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ESPECIAL 60 ANOS DO GOLPE A DITADURA INSTALADA EM 1964

AINDA ASSOMBRA O BRASIL. ESCREVEM MINO CARTA, LUIZ GONZAGA


BELLUZZO, ENEÁ DE STUTZ E ALMEIDA, IVANISA TEITELROIT MARTINS,
LENEIDE DUARTE-PLON, MARGARIDA SALOMÃO E MARIA RITA KEHL
ANO XXIX N° 1304 R$ 31,90
3 DE ABRIL DE 2024

Resolvido?
AS ÚLTIMAS PEÇAS NA
INVESTIGAÇÃO DO ASSASSINATO
DE MARIELLE FRANCO
INÊS 249

Sua
solidariedade
muda vidas
de crianças, jovens
e famílias em situação
de vulnerabilidade!
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de educação, segurança
alimentar e inclusão
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INÊS 249

3 DE ABRIL DE 2024 • ANO XXIX • N° 1304

Ao criar uma narrativa


para o bolsonarismo,
Cid corre o risco de
perder os benefícios
de sua delação. Pág. 42

6 A SEMANA 3 1 M A R I A R I TA K E H L Os evangélicos
40 A N Á L I S E
32 M A RC H A DA D E M O C R ACI A estão longe de ser um
Fazer o percurso inverso grupo monolítico e
Especial Ditadura
dos golpistas é uma forma facilmente manipulável
16 M I N O C A R TA No país da
democracia impossível de nos libertar do passado 42 E M F U G A? O camping na
embaixada da Hungria
18 M A R I O N E T E S Os militares
complica ainda mais a
deram o golpe, mas quem Seu País situação de Bolsonaro
puxava as cordas eram

Plural
O projeto
34 E N S I N O M É D I O
os norte-americanos aprovado na Câmara

50
22 1 97 9 A Lei da Anistia não sana todos os vícios Economia
não é ou não deveria ser da reforma de Temer Um pacote de
46 INTEGR AÇÃO
sinônimo de esquecimento 37 E N E R G I A Os parques obras de infraestrutura
24 M E M Ó R I A Da passeata eólicos e solares também reforça o intercâmbio VEJA ESTAS A C E R V O R E V I S TA O C R U Z E I R O E L U L A M A R Q U E S /A B R

dos 100 mil à militância geram impactos, mas na América do Sul e CANÇÕES
em uma organização de é possível mitigá-los a conexão com a Ásia
resistência à ditadura
28 L U T O Os 50 anos do TRÊS FILMES EM CARTAZ E UM
suicídio de frei Tito QUARTO PRESTES A ESTREAR
de Alencar, torturado ATUALIZAM O DIÁLOGO ENTRE O
nos porões do regime CASO ENCERRADO? CINEMA E A MÚSICA BRASILEIRA
A PF APRESENTA OS MANDANTES
52 T H E O B S E R V E R A vergonha gera lucro
Capa: Pilar Velloso. Fotos: DO ASSASSINATO DE MARIELLE, 54 L I V R O S Os breves e potentes ensaios
Mário Vasconcelos/Câmara
Rio e Acervo Correio da MAS AINDA DEVE UMA DEVASSA NO de Safatle 56 S A Ú D E Por Drauzio Varella
Manhã/Arquivo Nacional “ECOSSISTEMA CRIMINOSO” DO RIO 57 A F O N S I N H O 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) de encarcerados (pobres e negros),
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva maior vai ser o lucro. Antes, só o narco-
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis tráfico faturava. Agora, os empresários
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich também poderão ganhar. A pele negra
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub volta a ser mercadoria.
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, André Costa Lucena, Daniel Freire
Antonio Delfim Netto, Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia
Xakriabá, Celso Amorim, Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro,
Drauzio Varella, Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo,
Guilherme Boulos, Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, CASSE UM, LEVE DOIS
Lídice da Mata, Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila,
Marcelo Freixo, Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias,
Não é possível que a Justiça
Ornilo Costa Jr., Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Eleitoral do Paraná permita que
Riad Younes, Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo esse jogo sujo seja oficializado. Mais ab-
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
surdo será o povo paranaense se sub-
CARTA ONLINE meter a tamanha insanidade. Votar em
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira qualquer um desses nomes para repre-
EDITORES: Getulio Xavier e Leonardo Miazzo
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), sentar um estado com tamanha impor-
Camila Silva e Marina Verenicz UM GOLPE PELO OUTRO tância seria um desatino.
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
ESTAGIÁRIOS: Sebastião Moura A Polícia Federal faz um excelente Antonio Alves
REDES SOCIAIS: Caio César trabalho para desvendar a trama
SITE: www.cartacapital.com.br
golpista. Passados quase 60 anos do OS DONOS DA RUA
golpe de 1964, setores das Forças O Haiti é um espinho na carne da
Armadas e o governo anterior maquina- América branca: os negros escra-
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. ram novamente, desta vez contra a vizados se revoltaram, deram uma surra
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150
Constituição, o País e o novo presidente memorável no exército de Napoleão
PUBLISHER: Manuela Carta democraticamente eleito. Não devemos e conseguiram a independência do país.
GERENTE DE NEGÓCIOS: Henrique Rogatto
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene dar trégua ao esquecimento, para que Desde então, a população local sofre
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo esses crimes não se repitam. por isso. A França cobrou uma indeniza-
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo Pedro Luís Vargas ção impagável que está na origem das
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios mazelas do país. Não nos enganemos:
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Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva Lula passou de “acordista” para há quem queira que o Haiti sirva
submisso. Só fala grosso e bonito de exemplo de como ex-escravizados
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RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
no exterior. Com os militares, a Faria Li- não sabem se governar.
enio@gestaodenegocios.com.br ma e os agroboys, a coisa muda. Cesar Augusto Hulsendeger
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O BRASIL Precioso e oportuno artigo, preza-
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br E O JARDIM EUROPA da Maria Rita Kehl. Os torturado-
Estranho tudo isso. Quem tem a res e assassinos de ontem não deveriam
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda.
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001.
ganhar esnoba o acordo Mercosul- ser anistiados, mas punidos como foram
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 -UE. Quem tem a perder deseja assiná- os ditadores dos nossos países vizinhos.
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se -lo. A postura brasileira é grave, sobretu- A presidente Dilma Rousseff foi, de fato,
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou
do partindo de um governo que defende vítima de uma revanche por ter criado a
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel a justiça social e uma postura altiva nas Comissão da Verdade. Jair Bolsonaro,
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584,
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
relações internacionais. O Brasil brigou como um bom covardão que é, tenta sur-
acordo com a Lei de Imprensa. por dez anos contra o subsídio dos EUA far na onda da impunidade histórica, que
ao algodão produzido por agricultores beneficiou seus antecessores fardados
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL)
norte-americanos e venceu a disputa na com essa conversa de “pacificação geral
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos Organização Mundial do Comércio. Será da nação”. Uma ova, todos os extremis-
que estamos regredindo? tas, depredadores e conspiradores das
José Carlos Gama eleições de 2022 devem ser exemplar-
mente julgados e punidos, para não se
UM DEBATE VICIADO repetir neste país toda a tragédia que
Com a privatização dos presídios, vivemos. Precisamos quebrar os ovos
o proibicionismo tornou-se um da serpente do fascismo.
grande negócio. Quanto maior o número Paulo Sérgio Cordeiro

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
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A Semana
O tabu das drogas

Cresceu o porcentual Com o relaxamento


de brasileiros contrários da fiscalização,
à descriminalização do porte muitos invasores
voltaram ao território
de maconha para uso pessoal,
revela uma recente pesquisa
do Datafolha. Informados
de que um julgamento no
Supremo Tribunal Federal
poderia liberar a posse
de pequenas quantidades
da droga, 67% dos
entrevistados disseram
ser contra a proposta.
Em setembro de 2023,
esse porcentual era de 61%.
Do outro lado, 31% apoiam
a descriminalização,
índice abaixo dos 36%
verificados no ano passado.
O instituto consultou 2.002 Terra Yanomâmi/ tamento à crise humanitária são monitoradas
pela Casa do Governo em Boa Vista, inaugura-

Reforço na
eleitores com mais de 16
da no fim de fevereiro e responsável pela coor-
anos, nos dias 19 e 20 de
março, em 147 cidades. denação dos trabalhos de 31 órgãos federais

desintrusão presentes na TI Yanomâmi e em Roraima. O


orçamento reservado para combater o crime
Lewandowski autoriza organizado e fortalecer os serviços de saúde
envio da Força Nacional indígena na região soma 1,2 bilhão de reais.
De acordo com o Ministério dos Povos In-
para expulsar garimpeiros
dígenas, houve uma redução de 85% das áre-
as de mineração ilegal no território Yanomâ-

O
ministro da Justiça e Segurança mi entre fevereiro e dezembro de 2023, além
Pública, Ricardo Lewandowski, da destruição de 340 equipamentos utiliza-
autorizou o envio da Força Nacio- dos pelos garimpeiros. A força-tarefa monta-
nal, por 180 dias, para auxiliar na da pelo governo federal no início do ano pas-
desintrusão de invasores na Terra Indígena sado conseguiu remover a maior parte dos 20
Yanomâmi, em Roraima. Segundo a portaria, mil intrusos, mas muitos retornaram com o
publicada na segunda-feira 25 no Diário Ofi- relaxamento das ações de fiscalização.
cial da União, os agentes colocarão em prática Atualmente, existem cerca de 5 mil invaso-
o plano apresentado pela Casa Civil ao Supre- res na reserva, estima Júnior Hekurari Yano-
M A X W E N D E R / C A S A M I L I TA R / G O V E S , P F /

mo Tribunal Federal para o enfrentamento mâmi, representante dos Yanomâmi na Se-


ICMBIO E SÉRGIO BARZAGHI/GOVSP

da crise humanitária, agravada pelo avanço cretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Minis-
do garimpo ilegal e da degradação ambiental. tério da Saúde. No ano passado, os casos de
O emprego da Força Nacional ocorrerá em malária, pneumonia e desnutrição severa al-
articulação com os órgãos de segurança públi- cançaram um ponto sem precedentes no ter-
ca locais e com a Fundação Nacional dos Po- ritório, provocando a morte de 363 crianças e
vos Indígenas (Funai), sob a supervisão ope- adultos. “São doenças e mortes que poderiam
racional da Polícia Federal. Os agentes tam- ter sido evitadas, há cura para isso”, desaba-
bém poderão atuar no combate a queimadas e fou o líder indígena, ao conversar com a re-
crimes ambientais. Todas as ações de enfren- portagem de CartaCapital em fevereiro.

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3.4.24

São Paulo/ Matança desenfreada


Banido do OnlyFans

Foragido nos EUA e com perfis


Operação policial atinge a assombrosa marca de 51 óbitos na Baixada Santista bloqueados nas redes sociais
por determinações judiciais, o
blogueiro Allan dos Santos teve

N
a sexta-feira 22, mais três sus- quando 111 detentos foram assassinados na curta sobrevida no OnlyFans.
peitos foram mortos e dois fica- repressão a uma rebelião no presídio. Em 13 de março, o bolsonarista
ram feridos em supostos con- A violência policial recrudesceu após a criou uma conta na plataforma,
frontos com a Polícia Militar morte de Samuel Wesley Cosmo, soldado da que se popularizou com a
venda de assinaturas de
na Baixada Santista, Litoral Sul de São Pau- Rota abatido a tiros em 2 de fevereiro, durante
conteúdos eróticos, e desafiou
lo. Com as recentes ocorrências em Santos e o patrulhamento em uma favela de palafitas o ministro Alexandre de
Guarujá, a Operação Verão já soma 51 óbitos em Santos. Aterrorizados com a matança de- Moraes, do Supremo Tribunal
e é considerada a ação mais letal da corpora- senfreada que se seguiu, cerca de mil morado- Federal, a impedi-lo de realizar
ção desde o Massacre do Carandiru em 1992, res da Baixada Santista lotaram, na segunda- suas transmissões por lá.
Passados pouco mais de dez
-feira 25, o salão nobre da Faculdade de Direi-
dias, admitiu o fiasco da
to da USP, no Largo São Francisco, para parti- empreitada: “Fui banido do
cipar de uma audiência pública. OnlyFans sem explicação
Na ocasião, a Ouvidoria das Polícias de São alguma. Dar a bunda pode; ser
Paulo e organizações da sociedade civil apre- jornalista, não. Literalmente:
foda”. Santos vive na Flórida
sentaram um novo relatório apontando indí-
desde 2021, quando teve
cios de execuções sumárias, torturas, obstru- a prisão preventiva decretada
ção proposital das câmeras corporais e altera- por Moraes no âmbito do
ção das cenas de crimes para inviabilizar o inquérito das fake news. No
trabalho da perícia. Apesar da gravidade dos ano seguinte, também foi
condenado a um ano e sete
abusos relatados, o governador Tarcísio de
meses de reclusão por calúnia.
Freitas faz pouco caso das denúncias. “Pode ir Ainda assim, as autoridades
à ONU, à Liga da Justiça, ao raio que o parta, norte-americanas relutam
que não tô nem aí”, disse o bolsonarista em re- em extraditá-lo para o Brasil.
O morticínio eclodiu após a morte de um soldado da Rota cente coletiva de imprensa.

Espírito Santo/ DILÚVIO INESPERADO


TEMPESTADES DEVASTAM O SUL DO ESTADO E PROVOCAM AO MENOS 19 MORTES

Fortes temporais deixaram um dos os desaparecidos são de mente na capital, e que aqui as
gigantesco rastro de destrui- Mimoso do Sul. Ao todo, mais chuvas iam ser mais fracas.
ção no Espírito Santo e o trági- de 7,2 mil habitantes estavam Não foi o que aconteceu, caiu o
co saldo de 19 mortes, segun- desalojados, pernoitando na mundo por aqui”. Já o Ministério
do um boletim divulgado pela casa de parentes ou amigos, e da Integração e do Desenvolvi-
Defesa Civil na segunda-feira 411 continuavam desabriga- mento Regional reconheceu a
25. Na ocasião, seis pessoas dos, acolhidos provisoriamente situação de calamidade em mu-
seguiam desaparecidas e a pre- em escolas e prédios públicos. nicípios de dez estados atingi-
visão dos meteorologistas era O governador Renato Casa- dos pelas chuvas. Com isso, os
desanimadora, com o alerta de grande decretou estado de gestores municipais podem so-
fortes chuvas no sul do estado. emergência em 13 cidades ca- licitar recursos federais para
Dos óbitos, 17 foram regis- pixabas e admitiu ter sido pego ações de defesa civil, assistên-
trados em Mimoso do Sul, a ci- de surpresa pelo dilúvio: “A pre- cia humanitária, reconstrução
dade mais afetada pelas tem- visão era de que ia cair o mundo de infraestruturas e restabele- O governador decretou estado
pestades, e dois em Apiacá. To- no Rio de Janeiro, principal- cimento de serviços essenciais. de emergência em 13 cidades

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A Semana

Prefeita
assassinada

Brigitte García, a mais jovem


Rússia/ Terrorismo
prefeita do Equador, e um
assessor foram encontrados
mortos a tiros em um carro
e contrainformação
no domingo 24. García tinha Moscou acusa a Ucrânia de recrutar os atiradores
27 anos, governava a cidade
de San Vicente e era filiada
ao Revolução Cidadã, partido
do ex-presidente Rafael
Correa. O país enfrenta uma
onda de violência incentivada
por narcotraficantes. “Não
tenho palavras, estou em
estado de choque, ninguém
está seguro no Equador,
ninguém”, afirmou Luisa
González, colega de legenda
da prefeita e candidata
derrotada nas últimas
eleições presidenciais.

A
responsabilidade pelo massacre início do mês os serviços secretos russos so-
em uma casa de shows em uma bre a iminência de um atentado, rejeitam es-
região afluente nos arredores de sa versão. O governo de Volodymyr Zelensky
Moscou tornou-se uma peça da nega qualquer relação com os fatos. “A Ucrâ-
guerra de informação entre a Rússia e o Oci- nia nunca utilizou métodos de guerra ter-
dente. Vladimir Putin recusa-se a aceitar a rorista”, escreveu na rede social Telegram
versão de que o Isis-K, braço do Estado Islâ- Mykhailo Podolyak, porta-voz da Presidên-
mico no Afeganistão, está por trás do aten- cia. As forças de segurança russas continu-
tado terrorista. O ataque, reivindicado ho- am a prender suspeitos de participação no
ras depois pela célula terrorista, deixou até o atentado e Putin prometeu alcançar os res-
momento 137 mortos e outra centena de fe- ponsáveis, estejam onde estiverem. “Iden-
ridos graves e seria uma retaliação ao apoio tificaremos e puniremos todos os que estão
russo ao ditador sírio Bashar al-Assad na ba- por trás dos terroristas que prepararam es-
talha contra o EI. Segundo o Kremlin, os ta atrocidade, este ataque à Rússia, ao nosso
quatro atiradores teriam sido recrutados pe- povo”, discursou. Nos dias seguintes ao mas-
la Ucrânia, para onde pretendiam fugir. Os sacre no Crocus City Hall, as tropas russas
Estados Unidos, que dizem ter alertado no intensificaram os bombardeios à Ucrânia.

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Gaza/ Sem controle


Em casa

O ex-lateral-direito Daniel
Mesmo isolado, Israel ignora os apelos internacionais Alves conseguiu levantar
o 1 milhão de euros estipulado
na fiança (5,4 milhões de

A
capa da edição da última sema- me de Joe Biden, o secretário de Estado nor- reais) e deixou a prisão
na da revista britânica The Eco- te-americano, Antony Blinken, tentou deses- na segunda-feira 25.
nomist, insuspeita de fomentar o timular Tel-Aviv a consumar o ataque a Ra- O Ministério Público espanhol
antissemitismo, resume a situa- fah, na fronteira com o Egito, onde quase 2 anunciou a intenção
de recorrer da decisão.
ção do governo de Benjamin Netanyahu. “Is- milhões de palestinos estão confinados co-
Os procuradores apontam
rael sozinho”, diz o título, ao ecoar a pressão mo presas à espera do abate. Seria um “er- risco de fuga. Ester García,
ocidental, em particular dos Estados Unidos, ro”, afirmou Blinken, e “desnecessário” para advogada da jovem estuprada
por um cessar-fogo imediato e pela abertu- derrotar o Hamas. Tarde demais? Washing- pelo ex-jogador em uma boate
ra de negociações a favor de uma solução de ton chancelou o massacre na Faixa de Gaza de Barcelona, declarou-se
“surpresa e indignada”.
dois Estados. Não foi o único aviso. Em no- desde o primeiro segundo e agora não conse-
Alves foi condenado a quatro
gue lidar com a “rebeldia” anos e seis meses de prisão
do aliado. Netanyahu pro- e a pagar uma indenização
mete manter a campanha de 150 mil euros à vítima
em Rafah à revelia do aval por danos morais e físicos.
dos EUA e da resolução do
Conselho de Segurança
da ONU a favor da inter-
rupção dos ataques. Quan-
to ao futuro da região, o
primeiro-ministro acena
com uma longa ocupação
do território palestino.

Seriam estes os
terroristas que Israel
quer eliminar?

Cuba/ SEM LUZ, SEM LEITE


PROTESTOS EM VÁRIAS CIDADES CONTRA A FALTA DE ENERGIA E ALIMENTOS
Y A M I L L A G E / A F P, A F P E S A I D K A T H A I B / A F P

Pela primeira vez, o governo resposta imediata às aflições ções do nosso povo. Escutar,
de Cuba recorreu ao Progra- da população, o presidente dialogar, explicar as numero-
ma Alimentar Mundial, inicia- Miguel Díaz-Canel culpou os sas medidas que se realizam
tiva das Nações Unidas, em “inimigos externos”. “Nas para melhorar a situação,
busca de leite para alimentar últimas horas, temos visto sempre num ambiente de
as crianças menores de 7 como terroristas radicados tranquilidade.” O mau tempo
anos. A crise econômica tor- nos EUA, que já denunciamos piora o drama. As intensas
nou-se mais intensa neste tri- noutras ocasiões, incentivam chuvas no sábado 23 deixa-
mestre e atinge diferentes se- ações contra a ordem interna ram cerca de 270 mil mora-
tores. Centenas de cubanos do país”, afirmou. “A disposi- dores da região oeste, incluí-
saíram às ruas para protestar ção das autoridades do da a capital Havana, sem ele-
contra a falta de energia, re- partido, do Estado e do go- tricidade e provocaram 26 Os cubanos atravessam
médios e comida. Sem uma verno é atender às reclama- deslizamentos de terra. outro momento difícil

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R EPORTAGEM DE CA PA

CASO
ENCERRADO?
C A R L D E S O U Z A / A F P, A L E R J , A G . C Â M A R A E A G Ê N C I A B R A S I L

A PF APRESENTA OS MANDANTES DO ASSASSINATO


DE MARIELLE, MAS AINDA DEVE UMA DEVASSA NO
“ECOSSISTEMA CRIMINOSO” DO RIO DE JANEIRO

por M AU R ÍCIO THUSWOHL

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E
spero que avance muito
mais. Ainda não tem a his-
tória completa, a motiva-
ção não está clara. Então,
ainda não fechou.” As pala-
vras de Ágatha Arnaus, vi-
úva do motorista Anderson
Gomes, resumem o senti-
mento dos familiares das vítimas – e de boa
parte do Brasil – quanto ao desfecho das
investigações sobre as mortes de seu ma-
rido e da vereadora Marielle Franco. A con-
clusão do caso foi anunciada no domingo
24 pelo Ministério da Justiça, cinco dias
após a delação premiada do sicário Ronnie
Lessa ter sido homologada pelo Supremo
Tribunal Federal e seis anos depois do cri-
me. A possibilidade de que as investigações
ainda não tenham chegado ao fim gera, po-
rém, muita expectativa, sobretudo após a
confirmação da participação de peixes
graúdos na trama criminosa.
Identificados pela Polícia Federal como
“autores intelectuais” do duplo homicídio,
os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão,
conselheiro do Tribunal de Contas do Rio
de Janeiro e deputado federal pelo União
Brasil, respectivamente, gozam de gran-
de prestígio na política fluminense. Já o
Os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, peixes graúdos da política fluminense, são apontados como ex-chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbo-
“autores intelectuais” do crime. Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil, teria sabotado investigações
sa, acusado de participação no crime e de
posterior sabotagem do inquérito, é co-
nhecido por seu trânsito e diálogo com di-
versas forças políticas do estado. Com os
três em presídios separados por determi-
nação do STF, não será surpresa se novos
elementos ou delações ganharem a luz do
dia: “O inquérito tem 470 páginas e mui-
to provavelmente vão se abrir outros flan-
cos. Esse crime esbarra em vários outros
e expõe uma cena criminosa muito pro-
funda e enraizada nas instituições do Rio
de Janeiro”, afirma a jornalista Fernanda
Chaves, única sobrevivente do atentado
que matou Marielle e Anderson.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewan-
dowski, não descarta a possibilidade, mas
também não a vislumbra por ora. “É cla-
ro que podem surgir novos elementos,
mas neste momento os trabalhos foram

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R EPORTAGEM DE CA PA

dados como encerrados.” Já seu anteces- O delegado preso foi recomendado ao general à Chefia de Polícia na véspera do crime:
Richard Nunes pelo Comando Militar do Leste,
sor, Flávio Dino, hoje no Supremo Tribu- chefiado por Braga Netto durante três anos
“Importa salientar que Braga Netto foi
nal Federal, avaliou, durante o julgamen- alertado que Barbosa era suspeito de ter
to que referendou a prisão dos suspeitos, ligações com a milícia carioca e mesmo
que “a leitura das peças processuais reve- nho Brazão foi o cicerone de Bolsonaro assim bancou sua indicação. Braga Netto
la a possibilidade de configuração de um em atividades de campanha realizadas deu o poder necessário para o artífice e
autêntico ecossistema criminoso” no Rio. nas comunidades de Rio das Pedras e uma das cabeças pensantes da execução
Segundo o magistrado, isso “pode gerar a Gardênia Azul, redutos políticos dos Bra- de Marielle Franco”, diz o documento as-
continuidade das investigações em um ou zão. Domingos e o irmão mais velho – o sinado pelos deputados Henrique Vieira,
mais inquéritos”. Viúva de Marielle, a ve- deputado estadual Pedro Brazão – tam- Célia Xakriabá e Érica Hilton.
readora Monica Benicio, do PSOL, diz que bém declararam apoio ao ex-capitão na

E
Lewandowski “fez um pronunciamento disputa contra Lula no ano passado. Ou- m nota, a defesa de Braga
que foi prometido não apenas a nós fami- tro alvo é o ex-ministro Walter Braga Netto repetiu a manjada tática
liares, mas à democracia brasileira”, mas Netto, que foi vice na chapa derrotada de bolsonarista de colocar em ci-
também não está satisfeita: “O voto do mi- Bolsonaro e era chefe da intervenção fe- ma de subordinados a culpa por
nistro Dino fala muito do que ainda há pe- deral na segurança pública do Rio em erros ou malfeitos. Afirmou que,
la frente. Essa investigação revela que, de 2018, ano em que Rivaldo Barbosa foi no- embora tenha assinado a nomea-
fato, existe um ecossistema criminoso que meado chefe da Polícia Civil e Marielle e ção de Barbosa, este teria sido indicado pe-
se articula com a política institucional. É Anderson foram assassinados. lo então secretário de Segurança Pública,
o crime institucionalizado dentro do Es- A bancada do PSOL na Câmara solici- o também general Richard Nunes. “Por
tado. Isso não só pode, como deve, gerar a tou à Procuradoria-Geral da República a questões burocráticas, o ato administra-
TÂ N I A R Ê G O /A B R

continuidade da investigação criminal”. abertura de uma investigação para apu- tivo era assinado pelo Interventor Federal
No campo da esquerda, a ideia é esmiu- rar as relações do general Braga Netto que era, efetivamente, o governador na
çar a proximidade do clã Brazão com o clã com o delegado, que era chefe da Delega- área de segurança pública.” O detalhe
Bolsonaro. Nas últimas eleições, Chiqui- cia de Homicídios da Capital e foi alçado omitido na nota é que o nome do delegado

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

havia sido recomendado pelo Comando Barbosa disse aos pais da vítima e ao ex- de impeachment contra si protocolado no
deputado Marcelo Freixo que a resolução do
Militar do Leste, que naquela ocasião era crime era uma “questão de honra” para ele
TCE do Rio a pedido do Ministério Públi-
chefiado havia três anos por Braga Netto. co junto ao Tribunal de Contas da União.
Já Nunes, um dos oficiais a não endossar Em seu despacho, o subprocurador Lu-
as pretensões golpistas de Bolsonaro em Roberto Duarte, do Republicanos, e Faus- cas Furtado sugere que seja analisada a
2022, não pode ser considerado hoje um to Pinato, do PP, que terão dois dias para possibilidade de afastamento cautelar de
aliado do bolsonarismo. devolver o parecer para votação no pró- Brazão das atividades do tribunal esta-
Ainda não há sinalização da estratégia prio colegiado. Após a análise na CCJ, o dual e também de sua aposentadoria
de defesa que adotarão os irmãos Brazão, texto seguirá para o plenário da Câmara. compulsória ao final da apuração inter-
agora presos. A julgar pela celeridade com São necessários 257 votos para que a pri- na. Brazão já havia sido afastado de suas
que a direção do União Brasil discutiu e são seja mantida ou revogada. funções em 2017, suspeito de receber pro-
aprovou, por unanimidade, a expulsão do Já Domingos Brazão teve um pedido pinas em contratos firmados pelo gover-
deputado Chiquinho no mesmo dia de sua no do Rio, mas retornou ao cargo no ano
prisão, o que parece certo é que, ao menos passado por decisão da Justiça. Assim que
em um primeiro momento, ambos serão retornou ao TCE, o conselheiro requereu
repudiados tanto por adversários quanto BRAGA NETTO o recebimento do valor correspondente
por aliados. Outro sinal dessa tendência AGORA TENTA a 420 dias de férias não tiradas nesse pe-
foi dado pelo relator do caso na Comissão SE ESQUIVAR DA ríodo, em um total de 581 mil reais. Além
de Constituição e Justiça da Câmara, de- de Domingos e Chiquinho, o clã conta
RESPONSABILIDADE
putado Darci de Matos, do PSD, que na ainda com o deputado estadual Pedro
terça-feira 26 apresentou um parecer que PELA NOMEAÇÃO Brazão, irmão mais velho, e com o verea-
valida a prisão de Chiquinho. Em segui- DE UM SABOTADOR dor Waldir Brazão, que era chefe de gabi-
da, a análise da CCJ foi interrompida por NA POLÍCIA CIVIL nete de Chiquinho, adotou o nome da fa-
um pedido de vista apresentado pelos de- mília e se elegeu nas eleições de 2020.
putados Gilson Marques, do Novo, A revelação da chocante participação

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 13
INÊS 249
R EPORTAGEM DE CA PA

de Barbosa e Giniton Lages, chefe da De-


legacia de Homicídios da Capital por ele
indicado, na trama criminosa é vista co-
mo uma oportunidade de se enfrentar a
histórica corrosão das instituições de Es-
tado pelo crime organizado no Rio de Ja-
neiro, embora esta seja uma tarefa com-
plexa. “Tudo que está envolvido no assas-
sinato de Marielle e Anderson constitui
uma revelação da profundidade, magni-
tude e extensão em que se tem dado a de-
gradação das instituições do Rio de Janei-
ro, em particular das polícias e da justiça
criminal de uma maneira geral”, diz o an-
tropólogo e cientista político Luiz Eduar-
do Soares. Mas que não se alimentem ilu-
sões: “A maior parcela das autoridades
responsáveis e das lideranças políticas no
Rio é parte do problema e está envolvida
com essa dinâmica há muitos anos. Por-
tanto, seria muito ingênuo supor que daí
proviesse a mudança”. O especialista ava-
lia, porém, ser possível iniciar um proces-
so em busca de soluções: “Devemos tra-
zer à sociedade a necessidade de irmos
muito mais fundo, não só na busca da pu-
nição de culpados, mas na transformação
das condições que tornaram um caso co-
mo o da Marielle possível”.

S
oares afirma que há uma “de-
gradação institucional auto-
construída”, uma espécie de
“doença autoimune” na segu-
rança pública do Rio. “Não se
trata do crime penetrando a
polícia, não se trata de organização cri- “Estamos diante da ponta de um iceberg e contínuo de envolvimento da polícia com T O M C O S TA / M J , G U S TAV O M O R E N O / S T F E C Â M A R A R I O

não devemos nos contentar com respostas


minosa já constituída que planeja a infil- a corrupção e com a violência nas suas
pontuais”, diz Monica Benicio, viúva de Marielle
tração, embora existam personagens da formas mais despóticas: “Isso leva ao
milícia que se candidatam para ocupar poder Wilson Witzel e Cláudio Castro,
espaços no Legislativo e até no Executivo. leva ao poder Jair Bolsonaro, mas tam-
Na maior parte dos casos, o que você tem “O ESTADO FALHOU bém havia levado ao poder Sérgio Cabral
são policiais civis ou militares que bus- O TEMPO TODO”, com as suas tinturas liberal-democráti-
cam associação com protagonistas do cas. São diferentes modalidades, mas es-
crime, que agem como criminosos dire-
AVALIA FERNANDA sencialmente trazem esse amálgama de
tamente e passam a funcionar eles pró- CHAVES, A ÚNICA força e domínio político com base em ex-
prios como criminosos. É um processo de SOBREVIVENTE torsão, chantagem e assassinato”.
degradação interno.” O antropólogo diz DO ATENTADO Para o sociólogo Ignacio Cano, o cri-
que o caso do delegado Barbosa “é uma me e o comprometimento de Barbosa, se
expressão hipertrofiada” de um processo comprovados, reforçam que as relações

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

Fernanda Chaves avalia que o Rio vi-


ve hoje sob a ação de máfias infiltradas
em todo o poder público. “Os mandantes
da morte da Marielle têm braços no Tri-
bunal de Contas, na Câmara dos Verea-
dores, na Assembleia Legislativa, no
Congresso Nacional. Não é um policial
envolvido, é o chefe da Polícia Civil”, enu-
mera. A jornalista observa que, para além
da possível motivação do crime estar vin-
culada à grilagem de terras pela família
Brazão, como sugerem as investigações,
é como se o Rio tivesse matado Marielle:
“O Estado falhou miseravelmente o tem-
po inteiro. Falhou quando não protegeu
Por ora, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, dá o caso como encerrado. Já seu antecessor uma autoridade saindo do trabalho, cir-
Flávio Dino, hoje no STF, defende a continuidade das apurações em “um ou mais inquéritos”
culando pela zona central da cidade, do
lado da prefeitura e de grandes prédios.
Ela foi assassinada às 9 da noite, no meio
da rua, em um estado que estava sob in-
tervenção federal, isso é muito impor-
tante frisar”.

E
o Estado seguiu falhando, acres-
centa Chaves, “quando atuou
para que o crime não fosse elu-
cidado, quando duas promo-
toras alegaram interferência e
nada aconteceu, quando provas
sumiram, quando foram plantadas teste-
munhas e quando o delegado do caso foi
mudado por cinco vezes ao longo do pe-
ríodo”. Já Monica Benicio diz que o que
está em jogo vai muito além da família
Brazão e também da própria Marielle:
“Estamos falando de uma arquitetura
da polícia fluminense com o crime orga- no afirma que o estado perdeu “uma de poder que envolve a estrutura políti-
nizado acontecem há muito tempo e po- grande oportunidade de botar muita coi- ca, legislativa e judiciária no nosso esta-
dem envolver muitos crimes: “A gente sa- sa a limpo” quando o ex-governador Sér- do e que se espraia em inúmeros arran-
be que o Escritório do Crime funcionou gio Cabral se dispôs a fazer delação pre- jos territoriais. Precisamos entender que
durante anos sem ser importunado, jus- miada em 2021: “Ele teria muita coisa a estamos diante da ponta de um iceberg
tamente pelo comprometimento da Po- dizer sobre esse comprometimento em e não nos contentarmos com respostas
lícia Civil. Ninguém telefona para um de- todas as esferas mas, infelizmente, sua pontuais para arranjos estruturais. Me
legado e pede ajuda para matar alguém delação não se concretizou”. Mesmo sem comove muito dizer isso, porque o assas-
se não houver uma relação consolidada, garantia alguma de que o Caso Marielle sinato da minha esposa não é só sobre o
se isso já não foi feito outras vezes. Isso por si só vá sanar o sistema, acrescenta assassinato da minha esposa. É sobre o
indica um comprometimento muito al- Cano, ele pode representar o início de um Rio de Janeiro com mais justiça social
to de todas as esferas de poder no Rio de processo de limpeza nas polícias e na po- que eu quero ver nascer, que ela queria
Janeiro”. Analista da segurança pública lítica fluminenses: “Mas, certamente, es- ver nascer. E isso só começa aqui se en-
no Rio de Janeiro há mais de 20 anos, Ca- taremos ainda muito longe do final”. tendermos que não acaba aqui”. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 15
INÊS 249

CASA DA SOGRA
O BRASIL É MARCADO POR SUAS MAZELAS,
DA CHEGADA DAS NAUS PORTUGUESAS
AO GOLPISMO IMANENTE

por MINO CA RTA

C
artaCapital, desde o vidade escravista da época. Leve-se em
lançamento, lá se vão conta que aos Estados Unidos aportaram
30 anos, nunca se fur- menos de 400 mil, um décimo dos escra-
tou a apontar as des- vos mandados ao Brasil. Idas e vindas de
graças sofridas pelo navios negreiros caracterizaram a tra-
Brasil ao longo de sua vessia atlântica e foi também graúdo o
história. Foi a preten- número de mortos nas galés.
são portuguesa que, graças a um vento A terceira desgraça foi a transferên-
muito providencial, enfurnou as velas da cia da corte portuguesa em peso para
frota de Pedro Álvares Cabral, enquanto o Brasil, primeiro em Salvador e, final-
descia ao longo das costas africanas em mente, no Rio de Janeiro. À frente dos
busca do caminho das Índias, passando fugitivos estava D. João VI, célebre por
pelo Cabo da Boa Esperança. De verda- sua ojeriza ao banho, em retirada desde
de, o Brasil foi descoberto por Americo que se aproximou da fronteira lusitana o
Vespucci, a serviço da corte portuguesa, exército francês comandado pelo gene-
o que inflou os efeitos deploráveis de uma ral Junot, portador da ideologia liberal
desgraça, que se inicia com a dinastia de de Napoleão.
Avis, conforme a impecável obra-prima Não houve benefícios com a chegada
de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. do monarca, muito ao contrário. Ainda
Segue-se uma colonização predató- D. João VI fugiu da modernidade assim nasceu, com a presença do filho do
ria que, entre outros lances, se aprovei- e se escondeu no Brasil rei, D. Pedro I, a vontade da independên-
ta do ouro e da prata brasileiros para re- cia, enquanto o jovem herdeiro do poder
construir Lisboa, destruída em boa parte Milhões de passageiros cativos nos na- sonhava com seu retorno a Portugal pa-
por um terremoto em meados do século vios negreiros desceram até o Brasil colô- ra suceder ao pai. Dom Pedro não desis-
XVIII. Acentua-se o desmando lusitano nia. Estima-se que, entre os séculos XVI tiu desse seu objetivo de independência e
com a escravidão, que abduz do continen- e XIX, foram trazidos para cá cerca de 4 a conquistou nas alturas paulistanas do
te africano milhares de habitantes para milhões de africanos, contingente a in- Ipiranga ao cabo de uma subida íngre-
substituir o braço da população indíge- cluir homens, mulheres e crianças, equi- me da Serra do Mar enfrentada na cela
na infensa ao trabalho do homem branco. valendo a mais de um terço de toda a ati- de um muar. A iconografia oficial, obvia-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

habitantes de uma nação. O Brasil conti-


nua muito longe desta condição. Seu po-
vo hoje em dia vive da pior maneira, mas-
sacrado pela falta de políticas sociais de-
finitivas e pela presença de uma minoria
largamente abastada e totalmente insen-
sível. Muitos poderes exorbitam e fazem
do País aquilo que outrora era definido
como a casa da sogra.

E
stamos para alcançar o adver-
sário que resultou numa di-
tadura feroz e sanguinária. A
tortura dos estudantes foi em-
pregada mais frequentemente
do que se supõe. Além de tudo contamos
com torturadores eméritos. Um deles, o
delegado Sérgio Paranhos Fleury, aten-
deu ao chamado chileno, por terem lhe
“Mino Carta nunca me pediu nada”, disse Figueiredo, segundo quem Geisel atribuído mestria no seu desempenho, a
me detestava. Ditadores de um país moldado pela escravidão ponto de ser convocado pelas forças ar-
madas que Augusto Pinochet já coman-
dava, uma ditadura sangrenta que logo de
início aprisionou 40 mil chilenos no está-
dio de Santiago. Missing, filme do diretor
Costa-Gavras magistralmente interpre-
tado por Jack Lemmon, no papel do pai
que vai em busca do filho sumido entre os
presos no referido estádio, registra ins-
trutores brasileiros a ensinar técnicas de
tortura aos verdugos de Pinochet.
No Brasil, as pressões dos fardados
provocaram o fim do emprego de mui-
tos cidadãos. No meu caso, posso dizer
DEB RE T E PIN T U R A DE A L B ERT US JA KOB FR A NZ GREGORIUS

que as circunstâncias me obrigaram a


ACERVO FOLHAPRESS, ILUSTRAÇÃO DE JEAN BAPTISTE

sair da revista Veja, que dirigia. Anos


depois, recebi a informação de que, nu-
ma reunião com amigos, depois de sair
pela porta dos fundos do Palácio do Pla-
nalto, o derradeiro ditador, João Figuei-
redo, disse que seu antecessor, Ernesto
Geisel, me detestava. Disse ainda que o
mente laudatória, se compraz em confe- A vinda de D. João VI de alguma forma meu papel numa redação fora simples-
rir ao evento a grandiosidade que ele não é simbólica no sentido de que os ideais mente o de jornalista, ao mesmo tempo
teve. De fato, a independência foi pratica- revolucionários que Napoleão espalha- que se referia também a alguns senhores
mente despercebida pela população da- ra pela Europa não chegaram a Portugal da mídia: “Os Civita e outros empresá-
quele tempo, cuja ignorância reinava im- e, portanto, ao Brasil. Por princípio, a de- rios de imprensa me visitavam para pe-
passível tanto na casa-grande e na sen- mocracia é um valor que começa pela fir- dir favores, Mino Carta nunca me pediu
zala quanto nos sobrados e mocambos. meza das leis e pela igualdade entre os coisa alguma”. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 17
INÊS 249

MARIONETES
OS MILITARES, INSUFLADOS PELOS SENHORES,
DERAM O GOLPE. MAS QUEM PUXAVA AS
CORDAS ERAM OS NORTE-AMERICANOS

por LUIZ GONZAGA BELLUZZO

N
o início dos anos 60, a sociedade justa e contemporânea, expur-
sociedade brasileira gada da herança colonial e de seus humo-
vivia uma era de sau- res subalternos. Alguns chamavam essa
dável e promissora esperança de socialismo. Outros almeja-
agitação política. Ba- vam que a utopia se assemelhasse às con-
tizado, na época, co- dições de vida e aos padrões de convivên-
mo “luta de classes”, cia que estavam em construção na Euro-
o fenômeno era decorrência inevitá- pa Ocidental com o avanço do Estado do
vel de quatro décadas de industrializa- Bem-Estar Social.
ção, modernização econômica e rápida Na outra ponta do espectro político es-
transformação social. O progresso ma- tava a malta do fazendão subdesenvolvi-
terial das sociedades modernas suscita do que combinava cosmopolitismo ame-
inconvenientes e transtornos, mas é mo- ricanista com a reconhecida ojeriza pe-
bilizador de energias e ideias. Os sindica- la difusão da luz elétrica e da água enca-
tos, as associações de classe e as organi- nada para o povo mais pobre. Seja como
zações estudantis fervilhavam. Os cen- for, a bandeira das forças progressistas
tros acadêmicos, a UEE e a UNE parti- foi desfraldada na defesa das reformas de
cipavam ativamente do debate nacional. base – agrária, urbana, bancária, traba-
Ainda não se sabe se a despeito ou por lhista e previdenciária. As hostes conser-
conta do jogo estratégico entre as duas vadoras e reacionárias, que nunca aban-
grandes potências, o pós-Guerra foi gene- donaram a luta contra o projeto nacio-
roso com alguns países da periferia, sobre- Goulart, um estancieiro, foi tratado nal de industrialização, brandiam os
tudo com o Brasil. Entre seus pares, o país como perigoso comunista chavões da ameaça comunista, do ouro
tropical era líder no campeonato de taxas
de crescimento e de incorporação de novas
atividades e de trabalhadores ao mundo da
indústria e das cidades. Havia entusiasmo
e, provavelmente, muita ilusão. Mas já dis-
COMO TODOS OS PERIFÉRICOS, ÉRAMOS,
se alguém que as ilusões são necessárias e, À ESQUERDA E À DIREITA, PEÇAS
em muitos casos, estimulantes. NO JOGUETE DA GUERRA FRIA
Era, então, possível e razoável imagi-
nar o País cada vez mais próximo de uma

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
ARQUIVO NACIONAL /EUA E ARQUIVO NACIONAL

O embaixador Gordon serviu de canal para o recrutamento e o financiamento de golpistas

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 19
INÊS 249

de Moscou, da “cubanização” do Brasil. militares para reduzir o poder de Goulart


Sessenta anos depois, é recomendável [...] ou, em uma situação extrema, desti-
alguma frieza na análise: como todos os tuí-lo, se as coisas chegarem a esse pon-
periféricos, éramos, à esquerda e à direi- to, o que dependeria de uma ação explíci-
ta, protagonistas dos conflitos que se de- ta de sua parte”. Minutos depois, o subse-
senvolviam nos palcos globais da Guerra cretário para Assuntos Interamericanos,
Fria. Vou retomar um texto já publicado Richard Goodwin, observou: ‘Podemos
em nossa CartaCapital para amparar mi- muito bem querer que eles (militares bra-
nhas digressões a respeito da importância sileiros) assumam o poder no fim do ano,
da participação norte-americana no golpe se eles puderem fazer isso”.
civil-militar de 1964. Terça-feira, 7 de ja- Na nota de rodapé da página 325 da pri-
neiro de 2014, foi anunciada a “descober- meira edição do livro publicado pela Edi-
ta” de uma gravação reveladora. Nos idos tora Senac, Gordon escreve: “Para minha
de 1963, o então presidente dos Estados surpresa, revelou-se recentemente que o
Unidos, John F. Kennedy, gravou a conver- presidente Kennedy tinha instalado um
sa com seu embaixador no Brasil. Kennedy aparelho de gravação no Salão Oval. Nes-
perguntou a Lincoln Gordon se os EUA po- sa conversa de 30 de julho, que incluiu
deriam “intervir militarmente” no Brasil também Richard Goodwin, foi a primei-
para depor o presidente João Goulart. Às ra reunião a ser gravada. A transcrição
vésperas do famigerado golpe, surgiu um tem muitos hiatos (sic), alguns por ra-
slogan premonitório: “Basta de interme- zões de segurança, outros porque certas
diários, Lincoln Gordon para presidente”. passagens não puderam ser decifradas. A

E
maior parte desse material está disponível
m seu livro A Segunda Chance agora nas páginas 9 a 25 de Timothy Naf-
do Brasil, subtítulo A Caminho tali (Org.) The Presidential Records, John
do Primeiro Mundo, publicado F. Kennedy, The Great Crisis, Vol. 1, 2001.”
em 2002, Gordon relata um Gordon conspirava abertamente com
encontro na Casa Branca com as “forças democráticas” nativas, aquelas
o presidente Kennedy: “Durante a reunião que estão permanentemente a arquitetar
na Casa Branca, eu alertei o presidente a supressão da democracia. Da conspirata
Kennedy sobre a possibilidade de algum participavam naturalmente os homens
tipo de ação pelos militares brasileiros e de bem: ricos de todos os gêneros, parte
ele perguntou qual deveria ser a nossa ati- da classe média ilustrada, semi-ilustrada
tude”. Depois de tergiversar, enrolar com e deslustrada. Até mesmo os habitantes
considerações a respeito da admiração de de outras galáxias sabiam que senhores
Goulart pelo presidente norte-americano, da mídia tupiniquim estavam metidos
Gordon foi ao que interessava e concluiu: até a raiz dos cabelos nas conversações e
“O mais importante é ao mesmo tempo or- maquinações conspiratórias articuladas
ganizar as forças tanto políticas quanto por Gordon. É surpreendente que mani-

OS “HOMENS DE BEM” DA ÉPOCA E A


MÍDIA ESTAVAM METIDOS ATÉ A RAIZ
DOS CABELOS NAS MAQUINAÇÕES
CONSPIRATÓRIAS DOS EUA

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

Na Marcha com Deus, a elite, em nome da gime Militar Brasileiro, Marcos Napolita-
“liberdade”, clamava pela intervenção militar
no observa na lógica particular da classe
média brasileira, a ascensão dos “de baixo”
festem surpresa com as palavras de Ken- é sempre vista como ameaça àqueles que
nedy registradas na gravação. estão nos andares de cima do edifício so-
Segue o enterro: a situação política, cial. Como os que estão na cobertura têm
continua Gordon, “me levou a endos- mais recursos para se proteger, quem es-
sar a sugestão da CIA de que fornecesse tá mais perto da base da pirâmide social
dinheiro a candidatos amigáveis”. Para se sente mais ameaçado. Não por acaso, o
tanto, a agência norte-americana de es- fantasma do comunismo encontrou mais
pionagem e informação valeu-se do Ibad, eco nesses segmentos médios. As classes
o Instituto Brasileiro de Ação Democrá- médias, bombardeadas pelos discursos
tica, criado em 1959 por um certo Ivan anticomunistas da imprensa e de várias
Hasslocher com o propósito de comba- entidades civis e religiosas reacionárias,
ter o governo Juscelino Kubitschek, que, acreditaram piamente que Moscou tra-
sabem todos, era um perigoso aliado do mava para conquistar o Brasil, ameaçando
comunismo internacional. a civilização cristã, as hierarquias “natu-

O
rais” da sociedade e a liberdade individual.
s Estados Unidos haviam Vou relembrar a Marcha da Família
patrocinado a deposi- com Deus pela Liberdade, entre tantas
ção de Jacobo Árbenz na manifestações que alertavam para os ri-
Guatemala e instigaram a cos da derrocada da sociedade brasileira
queda de Juan Domingo no abismo do socialismo ou coisa pareci-
Perón na Argentina. O suicídio de Getúlio da. No dia 19 de março de 1964, as ruas de
Vargas, em 1954, e a coragem do então ge- São Paulo foram tomadas por uma mul-
neral Henrique Batista Duffles Teixeira tidão capitaneada por entidades conser-
Lott, ministro da Guerra, em 11 de novem- vadoras, entre tantas a União Cívica Fe-
bro de 1955, abortaram as tentativas de minina, que abrigava em seu comando se-
interrupção da normalidade institucional nhoras da alta e da média-alta sociedade.
no Brasil. Mas, em março de1964, o País A multidão reuniu-se na Praça da Repú-
entrou finalmente no roteiro dos “golpes blica e marchou até a Praça da Sé, atraves-
democráticos” gestados em Washington. sando o Centro da cidade. Observei a tigra-
Está mais do que provado há tem- da percorrendo a Rua Barão de Itapetinin-
pos que a participação da CIA e de ou- ga. Lancei o olhar desde um andar do edi-
tras agências norte-americanas no gol- fício da Editora Brasiliense, na companhia
pe foi decisiva. Washington foi genero- do meu companheiro de todas as horas, o
sa na transferência de tecnologia: envia- professor João Manuel Cardoso de Mello.
ram experts nas técnicas de tortura, con- Terminada a procissão dos patriotas,
forme depoimento insuspeito e digno de dona Stella, irmã do conhecido Paulo
C O L E Ç Ã O A R I S T I D E S P E D R O D A S I LVA /

muitos oficiais brasileiros que se recu- Machado de Carvalho e admiradora de


saram a compactuar com os torturado- Adolf Hitler, partiu em visita à família
CENTRO DE MEMÓRIA DA UNICAMP

res. Na Terra Brasilis, a camarilha do vi- Cardoso de Mello. Dona Adelaide, mãe
ra-latismo preparou seu arsenal golpis- do professor João Manuel, indagou Stella
ta, amontoando os argumentos de sem- a respeito da Marcha:
pre para brecar o avanço dos movimen- – Stella, com foi a marcha das grã-finas?
tos reformistas e progressistas. Ontem Resposta:
como hoje, sacam da algibeira o nheco- – Grã-finas? Nada disso. Tinha até uns
-nheco do “perigo comunista”. pretos
No excelente livro 1964: História do Re- Pano Rápido. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 21
INÊS 249

PARA NÃO
SE REPETIR
A LEI DE ANISTIA NÃO É OU NÃO DEVERIA
SER SINÔNIMO DE ESQUECIMENTO

p o r E N E Á D E S T U T Z E A L M E I D A*

U
m debate tem sido re- lavras, considera-se que aqueles fatos não
corrente no Brasil: a ocorreram. Alguns países do Cone Sul que
lei de anistia política de também passaram por um período de di-
1979 foi mesmo uma lei tadura fizeram leis de autoanistia, ou se-
que garantiu a impuni- ja, efetivamente apagaram os fatos ocor-
dade? Para que tenha- ridos e por isso se afirma que naqueles ca-
mos uma reconciliação sos ocorreu uma anistia de esquecimento. e o ambiente nacional fosse de festa demo-
nacional e uma pacificação, é imprescin- Criou-se assim uma sensação de que crática, prevalecia uma espécie de acordo
dível “passar uma borracha” no passado, todos os países latino-americanos que tácito de não debater a ditadura, como se
seja ele de 60 anos ou de 12 meses atrás? haviam passado por regimes autoritá- ela tivesse sido mesmo esquecida ou nem
Para responder a estas perguntas, vale rios tinham a mesma política de anistia tivesse ocorrido. Muitas eram as autori-
examinar o que significa esse instrumen- como esquecimento, sem que, contudo, dades que até mesmo declaravam que não
to jurídico, a anistia política. Anistias, de houvesse um exame mais acurado sobre tinha acontecido nenhuma ditadura no
maneira geral, significam esquecimen- a legislação brasileira. Brasil. Alguns o fazem até a presente data.
to. Assim, uma anistia fiscal, por exem- O período ditatorial terminou, mas o Por todo esse contexto, tem sido cons-
plo, significa que o débito de determinado ambiente político permaneceu com receio truída uma tese de que o Brasil teve um
contribuinte é apagado, esquecido, de mo- de que os militares pudessem retomar o período um pouco mais autoritário que
do que o indivíduo não precisa mais pa- poder a qualquer momento, caso não hou- o desejável, mas que tinha sido um mal
gar aquela dívida fiscal. Como se ela nun- vesse controle daquela abertura lenta, menor, ou um mal necessário, e que hou-
ca tivesse acontecido. Entretanto, quan- gradual e segura. Dessa forma, quando ve necessidade de um pacto nacional pa-
do se trata de anistias políticas, existem da promulgação da Constituição de 1988, ra apagar os fatos horríveis e cruéis desse
duas possibilidades: as anistias de esque- embora a censura não mais fosse exercida período, como as torturas, por exemplo.
cimento e aquelas de memória.
As anistias políticas de esquecimen-
to significam que um país “passou uma
borracha” nos fatos ocorridos no perío- PASSAR UMA BORRACHA NO PASSADO SÓ
do anistiado. Tudo que aconteceu foi es- FRAGILIZA A BUSCA PELA DEMOCRACIA
quecido. Essas leis de anistia são chama-
das de leis de autoanistia. Em outras pa-

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

Os agentes da repressão não foram punidos,


mas têm havido reparações pecuniárias
e históricas às vítimas do regime

sobre o modelo de anistia política que es-


tava sendo votada pelo Parlamento.
O Supremo Tribunal Federal decidiu
na Ação de Descumprimento de Precei-
to Fundamental (ADPF) 153 que a lei de
anistia política de 1979 foi uma lei de me-
mória. Os votos dos ministros Cezar Pelu-
so e Celso de Mello, que votaram pela im-
procedência da ação proposta pela OAB,
afirmam textualmente que a Lei 6683/79
não é uma lei de autoanistia. Portanto, o
modelo adotado no Brasil foi de uma lei de
memória e por isso mesmo está em con-
formidade com os preceitos fundamen-
tais da Constituição e foi recepcionada.

P
or essa razão, há muitos anos
é possível haver reparação, in-
clusive econômica. O esque-
cimento impede a reparação,
como impede a responsabili-
zação e a verdade. A lei de memória impõe a
Observe-se, por exemplo, a lógica con- o que reparar. Porque os fatos foram apa- verdade, a reparação e a responsabilização.
tida numa parte de uma das respostas na gados, como se nunca tivessem ocorrido. A lei de anistia de 1979 é uma lei de memó-
entrevista do general Sérgio Etchegoyen E por isso as leis de autoanistia são sinô- ria, e por isso ela é o oposto da impunidade.
concedida no início de novembro de 2020 nimo de impunidade. Há mais de 40 anos, a sociedade brasi-
ao portal de notícias UOL, comentando o É importante contextualizar que, no leira chegou ao consenso de que quanto a
governo da petista Dilma Rousseff: “Eles fim dos anos de 1970, havia uma deman- crimes políticos e crimes contra a huma-
isolaram os militares, desrespeitaram- da de parcelas da sociedade civil brasileira nidade não pode existir impunidade. Tudo
-nos, encenaram uma Comissão da Ver- pelo que se chamava anistia ampla, geral e precisa ser investigado e processado judi-
dade claramente vingativa, afrontaram irrestrita. O objetivo principal era possi- cialmente. Sejam crimes de 60 anos atrás,
a lei para usurpar competências claras bilitar o retorno de exilados, bem como li- sejam crimes de um ano atrás. Se houver
dos comandantes”. Por qual razão um ge- bertar presos políticos e tirar da clandes- provas suficientes, com punições exem-
neral afirma que uma Comissão de Es- tinidade quem estivesse perseguido pe- plares, para que nunca mais aconteçam.
tado, criada por lei, foi uma encenação? las forças de repressão. O governo apre- E a Lei 6.683/79, sendo uma lei de memó-
Exatamente porque dentro da lógica do sentou um projeto de lei que sofreu várias ria, exige a punição daqueles que tortura-
esquecimento não caberia qualquer Co- emendas e propostas de substitutivos. O ram, sequestraram e assassinaram pesso-
missão da Verdade. Verdade do que, se ambiente político era muito tenso e os de- as durante a ditadura. “Passar uma borra-
nada aconteceu? Se houve esquecimen- bates, acalorados. Ademais, não havia cla- cha” no passado, esquecer o que aconte-
to, apagamento, se foi passada uma bor- reza se os termos propostos no Projeto de ceu, só fragiliza a democracia. Apenas com
ARQUIVO NACIONAL

racha no período, não há o que ser apura- Lei que se tornou a Lei 6.683/79 signifi- anistia de memória e sem impunidade
do. É coerente e lógico que, se os fatos fo- cavam esquecimento ou memória. O con- poderá haver reconciliação e pacificação
ram apagados, esquecidos, não há o que texto na época, portanto, era de intensa nacional. Ditadura nunca mais. •
lembrar, o que contar, o que registrar, a disputa política. Disputa, inclusive, da
não ser como encenação. Não há sequer narrativa que começava a ser construída *Presidente da Comissão de Anistia.

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 23
INÊS 249

MEMÓRIA DA
RESISTÊNCIA
DA PASSEATA DOS 100 MIL À MILITÂNCIA EM UMA
ORGANIZAÇÃO DE COMBATE À DITADURA
p o r I VA N I S A T E I T E L R O I T M A R T I N S *

T
odos temos uma história, lo Brasil sonhado por Getúlio Vargas.” principal base eram os sindicalistas, a es-
não mais que uma, uma As reformas estruturais constantes do querda organizada e os democratas pro-
história coletiva que se plano de governo eram a agrária, a admi- gressistas. Por essa aliança, o governo de
confunde com a história nistrativa, a constitucional, a eleitoral, a Goulart foi atingido por uma campanha
de tantos outros comba- bancária, a tributária e a educacional. Sua que envolveu os órgãos de imprensa. “Re-
tentes da ditadura. pública de Sindicalistas” e “Repúbli-
Em 1965, meu ca Comunista” eram as manchetes
pai, Ted Teitelroit, de família judia, dos jornais. O plano econômico de
foi escolhido por William Tate, che- Celso Furtado pouco se distinguia
fe do serviço para a América Latina daquele adotado pelos governos mi-
da BBC, o primeiro representante litares que depuseram Goulart. Já a
da emissora no Brasil. Durante um perspectiva de reformas estruturais
ano trabalhou incessantemente pa- foi fortemente abalada e seus defen-
ra as notícias internacionais serem sores afastados e cassados.

CORREIO DA M A NH Ã /A RQUIVO N ACION A L E ACERVO PESSOA L


transmitidas pela rede de rádios e te- No segundo período, de 1969 a
vês brasileiras. O Estado, então sob 1976, houve o recrudescimento da
censura, em período posterior à de- ditadura, materializado pelas invec-
posição de João Goulart, interferiu tivas violentas do Estado militar ao
diretamente na transmissão e difu- promover impiedosamente a coação,
são de informações e notícias, ini- a repressão, a tortura sistemática e o
ciando um processo que levou ao fe- assassinato de lideranças estudan-
chamento do escritório da BBC. tis e sindicais que convocavam e or-
Cabe uma digressão histórica so- ganizavam manifestações numero-
bre o golpe de 1964. Mino Carta lem- sas em defesa da democracia e das re-
bra que viu a marcha passar, literal- formas estruturais, e de jornalistas e
mente, ao assistir as tropas avançan- políticos que as reverberavam.
do pelo Centro de São Paulo. “No po- A juventude foi um fator im-
der”, para Mino, “Jango tornou-se prescindível na luta contra a dita-
um estadista porque trabalhou pe- Ivanisa com Franklin Martins e os sogros dura, mobilizou-se nacionalmen-

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

A passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro,


foi o início da trajetória de muitos militantes

te em 1968. Participei da passeata dos


100 mil na Cinelândia. Como estudan-
te de Psicologia na PUC do Rio de Janei-
ro, passei a participar ativamente do mo-
vimento estudantil. Debatia com psica-
nalistas de esquerda a prática da psica-
nálise e a participação de psicanalistas
na luta em defesa da restauração da de-
mocracia, contribuíamos com textos pu-
blicados nos jornais alternativos. Deci-
di participar efetivamente, ingressan-
do em uma organização revolucionária,
mantendo uma militância clandestina.

E
ra uma militância que exi-
gia disciplina, leitura de tex-
tos marxista-leninistas de-
batidos pelas células e fra-
ções da organização, de mo-
do a montar um programa de alcance na-
cional que se traduzisse em ação política
de conscientização, mobilização e reor-
ganização de associações de moradores
nos bairros da periferia, de trabalhado-
res em sindicatos e de estudantes secun-
daristas e universitários em diretórios,
tal o nosso compromisso em derrubar a
ditadura que se instalou definitivamente
após o AI-5. Mantínhamos diálogo e de-
bates permanentes de documentos polí-
ticos com outras organizações marxista-
-leninistas, inclusive internacionais
Participava diretamente do movi-
mento sindical e do movimento de mu-
lheres em sindicatos dos metalúrgicos,
dos gráficos e dos bancários. Participa-
va da redação e edição do jornal clandes-
tino, órgão de conscientização popular.
Participava de frações de lutas e debates
em defesa dos direitos das mulheres, de
reuniões coletivas, juntamente com Ru-
th Escobar e outras lideranças feminis-
MANTIVE UMA VIDA DUPLA, ENTRE A tas, na terceira fase da ditadura, de 1976 a
LEGALIDADE E A CLANDESTINIDADE 1985. Participava de assembleias que reu-
niam em torno de 200 mulheres.
Tínhamos consciência do risco dian-

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 25
INÊS 249

te da opressão e violência do Estado nos


governos de Médici e Geisel, período de
maior repressão, quando houve tortura
e morte dos opositores e cerceamento
das liberdades individuais e de pensa-
mento. Fazíamos campanha pela anis-
tia e finanças para companheiros que
continuavam no exílio. Formávamos a
retaguarda da organização que tinha
vínculos internacionais. Recebíamos
treinamento de segurança para asse-
gurar e proteger os companheiros com
quem militávamos diretamente. As re-
gras de segurança eram muito severas
e prontamente obedecidas, em face do
propósito de combate à ditadura e a re-
democratização do País. As reuniões
internas alongavam-se pela madruga-
da, quando era possível voltar para casa
em segurança, evitando agentes da re-
pressão infiltrados nos movimentos so-
ciais. Endereços não eram compartilha-
dos. Somente a direção da organização
detinha o conhecimento da distribuição
de cada militante pelas regiões da cida-
de de São Paulo, que não tinham contato
uns com os outros e se encontravam em
aparelhos destinados especificamente
a reuniões clandestinas. eu deveria ir ao Comitê Brasileiro pe- ra mim, ele decidiu me manter no car-

F
la Anistia para obter informações. Fui ro como medida de proteção. Nesse mo-
undei, juntamente com outros recebida por Airton Soares, que me deu mento percebi que o treinamento de se-
integrantes de partidos comu- dois números de telefone, um deles de gurança que havíamos recebido pode-
nistas, o MDB da Lapa, em São Luiz Eduardo Greenhalg. Fui aconse- ria ser aplicado nessa operação de fuga.
Paulo. Continuei meu mestra- lhada a ligar de uma central telefônica. O motorista aceitou a minha orienta-
do em Psicologia Clínica na Ao descer do táxi, percebo dois carros ção. Disse a ele para não demonstrar que
PUC paulistana, momento político de re- iluminados com quatro homens em ca- tinha conhecimento de que estavam nos
tomada do movimento estudantil, tempo da. Escurecia e a rua era um beco sem perseguindo e somente averiguasse pe-
em que eu mantinha uma vida dupla en- saída. Voltei-me para o motorista e dis- lo espelho retrovisor. Rodamos duas ho-
tre a legalidade e a clandestinidade. se que estava sendo seguida por motivos ras e meia em alta velocidade pelas ave-
Um mês antes da promulgação da Lei políticos, pedi que ele confirmasse pe- nidas para reduzir a velocidade nas tra-
da Anistia, meu companheiro foi per- lo espelho retrovisor. Sem se voltar pa- vessas. Parávamos para verificar se con-
seguido e não voltou no horário que
combinamos. Saí do nosso apartamen-
to levando comigo documentos políti- DORMIA EM UM COLCHÃO DE BEBÊ
cos que entreguei a companheiros pa-
ra encaminhá-los à direção. Dormia em NA COZINHA, SOBRE FOLHAS DE
um colchão de bebê na cozinha, sobre JORNAL, PARA ESPANTAR O FRIO
folhas de jornal, para espantar o frio.
Depois de alguns dias decidimos que

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

tinuávamos a ser seguidos, até verificar- nacional, que exige do atual governo uma
mos que não havia mais risco. Desci do atenção especial, devido a uma reversão
carro em meio ao trânsito e me dirigi a radical de conjuntura global, que nos dias
uma outra central telefônica, onde con- de hoje se diferencia radicalmente daquela
segui falar com Greenhalg e marcar um de 64, tornou-se de unipolar a multipolar.

C
ponto. Ele pessoalmente me encontrou
e me levou para sua casa, onde estavam abem alguns breves comen-
reunidos Gianfrancesco Guarnieri e Lé- tários sobre o governo ante-
lia Abramo. No dia seguinte, me levou ao rior nos quesitos de exercício
aeroporto de madrugada. Subi no avião da democracia, de composi-
pela pista para não ser identificada. ção do aparelho do Estado,
Ao chegar ao Rio de Janeiro me dirigi em que a presença de militares no coman-
ao Jornal do Brasil e entrei sem me iden- do foi numerosa, e da consequente compo-
tificar. Saí do JB em companhia de Técio sição do novo Parlamento. O presidente do
Lins e Silva, que me levou a um local, cuja período de 2018 a 2022 transgrediu princí-
localização desconhecia. O proprietário pios constitucionais no exercício da demo-
do apartamento, Álvaro Machado, irmão cracia, ao estatuir, dentre outras medidas
de Ruth Rocha, me visitava uma vez por antidemocráticas, o golpe de 64 como uma
semana para me levar alimentos e li- “revolução” comandada por militares e ao
vros. Mesmo com a promulgação da Lei invocar Brilhante Ustra, torturador, como
da Anistia, continuei escondida porque um modelo de patriota, enquanto o atual
meu companheiro, devido a uma con- presidente, democraticamente eleito, foi
denação por “crime de sangue”, não foi mantido preso de 7 de abril de 2018 a 8 de
anistiado. Nosso reencontro aconteceu novembro de 2019. Nesse período houve
seis meses depois, em relativa seguran- um retrocesso histórico. O Estado passou
ça. Franklin e eu nos casamos um dia an- por um desmonte e o Parlamento tornou-
tes da fundação do PT. De 1980 em dian- -se em sua maioria retrógrado.
te, fui eleita representante do movimen- No âmbito internacional, o presiden-
As manifestações em favor da anistia e à época
da gravidez (Anita, o bebê, não sobreviveu)
to de mulheres em São Paulo, participei te anterior defendia um alinhamento in-
das manifestações pelas Diretas Já e nes- condicional do Brasil aos Estados Unidos
se mesmo ano fui escolhida pelo gover- e o isolamento do País em relação à comu-
no cubano a compor a delegação brasilei- nidade internacional. O atual presidente
ra no Congresso de 300 mulheres para a Luiz Inácio Lula da Silva, não se mostra
América Latina e o Caribe. Fidel Castro partidário a uma aliança estratégica fixa,
recebeu especialmente a delegação bra- muito menos a blocos ideológicos polari-
A N TO NIO CL ÁU DIO/ACERVO C S B H / F PA E ACERVO P ESOA L

sileira para debater o cenário e as pers- zados. O problema mundial não é a falta de
pectivas do Movimento Diretas Já. Em “regras”, é a ausência de instituições capa-
1987, fui assessora do relator da Ordem zes de interpretá-las de forma consensual,
Social na Constituinte, quando partici- que sejam aceitas pela comunidade inter-
pei da redação de cinco artigos da Cons- nacional. Como disse o alto representan-
tituição que, como gestora federal do Mi- te da União Europeia para Política Exter-
nistério da Previdência Social e do Plane- na, Joseph Borrel, “a era do domínio glo-
jamento, tive a oportunidade de implan- bal do Ocidente chegou ao fim”. •
tar, da seguridade social aos programas
de transferência de renda, e instalar a re- *Psicanalista, cientista social, ex-combatente
de de conselhos deliberativos paritários da ditadura, uma das autoras do livro
coletivo, organizado por Francisco Calmon
em todo o território nacional. e apoiado pelo Forum 21 e Movimento
Para comentar os 60 anos depois do gol- Geração 68, entre outras redes,
pe de 64, procurei agregar o contexto inter- 60 Anos do Golpe, Gerações em Luta.

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 27
INÊS 249

VIDA DESPEDAÇADA
OS 50 ANOS DO SUICÍDIO DO FREI TITO DE
ALENCAR, TORTURADO NOS PORÕES DO REGIME

p o r L E N E I DE D UA R T E - P L O N , DE PA R I S

O
Brasil relembra, com camente nas salas de tortura, se enfor- vilização Brasileira, o filósofo Vladimir
reportagens, filmes, cou na França, no verão europeu de 1974. Safatle escreveu: “Ao narrar a história
livros, conferências O dever de memória nos leva a contar sua de frei Tito a partir de um estudo exaus-
D E S. PAU LO, D O P S E ACERVO J B

e celebrações ofi- vida e seu engajamento com os domini- tivo, Leneide e Clarisse fazem, no entan-
A R Q U I V O P Ú B L I C O D O E S TA D O

ciais, os 60 anos do canos de São Paulo, aliados da Ação Li- to, mais do que a reconstrução de proces-
golpe de 1° de abril, bertadora Nacional, grupo de resistência sos históricos. Em certo momento, elas
início de uma dita- criado por Carlos Marighella. lembram desta afirmação feita por um
dura sanguinária de 21 anos. O dia 10 de No prefácio do livro Um Homem Tor- torturador a Tito: ‘Se não falar, será que-
agosto marcará meio século da morte do turado − Nos Passos de Frei Tito de Alen- brado por dentro, pois sabemos fazer as
frade dominicano Tito de Alencar Lima, car, de minha autoria e de Clarisse Mei- coisas sem deixar marcas visíveis’”.
que, preso, agredido e destruído psiqui- reles, lançado em 2014 pela editora Ci- Na verdade, continua Safatle, tal frase

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

O delegado Fleury torturou até a alma do vembro de 1969, Tito escreveu, em feve-
dominicano, que nunca conseguiu se recuperar
reiro de 1970, o relato de sessões de tor-
tura, dirigidas pelo capitão Albernaz e,
anteriormente, pelo delegado Sérgio Pa-
ranhos Fleury. O texto saiu clandestina-
mente da prisão de São Paulo e foi publi-
cado na revista americana Look e na ita-
liana L’Europeo. Por este texto, a Look re-
cebeu o prêmio de reportagem do ano de
1970, atribuído pelo New York Overseas
Press Club, associação da imprensa es-
trangeira de Nova York.

S
eg u ndo Je a n- C l aude
Rolland, o jovem psiquiatra
que, em Lyon, com grande
lucidez acompanhou Tito no
auge do seu tormento, entre
1973 e 1974, “a barbárie que leva certos
homens à prática da tortura contamina
automaticamente todos os seus contem-
porâneos. Ela faz de cada um de nós cúm-
plices virtuais. Há, no fundo de nós mes-
sintetizava de maneira precisa a natureza mos, muito recalcada, uma capacidade
da violência e da máquina criminosa pro- de destruir o outro e o torturador ape-
duzida pela ditadura brasileira. “Fazer as nas ativa essa capacidade de destruição”.
coisas sem deixar marcas visíveis, ou seja, Nos meses que passou no convento
tirar as marcas da violência da visibilidade Sainte-Marie de la Tourette, perto de
pública, apagá-la e, com ela, deletar as Lyon, depois de fracassar na tentativa de
histórias que tal violência destruiu. “A di- se inserir nos estudos na universidade e
tadura brasileira foi, até agora, bem-suce- no Couvent Saint-Jacques, em Paris, Tito
dida nessa sua empreitada, e graças a tal conviveu de perto com o jovem domini-
sucesso ela conseguiu, de certa forma, cano Xavier Plassat que conta no livro
nunca ter terminado. Nesse contexto de Um Homem Torturado: “O Fleury rara-
invisibilidade e esquecimento forçado, o mente o deixaria quieto e, nesses meses
uso da memória é um ato político maior, que compartilhamos, Tito alternaria
pois impede que o tempo possa extor- constantemente entre o entregar-se e
Frei Tito foi um dos 70 presos
políticos trocados pelo embaixador quir reconciliações meramente formais.” o resistir. Era como se estivesse acuado
suíço Giovanni Bucher Preso com outros dominicanos em no- entre as paredes desse novo ‘corredor po-
lonês’, morrer vivendo, viver morrendo.
Cumpria-se a louca promessa que rece-
bera durante as sessões reais de tortura”.
“SE SOBREVIVER, JAMAIS ESQUECERÁ Segundo palavras do próprio Tito, regis-
O PREÇO DE SUA VALENTIA”, tradas pelos companheiros de cela, “quise-
ram me deixar dependurado toda a noite
VATICINOU O CAPITÃO ALBERNAZ, no pau de arara. Mas o capitão Albernaz
AGENTE DA REPRESSÃO objetou: ‘Não é preciso, vamos ficar com
ele mais dias. Se não falar, será quebrado
por dentro, pois sabemos fazer as coisas

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 29
INÊS 249
Especial 1964 60 ANOS

sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, consultas no hospital com o doutor


jamais esquecerá o preço de sua valentia’”. Rolland, atormentado pelas alucinações
Depois de passar pelo inferno da segun- nas quais revia Fleury ameaçando seus
da série de torturas no início de 1970, frei pais e suas irmãs de tortura, Tito tenta
Tito tentou se matar cortando as veias. Foi se suicidar com uma dose de remédios.
salvo in extremis, depois de internado no Mais uma vez é internado e salvo.
hospital militar do Cambuci. O ex-frei Ro- Em agosto de 1974, um camponês viu
berto Romano conta: “O arcebispo Agnelo um corpo pendurado numa árvore. Ter-
Rossi telefonou às autoridades, governa- minavam ali o suplício e as torturas de
dor e comandante militar, e autorizaram Tito, revividas em seu sono e em seus mo-
uma visita a Tito no hospital. O arcebis- mentos de alucinação, nos quais revia as
po indicou dom Lucas Moreira Neves, que ameaças e as torturas nos porões da dita-
fora dominicano antes de ser sagrado bis- dura. Rolland nos disse nas diversas entre-
po. Ele foi lá e viu Tito torturado, à beira vistas o que fizemos com ele: “Hoje, penso
da morte. Mais tarde, quando o advoga- que a loucura está no torturador. É preci-
do dos dominicanos, Mário Simas, pediu so ver a tortura como uma loucura. Alguns
que dom Lucas dissesse na 2ª Auditoria militares que torturaram na Argélia fica-
Militar de São Paulo que tinha visto Tito Plassat conheceu Tito na França. Hoje vive ram loucos. Só se pode fazer isso exercen-
torturado, mas dom Lucas negou, dizen- no Brasil e atua na Pastoral da Terra do uma distorção mental muito grande.
do que tal testemunho prejudicaria sua Albernaz, um dos torturadores de Tito,
atividade pastoral”. Romano acrescen- e Haskel Wexler, para o documentário lhe disse: ‘Quando venho para a Operação
tou: “Como disse um autor do século XIX, Brazil: A Report On Torture (Brasil: Um Bandeirantes, deixo meu coração em casa’.
‘a Igreja é de fato divina, caso contrário relato Sobre a Tortura). Ele conta das se- Isso mostra que são seres divididos, como
os homens já teriam acabado com ela’”. vícias e de sua tentativa de suicídio cor- se houvesse uma cisão”, avalia o médico.

I
tando as veias “para denunciar assim que Na pedra tombal de frei Tito, no ce-
ncluído na lista dos 70 prisionei- o Brasil não era mais somente o país do mitério do convento Sainte-Marie de la
ros políticos a serem trocados pelo samba, do futebol e de Pelé, mas também Tourette, onde seu corpo descansou por
embaixador suíço Giovanni Enrico um grande campeão da tortura”. nove anos, está escrito em francês e em
Bücher, Tito aceitou deixar o Brasil a Ao receber Tito na emergência psi- português: “Frei Tito de Alencar Lima,
contragosto. Sabia que aqueles liber- quiátrica do hospital de Lyon pela primei- O.P. 1945-1974 – Frei da Província do
tados através de sequestros tinham de as- ra vez, o médico Jean-Claude Rolland des- Brasil, encarcerado, torturado, banido
sinar um documento que os bania do ter- cobria o psiquismo destruído de uma víti- do País, atormentado até a morte por ter
ritório nacional. Na foto dos 70 diante do ma de tortura. Começava ali o acompan- proclamado o Evangelho lutando pela li-
avião que os levaria a Santiago do Chile, hamento de um sofrimento atroz do que bertação de seus irmãos. Tito descan-
em pleno governo Salvador Allende, Tito ele chama de “sintomas-testemunho”. sou nesta terra estrangeira. No dia 25
está triste e abatido, em contraste com a Nem a faculdade de Medicina nem sua de março de 1983 ele foi trasladado pa-
euforia da maioria dos companheiros. Em prática de psiquiatra o tinham prepara- ra sua terra, Fortaleza, onde descansa
Santiago, deu um depoimento para dois do para casos como o de frei Tito. com seu povo”. “Digo-vos que, se os dis-
cineastas norte-americanos, Saul Landau Depois de passar quase um ano em cípulos se calarem, as próprias pedras
clamarão” (Lucas, 19:40). Em março de
1983, depois de uma missa de corpo pre-
sente na catedral de Lyon, codirigida pe-
“A LOUCURA ESTÁ NO TORTURADOR”, lo bispo brasileiro dom Tomás Balduíno,
AFIRMA JEAN-CLAUDE ROLLAND, Frei Tito voltou à sua terra, Fortaleza.
Seu antigo colega do convento
PSIQUIATRA QUE ATENDIA O RELIGIOSO
K AY C H E R B U S H

Sainte-Marie de la Tourette, Xavier


BRASILEIRO EM LYON Plassat, se instalou no Brasil, onde mora
até hoje e coordena o Programa da Pasto-
ral da Terra contra o trabalho escravo. •

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
MARIA RITA KEHL
Psicanalista e escritora, foi integrante da Comissão Nacional da
Verdade. É autora, entre outros, de O Tempo e o Cão, vencedor
do Jabuti de 2010, e Tempo Esquisito (2023), ambos pela Boitempo

Lembrar é resistir
tadura. Resgato trechos do depoimento Nova prisão e tortura: Fiquei no-
► No momento em que por entender que a preservação da me- ve meses desaparecido, numa cela clan-
Lula hesita em rememorar mória é o único antídoto para evitar a re- destina, tipo geladeira, trancado. Só
petição de tragédias do passado. saía para prestar depoimento para a
os 60 anos do golpe,
polícia. Costuraram meus testículos e
compartilho o relato de um Sobre o golpe: Em 1964, estava em São pênis, furando com agulha. Quase mor-
líder camponês torturado Luís fazendo uma manifestação sobre a ri de dor. (Meu testículo) parecia um ra-
questão agrária. Foi Dom Fragoso (bispo lo. Diziam que eu era o maior assassino
durante a ditadura
de Crateús) quem me tirou dali. Ele man- do Maranhão, mas eu nunca matei nin-
dou as freiras me esconderem. Elas me bo- guém. Ameaçavam de me jogar no mar ou
taram assim, no meio daquelas saias gran- na mata de avião. Era uma confusão do

R
ecentemente, o governo federal des delas. Me botaram num carro e nos dei- cão. Queriam nomes de amigos. (...) Quan-
decidiu apoiar o projeto Memó- xaram em Pedreira do Mearim, Tufilândia. do eu estava no Rio de Janeiro, me tira-
rias dos Massacres no Campo, Fiquei três meses lá. Os militares eram as- ram da tortura e me levaram para uma
lançado em 2020 pela Comissão Pasto- sim: reunião de mais de três pessoas já era casa com muita caveira de gente morta:
ral da Terra e pela UnB. Com verba de 2 subversão. Lá em casa, juntavam 30, 40 “Se não falar você vai ficar desse jeito”.
milhões de reais, a nova fase da pesqui- pessoas para conversar, e eu fui considera- Continuei quieto.
sa conta com a participação do Minis- do subversivo. Em julho de 1964 fui preso,
tério da Justiça, que montou uma for- passei um mês na cadeia. Me castigaram de Fantasmas do passado: A coisa que
ça-tarefa para analisar 57 chacinas de um jeito que eu tenho até vergonha de falar. me dá mais dor no coração é falar disso,
trabalhadores rurais e povos indígenas Um mês na cadeia, apanhando todo dia pa- até me dá mal-estar. Choque elétrico, pau
de 1985 a 2023. O recorte temporal ex- ra contar onde estavam meus companhei- de arara, o diabo... Mas faço questão (de
clui as matanças durante a ditadura, já ros da AP (Ação Popular), para matarem contar), para não deixar nada sem falar,
esmiuçadas pela Comissão Nacional da um por um. Haja cacete. Mas eu não disse para limpar isso de dentro de mim. Isso faz
Verdade, da qual tive a honra de partici- uma palavra contra qualquer companheiro. parte da minha vida, esses crimes desgra-
par. Neste momento de hesitação do go- çados. Dá muita raiva. Tortura é uma coi-
verno Lula em relação à memória dos 60 Reforma agrária: Sempre fui a favor sa terrível, você não crê em mais nada, o
anos do golpe de 1964, gostaria de com- da luta pela terra. Mas não queria guer- cara quer que você diga o que você não fez.
partilhar algumas anotações do depoi- ra, queria uma luta mais pacífica. Só que
mento prestado por Manoel Conceição não tinha jeito, ou a gente morria ou virava Reparação: Só queria que o Estado jul-
Santos à CNV, em novembro de 2013, na revolucionário. Foi aí que pedi filiação na gasse as pessoas que fizeram essas ruin-
cidade maranhense de Imperatriz. AP, para ser um militante. Como era, an- dades conosco. E os que ficaram na pior,
Símbolo da luta pela reforma agrária, tes da filiação política: Raimundo Alves de com os filhos passando fome, queria que
o líder camponês presidia o Sindicato dos Castro era delegado da polícia na região de o Estado pudesse indenizar, porque me-
Trabalhadores Rurais de Pindaré-Mi- Mearim, e passou a ser amigo nosso. Quer recem. Recebi uma mixaria, sei que teve
rim, o primeiro do Maranhão, quando dizer, ele não queria encrenca conosco. De- companheiros “doutores” que receberam
os militares tomaram o poder. Sobrevi- pois veio o filho dele, Manacé de Castro, e milhões de reais sem ter passado o que
veu à ditadura mesmo depois de ser ba- ficamos inimigos. Ele veio para o Mearim, eu passei. Perdi a perna, não tive mais
leado, preso, torturado e mutilado. Bus- casou-se com uma mulher do Pará e pas- condição de trabalhar. Recebi 90 mil,
cou refúgio em Genebra e, com a Lei da sou a liderar os amigos deles, pistoleiros, mas dei dinheiro para tanta gente mais
Anistia de 1979, retornou ao País, ajudan- para matar gente. (...) O golpe era para dar necessitada que acabou. Não comprei
do a fundar o PT no ano seguinte. Antes um jeito em nós, nos pobres que lutavam, nada. Moro numa unidade do “Minha
de falecer em 2021, acometido por uma tinham educação e tudo. Não gostavam do Casa Minha Vida”, que uma filha com-
B A P T I S TÃ O

broncopneumonia, deixou esse dilace- que a gente fazia. Não matavam o padre prou em meu nome. •
rante relato das sevícias sofridas na di- que estava educando, mas matavam nós. redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 31
INÊS 249

MARCHA PELA
DEMOCRACIA
FAZER O PERCURSO INVERSO AO DAS TROPAS
GOLPISTAS SERVE PARA NOS LIBERTAR DO PASSADO
por M A RGA R IDA SA LOM ÃO*

D
ia 30 de março de 1964. que teria levado à insurgência o oficiala- ter simbolicamente. No próximo dia 1º
O general Mourão Fi- to superior, apoiado na indignação das li- de abril, vão reunir-se na Cinelândia, no
lho, comandante da deranças políticas de oposição ao gover- Rio, militantes, intelectuais, jornalistas,
4ª Região Militar, de- no. Equívoco total. À hora em que Goulart lideranças políticas e sindicais, familia-
sencadeia em Juiz de discursava estava em andamento o pro- res de perseguidos pela ditadura. De lá,
Fora, na Zona da Ma- cesso que levaria à sua deposição. rumarão até Juiz de Fora. O trajeto inclui
ta mineira, a Opera- Preocupado em perder protagonismo Petrópolis, Levy Gasparian e Simão Pe-
ção Gaiola, prisão dos virtuais inimigos e às vésperas de vestir o pijama, Mourão reira, num caminho inverso àquele das
do golpe que poderiam mobilizar contra atropelou a arrancada de um processo tropas de Mourão, visitando marcos des-
ele uma reação popular. Às 9 da manhã, construído laboriosamente, com apoio sa viagem e desse período histórico.
soldados do Exército detêm José Villani internacional dos Estados Unidos, pela Qual o sentido dessa reversão espacial
Cortes, presidente do Sindicato dos Ban- flor do empresariado brasileiro, por al- e histórica? Fazer o contramovimento
cários de Juiz de Fora, considerado o pri- tas patentes militares no Ipes e por lide- não apaga o curso dos eventos, não ate-
meiro preso político da ditadura. Às 3 da ranças políticas civis, destacadamente, nua as perdas, não remove as afrontas,
tarde, dona Marita Pimentel França Tei- os governadores de Minas Gerais, Rio as humilhações, as dores. Não diminui a
xeira desarrumava as malas de uma via- de Janeiro e São Paulo, interessados nas violência infringida à ordem institucio-
gem no feriado de Páscoa quando teve a eleições presidenciais de 1965 − todos, nal, à cena política, aos corpos de quem
sua casa invadida por soldados que levam mais tarde, cassados em suas ambições. se opôs e resistiu, tantos dos quais mor-
preso seu marido, Misael Cardoso Teixei- Assim, no dia seguinte, na madruga- tos na peleja. Por tudo isso, no entanto, a
ra, diretor em Juiz de Fora da Agência dos da de 31 de março para o dia 1° de abril de marcha é indispensável: para que todos
Correios e Telégrafos. A prisão de Misael 1964, as tropas deslocam-se de Juiz de possam se lembrar.
ocorre dentro de outro módulo do golpe, Fora para o Rio, movimento que agora a É característica dos nossos tem-
a Operação Silêncio, que visava controlar Marcha pela Democracia buscará inver- pos que as decisões sobre o futuro exi-
a imprensa e os meios de comunicação.
Na noite de 30 de março, no Automóvel
Clube, o presidente João Goulart discur-
sava em solenidade de sargentos da Polí- É PRECISO DEFENDER O BRASIL DAS
cia Militar e das Forças Armadas, em de- AVENTURAS E VIOLAÇÕES OPORTUNISTAS
fesa das reformas de base. O evento é por
muitos tratado como a provocação final,

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

O general Mourão Filho, açodado,


precipitou a quartelada ao levar seus
soldados de Juiz de Fora para a Guanabara

outorgará ao presidente João Goulart, in


memoriam, a mesma reverência acadêmi-
ca, prestando assim o reconhecimento
devido a um presidente da República que,
jam uma disputa do passado. Jorge Luis no dia 31 de março, num desdobramento mesmo em condições agudamente adver-
Borges, em uma de suas lindas Conferên- da Operação Gaiola. Antecipava, assim, sas, liderou importantes mudanças eco-
cias de Belgrano, de 1978, nos diz que, as- o município a violência do dia 10 de abril, nômicas, culturais, sociais – entre elas, a
sim como temos o futuro em aberto, o quando foram suprimidos numa cane- instituição, em 1962, do 13º salário.

A
passado também é infinito – pela nossa tada 40 mandatos parlamentares fede-
condição de revisá-lo em nossa memória. rais. Inaceitável que esses testemunhos Marcha pela Democracia é,
No caso do Brasil, sem que nos atreva- investigativos de nosso passado recen- e deve ser, um trabalho
mos a esse mergulho corajoso nas feridas te sejam postos a dormir na prateleira. da memória da socieda-
da forçada diáspora africana, do exter- No caso dos atingidos pelo golpe, tra- de, fundamental para nos
mínio dos povos e culturas tradicionais, ta-se de superar um indesejável obscu- desencarcerar do passado,
sem o desbravamento do grande sertão recimento. Dada a exuberância da gera- para removê-lo como um peso que nos
de nossas relações sociais e familiares, ção de 68, para a qual era − e continua a induza ao risco de uma rota circular. De
será muito difícil sustentar um projeto ser − proibido proibir, dada a consequên- tal modo que esse passado não se repita.
civilizatório mais fraterno, mais sobera- cia histórica das mobilizações de 77 que E que o 8 de Janeiro de 2023 seja o expur-
no, mais justo. As Comissões da Verda- deságuam na anistia, na Constituinte, go de fantasmas que já não nos habitam,
de, instaladas em todos os níveis federa- na fundação do PT, ocorre um relativo exorcizados de vez pela punição devida.
tivos, inclusive aqui em Juiz de Fora, fi- esquecimento daqueles e daquelas que Por isso, havemos de marchar, para
zeram no início do século XXI um traba- foram, de muitas maneiras, sacrifica- que a democracia, imperfeita como seja,
lho inestimável de mineração de cacos de dos em 64. venha a ser defendida como valor uni-
vida, depoimentos, feridas, vídeos, fotos, Juiz de Fora, pelas circunstâncias, versal. À prova de aventuras e de viola-
imprescindíveis para que sigamos escre- foi duramente atingida: homenageio a ções oportunistas. E, sempre, condição
vendo a biografia do Brasil. todas as vítimas juiz-foranas na figura essencial para o avanço dos direitos hu-
Todo esse trabalho gerou uma copiosa de Clodsmith Riani, trabalhador eletri- manos e da cidadania plena. Marchamos
literatura, principalmente dissertações citário, sindicalista, presidente da CNTI para lembrar. E lembramos para avançar.
de mestrado. Uma delas, de Bárbara Vital e da CGT, preso e torturado por sua con- (Agradeço a Biel Rocha, secretário es-
Matos de Oliveira, apresentada à Univer- dição de militante social, alçado à condi- pecial de Direitos Humanos da prefeitu-
ARQUIVO NACIONAL

sidade Federal de Juiz de Fora em 2015, ção de doutor honoris causa da UFJF em ra de Juiz de Fora, o compartilhamento
aborda a mutilação imposta pelo golpe à 2005, e que hoje, centenário, ainda nos de informações fundamentais para a es-
Câmara Municipal da cidade. Os quatro inspira pela autenticidade de sua luta e crita deste texto.) •
vereadores do PTB tiveram seus manda- pela dignidade da sua vida.
tos cassados, três deles foram presos já Nesse dia 1º de abril de 2024, a UFJF *Prefeita de Juiz de Fora (MG).

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INÊS 249

Seu País

O remendo possível
ENSINO MÉDIO O projeto aprovado na Câmara eleva a carga horária
de disciplinas básicas, mas não avança em outros pontos sensíveis
POR MARIANA SER AFINI

Q
ueria prestar vestibu- ção com meu objetivo, mas, no último
" lar para Física, mas no
último ano não tive ne-
ano, acabei caindo num itinerário to-
talmente diferente. Só tive aulas de hu-
nhuma matéria de exa- manas, principalmente Filosofia e Le-
tas. Só consegui passar tras”, lamenta. Para correr atrás do pre-
na UFRJ porque tive a juízo, ela frequentou um curso pré-ves-
oportunidade de fazer um curso prepa- tibular comunitário, com aulas aos sá-
ratório. Se dependesse da escola, não te- bados, e ainda aproveitou o tempo livre
ria chegado”, afirma Julia Guedes Just, para fazer um curso de eletrotécnica no
de 17 anos. A estudante figura na primei- Senai. “Foi uma forma de ter mais con-
ra leva de formandos do Novo Ensino tato com conteúdos de exatas.”
Médio no Colégio Estadual Vereador An-
tonio de Ré, em Guarulhos, região me- O problema é mais comum do que se
tropolitana de São Paulo. O modelo en- imagina. Com a reforma do Ensino Mé-
trou em vigor em 2017, ainda no governo dio aprovada no governo Temer, a carga
de Michel Temer, mas só agora começa a horária das disciplinas básicas e obri-
mostrar os primeiros resultados. “Um gatórias foi reduzida para 1,8 mil ho-
desastre”, resume a jovem. “É muita res- ras. Por outro lado, foram reservadas
ponsabilidade eliminar matérias já no 1,2 mil horas para os estudantes apro-
primeiro ano. Ainda corremos o risco de fundarem seus estudos em um dos cin-
completar o curso sem as disciplinas ele- co itinerários formativos previstos no
tivas que escolhemos, porque as escolas novo modelo: 1) linguagens e suas tec-
não são obrigadas a oferecer todos os iti- nologias; 2) matemática e suas tecnolo-
nerários. É modelo bastante excludente.” gias; 3) ciências da natureza e suas tec-
Julia está ansiosa para se mudar para nologias; 4) ciências humanas e sociais
o Rio de Janeiro e iniciar sua trajetória aplicadas; e 5) formação técnica e pro-
universitária. Apesar de estar radian- fissional. As escolas não eram, porém,
te com a conquista, ela se sente em des- obrigadas a oferecer aos alunos todas as
vantagem com relação aos futuros co- cinco áreas. Bastava assegurar a oferta
legas, pois acredita que não recebeu de ao menos um dos itinerários, o que
instrução adequada na escola pública reduz significativamente o poder de es-
que frequentou. “Sempre tive interes- colha dos alunos.
se pela Física. Por isso, escolhi um iti- A insatisfação dos estudantes com as
nerário formativo que tinha mais rela- mudanças foram captadas pela pesquisa

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
TAMBÉM pág. 42
NESTA Plano de fuga? O camping na
SEÇÃO embaixada da Hungria complica
ainda mais a situação de Bolsonaro

Cenário. Oito em cada dez formandos


da rede pública não se sentem preparados
para disputar vagas nas universidades.
Camilo Santana busca alternativas

“Primeira Geração de Concluintes Ava-


lia o Novo Ensino Médio”, divulgada re-
centemente pela Rede Escola Pública e
Universidade (Repu) e pelo Grupo Esco-
la Pública e Democracia (Gepud). Rea-
lizado em sete escolas públicas de São
Paulo, o estudo revela que 85% dos en-
trevistados não se sentiam preparados
para fazer o Enem ou qualquer outro
exame de acesso às universidades. Além
disso, 92,7% dos respondentes acredi-
tam que a reforma deveria ser cance-
lada. Apenas 38% disseram que conse-
guiram completar os itinerários esco-
lhidos. Outros 53% avaliaram que suas
escolas não deram as condições neces-
sárias para a formação que pretendiam.

Por meses, estudantes, professores


e especialistas pressionaram o governo
Lula a revogar completamente a refor-
ma de Temer. O apelo ficou explícito no
documento aprovado pela Conferência
Nacional de Educação, a Conae, realiza-
da em Brasília no fim de janeiro. Cien-
te das dificuldades de bancar a propos-

LU IS FO R T ES / M EC E M A RCELO L EL IS /AG ÊN CI A PA R Á /G OV PA
ta com a atual composição do Congres-
so, o ministro da Educação, Camilo San-
tana, optou por propor mudanças sem
uma anulação radical. Apresentado pe-
lo Executivo, o Projeto de Lei 5230/23
foi aprovado pela Câmara dos Deputa-
dos na quarta-feira 20, na forma de um
substitutivo do relator, Mendonça Filho,
do União Brasil. O deputado manteve o
aumento da carga horária da formação
geral básica de 1,8 mil para 2,4 mil ho-
ras, como proposto pelo governo. Já as
disciplinas optativas, dentro dos cinco
itinerários formativos existentes, terão
um peso menor, de 600 horas.

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 35
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Seu País

Fruto de intensa negociação do go- Para especialistas, ça não foi uma vitória do governo, por-
verno com lideranças da Câmara, o pro- que o projeto apresentado não foi aca-
jeto foi aprovado em votação simbólica e
o ideal é revogar tado em quase nada, com a exceção do
segue para o Senado. Especialistas acre- completamente a aumento da carga horária”, explica. A
ditam que ainda há chances de fazer mu- reforma de Temer educadora destaca, inclusive, a existên-
danças significativas no texto-base, mas cia de novos retrocessos. “No substitu-
já consideram uma vitória o aumento da tivo de Mendonça Filho, estabeleceu-
carga horária de disciplinas de forma- -se que o Enem deve levar em conta os
ção básica para 2,4 mil horas. “Diante tais itinerários formativos. O problema
da correlação de forças no Parlamento, obrigatória. “O Brasil é cercado por paí- é que o exame não é só para quem está
devemos celebrar a mudança, mas ain- ses que falam a língua espanhola, mas as estudando agora. Há pessoas que se for-
da há muitos problemas no Novo Ensino escolas só são obrigadas a ensinar o idio- maram há muitos anos e fazem a prova
Médio”, avalia a deputada estadual Ma- ma inglês. Não faz sentido. Isso prejudi- também. Ele não pode ser modificado
ria Izabel Noronha, a Bebel, presiden- ca inclusive, a integração do Brasil com de maneira brusca.”
te da Apeoesp, o sindicato dos profes- os demais países da América Latina.” Já a professora Márcia Jacomini, do
sores do Estado de São Paulo. Manteve- Uma das responsáveis pela pesquisa Departamento de Educação da Unifesp,
-se, por exemplo, o conceito de “notório- que atestou a insatisfação dos estudan- avalia que o modelo vigente tem apro-
-saber” para legitimar a atuação de do- tes com o Novo Ensino Médio, Ana Pau- fundado as desigualdades, porque não
centes não habilitados, observa. “Não é la Corti, professora do IFSP e integran- oferece uma formação uniforme para
porque uma pessoa conhece um assun- te da Repu, está pessimista com relação todos. Outro ponto que não foi corrigi-
to que ela pode ensiná-lo, sem qualquer à reforma no Congresso. “Essa mudan- do na atual reforma é o formato da edu-
formação pedagógica. Isso é um equívo- cação a distância. “Nossa experiência
co e também representa um desrespei- com o ensino remoto durante a pande-
to ao trabalho do professor.” mia de Covid-19 demonstrou que o País
ainda não está preparado para isso, so-
Bebel também critica a reduzida car- bretudo quando consideramos o ensino
ga horária das disciplinas básicas e obri- oferecido aos estudantes de baixa ren-
gatórias nos cursos de ensino técnico ou da.” Mesmo quando se fala do uso de
profissionalizante. O projeto prevê 1,8 tecnologia em sala de aula, é preciso le-
mil horas, diante de 1,2 mil horas das var em conta a precariedade das esco-
disciplinas específicas. “A escola precisa las públicas, que padecem com a insta-
preparar o aluno com uma formação hu- bilidade da internet e com equipamen-
manista sólida. Tem o dever de formar ci- tos defasados, acrescenta a especialis-
dadãos, não somente profissionais para o ta. “Por vezes, o professor perde todo o
mercado de trabalho. Há um foco excessi- tempo de aula para resolver problemas
vo na mera qualificação de mão de obra.” técnicos. Essa plataformização da edu-
Para o presidente da Confederação cação só serve para agravar as dispari-
Nacional dos Trabalhadores em Edu- dades entre alunos de escolas públicas
cação, Heleno Araújo, outra caracterís- e de instituições privadas.”
tica negativa da reforma é a possibilida- Todos os educadores consultados por
de de usar recursos públicos para cus- CartaCapital acreditam que o projeto
tear cursos técnicos ou profissionali- em debate no Senado ainda pode sofrer
zantes oferecidos pela iniciativa priva- alterações importantes e haverá pres-
da. “Defendemos que a educação públi- são dos profissionais da educação pa-
ca tem de ser feita pelo Estado de forma ra que isso ocorra. Foram unânimes ao
integral. A formação profissional tam- afirmar, porém, que o ideal seria revo-
D E M O C R ATA S

bém é um dever do Estado.” Outra críti- gar o Novo Ensino Médio e elaborar uma
ca dos professores diz respeito à discipli- Enem. Mendonça Filho quer que o exame proposta nova, pautada no amplo diálo-
na de Espanhol, que continua não sendo leve em conta os itinerários formativos go com a sociedade. •

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Seu País

Energia limpa?
Protesto. Marcha de mulheres em
Areial, na Paraíba, chamou atenção
para os problemas na comunidade

SUSTENTABILIDADE Moradores queixam-se


de danos sociais e ambientais causados não chegam a 200 metros. Além do baru-

por parques eólicos e solares. Eles lho ininterrupto, a trepidação provocada


pelo movimento das hélices racha as pa-
existem, mas podem ser mitigados redes e causa terror nos moradores, que
dormem e acordam com medo de um aci-
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A dente, como já aconteceu em 2021. À épo-
ca, uma das torres explodiu e a turbina foi
arremessada para longe. Por pouco, não

A
acertou alguma edificação.
ssim como Lula, que ainda ções precárias do Semiárido nordestino. “Caiu em cima da vegetação, devastou
criança deixou Gara- Já Roselma, ao contrário, quer se livrar tudo que tinha na frente. Na primeira ex-
nhuns, no Agreste per- do progresso. Ou melhor, deseja distân- plosão, a torre ficou balançando, mas não
nambucano, por falta de cia de um progresso que trouxe para a re- caiu. Depois, veio outra explosão e a hélice
condições de sobrevivên- gião danos ambientais e sociais. se partiu. Se aquela torre caísse, iria des-
cia e migrou para São Paulo em busca de Há mais de dez anos, a comunidade truir tudo”, relembra Roselma, que desis-
uma vida melhor, a agricultora Roselma Sobradinho, na área rural de Caetés, so- tiu de continuar na comunidade e negocia
T ÚLIO M A RTINS/AS-P T

Melo se diz obrigada a abandonar Caetés, fre com o impacto de um grande parque com a empresa responsável pelo parque
cidade desmembrada da terra natal do eólico, instalado muito próximo das re- eólico o arrendamento de sua proprieda-
presidente, também em busca de melhor sidências, o que tem causado uma série de. “Cheguei ao meu limite, não aguento
qualidade de vida. Nos anos 1950, Lula e de problemas para os moradores. As dis- mais. Se ficar lá, vou pirar, minha famí-
sua família fugiam da seca e das condi- tâncias entre os aerogeradores e as casas lia toda ficou doente. Meu sogro passou a

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 37
INÊS 249
Seu País

ter problema de pressão alta. Todo mundo


aqui vive com ansiedade, depressão, insô-
nia, problemas de audição. A maioria dos
moradores tem alergia na pele, por causa
do pó lançado pelas hélices. Muitos estão
a ponto de perder a cabeça, fazer uma bes-
teira, porque não aguentam mais.”
Apontados como estratégicos no pla-
no nacional de transição energética, os
parques eólicos – e também os solares –
têm causado uma série de efeitos colate-
rais para as comunidades onde são insta-
lados. Desmatamento, ruídos constantes,
adoecimento da população e o desrespeito
à identidade local são algumas das quei-
xas de habitantes que vivem nas cercanias
desses empreendimentos. A Associação
Brasileira de Energia Eólica (ABEEóli-
ca) reconhece problemas em alguns par-
ques, mas assegura que eles são pontuais
e as empresas estão aperfeiçoando a sua
atuação, no sentido de mitigar os danos.

“Há um processo de aprendizagem na


implementação de parques eólicos. Os
maiores surgiram há apenas 20 anos”, ob-
serva Elbia Gannoum, presidente da ABE-
Eólica. “O fato de uma energia renovável
causar menos danos não significa a inexis-
tência de impacto algum. As queixas das
comunidades nos ajudam a aprimorar os usinas cumprem todos os requisitos le- Avanços. As normas mais recentes já
projetos.” De fato, comparativamente, as gais e são construídas em locais “com me- proíbem a instalação de aerogeradores
em dunas e exige uma distância mínima
usinas termoelétricas costumam trazer nor densidade demográfica e em terrenos
de 400 metros das casas, diz Gannoum
mais prejuízos à população e ao ecossiste- já antropizados e de baixa produtividade,
ma local, além de contribuir para o aumen- que normalmente não seriam aproveita-
to das emissões de gases de efeito estufa. dos para outras atividades”.
A maior reclamação em relação à ener- Na Praia do Cumbe, no município cea- ção das vias de acesso ao parque e de extin-
gia solar diz respeito ao desmatamento rense de Aracati, um parque eólico está guir sítios arqueológicos e pré-históricos.
de grandes áreas e ao superaquecimen- instalado há quase 20 anos em meio às “Perdemos parte do nosso território e
to provocado pelas placas fotovoltaicas. dunas, dentro de um território quilombo- o que mais revoltou foi a privatização da
“O sol chega nessas placas e aquece o ter- la, que aguarda apenas a regulamentação nossa praia. O Cumbe está entre man-
ritório também. Se tem pessoas muito pelo Incra. Além de se queixarem do não guezais e o campo de dunas. Você pre-
próximas, fica uma onda de calor muito cumprimento do artigo 169 da Organiza- cisa subir as dunas para chegar na praia.
grande, principalmente quando se soma à ção Internacional do Trabalho (OIT), a de- O parque se instalou lá e tirou o nosso
remoção da mata nativa”, salienta Renato terminar que as comunidades tradicionais acesso. Só depois de cinco anos foi feito
Cunha, do Grupo Ambientalista da Bahia sejam ouvidas em ações relacionadas aos um Termo de Ajustamento de Conduta e
ABEEÓLICA

(Gamba). O problema é minimizado pe- territórios, os moradores do Cumbe acu- a comunidade voltou a ter acesso à praia”,
la Associação Brasileira de Energia Solar sam a empresa de destruir parte das du- explica João Luiz do Nascimento, do Mo-
Fotovoltaica (Absolar), a observar que as nas para fazer terraplenagem e constru- vimento Quilombola do Ceará e do Mo-

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INÊS 249

“Causar menos tiça social e respeito aos territórios. Den-


tre as sugestões estão normas que devem
danos não significa constar nos contratos de cessão de uso da
a inexistência de terra por parte das empresas de energia
impacto algum”, renovável, regras para a emissão de outor-
lembra a presidente gas e de licenciamento ambiental de gera-
da ABEEólica ção e transmissão de energia, além de sal-
vaguardas para políticas públicas, consi-
derando a identidade dos territórios e a
questão racial e de gênero. O documento
está sendo entregue a todos os governa-
vimento de Pescadores Artesanais do dores do Nordeste, ao Ministério Públi-
Ceará. Segundo o líder quilombola, os co e ao governo federal.
fios subterrâneos dos aerogeradores re-
presentam risco de descarga elétrica, por Em 15 de março, cerca de 6 mil
isso a empresa limitou o acesso dos mo- pessoas participaram da 15ª Marcha pela
radores às dunas. Ele reforça que o local Vida das Mulheres e pela Agroecologia,
é uma Área de Preservação Ambiental no município de Areial, na Paraíba, tam-
(APA) e, portanto, não deveria sofrer es- bém a protestar contra os danos causa-
se tipo de exploração. “A gente sabe que dos pelos parques eólicos instalados na
se trata de uma energia renovável, mas a região. “É uma energia que deixa estra-
forma como ela vem sendo implementa- gos. Além de problemas de saúde, tem
da nos territórios tradicionais, à custa de toda uma violência contra as mulheres.
muita violência e negação de direitos, ela Muitos homens que vêm trabalhar nas
não tem nada de limpa. Ela impacta co- comunidades rurais acabam assediando
mo qualquer outra atividade econômica.” as meninas. Tem até um fenômeno que
Gannoum faz uma linha do tempo para chamamos de ‘filhos do vento’, fruto des-
explicar a evolução dos parques eólicos e sa violência”, explica Maria do Céu Silva,
cita a atual resolução do Conselho Nacio- coordenadora do Polo Sindical e da Bor-
nal do Meio Ambiente, o Conama, que es- borema, na Paraíba, referindo-se à gra-
tabeleceu novas regras em 2014. Pela re- videz precoce de adolescentes que se en-
solução, é necessário respeitar uma dis- volvem com esses trabalhadores.
tância mínima de 400 metros dos aeroge- Um dos cartões-postais da Bahia, a Cha-
radores para as residências e é proibida a pada Diamantina também está sofrendo
instalação das torres em áreas de dunas. os efeitos dos megaempreendimentos. Por
“Muitos parques foram feitos com base ser uma região de difícil acesso, cercada de
na norma anterior, em que, além de não serras, lagos e cavernas, é preciso abrir es-
existir um desenho regulatório, havia tradas e desmatar grandes áreas para le-
pouco conhecimento a respeito dos im- var os aerogeradores até o local. No Rio
pactos. Antes de 2014, muitas configura- Grande do Norte, na Serra de Santana, o
ções de parques que se faziam, hoje não se problema se repete. Com o transporte das
faz mais. Agora, os parques são projetados torres eólicas, as famílias precisam con-
de maneira mais adequada.” viver com a poeira 24 horas por dia, dei-
No fim de janeiro, mais de 30 entida- xando como sequelas todo tipo de doen-
des da sociedade civil lançaram o docu- ça respiratória. Além disso, muitos par-
mento Salvaguardas Socioambientais pa- ques são instalados sobre rochas, que pre-
ra Energia Renovável, dentro do Plano Po- cisam ser dinamitadas para fincar as tor-
tência Nordeste, com propostas favorá- res. Segundo os moradores, as explosões
veis à transição energética, mas com jus- racham casas e afugentam os animais. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 39
INÊS 249
Seu País

Não é um rebanho
grande maioria, por mulheres, negros, na
faixa de 25 a 45 anos, moradores de peri-
ferias de grandes cidades.
Pensar que as diferenças não estão
ANÁLISE Os evangélicos estão longe de ser apenas nesses elementos também é im-
um grupo monolítico. Há uma profunda portante. Elas ainda passam por gênero,
raça, classe, localização das comunida-
diversidade de pensamento e experiências des, culturas regionais, e por aproxima-
ções e distanciamentos a partir de visões
P O R M AG A L I C U N H A*
de mundo e das teologias e religiosida-
des. Evangélicos são gente, são plurais.

N
Evangélicos não
unca na história deste Pa- Superar o enquadramento têm representantes
" ís” se falou tanto de evan- em um único grupo Diferentemente dos católicos, que têm
gélicos. O protagonismo Significa compreender a pluralidade do um poder eclesiástico centralizado, os
alcançado por esse seg- segmento. Existem as igrejas-corpora- evangélicos não têm um representante.
mento cristão, como par- ções, organizadas no modelo empresa- É um segmento formado por diferentes
cela significativa do eleitorado e do ativis- rial, com sedes e congregações subsidi- igrejas e grupos, cada qual com seu go-
mo político, provocou uma forte visibili- árias e empreendimentos em torno da verno eclesiástico independente. Não há
dade. De um lado, nem sempre o que se fa- religião. Seus líderes ganham ampla ex- uma “CNBB” evangélica ou porta-voz do
la corresponde à dinâmica do que, de fato, pressão midiática e política, tendo repre- segmento. Se alguma associação ou al-
pensam e representam as igrejas, os fiéis sentantes eleitos para garantir seus inte- guém assim se apresenta, usa a ignorân-
e suas lideranças. De outro lado, aparecem resses no Congresso. Estão nesse grupo cia sobre o grupo para tirar proveito.
discussões, a partir de resultados de pes- alguns ministérios das Assembleias de Existe a Bancada Evangélica. Ela é for-
quisas de opinião sobre o governo federal, Deus e outras pentecostais que emergi- mada por deputados e senadores que têm
em torno de distanciamentos e entraves ram nesse modelo, bem como igrejas ba- vínculos confessionais com diferentes
referentes ao diálogo Lula-evangélicos, tistas independentes. igrejas. A maioria é pentecostal (Assem-
que devem ser tratadas com cuidado. As igrejas-corporações não são a bleias de Deus e Universal) e os demais são
Como ponto de partida, é preciso insis- maioria do segmento evangélico. Ela é de grupos distintos, destacando-se, entre
tir em um elemento, quase exaurido, que formada por médias e pequenas, espa- estes, batistas. Parte expressiva está ali-
perpassa as pesquisas e abordagens res- lhadas pelo Brasil, e incluem uma mirí- nhada à direita política, enquanto parcelas
ponsáveis sobre religião e política no Bra- ade de grupos menores das Assembleias menores são de centro e de esquerda. Mui-
sil: ao nos referirmos a “evangélicos”, não de Deus, várias pentecostais e as igrejas tos foram eleitos por igrejas-corporações.
tratamos de um grupo monolítico, único, históricas, como as batistas, presbiteria- Outros são eleitos como quaisquer candi-
coeso. Portanto, é um grande equívoco nas, metodistas e luteranas. Esses gru- datos, com acionamento discreto ou qua-
(quando não má-fé ou instrumentaliza- pos vivenciam o cotidiano da maior parte se nenhum da sua fé, e passam a ser iden-
ção da religião em campanhas) tratá-los da população chamada evangélica, que, tificados na bancada pelos laços religiosos
como um bloco. Eles são como uma teia segundo os dados do IBGE, é formada em que possuem. Nesse sentido, não há uma
formada pelos mais variados fios, que re- bancada que represente “os evangélicos”.
presentam teologias, práticas, costumes, Os fiéis discernem bem sobre isso e vo-
visões de mundo, estruturas organizacio- tam ou não em quem se apresenta como
nais as mais diversas. Daí a necessidade evangélico, e, como pesquisas acadêmi-
de se superarem entraves na compreen-
Trata-se de um cas identificaram, olham a bancada com
são desse segmento para buscar possibi- segmento plural: desconfiança. A relação governo federal-
lidades de aproximação e diálogo, pontos feminino, negro, -bancada evangélica deve se dar, portan-
que procuraremos listar a seguir: jovem e periférico to, como ocorre com qualquer outro gru-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

po que se articula por afinidade temáti- tura evangélica e, há muito, são utiliza- Fé e política. As pautas morais
ca ou ideológica no Congresso. das na instrumentalização da religião por exploradas pelos pastores midiáticos
não monopolizam as angústias dos fiéis
grupos da direita política para dissemi-
Pautas morais não nar pânico, mas a pesquisa de março pas-
são o fiel da balança sado, ainda que não traga categorizações
Uma das pesquisas sobre a popularidade importantes para grupos evangélicos, é engajem na linguagem corrente e na
do governo federal neste primeiro trimes- relevante por indicar que não são elas as dinâmica das mídias digitais que fazem
tre de 2024 solicitou a entrevistados que maiores preocupações de quem foi entre- parte do cotidiano da população.
escolhessem, em uma lista de 20 proble- vistado e se declarou evangélico. Esses pontos reafirmam o que há mui-
mas, os três maiores. As respostas da cate- to vem sendo dito: temos diante de nós
goria específica “evangélicos” foram bas- Comunicação fundamental um segmento muito plural, marcada-
tante similares àquelas da amostra como Se a fé é um elemento importante para a mente feminino, negro, jovem, periféri-
um todo. Os dois primeiros problemas são população, como considera a direita po- co. Esse grupo tem expectativas políti-
os mesmos, “corrupção” e “criminalida- lítica para disseminar, de forma eficaz, cas que passam pelo sentimento de in-
de e tráfico de drogas”. Eles têm números suas pautas, que tal o governo federal le- segurança, em especial, diante da violên-
similares, pouco acima dos 60% da mé- var em conta essa fé para comunicações cia urbana, a abusos domésticos, a carên-
V I V I A N S I LVA / P R E F E I T U R A D E M A R I N G Á

dia geral, bem superiores às outras indica- informativas e devolutivas? cias nas finanças, na saúde e na educação.
ções. O item “Mudança dos valores tradi- Se cuidar da família é uma questão de Levar em conta estes elementos é funda-
cionais” está no fim da lista, também co- destaque para quem tem fé cristã, por que mental no Brasil de hoje, ao lado da com-
mo a 18ª preocupação. À frente das pautas não mostrar as políticas de cuidado em preensão respeitosa com a religiosidade
morais estão situações como: economia e ações de educação, de saúde, de trabalho? que forma os imaginários e as visões de
inflação, pobreza, desemprego e desigual- E desenvolver e expor os esforços para as mundo, os medos e as esperanças. •
dade social, degradação do meio ambien- famílias pagarem um preço justo pelos ali-
te e aquecimento global, enfraquecimen- mentos e se sentirem seguras nas ruas?
*Pesquisadora do Instituto de Estudos
to da democracia e situação da saúde. É urgente que grupos políticos da Religião (Iser) e colaboradora
As pautas morais integram, sim, a cul- defensores das pautas de direitos se do Conselho Mundial de Igrejas.

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 41
INÊS 249
Seu País

Pensão Orbán
ção pela tentativa de golpe, uma das di-
versas encrencas nas quais está metido.
Sem passaporte, restaria escapar para
um país do Mercosul, onde um brasilei-
GOLPISMO A estadia de dois dias ro pode ingressar só com RG. Quem sabe
na embaixada da Hungria complica a Argentina, de outro mandatário de ex-
trema-direita, Javier Milei, em cuja pos-
ainda mais a situação de Bolsonaro se, em dezembro, o capitão e Orbán se en-
contraram. Ou então ele poderia buscar
POR ANDRÉ BARROCAL asilo em terra de governante “irmão”.

Bolsonaro permaneceu na embai-

E
xada húngara por dois dias. Deixou-a às
m 12 de fevereiro, segunda- vou o ex-presidente, que estava na cida- 16h14 de 14 de fevereiro. Sua presença foi
-feira de Carnaval, a Polícia de fluminense de Angra dos Reis, a deci- gravada por câmeras internas de segu-
Federal informou à Infrae- dir ir a Brasília. E foi o motivo, tudo indi- rança e as imagens acabaram reveladas
ro, estatal administradora ca, de ter procurado a embaixada húnga- pelo jornal The New York Times na se-
do aeroporto Santos Du- ra para se refugiar. gunda-feira 25. Como chegaram a jorna-
mont, no Rio de Janeiro, que dali a dois Na batida de 8 de fevereiro, quinta- listas? Com apoio dos Estados Unidos e
dias Jair Bolsonaro embarcaria rumo a -feira de pré-Carnaval, a PF recolhera o seu serviço secreto seria simples, comen-
Brasília. A viagem havia sido comunica- passaporte de Bolsonaro, com autoriza- ta um delegado da PF. O governo Joe Bi-
da à PF durante os festejos. O time do ca- ção de Alexandre de Moraes, do Supre- den, recorde-se, desencorajou militares
pitão pedia um atendimento especial, a mo Tribunal Federal. A apreensão ha- brasileiros a abraçar o golpismo. Em no-
fim de “evitar abordagens indevidas e ex- via sido requisitada pela polícia e tivera vembro, o democrata tentará a reeleição
posição do ex-presidente em locais de a concordância do procurador-geral da contra Donald Trump, político da estirpe
maior movimentação, adequando-se as- República, Paulo Gonet. Motivo do con- de Bolsonaro, Milei e Orbán. Sem apoio
sim à sua proteção física”. “No entanto, fisco: impedir o ex-presidente de deixar norte-americano, prossegue o delegado,
o embarque não ocorreu, conforme in- o Brasil e escapar de eventual condena- seria impossível obter imagens internas
formado também pela Polícia Federal”,
declarou a Infraero na Quarta-Feira de
Cinzas, data do voo. Mudança de planos?

B RU N O S PA DA /AG . CÂ M A R A , R ED ES SO CI A IS E A L A N SA N TOS / P R
Ou encenação bolsonarista?
O capitão estava na capital brasileira
havia ao menos dois dias. Às 21h37 de 12
de fevereiro, entrara na embaixada da
Hungria, nação governada por um “ir-
mão” da extrema-direita há 14 anos. Em
8 de fevereiro, Viktor Orbán, primeiro-
-ministro húngaro, tinha saído em apoio
a Bolsonaro nas redes sociais. “Um pa-
triota honesto. Continue lutando, senhor
presidente!” Era um comentário a pro-
pósito de uma operação da PF daquele
dia, a Tempus Veritatis, sobre a tentati-
va do brasileiro de, com endosso de cer-
tos militares, reverter na marra o resul-
tado da eleição de 2022. A operação le- Deu no New York Times. Imagem de Bolsonaro na embaixada da Hungria

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

Sem benefícios. Cid voltou


à cadeia e corre risco de ficar
sem o acordo de delação premiada,
após o vazamento dos áudios

de uma embaixada, não cabe requisição


policial, na prática é território estran-
geiro. A única opção seria pedir coope-
ração internacional a um país que, pro-
vavelmente, não iria querer colaborar.
No dia da divulgação das imagens, o
Ministério das Relações Exteriores con-
vocou o embaixador da Hungria em Bra-
sília, Miklós Halmai. Atitude de caráter
simbólico. No mundo diplomático, signi-
fica contrariedade. Não foi a primeira vez
que Halmai teve de ir ao Itamaraty por
causa do capitão. Aquele comentário de
Orbán em 8 de fevereiro tinha tido a mes-
ma consequência. Nas duas ocasiões, o
diplomata apresentou-se à secretária de
Europa e América do Norte do Itamara-
ty, Maria Luisa Escorel de Moraes.

Segundo um diplomata a par do teor


da conversa de agora, Halmai ficou pra-
ticamente em silêncio. Falou só quando
confrontado com o fato de que não era
normal uma embaixada abrir as portas
a um investigado, cujo passaporte havia
sido recolhido quatro dias antes e com
dois colaboradores presos pela polícia
“Amigos”. O capitão e o premier húngaro na linha de frente do extremismo (Filipe Martins, ex-assessor de assuntos

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 43
INÊS 249
Seu País

internacionais da Presidência, e Marcelo


Costa Câmara, coronel do Exército que
também foi do governo). Quando falou,
Halmai teria dito o mesmo que a defesa
de Bolsonaro, algo que se verá a seguir.
Na reunião, a representante brasileira te-
ria deixado ainda um recado nas entreli-
nhas: país com déficit democrático, como
a Hungria, não pode ser árbitro de confli-
tos judiciais e políticos de outro.
Na terça-feira 26, Orbán enfrentou
protestos de rua. Os manifestantes pe-
diam sua renúncia, em razão de um es-
cândalo de corrupção (um ex-assessor do
governo acusou um auxiliar do primeiro-
-ministro de tentar interferir num certo
rolo). No Itamaraty, a avaliação é de que
beira o impossível Halmai ter agido sem
autorização do premier. O Supremo, afir-
ma um diplomata, tem poder para requi-
sitar ao governo húngaro, via “carta ro-
gatória” despachada pelo Itamaraty, in-
formação sobre um eventual pedido de
refúgio por Bolsonaro nos dias em que o
capitão esteve na embaixada.

O que o Supremo fez, por enquanto, foi


dar 48 horas para o ex-presidente expli-
car por que passou dois dias por lá, prazo
que venceria após a conclusão desta re-
portagem, na manhã da quarta-feira 27.
A PF também pretende averiguar as cir-
cunstâncias da estadia. Os advogados do
capitão sustentam que o cliente foi à em-
baixada “para manter contatos com au-
toridades do país amigo, inclusive o pri- T O M C O S TA / M J S P E FÁ B I O R O D R I G U E S P OZ Z E B O M /A B R

meiro-ministro (Orbán)”, que “conver-


sou com inúmeras autoridades do país Causídico. O advogado Wajngarten vive Quem está em cana preventivamente,
amigo, atualizando os cenários políti- a falar de fake news, assunto que domina e de novo, é o ex-chefe dos ajudantes de
cos das duas nações”, e que ficou hospe- ordens da Presidência de Bolsonaro, o te-
dado “a convite”. “Quaisquer outras in- nente-coronel do Exército Mauro César
terpretações”, escreveram em nota, “são, solicitá-lo, pois estava, e está, em situa- Barbosa Cid. A decisão do Supremo não
na prática, mais um rol de fake news”. ção delicada. A apreensão do passapor- havia sido divulgada até a quarta-feira 27,
As interpretações classificadas pe- te dias antes era para segurá-lo no Bra- mas se sabe a linha geral da ordem de pri-
los causídicos Daniel Tesser, Fábio sil. Na hipótese de haver risco de fuga, a são: obstrução da Justiça e desobediên-
Wajngarten e Paulo Amador da Cunha polícia poderia pedir e o Supremo decre- cia de medidas cautelares impostas pela
Bueno de fake news são óbvias até pa- tar sua prisão preventiva. Uma das justi- Corte ao militar quando de sua liberação,
ra uma criança: Bolsonaro buscou asilo ficativas para esse tipo de prisão é justa- em setembro do ano passado, em decor-
ou sondou o terreno para o caso de vir a mente prevenir a evasão de um suspeito. rência de um acordo de delação firmado

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

com a PF. Na origem da nova prisão, há prazo do militar: criar argumentos para,
um mistério similar àquele sobre as ima- no futuro, pedir a suspeição de Moraes e,
gens da embaixada da Hungria: quem com isso, a anulação de eventual conde-
gravou Cid durante uma conversa apa- nação. Não só para o ajudante de ordens,
rentemente por telefone? E quem passou também para Bolsonaro.
o conteúdo à revista Veja, que a reprodu- Cid teve de comparecer ao Supremo
ziu em parte em 21 de março? em 22 de março para depor a um juiz
É possível concluir pelo conteúdo do auxiliar de Moraes, Airton Vieira, a res-
áudio que Cid queria justificar-se peran- peito da conversa gravada. Negou ter si-
te o interlocutor sobre a razão de ter de- do coagido pela PF e reafirmou interes-
latado. “Eles estão com a narrativa pron- se em manter a delação. Disse que o que
ta. Eles não queriam saber a verdade, eles falou na conversa foi um “desabafo”. In-
queriam só que eu confirmasse a narrati- dagado sobre quem seria o interlocutor,
va deles. Entendeu?”, diz em um dos tre- disse não saber. Seus contatos, desde que
chos. “Eles” são os policiais que tomaram foi libertado e passou a cumprir prisão
seus depoimentos na delação. “Se eu não domiciliar, declarou, são alguns familia-
colaborar, vou pegar 30, 40 anos (de pri- res, amigos, amigos militares e amigos de
são). Porque eu estou em (investigação equitação. Após o depoimento, teve a pri-
sobre cartão fajuto de) vacina, eu estou são preventiva decretada.
em joia.” No caso da carteira fajuta, a PF
finalizou o inquérito em 18 de março e Na PF, comenta-se que a gravação e
concluiu que Cid cometeu quatro crimes sua divulgação compõem uma estraté-
(e mais de uma vez). Cabe ao procurador- Encalço. A PF de Rodrigues vai ouvir gia atrapalhada da defesa de Cid (o te-
-geral decidir se o leva ao banco dos réus. Bolsonaro sobre a estadia na embaixada nente-coronel voltou a ser preso) ou re-
O caso do comércio de joias recebidas por sultaram de uma casca de banana jogada
Bolsonaro quando presidente ainda es- para o militar. Esta última hipótese re-
tá sob investigação. Na terça-feira 26, o ção, é saber quem a fez e como ela veio a fere-se aos “kids pretos”, aqueles farda-
pai de Cid, general Mauro César Loure- público”, afirma o advogado criminalista dos das Forças Especiais do Exército es-
na Cid, foi interrogado. Sua conta bancá- Pierpaolo Bottini. “Quem gravou pode ser pecialistas em operações clandestinas e
ria foi usada para receber 68 mil dólares tanto o interlocutor (do Cid na conversa) em manipulação da opinião pública. Vá-
do comércio de joias. O general é amigo quanto a polícia. No primeiro caso, res- rios “kids pretos” são coronéis e partici-
de Bolsonaro e no governo do capitão co- salvada a hipótese de que a gravação te- param da conspiração golpista de Bolso-
mandou o escritório de Miami da Apex, nha sido feita para fins de autodefesa do naro contra o resultado da eleição.
a agência de promoção de exportações. interlocutor, é prova nula. No segundo ca- Certo é que a conversa de Cid dá com-
“O Alexandre de Moraes é a lei. Ele so, precisa-se saber se havia autorização bustível à tese de perseguição aventada
prende, ele solta, quando ele quiser, como de interceptação telefônica, para validar pela defesa de Bolsonaro. “Chega de per-
ele quiser. Com Ministério Público, sem a prova”, diz Eugênio Aragão, ex-minis- seguir, dá um pouco de paz para a gente”,
Ministério Público, com acusação, sem tro da Justiça. Um advogado criminalista disse o capitão na segunda-feira 25, a pro-
acusação”, diz Cid em outro momento da que atua nos tribunais em Brasília apos- pósito das explicações requeridas pelo Su-
gravação. E fez uma revelação surpreen- ta que o vazamento teve anuência de Cid. premo a respeito de sua estadia na embai-
dente: “Quando eu falei daquele encon- Faria parte de uma estratégia de longo xada húngara. “É algum crime, por ven-
tro do Alexandre de Moraes com o pre- tura, dormir na embaixada e conversar
sidente... eles (policiais) ficaram descon- com embaixador?” Sem a conversa de Cid
certados, desconcertados…. O presidente ter vindo a público, haveria clima político
encontrou secretamente com o Alexan- mais favorável para uma prisão preventi-
dre de Moraes na casa do Ciro Nogueira.”
Mauro Cid, o delator, va do capitão, após a revelação da passa-
Nogueira é senador e foi o último minis- voltou à prisão gem do ex-presidente pela embaixada da
tro da Casa Civil de Bolsonaro. depois de fazer Hungria. Haveria alguma ligação entre
“A grande questão é a origem da grava- um “desabafo” os dois acontecimentos? É uma dúvida. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 45
INÊS 249

Economia

Rumo ao Pacífico
INFRAESTRUTURA Um pacote de obras de integração reforça
o intercâmbio na América do Sul e a conexão com a Ásia
P O R C A R LO S D R U M M O N D

N
ão faz parte do imaginário nharia. São meios para estreitar também BNDES. Os recursos da instituição de fo-
do Brasil, descoberto a as relações culturais e turísticas”, sinte- mento brasileira financiarão 124 obras de
partir do Atlântico e com tiza Simone Tebet, ministra do Planeja- prefeituras e governos estaduais incluí-
mais da metade da popu- mento e Orçamento. das no Programa de Aceleração do Cres-
lação situada a até 150 qui- cimento. “É um dinheiro à disposição dos
lômetros de distância da costa, uma saí- O ministério traçou cinco rotas pa- 11 estados de fronteira, Amapá, Pará, Ro-
da marítima pelo Pacífico, mas empre- ra compor o plano de integração (mapa raima, Amazonas, Acre, Rondônia, Ma-
sários, executivos e técnicos do governo à dir.) e as obras contam com financia- to Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná,
envolvidos nas áreas de logística, comér- mentos de 10 bilhões de dólares, dos quais Santa Catarina e Rio Grande do Sul, das
cio e indústria só pensam nisso, desde 3,4 bilhões virão do Banco Interamerica- suas prefeituras e de consórcios de muni-
que a geopolítica virou de cabeça para no de Desenvolvimento (BID), 3 bilhões cípios”, detalha João Villaverde, secretá-
baixo, com o enorme peso adquirido pe- do Banco de Desenvolvimento da Amé- rio de Articulação Institucional do minis-
la China e outros países asiáticos na eco- rica Latina (CAF), 600 milhões do Fun- tério. Os recursos podem ser utilizados
nomia e na política globais. do Financeiro para Desenvolvimento da tanto para financiar pontes, hidrovias,
O Plano de Integração Sul-America- Bacia do Prata (Fonplata) e 3 bilhões do aeroportos e portos quanto para estru-
na desenvolvido pelo gover- turar projetos, condição pa-
no Lula, que visa aumentar ra obter os financiamentos.
as trocas entre os países da A economia de tempo e
América do Sul e contri- custos pelas novas vias im-
buir para a dinamização da pressiona. A Rota 4, de Ca-
indústria local, inclui com pricórnio, que interliga os
destaque a ligação do Atlân- estados de Mato Grosso do
tico ao Pacífico. “A integra- Sul, Paraná e Santa Catari-
ção regional na América do na com o Paraguai, a Argen-
Sul é uma necessidade e ela tina e a costa do Pacífico, no
ganha novos contornos por Chile, encurtará o trajeto do
conta desse redesenho do transporte da produção da-
cenário político mundial. queles estados para a China,
WA S H I N G T O N C O S TA / M P O

O aumento das trocas co- na comparação com o per-


merciais é importante por- curso dos embarques feitos
que aquece especialmente a no porto de Santos, em na-
indústria. As rotas de inte- da menos que 7 mil quilôme-
gração vão além, entretan- tros. “Quando a Rota 1, das
to, da economia e da enge- Missão. Lula deu a Tebet a tarefa de articular os investimentos Guianas, estiver concluída,

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

ROTAS DE INTEGRAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUL-AMERICANO

ROTA 1 ROTA 2 ROTA 3 ROTA 4 ROTA 5


ILHA DAS MANTA- QUADRANTE BIOCEÂNICA DE PORTO
GUIANAS MANAUS RONDON CAPRICÓRNIO ALEGRE-
COQUIMBO

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 47
INÊS 249
Economia

Dinamismo. O porto peruano Estudos Internacionais do Instituto de P- Os apoios chegam de todos os lados. Em
de Chankay encurta a distância esquisa Econômica Aplicada. reunião com ministros da área econômi-
para a China e o Leste Asiático
O porto mais estratégico no Pacífico é ca de oito países da região, três semanas
o de Chankay, no Peru, a 80 quilômetros atrás, o ministro dos Transportes e Co-
de Lima, o maior investimento da China municações do Peru, Raúl Pérez Reyes,
as Guianas não precisarão mais impor- na América do Sul, importante para pe- disse à equipe do Ministério do Planeja-
tar batatas do Canadá, poderão comprá- ruanos e brasileiros, como caminho de mento que deseja um ramal da Rota 3 pa-
-las no estado brasileiro fronteiriço de Ro- exportações e importações. “A partir de ra o seu território. O Chile aprova todas as
raima. Com a Rota 3 em funcionamento, novembro, quando deverá estar concluí- rotas e informou deter os recursos neces-
o Brasil, que hoje adquire lítio, níquel e do, vai transacionar, logo no início, 25% sários para o financiamento da sua parte
fertilizantes da Rússia e da China, pode- do volume operado hoje no porto de San- no empreendimento. Um exemplo das 124
rá importá-los mais rápido e mais barato tos, nos seus auges de movimentação”, obras brasileiras previstas é a alça de aces-
da Bolívia”, sublinha Tebet. ressalta Villaverde. Chankay é parte da so à ponte binacional Brasil-Paraguai, em
Na nova geografia econômica, o centro Nova Rota da Seda, o maior programa Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul.
do continente é Cuiabá, a capital de esta- do mundo de investimento estrangeiro A ponte é financiada por Itaipu, mas a alça
do brasileiro que apresenta o maior cres- em infraestrutura, criado pela China em de acesso faz parte do PAC e seu custo é de
cimento econômico nos últimos anos. Em 2013 e integrado por 150 países, que re- 475 milhões de reais. O edital saiu, a ordem
valores nominais, o Mato Grosso expor- presentam 70% da população mundial e de serviço foi dada e só falta tocar a obra.

T O N I N H O R U I Z / S E M A D E S C / G O V M S E WA S H I N G T O N C O S TA / M P O
tou, no início do século, 1 bilhão de dóla- mais de 50% do PIB global. Do total de O Mercosul, ampliado com o ingresso
res. Em 2022, o valor nominal do comér- países, 21 são latino-americanos. da Bolívia, iniciou a verificação de quais
cio externo atingiu a marca de 30 bilhões mecanismos tarifários e outros instru-
de dólares. A projeção de 2023 é de cerca Três das cinco rotas poderão ser inau- mentos podem facilitar a conexão das ro-
de 35 bilhões de dólares. Segundo o Cen- guradas no atual governo: a Rota 5, que só tas. O Ministério do Planejamento traba-
so de 2022, o estado tem 3,6 milhões de requer alguns aperfeiçoamentos, a Rota 2 lha desde dezembro em um estudo alenta-
habitantes e apresenta exportações per e a Rota 4. As rotas 1 e 3 deverão ser finali- do para verificar o que, dentre os mecanis-
capita de, aproximadamente, 10 mil dó- zadas entre 2027 e 2028 e dependem mais mos do Mercosul, pode dinamizar as in-
lares. “Essa média é superior àquela da dos outros países do que do Brasil. Na Rota terligações. “A articulação política e insti-
China e a de diversos países economica- 5, uma obra inaugurada é o aeroporto bi- tucional promovida pelo governo brasilei-
mente relevantes. No entanto, o custo lo- nacional Rivera, no Uruguai, na fronteira ro em 2023 tem sido fundamental para a
gístico enfrentado por Mato Grosso é ele- com a cidade gaúcha de Santana do Livra- retomada dos diálogos entre os países sul-
vado”, ressalta Pedro Silva Barros, técni- mento. A Rota 2 só precisa da instalação -americanos acerca da governança regio-
co de planejamento e pesquisa e coorde- de alfândega, de um posto da Polícia Fede- nal para a conformação de uma rede arti-
nador do projeto “Integração Regional: o ral e da sinalização no Rio Amazonas, que culada de infraestrutura”, ressalta Barros
Brasil e a América do Sul”, da Diretoria de permite chegar até o porto de Chankay. no estudo intitulado “Avaliação Crítica da

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

Iniciativa para a Integração da Infraes- O percurso das integração ao nosso entorno regional”,
trutura Regional Sul-Americana (IIRSA) salientou. O presidente reforçou ainda
do Conselho Sul-Americano de Infraes-
cargas embarcadas a importância da multimodalidade e de
trutura e Planejamento (Cosiplan)”. O pelo Pacífico priorizar os projetos de alto impacto para
trabalho destaca a emergência econô- diminuirá 7 mil integração física e digital. “Ao construir
mica, produtiva e exportadora ao sul do quilômetros na o corredor bioceânico, reduzimos custos
subcontinente, em especial o Centro Oes- comparação com de nossas exportações para os mercados
te do Brasil, em um contexto “completa- a saída por Santos asiáticos e geramos emprego e renda pa-
mente distinto daquele de 23 anos atrás”. ra o interior do nosso continente.”
O Brasil tem, aproximadamente, 17 mil
quilômetros de fronteira terrestre, com Na América do Sul, ressalta o estudo,
mais de 500 municípios nessa faixa. Es- um dos principais desafios logísticos é
tudos elaborados pela Cepal e pela Secre- rias provenientes do entorno. No comér- manter rotas frequentes e diretas entre a
taria de Comércio Exterior, vinculada ao cio intrarregional, mais de 80% dos fluxos costa do Pacífico sul-americano e os prin-
Ministério do Desenvolvimento, Indús- são de manufaturados. Em contraparti- cipais mercados asiáticos para que os flu-
tria, Comércio e Serviços, indicam que da, as exportações do Brasil para a China, xos comerciais competitivos por este ca-
apenas 1% das empresas brasileiras ex- principal parceiro comercial, são consti- minho não se limitem a commodities mi-
porta, o que totaliza, aproximadamente, tuídas de apenas 2,9% de produtos ma- nerais. A escala para as conexões diretas
25 mil firmas. Destas, apenas 15 mil ne- nufaturados, sublinha o técnico do Ipea. necessita de vários corredores e rotas
gociam na região. Ainda que os países vi- No Consenso de Brasília, assinado em estruturadas. A existência de um corre-
zinhos representem apenas 1,3% do to- maio do ano passado por líderes sul-ame- dor contribuiu para a viabilidade dos ou-
tal das importações mundiais, são o des- ricanos, consta a importância de melho- tros, portanto, não podem ser vistos co-
tino de 13% das nossas exportações to- rar a infraestrutura e a logística da re- mo vias concorrentes, mas complementa-
tais, e de 35% das exportações de produ- gião. Na terceira Cúpula da Comunidade res. Na medida em que um caminho fun-
tos com intensidade tecnológica alta e in- dos Estados Latino-Americanos e Cari- cione bem e haja adaptação da infraestru-
tensidade tecnológica média-alta. Na di- benhos e da União Europeia, Lula justi- tura portuária, adequação dos acordos de
reção oposta, o mercado brasileiro é desti- ficou a busca de integração regional. “Só transportes, melhora da gestão aduaneira
no para produtos dessas mesmas catego- crescemos, de forma sustentável, com e harmonização de normas, haverá o efei-
to multiplicador para os demais.
Barros frisa três limitações a serem
superadas, com base no último relató-
rio de atividades do Cosiplan, elabora-
do em Buenos Aires, em 2017. A primei-
ra é a pequena participação multimodal,
apenas 0,3% dos investimentos. A se-
gunda é a pequena participação históri-
ca dos bancos de fomento, que financia-
ram, juntos, cerca de 2,5 bilhões de dóla-
res de um total investido de quase 50 bi-
lhões, o equivalente a 5% do total. A ter-
ceira é a alta concentração de projetos no
modal rodoviário. Cabe ressaltar, diz o
documento, que houve muita concentra-
ção em transportes e menos atenção para
energia e comunicação, quando a racio-
nalidade impõe trabalhar de forma arti-
culada, em cada rota, transporte, logís-
tica, energia e comunicação, de modo a
Binacional. A ponte que liga o Brasil ao Paraguai é financiada por Itaipu proporcionar importantes sinergias. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 49
INÊS 249

Plural

Veja estas
canções
FILMES Três títulos em cartaz e um quarto
prestes a estrear atualizam o histórico
diálogo entre cinema e música brasileiros
P O R C Á S SI O S TA R L I N G C A R LO S

A
parceria entre cinema e fim dos anos 1920, os personagens pas- distante no tempo histórico. O composi-
música brasileiros desde saram a cantar. No Brasil, não foi dife- tor gaúcho viveu entre as décadas de 1910
sempre deu samba. As es- rente. As cantoras do rádio subiram às e 1970, período em que o Brasil passou de
treias de filmes que visi- telas na década seguinte em produções pré-moderno a industrializado e urbani-
tam o cancioneiro de Lu- da Cinédia. De 1940 a 1960, o nacional- zado. Em sua época, depressão, tristeza
picínio Rodrigues, Adoniran Barbosa, do -popular era representado pelas chan- e melancolia cabiam no que se chama-
coletivo Clube da Esquina e de Luiz Me- chadas da Atlântida, recheadas de nú- va de fossa. Os versos de Lupi, como era
lodia trazem mais que memórias de ou- meros musicais. A geração do Cinema tratado pelos amigos, devolveram digni-
tros tempos. O próprio País está refleti- Novo pretendeu exorcizar a fama de ve- dade à “cornitude” e à “dor de cotovelo”.
do nestas histórias que indicam que, há neno de bilheteria mesclando atores e
não muito tempo, éramos uma terra ha- cantores em Quando o Carnaval Che- A reconstituição do percurso de Lu-
bitada por gente gentil. gar (1972). Nos anos 1980, Bete Balanço pi, do quase anonimato em Porto Alegre
A concentração de lançamentos com (1984) potencializou a irrupção do BRock. à quase fama como compositor favorito
perfis parecidos não chega a ser novida- Confissões de Um Sofredor, Saudosa Ma- das rainhas do rádio no Rio, é feita pelo

0 2 P L A Y, A L E S S A N D R A D O R G A N / M U K , J O Ã O O L I V E I R A / P I N K
de. Nos anos 2000, as boas bilheterias loca, Nada Será Como Antes – os três em diretor Alfredo Manevy sem se restrin-
das cinebiografias Cazuza – O Tempo cartaz nos cinemas – e No Coração do Bra- gir aos dados biográficos. Os versos das
Não Para (2004) e 2 Filhos de Francisco sil – destaque do Festival É Tudo Verdade, canções, as técnicas do cantar, os hábitos
(2005) definiram um modelo. Desde en- que começa no dia 4 de abril – são, portanto, sociais e os valores morais são recursos
FL AMINGO/ELO STUDIOS E JUVENAL PEREIRA

tão, a produção de documentários, gêne- trabalhos que conversam com a memória. que modulam o relato, agregando a ele
ro que demanda menor orçamento que as Lupicínio Rodrigues é o que está mais camadas. Além da trajetória de seu per-
ficções, frutificou. Narrar a vida e a obra sonagem, Confissões de Um Sofredor re-
de grandes e pequenas estrelas da músi- vela um país distante no tempo e no es-
ca contornava as dificuldades de se con- pírito, acolhedor e sentimental.
ceber e desenvolver boas histórias origi- Transformar Saudosa Maloca converte em ficção
nais. Além disso, personagens conheci- parte do universo social representado nos
dos facilitam a tarefa de atrair público.
artistas famosos sambas de Adoniran Barbosa. O diretor
Mas é fato que a convergência entre ci- em personagens Pedro Serrano, que havia realizado o do-
nema e música popular é do tempo da on- facilita o caminho cumentário Adoniran – Meu Nome É João
ça. Assim que o cinema virou sonoro, no rumo ao público Rubinato (2018), baseia seu argumento

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
TAMBÉM pág. 54
NESTA Livro. Como a vergonha é
SEÇÃO construída e explorada pelas
empresas em busca do lucro

Conjunto. Nada Será


Como Antes, sobre o
Clube da Esquina;
Confissões de Um
Sofredor, sobre
Lupicínio Rodrigues;
Saudosa Maloca,
cinebiografia de
Adoniran Barbosa; e
No Coração do Brasil,
sobre Luiz Melodia,
chegam juntos às telas

em vez de se concentrar nos luminosos,


produz um efeito justo.
No Coração do Brasil reconstitui o fio
da carreira de Luiz Melodia. Preto, de fa-
nos sambas mais conhecidos do compo- Valores como família e amizades per- mília pobre, nascido e crescido no Está-
sitor paulista. A mãe que não dorme en- passam a história reconstituída em Na- cio, ele encarna a figura do artista que
quanto o filho não chega, os amigos Ma- da Será Como Antes. Todos os integran- se destaca por talento e teimosia, sobre-
to Grosso e Joca, o Arnesto que mora no tes do Clube da Esquina aparecem em vivendo a um período histórico em que
Brás e a bela Iracema são personagens de depoimentos atuais no documentário marginalidade implicava invisibilidade.
uma cidade feita de demolição e constru- de Ana Rieper, com exceção de Fernan- A singularidade de Melodia não era ape-
ção. A existência condicionada pelos rit- do Brant, morto em 2015. O tom frater- nas musical e poética, como mostra com
mos do trabalho, as violências e o indivi- nal predominante nas entrevistas tor- delicadeza o documentário de Alessandra
dualismo, marcas do cinema paulista des- na o filme um pouco oficial em alguns Dorgan. O rico depoimento autobiográfi-
de os anos 1950, cedem espaço à malan- momentos. Mas a costura de lindas ima- co que acompanha as imagens de arquivo
dragem, ao improviso e à imagem da ci- gens de arquivo e a preocupação de dar confirma que boas histórias ficam melho-
dade como mistura, em vez de apartheid. imagem e voz a todos os participantes, res quando contadas por quem as viveu. •

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 51
INÊS 249
Plural

Envergonhar
TO: Você fala da exploração comer-
cial da vergonha por “máquinas de en-

para lucrar
vergonhar”. Mas será ela diferente ou
maior que a exploração de outras emo-
ções, como o desejo sexual, a vaidade
e a insegurança?
Cathy O’Neil, escritora e CO: Acho que tudo isso tem muito a ver
com vergonha. A insegurança é uma no-
matemática, mostra como a vergonha ção para você se sentir aceitável apenas de
é fabricada e explorada em diversos forma contingente – é, por isso, como uma
ameaça da humilhação. O primeiro terço
setores e, em especial, nas redes sociais do livro refere-se às tradicionais máquinas
de vergonha, como os cosméticos pensados
POR ANDREW ANTHONY para mulheres que os adquirem pela ver-
gonha de parecer velhas. A seção interme-

C
diária refere-se ao modo pelo qual as big
athy O’Neil é escritora, ma- envergonha ou humilha quem não se con- techs aproveitam a ameaça existencial que
temática e autora do best forma com as normas, trata-se de bullying. a vergonha representa para nossa psique
sellerAlgoritmos de Destrui- TO: A vergonha é algo universal? para lucrar com as nossas interações.
ção em Massa (Editora Rua CO: Sim, trata-se de algo universal, mas TO: Os algoritmos têm como alvo a
do Sabão). Seu último livro, que sempre acontece em relação a uma nor- vergonha ou pode ser qualquer coisa
lançado agora no Brasil, se chama A ma. E as normas não são necessariamente que seja popular?
Máquina da Vergonha e analisa as formas universais. No contexto da vergonha vo- CO: Os algoritmos são otimizados para
pelas quais a vergonha é fabricada e ex- cê sente que não é digno e não será ama- servir às coisas que mais nos estimulam.
plorada em diversos setores – de prisões do pela sua comunidade. Você pode, por- Isso geralmente significa nos indignar a
e sistemas de segurança social a redes so- tanto, tentar humilhar alguém para que se ponto de causar vergonha. Em nossa bo-
ciais – para fins coercitivos e comerciais. comporte bem em relação a uma norma. lha de filtros, o algoritmo nos oferece a
Na visão da autora, uma intenção co- coisa mais ultrajante a que outra bolha de
mum às “máquinas da vergonha” é a filtros conseguiu chegar. Temos assim a
transferência da responsabilidade sobre oportunidade de lançar vergonha sobre
os problemas sociais das instituições pa- esse outro grupo, criando uma espiral.
ra os indivíduos. TO: Você cita J.K. Rowling como
exemplo de alguém que acha que está
The Observer: Este livro é muito di- sendo atacada por ser poderosa, mas
ferente do anterior. O que a fez decidir que, de fato, foi ameaçada e chamada
escrever sobre vergonha? das coisas mais terríveis. Quem está
Cathy O’Neil: Me interessei pela vergo- atacando quem?
nha durante as pesquisas para Algoritmos CO: Este é um ótimo exemplo de área cin-
de Destruição em Massa. Conversei com zenta. O que odeio nas redes sociais é o
professores que tinham sido avaliados nível de atenção que damos a coisas que
ILUSTRAÇÃO: PIL AR VELLOSO

por um sistema secreto de pontuação. Às realmente não importam. Só o fato de eu


vezes, eles eram demitidos ou tinham os saber o que J.K. Rowling pensa sobre isso
contratos encerrados. Quando pediram A MÁQUINA DA VERGONHA é um desperdício do meu cérebro. O que
para entender a fórmula, ouviram que Cathy O’Neal. Tradução: Rafael desejo, com este livro, é propor uma con-
era matemática e que não conseguiriam Abraham. Editora Rua do Sabão versa mais qualificada sobre a vergonha.
(312 págs., 60 reais)
entendê-la. Isso os silenciou. Era a vergo- TO: Na parte sobre J.K. Rowling vo-
nha como mecanismo sistemático. Se você cê cita o exemplo de George Wallace, o

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

governador racista do Alabama, que foi


baleado, ficou paralítico e depois pediu
perdão por suas opiniões segregacio-
nistas. Parece um contexto apropriado
para falar sobre Rowling, que recebeu
muitas ameaças de morte?
CO: Não vejo a história dessa forma. Acho
que Wallace percebeu o erro de sua atitu-
de porque Shirley Chisholm (congressis-
ta negra democrata) o visitou no hospital,
e ele reconheceu sua humanidade. Foi um
grande exemplo de alguém que considerou
a vergonha dos seus atos passados e pediu
desculpas de forma honesta, não apenas
em nível pessoal, mas de justiça social.
TO: Você, no livro, discute a cultura
do cancelamento. Muitas pessoas ar-
gumentam que isso não existe. Qual é
a sua opinião?
CO: Me parece que ela é real. Quando
você ouve as pessoas reclamarem disso,
trata-se, provavelmente, de pessoas que
têm os exemplos falsos, porque o simples
fato de ouvi-las reclamar significa que
elas têm voz e uma chance de se defender.
Mas acho que a cultura do cancelamento
é comum e leva as pessoas a temer falar
abertamente sobre certos assuntos. Dez
anos atrás, eu fazia um blog e, ali, experi-
mentava algumas ideias. Naquela época,
sentia que os leitores estavam me dan-
do o benefício da dúvida. Hoje, seria mais
difícil fazer esse blog. Acho que pessoas
menos conhecidas podem ser esmagadas
mais facilmente.
TO: Se houvesse uma mudança que
você pudesse fazer para afetar a má-
quina da vergonha, qual seria?
CO: Gostaria que todas as instituições,
incluindo as empresas de redes sociais,
mas também as prisões, os sistemas de
seguridade social e as escolas, analisas-
sem até que ponto incorporaram a ver-
gonha repressiva em suas políticas e prá-
ticas, e tentassem eliminá-la. •
NONONON

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 53
INÊS 249
Plural

A reinvenção
da sociedade
LIVRO Em um conjunto de breves ensaios,
organizados em verbetes, Vladimir Safatle
olha para o suposto progresso do mundo
como algo a ser negado e redescoberto
P O R FÁ B I O M A S C A R O Q U E R I D O

V
ladimir Safatle é daque- tico” e “crônico” de suas reflexões. Se o
les que se encontraram acontecimento da nossa época é a crise,
cedo. Aos 50 anos, é au- cabe à experiência filosófica “deixar res-
tor de mais de uma deze- soar fragmentos não por demissão, mas
na de livros, alguns dos por confiança de que eles são pontos de
quais publicados no exterior, e organi- uma constelação por vir”.
zador de outros tantos. Além disso, o Como sustenta Safatle no verbete da
professor titular de Filosofia da USP e letra F – “/Filosofia/” –, mais do que “es-
candidato a deputado federal pelo PSOL clarecer”, a filosofia que não se confor-
nas eleições de 2022 tornou-se presença
frequente na mídia brasileira, inclusive ma com o afastamento do mundo preci-
nesta CartaCapital, onde foi colunista. sa fazer um “esforço de decomposição”.
Nesse processo, Safatle foi elaborando Seu objetivo deve ser “fazer o pensamen-
uma crítica política-filosófica singular. to sangrar”. É esse o papel do “intelectual
Eis que agora ele nos brinda com Alfabeto inorgânico”: o seu engajamento é com o
das Colisões: Filosofia Prática em Modo acontecimento que virá, com o ainda não
Crônico. O livro é composto de 24 verbe- existente. Se ele recua, é para denunciar
tes em desordem alfabética. Embora seja as falsas emancipações e, assim, anun-
concluído com a letra Z – “como termi- ciar que outra se faz necessária.
na o alfabeto” –, começa com a letra Q – São muitas as alusões a intelectuais e
“Quebrar”. São fragmentos que, juntos, artistas, o que faz com que o texto, por
formam um mosaico de “farrapos”, co- vezes, assuma a forma de diálogo inte-
mo diz o autor. rior. A erudição pode dar a impressão de
À diferença da linguagem mais um hermetismo exagerado. Mas talvez
acadêmica de outros trabalhos, a escri- ALFABETO DAS COLISÕES: seja esse o preço a se pagar quando se de-
ta aqui passeia com desenvoltura pelos FILOSOFIA PRÁTICA seja confrontar os limites da linguagem
temas mais diversos, como se estivesse EM MODO CRÔNICO diante da catástrofe potencial.
em busca de um tipo diferente de apro- Vladimir Safatle. Ubu Editora O resultado é um livro que, nos seus
ximação, ou melhor, de “colisão” com o (160 págs., 59,90 reais) pequenos ensaios, almeja mostrar que a
mundo estabelecido. Daí o caráter “prá- procura pelo sentido do mundo passa, an-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

No novo trabalho,
o autor abandona o
tom mais acadêmico VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA

Escreva Muito e Sem Medo: Uma Histó-


ria de Amor em Cartas (Record, 1.288
págs., 299,90 reais) passeia pela vida in-
telectual, o dia a dia e o amor entre Albert
Camus e Maria Casarès. Nas cartas, as
personalidades de ambos se revelam por
meio de palavras forjadas pela paixão.

A biografia Joaquim Almeida (Companhia


tes de tudo, pelo reconhecimento de que a de que um horizonte comum de emanci- das Letras, 432 págs., 119,90 reais), de
história foi despedaçada em seu curso he- pação não se descola da preocupação com Luis Nicolay Parés, tem um subtítulo preci-
gemônico. É preciso, portanto, encarar o as diferenças, e vice-versa. Safatle apenas so: a história do africano traficado que se
tornou traficante de africanos. A saga
progresso a contrapelo, quer dizer, como resiste a transformar a diferença em nor- desse “preto africano rico e poderoso” es-
aquilo que deve ser negado para, só assim, ma, mesmo que “progressista”, uma vez pelha as perversidades da escravidão.
poder ser redescoberto sob outra forma. que “a experiência de opressão não basta
para a produção de experiências políticas
O desafio é como levar adiante es- com potencial emancipatório”.
sa crítica ao progresso e ao iluminismo Para isso, é preciso forjar alianças con-
eurocêntrico – responsáveis tanto pe- tra um mesmo adversário e, concomitan-
la crise ecológica quanto pela crise psí- temente, a favor de outra sociedade, hoje
quica contemporâneas – sem “abando- ainda vista como impossível. No entanto,
CECÍLIA BASTOS/USP IMAGENS

nar o universalismo como horizonte de como se depreende da leitura do livro, é


lutas”. Como construir, sem anular as exatamente esta uma das funções críti-
“identidades” excluídas da história, o que cas de um pensamento das colisões: ela- Os espíritos portugueses e italianos se en-
Safatle chama de “universalismo concre- borar uma “imagem possível de uma sín- trecruzam em Para Isabel: Uma Mandala
to”, em oposição ao verdadeiro “identita- tese impossível”. • (Estação Liberdade, 144 págs., 56 reais),
romance póstumo de Antonio Tabucchi
rismo”, que é o “identitarismo branco”. (1943-2012), constituído, sobretudo, por
O ponto mais alto de Alfabeto das Coli- *Fabio Mascaro Querido é professor reminiscências e obsessões. O livro tinha
sões talvez seja justamente esse: a defesa de Sociologia da Unicamp. permanecido até agora inédito no Brasil.

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 55
INÊS 249
DRAUZIO VARELLA
Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento
da Aids no Brasil. É autor, entre outras obras, de Estação
Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção em 2000

Fadiga crônica existe


seis meses, acompanhada de fadiga grave pouso. Queda na frequência durante as
► Um estudo comprova que não melhora com o repouso. atividades ambulatoriais.
a relação entre certos 2. Resposta exagerada e debilitante às 5. Num teste com manobras para aper-
atividades físicas e mentais. tar botões, de modo a receber recompen-
tipos de infecção e 3. Sono não reparador ou alterado. sa financeira, os pacientes escolheram as
alterações duradouras Para receber o diagnóstico, deve haver que exigiam menos esforço mental.
no sistema imunológico e ainda comprometimento da memória e 6. Força reduzida nas mãos, no teste de
da articulação do pensamento, além de compressão de uma mola.
no microbioma intestinal intolerância a manter a posição ortostá- Os autores atribuíram a fadiga à dis-
tica. Podem estar presentes também ce- função integrativa de áreas cerebrais que
faleia, dores musculares e fôlego curto. controlam o córtex motor, encarregado

N
os anos 1980, foram descritos A pandemia de Covid-19, aumentou da coordenação dos movimentos. Por-
casos de pacientes que se quei- o interesse pela síndrome. Nos doentes tanto, segundo eles, “transtornos psi-
xavam de fadiga física e men- diagnosticados com Covid longa, cerca quiátricos não são o componente prin-
tal em níveis incapacitantes. Apresen- de 50% evoluem com sintomas compa- cipal nem os responsáveis pela intensi-
tavam, no entanto, exames clínicos e la- tíveis com ME/SFC. dade dos sintomas”.
boratoriais e imagens dentro da faixa de Em uma demonstração de que é Baseados nesses achados, os pesquisa-
normalidade. melhor tarde do que nunca, os National dores concluíram que uma infecção pro-
A tendência dos médicos, diante da- Institutes of Health (NIH) finalmente vocaria alterações duradouras no siste-
quele cansaço crônico sem justificativa patrocinaram um estudo para padroni- ma imunológico e no microbioma intes-
palpável, era a de encaminhar os pacien- zar o diagnóstico e estudar a fisiopatolo- tinal, causadas pela persistência do agen-
tes para atendimento psiquiátrico. De- gia da síndrome. te infeccioso no organismo.
sanimados com aquela pessoa sempre Uma equipe multidisciplinar de cinco Como consequência, o cérebro seria
exausta, indisposta para executar tarefas especialistas foi recrutada para avaliar afetado numa cascata de eventos que le-
mínimas, os familiares e amigos não ti- um grupo de pacientes com quadros clíni- variam à diminuição da concentração de
nham dúvida: “Deve ser psicológico” era cos compatíveis com fadiga crônica, ins- neurotransmissores no líquor, capaz de
a frase mais empregada pelos ignorantes talada depois de processos infecciosos. explicar as alterações da frequência car-
para explicar o que desconheciam. Foram selecionados 17 pacientes com díaca e da capacidade cardiopulmonar.
Em 2015, o Institute of Medicine pu- histórico e sintomas muito sugestivos de EM/SFC pode ser uma doença alta-
blicou um relatório no qual afirmava: “A EM/SFC, para realizar uma bateria de mente incapacitante. Perto de 25% dos
comunidade da área da saúde geralmente exames clínicos, laboratoriais e de ima- pacientes têm a força muscular tão pre-
duvida da existência e da gravidade des- gem. Na comparação com um grupo de judicada que ficam acamados. Médicos,
sa doença”. pessoas saudáveis (controle), os resulta- doentes e seus familiares devem enten-
Nos Estados Unidos, o Center for Di- dos revelaram as seguintes diferenças: der que se trata de uma doença comple-
seases Control (CDC) deu o nome de xa, com fisiopatologia mal conhecida,
Síndrome da Fadiga Crônica ao conjunto 1. Diferenças nas subpopulações de célu- que necessita de tratamento para ali-
de sintomas envolvidos nesse quadro. No las imunologicamente competentes en- viar os sintomas.
Reino Unido e em outros países, o termo volvidas na resposta a agentes infecciosos. Numa enfermidade que afeta tantos
escolhido foi o de Encefalomielite Miál- 2. Menor diversidade na composição do órgãos e sistemas, a abordagem deve ser
gica (EM/SFC). microbioma intestinal. multidisciplinar com neurologistas, car-
Segundo o CDC, essa síndrome é ca- 3. Concentrações mais baixas do neuro- diologistas, psiquiatras e especialistas
racterizada por: transmissor serotonina, no líquor, asso- em dor. Agora, médicos com experiência
B A P T I S TÃ O

ciadas à piora da performance motora e em Covid longa estão mais preparados


1. Diminuição da habilidade para exe- aos sintomas cognitivos. para acompanhar esses doentes. •
cutar atividades cotidianas, por mais de 4. Frequência cardíaca elevada no re- redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Boleiro raiz
Dorival começou o trabalho com sua expressou-se assim, ao despachar seus jo-
► Dorival deu início característica básica, a simplicidade. Ele, gadoresparaocampo:“Vaipracima,impro-
ao trabalho com sua primeiro, bota a bola no chão, tratando visa. Perdeu, volta todo mundo. Se ajudem!”
essencialmente do futebol, sem se dei- Esta frase, para mim, é o resumo da
característica básica, xar impactar ou influenciar pelos tan- sua concepção do papel que um treinador
a simplicidade. Não fez tos itens acessórios que envolvem os jo- deve ter depois de ter feito o trabalho de
palestras motivacionais gadores atualmente. preparação. Nada das horríveis “pales-
Nascido no meio futebolístico, Dorival tras motivacionais” neuróticas, fanáti-
nem se apresentou tem a bola no sangue. É sobrinho do que- cas, enlouquecedoras.
como “comandante” rido Dudu – ídolo do Palmeiras nos anos No dia seguinte ao jogo contra a Ingla-
1960 e 1970 – e parceiro de meio-campo terra, ele, em longa entrevista, falou so-
do sensacional Ademir da Guia, da len- bre sua preferência pelo comportamento

O
desenrolar dos casos Robinho dária Academia do Palmeiras. Trata-se, dos jogadores em detrimento dos núme-
e Daniel Alves nos deixa uma portanto, de um boleiro raiz – para usar ros – sem desconsiderar a importância
sensação de tristeza e revolta, a expressão hoje em voga. das estatísticas na hora das avaliações.
pelo fato de expor as contradições que Ao longo de toda a conversa com os
hoje marcam o esporte. O novo treinador não se furta a ouvir jornalistas, mostrou sua capacidade de
O esporte deve ser, em sua essência, os jogadores e não tem qualquer resquí- organização passo a passo na evolução
sinônimo de alegria, saúde e libertação, cio da postura autoritária de “comandan- da equipe. Usou várias vezes a expres-
não isso que temos visto: uma atividade te”. No vestiário, antes de o time entrar são “dar mais um salto”, tendo em mira
que, contaminada pelo que de pior nos em campo, reforçou a orientação, acom- a conquista final.
trouxe o liberalismo, espelha o nosso de- panhada pela imprensa, de que tudo que Na contramão da “robotização” dos jo-
sarranjo social. acontece fora do campo – como as en- gadores, tão em moda, Dorival mostrou,
Outro reflexo dessa situação se dei- trevistas – depende do que se consegue mais uma vez, equilíbrio ao confirmar
xa ver pelo caso de Gabigol, que, embora dentro dele. O que importa, portanto, é que o jovem Endrick começaria no ban-
bem menos violento, é esdrúxulo e só se a concentração no jogo. co de reservas contra a Espanha, mesmo
pode explicar pela prepotência. Em microfone aberto, o treinador após a façanha espetacular de marcar o
O atleta do Flamengo foi suspenso por gol da vitória brasileira contra a Inglater-
dois anos por fraude no antidoping – no ano ra no carismático Estádio de Wembley.
passado, ele atrasou a realização do exame- Pois não é que, ao sair do banco, no
-surpresa realizado no Ninho do Urubu. segundo tempo, Endrick fez o raio cair
Entre tantos acontecimentos lamen- duas vezes ao, no magnífico estádio no
táveis, o esporte voltou a nos mostrar sua Santiago Bernabéu – do Real Madrid, seu
razão de existir, com as promessas da re- time a partir de julho –, fazer o gol de em-
novação se materializando nos amisto- pate? Foi um arremate sensacional, um
sos da Seleção, marcando o início do que chute dificílimo. Nem em sonho.
B A P T I S TÃ O E R A FA E L R I B E I R O / C B F

os comentaristas esportivos têm chama- As presenças de Bruno Guimarães,


do de “Era Dorival”. Andreas Pereira, Lucas Paquetá, Rodrygo
A escolha de Dorival Júnior mostrou- e Vinicius Júnior também foram muito
-se feliz com a estreia em dois jogos de boas de se ver. O melhor de tudo, depois de
alto risco. O balanço final das partidas uma partida disputada de forma aguerri-
contra Inglaterra e Espanha foi, no mí- da do início ao fim, cheia de nuances es-
nimo, auspicioso – não só pelos resulta- petaculares, foi ter de volta a esperan-
dos, mas pelas mudanças de rumo apon- ça no futuro da nossa paixão nacional. •
tadas nesta primeira convocação. Nova era? O técnico começou bem redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 3 D E A B R I L D E 2 0 24 57
VENES CAITANO
INÊS 249

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249
Seu leão pode colorir a ATÉ

vida de muitas crianças 31/5


Doe seu Imposto de
Renda para o Hospital
Pequeno Príncipe

No Brasil, apenas 2,28% do potencial de doação de IR da população foi


destinado para instituições filantrópicas em 2023. Isso representa cerca
de R$ 12 bilhões que poderiam impactar o cenário da saúde no país, mas
não foram aproveitados.

E você, ao destinar seu Imposto de Renda para os projetos do maior


hospital exclusivamente pediátrico do Brasil, pode contribuir para mudar
essa realidade, de forma fácil e sem custos. Ajude a transformar a vida de
milhares de crianças e adolescentes.

Leia o QR code ao lado ou acesse nosso site e veja como


doar, direto na declaração, até 31 de maio.

Contamos com você!

doepequenoprincipe.org.br
(41) 2108-3886 (41) 99962-4461
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Pessoas amam papel


Em todo o mundo a comunicação impressa encanta
bilhões de leitores. Boa notícia para os consumidores
que preferem ler jornais, revistas e livros impressos.
Depois de ler, compartilhe e recicle!
Pesquisa Global Trend Tracker, Two Sides e Toluna, 2023.

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