu- no à derrota estratégica no plebiscito da
nova Constituição, em setembro último.
Na Colômbia, quase três meses de maci-
ços protestos, no primeiro semestre de
2021, foram decisivos para a surpreen-
dente vitória de Gustavo Petro e Francia
Márquez, em junho de 2022.
O continente foi duramente atingido
por mais de dois anos de pandemia. Se-
gundo levantamento da agência Reuters,
no fim de 2021, mais de 1,5 milhão de la-
tino-americanos haviam perdido a vida
em decorrência da doença e quase 50 mi-
lhões tinham sido infectados. No mundo
todo, os óbitos alcançaram 5,35 milhões.
Com 11,7% da população planetária, a re-
gião exibia quase 30% das mortes. No iní-
cio de julho último, o total de óbitos pas-
sava de 1,7 milhão. Diante desse panora-
ma, a vitória da coalizão liderada pelo PT
torna-se fator de equilíbrio nas instabili-
dades vividas pela vizinhança.
A política externa do novo mandato de
Boric e Petro, novos protagonistas do campo progressista na América do Sul Lula será definida pelo filtro da grande

60 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Geopolítica

cias inflacionárias vindas de fora e retra-


ção econômica nos países centrais a par-
tir do ano que vem.
A recondução do Brasil a uma posição
de destaque na cena mundial deverá envol-
ver, entre outras, as seguintes iniciativas: 

1. A construção de uma pauta conver-


gente para questões do clima e do meio
ambiente entre os países da América do
Sul. A Amazônia possui a floresta tropi-
cal mais extensa do mundo e atravessa
nove países (Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Guiana Francesa,
Peru, Suriname e Venezuela). O territó-
rio brasileiro abrange sua maior parte
(61,8% do bioma), mas é, proporcional-
mente, o que tem menor território prote-
gido: apenas 42,2%, divididos em espaços
frente que o levou à Presidência. A reto- Por causa do Brasil, a América Latina indígenas e áreas naturais protegidas.
tornou-se o epicentro da Covid-19.
mada de uma atualizada política externa Ernesto Araújo cumpriu a promessa
2. A integração das políticas de saúde
altiva e ativa, para citar o termo cunha- de nos deixar na posição de párias pública na região, que concentrou, pro-
do pelo ex-chanceler Celso Amorim, re- porcionalmente, os mais altos índices de
side fundamentalmente na adoção de infecção e morte ao longo da pandemia
diretrizes pautadas no quarteto sobe- de Covid-19.
rania-desenvolvimento-democracia- 3. O fortalecimento do Mercosul e da
-meio ambiente. Aqui não há invenção: Celac e a reconstrução da Unasul como
tais pontos estão fixados na Constitui- instâncias políticas, econômicas e espe-
ção de 1988. Em seu artigo 4º, a Carta cificamente comerciais.
define que as nossas relações interna- 4. Reatamento e reconstrução das
cionais são regidas, entre outros, pelos relações diplomáticas com a Venezuela
seguintes princípios: defesa da paz, dos e reintegração do país aos organismos re-
direitos humanos, da autodeterminação gionais. Não é possível que o Brasil siga
S I LV I O AV I L A / H C PA , M R E /A R Q U I V O E P R E S I D Ê N C I A D A C O L Ô M B I A

dos povos, da não intervenção, da solução na situação de virtual rompimento insti-


pacífica dos conflitos, do repúdio ao ter- tucional com um vizinho que possui 2,2
rorismo e ao racismo e da integração da mil quilômetros de fronteira.
América Latina. O grande tema pautado 5. A reconstrução do Banco Nacional
pelo bolsonarismo, a entrada na OCDE, de Desenvolvimento Econômico e Social
possivelmente será colocado na geladei- como ferramenta para a internacionaliza-
ra, dadas as exigências econômicas e fis- ção das empresas brasileiras e retomada
cais do acordo. da Iniciativa para a Integração da Infraes-
Embora nem sempre a correspondên- trutura Regional Sul-Americana (IIRSA).
cia entre desenvolvimento interno e re- O Brasil concentra quase 40% do PIB e
lações internacionais seja automática, é cerca de 25% da população da América La-
preciso levar em conta as condicionan- tina e tem a chance de superar uma triste
tes domésticas diante de um mundo em e destrutiva quadra de sua história, vivi-
que o mercado de energia pode estar so- da nos últimos seis anos. Não à toa, a ex-
frendo uma mudança estrutural, a par- pectativa externa com a eleição de Lula ri-
tir da guerra da Ucrânia, com decorrên- valiza com as esperanças domésticas. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 61
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Fênix nordestina
A eleição de Lula abre uma janela de oportunidades
para o Nordeste, tão castigado ao longo do século XX
pela interrupção de seus projetos de desenvolvimento
POR SERGIO MACHADO REZENDE*

O
Nordeste tem sido, his- enorme migração para o Sudeste, e os nova autarquia, a Superintendência do
toricamente, a região nordestinos se tornaram importante Desenvolvimento do Nordeste. Criada em
com maiores dificul- mão de obra barata para a construção ci- 1959, a Sudene recebeu recursos federais
dades econômicas e vil e outros setores da economia. consideráveis do governo Kubitschek pa-
sociais. Em meados do A atenção do governo federal para o ra executar um plano de médio prazo, com
século XX, enquanto o Nordeste começou a mudar durante o projetos para estimular o crescimento
Sudeste recebia vultosos investimentos mandato de Juscelino Kubitschek. Em econômico da região. Dentre eles, tinham
públicos e privados para industrialização 1958, o presidente criou o Grupo de Tra- destaque projetos de irrigação adequados
e modernização de suas estruturas eco- balho para o Desenvolvimento do Nor- à realidade local, capacitação de profissio-
nômicas, capitaneados pelo governo fe- deste, que, capitaneado pelo economista nais para atividades agropecuárias e in-
deral, os nordestinos vi- paraibano Celso Furta- dustriais e formação de quadros técnicos.
viam na estagnação e do, produziu um minu-
sem perspectivas. No cioso relatório intitula- Celso Furtado assumiu a superinten-
Sertão, cuja economia se Sergio Machado do “Uma Política de De- dência da Sudene e implantou uma gestão
restringia à agropecuá- Rezende senvolvimento Econô- inovadora para os padrões do serviço pú-
ria, muito limitada pelo Professor emérito da mico para o Nordeste”. blico na época, que valorizava o planeja-
clima semiárido, as secas Universidade Federal O documento apresen- mento, o recrutamento de quadros técni-
de Pernambuco, é um
frequentes tornavam a tava um diagnóstico de- cos de alto nível e a abordagem multidis-
dos Coordenadores
vida ainda mais precária talhado sobre as raízes ciplinar dos problemas. As decisões sobre
do Comitê Científico do
e provocavam o êxodo de da tragédia nordestina e aprovação de projetos eram tomadas pelo
Consórcio Nordeste
parte da população. Na mostrava a necessidade Conselho Deliberativo, formado pelos go-
e foi ministro da Ciência
Zona da Mata canavieira, e Tecnologia de 2005 de mudar os complexos vernadores dos estados e representantes
base da economia do Bra- a 2010, no governo socioeconômicos. Estes de entidades federais, com base nos pa-
A RQUIVO N ACION A L E SUDENE /A RQUIVO

sil nos séculos XVII e do presidente Lula. tinham sido herdados e receres das equipes técnicas. Os primei-
XVIII, os trabalhadores mantidos por velhas oli- ros resultados logo apareceram, com mui-
e suas famílias eram ex- garquias, incapazes de li- tos casos de inovação na agropecuária e a
pulsos dos engenhos e le- derar um movimento de implantação de novas indústrias, geran-
vados às periferias das cidades próximas. industrialização, como ocorria no Sudes- do um ambiente de animação no meio em-
Tornaram-se “boias-frias”, que trabalha- te, com o firme apoio do governo federal presarial e na população local. Com o gol-
vam nos engenhos seis meses por ano, fi- e com a participação de capitais privados pe de 1964, Furtado foi incluído, porém,
cando desempregados nos outros seis. nordestinos que para lá migravam. na primeira lista de cassados, perdendo
Esse quadro de dificuldades e desespe- O relatório propunha ainda um plano seus direitos políticos por dez anos.
rança produziu durante décadas uma de mudanças, a ser implementado por uma Durante o regime militar, a atuação da

62 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Federação

Nos anos 1960, Furtado focou em projetos


de irrigação adequados à realidade local e na
capacitação de profissionais para atividades
industriais e agropecuárias

Sudene transformou-se gradualmente,


com o sistema de incentivos fiscais pas-
sando a ser o instrumento de apoio mais
importante, e com parte de seus recur-
sos orçamentários destinados às outras
regiões. Ela perdeu seus quadros técni-
cos mais expressivos, que não aceitavam
o sistema autoritário de gestão e se trans-
feriam para as universidades, revigora-
das pela reforma universitária de 1968. A
Sudene também passou a sofrer pressões
políticas para a aprovação de projetos e
logo surgem denúncias de favorecimento

COM CELSO
FURTADO NA
CHEFIA DA SUDENE,
JUSCELINO
KUBITSCHEK
INVESTIU PESADO
NA REGIÃO, MAS
O SONHO RUIU COM
O GOLPE DE 1964

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 63
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

de grupos, comprometendo ainda mais a


sua atuação. Nesse quadro de fragiliza-
ção, a Sudene inaugura, em 1974, sua no-
va sede na Cidade Universitária, no Re-
cife, num grande e opulento prédio, com
o qual a ditadura pretendia camuflar as
dificuldades da instituição.
Na década de 1980, a crise econômica
enfrentada pelo Brasil, com o aumento da
dívida externa e a hiperinflação, atinge de
cheio o Nordeste, debilitando ainda mais
a Sudene. Nos anos 1990, ela teve gran-
de parte de seus servidores colocados em
disponibilidade no governo Collor. Atin-
gida por denúncias de corrupção, acabou
extinta em 2001, no governo de Fernan-
do Henrique Cardoso. As fortes reações
no meio político e empresarial levaram
o governo a criar a Agência de Desenvol-
vimento do Nordeste, a Adene. Já na ges-
tão Lula, em 2007, a Sudene foi recriada,
numa tentativa de recuperar a institui- dois velhos complexos, o da Zona da Ma- do derrotado no Nordeste nas eleições de
ção pensada por Furtado, mas ela nunca ta e o do Sertão, perderem força, e novas 2018, passou a hostilizar os governadores
voltou a ter instrumentos e quadros téc- atividades agropecuárias se desenvolve- da região, quase todos filiados a partidos
nicos necessários para aflorar. rem. A emigração em massa de nordesti- de oposição ao seu governo. Percebendo
nos para outras regiões arrefeceu e a mi- as dificuldades com a União, os governa-
Mesmo sem conseguir retomar o pa- gração interna e ajudou a fortalecer uma dores dos nove estados decidiram criar o
pel da Sudene, os governos Lula e Dilma rede de cidades médias que não existia an- Consórcio Interestadual de Desenvolvi-
Rousseff promoveram numerosos pro- tes. Até a seca prolongada dos anos recen- mento Sustentável do Nordeste, ou sim-
gramas federais voltados para o atendi- tes não gerou o drama social agônico, pos- plesmente Consórcio Nordeste. Trata-se
mento à saúde, educação, ciência e tec- to que a chegada da Previdência ao meio de uma iniciativa para ampliar a articu-
nologia, assistência social, habitação po- rural e as políticas sociais deram o lastro lação entre os estados, atrair investimen-
pular, expansão e melhora da infraestru- da resistência tão sonhada por Furtado, tos e alavancar projetos de forma inte-
tura, dentre outros. O resultado foi a re- que queria obtê-la por outros caminhos”. grada, visando promover o desenvolvi-
cuperação dos indicadores econômicos e Infelizmente, o cenário mudou mui- mento sustentável e solidário.
sociais do Nordeste, tais como a redução to nos últimos anos. Desde que assumiu Em março de 2020, foram identifica-
do desemprego, aumento do rendimen- o governo, Jair Bolsonaro, que tinha si- dos os primeiros casos de Covid-19 no
to médio e do consumo das famílias, au- Brasil. A reação imediata do presidente
mento das atividades industriais e de ser- República foi a negação da gravidade
da Repú
viços, aumento da escolaridade e dos for- BOLSONARO VIROU doença. Ele dizia que, em pessoas sau-
da doen
mandos em cursos superiores e diminui- dáveis, o Coronavírus causaria, no máxi-
AS COSTAS PARA OS
GOV M A E A RQUIVO/AGÊNCIA P T

ção da mortalidade infantil, entre outros. uma “gripezinha”. Aconselhou a po-


mo, um
NORDESTINOS, QUE
Como observa a professora Tânia Ba- pulação a continuar a vida normal para
celar, que fez parte da equipe técnica da DERAM EXEMPLO prejudicar a economia. Foi então que
não prej
Sudene, “a realidade regional se transfor- AO PAÍS NA GESTÃO Consórcio Nordeste decidiu criar o Co-
o Consó
mou, sendo o Nordeste atual muito dis- DA PANDEMIA Científico de Combate ao Corona-
mitê Ci
tinto daquele que foi pensado por Furta- (C4), com cientistas indicados pe-
vírus (C
do. Ao mesmo tempo que avançou na in- governos estaduais. O C4 formou no-
los gove
dústria e nos serviços, o Nordeste viu seus subcomitês, integrados por cientistas
ve subc

64 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Federação

voluntários dos vários estados, especia- tadas pelos governos do Nordeste, que Mesmo sem recuperar o prestígio da Sudene,
Lula investiu pesadamente na região.
lizados nos temas relacionados à doença, tomaram medidas efetivas para sua im-
O Nordeste teve a menor média de
como Epidemiologia, Virologia, Vacinas plementação. Resultado: apesar de a re- mortes por 100 mil habitantes do Brasil
e Modelagem Matemática. gião ser uma das mais pobres do País,
Logo o C4 passou a emitir boletins com com enormes desigualdades sociais, ela
recomendações de ações para conter o es- teve o melhor desempenho no enfrenta- ram criadas Câmaras Temáticas de Saú-
palhamento do novo Coronavírus, infor- mento da crise sanitária. Após 30 meses de, Agricultura Familiar, Assistência So-
mações para as equipes de saúde, análises do início da pandemia, quando o número cial, Meio Ambiente, Educação, Ciência e
de cenários e riscos etc., com base no me- de mortes pela Covid no País chega a qua- Tecnologia, Cultura, Energias, Turismo
lhor conhecimento científico existente. se 700 mil, com média de 330 por 100 mil e Gestão Pública, dentre outras.
Passados dois anos e meio do início da epi- habitantes, uma das mais altas do mun- A eleição do presidente Lula abre uma
demia de Covid, após quatro ondas do sur- do, as mortes no Nordeste totalizam 133 janela de oportunidades para o Nordeste.
to da doença, o Comitê emitiu 25 boletins mil, com média de 237/100 mil habitan- Vários desafios que deverão ser enfrenta-
com análises da situação em cada estado e tes, a menor de todas as regiões. O Mara- dos no futuro próximo exigem uma estrei-
com recomendações para os governantes. nhão, estado com enormes dificuldades ta articulação da região com o governo fe-
Dentre as recomendações se destacaram socioeconômicas, tem a menor taxa do deral, o que não ocorreu nos últimos anos.
medidas restritivas de distanciamento so- País, 155/100 mil habitantes. Para vencer os desafios a região conta com
cial, lockdown nas capitais e restrição de o Consórcio Nordeste, mas o governo pre-
tráfego nas rodovias, visando deter a pro- O sucesso da ação conjunta dos es- cisará redefinir a institucionalidade e os
liferação do vírus, a rejeição da cloroquina tados e do trabalho do C4 no combate à instrumentos dos órgãos federais que atu-
no tratamento da doença, devido à ausên- pandemia motivou o Consórcio a insti- am na região, como Sudene, Codevasf e
cia de evidências de sua eficácia, a criação tuir Câmaras Temáticas, visando siste- BNB. Em conjunto, eles deverão cons-
de brigadas emergenciais de saúde, o au- matizar ações conjuntas em áreas estra- truir um leque de políticas públicas ba-
mento da proteção das equipes de saúde, tégicas. Cada Câmara é integrada pelos seadas nas experiências exitosas dos anos
a ampliação da testagem, o aprimoramen- secretários estaduais da área, presidida iniciais deste século, visando vencer as di-
to dos protocolos ambulatoriais e medidas por um governador e assessorada por um ficuldades, valorizar as potencialidades e
para acelerar a vacinação dos nordestinos. Comitê Científico formado por voluntá- promover o pleno desenvolvimento eco-
As recomendações do C4 foram aca- rios especialistas na área. Em 2021, fo- nômico e social da região. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 65
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

Solta a voz
pandemia, Joca foi obrigado a desocu-
par o imóvel onde vivia com a mulher e
três filhos. Não teve jeito. Topou reduzir
o salário pela metade, pois o restauran-
te em que trabalhava como garçom fe-
Uma trilha sonora para novos tempos chou as portas para a clientela e passou
a servir quentinhas somente por delivery. 
POR ALBERTO VILLAS* Quatro funcionários foram despedi-
dos e todos viram as lágrimas nos olhos
do dono do bar e lanches. Ele ficou. Seu
único consolo ainda era uma velha can-

D
ção de um compositor baiano de Irará. 
epois de um apagão Antonico, seu amigo mais próximo, Na vida, quem perde o telhado, em tro-
cultural que durou 48 personagem de Ismael Silva, também tem ca recebe as estrelas, pra rimar até se afo-
meses, CartaCapital ajudado o Nestor. Já fez dois depósitos no gar. E de soluço em soluço esperar o sol
vira o disco e conta Pix, cada um no valor de 50 reais!  que sobe na cama e acende o lençol.
nove histórias de nove Desde que a pandemia apertou, quan-
músicas que precisam do o comércio fechou e a Covid-19 come- Sem dinheiro para o aluguel, foi morar
ser ouvidas logo no alvorecer do novo ano, çou a matar centenas de brasileiros to- com o irmão, mas a casinha era tão pe-
de uma nova vida. Descubra, uma a uma. dos os dias, aquele brasileiro nunca mais quena que a hospedagem não durou dois
A primeira coisa que precisamos fazer comprou uma peça de roupa. Nada. Na meses. Foi viver na rua e à noite acomo-
é arranjar uma viração para o Nestor, que verdade, a única compra que fez pelo dava-se na grande marquise de uma lo-
está vivendo em grande dificuldade. Nes- e-commerce foi um par de Havaianas, já ja de baterias na Lapa. Ali, fazia o jantar
tor foi dispensado de uma fábrica de au- que a sua quebrou a tira, perda total.  num fogareiro emprestado do irmão, ali-
tomóveis no ABC pau- Passava o dia em ca- mentava todos da família e ficava até o
lista há dois anos, e des- sa, ainda bem que rece- dia amanhecer. 
de então nunca mais en- bendo uma ajuda da fir- Dia 1º de janeiro ele volta a trabalhar
controu um trabalho fi- Alberto Villas ma no fim do mês – que em tempo integral, registro na cartei-
xo, juntando-se aos 10 Jornalista e escritor. não era muita – vesti- ra, salário no fim do mês. Acertou com
milhões de desemprega- Autor de Admirável do com moletons. Tinha o proprietário da casa onde morava. Vai
dos deste país.  Mundo Velho, Carmo três, um azul-marinho, voltar pra lá. 
e Mil Tons, o Meu Millôr,
Ele vive numa casa um preto e um abóbora, O biscateiro Cademar vive de bico. Um
entre outros livros.
simples, própria, com- presente do filho moder- conserto de telhado aqui, uma cerca ali,
prada nos anos 1970 com no que, no fundo, no fun- um desentupimento de pia acolá, um va-
o suor do seu rosto, traba- do, ele detestava, usava zamento no teto, ele vai levando. 
lho de todos os dias de 7 da manhã, quando pouco. Se sentia um funcionário da CET Sambista desde a juventude, já compôs
batia ponto, até o pôr do sol, quando toma- ou da Gol, brincava.  uma centena de sambas, nenhum gravado.
va banho na fábrica para eliminar um pou- Agora, aquele brasileiro se prepara pa- Fã de carteirinha do compositor Geraldo
ARQUIVO NACIONAL E ANDRÉ CONTI

co da graxa e da fuligem do corpo e che- ra pegar um ônibus, percorrer quase mil Pereira, jurou para a esposa que no dia 1º
gar em casa já razoavelmente perfumado. quilômetros para assistir à posse do pre- de janeiro estará no Planalto Central para
Nestor tem vivido da ajuda da família, sidente que elegeu. Querendo mudar a sua cantar para o presidente eleito um sucesso
alguns membros caridosos que ainda têm conduta, ele pergunta pra mulher: com de 1951 do seu compositor predileto, uma
trabalho. Seu primo de primeiro grau le- que roupa, com que roupa eu vou? canção chamada Ministério da Economia: 
va toda semana os alimentos básicos de Com a grana curta, ele prometeu à espo-
uma cesta, nada de excesso. Esta semana, sa que, no ano que vem, vai mudar a sua con- Seu Presidente, 
um pequeno mimo, um pacotinho de uvas duta, vai pra luta porque quer se aprumar.  Sua Excelência mostrou que é de fato 
pretas sem caroço, sua paixão. Quando começou o segundo ano da Agora tudo vai ficar barato 

66 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Playlist

Agora o pobre já pode comer


Seu Presidente, 
Pois era isso que o povo queria 
O Ministério da Economia 
Parece que vai resolver 
Ismael Silva, Noel Rosa, Tom Zé
Seu Presidente 
e Geraldo Pereira: cronistas Graças a Deus não vou comer mais gato 
do perrengue de ser brasileiro Carne de vaca no açougue é mato 
Com meu amor eu já posso viver 
Eu vou buscar 
A minha nega pra morar comigo 
Porque já vi que não há mais perigo 
Ela de fome já não vai morrer 
A vida estava tão difícil 
Que eu mandei a minha nega bacana 
Meter os peitos na cozinha da madame 
Em Copacabana 
“SEU PRESIDENTE  GRAÇAS A DEUS Agora vou buscar a nega 
NÃO VOU COMER MAIS GATO CARNE Porque gosto dela pra cachorro 
DE VACA NO AÇOUGUE É MATO COM Os gatos é que vão dar gargalhada 
MEU AMOR EU JÁ POSSO VIVER” De alegria lá no morro
  Negro, 60 anos, Nego Teo já viveu
todo tipo de preconceito e ameaças
na comunidade onde mora. Quando a

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 67
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

polícia chegava, costumava recolher mar e que faz Brigitte Bardot encantar.  apesar dos pesares. No ano passado Leo-
todos os seis filhos num único cômodo  Os versos dos cantadores Zé Limei- nor passou fome e frio. Aperto e desas-
da casa, para escapar das balas perdidas. ra, Orlando Tejo e Otacílio Batista, es- sossego. Passou noites em claro pensan-
 Quatro escaparam. critos há mais de cem anos, provocaram do nos boletos atrasados.
 Aos 18 anos, aprendeu algumas pala- muita briga. Reescritos por Belchior em  Viu o presidente dar Reuquinol pra
vras em francês com uma professora que 1976, voltaram à tona no ano passado na ema, dizer que mão era coveiro e que ia
foi morar no morro, recolher dados para voz do rapper Emicida e promete ser o hit matar a petralhada. Ela jurou de pés jun-
o TCC na Université de Marseille. Ele en- de 2023: tos que ia trabalhar duro para tirar essa
sinava português a ela e ela francês a ele. Eu já cantei no Recife/ Dentro do Pron- praga do poder. Montou um pequeno al-
 Hoje só guarda algumas poucas pa- to-Socorro/ Ganhei duzentos mil réis/ tar em casa, com santos que iam de San-
lavras, as básicas como merci, comment Comprei duzentos cachorro/ Morri no to Antônio, Santa Edwiges, São Longui-
allez vous, comment tu t’apelle. Seu fran- ano passado/ Mais esse ano eu não morro.  nho, São Tomé, São Benedito e um bo-
cês renasceu alguns anos atrás, quando neco do papa João Paulo II dando tchau
ouviu pela primeira vez Gilberto Gil can- Não se sabe ao certo se os versos são graças à energia solar. 
tando na língua daquela professora.  mesmo apenas de Zé Limeira. A família Tem fé quando pede pra Alexia tocar
 Deu um jeito de arrumar um Petit dele jura que os versos são dele, um re- Emicida e ela dispara:
Robert para fazer a tradução e ficou en- pentista e cantador analfabeto que nun- Ano passado eu morri, mas esse ano eu
cantado. ca teve uma carteira de identidade.  não morro!     
 Nos últimos quatro anos, foram de-  Foram quase 700 mil mortos até no- E completa:
zenas de mortos onde mora. Quase to- vembro passado. Muitos sobreviveram, Em 22 eu morri, mas em 23 eu não morro!
dos pretos e a desculpa da polícia foi sem-  O velho roqueiro entrou e saiu de to-
pre a mesma: confronto e eles atiraram Cantou o samba de uma nota só ao
das. Ca
primeiro.  barquinho ir e a tardinha cair. Co-
ver o ba
 Tem esperança, sim, que em 2023, co- “TU VENS, TU VENS brilhantina no cabelo e requebrou
locou br
JÚLIA RODRIGUES E REDES SOCIAIS

mo em 24, 25 e 26, a vida vai melhorar pa- EU JÁ ESCUTO ao som dde Bill Haley e Seus Cometas can-
R E N AT O L U I Z F E R R E I R A , H A L L I T,

ra os pretos. Por isso, voltou a recitar os OS TEUS SINAIS tando RoRock Around the Clock e cantava
versos do compositor baiano porque a es- TU VENS, TU VENS como n ninguém, It’s Now or Never. Mer-
perança não morreu: EU JÁ ESCUTO gulhou d de cabeça na Tropicália. Brasilei-
Touche pas à mon pote! OS TEUS SINAIS” confessou sua culpa, seu pecado, seu
ro, conf
Ele sabe que a força que faz Jean-Paul sonho d desesperado, seu bem guardado
Sartre pensar é a mesma que faz jogar segredo. Jura que aqui é o fim do mun-
segredo
Yanick Noah. Que faz Charles Aznavour terceiro mundo. Pediu a bênção e
do, o te
cantar, que faz Jean-Luc Godard fil- dormir entre cascatas, palmeiras,
foi dor

68 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Playlist

araçás e bananeiras, ao canto da juriti. era do Lula. Seguiu todos os passos da vi- Gil, Emicida, Valença, Belchior e Os Titãs:
ano passado eu morri, esse ano
Depois veio o punk rock e ele deu nome gília em Curitiba e, a mais de mil quilô-
eu não morro. E quem escuta os sinais?
aos bois, ao lado dos Titãs, outrora Titãs metros de distância, gritava ao escurecer
do Iê-Iê-Iê, recitando a lista da repressão pela janela do seu apartamento na SQS
e da canalhice: Garrastazu, Stalin, Eras- 405: Boa noite, presidente Lula! Que tal um samba?
mo Dias, Franco, Lindomar Castilho... Hoje uma música grudou no seu cére- Puxar um samba, que tal?
E tinha muito mais: Afanásio, Dulcídio bro que nem chiclete e ele canta todos os Para espantar o tempo feio
Wanderley Boschilia, Augusto Pinochet, dias no banheiro do novo apartamento, Para remediar o estrago
Gil Gomes, Reverendo Moon, Jim Jones, na SQS 406, em frente ao que morava: Que tal um trago?
General Custer, Flávio Cavalcanti, Adolf A voz do anjo sussurrou no meu ouvido Um desafogo, um devaneio
Hitler! Eu não duvido já escuto os teus sinais Um samba pra alegrar o dia, pra ze-
Como adora mudar as letras das can- Que tu virias numa manhã de domingo rar o jogo
ções, no ano que vem promete cantar: Eu te anuncio nos sinos das catedrais Coração pegando fogo e cabeça fria
Jair, Onyx, Heleno, Carla Zambelli, Tu vens, tu vens Um samba com categoria, com calma
Eduardo Pazuello, Ricardo Salles, Eu já escuto os teus sinais Cair no mar, lavar a alma
Eduardo, Carlos, Bia Kicis... Tu vens, tu vens Tomar um banho de sal grosso, que tal?
Brasilino mora em Brasília desde 1958. Eu já escuto os teus sinais Sair do fundo do poço
Viu a pedra fundamental ser colocada por  O Álvaro resolveu deixar de lado aque- Andar de boa
JK e gosta de contar casos de quando a las canções visadas pelos militares. Só de Ver um batuque lá no Cais do Valongo
cidade era só terra vermelha, candangos Chico, cinco: Apesar de Você, O Que Se- Dançar o jongo lá na Pedra do Sal
e tratores amarelos rasgando o Cerrado, rá, Cálice, Meus Caros Amigos e Acorda Entrar na roda da Gamboa
obras subindo, palácios surgindo do nada. Amor. De Vandré, Caminhando e Can-
tando, de Sérgio Sampaio, Eu Quero É MÚSICAS CITADAS:
Viu Brasília crescer, ganhar sinais de Botar Meu Bloco na Rua e, de Caetano, Antonico (Ismael Silva)
trânsito que nunca estiveram nos planos É Proibido Proibir.  Com Que Roupa? (Noel Rosa)
originais. Viu passar governos de Jânio, Quer começar o ano vestido de bran- Solidão (Tom Zé)
de Jango, viu a ditadura, viu Collor de co, com três palmas nas mãos, também Ministério da Economia (Geraldo
Melo, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer, brancas, para jogar no mar. Começar 23 Pereira)
Bolsonaro. Acompanhou e sofreu mui- com uma nota de 1 dólar bem dobrada na Touche Pas à Mon Pote (Gilberto Gil)
to com aquela novela do sítio em Atibaia, carteira, sete sementes de uva, acordar Sujeito de Sorte (Belchior)
todo dia um capítulo novo no Jornal Na- com o pé direito ao som de Que Tal um Nome aos Bois (Titãs)
cional. Deixou de comprar a Veja, tinha Samba?, do Chico: Anunciação (Alceu Valença)
certeza de que o tríplex do Guarujá não  Um samba Que Tal um Samba? (Chico Buarque) •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 69
A
RECONSTRUÇÃO
DO
BRASIL

A serviço
agroindústria, energias renováveis, com-
plexos farmacêutico, biotecnológico e de
saúde, e complexo de Defesa.
CC: O que fazer para essa retoma-

de quem?
da ser imediata?
DC: Será preciso promover uma produ-
ção qualificada e baseada na nova econo-
mia do conhecimento, entendendo que a
riqueza e o desenvolvimento não estão
A economia deve servir ao povo pela mais na indústria tradicional, e sim em
retomada dos investimentos públicos, uma moderna estrutura, rica em ciên-
e não se valer do povo para favorecer cia, tecnologia e inovação, e que cons-
trói uma manufatura avançada, basea-
os rentistas, avalia Darc Costa da em serviços intelectualmente densos
e na agricultura científica e de precisão.
A MAURÍCIO THUSWOHL
Da mesma forma, é preciso reorganizar
práticas políticas nas relações de traba-

E
lho de forma a resgatar a maioria infor-
specialista em Planeja- CartaCapital: O governo Bolsonaro mal que está precarizada na nossa mas-
mento e Infraestrutura desmontou diversos setores sensíveis sa trabalhadora, o que leva ao aviltamen-
e autor de diversos li- da administração pública. Quais são as to salarial e ao aumento do subemprego.
vros, entre eles o clássi- tarefas fundamentais para que o pró- CC: O chamado “teto de gastos” é
co Fundamentos para o ximo governo recoloque o País de no- um empecilho?
Estudo da Estratégia vo nos trilhos? DC: O futuro governo deve praticar uma
Nacional, o engenheiro e economista Darc Costa: A primeira tarefa será reor- nova política fiscal e monetária, que cha-
Darc Costa fala, nesta entrevista a ganizar o modelo de gestão da economia mam de finanças funcionais, para obter
CartaCapital, sobre suas expectativas em de forma a que sirva ao povo pela retomada autonomia e autossustentação no finan-
relação ao futuro governo. Ele aponta as dos investimentos públicos. E não, como ciamento do desenvolvimento. Precisa
tarefas que considera fundamentais pa- vem acontecendo nos últimos 30 anos, que ainda atacar decisivamente os dois pro-
ra que o Brasil volte a ter um projeto es- se sirva do povo para promover a acumu- blemas sociais mais agudos do País: o al-
tratégico de desenvolvimento nacional, lação financeira dos ren- to desemprego e as péssi-
após os quatro anos de abandono promo- tistas. Depois, transfor- mas condições de vida nas
vido pelo governo de Jair Bolsonaro. mar a educação, inaugu- periferias metropolita-
Costa avalia que a meta primordial de rando um novo processo nas. Isso pode ser conse-
um novo projeto deve ser reorganizar o educacional que propor- guido através da implan-
modelo de gestão da economia de forma cione uma formação capa- tação de um programa de
que este “sirva ao povo pela retomada dos citadora e analítica. E im- emprego garantido, de tra-
investimentos públicos”, e não “se valer plantar no País um mode- balho aplicado financiado
do povo para promover a acumulação fi- lo que equalize a qualidade pelo Estado e que se deve
nanceira dos rentistas”. O especialista do ensino em todo o terri- tornar também o eixo das
prega que a reestruturação da economia, tório nacional e traga para políticas sociais da Edu-
por meio do desenvolvimento da ciência, todos os estados e municí- cação, Saúde, Saneamen-
tecnologia e inovação, aliada a uma infra- pios um padrão único de to Básico etc., com pro-
estrutura dotada de manufatura avança- investimento. Por fim, re- gramas de qualificação
da e agricultura científica e de precisão, tomar o desenvolvimento e profissional nessas áreas.
é condição sine qua non para recolocar o a industrialização a partir “O Brasil não precisa se alinhar CC: É possível falar em
Brasil entre os protagonistas mundiais. de quatro setores-chave: nem aos EUA nem à China “estratégia nacional” nes-

70 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Projeto Nacional

“O BNDES pode cumprir


um importante papel na
reindustrialização do País”

CC: Qual seria o papel ideal do


BNDES dentro de uma estratégia na-
cional de recuperação?
DC: É bom frisar que o BNDES é uma ins-
tituição criada para gerar ativos, e não pa-
ra transferir ativos do setor público ao se-
tor privado, e vice-versa. Duas tarefas são
fundamentais para recuperar os investi-
mentos. O BNDES deve ter papel forte na
infraestrutura, como teve na época de sua
criação, quando se dedicou ao setor elétri-
co e ao transporte ferroviário. A institui-
ção também deve se preocupar com itens
relativos à reindustrialização do País.
O DESENVOLVIMENTO NÃO ESTÁ MAIS NA
CC: O ex-chanceler Celso Amorim
INDÚSTRIA TRADICIONAL, E SIM EM UMA
afirma que o Brasil “não pode sair dos
MODERNA ESTRUTURA, RICA EM CIÊNCIA, braços dos EUA e cair nos braços da
TECNOLOGIA E INOVAÇÃO, QUE CONSTRÓI China”. O senhor concorda? Como o
UMA MANUFATURA AVANÇADA País deve se mover nos meandros des-
ta nova “Guerra Fria”?
DC: A colocação de Amorim é perfeita.
Os interesses nacionais devem ser colo-
cados acima daqueles dos demais países.
te governo de frente ampla que está se Estado só se legitima se cada cidadão en- Para isso, a neutralidade é fundamental
construindo em torno de Lula? Quais xergar no projeto nacional o seu próprio na relação de choque hoje existente entre
são os elos estratégicos que podem projeto. Para isso, é fundamental que ele a China e os EUA. Essa neutralidade exi-
unir nos próximos anos as diversas vi- seja discutido, pactuado e levado ao co- ge que não fiquemos alinhados aos norte-
sões políticas que comporão o governo? nhecimento da população. -americanos. O interesse maior do Brasil
DC: Para fazer uma estratégia nacional CC: Para onde apontam as primeiras é a constituição de um bloco na América
tem de ter um programa nacional, não sinalizações feitas pelo futuro ministro do Sul, de forma a assumir papel de lide-
é? Então, é necessário que se ordene esse da Fazenda, Fernando Haddad, e pelo rança nas questões mundiais.
processo de formação de um projeto na- próximo presidente do BNDES, Aloizio CC: Lula deve tentar recuperar o pro-
cional para o Brasil. Que exista uma ver- Mercadante, em termos de economia e tagonismo perdido no BRICS? O grupo
tente interna que analise as questões a se- infraestrutura? ainda tem valor estratégico para o Brasil?
T OYO TA D O B R A S I L E R E D E S S O C I A I S

rem resolvidas no plano interno em acor- DC: Não tenho total discernimento sobre DC: Claro que sim. O BRICS é uma insti-
do com as tarefas fundamentais que elen- qual será a postura de Haddad para a ges- tuição muito interessante na medida em
quei anteriormente. E também uma inser- tão da nossa economia. Sei que há uma va- que cria condições para a alavancagem
ção externa do Brasil, que deve ser busca- riante positiva nesse processo, que é o fa- do multilateralismo, o que nos interes-
da em consenso e em torno dos interesses to de o futuro ministro não estar alinha- sa enquanto nação. O BRICS tem um pa-
nacionais. Acho que é possível uma estra- do com os chamados interesses do merca- pel a ser exercido nas relações interna-
tégia nacional, desde que se tenha um pro- do. Isso é importante, porque nos últimos cionais, e o Brasil tem a sorte de ser fun-
jeto nacional que seja devidamente discu- 40 anos os interesses do mercado só leva- dador e protagonista do grupo. É preciso
tido. Temos de recuperar a ideia de que o ram o Brasil a ficar estacionário. avançar na construção dessa aliança. •

C A R TAC A P I TA L — 2 8 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 2 71
A
RECONSTRUÇÃO Venes Caitano
DO
BRASIL

72 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Apresentado por

Não há inclusão produtiva


sem conexão
REDES ATUAM PARA FACILITAR O ACESSO A VAGAS DE TRABALHO E FORTALECER
PEQUENOS EMPREENDEDORES, COMO O PROGRAMA BORA DA AMBEV

A
busca por um emprego ou Por essa relevância, a conexão é um dos CONEXÃO NO
por novos clientes pode pa- três pilares que norteiam o programa Bora EMPREENDEDORISMO
recer uma tarefa simples da Ambev, uma iniciativa que pretende in- DAS COMUNIDADE S
diante das diversas ferra- cluir produtivamente 5 milhões de brasilei-

O
mentas digitais existentes ros nos próximos 10 anos. Além de conhe- Bora tem duas
hoje. Mas a realidade é que muitos brasileiros cimento e suporte financeiro, a empresa se frentes de atuação:
enfrentam dificuldades recorrentes para de- esforça para tecer uma rede de contatos empreendedores e
finir suas próprias competências ou detectar interligada a diversos projetos de geração comunidades. O trabalho é
feito com proprietários de
e explorar nichos de mercado promissores. de emprego, ampliação de renda e fortaleci-
pequenos bares e restauran-
Superar essas barreiras é uma condição es- mento de pequenos empreendedores. tes e também com quem está
sencial da inclusão produtiva, movimento “Nosso objetivo é tentar ampliar essas procurando emprego. Depois
pela redução da pobreza articulado por cor- conexões. Quando falamos de Ambev, é o de seguir a trilha do conheci-
porações e outros atores sociais. papel de conexão, de crescimento com- mento, o programa conecta
Os contatos das grandes empresas são partilhado. Como eu consigo meu conhe- quem precisa contratar com
tão importantes quanto os aportes financei- cimento e o meu crescimento? Como eu quem busca colocação.
ros. As conexões abrem espaços para que consigo fazer com que as pessoas atinjam A conexão é essencial para
o empreendedorismo e para
os empreendedores possam ampliar a base o potencial delas? Seja uma conexão, seja
quem busca um emprego.
de atuação e para que os trabalhadores con- uma entrevista de emprego. Essa pessoa,
“Devemos ter capital humano,
sigam se inserir no mercado de trabalho. muitas vezes, não acessa as principais fer- financeiro, social e psicológi-
Assim, fazer o capital social retornar como ramentas”, diz Carlos Pignatari, diretor de co, tanto na empregabilidade
crescimento econômico. Impacto Positivo da Ambev. quanto no empreendedorismo.
Quando você tem alta renda,
você tem acesso a novos
ESPAÇOS PARA AMPLIAR A REDE DE CONTATOS mercados e investimentos. Na
No projeto realizado em parceria com periferia, você pode ter boas
a Rede Mulher Empreendedora, o Bora conexões, mas geralmente é
Empreender com Comida, uma das etapas só na sua base. E isso dificulta
prevê conectar mulheres que atuam no o acesso, o contato com o
setor de gastronomia para que elas possam mercado e a estrutura”, expli-
ampliar a rede. O programa vai capacitar 2 ca Edgard Barki, coordenador
mil mulheres em Recife-PE e São Luís-MA. do Centro de Empreendedoris-
“Vamos conectar essas mulheres a mo da FGV.
ambientes onde elas possam vender
os produtos e serviços, ou seja, elas
participarão da rede da Ambev, do
espaço que a empresa proporciona,
para que elas consigam se conectar
a outros empreendedores, outros
negócios e, eventualmente, se tornarem
FOTO: PRISCILA PRADE

Acesse o QR Code
até fornecedoras”, explica Ana Fontes, para assistir à
fundadora da Rede Mulher Empreendedora. entrevista

Este material é produzido pelo StudioCarta com patrocínio da Ambev


Seu leão pode colorir a ATÉ

vida de muitas crianças 29/12


Doe seu Imposto de
Renda para o Hospital
Pequeno Príncipe

No Brasil, apenas 3,15% do potencial de doação de IR da população foi destinado


para instituições filantrópicas em 2020. Isso representa mais de R$ 8 bilhões
que poderiam impactar o cenário da saúde no país.

E você, ao destinar até 6% do seu Imposto de Renda para os projetos do maior


hospital pediátrico do Brasil, pode contribuir para mudar essa realidade, de
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