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Índice
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
As fontes do neo-puritanismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Auto-retidão no poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
A reunificação do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
O desejo é intocável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
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Introdução
Sempre considerei a moralidade como uma coisa suspeita.
Basta seguir as notícias para ver o lado do Bem a recuperar terreno a cada
semana. Seja na política ou nas artes, os novos puritanos estão prontos a
submeter os seus inimigos à injunção de julgamento moral. Em março de
2020, era um político francês, Benjamin Griveaux, que era o alvo. Após um
escândalo estrondoso, o candidato a prefeito de Paris teve de abandonar a
sua candidatura. Isso se deveu a vídeos, publicados no site de um ativista,
Piotr Pavlenski, intitulado «Pornopolítica». Um ato militante, apresentado
como uma resistência à «hipocrisia» do candidato que, segundo o ativista,
teria «usado sua família se apresentando como um ícone para todos os pais
e maridos de Paris».
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politicamente correcto. Afinal, o que nos importa que um homem pegue um
vídeo nu de si mesmo e o envie a uma jovem mulher? Parece que o escânda-
lo vem de outro lugar, de um raciocínio implícito que poderíamos resumir
da seguinte forma: como o homem é livre, deve controlar seu desejo, senão
é vicioso; pior ainda, se o homem experimenta o desejo, é porque a própria
natureza é defeituosa, imperfeita, e deve ser combatida. Pergunto-me como
é que a nossa sociedade ainda pode aceitar este silogismo enganador.
Devo dizer que a ideia de uma sociedade tão hipócrita sempre me assustou.
Como você pode suportar quando pessoas hipócritas lincham um homem
na praça pública por esconder a existência de sua amante? É hora de reagir
ao que poderíamos chamar de retorno da ordem moral. Pois esta não é a
primeira vez que um homem é atacado por assuntos relacionados com a
sua vida privada. Às vezes penso no que o grande campeão de golfe Ti-
ger Woods, que mudou a vida de milhares de jovens americanos, teve de
suportar em 2009, quando a lista de seus casos com várias mulheres - in-
cluindo uma modelo, uma garçonete e um pin-up de revista - foi revelada
na imprensa. Eu ainda me lembro da loucura que tomou conta dos Estados
Unidos. Durante alguns meses, o golfista foi escolhido por toda a América,
e tudo isto, simplesmente por trair a sua esposa - como se ele, o homem de
família ideal, o desportista modelo, não pudesse escapar de um apartamen-
to, aborrecido e, em suma, de uma vida conjugal miserável!
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palavras de Nietzsche, de uma «negação da vida». Isto deve ficar claro para
aqueles pregadores da virtude que sonham em cortar a humanidade dessa
parte essencial do desejo. Esquecem que o homem é feito de paixões diver-
sas e contraditórias. O mundo que eles gostariam de criar, pelo contrário,
é uniforme.
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A minha crítica à moralidade actual não significa necessariamente a eli-
minação dos padrões morais das sociedades tradicionais, impostos pelo
Livro Sagrado e pela Igreja. O que eu quero é que eles fiquem em segundo
plano, isto é, que não se intrometam na esfera pública, a da liberdade de ex-
pressão, nem invadam a esfera íntima, que diz respeito ao comportamento
sexual. As nossas sociedades defendem, em teoria, um ambiente secular e
livre que devemos preservar. Não estou a fazer mais nada ao desafiar esta
moralidade.
Todos os povos têm tido regras semelhantes para preservar a sua existência
face a ameaças externas. E não é minha intenção dizer que eles não preci-
sariam deles. Eu não sou ingénuo.
Embora Deus ou qualquer outro absoluto não deva mais ter qualquer auto-
ridade sobre a maneira como os ocidentais vivem, eu vejo, paradoxalmen-
te, o retorno de uma moralidade que constrange. Misturando ideologia e
conformidade moral, este neo-puritanismo declarou guerra à liberdade de
expressão, à diversidade de opiniões e à emancipação sexual.
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I - Moralidade social,
moralidade entorpecida
De acordo com Nietzsche, a moralidade social é supérflua e superficial, na
medida em que esconde a degeneração do homem. Está enraizada no mo-
noteísmo, essa doutrina antinatural que reprime as paixões e os desejos.
Hoje, a moralidade faz parte de novos dogmas, de novos puritanismos de
inspiração esquerdista e exerce um poder constrangedor sobre os indiví-
duos, nomeadamente através do corpo e da liberdade de expressão. Ao invo-
car pensadores como Nietzsche, Spinoza, Tocqueville e Hegel, minha crítica
volta às fontes da moralidade social e questiona suas formas de expressão.
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Na minha opinião, o grande erro da tradição filosófica sempre foi conside-
rar a moralidade como imutável, transcendente e eterna. E nós ainda esta-
mos a sofrer as consequências. Pelo contrário, para Nietzsche, como para
Spinoza, a idéia do Bem e do Mal não são realidades externas ao homem e
ao mundo. Em Thus Spoke Zarathustra, Nietzsche disse: “Verdadeiramente,
eu vos digo, o bem e o mal que seriam imperecíveis - eles não existem! A
moralidade é, portanto, pelo contrário, o produto da relação do corpo do
homem, ou seja, dos seus instintos e afetos, com a realidade vivida.
Para Nietzsche, o corpo deve ser entendido como uma rede de forças, ins-
tintos e impulsos que lutam uns contra os outros pela dominação. O corpo
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é uma espécie de caos onde se joga aquilo que decide um indivíduo para
agir, para pensar, para falar. Em outras palavras, é no corpo que tudo é
decidido, deixando o homem com a ilusão de que ele decide por si mes-
mo, uma vez que ele se torna consciente de seus próprios pensamentos.
Simplesmente, ele não pensa por si mesmo, é pensado pelos seus próprios
impulsos, é decidido pelos seus próprios instintos! É por isso que ele dirá:
«Ele pensa» (Além do Bem e do Mal, eu, 17). Abaixo o chamado poder ab-
soluto da razão! O corpo está no controle.
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natureza, renunciar às suas potencialidades, restringir o seu impulso de
vida, a sua energia, a sua força, negar o próprio movimento da vida e cortar
o homem de si mesmo! Este é o resultado da moralidade superficial e mor-
tificante que Nietzsche critica.
Além disso, Nietzsche entende que por trás da repressão da vida pela mo-
ralidade está uma paixão, um ressentimento, um ódio. Em outras pala-
vras, os belos princípios que são levantados em todos os sentidos são o
sintoma de um mal profundo, o do ressentimento dos fracos. Por «fraco»,
Nietzsche significa aqueles que não são capazes de agir de acordo com as
suas próprias forças, mas apenas reagir às acções dos outros, ou seja, «os
seres fortes» ou livres. O fraco é sempre um ser reactivo, sempre definido
em termos de um ser activo. Os fracos são aqueles que precisam do exem-
plo dos outros para existir, mas seriam duramente pressionados a levar
suas próprias vidas sozinhos e assumir o que são.
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simplificar a realidade, de torná-la compreensível para a inteligência. Mas a
realidade é sempre muito mais complexa do que a representação que temos
dela! Por exemplo, por detrás de cada verdade há uma mentira, por detrás
da bondade há o mal, por detrás da moralidade há uma vontade de dominar.
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como uma vontade de poder, como uma multidão de interpretações que
compõem a sua riqueza. A ciência, tal como a moralidade, é portanto mor-
tificante. Eu poderia dar um número infinito de exemplos mostrando que
a sombra de Deus ainda paira sobre a nossa civilização hoje.
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É assim que uma opinião maioritária na sociedade se torna o padrão moral
e se apresenta como verdade. Apoiar uma opinião diferente não é mais
considerado moralmente aceitável, desde que a massa se perceba como de-
tentora da verdade. Sob o pretexto de que esta opinião é maioritária, já não
é considerada como uma mera opinião, mas como uma exigência moral
que não deve ser debatida. Tocqueville, em Sobre a Democracia na Améri-
ca, chamou a este fenómeno a «tirania da maioria». A multidão legisla sem
se aperceber do que fazer ou pensar.
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É precisamente desta confusão entre o direito a uma opinião e a verdade
que nasce uma moralidade social que enlouqueceu, já não reconhecendo
a legitimidade de algumas pessoas para falar sobre o que sabem. A vida
social se transforma em uma ditadura de moralidade decretada por uma
maioria que pensa que é o todo. Nestas condições, o mais pequeno passo
em falso é dado com uma explosão de tweets, tribunas e indignação colec-
tiva. A polícia do pensamento está a mordiscar mais território a cada dia. E
esta caça ao culpado dá todo o poder à máfia; uma máfia que se tornou vir-
tual, uma «comunidade» ou «rede», onde todos os golpes são permitidos
para reduzir o seu oponente a pó.
As fontes do neo-puritanismo
A verdadeira justiça talvez seja respeitar os fortes, ou seja, hoje, aquele que
é competente para falar. Em vez de tentar tomar o seu lugar sem ter meios
para o fazer, estou a pensar aqui particularmente nas redes sociais onde
todos se imaginam como um especialista, um jornalista, um professor, etc.
Esta inversão do fraco para o forte em nome da lei não é o resultado do
acaso. É inteiramente devido a um esforço para moralizar a mente das pes-
soas que, como Nietzsche viu (na sua Genealogia da Moral), consistia em
fazer com que os fortes parecessem vilões e os fracos parecessem vítimas.
Assim, a moralidade foi transcrita para a lei, a fim de fazer o direito fra-
co. É nesse sentido que o Estado de direito moderno pode ser entendido
como o resultado final da moralidade dos escravos: ou seja, princípios ab-
solutos que não podem mais ser contestados, que são colocados para além
de qualquer debate, qualquer crítica. Os princípios dominantes das socie-
dades modernas (direitos humanos, neste caso) são a evolução final do
Bem e da moralidade cristã. Eles abrem o caminho para um puritanismo
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moderno, que hoje encontramos nas posições de esquerda progressista que
afirma defender a viúva e o órfão e lutar nobremente contra o fascismo e
o racismo.
Mas só a partir dos anos 2000 é que este fenômeno decolou realmente com
a Internet e as redes sociais. Para compreender melhor esta noção de au-
to-retidão, que tem alimentado e orientado o debate social durante várias
décadas, recorri ao pensamento de Hegel e ao que ele quis dizer com o
termo moralismo.
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mesmo antes que ele possa alcançar (socialmente, economicamente, legal-
mente, etc.) as suas condições de realização. A impaciência e pressa do
idealista em querer encarnar seus valores no mundo é chamada de «pre-
sunção».
Para Hegel, a moralidade real em ação não deve ser confundida com mora-
lismo, ou seja, sentimentos morais. O moralismo é incapaz de contextuali-
zar uma situação e de construir o seu julgamento sobre realidades concre-
tas. É ingenuamente contentado em avaliar as coisas apenas do ponto de
vista do seu sentimento particular e da sua moralidade. Hegel condena e
ridiculariza o homem idealista e moralizador que critica o mundo como
ele é, sem se preocupar em mudá-lo. Esta bela alma, que nunca suja as
mãos, felicita-se por ter bons sentimentos, sendo bondosa e cheia de cari-
dade, orgulha-se de julgar a realidade a partir do auge do seu ideal moral.
Este desejo de julgar tudo moralmente é explicado por uma forma de nar-
cisismo, diz ele. O idealista que quer dar a si mesmo uma boa consciência
é na verdade apenas uma figura de impotência, covardia e fraqueza para
realmente agir, para realmente levar as coisas adiante moralmente.
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Este moralismo, decifrado e criticado por Hegel, leva-me a fazer a seguinte
pergunta: como explicar o sentimento de superioridade desta moralidade
dominante e auto-realista dos nossos dias?
Auto-retidão no poder
Como vimos, a moral social dominante, auto-realista, outrora incorpora-
da pela moral cristã, é agora a chamada moral progressista. Ela domina a
Europa e mais amplamente o mundo ocidental. A característica dominante
desta moralidade, e também o que a torna tão forte e perigosa, é que ela
tem a sensação de ser habitada por uma missão quase profética, que se
acredita ser o depositário de uma certa idéia do Bem. Em outras palavras,
ela é a guardiã da moralidade legítima e, em certo sentido, a detentora da
verdade absoluta.
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considera ser o Bem em termos de moral e de cultura. Desta forma, tem
uma dimensão totalitária encarnada na emergência de um pensamento
único e de um politicamente correcto que só tolera a si próprio.
Mas a moralidade progressiva vai ainda mais longe do que rejeitar todas
as formas de pensamento crítico para o mundo do preconceito. Também
tenta encontrar pensamentos maus, idéias insalubres, insinuações, alusões,
piadas sem gosto e palavras de culpa, e chega ao ponto de denunciá-los e
apresentar uma queixa em tribunal. Há uma qualidade inquisitória e vigi-
lante a esta, hipócrita e orwelliana. Esta moralidade introduz uma nova era
de desconfiança e desconfiança nas relações sociais e no mundo intelec-
tual. Julgando tudo por uma certa concepção do Bem, ele reabilita a idéia
de culpa ou pecado pelo pensamento, palavra, ação ou mesmo omissão.
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Esta pressão sobre opiniões e comportamentos orquestrados pelos fracos e
seus nobres defensores é tal que toma a forma de uma tirania das minorias
em nome do Bem.
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deixa levar, enquanto que, por outro lado, o poder político é tudo por ela.
A pessoa de pensamento certo pode então desafiar a autoridade fazendo-se
passar por rebelde, ou mesmo herói, quando todos os outros concordam
com ele, começando pela própria autoridade pública! O moralista moder-
no apenas reitera a opinião comum, com segurança e segurança, mas com
glória. Ele aplica tiranicamente a lei moral, que é a lei da opinião pública,
no seu nível individual, enquanto vive como um revolucionário, o que o
torna ainda mais ridículo.
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II-Moralidade natural, do prazer
à meritocracia
A crítica à moralidade progressiva que acabo de desenvolver não pode ser
satisfeita com ela mesma. Eu seria então acusado de desconstruir a mora-
lidade tradicional sem propor nada de positivo em troca. No entanto, vou
apresentar-vos o que é a moralidade natural, que é, na minha opinião, o
meio mais eficaz de regular a sociedade.
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Estes três elementos, que desenvolverei a seguir, são: a ausência total de
valores morais absolutos dentro da natureza (do tipo bom e mau), uma re-
lação com o mundo baseada na recusa do dualismo, e finalmente o respeito
pela desigualdade natural entre os seres.
Uma moralidade natural deve ser entendida como uma relação pacificada
do homem consigo mesmo. Ou seja, ele não está sujeito a imperativos mo-
rais, a mandamentos em vista de um Bem, uma vez que vive num mundo
sem moral. A ausência de moralidade implica uma ausência de deveres.
Ninguém pode impor qualquer lei moral a um homem assim, digamos,
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um homem natural. Acima de tudo, o desejo em todas as suas formas, a
começar pelo desejo sexual, não é condenável, o prazer não é proibido.
Neste contexto, apenas uma obrigação lhe pode ser imposta, em termos
de amor-próprio, e que é o respeito pelos seus próprios filhos. Claramente,
existe um tabu primordial: o incesto, que constitui a única forma de mora-
lidade, mas por razões de respeito pela própria humanidade. O surgimento
das grandes categorias morais em termos do Bem e do Mal é uma questão
extremamente complexa à qual é impossível para mim dar uma resposta
clara. Pelo menos, parece que eles não podem ser o produto de uma relação
direta entre o homem e a natureza, como já explicamos à luz de Rousseau.
Ou, dito nestes termos: o Bem e o Mal não podem aparecer senão sob o
efeito de uma perturbação na relação do homem com a natureza, ou na sua
maneira de viver e de aceitar a sua própria natureza. O efeito da socializa-
ção para Rousseau poderia ter tido tais consequências.
Dito isto, é realmente uma mentira operativa, uma vez que está na funda-
ção da religião cristã e, portanto, da civilização ocidental e para além dela.
Como vimos com Nietzsche, o Bem é um valor, ou seja, uma interpreta-
ção do mundo, cuja origem esquecemos de questionar e que se apresenta
como uma verdade óbvia. O problema dos valores absolutos é que, por
definição, eles não podem ser questionados, muito menos desafiados. Mas
que legitimidade podemos continuar a dar a este irreflectido? E que valor
pode ser atribuído a qualquer valor, assim que começamos a sondar a sua
profundidade, ou seja, a sua vacuidade?
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natural se preocupa em assumir que a vida é sem razão, sem explicação, sem
justificação. É uma questão de renunciar ao absoluto para melhor apreen-
der o que está no próprio movimento do mundo. Caso contrário, o risco é
afundar-se no fanatismo daqueles que pensam ter uma verdade definitiva.
A reunificação do mundo
Desde o momento em que tal relacionamento com o mundo é concebível
e o Bem em si mesmo é desafiado, o dualismo é desafiado. Claramente, o
mundo não encontra sua justificação em uma realidade superior, um mu-
ndo além do mundo sensato. Contudo, este dualismo moldou a essência da
nossa compreensão da realidade desde Platão e seu mundo inteligível até
o advento da judaico-cristãncia. Por ver o mundo do ângulo de um Bem
ideal, em oposição a um Mal, tornou possível dissociar duas realidades
(sensível-inteligível), uma das quais é apenas transitória, imperfeita, e a
outra um horizonte insuperável.
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recusa do dualismo tem como consequência não tentar justificar a vida,
não lamentar e não amaldiçoar o que ela é (parafraseando Spinoza). O
mundo, e mais amplamente a vida, é. Cabe às pessoas viver esta vida que
não pediram, e que é sem justificação, mas que é a sua dignidade aceitar e
construir, mesmo na ausência de sentido.
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É assim tão mau estar satisfeito com
as diferenças entre as pessoas?
É evidente que a nossa ideia de moralidade natural era, por assim dizer, a
norma das sociedades tradicionais em oposição às sociedades modernas.
Chamo tradicionais aquelas sociedades que basearam a sua organização
social e política num princípio que já estava presente no momento da sua
aparição e que as justificava. O objectivo da vida em sociedade era, por-
tanto, tornar este princípio eficaz em todos os aspectos da vida colectiva. É
uma questão de estar presente na origem do mundo, porque é o autoritário.
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Por exemplo, Aristóteles, na política, justificou a escravidão como natural.
Certamente, aos olhos contemporâneos, isto parece insuportável, mas sem
ir tão longe, podemos ao menos colocar a questão da hierarquia. Em outras
palavras, nem todos os seres são destinados às mesmas coisas, às mesmas
funções, ou às mesmas vidas. Neste sentido, a ilusão democrática consiste
em pensar que os mesmos direitos fazem as mesmas habilidades. E talvez
devêssemos ver na ideia dos direitos humanos a transposição política de
uma ideia moral cristã fundamental: a igualdade de todos os indivíduos,
desafiando as diferenças. A lei pretende corrigir a natureza, o que nos pa-
rece injusto, mas como Callicles perguntou Sócrates (em Gorgias, Platão),
a lei não é aqui o instrumento dos fracos para triunfar sobre os fortes? A
natureza é realmente injusta? Responda com Spinoza.
O desejo é intocável
O que diz Spinoza sobre a natureza e qual é a sua relação com a morali-
dade? Muito simplesmente, o filósofo pretende tirar o desejo e as paixões
da ordem da moralidade. Na Ética, como mostrei anteriormente no trato,
ele mostra o caráter ilusório do Bem e do Mal como valores absolutos.
Neste contexto, o bem nada mais é do que o que me é útil (auto-valori-
zação). Ele pensa, portanto, numa transição gradual para a liberdade e a
alegria através da emancipação do homem da moralidade.
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ia, já presente em Platão, de que o corpo é o túmulo da alma, é um alvo
privilegiado para Spinoza, porque para ele o corpo e a mente são uma e
a mesma coisa: o homem. Esta última é, portanto, uma modalidade da
natureza. Consequentemente, o desejo do homem não é outra coisa senão
a expressão da natureza e, portanto, é amoral - ou seja, fora de toda a mo-
ralidade, nem bom nem mau em si mesmo.
Para Spinoza, por outro lado, é o apetite, o desejo, e não o livre decreto da
mente, que nos impulsiona a agir. Há, portanto, uma determinação da mente
pelo corpo (como com Nietzsche mais tarde). Todas as nossas ações, idéias,
sonhos ou volições estão sujeitas ao corpo e não ao julgamento da mente
que determinaria a vontade. É sempre um movimento espontâneo do corpo.
Claramente: não há liberdade da mente, acreditar o contrário é uma ilusão.
Daí o segundo erro dos mesmos moralistas para quem o homem, sendo
livre, deve exercer um império sobre si mesmo, a fim de não ceder ao dese-
jo que é, por natureza, um mal a ser evitado. Ele não deve falhar em ser
considerado um pervertido ou mesmo uma pessoa depravada. Mas Spino-
za observa que é impossível controlar os desejos e parar de desejar, simp-
lesmente porque o desejo não é nada mais que o que se é! Renunciar ao seu
desejo é renunciar à sua natureza e, portanto, a si mesmo. Neste sentido
entendemos que o desejo não é uma simples afetação, mas sim a própria
vida do espírito, a essência do homem.
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Portanto, o desejo também não é a marca de um espírito maligno. Os valores
absolutos podem, portanto, ser descartados como superstição. O verdadeiro
Bem não é um valor, mas consiste simplesmente em que o homem reconhe-
ça a sua natureza como necessária e saiba regozijar-se com o que ela é.
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da cultura, etc.). Este declive, este declínio, acontece muito lentamente e não
requer realmente nenhuma resistência: é por isso que Nietzsche diz que de-
vemos resistir ativamente para não afundar.
Da mesma forma, Nietzsche dirá que o pior crime contra a vida é impedir
que a vontade seja o que é, por exemplo, recusar um ser vivo para realizar
o seu poder, para expressar o seu ser. Neste contexto, só é bom aquilo que
permite o acesso a uma maior perfeição da natureza humana; aquilo que é
contrário a esta natureza é mau. Esta maior perfeição manifesta-se na alegria
que experimentamos quando nos sentimos de acordo com o nosso desejo.
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Mas viver de acordo com a moralidade natural nos comprometeria a não
julgar Dom Juan, já que é a sua natureza que ele se desdobra. Um liber-
tino - do latim libertinus, «escravo que acaba de ser libertado», «liberto»
- é aquele que questiona os dogmas estabelecidos, é um livre pensador na
medida em que se liberta, em particular, da metafísica e da ética religiosa.
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Viver segundo o princípio dionisíaco é, portanto, ceder ao poder criador
da vida, ao impulso vital, mas é também aceitar o sentimento de horror e
pavor que a vida pode despertar quando nos aproximamos demais, quan-
do a vivemos com demasiada intensidade. Provar o poder da vida não é
uma experiência a ser tomada de ânimo leve, não é gratuita, abre a emoção.
A emoção não só cria valores, mas também permite a sua difusão, porque o
impulso vital e o entusiasmo do grande homem são contagiosos. O grande
homem, para usar a expressão de Bergson, tem o poder de despertar a mul-
tidão, de despertar as consciências, mas também de estimular e dar força
para seguir os seus passos. A moralidade dos grandes homens é, portanto,
o impulso vital retirado de sua fonte de criação, é o impulso da vida que
desperta corações e consciências adormecidos no conformismo das regras
estabelecidas para dar-lhes a força para empreender.
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se esgote e chegue ao fim. Talvez também possamos seguir as lições de
Zarathustra e responder com risos. Primeiro porque o riso é pacífico - pelo
menos não violento - e sobretudo porque é uma afirmação de vida e por-
tanto de poder diante daqueles que desejam silenciar os fortes. «Aprende
a rir, homens superiores» é o ensinamento de Zarathustra. Deste ponto de
vista, as possibilidades de gozar da moralidade do esquerdismo, de gozar
com ele, de apontar o seu absurdo, são infinitas.
O que significa isto para nós, para as nossas vidas? Você ama realmente o
seu amante? Não tenha vergonha de convidá-la para jantar com os mais
«fiéis» de seus amigos, aqueles que estão em uma relação e nunca estiveram
em outro lugar. A vida é curta, e você precisa saber amá-la com seus riscos
para redescobrir o sentido autêntico do Dionísio, e respeitar seus próprios
desejos. Ir até o fim da própria natureza, daquela intoxicação que torna a
existência e as paixões dignas de serem vividas. Numa palavra, da próxima
vez que receberes um convite para uma bela festa, não vás sozinho. Leva a
tua amante contigo!
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