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MINO CARTA ALVO DE UMA REAÇÃO

VISCERAL DE ISRAEL, O PORTUGUÊS ANTÓNIO CLUBE DE REVISTAS


MEMÓRIA DANILO SANTOS DE MIRANDA
DEDICOU A VIDA A TRANSFORMAR
GUTERRES DEVOLVE RELEVÂNCIA E SENTIDO O SESC DE SÃO PAULO NA MAIS AMPLA
À ASSEMBLEIA-GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS EXPERIÊNCIA CULTURAL DO BRASIL
ANO XXIX N° 1284 R$ 31,90
8 DE NOVEMBRO DE 2023

LEI DA BALA
NO RIO, A NARCOMILÍCIA SUBJUGA O PODER PÚBLICO. NO RESTO
DO PAÍS, O CRIME ORGANIZADO CRESCE NO VÁCUO DO ESTADO
CLUBE DE REVISTAS
8 DE NOVEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1284

O encarceramento em
massa de adolescentes
infratores é visto como
oportunidade de negócio
em São Paulo. Pág. 28

6 M I N O C A R TA
7 A SEMANA Economia Nosso Mundo
32 DÉFICIT ZERO Em período 40 EUA-ISR AEL Parte do
de baixo crescimento, o eleitorado progressista
Seu País gasto público impede a volta-se contra o apoio
Um ano após
18 G O V E R N O queda acelerada da produção cego de Biden a Netanyahu
sua eleição, Lula faz ajustes
na equipe para governar
35 C A I X A As Salas das
Cidades e Estados do banco
44 ESPAÇO A controversa
Estação Internacional,
Plural
48
sem sustos no Congresso
facilitam o acesso a crédito há 25 anos em órbita,
22 JAQUES WAGNER para gestores públicos será desativada
2 3 A N T O N I A Q U I N TÃ O
38 A R T I G O Os super-ricos 46 T E C N O L O G I A Regular a UM LEGADO
No primeiro
24 C A M P O do País vivem numa ilha de expansão da Inteligência E TANTO
semestre, os conflitos isenção tributária cercada Artificial não é fácil,
fundiários cresceram 8% por pagadores de impostos mas imprescindível
27 PEDRO SERR ANO DANILO SANTOS DE MIRANDA
Tarcísio de
28 S Ã O PA U L O AJUDOU A MOLDAR NÃO SÓ AS
Freitas cogita privatizar FEIÇÕES DO SESC-SP, MAS TAMBÉM
G A R A PA - C O L E T I V O M U LT I M Í D I A

a Fundação Casa
A PRÓPRIA CULTURA BRASILEIRA
GILBERTO MARQUES/GOVSP E

31 ALDO FORNA ZIERI MISSÃO IMPOSSÍVEL?


O GOVERNO LULA É INSTADO A 50 M E M Ó R I A Museus comunitários mudam o
olhar da arte 53 STREAMING Agentes secretos
PROPOR SOLUÇÕES PARA A CRISE DE em alta 54 C I N E M A Mussum, o sambista e o
Capa: Pilar Velloso. SEGURANÇA NO RIO E PARA DETER palhaço 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por Arthur
Fotos: iStockphoto O AVANÇO DAS FACÇÕES PELO PAÍS Chioro 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
MORDE E ASSOPRA
MINO CARTA JOE BIDEN ORGULHA-SE DE AMAZONAS A SECA EXTREMA INTERDITA O
SEU PAÍS E DE SEU CARGO, MAS NÃO PASSA DE TRANSPORTE FLUVIAL E REAVIVA O POLÊMICO

e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) PERSONAGEM MEDÍOCRE DE UM ENTRECHO SEM


NEXO E COM CONSEQUÊNCIAS IMPREVISÍVEIS
PROJETO DE RECUPERAÇÃO DA BR-319, UMA
AMEAÇA À INTEGRIDADE DA FLORESTA

SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva


DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
Espero mesmo que o afago aos mi-
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis litares resulte em ações efetivas
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial) de defesa do ciberespaço e das frontei-

1º DE NOVEMBRO DE 2023
ANO XXIX N° 1283 R$ 31,90
REVISOR: Hassan Ayoub ras, especialmente no combate ao tráfi-
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim, co de drogas e armas. É o mínimo já que
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos, não fomos nem seremos recompensa-
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
dos pelas despesas com uísque, pica-
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., nha, Viagra e quem sabe o que mais.
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, Ana Lúcia Borghese
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo
— EXCLUSIVO —
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
CONFLITO de INTERESSES ESTRADA DA PERDIÇÃO
Mesmo com toda a catástrofe pro-
A COMISSÃO DE ÉTICA DO GOVERNO APURA SE
ROBERTO CAMPOS NETO LUCRA COM DECISÕES DO BC
CARTA ONLINE
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
vocada pela seca prolongada, o
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva, agronegócio não deixa de querer des-
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana DOS DOIS LADOS truir ainda mais a Amazônia. São verda-
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
DO BALCÃO deiros gafanhotos das pragas do Egito.
REDES SOCIAIS: Caio César Roberto Campos Neto precisa ur- Clóvis Deitos
SITE: www.cartacapital.com.br
gentemente ser retirado do cargo
ou, no mínimo, ter confiscadas suas apli- LAMAÇAL SEM-FIM
cações em títulos públicos. Não bastas- Os ministros do STF autorizam os
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. se o estrago deixado por Paulo Guedes, bancos a tomarem as casas dos ci-
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esse nomeado por Bolsonaro ainda boi- dadãos endividados, mas nada fazem e
PUBLISHER: Manuela Carta
cota o crescimento do Brasil com uma nada farão contra essa barbárie instituí-
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene das maiores taxas de juro do mundo. da pela Vale. Triste povo cuja justiça é
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NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
Amarildo de Rocco cega para uns e parceira de outros.
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CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, A GUERRA INSANA
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva A situação em Gaza assemelha-se REPÚBLICA DAS TOGAS
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE:
à de Varsóvia pós-1939. Mesmo entendendo as circunstân-
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, Os motivos podem ser diferentes, cias do presidencialismo de coali-
enio@gestaodenegocios.com.br
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto,
mas as intenções são as mesmas. O go- zão, também entendo que o Supremo
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br verno israelense talvez sinta saudades Tribunal Federal deve ser formado por
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
agholanda@Agholanda.com.br
dos métodos do Irgun nos albores pessoas da confiança do presidente e
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com do nascimento de Israel. com a mesma orientação política. Acho
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br César Augusto Hulsendeger que Lula tem duas boas opções no pró-
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda. prio governo: tanto o ministro Flávio
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. SALGAR A TERRA Dino quanto o ministro Silvio Almeida se-
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Desde a implantação de um riam excelentes nomes para o STF.
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se
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constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou meio de ameaças e atos terroristas pra-
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel
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ticados por grupos paramilitares sionis- CIDADE SITIADA
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de tas, Israel nunca escondeu sua intenção Cheiro podre, igual ao sentido por
acordo com a Lei de Imprensa.
de fazer uma limpeza étnica completa Hamlet no Reino da Dinamarca,
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP dos árabes palestinos para ocupar todo exala da aliança entre milícias e políticos
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) o território, em desrespeito à Resolução no Rio de Janeiro. Desde 2019, esse
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
181 da ONU, de 1947, a prever a pacto se espalha pelo País graças à cor-
existência de dois Estados na região. rupção, ao acesso facilitado a armas e às
Enquanto o governo israelense insistir fronteiras abertas para o narcotráfico. A
no uso desproporcional da força militar e inteligência da PF sabe, há décadas, que
continuar a assassinar civis palestinos o Mito vigarista, desde vereador, usa mi-
em massa, nunca haverá paz. licianos como cabos eleitorais.
Marcos Abrão João Bosco

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De segunda a sexta, das 9 às 18 horas – exceto feriados •Por motivo de espaço, as cartas são selecionadas e podem sofrer cortes. Outras comunicações para a redação devem ser
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C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 5
EDITORIAL CLUBE DE REVISTAS

Mino Carta
A ONU de volta
Graças ao português Guterres,
a organização reassume seu papel inicial

A
Organização das Nações Unidas,
herdeira da Liga das Nações, re-
sultou da Segunda Guerra Mun-
dial, cabendo aos vencedores ocupar o
Conselho de Segurança com direito ao
veto, quando houvesse reuniões chama-
das a decidir os destinos da política mun-
dial. Cinco países – Estados Unidos, Grã-
-Bretanha, URSS, França e China – foram
convocados a cumprir esta tarefa impo-
nente. Alguns dos secretários-gerais da
entidade, conforme a fisionomia da polí-
tica global naquele exato instante, tive-
ram papel bastante destacado.
O português António Manuel de
Oliveira Guterres, atual secretário-geral,
teve condições que não exigiam do secretá-
rio aquela participação decisiva reservada
a outros convocados para a mesma função.
Guterres ganhou por isso uma fisionomia
de cavalheiro brando e a manteve por um
bom tempo, ou seja, até a eclosão da grave

V YA C H E S L AV O S E L E D K O / R E P Ú B L I C A D O Q U I R G U I S TÃ O / O N U
crise a assolar o Oriente Médio. Desde o co- Guterres, justo desempenho na hora certa a força elétrica foi cortada a mando ju-
meço do conflito, Guterres passou a con- deu. Certo de comandar o povo eleito,
siderar o confronto como provocado por opressores e oprimidos, que teima em ne- Benjamin Netanyahu investe contra o
dois governos distintos: de um lado Israel, gar a evidência. Inteirado, finalmente, do povo islâmico com ímpetos de genocida.
do outro o governo da Faixa de Gaza, es- seu poder e da organização por ele coman- Tudo confirma a desoladora conclusão de
pezinhado e humilhado por Tel-Aviv dada, promoveu nos últimos dias uma reu- que Israel de Netanyahu nada aprendeu
a despeito da proteção que recebe do nião da Assembleia-Geral, a qual se con- com o Holocausto, pelo contrário apren-
Hamas a apoiar, inclusive militarmente, clui com a demanda da paralisação imedia- deu as lições da inaudita violência nazista.
o povo oprimido naquele rincão soturno. ta do confronto e a execução de um plano A ONU de Guterres tem condições de
urgente de socorro à população de Gaza. ir além do pedido de cessar-fogo, para
A ONU do secretário Guterres, des- Na moldura de uma guerra que já pro- formular acusações precisas contra um
de o começo desta guerra insana, evitou vocou mais de 7 mil mortos. Destes, mais país tão propenso a dar o mau exemplo. E
usar em seus comunicados a palavra ter- de 2 mil são crianças, desaparecidas de- o secretário-geral, neste momento, tem
rorismo, de sorte a repelir na prática a te- baixo das bombas ou privadas do tra- uma dimensão que agora o coloca em
se de Israel, a trocar desempenhos entre tamento adequado nos hospitais onde grande e merecido destaque. •

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CLUBE DE REVISTAS

A Semana 8.11.23

Irmãos Batista
Unidos pelo absolvidos
golpismo

A Comissão de Valores
Mobiliários absolveu na
terça-feira 31 os empresários
Joesley e Wesley Batista
da acusação de uso de
informação privilegiada
em operações do mercado
financeiro. Os irmãos eram
acusados de lucrar com ações
da JBS nos dias anteriores
ao vazamento do áudio de

Justiça/ O fiasco do 7 de Setembro


uma conversa gravada por
Joesley com o então
presidente Michel Temer que
TSE inclui o general Walter Braga Netto na lista de inelegíveis derrubaria o valor dos papéis
da companhia. “A decisão

O
desfaz uma injustiça, atesta
uso político do 7 de Setembro menta o período de inelegibilidade de oi- o pleno funcionamento
de 2022, Bicentenário da Inde- to anos, definido em junho, mas fixa mul- das instituições no Brasil
pendência, custou caro ao ex- ta de 425 mil reais e estende a punição a e reafirma a integridade
das operações no mercado”,
-presidente Jair Bolsonaro e ao Braga Netto. O militar terá de pagar mul-
afirma em nota a J&F,
seu colega de chapa, o general Walter Bra- ta de 212 mil reais e também está proibi- holding da família.
ga Netto. Por 5 votos a 2, o Tribunal Supe- do de disputar eleições até 2030. “Hou-
rior Eleitoral condenou novamente Bolso- ve captura da estrutura de Estado em
naro por transformar as celebrações em uma data de tamanha importância pa-
palanque eleitoral. Os ministros da Cor- ra todos os brasileiros”, declarou a mi-
te entenderam que o ex-capitão abusou do nistra Carmén Lúcia, integrante do TSE.
poder e fez uso indevido de recursos públi- “O abuso é claro. A Justiça eleitoral não é
cos para autopromoção. A decisão não au- tola”, emendou Alexandre de Moraes.

Justiça/ FORAGIDO CAPTURADO


EX-SENADOR TELMÁRIO MOTA É PRESO SOB SUSPEITA DE ORDENAR ASSASSINATO

O ex-senador Telmário Mota Vista. O homicídio ocorreu um sada campanha de reeleição ao


foi preso no município goiano ano após ela denunciar Mota Senado no ano passado.
de Nerópolis na noite da se- por importunação sexual e À época, Mota alegou ser
gunda-feira 30, após ser con- tentativa de estupro contra a vítima de perseguição política,
M AT E U S B O N O M I /A G I F /A F P E E D I L S O N

siderado foragido pela Polícia filha adolescente deles. mas este não é o primeiro epi-
Civil. Ele é suspeito de ser o Em agosto de 2022, a jovem sódio de violência do qual é
mandante do assassinato de de 17 anos registrou um bole- acusado. Em 2005, uma mu-
Antônia Araújo Souza, mãe de tim de ocorrência contra o pai. lher de 19 anos disse à polícia
RODRIGUES/AG. SEN A DO

uma de suas filhas. Servidora Ela disse que Mota tocou em ter apanhado do político “até
do Distrito Sanitário Especial suas partes íntimas e tentou ar- desmaiar”. Ela acrescentou
Indígena Yanomâmi e rancar suas roupas, depois de que mantinha relações se-
Yek’uana, ela foi executada forçá-la a entrar em um carro e xuais com ele desde os 16
com um tiro na cabeça quan- ingerir bebidas alcoólicas. O anos. Um mês depois, retirou
do saía de casa, no bairro Se- então parlamentar negou o cri- a queixa e disse que se ma- A filha do político também o acusa
nador Hélio Campos, em Boa me, ocorrido em meio à fracas- chucou ao tentar agredi-lo. de tentativa de estupro em 2022

C A R TAC A P I TA L — 5 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 7
CLUBE DE REVISTAS
A Semana

Gaza/ Pílulas de agonia


Problemas internos

O apoio à invasão de Gaza em


Israel caiu substancialmente.
As últimas do conflito no Oriente Médio
Segundo levantamento

O
da Universidade Hebraica
de Jerusalém, o porcentual Brasil insistiu até o último mo- mente foram repetidas por John Kirby,
daqueles que apoiavam mento, mas foi obrigado a repas- porta-voz do conselho de segurança nacional
uma ocupação prolongada sar na quarta-feira 1° à China a da Casa Branca: “Acreditamos que um ces-
do território palestino presidência rotativa do Conse- sar-fogo neste momento beneficia o
despencou de 65%, em
lho de Segurança das Nações Unidas sem Hamas, e o Hamas é o único que ganharia
10 de outubro, para 46%
agora. As forças israelenses emplacar uma resolução que ao menos es- com isso neste momento”.
atualizaram o número de tabelecesse uma “pausa humanitária” nos Restou a Mauro Vieira, chanceler brasilei-
reféns em poder do Hamas: ataques de Israel a Gaza. A tarefa agora se ro, dar o recado. “Continuamos em um im-
240. O grupo palestino torna quase impossível. Dificilmente os Es- passe devido a divergências internas, espe-
libertou até agora apenas
tados Unidos concordarão em subscrever cialmente entre alguns membros permanen-
quatro sequestrados.
uma proposta de Pequim. Joe Biden cumpre tes. Se não agirmos agora, quando agiremos?
assim a promessa de garantir aos israelen- Quantas vidas mais serão perdidas até que
ses o passe livre para uma ofensiva trágica. saiamos da retórica e cheguemos à ação?”
Na segunda-feira 30, o primeiro-ministro
Benjamin Netanyahu voltou a ignorar os ape- Jogo baixo
los mundiais e a indicar uma invasão longa e Enquanto Netanyahu prometia não deixar pe-
arrasadora da Faixa de Gaza. “Os pedidos de dra sobre pedra em Gaza, o embaixador de Is-
cessar-fogo são apelos para que Israel se renda rael na ONU, Gilad Erdan, apelava ao Holo-
ao Hamas. Isso não vai acontecer”, declarou causto judeu na Segunda Guerra Mundial para
em entrevista coletiva. “Senhoras e senhores, justificar a operação militar contra palestinos
a Bíblia diz que há tempo para paz e tempo pa- tão indefesos quanto seus antepassados. Erdan
ra a guerra. Este é um momento de guerra, promete, de agora em diante, frequentar as
uma guerra pelo nosso futuro comum.” reuniões das Nações Unidas com uma estrela
As palavras do primeiro-ministro pratica- de Davi amarela e as palavras “Nunca mais”,

Engaiolados ao sul, os palestinos em Gaza enfrentam uma crise humanitária sem precedentes e bombardeios ininterruptos...

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CLUBE DE REVISTAS

em referência à identificação imposta pelos aumenta a possibilidade de que o conflito se Antissemitismo


nazistas. “A partir de hoje, cada vez que olha- alastre pelo Oriente Médio. Em entrevista à
rem para mim, vocês se lembrarão do que sig- Agência France Presse, Najib Mikati, Uma multidão antissemita
nifica permanecer em silêncio diante do Mal”, premier libanês, disse trabalhar para evitar invadiu um aeroporto
na república russa do
afirmou. “Assim como meus avós e os avós de uma guerra, elogiou a atuação “racional
Daguestão no momento do
milhões de judeus, de agora em diante, minha e sábia” do Hezbollah, força paramilitar pouso de um avião israelense.
equipe e eu usaremos estrelas amarelas.” mais poderosa do que o exército regular, O porta-voz do Kremlin,
mas expressou seu receio: “O caos pode en- Dimitry Peskov, lamentou
Crianças terroristas? golir todo o Oriente Médio”. o incidente e prometeu
medidas de segurança para
Na segunda-feira das declarações de Mahmoud Daifallah Hmoud, represen-
impedir que atos semelhantes
Netanyahu e do teatro de Erdan, as forças tante da Jordânia no Conselho de Seguran- se repitam. “As autoridades
armadas israelenses promoveram uma nova ça, afirmou que foi oferecida uma falsa esco- competentes vão investigar.
incursão terrestre em Gaza, amparada por lha aos palestinos. Ou eles morrem no norte Depois disso, claro, a situação
bombardeios maciços. Segundo o Unicef, de Gaza ou são transferidos para o sul para será analisada. Faremos
o necessário para minimizar
agência das Nações Unidas para a infância, também serem mortos lá. “Não será a altura
ou eliminar completamente
mais de 3,4 mil crianças palestinas morre- de o Conselho dizer a Israel que a vida huma- tais manifestações
ram em três semanas de conflito. Do lado is- na é sagrada, independentemente da reli- ilegais no futuro.”
raelense, foram 30, além de 20 feridas. gião, etnia ou origem de alguém?”
“Mais de 420 crianças são mortas ou feri-
das em Gaza todos os dias”, disse Catherine Macarthismo
Russell, diretora-executiva do Unicef. “Um Grupos de direitos civis nos Estados Unidos
número que deveria abalar profundamente alertam para uma onda de censura contra
cada um de nós.” Biden e Netanyahu dizem as críticas aos bombardeios em Gaza (repor-
duvidar do número divulgado pela Autorida- tagem à página 40). Há inúmeros registros
de Palestina e organismos independentes. de demissões, ameaças e perseguição de ci-
dadãos críticos à ação de Israel. No Reino
Rastilho de pólvora Unido, Paul Bristow, deputado do Partido
A crescente hostilidade entre o Hezbollah e Conservador, perdeu um cargo no governo
tropas israelenses na fronteira com o Líbano após defender o cessar-fogo.
REDES SOCIAIS, M A NOEL ELÍ AS/ONU E MOH A MMED A BED/A FP

... o Conselho de Segurança da ONU continua bloqueado pelos Estados Unidos, enquanto o Hamas exibe reféns israelenses

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 9
CLUBE DE REVISTAS
CA PA

Apenas reforçar o
patrulhamento é
chover no molhado

Missão
impossível?
O GOVERNO LULA É INSTADO A PROPOR SOLUÇÕES
PARA A CRISE DE SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO
E PARA FREAR O AVANÇO DAS FACÇÕES PELO PAÍS

por M AU R ÍCIO THUSWOHL

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

S
iga o dinheiro. A célebre homens da Força Nacional de Seguran-
linha investigativa ado- ça (FNS) ao estado, o secretário-execu-
tada pelos jornalistas O MINISTÉRIO DA tivo da pasta, Ricardo Cappelli, reuniu-
Carl Bernstein e Bob JUSTIÇA PROPÕE -se, na segunda-feira 30, com o secretá-
Woodward em 1972 O RASTREAMENTO rio da Casa Civil do Rio, Nicola Miccione,
– no caso Watergate, e outras autoridades federais e estadu-
que levou à renúncia DAS TRANSAÇÕES ais. Foi decidida a criação do Comitê In-
de Richard Nixon, então presidente dos FINANCEIRAS DE tegrado de Investigação Financeira e Re-
EUA – será, meio século mais tarde, o GRUPOS MILICIANOS cuperação de Ativos, o Cifra, novo cole-
norte de uma nova tentativa de parceria E DO NARCOTRÁFICO giado a ser integrado por representantes
entre o governo federal e as autoridades da Polícia Civil e da Secretaria de Fazen-
estaduais para combater o crime organi- da do Rio de Janeiro, e também pela Se-
zado. O Brasil está habituado a ver a re- cretaria Nacional de Segurança Púbica,
petição do mesmo filme, encenado por car crimes ambientais, como extração Polícia Federal e Polícia Rodoviária Fe-
diferentes atores, a envolver ineficazes ilegal de ouro e madeira, tráfico de ani- deral. “O Comitê fará um mapeamento
forças-tarefa e operações militarizadas mais e biopirataria, entre outros. Dispu- de movimentações financeiras atípicas
em comunidades pobres. Mas, desta vez, tas sangrentas chegaram a lugares ini- por organizações criminosas inédito no
há grande expectativa quanto a um re- magináveis até pouco tempo atrás, co- País”, promete Cappelli.
sultado diferente, até porque a crise da mo o Guarujá, no litoral de São Paulo.

O
segurança pública atingiu um patamar Um acirramento jamais visto na dispu- Cifra será oficialmen-
jamais visto anteriormente. ta entre grupos por pontos de venda de te anunciado na próxi-
Antes concentradas na Região Sudes- drogas na capital e no interior fez saltar ma quarta-feira 8, após
te, as facções estenderam seus tentácu- os números da violência no Rio Grande reunião entre Dino e
los de Norte a Sul, em uma miríade de do Norte e Rio Grande do Sul. Até mes- Cláudio Castro. Até lá,
crimes que vão muito além dos roubos, mo pacatas cidades do interior se veem o governo federal pretende responder
sequestros e latrocínios com os quais os acuadas pelo fenômeno do “novo can- a outra solicitação do governador do
brasileiros aprenderam a conviver nos gaço”, com a atuação em bando de cri- Rio: integrar o Conselho de Controle
centros urbanos. No Rio de Janeiro, on- minosos inspirados no legado do gru- de Atividades Financeiras, o Coaf, ao
de facções do narcotráfico e grupos mi- po de Lampião. novo Comitê. “Vamos conversar com o
licianos ora se matam, ora se associam, O bicho parece feio, e de fato é. Para Ministério da Fazenda sobre essa pos-
em uma complexa disputa por contro- olhá-lo de frente, o governo federal usará sibilidade, que vemos com bons olhos.
le territorial e econômico, a morte de o conflagrado Rio de Janeiro como palco Policiais da Senasp que atuam no Coaf
um chefe miliciano pela polícia resul- inicial. Um mês após o ministro da Jus- estão sendo deslocados para ajudar a
tou em uma retaliação inédita com 35 tiça, Flávio Dino, anunciar o envio de polícia do Rio de Janeiro com foco em
ônibus incendiados pela cidade. Res-
ponsável por 28% do PIB nordestino
e aprazível refúgio de turistas, a Bahia
viu as taxas de homicídios e de letalida-
de policial dispararem, a ponto de ga-
rantir o segundo lugar no ranking na-
cional de mortes violentas. De acordo
R E D E S S O C I A I S E T O M C O S TA / M J S P

com o Anuário Brasileiro de Segurança


Pública, foram 47,1 assassinatos por cem
mil habitantes em 2022 – o estado vem
atrás apenas do Amapá, na Região Nor-
te, a ostentar um índice superior a 50.
Na Amazônia, o governo ainda luta
para limpar o território da presença de
organizações que usam a floresta como
rota do tráfico de drogas e para prati- A capital fluminense viveu um dia de terror após a morte de um líder miliciano pela polícia

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 11
CLUBE DE REVISTAS
CA PA

síveis parentes de traficantes e milicia-


nos que tenham CNPJs vinculados aos
seus CPFs. Contamos com o trabalho do
Coaf para detectar onde está a lavagem
de dinheiro”, afirma o governador.
O advogado Eugênio Aragão, minis-
tro da Justiça de Dilma Rousseff, avalia
que é estrategicamente correto “seguir
o dinheiro”, mas alerta que “isso não po-
de ser feito à custa do esforço tático de
neutralizar a capacidade de enfrenta-
mento das organizações criminosas
contra a força pública, pois suas lideran-
ças precisam ser presas e as organiza-
ções desbaratadas”. Duas vezes candi-
Castro, Dino e Capelli discutem propostas para resgatar o Rio de Janeiro do crime organizado. As
dato ao governo do Rio, o deputado Tar-
facções se espalham pelo País e empurraram a Bahia para a vice-liderança do ranking de assassinatos císio Motta, do PSOL, acrescenta: “Sem
dúvida, é importante que haja ações vol-
tadas à asfixia logística e financeira das
milícias, mas esta e outras ações de in-
teligência não se resolvem com opera-
ções desenfreadas, chacinas e execu-
ções” nas comunidades pobres do Rio.

P
esquisador do Centro de
Estudos de Segurança e
Cidadania (CESeC), Pablo
Nunes afirma ser impres-
cindível que “os esforços
de seguir o dinheiro sejam levados a sé-
rio”, no Rio ou em qualquer outro esta-
do brasileiro. Ele explica: “O combate ao
crime sempre foi muito focado no vare-
jo do narcotráfico ou na base dos grupos
criminosos. Pouquíssimas vezes se che-
gou ao centro de comando das facções e a
quem realmente lucra com as atividades
ilícitas”. Nunes ressalta que, nos últimos
anos, as milícias se aproveitaram da anu-
ência do Estado para desenvolver formas
de lavagem de dinheiro sofisticadas e di-
investigações financeiras”, diz Cappelli. potencial ofensivo e desmantelá-las”. versificadas: “O esforço de perseguir os
Segundo o secretário-executivo, o go- Com a imagem desgastada, Castro diz fluxos de dinheiro é importante para li-
verno coloca em prática a lógica do apostar na estratégia e avisa que “dispo- dar com esse tipo de criminalidade, que
Sistema Único de Segurança Pública: nibilizará os melhores auditores, procu- tem na exploração financeira a sua base
“Vamos integrar os entes federados com radores e investigadores” para o traba- de atuação”. E acrescenta: “É muito mais
o objetivo de investigar crimes financei- lho conjunto com o governo federal. “A difícil fazer esse trabalho agora do que
ros e lavagem de dinheiro. A descapita- Secretaria de Fazenda fará um levanta- seria há alguns anos. Com o desenvolvi-
lização das organizações criminosas é mento de todos os comércios nas áreas mento econômico das milícias, o cenário
decisiva para que possamos reduzir seu de milícia e de tráfico. E também de pos- agora é muito mais complexo”.

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

O sociólogo Renato Sérgio de Lima, versa com jornalistas, o presidente Lu-


coordenador do Fórum Brasileiro de Se- la vaticinou: “Eu não quero as Forças
gurança Pública, observa que o fenôme- MESMO SEM GLO Armadas na favela brigando com ban-
no tem abrangência nacional. “Há um DECRETADA POR dido. Não é o papel delas. Enquanto eu
processo de ampliação do poder das fac- LULA, MILITARES for presidente, não tem GLO (decreto de
ções de base prisional e também de gru- Garantia da Lei e da Ordem)”. Pablo Nu-
pos armados que controlam territórios REFORÇARÃO O nes retruca: “Não temos a GLO, mas te-
– não de forma idêntica às milícias ca- POLICIAMENTO mos o envio de homens da Marinha e da
riocas, mas parecida – em todo o País.” DE PORTOS E Aeronáutica. Mais dia menos dia, have-
Para o especialista, o crime organizado AEROPORTOS rá também o emprego do Exército. Aí, a
ganhou proporções bem maiores do que GLO não estará configurada, mas tere-
é possível quantificar: “É uma realidade mos na prática o uso das Forças Arma-
nacional que atinge governos de diferen- das na composição de esforços na segu-
tes partidos”. Para se ter uma ideia da para tentar dar conta desse desafio”, diz. rança pública”. Para o pesquisador, há
dimensão financeira do crime, estima- Em outra reunião, realizada na terça- grande preocupação porque “não há cla-
tivas no FBSP indicam que a circulação -feira 31, Flávio Dino encontrou os mi- reza sobre o plano de uso dessas forças e
de cocaína no Brasil equivale a cerca de nistros da Defesa, José Múcio, e da Casa quais serão os desdobramentos em ter-
4% do PIB brasileiro. “Não é uma ques- Civil, Rui Costa, para tratar da partici- mos de uma política pública realmente
tão só de polícia ou de esfera penal, há pação dos militares no plano de comba- integrada e estruturada, e não apenas
que se pensar toda uma política pública te ao crime no Rio. Dias antes, em con- em ações tópicas com vistas a dar uma
resposta emergencial”.

S
TEMAS DE SEGURANÇA ESCAPAM À POLARIZAÇÃO egundo Cappelli, as Forças
Porcentual de eleitores contrários às pautas relacionadas abaixo Armadas contribuirão na-
quilo que é sua atribuição
LEGALIZAÇÃO
DO ABORTO constitucional: “A Marinha,
DESCRIMINALIZAÇÃO DO
por exemplo, vai auxiliar
USO DE DROGAS no trabalho de policiamento marítimo
REDUÇÃO DA feito pela Polícia Federal nas baías de
MAIORIDADE PENAL
Guanabara e Sepetiba, onde estão loca-
CASAMENTO CIVIL DE
PESSOAS DO MESMO SEXO
lizados os portos de Itaguaí e do Rio de
Janeiro, para ampliar a fiscalização das
PROIBIÇÃO DA VENDA DE
ARMAS DE FOGO embarcações que por elas circulam”. Em
PRISÃO DE MULHERES QUE
outra frente, é discutida com o Exército,
INTERROMPAM A GRAVIDEZ conta o secretário-executivo do MJ, a am-
ADOÇÃO DE CRIANÇAS POR pliação da Operação Ágata, que integra o
CASAL GAY
Plano Estratégico de Fronteiras do gover-
ADOÇÃO DE
COTAS RACIAIS
no federal e atualmente funciona quatro
meses por ano: “Passará a ser uma opera-
PENA DE
MORTE ção perene de combate ao crime organi-
PRIVATIZAÇÕES NO
zado com integração entre PF, Marinha e
Exército nas fronteiras secas e marítimas”.
I S T O C K P H O T O E T O M C O S TA / M J S P

SETOR PÚBLICO

PROGRAMA Aragão é contrário à ideia: “As For-


BOLSA FAMÍLIA
ças Armadas não têm vocação para se-
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%
gurança pública, nem no Brasil nem em
B Lulismo* Bolsonarismo lugar algum do mundo. Enquanto os mi-
* Termo criado para designar um eleitorado com preferências similares
litares apelam ao uso de máxima força
às do bolsonarismo, mas que votou em Lula no segundo turno. para debelar um inimigo, as polícias vi-
Fonte: Pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil (2023)”, sam a manutenção da ordem com o mí-
do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT). nimo de força, para evitar conflagra-

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 13
CLUBE DE REVISTAS
CA PA

ções civis com óbitos civis. A lógica do


uso da força é oposta”.
Acompanhado por Múcio e pelos co- CLÁUDIO CASTRO
mandantes das Forças Armadas, Flá- APELA AO
vio Dino reuniu-se com Lula, também POPULISMO PENAL
na terça-feira 31, para apresentar os re-
AO PROPOR LEI
sultados das negociações e as propostas
acordadas com as autoridades fluminen- PARA EQUIPARAR
ses e discutir o emprego dos militares nas A FORMAÇÃO DE
ações: “Vamos mostrar ao presidente que MILÍCIAS AO CRIME
a fase atual visa não apenas a ostensivida-
de das operações, mas também a apreen-
DE TERRORISMO
são de bens e, portanto, a descapitaliza-
ção das organizações criminosas em um
trabalho integrado de inteligência”. O mi- pificar os crimes, principalmente por
nistro da Justiça afirma que o Rio de Ja- conta da dimensão e complexidade que
neiro “ganhou a primazia” por conta da as milícias ganharam nos últimos anos.
“emergência dos fatos” que vêm ocorren- “Como responsabilizar alguém por cri-
do no estado. Os planos para os outros es- me de milícia se nem sequer consegui-
tados virão na sequência, de acordo com mos fazer o acompanhamento dos gru-
as necessidades. “A gente não vai fechar pos financeiros e revelar as formas de la-
os olhos diante dos fatos. E um bom pla- vagem de dinheiro? Como fazer isso se
nejamento é necessariamente flexível. os grupos milicianos têm representantes
Não pode ser um planejamento que igno- dentro do Estado e de setores políticos
re sua excelência, a realidade”, disse Dino. que defendem seus interesses?”, indaga.
No passado, o atoleiro da segurança

O
utro ponto das tratativas pública colocou ponto final em ambicio-
entre os governos fede- sos projetos políticos. Ciente disso, o go-
ral e estadual mal recebi- verno federal sabe que um revés nessa
do entre os que atuam no área poderá ter consequências eleito- A Polícia Federal foca em ações de inteligência
para combater o narcotráfico. Múcio discute o
setor de segurança públi- rais nefastas em 2024 e, principalmen- papel que os militares podem desempenhar no
ca é a proposta apresentada por Castro de te, em 2026. Diversas pesquisas de opi- enfrentamento da crise de segurança do Rio
endurecer a legislação para, entre outras nião realizadas recentemente revelam
coisas, equiparar a formação de milícia ao que a segurança pública é uma das maio-
crime de terrorismo. “O populismo pe- res – senão a maior – preocupações dos valores ultraconservadores da família,
nal não é solução. Nosso problema nunca brasileiros hoje. Segundo uma pesquisa e sim a da segurança. É uma agenda que
foi a falta de leis que responsabilizem pe- do Instituto Ipsos, a preocupação com a pega muito, não só entre os eleitores de
nalmente os grupos ou indivíduos ligados violência e a criminalidade aumentou de Bolsonaro ou conservadores”, diz o cien-
ao crime, e sim uma corrosão institucio- 35%, em junho, para 41%, em setembro. tista político João Feres Júnior, coorde-
nal que loteia setores do próprio Estado Na média mundial, esse temor atinge nador do Laboratório de Estudos da Mí-
e passam a ser parte desses grandes mer- 32% da população. Outra pesquisa, di- dia e Esfera Pública da Uerj.
cados que operam nas fronteiras entre o vulgada este mês pela Confederação Na- Uma pesquisa que acaba de ser rea-
legal e o ilegal”, diz Tarcísio Motta. Já cional do Transporte, mostra que 63,7% lizada pelo Instituto da Democracia e
Pablo Nunes classifica como bravatas dos entrevistados apontaram a violência da Democratização da Comunicação
as propostas do governador: “São e a falta de segurança como os principais (INCT) com 2 mil entrevistados com-
movimentos que buscam meramente problemas do povo brasileiro: “A ques- parou a adesão a valores por pessoas que
dar uma resposta à opinião pública e tão da segurança pública é o calcanhar votaram em Bolsonaro e por eleitores
fortalecer uma ideologia. Não podem ser de aquiles eleitoral da esquerda. A agen- de Lula, mas têm posições próximas aos
chamados de política pública”. da que tende a ser mais autossustentá- bolsonaristas. “As posições ligadas à se-
Para o especialista, é muito difícil ti- vel dentro do bolsonarismo não é a dos gurança praticamente empatam, prin-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

cipalmente na questão da proibição das


armas de fogo. Há também muita gente
que vota em Lula e é a favor da redução
da maioridade penal ou contrário à des-
criminalização das drogas. Existe uma
preocupação geral da população brasi-
leira com a segurança pública”, afirma
Feres. Para o professor, a solução para
a esquerda passa pela reforma institu-
cional da polícia e também por políticas
públicas de segurança que “façam sen-
tido, sejam humanas e ao mesmo tempo
produzam algum resultado positivo”. É
um tema bastante espinhoso, pondera,
e “não existe fórmula mágica ou bala de
prata para chegarmos a uma solução”.

P
ara Renato Sérgio de Lima,
o governo federal tem nas
mãos a oportunidade de fa-
zer uma inflexão no deba-
te sobre segurança pública:
“No desenho federativo e republicano do
País, o governo federal é o único que tem
capilaridade e capacidade de articulação
e coordenação suficientes para mudar
regras de governança. Já se investiu de-
mais em gestão e aumento da capacida-
de operacional das polícias, agora preci-
samos fazer um processo de reforma re-
gulatória da área, dando, inclusive, mais
condições de trabalho aos próprios pro-
fissionais da segurança pública”.
Para o especialista, é preciso saber
POLÍCIA FEDERAL E ANTONIO OLIVEIRA /MINISTÉRIO DA DEFESA

articular instituições que têm autono-


mia federativa em torno de um projeto
comum: “O maior desafio é saber, pa-
ra além das operações policiais, qual é
o projeto de mudança na segurança pú-
blica. É necessário reduzir o crime, mas,
além disso, também garantir condições
de vida para a população”. Lima ressalta
que nenhum governo, desde a redemo-
cratização, concebeu dessa forma: “Ao
sempre reduzirmos o problema à esfera
criminal ou policial, perdemos a oportu-
nidade de romper com um modelo extre-
mamente perverso que é perpassado por
racismos estruturais, por péssimas con-
dições de vida e por desigualdades”. •

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 15
CLUBE DE REVISTAS
CA PA

Rio
40 graus
DEBELAR A CRISE DE SEGURANÇA EXIGE
O COMBATE À ALIANÇA ENTRE AS BANDAS
PODRES DA POLÍCIA E DA POLÍTICA

p o r D A N I E L C E R Q U E I R A*

O
País assistiu atôni- termínio, polícia mineira e, mais recen- ritório. 3. Monopólio político local. Ex-
to a mais um capí- temente, a partir dos anos 2000, as milí- plora-se desde transporte público irregu-
tulo da crise de se- cias. Nem os atos terroristas são novida- lar, gatonet, grilagem de terras, constru-
gurança pública de, como nos lembra a Chacina da Baixa- ção irregular de imóveis, até qualquer ati-
no Rio de Janeiro. da, quando policiais militares cometeram vidade legal exercida por empresários lo-
Desta vez, um gru- aleatoriamente 29 assassinatos nas ruas cais, obrigados a pagar taxas mensais para
po miliciano, em de Nova Iguaçu e Queimados, em 2005. os criminosos. Os eleitores são coagidos a
resposta à morte de um dos seus asseclas, A milícia é baseada em um modelo de votar apenas nos nomes indicados pelos
perpetrou o terror na Zona Oeste da cida- negócio sustentado por um tripé: 1. Do- milicianos. Campanhas eleitorais de ou-
de, incendiando 35 ônibus. Há algo novo mínio territorial armado. 2. Uso da vio- tros candidatos são proibidas no territó-
no episódio ou trata-se apenas de mais um lência para exploração econômica do ter- rio. A relação entre a milícia, a banda po-
capítulo de um enredo conhecido? Há so- dre da polícia e a banda podre da políti-
lução para o Rio de Janeiro? ca garante a sustentabilidade do negócio.
Ainda que as narcomilícias, no centro DADO O NÍVEL Não há, portanto, como pensar seria-
da crise atual, constituam um fenômeno DE DEGRADAÇÃO, mente em segurança pública efetiva no
relativamente novo, já que apenas de al- OS PODERES estado do Rio de Janeiro sem enfrentar
guns anos para cá milicianos e trafican- essa coalizão espúria e sem levar a cabo
tes de drogas estão juntos e misturados,
PÚBLICOS LOCAIS uma reforma radical das polícias, com o
a aliança da banda podre da polícia com a SÃO INCAPAZES expurgo dos maus policiais. Devido ao ní-
banda podre da política é uma novela an- DE, SOZINHOS, vel de degradação das instituições flumi-
tiga, que se adapta aos tempos e é a fon- OFERECER UMA nenses, não é, porém, crível pensar que al-
te dos principais problemas de seguran- guma solução duradoura possa ser ofere-
ça pública no estado. Desde fins dos anos
SOLUÇÃO cida pelos poderes públicos locais.
1960 tivemos como exemplo os chama- DURADOURA Um exemplo que ilustra o ponto ocor-
dos esquadrões da morte, grupos de ex- reu uma semana antes dos incêndios aos

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

monitorar as fronteiras, portos e aero-


portos, com o uso, inclusive, de drones.
Não se sabe como essas forças contribui-
rão para enfrentar as milícias. O espetá-
culo midiático com a solução milagrosa
está armado. Na sequência, alguns crimi-
nosos serão presos, as milícias voltarão a
trabalhar no sapatinho e a crise será es-
quecida até a próxima rodada.
Ainda que o desafio seja enorme, exis-
te solução para a segurança pública do
Rio. Para tanto, o foco tem de ser total na
maior organização criminosa, formada
por milicianos e a banda podre das polí-
cias e da política. A refundação das polí-
cias fluminenses, com o expurgo dos maus
policiais e a imposição de novos mecanis-
mos de controle com a participação da so-
ciedade civil é um primeiro passo urgente.

P
ara tanto, o governo fede-
ral poderia patrocinar um
modelo de concertação,
chamando para uma câ-
mara de alto nível não ape-
ônibus, que ficou conhecido como “o no- Em retaliação à morte de um comparsa, nas o Ministério Público Federal, mas o
milicianos queimaram ônibus e transformaram
vo cangaço da Assembleia Legislativa do Supremo Tribunal Federal, de modo a
a cidade em praça de guerra
estado do Rio de Janeiro”, em que a clas- garantir a celeridade e assertividade das
se política temerosa com a indicação de ações. A curto prazo, uma força-tarefa
um novo delegado superintendente pa- minimamente qualificada, o governador formada pelo MPF, PF, Coaf e outras or-
ra a Polícia Federal, que poderia mudar Cláudio Castro apelou para o proselitismo ganizações federais se ocuparia de iden-
o curso de investigações locais e avançar das bravatas vazias: “O crime organizado tificar e neutralizar os principais vérti-
para a solução do caso do assassinato da que não ouse desafiar o poder do Estado”. ces das redes criminais que envolvem as
vereadora Marielle Franco, exigiu do go- Já as autoridades do Ministério da Jus- milícias, além de estrangular o braço fi-
vernador a mudança do secretário da Po- tiça acertadamente disseram que iriam nanceiro e econômico dessas organiza-
lícia Civil (sim leitor, pasme!, no Rio de enviar uma força-tarefa, com a participa- ções. A longo prazo, um trabalho conjun-
Janeiro não há secretário de Segurança, ção da Polícia Federal e do Conselho de to com o governo do estado e prefeituras
mas secretário de Polícia Civil e Secre- Controle de Atividades Financeiras (Co- estruturaria um plano para a ocupação
tário de Polícia Militar, cada um no seu af), com foco em ações de inteligência e do espaço público pelo Estado, onde as
quadrado). Segundo consta nos jornais, asfixia financeira dos grupos crimino- milícias crescem economicamente.
a indicação do novo secretário, Marcus sos. O conjunto das declarações revelou, Toda crise é também sempre uma opor-
Amin, foi feita pelo deputado estadual no entanto, que no afã de mostrar traba- tunidade de mudanças. Ou será que per-
Márcio Canella, que abriga em seu gabi- lho, tais autoridades continuam a tatear maneceremos nas soluções mágicas “in-
nete a esposa de um cidadão condenado no escuro sem saber para qual direção se- falíveis” que nos legaram o cenário des-
por homicídios e por chefiar uma milícia guir. No repertório falou-se em uma for- crito nos versos de Fausto Fawcett, Rio 40
BRUNO K AIUCA /A FP

que opera, curiosamente, no mesmo ter- ça-tarefa das organizações federais com graus (...) purgatório da beleza e do caos”? •
ritório eleitoral do deputado. a Polícia Civil fluminense, a fim de com-
Com as ações milicianas da última se- bater as milícias e as facções. Falou-se em *Pesquisador do Ipea, conselheiro
mana, como um pato manco, sem qual- enviar, além da Força Nacional, o Exérci- do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
quer condição de esboçar alguma reação to, a Marinha e a Aeronáutica, que iriam e coordenador do Atlas da Violência.

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 17
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Freio de
da Quaest, a popularidade de Lula e seu
governo tem duas explicações. Uma é
econômica. Mais gente vê o País no rumo
errado (49%) do que no certo (43%). Há

arrumação
ainda um empate entre quem acha que a
economia melhorou e piorou nos últimos
12 meses e uma diminuição do otimismo
em relação aos próximos 12. O aumento
recente de certas contas (luz, água, tele-
PODER Restabelecido da cirurgia no fone), dos alimentos e dos combustíveis
quadril, Lula busca recuperar as rédeas somado e um embrionário pessimismo
com o futuro da inflação e do emprego pe-
da atuação política do governo sam na percepção econômica dos brasi-
leiros, afirma Nunes. A segunda explica-
POR ANDRÉ BARROCAL
ção para a variação da popularidade está
no noticiário. Em outubro, pela primeira
vez no ano, um porcentual maior de en-

O
trevistados (36%) dizia ter ouvido mais
presidente Lula completou divulgada na quarta-feira 25, da notícias negativas do que positivas so-
78 anos na sexta-feira 27 Genial/Quaest. Embora a maioria apro- bre o governo (para 34%, era o contrário).
com sentimentos confli- ve o trabalho de Lula (54%), 42% desa-
tantes. Os embates na Fai- provam, sendo essa a opinião de 9% dos Diante do cenário, Lula apresentou no
xa de Gaza tiraram-lhe o eleitores do petista no segundo turno. café com jornalistas, do qual CartaCapital
ânimo de comemorar. Só os filhos foram Em agosto, a aprovação ganhava de 60% participou, uma reorientação do governo.
ao Palácio da Alvorada naquela noite. Uma a 35%. A avaliação “positiva” do gover- “Ano que vem vai ser o ano inteiro de via-
cirurgia no quadril quatro semanas antes no está em 38%, enquanto 29% têm vi- gem pelos estados brasileiros”, disse, para
o tinha deixado aliviado. Por 14 meses, são “negativa” e 29%, “regular”. Em agos- inaugurar obras do novo PAC, moradias
convivera com dores insuportáveis. “Já to, o índice positivo superava o negativo do Minha Casa Minha Vida, escolas, uni-
não tinha mais paciência, eu chegava aqui em 18 pontos, o dobro. Os números atu- versidades. Será, registre-se, ano de elei-
de manhã já com o humor muito azedo”, ais assemelham-se àqueles da gestão de ções municipais, um termômetro do Pa-
comentou em um café com jornalistas na- Jair Bolsonaro no período eleitoral (38% ís e um ensaio para a disputa presidencial
quele dia, no Palácio do Planalto. Antes de de positivo, conforme o Datafolha de en- seguinte. Bolsonaro, que acaba de ser de-
encontrar a mídia, havia examinado, com tão) e no seu último mês no poder (39%, clarado mais uma vez inelegível por oito
ministros palacianos e a presidente do PT, idem). O que distingue o Lula de hoje e o anos pelo Tribunal Superior Eleitoral,
Gleisi Hoffmann, pesquisas sobre sua po- Bolsonaro de ontem é que o capitão ins- tem percorrido o Brasil. Valdemar Costa
pularidade e a do governo. O retrato por pirava menos indiferença e mais bronca Neto, o chefe do partido do capitão, o PL,
trás dos números era preocupante. Os na parcela que desaprovava seu governo. diz e repete que até a campanha de 2026
brasileiros dão sinais de apreensão com a Para o cientista político Felipe Nunes, o Supremo Tribunal Federal devolverá o
economia e acreditam que Lula viaja mui- ex-presidente ao jogo eleitoral, como fez
to ao exterior. A divisão política do País com Lula em 2021. Será?
segue igual àquela da época da eleição. E Com Lula mergulhado nos estados, ca-
o Congresso, bem, o Congresso é esse O presidente berá a Geraldo Alckmin, o vice-presiden-
bunker retrógrado que está aí e causa mais te, e a Rui Costa, o chefe da Casa Civil, via-
promete, no
dificuldades ao presidente do que ao an- jar ao exterior, a fim de “vender” o Bra-
tecessor, na avaliação popular. Além de próximo ano, sil como porto seguro a investimentos na
chantageá-lo, como se verá adiante. dedicar-se mais às economia verde (geração de energia solar
A pesquisa mais inquietante foi viagens pelo Brasil e eólica, por exemplo). Neste ano, Costa vi-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 28
NESTA São Paulo. Tarcísio de
SEÇÃO Freitas cogita privatizar
a Fundação Casa

Intrigas. A mídia agora joga Lula


contra Haddad, mas o déficit zero
em 2024 era uma meta na qual
o mercado financeiro fingia acreditar

do as críticas de sempre dos neoliberais e


seus porta-vozes midiáticos. O ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, saiu cha-
muscado. É defensor de zerar o déficit,
para conquistar a confiança do tal “mer-
cado” e não dar pretexto ao Banco Cen-
tral do (palavras de Gleisi Hoffmann)
“bolsonarista” Roberto Campos Neto
para reduzir ou interromper o corte (de
novo Gleisi) da “criminosa taxa de juros”.

Há motivo para Lula querer preservar


as obras públicas: assegurar um motor pa-
ra a economia. Esta desacelera e tende a
ser pior em 2024, análise compartilhada
pelo “mercado” e governo. No primeiro
semestre, o Brasil cresceu 3,2% na com-
paração com igual período do ano passa-
do, patamar que o time de Haddad proje-
ta como resultado final de 2023. Caso se
confirme a previsão, será o primeiro de-
sitou oito estados, a Fiesp (indústria pau- sempenho na casa de 3% desde 2013, exce-
lista), a Febraban (bancos) e diplomatas tuando-se a alta de 5% de 2021, efeito es-
estrangeiros para apresentar o novo PAC. tatístico determinado pela queda de 2020,
Para garantir as inaugurações, o pre- devido à pandemia. Os analistas consul-
sidente decidiu outra reorientação no go- tados toda semana pelo BC estimam ex-
verno. Se não for possível zerar o déficit pansão de 2,8% neste ano, similar ao es-
público em 2024, meta do orçamento perado pelas duas maiores instituições
proposto ao Congresso, tudo bem. Só se- financeiras privadas, Bradesco (2,7%) e
rá zero no caso de a arrecadação permi- Itaú (2,9%). Para o próximo ano, a Fazen-
tir, não com corte de gastos. Estes devem da calcula 2,3%. Os analistas ouvidos pe-
E VA R I S T O S Á /A F P E D I O G O Z A C A R I A S / M F

se limitar ao programado no orçamento, lo BC, 1,5%. O Bradesco, 2%. O Itaú, 1,8%.


nada de ampliá-los, disse a líderes e diri- A performance de 3% pode ser a me-
gentes partidários em 31 de outubro. Foi lhor em uma década, mas está longe de
o recado principal, no relato de uma tes- suprir as carências populares. O salário
temunha. “Muitas vezes, o ‘mercado’ é médio dos cerca de 100 milhões de traba-
ganancioso demais e fica cobrando uma lhadores foi de 2,982 mil reais em setem-
meta que ele sabe que não vai ser cum- bro, conforme o IBGE. Há uma década o
prida (…) Nós dificilmente chegaremos valor oscila no nível de 2,8 mil, de 2,9 mil,
à meta zero”, havia dito Lula no café com sinônimo de empobrecimento. De 2013
jornalistas. Sua postura havia desperta- a setembro passado, a inflação somou

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 19
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Oposição. Bolsonaro continua


inelegível, mas há quem sonhe com
sua reabilitação. Campos Neto tem
o poder sobre a taxa de juros

86%. E ainda há um antigo e pornográ-


fico traço nacional a piorar as coisas. Au-
tor do recém-lançado livro Os Ricos e os
Pobres: o Brasil e a Desigualdade, o soció-
logo Marcelo Medeiros, do Ipea, diz na
obra que metade dos trabalhadores adul-
tos ganhou, no máximo, 1,2 mil mensais
em 2021, quantia um pouco acima do sa-
lário mínimo da época, de 1,1 mil reais.

A volta da política de ganho real do sa-


lário mínimo, fixada numa lei de agosto,
é uma das apostas do governo para me-
lhorar (um pouco) a vida do trabalhador
e da economia como um todo de 2024
em diante. A cifra, hoje em 1,32 mil reais,
subirá para cerca de 1,46 mil no ano que butária de Haddad. Há duas semanas, a
vem. A mesma lei de agosto elevou a isen- Câmara aprovou a taxação de offshores e
ção de Imposto de Renda para 2,64 mil, fundos exclusivos, agora tem pela frente
outra medida capaz de dar alívio finan- a alteração nas regras dos chamados ju-
ceiro ao povão e de estimular o consumo. ros sobre capital próprio e do desconto
Na campanha, Lula prometeu isenção de do ICMS na base de cálculo de impostos
5 mil, algo que ainda pode ocorrer ao lon- federais. Nos dois casos, o saldo final se-
go de seu mandato, paralelamente à ten- rá arrecadar mais.
tativa de retomar a taxação sobre lucros A taxação de offshores e fundos exclu-
e dividendos pagos a sócios de empresas, sivos, ambas aplicações de milionários, só
extinta em 1995. A propósito, neste ano, foi votada pelos deputados após o gover-
a isenção de Imposto de Renda dos assa- no anunciar a troca de comando na Cai-
lariados na Colômbia passou ao equiva- xa Econômica Federal. O banco com mais
lente a 12 mil reais mensais e na Argen- correntistas (150 milhões) terá à frente
tina, a 23 mil reais. um apadrinhado do deputado Arthur Li-
A arrecadação federal não tem acom- ra, o presidente da Câmara. “Aqui o gover-
panhado a expansão da economia. De ja- no continua sendo chantageado”, diz um
neiro a setembro, caiu 0,9%. Uma situ- deputado governista que não é do PT. Lu-
ação incomum não experimentada por la também tem sido (não há eufemismo
Lula nos mandatos anteriores, quando
Lula agrada ao possível) “chantageado” no Senado. Nes-
a bonança se refletia no caixa. Um cola- deputado Arthur Lira, te caso, por obra da “eminência parda”,
borador econômico do presidente acre- mas enfrenta uma Davi Alcolumbre, o comandante da pode-
dita que o Brasil passou por uma mudan- “rebelião” no Senado rosa Comissão de Constituição e Justiça.
ça estrutural ainda a ser compreendida. Alcolumbre quer influenciar duas es-
Ao reunir líderes e dirigentes partidá- colhas de Lula: o juiz do Supremo e o pro-
rios em 31 de outubro, o petista insistiu curador-geral da República. Para o tribu-
na necessidade de aprovar a agenda tri- nal, o presidente cogita indicar o minis-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

tro da Justiça, Flávio Dino, e neste mo- A MÁ FASE DO mar Mendes, do STF, livrou-o neste ano
mento pesa os prós e os contras de tirá- GOVERNO NAS RUAS* de uma investigação policial sobre gra-
-lo do governo. Dino rivaliza com Lula na para kits de robótica) e Alcolumbre (o
no papel de tormento número 1 da oposi-
ção. Nenhum ministro foi chamado para
42% ministro do Desenvolvimento Regional,
Waldez Góes, é indicado dele e, como go-
desaprovam
tantas audiências públicas no Congresso o trabalho do vernador do Amapá, privilegiou emprei-
neste ano. Seu estilo “bateu, levou, mas presidente e teiras de um dos dois suplentes do sena-
com classe e ironia” tira os bolsonaristas dor, ao tocar obras financiadas pelo “or-
do sério. Dino seria aprovado na CCJ de 54%, çamento secreto”). Alcolumbre, aliás,
Alcolumbre depois de o senador se aliar à aprovam afirmou à Folha: “Acho que o Congresso
extrema-direita de olho na eleição a pre- cada vez mais deveria controlar o orça-
sidente do Senado em 2025? O atual pre- mento”. A votação do orçamento de 2024
sidente, Rodrigo Pacheco, ungido por Al- 49% veem o será “com emoção”, exigirá “malabaris-
columbre, fez a mesma aliança recente- País na direção mo” do governo, de acordo com um arti-
mente. Cenários traçados por colabora- errada e culador lulista.
dores de Pacheco sugerem que ele aposta
no insucesso econômico do governo Lula
43%, As dificuldades do governo no Sena-
na certa
e no peso das questões morais nas próxi- do, e o clima por lá após a aliança de Al-
mas eleições, a começar pelas municipais columbre/Pacheco com a oposição, fica-
de 2024. O senador é potencial candidato 36% ram evidentes com a derrota do indicado
a governador de Minas Gerais. têm ouvido de Lula para chefiar a Defensoria Pública
mais notícias da União. Igor Albuquerque Roberto Ro-
A indicação do novo procurador-ge- negativas sobre que, ex-presidente da associação nacional
ral da República é uma disputa ainda mais o governo e dos defensores de 2017 a 2019, foi rejei-
delicada. O órgão é o único autorizado a
acusar criminalmente à Justiça um par-
34%, mais tado pelos senadores em 25 de outubro,
por 38 a 35 votos. A extrema-direita tinha
positivas
lamentar, um ministro e o presidente. Seu um pretexto para rejeitá-lo: um seminá-
chefe sob Bolsonaro, Augusto Aras, era o rio que a Defensoria promoveria em agos-
sonho dos políticos: não incomodou nin- to sobre aborto. Roque não comandava o
guém. Em vários momentos daqueles in-
33% órgão ainda, mas pagou o pato (o seminá-
acreditam que
quéritos policiais em curso no Supremo a rio foi cancelado). A bancada bolsonaris-
a economia
mirar bolsonaristas, a Procuradoria ficou melhorou em ta não tinha tamanho para barrar Roque.
a favor dos investigados. O relatório da CPI 12 meses e Governistas usaram a votação para mos-
Z ACK S T EN CIL / PA R T ID O L IB ER A L E P ED RO F R A N ÇA /AG . S EN A D O

do 8 de Janeiro, que definiu o ex-presiden- trar insatisfação a Lula. No café com jor-
te como autor intelectual do golpe fracas- 32%, que nalistas, o petista comentou: “Possivel-
sado, só terá consequência judicial se o ór- piorou mente, eu tenha culpa (na rejeição)”. “Cul-
gão quiser. O trabalho da CPI da Covid, re- pa” de não falar com os senadores para to-
corde-se, foi ignorado por Aras. Este era o mar o pulso. “Vou ter que ter mais cuida-
nome do coração de Alcolumbre para ser 43% do de conversar com quem vota.”
escolhido por Lula, conforme o próprio se- enxergam No café, o presidente afirmou ainda
nador disse à Folha de S.Paulo na segunda- Lula com mais que anunciará as escolhas para o Supre-
-feira 30. Era também o preferido de Lira. dificuldade com mo e a Procuradoria ainda neste ano. E
Alcolumbre e Lira são os homens do o Congresso do que vai fazê-lo “em função da circuns-
orçamento secreto no Congresso, ex- que Bolsonaro e tância política que eu tenho que levar
crescência dinamitada em dezembro
de 2022 pelo Supremo, mas que o lulis-
41%, com em conta (...), não posso fechar os olhos
e não enxergar que eu tenho que mandar
menos
mo ressuscitou em parte às vésperas da um nome para ser aprovado pelo Sena-
posse do petista. O “orçamento secreto” do”. Prenúncio de que a turma da chan-
tem potencial para aborrecer Lira (Gil- *Fonte: Pesquisa Genial/Quaest de outubro tagem vai se dar bem? •

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 21
JAQUES WAGNER
CLUBE DE REVISTAS
Líder do governo no Senado, foi governador da Bahia
e ministro do Trabalho, da Defesa e da Casa Civil

Revolução silenciosa

rizou os estudos dos filhos. Ela e o marido desemprego e a falta de oportunidades a


► Lançado há 20 anos, apostaram na frase sempre repetida pelo impediram de conseguir dinheiro para co-
o Bolsa Família tirou o presidente Lula: “Filho de pobre também locar comida na mesa. Isso depois de ficar
pode ser doutor”. As crianças passaram a endividada por comprar alimentos no car-
Brasil do Mapa da Fome da ter o que comer antes da aula, a usar ca- tão de crédito e não conseguir pagar. Ago-
ONU em 2014. Resgatado derno de capa dura e lápis de cor, a inves- ra, beneficiária do novo Bolsa Família, ela
por Lula, ele continua tir em livros. Aprenderam a sonhar. E, da- relata a alegria que sente por poder com-
li em diante, sonharam cada vez mais alto. prar, além dos alimentos, roupa, mochila,
a alimentar sonhos A irmã mais velha foi a primeira a en- caderno e tênis para que os filhos possam
trar na faculdade, mostrando que era ir à escola. É nesse contexto que os filhos
possível. Em 2012, foi a vez de Isamara, de Luana poderão ter sonhos tão possíveis

O
Programa Bolsa Família aca- que ingressou no curso de Ciências Bio- quanto aqueles que alimentaram Isamara,
ba de completar duas décadas lógicas na Universidade Estadual do Su- de Cândido Sales, hoje doutora e cientista.
com o legado histórico de rom- deste da Bahia. Depois, fez mestrado e Fazer mais por quem mais precisa deve
per com um ciclo secular de explora- doutorado na Universidade de São Paulo. ser o objetivo de todas as políticas públi-
ção da miséria para inaugurar uma era Com o apoio de bolsas de iniciação cientí- cas do País, e fico feliz por poder acompa-
pautada na redução das desigualdades. fica e de pesquisa oferecidas pelo gover- nhar, de alguma forma, histórias como es-
Ao longo desse período, ele tornou-se no federal, ela pôde manter-se longe da sas. É verdade que, num mundo ideal, on-
a maior porta de saída da pobreza e a família para concluir os estudos. de não tivesse pobreza, não seria preciso
maior porta de entrada para a inclusão, implantar um programa como o Bolsa Fa-
sobretudo para as famílias do Nordeste. Hoje, a doutora e cientista Isama- mília. Mas, enquanto existirem famílias
Isso porque ele foi construído para ser ra compõe os 64% de jovens de famílias passando fome, é responsabilidade do Es-
um programa completo, em que a trans- que já não dependem de benefícios do go- tado garantir condições para o exercício
ferência de renda está diretamente asso- verno, de acordo com dados do Institu- pleno da cidadania, com educação, saú-
ciada à educação e à saúde das famílias. to Mobilidade e Desenvolvimento Social de, moradia, emprego e comida na mesa.
Ou seja, não se trata apenas de dar di- (IMDS). O programa deu-lhe o direito de É justamente por isso que o Bolsa Fa-
nheiro, mas também de cuidar do bem- sonhar e a jovem emancipou-se, assim co- mília está acompanhado de uma série de
-estar das pessoas, garantindo dignidade mo milhões de beneficiários iguais a ela. programas do governo Lula, para garan-
à população, para que ela tenha o direito Neste primeiro ano de governo Lula, a tirmos o bem-estar do povo, como o rea-
de sonhar com uma vida melhor. reconstrução do País começou, entre ou- juste real do salário mínimo, o Programa
É uma revolução silenciosa, que redu- tras iniciativas, pelo resgate da fórmula de Aquisição de Alimentos, Campanhas de
ziu a mortalidade infantil e retirou o Bra- responsável pelo sucesso do Bolsa Famí- Vacinação, Farmácia Popular, Mais Mé-
sil do Mapa da Fome da ONU em 2014. lia, que nos últimos tempos foi desfigu- dicos, Minha Casa Minha Vida, Escolas
Melhorar a condição de vida da criança rado. Agora voltou ainda melhor, com va- em Tempo Integral e diversas iniciativas.
de hoje é garantir oportunidades para o lores adicionais para crianças até 6 anos, Assim como fizemos lá atrás, em 2003,
adulto de amanhã. Este é um dos princí- gestantes e pessoas com deficiência. No quando iniciamos uma caminhada que
pios que norteiam o Bolsa Família desde total, são 21 milhões de famílias rece- tirou o Brasil do Mapa da Fome e redu-
a sua criação, em outubro de 2003. bendo, em média, 684 reais por mês. Só na ziu a mortalidade infantil, o Bolsa Famí-
Foi o que aconteceu, por exemplo, com Bahia, meu estado, são 2,5 milhões de fa- lia celebra duas décadas totalmente re-
Isamara da Silva. Filha de feirantes em mílias contempladas. Em 82% dos casos, paginado e fortalecido. Tenho certeza de
Cândido Sales, na Bahia, ela sentiu na pe- o benefício é pago às mães dessas famílias. que ele se provará, no presente, como um
B A P T I S TÃ O

le a diferença que o Bolsa Família fez na Uma delas é Luana da Silva Santos, que instrumento fundamental neste proces-
sua vida. Sua mãe conseguiu o benefício mora em Lauro de Freitas numa casa com so de união e reconstrução do País. •
em 2006, quando ela tinha 10 anos, e prio- outras 13 pessoas. Durante a pandemia, o sen.jaqueswagner@senado.leg.br

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ANTONIA QUINTÃO
CLUBE DE REVISTAS
Presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra,
coordenadora de cursos de educação continuada do Centro
de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Mackenzie

Às crianças negras

to, acabara de fugir de seu padrinho e es- Educação de Crianças e Adolescentes em


► Muitas continuam sem tava recolhido na casa de um terceiro, que Tempos de Pandemia”, com recorte de
o direito de conviver com o havia encontrado vagando. Balbina re- raça/cor e gênero, confirmando que a pan-
quer o seu filho de volta, pois hoje está li- demia da Covid-19 aprofundou as desi-
suas mães desde muito berta e, pelo seu trabalho, tem os precisos gualdades e impactou mais gravemente na
cedo e precisam aprender meios para educar e tratar seu filho”. vida das crianças negras, no seu desenvol-
a sobreviver sem carinho, (Trecho do livro: História da Vida vimento, na sua integridade, nas condições
Privada – Vol. Império.) socioeconômicas, sendo as meninas negras
cuidado e proteção Mais de um século se passou e ainda as mais vulneráveis. Segue o link para os in-
hoje muitas crianças negras são usurpa- teressados em conhecer mais sobre o tema:
das do direito de conviver com suas mães https://www.geledes.org.br/wp-con-

Q
uero dedicar esse artigo às desde muito cedo e precisam aprender a tent/uploads/2021/04/A-educacao-de-
crianças negras, alvos vulne- sobreviver sem o seu carinho, cuidado e -meninas-negras-em-tempo-de-pande-
ráveis e silenciosos do racismo, proteção. O caso do menino Miguel Otávio mia.pdf
que tem, ao longo da história, atentado Santana da Silva, morto aos 5 anos, é um Recomendo também o livro Do
contra a sua infância, inocência e vida. trágico exemplo dos desafios enfrentados Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar, de
Apresento inicialmente um peque- pelas crianças negras. Miguel morreu após Eliane Cavalleiro, cuja leitura considero
no trecho de um texto histórico, revela- cair do nono andar de um prédio de luxo indispensável para aqueles que se com-
dor de uma mentalidade existente até os no centro do Recife em 2020. Aos cinco prometem com uma educação antirra-
dias atuais: anos, as crianças não são capazes de ava- cista: mães, pais, educadoras e, principal-
liar os perigos, por isso não podem circular mente, para as professoras e professores.
“Em maio de 1872, Luís Gama, represen- sozinhas nos prédios. Ele procurava pela E ainda o vídeo de uma mãe relatan-
tando uma liberta na cidade de São Paulo, mãe Mirtes, que naquele momento pre- do o sofrimento de ver sua filha rejei-
dirige um ofício ao chefe de polícia da pro- cisou descer com o cachorro dos patrões. tada pelas crianças do condomínio on-
víncia de São Paulo, requerendo em nome de reside. O depoimento é forte, ver-
da crioula liberta Balbina, de São Bento, Desde quando serviço doméstico dadeiro, impactante, pois apresenta a
que o filho desta, de nome Fortunato, fos- deve ser monopólio das empregadas do- história da infância de muitas mulhe-
se devolvido à custódia da mãe. Balbina ha- mésticas? Desde quando serviço domés- res negras. https://www.youtube.com/
via sido escrava do Mosteiro de São Bento tico é atividade essencial? No período da watch?v=7HpulSgREFs
na Cidade de São Paulo, quando deu à luz pandemia, muitas não tiveram o direi- A desconstrução do racismo e a forma-
seu filho. Este, porém, nasceu livre, porque to de permanecer em casa. Infelizmen- ção para o respeito às diferenças e a diver-
a esse tempo a ordem beneditina batiza- te, são muitos os relatos daquelas que sidade não se fazem com discurso, mas
va como livres os filhos das suas escravas. tiveram de se expor e expor suas famí- com iniciativas e ações concretas. Seria
Entretanto, como a suplicante não ti- lias aos perigos do contágio para conti- muito importante observar se a diver-
nha meios de criar e educar seu filho, nem nuar trabalhando e sobrevivendo. sidade está presente no círculo de ami-
a mencionada ordem os prestasse, entre- No enfrentamento das desigualda- zade de nossos filhos, netos, sobrinhos e
gou a suplicante o seu dito filho ao padri- des, o Geledés – Instituto da Mulher Ne- constatar a presença ou não de crianças
nho para tal fim. E conquanto o padri- gra assumiu o debate sobre as infân- negras. Se elas não estão incluídas, pre-
nho Porfírio, escravo do Exmo. Barão cias como forma de desconstruir a natu- cisamos avaliar e refletir sobre os moti-
de Iguape, fosse, como ainda o é, sujeito ralização da presença das crianças ne- vos dessa exclusão, pois, como todos sabe-
gras em situações de extrema vulnera- mos, educamos as crianças com os nossos
B A P T I S TÃ O

por condição (escravizado), tinha, contu-


do, mais meios do que ela. Fortunato, com bilidade. Em 2020, foi realizada na cida- exemplos, comportamentos e atitudes. •
menos de 6 anos na época do requerimen- de de São Paulo a pesquisa “O Direito à redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 23
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Adubo de sangue
BRASIL PROFUNDO No primeiro semestre,
a violência no campo cresceu 8% em
relação ao mesmo período do ano passado
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

N
a sexta-feira 27, o líder qui- no topo do ranking dos estados que mais
lombola José Alberto More- matam quilombolas no País, responsá-
no Mendes estava com a fi- vel por 40% desse tipo de crime. Foram
lha próximo à sua casa, 20 assassinatos de 2005 para cá, segui-
quando foi surpreendido do da Bahia, que registrou 16 casos e foi
por dois homens armados em uma moto. palco, em agosto passado, do homicí-
Dos cinco tiros, três acertaram a cabeça dio da líder quilombola Mãe Bernadete,
de Mendes. O assassinato aconteceu no morta com 12 tiros no Quilombo Pitan-
povoado Jaibara dos Rodrigues, no qui- ga dos Palmares, em Simões Filho, região
lombo Monge Belo, município de Itapecu- metropolitana de Salvador. De acordo a
ru-Mirim, no Maranhão, a 122 quilôme- CPT, os dados da violência no campo re-
tros da capital, São Luís. Doka, como era gistrados nos seis primeiros meses de
conhecido, é mais uma vítima a se somar 2023 são o segundo maior dos últimos
às estatísticas da violência no campo, que dez anos, atrás apenas de 2020, quan-
só no primeiro semestre deste ano conta- do foram contabilizados 1.007 conflitos.
bilizou 14 assassinatos, de um total de 973
casos de violência em áreas rurais, aumen- LAVOURA ARCAICA
to de 8% em relação ao mesmo período de Ocorrências de conflitos no campo durante o primeiro semestre de cada ano
2022, segundo dados da Comissão Pasto- 1.200
ral da Terra. Doka era presidente da Asso-
ciação de Moradores do Quilombo de Jai-
bara dos Rodrigues e integrante da Comis- 1.007
1.000
973
são do Território e do Conselho Quilom- 933
900
bola da União das Comunidades Negras 853
Rurais de Itapecuru-Mirim. 788
800
Cenário de diversos conflitos de ter-
ra e de ameaças constantes contra suas 765 752
642
lideranças, o quilombo tinha sido reco-
nhecido pela Fundação Palmares desde 600

2005, mas até agora o Incra não conce- 551


deu o título de propriedade de territó-
rio. Procurada por CartaCapital, a di- 400
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023
reção do instituto não se pronunciou.
A execução de Doka coloca o Maranhão Fonte: Comissão Pastoral da Terra/2023

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

O que mais motivou os crimes nesse ras e outras 1.091 despejadas judicial- Alvos. O assassinato de quilombolas
período foi a luta por território, com 791 mente, além de serem impedidas de ter marca os seis primeiros meses,
registros. Exemplo desse conflito foi a acesso a áreas coletivas, como roças e re- assim como o aumento do
resgate de trabalhadores em
disputa no sul da Bahia entre ruralistas giões de extrativismo do babaçu. O docu- situação análoga à da escravidão
e indígenas da etnia Pataxó. De janeiro a mento mostra ainda o avanço no núme-
maio, pistoleiros contratados por fazen- ro de ocorrências de crimes de pistola-
deiros dos municípios de Prado, Itama- gem (143), grilagem (85) e invasão (185).
raju, Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro no primeiro ano de governo. Mas a gente
realizaram vários ataques na região, ti- “Essa violência é estrutural, tem de se esperava ações mais concretas em rela-
rando a vida dos jovens Samuel Cristiano mexer na estrutura para garantir prote- ção ao campo brasileiro”, comenta Carlos
do Amor Divino, de 25 anos, Nawy Brito ção aos povos indígenas, aos quilombo- Lima, da direção nacional da CPT. A enti-
de Jesus, 16, e Gustavo Silva da Concei- las, aos posseiros, àqueles que lutam em dade entregou aos ministérios de Desen-
ção, de 14, todos pataxós. Em todo o País, áreas da reforma agrária. Lamentavel- volvimento Agrário, do Meio Ambiente
segundo o relatório da CPT, entre janei- mente, o governo Lula não teve nenhu- e da Justiça o Caderno de Conflitos no
PAU LO PIN TO/A B R

ro e junho, 878 famílias sofreram com a ma ação para enfrentar essa realidade. Campo de 2022 para subsidiar ações do
destruição de suas casas, 1.524 de seus Já sabíamos que o que foi feito no Bra- governo, mas nada foi feito. “Não houve
roçados e 2.909 de seus pertences. Mais sil durante os quatro anos de Bolsonaro um plano de cem dias na questão da re-
de 550 famílias foram expulsas das ter- não poderia ser superado simplesmente forma agrária, como ocorreu nos outros

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 25
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

ministérios. Não teve aumento do orça- A Frente Parlamentar lamento. Um exemplo concreto é a ins-
mento destinado à reforma agrária, ficou tauração da Frente Parlamentar Invasão
o mesmo valor que Bolsonaro deixou, um
Invasão Zero é um Zero, associada a um processo de mobi-
governo abertamente contra a reforma subproduto da lização em Brasília e em vários estados,
agrária.” Procurado pela reportagem, o malfadada CPI do MST uma turma extremamente raivosa, que
ministro do Desenvolvimento Agrário, defende o armamento e age de forma in-
Paulo Teixeira, não respondeu. tolerante na defesa da propriedade, nem
Segundo ainda a CPT, além da dispu- que isso custe a vida de outros”, completa.
ta pela terra, foram identificados no pri- posseiros (6,25%) e ribeirinhos (6,25%).
meiro semestre deste ano 102 crimes re- “Os dados revelam o que temos denun- A Frente Parlamentar Invasão Zero foi
lacionados a trabalho escravo rural e 80 ciado ao longo dos anos: a violência do la- criada em 24 de outubro, uma espécie de
por conflitos por água. No caso do traba- tifúndio e do agronegócio e as suas con- extensão da CPI do MST, finalizada de for-
lho escravo, 1.408 cidadãos foram resgata- tradições produzidas no campo por um ma melancólica em setembro, depois que
dos, o que demonstra uma ação do Poder projeto hegemônico. São crimes ambien- tentou, sem sucesso, criminalizar os sem-
Público no combate a esse tipo de crime. tais, concentração da terra e a padroniza- -terra e a luta pela reforma agrária. O cole-
A quantidade de resgates foi a maior dos ção na produção que impôs ao Brasil o re- giado será comandado pelos mesmos pro-
últimos dez anos. No cultivo da cana-de- torno ao mapa da fome. As violências pro- tagonistas da CPI. O ex-presidente da co-
-açúcar encontrava-se o maior número de vocadas pelo modelo são resultado não de missão, deputado federal Coronel Zucco,
trabalhadores em condições análogas à es- um momento específico, mas de um pro- do Republicanos gaúcho, vai presidir a
cravidão, 532. Nas lavouras permanentes jeto que ao longo dos anos temos enfren- frente e o relator da CPI, deputado Ricardo
foram resgatados 331, enquanto 104 esta- tado e denunciado sobre qual é a sua ver- Salles, do PL de São Paulo, será o primei-
vam na mineração, 63 em ações de desma- dadeira natureza, a existência do projeto ro vice-presidente. O evento que marcou
tamento, 51 na produção de carvão vegetal do capital no campo”, destaca Ayala Fer- o lançamento do colegiado aconteceu na
e 46 na pecuária. Os conflitos pelo aces- reira, da coordenação nacional de Direi- sede da Frente Parlamentar da Agricultu-
so à água atingiram diretamente a vida de tos Humanos do MST. “Bolsonaro per- ra e contou com a participação do ex-pre-
quase 30 mil brasileiros, sendo os indíge- deu a eleição, mas outros sujeitos que são sidente Jair Bolsonaro e da ex-ministra da
nas os mais afetados (32,5%), seguidos dos porta-vozes de um projeto de incentivo Agricultura e atual senadora Tereza Cris-
quilombolas (23,75%), pescadores (15%), à violência no campo se mantêm no Par- tina, do PP mato-grossense. A iniciativa
foi criada quatro dias depois de o presiden-
te Lula vetar parcialmente a tese do marco
temporal, aprovada no Congresso. Além
de se contrapor à tese, o objetivo do grupo
é aprovar uma pauta de interesse do agro-
negócio, como o Projeto de Lei dos Pesti-
cidas, a proposta que trata de crédito e re-
financiamento de dívidas para os produ-
tores de leite e a tributação das offshores.
“O projeto perdedor continua queren-
do mandar no País e vai buscando meios
legais, com Medida Provisória, Projetos
de Lei e Emendas à Constituição, sem-
pre no sentido de garantir a pauta der-
rotada pelo povo brasileiro. A Frente de
Invasão Zero é mais uma nessa linha e é
LUL A M A RQUES/A BR

também uma tentativa de deixar o gover-


no acuado. Sem falar que é mais um estí-
mulo à violência, para dizer que os rura-
listas continuam autorizados a agir com
Insistência. Após o fracasso da CPI do MST, Salles arrumou outro palanque violência”, ressalta Carlos Lima. •

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PEDRO SERRANO
CLUBE DE REVISTAS
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Da letra à realidade

de uma sociedade livre, justa e solidária. ainda, Celso Fernandes Campilongo, pa-
► Os movimentos sociais Assim considerando, os movimentos ra o qual os movimentos sociais represen-
são fundamentais para sociais são organizações heterogêneas tam uma reação “do sujeito contra o siste-
constituídas em legítima contraposição ma ‘global’ de dominação”, o que levou o
a efetivação dos direitos às estruturas tradicionais de poder. São, mesmo autor a categorizar os movimentos
sociais previstos na portanto, formas difusas e contramajori- sociais de acordo com a amplitude do cam-
Constituição Federal tárias de ação e, nessa medida, instru- po de atuação: os que desafiam a socieda-
mentos fundamentais de efetividade dos de como um todo, aqueles que enfrentam
direitos sociais previstos na Constituição. conflitos específicos entre sistemas par-
Segundo um estudo de José Eduardo ciais, os que se valem de um ou mais siste-

O
Supremo Tribunal Federal é o Faria, a origem dos movimentos sociais mas parciais para pleitear adequações em
guardião da nossa Constitui- está no modelo de desenvolvimento eco- outros sistemas e, por fim, aqueles que se
ção e, nessa condição, vem assu- nômico adotado no começo da segunda valem de um sistema específico para ques-
mindo destacada e relevante posição na metade do século XX, cuja industriali- tionar o próprio sistema parcial.
defesa da nossa democracia e dos direi- zação provocou, nas suas palavras, uma O enfraquecimento dos mecanismos
tos individuais e políticos. Entretanto, a “crise estrutural das instituições gover- majoritários e das instituições estatais
prestação jurisdicional do Supremo em namentais” e uma diferenciação socioe- ensejou a emergência dos movimentos
matéria de direitos sociais – alertemos! conômica complexa e contraditória mar- sociais. É inerente aos movimentos so-
– pode ser, em determinados casos, en- cada pela emergência de “associações po- ciais a “política de protesto”, bem como
quadrada em processo desconstituinte. pulares não políticas”. mecanismos de atuação e de posiciona-
Isto é, determinadas decisões mais re- mento, inclusive fundamentados no di-
centes da nossa jurisdição constitucio- A emergência de “valores comunitá- reito de resistência.
nal são esvaziadoras de sentido dos di- rios de forte conotação ideológica e um Os movimentos dos trabalhadores do
reitos sociais previstos na Constituição, certo conteúdo utópico” tendem a via- campo, feministas, ambientalistas, estu-
o que nos leva a, no presente artigo, rea- bilizar, ainda consoante o mesmo au- dantis, em defesa da paz, contra o racismo
lizar uma incursão quanto à relevância tor, um processo político “pluridimen- e a homofobia resistem aos retrocessos e
dos movimentos sociais para a defesa sional” informado por forças heterogê- lutam pela garantia de direitos já adqui-
dos direitos sociais nela previstos. neas e, ainda, “atravessado por diacro- ridos e por sua ampliação. Rememore-se,
A atuação dos movimentos sociais es- nias profundas entre discursos e práti- aqui, que a atual democracia representa-
tá diretamente relacionada às noções cas e não mais facilmente enquadrável tiva, em que todos possuem direito de vo-
de democracia, Estado Democrático de pelas formas e categorias do constitucio- to e de participar do debate público, é fru-
Direito, dignidade da pessoa humana e, nalismo liberal clássico”. to de árdua batalha travada pelos movi-
ainda, aos direitos fundamentais de reu- Ou seja, os movimentos sociais re- mentos sociais. Nesses termos, o consti-
nião, liberdade de associação, de expres- presentam uma antítese ao desenvolvi- tucionalismo contemporâneo não se rea-
são e manifestação do pensamento. Com mento imperfeito do Estado de Direito, liza nos manuais de Direito constitucio-
efeito, a Constituição dispõe que é funda- ao Estado de Exceção, ao autoritarismo nal nem mesmo pela trajetória, virtuosa
mento da República a cidadania e o plura- líquido nas democracias contemporâneas ou errática, das instituições estatais. Os
lismo político, que o poder emanado do po- e, nessa medida, um legítimo contraponto direitos sociais, nos moldes previstos na
vo é exercido por meio de representantes e meio de construção do modelo histórico Constituição, exigem da sociedade espe-
B A P T I S TÃ O

eleitos diretamente e, ainda, que é objetivo de constitucionalismo contemporâneo. cial compromisso efetivador. •
fundamental da República a construção Sob essa perspectiva, rememore-se, redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 27
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Seu País

Martelo furioso
SÃO PAULO Tarcísio de Freitas encomenda
estudo para entregar a administração
da Fundação Casa à iniciativa privada
POR MARIANA SER AFINI

D
epois de enviar à Assem- cupou em consultá-los a respeito da ini-
bleia Legislativa o projeto ciativa. Como há tempos o governo não
de privatização da Sabesp, repõe profissionais da área nem investe
a companhia paulista de na estrutura das unidades, eles já ima-
saneamento, e prometer ginavam que o Executivo preparava al-
fazer o mesmo com linhas de trem da guma surpresa. Dois dias antes da reu-
CPTM e do Metrô, o governador Tarcí- nião no Palácio dos Bandeirantes, tra-
sio de Freitas anunciou que será reali- balhadores do sistema socioeducativo
zado um estudo para estabelecer uma e representantes da sociedade civil or-
parceria público-privada na Fundação ganizada participaram de uma audiên-
Casa, responsável pelo cumprimento cia pública na Assembleia Legislativa de
das medidas socioeducativas aplicadas São Paulo para denunciar a privatização
aos adolescentes em conflito com a lei. em curso e preparar a categoria para o
Em 18 de outubro, Freitas reuniu que está por vir.
no Palácio dos Bandeirantes uma for-
ça-tarefa para viabilizar a PPP. Entre De acordo com o deputado Carlos
os presentes estavam o vice-governa- Giannazzi, do PSOL, ainda não existe
dor Felício Ramuth, que também pre- uma proposta formal apresentada ao PPP na Fundação Casa, achamos que
side o Conselho Diretor do Programa Legislativo, mas os parlamentares da era o caso de fazer uma audiência e an-
Estadual de Desestatização, e o secre- oposição se mobilizam para resistir a tecipar a análise do tema.” No Brasil,
tário de Parcerias em Investimentos, qualquer iniciativa privatista. “Como o existem dois projetos piloto de PPP em
Rafael Antonio Cren Benini. Ao entre- governador publicou no Diário Oficial instituições socioeducativas, um em
gar a gestão da Fundação Casa para a que serão iniciados estudos para uma Minas Gerais, sob a gestão de Romeu
iniciativa privada, o governo pretende Zema, do Novo, e outra em Santa Ca-
“melhorar a eficiência do gasto públi- tarina, estado governado por Jorginho
co”, afirma André Isper Rodrigues Bar- Mello, do PL de Jair Bolsonaro.
nabé, secretário-executivo do Comitê O diagnóstico apresentado pela servi-
Estadual de Desestatização. O modelo Os servidores da dora Cláudia Maria de Jesus, atual pre-
adotado seria o de concessão adminis- sidente do Sindicato da Socioeducação
rede socioeducativa
trativa para prestação de serviços. de São Paulo, o Sitsesp, é preocupante.
Os servidores da Fundação Casa quei-
queixam-se da falta Vários setores da Fundação Casa já fo-
xam-se, porém, da falta de transparên- de transparência ram confiados à iniciativa privada, com
cia do governo, que nem sequer se preo- do governo paulista a terceirização dos serviços de transpor-

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

te, vigilância, lavanderia e parte da cozi- Sanha privatista. Depois da Sabesp, centros de internação, somente 110 con-
nha. Desde 2014 não são realizados con- do Metrô e da CPTM, a instituição que tinuam ativos – segundo o governo pau-
abriga adolescentes em conflito com a lei
cursos para repor os servidores que se lista, devido à baixa lotação das unida-
entra na mira do comitê de desestatização
aposentam ou pedem exoneração. Ou se- des. “Nos grupos de WhatsApp, muitos
ja, o funcionário mais novo da institui- temem que sua unidade será a próxima
ROQUE ANDRADE/PREFEITURA DE DIADEMA

ção tem pelo menos dez anos de casa. “Só a ser fechada, mas nada disso chega ofi-
soubemos da existência de um projeto dicação exclusiva. “Nos últimos anos, a cialmente para nós. Estamos no escuro.”
ROGÉRIO CASSIMIRO/GOVSP E PEDRO

de parceria público-privada após a mí- situação piorou muito. Passamos por Diante do cenário de sucateamento,
dia noticiar. Até o momento, nada che- dois programas de demissão incentiva- os servidores da Fundação Casa fize-
gou até nós de forma clara, nos sentimos da, e isso reduziu drasticamente o qua- ram uma greve recentemente, que du-
inseguros e descartados.” dro de pessoal. Trabalhamos muito des- rou 38 dias. O principal item da pauta
Segundo a dirigente sindical, os ser- falcados.” O Decreto Estadual nº 60.609, de reivindicações era a reposição sa-
vidores da Fundação Casa, mesmo com de 3 de julho de 2014, prevê 14,4 mil fun- larial de acordo com a inflação, mas
as condições de trabalho cada vez mais cionários no quadro de cargos perma- eles também denunciaram a falta de
precárias, prezam pelo bom relaciona- nentes da instituição, mas atualmente pessoal. “Hoje, é comum ter apenas
mento com os jovens internos e têm de- o total gira em torno de 10,7 mil. Dos 157 dois profissionais de plantão para cui-

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 29
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Seu País

dar de dezenas de jovens, aí surgem as “O encarceramento tante lembrar, porém, que existem em-
ocorrências contra os funcionários ou presários interessados em lucrar com
entre os próprios adolescentes”, lamen-
em massa pode ser o encarceramento em massa”, alerta o
ta César Horta, que trabalha no sistema bastante lucrativo”, advogado, que foi presidente do Conse-
socioeducativo há 25 anos. Ele recorda alerta especialista lho Nacional dos Direitos da Criança e
que, somente no ano passado, dois co- do Adolescente, o Conanda. O especia-
legas foram assassinados durante o ex- lista alerta, ainda, para o risco de gru-
pediente, em conflitos com os internos. pos empresariais intensificarem o lo-
“Estamos em contato permanente com bby no Congresso “para recrudescer a
deputados estaduais do campo progres- brado. “Isto seria possível se o objetivo legislação destinada aos envolvidos em
sista, mas talvez eles não tenham força do serviço fosse obter lucro?” atos infracionais”.
para barrar o avanço da PPP. Por isso, Ex-secretário nacional dos Direitos A privatização da Fundação Casa tam-
tivemos algumas audiências também da Criança e do Adolescente, Ariel de bém pode tolher a autonomia dos profis-
em Brasília, para alertar o governo fe- Castro Alves acredita que estabelecer sionais que atuam no sistema socioedu-
deral sobre os riscos dessa proposta.” uma parceria público-privada no siste- cativo, acrescenta Alves. “Hoje, os assis-
ma socioeducativo pode gerar situações tentes sociais e os psicólogos são funcio-
Defensora pública e integrante da de conflito de interesses. “Quem defen- nários públicos. Uma vez contratados pe-
Coalizão pela Socioeducação, que reú- de esse tipo de parceria são os mesmos la iniciativa privada, não sabemos se po-
ne 57 entidades da sociedade civil, Lí- setores conservadores que pregam a re- derão atuar com independência ou se se-
gia Mafei Guidi lamenta a transferên- dução da maioridade penal e o aumen- rão pressionados a ampliar o tempo de
cia da responsabilidade para a inicia- to do período de internação. É impor- internação dos jovens, se serão direcio-
tiva privada. “Normalmente, nados a executar um trabalho
um jovem que chega à Fun- para favorecer a empresa con-
dação Casa teve uma série de tratante, mas contrário ao in-
direitos violados e de políti- teresse público. É muito grave.”
cas públicas negadas a ele. É Professora titular de Direi-
uma obrigação do Estado cui- to Constitucional da Faculda-
dar desse adolescente de for- de de Direito de São Bernar-
ma adequada, ele não pode ser do do Campo, Denise Auad
visto como problema.” Guidi reforça as preocupações de
lembra que já existiram tenta- Alves com a PPP. “Como tere-
tivas de “cogestão” com orga- mos garantias de que os pila-
nizações sociais em São Paulo, res que baseiam o sistema so-
sob o governo do tucano João cioeducativo hoje serão res-
Doria, e ainda hoje há entida- peitados pela iniciativa priva-
des conveniadas atuando no da?”, questiona. Coordenado-
regime semiaberto. ra da pós-graduação em Direi-
“Essas entidades precisam to das Diversidades e Inclusão
manter um número mínimo de Social da FDSBC, a especia-
atendimentos para justificar o lista lembra que o Sistema Na-
convênio com o Poder Público, cional de Atendimento Socio-
VINÍCIUS LOURES/AG. CÂ M A R A

o que parece ser incompatível educativo, conhecido pela sigla


com a lógica de um sistema so- Sinase, está articulado com um
cioeducacional que precisa ser conjunto de políticas públicas
breve e excepcional”, avalia a voltadas à cidadania plena das
defensora pública. Ela obser- crianças e dos adolescentes.
va que, nos últimos anos, hou- “Quem vai fiscalizar a relação
ve redução do número de in- do Sinase com os gestores pri-
ternos, algo que deve ser cele- Alerta. Proposta fere autonomia dos profissionais, avalia Alves vados da Fundação Casa?” •

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ALDO FORNAZIERI
CLUBE DE REVISTAS
Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros,
de Liderança e Poder (Contracorrente)

O silêncio dos cúmplices

resoluções das Nações Unidas e viola sis- nome de valores que nunca observa-
► Não podemos ficar tematicamente o direito internacional. ram. Israel e o Ocidente não são a civi-
indiferentes ao sofrimento As crianças de Gaza não podem brin- lização, pois seu discurso civilizatório é
car. À sua volta, só há escombros, ami- uma grande mentira.
do povo palestino nem guinhos mortos, gritos de dor, lamenta- A violência do Hamas é a manifesta-
ignorar os crimes de guerra ções e desespero. As crianças palestinas ção da exasperação de uma situação ina-
do Estado de Israel não podem andar na praia. Ali o sol não ceitável, que não oferece saídas para os
aparece, porque o céu está encoberto pe- palestinos. Nós, cidadãos comuns, preci-
la fumaça escura das bombas. Elas tam- samos compreender as causas desse gri-
pouco podem colher o fruto das olivei- to de desesperados, para não sermos pri-

N
ão podemos ficar indiferen- ras, ouvir o canto dos pássaros. Não po- sioneiros das máquinas de propaganda.
tes com a transformação de dem nem sequer dormir, pois as noites Israel e as potências ocidentais sabem
Gaza em cemitério de crian- se enchem com o pavoroso bombardeio quais são as causas da violência dos gru-
ças e mulheres. Não podemos ficar in- dos aviões, do terrível som dos mísseis, pos palestinos, mas as escondem. Não as
diferentes diante da tempestade de fo- do aterrador medo da morte. A crimino- admitem. Aproveitam-se das explosões
go que Israel despeja sobre a popula- sa complacência do Ocidente é cúmplice da exasperação para matar, massacrar,
ção civil. Não podemos ficar indiferen- assassina desta catástrofe. destruir e, ao término das matanças, con-
tes com a destruição de hospitais, esco- tinuar impedindo que os palestinos te-
las, igrejas, campos de refugiados e to- Os cínicos colocam a culpa no Hamas. nham liberdade e esperança. Não pode-
da a infraestrutura do território pales- Mas o que é o Hamas senão o produto dos mos aceitar esta situação. Não podemos
tino. Não podemos ficar indiferentes crimes que Israel e o Ocidente vêm come- ficar indiferentes. Tampouco podemos
com aqueles que não têm outro futu- tendo há mais de 50 anos contra o povo ser imparciais. Quando há injustiça, pre-
ro, a não ser esperar a morte. Não po- palestino? O que é o Hamas senão a con- cisamos ser parciais em favor da justiça.
demos ficar indiferentes com a sistemá- sequência do roubo das terras dos pales- Quando há impiedade, precisamos ser
tica destruição dos lares de milhões de tinos, da colonização forçada da Palesti- piedosos com os espezinhados. Quando
pessoas. Não podemos ficar indiferen- na, dos massacres dos palestinos, dos des- há violência contra os indefesos, devemos
tes com o deslocamento forçado de 600 locamentos forçados de milhões de civis? lutar contra os agressores e os tiranos.
mil palestinos. Não podemos ficar indi- O Hamas cometeu atos de violência Lutar pelos injustiçados palestinos sig-
ferentes com os crimes de guerra prati- terríveis, mas o que são esses atos senão nifica nos pronunciarmos nas redes so-
cados pelo Estado de Israel. a consequência de décadas de violência e ciais, nos mobilizarmos nas ruas, parti-
O mundo está vendo, inerte e aco- opressão? Os palestinos não têm voz, não cipar de movimentos de solidariedade. O
vardado, uma das maiores máquinas de têm segurança, morrem aos poucos to- governo brasileiro vem agindo bem e com
guerra do planeta destruir uma popula- dos os dias. Os palestinos sofrem contí- destaque, ao colocar o foco de sua ação no
ção indefesa, que vive há décadas todos nuas catástrofes. Essa nakba permanen- cessar-fogo e na viabilização da ajuda hu-
os tipos de vicissitudes, todos os tipos de te os impede de ter esperança, futuro, fe- manitária. Mas, dada a continuidade da
privações, em um gigantesco campo de licidade, alegria e paz. O Hamas é produ- prática genocida de Israel, devemos exigir
concentração a céu aberto. A indiferen- to dessa violência sistemática que é im- de Lula uma atitude mais contundente:
ça da comunidade internacional em re- posta sobre o povo palestino. o rompimento das relações diplomáticas
lação ao sofrimento do povo palestino e Israel e o Ocidente se negam a discu- com Israel enquanto este país for gover-
a covardia diante dos impiedosos e cri- tir e a reconhecer as causas da violência. nado por um grupo de genocidas. Esses
minosos ataques das forças israelenses Este é o álibi dos criminosos para conti- criminosos de guerra precisam ser jul-
transformou Israel num Estado acima da nuarem a cometer crimes. Os crimes de gados pelo Tribunal Penal Internacio-
B A P T I S TÃ O

lei, num Estado fora da lei, num Estado Israel e do Ocidente são ainda mais re- nal, não podem permanecer impunes. •
delinquente e bandido, que não segue as pugnantes, porque são praticados em alfornazieri@gmail.com

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 31
CLUBE DE REVISTAS
Economia

O tumulto do
déficit zero
ANÁLISE Que tal nos arriscarmos
na compreensão do processo
macroeconômico de formação
da renda, lucros e receita do Estado?
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO

A
semana foi ilustrada por cados financeiros contemporâneos não
reações dos mercados e de descreve, muito menos “analisa”, um de-
seus economistas às pala- terminado estado de coisas, mas produz
vras do presidente Lula. imediatamente formas de compreensão
No proscênio das indigna- que geram as irrealidades do “real”. O
ções e desconfianças brilhava um conhe- poder das ideias são as ideias do poder.
cido personagem da tragicomédia eco-
nômica, o “déficit zero”. Manchetes, edi- Para escapar às (in?)certezas do po-
toriais e comentários na mídia corpora- der, seria conveniente buscar as dúvidas
tiva destilaram críticas contundentes. e contestações daqueles que ousaram e
As expectativas dos mercados finan- ousam pensar “fora da caixinha”. Para
ceiros passam a se orientar por suposi- começar, vamos nos arriscar na com-
ções acerca da evolução da “crise finan- preensão do processo “macroeconômi-
ceira do Estado”. Nos próximos meses, é co” de formação da renda, dos lucros e da
preciso acompanhar a avaliação dos de- receita fiscal do Estado. Consideremos a
tentores e gestores da riqueza sobre os questão de forma simplificada: empre-
rumos da política fiscal e do endivida- sas, famílias e governo realizam gastos outros intermediários financeiros. O au-
mento público. Há sinais de que os se- de consumo e de investimento. Nesse mento do gasto promove o crescimento
nhores da finança já desconfiam da traje- momento de “confiança”, empresas, fa- da renda. Assim, a evolução da renda das
tória do déficit fiscal e da dívida pública. mílias e governo estão incorrendo em empresas, famílias e governos “gastado-
Apoiado no linguista John Austin, “déficit” financiado pelos bancos e por res” permite a geração de um “superá-
Christian Marazzi, em seu livro Capital vit”. Superávit expresso na acumulação
e Linguagem, cuida das marchas e con- de lucros empresariais, no aumento da
tramarchas da finança dos últimos 30 poupança familiar e, no caso dos gover-
anos. Marazzi sublinha a natureza per- nos, no superávit fiscal.
formativa da linguagem do dinheiro e O poder das Parênteses: o economista austríaco
dos mercados financeiros. Performati- ideias são as Joseph Schumpeter, autor do clássico
vo quer dizer que a linguagem dos mer- ideias do poder Teoria do Desenvolvimento Capitalista,

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 38
NESTA Opinião. Até quando
SEÇÃO o Brasil será um paraíso
fiscal para os ricaços?

Pantagruel. Qualquer centavo que


não seja direcionado ao pagamento da
dívida é desperdício, dizem os experts

rios. Isto significa que a economia de-


ve gerar “déficit” e liquidez no presente
para que as dívidas (novas e já existen-
tes), assim como os direitos de proprie-
dade, possam ser “precificadas” confor-
me o estado de convenções prevalecen-
te. Os bons resultados do presente apla-
cam o medo do futuro.

A economia monetária (e necessaria-


mente financeira) em que prevalecem
as relações de débito e crédito pode ser
concebida como grande painel de ba-
lanços inter-relacionados. As decisões
privadas e públicas de gasto apoiadas
no adiantamento de liquidez são variá-
veis cruciais. A disposição de bancos de
prover liquidez a empresas, famílias e
governos promove a geração do fluxo
de renda agregada da economia. Sobre
a renda já criada (salários, lucros e de-
mais rendimentos) incidem as decisões
de poupar que modificam a distribui-
ção dos estoques de direitos sobre a ri-
queza e, portanto, a situação patrimo-
nial dos protagonistas.
Nas crises, ocorre o colapso dos crité-
rios de avaliação da riqueza que vinham
prevalecendo. As expectativas de lon-
go prazo capitulam diante da incerteza
atribuiu o desenvolvimento econômico custos financeiros. As poupanças decor- e não é mais possível precificar os ati-
ao papel sistêmico de duas personifica- rentes do novo fluxo de renda vão abas- vos. Os métodos habituais que permi-
ções estratégicas: o banqueiro que ad- tecer os bancos e o mercado de capitais, tem avaliar a relação risco/rendimen-
ministra o sistema de crédito adianta que se arriscaram em adiantar o crédito to dos ativos sucumbem diante do medo
ILUSTRAÇÃO: HONORÉ DAUMIER

dinheiro novo para outro protagonista (criação de moeda) para viabilizar os gas- do futuro. A obscuridade total parali-
crucial, o empresário inovador. O crédi- tos de investimento e de consumo. sa as decisões e nega os novos fluxos de
to e a inovação rompem o fluxo circu- O aumento do investimento, do con- gastos. Em tais circunstâncias, a tenta-
lar, ou seja, o estado da economia que sumo e do endividamento enseja a hie- tiva de redução do endividamento e dos
reproduz simplesmente o que existe. rarquização dos títulos de dívida e dos gastos de empresas e famílias em busca
O fluxo de lucros e a poupança, priva- direitos de propriedade conforme os da liquidez e do reequilíbrio patrimo-
da e pública, cuidam de garantir o serviço preços, à vista e futuros, estabelecidos nial é uma decisão “racional” do ponto
e a estabilidade do valor das dívidas e dos diariamente nos mercados secundá- de vista microeconômico, mas danosa

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 33
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Espírito crítico? Os jornalistas


de economia diante dos luminares
da Avenida Faria Lima

para o conjunto da economia, pois leva


necessariamente à ulterior deteriora-
ção dos balanços. É o paradoxo da “de-
salavancagem”.
A lógica é simples: João não vende. Se
não vende, não compra de José, que, por
sua vez, não encomenda os produtos de
Mário. Mário deixa de produzir e dis-
pensa seus operários. Os trabalhado-
res, despojados dos salários, não com-
pram de João. João reduz ainda mais
suas compras de José. Nessa embala-
da da contração do circuito mercantil,
a economia afunda e o dinheiro some.

Diante da expectativa da continui-


dade da queda das vendas e dos preços Em período de ços dos ativos e a validade das dívidas
dos bens, o dinheiro torna-se “escasso” mediante a sustentação da liquidez dos
baixo crescimento,
e a turma corre desesperadamente atrás mercados e o lucro das empresas.
da grana. Diriam os economistas: sobe o
o gasto público Keynes procurou demonstrar que,
valor presente de uma determinada so- impede a em uma situação de ruptura do esta-
ma de dinheiro. Ou seja, eleva-se o ren- queda acelerada do convencional de expectativas, tor-
dimento esperado da posse da riqueza da produção na-se aguda a contradição entre o enri-
sob a forma líquida. Como foi dito, preci- quecimento privado e a criação da no-
pitam-se as expectativas de uma queda va riqueza para a sociedade (crescimen-
cumulativa de vendas e preços, de uma to das inversões em capital real). A cri-
interrupção de pagamentos e de crise se leva ao limite o impulso de enrique-
aguda do sistema bancário. A cambulha- e a queda da produção e do emprego. cimento privado, ao ponto de torná-lo
da pega duro nos ativos financeiros dis- Nas recessões que afetam as econo- antissocial, devido à preferência pela li-
tribuídos entre bancos comerciais, ban- mias capitalistas periodicamente, tan- quidez que impõe a paralisia ao investi-
cos de investimento, fundos de pensão e to os problemas relativos à geração de mento e ao consumo, isto é, à formação
fundos de hedge, ameaçando as poupan- lucro, renda, e emprego quanto os patri- da renda e ao emprego. Numa conjuntu-
ças de ricos, pobres e remediados. moniais (assim como o grau de endivi- ra de redução do investimento e do con-
Diante da fuga desatinada para a li- damento e o risco das posições ativas e sumo privados, as empresas e os consu-
quidez e para a segurança, tornam- passivas) têm origem nas variações dos midores buscam desesperadamente re-
-se inevitáveis o desequilíbrio fiscal, fluxos do gasto privado de consumo e duzir o endividamento e aumentar as
ILUSTRAÇÃO: HONORÉ DAUMIER

a ampliação do espectro de ativos pri- de investimento. Tais flutuações pro- reservas monetárias.
vados a serem absorvidos pelo balan- vocam movimentos de ajuste na com- Em uma economia que atravessa pe-
ço do Banco Central e o crescimen- posição e no rendimento dos ativos que ríodo de baixo crescimento e incerte-
to do débito público na composição podem agravar o declínio do gasto pro- zas, diante de antecipações pessimis-
dos patrimônios privados. Resta tor- dutivo. Mas esses movimentos cíclicos tas do setor privado, o gasto do gover-
cer para que essas “formas grosseiras” apresentam sensibilidade à atuação das no consegue impedir a queda acelerada
impeçam o avanço do credit crunch, o políticas anticíclicas que se destinam a da produção e evitar o agravamento da
aprofundamento da deflação de ativos defender os fluxos de produção, os pre- deflação de ativos. •

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Gestão pública
e execução de obras públicas nas áreas de
saneamento básico, mobilidade urbana e
habitação urbana e rural, entre outras.

descomplicada
Em março, o presidente Lula partici-
pou de um evento simbólico de inaugura-
ção das Salas das Cidades e Estados, du-
rante uma reunião da Frente Nacional de
CRÉDITO As Salas das Cidades e Estados da Prefeitos em Brasília. “Não é meramen-
Caixa facilitam o financiamento de projetos te um espaço físico, e sim um ambien-
te para criar sinergia entre as necessida-
de infraestrutura e desenvolvimento regional des das prefeituras, dos governos estadu-
ais e dos movimentos sociais com a Cai-
xa, visando promover o desenvolvimen-

D
to local”, explicou, à época, a então pre-
e janeiro a setembro, a Cai- meses de 2022. Os financiamentos foram sidente do banco, Rita Serrano. Na oca-
xa Econômica Federal con- intensificados com a expansão das Salas sião, foi oficializada a criação de 14 uni-
cedeu 14 bilhões de reais em das Cidades e Estados, espaço criado pela dades, na cidade baiana de Lauro de Frei-
crédito para projetos de in- Caixa para recepcionar as demandas de tas e nas capitais Belém, Belo Horizonte,
fraestrutura a estados e prefeitos e governadores, além de ofere- Brasília, Cuiabá, Curitiba, Goiânia, Ma-
municípios. O volume liberado nos nove cer assessoramento técnico para gestores naus, Porto Alegre, Porto Velho, Reci-
primeiros meses deste ano é 55% superior públicos e soluções para viabilizar contra- fe, Rio de Janeiro, São Paulo e Teresina.
ao concedido pelo banco ao longo dos 12 tos de repasse, parcerias público-privadas Hoje, há mais de 70 instalações distribu-
FEIJÃO ALMEIDA /GOVBA

Presença. Hoje, há mais de 70 espaços para recepcionar as demandas de governadores e prefeitos em todas as unidades da federação

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 35
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Economia

Treinamento. Oficinas oferecidas pela pousadas, hotéis e restaurantes. O setor e pagamentos. Isso traz mais tranquili-
instituição financeira capacitam técnicos de turismo se fortalece”, exemplifica. dade para os gestores”, acrescentou Jú-
que fiscalizam a execução de obras públicas
As obras de saneamento básico nas ci- lio Pinheiro dos Santos Júnior, vice-presi-
dades de Barra do Choça, Capim Gros- dente da União dos Municípios da Bahia.
so, Caravelas, Conceição do Coité, Fei-
ídas em todas as unidades da federação. ra de Santana, Jequié, Nazaré, Riachão Presente na assinatura do protocolo
Um protocolo de intenções assinado, do Jacuípe, Ruy Barbosa e Serrinha de- de intenções, a prefeita de Lauro de Frei-
em julho, na unidade de Lauro de Freitas vem beneficiar 1,3 milhão de habitantes e tas, Moema Gramacho, lembrou que par-
prevê 730 milhões de reais para o finan- contam com o apoio do programa Sanea- cerias anteriores com a Caixa possibilita-
ciamento de obras para ampliar o abaste- mento para Todos, do governo federal. ram a realização de importantes obras na
cimento de água e esgotamento sanitário “Há tempos não ocorre um financiamen- cidade, como a macrodrenagem dos rios
em dez municípios baianos. “Ter sanea- to como este aqui no estado”, destacou Ipitanga e Joanes e a ampliação do sis-
mento básico significa garantir às famílias Leonardo Góes, presidente da Empresa tema local de esgotamento sanitário. De
o conforto de receber água tratada, de ver Baiana de Águas e Saneamento, a Em- acordo com ela, a Sala das Cidades e Es-
o esgoto sendo tratado, mas também traz basa. “A Caixa é muito importante para tados inaugurada em março deve facili-
benefícios para a saúde e economia”, res- viabilizar investimentos nos municípios tar o desenvolvimento de novos projetos.
saltou o governador da Bahia, Jerônimo e nos estados. Com equipe técnica quali- Lauro de Freitas não é exemplo isolado.
Rodrigues, no ato de assinatura do acor- ficada, a instituição financeira ajuda na Na região do ABC paulista, a Caixa inau-
do. “Quando uma cidade tem boa cobertu- análise das licitações, dos contratos, dos gurou duas unidades das Salas das Cida-
ra de água e esgoto, é mais fácil para atrair projetos. Auxilia até mesmo nas medições des e Estados em abril. Na ocasião, repre-

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

sentantes do Consórcio Intermunicipal Em nove meses, vação e Melhorias de Processos, Desen-


Grande ABC assinaram os termos de acei- volvimento Pessoal, Habitação, Sanea-
te das condições de financiamento para
o banco liberou mento, Programas Sociais e Desenvolvi-
projetos de infraestrutura e saneamento. 14 bilhões de reais mento Sustentável. As aulas acontecem
Foram liberados 118 milhões de reais para para projetos de em ambientes virtuais de aprendizagem,
São Bernardo do Campo e 50 milhões pa- infraestrutura com layout amistoso e navegação intuiti-
ra São Caetano do Sul. Outro acordo, fir- va, e também é possível celebrar parce-
mado apenas com a prefeitura de São Ber- rias para atender às necessidades especí-
nardo, prevê oficinas técnicas de capacita- ficas dos gestores públicos e suas equipes
ção para engenheiros, arquitetos e outros Nas Salas, os gestores estaduais e mu-
profissionais que atuam na execução e fis- na a serem desenvolvidos nas cidades po- nicipais podem, ainda, contratar a Cai-
calização de obras públicas municipais. tiguares no segundo semestre deste ano. xa Políticas Públicas, que presta dez tipos
Em julho, na inauguração da unidade Além de mediar contratos com pre- de serviços: Acompanhamento de Obras,
de Natal, a presidente da Caixa celebrou feitos e governadores, as Salas das Cida- Acompanhamento de Projetos Sociais e
um convênio com a governadora Fáti- des e Estados também promovem even- Socioambientais, Análise e Assessoria
ma Bezerra para a retomada do progra- tos, treinamentos e oficinas com entida- em Projetos e Empreendimentos, As-
ma Pró-Moradia no Rio Grande do Nor- des municipalistas e o corpo técnico dos sessoria e Consultoria em Engenharia
te, com a construção de 765 residências governos estaduais e municipais. As ati- de Custos, Assessoria e Consultoria em
em 41 municípios do estado. A União de- vidades são direcionadas, sobretudo, pa- Trabalho Social e Socioambiental, Assis-
ve repassar 43 milhões de reais para es- ra os servidores responsáveis pela ges- tência Técnica, Oficinas Presenciais de
sas obras. Durante a visita, Serrano tam- tão dos contratos com a Caixa. Da mes- Capacitação, Prestação de Contas, Trans-
bém negociou com o governo estadual a ma forma são oferecidos cursos gratuitos ferência de Recursos e Vistorias Técni-
abertura de novas linhas de crédito para da Universidade Caixa para o Poder Pú- cas. Essas modalidades podem ser con-
projetos nas áreas de transporte e saúde blico, abordando temas como Gestão Pú- tratadas individualmente ou em pacotes.
pública. A instituição financeira reser- blica, Gestão de Convênios de Contratos,
vou ainda 340 milhões de reais para fi- Habitação, Saneamento, Programas So- Outra facilidade é a concessão da fo-
nanciar projetos de infraestrutura urba- ciais, Gestão de Pessoas e Liderança, Ino- lha de pagamento dos servidores, que pas-
sa a ser administrada pelo banco. O ser-
viço tem como finalidade auxiliar na mo-
dernização da gestão pública, com a redu-
ção do tempo e do custo operacional para
o repasse dos salários. Além disso, os fun-
cionários e colaboradores têm acesso a be-
nefícios especiais nos serviços bancários.
As Salas das Cidades e Estados tam-
bém estão abertas aos prefeitos e gover-
nadores eleitos, bem como às suas equi-
pes de transição de governo. É possível,
DANILO MAGALHÃES/PREFEITURA DE L AURO

ainda, agendar reuniões para a recep-


ção qualificada de contratos e documen-
D E F R E I TA S E C L Á U D I O V I E I R A / P M S J C

tos, com esclarecimento imediato sobre


eventuais necessidades de ajustes e com-
plementação. Os gestores públicos inte-
ressados nesse atendimento especializa-
do podem entrar em contato com a Caixa
pelo e-mail cidades.estados@caixa.gov.br
ou se dirigir pessoalmente à unidade mais
próxima. A relação completa dos endere-
Bahia. Jerônimo Rodrigues negociou com a Caixa uma linha de crédito para saneamento ços está disponível no site do banco. •

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 37
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Paraíso fiscal
OPINIÃO Os super-ricos brasileiros
vivem numa ilha de isenção tributária
cercada por pagadores de impostos
P O R Z EC A D I R C EU *

O
saudoso Raymundo Faoro isso, não sofrem a cobrança do chama-
observou que as elites bra- do come-cotas, o recolhimento periódi-
sileiras queriam um país co de Imposto de Renda (duas vezes por
de 20 milhões de consumi- ano) que afeta os fundos de investimento
dores e uma democracia nos quais a classe média consegue inves-
sem povo. Não conseguiram, mas ao lon- tir, e recursos que deveriam ter sido reco-
go do tempo lograram conquistar rega- lhidos na forma de imposto e destinados
lias tributárias injustificáveis, em que bi- a políticas públicas são reinvestidos em
lionários praticamente não pagam im- benefício dos investidores. Isso gera ren-
posto e vivem numa ilha cercada por pa- dimentos adicionais, o que dá aos fundos
gadores de tributos. Daí a importância exclusivos fechados uma enorme vanta-
de se aprovar a proposta do governo de gem tributária. Detidos pelos super-ri-
tributar os fundos exclusivos e os rendi- cos, essa vantagem aumenta a regressi-
mentos das offshores, duas modalidades vidade do sistema tributário e contribui
de investimento financeiro acessadas para concentrar a renda no País. mentos são tributados regulamente. Os
apenas pela nata dos super-ricos do País. rendimentos podem, assim, permanecer
A Câmara avançou e fez a sua parte. As offshores, por sua vez, são enti- indefinidamente no exterior sem pagar
Para investir em fundo exclusivo, é dades criadas no exterior, normalmente tributos, sendo reinvestidos e proporcio-
preciso ter na conta cerca de 10 milhões em paraísos fiscais, que também só re- nando rendimentos adicionais aos seus
de reais líquidos. Apenas 2,5 mil brasilei- colhem impostos se em algum momen- controladores. Além de constituir um in-
ros estão nessa condição, 0,001% da po- to os recursos forem internalizados, di- centivo à remessa de recursos para fora e
pulação. Essa turma, ao contrário da clas- ferentemente do que ocorre com inves- gerar distorções em sua alocação, redu-
se média que aplica em fundos de investi- timentos aqui realizados, cujos rendi- zindo o crescimento econômico, a van-
mento quando lhe sobram alguns recur- tagem tributária dessas entidades, deti-
sos, paga pouco ou nada em tributos. Ou das apenas pelos mais ricos, igualmen-
seja, não se trata de tributar mais quem te aumenta a regressividade do sistema
ganha muito mais, mas simplesmente de Não se trata de e concentra a renda.
evitar que se cobre deles muito menos do cobrar mais de quem Os números são uma miríade aos olhos
que se cobra dos demais cidadãos, como pode pagar mais, dos cidadãos comuns. Calcula-se que ha-
hoje ocorre. É uma situação inconcebível. ja atualmente em torno de 756 bilhões de
Trata-se simplesmente de fazer justi-
mas apenas de evitar reais aplicados em fundos fechados, en-
ça tributária. Vamos lembrar: hoje, esses que paguem menos quanto nas offshores está aplicado cer-
fundos só pagam Imposto de Renda no do que o resto ca de 1 trilhão. São pouquíssimos os in-
resgate, o que pode demorar anos. Com dos contribuintes tegrantes da elite brasileira que têm mu-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Porto seguro. Ser muito rico no Brasil


é navegar mansamente por um sistema
tributário sem ondas e solavancos

a excrescência dos Juros Sobre o Capi-


tal Próprio, ainda sem previsão de vota-
ção. Criado durante as reformas neolibe-
rais dos anos 1990, foi acompanhado por
outra medida adotada apenas no Brasil,
a completa isenção da tributação sobre
dividendos. O JCP permite, com o pre-
texto falacioso de incentivar o aporte de
capital em vez do endividamento peran-
te terceiros, que o sócio ou acionista seja
remunerado na forma de “juros” calcu-
lados sobre parte do capital da empresa
(como se este fosse um “empréstimo”),
sujeitos a tributação à alíquota de 15%.
Esses juros são posteriormente deduzi-
dos do lucro da empresa, que seria tribu-
tado em 34%. Ou seja, o JCP permite que
parte do lucro seja taxada em 15% em vez
de 34%, viabilizando uma grande renún-
cia de tributos que beneficia os proprie-
tários das empresas, em geral grandes,
que são as tributadas pelo lucro real e de
nição, de acordo com a linguagem desses A arrecadação adicional resultante da fato aproveitam o mecanismo. O PL pro-
tempos de violência, para fazer esses in- taxação de quem hoje quase não paga im- põe extinguir tal benefício, que não in-
vestimentos. Por isso mesmo, com seus posto e vive numa ilha de privilégio num centiva o investimento, apenas contri-
aliados subalternos na mídia e nas redes país tão desigual, viabilizaria a constru- bui para concentrar a renda.
sociais, atuam em campanhas mentirosas ção de milhares de casas populares, es- É preciso acabar com essas distorções
que distorcem e mascaram a justiça tri- colas e postos de saúde, e a execução de e privilégios. É crucial que o País avance
butária embutida na proposta do governo. múltiplas ações para a população. e consolide a tributação dos rendimentos
Em qualquer democracia moderna e dos fundos exclusivos e das offshores, e, o
consolidada, a justiça tributária é condi- Empresários do setor produtivo, as- mais rápido possível, a extinção dos Ju-
ção essencial para garantir um Estado de salariados, funcionários públicos, classe ros Sobre o Capital Próprio. Não se tra-
Bem-Estar Social. O Brasil, um dos paí- média, todos pagam imposto. Por que os ta de uma revolução, somente de aproxi-
ses mais injustos do mundo, um dos líde- ricaços não podem pagar sobre seus ren- mar o Brasil de nações capitalistas e de-
res mundiais da concentração de renda, dimentos? É preciso eliminar, urgente- mocráticas, onde a tributação é menos
tem o desafio de buscá-la. Com o privi- mente, as distorções na tributação, para injusta, como na OCDE e na meca dos
légio desse segmento da elite, a estima- aumentar a eficiência na alocação de re- neoliberais, os Estados Unidos. O Bra-
tiva é de que o governo brasileiro deixe cursos, promover o crescimento da eco- sil carece de um sistema tributário mo-
de arrecadar, no mínimo, 40 bilhões de nomia e reduzir a desigualdade social. derno e justo. •
ISTOCKPHOTO

reais anuais por conta dos benefícios às Além da taxação dos fundos exclu-
duas modalidades de investimento. Ou sivos e dos rendimentos das offshores, *O autor é deputado federal pelo Paraná
seja, 10% do orçamento da saúde. outro desafio no horizonte é extinguir e líder da Bancada do PT na Câmara.

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 39
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Não em N
a tarde da quarta-feira 25,
centenas de ativistas libe-
rais norte-americanos ju-
deus organizaram protes-

nome deles
tos. Ocuparam os gabine-
tes de líderes democratas no Capitólio,
incluído aquele do senador ultraprogres-
sista Bernie Sanders, para exigir um ces-
sar-fogo na guerra cada vez mais inten-
Parte do eleitorado sa entre Israel e o Hamas.
progressista volta-se contra o apoio Enquanto os manifestantes cantavam
em hebraico e oravam pela paz, o plená-
incondicional de Biden a Netanyahu rio da Câmara dos Deputados retomou a
atividade legislativa pela primeira vez em
P O R L AU R E N G A M B I N O, D E WA S H I N GTO N semanas após a eleição de um novo presi-
dente da casa, o republicano Mike John-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 44
NESTA The Observer. A Estação
Espacial Internacional está
SEÇÃO prestes a virar sucata

te eleitorado democrata nas últimas elei-


ções. “A Casa Branca e muitos integrantes
do governo dos Estados Unidos são cla-
ros, como deveriam, de que mil israelen-
ses mortos são demais”, disse Eva Bor-
gwardt, diretora política do IfNotNow,
grupo judeu progressista que lidera
muitas manifestações em Washington,
incluindo aquela no Capitólio na quar-
ta 25. “Nossa pergunta para eles é: quan-
tas mortes de palestinos são demais?”

À medida que Israel intensifica o


bombardeio a Gaza, Biden enfrenta
uma resistência extraordinária e
Decepção. Judeus de esquerda, árabes-americanos e principalmente jovens crescente da ala esquerda de seu partido,
condenam as declarações de Biden e o envio de armas e dinheiro a Israel especialmente de eleitores jovens e de
eleitores negros, devido ao seu firme apoio
a Israel. Eles organizaram manifestações,
son. Em seu primeiro ato, Johnson apre- tubro. Naquela mesma tarde, Biden foi escreveram cartas abertas e até apresen-
sentou ao plenário uma resolução de so- questionado durante entrevista coletiva taram demissões em protesto contra a
lidariedade dos Estados Unidos a Israel na Casa Branca sobre o aumento do nú- forma como o governo Biden lidou com a
depois que o Hamas invadiu cidades is- mero de mortos palestinos. O presidente guerra. Segundo eles, isso ameaça a posi-
raelenses, matou 1,4 mil e fez mais de respondeu que “não tinha confiança” na ção do presidente no país e possivelmen-
200 reféns, entre eles cidadãos dos EUA. contagem de mortes fornecida pelo Mi- te suas chances de se reeleger no próxi-
Quase todos os deputados democratas nistério da Saúde de Gaza. “Tenho certe- mo ano. Uma pesquisa Gallup divulgada
votaram a favor da medida, exceto uma za de que inocentes morreram, e esse é o na quinta-feira 26 descobriu que o índice
minoria resoluta que discordou, citando preço de se travar uma guerra”, disse Bi- de aprovação de Biden entre os democra-
seu fracasso em abordar os milhares de den, em comentários que o Conselho de tas despencou 11 pontos porcentuais em
palestinos mortos na campanha de bom- Relações Americano-Islâmicas descre- um mês, para um mínimo recorde de 75%.
bardeio retaliatório de Israel em Gaza. veu como “chocantes e desumanizantes”. Segundo o estudo, a queda foi alimentada
A D A M S C H U LT Z / C A S A B R A N C A O F I C I A L E J E F F KO WA L S K Y/A F P

O descontentamento demonstrado em Na internet, muitos progressistas fer- pela consternação com o apoio a Israel. E
Washington foi uma prova da raiva cres- veram, acusando Biden de permitir a vio- uma enquete divulgada recentemente pe-
cente entre a esquerda democrata pela re- lência contra os palestinos e prevendo que la empresa progressista Data for Progress
ação do presidente Joe Biden e dos líde- ele pagará um preço no próximo ano com concluiu que 66% dos prováveis eleitores
res partidários à guerra de Israel em Gaza. os eleitores muçulmanos e árabes-ameri- norte-americanos concordam forte ou
Enquanto muitos progressistas se afasta- canos, que surgiram como um importan- parcialmente que os Estados Unidos de-
ram da Casa Branca devido à posição fir- veriam pedir um cessar-fogo. Ainda as-
memente pró-Israel, surgiram, porém, di- sim, a Casa Branca rejeitou firmemente
visões dentro da própria esquerda, sinal esses apelos, que Karine Jean-Pierre, se-
das duras emoções geradas pelo conflito. “Quantas mortes cretária de imprensa, inicialmente des-
As cenas na Câmara não foram os úni- de palestinos são creveu como “repugnantes” e “vergonho-
cos sinais de descontentamento, à medi- sos” logo após o ataque do Hamas. A retó-
da que a política norte-americana – e a
demais?”, pergunta rica do governo evoluiu desde então, com
sociedade civil como um todo – fica ca- Eva Borgwardt, o porta-voz da Casa Branca, John Kirby,
da vez mais perturbada pela resposta de do grupo de judeus a dizer que um cessar-fogo nesta fase “só
Israel ao ataque do Hamas em 7 de ou- pelo cessar-fogo beneficiaria o Hamas”. Questionado se os

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 41
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Intimidação? Um dos porta-aviões


enviados por Washington para
dar guarida à ofensiva israelense

Estados Unidos apoiariam um cessar-fo-


go, Biden disse: “Deveríamos libertar es-
ses reféns, e então poderemos conversar”.
A pressão tem aumentado no Congres-
so, onde 18 deputados democratas, todos
progressistas negros, aderiram a uma re-
solução a favor de “uma desescalada ime-
diata e um cessar-fogo em Israel e na Pa-
lestina ocupada”. No Capitólio, um grupo
de funcionários judeus e muçulmanos es-
creveu uma carta aberta anônima a seus
chefes, na qual apelam de forma seme-
lhante a um “cessar-fogo imediato” entre
Israel e o Hamas. Citaram o aumento do
número de mortos em Gaza e o aumento
do antissemitismo e dos sentimentos an-
timuçulmanos e antipalestinos nos EUA.

Até agora nenhum senador apoiou es-


sa medida. Elizabeth Warren, Sanders e
vários outros democratas apelaram a uma
“pausa humanitária” para permitir o flu-
xo de ajuda, alimentos e medicamentos
para Gaza, depois de Israel ter ordena-
do um “cerco completo” ao território. Is-
so faz eco à posição do secretário de Esta- A aprovação de a escalada das mortes na guerra em Gaza.
do, Antony Blinken, segundo quem a pro- “Como muitos democratas progressistas,
Biden entre os
teção da vida civil “deve ser considerada”. aplaudi e fiquei agradavelmente surpre-
A resistência de Sanders a apoiar um ces-
eleitores democratas so com as ações do presidente Biden em
sar-fogo decepcionou até mesmo alguns caiu 11 pontos relação ao clima e à economia”, escreveu
de seus seguidores mais leais, indicando porcentuais Waleed Shahid, estrategista progressista
como o debate sobre Israel na esquerda se que acompanha a resposta do governo à
tornou emocionalmente tenso. guerra, na plataforma X. “Mas ele ultra-
Embora falte um ano para as eleições passou os limites morais com quase to-
presidenciais de 2024, muitos progres- dos os jovens eleitores muçulmanos, ára-
sistas, especialmente ativistas mais jo- posição”, escreveu em uma rede social, bes e antiguerra que conheço.”
vens, ameaçaram retirar o apoio a Biden, marcando o presidente. Até mesmo uma ligeira erosão no apoio
enquanto árabes e muçulmanos norte- Em sua conferência de imprensa na poderia significar perigo para Biden, que
-americanos expressam profundo alar- quarta-feira 25, Biden conclamou Israel a lidava com o entusiasmo reduzido entre
me sobre as ações e a retórica do presi- ser “incrivelmente cuidadoso em garan- os eleitores, especialmente os jovens. Nu-
dente. A congressista Rashida Tlaib, de tir que investigará as pessoas que propa- ma pesquisa realizada após o ataque do
Michigan, única palestino-americana no gam esta guerra”. Para muitos na esquer- Hamas, a Quinnipiac concluiu que pou-
Congresso, acusou Biden de ser cúmpli- da, o aviso foi enterrado por trás de seus co mais de metade dos eleitores com me-
ce da guerra mortal. “Vamos lembrar sua comentários que lançaram dúvidas sobre nos de 35 anos diz reprovar o envio de ar-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

mas e apoio militar pelos Estados Uni- dades eleitas falam sobre os palestinos.
dos a Israel na sequência do ataque do Apontam comentários de republicanos
Hamas. Em contraste, quase 6 em ca- como o senador Lindsey Graham, da Ca-
da 10 eleitores com idades entre 35 e 49 rolina do Sul, que descreveu o conflito co-
anos apoiam o envio de armas para Is- mo uma “guerra religiosa” e disse que os
rael, com os grupos etários mais velhos israelitas deveriam “fazer o que for preci-
oferecendo aprovação ainda mais forte. so para se defenderem. Arrasem o lugar”.
Os aliados de Biden em geral mini- O senador republicano Tom Cotton, do
mizaram as divergências entre as ba- Arkansas, fez uma observação semelhante
ses do partido. A maioria dos democra- em entrevista: “No que me diz respeito, Is-
tas, incluindo os líderes do Congresso, rael pode revolver os escombros em Gaza”.
o senador Chuck Schumer e o deputa- “Há muito que considero chocante o
do Hakeem Jeffries, observam, é de for- fato de se ignorar e marginalizar os pa-
tes apoiadores de Israel e endossam ple- lestinos na Câmara dos Deputados dos
namente a forma como o presidente li- EUA, a humanidade das populações pa-
da com o conflito. Nas próximas sema- lestinas, nos cinco anos em que estou no
nas, espera-se que suas bancadas apoiem Congresso”, disse Ocasio-Cortez recen-
esmagadoramente um pedido da Casa Divisão. O senador Sanders silencia temente na MSNBC.
Branca para enviar 14,3 bilhões de dóla- diante da proposta de cessar-fogo.
res para reforçar a segurança de Israel. A deputada Ocasio-Cortez reclama Com as expectativas de que uma in-
da desumanização dos palestinos
Uma carta a Biden, assinada pela vasão israelense em grande escala do ter-
maioria dos deputados democratas, en- ritório sitiado seja iminente, as exigências
tre eles todos os judeus da bancada e vá- de um cessar-fogo imediato tornaram-se
rios liberais, elogia sua “forte liderança mais altas e mais urgentes. Numa decla-
durante um momento trágico e perigoso ração na sexta-feira 27, em meio à intensi-
no Oriente Médio”. Elogia ainda o presi- ficação dos bombardeios e a um blecaute
dente por demonstrar “apoio constante nas comunicações em Gaza, Alexandra
ao nosso aliado Israel num momento de Rojas, diretora-executiva do grupo pro-
necessidade e horror”, ao mesmo tempo gressista Justice Democrats, implorou
que faz “declarações claras sobre a im- ao presidente que agisse agora para evi-
portância fundamental de garantir que tar uma invasão terrestre que “garanti-
as demandas humanitárias da população ria outros milhares de vítimas civis, nos
civil de Gaza sejam satisfeitas”. aproximaria de um conflito regional total
no Oriente Médio e empurraria os Esta-
O apoio profundo e duradouro a Israel dos Unidos em mais uma guerra sem fim”.
entre os legisladores democratas obscu- De olho no futuro, os progressistas di-
G A G E S K I D M O R E , G I L F E R R E I R A / S R I E A R Q U I V O / O TA N

rece uma mudança dos eleitores do par- zem que a administração deve estar pre-
tido, especialmente entre aqueles que parada para remodelar drasticamente a
atingiram a maioridade nos Estados Uni- abordagem de décadas de Washington
dos depois dos atentados de 11 de setem- em relação a Israel e à Palestina. “Se qui-
bro de 2011. Uma pesquisa Gallup rea- tas, a cobertura midiática tem promovi- sermos adotar uma política consistente
lizada em março revelou pela primeira do injustamente. Muitos democratas li- com os direitos humanos, não podemos
vez que um número maior de democra- berais, incluída a congressista Alexandria estar sempre concentrados em apoiar os
tas afirma simpatizar mais com os pales- Ocasio-Cortez, de Nova York, denuncia- direitos e a segurança de um dos lados”,
tinos do que com os israelenses. ram vigorosamente os sentimentos pró- disse Matt Duss, ex-conselheiro de polí-
Os republicanos têm procurado explo- -Hamas ou antissemitas expressos pela tica externa de Sanders. “A situação atual
rar essas divisões numa tentativa de apre- ala ativista do partido. Ao mesmo tem- é claramente insustentável.” •
sentar o Partido Democrata como anti-Is- po, afirmam que existe uma duplicida-
rael, versão que, segundo os progressis- de de critérios na forma como as autori- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 43
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Nosso Mundo

Fim de uma era


A controversa Estação
Espacial Internacional, há 25 anos
em órbita, será desativada
POR ROBIN MCKIE

A
Estação Espacial Interna- a EEI, que hoje consiste em 16 módu-
cional está prestes a ultra- los pressurizados, será encerrada e en-
passar um marco notável. viada em espiral para o oceano Pacífico
Em novembro, fará um em 2031. A agência espacial insiste que
quarto de século que a enor- os riscos para os humanos representa-
me nave espacial voa na órbita do nosso dos pela nave de 400 toneladas ao atin-
planeta. Nesses 25 anos, centenas de as- gir nosso planeta serão mínimos.
tronautas a transformaram em lar tempo- A iminente destruição da Estação Es- rior, e esta é uma lição crucial, afirmam.
rário, enquanto outros visitantes incluí- pacial Internacional levanta perguntas Outros discordam, argumentando
ram sapos, vermes, mariscos e borboletas: fundamentais. Valeu os 120 bilhões de que o dinheiro gasto teria sido mais bem
cada um deles foi objeto de experiências libras gastos para construir e operar? O investido em outros projetos. Na déca-
destinadas a descobrir os efeitos da falta que aprendemos nos últimos 25 anos que da de 1990, quando começou o planeja-
de peso, da radiação e de outros fenôme- justifique esse esforço incrível? O que a mento da EEI, os Estados Unidos, princi-
nos extraterrestres nas criaturas vivas. substituirá e quem pagará a conta? pais financiadores da estação internacio-
Além disso, os astronautas realizaram es- nal, consideravam dois grandes projetos
tudos sobre a matéria escura, os raios cós- A primeira pergunta é a mais contro- científicos rivais. O primeiro era a EEI. O
micos e as camadas de ozônio da Terra. versa. Muitos cientistas salientam que a segundo, um acelerador de partículas, o
Agora, os dias desse gigante de 100 me- EEI forneceu informações valiosas sobre Superconducting Super Collider. Ambos
tros de comprimento, que começaram em como viver e trabalhar na gravidade ze- tinham preços colossais e o Congresso
20 de novembro de 1998, quando seu pri- ro, conhecimento crucial à medida que dos EUA decidiu que o país só poderia for-
meiro segmento, o módulo russo Zarya, a humanidade se prepara para regressar necer dinheiro para um. Principalmen-
foi colocado em órbita, estão contados. A à Lua e iniciar viagens de longa duração te por razões políticas, escolheu a EEI e
estação opera há uma década a mais do a Marte e mais além. Graças à estação cortou o financiamento do supercolisor.
que o planejado e sofre cada vez mais va- espacial, aprendemos que os humanos A decisão deixou a Europa à vontade
zamentos de ar, falhas nos propulsores podem construir casas no espaço exte- para construir seu próprio acelerador
e outros acidentes que se intensificam à de partículas, o Grande Colisor de Há-
medida que é aquecida e resfriada 16 vezes drons (LHC), no Cern, em Genebra, onde
por dia, enquanto gira ao redor da Terra a a investigação rendeu uma série de prê-
28 mil quilômetros por hora. As vibrações Os cientistas mios Nobel. Em contraste, os EUA aca-
das ancoragens das naves espaciais e dos baram com um “peru orbital”, como o
movimentos da tripulação só aumentam
dividem-se sobre falecido físico norte-americano Steven
esses problemas, bem como seus equipa- os benefícios Weinberg, premiado com o Nobel, des-
mentos envelhecidos, quase obsoletos. das estruturas creveu a EEI. “A única tecnologia real
Como resultado, a Nasa decretou que fixas no espaço que a estação espacial produziu está liga-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

A estação
tornou-se
obsoleta

da a manter os humanos vivos no espaço, cie da Lua e ajudarão a preparar a constru- na estação, os módulos seriam posterior-
o que é um processo circular e sem sen- ção de uma base tripulada permanente. mente separados como uma única nova
tido, se percebermos que não faz senti- A chegada de empresários privados estação espacial antes de a EEI ser reti-
do ter humanos no espaço”, argumentou. deverá, no entanto, transformar o mer- rada de órbita e enviada para a queda no
As estações espaciais não estão, po- cado, com um interveniente-chave. A Pacífico. A estação surgiria das cinzas da
rém, prestes a desaparecer do céu no- empresa norte-americana Axiom ga- antiga, em suma. “Cada módulo foi pro-
turno. A EEI pode estar destinada ao en- nhou manchetes recentes com o anún- jetado para durar 15 anos ou mais, pos-
cerramento em alguns anos, mas os Esta- cio de um acordo com a Agência Espacial sivelmente 30, e pretendemos aumen-
dos Unidos, a Europa, o Japão, o Canadá do Reino Unido para enviar quatro as- tar consideravelmente a capacidade ao
e a Índia revelaram planos para lançar e tronautas britânicos em uma missão de longo dos anos”, acrescentou. “Existem
construir novos laboratórios em órbita, duas semanas na estação espacial em um muitos produtos biológicos e farmacoló-
enquanto a China construiu sua própria futuro próximo. A Axiom está programa- gicos que podem ser fabricados no espa-
estação com tripulação permanente, a da para adicionar quatro novos segmen- ço, além de cristais, fibras ópticas e me-
Tiangong. Agora programada para sobre- tos, ou hábitats, como os chama, à EEI, talurgia. Todos têm um forte potencial
viver à EEI, a Tiangong deverá ser equipa- com primeiro lançamento previsto para de receita e pretendemos explorar isso.”
da com módulos extras para dobrar seu 2026, disse Michael Baine, engenheiro- Outras operações privadas apoiadas
tamanho atual em um futuro próximo. -chefe da empresa. “Cada hábitat apoia- pela Nasa incluem empresas norte-ame-
rá quatro astronautas, que serão patro- ricanas, como a Orbital Reef e a Starlab,
Os Estados Unidos, por sua vez, em cinados por um país individual ou por com a primeira a descrever sua estação es-
parceria com a Europa, o Japão e o Cana- uma empresa privada, e farão pesquisas pacial planejada como “um parque em-
dá, planejam construir o Gateway, versão e trabalhos significativos em órbita.” Es- presarial no espaço”. “Vemos as futuras
menor da EEI que seria então colocada na te não será um empreendimento turísti- estações espaciais como uma combina-
órbita da Lua. A estação seria visitada por co, em outras palavras. ção de fábricas de gravidade zero e labo-
grupos de astronautas, inicialmente du- Segundo Baine, os quatro módulos se- ratórios de pesquisa. Esse é o potencial
ISTOCKPHOTO

rante semanas e depois durante meses riam lançados em foguetes de proprie- que elas oferecem”, acrescentou Baine. •
consecutivos. A partir daí eles dirigirão dade privada, como o lançador Falcon
naves robóticas que explorarão a superfí- Heavy da SpaceX. Uma vez montados Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 45
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Ameaça
existencial
Regular a expansão
da Inteligência Artificial não é fácil,
mas imprescindível
POR SONIA SODHA

E
la vai nos destruir ou nos sal- 1486 abriu caminho para séculos de perse- o equivalente a um “poderoso advogado,
var? Um debate entre oti- guição a mulheres suspeitas de bruxaria –, contabilista e conselheiro político”, dis-
mistas e pessimistas tecno- mas estes foram completamente ofusca- ponível a qualquer momento; e aulas par-
lógicos desenrola-se ao lon- dos por seus benefícios iluministas. ticulares de alta qualidade para crianças
go de séculos, enquanto a Ser um reacionário dos tempos atuais do mundo inteiro. Todos poderiam fazer
marcha constante do progresso humano não é um papel muito atraente, e na pri- terapia sempre que quisessem.
produz novas tecnologias, da roda à im- meira cúpula global de segurança da IA
pressora e ao smartphone. Mas hoje é uma houve muita pressão da indústria sobre Mas essas enormes vantagens acar-
conversa conduzida com urgência cres- os políticos presentes para abandona- retam riscos equivalentes. Não é fanta-
cente sobre a Inteligência Artificial. rem o pessimismo e se unirem à turma sia de ficção científica reconhecer que a
Os otimistas salientam que a história moderna. As recompensas podem ser in- própria IA pode representar uma ameaça
provou inúmeras vezes que os pessimistas críveis. A IA poderia revelar as respostas existencial. Alguns dos principais tecnó-
estavam errados. Tomemos como exem- para alguns dos desafios existenciais que logos e entusiastas mundiais romperam
plo a imprensa: a Igreja Católica do sécu- a humanidade enfrenta: acelerar enor- as fileiras para exigir mais regulamenta-
lo XV preocupava-se que a difusão da in- memente a descoberta de novos trata- ção. A tecnologia não eliminou a necessi-
formação minasse a autoridade e a estabi- mentos para doenças como demência e dade de trabalho humano, mas concen-
lidade em toda a Europa. Alguns intelec- câncer, criar novos antibióticos diante da trou o poder econômico e alimentou a de-
tuais temiam que a informação fosse pe- resistência microbiana, projetar tecno- sigualdade. Nossa política está pronta?
rigosa nas mãos da plebe. As guildas arte- logias que reduzam a relação entre con- Existem características da IA que fa-
sanais opuseram-se à democratização de sumo e carbono. Em nível individual, rão as revoluções tecnológicas até agora
suas habilidades por meio de manuais. No Stuart Russell, importante acadêmico parecerem insignificantes em compara-
fim, a imprensa permitiu danos – a publi- especializado em IA, afirma que a tecno- ção. A primeira é a sua escala: a IA des-
cação de um manual de caça às bruxas em logia poderia fornecer a cada um de nós bancou a Lei de Moore, que previa que o

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

teúdos polarizadores e desinformação. sitos de segurança. Ele argumenta que


Isto se revelou bastante difícil de regu- o desenvolvimento da IA precisa ser li-
lar, apesar de ser um fenômeno facilmen- cenciado da mesma forma: se uma em-
te compreendido e previsível. presa não conseguir demonstrar que sua
O desafio do controle significa que a IA tecnologia é segura, não deve ser autori-
pode gerar um enorme poder de causar de- zada a lançá-la.
vastação com fins malignos, ou mesmo Existem desafios gigantescos para es-
evoluir para se tornar um deles. Os gran- se tipo de regulamentação. Como defini-
des modelos de linguagem existentes, co- mos dano? O que significa tornar a IA “se-
mo o ChatGPT, produzem desinforma- gura”? A resposta é clara no caso da avia-
ção difícil de detectar, recheada de cita- ção ou da energia nuclear, mas nem tanto
ções falsas. Nas mãos erradas, poderiam com a IA. A falta de uma definição acorda-
destruir nossa capacidade de distinguir da frustrou as tentativas de regulamentar
a verdade da propaganda. Há um espaço as redes sociais. E embora haja consenso
obscuro em que os chatbots poderiam de- global sobre algumas coisas haverá desa-
senvolver relações de controle coercitivo cordo baseado em valores sobre outras. A
com os humanos e manipulá-los ou radi- China adotou neste ano regulamentações
calizá-los para fazerem coisas terríveis. O rígidas para IA, no estilo ChatGPT, que
homem de 21 anos condenado a nove anos obrigam as empresas a defender os “va-
de prisão por invadir o Castelo de Wind- lores socialistas fundamentais”.
sor com uma besta em 2021 conversava
com um “amigo” da IA que o encorajou a Essas diferenças são importantes
realizar o ataque. No início deste ano, um porque, como salientaram os especialis-
belga com problemas de saúde mental que tas, a regulamentação da IA provavelmen-
poder da computação duplicaria a cada se suicidou foi incitado a fazê-lo por um te é tão boa quanto o elo mais fraco em ní-
dois anos. A mais avançada hoje é 5 bi- chatbot. Poderia ajudar os criminosos a vel mundial. Pense no desafio de coorde-
lhões de vezes mais poderosa do que a de lançar ataques cibernéticos devastadores nação envolvido na resposta global à cri-
uma década atrás. Portanto, sim, a IA au- e os terroristas a criar armas biológicas. se climática e multiplique-o muitas vezes;
mentará a produtividade e mudará fun- Mas tem havido pouco tempo, recur- a (falta de) ação de um único país poderia
damentalmente a natureza do trabalho sos e energia dedicados à segurança da ter impactos muito maiores. É difícil ima-
humano, tal como suas tecnologias ante- IA. Russell ressalta que as lanchonetes ginar o nível de inovação em governança
cessoras, mas em um ritmo jamais visto. estão sujeitas a mais regulamentação do global necessário para supervisionar isto.
Além da escala, existe a potencial fal- que as empresas de IA, e que, quando se Mas a escala do desafio não deve de-
ta de controle humano. Muitos modelos trata de outras tecnologias que represen- sanimar os líderes políticos. Eles devem
de IA funcionam como uma caixa-pre- tam grandes riscos à vida humana, como resistir aos apelos inevitáveis das gran-
ta, com seu “mecanismo” invisível pa- a aviação ou a energia nuclear, não per- des empresas tecnológicas para relaxar
ra o usuário. Estão em desenvolvimen- mitimos que as empresas as operem se e confiar que tudo dará certo. O melhor
to modelos autônomos que podem bus- não atenderem previamente aos requi- cenário é que daqui a cem anos os estu-
car objetivos de alto nível, mas será que dantes de história considerem as adver-
os especialistas podem prever como se tências apocalípticas como reacionaris-
desenvolverão quando forem lançados mo do século XXI. Entretanto, pergunto-
no mundo, e o que impedirá a IA de vi- Os líderes políticos -me se, em vez disso, verão esse período
sar objetivos que não se alinham com os como o ponto frágil antes que os defeitos
interesses da sociedade? Com as empre-
devem resistir aos da tecnologia começassem a superar exis-
ISTOCKPHOTO

sas de redes sociais, vimos o que aconte- apelos das grandes tencialmente seus benefícios. •
ce quando suas metas de lucro as estimu- empresas de tecnologia.
lam a provocar danos, promovendo con- Os riscos são grandes Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 47
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Um legado e tanto
GESTÃO CULTURAL Danilo Santos de Miranda ajudou a moldar não só
as feições do Sesc-SP, mas também a da própria cultura brasileira
P O R A N A PAU L A S O U S A

F
oi no Sesc Pompeia, onde seu dar a origem do Sistema S, criado dentro Ao longo da vida, ele repetiu, feito
corpo foi velado na segunda- de uma perspectiva empresarial da dé- mantra, que a cultura e a educação nos
-feira 30, que o sociólogo Da- cada de 1940, que era paternalista e via tornam humanos e que deviam, portan-
nilo Santos de Miranda deu o trabalhador como alguém carente, ne- to, ter um caráter permanente e univer-
início à sua relação com o cessitado de atenção e cuidado. sal. O que isso significa? Que não pode-
Sesc-São Paulo, instituição na qual traba- “A instituição segue nessa perspecti- mos prescindir nem da arte nem da aqui-
lhou em metade de seus 80 anos de vida. va até metade dos anos 1950, mas vai aos sição de informação e conhecimento ao
Em 1982, quando a unidade localiza- poucos voltando sua visão, especialmen- longo da existência, e que todos devería-
da em uma antiga fábrica paulistana foi te em São Paulo, para o lazer e o tempo mos ter acesso a essa possibilidade.
inaugurada, Danilo, como todos sempre livre”, relembrou ele, em depoimento à Ele foi também um dos pioneiros na
o chamaram, trabalhava no Senac. Mas Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura difusão de uma ideia hoje bem absorvi-
era tão frequente sua ida àquele espaço e Ciência, do Instituto de Estudos Avan- da: a da transversalidade da cultura. A
que recebia as gafieiras de Paulo Moura, çados da USP (IEA-USP), em 2017. cultura, a seu ver, deveria ser levada em
a Orquestra Tabajara, Tim Maia e Jorge conta, pelos governos, nas discussões so-
Ben Jor que, um dia, o presidente do Sis- “Dizer que o Sesc é uma instituição bre assuntos diversos, da educação à área
tema S – que congrega ainda Senai e Sesi cultural é dizer que atuamos de manei- militar, passando por saúde e trabalho.
– convidou-o para assumir o Sesc. ra integral, ampla”, prosseguiu ele então, Não por acaso, a ideia do acesso o mais
Iniciava-se assim uma história que lembrando que as unidades possuem tam- amplo possível em um país trincado pe-
moldaria as feições não apenas do Sesc, bém estrutura para a prática de esportes e la desigualdade foi sempre constitutiva
mas também a da própria cultura brasilei- alimentação. “O cultural, para a gente, não do Sesc. Além de as unidades serem aber-
ra. Danilo, morto no domingo 30, depois está vinculado apenas ao mundo das artes tas a qualquer pessoa – ainda que deter-
de quase um mês internado no Hospital e do patrimônio. A questão cultural está minados serviços sejam restritos aos tra-
Albert Einstein, em São Paulo, foi uma fi- inserida nos campos da atividade física, da balhadores credenciados –, as atividades
gura absolutamente influente na criação saúde, na convivência entre as pessoas ou culturais e artísticas são oferecidas ou a
de conceitos e no compartilhamento de ex- na relação com o meio ambiente. Para nós, preços mais baixos que aqueles pratica-
periências sobre o fazer e o viver culturais. tudo isso tem um componente cultural.” dos pelo mercado ou gratuitamente.
Tornou-se, inclusive, lugar-comum Além disso, a cultura, no Sesc, nunca
chamá-lo de “eterno ministro da Cultura” foi pensada apenas do ponto de vista da
ou de “o melhor ministro da Cultura que produção e do acesso, mas também do
o Brasil não teve”. Mas sua trajetória, ain- Danilo foi um ponto de vista do bem-estar e do desen-
da que fortemente baseada em um impul- volvimento de potencialidades indivi-
so individual, deve também ser compre-
dos pioneiros na duais. Para o próprio Danilo, a cultura foi
endida dentro da estrutura que a forjou. difusão da ideia de isso: uma forma de inserir-se no mundo
Tanto quanto de falar sobre música e transversalidade e de atuar para transformar esse mundo.
artes em geral, Danilo gostava de recor- da cultura Nascido na cidade de Campos dos

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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TAMBÉM pág. 54
NESTA Lançamento. Mussum,
SEÇÃO o Filmis é a nova aposta do
cinema brasileiro nas salas

O sociólogo morreu
esta semana, aos 80
anos, em São Paulo

Goytacazes, estado do Rio de Janeiro, Da- ele me disse, numa entrevista para a sos e problemáticos, além de ter enfren-
nilo passou a infância brincando em ruas Revista E, do Sesc, que sequer tinha a ex- tado dificuldades em razão das minhas
de paralelepípedos. Órfão de mãe desde pectativa de ter vivido tanto. A longevi- opções. E eu, sobretudo, acredito no fu-
os 7 anos, foi criado na casa dos avós. A li- dade, afinal de contas, tem um compo- turo – pessoal, coletivo – e me coloco co-
gação da avó com a igreja conduziu-o pe- nente genético, e sua mãe morreu jovem, mo alguém que, dentro do meu pedaço,
lo caminho da fé. Na adolescência, ele foi de nefrite, e seu pai, aos 60 anos. Além de batalha por um mundo melhor. Não pre-
estudar em um seminário dos jesuítas. se considerar sortudo por cruzar a linha tendo fazer nada muito extraordinário
dos 80, mesmo com a saúde já um tanto do ponto de vista político, cultural ou so-
No seminário, teve início a formação fragilizada, ele afirmou, então, conside- cial, mas, a partir das minhas experiên-
G A R A PA - C O L E T I V O M U LT I M Í D I A

humanista que, vida afora, ele lapidou rar-se uma pessoa feliz, especialmente cias, espero colaborar para que a gente
por meio do estudo, da leitura, da escuta pela vida que teve: melhore as coisas para todo mundo.
e do contato com os artistas com quem – Tive uma infância muito ativa e ri- Danilo Santos de Miranda deixou a
sempre gostou de se relacionar. Sua sala, ca, uma formação razoavelmente sólida, mulher, Cleo, duas filhas, quatro netos e
na sede administrativa do Sesc, no Belen- e uma vida profissional também bastan- um legado que permanecerá na memória
zinho, era forrada de livros e CDs, mui- te variada. Minha vida foi sempre diver- de quem viveu na mesma época que ele e
tos dos quais produzidos pelo Selo Sesc. tida. Tive momentos muito efusivos e ti- que constituirá uma parte fundamental
Às vésperas de completar 80 anos, ve, como todo mundo, momentos inten- da história da gestão cultural no Brasil. •

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 49
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De toda gente
pulações locais, vem alimentando mos-
tras e exposições realizadas por gran-
des instituições culturais paulistas, co-
mo Dos Brasis, em cartaz no Sesc Be-
MEMÓRIA Os museus comunitários, cada lenzinho, e Ensaios para o Museu das
vez mais comuns, valorizam os territórios Origens, dividida entre o Itaú Cultural
e o Instituto Tomie Ohtake.
onde estão e alteram o olhar para a arte Ensaios para o Museu das Origens reú-
ne histórias e objetos de locais como o
POR ADRIANA TERR A
Museu dos Quilombos e Favelas Urba-
nos (Muquifu), em Belo Horizonte, e a
Comunidade Cultural Quilombaque,
na região de Perus, em São Paulo. Em

A
cartaz até janeiro de 2024, a exposição
caminhada da historiado- quando a gente traz essa memória local inspira-se em uma proposta feita em
ra Cláudia Ribeiro da para o museu, podemos compartilhá-la 1978 pelo crítico de arte Mário Pedrosa
Silva foi longa até que ela com pessoas de muitos lugares, reduzin- (1900-1981), que, nas palavras do cura-
chegasse ao Museu da do também o risco de que ela se perca.” dor Paulo Miyada, tinha a crença “de que
Maré. De registros da his- Inaugurado em 2008, com apoio do a arte importa na medida em que ela é
tória do bairro da Zona Norte do Rio fei- Instituto do Patrimônio Histórico e Ar- uma expressão de comunidade, coletiva”.
tos pela tevê local nos anos 1980, passan- tístico Nacional (Iphan), o Museu da Ma-
do pelo cursinho pré-vestibular, por uma ré, que reúne exposições, contação de “Quando a gente pensou nesse pro-
rede de memória e uma casa de cultura, histórias e acervo de memória, é hoje bem jeto, fomos atrás de conversar com lu-
o trajeto foi pavimentado, sobretudo, pe- menos solitário do que quando nasceu. gares de memórias, onde o público prin-
lo olhar cuidadoso para o território. Ele faz parte de uma rede de mais de cipal é a comunidade”, diz Miyada. “Is-
Nascida na Maré, Zona Norte do Rio, 300 museus comunitários que cresce so passa pelo redesenho de instituições
Cláudia Ribeiro da Silva, coordenadora pelo País e que, além de ressignificar o criadas há muito tempo e passa por lu-
do museu, está nesse sonho há muito tem- sentido do que é um museu para as po- gares que têm sido construídos pelas
po. “Percebemos que trabalhar a história
local era importante para criar identifi-
cação”, diz ela. “Foi o sentimento de per-
tencimento que deu origem à instituição.”
A história do espaço remonta ao início
dos anos 2000, quando o Centro de Estu- JOSÉ EDUA RDO/ACERVO DA L A JE E REDES SOCIAIS

dos e Ações Solidárias da Maré recebeu


em comodato um antigo galpão naval na
parte baixa do bairro. O Centro decidiu
levar para o espaço mostras e ações cul-
turais desenvolvidas em projetos já exis-
tentes na comunidade. A população, en-
tão, começou a dizer: “Vamos ao museu!”
“As pessoas diziam: ‘A gente lutou tan-
to para ter água encanada, creche, ago-
ra só faltava um museu’. Foi quando esse
projeto surgiu como possibilidade”, lem-
bra Cláudia. “A gente deixou de ser ob-
jeto de pesquisa e passou a ser sujeito. E Do povo. O Jenipapo-Kanindé fica na comunidade Lagoa da Encantada, no Ceará

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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O Instituto Tomie
Ohtake e o Sesc
Belenzinho exibem,
neste momento,
obras desses espaços

pessoas como expressão da vontade de


contar suas histórias.”
É esse também o caso do Acervo da
Laje, espaço de memória artística cria-
do em 2011 no Subúrbio Ferroviário de
Salvador, representado na mostra Dos
Brasis. Instalado em um sobrado no
bairro de São João do Cabrito, o Acer-
vo da Laje tem fervilhado. Casa-museu-
-escola, que faz sessões de cinema e re-
cebe projetos educativos, o local expõe
telas e esculturas assim como placas e
pipas. Quando ocupa outros espaços,
disputa não só estéticas, mas também
formas de atuar no campo das artes.

“A gente se constitui como um es-


paço de pesquisa, curadoria, criação,
aquisição de obras, ações educativas,
e tudo isso se reflete no diálogo com
curadorias de grandes exposições. Esse
respeito não repete práticas coloniais,
mas potencializa espaços periféricos”,
contam José Eduardo Ferreira Santos
e Vilma Santos, moradores São de João
do Cabrito e idealizadores da iniciativa.
Os projetos ligados à museologia so-
cial inserem-se, quase sempre, em pro-
cessos como aqueles descritos por Cláu-
dia Ribeiro da Silva. E o que é chave nes-
se processo? Que o território ocupa lu-
gar central na concepção dos museus.
Esses espaços não apenas não podem
ser alheios ao lugar em que estão, como
têm de fazer sentido na vida daqueles
que são detentores dos saberes expos-
tos ali. “A gente sai desse lugar do cor-
Casa e escola. O Acervo da Laje foi criado no Subúrbio Ferroviário de Salvador po estranho quando pensamos em um

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 51
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Em ação. O Museu da Maré (abaixo) e o


Museu dos Quilombos e Favelas, de BH,
que fez uma intervenção no Shopping
Higienópolis, têm ganhado visibilidade

instrumento de preservação coletivo”,


diz o museólogo Lucas Almeida.
Almeida trabalha hoje na Capela dos
Aflitos, local que visitava quando crian-
ça com sua avó, e que está no coração da
implementação do Museu de Território
dos Aflitos, que será um espaço cultural
dedicado à população negra e indígena
do bairro da Liberdade, em São Paulo, A realidade dos museus comunitários Em 2009, Nyela fez parte de um gru-
e à memória da escravidão e do tráfico é que, quase sempre, têm de se manter po de 26 crianças da comunidade que
transatlântico no Brasil. sem apoio fixo de governos locais. participaram de um projeto que deu ori-
“O (lavrador e pensador quilombo- O Museu Jenipapo-Kanindé, na Co- gem ao museu. “Foi ali que vi despertar
la) Nego Bispo traz a ideia de como munidade Lagoa da Encantada, em Aqui- em mim a vontade de estudar museo-

M U S E U D A M A R É E A N T O I N E H O R E N B E E K / C ATA LY T I C C O M M U N I T I E S
se transforma um instrumento colo- raz, no Ceará, por exemplo, convive des- logia”, conta. Seu tio, Eraldo Alves, co-
nial em contracolonial”, diz Almeida, de a sua criação, em 2010, com a incons- ordena o espaço, pensado em cinco ei-
um dos envolvidos no desenvolvimen- tância financeira comum às instituições xos: luta e movimento indígena, guar-
to do plano museológico do espaço na que dependem de editais para se manter. diões da história do povo Jenipapo, lu-
Liberdade. “(O museu) era uma ferra- “Os desafios que temos são os mesmos de gar de memória, modo de fazer e festas.
menta que estava virada para engati- todos os museus indígenas: conseguir es- “O museu transformou-se em um elo.
lhar em mim, e eu engatilhei no Esta- paço adequado para os nossos acervos”, Por meio desse espaço, nós, enquanto
do. Esse projeto dá dignidade à nossa pontua a museóloga Nyela Jenipapo. geração mais nova, buscamos conhe-
história e à nossa memória.” cer melhor a história de guardiões que
iniciaram o processo de luta e reconhe-
O Museu de Território dos Afli- cimento da nossa cultura”, diz Nyela.
tos nasce de uma mobilização da socie- “Com o território, É um pouco do que dizem também
dade civil após a descoberta, em 2018, os criadores do Acervo da Laje: “Com o
de ossadas nesse lugar que abrigou o
aprendemos a viver território, aprendemos continuamente
primeiro cemitério público paulista- e a ter esperança”, a viver e elaborar formas de promover
no, e tem buscado diálogo com o gover- dizem os criadores o encontro com as nossas memórias.
no para se tornar uma política pública. do Acervo da Laje Aprendemos a ter esperança”. •

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Agentes secretos,
bridades da política norte-americana, co-
mo os ex-secretários de Defesa dos EUA
Robert McNamara e Donald Rumsfeld ou

na vida e na arte o estrategista Steve Bannon, ex-consul-


tor de Donald Trump, até zés-ninguém
contadores de histórias mirabolantes.
STREAMING EM O TÚNEL DE POMBOS, O BEST SELLER JOHN LE O documentarista atuou como detetive,
CARRÉ É ESPIONADO BEM DE PERTO PELO VETERANO ERROL MORRIS antes de conseguir fazer cinema. Assim,
POR CÁSSIO STARLING CARLOS ele adquiriu habilidades para fazer o entre-
vistado contar bem mais do que pretendia.
Em O Túnel de Pombos, Morris percor-
re um caminho duplo. De um lado, trata-se

E
spiões tornaram-se meio fora de agentes secretos do que supõe a imaginação. de identificar que segredos o espião David
moda, agora que os apps sabem Na frente das câmeras, Le Carré nun- Cornwell contrabandeou para a literatu-
mais sobre todo mundo que a CIA ca deixa de ser um personagem. Durante ra quando ele se metamorfoseou em John
e a KGB juntas. O Túnel de Pombos, docu- uma entrevista sinuosa, ele evoca o pe- Le Carré, autor de grandes best sellers do
mentário sobre o escritor britânico John ríodo breve em que se chamava David gênero, como O Espião Que Saiu do Frio
Le Carré (1931-2020), não trata somente Cornwell e atuava no serviço secreto (1963) e O Espião Que Sabia Demais (1974).
desses personagens que fizeram seus li- britânico em missões mais burocráti-
vros venderem mais que pães. cas que eletrizantes. De outro, trata-se de conduzir Le
O filme, disponível na plataforma Atrás das câmeras, o veterano Errol Carré a expor sua experiência e refle-
AppleTV, gasta pouco tempo caçando se- Morris demonstra que entrevistar é uma xões sobre a arte da escrita, a criação de
gredos. Seu fascínio consiste em demons- arte bem maior que encadear perguntas. ações e de personagens e a abordar suas
trar que temos mais em comum com os O portfólio de Morris inclui desde cele- relações atormentadas com o pai, meio
empresário, meio golpista.
Em vez de apresentar isso
como duas fases, Morris as or-
ganiza como duas faces do per-
sonagem. A duplicidade é fun-
damental na espionagem, pois
os agentes simulam ou preci-
sam agir sem ser percebidos. De
modo equivalente, a criação li-
terária demanda conceber per-
sonagens e ações com múltiplas
atitudes e comportamentos.
Entre as duas faces, o pró-
prio Le Carré aparece difrata-
do entre a imagem pública de
escritor célebre e as turbulên-
cias pessoais.
APPLE ORIGINAL FILMS

Errol Morris, como de há-


bito, evita a linearidade e o re-
trato nítido demais. Se verda-
des emergem, elas têm pouco a
ver com reconstituição e muito
O filme, disponível na AppleTV, é mais um trabalho surpreendente do documentarista que um dia foi detetive com dissimulação. •

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 53
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O sambista
e o palhaço
CINEMA Mussum, o Filmis dialoga com a
tradição da comédia brasileira ao mesmo
tempo que procura emocionar o público

Q
uando o roteirista Paulo reto. De pronto, o produtor André Car-
Cursino entrou na TV reira – parceiro de Cursino e Santucci em
Globo, em 1994, fazia três projetos como Tudo Bem no Natal Que
anos que Mussum havia Vem, da Netflix, Os Farofeiros e O Can-
morrido. Já então, segun- didato Honesto – comprou os direitos da
do ele, a ideia de transfor- obra. Começava a nascer ali Mussum, o
mar a vida do comediante em filme pai- Filmis, que chegou na quinta-feira 2 ao
rava no ar. “Lembro que o pessoal do Cas- circuito de cinema.
seta & Planeta chegou a pensar num pro-
jeto. Mas todo mundo esbarrava num Ao longo desses dez anos, muita coisa,
ponto: que ator poderia interpretá-lo?” obviamente, aconteceu: atropelos para a
Cursino, que escreveu algumas das co- viabilização econômica do projeto, crise
médias de maior sucesso do cinema bra- na Agência Nacional do Cinema, pande-
sileiro nos anos 2000, diz que a respos- mia e, também, o avanço no enfrentamen- preto e pobre que retorceu seu destino.
ta para essa pergunta foi desvendada por to do racismo brasileiro. Tanto que San- “Tínhamos um personagem que era
ele e pelo cineasta Roberto Santucci na tucci, lá pelas tantas, abriu mão da dire- um comediante preto, de enorme suces-
ilha de edição de Até Que a Sorte nos Se- ção do filme e convidou Silvio Guindane, so, mas que estava dentro de uma estru-
pare (2012). ator e diretor preto, para assumi-la. tura racista”, diz Guindane. “Nós não po-
Na comédia, cabia a Ailton Graça o Desse conjunto de tropeços e de no- díamos deixar de observar isso, até por-
papel do melhor amigo do personagem vas possibilidades nasceu um filme que que é óbvio que Mussum passou por mui-
de Leandro Hassum. Embora sua co- dialoga com a tradição da comédia popu- tos percalços e vivenciou essa relação ca-
micidade tivesse se revelado já no set, lar brasileira, a começar pelos próprios sa-grande e senzala. Ao mesmo tempo,
foi quando Santucci convidou Cursi- Trapalhões, mas que é também o retra- na dramaturgia, a gente não podia tirar
no para ver algumas cenas montadas to emotivo da trajetória de um homem a alegria e a força que marcam a saga do
que o roteirista viu surgir, em um tre- Antônio Carlos.”
jeito do ator, o personagem que sonhava O filme é uma biografia cronológica
transformar em filme. “Ele, de repen- que procura, na contramão das biogra-
te, arregala os olhos e balança a cabe- “Fizemos um filme fias que recortam um período breve da
ça, sacudindo as bochechas. Dei um pu- vida dos personagens, dar conta da vi-
lo na cadeira: ‘Caramba, é o Mussum!’”
popular com um da toda de Mussum. A alinhavar a tra-
Três anos depois desse estalo, foi lan- corpo preto na ma está um fio afetivo: a relação dele com
çado o livro Mussum Forévis – Uma His- frente”, diz o diretor a mãe. “O Antônio Carlos, como tantos
tória de Humor e Samba, de Juliano Bar- Silvio Guindane meninos pretos brasileiros, foi criado nu-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

ma família pobre e matriarcal, com au-


sência de pai”, pontua Guindane.
Ao contrário do que se poderia supor,
sobretudo em se tratando de um projeto
formatado para chegar à casa do milhão
de espectadores, Os Trapalhões, ainda
que sejam o ponto alto do longa-metra-
gem, estão longe de dominar a narrativa.
O surgimento de Mussum na cena ar-
tística musical, com o grupo Os Origi-
nais do Samba, é explorado com vagar
e, inclusive, responde pelos dilemas des-
se homem que parecia movido pelo de-
sejo de não desagradar ou decepcionar
ninguém. O medo de deixar de ter o su-
ficiente para a subsistência, comum a
quem viveu na pobreza, deixou-o eter-
namente dividido entre ser o Carlinhos
do reco-reco e ser o palhaço que a tevê
tornou famoso e rico.

Seu percurso artístico comporta, co-


mo é comum nas cinebiografias, a pre-
sença de outras figuras célebres. É o ca-
so de Elza Soares, Grande Otelo – a quem
se atribui o apelido Mussum –, Jorge Ben
Jor, Chico Anysio, o criador da inconfun-
Cinebiografia. Na juventude, época em que serviu a Aeronáutica, o artista é vivido por
Yuri Marçal. Na terceira das três fases retratadas no filme, entra em cena Ailton Graça dível terminação “is”, e, é claro, seus três
companheiros nos Trapalhões. O elenco
é, no todo, muito bom.
Neste momento no qual o cinema bra-
sileiro tenta recuperar o público nas sa-
las de cinema – nenhum filme, desde a
pandemia, chegou sequer a 1 milhão de
espectadores –, Mussum, o Filmis é lan-
çado com grande expectativa, até por de-
rivar, de alguma forma, do fenômeno de
bilheteria que foram Os Trapalhões.
“Filme popular é aquele que conse-
gue gerar identificação com o público”,
diz Guindane. “A maioria da população
brasileira é preta, mas essas pessoas pa-
D E S I R É E D O VA L L E

gam ingresso para ver filmes em que não


veem sua cor na tela. O que a gente tem,
com Mussum, é um filme popular com
um corpo preto na frente.” •
– por Ana Paula Sousa

C A R TAC A P I TA L — 8 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 55
AFONSINHO
CLUBE DE REVISTAS
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Entre finais e listas

Até que se revelasse o campeão, acom- Em situações de encontro de equi-


► Me senti recompensado panhamos a partida se estendendo pe- pes em condições extremas de qualida-
ao ver Gabriel Jesus la prorrogação e, depois, pelos pênaltis. de, existem jogos que são de um time só.
No fim, foi vitoriosa, com justiça, a equi- Mas, para que isso aconteça, a equipe lí-
reconhecido como pe equatoriana da LDU, com maior grau der precisa definir logo de cara a diferen-
o principal jogador de experiência. Mas o Fortaleza saiu da ça das posições da tabela e impor a razão
da Champions partida honrado. dos números. Não existe jogo corriquei-
Enquanto escrevo este artigo, eu mes- ro ou normal.
League no ranking mo me pergunto se não estaria insistindo Do outro lado do mundo, o ano espor-
elaborado pela Uefa demais em falar em final da temporada tivo vai pelo meio com as indicações de
na América do Sul quando ainda faltam premiados. Lionel Messi leva, pela oitava
dois meses para terminar o ano esportivo. vez, a “Bola de Ouro” atribuída pela im-

N
o sábado 4, conheceremos o Acontece que a quantidade de resul- prensa francesa.
campeão da Libertadores. Às tados “elásticos” e “viradas” sensacio- Nessa onda de balanço de fim de ano,
vésperas da partida, e sob ris- nais nos leva a pensar se isso se deve ao Vinícius Junior é premiado pela dedica-
co de deixar registrado um erro meu, descontrole de times – em desespero de ção ao seu projeto social voltado à comu-
arrisco um palpite favorável ao trico- causa – ou se estamos, na verdade, vi- nidade onde ele próprio cresceu, em São
lor das Laranjeiras. venciando um prenúncio de novos ve- Gonçalo, celeiro tradicional de craques
Decisão em jogo único pode dar qual- lhos tempos em nosso futebol. e região de graves problemas sociais no
quer coisa, mas acredito que o Boca estado do Rio de Janeiro.
Juniors, em que pese sua tradição, pode Apenas como exemplo do que quero Vini Jr., neste ano, está classificado
levar uma “sapatada” – e digo isso não pela dizer cito os seguintes resultados: depois entre os dez melhores jogadores de fu-
lógica, até porque, como sabemos, o fute- do 7 a 1 do Inter de Porto Alegre contra o tebol em atividade em todo o mundo. Em
bol não comporta isso, mas pela diferen- Santos, pelo Campeonato Brasileiro, ti- se tratando de atuações individuais, al-
ça das propostas de jogo das duas equipes. vemos, na mesma competição, Palmeiras guns jogadores vão se destacando no de-
O Boca Juniors, como força popular, 5 a 0 São Paulo e Fluminense 5 a 3 contra correr da temporada.
não é time que possa ficar cozinhando o Goiás. Soltaram-se as amarras? Me senti recompensado ao ver Gabriel
por muito tempo. E sabemos que chegou Em se tratando de maneiras de jogar, Jesus tendo seu empenho reconhecido. O
à finalíssima com algumas vitórias sendo volto a refletir sobre a situação que te- atacante foi considerado, em um ranking
obtidas nas disputas por pênaltis. nho descrito aqui: a enorme quantidade elaborado pela Uefa, o principal jogador
Além do mais, os times argentinos, de jogos acumulados, uns por cima dos da Champions League após as três roda-
exatamente como acontece com os nos- outros, o que acaba por gerar situações das iniciais da fase de grupos.
sos, têm sido obrigados a abrir mão de de descontrole. Isso volta, inclusive, a Da mesma forma, salta da curva o jo-
muitos jovens que eles próprios prepa- acontecer com o Botafogo, e ocorreu vem inglês Jude Bellingham, parceiro de
ram, mas que são comprados por times também na partida da Seleção Brasilei- Vini Jr. e de Rodrygo no Real Madrid. A
de países mais ricos. Viramos, aqui na ra contra a Venezuela. cada jogo, o atleta surpreende o próprio
América do Sul, verdadeiras “barrigas A Seleção montada em seu passado de técnico Carlo Ancelotti.
de aluguel” para os times europeus. glórias e o Botafogo na condição de líder A alegria destes dias fica por conta da
Especulações à parte, é fato que a de- folgado no Brasileirão levaram para o delegação brasileira no Pan-America-
finição da Copa Sul-Americana, decidida campo essa condição traiçoeira de enca- no, que acontece em Santiago, no Chile.
no sábado 28 de outubro, em Maldonado, rar o jogo como algo corriqueiro. Como Na segunda-feira 30, o País chegou ao
B A P T I S TÃ O

no Uruguai, foi um jogo que, embora não diz a expressão popular, caíram do cava- segundo lugar no quadro de medalhas,
tenha sido um primor de técnica, foi mui- lo. E é impressionante notar como isso com 112 pódios. •
to disputado. se repete cada vez com mais frequência. redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ARTHUR CHIORO
CLUBE DE REVISTAS
Médico sanitarista e professor da Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). Foi ministro da Saúde. É presidente
da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (MEC)

Processo inadiável

de geolocalização, consumo e imigração. Atualmente, 1,4 mil municípios são


► O Ministério da Saúde A integração facilita ainda a condução atendidos por telessaúde. A Universidade
lança o Programa SUS de pesquisas clínicas e epidemiológicas Federal de Minas Gerais emite um lau-
ao fornecer acesso a dados abrangentes do para cada dez exames de eletrocardio-
Digital Brasil, com o de pacientes, acelerando a descoberta de grama realizados no SUS. Mais de 2,5 mi-
objetivo de dar impulso tratamentos e avanços na área da saúde. lhões de exames são laudados a distância
para a transformação No Brasil, o Centro de Integração de Da- pela Universidade Federal de Santa Ca-
dos e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), tarina. O Programa Norte Conectado In-
digital na saúde da Fiocruz, conduz estudos de coorte de fovia 01 garante conexão de alta veloci-
100 milhões de brasileiros, analisando os dade de Telessaúde no Amazonas e Pa-
determinantes sociais e os efeitos de polí- rá. Novas perspectivas estão em curso.

A
integração de dados continua ticas e programas sobre os diferentes as- A informatização da atenção hospi-
sendo um desafio para os sis- pectos da saúde na sociedade. talar do SUS, através de parceria com
temas de saúde. E só com ela Possibilita, também, a eliminação de a Empresa Brasileira de Serviços Hos-
os profissionais da área podem aces- processos manuais redundantes e auto- pitalares (Ebserh), vinculada ao MEC,
sar informações consistentes e atuali- matização de fluxos de trabalho, resultan- para disseminação do seu Aplicativo de
zadas sobre os pacientes, promovendo do em eficiência operacional, bem como Gestão para Hospitais Universitários
uma melhor coordenação de cuidados na redução de intervenções duplicadas ou (AGHU) nos hospitais públicos e conve-
entre os serviços da rede de saúde. desnecessárias, como a solicitação do mes- niados do SUS é outra diretriz do Pro-
Ao integrar dados de diferentes ba- mo exame, num curto espaço de tempo. grama. O AGHU é um prontuário ele-
ses é possível identificar inconsistên- trônico utilizado nos 41 hospitais uni-
cias e melhorar a qualidade da informa- A boa notícia é que o Ministério da versitários federais ligados à Ebserh,
ção gerada. O aumento dos diagnósticos Saúde acaba de lançar o Programa SUS com cerca de 3 milhões de acessos men-
de HIV no Brasil, por exemplo, teve in- Digital Brasil, sob a coordenação da sua sais e base de 25 milhões de pacientes.
cremento de 11,3%, em 1997, após decisão Secretaria de Informação e Saúde Digi- A integração e interoperabilidade de
do Ministério da Saúde de integrar os da- tal, criada este ano com o objetivo de dar dados em saúde, através do fortalecimen-
dos de dois sistemas (Sinan net e Siscel). novo impulso para a inadiável transfor- to da Rede Nacional de Dados em Saúde
Ao possibilitar que os profissionais de mação digital na saúde. (RNDS), é fundamental. A RNDS possui
saúde vejam o histórico clínico do pacien- O Programa assenta-se em diretrizes mais de 1,3 bilhão de registros de vacina-
te, a integração ajuda na prevenção de er- pactuadas com gestores municipais e es- ção, 71 milhões de resultados de exames
ros. Na Califórnia, uma pesquisa identi- taduais, como a criação de um índice de e 40 milhões de downloads do aplicativo
ficou redução de 16% nos erros relacio- maturidade digital, com subsídios técni- ConecteSUS. Dentre as novidades apre-
nados à administração de medicamentos cos para a construção de planos de ação sentadas no Programa SUS Digital Bra-
após a implantação de bombas de infu- de saúde digital por estados e municípios. sil está a possibilidade de o cidadão ava-
são integradas a prontuários eletrônicos. Outra diretriz prevê o fortalecimen- liar o atendimento clínico nas Unidades
O enfrentamento de epidemias e pan- to das práticas de telessaúde, através de Básicas de Saúde.
demias pode ser potencializado com a maior apoio e investimentos federais Finalmente, depois de anos de atraso,
integração de diferentes tipos e fontes aos núcleos das universidades e secre- caminhamos a passos largos para a neces-
de dados, permitindo uma saúde pública tarias estaduais e municipais de Saúde, sária transformação digital na saúde. •
de precisão, mapeando rapidamente, por para atender diferentes modalidades, redacao@cartacapital.com.br
exemplo, possíveis contactantes e pessoas como teleconsultoria, telediagnóstico,
B A P T I S TÃ O

expostas ao risco de infecção. A Coreia do teleconsulta, interconsulta, telemoni- *Com participação de Giliate Coelho,
Sul, em 2020, enfrentou a pandemia inte- toramento, segunda opinião formativa diretor da Diretoria de Tecnologia e Informação
grando dados clínicos, epidemiológicos, e teleducação. da Ebserh e ex-diretor do Datasus.

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de onde vem
o papel

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