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O equilíbrio do Twitter, do Batman e de Watergate

O que têm em comum o Batman, o filme “Todos Os Homens do Presidente" e o


Twitter? Todos eles são produtos de uma sociedade sem fé nas instituições de justiça, lei e
ordem. Por isso, em todos esses casos, a cidadania e o vigilantismo se tornam sinônimos.
Aqui, me refiro ao vigilantismo como a punição de um crime por aqueles que não teriam o
poder nem a obrigação para isso, e peço ajuda a velhos amigos “cabeça” para desenvolver
essa ideia.

Começando pelo começo, para os filósofos contratualistas Thomas Hobbes e John


Locke, viver em sociedade é produto puro da nossa racionalidade. Assinamos um contrato
social imaterial para sair do chamado “estado de natureza”, a selvageria, e abrimos mão de
algumas liberdades a fim de viver com mais segurança. Desse jeito, saímos do modo de
sobrevivência, onde vale tudo, e acordamos que temos direitos naturais que devem ser
respeitados coletivamente, como a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade. Essa foi a
forma que esses pensadores encontraram para justificar a existência da autoridade de um
Estado, e, portanto, de suas instituições.

Agora que já entendemos porque vivemos em uma sociedade estatal, é Émile


Durkheim que nos traz mais uma perspectiva do assunto. Durkheim é dito por alguns o avô
da sociologia - não o pai - por praticá-la nos tempos em que ela mal existia. E é na sua
proto-sociologia que Durkheim desenvolve o conceito de “anomia”. Para explicar o que é
isso, o sociólogo argumenta como o ser humano é, por natureza, insatisfeito. Porém,
diferente dos outros animais, os desejos e limites do ser humano não são definidos pelo
biológico, e sim pela sociedade, sendo essas regulações e regras um “fato social”. A
anomia é o que acontece quando o fato social falha: é o sentimento gerado pela falta de
normas coletivas, pelo enfraquecimento daquilo que é abrangente a todos, pela crise dos
códigos culturais. A instabilidade e a insatisfação da anomia, defendia Durkheim, podem até
levar ao suicídio. Porém, para o nosso fio de pensamento, basta entender que a sensação
de falha no sistema regulatório comum a todos gera uma angústia social interna no ser
humano da sociedade moderna.

Para terminar o nosso diagnóstico social, podemos analisar o pensamento de Alexis


de Tocqueville, um francês descendente de aristocracia perseguida na Revolução
Francesa. Em 1830, foi estudar a sociedade estadunidense, trabalho que mais tarde o
estabeleceria como o fundador da Ciência Política. Vendo a democracia dos Estados
Unidos, percebeu que jamais poderia acontecer uma revolução no país. Isso porque a
estratificação social se dava de modo que a classe média era a dominante, e não havia uma
polarização entre o rico e o pobre. Ao contrário de Marx, que acreditava que a classe média
se tornaria parte da revolução do proletariado, Tocqueville argumenta que cada um da
classe média protege sua propriedade por medo de perder o que tem, por pouco que isso
possa ser. Além de nos falar sobre a crença da mobilidade social, o ponto de Tocqueville
nos diz muito sobre o individualismo moderno. No capitalismo, os membros da sociedade se
preocupam muito mais com si mesmos do que com o coletivo. Isso quer dizer não só que o
coletivo enfraquece, mas que o indivíduo é empoderado, e se sente mais importante do que
nunca.
No nosso apanhado, concluímos que: o ser humano quer viver em uma sociedade
onde haja normas coletivas para poder prosperar individualmente. Porém, nem Locke, nem
Hobbes, nem Durkheim, nem Tocqueville puderam presenciar o que vemos hoje nas
democracias liberais do ocidente. Esse empoderamento do indivíduo hoje é maior do que
nunca. Temos redes sociais, que dão voz - ou a ilusão dela - para qualquer ser humano
com um email registrado; temos acesso à informação mais facilitado e transparente do que
nunca; e temos a concentração de renda e saber em uma elite intelectual pequena que,
portanto, se sente invencível. Bom, o que toda essa bagunça tem a ver com o Batman, o
Twitter, e “Todos os Homens do Presidente”? Todos os três são produtos da soma da
anomia social com esse empoderamento individual, e todos se sentem capacitados para
exercer o papel de órgãos regulatórios. Todos caem, mais ou menos legitimamente, em um
tipo de vigilantismo. Analisemos um por um.

Bruce Wayne era criança quando viu seus pais serem assassinados por um ladrão
que nunca foi pego. Sem ter fé no sistema de justiça que o deixou órfão, ele vira o Batman,
um super-herói que pode não ter os superpoderes, mas com certeza tem o dinheiro, para
conseguir lutar contra o crime. Seu trauma gera sua anomia, e sua riqueza o permite tomar
o rumo individualista do vigilantismo, e cumprir o papel da polícia apesar de ser um cidadão
comum.

O Twitter é a rede social conhecida por, entre dezenas de outras coisas, ser o berço
do que chamamos de “cultura do cancelamento”, uma denúncia civil pública baseada na lei,
na moral e na justiça social. Por exemplo, casos de famosos que, no seu passado, tenham
cometido algum crime pelo qual nunca responderam, como algum caso de assédio. A
revolta que isso gera no público é um tipo de anomia. Por ver aquele indivíduo de muito
sucesso e valor na sociedade e o atrelar a algo contra a norma, esse usuário precisa que as
regras também se apliquem ao famoso em questão. Caso contrário, o fato social deixa de
ter sentido. Empoderados pelas redes, nascem os vigilantes da internet, que dedicam horas
da sua vida para cumprir o papel de bússola moral pública e apontar os crimes impunes à
justiça. Quando “cancelam” centenas de famosos, os usuários do Twitter sentem que
cumprem o papel de juízes, apesar de serem cidadãos comuns.

Por último, “Todos os Homens do Presidente”, filme de 1976, conta a história de dois
jornalistas estadunidenses que trabalham juntos para desmascarar um crime de
espionagem federal do partido republicano com o democrata. Suas investigações resultam
na renúncia do presidente Nixon, que sabia dos crimes de Watergate o tempo todo. O
Jornalismo do século XX se aproxima, mais que antes, de um compromisso com a verdade.
Pode-se dizer, um vigilante da verdade. Isso porque, num mundo onde a informação é mais
ampla e acessível, a desconfiança pública nas instituições estatais - outro tipo de anomia -
torna-se consenso, e o Jornalismo vem como ferramenta de “justiça cidadã” organizada.
Isso é facilmente exemplificado pelo que ocorreu em Watergate, tanto pelo lado de que
membros do governo foram responsáveis pelos crimes, como também que as próprias
instituições de justiça, como o FBI, não fizeram seu trabalho em investigar o caso com
eficiência. Nos tempos recentes, os jornalistas se institucionalizaram como responsáveis de
um poder fiscalizador dos órgãos públicos, apesar de serem cidadãos comuns.

O que isso significa para a nossa sociedade? Tentei formular uma conclusão
sozinha, mas preciso convocar um último velho cabeça para a questão. Uma das maiores
investigações de Aristóteles é a “eudaimonia” - palavra grega que conceitua a vida plena,
bem vivida e feliz. Para ele, quando conseguimos usar nossa virtude moral para encontrar o
meio termo entre dois extremos - uma falta e um excesso -, encontramos a eudaimonia. Por
exemplo, mesmo que a coragem seja algo normalmente vista como virtuosa e a covardia
como fraqueza, na ocasião de uma pessoa ser atacada por um leão, é melhor que ela não
banque a corajosa, pois será comida pelo leão. Ela deve, analisando as circunstâncias,
achar o meio termo, o equilíbrio, para que ela também não paralise de medo e, de qualquer
forma, seja comida pelo leão.

Se a sociedade buscar sua eudaimonia, descobrirá que seu equilíbrio é encontrado


quando não deixamos que a anomia nos desespere, mas também não violamos o contrato
social por causa dela. É justamente entre esses extremos, que podem ser simbolizados
pelo suicídio e pelo homicídio, que existe todo o nosso sistema social, com nossas
instituições e nossa cultura. Talvez o Batman, o Twitter e o Jornalismo se aproximem do
ponto médio ideal, onde a anomia serve como determinação para a mudança social em
torno de uma sociedade mais justa e igual - em torno da eudaimonia. E, desde que você
não seja o Coringa, um assediador impune ou um corrupto indiscreto, isso deve ser bom o
suficiente para que eu não seja responsável por você cair na anomia.

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