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INTRODUÇÃO

A ética da publicidade e da grande mídia deve ser discutida, uma vez


que as práticas destas vêm influenciando diretamente a constituição do
psiquismo humano. É de suma importância que o Psicólogo tenha
conhecimento acerca destes fatos, uma vez que eles fazem parte da nossa
atual organização social e vem corroborando com a geração do adoecimento,
não só do indivíduo, como também da sociedade e de suas relações.

Já nos dizia Debord (1997) ao definir a Sociedade do Espetáculo, a


mercadoria ganhou tamanho poder e centralidade que já não é possível
dissociá-la da própria vida social. O ‘ser’ hoje já não pode nem ser definido
como ‘ter’, mas sim como ‘parecer’. A mídia e a publicidade tomaram conta de
nossas relações e permeiam nossas escolhas e necessidades; a linguagem do
espetáculo é caracterizada como o fim e o meio de nossa organização social. A
percepção individual é mediada por imagens fantásticas, que acabam
permeando a constituição de um psiquismo baseado na falsa realidade. Nas
palavras de Debord:

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (...) se


expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais
aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos
compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao
homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus
próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa
por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar
algum, pois o espetáculo está em toda a parte.” (Debord, 1997. Pág. 24)

Por estar preocupada com a saúde psíquica e, consequentemente,


social, a Psicologia deve refletir criticamente as ações da mídia e da
publicidade como mediadoras na construção da subjetividade. A ética que
deveria ser adotada por estas instâncias, vem sendo negligenciada
insistentemente pelas empresas e hoje podemos observar claramente os
efeitos disto nas atitudes dos indivíduos expostos massivamente aos meios de
comunicação. Klein (2008) discute em seu trabalho a atitude das empresas e
grandes corporações de comercializar e utilizar como estratégia de branding
todos os espaços, todos os saberes e produções culturais,
indiscriminadamente, em busca de lucro, bombardeando os indivíduos com
imagens e ideais de consumo e limitando assim a atuação do próprio homem
sobre seu meio.

O poder irrestrito da grande mídia sobre as pessoas torna estas


vulneráveis a sugestões e restringe a possibilidade destas de pensar, refletir e
construir conhecimentos acerca do mundo em que se encontram. Assim como
o Grande Irmão de George Orwell, em 1984, a mídia de hoje dita aquilo que as
pessoas encaram como real e incita os indivíduos a não questionar sobre a
verdade anunciada. A ética, que deveria medir o que é ou não aceitável
socialmente, tendo em vista o bem comum, parece ter desaparecido da grande
mídia ao mesmo tempo em que esta se diz moral. A ilusão a que estamos
submetidos nos faz questionar sobre o que é ou não ‘real’ e somos obrigados a
admitir que não podemos afirmar até que ponto dois e dois são cinco1.

O presente trabalho visa alertar os Psicólogos acerca deste elemento


que vem permeando a vida dos sujeitos de maneira cada vez mais direta; a
problematização das atitudes da grande mídia no que diz respeito a ética será
refletida com o intuito de trazer à tona uma discussão que deve tanto ser feita
entre os profissionais da profissão quanto dentro dos consultórios.

1
No livro 1984 de George Orwell, o personagem principal é obrigado a admitir que dois
e dois são cinco, reflexo de sua submissão e impotência frente ao Grande Irmão, que
diz que ‘será assim caso o desejar.’
2. DESENVOLVIMENTO

Para melhor compreender a influência da grande mídia sobre os


indivíduos, será feita uma apresentação resumida do conceito de consciência
sobre a perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica. A consciência, nesta
abordagem, é entendida como o ato psíquico experienciado pelo sujeito e, ao
mesmo tempo, como a expressão de suas relações com o mundo. Consciência
é aquilo que orienta o sujeito no mundo na medida em que este apreende a
realidade objetiva, permeada por conteúdos construídos socialmente, e a
elabora a sua própria maneira. Como conteúdo da consciência temos os
significados estabelecidos socialmente, que são supraindividuais, e os sentidos
estabelecidos pelo indivíduo de acordo com suas vivências pessoais. A
atividade, vista aqui como mediadora da relação do homem com o mundo, está
imbricada com a consciência, de maneira que não há atividade sem
consciência nem vice versa. Isto implica afirmar, por exemplo, que a
consciência tem sua gênese na atividade, e, portanto, constitui-se ao longo da
vida e também que a atividade é regulada por esta mesma consciência.

Sendo assim, se o mundo objetivo oferece ao indivíduo modelos de


relações corrompidos pela falsa imagem, pela fantasia, este tenderá a
apropriar-se de ideais que são verdadeiros apenas aos interesses de poucos.
Ao veicular na grande mídia modelos criados minuciosamente por empresas
ambiciosas, aquilo a que se expõe os indivíduos estará comprometido. Tanto a
consciência social quanto a individual acabam por sofrer alterações pela
internalização destas informações propagadas em todo o lugar. O resultado
desta cansativa exposição à propaganda, marketing, branding e afins é a
compreensão coletiva de um mundo imutável cuja normalidade está vinculada
aos comportamentos de consumo e desejo desenfreado por mercadorias
vazias de significado. Podemos dizer, portanto, que a ideologia permeia esta
relação, pois é ela que impõe os valores consagrados pela classe dominante
neste aspecto naturalizante e de imutabilidade.

Esta relação com um objeto ‘anunciado’, um objeto falso e permeado por


interesses lucrativos tem visivelmente um lugar crescente na subjetividade
humana. A coisificação do mundo e a experimentação das vivências como
mercadorias passíveis de consumo e de descarte são exemplos de
consequências da influencia da mídia.

A vida é anunciada como mercadoria e as mercadorias anunciadas


como vida; os homens são consumidos pelos ideais midiáticos e têm suas
necessidades ditadas por imagens surreais e espetaculares que possuem
apenas um objetivo: o crescimento desenfreado de empresas cujos donos
enriquecerão para sucumbir tristemente a mesma lógica que criam com suas
imagens fraudulentas.

Onde fica então a discussão da ética? Embora teoricamente existente e


esporadicamente mencionada nestes mesmos meios de comunicação
corrompidos, até a ética de hoje parece estar alienada. Ético, para a ideologia
dominante é aquilo que dá vazão e espaço para o consumo: a garantia de
propriedade privada, a dita ‘liberdade’ de escolha, o mérito pessoal, o
reconhecimento do outro como merecedor de certos privilégios, etc.

O social e coletivo desaparecem da ética nos dias de hoje na mesma


medida em que desaparecem da televisão, da internet, dos filmes, das
revistas... O foco no indivíduo, interessante a sociedade do consumo, torna
cada vez mais válida a meritocracia, o egocentrismo e, principalmente, a
competitividade. As mercadorias criam novas necessidades nos sujeitos,
tornando-os vítimas de seus próprios desejos. A mercadoria é vista como
critério para a suprema felicidade, porém, assim que adquirida, perde seu valor
para àquilo que ainda não se tem. O homem exposto exaustivamente a grande
mídia nunca está satisfeito, uma vez que nunca possui tudo aquilo que quer.
Esta insatisfação traz o adoecimento individual e social. Individual nos sintomas
de ansiedade, depressão, estresse, etc. Social pelas próprias relações pobres
de envolvimento e cheias de receios e medos.

O completo esquecimento do outro torna o indivíduo insensível à miséria


e degradação alheia. O outro não existe ou apenas existe num mundo paralelo,
o mundo da negação. Sentimentos de empatia são cada vez menos presentes,
e a impaciência e intolerância são diariamente presenciadas em nossos
cotidianos.
Poder-se-ia dizer que não há como julgar eticamente a atitude da mídia
apenas levando em conta impressões de degradação do mundo,
aparentemente sem ligação direta com os meios de comunicação. Poder-se-ia
inclusive dizer que não há como julgar o que é sentir-se bem ou mal, muito
menos que estes estados sejam determinados por um elemento específico.
Contudo não se pode negar a origem sócio-histórica do homem nem a
importância de suas relações com o mundo objetivo, que, ao mesmo tempo
que modifica o homem é modificado por ele em igual intensidade. A apreensão
de um mundo em que vigoram determinadas leis tende a naturalizar uma certa
atuação neste como correta, e, assim, as práticas do indivíduo no mundo
colaborarão para a permanência de características socioculturais estabelecidas
a priori.

Como fantoche da ideologia, a mídia corrobora para a distorção da


realidade e para o adestramento da consciência social. Seria a própria
ideologia... ética? E quem define a ética? A ideologia? Aquilo que é ético deve
sobrepor-se ao ideológico para que seja realmente ético. O ‘bom’ e o ‘mau’ não
são necessariamente a questão central da discussão quando se fala destes
comportamentos éticos, a ética só é possível quando existe liberdade de
consciência, quando existe a superação dos pensamentos ideológicos. Uma
vez superados estes pensamentos temos que a grande mídia é uma gama
complexa de meios de comunicação que tem muito a oferecer em favor do
desenvolvimento humano. Desenvolvimento aqui entendido como consciência
de papéis sociais e individuais e superação das necessidades alienadas.

A mídia caminha por todas as classes, devido a sua abrangência. Está


presente hoje em quase todos os cantos do mundo. Entretanto vemos que
aquilo que a mídia veicula, tirando algumas exceções, está muito abaixo do
que poderia oferecer em termos de desenvolvimento humano. Seu papel
jornalístico é visivelmente enviesado por interesses regionais, nacionais ou
coorporativos. O entretenimento não tem função alguma se não o de veicular
padrões de vida a serem almejados. Os raros programas ditos ‘educativos’
muitas vezes também são permeados de reflexos ideológicos.
Para que serve então a mídia, além de expor as últimas novidades da
ideologia dominante? Questionar a ética neste caso já não é tão absurdo. Um
meio de tamanha proporção e abrangência deve ser manipulado com cautela e
ter objetivos discutidos coletivamente. Dizemos-nos democráticos, porém
aquilo que é produto da história e, portanto, propriedade de todos os homens, é
tomado pelas empresas sem que questionamentos sejam realizados, como se
fosse natural e esperado. Essa passividade é também consequência do
conformismo ideológico e da alienação.

Onde entram então os psicólogos? A estes profissionais, comprometidos


com a saúde individual e social cabe o conhecimento e discussão destes
elementos. De nada serve o conhecimento se este não é compartilhado e
discutido, portanto a atitude ideal dos psicólogos deve servir ao esclarecimento
no cotidiano popular de relações que permeiam nossa sociedade. O papel
social e a construção histórica da sociedade são elementos de suma
importância na discussão em consultórios, em escolas, organizações,
comunidades e no meio acadêmico, não devendo ser deixadas de lado ou
negadas.

Muito daquilo que se caracteriza como sofrimento individual hoje em dia,


é consequência da organização sufocante em que nos encontramos. A mídia
atua criando desejos e falsas realidades, frustrando indivíduos e causando
adoecimento social. Por seu papel junto à subjetividade humana, o psicólogo é
um profissional capaz de atuar causando reflexões acerca destas questões. A
ética pode não vir com a ideologia, porém ela pode existir com aqueles que a
refletem.
3. CONCLUSÃO

Podemos tirar destas discussões três grandes temas: a atuação


ideológica da grande mídia, questões acerca da ética de utilização destes
meios de comunicação, uma vez que estes são propriedade de todos os
homens e o papel de mediador de reflexões dado ao Psicólogo em sua
atuação.

Basta que nos afastemos por um momento da vida cotidiana e


observemos atentamente para perceber que o mundo de ficção científica de
George Orwell já não está tão longe de nós. Por todos os cantos somos
rodeados de informações cuja origem desconhecemos e somos acostumados a
crer naquilo que a grande mídia nos transmite sem questionar. As
consequências disto tem nos tornado passivos e conformados, além de
insensíveis e impacientes uns com os outros.

Como meio abrangente de informações, a mídia deve repensar sua


atuação uma vez que vem sendo utilizada apenas como fantoche da ideologia.
Com diversas possibilidades de trazer benefícios a humanidade, é de se
pensar por que não reivindicamos o direito de decidir o que queremos ou não
que seja exposto a nós e a nossos descendentes.

O primeiro passo em direção a ética neste caso é o de libertação


ideológica. Mesmo que a total libertação da ideologia seja impossível, uma vez
que a ideologia sempre permeou e, provavelmente, sempre irá permear a
atuação humana, o esclarecimento dos indivíduos sobre o tema é necessário
para expandir conhecimentos e para expandir a própria consciência. Uma vez
esclarecidos, os indivíduos podem enfrentar a opção de escolher entre manter
a passividade ou agir. Embora aparente ser utópico, os meios de
comunicação são o ponto inicial de uma possível revolução. Por sua
centralidade na disseminação de informações e pelo hábito de não
questionamento dos indivíduos alienados, a mídia tem grande poder para
moldar ideais e posicionamentos. Para uma revolução, a exposição da verdade
é ponto crucial, sendo, portanto necessário o controle do trânsito de
informações.

Em síntese, a alienação, apoiada pelas ações da mídia, é o ponto de


partida no trabalho dos Psicólogos comprometidos com a ética. Esta deve ser
trabalhada com o objetivo de desvelar a ordem social e as relações que nela
vigoram, levando assim a uma reflexão individual em relação ao papel social do
homem. A função da mídia também é importante aspecto a ser amadurecido na
consciência dos sujeitos que se submetem ao trabalho do Psicólogo.

A este profissional fica a responsabilidade de não enviesamento das


interpretações e de balancear em seu exercício tanto questões relativas ao
psiquismo e a individualidade quanto questões sociais; sempre tendo como
pressuposto a unidade psico-social na construção da subjetividade humana.

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