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"Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir ou ver, será que a

árvore faz barulho?” - a questão metafísica que perpassa o debate cultural desde o século XIX
é com certeza cativante para aquele que pausa para refletir sobre ela. O pensamento humano
costuma trilhar o caminho da racionalidade primeiro: “sim, com certeza faz barulho pois as
propriedades físicas do som independem da observação”. Então, chegamos ao
questionamento: como podemos ter certeza de que há uma ocorrência se não a observamos?
O ser humano, enquanto ser social, sentiu a necessidade de elaborar códigos morais
para a convivência e, cercado por outras pessoas na maioria do tempo, tem consciência de
que suas ações têm consequências. Porém, quando não observado, o humano, como uma
árvore no meio da floresta, entrará no limbo da moralidade - não temos como ter certeza que
ele agirá de forma correta ou não. Hoje, na era digital, permeada constantemente pelas redes
de comunicação, estamos cada vez mais conectados tecnologicamente. Com a superexposição
da vida cotidiana, o usuário das redes não mais se sente sozinho. Pelo contrário: sente-se
observado e, além do mais, com a necessidade de postar conteúdo ele mesmo para que os
outros vejam. Estando sempre sob o olhar alheio, cria-se uma moral performativa do ser, que,
então, comporta-se de maneira “boa” - termo ambíguo, dada a não honestidade do ato.
O contexto para isso foi formado nos últimos anos, enquanto proliferou-se a chamada
“cultura do cancelamento”, que é a observação digital do comportamento alheio,
principalmente mas não somente de celebridades, e o “cancelamento” da pessoa que desvia
do que julga-se correto, sendo ela rechaçada e excluída de oportunidades futuras. Cria-se
assim uma forma de vigilância por parte do usuário comum das redes sociais. Com a
exposição privada que existe nas redes sociais, temos a impressão de estar dentro do filme “O
Show De Truman”, no qual Jim Carrey interpreta Truman, um homem comum que, sem
saber, é a estrela de um reality show da própria vida, que é um sucesso entre milhões de
espectadores. Isto é, nos sentimos constantemente observados e examinados. Ainda que a
consciência de justiça social embutida nessa cultura seja importante, o julgamento raso e fora
de contexto nas redes podem facilmente estar equivocados e provocar graves impactos na
vida dos “cancelados”. Dessa forma, por medo do cancelamento, o ser passa a portar-se
moralmente frente a sua exposição digital. Como performance, a bondade e a moral exercidas
e expostas ao público caem como uma luva em qualquer um que consiga reprimir seus
pensamentos “canceláveis” - ou melhor, imorais - do botão de postar.
Um grande exemplo disso aconteceu em 2020, após o triste caso do assassinato do
homem preto George por um policial racista. O caso de Floyd desencadeou uma explosão do
movimento Black Lives Matter - em português, Vidas Negras Importam - e, depois desse
fato, houve uma enorme onda de posts antirracistas nas redes sociais, que proliferavam um
discurso positivo de justiça social e resistência ao sistema racialmente opressivo no qual a
sociedade inteira está inserida. Naquele momento, cada usuário das redes sociais, mesmo
tendo mais ou menos seguidores, pareceu ter-se visto na obrigação de expressar sua opinião e
posicionamento sobre o assunto em questão. Tal expressão foi normalmente feita por meio
dos chamados carrosséis do Instagram, que são posts de 10 imagens em sequência, que
serviam para passar uma ideologia bastante simplificada dentro da ferramenta. Dessa forma,
com um ato que não requer muita reflexão, os indivíduos compartilham os carrosséis e
consideram que, portanto, sua parte na luta está feita. Essa falta de aprofundamento do
ativismo digital fortalece o que Matthew Salzano chama, no seu artigo “TECHNOLIBERAL
PARTICIPATION: BLACK LIVES MATTER AND INSTAGRAM SLIDESHOWS” de
Tecnoliberalismo, uma forma fácil e não necessariamente prática de demonstrar apoio a uma
causa de justiça social, como o Black Lives Matter. Isso significa que, dentro do ambiente de
performatividade presente nas redes, um simples posicionamento aliado à causa acaba sendo
muito mais importante que a ação antirracista de fato.
Entretanto, a noção de observação da moral do indivíduo precede muito as redes
sociais, estando presente desde as civilizações antigas quando falava-se das primeiras
religiões e mitologias. Os códigos e hábitos morais políticos têm uma relação inseparável
com a moral religiosa, que muitas vezes durante a história pautou tais normas sociais. Um
exemplo fácil do ponto que quero fazer é a Igreja Católica, pois, agindo conforme o
julgamento de um Deus onisciente, o ser humano pode exercer sua bondade somente para não
fazer desfeita com o seu Senhor e, portanto, não ir para o Inferno no pós-vida. Não digo que
esse seja o caso sempre, mas, certamente, a bondade que é feita somente pelo medo de
consequências espirituais, e não pela bondade em si, não é tão pura.
Para pensar a natureza da bondade, analisemos a ética de Aristóteles. Segundo ele,
entre dois vícios - ou seja, dois extremos -, há um ponto perfeito, um grau ideal para tudo: o
meio-termo. Essa atitude equilibrada é chamada de virtude por Aristóteles, e tê-la é o que
define uma pessoa boa e de moral valiosa. Vale adicionar que o meio-termo é muito
circunstancial, pois não há modo de agir definido para tudo, e sim a oportunidade de fazer um
julgamento apropriado para cada ambiente. É através da atitude virtuosa que se atinge a
eudaimonia, um conceito pouco objetivo que classifica uma vida feliz e satisfeita, porém não
acomodada. Ainda, Aristóteles pensa que agir da maneira correta não é tarefa difícil, pois,
quando se é virtuoso, tanto o agir como o ser correto vêm naturalmente para a pessoa. Dentro
de tal termo, “naturalmente”, há uma interessante reflexão: pode o ser humano ter uma
bondade in natura? Ou seja, mesmo sem o julgamento social?
Por outro lado, para Kant, a coisa se dá de forma bem mais racional do que natural.
Segundo ele, a moral baseia-se em um princípio racional fundamental: um imperativo
categórico. Dentro da fórmula desse, Kant defende que deve-se agir apenas segundo uma
máxima tal que se possa querer que ela se torne lei universal, assim como agir de modo que a
humanidade própria e alheia seja somente um fim, e nunca um meio. Isso quer dizer que,
independentemente do contexto, as ações são intrinsecamente boas ou ruins para Kant, e tal
distinção seria simples de entender a partir da razão. Sendo assim, por exemplo, não pode-se
mentir para alguém sob nenhuma circunstância, pois a mentira não pode ser universalizada, e
nem a pessoa a quem se mentiu deve ser instrumentalizada. Kant era um deontólogo, que
pensava que as boas ações são julgadas na base do dever, ou seja, das intenções por trás
delas, e se opunha ao consequencialismo utilitarista, que dizia que devemos pensar as ações
baseadas no impacto que suas consequências geram nos outros. Ainda que, ironicamente,
Kant fosse bem intencionado, é possível dizer que, dentro do debate proposto pelo presente
ensaio, ele provavelmente encaixa-se mais na cultura do cancelamento do que na
relativização da moral humana, pois, na sua visão, a circunstância, ou contexto, dentro da
qual uma decisão é tomada não influi no seu valor moral.
Ademais, retomando o tema religioso, podemos debruçar-nos no pensamento do
famoso sábio e filósofo da religião judaica Maimônides do século XII, importante para o
estabelecimento da ética judaica e codificação da moral de acordo com a bíblia. Para ele, há
oito níveis de caridade, que analisaremos com graus de elevação crescente. O primeiro, ou, o
pior, é quando alguém doa de má vontade. Então, vem a situação em que alguém doa menos
do que pode, ainda que de boa vontade. O terceiro se dá quando o sujeito faz sua doação
diretamente ao pobre, porém somente depois que este lhe pediu. Em quarto lugar, vem a
situação em que quem doa e quem recebe se conhecem, mas a doação antecede o pedido.
Seguindo, em quinto, é a conjuntura na qual o recipiente conhece o doador enquanto o doador
não sabe para quem seu presente vai, e, logo depois, em sexto, aquela em que o doador
conhece a identidade do recipiente, mas este não sabe quem o doou o presente. A penúltima
circunstância é aquela em que ambos os lados se desconhecem. E, por último, o oitavo
cenário se dá quando o doador oferece independência financeira, antecipando a dificuldade e
doando em dinheiro, negociando um empréstimo ou oferecendo um emprego ou sociedade
para evitá-la ou preveni-la. Diferentemente do que vemos hoje, Maimônides valoriza
extremamente a boa ação que é feita em segredo, como vemos no sétimo nível. Isso pode
significar que, para despertar aquela natureza virtuosa da qual falava Aristóteles, deve-se
haver um movimento contrário à exposição das boas ações que vemos hoje nas redes sociais,
aproximando-se da noção da caridade em silêncio de Maimônides. Mesmo que na Espanha
dos anos 1100, na época de Maimônides não houvesse redes sociais para levar em conta na
sua escala moral da caridade, fica claro que performar a bondade nas redes sociais seria, para
ele, uma enorme blasfêmia.
O debate da natureza da bondade humana não é de hoje, e, por mais que sempre tenha
sido complexo, parece ter cada vez mais variáveis dentro de uma economia capitalista
fortemente perpassada pelas dinâmicas da era digital. Por mais que a performatividade do
fazer bem possa ser considerada deplorável, a sua influência nos outros poderia ser
considerada muito boa pelos consequencialistas utilitários, que julgariam a proliferação da
moral como mais relevante que intencionalidade torta daquele que posta suas ações para a
validação pública. Enquanto alguns pensadores julgam o sentimento de ser assistido como
desfavorável ao valor da ação moral, podemos também pensar que ele é muitas vezes
inevitável, afinal, enquanto participantes da sociedade nossas variadas ações são, de fato,
observadas em diferentes graus. O fenômeno da performatividade moral pode também ser
atravessado pelo progresso temporal individual, seguindo a lógica do ditado comum em
inglês “fake it til’ you make it” - ou “finja até conseguir” - que exprime a ideia de que não é
necessário o genuíno saber desde o começo de uma atividade, e que de tanto fingir, o
aprendizado real vem com o tempo. Isto é, de tanto performar a bondade, pode ser que o
indivíduo se torne bom de fato. Entretanto, por outro lado, o cenário de superficialização do
debate político para o qual a mídia social contribui é fortemente prejudicial para o progresso
político e para a democratização dos saberes de cidadania.
E a árvore que cai no meio da floresta? Podemos tentar uma abordagem kantiana e
tentar descobrir a razão por trás da sua queda, desvendando as intenções das forças que a
derrubaram e as julgando a partir disso. Podemos, também, conferir a utilidade da sua queda,
e as consequências que ela causa, botando aqui seu valor moral. Podemos ainda, levar
Aristóteles ao pé da letra, e buscar um meio-termo. Todavia, no fim das contas, vigiada ou
não, o fato é que a árvore caiu.

REFERÊNCIAS
HERRERO, F. Javier. Vista do A ÉTICA DE KANT. [S. l.], 2001. Disponível em:
http://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/563/987. Acesso at: 8 Nov. 2021.

NODARI, Paulo Cesar. Vista do A ÉTICA ARISTOTÉLICA. [S. l.], 1997. Disponível em:
http://periodicos.faje.edu.br/index.php/Sintese/article/view/722/1149. Acesso at: 8 Nov. 2021.

O SHOW DE TRUMAN. [S. l.]: Paramount Pictures, 1998.

S. WARZBURGER, Walter. Vista do A POSIÇÃO CENTRAL DA VIRTUDE ÉTICA


EM MAIMÔNIDES. [S. l.], 1993. Disponível em:
http://periodicos.faje.edu.br/index.php/Sintese/article/view/1312/1708. Acesso at: 8 Nov.
2021.

SALZANO, Matthew. View of TECHNOLIBERAL PARTICIPATION: BLACK LIVES


MATTER AND INSTAGRAM SLIDESHOWS. [S. l.], 2021. Disponível em:
https://www.spir.aoir.org/ojs/index.php/spir/article/view/12034/10417. Acesso at: 8 Nov.
2021.

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