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BRASIL PARALELO REPÓRTER INFILTRADO LAVA JATO STF ABRE A POSSIBILIDADE

CONTA O QUE VIU E OUVIU DURANTE DE REVISÃO DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA


A MANIFESTAÇÃO EM DEFESA DE JAIR COM AS EMPREITEIRAS, MAS O CADÁVER
BOLSONARO NA AVENIDA PAULISTA DA REPÚBLICA DE CURITIBA ESTREBUCHA

ANO XXIX N° 1300 R$ 31,90


6 DE MARÇO DE 2024

AINDA EM PERIGO
QUEM TENTA RESOLVER E QUEM DIFICULTA O
ATENDIMENTO HUMANITÁRIO AOS YANOMÂMI
Saiba mais em
gov.br/gripeaviaria
PROTEGER O BRASIL
DA GRIPE AVIARIA.
CUIDAR
E DA NOSSA
NATUREZA.
O que é importante saber:

Algumas aves A transmissão Se estiver curtindo


migratórias têm do vírus é rara a praia e encontrar
chegado ao Brasil em humanos. animais doentes
com gripe aviária, Não é preciso ou mortos, não
que também já temer uma nova se aproxime.
afeta mamíferos pandemia. Informe o Serviço
marinhos. Veterinário Oficial
do estado.

O Governo Federal trabalha para cuidar da saúde


dos nossos animais e da segurança na produção de
alimentos para o Brasil e o mundo.
6 DE MARÇO DE 2024 • ANO XXIX • N° 1300

6 A SEMANA
Ex-comandante
da Rota, Derrite
Seu País chancela as violentas
Fantasiado
16 C R Ô N I C A operações no litoral
de gado, fui à Paulista paulista. Pág. 28

21 LUIZ GONZAGA BELLUZZO


22 A N Á L I S EA ambiguidade
no ato bolsonarista parece
estratégia premeditada
24 C O N G R E S S O Interessado
em emplacar sucessor na
Câmara, Lira negocia
um armistício com Lula
28 S Ã O PA U L O Relatório
aponta casos de tortura
e indícios de execução
sumária em operação da
PM na Baixada Santista

Economia
32 L AVA J AT O O STF abre
as portas para a revisão
dos acordos de leniência
de empreiteiras, mas o
espectro da República de
Curitiba ainda assombra
37 E N T R E V I S TA A Amazônia
não deve restringir-se à Plural
48
exportação de matérias-
-primas, defende Paulo
Rocha, na chefia da Sudam
40 R E S E N H A Ousadia e
Transformação é uma
crítica contundente ao
rentismo para os ricos e UM CORPO
fiscalismo para os pobres
POLÍTICO
ÀS VÉSPERAS DOS
Nosso Mundo
42 R Ú S S I A Após a morte
60 ANOS, WILEMARA
misteriosa de Alexei BARROS, NOME-CHAVE
Navalny, cresce o temor DA DANÇA BRASILEIRA,
de eliminação de outros É HOMENAGEADA
opositores de Putin
51 L I V R O Roberto Bolaño
45 I S R A E L A popularidade
S ÉRGIO M A RCO NI/CÂ M A R A M U NICIPA L

deixou obra pronta antes


de Netanyahu despenca
de sua última internação
DE SOROCABA E LUCIANO GOMES

52 T H E O B S E R V E R Wim
Wenders cai no gosto da
crítica e chega ao Oscar
AINDA EM PERIGO com o filme Dias Perfeitos
56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por
Capa: Pilar Veloso. QUEM TENTA RESOLVER E QUEM DIFICULTA O Drauzio Varella 58 C H A R G E
Foto: Michael Dantas/AFP ATENDIMENTO HUMANITÁRIO AOS YANOMÂMI Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) O VIRA-LATA ESPECIALISTA
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
O uso inapropriado de uma ou outra
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis palavra não invalida o que Lula
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial) disse sobre o genocídio em Gaza e a
REVISOR: Hassan Ayoub urgente necessidade de parar com a
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, André Costa Lucena,
Antonio Delfim Netto, Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia matança de mulheres e crianças. Em to-
Xakriabá, Celso Amorim, Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro,
Drauzio Varella, Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo,
do o mundo civilizado não foram ouvidas
Guilherme Boulos, Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, palavras de reprimenda ao nosso presi-
Lídice da Mata, Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila,
Marcelo Freixo, Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, dente, que criticou o governo de extre-
Ornilo Costa Jr., Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel,
Riad Younes, Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, ma-direita de Israel, e não o povo judeu.
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo Lamentavelmente, parte de nossa mídia,
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
que se manteve distante diante das atro-
CARTA ONLINE cidades cometidas, busca desqualificar
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITORES: Getulio Xavier e Leonardo Miazzo
Lula e exalta o sanguinário Benjamin
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), CRISE FABRICADA Netanyahu e seu agressivo e desprepara-
Camila Silva, Marina Verenicz e Victor Ohana
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
Os episódios da Rua Mila insistem do ministro de Relações Exteriores. É o
ESTAGIÁRIOS: Sebastião Moura em se repetir em Gaza. Ser crítico velho complexo de vira-latas em ação.
REDES SOCIAIS: Caio César
SITE: www.cartacapital.com.br
do sionismo e do atual governo de Sylvio Belém
Israel não é, de maneira alguma, ser an-
tissemita. Recordemos que os palestinos CHOQUE DE REALIDADE
em Gaza também são semitas e descen- Não parece que a Rússia quer
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 dentes de Abraão. “vencer a guerra”. Na realidade,
César Augusto Hulsendeger não quer a Ucrânia na Otan e sabemos
PUBLISHER: Manuela Carta que, se tivesse tal intenção, já teria
GERENTE DE NEGÓCIOS: Aline Lima
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene OS DESAFIOS DA ESQUERDA aniquilado a nação vizinha, assim como
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
As esquerdas dos anos 1960 a Israel está fazendo com Gaza.
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo 1990 cansaram e os governos Antônio de Vasconcelos
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
de centro-esquerda ou social-democra-
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva tas se lambuzaram no suposto brilho glo- Impasse algum. A Rússia está
balizante, que produziu mais pobreza ganhando a guerra contra o
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE:
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, para quem já era pobre e mais riqueza pa- chamado “Ocidente Coletivo” e, de que-
enio@gestaodenegocios.com.br ra quem era rico. bra, está se tornando a maior economia
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto,
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br José Carlos Gama da Europa, enquanto a Ucrânia segue
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267, em rota de desintegração.
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O OVO DA SERPENTE Roberto de Almeida
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br Quem poderia imaginar que o capi-
talismo, quando se sente ameaça-
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda.
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001.
do, busca socorro nos governos milita- ERRATA I
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 res que violam os direitos humanos e Ao contrário do informado na repor-
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se tratam o povo como inimigo? Quem po- tagem “O ovo da serpente”, o delegado
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou deria imaginar? Bom, teve um pessoal Sérgio Paranhos Fleury não fez parte da
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel na Rússia que falou disso há um século. direção ou do conselho da Sepes, e sim
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584,
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
Eduardo Alessi o promotor Ítalo Bustamante Paolucci,
acordo com a Lei de Imprensa. que testemunhou em favor de Fleury
TAPETE ENCARDIDO quando este foi acusado de chefiar um
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL)
De fato, caro Pedro Serrano, a cha- “Esquadrão da Morte” em São Paulo. O
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos mada Operação Lava Jato esquar- texto já foi corrigido na versão publicada
tejou o Direito e o Poder Judiciário brasi- no site de CartaCapital.
leiro, além de desestruturar empresas e
causar demissões em massa, para de- ERRATA II
sestabilizar o governo de Dilma Rousseff. Diferentemente do que foi publicado na
Esse tal acordo de leniência que foi vaza- reportagem “No meio do minério, a arte”,
do e compartilhado com autoridades es- Bernardo Paz, fundador do Inhotim, não
tadunidenses é um crime de lesa-pátria. foi preso durante o processo de investi-
Paulo Sérgio Cordeiro gação sobre suas empresas.

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
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C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 5
A Semana
Hang é condenado a
indenizar fotógrafo

O empresário Luciano Hang


foi condenado pela Justiça
do Paraná a pagar 5 mil reais
de indenização ao fotógrafo
Eduardo Matysiak, que
registrou a imagem de
um ônibus estacionado
irregularmente em Curitiba Padilha
e que havia sido fretado pelo negocia um
dono das Lojas Havan. acordo no
Batizado de “Patriota”, Congresso
o veículo foi multado pela
Secretaria Municipal de
Defesa Social e Trânsito em
abril de 2022. Inconformado
com a autuação, Hang foi
às redes sociais para atacar
o profissional, definido
como “esquerdinha” e “nada
imparcial”. Logo depois,
Matysiak passou a ser
insultado e ameaçado por
bolsonaristas.

Tributos/ tante para, na negociação com o Congresso,


chegarmos à melhor solução, que garanta a

Vitória do lobby saúde das contas públicas e estimule a gera-


ção de empregos e investimentos e o fortale-

empresarial cimento dos municípios e dos setores econô-


micos”, afirmou Padilha.
Lula revoga trecho de MP e mantém Em janeiro, o ministro da Fazenda, Fer-
nando Haddad, disse que a desoneração
desoneração da folha de pagamentos
custa 12 bilhões de reais por ano aos cofres
públicos e o Perse, 16 bilhões. Mencionou

A
ainda estudos que apontam falta de eficiên-
pressão de empresários e con- cia dos incentivos às empresas beneficiárias
gressistas deu resultado. Na ter- na geração de empregos.
ça-feira 27, o presidente Lula A equipe econômica de Lula pretendia dei-
revogou um trecho da Medi- xar a revogação para o fim de março, para
da Provisória 1.202/2023, que estabelecia o afastar o risco de maior contingenciamento
fim da desoneração da folha de pagamentos de despesas por causa da frustração na arre-
e estipulava a retomada gradual da cobran- cadação. Pressionado por empresários e lide-
ça de impostos em 17 setores empresariais. ranças parlamentares, o governo aceitou an-
Ao anunciar a decisão, o ministro das Rela- tecipar a medida antes mesmo de encontrar
ções Institucionais, Alexandre Padilha, es- fontes alternativas de receita. A reoneração
clareceu que não foram anulados os trechos da folha será tratada posteriormente em um
sobre o fim do programa de incentivos fis- Projeto de Lei do Executivo, que deve ser en-
cais ao setor de eventos, o Perse. caminhado ao Congresso com pedido de ur-
“Mais uma vez, damos um passo impor- gência constitucional.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
6.3.24

São Paulo/ Jogo sujo


Robinho retorna
ao banco dos réus
Polícia Federal abre inquérito para investigar ameaças de morte a Boulos
O Superior Tribunal de Justiça
agendou para 20 de março

A
o julgamento do pedido do
Polícia Federal abriu inquérito Boulos, um integrante das forças de segu-
governo italiano para que
para apurar ameaças de mor- rança pública do estado de São Paulo Robinho cumpra pena no
te ao deputado federal Guilher- estaria envolvido nas ameaças. Brasil. Condenado na Itália
me Boulos, pré-candidato do O parlamentar tem recebido recorrentes pelo estupro coletivo de uma
PSOL à prefeitura de São Paulo. A investiga- ataques de usuários em redes sociais, jovem albanesa, o ex-jogador
de futebol está em liberdade
ção foi aberta após o parlamentar encami- dizendo que ele vai morrer “se falar mais
no Brasil, cuja legislação
nhar uma representação ao diretor-geral da besteira”. Em uma dessas mensagens, o impede a extradição de
PF, Andrei Passos Rodrigues. agressor foi categórico: “Vou ter que te levar cidadãos natos. Um Tribunal
A defesa do pré-candidato pede que a para o inferno”. Por medida de segurança, de Milão solicitou, porém,
conduta dos autores seja apurada e reprimi- Boulos foi orientado a abandonar o Celta a homologação da sentença,
a prever 9 anos de reclusão.
da. O pedido não foi direcionado à Polícia Ci- que utilizava em suas agendas e passou a se
Em novembro, o Ministério
vil porque, segundo a representação de locomover em um carro blindado. Público Federal deu parecer
favorável à solicitação.
Segundo o subprocurador-
-geral Carlos Frederico
Santos, “todos os
pressupostos legais
e regimentais para o
prosseguimento de execução
penal foram cumpridos”.

O deputado teve
de trocar o Celta
por carro blindado

Minas Gerais/ CONFRONTO FORJADO


P M M G / P R F, L E A N D R O P A I V A E G I L F E R R E I R A / S R I

PF INDICIA 40 AGENTES DA PRF E DA PM POR CHACINA EM VARGINHA

Após dois anos de investiga- vam desarmados quando foram indiciamento de 24 policiais
ção, a Polícia Federal concluiu surpreendidos pelos policiais e rodoviários e 16 militares, in-
que não houve resistência em acabaram executados, muitos cluindo um tenente-coronel,
ação policial que resultou na com tiros pelas costas, na ma- por crimes de tortura, autoria
morte de 26 suspeitos na cida- nhã de 31 de outubro de 2021. e coautoria de homicídio dolo-
de mineira de Varginha, a maior Para os investigadores, os so (quando há intenção de ma-
chacina protagonizada pela Po- agentes envolvidos na opera- tar) e fraude processual. Pelo
lícia Rodoviária Federal durante ção “queriam o resultado morte WhatsApp, policiais já come-
o governo de Jair Bolsonaro. para todos que ali estavam”. çaram a organizar uma vaqui-
Segundo apuração da PF, os O relatório final do inquérito nha para custear as despesas
agentes teriam simulado um ti- foi enviado à Justiça Federal dos acusados com advogados A investigação concluiu que não
roteio, mas os suspeitos esta- na terça-feira 27. Ele pede o e demais custas judiciais. houve resistência dos suspeitos

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 7
A Semana

Ucrânia/ Metralhadoras giratórias


Armado
até os dentes
A troca de ameaças entre Putin e líderes europeus
Uma disputa entre os filhos
levou a polícia francesa
a descobrir um arsenal na
casa de Alain Delon. O ator
de 88 anos mantinha em sua
residência, sem licença,
72 armas e mais de 3 mil
munições. Os policiais
encontraram ainda um
campo de tiro na propriedade,
em Douchy-Montcorbon,
115 quilômetros
a sudoeste de Paris.

Macron e Putin:
guerra de palavras

P
alavras, por mais duras, não ga- ta guerra.” A afirmação de Macron não
nham guerras, mas inflamam conta com o respaldo do maior parceiro. Ao
as plateias. Sem tanques, ca- fim da reunião, representantes dos Estados
ças e munições suficientes pa- Unidos rejeitaram a ideia. Alemanha e Itália
ra reverter o atual curso da invasão, favorá- também descartaram a aventura. Vladimir
vel a Moscou, tem restado aos líderes euro- Putin não desperdiçou, porém, a chance de
peus filiados à Organização do Tratado do explorar um factoide. “O próprio fato de se
Atlântico Norte oferecer à Ucrânia frases discutir a possibilidade de envio de certos
motivacionais e bravatas. Na segunda-fei- contingentes para a Ucrânia a partir de
ra 26, durante reunião da Otan com a pre- países da Otan é um novo elemento muito
sença de Volodymyr Zelensky, o presiden- importante. Nesse caso, precisaríamos
te da França, Emmanuel Macron, aventou falar não sobre a probabilidade, mas sobre
a possibilidade de envio de tropas ao terri- a inevitabilidade de um conflito direto”,
tório ucraniano, sugestão que divide os in- retrucou por meio do porta-voz Dmitry
tegrantes da organização. “Qualquer coi- Peskov. Na mesma segunda-feira 26, o Par-
sa é possível se nos ajudar a alcançar o nos- lamento húngaro, último entrave, aprovou a
so objetivo”, declarou. “Faremos tudo que adesão da antes neutra Suécia à Otan, o que
for necessário para a Rússia não vencer es- aumenta o cerco aos russos no Mar Báltico.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Alemanha/ Ao pé do ouvido

O passado O presidente Lula aproveitará


a viagem a São Vicente e

condena
Granadina, onde participará
da reunião da Comunidade
de Estados Latino-
Uma das últimas integrantes do -Americanos e Caribenhos,
para uma conversa tête-à-tête
grupo Baader-Meinhof é presa com o colega venezuelano,
Nicolás Maduro. A disputa
pelo controle de Essequibo,

D
hoje nas mãos da Guiana,
urante 30 anos, Danielle Klette e as eleições presidenciais no
viveu na clandestinidade. O jo- país vizinho serão os assuntos
go de gato e rato com a polícia principais. O Brasil apresenta-
-se como mediador nos dois
terminou na segunda-feira 26,
temas. No primeiro caso,
quando a ex-integrante do grupo terrorista quer evitar a escalada da
Fração do Exército Vermelho, também co- retórica para as vias de fato.
nhecido como Baader-Meinhof, foi presa, No segundo, obter garantias
sem resistência, em Kreuzberg, bairro da ca- de que a disputa eleitoral será
minimamente transparente.
pital Berlim. Ao lado de Ernst-Volker Staub
Maduro mantém a tradição
e Burkhard Garweg, Klette compunha o trio indomável de Hugo Chávez
conhecido como os “aposentados da RAF”, Klette não aceitou o fim e continua a causar enormes
que recusaram a dissolução da organização da organização terrorista dores de cabeça a Lula.
em 1988. Desde então, os três, alegam as au-
toridades alemãs, viveram do apoio de ter- da de participar de um ataque a tiros à em-
ceiros e de roubos, alguns violentos. O au- baixada dos Estados Unidos em Bonn e de
ge da atuação do Baader-Meinhof ocorreu um atentado à bomba a um presídio em Wei-
entre as décadas de 1970 e 1980. O grupo é terstadt. A ministra do Interior da Alema-
acusado de cerca de 30 assassinatos – políti- nha, Nancy Faeser, comemorou a prisão: “O
cos e empresários eram os principais alvos – Estado de Direito demonstrou sua perseve-
e de deixar ao menos 200 feridos. Klette in- rança e firmeza. Ninguém deve se sentir se-
tegrava a terceira geração da RAF e é acusa- guro na clandestinidade”.

EUA/ PRESTE ATENÇÃO, BIDEN


A INSATISFAÇÃO DE PARTE DO ELEITORADO DEMOCRATA É EVIDENTE
A L E X A N D ER K A Z A KOV/A F P E RED ES SO CIAIS
S A U L L O E B / A F P, G O N Z A L O F U E N T E S / A F P,

Atual presidente e candidato à outras palavras, apoiam a iniciativa serve de alerta ao de-
reeleição, o democrata Joe agremiação, mas não o candi- mocrata. Na véspera da primá-
Biden precisa ouvir o recado dato. A escolha reflete a insa- ria, Biden chegou a anunciar
dos eleitores do partido. Nas tisfação com o apoio incondi- uma pausa iminente nos ata-
primárias de Michigan, estado cional do presidente à carnifici- ques israelenses, mas acabou
decisivo na disputa presiden- na promovida por Israel na Fai- desmentido por Benjamin
cial e com o maior número de xa de Gaza. Biden, único nome Netanyahu. Nas eleições de
norte-americanos de origem do partido na pré-campanha, 2020, o atual presidente ven-
árabe, quase 13% dos filiados recebeu 81,5% dos votos. Se- ceu Donald Trump por uma
à legenda que se dispuseram a gundo os organizadores do margem apertada no estado:
votar optaram na cédula pelo “Ouça o Michigan”, a favor da 2,8 pontos porcentuais, ou O apoio incondicional a Israel
item “descompromissado”. Em opção “descompromissado”, a cerca de 150 mil votos. pode custar caro ao candidato

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 9
R EPORTAGEM DE CA PA

AGONIA SEM-FIM UM ANO APÓS A REVELAÇÃO DA TRAGÉDIA


HUMANITÁRIA QUE ESCANDALIZOU O MUNDO,
O DRAMA DO POVO YANOMÂMI PERSISTE

p o r FA B ÍO L A M E N D O N Ç A

N
o início de 2023, ima- gena (Sesai) do Ministério da Saúde, mui- Weibe Tapeba, secretário de Saúde
gens de crianças e adultos tas crianças morrem nas aldeias sem o Indígena do Ministério da Saúde, tam-
Yanomâmi em estado de governo tomar conhecimento. “Somente bém admite a possibilidade de a mortan-
desnutrição severa, esque- quando há acompanhamento da equipe dade ser ainda maior, sobretudo duran-
léticos, vítimas da fome e de saúde ou quando a morte se dá na uni- te a gestão Bolsonaro. “Não temos como
da atuação criminosa do dade básica ou no hospital, ela é contabi- comparar 2023 com 2022 porque tivemos
garimpo ilegal, chocaram lizada. Os óbitos em comunidades afas- um apagão de assistência à saúde indígena.
o mundo e levaram o go- tadas, sem a presença do governo, não Além disso, possivelmente estamos conta-
verno federal a decretar situação de emer- entram na conta. É feita uma ficha de- bilizando mortes que podem ser de 2022
gência em saúde pública. Passado um ano claratória para investigar depois. Então, ou 2021, dado que será confirmado a par-
do decreto, a realidade na região parece esse número será atualizado daqui um tir de um inquérito sanitário que estamos
ter mudado pouco. A insegurança alimen- ou dois anos. O total de mortes do povo realizando no território”, explica. “Para o
tar e doenças evitáveis, como verminoses, Yanomâmi é bem maior que o divulgado.” Ministério da Saúde, 2023, quando come-
malária e pneumonia, continuam presen-
tes na vida dos indígenas, levando muitos
deles à morte. A violência dos garimpeiros
que teimam em permanecer no local tam-
bém persiste. No ano passado, foram re-
gistradas 363 mortes na Terra Indígena,
20 a mais que as contabilizadas em 2022,
último ano do governo Bolsonaro. O Mi-
nistério da Saúde diz não ser possível es-
tabelecer a comparação, devido ao apagão
de dados na gestão anterior. Reconhece,
porém, a gravidade da tragédia humanitá-
ria e admite até que a quantidade de mor-
tes pode ser até maior, devido ao elevado
índice de subnotificações de óbitos na-
quele território.
Segundo Júnior Hekurari Yanomâmi,
presidente do Conselho Distrital de
Saúde Indígena e representante dos
Yanomâmi na Secretaria de Saúde Indí- As equipes de saúde enfrentam numerosos obstáculos para acessar áreas próximas de garimpos

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F E L I P E M E D E I R O S /A M A Z Ô N I A R E A L E I G O R E VA N G E L I S TA / M S

Enfermidades evitáveis, como desnutrição, malária e pneumonia, figuram entre as principais causas de mortalidade na terra indígena

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 11
R EPORTAGEM DE CA PA

çamos a atuar no território, é o ano-base. a crise humanitária persiste. Para o indi-


Não são somente os dados de mortalida- genista e ex-presidente da Funai Sydney
des que estão sendo relatados, mas todas Possuelo, falta vontade política do Estado
as informações envolvendo malária, do- brasileiro para enfrentar o problema, re-
enças diarreicas e respiratórias, enfermi- ferindo-se tanto ao governo federal quan-
dades que estão aumentando exatamente to ao Congresso Nacional e ao Judiciário.
porque não estamos conseguindo restabe- “O Estado brasileiro não resolve porque
lecer a nossa assistência. Vamos fazer um não quer. Parece haver uma fragilidade,
pente-fino no próprio território.” uma dependência do Congresso para to-
mar as decisões. O Executivo tomou pro-

M
alária, desnutrição e pneu- vidências mais no âmbito político, mas as
monia figuram entre as ações diretas para retirar os garimpeiros
causas de morte mais co- foram tímidas. O Exército tem homens lá
muns, embora seja fre- dentro sem o menor preparo para defender
quente a ocorrência de as regiões de fronteira e proteger o territó-
mais de uma enfermida- rio indígena. Onde é que está a Marinha,
de para acelerar o óbito. “Quando uma que poderia fechar os rios, que estão sen-
criança morre de malária, ela não mor- do invadidos e poluídos? Por que o espaço
re só de malária, ela morre de malária e aéreo não está fechado e, se está, por que os
desnutrição ao mesmo tempo. Eu mesmo helicópteros dos garimpeiros continuam
presenciei de 15 a 18 mortes em 30 dias sobrevoando a região? Há uma ação feita
que fiquei dentro do território. A maioria para inglês ver”, critica Possuelo. “Para re-
é de crianças com menos de 1 ano e meio. solver o problema, não precisa inventar a
São doenças e mortes que poderiam ter si- roda. Já está escrito na Constituição Fede-
do evitadas, tem cura para isso. O Estado ral o que tem de ser feito”, completa.
precisa reconhecer o problema”, dispara Possuelo lembra que, quando foi presi-
Júnior Hekurari. A falta de assistência à dente da Funai, no início dos anos 1990,
saúde se soma a dificuldade que os indí- conseguiu não só a demarcação da TI
genas têm para produzir nas aldeias, de- Yanomâmi como expulsou mais de 60 mil
vido à insegurança e à ação dos garimpei- garimpeiros. “É claro que a situação era di-
ros, o que potencializa a insegurança ali- ferente, hoje eles estão mais organizados.
mentar dos Yanomâmi. “Nossas comuni- Mas, quando o Estado quer, quando o Exe-
dades são muito fortes. Mesmo doentes, cutivo, o Legislativo e o Judiciário cum-
muitos indígenas trabalharam duro nas prem as suas responsabilidades, eles co-
roças no ano passado. Plantaram maca- locam seus órgãos para atuar e resolvem.
xeira, banana, milho, batata... Mas isso
demora para dar retorno, às vezes dez ou
12 meses”, diz o líder Yanomâmi. Não me parece ser o caso agora”, alfineta,
CERCA DE 5 MIL
Paralelamente ao decreto de emergên- criticando a tese do marco temporal apro-
cia em saúde pública, o governo Lula tam- GARIMPEIROS vada no Congresso, apontada como “o tiro
bém instalou, em janeiro do ano passado, CONSEGUIRAM de misericórdia sobre os povos indígenas”.
o Comitê de Coordenação Nacional para FURAR O CERCO No início de 2023, havia na TI
Enfrentamento à Desassistência Sanitária Yanomâmi cerca de 20 mil garimpeiros.
DAS FORÇAS
das Populações em Território Yanomâmi, Hoje, segundo Júnior Hekurari, tem cerca
envolvendo os ministérios dos Povos Indí- DE SEGURANÇA de 5 mil. “A força-tarefa até quebra os equi-
genas, da Saúde, da Justiça, do Meio Am- E VOLTARAM pamentos, mas eles têm muita tecnologia,
biente, da Defesa, do Desenvolvimento e A INVADIR O planejamento, e recuperam em questão de
Assistência Social, além do Exército, da horas. O Exército fez o mapeamento para
TERRITÓRIO
Força de Segurança Nacional, da Funai e bloqueio de espaço aéreo, mas não conti-
do Ibama. Mesmo com todo esse aparato, nuou. Para resolver, a inteligência do gover-

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Júnior Hekurari Yanomâmi e Sydney Possuelo criticam as ações descoordenadas do Estado e cobram
o fechamento do espaço aéreo para bloquear a entrada de aeronaves a serviço do garimpo ilegal

destruição de 340 equipamentos utiliza- sores estão impedindo as equipes de saú-


dos pelo garimpo ilegal. O governo fede- de de atender as nossas crianças.”
ral também conseguiu reabrir seis dos O Ministério dos Povos Indígenas cita a
sete polos de saúde na TI Yanomâmi. complexidade da crise como uma das difi-
Em nota à reportagem, o Ministério da culdades no enfrentamento do problema e
Justiça faz um balanço da atuação na TI diz que, no primeiro ano de atuação, prio-
em 2023, destacando a proteção de vá- rizou ações emergenciais. A partir de ago-
rias comunidades Yanomâmi, fiscaliza- ra, quer implementar ações permanentes,
ção das pistas de pouso e decolagem clan- dando o exemplo da instalação do Casa do
destinas em apoio à Polícia Federal e à Governo, prevista para ser inaugurada na
Agência Nacional de Aviação Civil, e nas quinta-feira 29, com foco no atendimento
instalações dos polos de saúde da Sesai. às demandas indígenas de Roraima. A uni-
Segundo a nota, a Força Nacional perma- dade vai funcionar na capital, Boa Vista, e
nece atenta e já aumentou o efetivo em será uma espécie de base de interagências
32% entre janeiro e fevereiro deste ano. dentro do território para fiscalização per-
Júnior Hekurari até reconhece o empe- manente, com o apoio das Forças Arma-
nho do governo Lula no primeiro semes- das, Polícia Federal, Ibama, Força Nacio-
tre do ano passado, mas afirma que, a par- nal de Segurança, Sesai e Funai.
tir de agosto, a força-tarefa montada para


A
resolver a crise trabalhou de forma desar- s equipes da Funai e da Saúde
ticulada, facilitando o retorno dos invaso- precisam de segurança para
no tem de funcionar”, destaca, acrescen- res. “O governo não tinha uma estratégia realizar seu trabalho. Com
tando que os garimpeiros transitam livre- para combater o garimpo. No início, quan- a presença de garimpeiros
mente na fronteira com a Venezuela e que do o presidente Lula decretou a emergên- fortemente armados, o tra-
F O R C A A É R E A B R A S I L E I R A , B R U N O K E L LY /
ACERVO PESSOAL, SGTO MULLER MARIN/

a insegurança no território compromete o cia, fizeram muito barulho para afugentar balho fica totalmente com-
atendimento médico dos indígenas. “Como os garimpeiros. A partir de julho e agosto, prometido. É necessário o controle total
a segurança falhou, a saúde recuou.” eles perceberam a fragilidade e começa- do espaço aéreo e fluvial através das for-
Segundo o Ministério dos Povos In- ram a entrar de novo. As equipes de saúde ças de segurança, para concretizar o co-
MMA E JÚLIA PRADO/MS

dígenas, houve uma redução de 85% não conseguiam mais ir às comunidades. mando do presidente Lula. E a Casa de
das áreas para mineração ilegal na TI Tem muito jogo político. O Ibama quer Governo será uma transição para que es-
Yanomâmi entre fevereiro e dezembro trabalhar de um jeito, o Exército trabalha sa atuação articulada seja mais efetiva”,
de 2023, se comparado ao mesmo perío- de outra forma, eles não se reúnem para explica a ministra dos Povos Indígenas,
do do ano anterior, e uma queda de 50% resolver o problema. Estamos reféns em Sonia Guajajara. Tapeba acrescenta que a
no desmatamento da Amazônia, além da nosso próprio território, porque os inva- Casa do Governo vai ajudar a distensionar

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 13
R EPORTAGEM DE CA PA

problemas existentes na coordenação da


própria operação de emergência.
Outra medida anunciada pelo governo
Lula para minimizar a crise sanitária na
TI Yanomâmi é a construção do primei-
ro hospital indígena do País, a ser insta-
lado em Boa Vista, e a construção e refor-
ma de 22 unidades de saúde básica dentro
da TI Yanomâmi, além de um centro de re-
ferência para serviços de atenção especia-
lizada, mais especificamente no polo-ba-
se de Surucucu, cujo objetivo é levar ser-
viços de média e alta complexidade para
dentro do território. Segundo a Sesai, o go-
verno também vai contratar novos profis-
sionais de saúde para atender a população
Yanomâmi. “Quando chegamos, tínhamos
apenas oito profissionais do Programa
Mais Médicos, e hoje são 28. Vamos melho-
rar o salário, oferecer gratificações atra-
vés de auxílio para alimentação, e criar,
especialmente, um incentivo para quem
atuar naquela região”, explica Tapeba. Lula mobilizou ministros de seis pastas, além do Exército e da Força Nacional, para estancar a crise

SOB A SOMBRA DA FOME tinha algum tipo de insegu-


rança alimentar e nutricional,
Oito em cada dez indígenas dos povos Guarani e Kaiowá estão com 28% passando fome
em situação de insegurança alimentar no Mato Grosso do Sul e em quase 60% o quadro
era moderado. Para Lucas
de Faria, um dos coordenado-

A
ssim como os Yano- ção internacional voltada pa- da fome, além dos ataques de res da pesquisa atual, a leve
mâmi, chama aten- ra a defesa dos direitos hu- todos os lados em relação melhora de lá para cá
ção a difícil realida- manos e, mais especificamen- aos nossos territórios, seja deve-se à maior permanência
de dos povos Guarani e Kaio- te, no direito à alimentação. pela Justiça, seja pelas leis do dos indígenas nos territórios,
wá na região de Dourados, em Na terça-feira 27, o relató- Congresso Nacional. Por isso mesmo com os intensos con-
Mato Grosso do Sul. Quase rio da pesquisa foi anexado a fomos à Corte Interamerica- flitos de terra na região
80% dos mais de 55 mil indí- uma petição apresentada, em na, para mostrar ao mundo em que o agronegócio avança
genas das duas etnias estão 2016, à Corte Interamerica- como vivemos”, desabafa Eli- de forma violenta.
em situação de insegurança na de Direitos Humanos, em zeu Lopes, liderança do terri- “A gente percebe uma cer-
alimentar, dos quais um terço Washington, nos EUA. “Há tório Kurusu Ambá. ta incerteza na ocupação do
dos casos é considerado gra- mais de 500 anos estamos Apesar do grande número território no âmbito da auto-
ve ou moderado. Apenas sendo expulsos de nossos de indígenas Guarani e nomia produtiva. Conforme os
23% da população vive em territórios e ainda enfrenta- Kaiowá na condição de inse- indígenas vão vendo que não
condições de segurança ali- mos problemas que envolvem gurança alimentar, a situação existe nenhuma reintegração
mentar e nutricional. Os da- a questão da saúde, educa- já foi pior. Em 2013, quando de posse, que estão conse-
dos constam em um estudo ção e alimentação. Não é de a Fian Brasil realizou a primei- guindo permanecer no territó-
publicado no início de feverei- hoje que estamos morrendo ra pesquisa de campo na rio, eles passam a ter uma
ro pela Fian Brasil, organiza- por falta de apoio, por causa região, 100% da população maior segurança no plantio,

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
O governo federal anunciou ainda a li- atenção básica limitado. Assim, com esse
beração de um crédito extraordinário de conjunto de forças, a gente reforça o cui-
1,2 bilhão de reais, a ser utilizado em ações “AS EQUIPES DA dado integral da população indígena den-
imediatas para atender à demanda dos in- FUNAI E DA SAÚDE tro do próprio território. Isso vai envolver a
dígenas da região. No início de fevereiro, o PRECISAM DE contratação de mais médicos e outros pro-
Ministério da Saúde encaminhou ao STF, fissionais que atuam na saúde indígena, a
atendendo a uma determinação do presi- SEGURANÇA PARA implantação de sistemas de abastecimento
dente da Corte, o ministro Luís Roberto REALIZAR SEU de água e tecnologia para ampliar o servi-
Barroso, um plano de ação para ser apli- TRABALHO”, DIZ ço de telessaúde e ter condições de oferecer
cado não só na TI Yanomâmi, mas tam- SONIA GUAJAJARA internet e energia. Se 2023 foi um ano de
bém nos territórios Karipuna, Uru-Eu- ações emergenciais, 2024 vai ser caracte-
-Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Mundu- rizado como o início de ações estruturan-
rucu e Trincheira Bacajá, onde a situação tes e permanentes no próprio território.”
é bastante crítica, devido à ação de garim- Lá, já havíamos colocado a necessidade de “A gente não quer mais chorar pela mor-
peiros, madeireiros e ruralistas. A medi- aperfeiçoamento da nossa atuação e vamos te de crianças, pela falta de profissionais
da consta na Arguição de Descumprimen- entregar à ministra Nísia Trindade e ao de saúde na nossa comunidade. Morrer
to de Preceito Fundamental 709, de 2020, presidente Lula uma minuta da nova po- por diarreia, desnutrição e malária? Es-
cujo objetivo é evitar que a omissão do Po- lítica nacional de saúde indígena”, explica sas moléstias são evitáveis”, diz Júnior
der Público coloque em risco a saúde e a Tapeba. “No território Yanomâmi, vamos Hekurari. “O que fizemos com essas pes-
subsistência da população indígena. criar uma força-tarefa, em parceria com soas que estão nos matando e nos contami-
“No ano passado, em maio, fomos em outras secretarias, para que a gente consi- nando com metais pesados? O povo Yano-
Genebra e aprovamos a primeira resolu- ga dar respostas mais urgentes, tendo em mâmi está com alto índice de mercúrio no
ção de saúde indígena em âmbito mundial. vista que a Sesai atua com um modelo de organismo, mais de 800%. Até quando?” •

influenciando diretamente mais autonomia nos territó-


nas condições nutricionais rios. Eles precisam também
deles. A alimentação está vin- de acesso à água. Os rios, em
culada à produção de roça”, geral, são bastante contami-
explica Faria, acrescentando nados por agrotóxicos.”
que o acesso a políticas so- O Ministério dos Povos in-
ciais, como o Bolsa Família e a dígenas criou um Gabinete de
distribuição de cestas bási- Crise para diagnosticar as
cas, também é determinante violações contra os povos
na segurança alimentar dos Guarani e Kaiowá e iniciou um
indígenas, mas que, não raro, ciclo de visitas às áreas reto-
muitos são excluídos dos be- madas. Segundo a pasta,
M Á RIO VIL EL A /FUN AI E RICA RDO ST UCK ERT/PR

nefícios por pressão política quase todas as áreas visita-


dos ruralistas. das estão cercadas por fa-
Para a secretária-geral da zendas que cultivam soja e
Fian Brasil, Nayara Côrtes milho, culturas que recebem
Rocha, o enfrentamento do frequentes aplicações de
problema passa pela demar- agrotóxicos, com pulveriza-
cação das terras indígenas. ções aéreas ou terrestres,
“É preciso demarcar tanto sendo comuns episódios de
para os indígenas ficarem contaminação nas comunida-
mais tranquilos em relação à des indígenas, comprometen-
violência e ao despejo quanto do o plantio e a alimentação
para eles conseguirem ter dessas populações. Com o avanço do agronegócio, eles ficaram sem terra para cultivar

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 15
Seu País

Infiltrado
no pasto
CRÔNICA Como me fantasiei de gado e fui à
Paulista acompanhar o discurso do capitão
P O R R O N A L D O L AG ES

R
ecebi a convocação pelo culpou o congestionamento causado
Facebook: “Quem defende pelo levante democrático. Contraria-
a democracia não foge à lu- do, comprei o bilhete de trem. Não po-
ta”. Naquele grupo, alguns deria decepcionar meus colegas goianos,
nutriam grandes expecta- que também poderiam estar presos no
tivas em relação aos rumos do movimen- trânsito após uma desgastante viagem
to: “O agro e os caminhoneiros vão parar de quase mil quilômetros. Durante a bal-
o Brasil”. Outros não disfarçavam o can- deação na estação Barra Funda, perce-
saço com as infrutíferas mobilizações bi que a mobilização foi bem-sucedida.
anteriores, a exemplo dos patriotas goia- Os vagões do Metrô estavam repletos de
nos que pediam doações via Pix para fi- patriotas, devidamente uniformizados
nanciar a viagem até São Paulo. “Cara- com a camisa da CBF.
vana pela última vez”, anunciaram, em Exasperada, uma moça manifestava
tom de súplica. Diante do esforço dos preocupação com a “presença de infil-
meus colegas na rede social, senti vergo- trados” no ato, a exemplo do que acre-
nha por ter cogitado usar o domingo pa- ditava ter ocorrido em Brasília em 8 de
ra descansar, ainda mais vivendo tão per- janeiro de 2023, quando “baderneiros
to do palco da batalha. Resgatei do fun- do MST” teriam invadido as sedes dos
do da gaveta uma desbotada camiseta Três Poderes, enquanto famílias cristãs
amarela, envolvi o pescoço com uma flâ-
mula verde-amarela e parti feito um fo-
guete em direção à Avenida Paulista.
Bem... Era isso o que pretendia, mas
o transporte coletivo não colaborou. Ainda no metrô, um
Em São Paulo, aos domingos, não se pa- casal me alertou
ga mais a tarifa do ônibus, até porque se sobre uma sórdida
tornou quase impossível encontrar um
circulando após o anúncio da gratuida-
conspiração a unir
de. Como de hábito, sobravam passagei- George Soros e um
ros desamparados no terminal da Lapa. vilão apelidado de
Meio sem jeito, um fiscal da SPTrans “Cabeça de Roll-On”

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 28
NESTA São Paulo. Relatório aponta
SEÇÃO indícios de execução e relatos
de tortura em operação da PM

Confissão. Do alto do carro de som, Bolsonaro pediu anistia e “pacificação”. Admitiu,


porém, ter conhecimento da minuta golpista apreendida na casa de Anderson Torres

ocupavam pacificamente os improduti- cobriria apenas as despesas do transpor-


vos gramados da Esplanada dos Minis- te ou também o lanchinho no trajeto?
térios. Ao meu lado, um simpático casal, Inútil especular, até porque o pessoal já
Débora e Marcos, dizia se insurgir con- havia mudado o foco da cantoria: “Nos-
tra um tenebroso vilão apelidado de “Ca- sa bandeira jamais será vermelha, nossa
beça de Roll-On”. Esse “déspota”, segun- bandeira jamais será vermelha!”
do me contaram, estaria “mancomuna-
do com George Soros” para prender Jair O incômodo com a cor parecia uma
Bolsonaro. Não tive tempo de perguntar verdadeira obsessão. Pobre do vende-
a motivação dessa sórdida conspiração dor ambulante de camiseta escarlate,
internacional. Por qual razão o megain- que não se atentou ao dress code da ma-
vestidor húngaro estaria interessado na nifestação e acabou virando alvo de re-
captura do ex-presidente, que teve de en- correntes piadas e provocações. Naque-
tregar o passaporte à Polícia Federal no la massa verde-amarela, somente outras
início do mês? Estava com a pergunta na duas cores eram bem-vindas: o azul e
ponta da língua, mas as portas se abri- branco da bandeira de Israel, efusiva-
ram e fomos arrastados pela multidão mente aplaudida e reverenciada. Car-
para fora do vagão. tazes com a estrela de Davi quase sem-
Do lado de fora da estação, um ruido- pre apareciam com mensagens em in-
so grupo não parava de repetir, aos ber- glês: “Freedom”, “Sorry”... O pedido de
ros: “Eu vim de graça, eu vim de graça”. desculpas era pelas declarações do pre-
MIGUEL SCHINCA RIOL /A FP

Era uma provocação aos militantes de sidente Lula, que nos últimos tempos
esquerda, que, segundo eles, só compa- intensificou as críticas ao morticínio
reciam a manifestações mediante paga- de palestinos na Faixa de Gaza. “Legíti-
mento de “pão com mortadela”. Imaginei ma defesa a ataques terroristas”, diziam
que o comentário poderia soar indelica- alguns. Outros apelavam para uma con-
do para os patriotas goianos. A vaquinha fusa associação religiosa, a exemplo da

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 17
Seu País

Cenas. Além da flâmula verde-amarela,


só a bandeira de Israel era bem-vinda.
Aline e Leidiana aproveitaram a ocasião
para vender seus “geladinhos gourmets”

senhora que viralizou nas redes sociais


por defender com entusiasmo o Estado
judeu: “Somos cristãs como Israel”. Do
alto do carro de som, a ex-primeira-da-
ma Michelle Bolsonaro contribuiu para
reforçar o sincretismo religioso: “Aben-
çoamos Israel em nome de Jesus”.
Muitos patriotas fizeram questão de
posar para fotografias na frente de um
mural com as fotografias de Bolsona-
ro e do premier israelense, Benjamin
Netanyahu. Levou algum tempo para a
turma perceber que se tratava de uma
pegadinha de infiltrados. Entre os dois
retratos, havia uma inscrição em hebrai-
co: (“genocida”, segundo escla-
receu o Google Tradutor). Além das co-
res, os manifestantes pareciam obceca-
dos em tirar selfies. Na pós-modernida-
de, explica o sociólogo Gabriel Rossi, es-
pecialista em Marketing Político pela
ESPM, as manifestações têm forte cará-
ter estético. “Isso tem a ver com o ‘mun-
do instagramável’. As pessoas vivem uma
experiência e correm para postar nas re-
des e mostrar aos amigos. Dessa forma,
elas se posicionam e, ao mesmo tempo,
buscam a aceitação do grupo.”

Havia ainda um sincretismo de cos-


tumes. Enquanto a ex-primeira-dama
recitava versos bíblicos e o pastor Silas
Malafaia apontava Jair Bolsonaro co-
mo vítima de uma “engenharia do mal,
ao arrepio da lei e da Constituição”, boa
parte do público acompanhava o discur- ou às instituições democráticas. De olho tranhamento na militância bolsonaris-
so bebericando cerveja, até porque to- no eleitorado bolsonarista e, ao mesmo ta, que em outros tempos se plantou na
dos são filhos de Deus e o calor estava tempo, preocupado com a elevada rejei- porta de quartéis para pedir intervenção
mesmo infernal. Governadores e par- ção ao ex-presidente na capital paulista, militar no País. “Estou achando a mani-
lamentares foram bem mais comedi- o prefeito Ricardo Nunes marcou pre- festação muito passiva”, comentou Érica
dos que Malafaia nos discursos, evitan- sença no ato, mas manteve a discrição. Rane, que veio de Vila Brasilândia, na Zo-
do qualquer declaração que pudesse ser Entrou mudo e saiu calado. na Norte de São Paulo, para renovar seu
interpretada como ataque ao Judiciário O tom ameno dos discursos causou es- apoio ao capitão. A maior parte do públi-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Muitos caíram na
pegadinha e posaram
para fotos à frente de
um mural que, em
hebraico, apresentava
Bolsonaro e Netanyahu
como “genocidas”

brochável!” Naquele momento, havia 750


mil manifestantes na Avenida Paulista e
ruas adjacentes, segundo as confiabilís-
simas estimativas da Polícia Militar de
São Paulo, estado governado pelo bolso-
narista Tarcísio de Freitas, do Republi-
canos. Já pesquisadores da USP analisa-
ram imagens aéreas e apontaram a pre-
sença de 185 mil patriotas. Pouco impor-
ta quem chegou mais próximo da realida-
de. O ex-capitão provou ainda ter capaci-
dade de levar multidões às ruas.

Bolsonaro estava, porém, irreconhe-


cível no carro de som. Orientado por ad-
vogados e conselheiros a evitar ataques
ao Judiciário ou qualquer declaração que
pudesse inflamar a turba, o ex-capitão
fez um balbuciante discurso de rendição.
“O que eu busco é a pacificação, é pas-
sar uma borracha no passado. É buscar
uma maneira de nós vivermos em paz. É
não continuarmos sobressaltados”, dis-
se. “Nós já anistiamos no passado quem
fez barbaridades no Brasil. Agora nós pe-
dimos a todos os 513 deputados, 81 sena-
dores, um projeto de anistia para que se-
ja feita justiça em nosso Brasil.”
A anistia seria para “aqueles pobres-
co entendeu, porém, que não era o mo- fazer seu discurso, a multidão foi à loucu- -coitados que estão presos em Brasília”,
mento de esticar a corda. Onipresentes ra. “Mito, mito, mito”, urrava, em compe- mas indiretamente o beneficiaria, uma
em outros momentos, os cartazes com tição com os estrondos de fogos de arti- vez que a PF investiga o envolvimen-
ataques a Alexandre de Moraes, minis- fício. Ao meu lado, duas senhoras com a to de Bolsonaro na coordenação da fra-
RONALDO L AGES

tro do Supremo Tribunal Federal, e à “di- camiseta do “PL Mulher”, a divisão femi- cassada tentativa de golpe no 8 de Janei-
tadura do Judiciário”, desapareceram. nina do partido do ex-presidente, tenta- ro – e também um pouco antes, quando
Por volta das 3 da tarde, quando Bolso- ram emplacar outro slogan a plenos pul- o ex-capitão discutiu com auxiliares os
naro finalmente tomou o microfone para mões: “Imbrochável! Imbrochável! Im- termos de uma minuta de decreto, para

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 19
Seu País

anular o resultado das eleições de 2022 Um senhor aguardou filhos e netos têm de me respeitar.” Ou-
e prender Alexandre de Moraes. E foi ao tro, mais agitado, aguardava com an-
com ansiedade o
comentar esse episódio específico que o siedade a subida ao trio elétrico do re-
ex-presidente enfiou os pés pelas mãos. discurso de Javier cém-eleito presidente argentino Javier
“Agora, o golpe é porque tem uma mi- Milei, cuja presença Milei, que, segundo informações que re-
nuta de um decreto de Estado de Defe- teria sido confirmada cebeu pelo WhatsApp, viera ao Brasil pa-
sa. Golpe usando a Constituição? Te- em seu grupo no Zap ra apoiar Bolsonaro. “Milei tá levantan-
nham a santa paciência. Golpe usando do a Argentina”, asseverou, minimizan-
a Constituição”, disse Bolsonaro no car- do indicadores econômicos ainda des-
ro de som, antes de prosseguir: “Deixo favoráveis ao novo mandatário. A infla-
claro que estado de sítio começa com o ção, que já era altíssima antes de assumir
presidente da República convocando os o posto, aumentou de 190% ao ano, em
conselhos da República e da Defesa. Is- novembro do ano passado, para mais de
so foi feito? Não. Apesar de não ser gol- 250% ao ano em janeiro de 2024.
pe o estado de sítio, não foi convocado
ninguém dos conselhos da República e No ato bolsonarista, também havia
da Defesa para se tramar ou para se bo- quem estivesse ali para faturar uns tro-
tar no papel a proposta do decreto do es- cados. Em uma barraquinha improvi-
tado de sítio”. Para investigadores da PF, sada, um livreiro oferecia aos transeun-
esta seria a prova de que ele teria aces- tes os exemplares da saga O Mito I, II,
so e conhecimento sobre o conteúdo do III e IV. Amigas de infância, as jovens
documento apreendido na casa do ex- Leidiana da Silva e Aline Rosa atraíram
-ministro Anderson Torres. grande clientela com seus “geladinhos
Um senhor demonstrava preocupa- gourmets”, versão mais encorpada e so-
ção com o futuro do ex-presidente, mas fisticada dos tradicionais geladinhos fei-
confidenciou que ele próprio estava en- tos com suco em pó. As unidades tinham
rascado por marcar presença no ato. Por preços que variavam de 8 a 15 reais. “É
Bolsonaro, cortou relações com os netos a primeira vez que vendemos em mani-
e um filho que mora na Austrália, todos festação. Viemos para lutar pela demo-
Holofotes. Muitos disputavam a
esquerdistas, por quatro anos. Ao rea- atenção dos manifestantes, mas cracia do nosso País e aproveitamos para
tar laços, percebeu que o distanciamen- somente o carismático cão Clóvis oferecer nossos produtos. Quem empre-
to provocou mágoas indeléveis. “Meus conseguiu a façanha sem esforço ende vê oportunidade em tudo”, ensina
Aline. Já a colega Leidiana, formada em
Ciências Contábeis, tem planos de mon-
tar uma confeitaria, pois também vende
doces. “Se vendermos tudo, consigo mais
ou menos 700 reais. É um bom dinheiro
para quem vem lá da Zona Leste”.
Em meio a tantos astros em busca de
cinco minutos de fama, de um habilidoso
dançarino com óculos escuros a um cover
de Tio Sam com trajes em verde e amare-
lo, quem parecia fazer mais sucesso era o
carismático cão Clóvis, um exemplar da
raça Whippet. Vestindo uma versão ca-
RONALDO L AGES

nina da camisa da CBF, Clóvis não preci-


sou fazer mais nada para atrair a atenção
das câmeras de celular e tornar-se uma
celebridade instantânea. •

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Economista, consultor editorial de CartaCapital
e ex-presidente do Palmeiras. É autor, entre outras obras,
de Valor e Capitalismo e Os Antecedentes da Tormenta

Da Paulista ao Paraíso*
mente atraídos pelos movimentos da ralé”. vel que um reino de justiça e concórdia
►“O grande perigo para A obra de Nietzsche pode ser tomada deva estabelecer-se na terra, deliciamo-
os homens”, dizia Nietzsche, como uma denúncia furiosa e implacável -nos com os perigos, as guerras, as aven-
da sociedade maquinizada e mecanizada turas...”. Estamos diante do super-huma-
“são os indivíduos
que subjuga o homem. Seus aforismos ex- no que em sua suposta liberdade criado-
doentios, não os maus, clamam protestos contra as virtudes do ra realiza as normas do aniquilamento do
não os predadores” cristianismo, contra o ressentimento e a outro para se submeter aos propósitos da
má consciência dos fracos, permanente- concorrência capitalista. É o subumano a
mente mergulhados na mediocridade da ensaiar os propósitos do super-humano.
sociedade de massa. É um desafio encontrar entre os pen-

A
estação Paraíso do metrô de São Na Genealogia da Moral, Nietzsche sadores modernos uma descrição tão
Paulo registrou um episódio não hesita em afirmar: “O grande peri- perfeita do metabolismo social e ideoló-
que deveria incitar a curiosida- go para os homens são os indivíduos do- gico promovido pela sociedade compe-
de dos sociólogos, psicanalistas e outros entios, não os maus, não os predadores. titiva. Os rebanhos humanos, os perde-
estudiosos da sociedade. A massa traves- São os desgraçados, os destruídos, os dores, os fracos, não se dão conta de que
tida de verde-amarelo aguardava o com- vencidos de antemão – são eles, são os entre eles nascerá o super-homem, co-
boio. O trem chegou à plataforma com os fracos que mais solapam a vida entre os mo o pequeno burguês ou o burguês pe-
vagões ocupados pela turma da Gaviões homens, que envenenam e colocam em queno não pode acreditar que sua cren-
da Fiel. Os verde-amarelistas agitaram questão da maneira mais perigosa nossa ça nas virtudes da livre concorrência vá
as pernas para entrar. Postados às por- confiança na vida e nos homens”. torná-lo vítima do super-homem encar-
tas dos vagões, os corintianos repetiram: nado no supercapitalista.
“Não vão entrar, não vão entrar”. Adorno e Horkheimer, na Dialética do Elisabeth Rudinesco nos oferece uma
Não entraram, nem sequer tentaram. Iluminismo, mostram como Nietzsche é crítica profunda e original da sociedade
Ao observar os trejeitos e maus jeitos impiedoso com as virtudes. Ele as vê co- contemporânea e das tendências inte-
da tropa abrigada na Avenida Paulista, os mo instrumentos das forças que preten- lectuais dominantes nas ciências huma-
esgares de seus símiles europeus e nor- dem manter o homem subjugado e aba- nas e sociais no fim de século. O primeiro
te-americanos, é legítimo perguntar se tido em sua humanidade. A compaixão, capítulo, A Derrota do Sujeito, é o acorde
o Brasil e o mundo não estariam prestes por exemplo, é a confirmação da regra da inicial do tema que vai reaparecer, sob di-
a reproduzir os processos sociais magis- desumanidade revelada por meio da ex- versos ângulos, ao longo do livro.
tralmente analisados por Hanna Arendt ceção que ela pratica. Uma situação hu- O derrotado é o sujeito moderno, aque-
no clássico As Origens do Totalitarismo. mana que suscita a compaixão é, em si le “consciente de sua liberdade, mas ator-
Arendt ocupa-se, sobretudo, da emer- mesma, a prova da injustiça. Exaltar a mentado pelo sexo, pela morte, pela proi-
gência do nazismo e do stalinismo co- compaixão é buscar a confirmação da bição”. Hoje ele foi substituído pela con-
mo fenômenos do igualitarismo totali- dependência do outro, de sua alienação cepção “mais psicológica de um indiví-
tário que vocifera: “Se você não é igual a e desumanização, na medida em que o duo depressivo que foge de seu incons-
mim, não tem direito a existir”. homem que a recebe não pode realizar ciente e está preocupado em retirar de
Esse igualitarismo de manada pressu- em liberdade a sua natureza criadora. si a essência de todo o conflito”.
põe paradoxalmente a superioridade de Ao ler alguns de seus textos mais no- Os trabalhos de destruição da subjeti-
um modo de ser sobre outros e termina táveis é possível, no entanto, perceber que vidade moderna são realizados por uma
nas tentativas de apagar pela força as dife- sua contrafilosofia acabou prisioneira da sociedade que precisa exaltar o sucesso
renças de posição social e de estilos de vi- ordem social que pretendia criticar: “Nós econômico e abolir o fracasso. •
da. A escória, na visão de Arendt, não tem a não conservamos nada; nem queremos, redacao@cartacapital.com.br
ver com a situação econômica e educacio- de fato, voltar a quaisquer períodos pas-
B A P T I S TÃ O

nal dos indivíduos, “pois até os indivíduos sados; não trabalhamos pelo progresso... *Este artigo é uma recomposição
altamente cultos se sentiam particular- simplesmente não consideramos desejá- de vários textos já publicados.

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 21
Seu País

Morde e assopra
ANÁLISE A ambiguidade na manifestação
na Avenida Paulista soou como uma
estratégia premeditada dos bolsonaristas
POR ALDO FORNA ZIERI*

A
manifestação bolsonaris- Sobrou também para o governo Lula.
ta na Avenida Paulista, no Tanto a parte defensiva quanto a ofensi-
domingo 25, revelou tam- va viveram recheadas pelo conteúdo moral
bém sua estratégia. Tanto conservador, obscurantista e antidireitos.
o resultado do ato quanto Trata-se da disputa de hegemonia no cam-
o que ele revelou mostraram um jogo de po dos valores que, hoje, a direita sabe fa-
ambiguidades. Por um lado, o evento foi zer melhor do que a esquerda. Nesse ponto,
defensivo, veio imantado pelo medo das a extrema-direita mantém sua força mo-
investigações conduzidas pela Polícia Fe- bilizadora e de convocação para as ruas.
deral sobre a tentativa de golpe de Esta-
do. Medo também dos julgamentos do A estratégia da ambiguidade lança al-
Supremo Tribunal Federal acerca dos guns desafios para o governo e o campo
atos e iniciativas ligados a essa tentativa. democrático e progressista e para o Su-
O risco de prisão da cúpula cívico-mili- premo. O principal elemento da estraté-
tar dessa conspirata e do próprio Jair Bol- gia da ambiguidade é o mote da anistia.
sonaro é real. Por outro lado, a magnitu- No fim da ditadura, foi feito um pacto de
de da manifestação, independentemen- anistia que tinha um lado legal e explíci-
te das controvérsias sobre o número de to e um lado tácito. O primeiro lado con-
participantes, indica a força política e sistiu em não punir os responsáveis pelos
mobilizadora mantida pelo bolsonaris- atos de arbítrio, de violência e de tortura.
mo. Trata-se de um ato que quer manter O lado tácito pressupunha que a disputa
a iniciativa da disputa política nas mãos de poder daí por diante ocorreria pela via
da extrema-direita. Nisso, foi exitoso. democrática, sem o concurso das armas.
A estratégia da ambiguidade pare- O bolsonarismo, com a tentativa do to de anistia realizado no fim da ditadu-
ce ter sido uma escolha deliberada dos golpe, rompeu a dimensão tácita do pac- ra. Agora, com dezenas de condenados
promotores do evento. Essa estratégia pela violência destrutiva do 8 de Janei-
defensiva/ofensiva revelou-se também ro, os bolsonaristas se antecipam à con-
nos discursos. Bolsonaro encarnou a de- denação das lideranças golpistas e quer
fensiva: pouco atacou, assumiu o figuri- Bolsonaro posou um novo pacto legal e explícito de anis-
no do “pacificador” e propôs a anistia aos tia. Esse pacto não pode ser aceito e pre-
participantes dos atos golpistas. Coube
de “pacificador”. cisa ser combatido por duas grandes ra-
ao pastor Silas Malafaia partir para o Os ataques ficaram zões: 1. O golpismo, principalmente de
ataque. O ministro Alexandre de Mo- a cargo do pastor setores militares, precisa ser exemplar-
raes e o STF foram os alvos preferidos. Silas Malafaia mente punido, para que se desencoraje

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Canarinhos. Enquanto Bolsonaro
implorava por uma anistia ampla,
geral e irrestrita, o pastor Malafaia
praguejava contra os “infiéis”

Direito e contra o golpismo. Nos julgamen-


tos dos invasores e depredadores das sedes
dos Três Poderes, o STF tem aplicado pe-
nas que chegam a 17 anos de prisão, dosi-
metria considerada alta por alguns juris-
tas defensores da punição dos envolvidos.

Para ser coerente com esse trabalho


exemplar, o Supremo, em tese, deve apli-
car aos líderes e financiadores das tenta-
tivas e atos golpistas, penas superiores, no
mínimo iguais, àquelas aplicadas até ago-
ra. Em face de pressões por anistia e por
“pacificação”, o tribunal manterá a coe-
rência e irá até o fim nesse propósito de
fazer valer a Constituição e as leis e de dar
um basta histórico à impunidade de gol-
pistas? Embora se trate de uma questão
jurídica, essa decisão do STF terá efeito
político e histórico enorme sobre o futuro
do País. Os democratas, os progressistas,
as esquerdas e os movimentos sociais não
podem ficar passivos perante os desafios
dessa conjuntura. Até este momento, es-
ses setores políticos e sociais pouco fize-
ram e pouco se mobilizaram. É como se ti-
vessem terceirizado para os tribunais su-
periores a tarefa de defender a democra-
cia e o Estado de Direito.
Esse tipo de conduta não pode continuar,
de forma dura novas tentativas desse gê- ganhar força de mobilização de rua? com omissões, evasivas, justificativas do
nero. 2. Na estratégia da ambiguidade, o É uma questão preocupante, pois as injustificável e fugas pela tangente. Vi-
bolsonarismo quer a paz legal/jurídica, esquerdas têm se mostrado refratárias vemos num momento em que o jogo po-
enquanto promove a guerra e o ódio polí- à capacidade de mobilização popular. E, lítico e o jogo jurídico estão entrelaçados.
ticos. Este é o conhecido jogo da extrema- ainda, continuam a patinar na tecnopolíti- Aqueles que não entenderem e não soube-
-direita, que se vale das instituições de- ca, nas redes sociais. Há também um pro- rem fazer esse jogo poderão pagar um al-
NELSON A L MEIDA /A FP

mocráticas para destruir a democracia. blema de ordem jurídica, um desafio para to preço. Como esse jogo se enredará com
Há, no entanto, um problema de ordem o STF. Mesmo durante o governo Bolsona- as eleições municipais é algo a ser visto. •
política para o campo democrático e ro, a Corte, em parceria com o Tribunal Su-
progressista e para o governo Lula em perior Eleitoral, colocou-se como o balu- *Professor da Escola de Sociologia
tudo isso: e se a campanha pela anistia arte da defesa da democracia, do Estado de e Política e autor de Liderança e Poder.

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 23
Seu País

A valsa do poder
vereiro. Entre as 139 assinaturas no do-
cumento havia a de deputados de legen-
das que ocupam ministérios, casos do
União Brasil, do Republicanos e do PP.
BRASÍLIA Os movimentos de Lira, O líder do governo na Câmara, José Gui-
Pacheco e Lula na dança da marães, defende retaliar quem porven-
tura tenha indicado nomes para cargos
sucessão na Câmara e no Senado federais nos estados. “Estranho e bizar-
ro” que parlamentares-padrinhos de in-
POR ANDRÉ BARROCAL dicados tenham embarcado no “fora Lu-
la”, na visão do ministro da articulação
política, Alexandre Padilha.

N
Há mais casos “estranhos e bizarros”
a quinta-feira 29, o União e quer voltar ao posto no próximo ano. nessa história. Pelo ângulo inverso. Nem
Brasil, uma das maiores Em 26 de fevereiro, Pacheco teve o no- todos os deputados do PL, maior partido
forças no Congresso, ti- me lançado para governador de Minas da Câmara e aconchego do inelegível, es-
nha eleição interna para Gerais por Gilberto Kassab, criador do tão entre os signatários do impeachment.
presidente, uma disputa PSD, lar de ambos. O presidente Lula to- O líder da bancada, Altineu Côrtes, é um
regada a dossiês, ofensas e alegações de pa apoiar Pacheco. O que não basta para dos que não assinaram. Uma ala da le-
ameaça de morte. O deputado e supos- impedir gestos indigestos por parte do genda tem votado a favor de medidas lu-
to ameaçador Luciano Bivar pretendia “aliado”. Há duas semanas, o presiden- listas, cerca de 20 dos 96 deputados. “O
reeleger-se e enfrentaria uma espécie de te do Senado cobrou de Lula, no plená- maior problema do governo na Câmara
cria política, o advogado Antonio Rueda, rio da Casa, uma retratação por causa da não é o PL, é o Arthur Lira”, aponta um
a quem considera traíra. Rueda era o fa- declaração sobre o massacre promovido parlamentar do partido. Esse congres-
vorito. Tinha o apoio dos líderes da sigla por Israel em Gaza. “Pacheco quer ser sista é favorável, veja só, a que peelistas
na Câmara, Elmar Nascimento, e no Se- candidato em 2026, mas não quer se co- e petistas se unam para derrotar o gru-
nado, Efraim Filho, e dos governadores lar muito ao nosso lado”, afirma o depu- po de Lira na disputa pelo comando da
filiados à legenda, entre eles Ronaldo tado Rogério Correia, pré-candidato do Câmara. Segundo ele, tanto o PL quanto
Caiado, de Goiás, que sonha em concor- PT a prefeito de Belo Horizonte. o PT, partido da segunda maior banca-
rer à Presidência da República abraça- da, são prejudicados por Lira e sua tur-
do a Jair Bolsonaro, o inelegível. Rueda Lula não se retratou. Ao contrário, ma e têm motivos para querer fortale-
foi um dos operadores da frustrada ten- em 27 de fevereiro, reafirmou sua po- cer outro grupo.
tativa do capitão de criar um partido pa- sição, com palavras diferentes. A decla- Lira é presidente da Câmara desde
ra chamar de seu quando estava no po- ração original tinha levado a oposição 2021, tempos de Bolsonaro, em cujo go-
der, o Aliança pelo Brasil. O União Bra- bolsonarista a pedir seu impeachment. O verno atuou como espécie de primei-
sil, filho da fusão da legenda pela qual pedido foi protocolado onde tem de ser, ro-ministro, graças à explosão de ver-
Bolsonaro havia sido eleito, o PSL, com na Câmara dos Deputados, em 22 de fe- ba destinada a obras incluídas no orça-
o DEM de Caiado, tem três ministros no mento por parlamentares, as chamadas
governo Lula. Segure-se, leitor: a confu- emendas. Essa explosão, aliás, garante
são está só no começo. até hoje o poder oculto de Alcolumbre,
Um dos ministros do União Brasil é definido por um colega senador como o
indicado do influente, porém discreto, O governo não verdadeiro pai do orçamento secreto. O
Davi Alcolumbre, iminência parda por papel na era Bolsonaro é, possivelmente,
trás do comandante do Senado, Rodrigo
pretende lançar a explicação para que a primeira versão
Pacheco. Com o finado, mas nem tanto, candidatos próprios. daquele decreto golpista tramado pelo
orçamento secreto no bolso, Alcolum- Por ora, acompanha capitão após perder a eleição não man-
bre fez de Pacheco seu sucessor em 2021 as negociações dar prender Lira (propunha encarcerar

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Pacheco e o presidente do Tribunal Su- O presidente da Câmara quer a todo Ambições. Lira sonha
perior Eleitoral, Alexandre de Moraes). custo fazer o sucessor. Morre de medo do em emplacar o sucessor
M A RCELO CA M A RGO/A BR

no comando da Câmara.
Ajuda a entender também por que o ostracismo, condição que poderia ser fa-
Pacheco quer o apoio
deputado não tenha dado as caras em tal para a pretensão de eleger-se senador de Lula na campanha a
Brasília no último 8 de janeiro, dia de um por Alagoas em 2026. Recorde-se uma governador de Minas Gerais
evento concebido por Lula e organiza- declaração sua a O Globo de abril do ano
do por Pacheco para lembrar um ano do passado: “Pode perder o poder, mas não
quebra-quebra bolsonarista na cidade. pode deixar de ter influência. Rodrigo

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 25
Seu País

Maia, hoje, não tem o poder da presidên- Lula busca criar


cia (da Câmara), mas goza de muita influ-
ência. É representante dos bancos (diri-
canais diretos
ge a Confederação Nacional das Institui- com deputados
ções Financeiras). Fez muitos relaciona- e senadores, sem
mentos”. Maia antecedeu-o no comando intermediários
da Casa e queria ter emplacado o suces-
sor Baleia Rossi, deputado e presidente
do MDB. Foi traído, porém, pelo próprio
partido, o DEM, hoje União Brasil. A trai-
ção foi puxada por aquele a quem Lira de- plano é antigo e não vingou com Bivar.
seja ver na cadeira que ocupa. O União Brasil continuará com minis-
tros no governo, na hipótese de simpa-
O alagoano está “inseguro” quanto tizantes do bolsonarismo ganharem es-
às chances de Elmar Nascimento, uma paço interno no embalo de uma vitória
descrição que circula nos bastidores do de Rueda? Para um deputado petista,
Congresso. Daí ter antecipado o pro- um eventual rompimento teria de par-
cesso sucessório, como restou eviden- tir do partido, não do Palácio do Planal-
te após participar de um evento no Rio to. Até porque a agremiação nunca se
de Janeiro em 23 de fevereiro. “O presi- definiu como governista, prefere po-
dente Lula tem a vontade dele e o direi- sar de “independente”. No Executivo,
to dele de tentar fazer o sucessor dele, não havia sinal amarelo aceso. “Não es-
como eu tenho a minha pretensão, ou- tá no radar” do presidente, disse Padi-
vindo, a todos os líderes partidários (…) lha, “uma reforma ministerial.”
O presidente Lula sabe disso e já disse O que o Planalto tem feito é disputar
que estará junto desse projeto de acom- com Lira influência sobre os deputados.
panhar para que eu tenha o direito de fa- Em 22 de fevereiro, Lula recebeu os líde-
zer o meu sucessor.” Declaração para lá res partidários para um happy hour no
de ambígua. Quis dar a entender que Lu- Palácio da Alvorada. Lira estava pre-
la o apoiará, mas não disse claramente sente, mas sabe que demonstraria mais
que o presidente o fará. Até aqui não há, poder se fosse apenas ele o elo dos par-
de fato, compromisso por parte do petis- lamentares com o presidente. Sem in-
ta. Eis o motivo de sua insegurança. O termediários, pior para o alagoano. Eis
governo, diz um ministro, não tem co- por que há uma “guerra fria” entre ele e
mo brigar pela presidência da Câmara, Lula, conforme relatou CartaCapital em
não vai se atirar na disputa e não impõe junho de 2023. No dia do happy hour (ha-
vetos ao líder do União Brasil. “Não ve- verá outro, com senadores, em 5 de mar-
tar” não é a mesma coisa que “apoiar”. ço), o presidente baixou um decreto com
Nascimento é descrito por colegas um calendário para liberação de verbas
como pouco simpático e meio ríspido, de emendas parlamentares ao longo do
traços, aliás, presentes em Lira. Por ano. Serão 44 bilhões de reais, dos quais
ora, há três interessados em bater cha- 33 bilhões de caráter impositivo (o go-
pa com ele futuramente: Antonio Brit- verno não pode deixar de pagar, mas ape- liderado de Nascimento no União Brasil.
to, líder do PSD, Isnaldo Bulhões, líder nas decidir quando pagar). O cronogra- O veto da LDO tinha sido um dos mo-
do MDB, e Marcos Pereira, presidente ma tinha sido imposto na Lei de Diretri- tivos para um discurso duro e revolta-
do Republicanos. A eleição interna no zes Orçamentárias de 2024, mas acaba- do de Lira, cheio de recados ao governo,
União Brasil tem potencial para forta- ria vetado por Lula em 30 de dezembro. na volta do Congresso em 5 de feverei-
lecer Nascimento. Lira é defensor de O pai da criança era o relator da LDO, o ro. No mesmo dia, ele mandou um re-
que a legenda se una ao PP, sua sigla. O deputado Danilo Forte, aliado de Lira e querimento de informação ao Ministé-

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Jogadas. Lula reuniu líderes partidários sa para resolver o assunto. A existência
no Palácio da Alvorada. Nascimento do pedido aumenta seu poder de barga-
é o “parça” de Lira. Alcolumbre
nha perante o governo. Mesmo que no
seria o pai do orçamento secreto
fim das contas Lula derrotasse um pro-
cesso de impeachment, a mera discussão
do assunto consumiria energia política
ção, metade dos recursos precisa ir para do governo, neste momento empenha-
a área da saúde. Quem controla a pasta, do em aprovar no Congresso medidas de
controla uma fortuna. Nísia tem a con- aumento de arrecadação.
fiança de Lula, no entanto. Seu número
2 no ministério, Swedenberger Barbosa, Na sexta-feira 1º, após o fechamento
foi do gabinete pessoal do presidente da desta edição, seria divulgado o resultado
SENADO E TONINHO BARBOSA /UNIÃO BRASIL NA CÂMARA
República nos dois mandatos anteriores. do PIB do ano passado, um desempenho
Ao mostrar as garras na reabertura na casa dos 3%, conforme estimativas
RICA RDO ST UCK ERT/PR, WA L DEMIR BA RRE TO/AG.

do Congresso, Lira conseguiu um tête-à- mais ou menos consensuais. Um dos nú-


-tête com Lula. A conversa ocorreu em 9 meros mais altos em uma década, em-
de fevereiro. O petista queria saber por bora longe do necessário diante das ca-
que o deputado tinha queixas com o go- rências nacionais. Para este ano, as pre-
verno. O alagoano não fala com o chefe visões são piores (1,7%, segundo o “mer-
rio da Saúde sobre certos gastos. É raro da área política, Padilha. E tem a respon- cado”, e 2,2%, na projeção do Ministé-
um presidente da Câmara ser autor de sabilidade, por força do cargo, de decidir rio da Fazenda), mas o presidente disse
requisição do gênero. O deputado gos- se aceita ou não o pedido para abrir um em uma entrevista recente que “vamos
taria, no fundo, de derrubar a ministra processo de impeachment de Lula. Ape- crescer mais do que qualquer previsão”.
Nísia Trindade e ser o padrinho do subs- sar de ser o padrinho da escolha do atu- Quanto melhor a situação econômica do
tituto. A razão da cobiça pelo cargo são al presidente da Caixa Econômica Fede- País, pior para Lira na disputa com Lula
justamente as emendas. Pela Constitui- ral, Carlos Antônio Vieira, não tem pres- pelo coração dos deputados. •

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 27
Seu País

Banho de sangue
SÃO PAULO Relatório aponta casos de
tortura e indícios de execução sumária
em operação da PM na Baixada Santista
POR MARIANA SER AFINI

U
m relatório elaborado pe- cípios da Baixada Santista. A ofensiva
la Ouvidoria das Polícias ocorreu em retaliação à morte um sol-
de São Paulo e por organi- dado da Rota, a tropa de elite da corpo-
zações da sociedade civil ração, abatido a tiros durante um patru-
compilou denúncias de lhamento no Guarujá. Aplacado o dese-
abordagens violentas, invasões de domi- jo de vingança, a matança cessou por al-
cílios, torturas e indícios de execução gum tempo. Após o assassinato de outro
nas recentes incursões policiais em co- soldado da Rota em Santos, no início de
munidades pobres da Baixada Santista. fevereiro, a PM aproveitou a tradicional
Entre os episódios relatados por teste- Operação Verão para cuidar do acerto de
munhas figura o caso de um rapaz que contas. Até a conclusão desta reporta-
chegou a ser submetido a sessões de su- gem, outros 38 civis foram abatidos em
focamento com saco na cabeça, para supostos confrontos com policiais. “São
passar informações sobre suspeitos. Ele quase 40 mortos em menos de um mês,
nem sequer tinha anotações criminais. nós não tínhamos operações dessa natu-
Há ainda relatos de que policiais teriam reza no estado. Nossa maior preocupa-
empilhado corpos de vítimas no chão, ção agora é que esta seja a nova política
formando uma cruz, e depois fizeram de segurança pública daqui para a fren-
registros fotográficos “para postagem te, a exemplo do que ocorreu no Rio de
nas redes sociais”. O documento foi en- Janeiro, com resultados desastrosos.”
tregue, na segunda-feira 26, a Mário
Sarrubbo, procurador-geral de Justiça Considerado o mais bolsonarista dos
do estado e futuro secretário Nacional secretários do governador Tarcísio de
de Segurança Pública do governo Lula. Freitas, o titular da pasta de Segurança
“O clima é de terror, de insegurança Pública, Guilherme Derrite é um capitão
generalizada. Está todo mundo com me-
do”, resume Samira Bueno, secretária-
-executiva do Fórum Brasileiro de Se-
gurança Pública, uma das entidades que O documento foi
participaram do trabalho de campo pa-
ra a elaboração do relatório. Em julho de
entregue a Mário
2023, a Polícia Militar deflagrou a Ope- Sarrubbo, chefe
ração Escudo, que durou 40 dias e resul- do Ministério
tou na morte de 28 suspeitos nos muni- Público paulista

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Senhores do caos. da reserva da PM de São Paulo que chegou
O governador Tarcísio a comandar o batalhão da Rota de 2013
de Freitas confiou a
a 2015. Adepto da filosofia do “bandido
pasta da Segurança
MASTRANGELO REINO/GOVSP E FRANCISCO CEPEDA /GOVSP
Pública a Guilherme bom é bandido morto”, ele fez uma drás-
Derrite, oficial da tica mudança no comando da corporação
reserva da PM e ex- em 21 de fevereiro. Dos 63 coronéis em
-comandante da Rota postos de chefia, 34 foram trocados, privi-
legiando oficiais egressos da Rota. “Mais
da metade da cúpula da PM foi trocada, é
uma situação inédita na história da ins-
tituição. Vemos uma bolsonarização do
staff da corporação, patrocinada pelo
secretário”, lamenta Benedito Mariano,
ex-ouvidor das polícias paulistas. “Está
muito claro que o Derrite move as peças
no tabuleiro para ter, cada vez mais pró-
ximo dele, coronéis e outros oficiais que
apoiem a sua política”, acrescenta Bueno.

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 29
Seu País

Retrocesso. O governo paulista sabota o a deputada e presidente do PT, Gleisi Derrite foi um recado claro para a tro-
programa de câmeras corporais para PMs Hoffmann, na rede social X. pa. Em palestras e cursos de treina-
As mudanças na cúpula da PM pro- mento, ele costumava dizer que tenen-
vocaram descontentamento em parce- te com quatro anos de polícia e sem ne-
A movimentação do secretário tam- la expressiva da tropa, ciente de que a nhuma morte no currículo não merece
bém acendeu um sinal de alerta em pes- matança desenfreada de suspeitos po- assumir posição de comando”, comen-
soas próximas do governo Lula. “Der- de provocar uma reação do crime orga- ta. Segundo esse interlocutor, a inter-
rite derrubou todo o comando da PM nizado, elevando as mortes também de rupção do programa de câmeras cor-
e instalou coronéis da truculenta Rota policiais. Muitos dos coronéis afastados porais foi o primeiro episódio de atrito
nas chefias, o que foi criticado por cri- tentavam conter a letalidade na opera- com parte do coronelato, que há mais
minalistas e até nos editoriais da im- ção em curso na Baixada Santista. En- de dez anos defendia o uso do equipa-
prensa paulista. Na noite de domin- tre eles figura o coronel José Alexander mento como forma de reduzir a leta-
go, o secretário decidiu na marra que de Albuquerque Freixo, até então o nú- lidade policial e, por consequência, as
750 mil pessoas teriam ido ao ato an- mero 2 da corporação, defensor do uso baixas de policiais em serviço. Impor-
tidemocrático da paulista, cálculo que de câmeras nas fardas dos PMs. tante ressaltar que foi a própria cúpu-
a PM havia deixado de fazer há tem- la da PM paulista que, de forma pionei-
pos, pelos óbvios riscos de manipula- Desde a nomeação do novo secretá- ra, resolveu testar o sistema consagra-
ção. E na madrugada o perfil oficial da rio de Segurança Pública, oficiais de do em nações desenvolvidas.
Polícia Civil repostou ataques a Lula e perfil moderado colocaram as barbas “Não posso dizer que todos os coronéis
ao governo federal. Instituições de se- de molho, relata um coronel da reser- pensavam dessa forma, mas o apoio às câ-
gurança na mão de bolsonaristas são va da PM, que pediu à reportagem pa- meras era majoritário na cúpula da PM”,
um risco para a democracia”, escreveu ra não ser identificado. “A chegada do afirma o oficial da reserva. Segundo ele,

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
a violência das recentes operações é tão O secretário Derrite ca de operações violentas e midiáticas,
alta que policiais de baixa patente têm que gera visibilidade para o secretário.”
se recusado a se deslocar para a Baixada
trocou 34 dos 63 Presente na escuta às vítimas, o advo-
Santista. “Além disso, ao concentrar um coronéis da cúpula gado Flávio Roberto Campos, integran-
grande efetivo no litoral, começa a falta da PM, privilegiando te da Comissão de Direitos Humanos da
de coordenação plena dessas tropas. É o oficiais da violenta OAB paulista, cobra uma investigação
terreno perfeito para arbitrariedades.” Rota, a tropa de elite rigorosa da atuação policial na Baixa-
Deputada estadual da Bancada Femi- da corporação da Santista. “Entrei no quarto de um
nista do PSOL, Paula Nunes esteve pre- jovem de 22 anos que foi assassinado, e
sente em uma das diligências de orga- ficou muito claro para mim que ali não
nizações da sociedade civil na Baixada havia acontecido uma troca de tiros. As
Santista e concorda com a avaliação do pessoas estão com muito medo de falar
coronel da reserva. “A troca do coman- cipais vítimas da violência policial.” o que de fato está acontecendo, porque
do da PM é uma demonstração cabal de Amarílis ressalta, porém, que a crise a polícia continua lá no território, ater-
que o governador Tarcísio de Freitas lida não atinge somente os civis, mas tam- rorizando. Ao mesmo tempo, elas sen-
com a segurança pública no modo bolso- bém os policiais que atuam na ponta. tem necessidade de denunciar, mas não
narista, com uma estratégia de enfren- “Os agentes que estão morrendo ocu- sabem se serão acolhidas pela Justiça.”
tamento, destruição e morte.” Já a advo- pam os postos mais baixos da hierar-
gada Amarílis Costa, diretora-executi- quia. São os que recebem os menores Samira Bueno denuncia ainda a fal-
va da Rede Liberdade, alerta que políti- salários e estão expostos aos maiores ta de autonomia dos médicos-legistas.
ca de extermínio possui um claro viés riscos.” Já Carolina Ricardo, diretora- “Pedimos uma audiência com o superin-
socioeconômico. “Ao dar carta bran- -executiva do Instituto Sou da Paz, de- tendente da Polícia Técnico-Científica,
ca para a PM agir como bem entender monstra preocupação com o uso polí- porque recebemos fotografias de perí-
e municiar as tropas com equipamen- tico da PM. “O policiamento cotidia- cias feitas em condições adversas, com
tos de artilharia pesada, é evidente que no deveria ter o cidadão como alguém diversos policiais em volta durante a ne-
haverá derramamento de sangue, prin- a ser protegido, não combatido. Essa fi- cropsia”, comenta. “Vamos cobrar uma
cipalmente de jovens negros, as prin- losofia está sendo abandonada em tro- resposta sobre isso, porque esses pro-
fissionais precisam ter autonomia para
trabalhar. Os laudos que vêm sendo di-
vulgados têm deixado muitas dúvidas.
O Estado precisa garantir investigações
isentas, por isso estamos exigindo maior
atuação do Ministério Público.”
Diante do cenário, o deputado esta-
dual Carlos Giannazzi, do PSOL, con-
vocou Derrite para prestar esclare-
cimentos na Assembleia Legislativa.
“Precisamos apurar todas essas denún-
cias, e por isso queremos questionar o
secretário sobre o que está acontecen-
REDES SOCIAIS E ROV EN A ROSA /A BR

do.” O requerimento para a audiência


foi protocolado na segunda-feira 26.
Procurado pela reportagem, o secretá-
rio inicialmente se dispôs a falar com
CartaCapital, mas pouco depois orien-
tou sua assessoria de imprensa a decli-
nar da entrevista. Em recentes decla-
rações públicas, ele confirmou não ha-
Perícia. Samira Bueno denuncia a falta de autonomia dos médicos-legistas em São Paulo ver previsão para o fim das operações. •

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 31
Economia

Empreiteiras
encarceradas
LAVA JATO O STF abre a porta para
a revisão dos acordos de leniência,
mas o espectro da República
de Curitiba assombra o debate
P O R C A R LO S D R U M M O N D

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 37
NESTA Entrevista. Paulo
SEÇÃO Rocha fala dos desafios
à frente da Sudam

A
fixação pelo ministro An- Como nos casos das levaram ao sucesso, ainda que momen-
dré Mendonça, do Supre- tâneo, dessa operação. Portanto, eu vejo
delações premiadas,
mo Tribunal Federal, de com preocupação o futuro, não acho que
um prazo de 60 dias para os acertos com as passamos a limpo totalmente a Lava Ja-
11 empreiteiras revisarem empresas foram to”, alerta Valim.
os acordos de leniência fechados por de- fechados sob coação
corrência da Operação Lava Jato é um O advogado destaca o fato de mui-
alívio necessário, apesar de tardio, mas tos agentes que promoveram a operação
não afasta o risco de novos abalos para estarem agora misturados aos bolsona-
as companhias. Todo o ferramental ju- ristas, ou aos mesmos indivíduos encar-
rídico-institucional que possibilitou di- um balcão único, de todos os órgãos res- narem esses dois papéis, com os mesmos
zimar o setor de construção do País, ponsáveis sentarem para conversar, pa- instrumentos disponíveis. Valim receia
mundialmente competitivo, abalar a ra evitar o pagamento de multas em du- o ressurgimento dessas forças e consta-
principal cadeia produtiva, de petróleo e plicidade, finalmente foi concretizada, ta que muito do legado negativo da La-
gás, comprometer o horizonte de inves- embora com atraso”, destaca o advoga- va Jato continua presente, a exemplo do
timentos por tempo indeterminado e in- do Rafael Valim, que, com os sócios Wal- estrago econômico gerado pela operação.
terferir na disputa política com conse- frido Warde, Valdir Simão e Gustavo Ma- “Assistimos, na audiência, a empresas de
quências desastrosas continua em vigor. rinho, defendeu no STF o pedido dos par- joelhos, discutindo a leniência. Estavam
A decisão refere-se à ação iniciada tidos para a revisão dos acordos. “Pare- ali prostradas, dizendo: ‘Eu não estou
no ano passado pelos partidos PSOL, ce que o risco de retrocesso em matéria na mesma situação de quando celebrei
Solidariedade e PCdoB, que pediram ao de anticorrupção e os riscos desses des- os acordos’. Várias afirmaram que esta-
STF a suspensão de multas e indenizações mandos da Lava Jato continuam vigen- vam 90% menores. Esse estrago da Lava
em todos os acordos de leniência tes, continuam aí. Não foi feita uma revi- Jato acho que estamos longe de superar.”
celebrados antes de 6 de agosto de 2020, são da Lava Jato, dos instrumentos que Os partidos alegam que os acordos fo-
data em que a Controladoria-Geral da
União, a Advocacia-Geral da União,
o Tribunal de Contas da União e o
Ministério da Justiça assinaram um
termo de cooperação técnica com
o objetivo de aprimorar o ambiente
regulatório dos acordos de leniência
no Brasil. Os partidos denunciaram a
atuação abusiva do Ministério Público
Federal na negociação e na celebração
dos acordos, a despeito da competência
atribuída à CGU pela Lei Anticorrupção.
O MP chamou para si todos os acordos
I S T O C K P H O T O E G E R VÁ S I O B A P T I S TA / S T F

de leniência e assumiu competência ex-


clusiva para celebrá-los, com graves dis-
torções e prejuízos às empresas e ao País.
A renegociação dos acordos, a partir
da decisão de Mendonça, será supervi-
sionada pela Procuradoria-Geral da Re-
pública e, nesse período, os pagamentos
das multas ficarão suspensos. “Foi mui-
to boa a audiência. Um grande avanço em
termos institucionais. A ideia de existir Em recuperação. A Odebrecht mudou de nome, para Novonor, e mira o exterior

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 33
Economia

Disputa. A Andrade Gutierrez vendeu


sua parte na CCR. As viúvas da Lava Jato
torcem por Mendonça contra Dias Toffoli

ram firmados em um momento histórico


marcado por um “reprovável punitivis-
mo”, colocando em risco a continuidade
de empresas que aceitaram acordos com
valores demasiadamente altos. Entre as
ilegalidades dos acordos de leniência, ci-
tam “coação, relação ‘perversa’ entre as
colaborações premiadas e os acordos de
leniência, abuso na identificação da base
de cálculo das multas e inclusão de fatos
considerados ilícitos, que eram lícitos ou
de menor gravidade. Acordos de leniên-
cia são compromissos assinados no âm-
bito da Lei Anticorrupção, de 2013, entre
autoridades investigativas e pessoas ju-
rídicas implicadas na prática de atos le-
sivos à administração pública, com a re-
dução das sanções aplicáveis em troca de
cooperação com as apurações.

O Ministério Público não tem qual-


quer legitimidade legal para selar acor-
dos de leniência, apontou o ministro Gil-
mar Mendes, do STF, durante a sessão da
2ª Turma que rediscutiria a decisão que
anulou todas as provas obtidas dos sis-
temas Drousys e My Web Day utiliza-
das no acordo de leniência da Odebre-
cht. Em entrevista a CartaCapital, Men-
des afirmou que o Brasil deu importan-
tes passos para evitar novas arbitrarie-
dades como aquelas registradas na La-
va Jato, mas é necessário manter a aten-
ção para os abusos não serem repetidos, o
que passaria pela criação de uma espécie
de Comissão da Verdade. A conduta dos
responsáveis pela operação, centraliza-
da no ex-procurador Deltan Dallagnol e
no ex-juiz Sergio Moro, é fundamental
para compreender a ascensão da extre-
ma-direita no Brasil, disparou o minis-
tro do STF. “Acho que é importante que
isso seja questionado, porque, de fato, te-
ve consequências para a nossa economia

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
como um todo”, declarou. No ano passa- Passar a limpo. Em entrevista ao site
do, o ministro Dias Toffoli anulou todas de CartaCapital, Mendes sugeriu uma
as provas obtidas no acordo de leniência Comissão da Verdade da Lava Jato
da Novonor, antiga Odebrecht, por terem
desrespeitado o devido processo legal e
levado à prisão do presidente Lula, “um área de regulação e governança do Ins-
dos maiores erros judiciários do País”. tituto de Estudos Estratégicos de Petró-
Figura jurídica nefasta, a Operação leo, Gás Natural e Biocombustíveis. No
Lava Jato completa dez anos em 17 de momento em que o País busca recuperar
março, com escassos benefícios, como a sua trajetória de crescimento econômi-
punição de dirigentes corruptos da Pe- co, prossegue, com anúncios de um novo
trobras e de empreiteiras, abastecida por PAC e da nova política industrial, e deba-
acordos de delação questionáveis, por se- te as suas vantagens na transição energé-
rem obtidos, em vários casos, mediante tica, é necessário mobilizar um conjun-
coação, e ainda recuperação de parte do to de empresas que tenham tecnologia e
dinheiro desviado da companhia, além conhecimento na área de infraestrutura
de melhoras pontuais da governança de para viabilizar esses empreendimentos.
empresas. Essas “conquistas” foram ob- “É fundamental considerar também que
tidas, entretanto, a um custo imensurá- se trata de empresas com capital nacio-
vel para o País, em termos de retrocesso nal que, ao contrário das multinacionais,
institucional, perversões jurídicas, de- transbordam conhecimento e tecnolo-
gradação empresarial e econômica e ne- presentes no exterior e exportavam a gia para o próprio País, em benefício de
gociatas de uma corriola de promotores nossa engenharia de ponta. “Temos de uma grande cadeia produtiva”, salienta.
e juízes com o Departamento de Justi- reorganizar esse mercado, pois hoje há
ça dos Estados Unidos, que comprome- 1,7 trilhão de reais na rua, para investi- Um estudo do economista e analista
teram a independência jurídica do País e mentos, e precisamos dessas empresas financeiro André Luiz Passos Santos, a
reduziram de modo brutal as condições para construir isso.” Nenhuma obra pa- pedido de CartaCapital, mostra, em va-
de concorrência das empreiteiras na- ra a “faixa 1” de habitação social, ressalta, lores de dezembro de 2023, o esmaga-
cionais, antes situadas entre as compa- foi contratada após 2015. Há uma cartei- mento econômico das empresas mais
nhias líderes do setor no mundo. Na raiz ra de 180 mil unidades habitacionais pa- importantes de um setor crucial para a
do golpe que retirou Lula da campanha ralisadas e que o governo começa agora a economia, provocado por decisões ar-
de 2018, a Lava Jato misturou-se com o retomá-las, além dos contratos novos. “O bitrárias de um grupo de procuradores
bolsonarismo para adquirir substância País passou sete anos sem contratar ha- e juízes. Segundo o estudo, a Andrade
ainda pior e pairar como ameaça sobre bitação social”, sublinha Garibe. Gutierrez, segunda no ranking da Câ-
as instituições democráticas. A recuperação econômica das cons- mara Brasileira da Indústria da Cons-
Não se deve duvidar da imensidão dos trutoras é de interesse coletivo e na- trução em faturamento bruto em 2013,
estragos provocados pela operação à eco- cional. A despeito da responsabilização conseguiu reequilibrar-se por meio de
nomia e ao País. “O mercado de constru- criminal dos seus dirigentes, elas cum- um penoso processo de recuperação ex-
M AGA L H Ã ES/AGU E PREFEIT UR A DE BA RUERI

ção foi completamente desarticulado por prem uma função social muito relevante, trajudicial, que exige acordos com ao
esse golpe jurídico, os CNPJs foram le- destaca André Tokarski, pesquisador da menos metade dos credores. Sua estra-
vados à Justiça, em lugar dos CPFs, is- tégia foi a de se concentrar na ativida-
G U S T A V O M O R E N O / S T F, M A R C E L O

so causou uma debacle nas principais de principal, a construção pesada. Em


empresas do setor, que eram a ponta de 2022, em consequência de sua estraté-
lança do nosso crescimento econômico”, Antes competitivas gia de redução do endividamento, ven-
dispara Roberto Garibe, da Casa Civil, deu por 4,4 bilhões de reais a partici-
responsável pela gerência executiva do
mundialmente, pação na lucrativa concessionária CCR,
Novo PAC, em seminário organizado pe- as construtoras detentora de dezenas de concessões de
la LCA Consultores. Essas grandes em- brasileiras definharam rodovias, metrôs e aeroportos.
presas, ressalta o economista, estavam na última década A OAS, quinta em faturamento bruto

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 35
Economia

Atraso. A construção do submarino


nuclear foi outro avanço tecnológico
interditado por Moro e companhia

em 2013, já havia sofrido severamente,


perdendo perto de 85% da receita, quan-
do se compara 2019 com o auge seis anos
antes. Na tentativa de sobreviver, dividiu-
-se em duas, Coesa e Metha, incorporan-
do à segunda, sem custos, a construtora
KPE Engenharia. Em meados de 2022, os
credores da Coesa acusaram a empresa
de fraudes na gestão de ativos para evitar
os pagamentos devidos. A justiça decre-
tou sua falência. Hoje sobrevive apenas
a Metha, com severas dificuldades e sob
o risco de seguir a Coesa na bancarrota.
A Camargo Corrêa, terceira maior em
faturamento bruto em 2013, mudou de
nome para Mover. Tornou-se acionista da
CCR, renegociou dívidas e começa a vol-
tar, aos poucos, às obras de infraestrutu-
ra. É outra que encolheu dramaticamente.

A Odebrecht mudou seu nome para Ao contrário do que construção civil crescer 2,5% ao ano, o
Novonor. A construtora, principal braço nível de faturamento de 2013 será recu-
ocorre no mundo
da holding, agora é OEC Engenharia. Co- perado apenas em 2033.
locou em torno de 146,5 bilhões de reais desenvolvido, a O garrote aplicado às construtoras bra-
em dívidas em recuperação judicial e per- Lava Jato quebrou as sileiras pela Lava Jato não tem preceden-
deu mais de 100 mil empregados no Brasil empresas e facilitou tes no mundo, que pratica o avesso: pune
desde 2013, tendo hoje menos de 30 mil a vida dos executivos acionistas e executivos e preserva as em-
trabalhadores. A OEC fechou 2022 com presas. Nos Estados Unidos, a WorldCom,
receita bruta de 4,6 bilhões de reais, 65% segunda maior operadora de telefonia de
acima do obtido em 2021, segundo in- longa distância do país, a Boeing e a IBM,
formações da empresa. Mas apenas 28% todas afastadas das contratações públi-
dos resultados foram obtidos no País em dústria da Construção, em 2013, antes cas por inidoneidade, voltaram a forne-
2022, ante uma participação da subsidi- da destruição promovida pela Lava Ja- cer ao governo depois de atender às exi-
ária brasileira de 45% nos resultados em to, o setor da construção civil represen- gências da lei. A IBM retomou os contra-
2021. Sua principal estratégia tem sido a tava 6,4% do PIB. Em 2021, último da- tos 30 dias depois do banimento, confor-
internacionalização, com foco em obras do divulgado pela CBIC, tal participação me destacou a publicação especializada
no setor de óleo e gás em Angola. Mais de havia se reduzido para 2,6%. Outras eco- Public Contract Law Journal em 2009.
50% da receita da OEC em 2022 foi obti- nomias latino-americanas não devasta- Em 2019, a Alemanha apurou fraudes e
da naquele país africano, ante perto de das por uma operação jurídico-policial puniu executivos da Volkswagen, da Sie-
26% um ano antes. Obteve, em 2022, um semelhante mantiveram participações mens e da Messerschmitt, que não in-
TÂ N I A R Ê G O /A B R

EBITDA de 347 milhões de reais, cerca de altas do setor no PIB de 2021: México terromperam em nenhum momento a
um décimo do que conseguira em 2013, (6,7%) e Chile (7,3%). O setor encolheu produção e a geração de empregos e o
sublinha Santos. 26% entre 2014 e 2021, ainda segundo mesmo aconteceu com a Samsung, na
Segundo a Câmara Brasileira da In- a CBIC. A entidade considera que, se a Coreia do Sul, e a Airbus, na França. •

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Economia

Fim dos ciclos


N
o Plano Nacional de Trans-
formação Ecológica, anun-
ciado pelo ministro Fer-

na Amazônia
nando Haddad durante a
28ª Conferência das Na-
ções Unidas sobre Mudanças Climáticas,
realizada em Dubai no fim do ano passa-
ENTREVISTA “Não cabe mais um modelo do, a Amazônia possui um papel estraté-
restrito à exportação de matérias-primas”, gico. Sem deter o desmatamento na maior
floresta tropical do planeta, dificilmente
avalia Paulo Rocha, no comando da Sudam o governo conseguirá cumprir suas me-
tas de descarbonização da economia. Ao
A RENÉ RUSCHEL
mesmo tempo, a equipe de Lula precisa
oferecer alternativas para a população
amazônica. Ciente desse desafio, a Sudam
busca retomar o protagonismo perdido
no financiamento de grandes projetos de
desenvolvimento para a região, que se es-
tende por nove estados e ocupa cerca de
60% do território nacional.
“A Sudam vem de um histórico de des-
monte, descaso e descompromisso com
a região e com os brasileiros”, lamenta
Paulo Rocha, ex-senador pelo PT do Pa-
rá e atual superintendente da agência de
fomento. O petista acredita ser possível
fortalecer os pequenos e médios produ-
tores locais, sem causar prejuízos à pre-
servação do bioma. “Não cabe mais um
modelo restrito à exportação de maté-
rias-primas. Foi assim nos ciclos da bor-
racha, da castanha, da madeira e, mais
recentemente, de minérios. Precisamos
de um processo de verticalização, para
agregar valor aos produtos, e também
mais inclusivo, e que combine o papel do
pequeno, do médio e do grande produtor
para desenvolver as economias locais.”

CartaCapital: Ao assumir a Sudam,


o senhor se deparou com qual cenário?
Paulo Rocha: Encontramos uma Sudam
resultante de um processo cruel de esva-
ziamento, uma verdadeira falta de com-
C A R L O S M O TA

promisso com a coisa pública e com a po-


pulação. Logo no primeiro dia nos reuni-
Visão. “Precisamos de um processo de verticalização, para agregar valor aos produtos” mos com todos os servidores para discu-

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 37
Economia

tir a situação. Iniciamos uma ronda nos


ministérios para resolver problemas di-
versos. Conseguimos elevar o orçamento.
Pretendemos acolher vários órgãos com
atuação regional no complexo predial da
Sudam e daí teremos um centro adminis-
trativo do governo federal na Amazônia.
CC: A Sudam sempre esteve volta-
da ao financiamento de grandes proje-
tos, geralmente ligados ao extrativis-
mo. O senhor pretende diversificar os
investimentos para outras atividades?
PR: Historicamente, a Sudam não ape-
nas financiou esses grandes projetos, co-
mo também cumpriu um papel imposto
desde a época da ditadura, a partir de uma
filosofia da caserna, de cima para baixo. A
visão militar era ocupar para não entre-
gar. Com isso, os pequenos ficaram acua-
dos ou foram expulsos para as grandes ci-
dades, mas agora é possível mudar esse
panorama. A sustentabilidade na Ama-
zônia não tem a ver só com a questão am-
biental. Precisamos olhar para as pessoas
que aqui vivem. Elas precisam respirar
um clima bom, mas também necessitam
de alimentação, vestuário, educação e um
tratamento de saúde digno às suas famí-
lias. Como costuma dizer o presidente Lu-
la, não podemos deixar 30 milhões de ha-
bitantes contemplando a floresta, sem ter
emprego, dignidade ou cidadania.
CC: Como assegurar alternativas de
renda para a população amazônica?
PR: Primeiro, precisamos levar em con-
ta as desigualdades regionais. No Pará,
existem grandes projetos agropecuários
e minerais, como nas regiões Sul e Sudes- mais um modelo focado na exportação a região e com os brasileiros. Quem co-
te, que possuem um bom nível de desen- de matérias-primas. Foi assim nos ciclos nhece a Amazônia, seus problemas e de-
volvimento social, enquanto o arquipéla- da borracha, da castanha, da madeira e, safios, sabe que o Poder Público precisa
go de Marajó tem o menor IDH do Bra- mais recentemente, de minérios. Preci- estar presente levando políticas públicas,
sil. Após debater esse assunto com gover- samos de um processo de verticalização, proporcionando à população o usufruto
nos estaduais e municipais, além de uni- para agregar valor aos produtos, e tam- da riqueza da região. Uma das nossas
versidades, trabalhadores e associações bém mais inclusivo, e que combine o papel prioridades é fazer da Sudam o pilar da
de classe, passamos a propor projetos de do pequeno, do médio e do grande produ- atuação do governo federal nos estados
desenvolvimento a partir da vocação de tor para desenvolver as economias locais. que abrigam o bioma. Já começamos esse
cada região. E começamos a agir nas re- CC: Quais são as prioridades? processo. Estamos recuperando o qua-
giões mais empobrecidas, como Marajó, PR: A Sudam vem de um histórico de des- dro técnico. Conseguimos o Contrato de
no Pará, e Bailique, no Amapá. Não cabe monte, descaso e descompromisso com Cessão de Uso a Título Gratuito, firmado

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
rias na vida de milhares de brasileiros,
sempre com respeito ambiental e gera-
ção de receita para os estados.
CC: A Sudam tem recebido consul-
tas de grupos interessados nessa pos-
sível exploração dessa área, já apelida-
da de “novo pré-sal”?
PR: Recebemos contatos de grandes em-
preendimentos internacionais nas áreas
de logística, indústria naval e verticali-
zação de minérios. Nossa única exigên-
cia é de que esses grupos tenham sócios
brasileiros no empreendimento.
CC: O Consórcio da Amazônia Legal,
formado pelos nove governadores da
região, não enfraquece o papel da
Sudam? Não é um divisor de forças?
PR: A Amazônia tem demandas urgen-
tes e precisamos melhorar o índice de
Equilíbrio. O ex-senador é favorável à exploração de petróleo na foz do Amazonas desenvolvimento humano de muitas re-
e diz ser possível conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental giões em todos os estados. O momento é
de somar esforços, unir forças políticas
e mobilizar a sociedade como um todo,
entre a Sudam e a Secretaria do Patrimô- CC: O senhor declarou ser favorá- inclusive internacionalmente, para res-
nio da União. Essa conquista nos habili- vel à exploração do petróleo na mar- peitar e desenvolver a Amazônia. A ver-
ta formalmente a compartilhar seus pré- gem equatorial brasileira. Qual seria o dade é que a riqueza da região suscita in-
dios com outros órgãos da União, justa- impacto desse empreendimento? teresse de todos os lados. Com a retoma-
mente para criar o centro administrativo PR: Temos uma parceria com diretoria da do papel da Sudam, acreditamos que
do governo federal na Amazônia. da Petrobras. Fui colega do presidente todos os estados devem estar incluídos
CC: Qual o orçamento disponível pa- Jean Paul Prates no Senado e, agora, es- nesse esforço coletivo, a fim de propor-
ra 2024? tamos em órgãos estratégicos, capazes de cionar dignidade aos brasileiros que ha-
PR: No que se refere aos recursos para o promover a regeneração de recursos pa- bitam, trabalham e amam a Amazônia.
plano de desenvolvimento regional, orde- ra esse novo ciclo da economia brasileira CC: Em 2025, Belém será a sede da
namento territorial e recursos hídricos, de forma sustentável, com energias reno- COP-30, a Conferência da ONU sobre
A L BERTO CÉSA R A R AÚ JO/A M A ZÔNIA RE A L E ISTOCK PHOTO

projetos de estruturação e dinamização váveis e recursos para financiar a tran- Mudanças Climáticas. A Sudam está
de atividades produtivas, fomento à pes- sição energética do País. A exploração de articulada nesse projeto?
quisa, tecnologia e inovação para o desen- petróleo na margem equatorial tem um PR: Desde o anúncio do evento, inicia-
volvimento sustentável da biodiversida- enorme potencial econômico, além de mos junto ao governo federal a acelera-
de amazônica, conseguimos dar um gran- oportunidades para promover melho- ção da liberação de recursos, áreas, obras
de salto passando de 7 milhões de reais, e demais políticas, a fim de preparar a ca-
em 2023, para 18 milhões neste ano, um pital do Pará para a recepção da COP-30,
aumento de 174%. Temos ainda recursos além de firmar convênios, cooperações
do Fundo de Desenvolvimento da Ama- “Não podemos e parcerias com instituições de pesquisa
zônia, o FDA, que giram em torno de 890 deixar 30 milhões e ensino, reunindo projetos exitosos na
milhões de reais, além de 46 milhões pa- área da bioeconomia. É um esforço pa-
ra gestão e manutenção. Somando, os va-
de habitantes ra que o povo da Amazônia participe da
lores são de, aproximadamente, 954 mi- contemplando COP, seja beneficiado com suas delibera-
lhões. Oportuno dizer que o orçamento da a floresta, sem ções e possa ainda usufruir do legado dei-
Sudam não crescia há cerca de dez anos. ter dignidade” xado pela realização do evento. •

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 39
Economia

A reconstrução
o fiscalismo para os pobres. Diz que é pre-
ciso superar essa armadilha imposta pela
aliança entre uma certa tecnoburocracia

incontornável
incrustada na área econômica do governo
e a ideologia liberal-autoritária do merca-
do. As alternativas passam por processos
de desfinanceirização predatória da eco-
LIVRO Uma crítica contundente nomia, ao mesmo tempo que de despri-
ao modelo de rentismo para os vatização das próprias finanças públicas.

ricos e fiscalismo para os pobres A Parte III trata de aspectos cruciais


às relações entre gestão pública, contro-
P O R J O S É C E L S O C A R D O S O * J R . E L E A N D R O F R EI TA S C O U TO * *
le e implementação de políticas públicas.
Fundamentalmente, trata-se de explici-
tar e enfrentar traços histórico-estrutu-

O
rais que estão na raiz dos recorrentes pro-
livro Ousadia e Transfor- 1988 (CF-1988), mas com maior ímpeto blemas de organização e funcionamento
mação − Apostas para In- desde a Lei de Responsabilidade Fiscal do Estado brasileiro. São eles: o burocra-
crementar as Capacidades (LRF) de 2000 e a Emenda Constitucional tismo: você sabe com quem está falan-
do Estado e o Desenvolvi- do teto de gastos (EC 95) de 2016, esta ago- do?; o autoritarismo: aos amigos tudo,
mento no Brasil reúne tex- ra substituída pelo novo arcabouço fiscal. aos inimigos a lei; o corporativismo: fa-
tos e entrevistas que, publicados origi- Há aqui uma crítica contundente ao rinha pouca, meu pirão primeiro; o fis-
nalmente entre 2011 e 2022, compõem modelo que se vem cristalizando no Bra- calismo: fiscalismo para os pobres, ren-
uma das agendas de pesquisa e assesso- sil, que prioriza o rentismo para os ricos e tismo para os ricos; o privatismo: vícios
ramento institucional mais importantes privados, prejuízos públicos; o curtopra-
dos seus autores, em torno dos campos zismo: miopia e revolução passiva como
do planejamento estratégico, das finan- métodos de (não) solução de problemas;
ças governamentais e da gestão pública o escapismo: a eterna fuga para a frente;
no Brasil contemporâneo. o atavismo: leis, costumes, métodos e sis-
A Parte I trata de fundamentos e atri- temas anacrônicos; a baixa transparência
butos de uma função de planejamento dos dados, informações, processos e de-
estratégico público revigorada e neces- cisões; e o exclusivismo: baixa diversida-
sária aos desafios brasileiros no século de e representatividade sociodemográfi-
XXI. Para tanto, reforça sua centralida- ca e territorial da burocracia brasileira.
de política e o requalifica como a função Somados, eles ajudam a fundamen-
governamental mais importante para o tar a crítica à superficialidade e insufi-
enfrentamento das adversidades do pre- ciência dos diagnósticos liberais acerca
sente, bem como para a reconstrução do do Estado nacional, bem como a justifi-
futuro. Afinal, planejamento é a arte da OUSADIA E TRANSFORMAÇÃO − car propostas e alternativas de enfrenta-
boa política, é função intrínseca ao pro- APOSTAS PARA INCREMENTAR mento dos problemas de fato relevantes.
cesso complexo e dinâmico de governar. AS CAPACIDADES DO ESTADO E Assim, como aproximação ao comple-
O DESENVOLVIMENTO
A Parte II do livro apresenta críticas xo e multifacetado tema do desempenho
NO BRASIL
e defende propostas para combater e su- institucional agregado do setor público
Organizadores: José Celso Cardoso
perar o regime de dominância financeira Jr. e Leandro Freitas Couto. Editora
federal brasileiro, o livro apresenta uma
e privatização das finanças públicas que Contracorrente e Fundação Perseu visão de conjunto dos quatro últimos go-
Abramo (520 págs., 120 reais)
veio se consolidando no Brasil, de modo vernos (Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro)
geral, desde a Constituição Federal de para mostrar que houve um processo de

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
perda de densidade, entre os governos Lu- Para tanto, a partir dos pilares estru- Estaca zero. Tudo, em âmbito estatal,
la e Dilma (2003 a 2015), e de verdadeiro turantes da ação governamental retra- precisará passar por processos
profundos de recriação ou reconstrução,
desmonte, na passagem dos governos Lu- tados neste livro, oportunidades con-
inovação e experimentalismo institucional
la para Temer e Bolsonaro (2016 a 2022), cretas para a transformação progressi-
no que diz respeito à tríade República, De- va e progressista do Estado estão dadas.
mocracia e Desenvolvimento. É preciso fortalecer e mobilizar as capa-
cidades governativas do Estado nacional, cas. Muito ao contrário, elas são o cerne e
Ao fim desse tenebroso período, dentre as quais as do planejamento go- o veio por meio de onde a transformação
constata-se, como consequência direta vernamental, das finanças públicas e da positiva da sociedade pode realizar-se.
da tentativa de destruição dos aparatos gestão pública democrática, de modo que Apenas se os resultados pretendidos
e institucionalidades de Estado, imensa elas ajudem o atual governo a governar, com o plano de governo eleito democra-
fragilização político-institucional e um ou seja, a formular e implementar o pla- ticamente se efetivarem é que a política
quase colapso das condições econômi- no de governo vencedor das eleições de – como forma de organização e resolução
cas e sociais de vida para imensos contin- 2022. Essas funções não são e não podem dos conflitos – e a própria democracia –
gentes populacionais e regiões do País. ser vistas como meras funções burocráti- como forma de expressão da vontade po-
Diante desse quadro de terra arrasada pular – poderão voltar a se legitimar junto
é que desafios imensos se colocam para às pessoas que a praticam e que nela acre-
RICA RDO ST UCK ERT/PR

o terceiro mandato presidencial de Lu- ditam. Com isso, a democracia terá cum-
la (2023/2026). Para enfrentá-los, pra- prido o seu papel político e o planejamento
ticamente tudo, em âmbito estatal, pre-
É preciso fortalecer governamental o seu papel estratégico. •
cisará passar por processos profundos o planejamento,
de recriação ou reconstrução, inovação as finanças públicas *Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea.
e experimentalismo institucional. e a gestão democrática **Analista de Planejamento e Orçamento.

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 41
Nosso Mundo

O próximo da lista
Após a morte misteriosa de Alexei Navalny,
cresce o temor de eliminação de outros dissidentes na Rússia
P O R A N D R E W R OT H E PJ OT R S AU E R

P
oucos dias depois da morte do
líder de oposição russo Ale-
xei Navalny numa colônia
penal, ativistas de direitos
humanos e jornalistas aler-
taram que dezenas de outros presos polí-
ticos também podem correr risco de mor-
te, devido ao abuso deliberado de conde-
nados doentes no sistema prisional da Fe-
deração Russa. Dmitry Muratov, editor do
jornal Novaya Gazeta e vencedor do Prê-
mio Nobel da Paz, disse a The Observer que
a morte de Navalny enviou um apelo ao
mundo em favor do salvamento dos pre-
sos políticos russos, que poderão morrer
a seguir. “Não posso mais ajudar
Navalny”, afirmou Muratov. “Mas há
muitos dissidentes lá nas piores condições
neste momento… Vou ser franco: várias
outras mortes virão.” Na sexta-feira 23,
saiu a notícia de que o corpo de Navalny
havia sido entregue à sua mãe. A antiga
porta-voz do ativista, Kira Yarmysh, es-
creveu na plataforma de rede social X que
não sabia se as autoridades permitiriam
a realização de funeral “como a família
deseja e como Alexei merece”.
Entre aqueles que correm perigo mor-
tal, Muratov citou Vladimir Kara-Murza,
um destacado crítico do Kremlin conde-
nado à pena de 25 anos por fazer lobby em
governos ocidentais para a adoção de san-
ções contra os principais assessores e alia-
dos de Putin, Igor Baryshnikov, levado à

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 45
NESTA The Observer.
Netanyahu cada vez
SEÇÃO mais em baixa em Israel

Degredo. Kara-Murza (ao lado) teria


sido envenenado várias vezes e cumpre
pena de 25 anos. Navalny virou o símbolo
da violência do regime de Putin

Justiça por publicar “informações falsas


sobre os militares russos” e acometido de
um câncer de próstata, e Alexei Gorinov,
sentenciado a sete anos de cadeia por “di-
vulgar conscientemente informações fal-
sas sobre o exército russo”. Gorinov sofre
de doença pulmonar crônica e teve um
terço do pulmão removido em 2016, de-
nuncia Muratov. Agora na prisão “ele es-
tá sufocando, está ficando azul”.

Gorinov foi um dos primeiros rus-


sos condenados sob as duras leis que
Vladimir Putin impôs em 2022 para dis-
suadir os críticos da guerra. Ele foi acusa-
do após se manifestar contra as propos-
tas de um concurso de desenho infantil e
de um festival de dança, apesar da guerra
na Ucrânia, onde crianças estavam mor-
rendo, disse Gorinov.
Amigos e familiares desconfiam que
os presos políticos são alvo de maus-
-tratos. “Acredito que Alexei está sen-
do morto na prisão”, disse Darya Volya,
uma amiga próxima de Gorinov, a
The Observer. “Morto deliberadamente
porque a gravidade do seu estado e sua
idade são bem conhecidas. As condições
em que ele está detido e a recusa em dar-
-lhe um tratamento adequado e imedia-
to significam o assassinato muito doloro-
MINISTÉRIO DE REL AÇÕES EXTERIORES/

so de um ser humano, em câmera lenta.”


LIT UÂ NIA E REMKO DE WA A L /A NP/A FP

Segundo Volya, Gorinov já estava


com a saúde fragilizada antes de sua pri-
são, devido às graves consequências da
Covid-19. Preso, sua condição teria pio-
rado. “Em janeiro, ele escreveu que es-
tava no hospital e que seu corpo nunca
passou por tais desafios em toda a sua vi-
da”, disse Volya. “É claro que ele não re-
cebe tratamento adequado, e o local onde

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 43
Nosso Mundo

é mantido é inabitável: é incrivelmente Há quem defenda a Em sua repressão implacável a quem


frio e úmido, e sempre há mais detentos discorda da guerra, o governo russo
do que a cela pode acomodar.”
troca de prisioneiros não só deteve políticos veteranos co-
Num apelo público, a Novaya entre a Rússia mo Yashin e Kara-Murza, como tam-
Gazeta enumerou 13 presos políticos e o Ocidente, bém perseguiu artistas e criadores como
detidos “cujas saúde e vida podem ser para salvar vidas Sasha Skochilenko. Em novembro passa-
salvas se conseguirmos forçar o Estado do, as autoridades condenaram Skochi-
a abrir as mandíbulas”. Muratov afir- lenko, uma artista e musicista feminista
ma ter pressionado, sem sucesso, a Cruz de São Petersburgo, a sete anos de prisão
Vermelha Internacional no ano passado por ter trocado cinco etiquetas de preços
para exigir acesso a Navalny na prisão e, Bucha, disse temer que sua “vida esteja num supermercado por mensagens con-
mais tarde, pediu que outros países ten- nas mãos de Putin”. Ele apelou aos gover- tra a guerra. O julgamento de Skochilenko
tassem trocas por presos políticos rus- nos estrangeiros para a libertação de Ka- tornou-se um dos exemplos mais proemi-
sos. Ou agimos assim, afirma, ou podere- ra-Murza, que disse estar doente e que a nentes da repressão do Kremlin a todas as
mos esperar por mais mortes. “Esses são “ameaça à vida dele não é apenas real, é formas de dissidência, desde o início da
apenas os cidadãos que falaram publica- fora do comum”. guerra na Ucrânia. Ela sofre de doença ce-
mente sobre o fato de estarem doentes”, Kara-Murza queixou-se de dormência líaca e tem um problema cardíaco crônico.
acrescenta Vera Chelishcheva, chefe da nas extremidades e outros problemas de
equipe de reportagem jurídica da Novaya saúde, uma aparente complicação por ter “Sasha não está recebendo tratamen-
Gazeta. “Há outros milhares de doentes sido envenenado várias vezes. “O siste- to médico adequado”, afirmou sua par-
que simplesmente não conhecemos.” ma prisional é completamente impiedo- ceira, Sonya Subbotina. A parceira te-
Os presos em casos políticos são mui- so com ambos”, disse Yashin. “Alexei e me que as condições crônicas de saúde de
tas vezes maltratados ou negligenciados Vladimir não saíram das celas de casti- Skochilenko a levem à morte na prisão.
“intencionalmente”, acusa Chelishcheva. go, foram submetidos a condições de tor- “As condições prisionais de Sasha só vão
“Chegamos tarde demais para Alexei. tura. Ambos enfrentavam sérios proble- piorar quando ela for transferida para
Mas ainda há uma chance de visitar ou- mas de saúde.” Os aliados dos ativistas uma colônia penal”, suspeita Subbotina.
tros e salvar suas vidas.” presos pediram aos governos ocidentais Skochilenko, de 33 anos, estava “frágil”
Ilya Yashin, um aliado de Navalny que a troca de prisioneiros, incluindo espi- e tinha depressão e transtorno do es-
cumpre pena de oito anos por escrever ões, para garantir a libertação de críti- tresse pós-traumático, desencadeado
sobre os crimes de guerra russos em cos do Kremlin como Kara-Murza. por sua prisão, acrescentou Subbotina.
“Sasha foi detida por cinco homens que
a atiraram violentamente num carro da
polícia. Ela tinha hematomas no corpo.
Eles também a humilharam durante as
buscas em seu apartamento e até amea-
çaram estuprá-la. Ela não dorme bem e
tem pesadelos constantes.”
Skochilenko continua, porém, desa-
fiadora. “O que vocês dirão aos seus fi-
lhos? Que um dia vocês prenderam uma
A L E X A N D R A A S TA K H O VA / M E D I A Z O N A

artista gravemente doente por causa de


cinco pedaços de papel?”, disse aos pro-
motores numa declaração final no tribu-
nal. “Não tenho medo, e talvez seja exa-
tamente por isso que o governo tem tan-
to medo de mim e me mantém numa jau-
la como o mais perigoso dos animais.” •

Mão pesada. Skochilenko pegou sete anos por protestar contra a guerra Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Nosso Mundo

D
epois de quatro meses
ter r ívei s, a g uer r a
Israel-Hamas prolonga-
-se e Tel-Aviv parece mais
isolada do que nunca. Os
protestos em massa nos campi univer-
Só a mídia brasileira gosta sitários dos Estados Unidos e nas ruas
do primeiro-ministro do Reino Unido nas primeiras semanas
da guerra deram lugar ao apelo da Áfri-
ca do Sul ao Tribunal Internacional de
Justiça, no qual acusa o governo israe-
lense de genocídio. Os Estados Unidos,
o melhor amigo de Israel, passaram de
uma pressão discreta para reduzir a es-
cala da guerra e permitir mais ajuda hu-
manitária a Gaza a impor sanções aos
colonos violentos na Cisjordânia e pres-
sionar uma resolução do Conselho de
Segurança da ONU para um cessar-fo-
go. Até o príncipe William do Reino Uni-
do pediu o fim dos combates.
Essa pressão global não comoveu mui-
to os israelenses. Em uma pesquisa reali-
zada em meados de janeiro pela Univer-
sidade de Tel-Aviv, mais de metade dos
judeus entrevistados pensava que Israel
usava a quantidade certa de força, mas
outros 43% disseram que não tinha usa-
do o suficiente. Numa pesquisa recente
realizada pelo Instituto de Democracia
de Israel, a maioria era contra um acor-
do político detalhado para acabar com a
guerra, e dois terços se opunham à ajuda
KOBI GIDEON /GA BINE T E DO PRIMEIRO MINIST RO/ISR A EL
humanitária a Gaza. São dados preocu-
pantes, embora refletidos nas tendências
entre o público palestino, cujas pesquisas
mostram um apoio elevado ao Hamas e

Nem em casa
aos ataques de 7 de outubro.
A maioria das sociedades apoia um
esforço de guerra. Mas há razões pe-
las quais os israelenses parecem imu-
A popularidade de Netanyahu nes à crescente condenação internacio-
nal, para não mencionar o desastre hu-
despenca em Israel, apesar do apoio mano em Gaza, que vão além das mani-
festações habituais em tempo de guer-
maciço ao massacre em Gaza ra. Em primeiro lugar, os israelenses es-
P O R DA H L I A S C H EI N D L I N * tão simplesmente arrasados pelo 7 de ou-

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 45
Nosso Mundo

tubro, dia que têm revivido desde então, A confiança da tão. Os cidadãos árabes, logicamente, re-
juntamente com novos traumas da guer- velam pontos de vista radicalmente dife-
ra. Os estrangeiros muitas vezes culpam
população na derrota rentes em relação à guerra nas pesquisas,
os meios de comunicação locais pela co- do Hamas caiu e não podem ser analisados em conjunto
bertura insuficiente do sofrimento hu- de 75% para 58% com as tendências dos israelenses judeus.
mano em Gaza, mas isso não toca o pon- Algo tem mudado, porém, nas atitu-
to principal: os israelenses recuaram pa- des dos israelenses em relação à guerra.
ra dentro. A mídia está simplesmente hi- Pesquisas do Instituto de Estudos de Se-
perfocada em seu público. gurança Nacional mostram uma queda
sobre a guerra, a política, o orçamento e na confiança na própria guerra. De um
Horas de noticiário são dedicadas to- questões sociais divisórias. As notícias pico de mais de 75% da população judia
dos os dias a histórias individuais de sol- internacionais, mesmo sobre Israel, po- em novembro, hoje apenas 58% pen-
dados mortos na guerra, civis deslocados dem ficar escondidas na mistura. sam que Israel pode alcançar todos ou a
do norte ou do sul, testemunhas e sobre- Não é que os israelitas não se impor- maior parte de seus objetivos de guerra.
viventes do dia 7 de outubro ou seus fa- tem com as posições globais. Os protes- Em uma sondagem realizada em feverei-
miliares. Ligue o rádio a qualquer hora tos globais, particularmente as audiên- ro pelo Instituto de Democracia de Isra-
e a conversa mais comum é: “Conte-nos cias no Tribunal Internacional de Jus- el, apenas uma minoria, 39% de todos os
sobre seu filho/marido/irmão morto em tiça, os abalaram – de raiva. A conclu- israelenses, pensa haver uma probabili-
Gaza. Quem era ele?” A resposta nunca é são deles não é que a guerra de Israel foi dade elevada ou muito elevada de “vitó-
“Meu pai era…”; é sempre “Papai era...”. longe demais, é sobretudo que suas sus- ria absoluta”, como prometeu o primei-
Israel é uma sociedade muito pessoal, to- peitas de que o mundo está sempre con- ro-ministro Benjamin Netanyahu.
do mundo quer ouvir sobre as qualidades tra eles se confirmaram. Isso aumenta a Provavelmente, não são Joe Biden, o
especiais do falecido, o sorriso contagian- sensação de ameaça existencial, um me- príncipe William ou a Corte Internacio-
te, a animação da festa. O tempo restante do latente e constante antes do 7 de outu- nal os responsáveis por mudar a opinião
do noticiário é repartido entre matérias bro, visceralmente inflamado desde en- interna, ao menos não exclusivamente.

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Menos confiantes na aniquilação do
Hamas, os israelenses criticam o governo
por colocar os reféns em segundo plano
SEM AUTORIDADE
Primeiro-ministro palestino
mostram que o apoio israelense ao seu
governo despencou desde 7 de outubro.
renuncia ao cargo
Três manifestações realizadas todos os

A
sábados à noite há semanas contam a his- falta de legitimidade da
tória. A maior delas é liderada pelas fa- Autoridade Palestina, impo-
mílias dos reféns e mobiliza multidões tente diante dos ataques de
da corrente dominante política, exigindo Israel à Faixa de Gaza, ficou mais pa-
que o governo dê prioridade à libertação tente na segunda-feira 26. O primeiro-
dos reféns, mas evitando uma mensagem -ministro, Mohammad Shtayyeh, filia-
abertamente antigoverno. O segundo é do ao Fatah, renunciou ao cargo que
um grupo crescente originário do enor- ocupava desde 2019. “O novo momen-
me movimento pró-democracia e antigo- to exigirá acordos governamentais e
vernamental de 2023. Esses manifestan- políticos que levem em conta a realida-
tes apelam aberta e furiosamente à der- de emergente na região, bem como a
rubada do governo, e milhares lotam to- necessidade urgente de um consenso
das as semanas uma praça no centro de palestino”, afirmou o ex-premier, antes
Tel-Aviv. Num canto afastado da praça de defender a extensão da presença
está o terceiro grupo, um pequeno núme- da ANP por todo o território. A
ro de ativistas que protesta contra a guer- demissão ainda precisa ser aceita pelo
ra, apoia o cessar-fogo e se opõe à ocupa- líder da Autoridade, Mahmoud Abbas.
Acredito que eles estejam preocupados ção por Israel. Poucos lhes dão atenção. À agência de notícias Reuters, Sami
com o que está acontecendo de errado na Abu Zuhri, integrante da cúpula do
região. Os israelenses veem que o Hamas Juntos, os manifestantes têm, no en- Hamas, que disputa o poder com o
não foi destruído e continua a lutar. En- tanto, somado forças. Alguns bloquea- Fatah, afirmou: “A renúncia só faz
quanto escrevo este artigo, quase cin- ram à noite a principal rodovia que sai sentido se ocorrer um acordo de
co meses depois, os tons estridentes dos de Tel-Aviv. Os protestos se espalharam consenso nacional sobre os preparati-
aplicativos de alarme anunciam o lan- para Jerusalém, na residência do primei- vos para a próxima fase de Gaza”. O
çamento de foguetes no sul. Relatos de ro-ministro, ou em sua casa particular primeiro-ministro israelense, Benjamin
que o mentor do Hamas, Yahya Sinwar, em Cesareia, e outros locais. A pressão Netanyahu, voltou a rejeitar a criação
fugiu da cidade para o Sinai e levou com externa, provavelmente, não mudará a de um Estado palestino.
ele reféns podem ou não ser verdadei- opinião dos israelenses por si só. Mas
ros, mas ele, definitivamente, não está pode aumentar a imagem que o público
morto. E, após uma breve euforia quando tem de sua liderança como fanática,
as Forças de Defesa de Israel libertaram corrupta, letalmente incompetente,
dois sequestrados num ataque militar, disposta a sacrificar a democracia e os
T HOM AS KIENZL E /A FP E JACK GUE Z /A FP

as famílias estão desesperadas com a reféns, enquanto transforma o país e sua


possibilidade de seus entes queridos população em párias globais. Em algum
morrerem antes de ser libertados num momento, assim como votaram neste go-
acordo que nunca acontece. verno ruinoso, os próprios israelenses te-
Suas preocupações sobre os resulta- rão de expulsá-lo. •
dos da guerra indicam outra dinâmi-
ca predominante na opinião pública: ao *Dahlia Scheindlin é analista política baseada
contrário da maioria dos outros países, em Tel-Aviv. É autora de The Crooked Timber
que se reúnem em torno de seus líderes of Democracy in Israel, ed. De Gruyter.
em tempos de guerra, todas as pesquisas Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Shtayyeh está de mãos atadas

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 47
Plural

Um corpo político
PROTAGONISTA Às vésperas dos 60 anos, Wilemara Barros,
nome-chave da dança brasileira, é homenageada no MITsp
P O R A M A N DA Q U EI R Ó S

E
m meados dos anos 1970,
uma adolescente dava os
primeiros passos no balé em
um projeto social do Sesi,
voltado a filhos de operários,
na periferia de Fortaleza, no Ceará. Por
ser negra, era atacada pelo professor:
“Você nunca será uma bailarina”.
Cinco décadas depois, Wilemara Bar-
ros é a artista homenageada da 9ª Mostra
Internacional de Teatro de São Paulo, a
MITsp, que ocupará diversos espaços pau-
listanos ao longo deste mês de março. Às
vésperas de completar 60 anos, em abril,
ela celebra essa consistente trajetória na
dança clássica e contemporânea com Pre-
ta Rainha, em cartaz durante a mostra.
O novo trabalho mergulha em suas
memórias sob o viés da ancestralidade,
enaltecendo-a. Esse tema não é novo em
suas criações, mas chega sob um prisma
hoje diferente. Dez anos atrás, por exem-
plo, ela havia colocado a negritude em ce-
na em um espetáculo chamado Mulata,
que fazia referência, justamente, à pala-
vra que aquele primeiro professor usava
para dirigir-se a ela.
“Só me percebi negra quando ele me
chamou de mulata. Até então, essas ques-
tões não passavam pela minha cabeça”,
lembra Wila, como é conhecida na cena
cearense. “Comecei então a insistir no
balé porque queria me provar. Quem ti-
nha de dizer se eu poderia ou não estar
nesse lugar era eu.” Passos. Preta Rainha, o novo trabalho da artista cearense, mergulha na ancestralidade

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 52
NESTA Oscar 2024. A categoria
SEÇÃO Filme Internacional só tem
diretores europeus

A dedicação e o talento fizeram dela


uma das mais conceituadas mestras de
balé clássico do País, com passagem pe- MITSP: PROGRAMAÇÃO GERAL
lo Colégio de Dança do Ceará e a Compa-
Embora carregue a palavra “teatro” no nome, a 9ª edição do
nhia de Dança da Unifor e, desde 2005, o
Curso Técnico em Dança do Porto Irace-
MITsp está cheia de coreógrafos e bailarinos na programação
ma das Artes, sendo responsável pela for-

A
mação de centenas de pessoas. pesar de carre-
“Não tive referências de bailarinas ne- gar no nome a
gras na dança clássica”, diz, voltando no palavra “teatro”,
tempo. “Só depois percebi que ocupar es- a 9ª edição da MITsp tem
se lugar tinha uma representatividade uma programação rechea-
grande, dando margem para tantas ou- da de espetáculos nos
tras crianças pensarem que poderiam quais os criadores se no-
estar ali.” O repertório clássico, acabou, meiam como coreógrafos
no entanto, não sendo o seu caminho. e os intérpretes, como
Embora tenha participado de montagens bailarinos.
de peças tradicionais, como A Morte do A dança sempre atra-
Cisne, sua principal forma de expressão vessou o evento. Mas,
estaria na dança contemporânea. neste ano, ela aparece ain-
da com mais intensidade Brasileiros e estrangeiros. Acorde Rompido, do
O primeiro contato com essa lingua- na Plataforma Brasil, com sul-africano Gregory Maqoma, abre o evento, no Sesc
gem deu-se nos anos 1980, quando assis- dez obras que serão assis-
tiu ao Ballet Stagium dançar ao som de tidas tanto pelo público
Elis Regina. Tempos depois, experimen- quanto por curadores na- pudesse ser deslocada”, reverberações do contexto
tou a prática no Grupo Pano de Boca. Ao cionais e internacionais. diz Antonio Araújo, diretor político, social e religioso
propor uma montagem inspirada no ro- O corpo está no centro artístico da MITsp. de seu país natal.
mance Iracema, de José de Alencar, o co- de todos os trabalhos, in- A seleção internacional No Centro Cultural
reógrafo Cláudio Bernardo, radicado na cluindo Preta Rainha, da também é permeada pela Fiesp, o público poderá fa-
Bélgica, sugeriu uma imersão em leitu- Cia. Dita (CE), Eu Não Sou dança. Gregory Maqoma, zer uma imersão nas cria-
ras sobre a história do Ceará, para então Só Eu em Mim, do Grupo um dos mais representati- ções do sul-coreano Jaha
pensar na construção dos movimentos Cena 11 (SC) e Dança vos nomes da cena sul- Koo, que, na trilogia
e cenas. Essa abordagem era, até então, Monstro, da Companhia -africana, apresenta Acor- Hamartia, reflete sobre o
inédita para a jovem. dos Pés (AL). Questões so- de Rompido, que abrirá o choque entre as culturas
A confirmação do contemporâneo se bre identidade, desloca- evento, na sexta-feira 1º, oriental e ocidental.
daria com a parceria com Fauller, bailari- mentos e enfrentamentos no Sesc Pinheiros. A obra Em paralelo aos espetá-
no cearense que, no início dos anos 2000, são predominantes. discute o colonialismo e o culos, palestras, conver-
foi fazer o curso de formação de coreó- “O que é mais potente é apartheid por meio de uma sas e residências fomen-
THOMAS MULLER E LUCIANO GOMES

grafos no Colégio de Dança e teve aulas a troca, o diálogo, a per- fusão de danças tradicio- tam debates sobre o cru-
com ela. Do encontro resultou uma união meabilidade entre todas as nais africanas e dança zamento das artes cênicas
que dura 22 anos e foi responsável por linguagens. A gente tam- contemporânea. com a realidade política e
transformar a vida e o trabalho de ambos. bém pensou em tirar a Contado pela Minha social do Brasil e do mun-
Como bailarina da Cia. Dita, fundada MITsp do centro, e nos pa- Mãe, do libanês Ali do. Uma das ações inclui
por Fauller, Wila descobriu-se uma co- receu interessante fazer Chahrour, também bebe uma aula magna do filóso-
criadora, aportando inquietações pró- com que a linguagem do da experiência do artista fo camaronês Achille
prias a cada montagem. Nela, o coreó- teatro, como é entendida com o corpo em movimen- Mbembe, autor de Necro-
grafo também encontrou uma artista mais convencionalmente, to, trazendo para a cena política (N-1 Edições).

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 49
Plural

Percurso. Embora sua grande forma de


expressão seja a dança contemporânea,
Wila participou de montagens
clássicas, como A Morte do Cisne

o que achava realmente interessante.”


Daí em diante, a potência de Wila im-
pactaria artistas de diferentes vertentes.
O estilista Mark Greiner convidou-se pa-
ra estrelar desfiles e editoriais de moda e
o cineasta Rosemberg Cariry chamou-a
para atuar no filme Siri-Ará (2008), que
lhe rendeu um prêmio de melhor atriz
coadjuvante no Festival de Brasília.
Mais recentemente, dividiu com
Fauller a preparação corporal de Mar-
célia Cartaxo para Pacarrete (2019), de
Allan Deberton, e foi dublê da atriz no lon-
ga-metragem. “Sou uma artista da dan-
ça, mas gosto de me alimentar dessas vá-
rias linguagens”, diz. “Hoje, quando ana-
liso o público que me acompanha, pou-
cos são bailarinos. Acho isso bárbaro.”

Em paralelo à jornada com Fauller,


Wilemara colaborou em criações com
nomes de referência da dança, mas nun-
ca deixou Fortaleza. Segundo Rosa Pri-
mo, professora do curso de Dança da Uni-
versidade Federal do Ceará (UFC), esse
legado é fundamental.
“É importante para o artista sair, dis-
tanciar-se daquilo a que está acostuma-
sem medo de se reinventar, a despeito “Não tive do. Mas acho que a Wila encontrou es-
da diferença de idade entre os dois – ela sa desterritorialização no próprio corpo,
referências de
é 14 anos mais velha que o companheiro. com muito talento e esforço, sem nun-
Em 2003, quando dançou nua em bailarinas negras ca deixar as coisas se acomodarem”, diz
De-Vir, houve quem decretasse o fim de na dança clássica”, a pesquisadora e bailarina. “Ela teve es-
sua carreira. Mas o espetáculo tornou-se afirma a artista se entendimento muito rapidamente, de-
uma das obras da dança cearense mais monstrando uma maturidade incrível.”
apresentadas fora de casa, levando-a pa- Essa maturidade também determina
ra turnês em diversos estados brasileiros e a longevidade de uma carreira sem pers-
países da América do Sul, África e Europa. pectivas de aposentadoria. “A dança des-
“Comecei a entender que a dança con- locou o meu olhar para pensar meu lugar
ACERVO PESSOAL

temporânea me dava liberdade de estar como mulher negra e nordestina. Você


na cena como um corpo político”, afir- dança o que você é”, diz. “Se a sua história
ma. “Enquanto artista, a gente já está o é verdadeira, você consegue chegar nas
tempo todo na berlinda. Então, quis fazer pessoas. Não tem como não dar certo.” •

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Plural

Escrever sobre e
sob a enfermidade
LIVRO O GAUCHO INSOFRÍVEL FOI DEIXADO POR ROBERTO BOLAÑO
NA SEDE DA EDITORA NA VÉSPERA DE SUA ÚLTIMA INTERNAÇÃO
POR ANA PAULA SOUSA

O GAUCHO INSOFRÍVEL

E
Roberto Bolaño. Tradução: Joca Reiners
mbora o chileno Roberto Bolaño, ve, em Literatura + Doença = Doença. Terron. Companhia das Letras
morto aos 50 anos, tenha obtido Nesse mesmo texto, Bolaño desenvolve, (152 págs., 69,90 reais)

grande reconhecimento em vida, a partir de um poema de Mallarmé – que


são as obras póstumas que, ao longo das ele confronta com outro, de Baudelaire –,
duas últimas décadas, têm ajudado a ci- temas que perpassam sua criação: sexo, Também a literatura, equanto tema,
mentar seu nome no panteão dos gran- livros, solidão e violência. “Os livros são está sempre à espreita nas páginas de O
des autores latino-americanos. finitos, os encontros sexuais são finitos, Gaucho Insofrível. A escrita está no cen-
O Gaucho Insofrível, lançado agora no mas o desejo de ler e de foder é infinito. Ul- tro das tramas do divertido A Viagem de
Brasil, abriu a leva de textos que são pós- trapassa nossa própria morte, nossos me- Alvaro Rousselot, sobre um escritor ar-
tumos, mas que haviam sido garimpados dos, nossas esperanças de paz”, diz. gentino supostamente plagiado por um
pelo próprio autor. Diagnosticado diretor de cinema francês, e de Os
com uma doença hepática em 1992, Mitos de Cthulhu, um passeio pela
ele buscava, na fase final da vida, literatura em língua espanhola.
formas de manter a si e a família.
Como relata Joca Reiners É, contudo, no conto-título que
Terron, tradutor do livro, o disque- o mundo mítico e por vezes anedó-
te que continha O Gaucho Insofrível tico de Bolaño se apresenta de for-
foi deixado por Bolaño na sede de ma mais completa e bem-acabada.
sua editora, em Barcelona, na vés- O protagonista da história é Héctor
pera daquela que seria sua última Pereda, “advogado irrepreensível”
internação hospitalar. Seu desejo, de Buenos Aires que, ao ver a Argen-
segundo Terron, era que a publi- tina ter, em poucos dias, três presi-
cação lhe garantisse “alguma se- dentes e dez moedas em circulação,
gurança financeira durante o pe- regressa ao pampa, para viver entre
ríodo de convalescença que se su- os gauchos. O texto é um desconcer-
cederia ao transplante de fígado”. tante relato sobre as dualidades lati-
O Gaucho Insofrível foi publi- no-americanas.
cado em 2003, ano de sua morte. Do todo fica sobretudo a sensa-
Não é, portanto, de surpreender ção de uma realidade fugidia e de
que a enfermidade e a ideia de fi- um mundo que a linguagem, por
nitude perpassem os sete textos mais brilhante que seja, não dá con-
REDES SOCIAIS

que compõem o volume. “Mas tu- ta de capturar. Tudo que existe, pa-
do chega. Os filhos chegam. Os li- rece querer nos dizer Bolaño, por
vros chegam. A enfermidade che- meio de uma citação de Rimbaud,
ga. O fim da viagem chega”, escre- Obra póstuma. O autor chileno morreu aos 50 anos não passa de miragem. •

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Plural

Uma ode
à vida comum
Com Dias Perfeitos, um
filme pequeno e lento, Wim Wenders cai de
novo no gosto da crítica e chega ao Oscar
P O R S E A N O ’ H AG A N

N
o início de 2022, Wim presente. Rápido é criatividade solta.”
Wenders foi convidado pa- O resultado final é, porém, uma au-
ra visitar Tóquio e conhe- la mestra de cinema lento. Em Dias Per-
cer alguns banheiros pú- feitos, não acontece muita coisa, mas o
blicos. O convite veio do pouco que acontece é estranhamente
projeto de arte Tokyo Toilet, que contra- fascinante. O roteiro, feito com o escritor
tou arquitetos e designers para criar 17 japonês Takuma Takasaki, inclui uma
banheiros esteticamente bonitos no série de pequenas variações sobre um
bairro de Shibuya. “Sabemos que você tema: a rotina diária de Hirayama, um
gosta do Japão e de arquitetura”, eles me indivíduo solitário, mas satisfeito, cujo
disseram. “Então, gostaríamos que vies- trabalho é limpar e manter os banheiros
se ver os nossos lindos banheiros. Se gos- de Shibuya. “É um filme pequeno, sim”,
tar deles, talvez possa fazer uma série de concorda Wenders. “Mas também o pri- Asceta. Em Dias Perfeitos, rodado pelo
documentários curtos a respeito.” meiro que fiz depois da pandemia. Eu o cineasta alemão em Tóquio, o ator Kōji
Yakusho vive um homem que limpa
O convite chegou num momento opor- vi como um novo começo.”
banheiros, ouve fitas-cassete e sorri
tuno para Wenders, que, como ele mes-
mo diz, estava “com muitas saudades de Em uma era de filmes audaciosamen-
Tóquio”, cidade que visitou com frequên- te grandes e épicos, como Oppenheimer e
cia, desde que fez um filme sobre o esti- Assassinos da Lua das Flores, a meditação
lista de moda Yohji Yamamoto, em 1989. contida de Wenders sobre a vida simples
O cineasta aceitou o convite e, ao ver o parece ter tocado a sensibilidade da críti-
projeto, ficou convencido de que “a beleza ca e do público. Em 2023, Kōji Yakusho,
e a tranquilidade” daqueles pequenos lu- que interpreta Hirayama, ganhou o prê-
gares seriam mais bem evocadas em um mio de melhor ator no Festival de Cannes.
longa-metragem de ficção, que, garantiu De onde veio a ideia de um persona-
ele aos anfitriões, poderia ser realizado gem principal tão ascético? “Eu o criei na
com um orçamento baixo e nos mesmos minha imaginação, e o encontramos em
16 dias de filmagem. Para sua surpre- duas semanas. Precisávamos de alguém
sa, eles concordaram quase imediata- que estivesse atento a tudo ao seu redor e
mente. “Tudo aconteceu tão rápido...”, que pudesse mostrar o que vive através
diz, “mas rápido é lindo. Rápido é um de seus olhos. É preciso um grande ator

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
para transmitir pequenos gestos, abrir “Acho que muita privilegiada por motivos que nunca são
uma porta pela manhã, olhar para o céu explicados. Ele mora num apartamen-
gente vê o filme
e ser significativo.” O filme também con- to pequeno e espartano em um bairro
corre ao prêmio de melhor longa-metra- e sente saudade de da classe trabalhadora, lê romances que
gem internacional no Oscar, sendo a pri- um estilo de vida compra em sebos e ouve as mesmas fitas
meira vez que o Japão seleciona um dire- mais simples, de cassete – The Kinks, Nina Simone, Velvet
tor não japonês. uma redução do que Underground – enquanto vai e volta do
Encontro Wenders na ampla sede de temos e consumimos” trabalho. Na hora do almoço, senta-se cal-
M A S T E R M I N D LT D A E F E S T I VA L D E B E R L I M

sua produtora, a Road Movies, no bairro mamente num banco do parque, absor-
Mitte, em Berlim. Aos 78 anos, ele exa- vendo o mundo comum ao seu redor e, às
la uma calma descontração, suas respos- vezes, tirando fotos das árvores. À noite,
tas são ponderadas e muitas vezes minu- come no mesmo café e vai ao mesmo bar.
ciosas. “Os filmes, hoje em dia, são um saudado como o retorno à boa forma de Suas interações com personagens pas-
produto”, diz, a certa altura, com triste- um diretor que, ultimamente, vinha sen- sageiros, incluindo seu colega de trabalho
za. “A beleza de Dias Perfeitos é que eu do mais elogiado pelos documentários. irresponsável, sua adorável sobrinha e um
não tinha ninguém olhando por cima Na atuação perfeita de Yakusho, desconhecido que tem uma doença ter-
do meu ombro. Havia pouco dinheiro, Hirayama, o limpador de banheiro apa- minal, são fugazes, mas significativas. A
mas liberdade total.” Dias Perfeitos é rece como um homem fora do tempo, al- chegada de sua irmã distante em um car-
seu 23º longa-metragem e tem sido guém que se afastou de uma vida mais ro com motorista, sendo sua óbvia rique-

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Plural

Longa jornada. Com o memorável Asas


do Desejo (1987), filme no qual anjos
vagam por Berlim, Wenders, que chegou
a filmar nos Estados Unidos, passou a se
ver, enfim, como um artista alemão

za um sinal da vida anterior dele, perturba


brevemente seu equilíbrio. Mas, durante
todo o tempo, ele permanece um homem à
parte, alguém que encontrou uma profun-
da paz interior através da rotina simples.
Hirayama contrasta com os persona-
gens inquietos dos primeiros filmes do di-
retor, seja Philip Winter, o enigmático es-
critor alemão à deriva na vastidão dos Es-
tados Unidos em Alice nas Cidades (1974)
ou o assombrado Travis Henderson ca-
minhando pela interminável paisagem
desértica em Paris, Texas (1984). “Esses
filmes são sobre buscadores, persona- e Asas do Desejo (1987), filme enfatica- Faz sentido, portanto, que, na figu-
gens que procuram, mas não encontram. mente europeu ambientado em Berlim, ra solitária, mas satisfeita, de Hirayama
Hirayama não está procurando”, diz. com anjos que vagam pela cidade como em Dias Perfeitos Wenders tenha criado
presenças invisíveis. Wenders contou-me uma espécie de santo dos últimos dias,
Ele faz uma longa pausa, perdido em que levou muito tempo para aceitar o fato cuja vida quase sagrada é vivida sem a
pensamentos, e prossegue: “Todos os de que era um artista alemão, o que final- bagagem da religião organizada. O filme
meus filmes tratam dessa questão de mente aconteceu ao fazer Asas do Desejo. afirma silenciosamente a vida ao insistir
como viver, mesmo que, antes, eu não Sua longa jornada como cineasta refle- que uma vida comum vivida plena e aten-
soubesse disso, porque também estava tiu, até certo ponto, suas próprias preo- tamente atinge uma dimensão espiritual.
em busca de respostas. Dias Perfeitos é cupações, particularmente sua espiritua- Nisto ecoa o trabalho do seu grande he-
uma resposta bastante precisa. “Acho lidade permanente. Hirayama, em Dias rói cinematográfico, Yasujirō Ozu. “Você
que muita gente vê o filme e sente sau- Perfeitos, leva uma existência quase sai de um filme de Ozu e vê o mundo de for-
dade de um estilo de vida mais simples, santa, embora seja mais zen-budista em ma diferente”, diz. “Mesmo que conte ape-
de uma redução do que temos e consu- temperamento do que cristão. Ele ainda nas uma história familiar comum, de al-
mimos. Em muitos aspectos, Hirayama é, pergunto, uma pessoa religiosa? “Eu me guma forma transcende o comum por cau-
é um exemplo perfeito de como viver.” descreveria como uma pessoa muito es- sa de sua humanidade e espiritualidade.”
Wenders atingiu a maioridade como piritual”, responde, “o que significa que Ele faz mais uma pausa por um lon-
cineasta no início dos anos 1970, depois sou profundamente religioso, mas não go momento. “O que aprendi desde cedo
de ter estudado Medicina e decidido ser sou amigo da religião organizada.” é que fazer filmes é transformador. Faz
pintor, e faz parte de uma geração de au- de você uma pessoa diferente. Às vezes
tores, incluindo pioneiros como Werner penso no que teria acontecido se eu tives-
Herzog e o falecido Rainer Werner se me tornado o pintor que tanto queria
Fassbinder, que formaram um movimen- ser quando era jovem. Acho que hoje seria
to conhecido como Novo Cinema Alemão. “Todos os meus uma pessoa muito solitária, séria e retraí-
Fez uma trilogia inicial de road movies da. Fazer filmes abriu minha mente, mas
filmes tratam dessa
e tornou-se mais conhecido com O Amigo também minha personalidade. Eu era um
Americano (1977). Fez seu nome, de uma questão de como verdadeiro solitário. Não sou mais.” •
vez por todas, com Paris, Texas (1984), viver, mesmo que eu
em que exala certo espírito americano, não soubesse disso” Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
NO OSCAR DE FILME INTERNACIONAL, SÓ DÁ A EUROPA
A Sala dos Professores, dirigido pelo germano-turco Ilker Çatak, e Eu, Capitão, do cineasta
italiano Matteo Garrone, são outros dois concorrentes que acabam de estrear no Brasil
POR C Á SSIO STA R LING C A R LOS

O
olhar de Wim filme formatado para Oscar: homogêneo. Passou assim a cinematografias periféricas
Wenders capta as exala bons sentimentos e tem incorporar, entre os votantes, (Romênia, Hong Kong, Bós-
nuances do cotidiano uma “linda fotografia”. O olhar profissionais de diversas na- nia-Herzegovina, Tunísia), em-
banal de um homem japonês europeu horrorizado diante cionalidades e a buscar re- bora o vencedor tenha sido
em Dias Perfeitos. O espanhol da barbárie dos outros apro- presentatividade de gênero, Druk – Mais Uma Rodada, da
J.A. Bayona, acostumado a di- xima-o de um modo ultrapas- em uma manobra política vol- Dinamarca, país que acumula
rigir superproduções sobre sado de representação. tada a assegurar seu soft 12 indicações e três vitórias.
desastres reais, reconstitui a Esses cinco filmes concor- power. A redesignação da ca- Desde então, produções
luta dos sobreviventes de um rem ao Oscar de filme inter- tegoria, que, em 2020, tro- da Europa ocidental e do Ja-
acidente aéreo nos Andes em nacional, categoria criada nos cou a palavra “estrangeiro” pão voltaram a dominar,
A Sociedade da Neve. O britâ- anos 1950 para simular o re- por “internacional” é parte da sobrando uma ou nenhuma
nico Jonathan Glazer mostra, conhecimento de cinemas estratégia de rebranding. vaga para o “resto do
em Zona de Interesse, a rotina que não o hollywoodiano. Naquele ano, a dupla vitó- mundo”. Em 2024, havia se-
plácida da família de um co- A categoria sempre teve ria do sul-coreano Parasita mifinalistas do México, Armê-
mandante nazista que vive do um espaço mínimo na premia- nas categorias “melhor nia, Marrocos, Islândia,
outro do muro de Auschwitz. ção, acomodando o mundo filme” e “melhor filme interna- Butão e Finlândia. O ucrania-
Em A Sala dos Professores, todo em cinco vagas. cional” parecia indicar uma no e o tunisiano sobrevive-
em cartaz desde a quinta-fei- Desde a década passada, abertura tardia de Hollywood ram, mas realocados na cate-
ra 29, o germano-turco Ilker a Academia vem, no entanto, aos cinemas do mundo. goria “documentário”.
Çatak dramatiza pós-verda- se esforçando para não con- Em 2021, as indicações Neste ano, as indicações
des e racismos no drama de fundir hegemônico e foram dominadas por se resumem a quatro euro-
uma professora, filha de peus e um japonês dirigido
poloneses, numa escola ale- por um autor-grife alemão.
mã. Se o filme fosse um episó- Origem, obviamente, não
dio de uma série sobre dile- é atestado de qualidade, as-
mas morais, a gente não per- sim como a escolha de “me-
deria tempo em comentá-lo lhor qualquer coisa” não
nas redes sociais. é sinônimo de superioridade.
O italiano Matteo Garrone, Mas, ao apostar todas
por sua vez, acompanha a jor- as fichas num jogo só, o
nada heroica de dois adoles- Oscar fica como uma estrela
SONY PICTURES E MGM/DAS WERK

centes senegaleses em bus- desfilando no tapete


ca do “sonho” na Europa em vermelho com look antiquado.
Eu, Capitão, que também
acaba de estrear.
Ele usa a fórmula de
Drama banal.
Gomorra (2008), de denúncia
Filha de poloneses, a
social revestida de realismo protagonista de A Sala dos
brutal, aplicada ao tema da Professores vivencia o
imigração. O resultado é um racismo em uma escola alemã

C A R TAC A P I TA L — 6 D E M A R Ç O D E 2 0 24 55
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

O coletivo em crise

Passou a ser adotada, além disso, uma jogadores a figurar apenas como cumpri-
► Vivemos a era da assistência de saúde que incluía tratamen- dores de ordens, isolados em sua indivi-
supervalorização do to dentário e psicológico, entre outras me- dualidade, seguindo esquemas táticos rí-
didas importantes para o convívio e o me- gidos que, de maneira geral, não lhes per-
técnico, com os jogadores lhor desempenho possível entre todos. mite utilizar suas capacidades de criar.
a figurar apenas como O que houve de fundamental na campa- Nesse contexto, os dribles são cada vez
cumpridores de ordens, nha do Mundial na Suécia foi o relaciona- mais raros e os craques de fato destaca-
mento franco entre os integrantes da Sele- dos em número cada vez menor.
sem possibilidade de criar ção, o elevado índice de liberdade, que leva Toda atividade coletiva é mais bem de-
à confiança, o fator emocional mais impor- senvolvida quanto praticada em conjunto.
tante de todos em uma disputa esportiva. Em razão disso, a Copa do Mundo

A
sequência de acontecimentos Devemos essa estrutura vencedora ao mantém ainda um valor simbólico gran-
negativos que temos visto no chefe da delegação, Paulo Machado de Car- de, mas a qualidade do futebol apresen-
futebol brasileiro, com a não valho, empresário do ramo da comunica- tado não é mais a mesma.
classificação para as Olimpíadas de Pa- ção que estava então à frente do meio mais Os clubes que conseguem manter seus
ris, o mau desempenho da Seleção prin- avançado daquele tempo, a televisão – ele jogadores por mais tempo em seus qua-
cipal e as confusões nos torneios locais, foi o fundador da TV Record e hoje dá no- dros seguem à frente em termos de qua-
me deixam com a sensação de que é ne- me ao estádio do Pacaembu, em São Paulo. lidade – exemplo disso são o Real Madrid
cessário uma “chacoalhada”. e o Manchester City, entre outros.
Isso, inclusive, já aconteceu em épo- Sua participação ficaria demonstrada Esses clubes dominam o funciona-
cas anteriores. anos depois, quando ele próprio, em uma mento da estrutura do futebol mundial
Me vem à lembrança a Copa de 1950, entrevista, contou que havia sido procu- e renovam periodicamente seus elencos
quando perdemos o título dentro de ca- rado pelos jogadores Didi e Nilton San- com as melhores revelações que vão bus-
sa. Já tínhamos, à altura, o melhor fute- tos, já na Suécia, em pleno Mundial, e ou- car no futebol periférico – onde se inclui
bol de todos em matéria de jogadores – viu deles que era a hora de escalar Gar- hoje o Brasil.
basta pensar que, no time, jogavam jun- rincha, Pelé e Zito. Trata-se de uma situação complexa,
tos Barbosa, Zizinho, Jair Rosa Pinto e E tudo foi feito sem que se quebrasse que precisa ser vista em profundidade
Ademir, apenas para citar alguns –, mas nenhuma hierarquia ou se desrespeitas- uma vez que o esporte se tornou uma
isso não foi o bastante para a taça. E es- sem os colegas que teriam de ceder suas fonte de negócios cada vez mais poten-
sa equipe espetacular, diga-se, tinha ven- vagas. E isso foi possível porque havia si- tes e significativos.
cido todas as partidas anteriores à final. do construído um ambiente de confian- Volta e meia, fala-se nos grupos divi-
A Seleção Brasileira ainda jogou o ça, de camaradagem e entendimento. didos – de um lado, a Libra e, de outro, o
Mundial seguinte e só então promoveu Claro que, antes de levar adiante as Forte Futebol.
as mudanças profundas que nos levaram alterações, eles foram conversar com o Em outros momentos históricos já ti-
à conquista do primeiro título em uma técnico Vicente Feola, de forma simples, vemos grupos que se juntaram e se sepa-
Copa do Mundo, em 1958. e sem atingir a ordem no andamento da raram ao sabor da defesa de seus interes-
Na ocasião, mudaram desde a direto- campanha, que, como sabemos, termi- ses. Dessa forma, fomos saindo do ama-
ria da Confederação Brasileira de Fute- nou vitoriosa e até hoje nos dá orgulho. dorismo ao profissionalismo.
bol (CBF) – que é central para qualquer Acho importante e oportuno lembrar O profissionalismo, no entanto, não é
alteração, uma vez que dela partem as desses detalhes, para poder compará-los algo pronto e acabado. É um caminho em
B A P T I S TÃ O

orientações – até a composição de uma com o que temos vivenciado hoje. construção. E, neste momento, há mui-
Comissão Técnica atualizada com os mé- Vivemos, a meu ver, uma era na qual te- tas pedras no caminho. •
todos de treinamento. mos supervalorização do técnico, com os redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
DRAUZIO VARELLA
Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento
da Aids no Brasil. É autor, entre outras obras, de Estação
Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção em 2000

Sociedade da fadiga

ajuda decisiva de um comprimido, que as ba de publicar um estudo conduzido pe-


► A sensação de cansaço tornará dependentes dele para sempre. lo US National Institute of Neurological
generalizado está entre as Nesse contexto, surgiu um quadro Disorders que procurou desvendar as
que recebeu o nome de síndrome da fa- raízes biológicas da EM/SFC.
queixas mais frequentes diga crônica, cuja característica princi- Depois de uma série exaustiva de exa-
nos consultórios e tem pal é a de que o cansaço costuma insta- mes laboratoriais e de imagem a que foi
um nome: síndrome lar-se depois de infecções causadas por submetido um grupo de pacientes, os auto-
vírus ou bactérias. res verificaram que a ressonância magné-
da fadiga crônica A dificuldade de separar os sintomas tica funcional revelou atividade diminuí-
de fadiga intensa e arrastada manifesta- da em áreas cerebrais que controlam os
dos nessa síndrome daqueles associados movimentos, entre outras funções. Con-

A
s queixas sobre o cansaço exa- ao estilo de vida atual fez com que mui- cluíram, então, que têm origem nessas re-
gerado tornam-se cada vez tos médicos duvidassem da existência da giões sinais de alerta para evitar ativida-
mais frequentes nos consul- síndrome, deixando pacientes desampa- de física. Não há nada errado com os mús-
tórios médicos. A agitação nos grandes rados e confusos. culos: MS/SFC é uma doença do cérebro.
centros urbanos explica a maioria dos Os pacientes apresentaram, entre ou-
casos. Comparado ao ritmo de vida do Imagine que você se queixe de que, tros achados, frequência cardíaca aumen-
passado, o atual é alucinante. A quanti- depois de um episódio gripal, começou tada, hipotensão postural e precisam de
dade de trabalho e de compromissos diá- a sentir um cansaço estranho que persis- mais tempo para que a pressão arterial re-
rios que somos obrigados a cumprir exi- te por semanas ou meses. E que, depois torne a valores normais depois do exercício.
ge esforços e equilíbrio psicológico que de visitar três ou quatro profissionais que Nos linfócitos T presentes no li-
não encontram paralelo, em tempos de solicitaram diversos exames, concluí- quor há aumento na concentração da
paz, nas gerações que nos precederam. ram que se trata apenas de estresse ou proteína PD-1, envolvida na resposta
Para agravar a situação, a tecnologia, de “problemas psicológicos” – nada que imunológica. É como se o organismo
que criou e-mails, redes sociais e levou um período de férias não possa resolver. estivesse combatendo um patógeno
à onipresença dos celulares nos força a A ausência de testes laboratoriais invasor, que os estudos até agora não
permanecer online durante todo o pe- capazes de confirmar o diagnóstico ou conseguiram encontrar.
ríodo de vigília. Não existe experiência afastá-lo manteve a síndrome numa es- A medicina tem muita dificuldade
prévia na história da humanidade de pes- pécie de limbo científico. A falta de cri- de lidar com doenças que não podem
soas submetidas a tantas solicitações si- térios para identificá-la e caracterizar ser diagnosticadas com testes laborato-
multâneas quanto nós. sua fisiopatologia explica o desinteres- riais, imagens ou outros achados objeti-
O estresse associado a esse estilo de se de pesquisadores e da indústria far- vos. Quando as queixas não podem ser
vida tem repercussões físicas e men- macêutica na descoberta de medica- confirmadas por exames, a tendência é
tais que atormentam a existência dos mentos específicos para tratar fadiga atribuí-las a “fatores psicológicos” – al-
que passam os dias nessa roda-viva, se- tão incapacitante. go que, no geral, leva os pacientes a sentir
jam mulheres, sejam homens ou crian- Estudos mais recentes, no entanto, de- culpa pelos males que os afligem.
ças. Transtornos psiquiátricos como de- monstraram que se trata de uma patolo- MS/SFC é uma doença neurológica
pressão e ansiedade generalizada adqui- gia complexa, com implicações neuroló- com implicações imunológicas que só
riram características epidêmicas. gicas e imunológicas que vão muito além agora começam a ser entendidas. Ainda
O ato de fechar os olhos e pegar no sono do cansaço que domina o quadro clíni- não dispomos de tratamentos para ali-
todas as noites, como os demais mamífe- co. Por isso, deve ser chamada de ence- viar o sofrimento dos pacientes, mas, pe-
B A P T I S TÃ O

ros, virou um desafio diário para gran- falomielite miálgica/síndrome da fadi- lo menos, eles não precisam achar que a
de número de pessoas, muitas das quais ga crônica (EM/SFC). causa está em seu psiquismo. •
só conseguem se acalmar na cama com a A revista Nature Communications aca- redacao@cartacapital.com.br

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