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O CONVITE PARA O MEU FUTURO

Era um convite das antigas que mudaria minha vida.


Foi depois daquela vitória no campeonato de meio-pesados que chegou o bilhete na minha casa
para visitar o Centro Tecnológico de Melhoramentos.
Estava ansioso para esse momento, queria adentrar na categoria dos meio-cibernéticos, mas
apenas com a aprovação do CTM, e acreditava que seria ali a minha chance.
Já estava cedo na porta do local, poderia dizer que abriria o prédio com o zelador, de tanta emoção.
Nenhum título me fez agir daquela forma,
As oito horas em ponto um homem chegou até mim, seu sorriso me cativou de tal forma que me
sentia em casa e logo fui abraçando-o.
— Seja bem-vindo, Miguel, em nome da CTM agradeço por aceitar nosso humilde chamado e
espero que essa visita seja um imenso passo nas nossas vidas.
Não consegui dizer nada, apenas aceitei suas palavras e o acompanhei para dentro do prédio.
Era muito comum um choque térmico ao passar pela porta de locais como aquele, desde as últimas
pandemias, todos ficamos mais neuróticos com a esterilização, mas era forte demais.
— Me desculpe por essa recepção modesta, mas não consegui mobilizar uma grande quantidade
de pessoas para te acompanhar, estamos no meio da semana, você me entende, não é?
Obviamente não queria atrapalhar o dia a dia de ninguém, só tinha receio de ser mais uma visita
casual do que uma oportunidade de entrar na liga deles, eu lutava até o último round, e aqui não seria
diferente.
— Claro — respondi — chegando mais perto do horário do almoço teremos uma brecha para
encontrar com os outros. — continuei dando uma indireta bem direta.
— Com certeza, tempo é algo que não falta aqui. Às vezes em excesso, às vezes falta, mas é uma
moeda preciosa. — riu enquanto estendia a mão mostrando o caminho.
A recepção estava relativamente vazia, mas as primeiras horas do dia não deveria ser tão
movimentado mesmo, a curiosidade bateu forte, mas minha educação me fez engolir a curiosidade.
— Mas me diga Miguel, a quanto tempo está na liga profissional de boxe biológico? — iniciou a
conversa quebrando o silêncio.
— Acho que pelo menos uns cinco anos, acabei de conquistar o bicampeonato, por isso estava
pensando em mudar de categoria.
Queria mostrar minhas verdadeiras intenções do aceite da minha visita, não sou bom em ler
pessoas fora do ringue, precisava de mais honestidade do meu guia.
— Desculpe, qual é seu nome? — continuei — estava tão emocionado quando cheguei que não
perguntei.
— Sim, claro, eu também estava ansioso para a sua chegada que esqueci de me apresentar,
Felipe, sou gerente geral da ala oeste. Que por acaso é onde estamos indo agora.
— Nossa, um gerente geral, não sabia que seria recebido por alguém dessa importância.
— Pare, eu que fiz questão de recebê-lo, normalmente eu não saio do meu setor por qualquer
coisa, mas você não é qualquer coisa.
Tinha certeza que o primeiro round já tinha ganho, não por nocaute, mas sabia que no ritmo da
conversa poderia nocautear até o final do embate.
Continuamos conversando sobre minha vida de atleta durante todo o caminho, respondia às
perguntas de forma bem trivial, mas de tempos em tempos precisava responder de forma mais técnica,
realmente Felipe era um entusiasta do boxe, não tinha esse tipo de conversa com qualquer fã.
— Minha equipe fica pronta só às dez da manhã, ainda temos tempo, gostaria de ir à área esportiva
antes de mostrar a cereja do bolo?
Com certeza aqui era o nocaute que eu precisava.
— Claro, depois de você.
Andamos por mais alguns minutos por outro corredor, mas esse era feito apenas de um vidro
grosso, mas extremamente limpo. Conseguia ver tudo que estava através dele. Era um jardim muito bonito,
se não tivesse reparado no anel de casamento de Felipe, até pensaria que estava me flertando.
— Muito bonito esse jardim externo, estranho imaginar algo tão belo e harmonioso depois de tantos
anos vivendo rodeado de doença e dor.
— Sim, realmente. Esse jardim é algo muito importante para todos nós desse setor. Dizem que a
beleza pode acalmar as feras mais selvagens, e você sabe qual seria Miguel? — perguntou enquanto parou
encarando o esplêndido vitral.
Já lutei com homens fortes, alguns tão sanguinários que duvido dizer que um dia já tiveram mãe,
mas ser a fera mais selvagem?
— A doença? — arrisquei. Queria ganhar mais pontos com ele.
— Para nós da CTM, a doença é um estado passageiro de uma pessoa, toda doença pode ser
curada, aquelas que não são, levam a óbito e acabou. Mas o sofrimento é algo que pode durar para
sempre, e é por isso que construímos esse jardim, para espantar o sofrimento.
Essa é a primeira vez desde que chegamos que Felipe baixava o volume e o tom de voz, a fala era
pesada e cheia de pesares, mas porque entramos nesse assunto tão repentinamente? Seria uma forma de
desabafo?
Achei melhor não interromper seu momento, se quisesse algo, teria que dançar a dança dele, mas
fazer ao máximo que fosse no meu ritmo
— Bem… continuemos. Você vai adorar o centro de esportes. Por acaso já ouviu falar da Liga
Cibernética? — continuou enquanto se virava e continuava a me guiar.
Sua voz voltou ao normal e o mais importante de tudo, entrou no assunto que queria que entrasse.
— Claro, sei que é uma categoria mais disputada e cara, pois todos precisam de implantes feitos
por vocês, além de ter a certificação que apenas vocês podem dar. — respondi me esforçando para manter
a seriedade mesmo vibrando por dentro.
— Exatamente, fico feliz em saber que está ciente dos detalhes mais importantes e nisso pergunto
se você sabe o motivo de termos chamado você?
Minha cabeça estava a mil, seria um sonho a ser realizado, mas se fosse entrar para essa equipe,
não posso me portar como qualquer fã inexperiente.
— Na verdade, não sei — menti — sempre quis conhecer as instalações, mas como a fila sempre
era enorme, fiquei postergando a minha vinda, apenas aproveitei a ocasião e aceitei o convite.
— Entendi, então não irei estragar a surpresa até o momento correto. Chegamos, quer fazer as
honras?
Estávamos diante de uma morte de metal muito pesada, até então o caminho era suave e bem
convidativo, muito aberto e claro, essa porta me deixava um pouco desconfortável.
— O que exatamente preciso fazer?
Estava realmente com dúvidas de como prosseguir, teria que abri-la de alguma forma?
— Ah, sim, que cabeça a minha. Se você reparar, existem algumas linhas que vão aumentando de
tamanho até a totalidade da porta.
Foi quando Felipe me alertou disso que notei esse detalhe, não era tão pequeno assim, mas estava
mais focado na conversa do que no caminho em si.
— Cada segmento vai aumentando o peso e no final, para abrir a porta inteira precisa empurrar a
soma de todos, se quiser a cereja do bolo, precisa empurrar a porta. — continuou
Estava confiante de que conseguiria abrir, eu precisava abrir. Me coloquei diante do primeiro espaço
e comecei a empurrar, a sentir movimentando e logo percebi estar tocando em algo atrás, dificultando o
trabalho.
As duas primeiras camadas não cheguei a suar, mas as duas seguintes já complicam.
Percebi que Felipe tinha dado alguns passos para trás, sentia seu olhar me analisando. Com
certeza o teste havia começado, e se falhasse no primeiro desafio, meus sonhos iriam por água abaixo.
Respirei fundo e avancei com tudo que poderia avançar e depois de muito esforço, com meus
músculos dos braços e pernas começando a ceder, senti que a última porta estava se abrindo, algo que me
motivou a continuar.
Quando a abertura chega ao tamanho de uma pessoa conseguir passar, Felipe tocou em meu
ombro dizendo ser o suficiente.
Estava orgulhoso de mim mesmo, nada iria me fazer desistir. O fato de ter conversado sobre
sofrimento alguns minutos atrás deveria ser uma indireta para que eu não desistisse dos desafios.
Sentia-me motivado.
A porta fechou numa tal força que pude sentir o vento batendo em minhas costas, não queria voltar
atrás, era dali para frente.
— Temos uma exigência alta e analisamos todos os fatores com a maior quantidade de
perspectivas possíveis, temos altas esperanças nessa oportunidade.
Felipe sorria para mim de maneira inspiradora, queria acreditar nas suas palavras, mas seu olhar
fixo me deu um pouco de estranhamento.
Ele se virou e continuamos a caminhar pelo corredor que voltava a ser mais receptivo.
— Quantas pessoas já passaram por esse corredor? — retomei a conversa de forma fiada.
— Por esse? Até que várias, claro que depende o que você quer dizer com simplesmente passaram
por aqui. Se for algo como você, convidados, poucos, como disse, somos bem exigentes, mas de certa
forma muitas outras passam por aqui.
Sua resposta me deixou confuso, passam ou não passam? Existem pessoas que não são
convidadas e que mesmo assim caminham por esse corredor?
— Vocês possuem alguma agenda de contratação? — falei pausadamente, queria retomar meu
fôlego o mais cedo possível.
— Não exatamente, temos nossa agenda de eventos, mas a contratação vai mais dos olheiros do
que de nós aqui dentro. A rotatividade de estagiários e temporários é enorme, diga-se de passagem.
Felipe parou, olhos dentro dos meus olhos, respirou fundo e perguntou:
— Está com pressa, Miguel?
— Como assim?
— Parece um tanto ansioso.
— A porta era pesada, apenas isso. — dei um sorriso sem graça.
— Isso é verdade, mas não para alguém como você. Gosta de nadar?
— Em tempos quentes e pós-treino eu costumo cair…
Antes mesmo de completar minha frase despenquei e fui parado por um fundo com água.
— Apenas dois minutos, quando cobrir o tanque todo, serão dois minutos, te vejo na outra sala,
Miguel.
Foi Felipe terminar de me avisar que a portinhola se fecha ficando uma escuridão total.
Conseguia ficar de pé e a água chegava na altura dos meus joelhos.
Sentia jatos de água empurrando-a para cima e apenas ouvia o movimento de água.
Ela era fria, não diria congelante, mas com toda certeza não era agradável, como se estar fechado
em um cubículo enchendo de água fosse algo agradável.
Meu coração batia forte e a cada segundo a água subia mais, tentei ao máximo não me desesperar,
não conseguiria aguentar dois minutos debaixo d'água com essa taquicardia.
Chegando ao nível do peito senti a água fazendo movimentos estranhos, não era como se apenas
subisse, tinha algo nadando nela.
Tentei me acalmar, não faria sentido, o espaço era pequeno demais para ter alguma coisa e não
sentir nada material, apenas ondulações estranhas.
Respirava fundo e forçava uma frequência mais controlada, os dois minutos começariam quando a
água batesse no teto.
Como estava numa escuridão total, decidi fechar meus olhos para focar todos os meus sentidos no
meu corpo, isso ajudou a baixar minha frequência cardíaca, mas sabia que ainda estava alta demais para
dois minutos submerso.
Logo a água bateu no teto e sabia que o relógio havia disparado, agora é aguentar dois minutos,
não poderia falhar no segundo teste, era apenas o segundo teste.
Não tinha a percepção temporal de quanto teria passado, mas estava confiante. Soltava e prendia o
ar de forma devagar para trabalhar melhor a quantidade de oxigênio de gás carbônico na minha corrente
sanguínea.
Mas apesar disso, o ar acabou nos meus pulmões, agora seria na base da determinação.
Cada segundo ficava mais e mais difícil, meu peito ardia, minha garganta estava pressionada.
Tencionava meus braços e pernas para que não fizesse movimento algum, qualquer perda de
oxigênio poderia ser um fracasso.
O silêncio, a escuridão, a falta de ar, tudo me remetia a palavra sofrimento que Felipe tinha dito
minutos atrás.
Meus dedos já estavam dormente e minha cabeça começou a ficar zoa, sabia que a qualquer
instante algum movimento involuntário faria eu engolir água.
Meus pés começaram a se contorcer e meu corpo tomou forma de um feto na água, sabia que em
instantes iria me afogar.
Com certeza iria fracassar
Com certeza iria fracassar
Com certeza iria…
Meu último pensamento foi interrompido quando fui ejetado para fora do tanque e assim pude
engolir a maior quantidade de ar que nunca tinha feito.
Não poderia ver com os olhos de Felipe, mas estava em um estado deplorável, me sentia como um
feto abortado sendo solto de qualquer jeito no seu último suspiro.
Entre tosses e hiperventilação escutei a voz de Felipe.
— Ótimo Miguel, realmente não erramos em convidá-lo. Estou com altas esperanças em você.
Precisei de alguns minutos para me recompor, aquela experiência de quase morte não é algo que
tinha experiências para estar acostumado. Já fui nocauteado em lutas profissionais e amadoras, mas nada
se comparava a um quase afogamento.
De canto de olho percebi Felipe ficando de cócoras ao meu lado.
— Por isso que temos um jardim tão belo, passar por provações e sofrimentos quebra o coração e a
mente de várias pessoas, tome o tempo que precisar, tempo, temos sobrando.
Fechei meus olhos e entrei num sono, não sei quanto tempo fiquei deitado em posição fetal aos pés
dele, mas quando acordei estava lá, olhando para mim, com o mesmo sorriso de quando cheguei.
Ofereceu a mão para me ajudar a levantar, algo que aceitei de prontidão.
Demorou um tempo para entender que não estávamos mais dentro do prédio, me recompus por
inteiro e exclamei:
— Dois minutos é muito tempo quando não estamos no escuro e sem ar.
— Isso é verdade, mas você ficou quase três, foi por muito pouco que chegou.
Fiquei perplexo, se o teste era dois minutos, por que fiquei mais tempo? Era para me afogar?
— Pela sua reação, acho melhor explicar — continuou — dois minutos é o tempo mínimo, mas
como vimos que seus sinais vitais estavam ainda controláveis, decidimos ver até quanto iria. Não deixamos
você morrer.
Mesmo com a explicação dele, me sentia traído, se soubesse, poderia ter sido diferente.
— Sei que se sente traído, isso é normal. Mas para compensar, vou já avisar, faremos apenas mais
dois testes e vou deixarei mais bem explicados todos os parâmetros, tudo bem assim?
Estava ainda com dores físicas do último teste, mas se falasse o que estava sentindo naquele
momento, perderia a chance de ingressar na liga, portanto apenas dei que sim com a cabeça.
Enquanto caminhávamos para a terceira etapa do teste me sentia quente e quando olhei em volta
parecia estarmos em uma enorme estufa e com uma nova passada de olho, percebi estarmos no jardim,
conseguia avistar todo o caminho que fizemos até então.
Por algum motivo que desconheço, abri meus braços, fechei meus olhos e comecei a rodar. Seria
para me aquecer? Seria uma forma de agradecer por sair do tanque? Não sei explicar, apenas fiz.
Depois de algumas voltas e quase completamente seco, abri meus olhos e de frente com Felipe que
me olhava feliz.
— Agradável, não? Você não é o primeiro que reage dessa forma, na verdade, é algo bem comum,
às vezes me pego fazendo o mesmo. Impressionante como apenas pouco calor já nos faz querer abraçar o
mundo.
Dei alguns passos para trás enquanto abaixava meus braços, Felipe estava estranhamento
filosófico desde que passamos pelo jardim pela primeira vez.
— Já estou seco — adiantei — podemos ir para o próximo, por favor?
— Claro, e é logo ali. — respondeu apontando para uma estrutura com um eixo central.
— Aquilo seria…?
— Exatamente, gerador de força G.
Não quis perguntar, apenas aceitei, não queria perder mais tempo.
— Por favor, sente-se com calma nessa cadeira e amarre seu cinto, estarei dando alguns comandos
e daqui vamos para o último teste, perfeito?
— Quanto de força G terei que aguentar? — perguntei enquanto me sentava e me preparava.
— Uma resposta honesta, vai depender de você, vamos subir a força e entender o seu limite. Mas
pararemos antes que desmaie, então apenas dê o seu melhor.
— Sem surpresas?
— Sem surpresas.
Felipe fechou a porta. Novamente a solidão e o abandono chegaram a mim. Sabia que estaria
sendo assessorado, mas minha confiança nas palavras dele eram quase nulas.
— Miguel, me escuta bem?
— Sim, perfeitamente.
— Ótimo. A sua frente tem um suporte para as mãos, quando der o sinal segure com as duas mãos
o máximo de tempo que puder, okay? Siga as instruções que dará tudo certo. Começaremos com 2 G.
A máquina começou a ativar e sentia uma pressão forte porém suportável.
— Tudo certo, Miguel?
— Sim.
— Segure o suporte e respire normalmente.
— Perfeitamente.
— Como se sente?
— Ótimo.
Senti a pressão baixando e alguns segundos após a normalidade Felipe retoma:
— Vamos para 5 G, perfeito?
— Não seria um passo muito grande de dois para cinco?
— Gostaria de abortar?
— Não.
— Então vamos para cinco.
A máquina ativou e a pressão parecia muito mais que apenas duas vezes e meia.
— Respirei fundo — disse Felipe — e tente colocar as mãos no suporte
Respirava com dificuldade, meu peito doía. Devia ser a soma do quase afogamento mais a pressão
da força G. Meus braços estavam pesados e com muita determinação coloquei as mãos no suporte.
— Segure por mais alguns segundos e já voltaremos para a normalidade.
Tinha medo que os segundos fossem como no tanque, mas felizmente foi como prometido.
— Miguel, entraremos a 9 G, passando por essa força encerraremos o teste, perfeito.
— Perfeito.
A máquina foi acionada e a pressão foi aumentando rapidamente, sentia meu corpo sendo jogado
para trás com a força suficiente que poderia quebrar meus ossos. Poderia dizer que conseguia ouvir alguns
deles se quebrando.
Minha respiração estava praticamente impossível de realizar, não tinha força para empurrar meu
diafragma ou qualquer outro músculo.
— Respire Miguel, respire.
Fiz um esforço violento para retirar os cem por cento das minhas últimas forças, apenas naquela
respiração.
Cada três segundos tinha força suficiente para dar uma respirada breve, e isso durou infinitamente,
pois depois de algumas vezes minha mente escureceu.
Não sei quanto tempo fiquei desacordado, só sei que fui desperto por Felipe.
Com a pouca força que me restava disse:
— Prometeu que não iria desmaiar.
— Foi rápido demais, mas encerramos no mesmo instante que fechou os olhos.
— Quer dizer que fracassei?
— Felizmente, não.
Não consegui segurar o sorriso, não sei se era por satisfação ou por mimetismo de ver Felipe
fazendo o mesmo.
Sai da máquina meio cambaleando e deitei no gramado quentinho.
Que situação mais estranha estava passando naquele dia, mas sabia que seria recompensado com
um futuro maravilhoso, e apenas faltava mais um último teste.
— Preparado Miguel? Podemos ir?
— Claro — respondi me levantando sem muita vontade, ficaria deitado lá para sempre se pudesse.
Voltamos para dentro das instalações.
— O último teste será o mais fácil de todos, na verdade. Claro, para alguém que passou pelos
primeiros. Vamos fazer um passeio pelo Museu do Tempo.
— O último teste é uma prova escrita? — perguntei dando um sorriso cansado e sem graça
— Não, não faria algo desse tipo com você, que antiquado — respondeu com um sorriso que me
parecia sincero.
O caminho mais curto para a última etapa passa pelo museu, então vou aproveitar a ocasião e
contar para você um pouco da história da ciência.
Poucos minutos de caminhada foi o suficiente para ver uma grande parede de vidro e do outro lado
a entrada. Muitas pessoas entravam e saiam, pelo horário já deveria estar começando o expediente normal
de todos.
— Demos a volta no prédio?
— Quase isso, passamos por dentro dele quando entramos na estufa.
— As pessoas nos veem? Parece que estamos invisíveis.
— Não, é um vidro refletivo, nós conseguimos, mas eles não. Serve mais por motivos de segurança
mesmo.
— Quer um pouco de água? — continuou enquanto retirava um par de garrafas d'água do jaleco.
— Por favor, tudo isso me deixou totalmente desidratado, apesar de ter ficado naquele tanque.
Felipe virou a garrafa de uma só vez, e achei ideal fazer o mesmo, descartamos as garrafas em
uma lixeira próxima e entramos no museu.
— A viagem no tempo é algo que todos sonhamos. — começou enquanto caminhávamos
lentamente pela exposição. — Mas a evolução da ciência não anda na mesma velocidade que os desejos
humanos.
Enquanto ele falava via ao lado bonecos de cera extremamente realistas mostrando diversas
épocas da história.
— A primeira parte da história que me faz mal foi na segunda guerra, quando usaram pessoas para
experimentos macabros.
Felipe caminhava sempre olhando para frente, e contava tão perfeitamente sincronizado com os
moldes ao lado, parecia uma gravação.
Estranhei o gosto do museólogo em escolher bem as figuras das pessoas que foram experimentos
para expor. Seria um passeio para adultos apenas?
— Outro momento terrível da nossa história foi quando tivemos o surto de Inwazja, se não fossem
os esforços coletivos e as vidas perdidas, o que seria de nós hoje?
Nesse momento tampei um pedaço do meu campo de visão, todos aqueles humanos deformados
pela doença e pelos tratamentos experimentais, por que alguém colocaria isso numa exposição?
— Mas o sonho de viajar no tempo, era algo que toda a comunidade científica desejava, talvez por
querer fugir desse presente, seja para mudar o passado, ou até mesmo por querer reescrever o futuro.
Trombei com Felipe quando ele parou de falar.
— Miguel, você sabe o que acontece quando humanos tentam quebrar a barreira de tempo e
espaço?
— Nunca me perguntei, na verdade.
— Então tire a mão do rosto e olhe isso.
Olhei uma parede de vidro com vários bonecos congelados espalhados por todo o espaço.
Alguns pareciam fetos velhos, outras quimeras atacadas pelo tempo em formas diferentes. Quanto
mais olhava, mais sentia pena daqueles bonecos que ficariam expostos para sempre para qualquer um ver.
E só de imaginar que um dia cobaias humanas passaram por isso me deram calafrios.
— Porque me trouxe aqui? — perguntei irritado — depois de todo estresse físico que passei, terei
que passar por um estresse emocional?
— Claro que não, você me disse para ser honesto, por isso achei que seria honestidade mostrar
tudo.
Essas palavras me deixaram confuso, seria um enigma que precisaria resolver como última prova?
Estava tão cansado de tudo que não conseguia pensar direito.
Não tive muito tempo para reagir, pois Felipe continuou a caminhar, até que chegamos a frente de
uma réplica realista do portal temporal, sabia, pois com frequência aparecia nos televisores de plasma e
outdoors.
— Você já se perguntou sobre seu futuro, Miguel? E como nós podemos te oferecer?
— Honestamente, acredito que depois de tudo, poderei entrar na liga cibernética, correto?
— Errado, não está, mas não necessariamente correto.
O silêncio depois da última fala de Felipe me fez virar para ele com um olhar de reprovação e logo
perguntei com um tom mais agressivo:
— Por que me chamaram?
— Você pediu para ser honesto com você, então achei que seria honesto mostrar o que o futuro te
aguarda?
— Como assim?
— Lhe vejo daqui a dois anos, senhor Mendonça. Te espero na sala de recaptação.
Sem poder reagir sou puxado para dentro da máquina que pensava ser uma réplica, e antes de
Felipe sumir na minha frente, ele me disse algo que mudaria meu futuro:
— Obrigado por passar nos testes, as últimas cobaias não deram muito certo, mas não se
preocupe, nos veremos daqui a dois anos. E se tudo der errado, te colocarei junto dos outros nas
exposição. Seja bem vindo ao futuro, senhor Miguel Mendonça.

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