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CLUBE DE REVISTAS

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CARTA AO LEITOR

ISAC NÓBREGA/PR

ORLANDO BRITO

OVO DA SERPENTE Bolsonaro, que afrontou o STF e


colocou tanques na Esplanada: o TSE pode torná-lo inelegível

NO BANCO DOS RÉUS


QUEM ACOMPANHA política de perto certamente já ou-
viu a expressão “chocar o ovo da serpente”, eternizada num
filme do cineasta sueco Ingmar Bergman a respeito do con-
texto que facilitou o surgimento do nazismo na Alemanha.
O termo simboliza o prenúncio da gestação do mal, as con-
dições que levam um país a optar por uma solução absoluta-
mente inaceitável em nome de um ilusório bem-estar no fu-
turo. No universo político, tal imagem passou a ser usada
para caracterizar movimentos que tentam tirar dos porões e
trazer à luz a sanha golpista, com ambições de confrontar
instituições até culminar na derrubada de governos demo-
cráticos. Desde os anos de trevas da ditadura militar, que to-

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mou o país em 1964, o Brasil nunca havia flertado tão de


perto com esse perigo sorrateiro e peçonhento quanto nos
últimos tempos.
Se ainda havia alguma dúvida a respeito disso, duas ca-
pas de VEJA neste ano mostraram claramente a tentativa de
gestação do “ovo da serpente” durante o apagar das luzes do
governo passado. Em uma delas, o senador Marcos do Val
relatou que, em uma reunião no início de dezembro com Jair
Bolsonaro e o deputado Daniel Silveira, o então mandatário
teria lhe pedido para gravar conversas com Alexandre de
Moraes, presidente do TSE, com o intuito de arrancar do
ministro alguma indiscrição capaz de anular as eleições
vencidas por Lula. Na edição da semana passada, o editor
Robson Bonin revelou um relatório da PF sobre o conteúdo
do celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de or-
dens de Bolsonaro. Havia ali o roteiro detalhado para um
golpe de Estado e conversas conspiratórias com membros
da alta cúpula militar destinadas também a melar o resulta-
do do pleito vencido pelo petista.
Para além da proximidade de Bolsonaro com esses cola-
boradores, não surgiu até agora nenhuma prova cabal de seu
envolvimento direto na tentativa de quartelada, mas é inegá-
vel que o ex-presidente ajudou a insuflar o espírito insurgente
em alguns círculos militares, algo bastante grave por si só.
Os atos de vandalismo de 8 de janeiro, vale destacar, são fru-
tos diretos dessa catequização contínua. Entre outros episó-
dios lamentáveis, Bolsonaro patrocinou desfiles de tanques

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na Esplanada dos Ministérios, bradou em cima de um palan-


que que não cumpriria decisões do STF e por diversas vezes
colocou sob suspeita a lisura das eleições. O capitão perpe-
trou acusações sem provas até em uma reunião com embai-
xadores estrangeiros realizada no Palácio da Alvorada.
Esse episódio está no centro do julgamento iniciado na úl-
tima quinta, 22, no TSE, que pode torná-lo inelegível. A acu-
sação é de que houve abuso de poder, com uso de recursos do
Estado para propagar notícias falsas. Os bastidores do caso e
as implicações políticas de uma possível condenação são te-
mas da reportagem que começa na página 26 desta edição.
Depois de tantos atos irresponsáveis e com motivações duvi-
dosas, Bolsonaro finalmente precisará prestar contas sobre
seu comportamento. Ao contrário do que ele mesmo pregou,
o ex-presidente terá pleno direito a fazer sua defesa em um
julgamento justo e imparcial — prova da força de nossas ins-
tituições, as mesmas que foram firmes e decisivas para afas-
tar o risco de um novo “ovo da serpente” no país. ƒ

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ENTREVISTA ROBERTO DE CARVALHO
GUILHERME SAMORA/DIVULGAÇÃO

“ELA FOI CORAJOSA”


O marido e parceiro musical de Rita Lee abre seu
coração sobre detalhes dolorosos da morte
da cantora, revela planos para o legado dela e conta
como ambos reinventaram o rock nacional
FELIPE BRANCO CRUZ

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COMPANHEIRO de vida e carreira de Rita Lee por quase


cinquenta anos, o talentoso compositor e multi-instrumentis-
ta Roberto de Carvalho, 70, vem enfrentando com intensida-
de o luto pela perda da artista — morta no início de maio em
razão de um câncer. Pai de três filhos (Beto, João e Antonio)
e avô de dois netos (Izabella e Arthur), Roberto formou com
Rita uma das parcerias mais bem-sucedidas da música na-
cional, com 55 milhões de discos vendidos e hits como Lan-
ça Perfume e Mania de Você. Mais que isso, a dupla definiu o
que se entende hoje por pop rock no Brasil. Ao receber VEJA
em seu apartamento, em São Paulo, Roberto abriu o coração
pela primeira vez sobre detalhes dolorosos do drama vivido
por Rita e a família, além de revelar os planos para lidar com
o imenso legado da artista. Emocionado, interrompeu várias
vezes a conversa de duas horas. “Nunca fui de chorar. Mas
uma vez me disseram que, quando eu chorasse a primeira
vez, nunca mais pararia”, desabafou. Confira a entrevista.

Um mês e meio após a morte de Rita Lee, como o se-


nhor está? É a sequência de um longo processo de uma
vida toda (interrompe a resposta com voz embargada).
Tenho altos e baixos. Tem horas em que estou em paz
com o que aconteceu. Tem horas em que desabo. Parti-
cularmente, não creio que eu possa algum dia ter a cora-
gem que ela teve de passar por tudo que passou. Depois
que ela subiu, tive até certo alívio com o fim do flagelo.
Por outro lado, morreu um pedaço de mim também. Es-

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tou no processo de entender quem sou e o que sobrou de


mim após toda essa situação.

Como reagiu após ler o livro Outra Autobiografia, no qual


ela descreve o período em que enfrentou a doença? Foi
um bálsamo. Li apenas depois de pronto, quando Rita já es-
tava no fim. É uma narrativa extremamente positiva em re-
lação a tudo que passamos. Do meu ponto de vista, foi tudo
bem mais dramático. Eu e o João (o segundo filho do casal,
de 44 anos) acompanhamos de perto as decisões médicas.
Rezamos para fazer as escolhas certas, mas é uma encruzi-
lhada em que você não sabe o que fazer, e havia grandes
chances de fazermos escolhas erradas. O período pós-livro
foi muito difícil, pois Rita já estava num processo de declí-
nio, de não conseguir andar, de sentir muitas dores. Foi
muito duro mesmo.

“Depois que Rita subiu, tive até certo


alívio com o fim do flagelo. Por outro
lado, morreu um pedaço de mim. Estou no
processo de entender quem sou e o que
sobrou de mim após toda essa situação”
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Rita sempre falou sobre a morte em suas músicas e nos


livros. Vocês conversavam sobre o tema? A morte nunca
foi um tabu para nós. Sempre falamos sobre isso com natu-
ralidade, especialmente durante a pandemia. No primeiro
ano da pandemia, fomos morar na Granja (sítio em Cotia,
na Grande São Paulo) e tivemos um convívio bastante in-
tenso. Nossa rotina era gostosa, de tomar sol, de fazer nos-
sa comidinha, de ver televisão. Era uma utopia dentro da
distopia. Olhando para trás, parece que foi um ano de des-
pedida da nossa vida.

Quando isso mudou? Tudo desandou após Rita parecer sentir


os efeitos da segunda dose da vacina da Covid e, no hospital,
descobrirmos que na realidade ela estava com câncer. Foi o
começo do fim. Com o tratamento, deletamos o tumor do pul-
mão, mas surgiram metástases nos brônquios e em outros lu-
gares do corpo, como o famoso “Jair”, um tumor na lateral da
barriga. Quando achamos que haveria uma vitória, o médico
me chamou num canto, longe da Rita, e disse: “Não tenho
boas notícias. Metástase no cérebro”. Eu desmaiei. Apaguei.

O senhor estava ao lado dela quando ela morreu? Sim. Es-


távamos eu e meus filhos, além das enfermeiras. Não foi uma
coisa pesada. Ela foi apagando pouco a pouco. A respiração
foi… (interrompe a resposta emocionado). Não teve drama,
foi como uma chama se extinguindo. Foi como um passari-
nho machucado. Eu queria ter ido junto. A gente planejava ir

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junto, sabe? Foi o que a gente sempre quis. No fim, ela já não
estava falando mais nada. Ela abria os olhos e dormia.

Como recebeu as manifestações de carinho dos fãs?


Leio tudo o que eles escrevem no Instagram. São coisas
muito legais e que me consolam muito. O velório no Pla-
netário do Ibirapuera foi uma das coisas mais emocionan-
tes que já presenciei. Em determinado momento, os fãs fo-
ram embora e ficamos só a família e amigos próximos.
Sentamos naquelas cadeiras reclináveis e começou a tocar
um canto gregoriano. Projetou-se na cúpula o céu da hora
e do dia em que ela nasceu. Rita tinha me dito que queria o
caixão fechado. Eu também não queria que ficasse aberto
durante o velório, mas naquele momento senti que deveria
abrir. Quando fiz isso, ela estava linda, tranquila. Deixei
aberto para ela fazer essa viagem junto com a gente. A
sensação que tive foi que ela realmente estava ali. Foi uma
despedida magnífica. Eu olhava para o céu e olhava para
ela. Me deu muita paz.

Rita disse que gostaria de ser cremada e que suas cinzas


fossem jogadas no jardim de casa. Planeja fazer isso? As
cinzas da Rita estão aqui em casa, num altar. Vamos jogá-
-las no jardim, mas só quando eu subir e encontrar com ela.
Quero ser cremado e que as minhas cinzas sejam mistura-
das com as dela. Aí nossos filhos decidem o que fazer. Nes-
se meio tempo, ela fica aqui pertinho de mim.

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O senhor estudou astrologia e já disse acreditar muito nas


“forças do universo”. Como imagina o lugar onde ela esta-
ria hoje? Sou aberto a qualquer possibilidade em relação ao
que vem do desencarne. Admito a possibilidade de que o fim
da vida seja realmente o fim de tudo, até a hipótese da cabala,
de que ascendemos à cabeça de Deus. Imagino que ela esteja
sem as dores e as vicissitudes do corpo físico, como se ela se
integrasse num grande oceano em que tudo é uma coisa só.
Como se ela fosse uma gota desse oceano. Deus é tudo. Rita
sempre me disse que queria ir primeiro do que eu porque se-
ria muito complicado ela viver aqui sozinha.

Como seus dois netos, Izabella (17 anos) e Arthur (5 anos), fi-
lhos do Beto e do Antonio, reagiram ao saber da morte? Eu
não achava adequado que o Arthur visse a Rita da maneira como
ela estava. Pensava que seria muito difícil para ele. Mas ele foi
vê-la e o último autógrafo que Rita deu na vida foi para ele. Foi
bonito. A gente se fechou e a nossa casa virou uma filial do hos-
pital. Do ponto de vista da infraestrutura, Rita teve o melhor —
tanto que ela teve uma sobrevida de dois anos, quando as previ-
sões apontavam para poucos meses. Ela passou por essa via-crú-
cis com um estoicismo e um senso de realidade surpreendentes.

Quando houve o anúncio da aposentadoria em um show no


Rio, em 2012, o senhor também concordava com aquela de-
cisão? Sim. Era um acordo sobre o qual já conversávamos ha-
via um bom tempo. Sempre trabalhamos muito e havíamos

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chegado a um estágio da vida em que tínhamos de lidar com


problemas físicos, dores na coluna... Rita desenvolveu tam-
bém pavor de avião. Pouco antes de anunciar a aposentadoria,
o avião em que estávamos enfrentou uma turbulência e teve
dificuldades para pousar no Rio. Ela ficou apavorada. Fize-
mos o restinho da turnê de ônibus.

Rita disse que tinha material inédito guardado. Como será fei-
ta a gestão desse legado? Nossos filhos é que estão envolvidos
nessa parte. João fez recentemente uma bela releitura de nossos
hits e lançou álbuns com remixes. Beto está fazendo shows em
homenagem a ela com uma banda formada por músicos que já
tocaram conosco. E Antonio, que é das artes plásticas, está de-
senvolvendo coisas nessa área. Vou supervisionar tudo.

Pode adiantar o que virá por aí? Existe o projeto de uma


cinebiografia, tem ainda documentários e filmes. Tenho in-

“Mania de Você surgiu após um


momento de amor e sexo. Estávamos
deitados naquele estado pós-orgásmico
e eu peguei o violão. Balbuciei uma
melodia e Rita escreveu a letra”
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teresse em fazer um filme sobre nossa história de amor,


uma love story musical. Temos, ainda, muitos shows ao
vivo gravados e algumas músicas inéditas (mas não mui-
tas). Lançaremos em disco a apresentação que fizemos
em 2002 no Luna Park, em Buenos Aires, por exemplo.
Li que Paul McCartney vai usar inteligência artificial para
restaurar a voz de John Lennon em uma fita demo. Tam-
bém temos coisas gravadas em fitinhas cassetes dos anos
1970 e 80. Quem sabe o que pode acontecer? É necessário
tempo e tecnologia para que essas coisas sejam feitas.

Rita guardou muita memorabilia. Pensa em algo como um


museu Rita e Roberto? Temos tanto material que daria pa-
ra fazer dois museus. Eu adoraria fazer isso. Mas a primazia
do nome é de Rita. Museu Rita Lee. Seria incrível. Durante
a pandemia, fizemos uma exposição que foi um sucesso.

Ela foi presa na época da ditadura militar, em 1976, grávi-


da de seu filho Beto, sob acusação de porte de drogas.
Como o senhor enfrentou aquele período duro? Nunca
passou pela minha cabeça fazer outra coisa que não fosse
ficar com ela. Quando Rita saiu da cadeia, teve músico que
não quis continuar na banda porque ela era sujeira total.
Todo mundo desapareceu.

O senhor falou da primazia do nome de Rita, mas ela sem-


pre fez questão de incluir o nome do senhor nos álbuns.

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Naquela época, muita gente estranhou isso. Como enca-


rou as críticas? Foi um processo. Diziam que eu havia co-
locado música latina no rock de Rita. Não é verdade. Tal-
vez eu tenha aditivado a coisa latina, mas, antes, ela já ha-
via feito Bandido Corazón, com Ney Matogrosso. Ela já ti-
nha essa coisa. Eu só anabolizei seu lado latino.

O senhor diria que Rita e Roberto criaram o que se en-


tende hoje em dia por pop rock no Brasil? Dizem as
boas línguas que sim. Para desgosto dos roqueiros, in-
corporamos o que vinha da era disco. Rolling Stones es-
tavam fazendo Miss You. David Bowie, fazendo Let’s
Dance. Fizemos Chega Mais e Corre-Corre, músicas
com uma atmosfera Studio 54 (lendária discoteca nova-
-iorquina). Estávamos abertos a tudo o que estava acon-
tecendo. Sectarismo musical é a coisa mais esdrúxula
que pode existir. Música é música, desde Mozart até
Anitta. Música é vida.

Esse pop também tinha muito da intimidade do casal, em


hits como Lança Perfume e Mania de Você. Como essas
músicas surgiam? Mania de Você surgiu após um mo-
mento de amor e sexo. Estávamos deitados naquele estado
pós-orgásmico e eu peguei o violão, que ficava ao lado da
cama. Comecei a balbuciar uma melodia e Rita, que sem-
pre tinha um caderninho ao lado, escreveu a letra. Em vin-
te minutos, a gente já tinha letra e música. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

QUEM JÁ NÃO
VIU ISSO ANTES?

PLANTADA NO CENÁRIO em 1889, quando a celebração


do centenário da Revolução Francesa, somada a um intenso
frenesi, fazia com que os olhos do mundo se voltassem para
Paris, a Torre Eiffel acabou virando um símbolo
indissociável da cidade.
AURELIEN MEUNIER/GETTY IMAGES

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É hoje um dos cartões-postais mais visitados do planeta, e


quem nunca teve a oportunidade de tocar em suas treliças,
agora em franca renovação para a Olimpíada de 2024, ao
menos apreciou a distância esse criativo produto da
engenharia. Como parte dos preparativos para os
Jogos, no domingo 18, atletas de elite dos saltos
ornamentais voavam de plataformas que superavam
os 20 metros rumo ao Rio Sena, que também está
passando por uma faxina como nunca antes para
abrigar a cerimônia de abertura, tendo justamente a
torre ao fundo. Essa era, naquela ensolarada manhã, a
parte mais visível da corrida para organizar evento
esportivo de tamanha envergadura. Nas sombras, porém, se
desenrolava enredo bem menos aprazível. Dois dias depois
do show dos virtuosos saltadores, a polícia francesa realizou
operações em sequência na sede do comitê organizador local
e na Empresa de Obras Olímpicas. A razão, segundo o
Ministério Público, são suspeitas e favorecimento e ações
ilegais em torno de vultosos contratos olímpicos. O roteiro
não chega a surpreender. Casos de corrupção mancharam
os espetáculos em Tóquio e no Rio de Janeiro, onde as
investigações seguem até hoje. Que os Jogos de Paris
sejam limpos e façam jus a toda a beleza que os cerca. ƒ

Amanda Péchy

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CONVERSA CHRIS HEMSWORTH

“HERÓIS NOS INSPIRAM”


Aos 39 anos, o astro australiano fala sobre papéis que
exigem força física e mental, seu filme de ação Resgate
2, recém-lançado pela Netflix — e da descoberta de sua
predisposição ao Alzheimer
INSTAGRAM @CHRISHEMSWORTH

DURO DE MATAR Hemsworth: “Tudo na vida deve ser


gratificante e agradável”

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Em Resgate 2, você retorna como Tyler Rake, um assas-


sino implacável que salva reféns. Por que razão filmes
com heróis invencíveis não cansam o público? Penso
nisso quando estou interpretando Thor (o Deus do Trovão)
no Universo Marvel, e entendo que a mitologia de vilões,
heróis e cavaleiros remonta à própria história. A narrativa é
sempre sobre acreditar em pessoas que superam feitos apa-
rentemente impossíveis, enfrentam o mal e a injustiça, e lu-
tam por quem é mais vulnerável e precisa de proteção. He-
róis nos inspiram.

Por isso gosta de interpretá-los? Sim, gosto de fazer par-


te do processo. E, atualmente, é possível mostrar um pouco
mais da vulnerabilidade e humanidade dos heróis, como no
caso de Tyler. Isso é essencial. Em filmes de ação mais anti-
gos você jamais veria o herói derramar uma lágrima, ser
vulnerável e expressar emoções mais profundas. Sendo que,
na vida real, todos nós temos rachaduras na superfície.

Assim como no primeiro filme, Resgate 2 tem muitos


planos-sequências longos. Isso permite improvisações?
A improvisação só é possível se você estiver muito bem pre-
parado. Lembro-me de conversar com Robert Downey Jr.
sobre isso. Quando você está filmando, seu cérebro processa
um milhão de informações e é preciso treino para saber agir
como aquele personagem.

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Já se machucou durante as filmagens? Não, mas tenho le-


sões acumuladas de anos praticando esportes, e por fazer
tantos filmes de ação vestindo fantasias malucas pesadas.

No ano passado, você revelou ter descoberto uma pre-


disposição ao Alzheimer, levantando rumores de uma
aposentadoria precoce. É verdade? Não exatamente. Eu
amo filmar e contar histórias, é um exercício físico, mental e
emocional prazeroso. Acho que ao longo dos anos fui emen-
dando projetos só porque estava com aquela vontade insa-
ciável de trabalhar, me mantendo ocupado ao máximo, en-
tusiasmado. Mas, no final das contas, falta tempo para a fa-
mília (ele é pai de três crianças com Elsa Pataky).

Então, seguirá atuando? Tirei um tempo para descansar re-


centemente e agora sinto que minha centelha criativa rea-
cendeu. Para mim, tudo na vida deve ser gratificante e posi-
tivo. Isso inclui estar com pessoas maravilhosas, que nos
inspiram na vida profissional ou pessoal. Se não for agradá-
vel, melhor fazer outra coisa. ƒ

Kelly Miyashiro

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DATAS

SEGREDOS
DE ESTADO

PAPÉIS DO PENTÁGONO O analista militar


Daniel Ellsberg: ele copiou 7 000 páginas de documentos
do governo americano e os vazou para a imprensa

DAN FARRELL/NY DAILY NEWS/GETTY IMAGES

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Em junho de 1971, o jornal The New York Times


deu início a uma série de reportagens que revelou
dados de um relatório secreto do governo ameri-
cano, mais tarde conhecido como Pentagon Papers
(Papéis do Pentágono). A análise feita durante a
Guerra do Vietnã, encomendada em 1967 pelo en-
tão secretário de Defesa Robert McNamara, apre-
sentava evidências do envolvimento dos Estados
Unidos com eleições fraudadas, assassinatos, além
do conhecimento de que eram poucas as chances
de vencerem o conflito — e, mesmo assim, o país
continuou a enviar soldados americanos a campo.
O vazamento das 7 000 páginas a que o jornal teve
acesso — alvo de uma medida judicial do governo,
driblada com a publicação paralela no concorrente
The Washington Post — foi obra do analista mili-
tar Daniel Ellsberg. Alcunhado de “o homem
mais perigoso dos Estados Unidos”, ele trabalhava
para a RAND Corporation, instituição que desen-
volve pesquisas para o Departamento de Defesa
americano. Ele passou oito meses, em 1969, co-
piando a papelada. Condenado a 115 anos de pri-
são, teve a pena anulada, depois da revelação de
que o FBI o espionava sem autorização judicial. A
coragem de Ellsberg virou filme, The Post, dirigi-
do por Steven Spielberg. Ele morreu em 16 de ju-
nho, aos 92 anos, de câncer no pâncreas.

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O “CASO NÚMERO 1” DE AUTISMO

DIVULGAÇÃO

PIONEIRO Triplett: diagnosticado


com o transtorno aos 5 anos de idade

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“Ele nunca demonstra alegria quando vê o pai ou a


mãe. Parece fechado em sua concha e vive dentro de
si.” Foi dessa forma que, em 1938, Beamon Triplett,
advogado na pequena cidade de Forest, no Mississi-
ppi, descreveu seu filho, Donald, então com 5 anos, a
um dos psiquiatras infantis mais respeitados nos Es-
tados Unidos daquele período, o austríaco Leo Kan-
ner (1894-1981), do Hospital Johns Hopkins. Em uma
longa carta datilografada — eram 22 páginas —, Tri-
plett relatava seu drama e o de sua mulher, Mary,
com o garotinho, que nunca havia correspondido a
um sorriso do casal que o tinha colocado no mundo
— como se ele não pertencesse ao mesmo mundo dos
pais. “Donald raramente vem quando o chamam,
tem de ser pego e carregado ou levado aonde deve ir
(…) parece estar sempre pensando, pensando e pen-
sando”... dizia Triplett. Os pais do menino buscavam
de Kanner uma resposta para o comportamento do
filho. Pensaram em esquizofrenia. Não era. Timidez
exagerada. Também não era. Cinco anos depois da
conversa inicial com os Triplett, e de acompanhar
outras dez crianças com comportamento semelhan-
te, o médico austríaco deu um salto histórico ao de-
nominar o que o garotinho Donald tinha de “distúr-
bio autista de contato afetivo”. Donald Triplett virou,
assim, o “caso número 1” do transtorno autista. Ele
morreu em 15 de junho, aos 89 anos, de câncer. ƒ

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FERNANDO SCHÜLER

NOSSO BOM LEVIATÃ


O BRASIL deu um cavalo de pau, em termos de visão de Es-
tado, nos tempos recentes. De uma regra fiscal simples e dura,
criada em 2016, vamos a uma regra fiscal complicada e ex-
pansionista. Do foco nas privatizações, fomos para o lado
oposto. De uma lei rígida de compliance nas estatais, volta-
mos à compliance quase nenhum. Não se trata, como costu-
mo dizer, do certo e do errado, mas da democracia e suas es-
colhas. E de uma tensão que vem de longe. Ela surge na tran-
sição, passa pelos processos de modernização, nos anos 1990,
atravessa o longo período Lula-Dilma, e tem nova inflexão
com o processo de impeachment. De um lado, a visão tradi-
cional do Estado “indutor”, ou “protagonista”, como escutei
de um animado interlocutor, na outra semana; de outro, uma
visão mais próxima ao Estado “regulador”. A disputa em tor-
no do marco do saneamento talvez seja a melhor expressão
recente disso tudo.
O livro Power and Progress, lançado ainda agora por Da-
ron Acemoglu e Simon Johnson, pode nos ajudar neste de-
bate. O livro faz uma crítica do laissez-faire e ao que os auto-
res chamam de “techno otimismo” atual. A ideia de que o
avanço tecnológico e o livre mercado nos levarão automati-
camente à prosperidade. O argumento da dupla diz que isso

1|6
CLUBE DE REVISTAS

só acontecerá se houver “escolhas políticas” na direção cer-


ta. Isso pode significar coisas um tanto vagas, como “dar
poder aos trabalhadores” (a própria tecnologia, como o Cha-
tGPT, não faz exatamente isso?), ou criar tecnologias capa-
zes de gerar “novas ocupações para as pessoas”, em vez da
simples automação. Inovações que mantenham empregos
nos Estados Unidos, por exemplo, em vez de buscar mão de
obra mais em conta em Bangalore ou Bangladesh. Coisas
que efetivamente gerem prosperidade, e não bobagens como
máquinas de autoatendimento nos supermercados, cujo úni-
co efeito, segundo os autores, é destruir preciosos empregos
a troco de ninharia.
Deirdre McCloskey, a impagável economista liberal, não
deixou barato. “Acemoglu e Johnson acham que a tecnologia
é um pacote de balas sortidas”, diz ela, e que cabe ao Estado
“selecionar as melhores guloseimas do pacote”. A partir daí,
o céu é o limite. Caberá ao governo incentivar os setores da
economia capazes com maior “impacto social”, ajustar a edu-
cação para ensinar as habilidades “corretas” e “reduzir as de-
sigualdades” que sempre vêm com a inovação tecnológica. É
o “novo Leviatã”, diz McCloskey. Os políticos e burocratas
seriam mais capazes de tomar decisões do que o mercado, is-
to é, de “eu e você tomando milhões de decisões, todos os
dias”. Como eles saberão disso? Pergunta ela, e responde rá-
pido: “Um sagrado mistério”.
Acemoglu e Johnson teriam sido bem menos otimistas
com sua crença nas “escolhas políticas” se observassem o

2|6
CLUBE DE REVISTAS

GULOSO O monstro do Estado regulador é uma ameaça:


precisamos vigiá-lo permanentemente

caso brasileiro. Nosso Leviatã, em primeiro lugar, é bastante


guloso. Captura 34% da renda nacional, a maior carga tri-
butária do continente. Desde a época da Constituinte, nossa
despesa primária foi de 12% a 19% do PIB, tendo permane-
cida estagnada nossa produtividade, com honrosa exceção
do agronegócio. Nesse período, nosso Leviatã tropical pro-
duziu coisas impressionantes. Uma delas é o Judiciário pro-
HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

3|6
CLUBE DE REVISTAS

“Prefiro um Estado
contido, atento em garantir
regras estáveis”
porcionalmente mais caro do Ocidente, segundo os pesqui-
sadores Luciano Ros e Matthew Taylor, ao custo de 1,3% do
PIB. No Congresso, cada parlamentar custa 528 vezes a ren-
da média do país. Custo alto, resultados pífios. No Pisa, da
OCDE, nossos alunos tiram o 70º lugar em matemática, en-
tre 79 países, levando a uma situação em que praticamente
todos que podem, na hora de matricular os filhos, tentam se
livrar das “escolhas do Leviatã”.
Nas escolhas econômicas, há coisas curiosas. Ainda nesta
semana escutava o vice-presidente Alckmin chamando de
“espetacular” o subsídio à indústria automobilística na com-
pra de carros até 120 000 reais. No primeiro fim de semana,
dizia ele, foram 320 milhões de reais. Um verdadeiro “feirão
do Leviatã”. Para dar uma de chato, fui olhar os números. Cer-
ca de 90% dos brasileiros, segundo o IBGE, ganham abaixo
dos 3 500 reais por mês, sendo pífia a chance de comprar
um carro de 70, 80 ou 120 000 reais. Então é o seguinte: nos-
so bom Leviatã, em um fim de semana, tomou do contribuin-
te um valor correspondente a 533 000 “bolsas-família” e deu
de presente para os 10% de brasileiros com maior renda. Va-

4|6
CLUBE DE REVISTAS

lor que daria para fazer com que todos os moradores de rua
de São Paulo e arredores deixassem os viadutos e recebessem
uma nova chance. Não satisfeito, nosso Leviatã resolveu pas-
sar a mão em pouco mais de 1 bilhão de reais ao ano, do con-
tribuinte, para melhorar o Ebitda de nossas empresas aéreas.
O ato foi seguido de um incrível anúncio oficial dizendo “Po-
dem fazer as malas!”, e talvez só um “sagrado mistério”, como
bem disse McCloskey, explicaria as razões de tamanha gene-
rosidade. Tudo três anos depois que o próprio Leviatã havia
decidido, na PEC Emergencial, reduzir os incentivos fiscais,
hoje na casa dos 4,3% do PIB, para no máximo 2%, em oito
anos, assunto sobre o qual nunca mais se ouviu falar.
O curioso é que ainda agora foi publicado um ótimo estu-
do técnico do Tribunal de Contas da União sobre os incenti-
vos à indústria automobilística, desde o fim dos anos 90, ao
custo de 5 bilhões de reais por ano, no período recente, e cujo
resultado é basicamente nulo do ponto de vista do desenvol-
vimento regional e aumento da qualidade de vida nas regiões
contempladas. Com o requinte de uma montadora que recebe
34 400 reais ao mês, por emprego, em incentivos federais,
mostrando que nosso bom Leviatã, além de generoso, não
gosta de fazer contas e tende a esquecer rapidamente seus
próprios enganos.
A referência aos moradores de rua, logo acima, pode ter
soado um pouco sentimental. Na verdade, não é. Ela toca em
um aspecto que por vezes é esquecido sobre as decisões to-
madas no mundo real da política. Cidadãos que moram em-

5|6
CLUBE DE REVISTAS

baixo da ponte não vão à Brasília, não pagam jantares nem


financiam campanhas. E é basicamente por isso que conti-
nuam lá, distantes das “escolhas da sociedade”. Ao contrário
do que acontece com montadoras de veículos e empresas aé-
reas. De minha parte, na contramão de um Leviatã solto es-
colhendo guloseimas, prefiro um Estado devidamente conti-
do, atento em garantir regras estáveis para que as pessoas,
elas mesmas, façam suas escolhas. Acemoglu e Johnson
mencionam o panóptico de Bentham. A máquina infernal
em que alguém observava e vigiava a todos, sem ser observa-
do por ninguém. Eis a equação a ser invertida. É o Leviatã,
no alto da torre, que deve ser devidamente vigiado. Lembra-
do, dia após dia, de que sua primeira função é garantir regras
estáveis para que as pessoas, e não ele, se dediquem à “busca
da felicidade”, como li em algum lugar. É a inversão difícil,
por vezes sem graça. E republicana. E, precisamente por isso,
aquela na qual vale insistir. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
CLUBE DE REVISTAS
SOBEDESCE

SOBE
MAIS MÉDICOS
Com novidades, como o adicional
a quem atuar em área vulnerável,
o Congresso aprovou a volta do
programa criado por Dilma em
2013 e extinto por Jair Bolsonaro.

CRISTIANO RONALDO
O craque de 38 anos, que fez o gol
da vitória de Portugal sobre a Islândia
nas eliminatórias da Eurocopa,
cravou uma nova marca no Guinness
Book: tornou-se o primeiro da história
a fazer 200 jogos por uma seleção.

CENTRAL DE LIMA
O restaurante peruano foi eleito
o melhor do mundo em 2023 na
21ª edição do The World’s 50
Best Restaurants, considerado
o “Oscar da gastronomia global”.

1|2
CLUBE DE REVISTAS

DESCE
IMC
Além de recomendar a
aposentadoria desse índice para
indicar peso saudável, a Associação
Médica Americana chamou-o de
racista, pois foi baseado na
população branca.

SELEÇÃO BRASILEIRA
Em meio à espera para que Carlo
Ancelotti assuma o time, o escrete
perdeu do Senegal por 4 a 2. Foi a pior
derrota desde os 7 a 1 da Alemanha.

HUNTER BIDEN
O filho do presidente dos Estados
Unidos, Joe Biden, fez um acordo
com a Justiça e se declarou
culpado de porte ilegal de armas e
sonegação fiscal.

2|2
CLUBE DE REVISTAS
VEJA ESSA
ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/AFP

“Deus salve a rainha.”


JOE BIDEN, presidente dos Estados Unidos, ao finalizar um
discurso. A frase “God Save the Queen”, popular entre os
britânicos, constava no hino do Reino Unido durante os
sessenta anos de reinado de Elizabeth II. Como o título e os
trechos das canções são adaptados conforme o gênero do
monarca, o correto agora é dizer “God Save the King”

1|4
CLUBE DE REVISTAS

“Não sei se ela está com a consciência


tranquila, se dorme bem à noite.
Mas eu a perdoo.”
DANIEL ALVES, ex-jogador de futebol, preso desde janeiro
em Barcelona, em comentário sem pé nem cabeça, ao tentar
condenar a vítima que o acusa de estupro no banheiro de uma
badalada casa noturna da cidade catalã

“Haddad convergiu o governo


para boas práticas econômicas.”
HENRIQUE MEIRELLES, presidente do Banco Central nos
dois primeiros mandatos do presidente Lula

“A autoridade monetária pode ser


criticada, mas o que me preocupa nas
falas do Lula é a fulanização
do processo e as ameaças à
independência da instituição.”
GUSTAVO LOYOLA, ex-presidente do Banco Central,
a respeito das críticas a Roberto Campos Neto,
atual chefe da instituição

“Ninguém quer um
algoritmo como chefe.”
MICHAEL SCHRAGE, pesquisador sênior do MIT

2|4
CLUBE DE REVISTAS

“Serei sempre fiel


às minhas ideias.”
NOVAK DJOKOVIC, o maior campeão da história do tênis,
vencedor de 23 torneios do Grand Slam, ao reafirmar sua tola
postura contra a vacinação para combater a Covid-19

“Chega, pelo amor de Deus.”


OLGA SCOLARI, mulher de Luiz Felipe Scolari, de 74 anos, ao
saber que ele treinará o Atlético-MG

“Sou preta, sou gorda, sou bissexual, estou


tratando de um câncer e vou vencer. Estou
solteira, e sou filha do imortal Gilberto Gil.”
PRETA GIL, em seu retorno aos palcos no show com o pai e
os irmãos, Nós, a Gente

“Não adianta rejuvenescer


para os outros e me achar
um velho ridículo.”
SIDNEY MAGAL, cantor de 73 anos, ao descartar
procedimentos estéticos

“Fiz pousar um avião


em Barcelona só para dar
um beijo em Gerard.”
SHAKIRA, cantora colombiana, ex-mulher do ex-jogador de
futebol Gerard Piqué. Ela está sendo processada por fraude
fiscal na Espanha e precisa provar que, até 2015, não viveu em
Barcelona — e o vaivém em aeroportos seria um dos
argumentos em sua defesa

3|4
CLUBE DE REVISTAS
INSTAGRAM @AREALSPILLER

“No passado, era comum os diretores de


TV fazerem brincadeiras desnecessárias
e se aproveitarem de suas posições de
poder. Eu, graças a Deus, não passei por
isso, mas fiquei sabendo de inúmeras
histórias de amigas.”
LETICIA SPILLER, atriz

4|4
CLUBE DE REVISTAS
RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Nicholas Shores e Ramiro Brites

O cerco se fecha claro Moraes, investiga se


Alexandre de Moraes dinheiro público sacado
acolheu recentemente um por Cid no cartão corpora-
pedido da Polícia Federal tivo bancou ilegalmente
e avocou para ele uma no- despesas de Michelle, com
va investigação do MPF anuência de Bolsonaro.
sobre o “caixa paralelo”
operado por Mauro Cid no Acusação de peculato
Planalto de Jair Bolsona- A investigação havia sido so-
ro. O STF, como deixou licitada pelo procurador Fre-

CAIXA PARALELO Moraes: investigação sobre gastos


de Michelle vai ao STF

NELSON JR./SCO/STF

1|6
CLUBE DE REVISTAS

derico Paiva, que considera- diz a Moraes ter provas que


va a existência de indícios de ligam Cid e Gabriela, sua
crime de peculato no uso de mulher, ao 8 de Janeiro e
dinheiro vivo pelo primeiro- avisa que há “grande quanti-
casal da República. dade” de dados de Cid ainda
em perícia.
Deixa comigo
Moraes decidiu assumir a Fim de linha
investigação do caso por já Para a alta cúpula do Exérci-
constar no STF a apuração to, Cid é um caso “sem salva-
que quebrou os sigilos do ção”. “A carreira dele no Exér-
ex-ajudante de ordens de cito já era”, diz um militar.
Bolsonaro, hoje preso por
diferentes crimes e investi- Eles vão pagar
gado por tramar um golpe A interlocutores, o coman-
de Estado. dante do Exército, Tomás
Paiva, tem dito que vai pro-
Esse eu quero ver curar Moraes, no STF, antes
Lindôra Araújo pediu a Mo- de adotar medidas contra os
raes para acompanhar pes- militares citados no plano
soalmente, por videoconfe- de golpe de Estado.
rência, o depoimento de Cid
sobre o roteiro golpista no ce- Toma que o filho é teu
lular dele. Fez isso só com ele. Bolsonaro deu sinais, a alia-
dos, de que deixará Cid na
Vem mais por aí chuva. “Se houve preparação,
Num relatório sigiloso, a PF foi por conta e risco dele”, diz.

2|6
CLUBE DE REVISTAS

Tem que ter estômago


Com tantas reuniões para re-
solver problemas na Justiça,
Bolsonaro inaugurou recen-

PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO


temente um novo cardápio
no PL: miojo com sardinha.

Modelito supremo ENROLADO Do Val: PF acha


O STF já encomendou as provas comprometedoras no
togas de Cristiano Zanin e celular dele
do futuro ministro que será
escolhido por Lula para o sar que Bolsonaro havia
lugar de Rosa Weber. Cus- chegado à Casa. Davi per-
to: 30 000 reais. guntou: “Será que vai na
CCJ?”. Bolsonaro não foi.
Palavras e palavrões
Hamilton Mourão elogia, a Nada de badalação
seu modo, o agora ministro Depois da sabatina e da apro-
Zanin Martins: “Se eu esti- vação, Zanin, exausto, não
vesse na m*rda, ia querer quis saber de festa. Foi direto
ele como meu advogado”. para o hotel com a mulher.

Ufa! Mapa da mina


Zanin levou um susto antes Espécie de Daniel Silveira
da sabatina. Sentado à mesa do Senado, Marcos do Val
com Davi Alcolumbre, ou- pediu licença, nesta sema-
viu a polícia do Senado avi- na, do mandato. Para inves-

3|6
CLUBE DE REVISTAS

tigadores, a piora na saúde ministros um novo nome


do senador está diretamen- para evitar que o velho PAC
te ligada ao vasto — e com- seja batizado de... “PAC 3”.
prometedor — material en-
contrado no celular dele. Alívio antes da degola
Há de tudo no aparelho. Prestes a ser demitida, Da-
niela Carneiro, a ministra
Ato desesperado do Turismo, passará a pró-
Emissários de Bolsonaro xima semana em Portugal.
procuraram Michel Temer
recentemente. Dizendo fa- Caravana oficial
lar em nome do ex-presi- Lula destacou três minis-
dente, pediram a Temer que tros (Flávio Dino, Jorge
ajudasse a conversar com Messias e Vinícius de Car-
ministros do TSE para evi- valho) do governo para par-
tar a inelegibilidade do ca- ticiparem do evento de Gil-
pitão. Temer, que é próximo mar Mendes em Lisboa.
de Moraes, rejeitou partici-
par de qualquer tipo de arti- Novos rumos
culação para influenciar mi- Randolfe Rodrigues jantou
nistros da Corte. nesta semana com Eduardo
Braga e Renan Calheiros.
Deserto de ideias Estuda filiar-se ao MDB.
Na reunião ministerial da
semana passada, Lula ape- Essa guerra não é minha
lou, uma última vez, por O Itamaraty vetou a venda
criatividade e pediu a seus de 450 blindados Guarani à

4|6
CLUBE DE REVISTAS

Ucrânia. Eles seriam usados do. A magistrada deixou o


em missões humanitárias. caso depois do flagrante.

Presente bilionário Dever de casa


Fernando Haddad avalizou Quatro meses após o resgate
nesta semana um presentão de trabalhadores na Serra
ao governo de Alagoas: um Gaúcha, a Salton investiu 1,5
empréstimo de 1 bilhão de milhão de reais em complian-
reais ao governo alagoano. ce. Em março, a empresa teve
queda de 7% nas vendas.
Fui!
Novamente na mira do go- Equipe própria
verno por não reduzir os ju- Na próxima safra, a Salton
ros, Roberto Campos Neto, vai hospedar por conta pró-
do BC, viajou na quinta pa- pria, na vinícola, os trabalha-
ra a Suíça e só retornará ao dores da colheita. “Não va-
país na terça. mos mais ter terceirizados”,
garante Maurício Salton.
Ligações umbilicais
Um julgamento da bilioná- Histórias do front
ria massa falida do usineiro A Matrix Editora lança, em
João Lyra, em Alagoas, teve agosto, o livro Penúltimas
um fato constrangedor. No Memórias, do economista
meio da sessão, o celular da Roberto Giannetti da Fonse-
relatora tocou e anunciou a ca, falando sobre suas expe-
todos que era o advogado riências em vinte anos da po-
de uma das partes chaman- lítica e da economia. Na obra,

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CLUBE DE REVISTAS

DIVULGAÇÃO

MUDANÇA Karina: ela quer ajudar mulheres a terem


uma “jornada cristã”

ele relata, entre outros fatos, largou a carreira de atriz e


passagens com FHC, o vene- os ensaios sensuais para se
zuelano Hugo Chávez e o di- converter à igreja. Agora,
tador cubano Fidel Castro. lança, pela Editora Vida, o
livro Mais Forte e Corajosa,
Questão de fé no qual convida mulheres a
Figura frequente em capas aprender mais sobre o “res-
de revistas, Karina Bacchi peito de Deus”. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
BRASIL PODER

À BEIRA DO CADAFALSO
A inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro é dada como
certa. Se confirmada, tal decisão marcará uma inflexão nos
parâmetros do Tribunal Superior Eleitoral e provocará uma
completa e imprevisível reviravolta no cenário político
LARYSSA BORGES

A CONTA CHEGOU Bolsonaro: abuso de poder


e tentativa de desacreditar processo de votação

SERGIO DUTTI

CAPA: FOTO DE MATEUS BONOMI/AGIF/AFP

1 | 14
CLUBE DE REVISTAS

N
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) existe uma ju-
risprudência informal segundo a qual não é papel
do Judiciário retirar do cargo políticos eleitos para o
posto de presidente da República. O histórico da
Corte está recheado de cassações de prefeitos, depu-
tados e governadores de menor expressão, mas por diferen-
tes razões, inclusive pelo receio de incendiar o país, a Justiça
sempre relevou abusos cometidos por mandatários em suas
campanhas eleitorais. No episódio mais emblemático, o TSE
descartou em 2017 uma avalanche de provas e confissões fei-
tas no âmbito da Operação Lava-Jato contra a chapa de Dil-
ma Rousseff e Michel Temer e livrou a dupla da inelegibilida-
de. Se Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito, muito provavel-
mente cada uma das dezesseis ações que apontam ilegalida-
des cometidas pelo capitão teria o mesmo desfecho. Mas ele
foi derrotado, deixando um passivo de quatro anos de con-
fronto com o Judiciário e a suspeita de que por trás dos inú-
meros ataques desferidos contra o sistema de votação estaria
uma maquinação golpista. O ex-presidente, por conta disso,
corre sério risco de ter os direitos políticos suspensos.
O acerto de contas com a Justiça começou na última quin-
ta-feira, 22, no plenário do TSE, onde Bolsonaro está sendo
julgado por crime eleitoral, mas o arcabouço capaz de bani-
-lo por um longo tempo das urnas teve início muito antes,
quando ele já se insurgia, sem evidência alguma, contra su-
postas fraudes nas eleições presidenciais de 2018. Em razão
desses ataques, há no tribunal um consenso entre a maioria

2 | 14
CLUBE DE REVISTAS

JULGAMENTO HISTÓRICO
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que vai definir o
destino político de Jair Bolsonaro, é composto de três
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), dois
ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois
advogados indicados pelo presidente
da República

FLORIANO DE AZEVEDO BENEDITO GONÇALVES


Ex-diretor da Faculdade de O corregedor acatou entre
Direito da USP, tornou-se as provas contra a chapa do
titular do TSE após apoio do ex-presidente documentos
ministro Alexandre de como uma minuta que previa
Moraes, de quem é próximo. uma suposta intervenção no
Integrante da cota de TSE em caso de derrota de
advogados no tribunal, foi Bolsonaro nas eleições.
crítico de acordos de Foi indicado por Lula ao
leniência na Lava-Jato. Sua STJ e é alvo de insinuações
nomeação sedimentou uma de bolsonaristas de que
composição mais refratária estaria alinhado ao PT
ao ex-presidente

RUY BARON

3 | 14
CLUBE DE REVISTAS

dos ministros: a presença do capitão em futuras disputas elei-


torais representa uma ameaça à democracia. Como não fal-
tam provas de que ele usou o cargo para tentar desqualificar
o processo eleitoral, a tendência é que seja condenado e, em
consequência, fique impedido de participar de eleições pelos
próximos oito anos. O resultado do julgamento deve ser
anunciado apenas na próxima semana, mas nem os aliados

CÁRMEN LÚCIA ALEXANDRE DE MORAES


Ocupante do STF desde Indicado ao STF por Michel
2006, quando foi indicada Temer, o ministro é tido
por Lula, a magistrada é a como o principal antagonista
atual vice-presidente do de Bolsonaro no Judiciário.
TSE. Alvo de ataques Conduz inquéritos que
misóginos por apoiadores miram simpatizantes do
do ex-presidente, foi ex-presidente e foi
relatora do inquérito que responsável pela ofensiva
apura a presença de da Justiça contra ataques
pastores lobistas no ao sistema eletrônico
Ministério da Educação no de votação e contra a
governo Bolsonaro propagação de fake news

4 | 14
CLUBE DE REVISTAS

mais próximos do ex-presidente alimentam esperanças de


um veredito que não seja a condenação. Não é exagero afir-
mar que ele próprio ajudou a construir seu cadafalso.
Bolsonaro sempre colocou em dúvida a confiabilidade
das urnas eletrônicas, o que desde sempre foi interpretado
como a semente de um discurso visando a desacreditar todo
o processo eleitoral. Apenas em 2021, ele questionou a inte-

KASSIO NUNES MARQUES RAUL ARAÚJO


Primeira escolha de Integrante do STJ desde
Bolsonaro para o STF, 2010, quando foi indicado
o ministro derrubou por Lula, proferiu decisões
temporariamente a cassação favoráveis a Bolsonaro,
de um deputado, tema como a que vetou uma
apontado como precedente investigação nas finanças
para a cassação de políticos do PL para apurar o custeio
por fake news, e é aposta das manifestações de Sete
de bolsonaristas para de Setembro e a que
interromper o julgamento que impediu artistas de
pode decretar a inelegibilidade declararem voto no petista
do ex-presidente em um festival de música

5 | 14
CLUBE DE REVISTAS

gridade do sistema de votação pelo menos 23 vezes. “Con-


cluímos que só nos restava o enfrentamento”, lembra um mi-
nistro do TSE. Na época, já preocupado com o nível das críti-
cas, o presidente do tribunal, ministro Alexandre de Moraes,
se reuniu com os colegas Luís Roberto Barroso e Edson Fa-
chin, do Supremo Tribunal Federal, e Luis Felipe Salomão,
do Superior Tribunal de Justiça (STJ), para discutir uma es-

ANDRÉ TAVARES
Indicado por Bolsonaro ao
posto de ministro substituto
do TSE, foi recentemente
alçado à condição de titular
também com o apoio de
Moraes. Ex-presidente da
Comissão de Ética Pública na
gestão bolsonarista, foi autor
de um parecer em que defendia
a derrubada da inelegibilidade
de Lula, na época condenado
na Lava-Jato

6 | 14
CLUBE DE REVISTAS

tratégia de reação. Decidiram que, naquele momento, um in-


quérito administrativo era a melhor forma de proteger a Cor-
te contra os ataques. “Foi a partir desse procedimento que
começamos a enfrentar os abusos e violações à lei eleitoral,
produzindo provas que acabaram por se tornar elementos
importantes para o julgamento da inelegibilidade do ex-pre-
sidente”, conta o ministro Salomão a VEJA.
Na sequência, o tribunal fixou outros dois entendimentos
claramente contrários a Jair Bolsonaro que, somados à in-
vestigação, revelaram a disposição dos integrantes da Corte.
Com o endosso da dupla Alexandre-Salomão, o TSE conso-
lidou a tese de que divulgar fake news contra o processo
eleitoral poderia resultar em cassação e que espalhar desin-
formação e inverdades usando disparos em massa de men-
sagens também poderia configurar abuso de poder. No jul-
gamento que começou na quinta-feira, o tribunal está anali-
sando justamente se Jair Bolsonaro cometeu abuso de poder
e usou indevidamente os meios de comunicação por ter con-
vocado mais de setenta representantes diplomáticos para,
em pleno Palácio da Alvorada e com transmissão da TV es-
tatal, expor teorias conspiratórias sobre imaginárias vulne-
rabilidades das urnas. A teoria jurídica se uniu à prática.
“No passado, quando o TSE analisava temas de abuso de
autoridade, na maioria das vezes examinava sobre a ótica de
algum ilícito eleitoral com o propósito de influenciar a von-
tade do eleitor na hora do voto. Neste processo, o que se afir-
ma é a existência de um ilícito que visa primordialmente a

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CLUBE DE REVISTAS
CLAUBER CLEBER CAETANO/PR

O CRIME Reunião com embaixadores:


pregação oficial contra as urnas

atacar o sistema eleitoral com o propósito de retirar a legiti-


midade das eleições”, explica o ex-ministro Henrique Neves.
Para reforçar o conjunto de provas contra o ex-presiden-
te, o TSE também decidiu levar em conta fatos que indicam
que Bolsonaro endossou a escalada da violência política du-
rante as eleições e pavimentou o caminho para que um re-
sultado eleitoral desfavorável a ele não fosse acatado. Por or-
dem do corregedor-geral eleitoral, ministro Benedito Gon-
çalves, a minuta de uma intervenção golpista encontrada
por policiais na casa do ex-ministro da Justiça Anderson
Torres foi incluída no processo, tornando-se mais um forte
indício de que o capitão planejou atentar contra as eleições.
Os atos de depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de

8 | 14
CLUBE DE REVISTAS

janeiro, também devem ser considerados pelos juízes na ho-


ra de emitir seus votos. Até mesmo os planos golpistas en-
contrados no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro
— revelados na última edição de VEJA — podem de alguma
maneira influenciar a decisão (veja a matéria).
O julgamento começou com a leitura do relatório do mi-
nistro Benedito Gonçalves, que fez um resumo do processo e
classificou como “arco narrativo alarmista” as falas de Bol-
sonaro sobre fragilidades e fraudes no processo eleitoral. Na
sequência, o advogado Walber Agra, que representa o PDT,
autor da ação, afirmou que o ex-presidente, ao espraiar inver-
dades sobre as eleições, tinha “obsessão golpista” e tentava
transformar o país “num pária internacional”. O vice-

POTENCIAIS HERDEIROS
Pelo menos quatro políticos são cotados para
representar a direita na próxima eleição presidencial
caso o TSE decrete a inelegibilidade de Bolsonaro

TARCÍSIO DE FREITAS
Eleito governador de
São Paulo pelas mãos do ex-presidente,
é o favorito para representar Bolsonaro
e uma coligação de partidos de
centro-direita, alguns deles — como Republicanos, MDB e
PSD — já aliados numa experiência embrionária num bloco
parlamentar na Câmara dos Deputados

9 | 14
CLUBE DE REVISTAS

procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, disse que o processo


reuniu evidências mais do que suficientes que justificam o
seu afastamento. Em nome da defesa de Bolsonaro, o advo-
gado e ex-ministro do TSE Tarcísio Vieira de Carvalho foi o
último a se manifestar na sessão de quinta. Ele argumentou
que, no limite, ao capitão deveria ser imposta a pena de mul-
ta, mas não a suspensão dos direitos políticos por oito anos, e
rechaçou a hipótese de o TSE usar o episódio dos embaixa-
dores para promover o julgamento do bolsonarismo. Os mi-
nistros começarão a votar a inelegibilidade na terça-feira 27.
A nova composição do TSE é tida como mais um fator
adverso ao ex-presidente (veja o quadro). A recente dança
de cadeiras no tribunal com a escolha, em maio, de dois no-
vos ministros reforçou ainda mais a convicção entre conse-
lheiros de Bolsonaro de que a inelegibilidade é uma hipótese
mais do que provável. Deixaram a Corte os advogados Car-
los Horbach, tido como mais alinhado ao bolsonarismo, e
Sérgio Banhos. Antes da mudança, desenhava-se um placar

ROMEU ZEMA
Em seu segundo mandato à frente do
governo de Minas Gerais, já admitiu
publicamente o desejo de disputar a
Presidência da República e, com menos
ascendência sobre políticos de centro, aposta no discurso
antipetista. Uma de suas fragilidades é a falta de articulação
com outras legendas

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CLUBE DE REVISTAS

apertado. Com a ascensão dos advogados Floriano de Aze-


vedo Marques e André Ramos Tavares, nomeados por Lula
com o aval de Alexandre de Moraes, o escore contra o capi-
tão tende a ser mais elástico. Ciente de que a situação lhe é
amplamente desfavorável, a defesa do ex-mandatário quer
ganhar tempo e aposta que uma mudança de ares no futuro
possa reverter o iminente banimento das urnas. “No estado
de direito os fins não justificam os meios. O que está em jogo
não é o bolsonarismo nem o embate entre a civilização e a
barbárie, como se deixa transparecer, mas uma simples, sin-
gela e franciscana reunião com os embaixadores em julho
de 2022, muito antes do período eleitoral e sem a gravidade
necessária para sustentar uma condenação dessa natureza”,
disse a VEJA o advogado Tarcísio Vieira de Carvalho.
Se for derrotado no TSE, Jair Bolsonaro pretende bater
às portas ao STF e torcer para que seu recurso seja analisa-
do num momento político diferente e, lógico, mais favorável
a ele. Os advogados do ex-presidente acreditam que, se for

EDUARDO LEITE
Depois de fracassar na tentativa de se
viabilizar na eleição presidencial de 2022,
foi reeleito governador do Rio Grande do
Sul e assumiu o comando do PSDB com a
missão de fortalecer o partido e preparar a sua própria
candidatura ao Palácio do Planalto, a partir de um
discurso moderado

11 | 14
CLUBE DE REVISTAS

mesmo declarado inelegível, ele possa se beneficiar no futu-


ro de uma reviravolta jurídica como a que anulou as conde-
nações de Lula na Lava-Jato — uma aposta no imponderá-
vel, talvez a única esperança que ainda lhe resta. Recente-
mente, em uma conversa, Bolsonaro foi perguntado sobre o
quanto ele avaliava a possibilidade de ficar inelegível. “Mais
de 50%”, respondeu. “Mais se isso acontecer, vai ser um
abuso”, ressaltou. O fato é que, apesar das declarações em
público, reservadamente nem os aliados mais otimistas do
capitão vislumbram alguma chance de absolvição. “O TSE
estará errando se condenar o Bolsonaro, se deixar o Bolso-
naro inelegível. Nenhuma justificativa tem para exageros no
Poder Judiciário”, disse o presidente do PL, Valdemar Costa
Neto, legenda à qual o ex-presidente é filiado.
Com as câmeras desligadas, o próprio Valdemar já traça
cenários para o futuro sem Bolsonaro como candidato. Fei-
tas algumas contas, a inelegibilidade nem é necessariamen-
te um mau negócio para o PL. Alguns dirigentes do partido

RATINHO JUNIOR
O governador do Paraná é menos
conhecido nacionalmente do que
os demais, o que pode lhe servir de trunfo,
permitindo que se apresente como uma
novidade, um quadro mais preocupado com a gestão
da máquina pública do que com as disputas típicas
da política tradicional

12 | 14
CLUBE DE REVISTAS
ALAN RIOS/METRÓPOLES

FUTURO O PL, partido do ex-presidente, já traça cenários


com Bolsonaro apenas como cabo eleitoral

e de outras legendas de centro alegam que, hoje, o ex-


presidente seria melhor como cabo eleitoral do que como
candidato. Consolidada a condenação, o plano de Valdemar
e companhia é vender a ideia de que Bolsonaro foi vítima de
uma perseguição política, usá-lo para pedir votos e cons-
truir uma candidatura de direita mais moderada e palatável
ao grosso do eleitorado. Em entrevista a VEJA no mês pas-
sado, o próprio ex-presidente falou sobre o eventual apoio a
outro candidato: “Eu quero estar em condições (de dispu-
tar). Seja a Presidência, senador, seja deputado federal. Mas,
se aparecer um bom nome, eu estou pronto para compor,
para conversar. Não estou com essa obsessão de ser presi-
dente não”, disse. A menção a um cargo no Legislativo, aliás,

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CLUBE DE REVISTAS

não é à toa. Nos estertores de seu governo, ele flertou com a


hipótese de aprovar uma emenda constitucional que garan-
tiria a todos os ex-presidentes um mandato vitalício de sena-
dor, com direito a foro privilegiado e blindagem contra in-
vestigações diversas. A proposta perdeu tração, mas conti-
nua a rondar setores do Congresso que, a depender do rumo
dos ventos, podem sacá-la como uma boia de salvação.
No campo da direita, os reflexos imediatos da condena-
ção de Bolsonaro não são tratados necessariamente como
negativos. Pelo contrário. Políticos ouvidos por VEJA desta-
cam que a inelegibilidade vai fazer emergir uma liderança
que agregará tanto os apoiadores do ex-presidente como
também aqueles que no ano passado votaram em Lula ape-
nas porque não gostavam do capitão, reunindo uma maioria
teoricamente imbatível em 2026. Na lista de potenciais her-
deiros do espólio, estão a ex-primeira-dama Michelle Bolso-
naro e pelo menos quatro governadores: Tarcísio de Freitas
(São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais), Ratinho Junior
(Paraná) e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul). Em tese, to-
dos eles estão torcendo para que o ex-presidente seja absol-
vido. Em tese. Se confirmado o impedimento, Bolsonaro, na
melhor das hipóteses, estará apto a disputar novamente uma
eleição presidencial apenas em 2030, quando já terá 75 anos
de idade. O julgamento, portanto, pode decretar o fim da
carreira de um dos personagens mais controversos da histó-
ria republicana e o início de uma nova e totalmente imprevi-
sível fase da política brasileira. ƒ

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CLUBE DE REVISTAS
BRASIL MILITARES

CAÇA AOS GOLPISTAS


Alexandre de Moraes pediu ao comando do Exército a
lista de todas as pessoas que visitaram
o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro na prisão
MARCELA MATTOS E ROBSON BONIN

CAIXA-PRETA Cid: o Supremo restringiu acesso ao


coronel, que está preso e é considerado testemunha-chave

ALAN SANTOS/PR

1|5
CLUBE DE REVISTAS

O TENENTE-CORONEL Mauro Cid é considerado um ar-


quivo dos segredos, conversas privadas e articulações políti-
cas de Jair Bolsonaro, de quem foi ajudante de ordens duran-
te quatro anos no Palácio do Planalto. Em razão da proximi-
dade com o ex-presidente, que diz estimar o militar como um
filho, Mauro Cid se tornou peça central nas investigações
destinadas a descobrir se o país esteve mesmo à beira de uma
ruptura institucional, que seria realizada para impedir a pos-
se de Lula e garantir a permanência de Bolsonaro no poder.
Apesar das evidências, como a pregação contra as urnas ele-
trônicas e os atos antidemocráticos de 8 de janeiro, o capitão
sempre rechaçou qualquer envolvimento dele e de seu entor-
no mais próximo em planos golpistas. Essa tese, no entanto,
está cada vez mais em xeque. Em sua última edição, VEJA
mostrou que uma varredura realizada pela Polícia Federal
num celular de Mauro Cid encontrou documentos, estudos e
até um detalhado roteiro que previa a anulação das eleições,
o afastamento de ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) e a decretação de uma intervenção militar. Tudo com
o objetivo de manter Bolsonaro no comando do país.
A repercussão foi imediata. Ciente de que o caso pode
complicar ainda mais a sua delicada situação jurídica, o ex-
-presidente divulgou uma nota, assinada por seus advoga-
dos, alegando que os achados da PF deixam claro que ele
“jamais participou de qualquer conversa sobre um suposto
golpe de Estado”. De fato, não foram encontradas até agora
conversas de Bolsonaro com Mauro Cid, que, numa troca de

2|5
CLUBE DE REVISTAS
ROBERTO OLIVEIRA/ALESP

CERCO Lorena Cid (à dir.): o general


precisou pedir autorização para ver o filho

mensagens, afirma a um colega militar que o então presi-


dente só não agiu como eles esperavam porque não confiava
no Alto-Comando do Exército. Por enquanto, as evidências
se concentram no ex-ajudante de ordens, que sofreu um no-
vo revés no Supremo Tribunal Federal. Na última segunda-
feira, 19, o ministro Alexandre de Moraes, responsável por
investigações múltiplas sobre Bolsonaro e Mauro Cid no
STF, impôs novas sanções ao tenente-coronel, que está pre-
so desde maio acusado de fraudar cartões de vacinação. Em
sua decisão, Moraes limitou as visitas ao militar, encarcera-
do em uma cela especial dentro de um batalhão do Exército
em Brasília, e determinou que só podem visitá-lo a mulher,
os filhos e o advogado. Todas as outras pessoas terão de pe-
dir uma autorização prévia ao ministro, que passará a con-
trolar o entra e sai do quartel.
Antes, as normas sobre visitas eram estabelecidas pelo
próprio Exército e previam que cabia ao comandante do ba-

3|5
CLUBE DE REVISTAS

talhão liberar a entrada. A mudança chamou atenção pelo


fato de que até os pais de Cid, que o visitam com frequência,
seriam obrigados a pedir autorização de Moraes para se en-
contrarem com o filho. A medida movimentou a Alta Cúpula
do Exército, que negociou com Moraes e conseguiu a libera-
ção de visitas para a mãe de Cid e também o pai dele, o gene-
ral Mauro Lorena Cid, que foi colega de Bolsonaro na Acade-
mia Militar das Agulhas Negras na década de 1970. Dias an-
tes de tomar sua decisão, Moraes pediu a lista de todos os vi-
sitantes. Com as informações em mãos, o ministro decidiu
alterar o formato por considerar que havia uma “excessiva
quantidade” de pessoas se encontrando com o tenente-coro-
nel. Foram pelo menos setenta visitantes desde a prisão de
Mauro Cid. Entre eles, familiares, militares de alta patente,
colegas de turma e pessoas próximas a Jair Bolsonaro, como
o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten e o ex-
vice-presidente e agora senador Hamilton Mourão. O Exérci-
to garante que ninguém entrou sem se identificar.
À exceção da defesa, cujo acesso pode ser diário, as visitas
a Cid são permitidas ao longo de três dias da semana, terças,
quintas e domingos, das 13h às 17h. A rotina do militar ainda
compreende um banho de sol de duas horas, período usado
para musculação e corrida, e encontros com um psicólogo e
um líder evangélico todas as quartas-feiras. A cela tem 20
metros quadrados e abriga cama, frigobar, televisão, armário,
mesa e banheiro. É lá que ele faz as quatro refeições diárias.
Pessoas que visitaram Cid afirmam que ele está constante-

4|5
CLUBE DE REVISTAS

mente usando farda e não deu sinais de que pretende delatar


ou incriminar o antigo chefe. Enquanto torce para que a situa-
ção do ex-presidente se complique ainda mais, o governo Lula
age para punir militares envolvidos em aspirações golpistas e,
ao mesmo tempo, evitar uma crise com as Forças Armadas.
No dia seguinte às revelações de VEJA, o ministro da De-
fesa, José Múcio, e o comandante do Exército, general To-
más Paiva, se reuniram com Lula. No encontro, os dois co-
municaram ao presidente que o coronel Jean Lawand Jú-
nior, que suplicou a Cid para convencer Bolsonaro a dar um
golpe de Estado, não assumiria mais uma representação mi-
litar em Washington, nos Estados Unidos, para a qual foi in-
dicado em fevereiro. Eles também convenceram o presiden-
te de que qualquer punição mais severa a militares, como a
expulsão da corporação, dependerá das
apurações em curso no Supremo e terão
de respeitar o devido processo legal.
O petista concordou. Apesar da sede de
vingança, Lula sabe que não vale a
pena bater de frente com a
corporação, que, apesar de
sua postura legalista, não
morre de amores por ele. ƒ

INVESTIGADO Lawand:
coronel que pregava golpe
perdeu posto no exterior

5|5
CLUBE DE REVISTAS
BRASIL SAÚDE

TEMPERATURA
MÁXIMA
Ministério da Justiça responsabiliza ministra da
Saúde por irregularidades, ao mesmo tempo que
políticos pedem o cargo dela em troca de apoio ao
governo HUGO MARQUES E LAÍSA DALL’AGNOL

PRESSÃO Nísia Trindade: o cargo da ministra é alvo da


cobiça de aliados e de pretensos aliados

FÁTIMA MEIRA/FUTURA PRESS

1|9
CLUBE DE REVISTAS

EM 2014, o Ministério da Justiça contratou a Fundação


Oswaldo Cruz (Fiocruz) para fazer uma pesquisa sobre o
uso de drogas no Brasil. Concluído em 2019, já durante o
governo de Jair Bolsonaro, o levantamento ouviu 16 000
pessoas e constatou que 9,9% dos brasileiros na faixa etá-
ria de 12 a 65 anos já haviam experimentado alguma subs-
tância ilícita. O trabalho, porém, foi considerado tecnica-
mente superficial, uma vez que a metodologia utilizada im-
pediria a comparação com resultados anteriores, prejudi-
cando o objetivo final, que era descobrir se o consumo de
drogas no país estaria ou não em escala ascendente. Na
época, houve bate-boca e troca de acusações entre autori-
dades. A confusão acabou resultando em um processo ad-
ministrativo, concluído no fim do ano passado, que deter-
minou que a Fiocruz devolvesse 11 milhões de reais aos
cofres públicos. O caso provavelmente passaria desperce-
bido se não fosse um detalhe: entre as autoridades aponta-
das como responsáveis pelas irregularidades está Nísia
Trindade, atual ministra da Saúde.
Antes de assumir o posto no governo Lula, a ministra
presidiu a Fiocruz. Para a Controladoria-Geral da União
(CGU), que também examinou o contrato e endossou a apu-
ração, a Fundação não entregou o trabalho que havia sido
combinado e não comprovou a aplicação dos recursos que
foram repassados pela União. “Esta inexecução trouxe pre-
juízos para o planejamento da Política de Drogas”, diz o re-
latório, que também responsabiliza Paulo Gadelha, outro

2|9
CLUBE DE REVISTAS

PETER ILICCIEV/FIOCRUZ IMAGENS

PROCESSO Fiocruz: aguardando


posicionamento do Tribunal de Contas

ex-presidente da Fiocruz. “Entendemos que foram esgota-


das as providências administrativas com vistas ao ressarci-
mento do dano ao erário”, conclui o relatório do Ministério
da Justiça. Segundo uma autoridade que acompanhou o pro-
cesso, o governo comunicou aos dois ex-chefes da Fiocruz o
resultado da investigação e enviou no fim do ano passado as
guias de recolhimento dos valores a serem devolvidos, mas
ninguém se manifestou. O caso foi enviado ao Ministério
Público Federal e ao Tribunal de Contas da União — uma
dor de cabeça a mais para a ministra da Saúde.

3|9
CLUBE DE REVISTAS

REPRODUÇÃO

EM CAMPANHA Doutor Luizinho: o deputado


do PP (à dir.) é cotado como o provável substituto

Nos últimas semanas, Nísia Trindade também está no


centro de uma disputa política. Primeira mulher a ocupar
o cargo, a cientista comandou a Fiocruz durante a pande-
mia do coronavírus, período em que teve de lidar com qua-
tro ministros da Saúde e enfrentar o negacionismo do go-
verno Bolsonaro. Saiu-se muito bem. O problema agora é o
pragmatismo do governo Lula. O Ministério da Saúde é
considerado pelos políticos como a joia da coroa. A pasta
tem um orçamento anual de 180 bilhões de reais, recursos
que podem ser aplicados, entre outras coisas, para cons-

4|9
CLUBE DE REVISTAS

truir hospitais, comprar medicamentos e ambulâncias e


equipar unidades de atendimento em todo o Brasil — dos
maiores aos menores municípios. É, portanto, um imenso
ativo eleitoral, já que interfere diretamente na vida das pes-
soas. A inauguração de um posto de saúde numa cidade
pequena, por exemplo, pode ser o diferencial entre a vitó-
ria e a derrota nas eleições do ano que vem.
O Ministério da Saúde também será responsável neste
ano pela liberação de metade de todas as emendas parla-
mentares — recursos do orçamento federal que deputados
e senadores destinam às suas bases eleitorais. São mais de
10 bilhões de reais. Gerir todo esse dinheiro — investimen-
tos e emendas — confere ao chefe da pasta um poder polí-
tico gigantesco. É isso o que o chamado Centrão quer do
governo em troca de apoio no Congresso. Desde o início
do governo, há uma reclamação generalizada sobre a de-
mora do ministério para liberar as verbas. Passada a meta-
de do ano, apenas 3,3 bilhões de reais foram pagos, isso
sem contar que 10% das emendas estão bloqueadas por
“impedimentos técnicos”, como a falta de projetos ou de
documentos ou problemas na indicação do destinatário,
entraves que os interessados classificam como apenas “bu-
rocráticos”. Alguns políticos juram que é má vontade. “Já
tomamos as providências dentro do prazo, atendendo às
demandas dos municípios para regularizar a situação”,
afirma o deputado federal e ex-ministro da Saúde Ricardo
Barros (PP-PR).

5|9
CLUBE DE REVISTAS

ALEJANDRO ZAMBRANA/SESAI MS

CAPILARIDADE Mais Médicos: programas e verbas


bilionárias do ministério fazem a diferença na hora das eleições

Nísia foi escolhida por Lula por sua capacidade técnica e


como contraponto ao governo anterior. Isso, no entanto, é
visto por alguns, inclusive aliados do petista, como um pro-
blema. A suposta falta de traquejo da ministra estaria difi-
cultando a relação do Executivo com o Legislativo, o que
seria absolutamente desnecessário. Lembram que não é in-
comum o ministério ser comandado por políticos, como
Humberto Costa (no primeiro governo Lula), Alexandre
Padilha (com Dilma Rousseff), Ricardo Barros (com Mi-
chel Temer) e Luiz Henrique Mandetta (com Bolsonaro).
“Ela é um nome técnico excelente, mas ser ministro exige
bom trabalho político também. Ela não recebe parlamenta-
res, não está andando com as emendas”, diz reservadamen-
te um deputado petista, que afirma que, por causa disso, os

6|9
CLUBE DE REVISTAS

parlamentares estão enfrentando uma espécie de “crise de


abstinência”. Esse tipo de argumento costuma ser sacado
quando um ministro entra em processo de fritura.
A pressão para tomar o Ministério da Saúde encontra
sustentação no presidente da Câmara, deputado Arthur Li-
ra (PP-AL), que já transmitiu a mensagem diretamente ao
próprio Lula — o presidente, por enquanto, não deu ne-
nhum sinal de que irá ceder. A fricção, assim, vai aumen-
tando. Um alvo secundário da artilharia dos deputados é o
ministro das Relações Institucionais e ex-titular da Saúde,
Alexandre Padilha, um dos responsáveis pela indicação de
Nísia e considerado um forte obstáculo à pretensão de re-
movê-la. Na segunda-feira 19, Padilha disse a jornalistas
que, embora nunca tenha ouvido de Lira qualquer pedido
de substituição na pasta, é normal haver “jogo de pressão”.
Ressaltou, no entanto, que o Ministério da Saúde “não está
na cota de qualquer partido”. Na quinta-feira, Nísia admi-
tiu ser alvo de pressão política e ressaltou que a sua perma-
nência no cargo “é uma prerrogativa do presidente” e que
está “muito tranquila”. Auxiliares do presidente não des-
cartam a hipótese de Lula anunciar uma minirreforma mi-
nisterial tão logo retorne da viagem ao exterior. O pacote
de mudanças, além da Saúde, atingiria outras pastas, como
a do Turismo, ocupada por Daniela Carneiro.
Embora oficialmente Lira nunca tenha pedido a troca
da ministra e Lula nunca tenha pensado em substituí-la,
nos corredores do Congresso já circula até o nome do pro-

7|9
CLUBE DE REVISTAS
VÍCTOR LERENA/EFE

DE SAÍDA Daniela Carneiro: a chefe do Turismo já foi


alertada de que não permanecerá no cargo

vável sucessor de Nísia: o deputado federal Luiz Antônio


Teixeira Junior, o Doutor Luizinho (PP-RJ). Atual secretá-
rio de Saúde do Rio de Janeiro, o parlamentar é médico, te-
ve um papel importante no Congresso durante a pandemia
e é homem de confiança do presidente da Câmara. Recen-
temente, ele apareceu em rede nacional no programa do
PP ao lado do senador Ciro Nogueira (PP-PI). Não foi por
acaso. Os parlamentares do Centrão destacam que o depu-
tado reúne todos os requisitos para assumir o Ministério
da Saúde: tem boa formação técnica, é respeitado no meio

8|9
CLUBE DE REVISTAS

e conhece bem as necessidades políticas dos colegas. Con-


tra ele, apenas um detalhe: na campanha do ano passado,
esteve ao lado de Jair Bolsonaro — mas nada que o prag-
matismo não consiga superar.
Nísia Trindade foi procurada por VEJA para falar sobre
o processo administrativo que pede a devolução de 11 mi-
lhões de reais aos cofres públicos. A ministra preferiu não
se pronunciar. Paulo Gadelha, o outro acusado, não foi lo-
calizado. Em nota, a Fiocruz informou que ainda não foi
notificada “de novas decisões”, que em nenhum momento
procedimentos administrativos ou financeiros relacionados
à pesquisa foram objeto de questionamento pelo financia-
dor e que aguarda o posicionamento do Tribunal de Contas
da União. “Considerando todas as evidências já apresenta-
das, a Fundação acredita que a decisão será favorável à pes-
quisa”, informou a entidade. Embora não seja nada confor-
tável para uma gestora ser apontada como responsável pelo
não cumprimento de um contrato público, esse, ao que pa-
rece, é o menor dos problemas da ministra. ƒ

9|9
CLUBE DE REVISTAS

MURILLO DE ARAGÃO

AS DIFICULDADES DA
REFORMA TRIBUTÁRIA
Não haverá mudanças sem o apoio
de governadores e prefeitos

TODOS SABEM que a reforma tributária é mais do que ne-


cessária. O Brasil hoje tem um sistema complexo que pena-
liza o pobre e a produção. Gastam-se horas intermináveis de
trabalho apenas para pagar impostos. Nossa carga tributá-
ria chega a 34% do PIB. E a contrapartida, como se sabe,
não é das melhores. Apesar disso, os sinais emitidos indi-
cam que não há perspectiva de queda da carga tributária em
relação ao PIB. E, para piorar o quadro, o marco fiscal, ora
em discussão, deve exigir mais 1% do PIB em impostos.
Além da certeza de que a carga continuará alta, a outra
convicção é a de que não há um consenso solidificado que per-
mita a aprovação de uma reforma razoável. Existem divergên-
cias sérias e entendimentos equivocados sobre o assunto. Um
deles é o de que o agronegócio e o setor de serviços pagam
poucos impostos. Talvez por se aproximarem de um sistema
tributário menos injusto, eles dinamizam tanto a nossa econo-
mia. Já a indústria e o consumo, bem como telecomunicações,
energia e combustíveis, são dolorosamente sobretaxados.

1|3
CLUBE DE REVISTAS

Mesmo com o empenho de Arthur Lira, presidente da


Câmara, e o esforço do deputado Aguinaldo Ribeiro em
avançar com a reforma, existem alguns obstáculos que pre-
cisam ser contornados. Indo direto ao ponto, quatro grupos
relevantes e politicamente articulados estão contra as ideias
básicas da reforma. São eles: os governadores, os prefeitos, o
agronegócio e o setor de serviços.
Cada um deles tem as suas justificativas e tem meios de
obstruir o debate no Congresso Nacional. Governadores e
prefeitos não querem perder a autonomia de praticar política
tributária. Já o setor de serviços e o agronegócio não querem
ser sobretaxados.
Em 2021, escrevi — aqui mesmo — uma coluna sobre o
tema e propunha uma solução cartesiana para a reforma
tributária. Dizia eu que o primeiro ponto é que tudo deve
ser questionado. O segundo aspecto é que devemos divi-
dir o problema no máximo de parcelas possíveis para fa-
cilitar a solução — começar tratando dos temas mais fá-

“Lula, que deveria estar


liderando o entendimento
sobre o tema, ainda não
apareceu para o jogo”
2|3
CLUBE DE REVISTAS

ceis da reforma e ir avançando pouco a pouco sobre o que


é mais complexo.
A prudência indica que a reforma tributária deveria co-
meçar apenas pelos impostos federais e, no passo seguinte,
pelos impostos estaduais e municipais. Porém, como disse o
governador de Goiás, Ronaldo Caiado, ainda não combina-
ram o jogo com os governadores. E também não chamaram
os prefeitos que demonstram muita insatisfação. O federalis-
mo parece que ainda não foi considerado seriamente.
Para complicar, uma ofensiva tributária do governo fede-
ral no Judiciário tem trazido mais insegurança para o setor
privado. Com sucessivas vitórias em embates sobre tributos,
o governo aumenta a arrecadação antes da aprovação da re-
forma. Outro aspecto crítico é que, além de Lira e Ribeiro,
apenas a equipe econômica demonstra verdadeiro empenho
na questão. O presidente Lula, que deveria estar liderando o
entendimento federalista sobre o tema, ainda não apareceu
para o jogo. Sem o apoio dos governadores e prefeitos não
haverá reforma tributária. Melhor, portanto, seria reduzir o
escopo da proposta e, no momento, limitar as mudanças aos
impostos federais. ƒ

3|3
CLUBE DE REVISTAS
BRASIL JUSTIÇA

SEM RESISTÊNCIA
A aprovação do ex-advogado de Lula para o
cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal,
entre outros simbolismos, representa a coroação
da derrota da Lava-Jato LARYSSA BORGES

EM 2023 Cristiano Zanin: “Vou me guiar pela Constituição,


sem qualquer tipo de subordinação a quem quer que seja”

LULA MARQUES/AGÊNCIA BRASIL

1|5
CLUBE DE REVISTAS

EM MEADOS DE ABRIL, durante a oficialização da


aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski no Su-
premo Tribunal Federal (STF), Cristiano Zanin foi cha-
mado ao gabinete de Lula. O presidente, que já havia dito
que pretendia nomear seu amigo e defensor privado para
a mais alta corte do país, queria ouvir do próprio advoga-
do o nível de seu interesse em ocupar uma cadeira no co-
legiado. “O momento de dizer ‘não’ é agora”, disse. Lula
não queria correr riscos. Nos mandatos anteriores, havia
feito oito indicações ao Supremo e considerava que boa
parte delas havia sido um desastre. Ele não havia digerido
— e não digeriu até hoje — o fato de parte dos apadrinha-
dos não ter colocado freios na Lava-Jato ou levado à pauta
de julgamentos um recurso que poderia adiar sua ida para
a cadeia. Zanin agradeceu o presidente e saiu do Palácio
do Planalto escolhido para a vaga. Uma decisão cheia de
simbolismo.
Quatro anos atrás, em junho de 2019, Lula estava pre-
so, condenado por corrupção, enquadrado na Lei da Ficha
Limpa e impedido de disputar eleições. Na mesma época,
o juiz que o colocara atrás das grades havia assumido o
Ministério da Justiça no governo recém-eleito de Jair Bol-
sonaro e não escondia a ambição de chegar à Suprema
Corte pelas mãos do chefe. Hoje, Lula é o presidente da
República, Bolsonaro está na iminência de ser condenado
por crime eleitoral, o que o deixará inelegível, e o atual se-
nador pelo Paraná, Sergio Moro, como se sabe, não só não

2|5
CLUBE DE REVISTAS

REPRODUÇÃO

EM 2017 O advogado, Lula e o então


juiz Sergio Moro: o primeiro confronto

chegou ao Supremo como é apenas uma sombra do que


representou no auge das investigações do maior escânda-
lo de corrupção da história. A ascensão de Cristiano Za-
nin ao STF, confirmada pelo Senado na quarta-feira 21, é
a coroação da derrota da Lava-Jato.
Ao patrocinar todas as causas jurídicas que levaram
Lula da morte política à conquista do terceiro mandato,
Cristiano Zanin se livrou das acusações de inexperiência,
driblou intrigas de figurões da advocacia e sobreviveu ao
conhecido fogo amigo do PT. Ele já havia enfrentado a
desconfiança do próprio cliente ilustre quando, ainda em
2012, começou a advogar para a família do presidente. Na

3|5
CLUBE DE REVISTAS

sabatina, contornou a pouca oposição que sofria ao con-


denar perseguições políticas pela Justiça. Tratado como
“engomadinho” pelo próprio Lula nos primórdios da La-
va-Jato, Zanin chega a uma Suprema Corte majoritaria-
mente escolhida por governantes eleitos pelo PT, o que
gerava — e ainda gera — toda sorte de especulação sobre
a sua isenção. A tradição, no entanto, mostra que o senso
de responsabilidade costuma se sobrepor à gratidão.
A Lava-Jato, aliás, foi o melhor exemplo disso. Os minis-
tros Dias Toffoli e Cármen Lúcia, ambos indicados por Lu-
la ao STF, evitaram pautar uma revisão da regra de prisão
após condenação em segunda instância, tema que deixaria
o petista longe da cadeia. Luís Roberto Barroso, nomeado
por Dilma Rousseff, desqualificou mensagens hackeadas
que mostravam abusos e ilegalidades na operação. A minis-
tra Rosa Weber, também escolhida por Dilma, negou um
habeas-corpus que permitiria a Lula responder às acusa-
ções em liberdade. Edson Fachin, alçado ao STF pela ex-
presidente petista, tentou impedir que o tribunal jogasse no
lixo decisões e atos processuais ilegais de Sergio Moro con-
tra Lula. Foi o ministro Gilmar Mendes, indicado por Fer-
nando Henrique Cardoso e que já foi considerado pelos pe-
tistas como um desafeto, que atuou decisivamente na anu-
lação dos processos que reabilitaram o atual presidente.
Ao longo de mais de sete horas de questionamento no
Senado, Zanin evitou bolas divididas — não opinou, por
exemplo, sobre o controverso inquérito que investiga a

4|5
CLUBE DE REVISTAS

propagação de fake news, a descriminalização da posse


de entorpecentes para consumo pessoal ou a fixação de
um marco temporal para a demarcação de terras indíge-
nas, temas pendentes de julgamento no STF —, mas mar-
cou posição contra abusos em investigações criminais,
juízes que atuam de forma parcial e processos com “a eti-
queta de Lava-Jato”. Sentado na primeira fila da oitiva es-
tava o destinatário inevitável das estocadas, o senador e
ex-juiz Sergio Moro, que teve suas sentenças contra Lula
anuladas por ordem do Supremo. “Eu acredito que estou
aqui hoje indicado pelo presidente Lula pelo fato de ele ter
conhecido meu trabalho jurídico, minha carreira na advo-
cacia e ter a certeza de que eu, uma vez aprovado e no-
meado por esta Casa, vou me guiar pela Constituição e
pelas leis, sem qualquer tipo de subordinação a quem quer
que seja”, disse durante sabatina do Senado.
Cristiano Zanin também saiu pela tangente quando
questionado sobre assuntos caros a parlamentares de per-
fil mais conservador — como a união homoafetiva (“de-
fendo todas as formas e expressões do amor”), aborto (“o
direito à vida é uma garantia fundamental”) e drogas (“é
um mal que precisa ser combatido”) — e também não
avançou em matérias polêmicas, como o julgamento de
Jair Bolsonaro na Justiça Eleitoral. Ao final da sabatina no
Senado, o advogado, de 47 anos, foi aprovado com folga
em Plenário — 58 votos a favor e 18 contra — para um
mandato que vai se estender até o ano de 2050. ƒ

5|5
CLUBE DE REVISTAS
BRASIL POLÍTICA

A REPÚBLICA
DO PARÁ
Com um governador cada vez mais influente, um
ministro, um senador e uma deputada,
o tradicional clã Barbalho se renova e ganha espaço
no governo Lula JOÃO PEDROSO DE CAMPOS

TIME Helder, com Lula e Celso Sabino: visita do presidente


oficializou a capital do estado como sede da COP30

DIVULGAÇÃO

1|6
CLUBE DE REVISTAS

A VISITA do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Pará,


no último sábado, 17, confirmou o momento de protagonis-
mo de um clã local que tem recuperado a influência na polí-
tica nacional: os Barbalho. Na passagem pelo estado, gover-
nado desde 2019 por Helder Barbalho (MDB), Lula oficiali-
zou Belém como sede da COP30, a importante conferência
da ONU para discussão de mudanças climáticas, que ocor-
rerá em 2025. O petista também participou, em Abaetetuba,
no interior, da entrega de novas unidades do Minha Casa,
Minha Vida, retomado em sua gestão pelo cobiçado Minis-
tério das Cidades, agora comandado pelo irmão de Helder,
Jader Barbalho Filho. Ao discursar na capital, Lula afagou
os irmãos, filhos do senador Jader Barbalho e da deputada
federal Elcione Barbalho, ambos do MDB, e disse que as ar-
ticulações de seu governo para levar a cúpula do clima à ci-
dade foram uma forma de compensar o Pará por não ter si-
do escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014. A com-
pensação incluiu, ainda, o anúncio de diversos investimen-
tos em infraestrutura para preparar Belém para o evento.
Em meio a essa demonstração explícita de prestígio da
família Barbalho, ficou claro também como o membro
mais novo do clã vem merecendo mais holofotes. Aos 44
anos, Helder é tido no entorno de Lula como um aliado es-
tratégico entre governadores. Reeleito em 2022 em primei-
ro turno, com 70,4% dos votos, a maior votação no Brasil,
ele construiu uma aliança com dezesseis partidos, do PT
ao PP, que lhe garantem maioria folgada para governar.

2|6
CLUBE DE REVISTAS

JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO

PATRIARCA Jader: no terceiro mandato, discrição e


influência nos bastidores

Em Brasília, o seu peso veio com a eleição de uma bancada


de catorze deputados entre as dezessete cadeiras em dis-
puta, nove ocupadas pelo MDB — o melhor desempenho
no partido no país. Também é considerável o poder de fo-
go nas mãos de Jader Filho. Com orçamento de 23 bilhões
de reais, a pasta conduz o Minha Casa, Minha Vida, que
prevê entregar 2 milhões de moradias até 2026. “Quando
um ministro do MDB desempenha bem, isso facilita a visi-
bilidade do partido numa área muito visada”, diz o presi-
dente do MDB, Baleia Rossi.

3|6
CLUBE DE REVISTAS

FILIPE BISPO/FOTOARENA

MÁQUINA Jader Filho: pasta cobiçada,


com 23 bilhões de reais em caixa

Não por acaso, a indicação à pasta, que também se ocupa


de saneamento e mobilidade urbana e tem grande influên-
cia junto a prefeituras, foi disputada por aliados de Lula co-
mo PSB e PSOL. A escolha acabou nas mãos da bancada do
MDB na Câmara, onde os paraenses são maioria. “Politica-
mente, só posso festejar que a relação com o governo seja
respeitosa, próxima e cada vez mais estreita”, diz o patriarca
Jader Barbalho. A influência deve aumentar com a virtual
nomeação do deputado Celso Sabino (União-PA) ao Minis-
tério do Turismo, com o apoio do clã. O futuro ministro re-

4|6
CLUBE DE REVISTAS

tribui ao apontar Helder como um promissor líder nacional:


“Se for da vontade dele e do partido, acho que tem muscula-
tura para fazer uma construção nessa direção, não sei se pa-
ra 2026 ou 2030”.
Embora cogitado a voos maiores e bem avaliado — em
Belém, tem 68,5% de aprovação em junho, segundo o Para-
ná Pesquisas —, Helder tem desafios pela frente. A COP30
trará holofotes sobre os históricos problemas ambientais do
Pará, que desde 2006 lidera o ranking de destruição da
Amazônia. Em 2019, no primeiro ano de sua gestão, a área
desmatada avançou 52%. O garimpo ilegal também é pro-
blema. Só o município de Itaituba foi responsável por 81%
do ouro ilegal escoado no país entre 2019 e 2020. A gestão
ainda se vê às voltas com o desempenho pífio em indicado-
res sociais, como o do ensino médio público — o segundo
pior Ideb do Brasil em 2021. Na segurança pública, embora
no geral tenha havido redução nos assassinatos, o Pará tem
sete dos trinta municípios com os maiores índices entre
2019 e 2021.
A longevidade do clã Barbalho tem muito a ver com o
MDB, partido que fez oposição à ditadura e foi central em
todos os governos democráticos. Em seu terceiro manda-
to no Senado, Jader tem tido uma atuação discreta, mas
mantém influência nos bastidores e no partido. No auge,
foi governador do Pará duas vezes, presidente do Senado
e acumulou suspeitas. Renunciou ao mandato em 2001
para evitar um processo de cassação. Uma reportagem de

5|6
CLUBE DE REVISTAS

capa de VEJA, em outubro de 2000, mostrou que ele acu-


mulara um patrimônio de 30 milhões de reais depois de
entrar na política. Como Jader, vários líderes do MDB fo-
ram envolvidos em escândalos variados, mas boa parte
deles não sobreviveu. O clã Barbalho é uma exceção e os
filhos do patriarca representam a nova cara dessa tradi-
cional linhagem. No plano nacional, Helder é visto como
uma das apostas do MDB em lideranças capazes de levar
a sigla a retomar o protagonismo político. Assim, a “Re-
pública familiar do Pará” ganha cada vez mais espaço,
poder e influência. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
BRASIL GESTÃO

UM ENREDO
POUCO SANTO
Sob o comando de um influente quadro da Igreja, a Pró-
Saúde, à frente de vários hospitais públicos, se enreda
numa trama de desvios e rombo de 1,6 bilhão de reais
RICARDO FERRAZ

COMPRA DOBRADA Hospital Galileu, em Belém: o MP


encontrou aditamentos em contrato de serviços já adquiridos

ASCOM/HPEG

1|7
CLUBE DE REVISTAS

COMO PADRE, Wagner Portugal, 49 anos, escalou a hie-


rarquia da Igreja Católica ao demonstrar rara capacidade
para administrar as verbas das paróquias por onde passou
em sua trajetória de mais de uma década ao púlpito. Assim,
lançando mão da notória simpatia, foi se aproximando da
alta cúpula do clero brasileiro. Mas logo tomou um tombo,
tamanho era seu apetite no campo dos negócios. Isso aca-
bou irritando seus superiores, e o caso foi parar à mesa do
Vaticano, que o expulsou do sacerdócio em 2017. Os laços
com a cúria, porém, nunca cessaram — a ponto de o ex-pá-
roco assumir o comando da Pró-Saúde, uma das grandes
organizações sociais (OS) dedicadas à administração de
hospitais públicos, que conta com padres e bispos eméritos
em sua diretoria estatutária.
No posto, Portugal costuma alardear que aquela é sua
“catedral”. Os primeiros problemas em sua gestão vieram à
tona em 2019, quando o então CEO assinou um acordo de
delação premiada no âmbito da Operação Lava-Jato, admi-
tindo participação em um esquema de pagamento de propi-
na no valor de 52 milhões de reais para obter contratos no
Rio de Janeiro. Pois aquilo era só a ponta de um dreno de di-
nheiro do Estado brasileiro bem mais abrangente, um enre-
do agora trazido à luz depois de vasta investigação.
A artilharia contra Portugal começou com denúncias de
ex-funcionários que o acusam de se apossar de recursos da
OS para sustentar uma vida de regalias, com carros de luxo,
motoristas à disposição e jantares regados a Brunellos di

2|7
CLUBE DE REVISTAS

O CHEFE Portugal, ex-padre e atual CEO:


administração na mira

Montalcino. Até o salário de empregados das fazendas de


sua família seriam pagos com recursos desviados do caixa
abastecido por verbas públicas. Em 2021, o caso foi encami-
nhado ao Ministério Público Federal do Rio, depois enviado
à alçada de São Paulo, e levou ao afastamento do executivo.
O inquérito acabaria sendo arquivado por falta de provas, e
Portugal, que afirma estar tudo esclarecido e agir conforme
a lei, retornou ao cargo. A volta do assunto aos holofotes se
dá agora com o pedido de recuperação judicial da Pró-Saú-
de na Justiça de São Paulo, no fim de maio. O rombo da OS é
de 1,6 bilhão de reais, fruto, segundo a organização, de calo-
tes em série por parte de estados e municípios.

3|7
CLUBE DE REVISTAS

Mas as condenações por improbidade administrativa em


passado recente, somadas a um conjunto de documentos in-
ternos obtido por VEJA, revelam que o buraco financeiro em
que se meteu a OS tem raízes em um extenso roteiro de mau
uso do dinheiro. Uma análise dos contratos entre a Pró-Saúde
e fornecedores de insumos hospitalares mostra que a organi-
zação selava acordos impondo um pedágio: ele consistia em
uma cláusula que obrigava as empresas a conceder descontos
entre 5% e 10% sobre a tabela de preços adotada pelo SUS
(veja trecho do documento). “A gente emitia nota fiscal com o
preço cheio, que era repassado para as secretarias de Saúde
sem que o abatimento fosse registrado. Funcionava como
uma espécie de caixa dois”, explica Frederico Aurélio Bispo,
diretor-executivo do grupo Síntese, que fornecia próteses para
a OS e hoje pena para reaver uma dívida de 6 milhões de reais.
A VEJA, a Pró-Saúde diz que tal desconto “era convertido di-
retamente para o benefício das próprias unidades de saúde”.
Enquanto essas tratativas transcorriam nos bastidores, há
indícios de que uma ala de funcionários da Pró-Saúde se be-
neficiava delas. Em Santarém, no Pará, o MP investiga suspei-
ta de enriquecimento de figuras que integravam a folha de pa-
gamento, mas não moravam na cidade. Não era, porém, todo
mundo que se dava bem. No Tocantins, a organização foi con-
denada em primeira instância a devolver 13,5 milhões de reais
aos cofres estaduais, embora o fosso seja bem maior — ali, co-
mo em outros estados, médicos, funcionários e empresas bri-
gam na Justiça para conseguir o que lhes é devido.

4|7
CLUBE DE REVISTAS

DÍVIDA Ação de improbidade: 14,5 milhões


devem ser devolvidos a hospital

PEDÁGIO Contrato entre a OS e o fornecedor:


10% de desconto obrigatório

5|7
CLUBE DE REVISTAS

O declínio da Pró-Saúde já se anunciava em dezembro de


2022, quando a OS continuava a declarar saldo positivo em
caixa no valor de 569 000 reais. Estar no azul, como se sa-
be, é pré-requisito para participar de licitações e firmar con-
tratos com o poder público. No papel, estava tudo certo. Do-
cumentos da própria organização, no entanto, põem o fato
em xeque. Em outubro de 2020, um ex-diretor financeiro
denunciou, no canal de integridade da instituição, que a con-
ta andava negativa em mais de 34 milhões de reais e que a
senha bancária em seu nome era utilizada indevidamente,
mesmo após seu desligamento. Segundo ele, as diferenças
eram cobertas com o uso do dinheiro público, por meio de
malabarismos contábeis. Apesar do alerta, a auditoria inter-
na concluiu que não havia irregularidades no balanço. Em
sua defesa, a Pró-Saúde sustenta que “não atravessa uma
operação deficitária e que divulgou demonstrações finan-
ceiras em que apresenta valores de crédito a receber”.
Nos tribunais, a Pró-Saúde argumenta que o desequilí-
brio é fruto do aumento dos gastos em razão da pandemia.
Mas MPs em estados nos quais a OS atua já apontavam in-
consistências bem antes. Um exemplo vem do Pará, onde
uma ação de improbidade administrativa gira em torno do
Hospital Galileu, em Belém. Segundo os promotores, os di-
retores da organização empregavam as verbas de lá para
comprar bens pessoais, como celulares. Ainda de acordo o
MP, aditamentos de contratos com o objetivo de cobrar por
serviços já previstos no acordo inicial, gerando duplicidade,

6|7
CLUBE DE REVISTAS

era “prática corriqueira”. O órgão diz também que a institui-


ção concedia empréstimos a outros hospitais administrados
pelo grupo sem cobrar juros ou exigir garantias. No total,
conforme a ação, o prejuízo aí soma 14,5 milhões de reais,
em valores não corrigidos.
Condenada em primeira instância, a Pró-Saúde recorreu
e tentou, sem sucesso, derrubar a decisão por dezenove ve-
zes, mas o convênio acabou desfeito no Pará. O último rela-
tório informa que a OS administra hoje dezesseis unidades
em seis estados. Mesmo que o processo de recuperação judi-
cial siga adiante, dificilmente todos os compromissos serão
honrados, avaliam as autoridades. “A conta vai acabar fican-
do para o Estado brasileiro”, lamenta o promotor Sávio Bra-
bo. Enquanto isso, a população continua penando com ser-
viços precários, filas intermináveis e o desrespeito àqueles
que precisam de socorro. ƒ

7|7
CLUBE DE REVISTAS
BRASIL MEIO AMBIENTE

O SUMIÇO DA AREIA
Consequência de dois grandes desafios dos
tempos modernos — o avanço das cidades e as
mudanças climáticas —, a erosão costeira ameaça
cartões-postais pelo país VICTORIA BECHARA

FORÇA DAS ÁGUAS Atafona: o mar avançou dez quadras


e destruiu casas em vilarejo turístico no norte do Rio

MAURO PIMENTEL/AFP

1|6
CLUBE DE REVISTAS

AO CHEGAR à Avenida Atlântica, na orla de Balneário


Camboriú, em Santa Catarina, é possível ver de um lado
condomínios excessivamente altos e centenas de restau-
rantes, lojas e espaços de lazer que fazem a economia lo-
cal girar, principalmente no verão, e que renderam à ci-
dade o exagerado epíteto de “Dubai brasileira”. Do outro,
está o mar da Praia Central, com uma longa faixa de
areia artificialmente alargada por megaobra feita em
2021, durante dez meses, ao custo de 66,8 milhões de re-
ais. Com a ajuda de uma draga e um sistema de tubos, a
prefeitura “engordou” a praia de 25 para 180 metros em
alguns trechos.
Faltou apenas combinar com o Oceano Atlântico. Pou-
co tempo depois, o mar retomou o espaço que era seu e
engoliu cerca de 70 metros do “puxadinho” litorâneo. O
vaivém da areia em Balneário Camboriú é consequência
direta da especulação imobiliária (que ergueu um pare-
dão de prédios perto demais do mar) e dos fatores am-
bientais, que permitiram a erosão ao longo dos anos. No
caso da cidade catarinense, fala-se agora em isolar o local
onde ocorreram os estragos para a execução de novas
obras, numa batalha que promete ser inglória contra as
forças da natureza.
O fenômeno do sumiço de praias não é uma exclusivi-
dade de Camboriú: ele afeta todo o litoral brasileiro. A
área de praias, dunas e areais do país recuou 15% entre
1985 e 2021, segundo levantamento do instituto MapBio-

2|6
CLUBE DE REVISTAS

FAIXA REDUZIDA
Praias, dunas e areais tiveram redução de
15% entre 1985 e 2021

457 000
HECTA RE S 3 89 0 00
HE CTA R E S

19 85 Fonte: MapBiomas 2 02 1

mas, com base nos dados mais recentes. O avanço de in-


fraestruturas urbanas é um dos problemas. “Estão cons-
truindo estradas e condomínios sobre dunas”, diz Pedro
Walfir, professor da UFPA e membro da equipe de zona
costeira do MapBiomas. Os estragos do avanço desorde-
nado acabaram sendo potencializados nos últimos tem-
pos pela elevação do nível do mar e dos rios em razão do
aquecimento global.
Um exemplo emblemático de erosão está em Atafona,
distrito de São João da Barra, no Rio de Janeiro, onde o
mar avançou mais de dez quarteirões, destruindo o que ti-

3|6
CLUBE DE REVISTAS

ELEMENT FILM/PMBC

“PUXADINHO” Balneário Camboriú: o


oceano engoliu uma faixa de terra artificial

nha pela frente no vilarejo de 7 000 habitantes. O assorea-


mento do Rio Paraíba do Sul, que ali encontra o oceano
após percorrer três estados, e a construção de barragens
afetaram o transporte de areia para a costa e agravaram o
processo. Em Olinda, no Pernambuco, e Fortaleza, no Ce-
ará, estruturas chamadas de espigões ou quebra-mares fo-
ram construídas para conter o avanço do oceano. A em-
preitada não teve o efeito esperado e acabou transferindo o
problema a praias vizinhas.
Devido ao risco de acidentes, interdições ocorrem ago-
ra com frequência. São Vicente, no litoral paulista, isolou

4|6
CLUBE DE REVISTAS

MANUEL COHEN/AFP

HISTÓRIA Homenagem ao Dia D na


Normandia: ícone da II Guerra ameaçado

parte da orla para que pesquisadores do Serviço Geológico


do Brasil fizessem um estudo sobre a erosão que ameaça o
local. O mesmo ocorre no Morro do Careca, um dos pon-
tos turísticos de Natal, no Rio Grande do Norte, que sofre
processo de erosão e risco de desmoronamento, segundo
um relatório preparado por determinação do Ministério
Público Federal.
A erosão costeira tende a piorar, principalmente por
conta do avanço das mudanças climáticas. A frequência
das tempestades, a elevação do nível do mar e o aqueci-
mento global, unidos à urbanização e à ação humana, de-

5|6
CLUBE DE REVISTAS

vem acelerar o sumiço de parte das praias. O aumento da


intensidade dos ventos, principalmente na Margem Equa-
torial, também influencia na energia das ondas e na remo-
ção da areia. “Os sedimentos são retirados pela força das
águas, vão em direção ao oceano e muitos deles não vol-
tam porque o nível do mar está aumentando com o aqueci-
mento global”, afirma Marcelo Sperle, professor da Facul-
dade de Oceanografia da UERJ.
As mudanças climáticas também aceleram o processo
erosivo nos litorais da Inglaterra e Espanha. Até locais his-
tóricos, como as praias da Normandia (França), que servi-
ram para o desembarque das tropas aliadas na ofensiva con-
tra a Alemanha nazista conhecida como Dia D, também es-
tão sob ameaça — relatório climático aponta que dois terços
da costa na área estão desaparecendo.
Para além das ameaças a cartões-postais litorâneos, o fe-
nômeno desencadeia uma série de prejuízos sociais e econô-
micos. No Brasil, os estragos são democráticos. O encolhi-
mento das praias engole receitas das comunidades caiçaras
que dependem do turismo, enquanto mansões de veraneio
erguidas sobre dunas passam a correr risco de desabamento.
“Há intervenções que podem reduzir as taxas de erosão, co-
mo a construção de sistemas de recifes artificiais”, diz Paulo
Horta, professor do Departamento de Botânica da UFSC.
Mas o combate mais efetivo ao problema exige políticas am-
bientais e urbanísticas. O sumiço acelerado das praias mos-
tra que essas medidas são cada vez mais urgentes. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
CLUBE DE REVISTAS
RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ

Com reportagem de Diego Gimenes, Felipe Erlich e Pedro Gil

E aí? Nada?
Fernando Haddad está ca-
da vez mais incomodado
com a falta de sinalizações
de Roberto Campos Neto
em relação à queda da taxa
de juros. O assunto foi trata-
do em dois almoços entre o
ministro e o presidente do
Banco Central antes da últi-
ma reunião do Copom.
DIOGO ZACARIAS/MF

Me inclua fora dessa


A pressão não vem só da Fa- PRESSÃO
zenda. Ainda fora do posto Haddad: incomodado com a
no Banco Central, o ex-secre- postura do presidente do
tário-executivo de Haddad, Banco Central
Gabriel Galípolo, faz périplo
pelo Senado atrás de apoio e Câmara acerca da reforma
tem escutado reclamações tributária não seja claro
dos parlamentares sobre as sobre como os benefícios
taxas. “Eu ainda nem entrei”, ao polo industrial de Ma-
costuma responder. naus serão mantidos, a su-
perintendência da Zona
Zona de otimismo Franca, a Suframa, segue
Mesmo que o relatório da otimista. A entidade orien-

1|3
CLUBE DE REVISTAS

ta os parlamentares ama- reais que teriam sido sone-


zonenses para assegurar gados pela companhia.
seus interesses na votação
que está por vir. Minoritário raiz
É curioso ver a relação de
A culpa é de quem deixou bens de Rafael da Rocha,
O Tribunal de Justiça de presidente da Associação
São Paulo rejeitou duas dos Investidores Minoritá-
acusações da relação de de- rios, a Abradin. Ele tem
núncias contra o empresá- uma ação — e apenas uma
rio Sidnei Piva, dono do — de diversas empresas de
grupo Itapemirim. Ele ficou capital aberto, entre elas
livre de virar réu por des- Light, Bradesco, Braskem e
cumprimento da legislação Comgás. Levou o “minori-
trabalhista e por esteliona- tário” a sério.
to. Nesse último caso, a juí-
za alegou “estar nítido que a Contra os impostos
empresa tinha plena licença Um comentário frequente
e permissão da Anac para entre deputados debruça-
operar voos comerciais.” dos sobre a reforma tribu-
tária é que Arthur Lira tem
Dívida nas alturas atendido a pleitos do agro-
Apesar do alívio nas de- negócio e do setor de ser-
núncias, os rolos da Itape- viços para a manutenção
mirim parecem interminá- de isenções. A preocupa-
veis. Agora, o MP de São ção é pelo número de ex-
Paulo cobra 2,3 bilhões de ceções que podem descon-

2|3
CLUBE DE REVISTAS

figurar a proposta. Lira, ir- na Faria Lima pelo tom que


redutível, é refratário ao utilizava em negociações
aumento de impostos. com credores. “Eles sem-
pre foram muito agressi-
Tudo alinhado vos, chegavam a ser gros-
Os escritórios que repre- seiros”, revela um alto exe-
sentam cinco dos sete dire- cutivo que fazia reuniões
tores demitidos da Ameri- regularmente com turma
canas articulam, em con- da Americanas.
junto, as defesas dos exe-
cutivos da varejista. Vão Fé nas vendas
seguir na mesma linha e Um dos principais credores
podem apostar: vem con- da Americanas torce, claro,
tra-ataque por aí. pela recuperação da empre-
sa. “A placa da Americanas
Quem te viu, quem te vê vai continuar atraindo pú-
Ainda sobre o caso Ameri- blico para vender. Se isso
canas, comenta-se nos bas- não acontecer, tanto faz o
tidores do mundo dos ne- plano de recuperação judi-
gócios que uma das gran- cial”, afirma. ƒ
des ironias do caso reside
no fato de que a antiga di-
OFERECIMENTO
retoria da empresa, capita-
neada pelo ex-CEO Miguel
Gutierrez, ficou marcada

3|3
CLUBE DE REVISTAS
ECONOMIA BOLSA

FRUSTRAÇÃO
NO MERCADO
Manutenção da taxa de juros, mudanças no arcabouço
fiscal no Senado e dados preocupantes da inflação no
mundo esfriam ânimo em alta dos investidores e
provocam solavancos na bolsa
LUANA ZANOBIA

ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES

1|5
CLUBE DE REVISTAS

O
lacônico comunicado do Banco Central para justi-
ficar a manutenção da taxa Selic em 13,75% ao
ano, divulgado na quarta-feira 21, provocou gran-
de desconforto no mercado financeiro. No docu-
mento, inexistem pistas de que o BC está disposto
a promover uma guinada no ciclo de aperto mone-
tário. “Não me parece um texto de quem tem pressa para re-
duzir juros”, resume Raphael Figueredo, sócio da casa de
análise Eleven Financial, uma das maiores do pais. No mes-
mo dia, o Senado acrescentou mais nuvens de insegurança
no ar ao desidratar o arcabouço fiscal, propondo mudanças
nas regras que poderão tornar menos efetivo o projeto de
contenção dos gastos públicos. Se não bastasse, outras notí-
cias preocupantes vieram de fora, com potencial de provo-

AINDA NA DIANTEIRA
Mercado brasileiro de ações supera os principais
índices americanos*

10%
6,55% 5,89% 5,1% 4,55%

IBOVESPA NASDAQ S&P 500 NYSE DOW JONES

* Desempenho de 1º a 15 de junho

2|5
CLUBE DE REVISTAS

car estragos por aqui. Indicadores fracos da economia chi-


nesa e novos dados da inflação na Europa mostraram que o
risco de uma escalada de preços permanece alto.
Essa soma de sinais negativos (sendo que o último Copom
teve um peso maior) provocou solavancos na bolsa brasilei-
ra, que fechou em baixa na quinta 22, com recuo de 1,17%.
Até então, o mercado andava bastante animado com a reto-
mada de negócios. Nas últimas semanas, a bolsa vinha con-
tabilizando o seu melhor desempenho em mais de um ano.
Entre 1º e 15 de junho, o Ibovespa subiu 10%, superando com
folga os principais índices americanos. Desde o seu pior mo-
mento no ano, em 23 de março, o indicador havia acelerado
20%, considerando dados até 21 de junho. Na Faria Lima, o
coração financeiro do Brasil, o mau humor havia sido substi-
tuído pela convicção em um novo ciclo de crescimento.
Diante das notícias recentes, no entanto, o mercado
acendeu o sinal amarelo. Em termos de humores, é prová-
vel que opere agora em um sentimento mais equilibrado,
entre o pessimismo exagerado do início do ano e a euforia
dos últimos meses, desencadeada por fatores como o re-
sultado do PIB no primeiro trimestre, a queda da inflação,
a expectativa de redução dos juros e o avanço do arcabou-
ço fiscal — que agora está sob risco.
A onda recente de otimismo ganhou força especialmente
após a agência de classificação de risco S&P Global alterar a
perspectiva de longo prazo do Brasil de “estável” para “posi-
tiva”. Foi o primeiro avanço da nota do país desde dezembro

3|5
CLUBE DE REVISTAS
EMANUELE CREMASCHI/GETTY IMAGES

CONFIANÇA BlackRock: a maior gestora


do mundo aposta no Brasil

de 2019, mas é preciso lembrar que o sonhado grau de in-


vestimento, a classificação mais alta de crédito concedida
por essas agências, permanece como uma miragem distan-
te. Já havia um sentimento maior de confiança no país mes-
mo antes da publicação da S&P Global feita na semana pas-
sada. No acumulado do ano até 16 de junho, o fluxo de capi-
tal internacional na bolsa de valores de São Paulo totalizou
17,2 bilhões de reais, o que representou um aumento de 30%
em relação ao mesmo período do ano passado. É possível
que as notícias dos últimos dias tenham alguma influência
negativa no comportamento dos investidores estrangeiros a
curto prazo, mas as perspectivas ainda permitem otimismo.

4|5
CLUBE DE REVISTAS

“Não há razão para que o Brasil não possa crescer de forma


agressiva novamente”, disse, em entrevista recente, Amer
Bisat, especialista em mercados emergentes da americana
BlackRock, a maior gestora de recursos do mundo.
É curioso observar que o início da retomada do merca-
do de ações tenha contrariado os prognósticos apocalípti-
cos feitos por muitos analistas do mercado. Na mesma me-
dida, o cenário maior de incertezas configurado nos últi-
mos dias mostra que alguma cautela sempre é importante,
tratando-se de Brasil. O importante a partir de agora é não
desviar o foco do que realmente interessa: a agenda de re-
formas e o compromisso com o equilíbrio fiscal. “Ambos
são elementos críticos que requerem atenção especial”, diz
Alexandre Espírito Santo, economista-chefe da Órama In-
vestimentos. Por isso, o mercado reagiu com preocupação
aos vetos do Senado à proposta original do novo marco fis-
cal. No campo positivo, ressalte-se que a reforma tributá-
ria começou a andar e, a despeito da manutenção da taxa
Selic em 13,75% na última reunião do Copom, permanece
a certeza de que, ainda em 2023, os juros deverão começar
a cair. Valeu como alerta: a maré começou a virar, mas as
ondas ainda são um risco. ƒ

5|5
CLUBE DE REVISTAS
ECONOMIA FINANÇAS

OPERAÇÃO DE RISCO
Em meio a escândalos que atingem as principais
corretores de moedas virtuais do mundo, o Brasil
toma a bem-vinda iniciativa de colocar freios
legais ao negócio LUANA ZANOBIA

RAPINA Changpeng Zhao, CEO da Binance, com a mascote


da Lazio, time que patrocina: transações sob suspeita

MARCO ROSI/SS LAZIO/GETTY IMAGES

1|5
CLUBE DE REVISTAS

A INDÚSTRIA financeira brasileira demonstrou nos úl-


timos anos uma notável capacidade para inovar. Exem-
plos disso são o advento do Pix, a consolidação do open
banking — que permite o compartilhamento de dados
entre as diversas instituições — e o surgimento de finte-
chs de diferentes portes e perfis. Na terça 20, o país mais
uma vez colocou-se na posição de vanguarda com a en-
trada em vigor do marco legal das criptomoedas. A ini-
ciativa põe o Brasil no grupo de nações que tomaram a
dianteira nesse tipo de regulação. Entre outros atributos,
o projeto estabelece o Banco Central como órgão regula-
dor do mercado de criptoativos.
Apesar de muitos países reconhecerem as moedas vir-
tuais como ativos digitais de pagamentos, são raros os que
possuem leis específicas para supervisionar as transações.
Apenas Bermudas, Canadá, Coreia do Sul, Estônia e, agora,
o Brasil regulamentaram operações. Trata-se de um grande
avanço, especialmente em um contexto marcado por suspei-
tas de fraudes envolvendo o negócio no mundo.
Poucos produtos de investimentos fizeram tanto barulho
na última década quanto as criptomoedas. A valorização
meteórica de ativos como bitcoin e ethereum seguida por
períodos de quedas abissais provocou fortes emoções no
mercado, com fortunas surgindo e desaparecendo da noite
para o dia. De uns tempos para cá, contudo, descobriu-se
que os riscos não dizem respeito apenas à cotação das crip-
tos, mas também às plataformas que as negociam.

2|5
CLUBE DE REVISTAS
STEPHANIE KEITH/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

NA CADEIA Sam Fried, fundador da FTX:


desvios de 1,8 bilhão de dólares

Um dos principais alertas nesse sentido foi disparado no


fim do ano passado, quando o americano Sam Bankman-
Fried, fundador da corretora de criptomoedas FTX, foi pre-
so nas Bahamas sob a acusação de surrupiar 1,8 bilhão de
dólares dos investidores. Um escândalo ainda mais rumoro-
so veio à tona nos últimos dias. Em decisão inédita, a Co-
missão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, órgão
regulador financeiro do país, instaurou processos contra as
plataformas Binance, a maior exchange do mundo, e a Coin-

3|5
CLUBE DE REVISTAS

base, sua rival mais próxima, acusando-as de operar ilegal-


mente como bolsas. “Caso as alegações sejam comprovadas,
uma quantidade significativa de criptoativos seria proibida
de ser negociada na maior economia do mundo, reduzindo
drasticamente o volume e a liquidez do mercado”, alerta Fe-
lipe Martorano, analista da VG Research.
Como não poderia deixar de ser, os investidores se assus-
taram. A Binance e a Coinbase registraram retiradas supe-
riores a 1 bilhão de dólares nas primeiras 24 horas após a
abertura do processo, de acordo com a Nansen, uma prove-
dora de informações sobre o mercado cripto. Fundada em
2017 pelo excêntrico empresário chinês Changpeng Zhao, a
Binance tem no currículo uma série de operações nebulosas.
Entre outras encrencas, a empresa é acusada de inflar as ne-
gociações de sua operação nos Estados Unidos. Para se tor-
nar conhecida, a corretora investiu em marketing. Atual-
mente, patrocina o time de futebol italiano Lazio e a seleção
argentina. O fato de ser uma companhia muito jovem, e de
ter crescido de maneira explosiva em um curto período de
tempo, sugere que talvez Zhao não tenha seguido os cami-
nhos convencionais para acelerar os negócios.
A preocupação agora é que as acusações possam levar a
uma corrida de saques pelos clientes da corretora. Se isso
ocorrer, haverá sério risco de insolvência, exatamente como
aconteceu com a FTX. “Há uma incerteza considerável da-
da a ausência de transparência sobre a proteção dos recur-
sos dos clientes e a impossibilidade de prever a magnitude

4|5
CLUBE DE REVISTAS

das acusações”, diz o advogado Isac Costa, especializado no


mercado de capitais. “A verdadeira situação só será exposta
quando, e se, uma empresa se recusar a atender aos pedidos
de saque, como já aconteceu em eventos passados.”
Enquanto isso, o Brasil corre para se proteger. Por isso,
a regulamentação pelo BC é mais do que bem-vinda. “O
decreto é um marco significativo para aumentar a segu-
rança”, diz Yan Martins, CEO da empresa especializada
em blockchain Hathor. Embora o marco legal tenha en-
trado em vigor há alguns dias, o BC ainda precisa definir
as normas que deverão reger o setor. As empresas terão o
prazo de seis meses para se adaptar às novas recomenda-
ções. Em meio aos recentes escândalos que abalam esse
mercado no mundo, não poderia haver hora melhor para
colocar um freio legal ao negócio. ƒ

5|5
CLUBE DE REVISTAS
INTERNACIONAL UCRÂNIA

TUDO OU NADA
O início da muito anunciada contraofensiva ucraniana
contra os invasores russos é uma encruzilhada decisiva
da guerra. Para os dois lados, abrir flancos e mostrar
fraqueza nos combates dos próximos meses pode ser fatal

CAIO SAAD

COMEÇOU Tanque ucraniano avança: pouco


território retomado e anúncio de “sucesso parcial”

LIBKOS/AP/IMAGEPLUS

1|8
CLUBE DE REVISTAS

I
niciada em fevereiro de 2022, a invasão da Ucrânia
pela Rússia resultou, como era de se prever diante do
enorme desequilíbrio de forças, na rápida tomada pe-
los russos de uma faixa ao longo da fronteira, atual-
mente calculada em cerca de 15% do território ucra-
niano. A inesperada resistência fez a guerra empacar por
alguns meses, período em que a posição dos dois lados
ganhou contornos mais nítidos. As forças de Kiev, treina-
das e armadas com toneladas de equipamentos forneci-
dos pelos Estados Unidos e demais integrantes da Otan, a
aliança militar ocidental, conseguiram deter o avanço e,
ao mesmo tempo, expor ao mundo as deficiências do
Exército Vermelho. As tropas do Kremlin, por sua vez,
fincaram pé na região em seu poder, enquanto apren-
diam com seus erros e examinavam de perto a tática do
adversário. Agora, ao que tudo indica, a pausa acabou e
os combates voltaram a se acirrar na linha de frente — si-
nais do início da fartamente anunciada contraofensiva
ucraniana. Dessa vez, no entanto, a aposta é mais alta e
pode definir o rumo da guerra.
Os movimentos bélicos das próximas semanas e meses
são cruciais para a Ucrânia, de um lado, assegurar a seus
aliados que a avalanche de armas e dólares que recebeu
não foi em vão e que tem chance de negociar o fim do con-
flito em posição de força, e para a Rússia, de outro, provar
ao mundo — e, mais especificamente, à população russa
— que seu poderio militar não é páreo para o vizinho. “À

2|8
CLUBE DE REVISTAS

UKRAINIAN PRESIDENTIAL PO/AP/IMAGEPLUS


APOSTA Zelensky: manutenção de apoio
depende de avanços significativos

medida que as forças ucranianas penetrarem nas áreas


ocupadas, elas estarão cada vez mais expostas à linha de
tiro de artilharia russa”, explica Jack Watling, pesquisa-
dor do Royal United Services Institute, de Londres.
Nestes primeiros dias de contraofensiva, a Ucrânia
anunciou a retomada de oito vilarejos, área equivalente a
pouco mais de 100 quilômetros quadrados. “O avanço é
muito difícil e parece lento quando se olham os números,
mas ele é constante”, diz Hanna Malyar, vice-ministra da
Defesa ucraniana. Os combates se concentram até agora
em dois pontos: nas franjas de Donbas, a região por onde
os invasores entraram para, no embuste montado pela fá-
brica de fake news do Kremlin, liberar a população perse-

3|8
CLUBE DE REVISTAS

GAVRIIL GRIGOROV/KREMLIN/EPA/EFE
PRESSÃO Putin com Lukashenko,
o aliado ditador: armas nucleares na fronteira

guida pela “nazificação” do governo de Kiev, e mais ao


sul, na direção do porto de Mariupol, que passou meses
sob bombardeio até ser dominado. “Alcançamos um su-
cesso parcial nos últimos dias”, avalia a ministra Malyar.
A investida em Donbas é simbólica — focos de separa-
tistas alimentados pela Rússia, as duas províncias locais
foram as primeiras ocupadas e, posteriormente, anexadas
por Moscou, que até hoje briga por seu controle total, ten-
do o combate mais recente e sangrento se dado em Ba-
khmut (seis dos vilarejos retomados ficam nos seus arre-
dores). O avanço no sul tem objetivo mais prático: cortar a
ligação por terra de Moscou com a Crimeia, província
ucraniana que a Rússia ocupou ilegalmente em 2014 e ho-

4|8
CLUBE DE REVISTAS

je importante centro de abastecimento das tropas invaso-


ras. O reforço da posição defensiva russa nessa faixa in-
clui minas, trincheiras, drones e água — o rompimento de
uma barragem, atribuído aos russos, inundou boa parte
do terreno. “É uma operação marcada pelo alto desgaste
de soldados e equipamentos que se defrontam com fortifi-
cações, campos minados e fossos antitanques”, diz Federi-
co Borsari, do Center for European Policy Analysis.
A Rússia, por sua vez, intensificou as investidas com
mísseis e drones contra Kiev, cercada por forte defesa an-
tiaérea, e outras cidades mais vulneráveis — em Kryvy
Rih, onde o presidente Volodymyr Zelensky nasceu, uma
saraivada de mísseis destruiu um prédio residencial, ma-
tando ao menos doze pessoas. Em um passo além no uso
do arsenal nuclear como ferramenta de pressão, armas tá-
ticas russas começaram a ser instaladas em Belarus, algu-
mas delas, segundo o ditador aliado Alexander Lukashen-
ko, três vezes mais potentes do que as bombas atômicas
lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki no fim da II Guerra.
Relatórios da frente de batalha atestam que as tropas rus-
sas em terra estão mais treinadas, organizadas e capazes
de montar ataques eficazes como o que inutilizou vários
blindados ucranianos, inclusive poderosos tanques ale-
mães Leopard, mostrado em fotos divulgadas por Moscou.
Em entrevista a jornalistas pró-Kremlin, o presidente
Vladimir Putin afirmou sem confirmação independente
que a Ucrânia, nos últimos dias, perdeu três vezes mais

5|8
CLUBE DE REVISTAS

GEORGI LICOVSKI/EPA/EFE
ALARME Kosovo: choques entre
manifestantes e força da Otan

CLIMA DE TENSÃO
NOS BÁLCÃS
Mais de um ano depois do início da guerra na Ucrânia, uma
fagulha pode virar um novo incêndio na Europa. Minúsculo
país criado a partir de uma intervenção militar da Otan na
antiga Iugoslávia em 1999, Kosovo, que na época fazia parte
da Sérvia — então uma peça do xadrez iugoslavo — é desde
então palco de um conflito latente, que às vezes chega às

6|8
CLUBE DE REVISTAS

vias de fato, entre a população de etnia albanesa (92%) e a


minoria sérvia fincada em enclaves do norte. No fim de
maio, a eleição de quatro prefeitos “albaneses” em cidades
“sérvias” resultou em revolta da população — que boicotou
a votação — e ataques que deixaram oitenta feridos, entre
eles trinta integrantes da KFOR, a força da Otan que até
hoje policia a região.
Desde então, sucessivos embates entre grupos sérvios e
as forças de segurança fizeram soar o alarme no continente
diante da possibilidade de o presidente da Sérvia, Aleksandar
Vucic, amigo de Vladimir Putin, usar a guerra da Ucrânia como
trampolim para tentar reaver Kosovo, cuja independência
nunca aceitou. A ameaçadora letra Z, símbolo da invasão rus-
sa, começou a aparecer pintada nas barricadas dos manifes-
tantes sérvios e pichada nos veículos da Otan e o governo de
Belgrado pôs o Exército em prontidão. Em Moscou, o Ministé-
rio das Relações Exteriores pediu o fim da “propaganda enga-
nosa” que culpa “sérvios desesperados” pelos conflitos em
Kosovo. Até o tenista sérvio Novak Djokovic, que não perde
uma polêmica, entrou na roda: escreveu “Kosovo está no co-
ração da Sérvia” na lente de uma câmera que cobria o torneio
de Roland Garros, na França. Más notícias para quem sonha
com a volta da paz na Europa.

Amanda Péchy

7|8
CLUBE DE REVISTAS

tanques do que a Rússia. Na mesma ocasião, fez um raro


reconhecimento público da existência de escassez de
munição na frente de batalha e de conflitos entre o co-
mando militar e Yevgeny Prigozhin, líder do Wagner,
tropa de mercenários que tem sido fundamental para a
ocupação da Ucrânia.
Em paralelo ao início da contraofensiva ucraniana, re-
presentantes de cerca de cinquenta países reunidos no
Grupo de Contato para a Defesa da Ucrânia reunidos em
Bruxelas reiteraram sua intenção de apoiar Kiev por tem-
po indefinido e continuar armando e treinando as forças
ucranianas, inclusive no manejo dos caças F-16, que de-
vem entrar proximamente em ação. Os Estados Unidos
destinaram mais 40 bilhões de dólares em apoio militar,
humanitário e financeiro para Kiev e aliados europeus co-
meçam a reservar recursos para a reconstrução do país.
“Quanto mais ganhos a Ucrânia tiver, mais forte será sua
posição na mesa de negociação”, afirmou Jens Stolten-
berg, secretário-geral da Otan. Por mais alvissareiras que
sejam as manifestações de apoio, porém, tanto a Ucrânia
quanto a Rússia sabem que a rede de suporte tem prazo de
vencimento e, sem sinais concretos de que está dando cer-
to, acabará corroída pelo alto custo financeiro, pelo im-
pacto que tem sobre a população dos países aliados e até
pelo risco de explosão de outras guerras na Europa (leia
no quadro). No solo ucraniano enlameado por inundação
e chuvas, os dois lados lutam por seu futuro. ƒ

8|8
CLUBE DE REVISTAS

SÃO RAPAZES
SINO-AMERICANOS?
É um dilema lidar com a expansão
da China em nosso continente

NO CORAÇÃO DA ARGENTINA, na imensidão dos pam-


pas da província de Neuquén, uma antena gigantesca vascu-
lha o espaço profundo. Está no centro de um complexo de
2 000 quilômetros quadrados, gentilmente cedido por Cris-
tina Kirchner, quando era presidente. Apesar de todo o habi-
tual blá-blá-blá nacionalista do peronismo, a Estação de Es-
paço Distante é de uso exclusivo dos chineses, com peque-
nas concessões a cientistas nativos. Se alguém acredita que a
estação voltada para a exploração espacial não tem finalida-
de militar, precisa verificar o que está colocando no seu ma-
te. A estação é símbolo poderoso da intensa, rápida e muitas
vezes despercebida expansão da China na América Latina.
Enquanto os Estados Unidos dedicavam parte de sua políti-
ca externa a assuntos que consideram vitais, como promo-
ver o casamento gay (no Japão, com toda sua sofisticada cul-
tura plurissexual) ou hastear a bandeira do arco-íris em em-
baixadas, a China fazia uma balada mais pesada. Envolve o
que todo mundo quer: dinheiro para investimentos ambicio-

1|3
CLUBE DE REVISTAS

sos em infraestrutura ou em projetos populistas como está-


dios de futebol (o agrado ganhou até nome, a Diplomacia
dos Estádios, e começou na África, tendo atingido lá a mar-
ca de 34 instalações esportivas). Agora, existem estádios
construídos com investimentos chineses em países como
Costa Rica, El Salvador, Suriname, Barbados, Santa Lúcia,
Antígua e Barbuda, Granada, Jamaica, Bahamas.
As transações podem ser rápidas. Um dia, Honduras era
um dos poucos países remanescentes que mantinham rela-
ções diplomáticas — longe de serem grátis — com Taiwan.
No dia seguinte, a excelentíssima presidente Xiomara Cas-
tro, mulher do chapelão Manuel Zelaya, tinha mudado de
lado. Baixou em Pequim de terninho vermelho, louca para
discutir “sinergia” com seus novos amigos. Com os países
mais chegados, a montanha de negócios da China envolve
projetos de alta volatilidade, como a base secreta de espio-
nagem instalada em Cuba para perscrutar os EUA.

“Não há chop suey


grátis. Tudo o que os
chineses põem na mesa
tem tabela de preço”
2|3
CLUBE DE REVISTAS

Como lidar com essa China que aspira à hegemonia?


Precisamos dela, como compradora de nossos produtos e
vendedora de importações vitais. Ao mesmo tempo, não po-
demos ser ingênuos ou deformados pelas lentes ideológicas
que traçam um futuro declinante para os EUA e um alegre
mundo em que somos todos sino-americanos. Precisamos
de mentes argutas para administrar necessidades, com
pragmatismo, gente que entenda que não há chop suey grá-
tis: tudo o que a China põe na mesa tem tabela de preço. Do
ouro da Bolívia, um ciclo dominado por chineses, aos acor-
dos entre meios de comunicação oficiais do atual governo
brasileiro — ufa, que alívio, a China nos ensinará a fazer jor-
nalismo —, a presença chinesa é maciça. O projeto de desdo-
larização, tão caro a Lula, tem até data: 2027. Resolverá um
dos grandes problemas da China, que é administrar os 2 tri-
lhões de dólares que tem em títulos do Tesouro americano e
ao mesmo tempo ir para o confronto com os EUA na ques-
tão de Taiwan. O entrelaçamento das duas maiores econo-
mias do mundo segura, por enquanto, os ânimos agressivos,
mas é questão de tempo. “Paciência é poder”, diz um provér-
bio chinês. “Com tempo e paciência, a folha da amoreira vi-
ra um vestido de seda.” De que tear geoestratégico sairão
nossas roupas nos próximos anos? ƒ

3|3
CLUBE DE REVISTAS
GENTE
VALMIR MORATELLI

TUDO EM
FAMÍLIA
INSTAGRAM @CLEO

1|6
CLUBE DE REVISTAS

Na trilha de outros clãs famosos, as três


filhas de Gloria Pires decidiram encarar
juntas o meio musical, no qual todas já se
arriscam em voo solo. Acompanhada do
padrasto, o cantor Orlando Morais, e das
irmãs, Antônia e Ana, CLEO, 40 anos, pri-
meiro lançou um perfil no Instagram, Eu e
Elas. Ali, o quarteto se aventura em vídeos
nos quais entoa clássicos brasileiros, co-
mo Não Quero Dinheiro, de Tim Maia, e
Samba e Amor, de Chico Buarque. Os elo-
gios vieram, e eles se sentiram então se-
guros para pôr o bloco na rua. “A gente
está sempre cantando em casa, aí decidiu
dar um passo adiante”, explica Cleo,
adiantando que a estreia será em palcos
de São Paulo e que Gloria, a matriarca,
não participará do projeto em família, en-
rolada que está com as gravações da tra-
ma global das 9. “Mas ela às vezes apare-
ce de surpresa nos ensaios para nos aju-
dar a encontrar o tom”, entrega a atriz.

2|6
CLUBE DE REVISTAS

DILSON SILVA/AGNEWS

GALÃ SEM TANQUINHO


Na atual escassez de galãs, pro-
blema que se arrasta há tempos
nos bastidores da TV Globo,
EMÍLIO DANTAS, 40 anos,
vem encarando um rojão. Ele não
sai do ar há sete anos consecuti-
vos. Mas, em um enredo não tão
raro, o atual vilão de Vai na Fé ju-
ra que faz de tudo para escapar
do estereótipo. “Nunca fui com-
prometido com a estética nem fiz
uso dela para fins comerciais”,
garante, puritano, esclarecendo:
no lugar do tanquinho torneado
da maioria de seus pares, ele exi-
be um visível pneu abdominal ali-
mentado por um menu farto em
guloseimas e não tem os múscu-
los esculpidos, já que não suporta
carregar peso. A exceção são os
gêmeos Roque e Raul, que leva
naquelas bolsas-canguru. “Com a
velhice, esse negócio de galã vai
passar”, diz. A vida será duríssi-
ma até lá.

3|6
CLUBE DE REVISTAS

INSTAGRAM @KOURTNEYKARDASH

ESTAVA ESCRITO NA BARRIGA


Depois de seguidas tentativas de engravidar do quarto filho, o que
envolveu tratamentos naturalmente expostos nas redes,
KOURTNEY KARDASHIAN, 44 anos, não deixou por menos.
Durante o show do atual marido, o baterista Travis Barker, do
Blink-182, em Los Angeles, agitou um cartaz na frente da nume-
rosa plateia, dizendo: “Eu estou grávida”. Nem precisava. Na reta
final da gestação, a empresária e influencer, que já é mãe de três
filhos entre 8 e 13 anos, desfilava com o barrigão coberto por le-
ve transparência. O animado papai teve aí uma ideia: pegou as
baquetas e fingiu estar diante de uma bateria. Tudo fartamente
postado com aquela imaginação que permeia a internet: “Esma-
gada de gratidão”, derreteu-se a integrante do clã Kardashian.

4|6
CLUBE DE REVISTAS

VIRA, VIRA, VIROU


De terno e gravata, todo arrumadinho como sempre, o presidente da
França, EMMANUEL MACRON, 45 anos, ergueu uma long neck
de Corona e entornou tudo de um fôlego só, em dezessete segun-
dos cravados. O vídeo vazou e a oposição não perdoou. “A masculi-
nidade tóxica na liderança política resumida em uma imagem”, sibi-
lou Sandrine Rousseau, aguerrida deputada do Partido Verde. “O
que ele queria provar? Que é homem de verdade? Que clichê ma-
chista”, alfinetou o senador socialista Laurence Rossignol. O faux
pas presidencial ocorreu no vestiário do Toulouse, time de rúgbi
que acabara de ganhar o campeonato nacional, em resposta a um
desafio dos jogadores. Os políticos podem não ter gostado, mas
entre os atletas a façanha foi saudada com gritos e aplausos.
REPRODUÇÃO

5|6
CLUBE DE REVISTAS

PASSANDO O CHAPÉU
Esguiamente vestida em um modelo
de bolinhas, KATE MIDDLETON,
41 anos, assistiu a distância ao cor-
tejo do Garter Day, festejo da Or-
dem da Jarreteira, a mais antiga or-
dem militar de cavalaria britânica,
do século XIV, da qual ainda não faz
parte. Mas eis que as londrinas
rajadas de vento não deram tré-
gua, e a princesa de Gales, os-
sos da realeza, precisou pas-
sar o tempo todo atracada ao
elegante chapéu Philip Treacy
com detalhes em poá. Nada que
comprometesse o inabalável sorri-
so, que, aliás, não vem sendo uma
marca do restante do clã. Não faz
muito tempo que seus pais, Carole
e Michael, anunciaram a falência de
MARK CUTHBERT/UK PRESS/GETTY IMAGES

sua empresa de suprimentos para


festas. Agora, os fornecedores tra-
vam um duelo na Justiça pela quita-
ção de dívidas na casa dos 17 mi-
lhões de reais. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
GERAL COMPORTAMENTO

GERAÇÃO SEM TABU


Uma inédita pesquisa traça um abrangente
perfil dos jovens brasileiros, uma turma
que não se curva às tradições e se sente
mais à vontade para cutucar vespeiros
RICARDO FERRAZ E SOFIA CERQUEIRA

A VIDA COMO ELA É Geração dos 16 aos 24 anos:


luz em assuntos que fogem do figurino comum

MORSA IMAGES/GETTY IMAGES

1 | 10
CLUBE DE REVISTAS

N
em sempre a janela de tempo compreendida entre
a infância e a vida adulta foi separada pelo que se
convencionou chamar de juventude. Em antigas
civilizações, a humanidade costumava marcar tal
transição com ritos de passagem em que, de uma
hora para outra, meninos e meninas assumiam responsa-
bilidades que cabiam aos mais velhos. E essa dinâmica,
que não reconhecia fase tão marcante na existência dos in-
divíduos, se manteve praticamente inalterada até o século
XX, com uma turma de pouca idade precocemente consti-
tuindo famílias e estreando no mercado de trabalho. A in-
venção da juventude tal qual a conhecemos só veio a se se-
dimentar após a II Guerra Mundial, quando as primeiras
vozes dessa faixa etária, massacrada no conflito, se eleva-
ram e conquistaram espaço. A partir daí, transcorreu um
período no qual rebeldia e transgressão formaram um cal-
deirão tão potente que eles, os jovens, assumiram de vez o
leme das transformações sociais, culturais e políticas. E o
mundo nunca mais foi o mesmo.
Lá se vai meio século desde a era dos hippies até os ul-
traconectados dias de hoje, um dilatado tempo que pro-
duziu gerações em tudo distintas — menos no desejo de
chacoalhar valores preestabelecidos. Um inédito estudo,
conduzido pelo Instituto AtlasIntel a pedido de VEJA,
mergulhou a fundo na multidão de brasileiros e brasilei-
ras que nasceram no início deste século, com idades entre
16 e 24 anos, que não deixa dúvidas sobre um ponto es-

2 | 10
CLUBE DE REVISTAS

FALAR É PRECISO
Após enfrentar uma
depressão e ter uma
ansiedade diagnosticada, a
universitária Clara Verly,
21 anos, resolveu romper o
silêncio que ainda ronda os
males da mente. “Quando
você se abre, percebe que
ARQUIVO PESSOAL

não está sozinha e ajuda


outras pessoas”, diz

sencial que os caracteriza: a determinação de deixar por


terra vários tabus arraigados em outros estratos da popu-
lação. No geral, eles têm a cabeça aberta, afeita à tolerân-
cia e à diversidade em seu sentido mais amplo, e são me-
nos amarrados a convenções que tanto balizaram as últi-
mas décadas, seja no trabalho, seja no campo das rela-
ções familiares e amorosas. “Não dá para compreender o
jovem moderno sem entender o seu entorno, bombardea-
do por uma quantidade de estímulos muito maior do que
as gerações anteriores”, diz o cientista político Andrei
Roman, CEO da AtlasIntel.
No caldo que o levantamento traz à tona fica claro que
essa turma não segue modelos rígidos de hierarquia e tem
uma maneira própria de encarar o sucesso, entrelaçada
com a ideia de felicidade. Percorrendo os dados, chama
ainda mais atenção sua visão livre no campo da sexualida-

3 | 10
CLUBE DE REVISTAS

COM A CABEÇA ABERTA


Os principais resultados da inédita pesquisa
nacional, do Instituto AtlasIntel, entre
brasileiros de 16 a 24 anos

SEXUALIDADE LIVRE

60%
deles se assumem
sem culpa

53%
não sofrem nenhum
tipo de preconceito

17,4%
se declaram bi ou
pansexuais

8%
preferem relacionamentos
abertos — quatro vezes a
média nacional

4 | 10
CLUBE DE REVISTAS

A DANÇA DA
TURMA JOVEM

E M A LT A

Descriminalização da maconha

Doenças mentais sem preconceito

Empreendedorismo

Causas ambientais e sociais

EM BAIXA

Casar e ter filhos para ser feliz

Aceitar o próprio corpo

Trabalho presencial

Relações presenciais

5 | 10
CLUBE DE REVISTAS

de. O levantamento, que ouviu 2 000 pessoas de todas as


regiões do país, indica um número surpreendente de jo-
vens que se declaram bissexuais ou pansexuais, aqueles
que se veem atraídos por gente de todos os gêneros e orien-
tações sexuais. Eles representam 17,4% dos entrevistados
— número que supera em quatro vezes a média nacional
(veja no quadro da pág. anterior). O avanço civilizatório aí
é que eles relatam não terem sentido nem culpa nem pre-
conceito ao virem à luz do jeito que são. “Me relaciono com
meninas e meninos, mas não gosto de me encaixotar nes-
sas classificações. Prefiro assumir uma postura mais leve”,
diz o universitário Lucas Martins, 22 anos. Filho de pastor,
ele rompeu com a ideia inabalável de família com a qual
conviveu até os 18 anos na igreja que frequentava — onde,
aliás, apenas a união heterossexual era reconhecida. “Foi
libertador não precisar me esconder. Esse é o legado da
minha geração”, pontua o estudante.
Os laços matrimoniais também não são vistos como al-
go determinante para essa turma, que, ao contrário de ou-
tras faixas, dá menos importância ao tradicional enredo de
casar e ter filhos — para muita gente, uma linha quase que
obrigatória. É verdade que não são tantos que admitem a
possibilidade de um relacionamento aberto, mas eles são
bem mais incidentes na aceitação desse arranjo do que o
restante dos brasileiros (8% versus 2%). “Os jovens, que
naturalmente têm menos compromissos com filhos e famí-
lia, podem e querem se abrir a essas experiências”, ressalta

6 | 10
CLUBE DE REVISTAS

PARA A FRENTE É QUE SE ANDA


Defensora
entusiasmada da
agenda progressista,
que prega entre outras
coisas a
descriminalização da
maconha e do aborto,
Luna Padovan,
20 anos, pensa como
muitos de sua geração.
“Quero chegar aos 40,
olhar para trás e ter
ARQUIVO PESSOAL

certeza de que não agi


com medo”, afirma

a psicanalista Regina Navarro Lins. As gerações que os an-


tecederam, evidentemente, deixaram bem plantada a se-
mente da mudança, que germina agora como nunca antes.
“A grande revolução sexual aconteceu nos anos 1960, com
a pílula, a contracultura, o feminismo e o movimento hi-
ppie. O que assistimos hoje é o resultado de anos da luta
que se aprofundou ao longo do tempo”, diz a antropóloga
Mirian Goldenberg.
As convenções que começaram a ser questionadas lá
atrás por uma barulhenta ala do mundo Ocidental conti-
nuam a ser postas à prova no modo de vida da juventude
atual, e com grande ênfase. “É uma geração com uma
maior abertura para se posicionar sobre qualquer assunto

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CLUBE DE REVISTAS

BETTMANN ARCHIVE/GETTY IMAGES


A SEMENTE Movimento feminista nos
anos 1960: as mudanças não pararam

e com menos preconceitos diante de todos os aspectos da


vida. Nos dias de hoje, o que pega mal são os prejulga-
mentos”, aponta a psicanalista Lidia Aratangy. Motivo de
tantos conflitos entre pais e filhos, o uso de drogas é en-
carado com mais naturalidade pela geração Z — um de
cada cinco indivíduos entre 16 e 24 anos se revela a favor
da descriminalização da maconha, índice acima da média
nacional. “Não vejo sentido em vender cigarro e álcool le-
galmente e não liberar a maconha. O tráfico mata mais do
que a droga em si, não há por que sustentar um comércio
ilegal”, argumenta a paulista Luna Rodrigues Padovan,
20 anos, estudante de medicina, que admite ser usuária
eventual de maconha.

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CLUBE DE REVISTAS

AMOR SEM CULPA


Filho de pastor, Lucas
Martins, 22 anos,
cresceu às voltas com
uma ideia inescapável de
futuro — casar e ter
filhos, a única forma de
ter “uma família
abençoada”. Pois mudou
radicalmente a rota.
“Hoje, tenho
relacionamentos com
INSTAGRAM @TROPIMARTINS

diversos gêneros,
exercendo o amor sem
culpa”, conta o estudante

As causas ambientais e sociais costumam incendiar esta


geração, que tem na sueca Greta Thunberg um ícone. Mas,
para eles, o ativismo se dá em boa medida nas redes, am-
biente onde o jovem se sente à vontade para fazer amigos e
cancelar sem dó quem se posiciona de maneira contrária a
ele. A pesquisa reforça ainda que o universo virtual é o pre-
ferido para tecer contatos de todo gênero e, sim, o trabalho
remoto prevalece sobre o presencial no gosto dessa turma.
O futuro profissional é uma incógnita que paira sobre suas
cabeças e os angustia. “Atualmente, há muito mais incerte-
zas no horizonte de quem está percorrendo a travessia para
a vida adulta. O mercado de trabalho não tem mais as mes-
mas garantias de antes”, analisa Regina Maria Barbosa, pes-

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CLUBE DE REVISTAS

quisadora do núcleo de estudos de população da Unicamp.


A saída arquitetada pela maioria é se tornar dono do próprio
negócio. “Hoje posso trabalhar de qualquer lugar do mundo.
Não teria a mesma satisfação pessoal em um emprego co-
mum”, reconhece a gaúcha Patrícia Vogtt, 23 anos, que
montou uma agência de intercâmbios para levar pessoas co-
mo ela ao exterior e agora passa uma temporada na Itália,
depois de viver em outros quatro países.
Viver imerso neste terreno de altas trepidações e instabi-
lidades tem suas consequências — e elas vêm sendo mensu-
radas. Um estudo conduzido pela Unicef, que compilou da-
dos em 23 países e reuniu uma amostra de 120 000 entre-
vistados, mostra que a prevalência de ansiedade e depressão
é maior entre a população que se aproxima da vida adulta,
um dado que põe os especialistas em alerta. A pesquisa da
AtlasIntel aponta que uma das grandes fontes de inseguran-
ça juvenil é com o próprio corpo. A boa notícia, enfatizada
pelo levantamento, é que 51% dos jovens já procuraram aju-
da de um profissional para cuidar da saúde mental ou cogi-
tam fazê-lo. Cutucar o tema, que muitas vezes repousa no
silêncio por pura vergonha, não é problema para eles. “Mui-
ta gente da minha geração está combatendo a cultura de não
falar sobre o assunto. Isso cria uma rede de apoio que ajuda
muito”, garante Clara Verly, 21 anos, estudante de psicologia
que foi diagnosticada com transtorno de ansiedade. E assim
vai caminhando a jovem parcela da humanidade, cada vez
mais disposta a derrubar tabus. ƒ

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CLUBE DE REVISTAS
GERAL AVENTURA

TRAGÉDIA REVISITADA
O desastre a bordo do submersível com cinco
pessoas em busca do local do naufrágio do
Titanic alimenta uma trajetória a um só tempo
fascinante e terrível ALESSANDRO GIANNINI

CÁPSULA Titan, embarcação da OceanGate que explodiu no


Atlântico Norte: reserva para 96 horas de oxigênio

OCEANGATE EXPEDITIONS

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CLUBE DE REVISTAS

MAIS DE UM SÉCULO depois de naufragar nas águas ge-


ladas do Atlântico Norte, em 15 de abril de 1912, ao trombar
com um iceberg, o Titanic continua a exercer fascínio e ali-
mentar dramas. O mais recente produto dessa combinação
infeliz envolveu o desaparecimento de um submersível que
visitaria os destroços do transatlântico, depositados no leito
do mar ao sul de Newfoundland, no Canadá (veja no mapa
ao lado). O Titan, embarcação da empresa OceanGate Ex-
peditions, pouco maior que uma van média, de 7 metros de
comprimento, mergulhou às 6 horas da manhã de domingo
18 para iniciar uma incursão ao cobiçado abismo.
No bojo da nave estavam cinco pessoas: um empresário e
explorador britânico; um ex-oficial da Marinha francesa;
pai e filho de uma abastada família paquistanesa; e o funda-
dor da empresa operadora. Quase duas horas depois, o veí-
culo de fibra de carbono sumiu do painel de controle do que-
bra-gelo de pesquisas da canadense Polar Prince, que fazia o
serviço de apoio na superfície. Restava aos tripulantes uma
reserva de oxigênio para 96 horas. Numa luta contra o tem-
po, as buscas, capitaneadas pelas guardas-costeiras ameri-
cana e canadense, começaram no mesmo dia. Na tarde de
quinta 22, as equipes de resgate tinham avistado destroços
de metal que seriam do Titan, fruto de uma explosão. Não
demorou para que os responsáveis pela aventura lamentas-
sem as vidas perdidas.
O que torna o fascínio pelo Titanic uma obsessão mortal?
O cineasta James Cameron, diretor do megablockbuster Ti-

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CLUBE DE REVISTAS

O LOCAL DO NAUF RÁ GIO

CANADÁ Newfoundland
Quebec
Oceano
Atlântico Norte
Toronto

Boston
Nova York

DESTROÇOS
Washington D O T I TA N I C
E UA

tanic, de 1997, tem a resposta. Numa entrevista à revista


Playboy americana, em 2009, ele disse ter feito o filme com
Leonardo DiCaprio e Kate Winslet apenas porque queria
poder se aproximar dos destroços. “O Titanic era o Monte
Everest dos naufrágios e, como mergulhador, queria fazer
isso direito”, exagerou. Tomou gosto pela coisa e, desde en-
tão, desceu 33 vezes até a lataria submergida. O magnetismo
que atraiu Cameron é o mesmo da tripulação que, agora,

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CLUBE DE REVISTAS

NO FUNDO DO MAR A proa do


navio, afundado em 1912, depois

OCEANGATE EXPEDITIONS
de colidir com um iceberg: os
vestígios se deterioram

buscava chegar lá. O bilionário aventureiro britânico Ha-


mish Harding, de 58 anos, era dono de três recordes mun-
diais reconhecido pelo Guinness, incluindo o de maior dura-
ção nas profundezas de um oceano numa embarcação tripu-
lada. O ex-oficial francês Paul-Henri Nargeolet, de 77 anos,
voltou a desembolsar 250 000 dólares para ter o gosto de
voltar a viver a experiência pela 38ª vez desde 1987, o que o
tornou um dos grandes especialistas na inglória aventura do

4|6
CLUBE DE REVISTAS

JOEL SAGET/AFP
VETERANO O ex-oficial Nargeolet: 37 visitas ao abismo

gigante perdido. Os paquistaneses Shahzada Dawood, 48


anos, e seu filho Suleman, 19 anos, pertenciam a uma das
famílias mais proeminentes do Paquistão, que investe na
agricultura, indústrias e setor de saúde. O pai também fazia
parte do conselho de administração do Instituto Seti, com
sede na Califórnia, que busca inteligência extraterrestre. Por
fim, o piloto, Stockton Rush, de 61 anos, era CEO da Ocean-
Gate, a empresa privada com sede em Washington que co-
meçou a fazer essas expedições em 2021 sob a justificativa
de registrar a lenta deterioração dos vestígios.
Os passageiros do Titan, por interesse profissional ou por
curiosidade desmedida, como a dos paquistaneses, estavam
de alguma forma ligados ao fenômeno Titanic, uma espécie

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CLUBE DE REVISTAS
ALBERT HARLINGUE/GETTY IMAGES

PROMESSA O Titanic, ao zarpar: à prova de naufrágio?

de sereia moldada em ferro e madeira retorcidos que jaz no


fundo do mar. O destino dessas pessoas estará eternamente
atrelado ao mais celebrado e triste navio da história.
Há várias possibilidades para o que pode ter acontecido
com o Titan: falta de energia, incêndio, inundação e emara-
nhamento da nave em objetos ou acidentes geográficos. Co-
mo não havia ligação física entre a embarcação e o navio de
apoio, o único meio de comunicação e detecção seria pela
água. “Nesse caso, há bloqueio da propagação das ondas
eletromagnéticas muito rapidamente”, diz o professor de en-
genharia naval Eric Fusil, da Universidade de Adelaide, na
Austrália. “Nenhum radar, GPS, holofotes ou feixes de laser
teriam real utilidade”. A tragédia, infelizmente, se repetiu. ƒ

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CLUBE DE REVISTAS
GERAL IMIGRAÇÃO

HOLA, QUÉ TAL?


Empurrados por uma profunda crise, os
argentinos aportam como nunca antes em
solo brasileiro, a maioria jovens que pretendem
vir morar aqui DUDA MONTEIRO DE BARROS

SEM RIXA Os recém-chegados logo se


sentem em casa: semelhanças culturais ajudam

DEBAJYOTI CHAKRABORTY/NURPHOTO/AFP

1|6
CLUBE DE REVISTAS

NÃO SÃO POUCAS as semelhanças culturais que unem


Brasil e Argentina. Só para começar, há a onipresente pai-
xão pelo futebol, seguida da apreciação por um bom chur-
rasco e do cafezinho para arrematar as refeições. Pesa a
favor ainda o idioma, que torna possível a comunicação
desde que ambos os lados estejam abertos à interação — o
que em geral acontece. Tais fatores, associados à proximi-
dade geográfica e às fronteiras amigáveis, estimulam a
curiosidade dos que vivem do lado de lá em desbravar as
belezas e oportunidades da vizinha terra tropical. Sempre
foi muito comum encontrar argentinos em situação de ve-
raneio, se refestelando nas areias brancas, mas aí veio a
pandemia, depois a crise financeira em que estão atolados
e, agora, os hermanos vêm decidindo se estabelecer nes-
tas praias sem prazo para voltar. E não deu outra: segun-
do o Observatório das Migrações Internacionais, eles, que
desembarcam em ondas, nunca estiveram tão presentes,
cravando um recorde. Já são quase 100 000 com cidada-
nia, o dobro do contingente de uma década atrás e as che-
gadas aumentaram 20% hoje em relação a 2019.
Os argentinos estão bem habituados aos declives de sua
instável economia, cujo leme se encontra nas mãos do pe-
ronista Alberto Fernández. A atual travessia é complexa —
foram quatro momentos de franca ladeira abaixo em pou-
co menos de meio século. É atalho para elevada incerteza
política, sem que o partido no poder tenha apresentado até
agora um nome palatável para concorrer à Casa Rosada

2|6
CLUBE DE REVISTAS

em outubro. “Existe um pro-


blema histórico, difícil de ser
resolvido. A economia argenti-
na se arrasta em um processo
de decadência que alia infla-
ção crônica a crescimento bai-
5 420
ARGENTINOS
xíssimo”, diz o economista VIERAM MORAR NO
Mauro Rochlin, da Fundação BRASIL EM 2019
Getulio Vargas (FGV). Em
abril, a taxa inflacionária atin-
giu 109% no acumulado dos
últimos doze meses, enquanto
6 600
FOI O NÚMERO
o peso local virava pó. O qua- CRAVADO EM 2022 —
dro de trepidações forma o UM CRESCIMENTO

caldeirão perfeito para que as DE 20%


famílias comecem a se debruçar com afinco sobre o proje-
to de mudar de ares — e o Brasil, visto hoje como país
“amigo e equilibrado”, acaba sendo o curso natural.
Uma turma jovem, com menos amarras, vem muitas
vezes em busca de um lugar ao sol, literalmente, sempre
de olho numa fonte de renda que lhe garanta sustento e
chance de ascensão — horizonte raro na paisagem de ci-
dades como Buenos Aires. Egresso da espetacular região
da Patagônia, vivendo sob frequentes temperaturas nega-
tivas, Javier Zalbide, 29 anos, aproveitou o conturbado ce-
nário argentino para pôr de pé o antigo sonho de tentar
morar em outro país. Em maio, pegou um avião para o

3|6
CLUBE DE REVISTAS

Rio de Janeiro, onde se instalou em um hostel de Copaca-


bana, e logo arranjou um emprego em plena orla — uma
passagem para voos profissionais mais ambiciosos. “Es-
tou aprendendo a lidar com o calor extremo e, apesar de
minha vasta experiência trabalhando na gastronomia,
nunca tinha comido frutos do mar”, relata, frisando dife-
renças culturais que alcançam o ápice na extrema infor-
malidade carioca.
Javier compõe o típico imigrante argentino desta era:
oscila entre 25 e 39 anos e costuma se instalar no Sul e no
Sudeste, com maior concentração em Santa Catarina
(30,5%), Rio (16,3%) e São Paulo (15,5%). Historicamen-
te, eles têm vindo atrás de oportunidades no Brasil desde
a década de 1970. Naquela época, muitos escapavam da
sangrenta ditadura militar instaurada em sua nação. Foi
nesse período que uma leva tomou Búzios, o charmoso
balneário na Região dos Lagos fluminense, que se conver-
teu em uma pequena Argentina no fim dos anos 1980,
quando o espanhol e as iguarias argentinas brotavam por
toda a parte. Prosperaram de forma tão acentuada que,
agora, correspondem a 20% de toda a população local.
Inspirado no incontestável sucesso dos conterrâneos
na área, em 2022 Edgardo Scocco, 54 anos, deixou Cór-
doba com sua esposa e filho para dar asas à veia empreen-
dedora em Cabo Frio, ao lado de Búzios. Depois de garim-
par o que não havia no mercado, resolveu inaugurar uma
fábrica de empanadas, o mais famoso dos quitutes deles,

4|6
CLUBE DE REVISTAS
ARQUIVO PESSOAL

DAQUI NÃO SAIO Javier Zalbide,


29 anos: da Patagônia à orla carioca

tão desejado por quem decide fincar acampamento por


aqui — e pelos próprios brasileiros. “A desvalorização do
peso em relação ao real me pegou, tudo parecia muito ca-
ro, mas consegui abrir meu negócio e olhar para o futuro”,
conta Edgardo.
Outra visível concentração dos vizinhos sul-america-
nos é observada no catarinense Balneário Camboriú. Nos
disseminados grupos nas redes, dá-se dica de tudo para
os recém-chegados: churrascarias que servem a típica
parrillada, apartamentos para morar e atalhos burocráti-
cos para se tornar um residente fixo (trâmite considerado
simples). Aos 30 anos, Santi Amaya, mais um que deixou
a nebulosa crise para trás, se mudou para Camboriú atraí-

5|6
CLUBE DE REVISTAS

do pela segurança e pelas incontáveis belezas. Contando


assim, o enredo parece fácil, mas envolveu coragem para
largar o estável emprego em uma multinacional em Cór-
doba para se arriscar em uma empresa de reformas e
construção com seu irmão no lado brasileiro. Não se arre-
pende. “Fui muito bem recebido e me sinto em casa, já que
em todo lugar encontro conterrâneos”, brinca.
Os argentinos que aqui aportam não estão fugindo da
extrema escassez, como ocorre, por exemplo, com os ve-
nezuelanos. “A maioria é de uma classe média em busca
de melhores condições de vida e chances para empreen-
der. Guardadas as proporções, o Brasil é, para eles, uma
espécie de eldorado, como os Estados Unidos são para os
brasileiros”, diz o cientista político Leonardo Paz, espe-
cialista em relações internacionais. Esqueçam, portanto,
as rixas de praxe, aquelas que podem atingir as alturas
quando o que está em jogo são Messi, Maradona e Pelé.
No Brasil, os argentinos estão bem assimilados e não se
cansam de dizer: muchas gracias. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
GERAL ESPAÇO

FÓSFORO É VIDA
Investigações da Nasa revelam que uma pequena lua
de Saturno tem os seis elementos químicos necessários
para abrigar organismos vitais LUIZ PAULO SOUZA

SATÉLITE NATURAL
Encélado: com 4% do
tamanho da Terra,
tem hidrogênio, hélio e água

SSI/JPL/NASA

1|6
CLUBE DE REVISTAS

DESDE que Galileu Galilei apontou um telescópio para Sa-


turno, em 1610, o segundo maior planeta do sistema solar
tem sido fonte inesgotável de surpresas e descobertas para
cientistas e astrônomos. Gigante gasoso, ele é composto
principalmente de hidrogênio e hélio, está envolto pelos ce-
lebrados anéis e orbita circundado por 146 luas. Em uma de-
las, a Encélado, foram encontradas recentemente evidências
de fósforo, um dos elementos essenciais para a ocorrência de
vida. Outros ingredientes fundamentais — carbono, hidro-
gênio, oxigênio, nitrogênio e enxofre — já haviam sido reve-
lados por pesquisas anteriores.
É um achado promissor para as pesquisas em outros pla-
netas e alimento para uma pergunta humana, demasiada-

TEMPO Sonda Cassini: materiais colhidos


em 2008 só agora entregaram dados

ESA/JPL/NASA

2|6
CLUBE DE REVISTAS

mente humana: haveria seres como nós em outras porções


do espaço? Não se sabe, evidentemente, mas os indícios de
possibilidade da existência de outros microrganismos são
fascinantes demais para serem desdenhados. “O fósforo está
presente em moléculas relevantes como o DNA e os fosfoli-
pídios que formam a parede de nossas células”, diz Fábio
Rodrigues, professor do Instituto de Química da Universida-
de de São Paulo.
A descoberta em Encélado é resultado de persistência
e um pouco de sorte, como acontece nas grandes desco-
bertas. A lua com nome de gigante mitológico é composta
por um núcleo rochoso, além de um imenso oceano com
10 quilômetros de profundidade e uma espessa superfície
congelada. No polo sul do satélite, gêiseres explodem de
maneira constante, emitindo jatos de água, atalho para os
estudos sobre sua composição. Em 2008, a sonda Cassini,
da Nasa, topou com esse fenômeno e coletou amostras. Os
dados foram divulgados agora, finalmente. “Conhecemos
o oceano de Encélado melhor que qualquer outro reserva-
tório extraterrestre”, disse a VEJA Frank Postberg, pes-
quisador da Universidade Livre de Berlim e principal au-
tor de um artigo sobre o assunto publicado na revista
científica Nature.
O anúncio da presença de fósforo nas cercanias de Sa-
turno despertou curiosidade e espanto, pois a substância
química foi encontrada em quantidades 100 vezes maiores
do que nos oceanos terrestres. E mais: estava na forma de

3|6
CLUBE DE REVISTAS

ESA/NASA

A SOLIDÃO VERMELHA
No cinema, nos livros de ficção científica, na poesia, muito antes
de usarmos a expressão alienígena para tratar de seres que ha-
bitariam outros planetas, nos habituamos a chamá-los de “mar-
cianos”. O fascínio por Marte não cessa. Na semana passada,
uma imagem divulgada pela Nasa rodou a Terra ao revelar a soli-

4|6
CLUBE DE REVISTAS

CARTÃO-POSTAL
Vista de Marte feita pelo
robô Curiosity: dia e noite

dão do chão vermelho —


sem nenhum indício de qual-
quer tipo de vida, mesmo
microscópica. A imagem —
uma montagem de duas fo-
tografias, uma diurna e outra
ao entardecer, depois colo-
rizadas — foi feita pelo robô
Curiosity, em missão por ali
desde 2012.
A vista panorâmica mos-
tra o Marker Band Valley. No
centro está o Monte Sharp,
a colina de 5 quilômetros de
altura que a sonda vem subindo há sete anos, incansável. À di-
reita, está a escarpada Rafael Navarro, batizada em homena-
gem a um cientista que morreu em 2021. A Nasa chamou o re-
gistro de “cartão-postal”. É realmente bonito. Alimenta o
deslumbramento pelo planeta rochoso e seu passado. Outras
expedições chegaram a encontrar matéria orgânica em Marte, o
que indicaria algum tipo de vida há mais de 3,5 bilhões de anos.

5|6
CLUBE DE REVISTAS

fosfato de sódio, o que o torna mais fácil de ser absorvido


por seres vivos. “Agora sabemos o segredo de Encélado”,
diz Postberg.
O achado é um exemplo do sucesso de uma nova modali-
dade de investigação científica, que prioriza as luas, e não
apenas os planetas do sistema solar. É um modo de ampliar
as tentativas, estendendo as possibilidades de bons resulta-
dos. “Estamos numa época de quebra de paradigmas”, diz
Roberto Dell’Aglio Dias da Costa, pesquisador de exoplane-
tas e professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciên-
cias Atmosféricas da USP. Sabe-se que os satélites naturais
têm muitas formações de água — e a água, aprendemos na
escola, é caldo para brotar algo que chegue a algum tipo de
metabolismo vivo. Falta, contudo, muita estrada para andar.
A mera presença de todos os seis elementos não é o suficien-
te para garantir que haja vida.
A ciência, em belo enigma, ainda não sabe dizer qual
energia vital é capaz de transformar química em biologia.
Nos próximos anos, com a construção de sondas e teles-
cópios cada vez mais potentes, é provável que surjam res-
postas tão extasiantes quanto assustadoras. Nessa trilha,
o fósforo encontrado em Encélado será para sempre um
capítulo relevante. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
GERAL SOCIEDADE

O ÓCIO DÁ TRABALHO
O direito a um pouco mais de descanso, oxigênio para a
labuta inflexível, virou tema inescapável em todo o
mundo depois das mudanças impostas pela
pandemia MARILIA MONITCHELE

FLEXIBILIDADE O descanso programado:


vantagem competitiva de empresas arrojadas

ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES

1|7
CLUBE DE REVISTAS

EM 1932, o filósofo e matemático britânico Bertrand


Russell (1872-1970) publicou um artigo — O Elogio ao
Ócio — que caiu como uma bomba naquele período de de-
semprego em massa, no auge da chamada Grande De-
pressão. “Uma jornada de quatro horas diárias seria a so-
lução para que as pessoas desfrutem um ócio satisfatório,
podendo eleger o que mais concerne ao seu bel-prazer”,
escreveu. “Trazendo para os dias de hoje, com nossa tec-
nologia industrial e computacional, haveria plenas condi-
ções de haver milhares de postos de trabalho para toda a
população mundial.” Agora, em tempo de internet, na an-
tessala da revolução anunciada pela inteligência artificial,
o raciocínio de Russell soa ainda mais contemporâneo.
Ele autoriza uma indagação, ou duas. Temos direito à pau-
sa? Podemos transformá-la em algo produtivo?
Sim e sim, é o que autoriza responder a novíssima com-
preensão do tema. O ócio foi sempre uma preocupação —
filosófica, sobretudo, porque no terreno das coisas con-
cretas, do cotidiano econômico, soava como anátema. A
pandemia, com a compulsória adoção do home office e,
agora, do sistema híbrido, mudou o curso do rio, e a folga
tornou-se tema sério. “O ócio planejado, seja com regras
claras para toda uma equipe, seja com flexibilidade para
cada um programar seus intervalos, virou demanda de
profissionais e será vantagem competitiva de empresas
arrojadas”, afirma Alexandre Teixeira, autor de O Dia De-
pois de Amanhã (Editora Arquipélago), livro que analisa

2|7
CLUBE DE REVISTAS

FACEBOOK @4 DAY WEEK CAMPAIGN

EXPERIÊNCIA Teste com a semana de


quatro dias: aumento de produtividade

as transformações no trabalho aceleradas pela pandemia


e prevê um conflito entre conservadores e progressistas
na criação de novos modelos organizacionais.
Um indício desse movimento é a discussão sobre a se-
mana de trabalho de quatro dias, que já chegou ao Brasil.
Pelo menos 400 empresas brasileiras já se cadastraram pa-
ra participar de um projeto ancorado no grupo 4 Day Week
Global, destinado a tirar uma jornada da labuta, porque to-
do mundo é filho de Deus. Os testes começarão em setem-
bro. “O equilíbrio entre trabalho e vida pessoal é prerroga-

3|7
CLUBE DE REVISTAS

tiva das novas gerações, cientes da relevância da saúde


mental”, diz Gabriela Brasil, líder do braço brasileiro da 4
Day. “A semana de quatro dias oferece a oportunidade de
manter e até mesmo aumentar a produtividade, enquanto
aprimora o bem-estar dos funcionários.” Não é o caso de
trabalhar mais, mas de trabalhar melhor, no vácuo do que
fazem outros países, que criaram expressões para nomear
o inédito momento (veja o quadro na pág. ao lado).
Recentes estudos demonstraram o sucesso da empreita-
da do ponto de vista dos negócios. Pesquisadores das uni-
versidades de Boston, Dublin e Cambridge acompanha-
ram, em 2022, o cotidiano de 33 empresas dos Estados
Unidos, Irlanda e Austrália que tinham abolido o suor de
segunda a sexta. O resultado: as companhias envolvidas
no levantamento divulgaram que suas receitas cresceram
8% durante o período do estudo, os níveis de sobrecarga
caíram e o período de licença por doença diminuiu.
Convém lembrar que o império da internet bagunçou o
coreto do escritório, e já não é simples discernir o que é
ócio e o que não é. No início do boom das redes sociais, as
empresas costumavam proibir seu uso no ambiente de tra-
balho. Hoje, esses recursos foram completamente incor-
porados às culturas organizacionais. “Uma consequência
evidente desse processo é a maior dificuldade de distin-
guir o que é tempo de trabalho e tempo de não trabalho”,
diz o cientista social Alexandre Fraga, professor do De-
partamento de Sociologia da UFRJ. “Parece se estar co-

4|7
CLUBE DE REVISTAS

QUATRO PALAVRINHAS MÁGICAS


Como a pausa é rotulada em países de culto à
produtividade — mas também ao descanso mental

IK IG A I
japonês
Não há uma versão literal para o português, mas pode ser
traduzido como razão de viver. Ou, então, a resposta à
pergunta diária: o que me faz sair da cama? Combina as
palavras ikiru, que significa “viver”, e kai, “a realização do
que se espera”. É conceito fundamental, que ajuda na lida
contra o cotidiano repetitivo do trabalho

HYG GE
norueguês
Pronuncia-se “riúga”. Bem-estar, acolhimento,
conforto — e aqui também não há um equivalente
literal no português. Nasceu na Noruega e se
popularizou em outros países escandinavos. Em
decorrência de invernos rigorosos e pouca luz, os
moradores desenvolveram o costume de viver
bons momentos entre quatro paredes. Trata-se,
a rigor, de uma sensação agradável

5|7
CLUBE DE REVISTAS

FIKA
sueco
É o ritual de freio, de parada para
pensar e conversar entre amigos e colegas.
Costuma ser acompanhado — no lar ou nos
escritórios — por chá, café e o kanelbulle,
o clássico bolo de canela. Não se trata de
mera interrupção — é também um
conceito, momento de troca de ideias e
experiências, como se fosse uma sessão
de análise em grupo

NIKS E N
holandês
O significado: não fazer nada. É um verbo criado
a partir da palavra niks, que significa nada. Não
se trata de passar um tempo nas redes sociais
ou mesmo de praticar meditação, por exemplo,
no avesso das obrigações diárias. Niksen é um
modo de gerenciar o estresse ou se recuperar
do esgotamento mental e físico — e não se
espera que ocorram para então tomar
uma decisão. É postura compulsória

6|7
CLUBE DE REVISTAS

nectado 24 horas por dia, com o smartphone em mãos.”


A civilização ainda aprende a andar na moderna corda
bamba. Já se intui que o vagar não pode mais ser o tabu
de antes. Não será fácil — mesmo em tempo de tanto
avanço tecnológico — fazer vingar o direito ao dolce far
niente como ferramenta de crescimento profissional. Vale
lembrar o comentário de um outro pensador, contempo-
râneo de Bertrand Russell, o francês André Gide (1869-
1951): “Só nas horas de ócio se fazem coisas excelentes”.
Saber que a questão andou por mentes poderosas amplia a
relevância de um assunto que dá trabalho. ƒ

7|7
CLUBE DE REVISTAS
PRIMEIRA PESSOA

ARQUIVO PESSOAL

1|4
CLUBE DE REVISTAS

O MEDO VAI PASSAR


O engenheiro Saulo Jucá, 51, fala da gratuita surra que
levou em Portugal, fruto da pura expressão de xenofobia

A SENSAÇÃO de que a violência estava escalando no Bra-


sil me fez querer sair do Recife, onde nasci e cresci. Não
desejava para minhas filhas, hoje com 14 e 16 anos, que vi-
vessem num lugar em que você se vê vulnerável, sem se-
gurança. Depois de dois anos de planejamento, aterrissei
com a família na cidade portuguesa de Braga, cheia de bra-
sileiros. Era outubro de 2021, e a ideia sempre foi ficar. O
fato de ter cidadania portuguesa facilitou todo o processo.
Fui bem recebido, mas o preconceito contra brasileiros, às
vezes discreto, noutras mais ostensivo, acabou se tornando
visível para mim em um episódio envolvendo uma sobri-
nha, que também mora lá. Ela e uma amiga, as duas de 15
anos, estavam conversando em um ônibus e, reconhecidas
como brasileiras pelo sotaque, ouviram de uma mulher:
“Vocês devem voltar ao país de onde vieram”. Indignadas,

2|4
CLUBE DE REVISTAS

reagiram àquele preconceito, se queixando, e uma delas le-


vou um tapa no rosto. Uma semana mais tarde, foi a minha
vez de estar no alvo de uma violenta manifestação da mais
pura xenofobia.
Estava com dois amigos em uma cafeteria na rua da mi-
nha casa, onde sou cliente regular. Eles foram embora, e de-
cidi ficar e papear com o dono. De repente, um jovem portu-
guês, que escutava a conversa, perguntou qual era a minha
nacionalidade. Respondi: “Sou brasileiro, com orgulho”. Aí
veio o grande susto quando, do nada, ele partiu para a agres-
são física. Ninguém no entorno se mexeu para me ajudar.
Recebi uma série de socos no rosto e, pego de surpresa, não
tive reação. Logo estava no chão, entre pontapés nas coste-
las e na cabeça. Cansado, o agressor finalmente parou e saiu
correndo dali. Pedi então ao dono do lugar que chamasse a
polícia e uma ambulância. Fui levado a um hospital e passei
24 horas em observação. Me liberaram avisando que, caso
as dores se agravassem, deveria retornar ao pronto atendi-
mento. Quebrei nariz e costela, estou com a boca rasgada,
sem falar dos olhos inchados e da dificuldade — espero que
temporária — de enxergar.
Prestei queixa na delegacia e fiz um exame de corpo de
delito. Venho sentindo na pele o descaso da polícia. Desde
o incidente, em 10 de junho, não me informaram sobre em
que pé se encontra a investigação. Até onde eu sei, as leis
voltadas para a xenofobia são brandas em todo o território
português — o que, infelizmente, leva a uma repetição de

3|4
CLUBE DE REVISTAS

casos como o meu. Torço para que o episódio, que acabou


chamando atenção nas redes, se traduza em mudanças
nesse tipo de postura fincada no preconceito. Acredito que
medidas eficazes para coibir atos assim só se tornarão rea-
lidade se autoridades brasileiras pressionarem o governo
português. Afinal, eles não são agredidos no Brasil. Não é
justo que histórias como a minha sejam toleradas pelas for-
ças de segurança de Portugal. Um ataque tão covarde dei-
xa marcas físicas e psicológicas.
Ainda sinto receio de sair na rua. Por enquanto, não an-
do mais sozinho. Mas não penso em retornar ao Brasil. Te-
nho uma vida interessante em Portugal. Trabalho como en-
genheiro civil e sou feliz aqui. E, é bom lembrar, a rejeição
aos brasileiros nem de longe reflete o espírito de um povo
inteiro. O ódio que embalou o meu caso se restringe a uma
minoria barulhenta. Refleti muito. Mesmo com o episódio
fresco na memória, não posso deixar que essa triste lem-
brança me impeça de demonstrar o orgulho que tenho do
meu país, das minhas origens. Venho sendo acolhido por
uma corrente de solidariedade, tanto de amigos e familia-
res quanto de jornalistas e advogados portugueses. Mere-
cemos respeito, e o ocorrido não pode ficar impune. A dor
no corpo não foi embora, mas o pior mesmo é o medo. Ele
segue comigo, mas sei que vai passar. ƒ

Depoimento dado a Paula Freitas

4|4
CLUBE DE REVISTAS
GERAL ESPORTE

QUE BONITO É…
A Cinemateca Brasileira retoma o projeto
de preservação da coleção do Canal 100,
o cinejornal que tratou o futebol como arte
e marcou época ALESSANDRO GIANNINI

MOVIOLA Na Cinemateca Brasileira: técnicos


examinam rolo por rolo com cuidado de ourives

CINEMATECA BRASILEIRA/DIVULGAÇÃO

1|6
CLUBE DE REVISTAS

ERA COMO UM RITUAL. Entrar em algumas das salas de


cinema no Brasil entre o fim dos anos 1950 e meados dos
1980 significava ter de passar por um cinejornal antes de che-
gar ao programa principal, o filme em cartaz. Um deles, o Ca-
nal 100, cobria todos os tipos de assunto, de política a cultura,
de medicina a economia — e esporte, com evidente preferên-
cia pelo futebol. Introduzido pelos acordes iniciais de Na Ca-
dência do Samba — pã, pã, pã, pã, pã, pã —, canção composta
por Luís Bandeira e imortalizada na versão instrumental de
Waldir Calmon, as cenas de bola nos pés, bola nas redes en-
cantavam corações e mentes.
Não importava se a partida era antiga ou recente, se era do
campeonato carioca, do paulista ou da seleção brasileira. Valia o
privilégio de ver em tela craques como Pelé, Rivellino, Tostão,
Zico, Roberto Dinamite etc., em câmera lenta e ao nível dos
olhos, marca registrada das produções capitaneadas pelo produ-
tor Carlos Niemeyer e sua equipe. Depositado na Cinemateca
Brasileira desde 2011, depois de ser adquirido pelo Ministério da
Cultura (MinC), o acervo do Canal 100, que nos últimos anos
correu risco de desparecer por inépcia e descaso, voltará a ser
examinado, recuperado e classificado. É tesouro inestimável.
O projeto faz parte do movimento Viva Cinemateca, lan-
çado no início do mês. Contempla a retomada de um trabalho
interrompido em 2013, quando uma crise institucional se ins-
talou no maior arquivo audiovisual da América Latina — lo-
calizado no antigo prédio do Matadouro Municipal de São
Paulo — e acabou por descontinuar a recuperação de coleções

2|6
CLUBE DE REVISTAS

ACERVO NOTA 1 000


O tamanho da Coleção do Canal 100 abrigada
na Cinemateca Brasileira desde 2011

8 000
LATAS CONTENDO...

21 000
rolos com cinejornais
veiculados nos cinemas
entre 1959 e 1986

4 500
documentos, entre roteiros, mapas de
distribuição e materiais de divulgação

3|6
CLUBE DE REVISTAS

importantíssimas. O pacote do time de Niemeyer é composto


por 8 000 latas de filmes, contendo mais de 21 000 rolos de
segmentos de notícias. O material, que cobre o período de
1959 a 1986, está em diferentes fases de análise: 10 520 desses
segmentos já foram incorporados e 11 273 ainda devem ser
triados e tratados. É trabalho minucioso, de ourives, que inclui
rever os filmes, identificar o conteúdo, eliminar partes estra-
gadas, fazer emendas e encaminhar para duplicação em su-
porte digital. “Quando reabrimos a Cinemateca, o Canal 100
logo foi definido como prioritário”, diz Gabriela Sousa de
Queiroz, diretora técnica da instituição. “Se não fizéssemos is-
so, as perdas seriam incalculáveis.”
O zelo com o Canal 100 é compreensível e louvável. Ele
mudou a maneira de ver o futebol — e influenciou as cobertu-
ras esportivas em todo o mundo. Dirigidos por Niemeyer, ci-
negrafistas como Francisco Torturra e João Rocha, entre ou-
tros, pilotavam as câmeras Arri 2c alemãs para criar um olhar
mais aproximado das partidas. Eles souberam usar os recur-
sos novidadeiros de seu tempo, como acelerar a velocidade de
exposição da película, para criar uma sensação quase onírica.
É uma aula de cinema, reconhecida por grandes profissionais,
e que ultrapassa as quatro linhas de quem gosta de esporte.
Descobrir o conteúdo dos rolos de filme em 35 milímetros
do Canal 100, ressalve-se, é como montar um quebra-cabeças.
“Daí a importância de se preservar também os documentos es-
critos”, diz Rodrigo Archangelo, pesquisador da Cinemateca.
Muitas vezes, trechos de um cinejornal eram cortados e usados

4|6
CLUBE DE REVISTAS

TESOURO Pelé na seleção, em jogo no Maracanã:


personagem inescapável das câmeras de
João Rocha (acima), sob direção de Carlos Niemeyer

FOTOS CINEMATECA BRASILEIRA/DIVULGAÇÃO

5|6
CLUBE DE REVISTAS
OFERECIMENTO

em outros episódios. Por isso, os roteiros de locução, que seriam


lidos pelo vozeirão inconfundível de Cid Moreira, são funda-
mentais. Com eles, é possível saber quais foram usados em que
cinejornal e, com a ajuda dos mapas de distribuição, onde fo-
ram exibidos. Essa combinação permite separar o trigo do joio,
em belo trabalho de indexação, ao cravar as datas. Identificou-
se, por exemplo, que o cinejornal de número 30, de 1969, traz
imagens raras de dois jogos amistosos da seleção brasileira, ain-
da comandada por João Saldanha, que na Copa de 1970, no
México, seria substituído por Zagallo. O primeiro aconteceu na
inauguração do Estádio Batistão, em Aracaju, na vitória de 8 a 2
de Pelé, Tostão e cia. contra a seleção sergipana. O segundo,
disputado na Ilha do Retiro, no Recife, acompanha o escrete no
6 a 1 diante da seleção pernambucana.
Há pressa no trabalho de salvação, porque o celuloide dos
filmes é perecível e a ação corrosiva do tempo, implacável.
“Por isso, enquanto pudermos, é fundamental preservar as
imagens originais”, afirma Maria Dora Mourão, diretora da
Cinemateca. Para isso, ela conta com 14 milhões de reais
anuais, durante os cinco anos de vigência do contrato de ges-
tão que começou em 2022. Este ano, excepcionalmente, o
MinC acrescentou 10 milhões de reais extras — a ideia é in-
corporar o mesmo valor nos próximos três anos. A soma será
usada na contratação e capacitação de técnicos e na lida com
outras coleções em estado crítico, como os antigos filmes de
nitrato do início do século XX. Recuperar a memória do cine-
ma é um verdadeiro gol de placa, um gol de anjo. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
GERAL IDEIAS

GUERRA
PELA HISTÓRIA
O governo do Egito sobe o tom nas críticas a
interpretações que buscam valorizar a participação
negra em episódios do passado e faz apelo
nacionalista ANDRÉ SOLLITTO

PRECONCEITO A atriz Adele James


como Cleópatra em série da Netflix:
comentários racistas nas redes sociais

NETFLIX

1|5
CLUBE DE REVISTAS

QUEM ACOMPANHA as apresentações de músicos de as-


cendência africana, do jazz, da soul music ou do hip-hop, já
notou a permanente referência ao Egito Antigo como estri-
dente fonte de inspiração. As roupas do pianista Sun Ra
(1914-1993) remetiam a um faraó futurista. Beyoncé e
Rihanna, e nem é preciso apresentá-las, despontam nos pal-
cos coladas à figura da rainha Nefertiti. A iconografia egíp-
cia é associada a poder e resistência.
No início de junho, o Museu Nacional de Antiguidades de
Leiden, na Holanda, inaugurou uma exposição que explora
o casamento da arte dos músicos negros com a cultura do
Egito Antigo. Na engrenagem das redes sociais, não demo-
rou para fazer barulho, ancorado em críticas. A acusação:
“falsificação histórica”. Como retaliação, o governo do país
baniu arqueólogos holandeses de qualquer escavação futura
na necrópole de Saqqara, próxima ao Cairo, um dos mais re-
levantes sítios arqueológicos da atualidade. Na rápida cane-
tada, encerrou-se uma parceria de mais de cinquenta anos.
Não se trata de fato isolado. Há algum tempo, o Egito
vem condenando qualquer representação que busque am-
pliar a diversidade de visões e interpretações sobre o seu ce-
lebrado passado. O caso mais emblemático aconteceu há
poucas semanas, quando a Netflix lançou a série Rainha
Cleópatra, misto de ficção e documentário que põe a atriz
negra Adele James no papel da famosa personagem. Repre-
sentantes do Ministério das Antiguidades ficaram revolta-
dos, afirmando que a governante era mulher de ascendência

2|5
CLUBE DE REVISTAS

LARRY BUSACCA/COACHELLA/GETTY IMAGES

INSPIRAÇÃO Beyoncé com visual


inspirado em Nefertiti: autoridade

helênica, no avesso da versão apresentada pela plataforma


de streaming. No início do ano, o comediante americano
Kevin Hart foi impedido de realizar um show no Cairo por
promover o que seus detratores chamam de afrocentrismo,
movimento que busca recuperar a trajetória de impérios
africanos e apontar o papel determinante dos negros na
construção da civilização ocidental.

3|5
CLUBE DE REVISTAS

A postura adotada pelas


autoridades expõe algumas
das contradições existentes
dentro da egiptologia, ramo da
arqueologia e da antropologia
que analisa a cultura do Egito.
“Por muito tempo, a egiptolo-
gia acabou por instalar o Egito
fora da África”, diz o egiptólo-
go Pedro Luiz Von Seehausen,
do Museu Nacional do Rio de
Janeiro. Isso significa que os
MUSEU NACIONAL DE ANTIGUIDADES/LEIDEN-NL

estudos do Egito não levaram


em conta a intensa troca cultu-
ral existente com outras socie-
dades da região, nem puseram
o país como parte de um con-
ÍCONE Rihanna: na mostra texto mais amplo, geográfico e
em Leiden civilizatório. “Estamos falan-
do de 3 000 anos de história,
de uma sociedade multiétnica”, diz Seehausen. Até hoje, quan-
do se fala em Egito, é comum pensar em Cleópatra e na cons-
trução das pirâmides. Mas os dois eventos estão separados
por mais de 2 500 anos. A monarca, nascida em 69 a.C., está
mais próxima da invenção do iPhone do que da pedra funda-
mental de Gizé (2500 a.C.). Trata-se de fabulação enraizada
no colonialismo que guiou boa parte das pesquisas feitas so-

4|5
CLUBE DE REVISTAS

bre o Antigo Egito por séculos, ao bagunçar a linha do tempo.


Representações populares da cultura pop ajudaram a dar for-
ça a esse movimento, como é o caso de Cleópatra, filme de
1963 estrelado pelos olhos violetas de Elizabeth Taylor.
Convém ressaltar que os ventos mudam de direção, e que
o incômodo de agora era menor até outro dia. Na década de
1960, havia uma relação de proximidade entre as autorida-
des do Egito e grandes figuras do movimento pan-africanis-
ta, que buscava a união entre povos africanos de diferentes
países e membros da diáspora. O então presidente Gamal
Abdel Nasser recebeu o líder Malcolm X e o boxeador
Muhammad Ali, entre outros. Na última década, no entanto,
a mudança política fez com que houvesse alguma reafirma-
ção de uma certa “verdadeira identidade egípcia”, seja lá o
que isso significa, baseada na herança das antigas dinastias,
em movimento de nacionalismo e populismo escancarado.
É postura isolacionista, que fecha os olhos aos contatos e
trocas culturais que aconteciam no Mediterrâneo e no norte
da África lá atrás, e que ainda hoje se espalham — e parece
evidente haver influência negra no repertório egípcio. Enten-
der que houve, sim, influência africana só enriquece o plura-
lismo de um capítulo crucial da humanidade. É construção
coletiva, que pressupõe conhecimento e debate, mas nunca a
exclusão. Ninguém é dono da verdade. Impor uma visão úni-
ca — o Egito sem miscigenação — ou um revisionismo pouco
embasado em fatos é repetir os erros de sempre ou, na me-
lhor das hipóteses, andar de lado, como nos hieróglifos. ƒ

5|5
CLUBE DE REVISTAS
GERAL ESTILO

O COURINHO BÁSICO
Novo titã da tecnologia, o bilionário Jensen
Huang prova com a sua jaqueta preta que
o Vale do Silício também é capaz de influenciar
o universo da moda SIMONE BLANES

EXECUTIVO POP STAR O rei dos chips no palco: traje-


padrão do CEO da Nvidia evoca rebeldia e busca pela inovação

DAVID PAUL MORRIS/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

1|5
CLUBE DE REVISTAS

COM TODOS OS HOLOFOTES voltados para si, o magna-


ta da indústria dos chips e CEO da Nvidia, empresa sediada
em Santa Clara, na Califórnia, não perde a chance de reafir-
mar: “Pessoas inteligentes se concentram nas coisas certas”.
Ao lidar com a matéria-prima de praticamente qualquer com-
putador e celular na face da Terra, o engenheiro americano de
origem taiwanesa Jensen Huang transformou a empresa num
gigante — membro do seletíssimo grupo de companhias com
valor de mercado acima de 1 trilhão de dólares. Tanto sucesso
reside em seu microchip de processamento de dados, chave
para o desenvolvimento da inteligência artificial (IA) e dos re-
cursos mais avançados que hoje pululam no universo eletrô-
nico. Mas a nova estrela do Vale do Silício também se concen-
tra em outra peça, onipresente em seus maiores voos finan-
ceiros e midiáticos: a jaqueta de couro preta.

DAVID PAUL MORRIS/BLOOMBERG/GETTY IMAGES


JUSTIN SULLIVAN/GETTY IMAGES

UNIFORME Steve Jobs e Mark Zuckerberg:


roupas que viram marcas pessoais

2|5
CLUBE DE REVISTAS

Sem despertar tanto alar-


de no início, a roupa se tornou
uma marca registrada do em-
presário. Faça chuva, faça sol,
faça frio ou faça calor, em
conferências, passeios ao ar
livre ou na capa da revista Ti-
me, Huang só dá o ar da graça
vestindo uma delas. À primei-
ra vista, os trajes parecem to-
dos iguais. Mas é ilusão de
ótica para os desatentos. São
vários modelos e estilos —
dos mais clássicos e lisos aos
cheios de detalhes, que reme-
tem a motociclistas, roqueiros
e galãs de Hollywood. Mas
tem de ser de couro, o couri-
nho básico, e tem de ser preta.
Pode vir de lojas anônimas,
mas também de grifes, como
a italiana Emporio Armani.
“Homens que realizam gran-
DIVULGAÇÃO

des feitos e escolhem uma pe-


ça como marca registrada ÍCONE Emporio Armani:
têm a intenção de imprimir jaqueta de couro segue
uma identidade”, diz Mario protagonista em desfiles

3|5
CLUBE DE REVISTAS
JOHN KOBAL FOUNDATION/GETTY IMAGES

HOLLYWOOD Marlon Brando em O Selvagem (1953):


vestuário como manifesto propagado pelo cinema

Queiroz, designer de moda masculina e PhD em comunica-


ção e semiótica. “São até associados a super-heróis, que sem-
pre usam as mesmas roupas.”
Nessa toada, o empresário mantém uma tradição no
meio tecnológico: a dos fundadores que viram a cara da
companhia e inspiram novas gerações. Basta lembrar de
Steve Jobs e sua icônica camiseta preta com gola alta nos
lançamentos da Apple, desenhada pelo japonês Issey Miya-

4|5
CLUBE DE REVISTAS

ke. Ciente do simbolismo do vestuário, Huang já brincou


mais de uma vez, ao dizer que as pessoas se recordariam de-
le como “o cara da jaqueta de couro”. Sim, por mais que exe-
cutivos digam que não se preocupam com a moda porque
precisam centrar esforços nos negócios, sabem que ela ajuda
a criar discursos, mandar mensagens, conquistar admiração
e influenciar a opinião pública. Por isso, a escolha do dono
da Nvidia não se deu ao acaso. Emblema de juventude, e ou-
trora também de rebeldia, popularizada por galãs contro-
versos como Marlon Brando e James Dean, a peça é o opos-
to do que se vislumbra para um geek insosso. “ A jaqueta de
couro preta conecta ao cinema dos anos 1950, a um senso
de independência e de estrada aberta”, diz Joseph Rosenfeld,
consultor de imagem e estilista do Vale do Silício.
Com sua assinatura visual, falsamente simples, Huang
lança mão de um truque: na era da IA, das fake news, das
sombras em torno dos saltos da computação, ele consegue
se destacar em meio à planície, deixa o anonimato e pula
para a ribalta. Sobe aos palcos com ares de celebridade pop
— sem o mítico charme de Jobs, é verdade, mas também
sem a falta de sal atávica de Mark Zuckerberg e suas cami-
setas cinzentas. Convém prestar atenção no cara da jaqueta
de couro, mas sobretudo na peça que ele tira do armário, o
courinho básico. ƒ

5|5
CLUBE DE REVISTAS
GERAL GASTRONOMIA

VINHAS DO ZELO
Ao ampliar a adoção de práticas sustentáveis,
produtores do Velho e do Novo Mundo ajudam a
preservar a natureza sem sacrificar a qualidade
de seus prestigiados rótulos ANDRÉ SOLLITTO

REFERÊNCIA O Esporão, na região do Alentejo, em Portugal:


responsável por 18% de todo o vinho orgânico do país

FRANCISCO RIVOTTI/ESPORÃO

1|6
CLUBE DE REVISTAS

NA PRODUÇÃO do vinho, a qualidade final da bebida é di-


tada por aquilo que os especialistas chamam de terroir, em
francês, a combinação entre clima, solo adequado, uvas e as
técnicas empregadas para que se aproveite o melhor de cada
região. Não basta, contudo, para que um rótulo cresça e apa-
reça, apenas a magia do cultivo em condições ideais — o
universo da bebida está sempre atento às boas práticas agrí-
colas. O mercado pune o descuido. É natural que as discus-
sões sobre sustentabilidade que permeiam a agricultura de
hoje desembarcassem também nos vinhedos. É movimento
bom e crescente, que garante a longevidade das plantações
viníferas em cenário de mudanças climáticas e garante ao
consumidor um produto final celebrado pelo sabor, sim,
mas também pela história que carrega.
Bem-vindo, portanto, ao mundo dos vinhos orgânicos. A
Europa, continente de enorme tradição, está à frente desse
processo. Os dados mais relevantes, compilados em 2019
pela OIV (Organização Internacional da Vinha e do Vinho),
apontam que a maior parte dos vinhedos de zelo especial
com o chão, digamos assim, estão lá, principalmente na
França, Espanha e Itália, com expansão de 13% ao ano, em
média. Em Portugal, o melhor exemplo vem do Esporão, do
Alentejo. O grupo, que controla também as marcas Quinta
dos Murças, no Douro, e Quinta do Ameal, da região dos
Vinhos Verdes, ao norte, lida organicamente com algo em
torno de 650 hectares, porção de terra equivalente a 650
campos de futebol. Há ainda outros 111 hectares de olivais

2|6
CLUBE DE REVISTAS

orgânicos. “No início, a decisão de migrar para a agricultura


orgânica foi baseada na qualidade dos vinhos, e não em mu-
danças climáticas”, diz João Roquette, CEO do grupo. O em-
presário diz ter decidido a virada de modelo depois de pro-
var, lado a lado, às cegas, taças vindas de terra e plantas tra-
tadas com químicos e taças de produção isenta de defensi-
vos agrícolas. As “puras” eram superiores.
Para a opinião pública, no entanto, a percepção era
oposta. Vinhos orgânicos eram tidos como piores. “Deci-
dimos, então, não divulgar que os vinhedos eram orgâni-

EMILIANA SALVAJE 2020 ESPORÃO RESERVA 2019


Blend da uva tinta Primeiro rótulo produzido pelo
syrah com um toque Esporão, em 1985, hoje é um
da variedade branca clássico da região do Alentejo,
roussanne. Produzido no Valle em Portugal. Blend de sete
de Casablanca, no Chile, é um castas distintas, passa ainda
vinho orgânico de perfil fresco, doze meses em barricas. O
com muita fruta preta e toques resultado é complexo, com
florais. Não passa por madeira. fruta e especiarias.

3|6
CLUBE DE REVISTAS

cos”, diz Roquette. Logo, a situação mudou. Hoje, o Espo-


rão é responsável por 18% de toda a produção orgânica
certificada no país e tem diversos rótulos premiados. No
processo de migração para a agricultura orgânica, há qua-
se vinte anos, foi preciso buscar inspiração em algumas
das poucas vinícolas do mundo que andavam à frente. A
mais celebrada e responsável era a chilena Emiliana. Dona
do maior vinhedo orgânico do planeta, com mais de 900
hectares, a empresa hoje abre suas portas para que outros
produtores, de todo o mundo, possam aprender as técnicas

EMILIANA ORGANIC VINEYARDS/DIVULGAÇÃO

PIONEIRA Uvas produzidas no Chile


pela Emiliana: maior vinhedo orgânico

4|6
CLUBE DE REVISTAS

O BACO DO BEM
O tamanho da produção orgânica

500 000 hectares


de vinhedos certificados no
mundo em 2019

6,2%
do total cultivado
(em 2005 era
apenas 1,4%)

75%
estão na França, Itália
e Espanha

Fonte: OIV (International Organisation of Vine and Wine)

5|6
CLUBE DE REVISTAS

necessárias. “Adotar a agricultura regenerativa sustentá-


vel, orgânica e biodinâmica, produzindo vinhos de alta
qualidade, além de respeitar nossos trabalhadores, e ao
mesmo tempo gerar lucros, é a forma de demonstrar que é
possível seguir o caminho da produção agrícola biológica
em grande escala na indústria do vinho”, afirma Alejandro
Smith, diretor de vendas da Emiliana.
A preocupação ambiental começa a ganhar força no Bra-
sil, embora ainda de forma tímida. O melhor exemplo vem
da Chandon. A marca do conglomerado de luxo LVMH
produz espumantes premiados no sul do país e desde o fim
do ano passado ostenta a certificação sustentável PIUP
(Produção Integrada de Uva para Processamento) em seu
vinhedo de Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul. O
selo de qualidade obriga a regras rígidas para o uso de herbi-
cidas e outros químicos. Não são vinhos orgânicos, a rigor,
mas produzidos de modo menos agressivo com a natureza.
É ótimo caminho. Os produtores garantem — e enólo-
gos confirmam — que o paladar é preservado. E mais: a
agricultura sustentável pode enriquecer a percepção da
fruta na hora da degustação. É um agradável incentivo, de
mãos dadas com os humores da sociedade, hoje. A preser-
vação do solo e a redução do uso de pesticidas são compul-
sórias — ainda que os preços, na ponta final, sejam mais
elevados. “Quando começamos, disseram que era impossí-
vel. E agora, cá estamos”, diz Roquette, da Esporão. Um
brinde aos vinhos bons e do bem. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
CULTURA CINEMA
LUCASFILM

MACHÃO OBSTINADO
Em Indiana Jones e a Relíquia do Destino,
Harrison Ford volta ao papel do histórico
aventureiro — e põe à prova sua relevância

RAQUEL CARNEIRO

1|7
CLUBE DE REVISTAS

NOVA ETAPA Ford e Phoebe em cena: em vez de paquera,


aventura agora é com afilhada

A
s aulas de arqueologia ministradas pelo professor
Indiana Jones sempre foram concorridas — e
atraíam especialmente a atenção de jovens moças
que apreciavam não só o tema do curso como tam-
bém (ou principalmente) a beleza rústica do mes-
tre de sorriso malandro e olhos esverdeados. Tal quadro é o

2|7
CLUBE DE REVISTAS

total oposto do apresentado em Indiana Jones e a Relíquia


do Destino (Indiana Jones and the Dial of Destiny; Estados
Unidos; 2023): no quinto filme da saga, que estreia nos cine-
mas na quinta-feira 29, o tédio reina em sala de aula, tanto
entre alunos quanto para o professor em decadência, prestes
a se aposentar.
Aos 80 anos, o aventureiro já não tem mais o vigor de ou-
trora, que lhe permitia arrombar tumbas milenares, driblar
animais peçonhentos e enfrentar perigos em busca de relí-
quias. Seus dias de ação parecem contados, até ver-se diante
de um chamado irresistível: como no primeiro filme, Os Ca-
çadores da Arca Perdida (1981), ambientado na década de
1930, nazistas estão de novo atrás de um artefato poderoso
capaz de lhes conferir o direito de bagunçar o rumo da his-
tória. Logo, o herói incansável deve sacudir a poeira — e
chegar ao objeto em questão antes deles.
Nome incontornável da história do cinema, o persona-
gem vivido por um charmoso Harrison Ford encara no no-
vo filme não só um velho inimigo, mas um teste de resistên-
cia. Após a trilogia bem-sucedida dos anos 1980, um quarto
filme da franquia, de 2008, se mostrou uma despedida pífia
para o personagem. Agora, o arqueólogo de chapéu fedora e
chicote em mãos quer provar sua relevância tanto para a no-
va geração quanto para os que o acompanharam em tempos
áureos — isso, antes que o próprio se torne um item arqueo-
lógico. “Eu tinha dentro de mim uma curiosidade sobre co-
mo ele estaria na minha idade, como seria encerrar uma vi-

3|7
CLUBE DE REVISTAS

LUCASFILM

ARQUI-INIMIGO Mads Mikkelsen como o vilão Voller: cientista


nazista tenta voltar no tempo e vencer a II Guerra Mundial

da de aventuras”, disse Harrison Ford em entrevista a VEJA


(leia na próxima página).
Indiana nasceu de uma parceria criativa curiosa entre os
amigos Steven Spielberg e George Lucas, criador de Star Wars
— Spielberg dirigiu os quatro filmes iniciais, e Lucas foi produ-
tor-executivo. A dupla de gurus de superproduções de ação,
aventura e fantasia estipulou um padrão a ser seguido no filão
que sobrevive até hoje em Hollywood. Para além da alta dose
de adrenalina e das sequências alucinantes, receita que já havia
sido delineada nos filmes de James Bond nos anos 1960, os ci-
neastas adicionaram uma pitada extra de humor e outra de ro-
mance, além de uma narrativa que se revelou eficaz para atrair
famílias ao cinema. Indiana anda acompanhado por tipos inu-
sitados em ambientes exóticos: já foram seus parceiros desde

4|7
CLUBE DE REVISTAS

“OS NAZISTAS
AINDA EXISTEM”
Harrison Ford, 80 anos, fala a
VEJA sobre sua jornada ao
lado do Indiana Jones.

Quinze anos após o


lançamento do quar-
to filme, como foi
voltar ao figurino
de Indiana Jones?
Eu tinha dentro de
mim uma curiosida-
de sobre como ele
estaria na minha ida-
de, como seria encerrar
uma vida de aventuras.
O roteiro me atraiu, pois

DÉJÀ-VU
Indiana jovem: de
olho no passado
LUCASFILM

5|7
CLUBE DE REVISTAS

se mostrou consistente com o que eu sinto sobre envelhecer e


o que vejo entre meus amigos. A gente começa a pensar mais
na família e no que fez ao longo da vida, e o que vai fazer com o
resto que ainda tem. E queremos sentir que tudo valeu a pena.

Assim como o personagem, o senhor é um aventu-


reiro. Como equilibra essa paixão e o passar dos
anos? Não acho que é uma questão de equilíbrio, mas sim de
entender e aceitar que uma hora um sobressai ao outro. O In-
diana está aprendendo isso. Ele chegou a um momento da vida
em que precisa aceitar as limitações do corpo e encarar os er-
ros e acertos do passado.
No primeiro filme, ambientado na década de 30, In-
diana lutou contra nazistas. Por que voltar a esse ti-
po de vilão em um filme que se passa nos anos 60 e
é lançado em 2023? Porque os nazistas ainda existem. No
primeiro filme, a relação histórica era muito preto no branco, os
nazistas eram maus e ponto. Nos anos 60 e agora, é diferente.

Como assim? Os anos 60 foram um período de contrastes.


Tivemos o rock’n’roll, o movimento pelos direitos civis, a corrida
espacial, e os nazistas se infiltraram nessa construção de fo-
guetes. Mas é importante lembrar: eles ainda eram nazistas. O
que quero dizer é que o horror do nazismo não pode ser minimi-
zado, não importa em que lugar da sociedade eles estejam.

6|7
CLUBE DE REVISTAS

uma criança (Ke Huy Quan no segundo filme, Indiana Jones e


o Templo da Perdição) até o pai idoso (Sean Connery, uma pre-
sença luxuosa do terceiro longa, A Última Cruzada). Sem es-
quecer, claro, de mulheres belas e extremamente sagazes.
As personagens femininas da saga Indiana Jones nunca fo-
ram só objetos nas mãos de um macho alfa: ao contrário das
bond girls, eram mocinhas destemidas e independentes. Ainda
assim, porém, o novo filme precisou evoluir nessa seara: namo-
rar uma estudante muito mais jovem está fora de cogitação.
Aqui, o par feminino é a afilhada Helena, a pop Phoebe Waller-
-Bridge, da série Fleabag. “Parte do roteiro é mostrar o esforço
do personagem para se adaptar a um mundo onde ele se sente
deslocado”, disse a VEJA o diretor James Mangold (de Logan e
Os Indomáveis). “Ele se questiona sobre seu papel neste mundo.”
O mundo em questão é a virada dos anos 1960, período de
ebulição cultural, política e tecnológica. A produção abre com
o herói um pouco antes, em 1944, rejuvenescido com empur-
rãozinho de efeitos para enfrentar o cientista alemão Jürgen
Voller (Mads Mikkelsen) na caçada por um pedaço da Anticí-
tera, a Relíquia do Destino do título, objeto que teria sido de-
senvolvido pelo matemático Arquimedes na Grécia Antiga. O
filme salta para 1969, quando o Indiana aposentado conhece
Helena e parte para encontrar a outra parte do artefato. Diz a
lenda que, quando completa, a Anticítera seria capaz de reali-
zar viagens no tempo. Para o vilão, seria a chance de dar a vi-
tória da II Guerra aos nazistas. Já Indiana nem precisa disso:
aos 20 ou 80 anos, o machão continua a toda. ƒ

7|7
CLUBE DE REVISTAS
CULTURA MÚSICA

ÍDOLOS VIRTUAIS
Com o avanço da inteligência artificial, o pop coreano
já começa a substituir artistas humanos por figuras
digitais hiper-realistas. O resultado é
impressionante — e assustador

BELEZA FAKE As “garotas” do Mave: elas cantam, dançam


e não tem chiliques e problemas das estrelas em carne e osso

INSTAGRAM @MAVE_OFFICIAL_

1|3
CLUBE DE REVISTAS

FORMAR UM ÍDOLO do k-pop não é tarefa fácil. Os pos-


tulantes devem saber cantar, dançar, compor e tocar, num
treinamento que pode durar cinco anos. Eles precisam ain-
da ser bonitos e não ter passado polêmico. Quando estreiam,
enfim, nada garante o sucesso — e a pressão é tão grande
que muitos sucumbem à depressão e até ao suicídio. Trata-
se de uma cultura difícil de ser mudada, já que os fãs bus-
cam ídolos perfeitos e se exige do artista um nível de perfor-
mance quase do padrão de uma máquina. Com a populari-
zação da inteligência artificial na música, é exatamente isso
que está acontecendo no showbiz da Coreia do Sul. Dois no-
vos grupos femininos de k-pop, Eternity e Mave, exibem be-
las meninas entre 19 e 20 anos — só que de mentirinha: elas
são figuras hiper-realistas criadas digitalmente.
A aposta nos popstars high-tech remonta à década de
70, quando os músicos do Kraftwerk surgiram no palco
imitando a postura de autômatos, de forma a harmonizar
com os sons e batidas de sintetizadores. Agora, ocorre o
inverso, ou seja, são robôs fazendo o papel de gente de car-
ne e osso. As vozes das novas sensações do k-pop foram
criadas por computador e suas fisionomias surgiram a par-
tir de uma mescla do que é considerado padrão de beleza
na Coreia do Sul.
O resultado é, ao mesmo tempo, impressionante e assusta-
dor. Apesar de não esconderem que são personagens virtuais,
as meninas interagem com os fãs tal como artistas reais. Elas
dão entrevistas contando seus gostos pessoais (“curto fazer

2|3
CLUBE DE REVISTAS

imitações”, diz Seoa, do Eternity) e mostram sua rotina “hu-


mana”. Só não fazem — ainda — shows ao vivo.
Formado neste ano, o Mave tem só duas músicas lança-
das, mas já acumula visualizações de fazer inveja a muito
artista de carne e osso. A faixa Pandora, que surgiu em ja-
neiro, já tem 24 milhões de views no YouTube. O Eternity,
criado há cerca de um ano, segue a mesma toada. A canção
DTDTGMGN já acumula 6,5 milhões de views. Os clipes
têm tudo que os fãs de k-pop amam, com suas coreografias
elaboradas, ídolos carismáticos e músicas dançantes.
Obviamente, a criação de novos ídolos tem um claro ob-
jetivo comercial: a ideia é transformar as personagens em
influencers e lucrar alto com elas. Nisso, os avatares musi-
cais oferecem um custo-benefício notável — ainda que con-
troverso. Enquanto humanos têm problemas pessoais e dão
trabalho, seus similares virtuais não falham. “Os escânda-
los das estrelas reais do k-pop são um risco para os negó-
cios”, já declarou Park Jieun, produtora da Eternity. Pelo jei-
to, o show dos ídolos virtuais só começou. ƒ

Felipe Branco Cruz

3|3
CLUBE DE REVISTAS
CULTURA PERFIL

PROFETA DO
APOCALIPSE
Na nova temporada de Black Mirror, o inglês Charlie
Brooker volta a expor com sagacidade os riscos da
era das redes e da tecnologia — e se reafirma como
oráculo pop AMANDA CAPUANO

OLHAR ÁCIDO O roteirista: nem a Netflix escapa


de suas críticas afiadas

MICHAEL WHARLEY/NETFLIX

1|5
CLUBE DE REVISTAS

DURANTE A PANDEMIA, Charlie Brooker — como tantos


mortais pelo globo — viu-se de repente trancado em casa sem
ter o que fazer. Um dos mais sagazes roteiristas da TV britâni-
ca, ele vivia então um interregno na produção de seu “filhote”
mais famoso, a série Black Mirror — fenômeno da Netflix que
explora, a cada episódio, uma trama distópica sobre a era da
alta tecnologia e das redes sociais. Para aplacar o tédio,
Brooker rendeu-se a um prazer que fisgou muitos especta-
dores no isolamento: assistir às viciantes séries de true cri-
me, documentários que reinvestigam assassinatos e outros
casos policiais notórios. O tempo investido não foi perdido:
Brooker extraiu da experiência aquele que é possivelmente o
melhor episódio da sexta temporada de Black Mirror, que
estreou no streaming há duas semanas. Em Loch Henry, po-
rém, ele não faz exatamente uma homenagem ao gênero te-
levisivo que tanto o entreteve: ao falar sobre um jovem esco-
cês que decide remexer numa antiga tragédia de sua locali-
dade para faturar com uma série documental, Brooker em-
preende uma crítica sobre os perigos de transformar crimes
que destruíram vidas reais em entretenimento.
É com esse olhar peculiar, capaz de desnudar contradi-
ções e riscos por trás de avanços tão integrados à paisagem
atual quanto os celulares ou o streaming, que Brooker con-
quistou o trono de oráculo pop. Seu reinado balançou em
2019, é verdade, quando a decepcionante temporada ante-
rior de Black Mirror despertou temores de um esgotamento
da fórmula. Mas, com três de seus cinco episódios entre os

2|5
CLUBE DE REVISTAS

PERTURBADOR Aaron Paul na série: astronautas


que levam existência dupla

melhores que já fez, a nova fornada repôs o programa nos


eixos — e no ranking de audiência da Netflix. “Quando a sé-
rie surgiu, não havia tantos programas que suspeitavam da
tecnologia. Hoje são muitos, então um dos desafios é dife-
renciar Black Mirror dos outros”, disse Brooker a VEJA.
Lançada em 2011 no britânico Channel 4 e comprada pe-
la Netflix em 2015, Black Mirror se consolidou com tramas
que levam os efeitos colaterais da tecnologia à última potên-
cia — o “espelho preto” do título é referência às telas dos
computadores, TVs e smartphones. O trabalho, no entanto,
está longe de ser calcado em previsões sobrenaturais: é re-
sultado de uma observação atenta da realidade. Em um dos
episódios mais famosos de temporadas anteriores, a obses-
são por aprovação nas redes deságua numa realidade em
que a existência humana é avaliada com base em likes.
NICK WALL/NETFLIX

3|5
CLUBE DE REVISTAS

QUASE REAL O episódio Queda Livre: busca obcecada


por likes nas redes

Na nova leva, o perturbador Beyond the Sea, com Aaron


Paul, imagina a possibilidade de astronautas passarem lon-
gos períodos no espaço enquanto podem se transportar pa-
ra réplicas de seus corpos, que levam vidas normais na Ter-
ra — duplicidade que cobra alto preço moral. Nem a Netflix
escapa de alfinetadas: em A Joan É Péssima, uma mulher
descobre que sua vida foi vertida em série por um streaming
ganancioso chamado Streamberry — desenhado, de forma
autorizada, a partir da plataforma. “É estranho pensar nas
pessoas assistindo a isso na Netflix”, diz Brooker.
Nascido em Reading, na Inglaterra, Charlton Brooker foi ba-
tizado em homenagem a um personagem fortuito da sitcom A
Feiticeira, da qual os pais eram fãs nos anos 1970. A relação
com a tecnologia começou cedo, por meio dos videogames.
Brooker estudou comunicação, mas acabou não se formando
DAVID DETTMANN/NETFLIX

4|5
CLUBE DE REVISTAS

porque a universidade não aceitou uma dissertação sobre jogos.


Na carreira artística, foi de cartunista a roteirista de séries satíri-
cas. Antes de Black Mirror, escreveu Dead Set, sobre um apoca-
lipse zumbi dentro da casa do Big Brother.
Para o criador de 52 anos, o desafio é que a realidade hoje
teima em ser mais distópica que a ficção. Em 2016, três anos
após fazer um episódio em que um personagem de desenho
animado populista concorria ao Parlamento, o americano
Donald Trump chegou ao poder — e o Twitter da série fez
um post esclarecendo que não se tratava de um novo Black
Mirror. Na nova temporada, tentou usar a inteligência artifi-
cial para bolar um programa. Foi um fiasco: o ChatGPT só
reciclou tramas de sua autoria “sem um pingo de originalida-
de”. Ser profeta do apocalipse não é para qualquer um. ƒ

5|5
CLUBE DE REVISTAS
CULTURA TELEVISÃO

INIMIGOS ENTRE NÓS


Na série Invasão Secreta, Samuel L. Jackson
entra em cena para combater ETs que querem
dividir os humanos — alegoria política que areja a
saturada fórmula da Marvel KELLY MIYASHIRO

FORÇAS ESTRANHAS Soldado com um alienígena skrull


em Invasão Secreta: uma trama de espionagem de outro mundo

MARVEL STUDIOS

1|6
CLUBE DE REVISTAS

A TENSÃO entre os Estados Unidos e a Rússia está em al-


tíssima temperatura — com ramificações geopolíticas pela
Europa e outros continentes. Da primeira-ministra da Ingla-
terra ao secretário de Defesa americano, as autoridades pa-
recem, estranhamente, dispostas a botar ainda mais água
quente na fervura — o que pode levar a uma guerra planetá-
ria. Figurinha carimbada nas produções da Marvel desde
2008, o marrento Nick Fury (Samuel L. Jackson) entra em
cena então para esclarecer: o que está em jogo no enredo de
Invasão Secreta, nova minissérie da Marvel que acaba de
estrear no Disney+, não é coisa desse mundo. Na verdade, o
mentor dos super-heróis da agência secreta S.H.I.E.L.D. pre-
cisa impedir a tomada da Terra por skrulls, alienígenas que
conseguem se metamorfosear em humanos, replicando sua
aparência exata — e que já estão infiltrados em cargos de li-
derança pelo mundo, com o objetivo de atiçar um conflito.
A nova trama da Marvel se vale de extraterrestres para
tecer uma alegoria política bem concreta: os aliens aqui re-
presentam as forças que dividem e envenenam as institui-
ções democráticas no presente, dos propagadores de fake
news aos extremistas. Com essa premissa, Invasão Secreta
afasta o estúdio, ainda que momentaneamente, das satura-
das tramas sobre metaversos e heróis mitológicos, para reto-
mar um filão que já explorou tão bem em produções como o
longa Viúva Negra, com sua história de espionagem calcada
na Guerra Fria. Só por fugir à sua zona de conforto, a série já
seria um belo acerto — não à toa, vem sendo saudada como

2|6
CLUBE DE REVISTAS

MARVEL STUDIOS

ESTREIA DE LUXO Olivia Colman em


sua primeira vez na Marvel: lutando

superior a suas outras apostas no Disney+, como Loki (2021)


e Ms. Marvel (2022).
O fato de a série ter um protagonista com o cacife fulgu-
rante de Samuel L. Jackson faz também toda a diferença, cla-
ro. Seu Nick Fury chegou a morrer no evento conhecido co-
mo Blip — quando o vilão Thanos dizimou metade de todos
os seres vivos do universo no filme Vingadores: Guerra Infi-
nita (2018). O agente especial voltou à vida no longa seguinte
da franquia, Ultimato (2019), e agora troca o posto de coad-

3|6
CLUBE DE REVISTAS

MARVEL STUDIOS
HERÓI SEM CAPA Jackson como Fury:
barba grisalha e joelho avariado

“TODOS AMAM RESOLVER


UM MISTÉRIO”
Aos 74 anos, Samuel L. Jackson conversou com VEJA sobre a
primeira jornada-solo de seu marcante personagem Nick Fury
no Universo Cinematográfico Marvel.

4|6
CLUBE DE REVISTAS

O que o senhor destacaria como a mensagem


principal de Invasão Secreta? É sobre como deter-
minar que aquela pessoa que você conhece é realmente
ela. Os skrulls são capazes de mudar de aparência e estar
em qualquer lugar que eles queiram. Então, a trama é so-
bre decidir em quem se deve confiar.

Na série, Nick Fury enfrenta críticas a respeito


da idade e o acusam de estar enferrujado. Acha
que ele devia se aposentar? Eu só acho que ele pre-
cisa de uma cirurgia no joelho e de uma ida a um salão de
cabeleireiro. Ele pode tingir a barba grisalha, e assim volta-
rá a ser o antigo Fury de sempre.

Na sua visão, por que as pessoas são tão atraí-


das por produções de espionagem? Todo mundo
adora resolver um problema ou desvendar quem é o res-
ponsável por algum fato obscuro. A espionagem é boa por
nos fazer desconfiar.

Invasão Secreta faz uma clara analogia à políti-


ca da vida real, certo? Sim, tem um pouco da crise de
imigração mundial e outros problemas reais, mas tentamos
fazer uma série para as pessoas se divertirem.

5|6
CLUBE DE REVISTAS

juvante pelo de protagonista. Na nova série, ele tem de en-


frentar Gravik (Kingsley Ben-Adir), um líder skrull sedento
por poder, cujo objetivo é semear o caos com atos de terroris-
mo, matando inocentes e levando os humanos a se dilacerar.
“Como confiar nos alienígenas, se eles podem se transformar
em qualquer um? Isso nos faz desconfiar de todos”, disse
Jackson a VEJA (leia no quadro da página anterior).
No passado, Fury prometeu achar um lar para os skrulls
após eles terem seu planeta natal destruído — em outra alu-
são política, dessa vez à situação dos refugiados. Mas uma
parcela rebelde cansou de esperar. Mesmo acusado de estar
fora de forma, o agente decide impedir a guerra sozinho. Ou
melhor: conta com uma aliada de luxo para a causa, a per-
suasiva agente (humana) Sonya — vivida por Olivia Col-
man, na estreia da atriz no universo da Marvel. A experiên-
cia de duelar com ETs empolgou a estrela de The Crown.
“Você está lutando com o desconhecido. Isso mexe com a
sua cabeça. E se aquela pessoa que você acha que conhece
na verdade for um skrull?”, disse Olivia a VEJA. Realmente,
o inimigo pode estar entre nós. ƒ

6|6
CLUBE DE REVISTAS
CULTURA VEJA RECOMENDA

TELEVISÃO
SEQUESTRO NO AR (estreia na quarta-feira 28, na Apple TV+)
AIDAN MONAGHAN/APPLE TV+

NEGOCIADOR Idris Elba como Sam: herói improvável que tem


a missão de salvar os 200 passageiros de um voo

Sam Nelson só quer viajar de Dubai a Londres para reconquis-


tar sua ex-mulher e reencontrar o filho. O voo de sete horas,
entretanto, vira cenário de pânico quando um grupo terrorista
armado sequestra o avião no ar, sem deixar clara sua motiva-
ção. Cabe a Sam (o sempre carismático Idris Elba), exímio ne-
gociador de conflitos empresariais, a missão de convencer os
bandidos a manter todos vivos. Para isso, precisará negociar
com os criminosos, enquanto mantém os 200 passageiros re-
féns sob controle. Neste thriller de sete episódios, o herói se
sustenta em camadas mais profundas — pois, sem poder usar
sua força física, abusa da lábia irresistível para conseguir fazer
com que a aeronave tente pousar com segurança em seu desti-
no final — seja ele qual for. Um suspense potente e eletrizante.

1|8
CLUBE DE REVISTAS

CONCEITUAL
Afrofuturista:
Janelle canta sobre
um mundo liderado
por mulheres
INSTAGRAM @JANELLEMONAE

DISCO
THE AGE OF PLEASURE,
de Janelle Monáe (disponível nas plataformas de streaming)
A americana Janelle Monáe dá continui-
dade à história que contou no conceitual
Dirty Computer (2018), sobre uma revolução liderada por
seu empoderado alter ego, Cindi Mayweather. O novo ál-
bum é ambientado num mundo onde as mulheres venceram
a batalha contra o totalitarismo e o prazer feminino signifi-
ca também amor-próprio. Afrofuturista, a artista entrega
um álbum com faixas dançantes com pitadas de blues e de
reggae. Em Water Slide, ela provoca: “Se eu pudesse transar
comigo aqui e agora, faria isso”.

2|8
CLUBE DE REVISTAS

LIVRO
O LIVRO DA ESPERANÇA,
de Jane Goodall, Gail Hudson e Douglas Abrams (tradução de Ana Carolina Mesquita e
Mariana Mesquita; Sextante; 256 páginas; R$ 54,90 e R$ 32,99 em e-book)
A primatologista britânica Jane Goodall fez uma contri-
buição inestimável à ciência com seus estudos dos chim-
panzés selvagens, iniciados na Tanzânia na década de
1960. Aos 89 anos, acumula vasta sabedoria sobre a natu-
reza e usa das experiências da própria carreira e das lições
que aprendeu na biologia para produzir este ensaio inspi-
rador sobre o papel evolutivo da esperança. Um antídoto
crucial, na visão dela, para a humanidade vencer desafios
como a crise climática. ƒ

3|8
CLUBE DE REVISTAS
CULTURA OS MAIS VENDIDOS

OS MAIS VENDIDOS
FICÇÃO
1 é assim que acaba
Colleen Hoover [1 | 95#] GALERA RECORD

2 é assim que começa


Colleen Hoover [3 | 33] GALERA RECORD

3 a biblioteca da meia-noite
Matt Haig [2 | 43#] BERTRAND BRASIL

4 onde estão as flores?


Ilko Minev [4 | 10#] BUZZ

5 VeritY
Colleen Hoover [5 | 61#] GALERA RECORD

6 tudo é rio
Carla Madeira [7 | 42#] RECORD

7 todas as suas imperfeições


Colleen Hoover [6 | 59#] GALERA RECORD

8 a reVolução dos bichos


George Orwell [8 | 226#] VÁRIAS EDITORAS

9 salVar o fogo
Itamar Vieira Junior [9 | 7#] TODAVIA

10 torto arado
Itamar Vieira Junior [10 | 94#] TODAVIA

4|8
CLUBE DE REVISTAS

NÃO FICÇÃO
1 rita lee: outra autobiografia
Rita Lee [1 | 4] GLOBO LIVROS

2 rita lee: uma autobiografia


Rita Lee [2 | 64#] GLOBO LIVROS

3 panelinha
Rita Lobo [7 | 5] SENAC SÃO PAULO

4 em busca de mim
Viola Davis [5 | 43#] BEST SELLER

5 cabeça fria, coração quente


Abel Ferreira [0 | 24#] GAROA LIVROS

6 o rei dos diVidendos


Luiz Barsi Filho [6 | 16#] SEXTANTE

7 sapiens: uma breVe história da humanidade


Yuval Noah Harari [3 | 327#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

8 mulheres que correm com os lobos


Clarissa Pinkola Estés [8 | 161#] ROCCO

9 sociedade do cansaço
Byung-Chul Han [0 | 44#] VOZES

10 o despertar de tudo
David Graeber e David Wengrow [4 | 2] COMPANHIA DAS LETRAS

5|8
CLUBE DE REVISTAS

AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 7+1 passos para conquistar tudo
o que mais sonhou Luiz Hota [0 | 1] GENTE

2 café com deus pai


Junior Rostirola [1 | 24#] VIDA

3 mais esperto que o diabo


Napoleon Hill [2 | 212#] CITADEL

4 os segredos da mente milionária


T. Harv Eker [3 | 421#] SEXTANTE

5 gatilhos mentais
Gustavo Ferreira [0 | 1] DVS EDITORA

6 como fazer amigos & influenciar pessoas


Dale Carnegie [5 | 89#] SEXTANTE

7 as armas da persuasão
Robert Cialdini [0 | 3#] SEXTANTE

8 o homem mais rico da babilônia


George S. Clason [4 | 130#] HARPERCOLLINS BRASIL

9 quem pensa enriquece


Napoleon Hill [0 | 118#] CITADEL

10 o deus que destrói sonhos


Rodrigo Bibo [9 | 4#] THOMAS NELSON BRASIL

6|8
CLUBE DE REVISTAS

INFANTOJUVENIL
1 até o Verão terminar
Colleen Hoover [1 | 68#] GALERA RECORD

2 harrY potter e a pedra filosofal


J.K. Rowling [2 | 392#] ROCCO

3 o pequeno príncipe
Antoine de Saint-Exupéry [6 | 377#] VÁRIAS EDITORAS

4 era uma Vez um coração partido


Stephanie Garber [0 | 2#] GUTENBERG

5 marVin grinn e a chaVe mestra


Armando Ribas Neto [0 | 2#] VITROLA

6 amêndoas
Won-pyung Sohn [7 | 7#] ROCCO

7 Vermelho, branco e sangue azul


Casey McQuiston [0 | 100#] SEGUINTE

8 manual de assassinato para boas garotas


Holly Jackson [8 | 19#] INTRÍNSECA

9 harrY potter e a câmara secreta


J.K. Rowling [9 | 193#] ROCCO

10 coraline
Neil Gaiman [4 | 65#] INTRÍNSECA

7|8
CLUBE DE REVISTAS

[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas

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8|8
CLUBE DE REVISTAS

JOSÉ CASADO

CAMPO MINADO
VAI LEVAR tempo para compreender o que aconteceu no
Brasil sob Jair Bolsonaro. Parte da história começa a ser re-
velada nas investigações sobre a política de cegueira delibe-
rada adotada na pandemia; os incentivos a crimes ambien-
tais na Amazônia; o abuso de poder na campanha eleitoral
do ano passado e o fiasco na tentativa de golpe de Estado.
Sabe-se muito pouco, ainda, sobre o comportamento da
elite da burocracia num governo que tentou enquadrar a ad-
ministração civil em moldura militarista, impondo relações
de hierarquia, obediência e lealdade na cadeia de comando
em clima de rarefeita transparência.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada acaba de
publicar duas pesquisas sobre reações dentro da burocracia
à desmontagem de políticas públicas e práticas consolida-
das. Foram realizadas com base em longas entrevistas com
1 078 servidores, em grupos distintos, durante 36 meses, en-
tre março de 2019 e abril do ano passado. A referência foi
um cadastro coletivo montado por entidades do funcionalis-
mo para casos de crise em órgãos públicos, conhecido em
Brasília como “assediômetro”.
As pesquisadoras Michelle Morais de Sá e Silva, da Uni-

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versidade de Oklahoma (EUA), Gabriela Lotta e Mariana


Costa Silveira, da Fundação Getulio Vargas, e Michelle Fer-
nandez, da Universidade de Brasília, produziram uma rara
fotografia dos conflitos dentro da burocracia durante o go-
verno Bolsonaro. Tudo, praticamente, em tempo real.
O campo começou a ser minado 72 horas depois da pos-
se, na quinta-feira 3 de janeiro de 2019, quando Bolsonaro
destituiu 3 000 pessoas de cargos de chefia no serviço públi-
co. A decisão nada teve a ver com padrões de eficiência no
serviço público, a razão foi essencialmente política, como
deixou claro o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni: “Nós
todos sabemos do aparelhamento que foi feito nos quase ca-
torze anos que o PT aqui ficou” (em janeiro passado, Lula
fez coisa parecida, mas em menor escala).
O processo de controle da burocracia foi lento e gradual.
A desconfiança virou rotina, com equipes de militares coor-
denadas pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI), Augusto Heleno, investigando redes sociais de funcio-
nários civis em busca de “vínculos comunistas” (a prática
prossegue com sinal trocado, agora o foco está na busca de
laços com “a direita”).
Onde alguns identificavam “um projeto explícito de des-
truição do Estado, compatível com o Estado autoritário”, ou-
tros percebiam desorganização e paralisia da máquina gover-
namental com o objetivo de “desmonte de políticas públicas
para não se fazer nada”. Essa impressão foi reforçada pela ano-
mia em ministérios como o da Educação e a ocupação militar

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“Pesquisas expõem os
conflitos na burocracia sob
Jair Bolsonaro”
da Saúde. Cresceu (122%) o número de representantes das
Forças Armadas no governo — saltou de 2 765 no último ano
de Michel Temer para 6 157 no segundo ano de Bolsonaro.
Medo, preocupação e autocensura passaram a ser ex-
pressões recorrentes nas entrevistas feitas na época. Muitos
optaram pelo silêncio como tática de sobrevivência, por
acreditarem-se perseguidos: “Não falo mais nada, porque há
um monitoramento do que a gente fala em fóruns privados”.
Outros se diziam “em choque” com iniciativas de repressão,
como a de abertura de processo contra professores da Uni-
versidade Federal de Pelotas por críticas ao governo.
Sentimentos de degradação nas relações pessoais aflora-
ram dentro dos escritórios do governo: “As coisas estavam
ruins durante a administração Temer, mas nada se compara
à do Bolsonaro. A capacidade de fazerem as coisas piorarem
parece não ter fim! Agora tudo é muito frágil. (...) A diferen-
ça é que agora nós temos medo. Antes nós tínhamos medo
com relação à nossa carreira: ‘bom, talvez eu vá perder meu
DAS, talvez seja estigmatizado’ (...), mas agora a gente tem
medo de ser realmente perseguido”.

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Um em cada quatro entrevistados demonstrou preocupa-


ção com a arrogância na proibição de procedimentos bási-
cos e usuais, como o uso da rede eletrônica estatal destinada
ao registro da rotina administrativa. O sistema on-line de
protocolo é ferramenta obrigatória. Documenta cada está-
gio de uma decisão e, em contrapartida, garante a proteção
legal dos usuários. No governo Bolsonaro a opção preferen-
cial foi a rede privada (WhatsApp).
A repetição desse tipo de queixa (beira 40% em uma das
pesquisas) sugere que a informalidade nos atos oficiais não
foi casual no governo Bolsonaro. É a fórmula do crime per-
feito na administração pública: sem memória, não há rastros.
Nem culpa. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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