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TRAGÉDIA O LEGADO E AS

HOMENAGENS A ZÉ CELSO MARTINEZ CLUBE DE REVISTAS


ENTREVISTA PRESTIGIADA POR
LULA, NÍSIA TRINDADE, MINISTRA DA
CORRÊA, NOME LENDÁRIO DO TEATRO SAÚDE, PROMETE LUTAR POR MAIS
BRASILEIRO MORTO AOS 86 ANOS VERBAS PARA O SUBFINANCIADO SUS
ANO XXVIII N° 1267 R$ 31,90
12 DE JULHO DE 2023

QUEM EMPURRA A PEDRA


POR QUE É TÃO DIFÍCIL MUDAR O SISTEMA TRIBUTÁRIO,
MONTADO PARA FAVORECER RICOS E SONEGADORES
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Exercite sua solidariedade!


Sua contribuição vai ajudar famílias e crianças
em situação de vulnerabilidade por meio de
25 projetos nas áreas de cultura, esporte,
educação e segurança alimentar.
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bancária: Agência: 1041,
Op.: 003, CC: 50174-4
Federação Nacional das
Associações do Pessoal CEF
CLUBE DE REVISTAS
12 DE JULHO DE 2023 • ANO XXVIII • N° 1267

6 M I N O C A R TA

8 A SEMANA O antigo ciclo da


borracha violava os
direitos humanos.
Seu País Aprendemos a
lição? Pág. 32
16 E N T R E V I S TA A ministra
da Saúde, Nísia Trindade,
fala a CartaCapital
21 LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O envelhecimento
22 C E N S O
acelerado da população
idosa é um grande desafio
para os gestores públicos
27 MARJORIE MARONA

28 P O D E R Absolvido pelo
TSE, Braga Netto desponta
como nova liderança
da tropa bolsonarista
32 E X T R AT I V I S M O A Amazônia
tem potencial para abrigar
um novo ciclo da borracha,
sem os erros do passado
34 PA R A N Á Com a possível
cassação de Moro, políticos
já estão de olho em sua vaga
36 A R T I G O Lula colhe frutos
da reorganização do País.
Falta a queda dos juros

Plural
48
Nosso Mundo
38 F R A N Ç A Um mergulho
nos dias de fúria após o
assassinato, pela polícia,
de um garoto de 17 anos
42 E U A A reacionária
Suprema Corte derruba CAÇADORES
as cotas para estudantes DE PÚBLICO
negros nas universidades
NA BRIGA POR ESPAÇO
44 R Ú S S I A Prigozhin, do JACQU ES BOY ER / RO G ER-VIO L L E T/A FP E FÁ BIO BO UZ AS
EM UM CIRCUITO CADA
grupo Wagner, vê seu
império desmoronar
VEZ MAIS DOMINADO
POR HOLLYWOOD,
46 I S R A E L Por trás da onda
de violência na Cisjordânia,
LUCCAS NETO VIRA
a expansão das colônias UM SUPER-HERÓI
judaicas sobre a Palestina 51 R I TA V O N H U N T Y
52 C R Í T I C A Assassinatos
à francesa 54 L I V R O S
ENGENHEIROS DO CAOS O diabólico prazer da
confidência 56 A F O N S I N H O
O BRASIL CORRE O RISCO DE “REFORMAR” 57 S A Ú D E Por Drauzio
Capa: Pilar Velloso.
Fotos: iStockphoto O SISTEMA TRIBUTÁRIO SEM ALCANÇAR Varella 58 C H A R G E
e Coletivo Garapa OS RICOS E OS SONEGADORES DE IMPOSTOS Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) trazem benefício algum a quem os utili-
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
za, enganando consumidores e surru-
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis piando seus parcos recursos.
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
Cláudio Lemos
REVISOR: Hassan Ayoub
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
O VALOR DA VIDA
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, Infelizmente, este é o mundo em
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, que vivemos. Todos são iguais,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., mas alguns são mais “iguais” que os ou-
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
tros. O público e a mídia costumam dar
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo mais valor às vidas dos famosos e endi-
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
nheirados, não enxergam as pessoas em
CARTA ONLINE
situação de vulnerabilidade. E estes? Vi-
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira vem de sobras e morrem às moscas.
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
Ricardo Fernandes
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana CURANDEIRISMO
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
ELETRÔNICO COMOVAM-SE
REDES SOCIAIS: Caio César O governo Lula e o Ministério da Até quando cita a ficção Mino Carta
SITE: www.cartacapital.com.br Saúde têm um grande desafio pela nos faz refletir e reler clássicos. Ao
frente: a desarticulação dessas crendices comparar Lula com o personagem de Jú-
que tanto mal causam à saúde dos lio Verne, deixou-me confuso, pois Phileas
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. brasileiros. No último quadriênio, esses Fogg não utilizou balões em sua aventura.
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 charlatões se aproveitaram da leniência O cinema subverteu a estória, isso é fato,
dos governos Temer e Bolsonaro para incluindo o transporte aéreo em uma das
PUBLISHER: Manuela Carta
DIRETOR EXECUTIVO: Marcelo Romão atuar livremente no mercado e explorar a películas em que atuou Cantinflas. De
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene boa-fé das pessoas, vendendo seus medi- qualquer forma, lembrar um dos pseudô-
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
ANALISTA DE CIRCULAÇÃO: Ismaila Alves camentos milagrosos sem o mínimo ampa- nimos de Lima Barreto na descrição da
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios
ro científico. Urge que qualquer charlata- plenitude planetária em que segue o pre-
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, nismo midiático seja denunciado e severa- sidente da República valeu a releitura de
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva
mente punido. Os conselhos de Medicina A Volta ao Mundo em 80 Dias.
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: e Farmácia precisam desmascarar esses Adilson Roberto
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
enio@gestaodenegocios.com.br
enganadores. Da mesma forma, a polícia,
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto, o Ministério Público e o Judiciário devem AGORA OU DEPOIS
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
combater os vendedores de ilusões. O medo dos fardados é grande em
agholanda@Agholanda.com.br Paulo Sérgio Cordeiro todas as esferas. É bem provável
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com que as Forças Armadas queiram mesmo
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br
É absurda a quantidade de charla- uma ação mais dura contra um de seus
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda.
tanismo que se encontra nas re- integrantes para ganhar motivos para
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001.
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 des sociais, inclusive com riscos severos agir. Talvez por isso o presidente da CPI
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se à saúde pública. Como o País não tem não deu voz de prisão ao mentiroso. Ale-
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou
controle algum desta situação? xandre de Moraes foi corajoso e certeiro
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel Luzia Rosa em seus passos. Assegurou a inelegibili-
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584, dade do energúmeno. A esperança é que,
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
acordo com a Lei de Imprensa. “Os idiotas vão tomar conta do mesmo devagar, a Justiça alcance todos.
mundo, não pela capacidade e Reginaldo Araújo
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) qualidade, mas pela quantidade. Eles
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos são muitos.” Pelo visto, Nelson Rodri- O DEVER DO TSE
gues tinha boa dose de razão. A Justiça Eleitoral cumpriu
Pierre Kuhnem seu papel, nos livrando do risco de
ter Bolsonaro de volta ao poder.
ENGODO EM PÍLULAS Resta agora esperar que outras esferas
Acredito que não só os produtos jurídicas o punam pelos vários males que
que fazem mal à saúde deveriam causou ao Brasil e ao seu povo. A inelegi-
ser proibidos, mas também todos aque- bilidade é pouco.
les que, mesmo não fazendo mal, não Sylvio Belém

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
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C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 5
EDITORIAL CLUBE DE REVISTAS

Mino Carta
A ideologia do caos
Lula confunde ele mesmo e todos nós

A
personagem da capa desta edi- trário, porque a doutrina vermelha é a conhecimento até do mundo mineral
ção é o simbólico Sísifo da mi- mesma a mover o PT. De súbito imagi- que Lula se deixa seduzir pela proximi-
tologia grega a enfrentar o namos uma boutade irônica e logo tive- dade de um microfone pronto a trans-
morro íngreme, metáfora das dificulda- mos de admitir: sim, o presidente fala- mitir palavras em liberdade, bem como
des da vida. Vale aqui para representar va sério. O próprio Putin, a esta altura de um voo internacional para defender
os esforços vãos do Brasil na tentativa do campeonato, não acredita mais em
de atingir a posição prometida pelas be- bolorentas consignas.
nesses conferidas pela natureza. A enor-
me pedra aceita o desafio, mas é pesada Severamente atingido pelos ven-
demais para a força de quem a empurra. tos internos de rebeldia, já se confor-
Está fadada a voltar inexoravelmente ao ma com o papel de derradeiro czar
ponto de partida. Neste momento, o pre- de um império em decadência. É do
sidente Lula enfrenta uma jornada espe-
cialmente turva. Não basta se livrar do
energúmeno demente Jair Bolsonaro.
O presidente da Câmara dos Deputa-
dos, Arthur Lira, é infinitamente mais
perigoso em relação ao futuro do Brasil
do que o ex-capitão, premiado por uma
eleição da qual Lula não pôde partici-
par, preso sem provas pela costumeira
dupla Sergio Moro e Deltan Dallagnol.
Cabe acentuar que só no Brasil podem
acontecer fatos como estes. E não há co-
mo negar a realidade de um país ainda
tão distante da democracia e da contem-
poraneidade do mundo civilizado. Nes-
tes dias, o Datafolha revela: a maioria
dos entrevistados, mais de 50%, acre-
dita no retorno dos degustadores de
criancinhas amoitados atrás de cada
esquina. Ou seja, segundo eles, não es-
capamos de um levante comunista.
Lula, decidiu dar o seu palpite a res-
peito. Disse que a ideologia comunis-
ta não desonra o seu partido, pelo con- As tentações do presidente da República

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

ria e escravagista, pela abdução violenta


de milhões de habitantes africanos des-
tinados à escravidão mais duradoura e
cruel de todos os tempos. No nosso ter-
ritório, os capitães do mato souberam
como matar índios e escravos em fuga.
Não foram, decerto, aqueles dispostos a
distinguir entre brancos e pretos, tidos
“de cor”, como se não houvesse também
amarelos e, nos Estados Unidos, os ver-
melhos, destinados a um inglório sacri-
fício nos filmes de faroeste.
Claro que não foram os brancos que
mantiveram a escravidão viva com em-
penho e ferocidade inaudita. Hoje em
dia, e de fato já há algum tempo, as en-
tidades promovidas pelos próprios ci-
dadãos pretos em atividades cada vez
mais capilares espalhadas pelo País de-
dicaram-se com êxito à defesa dos seus
direitos. E passos adiante foram dados
até o momento a despeito das resistên-
a paz no mundo sem se importar com a Lira conspira contra o Brasil cias explícitas da casa-grande. •
concorrência de papa Francisco.
Aos meus inquietos botões pergunto
qual será realmente a doutrina esposa-
da por Lula? Admitem carecer da ver-
dade absoluta, conquanto considerem a
possibilidade de que o pensamento rei-
nante possa envolver a teoria do caos.
Alguns fatos, estes sim, representam a
verdade indiscutível: o Brasil continua
a disputar com alguns países asiáticos e
PA B L O VA L A D A R E S /A G . C Â M A R A , A L E X A N D E R K A Z A KO V/

africanos o cetro de campeão mundial


da desigualdade, primeiro impedimen-
S P U T N I K / A F P, N E L S O N A L M E I D A / A F P E T V B R A S I L

to para qualquer afirmação democrá-


tica. O povo brasileiro é vítima desta
brutal separação entre poucos ricos e
dezenas de milhões de pobres, em boa
parte condenados à fome e ao relento.

Muito cuidado em não tropeçar na


calçada em um compatriota obrigado
a dormir no chão. O racismo está pre-
sente para o recrudescimento de uma
situação penosa, favorecida inicialmen-
te pela colonização portuguesa predató- Putin aceita o papel de derradeiro czar do império decadente

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 7
CLUBE DE REVISTAS

A Semana
O custo da
desigualdade

O presidente Lula sancionou,


Obituário/
na segunda-feira 3, a lei
que assegura a igualdade Fecham-se
as cortinas
salarial entre homens e
mulheres que desempenham
a mesma função. O projeto
foi apresentado pelo Zé Celso Martinez Corrêa,
Executivo em 8 de março, o irreverente criador do
Dia Internacional da Mulher,
e pouco depois recebeu aval Teatro Oficina, morre
do Congresso. A diferença aos 86 anos, em São Paulo
salarial entre trabalhadores
que ocupam o mesmo cargo
ou função já é proibida pela
Consolidação das Leis
do Trabalho. Na prática,
contudo, muitas vezes
essa exigência legal não
é respeitada. Para assegurar
o cumprimento da norma,
a nova lei estipula que, em

A
casos de discriminação
comprovada por gênero, pós uns poucos dias hospitaliza- guido. Censurado, viu, em 1966, o prédio do
raça ou etnia, o empregador do, em decorrência de um incên- Teatro Oficina ruir após um incêndio que ele
deverá pagar multa dio no apartamento em que vi- sempre julgou ter sido um crime praticado
equivalente a dez vezes via, José Celso Martinez Corrêa, por paramilitares.
o maior salário pago, além
diretor, ator e dramaturgo, morreu em São A volta se daria no ano seguinte com a lâ-
da diferença remuneratória
devida. Em caso de Paulo, na quinta-feira 6, aos 86 anos. mina ainda mais afiada, encenando O Rei da
reincidência, a multa dobra. Zé Celso, figura lendária no meio cultural Vela, de Oswald de Andrade, e Roda Viva, de
paulistano, foi o criador do Teatro Oficina Chico Buarque. Em 1974, acabou sendo preso
Uzyna Uzona. Fundado na década de 1960, e pelos militares e, ao sair, exilou-se por dois
instalado no bairro do Bexiga, o grupo ence- anos em Portugal. O retorno, mais uma vez,
nou mais de 40 espetáculos, entre eles O Rei se daria em forma de reinvenção e ousadia,
da Vela, Roda Viva e Os Sertões. materializadas em montagens como como As
Nascido em Araraquara, cidade do interior Bacantes (1987) e Cacilda! (1991).
paulista, em 1937, formou-se em Direito pela Outra de suas lutas que ficaria famosa
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, seria aquela pela preservação do prédio
mas jamais trabalhou como advogado. Foi, do Oficina, que leva a assinatura da arquiteta
porém, na faculdade que fez os amigos com Lina Bo Bardi (1914-1992), e de seu
os quais daria início à carreira artística. entorno. Foram décadas de uma barulhenta
Data de 1958 o primeiro texto teatral de pendenga com Silvio Santos, dono dos
sua autoria. Sua estreia como diretor se daria terrenos ao lado do teatro.
em 1961, com a montagem de A Vida Impres- Enquanto Silvio desejava erguer ali um
sa em Dólar, de Clifford Odetts. Em 1963, empreendimento comercial, Zé Celso prega-
causaria alvoroço ao encenar, às vésperas do va a construção de algo como uma ágora – o
golpe, Pequenos Burgueses, de Gorki. espaço público do teatro grego. Com sua par-
Implantado o regime ditatorial, não demo- tida, a simbologia desse espaço de resistência
raria para que o artista passasse a ser perse- e originalidade torna-se ainda maior.

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CLUBE DE REVISTAS
12.7.23

Homofobia/ É crime, não fé


Morre o ex-ministro
Sepúlveda Pertence
MPF investiga pastor que incitou a violência contra pessoas LGBTQIA+
O ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal José

O
Sepúlveda Pertence morreu
Ministério Público Federal abriu
no domingo 2, aos 85 anos,
um inquérito para apurar a pos- em Brasília. A causa da morte
sível prática do crime de homo- André Valadão não foi divulgada, mas ele
fobia pelo pastor André Valadão, é devoto do estava internado em uma
bolsonarismo unidade do Hospital
da Igreja Batista da Lagoinha. A investigação
Sírio-Libanês há mais de
será conduzida pelo procurador regional dos
uma semana. Natural de
Direitos Humanos do Acre, Lucas Costa. Du- Sabará, na região
rante um culto em Orlando, nos EUA, o lí- metropolitana de Belo
der religioso sugeriu que seus seguidores de- Horizonte, Sepúlveda
veriam matar pessoas LGBTQIA+. “Agora é a Pertence foi advogado,
promotor de Justiça e
hora de tomar as cordas de volta e dizer: po-
procurador-geral da República
de parar, reseta. Mas Deus fala que não pode antes de ser nomeado ao STF,
mais. Ele diz: ‘Já meti esse arco-íris aí. Se eu pelo presidente José Sarney,
pudesse, matava tudo e começava de novo. em 1989, permanecendo
Mas prometi que não posso, agora está com como integrante da Corte até
2007. Ao longo de sua
vocês’”, disse, antes de concluir: “Não enten-
carreira, atuou como
deu o que eu disse? Agora, está com vocês. defensor de Lula em
Deus deixou o trabalho sujo para nós”. estavam duvidando, a perseguição chegou diferentes ocasiões. “Tive o
Após a repercussão do caso, o pastor ne- dentro das igrejas, é o início do fim do resto privilégio de ter em Sepúlveda
gou a intenção de incitar a violência contra as que ainda tínhamos de liberdade religiosa”, um amigo e também um
grande advogado”,
pessoas LGBTQIA+ e se diz vítima de tenta- escreveu nas redes sociais. O parlamentar
escreveu o presidente, ao
tiva de “censura”. O senador Flávio Bolsona- finge desconhecer o fato de que não existe li- lamentar o falecimento.
ro, filho Zero Um do ex-presidente, já saiu em berdade absoluta, ela cessa quando viola o di-
defesa de Valadão, um dos mais denodados reito de outras pessoas – no caso, o direito à
cabos eleitorais de seu pai em 2022. “Aos que vida, tão caro aos verdadeiros cristãos.

16 milhões de reais/ FICOU BARATO


V I T TO R SA N TOS, R ED ES SO CI A IS E CO L E T I VO G A R A PA

NEYMAR PODE PAGAR SUA MULTA AMBIENTAL COM 22 DIAS DE TRABALHO

A Secretaria Municipal de realização de obra passível de Polícia Civil, à Delegacia de


Meio Ambiente de Mangarati- controle ambiental sem autori- Proteção ao Meio Ambiente e
ba aplicou, na segunda-feira 3, zação, captação e desvio de demais órgãos de controle am-
multa de 16 milhões de reais água de rio sem autorização, biental”, diz a nota divulgada
ao jogador de futebol Neymar, movimentação de terras e su- pela Prefeitura de Mangarati-
que violou uma série de nor- pressão de vegetação sem au- ba. Apesar do elevado valor, a
mas da legislação ambiental torização, além de descumpri- multa não chega a comprome-
ao construir um lago artificial mento de embargo. ter as finanças de Neymar, que
em sua mansão no condomínio “Vale lembrar que a Secreta- recebe quase 22 milhões de
Aero Rural, uma das mais valo- ria de Meio Ambiente, além de reais por mês do Paris Saint-
rizadas áreas da Costa Verde aplicar as multas, consideran- -Germain. Ao cabo a nova tra-
do Rio de Janeiro. Entre as ir- do os danos ambientais causa- vessura do “menino Ney” lhe
regularidades cometidas pelo dos, comunicou os fatos cons- custará apenas 22 dias de tra- O atleta violou uma série de normas
atleta, os fiscais destacaram a tatados ao Ministério Público, à balho no clube francês. para construir um lago artificial

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R EPORTAGEM DE CA PA

ENGENHEIROS
DO CAOS
O BRASIL CORRE O RISCO DE “REFORMAR”
O SISTEMA TRIBUTÁRIO SEM ALCANÇAR
RICOS E SONEGADORES

por CA R LOS DRU MMON D

O
presidente da Câmara, Ar- votada em separado, essa segunda par- ção, elaborou em 2019 o projeto Reforma
thur Lira, prometeu dis- te perderá, entretanto, força política e Tributária Solidária, Justa e Sustentável,
cutir e votar a primeira muitos temem um desfecho pífio, como consolidado em uma emenda substituti-
etapa da reforma tributá- inúmeras vezes ocorreu no País em de- va à PEC 45, base da atual reforma. Isso
ria antes do recesso parla- cisões que buscam aumentar a taxação tudo bem antes da ampla coalizão forma-
mentar. Até o fechamento dos mais ricos para ao menos atenuar as da para derrotar Jair Bolsonaro e da ten-
desta edição, na manhã da condições de vida infernais dos mais po- tativa de golpe do 8 de janeiro.
quinta-feira 6, não estava bres. Nesse caso, se arremessaria, mais Elaborada para substituir um siste-
claro se os deputados analisariam a pro- uma vez, na lata do lixo as pretensões de ma tributário que, de tão confuso e ir-
posta no mesmo dia ou se, por força do in- centrais sindicais, movimentos popula- racional, é chamado de caos tributário
tenso lobby, o assunto ficaria para a sema- res, da própria campanha de Lula e do pelo ministro da Fazenda, Fernando
na seguinte. Na véspera, o relator, Agui- núcleo da base partidária do atual go- Haddad, a reforma proposta pelo Legis-
naldo Ribeiro, disse ter encontrado a so- verno, que, ainda na condição de oposi- lativo e abraçada pelo Executivo conta
lução para as últimas reivindicações dos com o apoio de inúmeros setores eco-
governadores em relação ao Conselho Fe- nômicos e tem papel central na mudan-
derativo e ao Fundo de Desenvolvimen- NA PRIMEIRA ça do clima dos mercados para um am-
to Regional, ao cálculo da transição pa- biente mais positivo em relação ao go-
ETAPA, A REFORMA
ra o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), verno Lula, confirmado por vários indi-
que unificará o Imposto sobre a Circula- TRARÁ ALGUNS cadores, entre eles a queda dos juros de
ção de Mercadorias e Serviços (ICMS) e BENEFÍCIOS AOS longo prazo e da inflação, a oscilação da
o Imposto sobre Serviços (ISS), segundo MAIS POBRES, MAS cotação do dólar em um patamar mais
o substitutivo apresentado. razoável do que no governo passado e
SEM RESOLVER A
Trata-se de uma primeira etapa, que a melhora da classificação de risco-pa-
deverá ser seguida da reforma da tribu- DESIGUALDADE ís pela agência Standard&Poors. Entre
tação sobre a renda e o patrimônio. Ao ser os apoios mais recentes figuram aqueles

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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dos presidentes dos bancos Itaú e Brades- A primeira parte da reforma vai ater-se à simplificação, com um residual efeito distributivo. Haddad
quer taxar lucros e dividendos, e fechar brechas à sonegação, mas depende da disposição de Lira
co, que a consideram uma “oportunidade
única”, e o de um grupo de economistas
de A a Z no espectro político, de Affonso
Celso Pastore e Samuel Lisbôa a Guido
Mantega e Laura Carvalho.
M A RCELO CA M A RGO/A BR E PEDRO GON TIJO/AG. SEN A DO

A abundância de situações de irracio-


nalidade na área tributária dá razão a
quem vê na reforma se não uma solução
completa, ao menos um significativo es-
forço de racionalização, com a extirpação
de não poucas redundâncias, superposi-
ções e mesmo aberrações. Dois exemplos,
entre centenas, dão uma ideia da balbúr-
dia reinante. Sob as regras tributárias
atuais, a energia elétrica, se for usada na
fábrica, dá direito a crédito de ICMS, mas
quando utilizada no escritório da mes-
ma empresa, não gera crédito algum. Um
software, se padronizado, é considerado

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 11
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

produto e paga ICMS, mas quando pro-


duzido sob encomenda para uma empre-
sa é um serviço e paga ISS.
Entre os problemas do sistema tribu-
tário atual destacam-se a base fragmen-
tada e sem lógica, com um imposto para
mercadorias e outro para serviços, quan-
do, na prática, é cada vez mais difícil dis-
tinguir um do outro. A cumulatividade,
ou impostos em cascata, é outro problema
grave, pois gera o pagamento de impos-
tos sem recuperação por meio de crédi-
tos e onera os investimentos e a produção,
deixando o produto nacional em desvan-
tagem em relação ao produto importado,
tanto no mercado interno quanto no ex-
terior. A complexidade é outra caracterís-
tica. Desde 1988, foram editadas mais de
460 mil normas tributárias, o equivalen-
te a 37 por dia. O ICMS tem 27 legislações
estaduais, cada uma com enorme quan-
tidade de alíquotas e regimes especiais.
O ISS tem mais de 5,5 mil leis, uma para
cada município. O PIS e a Cofins contem-
plam mais de cem hipóteses de alíquota
zero, além de 20 regimes especiais. Es-
se emaranhado significa custo burocrá-
tico altíssimo para o pagamento dos im-
postos no Brasil e provoca inúmeras dis-
torções na economia. Uma dessas defor-
mações é a concessão de benefícios fiscais
que provocam viagens desnecessárias de
mercadorias, que saem de um estado, vão
a outro e voltam àquele de onde saíram,
com aumento do custo logístico e impac-
to negativo no meio ambiente. No siste-
ma atual, calcula o Ministério da Fazen-
da, uma grande empresa consome 34 mil
horas por ano para apurar e pagar impos-
tos no Brasil e uma de médio porte des- nização para a Cooperação e Desenvolvi-
pende 1,5 mil horas por ano. Com as mu- mento Econômico (OCDE) e pelo Banco
danças em análise no Congresso, espera- O MINISTÉRIO DA Mundial. O Ministério da Fazenda pro-
-se um aumento da competitividade das FAZENDA PROJETA mete fazer essa substituição por meio de
empresas atuantes no Brasil, inclusive em uma legislação uniforme o mais simples
CRESCIMENTO
relação aos seus concorrentes externos. e homogênea possível. Além disso, quer
Uma peça central do projeto ori- ADICIONAL DO PIB instituir um imposto seletivo, o IS, sem
ginal da reforma é a substituição do DE AO MENOS 12% finalidade arrecadatória, destinado a de-
PIS/Cofins, ICMS, ISS e IPI por um Im- EM 15 ANOS sestimular o consumo de produtos pre-
posto de Valor Adicionado, o IVA, usado judiciais à saúde e ao meio ambiente. A
em 170 países e recomendado pela Orga- equipe de Haddad projeta um crescimen-

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

O sistema castiga quem produz e os mecanismo eficaz de fazer o cashback, is-


consumidores pobres. Ribeiro, relator
so teria algum impacto redistributivo.” O
da proposta, faz os últimos ajustes
para contemplar estados e municípios problema é que esse impacto redistribu-
tivo é muito pequeno, diz o economista.
Alguns estudos de 2020 apontam que dos
Ao contrário do que muitos pensam, a 10% mais pobres, a carga tributária retira
reforma tributária do consumo trará al- 28% da renda. Segundo a proposta, isso
guns benefícios para as classes mais po- cairia para 26%. “A questão distributiva,
bres, mas está longe de resolver o proble- entretanto, a reforma atual não enfren-
ma mais grave da desigualdade tributá- ta. O secretário da Reforma Tributária,
ria. “Ela não altera de forma significati- Bernard Appy, afirma que a carga tribu-
va a questão das desigualdades. Do ponto tária vai ficar igual. Hoje o consumo re-
de vista redistributivo, tem, entretanto, presenta 50% do total da carga tributá-
dois aspectos positivos”, destaca o eco- ria, e vai continuar sendo 50%. O gran-
nomista Eduardo Fagnani, do Instituto de problema da regressividade tributá-
de Economia da Unicamp. O primeiro é ria no Brasil é o peso elevado, na compa-
uma distribuição regional. Quando vo- ração internacional, do consumo na car-
cê faz com que o imposto seja cobrado ga tributária. Isso não muda”, dispara o
no destino, vai aumentar a arrecada- economista da Unicamp.
ção dos estados que não são produtores. Apesar de o objetivo original não ser
Segundo estudos, esses estados e muni- a redução da regressividade, esta se tor-
cípios vão ganhar mais. Hoje, quem pro- nou um objetivo complementar e mate-
duz mais são os estados de São Paulo, rializado em duas medidas: a devolução
Rio de Janeiro, Santa Catarina e Minas do imposto para baixa renda e a maior
Gerais, que terão alguma perda, mas não uniformização de carga tributária, es-
significativa. Por outro lado, os estados pecialmente a eliminação do diferen-
pobres, inclusive aqueles do Nordeste, cial de tributação entre bens e serviços,
vão ter um ganho de receita. Haverá uma sublinha o economista Sergio Gobetti,
redistribuição regional. pesquisador do IPEA e ex-secretário
adjunto de Política Fiscal e Tributária

O
segundo ponto positivo é o da Secretaria de Política Econômica do
cashback que, em tese, de- Ministério da Fazenda. O fato de os ser-
volveria o imposto pago pe- viços, diz Gobetti, serem em geral menos
la população pobre, possi- tributados do que as mercadorias, como
velmente identificada como ocorre no Brasil, favorece as famílias
aqueles que fazem parte do mais ricas, que consomem muito mais
cadastro único, o CadÚnico. Neste caso, serviços do que os pobres. Só a unifica-
diz Fagnani, haveria algum tipo de re- ção do ISS com ICMS, como previsto na
distribuição. Existem algumas experi- reforma, possibilita corrigir esse proble-
to adicional do PIB, a partir da reforma, ências positivas em alguns países, mes- ma, reduzindo a regressividade.
de ao menos 12% em 15 anos, o equivalen- mo na América Latina, mas o proble- Além disso, prossegue o economis-
te a 1,2 trilhão de reais a mais, com a ge- ma é que o Brasil é um país muito hete- ta, a reforma avança com a devolução
P R O G R E S S I S TA S 1 1 E G E R A L D O

ração de 12 milhões de empregos no pe- rogêneo. Não há o mesmo nível de for- de imposto para famílias mais pobres,
W E G B R A S I L , L AY C E R T O M A Z /

ríodo. Um estudo prevê um acréscimo de malização de compras no Pará e em São o cashback. “Esse tipo de medida é mui-
renda que equivaleria hoje a 470 reais por Paulo ou Rio Grande do Sul. “Aí fica difí- to mais eficaz para reduzir a regressivi-
BUBNIA K /A EN /GOV PR

mês na renda de cada habitante, caso a cil, porque grande parte das compras fei- dade do que a desoneração da cesta bá-
reforma tivesse ocorrido há 15 anos e au- tas pela população pobre ocorre na feira, sica, por exemplo. Isso porque, embora
mentos dos PIBs setoriais de 11% para o no pequeno comércio, que em geral não os pobres consumam proporcionalmen-
agronegócio, 10% para os serviços e 17% são formalizados nem informatizados. te mais em alimentos do que os mais ri-
no caso da indústria. Mas se eles conseguirem encontrar um cos, em termos absolutos os mais ricos,

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 13
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

A Zona Franca de Manaus será da Abrasca, Fiesp, Dieese e de universi- Lira havia concordado com uma alíquo-
poupada e manterá os benefícios
fiscais. Mas a ideia de uma reforma
dades, auditores fiscais, assessores par- ta de 20%, mas isentando as empresas do
justa e solidária continua distante lamentares e pesquisadores, e que contou Simples. Como o limite do Simples é de
com a presença, em ao menos uma oca- 400 mil reais mensais, na prática a volta
sião, de Bernard Appy, buscaram pontos da tributação seria inócua. “Acredito que
acima de 25 salários mínimos de renda, de consenso em torno da etapa seguin- há espaço para negociar uma alíquota re-
consomem quatro vezes mais do que os te da reforma, a da tributação da renda. duzida da tributação dos dividendos pa-
mais pobres, considerados aqueles com ra empresas do Simples, de 12,5% ou 15%,

S
renda até dois salários mínimos, segun- egundo um dos participantes por exemplo, ou reduzir o limite de isen-
do os dados da POF do IBGE. desses encontros, o economis- ção para 48 mil reais anuais, equivalentes
Pouco antes do anúncio da data de iní- ta e pesquisador do Ipea Pedro a 4 mil reais mensais, tributando o que
cio de votação da reforma tributária do Humberto Carvalho, o princi- exceder este valor”, ressalta Carvalho.
consumo na Câmara, as centrais sindi- pal consenso formado naque- Há outras medidas em estudo ou de
cais divulgaram um manifesto com o pe- las discussões quanto a refor- aplicação recente, acrescenta o pesquisa-
dido de uma reforma em sintonia com a ma da tributação da renda pessoa física é dor, como a Medida Provisória 1171, des-
pauta da classe trabalhadora, a mesma a volta do imposto sobre lucros e dividen- te ano, que introduz o imposto anual dos
entregue a Lula durante a campanha elei- dos, pois a isenção é a principal causa da rendimentos dos trustes, offshores e fun-
toral e que propõe a orientação da refor- regressividade no topo, isto é, a partir do dos pessoais, que está em estudo. Esses
ma segundo a capacidade contributiva 1% de contribuintes mais rico, com ren- fundos só sofrem tributação no resgate,
de cada um. Reivindicam a progressivi- da mensal superior a 60 mil reais. Além causando a postergação do pagamento
dade, a revisão dos impostos de consumo disso, a isenção causa um planejamen- por anos. Tais medidas não impedem,
e dos tributos sobre renda e patrimônio, to tributário enviesado para a distribui- porém, a alimentação desses fundos com
o aumento das alíquotas sobre grandes ção de lucros e dividendos, alimentando rendimentos isentos derivados de lucros
heranças e riquezas, lucros e dividen- a “pejotização” dos profissionais liberais. e dividendos.
dos. Discussões mantidas na Fundação A tributação sobre lucros e dividen- Outro ponto é a combinação do IRPJ
Perseu Abramo, de setembro a dezem- dos é, no entanto, um tema polêmico, e do IRPF. “Quem é contra a tributação
bro, com a participação de economistas sublinha Carvalho. Em 2021, Arthur dos lucros e dividendos argumenta que

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

à situação atual do sistema tributário. E a


reforma não ficaria melhor, mas pior, se
seguíssemos algumas das ideias defendi-
das pelos signatários”, dispara Gobetti.
O pesquisador tem denunciado situa-
ções em que juristas e economistas con-
seguem faturar alto com o caos tributá-
rio e com a baixíssima tributação sobre
suas atividades de consultoria. Há duas
situações vantajosas, chama atenção
Gobetti, em termos de tributação para
profissionais liberais que prestam servi-
ço como pessoa jurídica em vez de física.
A primeira delas é o caso do Simples, em
que a tributação total (incluindo impos-
to de renda) é bastante baixa, entre 6%
e 12%, e essas empresas não serão afeta-
das pela reforma. São empresas que fatu-
ram até 4,8 milhões anuais e continuarão
a pagar seus impostos exatamente como
hoje. O outro caso é o das empresas que
faturam acima de 4,8 milhões anuais,
mas estão no lucro presumido e também
a nossa alíquota combinada do IRPJ essas pretensões e parece trilhar a mar- possuem uma tributação favorecida, pa-
mais CSSL, de 34%, é muito elevada e cha da insensatez, ao propor a instituição gando uma carga tributária que normal-
compensaria a atual isenção para divi- de dois novos tributos, a Contribuição so- mente se situa em torno de 17%, mas po-
dendos. Em países da OCDE, a tributa- bre Bens e Serviços (CBS), no âmbito fe- de cair para 12% no caso das sociedades
ção máxima conjunta do lucro empresa- deral, e o Imposto sobre Bens e Serviços uniprofissionais, em que o ISS é simbóli-
rial (IRPJ) e dos dividendos supera, po- (IBS), no subnacional. O primeiro resul- co. “Por isso essa turma não quer o fim do
rém, 40% na grande maioria dos países. taria da fusão de Cofins e PIS, e o segun- ISS e não porque esteja realmente preo-
Somente Estônia e Letônia isentam os do derivaria da fusão de ICMS com ISS. cupada com autonomia federativa”, dis-
lucros e dividendos”, destaca Carvalho. “Com todo respeito aos autores, sua para o economista.
No fim de junho, alguns medalhões posição sobre a reforma é lamentável.

A
da arrecadação fazendária e economis- Dizer que o texto apresentado é uma das última reforma tributária
tas fizeram publicar um manifesto du- piores reformas da história do País não digna do nome foi feita em
ro contra a proposta de reforma tribu- faz o menor sentido. As mudanças pre- 1965, um ano depois do gol-
T O M A S S I LVA /A B R E M I N I S T É R I O D A E C O N O M I A / S U F R A M A

tária, por eles rotulada como “uma das vistas são um enorme avanço em relação pe. Desde então, os sucessi-
piores do Brasil”. Assinado por Marcos vos remendos produziram um
Cintra, ex-secretário da Receita Federal Frankenstein. Ganha quem
do governo Bolsonaro, Everardo Maciel O FATO DE pode mais: ricos e sonegadores. Caso
e Jorge Rachid, também ex-secretá- OS SERVIÇOS consiga completar a reforma – e não se
rios, Felipe Salto, secretário da Fazenda contentar com a mera simplificação do
de São Paulo até o ano passado, e José
SEREM MENOS sistema –, o governo Lula dará um pas-
Roberto Afonso, professor do Instituto TRIBUTADOS so muito mais efetivo e duradouro para
Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento DO QUE AS combater a vergonhosa desigualdade.
e Pesquisa, entre outros, o texto conde- MERCADORIAS Embora a carga total, na casa dos 30%,
na o substitutivo da PEC 45. A reforma não seja baixa quando comparada a na-
tributária do consumo, dizem os autores,
FAVORECE AS ções de renda semelhante, para os 10%
prometia fundir Cofins, PIS, IPI, ICMS FAMÍLIAS RICAS do topo da pirâmide, o Brasil é um ver-
e ISS. O substitutivo daquela PEC nega dadeiro paraíso fiscal. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 15
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

A ministra
do SUS
ENTREVISTA Prestigiada por Lula, Nísia
Trindade fala da sua posição no governo,
da luta por recursos e das metas na Saúde
A ANDRÉ BARROCAL

O
gabinete de Nísia Trinda- de mental. Entre suas prioridades futu-
de, ministra da Saúde, tem ras está negociar mais verba para a área.
poucos toques pessoais. A discussão promete. A equipe do minis-
Alguns adornos indígenas tro da Fazenda, Fernando Haddad, estu-
recebidos de presente e da propor mudanças na regra de financia-
uma foto ao lado do padre Júlio mento mínimo do setor para acomodar o
Lancellotti são exceções. Ao abrir a sala caixa público aos ditames do arcabouço
a CartaCapital na tarde da quarta-feira fiscal, sucessor do finado teto de gastos. 
5, ela tinha motivos para pensar em de- Na quinta-feira 6, o governo ressuscitou lação, identificado pelo último Censo do
corar o ambiente a seu gosto. Horas an- o Conselho Nacional de Desenvolvimento IBGE, impõe o desafio de melhorar a qua-
tes, o presidente Lula havia dito à plateia Industrial, e a política industrial na Saúde lidade das políticas para os idosos e é ne-
da 17a Conferência Nacional de Saúde que terá papel importante. Para Nísia, a pan- cessário olhar com lupa as estatísticas
a subordinada seguirá no cargo. “O Mi- demia de Covid-19 deixou patente a exage- novas, a fim de adequar os planos, afir-
nistério da Saúde é do Lula, foi escolhido rada dependência brasileira de importa- ma a ministra na entrevista a seguir.
por mim e ficará até quando eu quiser.”  dos, e a ordem é estimular a produção local
Nísia tem sido alvo de políticos do de insumos médicos. A pandemia, aliás, foi CartaCapital: Imaginei começar
“Centrão”. A turma quer a sua cabeça, um “trauma”, graças a Jair Bolsonaro, e com a pergunta sobre se a senhora se
pois a pasta da Saúde executa 3 bilhões merece uma espécie de “museu”, ideia que sente segura no cargo, mas depois do
de reais de verba de emendas parlamen- a ministra debate dentro do governo, além que o presidente falou de manhã…
tares, aquelas obras inseridas no orça- de uma investigação profunda.  Nísia Trindade: Na verdade, ele me ligou
mento por deputados e senadores, e a li- O envelhecimento da média da popu- duas vezes. Um telefonema foi no sábado,
beração dos recursos não tem aconteci- ele me disse: “Fica tranquila, querida, es-
do no ritmo desejado pelos congressis- tá fazendo um bom trabalho”.
tas. Reafirmada no cargo pelo presiden- “O presidente me CC: E qual é o significado dessa con-
te, a ministra arregaça as mangas. Nos úl- ferência, a primeira desde 2019?
timos dias, anunciou o pagamento do piso
disse: ‘Fique NT: Realizar uma conferência tão repre-
nacional da enfermagem, tema que hos- tranquila, querida, sentativa em seis meses de governo já é
pitais privados haviam levado aos tribu- está fazendo um um fato. A gente não vê o processo que an-
nais, e o reforço das ações na área da saú- bom trabalho’” tecede uma conferência dessas: a logísti-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 22
NESTA Censo. O envelhecimento
SEÇÃO acelerado da população
desafia os gestores públicos

Sinal verde. Protegida das


pressões do “Centrão”, a ministra
pode dedicar-se aos problemas
monumentais da saúde brasileira

ca, mas principalmente a escolha dos de-


legados nos municípios, nos estados, as
conferências municipais, as estaduais…
J Ú L I A P R A D O / M S E M AT H E U S O L I V E I R A / S S / G O V D F

Foram mais de cem conferências livres. O


mais importante foi ter realizado o even-
to depois de um governo que não dava ne-
nhum espaço para a participação social e
depois de uma pandemia que trouxe tanto
sofrimento, mortes, restrição de contato. 
CC: O ex-presidente Jair Bolsonaro
deveria ser punido criminalmente pe-
la pandemia?
NT: Sou defensora de uma investigação
profunda do que aconteceu. De fato, se
o Brasil tivesse tido um governante com

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 17
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

outra estratégia, vários estudos apontam


que teríamos evitado parte razoável des-
sas 700 mil mortes. Alguns estudos apon-
tam que algo como 200 mil mortes pode-
riam ter sido evitadas, principalmente pe-
la vacinação. Mas não foi só a vacinação.
O governo anterior defendeu o não uso da
máscara. É criminoso o que foi feito com a
cloroquina, havia provas convincentes de
que não tinha nenhuma eficácia. Precisa-
mos de uma política pública de memória,
não podemos esquecer o que aconteceu.
Estou com uma discussão no governo pa-
ra que tenhamos uma ação para preser-
vação da memória do que aconteceu, de
maneira crítica. A frase “não esquecer”
que nós vemos, por exemplo, no Museu
do Holocausto, em Washington, e em vá-
rios museus do mundo sobre ditaduras,
é necessária, no meu ponto de vista, pa-
ra o que foi a Covid no Brasil. A sociedade
precisa refletir sobre isso, é um trauma. 
CC: Pensa em criar um museu, um
memorial? 
NT:Sim, mas também concursos de reda-
ção nas escolas, enfim, são várias ações. 
CC: Após seis meses no cargo, qual
o principal desafio, a prioridade?
NT: Recuperar o papel do Ministério da escolas, nas unidades de saúde, o forta- Políticas públicas. O programa Farmácia
Saúde para coordenar o sistema. Sem essa lecimento de um sistema de informação Popular foi salvo da implosão e o Mais
Médicos atrai milhares de profissionais
coordenação nacional, não conseguimos que beneficie o usuário. Na saúde, o uso
fortalecer o SUS nas áreas mais frágeis e de telessaúde, de telemedicina. Você pode
vulneráveis. Outra prioridade é a integra- permitir que um centro de excelência lo-
lidade. O SUS defende o princípio da in- calizado no Sudeste ou no Nordeste apoie produção de fármacos, de vacinas, o de-
tegralidade e da equidade: significa olhar um município, um estado que não tenha senvolvimento de novas terapias, tera-
para todas as desigualdades e promover estrutura de saúde muito avançada. pias de ponta. Tudo isso compõe a área
ações específicas. Desigualdade de clas- CC: Um paciente no Amazonas poder de ciência, tecnologia e inovação para o
RODRIGO NUNES/MS E BRENO ESAKI/SS/GOVDF

se, de gênero, de raça... Na integralida- ser atendido por um médico de um hos- SUS, envolve tanto o setor público quan-
de, o mais importante é estruturar o que pital federal do Rio de Janeiro, é isso? to o privado, requer um trabalho bastan-
chamamos na saúde de linhas de cuida- NT: Até é possível, mas o foco é traba- te qualificado e está nas superioridades
do, como a atenção primária. Um exem- lhar com a equipe médica. Vou lhe dar da política de reindustrialização. 
plo muito evidente é o pré-natal no cui- um exemplo concreto que vi em São Pau- CC: Haverá mais recursos para a
dado com a gestante. Uma terceira prio- lo: a equipe de transplante cardíaco de produção local de insumos, é isso?
ridade é a transição digital. Uma quarta... crianças do Incor apoiando a equipe do NT: Sim, a saúde tem um déficit comer-
CC: O que é essa transição digital? Hospital Universitário do Maranhão. A cial muito grande, a pandemia nos mos-
NT:Tem a ver com o governo como um to- cirurgia estava sendo realizada pelos mé- trou de maneira clara o quanto somos de-
do, o uso das tecnologias digitais nas polí- dicos e a equipe do Incor acompanhava. pendentes de importados. E não apenas
ticas e nas ações públicas para garantir a Um último elemento que eu queria co- nas vacinas, que são sofisticadas, mas em
inclusão. Isso implica conectividade nas mentar nas prioridades é a retomada da respiradores, máscaras. Teremos o refor-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

bém. O Parlamento é que define diretri-


“Sou defensora de
zes, como o plano que nós vamos apre-
uma investigação sentar para a alta e média complexidade. 
profunda do que CC: Há indicações de que o Ministério
aconteceu durante da Fazenda estuda propor mudanças
a pandemia” na regra legal de financiamento mínimo
em saúde, depois da aprovação da lei do
arcabouço fiscal. É algo que pode con-
ter o aumento de verba do setor, não?
NT: É algo que a gente vai analisar com
ço da produção local e até da produção o governo como um todo. 
regional, nas Américas. CC: Na conferência, a senhora se de-
CC: O atual financiamento da saú- finiu como “ministra do SUS”. Os planos
de está adequado? O orçamento anual de saúde estão em crise. A senhora se
de 180 bilhões de reais do ministério é preocupa com isso?
suficiente? NT: Temos trabalhado com o setor de
NT: Certamente, seguramente, precisa saúde suplementar e há alguns pontos
de mais. O Brasil tem o sistema univer- de proximidade com o que acontece na
sal mais subfinanciado do mundo. Te- área pública. Por exemplo, terapias ju-
mos um financiamento de 4% do PIB e dicializadas: há muitas vezes a ideia
nossa meta, já anunciada pelo presiden- de que você tem de ter a terapia de úl-
te, inclusive no programa de governo, é tima geração, quando isso não leva em
de um aumento progressivo nesse por- conta a sustentabilidade do sistema.
centual. A gente deveria ter ao menos 7%. A área de oncologia (câncer) é clássica
Conseguir mais recursos é um trabalho nesse sentido. Um tratamento pode
que vamos fazer junto à área econômica custar 50 milhões de reais só com um
do governo e junto ao Parlamento tam- paciente. Outra questão apontada pelo
setor, uma queixa muito grande, são as
fraudes. Agora, não podemos esquecer
que esse quadro de crise se deve também
ao empobrecimento da população. 
CC: O Censo de 2022 foi divulgado,
em parte. Viu algo útil para as políticas
do ministério?
NT: O Censo aponta para um ritmo de
envelhecimento mais rápido do que esti-
mativas do início do século XXI. Sem dú-
vida o envelhecimento coloca um desafio
muito grande para a atenção primária. A
gente precisa melhorar a qualidade de vi-
da e do atendimento, melhorar o cuidado
com as doenças crônicas mais frequen-
tes para a população idosa, proporcionar
mais atividade física. E ao mesmo tempo
reforçar especialidades como ortopedia
e fisioterapia. Quero me debruçar com a
equipe do ministério para olhar aspectos
outros também importantes do Censo,
como as diferenças regionais. 

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 19
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Seu País

Pisando em ovos. A ministra Bolsa Família também têm acesso gra-


evita aprofundar-se no debate sobre tuito aos medicamentos. Agora, para o
o aborto, tema que Rosa Weber programa existir é preciso, sobretudo,
levará ao plenário do STF
eleger governantes que não destruam
as políticas de acesso. Construir é sem-
pre mais difícil do que destruir.
CC: Como está a implantação do CC: O presidente Lula disse que
Mais Médicos, relançado em março?  proíbe entrar com celular em reunião
NT: A meta é de 15 mil médicos e nós ti- com ele, e a Holanda anunciou que proi-
vemos mais de 34 mil inscritos, recorde birá celular em salas de aula. Acredita
absoluto. E são médicos brasileiros, for- que a tecnologia, as redes sociais, se
mados em instituições brasileiras. Além tornaram um problema que afeta o me-
disso, tivemos uma adesão bastante sig- tabolismo dos indivíduos?
nificativa dos municípios, quase 100% NT: Com certeza, isso é até discutido co-
se inscreveram. Lançamos um edital de mo um problema de saúde pública e de
coparticipação, em que os municípios saúde individual, até como vício, algo
também aportam recursos para forta- que faz com que você tenha um compor-
lecer o programa.  tamento não reflexivo e aumente a ansie-
CC: O Mais Médicos deu início à “bol- dade. Não devemos criminalizar as tecno-
sonarização” da categoria, que apoiou o logias de comunicação, não se trata disso,
ex-presidente em 2018. Na pandemia, mas se trata, sim, de promover o bom uso.
o Conselho Federal de Medicina ajudou Além da atenção com o uso do celular, de-
o governo. Como está a categoria hoje? veria ser uma atenção com trabalhos mais
NT: Houve muitas mudanças da demo- coletivos, estimular menos a competição
grafia médica de 2013 para cá, um gran- entre os jovens, evitar o bullying... Com-
de aumento no número de médicos, são bater as redes se dá dentro de um con-
cerca de 500 mil hoje. Temos 2,6 médi- bem avaliados das gestões anteriores texto de mudança cultural e pedagógi-
cos por mil habitantes. Antes, na pri- de Lula, conforme pesquisas do pró- ca. Estimular outro ambiente, em que as
meira versão do Mais Médicos, tínha- prio governo. Como impedir que enco- pessoas se respeitem, que um não inter-
mos 1,3. Se compararmos com países lha de novo? rompa o outro, que se converse mais. Uma
que têm bons sistemas universais, preci- NT: Tem de ser um programa de Estado. coisa que me impressiona muito nas re-
saríamos ter até mais. Só que, apesar do Neste ano foram destinados 3 bilhões de des é que as pessoas às vezes comentam
aumento expressivo, continuamos a ter reais, graças à emenda constitucional (da assim: “Esta página é minha, só quero que
um problema de distribuição dos médi- transição). O programa ia ser inviável, ti- comente aqui quem concorda com o que
cos em áreas remotas, nas periferias das nha tido na Lei Orçamentária um corte falo”. É descabido, é estimular o não diá-
cidades, por questões de situação de po- de mais de 60%. E mais que isso: muitas logo. É um narcisismo, na verdade.
breza, de infraestrutura. A lei (original) farmácias foram descredenciadas. Am- CC: O STF pode vir a julgar até o
do Mais Médicos era bastante cuidado- pliamos a gratuidade, por exemplo, em outubro, quando a presidente Rosa
sa com relação à aprovação de cursos de novos medicamentos para osteoporose Weber se aposenta, a descriminaliza-
Medicina. Esse cuidado não foi tomado e anticoncepcionais. Os beneficiários do ção do aborto. Qual a sua opinião?
pelos governos seguintes, principalmen- NT: Sempre trabalho com a ideia do res-
te pelo governo Bolsonaro. Abriram-se peito aos poderes e tanto a discussão po-
muitas faculdades, com todo um ques- de se dar no Legislativo quanto no Judiciá-
tionamento de qualidade. Esse é ponto “O Brasil tem o rio. Não tenho opinião, porque hoje a mi-
de aproximação entre o Ministério da nha posição é como ministra da Saúde e,
sistema universal
Saúde, o Ministério da Educação e en- como ministra, vejo esse tema, primeiro,
ARQUIVO/ TSE

tidades médicas. de saúde mais na linha de proteção de mulheres e meni-


CC: O Farmácia Popular também foi subfinanciado nas à luz do que a legislação atual prevê. É
relançado, era um dos programas mais do mundo” a minha posição e é a posição do governo. •

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
CLUBE DE REVISTAS
Economista, consultor editorial de CartaCapital
e ex-presidente do Palmeiras. É autor, entre outras obras,
de Valor e Capitalismo e Os Antecedentes da Tormenta

De Mussolini a Bolsonaro
acordo com humores e conveniências de no TSE, a inelegibilidade de Bolsonaro
► A construção social seu ego transtornado.  foi tratada por muitos otimistas como
da mentira como alavanca Os comentários que fez à sua amante, presságio de desarticulação do bolsona-
Clara Petacci, sobre as leis antijudaicas rismo. Devo registrar minhas dúvidas a
de comando unifica de 1938, foram significativos. Demons- respeito de tais convicções. 
os dois personagens travam irritação com a solidariedade de As visões personalistas padecem de
de egos transtornados seus concidadãos com os perseguidos. um vício que ressalta as características
“Esses judeus imundos, você tem que do indivíduo e esconde as determinações
destruí-los todos...” sociais de sua personalidade. Desconfio
No livro Delatori, Franzinelli sublinha que o bolsonarismo engendrou Bolsona-

O
historiador Mimmo Franzinelli, a responsabilidade do Duce na estrutura- ro e não o revés.
conhecido por seus trabalhos ção de um sistema que perseguia e mo- Peço licença para recordar o que escrevi
sobre o fascismo, escreveu o li- nitorava o cidadão até mesmo na esfera nos idos de 2018, em plena campanha elei-
vro Mussolini Racconta Mussolini, uma privada. Dezenas de milhares de pessoas toral. Dizia, então, que a ascensão de Bol-
antologia de textos autobiográficos do adaptaram-se a essa prática, cuja disse- sonaro recebeu os favores do desencanto,
Duce. Nas linhas e entrelinhas são ex- minação reflete o contexto sociopolítico.   do ressentimento e do ódio. O desencanto
postas as deficiências de Mussolini co- transmutou-se em ressentimento e o res-
mo chefe de Estado e ressaltados os la- Nos tempos de Mussolini, “a delação sentimento decantou suas moléculas no
dos sombrios de sua personalidade. Diz foi uma guerra travada em terra de nin- ódio indiscriminado, “contra tudo isso aí”.
Franzinelli que o Duce nunca foi “um guém, onde público e privado são con- Nas precipitações químicas do desen-
grande estadista”, capaz de projetos pa- frontados numa dimensão sociopolíti- canto para o ressentimento e do ressen-
ra o desenvolvimento do país.   ca de transformação das mentalidades. timento para o ódio criou-se a cadeia de
 A antologia nos dá uma imagem dos A experiência de pessoas comuns reve- reações entre a mentira e a crença: o kit
humores, exaltações, surtos psicóticos, la – na análise do impressionante mate- gay e outras tantas ridicularias posaram
volúpia e paixões políticas e culturais do rial acumulado nos arquivos policiais – sem resistência nas consciências trôpe-
Chefe. “Nada a ver com um projeto de na- uma carga de perversidade socializada.  gas e ansiosas dos brasileiros desampa-
ção, mas impulsos irracionais oriundos de Interferências indiscretas minavam a rados e desinformados. O truque consis-
um ego sem limites, de uma convicção e de confidencialidade da vida privada ao mo- tiu em proclamar mentiras em nome dos
uma autoconvicção da própria ‘vontade de bilizar denúncias, usadas para benefício bons costumes e dos valores familiares.
poder’ que não conhecem limites.”  pessoal. Isso resultou em insegurança e Esta é uma peculiaridade interessante
O historiador fala de personalidades medo na opinião pública. O conhecido da comunicação na sociedade de massa:
limítrofes – semelhantes à de Hitler – e casual – até mesmo seu amigo – poderia a mentira, a falsificação e o engano deli-
de um regime esquizofrênico, submeti- entregá-lo à polícia”. berado foram incluídos no rol dos bons
do aos altos e baixos dos “instintos” pe- Mussolini estava convencido de que costumes e das virtudes familiares. 
los quais Mussolini se julgava dotado de suas considerações negativas mudariam Quem jogou bola na várzea de São
uma faculdade profética, como ele cha- a realidade. Ele pensou que poderia alte- Paulo não precisa estudar Durkheim, Max
mava suas cognições e iluminuras.  rar o curso da guerra com seus discursos. Weber, Hannah Arendt ou Wilhelm Reich
Mussolini, que fala ou escreve sobre Os aduladores que o circundavam cor- para identificar as gentes que sustentam
si mesmo, tal como seu símile Bolsona- roboravam suas crenças irrealistas. Em as tropelias e ilegalidades de Bolsonaro et
ro implementa falsificações contínuas da seus delírios, Mussolini começou a dese- caterva. Escrevo gentes para significar um
realidade. É a construção social da men- nhar os uniformes das mais altas paten- modo de ser, uma forma de sociabilidade
tira como alavanca de comando. Muda tes militares. “Como se um fato estético definida a partir de uma rede de relações
e modifica suas posições, sem nunca fa- pudesse mudar o curso fracassado da Itá- que enformam as subjetividades, suas pa-
B A P T I S TÃ O

zer escolhas clarividentes ou que aten- lia no conflito mundial.” lavras, seus gestos e sestros. •
dam ao interesse público. Ele move-se de Decidida por um placar incontestável redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 21
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Nação de idosos
CENSO 2022 O rápido envelhecimento
da população brasileira é um enorme
desafio para os gestores públicos
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

C
om dois anos de atraso e centual despencou para 0,52% ao ano.
marcado por problemas Não é tudo. Em 2018, o IBGE estimava
ideológicos e sanitários, o a existência de 214 milhões de brasileiros
Censo Demográfico 2022, em 2022, 10 milhões a mais do que reve-
cujos primeiros números lou o novo Censo. O instituto também pre-
foram divulgados pelo IBGE no fim de ju- via redução populacional a partir de 2047,
nho, tem despertado dúvidas quanto aos vaticínio antecipado em mais de 20 anos.
resultados. Em meio às incertezas, ao me- “Esse número de 203 milhões de habitan-
nos um fenômeno captado pela pesquisa tes está muito abaixo do esperado. Não es-
parece ser consensual entre os especialis- tou falando que está errado, mas a popu-
tas: a população brasileira está envelhe- lação de 2010 era de 191 milhões e, se eu
cendo em ritmo mais acelerado que o pre- somar todos os nascimentos do período
visto. Embora os quantitativos em relação e subtrair todas as mortes, isso dá 18 mi-
à idade, sexo, raça e escolaridade ainda não lhões de pessoas. Se eu tinha 191 milhões
tenham sido revelados, a forte desacele- e somo 18 milhões, dá 209 milhões. O nú-
ração do crescimento populacional nos úl- mero não bate. Mas é preciso lembrar que,
timos 12 anos indica a possibilidade de o no crescimento vegetativo, não entram os
País chegar a ter 40% de idosos na segun- fluxos migratórios, então esse número po-
da metade deste século, o que vai exigir de ser menor mesmo”, pondera José Eus-
dos gestores públicos e da sociedade em táquio Diniz Alves, demógrafo e pesqui-
geral atenção especial para esse público. sador aposentado do IBGE.
Os números do Censo revelam o menor O especialista reconhece que vários
crescimento populacional dos últimos 150 problemas atrapalharam a pesquisa de
anos, com uma taxa inédita de expansão campo. Desde que assumiu o comando do
inferior a 1%. Até a década de 1960, a taxa
de fecundidade no Brasil era muito alta,
uma característica que começa a mudar
a partir dos anos 1970 e continuou numa
crescente até os dias de hoje, sendo defi- O IBGE previa
nidor para a desaceleração do crescimen-
redução populacional
to populacional e aumento no número de
idosos. Nos anos 1970, o número de ha- a partir de 2047,
bitantes crescia, em média, 2,8% ao ano. vaticínio antecipado
Entre os Censos de 2010 e 2022, esse por- em mais de 20 anos

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Impasse. Para um homem se aposentar,


é exigida idade mínima de 65 anos, mas o
mercado descarta profissionais a partir
dos 50 anos, às vezes até antes disso

País em 2019, o governo Bolsonaro cole-


cionou ataques ao IBGE, começando pe-
la desqualificação do instituto, passan-
do pelo corte de verbas e não reposição
de pessoal, até a suspensão do Censo. Em
meio ao boicote e ataques ao órgão, veio
a pandemia de Covid-19, mais um moti-
vo de adiamento da pesquisa demográfi-
ca. Só em 2021, depois de uma decisão do
Supremo Tribunal Federal, que obrigou
o governo a destinar recursos para a rea-
lização do Censo, o estudo saiu e, mesmo
assim, aconteceu em meio à eleição mais
polarizada da história recente do Brasil,
no segundo semestre de 2022.

Considerando a série histórica do


Censo Demográfico, o crescimento po-
pulacional tende a cair ainda mais nas
próximas décadas, até alcançar o nível de
decrescer, ou seja, registrar mais óbitos
que nascimentos, consolidando o envelhe-
cimento da sociedade brasileira. Esse da-
do tem gerado até especulação sobre uma
nova proposta de reforma da Previdência.
“O País não aguentaria mais”, alerta

CRISTIAN GÓES/SEC. PREVIDÊNCIA SOCIAL E ISTOCKPHOTO


Eduardo Fagnani, professor do Institu-
to de Economia da Unicamp. “As sucessi-
vas reformas já tornaram a aposentado-
ria pelo INSS algo inatingível para a gran-
de maioria da população. Até porque me-
tade da população economicamente ati-
va está desempregada, desalentada ou na
informalidade. Os outros 50% têm acesso
restrito, uma vez que a aposentadoria in-
tegral é praticamente inalcançável, exige
dos homens 65 anos de idade e 40 de con-
tribuição e, das mulheres, 62 anos de ida-
de e 35 de contribuição. Propor uma no-
va reforma é desumano e uma hipocrisia.
Na próxima década, a grande maioria dos

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 23
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Seu País

Dano. Se dificultar ainda mais o acesso à


aposentadoria, teremos milhões de idosos
na mendicância, como já ocorre no México

idosos não terá direito à aposentadoria.


Será um caos social”, emenda o economis-
ta, pesquisador do Centro de Estudos Sin-
dicais e do Trabalho da Unicamp e coor-
denador da rede Plataforma Política e So-
cial. Para o especialista, os dados do Cen-
so não têm impacto substancial de ime-
diato na vida dos idosos, porque esse pú-
blico já é vítima de regras excessivas no
tocante à aposentadoria e, caso a situação
se acentue, o Brasil pode passar a ter um
grande número de idosos nas ruas na con-
dição de mendicância, como já acontece
em países como México e Chile.

Jorge Félix, professor de Gerontolo-


gia da USP e autor do livro Economia da
Longevidade – O Envelhecimento Popula-
cional Muito Além da Previdência, lembra
que, desde a década de 1990, as reformas
são apontadas como resposta para a dinâ- A população brasileira dores. Tem de repensar um pouco todo
mica demográfica que indica o envelheci- o processo de reorganização da vida so-
crescia 2,5% ao ano
mento da população, independentemente cial, para que as pessoas possam traba-
de governo ou partido político. “Na verda- na década de 1970. lhar menos e usufruir de uma qualidade
de, não são reformas. A intenção é privati- De 2010 a 2022, a taxa de vida melhor na terceira idade. O Estado
zar o sistema previdenciário, empurrar as despencou para 0,52% vai precisar injetar recursos no INSS pa-
pessoas cada vez mais para a previdência ra garantir que as pessoas se aposentem.”
privada. No INSS, mais de 70% dos apo- José Eustáquio Diniz Alves defende um
sentados e pensionistas ganham até um terceiro bônus demográfico como alter-
salário mínimo. Teremos uma população nativa à inclusão dos idosos no mercado de
idosa no futuro próximo com renda mui- até mais jovem – o trabalhador vem sendo trabalho. Segundo explica, há 30 anos, o
to baixa, devido a essas reformas. A pre- enxotado dos seus postos de trabalho. Para Brasil contava com apenas com 5% da po-
vidência pública está se metamorfosean- José Dari Krein, doutor em Economia So- pulação com mais de 60 anos, enquanto a
do em um sistema de assistência social. cial e do Trabalho e professor da Unicamp, maioria maciça era formada pelos grupos
Menos de 1% dos benefícios chega ao te- é preciso aproveitar a janela da oportuni- economicamente ativos, dentro do que se
to, a grande maioria só recebe o mínimo”, dade, porque o Brasil ainda tem uma po- configurou chamar de o primeiro bônus
explica, acrescentando que a tendência de pulação ativa maior do que a aposentada. demográfico. “Todo país que enriqueceu
muitos idosos é depender do Benefício de Com o envelhecimento de seus habitantes, no mundo passou por esse bônus demo-
Prestação Continuada (BPC). a tendência é de que, a partir das próximas gráfico, dando um alto padrão de vida à
Se alcançar a aposentadoria é quase décadas, o número de pessoas com traba- população”, diz. Agora, a população em
uma utopia para a grande maioria dos bra- lho formal vai ser menor que o de aposen- idade ativa vem diminuindo e, por volta
sileiros, manter-se no mercado de traba- tados. “É preciso redistribuir as ativida- de 2030, vai ter menos gente em idade de
lho na chamada terceira idade é o maior des úteis para a sociedade, o que signifi- trabalhar. “Aí será preciso investir na edu-
dos desafios. Depois de 50 anos – às vezes ca reduzir o tempo laboral dos trabalha- cação, na produtividade e na tecnologia,

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

MAIS UMA JABUTICABA ção, o que a gente chama de


transição demográfica, muda
A população brasileira envelhece em ritmo muito superior ao a estrutura etária. O recado
verificado na Europa, alerta a demógrafa Suzana Cavenaghi para os políticos é: “Prestem
atenção nas estruturas etá-
rias da população sob sua ad-

O
ministração”. Num período de
s dados do Censo nal do meio da década não foi ser divulgadas. Eu acreditava
que a população brasileira es- 40 anos, baixou muito a fe-
2022 apontam para realizada. Fora isso, o quadro
tava entre 207 e 211 milhões cundidade e o envelhecimento
forte desaceleração funcional despencou de cerca
do crescimento populacional, de 7 mil servidores para pou- de pessoas. Temos de confiar populacional vem em ritmo
números que vêm sendo con- co mais de 4 mil. Não bastas- nesses números e olhar com acelerado. Ele é muito mais
testados por alguns especia- se, o trabalho de campo ocor- atenção onde tiver alguma dú- rápido do que ocorreu na Eu-
listas, surpresos com a totali- reu em meio à campanha mais vida. O IBGE tem ferramentas ropa e em outros países de-
dade de 203 milhões de brasi- polarizada da história recente hoje em dia para isso. senvolvidos, que levaram às
leiros revelada pela pesquisa. do País. Os técnicos do IBGE e CC: Ainda que os dados vezes 100, 150, até 200
Para ajudar a decifrar o fenô- os recenseadores fizeram um sejam preliminares, é possível anos para chegar a esse pata-
meno, CartaCapital entrevis- milagre. Temos aí um Censo afirmar que o Brasil está mar. Precisamos colocar no
tou Suzana Cavenaghi, douto- com alguns problemas, mas se tornando um país mais ido- mercado de trabalho os jo-
ra em Demografia e professo- que servirão para o planeja- so e menos urbano. O que vens que estão aí, as pessoas
ra da pós-graduação da Esco- mento das políticas públicas. isso significa? de meia-idade com capacita-
la Nacional de Ciências Esta- CC: Então existem fragilida- SC: A população vai come- ção, e tornar essa população
tísticas do IBGE. Ela confia des nos dados apresentados? çar a decrescer em valores mais produtiva. A gente não
nos dados do IBGE, mas reco- SC: O primeiro problema que a absolutos, vai chegar a uma pode cuidar da população ido-
nhece que o instituto pode re- gente aponta, como demógra- taxa negativa a partir da pró- sa só quando ela ficar idosa. A
visar alguns deles. fos, é que o Censo não deveria xima década. Eu acho que os gente sabe que saúde é um
demorar mais que quatro me- gestores já deveriam estar processo de bem-estar, que
CartaCapital: Como a ses em campo. Estava previs- olhando para esses dados. O precisa ser iniciado antes. Se
senhora avalia o novo Censo to para ser concluído em três aumento da expectativa de vi- a população na idade de tra-
do IBGE? meses, mas demorou muito da com uma diminuição da balhar tem mais saúde, enve-
Suzana Cavenaghi: O Censo mais. E ainda teve a conjunção mortalidade causa, na popula- lhece mais saudável.
teve uma trajetória conturba- da falta de entrevistadores no
da por questões políticas. Paí- momento adequado, além de
ses que dão importância às uma resistência maior de al-
O N U / D E S E N V O LV I M E N T O E C O N Ô M I C O E I S T O C K P H O T O

políticas públicas baseadas guns grupos populacionais em


em evidências sabem da rele- responder. Esse atraso é um
vância de se fazer um censo, dos maiores problemas e a
sobretudo nos anos termina- gente vai ver o que isso pode
dos em zero. A pandemia não ter causado na hora que olhar
impediu a realização de Cen- os dados mais internamente.
sos em muitos países. Nenhu- Porque a gente tem visto uma
ma pandemia anterior ou mes- diminuição de populações de
mo situação de guerra fez capitais, algumas muito mais
com que os institutos de esta- do que aquilo que já se estava
tística desistissem de realizá- esperando. Informações so-
-los. O IBGE já vinha passando bre migração vão ajudar nisso,
por dificuldades para obter re- assim como informações so-
cursos, a contagem populacio- bre fecundidade que ainda vão Missão. “O Censo é essencial para planejar políticas públicas”

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 25
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

para que essa população consiga produ-


DESACELERAÇÃO BRUSCA
zir mais com menos gente. Isso chama-
Taxa de crescimento anual da população brasileira (%)
mos de segundo bônus demográfico, ou
bônus da produtividade.” O terceiro, se-
NORDESTE
gundo Alves, caracteriza-se pelo aumen- BRASIL
NORTE
to do volume de idosos na sociedade e do 1970 a 1980
1970 a 1980
1970 a 1980

aproveitamento desse contingente. “Isso 2,48 2,16


5,02
pode ser benéfico se contarmos com o en- 1980 a 1991
1980 a 1991
1980 a 1991
velhecimento saudável e ativo. O grande 1,93 4,97
1,83

número de pessoas da terceira idade deve 1991 a 2000


1991 a 2000
1991 a 2000
ser encarado como ativo, e não como pas- 1,63
1,31
2,84
sivo”, defende, salientando que o Japão vi- 2000 a 2010
2000 a 2010 2000 a 2010
ve essa fase, criando condições para a po- 1,05
1,17 2,08
pulação idosa contribuir com a sociedade. 2010 a 2022
2010 a 2022 2010 a 2022
0,24
0,75
Para Jorge Félix, os dados revelados 0,52

pelo IBGE forçam o Poder Público a prio-


rizar as três principais áreas que afetam a
população idosa: alimentação, habitação
e saúde, setores que sugam a maior parte
da renda das pessoas acima de 60 anos. “As
futuras gerações de idosos terão uma ren-
da muito baixa, não serão capazes de hon-
rar com esses compromissos. Além disso,
essa população já está endividada”, alerta.
A antropóloga e professora aposenta-
da do Programa de Pós-Graduação em rio berecte nimosae etur sit harum
SUDESTE SUL
CENTRO-OESTE

Antropologia Social e em Ciências So- fugitatem alicabor autatet omnis et odi 1970 a 1980
1970 a 1980 1970 a 1980
ciais da Unicamp Guita Grin Debert cha- to ipsum sitias etureceratis essitatus
1,44
ut 4,05
2,64
ma atenção para um público específico de eiundis do• 1980 a 1991
1980 a 1991 1980 a 1991
idosos, os quais deveriam ser priorizados 1,38 2,04
1,77
pelas políticas públicas. Debert refere-se
1991 a 2000 1991 a 2000
às pessoas acima de 60 anos que têm al- 1991 a 2000
1,41 2,37
gum tipo de dependência. Ela explica que 1,61
2000 a 2010 2000 a 2010
o Brasil tem uma legislação avançada para 2000 a 2010
0,87 1,91
o idoso, mas que só contempla as pessoas 1,04
2010 a 2022
com independência funcional. “Temos o 2010 a 2022
2010 a 2022
0,74
Estatuto do Idoso, uma política nacional, 0,45
1,23

o Brasil assinou programas internacionais


voltados para essa população, os municí-
pios têm programas voltados para pessoas
da terceira idade... Mas me parece que es-
sas políticas mobilizam principalmente os
jovens idosos, pessoas que têm alto grau
de autonomia funcional. Ainda são pou-
cas as instituições de longa permanência
REGINA ASSIS

para idosos que dependem de cuidados es-


NONONON

peciais. Essa realidade precisa ser olhada


com mais carinho, com mais atenção.” •

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
MARJORIE MARONA
CLUBE DE REVISTAS
Professora do Departamento de Ciências Políticas da
UFMG. É coautora de A Política no Banco dos Réus: A
Operação Lava Jato e a Erosão da Democracia no Brasil

Bolsonaro inelegível

as eleições presidenciais e adjudicar os A possibilidade dos tribunais de se


► Noves fora, conflitos oriundos do processo eleito- manterem independentes, reduzindo
qual o alarde? ral que define o/a presidente. A indica- a níveis irrisórios as interferências di-
ção política dos integrantes do TSE e a retas de elites políticas e econômicas
influência exercida pelo STF sobre o de- sobre seu desempenho, demanda, por-
sempenho do Tribunal Eleitoral, dadas tanto, sensibilidade política, a se tradu-

A
inelegibilidade de Jair Bolsona- as regras de composição, mitiga a inde- zir em apoio público.
ro configura uma medida ex- pendência formal que a Justiça Eleito- A decisão do TSE não é expressão de
trema da Justiça Eleitoral bra- ral ostenta desde a sua criação, em 1932, politização da justiça, a sugerir parciali-
sileira. Nesses termos foi acertadamen- o que, na prática, repousa nas garantias dade. Não há indicador de que tenha ha-
te noticiada a decisão do TSE, atraindo da magistratura, no orçamento próprio vido atuação dirigida por interesses par-
a polêmica esperada e reaquecendo o de- e no acesso meritocrático à carreira. Não ticulares nem na condução do processo
bate sobre os limites da intervenção do é pouco. E, ademais, a independência da nem no conteúdo da decisão. Tratava-
Judiciário nos destinos políticos do País. Justiça Eleitoral não se confunde com -se de uma Ação de Investigação Judicial
A legítima preocupação com a poli- sua alienação política. Eleitoral (AIJE), instrumento jurídico
tização do Judiciário brasileiro mere- adequado à garantia da lisura e regulari-
ce, contudo, análise cuidadosa, sob pe- De fato, o modelo brasileiro de gover- dade dos processos eleitorais, por meio do
na de contribuir para a crise de legitimi- nança eleitoral favorece o insulamento qual se apura e combate, dentre outros, o
dade da qual o Brasil começa a se recu- da Justiça Eleitoral e a judicialização da abuso do poder político. Embora deman-
perar. É bom lembrar, de partida, que a competição eleitoral, potencializando a de instrução, no caso em debate a prova
complexidade do sistema de justiça na- desconfiança pública sobre a imparcia- estava quase totalmente pré-constituí-
cional traz implicações significativas na lidade de seu desempenho, fundamen- da, o que justifica o fato de estar avança-
forma como a Justiça e a política se rela- tal para a legitimação dos processos elei- da em relação a outras que ainda trami-
cionam em diferentes níveis da política e torais e imprescindível para a qualidade tam no TSE. Ademais, a trajetória recen-
âmbitos da Justiça. A aplicação automá- e a consolidação das democracias. A pe- te do tribunal dá testemunho da seriedade
tica das teorias forjadas em um nível de culiar lógica de construção de legitimi- com que enfrenta o tema das fake news. O
análise para outro nem sempre auxilia dade da Justiça (Eleitoral), contudo, in- TSE organizou um Programa de Enfren-
na compreensão do fenômeno. duz a atuação imparcial – no sentido de tamento à Desinformação e, diga-se, ha-
Trata-se da Justiça Eleitoral, uma jus- ser publicamente justificada – pela aten- via estabelecido precedente no julgamen-
tiça especializada que ocupa o centro da ção que deve ser devotada ao contexto to do deputado Fernando Francischini.
estrutura de governança eleitoral no político. A Justiça não retira sua legiti- A decisão do TSE é previsível, consi-
País. Esse ramo da Justiça está em posi- midade de um processo de autorização derando o quadro institucional de gover-
ção institucional privilegiada no desem- (como é o caso dos políticos, que são elei- nança eleitoral no Brasil e é, por fim, publi-
penho daquele conjunto de atividades tos). Tampouco detêm, os tribunais, do- camente justificável. Tem amparo legal,
que proporciona aos eleitores, partidos mínio dos instrumentos necessários pa- jurisprudencial e está largamente anco-
e candidatos a certeza sobre os procedi- ra fazer cumprir as decisões que profe- rada nos fatos documentados de ataques
mentos, que legitima a incerteza quanto rem. É preciso estar em sintonia com a do ex-presidente Bolsonaro às institui-
aos resultados – condição sine qua non de opinião pública, portanto, forjando con- ções democráticas, ao processo eleitoral
eleições competitivas. fiança pública por meio de um desempe- e ao próprio Tribunal Superior Eleitoral.
B A P T I S TÃ O

O TSE ocupa o ápice da Justiça Elei- nho percebido como justo (imparcial e Noves fora, qual o alarde? •
toral. Tem competência para organizar eficiente) pela sociedade. redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 27
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Fardado e elegível
PODER Absolvido pelo TSE, Walter
Braga Netto desponta como nova
liderança da tropa bolsonarista
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L

C
andidato a vice-presiden- ses e arranjos do partido nos estados.
te na chapa de Jair Bolso- Na ótica bolsonarista, a favor de Braga
naro, mas absolvido por Netto contam seu bom trânsito com mi-
unanimidade pelo Tribu- litares da ativa e da reserva, bem como
nal Superior Eleitoral no sua ascendência sobre as forças de segu-
julgamento que deixa o ex-capitão lon- rança estaduais de modo geral. Da mes-
ge das urnas pelos próximos oito anos, ma forma, conta o canal aberto de diálo-
Walter Braga Netto é hoje a maior apos- go que mantém com correligionários ou
ta do bolsonarismo para manter unidas aliados de peso, a exemplo dos governa-
suas tropas – nos sentidos próprio e fi- dores Cláudio Castro, do Rio de Janeiro,
gurado. Ungido pelo presidente nacio- e Tarcísio de Freitas, de São Paulo. Tan-
nal do PL, Valdemar Costa Neto, ao pos- ta desenvoltura tem feito, inclusive, com
to de secretário de Relações Institucio- que o general seja apontado no PL como
nais do partido, o general da reserva, que o nome ideal para enfrentar o prefeito
também comandou o Ministério da De- do Rio, Eduardo Paes, do PSD, que ten-
fesa e a Casa Civil no governo passado, tará a reeleição com o provável apoio
será um dos condutores das discussões do presidente Lula. A decisão, segun-
travadas entre a direção nacional, par- do fontes do partido consultadas por
lamentares e governadores na reunião CartaCapital, caberá ao próprio Braga
de quinta-feira 6 em Brasília, que deve Netto, que antes precisará equacionar
analisar os possíveis rumos da “direita os interesses do clã Bolsonaro, de Castro
bolsonarista” após a confirmação de e do líder do PL na Câmara, Altineu
que, ao menos nas próximas eleições Côrtes, que preside a legenda no estado.
presidenciais, Bolsonaro é carta fora do Não será tarefa fácil, pois no campo
baralho. Indicado para organizar os di- da direita há quem entenda que a con-
retórios regionais do PL e a montagem
dos palanques para as eleições munici-
pais do ano que vem, Braga Netto tam- cretização da candidatura do ex-minis-
bém vem cumprindo nas últimas sema- Durante a intervenção tro deixaria automaticamente à disposi-
nas uma extensa agenda de viagens e ção de seus adversários um variado ar-
conversas que têm como norte a busca
das Forças Armadas senal de petardos com enorme potencial
por candidatos a prefeito, que ao mesmo no Rio, o general de causar estragos na campanha eleito-
tempo mantenham acesa a chama bol- fechou os olhos para a ral. Em um eventual debate, Braga Netto
sonarista e não interfiram nos interes- expansão das milícias certamente seria fustigado a falar de sua

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Digitais. Candidato a vice de Bolsonaro, Decretada em fevereiro de 2018, na


o militar montou um “QG do Golpe” em semana do Carnaval, a intervenção che-
Brasília logo após a derrota nas urnas
fiada por Braga Netto, que naquela oca-
sião passou a comandar a Polícia Mili-
tar, a Polícia Civil e o Corpo de Bom-
tidas à época em que o general, então à beiros, foi responsável pelo recrudesci-
frente do Comando Militar do Leste, co- mento da violência nas favelas do Rio e
mandou a intervenção federal na segu- ficou marcada por inúmeros episódios
rança pública do Rio de Janeiro decreta- de constrangimento de moradores sub-
da pelo então presidente Michel Temer. metidos a revistas vexatórias e ficha-
mentos forçados, invasões de domicí-
Nesse período, no qual ocorreram lio e até mesmo estupros. Um relatório
os assassinatos da vereadora Marielle da Comissão Popular da Verdade divul-
Franco e do motorista Anderson Go- gado apenas quatro meses após o início
mes, houve, segundo levantamentos da intervenção já apontava, na compa-
de organizações da sociedade civil, au- ração com o mesmo período do ano an-
mento dos índices de letalidade policial terior, um aumento de 60% nos regis-
e expansão das milícias em todo o esta- tros de enfrentamentos entre policiais e
participação nos arroubos golpistas de do. “Braga Netto terá dificuldades elei- traficantes e de 28% nos homicídios de-
FERN A NDO SOUZ A /A FP

Bolsonaro que resultaram nas invasões torais por conta de sua forte associação correntes de ação policial. “A interven-
de 8 de janeiro, de sua conivência com o com a intervenção. Criou-se um conten- ção atingiu especialmente territórios fa-
ISTOCKPHOTO E

abuso de poder político e econômico com cioso em relação à condução do general velados, periféricos e negros da Região
fins eleitoreiros no último ano de gover- naquele período que poderá ser explora- Metropolitana”, afirma o professor Ra-
no e, sobretudo, das inúmeras denúncias do por seus adversários”, diz o cientis- fael Maul, integrante do Grupo Tortura
de violações de direitos humanos come- ta político Ricardo Ismael, da PUC Rio. Nunca Mais no Rio de Janeiro.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 29
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Segundo dados do Ministério Público


Estadual e do Grupo de Estudos de No-
vos Legalismos da Universidade Fede-
ral Fluminense (UFF), a curva de cres-
cimento das milícias no Rio, que já era
ascendente desde 2016, ganhou impul-
so durante a intervenção. Curiosamen-
te, essa expansão se deu em 90% sobre
territórios que não eram dominados
pelo tráfico, mas passaram a ficar sob
o controle dos grupos paramilitares, o
que explica em parte a formação de um
“caldo de cultura” que permitiu o surgi-
mento da onda bolsonarista a partir do
Rio. “Com a intervenção, houve uma sé-
rie de acordos e rearranjos de poderes.
O período coincide com a ascensão de
Braga Netto no bolsonarismo, uma vez
que Bolsonaro, historicamente, é tam-
bém próximo às forças milicianas”, diz
Maul. Ele ressalta a importância daque-
le momento para a história recente do
Brasil: “Era o governo Temer e, de certa
maneira, a intervenção também marca o
processo de transição desde o golpe con-
tra Dilma Rousseff até o bolsonarismo”.

Para o historiador Francisco Carlos


Teixeira, especialista em questões de
Defesa e idealizador do Dicionário de
História Militar do Brasil (1822-2022),
o “sucesso” no comando da intervenção
levou o general a um lugar de destaque Terreno perdido. Heleno e Mourão, muito clara e importante. A relevância
no bolsonarismo. “Depois de sua passa- do “Grupo do Haiti”, acabaram ofuscados de Braga Netto ocorre quando ele é in-
pelo traquejo político de Braga Netto
gem pela segurança do Rio, ele se apro- dicado para a intervenção federal e en-
ximou e ficou cada vez mais íntimo do tra em contato diretamente com as ba-
governo Bolsonaro. Tornou-se minis- ses do bolsonarismo no Rio.” Embora
tro, vice na chapa presidencial e uma que funcionou aquela máxima de que não tenha a simpatia do Alto-Comando
pessoa de confiança que fala com as ba- não se deve mexer com os militares. E, das Forças Armadas, analisa o especia-
ses militares e policiais ao lado de Bol- assim, a tutela militar sobre a Repúbli- lista, Braga Netto goza de prestígio nas
sonaro”, diz. Teixeira avalia que “não dá ca se mantém inabalável”. médias patentes, junto às quais personi-
para separar Braga Netto de Bolsonaro, Teixeira ressalta que Braga Netto foi fica uma determinada narrativa: “Mui-
como o TSE fez no julgamento na ação paulatinamente ganhando terreno jun- tos quadros médios, de major e capitão
do PDT”, e aponta uma “contradição” to a Bolsonaro no decorrer do governo, até sargento e cabo, estão convencidos de
no voto do relator Benedito Gonçalves: em detrimento do chamado “Grupo do que os ministros do Supremo invadiram
“O ministro sublinha inúmeras vezes a Haiti”, liderado pelo então vice e hoje os atributos do presidente da República e
participação de militares na tentativa senador Hamilton Mourão. “Era um ge- não deixaram Bolsonaro governar. Braga
de golpe, mas pede a exclusão do gene- neral administrativo que não tinha uma Netto fala para esses quadros mais bai-
ral Braga Netto. Mais uma vez parece função específica de comando que fosse xos da hierarquia militar com muita faci-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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lidade e busca manter viva a ideia de que ções de 2026. Entre suas deficiências es-
No TSE, o general
a Lava Jato foi vítima de um complô que tá a falta de proximidade com os eleitores
partiu dos tribunais superiores para ‘des-
ainda responde a evangélicos: “Eu não sei se Braga Netto
condenar’ Lula e entregar a Presidência outros 11 processos consegue aglutinar todos os segmentos
da República a ele. Essa narrativa ainda que podem abreviar do bolsonarismo e evitar que saiam divi-
tem um grande efeito sobre a caserna”. sua carreira política didos durante o processo de 2026. Ele não
Outro flanco a ser explorado pelos parece ter o carisma necessário. Tem bom
adversários é a eventual responsabili- trânsito com os militares, mas os evangé-
dade de Braga Netto na criação do clima licos estão mais divididos, inclusive em
golpista que levou aos atos de 8 de janei- diferentes partidos, como o Republica-
ro. Pouco antes das eleições que deram conspiradores o tenente-coronel Mau- nos”, pondera Luiz Eduardo Motta, di-
a vitória a Lula, o general protagonizou ro Cid e os coronéis Élcio Franco e Jean retor do Laboratório de Estudos sobre
uma fala emblemática em conversa com Lawand, além de outros oficiais de al- Estado e Ideologia da UFRJ.
apoiadores no cercadinho do Palácio da ta patente da ativa diretamente envol-
Alvorada: “Tenham fé. Esta é a única vidos por ação ou inação. Eles tinham Para Ricardo Ismael, o secretário de
coisa que posso dizer agora”. Durante informes de inteligência e nada fizeram Relações Institucionais do PL pode até
a campanha eleitoral, o candidato a vi- nem depois que começou a depredação crescer e contornar sua falta de esto-
ce-presidente comandou em uma man- em Brasília”, diz Teixeira. fo político com as movimentações que
são, no Lago Sul de Brasília, uma espé- Caso consiga se sair bem em suas novas tem feito pelo partido, mas isso deman-
cie de “central do golpe”, que recebia funções políticas no PL e no diálogo com da a confirmação de uma transforma-
empresários, políticos, militares e ou- as Forças Armadas e de segurança públi- ção em curso: “Acho que Braga Netto te-
tros apoiadores de Bolsonaro para dis- ca, o general ainda precisa crescer politi- rá muitas dificuldades pela frente, so-
cutir as estratégias do questionamen- camente em outros setores, para se tor- bretudo para construir apoios e alian-
to às eleições. “Tudo deve ser investiga- nar de fato um nome forte do bolsonaris- ças. Nunca se conduziu de forma agre-
do. Hoje, com clareza, nós temos como mo, inclusive com olhos postos nas elei- gadora na área pública, é uma pessoa
mais discreta e com pouca movimen-
tação nos meandros da política”.
O PL e Valdemar Costa Neto continu-
arão a apostar suas fichas no general. Ao
lado de Michelle Bolsonaro, ele foi uma
das estrelas das inserções gratuitas de
propaganda do partido no rádio e na te-
vê exibidas em vários estados nas últimas
semanas. Circunspecto, Braga Netto pe-
de a adesão de “todos os brasileiros que
acreditam nas pautas que defendemos”.
Para virar realidade como alternativa
J O E D S O N A LV E S /A B R E C A R O L I N A A N T U N E S / P R

bolsonarista, mesmo absolvido dos cri-


mes de abuso de poder político e uso in-
devido dos meios de comunicação que le-
varam à inelegibilidade de Bolsonaro, o
general terá, no entanto, de torcer para
não ser enquadrado pela Justiça Eleito-
ral. No TSE, ele ainda responde a outros
11 processos com denúncias que vão des-
de o uso indevido do crédito consignado
para beneficiários do Auxílio Brasil até a
propaganda eleitoral indevida durante o
TSE. “Como dissociar Braga Netto dos atos de 8 de janeiro?”, indaga Francisco Teixeira funeral da rainha Elizabeth II. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 31
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Nova chance
EXTRATIVISMO A Amazônia tem potencial
para retomar o ciclo da borracha, desta
vez sem repetir os erros do passado
POR MARIANA SER AFINI

D
esde criança eu acompa- so econômico do passado, mas assegu-
" nhava meu pai na flo- rando uma distribuição mais justa da
resta para aprender o riqueza gerada.
manejo da seringueira e Passaram-se cem anos, mas a rotina
os cuidados com essa ár- do seringueiro permanece praticamen-
vore, nosso bem mais precioso, porque te a mesma, observa Costa. “Ele levan-
garante o nosso sustento”, conta Leo- ta cedo, prepara sua refeição e se embre-
marques Silva Costa, jovem seringuei- nha na floresta com a sua faca de seringa
ro de Rondônia, que hoje trabalha para e um facão para abrir os caminhos. De-
compartilhar o conhecimento tradicio- pois de dois ou três dias, volta para re-
nal com as novas gerações. Presidente colher o látex.” Esse trabalho artesanal,
da Associação de Seringueiros Aguapé, ensinado de geração a geração, agrega
ele lamenta a retração da atividade ex- um valor socioambiental, pois os traba-
trativista na Amazônia, apesar da imen- lhadores aprenderam a cuidar das árvo-
sa demanda mundial pela matéria-pri- res para garantir que elas permaneçam
ma. Acredita, porém, que a região tem em pé, garantindo o seu próprio susten-
potencial para desenvolver um novo ci- to. “Todo seringueiro sabe que precisa
clo da borracha, sem repetir os erros do zelar pela floresta, denunciar o desma-
insustentável modelo de cem anos atrás. tamento ilegal, recolher todo o lixo que
No início do século XX, a atividade gera, ter uma boa relação com a coope-
garantiu o rápido enriquecimento da rativa. Isso é fundamental para manter
Região Norte. A extração em larga es- uma produção de qualidade.”
cala, orientada para a exportação, foi A despeito dos esforços dos seringuei-
responsável pela construção de Ma- ros, a região não ficou imune aos preda-
naus, no Amazonas, e de Belém, no Pa- dores, que avançaram mata adentro pa-
rá. Mas a belle époque amazônica não ra a exploração ilegal de madeira, da pes-
durou muito. Ao mesmo tempo que os
empresários da borracha enriqueciam
e as capitais cresciam com constru-
ções luxuosas, o trabalho na floresta
era marcado por jornadas exaustivas,
Hoje, o Brasil não
condições degradantes e nenhum res- é capaz de atender
peito pelos direitos humanos. O desa- nem sequer à
fio para o século XXI é repetir o suces- demanda nacional

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Proteção. Os seringueiros contribuem segundo o IBGE. Há, portanto, imenso


para a preservação da floresta, de potencial de crescimento.
onde tiram o sustento de suas famílias
“Trabalhamos com o princípio do co-
mércio justo e sabemos que o valor agre-
gado da borracha nativa é um importan-
ca e da caça. Além disso há os problemas te componente para a agenda climática
“típicos de fronteira”, como o narcotrá- que o Brasil busca apresentar ao mun-
fico, explica o trabalhador, que vive no do”, explica Brasi. Com base nisso, o
município de Costa Marques, próximo Imaflora cobra políticas públicas capa-
da baliza com a Bolívia. Essas atividades zes de impulsionar a produção amazôni-
ilegais muitas vezes brilham aos olhos ca. “Com a escalada vertiginosa das ati-
dos jovens, pois parecem ser uma forma vidades ilegais na Amazônia durante os
mais fácil e rápida de levantar dinheiro. últimos anos, existem problemas agora
Por isso, a principal demanda hoje dos que só podem ser resolvidos pelo governo
trabalhadores é conseguir negociar um federal. O Estado precisa retomar seu pa-
preço justo do látex junto às grandes em- pel de comando e controle na região, para
presas, de forma a atrair as novas gera- garantir a segurança dos trabalhadores.”
ções para o trabalho formal. Segundo a Coordenadora-Geral de
Acesso e Conservação dos Biomas, So-
Para tratar deste e de outros desa- ciobiodiversidade e Bens Comuns do
fios, foi promovido um encontro em Ministério do Desenvolvimento Agrá-
Rondônia, em junho, com a presen- rio, Tarcila Martins Portugal, “todos
ça dos trabalhadores locais, dos po- esses desafios têm se revertido em uma
vos originários, de sindicatos e movi- diminuição crescente da atividade ex-
mentos sociais, de empresas e organi- trativista da borracha nos territórios”.
zações do terceiro setor, além de repre- Por outro lado, acrescenta, “aponta-se
sentantes dos governos federal e esta- para uma perspectiva futura de muitas
dual. Luiz Brasi, coordenador da rede oportunidades, com demanda empre-
Origens Brasil, do Imaflora, uma das sarial crescente pela borracha natural
organizações envolvidas nesse arran- e aumento da demanda global por pro-
jo multissetorial, explica que o encon- dutos sustentáveis”. Para desenvolver
tro conseguiu identificar e acolher as políticas públicas específicas para a ca-
principais demandas e, a partir disso, deia da borracha da Região Norte, o mi-
foi produzida uma carta de intenções, nistério busca executar ações no âmbi-
a ser destinada às autoridades para exi- to do Projeto Bioeconomia e Cadeias de
gir as condições necessárias, a fim da Valor, explica Portugal. “Essa iniciativa
retomada de um novo ciclo da borracha. será desenvolvida na Cooperação Bra-
Hoje, o Brasil produz menos de 3% sil-Alemanha para o Desenvolvimento
da demanda global, estimada em 14 mi- Sustentável, por meio da parceria entre
lhões de toneladas por ano, segundo a o MDA e a ONG Deutsche Gesellschaft
Associação Nacional dos Países Pro- für Internationale Zusammenarbeit, co-
EDUARDO AIGNER/MDS

dutores de Borracha. No topo da ca- nhecida pela sigla GIZ, que visa expandir
deia produtiva figuram Tailândia, In- a comercialização de produtos de coope-
donésia, Vietnã e outros países do Su- rativas e associações de comunidades lo-
deste Asiático, que domesticaram a cais em cadeias de valor prioritárias pa-
seringueira. Em 2021, o País produziu ra o desenvolvimento da bioeconomia
apenas 399,7 mil toneladas do insumo, sustentável e inclusiva na Amazônia.” •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 33
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Lenta agonia
e empresas de seu primeiro suplente.
Seja qual for o resultado do julgamen-
to no TRE, é certo que a parte derrotada
deverá recorrer à última instância da
PARANÁ Com possível cassação do Justiça Eleitoral, em Brasília. A expecta-
mandato de Sergio Moro, políticos tiva é de que o trâmite da ação no TSE seja
rápido, uma vez que, se confirmada a cas-
paranaenses já cobiçam a sua vaga sação do mandato de Moro, haverá neces-
sidade de uma nova eleição para escolha
POR RENÉ RUSCHEL de outro senador. Como em 2024 teremos
eleições municipais, para escolher prefei-
tos e vereadores, é possível aproveitar a

R
votação por medida de economicidade.
ei morto, rei posto. No Para- do “caixa 2” na campanha. O processo O arranjo suscita, porém, algumas
ná, o adágio popular tem si- contra Moro guarda algumas semelhan- dúvidas. O estado do Paraná ficaria sub-
do levado ao paroxismo, com ças, mas ainda está na fase de instrução -representado, com um senador a menos,
uma sucessão abreviada no Tribunal Regional Eleitoral do Para- até a posse do novo eleito? No caso de Sel-
diante de um monarca ago- ná. O desembargador Mario Helton Jor- ma Arruda, o TSE empossou, provisoria-
nizante. Até o fim ano, o Tribunal Supe- ge, relator do caso, rejeitou os pedidos da mente, o terceiro colocado na disputa de
rior Eleitoral deve julgar o pedido de cas- defesa para anular sumariamente o pro- 2018. Se acontecer o mesmo no Paraná,
sação do mandato do senador Sergio Mo- cesso e autorizou a produção das provas. o escolhido seria Paulo Martins, do PSL,
ro. Depois da malfadada tentativa de dis- “O objetivo da ação é investigar o abu- segundo colocado nas eleições de 2022.
putar a Presidência da República pelo Po- so de poder econômico pelo dispêndio de
demos, o ex-juiz contentou-se em disputar recursos financeiros durante a pré-cam- A eleição para preencher a vaga de
o Senado por outro partido, o União Bra- panha de Sergio Moro, não declarados e Moro teria de começar do zero. Assim,
sil. Venceu a disputa com 1,9 milhão de vo- contabilizados pela Justiça Eleitoral”, ex- todos os partidos podem lançar candida-
tos, mas tornou-se alvo de duas ações que plica Luiz Eduardo Peccinin, advogado da tos, independentemente dos nomes que
questionam os gastos feitos na pré-cam- Federação Brasil da Esperança, a reunir disputaram o pleito no ano passado. Por
panha, quando ainda sonhava com o Pa- PT, PCdoB e PV. Segundo Peccinin, tam- ser uma eleição suplementar, os prazos
lácio do Planalto. Por vestir durante me- bém autor da ação que resultou na cassa- para convenções partidárias, desincom-
ses a fantasia de presidenciável, isso o co- ção do mandato do ex-deputado Deltan patibilização para as candidaturas e pro-
locou em situação de vantagem indevida Dallagnol, outro prócer da República de paganda eleitoral podem ser reduzidos, a
em relação aos demais candidatos, ques- Curitiba, o senador do União Brasil be- fim de adequar o processo ao calendário
tionam o PL de Jair Bolsonaro e a federa- neficiou-se de uma campanha antecipa- diferenciado. Na prática, a movimenta-
ção liderada pelo PT no estado. Muito an- da, “ferindo a igualdade de oportunidade ção eleitoral já começou, diante do cadá-
tes de o caso chegar à Corte eleitoral, po- nas eleições de 2022”. Além disso, há sus- ver insepulto do parlamentar.
líticos paranaenses estão de olho na vaga, peitas da triangulação de valores do Fun- Arilson Chiorato, deputado estadual
e os partidos já encomendam sondagens do Partidário via escritório de advocacia e presidente do PT no Paraná, antecipa
eleitorais para definir candidatos. que seu partido terá candidatura pró-
O infortúnio da ex-senadora Selma pria e com grande visibilidade eleitoral.
Arruda alimenta as especulações sobre “Até porque o presidente Lula precisa de
o destino de Moro. Eleita pelo PSL de Ma- A semelhança com gente do seu time no Congresso para vo-
to Grosso, Arruda, também juíza, conhe- tar nas mudanças que o Brasil necessi-
cida como a “Moro de saias” pelo “rigor”
o caso da ex-senadora ta”, justifica. Difícil será definir o candi-
com que atuava no combate à corrupção, Selma Arruda alimenta dato. Três nomes fortes colocam-se na
foi cassada por unanimidade pelo TSE em as especulações sobre disputa: a deputada federal e presidente
dezembro de 2019, sob a acusação de uso o destino do ex-juiz da legenda Gleisi Hoffman, o líder do PT

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Vácuo. O bolsonarista Paulo Martins


pode ocupar o cargo como interino.
Requião disputa a indicação do PT

te demais, ela deveria ser candidata”, iro-


nizou Requião. “Ela pode ser prefeita de
Curitiba. Vou colocar uma bandeira na
minha janela: ‘Estamos todos com Janja’”,
concluiu. A CartaCapital Requião confir-
mou que pretende disputar a indicação do
partido para concorrer ao Senado.

No outro lado do tabuleiro, a movimen-


tação também é intensa. Ricardo Barros,
do PP, deputado federal licenciado e atual
secretário da Indústria, Comércio e Ser-
viços do governador Ratinho Jr., é um dos
interessados na vaga de Moro. Para o cien-
tista social Emerson Cervi, doutor em Ci-
ência Política pelo Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro e profes-
sor da Universidade Federal do Paraná, es-
sa eleição passa por uma negociação mais
ampla, a envolver as eleições municipais.
“Ratinho Jr. terá grande influência, pois
foi reeleito governador com quase 70% dos
votos. Sua força é incontestável”, avalia.
O bolsonarista Paulo Martins, ex-
-deputado federal pelo PL, ficou em se-
gundo lugar na disputa pelo Senado em
2022, sendo derrotado por Moro. Sem
cargo político, ganhou do governador
GER A L DO M AGEL A /AG. SEN A DO, EDILSON RODRIGUES/

paranaense o posto de comentarista em


uma emissora de tevê afiliada ao SBT e
na Câmara dos Deputados, Zeca Dirceu, prefeitura de Curitiba em 2024, ele co- comandada pelo pai, o apresentador Ra-
AG. SEN A D O E J EF F ERSO N RU DY/AG. SEN A D O

e o ex-governador Roberto Requião. gita mudar os planos e concorrer ao Se- tinho. Ainda teria apoio de Jair Bolsona-
Ex-senadora, ex-ministra da Casa Ci- nado. O mais ativo dos postulantes é o ro para concorrer? Inelegível, o padrinho
vil de Dilma Rousseff, reeleita deputada neopetista Roberto Requião. Pelas redes seria capaz de desequilibrar a disputa?
federal com a maior votação do partido, sociais, o ex-senador já está em campa- Outra incógnita é o ex-senador Álvaro
presidente nacional do PT desde 2017 e nha, e tem defendido que o Paraná pre- Dias, do Podemos. Após quatro mandatos
da total confiança do presidente Lula, cisa de “alguém com larga experiência” e consecutivos, ele foi derrotado em 2022
Gleisi Hoffmann parece largar na pole que tanto Gleisi como Zeca “já estão elei- e, desde então, está afastado do noticiá-
position da disputa interna. Zeca Dirceu, tos deputados federais”. rio político. “Ele pode correr por fora, mas
filho do ex-ministro José Dirceu, está em Mordaz, alfinetou a primeira-dama enfrentará um caminho pedregoso, pois
seu quarto mandato como deputado fe- Janja após ela ter chamado Gleisi de “fu- não tem apoio dos bolsonaristas, do go-
deral. Disposto a lançar candidatura à tura senadora” pelo Twitter. “Janja é for- vernador Ratinho Jr. nem dos petistas.” •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 35
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Não foi sorte


ARTIGO Após seis meses, o governo
Lula devolve a esperança ao País.
Falta a queda dos juros
P O R O DA I R C U N H A* 

A
o completar seis meses, o dicial de 2016. É preciso lembrar sempre
governo Lula traz uma sé- que outro golpe foi realizado, com a pri-
rie de notícias positivas pa- são arbitrária de Lula, por 580 dias, pa-
ra a sociedade brasileira. ra impedi-lo de disputar as eleições de
Inflação em queda, redu- 2018, da qual era o favorito. Em 2022, o
ção do preço dos combustíveis e do gás de ex-presidente retornou, com a experiên-
cozinha, aumento do salário mínimo e do cia acumulada de dois mandatos e, a des-
Bolsa Família, o maior financiamento da peito do freio imposto pela inacreditá-
história para grandes, médios e pequenos vel política de juros altos decretada pe-
agricultores. Também foram relançadas lo Banco Central, o Brasil caminha para
políticas públicas que buscam diminuir a outro patamar de desenvolvimento eco-
desigualdade social e contribuir para a re- nômico e social. 
construção nacional em bases democrá-
ticas, plurais, justas, solidárias e ambien- A retomada do crescimento da eco-
talmente sustentáveis, com crescimento nomia tem contrariado os mais céticos lhões só para habitação (Minha Casa Mi-
econômico e desenvolvimento social.  agentes do mercado financeiro. A dimi- nha Vida), programa que prevê a contra-
Qualquer análise do período necessi- nuição do desemprego, com o aumento tação, até 2026, de 2 milhões de mora-
ta levar em conta que o Brasil superou, do trabalho formal, traz alento aos tra- dias, inclusive para a classe média.
em seis meses, o legado altamente lesivo balhadores e investidores. A Bolsa sobe, Na área de rodovias e ferrovias são
deixado pelo governo anterior. Em qua- a cotação do dólar cai. A trajetória de re- 23 bilhões. Um exemplo é a recuperação
tro anos, o País viveu um processo de tomada do caminho do desenvolvimen- da malha rodoviária federal em Minas
desmonte do Estado implementado por to com justiça social vai se consolidando. Gerais, a maior do País, com 7.689 qui-
um governo neofascista, obscurantista e As ambições são claras. Na área de sanea- lômetros e totalmente abandonada pe-
antinacional, cuja herança principal foi o mento, habitação e mobilidade são qua- lo incompetente governo passado, o que
corte de direitos, ataques às instituições, se 15 bilhões de reais em obras. São 10 bi- só fez piorar as condições das estradas no
à democracia e ao meio ambiente, com estado. Com Lula, os recursos previstos
estímulo diuturno ao ódio, à intolerância para aplicação neste ano (1,6 bilhão) são
e ao golpismo. O 8 de janeiro foi o ápice 6,41 vezes maiores do que em 2022, últi-
do processo golpista fomentado durante O Banco Central mo ano da gestão de Bolsonaro. 
quatro anos pelo ex-capitão, agora inele- Ao mesmo tempo, a imagem do País
gível pelos próximos oito anos.
nega a realidade e recupera-se, com Lula a retomar a tradi-
Os atos terroristas foram um ataque atrapalha a retomada cional política externa brasileira e a usar
à democracia, que havia sido manchada mais vigorosa seu capital político próprio para reinse-
com o golpe parlamentar, midiático e ju- da economia rir o Brasil no concerto das nações. 

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Ao mesmo tempo que o governo busca


consolidar uma base sólida no Congres-
so, avanços têm sido conseguidos também
na seara parlamentar, com a aprovação de
projetos estratégicos. Um deles é o novo
regime fiscal, com o objetivo de deixar ní-
tido para investidores, a sociedade em ge-
ral e agentes internacionais como o gover-
no vai equilibrar e manter sob controle as
contas públicas, e ainda realizar investi-
mentos nos próximos anos. O governo tra-
balha também pela aprovação da uma re-
forma tributária em discussão há décadas,
que vai trazer um sistema mais simples,
moderno e mais justo. 

Graças a esses avanços, Lula chega,


no fim do primeiro semestre do seu go-
verno, com 56% de apoio na população,
numa perspectiva ascendente, inclusi-
ve entre aqueles que votaram em Bolso-
naro. Lula saltou de 14% para 22% nes-
sa faixa do eleitorado, o que é importan-
A população
tíssimo, dado o grau de polarização ain-
reconhece o esforço
do presidente da existente na sociedade. 
A despeito do repertório amplo de boas
notícias, o Brasil ainda enfrenta a direção
Não se trata de sorte, como setores mais pobres no orçamento, ao impulsio- antinacional do Banco Central, com sua
oligárquicos disseminaram de forma nar as vendas do comércio e a produção in- escorchante taxa de juros de 13,75% ao
calhorda. Ocorre que é um governo com dustrial. Nesse sentido, apenas com o no- ano, a maior do planeta. Nenhuma justi-
foco, racionalidade e compromisso com vo Bolsa Família, iniciado em março, fo- ficativa técnica existe para essa taxa, que
a sociedade.  ram incluídos 21,2 milhões de novas fa- impacta decisivamente a qualidade de vi-
Em breve, será lançado um novo pro- mílias beneficiárias em junho, com valor da da população, pois compromete a ge-
grama de investimentos, na linha do médio de 705,40 reais e repasses de qua- ração de empregos e renda. As micro, pe-
Programa de Aceleração do Crescimen- se 15 bilhões. quenas, médias e grandes empresas são
to (PAC). Programa estruturante que en- Tema estratégico é também o comba- desestimuladas a investir, e a dívida pú-
globa ações no campo da infraestrutura te ao desmatamento e a defesa dos povos blica aumenta geometricamente. 
social com eixos gerais na saúde, educa- indígenas, como os Yanomâmis. E os re- Assim, cresce o movimento legítimo
ção, meio ambiente e na infraestrutura sultados começam a aparecer. O desma- pela destituição de Roberto Campos
propriamente dita, com a retomada de 14 tamento na Amazônia teve queda de 68% Neto, por insuficiência de desempenho,
mil obras paralisadas ou em ritmo lento. em abril de 2023, na relação com o mes- como determina a Lei da Autonomia do
RICA RDO ST UCK ERT/PR

Além de melhorar a infraestrutura e, mo mês no ano passado. Graças à recupe- Banco Central. Sua atuação drena recur-
com isso, a vida dos brasileiros, os inves- ração da política ambiental, teremos de sos das políticas públicas para beneficiar
timentos públicos têm enorme impac- novo o Fundo Amazônia, com doações de o setor financeiro, prejudicando extraor-
to sobre o nível de atividade, fazendo gi- outros países, como EUA, União Euro- dinariamente os interesses nacionais. •
rar aceleradamente a roda da economia. peia e Reino Unido. Só os EUA anuncia-
Também tem esse efeito a entrada dos ram a doação de 500 milhões de dólares. *Deputado federal (PT-MG).

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Nosso Mundo

Pour Nahel
FRANÇA Um mergulho nos dias
de fúria após o assassinato, pela
polícia, de um garoto de 17 anos
P O R A N TO N E L LO V E N E R I , D E PA R IS ( T E X TO E F OTO S)

U
m adolescente dirigindo um to das Empresas (Medef) quantifica em
carro é parado por dois po- mais de 1 bilhão de euros (5 bilhões de
liciais de moto que lhe reais) os danos econômicos da revolta.
apontam as armas. O garo-
to, de 17 anos, recusa-se a O contexto
sair do automóvel e tenta partir, devagar. Famosa por sua universidade, berço da
Um dos policiais atira em seu peito. O jo- contestação de maio de 1968, Nanterre
vem consegue dirigir por mais uns me- agora é um distrito da grande Paris, lote-
tros antes de morrer. Nahel, de origem ada por conjuntos habitacionais. Ao redor
africana, termina a corrida batendo o car- dos enormes prédios-dormitórios, de co-
ro no poste da Praça Nelson Mandela. En- res vivas e inquietantes, pululam fast-foods
quanto observo o poste torto e reflito so- e shopping centers, lugares do consumis-
bre o destino feroz do garoto, chegam pais mo de baixo custo. O jovem Nahel foi cria-
com filhos para deixar uma flor, uma ora- do num desses conjuntos, o Pablo Picasso.
ção ou uma carta para Nahel. Depois de dias de violentas manifes-
A Praça Mandela fica em Nanterre, tações, Nanterre parece uma cidade fan-
uma das periferias de Paris, tão perto e tasma. Ruas vazias, lojas e centros comer-
tão apartada da Cidade Luz. ciais fechados, vidraças quebradas e car-
O policial que atirou no menino di- ros carbonizados. Um forte cheiro de plás-
rá logo em seguida ter agido em legíti- tico queimado nos acompanha. Dos pou-
ma defesa, mas um vídeo gravado por cos que circulam, quase ninguém quer fa-
uma mulher, certificado pela AFP, des- lar. “Não é o momento”, respondem educa-
mente a versão e mostra como o policial damente.  O velório de Nahel tinha acaba-
não estava em situação de risco e não ti- do de ser celebrado na mesquita da cidade.
nha necessidade de atirar. Logo após o
vídeo viralizar nas redes sociais, milha-
res de jovens e adolescentes se revoltam
por toda a França, lembrando ao país as Qual a diferença
suas próprias existências. Durante uma
de outros casos?
semana, a violência explode pelas ruas:
milhares de carros incendiados, cente- “Desta vez alguém
nas de lojas saqueadas, toque de recolher gravou um vídeo”,
e 45 mil policiais mobilizados. O Sindica- diz Abdel Halim 

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 42
NESTA EUA. A Suprema Corte
enterra o sistema de cotas
SEÇÃO nas universidades

Força bruta.
Policiais revistam
manifestantes na
Champs-Élysées, em
Paris. Mais de 45 mil
agentes de segurança
foram mobilizados
para conter a revolta,
enquanto em
Nanterre a periferia
pede Justiça

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Nosso Mundo

Enquanto fotografo uma  pichação


num prédio com a escrita Justice pour
Nahel, um homem aproxima-se, com a
filha. Abdel Halim, de 53 anos, mora ali
desde sempre. De origem argelina, tra-
balha como motorista de ônibus. “O que
houve com Nahel foi mais um episódio de
racismo e aconteceu várias vezes aqui na
França, especialmente nos últimos anos.”
Os dados do Ministério do Interior
confirmam: em 2022, foram 13 mortos
durante revistas policiais. “O que mudou
desta vez foi que alguém gravou um ví-
deo”, afirma Halim.
Na Praça Nelson Mandela, entre flo-
res e cartazes, alguém escreveu: “Quan-
tos Nahel não foram filmados?”

Raiva jovem
Entre os mais de 3 mil manifestantes
presos/cadastrados pela polícia durante
os confrontos e o quebra-quebra, a idade
média é de 17 anos. Ou seja, em relação ao
passado, os revoltosos são muito mais jo- Símbolos. Um carro incendiado durante os protestos, retrato da fúria dos jovens que
vens e fazem uso maciço de Snapchat, tomaram as ruas. E o poste contra o qual o automóvel de Nahel se chocou após os disparos
Telegram e TikTok. Nessas plataformas
e redes sociais eles se organizam e pos-
tam breves vídeos para ostentar e come-
morar as próprias empreitadas.  
 Na frente do único fast-food aberto em
Nanterre puxo conversa com alguns jo-
vens. Um deles, Samir, de 17 anos, diz co-
nhecer um participante do quebra-que-
bra. Os amigos do lado riem e comentam.
Percebo, por algumas frases, que ele pro-
vavelmente participou da confusão dos úl-
timos dias. Repete de forma quase mecâ-
nica a frase Justice pour Nahel e, quando
pergunto mais sobre esta revolta, não con-
segue explicá-la e recomeça a comer um
hambúrguer e batatas fritas. Quem não
está acostumado a ser ouvido, dificilmen-
te encontra respostas, até para si mesmo.
Esses meninos do fast-food, assim como
Nahel, são filhos e netos dos trabalhadores
oriundos das antigas colônias: Marrocos,
Tunísia e, sobretudo, Argélia. Novas gera-
ções de franceses que frequentam a escola
pública, falam francês, torcem para o Pa-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Um fundo de apoio
ao policial assassino
arrecadou quase
1,5 milhão de euros

ris Saint-Germain, mas se sentem trata-


dos como imigrantes, visíveis pela socie-
dade apenas quando decidem arrombar
lojas para roubar os tênis da Nike e tocar
fogo no próprio bairro. “Mas, se você toca
fogo no carro do vizinho, quebra a loja da
esquina e os pontos de ônibus, você, além
de produzir um dano para a comunidade,
abre as portas a políticos como Marine Le
Pen, que atuarão de forma ainda mais re-
pressiva contra nós. Isso os jovens não en-
tendem”, lamenta Halim.

Violência policial
Enquanto o policial que atirou em Nahel
Sem voz. Em Nanterre, os moradores quase não falam sobre o assunto ou é investigado por homicídio voluntá-
escamoteiam sua participação nas manifestações. Policiais vasculham a região rio, a porta-voz dos Diretos Humanos da
ONU declara: “Chegou a hora de a Fran-
ça enfrentar seriamente os profundos
problemas de racismo e discriminação
presentes dentro das forças de ordem”.
Durante a nossa conversa em
Nanterre, o motoristal Halim questio-
na o fato de ser abordado por um policial
e logo ouvir que vai receber um tiro na
cabeça (vídeo do assassinato de Nahel).
Abordagem agressiva, falta de diálogo e
atitudes racistas são problemas estrutu-
rais de uma parte da polícia francesa que
pude presenciar ao longo dos anos. Ape-
sar de o presidente Emmanuel Macron
ter condenado a ação do policial – “im-
perdoável” –, não há decisões para uma
reforma profunda da instituição.
Parte da França aprova as atitudes re-
pressivas. Emblemática é a diferença na
arrecadação de fundos para as partes en-
volvidas. No caso da mãe de Nahel, eram
350 mil euros até o fechamento desta
edição, enquanto os apoiadores do po-
licial contribuíram com 1,45 milhão. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 41
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Nosso Mundo

Justiça de classe
dronizadas, aterrando oportunidades
para mentes brilhantes desprovidas do
benefício do status familiar. 
Os jovens norte-americanos candida-
EUA De maioria conservadora, a Suprema tam-se às vagas nas universidades a par-
tir de cartas de recomendação escritas ge-
Corte derruba as cotas para alunos ralmente por um professor ou um mentor.
negros nas universidades Nelas são destacadas as potenciais con-
tribuições do aluno à escola. Mais do que
P O R C L A R IS S A C A R VA L H A ES , D E N OVA YO R K  apresentar boas intenções, notas ou de-
sempenhos extraordinários nos esportes,
são levadas (altamente) em conta as doa-

P
ções financeiras realizadas pela família
or décadas os movimentos te do credo, cor ou origem nacional. do candidato à instituição ou seu históri-
conservadores nos Estados Guiado por movimentos dos direi- co escolar ancestral, espécie de admissão
Unidos empenharam-se fe- tos civis, o programa expandiu seu ter- herdada, tradição centenária adotada pe-
rozmente em extinguir duas ritório, sofisticou-se e tornou-se um pi- la vasta maioria das instituições. 
das maiores conquistas lar na educação superior, compreendi-
do campo liberal no país: o direito ao abor- do, à época, como uma forma de promo- Do corpo estudantil da universidade de
to, estabelecido nos anos 1970, e os progra- ver a igualdade racial em um país que pou- Yale a se formar daqui a dois anos, 14% são
mas de admissão com consciência racial co tempo antes impunha a segregação. filhos de ex-alunos. Não é segredo, por-
adotados nas universidades após o assas- Os preceitos acadêmicos sucumbiram tanto, que, para ser aprovado em uma fa-
sinato de Martin Luther King Jr., em 1968. na quinta-feira 30, quando dois grupos culdade, em especial na Ivy League, o gru-
Anos de pressão republicana foram, no en- de alunos das universidades Harvard e po das mais cobiçadas instituições, pesam
tanto, infrutíferos. Até agora. Enquanto da Carolina do Norte conseguiram der- a favor dos estudantes as credenciais de
representantes do partido no Congresso rubar a prerrogativa das cotas ao apelar uma família rica. Um estudo do Escritório
e no Senado, mandato após mandato, ba- para a Suprema Corte. Por 6 a 3 no caso Nacional de Pesquisa Econômica, de 2017,
tiam cabeça para levar o plano adiante, a da Carolina do Norte, e 6 a 2 no caso de mostra que os alunos que fazem parte do
Suprema Corte conseguiu, no intervalo de Harvard, o tribunal entendeu que os pro- 1% mais rico da renda familiar no país têm
um ano, derrubar o alicerce destas e de ou- gramas violam a Cláusula de Igualdade 77 vezes mais chances de entrar em uma
tras políticas públicas progressistas. de Proteção da Constituição.  faculdade de elite do que um candidato
Em junho do ano passado, 50 anos de Não é possível de imediato estimar os que compõe os 20% mais pobres. 
precedentes acabaram sobrepujados da efeitos da decisão, mas é evidente que se Ao mostrar seu descontentamento
noite para o dia quando a Roe v. Wade até aqui as universidades eram compos- com a decisão da Suprema Corte, o presi-
foi anulada pelo tribunal. Ao invalidar a tas em sua maioria de estudantes bran- dente Joe Biden lembrou que, atualmen-
decisão histórica, o Judiciário norte-ame- cos, a sentença deixará as escolas supe- te, para muitas escolas, “as únicas pessoas
ricano pôs fim às proteções nacionais pa- riores ainda mais embranquecidas, me- que se beneficiam do sistema são os ricos
ra o direito ao aborto e permitiu aos es- nos diversificadas, intelectualmente pa- e os bem relacionados. As probabilidades
tados proibirem a prática. Doze meses foram contra os trabalhadores por muito
depois, o mesmo tribunal considerou tempo. Embora o talento, a criatividade e
ilegais os programas universitários o trabalho árduo estejam por toda parte
de admissão com consciência racial. O tribunal também neste país, não há igualdade de oportu-
John Kennedy, em 1961, foi o primeiro nidades”. Biden destacou ainda que pou-
presidente a associar a expressão a uma
derrubou o pacote cos alunos de famílias de baixa renda, se-
política pública que naquele momento de 400 bilhões de ja nas grandes cidades ou nas comunida-
tinha como objetivo melhorar o dólares de perdão das des rurais, têm a oportunidade de ir para
acesso a empregos, independentemen- dívidas estudantis a faculdade. “A verdade é, todos nós sabe-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

mos, que a discriminação ainda existe na


América. A discriminação ainda existe na
América. A discriminação ainda existe na
América”, repetiu por três vezes, e com-
pletou: “A decisão da Suprema Corte não
muda isso. É um fato simples”. 
Não por coincidência, a confiança
na Suprema Corte caiu drasticamente.
Um levantamento realizado no ano pas-
sado pelo Centro de Pesquisa de Assun-
tos Públicos da Associated Press revelou
que apenas 18% dos entrevistados rela-
taram muita confiança no tribunal, uma
baixa histórica. Além disso, 36% afirma-
ram não ter confiança na instituição, a
mais alta registrada desde 1973. 

No mesmo dia que os programas de ad-


missão com consciência racial foram con-
siderados ilegais, a Corte deu outro golpe
nos estudantes ao rejeitar o perdão de em-
préstimos estudantis avaliado em 400 bi-
lhões de dólares, um dos carros-chefes da
campanha de Biden. No Twitter, a jurista
Melissa Murray escreveu: “Diga o que qui-
ser sobre Joe Biden, mas ele fez o que pro-
meteu. E foi absolutamente desfeito pela
A volta do privilégio. As cotas foram adotadas nos anos 1960, após
o assassinato de Martin Luther King. A Suprema Corte agora avaliza o retrocesso Corte que seu antecessor construiu”. De-
talhe: três dos nove magistrados do tribu-
nal foram nomeados por Donald Trump. 
Mas como em política nem tudo está
perdido, o Partido Democrata tem a mis-
são de fazer do limão uma limonada. No
ano passado, poucos meses após a derru-
bada da Roe v. Wade, Biden assinou um
projeto de lei para proteger os direitos do
casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Naquele momento, democratas e republi-
canos que defendiam a legislação sabiam
que o Congresso precisava agir antes de a
Suprema Corte invalidar a medida. Agora,
com tantos direitos abatidos, os democra-
tas, se perspicazes, conseguirão mirar nas
eleições de 2024, e conquistar os votos da-
ISTOCKPHOTO

queles preteridos nas ações da Suprema


Corte. O futuro é logo ali, e não precisa
ser um retorno ao passado. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 43
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Apagado
proteger o espaço de informação russo
da propaganda grosseira e agressiva da
narrativa antirrussa do Ocidente.” Em

da fotografia
uma aparição extraordinária, um editor
de seu grupo de mídia Patriot defendeu
a fábrica de trolls desde a sua fundação,
em 2009: “Era estrategicamente impor-
Antes ameaçador, tante desacreditar o trabalho de jorna-
Yevgeny Prigozhin, do grupo Wagner, listas de oposição que tentavam (...) des-
truir o nosso país”.
torna-se uma sombra de si mesmo Muitas táticas de Prigozhin, desde a
sabotagem social online até o recruta-
P O R A N D R E W R OT H
mento de condenados nas prisões, fo-
ram adotadas pelo governo russo. Diver-

D
sas corporações estatais e até empresá-
e repente, Yevgeny Em vez disso, é o império de Prigozhin rios privados possuem hoje seus próprios
Prigozhin é um fantasma. que agora vai desmoronar, encerrando grupos de mercenários. E sua presença
Ele está na Bielorrússia ou uma década de seus esquemas e truques na mídia, que era ao mesmo tempo irri-
em São Petersburgo? Em como parte dos trabalhos mais sujos do tante e atraente, fez dele uma estrela da
imagens não confirmadas Kremlin. Na sexta-feira 30, a Rússia blo- noite para o dia, à medida que seu conflito
que o fazem parecer um vilão de James queou os sites dos canais de comunica- com o Ministério da Defesa esquentava.
Bond, desfila numa cobertura, seguido ção Ria Fan, Política Hoje, Economia Ho-
por um guarda-costas musculoso, senta- je, Neva News e Notícias Populares, par- Há muito visto como plausivelmente
-se num helicóptero e desaparece nos te de uma constelação de sites que divul- negável, o líder do grupo Wagner agora
céus de São Petersburgo. gavam notícias falsas em apoio à agen- será simplesmente ignorado, enquanto
Há quase uma década Prigozhin se- da de Prigozhin. O meio de comunicação o governo russo tenta manter seu impé-
meia escândalos na Rússia. Criou um Rotunda, com sede em São Petersburgo, rio mercenário no exterior e sua influên-
império de fábricas de trolls, chefiou a também informou que a Agência de Pes- cia na África, ao mesmo tempo eliminan-
interferência da Rússia em eleições es- quisas na Internet do oligarca, uma fá- do o papel pessoal de Prigozhin. “Até a
trangeiras e financiou o grupo merce- brica de trolls na qual estagiários mal guerra em Bakhmut, raramente escreví-
nário Wagner, que lutou na Ucrânia e pagos tentavam semear raiva e descon- amos sobre Prigozhin. Ele era visto como
apoiou ditadores na África. fiança por meio de comentários agressi- um personagem obscuro, não antigover-
No motim recente, também pediu re- vos sob postagens de notícias em redes no, mas ‘melhor não tocar’”, disse um ex-
volta, ao liderar uma rebelião armada sociais, havia sido fechada. -editor de uma agência de notícias esta-
que muitos temem que possa se transfor- Prigozhin negou durante anos ser o tal russa, citando contatos com colegas.
mar em acerto de contas ou até mesmo fundador da organização, até o início de “Agora é como se ele nunca tivesse exis-
em saques em Moscou, incluídas as ca- 2023. “Nunca fui apenas o financiador tido.” A fonte prossegue:
sas luxuosas do rico bairro de Rublyovka. da Agência de Pesquisas da Internet”, “Os editores estão dizendo: ‘Certo, abor-
“Esse pedido para pegar aqueles ladrões admitiu. “Eu inventei, criei e gerenciei damos (o motim), mas agora vamos voltar
em Rublyovka foi revolucionário”, dis- por muito tempo. Ela foi fundada para ao normal e Prigozhin nunca mais será
se Konstantin Remchukov, editor-chefe discutido, definitivamente, não na tevê’.”
da Nezavisimaya Gazeta, que esteve com Especialistas políticos na Rússia disse-
Vladimir Putin numa reunião a portas fe- ram que o conflito poderia ter sido evita-
chadas com os principais editores. “(A elite) do se Putin agisse antes, reconhecendo o
realmente teme Prigozhin como uma pos- O líder mercenário papel de Prigozhin na guerra pela Rússia
sível alternativa a Putin. Não haveria ga- banido vê seu e buscando satisfazer suas preocupações.
rantias nem proteção nem regras do jogo.” império desmoronar “Putin poderia ter resolvido isso há mui-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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to tempo, mas ele não é sensível a essas o motim na verdade consolidou o poder De caçador a caça. Muita gente
coisas”, disse uma fonte informada que de Putin, porque mostrou que sem ele prevê que estão contados os
dias do antes temido Prigozhin
falou sob a condição de anonimato. “Bas- poderia haver uma guerra civil.
taria que alguém lhe dissesse: ‘Por favor,
vá se encontrar com Prigozhin, ligue e di- “Quando vimos a notícia no sábado,
ga-lhe que é incrível, nós o valorizamos, dissemos aos nossos guardas que esti- do lá recentemente. Mas muitos se per-
mas, por favor, que ele pode fechar a bo- vessem prontos para defender o local, guntam: quanto tempo ele pode sobrevi-
T EL EGR A M /CONCORD GROUP/A FP

ca porque não precisamos desta briga pú- se necessário”, afirmou um morador ri- ver? “Pensei algumas vezes no que escre-
blica agora’. Mas Prigozhin viu que pode- co de Rublyovka. “Prigozhin é louco, ele é veria, se ele morresse”, disse o ex-editor
ria criticar o ministro da Defesa e se safar, o pior, e capaz de qualquer coisa. Ele sem- de notícias do Estado, quando questio-
então aumentou a temperatura.” pre fala sobre Rublyovka e o quanto odeia nado se eles prepararam um obituário.
Para alguns russos ricos, Prigozhin isto aqui. Ele, provavelmente, viria nos “Não consigo imaginar que ele continua-
agora é sinônimo do caos de uma bata- pegar primeiro.” rá vivo por muito tempo.” •
lha potencial pelo poder na Rússia. O O próprio Prigozhin estaria na Bielor-
Kremlin e seus partidários afirmam que rússia, embora não tenha sido fotografa- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 45
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Nosso Mundo

Chamas atiçadas
identificou como David. Ele estava usando
quipá branco de malha, típico de um sio-
nista religioso, que acredita na judaização
da terra bíblica de Israel como um chama-
Por trás da recente onda do divino. “É simples”, disse o companhei-
de violência na Cisjordânia, o avanço das ro de David, que não quis se identificar.
“Precisamos sitiar os árabes, bloquear as
colônias judaicas em territórios palestinos estradas. Isso conteria os ataques.”
Israel ganhou o controle da Cisjordânia
P O R B E T H A N M C K E R N A N E Q U I Q U E K I E RSZ E N B AU M , e da Faixa de Gaza após a Guerra dos Seis
D E E L I , C IS J O R DÂ N I A Dias, em 1967. Os dois territórios palesti-
nos foram ocupados. Colonos israelenses
começaram a mudar-se em massa para as

C
áreas palestinas na década de 1990 e, des-
inco buracos de bala mar- taurante vendendo camisetas com sua de que as negociações de paz mediadas pe-
cam as paredes e a janela do imagem. “Meu filho de 15 anos trabalha los EUA fracassaram, em 2014, seu núme-
Restaurante Hummus, neste restaurante. Naquele dia ele não ro e a quantidade de terras que controlam
modesta lanchonete perto estava no local, mas eu não sabia disso e aumentaram dramaticamente. Os israe-
do assentamento de Eli, na não conseguia falar com ele”, diz Eliana lenses em Jerusalém Oriental e na Cisjor-
rodovia construída por Israel que percor- Passentin, que atua como advogada in- dânia agora somam 700 mil habitantes.
re toda a extensão da Cisjordânia ocupa- ternacional para o conselho do assenta-
da. Em 20 de junho, dois combatentes do mento de Mateh Binyamin. “Você não se Incidentes de violência de colonos – a
Hamas, grupo militante que controla a sente melhor ao descobrir que os filhos incluir espancamentos, tiroteios, vanda-
Faixa de Gaza, mataram quatro pessoas de outra pessoa foram mortos.” lismo e roubo de propriedades e gado, com
no local. O incidente foi desencadeado por “Estamos acostumados com ataques, o objetivo de expulsar os palestinos de
um grande ataque do exército israelense mas é estranho comprar comida num lu- suas terras – ocorrem diariamente em to-
na cidade de Jenin, na Cisjordânia, que gar onde há uma semana judeus foram as- da a Cisjordânia há anos. As Forças de De-
matou ao menos cinco pessoas. O ataque sassinados”, comenta um cliente que se fesa de Israel (FDI) fecham os olhos. Mes-
ao restaurante, por sua vez, levou no mo quando os ataques são documen-
dia seguinte a uma vingança violen- tados, dados policiais analisados pela
ISRAEL
ta de colonos israelenses em aldeias ONG israelense Yesh Din entre 2005
palestinas vizinhas, em que uma pes- e 2021 mostraram que 92% de todas
soa foi morta e cerca de 30 casas e 60 Jenin as reclamações palestinas foram
carros foram incendiados. canceladas sem acusações formais.
A violência olho por olho acirra as Seis meses após retomar o cargo
JORDÂNIA
tensões no período mais sangrento de premier, com o governo mais de di-
em Israel e na Cisjordânia em déca- Nablus reita da história de Israel, Benjamin
das. Mas, durante a visita do Observer Huwara Netanyahu aprovou um recorde de
na quinta-feira 29, embora ainda Tel-Aviv Eli
13 mil assentamentos judaicos na
houvesse cacos de vidro de para-bri- Cisjordânia. Os ataques de colonos,
Amã
sas espalhados pelo chão e meia dú- Margem Oeste descritos como “crimes nacionalis-
zia de soldados patrulhando os arre- tas”, aumentaram tanto em esco-
dores, os negócios tinham recupera- po quanto em escala desde que Ne-
do uma normalidade inquieta. Jerusalém tanyahu voltou com novos aliados,
Amigos de Elisha Antman, de 18 vários deles colonos extremistas.
anos, que morreu no ataque, esta- Netanyahu conseguiu encerrar a
vam sentados do lado de fora do res- Fonte: Guardian Graphics crise política de quatro anos em Is-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

rael, desencadeada por seu julgamen- Leniência. As Forças de Segurança de israelense. A situação cada vez mais volá-
to por corrupção, persuadindo três par- Israel fecham os olhos para os violentos til na Cisjordânia expõe a profunda, talvez
ataques de colonos judeus extremistas
tidos marginais de extrema-direita a se intransponível, divisão entre os recém-
fundirem na chapa dos Sionistas Religio- -criados líderes extremistas de Israel e o
sos. Na eleição de novembro, as promessas sistema de segurança, que durante anos
da chapa de adotar uma postura mais du- claração contundente durante a forma- preferiu manter a ocupação dos territórios
ra contra os palestinos ajudaram a mais tura de oficiais de combate na semana palestinos de maneira mais silenciosa.
que dobrar suas cadeiras, de seis para 14. passada: “Um oficial das FDI que fica pa- Para a base nacionalista religiosa, o
Incidentes de violência de colonos es- rado ao ver um cidadão israelense plane- governo e o exército não estão fazendo o
tão ocorrendo agora a uma taxa de três por jando lançar um coquetel molotov numa suficiente para deter os ataques terroris-
dia, segundo dados da ONU, contra dois casa palestina não pode ser um oficial”. tas: um comandante sênior que fez uma
por dia em 2022. Em fevereiro, o mundo fi- visita de condolências a uma das famílias
cou chocado com as cenas de uma invasão Integrantes da nova elite política es- enlutadas de Eli foi chamado de “trai-
sem precedentes de colonos na aldeia pa- tão, porém, atiçando as chamas. O mi- dor” e “assassino”, antes de ser expulso.
lestina de Huwara, em resposta ao assas- nistro das Finanças, Bezalel Smotrich, Todos concordam, porém, que há
sinato de dois irmãos israelenses. Cerca de que também detém um cargo na pasta da muitos interesses em jogo e que o ciclo
400 jovens invadiram Huwara durante a Defesa que lhe dá o controle da política de violência provavelmente se intensi-
noite, incendiando casas, empresas e car- israelense na Cisjordânia, pediu mais ficará. “Estamos apenas tentando viver
ros e matando uma pessoa. As FDI foram de uma vez que Huwara seja “apagada” nossas vidas normais e voltar para casa
duramente criticadas pela inércia em agir. e descreveu os ataques da semana pas- com nossos filhos à noite, mas os alia-
Essas cenas se repetiram na semana sada como “contra-ataques civis”. dos de Israel nos culpam por construir
passada, após os assassinatos no restau- O líder do partido Poder Judaico e mi- casas, em vez de condenarem o terroris-
JA A FA R ASH TIY EH /A FP

rante de beira de estrada em Eli. Desta nistro da Segurança Nacional, Itamar mo”, disse Passentin. “Não faria diferen-
vez, Netanyahu condenou esses ataques Ben-Gvir, implorou na semana passada ça se minha família morasse em Eli ou no
de vingança e pediu ao público que não ao público judeu que “corresse para o to- meio de Tel-Aviv. Somos alvejados e mor-
faça justiça com as próprias mãos. O che- po das colinas” – um chamado para es- tos simplesmente por sermos judeus.” •
fe do Estado-Maior das FDI, tenente-ge- tabelecer postos avançados, nome dado
neral Herzi Halevi, também fez uma de- a assentamentos ilegais mesmo sob a lei Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 47
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Os caçadores O
canal de Luccas Neto no
YouTube, o Luccas Toon,
volt a do a o pú bl ic o
infanto-juvenil, tem 39,3

de público
milhões de inscritos e acu-
mula mais de 20 bilhões de visualizações.
Os 173 longas-metragens brasileiros lan-
çados comercialmente em 2022 levaram,
juntos, 4 milhões de espectadores às salas.
CINEMA Na briga por espaço no circuito Do encontro entre esses dois universos
cada vez mais dominado por Hollywood do audiovisual, o do YouTube e o do ci-
nema, nasce Os Aventureiros: A Origem,
o youtuber Luccas Neto vira super-herói em cartaz desde a quinta-feira 6. Trata-
-se de um projeto do influenciador digi-
P O R A N A PAU L A S O U S A
tal encampado pela Warner Bros. e dirigi-
do por André Pellenz, o nome por trás de

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 54
NESTA Livros. A reedição dos
SEÇÃO diários de Lúcio Cardoso joga
luz sobre o autor de Maleita

trangeiras a coproduzir filmes no País.


Até o fechamento desta edição, a
Warner Bros. não tinha informado o ta-
manho do circuito de Os Aventureiros: A
Origem. Mas, no último fim de semana, o
filme ocupou, em sessões de pré-estreia,
468 cinemas. Super Mario Bros. foi lan-
çado em 752 cinemas – ocupando várias
telas em um único complexo. Em 2022,
Avatar: O Caminho das Águas, foi lança-
do, simultaneamente, em 2,8 mil salas.
É esse contexto que leva Pellenz a tra-
tar o filme de um dos mais bem-sucedidos
influencers do País não como um tiro cer-
to, mas como uma aposta que diz respeito
Em cartaz. Com Os Aventureiros: A Origem, o diretor André Pellenz (à esq. e acima), ao setor cinematográfico brasileiro como
o criador do canal Luccas Toon, e a Warner Bros. apostam no público infanto-juvenil um todo. “Se o Luccas, com seu carisma, e
a Warner levarem as pessoas ao cinema,
teremos vencido mais uma batalha”, diz.
Minha Mãe É Uma Peça: O Filme (2013) e cota de tela. Se não fosse a cota, o filme “E também mais um estigma: aquele de
da franquia Detetives do Prédio Azul, que jamais teria estreado em tantas salas. E, se que o cinema brasileiro não pode ter um
inclui a série feita originalmente para o não tivesse conseguido a boa distribuição super-herói de capa.”
Gloob e três longas-metragens. que teve, não teria tido a chance de fazer
O último filme da série, Detetives do o sucesso que fez”, diz Pellenz, procuran- Sim, porque Luccas e seus amigos vi-
Prédio Azul 3: Uma Aventura no Fim do do relativizar, como fará ao longo da con- ram super-heróis. “Me interessa a ideia
Mundo, lançado em 2022, fez 424 mil in- versa com CartaCapital, o que significa, de adaptar coisas”, conta o diretor, pon-
gressos. Os dois primeiros filmes haviam no Brasil, a ideia de um cinema comercial. tuando que Minha Mãe É Uma Peça era
feito mais de 1 milhão de espectadores ca- Nunca é demais lembrar que uma um stand-up e D.P.A. uma série. “O cine-
da um. “O cinema brasileiro está perden- produção hollywoodiana custa, em mé- ma nasce imitando truques mágicos, de-
do a sala de cinema como um espaço onde dia, 150 milhões de dólares e que raros pois vai adaptar livros, músicas... O cine-
possa ser visto”, diz Pellenz, às vésperas são os filmes brasileiros com orçamen- ma é uma esponja que absorve as diferen-
de entrar novamente nessa briga. tos superiores a 10 milhões de reais. Os tes linguagens. Por que não adaptar um
Desde a pandemia, que manteve os Aventureiros: A Origem, de acordo com o super-herói vindo da internet?”
cinemas fechados por alguns meses, e da documento disponível no site da Ancine, Pellenz diz ter se acostumado, ao lon-
crise atravessada pela Agência Nacional custou pouco mais de 3 milhões de reais. go de sua trajetória, a ver muita gente
do Cinema (Ancine), a produção brasilei- Este é, inclusive, o teto do mecanismo torcer o nariz para seus projetos. Embo-
ra tem sofrido ainda mais para conseguir legal, baseado em renúncia fiscal, cria- ra hoje a dona Ermínia de Paulo Gustavo
impor-se novamente no circuito exibidor. do para incentivar as distribuidoras es- (1978-2021) seja uma quase unanimida-
Nenhum filme, em 2021 e 2022, fez de, no começo não foi assim. E tampou-
mais de 1 milhão de espectadores ou fi- co foi fácil achar quem topasse distribuir
cou entre os dez mais vistos. Também es- D.P.A: “Me diziam que não havia público
tá suspensa, desde então, a cota de tela, “No caso dos para um filme infantil brasileiro”.
mecanismo que prevê que os cinemas re- Nesse segmento, os campeões de bilhe-
servem um determinado número de dias
filmes ditos teria seguem sendo, de fato, os filmes dos
FÁ BIO BO UZ AS

por ano para filmes brasileiros. comerciais nunca Trapalhões, nas décadas de 1970 e 1980,
“Minha Mãe É Uma Peça só foi lançado se fala do trabalho e os da Xuxa, até o início dos anos 2000.
em 420 salas, há dez anos, porque havia feito pelo diretor” Na última década, as produções que rom-

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 49
CLUBE DE REVISTAS
Plural

peram a barreira do 1 milhão de ingres-


sos foram as da Turma da Mônica, D.P.A.
e aquelas derivadas da novela Carrossel.
“Uma comédia adulta, seja aqui, seja
nos Estados Unidos, se passa num restau-
rante, na rua, ou seja, a gente não precisa
recriar mundos ou explodir um posto de
gasolina”, diz Pellenz, tateando os desa-
fios da disputa com as animações e filmes
de super-heróis vindos de Hollywood.
O filme de Luccas Neto é uma aventura
de ficção científica que envolve a ida pa-
ra outras dimensões, máquina do tem-
po, pedras mágicas e cenas de luta. O di-
retor conta, com orgulho, que optou pe-
lo formato 2:35, o Cinemascope, e que fez Gênero. Pellenz
é o cineasta por
um filme todo surround. “O Luccas já faz trás do sucesso
muito sucesso no streaming, mas o filme Minha Mãe É
tinha de ter cheiro de cinema”, diz. uma Peça (2013)
Uma de suas primeiras providências e da franquia
para tirar o youtuber de seu lugar de há- infanto-juvenil
Detetives do
bito foi dar a ele a dimensão da tela gran- Prédio Azul
de. “Filmei o nariz dele e disse: ‘Olha o
seu nariz na tela de cinema: ele tem 2 me-
tros!’. Eles entenderam isso muito rapi-
damente e se desprenderam da maneira
de fazer YouTube, dos cacoetes.”

Pellenz adora falar sobre seu ofício e


não nega sentir falta de ser visto como um
diretor de cinema, que, assim como seus res onde se podia trabalhar: na TV Globo e capasse dos estereótipos de Malhação.
colegas que têm obras selecionadas pa- na publicidade”, diz. “Estudei Cinema pa- O edital do programa recebeu 225 pro-
ra festivais, faz opções de linguagem. “É ra fazer cinema, mas também sempre pre- postas e selecionou oito para a realização
curioso como, no caso dos ditos filmes co- cisei viver da minha profissão, até porque de um piloto. Dentre os pilotos, três fo-
merciais, nunca se fala do trabalho feito não sou herdeiro nem tenho salário fixo.” ram escolhidos para ser produzidos. Na-
pelo diretor. É como se não houvesse uma Sua primeira ficção foi a série Natá- tália foi um deles. Lançada em 2011 na TV
direção ali. Se eu disser que não sinto fal- lia (2011), premiada no FIC-TV, proje- Brasil, a série chamou atenção do públi-
ta de outro tipo de reconhecimento, não é to criado pelo Ministério da Cultura co e da crítica e, depois, foi adquirida pela
verdade”, admite. “Mas nada substitui a com o objetivo de produzir, para a te- TV Globo, pela Sony e Universal Channel.
sensação de ver uma sala cheia se emocio- vê pública, um conteúdo juvenil que es- “Não sou, nem nunca fui, o cara só dos
E PA RIS FIL M ES / DT/SIM B A CO N T EN T
DOWNTOWN FILMES/GLOBO FILMES

nando com o filme que você fez.” projetos comerciais”, diz, para logo em se-
Formado em Cinema pela Universidade guida contar que acabou de concluir um
Federal Fluminense, Pellenz começou a outro longa-metragem, chamado Fluxus.
carreira no início dos anos 1990, momen- “Não fosse a cota Trata-se, segundo ele, de uma distopia em
to no qual o cinema brasileiro tinha prati- preto e branco. E, embora tenha nego-
camente acabado. Ele trabalhou na finali-
de tela, o filme do ciado o filme com a Paramount, Pellenz
zação de Matou a Família e Foi ao Cinema Paulo Gustavo não tem vivido, com esse projeto, o que vivem
(1991), de Neville de Almeida, mas logo mi- teria tido a chance muitos de seus colegas de ofício: não está
grou para a publicidade. “Havia dois luga- de fazer sucesso” conseguindo lançá-lo em cinema. •

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
RITA VON HUNTY
CLUBE DE REVISTAS
Rita é a persona drag do ator e professor Guilherme
Terreri. Por meio dos estudos culturais, Rita discute
temas sociais com o horizonte da emancipação radical

Quem odeia o orgulho?

Passado o mês de junho – que mar- Público, por ação do deputado estadual
► A extrema-direita ca mundialmente a luta dessas pessoas Agripino Magalhães (MDB).
escolheu, para justificar contra os modelos sociais que pregam a Já o segundo caso, que é bem mais ex-
exclusão de seus corpos da categoria de plícito, ocorreu no púlpito de uma igreja,
a crise de seu modelo “seres humanos” – tivemos, no Brasil, ao durante um culto intitulado “Deus odeia
econômico e social, um menos dois episódios bastante sintomá- o Orgulho”. O dito “pastor” André Vala-
novo bode expiatório: as ticos do momento histórico que vivemos: dão afirmou que junho seria o mês mais
a crise do modelo moribundo de vida e repugnado por Deus e que, se Ele pudes-
pessoas LGBTQIAPN+ hegemonia no Ocidente. se, “mataria a todos” insinuando em se-
Nominalmente, refiro-me à falência guida a seus fiéis que “agora estaria com
dos modelos de democracia-liberal-bur- eles” e que era hora de “ir pra cima”.

A
trajetória do capitalismo pode guesa, à hegemonia econômica e militar Valadão tornou-se líder da igreja “La-
ser contada através dos mode- dos Estados Unidos e ao modo predató- goinha Global”, que tem mais de 700 tem-
los de desumanização de pes- rio de vida instaurado pelas revoluções plos no Brasil e no mundo. Valadão argu-
soas. Justificados por quem deles tira industriais e suas apropriações pelo ca- mentou que o cristianismo pregava a hu-
vantagem, tais modelos são pleiteados pitalismo. milhação e a humildade e, posteriormen-
sempre como “naturais”, “imutáveis” e te, gravou, de um carro de luxo e com um
“benéficos a todos” quando são, na ver- Cronologicamente, o primeiro ca- crucifixo de diamantes em torno do pes-
dade, construtos socio-histórico-cultu- so acontece quando o apresentador Ra- coço, um vídeo no qual dizia que suas fa-
rais, constantemente mutáveis e bené- tinho (Carlos Roberto Massa) diz, para las haviam sido “tiradas de contexto”.
ficos apenas para aqueles que os man- milhões de pessoas, em seu programa de O “pastor” está sendo acusado junto ao
têm como norma. tevê, que “a Parada Gay (sic) é o carnaval Ministério Público Federal por ação da
Historicamente, durante suas crises dos viados e sapatões”. Ele sugeriu ainda deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP).
estruturais mais profundas, o modelo que o evento fosse deslocado da Avenida Não é novidade que ambos, Ratinho e
capitalista produziu discursos que vi- Paulista para o sambódromo, sob a ale- Valadão, foram apoiadores e cabos elei-
savam encontrar um “inimigo comum” gação de que a avenida deveria ser “dei- torais do bolsonarismo. E tampouco é
a toda sociedade. Com o fim dos mode- xada para a família”. novidade que o bolsonarismo tenta reen-
los de trabalho escravo no século XIX, os Para além de ignorar que pessoas cenar, no Brasil, o nazifascismo europeu.
países que dependiam de tal aparato re- LGBT não nascem em árvores, e que fa- Temos visto a ação conjunta da extre-
forçaram a ideia de que pessoas negras zem parte de famílias e também podem ma-direita ao redor do mundo para cri-
eram violentas, propensas ao crime, in- constituí-las, o apresentador reforça minalizar, vilipendiar e estigmatizar as
telectualmente inferiores, moralmente duas ideias: a de que a categoria “família” pessoas LGBTQIAPN+. Resta saber se
corruptas, sexualmente predatórias, ge- não está acessível para tais corpos e que agentes democratas lutarão para banir
neticamente impuras, adoradoras do de- eles deveriam ficar restritos a um espaço. da esfera pública tais discursos, ou se ve-
mônio, e assim sucessivamente. As implicações políticas de tal dis- remos, mais uma vez, a leniência dos libe-
O mesmo discurso foi corroborado curso acarretam o não reconhecimento rais, que, como no século passado, têm si-
contra os judeus na Europa após o fim dessas pessoas como “família” – com sua do os principais aliados para que o nazi-
da Primeira Guerra Mundial e duran- consequente exclusão das políticas pú- fascismo triunfe nas mentes e corações
te a ascensão do nazismo na Alemanha. blicas voltadas à categoria – e sua colo- da classe trabalhadora.
Agora, a extrema-direita escolheu, para cação em guetos. Ora, não foi esse mes- Seguiremos orgulhosamente em luta,
B A P T I S TÃ O

justificar a crise de seu modelo econômi- mo discurso que produziu a senzala e na esperança de que vocês também fa-
co e social, um novo bode expiatório: as os campos de extermínio? O apresenta- çam a sua parte. •
pessoas LGBTQIAPN+. dor está sendo acusado pelo Ministério redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 51
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Assassinatos
duas garotas que compartilham suas mi-
sérias enquanto buscam um lugar ao sol.

à francesa
O assassinato de um produtor influen-
te coloca a aspirante a atriz Madeleine
no centro das investigações, pois a morte
ocorreu, supostamente, durante um en-
CRÍTICA Dois longas-metragens lançados contro em que ele a atacou sexualmente.
Pauline, além de amiga, é advogada e as-
no circuito de arte retomam, por caminhos sume a defesa da colega.
nada óbvios, o inesgotável gênero criminal Ozon aproveita a origem do texto para
reiterar seus aspectos teatrais. O julga-
P O R C Á S SI O S TA R L I N G C A R LO S mento é a primeira oportunidade encon-
trada para que os talentos de Madeleine
como atriz sejam ressaltados. Ela utiliza

O
o papel de ré para performar.
crime não compensa”, nema francês de fazer do “polar”, como
" prega o antigo ditado. Os eles chamam as histórias de crimes, um As referências indiretas ao movimen-
filmes, no entanto, fa- bom álibi para entreter ou questionar. to #MeToo e as semelhanças entre o as-
zem dinheiro contando Baseado numa peça de 1934, O Cri- sédio praticado pelo produtor da ficção
tramas de assassinatos, me É Meu traz a assinatura de François e os crimes sexuais cometidos pelo pro-
desde que o cinema roubou a ideia dos Ozon, cineasta capaz de passar do drama dutor Harvey Weinstein dão à trama um
escritores de histórias policiais. lacrimoso à comédia farsesca sem sair do colorido contemporâneo.
O Crime É Meu, em cartaz desde a tom. Seu novo filme pertence à linhagem Ozon, no entanto, não perde muito
quinta-feira 6, e A Noite do 12, que es- de 8 Mulheres (2002) e Potiche – Esposa tempo com mensagens explícitas e fil-
treia na quinta-feira 13, retomam o ve- Troféu (2010). ma seu divertimento como se brincasse
lho gênero de dois modos: o cômico e o O enredo mais que rocambolesco se- na companhia de um elenco movido pe-
trágico. E reafirmam a habilidade do ci- gue as peripécias de Madeleine e Pauline, lo prazer de representar.

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

STREAMING

Os quatro apartamentos de um prédio em


Roma compõem o microcosmo que Nanni
Moretti adota em Tre Piani (Reserva
Imovision) para examinar o estado das re-
lações humanas. Ao abraçar com força o
melodrama, o cineasta italiano troca a iro-
nia dos primeiros filmes por uma melan-
colia mais doce que amarga.

Nadia Tereskiewicz combina fragili- Do trágico ao cômico. A Noite


dade e falsidade em sua Madeleine, en- do 12 aborda o feminicídio.
O Crime É Meu é pura diversão
quanto Fabrice Luchini, Dany Boon e
André Dussollier flertam com a carica-
tura enquanto riem dela. A intromissão
de Isabelle Huppert no enredo, no pa- tiplos parceiros sexuais da vítima, o fil-
pel hiperbólico de um ícone do cinema me amplifica sua ambição.
Dois caras se conhecem, se amam e se per-
mudo, apaga qualquer suspeita de se- Em vez de se ater à trama de mistério, A
dem. A desordem das histórias tristes de
riedade. E isso não é pouco nestes tem- Noite do 12 lança foco sobre o feminicídio amor injeta vida em Os Fortes (MUBI),
pos sisudos. e aborda as relações diretas entre crimes primeiro longa-metragem do chileno Omar
A Noite do 12, por sua vez, recebeu, nes- contra mulheres e valores moralistas. Zúñiga, um filme que vai além dos limites
te ano, um punhado de troféus César, o Enquanto cada nova pista é seguida, da questão gay e desafia os estereótipos.
principal prêmio do cinema francês. Re- sem sucesso, o filme mapeia o modo co-
alizado por Dominik Moll, o drama cri- mo os investigadores projetam seus fan-
minal adota o formato clássico de misté- tasmas sobre os comportamentos femi-
rio conduzido por um inquérito policial. ninos. E não demora para que as aborda-
gens e os questionamentos policiais con-
Baseado em fatos reais, o filme recu- vertam a vítima em ré.
IMOVISION, DCI/CORFO/MEIKINCINE,
SONY PICTURES E FILM MOVEMENT

pera um caso que ficou sem solução. “To- Ao contrário dos “procedurals”, for-
do ano, a polícia judiciária abre mais de mato narrativo abundante em filmes e
800 investigações de homicídio. Cerca de séries construídos em torno da pergunta A viagem de uma garota através da Rús-
20% deles não são solucionados”, infor- “quem matou?”, A Noite dos 12 adota uma sia torna-se uma epopeia da solidão em
ma um letreiro. estratégia menos gasta. Suas perguntas Compartimento nº 6 (Amazon Prime
O assassinato brutal de uma garota sem respostas devolvem a culpa para as Video), do finlandês Juho Kuosmanen,
vencedor do Grande Prêmio do Júri no
num recanto rural é investigado por um leis não escritas – aquelas que, muitas ve- Festival de Cannes de 2021. No trem, os
time de detetives, todos homens. À medi- zes, servem mais para apagar do que pa- modos como tememos ou nos interessa-
da que as suspeitas recaem sobre os múl- ra punir crimes. • mos por outros desafiam expectativas.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 53
CLUBE DE REVISTAS
Plural

O diabólico prazer
mo peça decisiva de seu trabalho, os di-
ários nos revelam um escritor no qual

da confidência
a “dura tirania da realidade”, como es-
creve, aparece sempre filtrada por uma
ótica “subjetiva”. O predomínio da sub-
jetividade não significa, porém, alhea-
LIVROS Os diários de Lúcio Cardoso mento da realidade objetiva.
Como nos ensina o crítico alemão
revelam a potência de um autor que, no Theodor Adorno, diante de um mundo
auge dos romances realistas, sondou os tido como asfixiante, a dimensão social
da arte pode residir, justamente, no seu
dilemas existenciais em um País periférico deslocamento imaginário em relação
aos padrões culturais estabelecidos.
P O R FA B I O M A S C A R O Q U E R I D O *
E é nesse sentido que podemos com-
preender a literatura “intimista” de Lú-

P
cio Cardoso, inclusive a especificidade
or muito tempo a literatu- Subsolo, em um percurso cujo auge se- subversiva de seu catolicismo. Nos diá-
ra foi, no Brasil, uma das ria atingido em 1959, com o lançamen- rios, a liberdade subjetiva, que dá mar-
principais formas de fi- to de Crônica da Casa Assassinada, seu gem a meditações sobre literatura, ci-
guração da identidade na- romance de maior repercussão. nema, teatro, religião, ciência e relações
cional. A ela cabia revelar E nada melhor para compreender es- afetivas (homossexuais), apresenta-se
aquilo que não era evidente: o que, afi- se processo criativo aparentemente “fo- em tensão permanente com a “compli-
nal, era o Brasil, país que passara por ra do lugar” do que seus diários, lançados cada maquinaria dos fatos comuns”.
três séculos de colonização e quase em dois volumes, pela Companhia das Le- Perspectiva semelhante pode ser ob-
quatro de escravidão? tras, dentro de um projeto mais amplo da servada em Crônica da Casa Assassinada,
Até meados do século XX, esta era a editora de reeditar a obra do escritor.  romance em que a alternância de narra-
grande “missão” da literatura brasilei- dores, cada qual com seu ponto de vista,
ra. Nem por isso, ainda que quase sem- O primeiro volume é dedicado às notas acaba por revelar-se um quadro ampliado
pre à margem, perspectivas alternati- redigidas até 1951. Nelas, Cardoso exerci- da vida familiar do clã dos protagonistas.
vas deixaram de ilustrar a cena literária tava o “diabólico e raro prazer da confi- Nos dois volumes de Todos os Diários,
nacional. É aqui que podemos localizar dência”, fazia citações literárias e refletia muito bem organizados por Ésio Macedo
Lúcio Cardoso, escritor, poeta, drama- sobre a religião. O segundo reúne os diá- Ribeiro, que também assina o prefácio, ve-
turgo e roteirista cuja trajetória coinci- rios de 1951 a 1962, aí incluídas páginas mos em ato o desenlace criativo de um es-
de com o ciclo desenvolvimentista. secretas, até aqui inéditas, além de en- critor que apenas recentemente vem con-
Nascido no interior de Minas Gerais, saios publicados na coluna “Diário Não quistando o reconhecimento merecido.
em 1912, e radicado no Rio de Janeiro, Íntimo”, no jornal A Noite. Talvez porque, num momento em
onde viria a falecer em 1968, Cardoso Concebidos pelo próprio Cardoso co- que o presente é muito diferente do fu-
começou escrevendo romances de teor turo outrora prometido, tenha chegado
“social”, tais como Maleita, de 1934, e a hora de o Brasil resgatar aqueles escri-
Salgueiro, do ano seguinte. Mas foi ao tores que, há muito, já sondavam os di-
mergulhar em terrenos distintos da- O predomínio da lemas existenciais da nossa moderni-
queles tematizados pelas visões “rea- dade periférica. E Lúcio Cardoso, sem
listas” sobre o País que ele pôde expli-
subjetividade não dúvida, está entre eles. •
citar a originalidade de seu trabalho. significa, nos textos,
A guinada em sua obra aconteceu a um alheamento da *Fabio Mascaro Querido é professor
partir de 1936, quando publicou Luz no realidade objetiva de Sociologia da Unicamp.

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA

Foi durante o confinamento pandêmico


que Patrick Modiano, autor francês ganha-
dor do Nobel, nutriu sua imaginação para a
construção de Cena de Um Crime (Re-
O escritor tornou-se cord, 176 págs., 59,90 reais). No roman-
conhecido com ce, o protagonista, fechado em uma casa,
Maleita, de 1934 rememora um crime jamais solucionado.

A memória e a busca pela reconstrução do


passado – com imagens que, por vezes, re-
metem mais ao delírio que à realidade – ali-
nhavam também as três novelas de Yoko
Ogawa reunidas em A Piscina; Diário de
Gravidez; Dormitório: Três Novelas (Es-
tação Liberdade, 168 págs., 56 reais).
A RQUIVO OT TO L A R A RESENDE /ACERVO IMS

TODOS OS TODOS OS
DIÁRIOS, DIÁRIOS,
VOLUME I VOLUME II
Lúcio Cardoso. Lúcio Cardoso.
Companhia Companhia
das Letras das Letras
(448 págs., (424 págs.,
139,90 reais) 139,90 reais) A protagonista de Águas-Vivas Não Têm
Ouvidos (Fósforo, 200 págs., 69,90 reais)
convive, desde pequena, com a perda au-
ditiva. Adéle Rosenfeld, finalista do Prêmio
Goncourt, vale-se do humor para construir
uma narrativa sobre as diferentes formas
pelas quais o mundo pode ser percebido.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E J U L H O D E 2 0 2 3 55
AFONSINHO
CLUBE DE REVISTAS
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Esperanças renovadas
sencontrado. Mas o time da Cruz de Mal- Mas, no nosso caso, talvez não tivésse-
► Com a Seleção feminina ta vai acertar o passo (e os passes) a qual- mos, como os hermanos, um nome com a
às portas da Copa e Diniz quer momento, até porque, assim como o intimidade necessária para a condução
Botafogo, tem um passado honroso. do processo de formação do Selecionado.
indicado para assumir O mais importante foi ver o jogo trans- Fechada a opção por se disputar o dis-
interinamente a correr em um ritmo igualmente forte, pendioso mercado internacional, al-
masculina, vemos mas sem os atropelos desesperados da guns nomes vieram à baila, sendo os de
tal “intensidade”. As paralisações tam- Guardiola e Ancelotti os mais destacados.
um futuro possível bém foram muitas, mas, pelo menos, am- O treinador espanhol parecia o mais
se desenhando bos os times procuraram se valer mais da indicado pelas numerosas conquistas, pe-
técnica do que da força física. la proximidade com o nosso estilo tradi-
Depois disso, as notícias que se segui- cional e pelo fato de que ele sempre desta-
ram foram auspiciosas. cou a preferência pela “escola” brasileira.

C
onfesso que pensei seriamente A Seleção feminina conta com apoio de O italiano, por outro lado, demons-
em deixar de lado o futebol bra- uma estrutura sólida que foi sendo cons- trou, nas últimas glórias de sua vitorio-
sileiro masculino e me dedicar truída com cuidado desde a formação da sa carreira, um equilíbrio muito grande
a acompanhar exclusivamente o femi- comissão técnica, encabeçada pela sue- diante das situações decisivas.
nino, que vem crescendo rápido, em to- ca Pia Sundhage. Deve ter contado para a sua escolha
dos os sentidos. Agora, às vésperas do início da Copa do a proximidade, como técnico do Real
Esse pensamento ganhou força princi- Mundo na Austrália e na Nova Zelândia, Madrid, com nomes destacados dentre
palmente depois de eu ter visto o clássico os cuidados são muitos. Entre eles estão os jogadores brasileiros. Ancelotti con-
entre Palmeiras e Botafogo. desde a necessária adaptação à diferença vive diariamente com Vinícius Júnior,
Foi um jogo muito bom para os pa- de fusos horários no outro lado do mun- Rodrygo e Militão.
drões atuais, mas foi, ao mesmo tempo, do até a alimentação. Embora tudo fizesse pensar que
um jogo mecanizado, causador de um Ancelotti não deixaria a estabilidade à fren-
desgaste desnecessário. Vimos choques A competição terá início em duas se- te do clube mais vencedor do futebol mun-
e paralisações a todo instante. manas e, ganhar ou não, é do jogo. As con- dial para assumir a Seleção Brasileira, a
Os torcedores, neste momento, me dições estão dadas em um ambiente de insistência do presidente da CBF, Ednaldo
parecem unânimes na demonstração de camaradagem que, ao menos pelo que se Rodrigues, parece ter surtido efeito.
descontentamento diante dessa situação. nota, é excelente. Na escolha de Fernando Diniz,
Mas, felizmente, recuei da minha ideia a Outro anúncio importante da sema- Rodrigues mostrou, além de autocon-
tempo de assistir ao vivo, no Estádio Olím- na foi a escolha de Fernando Diniz para fiança, um atributo que ele destacou no
pico Nilton Santos, no Rio, o “clássico da o mandato-tampão até a suposta chegada treinador, mas que deve ser aplicado a ele
amizade” entre Botafogo e Vasco da Gama. do italiano Carlo Ancelotti. mesmo: arrojo.
A partida, realizada no domingo 2, Temos, dessa forma, certo alívio, em- Outra razão para aumentar a esperan-
marcou o início do período que se inicia bora reste um grande suspense pela ça no futuro do nosso futebol foram as
após a saída tempestuosa e barulhenta apresentação do nome principal. declarações de Diniz. Ele cristalizou sua
do técnico Luís Castro, que vai treinar o Ainda se discute a opção feita pela concepção de apostar na inventividade
Al-Nassr da Arábia Saudita. direção da Confederação Brasileira de e na criatividade, indo na direção opos-
A vitória tranquila, por 2 a 0, indica Futebol (CBF), mas, pessoalmente, vejo ta dessa maré de jogadores robotizados,
que o alvinegro estrelado pode dar se- coerência nas atitudes do seu presidente. obrigados a cumprir apenas funções pre-
quência à sua trajetória em busca de re- Já mencionei, aqui neste espaço, o ca- determinadas.
B A P T I S TÃ O

cuperar o brilho de sua história gloriosa. minho definido pela Argentina: uma so- Agora é defender essa concepção na
Bem verdade que o resultado se deve lução doméstica que acabou levantando prática, no dia a dia. •
também ao fato de que o Vasco anda de- brilhantemente a taça. redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
DRAUZIO VARELLA
CLUBE DE REVISTAS
Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento
da Aids no Brasil. É autor, entre outras obras, de Estação
Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção em 2000

Covid crônica?

das cognitivas e transtornos psiquiátri- ainda referem sintomas seis meses de-
► A OMS calcula que cos, entre outros sintomas debilitantes. pois da infecção aguda pelo SARS-CoV-2,
existam 65 milhões de A Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas um terço estará curado antes de
caracteriza como Covid longa os “sinto- chegar aos nove meses.
pessoas com Covid longa mas que surgem nos primeiros três me- Uma metanálise publicada em mar-
no mundo. Ainda não ses depois da infecção pelo SARS-CoV-2, ço de 2023 identificou os seguintes fato-
há um consenso sobre com duração de pelo menos dois meses”. E res de risco para desenvolver Covid lon-
toma o cuidado de acrescentar: “Embora ga: sexo feminino, idade, índice de mas-
o tempo de recuperação essa definição não seja aceita por todos”. sa corpórea (IMC) elevado, fumo e doen-
A imprecisão deve-se à dificuldade pa- ças preexistentes (asma, diabetes, doen-
ra se caracterizar o momento da cura. ça pulmonar obstrutivo-crônica etc.).

A
pandemia de Covid-19 foi um Primeiro, porque muitos pacientes não A necessidade de hospitalização e a
poço de surpresas. conseguem indicar o dia em que a sinto- gravidade do quadro durante a fase aguda
Quando surgiram os primei- matologia regrediu completamente. De- da doença aumentam o risco. Numa pes-
ros casos na China, muitos acharam que pois, porque não há exames laboratoriais quisa, pacientes que passaram acamados
esse Coronavírus não seria capaz de pro- capazes de fazê-lo. sete dias ou mais, hospitalizados ou não,
vocar uma epidemia mundial, entre eles A OMS calcula que existam 65 mi- tiveram mais chance de apresentar sinto-
o doutor Anthony Fauci, a maior autori- lhões de pessoas com Covid longa no mas persistentes nos 27 meses seguintes.
dade em doenças infecciosas dos Estados mundo. Segundo a Organização, ela se Desenvolver Covid longa no primeiro
Unidos. Em janeiro de 2020, antes de sur- instala em 10% a 20% dos infectados pe- episódio da doença aguda é mais comum
gir o primeiro caso no Brasil, tive a mesma lo SARS-CoV-2. do que por ocasião da segunda infecção.
impressão, da qual me retratei uma sema- A vacinação preventiva diminui subs-
na mais tarde, assim que as UTIs da Itá- Uma metanálise (análise de vários tancialmente o risco. Uma metanáli-
lia divulgaram as primeiras informações. estudos) realizada pela epidemiologista se publicada em março deste ano re-
A segunda surpresa foi a gravidade que a Tala Ballouz, da Universidade de Zuri- velou que a administração de duas do-
doença podia adquirir, especialmente em que, na Suíça, mostrou que a chance de ses da vacina reduz ainda mais o risco.
pacientes com doenças preexistentes: dia- recuperação da Covid longa é mais alta Esse resultado foi confirmado por uma
betes, doenças cardiovasculares e pulmo- no decorrer do primeiro ano de duração wpesquisa da Universidade de Oxford,
nares, fumo, pessoas com obesidade etc. da sintomatologia. no Reino Unido, que comparou a inci-
A surpresa seguinte veio ao tomar- O acompanhamento de 1.106 pacien- dência de Covid longa em cerca de 10 mi-
mos consciência de que nenhum país do tes que tiveram Covid-19 aguda antes da lhões de pessoas vacinadas, com quase
mundo dispunha de um sistema de saúde existência de vacinas, revelou que 22,9% 10 milhões de não vacinadas.
preparado para tratar tanta gente adoe- ainda se queixavam de sintomas seis me- Há duas medicações que demonstra-
cendo ao mesmo tempo. As imagens dos ses mais tarde. Depois de um ano, esse nú- ram a capacidade de reduzir o risco de
caminhões frigoríficos estacionados às mero havia caído para 18,5% e, após dois desenvolver a forma longa da doença,
portas dos melhores hospitais de Nova anos, para 17,2%. Segundo os autores, quando administradas na fase aguda: a
York são inesquecíveis. quando a sintomatologia persiste além metformina e o paxlovid. No entanto, os
Talvez a derradeira surpresa tenha desse prazo, a condição deve ser conside- resultados ainda precisam ser confirma-
sido a da Covid longa, caracterizada por rada crônica. dos por mais estudos.
sintomas persistentes por meses conse- O estudo de Andrea Foulkes, do O tratamento é apenas sintomático.
B A P T I S TÃ O

cutivos: perda de olfato e paladar, tosse Massachusets General Hospital, na ci- Não existem medicamentos específicos
seca, dor de cabeça, dores musculares, fô- dade de Boston, mostrou que a cura da para a Covid longa. •
lego curto, fadiga, neblina cerebral, per- Covid pode levar mais tempo. Dos que redacao@cartacapital.com.br

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