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VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


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CARTA AO LEITOR

MICHAEL DANTAS/AFP

EM PERIGO
A Amazônia: bioma
corre o risco de
chegar a um ponto
de colapso

UMA LUTA
PERMANENTE
NA VISITA ao Brasil realizada no começo da semana, o
presidente da França, Emmanuel Macron, fez questão de
colocar a Amazônia num patamar especial. Logo na chega-
da, foi a Belém, cidade que se prepara para sediar a COP30
em 2025. De lá, viajou de barco até a Ilha do Combu para
ver de perto um exemplo de produção orgânica de cacau. A

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RICARDO STUCKERT

CRÉDITO Marina e Lula: recuperação da credibilidade

prioridade da agenda do mandatário do país europeu tem


um forte simbolismo: ela reforça o interesse que o Brasil des-
perta na comunidade internacional nas questões ligadas ao
meio ambiente. Até pouco tempo atrás, tamanha atenção vi-
nha acompanhada de uma grande angústia, na esteira da re-
percussão lá fora dos grandes problemas enfrentados pelo
bioma, agravados pela gestão irresponsável de Jair Bolsona-
ro, a ponto de importantes acordos de financiamento de na-
ções estrangeiras para ajudar na preservação acabarem sen-
do interrompidos. Eram tempos também em que madeirei-
ros e garimpeiros, muitos atuando na ilegalidade, ficaram
empoderados, enquanto a fiscalização do Ibama sofria com
uma política de permanente desmoralização. Chegou-se ao
cúmulo de o então titular do Meio Ambiente, Ricardo Sal-

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les, criticar duramente agentes federais que impediram uma


megaoperação de contrabando de madeiras.
Com a mudança de governo, havia uma expectativa de
guinada radical nessa área. Em viagens ao exterior, o presi-
dente Luiz Inácio Lula da Silva e a ministra do Meio Am-
biente, Marina Silva, passaram a enfatizar que a preserva-
ção da Amazônia ocupa lugar de destaque na agenda nacio-
nal. Do discurso passou-se à prática, com a recuperação
gradativa do poder de fiscalização do Ibama, o que ajudou
na redução do ritmo de destruição da Amazônia. Ocorre
que, infelizmente, ainda são avanços tímidos perto do tama-
nho do desafio — e ele cresceu de forma assustadora após
décadas e décadas de acúmulo de adversidades geradas em
boa parte pela omissão do poder público.
Como mostra a reportagem “Desafio amazônico”, mesmo
com o recuo, a taxa de desmatamento ainda é muito alta. Um
estudo recente publicado na revista Nature alertou que a Ama-
zônia encontra-se à beira do colapso, com o risco de perder sua
capacidade de regeneração caso esse processo não seja reverti-
do. Outros problemas também vão ganhando contornos cada
vez mais graves — do comércio ilegal das riquezas do bioma
(agora, com a participação do crime organizado) à sobrevivên-
cia dos povos originários, sendo que a maior ameaça hoje recai
sobre os ianomâmis. O governo atual está no caminho correto,
mas é preciso fazer muito mais. Não é uma luta apenas dos bra-
sileiros. O mundo inteiro torce para que o país vença essa bata-
lha pela preservação, como demonstra a visita de Macron. ƒ

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ENTREVISTA MANUEL CASTELLS


BRENNO CARVALHO/AGÊNCIA O GLOBO

“É UM MOMENTO
SOMBRIO”
O sociólogo espanhol, pioneiro em estudar os
efeitos da internet, teme pelos estragos que o
mau uso da tecnologia provoque nas democracias
— mas ele tem esperança de tempos melhores

LUIZ PAULO SOUZA

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LÁ NA PRÉ-HISTÓRIA da internet, em 1996, o sociólo-


go espanhol Manuel Castells intuiu o ponto ao qual chega-
ríamos. Com o lançamento do livro A Sociedade em Rede,
um clássico instantâneo, ele desenhou a disseminação da
internet e boa parte dos problemas (e também os benefí-
cios) que nasceriam de tanta prevalência. Autor de outros
vinte trabalhos em torno do tema, ele é um dos mais cele-
brados especialistas do impacto das modernas tecnologias
em tempo de comunicação acelerada e informações falsas.
Professor da Universidade Aberta da Catalunha e da Uni-
versidade do Sul da Califórnia, Castells acaba de publicar
Testimonio: Viviendo Historia, ainda não traduzido para o
português, obra na qual revisita sua trajetória pessoal, ao
acompanhar o mundo em transformação. Mergulha sobre-
tudo nos dias de maio de 1968, quando a agitação estudan-
til reinventou a civilização ocidental, ao anunciar que era
“proibido proibir” — Castells esteve no coração dos protes-
tos e acabou sendo expulso da França. Na semana passada
ele participou, em Brasília, do Seminário Internacional
Democracia e Novas Tecnologias, em comemoração ao bi-
centenário do Senado. Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail, ele trata dos riscos, mas também das oportuni-
dades, de um planeta conectado.

Há dez anos, o senhor disse que a comunicação em re-


de revitalizaria a democracia. Ainda acredita nisso?
Até certo ponto, sim, porque a democracia depende da

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abertura das instituições para a livre expressão e o livre


protesto dos cidadãos de todo o mundo. A internet aca-
bou com o monopólio do poder de comunicação, porque
as empresas são proprietárias das plataformas de mídia
social. Como o modelo de negócio pressupõe aumento
do tráfego, elas não têm interesse em limitar a autoex-
pressão. O problema é que essa livre expressão cheia de
contradições e conflitos não segue as normas de compor-
tamento que gostaríamos. Quais sejam: educação, respei-
to e construção. Isso não é um problema das redes so-
ciais, mas sim de quem somos como humanos.

O problema então é o mau uso da tecnologia? Original-


mente, a internet era o domínio de elites supostamente
educadas e de boa vontade, mas, com 5,4 bilhões de
usuários no mundo, as pessoas comuns também passa-

“Nas redes sociais, as pessoas falam


mais sobre suas vidas, músicas, sonhos
e tristezas. Os grupos ideológicos
extremos moldam a conversa em torno
da violência e do confronto.”
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ram a povoá-la. Uma boa parcela dessas pessoas é sexis-


ta, racista, xenófoba, homofóbica, fanática religiosa, na-
cionalista extremista e propensa à violência. A internet é
nosso espelho.

E o que ele mostra? Não é uma imagem muito bonita.


Somos capazes de comunicação livre e de escolhas ideo-
lógicas independentes, mas o conteúdo da liberdade po-
de não ser o que esperávamos. Adolf Hitler, Donald
Trump e Jair Bolsonaro foram eleitos democraticamente.

Mas já não temos a opção de desligar a internet... O


que fazer? Não há como voltar atrás. Só podemos tentar
regular o potencial uso negativo dessas tecnologias ex-
traordinárias. Eu observei os embriões da sociedade em
rede entre 1996 e 2000. No século XXI, a plena digitali-
zação da sociedade, não apenas com a internet, se tor-
nou uma plataforma para o pleno desenvolvimento da
sociedade em rede. Aliás, é do que tratarei em meu pró-
ximo livro, A Sociedade Digital, que deve ser publicado
em breve.

Sucessivos estudos, sobretudo com adolescentes,


mostram as pessoas mais ansiosas, tristes e solitárias
— e a internet parece ter culpa no cartório. Como desa-
tar esse nó que amarra a sociedade? Isso não é verdade.
Está provado que a internet aumenta a sociabilidade e a

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satisfação com a vida para a maioria da população temos


evidências empíricas de cinquenta institutos de pesquisa


ao redor do mundo. Mas as pessoas estão de fato ansiosas
e tristes mas não solitárias por causa do massivo dete-
— —

rioramento das condições de vida na maior parte dos paí-


ses. No entanto, mais uma vez, como ressaltei anterior-
mente, criminosos e fascistas também usam a internet. É
uma boa desculpa para os políticos dizerem, como sem-
pre fazem, que é tudo culpa da internet. Mas não é.

E de quem é a culpa? Em muitos casos, é culpa deles.

Não há dúvida: observamos uma mudança na forma co-


mo as pessoas usam as redes sociais, que deixaram de
ser um lugar de diálogo saudável e amistoso. Como es-
se comportamento nocivo poderá afetar a sociedade?
Isso, de fato, está criando uma polarização prejudicial en-
tre visões extremas. No entanto, a maior parte das intera-
ções não é sobre política e ideologia. Na verdade, elas re-
presentam menos de 20% das conversas. As pessoas fa-
lam mais sobre suas vidas, músicas, sonhos e tristezas. Os
grupos ideológicos extremos alimentam o conflito entre
si e tornam seus debates mais visíveis. Eles moldam a
conversa em torno da violência e do confronto. A civili-
dade nos debates públicos deixou de existir. Basta olhar
para os debates nos parlamentos em todo o mundo. Há
mais insultos e acusações infundadas em vez de argumen-

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tos. Não apenas no ambiente virtual da internet, mas na


realidade e materialidade dos templos da democracia.

O que motiva a crescente onda de notícias falsas, as in-


fames fake news? Justamente a polarização e a violên-
cia, porque os humanos tendem a acreditar no que que-
rem e rejeitam aquilo com que não concordam. Isso é o
que a neurociência diz sobre nossos cérebros. Procura-
mos notícias ou fake news não para nos informar, mas
para nos reafirmar.

A inteligência artificial (IA) ganhou, nos últimos meses,


imenso espaço — e dadas as denúncias de aproveita-
mento desonesto da ferramenta, com o objetivo de en-
ganar os cidadãos, entramos em novo fosso. Afinal de
contas, é possível usar as tecnologias em benefício de
uma sociedade mais pacífica? Sim, claro. Por meio de
regulamentação e da aplicação de algoritmos diferentes.
A inteligência artificial não opera em um vácuo. Ela de-
pende de bases de dados abertas, e as bases existentes
são tendenciosas. Atualmente, já existem algumas em-
presas, como a (startup americana) Anthropic, que de-
senvolvem IAs cujas bases de dados consultadas foram
tratadas de forma ética para evitar esse tipo de problema.

O senhor acha realmente que a regulamentação das


redes sociais e da inteligência artificial está seguindo

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em uma direção positiva em todo o mundo? A regula-


mentação é absolutamente necessária. Estou trabalhan-
do nisso com o governo espanhol e alguns especialistas.
A indústria está ciente dos problemas, é como uma bom-
ba atômica. Simplesmente não dá para confiar apenas
nos humanos.

A pandemia, que pôs a humanidade dentro de casa,


diante de telas, teve papel transformador? Somos seres
humanos melhores do que há cinco anos? Nós lutamos
com sucesso contra a Covid-19 em todo o mundo, mas 7
milhões morreram por ignorância e má política governa-
mental. O Brasil e os Estados Unidos não se saíram bem.
Nós mostramos que a engenhosidade humana e a ciência
podem nos salvar, mas, independentemente da doença

“A dominação do Ocidente,
representado por Estados Unidos,
Reino Unido e União Europeia,
acabou. Hoje eles respondem por
apenas 20% da população
mundial e 40% do PIB.”
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que resultou na pandemia, os humanos não progredi-


ram em superar sua própria estupidez.

Seu livro mais recente, Testimonio: Viviendo Historia,


ainda sem tradução para o português, é uma reflexão
profunda baseada nas suas próprias vivências, espe-
cialmente no tempo das manifestações estudantis de
maio de 1968, em Paris. Considerando tudo o que viveu,
como percebe o mundo agora? Eu acredito que estamos
em um momento sombrio da história, porque nosso su-
perdesenvolvimento tecnológico está em contradição
com nosso subdesenvolvimento moral e político.

Haveria, agora, um novo sistema geopolítico, dese-


nhado com a ajuda do poder de influência da internet?
Geopoliticamente, sim, as coisas mudaram. A domina-
ção do Ocidente, representado por Estados Unidos, Rei-
no Unido e União Europeia, acabou. Hoje eles represen-
tam apenas 20% da população mundial e 40% do pro-
duto interno bruto (PIB) global. O resto do mundo está
dividido entre Ásia, Oriente Médio e América Latina,
com exceção da Argentina, que hoje se tornou um saté-
lite dos americanos. Cada país tem sua própria estraté-
gia, mas todos concordam em não se curvar ao velho
monopólio. A guerra na Ucrânia é decisiva, porque si-
naliza o ressurgimento de uma Rússia militarmente
muito poderosa.

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E, ainda assim, o senhor tem mesmo convicção de que


a democracia prospere? A solução para a crise da de-
mocracia é que as elites do poder ouçam seu povo. O or-
çamento de metade das pessoas na União Europeia não
chega ao final do mês e 20% da população está na pobre-
za. Os Estados Unidos têm uma economia dinâmica, mas
a desigualdade é histórica, com a educação e a saúde em
crise permanente.

Mas as derrapagens democráticas parecem se espa-


lhar sem freio... A América Latina está em guerra. Vocês
só não dizem isso claramente. Há as guerras do narcotrá-
fico em todos os países. No México, 250 mil pessoas fo-
ram mortas ou desapareceram nos últimos vinte anos.
Há gangues e facções no Equador, no Peru e, agora, tam-
bém no Chile e na Argentina, onde o Exército chegou a
ocupar a cidade de Rosário.

E o Brasil? Também está envolto por gangues. O Brasil é


um escândalo de desigualdade. Como disse meu amigo, o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não se trata
de um país pobre, é um país injusto. Lula estava melho-
rando a situação, mas grande parte da classe política está
bloqueando suas medidas para obter benefícios políticos.

E qual o resultado dessa postura? Não pode haver de-


mocracia estável sem democracia social, com políticas

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redistributivas e um Estado de bem-estar social decente.


A economia criminosa está desenfreada, e as pessoas te-
mem a violência diária mais do que qualquer outra coisa.
Muitas forças policiais são corruptas e não protegem os
cidadãos. Os Estados são continuamente penetrados pe-
la corrupção.

Parece então não haver espaço para esperança... Há


saída? Sim. Nós podemos lutar e usar nosso conheci-
mento e nossa vontade para criar um mundo melhor. Não
podemos perder a esperança. Se o fizermos, não haverá
salvação possível. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

AS MEIAS-VERDADES
DE VLADIMIR PUTIN

É MÉTODO comum a chefes de Estado dados ao


autoritarismo: sempre confundir, criar zonas de sombra e,
nas incertezas, garantir a permanência no poder, seja na
marra, seja por meio de eleições. O presidente da Rússia,
Vladimir Putin — reeleito com quase 90% dos votos para
MAXIM SHIPENKOV/EPA/EFE

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mais um mandato —, aproveitou um terrível atentado em


Moscou para atrelá-lo a ucranianos ansiosos por vingança.
Ele pouco se preocupou com a imediata reivindicação do
crime, que matou 139 pessoas e deixou pelo menos
150 feridos em uma casa de shows, o Crocus City Hall,
pelo Estado Islâmico. O modus operandi, aliás, por meio
de ataque-surpresa e matança generalizada, combina com
outras agressões do grupo, que andava sumido. Contudo,
ter o carimbo da Ucrânia, para Putin, seria atalho para
continuar a inaceitável invasão militar e alimentar o povo
que o apoia. O truque parece ter funcionado. Do lado de
fora do prédio, nos dias seguintes, brotaram ramos de
flores, velas e cartazes em um memorial
improvisado. Longas filas foram formadas para doar
sangue aos internados, em quantidade suficiente para seis
meses de atendimento em hospitais. Em Kiev, o assessor
presidencial ucraniano Mykhailo Podolyak rapidamente
negou qualquer envolvimento de seu país com a tragédia,
mas não foi ouvido. “Todas as declarações oficiais do
Kremlin e seus propagandistas são mentirosas,
entremeadas por algumas meias-verdades”, disse
o ex-enxadrista Garry Kasparov, oposicionista de
relevância. O xadrez de Putin não é para amadores. ƒ

Caio Saad

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CONVERSA THALITA REBOUÇAS

“A MATURIDADE
TRAZ PAZ”
Com 2,3 milhões de
livros vendidos, a
autora de sucesso na
seara infantojuvenil
explica por que, aos
49 anos, resolveu
escrever sobre
questões da vida
adulta feminina pela
primeira vez em
novo trabalho

AUTOESTIMA
Thalita: obra pessoal
sobre amor e corpo

EDU RODRIGUES

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Logo no início de Felicidade Inegociável e Outras Rimas


(HarperCollins), seu primeiro livro adulto após duas dé-
cadas escrevendo para adolescentes, você diz num verso
que se sente “velha para mudar”. Sabe identificar de onde
veio essa insegurança? As mulheres com mais de 40 anos
são talhadas para se conformar com o que têm. A gente ouve
a vida toda que temos de casar para sermos felizes; ter um fi-
lho para sermos completas; e ficar no mesmo emprego, pois
empreender ou trocar de profissão não é para a nossa idade.
Vivemos cercadas por travas que causam insegurança.

Como foi se livrar dessas travas? Tive medo, mas me joguei


assim mesmo. Estou me arriscando em outro tipo de escrita e de
público. Fiquei solteira depois dos 40 e encontrei meu marido
atual aos 45. Estou aprendendo a lidar com a menopausa, que é
um negócio dos infernos. Então, espero ser uma inspiração para
mulheres como eu, que buscam coragem para recomeçar.

Na divulgação do livro, você publicou nas redes sociais


uma foto de biquíni, com a data do lançamento nas náde-
gas. O que a motivou a fazer essa provocação? Quando lan-
cei meu primeiro livro, na Bienal, aos 25 anos, precisei subir em
uma cadeira para chamar atenção. Agora, usei a bunda como
cadeira. O engajamento foi ótimo. Já sofri muito comentário
etarista nas redes, me chamando de velha, dizendo que eu não
deveria usar short curto, por exemplo. Aprendi a lidar com is-
so — e garanto que gosto mais de mim hoje do que aos 25.

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Por quê? A maturidade me trouxe paz. Quando eu tinha


20, 30 anos, não gostava do meu corpo. Hoje, olho para trás
e vejo que era uma insegurança boba e triste. Eu não troco a
cabeça que tenho hoje pela bunda cheia de colágeno que eu
tinha aos 20.

Seu livro também reflete sobre a hipersexualização das


meninas em tempos de redes sociais. Não tem receio de
que a postura atraia uma fama de “tia chata”? Quando
somos novas, queremos ser mais velhas, parecer mais ve-
lhas. Eu também dançava músicas questionáveis na adoles-
cência, mas era em casa, para o espelho, em festinha de
amigas. Então me assusta ver meninas muito novas dan-
çando canções misóginas nas redes sociais. Eu questiono:
“Você está ouvindo a letra que está cantando?”. Isso me as-
susta, sim, e tenho alcance com esse público, então vou usar
essa voz. Se me acharem a tia chata, problema de quem
achar. É parte do meu papel ajudar jovens a amadurecerem
bem e se amarem como são. ƒ

Raquel Carneiro

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DATAS

A REINVENÇÃO DO PIANO

IMAGNO/GETTY IMAGES

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O começo foi espantoso: em 1960, o pianista


italiano Maurizio Pollini ganhou o Concurso Cho-
pin de Varsóvia, na Polônia, um dos mais cobiçados
do mundo. O presidente do júri, Arthur Rubinstein,
lenda do teclado, saiu das audições espantado com
a habilidade e a alma daquele jovem de 18 anos — e
não demorou a apontá-lo como gênio. Para sorte da
humanidade, é possível ouvir no Spotify e em ou-
tras plataformas aquela gravação original do Con-
certo Nº 1 de Chopin. É espantoso, misto de emoção
e rigidez em porções equivalentes.
Cuidadoso com os compositores que decidia
enfrentar — além de Chopin, eternizou obras de
Beethoven, Schumann e Stockhausen —, Pollini foi
sempre reverenciado pelo cuidado com que estu-
dava as composições. “Ele tem uma consideração
ética pela música”, disse dele, certa vez, o maestro
e também pianista Daniel Barenboim. Para o en-
saísta Edward Said (1935-2003), Pollini tinha téc-
nica tão apurada que era capaz de escondê-la aos
olhos das plateias ou em gravações, artista que não
apelava para “uma facilidade simplista nem exibia
um tedioso esforço heroico”. Ele morreu em 23 de
março, aos 82 anos, em Milão, na Itália.

DOMÍNIO Maurizio Pollini: técnica e


emoção em obras de Chopin, Beethoven etc.

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QUANTO VALE UM ESTUPRO?


Preso há 14 meses na penitenciária Brians 2, em Barce-
lona, o jogador de futebol Daniel Alves pagou na segunda-
feira 25 a fiança de 1 milhão de euros, o equivalente a 5,4
milhões de reais, e deixou a cadeia. O dinheiro foi conse-
guido com empréstimos e adiantamento de valores que
tem a receber do fisco espanhol. Ele foi condenado a qua-
tro anos e meio de detenção, acusado de agressão sexual
contra uma mulher de 23 anos, em uma boate de luxo da
capital catalã. Daniel acompanhará o andamento dos re-
cursos em liberdade provisória, mas com algumas condi-
ções: deverá se apresentar todas as sextas-feiras para as
autoridades; teve seus passaportes brasileiro e espanhol
apreendidos e, naturalmente, não poderá deixar a cidade.
ADRIA PUIG/ANADOLU/GETTY IMAGES

LIBERDADE Daniel Alves sai da cadeia em Barcelona:


1 milhão de euros em empréstimos bancários

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DAVID CORIO/REDFERNS/GETTY IMAGES

IMENSIDÃO O escultor Richard


Serra: a beleza de obras imensas

O POETA DA PEDRA
O escultor californiano Richard Serra parecia trans-
portar para os século XX e XXI, o nosso tempo, a grandeza
de monumentos da Antiguidade ou das pedras místicas de
Stonehenge, na Inglaterra. A imensidão de suas obras, feitas
de círculos, elipses e rampas de aço e ferro, revela quão pe-
quenos somos diante da vastidão do mundo. Ele dizia que
seu trabalho exigia o “caminhar e olhar”, dada a grandeza
arquitetônica de peças que brotam como edifícios. No Bra-
sil, um de seus trabalhos, a escultura Echo, composta de
duas chapas de 18 metros de altura, pode ser vista no IMS
de São Paulo, na Avenida Paulista. Ele morreu em 26 de
março, aos 85 anos, de pneumonia, em Long Island, no es-
tado de Nova York. ƒ

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FERNANDO SCHÜLER

SUBMISSÃO
ELA FOI DEMITIDA por e-mail. “Pedimos que você deixe
sua posição, imediatamente”, dizia o texto. O trabalho era
voluntário. A demitida era Fran Itkoff, uma senhora de 90
anos, que há sessenta se dedicava à Sociedade Nacional de
Esclerose Múltipla (MS Society). O marido havia se tratado
lá, e ela também, além de ter recebido prêmios pelo seu tra-
balho. Não adiantou. Seu pecado foi ter se atrapalhado no
uso dos pronomes, conforme definido pela área DEI (“Di-
versidade, Equidade e Inclusão”) da instituição. “Não conse-
guia entender”, disse ela, “quais os termos podiam ou não
ser usados”. Resumindo: foi para a rua. “É irônico”, disse sua
filha, “porque eles se dizem inclusivos, mas excluem uma
mulher deficiente de 90 anos, voluntária há sessenta”.
O caso veio a público, causou comoção, muitos apoiado-
res da MS Society ameaçaram retirar suas doações, e a enti-
dade voltou atrás. Tem sido a regra. Se um caso como este
vem à tona, a fúria woke é contida. Ao menos por algum
tempo. Foi o que aconteceu nas universidades americanas,
nos episódios em torno do antissemitismo. Mas o problema
está criado. Pode haver um recuo aqui ou ali, mas a irradia-
ção da cultura woke, nas empresas, na imprensa, nas univer-

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sidades, é um fato de nossa época. Uma vitória pelo cansaço.


Das frases generosas, que logo vão se convertendo em “ini-
ciativas”, e logo em “normativas”, e logo em instâncias de
poder. Até o momento em que uma senhora deficiente como
Fran Itkoff é demitida, sem muita cerimônia, pelo imperdoá-
vel defeito de não se entender direito com aqueles pronomes.
O curioso disso tudo é a ladeira escorregadia. Tempos
atrás recebi o relato interessante, de um conhecido, sobre o
que se passou na empresa em que ele trabalhava, na Califór-
nia. A coisa começou quando alguém sugeriu, em reunião,
que a “diversidade é importante, não é mesmo?”. Quem dis-
cordaria? A partir daí, resolveram criar um “comitê”. Comi-
tês são formados por pessoas interessadas no tema. Particu-
larmente neste tema, pessoas interessadas andam, em geral,
próximas do que chamamos de “ativistas”. É diferente de al-
guém montar um comitê de segurança contra incêndios,
cuja pauta será técnica. Então o.k., o comitê está lá, e a partir
daí brotam as ideias. A primeira foi criar um “curso de letra-
mento de gênero”, e depois “racial”. Na prática, dizer aos
funcionários o que poderia ou não ser dito. Palavras, expres-
sões, pronomes, brincadeiras. Havia uma leitura “sociológi-
ca” da realidade americana, que não podia ser contestada.
Em um certo dia, os funcionários receberam um formulário,
no qual deveriam especificar a “cor da pele”. Gradativamen-
te, os critérios de mérito, para contratações e progressos de
carreira, foram devidamente “ajustados”. Por fim, abolidos.
Depois, a empresa criou sua “diretoria DEI” e passou a obe-

2|6
INÊS 249

GUILLAUME PINON/NURPHOTO/GETTY IMAGES

ABISMO Houellebecq: retratos primorosos


da cultura obcecada pelo controle

decer a uma espécie de equação identitária. A fórmula logo


passou a ser usada também para qualquer encontro, conse-
lho, comitê ou campanha de marketing. Mais adiante, foi
criado outro formulário, em que os funcionários de grupos
“não minoritários” deveriam declarar seus “privilégios”, co-
mo forma de “tomada de consciência”. E, ainda depois, um
sistema de monitoramento para verificar o que os funcioná-
rios faziam fora da empresa. A ideia era avaliar sua “confor-
midade” com os valores da companhia. A coisa toda era

3|6
INÊS 249

“A fúria woke
nas empresas
e universidades é um
fato de nossa época”
operacionalizada com a ajuda de um disque-denúncia, em
que qualquer um podia registrar alguma “incorreção” de
um colega, anonimamente. No fim, surgiram “investiga-
ções”, e logo processos. Àquela altura, meu amigo achou que
o ambiente havia se tornado pesado demais. “Havia uma
raiva silenciosa”, diz ele, “mas ninguém dizia nada”, porque
pareceria uma “forma velada de preconceito”. No fim, ele foi
embora. Abriu uma startup.
Chama atenção a facilidade com que se pode transitar de
práticas de “inclusão” e palavras generosas para uma lógica
de controle e exclusão. Era o traço sombrio que Camus en-
contrava nas revoluções. Tema de seu O Homem Revoltado.
A ideia de que “toda convicção humana, levada a seu extre-
mo, tende a ferir seu impulso original”. A “diversidade” é re-
levante, mas logo faço uma restrição. Digo quais grupos ou
traços humanos são “diversos”. Distingo identidades positi-
vas, que devemos celebrar, e o “resto”, cuja alternativa é a
não expressão. Valendo o mesmo para as ideias, para o hu-

4|6
INÊS 249

mor, para a “ofensividade” e para a estética. E logo para os


direitos. Em um belo dia, descubro que há muito se cruzou
uma fronteira. A filósofa Susan Neiman, autora de A Esquer-
da Não É Woke, toca nesse ponto. Ela opõe o woke ao “uni-
versalismo”. A ideia central na formação moderna de que
devemos ser tratados como iguais, em consideração e direi-
tos. O que implica um princípio de simetria: o que vale para
um indivíduo ou grupo deve valer para todos. Abrindo-se
mão desse princípio ético, vem o mal-estar contemporâneo.
Uma ideologia exaustiva pode triunfar em uma organização.
Mas é difícil que isto aconteça em uma grande sociedade.
Penso nisso quando observo a cruzada anti-woke de Elon
Musk, o frisson em torno de Jordan Peterson, sem falar em
toda a “reação conservadora” a essa lógica. Sem juízo de va-
lor. Talvez nosso destino seja mesmo a guerra. A guerra cul-
tural, na qual estamos metidos. Ela e sua enorme indústria
de gente barulhenta, na internet. Se não queremos a guerra,
talvez valha ouvir o alerta de Camus: a ideia de que toda
utopia deve encontrar seus limites. Um ideal de moderação,
próprio de uma sociedade liberal. Gosto da solução de Ca-
mus, mesmo sabendo que ela não anda muito na moda.
Há ainda outra hipótese: a “submissão”. Foi o título da
obra-prima de Michel Houellebecq. O livro conta a história
de François, professor universitário entediado em uma
França dominada pelo islamismo. Ele resiste, acha tudo sur-
realista, perde a namorada, que foge para Israel, e encara a
solidão. Até ceder. E finalmente aceita “a ideia espantosa e

5|6
INÊS 249

simples de que o máximo da felicidade humana reside na


mais absoluta submissão”. Não sei por quê, enxerguei naque-
la história uma sutil ironia. Houellebecq trata de um caso
extremo, o fundamentalismo islâmico, mas seu enredo diz
muito sobre nossa cultura obcecada pelo controle. Um mun-
do no qual a submissão não é um jogo de tudo ou nada, mas
um meio de caminho. Um contínuo ajuste de linguagem, hu-
mor bem-comportado, autocensura, silêncios. Por vezes fica
meio grosseiro, como no caso da senhora Itkoff. Mas quem
sabe possa funcionar. Quem sabe o destino de François seja
também o nosso destino. Vejo muita gente por aí, bem-ajus-
tada, seja por conveniência, seja pelo cansaço. E muitos pa-
recem ter encontrado aí sua “máxima felicidade”. É isso.
Talvez Houellebecq tenha mesmo razão. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
INÊS 249

SOBEDESCE

SOBE
ITAMARATY
O Ministério criticou em nota
as manobras do regime Maduro
contra a oposição na Venezuela,
problema grave que o governo Lula
vinha tentando ignorar.

VIAGRA
Um novo estudo indica que o remédio
é capaz também de reduzir em 60% o
risco de uma pessoa desenvolver
Alzheimer.

STF
Melhorou a imagem do Supremo junto
à população, fruto direto
do empenho no inquérito sobre
a tentativa de golpe. Segundo
o Datafolha, a reprovação
à Corte caiu dez pontos
desde dezembro.

1|2
INÊS 249

DESCE
GABIGOL
O artilheiro do Flamengo foi suspenso
por dois anos por fraude no exame
antidoping. Ainda cabe recurso
por parte do jogador.

MACONHA
Com base em dados de
434 000 pessoas, pesquisa da
Universidade da Califórnia em São
Francisco mostrou que o uso diário
da droga aumenta risco de infarto e
derrame.

CASAS BAHIA
As ações da tradicional
empresa de varejo despencaram
após anúncio de um prejuízo líquido
de 1 bilhão de reais
no quarto trimestre de 2023.

2|2
INÊS 249

VEJA ESSA

“Cara, é só o começo,
não ganhei nada ainda.”
ENDRICK, ao marcar seu primeiro gol pela seleção brasileira,
na vitória por 1 a 0 contra a Inglaterra, em Wembley

PEDRO LOUREIRO/EURASIA SPORT IMAGES/GETTY IMAGES

1|4
INÊS 249

“É cada vez mais triste. Cada vez


eu tenho menos vontade de jogar”
VINICIUS JR., atacante do Real Madrid e da seleção brasileira,
cansado dos abjetos ataques racistas

“O primeiro passo para liquidar um povo é


apagar sua memória. Destrua seus livros,
sua cultura, sua história. Então peça para
alguém escrever novos livros, fabricar uma
nova cultura, inventar uma nova história.
Em pouco tempo, essa nação começará a
esquecer o que é e o que foi.”
Frase de MILAN KUNDERA (1929-2023), escritor tcheco, de
seu O Livro do Riso e do Esquecimento. O trecho foi usado pelo
governo do presidente argentino Javier Milei, de extrema direita,
em um vídeo de 12 minutos divulgado para negar a existência
das 30 000 vítimas da ditadura dos generais, entre 1976 e 1983

“O que buscam os que criticam o presidente


Lula pela atitude acertada ao apostar numa
relação harmoniosa com as Forças Armadas,
mirando o futuro, e não o passado?”
RICARDO CAPPELLI, presidente da Agência Brasileira de
Desenvolvimento Industrial, ex-secretário-executivo do
Ministério da Justiça, sobre a decisão de Lula de não lembrar em
cerimônias os 60 anos do golpe militar de 1964

2|4
INÊS 249

“Fiz uma cirurgia para me tornar um


pouco mais máquina. Eu agora tenho
um marca-passo.”
ARNOLD SCHWARZENEGGER, o célebre fortão do cinema,
ao brincar com o procedimento. Ele ficou famoso ao interpretar
o ciborgue Terminator na franquia O Exterminador do Futuro

“Fizemos os cálculos e
concluímos que valia a pena.”
VLADIMIR BRICHTA, ator, ao explicar por que ele e a
mulher, a atriz Adriana Esteves, não têm redes sociais

“A mulher que nunca viveu algo assim


que levante a mão.”
GRAZI MASSAFERA, atriz, ao dizer
que já foi vítima de relações abusivas

“Me senti muito sozinho.”


ANDERSON MELO, 32 anos, jogador de vôlei de praia, depois
de ser atacado com gritos homofóbicos

“Tô aqui, curado. E vou cantar agora.”


BRANCO MELLO, dos Titãs, no derradeiro show
da turnê Encontro. Ele teve um câncer na garganta

3|4
INÊS 249

“Isso é mentira.
Eu realmente
não quero fazer
da minha vida
um tabloide.”
GISELE
BÜNDCHEN,
ao negar
ter traído o
ex-marido,
o jogador de
futebol americano
Tom Brady. Ela hoje
namora o treinador
de jiu-jítsu
Joaquim
Valente
TODD OWYOUNG/NBC/GETTY IMAGES

4|4
INÊS 249

RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Nicholas Shores e Ramiro Brites

Velhos problemas va de aparelhamento por


Chefe da PRF, Antônio partidos de esquerda.
Oliveira chegou ao cargo
com a missão de acabar Guerra de dossiês
com o aparelhamento bol- A disputa por cargos na cú-
sonarista na instituição. pula da PRF deu origem a
Depois de avançar nessa uma guerra de dossiês nos
frente, ele lida agora com bastidores da instituição,
outro problema: a tentati- envolve lobby de políticos

JOGO SUJO Oliveira: chefe da PRF tenta encontrar autores


de dossiês no órgão

ANTÔNIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

1|6
INÊS 249

petistas e já chegou até o STF. Nesses encontros, se-


Planalto. Oliveira tenta des- gundo testemunhas, deixou
cobrir os envolvidos nesse claro que aceitaria a derrota
jogo sujo. para Lula. O ex-presidente
avalia como usar essa infor-
Cama pronta mação em seu favor na Corte.
Antes de voltar à prisão,
Mauro Cid narrou em deta- Mais gente falando
lhes aos investigadores os Bolsonaristas investigados
contatos de Bolsonaro com o por envolvimento em dife-
então chefe do Comando de rentes casos no STF estão
Operações Terrestres, gene- apavorados. Chegou a esse
ral Estevam Theophilo, in- pessoal uma informação,
vestigado na trama golpista. não confirmada por investi-
gadores, de que a Polícia
Faltou algo Federal conta com outros
A situação de Theophilo, dois delatores, não apenas
aliás, é bem delicada. Os in- Mauro Cid.
vestigadores têm elementos
que mostram que o general Perdão dos pecados
não teria falado a verdade Tarcísio de Freitas está lon-
no depoimento à PF. ge de ser candidato ao Pla-
nalto e mais longe ainda de
Só vim pra dar tchau ser eleito presidente, mas
Antes de deixar o Planalto, ele é tratado como “única
em 2022, Bolsonaro conver- esperança” dos bolsonaris-
sou com alguns ministros do tas que sonham com anistia.

2|6
INÊS 249

Nem pensar na Amazônia, o governo


Há algumas semanas, emis- Lula acaba de renovar um
sários de Ricardo Nunes contrato para fornecimento
sondaram a ativista Geyze de caixões a aldeias.
Diniz, viúva de Abilio, para
o posto de vice na chapa do Sem continuidade
prefeito. Ela não quis. Ministros de Lula estão
anulando convênios da ges-
O ex-comunista tão de Bolsonaro com pre-
Por ora, o nome mais bem feituras e órgãos estaduais.
posicionado para ser vice
de Nunes, segundo aliados, Follow the money
é mesmo o de Aldo Rebelo. Investigando crimes graves
de uma série de magistra-
Escondidinho dos pelo país, o CNJ acaba
Guilherme Boulos jantou de fechar uma parceria com
com investidores da Faria o COAF e outros órgãos de
Lima nesta semana. Como controle para seguir o di-
esse tipo de evento da bur- nheiro dessa turma.
guesia não combina com o
candidato, combinou-se Agora vai?
que tudo ficaria em sigilo. Presidente da França,
Emmanuel Macron, prome-
Triste realidade teu a Lula, nesta semana,
Sem conseguir estancar a apoiar a entrada permanen-
crise das invasões de terras te do Brasil no Conselho de
indígenas por criminosos Segurança da ONU.

3|6
INÊS 249

Tava prometido, mas...


Macron frustrou a Frente
Parlamentar Nuclear ao
não encaminhar, nesta vi-
sita, as tratativas de um
empréstimo de 3 bilhões
de euros da França para
desenvolver o setor nu-
clear brasileiro.

Línguas da floresta

MAYKE TOSCANO/SECOM-MT
O governo de Helder Bar-
balho, no Pará, vai capaci-
tar 16 000 trabalhadores
para a COP30. Eles recebe- TURISMO Helder:
rão aulas de inglês e espa- Pará vai capacitar 16 000
nhol e terão cursos sobre trabalhadores para a COP30
como receber visitantes.
Faca no pescoço
Legado Em campanha salarial,
Os cursos serão aplicados a 270 auditores fiscais do
motoristas de táxi e de apli- Ministério da Agricultura
cativos e a trabalhadores da ameaçam entregar seus
rede hoteleira e de bares e cargos de chefia para pres-
restaurantes da capital pa- sionar o governo. A coisa,
raense. “É um grande lega- no entanto, pode dar erra-
do da COP”, diz Helder. do. “Se fizerem isso, as de-

4|6
INÊS 249

missões serão aceitas”, diz abusos de procuradores de


uma fonte do ministério. Curitiba. A empresa diz que
as decisões do ministro es-
Temporada de negociação tão sendo ignoradas.
A turma do Senado está de
olho nas indicações para Na conta do hóspede
conselheiros das agências O governo da Hungria fe-
reguladoras. São catorze va- chou, nesta semana, um
gas que serão preenchidas acordo com o governo Lula
nos próximos meses. Os se- na área militar. A coopera-
nadores querem indicar a ção, firmada pela Aeronáu-
metade delas. O governo tica, foi negociada na gestão
ofereceu um terço. de... Bolsonaro.

Também quero Um espanto


A OAS, atual Metha, acio- José Eduardo Cardozo ficou
nou o ministro Dias Toffoli, decepcionado ao reconhe-
no STF, para tentar embar- cer Rivaldo Barbosa, preso
car no bonde de empreitei- no caso Marielle Franco. O
ras que suspenderam mul- delegado foi assessor de Se-
tas do MPF alegando perse- gurança Pública quando
guição da Lava-Jato. Cardozo era ministro da Jus-
tiça. “Foi um espanto”, diz.
Olha eles, ministro
A Odebrecht, atual Novo- Esqueçam meu passado
nor, também acionou Tof- Aliás, há um enorme cons-
foli para denunciar novos trangimento na CBF com a

5|6
INÊS 249

FERNANDA CALFAT/GETTY IMAGES


VIOLÊNCIA Leticia e Alexandre: ela acionou ele
na Justiça por agressão

forte amizade entre o dire- dida protetiva contra o ex-


tor de governança da enti- -marido Alexandre Furma-
dade, Eduardo Gussem, en- n ov ic h . O empresário
tão procurador do caso, e o ameaçou bater em Leticia
delegado Rivaldo Barbosa. na frente do filho do casal.
“Se meu filho não estivesse,
Covardia gravada ele bateria na minha cara”,
Atriz e modelo, Leticia Bir- relatou a modelo à polícia,
kheuer conseguiu uma me- que tem vídeos da cena. ƒ

6|6
INÊS 249

BRASIL ESPECIAL

TÁ TUDO DOMINADO
A elucidação do caso Marielle Franco, que incrimina um
deputado, um conselheiro do TCE e um delegado,
escancara a presença do submundo do crime nas
entranhas do Estado, fruto da relação promíscua entre
políticos, milicianos e policiais

RICARDO FERRAZ E SOFIA CERQUEIRA


CARLOS COSTA/NURPHOTO/GETTY IMAGES

FIM DO MISTÉRIO Manifestantes cobram autoridades:


a resposta veio seis anos após a morte da vereadora

CAPA: FOTO DE RENÉ JUNIOR/INSTITUTO MARIELLE FRANCO

1 | 12
INÊS 249

U
ma pergunta ecoou por seis longos anos: quem
mandou matar a vereadora carioca Marielle Fran-
co? No domingo 24, dez dias depois do aniversá-
rio de sua execução a tiros junto do motorista An-
derson Gomes, em um carro no Centro do Rio de
Janeiro, a Polícia Federal (PF) finalmente apresentou res-
postas, e aos nomes dos supostos mandantes acrescentou
as motivações. É de virar o estômago, tanto pelos detalhes
do crime bárbaro quanto pela exposição sem disfarces, níti-
da e contundente, da promíscua relação entre bandidos, po-
liciais e autoridades que vigora no estado. Segundo a PF,
Marielle foi assassinada a mando de um deputado federal,
Chiquinho Brazão, e de um conselheiro do Tribunal de
Contas estadual, Domingos Brazão, irmãos acusados de ga-
nhar a vida explorando negócios ilícitos na Zona Oeste do
Rio, em conluio com nada menos que o chefe da Polícia Ci-
vil na época, Rivaldo Barbosa. Em público, ele confortava a
família e prometia rápida solução do caso, enquanto nos
bastidores agia para garantir a impunidade dos algozes.
A apuração dos investigadores sustenta que a vereadora
foi metralhada por tentar refrear o alcance dos tentáculos
da sinistra costura entre quem comete transgressões e quem
deveria combatê-las, entranhada no tecido social fluminen-
se. Os três mandantes estão presos, mas o sequestro do Es-
tado pela bandidagem é uma mancha que segue exalando
mau cheiro. “O caso não deixa dúvidas de que a corrupção
contamina todas as esferas”, disse a VEJA a companheira de

2 | 12
INÊS 249

REPRODUÇÃO
JOGO DE CENA Barbosa conforta
os pais de Marielle: participação no crime

Marielle, Monica Benicio. Bandidos, policiais e autoridades


mancomunados compõem a triste realidade em muitas ci-
dades do país, em escala que varia conforme o volume de
dinheiro e de poder envolvidos, mas o caso Marielle é uma
infeliz prova de que a promiscuidade é epidêmica — do tipo
que só uma limpeza radical, acompanhada de expressiva
mudança de mentalidade, pode extinguir. “A milícia atua
em mercados que exigem a mediação do poder público, co-
mo construção civil e fornecimento de serviços básicos, e os
interesses aí facilmente se confundem”, diz o especialista
Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense.
A explosiva combinação de dinheiro, poder e pólvora, ali-
mentada pelo espraiamento da área sob domínio dessas qua-

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INÊS 249

drilhas nascidas e nutridas no universo policial, está retratada


de maneira minuciosa nas 479 páginas do relatório final da
PF apresentado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supre-
mo Tribunal Federal (STF), onde o processo foi parar porque
o deputado Chiquinho Brazão (ex-União Brasil, agora sem
partido) tem foro privilegiado. O calhamaço se baseia na dela-
ção premiada de Ronnie Lessa, autor dos disparos que viti-
maram Marielle e que aceitou colaborar com as investigações
depois de exposto por seu comparsa, Elcio Queiroz, que diri-
gia o carro utilizado na noite do crime. Detalhe: ambos são
ex-policiais. Atando um dos vários laços espúrios que formam
o enredo, Lessa contou que era velho conhecido do deputado,
com quem se encontrava na casa de um amigo comum para
jogar sinuca e conversar sobre a paixão por cavalos e passari-
nhos. A encomenda do crime foi selada no segundo semestre
de 2017 e seu planejamento teve a decisiva ajuda do delegado
Rivaldo Barbosa, que vetou locais onde a execução poderia
sair de sua alçada. “Ele é nosso”, teria dito Domingos Brazão.
Quando Marielle foi assassinada, Chiquinho era verea-
dor e ela lhe fazia oposição — os embates giravam principal-
mente em torno de grilagem e imóveis clandestinos, negó-
cios em que, segundo a PF, os Brazão estavam imersos. À
frente da Comissão de Assuntos Urbanos, o então vereador
encaminhava projetos de lei para regularizar propriedades,
abrigava invasores de terras em seu gabinete e nomeava
pessoas de confiança para órgãos de fiscalização e controle
— a proverbial raposa dentro do galinheiro.

4 | 12
INÊS 249

REPRODUÇÃO
ACUSADOS Irmãos Brazão: segundo a PF, tentativa de
Marielle de atrapalhar negócios teria motivado o assassinato

VEJA visitou um desses empreendimentos, o Condomí-


nio da Figueira, no alto da Muzema, uma das zonas de in-
fluência dos dois irmãos, na Zona Oeste carioca. O local é
ocupado por prédios de até seis andares e, embora a prefei-
tura garanta haver demolido mais de 3 000 edifícios irre-
gulares, o comércio das unidades existentes corre solto, à
margem da lei. “Eu tinha planos de erguer um prédio de
cinco andares junto à minha casa. Como a fiscalização aqui
aumentou, estou fazendo só dois pavimentos, tudo na mar-
ra”, relata Marino, espécie de corretor oficial do local. “Mas
tem vários apartamentos à venda no condomínio que posso
te mostrar”, diz, exibindo duas sacolas cheias de chaves. A
papelada é acertada na Associação de Moradores, com as-

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MARCELO THEOBALD/AGÊNCIA O GLOBO


RÉU CONFESSO Ronnie Lessa: em delação, o assassino
conta que aceitou o serviço para subir no mundo do crime

sessoria de um advogado. “Só não tem nada lá de fora, da


prefeitura”, esclarece um vendedor, como se fosse natural
comercializar imóveis sem escritura oficial.
A trama do assassinato de Marielle, conforme investiga-
da pela PF, se desenrolou nesse cenário em que bandidos
abocanham fatias da cidade sem ser incomodados. Assesso-
res da vereadora contaram que Chiquinho Brazão ficou es-
pecialmente irritado com a insistência dela em destinar ter-
renos, alguns “na sua área”, a moradias de interesse social, e
isso teria motivado a execução — explicação aparentemente
pífia para ato de tamanha brutalidade, mas que se fiaria na
certeza de que os autores não seriam punidos. “Se confirma-
da, essa denúncia comprova o quanto é fácil e barato matar

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MATADOR Adriano da Nóbrega: influência política


poderosa enquanto esteve à frente de grupo de extermínio

uma pessoa no Rio”, enfatiza Joana Monteiro, economista


da FGV-RJ, autora de um estudo que mostra que somente
3,5% dos homicídios do estado são julgados até o final.
A garantia de impunidade, neste caso, tinha nome: Rival-
do Barbosa. À frente da Delegacia de Homicídios, segundo a
PF, o policial teria instituído um balcão de negócios, rece-
bendo mesada de até 80 000 reais de chefões do jogo do bi-
cho para obstruir investigações. Com esse currículo, ele foi
nomeado para a chefia da Polícia Civil um dia antes do as-
sassinato da vereadora. Lá instalado, recheou a equipe com
gente de confiança, que fez evaporar provas valiosas para
solucionar o crime. A origem das ligações perigosas entre
criminosos, policiais e autoridades no Rio está no jogo do bi-

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INÊS 249

cho, componente histórico do submundo carioca que tam-


bém tem seu elo de contato com a teia do caso Marielle. Les-
sa afirmou à PF que um dos motivos para aceitar a “enco-
menda” foi a ambição de subir na hierarquia da bandidagem
e alcançar o elevado patamar do amigo, e mais tarde desafe-
to, capitão Adriano da Nóbrega, um exemplo acabado do
perverso tripé polícia-bandido-política.
Ex-oficial do Bope, o batalhão de elite da Polícia Militar,
Nóbrega se tornou chefe de um bando de matadores de alu-
guel aglomerados em um obscuro “Escritório do Crime”.
Em paralelo, soube cultivar laços políticos poderosos — che-
gou a ter mãe e ex-mulher nomeadas funcionárias do gabi-
nete do hoje senador Flávio Bolsonaro, que o condecorou
com a mais alta honraria do Legislativo estadual, a medalha
Tiradentes. O ex-PM iniciou a carreira na marginalidade
profissionalizando as execuções nas guerras entre bicheiros
e, na base da violência, se fez conhecido e temido, até ser
executado em fuga pela PM da Bahia, em 2020. Foi após
romper com Adriano que Lessa se aproximou de Rogério de
Andrade, patrono da escola de samba Mocidade Indepen-
dente de Padre Miguel, que nos Carnavais costumava rece-
ber amigos em alto estilo num camarote da Sapucaí. A du-
pla Lessa-Andrade abriu diversas casas de bingo e caça-ní-
queis, com a onipresente conivência de delegados da Polícia
Civil. Outro inestimável serviço prestado ao bicheiro pelas
forças de combate ao crime é o de guarda-costas — há pou-
cos dias foram presos dezoito policiais nessa função.

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RAFAEL MORAES
QUEM VÊ CARA... Rogério Andrade no Carnaval:
face glamourosa da bandidagem

O vínculo da polícia com o jogo do bicho tem raízes no


Estado Novo, quando o Rio ainda era capital federal, e foi
visto inicialmente como inofensivo — já aí um sinal de pre-
varicação moral. A ameaça cresceu quando grupos de ex-
termínio começaram a se formar dentro das delegacias, nos
anos 1960, angariando apoio popular ao conceito de que
“bandido bom é bandido morto”. Na década seguinte, o trá-
fico começou a tomar os morros e, no vácuo do Estado, po-
liciais da ativa e da reserva criaram as milícias — grupos
paramilitares de proteção que logo passaram a explorar e
extorquir os moradores, institucionalizando sua presença
no crime. Da extorsão e exploração foi um pulo para a polí-

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INÊS 249

tica — milicianos se elegeram na base do voto de cabresto


em áreas que dominavam. Quando se tornaram muito visa-
dos, adotaram a tática mais sofisticada de indicar prepostos
para assegurar sua influência.
Pesquisa do Instituto Fogo Cruzado, em parceria com a
Universidade Federal Fluminense, mostra que os territórios
ocupados pela milícia abrangem um quinto da região me-
tropolitana e que as organizações criminosas dominam es-
pantosos 58% da capital, colocando 4,6 milhões de eleito-
res sob a tutela de quadrilhas. “Não se faz campanha no
Rio sem negociar com marginais. A cidade está loteada e,
dependendo da zona, o candidato não entra se não tiver o
aval de quem manda ali”, diz um juiz com larga experiência
na vara criminal. Uma simples volta pelo território dos ir-
mãos Brazão, onde patrocinam associações comunitárias e
hospitais, confirma a percepção. “Na época das eleições, os
milicianos distribuem santinhos e pedem para votarmos
em gente de sua confiança. Ninguém é louco de desrespei-
tar um pedido desses”, corrobora um morador da Muzema,
que evidentemente prefere não se identificar.
O que fazer? Os especialistas são unânimes em apontar
que qualquer tentativa de solução do problema passa pela
adoção de medidas capazes de blindar as forças de segu-
rança de interferências externas. “Não há bala de prata. É
preciso construir gestões baseadas em controle, transpa-
rência e supervisão”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-
-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi

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SOFIA CERQUEIRA
TECIDO URBANO Imóveis na Muzema:
milícia domina construções irregulares

com a implantação de metas para a solução de crimes e


afastamento de agentes corruptos que Boston e Nova York
reformaram suas polícias nos anos 1990. A existência de
uma autarquia federal como o FBI, com poder para intervir
nos estados, foi vital para atacar a corrupção enfronhada
nas delegacias dos Estados Unidos. Na Colômbia, a maior
integração de órgãos do governo e o aprimoramento da re-
lação das forças de segurança com a sociedade, junto de
uma série de ações sociais, anularam a influência do maior
traficante da história, Pablo Escobar, que chegou a se eleger
suplente de deputado e foi morto em 1993. Seu quartel-ge-
neral, Medellín, deixou de ser nome de cartel para virar vi-
trine de cidade bem administrada.

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SUNSINGER/DEPOSIT PHOTOS/IMAGEPLUS
É POSSÍVEL Medellín: soma de esforços
reduziu criminalidade na Colômbia

No Brasil de Marielle, os três mandantes do crime, depois


de desembarcarem algemados em Brasília, foram despacha-
dos para diferentes presídios. De Campo Grande, onde está
detido, Chiquinho Brazão apareceu em um telão na Câmara
dos Deputados, em sessão onde se discute sua prisão definiti-
va (adiada até depois do feriado), apresentando com toda a
desfaçatez sua defesa: “Tinha uma ótima relação com Ma-
rielle”. Mesmo com pontas ainda soltas, a elucidação do as-
sassinato da vereadora é ótima notícia, um fio de esperança.
Mas o mar de lama que a investigação trouxe à tona segue
contaminando o Rio — e o Brasil. Até quando? ƒ

Com reportagem de Lucas Mathias

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BRASIL MEIO AMBIENTE

DESAFIO
AMAZÔNICO
Há avanços na preservação da floresta,
mas é preciso fazer muito mais — e os olhos do mundo
nunca estiveram tão voltados para o bioma, como
mostra a recente visita de Macron à região
VALMAR HUPSEL FILHO E LAÍSA DALL’AGNOL

TOUR Marina, Helder, Lula, Macron e Guajajara:


anúncio de plano de ajuda de 5,4 bilhões de reais

RICARDO STUCKERT/PR

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ANTES MESMO de tomar posse, Luiz Inácio Lula da Sil-


va já estava disposto a vender ao mundo a ideia de que o
Brasil iria se transformar numa potência verde. No final
de 2022, o então presidente eleito desembarcou no Egito
para participar da COP27 — a Conferência das Nações
Unidas sobre Mudanças Climáticas —, com o discurso de
retomar o protagonismo do país junto aos principais líde-
res mundiais no que diz respeito a mudanças climáticas,
preservação ambiental e desenvolvimento sustentável. O
recado foi claro e colocou a Amazônia no centro da ques-
tão. Ao lado de Marina Silva, escolhida como ministra do
Meio Ambiente da nova gestão, o petista reafirmou o dis-
curso de campanha, garantindo desmatamento zero em
todos os biomas nacionais até 2030, e ainda prometeu
uma luta implacável contra crimes ambientais. O jornal
americano The New York Times classificou a participação
de Lula como “exuberante” e fez um paralelo com o “des-
matamento desenfreado” perpetrado por Bolsonaro. Com
a descrição de um “Brasil de volta”, o Washington Post as-
sinalou os avanços de Lula rumo a se tornar um “líder
global do clima”.
Desde então, é inquestionável que o governo melhorou
sensivelmente a imagem do país no exterior com relação
aos cuidados com o meio ambiente. Era uma guinada
mais do que necessária. A Amazônia continua no foco dos
olhares de todo o planeta e a recente visita de Emmanuel
Macron é mais um exemplo de como a floresta está no

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centro das atenções do mundo. A passagem do presidente


francês por aqui nesta semana teve como saldo o anúncio
de um plano de 5,4 bilhões de reais em investimentos pú-
blicos e privados em projetos de pesquisa sobre bioecono-
mia e sustentabilidade no bioma pelos próximos quatro
anos. A iniciativa prevê uma parceria entre bancos públi-
cos brasileiros e franceses e deve ser implementada até a
COP30, que acontece em 2025 pela primeira vez no país,
em Belém (veja o quadro).
Nesses tempos em que as manchetes nos veículos in-
ternacionais de imprensa ainda são constantes a respeito

FOCOS DE PREOCUPAÇÃO
Cinco pontos de atenção no maior
ecossistema do planeta

VIOLÊNCIA

A região tem taxas de homicídios, estupros,


feminicídio e letalidade policial acima da média
nacional, segundo dados de 2022 — mesmo ano
dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do
jornalista Tom Phillips. Nos últimos anos, 22 facções
criminosas passaram a atuar na área com tráfico de
drogas, armas e animais silvestres, desmatamento,
grilagem e garimpo ilegal

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dos problemas da Amazônia, o governo Lula comemora


um feito relevante: a queda no desmatamento. O Brasil fe-
chou 2023 com uma redução de 22% na taxa em relação
ao ano anterior e alcançou o patamar registrado em 2008.
Foram cerca de 9 000 quilômetros quadrados desmatados
no período, uma inflexão após quatro anos do governo
Bolsonaro, quando o país manteve um patamar acima dos
10 000 quilômetros quadrados destruídos. Os números
parciais referentes ao primeiro bimestre de 2024 apontam
para a mesma direção: a taxa de des-
matamento foi a menor na compa-
ração com o mesmo período dos
últimos seis anos. O governo fe-
deral atribui a redução princi-
palmente à retomada do esfor-
ço de fiscalização. Segundo o
Ministério do Meio Ambiente,

INDÍGENA S

A crise humanitária que atingiu a Terra Indígena


Yanomami virou prioridade logo no início da
gestão Lula. Em janeiro deste ano, o presidente
cobrou duramente os seus auxiliares pela falta de
resultados efetivos e pela persistência de
garimpeiros, malária e desnutrição na área.
Um centro articulador das ações foi inaugurado
em Boa Vista (RR) no fim de fevereiro

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durante 2023 houve aumento de 104% dos autos de infra-


ção aplicados pelo Ibama.
A redução do ritmo de destruição obtida agora con-
trasta com as políticas adotadas pelo governo anterior.
Sob qualquer ângulo que se olhe, a gestão de Bolsonaro
no meio ambiente foi um desastre, que piorou situações já
graves e manchou a reputação do Brasil no exterior. Du-
rante sua presidência, ele esvaziou e dilapidou órgãos de
controle e fiscalização, além de promover uma política
permissiva às atividades causadoras de degradação, como
queimadas, extração ilegal de madeira e garimpo. O re-
sultado é que, durante o seu mandato, o desmatamento
cresceu 73%. Se não bastasse, na política externa, Bolso-
naro adotou uma postura de embate com nações interes-
sadas na preservação ambiental, como a Noruega e a Ale-
manha, o que resultou na suspensão, em 2019, dos repas-
ses ao Fundo da Amazônia, criado em 2009 para finan-

G ARIMPO ILEG AL

Embora Lula tenha anunciado que seu governo


faria uma ofensiva para acabar com o garimpo ilegal —
20 000 foram expulsos no primeiro mês de seu
governo —, a Amazônia ainda concentra mais de
90% dessa atividade, sendo que 40% das área
foram abertas nos últimos cinco anos. A maior
concentração está em terras indígenas e unidades
ambientais protegidas

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ARTE: LILO CLARETO/AMAZÔNIA REAL; MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

INDICADORE S S OCIAIS

O IPS (Índice de Progresso Social),


que mede doze indicadores ambientais
e sociais, foi de 54,32 em 2023 (em uma escala
de 0 a 100), a mesma faixa dos últimos dez anos,
o que mostra estagnação. Nenhum dos nove
estados da Amazônia Legal superou a média
nacional (67,24)

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ciar ações de combate ao desmatamento e de fiscalização.


Ele só foi retomado no governo Lula, com saldo de 3 bi-
lhões de reais para serem aplicados na região. Na mesma
toada, o presidente reformulou o Fundo Clima, paralisado
na última gestão: novas regras aprovadas para a aplicação
do financiamento de projetos voltados ao desenvolvimen-
to sustentável vão garantir a disponibilização de até 10,4
bilhões de reais para iniciativas de combate à crise climá-
tica. Também de olho na proteção ambiental, o governo
assinou neste ano o decreto que retoma a Comissão de
Gestão de Florestas Públicas.
Com medidas assim, o governo rapidamente conseguiu
reverter a imagem de pária ambiental diante do mundo e, a
exemplo do progresso na questão do desmatamento, vem
adotando ações efetivas, sem ficar apenas no discurso. Os
desafios, no entanto, continuam enormes. O próprio des-
matamento, apesar das reduções a ser comemoradas, segue

DE SMATAMENTO

No ano passado, a área desmatada chegou


a 9 001 quilômetros quadrados em doze meses,
22% a menos que o período anterior, a menor taxa
desde 2018 e uma inflexão em relação aos números
da gestão anterior, de Jair Bolsonaro — que eram
os mais altos desde 2008

Fontes: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Imazon, Prodes/Inpe

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POLÍCIA FEDERAL/DIVULGAÇÃO
RETOMADA Apreensão de madeiras: fiscalização
foi retomada com força após a mudança de governo

em índices preocupantes. Segundo estudo publicado na re-


vista Nature, uma das publicações científicas de maior
prestígio do mundo, a Amazônia pode atingir um “ponto de
não retorno até 2050”. Os dados fazem parte de um levan-
tamento de pesquisadores brasileiros da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina (UFSC) e significam, na prática,
que o bioma está perto de atingir um limite que, após ultra-
passado, resultaria na mudança irreversível do ecossistema.
Entre um dos principais elementos de estresse listados pe-
los estudiosos, está o desmatamento acumulado.
Outros problemas históricos da região continuam ga-
nhando contornos mais dramáticos — e vários deles ain-
da não mereceram a devida atenção do atual governo. A

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RAPHAEL ALVES/EFE
CRISE Assistência aos ianomâmis:
desastre humanitário é um vexame ao país

região amazônica, onde vivem cerca de 28 milhões de


pessoas, tem indicadores inferiores à média nacional em
todas as áreas, como necessidades humanas básicas
(água, moradia, segurança), fundamentos para o bem-es-
tar (saúde, educação e informação) e oportunidades (di-
reitos, liberdades e inclusão social). O mais agravante é
que os números, relativos a 2023, pouco mudaram nos úl-
timos dez anos. “A Amazônia estagnou enquanto o res-
tante do país cresceu”, observa Adalberto Mesquita, pes-
quisador e cofundador do Imazon. “Hoje a região é o que
foi o Nordeste no passado.” Esse quadro de penúria é cam-
po fértil para a expansão dos problemas relacionados à se-
gurança pública. A região tem atraído cada vez mais a

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MARIZILDA CRUPPE/AMAZÔNIA REAL


ILEGALIDADE Garimpos no Pará:
atividade clandestina ainda é um desafio

atenção de facções criminosas nacionais e internacionais,


que dominam o tráfico de drogas e de recursos naturais.
O resultado: taxas de homicídios, estupros, feminicídio e
letalidade policial acima da média nacional.
Nada é mais simbólico da falha de atuação do poder
público na região amazônica do que a situação dos indíge-
nas, justamente para um governo que criou o primeiro mi-
nistério dedicado à questão. O grito de socorro do povo
ianomâmi é o mais urgente do momento. Imagens de
crianças em avançado estado de desnutrição e alvos de
doenças causadas pela contaminação pelo mercúrio pas-
saram a circular pelo mundo. Dados do Ministério da
Saúde apontaram que 570 crianças de até 5 anos da etnia

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morreram entre 2019 e 2022, sendo que 99 apenas no úl-


timo ano. O governo decretou estado de emergência na
terra indígena e promoveu ações para atendimento à po-
pulação e a expulsão dos mais de 20 000 garimpeiros que
atuavam na região. Em paralelo, o Supremo Tribunal Fe-
deral determinou que seja investigada possível participa-
ção de autoridades da era Bolsonaro na prática de genocí-
dio. As ações do governo Lula surtiram alguns efeitos,
mas, um ano depois, a situação ainda inspira cuidados,
principalmente pela insistência dos garimpeiros em atuar
na região. O governo então mudou a estratégia e promo-
veu ações para garantir a presença permanente do Estado
por ali, como a implantação, em fevereiro deste ano, da
Casa de Governo em Roraima, que vai gerenciar as ações
de saúde, segurança e direitos humanos.
Igualmente simbólica, a escolha de Marina Silva para
chefiar o Ministério do Meio Ambiente não veio acompa-
nhada do apoio político necessário. Se, por um lado, seu
currículo como titular da pasta nos primeiros mandatos
de Lula a cacifou para o posto, por outro, a ambientalista
se viu às voltas com o pragmatismo que costuma mandar
na política — e do qual Lula não hesita em lançar mão
quando necessário. Exemplo disso foi a dança das cadei-
ras feita em junho do ano passado para acomodar interes-
ses de caciques do Congresso e garantir, em troca, a apro-
vação de medidas caras ao governo, que patinava na arti-
culação. O acordo envolveu o esvaziamento da pasta de

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VICTORIA BECHARA
EXEMPLO Nena: cacau sustentável
para a produção de chocolates orgânicos

Marina. O principal revés foi a transferência do Cadastro


Ambiental Rural, registro usado para mapear grilagem de
terras e áreas desmatadas, para o Ministério da Gestão.
Outro ponto de atrito foi a questão da exploração de pe-
tróleo na foz do Amazonas. Marina, que defende aberta-
mente o abandono dos combustíveis fósseis, parece voz
vencida no governo em relação à perfuração, que está em
processo de liberação de licenças por parte do Ibama. A
ministra já declarou que a autorização, solicitada pela Pe-
trobras e negada duas vezes, é “técnica” e que o instituto
faz a análise com “isenção”. A titular ainda disse que o de-
bate sobre exploração ou não de petróleo é uma decisão
“de governo”, e não de sua pasta.

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No que depender do Palácio do Planalto, ao que tudo


indica, Marina perderá outra batalha. Nos últimos dias,
o diretor do Ibama, Rodrigo Agostinho, anunciou que o
governo publicará em breve um decreto sobre a necessi-
dade de um estudo ambiental para a exploração petrolí-
fera no local e em outras áreas sensíveis, avaliando o im-
pacto da produção. A análise deverá ser feita de forma
conjunta entre os ministérios do Meio Ambiente e o de
Minas e Energia. O anúncio foi interpretado como um
sinal de que Lula está disposto a dar sinal verde para a
Petrobras.
Além de resolver a complexa equação de equilíbrio
entre os cuidados ambientais e o progresso, não será fá-
cil reverter problemas que foram se avolumando após
décadas de omissão do poder público na Amazônia. Es-
pecialistas consideram que a solução passa por políticas
muito mais duradouras, tendo em conta que muitas de-
las só vão apresentar resultados a médio e longo prazo.
No campo externo, o país precisa estreitar ainda mais
relações com nações interessadas na preservação. Evi-
dentemente, o Brasil também precisa fazer sua lição de
casa. Intensificar a atuação do Estado, com medidas
mais agressivas de combate ao crime, ao mesmo tempo
em que investe na regularização fundiária da região e ti-
ra do papel um projeto mais efetivo de desenvolvimento
econômico sustentável. O mundo inteiro está de olho e
torce para que o Brasil vença essa batalha. ƒ

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MARCELO SOUZA/AG. PARÁ


EM OBRAS Parque da Cidade, em Belém: projeto de 500 000
metros quadrados ficará pronto a poucos meses do evento

A COP30: UMA EPOPEIA


LOGÍSTICA NA REGIÃO DA SELVA
O filme Fitzcarraldo, de 1982, a respeito do esforço que beira a
insanidade de um homem empenhado em construir uma casa
de ópera no meio da selva, entrou para a história pelo pesadelo
experimentado durante as filmagens. O roteiro nos bastidores
incluiu ataques de mosquitos, deslizamentos de terras e até um
boato de que indígenas teriam ameaçado de morte o ator prin-
cipal, Klaus Kinski. Guardadas as devidas proporções, a organi-
zação da COP30, a Conferência das Nações Unidas sobre Mu-
danças Climáticas, em Belém, tem tudo para configurar outra
verdadeira epopeia na floresta. O evento está marcado para
novembro de 2025 e deve durar doze dias. São esperadas
50 000 pessoas, incluindo uma centena de chefes de Estado.

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O ponto de partida ocorreu no Egito, quando Lula esteve na COP27


e anunciou que pediria à ONU para a Amazônia sediar o evento em
2025. “Tem dois estados aptos a receber qualquer conferência inter-
nacional, que são o Amazonas e o Pará”, declarou. Nos bastidores, a
primeira-dama, Janja, insistia em que a capital paraense seria a melhor
opção. O martelo foi batido em dezembro de 2023. A partir daí, come-
çou uma intensa movimentação para cuidar da logística do evento.
A mais de um ano da COP, o Pará tem um número considerável
de desafios pela frente. O primeiro deles é a estrutura. O governo
estadual trabalha na construção do Parque da Cidade, onde será
realizada a conferência, no terreno que antes abrigava o antigo ae-
roporto de Belém. A entrega da primeira fase do projeto, de mais de
500 000 metros quadrados, está prevista para julho de 2025 e inclui
um centro de economia criativa, um centro gastronômico, um anfi-
teatro e cinco pavilhões. Por enquanto, a maior parte ainda está no
papel. Apesar das máquinas circulando e de algumas poucas estru-
turas de pé, o terreno está praticamente vazio, repleto de amontoa-
dos de terra e placas de obras.
Há ainda outros gargalos logísticos para a realização do evento,
como o número de vagas de hotéis. Atualmente, Belém tem 18 000
leitos de hospedagem. Para atender à demanda da COP, serão
construídos dois hotéis de luxo em prédios cedidos pelo estado. As
soluções ainda passam pela reforma de escolas estaduais e acor-
dos com a plataforma Airbnb para aumentar o número de imóveis
disponíveis para aluguel.
Questões básicas, como esgoto e lixo, também estão entre os
principais problemas da capital. As montanhas de latas, embalagens

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e sacolas plásticas nas calçadas chamam a atenção de quem


passa perto do aeroporto da cidade e em bairros da periferia.
Além disso, Belém está entre as dez cidades com os piores índi-
ces de saneamento básico em todo o país — 91% da população
não têm coleta de esgoto. Outra encrenca é a mobilidade. O go-
verno estadual comprou 300 ônibus novos e planeja incentivar o
trabalho remoto em alguns setores para reduzir o trânsito duran-
te os dias da COP, além de determinar férias escolares.
Esses obstáculos geraram especulações em Brasília sobre a
capacidade de Belém de sediar a COP. Uma ala do governo fede-
ral defende que algumas reuniões sejam transferidas para ou-
tras cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro. “Uma
cidade que recebe milhões de turistas durante um fim de semana
do Círio de Nazaré está preparada para esse evento”, contesta
Bruno Chagas, secretário-adjunto de Cultura do Pará e membro
do comitê estadual da COP. Para o governador Helder Barbalho,
os preparativos não envolvem um esforço de maquiagem da rea-
lidade. “Não deve ser ambição do Brasil esconder problemas da
Amazônia ou de qualquer centro urbano do nosso país”, afirma.
Em tese, ele terá um lucro político imenso com os holofotes do
evento, algo precioso para quem tem grandes pretensões para
2026 — Helder quer disputar o Senado ou tentar a vaga de vice
na chapa de Lula. Mas tudo isso depende de uma vitória sobre os
enormes desafios pela frente na epopeia logística necessária pa-
ra a realização da COP no próximo ano.

Victoria Bechara, de Belém

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BRASIL POLÍTICA

UNIÃO PELO CENTRO


Grupo de governadores do Sul e do Sudeste articula
pauta comum em áreas como segurança
e finanças, amplia atuação política e vira embrião
de alternativa a Lula em 2026 ADRIANA FERRAZ

4
3 7 8
2 6
1
5

FRENTE AMPLA 1 Cláudio Castro (RJ), 2 Tarcísio de


Freitas (SP), 3 Ratinho Junior (PR), 4 o presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco, 5 a vice-governadora Marilisa Boehm (SC),
6 Romeu Zema (MG), 7 Eduardo Leite (RS), e 8 Renato
Casagrande (ES): pacote contra o crime

PEDRO GONTIJO/SENADO FEDERAL

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A MARATONA começou às 8h. Alinhados no discurso e


na pauta, seis governadores e uma vice-governadora de-
sembarcaram em Brasília na terça, 26, levando na baga-
gem demandas tributárias e projetos para combater a cri-
minalidade. A primeira reunião foi no Ministério da Fa-
zenda, onde foram recebidos para discutir o espinhoso te-
ma da renegociação das dívidas dos estados com a União.
De lá, a caravana partiu para as residências dos presiden-
tes da Câmara e do Senado e terminou no Ministério da
Justiça e Segurança Pública, com só uma parada extra:
parte deles seguiu para um encontro fora da agenda para
conhecer, em primeira mão, os resultados de uma nova
pesquisa a respeito de cenários para a corrida de 2026 ao
Palácio do Planalto e da popularidade do atual governo.
O interesse por essa reunião é plenamente justificável.
Com quatro potenciais presidenciáveis, o Consórcio de In-
tegração Sul e Sudeste (Cosud) ganhou coesão e muscula-
tura política, e tornou-se embrião de uma alternativa de
centro para enfrentar Lula em 2026.
A turma de governadores compõe uma estratégia que
começou a ser traçada no começo de 2019. Recém-eleito
em Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) comentou com co-
legas do Sul e Sudeste que gostaria de formar um grupo
para trocar experiências sobre gestão pública. Naquele
início de mandato, antes do surgimento do coronavírus, a
preocupação conjunta dizia respeito à reforma da Previ-
dência e à defesa de ações anticorrupção. De lá para cá, a

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PLANO DE AÇÃO
Seis pontos encaminhados
em conjunto pelos sete
governadores do Sul
e do Sudeste

C O M B AT E À D E N G U E

Em carta, grupo pediu mudanças ao Ministério


da Saúde na política de distribuição de recursos
federais e das vacinas contra a doença

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RIGOR CONTRA O CRIME

O consórcio apresentou quatro projetos de lei


que endurecem a legislação para audiências de
custódia e facções criminosas e flexibilizam
a atuação da polícia

REFRESCO NO CAIXA

Governadores foram até Fernando Haddad pedir


a mudança do indexador para reduzir as dívidas
com a União — só no caso de São Paulo,
ela chega a 280 bilhões de reais

REFORMA TRIBUTÁRIA

Uma das próximas prioridades do grupo será


trabalhar no Congresso para fazer valer os seus
interesses na regulamentação da nova legislação
sobre impostos aprovada em 2023

MEIO AMBIENTE

Estados do Sul e do Sudeste firmaram um pacto


para viabilizar a criação do Fundo da Mata Atlântica
e o plantio de 100 milhões de mudas até 2026

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EMERGÊNCIA CLIMÁTICA

Desastres naturais recentes, como os ocorridos no


Rio de Janeiro e no Espírito Santo, fizeram o bloco
atuar em conjunto na busca de verbas para
prevenção e reconstrução
Fonte: Cosud

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vitória de Lula, a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, a ree-


leição de Zema, Cláudio Castro (PL), no Rio, e Ratinho
Junior (PSD), no Paraná, e a chegada dos bolsonaristas
Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Jorginho Mello (PL)
ao poder em São Paulo e Santa Catarina marcaram a vira-
da do Cosud, que já promoveu cinco encontros desde fe-
vereiro de 2023 e agora tem estatuto, cargos e orçamento
definidos, além de uma agenda conjunta.
A guinada política foi, claro, mais à direita. Com apenas
um representante na base de Lula — o governador do Es-
pírito Santo, Renato Casagrande (PSB) —, o consórcio tem
assumido a defesa de pautas consideradas mais conserva-
doras, especialmente na área da segurança pública, onde o
governo federal pouco ou nada conseguiu evoluir até aqui.
No pacote apresentado pelo grupo ao ministro Ricardo
Lewandowski e aos líderes do Congresso estão propostas
que buscam respaldar a atuação policial diante de even-
tual “atitude suspeita” e que visam dificultar a concessão
de liberdade provisória, durante audiências de custódia, a
presos em flagrante — medidas que receberam a aprova-
ção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e a
promessa de tramitação célere. Neste ano, os governadores
já tiveram a primeira vitória nessa seara, com a aprovação
pelo Congresso do fim da chamada “saidinha” de presos
em datas festivas, como Natal e Ano Novo.
Atual presidente do bloco, Ratinho Junior alega que os
estados do Sul e Sudeste já avançaram bastante na redu-

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MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO


PROJEÇÃO Ciro Nogueira: chefe do PP levou aos
governadores pesquisas com cenários para a corrida ao Planalto

ção dos índices de criminalidade, mas que suas atuações


têm alguns limites importantes. “Precisamos endurecer
as leis para seguirmos avançando, e isso em todo o país. A
nossa união colabora com o Brasil, e espero que sirva de
inspiração para outros estados”, disse a VEJA. Além de
demandas ao Executivo e ao Legislativo, os governadores
querem integrar as polícias do Sul e Sudeste, regiões que
concentram quase 60% da população brasileira, com-
prando viaturas e tecnologias de segurança em comum e
unificando os seus bancos de dados, na contramão do que
faz o governo federal.
A próxima pressão forte sobre o governo federal, no en-
tanto, tem pouco a ver com ideologia. A batalha que se de-

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senha é por dinheiro, para equilibrar as finanças dos esta-


dos. A pedido dos governadores — e com aval de Lula —, o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, recebeu o con-
sórcio na terça, 26, para apresentar uma proposta que re-
duz os juros pagos nas dívidas que eles têm com a União
mediante a ampliação dos investimentos dos estados em
educação. A negociação foi bem aceita e até elogiada por
Zema, Tarcísio e Castro, mas criticada pelo presidente do
Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que tem interesse
direto na matéria. Provável candidato ao governo mineiro
em 2026, o senador quer incluir na negociação a venda de
ativos do estado como forma de reduzir mais rapidamente
as parcelas pagas mensalmente à União — proposta que
atende a Minas, que quer se livrar de empresas como a Ce-
mig (empresa estatal de energia). O tamanho da fatura na
mesa do governo é grande. São Paulo tem um saldo deve-
dor de 278 bilhões de reais e lidera o ranking, seguido por
Rio (188 bilhões de reais) e Minas (160 bilhões de reais).
Outra prioridade do Cosud será no sentido de elevar
receitas. Dono de cerca de 70% do PIB nacional, o bloco
pretende atuar para ver seus interesses atendidos na re-
gulamentação da reforma tributária, que o governo pre-
tende promover ainda este ano. Apesar de muitos deles
terem atuado nas fileiras contra Lula em 2022, os gover-
nadores dessas regiões apoiaram a primeira fase da re-
forma proposta pelo petista à espera de serem atendidos
na segunda etapa.

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COMPROMISSO
Lira: presidente da
Câmara prometeu
dar celeridade às
propostas levadas
pelos sete estados

CRISTIANO MARIZ/AGÊNCIA O GLOBO


A atuação em conjunto de governadores não é exata-
mente uma novidade. Os estados que formam o Cosud,
aliás, foram os últimos da federação a compartilhar expe-
riências e apresentar demandas ao governo federal. Du-
rante a pandemia, o Consórcio Nordeste ganhou os holo-
fotes ao integrar suas políticas e até fazer compras conjun-
tas para otimizar recursos em um cenário de queda drás-
tica de arrecadação e relação conturbada com o governo
Jair Bolsonaro. O fortalecimento do Cosud era esperado,
dentro de um processo de amadurecimento natural, se-
gundo o governador gaúcho, Eduardo Leite (PSDB). “Há
uma aproximação crescente entre nós. Temos hoje uma
sinergia que nos ajuda a construir cooperações efetivas

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em diversas áreas e também a desenvolver uma espécie


de advocacy em favor de pautas de nosso interesse no
Congresso”, diz o tucano.
A história brasileira, no entanto, já comprovou a força
das chamadas “política dos governadores” ou “política
dos estados” na tomada do poder central. Na República
Velha, entre o final do século XIX e começo do XX, as
oligarquias paulista e mineira se alternavam na Presidên-
cia, no que ficou conhecido como “política do café com
leite”. Mais recentemente, durante o movimento das Dire-
tas Já, foram os governadores do Rio (Leonel Brizola), de
São Paulo (Franco Montoro) e de Minas (Tancredo Ne-
ves) que pressionaram pela abertura política que levou à
eleição indireta para presidente em 1985. Eles agiram con-
juntamente na oposição e depois definiram entre si o no-
me que viria a disputar o cargo, elegendo Tancredo. “Ho-
je, a situação, claro, é outra, mas com o governo Lula sem
uma base no Congresso, esse tipo de movimento ganha
musculatura mesmo e força o presidente a se equilibrar
entre atender e negar os pedidos do bloco”, entende o
cientista político Carlos Melo, professor do Insper.
No caso do Cosud, os membros combinam um discurso
público de que o grupo age sem qualquer futura pretensão
política, O gaúcho Eduardo Leite e o paranaense Ratinho
Junior procuram sempre enfatizar isso, mas o fato é que
todos estão de olho em 2026. O encontro fora da agenda
na última terça representou um exemplo claro disso. O an-

10 | 11
INÊS 249

fitrião foi o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que encomen-


dou a nova sondagem presidencial ao Instituto Paraná Pes-
quisas. Entre os governadores, Tarcísio de Freitas é o que
aparece mais bem colocado num possível confronto com
Lula, mas com doze pontos abaixo do petista. Nos bastido-
res, a turma não poupa de críticas a gestão do atual ocu-
pante do Palácio do Planalto e tem a convicção de que a
segurança pública será um dos temas principais da próxi-
ma campanha presidencial. Há ainda a certeza entre eles
de que, caso Tarcísio decida mesmo embarcar na campa-
nha, são maiores as chances de o grupo marchar junto até
2026. Até agora, essa frente ampla parece cada vez mais
unida, tentando não repetir a disputa de vaidades que se-
pultou a terceira via nas eleições passadas. ƒ

11 | 11
INÊS 249

OBSTÁCULOS À
REFORMA TRIBUTÁRIA
Há risco considerável de temas
importantes ficarem para 2025

A PRESSÃO POLÍTICA para que o governo envie os pro-


jetos que tratam da regulamentação da reforma tributária
aumentou nos últimos dias. De acordo com a Emenda
Constitucional nº 132, aprovada no final de 2023, o Execu-
tivo deveria mandar ao Congresso medidas sobre o Impos-
to de Renda e a desoneração da folha. Não o fez. Alegou
que as propostas que serão remetidas ao Congresso sobre
ambos os temas vão integrar a regulamentação da reforma.
O atraso gerou preocupações em torno da regulamen-
tação mais complexa: a tributação sobre o consumo. A
ideia é enviar propostas de leis complementares para defi-
nir, entre outros pontos, as regras do Imposto sobre Bens e
Serviços (IBS) estadual e da Contribuição sobre Bens e
Serviços (CBS) federal; a atuação do Comitê Gestor do
IBS, que distribuirá os recursos arrecadados para estados
e municípios; a composição da cesta básica nacional; e a
implementação do Imposto Seletivo, criado para desesti-
mular atividades nocivas à saúde e ao meio ambiente.

1|3
INÊS 249

O tema está na agenda prioritária do presidente da Câ-


mara, Arthur Lira (PP-AL), que espera aprovar a regula-
mentação ainda este ano e encerrar sua gestão com essa
marca. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse
que a reforma precisa ser aprovada ainda em 2024. Já Li-
ra afirmou que a aprovação depende do envio das propos-
tas ao Congresso. A Comissão de Sistematização (Cosist),
que funciona no âmbito do Executivo, tenta concluir os
trabalhos e enviar o material para a análise de Haddad
nos próximos dias.
A conclusão da votação desses temas ainda este ano é
um desafio grande. Em primeiro lugar, trata-se de assun-
to complexo, com definições importantes, como alíquotas
e regras para o Imposto Seletivo. Em segundo lugar, esta-
mos em ano eleitoral, quando, tradicionalmente, o ritmo
no Congresso cai drasticamente entre agosto e setembro.

“O crescimento
da desaprovação
de Lula nos últimos
meses reduz o capital
político do presidente”
2|3
INÊS 249

A disputa pela presidência da Câmara e do Senado tam-


bém pode gerar ruídos importantes e prejudicar o anda-
mento da matéria. Por fim, vale mencionar as dificulda-
des enfrentadas pela articulação política do governo. As
insatisfações prosseguem de lado a lado e, sem um alinha-
mento claro entre o governo e a presidência da Câmara, o
avanço da reforma será dificultado. Portanto, ainda que o
Executivo envie os textos nas próximas semanas, há risco
considerável de a conclusão da votação ficar para 2025.
Ainda mais quando a popularidade do governo está
declinante, apesar de índices econômicos positivos. As úl-
timas pesquisas de avaliação divulgadas são unânimes
em apontar que o Brasil continua muito dividido. A apro-
vação do governo gira em torno de 50%, enquanto a desa-
provação chegou a percentuais que variam de 45% a 47%.
Apesar de a aprovação de Lula apresentar um saldo posi-
tivo, o crescimento da desaprovação registrado nos últi-
mos meses reduz o capital político do presidente. Como
consequência, a gerência da governabilidade fica mais
complexa, o que impõe desafios adicionais à tramitação
de temas polêmicos como a regulamentação da reforma
tributária. O que irá lhe custar esforço adicional para con-
cluir a reforma este ano. ƒ

3|3
INÊS 249

BRASIL GOVERNO

DRIBLANDO AS
ARMADILHAS
O ministro da Fazenda expande sua área de influência,
agrega funções de articulador político no Congresso e
empurra o PT para segundo plano DANIEL PEREIRA

POPULISMO Lula e Haddad: Fazenda resistiu às pressões


do partido e ao lobby poderoso por mais gasto público

EVARISTO SÁ/AFP

1|8
INÊS 249

O MINISTRO da Fazenda, Fernando Haddad, estava sob


pressão no fim do ano passado. O chefe da Casa Civil, Rui
Costa, e a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann,
queriam que o governo desistisse da meta de déficit zero
em 2024, fixada por Haddad, alegando que esta — consi-
derada draconiana demais pelos petistas — poderia provo-
car cortes em investimentos e programas sociais. Em de-
zembro, o PT aprovou uma resolução em que, mesmo sem
citar o ministro e o objetivo fiscal traçado por ele, deixava
clara a sua insatisfação: “O Brasil precisa se libertar, ur-
gentemente, da ditadura do Banco Central ‘independente’
e do austericídio fiscal, ou não teremos como responder às
necessidades do país”. O próprio presidente Lula fazia par-
te desse coro quando afirmava que a meta dificilmente se-
ria cumprida e que não começaria o ano “fazendo corte de
bilhões de reais” em projetos prioritários só para alcançá-
-la. O lobby era poderoso e empunhava a surrada — e re-
provada — bandeira por mais gasto público. Ciente do cer-
co, Haddad resolveu conversar com o chefe. Deu certo, e o
plano fiscal dele ganhou uma sobrevida.
Com prestígio em alta com o presidente em razão do
avanço da agenda governista no Congresso e a melhora de
uma série de indicadores econômicos, Haddad convenceu
Lula a adiar o debate sobre a revisão da meta de déficit zero
para março de 2024. Alegou que antes de qualquer mudan-
ça era necessário ver o comportamento da arrecadação e
da despesa no início deste ano. Afirmou ainda que essa pre-

2|8
INÊS 249

WAGNER ORIGENES/ATO PRESS/AGÊNCIA O GLOBO

IMPOPULAR PT: fracasso dos atos convocados


pela sigla revela desgaste

caução manteria a credibilidade da política econômica. A


estratégia rendeu o fruto esperado pelo ministro. Na sexta-
feira 22, o governo anunciou que a meta está sendo respei-
tada e, por enquanto, será mantida. Não houve chiadeira do
PT nem dos principais opositores do ministro dentro do
partido. Haddad venceu mais um round na disputa, mas a
questão ainda não está definitivamente resolvida. Primeiro,
porque o problema das contas públicas continua grave e
tende a piorar. Segundo, porque Lula pode se render ao re-
ceituário de Rui Costa, Gleisi e companhia caso o governo
não consiga reverter o desgaste de popularidade, retratado
nos atos esvaziados convocados pela esquerda em resposta

3|8
INÊS 249

à apinhada manifestação a favor de Jair Bolsonaro realiza-


da, em fevereiro, na cidade de São Paulo.
Segundo uma leva de pesquisas, a aprovação ao trabalho
do presidente e ao governo caiu nos últimos meses, a ponto
de empatar com a reprovação. Apesar da melhora de indica-
dores como emprego e renda, também foi detectado um au-
mento do pessimismo e da avaliação negativa da população
com a economia. No Palácio do Planalto, parte do problema
é creditada à comunicação, que não estaria destacando as
supostas conquistas da atual administração. Entre petistas,
chegou-se a culpar o próprio eleitorado, que não estaria re-
conhecendo os méritos do governo. Por enquanto, Haddad
não dá sinais de que pretende se curvar à pressão dos cole-
gas de partido. “Quando a política econômica do governo é
consistente, pragmática e responsável, não são as expectati-
vas do mercado que a guiam, é ela que guia as expectativas
do mercado”, disse na última reunião ministerial.
Alvo de fogo amigo desde que assumiu o cargo, o mi-
nistro sabe do tamanho do desafio. Para que a pressão por
mais gastos continue debelada, ele aposta no crescimento
da economia, que pode ser estimulado com a melhora do
ambiente de negócios e a aprovação de projetos, com des-
taque para a regulamentação da reforma tributária e de
pontos relacionados à transição energética. No ano passa-
do, o ministro capitaneou as negociações com o presidente
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que resultaram na apro-
vação de itens importantes da agenda econômica, como o

4|8
INÊS 249

novo marco fiscal e a reforma tributária. Os dois estabele-


ceram uma boa relação institucional, que tende a ser man-
tida neste ano. Não à toa, ao anunciar o bloqueio de 2,9 bi-
lhões de reais no orçamento de 2024, a equipe econômica
poupou as emendas parlamentares. Outra aposta do mi-
nistro para continuar segurando a rédea da gastança é a
revisão permanente das despesas públicas, tocada pela
equipe da ministra do Planejamento, Simone Tebet.
Esse pente-fino nos gastos já resultou em economia,
por exemplo, na área da Previdência Social. São ações
pontuais, mas que podem render dividendos enquanto o
PT resiste a mexer no vespeiro principal: a reforma admi-
nistrativa. “Só temos uma alternativa: rever os gastos,
porque pelo lado da receita já se exauriram todas as car-
tas na manga do ministro Haddad”, diz Simone Tebet. Os
embates entre Haddad e colegas de partido começaram

APOSTA
Gleisi: bolão
MATEUS BONOMI/AGIF/AFP

para saber
até quando o
ministro fica

5|8
INÊS 249

tão logo ele tomou posse na Fazenda. No primeiro duelo,


ainda em janeiro de 2023, sobre a reoneração ou não dos
combustíveis, o ministro saiu derrotado. Na época, Lula
concordou com Rui Costa e Gleisi Hoffmann, para quem
reajustar o preço da gasolina, logo no início do novo go-
verno, seria uma tremenda falta de sensibilidade política.
Meses depois, a reoneração foi feita — sem aumento do
preço nas bombas, como gosta de repetir Haddad.
Desde então, o ministro colheu vitórias, aumentou seu
prestígio, sobretudo fora do PT, e expandiu sua área de
atuação, fazendo as vezes de articulador político com o Le-
gislativo e de negociador de causas bilionárias no Judiciá-
rio. Recentemente, foi contemplado com o direito de indi-
car um nome para integrar o conselho de administração
da Petrobras. A iniciativa foi tomada depois que a empre-
sa, seguindo orientação dos ministros Rui Costa e Alexan-
dre Silveira (Minas e Energia), decidiu não pagar dividen-
dos extras, o que fez a petrolífera perder valor de mercado
e, ao mesmo tempo, aumentar o temor de intervencionis-
mo do governo em companhias de capital aberto. Diante
da repercussão do caso, Lula convocou uma reunião para
tratar do tema, chamou Haddad para participar e lhe deu
uma vaga no conselho de administração da Petrobras.
Após a reunião, Haddad deixou claro que o pagamento dos
dividendos extras ainda pode ocorrer, desde que não com-
prometa o plano de investimentos da Petrobras. A declara-
ção funcionou como água na fervura.

6|8
INÊS 249

NELSON ALMEIDA/AFP

VITÓRIA Petrobras: pagamento dos dividendos extras e


vaga no conselho de administração da empresa

A demonização do mercado, tão presente nos discursos de


petistas, não consta da cartilha do chefe da equipe econômica.
E ele, sim, colhe dividendos por isso. Pesquisa Genial/Quaest
com representantes de uma centena de fundos de investimen-
tos mostrou que a avaliação negativa do governo Lula subiu
de 52% em novembro de 2023 para 64% em fevereiro passa-
do. No mesmo período, a avaliação positiva de Haddad pas-
sou de 43% para 50%. Os embates entre o ministro da Fazen-
da e petistas estrelados não se resumem a questões como tri-
butação de combustíveis e meta fiscal. Em entrevista à CNN
Brasil, Haddad contou que foi feito até um bolão no PT sobre
até quando ele resistiria no cargo. Essa rixa tem como pano de

7|8
INÊS 249

PEDRO GONTIJO/SENADO FEDERAL

CONGRESSO Negociador: itens importantes


da agenda econômica aprovados

fundo uma disputa de poder — e, mais especificamente, a su-


cessão de Lula. Haddad, Gleisi e Rui Costa nutrem o sonho de
disputar a Presidência. Hoje, o ministro da Fazenda é consi-
derado o favorito para suceder Lula se e quando o mandatário
decidir se aposentar das urnas. Essa posição, no entanto, não
está consolidada e depende de um bom desempenho da eco-
nomia. Segundo Haddad, o objetivo de promover crescimen-
to com inclusão social só será alcançado com uma política
responsável, cuja execução exige dele coragem para comprar
brigas com o PT e contestar visões ultrapassadas até do pró-
prio chefe. Até aqui, o ministro, um sobrevivente na banca de
apostas, tem driblado os obstáculos. ƒ

8|8
INÊS 249

CRISTOVAM BUARQUE

TAREFA HISTÓRICA
Precisamos debater escolas e não prisões

EM 2026 o Brasil terá sua décima eleição presidencial


desde a redemocratização. Depois de quatro décadas, po-
rém, a democracia está em dívida com a nação e o povo
ao deixar a maior parte da população no analfabetismo
para o mundo contemporâneo. Mas tudo indica que o pró-
ximo pleito ainda não será o momento em que os eleitores
escolherão pagar essa dívida, enfrentando os desafios e
custos necessários para assegurar educação de qualidade
para todas as crianças brasileiras. Os temas centrais dos
debates serão outra vez crescimento econômico, seguran-
ça pública, saúde, distribuição de renda, pobreza, corrup-
ção — pode ser até mesmo mais universidades, dificil-
mente educação de base, que continuará sendo questão
relegada aos municípios, pobres e desiguais.
Nada indica que haverá a percepção de que a tragédia so-
cial e econômica decorre, sobretudo, embora não apenas, do
descuido com a principal causa de nossa demora para cons-
truir um país eficiente, justo, pacífico, sustentável, com liber-
dade plena. Cada um dos problemas fundamentais do Brasil
passa pela educação de base com qualidade para todas as
crianças. Enquanto outros países já nos superaram, ainda

1|3
INÊS 249

não conseguimos escapar da armadilha da nossa baixa ren-


da per capita. A Coreia do Sul, que há quarenta anos tinha
metade de nossa renda média, hoje tem hoje o dobro.
A barreira decorre de nossa poupança insuficiente, do
pequeno investimento, da instabilidade jurídica e do isola-
mento comercial. A principal causa, contudo, é a baixa pro-
dutividade por falta de educação de base capaz de preparar
a população para a atividade econômica moderna. A con-
centração de renda, que nos faz parecer um país ainda es-
cravocrata e com apartação, só será rompida se antes hou-
ver distribuição de conhecimento. A violência urbana, que
nos transformou em exemplo mundial de insegurança, com
condomínios cercados e ruas tomadas pelo medo, é causada
especialmente pela falta de oportunidade, ao negar-se edu-
cação para os jovens, que sem estudo e trabalho são tenta-
dos a sobreviver no crime. O racismo não será superado

“A educação
de base é a principal
barreira a impedir
nosso avanço
civilizatório”
2|3
INÊS 249

apenas com leis para raros alunos entrarem no ensino supe-


rior, mas por colocar todos, pobres e ricos, brancos e negros
estudando juntos no mesmo sistema escolar.
A próxima campanha presidencial seria um momento
para os eleitores brasileiros tratarem a educação de base co-
mo questão nacional. Mas, pode-se prever que dificilmente
alguma candidatura centrará o debate na escolha da melhor
estratégia para o Brasil ter suas escolas com a máxima qua-
lidade pelos padrões mundiais, independentemente da ren-
da e do endereço de cada família.
Apesar de sabermos como fazer e termos os recursos pa-
ra cumprir essa meta, nada indica que este será um tema
central da campanha. A centralidade dos debates deverá ser
a violência, cumprindo o que Darcy Ribeiro previu em 1985:
ou “fazemos escola agora ou no futuro teremos de fazer ca-
deias”. Em 2026, vamos debater prisões, não escolas.
Continuará faltando um estadista “educacionista” para
oferecer as bases da Missão Educação que realize a tarefa
histórica de superarmos a principal barreira a impedir nos-
so avanço civilizatório. ƒ

3|3
INÊS 249

BRASIL JUSTIÇA

O TRIBUNAL
DA HONRA
Se condenados pelo Supremo Tribunal Federal,
militares envolvidos em trama golpista ainda
passarão por um último e constrangedor julgamento
LARYSSA BORGES

ENSAIO Bolsonaro: visita à embaixada e rumores


sobre plano de fuga

REPRODUÇÃO

1|6
INÊS 249

EM SUA EDIÇÃO PASSADA, VEJA revelou que o te-


nente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair
Bolsonaro que assinou um acordo de colaboração pre-
miada, acusou a Polícia Federal de distorcer suas infor-
mações, de tirar outras de contexto e até mesmo de omi-
tir certos fatos para sustentar uma “narrativa” que, se-
gundo ele, já estaria pronta. Em uma conversa gravada, o
militar também fez pesadas críticas ao ministro Alexan-
dre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, responsá-
vel pelo inquérito que apura uma suposta trama golpista
ocorrida no fim do go-
verno passado. As in-
confidências, feitas em
uma longa conversa
com um amigo, gera-
ram uma enorme turbu-
lência. O militar foi inti-
mado a se explicar, jus-
tificou que era uma con-
versa privada, classifi-
cou o que dissera ao in-
terlocutor como um de-
EVARISTO SÁ/AFP

sabafo, mas, por causa


disso, acabou tendo a
prisão decretada por VOLTA À PRISÃO Cid:
obstrução da Justiça e condenação de dois anos
por revelar a terceiros evitaria “morte” militar

2|6
INÊS 249

detalhes de sua colaboração, que é sigilosa. O estrago foi


grande — especialmente para ele próprio.
Cid aceitou colaborar com a Polícia Federal em troca de um
benefício que pode fazer muita diferença no futuro. Durante
quatro anos, ele serviu como braço direito de Jair Bolsonaro.
Testemunhou praticamente tudo de importante que aconteceu
no governo. As informações que repassou aos investigadores
revelaram vários episódios controversos e graves, principal-
mente aqueles ocorridos no fim de 2022, quando o ex-presiden-
te, um grupo de assessores e militares de alta patente discuti-
ram a possibilidade de anular as eleições e impedir a posse de
Lula, sob o argumento de que as urnas teriam sido fraudadas.
Uma das condições que Cid impôs para assinar o acordo foi
que, em caso de uma condenação ao final do processo, sua pe-
na não ultrapassaria dois anos de prisão. Essa cláusula tempo-
ral, aceita pelas autoridades, não foi obra do acaso. As preocu-
pações do tenente-coronel e de outros quase vinte militares vão
além de uma eventual punição criminal derivada dos inquéri-
tos que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF).
O Código Militar estabelece que os oficiais condenados a
mais de dois anos de prisão por qualquer crime sejam subme-
tidos a uma espécie de julgamento moral, que avalia se eles
têm ou não condições de continuar ostentando suas patentes,
independentemente de serem da ativa ou da reserva. Valerá
para todos que tenham conspirado contra a democracia — do
tenente-coronel Mauro Cid ao capitão Jair Bolsonaro. O pro-
cesso tramitará no Superior Tribunal Militar (STM), corte

3|6
INÊS 249

formada por 15 ministros, sendo dez oficiais-generais. Os juí-


zes fazem um inventário da vida do acusado. Levam em con-
ta a carreira na caserna, as missões, as condecorações e vão
sopesar tudo com as acusações de golpe imputadas. Se consi-
derarem que as condenações foram mais relevantes do que a
carreira do investigado, os militares perderão a patente, as

INSÍGNIAS AMEAÇADAS
Alguns dos militares que, segundo a Polícia Federal,
teriam se envolvido no plano para anular as eleições
e manter Bolsonaro no poder

PAULO SÉRGIO
O EX-MINISTRO DA DEFESA
ATUAVA NOS ATAQUES À
CREDIBILIDADE DAS URNAS
ELETRÔNICAS E TERIA REUNIDO
CHEFES MILITARES PARA
DISCUTIR DECRETO GOLPISTA

BRAG A NE T TO
EX-CANDIDATO A
VICE-PRESIDENTE, É APONTADO
PELA PF COMO UMA ESPÉCIE DE
INFLUENCIADOR QUE ATUAVA
PARA TENTAR CABALAR
APOIO DOS MILITARES

4|6
INÊS 249

medalhas e o salário, que passará a seus beneficiários ou es-


posas, como se fossem “viúvas” do Estado. “É o mais grave
revés que um militar pode sofrer, pior do que perder uma
guerra”, diz o professor titular de História do Brasil da UFRJ
Carlos Fico, estudioso da ditadura militar.
No caso de Bolsonaro, basta que ele receba um dia a mais
que a pena mínima no crime de peculato, por exemplo, base da
investigação que apura se o ex-presidente embolsou ilegalmen-
te joias do Estado brasileiro, para que o STM seja provocado a
analisar seu banimento da carreira militar. Na semana passada,
o capitão se envolveu em nova polêmica após o jornal The New

AUGUSTO HELENO
EX-CHEFE DO GABINETE DE
SEGURANÇA INSTITUCIONAL,
O GENERAL DEFENDEU EM
REUNIÃO MINISTERIAL UMA
“VIRADA DE MESA” ANTES
DAS ELEIÇÕES DE 2022

ALMIR G ARNIER
EX-COMANDANTE DA MARINHA,
FOI CITADO PELOS ENTÃO CHEFES
DO EXÉRCITO E DA AERONÁUTICA
COMO MILITAR QUE TERIA
COLOCADO AS TROPAS À
DISPOSIÇÃO DE BOLSONARO

5|6
INÊS 249

York Times ter revelado que ele passou dois dias na embaixada
da Hungria, em Brasília, depois de ter tido o passaporte retido
por ordem da Justiça. Ele explicou que foi uma visita de cortesia.
Seus adversários vislumbraram um ensaio de fuga. O julgamen-
to do STM, caso ocorra, também será um marco.
Embora tenha caráter essencialmente reputacional, a perda
da patente por indignidade e incompatibilidade com o oficialato
é considerada um divisor de águas em uma carreira que se sus-
tenta em valores como obediência e disciplina. “Trata-se de de-
claração pública de que o ex-oficial foi desonroso, indecoroso,
antiético ou incapaz de observar a disciplina, garantir a lideran-
ça ou cumprir seu dever. Esse tipo de processo é gravíssimo pa-
ra um militar”, ressalta Fico, que diz não haver na história brasi-
leira registros de que generais, como os hoje investigados no Su-
premo, tenham sido ameaçados com tamanha reprimenda.
Pode-se supor que a punição do STM será automática de-
vido à gravidade de uma eventual condenação criminal dos
militares por tentativa de golpe de Estado. Não é tão objetivo
assim. O tribunal já considerou, por exemplo, que um tenente
do Exército sentenciado a seis anos de prisão e réu confesso
por homicídio poderia continuar na carreira porque agiu
“sob o domínio de violenta emoção” ao atirar três vezes con-
tra a esposa e matá-la. Ele cumpriu pena e depois voltou nor-
malmente ao trabalho. O precedente, acredita-se, dificilmen-
te seria replicado no caso de Bolsonaro e dos generais inves-
tigados. Nada, porém, pode ser considerado impossível nos
dias atuais. Honra é um artigo raro. ƒ

6|6
INÊS 249

BRASIL PARTIDOS

UM CORPO
NO CAMINHO
Investigação de assassinato que envolve um primo
do governador de Goiás se transforma em arma na
disputa pelo controle do União Brasil HUGO MARQUES
SIDNEY LINS JR./AGÊNCIA LIDERANÇA

INTRIGAS Caiado, pré-candidato ao Planalto: “Não parece


estranho que essas acusações apareçam exatamente agora?”

1|5
INÊS 249

HÁ MESES, dirigentes do União Brasil, o terceiro maior par-


tido do Congresso, travam uma queda de braço pelo coman-
do da legenda. O embate já resultou no afastamento do depu-
tado Luciano Bivar (PE) do comando da sigla e ganhou di-
mensão diante de um rumoroso processo criminal que trami-
ta no Supremo Tribunal Federal (STF) em que o parlamentar
é acusado de ter incendiado a casa e ameaçado de morte um
de seus desafetos, o advogado Antonio Rueda. Antes de ser
destituído e sem apresentar nenhuma evidência, Bivar fez
uma grave denúncia contra um correligionário que ampliou
ainda mais a confusão, principalmente por não se tratar de
um correligionário qualquer. Segundo ele, o governador de
Goiás, Ronaldo Caiado, estaria envolvido num caso de assas-
sinato. A resposta foi imediata e incisiva. Em nota, o governa-
dor disse que o deputado mentia “de forma despudorada e cri-
minosa”, que o desespero dele por perder o cargo “fez sobres-
sair sua falta de caráter”, que não existia qualquer apuração
contra ele e que acionaria judicialmente o congressista.
A origem do bate-boca entre o governador e o deputado
está em um inquérito da Polícia Civil de Goiás que apura a
morte de um dirigente local do União Brasil. Em junho de
2021, o empresário Fábio Alves Escobar foi morto em Aná-
polis, cidade que fica a 50 quilômetros de Goiânia. Ele foi
um dos coordenadores da campanha de Ronaldo Caiado na
cidade em 2018. Depois da posse, tornou-se um desafeto do
governador, denunciando que teria havido uso de caixa
dois na campanha e apontando casos de corrupção no go-

2|5
INÊS 249

CRIME Fábio
Escobar: o
empresário foi
executado
após denunciar
caixa dois

REPRODUÇÃO
verno. O empresário, desde então, começou a receber se-
guidas ameaças de morte. Certo dia, Escobar recebeu uma
ligação e saiu para um encontro com um suposto “cliente”.
Era uma emboscada. No local combinado estavam dois ho-
mens encapuzados que dispararam quatro tiros. Na sema-
na passada, depois de quase três anos de investigação, o
Ministério Público denunciou os responsáveis pelo crime.
Entre os acusados, está um primo do governador.
Segundo o MP, seis pessoas participaram do planeja-
mento e da execução do empresário, incluindo quatro poli-
ciais militares. Jorge Caiado, o primo do governador, foi
apontado como um dos mentores do crime. Os promotores
afirmam que ele, além do parentesco, atuou ativamente na
campanha eleitoral e tinha grande influência no governo,
sobretudo na área de Segurança Pública. Atingido pelas de-

3|5
INÊS 249

núncias de Escobar, teria


procurado apoio para “resol-
ver” o problema. Um dos
procurados foi o então chefe
da Casa Militar do Palácio
das Esmeraldas, coronel Ne-
wton Nery Castilho — teste-
munha-chave do caso. O mi-
litar contou aos investigado-
res que Jorge, sem meias-pa-
lavras, o consultou sobre a
FACEBOOK @RONALDOCAIADO44

possibilidade de matar o de-


safeto. Preocupado com o
que ouviu, o PM disse que foi
até o governador e reprodu- TESTEMUNHA Castilho:
ziu o teor da conversa. Ro- coronel disse que foi
naldo Caiado, de acordo com sondado antes do crime
ele, teria ouvido o relato em
silêncio. Outros dois coronéis também teriam sido sonda-
dos sobre a necessidade de “aniquilar” Fábio Escobar.
Em todos os encontros, de acordo com o ex-chefe da Ca-
sa Militar, Jorge Caiado estava acompanhado de Carlos Cé-
sar Toledo, ex-presidente do DEM (atual União Brasil), tam-
bém denunciado pelo MP como mentor do crime. A dupla
distribuiu aos policiais um dossiê contendo uma falsa ficha
criminal do empresário, na qual ele era identificado como
traficante de drogas que precisava ser detido. Cópias do tal

4|5
INÊS 249

dossiê, segundo o coronel, foram entregues também à pri-


meira-dama do Estado. Castilho contou aos promotores que
foi convocado para uma reunião com a primeira-dama
quando as denúncias de Escobar começaram a aparecer. O
tema oficial do encontro era reforma administrativa, mas a
conversa foi praticamente toda sobre a “inconveniência” das
revelações do empresário. Jorge Caiado estava presente.
No processo também estão anexadas mensagens que a ví-
tima disparou antes de morrer. Uma delas foi enviada ao ce-
lular do governador. “Primeira vez que sinto medo na minha
vida. Vou cuidar da minha família. Diz isso pro Jorge Caiado.
Te suplico isso”, escreveu o empresário. “O governador Caia-
do sabia que meu filho estava jurado de morte e nada fez”,
disse José Escobar, pai da vítima. Para o MP, Fábio Escobar
foi executado por um grupo de extermínio composto de poli-
ciais militares a mando de Jorge e Carlos César Toledo. A
Justiça aceitou a denúncia contra os dois e mais quatro PMs.
Procurado, o primo do governador não quis se pronunciar.
Toledo está foragido. Apesar das menções, o governador Ro-
naldo Caiado, provável candidato do União Brasil à presidên-
cia da República, não é investigado. Ele nega que tenha rece-
bido o pedido de socorro do empresário, diz que o ex-chefe
da Casa Militar mentiu sobre a reunião e afirma que o envol-
vimento do primo dele no crime tem o objetivo de atingi-lo:
“Não parece estranho que essas acusações apareçam exata-
mente agora, no momento em que meu nome surge como
candidato a presidente?”. É tudo muito estranho. ƒ

5|5
INÊS 249
INÊS 249

RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ

Com reportagem de Diego Gimenes,


Felipe Erlich e Juliana Machado
LODOVICO COLLI DI FELIZZANO/WWD/GETTY IMAGES

PARCERIA Ronaldo: nova gestora para oferecer


investimentos a atletas

Bola na rede presa é oferecer investi-


O Galapagos Capital, fundo mentos para atletas.
de investimentos com 20
bilhões de reais sob gestão, Caminhos abertos
negocia uma fusão com a Em meio à possibilidade de
R9 Gestão Patrimonial e o conselho da Braskem abri-
Financeira, do ex-jogador gar Guido Mantega em uma
de futebol Ronaldo Fenô- das quatro cadeiras que es-
meno. A ideia da nova em- tão na cota da Petrobras, um

1|3
INÊS 249

dos conselheiros indicados em 2023 e estuda negócios


pela estatal já avisou a exe- no ramo de infraestrutura.
cutivos da petroquímica
que não quer continuar no Novos negócios
posto. Os mandatos de dez A Kinea tem projetos em
dos onze conselheiros aca- diligência no primeiro fun-
bam em abril. do do novo segmento, após
ter participado do consór-
Mercado agitado cio que realizou um investi-
O GPA, antigo Grupo Pão de mento de 4,1 bilhões de
Açúcar, assiste atento à res- reais na Companhia Rio-
truturação do Casino, seu grandense de Saneamento
sócio francês que está abrin- (Corsan) em parceria com
do mão de ativos no Brasil. a empresa de saneamento
Para angariar recursos, o Aegea e a gestora Perfin.
GPA considera realizar uma
nova oferta de ações nas All in
próximas semanas. O Casi- O grupo Caesars, gigante
no, por sua vez, cogita se das apostas em Las Vegas,
desfazer de toda a participa- a capital americana do jo-
ção no negócio brasileiro. go, entrou com pedido de
credenciamento para ope-
Ano promissor rar no mercado brasileiro
A área de private equity da de apostas esportivas.
gestora de investimentos Ki-
nea vê 2024 com mais pro- Jogo jogado
jetos do que os realizados A Caesars atuará sob a

2|3
INÊS 249

marca BIG Brazil e preten- para a nomeação de dire-


de iniciar os trabalhos no tores no Bradesco chama
Rio de Janeiro. Depois, a atenção — o banco remo-
ideia é explorar principal- veu a regra de que apenas
mente os mercados de São funcionários com mais de
Paulo e Brasília. dez anos de casa pode-
riam ser escolhidos para
Em obras ocupar diretorias.
A varejista francesa de ma-
teriais de construção Leroy Olho em Brasília
Merlin prepara um investi- O banco estaria de olho no
mento de cerca de 250 mi- fim de mandatos de im-
lhões de reais para abrir portantes membros de ór-
cinco lojas até o fim do ano. gãos de Brasília. Procura-
As unidades ficarão em São do, o Bradesco não confir-
Paulo, Rio de Janeiro, Join- ma a informação. ƒ
ville, Brasília e Jundiaí.
OFERECIMENTO
Mudança de regra
A mudança de critérios

3|3
INÊS 249

ECONOMIA CONTAS PÚBLICAS

MÃOS DE
TESOURA
Simone Tebet:
preocupação
com o aumento
das despesas

O JOGO NÃO
ESTÁ GANHO
Mesmo com arrecadação recorde no início do
ano, governo segue com dificuldade para
equilibrar as contas públicas. Nesse contexto,
chance de déficit zero continua distante
JULIANA ELIAS E PEDRO GIL

ANDRÉ BORGES/EFE

1|9
INÊS 249

N
o espaço de poucos dias, dois indicadores mos-
traram sinais contraditórios a respeito dos ru-
mos da economia brasileira. O primeiro deles
tratou da arrecadação federal. Nos dois primei-
ros meses do ano, ela somou 469 bilhões de
reais, o melhor desempenho para o período desde o iní-
cio da série histórica, em 1995. Como era de esperar, o
governo comemorou o resultado, atribuindo o número
positivo ao mercado de trabalho aquecido e a medidas
extraordinárias, como a taxação sobre fundos de investi-
mentos exclusivos dos ricos. Na sequência, contudo, a
realidade bateu à porta do país: em fevereiro, o déficit fe-
deral — ou seja, quanto o governo gastou a mais do que
arrecadou — foi de 58 bilhões de reais, o que também sig-
nificou um recorde, mas na direção oposta. Foi o pior nú-
mero já registrado para o mês. Portanto, contrariamente
ao que o governo tem defendido, o jogo econômico não
está ganho. Muito longe disso.
As projeções para o restante do ano são preocupantes.
Os gastos fixos, como os da Previdência, estão crescendo
acima do esperado, conforme revelado pela avaliação bi-
mestral do Orçamento feita pela equipe econômica. Além
disso, a expectativa agora é de que a arrecadação encerre
2024 com 31,5 bilhões de reais a menos do que o estima-
do no final do ano passado pela Lei Orçamentária Anual.
Com isso, a projeção de superávit de 9,1 bilhões de reais
nas contas públicas em 2024 foi revisada para um déficit

2|9
INÊS 249

ANDRÉ COELHO/FOLHAPRESS

BOMBA-RELÓGIO Fila do INSS: gastos do governo


ficaram acima do esperado

de 9,3 bilhões de reais, o equivalente a 0,1% do PIB. Por


trás da piora estão frustrações em algumas das apostas do
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aumentar a
arrecadação, como o fim dos benefícios tributários conce-
didos aos juros sobre capital próprio das empresas. “A ar-
recadação está melhor do que no ano passado, mas pior
do que o governo esperava”, afirma Vilma Pinto, diretora

3|9
INÊS 249

COFRES CHEIOS
A arrecadação federal no primeiro bimestre
(em bilhões de reais*)

500
469

357

300

200

100

2015 2024
*Valores atualizados pela inflação Fonte: Receita Federal

4|9
INÊS 249

PABLO VALADARES/CÂMARA DOS DEPUTADOS

DECISÕES Congresso: aumento de arrecadação


depende de novas medidas

da Instituição Fiscal Independente do Senado. “Por isso,


só o crescimento das receitas pode não ser o suficiente pa-
ra atingir a meta fixada.”
O déficit de 0,1% do PIB ainda estaria com alguma folga
dentro da meta fiscal do ano, que é de déficit zero, mas com
uma tolerância de 0,25% do PIB para mais ou para menos,
o que daria uma margem extra de quase 29 bilhões de reais

5|9
INÊS 249

GIOVANNI BELLO/FOLHAPRESS

EM EXPANSÃO Indústria têxtil: atividade econômica no


Brasil surpreendeu no início do ano

para os gastos. Fora do governo, contudo, economistas não


acreditam que isso possa ocorrer. As projeções são de um
déficit entre 0,6% e 0,9% do PIB em 2024, o que significa-
ria pelo menos 70 bilhões de reais no vermelho. “O governo
aumentou os gastos e corta pouca gordura, enquanto as re-
ceitas que projeta estão superestimadas”, diz Gabriel Leal
de Barros, economista-chefe da gestora Ryo Asset.

6|9
INÊS 249

Uma justa preocupação do mercado financeiro envolve


a eventual mudança da meta fiscal por parte do governo.
Algo desse tipo quebraria a confiança no país e certamen-
te afastaria investidores. O fantasma apareceu em meio às
críticas recorrentes do presidente Luiz Inácio Lula da Sil-
va à austeridade fiscal. “Seria uma volta à sistemática dos
anos 90, antes da Lei de Responsabilidade Fiscal, quando
não havia nenhum compromisso com o que era anuncia-
do”, diz Carlos Kawall, sócio da gestora Oriz Partners e
ex-secretário do Tesouro Nacional.
Algumas vozes relevantes em Brasília estão preocupa-
das com o desequilíbrio fiscal do país. Em audiência na
Câmara, Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Fe-
deral, afirmou que o otimismo é “um retrato do momen-
to”, mas ressaltou que o governo terá problemas se não fo-
rem aprovadas as medidas compensatórias discutidas pe-
lo Congresso. Entre elas, citou a reestruturação do Perse
— o programa de socorro ao setor de eventos — como in-
dispensável. Se for mantido do jeito que está, o Perse terá
um impacto de 14 bilhões de reais nas contas públicas em
2024. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, com-
partilha da mesma preocupação. Segundo ela, o relatório
do Orçamento trabalha com os dados disponíveis no mo-
mento. E, por isso, deverá passar por revisão nos próxi-
mos meses, a depender do que for aprovado pelo Congres-
so. “Nós mesmos estamos alertando que poderá haver
despesas muito maiores”, disse a ministra Tebet.

7|9
INÊS 249

Há inúmeros desafios pela frente. A disposição do go-


verno para gastar sem freios parece ser um problema in-
contornável, porque se trata de uma visão econômica en-
raizada no receituário petista. Lula, por exemplo, defen-
de reajustes do salário mínimo acima da inflação, e isso
deverá sobrecarregar as contas públicas. “O aumento do
salário mínimo vai pressionar a Previdência, que já é ob-

NO VERMELHO
O saldo das contas públicas do governo central
(% em relação ao PIB)

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023
2
0,5
0

-2

-0,4
-4
-2,1
-6

-8

-10

Fonte: Tesouro Nacional

8|9
INÊS 249

jeto de preocupação”, diz Solange Srour, diretora de ma-


croeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Mana-
gement. “Especialmente em anos eleitorais como 2024,
há uma dificuldade adicional de promover contingencia-
mentos que podem ser necessários.” Sem contingencia-
mento, palavra que causa calafrios no núcleo duro do go-
verno, uma alternativa para respeitar o arcabouço fiscal
seria alterar a meta de resultado primário das contas,
ideia que o Ministério da Fazenda constantemente repe-
le. Se a previsão oficial para este ano é de zerar o déficit
primário, para 2025 fala-se em obter superávit de 0,5%
do PIB. “É cedo para tratar dessa mudança, mas é uma
meta impraticável”, diz Felipe Salto, economista-chefe da
gestora Warren Investimentos.
O governo está diante de um dilema. Se alterar a meta
fiscal, a credibilidade do arcabouço desenhado no início
da gestão de Haddad à frente do Ministério da Fazenda fi-
cará comprometida. Se não mudar a meta, provavelmente
não cumprirá o que havia sido prometido e, portanto,
mais uma vez ficará comprovado que os governos do PT
se atrapalham para administrar com rigor as contas pú-
blicas. Além disso, o governo seria punido em 2025 com
aperto de orçamento conforme prevê o arcabouço, algo
que Lula quer evitar a todo custo. A outra saída seria vo-
luntariamente ceifar gastos — mas isso não está no hori-
zonte da administração petista. Ao país, resta torcer para
que o crescimento econômico salve as contas. ƒ

9|9
INÊS 249

MAÍLSON DA NÓBREGA

A PETROBRAS NÃO
PERTENCE A LULA
A lei proíbe o presidente de interferir
na gestão das estatais

NO ÚLTIMO DIA 8, soube-se que o presidente Lula ha-


via vetado a distribuição extraordinária de dividendos da
Petrobras, ao contrário do que esperava o mercado e deci-
dira sua diretoria. Na mesma data, a queda das ações da
empresa na bolsa provocou uma perda de 56 bilhões de
reais em seu valor de mercado.
Três dias depois, Lula falou impropriedades em entrevista
ao canal de TV SBT. Disse ter “compromisso com o povo bra-
sileiro de reduzir o preço dos combustíveis”, como se as cota-
ções internacionais do petróleo nada significassem. Na mes-
ma lógica errada, afirmou que, por sermos autossuficientes,
“a gente não tem por que ter preço equiparado a preço inter-
nacional”. Chamou o mercado financeiro de “dinossauro vo-
raz que quer tudo para ele e nada para o povo”. “A Petrobras
tem que pensar no povo e não nos acionistas”, completou.
Empresas estatais de economia mista surgiram na Euro-
pa e no Japão no século XIX. Foi em países que queriam in-
dustrializar-se mas não possuíam as condições associadas à

1|3
INÊS 249

Revolução Industrial da Inglaterra. Estavam ausentes nes-


ses países, por exemplo, bancos e ferrovias como os dos in-
gleses. Era uma falha de mercado, o que levou à criação de
empresas estatais para exercer tais atividades.
O modelo se aproveitava das vantagens, da organização,
da governança e da flexibilidade das empresas privadas, o
que não era possível alcançar na gestão pública. Por isso, o
governo se esquivava de interferir na operação das estatais.
Países ricos escolhiam os dirigentes dessas empresas com o
auxílio de consultorias especializadas. Tão logo o mercado
dispusesse de empresários competentes, e de mercados de
crédito e de capitais para suprir a falha, caberia privatizá-
las. Foi assim no Japão e na Europa, no fim de século XIX e
nos anos 1980 e 1990, respectivamente.
Os objetivos estratégicos do governo devem ser levados
por seus representantes ao conselho de administração e, se

“Lula viola princípios


de governança
das estatais e a lei
das sociedades
anônimas”
2|3
INÊS 249

necessário, à assembleia geral das estatais, observando-se


normas da legislação brasileira das sociedades anônimas.
Acontece que Lula e o PT nunca entenderam essa realidade.
Antes do caso da Petrobras, ele convocou a presidente do
Banco do Brasil para determinar pessoalmente as priorida-
des de suas operações de crédito. Nos dois casos, Lula vio-
lou princípios de governança dessas estatais, mediante ine-
quívoco abuso de poder do acionista controlador.
O Brasil dispõe hoje de empresas privadas de classe
mundial, com altos padrões de gestão e governança. Temos
um sistema financeiro sólido e sofisticado. O mercado de ca-
pitais já supera a oferta de crédito dos bancos. A maioria de
suas operações é de longo prazo. Não há, pois, justificativa
para o Estado manter o controle de estatais, mas isso não
combina com visões arcaicas. Valeria pedir a Lula que pelo
menos se abstivesse de violar a lei das sociedades anônimas.
E, mais ainda, de pensar que pode interferir até em estatais
privatizadas, como foi o caso de pressões indevidas para in-
dicar o presidente da Vale. ƒ

3|3
INÊS 249

ECONOMIA IMÓVEIS
NICO DE PASQUALE/MOMENT/GETTY IMAGES

VAGAS DISPONÍVEIS Prédios em Nova York:


salas comerciais desocupadas ameaçam os bancos

A CRISE DOS
ESCRITÓRIOS
Os Estados Unidos enfrentam mais um colapso
imobiliário, mas desta vez o problema está na alta
vacância dos edifícios corporativos. A culpa agora é do
home office CAMILA BARROS

1|6
INÊS 249

A CRISE DE 2008 ainda está fresca na memória de muita


gente. Naquela ocasião, o estouro da bolha das hipotecas
imobiliárias americanas provocou uma quebradeira genera-
lizada de bancos, gerou prejuízos globais estimados em 2 tri-
lhões de dólares e fez ruir a confiança na economia mais po-
derosa do planeta. Dezesseis anos depois, um novo sinal de
alerta surge no mercado de imóveis dos Estados Unidos, mas
desta vez protagonizado por prédios corporativos. Dados re-
centes mostram que cerca de 20% das salas comerciais do
país estão vazias. Trata-se da maior vacância em 33 anos, e
não há indicativo de que o cenário mudará tão cedo. Para se
ter ideia do tamanho do problema, se os escritórios desocu-
pados nos Estados Unidos fossem reunidos em um único edi-
fício, eles dariam origem a um imaginário arranha-céu com
48 000 andares — é como se 300 prédios iguais ao Burj Kha-
lifa, de Dubai, o mais alto do mundo, estivessem às moscas.
A pandemia foi o gatilho para o aumento dos níveis de
vacância. Desde 2020, o modelo de trabalho remoto se tor-
nou a regra em grande parte do mundo corporativo e, por
consequência, as empresas passaram a depender menos de
seus espaços físicos. Com os bons resultados trazidos pelo
sistema de home office, muitas delas decidiram reduzir a es-
trutura de seus escritórios, ou até mesmo abandoná-los. Em
2021, a Meta, dona do Facebook, do Instagram e do What-
sApp, anunciou o esvaziamento de 40 000 metros quadra-
dos em um prédio de São Francisco. Desde então, esse espa-
ço jamais foi reocupado. A reabertura no pós-pandemia não

2|6
INÊS 249

EM ALTA
O número de escritórios vazios nos
Estados Unidos não para de crescer
Taxa de vacância (em %)

20
19
18 18

2020 2021 2022 2023

Fonte: Moody´s

3|6
INÊS 249

PATRICK ROGERS/META

DE SAÍDA Unidade da Meta: a empresa esvaziou


40 000 metros quadrados

foi suficiente para a retomada do sistema de trabalho antigo


— a regra, na maioria das empresas, é o modelo híbrido, que
combina o expediente presencial com alguns dias longe do
escritório. Em uma definição precisa, Jerome Powell, presi-
dente do banco central americano, o Fed, descreveu a nova
realidade como uma “mudança secular na economia”.
Fatores ligados ao contexto econômico também con-
tribuíram para o fenômeno. Desde março de 2022, o Fed
passou a aumentar as taxas de juros nos Estados Unidos
como forma de frear o ímpeto inflacionário. Nesse con-

4|6
INÊS 249

texto, a alta rentabilidade dos títulos públicos reduziu a


atratividade dos papéis de dívida dos imóveis para em-
presas, o que ajudou a desvalorizar as propriedades e tor-
nou mais difícil para os proprietários renegociar seus
passivos. Em Los Angeles, o arranha-céu Aon Center foi
vendido em 2023 por 148 milhões de dólares, uma depre-
ciação extraordinária de 45% em relação ao preço de
compra, em 2014. Não à toa, 44% dos empréstimos rela-
cionados a lajes corporativas estão com o patrimônio lí-
quido negativo. Ou seja, a dívida agora é maior do que o
valor do próprio imóvel.
O problema aflige especialmente os imóveis de menor
padrão. “Você tem inquilinos grandes e pequenos redu-
zindo substancialmente seus espaços de escritório, mas is-
so se aplica principalmente a escritórios de classes B e C”,
disse a VEJA Randall Loker, sócio da Paladin Realty
Partners, uma das maiores gestoras de fundos de investi-
mento imobiliário dos Estados Unidos. A queda no valor
dos escritórios está ameaçando a saúde financeira de ban-
cos regionais, que acumulam 560 bilhões de dólares em
dívidas imobiliárias com vencimento até 2025. De acordo
com um relatório do Departamento de Pesquisa Econômi-
ca dos Estados Unidos, até 300 bancos locais correrão ris-
co de insolvência caso a situação se agrave.
Na crise de 2008, ao contrário de agora, foram os grandes
bancos — como Lehman Brothers e Bear Stearns — que sofre-
ram mais. “Outra diferença grande é o aspecto social, porque a

5|6
INÊS 249

preocupação com o
mercado imobiliário
corporativo não está
diretamente vinculada
à pessoa física neste
primeiro momento”,
afirma William Alves,
estrategista-chefe da
corretora Avenue, es-
pecializada no merca-
do americano. “Em
2008, milhares de fa-

AL DRAGO/BLOOMBERG/GETTY IMAGES
mílias perderam suas
casas, ou seja, o impac-
to foi muito visível.”
As altas taxas de
vacância de imóveis NOVA REALIDADE Jerome
corporativos não estão Powell: para o presidente do Fed, há
restritas ao mercado uma “mudança secular na economia”
americano. No centro
de Londres, na Inglaterra, a taxa de desocupação está em tor-
no de 10%, o dobro da média histórica, segundo levantamento
da consultoria JLL. Uma das saídas planejadas pelos donos
dos imóveis é convertê-los em prédios residenciais, mas o cus-
to para esse tipo de operação é tão elevado quanto incerto. En-
quanto uma solução não for encontrada, algumas das grandes
cidades do mundo estarão cheias de prédios vazios. ƒ

6|6
INÊS 249

INTERNACIONAL MONARQUIA

CARA A CARA Kate revela que tem câncer: um vídeo para


pôr fim a meses de ausência e especulações

RACHADURAS
NO TRONO
O câncer da princesa Kate e do rei Charles III
expõe aos britânicos uma família real alquebrada.
A dúvida é se ela vai emergir das atribulações
enfraquecida ou mais resistente ainda
ERNESTO NEVES E AMANDA PÉCHY

REPRODUÇÃO

1|7
INÊS 249

E
m um inusitado vídeo de pouco mais de dois mi-
nutos, Catherine, a princesa de Gales e futura ra-
inha do Reino Unido, revelou aos súditos e ao
mundo que tem câncer e acaba de iniciar sessões
de quimioterapia. Semanas antes dela, o rei Char-
les III havia divulgado, por meio de um comunicado do
Palácio de Buckingham, que também sofre da doença e
está em tratamento. A sequência de más notícias sacudiu
os alicerces da monarquia britânica como poucas vezes se
viu nos tempos modernos — a última, com potência de
bomba nuclear, foi o fim trágico de Diana, aos 36 anos, ví-
tima de um acidente de carro, em 1997. Custou, mas o
trauma da morte da “princesa do povo” e da reação ini-
cialmente insensível da casa real foi superado sem exigir
grandes mudanças em seus modos e costumes. Desta vez,
porém, a máquina de moer omissões e apelos à privacida-
de das redes sociais operou uma transformação no mote
“nunca reclamar, nunca explicar”, ao qual Elizabeth II se
apegou ferrenhamente nos setenta anos de reinado. Expli-
car, pelo menos, foi — e será — preciso.
Faz sentido que a família real tenda a, diante de um pro-
blema, fechar-se em copas e esperar o burburinho passar, já
que a aura de indivíduos acima dos dramas comezinhos do
cotidiano está no cerne da sua preservação (leia a coluna de
Vilma Gryzinski). Mas o desaparecimento de Kate por dois
meses, em seguida a uma pouco explicada “cirurgia abdomi-
nal planejada”, desencadeou um frenesi de especulações ab-

2|7
INÊS 249

SAMIR HUSSEIN/WIREIMAGE/GETTY IMAGES

EM FAMÍLIA Kate, com William e os filhos:


preocupação com a privacidade

surdas. Uma foto da família feliz supostamente tirada por


William provou ter sido manipulada (em detalhes bobos), o
que só piorou as coisas. Na hora de anunciar o diagnóstico de
câncer de Kate em exames pós-cirurgia, cogitou-se soltar um
comunicado, como fez Charles, ou postar mensagem na rede
social dela. Segundo as onipresentes “fontes próximas”, foi a
própria princesa quem resolveu sair da reclusão, maquiar-se,
pentear-se e, diante das câmeras (uma equipe da BBC foi con-
vocada, para não dar vez a boatos), explicar que não, não esta-
va se divorciando, nem sofrendo um colapso nervoso, nem se
recuperando de uma cirurgia plástica. Tinha câncer.

3|7
INÊS 249

JONATHAN BRADY/WPA/POOL/GETTY IMAGES

EM PÚBLICO Charles recebe Teck Hean, de Singapura:


é preciso ver para crer

Choveram imediatamente manifestações de solidarieda-


de e pedidos de desculpas de celebridades que fizeram piada
com o sumiço da princesa. As condições de saúde dela e de
Charles, devidamente comunicadas ao público (embora não
se saiba até hoje que tipo de câncer têm), devem angariar
apoio aos dois e ajudar a reverter as últimas pesquisas, que,
pela primeira vez, indicaram que menos da metade dos bri-
tânicos (45%) aprova a monarquia. Resta ver se o setor de
comunicação da monarquia saberá se equilibrar entre a sede
de notícias e a redoma que separa a realeza dos comuns
mortais. No caso da princesa, a intenção é clara: “Não va-

4|7
INÊS 249

mos compartilhar mais nenhuma informação médica”, de-


clarou um porta-voz. “A busca por privacidade total prova-
velmente parte de William, traumatizado com o escrutínio
de sua mãe, a princesa Diana”, avalia Craig Prescott, advo-
gado especialista em monarquia.
Já Charles mantém a rotina do encontro semanal com o
primeiro-ministro, tem se deixado fotografar recebendo
visitantes e, se estiver bem, pode comparecer à missa de
Páscoa na capela de Windsor. Aparições públicas estão no
topo da descrição de emprego da família real. “Tenho que
ser vista para que acreditem em mim”, pontificou certa vez
a rainha Elizabeth. Por mais que o público simpatize com a
situação do rei e da princesa, uma ausência prolongada de-
les, junto com cortes nas atribuições de William, pode
abrir um vácuo por onde escorrerá mais um pouco do
prestígio da monarquia — além de extenuar os royals dis-
poníveis. Atualmente, a maratona de inaugurações, via-
gens e cerimônias é capitaneada pela rainha Camilla, de
76 anos (uma virada e tanto para a bruxa má que, lá atrás,
atormentou Diana), assistida pela princesa Anne e pelos
duques de Edimburgo, Edward e Sophie. Competentes,
sem dúvida, mas sem um décimo do carisma dos príncipes
de Gales, o casal mais popular da família, e sem a coroa
que legitimiza o soberano. Nesse contexto, fala-se até em
uma reaproximação de Harry e Meghan, a dupla que saiu
do castelo chutando a porta, revelou detalhes escabrosos
das relações familiares e se mudou para a Califórnia. Har-

5|7
INÊS 249

LEON KUEGELER/AFP

GESTOS Harry e Meghan: a doença de Charles e de Kate


pode reaproximar o casal da família, com quem está rompido

ry visitou o pai em janeiro, e, após o vídeo, o casal mandou


votos de “saúde e recuperação” para Kate.
De todos os segredos que envolvem o dia a dia da realeza,
o estado de saúde é, historicamente, um dos mais preserva-
dos. “Sempre houve reticências sobre o assunto”, diz Bill
Kuhn, biógrafo da Casa de Windsor. Na Idade Média, a preo-
cupação era de ordem prática: abrir o jogo quando um mo-
narca estava debilitado poderia levar até a uma invasão es-
trangeira. Com o tempo, esconder enfermidades passou a ter
mais a ver com a imagem do monarca impermeável a fraque-
zas. “Acima de tudo, a nossa realeza deve ser reverenciada.
Seu mistério é sua vida. Não devemos permitir que a luz do

6|7
INÊS 249

dia ilumine a magia”, escre-


veu Walter Bagehot, analista
político do século XIX. Em
nome dessa magia, os médi-
cos do pai de Elizabeth,
George VI, abafaram seu es-
tado de saúde até a morte,
em 1952, e jamais proferiram
a palavra câncer — seu pul-
mão esquerdo apresentava
“anomalias estruturais”. A

DOUGLAS E. CURRAN/AFP
mãe dela teve dois tumores
removidos secretamente, e a
irmã, a princesa Margaret, PASSADO Diana: o baque
lutou para disfarçar os efeitos da sua morte, em 1997, na
de uma série de derrames. popularidade da rainha
A durona Elizabeth cul- Elizabeth foi superado
tivou a imagem de saúde de
ferro — as únicas doenças que teve e comentou foram Co-
vid-19 e “problemas de mobilidade” no fim da vida. As re-
velações agora, ainda que a conta-gotas, mostram um rei
e uma princesa enfraquecidos — mais plebeus, portanto.
“A doença aproxima a Coroa do povo, porque torna sua
existência tão humana e frágil quanto qualquer um de
nós”, avalia a historiadora especializada em nobreza Sue
Woolmans. O futuro dirá se a monarquia britânica sairá
maior ou menor desse momento aflitivo. ƒ

7|7
INÊS 249

VILMA GRYZINSKI

O REALITY SHOW NÃO


PODE PARAR
O espetáculo da monarquia exige fusão
de público e privado

QUEM VOTOU EM KATE? Ela não canta, dança ou re-


presenta, tanto que muita gente só ouviu sua voz pela pri-
meira vez quando anunciou estar com câncer. Nos even-
tos públicos, é a grande personagem de uma espécie de
reality show sem áudio: recebe flores e autoridades es-
trangeiras, visita escolas e hospitais, participa dos estra-
nhos ritos da monarquia britânica que envolvem equinos
e humanos em uniformes coloridos, patrocina boas cau-
sas e cumprimenta infindáveis vezes o público atraído pe-
lo “pó mágico” da monarquia (não aquele em que todo
mundo está pensando). Por que tanta gente sentiu que es-
tava sofrendo um golpe pessoal quando ela anunciou a
doença e o tratamento que a tiraram da esfera pública e a
trancaram na esfera privada, na qual a monarquia fenece
sem os vasos comunicantes que a tornam, ao mesmo tem-
po, uma instituição de tradição milenar e a representação
viva, quando não borbulhante, da nação? Porque a família
real é um arquétipo de todas as famílias.

1|3
INÊS 249

Inúmeros pensadores já tentaram decifrar os mistérios


que garantem a sobrevivência de um sistema tão anacrô-
nico. Uma das melhores tentativas foi feita por Roger
Scruton, o filósofo do conservadorismo chique. “Não ten-
do sido eleito pelo voto popular, o monarca não pode ser
visto como o representante apenas da geração atual. O
monarca é, no sentido verdadeiro, a voz da história”, ana-
lisou. “Isso não significa que reis e rainhas não possam
ser loucos, irracionais, egoístas ou tolos. Significa, ao
contrário, que devem sua autoridade e sua influência pre-
cisamente ao fato de que falam por algo que vai além dos
desejos atuais de eleitores atuais.”
A questão do poder intangível da realeza fica compli-
cada quando tem gente ganhando dinheiro, e não apenas
o prazer mesquinho de fazer fofoca com famosos, para
explorar a boataria que o “desaparecimento” de Kate pro-

“Por que tanta gente


sentiu como um golpe
pessoal? Porque a família
real é um arquétipo de
todas as famílias”
2|3
INÊS 249

vocou. E “atores hostis” como Rússia e China insuflam o


conspiracionismo para enfraquecer as instituições. O jo-
go é pesado. É também injusto que uma mulher de 42
anos fazendo quimioterapia, com todos os efeitos que o
tratamento provoca, tenha que aparecer para anunciar o
mau pedaço pelo qual está passando. Mas é inevitável. A
fama e os privilégios de que desfruta exigem a suspensão
das barreiras entre público e privado.
Hilary Mantel, a autora da formidável trilogia sobre
Thomas Cromwell, o homem que o chefe, Henrique VIII,
mandou decapitar, escreveu há alguns anos que Kate pa-
recia “desenhada por um comitê”, tinha um “sorriso plas-
tificado” e seu único propósito era produzir herdeiros.
Comparou-a a Maria Antonieta, “devorada viva pelas
roupas”, cujos cabelos, segundo a lenda, ficaram brancos
quando a família real francesa foi interceptada na fuga
que a salvaria da guilhotina. A comparação agora soa te-
nebrosa diante da perspectiva de que a princesa perca os
lindos cabelos. A escritora depois pediu desculpas pelas
ofensas. Mas Hilary Mantel acertou quando disse que a
morte da princesa Diana, a sogra que Kate nunca conhe-
ceu, foi um momento revelador em que “nossa visão cla-
reou e vimos os arquétipos em alto e bom som, a psique
coletiva em ação e os deuses puxando os cordões” do
destino. Não é uma perfeita descrição da situação da
atual princesa de Gales? ƒ

3|3
INÊS 249

GENTE
VALMIR MORATELLI

VIDA QUE SEGUE


Desde dezembro, quando denunciou por agressões físicas o en-
tão marido Alexandre Correa, 51 anos, com quem tem um filho,
ANA HICKMANN, 43 anos, viu-se no meio de uma pancadaria virtual
em que lavou a roupa suja em público e foi chamada por ele de alcoóla-
tra e traidora, entre outros impropérios. Recentemente, ela engatou
namoro com seu ex-colega de set Edu Guedes, 49, mas a ferida conti-
nua bem aberta. “Sei que as pessoas querem me ver forte, só que a
verdade é que não estou bem o tempo todo”, disse a VEJA. À frente do
matinal Hoje em Dia, da
TV Record, ela está gos-
tando de ter virado refe-
rência feminina. “Sem-
pre que uma mulher se
aproxima e fala quanto
minhas atitudes foram
importantes para ela,
sinto que estou no cami-
nho certo.”. Afundada
em dívidas, Ana contra-
tou o ex-ministro Paulo
Guedes para gerir seu
INSTAGRAM @AHICKMANN

enrosco financeiro,
mas, sobre isso, não te-
ce comentários.

1|5
INÊS 249

O SHOW NÃO PARA


Não foi desta vez que
SAM SMITH, 31
anos, provou da boa
mesa paulistana. De-
pois do show que en-
cerrou o Lollapalooza,
tudo o que ele mais
queria era um ham-
búrguer do McDon-
ald’s, e assim foi. Às 3
da manhã, sua pre-
sença causou tama-
nho alvoroço na lan-
chonete da Avenida
Paulista que quem ali
estava pensou se tra-
REPRODUÇÃO

tar de assalto. “De re-


pente, pararam na
porta três vans da equipe dele, cheias de gente. Foi tanto tumulto
que fiquei com medo”, relata o advogado João Marcos Manvailer,
26 anos. Incansável, o cantor britânico ainda emendou com uma
festa no icônico Edifício Martinelli, no Centro, onde, aguardando
sua vez na fila, chamava atenção ao usar saia e equilibrar-se so-
bre fartos saltos plataforma.

2|5
INÊS 249

RICARDO BORGES

NÃO VALE A PENA VER DE NOVO


Às voltas com o lançamento de Deus Ainda é Brasileiro no badala-
do Festival de Cannes, em maio, CACÁ DIEGUES, 83 anos, es-
clarece que o filme não é remake de Deus É Brasileiro, sua clássica
película de 2003, e aproveita para disparar contra a prática das
releituras, tão em voga na TV e no cinema. “Isso gera uma falta de
raciocínio sobre o novo. Acho um risco essa tentativa de moderni-
zar as coisas”, diz o diretor de sucessos como Bye Bye Brasil
(1979) e Orfeu (1999), que, a esta altura da vida, se sente à vontade
para elogiar a própria obra. “Procurei desde o começo construir
algo que não existia no Brasil, que é, afinal, o cinema brasileiro”,
afirma, sem rodeios.

3|5
INÊS 249

VIAGEM EM TEMPO REAL


Afeita a périplos internacionais cercada de amigos e equipe, desta
vez ANITTA, 31 anos, resolveu pôr o pé nas gélidas paisagens da
Escócia e da Groenlândia sozinha. “Queria me conectar comigo
mesma”, explica ela, que se deixou acompanhar nas redes a bordo
de jatinhos e instalada em luxuosos resorts. Mas houve lá seus
perrengues em meio à neve e às baladas. Numa delas, havia se
acomodado em um bar quando um grupo masculino se aproximou
querendo saber seu nome e profissão. “Falei que era dentista e, na
mesma hora, mandei foto dos caras para minha família. Vai que
tentassem fazer algo”, contou a precavida cantora.
INSTAGRAM @ANITTA

4|5
INÊS 249

SORRINDO AMARELO
Governadora de Dakota do
Sul, a potencial candidata a
vice de Donald Trump,
KRISTI NOEM, 52 anos, é
também conhecida como a
“Barbie republicana” por
sempre aparecer produzi-
da nos palanques — vestida
com as cores da bandeira
americana, ostenta fartas
extensões de cílios e cabe-
los escovadíssimos. Os ho-
lofotes agora se voltaram
para seu novo sorriso, fru-
FACEBOOK @ GOVNOEM

to de um tratamento que
exibiu com riqueza de deta-
lhes nas redes. Daí desen-
cadeou-se uma inesperada contenda judicial: como o post soava
propaganda da clínica que fez a recauchutagem, paira sobre ela a
suspeita de não ter desembolsado um níquel sequer pela interven-
ção, o que seria ilegal. “Se Kristi pudesse provar com um recibo
básico que pagou o preço integral por esses serviços, ficaríamos
felizes em retirar o caso”, cutucou a advogada Lauren Wolfe, da
ONG que encabeça a ação. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL SAÚDE

EM RITMO
DE ENGORDA
Mesmo com avanços da medicina, a obesidade
continua a crescer pelo mundo, inflando um problema
de saúde pública que precisa ser contido com
mudanças de hábito e na qualidade da alimentação
PAULA FELIX

DESDE CEDO Obesidade infantil: índice quase


quadruplicou no período entre 1990 e 2022

PETER DAZELEY/THE IMAGE BANK/GETTY IMAGES

1 | 10
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N
ão há mais um único país, em qualquer canto do
planeta, que não sofra com o ganho de peso e suas
consequências ao bem-estar físico e mental. A
pandemia de obesidade não discrimina continen-
te, gênero, faixa etária e classe social. E só avança.
Dados recém-apresentados pelo Atlas Mundial da Obesida-
de encorpam o alerta: o excesso de peso poderá atingir 50%
da população global em 2030. Pior: metade das crianças es-
tará com índice de massa corporal (IMC) elevado em ques-
tão de uma década. Ainda que tenhamos à mão um novo le-
que de medicamentos e procedimentos para deter os quilos
extras, o problema continua a surgir e a ser alimentado des-
de cedo, na infância, e o cenário é ainda mais preocupante
em nações de baixa e média renda, como o Brasil.
A explosão da obesidade pelo mundo ocorre em meio a
uma profusão, na última década, de estudos que acusam
uma relação entre a doença crônica (sim, doença!) e uma
dieta exagerada em alimentos ultraprocessados, os indus-
trializados tão palatáveis que costumam exceder nas taxas
de açúcar, sódio e gordura. Quando se soma a essa oferta
calórica o sedentarismo, tem-se a receita para o ganho de
peso e a série de enfermidades provocadas por ele — rol que
envolve de problemas cardiovasculares e diabetes a desor-
dens articulares e câncer. Há uma bomba armada, a amea-
çar vidas e os cofres dos sistemas de saúde.
A equação de comer menos e se mexer mais, fórmula
simples e inteligente para combater a obesidade, parece

2 | 10
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PARA REVERTER A CURVA


Medidas incluídas na rotina são aliadas na
prevenção e no controle da obesidade

TENHA UMA ALIMENTAÇÃO


RICA EM FRUTAS, VERDURAS,
LEGUMES E OUTRAS FONTES
DE FIBRAS

EVITE, SEMPRE
QUE POSSÍVEL, ALIMENTOS
ULTRAPROCESSADOS

PRATIQUE AO MENOS
150 MINUTOS DE ATIVIDADE
MODERADA OU 75 MINUTOS DE
ATIVIDADE INTENSA POR SEMANA

ADOTE PRÁTICAS PARA


REDUZIR O ESTRESSE,
COMO MEDITAÇÃO E IOGA

DURMA DE 7 A 9 HORAS POR


NOITE, PREZANDO TAMBÉM
PELA QUALIDADE DO SONO

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LIMITE O USO DE
TELAS E O “TEMPO
SENTADO”

FAÇA ACOMPANHAMENTOS
REGULARES COM
PROFISSIONAIS DE SAÚDE

Fontes: Associação Americana do Coração;


CDC; Ministério da Saúde; Universidade Harvard

não ser suficiente para reverter as curvas do descontrole.


“O problema não vai ser solucionado apenas com ações
individuais”, diz o endocrinologista Bruno Halpern, pre-
sidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesi-
dade e Síndrome Metabólica (Abeso). “As pessoas com-
pram alimentos baratos e de fácil consumo porque é o
que cabe no orçamento e na rotina delas.” Está se dese-
nhando um consenso de que, sem medidas de alcance co-
letivo, pouco resultado poderá surtir diante de um nó
que, para alguns especialistas, é o maior desafio de saúde
pública do século XXI.
Em desatada sangria, o planeta atingiu a marca de 1 bi-
lhão de pessoas que vivem com obesidade, de acordo com
análise publicada pelo periódico científico The Lancet a
partir de dados de 220 milhões de pessoas com 5 anos ou

4 | 10
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mais de 190 países. Em um trabalho que envolveu 1 500


pesquisadores, foi comprovado o aumento significativo
das taxas entre 1990 e 2022. Para as mulheres, o salto em
prevalência foi de 8% para 18%. Nos homens, decolou de
4% para 14%. Em crianças e adolescentes, os números ab-
solutos impressionam: em 1990, eram 31 milhões; agora,
são mais de 159 milhões.
Nos dados do Atlas, minerados pela Federação Mun-
dial de Obesidade (WOF, na sigla em inglês), o Brasil ti-
nha 34% da população de 5 a 19 anos vivendo com a con-
dição em 2020, ano em que a pandemia de Covid-19 eclo-
diu, totalizando 15,6 milhões de pessoas. A expectativa é
que, nesse ritmo, ela alcance 20,4 milhões de brasileiros
em 2035. O público infantil é o que atrai a maior atenção,
pois está sendo exposto precocemente a um contexto pés-
simo para a saúde: alta oferta de alimentos ricos em calo-
rias e pobres em nutrientes (macarrão instantâneo, salga-
dinho, bolacha recheada, refrigerante...) e horas a fio em
frente às telas. Não à toa, os mais novos começam a sofrer
precocemente com o que antes era “doença de adulto”.
Entre crianças e adolescentes, o Atlas indica um incre-
mento de 52% nos casos de pressão alta e de 34% nos de
sobrecarga de açúcar no sangue na comparação dos da-
dos de 2020 com as projeções para 2035. “É urgente agir
agora na prevenção da obesidade infantil sensibilizando
as famílias”, diz o cirurgião bariátrico Cid Pitombo, pes-
quisador da Unicamp e especialista no tema.

5 | 10
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ISTOCK/GETTY IMAGES
EFEITO OZEMPIC Tratamento com canetas:
indicação médica é fundamental

Embora não seja a única culpada na história, a alimenta-


ção desequilibrada é um dos principais fatores por trás da
conjuntura atual. O custo e a praticidade dos ultraprocessa-
dos, uma miríade de pacotes de produtos prontos para co-
mer ou ir ao micro-ondas, tendem a cobrar um preço na for-
ma de excesso de peso e problemas de saúde. É o que reforça
uma robusta revisão de estudos divulgada no British Medi-
cal Journal (BMJ), contemplando informações de quase 10
milhões de pessoas. A análise descortina uma ligação direta
entre o consumo desses industrializados e o maior risco de
32 condições — dos reveses ao coração a descompassos res-
piratórios e mentais. “Esses alimentos prejudicam a saúde e
encurtam a vida”, cravou no editorial da publicação o médi-

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YULIYA FURMAN/500PX/GETTY IMAGES


DIETA PERIGOSA Abuso de ultraprocessados:
alimentos ligados a 32 problemas de saúde

co brasileiro Carlos Monteiro, professor da USP e referência


internacional no tema. Foi ele e sua equipe que criaram o
conceito de ultraprocessados, redutos de ingredientes e adi-
tivos capazes de comprometer o organismo quando ingeri-
dos com frequência. Direto ao ponto: inúmeras vezes, esses
itens roubam o lugar nas refeições e lanches de opções natu-
rais e mais saudáveis, como frutas, grãos e hortaliças.
Se por um lado há o desafio da prevenção, por outro há o
do tratamento. Nessa seara, felizmente, a medicina colhe
avanços como cirurgias metabólicas e novos medicamentos.
O divisor de águas, entre os fármacos, foi a classe do Ozem-
pic, que, embora tenha sido aprovado para controlar o dia-
betes, mostrou efeito na perda de peso. A mesma molécula

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PESO EM ESCALADA
Índices de adultos e crianças com sobrepeso
e obesidade estão em alta e devem continuar
crescendo (no mundo)

3,3
BILHÕES
3500

ADULTOS
3000
2,2
BILHÕES
2500

2000

1500
CRIANÇAS E
ADOLESCENTES 770
1000 430 (5 a 19 anos) MILHÕES
MILHÕES
500

2020 2025 2030 2035

38%
É O PERCENTUAL DE CRIANÇAS COM PESO ELEVADO
E QUE PODEM APRESENTAR ALGUMA COMPLICAÇÃO,
COMO PRESSÃO ALTA OU DIABETES, NO BRASIL EM
2035. EM 2020, O ÍNDICE ERA DE 18%

Fonte: Atlas Mundial da Obesidade 2024

8 | 10
INÊS 249

foi trabalhada em uma versão específica para a obesidade, o


Wegovy, também da farmacêutica Novo Nordisk. Aprovado
no Brasil, ele ainda não está disponível no mercado — situa-
ção similar à de outra medicação para essa finalidade, o
Mounjaro, da Eli Lilly. Ambos têm revelado, nas pesquisas
clínicas, potencial não só para emagrecer como para debe-
lar males relacionados ao peso, como problemas cardiovas-
culares e gordura no fígado.
Contudo, a febre desencadeada pelo Ozempic teve efeitos
colaterais danosos — tudo puxado por uma onda de uso ina-
dequado, sem receita, disseminada inclusive por celebrida-
des e influencers. O que era um recurso para encarar o dia-
betes e a obesidade virou antídoto estético. Mas não funcio-
na assim! “Não há investigações nem garantias de benefícios
com esse tipo de uso. É fundamental que o remédio seja in-
dicado por um profissional para pacientes que preencham
critérios específicos”, disse a VEJA Florian Baeres, VP de
assuntos médicos da Novo Nordisk.
A corrida pelo produto acabou desembocando em uma sé-
rie de episódios de falsificações, que renderam alerta até da
Organização Mundial da Saúde (OMS). Pois é, não bastassem
todos os desafios e dilemas enfrentados pela população acima
do peso, ainda surgem promessas infundadas e injeções pira-
teadas no mercado. No fundo, da alimentação à medicação, a
impressão é de que necessitamos de um choque de realidade
para reverter as curvas da obesidade. Um compromisso que
exige o envolvimento coletivo, em todo o mundo. ƒ

9 | 10
INÊS 249

“É UMA BRIGA DE DAVI E GOLIAS”


Um dos pais do termo “ultraprocessados” e do Guia Alimentar para a
População Brasileira, que completa dez anos, o pesquisador Carlos
Monteiro é um dos críticos da onipresença desses alimentos indus-
trializados, cujo consumo está ligado a ganho de peso e doenças.

Como se deu o desenvolvimento da ideia de alimentos


ultraprocessados? Foi uma criação coletiva. Quando publica-
mos a classificação pela primeira vez, em 2009, colegas de língua
inglesa acharam a ideia interessante, mas disseram que precisáva-
mos mudar o nome, porque “ultra” era algo bom. Mas, claro, na nos-
sa teoria, nem sempre o processamento é o melhor. Ao contrário.

Como fazer os preceitos do Guia Alimentar para a Po-


pulação Brasileira se incorporarem na dieta da nossa
população? Em outras palavras, como fazer o brasi-
leiro retomar o arroz com feijão? Alguns países começa-
ram a taxar os ultraprocessados, e o Brasil está discutindo a re-
forma tributária. Mas temos uma briga de Davi e Golias com a in-
dústria, que tem potencial para se antecipar às políticas. Ninguém
está falando em proibição, mas na maior regulação da categoria.

Por que eles são tão ruins para a saúde? Os ultraproces-


sados têm substâncias estranhas para o corpo, afetando o pân-
creas, os rins, o microbioma... O alimento é algo que vai até a últi-
ma das nossas células.

10 | 10
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GERAL HISTÓRIA

SALTO PARA A
MODERNIDADE
Ao completar 150 anos, o impressionismo, movimento
que elevou a arte a outro patamar, ganha uma
espetacular exposição em Paris que reconstrói uma
época de alta ebulição AMANDA PÉCHY

TURMA REUNIDA Pintura de Fantin-Latour, de 1870: entre


expoentes do impressionismo (da esq. para a dir., assinalados),
Manet, o dono do estúdio retratado e espécie de mestre do
grupo, observado por Renoir, Frédéric Bazille e Claude Monet

IMAGNO/GETTY IMAGES

1|6
INÊS 249

REUNIDA num simpático café no número 11 da Rue de Ba-


tignolles, em Paris, uma jovem turma de artistas oscilava en-
tre a euforia e o medo do que o dia seguinte lhe reservava.
Estavam prestes a tentar firmar terreno no tradicional mun-
do das artes francês, afeito aos pilares do academicismo e à
perfeição das formas. Já eles, embalados pela agitação à sua
volta, faziam dos pincéis um instrumento sem qualquer com-
promisso com os contornos, capazes de captar as nuances da
luz no exato instante em que ela compunha as efervescentes
cenas da modernidade. Foi em 15 de abril de 1874 que o gru-
po, rejeitado pela Academia de Belas Artes e banido do Salão
Anual, no Museu do Louvre, inaugurou sua própria exposi-
ção em um estúdio cedido pelo fotógrafo Félix Nadar. O rol
de trinta aspirantes ao sucesso incluía Claude Monet, Pierre-
-Auguste Renoir, Edgar Degas e Paul Cézanne — todos em
busca da visibilidade que não alcançavam no circuito oficial.
A crítica foi demolidora. “Papel de parede em seu estado
mais bem-acabado”, disparou o respeitado Louis Leroy sobre
Impressão, Nascer do Sol, a emblemática tela de Monet, arre-
matando: “Isso não passa de uma impressão”.
Ao desfiar sua aversão às céleres pinceladas, que a ele e
aos outros soavam obra inacabada, o implacável crítico ja-
mais imaginaria ingressar para a história dando nome e
identidade ao movimento que ali se apresentava — o impres-
sionismo. Agora que completa 150 anos, o impulso criativo
do qual emergiria a arte moderna poderá ser revisitado em
uma recém-inaugurada exibição no Musée d’Orsay, a ex-es-

2|6
INÊS 249

tação de trem às margens do Sena, onde seguirá até 14 de ju-


lho. “É a mais completa reconstrução daquela noite de 1874”,
disse a VEJA Mary Morton, uma das curadoras de Paris
1874: Inventando o Impressionismo.
Em parceria com a National Gallery de Washington,
para onde a coleção viajará em setembro, o museu pari-
siense conseguiu unir a seu espetacular acervo uma série
de telas emprestadas, chegando a 130 exemplares — 90%
da mostra original, alojada no ateliê do Boulevard de Ca-
pucines, próximo à Ópera. Uma imersão com óculos de

3|6
INÊS 249

FOTOS DEAGOSTINI/GETTY IMAGES; FINE ART IMAGES/HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES


LUZ E COR Impressão, Nascer do Sol, de Monet, e Uma
Olympia Moderna, de Cézanne: a crítica foi demolidora

realidade virtual nas salas que demarcaram um “antes e


depois” na trajetória das artes, ouvindo o que os artistas
falavam de suas pinturas, enlaça a experiência. “A ideia é
mostrar a visão de mundo dessa geração”, diz Morton.
Centenas de obras dessa profícua fase estarão em destaque
nas paredes de museus por toda a França.
Apesar de massacrados, os impressionistas — um gru-
po eclético que tinha como elo o olhar afiado para o pre-
sente, em contraste com a admiração da corrente neoclás-
sica por episódios bíblicos e mitológicos — seguiram seu

4|6
INÊS 249

percurso, expondo ano após ano. Um hábito em comum


era se aventurar ao ar livre, onde havia abundância de sua
matéria-prima — a luz — e fartura de temas — o vaivém
dos trens, a ebulição dos cafés, a natureza em ação. A in-
venção dos tubos de tinta provou-se revolucionária, já que
permitia criar longe dos ateliês. Não raro, eles escandali-
zavam o observador ao priorizar as nuances da luz sobre
qualquer detalhe pictórico. “Ele é uma espécie de louco,
pintando em estado de delírio”, disse o jornalista Marc de
Montifaud sobre Uma Olympia Moderna, de Cézanne. O
artista que plantaria a semente do cubismo estava home-
nageando Édouard Manet, espécie de mestre da turma,
que havia feito seu próprio Olympia em 1865. O quadro
abalou o sisudo Salão por retratar uma nudez não ideali-
zada de uma mulher que seria prostituta.
O caldeirão em que estavam mergulhados os impressio-
nistas era o da vida moderna, que fervia com as inovações
tecnológicas exibidas nas vitrines das exposições internacio-
nais em Paris, onde a alta-costura ganhava estatura e a gas-
tronomia, ela também, seria convertida em arte. Passado o
traumático cerco que marcou a derrota na guerra franco-
-prussiana, seguido do colapso do Segundo Império e da
sangrenta insurreição da Comuna de Paris, pairava um alí-
vio no ar. Foi nesse contexto que o ímpeto revolucionário
dos impressionistas fervilhou. “Capturando momentos fu-
gazes e espontâneos, eles realizaram as primeiras represen-
tações visuais da modernidade e, com isso, a elevaram a ou-

5|6
INÊS 249

tro patamar”, avalia Nancy Locke, professora de história da


arte na Universidade Estadual da Pensilvânia.
Em paralelo, havia outra virada em curso — não eram
mais a Igreja e o Estado os únicos fregueses das artes, mas
uma burguesia que aflorava e arrematava telas dos ascen-
dentes merchants. Tido como o mais relevante deles na épo-
ca, Paul Durand-Ruel adquiriu sozinho 12 000 quadros pa-
ra revendê-los, pagando adiantado aos artistas. Assim, eles
conquistaram liberdade para alçar seus voos. “Os impres-
sionistas ampliaram o antes limitado escopo do que poderia
constar em uma tela. Foi o verdadeiro nascimento da pintu-
ra moderna”, pontua o historiador da arte Felipe Martinez,
da Universidade de Amsterdã.
Em 1886, as diferenças de visão, aliadas a obstáculos
logísticos, acabaram dissolvendo a turma que tanto baru-
lho fez no Boulevard de Capucines, mas ela continuou
dando frutos e influenciando outros — entre eles Geor-
ges-Pierre Seurat, mestre do pontilhismo, e mais tarde
Henri Matisse, que se mirou na ensolarada Banhistas na
Grenouillière, de Monet, para compor Luxo, Calma e Vo-
lúpia (1904), onde mulheres nuas desfrutam de um pique-
nique numa paisagem cheia de cor. O longevo Monet vi-
veria para testemunhar radicais desdobramentos do que
semeara não muito tempo antes, como o urinol exposto
em museu por Marcel Duchamp, em 1917, um marco na
própria discussão do que é arte. Ela deve muito, afinal, ao
grupo que ousou fazer tudo diferente. ƒ

6|6
INÊS 249

GERAL SOCIEDADE

ERROU NA DOSE
A radical experiência de descriminalização de drogas
no Oregon, nos EUA, mostra que, sem estímulo ao
tratamento, os efeitos deixam de ser positivos
DUDA MONTEIRO DE BARROS

À VONTADE Oregon: completa falta de assistência acabou


elevando a incidência do vício

PATRICK T. FALLON/AFP

1|6
INÊS 249

UM NOTÁVEL AVANÇO do século XXI foi ver aflorar


mundo afora um debate dos mais delicados, daqueles que
se costumava varrer para debaixo do tapete: a descrimina-
lização das drogas. É questão controversa, cheia de nuan-
ces, que deve ser mantida a salvo de ideologias para se fin-
car na ciência e na experiência de países que, com cada vez
mais frequência, vêm flexibilizando o uso de entorpecen-
tes justamente com o objetivo de minimizar seus danos.
Na última década, nações como Uruguai, Canadá, México
e África do Sul liberaram o consumo da maconha — passo
dado de forma pioneira na Holanda, nos anos 1970, e apro-
fundado com tintas nunca antes vistas em Portugal, em
2001, onde portar outras substâncias, como cocaína, he-
roína e LSD, também deixou de ser crime.
Foi por essa trilha mais radical que enveredou o Oregon,
estado da Costa Oeste americana que, em 2020, cravou em
plebiscito que usuários de todas as drogas, até mesmo dos
devastadores opioides, não poderiam mais ser detidos. Toda
a literatura corrobora que os efeitos da medida tendem a ser
benéficos sob muitos ângulos — a começar pela própria saú-
de dos indivíduos que penam com o vício. Mas naquele pon-
to específico dos Estados Unidos, conhecido pela bela paisa-
gem e o acentuado progressismo, a receita desandou e, ago-
ra, se ensaia uma volta atrás que torna obrigatória uma nova
reflexão sobre tão candente assunto.
O sinal amarelo no Oregon se acendeu quando a descri-
minalização passou a colher efeitos avessos ao esperado —

2|6
INÊS 249

HORACIO VILLALOBOS/CORBIS/GETTY IMAGES

PORTA DE SAÍDA Portugal: estímulo ao tratamento


traz bons resultados

com o consumo em alta, as mortes por overdose escala-


ram 42% em 2023, puxadas pela explosão do fentanil, o
letal opioide. Também as ruas foram tomadas de gente
usando drogas, uma deprimente paisagem na qual a inci-
dência de pequenos crimes não para de crescer. Debruça-
da sobre tais desdobramentos, a Assembleia Legislativa lo-
cal acaba de aprovar um projeto de lei que propõe uma
marcha a ré — não completa, mas suficiente para alterar a
essência do plano original. A ideia, ainda a ser chancelada
pela governadora democrata Tina Kotek, é dispor de um

3|6
INÊS 249

concreto mecanismo de estímulo ao tratamento: ou o


usuário engata nos programas em centros especializados,
ou fica passível de reclusão de até 180 dias. Não é o mesmo
que antes, quando, por princípio, tudo conduzia à prisão,
abarrotando as celas de indivíduos que, na verdade, reque-
riam cuidados médicos. Mas, certamente, regressa algu-
mas casas na escala da liberalidade. “Não dá para deixar
de responsabilizar as pessoas”, já disse a governadora.
Em um roteiro previsível, o caso do Oregon logo deu
carga à artilharia de conservadores prontos para minar o
debate, disparando argumentos sem envergadura históri-
ca nem verniz científico. O vasto conhecimento acumula-
do sobre o polêmico tópico mostra que abordá-lo unica-
mente sob a lupa da segurança, tendo no usuário um cri-
minoso, quase sempre faz aumentar a incidência do vício,
já que espanta as pessoas das engrenagens públicas que
poderiam ajudá-las. Descriminalizar, portanto, vem se
revelando um caminho acertado, desde que o Estado não
saia de cena, como se observou no Oregon. Um mergulho
no exemplo português, que contabiliza duas décadas de
estrada, enfatiza a necessidade de zelar para que a deci-
são de transferir responsabilidades aos cidadãos não de-
sande. Ali, implantou-se um sistema de fichamento, que,
embora não mire o encarceramento, registra o nome do
usuário num banco acessado por empregadores, por
exemplo, e o encaminha a comissões de saúde, para que
receba suporte médico.

4|6
INÊS 249

ISTOCK/GETTY IMAGES

PARADOXO Coffee shop em Amsterdã: consumo e venda


são liberados, mas plantio é proibido

Como nada é trivial nesse terreno em que as sociedades


ainda aprendem a caminhar, também Portugal, onde a des-
criminalização das drogas contribuiu para uma bem-vinda
redução do contingente carcerário, da taxa de transmissão
de HIV e das mortes por overdose, está às voltas com uma
discussão sobre como lapidar suas iniciativas. Nos últimos
anos, o uso de entorpecentes vem se expandindo e isso ecoa
no avanço da criminalidade, um ciclo que atormenta em
grau semelhante vizinhos como Suécia, Noruega e a pionei-
ra Holanda. “A dependência das drogas não deve ser tratada

5|6
INÊS 249

exclusivamente como um problema de saúde, uma vez que


se reflete profundamente na segurança da população”, pon-
derou a VEJA o presidente da Câmara Municipal do Porto,
Rui Moreira, que, além de defender o investimento em ins-
talações para o tratamento, considera razoável delimitar lo-
cais onde tais substâncias podem ser consumidas, longe de
escolas e hospitais — como já ocorre em tantos países, como
o Canadá, outro que trilha a rota da descriminalização.
Um rol de nações tem testado um percurso ainda mais am-
plo ao legalizar a cadeia produtiva da droga, em especial a da
maconha. O objetivo embutido aí é não replicar o enredo holan-
dês — uma vitrine, aliás, sobre o que fazer ou não nesses mares
em que eles já navegam há meio século. O que se viu por lá é
que liberar o consumo e a venda de drogas, mas manter proibi-
do o plantio, acabou por colocar o fornecimento nas mãos do
tráfico internacional, fazendo multiplicar-se as gangues, que se
infiltram por entre as brechas para comercializar substâncias
mais pesadas. Por isso, países como Tailândia e Uruguai, assim
como a cidade de Nova York, regulamentaram o mercado, con-
cedendo licenças de cultivo a produtores e empresas. Dessa for-
ma, passaram a amealhar altas somas num negócio antes sob
absoluto domínio do tráfico. A virada, porém, não se dá da noi-
te para o dia — depois de uma década, a ilegalidade em solo
uruguaio segue respondendo por 70% do bolo. Para o Brasil,
ainda no ponto inicial da discussão, que corre no STF e no Con-
gresso, vale um olhar livre de prejulgamentos sobre como o
mundo anda girando e avançando em torno do bom debate. ƒ

6|6
INÊS 249

GERAL COMPORTAMENTO

GERAÇÃO LETRADA
Os jovens que não saem do smartphone retomam hábito
de leitura impulsionados pelas dicas de influenciadores
de literatura e por bibliotecas mais agradáveis
MARÍLIA MONITCHELE

COMUNIDADE Biblioteca Parque Villa-Lobos,


em São Paulo: o lazer como atalho para livros

ACERVO BIBLIOTECA VILLA-LOBOS

1|5
INÊS 249

NA ERA da inteligência artificial, das redes sociais e dos


mundos virtuais, isso tudo que vivemos agora, o singelo
ato de ler deixou de ser apenas um atalho para o conheci-
mento, como definiu Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) — a
leitura virou um ato de resistência contra a enormidade de
lixo visual despejado diariamente por meio de milhares
de telas e plataformas. Por incrível que pareça, esse movi-
mento transformador vem sendo impulsionado justamen-
te pelos nativos digitais. Os jovens da chamada geração Z,
de até 25 anos, nascidos com os olhos colados aos smart-
phones e tablets, é que lideram o interesse renovado pelos
livros físicos e até pelas bibliotecas. É fascinante.
É surpresa confirmada pelas pesquisas. A edição mais
recente do levantamento Retratos da Leitura, realizado pelo
Ibope a pedido do Instituto Pró-Livro, mostra que a maior
quantidade de leitores está na base da pirâmide etária brasi-
leira, entre 11 e 13 anos (veja no quadro ao lado). Dos 34 mi-
lhões de frequentadores de bibliotecas no país, cerca de 16%
da população, os mais assíduos são os jovens entre 14 e 24
anos. Eles as frequentam em busca de volumes para folhear,
sem dúvida, mas também como espaço de encontro, de ami-
zades, de troca de ideias. Para gerações atavicamente on-li-
ne, cujas relações são forjadas por meio das telas touch, es-
ses lugares se tornaram um refúgio para a convivência so-
cial — em meio a prateleiras coalhadas de livros.
Em São Paulo, a Biblioteca de São Paulo, no bairro do
Carandiru, e a Biblioteca Parque Villa-Lobos, no Alto de

2|5
INÊS 249

PÁGINA VIRADA
Pesquisa revela que adolescentes e jovens
adultos leem mais, hoje, do que a turma veterana
(em porcentagem dos entrevistados*)

11-1 3 AN O S
81%
1 8-24
59%
3 0-39
53%
5 0 -69
38%
*Amostra: 8 076 pessoas
Fontes: Instituto Pró-Livro/Itaú Cultural/Ibope

Pinheiros, receberam quase 600 000 visitantes no ano


passado. Mais da metade desse público corresponde à ge-
ração Z, que vê esses lugares mais como centros comuni-
tários e menos como um templo silencioso do saber. “Eles
vêm para jogar pingue-pongue, futebol, estudar, interagir
entre si ou apenas passar o tempo”, diz Pierre Ruprecht,
diretor-executivo da SP Leituras, organização social res-

3|5
INÊS 249

ponsável pela administração dos dois espaços e de outros


ligados à leitura na capital paulista. E, é natural, acabam
sendo atraídos também para a leitura.
Dada a impossibilidade de sairmos da internet, de vi-
vermos desplugados (leia a entrevista com o sociólogo
Manuel Castells), os dois mundos deram as mãos: o ele-
trônico e o de papel. A boa surpresa: repositório de me-
mes, vídeos curtos e outras bobagens, o onipresente Tik-
Tok entrou na dança. Brotam com interessante frequên-
cia os “booktokers”, os divertidos influenciadores que
usam a plataforma para dar dicas de leitura e gravar suas
resenhas de títulos recém-lançados. E bingo: as vendas
cresceram, especialmente a de sugestões de romances e
fantasia. “O BookTok é um grande clube do livro, onde
as pessoas compartilham o que leram e dividem interes-
ses”, diz Tiago Valente, cujo perfil na plataforma chinesa
tem belos 500 000 seguidores.
Os livreiros já mediram o reflexo direto das ofertas que
nascem da turma do celular — tal como, no passado, ven-
diam-se muito os lançamentos que Jô Soares levava para
seus programas noturnos, ou como faz Oprah Winfrey na
TV americana. Estima-se crescimento de 30% a 40% da
saída de livros indicados pelos blogueiros mais celebrados.
É fenômeno que não pode ser desdenhado. “O interesse das
novas gerações pelos livros é evidente, e muito dessa atra-
ção é alimentada pelos meios eletrônicos”, diz Dante Cid,
presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros.

4|5
INÊS 249

Os clubes de livros
ma is t rad iciona is
também sentem a tra-
ção. Na TAG, mais de
60% da base de assi-
nantes é de jovens.
Não por acaso, a em-
presa criou um apli-
cativo que funciona
aos moldes de uma
rede social, incenti-
vando trocas e dis-
cussões em torno dos
livros enviados pelos

TIKTOK @OTIAGOVALENTE
correios. A ágora di-
gital ajuda a entender
o perfil do público “CLUBE DO LIVRO”
consumidor. “Num O “booktoker” Tiago Valente:
modelo de clube, não 500 000 seguidores
precisamos vender o
livro, precisamos enviar livros que as pessoas gostem. Is-
so nos obriga a conhecer muito bem o gosto do nosso lei-
tor”, diz Gustavo Lambert, diretor da TAG.
A guerra educativa está longe de ser vencida, mas as
ferramentas atreladas aos celulares transformam uma
experiência individual em prática coletiva de leitura. Não
é pouca coisa. ƒ

5|5
INÊS 249

PRIMEIRA PESSOA

DIVULGAÇÃO

1|4
INÊS 249

NUNCA PENSEI
EM DESISTIR
Luana Ozemela, vice-presidente de impacto do iFood,
diz que o racismo sempre esteve presente em sua vida

EU NASCI EM PORTO ALEGRE no dia em que o papa


João Paulo II chegou à cidade. Acho que foi por isso que ti-
ve uma infância abençoada. Cresci em um bairro pobre da
cidade, mas a minha família era muito intelectualizada.
Todos os meus tios fizeram curso superior. Nos anos 1970,
no auge da ditadura militar, uma família preta estudava na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Era algo real-
mente muito raro. Apesar de ter crescido em um bairro po-
bre, a prioridade de investimento na minha casa sempre foi
educação. Meu pai trabalhava como metalúrgico, e minha
mãe, como professora de história. O dinheiro era limitado,
então nunca saímos da periferia. Meus pais eram ativistas
do movimento negro. Cresci consciente dos problemas ao
meu redor. Eu sempre soube o que significava o racismo,
que desde cedo esteve presente na minha vida.

2|4
INÊS 249

A primeira violência que sofri foi ainda criança, aos 4


anos: eu e meu irmão éramos os únicos pretos da creche.
Lá, todos os dias, acontecia um sorteio para definir quais
crianças iam lavar os copos de toda a classe. Curiosamen-
te, éramos sorteados todos os dias. Eu chegava em casa
chorando, cansada por ter feito todo aquele trabalho, mas
as professoras diziam que eu tinha “sorte”. Eu e meu irmão
não éramos crianças bagunceiras, mas ele foi trancado
muitas vezes no banheiro da escola, como forma de casti-
go por algum suposto mau comportamento. As crianças
brancas que faziam bagunça não eram punidas dessa for-
ma. Foi ali que meus pais nos explicaram que nós seríamos
perseguidos por causa da cor da nossa pele. Desde cedo
entendi que, além da educação, o empoderamento econô-
mico é o que, de fato, me abriria espaços. Por isso, sempre
sonhei muito grande.
Virei economista, fiz mestrado e doutorado, trabalhei
no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e
morei em Washington, no Catar e no Haiti, estruturando
projetos de igualdade de gênero em parceria com a iniciati-
va privada. Apesar de minha trajetória, ainda sou muito
subestimada. É assim que o racismo se manifesta na minha
vida hoje em dia. Infelizmente, é também no Brasil que eu
mais sofro esse tipo de discriminação.
Houve um episódio que me marcou: no BID, liderei
uma missão do banco no Nordeste brasileiro. Estávamos
estruturando um projeto milionário de financiamento pa-

3|4
INÊS 249

ra incluir beneficiários do Bolsa Família em iniciativas


empreendedoras. Em uma reunião, junto à secretaria de
desenvolvimento de um estado da região, enquanto eu
apresentava o tópico, o secretário me interrompeu e ques-
tionou a minha nacionalidade. Na cabeça dele, não era
possível que uma mulher como eu, brasileira, estivesse
naquela posição de destaque. É esse o viés de subestima-
ção que me persegue por onde ando. Quando entro numa
sala, minha pele e meu cabelo são políticos. Por isso, nun-
ca pensei em desistir.
Hoje em dia, sou vice-presidente de impacto do iFood e
atuo também como consultora em projetos de afroem-
preendedorismo para que haja cada vez mais investidores
pretos. Sou feliz com o que faço. O meu trabalho no iFood
tem a missão de reduzir desigualdades sociais. Desenvolve-
mos programas para a obtenção do diploma do ensino mé-
dio, bolsas em faculdades ou em cursos de tecnologia. Te-
mos 280 000 entregadores cadastrados na plataforma e es-
timamos que 70 000 não completaram a escola. Meu sonho
é garantir o acesso ao ensino médio a pelo menos 200 000
pessoas, considerando entregadores, familiares e funcioná-
rios de restaurantes parceiros. Sinto que tudo o que fiz na
vida está culminando nesse projeto, que consiste em causar
impacto por meio da educação. Tenho muito orgulho de ser
preta e espero que muitos outros sintam isso também. ƒ

Depoimento dado a Pedro Gil

4|4
INÊS 249

GERAL ESPORTE

MAMÃES NO PÓDIO
O respeito à maternidade de atletas de alto
rendimento, em várias modalidades, começa
a se espalhar e serve de gatilho para políticas
públicas e empresariais LUIZ PAULO SOUZA
INSTAGRAM @ CRATEANDKIDS

RETORNO Naomi Osaka, mãe de uma bebê, Shai: “É triste


ter de voltar logo ao trabalho, depois de dar à luz”

1|5
INÊS 249

FOI INEDITISMO aplaudido como passo inaugural de um


movimento. No início de março, as redes sociais do time fe-
minino de futebol do Arsenal, centenário clube inglês, cele-
braram as boas novas. Em lugar de uma aquisição milioná-
ria, o anúncio envolvia o futuro da estrela da equipe, a za-
gueira sueca Amanda Ilestedt, grávida do primeiro filho.
INSTAGRAM @SERENAWILLIAMS

PIONEIRA Serena Williams com


a filha Olympia: postura corajosa

2|5
INÊS 249

“Vamos revelar algo que nos afetará por um motivo muito,


muito feliz”, disse o técnico Jonas Eidevall, antes de mostrar
a foto da jogadora exibindo o resultado de um exame de ul-
trassom. “Vamos dar todo o apoio e ajuda durante a gesta-
ção.” O gesto — aparentemente singelo — tem o poder revo-
lucionário de abrir caminhos, sobretudo no seio do mais ma-
chista dos esportes.
A tendência não pode ainda ser ancorada em estatística,
mas há evidente avanço. A tenista americana Naomi Osaka,
quatro vezes vencedora de Grand Slams, tornou-se mãe de
Shai em julho do ano passado. Em janeiro, após 500 dias
afastada — mergulhada em depressão e, depois, de mãos
dadas com a maternidade —, celebrou o retorno às quadras
cutucando o status quo. “Ver que há tantas mulheres que
têm de voltar ao trabalho logo depois de dar à luz é muito
triste”, disse ela. Ecoou, de algum modo, a postura corajosa
— e pioneira, antes da hora — da campeoníssima americana
Serena Williams, hoje mãe de duas crianças, uma delas nas-
cida quando ainda estava em atividade.
O comportamento que agora ganha alguma solidez ajuda
a iluminar o inaceitável preconceito de antes. O caso da fu-
tebolista islandesa Sara Björk é emblemático. Em 2021, a
meio-campista não se calou ante o pagamento interrompido
pelo Lyon, ao se afastar para o nascimento de Ragnar. De-
pois de apelar para a Fifa e receber o que lhe era devido, ela
se transferiu para a Juventus, na Itália. E então, em rotunda
vitória de Björk, os cartolas anunciaram a garantia de 14 se-

3|5
INÊS 249

manas de licença-materni-
dade remunerada para as
atletas. É estrada que tinha
sido pavimentada, em
2018, pela velocista ameri-
cana Allyson Felix, que viu
o valor do seu contrato
com a Nike cair em 70%
depois de sair da materni-
dade. O episódio estimu-
lou uma louvável mudança
nas políticas da empresa
de material esportivo.
MANILA COMUNICAÇÃO

Necessária e urgente, a
onda de reforma também
chegou ao Brasil. Uma lei ATIVISMO Ágatha, do vôlei
federal de 2023 garantiu de praia: luta por garantias
remuneração e proteção de proteção e remuneração
para bolsistas de alto de-
sempenho em fase de gestação ou lactação. “Em alguns
esportes, contudo, ainda falta apoio logístico sobre a con-
dução da gestação”, diz Ágatha Bednarczuk, medalha de
ouro do mundial de vôlei de praia em 2015, mãe de Kahe-
na, de 1 ano e meio. Mas melhorou, não há dúvida. Em
2016, Sheilla Castro, bicampeã olímpica de vôlei, decidiu
ser mãe. Ao anunciar os planos de maternidade, um clube
que negociava seu passe desistiu imediatamente. “Nem

4|5
INÊS 249

STEPH CHAMBERS/GETTY IMAGES

MUDANÇA Vitória de Allyson Felix: a


Nike mudou as regras depois do parto

deixava a ideia de ser mãe passar pela minha cabeça”, diz


ela, que tem gêmeas.
A estrada é longa, ainda, mas foi-se o tempo terrível, no
início dos anos 1970, em que os dirigentes da extinta Alema-
nha Oriental incentivavam a gravidez e depois o aborto das
nadadoras — o procedimento criminoso fazia disparar as
taxas hormonais, atalho para suposto desempenho melhor
na piscina, como se fosse um doping “natural”. Hoje, feliz-
mente, o incentivo é outro, real e digno. Até porque há bene-
fícios para o corpo feminino. “A prática regular e controlada
de esporte reduz o risco de complicações como diabetes ges-
tacional e eclâmpsia”, diz Andrea Fioretti, da Sociedade Bra-
sileira de Endocrinologia e Metabologia. Que as mulheres
tenham, cada vez mais, sem tabu, o direito de subir ao pódio
com filhos no colo. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL GASTRONOMIA
INSTAGRAM @RISTORANTELACAMPANA

INSTAGRAM @RISTORANTELACAMPANA
1518 O interior simples do
endereço no centro histórico
de Roma (à esq.): típicas
receitas da cozinha italiana

PALADAR ANCESTRAL
O restaurante romano La Campana, do século XVI,
alimenta sua campanha para ser considerado
o mais antigo do mundo J.A. DIAS LOPES, de Roma

1|5
INÊS 249

É A DISPUTA pelo pódio mundial. Roma, capital da Itália,


contesta um dos primados mais celebrados do Livro dos Re-
cordes Guinness. O volume das proezas e superlativos, lan-
çado anualmente, garante que o restaurante mais antigo do
mundo está em Madri, na Espanha. Seria o Sobrino de Bo-
tín, fundado em 1725. Os italianos pedem há algum tempo
que o Guinness corrija o registro. Agora, voltam à carga, em
maciça campanha. Segundo eles, o ristorante mais ancestral
é o La Campana, aberto em 1518, no vicolo (beco) homôni-
mo, no centro histórico romano.
Por que o Guinness, tão sério e criterioso em suas avalia-
ções, ainda não aceitou a mudança? Talvez por desconside-
rar as evidências apresentadas. Curiosamente, porém, avali-
za que o La Campana é o mais longevo de Roma. O veterano
italiano tem documentos que comprovam sua abertura dois
séculos antes do Sobrino de Botín, um dos quais é o manus-
crito Taxae Viarum, de 1518. Conforme esse manuscrito, o
tributo de manutenção da rua foi pago naquele ano. O restau-
rante também é citado em um censo de 1526, que menciona
um certo Pietro de la Campana. Em Paris, há o café e restau-
rante Le Procope, considerado o mais antigo da capital fran-
cesa, em operação desde 1686, fundado pelo chef siciliano
Procopio Cutò, local de encontro da comunidade artística e
literária nos séculos XVIII e XIX. Mas não participa da dis-
puta, pois fechou em 1872 e só reabriu na década de 1920.
No endereço do La Campana, funcionava originalmen-
te um posto do correio. A chegada de cada carruagem pu-

2|5
INÊS 249

INSTAGRAM @RESTAURANTE_BOTIN

1725 O madrilenho Sobrino de Botín:


ainda no topo da lista do Guinness

xada a cavalo, utilizada para o transporte de passageiros e


mercadorias, cuja imagem ilustra atualmente o menu da
casa, era anunciada pelo badalar de uma campana (sino).
Daí o nome do estabelecimento. “Há quinhentos anos pre-
paramos receitas típicas da cozinha romana”, disse a VEJA
Paolo Trancassini, administrador da casa. Os pratos tradi-
cionais vão do carciofo alla giudia (alcachofra frita à moda
judaica) à coda alla vaccinara (rabo de boi ensopado); do

3|5
INÊS 249

abbacchio arrosto con patate (cordeiro assado com bata-


tas) ao tonnarelli cacio e pepe (massa comprida e quadra-
da, com o dobro da espessura do espaguete, ao molho de
queijo e pimenta).
Um dos modos de celebrar a longa jornada do La
Campana é conhecer os personagens que o frequenta-
vam, desde priscas eras. Nos primeiros anos do século
XVII, quem batia ponto ali era o pintor italiano Miche-
langelo Merisi da Caravaggio. O mais genial dos artistas
plásticos barrocos aparecia para almoçar enquanto pin-
tava na vizinha basílica de Santo Agostinho. Ele entrava
no salão usando roupa colorida e extravagante, chapéu
de feltro e aba larga, em cuja banda preta havia uma pena
de pavão, e levando na cintura a espada que sua índole
truculenta sacava da bainha por qualquer motivo, pois,
além de briguento e maledetto, como dizem os italianos,
era vaidoso. Que se saiba, contudo, nunca criou proble-
mas no La Campana.
Uma lenda, obviamente improvável, conta que o salão
principal da comedoria teve uma pintura de Caravaggio na
parede, que acabou sumindo. Caso fosse verdadeira, o res-
taurante mais antigo do mundo colecionaria mais uma boa
história, mas perderia uma montanha de dinheiro. Alessan-
dro Zuccari, professor de história da arte moderna da Uni-
versidade Sapienza de Roma, estima que comece em 300
milhões de euros (mais de 1,6 bilhão de reais) o preço em
leilão de qualquer quadro pintado pelo gênio arruaceiro.

4|5
INÊS 249

O escritor Johann Wolf-


gang von Goethe, estrela da
literatura alemã e do ro-
mantismo europeu nos fi-
nais do século XVIII e iní-
cios do século XIX, men-
cionou o restaurante na
obra Elegias Romanas, ori-
ginalmente intitulada Eróti-
FINE ART IMAGES/HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

ca Romana, um conjunto
de 24 poemas compostos
no retorno da sua viagem à
Itália, que durou de 1786 a
1788. Citou inclusive uma
funcionária pela qual teria PRISCAS ERAS
se apaixonado. Também fi- O pintor barroco Caravaggio
zeram do La Campana pon- (1571-1610): freguês fiel
to de encontro figuras mais
recentes do mundo das artes, como os cineastas Federico
Fellini e Pier Paolo Pasolini, assim como o ator Alberto Sor-
di. A cantora de óperas Maria Callas transformava a mesa
do almoço ou do jantar em escritório informal para fechar
contratos de apresentações.
A briga entre o La Campana e o madrilenho Sobrino de
Botín promete ir longe, ainda, a fogo brando — mas a riqueza
de aventuras do endereço de Roma autoriza uma constata-
ção em torno de sua primazia: se non è vero, è ben trovato. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL ESTILO

NA CRISTA DA ONDA
Em forma de cortininha sobre os olhos ou
curta e reta ao estilo Cleópatra, a franja —
tão infantil — triunfa como tendência
moderna e funcional SIMONE BLANES
RTFINSTAGRAM @MELLISBOA ASHOK KUMAR/TAS24/GETTY IMAGES

AMANDA EDWARDS/GETTY IMAGES

ADAPTAÇÃO Mel Lisboa, Anne Hathaway e Taylor Swift:


estrelas aderem ao visual com fios resvalando sobre os olhos

1|4
INÊS 249

ERA IMPROVÁVEL, mas aconteceu. Na entrega do prê-


mio SAG Awards, oferecido pelo sindicato de atores de
Hollywood, no fim de fevereiro, Anne Hathaway desfilou
dentro de um vestido azulão Versace com fendas infinitas. E
então — surpresa, milagre! — o que chamou mesmo a aten-
ção foi a franja, recém-cortada para rememorar a persona-
gem vivida por ela em O Diabo Veste Prada. Foi a senha pa-
ra instalar na crista da onda um penteado a um só tempo
discreto e poderoso. Ok, Taylor Swift já vinha exibindo sua
cortininha, mas foi Hathaway quem carimbou o renasci-
mento do estilo.
Agora, celebridades como Selena Gomez e Lana Del Rey
usam e abusam da fronte graciosa. Alcunhadas de “baby
bangs”, voltam à cena também na cabeça de artistas adoradas
pela juventude até 25 anos, como Zendaya e Olivia Rodrigo.
Não demorou, por meio das redes sociais, para mulheres de
carne e osso, gente como a gente, começarem a se inspirar.
Quase sempre com fios mais longos e sobre os olhos, no aves-
so da versão clássica e retinha. “A franja é um acessório que
pode mudar o rosto e até rejuvenescer”, diz Celso Kamura,
cabeleireiro de famosas como Mel Lisboa, que também ade-
riu ao visual para ficar mais parecida com Rita Lee — a atriz
vive a cantora no teatro, ao modo da ruiva rebelde, a ovelha
negra da família. Marina Ruy Barbosa, igualmente ruiva,
apareceu cortando seu próprio cabelo na frente de 42 mi-
lhões de seguidores. E dá-lhe combustível para tendência que
atraiu 580 milhões de visualizações no TikTok.

2|4
INÊS 249

A aparente ingenuidade do que se vê tem longa jornada.


Na Pré-História, a franja com fios a cobrir os olhos era um
modo de proteção contra sol e insetos. Os primeiros regis-
tros das franjas tais como as conhecemos, no entanto, re-
montam ao Egito Antigo. Naquela época, a prática de cortar
o cabelo bem acima da sobrancelha era usada para eviden-
ciar a inteligência da pessoa — além de lindas testas, é claro.
É por isso que Cleópatra, conhecida por suas habilida-
des políticas, é sempre
retratada dessa forma
PASCAL LE SEGRETAIN/GETTY IMAGES

— basta lembrar de
Elizabeth Taylor e sua
memorável representa-
ção da rainha egípcia
no cinema, em 1963.
Na década de 1920, a
franjinha à la Cleópa-
tra, aliás, servira de
símbolo feminista,
dando origem ao corte
à la garçon (“rapazi-

À LA RAINHA DO
EGITO Zendaya, do
jeito que os jovens
gostam: tal qual
Cleópatra

3|4
INÊS 249

nho”), introduzido pela estilista Coco Chanel e adotado


pelas mulheres nos Anos Loucos.
Mais adiante, em meados de 1950, o recurso foi usado para
ressaltar a beleza delicada mas moderna de mulheres como
Audrey Hepburn, cujos cabelos curtos produziram imensa re-
volta (e muita beleza, claro), especialmente de homens conser-
vadores. Curtas, longas, retas, cheias, repicadas ou desfiadas,
as franjas, que já foram criticadas pelo ar infantil e acusadas
de cafonice, têm o dom das pequenas revoluções silenciosas.
Mudam tudo, mas com discrição. São versáteis, soam ba-
nais, mas exigem o cuidado da tesoura de profissionais. Pa-
ra quem quer brincar de ser outra pessoa, vale a pena. De
Coco Chanel, frasista irrefreável, tradutora dos humores da-
quele tempo: “Uma mulher que corta os cabelos está mu-
dando sua vida”. É verdade. Na dúvida, vá de franja. ƒ

4|4
INÊS 249

LUCILIA DINIZ

PÁSCOA, SUBSTANTIVO
FEMININO
As lendas e reviravoltas que fizeram da lebre um coelho

ÀS VEZES as ideias nos tomam a mente sem aviso — acon-


teceu comigo na última semana, em meio à compra dos ovos
de Páscoa da família. No afã de prolongar a magia da data
para as crianças, ia escrevendo no cartão dos chocolates “de:
Coelho/para: ...” e, de repente, hesitei. E se fosse coelha?
As pessoas costumam se perguntar sobre o porquê do
coelhinho da Páscoa. Não é mesmo evidente o elo entre a
festa religiosa celebrada no próximo domingo e um mamífe-
ro espalhando ovos por aí — de chocolate, ainda por cima.
Em geral, elas se dão por satisfeitas com a explicação de
que o ovo é um símbolo de vida e por isso se liga à ressurrei-
ção de Cristo, enquanto o coelho nos lembra a origem pagã
da festa, a celebração da primavera no Hemisfério Norte. En-
tre março e abril, quando a vida se revigora, nascem as crias
desse animal, conhecido pela fertilidade.
Para mim, a coisa se complica justo nesse ponto. Por que
o coelho da festa é macho e as únicas coelhas lembradas (por
motivos nada sagrados) são as da revista Playboy? Não seria
o caso de dar o mérito e o lugar de honra à coelha?

1|3
INÊS 249

Pois bem, fui pesquisar e, no início da tradição europeia,


havia mesmo uma coelha. A bem da verdade, uma lebre fê-
mea (maior e mais orelhuda que sua prima, embora tão fértil
quanto ela).
A lebre era sagrada para certos povos antes de Cristo. Júlio
César chegou a observar que, nos territórios da atual Grã-
Bretanha, ela não servia de alimento, devido a esse significa-
do religioso. Na Grécia Antiga, era associada a Afrodite, a
deusa do amor. Mais adiante, no século , Jacob, um dos ir-
XIX

mãos Grimm famosos pelos contos de fadas, escreveu sobre


uma divindade feminina alemã ligada à fertilidade e à abun-
dância (e outro alemão da mesma época a relacionou à lebre).
Diversas figuras femininas de fecundidade eram festeja-
das na Europa, nos meses promissores depois do frio, quan-
do as lebres saltavam pelos campos com a filharada. Em al-
gum momento, talvez para explicar crianças como os ovos
às

“Por que o coelho da


festa é macho
e as únicas coelhas
lembradas são
as da revista Playboy?”
2|3
INÊS 249

de Páscoa tinham ido parar nos jardins das casas, os animais


começaram a fazer parte da festa, responsáveis pela distri-
buição. Daí para virar coelho, foi um pulo.
De uma deusa para outra, a lebre vira coelho, coelho não é
coelha, se fosse também não botaria ovo, e o ovo nem de gali-
nha é. Uma miscelânea bem plausível de contestação. Mas, ri-
gores históricos e biológicos à parte, são as mulheres, divinas
ou não, as que geram a vida. Por onde se olhe, uma fêmea,
fosse de lebre ou de coelho, encaixaria melhor na lenda.
Veja se não estou certa. Os mais conservadores diriam ser
papel feminino nutrir a família com afeto, cuidar do preparo
dos chocolates e agradar às crianças com os doces. Já outros
poderiam afirmar que hoje não faz sentido o distribuidor de
presentes ser um homem (ou coelho, no caso). Afinal, há dé-
cadas a mulher não depende dele como provedor — aliás, se-
gundo o IBGE, no Brasil são elas as chefes da maior parte
das famílias.
Ainda assim, e a despeito de a equidade de gênero ser uma
das bandeiras mais levantadas e debatidas atualmente, per-
manece comum nas decorações e ilustrações pascais o alegre
coelho branco, geralmente vestindo roupas masculinas.
De minha parte, fecho este texto com uma constatação
singela, mas essa, sim, incontestável. Em bom português,
Páscoa é um substantivo feminino. ƒ

3|3
INÊS 249

CULTURA TELEVISÃO

ENTRE DOIS MUNDOS


Com novos projetos dentro e fora do país, Fernando
Meirelles espalha tempero brasileiro em séries
tipicamente americanas — caso da notável Sugar
RAQUEL CARNEIRO

PARCERIA O diretor (à esq.) e


Colin Farrell (de terno, à dir.): o
ator convenceu o brasileiro a
entrar para a produção

JASON LAVERIS/APPLE +

1|7
INÊS 249

J
ohn Sugar se encaixa no padrão perfeito do galã ame-
ricano. Bonito, charmoso, inteligente e misterioso, o
personagem interpretado pelo irlandês Colin Farrell é
um detetive particular especializado em encontrar
pessoas desaparecidas. Seu serviço também inclui
uma discrição monástica, fazendo dele um favorito dos rica-
ços, de membros da máfia a megaprodutores de Hollywood
— e é desse último substrato que sai o cliente principal da
minissérie Sugar, que estreia na sexta-feira 5, na Apple TV+.
Quando a neta de um famoso cineasta some, o araponga vip
é contratado e dá início a uma peregrinação por Los Ange-
les — de ambientes glamourosos ao submundo da miséria.
Em determinado momento, Farrell, com seu terno ali-
nhado, em um conversível de luxo, embrenha-se no centro,
onde os sem-teto se acumulam em barracas nas calçadas. A
cena que expõe o lado pobre da cidade americana não esta-
va no roteiro, mas foi adicionada por insistência do brasilei-
ro Fernando Meirelles, diretor de cinco dos oito episódios.
Ao ser convidado para colaborar na produção, o cineasta
alugou, desavisado, um apartamento naquela mesma região,
onde descobriu uma vasta população em situação de rua.
“Deve ter umas 30 000 pessoas ali vivendo em barracas”,
disse Meirelles a VEJA, chutando o número por baixo: na
verdade, em 2023, a população sem teto da cidade foi esti-
mada em 75 000 pessoas.
Essa visão ampla, que conecta o indivíduo ao meio onde
vive e, consequentemente, às suas mazelas sociais, é uma

2|7
INÊS 249

JASON LAVERIS/APPLE +

SUSPENSE Farrell em Sugar: trama policial inspirada


em clássicos do cinema noir dos Estados Unidos

das qualidades de Meirelles que chamaram a atenção de


Farrell, também produtor de Sugar. “Não consigo ver uma
história isolada. Ela está dentro de um contexto que, por sua
vez, é carregado de conflitos”, diz o brasileiro (leia a entre-
vista no quadro). Ator e diretor se conectaram via Zoom
quando o paulistano ainda decidia se iria ou não embarcar
no projeto. Seletivo, Meirelles, hoje aos 68 anos, já provou as
delícias e as amarguras de se aventurar na bilionária e peno-
sa indústria do cinema americano, porta aberta pelo acacha-
pante Cidade de Deus em 2002, sucesso que lhe rendeu uma
indicação ao Oscar de direção. Agora, ele estreia na TV
americana em uma fase mais desenvolta e segura de sua
carreira internacional. Na nova série, o diretor ainda pisa em

3|7
INÊS 249

HOPPER STONE/SMPSP/HBO

ASTRO Downey Jr., irreconhecível (à dir.), em O


Simpatizante: próximo lançamento internacional no radar

terreno pouco conhecido: um policial noir com reviravolta


assustadora no meio da trama.
Além de Sugar, este ano o diretor ainda vai aparecer nos
créditos da série da HBO O Simpatizante, sobre um espião
comunista atuando nos Estados Unidos durante a Guerra do
Vietnã, com Robert Downey Jr. no elenco. Até 2026, Meirel-
les já tem três projetos internacionais engatilhados. Por aqui,
a agenda também está cheia: em maio, assume a codireção
da distopia nacional Corrida dos Bichos para o Prime Video,
em parceria com Ernesto Solis e Rodrigo Pesavento. Em bre-
ve, lança como produtor a série Cidade de Deus, derivada do
filme, para a plataforma Max, com direção de Aly Muritiba
(de Cangaço Novo), ainda sem data de estreia. Ao mesmo

4|7
INÊS 249

tempo, desenvolve com a Netflix uma produção sobre a tra-


gédia de Brumadinho, em Minas Gerais, e planeja outra so-
bre o clã do ex-presidente Fernando Collor de Mello.
Como nem tudo são flores, a trajetória entre o sucesso de
2002 e a abundância de projetos vinte anos depois foi mar-
cada por desafios e tensões. Lá fora, Meirelles descobriu um
mercado que limitava sua liberdade criativa com esquemas
de trabalho exaustivos que lhe causaram até depressão. Re-
cusou projetos que prometiam fama e dinheiro mas nenhu-
ma autonomia — entre eles, a direção de um filme do 007,
com James Bond na juventude, e longas da saga teen Cre-
púsculo. Para piorar, suas empreitadas internacionais não
vingaram como esperado, caso do drama O Jardineiro Fiel
(2005), bonitinho mas esquecível, e de Ensaio sobre a Ce-
gueira (2008), um fracasso de crítica e bilheteria. O fiasco
de 360, com Anthony Hopkins no elenco, em 2011, levou o
diretor a pausar a carreira gringa.
No caminho, recebeu um conselho de Brad Pitt: o galã su-
geriu que Meirelles não se importasse tanto com a crítica —
recomendação difícil numa profissão em que vaidade é item
básico. O brasileiro voltou então seu foco para a produtora
O2, em São Paulo, cofundada por ele em 1991 e hoje uma das
mais relevantes do setor no país. Só retornou a um set estran-
geiro em 2019, com o elegante Dois Papas, da Netflix. Agora,
Sugar completa sua reinvenção em projetos realizados no ex-
terior, sem que isso implique desligar a câmera das boas pro-
duções nacionais — é mesmo o melhor de dois mundos. ƒ

5|7
INÊS 249

KATIE JONES//PENSKE MEDIA/GETTY IMAGES


DIVULGAÇÃO

ONTEM E HOJE O diretor no set de Cidade de


Deus (à esq.) e agora: visibilidade no exterior

“PRETENDO FICAR NO MEIO A MEIO”


Fernando Meirelles falou a VEJA sobre a série Sugar e explicou
como se equilibra entre o Brasil e Hollywood:

Sugar é um suspense noir que destoa do seu currícu-


lo. Como se envolveu com o projeto? De fato é uma série
que, se dependesse de mim, eu não faria, pois prefiro projetos
mais pessoais. Mas eu estava a fim e me dei muito bem com o
Colin (Farrell). Também estava disposto a ser um prestador de
serviço, pois em geral sou produtor, função com muitos proble-
mas a ser resolvidos. Pude voltar a atenção 100% para a cena,
para os atores, e foi extremamente prazeroso.

6|7
INÊS 249

Colin Farrell declarou que uma grande contribuição


sua para o projeto foi a visão social sobre Los An-
geles. Por que acha importante ver a cidade como
um personagem? Não consigo ver uma história isolada. Ela
está dentro de um contexto que, por sua vez, é carregado de
conflitos. Quando me instalei no centro de Los Angeles, fiquei
impressionado com uma área com uns vinte quarteirões com
barracas e moradores em situação de rua. Parecia um país
muito pobre e não vizinho de Beverly Hills. Isso é parte impor-
tante da cidade.

Desde Cidade de Deus, seu nome é respeitado em


Hollywood. Mesmo assim, ainda vive em São Paulo e
trabalha bastante no Brasil. Por que essa esco-
lha? Minhas raízes estão aqui, minha família — sou avô de qua-
tro netos —, tenho uma fazenda no interior onde planto abacate,
cana, goiaba. Gosto de contar as histórias do Brasil. Mas agora
pretendo ficar no meio a meio, um ano aqui e outro lá nos Esta-
dos Unidos. Gosto de entender o mundo.

No embate entre cinema e streaming, o senhor se dá


bem em ambos. Como analisa este momento da in-
dústria? Nada supera a experiência da sala de cinema, é como
sonhar de forma coletiva. Mas o streaming aumentou o acesso
aos filmes e sou grato por isso.

7|7
INÊS 249

CULTURA CINEMA

LUCRO MONSTRUOSO
No filme Godzilla e Kong: O Novo Império, as duas
criaturas pop unem força contra novo inimigo — um
embate cheio de ação e nonsense que ensina como se
faz uma mina de ouro das telas

AMIGOS E RIVAIS Godzilla e King Kong: as duas feras vão


encarar seres bem mais horripilantes do que eles

WARNER BROS.

1|3
INÊS 249

HABITANTE de uma dimensão subterrânea batizada de


Terra Oca, King Kong está livre das ameaças humanas —
mas não dos percalços da natureza. Perseguido por uma es-
pécie asquerosa — algo entre lobos e hienas gigantes —,
Kong corre pela floresta e se livra de boa parte dos bichões.
A artimanha não é suficiente, contudo, e o gorila acaba cer-
cado à beira de um precipício. Fugir não é uma opção, nem
lutar. Ele então resolve dar um showzinho: pega um dos ani-
mais que já havia matado, levanta sobre sua cabeça e o es-
traçalha em duas partes, enquanto ruge com dentes à mos-
tra. O espetáculo dá certo: os predadores se assustam e
Kong respira aliviado. A cena que abre o filme Godzilla e
Kong: O Novo Império (Godzilla x Kong: The New Empire,
Estados Unidos, 2024), em cartaz nos cinemas, mostra que
o macaco gigante já está calejado na arte de se renovar nas
telas: sabe que é preciso sempre mais ação e violência para
continuar impressionando a audiência — como o faz, de res-
to, desde os anos 1930.
A mesma lógica nutre a popularidade do Monstroverso,
saga que reúne Kong, Godzilla e mais titãs enormes e peri-
gosos. O novo filme é o quinto desde 2010, e a empreitada já
soma 2 bilhões de dólares em bilheteria. Botar monstros co-
lossais para rugir em cena dá um lucro danado. A Apple
TV+ lançou recentemente a série Monarch — Legado de
Monstros, que explora as origens desse universo. O sucesso
da franquia coincidiu com o longa japonês Godzilla Minus
One, ganhador do Oscar de efeitos especiais este ano. Com

2|3
INÊS 249

orçamento ínfimo comparado ao americano — foram 15 mi-


lhões de dólares, contra 200 milhões da versão de Holly-
wood —, o longa japonês retornou às raízes do réptil criado
por Ishiro Honda (1911-1993) nos anos 1950. Em sua versão
original, o Godzilla era um efeito colateral da radiação ad-
vinda das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. “Es-
ses monstros representaram metáforas variadas, das mais
contundentes até as mais bobinhas. É prova de que são parte
inerente do imaginário popular”, disse a VEJA o diretor do
filme americano, Adam Wingard.
Em Godzilla e Kong, os protagonistas não se prestam a
dar lições de moral elaboradas — já que coerência e verossi-
milhança são o de menos nesses filmes. Kong deve proteger
a humanidade, e Godzilla, o planeta — propósitos que não
são complementares. Inimigos, eles se unem quando outro
macaco gigante e um réptil cuspidor de gelo tentam domi-
nar a Terra. Essa batalha do tipo UFC do fim dos tempos
acontece, acreditem, no Rio de Janeiro. Era mesmo só o que
faltava para a Cidade Maravilhosa. ƒ

Raquel Carneiro

3|3
INÊS 249

CULTURA ENTRETENIMENTO

A BATALHA
DAS VOZES
O uso da inteligência artificial para dublar filmes,
games e séries com fidelidade espantosa
provoca reação nos profissionais do ramo — mas
é um avanço inevitável FELIPE BRANCO CRUZ

CLONAGEM DIGITAL A inteligência artificial


faz barulho: trabalho executado com muito mais rapidez

MONTAGEM COM FOTOS ISTOCK/GETTY IMAGES

1|5
INÊS 249

MESES ATRÁS, um seriado de TV produzido em Portugal


estreou nos Estados Unidos sem grande expectativa. Apesar
de simpática, a comédia Vanda tinha tudo para cair na vala
comum das produções em língua estrangeira no território
americano, onde o público é tradicionalmente avesso a le-
gendas e afins. Ainda assim, a série causou imenso rebu — e
não exatamente por sua trama sobre uma dona de casa con-
vertida em assaltante de bancos. A plataforma de streaming
Hulu, de propriedade da poderosa Disney, enxergou na atra-
ção uma boa oportunidade de testar na surdina uma nova
ferramenta de dublagem digital. Uma tecnologia, na verda-
de, com alto potencial disruptivo: por meio de um software
de inteligência artificial, a empresa Deepdub AI executou o
trabalho 70% mais rápido que a dublagem convencional por
vozes humanas. Ao clonar com impressionante eficácia os
timbres do atores originais, a experiência passou a mensa-
gem: graças ao avanço tecnológico, esse nicho de mercado
nunca mais será o mesmo.
O uso comercial da IA acendeu o alerta vermelho, e a sé-
rie Vanda se tornou o exemplo mais eloquente de um fenô-
meno que deverá mudar radicalmente o lucrativo negócio
da dublagem — inclusive no mercado brasileiro. Está-se
diante, em resumo, da primeira grande batalha sobre o uso
da inteligência artificial na indústria do entretenimento.
Com potencial de reduzir drasticamente a demanda por du-
bladores humanos, a tecnologia despertou as reações espe-
radas: profissionais da área resolveram botar a boca no

2|5
INÊS 249

DIVULGAÇÃO

VERSÃO NACIONAL Wendel Bezerra:


categoria se mobiliza por empregos

trombone ao redor do globo. O uso da IA foi um dos princi-


pais gatilhos da greve de atores e roteiristas em Hollywood
no ano passado, e a mobilização forçou os estúdios a incluir
cláusulas para proteger os atores de ter suas vozes usadas
digitalmente sem a devida compensação financeira. Os du-
bladores também fizeram seus piquetes, exigindo proteção a
seus empregos num raio de atuação que vai dos filmes e sé-
ries até aos videogames — e tem alcance global.
É uma luta inglória, porém: o uso da IA não só reduzirá
custos, como trará benefícios a quem de fato apita no jogo — o
espectador. Os pontos positivos são inegáveis: a tecnologia
consegue alterar o movimento dos lábios dos atores para sin-

3|5
INÊS 249

cronizar com as palavras ditas em outras línguas, além de co-


piar o timbre de voz dos intérpretes, anunciando uma era de
dublagens extremamente fidedignas — e feitas em escala e
velocidade capazes de dar conta da oferta cada vez mais ex-
pressiva de títulos estrangeiros nas plataformas de streaming.
Para os dubladores, é uma ameaça existencial. Seria pos-
sível, por exemplo, fazer a voz do ator Robert Pattinson em
Batman soar idêntica em português, substituindo o trabalho
do brasileiro Wendel Bezerra, que fez o personagem por
aqui. Dono de um estúdio do ramo, Wendel é conhecido por
emprestar seu gogó a tipos pop como Bob Esponja e Goku,
de Dragon Ball Z. Para ele, embora seja impossível brigar
contra a tecnologia, é necessária a criação de proteções le-
gais. “É assustador o avanço que a IA já atingiu em nosso
mercado”, diz. Os profissionais brasileiros se mobilizam
através do movimento Dublagem Viva — que pressiona os
parlamentares em Brasília a incluir no projeto de lei
1376/2022, em debate no Congresso, garantias contra o uso
“indiscriminado” da inteligência artificial. “A lei de direitos
autorais assegura o pagamento para as obras exibidas nas
mais diferentes mídias, mas a utilização das vozes dos ato-
res e dubladores pela IA não está prevista nela”, explica An-
gela Couto, líder do movimento.
Além de ações práticas para não amargar o ocaso, os du-
bladores lançam mão de um argumento nobre: por mais que
seja eficiente, a IA não consegue captar certas nuances da voz,
nem expressar emoções de que só as cordas vocais humanas

4|5
INÊS 249

DAVID LIVINGSTON/GETTY IMAGES

GREVE Protesto de profissionais


americanos: luta que divide Hollywood

são capazes. Perdem-se, de fato, elementos como o sarcasmo e


os coloquialismos de cada língua. Por enquanto, esse argu-
mento sensibiliza uma aliada de peso: a Netflix, que segue co-
mo uma das maiores contratantes de dubladores do mundo.
Dona de sucessos de audiência em diversas línguas, como Lu-
pin, em francês, e Round 6, em coreano, a plataforma mantém
parceria com 170 estúdios de dublagem, que produzem ver-
sões de seus programas em 34 idiomas. Em breve, no entanto,
será difícil até para a Netflix ignorar o apelo da IA. Na esteira
da Deepdub, várias startups já disputam um naco do negócio
— como a ElevenLabs, que recentemente atingiu status bilio-
nário com sua ferramenta que dubla em 29 idiomas. A batalha
das vozes está apenas começando — e será ruidosa. ƒ

5|5
INÊS 249

CULTURA MÚSICA

CLÁSSICO MINEIRO
Documentário resgata a história do Clube da
Esquina, grupo liderado por Milton Nascimento e Lô
Borges que inovou a MPB nos anos 1970 com sua
alquimia musical ousada FELIPE BRANCO CRUZ

HISTÓRICO Lô Borges (à esq.) e Milton (à dir.): união de


amigos e de grandes músicos que gerou composições eternas

JUVENAL PEREIRA

1|4
INÊS 249

NO PRINCÍPIO dos anos 1970, quando era um jovem músi-


co mineiro de 19 anos, Lô Borges viveu sua primeira grande
aventura: mudou-se para o Rio contra a vontade dos pais,
passando a dividir um apartamento com o amigo Milton
Nascimento — então já uma estrela da MPB. A missão era
ambiciosa: gravar um disco junto não só de Milton, mas de
uma turma numerosa que incluía seu irmão Márcio e os
amigos Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Toninho Horta,
Wagner Tiso, Robertinho Silva e Flávio Venturini. O pro-
cesso de gravação foi caótico. Os músicos chegavam ao estú-
dio carioca em horários diferentes, e cada um completava o
trabalho do outro sem nenhuma ordem. Enquanto isso, Mil-
ton e Lô escreviam as letras e as inseriam depois. A grava-
dora EMI-Odeon não gostou, mas bancou a aventura por
insistência de Milton. Quando o álbum Clube da Esquina
saiu, em 1972, com sua capa prosaica que mostra dois garo-
tos sentados à beira de uma estrada, a crítica torceu o nariz.
Para além do número absurdo de canções, 21 no total (foi,
aliás, o primeiro disco duplo gravado em estúdio no país), a
curiosa mistura de Beatles com bossa nova, pitadas de jazz,
rock progressivo e ritmos latinos e africanos soava descone-
xa demais para os ouvidos brasileiros da época.
Com o passar dos anos, contudo, a impressão que se ti-
nha daquelas composições mudou radicalmente. E como:
a obra hoje é cultuada aqui e no exterior e, em 2022, foi
eleita por críticos e jornalistas como melhor álbum brasi-
leiro de todos os tempos. A diretora Ana Rieper reconta

2|4
INÊS 249

DIVULGAÇÃO

PÉROLA A capa do álbum cultuado de 1972: mistura criativa


de bossa nova, Beatles, jazz e ritmos africanos

essa jornada no documentário Nada Será como Antes — A


Música do Clube da Esquina, em cartaz nos cinemas. Di-
ferentemente de outros inúmeros documentários e livros já
lançados sobre o álbum, Rieper faz um resgate afetivo dos
músicos que participaram da gravação, reunindo-os em
Belo Horizonte para um bate-papo regado a cafezinho, bo-

3|4
INÊS 249

lo de fubá e pãezinhos de queijo. “Fizemos uma construção


poética e respondemos à pergunta: de onde veio a inspira-
ção deles?”, diz ela.
Aos 81 anos, Milton Nascimento é a grande ausência do
filme, contornada por Rieper com entrevistas antigas do
cantor. “Quando íamos gravar o relato dele, a pandemia
inviabilizou”, justifica a diretora, que iniciou a produção
em 2015. Não se trata, portanto, de revelar imagens inédi-
tas ou gravações raras da época, e sim de explorar a musi-
calidade e a fraternidade daquele grupo que ressoa até ho-
je, embora tenha deixado só dois discos (o segundo sairia
seis anos depois). O Clube da Esquina acabou se revelando
inovador não só por sua vibrante alquimia: foi pioneiro na-
quele formato meio solto e improvisado de banda que hoje
se chama de “coletivo”.
No filme, os irmãos Borges ganham protagonismo: Lô e
Márcio contam divertidos causos e mostram pontos da ca-
pital mineira que marcaram sua geração, como a famosa es-
quina onde os músicos se encontravam. Algumas pérolas
também permeiam o doc, como um relato de Duca Leal,
musa inspiradora de Um Girassol da Cor de Seu Cabelo, e
uma entrevista com o baterista Robertinho Silva, que versa
sobre a africanidade da percussão nas canções. Os músicos
revelam ainda como o saxofone de John Coltrane e o trom-
pete de Miles Davis, bem como os hits da fase progressiva
da banda Genesis, influenciaram suas composições. O clás-
sico mineiro estava, sem dúvida, à frente de seu tempo. ƒ

4|4
INÊS 249

WALCYR CARRASCO

FÁBRICA DE ROSTOS
A obsessão em rejuvenescer
criou feições pasteurizadas

BOTO? As opções são muitas: toxina botulínica, preen-


chimento facial, fios de ouro, russos ou búlgaros. Esses úl-
timos são fios de sustentação, mas a questão é que nem to-
dos sustentam, alguns têm a finalidade de dar suporte ao
colágeno, e outros, de preenchimento. “Já me apelidaram
de Enel, de tantos fios que pus no rosto”, confessou um
amigo. “Tenho mais fios que a rede elétrica.” Olhei para
ele. Constatei que ele parecia mais com algumas celebri-
dades que tenho visto por aí do que com ele mesmo. Há
um fio tênue, digo, uma linha tênue que separa os resulta-
dos incríveis sem perder a naturalidade de um rosto pas-
teurizado — todos têm, por exemplo, a mesma boca de
peixe. Ou seria bico de pato? Um amigo ator, na casa dos
20 anos, ganhou uma permuta com um dermatologista
que o convenceu a aplicar Botox. Garantiu que era o mo-
mento certo para prevenir as rugas. Como de graça se
aceita até injeção na testa, ele não fez por menos. Pôs no
rosto todo. Poucos dias depois, não conseguia mexer nem
o nariz. Com muito esforço, franziu a testa em formato de

1|3
INÊS 249

M. Queixou-se ao dermatologista — e dá-lhe mais injeção.


Nem o M conseguiu fazer mais. Como ator, foi terrível.
Para expressão de alegria, arregalava os olhos. De triste-
za, abria a boca... e por aí foi, até passar o efeito, depois de
alguns meses. Harmonização facial está em moda. O pro-
blema é que todos ficam com a mesma cara. No Carnaval,
estive em um camarote da Sapucaí. Olhei em volta e pare-
ciam todos irmãos, filhos do mesmo dermatologista.
Amanheceu, colocaram óculos escuros e ficou ainda mais
difícil distinguir um do outro, porque os sorrisos vinham
da mesma forma, com lentes de contato.
Aquilo que torna alguém único está se perdendo. Os
procedimentos estéticos homogeneízam as pessoas. Rita
Lee dizia que existem duas maneiras de envelhecer. Como
feiticeiras ou como peruas. As feiticeiras usam a idade a
seu favor e se orgulham de cada fase da vida. Já as peruas

“Aquilo que torna


a pessoa única
está se perdendo.
Os procedimentos estéticos
nos homogeneízam”
2|3
INÊS 249

lutam contra o tempo. Mas isso vale também para os ho-


mens. Outro dia um amigo achou que estava ficando care-
ca. Não teve dúvida: plantou um capinzal em cima da ca-
beça. Agora ostenta uma franja que insiste em soprar para
fora do olho. Impossível é disfarçar esses procedimentos:
estão na cara.
Sempre tive curiosidade de saber como meu rosto iria
envelhecer, quais marcas iriam ficar, o que as linhas escri-
tas pela vida iriam contar. Mas nem todo mundo pensa as-
sim. Já tive uma amiga que se viciou em plásticas. Fez uma
atrás da outra, até ficar irreconhecível. Só que não era infe-
liz. Quando olhava no espelho, se achava linda. E ainda me
aconselhava a fazer procedimentos. Achava um absurdo vi-
ver sem eles.
Fui a um profissional que me propôs uma plástica.
Puxar tudo pra cima e rejuvenescer bem uns vinte anos.
Mas para que eu precisaria parecer tão mais jovem? Mi-
nha vida é minha vida, é minha vida. Estou com outras
prioridades. Meu método de não envelhecer é não per-
der a curiosidade. ƒ

3|3
INÊS 249

CULTURA VEJA RECOMENDA


CRAIG BLANKENHORN/HULU

CÔMICO Martin em Only Murders in The Building, seu mais


recente sucesso: reinvenção na maturidade

TELEVISÃO
STEVE! (MARTIN) (disponível na Apple TV+)
Quando tinha apenas 10 anos, Steve Martin começou a traba-
lhar como vendedor de jornais na Disneylândia, em Anah-
eim, Califórnia. Por ali, o garoto descobriu uma vocação para
mágico, antes de se converter completamente à comédia. Ho-
je, aos 78 anos e com um currículo extenso de filmes e séries,
o ator revisita com carinho os altos e baixos de sua carreira
nesse documentário tocante. Com imagens de arquivo raras
pinceladas de sua vida pessoal e muitos depoimentos de ami-
gos famosos, colegas de trabalho e do próprio protagonista, a
série em dois episódios mostra do início difícil como come-
diante de stand-up à parceria com Martin Short na série Only
Murders in The Building, do Star+, seu sucesso mais recente,
enquanto o americano reflete sobre as escolhas que o levaram
a se tornar uma figura carismática de Hollywood.

1|8
INÊS 249

CINEMA
DOMINGO À NOITE (Estreia na quinta-feira 4)
Aos 75 anos, Margot (Marieta Severo) é uma atriz
respeitada. Casada com Antônio (Zé Carlos Machado)
desde a juventude, ela se equilibra entre a atuação e os
cuidados com o marido, um escritor com Alzheimer. Ao
enfrentar dificuldades para gravar uma cena, Margot
descobre que também é portadora da doença, e precisa
correr contra o tempo para finalizar seu último filme —
e, ainda, se reconectar com os filhos. Melancólico e
sensível na medida certa, o longa nacional acompanha o
casal de idosos na tentativa de manter a dignidade no fim
da vida e reconstruir laços enquanto ainda há memórias
a serem cultivadas.
O2 PLAY

DRAMA NACIONAL Marieta e Zé Carlos: um casal diante


da perda da memória

2|8
INÊS 249

DISCO
BRIGHT FUTURE,
de Adrianne Lenker
(disponível nas plataformas de streaming)
Com prestígio na cena musical indie graças à atuação como
cantora e guitarrista da banda Big Thief, a americana
Adrianne Lenker também lapida sua marca própria em car-
reira solo no folk desde 2014. Os efeitos desses dez anos de
diligência ficam claros em Bright Future. Gravado ao vivo, o
disco recupera a rusticidade do gênero e celebra o minima-
lismo na gravação — formato que acentua a nostalgia das le-
tras, que vão da serenata a um amor perdido de Sadness as
a Gift ao lamento sobre o meio ambiente de Donut Seam. ƒ

3|8
INÊS 249

CULTURA OS MAIS VENDIDOS

OS MAIS VENDIDOS
FICÇÃO
1 é assim Que aCaba
Colleen Hoover [3 | 132#] GALERA RECORD

2 a biblioteCa Da meia-noite
Matt Haig [4 | 90#] BERTRAND BRASIL

3 é assim Que Começa


Colleen Hoover [2 | 70] GALERA RECORD

4 o aVesso Da Pele
Jeferson Tenório [10 | 4#] COMPANHIA DAS LETRAS

5 imPeRfeitos
Christina Lauren [0 | 21#] FARO EDITORIAL

6 em agosto nos Vemos


Gabriel García Márquez [0 | 2#] RECORD

7 uma família feliZ


Raphael Montes [0 | 1] COMPANHIA DAS LETRAS

8 tuDo é Rio
Carla Madeira [1 | 78#] RECORD

9 a PaCiente silenCiosa
Alex Michaelides [7 | 31#] RECORD

10 VésPeRa
Carla Madeira [8 | 3#] RECORD

4|8
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NÃO FICÇÃO
1 em busCa De mim
Viola Davis [1 | 72#] BEST SELLER

2 saPiens: uma bReVe HistóRia Da HumaniDaDe


Yuval Noah Harari [2 | 361#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

3 nação DoPamina
Dra. Anna Lembke [0 | 35#] VESTÍGIO

4 o animal soCial
Joshua Aronson [0 | 1] GOYA

5 boX biblioteCa estoiCa: gRanDes


mestRes Vários autores [6 | 33#] CAMELOT

6 o PRínCiPe
Nicolau Maquiavel [0 | 37#] VÁRIAS EDITORAS

7 meDitações
Marco Aurélio [0 | 43#] VÁRIAS EDITORAS

8 mulHeRes Que CoRRem Com os lobos


Clarissa Pinkola Estés [9 | 182#] ROCCO

9 a CaDa Passo
Anderson Birman [0 | 3#] CITADEL

10 o DiáRio De anne fRanK


Anne Frank [10 | 320#] VÁRIAS EDITORAS

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INÊS 249

AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Junior Rostirola [1 | 14#] VÉLOS

2 Hábitos atômiCos
James Clear [3 | 41#] ALTA BOOKS

3 o Homem mais RiCo Da babilônia


George S. Clason [5 | 161#] HARPERCOLLINS BRASIL

4 a PsiCologia finanCeiRa
Morgan Housel [0 | 27#] HARPERCOLLINS BRASIL

5 os segReDos Da mente milionáRia


T. Harv Eker [8 | 452#] SEXTANTE

6 essenCialismo
Greg McKeown [2 | 36#] SEXTANTE/GMT

7 alma feRiDa, alma CuRaDa


Pe. Reginaldo Manzotti [0 | 3#] PETRA

8 mais esPeRto Que o Diabo


Napoleon Hill [0 | 241#] CITADEL

9 o liVRo Que VoCê gostaRia Que seus Pais


tiVessem liDo Philippa Perry [0 | 4#] FONTANAR

10 inoVe PaRa seR úniCo


Johnathan Alves [0 | 7#] GENTE

6|8
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INFANTOJUVENIL
1 o PeQueno PRínCiPe
Antoine de Saint-Exupéry [3 | 411#] VÁRIAS EDITORAS

2 melHoR Do Que nos filmes


Lynn Painter [0 | 12#] INTRÍNSECA

3 Kit HoPeless
Colleen Hoover [2 | 8#] GALERA RECORD

4 noVembRo, 9
Colleen Hoover [4 | 45#] GALERA RECORD

5 emoCionáRio
Cristina Núñez Pereira [10 | 9#] SEXTANTE

6 HaRRY PotteR e a PeDRa filosofal


J.K. Rowling [0 | 419#] ROCCO

7 amênDoas
Won-pyung Sohn [6 | 20#] ROCCO

8 CoRaline
Neil Gaiman [0 | 70#] Intrínseca

9 as aVentuRas De miKe 4 — a oRigem De Robson


Gabriel Dearo e Manu Digilio [0 | 10#] OUTRO PLANETA

10 DiáRio De um banana
Jeff Kinney [0 | 24#] VR

7|8
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[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas

Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita:
Real Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte:
Disal, Jenipapo, Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos,
Betim: Leitura, Blumenau: Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS,
Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas:
Disal, Leitura, Livraria da Vila, Loyola, Senhor Livreiro, Vozes, Campo Grande:
Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim, Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas:
Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru: Leitura, Cascavel: A Página,
Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro,
Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal, Evangelizar,
Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Catarinense, Fortaleza:
Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Frederico Westphalen: Vitrola,
Garopaba: Livraria Navegar, Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS, Governador Valadares:
Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos:
Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Ipatinga: Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa
Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Joinville: A Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura,
Vozes, Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins: Koinonia, Londrina: A Página, Curitiba,
Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura, Livro Presente, Maringá: Curitiba,
Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar, Leitura, Natal: Leitura, Niterói: Blooks, Palmas:
Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis: Vozes, Poços de Caldas:
Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron, Disal, Leitura,
Macun Livraria e Café, Mania de Ler, Santos, SBS, Taverna, Porto Velho: Leitura,
Recife: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila, Rio Claro:
Livruz, Rio de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Leonardo da Vinci,
Odontomedi, SBS, Rio Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura,
SBS, Santa Maria: Santos, Santana de Parnaíba: Leitura, Santo André: Disal, Leitura,
Santos: Loyola, São Bernardo do Campo: Leitura, São Caetano do Sul: Disal, Livraria da
Vila, São João de Meriti: Leitura, São José: A Página, Curitiba, São José do Rio Preto:
Leitura, São José dos Campos: Amo Ler, Curitiba, Leitura, São José dos Pinhais: Curitiba,
São Luís: Hélio Books, Leitura,
São Paulo: A Página, B307, Círculo, Cult Café Livro Música, Curitiba, Disal, Dois
Pontos, Drummond, Essência, HiperLivros, Leitura, Livraria
da Tarde, Livraria da Vila, Loyola, Megafauna, Nobel Brooklin, Santuário, SBS,

8|8
INÊS 249

JOSÉ CASADO

SIMBIOSE NEFASTA
MANHÃ DE OUTONO, sete anos atrás. Cinco homens
sentaram-se para almoçar no 16º andar da sede do Tribunal
de Contas, na Praça da República, recanto de ladroagens no
Centro do Rio. A sexta cadeira ficou vaga, notaram os gar-
çons que tudo veem, tudo sabem e, quase sempre, nada con-
tam. A ausência de José Mauricio Nolasco agravou a tensão
à mesa, mas deu mais espaço para Domingos Brazão, Mar-
co Antonio Alencar, Aloysio Neves, José Gomes Graciosa e
Jonas Lopes de Carvalho Jr.
Dono de dois terços dos votos no TCE, o quinteto era sus-
peito de corrupção em contratos com empreiteiras e forne-
cedores de comida aos presídios do estado do Rio. “Quinto
do Ouro”, anunciava o título do inquérito, numa irônica re-
missão à parte (20%) cobrada pela Coroa portuguesa sobre
a mineração de ouro no Brasil Colônia.
Carvalho comentou sobre a apreensão de Nolasco, o au-
sente ex-presidente do tribunal:
— Ele pode acabar fazendo uma delação...
O conselheiro Brazão retrucou, fria e pausadamente:
— Se fizer isso, morre. Começo por um neto, depois um
filho. Faço ele sofrer muito, e, no fim, ele morre.

1|4
INÊS 249

Carvalho entendeu o sentido da palavra “medo” — con-


tou em delação premiada. O processo Quinto do Ouro agora
reluz em “sólidos elementos de autoria e materialidade”, in-
forma o Superior Tribunal de Justiça.
Semana passada, Domingos Brazão foi preso com o ir-
mão João Francisco (“Chiquinho”), ex-vereador e deputado
federal. São acusados de alugar ex-policiais militares para
matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista Ander-
son Gomes. E, também, de pagar previamente (300 000
reais) ao então chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, para
acobertá-los nas investigações. Eles negam.
O clã Brazão é caso exemplar de riqueza construída na
ponte entre dois mundos, o do crime e o da política. Ressal-
vadas as peculiaridades do Rio, enclave portuário brasileiro
onde mais vicejam grupos armados sob patrocínio estatal, o
caso resume o avanço do banditismo amparado por políti-
cos beneficiários.
Domingos, 59 anos, é o chefe. Começou como vereador
pela Zona Oeste do Rio. Cresceu em parcerias eleitorais com
personagens destacados na política fluminense, como o go-
vernador Cláudio Castro, o prefeito Eduardo Paes, o ex-go-
vernador Sérgio Cabral Filho, o ex-presidente da Câmara
dos Deputados Eduardo Cunha, o ex-presidente Jair Bolso-
naro e seu filho senador, Flávio. Depois de cinco mandatos
na Assembleia, obteve um cargo vitalício no órgão de fisca-
lização e controle das contas do governo e de prefeituras. Lá
continua, com salário de 48 000 reais e sessenta dias de fé-

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INÊS 249

“O clã Brazão é caso


exemplar de riqueza
construída entre o
crime e a política”
rias por ano, além de mordomias. Nesse período, elegeu os
irmãos: “Chiquinho” é deputado federal e Manoel Inácio
(“Pedro”) é estadual.
Em três décadas, o ex-balconista de lanchonete em Jaca-
repaguá se tornou uma das maiores fortunas da política ca-
rioca. Por enquanto, a polícia só mapeou parte dos seus ne-
gócios em obscuras associações com máfias de jogos e milí-
cias policiais. Brazão já deu pistas sobre a evolução da sua
riqueza: no espaço de oito anos (2002-2010) declarou cres-
cimento patrimonial de 2 300%, mas “esqueceu” proprieda-
des, empresas e até um Porsche.
A prioridade do clã Brazão são as decisões e as legisla-
ções municipais para flexibilizar a regularização fundiária
na região metropolitana do Rio. Foi um dos motivos deter-
minantes, entende a polícia, para o assassinato da vereadora
da oposição Marielle Franco. Seria, também, uma das ra-
zões da associação com as famílias Abraão David, em Niló-
polis, e Cozzolino, em Magé. A cada grilagem surge um no-

3|4
INÊS 249

vo condomínio irregular, fonte de lucros em imóveis e servi-


ços (da luz ao gatonet). E, principalmente, nasce um “curral”
eleitoral, onde milícias controlam da propaganda ao voto
em candidatos escolhidos.
A simbiose de banditismo e política avança em vários es-
tados, no governo, no Judiciário, no Ministério Público e no
Legislativo. A tintura de anarquia institucional deixa tudo
mais visível no Rio. Nos últimos dezoito meses, por exem-
plo, dois ex-chefes da polícia fluminense foram presos como
agentes duplos, acusados de servir à lei e ao crime. Allan
Turnowski, em 2022, tentava se eleger deputado federal pe-
la fração bolsonarista do Partido Liberal. Rivaldo Barbosa,
na semana passada, dava aulas de direito criminal.
Se está ruim, pode piorar. A Assembleia do Rio mudou a
Lei Orgânica da Polícia e, agora, deputados estaduais têm
poder real sobre a estrutura policial. Como prevê a “lei de
Murphy”, se alguma coisa pode dar errado, vai dar. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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