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ALÍVIO MOMENTÂNEO O SUPREMO PLURAL MINO CARTA RESENHA AS OBRAS

ARQUIVA UM PROCESSO POR CORRUPÇÃO DO COMPATRIOTA ITALO CALVINO, GIGANTE


CONTRA LIRA. MAS O ESCÂNDALO DOS DA LITERATURA EDITADO INTEGRALMENTE
KITS DE ROBÓTICA ATORMENTA O DEPUTADO NO BRASIL NO ANO DE SEU CENTENÁRIO
ANO XXVIII N° 1263 R$ 31,90
14 DE JUNHO DE 2023

DESM O
RON
AND STF CONCEDE SALVO-CONDUTO

O
AO ADVOGADO RODRIGO TACLA DURAN
E UM ANTIGO COLABORADOR DO EX-JUIZ
BOTA A BOCA NO TROMBONE
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14 DE JUNHO DE 2023 • ANO XXVIII • N° 1263

Sintoma da crise no Rio,


o fluxo de passageiros
no Galeão despencou a
menos da metade. Pág. 22

6 A SEMANA 29 M AT O G R O S S O Grileiros
9 MARJORIE MARONA invadem assentamento Nosso Mundo
regularizado pelo Incra Mulheres
38 P A L E S T I N A

Seu País 32 E N T R E V I S TA O Brasil enfrentam preconceitos


16 P O D E R Mesmo com ignora a urgência climática, e tensão bélica em busca
diz Tapi Yawalapiti, porta- do sonho de jogar futebol

Plural
o alívio dado pelo STF,
Arthur Lira se vê forçado -voz dos povos do Xingu Em enclave na
42 M I A N M A R
a ceder na queda de braço fronteira com a Tailândia,

48
com o governo Economia rebeldes sobrevivem
20 B E L L U Z Z O Entre Lula à margem da ditadura
O País cresce acima
34 P I B M AURO PIMEN T EL /A FP E UL F A NDERSEN /AURIM AGE /A FP
e Arthur Lira, a Folha de do esperado no trimestre, 46 K O S O V O As eleições
AS MAGIAS
S.Paulo opta pelo segundo mas só o aumento da locais destampam o DE CALVINO
22 R I O D E J A N E I R O O estado
demanda vai superar os caldeirão de xenofobia
corre risco de colapso dados da política monetária e ressentimentos
em serviços essenciais NÃO SE TRATA DE UM ILUSIONISTA,
26 A L A G O A S No Semiárido, MAS DE QUEM ENXERGA O QUE OS
projeto apoia agricultores OUTROS NÃO VEEM. POR MINO CARTA
para evitar o êxodo rural 52 T H E O B S E R V E R A série Succession
O “ESPIÃO” FALA conquista uma façanha nada desprezível
54 I D E I A S O Brasil virou um laboratório
Capa: Pilar Velloso. Fotos: TONY GARCIA É OUTRO ALVO DA da desesperança para os países centrais
André Coelho/Getty Images/
AFP e Mateus Bonomi/ LAVA JATO A EXPOR OS MÉTODOS 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por Arthur Chioro
Anadolu Agency/AFP DE SERGIO MORO E COMPANHIA 58 C H A R G E Por Venes Caitano

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4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) Isso precisa mudar. A guerra às
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
drogas é uma falácia. Pegam os
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis usuários e os pequenos traficantes, mas
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FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
nunca chegam aos proprietários dos
REVISOR: Hassan Ayoub aviões repletos de cocaína e maconha.
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim, Então a quem interessa a proibição?
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RETALIAÇÃO
Estão acusando o juiz Eduardo
CARTA ONLINE Appio com o mesmo modus
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EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
Lava Jato. O objetivo é fazer a operação
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ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
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SITE: www.cartacapital.com.br Lula precisa desvencilhar-se das
amarras dos parlamentares reacioná- ECLIPSE
rios e do coronel-deputado Arthur BOLIVARIANO
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
Lira. Deve fazer o que tem de ser feito, Nicolás Maduro enviou
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País do atraso, imitando um certo tais de Manaus no auge da crise do
PUBLISHER: Manuela Carta
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Luiz Vanhoven Manoel Albuquerque
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A Semana
Na mira da CVM
Supremo/
Os empresários Sergio Rial
e João Guerra, ex-presidentes
da Lojas Americanas, agora
Zanin dentro
são réus no processo que Indicado por Lula à vaga deixada
investiga as inconsistências
por Lewandowski, o advogado deve
contábeis reveladas pela
varejista, dentro de uma ação ser sabatinado na próxima semana
imposta pela Comissão
de Valores Mobiliários. Os

A
executivos são acusados
de infringir determinações pós uma reunião, na terça-feira 6,
da Lei das S.A., da qual Rial com o presidente da Comissão de
teria descumprido o trecho Constituição e Justiça do Senado,
que trata do sigilo sobre Davi Alcolumbre, do União Brasil,
qualquer informação que
o líder do governo na Casa, Jaques Wagner,
ainda não tenha sido
divulgada para conhecimento do PT, afirmou que a sabatina do advogado
do mercado. Já Guerra, que Cristiano Zanin na CCJ deverá ocorrer já na
segue na função de diretor, próxima semana. Ao longo da semana, Zanin,
é acusado de ignorar o artigo que defendeu Lula nos processos da Lava Ja-
que trata da obrigação de
to e teve seu nome confirmado pelo presiden-
administradores de uma
companhia de comunicar te para ocupar a vaga aberta pela aposentado-
qualquer fato relevante ria do ministro Ricardo Lewandowski no Su- A relação de confiança criada durante a
ocorrido nos seus negócios. premo Tribunal Federal, intensificou o conta- tormenta da Lava Jato pesou na decisão
Em nota, a empresa informou to com os senadores.
colaborar com as autoridades.
Ao contrário do que aconteceu com o mi- ocorram sem maiores dificuldades. O pró-
nistro André Mendonça, indicado pelo ex- prio Lula tratou do tema com os líderes da
-presidente Jair Bolsonaro e último magis- base no Senado. A orientação é evitar que a
trado a ingressar do STF, após ser cozinhado oposição, que contará com figuras como Ser-
em banho-maria por Alcolumbre durante gio Moro, do Podemos, e Flávio Bolsonaro, do
meses, a expectativa no caso de Zanin é de PL, não transforme a sabatina em um palan-
que a sabatina e a confirmação da indicação que para ataques ao governo.

Câmara/ DALLAGNOL FORA


A MESA DIRETORA DA CASA CONFIRMA A CASSAÇÃO DO DEPUTADO FICHA SUJA

A Mesa Diretora da Câmara corregedor da Câmara, depu- dias que antecederam a cassa-
declarou formalmente, na ter- tado Domingos Neto, do PSD, ção, ele se dividiu entre a apre-
ça-feira 6, a perda do mandato foi acompanhado pelos de- sentação de sua defesa à Cor-
do deputado federal Deltan mais integrantes da Mesa. regedoria, a tentativa frustra-
Dallagnol, do Podemos. O ato O ex-procurador, segundo o da de organizar atos em apoio
oficializou a decisão unânime TSE, antecipou a saída do Mi- próprio e a corrida aos gabine-
do Tribunal Superior Eleitoral, nistério Público para escapar tes em busca de um redentor
que em 6 de maio determinou de sindicâncias e reclamações apoio dos colegas deputados,
a cassação do registro de can- disciplinares que poderiam in- que acabou não vindo. Após a
didatura do ex-coordenador viabilizar a sua candidatura à decisão, o agora ex-deputado
da força-tarefa da Lava Jato Câmara – uma forma de frau- foi orientado a entregar suas
O ex-procurador confiava em uma em Curitiba. O parecer contrá- dar a Lei da Ficha Limpa, que credenciais de parlamentar e a
grande mobilização para mantê-lo rio a Dallagnol, elaborado pelo Dallagnol tanto defendia. Nos esvaziar seu gabinete.

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14.6.23

Goodbye, girl
Amazônia/ Recado aos ruralistas from Ipanema
Após os reveses na Câmara, Lula lança o plano para zerar o desmatamento
Ícone da Bossa Nova
que consagrou a canção

U
Garota de Ipanema em inglês,
ma semana após a Câmara dos
a cantora e compositora
Deputados esvaziar as atribui- Astrud Gilberto morreu na
ções dos ministérios do Meio segunda-feira 5, aos 83 anos,
Ambiente e dos Povos Indígenas, na Filadélfia, onde morava.
o presidente Lula lançou, na segunda-feira 5, Astrud foi casada com
João Gilberto, com quem
a nova edição do Plano de Ação para Preven-
gravou, em 1963, o premiado
ção e Controle do Desmatamento na Amazô- disco Getz/Gilberto, que
nia Legal, o PPCDAm. O documento inclui 12 conquistou o Grammy na
objetivos estratégicos, cujos resultados de- categoria Álbum do Ano.
vem ser alcançados por meio de 194 linhas de Em 1965, Girl from Ipanema
ganhou o Grammy de
ação. Um deles prevê o cancelamento de to-
Gravação do Ano, canção
dos os registros irregulares de Cadastro Am- que fez da Bossa Nova
biental Rural (CAR) sobrepostos a terras pú- um movimento musical
blicas e unidades de conservação até 2027. reconhecido
O plano está fincado numa política ambien- internacionalmente.
Astrud morreu em casa,
tal transversal, a envolver também a Casa Ci-
depois de um mal-estar
vil e os ministérios da Agricultura, do Desen- O trabalho interministerial será
digestivo seguido de
volvimento Agrário, da Indústria, da Defesa, e coordenado por Marina Silva
complicação cardíaca.
da Justiça e Segurança Pública. A coordena- Ela deixa dois filhos e duas
ção dos trabalhos ficará a cargo da ministra ção, o PPCDAm foi criado em 2004, ainda no netas. O corpo da artista
foi cremado nos EUA.
Marina Silva, que o governo pretende fortale- primeiro governo Lula, e reeditado até 2018.
cer após os reveses sofridos no Legislativo. Ao assumir, em 2019, Jair Bolsonaro o inter-
O novo texto divide o PPCDAm em quatro rompe, como parte da política antiambiental
eixos: atividades produtivas sustentáveis, mo- impressa por seu governo. A grande meta do
nitoramento e controle ambiental, ordena- plano é zerar o desmatamento na Amazônia
mento territorial e fundiário e instrumentos até 2030, compromisso assumido pelo Brasil
normativos e econômicos. Em sua quinta edi- na Conferência do Clima das Nações Unidas.

Champions League/ BOLA DE OURO


SE A FIFA FIZER JUSTIÇA, O PRÊMIO FICARÁ COM UM DESTES NOTÁVEIS ATLETAS
J O E D S O N A LV E S /A B R , R E D E S S O C I A I S , B R U N O
S PA DA /AG . CÂ M A R A E RICA R D O S T U CK ER T

Sábado, dia 10 de junho, será cubra por conta própria”. É caram de forma decisiva
disputada a final da certa uma assistência maciça, as atuações do time inglês,
Champions League entre os sem contar a audiência de rá- treinado por Pep Guardiola,
classificados Manchester City dios e televisões, celulares, e e do italiano, comandado por
e Internazionale de Milão. Aos por aí afora. É certo também Simone Inzaghi. Se ambos
torcedores, vencedores ou que surgirá aí o Bola de Ouro mantiverem a primazia, os
perdedores, e a quem queira da temporada. Espera-se que amantes do melhor futebol
visitar Istambul, palco da par- a Fifa abandone o vezo de pre- gostariam muito se a bola re-
tida, vale uma sugestão de miar os goleadores, em lugar luzente coubesse ao belga
Umberto Eco: “Trate de per- daqueles que realmente man- Kevin De Bruyne, do time in-
der-se em uma das cidades daram em campo. glês, ou ao italiano Nicolò De Bruyne e Barella marcaram
mais bonitas do mundo, a des- Dois meio-campistas mar- Barella, do quadro milanês. a atuação das equipes finalistas

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A Semana

Pence na disputa
Geopolítica/Guerra nem tão fria
Ex-vice-presidente,
o republicano Mike Pence
A escalada da hostilidade entre Washington e Pequim
anunciou na segunda-feira
5 a intenção de disputar as
primárias do partido contra
seu antigo colega de chapa,
Donald Trump, favorito
a representar a legenda
nas eleições presidenciais
de 2024. Para a base
radicalizada de apoiadores
de Trump, Pence tornou-se
um traidor após ter se
recusado, em 2020,
a endossar as teorias
conspiratórias a respeito
dos resultados das urnas

F
e a aderir às manobras
fraudulentas que pretendiam oi um aceno ou uma advertência? mais um, entre as duas nações. Washington
promover a recontagem Em seu primeiro discurso desde acusa um navio de guerra chinês de realizar
de votos em alguns estados.
a nomeação para o cargo, duran- manobras “inseguras” perto de embarca-
Pence resistiu à pressão
e homologou a vitória te uma cúpula de segurança em ções militares dos EUA e do Canadá no Es-
do democrata Joe Biden. Cingapura, o ministro da Defesa da China, treito de Taiwan. Pequim, por sua vez, criti-
Os debates internos Li Shangfu, afirmou que uma guerra com cou a “provocação deliberada” do outro la-
do partido prometem. os Estados Unidos seria um “desastre insu- do. Os norte-americanos, afirmou Shangfu,
portável” para o planeta. Segundo Shangfu, têm uma “mentalidade de Guerra Fria” e o
certos países estimulam a corrida arma- comportamento “aumentava muito os ris-
mentista na Ásia, mas o mundo é grande o cos de segurança”. Em 2018, os Estados Uni-
suficiente para a coexistência entre chine- dos impuseram sanções ao general e minis-
ses e norte-americanos. O ministro, que as- tro chinês por causa da compra de equipa-
sumiu o posto no início deste ano, discursou mentos militares da Rússia, o que dificulta
na sequência de um incidente diplomático, o diálogo entre as partes.

Argentina/UM PROCESSO A MENOS A N D R É T. R I C H A R D / U S N AV Y / A F P E R E D E S S O C I A I S

CRISTINA KIRCHNER É ABSOLVIDA DA ACUSAÇÃO DE LAVAGEM DE DINHEIRO

Após uma série de notícias ne- da acusação de lavagem de após quase cinco anos desde
gativas, entre elas a condena- dinheiro, em um esquema a imputação dela nesta ação,
ção a seis anos de prisão por conhecido como a “Rota K”. não consegui reunir provas
corrupção, os péssimos indi- Na mesma investigação, que me levem a sair do estado
cadores econômicos e a de- o empresário Lázaro Báez, pi- de suspeição e avançar para
sistência de seu parceiro de vô do caso, foi condenado a outra etapa processual”, ad-
chapa, Alberto Fernández, 10 anos de detenção. O juiz mitiu o promotor Guillermo
de concorrer à reeleição, acatou a recomendação do Marijuan. Em maio, Kirchner
a senadora e vice-presidente Ministério Público, que, pas- anunciou a desistência
argentina, Cristina Kirchner, sada uma década, não conse- de concorrer à Presidência
experimentou um raro mo- guiu demonstrar o crime. da República em outubro.
A senadora e vice-presidente mento de alívio. Na segunda- “Mesmo com a clareza do vín- O peronismo está
não irá se candidatar em outubro -feira 5, a Justiça a absolveu culo entre Báez e Cristina, mergulhado em uma crise.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
MARJORIE MARONA
Professora do Departamento de Ciências Políticas da
UFMG. É coautora de A Política no Banco dos Réus: a
Operação Lava Jato e a Erosão da Democracia no Brasil

Zanin e as circunstâncias
no (quiçá da democracia), a considerar-se doxalmente, embora seja um advogado co-
► A indicação do a agenda à disposição da Corte, sem que nhecido e tenha atuado em casos de desta-
advogado ao STF vem seja necessário sequer projetar o que ain- que, há quem aponte para sua falta de ex-
da virá a bater à porta. Não qualquer alia- periência e qualificação jurídicas em com-
prenhe da contradição do, mas alguém que disponha do reconhe- paração com outros candidatos à vaga.
dos nossos tempos cimento dos demais ministros, da expe- De fato, os ministros tendem a ser leais
riência do trânsito no Supremo, como um aos presidentes que os indicaram, espe-
ativo, para que se concretizem, de fato, as cialmente quando há um alinhamento

A
confirmação de Cristiano possibilidades de interações colegiadas ideológico entre eles, de modo que se po-
Zanin para o STF reacende o positivas sob a perspectiva do governo. de esperar que Zanin esteja mais inclina-
debate acerca das relações en- Os critérios escolhidos pelos presiden- do a apoiar a agenda e as preferências po-
tre política e Justiça. No Brasil, assim tes variam, portanto, de acordo com o con- líticas defendidas pelo governo do presi-
como em outros países latino-america- texto político, ainda que sob a base de al- dente que o nomeou, impactando o de-
nos, o processo de composição das cortes guns consensos. Os indicados devem pos- sempenho da Corte. Para além de todas
constitucionais é político, com marcada suir sólida formação jurídica e experiência as prerrogativas constitucionais de que
participação do presidente, responsável profissional relevante, exibir conduta éti- gozam os magistrados e os tribunais em
pela indicação daquele que virá a ser sa- ca exemplar e reputação ilibada, mas isso respeito ao princípio da independência ju-
batinado pelo Legislativo. A relevância ainda deixa uma larga margem de mano- dicial, dois aspectos, ao menos, relaciona-
que a coalizão alcança, dada a peculiari- bra. O próprio presidente Lula em manda- dos à própria dinâmica política associada
dade do presidencialismo tupiniquim, é, tos anteriores privilegiou critérios de di- ao comportamento decisório dos minis-
porém, só comparável com a importân- versidade e representatividade em detri- tros, afastam o risco de cooptação do tri-
cia do próprio processo, considerando o mento de considerações acerca da compa- bunal pelo presidente. Em primeiro lugar,
enorme impacto político da atuação do tibilidade ideológica, partilha de valores as preferências e posicionamentos polí-
Supremo por estas bandas. Isso releva o públicos e percepções políticas comuns da ticos dos ministros evoluem ao longo do
quadro institucional complexo do pro- realidade que dão conta das preocupações tempo, à medida que adquirem experiên-
cesso de indicação de um ministro para o com a governabilidade. A avaliação do mo- cia, envolvendo-se na política da própria
STF. O governo que se vire entre as suas mento político atual deu, porém, força à Corte, possibilitando um distanciamen-
preferências, as exigências da coalizão e construção da governabilidade. to das tendências do presidente que os no-
a pressão da opinião pública, em um con- meou. Ademais, e mesmo que se conside-
texto de protagonismo e hiperexposição As críticas a Zanin se traduzem em re o fato de que, no STF, cada ministro, in-
do tribunal e de seus magistrados. duas ordens de preocupações: com a in- dividualmente, retém muito poder deci-
O nome de Zanin emergiu, portanto, de dependência judicial, relacionadas aos re- sório, é importante destacar a dimensão
um cenário de disputas sobrepostas em clames sobre o suposto viés ideológico do colegiada da Corte, cujo desempenho re-
múltiplas arenas, que afeta as relações de indicado, e com a qualidade do desempe- sulta da atuação de um conjunto de minis-
poder intragoverno, entre os três poderes nho do tribunal, vinculadas ao atributo da tros com visões de mundo e posições po-
da República e, ainda, a relação do gover- expertise, que muitos veem faltar. Zanin líticas diversas e heterogêneas.
no com a opinião pública. Intramuros (de é conhecido como advogado e defensor de A Lava Jato, contudo, nos alerta para
aliados e sua base), Lula enfrentou a pres- políticos e figuras públicas com tendên- o fato de que a politização do Judiciário
são pela adoção de um critério de repre- cias políticas específicas. Tornou-se figu- não é uma estratégia política sustentá-
sentatividade e diversidade (de gênero e ra pública destacada na defesa do presi- vel no médio prazo. É pela política que
raça). Por outro lado, a difícil relação com dente Lula na Lava Jato, o que, segundo se vai dar a reconstrução da democracia
o Congresso tornou inafastável a conside- críticos, ampliaria as chances de enviesa- e de uma agenda emancipatória no País.
ração do critério de governabilidade. Lu- mento ideológico em suas decisões como A indicação de Zanin vem prenhe da con-
B A P T I S TÃ O

la precisa de aliados no Supremo, cujo de- ministro, comprometendo a imparciali- tradição dos nossos tempos. •
sempenho pode selar o destino do gover- dade e a objetividade do tribunal. Para- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 9
CLUBE DE REVISTAS
CA PA

O “ESPIÃO”
da instância à qual se submete a 13ª Va-
ra de Curitiba, onde o então juiz despa-
chava. A razão da chantagem? Os magis-
trados teriam participado e sido gravados
em uma “festa das cuecas” com prostitu-

FALA
tas em uma suíte de um hotel badalado de
Curitiba. Garcia afirma ter participado da
festa, a convite do advogado Sérgio Costa
Filho, organizador da “balada”. Havia de
30 a 40 convidados. “Não conhecia nin-
guém. Fiquei em uma antessala até que o
Sérgio me disse que passasse para o outro
ambiente.” O que viu, diz ele, “foi hilário”.
Alguns convivas trajavam cueca, camisa
TONY GARCIA É OUTRO ALVO DA e gravata. “Fiquei pouco tempo e resolvi
LAVA JATO A EXPOR OS MÉTODOS ir embora.” Segundo Garcia, foi Costa Fi-
lho quem lhe confidenciou a presença de
DE MORO E COMPANHIA desembargadores. O advogado utilizava
uma minicâmera na gravata para gravar
o convescote. O intuito seria reunir mate-
por R EN É RUSCHEL rial contra magistrados do TRF-4.
O vídeo nunca teria sido utilizado em
qualquer processo. Sabe-se de sua exis-
tência, mas permanece escondido até ho-
je. Moro, ao tomar conhecimento da gra-

D
a “República de Curiti- to Richa, Garcia se diz traído e, por isso, vação, decidiu procurá-la, diz Garcia. Or-
ba” restam os escombros. teria decidido revelar sua vida de “espião” denou uma busca no escritório de Cos-
Depois das denúncias de a serviço do ex-juiz. “O Ministério Públi- ta, em Curitiba, mas não encontrou nada.
extorsão do advogado co Federal, depois de me usar por mui- Até o dia em que o empresário comentou
Rodrigo Tacla Duran, tos anos, pediu a quebra do meu acordo. com o magistrado sobre um endereço que
das revelações em livro Por isso trouxe tudo à tona agora”, afir- o advogado usava em São Paulo para guar-
do empreiteiro Emílio mou a CartaCapital. O empresário é uma dar um carro. O juiz teria então mandado
Odebrecht e da entrevis- metralhadora giratória e mistura denún- fazer uma nova busca no apartamento e,
ta do empresário Eduardo Aparecido de cias graves a fatos picantes. Segundo ele, desta vez, diz o “espião”, encontrou docu-
Meira, sócio da construtora Credencial, Moro reuniu farto material com poten- mentos e o vídeo. Em seguida, teria agra-
ao jornalista Luís Nassif, uma nova víti- cial para chantagear desembargadores decido ao delator. “Na mosca, estava tudo
ma veio a público expor os métodos escu- do Tribunal Federal da 4ª Região, segun- lá.” Ao perguntar ao ex-juiz sobre o filme,
sos do ex-juiz Sergio Moro e de outro ex- recebeu uma resposta ríspida: “Isso não
poente da força-tarefa, o ex-procurador é de seu interesse”. “Não sei se fez uso do
Carlos Fernando Santos Lima. A histó- AS DENÚNCIAS DO material, mas que ele estava de posse é
ria de Antônio Celso Garcia, conhecido EMPRESÁRIO verdadeiro”, afirma. O empresário suge-
como Tony Garcia, começa antes da La- re ao Supremo Tribunal Federal e à Cor-
va Jato, estende-se até a operação e reve-
FORAM IGNORADAS regedoria do Conselho Nacional de Jus-
la como Moro, Lima, Deltan Dallagnol e POR DOIS ANOS, tiça diligências em busca das gravações.
associados eram peritos em manipular e ATÉ O JUIZ “Onde estão? Por que não aparecem? Te-
fabricar provas ilícitas, coagir seus alvos, EDUARDO APPIO riam sido usadas para fazer chantagem?
plantar notícias falsas e ameaçar suspei- O que aconteceu em Curitiba é muito
tos. Não se trata de deslizes nem de casos
ASSUMIR A 13ª grave. Agora foi afastado o juiz Eduardo
isolados, muito menos começou em 2012. VARA DE CURITIBA  Appio, que tentava tirar estes esqueletos
Próximo ao ex-governador tucano Be- dos armários, e colocaram uma magistra-

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CLUBE DE REVISTAS

Garcia (abaixo, à esquerda) entregou o amigo


Richa por pressão de Santos Lima e Moro, dupla
que ele conhece de outros carnavais
M A RCELO CA M A RGO/A BR E REDES SOCIAIS
EDILSON RODRIGUES/AG. SEN A DO,

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CLUBE DE REVISTAS
CA PA

da totalmente ligada a Moro”, em referên-


cia à juíza Gabriela Hardt.
Sua prisão anos atrás, diz Garcia, foi
um ato combinado com Moro e Santos
Lima. “Eu tinha o dia determinado para
ser preso e para ser solto.” E o que o réu
precisava dar em troca? Gravar conver-
sas no presídio e dar declarações públicas
contra o juiz e o procurador, uma manei-
ra de disfarçar a condição de informan-
te. Segundo ele, a decisão do TRF-4 pa-
ra libertá-lo foi anteriormente combina-
da, espécie de jogo de cartas marcadas.
Um desembargador iria condená-lo e ou-
tros dois deveriam absolvê-lo. O resulta-
do final foi exatamente esse, 2 a 1. “Sabia,
inclusive, o dia e o resultado do TRF-4.
Moro me informou. Combinamos ainda
uma entrevista assim que fosse liberta-
do. Eu os criticaria, e vice-versa, tudo pa-
ra passar a impressão de briga.” 

V
amos entender a trajetória
de Garcia. Nascido em São
Paulo, o empresário chegou ao
Paraná no início da década de
1980. Em Curitiba, casou-se
com a filha do então governa-
dor Ney Braga, que abriu ao genro o mun- Gabriela Hardt se declara impedida, mas Dirceu, ao se dizer responsável pelo paga-
do dos negócios. Garcia foi trabalhar em pode ser processada por prevaricação mento do mensalão ao MDB. Qual a inten-
uma agência de publicidade que detinha, ção de Moro? Atingir o PT, diz o delator, e,
entre outras, as contas do estado admi- do à época uma ligação de um repórter. Ar- por extensão, o presidente Lula.
nistrado pelo sogro. Da publicidade mi- gumentou que pouco teria a dizer, uma vez Em resposta, o hoje senador negou as
grou para o mercado financeiro ao abrir a que o processo corria em sigilo. O jornalis- acusações de Garcia, chamou-o de cri-
Valtec Distribuidora de Títulos e Valores ta insistiu em vê-lo pessoalmente e o em- minoso condenado e declarou que o em-
Mobiliários, falida em 1984. Acabou pu- presário topou marcar um encontro para presário, “a pedido do MP, com supervi-
nido pelo Banco Central com a inabili- o dia seguinte em seu escritório, quando são da Polícia Federal, resolveu colabo-
tação para atuar no setor, mas obteve na voltou a repetir que não via sentido em fa- rar com a Justiça, ocasião em que foi au-
Justiça a redução da pena. Em 1989, criou o lar. No transcorrer da conversa, percebeu torizado a gravar seus cúmplices”. Moro
Consórcio Nacional Garibaldi. O empreen- que o repórter tinha muitas informações. acrescentou: “Nunca houve qualquer es-
dimento, que também faliu, em 1994, dei- Para ele, só mesmo quem obteve acesso ao cuta clandestina”. 
xou milhares de consumidores na mão. O inquérito ou foi bem orientado poderia sa- Garcia confessa ainda a participação
prejuízo estimado à época chegava a 36 mi- ber de tantos detalhes. Até que o entrevis- em outra tramoia política, o processo de
lhões de reais. O processo por fraude o le- tador disse: “E se eu falar que isso aqui (a impeachment de Dilma Rousseff. Amigo
varia à prisão em novembro de 2004. Neste entrevista) é uma escolha de pessoas que do então presidente da Câmara, Eduardo
momento, conheceu Moro e Santos Lima. estão com você?” Cético, ligou para Santos Cunha, o empresário contribuiria para
Em 2006, Garcia deu uma entrevista à Lima, que confirmou. O jornalista ainda a operação que visava impedir a abertu-
revista Veja, mesma publicação a lhe con- reforçou: “Podemos falar de tudo porque ra de um processo no Conselho de Ética
ceder espaço na sexta-feira 2, negociada os dois estão sabendo”. Foi quando Gar- contra o emedebista. Tucanos como Aé-
pelo juiz e pelo procurador. Diz ter recebi- cia resolveu incriminar o ex-ministro José cio Neves e Carlos Sampaio integravam

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CLUBE DE REVISTAS

o esquema. O tiro saiu, porém, pela cula- empresário, em procedimento sigiloso à


tra, após o deputado Valdir Rossoni ro- juíza Gabriela Hardt, em 2021, fez graves
er a corda e exigir o pagamento de 5 mi- “ESTÁ MUITO acusações contra Moro, Dallagnol, Diogo
lhões de reais para defender Cunha na PERTO DE VERMOS Castro e Januário Paludo, integrantes da
Comissão. Segundo Garcia, por conta de força-tarefa, mas o relato foi ignorado pe-
sua amizade com o então presidente da
ALGUNS PROVAREM la magistrada. Na segunda-feira 5, Hardt
Câmara, teria sido usado pela República DO PRÓPRIO declarou-se suspeita para julgar ações
de Curitiba para colher informações so- VENENO”, DIZ contra Garcia. O empresário avisou que
bre a Petrobras e o PT. GARCIA mesmo assim vai processá-la. Ao engave-
tar por dois anos a denúncia em audiência

E
m 2018, voltaria a agir em favor oficial e com a presença do Ministério Pú-
de Moro, ao gravar conversas blico, argumenta o empresário, a juíza te-
com o amigo Richa. Segundo o segundo réu, depois do doleiro Alberto ria prevaricado. “Quem desengavetou foi
delator, o grupo político do ex- Youssef, a fazer um acordo de delação o doutor Appio, que remeteu ao STF.” Na
-governador recebia propina premiada no Paraná. Agentes da Abin, terça-feira 6, o ministro José Dias Toffoli,
em troca da manipulação das diz, permaneciam todo o tempo ao seu do STF, invocou os autos das denúncias de
licitações de estradas. De acordo com lado, para receber diariamente os nú- Garcia e proibiu tanto a 13ª Vara quanto o
Garcia, o modo de ação de Moro e dos meros de telefones a serem grampeados. TRF-4, alvos das acusações, de tomarem
procuradores no caso do consórcio e du- O deputado federal Rogério Correa, qualquer decisão referente ao assunto.
rante a Operação Lava Jato, uma década do PT de Minas Gerais, apresentou um Aos 70 anos, Garcia, antes calado, pa-
depois, assemelha-se ao de qualquer or- requerimento à Câmara dos Deputados rece disposto a ir até as últimas conse-
ganização criminosa, com a prática con- no qual solicita que Garcia seja convida- quências. “Está muito perto de vermos
tumaz da coação, tortura psicológica e do a “se manifestar e esclarecer denún- alguns provarem do próprio veneno. Tic
ameaças à família dos presos. Comparou cias que tem apresentado como alvo de tac tic tac!!!”, escreveu no Twitter. E suge-
os métodos usados com a prisão norte- coação por servidores do Poder Judiciá- re a criação de uma CPI. “Não pretendo
-americana de Guantánamo. Reconhece rio, para a prática de atos ilícitos na pro- nada com o que trago à tona, senão ter a
que, em 2004, após ter assinado um acor- dução de provas clandestinas, não auto- consciência tranquila de que estou fazen-
do de delação premiada, atuou como es- rizadas no âmbito da Operação Lava Ja- do a coisa certa. Este é o legado que pre-
pécie de agente infiltrado. Garcia foi o to”. O parlamentar lembra ainda que o tendo deixar aos meus filhos.”  •
FÁ BIO RO D RIGU ES P OZ ZEBO M /A B R, M A RCELO CA M A RGO/A B R
E RODOLFO BUHER/L A IMAGEM/FOLHAPRESS

Garcia acusou Dirceu por ordem de Moro. Cunha era um aliado

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CA PA

CADÊ A
do Malucelli figura como sócio do Wolff
& Moro Sociedade de Advogados, escri-
tório do senador e de sua esposa, a depu-
tada federal Rosângela Moro. Após rece-
ber o telefonema “ameaçador”, ele procu-

PROVA?
rou o futuro sogro para avaliar o que fazer,
como o próprio Moro admitiu em entre-
vista à GloboNews. Há tempos, Appio in-
vestiga os abusos cometidos pela Repúbli-
ca de Curitiba, a começar pelas acusações
do advogado Rodrigo Tacla Duran, um ex-
-colaborador da construtora Odebrecht
que acusa Moro e o ex-procurador Deltan
PERÍCIA CONTRATADA PELA DEFESA DE Dallagnol de extorqui-lo em troca de um
APPIO CONTRADIZ LAUDO DA PF E PODE vantajoso acordo de delação.
Não bastasse, o desembargador Mar-
ACELERAR O RETORNO DO MAGISTRADO celo Malucelli, passando por cima de uma
decisão do Supremo Tribunal Federal,
tentou restituir a prisão de Tacla Duran
por RODR IGO M A RTINS logo após ele manifestar a intenção de re-
tornar ao Brasil para apresentar provas
das acusações contra Moro, Dallagnol e
outros próceres da República de Curitiba.
Somente depois de a manobra ser expos-

A
justificativa usada pelo tribunal, por 13 votos a 4, a afastar o juiz da ta, o desembargador reconheceu a pró-
Tribunal Regional Fede- 13ª Vara Federal de Curitiba, antes mesmo pria suspeição para avaliar casos envol-
ral da 4ª Região para afas- de abrir espaço para a defesa se manifes- vendo o futuro sogro de seu filho. Por con-
tar o juiz Eduardo Appio tar. Sem o devido contraditório, o TRF-4 ta da lambança, o corregedor nacional de
da 13ª Vara Federal de determinou ainda a devolução dos compu- Justiça Luís Felipe Salomão decidiu fazer
Curitiba tem pés de bar- tadores e do celular funcional utilizados uma auditoria, batizada de “correição ex-
ro. Em um pedido de limi- pelo magistrado e o proibiu de ter acesso traordinária”, tanto da 13ª Vara Federal
nar encaminhado ao Con- às dependências da Justiça Federal. de Curitiba, ocupada pelo juiz Appio até
selho Nacional de Justiça, o magistrado O magistrado punido recebeu o exíguo o fim de maio, quanto na Oitava Turma
afirma não ser o autor das chamadas tele- prazo de 15 dias para apresentar defesa, do TRF-4, responsável por revisar as de-
fônicas que geraram sua punição, e acres- mas optou por recorrer ao Conselho Na- cisões de primeira instância da Lava Jato.
centou o resultado de uma perícia enco- cional de Justiça. Motivo? Namorado da Para provar que Appio não é o autor do
mendada pela defesa que contradiz o lau- filha do ex-juiz Sergio Moro, João Eduar- fatídico telefonema, seus advogados enco-
do da Polícia Federal usado como “prova” mendaram um novo laudo ao perito Pablo
das supostas ameaças feitas ao filho do Arantes, professor-adjunto do Laborató-
desembargador Marcelo Malucelli. rio de Fonética do Departamento de Le-
Appio é acusado de telefonar para João TOFFOLI CONCEDEU tras na Universidade Federal de São Car-
Eduardo Malucelli, passando-se por um HABEAS CORPUS los, em São Paulo. Segundo o especialista,
servidor da área da saúde da Justiça Fe- PREVENTIVO PARA não há indícios suficientes para sustentar
deral, em 13 de abril deste ano. O diálogo que seja de Appio a voz registrada na gra-
TACLA DURAN
teria sido gravado pelo filho do desembar- vação. A análise da PF, acrescenta, produ-
gador. No fim da conversa, o autor da liga- DEPOR NA CÂMARA ziu um “falso positivo”, influenciado pe-
ção pergunta se João Malucelli “tem cer- CONTRA MORO las constatações de que a voz era masculi-
teza de que não tem aprontado nada”, fra- E DALLAGNOL na e tinha sotaque sulista. “Se tomarmos
se interpretada pelos desembargadores do a população combinada dos três estados
TRF-4 como uma ameaça, o que levou o da Região Sul, as vozes das amostras-pa-

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CLUBE DE REVISTAS

Sem uma prova cabal de que Appio é o


autor do telefonema, parece pouco pro-
O juiz coleciona atritos vável que o pleito seja rejeitado. Vale res-
com o TRF-4 desde que saltar que o TRF-4, rigorosíssimo para
começou a investigar punir o suposto trote, sempre fechou os
os abusos da Lava Jato
olhos para os numerosos abusos cometi-
dos por Moro, quando ele era o titular da
13ª Vara Federal de Curitiba, a exemplo
da divulgação de uma conversa telefônica
da então presidenta Dilma Rousseff fora
do período autorizado judicialmente, do
grampo em 25 ramais do escritório de ad-
vocacia que defendia Lula e da espetacu-
losa condução coercitiva do petista antes
de sequer chamá-lo a depor. Todos esses
malfeitos só foram censurados pelo STF
tempos depois, quando a Corte anulou as
condenações do atual presidente.

O
retorno de Appio é uma notí-
cia indigesta, sobretudo, pa-
ra Deltan Dallagnol, que teve
o mandato de deputado fede-
ral cassado pelo TSE por frau-
dar a Lei da Ficha Limpa – pe-
diu exoneração do cargo de procurador da
República meses antes do prazo exigido
pela legislação eleitoral para escapar da
provável punição em 15 reclamações no
Conselho Nacional do Ministério Público.
Sem foro privilegiado, ele fica mais expos-
to às acusações de Tacla Duran, que aca-
ba de receber um habeas corpus preventi-
vo do ministro Dias Toffoli para depor na
drão questionadas são dois falantes em te último colunista de CartaCapital, sus- Câmara em 19 de junho. Não bastasse, o
um universo de, aproximadamente, 15 tentam que houve violação da cadeia de Conselho Nacional de Justiça abriu uma
milhões de pessoas. Levando em conta custódia das provas, que podem ter sido investigação sobre possíveis irregularida-
que as duas vozes fazem uso de um re- manipuladas. “Os celulares através dos des na gestão de um fundo privado criado
gistro melódico relativamente mais bai- quais foram realizados os supostos diá- em 2019 para gerir multas e ressarcimen-
xo do que a média da população, esse nú- logos nem sequer foram apreendidos ou tos ligados à operação Lava Jato.
mero pode ser reduzido para, aproxima- periciados. Ademais, a violação à cadeia O fundo chegou a receber 2,66 bilhões
damente, 5 milhões, (…), o que, do ponto de custódia assume proporções particu- de reais de uma multa aplicada à Petro-
de vista da possibilidade de um falso po- larmente graves quando se sabe que o Ex- bras nos EUA. A iniciativa foi criada por
sitivo na identificação, é inaceitavelmente celentíssimo Senhor Senador Sergio Fer- meio de um acordo entre a força-tarefa
alto”, registrou no parecer. Arantes é ca- nando Moro reconheceu, explicitamente, da Lava Jato em Curitiba e a Petrobras.
JUSTIÇA FEDERAL/PR

tegórico ao afirmar que “o resultado nem que atuou diretamente nas questões ob- Posteriormente, o ministro Alexandre de
corrobora nem contradiz a hipótese” de a jeto do presente pedido de avocação”, diz Moraes anulou o acerto. O CNJ quer sa-
voz ser de Appio. In dubio, pro reo. um trecho da petição que requer a resti- ber o montante exato depositado à época,
Além disso, os defensores Walfrido tuição do juiz natural na 13ª Vara Federal qual é a atual situação desse fundo e como
Warde, Rafael Valim e Pedro Serrano, es- de Curitiba em caráter liminar. foram geridos os recursos disponíveis. •

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Seu País

O kit Lira
BRASÍLIA Livre de um processo por corrupção, emparedado por
outro escândalo, o presidente da Câmara tenta sair das cordas
POR ANDRÉ BARROCAL

P
or ora, o deputado Arthur outro personagem. A família Catunda, de emendas para kits de robótica em sua ter-
Lira, presidente da Câma- empresários e políticos bem relaciona- ra natal. Em 2021, destinou 32 milhões
ra, não responderá pelo cri- dos com Lira, também desponta em cena.  de reais, conforme o jornal O Estado de S.
me de corrupção. Na terça- Paulo. Do total, 5,8 milhões foram envia-
-feira 6, o Supremo Tribu- Mais: segundo a Controladoria-Geral dos a Canapi, cidade alagoana de 17 mil
nal Federal voltou atrás em um julga- da União, a verba desviada em Alagoas habitantes. A Operação Hefesto, levada
mento iniciado em 2019 e arquivou um saiu do Fundo Nacional de Desenvolvi- adiante em 1o de junho pela PF e a CGU,
processo contra o alagoano. Pesou na mento da Educação, órgão do Ministé- constatou que no município houve su-
decisão a mudança de posição da Procu- rio da Educação, e havia sido incluída no perfaturamento na aquisição de kits de
radoria-Geral da República, autora de caixa do FNDE, entre 2019 e 2022, “no- robótica. O prefeito, Vinícius Filho, inte-
uma acusação feita em 2018 a Lira base- tadamente por meio de emendas parla- gra o partido do parlamentar, o PP.
ada na apreensão de 106 mil reais com mentares”. Essas emendas são recursos A legenda assumiu o controle do FNDE
um assessor do parlamentar em um ae- inseridos por deputados e senadores no em 2020, segundo ano de Jair Bolsonaro
roporto. O dinheiro seria parte de um orçamento federal. Lira providenciou no poder. Ao negociar o apoio do “Cen-
suborno, alegava o Ministério Público.
Há dois meses, a Procuradoria desistiu
do caso. Dias depois, Lira dizia a um jor-
nal que, a depender dele, Augusto Aras
seria “renovado no cargo” de procura-
dor-geral. A acusação tinha partido da
antecessora de Aras no cargo, Raquel
Dodge. O mandato do atual “xerife” ven-
ce em setembro e seu substituto será es-
colhido pelo presidente Lula.
Apesar da boa notícia, Lira não pode
dormir tranquilo. As investigações da
Polícia Federal sobre fraudes de ao me-
nos 8 milhões de reais na compra de kits
de robótica para escolas públicas de Ala-
goas alcançam gente próxima ao deputa-
do, a começar por Luciano Ferreira Ca-
valcante, velho colaborador, e seu pai, Be-
nedito de Lira. Murilo Sérgio Juca No-
gueira Jr., que trabalhou na campanha do
presidente da Câmara no ano passado, é Subterrâneo. O motorista de Cavalcante recolhia dinheiro, segundo a PF

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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TAMBÉM pág. 22
NESTA Rio de Janeiro. Em crise, o
SEÇÃO estado corre o risco de colapso
de serviços essenciais
M A RCELO CA M A RGO/A BR E REDES SOCIAIS

Não é comigo? Apesar do envolvimento de assessores, aliados e até do pai, o deputado nega qualquer responsabilidade no esquema

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Seu País

Afrodisíaco.
Além de pilhas
de reais,
os policiais
encontraram
neste cofre
genéricos
de Viagra

trão”, bloco na Câmara liderado à época ficaram encaixotados. Os lucros obtidos la parecia vazia. Naquele dia, Cavalcan-
por Lira, Bolsonaro botou à frente do fun- pelo esquema eram repartidos por meio te estava hospedado no mesmo hotel do
do o então chefe de gabinete do senador de “um meticuloso e intrincado esque- encontro na garagem.
Ciro Nogueira, do Piauí. Nogueira era e ma de lavagem de capitais, utilizando-se Lira demitiu Cavalcante da lideran-
continua a ser presidente do PP. Seu au- de diversas pessoas físicas e jurídicas, de ça do PP na Câmara um dia após a ba-
xiliar no comando do FNDE, Marcelo Lo- diferentes estados da Federação, visan- tida policial de 1o de junho. O degolado
pes da Ponte, trabalha desde março no ga- do ocultar os verdadeiros destinatários havia sido secretário parlamentar do
binete de outro senador da agremiação, dos valores e bens obtidos irregularmen- pai do alagoano, Benedito de Lira, en-
Laércio Oliveira, de Pernambuco, um te”. Cerca de 40 pessoas físicas e jurídicas tre 2003 e 2010. À época, Benedito era
dos quatro estados em que houve busca investigadas tiveram os sigilos bancário deputado federal, cargo para o qual o fi-
e apreensão em 1o de junho (os outros fo- e fiscal quebrados pela Justiça Federal. lho foi eleito pela primeira vez em 2010.
ram Alagoas, São Paulo e Distrito Fede- Em algum momento depois de trabalhar
ral). O fundo possui orçamento gordo: en- Um dos “destinatários” do dinheiro com Benedito, Cavalcante migrou para
tre 2020 e 2022, dispunha de 86 milhões era Cavalcante, homem da confiança de a liderança da legenda. O que não o im-
de reais. São mais 53 bilhões neste ano. Lira. Falta saber se os recursos serviam pediu de dirigir em Alagoas outra sigla,
De acordo com a CGU, a engrenagem apenas para uso próprio do auxiliar ou o União Brasil. Comando exercido para
criminosa funcionava assim: licitações se chegaram ao chefe. Em 17 de maio colocar o partido a serviço de Lira, depu-
municipais realizadas para adquirir kits passado, a PF flagrou o motorista de tado alagoano mais votado em 2022. O
de robótica enviados a escolas alagoanas Cavalcante em um encontro suspeito na segundo foi um candidato do UB, Alfre-
eram fraudadas. O ganhador em geral era garagem de um hotel em Brasília. Wan- do Gaspar, ex-procurador-geral de Ala-
uma mesma empresa, a Megalic. Os va- derson Ribeiro Josino de Jesus estava goas que tinha apurado no passado um
lores definidos na concorrência esta- em um carro preto quando, às 16h24, um esquema de corrupção na Assembleia
vam muito acima do preço real dos equi- homem entrou no veículo com uma sa- Legislativa e conseguira a condenação
pamentos. As quantidades compradas cola, na qual havia dinheiro em espécie, de Lira em duas instâncias judiciais. O
também eram superiores às necessida- conforme os policiais. Quando o homem presidente da Câmara disputou as elei-
des das escolas – e vários equipamentos saiu do carro, um minuto depois, a saco- ções de 2018 e 2022 graças a uma limi-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

nar do Superior Tribunal de Justiça, que Em meio às ra. João Catunda elegeu-se pelo PSD, mas
suspendeu sua condição de “ficha suja”. trocou de partido e, no ano passado, con-
Mesmo em outro partido, Cavalcan-
denúncias, Lira correu a deputado federal pelo PP de Lira. 
te deixou um automóvel à disposição da parece buscar Resumo da ópera: Lira assinava
campanha de Lira em 2022, uma picape trégua na relação emenda parlamentar destinada ao pa-
Amarok, conforme a prestação de contas com Lula gamento de kits de robótica para esco-
do deputado à Justiça Eleitoral. Lira de- las alagoanas. As licitações municipais
clarou na papelada que o empréstimo do eram viciadas e beneficiavam um for-
veículo equivaleu a uma doação de 4 mil necedor, a Megalic. A empresa repassa-
reais. Na campanha, ele usou empresta- va parte do dinheiro da venda a inter-
da outra picape (uma Hilux, igualmente nheiro, e sempre em quantias fraciona- mediários, inclusive em Brasília, aonde
estimada como doação de 4 mil) perten- das, maneira de evitar que os bancos in- a bufunfa chegava, entre outros, a um
cente a mais um alvo da investigação so- formassem as operações às autoridades. homem da confiança do presidente da
bre kits de robótica: o policial civil e em- Os recursos do esquema chegavam Câmara. Não é de se estranhar que, logo
presário Murilo Sérgio Nogueira Jr. Em às empresas do casal por intermédio da após a batida policial de 1o de junho, Li-
janeiro passado, a PF flagrou a Hilux a Megalic, firma vencedora de quase to- ra tenha falado com o ministro da Jus-
transportar dinheiro oriundo do esque- das as licitações fraudadas em Alagoas. tiça, Flávio Dino (por telefone e pesso-
ma com kits de robótica, de acordo com a Sediada em Maceió, ela não fabrica os almente), e com o diretor-geral da PF,
Folha de S.Paulo. No cofre de um escritó- equipamentos, é apenas intermediá- Andrei Rodrigues (por telefone), embo-
rio de Nogueira Jr. em Alagoas, os poli- ria na venda. Seus donos são Edmundo ra diga em público não ter nenhuma re-
ciais encontraram cerca de 4 milhões de Leite Catunda Jr. e Roberta Lins Costa lação com as falcatruas. Curioso: a ban-
reais em espécie. Antes da batida, a Justi- Melo. Catunda Jr., de 45 anos, é de uma dalheira acontecia pertinho do podero-
ça Federal havia bloqueado 8 milhões em família de políticos próxima a Lira. O pai, so presidente da Câmara e ele não sabia
contas bancárias e imóveis dos investiga- Edmundo, de 65 anos, também é empre- de nada? Aliás, todos os implicados na
dos, equivalente ao valor desviado, pelas sário. Pai e filho concorreram ao cargo investigação se declaram inocentes. 
contas da CGU até o momento. de vereador em Maceió em 2012. João Da eleição de 2018 para a de 2022, o
Catunda, de 27 anos, é filho de Júnior patrimônio informado por Lira à Jus-
Além das quebras de sigilo bancário e e vereador na cidade desde 2020. Inte- tiça Eleitoral cresceu, de 1,7 milhão pa-
fiscal, das buscas em diversos endereços gra a bancada de apoio ao prefeito João ra 5,9 milhões de reais. Até o momento,
e do sequestro de bens, a Justiça havia Henrique Caldas, do PL, um aliado de Li- ele não é, porém, alvo direto da investi-
decretado duas prisões temporárias. Os gação sobre os kits de robótica. Se fosse,
atingidos foram Pedro Magno Salomão o inquérito teria de correr no STF, por
Dias e Juliana Cristina Batista Salomão conta do foro privilegiado. De qualquer
Dias, jovem casal dono de várias empre- forma, é um pano de fundo embaraço-
sas em Brasília. A dupla já foi solta. Dias so para o deputado e foi nessa condição
é o homem da sacola que, em maio, en- que ele se encontrou na segunda-feira
contrara na garagem de um hotel o mo- 5, pela quarta vez no ano, com o presi-
torista do antigo colaborador de Lira. O dente Lula, a fim de discutir a relação
casal parece ser peça-chave no “meticu- entre o Congresso e o governo. Embo-
loso e intrincado esquema de lavagem ra aparentemente manso, Lira tem for-
de capitais” que a engrenagem crimino- ça para atrapalhar o petista. O presiden-
sa em Alagoas montou, nas palavras da te queria conversar no mesmo dia com
CGU, com “diversas pessoas físicas e ju- alguns líderes partidários e não conse-
rídicas de diferentes estados da Federa- guiu, o deputado levou-os para São Pau-
REDES SOCIAIS E PF

ção, visando ocultar os verdadeiros des- lo. O alagoano disputa com Lula cora-
tinatários dos valores e bens obtidos ir- ções e mentes dos parlamentares. Lu-
regularmente”. A PF tem imagens de câ- ta por influência. Quanto menor ela for,
meras de segurança de agências bancá- Entorno. Nogueira trabalhou maiores serão seus problemas no Con-
rias, nas quais o casal aparece a sacar di- na campanha de Lira gresso. E na Justiça. •

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 19
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Seu País

Domingo na
ros – destinada a garantir o valor exter-
no da moeda – sem ligar a mínima para
o que iria acontecer com o nível de em-

Barão de Limeira
prego ou com os salários dos trabalhado-
res. Até mesmo os partidos operários, em
formação, se colocavam de joelhos dian-
te dos mecanismos do padrão-ouro, que
TENDÊNCIAS Os bacanas “racionais” garantiam a estabilidade das moedas na-
cionais. A moeda era um ídolo intocável.
e seus porta-vozes na mídia tratam A ampliação da presença das massas
opositores como casos de manicômio trabalhadoras nas cidades e a conquis-
ta do sufrágio universal foram trans-
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO formando em problemas sociais fatos
que antes eram considerados resultados

D
da conduta irregular dos indivíduos. A
omingo, 4 de junho, os bra- dução e da renda em bases duradouras. ideia de desemprego como fenômeno so-
sileiros acordaram ilumi- O novo regramento orçamentário, que cial produzido pela operação imperfeita
nados por advertências do tramita no Congresso com o aval das for- de mecanismos econômicos é muito re-
editorial que repousava na ças fisiológicas, estabelece apenas limites cente. Ainda no final do século XIX, o de-
primeira página do jornal débeis ao avanço da despesa, sem oferecer semprego era confundido com a vagabun-
Folha de S.Paulo. Defensor impertérrito uma perspectiva confiável de contenção da dagem, inabilitação, ou simples má sorte.
da liberdade de expressão, meu filho Car- dívida pública, hoje já em patamares exa-
los Henrique levou-me a peça no forma- gerados para uma economia emergente”. Naqueles tempos, os detentores de
to impresso. Pediu minha opinião.  Em minha livre opinião, esta sele- riqueza sabiam que, diante de qualquer
Senti-me desimpedido para exercer ção de parágrafos sintetiza o Pensa- perturbação, a ação dos Bancos Cen-
a liberdade que a Constituição de 1988 mento da Folha. Sublinho aqui a ex- trais se inclinaria claramente na dire-
concedeu aos cidadãos brasileiros e às pressão Pensamento da Folha em res- ção de uma defesa da paridade das moe-
empresas de comunicação. Nessa maté- peito à advertência que encima os das nacionais com o ouro. O padrão-ou-
ria, imagino desfrutar das mesmas prer- editoriais – O Que a Folha Pensa.  ro era uma instituição socialmente cons-
rogativas do matutino paulista. Vou exercer a ousadia de pensar além truída, cuja viabilidade dependia funda-
Sendo assim, fico à vontade para sele- do horizonte de compreensão do cente- mentalmente da confiança dos ricos na
cionar trechos do editorial domingueiro:  nário matutino. Hoje são raros os que se ação protetora dos governos, que não ti-
“Dadas as tensões políticas e institu- recordam, mas, no fim do século XIX e nham qualquer compromisso com a de-
cionais que se acentuaram nos últimos alvorecer do século XX, os responsáveis fesa do emprego e dos salários.
anos, será particularmente doloroso – e pela política econômica estavam pouco À medida que a sociedade industrial
perigoso – que nova etapa de retroces- ligando para as consequências sociais capitalista progredia e tomava conta do
so econômico afete diretamente o bem- de seus atos. Os governos eram capazes espaço social e econômico, tornou-se
-estar da sociedade brasileira. O gover- de executar uma elevação da taxa de ju- inevitável a percepção do desemprego
no Luiz Inácio Lula da Silva (PT), infe- como fenômeno social, por parte dos
lizmente, tornou esse risco mais elevado. que sofriam as suas vergonhas. A partir
A aposta na hipertrofia estatal co- de então, esse fenômeno se cristaliza na
mo meio de resolução de conflitos e ca- É possível equilibrar consciência social, como distúrbio e in-
rências, que desde antes da posse se tra- justiça nascidos das disfunções do me-
duz em aumento contínuo e insusten-
as exigências dos canismo econômico. 
tável do gasto público, dificulta o con- grandes proprietários Isto obrigou os governos a dividirem,
trole da inflação, a queda dos juros e, lo- da riqueza e dos cada vez mais, a atenção entre as deman-
go, a retomada do crescimento da pro- homens comuns das domésticas e as medidas de defesa

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Esboços de
um orçamento
mais digno
desencadeiam
ferocidade

da estabilidade da moeda. Nem sempre mitiu durante um bom tempo, entre 1945 suposta racionalidade econômica. Quase
os dois objetivos puderam ser atendidos e 1973, uma convivência generosa entre sempre a “racionalidade” é um pretexto
simultaneamente. Tornaram-se cada vez estabilidade monetária, crescimento rá- para esconder os propósitos reais, ou se-
mais frequentes os conflitos entre a ma- pido e ampliação do consumo dos assala- ja, o domínio sobre os homens comuns e
nutenção de níveis adequados de ativida- riados e dos direitos sociais. suas necessidades. 
de e de emprego e as exigências impostas O sonho durou 30 anos e, à sombra da Os bacanas “racionais” e seus porta-
pela administração monetária. Hoje em Guerra Fria, as classes trabalhadoras do -vozes midiáticos estão sempre dispos-
dia, os governos têm de atender às deman- Ocidente desenvolvido gozaram de uma tos a tratar os opositores e os críticos co-
das populares e muitas vezes elas entram prosperidade sem precedentes. mo casos de manicômio, apostando no
em conflito com a estabilidade da moeda.  acerto e na correção das opiniões que
A experiência histórica mostrou que, No entanto, são cada vez mais fre- professam e das políticas que advogam. 
sob certas circunstâncias, é possível a ma- quentes as arengas dos bacanas e de seus O leitor há de se lembrar de Simão
nutenção de um equilíbrio relativamen- porta-vozes midiáticos, esses porta-vozes Bacamarte, aquele luminar da ciência
te estável e dinâmico entre estas duas das forças impessoais do capitalismo, con- que Machado de Assis imortalizou no
M A RCOS OLIV EIR A /AG.SEN A DO

tendências contraditórias das socieda- tra as tentativas dos simples cidadãos e ci- conto O Alienista. Simão, dedicado estu-
des modernas: de um lado, as exigências dadãs de barrar a marcha do Moloch in- dioso da loucura, encarcerou toda a ci-
dos grandes proprietários da riqueza que saciável e ávido por expandir o seu poder.  dade de Itaguaí, inclusive a sua própria
almejam acumular indefinidamente, de A grita dos sábios da finança é desferi- mulher, na Casa Verde, o manicômio que
outro os desejos dos homens comuns, que da contra os “desvios” da política, os sur- dirigia por delegação da comunidade lo-
aspiram simplesmente a uma vida digna tos de “populismo”. Com esses slogans os cal. Sua perquirição das formas de loucu-
e sem sobressaltos. A formidável arquite- ideólogos pretendem enquadrar, de no- ra chegou a tal perfeição que terminou se
tura capitalista criada no pós-Guerra per- vo, a sociedade na camisa de força de uma recolhendo à casa de loucos.  •

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 21
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Seu País

Falência múltipla
RIO DE JANEIRO Em meio à estagnação
econômica e produtiva, o estado enfrenta
o risco de colapso de serviços essenciais
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L

uem nasceu no Rio de Ja- firmados, as empresas alegam dificulda-

Q
neiro e tem mais de 40 des de operação causadas por problemas
anos certamente se lem- de segurança pública e a criação de um
bra de uma autodeprecia- ambiente hostil aos negócios em conse-
tiva versão da música-hi- quência da paralisia econômica do estado.
no Cidade Maravilhosa,
na qual o bom humor carioca enchia o O Poder Público, por sua vez, demons-
peito para cantar “de dia falta água, de tra dificuldade para encontrar saídas em
noite falta luz”. O tempo passou e, embo- um cenário que combina degradação dos
ra a histórica precariedade dos serviços equipamentos e serviços prestados, fal-
básicos tenha sido atenuada ao longo dos ta de ação adequada por parte das agên-
últimos anos, a cidade e o estado não pa- cias reguladoras e crise estrutural. “Há
raram de crescer, assim como a comple- uma crise específica no Rio de Janeiro,
xidade de seus problemas. Menos de uma o que faz as empresas perderem receita.
década após viver a euforia do cresci- Além disso, o setor público no estado es-
mento econômico nacional, se colocar na tá desestruturado. Por fim, há a questão
vanguarda em projetos de Parceria Pú- da violência e dos territórios controlados
blico-Privada e sentir o gosto da promes- por milícias ou pelo tráfico”, diz o econo-
sa de se tornar um novo cluster industrial mista e professor da UFRJ Mauro Osó-
e tecnológico, o Rio encara a ressaca da rio, especialista em temas ligados ao de-
estagnação econômica e produtiva, agra- senvolvimento econômico fluminense.
vada pelo risco de falência múltipla de Na noite de 2 de junho, ao apagar das
serviços essenciais à população. luzes do prazo legal estipulado em con-
Nos últimos meses, de forma quase si-
multânea, as empresas concessionárias
Light (energia elétrica), Supervia (trens)
e CCR (barcas) ameaçaram interromper No Galeão, o número
seus serviços e abandonar as respectivas de passageiros
concessões. Além disso, um imbróglio que despencou a menos
envolve a empresa concessionária e as três
da metade. Em 2019,
esferas de governo em torno da utiliza-
ção do Aeroporto Tom Jobim, no Galeão, eram 13,9 milhões.
ameaça deixar de vez o Rio sem voos inter- No ano passado, foram
nacionais. Para tentar rever os contratos apenas 5,8 milhões

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Impasse. A operação das barcas


depende de um acordo de 752 milhões
de reais com a CCR, mas o acerto é
questionado pelo Ministério Público

trato, a Light Sesa, que opera no Rio, en-


viou ao Ministério das Minas e Energia
e à Agência Nacional de Energia Elétri-
ca seu pedido de renovação de conces-
são por mais 30 anos. O contrato em vi-
gor, de mesma duração, expira somente
em 4 de junho de 2026, mas uma de suas
cláusulas determina que o requerimen-
to de renovação seja encaminhado pela
empresa concessionária 36 meses antes
de seu término. A holding da Light anun-
ciou este ano dívidas que chegam a 11 bi-
lhões de reais e, desde o início de junho,
entrou em regime de recuperação judi-
cial. No caso do Rio, o pedido não colo-
ca um ponto final nas queixas apresen-
tadas pela empresa em uma lista que in-
clui roubo de fios, roubo de energia (o po-
pular gato) e impossibilidade de acesso
em áreas consideradas de risco. “A reno-
vação antecipada do contrato de conces-
são, revisado para alcançar bases susten-
táveis, é fundamental para que a empre-
sa volte a ter acesso a crédito e ajuste sua
estrutura de capital”, diz Octávio Lopes,
presidente do Grupo Light.

A Aneel solicitou à Light a elaboração


de um plano de ação para o cumprimen-
to de obrigações, como, por exemplo, re-
dução de perdas e reequilíbrio de caixa.
Já a empresa anunciou, na segunda-fei-
ra 5, que propôs à agência reguladora um
reajuste extraordinário de 10% nas tari-
fas para “cobrir prejuízos causados pe-
los gatos”, e afirma que 50% da energia
produzida é atualmente desviada pelas
ligações clandestinas. O último reajuste,
ISTOCKPHOTO

de 7,4%, aconteceu em março. “Não ve-


jo espaço fiscal no governo para absor-
ver parte das perdas com os gatos”, diz

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 23
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Sandoval Feitosa, diretor-geral da Ane-


A Mitsui pretende
el. Ele diz que não há previsão de inter-
venção, pois a concessionária cumpre su-
abandonar a
as obrigações setoriais, mas admite que concessão dos
os “problemas associados à Light são re- trens da Supervia
correntes” e precisam ser enfrentados.
“Pode ser algo ligado à concessão ou às
gestões que passaram pela empresa, não
existe uma causa raiz”, opina. dificuldades de faturamento, uma vez que
Um problema constatado no setor de o aeroporto teve sua circulação de passa-
energia do Rio é a pouca efetividade da geiros reduzida de 13,9 milhões em 2019
Agência Reguladora de Energia e Sanea- para 5,8 milhões no ano passado. Com a
mento Básico (Agenersa). Coautor de um troca de comando no governo federal, en-
projeto de lei que buscava modernizar a tretanto, o CEO internacional da Changi,
agência e aumentar a participação social Eugene Gan, teria anunciado ao Minis-
em seu colegiado, o deputado estadual tério dos Portos e Aeroportos sua inten-
Carlos Minc, do PSB, viu a iniciativa ser ção de voltar atrás e continuar a gerir o
barrada pelo governador Cláudio Castro. Galeão. Apesar disso, a empresa simples-
“Fizemos uma lei bem moderna, mas o go- mente ignorou o prazo estipulado pelo
verno foi à Justiça dizer que não tínhamos ministro Márcio França, esgotado em 31
prerrogativa para tomar qualquer inicia- de maio, para informar se pretende ou não
tiva sobre isso”, diz. Essa lei, acrescenta continuar com a concessão. Caso desista liação, feita pelo auditor Cleiton Rocha dos
o ex-ministro do Meio Ambiente, garan- de administrar o Galeão, a concessionária Santos, é oposta: “Verifica-se que o objeti-
tia a presença dos usuários na composi- deverá imediatamente recolher a outorga vo do primeiro questionamento é enten-
ção da Agenersa e impedia a nomeação de de operação fixada em 1,3 bilhão de reais. der se seria possível a revisão de tal pro-
ex-presidentes do Metrô e da Supervia, cesso mediante novo acordo. Nesse senti-
de deputados e seus indicados. “As agên- Inicialmente, há o entendimento jurí- do, sugere-se a possibilidade de continui-
cias são muito ineficientes e politizadas. dico de que, uma vez aberto o processo de dade do contrato de concessão, retornan-
As agências modernas, em outros países devolução da concessão, este não poderá do-se ao momento imediatamente ante-
e em alguns estados, avaliam metas por ser interrompido. Ainda assim, diante do rior ao da relicitação”, escreveu.
resultado e muitas vezes convertem mul- tamanho do problema que seria reorgani- A bola agora está com Vital do Rêgo.
tas em ações de melhoria dos serviços.” zar do zero um processo licitatório para a Procurado por CartaCapital, o ministro
Já Osório lembra que qualquer cenário gestão do Galeão, o governo decidiu fazer informou por intermédio de sua assesso-
de transformação de um monopólio uma consulta formal ao Tribunal de Con- ria que “ainda não há decisão” e que os do-
público em privado demanda uma agência tas da União sobre a possibilidade de re- cumentos relativos ao processo “não es-
reguladora organizada, com um compe- versão do quadro em caso de permanência tão públicos no momento”. Já o ministro
tente quadro de funcionários. “Sem isso, da Changi. A decisão final do TCU caberá Márcio França informou que “aguarda
haverá dificuldades. As agências regula- ao ministro Vital do Rêgo, relator do caso, a manifestação do Tribunal de Contas
doras do Rio estão muito frágeis e neces- mas ele terá de arbitrar com base em dois da União” para voltar a dar declarações
sitam de concurso público. Essa carên- pareceres bastante distintos emitidos pe- públicas sobre o assunto. A paciência não
cia é outro elemento que explica o mo- la área técnica do Tribunal: “Após a assi- é compartilhada pelo governador do Rio,
mento pelo qual o estado está passando.” natura do termo aditivo de relicitação, a que, na quinta-feira 1º, deu um ultimato
No caso do aeroporto internacional, Administração Pública está vinculada a para que a Changi se manifeste em até 15
o descompasso entre o Poder Público e a dar prosseguimento ao novo processo li- dias: “Chegou a hora de a gente agir e to-
concessionária, controlada pela Changi citatório que se encerra com a extinção do mar uma decisão independentemente do
Airport, é ainda maior. A empresa de Cin- contrato vigente”, avaliou o auditor André que a Changi queira ou não fazer. Não po-
gapura anunciou, em fevereiro do ano pas- de Albuquerque Farias, para quem a con- demos ficar reféns. Se quiserem ir embo-
sado, sua intenção de abandonar a conces- cessionária não pode mais voltar atrás em ra, que vão. Se quiserem se ajeitar, se ajei-
são, 17 anos antes do previsto, devido às seu pedido de desistência. A segunda ava- tem”. Castro diz que o interesse do gover-

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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após o governo determinar a “injeção de


vultosos recursos financeiros” para re-
verter um cenário que inclui péssimo ser-
viço, uma das tarifas mais caras do Bra-
sil (7,40 reais) e um cotidiano de proble-
mas que vai desde o roubo de fios, equi-
pamentos e sinalizações até a ocupação
das plataformas por vendedores de dro-
gas nas estações mais afastadas do Centro
ou próximas de comunidades dominadas
pelo tráfico. No caso das barcas, a empre-
sa CCR quer deixar a concessão por conta
da “redução do número de passageiros” e
do “acúmulo de lixo nas águas da Baía de
Guanabara” que dificultam a operação. O
governo propôs o pagamento de 752,6 mi-
lhões de reais para que a empresa perma-
neça operando as barcas pelos próximos
dois anos, período em que seria realizada
nova licitação, mas o acordo é questiona-
do pelo Ministério Público do Rio.
Sob pressão. Impaciente com a novela da renovação das concessões, o governador
Cláudio Castro cobra um posicionamento claro das empresas que desejam sair do Rio A novela parece longe de acabar: “Há
aspectos combinados que prejudicam a
eficácia de todos esses serviços. Há per-
das derivadas do período da pandemia,
por isso várias empresas que estão amea-
çando entregar suas concessões querem
vantagens”, diz Minc. O parlamentar des-
carta uma ação orquestrada das empresas
contra o Estado: “Não acredito na tese do
complô. Uma parte do que as concessio-
nárias querem é até cabível, porque ho-
je há prejuízos. Mas algumas aproveitam
para exagerar e aí acontece uma queda de
braço com pouca transparência”. A crise
dos serviços de concessão, alerta Mauro
Osório, permanecerá enquanto não for
solucionada a atual “falta de dinamismo
econômico” fluminense: “O Rio teve uma
perda de participação no PIB nacional de
40% e passou da segunda para a sexta po-
sição entre os estados com mais empregos
TÂ N I A R Ê G O /A B R E G O V R J

no é resolver o impasse o quanto antes: “A ma semelhante ao do Galeão no caso que na indústria de transformação, ultrapas-
gente quer que se resolva. Por óbvio, vo- envolve a Mitsui, empresa do grupo japo- sado por Minas, Rio Grande do Sul, Para-
cê ter um dos maiores operadores mun- nês Gumi, terceira a tentar fazer a gestão ná e Santa Catarina. Então, a gente tem
diais saindo daqui não é uma coisa boa pa- dos trens urbanos no Rio nos últimos 25 aqui uma crise específica que afeta o con-
ra o Rio. Mas, se for a solução, paciência”. anos. Em abril, a concessionária anunciou sumo e a demanda e, provavelmente, está
Castro já se prepara para viver proble- sua decisão de abandonar a concessão afetando essas empresas”. •

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 25
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Razões para
perseverar
ALAGOAS No Semiárido, projeto tenta
evitar o êxodo rural com incentivos à
agricultura familiar e uma moeda social
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

U
m projeto que mescla tec- comércio local, as estratégias utilizadas
nologia de agricultura de têm despertado o interesse de toda uma
baixa emissão de carbono geração rural até então sem perspecti-
(TecABC) e estímulo à vas. “Juntamente com as práticas agríco-
economia local tem muda- las tradicionais, o PRS Caatinga promove
do a realidade do Semiárido de Alagoas, uma série de iniciativas para a capacitação
uma das regiões mais afetadas pela de- de jovens, que são muito mais interessa-
sertificação, segundo o relatório do Pai- dos em tecnologias da comunicação, com
nel Intergovernamental de Mudanças o uso de drones, vídeos, celulares. Além
Climáticas de 2021. Com impacto sobre- disso, o simples fato de o projeto ofere-
tudo entre os mais jovens, mulheres e ho- cer instrumentos agrícolas mecaniza-
mens que tradicionalmente abandona- dos, como pequenos tratores e desenvol-
vam a zona rural em busca de uma vida vedores de terras que eliminam o uso da
melhor na cidade grande passaram a re- força humana, tem despertado o interesse
ceber capacitação para atuar como agen- dos mais novos, porque o trabalho já não é
tes de desenvolvimento local, com o ob- mais tão braçal e há mais produtividade”,
jetivo de fortalecer a agricultura familiar explica Pedro Leitão, coordenador-geral
e fixar essas pessoas no campo. Desde se- do PRS Caatinga. “Vamos fixar os jovens
tembro de 2022, também começou a cir- no campo a partir daquilo que o projeto
cular na região a moeda social Caatinga, pode envolvê-los, a tecnologia.”
que tem fomentado a economia dos mu- Executado pelo Instituto Irmã Dorothy,
nicípios de Batalha, Jacaré dos Homens, o curso de agente de desenvolvimento lo-
Jaramataia e Major Isidoro, no sertão cal prepara os jovens para desenvolverem
alagoano, a partir de uma parceria com
o Projeto Rural Sustentável (PRS) Caa-
tinga, fruto de uma cooperação técnica
entre os governos britânico e brasileiro, Novas tecnologias e
com recursos do Banco Interamericano
de Desenvolvimento, para diminuir a
instrumentos agrícolas
emissão de gases de efeito estufa. mecanizados também
Por meio da formação socioambien- contribuem para fixar
tal, do uso de tecnologia e de incentivo ao os jovens no campo

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Caatinga. A adoção de uma moeda social aquece o comércio e gera empregos


dentro das próprias comunidades, favorecendo o desenvolvimento local

alternativas e criarem condições de con- versão da moeda social é de 1 por 1. Ao fim


vivência com o Semiárido de forma sus- do curso, foi contratado pelo Fundo Na-
tentável, numa perspectiva de melhora de cional de Permanência na Terra (Funpet),
vida individual e coletiva, considerando o banco comunitário criado pelo Movimen-
que o campo tem a oferecer. A ideia é de to dos Trabalhadores do Campo (MTC),
que esses jovens sejam protagonistas de com investimento inicial de 100 mil reais.
sua própria história, criando projetos que “Tivemos um primeiro momento da
interfiram positivamente na qualidade de Caatinga, quando foi lançada ano passa-
vida social, econômica e ambiental da lo- do e circulou no comércio local no forma-
calidade. Ítalo Vinícius dos Santos, mo- to de cédula de papel. Agora, estamos na
rador do quilombo Cajá dos Negros, em transição, migrando para uma moeda di-
Batalha, é um dos que se formaram pelo gital, que será utilizada com o auxílio de
programa e classifica como uma “dádiva” um aplicativo próprio. A pessoa vai lá no
a oportunidade que teve para se qualificar comércio, compra e paga com a Caatinga,
e continuar trabalhando no campo. o comerciante pode passar à frente para
fazer circular o dinheiro local ou, então,
“Não precisamos mais deixar nossas se quiser, se dirige à sede do banco e faz a
terras em busca de emprego no Sul do País. conversão para reais. Isto gera um gran-
Recebemos incentivos para continuarmos de benefício para a economia na nossa
no campo e agora contamos também com região, porque, nos municípios peque-
uma moeda própria que representa a força nos e, por vezes, nos bairros, o comércio
e a luta do agricultor, um grande estímu- tem pouco incentivo, o que contribui pa-
lo para a localidade”, ressalta Santos, que, ra que a pobreza continue, já que o pessoal
J O Ã O V I TA L

enquanto estudava, tinha direito a uma recebe todo o dinheiro e vai gastar fora do
bolsa no valor de 200 Caatingas, corres- município, sem aquecer o comércio ou ge-
pondente a 200 reais, uma vez que a con- rar emprego. A moeda social é um impor-

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 27
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tante investimento no desenvolvimento Financiado pelo Caatinga, Francisco Campello, destaca


local”, destaca Adriano Ferreira, coorde- o papel da cooperativa Cheiro da Terra, o
nador do Funpet e dirigente nacional do
Banco Mundial, o braço executor do Funpet na comerciali-
MTC. Além da agricultura familiar, essa projeto estimula a zação dos produtos da agricultura fami-
região já está consolidada como uma im- agricultura de baixa liar no Sertão alagoano a partir do uso da
portante bacia leiteira do sertão do estado. emissão de carbono Caatinga. “A moeda entra para fortalecer
esse processo de comercialização, fazendo
Dados da Rede Brasileira de Bancos com que os produtos saiam diretamente
Comunitários, instituição corresponden- das comunidades para abastecer o merca-
te ao Banco Central que regula as moedas agrícola do bioma que deu o nome à moeda do.” Ele lembra que o maior desafio das or-
sociais, dão conta de que existem no Bra- social e que predomina no Semiárido, ao ganizações que atuam no Semiárido é tor-
sil mais de 120 mil contas nos bancos que mesmo tempo que alavanca as atividades nar possível a convivência na região, a par-
administram moedas sociais e cerca de 15 produtivas numa reorientação dos agri- tir de estratégias sustentáveis, resilientes
mil estabelecimentos comerciais recebem cultores e em um trabalho de conscienti- e de baixo carbono, sem degradar o bioma
esse dinheiro. Cerca de 50 estabelecimen- zação para a necessidade de redução das Caatinga tão castigado pelo clima árido.
tos do Semiárido alagoano estão cadastra- emissões de gases de efeito estufa. Pedro “Nosso objetivo é fazer com que a pro-
dos para receber a Caatinga. Instituição fi- Leitão lembra que o preceito de uma moe- dução orgânica dos pequenos agriculto-
nanceira garantidora da moeda social, o da social é tornar o comércio fluente, den- res e a luta pela convivência estejam inse-
Funpet também trabalha com uma car- tro de uma lógica convergente entre pro- ridas numa agenda maior, que é a questão
teira de microcrédito para cooperativas dutores e comerciantes, beneficiando tan- climática, da conservação da biodiversida-
e agricultores e disponibiliza a abertura to quem vende quanto quem compra. “É de e de combate à desertificação”, salien-
de conta bancária de forma menos buro- uma boa ideia, mas precisa que haja dinâ- ta Campello, acrescentando que a ideia de
crática aos moradores dos quatro municí- mica econômica e de consenso sobre o uso que a caatinga está condenada à seca e à
pios onde a moeda circula. Segundo Fer- da moeda”, diz, lembrando ainda que uma terra rachada é ultrapassada. O gestor res-
reira, os créditos vão de 500 a 3 mil reais, moeda social é capaz de gerar um senti- salta que o Semiárido é hoje um local de
com o objetivo de financiar insumos a ju- mento de identidade entre toda a popula- oportunidades e o jovem já entendeu isso,
ros de 1% ao mês e carência de dois meses. ção envolvida, sejam produtores rurais, fazendo questão de continuar na localida-
A ideia é que a Caatinga possa contri- sejam comerciantes ou consumidores. de, se capacitar e seguir a tradição familiar
buir com a sustentabilidade na produção O coordenador regional do PRS no campo, a partir do uso das tecnologias. •

Sustentabilidade.
J O Ã O V I TA L

Os agricultores usam
técnicas para mitigar
gases do efeito estufa

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Sem-terra na mira
Devastação. A área preservada caiu
a menos da metade da área original

MATO GROSSO Grileiros invadem um te evita contato porque não quer confli-

assentamento regularizado pelo Incra e to, mas também não deixamos eles
avançarem sobre a nossa terra”, explica
destroem milhares de hectares de mata a camponesa, que trabalha também na
cooperativa do movimento.
POR MARIANA SER AFINI Alessandra participou da luta pela re-
gularização fundiária do assentamento,
concluída pelo Incra em 2012, e ajudou

C
na criação da cooperativa que hoje re-
hegaram armados, com balhadores Rurais Sem Terra e morado- presenta a principal forma de comercia-
R A FA EL D M A RQU ES/GOV M T

um mapa em mãos e docu- ra do Assentamento 12 de Outubro, no lização dos alimentos produzidos para
mentos falsos. Se a gente município de Cláudia, em Mato Grosso. a subsistência das 170 famílias assenta-
não tivesse muita convic- A área cercada pelo agronegócio, distan- das. Recentemente, quatro homens ar-
ção sobre o que é nosso, te- te 90 quilômetros de Sinop, está há anos mados tentaram invadir o lote perten-
ríamos ficado intimidados”, conta a sob ameaça de grileiros ligados aos em- cente ao tio dela. “Eles fazem uma pes-
agente de saúde Alessandra Siqueira da presários da região. “Agora, eles estão quisa e chegam bem-informados. A gen-
Costa, militante do Movimento dos Tra- por ali, ao redor do assentamento. A gen- te sabe que esses documentos que eles

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 29
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mostram são falsos. Neste caso, meu que quem invadiu não é família pobre,
O superintendente
tio conseguiu ganhar deles na palavra, tem um monte de mansão. Como fica
argumentou que a terra era dele e mos-
regional do Incra admite perto do lago, tem muita especulação
trou a documentação. Mas eles têm mui- o problema e promete imobiliária para o turismo.” E acres-
tos jeitos de invadir, é gente profissional fazer em breve a centa que, em Mato Grosso, pratica-
mesmo”, denuncia. reintegração de posse mente tudo está ligado ao agronegócio.
Há duas semanas, um grupo de gri- “Não é só a produção de commodities,
leiros avançou sobre a área social do as- esses empresários também são donos
sentamento, destinada aos equipamen- de imobiliárias, de bancos, de empre-
tos de uso comum da comunidade, como sas de insumo, são sócios de multina-
a Escola Estadual Florestan Fernandes, cidos na região. “Nem sempre é na vio- cionais, é um cartel mesmo.”
lência, às vezes eles tentam conversar,
o posto de saúde, as igrejas e os espaços Como não houve fiscalização do Po-
propor sociedade na produção de algum der Público, a invasão avançou até ocu-
de trabalho da cooperativa. Essa nova in-
vestida se dá ao mesmo tempo que avança alimento. Ou até mesmo convencer que par toda a área de reserva legal. Dados
na Câmara a CPI do MST, proposta pela eles são os donos da terra. Tem uma do MapBiomas mostram a devastação
bancada ruralista, com o alegado objeti-disputa de narrativa também”, conta. ao longo dos anos. Em 2001, a área de
vo de investigar as ações do movimento. Segundo a dirigente, há cerca de qua- floresta era de 3,7 mil hectares. Em
Mas quem invade terras produtivas são tro anos começaram os primeiros in- 2018, cerca de mil hectares foram des-
cêndios. “Na época, a gente denunciou, matados. Em 2019, a área já havia sido
os grileiros, não os sem-terra, denunciam
os assentados do município de Cláudia. os Bombeiros e o Ibama vieram e disse- reduzida pela metade. Em 2020, resta-
ram que tinha todas as características vam apenas 1,6 mil hectares de flores-
Quando o assentamento foi regu- de um incêndio criminoso. Mas os cul- ta. “O que a gente pede é a reintegração
larizado pelo Incra como um Proje- pados nunca foram pegos.” A partir dis- de posse, porque nós queremos replan-
to de Desenvolvimento Sustentável, so, os grileiros invadiram a reserva e se tar as castanheiras que eles cortaram
cerca de 80% da área foi destinada à consolidaram. Primeiro, eles cortam as e recuperar o bioma da região”, explica
preservação ambiental. Isso signifi- árvores de madeira de lei, para comér- Idalice Nunes. “Esses grupos são de gri-
ca que os moradores até podem explo- cio ilegal. Na sequência, cercam lotes, leiros profissionais. Isso ainda aconte-
rar o uso da castanha-do-brasil, mas preparam a terra e começam a vender ce muito aqui. Eles chegam, botam fo-
sem desmatar o terreno. Logo, não ca- como se fosse um loteamento regulari- go e depois seguem derrubando as árvo-
be a eles proteger essa área, e sim aos zado para sítios de lazer. “A gente sabe res. Aí fazem propaganda e vêm outras
órgãos públicos como o pessoas, muitas vezes até
próprio Incra, o Ibama famílias enganadas, que
e as polícias. “Com o go- não têm nada a ver com o
verno Bolsonaro, a refor- assunto. Mas a maioria é
ma agrária foi totalmente de profissionais mesmo.
paralisada. O pessoal liga- O objetivo deles é grilar e
do aos empresários da re- vender os lotes.”
gião se aproveitou da si- O atual superintenden-
tuação para invadir toda te regional do Incra de Ma-
a área da reserva”, denun- to Grosso, Edtânio Santos
cia Idalice Rodrigues Nu- de Oliveira, garante que o
nes, da coordenação na- órgão está ciente da situa-
cional do MST. Como se ção e começou a trabalhar
trata de uma comunida- para recuperar a área per-
de pequena, a cidade tem dida. “Logo que recebe-
pouco mais de 11 mil habi- mos a denúncia desse novo
tantes, dos quais apenas 7 processo de invasão, ime-
mil estão na área urbana, diatamente enviamos po-
esses grileiros são conhe- Esquema ilegal. Os grileiros vendem lotes para sítios de veraneio liciais militares para fazer

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

CPI do MST. Na Câmara, os ruralistas se


encarregam de criminalizar os sem-terra

mílias assentadas com outros olhos.”


Hoje, os camponeses desenvolvem um
projeto em parceria com a Universidade
do Estado de Mato Grosso de venda dos
alimentos produzidos pela cooperativa
através de um site. “A gente produz man-
dioca, leite, ovos, hortaliças e legumes.”
A cooperativa tem planos de expandir
sua produção e criar uma agroindústria
de castanha-do-pará. Para esse projeto
já existe uma parceria com a Universi-
dade Federal de Mato Grosso. O profes-
sor Calixto Crispim dos Reis, que minis-
tra as disciplinas de Inglês e Saberes do
Campo na Escola Estadual Florestan
Fernandes, explica que a área ameaça-
da está basicamente vazia porque ela foi
destinada a essa nova agroindústria que
está para ser construída. “Como ainda
não tem nenhuma construção, se acha-
ram no direito de tentar invadir.” Para
evitar invasões, a comunidade fez blo-
queios e guarda 24 horas por dia, por
conta própria, até que o Incra tome as
o levantamento e acionamos as autori- O superintendente revela que, além do rédeas do processo.
dades superiores para todos os proce- Assentamento 12 de Outubro, outros A escola atende alunos do assenta-
dimentos cabíveis para a reintegração também passaram pelos mesmos con- mento e do município de Cláudia, do Bá-
de posse, tanto da área de reserva legal flitos nos últimos anos. “Já começamos sico ao Ensino Médio. A disciplina Sabe-
quanto da área comunitária do assenta- os processos de reintegração de posse no res do Campo foi implementada em 2019,
mento.” Segundo ele, uma diligência se- Assentamento Antônio Conselheiro, com a reforma do Ensino Médio. “É uma
rá feita nesta semana para avaliar o nível em Tangará, e em outros assentamen- proposta curricular de trabalhar com
do desmatamento causado pelos invaso- tos, em Bom Jesus do Araguaia, estamos agroecologia. Isso envolve fazer a agri-
res e dar entrada ao processo de reinte- tomando as providências contra todo e cultura agroecológica orgânica, a gente
gração de posse. qualquer tipo de invasão dessas áreas.” aprende com a cooperativa e replica es-
Oliveira queixa-se, porém, das difi- ses saberes dentro da escola.” Segundo o
HEGON CORRÊA /GOVGO E REDES SOCIAIS

culdades financeiras e da falta de es- A presidente da cooperativa, Ana professor, os estudantes aprendem desde
trutura do Incra. “Aqui em Mato Gros- Maria dos Reis, explica que a boa rela- cedo a cuidar e preparar a terra para ob-
so, o grande processo de grilagem dos úl- ção dos assentados com a comunidade ter uma produção saudável e de baixo im-
timos anos deu-se principalmente pelo local foi fundamental para ajudar a bar- pacto para a natureza. “Eles aprendem
descaso do governo anterior.” Em 2019, rar a invasão. “Quando tentaram inva- desde a produção de insumos, de adubos,
o então presidente Jair Bolsonaro esta- dir a área social, houve muita denúncia até as formas de plantar corretamente,
beleceu uma portaria para suspender a da sociedade civil, do pessoal da univer- colher dentro do tempo certo, e todas as
criação de assentamentos. “Isso afetou sidade. Porque a gente cria relação até técnicas de cobertura do solo. Isso é tam-
diretamente a reforma agrária, e mui- de amizade, né? Cada pessoa que fre- bém uma forma de fazer trabalho de ba-
tas áreas começaram a ser invadidas.” quenta a feira passa a enxergar as fa- se e ensinar o valor da terra.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 31
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Resistência
indígena
ENTREVISTA O Brasil não tem
consciência da urgência climática,
lamenta Tapi Yawalapiti, porta-voz
dos povos do Xingu
P O R L E N EI D E D UA R T E- P LO N , D E PA R IS

U
ma delegação de cinco indí- Com a recente viagem, os cinco repre- sil. Após a calorosa recepção de Macron,
genas do Xingu, das etnias sentantes dos povos do Xingu puderam o grupo retornou a Brasília para uma ma-
Laiapó e Yawalapiti, lidera- dar maior visibilidade à causa indígena. nifestação no Congresso dia 7 de junho.
da por Raoni Kaiapó e Tapi Antes do encontro com Macron, que fez “Aqui, na Europa, todo mundo se preo-
Yawalapiti, terminou, no questão de divulgar uma foto abraçando cupa com a mudança climática. Foi onde
domingo 4, uma visita à Europa para de- Raoni no seu perfil no Twitter, eles foram nasceu essa conscientização. No Basil, di-
nunciar aos governos europeus a ameaça recebidos pelos presidentes de Portugal ficilmente você vai ouvir as autoridades
representada pelo PL do Marco Temporal e Alemanha. Em Cannes, o grupo subiu dizendo: ‘Temos que proteger a Amazô-
às terras indígenas e à preservação da Flo- a escadaria do Palácio do Festival para a nia’”, compara Tapi, porta-voz do grupo.
resta Amazônica, além de pedir recursos exibição do filme Raoni, Uma Amizade Im- Mesmo com a mudança do governo brasi-
para projetos que beneficiam os 16 povos provável, de Jean-Pierre Dutilleux, a re- leiro, ele observa que a cobiça das riquezas
indígenas do Xingu, com 9 mil habitantes. tratar a luta do cacique em defesa dos po- das terras indígenas continua. E a luta será
Foi a sétima viagem de Raoni à Europa vos originários. Em Lyon, tiveram um en- cada vez mais acirrada com a aprovação na
e a quarta de Tapi, nascido em 1977, filho contro com empresários, seguido de ou- Câmara do PL do Marco Temporal, que só
do cacique Aritana e porta-voz do grupo. tros encontros em Genebra e na Bélgica. reconhece as demarcações para os povos
O cacique Raoni, por sinal, já foi recebido Paris foi a última etapa, a incluir uma indígenas que ocupavam as áreas reivin-
por quatro presidentes franceses: visita ao Musée du Quai Branly, no qual dicadas na data de promulgação da Cons-
François Mitterrand, Jacques Chirac, os indígenas puderam admirar as vitri- tituição de 1988. “Falta a consciência da
Nicolas Sarkozy e Emmanuel Macron. nes com peças de diversos povos do Bra- urgência, no Brasil, da questão climática.”

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

CartaCapital: Se os ruralistas con- “Desde 1500, meus TY: A Constituição Federal é a maior lei
seguirem emplacar a tese do Marco do País. Criaram uma lei inconstitucio-
ancestrais sofrem
Temporal, qual será o impacto para os nal que viola a Constituição nos artigos
povos indígenas do Brasil? com invasões de terra 331 e 332, que asseguram os direitos dos
Tapi Yawalapiti: O maior impacto do e assassinatos” povos indígenas. Vamos agir com advo-
Marco Temporal, previsto do PL 490, se- gados indígenas junto ao Ministério Pú-
rá o congelamento das demarcações e a blico para defender os nossos direitos.
revisão dos processos de todas as terras CC: Como está sendo a recepti-
homologadas depois de 1988. Existem, desmatamento. Também queremos for- vidade das autoridades europeias?
porém, várias outras ameaças. O proje- mar brigadas contra incêndios florestais, TY: Aqui, na Europa, todo mundo se pre-
to autoriza a mineração nas terras indí- com brigadistas indígenas. ocupa com a mudança climática. Foi on-
genas, assim como a retirada de madeira CC: Os recursos reivindicados fa- de nasceu essa conscientização. No Basil,
e o arrendamento de áreas para o agro- zem parte do Fundo Amazônia? dificilmente você vai ouvir as autoridades
negócio. Isso nos deixa muito preocupa- TY: Não, são recursos para duas associa- dizendo: “Temos que proteger a Amazô-
dos. Somos os primeiros habitantes do ções do Xingu: Instituto Raoni e Institu- nia”. Falta a consciência da urgência, no
Brasil, somos os verdadeiros brasileiros. to Aritana. Os empresários podem tam- Brasil, da questão climática. Nossa vin-
Desde 1500, meus ancestrais sofrem com bém fazer doações para o Fundo Ama- da é importante para denunciar isso e pe-
invasões de terra e assassinatos. Isso tu- zônia, administrado pelo governo fede- dir para que os europeus alertem o Brasil.
do é muito preocupante. ral. Todos os governos prometeram aju- CC: Qual o país mais engajado na lu-
CC: Como vocês planejam resistir a da e quem mantém as negociações é a ta dos indígenas brasileiros?
esse retrocesso no Congresso? Associação Floresta Virgem, que orga- TY: A França. Será a segunda vez que
TY: A gente vai fazer nossa parte no dia nizou a viagem e ficará responsável pe- o presidente Macron vai nos ajudar fi-
7 de junho, em Brasília (quando o Supre- los repasses. nanceiramente. Ele nos apoiou em 2019
mo Tribunal Federal deve julgar a consti- CC: Qual a mensagem que vocês pre- e prometeu liberar mais recursos, além
tucionalidade da tese do Marco Temporal). tendem passar nos atos de 7 de junho? de conversar com o presidente Lula, com
Vamos entrar no Senado para pres- quem tem afinidades.
sionar o presidente da Casa, Rodri- CC: Você é o porta-voz dos po-
go Pacheco, e todos os demais sena- vos do Xingu?
dores, para dizer “não” a esse pro- TY: Sim, meu pai fazia esse papel,
jeto diante de todo o mundo. A mí- que agora é de minha responsabi-
dia também é importante nesta luta lidade. Busquei me preparar mui-
para dizer: “Deixem a floresta em to. Estudei Linguística em Bra-
paz”. Todos podem e devem se ma- sília, para mim foi uma mudança
nifestar nas redes sociais, para dizer pessoal. Fiz isso para entender o
que defendem a causa dos indígenas. mundo de vocês, para reivindicar
CC: Qual o objetivo da viagem os nossos direitos. Não sou advoga-
PRESIDÊNCIA DA FR A NÇA E JOEL SAGE T/A FP

de vocês à Europa? do, mas leio bastante a Constituição


TY: Viemos pedir apoio financei- para defender nossos direitos. Ho-
ro para fiscalizar nossas terras. Es- je, faço um curso sobre o sistema
se papel é do governo federal, mas político brasileiro. Meu sobrinho
ele não está executando esse tra- é advogado, minha  cunhada é en-
balho. Viemos pedir recursos para fermeira, outro sobrinho é bacha-
que possamos, nós mesmos, fazer rel em Direito, meu primo é verea-
a fiscalização. Com esses recursos, dor no município Gaúcha do Norte,
vamos capacitar os jovens indíge- em Mato Grosso. Aos poucos esta-
nas para serem “guardiões da flo- mos conquistando o espaço públi-
resta”, denunciando as invasões e o Gesto. Macron fez questão de publicar foto com Raoni co, passando a nossa mensagem. •

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 33
CLUBE DE REVISTAS

Economia

Segunda marcha
PIB O País cresce acima do esperado no trimestre, mas só o
aumento da demanda vai superar os danos da política monetária
P O R C A R LO S D R U M M O N D

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Abismo. Fatores excepcionais conjugados possibilitaram a excepcional safra.


O governo volta a dar incentivos aos carros “populares”. Falta uma política industrial

tura, isso vai impactar no próximo tri- isso, para fortalecer a demanda interna,
mestre em exportações também, mas al- em particular o consumo das famílias”,
guns setores ainda precisam se fortale- diz o secretário. O primeiro trimestre
cer, caso da indústria, que está no nega- não captou o aumento do salário míni-
tivo, porque é a que mais sofre com os mo, concedido em maio, pouco reflete o
efeitos da taxa de juros e do mercado de novo Bolsa Família e ainda não retrata
crédito contraído”, sublinha Guilherme o Programa Desenrola, recém-definido.
Mello, secretário de Política Econômica Mais adiante haverá os efeitos no empre-
do Ministério da Fazenda. go e na renda do Minha Casa Minha Vi-
da. “Achamos que é possível, nos próxi-
Por efeito do chamado carregamento mos trimestres, em especial a partir do
estatístico de 2,4% para o ano, acrescen- segundo, ocorrer um efeito um pouco
ta Mello, na prática, se o PIB não avan- maior desses programas”, aponta Mello. 
çar mais nada nos próximos três trimes- Por outro lado, diz, o segundo trimes-
tres, no fim do ano o crescimento será de tre é o momento de maior impacto da po-

I
2,4%. “O nosso trabalho agora é dar tra- lítica monetária contracionista. “Ao mes-
mpulsionado por uma conjugação ção e força para a economia doméstica, mo tempo que aqueles programas puxam
excepcional de fatores positivos pa- que vinha em um processo de forte desa- a demanda para cima, a política monetá-
ra a agricultura, que avançou celeração desde o ano passado e as polí- ria segura o investimento, e mesmo o gas-
FÁ BIO GO NZ A L ES/G M B R ASIL E ISTOCK P H OTO

21,6%, o PIB superou todas as pro- ticas públicas estão todas voltadas para to das famílias. Há, portanto, pressões pa-
jeções e cresceu 1,9% no trimestre, ra maior crescimento e para menor cres-
mas o momento coincide com o auge dos cimento atuando de modo simultâneo e
efeitos negativos da política monetária vamos ver qual vai ser a resultante.”
na economia e a consolidação de uma ex- “O nosso trabalho agora O resultado do trimestre é considera-
pectativa favorável requer a intensifica- é dar tração e força para do muito positivo por apontar um cres-
ção dos esforços para aumentar a deman- cimento mais forte sem pressão infla-
da interna, apontam os números e algu-
a economia doméstica”, cionária, até porque uma parte relevan-
mas análises. “O PIB do primeiro trimes- diz Guilherme Mello, te do avanço do período vem da produ-
tre veio bem mais forte que o esperado, secretário de Política ção agrícola, que joga o preço dos alimen-
em grande medida por causa da agricul- Econômica tos para baixo, como é possível constatar

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 35
CLUBE DE REVISTAS
Economia

no declínio dos indicadores do atacado e O País tem


dos alimentos consumidos em domicí-
lio. “O País tem conseguido crescer mais
conseguido
com menos inflação, tudo o que a gente crescer mais com
quer. Se conseguirmos manter isso for- menos inflação
talecendo o mercado doméstico e recu-
perando o mercado de crédito aos pou-
cos, com o Programa Desenrola e as no-
vas linhas do BNDES que estão surgindo, nâmicos do Minha Casa Minha Vida. 5.
e ainda um ciclo de redução da taxa de ju- O Programa de Aquisição de Alimentos,
ros que se inicia agora no segundo semes- com compras públicas de alimentos que
tre, acho que poderemos ter novas sur- ajudam o pequeno agricultor e a baixar
presas positivas. Desta vez vindas não só a inflação. 6. Um novo programa de in-
da agricultura, mas também do setor de vestimento em finalização, com Parcerias
serviços e, talvez, até o fim do ano, com Público-Privadas e outros componentes. 
um início de recuperação da indústria.”  “Isso tudo leva a crer que vamos sair de
um crescimento mais forte, puxado pela
O principal problema é a política mo- produção agrícola, para um crescimento
netária, que começa a ter efeito nove me- não tão forte, porque ainda teremos uma
ses depois da implantação e atinge plena situação de desaceleração provocada pela
intensidade entre um ano e um ano e meio política monetária, mas mais sustentado,
a partir do seu início. As condições do mer- puxado, nos próximos trimestres, por ou-
cado de crédito, afirma Mello, têm se de- tras variáveis de demanda”, ressalta Mello.
teriorado desde a metade do ano passado, No momento, diz, há um processo de tran-
reduzindo o volume de novas concessões sição, pois as variáveis de demanda se desa-
e aumentando o preço do crédito. Isso se celeravam e o conjunto de medidas toma-
acentuou com o caso da Lojas America- das ajudará a aumentar a renda, o emprego
nas, em particular no mercado de capitais. e o crédito, portanto, a demanda domés-
A aprovação do novo arcabouço fiscal tica vai se recuperar ao longo do tempo. 
e o recuo continuado das taxas de juro de O crescimento do PIB no terceiro tri-
longo prazo indicam mudança de expec- mestre conduz a uma reavaliação das ex-
tativas e há uma aposta no efeito conjun- pectativas muito pessimistas que predo-
to dos programas e iniciativas. A combi- minaram desde o início do ano, assina-
nação de aumento do salário e da renda, la a economista Júlia Braga, coordena-
não só por conta do Bolsa Família, mas dora de Acompanhamento e Estudos de
devido ao efeito da queda da inflação na Conjuntura Econômica do Instituto de
elevação do poder aquisitivo, tende a for- Pesquisa Econômica Aplicada. A políti-
talecer a demanda das famílias. O secre- ca monetária, explica, tem uma força no
tário acrescenta ainda os seguintes fa- sentido de frear a atividade econômica,
tores: 1. os desdobramentos do Progra- porque as famílias estão endividadas no
ma Desenrola, com retirada de milhões cartão de crédito. Aumentou, portanto,
de Consumidores do cadastro negativo e o comprometimento da renda para o pa-
sua reinserção no mercado de crédito. 2. gamento de juros da dívida. 
O novo aumento do salário mínimo, con- Existe uma força, contudo, dada pelas
cedido em maio. 3. A desoneração do Im- políticas de impulso fiscal que foram via-
posto de Renda, que impacta quem ganha bilizadas por causa da negociação da PEC
até dois salários mínimos, porque o con- da Transição com o aumento orçamentá-
tribuinte para de recolher e isso aumenta rio. Essas políticas permitem um aumen-
os recursos disponíveis. 4. Os efeitos di- to real do salário mínimo e dos ganhos

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

do funcionalismo e dos pensionistas, por mia e ainda é, portanto, um negócio muito


estarem atrelados ao mínimo, portanto, rentável. Além disso, o clima foi favorável.
existe uma elevação, em relação ao mes- Acrescente-se que o setor havia investido,
mo período do ano passado, da massa sa- aproveitou a época de juros baixos e mo-
larial e da renda das famílias.  “Mesmo dernizou as frotas de tratores agrícolas,
que tenha desacelerado um pouquinho, agora superprodutivos. É preciso levar em
na margem, em relação ao ano anterior, o conta também que a concorrente Argenti-
que importa quando a gente vai olhar o na teve um problema climático. “Foi a ação
PIB, há um aumento forte da massa sala- conjunta desses fatores favoráveis que via-
rial, de 10% acima da inflação entre janei- bilizou a supersafra”, sublinha Braga.
ro e abril, segundo a Pnad”, sublinha a pes- O mercado esteve muito mais pessi-
quisadora. “Isso traduz um certo viés anti- mista, mas passou a reavaliar as expec-
cíclico, exatamente o que se espera da po- tativas ao longo do trimestre e isso pode
lítica fiscal, porque o mundo está em uma continuar a acontecer. Vários bancos e ou-
fase de desaceleração e a política monetá- tras instituições financeiras elevaram su-
ria também joga nesse lado da desacele- as projeções a partir desse aumento mui-
ração. Portanto, a política fiscal cumpre o to forte do primeiro trimestre. “Em rela-
seu papel anticíclico neste ano, por causa ção ao PIB do primeiro trimestre, é pre-
da negociação mencionada.” Essas medi- ciso ressaltar que o consumo das famí-
das, acrescenta, acabam por dar sustenta- lias praticamente estagnou na margem,
ção ao consumo interno. Há o consumo do enquanto os investimentos (Formação
governo, que também acaba por aumentar.  Bruta de Capital Fixo) e as importações
tiveram quedas fortes. Isto é, a demanda
Em contrapartida, há o componente do doméstica sofre os efeitos da política mo-
investimento, mais sensível a juros. “Exis- netária. O que deve se prolongar e intensi-
te, assim, uma força que puxa para cima, ficar”, alerta o economista-chefe do Ban-
outra que puxa para baixo, mas, no geral, co Fator, José Francisco Lima Gonçalves.
não há mais aquele cenário totalmente Quanto à presença dos efeitos da política
pessimista de antes, quando todos só es- monetária, Gonçalves observa que a esta-
tavam vendo as forças recessivas, sem le- tística esconde, devido à sua própria cons-
var em conta que era possível implemen- trução, a renda e o crédito. “Na agropecu-
tar uma política que pudesse de alguma ária, por exemplo, as decisões de plantar e
forma se contrapor àquelas forças.”  maturar animais para o abate são toma-
Do lado da oferta, destaca-se o número das com boa antecedência, de modo que
excepcional da agricultura, motivado por não refletem as condições econômicas e
uma conjugação histórica muito rara de financeiras quando da safra, a exemplo
fatores que impulsionaram o lucro do se- da taxa de juros. Em segundo lugar, o se-
tor, a começar pelo aumento do preço in- tor produz eminentemente para o merca-
ternacional das commodities, por efeito da do externo. Ou seja, agropecuária não sig-
T O M A Z S I LVA /A B R E H U G O C R U Z / I S C T E

pandemia e da guerra da Ucrânia. O preço nifica emprego e renda melhores. Além do


internacional da soja, ressalta Braga, mes- mais, seus efeitos sobre outros setores da
mo com a queda recente das cotações, es- economia local estão incluídos no PIB des-
tá 50% acima daquele de antes da pande- ses segmentos: bens de capital e transpor-
tes, por exemplo, além do crédito concedi-
do a esses setores. Por fim, a produtividade
e a produção do agro cresceram fortemen-
Incentivos. Para impulsionar
a construção civil e o consumo
te nos últimos anos. As exportações são
das famílias, o Palácio do Planalto fortes, entram dólares. Mas o emprego no
aposta no Minha Casa e no Desenrola agro é cadente e a renda, concentrada.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 37
CLUBE DE REVISTAS

Nosso Mundo

Na raça
PALESTINA Jogadoras de futebol
enfrentam os preconceitos e a
permanente tensão na Faixa de Gaza
P O R DA R I O A N TO N E L L I E G I AC O M O SI N I (F OTO S)

U
m vento frio sopra em ras floridas, aparece o pavilhão despor-
Ramallah à noite. Estamos tivo no qual as meninas do Diyar Belém
em meados de maio, mas o treinam. Algumas já estão nas laterais.
bom tempo está atrasado. “Hoje teremos um treino misto, as me-
Na entrada do campo de fu- nores de 16 anos com as meninas do time
tebol da Escola dos Amigos, um ambulan- principal”, diz Marian Bandak, gerente de
te vende café, enquanto as jogadoras se futebol do Diyar. Chegam as retardatárias
aquecem em uma corrida em torno do gra- e começa o aquecimento. “Assim prepara-
mado artificial. “É difícil para uma moça mos as mais novas para subirem a um es-
jogar futebol numa sociedade machista”, calão superior”, explica Farah Zacharia,
afirma Leen Khoury, de 16 anos, atacante que treina os times femininos.
do Sareyyet Ramallah, ao voltar para o
banco. “É verdade, e também vivemos a Um em Belém, outro em Ramallah, o
ocupação aqui”, reforça Jessica Salameh, Diyar e o Sareyyet são os principais clu-
22 anos, capitã do time, a envergar a cami- bes do futebol feminino palestino. Exis-
sa de número 23. Hoje, elas jogam um te uma certa rivalidade esportiva entre
amistoso com a equipe masculina da Aca- os dois, mas para essas jovens os desa-
demia de Astros do Futebol, em Ramallah. fios são jogados em outros níveis e en-
O futebol ainda é um esporte predo- frentados em conjunto. Muitas atletas
minantemente masculino. No plano glo- que cresceram nas fileiras de suas res-
bal, o crescimento das equipes femini- pectivas equipes, de fato, chegam a ves-
nas nas últimas décadas permitiu que as tir a camisa da seleção nacional.
meninas ganhassem espaço e visibilida- Entre elas está Loreen Tanas, 24 anos,
de no esporte, mas ainda há um longo ca- que volta a treinar com o Diyar após uma
minho a percorrer. A discriminação de
gênero, claro, é uma barreira a ser der-
rubada em todo o mundo, mas em cada
região ela ocorre de formas diferentes. A “É uma questão de
realidade das jovens praticantes na Pa-
mentalidade, aqui na
lestina oferece uma perspectiva única.
Do pátio principal da Universidade Dar Palestina. Eu me
Al-Kalima, em Belém, depois de atraves- aceito como sou”,
sar uma passagem estreita, atrás de rosei- diz Loreen Tanas

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 42
NESTA The Observer. O bunker
dos rebeldes desafia a
SEÇÃO ditadura em Mianmar

Dedicação. A atacante Leen Khoury, com a camisa 10. “No começo tive de en-
de 16 anos, se divide entre Ramallah frentar muito preconceito, porque o fute-
e Jerusalém Oriental. E vai representar
bol é considerado um esporte para meni-
a seleção sub-17 na Copa da Ásia
nos, e nós, meninas, não podíamos usar
shorts”, conta. Enquanto fala, Ibrahim,
seu pai, olha para ela e acena com a cabe-
pausa de seis meses. Ela acaba de termi- ça. “Como pais, sempre apoiamos a sua
nar o expediente no restaurante onde escolha.” Loreen toma a palavra nova-
trabalha, sobe as escadas às pressas e mente: “É uma questão de mentalidade,
abre a porta do apartamento onde mora aqui na Palestina. Eu me aceito como
com a família, numa das principais ar- sou, mas em muitos casos a pressão da
térias de Belém. Na ampla mesa da sala sociedade masculina faz com que as
há uma panela de kafta, e a mãe arruma meninas percam a autoconfiança”.
a cozinha. “Desde pequena eu jogava fu- Em 2015, Loreen estreou na seleção.
tebol com as outras crianças da rua”, con- “Os torneios internacionais fortalecem
ta Loreen, sentada no sofá ao lado do pai, o nosso caráter”, afirma. “Confrontar
que tem nos braços a neta. “Ingressei pe- com a experiência de jogadoras de ou-
la primeira vez num time de handebol e, tros países tem servido para nos deixar
em 2012, Marian percebeu minhas habi- ainda mais determinadas a seguir os nos-
lidades e me convidou para jogar futebol sos sonhos.” Apesar das conquistas, a vi-
no Diyar.” Marian então jogava pela sele- da continua complexa. Loreen não só jo-
ção palestina, da qual também foi capitã ga no Diyar e na seleção, mas também tra-

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 39
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

balha e estuda. “Estou me formando em para Ramallah, do bairro árabe, em Je-


Ciências do Esporte, para poder continu- rusalém, onde mora com a família. “É ao
ar trabalhando na área, não só como joga- menos uma hora e meia de ida e o mesmo
dora de futebol. Eu gostaria de ir para a tempo de volta. A não ser quando Israel
Europa, talvez para a Espanha.” fecha os postos de controle, então não
No pavilhão desportivo coberto, as bo- há treino. De manhã tenho escola”, diz
las ressoam ao bater na parede e na trave. Natal, antes de beber um gole de água.
Uma depois da outra, as garotas do Diyar “Sempre que preciso atravessar o mu-
se revezam em triangulações em desafio ro, passo pelos postos de controle em
à goleira. Algumas lançam fortes voleios Qalandia ou Hizma. Praticar esporte é
e arremates, mas há quem se atreva a ati- normal, mas aqui não.”
rar à queima-roupa. Nenhuma bola entra Leen tem parte de sua família em
na rede. “Nenhum gol”, grita triunfante Ramallah, onde estuda, mas também
a goleira Cynthia Botto, 21 anos. Ela está mora em Jerusalém Oriental. Ela é ami-
no chão após defender o último chute de ga íntima de Natal, estavam no mesmo ti-
Loreen, que, recuperando a bola, marca me antes de irem para o Sareyyet. E, co-
com um toque enquanto sorri. mo sempre, elas voltarão para casa jun-
tas esta noite. “Muitas de nós frequen-
Marian acompanha o treino da arqui- temente participam de torneios inter-
bancada, vestida com a camisa do Barce- nacionais, seja por clubes, como a Copa
lona. “Como gerente também tenho de da Noruega, ou com a seleção nacional.”
organizar viagens ao exterior. Na Jordâ- Em abril, Leen e Natal voaram para o
nia é complexo conseguir vistos e passa- Vietnã, com o restante da seleção pales-
gens.” Mas vale a pena, ressalta. “Na pró- tina, para as eliminatórias da Copa da
xima semana, as meninas voam para a Ásia Feminina Sub-17, que será disputa-
Alemanha, para um encontro organiza- da em 2024 na Indonésia. “Lá pergunta-
do pela cidade de Colônia. Vai ser uma ram se éramos do Paquistão”, diz Leen,
grande experiência.” “porque não achavam que a Palestina
Agora Marian tem um filho pequeno, fosse um país. Isso também é resultado
mas o futebol sempre foi sua vida. “Quan- da narrativa distorcida de Israel. E, para
do eu jogava, colocava o futebol antes de nós, viajar é sempre muito complicado.”
tudo”, ela ri, continuando a olhar para o O jogo começa, é hora de entrar em
campo. “Eu faltava nos exames para jo- campo. Nos primeiros 10 minutos, o jogo é
gar. Todas fazíamos isso, nossa geração te- todo no meio-campo masculino da Acade-
ve de abrir espaço. A gente chorava quan- mia de Astros do Futebol. As meninas jo-
do perdia um treino. Hoje é diferente, as gam duro no ataque e os colocam sob pres-
mais novas vivem uma situação melhor.” são. “Este é o único campo oficial onde po-
Pouco antes da partida, as meninas do demos treinar em Ramallah”, diz Taima
Sareyyet Ramallah reúnem-se na lateral Osama, 16 anos, sem tirar os olhos do jogo.
do campo para ouvir as instruções da téc- “Todos os times vêm aqui, e às vezes temos
nica Claudie Salameh, ex-capitã da sele- de ir para outro lugar”, acrescenta, sen-
ção nacional com o número 7. Ela dá as
últimas instruções com gestos largos, os
olhos cheios de energia.
Natal Bahbah, de 16 anos, chegou ao
Militares israelenses
Sareyyet em setembro de 2022, depois
de jogar pelo Beit Hanina em Jerusalém lançam bombas de
Oriental. Para participar do treinamen- gás para atrapalhar
to, ela vem de táxi três vezes por semana os treinos e jogos

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Horas vagas. Loreen Tanas


(abaixo, à esquerda) divide-se entre o
futebol e o emprego em um restaurante.
Taima Osama reclama da sabotagem
dos militares israelenses

tada no banco com a camisa número 10.


Para Ammar Jalayta, o técnico da se-
leção, ela é uma das melhores jogadoras.
Com uma respiração profunda, Taima re-
toma sua história. “Às vezes treinamos no
estádio Faisal Al-Husseini, em Al-Ram,
que fica bem ao lado do muro. Algumas
vezes os militares israelenses lançam gra-
nadas de gás lacrimogêneo no campo, só
para nos impedir de treinar, ou os vizi-
nhos jogam garrafas contra nós.” Taima
para de acompanhar o jogo por um mo-
mento e nos olha nos olhos. “Eu poderia
contar muitas dessas histórias.” A Asso-
ciação Palestina de Futebol, afiliada à
Fifa, informou que, em 30 de março, no
mesmo estádio, uma partida oficial foi in-
terrompida pelo lançamento de gás lacri-
mogêneo pelas forças israelenses.

Com o apito final, o amistoso termina


com a vitória por 1 a 0 dos meninos da Aca-
demia, mas atrás do placar Claudie elogia
as meninas, que jogaram bem durante to-
da a partida. Enquanto as outras sobem
na minivan da equipe, Leen e Natal se sen-
tam num táxi. Na fila do posto de controle
de Qalandia, as duas comem a refeição que
trouxeram de casa e brincam. Um meni-
no aproxima-se do carro, vendendo algo-
dão-doce embalado, mas sua voz é abafa-
da pela sirene de uma ambulância que se
esforça para seguir em frente no engarra-
famento. “Estamos acostumadas com is-
so”, Leen comenta amargamente.
No posto de controle, o silêncio cai,
mas em um momento a barreira se abre.
O carro agora vai direto para casa, a ilu-
minação da estrada brilha, Leen escuta
música e Natal fecha os olhos. •

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 41
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Nosso Mundo

Estado de liberdade
Em um enclave na fronteira
com a Tailândia, os rebeldes sobrevivem
à margem da ditadura de Mianmar
P O R LO R C A N LOV E T T, D E D E M O S O

E
m uma faixa movimentada liberada, diz Hla Win, que mudou sua
no leste de Mianmar, res- farmácia para o município de Demoso, a
taurantes com abrigos an- pouco mais de 200 quilômetros de estra-
tiaéreos servem pratos fer- da do centro de poder da junta militar na
vilhantes de carne regada a capital, Naypyidaw. “Eram apenas uma
cerveja belga e vinho francês. Adolescen- ou duas lojas, não o que você vê hoje.”
tes encontram-se em salas de sinuca, À medida que partes do país escapam
mulheres relaxam nos salões de beleza e de seu controle, a junta volta-se para ata-
revolucionários são desenhados em es- ques aéreos mortais, ocorrência quase
túdios de tatuagem. Desde o amanhecer, diária. Os militares ainda são mais coe-
tigelas fumegantes de sopa de macarrão sos do que sua oposição fragmentada, mas
são devoradas em casas de chá e, ao anoi- acredita-se que o tamanho das forças de
tecer, graves trêmulos ecoam de um clu- resistência corresponda aos 70 mil a 120
be de karaokê. Mas, ao contrário do inte- mil soldados de combate do exército.
rior do país, esse assentamento tem uma
ausência notável: o regime militar. Os rebeldes das Forças de Defesa das um lugar assombrado por uma guerra ci-
A junta de Mianmar, que tomou o po- Nacionalidades Karenni (FDNK) atua em vil brutal, mas onde a humanidade coti-
der com um golpe em fevereiro de 2021, Kayah e Shan, onde grupos de oposição diana da população permanece intocada.
perdeu a maior parte do estado de Kayah começaram a formar alternativas viáveis, No meio de uma estrada sinuosa em
e porções da área sul do estado de Shan com o surgimento de sistemas de saúde, Demoso, bolas de discoteca iluminam
para uma resistência antigolpe. Kayah, o educação e Justiça. Nesta região remota, uma fileira de cabanas, nas quais lutado-
menor estado do país, que se estende ren- bombardeios e ataques aéreos são uma res cantam sob o rangido de ventiladores
te à fronteira com a Tailândia, é coberto ameaça constante, enquanto moradores de teto ou fumam em sofás surrados que
por morros verdes, florestas exuberantes mutilados, estradas marcadas por bom- cheiram a cerveja velha e cigarro. As fun-
e selva densa, divididos pelo Rio Salween. bas e vilarejos abandonados são um lem- cionárias fazem duetos com a clientela,
Nenhuma linha clara marca onde come- brete constante do preço da liberdade. É em sua maioria combatentes da linha de
ça o regime militar, mas ele ainda domi- frente, e oferecem massagens em cubícu-
na as principais cidades e uma vasta área, los de palha. “Seus rostos estão tão can-
do litoral às planícies centrais. sados e deprimidos”, diz Maw Meh, que
Embora lutem contra as dificuldades trabalha no clube. “Eles vêm aqui para
da guerra, os moradores do estado de
Em Kayah e Shan, tentar relaxar.” Sua colega Thida diz que
Kayah estão livres de soldados que es- quem não se submete elas ajudam os clientes a “aproveitar um
preitam nas ruas ou invadem suas casas ao regime tenta pouco mais a vida” e arrecadam fundos
à noite. Os negócios são melhores na área recomeçar a vida para quem precisa de próteses. “Alguns

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Desafio. Falta organização, mas


não vontade aos civis e soldados
que combatem a junta militar
comandada por Min Aung Hlaing

deles perderam as mãos ou a masculini-


dade quando pisaram em minas terres-
tres. Eles não têm espaço para falar so-
bre seus sentimentos. Alguns se sentem
tímidos, mas não ficam com raiva. Eles
começam a falar e ficam chateados.”
Estabelecimentos como esses são sinô-
nimos de trabalho sexual, por isso Maw
Meh escondeu seu emprego da família.
Mas seu serviço como soldado na linha
de frente com apenas 16 anos não era se-
gredo – sua mãe o incentivou. Em feverei-
ro de 2022, um projétil fraturou sua me-
dula espinhal, ela conta, mostrando uma
cicatriz que lhe causa dor quando se dei-
ta de costas. De seus dois namorados des-
de o golpe, um foi morto por morteiros e o
outro foi torturado e assassinado por tro-
pas da junta militar. “Tenho medo de ter
outros”, afirma. “Não gosto tanto da mi-
nha vida agora, mas ao menos aqui pos-
so conhecer pessoas diferentes e refletir.”

Em Demoso, um trabalhador humani-


tário local estima que apenas um quar-
to da população local pode se sustentar, o
resto depende de doações de arroz e óleo
de cozinha. Embora os preços sejam altos,
há dinheiro suficiente em circulação pa-
ra sustentar uma variedade de negócios,
ST R /A FP E A L E X A NDER ZEMLIA NICHENKO/A FP

incluindo uma florista e um dispensário


de maconha. O dono da loja, Maung Zaw,
compra xampu, grampos de cabelo e bate-
rias em uma cidade controlada pela junta.
Nos postos de controle militares, enfren-
ta perguntas “agressivas” sobre seus bens.
Finge que está indo para outra cidade sob
controle militar. “Eles querem dinheiro,
cigarros ou álcool”, explica. “Se pegam vo-
cê tomando um atalho para evitar o posto
de controle, confiscam todos os seus bens

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 43
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Nosso Mundo

Terror. Soldados a serviço da Ex-garçom com talento para desenhar, após sua vitória eleitoral esmagadora, an-
junta militar exploram os civis Salai Latheng pratica em sua própria pe- tes de se nomear presidente do Conselho
e dificultam o trânsito dos cidadãos
le enquanto permanece um lutador ativo. de Administração do Estado, como a junta
Ele divide seus ganhos mensais com sua se autodenomina. Moe e suas 38 lutadoras
família e seu batalhão. “Um dos meus ca- acreditam que, seja qual for o final da revo-
e às vezes o prendem. Aconteceu comigo maradas morreu instantaneamente, ba- lução, a batalha pela igualdade de gêneros
duas vezes e tive de pagar para sair.” leado na cabeça. Já vi muitas coisas desse continuará por algum tempo. Atuando co-
Um grande pôster de Bob Marley pen- tipo”, diz. “Pessoas que passaram por tris- mo batedoras, médicas e arrecadadoras de
durado numa cabana de bambu trança- tezas estão se tatuando como uma liberta- fundos, elas lutam contra um inimigo acu-
do e metal corrugado marca um dos dois ção. Antes havia um estigma de tatuagem sado de usar estupros e violência sexual
estúdios de tatuagem do município, am- por aqui, mas não existe mais.” como táticas de guerra. “Preciso ser mui-
bos inaugurados no ano passado. Lá, Salai to mais dura e forte agora. Às vezes, me
Latheng está sentado ao lado de uma im- De sandálias bege e as unhas pinta- sinto como uma mãe, tendo de repreen-
pressora contrabandeada de uma cidade das, Angelic Moe ajusta seu poncho e exa- der as meninas e outras vezes acalmá-las.”
sob controle militar horas antes. As tatua- mina o capim alto através de grandes ócu- A bravura da unidade feminina ins-
gens AK-47 e M16 estão na moda, diz. Uma los escuros de grife. No oeste do estado pirou Jue Aung a voltar à batalha, mes-
imagem dos fuzis de assalto custa 5 mil de Kayah, sua unidade feminina defende mo depois de uma mina terrestre explo-
kyats (cerca de 12 reais). Ele também ofe- uma vasta extensão de território. Moe tra- dir metade de sua perna, em fevereiro de
rece escolhas mais sutis, como um pan- balhava como professora primária em fe- 2022. “As meninas vasculham a linha de
da a segurar um balão, mas mais comuns vereiro de 2021, quando o então chefe mi- frente, algumas até vão para a batalha.
são os pedidos de sak yant, arte em estilo litar de Mianmar, Min Aung Hlaing, orde- Então, decidi que devo voltar para a ba-
tailandês que teria poderes de proteção. nou que as tropas detivessem líderes civis talha como médico.” Além disso, ele acha

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

muito doloroso pensar em seu futuro. As forças de Ocasionalmente, os médicos tratam


Enquanto um cachorro cava um lugar prisioneiros de guerra (PoW na sigla em
na terra fria abaixo dele, Aung reflete so-
resistência, segundo inglês), alguns dos quais ficam em peque-
bre o momento em que pisou na mina ter- as projeções, têm nas prisões administradas por policiais
restre, um choque quente em seu corpo o mesmo tamanho que desertaram da junta. Esses 120 po-
quando ele tinha ido ajudar um camara- do exército regular liciais, conhecidos como Polícia Estadu-
da ferido. “Tentei correr, mas caí no chão. al de Karenni (KSP), foram formados em
Olhei para o meu pé e senti medo.” agosto de 2021 e agora trabalham em oito
Do alto de um morro, o soldado Aung delegacias em todo o território. “Se não
Kyaw Minn observa os aviões e as igrejas abrigos antiaéreos escavados na terra, ao há KSP, não há local de detenção para
destruídas de Demoso. Uma enorme cica- redor dos pequenos prédios do hospital. dalan (informantes da junta) e PoWs, e
triz que desce por sua barriga conta a his- O centro mudou-se para um local novo e eles podem ser mortos”, diz Bobo, um dos
tória de um morteiro que quase o matou, protegido depois que caças bombardea- fundadores do KSP. Bobo era segundo-
em março de 2022. Ele credita sua sobre- ram o anterior, em fevereiro. No fim de -tenente em um estado vizinho quan-
vivência a um cirurgião de cabelos tingi- abril, ataques aéreos também danifica- do irromperam os comícios antigolpe.
dos. “Graças a ele muitas vidas foram sal- ram outra clínica abandonada nas pro- Na época, os manifestantes colocaram
vas.” O cirurgião Myo Khant Ko Ko pas- ximidades, bem como um hospital no sul imagens do chefe militar Hlaing nas ruas
sou por uma variedade de cores de cabelo, do estado de Shan. A resistência afirma para que fossem pisadas quando os mo-
de loiro descolorido a verde azulado. Seu que dois médicos foram mortos. radores caminhassem. Mas logo chega-
mais recente é um borgonha desgastado. “Se não há hospitais, nenhum paciente ram ordens para que a polícia removes-
“Gosto de viver livremente. Quero bele- ferido na guerra pode ser tratado, então se as fotos. “Naquele momento, o públi-
za e o cabelo não é problema para minhas eles visam os hospitais e a equipe médi- co olhou para nós limpando as fotos”, dis-
pacientes. O mais importante é estar com ca”, diz Khant Ko Ko. “Na maioria das ve- se. “Eu me senti tão envergonhado. Eles
boa saúde, com a mente boa.” zes, recebemos pacientes com traumas, não gostavam de nós. Pude sentir isso em
Em enfermarias superlotadas, pacien- vítimas de minas terrestres, morteiros seus olhos. Também senti vergonha de
tes, amigos e parentes dormem em cinco e lesões cerebrais.” mim mesmo.”

Naquele momento, Bobo decidiu desis-


TERRA DE RESISTÊNCIA tir de um emprego com renda garantida
Área controlada pelas forças rebeldes de Mianmar para se unir a centenas de outros que não
conseguiam viver sob o jugo opressivo da
junta de Mianmar. “Embora eu não tivesse
certeza de como sobreviveria sem empre-
ÍNDIA CHINA go, depois disso não importava para mim.
BANGLADESH Então, entrei no CDM e saí do emprego.”
O apoio público à revolução é vital, de
ÍNDIA Daca
MIANMAR acordo com o político Karenni, do local
Khu Plu Reh, segundo quem o exorcismo
Shan
Demoso do regime militar protegerá sua cultura e
LAOS
Naypyitaw idioma. Ele tem um discurso preparado
GOLFO DE Kayah para quando encontrar pessoas desloca-
M YAT T H U K YA N / N U R P H O T O / A F P

BENGALA das que se cansaram da guerra. “Esta é a


Yangon
TA I L Â N D I A
última vez que lutaremos contra um gol-
pe militar”, afirma. “Se não lutarmos, não
Bangcoc veremos o que queremos que o nosso país
seja. Esta é a nossa grande chance, uma
MAR DE que nunca tivemos antes. Devemos lutar.”
ANDAMAN

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 45
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Nosso Mundo

Ferida aberta
governo que feriu dezenas de soldados
da paz da Otan. Foram grupos sérvios
armados”, disse Toby Vogel, analista de
política regional. Os Estados Unidos e
As eleições locais agitam seus aliados isolaram o Kosovo quan-
o caldeirão de ressentimentos no Kosovo do disseram anteriormente que as elei-
ções seguiram as leis do país, acrescen-
P O R X H E M A J L R E X H A , D E Z U B I N P OTO K , tou Vogel. “Depois disso, acho que Kurti
realmente não teve muita escolha a não
E J AC K B U TC H E R , D E B E R L I M
ser apoiar a posse desses prefeitos.”
O Kosovo declarou independência da
Sérvia em 2008, uma década após a cam-

S
panha de limpeza étnica do presidente
entado atrás de uma mesa tão grande que as autoridades tiveram de sérvio Slobodan Milosevic contra sua po-
preta vazia, numa pequena ser escoltadas até seus gabinetes por uni- pulação de maioria albanesa. Isso culmi-
sala caiada no norte do dades especiais da polícia. nou na guerra de 1998 e 1999, que aca-
Kosovo, o prefeito da al- Na segunda-feira 29, as forças de paz bou com uma campanha de bombardeios
deia, Izmir Zeqiri, tenta da Otan, preocupadas com a escalada dos da Otan. A maioria dos países ocidentais
acostumar-se com o brilho da atenção in- confrontos, enviaram tropas às prefeitu- reconhece a soberania do Kosovo, mas
ternacional. “Não era minha intenção ser ras. Elas foram recebidas por manifes- a Sérvia e seus aliados, Rússia e China,
uma celebridade”, diz, enquanto o celu- tantes que incluíam homens mascara- não. Os sérvios continuam a constituir
lar toca repetidamente. “Achávamos que dos com armas e explosivos. O símbolo a principal minoria de Kosovo, cerca de
mais gente iria concorrer e não imaginá- Z, agora sinônimo de invasão da Ucrâ- 5% da população, e são maioria nos qua-
vamos que poderíamos vencer.” nia pela Rússia, também foi pintado em tro municípios do norte.
Não se trata de falsa modéstia. Zeqiri é veículos. Trinta soldados da Otan fica-
um dentre algumas centenas de albane- ram feridos. Jornalistas em campo relataram
ses étnicos no município de Zubin Potok, A violência alarmou os Estados Uni- muitos ataques, ameaças e intimida-
de maioria sérvia, e sua candidatura nas dos, mais importante aliado interna- ções, que sugeriram mais do que uma
eleições de abril foi um gesto simbólico. cional do Kosovo. Washington repre- revolta popular espontânea. Em Çabër,
Mas quando o Serb List, partido apoiado endeu Kurti por ordenar que os pre- Eshref Ferizi, de 62 anos, acolheu am-
por Belgrado que controla grande parte feitos assumissem seus cargos e pediu plamente a nova abordagem, apesar da
da vida pública nos municípios do norte, uma desescalada. Para enfatizar a men- violência. Ele esperava que isso tornas-
decidiu boicotar a votação e ordenou aos sagem, o embaixador dos EUA, Jeff Ho- se a vida mais fácil no norte do Kosovo,
eleitores sérvios para seguirem o exem- venier, anunciou que o Kosovo havia si- em estado de limbo desde a guerra, sob
plo, Zeqiri foi lançado no centro de uma do retirado de um exercício de treina- o controle de fato de Belgrado. “Vive-
tempestade. Ele obteve 197 votos, com mento militar conjunto e que as rela- mos com uma insegurança enorme,
6% de participação, 17 a mais que seu ções bilaterais foram prejudicadas. Os em constante estado de estresse sobre
único adversário, por isso foi empossa- analistas estão surpresos com essa re- o que vai acontecer”, disse, enquanto le-
do. Os prefeitos albaneses também pres- ação. “Não foi a polícia do Kosovo ou o vava o neto à escola. “Nestes últimos 20
taram juramento nos outros três muni- anos, nunca nos sentimos livres como
cípios do norte, depois de uma participa- o resto do Kosovo.”
ção ainda menor. Os sérvios boicotado- A última agitação pode ser atribuída a
res, furiosos com a perspectiva de serem uma disputa sobre placas de carros, não
governados por albaneses étnicos, foram
Os sérvios não a respeito de soberania. Em novembro
às ruas depois que o primeiro-ministro aceitam ser passado, os sérvios nas instituições pú-
Albin Kurti ordenou que os novos prefei- governados blicas do Kosovo aderiram a uma gre-
tos assumissem seus cargos. A tensão era por albaneses ve em protesto contra novas regras que

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Eleitores sérvios
enfrentam as
forças da Otan

exigem que todos os veículos exibam pla- ganizada e direcionada de outros lugares. nicipal de Zubin Potok. Mas seria fácil se
cas emitidas pelo Kosovo. Para muitos, “Nada realmente acontece nos municí- perderem em meio ao vermelho, branco e
usar placas emitidas em Pristina, a ca- pios de maioria sérvia sem a aprovação azul sérvios que adornam quase todos os
pital, equivale a reconhecer a indepen- ou orientação de Belgrado”, disse. “Is- outros postes de luz e varandas ao redor
dência do Kosovo. so não significa que tudo o que aconte- da praça central da cidade. Diretamen-
Kurti, que assumiu o poder com uma ceu durante as manifestações (...) foi or- te em frente, o centro de saúde pública
campanha anticorrupção em 2021 com denado diretamente por Belgrado. Mas de três andares tem uma bandeira sér-
um recorde de 50% dos votos, aprovou nenhuma força política local genuína te- via pendurada do telhado até a rua. Abai-
as regras das placas. Parte fundamental rá permissão para emergir, a menos que xo, dezenas de manifestantes se abrigam
de sua agenda de reformas incluiu uma esteja totalmente alinhada.” do sol em acampamentos improvisados
posição de “reciprocidade” em relação à e tocam música sobre o papel central do
Sérvia, após mais de uma década de es- Após mais pressão dos líderes euro- Kosovo no folclore sérvio. Uma manifes-
forços para normalizar as relações sob os peus e norte-americanos, Kurti indicou a tante, que não quis ser identificada, dis-
auspícios da União Europeia. realização de novas eleições locais nos mu- se esperar que a polícia do Kosovo fosse
Vogel também acredita que, embo- nicípios afetados, mas insiste que deve ha- embora. “Por que eles estão aqui? Este
ra tenha havido expressões genuínas de ver “um fim imediato da violência por par- não é o lugar deles. O que aquela bandei-
raiva dos sérvios locais com a perspecti- te das turbas patrocinadas por Belgrado”. ra do Kosovo faz ali? Não queremos isso.
va de serem governados por prefeitos al- Por enquanto, o azul e o amarelo da Nós temos a nossa própria.” •
baneses nos quais não votaram, está cla- bandeira do Kosovo tremulam pela pri-
AFP

ro que ao menos parte da violência foi or- meira vez acima do principal prédio mu- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 47
CLUBE DE REVISTAS

Plural

ncontro Italo Calvino se eu

As magias E
for a Sanremo. É onde a fa-
mília Calvino ficou desde
tempos, suponho, imemo-
riais. Igual à minha do lado

de Calvino materno, de sobrenome Giuliano. E


aquele foi meu paraíso terrestre. No pri-
meiro capítulo de uma das suas obras-
-primas, Se Um Viajante Numa Noite de
LITERATURA Não se trata de um ilusionista, mas Inverno, ele descreve a estação ferroviá-
de quem enxerga o que os outros não veem ria de Sanremo, onde eu cheguei pela pri-
meira vez aos 4 meses de idade. Começa
P O R M I N O C A R TA aí, em um devaneio de memória, uma es-
pécie de coletânea, de romances dentro
do romance, para compor uma obra re-
volucionária, talvez a mais digna do fu-
turo muito além da contemporaneidade.

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 52
NESTA Série. Por que o final
SEÇÃO de Succession foi um dos
melhores da história?

Calvino em Sanremo, a cidade


por ele considerada natal
e que conhece como ninguém

Sanremo é uma cidade, hoje, de pouco


mais de 100 mil habitantes, de médio por-
te em termos europeus, situada nas costas
da Ligúria, condicionada pela pressão dos
Apeninos a despencar abruptamente das
alturas das montanhas de pedra. Mas não
há quem conheça o lugar melhor do que
Calvino, sabedor e palmilhador de todos
os caminhos de sua terra natal, a forne-
cer-lhe os cenários majestosos e suas his-
tórias. Existem, na verdade, mais de uma
Sanremo, a moderna, buliçosa e vibrante,
dona de um dos cinco cassinos a atuar na
Itália e de um grande teatro, onde se reali-
za anualmente o célebre festival da música
italiana dita popular, com todas as conse-
quências desta presença de fama mundial.

Mas a cidade galga a montanha e sobe


as encostas com um vigor capaz de incitar
Calvino, de sorte a conduzir suas perso-
nagens ao longo destas rotas destinadas a
vasculhar o passado, até as alturas da Igre-
ja da Virgem da Guarda, protetora dos na-
vegantes, de mira voltada para o porto api-
nhado de iates e barcos de pesca. Sobram,
no alto mais alto, as ruínas destruídas pe-
lo terremoto em coincidência com a epide-
mia da febre espanhola, logo após a Pri-
meira Guerra Mundial. A ferrovia nasceu
em meados do século XIX, incautamente
UL F A NDERSEN /AURIM AGES/A FP E ISTOCK PHOTO

ao longo do mar, e é desta que Calvino fala


logo de saída, a evocar até o trilo opaco da
campainha a anunciar a chegada do trem.
Hoje escala a encosta de pedra e a ve-
lha estação tornou-se, não sei se em ho-
menagem a Calvino, um cimélio do passa-
do. Singular recanto é Sanremo, sua igreja
mais faustosa é a ortodoxa, com as torres
desdobradas em volutas fartamente colo-
ridas. E outra visita recomendável dá-se
ao mercado do peixe e mesmo ao de hor-
tifruti, onde triunfam abobrinhas de sa-

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Plural

bor e funções únicos chamadas, não por ligúria enérgica de nariz grego. Quando
acaso, trombetas, por lembrarem as pró- soube que eu me preparava, aos 12 anos, a
prias no seu formato. Ao ler Calvino, sin- partir para o Brasil, observou: “Quer dizer
to até o gosto do pescado e o perfume do que por lá agora haverá dois Mato Gros-
mar e reconheço as árvores que ladeiam o so”. Em italiano, matto significa doido.
caminho dos seus heróis ao descerem pela
cidade velha em busca da praia, depois de Naquele aposento, um ramo de árvo-
passarem por arcos vetustos, janelas es- re de damasco roçava as venezianas e eu
cancaradas sobre ambientes quase nus e as abria para colher um fruto, bem mais
chão de pedras polidas fincadas na terra. perfumado do que o pêssego. Diante dos
Reconheço, porém, o toque mágico meus olhos, a bonança tornava o mar es-
que vem de Calvino, a minha passagem pelho do céu e um veleiro vinha singrá-
por Sanremo é bem menos empolgante. -lo frequentemente, e parecia voar. Em
Quando menino, até a adolescência, ficava frente à igreja ortodoxa desdobra-se um
na casa da minha avó, a casa bailarina pin- passeio ajardinado onde, depois de ler o
tada de branco imaculado, onde dançavam meu herói da literatura, passei a imagi-
as sombras das frondes prateadas das oli- nar poetas ingleses a caminhar à procu-
veiras que a cercavam. Ali dormia em uma ra do sol, vestindo calças de flanela cre-
cama de ferro esmaltado aos pés do retra- me, enquanto o siroco despenteia as pal-
to soturno de uma ancestral amarelecida meiras africanas da florida promenade
emoldurada em ouro e aquela presença ti- de violetas e bocas-de-leão perplexas.
nha o poder de inquietar o meu sono. Mui- Aquela riviera eu conhecia perfeita-
tas vezes me refugiava no quarto da vovó, mente. Ainda bem pequeno vinha Gaston,
onde se penduravam os retratos do casal amigo de infância da minha avó, dona de
de bisavós, ele polonês de olhar turvo, ela uma impecável receita de ovos à proven-

ESPÓLIO LITERÁRIO DOS MAIS VALIOSOS da o componente fantástico


que viria a marcá-lo e traziam
O centenário de Italo Calvino, a ser completado em outubro, enseja elementos autobiográficos.
celebrações, edições especiais e a publicação de obras inéditas “Ele é um autor que teve di-
POR A NA PAU L A SOUSA ferentes fases, das mais ino-
vadoras em termos de lingua-

F
gem às mais realistas, e foi ex-
oi no dia 15 de outubro auge com a publicação de Um ca”, diz Otávio Marques da
celente em todas elas”, diz
de 1923 que o escritor Otimista na América e Entra- Costa, publisher da editora.
Costa. “Ele foi um brilhante ob-
Italo Calvino, um dos da na Guerra, ambos até en- Entrada na Guerra, por sua
servador da vida e de seu
maiores do século XX, nasceu. tão inéditos no País. vez, reúne três novelas curtas
Mas a celebração de seu cen- Um Otimista na América foi sobre sua vivência da Segun- mundo, além de ter tido uma
tenário já começou. Pudera. escrito ao longo do semestre da Guerra Mundial. forte atuação política.”
Espólio dos mais valiosos, tan- que Calvino passou em Nova No segundo semestre, se- E Calvino foi, ainda, um
to em termos literários quanto York, na década de 1950, e rão mais dois títulos inédi- grande vendedor de livros. A
comerciais, sua obra terá ree- publicado apenas após sua tos: Nasci na América, que agência Wylie, responsável
dições e ganhará edições co- morte. “Ele sai de uma Europa reúne 101 entrevistas, e Por por alguns dos maiores espó-
memorativas mundo afora. depauperada pela guerra e, ao Último Vem o Corvo, sua pri- lios literários – como os de
No Brasil, a Companhia das chegar aos Estados Unidos, meira reunião de contos, publi- Norman Mailer, Saul Bellow,
Letras deu início ao movimen- revê seus conceitos, e seus cada em 1949. Esses contos Arthur Miller, Jorge Luis
to que em outubro terá seu preconceitos, sobre a Améri- diz o publisher, não tinham ain- Borges, Albert Camus e

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Depois do primeiro çal, naufragados em um mar de tomates e


plano à beira-mar, folhas de manjericão. Era no prato que ele
a cidade velha sobe
a encosta até mirava na hora do almoço, à mesa octogo-
a Igreja da Virgem nal de cor verde montada à sombra de uma
da Guarda, enorme oliveira. As árvores eram inúme-
protetora dos
navegantes ras, cenário do meu paraíso desde os ra-
ros espécimes de um eucalipto – australia-
no, repetia-se com respeito – e uma miú-
da araucária, cuja origem não era declina-
da. Depois de enfrentar seus ovos afoga-
dos e uma fatia de crostata, Gaston convi-
dava-me para um passeio a bordo do seu
hispano-suíça e íamos até Nice, cuja praça
principal tem o nome de um genovês ma-
rechal de Napoleão, Massena, e no pro-
montório de Antibes habilitava-me a um
gole de champanhe Salon no Hotel du Cap.
Calvino atiça o leitor até o fim com suas
“lições americanas”, que haveriam de ser
meia dúzia, mas a última faltou porque o
escritor se mandou de Sanremo e da vida.
Foram encomendadas por uma universi-
dade dos Estados Unidos, Harvard. Com
o tema leveza, a primeira me tocou muito,
é uma aula da mais persuasiva escrita. •

Antonio Tabucchi –, começou a seller”, diz Costa. “Alguns dos


tratar do centenário de Clavi- livros são adotados por esco-
no há pelo menos três anos. las, o que faz com que sejam
“Trata-se de um evento in- sempre vendidos. É o caso de
ternacional e a gente, aqui, to- O Barão nas Árvores, O Vis-
ma também as nossas deci- conde Partido ao Meio e To-
sões”, diz Costa. Algumas de-
das as Cosmicômicas.”
las foram as de lançar Se Um
Para o segundo semestre,
Viajante Numa Noite de Inver-
estão sendo preparados uma
no e Por Que Ler os Clássi-
mostra de cinema, com filmes
cos em capa dura e com proje-
baseados em seus livros, e um
to gráfico especial, e relançar
simpósio. Em 2024, terá aca-
Todas as Cosmicômicas com
bado o ano do centenário, mas
ilustrações de Marcelo Cipis. UM OTIMISTA ENTRADA
“Calvino foi um dos primei- não a onda de publicações e NA AMÉRICA NA GUERRA
ros grandes autores dos revisitas. As correspondên-
Italo Calvino.  Italo Calvino.
quais a Companhia das Le- cias do escritor, nunca publi- Tradução: Federico Carotti. Tradução: Mauricio Santana
Companhia das Letras Dias. Companhia das Letras
ISTCKPHOTO

tras adquiriu o espólio, na dé- cadas, estão nas mãos de (216 págs., 79,90 reais)  (96 págs., 59,90 reais)
cada de 1990, e é aquilo a Mauricio Santana Dias, seu
que chamamos de long principal tradutor no Brasil.

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 51
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Plural

Uma façanha
nada desprezível
Por que o tão comentado
final de Succession pode ser, de fato,
considerado um dos melhores da história?
POR MICHAEL HOGAN

C
hega de grand finales, obri- de sua total inexperiência em produção.
gado. Não um, mas quatro  Existem os encerramentos muito mais
programas de tevê amados felizes e bem avaliados, que criam algo se-
pelos espectadores lança- dutor e belo, levando o que aconteceu an-
ram seus últimos episó- tes a um clímax perfeito. Pense em Mad
dios na última semana de maio. Men, A Sete Palmos, Blackadder, Better
Na sexta-feira 26,  a Maravilhosa Call Saul, The Americans, The Leftovers e,
Sra. Maise fez sua última reverência na naquilo que podemos considerar um duplo
Amazon Prime Video. Na segunda-feira milagre, ambas as versões de The Office. Empire: O Império do Contrabando, Killing
29, HBO Max deu um golpe duplo, com Eve: Dupla Obsessão, Mare of Easttown, A
Succession e Barry. Na quarta-feira 31, foi Há, ainda, os finais que provocam uma Escuta e Catastrophe – Sem Compromisso.
a vez de o grande sucesso da Apple, Ted reviravolta na história ou mudança de O suprassumo, é claro, é o ambíguo “cor-
Lasso, tocar o apito final. narrativa. Foi assim com I May Destroy ta para a tela preta” de Os Sopranos, que
Mas foi de Succession que ficou todo You, Battlestar Galactica, St. Elsewhere, fez milhões de pessoas pensarem que seus
mundo falando. E com razão. A saga pro- Twin Peaks e Fleabag. aparelhos de televisão estavam piscando
tagonizada pelos super-ricos criados pelo Finalmente, há aqueles que fazem em um momento inoportuno.
roteirista britânico Jesse Armstrong não com que nos sintamos mal: ou matam Brutalmente magnífico,  Succession
apenas se manteve no mesmo patamar du- seus protagonistas nas últimas cenas ou conseguiu abranger as duas últimas
rante toda a quarta temporada, como seu deixam os espectadores totalmente de- categorias. A coroação de Tom Wambsgans
magistral canto do cisne de 88 minutos, De samparados de outras maneiras.  como CEO da Waystar pegou a maioria dos
Olhos Abertos, entrou imediatamente pa- Podem ser incluídos nessa última espectadores de surpresa – o que cabe va-
ra o panteão dos grandes finais da tevê. categoria  Breaking Bad, Boardwalk gamente na classificação de reviravolta. A
De modo geral, os finais das séries conclusão, no entanto, fazia todo sentido
tendem a se encaixar em quatro cate- dentro do universo ficcional de Armstrong,
gorias. Existem aqueles que, de tanto marcado pela pergunta feita no início
tentar impressionar, decepcionam, co- A série da HBO Max da temporada: quem assumiria o lugar
mo Seinfeld, Line of Duty, Dexter, Lost, entregou uma comédia do patriarca Logan Roy após sua morte?
Girls, Ozark  e, o mais óbvio exemplo Embora muitos previssem que quem
deliciosa e um drama
disso, Game of Thrones. Às vezes é ta- chegaria ao poder seria seu colega co-
manha a indignação causada nos fãs que devastador, em um nhecido como “Irmão Nojento”, o es-
eles vão atrás de um financiamento co- pacote executado guio e desajeitado Primo Greg, o triunfo
letivo para fazer um remake, a despeito de forma impecável de Tom foi assustadoramente plausível e

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Sátira e
tragédia
Succession
tratou de temas
como ambição,
corrupção
corporativa
e vácuos morais

permaneceu fiel ao espírito do programa. Em outra cena de união, vimos os ir- tada, gargalhadas enormes e excelên-
Ele falou sobre temas do mundo real, mãos se abraçando, enquanto assistiam, cia na realização, Succession encerra-
como ambição venal, corrupção corpora- em lágrimas, a um vídeo caseiro do temí- -se como um dos maiores dramas de te-
tiva e vácuos morais, posicionando-se na vel patriarca Logan, num raro momen- vê de todos os tempos. E seu final, cer-
proximidade do poder, errando de bai- to em que parecia ter o estado de espíri- tamente, entrou para a lista dos cinco
xo para cima e galgando para postos ca- to descontraído. melhores da história da tevê, ao lado
da vez mais altos. de A Sete Palmos, The Americans, Mad
Ao longo da temporada, a sala de rotei- Mas como isso tudo acontecia Men e Breaking Bad.
ristas estrelas comandados por Armstrong em Succession, as boas vibrações não po- Os finais de séries são notoriamente
manipulou nossas emoções com habilida- deriam durar. Tudo estava sempre fada- difíceis de ser realizados. Não se pode fa-
de. Fomos provocados com a perspectiva do a terminar em uma tragédia paralisan- zer tudo e não se pode agradar a todos. E,
tentadora de um final triunfante, quando te. Como um drama familiar sobre seres já tristes ao ver seus personagens favori-
os irmãos Roy, filhos do fundador, se uni- humanos imperfeitos, Succession foi qua- tos partirem, os fãs, ansiosos, geralmen-
ram brevemente. Chegou a parecer que se perfeito. E foi, no mínimo, uma inigua- te, estão prontos para encontrar buracos
eles poderiam, simplesmente, dar um gol- lável sátira de humor negro sobre o mun- no final da narrativa.
pe quando houvesse a reunião do conselho. do dos negócios. Succession conseguiu escapar das ar-
Por um breve período, o trio de irmãos Meio Rei Lear, meio Hamlet, a série madilhas e surpreendeu, mantendo sua
surgiu liberto da rivalidade mútua e vi- mais comentada do ano terminou com lógica interna. Entregou uma comédia
mos as cenas familiares mais felizes do um floreio, não com um encolher de om- deliciosa e um drama devastador num
programa. Eles brincavam na cozinha ca- bros. Ou seja, ofereceu uma sensação de pacote impecavelmente executado. Tra-
ribenha da mãe como adolescentes cres- encerramento totalmente satisfatória, ta-se de uma façanha que apenas um pu-
cidos, provocando uns aos outros, fazen- mas deixou espaço suficiente para futu- nhado de outros programas alcançou. •
HBO MAX

do vozes idiotas e cometendo atos sexuais ros imaginados.


pueris com pedaços de queijo artesanal. Entregando-nos uma agonia requin- Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 53
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Um laboratório
da desesperança
IDEIAS Para Paulo Arantes, o Brasil
tornou-se o espelho pelo qual os países
centrais passam a ver seu próprio futuro
P O R FA B I O M A S C A R O Q U E R I D O

P
aulo Arantes é um dos mais ma. E foi com essa perspectiva alargada
criativos intelectuais brasi- que escreveu o audacioso ensaio A Fratu-
leiros em atividade. Profes- ra Brasileira do Mundo – Visões do Labo-
sor, crítico, ensaísta e inter- ratório Brasileiro da Mundialização, pu-
locutor generoso, ele fez da blicado pela primeira vez em 2001, em
reflexão sobre a vida social e ideológica pleno governo FHC, e agora lançado em
sua bússola existencial. Estamos diante, edição própria, acrescido de um posfácio
em suma, de um “intelectual total”. escrito pelo filósofo Marildo Menegat.
Mas essa ambição universal não se No contexto contemporâneo, dirá
rea lizou num tempo/espaço qualquer. Arantes, a experiência da periferia do ca-
Ela só ganhou tração quando Arantes se pitalismo revela-se pertinente não ape-
deparou – instigado pelo amigo Rober-
to Schwarz – com o problema intelectu-
al que nunca mais o deixaria: o do fun-
cionamento do mundo das ideias na pe-
riferia do capitalismo.
Desde então, já como professor de
Filosofia da Universidade de São Pau-
lo (USP), mapeou, nos ensaios depois
reunidos em Ressentimento da Dialética
(1996), a emergência periférica da dia-
lética moderna na Alemanha do século
XIX, cuja intelectualidade se ressentia do
“atraso” do país em relação à Inglaterra
ou à França. No mesmo passo, definiu al-
guns dos dilemas da intelligentsia brasi- A FRATURA BRASILEIRA
leira em livros como Sentimento da Dia- DO MUNDO. VISÕES DO
lética (1992) ou O Fio da Meada (1996). LABORATÓRIO BRASILEIRO DA
Foi a partir dessa janela periférica que, MUNDIALIZAÇÃO
na virada para o século XXI, Arantes am- Paulo Arantes. Editora 34
(144 págs., 52 reais)
pliou o alcance de suas preocupações in-
telectuais na direção do centro do siste-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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O autor olha de forma nas por permitir a visualização no pas- VITRINE


original para a periferia
sado daquilo que, do centro, aparece co- POR A NA PAU L A SOUSA
do capitalismo
mo mero efeito colateral do progresso.
No presente, sob a mundialização, são os
próprios países centrais (como os EUA
ou a França) que começam a se confron-
tar com problemas outrora restritos às
nações ditas subdesenvolvidas.
É este o sentido da “fratura brasileira
do mundo” arrolada no título. Quando o
Brasil idealizado já não é mais o país do
futuro, ele começa a ser apontado como O título do novo trabalho do historia-
o futuro de um mundo igualmente sem dor britânico Peter Burke é autoexplica-
esperanças. É quando a exceção, enfim, tivo: Ignorância: Uma História Global
vai se tornando a norma. (Vestígio, 352 págs., 74,90 reais). Na
obra, Burke procura mostrar como a igno-
rância pode ser colocada a serviço do po-
Paradoxalmente, é justamente por ser- der e da perpetuação de preconceitos.
mos “um laboratório e tanto do famigera-
do desenvolvimento desigual e combina-
do” do “progresso” capitalista que esta-
mos bem posicionados para elaborar um
novo pensamento crítico com implicações
globais. O futuro, nesse sentido, é aqui.
A própria trajetória de Paulo Arantes,
após a publicação de A Fratura Brasilei-
ra do Mundo, alimenta-se dessa “atuali-
dade da periferia”, como se vê em livros Conhecida, sobretudo, por sua produ-
ção ensaística, a norte-americana Vivian
como Extinção (2005)e O Novo Tempo do Gornick dá seguimento, em Uma Mulher
Mundo (2014). A crítica torna-se global Singular (Todavia, 144 págs., 64,90
porque é (e não apesar de ser) periférica. reais), ao percurso memorialístico aberto
Seu pensamento já lhe rendeu varia- por Afetos Ferozes, eleito, pelo New York
das alcunhas depreciativas: “Intelectual Times, como o melhor livro de memórias
do último meio século.
do contra”, “Catastrofista”, ou “Zero à es-
querda”, carapuça que tomou para si. O
aparente desprezo sugere o incômodo
com um tipo de intelectual que, por com-
preender criticamente o mundo do qual
faz parte, pode ajudar a transformá-lo.
É esse intelectual sem concessões que
indispõe os defensores de uma política
“realista”, o que só acaba por atestar, por
contraste, a sua importância e atualida- É para si mesmo, e para a saga de sua
de. “Apocalíptico”, talvez. “Integrado”, família, que Miguel Sanches Neto se
jamais. • volta em Inventar Um Avô (Maralto, 157
ISTOCKPHOTO

págs., 44,90 reais). A narrativa, além de


desvelar os afetos e vazios do próprio au-
*Fabio Mascaro Querido é professor tor, traça parte da história da imigração
de Sociologia da Unicamp. espanhola para o Brasil.

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 55
CLUBE DE REVISTAS
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Despedidas dos grandes

Vemos, ao mesmo tempo, outros atle- Messi, com sua personalidade, nunca fi-
► Enquanto Ibrahimović tas esticarem suas carreiras no mun- cou à vontade no meio do estrelismo as-
anuncia o encerramento do árabe, que já se tornou uma “cana- soberbado do Paris Saint-Germain. Ele
leta” para grandes astros em reta final sai realçando o prazer de ter jogado mais
da carreira no Milan, da profissão. Desta vez, quem vai – en- um tempo ao lado do amigo Neymar – es-
Benzema deixa o Real tre outros, diga-se – é o Chuteira de Ouro te sempre no foco de especulações sobre
Madrid e vai para Karim Benzema. se vai ou se fica no PSG.
Nós, enfeitiçados pelo futebol, acaba-
o mundo árabe Foi anunciado esta semana que o ata- mos prejudicados pelo hiato do hermano
cante francês, que deixou o Real Madrid na França. Pelo menos, fomos salvos pelo
após 14 temporadas, assinou contra- seu brilhantismo na Copa do Mundo de

E
nquanto, por aqui, vamos ar- to até 2026 com o Al-Ittihad, da Arábia 2022, no Catar, vencida pela Argentina.
rancando nessa embrulha- Saudita. Tudo fazia crer que nunca sairia Se Messi se acertar com o Barcelona,
da de campeonatos, taças, tor- do Real, mas a realidade cruel do esporte ainda poderemos ser recompensados
neios etc., no Velho Mundo o calendá- profissional não comporta romantismos. com sua genialidade, uma vez que Xavi,
rio não menos sufocante parte para o Enquanto isso, o genial Messi, la pulga, atual técnico do Barcelona, vai saber
fim da temporada 2022-2023 com pou- decide se fecha o ciclo no Barcelona ou ajustá-lo ao time. •
quíssimas surpresas. se pula também para o mundo árabe. redacao@cartacapital.com.br
Tivemos, no Campeonato Italiano, a
volta do Napoli como campeão. É curio-
sa a resistência do time do extremo Sul
pobre da Bota em comparação com os ti-
mes do centro e, principalmente, do rico
Norte italiano.
Nos demais campeonatos, os “man-
dões” de sempre vão festejando, en-
quanto alguns veteranos se despedem
dos campos definitivamente, como o
extraordinário Zlatan Ibrahimović,
jogador sueco, de ascendência servo-
-croata que, aos 41 anos, encerra a car-
reira no poderoso Milan – time que,
por sinal, vai aos poucos retomando
sua história grandiosa.
M A RCOU/A FP E GA BRIEL BOU YS/A FP

O jogador sueco tem uma trajetória


intrigante. Sendo ele grandalhão, con-
B A P T I S TÃ O, P I E R R E - P H I L I P P E

seguia uma agilidade e flexibilidade im-


pressionantes para o seu tamanho. Tais
condições atléticas são atribuídas ao jiu-
-jítsu, seu esporte quando bem jovem.
Ficará marcado na nossa memória pelo
gol numa bicicleta sui generis, uma cena
de acrobacia circense. Carreiras. O sueco Ibrahimović para aos 41 anos. O francês Benzema prossegue aos 35

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ARTHUR CHIORO
Médico sanitarista e professor da Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). Foi ministro da Saúde. É presidente
da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (MEC)

Mais médicos, de novo

das a médicos brasileiros formados no Atuarão por quatro anos, com bolsas de
► A retomada do exterior, que ainda não tinham valida- 12.386 reais. Poderão prorrogar por igual
programa, que ganha do seus diplomas. A seguir, a médicos es- período sua participação no programa,
trangeiros. Só então as vagas remanes- que garantirá ainda especialização e a
de novo centralidade na centes eram preenchidas pelos cubanos. possibilidade de mestrado profissional.
agenda política, reacende O Mais Médicos foi avaliado positiva- A retomada do Mais Médicos reacende
polêmicas, paixões e mente pela população. Muitos estudos polêmicas, paixões, e volta a dividir opi-
mostram que houve importantes avan- niões. Assertivas como a de que o Brasil
volta a dividir opiniões ços, como a redução de internações por já tem médicos, faculdades e estudantes
causas sensíveis à atenção básica em lo- de Medicina em número suficiente vol-
calidades muito vulneráveis. taram a ser ouvidas nos últimos meses.

V
em aí o “novo” Mais Médicos Mas o provimento de médicos era um O tema, que andava relativamente
para o Brasil. O programa fe- componente emergencial do programa. abandonado desde 2016, ressurgindo
deral, destinado a apoiar a A aposta estruturante era dotar o País apenas nas eleições, ganhou de novo cen-
fixação de médicos nas equipes de com quantidades de médicos suficien- tralidade na agenda política. Isto se deu,
Saúde da Família, é fundamental para tes por meio da ampliação de novas va- em primeiro lugar, pelo relançamento do
garantir acesso aos cuidados básicos gas nas escolas públicas e privadas, em programa e pela recriação de uma comis-
em saúde, oferecendo ações individu- particular nas cidades do interior mais são interinstitucional envolvendo os mi-
ais e coletivas de prevenção e contro- populosas. A expectativa era de que, em nistérios da Saúde e da Educação para
le das doenças mais comuns. O forta- 2026, já seria possível contar com 2,7 mé- aperfeiçoamento das suas ações.
lecimento da atenção básica permite dicos por mil/habitantes, uma evolução Segundo, porque o Mais Médicos vol-
resolver cerca de 80% dos problemas importante diante do quadro de 2013, de tou também a ser discutido no Congres-
de saúde da população. 1,8 médico por mil/habitantes. so Nacional. Mas a questão pega fogo, de
Instituído por lei federal em 2013, o verdade, porque o tema é nitroglicerina
Mais Médicos ampliou a assistência na A partir do golpe de 2016, o progra- pura nos debates internos à corporação
atenção básica, fixando médicos em re- ma foi desestruturado. A abertura de va- médica. As eleições para os Conselhos
giões onde esses profissionais inexis- gas em faculdades de Medicina passou a Regionais de Medicina, que serão reali-
tiam. Apesar da resistência da oposi- ser mediada por outros interesses, ape- zadas em breve, colocam em confronto
ção de direita e das entidades médicas, sar da alegada “moratória”. A ampliação diferentes segmentos da categoria.
o programa recebeu aprovação imedia- dos programas de residência médica foi De um lado, os mais retrógrados e ne-
ta de milhões de pessoas que nunca ha- interrompida. O número de médicos no gacionistas, aderidos de corpo e alma ao
viam sido atendidas por um médico na programa foi sendo reduzido e, ao final bolsonarismo, que dominam o CFM e a
vida ou que precisavam se deslocar para do governo Bolsonaro, contava com ape- maioria dos CRM no País. De outro, di-
outras cidades em busca de atendimento. nas 8 mil profissionais. ferentes setores de representação da ca-
Por meio do Programa, 18.240 médi- O Mais Médicos ganha agora outro im- tegoria, que também se dividem em re-
cos passaram a atender a população de pulso. O Ministério da Saúde lançou edi- lação ao programa.
4.058 municípios e os 34 Distritos Sani- tal com 5.970 novas vagas. Mais de 34 mil O que é incontestável é que o governo
tários Indígenas, beneficiando em torno médicos, com diplomas validados, se ins- Lula voltou a priorizar a atenção básica e
de 63 milhões de brasileiros. creveram. Foi um número recorde. As que, sem o Mais Médicos, milhões de bra-
Na época, o processo de seleção seguia vagas serão ocupadas pelos que tiverem sileiros, exatamente os que mais preci-
B A P T I S TÃ O

uma regra. Primeiro, eram selecionados melhor titulação, formação e experiên- sam e dependem do SUS, continuarão pri-
os profissionais em exercício no Brasil. cia profissional, que residam mais próxi- vados do direito constitucional à saúde. •
As vagas não preenchidas eram oferta- mo do local da vaga e os de maior idade. redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 4 D E J U N H O D E 2 0 2 3 57
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