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ESPECIAL MAIOR POLO DE MINO CARTA A ERA DE PELÉ

ENERGIA RENOVÁVEL, O NORDESTE TERMINOU FAZ TEMPO, SOBROU O


ESTÁ PRONTO PARA LIDERAR A FUTEBOL PATÉTICO NA GRITARIA DE
NEOINDUSTRIALIZAÇÃO DO PAÍS TORCEDORES EM VEZ DE JORNALISTAS

O CRIME
AGRADECE
20 DE DEZEMBRO DE 2023
ANO XXIX N° 1290 R$ 31,90

A CIRCULAÇÃO INDISCRIMINADA DE ARMAS,


OBRA DE BOLSONARO, ABASTECE O SUBMUNDO.
E O BRASIL É CAMPEÃO MUNDIAL DE HOMICÍDIOS
ENERGIA PARA LIDERAR UMA

TRANSIÇÃO
ENERGÉTICA JUSTA.

Há 70 anos, a inovação tecnológica tem sido


a base para o pioneirismo da Petrobras. E é através
da inovação que estamos criando formas de avançar
na descarbonização. Nos próximos 5 anos,
vamos investir em torno de 11,5 bilhões de dólares
em projetos de baixo carbono. Já temos o maior
programa de reinjeção de CO² offshore do mundo
e até 2050 planejamos neutralizar todas as nossas
emissões operacionais de carbono. É assim
que estamos nos preparando para liderar
uma transição energética justa, construindo
um futuro melhor sem deixar de garantir
a energia que o Brasil precisa no presente.

PETROBRAS 70 ANOS
O BRASIL É A NOSSA ENERGIA.
12/11/23 11:36 AM
20 DE DEZEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1290

Os palestinos
de Khan Younes
sentem o cheiro
da morte. Pág. 46

8 A SEMANA

Ensaio
Economia
A nova
26 D E S E N V O LV I M E N T O
Plural
No país do
12 M I N O C A R TA
política industrial foca em
missões e não em setores
PRESENTE
carnaval e do futebol, específicos da economia
APOCALÍPTICO
a maioria se deixa iludir
30 A N Á L I S E A sabedoria
NA MIRA
por qualquer coisa
tosca que tenta imobilizar FORTALECIDO PELA NA TRAMA O MUNDO DEPOIS DE NÓS,
o governo Lula só sabe FARRA DAS ARMAS DE RUMAAN ALAM EXPÕE A DEPENDÊNCIA
A HM A D H ASA BA L L A H /GE T T Y IM AGES/A FP E NE T FLIX

Seu País conjugar o verbo cortar BOLSONARO, O CRIME TECNOLÓGICA E O CONSUMISMO


A Agência
22 A B I N
Brasileira de Inteligência ORGANIZADO MANTÉM 53 A F O N S I N H O 54 L I V R O S O corpo visto como
passa por ampla Nosso Mundo A SOCIEDADE REFÉM obsoleto 56 E S P O R T E O cineasta Thierry
reestruturação para Frémaux relata, em biografia, sua trajetória
46 G A Z A O desespero toma
deixar de combater o nos tatames 58 C H A R G E Por Venes Caitano
conta dos moradores de
“inimigo interno” e atuar Khan Younes, o próximo
na defesa da democracia alvo do exército israelense ESPECIAL NORDESTE
Como os
48 M I G R A Ç Ã O A REGIÃO DESPONTA NA LIDERANÇA DA
EUA e a Europa se valem TRANSIÇÃO ENERGÉTICA E PODE SER O MOTOR
Capa: Pilar Velloso. de países pobres para DA REINDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA Pág. 33
Fotos : iStockphoto “realocar” os indesejáveis

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4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) em conta a importância de se estar pre-
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva sente para se ter voz. Os produtores de
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
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FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub Não fosse a ação do cartel, o petróleo
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Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
poderia estar bem mais barato.
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Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
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Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., A SAÚDE QUE QUEREMOS
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, Sempre falamos mais de doença
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo do que de saúde. A saúde
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
depende do cenário ecológico, da rela-
CARTA ONLINE ção sociedade-natureza, da base tec-
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira nológica dos processos de trabalho e
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Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana preender o processo saúde-doença é
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) A Arábia Saudita, na figura do
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura fundamental para formular políticas
seu príncipe, Mohamed Bin
REDES SOCIAIS: Caio César públicas para combater os principais
SITE: www.cartacapital.com.br Salman, não é confiável. Nos países
agravos que incidem sobre as pessoas.
árabes existem poucos príncipes com
Rosa Carmina
todos os privilégios, enquanto a maio-
ria esmagadora do seu povo não tem
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
direito algum. O petróleo é nosso, mas
MÃO NA CUMBUCA
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a saúde da terra e o futuro da humani- Por que não adotam de uma vez
PUBLISHER: Manuela Carta dade estão sendo traçados por esses o regime parlamentarista? O
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene Congresso chegou ao ponto de definir
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo cavaleiros do Apocalipse que só que-
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
rem dinheiro. O mundo precisa urgen- o que fica nos ministérios. O Legislati-
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo vo está forte demais, a ponto de se so-
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios temente diminuir a emissão dos com-
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
bustíveis fósseis. Lula e os demais líde- brepor aos outros dois poderes.
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Sylvio Laurandi
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REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: a redução de poluentes deveriam sair
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
da COP28 com o compromisso de já MILEI RASGA A FANTASIA
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BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto, estabelecer a troca imediata do petró- O que levou a maioria dos
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br argentinos a votar em um sujeito
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267, leo pelas chamadas energias limpas.
agholanda@Agholanda.com.br Paulo Sérgio Cordeiro caricato como Milei foram as mesmas
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com razões que asseguraram a vitória de
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MIRAGEM NO DESERTO Bolsonaro em 2018: o desalento e a
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda. A transição energética para uma falta de esperança no sistema, ou na
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001.
economia verde e menos carboni- “casta política”, como queiram.
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555
zada levará um bom tempo, a ser medi- Com o tempo, a realidade sempre se
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para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel
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de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
às mudanças climáticas extremas. O Marcel da Silva
acordo com a Lei de Imprensa.
Brasil está desempenhando um bom pa-
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP pel nessa área, mas somente o ataque A decisão de Lula de não compa-
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) recer e enviar um representante
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
aos bolsos sensibiliza os que possuem
as reservas de petróleo. A Idade da Pe- à posse de Milei é correta do ponto de
dra não acabou por falta de pedras. vista moral e político. A presença não
Adilson Gonçalves se justificaria depois dos baixos insul-
tos proferidos na campanha eleitoral
CLUBE DO PETRÓLEO pelo expoente da extrema-direita ar-
As críticas à adesão do Brasil à gentina ao presidente brasileiro.
Opep+ são parciais, não levam Sylvio Belém

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C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 5
A Semana
Justiça/ Dino
Justiça pela metade

aprovado
Na noite da terça-feira 12,
Caio Silva de Souza foi
condenado a 12 anos
de prisão pela morte do Temos um novo
cinegrafista Santiago
ministro no Supremo
Andrade durante uma das
manifestações no Rio de
Janeiro em 2014 insufladas
pela campanha “Não Vai

O
placar estava definido antes da sa-
Ter Copa”. Fábio Raposo
Barbosa, o outro réu, acabou batina. Flávio Dino recebeu 47 vo-
absolvido. Andrade, a serviço tos, seis além dos 41 necessários,
da TV Band, foi atingido e ocupará a vaga deixada por Rosa
na cabeça por um rojão Weber no Supremo Tribunal Federal. O ritu-
enquanto registrava imagens
al de perguntas e respostas na Comissão de
dos protestos na Central do
Brasil. Os jurados, cinco Constituição e Justiça antes da decisão, du-
homens e duas mulheres, rante quase 12 horas, só serviu para reafir-
concluíram que não houve mar a superioridade moral, ética e, sobretu-
intenção de matar. A sentença do, intelectual do sabatinado em comparação
de Souza, responsável por
com a tropa de choque de senadores bolsona-
acender o rojão, refere-se
ao crime de lesão corporal ristas. O rol dos questionamentos a Dino foi O sabatinado esquivou-se das
um espetáculo à parte e, como certa vez dis- provocações bolsonaristas
seguida de morte.
se Roberto Jefferson, capaz de despertar os
instintos mais primitivos em um ser humano da sabatina: produzir vídeos para animar
agraciado com mais de dois neurônios. Vergo- sua base de eleitores. É preciso concordar
nha alheia, espanto, pena, desânimo... Mas, se com Gilmar Mendes. O Senado abriga figuras
a intenção era constranger o agora ex-minis- liliputianas. Por falar em Mendes, seu protégé,
tro da Justiça, os bolsonaristas deram com os Paulo Gonet Branco, indicado à Procurado-
burros n’água. Dino esquivou-se da polêmica ria-Geral da República, teve vida mais fácil.
e impediu a tropa de atingir o único objetivo Acabou aprovado por 65 votos.

Alagoas/ CAI-NÃO-CAI
PROSSEGUE O IMPASSE EM TORNO DA MINA DA BRASKEM

Em mais um capítulo da tragé- ria de todos que moraram e área caberá exclusivamente” à
dia provocada pelo afunda- têm história nesses bairros empresa, que garante ter ado-
mento de cinco bairros em perversamente atingidos pelo tado “medidas para limpeza,
Maceió erguidos sobre uma crime” da companhia. A conservação, controle de pra-
mina explorada pela Braskem, Braskem, que há três anos se gas, segurança patrimonial,
o governo de Alagoas decidiu comprometera a pagar 1,7 bi- entre outras, sempre em coo-
desapropriar a área sob con- lhão de reais à prefeitura de peração com o Poder Público”.
trole da empresa. Os cerca de Maceió pelo terreno, respon- Após uma queda de braço en-
3 quilômetros quadrados se- deu em nota enviada à im- tre aliados do senador Renan
rão transformados em parque prensa que qualquer discus- Calheiros e do deputado
ambiental, garantiu o gover- são precisa esperar a defini- Arthur Lira, presidente da
nador Paulo Dantas, do MDB. ção do plano diretor do muni- Câmara, a CPI da Braskem no
A Braskem questiona Segundo Dantas, a medida foi cípio: “Em nenhum momento, Congresso deve ser instalada
a desapropriação da área tomada “em respeito à memó- a decisão sobre o futuro da nos próximos dias.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
20.12.23
Não dá para
fechar os olhos

Ultrapopulista

As primeiras medidas de Javier


Milei não fogem ao script
do populismo de direita. O
presidente argentino anunciou
a redução dos ministérios pela
metade, corte de quase metade
dos cargos de confiança,
o cancelamento de obras
públicas e a suspensão por ao
menos um ano da publicidade
oficial. São as típicas medidas
de “austeridade” que, no fim,
só geram o caos e facilitam
a captura do Estado por

Cidades/ Miséria nas calçadas


interesses inconfessáveis.
No dia seguinte, Luis Caputo,
ministro de Economia
População em situação de rua decuplica em uma década indicado pelo ex-presidente
Maurício Macri, anunciou
um choque de proporção
cavalar: maxidesvalorização

T
em dificuldade em entender o zes. Os 21,9 mil em 2013 viraram 227,1 mil
do peso, aumento de impostos,
efeito prático da irresponsabi- em agosto deste ano. Do total, 70% são ne- liberação das importações
lidade política e do golpismo? gros e 87%, homens com idade média de 41 e eliminação dos subsídios
Basta olhar para as esquinas nas anos. Na segunda-feira 11, o governo federal a alimentos e transportes.
grandes e médias cidades. Os erros na eco- anunciou 982 milhões de reais para a im- O pacote, elogiado pelo
FMI, levou a uma corrida de
nomia, a sabotagem do País, o impeachment plementação da Política Nacional para a Po-
remarcação de preços e não
de Dilma Rousseff, a Operação Lava Jato e a pulação em Situação de Rua. No mesmo dia, há mais teto para a inflação,
subsequente eleição de Jair Bolsonaro pro- o Palácio do Planalto regulamentou a Lei hoje em 143% ao ano. Adendo:
duziram uma catástrofe social. Em uma dé- Padre Júlio Lancelotti, contra o uso da “ar- no purgatório de Milei só há
cada, revela levantamento do Instituto de quitetura hostil”, como estruturas pontia- espaço para pobres e a classe
média. A irmã ganhou uma
Pesquisa Econômica Aplicada, a população gudas, destinada a afastar quem dorme nas
boquinha no governo.
em situação de rua aumentou quase dez ve- calçadas, viadutos e afins.
P R E S I D Ê N C I A D A V E N E Z U E L A , D E F E S A C I V I L / G O VA L , E D I L S O N

América do Sul/ DIÁLOGO SOBRE O NADA


RODRIGUES/AG. SEN A DO E UBIR A JA R A M ACH A DO/MDS

VENEZUELA E GUIANA ACEITAM DISCUTIR O CONFLITO EM ESSEQUIBO

Na quinta-feira 14, após o fe- dente esperar grande coisa logo”, anotou em um trecho da
chamento desta edição, do encontro, dado o clima de carta enviada ao governo de
Nicolás Maduro, presidente tensão provocado pelo refe- São Vicente, na qual confirma
da Venezuela, e Irfaan Ali, ho- rendo venezuelano a favor da sua participação no evento.
mônimo da Guiana, se reuni- anexação do território, reivin- Em outra parte, reclama, po-
rão em São Vicente e Grana- dicado há séculos por rém, da interferência norte-
dinas, no Caribe, para discutir Caracas, e pelo anúncio de -americana e reafirma o “direi-
o controle da região de Esse- um exercício militar dos Esta- to legítimo” da Venezuela so-
quibo. Celso Amorim, ex- dos Unidos em conjunto com bre Essequibo. A área reivin-
-chanceler e assessor espe- as forças da Guiana. Maduro dicada corresponde a 70%
cial para Assuntos Internacio- deu declarações ambíguas do território da Guiana e tor-
nais, representará o Brasil co- antes da reunião. “Nossa po- nou-se cobiçada pelas recen- Maduro ficará na bravata
mo observador. Não é pru- sição sempre foi a via de diá- tes descobertas de petróleo. ou irá às vias de fato?

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 9
Ensaio

O futebol perdeu
sua magia
Na voz dos locutores, torcedores em vez de jornalistas,
o esporte às vezes torna-se patético
P O R M I N O C A R TA

Q
uando, ainda ado- rar o anel de doutor, “para não dar o que pelo sonho de um campeonato mundial
lescente, cheguei falar”. E em lugar de chá com torradas de futebol. E esta era a paixão de todos.
ao Brasil, disse- tomou goles de cachaça, vestiu uma ca- Em termos de balípodo, avassaladora
ram-me que este misa listrada e saiu por aí. Em todo ca- era a rivalidade entre Rio e São Pau-
era o país do carna- so, sorria quando o povo dizia “sossega lo. Quando do primeiro campeonato
val e do futebol. As- leão”. Para melhor entendimento da fi- mundial disputado no Brasil, em 1950,
sim, decidi fundir o gura, colocara um canivete no cinto e o treinador Flávio Costa escalava times
folião e o torcedor carregava um pandeiro na mão. diferentes, caso a partida fosse disputa-
em uma única personagem. Antes de Logo também percebi que o Brasil, da em São Paulo ou no Rio, e o problema
cair na gandaia, o cidadão cuidara de ti- de um canto a outro, se deixava tomar central residia na linha média. A paulis-

Fatal gol de Ghiggia... ... e o time campeão na Suécia

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
A R Q U I V O / P O P P E R F O T O - A F P, B I L D T T N E W S / A F P E A F P / A R Q U I V O

O time perfeito: zagueiro italiano é 25 centímetros mais alto que Pelé, mas é o primeiro gol do 4 a 1

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 13
Ensaio

ta, formada por Bauer, Rui e Noronha, e Blatter, especialista em impedir Resta este sentimento, misto de afir-
a vitória dos adversários
a carioca, por Eli, Danilo e Bigode. O fa- mação e redenção, a brotar naturalmen-
tal gol de Ghiggia, o matreiro ponta-di- te da alma nativa. Sempre chega a ho-
reita da seleção uruguaia, depois de dri- ra de mostrar, de forma mais vigorosa
blar Bigode, silenciou a torcida do Oia- triunfo de 1970 contra a seleção italia- e transparente, de que lado estamos.
poque ao Chuí, enquanto no estádio lo- na, com a contagem de um irretorquí- Exemplar deste ponto de vista é o com-
tado circulava a imagem da seleção bra- vel 4 a 1, em Guadalajara, no México. portamento da nossa mídia esportiva,
sileira campeã do mundo. Infelizmente, a federação mundial integrada por torcedores em vez de jor-
estava nas mãos de João Havelange e nalistas, todos dotados da convicção ir-

D
iga-se que o Uruguai vinha seu então genro Ricardo Teixeira, es- remediável de que tanta paixão há de ser
com um time de todo res- pecializados, entre outras característi- gritada a plenos pulmões. A bem da ver-
peito, com destaque para cas, em impedir vitórias de adversários dade, estava no ar há um bom tempo a li-
o meio-campista Obdulio em condições de dificultar a ascensão ção de Bela Guttmann, ex-jogador e téc-
Varela e o meia-armador Schiaffino, do Brasil. Contaram com a contribui- nico de origem húngara. Esteve no Bra-
sem contar a firmeza do veterano golei- ção de um mestre na matéria, o suíço sil para mostrar o quanto é prejudicial o
ro Maspoli. O desastre abalou por de- Joseph Blatter, todos unidos, firmemen- tolo ufanismo que, inevitavelmente, nos
mais o país de 70 milhões de habitan- te, quando a tramoia já havia sido selada. devolve ao passado. Guttmann foi trei-
tes, que via no futebol a prova de uma Quanto à minha adequação à paixão na- nador do São Paulo, em 1957, e apontou
grandeza sempre almejada. A mudan- tiva, ao pousar no país do futebol, de sa- a conveniência de se buscar o exemplo
ça básica se dá com a chegada de Pelé e ída esmerei-me na prática de chutar as do futebol europeu, ainda determinan-
uma série de vitórias, completada pelo latas surgidas em meu caminho. te dos melhores resultados.

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Ricardo Teixeira e João Havelange
confirmam a sua celerada parceria
W I LT O N J Ú N I O R / E S TA D Ã O C O N T E Ú D O, S L B E R O B E R T K N O S O W S K I /A P

Aos desastres provocados pelo trei-


nador Tite juntam-se as atuações co-
mandadas pela atual gestão para re-
legar o futebol brasileiro a um estágio
francamente primitivo, como se tudo
tivesse de ser reiniciado para justificar
alguma esperança em relação ao futuro.
Os nossos campeonatos, os regionais e o
Brasileirão, embora acompanhados com
fervor pela cobertura exaustiva dos co-
mentaristas e das mesas-redondas, não
apontam para progresso algum. A vibra-
ção dos locutores é patética e patético é
também o próprio futebol atual, pratica-
do diante de plateias dispostas a se dei-
xarem iludir, esquecidas dos sentimen-
Bela Guttmann conhecia o caminho das pedras tos que outrora as tomavam. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 15
R EPORTAGEM DE CA PA

Fogo cruzado
FORTALECIDO PELA FARRA DAS ARMAS NOS ANOS BOLSONARO,
O CRIME ORGANIZADO TORNOU-SE A PRINCIPAL PREOCUPAÇÃO
DA SOCIEDADE E A MAIOR DOR DE CABEÇA DO GOVERNO LULA

por M A R I A NA SER A FINI E M AU R ÍCIO THUSWOHL

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Q
uem vive no Brasil deadas nos últimos três anos. Realizada Segurança Pública (FBSP). Estudos mos-
tem quatro vezes no Paraguai, com apoio local da Secreta- tram que a maior parte das armas utili-
mais motivos para ria Nacional Antidrogas e do Ministério zadas em homicídios é de fabricação na-
comemorar o fato Público paraguaios, a Operação Dakovo cional, o que contradiz a ideia de que elas
de não ter sido as- resultou na prisão de cinco suspeitos no sejam contrabandeadas para o Brasil. “A
sassinado do que Brasil e outros 14 no país vizinho, mas principal arma utilizada no Brasil nas úl-
a média dos habi- Dirísio permanece foragido. Segundo a timas décadas tem sido o revólver calibre
tantes do planeta. PF, foram apreendidos 2.325 armamen- 38 de fabricação nacional. São armas que
Segundo o Estudo tos nesta primeira fase, e ainda restam a entraram em circulação antes da vigência
Global sobre Homicídios de 2023, divul- ser cumpridos 31 mandados de prisão e do Estatuto do Desarmamento. Foram le-
gado pelas Nações Unidas no início de de- 54 mandados de busca e apreensão nos galmente adquiridas, mas entraram no
zembro, o País registra 22,38 homicídios dois países e também nos EUA. mercado ilegal devido à falta de regulari-
para cada 100 mil habitantes, proporção As investigações apontam que a Auto zação, furtos, roubos e extravios por em-
semelhante à de uma guerra e quase qua- Supply, empresa montada por Dirísio no presas de segurança privada, delegacias e
tro vezes maior do que a média global, de Paraguai, importou, entre 2020 e 2023, até quartéis militares”, diz o especialista.
5,8. Em números absolutos, o Brasil lide- uma média de 15 mil fuzis e pistolas por

A
ra o ranking de assassinatos em um único ano de países como Croácia, Eslovênia e s armas às vezes surgem
ano nesta década. Sob o impacto da “cor- Turquia, entre outros. As armas tinham de lugares inusitados.
rida armamentista” promovida pelo go- suas numerações raspadas em Assunção Em outubro, a PF desba-
verno de Jair Bolsonaro, 47.722 mortes e, após receberem logotipos falsos de ou- ratou uma linha de mon-
violentas foram registradas em 2020. tras marcas, seguiam para o Brasil em um tagem clandestina de fu-
Outra pesquisa, divulgada pela Quaest negócio que, segundo a PF, movimentou zis que funcionava dentro de uma fábrica
e a UFMG, revela que mais da metade da 1,2 bilhão de reais no período. Puxar o fio de móveis e esquadrias de alumínio em
população brasileira (51%) já foi vítima desse novelo, ou “seguir o dinheiro”, co- Belo Horizonte, a Manchester Indústria
de assalto, roubo ou furto em suas resi- mo deseja o Ministério da Justiça, será e Comércio, especializada em serviços de
dências ou locais de trabalho, em trans- um passo importante no combate ao co- solda. Os policiais chegaram ao endere-
portes públicos ou simplesmente ao an- mércio ilegal de armas no País. E também ço após a prisão, efetuada na véspera, do
dar pelas ruas. Tanto num caso como no um bom motivo para que apresentem re- dono da fábrica, Silas Diniz Carvalho, em
outro, os números podem ser explicados sultados a força-tarefa do Ministério da uma mansão no Rio, onde foram apreen-
pela grande circulação ilegal de armas de Justiça integrada por agentes do Conse- didos 47 fuzis, além de farta munição.
fogo no território nacional, assim como lho de Controle de Atividades Financei- Segundo o inquérito, todo o armamen-
pelo variado cardápio que alimenta tanto ras (Coaf) e o recém-criado, em parceria to apreendido havia sido comercializa-
o crime organizado, com armas de guer- com o governo do Rio de Janeiro, Comi- do com John Wallace Viana, o Johnny
ra ou de uso exclusivo das forças de segu- tê de Inteligência Financeira e Recupe- Bravo, chefe do tráfico de drogas na
rança, quanto o assaltante “comum” com ração de Ativos (Cifra). Rocinha, e estava prestes a ser remetido
armas de menor calibre. “A existência de grandes estoques de à favela carioca. Já na cidade mineira de
Promessa de campanha de Lula, o pla- armas de fogo em circulação tem um im- Contagem, onde Carvalho residia, foram
no de desarmamento registrou no pri- pacto muito grande no altíssimo núme- apreendidos peças de fuzis, munição, di-
meiro ano de governo alguns números e ro de homicídios”, atesta o pesquisador nheiro e joias, além de um Lamborghini
episódios marcantes. A ação de maior im- Roberto Uchoa, do Fórum Brasileiro de preto avaliado pela Receita Federal em 1
pacto efetuada pela Polícia Federal teve milhão de reais.
como alvo o esquema operado por Diego Líder habitual nos rankings nacionais
Hernán Dirísio, considerado o maior tra- de violência, o Rio de Janeiro não nega fo-
A CHANCE DE SER
ficante de armas da América do Sul. O ar- go, literalmente, nas estatísticas de 2023.
gentino é responsável, segundo os inves- ASSASSINADO NO Dados do Instituto de Segurança Públi-
tigadores brasileiros, por abastecer o Pri- BRASIL É QUATRO ca revelam que, até o fim de setembro, fo-
meiro Comando da Capital (PCC) e o Co- VEZES MAIOR DO ram apreendidas no estado 4.980 armas
ISTOCKPHOTO

mando Vermelho (CV), as duas maiores de fogo, entre elas 478 fuzis. Curiosa-
QUE NO MUNDO
facções do crime organizado no Brasil, mente, a repercussão do fato fez com que
com pelo menos 43 mil armas contraban- o ISP parasse de realizar a atualização

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 17
R EPORTAGEM DE CA PA

Os 47 fuzis apreendidos numa mansão da Barra


da Tijuca, no Rio, iriam para soldados de Johnny
Bravo, chefe do tráfico de drogas na Rocinha

mensal dos dados, mas apenas a apreen-


são realizada na mansão de Carvalho faz
com que essa conta supere os 500 fuzis
apreendidos em 2023, um recorde des-
de o início da medição histórica em 2007.
Segundo a Secretaria Nacional de Segu-
rança Pública (Senasp), também com
dados atualizados até o terceiro trimes-
tre, o top five dos fuzis é completado por
São Paulo (117 apreensões), Rio Grande
do Sul (63), Bahia (38) e Paraná (36).

O
Rio continuará a ser por rio com ninguém e não tem essa visão tão registrou seu recorde, marca que teria si-
“ um bom tempo o cen-
tro de difusão de fuzis
militarizada. Consequentemente, a polí-
cia de São Paulo também não usa fuzis tão
do evitada não fosse o episódio do sumiço
de 21 metralhadoras antiaéreas do Arse-
no Brasil”, observa o frequentemente como a polícia do Rio”. nal de Guerra em Barueri, na Grande São
sociólogo e especialis- Vítimas ou responsáveis em casos de Paulo. Dois meses após o crime, uma ação
ta em Segurança Pública Ignacio Cano, desvio de armas – de difícil quantifica- coordenada entre o Comando Militar do
PF-R J/D.R.E E DIEGO HERCUL A NO/A FP
R ED ES SO CI A IS, S EN A D/ PA R AG UA I,

da Universidade do Estado do Rio de ção, uma vez que os dados são forneci- Sudeste e a Polícia Civil conseguiu recu-
Janeiro. Ele diz que o crime no Rio “fun- dos pelos governos estaduais e não exis- perar 19 metralhadoras. Dez foram aban-
ciona sob a ótica do controle territorial” te uma checagem confiável –, as polícias donadas nas cercanias da favela Gardê-
e o uso de fuzis acontece para evitar a ganharam de vez, em 2023, a concorrên- nia Azul, em área de disputa entre mili-
invasão de grupos rivais: “É uma visão cia das Forças Armadas e dos chamados cianos e traficantes no Rio, e outras nove
militar, tanto por parte do crime organi- CACs (caçadores, atiradores desportivos foram localizadas em uma área de man-
zado quanto das forças de segurança. O e colecionadores de armas). Com 48 ocor- gue no município paulista de São Roque.
PCC, por exemplo, não tem tanta necessi- rências de desvio de armamentos ou mu- As investigações apontam que o des-
dade de fuzis porque não disputa territó- nições até outubro, o Exército também vio teria sido arquitetado por Jesser Fi-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
os casos de desvio tanto quanto o contra-
bando. E isso inclui armas particulares:
“São armas legais, em boa parte vendidas
a partir da liberação no governo Bolsona-
ro, mas que passaram rapidamente das
mãos de CACs ou mesmo de policiais e
militares para o crime organizado”.
Nunca tantas armas pertencentes a ci-
vis foram parar nas mãos de bandidos co-
mo em 2023. Até o fim de outubro, houve
o registro de 1.250 casos. A média mensal
deve superar os 130 casos, outro recor-
A Polícia Federal apreendeu mais de 2,3 mil peças de variados calibres com a quadrilha liderada
pelo argentino Diego Dirísio, considerado o maior traficante de armas da América do Sul
de. “Entre os avanços do primeiro ano
do governo Lula há que se destacar o de-
creto que regulamentou os CACs, instru-
mento vulgarizado na gestão anterior, o
que permitiu mais de 1 milhão de armas
circulando no País. Grande parte delas
caiu nas mãos de organizações crimino-
sas, em especial das milícias”, diz o ad-
vogado Marco Aurélio Carvalho, do Gru-
po Prerrogativas, coordenador do grupo
de trabalho sobre controle de armas na
transição de governo.

I
gnacio Cano avalia que, ao utili-
zar os CACs para difundir armas
na população de forma quase des-
controlada, o governo Bolsonaro
abriu uma janela que foi aprovei-
tada pelo crime organizado. “A farra dos
CACs foi limitada na atual gestão, as-
sim como foram reduzidas as condições
de acesso a armas e munições. Mas isso
ainda é insuficiente”, alerta. “As armas
delix, o Capixaba, apontado como forne- de atiradores deveriam ficar acauteladas
cedor de armas e drogas para as facções no próprio clube de tiro e só sair de lá ex-
criminosas do Rio. Segundo o Exército, cepcionalmente como, por exemplo, em
foi pedida à Justiça Militar a prisão de APENAS NO competições. Já os colecionadores deve-
seis militares que teriam sido responsá- RIO, FORAM riam ser absolutamente proibidos de ter
veis diretos pelo desvio das armas e ou- APREENDIDAS qualquer munição e suas armas de cole-
tros 17 serão responsabilizados na esfe- ção deveriam ser inutilizadas.”
ra administrativa. Comandante do Arse-
4.980 ARMAS Diretora-executiva do Instituto Sou da
nal de Guerra, o tentente-coronel Riveli- DE FOGO DE Paz, Carolina Ricardo avalia que as medi-
no Batista foi exonerado por ordem do co- JANEIRO A das tomadas até aqui pelo governo “veta-
mandante da Força, general Tomás Pai- SETEMBRO ram o ingresso de novas armas em circu-
va, e o inquérito continua em andamen- lação na velocidade que o País vivia antes”.
to. Para o especialista em questões de De-
DESTE ANO Pede, porém, avanços como a retomada de
fesa e historiador Francisco Carlos Tei- armas pelo PoderPúblico. “É preciso algo
xeira, da UFRJ, é importante investigar diferente da entrega voluntária, na qual

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 19
R EPORTAGEM DE CA PA

a pessoa vai lá e recebe apenas 300 reais.


Hoje, muitas pessoas têm armas avalia-
das em 15 mil ou 20 mil reais, então pre-
cisa haver um programa de recompra com
orçamento mais robusto.” Ela afirma que
será “muito ruim” se o governo não tiver
essa prioridade. “Essas armas vão fican-
do nas mãos das pessoas que as compra-
ram e que, possivelmente, não vão mais
conseguir usar ou renovar o registro.”
Outras medidas devem ser mais espe-
cíficas, propõe Roberto Uchoa. “O calibre
9 milímetros era de uso restrito das for-
ças de segurança até o governo Bolsona-
ro, mas passou a ser permitido e se tornou
a arma mais vendida no País, com cerca de
600 mil pistolas comercializadas. Agora,
voltou a restrição, mas é preciso dar uma
alternativa para que as pessoas entreguem
essas armas que estão em circulação”, diz
o conselheiro do FBSP. Uchoa propõe ain-
da que o governo acelere a migração dos
bancos de dados e do controle de armas
do Exército para a Polícia Federal: “Nos- Policiais encontraram um arsenal em uma fábrica clandestina de Belo Horizonte. Com Bolsonaro,
o número de revólveres, pistolas, rifles e fuzis em circulação saltou de 350 mil para 1,5 milhão
so mercado de armas de fogo dobrou de ta-
manho. Não basta a migração para a PF, é
preciso também dar estrutura e pessoal
para que se faça esse controle de forma
adequada. Não dá para continuar a ter uma
indústria armamentista fortíssima, uma
enorme quantidade de armas de fogo em
circulação e um índice de homicídios altís-
simo sem ter nenhum controle sobre isso”.

P
ara que o combate ao ar-
mamento ilegal e outras
iniciativas tenham sucesso PA U L O H .C A R VA L H O /A G Ê N C I A B R A S Í L I A E R E D E S S O C I A I S

ao fim do mandato de Lula,


Francisco Teixeira pede ur-
gência na aplicação de um programa na-
cional de segurança pública: “A ideia de
que, pelo fato de o Brasil ser uma federa-
ção, o governo federal tem pouco a con-
tribuir é uma falácia, um jogo de empur- tão de segurança cidadã: “Até agora, to- fim de 2022, esse número havia subido
ra entre os entes federativos. Há de se re- dos os planos apresentados são parciais”. para 1,5 milhão. Isso significa que ha-
conhecer que o crime de desvio, comércio No Brasil, até mesmo o mercado le- via mais armas circulando livremen-
e transação de armas é transfronteiriço gal de armas pede uma regulamenta- te nas mãos de civis do que com as for-
e, portanto, da alçada federal”. Ele ava- ção mais efetiva. Em 2018, quando Bol- ças de segurança, incluindo Exército e
lia que o governo não parece interessa- sonaro ganhou as eleições, o País tinha polícias. Em quatro anos, foram vendi-
do em se envolver diretamente na ques- cerca de 350 mil armas registradas. No dos mais de 900 milhões de munições,

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
cinco projéteis para cada brasileiro. restringe ao máximo a circulação de ar-
Na esteira desse mercado, a fabri- mas, pelo menos no plano da Lei, e a vei-
cante Taurus bateu recorde de vendas ATÉ OUTUBRO, culação dessas propagandas, que pautam
em 2022, quando sua receita aumentou 1.250 ARMAMENTOS a questão da autodefesa e apresentam as
47,4% em razão da crescente demanda DE CIVIS FORAM armas como alternativa de proteção pes-
doméstica. No ano passado, o lucro lí- soal, ferem esse princípio.”
quido da empresa foi de 295,8 milhões
PARAR NAS MÃOS A decisão da Justiça de São Paulo con-
de reais. O sucesso trilhou, porém, os ca- DE CRIMINOSOS tra a Taurus não é definitiva, e a advoga-
minhos da publicidade ilegal em peças da alerta: “Existem muitos efeitos dele-
produzidas para as redes sociais e o site térios, e é preciso reforçar o aspecto de
da empresa. Por entender que tais propa- mover as propagandas de armas e proi- ilegalidade nesse tipo de propaganda”.
gandas feriam a legislação, em especial o bida de promover esse tipo de conteúdo Amarílis ressalta que esses efeitos es-
Estatuto do Desarmamento e o Estatu- em locais não apropriados. O descumpri- tão relacionados, sobretudo, a crianças, à
to da Criança e do Adolescente, a Rede mento da sentença acarreta multa diária juventude negra e periférica e às mulhe-
Liberdade, em parceria com a Comissão de 100 mil reais. Para a diretora-execu- res. “Ao defender a supressão desse tipo
Arns, Idec, Intervozes e Coletivo Brasil tiva da Rede Liberdade, Amarílis Costa, de propaganda, não estamos tratando só
de Comunicação Social, acionou a Jus- as ações da empresa na internet podem da Taurus, mas de um comportamento
tiça paulista para tirar o conteúdo do ar. ser consideradas ilegais e abusivas e con- social, de uma pauta política de incenti-
Neste ano, a Taurus foi obrigada a re- figuram violação de direitos. “O Estado vo à aniquilação de vidas vulneráveis.” •

MULHERES NA MIRA
Metade dos feminicídios registrados de 2012
a 2020 foi praticada com armas de fogo

S
e o aumento da circula- rança Pública, mostra que, em
ção ilegal de armas 2022, mais de 3 milhões de
deixa a sociedade mais mulheres acima de 16 anos so-
insegura, para as mulheres o freram ameaça com arma de
cenário é ainda pior. Realiza- fogo ou faca. Quase 1 milhão a
do pelo Instituto Sou da Paz, mais que em 2020, quando um
o estudo “O Papel da Arma de estudo semelhante indicou 2,1
Fogo na Violência Contra a milhões de mulheres nessa
Mulher” mostra que, entre condição. Mais de 1 milhão de
2012 e 2020, metade dos mulheres foram vítimas de tiro
feminicídios no Brasil foi pra- ou esfaqueamento neste últi-
ticada com armas de fogo. E mo período.
os números não param de Em muitos casos, o inimigo
crescer: em 2020, houve au- mora dentro de casa. Em
mento de 5,6% em compara- 2020, uma em cada quatro
ção a 2019, com 1.920 mu- mulheres vítimas de violência
lheres vítimas fatais da vio- não letal com arma de fogo
lência armada. foi agredida pelo parceiro ou
As ameaças também estão ex-parceiro. Esse quadro se
mais graves. A pesquisa “Visí- agravou a partir de 2019,
vel e Invisível: A Vitimização de quando o Brasil passou a con-
Mulheres no Brasil”, realizada viver com mais armas nas
pelo Fórum Brasileiro de Segu- mãos de civis. O número de brasileiras vítimas da violência armada não para de crescer

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 21
Seu País

Um pouco de N
a quarta-feira 13, o presi-
dente Lula fez seu primei-
ro discurso à frente do
G-20, grupo das maiores

inteligência
economias do mundo, du-
rante uma reunião em Brasília dos prin-
cipais negociadores do bloco na área de fi-
nanças. Apesar de a pauta ser outra, Lula
voltou a defender um cessar-fogo perma-
SERVIÇO SECRETO Reformulada, a Abin nente entre Israel e o Hamas e a liberta-
A BIN E PEDRO FR A NÇA /AG. SEN A DO

ção dos reféns. Desde o início da guerra,


reforça a interação com outras áreas o governo trouxe para a casa, nas asas da
do governo e ganha novos objetivos FAB, 1,5 mil brasileiros retidos na zona do
conflito. A repatriação exigiu negociações
POR ANDRÉ BARROCAL delicadas em uma região complexa. Para
o governo conhecer ao máximo o terreno
e os atores políticos capazes de influen-
ciar a operação de resgate, a diplomacia
não parecia suficiente. A Agência Brasi-

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
A agência focará em dente nem a outros ministros aquilo que
saía da agência e contrariava o negacio-
defesa da democracia,
nismo do capitão. “Nosso maior desafio é
estudo das mudanças conscientizar os políticos, os tomadores
climáticas e promoção de decisão, da importância da análise da
da cibersegurança informação. Eles se satisfazem com infor-
mação rápida, rasteira”, afirma Corrêa.
Neste ano, a agência deixou de ser su-
bordinada a fardados e passou à aba da
leira de Inteligência entrou em cena, diz Casa Civil. Lula tinha um pé atrás com
seu diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa. os quartéis desde antes da eleição, dada
A Abin também ajudará o Palácio do a infiltração do bolsonarismo. A tentati-
Planalto durante a presidência rotativa va de golpe de 8 de janeiro empurrou-o a
do G-20, até novembro de 2024, mês em mudar o controle da Abin. Um ano, o de
que o bloco fará uma reunião de cúpula 2023, que começou com um episódio a sa-
no Rio de Janeiro. Lula elegeu o comba- lientar a necessidade de um serviço de in-
te à fome, às desigualdades e às mudan- teligência qualificado e que termina com
ças climáticas como bandeiras no perío- outro de significado similar, a tensão en-
do. Como cada país do bloco se posiciona tre a Venezuela e a Guiana. “É o cenário
nesses temas e se colocará diante de even- geopolítico mais difícil desde a crise dos
tuais propostas do Brasil? E no caso de cri- mísseis”, afirma Marco Cepik, diretor da
ses globais que podem surgir, ou persis- Escola de Inteligência da Abin. Uma aná-
tir até lá, como os conflitos em Gaza e na lise que leva em conta não só a disputa na
Ucrânia? São respostas que o serviço de vizinhança, mas entre Estados Unidos de
inteligência tem condições de antecipar, um lado e China e Rússia de outro. A “cri-
para contribuir com as posições de Lula. se dos mísseis” quase levou os EUA e a en-
tão União Soviética às vias de fato, e com
Os órgãos governamentais, teori- armas nucleares, em 1962, por causa de
za um agente da Abin, costumam dourar artefatos militares soviéticos em Cuba.
a pílula nas análises para o presidente “Não vejo um momento geopolítico tão
(qualquer um), por receio de contrariá-lo. complicado como agora”, reforça o coro-
A agência, prossegue, não: expõe de for- nel Túlio Marcos Santos Cerávolo, che-
ma nua e crua. Na pandemia, elaborou um fe da Escola de Inteligência do Exército.
relatório sobre a curva de mortes espe- Em 7 de dezembro, Cepik e Cerávolo
radas, outro que antevia a falta de oxigê- participaram de um seminário interna-
nio no Amazonas, um terceiro a apontar cional na sede da Abin, em Brasília, inti-
a inutilidade da cloroquina. Documen- tulado “Desafios para a Inteligência Es-
tos ignorados devido ao comportamen- tratégica”, com representantes de Ar-
to de Jair Bolsonaro e seus subordinados. gentina, Colômbia, Equador, Uruguai e
A Abin era então subordinada ao Gabine- Inglaterra. CartaCapital acompanhou o
te de Segurança Institucional, e o mili- evento, único meio de comunicação pre-
tarizado GSI não passava nem ao presi- sente. Dia de muito calor e de cuidados de
segurança. Os 250 participantes foram
levados da porta da agência ao auditório
em vans da anfitriã. A ninguém foi per-
NONONON

Confiança. Corrêa dirigiu a Polícia


Federal no segundo governo Lula mitido gravar ou fotografar as palestras.
e tem a missão de dar propósito à Abin Para Corrêa, o Brasil precisa de um

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 23
Seu País

serviço de inteligência à altura do peso


global do País. Segundo dados apresen-
tados por Cerávolo, apesar de estarmos
entre as 15 maiores economias e forças
militares do mundo, nosso investimen-
to em inteligência é o 54º. Corrêa coman-
dou a Polícia Federal no segundo manda-
to de Lula. Segundo ele, o presidente tem
hoje uma compreensão da necessidade de
um bom serviço de inteligência que não
tinha nos mandatos anteriores. Respal-
dada pela convicção lulista, a agência en-
corpa silenciosamente. Ao nomear Cor-
rêa, o presidente acertou que a Abin teria
três missões: defesa da democracia, estu-
do das mudanças climáticas e promoção
da cibersegurança. No primeiro quesito,
uma nova “doutrina” lançada no início de
dezembro, espécie de manual sobre a ati-
vidade, descreve da seguinte maneira o
que seria “extremismo violento” (aque-
le visto em 8 de janeiro e nas ameaças de
ataques a escolas, por exemplo): “Refere-
-se ao planejamento, à preparação, à pro-
moção, ao financiamento e à execução de
atos violentos motivados por ideologias
extremistas que desrespeitam preceitos A Abin prestará sabe assim não se repetirá a bisbilhoti-
constitucionais fundamentais”. ce da NSA, a agência norte-americana
contas por meio de
de arapongagem, contra Dilma Rousseff
No início de 2024, a agência lançará um relatório anual e a Petrobras, em 2012. Para a platafor-
uma plataforma eletrônica de comunica- e será monitorada ma ficar pronta, falta dinheiro. A Co-
ção, novidade relevante para a cibersegu- por um conselho missão Mista de Controle das Ativida-
rança e o reforço da produção e da difusão de ministros des de Inteligência, composta de deputa-
de inteligência. Um espaço à prova, em te- dos e senadores, tenta reservar mais 35
se, de espiões, para contato entre os 49 milhões de reais do orçamento de 2024
órgãos integrantes do Sistema Brasileiro para a conclusão do trabalho.
de Inteligência, o Sisbin. Os relatórios da A criação da plataforma, sob a batuta
C A R L O S A LV E S M O U R A / S T F E T O N M O L I N A /A F P

Abin serão guardados ali. O acesso deixa- até hoje não ter recebido nenhum relató- da Abin, foi regulada por um decreto pre-
rá o registro de quem os acessou e quan- rio. De fato, não recebeu papel, tudo cir- sidencial de 6 de setembro, Dia do Profis-
do, uma maneira de descobrir “vazado- culou em grupo de “zap”. sional de Inteligência. A norma reorgani-
res”. O autor do documento poderá avisar, A plataforma da Abin terá um recurso zou o Sisbin, para torná-lo mais efetivo.
pelo ambiente virtual, quem presumi- de segurança igual ao WhatsApp. A cha- Os 49 integrantes foram classificados em
velmente tem interesse no conteúdo. As mada criptografia de ponta a ponta pro- quatro categorias, a fim de demarcar as
duas partes poderão conversar via plata- tege uma mensagem no caminho per- atribuições de cada um e definir critérios
forma. Recorde-se: havia alertas da Abin corrido por ela (só a ponta emissora e a para orientar a futura difusão das análi-
de algo sério a caminho no 8 de janeiro, ponta destinatária conseguem ver). Por ses de inteligência. Os estados passam a
mas foram distribuídos via WhatsApp, essa razão, a plataforma estará a servi- ser integrantes oficiais. A Abin continua
sem formalidade. O ex-chefe do GSI, ge- ço de Lula, caso ele queira usar para dis- no centro do sistema. E terá de prestar
neral Marco Edson Gonçalves Dias, diz cutir temas sensíveis no dia a dia. Quem contas por meio de relatório anual. Este

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
será destinado a uma novidade instituí- próximo ano, uma lei que crie varas ju-
da pelo decreto, o conselho ministerial do diciais especializadas em espionagem.
Sisbin, formado por cinco pastas (Justi- Um exemplo da necessidade é um espião
ça, Defesa, Casa Civil, Relações Exterio- russo preso na Holanda no ano passado
res e GSI) e pelo chefe da Abin. com passaporte brasileiro falso. Sergey
Em 7 de dezembro, dia do seminário in- Cherkasov foi deportado para cá, proces-
ternacional e do aniversário da Abin (cria- sado e condenado por falsidade ideológi-
da em 1999), outro decreto presidencial re- ca. Houvesse uma vara especializada em
definiu as estruturas internas da agência. espionagem, diz Corrêa, seria possível in-
Agora há quatro departamentos: de con- vestigar as atividades do espião.
trainteligência, de operações de inteligên-
cia, de inteligência interna e de inteligên- No seminário internacional, o profes-
cia externa. Esses dois últimos são novi- sor de Relações Internacionais Júlio Cé-
dades, surgem para substituir outros dois. sar Cossio Rodriguez, da Universidade
Nas atribuições da “inteligência interna” Federal de Santa Maria, contou que, dias
estão estudos sobre segurança pública, antes, dois acadêmicos russos estiveram
crime organizado, ilícitos ambientais e em na universidade gaúcha para conversar
terras indígenas. Neste ano, a Abin pro- sobre cooperação em engenharia aero-
duziu análises sobre o crime organizado espacial, área em que a UFSM tem um
na Bahia e sobre ocupantes ilegais de ter- curso de graduação. Segundo Rodriguez,
ras indígenas (no Pará, por exemplo, onde os visitantes pareciam estranhamente
houve uma operação do governo em outu- interessados na aplicação do conheci-
bro, por decisão da Justiça). O trabalho da mento do Brasil à indústria bélica russa.
“inteligência externa” servirá, entre ou- “Não podemos ser inocentes, mesmo nas
tras coisas, para o governo preparar-se universidades”, afirmou o palestrante,
para questões e negociações internacio- para quem o Brasil é uma “potência re-
Monitoramento. Para evitar a
repetição dessa história, urge um
nais. É o que será feito em relação ao G-20. gional” que atrai luzes de norte-ameri-
sistema de comunicação eficiente No plano de reforçar a inteligência canos, chineses e russos.
e rastreável entre os órgãos públicos e a Abin, Corrêa quer do Congresso, no Em sua palestra, o coronel Cerávolo
apresentou sua tese de mestrado, con-
cluída no México neste ano, sobre co-
mo fortalecer a inteligência estratégica
no Brasil. Ele compara o Sisbin aos siste-
mas de EUA, França, Israel e Reino Uni-
do e aponta o que seria desejável replicar.
O modelo francês é o que tem mais carac-
terísticas interessantes. Conta com uma
Secretaria Geral de Defesa e Segurança
Nacional ligada diretamente ao presi-
dente. Andrea Cely, chefe da Escola de
Inteligência da DNI, a Abin colombiana,
comentou que a inteligência em seu país
está hoje a serviço dos direitos humanos
e das condições de vida. Não é uma tra-
dição, nem lá nem aqui, países marcados
por serviços obcecados pelo “inimigo in-
terno”, herança de governos autoritários.
A conferir se a nova a Abin não vai des-
cambar para velhos hábitos. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 25
Economia

O bonde
do futuro
DESENVOLVIMENTO A nova política
industrial substitui os “campeões
nacionais” por nichos ou missões
P O R C A R LO S D R U M M O N D

A
ntes do fim do ano, o recria- siva”, descreve a edição da newsletter de
do Conselho Nacional de dezembro do Conselho.
Desenvolvimento Indus- Com o investimento público encurra-
trial pretende entregar ao lado entre a pressão permanente do sis-
presidente Lula uma pro- tema financeiro para o corte de gastos e
posta para o setor. Segundo o CNDI, será investimento público e a voracidade ili-
o primeiro projeto abrangente desde a Po- mitada das emendas parlamentares, des-
lítica Industrial, Tecnológica e de Comér- vinculadas das prioridades públicas, se-
cio Exterior anunciada oito anos atrás. De ria ilusório esperar uma política indus-
modo semelhante às iniciativas anterio- trial ampla e profunda, mas vários eco-
res, a proposta procura organizar um con- nomistas reconhecem virtudes nas prin- BNDES e 21 representantes da sociedade
junto de ações, coordenadas entre os se- cipais diretrizes da chamada neoindus- civil, 16 deles oriundos de entidades in-
tores público e privado, para ampliar a trialização. “A grande diferença é o for- dustriais, três de centrais sindicais, um
competitividade da indústria doméstica e mato. Ele visa endereçar os grandes pro- da Embraer e um do Instituto de Estu-
impulsionar o crescimento econômico, o blemas da sociedade, em lugar de enca- dos para o Desenvolvimento Industrial.
emprego e o desenvolvimento, em sinto- minhar políticas setoriais. É óbvio que
nia com as tendências contemporâneas. setores importam, mas não definem as Presente ao lado do vice-presidente,
A nova política industrial traz, contu- prioridades”, esclarece Verena Hitner, Geraldo Alckmin, e do ministro da Ca-
do, diferenciais importantes em relação secretária-executiva do Conselho. O co- sa Civil, Rui Costa, na primeira reunião
às formulações precedentes. Além da in- legiado é formado por 20 ministérios, o do conselho, em junho, Lula deverá par-
dispensável vinculação à digitalização e ticipar do lançamento da nova proposta.
à descarbonização, há o objetivo de su- Neste semestre, foram criados grupos de
prir necessidades prementes da socie- trabalho vinculados a cada uma das mis-
dade. Outra novidade é a sua estrutura- Saúde, segurança sões, para identificar gargalos, e outros
ção segundo o conceito de missões, em dois grupos, um deles responsável por
alimentar,
lugar de setores econômicos. A nova po- coordenar ações de fomento e as linhas
lítica industrial “traça o caminho do de- infraestrutura e e os nichos considerados prioritários. “O
senvolvimento de uma indústria nacio- transformação digital presidente Lula, no fim da primeira reu-
nal forte, inovadora, sustentável e inclu- entre as prioridades nião, perguntou quais nichos industriais

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 30
NESTA Contas públicas.
SEÇÃO Só se repete o mantra
“corta, corta, corta”

o País quer desenvolver. Um pouco pen- Missões. Lula, Alckmin e Costa participaram da primeira reunião do CNDI.
sando na resposta a essa pergunta, cria- O complexo econômico-industrial da saúde será um dos setores estimulados
mos esse grupo, aproveitando o momen-
to em que o Congresso aprovou a taxa de
RICA RD O ST U CK ERT/ P R E P E T ER IL ICCIE V/ FIO CRUZ IM AG ENS

referência tanto para a Finep, a financia-


dora de projetos, quanto para o BNDES”,
ressalta a secretária-executiva.
A primeira das seis missões de políti-
ca industrial é constituir cadeias indus-
triais sustentáveis e digitais para a segu-
rança alimentar, nutricional e energéti-
ca. A segunda é consolidar um complexo
econômico e industrial da saúde resilien-
te, para reduzir a vulnerabilidade do SUS
em relação ao suprimento externo e am-
pliar o acesso à saúde. A terceira abran-
ge infraestrutura, saneamento, mora-
dia e mobilidade sustentáveis para inte-
gração produtiva e o bem-estar nas cida-

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 27
Economia

des. A quarta é a transformação digital Entre a pressão brasileira, contar com volumes e recursos
da indústria para ampliar a produtivida- proporcionais aos daqueles países é
de, e a quinta está centrada na bioecono-
do setor financeiro impossível. O economista acredita,
mia, descarbonização, transição e segu- e a voracidade do contudo, que há uma mobilização
rança energética para garantir recursos Congresso, seria “bastante inteligente” de recursos em
às próximas gerações. A sexta missão vi- ilusório esperar patamares não desprezíveis para a
sa o desenvolvimento das tecnologias de uma política política industrial. Há uma leitura de que
interesse da soberania e defesa. Para ca- ampla e profunda uma parte importante dos programas
da missão estudam-se linhas de fomen- tem de ser feita por projetos que não ne-
to específicas, sempre a partir da lógica cessariamente passem pelo Congresso,
de promoção de direitos da sociedade. onde o risco de desconfiguração por ações
de lobbies é real. Aquele encaminhamen-
Um dos nichos prioritários tende a bem relacionadas. Política industrial é de to permite que os programas sejam mais
ser o Complexo Econômico-Industrial longo prazo, a economia tem de crescer, suscetíveis a avaliações técnicas e a per-
da Saúde, que une a promoção do di- mas não há crescimento nem transfor- durarem por um tempo mais longo.
reito do acesso à saúde ao desenvolvi- mação estrutural sem investimento, e a Um aspecto importante, diz Diegues,
mento de setores e nichos industriais, política industrial fica muito a reboque”, é o fato de os operadores da nova políti-
da produção de insumos farmacêuti- afirma Antônio Carlos Diegues, professor ca concordarem em colocar a inovação no
cos ativos a máquinas e equipamentos. do Instituto de Economia da Unicamp. centro do debate. “Isso esteve menos pre-
Um dos objetivos é assegurar a produ- É preciso entender, ressalta Diegues, sente, mesmo na Política Industrial, Tec-
ção no Brasil de ao menos 60% do supri- que a disputa de política industrial nológica e de Comércio Exterior, de 2004,
mento do SUS, que realiza compras gi- no mundo é muito forte, os volumes na Política de Desenvolvimento Produti-
gantes hoje abastecidas na maior parte utilizados pelos países situados na vo, de 2008, e no Plano Brasil Maior, de
por indústrias localizadas no exterior. fronteira tecnológica são gigantescos. 2011. Não há como manter um crescimen-
Em ações que concretizam as novas E neste momento, infelizmente, com to sustentável sem investimento associa-
orientações de política industrial, o Mi- a correlação de forças políticas atual e do à inovação e à renovação estrutural.”
nistério da Saúde abriu as consultas pú- dado o baixo crescimento da economia O Programa BNDES Mais Inovação –
blicas do Programa de Parcerias para o
Desenvolvimento Produtivo e o Progra-
ma de Desenvolvimento e Inovação Lo-
cal, que visam “expandir a produção na-
cional de itens prioritários para o SUS,
contribuir para a redução das vulnerabi-
lidades em saúde e viabilizar o acesso uni-
versal ao atendimento e aos cuidados com
a saúde”. Em novembro, foram lançados
cinco editais do programa Mais Inova-
ção Brasil, com linhas de financiamento
aprovadas pelo CNDI, voltadas ao finan-
ciamento de projetos de transição energé-
tica, bioeconomia, infraestrutura e mobi-
lidade, em um investimento total de 20,8
bilhões de reais, parte dos 60 bilhões de
reais do programa. “Vejo com bons olhos
a nova política industrial e as políticas de
neoindustrialização. Partem de um diag-
nóstico amplo e correto e, dentro do pos-
sível, estão concatenadas, começam a sair
do papel. Guardam nexos entre si, estão Mobilidade. Melhorar o transporte público e o bem-estar nas cidades

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Aquisição de Bens Inovadores, acrescen- tar os recursos para a neoindustrializa- Estoque. Garantir a segurança
ta, tem essa leitura, pois financia tecno- ção, é muito difícil, avalia Diegues. “O alimentar está entre os eixos,
ou missões, da nova política
logias e áreas, mas não necessariamen- que é possível, no atual contexto, é reto-
te grandes empresas de campeões nacio- mar marginalmente o crescimento. Is-
nais. “Financia as áreas mais nobres. Cla- so vai dando uma sustentabilidade polí-
ro que, na prática, vai acabar financian- tica maior para o governo e cria espaço neoindustrialização é importante porque
do as grandes empresas, mas esse dire- para gerar um circuito gasto-renda que ela leva em conta a desindustrialização an-
cionamento consegue contornar uma melhore um pouco as contas públicas.” terior, mas entende que há coisas que se
resistência grande da sociedade em re- perderam e que são difíceis de retomar, ou
lação a se financiarem os grandes cam- Diegues considera que os responsá- que não devem ser retomadas. É um re-
WENDERSON ARAÚJO/SISTEMA CNA/SENAR

peões nacionais, por conta de desdobra- veis pela formulação da política indus- conhecimento de que o mundo mudou.”
mentos da Operação Lava Jato.” Ao co- trial “entenderam bem” que reindustriali- O economista faz duas ressalvas. A pri-
locar essas atividades como de inovação, zação significa olhar para a desindustria- meira é de que o programa Brasil Mais
E BRT/MOBI/PREFEIT UR A DO RIO

prossegue, o governo consegue contornar lização brasileira e compreender os desa- Produtivo, bem-sucedido, precisa ser
as limitações quanto às taxas de juro dos fios da transformação do paradigma tec- “consideravelmente ampliado”, ter es-
empréstimos do BNDES. Financiamento noprodutivo atual e da evolução da fron- cala, aumentar a produtividade e a ino-
para inovação pode ter juros mais baixos, teira tecnológica, associadas à indústria vação nas pequenas e médias empresas.
uma estratégia “bastante inteligente”. 4.0, assim como a necessidade de se ter re- A segunda é de que o investimento para
Escapar do cerco do sistema finan- siliência nas cadeias produtivas estratégi- bens de capital deveria, a seu ver, ser mais
ceiro e do Congresso, dominado por in- cas, como aquelas da saúde e de energia, incentivado no sentido até de isenção tri-
teresses individuais, de modo a aumen- entre outras. “Acho também que a ideia de butária para máquinas e equipamentos. •

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Economia

A economia do
da mais importante, nossa renda provém
principalmente de vender coisas uns aos
outros. Seu gasto é a minha renda e meu

mercadismo
gasto é a sua renda. Assim, o que aconte-
ce se todo mundo reduzir gastos simul-
taneamente, a fim de reduzir suas dívi-
das? Resposta: a renda cai”.
DÉFICIT FISCAL A sabedoria tosca
que tenta imobilizar o governo As insuficiências da concepção exara-
da por dona Neusa chegaram a tais absur-
Lula só conjuga o verbo cortar dos que suscitaram reações no ambien-
te ortodoxo. Ao tratar da austeridade, o
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO
estudo do FMI Neoliberalism: Oversold?
indica: a elevação de impostos ou do corte
de gastos para reduzir a dívida pode ter um

N
custo muito maior do que a mitigação do
a revista Veja, a senhora so do governo, cujo discurso de controle risco de crise prometido por sua redução. É
Neuza Sanches nos oferece de gasto ainda é visto com desconfian- preferível a eleição de políticas que permi-
uma obra-prima da sabedo- ça por boa parte do mercado financeiro”. tam a redução do porcentual da dívida, diz
ria econômica abrigada nos A mensagem é simples: se não há di- o FMI, “organicamente pelo crescimento”.
embornais dos merca- nheiro, corte seus gastos. A palavra rombo Segundo o estudo, as políticas de auste-
dos. Neuza informa os leitores: “O gover- é expelida no rosto do público como perdi- ridade não só geram substanciais custos
no de Luiz Inácio Lula da Silva prevê en- gotos contaminados pelos venenos criados ao bem-estar pelos canais da oferta, como
cerrar o primeiro ano de mandato com um nas retortas dos alquimistas do mercado. também deprimem a demanda e o empre-
rombo de 177,4 bilhões de reais nas con- Depois do Coronavírus, o neuronaví- go. A noção de que a consolidação do orça-
tas públicas, uma piora em relação à esti- rus tem revelado enorme potencial de mento pode ser expansionista (isto é, au-
mativa anterior e ainda longe da meta tra- letalidade intelectual. A opinião pública menta o crescimento e o emprego), por ele-
çada pelo ministro Fernando Haddad (Fa- tem sido submetida a um insidioso pro- var a confiança do setor privado e o inves-
zenda), de entregar um déficit de até 1% cesso de contaminação. Os especialis- timento, não se confirmou na prática. Na
do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023”. tas e os comentaristas da mídia repetem, média, a consolidação de 1% do PIB eleva a
Aqui vai a argumentação nuclear dos incansáveis, os mantras do corta, corta, taxa de desemprego em 0,6% no longo pra-
sabichões do Paleolítico: “ O déficit fis- corta. A tosca sabedoria dos mercados zo, e o coeficiente de Gini (concentração
cal pode resultar no aumento do desem- pretende imobilizar o governo Lula. de renda) em 1,5% dentro de cinco anos.
prego, já que o governo precisa economi- Paul Krugman ensinou em sua coluna Keynes encontrou a negação dessas
zar em algumas áreas para pagar os dé- do New York Times: “Uma economia não superstições no desempenho das econo-
bitos. Isso pode levar a uma redução na é uma família endividada. Nossa dívida mias centrais durante os 30 anos glorio-
oferta de trabalho e, consequentemen- (privada) consiste principalmente de di- sos do imediato pós-Guerra. Esse perío-
te, um aumento do desemprego. O défi- nheiro que devemos uns aos outros; ain- do foi marcado por uma virtuosa e estável
cit fiscal pode reduzir o Produto Interno relação entre gasto fiscal, endividamento
Bruto (PIB) do País, pois o governo preci- público e privado e taxas de crescimento.
sa economizar em áreas importantes de Esse arranjo favoreceu o crescimento dos
investimento para pagar os débitos. Isso Depois do coronavírus, lucros e dos salários reais, em consonân-
pode levar a uma redução no PIB. Enfim, cia com os ganhos de produtividade, ele-
não há milagres. Quem gasta mais do que
o neuronavírus tem vando as receitas fiscais dos governos e es-
recebe – todo assalariado sabe disso –, revelado enorme timulando o investimento das empresas.
fica devendo. E paga juros exorbitantes potencial de Os níveis de endividamento do setor
por essas dívidas. Não é diferente no ca- letalidade intelectual privado e do setor público, como propor-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ção do PIB, evoluíram satisfatoriamente provisada dos financistas que desempe- Alavanca. Entre as condições
porque as taxas de crescimento elevadas nham o papel de intermediários entre o financeiras e monetárias que
deflagraram a Revolução Industrial,
da renda das famílias, dos lucros das em- governo e a nação, e abstraindo também a
a dívida pública se destaca como
presas e das receitas fiscais dos governos classe dos coletores de impostos, comer- uma das forças mais poderosas
permitiam resultados positivos nos ba- ciantes e fabricantes privados, aos quais
lanços patrimoniais de empresas, famí- uma boa parcela de cada empréstimo esta-
lias e governos. tal serve como um capital caído do céu, a dí-
Um certo Karl Marx investigou o pa- vida pública impulsionou as sociedades por Não demorou muito para que esse di-
pel da dívida pública na criação das con- ações, o comércio com papéis negociáveis nheiro de crédito, fabricado pelo próprio
dições financeiras e monetárias que de- de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: banco, se convertesse na moeda com a
flagraram a Revolução Industrial. “A dí- o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia. qual o Banco da Inglaterra concedia em-
vida pública torna-se uma das alavan- préstimos ao Estado e, por conta desse úl-
cas mais poderosas da acumulação. Co- Desde seu nascimento, os grandes timo, pagava os juros da dívida pública.
mo com um toque de varinha mágica, ela bancos, condecorados com títulos na- Não lhe bastava dar com uma mão para re-
PIN T U R A : K A R L ED UA R D BIER M A N N ( 18 47 )

infunde força criadora ao dinheiro esté- cionais, não eram mais do que socieda- ceber mais com a outra: o banco, enquan-
ril e o transforma, assim, em capital... des de especuladores privados, que se to recebia, continuava como credor per-
Na realidade, os credores do Estado colocavam sob a guarda dos governos e, pétuo da nação até o último tostão adian-
não lhe dão nada, pois a soma empresta- graças aos privilégios recebidos, estavam tado. E assim ele se tornou, pouco a pouco,
da se converte em títulos da dívida, facil- em condições de emprestar-lhes dinhei- o receptáculo imprescindível dos tesou-
mente transferíveis, que, em suas mãos, ro. Por isso, a acumulação da dívida pú- ros metálicos do país e o centro de gravi-
continuam a funcionar como se fossem a blica não tem indicador mais infalível do tação de todo o crédito comercial. À mes-
mesma soma de dinheiro vivo. Porém, ain- que a alta sucessiva das ações desses ban- ma época em que, na Inglaterra, deixou-
da sem levarmos em conta a classe de ren- cos, cujo desenvolvimento pleno data da -se de queimar bruxas, começou-se a en-
tistas ociosos assim criada e a riqueza im- fundação do Banco da Inglaterra (1694). forcar falsificadores de notas bancárias. •

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CriaCast é o mais novo
podcast de CartaCapital!
A primeira temporada
já está no ar!
Confira no YouTube ou
ouça nas principais
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ESPECIALNORDESTE
Transição energética
e indústria verde
POR FABÍOLA MENDONÇA
PIL AR VELLOSO. FOTOS: ISTOCKPHOTO

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 33
Especial NORDESTE

BONS VENTOS
DESENVOLVIMENTO O Nordeste desponta na liderança da
transição energética e pode tornar-se o principal motor da
reindustrialização brasileira, agora em base sustentável

Top 10. Oito dos nove estados nordestinos figuram entre os maiores produtores de energia eólica do País. Quatro deles abrem o ranking

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
C
om sol o ano inteiro e uma combustíveis fósseis. Segundo o BNDES,
refrescante brisa a suavi- a política para a neoindustrialização do
zar o calor nas suas paradi- Autossuficiente em País coloca-se diante de dois grandes de-
síacas praias de águas mor- energia elétrica, safios: a necessidade de ganhos rápidos
nas, o Nordeste concentra a região exporta de produtividade para que seja competi-
os destinos turísticos mais procurados o excedente de sua tiva em nível global, o que demanda in-
pelos brasileiros. Essas mesmas carac- vestimentos em inovação, e a adequação
geração em usinas
terísticas, alta luminosidade solar e da produção diante do desafio da susten-
ventos constantes, também colocam a
solares e eólicas tabilidade. O banco conta com linhas de
região como o principal polo nacional de crédito para projetos em inovação, desen-
geração de energias renováveis e de pro- volvimento produtivo, infraestrutura e
dução do hidrogênio verde. Com o agra- o Acordo de Paris, os países precisam ze- exportação, concessão de garantias, fun-
vamento dos eventos climáticos extre- rar as emissões líquidas de dióxido de car- dos de investimentos em direitos creditó-
mos e a necessidade de descarbonização bono (CO2) até 2050 para o planeta ter rios e participações societárias.
da economia, o mundo inteiro está de uma chance de não ultrapassar o limite de
olho nesse potencial. A busca por fontes 1,5ºC a mais até o fim deste século. Não por Dentre os instrumentos para aten-
de energia alternativas aos combustí- acaso, as grandes potências correm contra der à política de neoindustrialização,
veis fósseis tem atraído vultosos inves- o relógio para descarbonizar suas econo- está prevista a ampliação do Fundo Cli-
timentos estrangeiros para os estados mias e promover a transição ecológica. ma, a partir de captação de 10 bilhões de
nordestinos, já apontados como os mo- Esse mesmo desafio se impõe ao Bra- reais em títulos verdes no mercado in-
tores da neoindustrialização brasileira, sil, que deve encerrar o ano como a nona ternacional, com foco em projetos es-
uma das principais bandeiras do presi- maior economia do planeta, segundo pro- truturantes e de combate às mudanças
dente Lula em seu terceiro mandato. jeções do Fundo Monetário Internacio- climáticas. Há ainda incentivo à indús-
Atualmente, as usinas fotovoltaicas nal, o FMI. Hoje, o País é o quinto maior tria nacional, com a expansão do crédi-
e eólicas têm capacidade para abastecer emissor de gases de efeito estufa, proble- to à exportação e novas linhas de apoio
toda a região e representam quase 70% ma causado tanto pela devastação das com taxas fixas para a aquisição de má-
da energia elétrica distribuída no subsis- florestas tropicais quanto pela queima de quinas e equipamentos de fabricação no
tema Nordeste, segundo dados do Opera- Brasil, e redução das taxas de juro da Li-
dor Nacional do Sistema (ONS) – o exce- nha BNDES Exim Pré-Embarque, a fi-
dente é enviado para outras regiões por nanciar a produção de bens nacionais a
meio de linhas de transmissão. O poten- ser exportados.
cial de geração de energia limpa nos es- A nova política industrial do governo
tados nordestinos é, porém, inesgotável. Lula também tem como meta a redução
Além da possibilidade de expansão des- das desigualdades regionais. “O Nordes-
sas usinas pelo continente, a Câmara dos te tem um papel relevante na nova polí-
Deputados aprovou, no fim de novembro, tica industrial. A título de exemplifica-
o marco regulatório das eólicas offshore. ção, a região é candidata a ser protagonis-
Os investidores aguardam o Senado con- ta nas rotas de transição energética ba-
cluir a análise do tema para começarem a seadas em renováveis, novos combustí-
investir na geração de energia eólica em veis, hidrogênio verde e mobilidade sus-
torres instaladas no mar, o que também tentável, entre outros”, explica o BNDES,
F L ÁV I A VA L S A N I E I S T O C K P H O T O

deve impulsionar a incipiente, mas pro- em resposta a CartaCapital.


missora, indústria do hidrogênio verde. “O Nordeste tem um papel importan-
Os combustíveis fósseis – carvão, petró- te no processo de neoindustrialização do
leo e gás – são os principais responsáveis Brasil, na perspectiva de uma indústria
pelas mudanças climáticas, representan- inovadora e sustentável”, diz Danilo Ca-
do mais de 75% das emissões de gases de bral, superintendente da Sudene, acres-
efeito estufa em todo o mundo, segundo Virada. “Podemos lucrar com a exportação centando que, neste ano, 86% da rubrica
estimativa das Nações Unidas. Conforme de commodities verdes”, afirma Gannoum do Fundo Nacional do Nordeste direcio-

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 35
Especial NORDESTE

nada para a infraestrutura foi destinada “Precisamos agir articuladamente. O gia elétrica limpa, mas também para pro-
para geração, produção ou distribuição de instrumento para isso é uma governan- duzir etanol e outros biocombustíveis.”
energia limpa. “É importante que a gen- ça federal e estadual que seja capaz de Em 2022, mais da metade da capacida-
te possa garantir a chegada de novos em- ter uma estratégia de desenvolvimento, de instalada de geração de energia elétrica
preendimentos, o que vai fazer do Nordes- um planejamento de longo prazo para es- (58%) advinha de hidrelétricas, segundo o
te um grande produtor de energia limpa. ta nova fase que a gente não pode deixar Sistema de Informações Energéticas (SIE
Mas é necessário que isto também sirva passar. Só o Brasil pode produzir alguma Brasil), do Ministério de Minas e Ener-
para transformar a realidade daqueles que coisa com 80% a 90% de energia renová- gia. Já os parques eólicos e solares cor-
estão na região, sobretudo no semiárido.” vel. Nenhum outro país tem condições de respondem, somados, a 16,4%. As térmi-
produzir aço com 80% da matriz elétri- cas, tanto as movidas a combustíveis fós-
Protagonista no enfrentamento da ca limpa, mas muitos estão entrando na seis quanto as que usam bioenergia, tota-
pandemia da Covid-19, o Consórcio Nor- corrida pela geração eólica e solar. Neste lizam 24,5%. Já a nuclear representa 1%.
deste articula a inserção dos nove estados momento, ainda estamos na frente. Não Dados da Associação Brasileira de Ener-
da região nesta nova fase da industrializa- podemos deixar de aproveitar esta con- gia Solar (Absolar) e da Associação Bra-
ção brasileira. Recentemente, o presiden- dição”, destaca Giles Carriconde Azeve- sileira de Energia Elétrica e Novas Tec-
te do Consórcio, o governador da Paraíba, do, subsecretário do Consórcio Nordeste. nologias (ABEEólica), com base em infor-
João Azevedo, assinou um convênio com o “O Nordeste coloca-se como protagonista mações da Agência Nacional de Energia
Banco Mundial para que todos os estados nesta etapa, não apenas para gerar ener- Elétrica (Eneel), dão conta de que mais de
desenvolvam programas voltados para a 90% da matriz elétrica do País já é limpa e
indústria de energia limpa. Além de traba- pode ficar mais barata com novos projetos
lhar na captação de recursos e de investi- A instalação de nas áreas solar e eólica. “O mundo intei-
dores, o organismo internacional vai aju- painéis solares nas ro está olhando de forma séria e respon-
dar a mapear as cadeias produtivas do se- moradias do Minha sável para as questões climáticas. O Bra-
tor na região e a qualificar a mão de obra sil conta com imensa oportunidade, pois
local. Além do Banco Mundial, o Consór-
Casa, Minha Vida tem uma matriz energética mais limpa do
cio tem firmado parcerias com a Sudene, abre oportunidades que a maioria dos países e também os me-
o Banco do Nordeste, o BNDES e o Ban- para a indústria lhores potenciais renováveis do planeta”,
co Interamericano de Desenvolvimento. explica Rodrigo Sauaia, CEO da Absolar.

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
que é produzido em Minas. Na geração dis-
tribuída, aquela que é produzida a partir
de placas instaladas em telhados de resi-
dências ou fachadas de prédios, o Nordes-
te ainda caminha a passos lentos. Apenas
a Bahia está no Top 10 dessa categoria e,
mesmo assim, na oitava posição. Rodrigo
Sauaia atribui essa questão à condição em-
pobrecida de grande parte dos nordesti-
nos, que não podem custear a instalação
dos equipamentos, ainda pouco acessíveis.

O Banco do Nordeste tem uma linha


de crédito para financiar a instalação
de painéis solares em moradias popula-
res. “Temos programas para levar ener-
gia solar para a agricultura familiar, pa-
ra a zona rural dos diversos estados nor-
destinos, no sentido de que essas pessoas
possam ter esse recurso natural para a
sua produção e também ter excedentes
Presidente da ABEEólica, a economis- Visão. Subsídios estatais podem tornar a que possam ser colocados à disposição do
ta Elbia Gannoum observa que o Brasil é energia fotovoltaica mais acessível. “O País mercado”, explica Paulo Câmara, presi-
tem os melhores potenciais renováveis do
muito rico em recursos naturais e precisa dente do BNB. Sauaia cita um projeto
planeta”, diz Rodrigo Sauaia, da Absolar
monetizar isso. “O sol e o vento estão aqui, recentemente aprovado pelo Congres-
a gente tem o biogás, a biomassa, o etanol. so que prevê a instalação de energia so-
Precisamos fazer um pacotão para des- lar nos imóveis ofertados pelo programa
carbonizar a economia e gerar produtos Minha Casa Minha Vida. “O consumidor
verdes. Somos um grande exportador de de baixa renda tem na conta de luz o seu
commodities e, agora, podemos lucrar tam- principal e maior gasto mensal. Se a gen-
bém com as commodities verdes”, ressalta. te reduzir esse gasto, é dinheiro que vai
“O Nordeste, para citar um exemplo, já é au- ser liberado para essas famílias investi-
tossuficiente em energia graças à geração rem em alimentação, em saúde, em edu-
C D H U / G O V S P, I S T O C K P H O T O E M A R C O S O L I V E I R A / A G . S E N A D O

solar e eólica, e ainda é capaz de exportar cação e transporte. Isso tem um impac-
o excedente para outras regiões do País”. to social positivo muito grande”, destaca.
O Nordeste é responsável por 90% da Em Salvador, a prefeitura implantou
produção de energia eólica no País e oi- o programa IPTU Amarelo, pelo qual o
to dos nove estados da região figuram consumidor recebe um desconto no im-
entre os dez maiores geradores, segun- posto municipal quando gera a própria
do a ABEEólica. Quatro deles lideram o energia no imóvel com a tecnologia foto-
ranking: Rio Grande do Norte, Bahia, Piauí lente a 44% de toda a capacidade instalada voltaica. Na capital baiana, também es-
e Ceará. O quinto colocado é o Rio Grande da região, superando 52 bilhões de reais. tão sendo instalados painéis solares em
do Sul, seguido de Pernambuco, Paraíba e No caso da energia solar, Minas Gerais prédios públicos, buscando a geração de 2
Maranhão. Sergipe fica atrás de Santa Ca- lidera na quantidade de usinas fotovol- MW de energia até fim de 2024. Os gover-
tarina e somente Alagoas não está no Top taicas em operação, em construção e em nos da Bahia e da Paraíba já contam com
10. Grande parte dos projetos de energia projetos em andamento. Mas Bahia, Piauí, um Atlas de Energia Solar, que mostra as
eólica do Nordeste conta com o apoio do Ceará e Rio Grande do Norte vêm logo na áreas com melhor potencial para a gera-
BNDES, responsável pelo financiamento sequência e, juntos, somam uma geração ção de energia fotovoltaica. A produção de
de 18,7 GW na geração renovável, o equiva- de mais de 75 mil MW, quase o dobro do energia renovável é responsável ainda pe-

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 37
Especial NORDESTE

la melhora da qualidade de vida das co- a escassez hídrica, principalmente na ca-


munidades onde os parques estão instala- lha do São Francisco, eu preciso de água
dos. Segundo a ABEEólica, o PIB cresceu para a dessedentação humana, animal e
numa média de 70% nos municípios onde para produção de alimentos. Como essa
existem parques eólicos, movimentando água não vai ser utilizada para a geração
mais de 32 bilhões de reais na economia, de energia, então podemos armazená-la”,
entre 2011 e 2020, criando mais de 300 explica Roberto Fortuna, assessor espe-
mil postos de trabalho diretos e indiretos. cial da Secretaria do Meio Ambiente da
“Tivemos vários ciclos no Brasil: do Bahia e secretário-executivo da Comis-
pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro, são Especial para a Implementação de
do café, do cacau, e o que foi que esses Uma Economia de Hidrogênio Verde na
ciclos deixaram? Desigualdade. Poucos Bahia. Ele acrescenta que a cana-de-açú-
se beneficiaram. Precisamos aprovei- car, o milho e os óleos de soja e de dendê
tar agora para distribuir essa riqueza. E podem gerar combustíveis verdes para
não se trata de repartir apenas o dinhei- abastecer até navios e aviões.
ro, mas também conhecimento, emprego Alagoas também investe na biomassa,
e dar uma contrapartida justa a quem lu- a partir da cana, do milho e, ainda, do eu-
ta tanto por este país”, sugere Paulo Gui- calipto, para produzir biocombustíveis.
marães, superintendente de Atração de O estado, aliás, é líder do Norte–Nordeste
Investimentos e Fomento ao Desenvol- nessa área. Sem expertise em energia eó-
vimento Econômico da Bahia. A Bahia lica e solar, o estado ainda investe em gás
tem investido pesado na neoindustria- natural, um combustível fóssil, mas me-
lização. No governo Bolsonaro, perdeu nos poluente que o petróleo. Há, no en-
a fábrica da Ford em Camaçari, mas já tanto, projetos em andamento para a ins-
assinou protocolo com a gigante chine- talação de parques eólicos e usinas foto-
sa BYD, que está instalando no local uma voltaicas. “É natural que a gente, primei-
planta industrial de carros elétricos. ro, desenvolva as nossas vocações e, de-
pois, vá agregando outras alternativas”,
O governo baiano garantiu incentivo explica Bruno Macedo, superintendente
fiscal e isenção de ICMS e IPVA para a de Energia de Alagoas. Em Sergipe, 65%
montadora, que promete entregar a pri- da energia é limpa, predominando a gera-
meira frota de carros elétricos até o fim ção a partir de hidrelétricas.
de 2024 e ainda vai produzir chassis pa- No Rio Grande do Norte, o investi-
ra ônibus e caminhões. Existe a possibili- mento em energia renovável começou
dade de as baterias serem produzidas no há 22 anos. Hoje, mais de 50% do PIB in-
próprio estado, a partir da exploração de dustrial do estado é providente da ener-
minerais existentes na região, e da im- gia, cuja produção é majoritariamente
plantação de unidades de carregamen- gerada nos 261 parques eólicos, 54% de
to dos equipamentos, com a expectativa
de geração de milhares de postos de tra-
balho. Maior produtor de energia solar Bancos públicos
e segundo em energia eólica do Nordes- exigem 60% de
te, a Bahia tem quase toda a matriz elé- conteúdo nacional
trica renovável, com espaço ainda para
nos equipamentos
crescer e investir em hidrogênio verde.
“A gente não usa mais energia hidráu-
de geração eólica.
lica. Isso tem um lado bom, porque faz O setor solar cobra
com que as represas passem a ser um lo- o mesmo incentivo
cal para armazenamento de água. Dada

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
públicos para investir nesses projetos.
Exigir um porcentual mínimo de conteú-
do nacional é uma ótima contrapartida.”
Na Paraíba, a produção de energia
eólica saiu de 154 MW em 2019 para 628
MW no ano passado. Agora, já está geran-
do 870 MW nos 36 parques industriais. A
meta é alcançar 1,5 GW em 2024. Há qua-
tro anos, a solar não passava de 110 MW.
Em 2022, já eram 460 MW e, para o pró-
ximo ano, a previsão é chegar a 2,8 gigas.
Segundo Rômulo Polari, presidente da
Companhia de Desenvolvimento do Es-
tado, a Paraíba planeja fazer investimen-
tos próprios em novos parques eólicos.
“Isso está gerando desenvolvimento lá no
Automóveis. A chinesa BYD vai produzir semiárido, na região mais difícil. Com is-
carros elétricos na antiga fábrica da Ford na so, você gera mão de obra local, fixa a po-
Bahia. O Brasil também tem expertise em
pulação na região, leva desenvolvimen-
biocombustíveis, lembrou Lula na COP28
to para esses municípios e diminui os in-
chaços na região metropolitana.”

toda a matriz potiguar, produzindo 8,5 Em Pernambuco, a governadora Ra-


mil MW. A energia solar também está quel Lyra criou o Comitê de Governan-
em expansão. O estado ainda aposta no ça para Transição Energética e Descar-
gás natural e na biomassa. Segundo Hu- bonização. Atualmente, existem 42 par-
go Fonseca, coordenador de Desenvolvi- ques de energia eólica e outros quatro em
mento Energético do Rio Grande do Nor- construção, além de 28 usinas fotovoltai-
te, a área de energia limpa no estado vem cas e outras 19 sendo erguidas. Durante a
gerando, ao longo dos anos, de 25 mil a 30 Conferência Internacional do Clima, em
mil empregos e, atualmente, é responsá- Dubai, Lyra lançou o projeto PerMeie, um
vel por mais de 10 mil postos de trabalho. pacote de ações com foco nas políticas in-
“Estamos passando por um momen- clusivas e ambientalmente sustentáveis,
to difícil com a redução do ICMS e a di- destacando o desenvolvimento da indús-
minuição do Fundo de Participação dos tria verde. “Com ele, Pernambuco se tor-
Municípios, mas as cidades que têm proje- nará referência em transição energética”, STUART WILSON/COP28, RICARDO WOLFFENBUT TEL /

tos de geração de energia estão em melhor prevê o secretário de Desenvolvimento


situação financeira, porque contam com Econômico, Guilherme Cavalcanti.
receitas extras, principalmente do ISS”, Em seu discurso na COP28, o presiden-
GOVSC E R AU L A RIA N O/ FACTSTO RY/A FP

destaca Fonseca, cobrando mais estímu- te Lula destacou a importância do Brasil


los à produção nacional de equipamentos na descarbonização da economia global.
utilizados na geração solar, assim como “Ninguém, hoje, no planeta pode discutir
aconteceu com a eólica. Atualmente, pa- a questão do clima sem levar em conta a
ra ter acesso a crédito no BNDES ou Ban- existência do Brasil, a nossa experiência e
co do Nordeste para investir em energia o que vai acontecer no País nesta questão
eólica, é preciso comprovar que 60% dos da transição energética. Não existirá país
equipamentos são fabricados no Brasil. algum do mundo em condições de ofere-
“Todas as empresas, até mesmo as mul- cer ao planeta as opções de energia limpa
tinacionais, recorrem a financiamentos que o Brasil pode oferecer.” •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 39
Especial NORDESTE

CHANCE DE OURO
DESCARBONIZAÇÃO O hidrogênio verde
abre oportunidades únicas para o País
e para o desenvolvimento regional

E
xcedente de energia renová- cionamento com empresários que quei-
vel, água em abundância e ram se instalar no estado, fala com entu-
incentivos fiscais para inves- siasmo do projeto, ressaltando que a uni-
tidores estrangeiros. É com dade federativa não tem histórico indus-
esse tripé que o estado do trial, como outros vizinhos nordestinos,
Piauí pretende se tornar, nos próximos e que a usina de hidrogênio verde vai colo-
dez anos, o maior produtor de hidrogê- car o Piauí no topo da cadeia industrial da
nio verde do mundo. O desafio ganhou bioeconomia. “O Piauí não está na fase da
um apoio de peso em novembro passado, neoindustrialização, e sim de industriali-
com o anúncio feito pela presidente da zação. Nós nunca tivemos um ciclo vigo-
União Europeia, a alemã Ursula von der roso e robusto de instalação de manufa-
Leyen, do megaconvênio selado com o turas por aqui”, explica Saraiva.
governo do estado para a construção de
uma usina voltada à produção e expor- O presidente da agência assegura nio verde e amônia no Piauí já esteja a to-
tação do combustível e seus derivados que o objetivo não é exportar somente do vapor. Dos 10 gigawatts previstos, 1,6
aos países europeus. O anúncio aconte- amônia. “Nós teremos plantas industriais giga será alcançado em quatro anos, au-
ceu em um dos mais importantes even- de fertilizantes, porque já somos o segun- mentando o volume a cada ano.
tos do mundo sobre energia limpa, rea- do maior do Nordeste em área plantada de “Será investido 1,4 bilhão de euros pa-
lizado em Bruxelas, onde o governador grãos. Vamos também produzir aço verde, ra cada giga, perfazendo um total de 14
Rafael Fonteles foi um dos palestrantes. pois estamos convictos de que há condi- bilhões. Outros 28 bilhões de euros serão
Batizada de Green Energy Park Piauí, a ções para a instalação de uma siderúrgi- investidos em projetos de geração solar e
usina será instalada na Zona de Expor- ca, até porque já existe, no município de eólica. É algo nunca antes visto pelo esta-
tação do Parnaíba, com obras previstas São João do Piauí, uma mina certificada do e a previsão é de gerar, a partir do ano
para o próximo ano e início da operação com 1,2 bilhão de toneladas de minério de que vem, até 2035, mais de 11 mil empre-
em 2026. O investimento de 2 bilhões de ferro. O estado quer produzir tanto para o gos diretos”, prevê o presidente da Inves-
euros prevê a geração de 10 GW de hidro- mercado externo quanto para o interno”, te Piauí, antes de completar: “Este é o ca-
gênio verde e amônia. acrescenta Saraiva. A previsão é de que, pítulo mais importante na industrializa-
“O hidrogênio limpo e a amônia serão a partir de 2027, a produção de hidrogê- ção do estado”. Segundo Saraiva, o Piauí
enviados para a ilha de Krk, na Croácia. A é o estado fora da Amazônia Legal com a
partir daí, viajará para servir a comprado- maior cobertura de matas nativas preser-
res industriais no Sudeste da Europa. Pa- A União Europeia vadas. “Não temos gás nem petróleo, não
ralelamente, esse projeto criará empre- confirmou o apoio a temos por que falar de transição energé-
gos locais e cadeias de valor no Brasil”, ex- tica. O estado não tem uma matriz fóssil,
uma usina no Piauí,
plicou Leyen, durante o evento de Bruxe- sempre teve essa identidade sustentável.”
las. Victor Hugo Saraiva, presidente da In- com investimento Assim como o Piauí, o Ceará tam-
veste Piauí, agência de atração de investi- de 2 bilhões de euros bém está sendo observado de perto por
mentos responsável pela política de rela- grandes investidores globais. O governo

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Elmano de Freitas fechou um convênio UE. O projeto visa garantir segurança energética para os países europeus ao mesmo
com o Porto de Roterdã, na Holanda, con- tempo que gera empregos e cadeias de valor no Brasil, diz Ursula von der Leyen
siderado um dos maiores do mundo, pa-
ra a produção e exportação de hidrogênio
verde. Para dar conta da demanda, o com-
plexo de Pecém está ampliando sua área
física, que já é grandiosa, com obras de lo-
gística e infraestrutura. Além de sediar
o porto de Pecém, um dos mais impor-
C O M P L E XO D E P E C É M / I AT I / E D P E M A H M O U D K H A L E D / C O P 2 8

tantes do Nordeste, esse complexo pos-


sui uma área industrial, a concentrar al-
gumas das maiores fábricas do Nordeste,
e a Zona de Processamento e Exportação.
O porto chega a movimentar quase 20 mi-
lhões de toneladas por ano.
“Da mesma forma como a gente está
promovendo adequações para sermos
um hub de hidrogênio verde, o porto de
Roterdã está nesse movimento do outro
lado. Essa conexão é muito importante e
já estamos trabalhando nisso desde 2021,
quando foi concebido um grupo interdis-
ciplinar envolvendo o governo do estado,
a Federação das Indústrias e as universi-

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 41
Especial NORDESTE

dades, para estabelecer um conjunto de a água já está aqui, temos em abundân- Espera. Os investidores aguardam o
diretrizes, objetivos comuns, ações coor- cia”, destaca Fraga Araújo, superinten- Congresso concluir a votação do marco
regulatório das eólicas offshore para dar
denadas para viabilizar a implantação do dente de Energia, Mineração, Petróleo e
início aos ambiciosos projetos do setor
projeto. E isso tem trazido resultados sa- Gás do Maranhão, acrescentando que vá-
tisfatórios, pois já estamos com mais de rios investidores estrangeiros já estão em
30 memorandos de entendimento assina- contato com o governo estadual.
dos com empresas de diversas partes do expectativa é de que a região seja respon-
mundo, com atuações em várias etapas da O processo de produção de hidrogê- sável por ao menos metade do hidrogê-
cadeia produtiva do hidrogênio verde que nio verde é feito a partir da eletrólise, a nio verde gerado no Brasil. Pela previsão
está em formação”, explica Hugo Figuei- quebra da molécula da água com energia do Consórcio Nordeste, serão injetados
rêdo, presidente do Complexo do Pecém. elétrica, de alguma fonte renovável. Em 80 bilhões de dólares em sete anos nes-
Segundo Figueirêdo, a partir 2027 será média, 70% do custo do hidrogênio ver- sa produção, podendo gerar mais de 600
iniciada a produção em escala industrial de vem da energia limpa, por isso o Nor- mil empregos no período. “Isso aí pode
para exportação. deste é a grande promessa na fabricação e impactar o PIB do Brasil em 2% por ano.
Diferentemente do Ceará, que precisa- exportação do produto, pela sua vocação Precisamos capacitar mão de obra e te-
rá dessalinizar a água para produzir o hi- em energia eólica e solar e no papel que mos de envolver as universidades nordes-
drogênio verde, um gasto extra na opera- desempenha na transição energética. A tinas nesse programa de desenvolvimen-
ção, o Maranhão aposta no potencial de to”, diz Giles Carriconde Azevedo, subse-
dispor 12 bacias de água doce que serão cretário do Consórcio Nordeste.
aproveitadas para a fabricação do hidro- Azevedo critica a demora na implanta-
A Holanda firmou
gênio verde. “Vamos fazer o represamen- ção de um marco regulatório para a ins-
to e a regularização do nível dessa água,
um acordo com o talação de parques eólicos offshore, em
tanto no período chuvoso quanto no de governo do Ceará alto-mar, e a produção de hidrogênio.
estiagem, para uso do agronegócio, do para criar corredor No fim de novembro, a Câmara aprovou
setor de energia, da agropecuária e pa- de hidrogênio verde um pacote com medidas voltadas para
ra a produção de hidrogênio verde. Não entre os portos de a transição energética que incluíam re-
precisa dessalinizar nem ir ao exterior gras tanto para as eólicas offshore quanto
Pecém e Roterdã
buscar membranas para tratar a água. Va- para o combustível verde. A matéria se-
mos investir menos na produção, porque guiu para apreciação no Senado. “Esta-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Alguns estados nordestinos coloca-
ram as eólicas offshore em segundo pla-
no, alegando que o potencial onshore ain-
da é grande, e falta muito para ser explora-
do. Em recente entrevista a CartaCapital,
Mauricio Tolmasquim, primeiro-diretor
de Transição Energética da Petrobras, en-
fatizou, porém, ser importante desenvol-
ver a produção eólica em alto-mar, ape-
sar de a tecnologia apresentar um custo
maior. “Na geração offshore, os ventos são
mais fortes e constantes, em comparação
com onshore, e isso permite uma produ-
ção de energia mais estável. Além disso,
a Petrobras tem tradição de atividades no
mar e há sinergia em logística, know-how
e capacidade humana, o que leva todas as
grandes petroleiras do mundo que atuam
na onshore para a eólica offshore.”

Segundo Gannoum, o Brasil tem, hoje,


196 GW de energia eólica onshore instala-
da, mas o potencial é superior a 800 GW.
No caso das offshore, a capacidade supe-
ra 1.000 gigawatts. “Quando falamos em
neoindustrialização, estamos falando de
buscar uma inovação que, em linhas ge-
rais, liga pesquisa de novos materiais, in-
tegração da TI com o usuário e com o pro-
cesso fabricante. Nós temos energia bara-
ta e temos cultura, os quais podem gerar
mos atrasadíssimos e este é um proble- do Brazil Investment Forum, evento or- economia criativa. Basta ter investimen-
ma grave, porque ninguém vai investir ganizado pela Apex Brasil, o presidente to para que surjam ideias, que se pense
bilhões de reais nesses projetos, se não Lula fez um discurso voltado aos investi- em produtos e em serviços que estimu-
tiver um regulamento muito claro, por dores do setor industrial e garantiu que o lem a nossa economia”, avalia Luís Hen-
maior que seja o nosso potencial. O que o País está pronto para receber novos negó- rique Romani, economista e pesquisador
Oriente Médio foi para o petróleo, o Nor- cios: “Vamos garantir estabilidade políti- da Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj.
deste é para a energia eólica e solar, mas ca, social e jurídica. Vamos garantir para “Nunca antes na história deste País ti-
outros podem ocupar esse espaço.” vocês estabilidade fiscal e nós queremos vemos uma oportunidade tão grande de
ISTOCKPHOTO E APM TERMINALS/GOVCE

Elbia Gannoum, da ABEEólica, acres- garantir a possibilidade de vocês coloca- fazer uma neoindustrialização que ve-
centa: “Quando a gente fala de neoindus- rem a inteligência empresarial para que nha, de fato, a trazer desenvolvimento
trialização, de políticas públicas para a re- este País cresça cada vez mais”. Enquan- econômico e social”, emenda Gannoum.
tomada econômica e a reindustrializa- to a legislação federal não sai, vários esta- “O Brasil nunca ficou diante desse cavalo
ção, estamos falando de desenhos regu- dos do Nordeste já estão com leis aprova- selado. Há um alinhamento de planetas
latórios, de desenhos macroeconômicos das ou em tramitação nos Legislativos lo- perfeito que, provavelmente, só voltará a
para atrair investimentos, porque o Es- cais, como Piauí, Maranhão, Rio Grande ocorrer daqui a uns 3 mil anos. Ou o Brasil
tado não tem dinheiro para aplicar dire- do Norte, Bahia e Paraíba. São projetos aproveita a oportunidade e faz isso ago-
tamente, precisa do investidor privado”. que regulamentam o hidrogênio verde, as ra ou ele não fará mais. E o Nordeste tem
Em novembro, durante a sexta edição offshore e a transição energética. um papel fundamental neste cenário.” •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 43
Especial NORDESTE

A BOLA DA VEZ
FINANCIAMENTO O Nordeste pode converter-se no principal
polo da indústria verde no País, avalia o presidente do BNB

O
Banco do Nordeste do
Brasil é um importante
aliado do setor privado e
dos governos locais no
f ina ncia mento dos
grandes projetos de transição energé-
tica. Na entrevista a seguir, o presiden-
te da instituição e ex-governador de
Pernambuco, Paulo Câmara, fala so-
bre o potencial da região em ser o prin-
cipal polo da indústria verde no País,
por meio de projetos de geração de
energia solar, eólica e também na pro-
dução de hidrogênio verde. Ele tam-
bém faz o balanço do seu primeiro ano
à frente do BNB. A entrevista comple-
ta está disponível no canal do YouTube
de CartaCapital.

Carta Capital: Que balanço o se-


nhor faz de 2023, o primeiro ano da
sua gestão à frente do Banco do Nor-
deste?
Paulo Câmara: O Banco do Nordeste
tem 71 anos, atua nos nove estados do
Nordeste e também em cidades do Nor-
te de Minas Gerais e do Espírito Santo.
São mais de 2 mil municípios atendidos
e cerca de 6 milhões de clientes. O seu
maior desafio é superar as desigualda-
des sociais e regionais. O Nordeste tem
28% da população brasileira, mas re-
presenta menos de 14% do PIB do País.
Nos quatro anos do governo Bolsona-
ro, o BNB esteve sob ameaça, inclusi-
ve, de não existir. Com a nossa vinda pa-
ra cá e com a orientação do presidente
Lula, o recado é muito claro: queremos
BNB

que o banco volte a atuar como indutor Foco. Câmara mira na sustentabilidade e no combate às desigualdades sociais e regionais

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
de desenvolvimento, gerando emprego mos esquecer que essa agenda da indus-
e renda para a população. Estamos fi- trialização tem de vir acompanhada da
nalizando 2023 e temos uma perspec- “Não há nenhum agenda da economia do conhecimento.
tiva de aplicar todos os recursos dispo- grande projeto de CC: Quais são os projetos financia-
nibilizados pelo Fundo Constitucional energia eólica ou dos pelo banco na área de energia re-
de Financiamento do Nordeste (FNE). novável?
solar no Nordeste
São mais de 38 bilhões de reais em in- PC: Não há nenhum grande projeto
vestimentos, sobretudo em obras de sa-
sem a participação de energia eólica ou solar no Nordes-
neamento, mas também em geração de do banco”, observa te sem a participação, em maior ou me-
energia limpa e renovável. O banco foi Paulo Câmara nor escala, do BND. Temos linhas pró-
chamado para estar dentro do novo PAC prias para essa finalidade. Nos últimos
e terá uma participação ativa no novo cinco anos, foram mais de 30 bilhões de
Plano Safra. Além disso, vamos conti- via um estoque de 4 bilhões de reais reais em financiamentos oferecidos pa-
nuar a apoiar o pequeno e o microem- não utilizado nos anos anteriores. Não ra o setor. Agora, a gente busca conectar
preendedor, nossa missão maior. queremos ter dinheiro guardado, e sim esses projetos com a geração do hidro-
CC: Quais os projetos prioritários da aplicado nos empreendimentos econô- gênio verde, fundamental nessa agenda
sua gestão, não só no social, mas tam- micos e sociais. Para continuar cres- da descarbonização. Nossas equipes es-
bém referente a grandes negócios? cendo, precisamos agregar mais valo- tão cada vez mais se aprofundando no
PC: O PAC prevê investimentos públi- res. Estamos buscando outras fontes de tema para se inserir nessa cadeia dos
cos e privados, e os bancos estatais têm recursos que se somem ao fundo cons- investimentos de energias renováveis.
participação importante dentro dessa titucional. Temos negociações com o O Brasil talvez seja, hoje, o país com o
engrenagem. Cabe ao BNB investir na Banco Interamericano de Desenvol- maior potencial de energia renovável
infraestrutura da região, dentro de par- vimento, com o Banco Mundial, com o do mundo, porque tem vento, sol e to-
cerias com o setor privado e órgãos pú- Banco da América Latina, com o Ban- das as condições de agregar esses ele-
blicos. Só neste ano investimos 11 bi- co Europeu, com os bancos públicos na- mentos dentro das novas matrizes que
lhões de reais pelo PAC, especialmen- cionais, para ampliar a oferta de crédito vão surgir, principalmente com a che-
te em projetos de energias renováveis, a uma taxa de juros mais barata. Quan- gada do hidrogênio verde.
solar e eólica. Estamos tendo participa- do acrescentamos esses valores, o volu- CC: Boa parte dos equipamentos
ção de mais de 30% em relação aos pla- me de recursos aplicados em 2023 su- utilizados na geração de energia re-
nos safras anteriores, no tocante à agri- perou os 50 bilhões de reais. Para 2024, novável no Brasil vem de fora, princi-
cultura empresarial, e mais de 60% em quero chegar a 60 bilhões. palmente da China. Não seria o mo-
relação à agricultura familiar. A partici- CC: O governo Lula aponta a rein- mento de atrair empresas desse se-
pação do Nordeste no PIB agrícola bra- dustrialização do Brasil como priorida- tor para investir no Nordeste?
sileiro tem crescido muito. Temos dado de. O Nordeste pode, de fato, se con- PC: Hoje, a China tem a predominância
prioridade na questão do turismo, pois verter no principal polo das indústrias nesse setor, domina a tecnologia e con-
a região tem um potencial enorme e es- verdes do País? Qual papel o BNB pode segue vender bem mais barato do que
ta é uma área que gera muito emprego e desempenhar nesse processo? qualquer outro país do mundo. O Bra-
renda. Temos, ainda, os nossos carros- PC: O Nordeste tem grande potencial sil tem uma carência de planejamento,
-chefes, que são os programas de mi- e podemos ajudar muito, seja com ta- principalmente de médio e longo prazo,
crocrédito produtivo orientado. Bus- xas de juro mais competitivas, seja com mas o presidente Lula tem visão estra-
camos uma atuação equilibrada, com um olhar estratégico de financiar aqui- tégica, acredita que podemos avançar.
ações voltadas para o desenvolvimen- lo que pode fazer a diferença em termos Realmente, não tem sentido tudo ser
to social, econômico e ambiental. de escala no futuro. Da mesma forma, importado, quando se pode produzir
CC: Para os próximos anos, qual o podemos ser um agente motivador de esses equipamentos aqui, gerando em-
volume de recursos que o BNB pre- inovação, porque a nova industrializa- pregos qualificados. Basta investir na
tende investir no Nordeste? ção exige muita inovação, muita ciência, capacitação dessa mão de obra e no de-
PC: A previsão do FNE para 2024 é de muita tecnologia. A gente está ciente do senvolvimento tecnológico. Nesse con-
37 bilhões de reais. É um pouco menos nosso papel como agente de desenvolvi- texto, as nossas universidades também
do que aplicamos neste ano, mas ha- mento regional, mas também não pode- têm muito a contribuir. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

Alvo nas costas


Os moradores de Khan Younis, novo objetivo militar
do exército israelense na Faixa de Gaza, sentem o cheiro da morte
P O R P E T E R B E AU M O N T, D E J E R U S A L É M , E K A A M I L A H M E D

P
ara Almaza Owda, em Khan bros pelos bombardeios, mesmo antes da Netanyahu. Limitada a leste por áreas ru-
Younis, a segunda cidade de nova ofensiva, e com pouco combustível rais com pequenas aldeias esparsas que
Gaza, hoje sitiada, os pensa- disponível, alguns residentes começaram sobem suavemente até a cerca de Gaza
mentos giram sobre a forma a usar carroças puxadas por burros para e pelos kibutzim israelenses mais além,
como ela poderá morrer. Na atravessar as ruínas. Sem ajuda externa, Khan Younis e suas cidades-satélites, Bani
noite da quinta-feira 7, quatro dias após o os abrigados pela ONU em Khan Younis lu- Suheila e Abasan al-Kabira, entre outras,
ataque das Forças de Defesa de Israel à ci- tam por comida, disse Nawraz Abu Libdeh. se espalham por uma área urbana muito
dade no sul da Faixa, Owda, que vive numa “A guerra da fome começou”, disse. “Esta é maior que a Cidade de Gaza. A oeste fica
tenda no terreno de uma escola da ONU a pior de todas as guerras.” o mar e outra área de periferia rural, para
transformada em abrigo, descreveu seus A violência dos ataques tem sido som- onde os civis foram instados a fugir.
sentimentos. “Fico me perguntando: como briamente familiar para quem fugiu do
vou morrer?”, postou nas redes sociais. “É norte, à medida que os militares israelen- Cidade socialmente conservadora,
possível que um estilhaço me atinja na ca- ses desencadeavam “cinturões de fogo”, Khan Younis, mesmo antes das guerras
beça e eu morra imediatamente? Talvez barragens intensas de explosivos usados que engolfaram Gaza desde 2008, foi du-
entre na tenda enquanto durmo, penetre contra áreas urbanas, antes de seguirem rante muito tempo considerada um reduto
no meu corpo e eu morra de sangramento? com tanques, infantaria e forças espe- de apoio político ao Hamas. E depois de se-
O que pode acontecer? Existem mil cená- ciais. Vídeos divulgados por militares manas insistindo que o principal centro de
rios na minha cabeça agora.” mostraram comandos e tropas a mover- comando do grupo estava na Cidade de Ga-
Nos dias desde o rompimento do acor- -se pela cidade em meio ao ruído de tiros, za, localizado sob o hospital Dar al-Shifa,
do de cessar-fogo para troca de reféns, tomando posições atrás de um barranco, Khan Younis, com o seu campo de refugia-
em 1° de dezembro, e o início da tercei- enquanto outros dentro de uma casa dis- dos que foi a casa de infância do principal
ra fase da ofensiva israelense, a guerra paravam pela janela. líder do Hamas em Gaza, Yahya Sinwar,
varreu Khan Younis e as cidades vizi- A importância de Khan Younis para Is- e do chefe militar do grupo, Mohammed
nhas. Tudo começou na segunda-feira rael foi destacada em declarações dos co- Deif, é agora retratado como o centro do
4, quando uma divisão israelita lançou mandantes mais graduados e por políticos, Hamas e onde sua liderança se esconde.
o ataque a partir do leste e do norte, cer- incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Autoridades israelenses descrevem
cando e depois entrando na cidade. Em- uma rede semelhante de túneis em Khan
bora dezenas de milhares de palestinos Younis como no norte, alguns até Rafah,
tenham sido deslocados mais para o sul, no extremo sul, na fronteira com o Egito.
em direção a Rafah, alguns pela segunda “A guerra da fome As afirmações parecem ter sido confir-
e terceira vez na guerra, os moradores madas por alguns reféns libertados que
começou”, disse
presos no interior de Khan Younis des- foram levados para “uma teia de aranha”
creveram condições desesperadas numa Nawraz Abu Libdeh, de túneis que se estendem por quilômetros
cidade que já foi o lar de 400 mil pessoas. refugiado em um na área. É também em Khan Younis que,
Com vários bairros reduzidos a escom- abrigo da ONU segundo sugerem, são mantidos muitos

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 48
NESTA The Observer. A Europa e
os EUA pagam para se livrar
SEÇÃO dos migrantes indesejados

Segundo Israel,
Khan Younis é o
QG do Hamas

dos restantes 138 reféns capturados pelo bém nas áreas de Shuja’iya e Jabaliya, no divergências reais em torno do calendário
Hamas em 7 de outubro, durante o mas- norte, foi enfatizada pelos relatos constan- para o fim das principais hostilidades. As
sacre sangrento no sul de Israel. tes sobre israelenses mortos em combate, autoridades israelenses acreditam que
Embora os militares israelenses te- quando as tropas tiveram de adotar táticas só no fim de janeiro poderão concluir as
nham dado muita importância à forma militares de casa em casa contra os qua- operações de combate em grande esca-
como seus tanques avançaram até a ca- tro batalhões do Hamas na cidade. Do lado la, enquanto os EUA pressionam para os
sa de Sinwar, trata-se de uma afirmação palestino, as pesadas perdas continuaram, combates intensos terminarem até o fim
essencialmente sem sentido, com Sinwar com o principal hospital Nasser a receber de dezembro. “Não demos um prazo firme
escondido em outro local. Ecoando rumo- os corpos de 62 mortos e mais 99 feridos a Israel, não é realmente o nosso papel”,
res anteriores infundados de que o líder apenas entre sábado e domingo. disse Jon Finer, vice-assessor de Seguran-
dos ataques tinha sido encurralado num ça Nacional norte-americano, num fórum
bunker no início da guerra, Netanyahu Em um novo ponto nos combates, as um dia antes do veto de Washington a no-
afirmou que ele estava na sua mira. “Agora autoridades israelenses relataram que em vos pedidos de cessar-fogo no Conselho de
eles estão cercando a casa de Sinwar”, disse Khan Younis tinham visto pela primeira Segurança da ONU na sexta-feira 8. “Dito
Netanyahu. “Portanto, a casa dele não é a vez mulheres combatentes do Hamas, isto, temos influência, mesmo que não te-
A HM A D H ASA BA L L A H /GE T T Y IM AGES/A FP

sua fortaleza e ele pode escapar, mas é ape- inclusive atuando como vigias, afirma- nhamos o controle sobre o que acontece no
nas uma questão de tempo até que o pegue- ção que não pôde ser verificada. Embora terreno em Gaza.”
mos.” Outras autoridades israelenses, en- as tropas tenham avançado depressa no O que isso significa para aqueles que
tretanto, ofereceram uma avaliação mais ataque inicial à cidade, alcançando ra- ainda estão na cidade são mais sema-
realista. Sinwar “não está na superfície. pidamente partes do centro, o ímpeto nas de conflito. “Foi uma noite de for-
Ele está na clandestinidade”, disse o por- abrandou. De acordo com reportagens tes tiros e bombardeios”, disse Taha
ta-voz militar, almirante Daniel Hagari, recentes, apesar da insistência pública de Abdel-Rahman, morador de Khan
alguns dias após o início dos combates. algumas autoridades dos Estados Unidos Younis. “Como todas as noites.” •
A natureza dos combates em ambientes de que não existe um cronograma para Is-
urbanos densos, como Khan Younis e tam- rael terminar o conflito, nos bastidores há Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 47
Nosso Mundo

Depósito de gente
Como a Europa e os
Estados Unidos se valem de países pobres
para “reacomodar” os indesejados
POR KENAN MALIK

I
magine que a Grã-Bretanha assine A Grã-Bretanha não está sozinha. A
um tratado com a França pelo qual União Europeia paga milhões de euros
aceita receber seus migrantes inde- a ditadores e chefes guerreiros no Norte,
sejados em troca de pagamento em no Sahel e no Chifre da África para atua-
dinheiro. Que a França proponha o rem como polícia de imigração, na caça e
envio de advogados à Grã-Bretanha para detenção de potenciais migrantes para o
garantir que os tribunais britânicos tra- continente europeu. Para conseguir isso, a
tem os deportados adequadamente. E que UE tem destruído a soberania das nações
a Assembleia Nacional francesa aprove africanas, ao distorcer as economias locais
uma lei que declare a Grã-Bretanha um e minar a democracia. As tropas e a polícia
país seguro para seus migrantes expulsos. de fronteiras dos Estados Unidos estão es-
Não é preciso imaginar tal roteiro. Es- tacionadas em lugares tão distantes quan- A deportação em
tá em curso, exceto que, na história real, to o Quênia, o Cazaquistão e as Filipinas, massa de migrantes
a Grã-Bretanha desempenha o papel da na tentativa de conter a potencial migra- está normalizada
França e Ruanda, o do Reino Unido. E aí ção para a “América”. A Austrália tem uti-
está a ironia: a Grã-Bretanha, tal como lizado as ilhas de Manus e Nauru como lo-
outras nações avançadas, insiste que o cais de descarte de requerentes de asilo.
afluxo excessivo de migrantes e reque- cha é composto por afegãos, fugitivos dos
rentes de asilo ameaça sua soberania e Apesar de toda a histeria, o número de talibãs e abandonados pelo Reino Unido.
enfraquece seu controle das fronteiras. migrantes a pedir asilo na Grã-Bretanha foi A verdadeira questão não reside
A solução é desvalorizar a soberania e menor no ano passado do que duas décadas nos números volumosos, mas na fal-
a integridade de uma nação mais fraca. antes. O que mudou foi a visibilidade da- ta de vias legais para solicitar asilo e na
Ruanda está entre os países menos de- queles sem documentos, porque a maioria incapacidade de processar adequada-
senvolvidos do mundo. O PIB per capita chega agora em pequenos barcos. Por quê? mente os pedidos. Durante a última déca-
da Grã-Bretanha é quase 50 vezes maior. Porque outras rotas foram fechadas. O da, o número de pedidos de asilo em atra-
Em proporção à sua população, Ruanda maior grupo a atravessar o Canal da Man- so aumentou cerca de quatro vezes mais
acolhe três vezes mais refugiados do que rápido do que o número de pedidos re-
o Reino Unido. A Grã-Bretanha não as- centes. A crise é obra do próprio governo.
sinou seu acordo de deportação, apesar Nesse contexto, o esquema de depor-
de Ruanda ser muito mais pobre, mas as tação para Ruanda é, para aplicar uma
coisas são assim. A indigência de Ruanda
A Grã-Bretanha descrição supostamente usada pelo no-
permite à Grã-Bretanha utilizar seu pe- reforça o programa vo ministro do Interior britânico, James
so econômico para despejar lá os consi- de envio de Cleverly, “uma merda”. É uma descri-
derados indesejáveis. migrantes a Ruanda ção particularmente adequada da últi-

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
eficaz, mas performativa. É também um
exercício de propaganda, meio de des-
viar a culpa pelos fracassos da política
social. Isto ficou particularmente visí-
vel no debate recente sobre a migração
legal. Em resposta à controvérsia sobre
o enorme aumento da migração legal lí-
quida, Cleverly apresentou um pacote de
medidas, incluindo o aumento do limi-
te de renda de um trabalhador qualifi-
cado para 38,7 mil libras (232 mil reais),
para “impedir que a imigração diminua
os salários dos trabalhadores britâni-
cos”. Mas isentou desta regra qualquer
um com visto de saúde e assistência so-
cial, para que a Grã-Bretanha possa “con-
tinuar trazendo os profissionais de saú-
de dos quais nosso setor de cuidados e o
Instituto Nacional de Saúde dependem”.

Isso entrega o jogo. Se o governo qui-


sesse reduzir o número de trabalhado-
res estrangeiros, poderia facilmente fa-
zê-lo por meio dos gastos com assistên-
cia social para ajudar a aumentar salários
escandalosamente baixos. Isso Londres
se recusa a fazer. O governo mina os pa-
drões de vida dos trabalhadores britâni-
cos – e depois tem a audácia de atribuir a
culpa aos imigrantes.
ma versão do plano, o projeto de lei so- o Parlamento pode apagar a realidade. Há um debate importante a ser trava-
bre Segurança de Ruanda. Os ministros insistem que precisamos do sobre os níveis de migração líquida.
A nova lei declara que Ruanda é um de uma lei tão iliberal, irracional e imo- Mas esse debate não deve se tornar um
país seguro porque… bem, porque é o que ral capaz de funcionar como um “dissua- mecanismo para apontar os imigrantes
diz. Na quarta-feira 6, a ministra britâ- sor” a futuros requerentes de asilo. Exis- pelos fracassos do governo.
nica das Mulheres e da Igualdade, Kemi tem, no entanto, inúmeras provas de que A característica mais deprimente do
Badenoch, disse ao Parlamento que “per- as políticas de dissuasão raramente dis- debate sobre Ruanda é o grau em que a
YA S S I N E G A I D I / A N A D O L U A G E N C Y / A F P

mitir a autoidentificação… não é política suadem. Aqueles que desafiaram a mor- ideia da deportação em massa de reque-
do governo”. Exceto, parece, quando se te e o cativeiro, suportaram montanhas rentes de asilo se tornou normalizada. A
trata de insistir na solidez de Ruanda pa- e desertos, confrontaram senhores da controvérsia foi menos sobre o escânda-
ra deportar requerentes de asilo. Então, guerra e milícias e enfrentaram o Canal lo moral que é a política para Ruanda do
o governo não só permite a autoidentifi- da Mancha num pequeno barco – será que sobre se deveria ser ainda mais dura.
cação como também proíbe os tribunais que realmente imaginamos que diriam A lógica da formulação de políticas per-
e funcionários do governo de contesta- a si próprios: “Não vamos começar esta formativas é a necessidade de reforçar
rem essa certificação, apesar de todas as viagem porque James Cleverly pode nos continuamente a retórica. •
provas em contrário. A soberania parla- mandar para Ruanda”?
mentar pode ser fundamental, mas nem O objetivo da lei de Ruanda não é ser Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 49
Plural

O apocalíptico agora
Na trama de O Mundo Depois de Nós, Rumaan
Alam expõe a dependência tecnológica e a ânsia pelo consumo
P O R K I L L I A N F OX

R
umaan Alam nasceu em 1977 O Mundo Depois de Nós é o primeiro li- “simplesmente de tirar o fôlego… Um li-
e foi criado em Washington vro do autor publicado no Brasil. O lan- vro extraordinário, ao mesmo tempo
DC, a capital dos Estados çamento, por aqui, pega carona no filme inteligente, envolvente e alucinante...
Unidos. Ele se formou em originado do romance, disponibilizado tão aterrorizante e presciente quan-
Escrita pelo Oberlin College pela Netflix na sexta-feira 8 (leia texto na to Estrada, de Cormac McCarthy”.
e é autor de três romances, o último dos pág. ao lado) Alam mora no Brooklyn, em Nova
quais, O Mundo Depois de Nós, recebeu óti- A trama, que conta a história de duas York, com seu marido, David Land, fo-
mas críticas quando foi lançado, em 2020, famílias, uma branca e outra negra, jo- tógrafo, e seus dois filhos adotivos.
tornou-se best seller na lista do The New gadas em uma luxuosa casa de férias em
York Times e foi finalista do National Book Long Island em meio a eventos apoca- The Observer: Muitos críticos cha-
Award e do Orwell Prize. lípticos, foi descrita pelo Observer como maram seu livro de “presciente”, já que

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 56
NESTA Judoca. Como o diretor do
SEÇÃO Festival de Cannes foi dos
tatames ao tapete vermelho

THRILLER
ESTRELADO
Julia Roberts está à frente do
elenco da produção da Netflix
POR A NA PAU L A SOUSA

E
ntre os 17 produtores credita-
dos em O Mundo Depois de
Nós estão Barack e Michelle
Obama, fãs declarados do romance
de Rumaan Alam no qual o filme se
baseia. Parte do interesse dos Obama
deve-se, certamente, à forma como
os personagens negros são tratados
e retratados. A história, além de tocar
no racismo, olha para o domínio tec-
nológico com suspeição e gravidade.
Projeto ambicioso da Netflix, lan-
çado como a grande estreia da plata-
forma neste fim de ano, o thriller diri-
gido por Sam Esmail (Mr. Robot) é, a
ele foi escrito antes da pandemia. Qual Confinados. O elogiado best seller do um só tempo, superficial e eficaz.
é a sua opinião sobre isso? autor norte-americano foi transformado A eficácia vem, sobretudo, da qua-
em um filme que teve, entre seus
Rumaan Alam: Até fevereiro de lidade do livro de Alam e do elenco es-
produtores, Barack e Michelle Obama
2020, eu nunca tinha ouvido a palavra telar, que tem à frente Julia Roberts,
“Coronavírus”. Em um resumo muito Ethan Hawke e Mahershala Ali. A su-
básico da trama, posso dizer que o livro perficialidade reside, sobretudo, na
dramatiza o fato de se estar preso em ca- samente conscientes de que estão mal construção dos personagens – que,
sa e não ter informações suficiente sobre equipados para lidar com o colapso so- ao fim, parecem todos mais banais do
o que se passa. Aconteceu de o romance cial. Como você se sairia em uma situ- que a parte inicial do filme prenuncia.
ser publicado durante um momento no ação assim? Trata-se, de toda forma, de uma
qual muitos leitores sentiam estar presos RA: Acho que nada bem. Eu, por exem- trama envolvente que, à moda M.
em suas casas e não ter informações sufi- plo, não consigo fazer um percurso longo Night Shyamalan, procura criar um
cientes sobre a realidade. Então é, de fa- de carro sem GPS. Eu cozinho muito, clima de suspense a partir do
to, uma ressonância estranha. Ao mesmo mas há certos componentes básicos das entrelaçamento entre o ambiente
tempo, acho que meu livro está ligado a ou- receitas que esqueço constantemente e e as ações dos personagens.
tros que falam sobre algumas dessas mes- tenho de consultar. Eu me treinei para A luxuosa casa de praia localizada
mas coisas: a relação individual com a an- depender desse cérebro auxiliar que car- em Long Island se tornará, aqui, o
siedade a respeito do clima, o absurdo do rego no bolso, como todos nós. cenário ideal para o desenvolvimen-
momento contemporâneo e nossa relação TO: Há um abismo entre o que seus to das relações entre duas famílias
distorcida com a tecnologia. As pessoas es- personagens pensam e o que eles dizem desconhecidas que, num momento
tão pensando e falando sobre essas coisas, em voz alta, principalmente quando se apocalíptico, são obrigadas a convi-
NETFLIX

então faz sentido que haja livros sobre isso. trata de racismo – como vemos na cena ver – sem as telas a intermediar as
TO: Seus personagens são doloro- em que Amanda, que é branca, reage à trocas ou acomodar sentimentos.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 51
Plural

chegada imprevista em sua casa de fé- tural a um momento de crise tenha sido
rias alugada, dos proprietários negros, ir às compras e tornar Jeff Bezos (o chefe
GH e Ruth. Como foi escrever isso? da Amazon) ainda mais rico do que já era.
RA: Quando os personagens se conhe- TO: Que livros estão na sua mesa de
cem, o registro é próximo da sátira e per- cabeceira?
mite que se vá um pouco mais longe e di- RA: No momento, estou lendo O
ga coisas desagradáveis. Ao mesmo tem- Teatro de Sabbath, de Philip Roth. É
po, espero que haja algo identificável aí. ótimo – a linguagem é muito viva e
Uma pessoa branca de classe média, nos maliciosamente engraçada. Ontem à
Estados Unidos, foi treinada durante to- noite terminei Something New Under the
da a vida, por todos os produtos culturais Sun (Algo Novo Sob o Sol), de Alexandra
que consumiu, para suspeitar da negri- Kleeman. É muito engraçado e extrema-
tude e, particularmente, da masculini- mente perturbador.
dade negra. Os medos de Amanda, con- TO: Qual foi o último livro realmente
forme ela os articula, não são totalmen- ótimo que você leu?
te irracionais. Qualquer pessoa que rece- RA: Visitors (Visitantes), de Anita
besse um estranho batendo em sua por- Brookner (1928-2016). Estou demorando
ta tarde da noite provavelmente pensaria para terminar de ler sua obra, porque a
Racismo. “Uma pessoa branca de classe
em seus filhos que dormem no fim do cor- adoro e não quero ficar sem um livro de-
média, nos EUA, foi treinada durante toda
redor. Ela está errada (sobre GH e Ruth), a vida para suspeitar da negritude”, la pela frente. Eu não podia acreditar em
é claro, mas o leitor talvez não seja escla- afirma o escritor, morador do Brooklyn quanto esse livro era bom – como seus ou-
recido a respeito disso durante duas pá- tros romances e, ainda assim, diferente.
ginas. Minha esperança é de que, nes- Ela foi uma escritora incrível. Hermione
sas duas páginas, haja um leitor que te- Além das compras de supermercado, todo Lee está escrevendo uma biografia de-
nha a mesma reação e que esteja dispos- mundo que conheço, inclusive eu, foi com- la, e estou muito animado com isso.
to a pensar sobre isso. É preciso trabalho prar outras coisas: um tapete de ginásti- TO: Quais escritores de ficção que
para desfazer esse pensamento. E a cultu- ca, um anel luminoso para o Zoom, tal- trabalham hoje você mais admira?
ra é significativamente mais poderosa do vez uma batedeira, porque você vai expe- RA: Acho que Lorrie Moore é uma de
que qualquer indivíduo. Portanto, é difí- rimentar fazer bolos, e assim por diante. nossas grandes escritoras em inglês.
cil dizer até que ponto essa mudança será É muito revelador que a nossa reação cul- Louise Erdrich, que acaba de ganhar o
possível. Acho que estamos num momen- Prêmio Pulitzer, é um gênio absoluto. O
to de ajuste de contas com essa realidade. escritor de quem eu mais gostaria de re-
TO: Você parece realmente gostar ceber um novo romance é Norman Rush,
de descrever os detalhes materiais da que, provavelmente, já está bastante
vida dessas pessoas – a comida orgâni- velho neste momento e tem um corpo
ca cara, a decoração interior de última de trabalho enxuto, mas espero que, so-
geração. Mas, à medida que a situação bre sua mesa de trabalho, haja seis outros
piora, esses bens de luxo se tornam não romances que sairão algum dia.
apenas ridículos, como também pertur- TO: No que você está trabalhando
badores. Compramos essas coisas ima- atualmente?
ginando que elas nos isolarão do mun- RA: Estou escrevendo um conto muito
do, mas, na hora H, isso não acontece. longo e trabalhando num livro. Em bre-
RA: Sim, acho que está absolutamen- ve, chegarão e não terei mais de fingir ser
te certo. Veja, sou uma pessoa de classe professor do ensino fundamental. Estarei
média que mora na cidade de Nova York. livre para deixar meus filhos correrem co-
O MUNDO DEPOIS DE NÓS
As pessoas de quem estou falando são a mo loucos lá fora e dedicar parte do meu
D AV I D A . L A N D

Rumaan Alam. Tradução: Alberto


pessoa que eu mesmo sou. No dia em que Flaksman. Intrínseca
dia a avançar no livro. Este é o meu plano. •
o confinamento da pandemia começou, (288 págs., 49,90 reais)
qual foi a primeira coisa que fizemos? Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Escândalos em campo
lizar o poder sobre essa atividade de ta- nos dois lados, as boas notícias nos aju-
► Dentro do impenetrável manho peso social e econômico. dam a seguir em frente e respirar. O la-
sistema da Fifa, dirigentes Envolvidos pela torrente de um sem- do bom, neste caso, são os talentos que,
-número de disputas, logo são mudados embora pareçam escassos nas queixas de
das entidades os cabeças do primeiro escalão, deixando todos nós quanto à qualidade dos jogos,
futebolísticas são para trás os que foram execrados. E assim trazem esperança.
trocados e defenestrados, segue a caravana com a maior naturali- Esses talentos ficam evidentes nas re-
dade, como se nada houvesse ocorrido. portagens que, ao fazer um balanço da
como se nada Os últimos acontecimentos, no entan- temporada, mostram as melhores joga-
tivesse acontecido to, preocupam – e muito – porque atin- das do ano. Vimos lances espetaculares,
gem a credibilidade do “negócio” e po- de alta criatividade, com dribles que, di-
dem trazer o desencanto aos aficionados luídos nos 90 minutos dos jogos, acabam

O
ano vai chegando ao fim e, no que, em última análise, sustentam tudo. por parecer raros.
caso do futebol brasileiro, en- Esse olhar pode até ser fruto do meu oti-
quanto se fala das atividades Andei, muito tempo, intrigado com mismo incorrigível, mas como não atri-
recreativas das férias, da movimen- isso tudo, procurando saber quem an- buir ao talento os lances exuberantes do já
tação das transferências e transações da por trás dos que se apresentam como consagrado Vinícius Jr. e do jovem Endrick,
de jogadores e das premiações dos me- grandes mandatários, mas que, sozinhos, campeão do Brasileirão pelo Palmeiras.
lhores do ano, recebemos a notícia do não teriam condições de promover movi- E, por falar em clubes, o Fluminense
fim do mandato do presidente da Con- mentações tão vultosas, como a possível chegou, como num passe de mágica, ao
federação Brasileira de Futebol (CBF), contratação do técnico mais valorizado Mundial de Clubes da Fifa. Sabe-se que
Ednaldo Rodrigues. do futebol mundial, Carlo Ancelotti, pa- tal conquista é fruto de muito empenho
A destituição aconteceu a partir de ra a Seleção Brasileira. de todo o elenco do tricolor das Laranjei-
uma decisão do Tribunal de Justiça do Felizmente, como tudo tem pelo me- ras e da coragem do seu treinador, Fer-
Rio de Janeiro, que anulou as assem- nando Diniz. Agora é encarar os times
bleias que elegeram o atual dirigente. vencedores dos quatro continentes.
A estratégia da CBF, agora, é levar o ca- No que diz respeito ao futebol europeu, a
so ao Superior Tribunal de Justiça, para novidade é a retomada da liderança do cam-
tentar fazer valer a eleição de Rodrigues. peonato espanhol pelo modesto Girona,
O dirigente vinha, há meses, sofrendo que bateu o poderoso Barcelona. Trata-
pressões internas, que se agravaram com -se, sem dúvida, de uma façanha e tanto
as derrotas da Seleção Brasileira nas elimi- em um campeonato geralmente previsível.
natórias da Copa do Mundo. Há também Para se ter uma noção de como andam
acusações de mau uso dos recursos da CBF. as coisas pelo mundo, vêm da Turquia a
O que chama atenção, neste caso, é que notícia e as imagens chocantes do pre-
um órgão de tamanha relevância seja diri- sidente de um clube importante do país
B A P T I S TÃ O E T H A I S M A G A L H Ã E S / C B F

gido de maneira assim descompromissada. invadindo o campo e atingindo o árbitro


Tudo faz parecer, no entanto, que as coisas com um soco violento.
correm regularmente dentro da entidade. Ou seja, terminamos o ano com mais
Cada vez mais, dirigentes são trocados esse registro do estado de violência no
e defenestrados depois de escândalos de qual se encontra o mundo. A cada ano
todos os tipos dentro do impenetrável que começa, no entanto, a esperança é
sistema da Federação Internacional de sempre maior do que todas as derrotas
Futebol (Fifa), que acoberta todas as ir- Decisão. Ednaldo Rodrigues, presidente e decepções. •
regularidades justamente por monopo- da CBF, foi destituído pelo TJ do Rio redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 53
Plural

O corpo visto
Vinci, Rembrandt, Van Gogh e Picasso.”
O episódio retrata à perfeição o pou-

como obsoleto
co-caso com que as gerações mais novas
tendem a olhar para o passado e, por con-
sequência, para a velhice. Embora a lon-
gevidade tenha se tornado um tema cor-
LIVROS Um estudo recorre a pinturas, riqueiro, raras vezes se vê um recorte so-
bre o tema como este apresentado no li-
fotos e a produções de TV para analisar vro A Invenção da Velhice Masculina – Da
as velhices em diferentes sociedades Antiguidade às Séries de Streaming, Co-
mo se Formou a Ideia do Homem Idoso, de
P O R PAU LO C E Z A R S OA R ES Valmir Moratelli.

O trabalho é um alongamento de par-


te da tese defendida pelo autor no Depar-

N
tamento de Comunicação da Pontifícia
o período em que trabalhou Garrincha e Nilton Santos, entre outros. Universidade Católica do Rio. Formado
no jornal O Globo, o colunis- Com o talento e a classe que o caracteri- em Jornalismo pela Universidade Fede-
ta esportivo Fernando zam, Calazans respondeu: “Imagino que, ral do Rio de Janeiro, Moratelli pesqui-
Calazans recebeu um e-mail se o leitor gostasse, digamos, de literatu- sa velhice, masculinidade, novas lingua-
de um leitor com elogios à ra, em vez de futebol, acharia muito cha- gens audiovisuais e temas tabus.
sua coluna. O leitor fez, porém, uma ressal- to também o crítico que fizesse referência No trabalho, ele analisa as velhices em
va: disse que o colunista se tornava um cha- a Shakespeare, Cervantes, Eça de Quei- diferentes sociedades, a partir de fontes
to quando, ocasionalmente, lembrava os roz e Machado de Assis. E que, se gostas- não apenas escritas, mas imagéticas, a
nomes de jogadores como Pelé, Didi, se de pintura, odiaria falar de Leonardo da partir de pinturas, fotografias, regis-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
a morte de idosos pela Covid-19, o que se- VITRINE
ria positivo para diminuir o rombo nas POR A NA PAU L A SOUSA
contas da Previdência Social e melho-
rar o desempenho econômico. Sim, hou-
ve quem comemorasse a pandemia, vi-
sando a redução do déficit previdenciário
brasileiro. É a lógica sórdida do capitalis-
mo neoliberal. Isso é chamado de ‘necro-
política’”, frisa Moratelli.

A ideia de necropolítica foi desen-


volvida pelo filósofo camaronês Achille Pixel (DBA, 176 págs., 64,90 reais) é a
Viagem pelo tempo. O autor, o Mbembe para definir as relações de po- primeira obra da húngara Krisztina Tóth
jornalista Valmir Moratelli (acima) der de uns sobre outros, quando um gru- publicada no Brasil. O volume reúne 30
usou como ponto de partida para po pode, inclusive, garantir o extermínio breves histórias nas quais a Europa, com
a pesquisa sua tese de doutorado seus fluxos migratórios e seu legado de
desses “outros”, caso considere isso ne-
separações e desconfianças, surge tanto
cessário. como cenário quanto como personagem.
Como ressalta Tatiana Siciliano, pro-
tros arqueológicos, esculturas e produ- fessora da PUC-Rio, na orelha do livro, a
ções televisivas. velhice masculina é plasmada por uma
A passagem do tempo foi, desde sem- ideia de “inutilidade reprodutiva”. O idoso,
pre, uma questão para o homem – e um de acordo com essa leitura, carece de uma
dos motivos para isso é, justamente, o função protagonista na máquina neolibe-
desgaste físico intrínseco à velhice, tam- ral que tritura tudo que considera obsole-
bém chamada de terceira idade. No Bra- to. Essa engrenagem, ao valorizar a virili-
sil, esse termo, segundo Moratelli, apa- dade, expõe a fragilidade de corpos velhos
receu pela primeira vez na edição de nú- nos embates com o ideal da plenitude. • O sebastianismo, marca indelével da for-
mero 30 da revista O Cruzeiro, em 1944. mação identitária portuguesa, é recons-
Algumas décadas depois, mais pre- tituído como história e depois como farsa
cisamente em 1971, o termo seria em- em Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião
(Tinta da China, 288 págs., 90 reais). Para
pregado como sinônimo de velhice em destrinchar o mito, André Belo escava o
uma reportagem, no Jornal do Brasil, passado com os olhos do presente.
sobre o livro A Velhice (1970), de Simone
de Beauvoir. A criação da expressão ter-
ceira idade é atribuída ao gerontologista
francês Jean Auguste Huet.
A despeito do Estatuto do Idoso, que
obriga o Estado e a sociedade a assegurar
os direitos da pessoa idosa – garantidos
REDES SOCIAIS E ISTOCKPHOTO

também pela Constituição – ainda gras-


sam o preconceito e, em muitos casos, a
falta de assistência. O olhar de desdém O narrador de Eu, Bernardo (Maralto, 285
sobre o idoso ficou bem claro durante o A INVENÇÃO DA VELHICE págs., 49,90 reais), livro pertencente ao
período da pandemia, exposto de forma MASCULINA gênero Young Adult, é um adolescente al-
to, magro e tímido (e sempre de fones de
objetiva e acurada pelo autor: Valmir Moratelli.
ouvido) que, a convite da psicóloga, resol-
Matrix (224 págs., 53 reais)
“A mídia divulgou alertas e declara- ve escrever sobre si. Daniela Pinotti, a au-
ções políticas, inclusive que ‘elogiavam’ tora, é ela a própria psicóloga.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 55
Plural

Uma vida forjada


longe de ser dos mais populares no Oci-
dente – ainda que seja, na infância, muito

nos tatames
praticado. O judô, nos conta ele, um pou-
co como um sensei, nasceu em 1882, ano
15 da era Meiji, na escola Kodokan, o “lu-
gar onde se revela o caminho”.
ESPORTE Thierry Frémaux, um dos homens O livro se deterá sobre sensei Jigoro
Kano, o criador do judô, cujo retrato se-
mais influentes do cinema mundial, relata, gue a ocupar as paredes de dojos mundo
em livro autobiográfico, a história do judô afora. A infância de Kano, que perdera a
mãe aos 10 anos, faz Frémaux lembrar-
-se do cineasta Yasujirō Ozu e, é claro,
do personagem de Sugata Sanshiro em A

E
Saga do Judô, o primeiro filme de Akira
u sou faixa preta 4º dan. culo: “Eles são populares, produzem sen- Kurosawa.
" Quando você é faixa pre- tido, sonho e drama”. Em vários momen-
ta, é para a vida inteira. tos, ele estabelece laços entre ambos. Kano, ao entrar na faculdade para es-
Mas minha vida me con- O primeiro paralelo que ele traça é tudar literatura e filosofia, resolveu estu-
duziu para outro lugar, entre a criação dessa arte marcial, por dar também uma antiga luta japonesa, o
para o Instituto Lumière de Lyon e para Jigoro Kano, e a do cinematógrafo, por jujusu. “A arte da luta é necessária ao in-
o Festival de Cannes. Os tapetes que ago- Louis Lumière. Não deixa de haver, nes- divíduo para cultivar a força que lhe per-
ra frequento são vermelhos e levam a ou- se cruzamento, certa idealização afetiva. mitirá se defender e preservar um cará-
tros santuários.” Mas por ser o amor – pelo cinema e pelo ter determinado”, escreveu, em 1915. Pa-
Entrado na sexagésima década de vi- judô – o fio condutor da narrativa, isso ra ele, não haveria desenvolvimento mo-
da, Thierry Frémaux, um dos homens está longe de ser um problema. ral sem a expansão do corpo, nem reali-
mais influentes do cinema mundial – Frémaux, dotado de natureza pesqui- zação pessoal sem o cuidado com o outro.
e, no campo do cinema de arte, talvez sadora, oferece, em Judoca, um valoro- O relato de Frémaux será, no fundo,
o mais influente – resolveu voltar a um so relato histórico desse esporte que está sobre isso: sobre o esporte “formar o tan-
passado do qual se orgulha e que, a um gível” e nos fazer experimentar, muito
olhar precipitado, soa improvável: o judô. cedo, não tanto a vitória, mas, em espe-
Judoca insere-se numa linhagem for- cial, a derrota; sobre o “doce sofrimento
te da literatura atual: aquela dos autores dos atletas”; e sobre a queda. “A compe-
que, a partir da narrativa sobre si, recu- tição conduz a outra existência, na qual
peram épocas, meios sociais e modos de reinam o caráter, a vontade e a força (...)
existir de pessoas que o tempo tornou Obrigada à vulnerabilidade e ao confron-
anônimas, mas cujas trajetórias são to com a hostilidade do real.”
memoráveis. Frémaux, além disso, nos O diretor do Festival de Cinema de
oferece um olhar sensível sobre os sen- Cannes passou a infância em alguns dos
tidos do esporte praticado a sério – sen- grandes conjuntos residenciais, chama-
tidos esses raramente captados ou com- dos cités, comuns na França nas décadas
preendidos pelos que habitam o mundo de 1960 e 1970. Neles havia os clubes on-
intelectual. de se deu sua formação como atleta. E ha-
Cinéfilo por paixão e ofício, além de via também as bibliotecas.
JUDOCA
leitor voraz, o autor, não poucas vezes, Frémaux, além de treinar, lia mui-
Thierry Frémaux. Tradução: Eloísa
recorre aos filmes para dar forma ao que Araújo Ribeiro. Fósforo to e, de início, lia, sobretudo, a respeito
deseja expressar. Afinal de contas, como (272 págs., 89,90 reais) de esportes. Era aficionado pelo espíri-
diz, esporte e cinema narram o nosso sé- to do judô, por seu vocabulário – zarei,

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Faixas pretas. O diretor do Festival de
Cannes resolveu voltar ao passado de
atleta e à história do sensei Jigoro Kano
(à esq.) após ver o último filme de Tarantino

bi Julia Roberts no topo das escadarias,


sou amigo de Jean-Michel Aulas, tenho
um trator Massey Ferguson e uma bicicle-
ta Look carbono. Mas deixei de lado o judô
(...) Não tenho mais os reflexos, a postura
e os pensamentos de um judoca (...) Não
sei mais onde está a mochila com minhas
coisas”, descreve. “Para aqueles que prati-
caram judô, e seja lá o que for que suas vi-
das tenham se tornado depois, o quimo-
no será para sempre o traje do orgulho.”

A decisão de escrever essa história


ô-soto-gari, randori – e sua combativida- Frémaux é nem o dos atletas de altíssimo foi tomada enquanto assistia, na ilha de
de, mas sabia também tudo sobre ciclis- rendimento – que, talhados para o trei- edição, nos Estados Unidos, a Era Uma
mo e se impressionava com os feitos de namento extremo, tendem a focar seus Vez em... Hollywood. O filme de Quentin
Mark Spitz nas piscinas. relatos nas ideias de superação e resili- Tarantino despertou nele o desejo de visi-
Acontece que os tempos eram de enga- ência – nem o dos escritores que admi- tar a própria memória e, com isso, recons-
jamento político e o esporte era conside- ram o esporte, mas não tiveram a própria truir um passado que não existe mais.
rado o ópio do povo. Não demorou para psique forjada por uma carreira de atleta. Foi por amor ao cinema que, a certa al-
que aprendesse a, fora do clube, esconder Frémaux foi uma promessa em sua re- tura da vida adulta, Frémaux renunciou
seu fervor: “Não achava que ser torcedor gião, conheceu o gosto de ser campeão ao judô. Mas, embora pouca gente sou-
de um time fizesse de mim um ser social em torneios importantes e foi professor besse disso até Judoca ser publicado, no
REDES SOCIAIS

desprezível, mas aprendi a ser cauteloso”. de judô. A vida lhe reservou, porém, ou- alto da escadaria do Palais des Festival,
É ao fazer essa interseção entre arte tras glórias – as dele próprio, e as dos ci- em Cannes, sempre esteve postado um
e esporte, intelecto e corpo, que Judo- neastas, atores e atrizes. judoca. Como não desconfiamos disso? •
ca se torna um grande livro. O olhar de “Tenho uma vida bem cheia (...) rece- – por Ana Paula Sousa

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Lula III, Ano I
O
presidente Lula completa um ano do terceiro mandato. Não bastassem os desafios da
reconstrução do Estado, o governo enfrenta um cenário externo desafiador, em um
mundo assolado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, o conflito entre Israel e o Hamas e
os realinhamentos geopolíticos decorrentes da nova “guerra fria” que coloca em lados opostos
os Estados Unidos e a China. Sem falar na cada vez mais urgente transição sustentável. Na edição
especial de fim de ano, CartaCapital reúne um grupo de renomados especialistas para avaliar os
12 meses de Lula 3, da tentativa de golpe em 8 de janeiro à política ambiental e à recuperação
do prestígio internacional do País. Acertos e erros, avanços e recuos, ameaças e esperanças,
vencedores e perdedores, o que o primeiro ano do governo nos diz a respeito do futuro do Brasil?

Aldo Fornazieri – Carlos Bocuhy – Carlos Drummond


Celso Amorim – Cláudio Couto – Danilo Cabral
Eduardo Saron – Eliara Santana – Esther Solano
Fabíola Mendonça – Francisco Teixeira
Jaques Wagner – João Pedro Stédile
José Gomes Temporão – Júlio Lancelotti
Luciana Santos - Luiz Gonzaga Belluzzo
Marjorie Marona – Mariana Serafini – Mino Carta
Otaviano Helene – Pedro Serrano – Rodrigo Martins
Samira Bueno – Samuel Vida – Sergio Lirio
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