Você está na página 1de 62

ENSAIO LULA CONVIDA OS INIMIGOS PARA

INTEGRAR A EQUIPE MINISTERIAL E PARTILHAR CLUBE DE REVISTAS


MAMATA O PLANO DO CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA PARA LIMITAR VIAGENS E PRESENTES
O PODER. REALIZADA, ENFIM, A TÃO SONHADA OFERECIDOS POR EMPRESAS A JUÍZES, VÍCIO
CONCILIAÇÃO, ESCREVE MINO CARTA QUE SE ESTENDE POR TODAS AS INSTÂNCIAS

CASO DE POLÍCIA AUMENTA O CERCO AOS GOLPISTAS


A SERVIÇO DE BOLSONARO
ANO XXIX N° 1272 R$ 31,90
16 DE AGOSTO DE 2023
CLUBE DE REVISTAS

Exercite sua solidariedade!


Sua contribuição vai ajudar famílias e crianças
em situação de vulnerabilidade por meio de
25 projetos nas áreas de cultura, esporte,
educação e segurança alimentar.
CLUBE DE REVISTAS

Conheça a campanha
e faça sua doação!
Aponte a sua câmera para
o QR Code e doe via PIX:
CNPJ 34.267.237/0001-55
Federação Nacional das
Associações do Pessoal CEF

Ou doe via transferência


bancária: Agência: 1041,
Op.: 003, CC: 50174-4
Federação Nacional das
Associações do Pessoal CEF
CLUBE DE REVISTAS
16 DE AGOSTO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1272

Manifestantes
na Cúpula da
Amazônia, cujo
documento final
deixa lacunas.
Pág. 25

6 A SEMANA Zema deu


28 E N T R E V I S TA 37 LUIZ GONZ AG A BELLUZ ZO
um tiro no pé, afirma 38 S I S T E M A M O N E TÁ R I O
Ensaio João Azevedo, Uma moeda dos BRICS
governador da Paraíba pode prosperar?
A realidade
8 M I N O C A R TA
exibe um país cada vez 30 M A M ATA O CNJ quer
mais encalhado combater a farra das
17 P E D R O S E R R A N O
viagens dos juízes
33 ALDO FORNAZIERI
Nosso Mundo
40 E U A A fé inabalável
dos eleitores Plural
48
Seu País republicanos na
inocência de Trump
A CULTURA
Avanços e
18 I N D Í G E N A S
retrocessos na proteção
Economia VAI A
das terras Yanomâmi
34 C O M B U S T Í V E I S
As refinarias privatizadas
44 Á F R I C A A estratégica
região do Sahel
BRASÍLIA
seis meses depois praticam os maiores vira um barril
22 C L I M A Dá tempo de preços do País de pólvora
cumprir o Acordo de
PRODUTORES E ARTISTAS
E VA R I S T O S Á /A F P E WA R N E R B R O S . / S Y N A P S E

Paris, diz Carlos Nobre


25 JAQUES WAGNER
PRESSIONAM O CONGRESSO
26 S T F A adoção do juiz
POR MAIS PROTEÇÃO CONTRA
de garantias seria um A INVASÃO DOS STREAMINGS
avanço civilizatório
A CASA CAIU 50 P R O TA G O N I S TA O ator Franz Rogowski
A PRISÃO DE SILVINEI VASQUES, está em todas 52 T H E O B S E R V E R
A provocativa pergunta de Os Profetas
Capa: Pilar Velloso. Fotos: EX-DIRETOR DA POLÍCIA 54 I D E I A S Walter Benjamin em Ibiza
iStockphoto, Evaristo Sá/
AFP, Sergio Lima/AFP e RODOVIÁRIA FEDERAL, AMPLIA 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por Arthur Chioro
Mateus Bonomi/Agif/AFP O CERCO AOS GOLPISTAS 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) de casa: reduzir o desmatamento na
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
Amazônia a zero até 2030 e preparar o
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis pacote da transição energética.
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
Mas é necessário um esforço global.
REVISOR: Hassan Ayoub Rosa Carmina Couto
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
A CULTURA
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
VEM DA ÁFRICA
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., Senhor Mino Carta, tenha pena
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, dos corações de pessoas de já
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
muitas primaveras. Este seu artigo fez o
meu domingo ser demais. Decadência
CARTA ONLINE intelectual, “imbecilização” coletiva e o
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
novo sertanejo esganiçado: resumo do
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana OPERAÇÃO VINGANÇA Brasil atual. Saudades de Caymmi.
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
Nair Odete de Campos
Não existe outro termo a ser
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
usado senão vingança, mas tam-
REDES SOCIAIS: Caio César GOSTO DE FEL
SITE: www.cartacapital.com.br bém podemos classificar como revan-
Não imaginam que as abelhas
che, desforra, entre outros, para qualifi-
fazem parte da polinização.
car tal comportamento da polícia paulis-
Ao pousar de flor em flor, elas
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
ta, que, ao agir dessa forma, se equipara
coletam e distribuem o pólen, etapa
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 ao seu algoz de pés descalços com a
essencial na produção de frutas.
vantagem de possuir botas militares
PUBLISHER: Manuela Carta Estes e outros insetos são essenciais
DIRETOR EXECUTIVO: Marcelo Romão com o requinte do lustre.
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene
para o nosso ecossistema.
José Carlos Gama
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos Ruben Terranova
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios A Polícia Militar, nos moldes
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, Sem abelhas, em alguns anos, fi-
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva atuais, tem de acabar. Triste pelo
caremos sem alimentos. Os cien-
pobre policial que morreu em uma guer-
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: tistas dão o alerta, resta ouvir.
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, ra inútil. Mais triste ainda pelos civis ino-
enio@gestaodenegocios.com.br Dênia Orieta
centes que morrem neste ato cruel de
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto,
vingança.
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
ESTRANHO
Ferdinand Dias
agholanda@Agholanda.com.br NO NINHO
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br
Acredito que Roberto Requião
A polícia que não busca
motivos para matar de graça ago- é o único que pode ser candidato.
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda.
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. ra tem o aval para queimar arquivos Os concorrentes do ex-governador
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 têm cargos importantes. Além disso,
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se
e “limpar” a área.
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não Simone Lopes não ser um petista histórico pode ajudar
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou na candidatura ao Senado, pois o PT
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584,
EM EBULIÇÃO tem uma grande rejeição no Paraná.
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de A emergência climática é uma rea- Requião é, com certeza, alguém
acordo com a Lei de Imprensa.
lidade no planeta. A queima de competente, foi governador e
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP combustíveis fósseis tem de parar e ser senador e o PT de fato o desvaloriza.
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL)
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos substituída por energias renováveis. Os Theo Wacker Afonso
efeitos das mudanças climáticas são vi-
síveis com os eventos extremos: meses DE SOL A SOL
hiperquentes no Hemisfério Norte e for- A transição energética
tes temporais no Hemisfério Sul. O go- será o avanço do Nordeste.
verno brasileiro tenta fazer o seu dever Vinicius Menezes

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
Fale Conosco: http://Atendimento.CartaCapital.com.br E-mail: cartas@cartacapital.com.br, ou para a Rua da Consolação, 881, 10º andar, 01301-000, São Paulo, SP.
De segunda a sexta, das 9 às 18 horas – exceto feriados •Por motivo de espaço, as cartas são selecionadas e podem sofrer cortes. Outras comunicações para a redação devem ser
remetidas pelo e-mail redacao@cartacapital.com.br
Edições anteriores: avulsas@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 5
CLUBE DE REVISTAS

A Semana
Queima de arquivo?

Jair Barbosa Tavares, o Zico


Bacana, ex-vereador do Rio
de Janeiro, foi assassinado
na segunda-feira 7. Bacana Lira, o
foi citado na CPI das Milícias, tranca-pauta
depôs nas investigações
sobre a morte de Marielle
Franco e havia escapado de
um atentado em 2020. O
ex-policial estava em uma
padaria no bairro de
Guadalupe quando ele e o
irmão, também morto, foram
atingidos por disparos feitos
por ocupantes de um carro.
Em 2008, o antigo PM havia
sido investigado por suposto
envolvimento com um grupo
criminoso instalado em
favelas na Zona Norte
da capital fluminense.

Congresso/ Passo de tartaruga


À espera da reforma ministerial, o Centrão trava a pauta

A
chantagem continua. Após o em obras de infraestrutura. O relançamen-
recesso parlamentar, o presi- to do PAC é parte da “agenda positiva” do
dente da Câmara, Arthur Lira, segundo semestre. O governo também pre-
e seus associados do Centrão tende anunciar um programa de transição
instituíram no Congresso uma espécie de econômica sustentável, base da reindus-
“operação-padrão”, enquanto não avan- trialização do País, e a segunda etapa da re-
ça a reforma ministerial que vai acomo- forma tributária, destinada a taxar os mais
dar o PP e o Republicanos no primeiro es- ricos. Lira nega a relação entre a lentidão
calão do governo. O Palácio do Planalto te- da pauta e a cobiça ministerial de sua ba-
me agora que o tão esperado relançamen- se parlamentar. Durante sua entrevista ao
to do Programa de Aceleração do Cresci- programa Roda Viva, da TV Cultura, o de-
mento, previsto para a sexta-feira 11, te- putado enviou, no entanto, vários recados
nha de ser adiado ou acabe esvaziado, ca- ao Palácio do Planalto. Criticou o privilégio
so os deputados não aprovem os derradei- dado ao Senado na indicação de ministros,
ros ajustes no arcabouço fiscal até lá. Sem reclamou da articulação política do gover-
as novas regras de controle das contas pú- no, voltou a defender o semipresidencialis-
blicas, o presidente Lula fica impedido de mo e afirmou que sem o Centrão o Brasil
reservar os 60 bilhões de reais por ano para teria “virado uma Argentina” nas mãos do
reativar o plano de investimentos públicos PT. Melhor Lula colocar a barba de molho.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
16.8.23

Ucrânia/ Ouvidos moucos


Vidas negras
importam
Putin e Zelensky rejeitam as propostas de mediação
O último dos quatro
policiais acusados de
assassinar George Floyd foi

A
depender do russo Vladi- nada no leste ucraniano, com pesadas per-
condenado na segunda-feira
mir Putin e do ucraniano das dos respectivos arsenais, avanços terri- 7. Tou Thao cumprirá quatro
Volodymyr Zelensky, o con- toriais irrisórios e significativas baixas das anos e sete meses de
flito na Ucrânia se estenderá tropas. Segundo Putin, o fim da invasão de- prisão por cumplicidade
por tempo indeterminado. Após a reunião pende da rendição dos invadidos. “Estamos no homicídio. Floyd morreu
sufocado por um policial
na Arábia Saudita no domingo 6, que rece- convencidos de que um acordo verdadeira-
branco que se ajoelhou
beu delegações de 40 países, mas não conse- mente global, duradouro e justo só é possível sobre seu pescoço em uma
guiu avançar em uma proposta de paz, Putin se o regime de Kiev puser fim às hostilidades abordagem em 2020.
e Zelensky resolveram deixar clara a falta de e aos atentados terroristas”, afirmou Maria O assassinato desencadeou
disposição para negociar, embora nenhuma Zakharova, porta-voz da diplomacia russa. uma série de protestos
antirracistas nos Estados
das partes tenha condições neste momento Zelensky, por sua vez, voltou a criticar Lula
Unidos e impulsionou o
de vencer a guerra – a batalha está estacio- em entrevista à CNN e afirmou que a única movimento Black Lives
saída é Moscou devol- Matter (Vidas Negras
ver os territórios ocu- Importam). “Não cometi
pados. Será? Circulam esses crimes”, declarou
Thao na audiência. “A minha
informações de que o
consciência está limpa.”
Ocidente, liderado pe-
los Estados Unidos,
pressiona a Ucrânia pa-
ra aceitar um acordo
até o fim do ano.

Estes “patriotas”
sacrificam o futuro
de seus povos

Equador/ TERROR ELEITORAL


REDES SOCIAIS, PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA, ALEX ANDER

FERNANDO VILLAVICENCIO, CANDIDATO À PRESIDÊNCIA, É ASSASSINADO


K A Z A KOV/ P O O L /A F P E B RU N O S PA DA /AG . CÂ M A R A

Seis suspeitos de participar nas pesquisas, atrás da ad- gados à quadrilha assumi-
do assassinato, na quarta- vogada Luisa González. O ram o ataque e ameaçaram
-feira 9, de Fernando jornalista levou três tiros na outro candidato. “Toda vez
Villavicencio, candidato à cabeça e, de acordo com que políticos corruptos não
Presidência do Equador, fo- testemunhas, os assassinos cumprirem suas promessas
ram detidos, segundo a Pro- fizeram mais de 30 disparos quando receberem nosso di-
curadoria-Geral do país. O contra a comitiva na saída do nheiro, que é de milhões de
atual mandatário, Guillermo Colégio Anderson, no cen- dólares, para financiar suas
Lasso, decretou estado de tro-norte de Quito. A facção campanhas, serão dispensa-
exceção, mas manteve as criminosa Los Lobos reivin- dos”, diz um dos encapuza-
eleições para o domingo 20. dicou o atentado. Em vídeo dos. “Você também, Jan
Representante do Movimen- publicado na rede social X Topic, mantenha sua palavra.
to Construye, Villavicencio (antigo Twitter), homens en- Se você não cumprir suas Villavicencio aparecia
aparecia em segundo lugar capuzados supostamente li- promessas, será o próximo.” em segundo nas pesquisas

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 7
CLUBE DE REVISTAS
Ensaio

O país do absurdo
Enquanto casa-grande e senzala ficam de pé,
a minoria rica divide a torta do poder
P O R M I N O C A R TA

C
erto dia remoto, disse mia daninha é cada vez mais evidente. dominado pelos miasmas do desmata-
a Lula, velho amigo, Depois de eleito para o primeiro man- mento. À tradição golpista ardorosamen-
que a situação no Bra- dato, Lula algumas vezes referiu-se à ca- te renovada de um exército cujo patro-
sil só seria resolvida sa-grande e logo desistiu. As consequên- no, Duque de Caxias, notabilizou-se pe-
por muito sangue nas cias de um passo em falso acontecem com lo genocídio do povo paraguaio, somente
calçadas. Reagiu ele presteza. Quanto haveria de ser demoli- a digna presidente Dilma Rousseff se dis-
com bonomia, mas convidou-me a alimen- da, continua de pé e o Brasil não emerge pôs a resistir, e à torpe manobra do sur-
tar a esperança. Em quê exatamente não da sua condição de país caudatário, ex- fista Michel Temer, corrupto contumaz,
declinou. Evitei falar dos meus mestres portador de commodities num cenário a sitiar a golpeada no Palácio da Alvorada.
de vida, de Kant a Antonio Gramsci, pas-
sando por Spinoza. Algo é certo: esperan-
ça não tenho em relação ao futuro de um
país que não somente é tão desigual, mas
também primitivo, complexado, ignoran-
te. Nestas condições, o resultado é tão fa-
tal quanto inelutável. Fiquemos, no en-
tanto, no curto espaço das nossas vidas.
Desde o início, cometeu-se o pecado
original ao seguir pelo caminho da con-
ciliação: por aqui se destina simplesmen-
te às desavenças entre as elites na hora
de cortar o bolo do poder. Refiro-me à
minoria rica a habitar a casa-grande,
enquanto os pobres, maioria fluvial de
comportas rompidas, haverão de se con-
formar com sua miséria de largo espec-
tro. Daí sermos aferrados à Idade Mé-
dia da casa-grande e da senzala, ainda e
implacavelmente de pé. Aliás, a dicoto- Ela entendeu as responsabilidades do poder

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
REDES SOCIAIS E ICHIRO GUERRA

CLUBE DE REVISTAS

Em praça pública a homenagem ao grande genocida

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 9
CLUBE DE REVISTAS
Ensaio

Não é, certamente, responsabilida- rosos, chamou-se Bolsa Família e serviu As excelentes razões da alegria
de da natureza a irrefreável decadência para enganar por algum tempo os benefi- de Temer foram profetizadas pela
clarividência de Raymundo Faoro
do país dono de outro destino. Culpados ciários. Ao mesmo tempo, o governo não
seus governantes no galope do tempo conseguia emergir de uma vetusta ma-
sempre a favor da minoria gananciosa, neira de fazer política.
com o contraponto esquálido da maioria

E
faminta, frequentemente obrigada a vi- , em nome do status quo, en-
ver ao relento pelas calçadas das metró- carava como prova de má-
poles, ou debaixo de pontes e viadutos, xima esperteza a eventual
intérprete involuntária de uma tragédia. aliança com os inimigos. À
Permito-me repetir neste mesmo espa- Dilma disposta a pedalar nas encostas
ço as palavras pronunciadas por meu fra- da economia sugeria que procurasse o
terno amigo Raymundo Faoro, pensador aconselhamento de Michel Temer. Ago-
imbatível pela sua obra, de Os Donos do ra atira-se à composição de um gover-
Poder à A Pirâmide e o Trapézio, textos no de unidade nacional, com a partici-
capitais para entender o Brasil. pação dos seus piores inimigos e do pró-
Pois ele me disse, já às vésperas da prio Brasil, a começar por Arthur Lira.
morte, três meses depois da posse do no- Pretende-se navegar por amplas rotas,
vo presidente: “Já errou”. O erro era a es- mas a realidade exibe um país cada vez
colha da política conciliatória, primeira mais encalhado.
fonte das desgraças atuais. O País é ví- Algo neste instante constrange
tima de si mesmo. Ao povo, em lugar de mais do que outros fatos, pelo menos
um Estado do Bem-Estar Social, deram- aos meus olhos: os índices de baixís-
-se as migalhas caídas da mesa dos pode- sima escolaridade a nos colocar em si-

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Romeu Zema, símbolo do caos tuações de penúria intelectual muito intelectual, recomenda-se aludir a Ro-
atual para gáudio de Arthur Lira, além das aparências. Quanto à violên- meu Zema, governador de Minas Gerais,
vilão de elevado porte
cia e ao ódio a caracterizarem este mo- defensor de um projeto de secessão pa-
mento, não esqueçamos que os gover- ra colocar no comando do País os esta-
nos do Brasil nunca puniram a feroci- dos “mais inteligentes” por ele escolhi-
dade da ditadura nos porões da tortura dos. Haverá quem se orgulhe por ter nas-
e, mesmo à luz do dia, onde quer surgis- cido paulista, ou seja, cidadão do estado
se a oportunidade de sustar até a mais mais reacionário da pátria nativa.
tênue tentativa de resistência. Diga-se que o mundo não brinca em
serviço. O livro vencedor de vários prê-
M A RCEL LO CASA L JR./A BR, M A RIN A R A MOS/AG. CÂ M A R A ,

N
ADRIANA LORETE/PRENSA TRÊS E MARCOS CORRÊA /PR

omes de ditadores e tortu- mios é assunto de um filme em exibição


radores, fardados ou pai- mundo afora intitulado Oppenheimer,
sanos, cabem até hoje nas sobre o cientista norte-americano capaz
placas de avenidas, praças, de valer-se da fissão do átomo descober-
pontes, viadutos e edifícios em todo o ta por Enrico Fermi para inventar a bom-
País, acinte permitido quando não cele- ba de hidrogênio que o presidente Harry
brado. A paternidade escancarada de Truman, com o propósito pretensamen-
muitas manifestações atuais é de uma te nobre de apressar o fim da Segunda
obviedade dolorosa, sem exclusão de Guerra Mundial na frente oriental, man-
quadrilhas, como aquela a figurar na ca- dou lançar em Hiroshima e Nagasaki.
pa desta edição. O fenômeno ganha en- Consta nas entrelinhas da obra que
tão uma dimensão espantosa, de pro- Oppenheimer buscava a arma adequa-
porções infinitamente maiores. da para acabar com Hitler. Resta a dúvi-
Na outra vertente, aquela da carência da: teria sido melhor destruir Berlim? •

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 11
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

O mito e o ajudante,
vendedores
de relógio

Um por um
A CPI, O STF E A POLÍCIA FEDERAL
CERCAM OS BOLSONARISTAS ENVOLVIDOS
NA TRAMOIA GOLPISTA
por M AU R ÍCIO THUSWOHL

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

A
ndam fúnebres tiu. Parênteses: os alertas da PM ao en-
os dias do bolso- tão secretário de Segurança do Distri-
narismo. Passa- APÓS A PRISÃO DE to Federal são públicos, de conhecimen-
dos nove meses SILVINEI VASQUES, to até dos cambuís que enfeitam de flo-
da derrota nas EX-DIRETOR res a capital. Sobre a minuta do golpe, o
urnas, o delírio DA POLÍCIA documento escrito para justificar o fe-
do círculo mais chamento do STF, a prisão de ministros
próximo de Jair Bolsonaro de impor, por RODOVIÁRIA da Corte e a intervenção militar, Torres
meio de um golpe, o domínio incontestá- FEDERAL, CONVÉM classificou de “imprestável” e “aberra-
vel sobre 8 milhões de quilômetros qua- A BOLSONARO ção jurídica”, mas não explicou o motivo
drados deu lugar ao pavor incontrolável COLOCAR AS de manter uma cópia em casa nem disse
de passar os próximos anos confinado, quem preparou e distribuiu o rascunho.
na melhor das hipóteses, em um cubí- BARBAS DE MOLHO Integrantes da CPI apontam, no en-
culo de 6 metros quadrados. A realida- tanto, provas abundantes, inegáveis,
de tem sido cruel. A fina flor do entourage da participação do ex-ministro na tra-
bolsonarista está, a cada dia, mais lon- vos preferenciais das operações da Polí- moia golpista. “Anderson Torres men-
ge dos palácios e mais perto do xilindró. cia Rodoviária no segundo turno. “Nin- tiu muito na sessão, mas todos os do-
O mais recente episódio a abalar as es- guém deixou de votar e o próprio Tri- cumentos foram lidos para ele, expos-
truturas do ex-presidente e associados bunal Superior Eleitoral reconheceu”, tos ao público, e com certeza chegarão
foi a prisão, na quarta-feira 9, de Silvi- afirmou o depoente aos parlamentares à PGR, PF e STF. Terá de pagar pelo cri-
nei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodo- da comissão. Quanto ao fato de ter via- me que cometeu e, ao fim do processo,
viária Federal. A detenção foi autorizada jado para os Estados Unidos dois dias ele, que já está com tornozeleira, acaba-
após surgirem novas evidências de que, antes do “Capitólio à brasileira” em 8 rá condenado”, acredita o deputado fe-
sob o comando de Vasques, a PRF agiu de janeiro, as invasões simultâneas do deral Rogério Correia, do PT. “A comis-
para impedir ou dificultar o trânsito de Congresso, Palácio do Planalto e Supre- são avançou na demonstração do pro-
eleitores no Nordeste, região decisiva pa- mo Tribunal Federal, o ex-ministro de cesso de golpe. A cada semana as no-
ra a vitória de Lula. O delegado é investi- Bolsonaro ofereceu uma explicação sin- vidades surgem em documentos, fil-
gado pelos crimes de prevaricação, vio- gela e mentirosa. “Se eu tivesse recebi- mes e depoimentos. Veja o caso do Sil-
lência política e uso da máquina pública do alertas, não teria viajado”, garan- vinei Vasques, que também falou mui-
para interferir em processo tas mentiras na CPI. Todos
eleitoral democrático. os dados foram checados e
A prisão de Vasques é isso, inclusive, fortaleceu a
má notícia para o bolsona- investigação que culminou
rismo de forma geral, mas na sua prisão.”
especialmente ruim para o Vasques é o terceiro gol-
ex-ministro da Justiça An- pista a parar na prisão, ao
derson Torres, atualmente lado de Torres e do tenen-
em prisão domiciliar. Um te-coronel Mauro Cid, ex-
dia depois de comparecer à -ajudante de ordens de Bol-
CPI dos Atos Golpistas e se sonaro, detido no Batalhão
declarar inocente de toda do Exército de Brasília des-
REDES SOCIAIS E AL AN SANTOS/PR

e qualquer acusação, além de 3 de maio. Do trio, Cid


de legalista, Torres voltou tornou-se em grande me-
ao centro da tramoia antes dida, um totem do bolso-
de a Terra completar uma narismo, mistura de fal-
volta sobre o próprio eixo. sa malandragem, covardia
Do Ministério da Justiça e déficit cognitivo. As his-
de Bolsonaro saiu o mapa tórias do tenente-coronel
com os municípios mais conferem um certo ar cômi-
“lulistas” do Nordeste al- Delgatti e Zambelli: relações para lá de perigosas co à tragédia generalizada.

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 13
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

A última? A tentativa de vender por 300


mil reais um relógio Rolex presenteado a
Bolsonaro pelos monarcas sauditas, par-
te do conjunto de joias que o ex-presiden-
te queria surrupiar do Erário. O núme-
ro de presos não deve, no entanto, parar
por aí. “Os crimes são graves. Dá cadeia,
podemos dizer assim. Crimes de organi-
zação criminosa contra a democracia e o
patrimônio público. Com certeza, mui-
ta gente deve ser presa se a Justiça andar
dentro do trilho”, avalia o advogado e pro-
fessor de Direito Constitucional da PUC
de São Paulo Pedro Serrano (coluna à pág.
17). “O cerco está se fechando para Bolso-
naro e para o bolsonarismo”, acrescenta o
advogado Marco Aurélio de Carvalho, co-
ordenador do Grupo Prerrogativas.

A
leva de prisões vai
da cúpula à base. Na
seg u nda-fei ra 7, a
Procuradoria-Geral da
República apresentou as
alegações finais nas ações penais con-
tra 40 réus das invasões de 8 de janeiro.
Ainda a nutrir esperanças de permane-
cer no cargo, Augusto Aras, que ao longo
dos quatros anos de governo Bolsonaro
reavivou a pecha de “engavetador-geral”,
deu aval a um pedido de “punição exem- Mentir na CPI não foi de muita valia para a missão de Bolsonaro de invadir o sis-
Vasques, preso na quarta-feira 9 por atentar
plar” aos envolvidos nos distúrbios. As contra o processo eleitoral
tema do TSE. Neste caso, missão dada
penas máximas podem chegar a 40 anos não foi missão cumprida. O ex-presiden-
de prisão. No mesmo dia, o ministro te, segundo relatos na mídia, teria ad-
Alexandre de Moraes, do STF, revogou a Combate aos Atos Antidemocráticos. mitido a amigos o teor da conversa com
detenção de 90 acusados, que passarão a Musa do bolsonarismo, a deputada Delgatti. Preso por determinação do Su-
usar tornozeleiras eletrônicas, mas man- federal Carla Zambelli, do PL, é outra premo, o hacker iria prestar depoimen-
teve outros 150 na cadeia. Os réus res- na mira. O hacker Walter Delgatti Ne- to à CPI na quinta-feira 10, após o fecha-
pondem pelos crimes de associação cri- to, aquele mesmo a expor o conluio en- mento desta edição. Segundo a relato-
minosa armada, golpe de Estado, aboli- tre Sergio Moro e a força-tarefa do Mi- ra da comissão, senadora Eliziane Ga-
ção violenta do Estado Democrático de nistério Público durante a Operação La- ma, do PSD, o depoimento é importante
Direito, deterioração de patrimônio pú- va Jato, afirma ter sido contratado pela para “esclarecer como a deputada Car-
blico tombado e dano qualificado por parlamentar para tentar invadir e des- la Zambelli atuou de modo a questionar
violência e grave ameaça. “A associação moralizar as urnas eletrônicas. Sem a legitimidade do sistema eleitoral bra-
criminosa insuflava as Forças Armadas sucesso na empreitada, Delgatti teria sileiro nas eleições de 2022”.
à tomada do poder e tinha o objetivo de hackeado os computadores do Conse- Outro bolsonarista de carteirinha, o
ocasionar a deposição do governo legiti- lho Nacional de Justiça e acessado da- influenciador digital Allan dos Santos
mamente eleito”, anotou o subprocura- dos privados de Moraes. Mais: em uma virou réu por ordem do Tribunal Regio-
dor-geral Carlos Frederico dos Santos, reunião no Palácio do Planalto inter- nal Federal da 1ª Região na segunda-fei-
coordenador do Grupo Estratégico de mediada por Zambelli, teria recebido ra 7 por crime de ameaça contra o minis-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Cid continua uma fonte pela qual jor-


ram novas relações. A quebra do sigi-
lo dos e-mails e do telefone do militar
tem fornecido não só relatos pitorescos,
entre eles a negociação do Rolex, mas
evidências dos hábitos duvidosos do
clã Bolsonaro. A CPI obteve, entre ou-
tras, informações de que integrantes da
equipe de Cid depositaram de forma fra-
cionada e em dinheiro vivo 60 mil reais
na conta de Michelle Bolsonaro em um
período de oito meses ao longo de 2022.
Ao todo foram realizados 45 depósitos,
todos abaixo de 6 mil reais, prática, se-
gundo o Conselho de Controle de Ativi-
dades Financeiras, normalmente adota-
da para dificultar o rastreamento do di-
nheiro. As revelações motivaram nova
convocação do tenente-coronel à CPI –
da última vez, escorado por um habeas
corpus, ele permaneceu calado, a ponto
de não informar nem a sua data de nas-
cimento. Outro objetivo dos deputados
e senadores governistas da comissão é
extrair do militar informações sobre a
participação de oficiais da ativa na cons-
piração golpista, evidenciada nas con-
versas reveladas entre o ex-ajudante de
ordens e o coronel Jean Lawand Júnior,
segundo quem as Forças Armadas “es-
tro Luís Roberto Barroso, do STF. A de- Torres não aprendeu nada com o depoimento tavam apenas esperando Bolsonaro dar
do parceiro Vasques. O ex-ministro,
cisão anula outra, tomada pela 12ª Va- de tornozeleira eletrônica, também preferiu
a ordem” para tomar o poder.
ra Federal em agosto de 2021, segundo a mentir aos parlamentares

N
qual Santos estaria protegido pelo prin- o espectro bolsonaris-
cípio da liberdade de expressão. À épo- ta, os militares da ati-
ca, após ser chamado de terrorista digi- va ou da reserva per-
“A ASSOCIAÇÃO
LUL A M A RQUES/A BR E M A RCOS OLIV EIR A /AG. SEN A DO

tal pelo ministro, o blogueiro disse que manecem a distância


“se tirar o digital e deixar só terrorista, CRIMINOSA segura das garras da
Barroso verá o que será feito com ele”. O INSUFLAVA AS Justiça. Uma das razões é a delicada
blogueiro fugiu para os Estados Unidos, relação do governo Lula com as Forças
cujas autoridades negaram sua extradi- FORÇAS ARMADAS Armadas, embora a convicção a respeito
ção ao Brasil, e tenta reorganizar seu ca- À TOMADA DO do envolvimento da caserna na tentati-
nal de “notícias”, o Terça Livre, fábrica PODER”, ANOTOU O va de golpe se reforce a cada dia. A que-
de fake news a serviço de Bolsonaro. SUBPROCURADOR- bra do sigilo telemático de Cid revelou
O nome central da trama continua a que, em março, o Gabinete de Segurança
ser, no entanto, o tenente-coronel Cid. -GERAL CARLOS Institucional repassou, por intermédio
Há um temor generalizado de que o aju- FREDERICO DOS do ajudante de ordens, e-mails funcio-
dante de ordens não resista à pressão ou SANTOS nais “urgentíssimos” a Bolsonaro com
ao risco de virar bode expiatório e aceite detalhes sobre viagens nacionais e in-
uma delação premiada. Mesmo calado, ternacionais de Lula, risco à seguran-

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 15
CLUBE DE REVISTAS
R EPORTAGEM DE CA PA

ça do mandatário. As mensagens fo-


ram enviadas por três remanescentes
da gestão do general Augusto Heleno no
GSI durante o governo anterior: Márcio
Alex da Silva, do Exército, e Rogério
Dias Souza e Dione Jefferson Freire, da
Marinha. O órgão promete apurar os fa-
tos. “Vamos abrir sindicância e afastar
de suas funções os envolvidos”, afirmou
o general Marcos Antônio Amaro dos
Santos, atual ministro-chefe.
Segundo Correia, a tentativa de gol-
pe fica cada vez mais nítida. “Desde o 7
de Setembro de 2021 Bolsonaro ameaça
o País com um golpe, e a partir dali pas-
sou a deteriorar as relações democráti-
cas, negando as urnas eletrônicas e ata-
cando o Supremo e o Congresso. Todo
esse procedimento levou à tentativa de A Procuradoria-Geral da República pede da lixeira dos computadores. Eis aí uma
punição exemplar aos invasores do 8 de Janeiro.
surrupiar as eleições com uma gastança boa linha de defesa de Bolsonaro, caso
As penas podem chegar a 40 anos de prisão
incomensurável antes do primeiro tur- ele venha a responder na Justiça por es-
no e o plano para impedir eleitores de vo- ses crimes: o golpe era inviável por cau-
tar”, diz. “Bolsonaro, na verdade, estava após a derrota, em um discurso de ape- sa do completo despreparo dos golpistas.
por trás, lá nos Estados Unidos, articu- nas dois minutos, no qual não falou sobre A estratégia de “esperar o golpe”,
lando o processo golpista que culminou o resultado das urnas nem mencionou o acrescenta Correia, continuou com a
com a tentativa de bomba no aeropor- nome de Lula. Outra revelação feita pe- ida do ex-presidente para os EUA. “Por
to, o fechamento de estradas, a quebra- la CPI: assessores do ex-presidente ex- trás de tudo, evidentemente, estava Bol-
deira no dia da diplomação do presiden- cluíram 17.354 e-mails funcionais antes sonaro.” O deputado garante: a CPMI
te Lula e, finalmente, o 8 de Janeiro.” As de deixarem o poder, episóedio que con- “tem muito mais” elementos para indi-
conexões estão demonstradas pela CPI firma a reduzida capacidade intelectual ciar o ex-presidente. “Esses indiciamen-
e constarão do relatório final, garante o da equipe do ex-capitão. Os assessores tos serão feitos e os crimes correlatos
parlamentar. “Vislumbramos um relató- excluíram os e-mails da caixa principal, serão mencionados, para que o Supre-
rio que será muito concreto e rico em de- mas esqueceram de apagar os arquivos mo possa, no fim das investigações, de-
talhes para mostrar o processo de golpe.” finir as punições necessárias por meio
de processo judicial. Isso vale para mui-
“POR TRÁS

U
m forte indício da par- ta gente e termina, com gravidade ain-
ticipação de Bolsonaro, da maior, em Bolsonaro, que deverá ser
DE TUDO,
segundo integrantes da indiciado e terá solicitada a pena que,
CPI, são os e-mails com EVIDENTEMENTE, em seu caso, levará à prisão.” Para Car-
o discurso de reconheci- ESTAVA valho, não se trata de revanchismo. “Is-
mento da vitória de Lula que o então pre- BOLSONARO”, so terá efeito pedagógico, uma demons-
sidente derrotado se recusou a ler publi- tração para a sociedade de que atentar
AFIRMA O
camente, após a divulgação dos resulta- contra as instituições é assumir um ris-
dos eleitorais. O texto, em posse da co- DEPUTADO co extremamente alto, que seguramen-
missão, foi redigido pelo ex-ministro ROGÉRIO CORREIA, te terá sérias consequências do ponto
das Comunicações Fábio Faria, e en- INTEGRANTE DA CPI de vista jurídico. Não podemos permi-
TON MOLIN A /A FP

viado a Bolsonaro com cópia para Carlos tir que a eventual falta de responsabi-
DOS ATOS
França, então ministro das Relações lização possa servir de incentivo para
Exteriores. O candidato à reeleição ma- GOLPISTAS ataques futuros. Creio que o sistema de
nifestou-se pela primeira vez 48 horas Justiça tem essa compreensão.” •

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PEDRO SERRANO
CLUBE DE REVISTAS
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Golpismo e justiça

Supremo adota, por sua natureza institu- telas necessárias no combate ao golpismo
► A luta contra a tentação cional como Poder Estatal, precipuamen- e na defesa da democracia é que o Judi-
autoritária não deve te, o mecanismo da força física legítima, ciário deve promover uma prestação ju-
para impor seus comandos, mas a ação de risdicional isenta de abusos. É preciso o
reduzir-se à resposta defesa da democracia, para ter real eficá- cumprimento estrito à Constituição e à
da violência estatal cia, não deve aí se esgotar. Cabe à socie- lei, inclusive para que não se criem márti-
dade civil expandir as ações do sistema res e um ambiente social antagônico à luta
de Justiça em defesa da democracia para pela democracia. Por todas essas razões,
outros ambientes da sociabilidade consignamos que a defesa da democracia

D
esafios públicos, quando so- não pode engendrar um segundo proble-
lucionados isoladamente pela O constrangimento moral, político ma público. A violência estatal é insufi-
violência estatal, tendem a es- e social é absolutamente fundamental ciente para, com eficácia, responder à re-
tender a crise ou dar a ela outra dimen- para a eficácia da defesa da democracia. pressão dos ataques à democracia. Por ou-
são. Um problema público indesejavel- Não basta apenas a violência estatal. É ne- tro lado, ela deve ser utilizada com caute-
mente gera, nesta situação, um segun- cessário que a sociedade, evolutivamen- la para não se transformar em um segun-
do problema público. te, entenda que a democracia é um valor do problema público, estendendo a crise.
O terrorismo nos Estados Unidos e na universal inerente à própria vida políti- A cautela no uso da violência não signi-
Europa gerou uma crise e seu combate, ca civilizada, com vistas a gerar um efeito fica que ajustes não possam ser admitidos,
uma segunda crise. A violência estatal ado- constrangedor para aqueles que queiram inclusive no plano do processo legislativo,
tada engendrou um segundo problema pú- se colocar contra ela. O uso de linguagens como agora são propostos pelo governo fe-
blico, relacionado às medidas severamen- desumanas, de ódio, de violência, e as pro- deral. O aprimoramento da tipificação dos
te restritivas e xenófobas contra estran- postas destruidoras da democracia devem crimes antidemocráticos deve, em espe-
geiros, à prática de tortura, aos processos ser inibidos por uma reação social contrá- cial, evitar a adoção de conceitos jurídicos
penais de exceção e ao encarceramento ria. O ambiente social deve ser capaz de, indeterminados, isto é, a evolução legisla-
desumano e degradante sem precedentes. por meio do compromisso irrenunciável tiva, a qual, inclusive, pode manifestar-se
No Brasil, um emblemático exemplo de com os valores democráticos, constranger pelo aumento de penas, deve sempre se
que um problema público, quando inade- os autores de atos antidemocráticos a re- atentar à especificação, de forma mui-
quadamente enfrentado, gera uma segun- cuar na exposição pública antidemocráti- to clara, dos crimes a serem punidos.
da crise pública está relacionado ao com- ca. Quem ataca a democracia e usa do dis- O bolsonarismo representou, e ainda
bate à corrupção. Este sempre foi um pro- curso de ódio deve ser constrangido mo- representa, o mais cruel e intenso movi-
blema grave do nosso Estado e da nossa so- ral e socialmente a não o fazer, deve ter mento de destruição e solapamento da
ciedade. A corrupção é, entre nós, gerado- vergonha de tal conduta. Ou seja, o cons- democracia brasileira. A crise enfrenta-
ra de cíclicas e constantes crises. Entre- trangimento moral, social e político é ab- da não pode, em hipótese alguma, gerar
tanto, quando se quis, na nossa história re- solutamente fundamental para que o ele- um segundo problema de efeitos cíclicos
cente, responder exclusivamente por meio mento repressivo em favor da democracia catastróficos para a democracia e para os
da violência estatal, gerou-se outro proble- seja eficaz. A luta em favor da democracia direitos fundamentais. É preciso caute-
ma: o lavajatismo, que interferiu no nosso não pode limitar-se ao uso da violência le- la no combate ao golpismo e na defesa da
processo republicano e contribuiu decisi- gítima do Estado, mas se espraiar para o democracia. O desafio sem precedentes
vamente para o advento do bolsonarismo. ambiente social. A luta contra o golpismo não pode ser solucionado, exclusiva ou
O Supremo Tribunal Federal, apesar de não deve reduzir-se à resposta da violên- preponderantemente, pela violência es-
erros episódicos, tem conseguido garantir cia estatal. É imprescindível que o com- tatal, sob pena de se estender a crise ou
B A P T I S TÃ O

a defesa da democracia sem, estrutural- bate ganhe novos ambientes. dar a ela outra dimensão. •
mente, abusar de poderes. Entretanto, o Outro aspecto relevante quanto às cau- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 17
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Pontos cegos
AMAZÔNIA Apesar dos esforços do governo federal, os
garimpeiros continuam a invadir as terras Yanomâmi
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

L
á se vão seis meses da operação os esforços recentes do governo federal. gente vê que a água está se recuperando,
para conter a crise humanitária “É muito cedo pra gente dizer que resol- a floresta renascendo fortemente, o perfil
nas terras Yanomâmi em veu, mas está caminhando. O problema é das crianças mudando para melhor. Eu sei
Roraima. A situação melhorou que não tem uma estrutura forte de pro- que tem muitas comunidades onde a saú-
de forma considerável, mas con- teção, porque retira, mas os caras voltam. de ainda não chegou, mas a gente vê que
tinua longe do ideal. Apesar dos esforços A logística deles é grande. Falta um plano há um trabalho para a população.”
da força-tarefa criada para expulsar os 20 mais estruturado.” As aldeias perto da fronteira com a Ve-
mil garimpeiros ilegais e cuidar da saúde nezuela, afirma Hekurari, ainda sofrem
da população indígena, remanescem áre- Júnior Hekurari, uma das lideranças com a ação dos garimpeiros. É nessa re-
as de conflito e abandono. Segundo relató- Yanomâmi e presidente do Conselho Dis- gião que se concentram os maiores núme-
rio divulgado pela Hutukara Associação trital de Saúde Indígena da etnia, confir- ros de doenças como a malária, dissemi-
Yanomâmi, Associação Wanasseduume ma a resistência dos garimpeiros, mas ga- nadas exatamente pela presença dos cri-
Ye’kwana e Urihi Associação Yanomâmi, rante que mais de 90% dos criminosos fo- minosos nos locais. Nas últimas semanas,
várias comunidades sofrem com a fome e ram expulsos da terra indígena e classi- acrescenta, a Polícia Federal e as Forças
doenças e há um retorno do garimpo em fica como positiva a ação da força-tarefa Armadas intensificaram as buscas por
áreas sem supervisão federal. na contenção da crise humanitária. “A po- garimpeiros na região. O Ministério Pú-
De janeiro a junho, aponta o documen- pulação acreditava que ia morrer duran- blico Federal com sede em Roraima tem
to, o garimpo avançou em 219 hectares, te o governo Bolsonaro. Queriam matar acompanhado a situação e também publi-
aumento de 4% em relação a dezembro as crianças, cortaram recursos de medi- cou um relatório. O documento não deixa
de 2022. O ritmo de crescimento está, camento, muitas crianças morreram por dúvidas a respeito do impacto da ação cri-
porém, abaixo daquele do mesmo período falta de remédio. Hoje, a gente recebe tra- minosa dos garimpeiros, com a conivên-
do ano passado, que chegou a 30%. Os ga- tamento diferente. Os profissionais de cia do Poder Público e de setores da ini-
rimpeiros continuam presentes nas ime- saúde estão nas comunidades”, compara. ciativa privada que financiam a minera-
diações das aldeias Parafuri, Xitei, Haxiu “Agora estamos voltando a ter esperança, ção ilegal. “Pela generalidade e sistemati-
(perto do Yamasipiu), Homoxi (nas co- de levantar de novo, de cuidar das famí- cidade das ações em um contexto políti-
munidades Xereu e Tirei) e Kayanau (em lias. Nosso problema não acabou, mas a co de alinhamento entre atores públicos
Couto Magalhães). Edinho Macuxi, do e privados para o favorecimento da mine-
Centro Indigenista de Roraima, cobra da ração em terras indígenas, parece factí-
Justiça punição aos criminosos. “Os ga- vel aventar a hipótese de tipificação sub-
rimpeiros continuam insistindo, são ti- Entre janeiro sidiária de crime contra a humanidade no
rados de lá, são presos em flagrante, mas plano internacional, na medida em que as
quando chegam na cidade a Justiça solta
e junho, o garimpo ações de garimpeiros ilegais e a omissão
e eles voltam. Estão bem organizados, são avançou em 219 aparentemente dolosa dos agentes públi-
financiados e aliados do tráfico, do PCC.” hectares, aponta cos possam revelar, no decorrer das apu-
Macuxi não deixa, porém, de reconhecer um relatório rações, seu caráter de ato desumano apto

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 26
NESTA Direitos. O STF
SEÇÃO retoma o julgamento
do juiz de garantias

Força-tarefa. Os esforços federais ocorrem em duas frentes: profissionais de saúde enfrentam a crise humanitária, enquanto
policiais federais e militares embrenham-se na mata para expulsar os garimpeiros ilegais que continuam a invadir as terras Yanomâmi
FERN A NDO FR A Z ÃO/A BR E VINÍCIUS MENDONÇA /IBA M A

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 19
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Cobiça. Sem vigilância permanente e, de outro, uma operação propriamente vai demandar um trabalho de estrutura-
das autoridades, as terras indígenas humanitária, voltada a um atendimen- ção de toda a saúde indígena. Vai exigir
não se verão livres do garimpo
to de saúde, sanitário e de ações de se- uma ação de médio e longo prazo.”
gurança alimentar mediante a entrega Para Eugênio Pantoja, diretor de po-
de alimento. No atual momento, a ope- líticas públicas e desenvolvimento terri-
a ter causado grande sofrimento e afetado ração entra numa segunda fase, marca- torial do Instituto de Pesquisa Ambien-
gravemente a integridade física e mental da pelo restabelecimento do serviço de tal da Amazônia, o efetivo da força-tarefa
dos povos Yanomâmi e Ye’kwana”, des- saúde. Até pouco tempo, diversos postos federal nos primeiros meses da operação
creve um trecho do relatório. estavam fechados porque o garimpo ain- foi importante, mas é insuficiente para
Alisson Marugal, procurador federal da era uma ameaça significativa. A partir reverter a crise humanitária na região.
que acompanha o caso, relata a dificulda- desse ponto, a operação de desintrusão “É preciso, agora, que se ofereça um con-
de em expulsar de vez o garimpo do local. precisa se alinhar mais com a operação junto de políticas públicas que conside-
Entre os exemplos, ele cita uma pista de humanitária, para restabelecer os servi- rem toda a diversidade, as característi-
pouso reconstruída em poucos dias pe- ços públicos no território.” cas étnicos-culturais desses povos, pa-
los invasores, após sua desativação pelas ra também atender às necessidades bási-
forças de segurança em julho. Marugal Ao cobrar uma atuação permanen- cas deles, ao mesmo tempo que possibili-
vê um saldo positivo nos seis meses da te, o procurador destaca o perfil epide- te outras condições de vivência, de bem-
operação federal na terra indígena, mas miológico dos indígenas. “Não se trata -estar, de bem-viver, para as comunida-
cobra uma ação permanente. A primeira só de entregar alimentos nas comunida- des que ocupam há milênios essas áreas.”
etapa do trabalho da força-tarefa, reme- des, nem de apenas realizar atendimento Sobre as condições de vida dos povos
mora, foi dividida em duas operações que emergencial para essa população, mas de indígenas, representantes de diversas et-
atuavam de forma paralela. Agora, preci- refletir o que se espera de uma assistên- nias estiveram reunidos em assembleia,
sam agir de forma conjunta. “De um la- cia básica, um atendimento permanen- no sábado 5, em Belém, para discutir um
do você tinha a desintrusão, uma opera- te nas comunidades, na lógica da preven- modelo de desenvolvimento sem o ga-
ção policial para retirada de garimpeiros, ção de doenças, promoção à saúde. Isso rimpo ilegal e as grandes obras de infra-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

estrutura. O evento antecedeu a Cúpula pronta para a demarcação e aguardam Protestos. Os indígenas reconhecem
da Amazônia, que reuniu, entre os dias 8 apenas a assinatura do presidente Lula. os avanços, mas reivindicam
soluções permanentes na região
e 9, chefes de Estado de países integran- Apesar dos debates importantes em
tes da Organização do Tratado de Coo- torno da preservação da maior flores-
peração Amazônica. Guardiões da flo- ta tropical do mundo, a Cúpula da Ama-
resta, os indígenas foram excluídos da zônia acabou marcada por uma polêmi- ção de petróleo na região e acusou os lí-
agenda oficial da cúpula, o que motivou ca. Embora o Ibama tenha publicado um deres progressistas de igualmente igno-
protestos na capital paraense. Durante a laudo contrário à exploração de petróleo rarem os alertas a respeito da crise cli-
assembleia, as lideranças aprovaram um na foz do Rio Amazonas, Lula não está mática. “A direita tem um fácil escape, o
documento, a ser entregue ao presidente convencido do voto e declarou que o Bra- negacionismo. Para os progressistas, ge-
Lula e demais líderes políticos, em que se sil deve continuar a sonhar com a extra- ra outro tipo de negacionismo, que é fa-
CÍCERO PEDROSA NE TO/A M A ZÔNIA RE A L E A RQUIVO/MM A

cobra do governo brasileiro a demarca- ção. Para justificar a empreitada, cita a lar em transições”, discursou. Além de
ção de terras e a rejeição do marco tem- transição energética quando defende in- Lula e Petro, participaram da cúpula os
poral, tese esdrúxula inventada pela ban- vestimentos em energias de fontes fós- presidentes da Bolívia (Luis Arce) e Pe-
cada ruralista. Inicialmente, o governo seis. Presente no evento, o presidente da ru (Dina Boluarte), a vice-presidente da
tinha anunciado a intenção de aprovei- Colômbia, Gustavo Petro, seguiu em ou- Venezuela (Delcy Rodríguez), o primei-
tar o evento internacional para anunciar tra direção, afirmou ser contra a explora- ro-ministro da Guiana (Mark-Anthony
a demarcação das terras de Rio Gregório, Phillip), e os ministros das Relações Ex-
em Tarauacá, no Acre, Cacique Fontou- teriores do Equador (Gustavo Manrique
ra, em São Félix do Araguaia, em Ma- Miranda) e do Suriname (lbert Randim).
to Grasso, e Acapuri de Cima, em Fonte Ao fim do encontro, os representantes
Boa, Amazonas. O anúncio estava previs-
O Ministério Público dos governos aprovaram uma série de
to para a quarta-feira 9, Dia Internacio- elenca indícios compromissos e prioridades para ga-
nal dos Povos Indígenas. Estas e outras de crimes contra rantir a preservação da floresta amazô-
cinco áreas estão com a documentação a humanidade nica e os direitos dos povos originários. •

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 21
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Ainda dá tempo
ENTREVISTA Atingir a meta de redução
dos gases de efeito estufa é difícil,
mas factível, acredita Carlos Nobre

P
esquisador da Universidade vez o maior que a humanidade já enfren-
de São Paulo e conselheiro tou. Os extremos climáticos que explodi-
do Painel Intergoverna- ram no mundo nos últimos anos, como as
mental sobre Mudanças Cli- ondas de calor que causam mortes, as se-
máticas da ONU, o brasilei- cas que trazem prejuízo econômico ao se-
ro Carlos Nobre é um dos mais renoma- tor agrícola, o excesso de chuvas que leva
dos especialistas em aquecimento global a deslizamentos e inundações, tudo atin-
do planeta. De Belém, onde participa da giu um nível que nos leva a crer que, mes-
Cúpula da Amazônia, o cientista conver- mo se tivermos sucesso na meta do Acor-
sou com o repórter Maurício Thuswohl do de Paris, ainda assim teremos esses
sobre a importância do encontro entre eventos extremos com mais frequência.
os presidentes dos países da Organiza- Então, não podemos passar desses limi-
ção do Tratado de Cooperação Amazô- tes, mas as emissões continuam altas. Em
nica, o papel do Brasil no combate às mu- 2022, houve recorde de emissões e há in-
danças climáticas e a exígua margem de dicativos de que, no primeiro semestre de
manobra para o cumprimento das me- 2023, elas continuaram a subir.
tas do Acordo de Paris. CC: Se ainda há esperança, qual é o
caminho?
CartaCapital: Devemos desistir do CN: A superaceleração na redução das
cumprimento das metas do Acordo de emissões, principalmente na transição
Paris? energética. Quase 70% das emissões são
Carlos Nobre: Atingir as metas e não provenientes da queima de combustível
deixar a temperatura exceder perma- fóssil, mas é possível, nessa escala de
nentemente 1,5 grau Celsius é, sem dúvi- seis anos e meio até 2030, realizar uma
da, muito difícil, mas ainda possível, des- transição rápida no setor para a adoção
de que haja uma redução muito rápida de energias renováveis e eletrificação das
que chegue a 50% até 2030 e depois zere frotas. Nos países tropicais, é ainda mais
as emissões líquidas de gases estufa antes
de 2050. No ano passado, as ondas de calor
no continente europeu levaram à morte 61
mil seres humanos e agora, em 2023, ob-
servamos novamente recordes de tempe-
A Cúpula da
ratura em partes da Europa, América do Amazônia é a “mais
Norte e Ásia. Julho foi o mês mais quen- importante reunião”
te da história. É um enorme desafio. Tal- dos países da região

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

União. Lula reúne em Belém de fontes renováveis, como a solar e a eó- sões. É necessária muita ciência aplica-
os presidentes dos países lica, muito mais baratas que as termoe- da. Mostrar também os caminhos para
amazônicos. O esforço precisa ser
létricas a combustíveis fósseis. O mundo se reduzir o uso de combustíveis fósseis
compartilhado, diz o pesquisador
inteiro começa a perceber o enorme po- e avançar nos aspectos tecnológicos e de
tencial do hidrogênio verde, em breve ele engenharia para nos tornarmos um dos
se tornará muito competitivo economi- maiores produtores de hidrogênio verde
factível atingir essa meta de 50% de redu- camente e poderá substituir os combustí- do mundo. O Brasil está muito mal situa-
ção até 2030. No Brasil, metade das emis- veis fósseis tanto nos transportes quanto do na busca pela adaptação e resiliência
sões vem diretamente do desmatamento, na produção de aço e cimento. Este é o ca- às mudanças climáticas em curso e que
principalmente da Amazônia e do Cer- minho. É um enorme desafio, como disse, aumentarão sua frequência, afetando to-
LU IS IPA R R AG U IR E / P R ESID ÊN CI A D O P ERU E U F M G

rado, e um quarto das emissões vem da mas não há outra opção. dos os sistemas econômicos e ecológicos.
agricultura. O País pode muito rapida- CC: Qual papel deve desempenhar a A comunidade científica pode participar
mente zerar esses desmatamentos e ca- comunidade científica brasileira no en- da elaboração e implementação de políti-
minhar para um modelo de agricultu- frentamento ao aquecimento global? cas para aumentar a capacidade de adap-
ra regenerativa que emite muito menos. CN: Em primeiro lugar, é importan- tação do País. A ciência é menos avança-
CC: Como isto seria feito? te mostrar os riscos que o aquecimento da nessa área. O Brasil é mais avançado
CN: O Brasil será um dos primeiros países global traz para todos os setores: popu- na busca por soluções para reduzir as
a cumprir as metas do Acordo de Paris, se lação, saúde, economia, agricultura. O emissões, mas há menos pesquisas so-
tiver sucesso em suas políticas de zerar o Brasil é o segundo maior exportador de bre como tornar o País mais resiliente
desmatamento até 2030 e caminhar para alimentos do mundo. É preciso mostrar às mudanças climáticas.
uma agricultura regenerativa. É também cientificamente como o País pode ser o CC: Os países amazônicos podem
um dos países que têm um enorme poten- primeiro grande emissor – nós somos o ter papel determinante no enfrenta-
cial em produzir energia elétrica a partir quinto maior – a de fato zerar suas emis- mento às mudanças climáticas?

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 23
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

CN: A Cúpula da Amazônia é, talvez, a “No Brasil, 55% zônia tem desmatados ou degradados.
mais importante reunião que os países CC: O Brasil está preparado para en-
da região realizaram em sua história e
das emissões vêm do frentar as emergências climáticas e mi-
possibilita a criação de um acordo para desmatamento para nimizar os riscos às populações mais
impedir que cheguemos ao “ponto de não novas pastagens” vulneráveis?
retorno” na floresta. Se passarmos des- CN: Não. Aquele fenômeno das chuvas
se ponto, todo o sul da Amazônia estará intensas que ocorreram em dezembro
à beira do precipício, com ecossistemas de 2021 no sul da Bahia e todos os outros
degradados e dossel aberto. Entre 30 e CN: Outro grande desafio da cúpula é eventos extremos que aconteceram des-
50 anos, a degradação da floresta vai lan- combater o crime organizado, respon- de aquele momento levaram à morte mais
çar mais de 250 bilhões de toneladas de sável por, praticamente, 90% do desma- de 600 cidadãos, como as chuvas no Re-
gás carbônico na atmosfera e isso torna- tamento da floresta amazônica e da de- cife (140), em Petrópolis (240) e no lito-
rá impossível atingir as metas do Acor- gradação dos ecossistemas aquáticos. Os ral norte de São Paulo (60). Mais de 10 mi-
do de Paris. É muito importante que os rios amazônicos sofrem um risco gigan- lhões de habitantes residem em áreas sob
países amazônicos saiam da cúpula com tesco com a poluição pelo mercúrio uti- risco de desastres causados pelos extre-
um acordo firmemente estabelecido so- lizado na mineração de ouro, e também mos climáticos. Dois milhões vivem em
bre como implementar políticas para ze- pelo uso excessivo de agrotóxicos nas áreas de altíssimo risco. É preciso ter po-
rar o desmatamento, a degradação e as áreas de agricultura. Os países têm de líticas muito efetivas, com investimento
queimadas. Isso é para ontem. Seis dos buscar soluções continuadas, de longo de recursos públicos, centenas de bilhões
oito países amazônicos assinaram o do- prazo, com a criação de uma sociobioeco- de reais, para criar condições sustentá-
cumento na COP-26 com o compromis- nomia baseada na sociobiodiversidade e veis para essas imensas populações que,
so de zerar o desmatamento até 2030. Ao na floresta em pé, com respeito aos povos em sua maioria, têm muito baixa renda.
menos no Brasil há uma política clara de indígenas e às comunidades ribeirinhas CC: Os esforços da economia são
zerar o desmatamento em todos os bio- e quilombolas. É preciso, finalmente, fa- suficientes para enfrentar a realidade
mas, especialmente a Amazônia. zer a restauração florestal dos 2 milhões climática?
CC: E o que mais? de quilômetros quadrados que a Ama- CN: As medidas políticas públicas na eco-
nomia mundial são insuficientes e conti-
nuamos a aumentar o uso de combustíveis
fósseis, o desmatamento nas florestas tro-
picais e as emissões da agricultura global.
Políticas governamentais são importan-
tes, mas um aspecto fundamental é criar
um sistema educacional que faça com que
os indivíduos pratiquem o consumo res-
ponsável. No Brasil, 55% das emissões
vêm do desmatamento para novas pasta-
gens, sem falar nos gases produzidos pelo
próprio gado. É perfeitamente factível um
sistema integrado entre pecuária, lavou-
ra e floresta que reduza a zero a necessi-
dade de expansão das pastagens. A pecuá-
ria é a razão de 90% do primeiro desmata-
mento na Amazônia e de 80% no Cerrado.
CC: E a chamada “transição ecoló-
gica justa”?
CN: O mundo inteiro tem o desafio de fa-
ISTOCKPHOTO

zer essa conversão, sobretudo na produ-


ção de energia elétrica. Tudo é factível, as
Culpa. Mais da metade da emissão no Brasil é causada pela pecuária tecnologias foram desenvolvidas. •

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
JAQUES WAGNER
CLUBE DE REVISTAS
Líder do governo no Senado, foi governador da Bahia
e ministro do Trabalho, da Defesa e da Casa Civil

A hora da transição verde

contros realizados em Manaus. Após uma cou o negacionismo pela reestruturação


► Felizmente, o Brasil lacuna de 14 anos, a Organização do Tra- e fortalecimento de órgãos como o Ibama
voltou a ter um governo tado de Cooperação Amazônica, forma- e o ICMBio, e pela ação transversal de mi-
da por Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, nistérios que atuam no meio ambiente, na
comprometido com Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, re- proteção aos indígenas, defesa nacional,
a pauta ambiental ativa suas ações e constrói um novo mo- saúde e nos direitos humanos.
mento para este que é o único bloco socio- Não por acaso, de janeiro a julho, com-
ambiental da América Latina. parando-se com o mesmo período de
Desse reencontro dos países amazô- 2022, o ICMBio registrou alta de 339%

A
humanidade está numa encru- nicos nasceu a Declaração de Belém, que nos autos por infrações contra a flora, de
zilhada. A cada ano multipli- assinala esforços e metas comuns aos in- 62% nos embargos, de 104% nas apreen-
cam-se os alertas da ciência so- tegrantes da OTCA. Entre os compro- sões e de 128% nos termos de destruição
bre a urgente necessidade de enfrentar- missos está a aliança contra o desmata- de equipamentos usados ilegalmente. O
mos as mudanças climáticas. Há hoje, na mento, de forma que não se atinja o pon- Ibama aumentou em 173% os autos de in-
comunidade internacional, um inegável to de não retorno, que é quando a flores- fração por crimes contra a flora em rela-
consenso de que, para garantirmos a so- ta perde a capacidade de se regenerar. Es- ção à média para o mesmo período nos
brevivência das futuras gerações, só te- sas nações saem também com a disposi- últimos quatro anos. Com relação aos
mos um caminho a percorrer: o da tran- ção de adotar decisões conjuntas e ações termos de destruição de equipamentos
sição para uma agenda verde capaz de unificadas, como defende o governo bra- usados em crimes ambientais, houve au-
consolidar, de modo célere e efetivo, um sileiro. Devem levar ao mundo, especial- mento de 254%. A disposição para coibir
novo modelo de desenvolvimento. mente à COP-28, a ser realizada em no- crimes ambientais fez a diferença.
A boa notícia é que, desde o começo des- vembro nos Emirados Árabes Unidos, a Para muito além da redução efetiva
te ano, voltamos a ter no Brasil um gover- ideia de que a exploração da Amazônia do desmatamento em nossos biomas,
no comprometido com a pauta ambiental precisa ser feita com cautela, levando em do combate às queimadas e outros cri-
e pronto a colaborar com o enfrentamento conta o compromisso de manter a flores- mes ambientais, o governo federal tem
da crise climática. E o presidente Lula tem ta em pé e de proteger as populações que atuado para colocar em prática uma série
plena consciência de que só faremos isso dela dependem para sobreviver. de medidas que compõem o seu Plano de
por meio da cooperação internacional e do Transição Ecológica, trunfo fundamen-
envolvimento de governos capazes de dia- Um compromisso, aliás, assumido pe- tal desta gestão. A proposta é dividida em
logar com a sociedade, instituições cientí- lo Brasil, que viu cair em 42,5% o número eixos que envolvem incentivos econômi-
ficas, organizações ambientais, comuni- de alertas de desmatamento na Amazô- cos, adensamento tecnológico da indús-
dades indígenas, mídia, investidores e em- nia entre janeiro e julho de 2023, de acor- tria nacional, ações de fomento à bioeco-
presas. Tal disposição ficou evidente nesta do com dados divulgados pelo sistema nomia e incentivos à transição energéti-
segunda semana de agosto, quando o pre- Deter-B, do Inpe. Mais interessante ain- ca, incluindo captura de carbono.
sidente Lula, ao abrir a Cúpula da Ama- da é observar que essa tendência de queda Entre as ações previstas, há a ideia do
zônia, em Belém, pontuou que nunca foi foi registrada em todos os estados do bio- programa “Sol para Todos”, com o obje-
tão urgente investirmos num regime de ma, com destaque para o Amazonas, que tivo de substituir parte da tarifa social da
cooperação entre os países amazônicos. reduziu 62%. Dói lembrar que, no segun- energia elétrica para implementar pai-
Nesse contexto, é sintomático registrar do semestre de 2022, último do governo néis solares em bairros das periferias das
que, desde a assinatura do Tratado de Co- anterior, houve alta de 54% nos alertas de grandes cidades. Com investimentos em
operação da Amazônia, em 1978, os che- desmatamento. Está claro que a notável bioeconomia, a floresta em pé será fonte
fes de Estado dessas nações só tenham se diferença de um ano para outro explica- de produtos de exportação, assim como
B A P T I S TÃ O

reunido três vezes para debater o tema: -se pela chegada de um governo compro- para o abastecimento interno. •
em 1989, em 1992 e em 2009 – todos os en- metido com a agenda ambiental, que tro- sen.jaqueswagner@senado.leg.br

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 25
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Efeito Moro
co decide se apresenta ou arquiva a de-
núncia. A partir desse ponto, inicia-se,
se for o caso, a segunda fase e entra em
cena o juiz de conhecimento, responsá-
DIREITOS Os esbirros da Lava Jato vel por julgar o processo sem estar con-
taminado pelo trabalho anterior. Hoje, o
pautam o debate no STF sobre mesmo magistrado que atua na primei-
a adoção do juiz de garantias ra fase julga. Para o criminalista Antô-
nio Carlos de Almeida Castro, o Kakay,
POR MARIANA SER AFINI o juiz de garantias “impediria ou dificul-
taria o surgimento de ‘Sergios Moros’ da
vida”. A demora em retomar a votação,

N
diz Kakay, foi um “desrespeito absolu-
a quarta-feira 9, o Supre- por ter presenciado e sofrido com a par- to do ministro Fux ao Congresso e cau-
mo Tribunal Federal re- cialidade de Moro quando exercia a fun- sou um enorme prejuízo ao Judiciário”.
tomou a votação a respei- ção de advogado de Lula, vote a favor do “O juiz de garantias é, seguramente, o
to da constitucionalidade juiz de garantias. Em 2021, Zanin publi- maior avanço do processo penal brasi-
do juiz de garantias. O cou um artigo em parceria com Graziella leiro dos últimos tempos”, acrescenta.
mecanismo é adotado em praticamen- Ambrosio no qual defende o mecanis-
te toda a América Latina, exceto em mo baseado em argumentos psicanalí- Titular da 1ª Vara Criminal de Nova
Cuba e no Brasil, e também é prática co- ticos. O texto cita o fenômeno conheci- Friburgo, Simone Nacif concorda que a
mum na Europa. Aprovada em 2019 pe- do como “visão do túnel”, tendência pro- lei é um avanço. Integrante da Associa-
lo Congresso, a lei estava engavetada no duzida por “certos vieses cognitivos”. Ou ção Juízas e Juízes para a Democracia, a
STF depois de o relator, Luiz Fux, pe- seja, o juiz que coletou provas e traba- magistrada acredita que o juiz de garan-
dir vistas para analisar a Ação Direta lhou na fase de investigação do proces- tias aprimora o sistema acusatório. “Ao
de Inconstitucionalidade da Associa- so não deveria ser o mesmo a dar a sen- ser depurada, a própria função judiciária
ção Brasileira de Magistrados Brasilei- tença, por conta do risco de estar “con- se aperfeiçoa, se fortalece e confere mais
ros. O tema voltou à pauta a pedido da taminado” com a hipótese da acusação. legitimidade social às decisões.” Segun-
ministra Rosa Weber, presidente da O juiz de garantias, conforme a lei, do ela, o sistema acusatório é uma con-
Corte e prestes a se aposentar. atuaria na primeira fase da persecução quista civilizatória, por se opor ao “sis-
O juiz de garantias, dizem inúmeros es- criminal, chamada de administrativa, tema inquisitório”. “Herança lá da San-
pecialistas, representaria um avanço no relacionada ao inquérito policial. Nessa ta Inquisição, introduzido no Brasil pelas
sistema jurídico brasileiro por proporcio- etapa são coletadas as provas, evidên- Ordenações Filipinas, o processo inqui-
nar mais segurança ao cidadão, e, portan- cias, indícios e elementos fáticos, além sitório é aquele em que o juiz concentra
to, contribuir para a consolidação do Es- da convocação de testemunhas. Cabe a função de acusar e julgar e, muitas ve-
tado de Direito. A discussão ganhou am- ao magistrado determinar a prisão tem- zes, executar a própria sentença. O juiz
plitude depois dos esbirros da Operação porária ou preventiva, a quebra de sigilo de garantias vem para deixar claro que
Lava Jato e da atuação parcial e crimino- telefônico e eventuais buscas e apreen- quem acusa não pode dar a sentença.” Ao
sa do então magistrado Sergio Moro, em sões. Na sequência, o Ministério Públi- ser dividido entre dois magistrados, acre-
conluio com o Ministério Público. O te- dita Nacif, o sistema ganha condições de
ma é, no entanto, controverso no meio ju- produzir “provas mais saudáveis”.
rídico. Fux, que manteve o assunto lon- Em 2023, o Brasil atingiu um novo re-
ge do plenário do STF enquanto pôde, corde na população carcerária. O total de
deu voto contrário à adoção do mecanis-
O sistema judicial presos passa de 830 mil. Desses, 68,2%
mo. A retomada da ação marcará a estreia brasileiro, diz Gisele são negros e 43% têm entre 18 e 29 anos.
oficial do ministro Cristiano Zanin. Es- Cittadino, é “herança Professora de Direito da PUC do Rio de
pera-se que o novo integrante da Corte, da ditadura” Janeiro, Gisele Cittadino não titubeia ao

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

afirmar que os dados seriam outros se o O reverso da moeda. Zanin votará pela ras dos anos 1960 a 1980. O Brasil é exce-
cidadão tivesse as garantias individuais primeira vez e justamente na ação sobre ção. “Este nosso modelo, apesar de muito
o juiz de garantias, antídoto aos “Moros”
asseguradas durante o processo. “Hoje, o se discutir, é herança da ditadura.”
réu, se pobre, negro e periférico, precisa Um dos argumentos do ministro Fux
provar que é inocente porque não existe ao votar contra a lei é de que o País não
presunção de inocência. Sem dúvida ne- teria recursos para implementá-la. Bale-
nhuma, se existissem juízes de garantias, la, afirma Cittadino. “O juiz foi contrata-
não teríamos chegado a essa população do para trabalhar, mas não por duas, três
carcerária absurda.” horas por dia. É para executar o traba-
lho dele, se vai ter mais atribuições, paci-
A professora, também integrante da ência, faz parte.” A professora acrescen-
Associação Brasileira de Juristas pela ta: “O sistema judiciário brasileiro nada
NELSON JR./ST F E PEDRO FR A NÇA /AG. SEN A DO

Democracia, explica que, no País, diver- em dinheiro”. Fux alegou ainda que em
sos tribunais regionais implementaram muitas comarcas existe apenas um juiz,
arranjos parecidos ao juiz de garantias o que dificultaria a implementação da le-
para separar as partes do processo. “Is- gislação. “Nada impede que o magistrado
so não é novidade, acontece em São Paulo de uma comarca dê a sentença do proces-
e em mais seis outros estados, então exis- so de outra comarca, e vice-versa”, res-
tem exemplos funcionando muito bem, e salta Cittadino. “Nossos municípios são
há muito tempo poderiam ser usados pa- todos muito próximos uns dos outros e
ra avançar.” Cittadino compara: na Amé- mais de 50% dos processos estão digita-
rica Latina, o modelo é adotado há anos, lizados. Não seria nenhuma dificuldade
pois a maioria dos países reformulou seus dividir o trabalho entre o juiz de garan-
sistemas jurídicos após o fim das ditadu- tias e o de conhecimento.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 27
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Tiro no pé
guém com interesse de se projetar poli-
ticamente, de tentar agradar a um seg-
mento da direita e da extrema-direita.

ENTREVISTA A declaração xenófoba Preconceito e xenofobia


de Romeu Zema é um erro Em 2019, criamos o Consórcio Nor-
deste para fazer com que experiências
político e histórico, diz João exitosas entre os estados pudessem ser
compartilhadas e, nos momentos difí-
Azevedo, governador da Paraíba ceis, pudéssemos nos unir ao País, unir
a região, em defesa dos interesses dos
nordestinos. O maior exemplo foi du-

G
rante a pandemia, quando a unidade
overnador da Paraíba no lo de desenvolvimento possam ser mini- gerou resultados importantes para a
segundo mandato e presi- mizadas. O governador demonstra des- população, tivemos o menor índice de
dente do Consórcio Nor- conhecimento do processo de desenvol- letalidade do Brasil. Quando você to-
deste desde o fim do ano vimento do País e do que o Nordeste ver- ma como exemplo uma vaca que pro-
passado, João Azevedo dadeiramente produz. Alguns têm a fal- duz mais, que produz menos, e você le-
não poupa críticas ao colega Romeu Zema, sa ideia de que o Nordeste é aquele de va essa comparação para um povo, para
de Minas Gerais, que, em mais uma de- 50 anos atrás, da seca permanente, das uma região, é absolutamente xenofóbi-
claração xenófoba, comparou o Nordeste frentes de emergência. A região não é co e preconceituoso. Não podemos es-
e o Norte a “vaquinhas que produzem mais assim, tem um potencial enorme timular a disputa nesse nível. Foi uma
pouco” e recebem um tratamento privi- e tem crescido de forma extremamen- declaração desnecessária, não constrói
legiado, em detrimento do Sul e Sudeste. te importante na sua infraestrutura. Se absolutamente nada.
Em entrevista às repórteres Fabíola você analisar a malha viária do Nordes-
Mendonça e Marina Verinicz, no pro- te, é muito maior do que aquelas do Su- Tiro no pé
grama Direto da Redação, Azevedo con- deste e do Sul, proporcionalmente em Existe um grupo que pensa dessa forma,
siderou um tiro no pé a declaração de termos de atendimento. O PIB do Nor- que tem preconceito em relação ao Nor-
Zema. Segundo ele, o discurso não está à deste de 2019 a 2022 cresceu mais que deste. Mas faço uma leitura, depois de ver
altura de Minas Gerais. A íntegra da en- o do Brasil e o do Sudeste e Sul. Enten- tudo que se passa na mídia e nas redes so-
trevista pode ser assistida no canal do demos que a declaração ainda é resquí- ciais: foi um tiro no pé. Ele não conseguiu
YouTube de CartaCapital. cio do resultado das eleições do ano pas- a adesão imaginada ao fazer uma decla-
sado. Zema tenta marcar uma posição ração tão preconceituosa. Estimulo o Sul
Zema e Minas política para se credenciar a uma futu- e Sudeste a formarem um consórcio, mas
A declaração é extremamente preocu- ra disputa eleitoral. Não quero crer que sem esse lampejo separatista. Queremos
pante para um gestor, um governador de outros governadores do Sul e Sudes- que os consórcios de todas as regiões se
um estado com a história de Minas Ge- te tenham a mesma leitura. Torço para reúnam em torno daquilo que é impor-
rais. Acho que não foi à altura do pró- que esta seja uma posição isolada de al- tante e possa fazer bem à população.
prio estado. A tradição de Minas na po-
lítica é completamente diferente. Pre- Privilégios
gar o separatismo, a hegemonia de uma O Brasil teve 32 presidentes do Sul e do
região sobre outra, é desconhecer a ne- Os estados do Sul Sudeste. Por causa disso, os estados des-
cessidade de se empenhar para que o sas regiões receberam mais recursos pú-
Brasil cresça de forma única, unida, e
e do Sudeste “foram blicos, em detrimento de outras regiões.
para que a gente consiga, ao contrário beneficiados com Se os recursos tivessem sido distribuídos
do que Zema disse, fazer com que as di- recursos públicos” de forma igualitária, não teríamos hoje
ferenças regionais impostas pelo mode- ao longo das décadas essas diferenças regionais. É uma obvie-

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Mágoa eleitoral. Zema (abaixo),


bolsonarista renitente, ainda
não engoliu a derrota do
ano passado, acredita Azevedo

Reforma tributária
A reforma tributária prevê a criação de
um Fundo Regional de Desenvolvimento.
E aí vem a discussão sobre a partilha desse
fundo, em que os estados do Sul e Sudes-
te querem também entrar na distribuição
dos recursos. Ora, o fundo está sendo cria-
do e pensado para que, por meio das regi-
ões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, pos-
samos diminuir as diferenças que a histó-
ria toda gerou. A reforma tributária pre-
cisa acontecer para o País como um to-
do, começar a se desenvolver em núme-
ros e porcentuais iguais aos de outras na-
ções. Com a atual legislação tributária, fi-
ca muito difícil. Precisamos aproveitar a
reforma para minimizar essa diferença
que existe entre as regiões. A alegação de
que no Sul e Sudeste também tem pobre-
za, claro, é verdadeira, mas também é nes-
sas regiões que estão as maiores dívidas
públicas deste país. O Sul e o Sudeste re-
ceberam investimentos por parte de ban-
cos de desenvolvimento em porcentuais
dade. São Paulo, Minas Gerais e Rio de que ultrapassam 80%, em detrimento das
Janeiro foram, toda a vida, beneficiários outras regiões, que receberam menos de
de recursos públicos para ter o desenvol- 20%. É esta a história que precisamos re-
vimento atual. Não há de nossa parte ne- colocar nos trilhos, para termos ideia do
nhuma intenção de reescrever a história verdadeiro desenvolvimento de um país,
do desenvolvimento do Brasil. Você não e não apenas de uma região. Enquanto
volta no tempo. Entretanto, é possível existirem essas diferenças regionais tão
adotar um modelo de desenvolvimen- acentuadas, este país não será justo pa-
to que considere o Nordeste como parte ra o seu povo e vamos viver sempre nes-
do processo e não como um problema. O sa condição de não conseguirmos promo-
Nordeste, por todo o seu potencial de ge- ver desenvolvimento adequado para to-
ração de energia eólica e solar, na relação dos. A reforma tributária vai permitir que
do turismo, na industrialização, na infra- todos recebam investimentos, não agora,
REDES SOCIAIS

estrutura, tem demonstrado elevada ca- porque a reforma não tem efeito imedia-
pacidade de geração de emprego, renda e to. Vai ter efeito quando eu nem mais for
produção. A região tem quatro grandes governador, mas sei da importância para
portos operando fortemente. o futuro deste país. •

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 29
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Conflitos
dores derrotados, o ministro Luís Philippe
Vieira de Mello Filho, a comentar na ses-
são: “Sei que esse tema tem sido debatido

de interesse
em grandes congressos recentemente (…),
mas tecnicamente só o Supremo poderia
afastar essa decisão (contra o TGG)”.
Na semana anterior, havia sido realiza-
JUDICIÁRIO O CNJ vai decidir se limita do por três dias em Foz do Iguaçu, no Pa-
as palestras remuneradas e os raná, um Congresso Nacional da Magis-
tratura Trabalhista. É o “congresso” ao
presentes dados por empresas a juízes qual aludiu Vieira de Mello. Não se per-
ca pelo nome: há juiz do TST que não vê
POR ANDRÉ BARROCAL
representatividade no evento, promovido
então pela primeira vez. O encontro acon-

E
tecera no Bourbon Cataratas do Iguaçu,
m 5 de dezembro de 2022, o cação das regras. O tribunal liberou o ter- hotel cinco estrelas. Dos atuais 26 minis-
órgão especial do Tribunal minal para não cumprir a sentença até o tros da Corte trabalhista, 11 estiveram no
Superior do Trabalho julgou Supremo Tribunal Federal se pronunciar. hotel, presumivelmente com as despesas
um processo antigo, de A liminar foi incomum por duas razões. pagas. Um deles era Guilherme Caputo
2007, a opor uma empresa Não é costume o TST aceitar a suspensão Bastos, participante de um debate em 1°
portuária e um sindicato. É um caso di- de uma decisão à espera do STF. Além dis- de dezembro intitulado “Temas Contem-
dático sobre uma iniciativa surgida em so, é pacificado na Corte trabalhista que os porâneos de Direito Portuário: Adicional
Brasília nos últimos dias para acabar terminais portuários devem contratar ex- de Riscos, Negociação Coletiva e Exclusi-
com a farra de juízes em eventos priva- clusivamente via Ogmo, regra estabeleci- vidade/Prioridade”. Quatro dias depois,
dos e muitas vezes pagos para palestrar da pelo artigo 40 da Lei de Portos, de 2013. votava no TST a favor do TGG e teorizava:
nessas ocasiões. Por 8 a 4, o TST deu uma Razões que levaram um dos quatro julga- apesar do que está escrito na Lei 12.815,
liminar que permitiu ao Terminal de não se deveria impor “exclusividade” na
Granéis do Guarujá, o TGG, contratar contratação via Ogmo. Tese propalada pe-
trabalhadores sem passar pelo órgão ges- lo setor privado em Foz do Iguaçu.
tor de mão de obra, entidade que recru-
ta, treina e cadastra empregados nos por- Bastos poderia estar no julgamento
tos públicos. O chamado Ogmo tem par- do caso TGG? O advogado da empresa é
ticipação sindical, daí ser capaz de pro- Marcelo Kanitz. No fim do ano passado,
porcionar salários acima da média do Kanitz montou a Academia Brasileira de
mercado de trabalho em geral. Ao tentar Direito Portuário e Marítimo. Um inte-
driblá-lo, o TGG queria pagar menos. Do- grante dessa entidade, o advogado Ataíde
cumentos do processo no TST mostram Mendes da Silva Filho, mediou o painel
que, em setembro de 2019, o terminal com Bastos em Foz do Iguaçu. Sediada
oferecia 1.971,90 reais por vaga. À época, em Brasília, a “academia” tem Kanitz co-
outra empresa, a Santos Brasil, pagava mo administrador perante a Receita Fe-
4.013, 47 reais, enquanto uma terceira, a deral. Na base de dados do “Leão”, quem
Brasil Terminal Portuário, 3.236,67. figura, no entanto, como presidente é
O sindicato dos trabalhadores em por- Bastos. CartaCapital questionou o juiz,
tos paulistas havia vencido a disputa em via assessoria de imprensa do TST, so-
2016 no TST, mas o TGG apresentou re- bre o eventual conflito de interesses na
cursos. O julgamento de dezembro de Dedo na ferida. Vieira de Mello causa, mas não houve resposta até a con-
2022 tratou da alternativa de adiar a apli- levou o assunto ao CNJ clusão desta reportagem. A propósito, no

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

fim de 2019, os advogados do sindicato Amapá. Outro ramo de Assis é o financei- Apoio. Rosa Weber, presidente do
paulista dos trabalhadores portuários ro, início de um novelo que o ligará a Gil- STF, deu aval ao ministro do TST
para apresentar o conjunto de regras
foram a outro juiz da Corte, Alexandre mar Mendes, o juiz do Supremo sócio do
Ramos, entregar um “memorial” sobre o Instituto Brasiliense de Direito Público,
processo contra o TGG, algo comum nos o IDP, promotor de eventos frequentados
tribunais. Aproximava-se um julgamen- por magistrados, advogados e empresá- cional de Justiça uma proposta destina-
to sobre um recurso da empresa. Ramos rios, o mais recente em Lisboa, em junho. da a coibir os conflitos de interesses no
chamou Kanitz para participar, convite Na segunda-feira 7, Vieira de Mello Judiciário vistos a partir de eventos e pa-
incomum. O magistrado também esteve mandou aos 14 colegas do Conselho Na- lestras em ambientes privados. O CNJ é o
no congresso em Foz do Iguaçu. fiscal dos juízes, e Vieira de Mello repre-
A RQUIVO/ TSE E G.DE T T M A R /AGÊNCIA CN J

Por trás do evento estava a Academia senta o TST. Pelo artigo 5° da Constitui-
Brasileira de Formação e Pesquisa. Ape- ção, a única atividade paralela permitida
sar do nome, a “academia” é meio obscura. “A transparência a um togado é dar aula. Ao longo dos anos,
Na Receita Federal, consta a fundação em pode ser o melhor a autorização foi distorcida e liberou a re-
2001, em Brasília. Seu dono é Zilmar San- antídoto para o tráfico muneração por palestras em eventos pri-
tana de Assis, com interesses no setor por- vados. Uma resolução de 2007 do CNJ,
de influência”, diz
tuário privado. Segundo dados da Receita, a 34, alterada pela 226, de 2016, definiu,
Assis integra o conselho de administração Luís Philippe Vieira porém, certas regras. O juiz precisa in-
da Teconap, empresa criada em 2021 pa- de Mello Filho, autor formar ao tribunal de origem detalhes
ra movimentar contêineres no porto do da proposta das aulas e das palestras: nome da ins-

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 31
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Limites. O CNJ não tem jurisdição


sobre o Supremo Tribunal Federal
e encontra dificuldades para
punir com rigor os demais juízes

tituição de ensino ou do evento, horá-


rio, temas, patrocinadores. A proposta
de Vieira de Mello mantém essa obriga-
ção e inclui o CNJ como destinatário das
informações. O conselho criaria um sis-
tema exclusivo para armazená-las e di-
vulgá-las. Além disso, fixa prazo de dois
meses para a corregedoria de um tribu-
nal obrigar um togado a adequar-se às re-
gras, caso as tenha desobedecido.

Mais: a proposta define como confli-


to de interesses o recebimento por pales-
tras, obriga o juiz a expor publicamente
sua agenda e limita a 100 reais o valor de
um presente. Também restringe a 20% o Falta controle sil. Os irmãos Batista estiveram ainda em
patrocínio máximo de uma empresa a um uma festa com outro ministro do Supre-
dos eventos
evento. E impõe aos magistrados o dever mo, Luís Roberto Barroso, que assumi-
de informar ao tribunal de origem qual- patrocinados e dos rá o comando do tribunal e do CNJ após
quer variação patrimonial acima de 20% mimos enviados a aposentadoria de Weber. Barroso de-
de um ano a outro. “As tentações são enor- a magistrados clara-se impedido de participar de julga-
mes” diante de um juiz, escreve Vieira de mentos de causas bancárias, por ter ad-
Mello na proposta. “A transparência po- vogado para bancos no passado.
de ser o melhor antídoto para a corrupção, E por falar em bancos, esta reportagem
o tráfico de influências e os desvios disci- termina com os elos entre Mendes e Assis,
plinares.” No CNJ, comenta-se, há caso de político Fabiano Engelmann, da Universi- aquele por trás da entidade promotora do
juiz que abriu empresa para receber por dade Federal do Rio Grande do Sul, estu- evento portuário em Foz de Iguaçu. As-
palestras. Em manifestações públicas, dioso da Justiça. A proposta será aprova- sis é sócio do Banco Consultoria, funda-
Vieira de Mello costuma citar um livro da? “O CNJ nasceu (em 2005) para fazer o do em 2010 em Cuiabá. Em seu site, a ins-
de 2008, intitulado Pilhagem – Quando o controle externo do Judiciário, mas com o tituição lista como um de seus parceiros
Estado de Direito É Ilegal, que teoriza co- tempo foi capturado pelas instituições do o IDP, de Mendes. Assis foi coordenador
mo a lei e as decisões judiciais são molda- próprio Judiciário”, diz Engelmann. De- de eventos e projetos da União de Ensino
das pelo poder econômico. talhe: o conselho não tem poder sobre os Superior de Diamantino até a estatização
Agora cabe à presidente do CNJ, Rosa ministros do STF. da entidade. A Uned pertencia a Mendes
Weber, também chefe do Supremo, colo- Da Corte Suprema, aliás, vem um e foi comprada em 2013 pelo governo de
car ou não em votação a proposta. Weber “mau exemplo”, o fórum jurídico promo- Mato Grosso, aquisição que o Ministério
RÔ M U LO S ER PA /AG ÊN CI A CN J

se aposentará até 2 de outubro e, segundo vido periodicamente em Lisboa pelo IDP Público estadual quis investigar e a Justi-
apurou CartaCapital, deu aval ao trabalho de Mendes. A edição deste ano, em junho, ça local impediu. Assis representa ainda o
de Vieira de Mello. “Não basta que juiz di- reuniu na capital portuguesa, entre ou- IDP em um conselho da Escola de Direito
ga ‘Fui a um evento privado, mas tenho tros, os irmãos Joesley e Wesley Batis- de Brasília, faculdade mantida pelo insti-
independência’. Independência não pode ta, da empresa JBS/Friboi, e André Men- tuto de Mendes. Um magistrado que, em
ser uma decisão individual, mas resulta- donça, do STF, no coquetel de uma enti- 2016, reclamava que o TST “desfavorece
do de controle externo”, afirma o cientista dade de lobby empresarial, a Esfera Bra- as empresas em suas decisões”. •

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ALDO FORNAZIERI
CLUBE DE REVISTAS
Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros,
de Liderança e Poder (Contracorrente)

O retrocesso de Tarcísio

o episódio da operação no Guarujá levan- aspirações. Ou seja, a segurança pública


► São Paulo não pode ta a suspeita de que o governador e o atu- é um direito dos cidadãos. A partir dessa
permitir que o governador al comando da área queiram importar o concepção, a polícia paulista sintetizou
modelo fluminense. Se ocorrer, repre- sua missão em quatro pontos: proteger
importe os métodos de sentará um enorme retrocesso e a des- as pessoas, fazer cumprir as leis, comba-
ação da polícia fluminense truição de avanços significativos ocor- ter o crime e preservar a ordem pública.
ridos na doutrina de segurança pública Os objetivos estratégicos são definidos
paulista e na doutrina de formação da com a finalidade de aperfeiçoar os ser-
Polícia Militar. Avanços conquistados viços. Um desses objetivos consiste em

O
assassinato do soldado Patrick nas últimas três décadas. ampliar a aproximação com a sociedade.
Bastos Reis no Guarujá levou o As escolas superiores da Polícia Militar A partir dessas concepções gerais, o
comando da Segurança Públi- de São Paulo – Academia do Barro Bran- comando da PM incorporou de forma de-
ca de São Paulo a desencadear uma vio- co e CAES – têm aperfeiçoado, paulatina cisiva a ideia de dotar os policiais com as
lenta operação policial que resultou em e processualmente, sua doutrina de for- microcâmeras. Essa ideia parte do pres-
16 mortes. A operação teve o respaldo mação e suas grades curriculares. As mu- suposto de que a câmera incorporada ao
do governador Tarcísio de Freitas. danças mais expressivas dizem respeito policial em serviço fornece um duplo be-
Uma resposta ao assassinato se fazia aos seguintes pontos: redução relativa da nefício: protege o cidadão e protege o bom
necessária. Uma resposta eficiente e den- carga horária de formação em Direito e policial. Oficiais chegam a dizer que so-
tro da lei. Surgiram, contudo, denúncias aumento das áreas de Ciências Sociais, mente maus policiais podem ser contra
de execuções e torturas. A maior parte Gestão e Tecnologia e introdução signi- o uso da câmera. A adoção dessa ferra-
dos especialistas em segurança pública ficativa da formação em Direitos Huma- menta fez despencar o número de mor-
criticou a operação. A imputação de ine- nos. Essas mudanças, entre outras, per- tes por policiais em atividade. Trata-se de
ficiência foi generalizada, seja pelo eleva- mitiram dois avanços: maior compreen- um dos avanços mais significativos de efi-
do número de mortos e pelo simples fa- são dos oficiais acerca da natureza da so- ciência policial e respeito à sociedade. Foi
to de o autor dos disparos contra o poli- ciedade e mais ênfase em gestão e inova- exatamente esse avanço que o então can-
cial ter se entregado, seja pelo alto con- ção tecnológica como fatores contribuin- didato Tarcísio de Freitas atacou primei-
tingente de policiais envolvidos. A ope- tes na eficiência da segurança pública. ro, durante a campanha. Como governa-
ração no Guarujá lembrou muito o que dor, recuou da ideia, pressionado pela so-
acontece no Rio de Janeiro: recorrentes Passou-se a compreender que a ado- ciedade e por oficiais da própria PM.
ações policiais em favelas e morros com ção de uma concepção de sociedade mais As concepções adotadas pela polícia e
elevado número de mortos. No Rio, as de- aberta e arejada e o uso das ferramentas as mudanças incrementais viabilizadas
núncias de chacinas, de execuções come- de gestão e de tecnologia são mais efica- ao longo do tempo certamente fornece-
tidas pelas polícias, inclusive de inocen- zes na obtenção de bons resultados do que ram uma contribuição decisiva para a me-
tes, são corriqueiras. a repressão pura e simples. A par disso, as lhora dos indicadores de segurança públi-
O modelo de segurança pública e o escolas superiores da PM buscaram maior ca do estado. O Atlas da Violência mostra
modus operandi da Polícia Militar de São interação com as universidades, notada- que esses indicadores são os melhores do
Paulo se diferenciam substancialmente mente as públicas, e com as organizações Brasil, particularmente no que diz respei-
do modelo fluminense. Não que aqui não especializadas em segurança pública. to ao número de homicídios. Não resta dú-
ocorram casos de violência com um nú- Outra concepção de fundo incorpora- vida de que há muito por fazer. O que a so-
mero significativo de mortos. Mas os ca- da pela PM de São Paulo é a de que a segu- ciedade não pode aceitar é a interrupção
sos são esporádicos e não emanavam do rança é uma política pública. Nesse senti- desses avanços e a ameaça de retrocessos
B A P T I S TÃ O

comando da Segurança Pública nem fa- do, trata-se de prestação de serviço à so- que emanam do atual governo estadual. •
ziam parte da doutrina da PM. Por isso, ciedade a partir de suas necessidades e alfornazieri@gmail.com

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 33
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Delicado
equilíbrio
PETROBRAS A nova gestão flexibiliza
os preços, mas mantém atraente
a remuneração dos acionistas
P O R C A R LO S D R U M M O N D

E
m seis meses, a Petrobras con- lhões de reais, e a empresa diminuiu em
seguiu, tudo indica, equili- 39% o pagamento de dividendos a acio-
brar interesses que no gover- nistas, para 15 bilhões de reais. Anunciou
no anterior pareciam irre- também a recompra de 1 bilhão de dólares
conciliáveis, o de abastecer o em ações, nos próximos 12 meses.
País com combustíveis a preços acessíveis A causa principal da queda do lucro da
e o de remunerar generosamente os acio- Petrobras não tem a ver, contudo, com o
nistas. Há, contudo, quem não goste da si- desempenho específico da empresa, pois
tuação, em especial os investidores que ad- faz parte de um movimento do mercado e
quiriram as refinarias privatizadas e os se deve à queda no preço do petróleo, que
importadores. Os últimos, cabe subli- derrubou o lucro de quase todas as petro-
nhar, proliferaram apenas porque a com- líferas, ressalta o economista José Augus-
panhia optou, desde 2016, pela dolariza- to Gaspar Ruas, professor da Facamp. O
ção dos preços dos derivados. A continui- lucro da Shell caiu no primeiro trimestre
dade do equilíbrio obtido, condizente com deste ano, de 9,6 bilhões de dólares para 5
a natureza de uma sociedade de economia bilhões, e o da Exxon Mobil, de 11,4 bilhões
mista controlada pela União, depende, no para 7,8 bilhões. “Outro aspecto impor-
entanto, de um aumento substancial dos tante é que não são os acionistas que pres-
investimentos em prospecção, refino e sionam a empresa, mas outros agentes do
transição energética, concordam econo- mercado, com destaque para refinadores e
mistas e fontes da própria empresa. importadores privados, que tentam atacar
O lucro da Petrobras, assim como o das a empresa pelos resultados do trimestre.”
maiores competidoras internacionais,
caiu no primeiro semestre, mas a distri-
buição de dividendos, apesar de inferior
àquela da administração anterior, conti-
A companhia pagou
nua a ser a maior do mundo, um malaba-
rismo só possível porque a estatal brasi- aos detentores de ações
leira recolhe menos impostos do que de- mais do que as
veria. O lucro recuou 47%, para 28,78 bi- principais concorrentes

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 38
NESTA Paulo Nogueira
SEÇÃO Batista. O potencial
da moeda dos BRICS

No lombo do consumidor. Os motoristas do Rio Grande do Norte pagam mais


pela gasolina. A principal causa é a privatização da refinaria Clara Camarão

Ambos os grupos têm interesse em que to prazo, significa importar com prejuízo e
a Petrobras volte a praticar a política vi- com isso o resultado pode piorar. “Ela não
gente no governo anterior. “Os importa- vai quebrar nem ter prejuízo, mas a grita-
dores, em particular, estão lascados, pois ria vai aparecer do lado dos investidores.”
na medida em que o preço doméstico fica Os investidores não reclamam por-
abaixo do preço internacional, eles pas- que a Petrobras tem distribuído mais di-
sam a operar no negativo, quebram”, dis- videndos do que as concorrentes do mes-
para Ruas. A situação dos refinadores é mo nível, destaca o economista Saulo
diferente, eles têm uma margem que po- Abbouchedid, também professor na Fa-
de ser comprimida. O problema de fundo, camp. A Exxon Mobil distribuiu 8 bilhões
diz, é que em torno de 25% do diesel e 10% de dólares no segundo trimestre, sendo
da gasolina são importados. A empresa au- 3,7 bilhões em dividendos e 4,3 bilhões
mentou as compras externas para, segun- de recompra de ações. A Chevron fez uma
do o noticiário, formar um estoque de se- distribuição de 7,2 bilhões, sendo 4,4 bi-
gurança e fazer frente a um aumento da lhões de dividendos e 2,8 bilhões de re-
demanda provocado pela prolongada de- compra. A Petrobras distribuiu 11 bilhões
fasagem de preços. “Se os importadores de dividendos e a companhia anunciou 1,4
não quiserem importar e os refinadores bilhão de recompra de ações. “Os investi-
privados começarem a reduzir a oferta, a dores ainda estão tranquilíssimos com a
ROQUE DE SÁ /AG. SEN A DO E AGÊNCIA PE T ROBR AS

Petrobras tem estoque de derivados para distribuição de dividendos. A recompra


suprir o mercado doméstico e evitar que tem efeito parecido com o da distribuição
eles façam pressões na hipótese de um de- de dividendos, pois aumenta o preço da
sabastecimento. Porque, se houver desa- ação”, complementa Ruas.
bastecimento, virão para cima da Petro-
bras, não de um importador ou uma refi- O presidente da Petrobras, Jean Paul
naria que não entrega”, aponta o profes- Prates, destacou em comentário sobre os
sor da Facamp. resultados do primeiro semestre a gera-
O jogo armado para o segundo semes- ção operacional de caixa, de 10 bilhões de
tre, prossegue Ruas, é o da disputa entre os dólares. “É um resultado muito acima das
agentes privados e a Petrobras. Na medida empresas semelhantes. Empresas simila-
em que a petroleira bancar essa aposta, pre- res à Petrobras no mundo, como a Shell,
cisa começar a aumentar a oferta. No cur- a Exxon, a British Petroleum e a Total

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 35
CLUBE DE REVISTAS
Economia

francesa, têm uma geração operacional A privatização ano passado é a situação do abastecimento
de caixa que normalmente corresponde de derivados de petróleo refinados pela Re-
de 16% a 18% da receita bruta. A Petro-
de refinarias tem finaria Clara Camarão, no Rio Grande do
bras está gerando caixa acima de 35% da provocado aumentos Norte. A população desse estado, único au-
receita bruta, mais do dobro das empre- de preços além do tossuficiente em toda a gama de combus-
sas similares”, ressalta Cláudio da Costa razoável no Nordeste tíveis, sofre com uma escalada de aumen-
Oliveira, economista aposentado da com- tos, a ponto de redes de postos de abaste-
panhia. “A causa principal dessa anorma- cimento cogitarem recorrer ao suprimen-
lidade é que a empresa é isenta do paga- to do terminal da Petrobras no porto pa-
mento de participação especial na cessão raibano de Cabedelo, a 198 quilômetros
onerosa, onde deveriam ocorrer as maio- de dos recursos seria distribuída para um de Natal. A Refinaria Clara Camarão, da
res taxações. Essa isenção tem de ser re- fundo social destinado à educação e saú- 3R Petroleum, que tem entre seus maio-
vogada imediatamente.” de, e a outra metade para o estado do Rio res acionistas os fundos BTG Pactual, WM
de Janeiro. Da geração operacional de cai- Gestão de Recursos e BlackRock, decretou
A anomalia surgiu em 2010, durante um xa da Petrobras neste segundo trimestre, oito aumentos em menos de dois meses e é
processo de capitalização da Petrobras, de mais de 9 bilhões de dólares, cerca de 4 aquela que pratica o preço de gasolina mais
quando a União concedeu à empresa o di- bilhões estão em exagero”, ressalta. elevado do País, de 3,20 reais o litro, segun-
reito de exploração de 5 bilhões de barris A nova estratégia comercial da empre- do levantamento da Federação Única dos
de petróleo no pré-sal da Bacia de Santos, sa destacada por Prates inclui maior ma- Petroleiros. Em segundo lugar vem a Refi-
em regime de partilha, com vigência de leabilidade dos preços dos derivados, em naria da Amazônia (Ream), adquirida pelo
40 anos. O processo ficou conhecido co- substituição à dolarização adotada nos Grupo Atem’s, com 3,06 reais o litro, e em
mo cessão onerosa. Além do direito de ex- governos Temer e Bolsonaro. Além de ser terceiro a Rlam, da Bahia, arrematada pe-
ploração, foi concedida isenção do paga- mais flexível do que a política do Preço lo fundo Mubadala, dos Emirados Árabes,
mento de “participação especial” na área de Paridade de Importação, a estratégia, com 3,03 reais. A Assembleia Legislativa
da cessão onerosa. Não há nenhum mo- que inclui a ampliação do uso da capaci- do Rio Grande do Norte decidiu convidar
tivo, argumenta Oliveira, para a isenção. dade das refinarias para os atuais 93%, a 3R Petroleum a dar explicações sobre os
Só no campo de Búzios, o maior do Brasil, aumenta a competitividade dos preços, aumentos seguidos.
dentro da cessão onerosa, no estado do Rio para desespero de refinarias privatiza- A Refinaria Clara Camarão foi privati-
de Janeiro, deixou-se de arrecadar, neste das e importadores. zada, no apagar das luzes do governo Bol-
segundo trimestre, perto de 1,2 bilhão de Um exemplo do problema das privatiza- sonaro, pela metade do preço, segundo al-
dólares de participação especial. “Meta- ções iniciadas em 2015 e ampliadas até o guns cálculos, e ajudou a 3R Petroleum a
se tornar a terceira maior produtora de
petróleo do País, atrás da Petrobras e da
Eneva. Hoje, contudo, é o caso mais elo-
quente do fracasso da tese privatista, con-
traditória em si, de que a formação de mo-
nopólios regionais no Norte e Nordeste re-
solveria o problema dos preços, politica-
mente manipulados, segundo essa con-
cepção, pela Petrobras nos governos do
PT. A crise reforça a possibilidade de rees-
tatização de refinarias, agora para atender
D O CAS DA PA R A ÍB A /G OV P B

também a um eventual interesse dos no-


vos proprietários em se livrar de um negó-
cio que se mostrou inviável. Este seria, se-
gundo alguns especialistas, o motivo sub-
jacente à defesa, feita em maio pelo minis-
tro Alexandre Silveira, de Minas e Ener-
Alternativa. Redes de postos potiguares cogitam comprar combustível em Cabedelo gia, da recompra da refinaria da Bahia. •

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
CLUBE DE REVISTAS
Economista, consultor editorial de CartaCapital
e ex-presidente do Palmeiras. É autor, entre outras obras,
de Valor e Capitalismo e Os Antecedentes da Tormenta

Orgulho e preconceito

José Bonifácio de Matos e Arruda disse recido mundo, que mata só para ver al-
► Plantadas nos terraços isso e foi brigar com o italiano das bata- guém fazer careta…”
da escravidão, as raízes tas. Teresa Rita misturou lágrimas com Os quatro filhos de Aleixo morreram
gemidos e entrou no seu quarto baten- depois de uma epidemia de sarampo.
da sociedade brasileira se
do a porta. O Conselheiro José Bonifá- “O que não sei é se foram todos du-
fortalecem, deixam claro cio limpou as unhas com o palito, suspi- ma vez, ou um logo e logo outro e outro –
Romeu Zema e outros rou e saiu de casa abotoando o fraque.” eles restaram cegos. Cegos, sem remissão
Teresa Rita, a filha de José Bonifácio, dum favinho de luz dessa nossa! O senhor
casou-se com o italianinho sob os auspí- imagine: uma escadinha – três meninos e
cios do pai, encantado com as fortunas uma menina – todos cegados. Sem reme-

D
omingo, 6 de agosto, Milly do carcamano. diável. O Aleixo não perdeu o juízo, mas
Lacombe ofereceu aos leito- O governador de Minas Gerais, Romeu mudou: ah, demudou completo – agora
res da Folha o magnífico en- Zema, desdenhou os estados do Nordes- vive da banda de Deus, suando para ser
saio As Práticas Feudais de um Clube de te: “Vaquinhas que produzem pouco”. bom e caridoso em todas suas horas da
Elite em São Paulo. noite e do dia. Parece até que ficou o fe-
“Há alguns dias a coluna de Monica Em outra ocasião, Zema havia decla- liz que antes não era. Ele mesmo diz que
Bergamo revelou o novo código de con- rado “há uma proporção muito maior foi um homem de sorte, porque Deus quis
duta para babás e motoristas que fre- de pessoas trabalhando do que viven- ter pena dele, transformar para lá o ru-
quentam – a trabalho, claro – um dos do de auxílio emergencial” nas regiões mo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu
clubes mais caros do Brasil, a Sociedade Sul e Sudeste. Nosso Romeu das Alte- raiva. Razão das crianças. Se sendo cas-
Harmonia de Tênis, em São Paulo. rosas andou na contramão do celebrado tigo, que culpa das hajas do Aleixo aque-
Trata-se de um documento de barbá- homônimo, o Romeu que frequenta as les meninozinhos tinham?!”
rie, um registro dos modos feudais que páginas de Shakespeare desatando sua Para Sérgio Buarque de Holanda, as
orientam a administração de lugares re- paixão por Julieta. Do alto de suas pre- raízes da sociedade brasileira estão plan-
servados aos muito ricos: uma organiza- conceituosas ignorâncias, Zema suge- tadas nos terraços da escravidão, entre
ção de castas no interior da qual servos riu que os nordestinos são preguiçosos. a casa-grande e suas senzalas. Nesse es-
estão autorizados a frequentar o palácio Gente preguiçosa que, ademais, consome paço da sociabilidade à brasileira germi-
para fins de trabalho e seguindo uma car- mais do que produz, graças à turma tra- nam os grãos que cevam as hipocrisias do
tilha comportamental bastante rígida. balhadora do Sul-Sudeste. Não vou co- “homem cordial”, avesso a regras e ami-
O documento revela um sistema posi- meter a imprudência de sugerir a Zema go da informalidade que consagra a lei do
tivo operante de castas que cria estrutu- a leitura de Casa-Grande e Senzala, obra- mais forte. O brasileiro “cordial” carre-
ras para que cada classe permaneça em -prima do nordestino Gilberto Freyre. ga em seu caráter as peculiaridades das
seu lugar sem possibilidade de mistura. Recomendo, no entanto, uma passada relações de dominação que organizam a
Quem nasceu para trabalhar e ser des- de olhos na obra-prima do mineiro João vida social no país do Carnaval.
cartável que se vire para, em ambientes Guimarães Rosa, Grande Sertão: Vere- Diz Sérgio Buarque nas Raízes do
que não são seus, se tornar invisível. Ou das. Lá pelas tantas, Guimarães Rosa Brasil que, sob a capa do afeto, o cordia-
será multado.” nos apresenta o Aleixo. lismo esconde as crueldades da discrimi-
Em seu livro de contos Brás, Bexiga e “Olhe: um chamado Aleixo, residente nação e da desigualdade. Rasgado o véu
Barra Funda, Antônio de Alcântara Ma- a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, conveniente da benevolência, emerge da
chado registra os desconfortos da elite era o homem de maiores ruindades cal- mansidão hipócrita a inclemente violên-
paulistana diante do avanço econômico mas que já se viu... Um dia, só por graça cia do mandonismo e da submissão:
dos italianinhos. rústica, ele matou um velhinho que por lá “O senhor sabe com quem está falan-
B A P T I S TÃ O

“Filha minha não casa com filho de passou, desvalido rogando esmola. O se- do?” “Coloque-se no seu lugar.” •
carcamano! A esposa do Conselheiro nhor não duvide – tem gente, neste abor- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 37
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Uma moeda
cio para voltar a considerar a reforma
do sistema monetário e a desdolarização
das transações internacionais. Foi nesse

BRICS?
contexto que surgiram as discussões nos
BRICS sobre a conveniência de caminhar
na direção de uma associação monetária
e eventualmente de uma moeda comum.
DESDOLARIZAÇÃO A decisão de criá-la
poderia ser tomada na cúpula de 2025, Possíveis caminhos
para uma moeda BRICS
sob a presidência brasileira Uma curiosidade: os russos toparam com
a seguinte coincidência feliz – as moedas
P O R PAU LO N O G U EI R A B AT IS TA J R .*
dos cinco países dos BRICS começam
todas com a letra “R” – real, rublo, rupia,

A
renminbi e rand. Propuseram então que
possível criação de uma na. Sempre recorreram a seu direito de a nova moeda se denominasse R5.
moeda pelos BRICS (Bra- veto na instituição, para impedir que o O R5 começaria como unidade de con-
sil, Rússia, Índia, China e DES ameaçasse, mesmo remotamente, ta, tomando a forma de uma cesta das
África do Sul) tem figura- o dólar como moeda hegemônica. cinco moedas, construída de forma aná-
do com frequência na mí- loga ao DES. As ponderações das cinco
dia internacional e nas declarações de al- O maior inimigo do dólar moedas refletiriam, grosso modo, o pe-
guns governantes de países do grupo, no- Os problemas do sistema monetário inter- so relativo das cinco economias. A mo-
tadamente Putin e Lula. Por iniciativa da nacional são arquiconhecidos. A novidade eda chinesa poderia, para dar um exem-
Rússia, a ideia está em discussão desde nos anos recentes é que os EUA vêm se va- plo ilustrativo, ficar com 40% da cesta;
2022, de modo ainda embrionário. O te- lendo da sua moeda, de maneira cada vez a moeda indiana, com 25%; as moedas
ma não foi lançado oficialmente, mas de- mais agressiva, para buscar objetivos po- russa e brasileira, com 15% cada; e a sul-
ve estar presente na cúpula dos líderes líticos e geopolíticos. Deu-se a militariza- -africana, com 5%. Essa primeira etapa
dos BRICS que ocorrerá na África do Sul ção do dólar, isto é, o uso da moeda nacio- é relativamente simples e, havendo con-
no fim de agosto. nal-internacional e do sistema financei- senso entre os cinco países, poderia ser
O pano de fundo dessa possível moeda ro ocidental para atingir países hostis ou implementada de forma rápida e sem
dos BRICS é, como se sabe, a crescente vistos como tal. O alvo mais recente foi a custos significativos.
disfuncionalidade do sistema monetá- Rússia. Evidentemente, o uso e o abuso da No entanto, como se sabe, uma moe-
rio internacional que, desde a Segunda posição privilegiada do dólar levam a uma da propriamente dita tem de exercer não
Guerra Mundial, gira em torno de uma perda de legitimidade do sistema mone- apenas as funções de unidade de conta,
moeda hegemônica – o dólar dos Estados tário internacional vigente. Em uma fra- como também as de reserva de valor e
Unidos. A contradição fundamental é o se: os Estados Unidos são hoje o principal meio de pagamento. Como assegurar que
sistema internacional depender prepon- inimigo do dólar como moeda mundial. o R5 possa cumprir todas essas funções?
derantemente de uma moeda nacional, Criou-se, assim, um ambiente propí- Ofereço, a título de contribuição para o
administrada de acordo com os interes- debate, algumas observações prelimina-
ses do Estado emissor. res. Não seria necessário, nem recomen-
Os EUA resistem ferozmente a qual- dável, criar um Banco Central dos BRICS,
quer tentativa de reduzir o papel interna- A militarização responsável pela condução da política mo-
cional da sua moeda. Nunca permitiram, netária para os cinco países – algo impra-
para mencionar apenas um exemplo,
do dólar leva a uma ticável por vários motivos. Em outras pa-
que o Direito Especial de Saque (DES), perda de legitimidade lavras, não se trata de criar uma moeda
a moeda criada no âmbito do FMI, cres- do sistema única que substituiria as cinco moedas na-
cesse e se consolidasse como moeda ple- monetário vigente cionais. Bastaria criar um Banco Emissor,

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

encarregado de emitir o R5 como moeda versível em títulos R5. “Lastreada” em Não se trata de criar uma moeda única em
substituição às cinco moedas nacionais,
digital, de acordo com regras predetermi- ativos criados pelo próprio Banco Emis-
bastaria criar um banco emissor
nadas, sem interferir na atuação dos Ban- sor, o R5 seria, na verdade, uma moeda fi-
cos Centrais, que continuariam a desem- duciária, da mesma natureza que o dólar
penhar todas as suas funções habituais. e as demais moedas de liquidez interna- qui a algumas semanas, pedissem a seus
cional. Os títulos R5 seriam a expressão ministros de Finanças e a seus institu-
O lastro da nova moeda financeira concreta da garantia que os tos de pesquisa que estudem de modo co-
Como assegurar a ampla aceitação do cinco países dariam à nova moeda. ordenado a questão e apresentem os re-
R5? Os russos mencionaram a alternati- A circulação da nova moeda poderia sultados desse trabalho na cúpula que se
va de um lastro em ouro. Não funcionaria, começar entre os Bancos Centrais e se realizará em 2024, na Rússia.
a meu ver. Pode parecer uma opção atra- estender gradualmente a outras opera- Não sei se a discussão avançou sufi-
ente à primeira vista, mas é, na realidade, ções governamentais e transações com cientemente e se há consenso entre os paí-
uma ideia regressiva – um retorno ao que Bancos Centrais extra-BRICS. O No- ses em examinar o tema. Logo saberemos.
Keynes chamava de “relíquia bárbara”. vo Banco de Desenvolvimento, a princi- Idealmente, os líderes dos BRICS dariam
Lastro, no sentido monetário, é um ati- pal iniciativa concreta do grupo até ago- agora um primeiro sinal, de ordem geral,
vo sólido e confiável, que possa dar base pa- ra, poderia desempenhar papel auxiliar. permitindo lançar um processo de avalia-
ra uma moeda alcançar ampla aceitação e Por exemplo, apoiar estudos e discussões ção do tema. Se tudo correr bem, na cúpu-
circulação. Para que esse lastro tenha sen- sobre a reforma do sistema internacional la seguinte, em 2024, os BRICS tomariam
tido real é necessário, a rigor, que a moeda e a eventual criação do R5. Numa etapa a decisão de discutir formalmente a viabi-
lastreada seja livremente conversível no mais avançada, ajudaria a colocar a no- lidade de uma nova moeda. A decisão de
ativo-lastro a uma taxa de câmbio fixa. va moeda em circulação, realizando em- criar o R5 poderia ser tomada na cúpu-
Uma possibilidade seria tornar o R5 préstimos e captações em R5. la de 2025, sob a presidência brasileira. •
conversível em títulos garantidos pelos
cinco países. O Banco Emissor de R5 fi- A cúpula de 2023 e as seguintes
ISTOCKPHOTO

* Economista, foi vice-presidente do Novo


caria encarregado também de emitir R5 Para fazer avançar essa discussão com- Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos
bonds, títulos R5, com diferentes prazos e plexa, seria interessante que os líderes BRICS em Xangai, e diretor-executivo
taxas de juro. O R5 seria livremente con- dos BRICS, na cúpula que ocorrerá da- no FMI pelo Brasil e mais dez países.

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 39
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Muuuuuu,
em inglês
A tese de perseguição do
“sistema” consolida o apoio a Donald
Trump entre os eleitores republicanos
P O R C H R IS M C G R E A L , D E C R ES C O, I OWA

D
e seu canto rural em Iowa, nunciou o indiciamento como “uma
no Centro-Oeste dos Esta- perseguição a um oponente políti-
dos Unidos, Neil Shaffer co”. “Se você não pode vencê-lo, vo-
fez mais do que precisava cê o persegue ou o processa”, atacou.
para colocar Donald Muitos compram essa linha de ra-
Trump na Casa Branca e tentar mantê-lo ciocínio em Iowa e no resto dos Estados
lá. Shaffer supervisionou a maior mudan- Unidos. Até agora, Ron DeSantis não
ça de qualquer condado no país de Barack conseguiu diminuir a enorme liderança
Obama para Trump em 2016 e aumentou de Trump para a indicação do Partido
a participação do então presidente nos Republicano. Com a probabilidade de o
votos quatro anos depois. Mas o líder do ex-presidente passar boa parte do pró-
Partido Republicano no condado de Ho- ximo ano em algum tribunal, depois de
ward não se entusiasma com a perspec- ser indiciado em Nova York, Flórida e
tiva de mais uma campanha presidencial Washington por uma série de acusações
de Trump, e culpa os democratas por im- e com outras esperadas para breve na
pulsioná-la. “Honestamente, os demo- Geórgia, seus apoiadores estão mais que
cratas estão dando um tiro no próprio pé dispostos a acreditar em uma conspira-
com esses processos”, disse. “Por que ção para manter seu homem fora da Ca-
Trump está indo tão bem? Porque os elei- sa Branca. Um deles é Tom Schatz, agri-
tores sentem que ele está sendo atacado. cultor no condado de Howard, na divi-
Se esse é o esforço dos democratas para
fazê-lo parecer ruim, não conseguiram.
Provavelmente isto vai torná-lo o candi-
dato republicano e, honestamente, ele “Simplesmente não
pode ganhar a eleição geral de novo. E en- gostam dele porque
tão de quem seria a culpa?”
Depois de se declarar inocente na
está drenando o
quinta-feira 3 de acusações federais so- pântano”, acredita
bre suas tentativas de roubar a elei- Tom Schatz,
ção presidencial de 2020, Trump de- agricultor de Iowa

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 44
NESTA The Observer. O Sahel
africano é uma região
SEÇÃO abalada por golpes militares

América profunda. Em Iowa,


assim como em outros estados,
boa parte dos eleitores acredita
na teoria da perseguição a Trump

sa de Iowa com Minnesota. “Eles estão


apresentando as acusações contra Trump
para que ele não possa concorrer contra
Biden. Biden é tão desonesto... Nunca ti-
vemos esse tipo de merda nos Estados
Unidos, nunca”, afirmou. “Os democra-
tas vão continuar montando nas costas de
Trump. Eles não desistem. Simplesmen-
te, não gostam dele porque está drenando
o pântano, e eles não gostam disso.”

Schatz, como muitos apoiadores de


Trump, vê os processos como parte de
um padrão de ataques ao establishment,
desde o processo de impeachment do en-
ELIJA H NOU V EL AGE /A FP E ISTOCK PHOTO

tão presidente pelo Congresso por duas


vezes até a investigação do FBI sobre su-
postos laços entre a Rússia e sua campa-
nha de 2016. A mesma mensagem é mar-
telada em estações de rádio de direita,
que muitas vezes são o pano de fundo do
dia de trabalho nas áreas rurais.
No dia da acusação de Trump, Buck
Sexton, ex-analista da CIA na rádio AM
600 WMT em Iowa, dizia energicamente

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 41
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Em baixa. Após um sprint inicial,


DeSantis, governador da Flórida,
não convence a militância republicana

a seus ouvintes, sem ironia, que os proces-


sos minavam a confiança no sistema elei-
toral. “Estamos enfrentando algo com que
nunca lidamos antes”, declarou. “Eles não
se importam com o quão irresponsável é
isso, os democratas. Não os incomoda a
perturbação que estão fazendo à fé no sis-
tema judicial, à fé nas nossas eleições, algo
de que ele falou o tempo todo. Como se po-
de ter uma eleição justa quando um candi-
dato logo terá quatro processos criminais
contra ele? Fato especificamente progra-
mado para acontecer durante a eleição.”

Shaffer sentiu o vigor renovado na


campanha de Trump quando se encon-
trou com o ex-presidente dias antes do
último indiciamento, no jantar anual
para angariar fundos para o Partido Re-
publicano em Iowa. Trump estava entre
os 13 candidatos presentes para defen-
der seu caso antes de se encontrar com
os ativistas do partido, um a um. E tam- relutante de Trump em 2016. Ele votou na opinião dele, ver políticos democra-
bém seu ex-vice-presidente Mike Pen- em Obama, mas não gostava de Hillary tas encorajando os protestos e tumultos
ce. “Sinto-me mal por Pence, porque ha- Clinton. Estava muito mais entusiasma- que se seguiram ao assassinato de George
via 500 na fila para ver Trump, e literal- do com Trump quatro anos depois, mas Floyd três anos atrás. “Eles incendiaram
mente cinco na sala para Pence. Trump esfriou desde então. Por tudo isso, Schatz Minneapolis. E foram processados por is-
tem essa conexão. A maior parte do nos- acredita que o ex-presidente é vítima de so?”, perguntou. “Trump agiu mal quando
so grupo estava lá só para conhecê-lo.” uma conspiração política. O produtor de perdeu, admito. Mas eles estão apenas ten-
Segundo Shaffer, a fila para ver DeSan- laticínios e milho disse estar mais preocu- tando pôr tudo o que puderem em cima de-
tis era mais longa do que para Pence, mas pado com a inflação, o aumento das taxas le. Parte de mim pensa que tudo o que eles
nada como a de Trump, que ele interpre- de juro e a queda dos preços do leite que farão é unir os seguidores de Trump. Acho
tou como mais uma prova de que o mo- produz do que com os detalhes da acusa- que estão fazendo mais mal do que bem.”
mento do governador da Flórida havia ção de 45 páginas que expõem as tenta- Shaffer também não está convencido
passado e que os processos ajudaram tivas de Trump de derrubar a eleição de pelos detalhes da acusação. “Ainda não
a reanimar a candidatura de Trump. 2020. Ele preferiu ver as acusações como gosto de muita coisa que Trump fazia,
“Acho DeSantis incrível. Acho que um evidências de um critério duplo, no qual muito do que ele dizia. Os cidadãos sabem
dia ele será um grande presidente. Mas, o establishment de Washington falhou em que ele não se comportou muito bem des-
enquanto Trump estiver concorrendo, investigar adequadamente supostos cri- de o dia da eleição até 6 de janeiro. Mas isso
não há como ele conseguir a indicação.” mes de Hillary Clinton ou Hunter Biden. chega ao nível em que ele deveria ir para a
As pesquisas confirmam essa visão, Questionado sobre a participação de prisão porque disse algo num telefonema?
mas entre alguns eleitores do condado de Trump na invasão do Capitólio em 6 de Acho que somos mais adultos que isso.”
Howard o apoio a Trump é menos claro. O janeiro, Schatz a considerou uma coisa As suspeitas sobre a enxurrada de acu-
filho de Tom Schatz, Aaron, foi um eleitor ruim, mas não muito diferente do que, sações estendem-se até mesmo à presi-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

dente do Partido Democrata no conda- Na rabeira. Pence, o ex-vice que rompeu


do de Howard, Laura Hubka, veterana da com Trump, corre por fora, com chances
Marinha dos Estados Unidos e tecnóloga praticamente nulas nas primárias
de ultrassom no hospital da cidade, que
não gosta de Trump. “Acho que o estão
perseguindo porque ele está fugindo”, aqui, e isso é um enorme benefício. Ca-
avalia. “Ele quebrou as leis e é um cara da um deles está avaliado em 1 milhão de
mau? Sim. Mas acho que, se ele simples- dólares, e podemos tributá-los e colocar
mente fosse para o ocaso e tagarelasse no dinheiro em nosso orçamento para po-
Truth Social, talvez o tivessem deixado dermos construir pontes e estradas e ter
em paz. Mas assim que concorreu nova- dinheiro para as escolas”, disse Shaffer.
mente as pessoas pensaram que ele era “Um dos meus agricultores tem quatro
popular o suficiente para vencer de novo, moinhos de vento e todas as estradas e li-
e precisamos fazer algo para detê-lo. Eles nhas. Ele recebe 185 mil dólares por ano
tinham de fazer alguma coisa, eu acho.” com isso. Ele construiu uma casa nova,
O impacto dos próximos julgamen- tem tratores novos. Toda a parte noroes-
tos de Trump e as evidências que eles te do condado costumava ser uma área
expõem ainda não foram vistos. Mas po- mais deprimida. Os moinhos de vento
de-se esperar que, embora os apoiadores bombearam muito dinheiro.”
obstinados permaneçam leais, aqueles
que votaram nele uma vez, mas muda- Shaffer está surpreso que, com tan-
ram para Biden quatro anos depois, têm tos republicanos denunciando a energia
poucos motivos para voltar. renovável, o Partido Democrata não es-
Trump foi derrotado por 7 milhões de teja se esforçando mais para reivindicar
votos populares e 74 cédulas do Colégio o crédito pelos benefícios no condado de
Eleitoral em 2020, e alguns democratas Howard. Hubka culpa a liderança nacio-
calculam que ele lutará para superar es- nal democrata, acusada de se concentrar
se déficit com a bagagem adicional de acu- “Trump 2024. excessivamente em partes do país onde a
sações, julgamentos e, possivelmente, até maioria dos residentes tem educação uni-
As regras mudaram”,
a prisão. As pesquisas mostram, porém, versitária, ao contrário da zona rural de
que os dois presidentes mais recentes dos estampa uma Iowa. “Eles precisam pegar algumas bolas,
Estados Unidos estão empatados, inclusi- bandeira no ser mais ousados. Também sinto que estão
ve em estados decisivos, como Michigan. condado de Howard apenas descartando os condados rurais.”
“Toda vez que o indiciam, ele sobe nas pes- Mas Hubka continua lá, em campanha
quisas”, afirma Shaffer. “Acho que os de- e a esperar para ver o que acontecerá se
mocratas são muito arrogantes. Alguns li- Trump for preso. Ela comprou uma ar-
berais acreditam que, assim como fizeram dado de Howard. Shaffer diz que o con- ma antes da última eleição por causa das
em 2016, ele nunca mais será eleito, nun- dado está indo bem de várias maneiras, muitas ameaças de apoiadores do repu-
ca mais. Não tenho muita certeza disso.” graças a Biden. Segundo ele, a Lei de Re- blicano. “Eu estava realmente com mui-
De sua parte, Hubka não consegue dução da Inflação injetou dinheiro no to medo de levar um tiro ou de me ma-
acreditar que as pesquisas estejam tão condado, pagando para renovar a infra- chucar. Acalmou um pouco nesse senti-
apertadas, mesmo que falte mais de um estrutura, incluindo pontes e estradas. O do, mas quem sabe o que acontecerá se
ano para a eleição. “Sinto que ele pode trabalho de conservação de Shaffer para ele for jogado na prisão?”
disputar da prisão, e ainda assim será o estado é bem financiado pelo governo Na esquina de seu hospital, uma ban-
SERGIO FLORES/A FP

uma disputa acirrada com Joe Biden. É federal, e traz benefícios financeiros pa- deira pendurada diante de uma casa po-
isso que me assusta.” ra os agricultores. Além disso, o impul- de ser lida como um aviso: “Trump 2024.
O que levanta uma pergunta sobre por so para a energia verde resultou na pro- As regras mudaram”. •
que os democratas não estão se saindo liferação de moinhos de vento muito lu-
melhor em um antigo reduto como o con- crativos. “Temos muitos moinhos por Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 43
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Pólvora e areia
U
m viajante intrépido teria
dificuldade hoje para atra-
vessar o continente africa-
no em seu ponto mais lar-
O golpe no Níger go, do Mar Vermelho até
amplia a tensão no Sahel, um dos perto do Atlântico, sem passar por um
país que não esteja dilacerado por uma
palcos da nova Guerra Fria guerra civil ou a se recuperar de uma, que
não tenha sofrido um golpe militar des-
POR JASON BURKE
de 2021 ou não seja um Estado falido ocu-
pado por uma mistura tóxica de políti-
cos gananciosos, milícias e mercenários
russos. A rota claramente desaconselhá-
vel do viajante o levaria da região norte
de Tigray, na Etiópia, em guerra até o ano
passado, depois pelo Sudão, onde uma lu-
ta interna pelo poder em um regime re-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Garantia de emprego. Ameaçado de perder o cargo no governo do Níger,


o general Tchiani decidiu derrubar o presidente eleito em nome “da segurança” do país

ra civil, e Burkina Fasso, que sofreu dois der pacificamente desde a independên-
golpes militares apenas em 2022. cia da França, em 1960. Relatos suge-
De qualquer maneira, nosso viajante rem que Bazoum planejava reorganizar
precisaria – juntamente com um seguro a guarda presidencial, uma força de eli-
muito caro e muita sorte – de meios para te de soldados comandada pelo general
atravessar o Estado-chave do Níger, que Abdourahmane Tchiani, que, por temer
se tornou o último país a ser vítima da a demissão, vingou-se preventivamente
instabilidade que hoje parece endêmica. e colocou Bazoum em prisão domiciliar.
Exatamente o que provocou essa recen-
te revolta no Sahel ainda não está claro. O O que se seguiu veio diretamente do
Níger tem sido visto como o mais estável roteiro de golpe de Estado. Soldados apa-
pressivo se transformou em violência ge- da região. Poucos meses atrás, o secretá- receram na tevê estatal para anunciar a
ral, e à República Centro-Africana, hoje rio de Estado dos EUA, Antony Blinken, o remoção do presidente do poder e a sus-
vista por muitos analistas como o melhor descreveu como um “modelo de democra- pensão da Constituição. Tchiani então se
exemplo no continente do pior que pode cia”. Essa conclusão foi baseada no suces- declarou líder do Níger em um discurso
acontecer a um país. so de seu presidente, Mohamed Bazoum, televisivo e explicou ter sido forçado a
Depois disso vem uma escolha difícil. um modernizador centrista e amplamen- intervir para proteger o país de graves
Uma rota ao norte poderia passar pelo te pró-ocidental que conquistou mais de ameaças à segurança.
Chade, governado por um soldado de 39 55% dos votos nas eleições de 2021 e se Em todo o continente há profunda
anos que tomou o poder em 2021, quan- tornou o primeiro líder a assumir o po- consternação. O presidente do Quênia,
do seu pai foi morto em batalha após três William Ruto, descreveu a situação como
décadas no comando, e o Mali, atormen- “um sério revés” – um eufemismo. A esta-
REDES SOCIAIS E AFP/STR

tado por várias insurgências, extremis- bilidade do Níger é crítica para o futuro do
tas islâmicos e mais mercenários rus- Sahel e o futuro desse último é crítico para
sos contratados pelo segundo governan-
Entre divisões o continente. Em uma década e meia, a re-
te militar a assumir o poder nos últimos internas, extremismo gião passou de pobre, mas relativamente
anos. Outro roteiro poderia passar por e quarteladas, a região estável, a um cadinho de caos político, so-
Camarões, abalado por uma longa guer- mergulha no caos frimento humano, tráfico criminoso e vio-

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 45
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Reposicionamento. Traoré, mentor


da quartelada em Burkina Fasso,
afastou-se do Ocidente e teceu
uma aliança com a Rússia de Putin

lência extremista. Em todos os lugares há


deslocamento maciço, dificuldades econô-
micas agudas, intensa pressão demográ-
fica e degradação ambiental. Muitos dos
problemas mais significativos são exacer-
bados ou causados pela crise climática e as
autoridades humanitárias descreveram a
região como o “canário em uma mina de
carvão do nosso planeta em aquecimento”.
Os regimes militares que chegaram ao
poder em todo o Sahel se mostraram in-
capazes de enfrentar esses desafios. Sob
Bazoum, os níveis de violência jihadista
estavam em queda no Níger. No vizi-
nho Mali, agora sob o comando do coro-
nel Assimi Goïta, eles aumentaram 25%
em um ano. Onde quer que os mercená-
rios do grupo Wagner, ligado ao Kremlin,
atuem os civis pagaram o preço. Inevi-
tavelmente, os regimes militares depen-
dem da força, não do consenso, para ad-
ministrar a complexa e conturbada inte-
ração de comunidades, etnias e seitas. O parece destinado a adicionar um novo re- economia paralisada fazem com que pro-
resultado é mais instabilidade. cruta à incipiente coalizão de Estados do jeções positivas para o futuro desse vasto
Sul global agora alinhados à Rússia contra país pareçam demasiado otimistas. Mes-
Os problemas no Sahel também têm os Estados Unidos e seus aliados ociden- mo uma queda recente na violência jiha-
impacto muito mais amplo e afetam paí- tais. O alinhamento na África hoje segue dista pode ser atribuída mais ao sucesso
ses ao Sul e ao Norte, como Líbia, Argélia as linhas de fratura da Guerra Fria. Es- do ramo local do Estado Islâmico sobre
e Egito, entre outros. Os novos governan- tas foram exploradas com grande cinis- um grupo extremista rival do que àque-
tes do Níger rejeitaram a cooperação mili- mo e não pouca habilidade por Moscou. le das forças armadas da Nigéria. Mas as
tar com a França, desferindo um duro gol- Em uma cúpula em São Petersburgo pa- eleições de seis meses atrás sugeriram que
pe nos esforços de contrainsurgência no ra líderes africanos no mês passado, em- um ponto de inflexão pode ser alcançado
país e em seus vizinhos. O perigo da vio- bora o ministro das Relações Exterio- em breve. Embora Peter Obi, de 62 anos,
lência extremista originária do Sahel, mas res da Rússia, Sergei Lavrov, condenas- empresário que ofereceu uma mudança
executada na Europa, é real, assim como se o golpe em Niamei, capital do Níger, o radical de direção, tenha sido derrotado
a perspectiva de fluxos maciços de refu- presidente Vladimir Putin elogiou a re- por Bola Tinubu, “padrinho político” ve-
giados, muito maiores do que os experi- sistência à exploração “neocolonialista”. terano, a votação foi muito diferente das
mentados até agora. As consequências pa- Nosso viajante poderia, no entanto, ter outras seis realizadas desde o fim do re-
ra grande parte da África oriental e cen- vislumbrado uma razão para otimismo gime militar na Nigéria em 1999. Onde os
tral podem ser devastadoras, atrasando o durante sua jornada transcontinental tão partidos estabelecidos contavam com re-
desenvolvimento do continente em déca- deprimente. Ele poderia ter parado breve- des de clientelismo, apelos à solidariedade
das ou descarrilando-o completamente. mente na Nigéria, por exemplo. Corrup- étnica ou religiosa e uma enorme máqui-
No nível geopolítico, o golpe no Níger ção endêmica, governança caótica e uma na partidária para mobilizar apoio, Obi e o

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

minúsculo Partido Trabalhista ultrapas- Os habitantes ções livres e justas, igualdade de gênero e
saram as linhas de falha da Nigéria, pro- proteção dos direitos civis”.
metendo governança eficiente e inovação,
da região toleram Isso significa que a lição mais impor-
não política clientelista. O estilo de vida os golpes por tante aprendida por nosso viajante em
frugal e a abordagem modesta do candida- decepção com a sua árdua jornada pode ser que os acon-
to colocaram a imensa riqueza de Tinubu política tradicional tecimentos recentes no Sahel, embora
no centro das atenções. profundamente preocupantes e mere-
O novo mapa político da Nigéria mostra cedores de toda a nossa atenção, não si-
faixas pintadas no vermelho brilhante do nalizam necessariamente uma nova ida-
Partido Trabalhista. Uma corrida bem- Segundo um relatório da ONU publica- de das trevas, onde homens de uniforme
-sucedida à Presidência em 2027 é total- do em julho, embora possa parecer para- correm descontrolados pelo continente,
mente possível, dizem os analistas. Es- doxal, o apoio popular aos recentes golpes saqueando recursos e fechando acordos
ses exemplos encorajarão outros em to- militares foi “sintomático de uma nova com nefastos atores geopolíticos para
do o continente. Mas a democracia tem onda de aspiração democrática que está se reforçar seu poder. O ímpeto em todo
recuado em muitas regiões. Regimes re- expandindo por todo o continente”. A pes- o continente permanece com os jovens
pressivos, partidos que se mantiveram quisa com 8 mil entrevistados, 5 mil dos – a idade média dos entrevistados pela
no poder por 40 anos ou mais e líderes quais passaram por mudanças inconsti- ONU era de 35 anos – e os esperançosos.
“dinossauros” viram uma série de desa- tucionais de governo na África Ocidental Até veteranos cansados parecem ter de-
fios de políticos geralmente mais jovens, ou no Sahel, apontou a impaciência gene- cidido ser a hora de traçar uma linha na
que sabem falar com uma nova geração ralizada com a política existente como um areia, até mesmo se forem seus instintos
de eleitores e canalizar a grande impaci- fator significativo no número recorde de políticos, e não seus princípios, que lhes
ência por mudanças. Isso é uma decepção, golpes. Embora muitos tenham dito acre- digam qual é a vantagem.
mas, se a rápida urbanização, a juventude, ditar que o exército deva assumir quando
o aumento da educação e a crescente co- um governo civil é incompetente, a gran- Ainda antes do prazo final de domingo
nectividade de grande parte da África ain- de maioria dos entrevistados prefere uma à noite para a intervenção militar, Tinubu
da não atingiram o nível crítico que per- forma democrática de governo. Em su- tinha deixado claro que não acreditava
mitiria a vitória dos movimentos refor- ma, os golpes são aprovados apenas por- que a mudança forçada de governo em
mistas de oposição, isso não pode durar que não há outra opção. Ofereça uma al- Niamei pudesse se manter. “Sem demo-
para sempre. Os golpes no Sahel tendem ternativa democrática, diz a lógica, e será cracia não há governança, não há liber-
a reforçar esse argumento, na verdade. mobilizado um profundo anseio por “elei- dade, não há estado de direito”, disse ele
no início de julho. “Não permitiremos gol-
FAIXA AUTORITÁRIA pe após golpe na África ocidental.” Desde
que estourou a crise no Níger, ele jogou o
enorme peso econômico e político da Ni-
géria por trás do esforço internacional pa-
ARG ÉL I A L Í BI A
ra restaurar Bazoum ao poder.
E GI TO Bazoum, preso em sua casa, fez um
Deserto do Saara
apelo desesperado. “Lutar por nossos va-
lores compartilhados, incluindo o plura-
MAUR I TÂ NI A M A LI lismo democrático e o respeito ao Esta-
NÍGER C HAD E SU DÃO
do de Direito, é a única maneira de fazer-
E R IT R E IA
Região do Sahel mos um progresso sustentável contra a
S E R G E I B O B Y LY O V / TA S S / A F P

pobreza e o terrorismo”, escreveu no The


N I G É RI A Washington Post. Felizmente para ele –
R E P Ú B LICA SU DÃO E T IÓ PI A e para nós –, centenas de milhões de ha-
C EN T RO - D O S UL
-AF R I CA N A bitantes no Níger, Sudão, Mali, Burkina
Fasso e em toda a região concordam. •
SENEGA L B UR K I N A
FAS S O
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 47
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Novas e velhas regras


POLÍTICA CULTURAL Esquentam no Congresso os debates sobre
a cota de tela para obras brasileiras e a regulação do streaming
P O R A N A PAU L A S O U S A

E
mbora os Projetos de Lei (PL) conversar com senadores e deputados e ma até dezembro de 2043 e estende para
que tratam da regulação das com representantes do Executivo. O mo- esse mesmo ano a validade das cotas pa-
redes sociais e das novas for- vimento se seguiu a outro, significativo, ra a produção nacional vigentes na tele-
mas de recolhimento de direi- feito na semana anterior pelo Ministério visão por assinatura. Na semana passa-
tos autorais sejam os mais da Cultura (MinC). da, o senador Humberto Costa (PT-SP),
vistosos, há outras duas importantes pau- líder do PT, fez um vídeo para celebrar o
tas sobre cultura e entretenimento em Foi após uma articulação encabeça- convite para a relatoria do projeto.
curso no Congresso Nacional: o restabe- da por integrantes da pasta que, no dia 2 No caso da regulação das platafor-
lecimento de cotas para a produção brasi- de agosto, chegou à Comissão de Assun- mas de streaming, o cabo de guerra se
leira e a regulação dos serviços streaming. tos Econômicos do Senado o PL nº 3696, dá em torno de dois projetos. Um de-
E são esses os cavalos de batalha dos de autoria do senador Randolfe Rodrigues les, que data de 2017, tramita na Câma-
representantes de diferentes entidades (Rede-AP), líder do governo na casa. ra e, desde junho, está sob a relatoria
ligadas ao setor audiovisual que, na quar- O texto prevê o retorno da cota de tela de André Figueiredo (PDT-CE). O ou-
ta-feira 9, estiveram em Brasília para para filmes brasileiros nas salas de cine- tro é o substitutivo do senador Eduardo

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 50
NESTA Protagonista. Quem é
SEÇÃO Franz Rogowski, ator alemão
tornado cult e onipresente

Davi e Golias. Os Aventureiros –


A Origem, com Luccas Neto, o filme
brasileiro mais visto este ano, vendeu
422 mil ingressos. Barbie, o líder entre
os blockbusters, já atingiu a marca
de 9,6 milhões de espectadores

determinada média de público e renda.


Desde 2020, ano em que a pandemia fe-
chou as salas e a Agência Nacional do Cine-
ma (Ancine) foi assolada por uma crise ins-
titucional e política, os filmes brasileiros
têm visto sua habitualmente baixa parti-
cipação de mercado encolher ainda mais.
Se, na década anterior, a produção na-
cional respondeu, em média, por 15% do
total de ingressos vendidos, desde 2021
o porcentual tem girado entre 1% e 2%.
E essa queda não tem nada a ver com fal-
Gomes (PL-TO), em trâmite no Senado. Isso não significa, porém, que o PL não ta de filmes: o cinema brasileiro respon-
O primeiro especifica obrigações rela- gere dissenso. E se isso acontece é porque de, atualmente, por cerca de 30% das es-
tivas ao investimento das plataformas de o PL dá novas feições à obrigatoriedade. treias anuais.
vídeo sob demanda, como Netflix e HBO A cota de tela, estabelecida pela Medida
Max, em conteúdo brasileiro e à presença Provisória 2228-1, de 2001, venceu em O PL do senador Randolfe Rodrigues
de filmes e séries feitos por produtores in- setembro do ano passado e o novo pro- contempla o posicionamento técnico da
dependentes nos catálogso. O texto atua- jeto modifica o texto da lei original. Ancine, que tem feito a defesa do que cha-
liza, para a era digital, demandas históri- Fica estabelecido, por exemplo, que ma de “ocupação predatória” do circui-
cas da produção independente brasileira. a presença dos títulos brasileiros nas to exibidor. No caso da tevê por assinatu-
Já o segundo tem como foco a incidên- salas deve obedecer a um número mí- ra, a cota de tela ainda está em vigor, mas
cia da Contribuição para o Desenvolvi- nimo de sessões, e não apenas de dias. vence em setembro – justamente por isso,
mento da Indústria Cinematográfica Na- Estão previstas ainda regras que têm o o texto prevê também sua prorrogação.
cional (Condecine) sobre as empresas de objetivo de limitar o tamanho dos lan- Embora seja apenas um entre outros
streaming. Hoje, elas são as únicas da ca- çamentos dos blockbusters – que chegam PLs relativos ao setor, esse projeto traz
deia audiovisual a não recolher o tributo. a ocupar mais de 90% das salas do País uma sinalização importante: o governo
Embora haja menção à diversidade e à pos- – e de impedir que um filme brasileiro entrou em campo para tentar dar um novo
WA RNER BROS./SY N A PSE E WA RNER BROS.

sível criação de cotas, o texto flexibiliza a seja tirado de cartaz se estiver fazendo ordenamento legal a um mercado que, nas
regulação, indo mais na direção dos plei- duas últimas décadas, passou por trans-
tos das plataformas. O substitutivo tam- formações profundas. E o sinal vai no sen-
bém exclui das novas regras novelas e sé- tido de maior intervenção do Estado.
ries presentes nos catálogos da televisão. Um novo Projeto de Lei Nessa arena de disputa estão as em-
Se, no caso do streaming, as cotas ain- apresentado pelo líder presas de tecnologia que hoje têm as
da se mostram controversas, no caso das próprias plataformas, caso de Apple e
salas de cinema esse mecanismo já foi, de
do governo no Senado Amazon, os grupos de mídia e entrete-
certa forma, absorvido – até por existir indica que o MinC foi nimento, como Disney e Globo, e todos os
há décadas e ter sido considerado consti- a campo e deseja maior empresários e profissionais do mercado
tucional pelo Supremo Tribunal Federal. intervenção do Estado independente brasileiro. Não é pouco. •

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 49
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Franz é o
nome dele
PROTAGONISTA Quem é Franz Rogowski,
ator alemão que pode ser visto em
dois filmes em cartaz nos cinemas
e em outros seis exibidos no streaming
P O R C Á S SI O S TA R L I N G C A R LO S

E
le não é bonito. Nã tem cor- uma missão nas profundezas da nature-
pão. Não corre e salta como za africana. Lá, sua identidade flutuan-
Tom Cruise. Nem voa e luta te ganha outras camadas, que o filme re- tian Meise, Rogowski interpreta um ho-
como os atores que interpre- presenta por meio de ênfases sensoriais. mem enquadrado no Parágrafo 175, que
tam super-heróis. No entan- O passado desfocado do personagem, as- criminalizava a homossexualidade.
to, emana dele algo que impregna a tela sim como as indeterminações sucessivas Entre as idas e vindas ao cárcere, seu
e leva o público a querer saber quem é. que o acompanham, é reforçado pela pre- personagem estabelece um vínculo amo-
A primeira aparição de Franz sença de Rogowski. A estranha dicção do roso com o companheiro de cela. A ex-
Rogowski no cinema, em 2011, no papel ator é o primeiro aspecto que chama aten- pressividade facial de Rogowski é do tipo
de um adolescente desajustado, pode ter ção. Rogowski nasceu com uma má-forma- que mais oculta do que transparece. Es-
passado despercebida. As interpretações ção, chamada lábio leporino, e fez uma ci- se aspecto, adicionado a seu olhar de ca-
do ator alemão, de 37 anos, em filmes de rurgia na infância para corrigir o problema. chorro perdido, o torna eficaz para viver
diretores de prestígio, como Michael Ele, no entanto, sibila. Sua voz soa como um personagens introspectivos, silenciosos
Haneke, Terrence Malick e Christian esforço, uma disputa entre dentro e fora. ou que tentam inutilmente atravessar o
Petzold, fizeram, porém, seu nome cir- Tal característica intensifica sua in- muro da incomunicabilidade.
cular fora do nicho dos festivais. corporação de personagens marcados
Seu tipo estranho fortalece o enigmático por restrições – estejam elas no idioma, O diretor Ira Sachs explora esses re-
Disco Boy: Choque Entre Mundos, em car- nas emoções ou na lei. Ela é usada, por cursos de modo a acentuar as contradi-
taz nos cinemas desde a quinta-feira 3. Sua exemplo, para criar uma marca indelé- ções de Tomas, personagem do ator em
opacidade amplifica a paleta sentimental vel na memória de quem assiste Great Passagens. O filme é uma releitura polis-
de Passagens, que estreia na quinta-feira 17. Freedom. No filme do austríaco Sebas- sexual de Jules e Jim – Uma Mulher para
Disco Boy, primeiro longa-metragem Dois (1962), de François Truffaut. Ses-
de ficção do italiano Giacomo Abruzzese, senta anos depois, Jeanne Moreau cede o
segue o percurso de Aleksei, um bielor- posto da mulher amada por dois homens
russo que cruza clandestinamente as Dono de uma voz a Rogowski, que oscila entre o amor ao
fronteiras europeias. Ao alcançar a Fran- marido, Martin (Ben Wishaw) e a pai-
ça, ele perambula, desconectado, até ser
sibilante, o ator tem xão por Agathe (Adèle Exarchopoulos).
detido. A possibilidade de obter cida- dado vida a figuras Quando a relação com Martin sofre o
dania leva-o a integrar-se à Legião Es- introspectivas ou esfriamento da rotina, Tomas, ao ter um
trangeira, onde treina para participar de um tanto obscuras encontro com Agathe, é arrastado para

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Emoção contida.
Disco Boy: Choque
FILMOGRAFIA
Entre Mundos Uma lista de seus trabalhos
(à esq.), do diretor
italiano Giacomo disponíveis no Brasil
Abruzzese, está em
cartaz. Passagens NO CINEMA
(abaixo), do cineasta Disco Boy: Choque Entre Mundos
estadunidense Ira (2023)
Sachs, estreia na Passagens (2023)
quinta-feira 17
NO STREAMING
Victoria (2015)
AppleTV

Happy End (2017)


Google Play, AppleTV

In the Aisles (2018)


MUBI

Undine (2020)
Globoplay, Google Play, AppleTV

Great Freedom (2021)


MUBI

Luzifer (2022)
MUBI

uma tempestade perfeita. Enquanto as corpos, representando essa ambivalência, Esta tensão contida pode irromper em
possibilidades do amor livre era um dos te- ocupam um lugar central em Passagens. cenas físicas, como a do karaokê em Happy
mas que Truffaut antecipava em sua épo- A solução não passa apenas pela pintu- End, de Michael Haneke. Em grande par-
ca, Passagens explora o campo das proba- ra crua do sexo: envolve posturas e movi- te, porém, não há explosões, a interpreta-
bilidades do poliamor, questionando equi- mentos e limita o acesso às faces, que mui- ção não transborda – como costuma acon-
líbrio entre liberdades, egoísmos e desejos. tos cineastas tendem a tratar como úni- tecer nas atuações ganhadoras de Oscar.
Tal como fizera em Deixe a Luz Acesa co espaço de emoções. Aqui se manifes- Talvez por isso os personagens de
(2012) e O Amor É Estranho (2014), Sachs ta um terceiro aspecto que dá singulari- Rogowski vivam numa espécie de lim-
aborda os afetos pelo ângulo da dor. Em dade aos personagens de Franz Rogowski. bo territorial, como o clandestino de Em
seus filmes, os relacionamentos são, so- Trânsito, ou persigam fantasmas, como
bretudo, mais acúmulos de solidão. Uma vez que a voz sibilina e a face es- o mergulhador de Undine, ambos do ale-
M U B I / 0 2 P L AY E P A N D O R A F I L M E S

Para evitar a armadilha dos excessos tranha poderiam ser obstáculos à carrei- mão Christian Petzold. Eles podem os-
emocionais ou de diálogos, Passagens ra de ator, seu corpo parece concentrar a cilar entre inocência e ferocidade, como
prefere o não dito, o impulsivo. Para is- maior parcela de sua energia. Esta é a causa em Luzifer, ou sair de um vazio para en-
so, o talento de Rogowski contribui muito: mais provável da impressão de “presença” trar em outros, como em In the Aisles.
ele mantém os sentimentos de Tomas na que ele provoca. E esse “algo” não se deve Cada época produz intérpretes capa-
obscuridade. Enquanto as emoções ficam apenas à aparência; passa pelos gestos e zes de revelar aos contemporâneos aqui-
sujeitas ao desentendimento, o desejo movimentos, mas perpassa também o si- lo que não compreendem ou escondem
sexual flui como força desbloqueada. Os lêncio de um personagem lendo um livro. de si. Franz Rogowski é um dos nossos. •

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 51
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Os gestos dos
ambientadas numa tribo africana ma-
triarcal. A escravização brutal da tribo

acorrentados
e o transporte de seus integrantes para
a América são relatados com severidade.
Este romance não é – necessaria-
mente – uma leitura fácil. Jones tem um
O romance Os Profetas estilo lírico, mas não foge dos horrores
da escravidão. Ele escreve que Os Pro-
narra de maneira prodigiosa uma história fetas talvez seja até mais “um testemu-
de amor entre dois homens escravizados, nho” que um livro e pede ao leitor que
testemunhe coisas das quais preferiria
numa plantação no Mississippi, nos EUA se afastar. Trata-se, ao mesmo tempo,
de uma bela peça de ficção.
P O R H O L LY W I L L I A M S Jones tem um talento especial pa-
ra frases que lembram provérbios, co-
mo quando diz estar a dor “úmida nos

E
olhos, presa sobre a língua, quebrada
m uma carta ao leitor, logo Os capítulos são nomeados segundo nas palmas das mãos”.
no início de seu romance livros da Bíblia, mas o que realmente
de estreia, Robert Jones Jr. distingue a obra são os trechos poéticos Suas descrições têm uma vivacidade
diz ter sido forçado a escre- escritos nas vozes misteriosas e eter- rica e distinta: “Samuel colocou o braço
ver o livro depois de ouvir nas de sete ancestrais que falam a par- de Isaiah ao redor do pescoço e juntos eles
vozes ancestrais insistindo para que tir da escuridão. andaram, com o passo penoso e vacilan-
fizesse a seguinte pergunta: “Exis- Embora a maior parte da história te, as correntes apenas tinindo, de volta
tiam pessoas negras queer em um ocorra na plantação, sendo contada pela ao celeiro, com as pernas arqueadas por
passado distante?” E que então com- perspectiva de vários personagens, a nar- causa dos pinos, mas sem quererem ser
partilhasse a resposta: “É claro que rativa também é entremeada por cenas desacorrentados ainda. Costas gêmeas,
sim”. As vozes dos escritores James suculentas com as marcas deixadas pe-
Baldwin (1924-1987) e Toni Morrison las chibatadas e olhares de reprovação”.
(1931-2019) também pareciam alcan- O mesmo detalhamento em camadas
çá-lo e encorajá-lo. é aplicado às vidas emocionais e espi-
Esses dois nomes, inclusive, apare- rituais dos personagens – memórias e
ceram repetidamente no material de magia, visões e vozes engrossam suas
lançamento de Os Profetas, que chega experiências e tornam a narrativa ma-
às livrarias brasileiras na sexta-feira dura e inebriante.
18. A sinopse original do livro, em in- Às vezes, pode soar exagerado. Exis-
glês, chega a exagerar, afirmando que tem demasiadas metáforas complica-
Jones apresenta um lirismo semelhan- das, emaranhadas em suas próprias
te ao desses gigantes literários. imagens. Embora o brilho do texto se-
Os Profetas, que conta uma histó- ja a grande força do livro, ainda há luga-
ria de amor entre dois homens escra- res nos quais menos seria mais.
vizados, Isaías e Samuel, numa planta- Jones também é ambicioso no esco-
ção no Mississippi, no Sul dos Estados OS PROFETAS po da narrativa – e oferece uma poli-
Unidos, é, de fato, um romance notável. Robert Jones Jr. Tradução: Viviane fonia pródiga de medos e desejos con-
Jones oferece uma intimidade terna e Souza Madeira. Companhia das Letras flitantes, deslizando entre as perspec-
(456 págs., 79,90 reais)
próxima, mas faz também uma varre- tivas de um grande elenco de persona-
dura da história. gens. Diferentes instâncias de amor

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA

Marcada por um primeiro casamento fra-


cassado e por um segundo casamento no
qual se tornou mãe de nove filhos, Malika,
marroquina de origem simples, é a protago-
nista de Viver à Sua Luz (Nós, 192 págs.,
70 reais), romance de Adbellah Taïa, autor
nascido no Marrocos e radicado em Paris.

Jones tem um estilo


A profícua e festejada autora argentina
lírico e ao mesmo Mariana Enriquez põe seu talento como
tempo contundente contista à prova em Os Perigos de Fumar
na Cama (Intrínseca, 144 págs., 34,90
reais). A obra, finalista do International
Booker Prize, reúne 12 histórias construí-
das com elementos da fantasia e do horror.

entre pessoas do mesmo sexo ocorrem também um medo iminente e amea-


em Os Profetas, mas é o relacionamento çador. O que é notável, sugere Jones, é
A L B E R T O VA R G A S R A I N R I V E R

entre Samuel e Isaías que dá ao livro sua que os humanos ainda amam, mesmo
pulsação e um pouco de suavidade em quando as ameaças mais terríveis pai- Cinquenta Tons de Racismo (Matrix, 128
meio a tantas dificuldades. ram sobre eles e mesmo sabendo que págs., 39 reais), de Janaína Batista, se so-
Não há banalidades fáceis sobre co- seus opressores nunca lhes permiti- ma à lista de livros recentes que têm procu-
rado entender as várias faces do racismo
mo o amor triunfa sobre o sofrimen- rão um final feliz. • no País. Aqui, a pesquisadora faz um apa-
to. O sofrimento permeia cada página. nhado histórico da miscigenação e reflete
Mesmo em momentos de doçura, há Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. sobre as gradações do preconceito.

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 53
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Walter Benjamin
vai à praia
IDEIAS Muito antes de se tornar um
destino das elites, a ilha de Ibiza foi
vista, pelo intelectual alemão, como
um lugar que resistia à modernidade
P O R FÁ B I O M A S C A R O Q U E R I D O *

W
alter Benjamin e É nesse contexto que o intelectual ju-
Ibiza. Vista de hoje, a deu chega ao Mediterrâneo. A primeira
associação causa estada começou em abril de 1932 e per-
certa perplexidade. durou até julho do mesmo ano. A segun-
Afinal de contas, na- da, já sob a vigência do regime nazista,
da mais distante da vida cheia de adver- ocorreu entre abril e setembro de 1933.
sidades do intelectual alemão do que a Dali em diante, Benjamin jamais retor-
luxuosidade com a qual, mais tarde, a naria ao país natal.
ilha espanhola seria identificada.
Mas a Ibiza do início dos anos 1930 em Entre os anos vividos em Paris, as
nada se parecia com o atual refúgio das temporadas na Dinamarca, na casa de
elites europeias. Ao contrário. Recanto Bertolt Brecht, e as viagens a San Remo,
relativamente isolado, a ilha que se apre- na Itália, onde se hospedava na pensão da
sentou a Benjamin era um lugar que re- ex-esposa, Dora, Benjamin perambulou
sistia à modernidade: o novo, incipiente, por onde pôde, à procura de uma saída
convivia com o antigo que continuava a em face da catástrofe que se aproximava.
se reproduzir. E foi justamente isso que o
fascinou em suas duas estadas por lá, co- Não a encontrou, como testemunha seu
mo se pode ver em Experiência e Pobreza: trágico fim na mesma Espanha, mas agora
Walter Benjamin em Ibiza, 1932-1933, de em Port Bou, na Catalunha. Foi nesse po-
Vicente Valero. voado que, após ter sido barrado pela polí-
Tudo começou um ano antes da as- cia fronteiriça, em setembro de 1940, tirou
censão dos nazistas ao poder. Um Ben- a própria vida com a ingestão de morfina.
jamin debilitado por mais uma severa EXPERIÊNCIA E POBREZA: Em sua primeira viagem à ilha,
crise financeira e psíquica cruzou por WALTER BENJAMIN Benjamin deparou-se com uma paisa-
acaso, nas ruas geladas de Berlim, com EM IBIZA, 1932-1933 gem ainda intocada pelas transforma-
o amigo Felix Noeggerath, que lhe suge- Vicente Valero. Tradução: Daniel ções associadas à modernidade. “Viajar
re Ibiza como destino. Além de tranquila Lühmann. Editora 34, Duas Cidades a Ibiza era, então, como viajar no tempo”,
(272 págs., 76 reais)
e acolhedora, a ilha se caracterizava pelo escreve Valero. Benjamin entrevê entre
baixo custo de vida. os habitantes locais um tipo de “experi-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Itinerário conturbado. Benjamin sem volta. Desde então, a instabilidade


(à direita) teve duas passagens pela que sempre marcara seu itinerário – em
ilha do Mediterrâneo. Na segunda delas,
especial após a rejeição de sua tese de li-
o regime nazista já havia se instalado
e ele jamais retornaria ao seu país natal vre-docência, em 1925 – tornou-se per-
manente. Sua condição de pária e apátri-
da ganhou status oficial. É essa condição,
aliás, que explica sua obsessão pelos frag-
ência” cada vez mais rara em meio à “po- mentos, pelos trapos que, na sua miude-
breza” do mundo moderno, cujo “pro- za, carregam uma imagem universal do
gresso” transforma tudo em ruínas. mundo – como se observa em seu proje-
Sua percepção sofreria mudanças na to sobre as “passagens” de Paris.
segunda estada. Além das transforma-
ções impulsionadas pelo turismo, que Mostrar como, para Benjamin, os me-
impunha sua forma de “modernidade”, ses em Ibiza tiveram uma importância
a atmosfera estava muito mais tensa, in- não apenas afetiva, mas intelectual, é o
clusive pela presença discreta de jovens que faz de Experiência e Pobreza um livro
alemães alinhados ao nazismo. À preca- imperdível. Ele traz à tona a vitalidade de
riedade material – “o miserável”, era seu um pensamento que, talvez por seu cará-
apelido entre os vizinhos da ilha – se so- ter inacabado, consegue nos transportar
mava um horizonte cada vez mais som- do presente ao passado, e vice-versa, mo-
brio, como se a “rua de mão única” (títu- vimento fundamental para se pensar e se
lo de um dos seus livros) o estivesse le- imaginar um novo futuro. •
vando a um beco sem saída.
Em Ibiza, Benjamin vivenciou, por- *Fábio Mascaro Querido é professor
tanto, em suas duas visitas, uma virada de Sociologia da Unicamp.

brasileira que o trabalho foi


RUPTURA COM A ACADEMIA dedicado a Asja Lacis, mili-
Rua de Mão Única, publicado originalmente tante comunista e diretora
em 1928, marca uma virada em sua trajetória teatral por quem Benjamin se
apaixonou. O livro traz, inclu-
sive, um texto assinado a
quatro mãos por ambos,

A
mesma coleção Rua de Mão Única foi pu-
pela qual foi lança- blicado em 1928, ou seja, sobre Nápoles, e um trecho
do o livro sobre a quatro anos antes da das memórias de Asja.
DIVULGAÇÃO/EDITORA 34/DUAS CIDADES

experiência de Walter primeira viagem do pensador Do conjunto de textos


Benjamin em Ibiza publica à ilha espanhola. O livro emergem com especial
Rua de Mão Única (Editora antecipa as inquietações que força a experiência da moder-
34, 168 págs., 62 reais), se fariam presentes na vida nidade – vivenciada nas
que reúne 60 textos breves de Benjamin nos anos seguin- transformações das cidades
do intelectual alemão. O volu- tes e marca seu distancia- e nos novos modos de ser –
Olhar. O volume reúne 60
me, traduzido por Rubens mento dos ditames e o olhar sobre a vida burgue- textos breves e foi dedicado
Rodrigues Torres Filho, traz acadêmicos e da carreira sa, composta de um “amálga- a Asja Lacis, por quem o
ma de estupidez e covardia”. pensador estava apaixonado
um texto introdutório da filó- universitária.
sofa Jeanne Marie Gagnebin. Lê-se na orelha da edição – por Ana Paula Sousa

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 55
AFONSINHO
CLUBE DE REVISTAS
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

A era das negociações

A própria Bia demonstra isso. Ela era, Nesse vaivém, o noticiário traz a boa-
► O mundo das compras quando foi contratada, considerada a -nova da transferência do extraordinário
e vendas do futebol está mais capacitada para o posto, dados os Iniesta do Japão para a Arábia. Montado
títulos conquistados anteriormente. em seus 39 anos, ele segue, de batuta na
cada vez mais agitado e Essa postura se repete na insistên- mão, imprimindo ritmo e equilíbrio por
contempla desde nomes cia em torno do nome do italiano Carlo onde desfila.
consagrados até garotos Ancelotti para comandar a Seleção mas- Messi, seu discípulo e parceiro, já to-
culina. E olhar para o currículo forte pa- dos sabemos que se mandou para os
mal saídos do berço ra a contratação dos auxiliares. Estados Unidos. E, depois deles, outros
O investimento em curso nos dá a ideia nomes de destaque começam a seguir pa-
do quão significativa é a valorização do es- ra aquele rico país.

E
nquanto baixa a poeira da elimi- porte profissional – o chamado esporte de Na roda dos nomes das transferên-
nação da Seleção feminina de fu- alto rendimento – em todas as suas frentes. cias, dois dos que mais repercutem são
tebol da Copa do Mundo, especu- Essa valorização se deve ao avanço da Neymar e MBappé. O destino desses dois
la-se a permanência da treinadora sueca tecnologia, que permite transmissões expoentes é ainda uma incógnita, mas já
Pia Mariane Sundhage na direção técnica. em alto estilo, que mobilizam altos va- é claramente afetado pela injeção do di-
A saída “chocante” das brasileiras foi lores em direitos e publicidade. nheiro árabe no futebol europeu.
semelhante à dos brasileiros do Mundial Também não podemos desconsiderar De toda forma, o que tudo indica é que
do Catar. o quanto o esporte serve de alento nes- o jogador francês caminha para o Real
Com o passar do tempo de prepara- tes tempos de tantas dificuldades sociais Madrid, que procura sempre ter no seu
ção, foi se desenvolvendo uma expecta- e políticas. elenco estrelado o jogador mais valori-
tiva exagerada em torno da equipe femi- zado do momento.
nina. Entramos todos na onda do alto in- Nas discutidas diferenças dos calen- Já o brasileiro, sem jogar há alguns
vestimento da Confederação Brasileira dários pelo mundo, enquanto na Europa meses por causa de uma lesão, não tem
de Futebol (CBF). Isso parece ter se tor- o verão dá visibilidade a variados espor- destino certo, mas sua saída do Paris
nado uma constante nos tempos atuais. tes, o futebol entra no período das trans- Saint-Germain parece inevitável.
Os dirigentes do órgão máximo do fu- ferências e pré-temporada. Em meio a toda essa movimentação, me
tebol brasileiro têm se mostrado dispos- Por estes lados, temos a Libertadores, parece curiosa a trajetória do misterioso
tos a não medir esforços não só na forma- a Sul-Americana, as Quartas de Final da Hazard, o melhor jogador da Copa-18, ime-
ção dos selecionados, como em promover Copa do Brasil e o Brasileirão terminan- diatamente levado para o Real Madrid,
o maior investimento possível em todas do seu primeiro turno. onde nunca conseguiu desenvolver sua
as disputas de todas as séries. Nas valorizadas transações, vamos carreira. Agora, se fala em sua provável
E o investimento deve dar-se tanto no acompanhando mudanças interessantes contratação pelo Flamengo. Trata-se,
futebol masculino quanto no feminino e, nas formas de negociação, dada a maior sem dúvida, de um excelente driblador.
pelo visto, vai contemplar também todos participação e concorrência de america- Na esteira dos grandes nomes, vão
os níveis das competições. nos e árabes. aparecendo as novidades desconhecidas
A maior prova disso é que a entidade Além das disputas pelos craques que do grande público, mas que vêm respal-
acaba de anunciar a presença do VAR nas ampliam suas possibilidades profissionais dadas pelo desenvolvimento espantoso
fases finais da Série D do Campeonato – e aumentando a longevidade da carrei- dos scouts que produzem informações
Brasileiro. ra dos atletas mais destacados –, surgem das novas revelações de craques – prati-
B A P T I S TÃ O

Temos acompanhado, além disso, uma novas competições, como a surpreenden- camente ainda no berço – nos mais dis-
grande disposição de se investir em no- te Copa dos Campeões Árabes. A competi- tantes rincões do mundo. •
mes de peso para comandar as seleções. ção terá sua decisão neste fim de semana. redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ARTHUR CHIORO
CLUBE DE REVISTAS
Médico sanitarista e professor da Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). Foi ministro da Saúde. É presidente
da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (MEC)

Sete décadas de história

ças por meio de estruturas verticalizadas tagonista ao assumir a coordenação do


► Criado há 70 anos, e estilo repressivo de intervenção. Esses SUS em âmbito nacional. Foi um proces-
o Ministério da Saúde programas foram implantados por emi- so de disputas pela implantação de uma
nentes figuras da medicina nacional, co- política universal e integral de saúde, em
garantiu, a despeito dos mo Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Emí- um contexto histórico de subfinancia-
períodos de retrocesso, lio Ribas. Em 1923, as ações de saúde pú- mento e privilegiamento do setor priva-
que os brasileiros blica foram vinculadas ao Ministério da do. Não foi um período linear, mas o SUS
Justiça e, em 1930, ao da Educação. foi capaz de promover a saúde e permitir
passassem a viver mais Em 1953, finalmente, para aprimo- que os brasileiros vivessem mais.
rar e ampliar as ações de saúde pública, O golpe de 2016 levou ao cargo de mi-
foi criado o Ministério da Saúde. A pas- nistro pessoas que defenderam, escanda-

O
Ministério da Saúde completou ta mostrou-se fundamental para o con- losamente, o argumento de que bastaria
70 anos com uma história mar- trole de doenças transmissíveis em zona “melhorar a gestão” para que o sistema
cada por avanços e retrocessos urbana e para o processo de urbanização funcionasse. Essas pessoas, ao mesmo
na construção de uma política pública e industrialização do País. tempo, procuraram desmontar e preca-
essencial para o desenvolvimento eco- rizar políticas exitosas, construídas des-
nômico e social do País. E essa história Durante a ditadura militar, o INPS, de antes da criação do SUS, como é o ca-
é muito especial para mim. A seu estu- subordinado ao Ministério da Previdên- so da Política Nacional de Imunização.
do tenho dedicado boa parte da minha cia Social, comandou a extensão da assis- O ponto de inflexão mais grave acon-
vida, como professor e pesquisador, e tência médica para as populações urba- teceu sob a gestão Bolsonaro, quando a
dela fiz parte em alguns momentos. na e rural. Privilegiou-se, nesse momen- associação de militares, políticos conser-
Entre 2003 e 2005, como diretor to, a prática médica curativa individual e vadores e negacionistas resultou na mais
de Atenção Especializada, pude, entre assistencialista, em detrimento da saú- grave destruição da história do minis-
outras ações, coordenar a criação do de pública. Além disso, criou-se um com- tério. As medidas de austeridade, o des-
SAMU-192 e a política de reestrutura- plexo médico-industrial orientado para mantelamento das capacidades técnicas
ção dos hospitais de ensino. Depois, en- a lucratividade dos produtores privados e a desastrosa resposta à pandemia con-
tre 2014 e 2015, tive a honra de contribuir de serviços de saúde. tribuíram largamente para uma rápida
com o fortalecimento do SUS como o 43o O ministério, nesse período, perdeu deterioração dos indicadores de saúde.
ministro da Saúde, um cargo tão instável prestígio e recursos. Além disso, até O desafio agora é reconstruir o SUS
quanto o de técnico que frequenta o Z-4 1989, fazia apenas ações de saúde públi- em um contexto em que as feridas dei-
na Série A do Brasileirão. ca, já que a assistência médica era restri- xadas permanecem abertas e latejam. A
Estas sete décadas refletem distintos ta a quem podia pagar ou quem tinha vín- fase atual deverá ficar marcada pela re-
projetos e momentos da história, e foram culo previdenciário. tomada da capacidade de coordenação
responsáveis, em grande parte, pela mu- No período da redemocratização, fra- nacional do SUS, que conquistou inédito
dança do padrão de morbimortalidade da gilizado, cumpriu papel secundário na padrão de legitimidade social graças ao
população. As políticas de saúde garan- agenda sanitária nacional, que via os in- reconhecimento do quanto foi impres-
tiram que os brasileiros vivessem mais e dicadores de saúde piorar. A ampla mo- cindível durante a pandemia.
ocupassem o nosso vasto, diverso e inós- bilização e luta do Movimento da Refor- Ficará para a história também por ter
pito território. ma Sanitária, com a 8ª Conferência Na- sob sua direção, de forma inédita, uma mu-
A partir do início do século XX, o Bra- cional de Saúde e a Assembleia Nacional lher, cientista social e pesquisadora com-
B A P T I S TÃ O

sil adotou como modelo hegemônico de Constituinte, permitiu que o SUS fosse petente, que poderá elevá-lo à condição de
saúde o “sanitarismo campanhista”, de criado na Constituição de 1988. patrimônio imaterial do povo brasileiro. •
inspiração militar, que combatia as doen- A partir daí, a pasta virou a grande pro- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 6 D E AG O S TO D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO CLUBE DE REVISTAS

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Obrigado!
Somos mais de
1 milhão de seguidores
no Instagram
CLUBE DE REVISTAS
de

A Fundação Dorina Nowill para Cegos atua há 7 décadas em prol da autonomia e inclusão da pessoa cega e com
baixa visão na sociedade, oferecendo capacitação, soluções em acessibilidade e diversos serviços e projetos
relacionados à educação inclusiva.

SÃO
PAULO
GOVERNO
DO ESTADO
Secretaria dos
Direitos da
Pessoa com
Deficiência

Você também pode gostar