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O Fantasma da Moralidade

Advocacia contra o neo-puritanismo

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Índice

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

I - Moralidade social, moralidade entorpecida . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

O mito do Bem e do Mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

A moralidade como arma de guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

A mecânica de uma moralidade tirânica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

As fontes do neo-puritanismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Auto-retidão no poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

II-Moralidade natural, do prazer à meritocracia . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Um desvio para um mundo sem moral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

A reunificação do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

É assim tão mau estar satisfeito com


as diferenças entre as pessoas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

O desejo é intocável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Vamos seguir a nossa natureza,


vamos nos tornar sobre-humanos! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

Um brinde à sua «grande saúde»! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

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Introdução
Sempre considerei a moralidade como uma coisa suspeita.

Aqueles que me conhecem ficariam surpresos, no mínimo, ao saber que


dedico minha caneta a isto. Eu não acredito e nunca acreditei na mora-
lidade. Ou mais exactamente nesta moralidade, aquela que nos enfeitiça
hoje no Ocidente. Mas não pense que sou contra a maioria da humanidade
em seu desejo de fazer o bem. Mesmo que eu continue convencido de que
eles nasceram, não com o judaísmo, mas em um tempo muito anterior, eu
respeito os Dez Mandamentos. Então, se eu não tenho nada contra os Dez
Mandamentos, por que atacar a moralidade, você pode perguntar?

Na verdade, o meu interesse pela moralidade foi reacendido recentemente


pela descoberta da caracterização da consciência de Nietzsche como su-
pérflua e superficial. Se a consciência é supérflua e superficial, o que di-
zer da sua infeliz raquítica, a moralidade? Eu, que não sou um professor,
mas um livre-pensador, um libertino, no sentido original da palavra, estou
preocupado que a moralidade esteja recuperando o poder sobre a nossa
sociedade. Nós, que pensávamos poder enterrar a religião de um único
Deus, agora a moralidade está voltando ao discurso dos novos principais
ideólogos, os neopuritanos.

Basta seguir as notícias para ver o lado do Bem a recuperar terreno a cada
semana. Seja na política ou nas artes, os novos puritanos estão prontos a
submeter os seus inimigos à injunção de julgamento moral. Em março de
2020, era um político francês, Benjamin Griveaux, que era o alvo. Após um
escândalo estrondoso, o candidato a prefeito de Paris teve de abandonar a
sua candidatura. Isso se deveu a vídeos, publicados no site de um ativista,
Piotr Pavlenski, intitulado «Pornopolítica». Um ato militante, apresentado
como uma resistência à «hipocrisia» do candidato que, segundo o ativista,
teria «usado sua família se apresentando como um ícone para todos os pais
e maridos de Paris».

Pode-se perguntar se a moralidade invocada como «revolucionária» pelo


activista não é antes a de uma sociedade que se tornou obcecada pelo

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politicamente correcto. Afinal, o que nos importa que um homem pegue um
vídeo nu de si mesmo e o envie a uma jovem mulher? Parece que o escânda-
lo vem de outro lugar, de um raciocínio implícito que poderíamos resumir
da seguinte forma: como o homem é livre, deve controlar seu desejo, senão
é vicioso; pior ainda, se o homem experimenta o desejo, é porque a própria
natureza é defeituosa, imperfeita, e deve ser combatida. Pergunto-me como
é que a nossa sociedade ainda pode aceitar este silogismo enganador.

«O desejo é a essência do homem», alegremente afirmou Spinoza. Pela


nossa natureza, somos todos libertinos. Então, porquê descarregar num
homem que simplesmente seguiu a sua natureza? E se ele tivesse ido passar
a noite num clube de swingers com uma das suas amantes, teria cometido
algum erro? Na minha opinião, não.

Devo dizer que a ideia de uma sociedade tão hipócrita sempre me assustou.
Como você pode suportar quando pessoas hipócritas lincham um homem
na praça pública por esconder a existência de sua amante? É hora de reagir
ao que poderíamos chamar de retorno da ordem moral. Pois esta não é a
primeira vez que um homem é atacado por assuntos relacionados com a
sua vida privada. Às vezes penso no que o grande campeão de golfe Ti-
ger Woods, que mudou a vida de milhares de jovens americanos, teve de
suportar em 2009, quando a lista de seus casos com várias mulheres - in-
cluindo uma modelo, uma garçonete e um pin-up de revista - foi revelada
na imprensa. Eu ainda me lembro da loucura que tomou conta dos Estados
Unidos. Durante alguns meses, o golfista foi escolhido por toda a América,
e tudo isto, simplesmente por trair a sua esposa - como se ele, o homem de
família ideal, o desportista modelo, não pudesse escapar de um apartamen-
to, aborrecido e, em suma, de uma vida conjugal miserável!

Os novos puritanos gostariam de submeter a sociedade a um ideal de pureza


que não só é inatingível como antinatural, inventado por homens que estão
doentes e presos pela sua impotência. A sua moralidade «supérflua» distin-
gue duas realidades e nos separa da vida. Em seus sonhos, eles gostariam de
ser capazes de distinguir entre corpo e consciência, natureza e desejo.

Com o seu sistema, os valores já não derivam de um instinto de sobre-


vivência, mas de uma vontade de autodestruição ou, para colocar nas

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palavras de Nietzsche, de uma «negação da vida». Isto deve ficar claro para
aqueles pregadores da virtude que sonham em cortar a humanidade dessa
parte essencial do desejo. Esquecem que o homem é feito de paixões diver-
sas e contraditórias. O mundo que eles gostariam de criar, pelo contrário,
é uniforme.

Através destes vários acontecimentos, não posso deixar de pensar na «ti-


rania da maioria» anunciada por Alexis de Tocqueville na sua análise da
democracia americana, há mais de um século. Sob o pretexto da verdade,
a vida social é assim tiranizada pela massa, ou seja, uma maioria de indi-
víduos cegos pela mesma paixão pela verdade e pela propriedade moral.

Neste processo, os poderosos são considerados culpados a priori, e pri-


vados de julgamento, relembrando as piores horas da história. Mas ainda
é possível voltar atrás no tempo, recuperar uma forma de sabedoria, se
alguém estiver disposto a pensar por si mesmo, e não simplesmente repetir
o que os outros dizem.

Devemos libertar-nos desta tirania, libertar-nos daquelas pessoas que nos


proíbem de gozar os prazeres da vida. Ninguém resumiu melhor esta ati-
tude do que o antigo poeta: «Reúne o dia sem te preocupares com o ama-
nhã» - carpe diem quam mínimo credula postero. Se tal atitude é possível,
esta parece-me ser a única verdadeira filosofia, aquela que temos a honra
de defender.

Gostaria, portanto, de ver uma forma de viver, e não de pensar, em que os


instintos se expressassem ao máximo, se sublimassem e se afirmassem para
nosso maior prazer. A outra moralidade, a supérflua e superficial que a so-
ciedade nos dita, a má consciência, só temos de nos livrar dela! Rouba-nos
a liberdade de agir, priva-nos da nossa individualidade e da felicidade de
viver! É, numa palavra, o nosso inimigo.

Isso significa que a moralidade deve desaparecer? É possível imaginar


a existência de uma moralidade que respeite o desejo e o poder de cada
indivíduo enquanto estabelece a harmonia entre todos?

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A minha crítica à moralidade actual não significa necessariamente a eli-
minação dos padrões morais das sociedades tradicionais, impostos pelo
Livro Sagrado e pela Igreja. O que eu quero é que eles fiquem em segundo
plano, isto é, que não se intrometam na esfera pública, a da liberdade de ex-
pressão, nem invadam a esfera íntima, que diz respeito ao comportamento
sexual. As nossas sociedades defendem, em teoria, um ambiente secular e
livre que devemos preservar. Não estou a fazer mais nada ao desafiar esta
moralidade.

Todos os povos têm tido regras semelhantes para preservar a sua existência
face a ameaças externas. E não é minha intenção dizer que eles não preci-
sariam deles. Eu não sou ingénuo.

Parece-me, no entanto, que toda a moralidade necessária para os seres hu-


manos se encontra nos códigos penal e civil. E, além disso, os seus inven-
tores ficaram bem inspirados quando disseram que as únicas leis de que o
homem precisava já estavam presentes na natureza.

A fim de apresentar com mais detalhes minhas reflexões, minhas influên-


cias e as muitas razões pelas quais sou contra o clima «moralizante» de
nossas sociedades ocidentais, escrevi este trecho. Eu questiono as origens e
manifestações desta pressão difusa e sempre crescente sobre o comporta-
mento e pensamentos das pessoas.

Embora Deus ou qualquer outro absoluto não deva mais ter qualquer auto-
ridade sobre a maneira como os ocidentais vivem, eu vejo, paradoxalmen-
te, o retorno de uma moralidade que constrange. Misturando ideologia e
conformidade moral, este neo-puritanismo declarou guerra à liberdade de
expressão, à diversidade de opiniões e à emancipação sexual.

Portanto, sim, a sociedade ocidental derrubou seus ídolos tradicionais de


Deus e da Igreja, mas ainda sente a necessidade da moralidade. Assim seja.
Por isso pergunto: pode haver uma moralidade que, em vez de impor limi-
tações aos nossos desejos e à nossa personalidade, nos permita permanecer
nós mesmos e existir em harmonia com os outros?

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I - Moralidade social,
moralidade entorpecida
De acordo com Nietzsche, a moralidade social é supérflua e superficial, na
medida em que esconde a degeneração do homem. Está enraizada no mo-
noteísmo, essa doutrina antinatural que reprime as paixões e os desejos.
Hoje, a moralidade faz parte de novos dogmas, de novos puritanismos de
inspiração esquerdista e exerce um poder constrangedor sobre os indiví-
duos, nomeadamente através do corpo e da liberdade de expressão. Ao invo-
car pensadores como Nietzsche, Spinoza, Tocqueville e Hegel, minha crítica
volta às fontes da moralidade social e questiona suas formas de expressão.

Para começar, abordei o problema da moralidade a partir de duas pers-


pectivas:
• Deus existe, tudo é simples, o absoluto comanda a existência de um
quadro moral rigoroso e necessário.
• Deus não existe. Então, porquê multiplicar entidades? Se Deus não
existe, tudo é permitido... além da regra de ouro da ética.

Nós sabemos que a crença religiosa em nossas sociedades entrou em co-


lapso. Mas será que todos os homens se tornaram criminosos patenteados
e depravados? Não. O problema moral é um falso problema?

O mito do Bem e do Mal


Na perspectiva de sua reflexão ética, Spinoza, antes de Nietzsche, mostrou
o caráter ilusório do Bem e do Mal como valores absolutos. Ele os redefiniu
como valores relativos - o que é bom ou mau para mim - operando assim
uma inversão radical com o idealismo grego para o qual o Bem é uma idéia
absoluta, isolada do mundo, ou da natureza. Ele se afasta assim da filosofia
de Platão, que defende uma idéia do Bem para o qual a razão humana deve
se elevar e que só ela é capaz de inspirar e orientar nossa ação.

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Na minha opinião, o grande erro da tradição filosófica sempre foi conside-
rar a moralidade como imutável, transcendente e eterna. E nós ainda esta-
mos a sofrer as consequências. Pelo contrário, para Nietzsche, como para
Spinoza, a idéia do Bem e do Mal não são realidades externas ao homem e
ao mundo. Em Thus Spoke Zarathustra, Nietzsche disse: “Verdadeiramente,
eu vos digo, o bem e o mal que seriam imperecíveis - eles não existem! A
moralidade é, portanto, pelo contrário, o produto da relação do corpo do
homem, ou seja, dos seus instintos e afetos, com a realidade vivida.

Neste ponto, todo o empreendimento filosófico de Nietzsche é determi-


nar as origens extra-morais da moralidade - ou da moral historicamente
existente.

Como qualquer doutrina filosófica, religiosa ou política, a moralidade para


Nietzsche é uma interpretação da realidade feita por cada indivíduo de
acordo com as suas condições de vida. É por isso que não existe uma mo-
ralidade única, mas uma variedade de morais que diferem de acordo com o
espaço e o tempo, o lugar e a cultura, e fazem sempre parte de uma história,
de um processo. O conceito de moralidade só pode ser entendido no plu-
ral, porque a moral é múltipla e variável. A moralidade não tem, portanto,
um valor absoluto.

Nietzsche está, portanto, consciente de que existem diferentes formas de


moralidade. Mas ele fala sempre de «moralidade» porque vê em cada um
deles um ponto comum: uma confiança absoluta no espírito, na razão, na
objetividade, na ciência e, ao mesmo tempo, uma desconfiança, mesmo
ódio, do corpo e das paixões. Ele observa que ser virtuoso é sempre afir-
mar a vontade da mente contra os prazeres do corpo, o que equivale a uma
negação da vida. Mas em vez de definir a moralidade como um conjun-
to de regras, a originalidade de Nietzsche reside em entendê-la como um
sintoma de doença. Ele afirma que dar-se uma moral é sempre provar sua
impotência para aceitar a vida como ela é. É admitir o desconforto com o
poder dos instintos que estão enraizados no corpo e confessar a incapaci-
dade de os sublimar.

Para Nietzsche, o corpo deve ser entendido como uma rede de forças, ins-
tintos e impulsos que lutam uns contra os outros pela dominação. O corpo

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é uma espécie de caos onde se joga aquilo que decide um indivíduo para
agir, para pensar, para falar. Em outras palavras, é no corpo que tudo é
decidido, deixando o homem com a ilusão de que ele decide por si mes-
mo, uma vez que ele se torna consciente de seus próprios pensamentos.
Simplesmente, ele não pensa por si mesmo, é pensado pelos seus próprios
impulsos, é decidido pelos seus próprios instintos! É por isso que ele dirá:
«Ele pensa» (Além do Bem e do Mal, eu, 17). Abaixo o chamado poder ab-
soluto da razão! O corpo está no controle.

Nessas condições, o homem é um mistério para si mesmo, e a vida é ainda


mais. Os impulsos, como a agressão ou a sensualidade, são portanto mis-
térios insondáveis, mas são a própria vida, que se desdobra no corpo antes
de chegar à consciência. Nietzsche chama a este fenómeno «interpretação»,
ou seja, o domínio de um impulso sobre todos os outros. Basicamente,
nossos pensamentos não passam de interpretações, pois são o produto
de um processo de dominação por um impulso. Mas, para Nietzsche, há
precisamente apenas interpretações, nunca factos, nunca certezas ou ver-
dades. Por conseguinte, propor uma moral é conceder a uma interpretação
o estatuto de verdade, que é uma mentira, e mesmo um enfraquecimento
do homem, reduzindo-o a uma única perspectiva.

No final, é a própria vida que está enfraquecida, negada na sua riqueza


e poder. Para Nietzsche, isto é o que é verdadeiramente imoral: avaliar a
vida, criticando-a e submetendo-a a um julgamento categórico, até mesmo
à repressão de uma única interpretação.

A moralidade como arma de guerra


Com este tipo de moralidade, o homem torna-se uma espécie de animal
bovino estúpido - Nietzsche continua a dizer que a moralidade é o que per-
mite conduzir um rebanho. Hoje, pensamos no consumidor passivo, o ci-
dadão conformista, em suma, um indivíduo que se entrega à mediocridade.
Pois submeter-se à mediocridade é obedecer a uma moralidade fabricada,
desligada das tendências espontâneas da natureza humana, é submeter a li-
berdade e os valores individuais a um dever infundado. É mutilar a própria

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natureza, renunciar às suas potencialidades, restringir o seu impulso de
vida, a sua energia, a sua força, negar o próprio movimento da vida e cortar
o homem de si mesmo! Este é o resultado da moralidade superficial e mor-
tificante que Nietzsche critica.

Além disso, Nietzsche entende que por trás da repressão da vida pela mo-
ralidade está uma paixão, um ressentimento, um ódio. Em outras pala-
vras, os belos princípios que são levantados em todos os sentidos são o
sintoma de um mal profundo, o do ressentimento dos fracos. Por «fraco»,
Nietzsche significa aqueles que não são capazes de agir de acordo com as
suas próprias forças, mas apenas reagir às acções dos outros, ou seja, «os
seres fortes» ou livres. O fraco é sempre um ser reactivo, sempre definido
em termos de um ser activo. Os fracos são aqueles que precisam do exem-
plo dos outros para existir, mas seriam duramente pressionados a levar
suas próprias vidas sozinhos e assumir o que são.

Neste contexto, Nietzsche detecta que no coração da moralidade há uma


paixão ainda mais forte que todas as outras, um ressentimento ao quadra-
do que não diz o seu nome e avança sempre sob a máscara do Bem e da
Verdade. Tendo sondado a origem dos valores, ele ataca então o valor dessa
origem. Mas o que é exactamente um valor?

É fazendo esta pergunta que Nietzsche se distingue de todos os outros filó-


sofos, que, segundo ele, nunca questionaram a própria base da sua filosofia:
a busca da verdade. Um valor é uma crença, e portanto uma interpretação,
mas que foi estabelecida ao longo do tempo - na escala de vários milhares de
anos - como uma verdade. É uma crença cuja origem esquecemos de ques-
tionar, e que temos investido com um poder regulador sobre os homens.

Assim, os europeus tomaram a verdade como um valor, por assim dizer,


e não há necessidade de questioná-la. A verdade - o primeiro de todos os
valores - é um bem em si mesma; inversamente, uma mentira é um mal.
Mas verdade e mentira são apenas construções morais, tentativas de redu-
zir a vida a um objeto específico de conhecimento que pode ser controlado.

É a partir da equação «verdade = bem» que Nietzsche consegue redefinir


a moralidade como um processo que tem a formidável conseqüência de

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simplificar a realidade, de torná-la compreensível para a inteligência. Mas a
realidade é sempre muito mais complexa do que a representação que temos
dela! Por exemplo, por detrás de cada verdade há uma mentira, por detrás
da bondade há o mal, por detrás da moralidade há uma vontade de dominar.

Em todos estes casos, são as interpretações que dominam enquanto se


escondem atrás da máscara da verdade. Para ele, a moralidade é sempre
uma arma de guerra, um instrumento de domínio nas mãos daqueles que
a usam para se imporem: primeiro os sacerdotes (que se impõem aos seres
servos reduzindo a vida à moralidade), depois os filósofos (que se impõem
aos ignorantes reduzindo a vida a um objecto de conhecimento). A ligação
entre bem moral e verdade poderia ser resumida numa única fórmula: é
procurando a verdade que se faz o bem. Nietzsche entende que é procuran-
do a verdade, ou pior, afirmando possuí-la, que se afasta da vida. Entenda-
mos que Nietzsche não contesta que certas coisas são verdadeiras, mas re-
cusa-se a aceitar uma interpretação como verdade, com exclusão de todas
as outras interpretações. Este é o nosso problema, ou seja, uma moralidade
que se apresenta como a verdade quando é apenas uma interpretação.

A abordagem genealógica - Genealogia da Moral - consiste assim em tra-


çar o processo de criação de valores a fim de sondar a sua profundidade.
Para Nietzsche, já não se trata mais de perguntar, da maneira clássica, se a
verdade existe, ou mesmo de procurá-la, mas de perguntar de onde vem a
nossa necessidade dela. Porque é que precisamos de alguma verdade? E por
que é tão natural para nós acreditar que a verdade é necessária para a vida?
É preciso ter em conta que Nietzsche se vê, como outros antes dele, como
um filósofo médico: procura compreender a fonte do mal de que sofrem
os seus contemporâneos e a que ele chama «niilismo». Aqui, o niilismo é
a negação da vida.

Seu diagnóstico é o seguinte: a moralidade penetrou em nossas mentes de


tal forma que mesmo que tenhamos matado Deus - ou seja, se questionamos
o domínio da religião como princípio organizador das sociedades moder-
nas - sua sombra ainda paira sobre nós através de um legado onipresente.
A ciência, por exemplo, é apenas uma continuação da moralidade, porque
mesmo que tenha contribuído para o recuo das crenças religiosas, ela faz
dos seres vivos um objeto de conhecimento sem nunca compreendê-los

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como uma vontade de poder, como uma multidão de interpretações que
compõem a sua riqueza. A ciência, tal como a moralidade, é portanto mor-
tificante. Eu poderia dar um número infinito de exemplos mostrando que
a sombra de Deus ainda paira sobre a nossa civilização hoje.

A mecânica de uma moralidade tirânica


Para compreender melhor como esta moralidade se enraizou nas nossas
sociedades, interessei-me pelo pensamento de Tocqueville e mais particu-
larmente pelas suas reflexões sobre a noção de opinião pública.

Tocqueville é conhecido pelo seu trabalho sobre democracia, especial-


mente nos Estados Unidos, mas talvez menos por ser o primeiro a com-
preender a articulação do fenómeno democrático com a moral moderna.
Segundo Tocqueville, a democracia não é simplesmente um regime políti-
co com instituições que permitem a livre expressão dos cidadãos. Para ele,
a democracia é, antes de tudo, um fenómeno de grande escala de igualiza-
ção das condições sociais e das mentalidades. Em outras palavras, a demo-
cracia consiste em não admitir mais nenhuma hierarquia na relação entre
o homem e o seu semelhante. Todos os homens são iguais e é portanto a
ideia de igualdade que está no centro não só da democracia mas também
de toda a modernidade; ela constitui o verdadeiro ponto arquimédico da
nossa época, mais ainda do que a ideia de liberdade.

No entanto, Tocqueville observa que esta noção de igualdade terá conse-


quências inesperadas. O que são eles? E o que é que isto tem a ver com a
moralidade? A consequência mais óbvia aos olhos de Tocqueville é o sur-
gimento do individualismo. Os indivíduos abandonam o campo da deli-
beração política para se concentrarem na sua felicidade privada, deixando
espaço para a formação de uma opinião pública cada vez mais dominante.
Esta opinião pública, que geralmente prospera com a falta de informação
dos cidadãos, vai-se impondo gradualmente como produto da própria so-
ciedade. Os indivíduos, deixados à sua sorte e sem referências colectivas,
têm então o dever de a reproduzir como uma lei moral.

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É assim que uma opinião maioritária na sociedade se torna o padrão moral
e se apresenta como verdade. Apoiar uma opinião diferente não é mais
considerado moralmente aceitável, desde que a massa se perceba como de-
tentora da verdade. Sob o pretexto de que esta opinião é maioritária, já não
é considerada como uma mera opinião, mas como uma exigência moral
que não deve ser debatida. Tocqueville, em Sobre a Democracia na Améri-
ca, chamou a este fenómeno a «tirania da maioria». A multidão legisla sem
se aperceber do que fazer ou pensar.

Torna-se um tribunal do povo. Sob o pretexto da verdade, a vida social é


tiranizada pela multidão, ou seja, uma maioria de indivíduos cegos pela
mesma paixão pela verdade e pela propriedade moral. Assim, um in-
divíduo pode ser excluído quando tem um discurso que difere da moral
coletiva, ou ser aclamado como um herói quando assume o discurso do-
minante. A subjugação das opiniões minoritárias não é legal, mas social,
mundana. Pode haver crimes de pensamento que, mesmo que não estejam
previstos na lei, existem realmente dentro da sociedade, nas redes sociais
de hoje, por exemplo. A consequência não é apenas prejudicial à liberdade
de opinião e, portanto, à democracia, mas, sobretudo, à própria vida social.
Porque é que isto é assim?

Porque na origem desta deriva da opinião para a moralidade, existe uma


amálgama entre direito e competência. Como eu disse anteriormente, Toc-
queville define a democracia como um movimento para igualizar as condi-
ções sociais. Ao fazer isso, leva cada indivíduo a acreditar que está em pé
de igualdade com qualquer outro indivíduo. Mas isto é falso! É puramente
teórico.

Na realidade, a igualdade nunca é eficaz, como se pode ver em todas as


áreas, dando origem a inúmeras exigências para uma verdadeira igualdade.
Mas esta pretensão de alcançar a igualdade perfeita é perigosa porque leva
à potencial negação das competências de todos. Dizemos então para nós
mesmos «só porque outra pessoa é mais competente do que eu, isso não
significa que eu não tenha o direito de fazer o mesmo, de me expressar no
lugar deles». E cada indivíduo se improvisa como especialista, o que é seu
direito, mas na condição de que sua opinião seja autoconsciente e saiba que
é uma opinião e não a verdade!

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É precisamente desta confusão entre o direito a uma opinião e a verdade
que nasce uma moralidade social que enlouqueceu, já não reconhecendo
a legitimidade de algumas pessoas para falar sobre o que sabem. A vida
social se transforma em uma ditadura de moralidade decretada por uma
maioria que pensa que é o todo. Nestas condições, o mais pequeno passo
em falso é dado com uma explosão de tweets, tribunas e indignação colec-
tiva. A polícia do pensamento está a mordiscar mais território a cada dia. E
esta caça ao culpado dá todo o poder à máfia; uma máfia que se tornou vir-
tual, uma «comunidade» ou «rede», onde todos os golpes são permitidos
para reduzir o seu oponente a pó.

O que Tocqueville entende é que o fenómeno que define a modernidade,


ou seja, a igualização das condições (democracia), traz consigo um perigo,
o da conformidade. O que ele vê é que quando os homens entram numa
dinâmica de igualização de todos em relação a todos, emerge uma morali-
dade que se impõe tiranicamente a cada indivíduo.

As fontes do neo-puritanismo
A verdadeira justiça talvez seja respeitar os fortes, ou seja, hoje, aquele que
é competente para falar. Em vez de tentar tomar o seu lugar sem ter meios
para o fazer, estou a pensar aqui particularmente nas redes sociais onde
todos se imaginam como um especialista, um jornalista, um professor, etc.
Esta inversão do fraco para o forte em nome da lei não é o resultado do
acaso. É inteiramente devido a um esforço para moralizar a mente das pes-
soas que, como Nietzsche viu (na sua Genealogia da Moral), consistia em
fazer com que os fortes parecessem vilões e os fracos parecessem vítimas.

Assim, a moralidade foi transcrita para a lei, a fim de fazer o direito fra-
co. É nesse sentido que o Estado de direito moderno pode ser entendido
como o resultado final da moralidade dos escravos: ou seja, princípios ab-
solutos que não podem mais ser contestados, que são colocados para além
de qualquer debate, qualquer crítica. Os princípios dominantes das socie-
dades modernas (direitos humanos, neste caso) são a evolução final do
Bem e da moralidade cristã. Eles abrem o caminho para um puritanismo

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moderno, que hoje encontramos nas posições de esquerda progressista que
afirma defender a viúva e o órfão e lutar nobremente contra o fascismo e
o racismo.

Foi o filósofo e sociólogo Jean-Pierre Le Goff o primeiro a utilizar a ex-


pressão esquerdismo cultural. Este conceito refere-se a um conjunto de
temas, ideias e representações que se expressam hoje e há cerca de vinte
anos na França nos meios de comunicação social, mas também nos meios
académicos, culturais, associativos e, claro, políticos. Os vários discursos
do esquerdismo cultural estão a tornar-se cada vez mais radicais e muitas
vezes contraditórios, fundindo-se com uma nova forma de puritanismo.
Esta é a modalidade contemporânea da moralidade dos valores absolutos,
que, como ela, distingue entre o Bem, por um lado, e o Mal, por outro, ou
entre os bons e os maus da fita. Eu vou voltar a isto.

As suas origens remontam aos anos 60 nas principais universidades ameri-


canas. Naquela época, o debate nos Estados Unidos era sobre a adoção de
direitos civis para os negros. A violência dos protestos logo levou a posições
cada vez mais radicais, o que por sua vez levou a uma moralização cada vez
maior do discurso político. Os brancos foram claramente retratados como
racistas e segregados, em oposição aos negros como vítimas inocentes do
legado da colonização, da escravatura e do racismo. Mas longe de esclare-
cer os méritos das reivindicações das minorias, essa simplificação excessiva
do debate social e político apenas aumentou as tensões entre os defensores
da nova bien-pensança e os partidários de uma visão mais tradicional da
sociedade americana.

Mas só a partir dos anos 2000 é que este fenômeno decolou realmente com
a Internet e as redes sociais. Para compreender melhor esta noção de au-
to-retidão, que tem alimentado e orientado o debate social durante várias
décadas, recorri ao pensamento de Hegel e ao que ele quis dizer com o
termo moralismo.

Em sua Fenomenologia do Espírito, Hegel critica o que ele chama a “bela


alma” habitada por idéias nobres e generosas sobre o curso do mundo e
da humanidade. Ele denuncia essa pressa ou pressa do homem de bons
sentimentos em querer impor o ideal moral em toda parte desde o início,

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mesmo antes que ele possa alcançar (socialmente, economicamente, legal-
mente, etc.) as suas condições de realização. A impaciência e pressa do
idealista em querer encarnar seus valores no mundo é chamada de «pre-
sunção».

Para Hegel, a moralidade real em ação não deve ser confundida com mora-
lismo, ou seja, sentimentos morais. O moralismo é incapaz de contextuali-
zar uma situação e de construir o seu julgamento sobre realidades concre-
tas. É ingenuamente contentado em avaliar as coisas apenas do ponto de
vista do seu sentimento particular e da sua moralidade. Hegel condena e
ridiculariza o homem idealista e moralizador que critica o mundo como
ele é, sem se preocupar em mudá-lo. Esta bela alma, que nunca suja as
mãos, felicita-se por ter bons sentimentos, sendo bondosa e cheia de cari-
dade, orgulha-se de julgar a realidade a partir do auge do seu ideal moral.
Este desejo de julgar tudo moralmente é explicado por uma forma de nar-
cisismo, diz ele. O idealista que quer dar a si mesmo uma boa consciência
é na verdade apenas uma figura de impotência, covardia e fraqueza para
realmente agir, para realmente levar as coisas adiante moralmente.

Tal é a visão angélica mas covarde da bela alma: moraliza e condena o


mundo e, ao mesmo tempo, fica à margem do mundo como espectador.
Esta atitude hipócrita não é moral, adverte Hegel. Pelo contrário, é imo-
ral porque é contrário à lealdade de um homem de honra e de acção que
encarna os valores em que acredita. Ao invés de agir e se comprometer, a
bela alma está satisfeita com a grandeza e pureza de seus bons sentimentos.
Nunca se deve comprometer na ação, arriscar cometer erros e enfrentar a
espessura da realidade!

O idealismo moralizante da bela alma é assim firmemente condenado por


Hegel, porque essa moralidade puramente interior do coração não tem
realidade efetiva. Hegel convida-nos assim a distinguir o moralismo - a
moralidade do coração e dos belos sentimentos que defendem um ideal
com discursos nobres sem ter em consideração a realidade - da morali-
dade, ou seja, a acção real comprometida com um caminho de acordo com
os seus valores morais.

17
Este moralismo, decifrado e criticado por Hegel, leva-me a fazer a seguinte
pergunta: como explicar o sentimento de superioridade desta moralidade
dominante e auto-realista dos nossos dias?

Auto-retidão no poder
Como vimos, a moral social dominante, auto-realista, outrora incorpora-
da pela moral cristã, é agora a chamada moral progressista. Ela domina a
Europa e mais amplamente o mundo ocidental. A característica dominante
desta moralidade, e também o que a torna tão forte e perigosa, é que ela
tem a sensação de ser habitada por uma missão quase profética, que se
acredita ser o depositário de uma certa idéia do Bem. Em outras palavras,
ela é a guardiã da moralidade legítima e, em certo sentido, a detentora da
verdade absoluta.

Tal pensamento, ou melhor, tal crença, é uma verdadeira arma de guerra


no sentido de que se sente sempre justificado em desqualificar e desacredi-
tar todas as formas de resistência e reduzir os seus oponentes a nada. Isto é
o que eu chamo uma moralidade de geometria variável, onde a tolerância
sempre diz respeito ao círculo de simpatizantes.

É precisamente este sentimento, interiorizado pelos defensores desta mo-


ralidade, que lhes proporciona uma «boa consciência» barata, que divide o
mundo, segundo eles, em dois campos: o «bom» e o «mau», com os «bons»
de um lado e os «maus» do outro. O ‘lado mau’ deve naturalmente ter uma
‘má consciência’ e esforçar-se para encontrar o caminho certo, se aqueles
que se desviaram não quiserem ser rotulados de reacionários. Pois opor-se
a esta moralidade (caracterizada pela negação da realidade) é carecer de ca-
ridade, benevolência e bons sentimentos, é recusar-se a defender os fracos.

Esta ideologia moral se impôs através de vários temas intimamente ligados


às questões da sociedade, tais como o corpo, a sexualidade, a educação das
crianças, etc.

É esta moralidade que hoje pretende governar a vida quotidiana e as re-


lações sociais, impondo as suas próprias concepções ideológicas do que

18
considera ser o Bem em termos de moral e de cultura. Desta forma, tem
uma dimensão totalitária encarnada na emergência de um pensamento
único e de um politicamente correcto que só tolera a si próprio.

Mas a moralidade progressiva vai ainda mais longe do que rejeitar todas
as formas de pensamento crítico para o mundo do preconceito. Também
tenta encontrar pensamentos maus, idéias insalubres, insinuações, alusões,
piadas sem gosto e palavras de culpa, e chega ao ponto de denunciá-los e
apresentar uma queixa em tribunal. Há uma qualidade inquisitória e vigi-
lante a esta, hipócrita e orwelliana. Esta moralidade introduz uma nova era
de desconfiança e desconfiança nas relações sociais e no mundo intelec-
tual. Julgando tudo por uma certa concepção do Bem, ele reabilita a idéia
de culpa ou pecado pelo pensamento, palavra, ação ou mesmo omissão.

Em nome dos seus princípios, os novos censores gostariam de banir a


franqueza do vocabulário, de expulsar da língua as palavras que não lhes
pertencem. Nesta novela que nos é imposta pelos puritanos modernos,
não devemos mais dizer «cego», mas «duro de ouvido», não mais falar de
«sexo», mas de «gênero binário». Estas palavras, que não significam mais
nada, estão gradualmente colonizando nossa língua e sancionando os
«deslizes» dos comediantes e até mesmo as «piadas duvidosas» do nosso
vizinho de mesa.

Esta moralidade também cai em sentimentalismo e vitimização excessiva,


esquecendo a própria idéia de responsabilidade. Mais uma vez, em um fer-
vor desonesto, a linguagem é caricaturada e distorcida em seu uso e signifi-
cado. Além da ideia de que o mundo é constituído por dois campos, como
já assinalei acima - o dos bons e o dos bons e o dos maus e o dos maus - po-
demos encontrar nos seus discursos caricaturas contra as palavras «amor»,
«fraternidade», «generosidade» ao «ódio», «egoísmo», «encerramento».
No fundo do debate, há sempre uma espécie de chantagem emocional e de
vítima, jogando sobre o sentimento de culpa e má consciência. E quem não
subscreve isto, quem não se submete, é naturalmente um bastardo. Quem
não tem a ambição de salvar a humanidade, de ser um defensor das víti-
mas de discriminação, dos oprimidos, dos perseguidos, que não é movido
por idéias tão nobres e generosas, é necessariamente suspeito de trabalhar
contra a realização do que é bom e moralmente bom.

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Esta pressão sobre opiniões e comportamentos orquestrados pelos fracos e
seus nobres defensores é tal que toma a forma de uma tirania das minorias
em nome do Bem.

Por tirania das minorias, refiro-me à moralidade dos puritanos expressa


sob a forma de proibições impostas à maioria da opinião pública. Estas são
proibições de pensar, falar e agir. É claro que os meios para alcançar isso
não são a punição, mas a exclusão social. Quem fala diferente ou expressa
uma dúvida, deve ser reduzido a um doente mental ou mesmo a um fascis-
ta. Esta forma de tirania consiste em psiquiatrizar aqueles que discordam:
são loucos, doentes, nazis, anti-semitas, racistas, um monstro, uma besta...
O que está em jogo aqui é nada mais do que a proibição do pensamento e
do questionamento.

Tudo acontece do ponto de vista moral, como se a liberdade fosse um risco


demasiado grande, um perigo que a sociedade não poderia assumir. Mes-
mo a cultura clássica é posta em questão, ainda que emancipe, permite-nos
problematizar, pensar. Por exemplo, lembro-me de actuações de tragédias
gregas que foram canceladas em face de protestos de estudantes de esquer-
da, que viram nelas (como em Os Suppliants de Ésquilo) uma actuação que
foi considerada colonialista e racista.

Finalmente, noto que este reaparecimento do puritanismo sob a forma de


tirania inverte a relação com a maioria que Tocqueville definiu. De facto,
o filósofo francês viu no fenómeno democrático o risco de uma tirania da
maioria, ou seja, de uma tirania de todos os indivíduos e minorias. Hoje,
porém, exatamente o contrário está acontecendo, estamos testemunhando
uma forma de tirania das minorias sobre a maioria.

Por puritanismo moderno, refiro-me ao facto de purificar o discurso, o


comportamento e a moral em geral de qualquer conteúdo destinado a ne-
gar o sofrimento das minorias na história e face aos poderes estabelecidos
(políticos, económicos, mas também forças da lei e da ordem...). A mo-
ralidade do campo do Bem repousa inteiramente na defesa das minorias,
que são consideradas oprimidas em princípio, mesmo que, pelo contrário,
os poderes contra os quais se luta tenham tomado conta da palavra pro-
gressista. O aspecto mais extravagante de tudo isso é que a moralidade se

20
deixa levar, enquanto que, por outro lado, o poder político é tudo por ela.
A pessoa de pensamento certo pode então desafiar a autoridade fazendo-se
passar por rebelde, ou mesmo herói, quando todos os outros concordam
com ele, começando pela própria autoridade pública! O moralista moder-
no apenas reitera a opinião comum, com segurança e segurança, mas com
glória. Ele aplica tiranicamente a lei moral, que é a lei da opinião pública,
no seu nível individual, enquanto vive como um revolucionário, o que o
torna ainda mais ridículo.

Para concluir, eu diria que esta viragem para o moralismo na sociedade


é um amplo movimento ideológico muito heterogéneo. Uma coisa é cer-
ta, este movimento de moralização é real. Ela tende a disciplinar a huma-
nidade e a impor imperativos de pensamento através de vários canais de
divulgação. No entanto, ao recusar-se a abordar o problema do mal-estar
da identidade francesa e europeia, a moralidade progressiva mostra-se in-
capaz de responder às muitas questões sociais - imigração, história e exi-
gências das minorias, comunitarismo, evolução da moral, etc. - que elec-
trificam o debate público. - que eletrificam o debate público. Precisamos,
portanto, de outro tipo de moralidade, que esteja mais em sintonia com a
realidade e sua complexidade.

21
II-Moralidade natural, do prazer
à meritocracia
A crítica à moralidade progressiva que acabo de desenvolver não pode ser
satisfeita com ela mesma. Eu seria então acusado de desconstruir a mora-
lidade tradicional sem propor nada de positivo em troca. No entanto, vou
apresentar-vos o que é a moralidade natural, que é, na minha opinião, o
meio mais eficaz de regular a sociedade.

Em princípio, é difícil definir uma «moralidade natural» porque isso si-


gnificaria isolar uma natureza que não podemos conhecer. Mas podemos
tentar imaginar que elementos a priori, ou seja, universais e necessários,
podem constituir uma moralidade perante qualquer historicidade, perante
qualquer entrada na história e, portanto, perante qualquer ponto de re-
ferência ligado a um espaço cultural.

É claro que toda a moralidade está ligada à cultura e consiste precisamente


em domar a natureza dentro de nós. Contudo, foi isso que Rousseau tentou
fazer no Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens, e ao voltar no tempo, fictício mas operativo, ele conseguiu dis-
tinguir uma moral dentro da natureza. Esta moralidade consistia em dois
elementos: piedade e amor-próprio. Este último não era o amor próprio,
mas o amor da raça humana misturado com um instinto de preservar a
própria vida e a espécie.

Hobbes via a paz e a autopreservação como bens que as leis da natureza


defendem e sobre os quais se baseiam. Destacou assim que o direito natural
e o direito civil são do mesmo tipo, ambos visando a equidade, embora se-
jam partes diferentes da lei. O direito civil e sua legislação, porém, limitam
a lei da natureza - a liberdade natural do homem - a fim de alcançar a paz.

Sem repetir as categorias de Rousseau e Hobbes, eu gostaria de distinguir


três elementos de uma «moralidade natural», ou uma moralidade antes da
moralidade.

22
Estes três elementos, que desenvolverei a seguir, são: a ausência total de
valores morais absolutos dentro da natureza (do tipo bom e mau), uma re-
lação com o mundo baseada na recusa do dualismo, e finalmente o respeito
pela desigualdade natural entre os seres.

Um desvio para um mundo sem moral


Porquê pensar em teoria numa ausência do Bem e do Mal? Porque se re-
movermos todos os seus atributos culturais, se o compreendermos fora de
qualquer plano histórico, então torna-se possível ver o homem como um
ser que simplesmente deseja a conservação do seu corpo e da sua vida,
sem constrangimentos e sem obrigações. Este princípio de conservação
não comanda mais nada do indivíduo do que o gozo do que é necessário
para a satisfação das suas necessidades. Há então um equilíbrio perfeito
entre o que ele deseja e o que o mundo lhe pode oferecer. Neste sentido, o
desejo que ele experimenta não é de forma alguma repreensível, mas simp-
lesmente uma expressão da natureza, é perfeitamente inocente.

Antes do aparecimento de qualquer moralidade, de qualquer noção de


Bem ou Mal, podemos imaginar um homem num estado de natureza a vi-
ver pacificamente consigo mesmo, sem conflitos com os seus semelhantes
e em harmonia com o mundo animal. Ele caça e pesca para comer em
territórios virgens onde a noção de propriedade ainda não existe, e por isso
não rouba nada a ninguém. A própria idéia de roubo é estranha para ele,
ele não conhece mentiras, dissimulações, enganos, ciúmes. Este homem
ainda não está envolvido na espiral da socialização, na qual a comparação
com outros é inevitável a cada momento. Ele vive apenas no momento,
uma espécie de eterno presente onde o mundo corresponde ao seu desejo
por ele.

Uma moralidade natural deve ser entendida como uma relação pacificada
do homem consigo mesmo. Ou seja, ele não está sujeito a imperativos mo-
rais, a mandamentos em vista de um Bem, uma vez que vive num mundo
sem moral. A ausência de moralidade implica uma ausência de deveres.
Ninguém pode impor qualquer lei moral a um homem assim, digamos,

23
um homem natural. Acima de tudo, o desejo em todas as suas formas, a
começar pelo desejo sexual, não é condenável, o prazer não é proibido.

Neste contexto, apenas uma obrigação lhe pode ser imposta, em termos
de amor-próprio, e que é o respeito pelos seus próprios filhos. Claramente,
existe um tabu primordial: o incesto, que constitui a única forma de mora-
lidade, mas por razões de respeito pela própria humanidade. O surgimento
das grandes categorias morais em termos do Bem e do Mal é uma questão
extremamente complexa à qual é impossível para mim dar uma resposta
clara. Pelo menos, parece que eles não podem ser o produto de uma relação
direta entre o homem e a natureza, como já explicamos à luz de Rousseau.
Ou, dito nestes termos: o Bem e o Mal não podem aparecer senão sob o
efeito de uma perturbação na relação do homem com a natureza, ou na sua
maneira de viver e de aceitar a sua própria natureza. O efeito da socializa-
ção para Rousseau poderia ter tido tais consequências.

Eu também poderia ter recorrido a Claude Lévi-Strauss em Les Structures


élémentaires de la parenté, que considera que todas as sociedades são fun-
dadas em estruturas elementares ao nível do casamento e da proibição do
incesto. Mas em todos estes casos, a existência de um tabu primordial não
nos permite compreender a aparência, e muito menos a legitimidade, dos
valores morais tal como os conhecemos. Em outras palavras, o Bem só
pode ser uma invenção, uma fabricação e, portanto, uma mentira.

Dito isto, é realmente uma mentira operativa, uma vez que está na funda-
ção da religião cristã e, portanto, da civilização ocidental e para além dela.
Como vimos com Nietzsche, o Bem é um valor, ou seja, uma interpreta-
ção do mundo, cuja origem esquecemos de questionar e que se apresenta
como uma verdade óbvia. O problema dos valores absolutos é que, por
definição, eles não podem ser questionados, muito menos desafiados. Mas
que legitimidade podemos continuar a dar a este irreflectido? E que valor
pode ser atribuído a qualquer valor, assim que começamos a sondar a sua
profundidade, ou seja, a sua vacuidade?

O som que as estátuas de valores nos fazem é enfadonho, oco e inconsistente.


É por isso que uma moralidade de valores absolutos é sempre ilusória e
enganosa. Em suma, pelo contrário, entendemos que uma moralidade

24
natural se preocupa em assumir que a vida é sem razão, sem explicação, sem
justificação. É uma questão de renunciar ao absoluto para melhor apreen-
der o que está no próprio movimento do mundo. Caso contrário, o risco é
afundar-se no fanatismo daqueles que pensam ter uma verdade definitiva.

A reunificação do mundo
Desde o momento em que tal relacionamento com o mundo é concebível
e o Bem em si mesmo é desafiado, o dualismo é desafiado. Claramente, o
mundo não encontra sua justificação em uma realidade superior, um mu-
ndo além do mundo sensato. Contudo, este dualismo moldou a essência da
nossa compreensão da realidade desde Platão e seu mundo inteligível até
o advento da judaico-cristãncia. Por ver o mundo do ângulo de um Bem
ideal, em oposição a um Mal, tornou possível dissociar duas realidades
(sensível-inteligível), uma das quais é apenas transitória, imperfeita, e a
outra um horizonte insuperável.

Em outras palavras, a moralidade chamada ‘supérflua’ (não natural), a mo-


ralidade fabricada, distingue duas realidades, enquanto a moralidade que
definimos como natural, primordial, vê o mundo na sua singularidade.
Para esta última forma de moralidade, existe apenas um mundo, uma rea-
lidade. Em resumo, tudo já está lá, não há salvação depois da vida, não
há paraíso para se esperar. De facto, todas as sociedades tradicionais da
antiguidade consideravam o mundo como o seu próprio fim e não como
uma passagem para outra forma de vida. O mundo aqui em baixo não tin-
ha outro significado além de si mesmo, nenhum outro horizonte além de
seus próprios limites, nenhum outro propósito além de sua própria morte.

Nesta perspectiva, o mundo é plenamente conhecido no seu funciona-


mento através do desenvolvimento da ciência, mas repousa na ausência
de um duplo ideal que o justifique e, portanto, num mistério que não tem
resposta. Tudo no mundo é conhecido, mas a origem do próprio mundo
é um mistério, sem resposta possível. Neste sentido, a moralidade natu-
ral consiste em aceitar o mundo tal como ele é, e não em lamentar o fato
de que ele não coincide com o que esperamos dele. Entendemos que esta

25
recusa do dualismo tem como consequência não tentar justificar a vida,
não lamentar e não amaldiçoar o que ela é (parafraseando Spinoza). O
mundo, e mais amplamente a vida, é. Cabe às pessoas viver esta vida que
não pediram, e que é sem justificação, mas que é a sua dignidade aceitar e
construir, mesmo na ausência de sentido.

Tal moralidade é fundamentalmente trágica no sentido dos gregos, ou seja,


enfrenta o impossível, mesmo o absurdo do mundo, sem se esconder nas
mentiras da moralidade, no sentido do monoteísmo. Podemos falar aqui de
uma moralidade superior, até mesmo de uma moralidade para os homens
superiores: entendo por isso uma moralidade para os homens livres, uma
moralidade do puro prazer de existir, sem obrigação nem constrangimento.

Quando o dualismo sensato-inteligível é rejeitado, então cai um segun-


do dualismo (que se esconde atrás do primeiro), o dualismo corpo-mente.
Por outras palavras, se o mundo está sem uma realidade superior, então
o próprio homem não está dividido em duas instâncias, uma das quais,
espiritual, comandaria a outra, física. Voltarei a isto abaixo com Spinoza.

Qualquer moralidade do Bem, especialmente na sua compreensão religio-


sa pelo monoteísmo, é susceptível de desvalorizar o corpo, os instintos e o
desejo. Mas a verdadeira moralidade não consiste antes em respeitar a vida
sem a julgar? E, portanto, não moralizar o seu aspecto sensível?

Agora, se a moralidade natural se baseia na rejeição do dualismo, então é


porque devemos voltar ao corpo como o fundamento da moralidade. Isto
não significa que somos apenas corpos sem mente, mas sim que corpo e
mente são um só. Portanto, a verdadeira moralidade é uma espiritualização
do corpo e uma encarnação do espírito. Espiritualizar o corpo é dar direito
aos instintos que são nossos como a própria marca da vida, que por si só é
sagrada. Encarnar o espírito é tornar as nossas representações espirituais
ou mentais sensíveis na matéria, como na arte, por exemplo. Como uma
forma de sublimação do homem por si mesmo, num esforço de criação. A
vida não serve a nenhum outro propósito que não seja criar e, portanto,
utilizar todo o nosso poder. Deste ponto de vista, entendemos que é o ho-
mem que é divino, Deus é apenas uma representação entre outras, às vezes
medos, às vezes esperanças, seres ansiosos ou doentes.

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É assim tão mau estar satisfeito com
as diferenças entre as pessoas?
É evidente que a nossa ideia de moralidade natural era, por assim dizer, a
norma das sociedades tradicionais em oposição às sociedades modernas.
Chamo tradicionais aquelas sociedades que basearam a sua organização
social e política num princípio que já estava presente no momento da sua
aparição e que as justificava. O objectivo da vida em sociedade era, por-
tanto, tornar este princípio eficaz em todos os aspectos da vida colectiva. É
uma questão de estar presente na origem do mundo, porque é o autoritário.

Hoje, em nossas sociedades modernas, tenderíamos a entender uma or-


ganização social como folclórica, retrógrada ou mesmo reacionária, jus-
tamente porque as sociedades modernas entendem sua própria história
como um afastamento do passado e um salto em direção ao futuro, consi-
derado como uma busca permanente de progresso. Mas o que há de mais
justo aos olhos das sociedades tradicionais? E, neste sentido, o que é au-
toritário? Que todos estão no seu lugar, o lugar que é dele por natureza.
E não só que todos o aceitam, mas também que todos se destacam nele.
Sobressair no seu lugar é a verdadeira face de uma sociedade justa para os
Antigos.

Neste contexto, devemos entender que as diferenças que naturalmente


existem entre os seres não devem ser rejeitadas, mas, pelo contrário, valo-
rizadas. Pois se a natureza colocou cada pessoa onde ela está, é porque cada
pessoa tem um papel a desempenhar no seu lugar, na harmonia do todo.
Poderíamos tomar a imagem da biosfera para entender este ponto, onde a
vida é um reino em que cada espécie, cada indivíduo participa em seu lugar
em um equilíbrio que a excede. Em outras palavras, o todo é mais impor-
tante do que as partes, mesmo que as partes participem do todo.

Melhor ainda, não só a moralidade natural é respeitar as desigualdades,


mas também a valorização da hierarquia. Sejamos claros, a hierarquia
existe nas sociedades modernas e democráticas, mas a diferença é que nas
sociedades tradicionais, a hierarquia é natural, enquanto nas sociedades
democráticas ela é escolhida.

27
Por exemplo, Aristóteles, na política, justificou a escravidão como natural.
Certamente, aos olhos contemporâneos, isto parece insuportável, mas sem
ir tão longe, podemos ao menos colocar a questão da hierarquia. Em outras
palavras, nem todos os seres são destinados às mesmas coisas, às mesmas
funções, ou às mesmas vidas. Neste sentido, a ilusão democrática consiste
em pensar que os mesmos direitos fazem as mesmas habilidades. E talvez
devêssemos ver na ideia dos direitos humanos a transposição política de
uma ideia moral cristã fundamental: a igualdade de todos os indivíduos,
desafiando as diferenças. A lei pretende corrigir a natureza, o que nos pa-
rece injusto, mas como Callicles perguntou Sócrates (em Gorgias, Platão),
a lei não é aqui o instrumento dos fracos para triunfar sobre os fortes? A
natureza é realmente injusta? Responda com Spinoza.

O desejo é intocável
O que diz Spinoza sobre a natureza e qual é a sua relação com a morali-
dade? Muito simplesmente, o filósofo pretende tirar o desejo e as paixões
da ordem da moralidade. Na Ética, como mostrei anteriormente no trato,
ele mostra o caráter ilusório do Bem e do Mal como valores absolutos.
Neste contexto, o bem nada mais é do que o que me é útil (auto-valori-
zação). Ele pensa, portanto, numa transição gradual para a liberdade e a
alegria através da emancipação do homem da moralidade.

Para isso, devemos reafirmar a natureza - e em particular a natureza em nós,


ou seja, o desejo e todos os efeitos - independentemente de qualquer mora-
lidade. O desejo não é condenável porque é natural. É apenas a manifestação
de uma dinâmica vital. Só pode ser um mal em vista das suas possíveis conse-
quências ou pressões sociais, mas não em si mesmo. Por outro lado, se o mal
é visto como uma propriedade essencial do desejo, é apenas devido às mito-
logias religiosas do pecado original, que o inscreverão sob o registo de culpa.

Por trás dessa idéia de que o desejo é mau em si mesmo e, portanto,


condenável, há um erro mais profundo que Spinoza aponta, que consiste
em considerar a mente como independente do corpo, e especialmente em
pensar nela como uma instância superior que comanda o corpo. Esta idé-

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ia, já presente em Platão, de que o corpo é o túmulo da alma, é um alvo
privilegiado para Spinoza, porque para ele o corpo e a mente são uma e
a mesma coisa: o homem. Esta última é, portanto, uma modalidade da
natureza. Consequentemente, o desejo do homem não é outra coisa senão
a expressão da natureza e, portanto, é amoral - ou seja, fora de toda a mo-
ralidade, nem bom nem mau em si mesmo.

Em outras palavras, se não há separação entre corpo e mente, isso significa


que a mente não é superior ao corpo e que não comanda o corpo por nen-
huma vontade. Este é o primeiro erro dos moralistas: separar corpo e mente
e considerar que o homem é capaz, apenas pela sua vontade, de controlar
seus desejos e afetos, e assim deduzir que ele é dotado de livre arbítrio.

Para Spinoza, por outro lado, é o apetite, o desejo, e não o livre decreto da
mente, que nos impulsiona a agir. Há, portanto, uma determinação da mente
pelo corpo (como com Nietzsche mais tarde). Todas as nossas ações, idéias,
sonhos ou volições estão sujeitas ao corpo e não ao julgamento da mente
que determinaria a vontade. É sempre um movimento espontâneo do corpo.
Claramente: não há liberdade da mente, acreditar o contrário é uma ilusão.

Daí o segundo erro dos mesmos moralistas para quem o homem, sendo
livre, deve exercer um império sobre si mesmo, a fim de não ceder ao dese-
jo que é, por natureza, um mal a ser evitado. Ele não deve falhar em ser
considerado um pervertido ou mesmo uma pessoa depravada. Mas Spino-
za observa que é impossível controlar os desejos e parar de desejar, simp-
lesmente porque o desejo não é nada mais que o que se é! Renunciar ao seu
desejo é renunciar à sua natureza e, portanto, a si mesmo. Neste sentido
entendemos que o desejo não é uma simples afetação, mas sim a própria
vida do espírito, a essência do homem.

A Spinoza afirma assim que a verdadeira liberdade não reside no chamado


livre arbítrio, mas no poder de compreender a natureza e, assim, de agir no
sentido de uma maior perfeição, ou seja, de nos libertarmos dos preconcei-
tos da moralidade. Este poder de libertação reside inteiramente na razão.
É portanto absurdo rejeitar o próprio desejo sob o pretexto de respeitar um
bem ilusório. Porque o desejo faz sempre parte da ordem comum da natu-
reza, não é imoral e ainda menos irracional, é natural e, portanto, racional.

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Portanto, o desejo também não é a marca de um espírito maligno. Os valores
absolutos podem, portanto, ser descartados como superstição. O verdadeiro
Bem não é um valor, mas consiste simplesmente em que o homem reconhe-
ça a sua natureza como necessária e saiba regozijar-se com o que ela é.

Toda a abordagem Spinozist consiste assim em evitar duas armadilhas:


primeiro, a idéia de um Bem e de um Mal em si, própria da moral teológica
e que pressupõe valores transcendentes, e segundo, a armadilha oposta, ou
seja, um relativismo completo que diria (à maneira de Ivan Karamazov)
que, como Deus não existe, então tudo é permitido.

Vejamos agora o que Nietzsche, influenciado em parte por Spinoza sobre


estas questões, propôs posteriormente elevar o homem ao estatuto de su-
per-homem.

Vamos seguir a nossa natureza, vamos nos tor-


nar sobre-humanos!
Nietzsche sempre foi orientado, guiado, desde a sua juventude - por isso se
apegou a Wagner: sempre procurou o enobrecimento do homem. O que é
que ele diria hoje? No final de sua vida ele disse: dê-me um momento para
ver o sobre-humano; mas é de se temer que o último homem - o homem de
hoje - esteja chegando. O último homem é o homem que não tem desejo,
que se contenta em viver, que se contenta com a mediocridade. O último
homem é o homem que está fisiologicamente e nervosamente exausto, que
já não acredita em nada, que já não quer trabalhar. Nietzsche talvez dis-
sesse que a nossa idade afirma ser a idade da paixão, mas é morna, já não
é realmente espontânea.

O último homem é representado como o antípoda do sobre-humano: há


uma espécie de escolha a ser feita aqui, com a diferença de que o sobre-hu-
mano tem que ser desejado, enquanto o último homem é uma inclinação -
ele se faz a si mesmo. A passividade instala-se nas nossas vidas sem que nos
apercebamos disso. Não precisamos de descer a toda a velocidade: desliza-
mos devagar mas seguramente em direcção ao nada (o nada do pensamento,

30
da cultura, etc.). Este declive, este declínio, acontece muito lentamente e não
requer realmente nenhuma resistência: é por isso que Nietzsche diz que de-
vemos resistir ativamente para não afundar.

Há esta vontade em Nietzsche de não deixar o acaso ditar o nosso modo


de vida, mas de nos disciplinarmos a nós mesmos. «Deve-se estar a cinco
passos da tirania», sem ir tão longe quanto a tirania, porque ela leva à mo-
nomania. A disciplina deve ser muito grande sem ser extrema, de modo a
não reduzir a energia através de conduta excessiva. Devemos dar um pou-
co de liberdade aos nossos «cães selvagens», aos nossos impulsos, sem lhes
dar rédea solta. Não há este desejo de analisar os nossos impulsos para os
gerir, mas este desejo de os deixar ser espontâneos: podem permanecer
inconscientes, desde que encontrem um espaço de expressão.

Da mesma forma, Nietzsche dirá que o pior crime contra a vida é impedir
que a vontade seja o que é, por exemplo, recusar um ser vivo para realizar
o seu poder, para expressar o seu ser. Neste contexto, só é bom aquilo que
permite o acesso a uma maior perfeição da natureza humana; aquilo que é
contrário a esta natureza é mau. Esta maior perfeição manifesta-se na alegria
que experimentamos quando nos sentimos de acordo com o nosso desejo.

Em outras palavras, quando atuo no sentido de fortalecer meu ser e reali-


zar aquilo de que sou capaz, sinto alegria. A verdadeira virtude nada mais
é do que este auto-realização. Este é o ponto mais importante: a verdadeira
virtude e o poder são uma e a mesma coisa. A natureza ou essência do ho-
mem está no que ele tem o poder de fazer, e a sua virtude ou poder é fazê-
lo, não impedi-lo como na moral teológica. Entendemos que a virtude é a
implantação do meu ser, não o respeito de um bem moral. Esta virtude é,
portanto, identificada com o que me é útil neste desdobramento e consiste
no esforço de perseverar no meu ser. O que é verdadeiramente moral não
é outra coisa senão perceber o que somos.

É neste sentido, portanto, que também podemos compreender a questão


da libertinagem. Dom Juan, por exemplo, vai de conquista em conquista
porque ele é um homem, ou seja, livre, e como tal seu desejo vai além de
qualquer norma. A atitude moralizadora aqui seria dizer que Dom Juan é
perverso, até doente.

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Mas viver de acordo com a moralidade natural nos comprometeria a não
julgar Dom Juan, já que é a sua natureza que ele se desdobra. Um liber-
tino - do latim libertinus, «escravo que acaba de ser libertado», «liberto»
- é aquele que questiona os dogmas estabelecidos, é um livre pensador na
medida em que se liberta, em particular, da metafísica e da ética religiosa.

A moralidade natural nos convoca a assumir nossa humanidade, a resis-


tir a uma propensão à covardia e a amar a vida com todos os seus riscos.
Ajuda-nos a aceitar o nosso desejo como ele é e a adoptar uma moralidade
sem obrigações nem sanções, profundamente enraizada na vida, com a
coragem como sua força motriz e o objectivo de elevação e criação, mas
também os prazeres da existência.

Em última análise, a moralidade natural pode ser entendida como um


conjunto simples e limitado de princípios para viver. Precisamos viver para
assumir a nossa humanidade e criar - por exemplo, ter filhos é criar novas
formas de vida. Não devemos lamentar o fato de que o mundo não é o ideal,
mas amá-lo como ele é. É preciso aceitar o próprio desejo sem reprimi-lo
com uma moralidade de obrigações. E finalmente, é preciso ir ao fim da
própria natureza, ou seja, do próprio poder, sem tentar ser o que não se é.

Aderir a estes princípios de vida é escapar a determinismos ocultos. É afir-


mar o poder de ser, de se tornar sobre-humano, no sentido de Nietzsche. É
se tornar um indivíduo cósmico que compreende a totalidade do universo,
toda a história do mundo e se eleva a um nível superior. É ir além da esfera
privada, é mostrar o caminho e dar o padrão do que o homem deve ser. O
indivíduo libertado aponta o caminho para cima. Ele vive sob a égide dos
Dionísios.

O Dionísio é uma noção que Nietzsche define nos parágrafos iniciais de


seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia, e que ele contrasta com o
Apolônio. Dionísio e Apolônio formam um casal e são duas formas de
abordar e entender a vida. O Apolónio é a representação clara e racional
do mundo, o que é reconfortante. O Apollonian permite-nos organizar as
nossas vidas e acalmar a nossa ansiedade perante a violência do mundo. O
Dionísio é a parte do desejo irracional, diz Nietzsche, o poder, que é nosso
e que sempre transborda a razão e o princípio calmante do Apolônio.

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Viver segundo o princípio dionisíaco é, portanto, ceder ao poder criador
da vida, ao impulso vital, mas é também aceitar o sentimento de horror e
pavor que a vida pode despertar quando nos aproximamos demais, quan-
do a vivemos com demasiada intensidade. Provar o poder da vida não é
uma experiência a ser tomada de ânimo leve, não é gratuita, abre a emoção.

A emoção não só cria valores, mas também permite a sua difusão, porque o
impulso vital e o entusiasmo do grande homem são contagiosos. O grande
homem, para usar a expressão de Bergson, tem o poder de despertar a mul-
tidão, de despertar as consciências, mas também de estimular e dar força
para seguir os seus passos. A moralidade dos grandes homens é, portanto,
o impulso vital retirado de sua fonte de criação, é o impulso da vida que
desperta corações e consciências adormecidos no conformismo das regras
estabelecidas para dar-lhes a força para empreender.

Para concluir, gostaria de citar Bergson e sua palestra sobre moralidade


dada no Liceu Henri-IV em 1893. Posso ver claramente como a vida, a
natureza e a moralidade se articulam em um único movimento que leva à
plena realização do homem.

«Mas, se tomarmos a natureza em toda a sua plenitude, se olharmos sob


o estado da tendência, sob o fato da razão pressagiada pelo espírito que a
explica, encontramos que o prazer, o sentimento, o desenvolvimento e as
aspirações intelectuais, tudo isso não é senão o desdobramento de uma e
mesma força, A manifestação do mesmo movimento, o movimento que
leva o homem a ser cada vez mais ele mesmo, a realizar melhor e melhor
esta humanidade ideal que está nele em potencial, e neste sentido, a mora-
lidade é apenas a expansão completa da natureza. »

Um brinde à sua «grande saúde»!


Se a questão é como se livrar da moralidade progressiva, é certo que um
homem sozinho não poderia fazê-lo, e talvez já seja tarde demais porque
não se pode combater uma onda de maré. Nietzsche, por outro lado, acre-
ditava que os ciclos que compõem a história humana podem se esgotar e
dar lugar a novas formas de vida. Talvez devêssemos esperar que este ciclo

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se esgote e chegue ao fim. Talvez também possamos seguir as lições de
Zarathustra e responder com risos. Primeiro porque o riso é pacífico - pelo
menos não violento - e sobretudo porque é uma afirmação de vida e por-
tanto de poder diante daqueles que desejam silenciar os fortes. «Aprende
a rir, homens superiores» é o ensinamento de Zarathustra. Deste ponto de
vista, as possibilidades de gozar da moralidade do esquerdismo, de gozar
com ele, de apontar o seu absurdo, são infinitas.

Para afirmar a vida, temos de recuperar o que o homem é no seu estado


natural. Em certo sentido, todos os nossos esforços consistem em recupe-
rar aquela «grande saúde» da qual Nietzsche falou. É esta naturalidade que
devemos recuperar, e esta inocência, da qual Zarathustra fala, que faz o
sabor da vida! Como se tivéssemos de aprender a amar o que o destino nos
dá - a fadiga amorosa.

O que significa isto para nós, para as nossas vidas? Você ama realmente o
seu amante? Não tenha vergonha de convidá-la para jantar com os mais
«fiéis» de seus amigos, aqueles que estão em uma relação e nunca estiveram
em outro lugar. A vida é curta, e você precisa saber amá-la com seus riscos
para redescobrir o sentido autêntico do Dionísio, e respeitar seus próprios
desejos. Ir até o fim da própria natureza, daquela intoxicação que torna a
existência e as paixões dignas de serem vividas. Numa palavra, da próxima
vez que receberes um convite para uma bela festa, não vás sozinho. Leva a
tua amante contigo!

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