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CERRADO EM OPOSIÇÃO AO GOVERNO FEDERAL, ARGENTINA NA MAIS DRAMÁTICA CAMPANHA

ESTADOS E MUNICÍPIOS LIBERAM A BOIADA, ELEITORAL DESDE O FIM DA DITADURA, A DÚVIDA


À MODA DO EX-MINISTRO RICARDO SALLES, É SABER QUEM DISPUTARÁ O SEGUNDO TURNO
E O DESMATAMENTO CRESCE 149% NA REGIÃO COM JAVIER MILEI, PROTÓTIPO DE BOLSONARO
ANO XXIX N° 1282 R$ 31,90
25 DE OUTUBRO DE 2023

SENHORES DA GUERRA
PRESOS AO PASSADO, BIDEN E NETANYAHU UNEM-SE POR UM MUNDO PIOR
MINO CARTA: ENQUANTO O GOVERNO SE MANTÉM EQUIDISTANTE,
A MÍDIA NATIVA INSISTE NA TESE DO TERRORISMO DO HAMAS

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25 DE OUTUBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1282

No acumulado do
ano, a devastação do
Cerrado aumentou
26%. Pág. 29

8 A SEMANA 35 PEDRO SERRANO


36 P O D E R Rodrigo Pacheco, Nosso Mundo

Plural
Seu País o presidente do Senado, 44 A R G E N T I N A Favorito
26 E D U C A Ç Ã OO MEC parece disposto a criar nas pesquisas, Javier
aposta em uma bolsa dificuldades para Lula Milei incorpora

48
para reduzir a evasão o papel de ídolo
escolar no ensino médio Economia pop do neofascismo
29 C E R R A D O Os alertas de 40 C O N J U N T U R A Ações do As forças
46 U C R Â N I A MUNDO DE
desmatamento no bioma governo e alguns acasos de resistência IMAGENS
disparam e colocam em impulsionam a economia, furam o cerco
xeque a agenda de meio mas há desafios de peso russo no Mar Negro
B R U N O K E L LY / A M A Z Ô N I A R E A L E M AYA D E V I C Q

ambiente do governo A MOSTRA DE CINEMA DE SÃO PAULO,


32 F U T E B O L Mais que ALÉM DE UMA VITRINE DE FILMES,
um clube, o Palmeiras é TORNOU-SE UM ESPAÇO ONDE
uma ideia que se exprime IDEIAS E PROJETOS SÃO GESTADOS
da melhor forma no
trabalho coletivo 50 T H E O B S E R V E R A conquista do Oeste
CAOS HUMANITÁRIO americano recontada por Scorsese
52 L I V R O Bernardo Carvalho explora
Capa: Pilar Velloso. ENJAULADOS NA FAIXA DE a Amazônia 54 M E M Ó R I A Luiz Gushiken,
Fotos: iStockphoto, Jim
Watson/AFP e Kyle Mazza/ GAZA, OS PALESTINOS PARECEM presente 56 AFONSINHO 57 SAÚDE Por Drauzio
Anadolu Agency/AFP ANIMAIS À ESPERA DO ABATE Varella 58 C H A R G E Por Venes Caitano

C ENT R A L D E A T ENDI M ENT O F AL E CO NO SCO : HTTP : //A TE N D IM E N TO. CA RTA CA P ITA L . COM . BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) AQUELE QUE FALTA
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
Espero que a pena de Bolsonaro
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis seja equivalente àquela dos execu-
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial) tores do golpe fracassado de 8 de janei-
REVISOR: Hassan Ayoub ro, até 17 anos de reclusão. Assim, os
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim, que já estão enjaulados não sentirão fal-
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos, ta de seu mito.
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Margareth Ruffel
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr.,
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
COBERTOR CURTO
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo Profissionais da saúde que se for-
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
mam em universidades públicas
CARTA ONLINE
deveriam retribuir com pelo menos dois
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira anos de serviço público.
HITLER AO CONTRÁRIO
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva, Roberto Ernesto
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
Fico pensando a razão de a União EM BUSCA DE MAIS MÉDICOS
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura Europeia apoiar esses massacres
Se for para criar novos cursos de
REDES SOCIAIS: Caio César
de palestinos pelos sionistas, sabendo
SITE: www.cartacapital.com.br Medicina para alunos como os da
que são eles que terão de receber
Unisa, é melhor deixar como está. Pre-
milhões de refugiados com todas as
cisamos de profissionais humanos, que
mazelas. Viva a burrice.
saibam ouvir o paciente antes de
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
Clóvis Deitos
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 começar a digitar e emitir receitas.
PUBLISHER: Manuela Carta
BANHO DE SANGUE Rita Preccaro
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene Engraçado como vemos outros
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo O dia que pobre puder estudar
veículos de comunicação se posi-
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
Medicina resolveremos o problema
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo cionarem apenas ao lado de Israel. Ape-
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios da falta de médico nas quebradas.
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, sar de a Palestina estar sequestrada por
Renato Coelho
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva grupos radicais, isso não tira o direito de
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE:
o povo palestino existir. PODER PARALELO
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, Giovani Lima Montenegro Não considero que o caso dos três
enio@gestaodenegocios.com.br
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PAZ VIOLENTA
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
pelo crime organizado. Parece mais uma
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267, Nestes tempos plúmbeos em
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que temos intensos conflitos no
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com não chegar aos mandantes do crime.
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tende a opinar, dizendo e escrevendo
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Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. sobre o que não sabe. Neste artigo, o
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 professor Reginaldo Nasser detalha Várias petrolíferas estão jogando
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se em poucas linhas o fulcro da questão contra a transição energética ao
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou palestino-israelense. As condições de- redor do mundo. A Petrobras não,
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel sumanas impostas à população palestina, porque é pública, então está investindo
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584,
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
mais especificamente em Gaza e na Cis- milhões em energia limpa. Quando quem
acordo com a Lei de Imprensa. jordânia, levaram às investidas do grupo manda é o dinheiro, quem paga é o povo.
armado Hamas. O cinismo e a indiferença Theo Wacker
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) das grandes potências em relação à so-
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos brevivência e dignidade de um povo, que CÍRCULO VICIOSO
teve suas terras afanadas por outro, fize- O zé-povinho, no desespero, sem-
ram com que houvesse uma revolta. Nada pre dá atenção ao canto da sereia
melhor do que reparar esse erro histórico dos “anti-Estado” e “antipolíticos” que
e devolver a quem de direito o que é seu, prometem ser diferentes de “tudo que aí
sem prejudicar a quem ocupou de forma está”. Até que esses “anti” mostram que
pacífica. O fato é que não se deve culpar são, na realidade, antidemocráticos, an-
israelenses nem tampouco o judaísmo. tipobres, antipovo...
Paulo Sérgio Cordeiro César Augusto Hulsendeger

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
Fale Conosco: http://Atendimento.CartaCapital.com.br E-mail: cartas@cartacapital.com.br, ou para a Rua da Consolação, 881, 10º andar, 01301-000, São Paulo, SP.
De segunda a sexta, das 9 às 18 horas – exceto feriados •Por motivo de espaço, as cartas são selecionadas e podem sofrer cortes. Outras comunicações para a redação devem ser
remetidas pelo e-mail redacao@cartacapital.com.br
Edições anteriores: avulsas@cartacapital.com.br

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A Semana
Refresco no TSE
Tiro
8 de Janeiro/
O Tribunal Superior Eleitoral
rejeitou, na terça-feira 17, três
ações contra Jair Bolsonaro
pela culatra
por abuso de poder político na Proposta pela oposição bolsonarista,
campanha de 2022. Duas
CPI pede o indiciamento de Jair
tratavam de lives feitas pelo
então candidato à reeleição Bolsonaro por quatro crimes
no ano passado, nas quais
houve pedidos de voto,

C
e outra de eventos com
governadores e artistas riada a pedido da oposição bol-
nos palácios de governo. sonarista, a CPI do 8 de Janeiro
As absolvições não alteram aprovou, na quarta-feira 18, o re-
a situação de Bolsonaro, latório da senadora Eliziane Ga-
declarado inelegível por oito
ma, do PSD, a apontar Jair Bolsonaro como
anos em junho passado. Na
ocasião, os ministros da Corte o “mentor intelectual” dos atos golpistas que
entenderam que ele utilizou devastaram as sedes dos Três Poderes no
a estrutura da Presidência início do ano. Enviado à Procuradoria-Ge-
da República e da Empresa ral da República, o documento propõe o in-
Brasileira de Comunicação
diciamento do ex-presidente por quatro cri-
para semear mentiras contra
o sistema eleitoral durante mes: associação criminosa, violência políti-
uma reunião com ca, abolição violenta do Estado Democrático
embaixadores. Na prática, de Direito e golpe de Estado. Somadas, as pe-
uma nova condenação teria nas podem chegar a 29 anos de reclusão.
efeito meramente político,
Ao propor a investigação, os bolsonaristas
pois as ações não poderiam
resultar em um período tentaram responsabilizar Lula pelo golpe do
de inelegibilidade maior. qual foi vítima. A turma queria emplacar a
exótica tese de que o novo governo permitiu o
quebra-quebra em Brasília para depois co- As digitais do ex-presidente na
lher frutos políticos. Funcionou durante al- conspiração acabaram expostas

gum tempo para abastecer as redes sociais


com fake news, mas a CPI, de maioria gover- la delação premiada de seu principal ajudan-
nista, acabou por apontar as digitais de Bol- te de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid. A
sonaro e seus asseclas na trama golpista. relatora da Comissão apontou ainda que in-

AG EN CY/A FP E GIL DO SMIT H / P REFEIT U R A D E M A N AUS


“Os fatos aqui relatados demonstram, tegrantes das Forças Armadas foram lenien-
exaustivamente, que Jair Messias Bolsonaro, tes ou agiram em favor de uma tentativa de
G A L O P A G U A Y / A F P, M A T E U S B O N O M I / A N A D O L U
então ocupante do cargo de presidente da Re- golpe. Na lista de indiciados, figuram o almi-
pública, foi autor, seja intelectual, seja moral, rante Almir Garnier Santos e o general Mar-
dos ataques perpetrados contra as institui- co Antônio Freire Gomes, ex-comandantes
ções, que culminou no dia 8 de janei- da Marinha e do Exército, respectivamente.
ro de 2023”, diz um trecho do relatório de A lista de alvos inclui, ainda, quatro ex-mi-
1.333 páginas. Segundo Gama, o ex-presiden- nistros de Bolsonaro, os generais Walter Bra-
te “pretendia ser o maior beneficiário (dos ga Netto (Defesa e Casa Civil), Augusto Hele-
atos) em caso de sucesso no intento golpista”. no (GSI), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de
A participação de Bolsonaro na teia golpis- Governo) e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira
ta, segundo a senadora, foi exposta por Wal- (Defesa). Outros militares, da ativa e da re-
ter Delgatti Neto, o hacker da Vaza Jato, e pe- serva, também foram responsabilizados.

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25.10.23

Clima/ Sahara amazônico


Arsenal
desaparecido
Rios da floresta atingem mínima histórica em meio a seca severa
Na terça-feira 17, o Exército
liberou a saída de 320 dos

A
480 militares impedidos de
prolongada estiagem na Flores- Com vias fluviais interditadas pela drás-
deixar o quartel em Barueri,
ta Amazônica tem transforma- tica redução dos níveis dos rios, diversas co- na Grande São Paulo, após
do a paisagem tropical em de- munidades ribeirinhas ficaram isoladas e o furto de 13 metralhadoras
serto. Na segunda-feira 16, o desabastecidas de alimentos, medicamentos calibre .50, com poder de
Rio Negro teve seu nível mais baixo em 120 e outros itens essenciais à sobrevivência. O derrubar aeronaves, e oito
fuzis calibre 7,62. Os praças
anos de medição, e ele pode baixar ainda caudaloso Rio Solimões secou completamen-
e oficiais ainda aquartelados
mais. Segundo pesquisadores do Instituto te no trecho que banha a Terra Indígena Por- permanecerão à disposição
Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa, to Praia de Baixo, na região de Tefé. Além da dos investigadores. O general
as grandes secas no bioma costumam es- elevada mortandade dos peixes, a estiagem Tomás Paiva, comandante
tender-se até o início de novembro. tem forçado moradores de algumas comuni- do Exército, descartou a
possibilidade de contagem
dades a beber a água barrenta e
errada e afirmou que a força
contaminada de igarapés. continua empenhada na
De acordo com especialistas, recuperação do arsenal,
a seca pode ter sido agravada cujo sumiço foi constatado
pelo anormal aquecimento das em 10 de outubro. Segundo
o Comando Militar do
águas do Atlântico, cuja tempe-
Sudeste, responsável
ratura de superfície vem baten- pela apuração, a principal
do sucessivos recordes. O fenô- hipótese é de que as armas
meno seria responsável por le- de combate foram furtadas.
var baixa umidade para a flo-
resta. O governo federal estima
que mais de 500 mil habitantes
já foram impactados pela seca
Com vias fluviais interditadas, comunidades ribeirinhas ficaram isoladas apenas no estado do Amazonas.

Equador/ VENCE O PRÍNCIPE DA BANANA


O MAGNATA DANIEL NOBOA DERROTA O CORREÍSMO E É ELEITO PRESIDENTE
AG EN CY/A FP E GIL DO SMIT H / P REFEIT U R A D E M A N AUS

O empresário Daniel Noboa, de decisiva e acabou eleito, no do- Noboa derrotou a esquerdista
G A L O P A G U A Y / A F P, M A T E U S B O N O M I / A N A D O L U

35 anos, será o mais jovem mingo 15, com 52% dos votos. Luisa González, candidata do
presidente da história do Equa- Embora tenha no currículo Revolução Cidadã, apoiada pe-
dor. Proveniente de uma das uma breve passagem pela As- lo ex-presidente Rafael Correa.
famílias mais ricas da América sembleia Nacional, o empresá- A eleição foi para um man-
Latina, reconhecida pelos rio beneficiou-se do enorme dato-tampão de um ano e meio.
equatorianos por seu império recall político de seu pai, Álvaro Como o presidente Guilherme
bananeiro, o neófito político fi- Noboa, conhecido como o Lasso acionou o dispositivo da
gurava com um porcentual de “Magnata da Banana”, que “morte cruzada”, na qual renun-
único dígito até poucas sema- disputou a Presidência seis ve- cia ao cargo ao mesmo tempo
nas antes do primeiro turno zes. Apresentando-se ao elei- que dissolve a Assembleia Na-
das eleições. Em uma disputa torado como um liberal outsi- cional, o novo líder só ficará no
atípica, maculada por atenta- der, uma alternativa à velha po- poder até maio de 2025, quan-
dos políticos, Noboa surpreen- larização política entre correís- do está prevista a realização Mais um outsider desponta
deu ao avançar para a etapa tas e anticorreístas, Daniel de nova disputa presidencial. na política latino-americana

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CA PA

A guerra
do ódio
NETANYAHU ACREDITA TER SIDO ESCOLHIDO POR
DEUS PARA LIDERAR O POVO ELEITO E JOE BIDEN
SE APRESSA A CONFIRMAR A DECISÃO DE JEOVÁ

por MINO CA RTA

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A
s figuras expostas Gaza é bombardeada, enquanto diga-se, à sábia decisão da diplomacia bra-
os tanques de Israel esperam
na capa desta edi- na fronteira a ordem de invadir
sileira. Chamado pelo Conselho de Segu-
ção são altamen- rança da ONU a exercer o papel de analis-
te simbólicas de ta da situação, o Brasil não hesitou ao as-
crenças, convic- Soviética. Assim era quando a propaganda sumir uma posição capaz de entender a
ções e humores de Tio Sam pretendia a deflagração do em- verdade de um conflito precipitado na ori-
equivocados dos bate entre o Bem e o Mal. Netanyahu ago- gem pelas decisões dos grandes da Terra,
retratados. Benjamin Netanyahu não se ra ecoa aquela retórica ao falar da refrega quando da queda do Império Otomano.
permite a mais pálida dúvida quanto à entre Luz e Sombra, em um penoso ensaio A região foi retalhada ao talante das
condição de povo eleito, concedida pes- evocativo. Já o presidente dos Estados Uni- conveniências dos envolvidos na divisão
T H O M A S C O E X / A F P E YA H YA H A S S O U N A / A F P

soalmente por Deus a Israel e à sua mis- dos permite-se o rompante: “Afinal, somos e não das justas demandas dos povos lo-
são nazista de cancelar do mapa a raça ára- a maior potência do mundo faz muito tem- cais. Impecável a definição emanada pelo
be. A fisionomia hesitante de Joe Biden e po”. Só falta vestir a fantasia de Tio Sam, governo de Lula, a contar com as corretas
seu sorriso mortiço são indícios de uma de cartola e tudo mais. Não deixa de ha- observações do conselheiro especial Cel-
jactância agora obsoleta e, sem perceber ver um toque ridículo neste enredo atual. so Amorim, antigo companheiro do pre-
a inutilidade do gesto, remete para o Me- Quando Biden, protegido pela sombra sidente e do acima assinado, colhidas não
diterrâneo oriental dois porta-aviões. maciça do touro de bronze de Wall Stre- por acaso pelo celular da fidelíssima se-
Os poderosos barcos de guerra já não et, definiu como terrorista o ataque do cretária Cláudia, na véspera da primei-
assustam, são objetos imponentes de pu- Hamas e apoiou incondicionalmente a ra prisão do presidente, precipitada pe-
ra decoração ao evocar o imperialismo de reação de Tel-Aviv, cometeu, de fato, uma la então chamada República de Curiti-
outrora, tão agressivo quanto o da União declaração de guerra, em contraposição, ba, encabeçada pelas torpes persona-

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CA PA

gens de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. cumbas, labirintos subterrâneos em que


Ao ponderar a respeito da situação, o os judeus se escondiam quando o primei-
Brasil repeliu a definição como terrorista ro papa, Pedro I, morreu crucificado de
do ataque do Hamas, legítimo represen- cabeça para baixo.
tante do povo humilhado em Gaza. Estra- A história dá suas voltas e o povo elei-
nhamente, a imprensa brasileira discrepou to foi alvo de violências e perseguições. Se
da posição definida pelo governo. Os nos- Roma tornou-se a capital da religião cató-
sos pseudojornalistas, dos âncoras dos pro- lica, a Terra Santa ficou onde sempre es-
gramas de televisão e de rádio aos edito- teve. Ocorreu que o imperador romano
rialistas no papel impresso, foram unâni- Constantino tornou religião de Estado
mes no apoio à fala de Biden. E ao longo do Mauro Vieira: chanceler equidistante o Catolicismo e, desde aquele momento,
tempo, impávidos, continuaram a denun-
ciar o terrorismo do Hamas. A discrepân-
cia não é novidade, pelo contrário, vem de
longe, como se as falsas coberturas fossem
emanadas diretamente da Casa Branca.

E
nquanto as forças de
Netanyahu perfilavam-se
na fronteira de Gaza, amoi-
tadas à espera da invasão,
o balanço das vítimas da
guerra já passava de 5 mil mortos, 15 mil
feridos, sem contar 1,5 mil combaten-
tes do Hamas abatidos, além da destrui-
ção em larga parte do território da Faixa,
diante do Mediterrâneo. Fardado e ar-
mado até os dentes, o povo eleito aguar-
da a hora do ataque decisivo, com o apoio
irrestrito de Tio Sam. Muito se alude à
necessidade de um apoio humanitário
destinado ao povo de Gaza, qual fosse um
lance da generosidade ianque a produzir
a encenação de uma visita apressada do
chanceler de Washington a países árabes,
incluídos no cardápio do faz de conta.
Humberto Eco recomendava nas
suas brilhantes colunas do semanário
L’Espresso a leitura de um livro intitula-
do Iluminados e Carismáticos, de Ronald
Knox, a contar a história que se seguiu
à Crucificação, dominada pelos “fanáti-
cos do Apocalipse”, até a queda de Saulo
a caminho de Damasco, para tornar-se
o São Paulo líder da religião católica e de
sua Igreja. O Império Romano perseguiu
os judeus cristãos. Foi o tempo das cata-

Gaza condenada à destruição,


à escuridão e à fome

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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surgiu o Vaticano. Papa Francisco conhe-
ce este entrecho como ninguém e acaba de
fazer de sua constatação um aviso bastan-
te claro: “O mundo está desmoronando”.
A frase poderia figurar com destaque
no livro de Ronald Knox para vaticinar
a aproximação do Apocalipse. Há quem
já ouça o tropel dos quatro cavaleiros fa-
tídicos, a representarem a guerra, o fogo,
a fome e a pestilência. E o pontífice nos
Na fronteira, bombas e tanques coloca de prontidão. •

M AG A L H Ã ES/ M RE E JA L A A M A RE Y/A FP
M A H M U D H A M S / A F P, G U S T A V O

C A R TAC A P I TA L — 2 5 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 15

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CA PA

Arapuca
ENJAULADOS NA FAIXA DE GAZA,
OS PALESTINOS SÃO TRATADOS
COMO ANIMAIS À ESPERA DO ABATE

por SERGIO LIR IO

D
e Ashkelon, na sem precedentes, mesmo para os padrões
fronteira sul de de uma região em que a carnificina é qua-
Israel, à cidade se tão corriqueira quanto os feriados re-
de Gaza não exis- ligiosos. O azar dos palestinos, no curto
tem barreiras na- prazo, e do resto do mundo, no médio, é
turais. A planície a dissociação entre o poder, o desejo e os
inóspita estende- cálculos de Biden. Em busca de uma ban- ropa, veem-se depois. As próximas horas
-se por 21 quilômetros em linha reta e deira de campanha à reeleição – o apoio à serão decisivas e, diante do histórico dos
oferece ao exército judeu um trajeto rá- Ucrânia não se mostrou assim tão popu- últimos dias, é oportuno seguir o conse-
pido e visão privilegiada do alvo. Estacio- lar entre os eleitores –, o democrata agar- lho de Dante na porta do Inferno: o me-
nados a uma distância prudente, os sol- rou-se a Benjamin Netanyahu como um lhor é depositar aqui, neste primeiro pa-
dados, em número cada vez maior, assis- náufrago diante de um pedaço de madeira rágrafo, todas as esperanças.
tem ao espetáculo como um fim de tarde flutuante. As consequências, que vão do Biden desembarcou em Tel-Aviv antes
na Disneylândia. A luz dos foguetes cru- fortalecimento do radicalismo no Orien- do previsto, na quarta-feira 18, sob cir-
za suas cabeças e, em seguida, os cogume- te Médio às ameaças de atentados terro- cunstâncias diferentes. Passados dez dias
los de fumaça se misturam à poeira do de- ristas no Ocidente, em particular na Eu- dos ataques do Hamas e diante do revide
serto. Alguns recrutas dançam, enquanto desproporcional, a unanimidade ociden-
os comandantes repetem o mantra do mi- tal na condenação ao Hamas e na defesa do
nistro da Defesa, Yoav Gallant: o objetivo direito “moral” de Israel a uma dura res-
O ATAQUE
é eliminar o Hamas, se houver vítimas ci- posta cedeu espaço a desconfiança e di-
vis, a responsabilidade é da facção pales- AO HOSPITAL, QUE vergências mais ou menos explícitas. Os
tina. O fluxo ininterrupto nas estradas de DEIXOU UM RASTRO próprios Estados Unidos pareciam ter en-
Ashkelon e Siderot, cidades vizinhas, ex- DE 500 MORTOS, tendido a complexidade da situação. Dois
pande o acampamento de tanques, blin- dias antes da viagem, o presidente norte-
PROVOCOU
dados e reservistas, à espera, quem sabe, -americano, em raro momento de luci-
da ordem divina de Jeová para dar início NOVA ONDA dez, declarou que a invasão da Faixa de
à guerra santa “por terra, ar e mar”. E Jeo- DE INDIGNAÇÃO Gaza seria um erro. Àquela altura, Antony
vá, neste momento, atende pelo nome de E REVOLTA NO Blinken, secretário de Estado, excursio-
Joe Biden. O presidente norte-americano nava pelos países árabes mais influentes
ORIENTE MÉDIO
é a única autoridade capaz de evitar uma da região. Foram oito paradas, do Egito à
incursão militar em Gaza e um massacre Jordânia. Não se sabe o que exatamente

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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Blinken falou e ouviu no exaustivo périplo, Enquanto destrói a Faixa de Gaza, tribuíram um vídeo e supostas conversas
Israel oferece duas opções aos palestinos:
mas sua expressão ao voltar a Israel na se- interceptadas para comprovar a tese, mas
morrer soterrado ou de fome e sede
gunda-feira 16 não era das melhores. O se- as imagens têm sido contestadas pelos pa-
cretário posou para fotos ao lado de Galant lestinos e seus aliados. As cenas seriam do
e, antes de se trancar por nove horas com armado do Líbano, prometeu um “dia de ano passado, diz a Turquia, e sem nenhu-
Netanyahu, reafirmou o apoio logístico no raiva” em resposta. Uma onda de indigna- ma relação com o hospital destruído. Ape-
combate à milícia palestina (os EUA refor- ção e protestos espalhou-se pelo Oriente sar do alto grau de desinformação, Biden e
çaram a retaguarda israelense com um se- Médio e chegou à Turquia. Seis aeropor- parte da mídia ocidental não pestanejaram
gundo porta-aviões, o USS Gerald R. Ford, tos franceses foram evacuados por ame- em aceitar a versão de Israel. “De acordo
o maior navio de guerra do mundo). Qual aças terroristas, incentivadas pela proi- com dados do Departamento de Defesa dos
seria a sugestão de Washington? Haveria bição das manifestações em favor da Pa- EUA, parece que foi feito pela outra equi-
uma maneira de aplacar a sede de vingan- lestina. Judeus invadiram o Capitólio, em pe, não por vocês”, declarou o presidente
ça dos israelenses sem uma incursão mi- Washington, para protestar contra a inva- norte-americano, em referência ao Hamas,
litar em Gaza? Como conter uma revolta são e a reação desproporcional de Israel. durante uma entrevista coletiva na compa-
árabe se os palestinos, encurralados e in- “Não em nosso nome”, diziam cartazes e nhia de Netanyahu. Biden foi além. O gru-
defesos, sofrerem uma chacina? camisetas. O governo Netanyahu nega o po palestino, afirmou, “cometeu males e
O bombardeio a um hospital em Gaza na ataque ao hospital e aponta o dedo para a atrocidades que tornam o Estado Islâmi-
véspera da visita de Biden ampliou as in- Jihad Islâmica. Segundo a versão israelen- co um pouco mais racional”. Ouviu, em
certezas. As famílias dos cerca de 500 mor- se, ou ocorreu uma falha em um dos fogue- troca, o agradecimento do premier israe-
tos mal tiveram o direito ao luto. O atenta- tes do grupo ou a destruição foi intencional lense “pelo apoio e compromisso inabalá-
MOH A MMED A BED/A FP

do tornou-se a mais recente peça da bata- e visava criar embaraços a Biden durante a vel” no provimento de recursos à ofensiva.
lha de informação entre as partes do con- estada em Tel-Aviv. “Aqueles que mataram O apoio e o compromisso inabalá-
flito. A Autoridade Palestina e o Hamas brutalmente os nossos filhos estão a matar vel com Israel fazem dos Estados Uni-
acusam Israel e classificam o ataque de os seus próprios filhos”, acusou o primeiro- dos parte do problema, não da solução.
“massacre horrível”. O Hezbollah, grupo -ministro. Os serviços de inteligência dis- Após o bombardeio ao hospital e a guer-

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CA PA

ra de versões, o rei da Jordânia, Abdullah Biden prometeu todo apoio a Netanyahu, ra. Nós ganharemos. Não vamos parar
culpou o Hamas pelo bombardeio do hospital e
II, e o presidente da Autoridade Palesti- comparou o grupo palestino ao Estado Islâmico
até a vitória”, prometeu aos congressistas.
na, Mahmoud Abbas, cancelaram as reu- De maior prisão ou campo de concen-
niões bilaterais com o presidente dos Esta- tração a céu aberto, a Faixa de Gaza foi
dos Unidos. “A agressão contínua a Gaza”, luta entre os filhos da luz e os filhos das convertida em uma arapuca. Os morado-
alertou o chanceler do Líbano, Abdallah trevas, entre a humanidade e a lei da sel- res do norte foram colocados entre a cruz
Bou Habib, tende a “desencadear um in- va”, dizia a passagem removida da rede so- e a caldeirinha. Ou atendiam ao ultima-
cêndio que poderá consumir toda a re- cial. Apagar um tuíte não altera a realidade to do exército israelense e fugiam para o
gião.” Se a intenção era aplacar os ânimos nem minimiza o tom belicista do sermão sul ou obedeciam ao comando do Hamas e
no mundo árabe, além de passar a mão na aos deputados do Knesset. Acusado de ne- se prestavam ao papel de escudo humano
cabeça de Netanyahu, Biden produziu um gligência e incompetência por conta da au- na iminente batalha territorial. Não havia
fiasco. A única notícia positiva foi a libera- dácia da ação do Hamas, Netanyahu quer escolha certa. Ou melhor, não havia esco-

M I N I S T É R I O D A C O M U N I C A Ç Ã O / R E I N O D A J O R D Â N I A , B R YA N R . S M I T H /
ção do Egito de um corredor “permanen- salvar o próprio pescoço à custa da gar- lha. Israel rejeitou publicamente o apelo

AFP E HAIM TZACH/GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO DE ISRAEL


te” através de Rafah para a circulação de ganta dos inimigos. “Fomos para a guer- das Nações Unidas para a criação de um
comida, água, medicamentos e equipes de corredor humanitário e tem bombardea-
socorro. Os egípcios continuam, porém, ir- do de forma indiscriminada a região, de
redutíveis no bloqueio ao fluxo de pales- norte a sul, de leste a oeste, inclusive as
“ESTA É UMA
tinos e estrangeiros confinados ao sul de áreas por onde trafegam os comboios de
Gaza, o que impede, entre outros, o resgate LUTA ENTRE OS civis que acataram a “sugestão” de deixar
de brasileiros. Tel-Aviv aceitou a criação do FILHOS DA LUZ suas casas e juntar-se ao formigueiro na
corredor sem abrir mão dos bombardeios. E OS FILHOS DAS outra ponta do enclave. O confinamento
O premier israelense, por sua vez, manteve de quase 2 milhões de palestinos em um
TREVAS, ENTRE
a postura ambígua. Em uma demonstra- espaço ainda mais reduzido agrava a fal-
ção de prudência tardia, deletou do antigo A HUMANIDADE ta de água, comida, atendimento médico,
Twitter o trecho de viés racista do discurso E A LEI DA SELVA”, energia e higiene. Sem uma rota de fuga
proferido, na segunda-feira 18, durante a DECLAROU que ultrapasse os limites da gaiola contro-
sessão do Parlamento que chancelou o go- lada por Israel, a população está reduzida
NETANYAHU
verno de “emergência nacional” e deu car- à condição de bichos à espera do abate, em
ta branca à operação militar. “Esta é uma uma macabra confirmação do prognósti-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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co do ministro Gallant no início do con-
flito: “Estamos combatendo animais hu-
manos e estamos agindo em conformida-
de com esse contexto”. A caça ao Hamas é,
no entanto, um pretexto no qual nem os
militares acreditam. Ao fim e ao cabo, os
israelenses repetirão a história das outras
guerras ao longo de 75 anos: uma agres-
são árabe raramente elimina a “ameaça”,
mas termina invariavelmente na anexa-
ção de mais territórios pelos israelenses.

S
e o calor da vingança se apro-
xima por um flanco, o gelo da
indiferença ergue um muro
de outro. Na segunda-feira
16, em Berlim, onde se reuniu
com o chanceler Olaf Scholz, Abudllah II
deixou claro que os vizinhos árabes não
estão dispostos a sofrer os efeitos colate-
rais da invasão. “Nenhum refugiado na
Jordânia, nenhum refugiado no Egito.
Esta é uma linha vermelha, pois esse é
o plano de alguns dos suspeitos de cos-
O rei Abdullah II, da Jordânia, não vai abrir as portas aos refugiados.
tume para tentar criar situações de fa-
E os EUA vetaram a resolução proposta pelo Brasil to na região.” A cada dia sem cessar-fogo
aprofunda-se o abismo a separar as tra-
gédias. Em Israel, os registros de novos
casos se tornaram marginais com o pas-
sar das horas: 1.403 mortos e 3,8 mil fe-
ridos na quarta-feira 18, quantidade não
muito superior à contagem dos dias ante-
riores. Em Gaza, os números são, ao con-
M I N I S T É R I O D A C O M U N I C A Ç Ã O / R E I N O D A J O R D Â N I A , B R YA N R . S M I T H /

trário, exponenciais: segundo o último


AFP E HAIM TZACH/GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO DE ISRAEL

levantamento antes do fechamento desta


edição, eram 3,3 mil mortos e mais de 12
mil feridos, sem contar os 1,5 mil comba-
tentes do Hamas eliminados, de acordo
com as forças de segurança israelenses,
e os 62 assassinados e 1,2 mil feridos na
Cisjordânia ocupada, vítimas da vingan-
ça dos colonos judeus e da conivência das
forças de segurança (reportagem de The
Observer à página 21). E isso antes de um
único e escasso tanque, um único e soli-
tário soldado terem cruzado a fronteira.
Enquanto os Estados Unidos tomam
partido, o resto do mundo mergulha na
irrelevância e na divisão. A reunião da ter-
ça-feira 17 em Bruxelas dos representan-

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tes dos 27 países da União Europeia ex- Vieira viajou ao Egito para uma nova ro-
pôs o dissenso na comunidade, acentuada dada de conversações.
por dois episódios lamentáveis, a propos- O VETO DOS Um dia antes, Vieira esteve no Sena-
ta da Hungria de cortar a ajuda humani- ESTADOS UNIDOS do para explicar a posição brasileira, al-
tária à Autoridade Palestina, não só rejei- À RESOLUÇÃO vo de ataques da oposição bolsonarista e
tada, mas virada ao avesso (a UE decidiu BRASILEIRA do embaixador de Israel no Brasil. Clas-
triplicar o apoio), e a solidariedade acrí- sificar o Hamas como grupo terrorista,
tica e unilateral de Ursula von der Leyen, EM PROL DO explicou o ministro das Relações Exte-
presidente da Comissão Europeia, ao go- CESSAR-FOGO riores aos congressistas, não avançaria
verno israelense. “As ações desprezíveis DEIXA O CONSELHO na ONU. “O Conselho de Segurança não
do Hamas são a marca dos terroristas e DE SEGURANÇA classificou como organismo terrorista
eu sei que a forma como Israel responde- até agora. Portanto, o Brasil segue essa
rá mostrará que é uma democracia”, afir- DE MÃOS ATADAS orientação. O mesmo serve para sanções.
mou Von der Leyen durante um encontro Não aplicamos sanções em outros países
com Netanyahu, sem mencionar, para ir- que não sejam impostas pelas Nações
ritação dos pares, o respeito aos direitos choque e decepcionada com o veto. “Foi Unidas”. O chanceler declarou-se pessi-
internacionais e a necessidade de conten- nada menos que inacreditável.” A repre- mista quanto à duração do conflito. “Se-
ção na resposta militar. sentante norte-americana no Conselho, rá longo e com riscos por todos os lados.”

O
Linda Thomas-Greenfield, declarou-se Diante do impasse – e da interferência
Conselho de Segurança horrorizada e triste com a perda de vidas, norte-americana –, resta à ONU emitir os
da ONU, sob a presidên- mas culpou o Hamas pela crise humani- tradicionais alertas e notas de repúdio. Os
cia rotativa do Brasil, tam- tária. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, ataques equivalem a “uma punição cole-
bém está de mãos atadas. manifestou-se no antigo Twitter: “O ve- tiva”, declararam especialistas indepen-
A proposta da Rússia, sem to à resolução construída pelo Brasil, em dentes da organização. “Não há justifica-
a condenação do Hamas, acabou rejeita- diálogo com os membros do Conselho de tiva para a violência que atinge indiscrimi-
da na segunda-feira 16, resultado pre- Segurança, deixa claro quem quer a paz e nadamente civis inocentes, seja por parte
visível, dada a falta de credibilidade de quem quer prolongar o sofrimento das po- do Hamas ou das forças israelenses. É ab-
Moscou após a invasão da Ucrânia. A re- pulações civis”. O Itamaraty prometeu, no solutamente proibido pelo direito interna-
solução apresentada pela diplomacia bra- entanto, insistir na busca de um consen- cional e equivale a um crime de guerra”.
sileira, mais flexível e apoiada por 12 dos so. Na quinta-feira 19, o chanceler Mauro Argumentos irrefutáveis, mas inócuos. •
15 participantes, igualmente deu com os
burros n’água. Em busca de consenso, o
Itamaraty apresentou um texto no qual
abdicava de posições históricas do País.
Havia uma explícita condenação “dos he-
diondos crimes terroristas do Hamas”, a
omissão de qualquer menção a Israel e a
defesa de um “cessar-fogo” humanitário.
O adiamento da análise na terça-feira 17,
em meio ao clamor da destruição do hospi-
tal em Gaza, era o prenúncio do que viria.
No dia seguinte, os Estados Unidos anun-
ciaram o veto à declaração do Brasil por
falta de referência do direito israelense à
autodefesa. Para ser aprovada, uma medi-
da no Conselho necessita de, no mínimo,
YA S I N A K G U L / A F P

nove dos 15 votos e a concordância ou abs-


tenção dos cinco integrantes permanen-
tes (EUA, China, Rússia, França e Reino
Unido). A China disse estar em estado de Os protestos se espalham como rastilho de pólvora no mundo árabe

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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CA PA

M
ahmoud
Abu Latifa
cortava o
cabelo pre-
to e bri-
lhante de
seu sobri-
nho no estilo “cuia”, e estremeceu ao ouvir
as notícias na tevê sobre os bombardeios
em Gaza. “É só o que eu faço: corto cabe-
los e assisto ao noticiário. Isso está me dei-
xando doente. Quero me livrar desta guer-
ra horrível”, disse. Na véspera, Abu Latifa
tinha decidido comprar pão numa cidade
que exigia que ele passasse perto do pos-
to de controle de Qalandiya, uma fortale-
za com torres de vigilância e paredes de
concreto queimadas, cobertas de grafite
e pinturas com figuras políticas palesti-
nas. “Percebi como fui idiota em passar por
ali. Eles podem atirar em você facilmente e
não se importam”, afirmou, em referência
aos militares israelenses estacionados no
Funeral de uma das posto de controle. “Eles querem vingança.
vítimas palestinas
Parece que estão dizendo: ‘Ou nós morre-
mos ou você morre’. Não há meio-termo.”
O ataque sem precedentes do Hamas,

Nas mãos
que matou mais de 1,3 mil israelenses,
com cerca de 130 mantidos em cativei-
ro em Gaza, foi recebido com uma dura
reação das forças israelenses em toda a
Cisjordânia. Além dos postos de contro-

do inimigo
le fechados e das estradas vazias, os mo-
radores de Ramallah temiam o aumen-
to da violência por parte das forças mi-
litares e de segurança israelenses, as-
sim como dos cerca de 700 mil colonos
israelenses espalhados pela região.
O Ministério da Saúde palestino dis-
se que 54 cidadãos, incluindo crianças,
PALESTINOS NA foram mortos e mais de 1,1 mil ficaram
CISJORDÂNIA SÃO ALVO DA REVANCHE DE feridos na Cisjordânia desde o ataque
do Hamas a Israel. Grupos de monito-
SOLDADOS E COLONOS ISRAELENSES ramento disseram que os mortos in-
cluem menores baleados na cabeça, no
peito ou no abdome com munição viva.
Z AIN JA A FA R /A FP

por RUTH MICH A ELSON E SU FI A N TA H A Atos violentos fatais cometidos por co-
lonos israelenses foram registrados du-
as vezes em vídeo. A organização israe-
lense de direitos humanos B’Tselem di-

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CA PA

vulgou imagens de um colono na aldeia


de At-Tuwani, ao sul de Hebron, empur-
rando um palestino antes de atirar ne-
ISRAEL OCUPA
le à queima-roupa, enquanto o homem A CISJORDÂNIA
caía de joelhos, com um soldado das DESDE 1967
Forças de Defesa de Israel parado nas E IMPÕE SEVERAS
proximidades.
Na véspera, imagens de vídeo mos-
RESTRIÇÕES
traram colonos israelenses armados AOS PALESTINOS
em um ataque à aldeia de Qusra, ao
sul de Nablus. “Cinco colonos chega-
ram à aldeia vindos do sudeste. Ao me- Várias organizações de direitos huma-
nos um deles tinha uma arma. Eles fo- nos, entre elas a Human Rights Watch, a
ram à casa de Awad Odeh, que foi mor- Anistia Internacional e a B’Tselem, ca-
to pelos colonos em 2014”, disse Abdul racterizam esse sistema de discrimina-
Azim al-Wadi, líder do conselho da al- ção como “crime de apartheid”.
deia. “Eles atiraram em seu filho, Awad, Sentado entre pilhas de canos e latas
que está gravemente ferido, e em sua fi- de tinta em sua loja de ferragens, Abu
lha de 8 anos, que ficou ferida no ombro. Mahmoud bebia café e fumava um ci-
Eles queriam matar, miravam na cabe- garro, enquanto reclamava dos sol-
ça. Os aldeões saíram e as FDI também dados israelenses que tinham ataca-
chegaram. Eles dispararam contra os do o campo de refugiados vizinho de
moradores”, descreveu. No total, qua- Qalandiya naquela manhã. “Desta vez,
tro foram mortos no ataque. as coisas estão realmente difíceis. São

O
dias duros”, avaliou. “Você podia sen-
s colonos também ata- tir o cheiro do gás lacrimogêneo aqui na
caram o cortejo fúne- rua.” A estrada para o posto de controle
bre em Qusra no dia se- de Qalandiya estava coberta de fuligem
guinte. “Meu irmão e preta e acre dos pneus queimados du-
meu sobrinho foram rante confrontos com militares israe-
mortos”, disse Wadi. “Estavam limpan- lenses estacionados lá, e a passagem
do a estrada para o cortejo passar e fo- foi fechada. Dias antes, dois menores
ram atacados tanto pelos colonos quan- foram baleados no posto durante um
to pelas forças de segurança. Eles atira- confronto com soldados, que responde-
ram no meu irmão Ibrahim Wadi e no ram com tiros reais depois de um grupo
seu filho Ahmed a sangue-frio. Estou atirar pedras e coquetéis molotov. “To-
no funeral deles agora”, contou, com a dos os postos de controle estão fecha-
voz tensa de tristeza. dos, então nenhum trabalhador con-
Israel ocupa a Cisjordânia desde que segue trabalhar. Todo mundo está em
capturou a região em 1967, impondo um casa assistindo ao noticiário”, afirmou
sistema de controle no qual centenas de Abu Mahmoud. “Tudo parou, a econo-
milhares de colonos israelenses podem mia está falindo. Qalandiya é um meio
ter acesso à água e expandir suas casas, de milhares de pessoas chegarem ao
bem como utilizar transporte rápido e trabalho e agora está fechada, então o percorreu a Cisjordânia no decorrer dos
MEN A HEN K A H A N A /A FP

eficaz para o território israelense. Os que podemos fazer? Está afetando sua dias. Na sexta-feira 13, dia tradicional
palestinos e os beduínos da Cisjordâ- situação financeira. Como eles podem de protestos, vieram notícias de con-
E JACK GUE Z /A FP

nia enfrentam há décadas uma realida- se sustentar? Hebron, Nablus, todas frontos armados entre militares israe-
de completamente diferente, com pos- as cidades da Cisjordânia estão isola- lenses e palestinos em bolsões rurais e
tos de controle lotados, transportes di- das umas das outras.” estradas que levam a postos de contro-
fíceis e pouca liberdade de circulação. Uma onda de violência ainda maior le em toda a Cisjordânia, bem como ata-

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colonos israelenses. Ao mesmo tempo,
a mídia israelense informou que o mi-
nistro de Segurança Nacional, Itamar
Ben-Gvir, de extrema-direita, ordenou
que 10 mil rifles de assalto fossem dis-
tribuídos entre os assentamentos israe-
lenses na Cisjordânia e cidades com po-
pulações mistas, israelenses e palesti-
nas, dos quais 4 mil foram entregues
imediatamente.

E
nquanto vendedores e
clientes negociavam no
mercado de verduras de
Ramallah, a farmacêu-
tica Ola Sherif, de jaleco
branco, encostou-se num carro para
uma pausa do trabalho. Gente de toda
a Cisjordânia, incluídos muitos de seus
clientes, disse ela, armazenavam me-
dicamentos freneticamente, por teme-
O governo israelense arma os colonos rem um confinamento prolongado e a
e os soldados fazem vistas possível eclosão de combates, para não
grossas à violência contra os árabes
falar em uma forte redução da entrada
de mercadorias provenientes de Israel.
quase duas décadas e adiou várias elei- Muitos, entre eles Ola Sherif, queixa-
ções marcadas durante esse período. ram-se de que os preços dos alimentos
“Se os colonos atacarem Ramallah, os dispararam, especialmente dos produ-
primeiros a protegê-los serão os mem- tos frescos. “Nunca vi nada parecido”,
bros da Autoridade Palestina”, reclama declarou. “As pessoas estão em pânico
Ramez Abu Jaber, 24 anos, do campo de porque temem que os medicamentos
refugiados de Qaddura, enquanto pre- acabem, por isso compram em grandes
para abacate batido em sua loja perto quantidades. Alguns medicamentos es-
da Praça Al-Manara. “Os militares is- tão presos no porto. Não tenho Nexium,
raelenses protegem os colonos. Mas a usado para tratar problemas de estôma-
Autoridade Palestina também os prote- go e esôfago, nem fórmula para bebês.
ge, e não a nós.” Abu Jaber acrescentou: Não tenho nenhuma.” A farmacêutica
“Se a Autoridade Palestina não conse- continua: “Tememos que haja uma gra-
gue cumprir suas obrigações, deveria ve escassez. As pessoas estão indo aos
sair e deixar outros fazerem o traba- supermercados para comprar tudo. Você
lho. Nós podemos lidar com isso”. entra e vê que não tem pão. Não conse-
Enquanto a maioria murmurava ou guimos encontrar farinha”. A escola de
gritava sua frustração diante da fal- seu filho, acrescentou, adotou as aulas
ques de colonos. Ao menos 14 civis fo- ta de liderança política, a história que online porque temia o trajeto dos ônibus
MEN A HEN K A H A N A /A FP

ram mortos em pouco mais de 24 horas. surge na Cisjordânia é de uma bruta- escolares por estradas que passam perto
Muitos em toda a Cisjordânia lamen- lidade crescente. Alguns adquirem ar- de assentamentos e instalações milita-
E JACK GUE Z /A FP

taram a liderança esclerosada e enve- mas freneticamente ou recorrem à vio- res israelenses. “É claro que as pessoas
lhecida da Autoridade Palestina, espe- lência, pois temem que não exista ou- estão com medo”, conclui. •
cialmente seu presidente, Mahmoud tra opção diante da pressão crescente e
Abbas, de 87 anos, que está no poder há mortífera das forças de segurança e dos Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

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CA PA

Êxodo e
martírio
SE OS PALESTINOS TIVESSEM
DIREITO A PAZ E LIBERDADE,
A HISTÓRIA SERIA OUTRA

por A LDO FOR NA ZIERI*

N
a história míti- povos cananeus, israelitas e judeus. Judá. Jerusalém também foi assediada
ca dos hebreus Entre as várias formações da Pales- pelos assírios, mas terminou por fazer
antigos, o Êxo- tina antiga, surgiram dois reinos se- um pacto de submissão.
do, a saída do parados e vizinhos. Ao norte, nas últi- Em 586 a.C., Jerusalém foi tomada e
Egito rumo à mas décadas do século X antes de Cris- destruída pelos babilônios e os judeus
Terra Prometi- to, surgiu o reino de Israel, com capi- foram levados como cativos por Nabu-
da, veio a signi- tal na Samaria. Ao sul surgiu o reino de codonosor. Depois de serem libertados
ficar o caminho da liberdade. Na his- Judá, por volta de meados do século IX por Ciro, o Grande, Jerusalém e o templo
tória real, atestada pela historiogra- a.C. Sua capital era Jerusalém. Em 722 foram reconstruídos com o auxílio dos
fia e pela arqueologia, diz-se que na re- a.C., o reino de Israel foi tomado e des- reis persas. Mais tarde, a capital sofreu
gião da Palestina antiga ocorreram vá- truído pelos assírios. Sua população foi duas outras destruições pelos romanos:
rios êxodos, de diferentes grupos, nor- deportada e parte dela se refugiou em a primeira, no ano 70, por Tito, e a se-
malmente dominados e explorados por gunda, no ano 134, por Adriano, ocor-
pequenos reinos locais e também pelos rendo a grande diáspora. Séculos depois,
impérios egípcio e, mais tarde, dos as- OS EUA E A ONU os judeus sofreram a grande tragédia do
sírios e caldeus. Holocausto, mais uma dura réplica da
PRECISAM
A história e a arqueologia dizem tam- história. Esses reveses constituíram a
bém que muitos desses grupos eram RECONHECER admirável resiliência desse povo.
chamados de habiru, palavra que sig- A CAUSA DA Com o estabelecimento do mandato
nificava muitas coisas, como escravos VIOLÊNCIA britânico sobre a Palestina (1923-1948),
e servos fugitivos, rebeldes, trabalhado- o império começa a patrocinar o deslo-
E REPARAR
res migrantes e nômades. O termo he- camento de judeus para a região, pro-
breu teria derivado da palavra habiru. SEUS ERROS cesso que se intensifica na Segunda
Esses grupos estão na ontogênese dos Guerra Mundial e se sacramenta em

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nho de dor e de sangue, de bombas e de
morte. É um caminho sem futuro e sem
esperanças. Israel impõe aos palestinos
o que os assírios antigos impuseram ao
reino de Israel e o que os babilônios im-
puseram a Judá e Jerusalém.
O governo extremista de Benjamin
Netanyahu alimentou o radicalismo
do Hamas por não querer a solução do
conflito. Alimenta o ódio para viver do
ódio. Os grupos religiosos ortodoxos e
de extrema-direita de Israel têm uma
visão de guerra santa, de extermínio
dos palestinos. Sob a proteção do exér-
cito, continuam a tomar as casas e as
terras na Cisjordânia. Gaza é um cam-
po de concentração e, agora, de exter-
mínio a céu aberto.

O
ministro da Segurança
Nacional de Israel,
Itamar Ben-Gvir, pro-
fanou a mesquita de
Al-Aqsa há poucas se-
manas com um grupo armado. A mes-
quita é um dos lugares mais sagrados
1948 com a criação do Estado de Israel. Palestinos acampam na fronteira com o Egito, para os muçulmanos. Na ocasião, lide-
que se recusa a receber refugiados
Ninguém de bom senso pode negar aos ranças moderadas de Israel advertiram
judeus o direito de ter seu Estado. O pro- que o ato desencadearia violência. Não
blema é que a ocupação do território e a vem ser entendidas. Se não houver uma por acaso, a ação do Hamas em Israel
construção do Estado ocorreram sob a reparação histórica, se os palestinos foi denominada “Tempestade Al-Aqsa”.
égide da expropriação de terras, deslo- não tiverem seu Estado, o Hamas pode Podemos não concordar com as religi-
camentos de populações locais, destrui- até ser eliminado, mas o terrorismo re- ões, mas devemos respeitá-las. A incur-
ção de vilas, violência e terror. As terras nascerá em outros grupos. Se a história são de Ben-Gvir foi um ato de violência
dos palestinos foram roubadas, seus po- dos palestinos tivesse sido outra, se ti- simbólica e sinalizou que Israel se apos-
mares, videiras e oliveiras foram toma- vesse sido uma história de terra e liber- saria de toda Jerusalém.
dos e esse povo foi privado dos seus fru- dade, de paz e respeito, os grupos terro- Os palestinos de Gaza têm sido marti-
tos, dos seus rebanhos, de sua água e de ristas não teriam a força do apelo reli- rizados com deslocamentos, destruição
suas casas. Foi humilhado, desprezado, gioso, da guerra santa. O mundo ociden- de seus lares e de suas cidades, com bom-
diminuído, espezinhado, visto como se- tal, os Estados Unidos, as grandes po- bas e mortes, principalmente de mulhe-
gunda categoria, semi-humano e, mui- tências e a ONU precisam reconhecer as res e crianças. O terrorismo do Hamas
tas vezes, como descartável. causas dessa violência e reparar seus er- não autoriza o terrorismo de Estado de
Esse processo sedimentou ressen- ros, pois são erros criminosos. Israel contra a população civil indefe-
timentos, vergonha, dor e ódio. E dele Os palestinos dos séculos XX e XXI sa. Se Israel e o Ocidente querem acabar
emerge o sentimento de vingança, a op- são os habirus antigos, os hebreus origi- com o terrorismo, precisam fazer ape-
MOH A MMED A BED/A FP

ção pela violência, que fomenta o terro- nários, são um povo do Êxodo do nosso nas uma coisa: garantir um Estado, ter-
rismo. Os atos de grupos palestinos, do tempo. Mas o Êxodo dos palestinos não ra, liberdade e paz para os palestinos. •
Hamas, da Jihad Islâmica, contra civis é um caminho para a liberdade e para
judeus, não se justificam, mas precisam a Terra Prometida. É um caminho de *Professor da Escola de Sociologia
ser compreendidos. Suas motivações de- perda de terras e de lares, é um cami- e Política e autor de Liderança e Poder.

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Seu País

O desafio da
permanência
EDUCAÇÃO MEC aposta em uma bolsa para
reduzir a evasão escolar no ensino médio
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

M
esmo com as políticas da que estão no ensino médio. A ideia é pa-
afirmativas que esti- gar uma bolsa mensal e criar uma poupan-
mulam o acesso ao en- ça com valores a serem depositados a cada
sino superior da popu- ano de estudo. Ao concluir o curso, o aluno
lação de baixa renda, a pode sacar o valor. “Sabemos que a transi-
maior parte da juventude permanece fo- ção do ensino fundamental para o médio
ra da universidade. Muitos jovens nem é um momento muito emblemático para
sequer concluíram o ensino médio. É o os nossos jovens, com taxas altíssimas de
que mostra o Censo da Educação Supe- evasão escolar. Queremos criar incentivos
rior 2022, divulgado este mês pelo Mi- financeiros para estudantes do ensino
nistério da Educação, que traz dados pre- médio permanecerem na escola e um
ocupantes acerca de uma juventude sem investimento que só pode ser retirado após
perspectiva de futuro. Segundo o levan-
tamento, apenas 20,2% dos 22,5 milhões
de brasileiros entre 18 e 24 anos estão na
universidade e só 4% concluíram o ensi-
no superior. Mais de 64% não ingressa-
ram na faculdade, dos quais 21,2% não
finalizaram nem o antigo segundo grau.
Quando associado ao fato de que mais de
16% dos jovens estão fora do mercado de
trabalho, segundo a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua, di-
vulgada pelo IBGE em agosto, esse cená-
rio representa um grande desafio para o
governo, que precisa criar políticas
públicas para os “jovens nem-nem”, que
nem estudam nem trabalham.
Uma das metas do MEC para reverter
esse quadro é a implantação de políticas de
permanência para os alunos de baixa ren-

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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TAMBÉM pág. 29
NESTA Cerrado. Os alertas de
SEÇÃO desmatamento no bioma
crescem 141% em setembro

Além da ajuda
de custo mensal,
o governo cogita de
criar uma poupança
para os alunos

14,9 anos se for mulher, branca e viver em


áreas urbanas do Sudeste. Um jovem da
zona rural inserido nos 25% da população
com menor renda estuda apenas 10,3 anos,
caindo para 7,8 anos se for da Região Norte
e do sexo masculino. Para Santos, o prin-
cipal motivo de não concluir os estudos na
idade certa está relacionado à condição de
vulnerabilidade dos alunos, que tem como
consequência a dificuldade de ingressar
no mercado de trabalho. Mas a precarie-
dade na aprendizagem também é uma das
causas que levam ao abandono da escola.

“Esse estudante vem do ensino fun-


damental com lacunas de aprendizagem
que comprometem o primeiro ano do en-
sino médio. Conforme ele não vai con-
seguindo aprender, vai se desengajando,
Reserva. O pagamento no fim do curso feminino (60%). Enquanto as mulheres achando que aquela escola não é para ele,
é para apoiar os jovens no início da vida desistem dos estudos para cuidar de fi- que ele não nasceu para estudar”, comen-
profissional ou na faculdade, diz Santana
lhos e afazeres domésticos, os homens são ta o diretor do MEC. Outro fator de aban-
empurrados para a informalidade, viram dono tem a ver com o funcionamento da
entregadores de fast-food ou motoristas própria escola, que muitas vezes não con-
a conclusão, para apoiá-lo no início da vida de plataforma, para citar dois exemplos. segue dialogar com as necessidades e ca-
CAMIL A RODRIGUES/GOVRS E LUIS FORTES/MEC

profissional ou em sua entrada na educação Segundo Alexsandro Santos, diretor de racterísticas da população adolescente,
superior”, explica o ministro da Educação, Políticas e Diretrizes da Educação Inte- seja no currículo, seja no espaço físico, na
Camilo Santana. O MEC negocia um espa- gral Básica do MEC, entre 60% e 64% dos relação professor-aluno ou no tipo de ati-
ço no orçamento com a Casa Civil e os mi- brasileiros concluem o ensino médio na vidade que se propõe ao jovem.
nistérios da Fazenda, do Planejamento e idade certa (entre 15 e 18 anos), um por- A pobreza, acrescenta Santos, também
do Desenvolvimento Social para implan- centual bem abaixo dos 85% estipula- produz uma série de desincentivos à con-
tar o programa a partir do ano que vem. dos pelo Plano Nacional de Educação. tinuidade da escolarização, os quais vão
Em maio, o Ministério do Trabalho re- Esse índice ainda pode variar de acordo desde a necessidade de trabalhar para sus-
velou que ao menos 7,1 milhões de brasi- com a classe social, gênero, raça e região. tentar a família até não ter roupa ou cal-
leiros entre 14 e 24 anos não estudavam O tempo médio de estudo dos jovens çado para ir à escola, ou não ter dinheiro
nem trabalhavam. A maioria deles era de de 15 a 29 anos que estão entre os 25% de para comprar material escolar. A distância
pessoas pretas e pardas (68%) e do sexo maior renda é de 13,5 anos, chegando a entre a casa desse jovem e a escola é outro

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Seu País

fator que o desestimula a frequentar a sala Hoje, 7,1 milhões estar estudando ou trabalhando, quando,
de aula, uma vez que cerca de 3 mil muni- na verdade, se trata de um problema social
cípios só têm uma escola de ensino médio.
de jovens entre histórico que o Estado brasileiro não re-
O diretor do MEC lembra ainda que mui- 14 e 24 anos não solve. “Essa nomenclatura é muito ruim,
tos adolescentes em conflito com a lei dei- trabalham nem porque se nomina toda uma juventude que
xam de estudar porque são estigmatiza- estudam no País não estuda e não está trabalhando por ra-
dos pela própria escola e pela comunidade. zões diferentes. A situação é bastante de-
Por fim, um porcentual considerável de jo- licada, é um problema social grave não
vens apresenta problemas de saúde men- apenas do sistema escolar, mas que atin-
tal, como depressão e ansiedade, levando- ge toda a sociedade. É preciso considerar
-os a desistir de estudar. Sem formação e so coloca a seguinte questão para o jo- a ausência de perspectiva para os jovens.”
com baixa escolaridade, só resta a essa ju- vem: ‘Por que vou estudar, se o merca-
ventude a informalidade e o subemprego, do não oferece boas oportunidades?’ O Para Fausto Augusto Júnior, diretor-
o que termina virando um problema sistê- movimento de precarização no trabalho -técnico do Departamento Intersindical
mico, como explica o professor José Dari ocorrido nos últimos anos fez com que o de Estatística e Estudos Socioeconômi-
Krein, do Centro de Estudos Sindicais da trabalho perdesse sentido como fonte or- cos, o Dieese, essa falta de perspectiva
Economia do Trabalho da Unicamp. ganizadora da vida social. Ele tornou-se cria uma massa de pessoas com futuro
“As pessoas não têm a alternativa de um mero instrumento racional para a ob- comprometido, que não se integram à so-
ficar desempregadas porque precisam tenção de renda, porque as pessoas pre- ciedade por meio do trabalho. “Isso tem
de renda para sobreviver. Vão para ocu- cisam sobreviver. Não traz nenhum tipo uma série de efeitos sociais que se ex-
pações que pagam salários muito bai- de realização”, destaca Krein, reforçando pressam na violência, na polarização, na
xos ou para a informalidade. Esses jo- que esse quadro é mais um fator de deses- desvalorização da vida e no adoecimento.
vens dificilmente vão conseguir a reali- tímulo para o jovem insistir nos estudos. A gente está assistindo a um processo
zação profissional. São poucos empregos A pesquisadora Mônica Ribeiro, coorde- complicado de desperdício dessa gera-
de qualidade, há concorrência brutal pa- nadora do Observatório do Ensino Médio ção de jovens”, opina, defendendo a ne-
ra ocupar os melhores postos e uma enor- da Universidade Federal do Paraná, critica cessidade de políticas públicas que façam
me quantidade de empregos precários o estereótipo do “nem-nem”, que transfere uma transição entre o ensino médio e o
que exigem baixíssima escolaridade. Is- para os jovens a responsabilidade por não ingresso dos jovens no mercado de tra-
balho ou no ensino superior.
Já Heleno Araújo, presidente da Con-
federação Nacional dos Trabalhadores
em Educação, defende uma escola que
vá além da educação integral, pois mui-
tos jovens precisam trabalhar e não po-
dem passar o dia todo na escola. “O Es-
tado brasileiro ainda não conseguiu ga-
rantir o direito à educação para todas as
pessoas e a escola em tempo integral es-
tá tirando muitos jovens das nossas esco-
las. A nossa juventude precisa trabalhar
para assegurar o sustento de suas famí-
lias. Precisamos de políticas e ações pen-
sadas, detalhadas e colocadas em práti-
ca para estancar essa saída dos jovens
do ensino médio, barrar esse abandono
e motivá-los a concluir a educação bási-
ISTOCKPHOTO

ca”, defende Araújo, citando a bolsa-per-


manência como um estímulo para os jo-
Trabalho precário. Sem escolaridade, muitos são empurrados para a informalidade vens concluírem os estudos. •

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Seu País

Em setembro,
os alertas de
desmatamento
cresceram 141%

Cinzas da savana
passado, no Cerrado foi registrado um
espantoso aumento de 141%.
Desde o início do atual governo, a di-
minuição do desmatamento na Amazônia
MEIO AMBIENTE A devastação do Cerrado atingiu 49,5% em relação ao mesmo perío-
tem alta expressiva e coloca em xeque do de 2022. Já o Cerrado acumula alta de
26% na devastação da cobertura vegetal,
a agenda ambiental do governo Lula impulsionada pelo avanço das monocul-
turas e da pecuária, amparadas legalmen-
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L
te por legislações estaduais permissivas.

E
Símbolo, ela mesma, da devastação do bio-
ma sobre o qual foi construída, Brasília
m contraste com a significa- d’água” do território nacional, surge co- ainda tateia no escuro em busca de cami-
B R U N O K E L LY / A M A Z Ô N I A R E A L

tiva redução do desmata- mo um obstáculo de difícil superação. Os nhos para salvar o que resta do Cerrado.
mento da Amazônia, suces- dados de satélite relativos a setembro, di- “A situação do Cerrado é gravíssima
so que vai ao encontro do de- vulgados pelo Instituto Nacional de Pes- porque, em 1988, quando foi aprovada a
sejo do governo Lula de co- quisas Espaciais, não poderiam ser mais Constituição, esse bioma, assim como a
locar o Brasil na liderança da agenda am- expressivos. Enquanto na Amazônia os Caatinga, não teve a devida proteção do
biental global, o descontrole da devasta- alertas de desmatamento caíram 56,8% Congresso Nacional ou do Poder Público”,
ção no Cerrado, considerado a “caixa na comparação com o mesmo mês no ano afirma Pedro Ivo Batista, presidente da

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Seu País

Associação Alternativa Terrazul e mem- No acumulado do lia Renato Cunha, coordenador-execu-


bro da coordenação nacional do Fórum tivo do Grupo Ambientalista da Bahia
Brasileiro de ONGs do Meio Ambiente.
ano, a devastação (Gambá). Dez municípios localizados no
Ele refere-se ao fato de que a Carta Mag- do sensível bioma Matopiba concentram 28,7% dos alertas
na concede aos estados e seus respectivos aumentou 26% de desmatamento no Cerrado, e quatro
órgãos ambientais a prerrogativa de auto- municípios baianos e um maranhense li-
rizar a supressão da vegetação nativa do deram a corrida pela destruição do bioma:
bioma em uma área de até 80% por imó- São Desidério, Jaborandi, Cocos e Bar-
vel rural. Nas áreas de Cerrado presentes reiras, na Bahia, e Balsas no Maranhão.
em estados que compõem a Amazônia Le- licenças para a supressão de 480 mil hec-
gal, esse porcentual chega a 65% por imó- tares de vegetação nativa no Cerrado. A O Ministério do Meio Ambiente afirma
vel. Para André Lima, secretário de Con- quase totalidade dessas autorizações foi que, em 2023, o Ibama já aumentou em
trole de Desmatamento e Ordenamento dada na região produtiva conhecida co- 23% os autos de infração por crimes con-
Ambiental Territorial do Ministério do mo Matopiba, que abrange partes dos ter- tra a flora do Cerrado, em relação à média
Meio Ambiente, isso explica os elevados ritórios de Maranhão, Tocantins, Piauí e para o mesmo período nos quatro anos de
índices de devastação. “Os proprietários Bahia e sofre grande pressão do agrone- governo Bolsonaro. Também houve alta
têm um certo receio de que o governo Lu- gócio expansivo. “O Matopiba é um pro- de embargos (22%), apreensões (25%) e
la restrinja o desmatamento. Então, exis- jeto de monocultura de soja, algodão e ce- destruições de equipamentos usados em
te uma corrida que podemos verificar, por reais que não tem trazido qualquer bene- crimes ambientais (125%). Além disso, a
exemplo, em Tocantins e na Bahia, onde fício social, econômico ou ambiental pa- pasta estima que ao menos metade do des-
a devastação cresceu muito.” ra a região. É importante repensar essa matamento no bioma apresenta algum ti-
Segundo os dados do Sistema Nacional produção em bases agroecológicas, com po de ilegalidade, seja pela ausência de au-
de Controle da Origem dos Produtos Flo- participação da sociedade civil e dos mo- torização, seja por não respeitar os por-
restais, o Sinaflor, de janeiro a setembro vimentos sociais locais que há muito tem- centuais de reserva legal estabelecidos
de 2023 já foram emitidas pelos estados po já fazem o manejo do território”, ava- pela legislação. Diante disso, qual a mar-
gem de manobra do governo Lula para de-
ter um quadro que contradiz frontalmen-
As plantações de soja, te as metas ambientais do País? “Há uma
milho e algodão tomam série de medidas que estão sendo pensa-
conta da paisagem das, mas dependem dos estados para dar
certo”, responde André Lima.
Duas medidas estruturantes, “uma
para combater a ilegalidade e outra para
termos a dimensão do que é efetivamen-
te legal e o que não é”, devem ser toma-
das, adianta o secretário. A primeira é re-
estruturar a agenda de fiscalização am-
biental de forma articulada com os esta-
dos e melhorar o fluxo de informações so-
bre as autorizações de supressão de vege-
tação, em sua maioria incompletas e insu-
ficientes. “Precisamos ter respostas dos
órgãos estaduais sobre o que é legal ou
ilegal para então o Ibama agir de manei-
ra supletiva. Infelizmente, essas respos-
tas não estão sendo suficientes e ágeis.” A
segunda medida, acrescenta Lima, é me-
lhorar os sistemas de informação: “Os ór-
gãos estaduais, ao emitirem autorizações

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MONOCULTURA PREDATÓRIA te proibir o desmatamento permitido
O desmatamento concentra-se na fronteira agrícola do Matopiba por lei. Essa concertação precisa ser fei-
ta com os governadores para identificar
oportunidades no âmbito das regula-
mentações estaduais”, diz Lima.
RR AP Ex-governador da Bahia, Costa tem
particular interesse em resolver a situ-
ação do estado que dirigiu por oito anos.
Segundo os ambientalistas, maior si-
CE nergia entre as duas esferas de governo
AM PA MA RN é fundamental. “Grande parte do des-
matamento no Cerrado baiano é fruto
PB de autorizações de supressão de vegeta-
PI
PE ção dados pelo Inema, o órgão ambiental
TO AL da Bahia. É um desmatamento em gran-
AC RO de parte legalizado, mas que de legal não
BA SE
MT tem nada”, avalia Renato Cunha. Os mo-
DF vimentos sociais propõem uma morató-
ria nessas autorizações até que se decida
GO um novo rumo a seguir no estado. “Fal-
MG tam iniciativas concretas do Poder Pú-
MS blico para frear a expansão da monocul-
ES
tura irrigada. Precisamos efetivamen-
SP te ter outro parâmetro. É fundamental
RJ
PR o diálogo entre sociedade civil, Poder
Público e setor empresarial rural.
Como está, daqui a mais alguns anos a
SC
vegetação de Cerrado não mais existirá”,
RS alerta o coordenador do Gambá.

Pedro Ivo lembra que o desmatamen-


to zero é um compromisso de campanha
de Lula. “O PPCerrado é fundamental,
mas precisa ser executado imediatamen-
de supressão, precisam informar em tem- consultas públicas no início do mês. Até te. Também são necessárias políticas de
po real os polígonos das áreas autoriza- a publicação do Plano, o ministro da Ca- proteção e de apoio à produção sustentável
das, mas em 67% dos casos eles não fa- sa Civil, Rui Costa, que coordena a Co- no Cerrado, de forma a apoiar as comuni-
zem isso. No máximo, informam um pon- missão Interministerial de Controle do dades locais que já praticam outro modelo
to, uma coordenada, mas isso não é sufi- Desmatamento, e a ministra Marina Sil- de produção e consumo.” O ambientalista
ciente para que a gente possa ter a dimen- va, do Meio Ambiente, responsável pela afirma esperar que o governo federal seja
são daquilo que está ou não sob controle”. secretaria-executiva da Comissão, farão indutor de uma nova postura no combate
Diante disso, o objetivo do governo é esta- reuniões com os presidentes dos consór- ao desmatamento a ser adotada pelos esta-
MARCOS VERGUEIRO/GOVMT

belecer, nos próximos meses, uma regra cios dos estados do Nordeste e do Cen- dos: “A questão central não é a falta de al-
nacional vinculante para as autorizações tro-Oeste para discutir medidas conjun- ternativa ao modelo predatório, e sim a fal-
de supressão de vegetação no Cerrado. tas de enfrentamento ao desmatamento ta de vontade política para mudar esse mo-
O governo pretende lançar até o fim de no bioma. Também estão em curso con- delo. Se realmente quiserem enfrentar os
outubro o Plano de Ação para Prevenção sultas com os estados abrangidos pelo grandes problemas do Cerrado, os gover-
e Controle do Desmatamento no Cerra- PPCerrado: “Não dá para, numa cane- nos precisam encarar o desmatamento e
do (PPCerrado), que encerrou sua fase de tada do governo federal, simplesmen- a perda da diversidade socioambiental”. •

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Seu País

O futebol e a vida
lianos. As vítimas da Grande Depressão
deflagrada nos estertores do século XIX
eram vênetos, napolitanos, calabreses, lí-
gures, filhos do fracionamento político e
ESPORTE Mais que um clube, o Palmeiras econômico que antes da unificação ver-
é uma ideia que se exprime da gastava a península submetida ao coman-
do de espanhóis, austríacos e franceses.
melhor forma no trabalho coletivo No Brasil, a fundação do Palestra-Itá-
lia foi um gesto de ousadia destinado a
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO inventar a italianidade dos imigrantes
da península. Esse ato fundador reali-

A
zou, na prática e na vida cotidiana dos
ítalo-brasileiros, a identidade nacional
polêmica desatada após a trevista de Leila Pereira, lembrei-me das sonhada por Cavour, Mazzini e Garibal-
entrevista da atual presi- digressões de Elisabeth Roudinesco no di. Imagino que muita gente vá se engal-
dente do Palmeiras, Leila Dicionário Amoroso da Psicanálise. Exí- finhar com o conceito de invenção, mas
Pereira, mobilizou minha mia em percorrer os caminhos perigo- ele é fundamental para a compreensão
alma palestrina. Lançada sos da filosofia e da psicanálise, Roudi- do caráter singular e incomparável da
pela mídia, a polêmica despertou o dese- nesco ausculta, na aurora do século XXI, história desse clube que em sua trajetó-
jo de considerar episódios de nossa histó- rumores cochichados nos bastidores da ria gloriosa transfigurou-se em um clu-
ria. Para iniciar a caminhada, vou recor- sociedade contemporânea. Diz ela que es- be brasileiro de origem italiana.
rer às palavras do mestre Ademir da Guia. tamos sempre nos indagando o que pre-
Nas comemorações do título brasilei- ferimos: as figuras mais puras, as maio- De Norte a Sul do Brasil, os estádios
ro de 2022, Ademir concedeu uma entre- res, as mais medíocres, os maiores char- se cobrem das camisas verdes ornadas
vista de refinada sabedoria. Como faria latães, as mais criminosas? Classificar, com o escudo do Palmeiras no lado es-
em campo, o Divino driblou o zagueiro ranquear, calcular, medir, colocar um querdo, o lado do coração. Desde 1914, os
adversário com o corpo e colocou gentil- preço, homogeneizar, este é o nada abso- brasileiros de todas as origens se juntam
mente a bola nas redes, como quem pou- luto das investigações contemporâneas. para celebrar a arte de Heitor, Romeu,
sa um beijo no rosto da amada: Certa vez, proclamei que o Palmeiras- Villadonica, Valdemar Fiume, Oberdã
“Eu enxergo no Palmeiras atual a arte -Palestra não era um clube de futebol, mas Cattani, Jair da Rosa Pinto, Chinesinho,
da Primeira Academia com a solidez da uma ideia. Uma ideia que buscava cons- Ademir da Guia, Mazinho, Rivaldo,
Segunda, jogamos para a frente, mas sem truir a identidade coletiva dos imigran- Djalminha, Alex. Várias gerações de cra-
nos descuidarmos da retaguarda. Nossa tes italianos. Nos anos 80 do século XIX, ques refinados, artistas da bola, compa-
força é o grupo num mundo onde o indi- a Itália recém-reunificada e maltratada ráveis na arte de criar à Leonardo da

E T. H . W E N D T / A C E R V O M U S E U D A I M I G R A Ç Ã O / G O V S P
vidualismo vem ditando as regras em di- por uma crise econômica devastadora Vinci e Michelangelo. Os mesmos que

ACERVO CORREIO DA M A NH Ã /A RQUIVO N ACION A L


ferentes setores da sociedade. O Palmei- era apenas uma abstração política e geo- ainda cuidam de esculpir os dribles de
ras dá mais uma aula. Ensinamos desta gráfica. Era uma Itália à espera dos ita- Dudu nas Oficinas da Eternidade.
vez sobre a importância da união. Mos- Reza o nosso hino: Por nosso alviverde
tramos que os objetivos coletivos estão inteiro, Que sabe ser brasileiro Ostentan-
acima dos objetivos individuais. Prova- do a sua fibra...
mos que, quando o ego fica em segundo A fundação do Torcedores da velha guarda, como eu,
plano, o céu é o limite”. O ósculo Divino Palestra-Itália sabem que na alma palestrina ainda vi-
na face do espírito coletivo sugere con- bram os mesmos sentimentos que pul-
siderações a respeito do individualismo
foi uma ousadia saram no coração dos brasileiros quan-
agressivo que repontou nas sociedades e uma invenção do o Palmeiras, bandeira verde-amarela
contemporâneas. da italianidade acima do escudo, conquistou o primeiro
Diante da polêmica deflagrada pela en- dos imigrantes campeonato mundial interclubes.

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCSeuPaisBelluzzo1282-OK.indd 32 19/10/2023 10:02


Feitos. Na conquista do primeiro mundial
interclubes, com a bandeira do Brasil
acima do escudo, e no primeiro
desembarque, um mesmo sentimento
E T. H . W E N D T / A C E R V O M U S E U D A I M I G R A Ç Ã O / G O V S P

Ainda magoados com a decepção co-


ACERVO CORREIO DA M A NH Ã /A RQUIVO N ACION A L

letiva causada pela derrota para o Uru-


guai em 16 de julho de 1950, os brasilei-
ros da antiga sabem que o empate contra
a Juventus em 20 de julho de 1951, consa-
grou o Palmeiras como o primeiro cam-
peão mundial interclubes. Mais de 160
mil torcedores celebraram a conquista
no mesmo Maracanã da tragédia de 1950.
A nossa resposta ao maracanazo de
1950 foi conseguida com a dramatici-
dade que as nossas conquistas exigem:
o gol de Liminha foi, ao mesmo tempo,

C A R TAC A P I TA L — 2 5 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 33

F•CCSeuPaisBelluzzo1282-OK.indd 33 19/10/2023 10:02


Seu País

uma obra de arte e um gesto de re- Da Guia. Quando os objetivos


denção. Na viagem de retorno a coletivos estão acima dos
São Paulo, o trem da vitória foi re- objetivos individuais e o ego fica
em segundo plano, o céu é o limite
cepcionado em todas as cidades do
trajeto, culminando com a chega-
da na Estação Roosevelt, no Brás,
onde mais de 1 milhão de pessoas trações momentâneas, que trazem
aguardavam os campeões. sempre consigo aquela conflagra-
A ideia fixa dos adversários de ção de sentimentos, angústias dos
hoje – “O Palmeiras não tem mun- que foram obrigados a deixar suas
dial” – ofende os historiadores que terras e encontraram nesta parte
se escandalizam com a prática rei- tropical da América um novo mun-
terada do vício do anacronismo, ví- do, aberto ao sofrimento quase so-
cio que aprisiona os engraçadinhos litário do desterro e à esperança do
ignaros nas masmorras do presen- progresso pessoal. Estamos, em nos-
te para avaliar o passado. sos arroubos de carbonários, sempre
caminhando perigosamente entre o
A paixão palestrina não se delírio das conquistas inesquecíveis
confraterniza com gestos de e a mais abominável depressão dos
conformidade. Francisco Serra, fracassos definitivos.
pai do meu amigo José Serra,
costumava atirar contra a parede Quando o Palestra entra em cam-
mais próxima o radinho de pilha, po, não há presidente, nem ministro,
quando o “seu” Palestra perdia jogos nem juiz, nem delegado. Está lá a
decisivos. O que vale um radinho, ou multidão dos Gianonni, dos Beni,
até mesmo a arca do tesouro, diante dos Frugiuelli, dos Sandoli, dos Ser-
das tragédias esportivas que o “Ver- ra, dos Contursi, dos Facchina, dos
dão” apronta? Nenhum outro torce- Pellegrini, dos Raiola e tutti quantti.
dor pode imaginar o significado das Encerro com uma história fami-
nossas derrotas trágicas. Não nos liar. Anos atrás, 1999, ainda na Era
acode, nestas ocasiões, aquela pre- Parmalat, eu levava meu filho Car-
tensão de superioridade oligárquica los Henrique para o colégio. No dia
dos são-paulinos nem aquele alento anterior, o Palmeiras sofrera uma
da fé na força das maiorias que aco- derrota. Minha memória apagou o
mete os corintianos. nome do adversário. Perguntei ao
Vou tentar explicar a singularidade das O ato fundador garoto se ainda queria ver a final da Liber-
nossas derrotas. É duro amargar uma des- tadores. Ele me respondeu enigmático:
realizou a identidade
classificação diante do Boca Juniors, de- – Só se você me der um estilingue de
pois de estar perdendo por 1 a zero, con- nacional sonhada presente.
seguir o empate e ganhar a vantagem da por Cavour, Mazzini – Estilingue? O que você vai fazer com
expulsão de um jogador adversário. Um e Garibaldi isso num jogo de futebol?
amigo de muitas décadas teve impulsos de – Quero dar uma “estilingada” no bar-
CESA R G R ECO/S. E. PA L M EIR AS

atirar objetos contundentes na cabeça do budo que fica nos camarotes, xingando
árbitro que permitiu a “cera” manhosa dos o Oseas.
portenhos. Mas, se conheço bem a “turma Tentei explicar que o barbudo, à sua
do Patriarca”, nenhum de nós tem a inten- moda, tem o direito de torcer. O menino
ção de ferir de verdade os alvos ocasionais não se convenceu. Aí decretei: – Meu fi-
de nossos ataques. Eles são apenas encar- lho, cada palmeirense tem um barbudo no
nações da derrota, fonte de nossas frus- fundo da alma. Deixa o barbudo em paz”. •

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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PEDRO SERRANO
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Afronta à democracia

República posicionou-se, no mérito, pe- ça majoritária ocasional, em violação à


► Não se pode permitir la inconstitucionalidade da lei ao reco- força contramajoritária da Constituição,
a glorificação de regimes nhecer que a designação de espaço pú- procura mostrar as faces de um autorita-
blico com nome de pessoa historicamen- rismo infiltrado na rotina e nos procedi-
totalitários e de exceção te ligada à prática de atos antidemocrá- mentos legítimos.
por meio de procedimentos ticos durante a ditadura ofende a gêne- Não por acaso a glorificação de regi-
falsamente democráticos, se democrática da Constituição de 1988 mes totalitários e de exceção, bem co-
e sua principiologia. mo a proteção jurídica da memória his-
como a lei paulista que Com efeito, Erasmo Dias, consoante tórica, da verdade e da dignidade das ví-
batizou um viaduto com já externalizamos nesta coluna, capita- timas, é uma grande preocupação nas de-
o nome de Erasmo Dias neou o aparelho repressivo para prati- mocracias constitucionais contemporâ-
car, em larga escala e de forma brutal, neas, especialmente naquelas que sofre-
assassinatos, prisões arbitrárias, tortu- ram, diretamente, as faces do totalitaris-
ras e toda a sorte de tratamentos cruéis e mo no século XX.

N
a condição de um dos advoga- degradantes, inclusive contra mulheres A Segunda Guerra Mundial provocou
dos do PT, do PSOL, do PDT e crianças. Assim considerando, é detri- uma revolução na forma como o homem
e do Centro Acadêmico 22 de mentoso ao Estado Democrático de Di- ocidental enxerga o mundo. Dois grandes
Agosto, entidade representativa dos reito constitucionalmente estabelecido pilares – a democracia e a ciência – deixa-
estudantes da Faculdade de Direito da adotar medidas legislativas que inocu- ram de garantir a tomada de decisões éti-
PUC de São Paulo, propusemos uma lam atos de legitimação totalitária na ro- cas. No plano jurídico, formulou-se, em
ação para que o Supremo Tribunal Fe- tina e nos produtos democráticos. Além resposta, um sistema pautado por cons-
deral declare inconstitucional a Lei do de negar as violações aos direitos fun- tituições rígidas, inalteráveis por mera
Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de damentais do período mais doloroso da e ocasional força majoritária parlamen-
junho de 2023. A referida lei batizou um nossa história recente, procura-se, com tar. O objetivo dessas constituições rígi-
viaduto da Rodovia Manílio Gobbi, em propósitos antidemocráticos, legitimar das do pós-Guerra, como afirma o juris-
Paraguaçu Paulista, como “Deputado a exceção e degradar os valores do nos- ta italiano Luigi Ferrajoli, foi constituir-
Erasmo Dias”, uma forma de homena- so pacto social. -se em semente antifascista.
gear um dos mais emblemáticos viola- A Constituição de 1988, espelhando a
dores de direitos fundamentais duran- A operacionalização do autoritaris- evolução do chamado constitucionalis-
te a ditadura (1964–1985). mo ocorre, na contemporaneidade, atra- mo do pós-Guerra, representou uma se-
É inadmissível a glorificação da exce- vés de uma relação parasitária com a ló- mente contra a ditadura. A Constituição
ção e do autoritarismo, em afronta aos gica democrática e que se firma através brasileira não é neutra. Ela repudia qual-
princípios constitucionais de dignida- da aparência de respeito às instituições quer forma de autoritarismo e de ofensa
de da pessoa humana, democracia e ci- e à democracia. Ou seja, ao contrário da aos direitos fundamentais. Diante de pro-
dadania, os quais asseguram o direito à brusca interrupção do Estado Democrá- pósitos marcadamente sistêmicos que vi-
memória histórica e à verdade e, ainda, o tico de Direito para a instauração de um sam degradar nosso Estado Democráti-
respeito à dignidade das vítimas. São es- Estado de exceção, convivem um Estado co de Direito, é preciso que o Supremo re-
ses, em resumo, os fundamentos que de- Democrático de Direito subvertido e um afirme o compromisso irrenunciável da
duzimos perante o Supremo. Estado de exceção que, mesmo lastrea- Constituição com os direitos fundamen-
A Advocacia-Geral da União já se ma- do em técnica de governança permanen- tais à memória histórica, à verdade e em
nifestou no sentido da inconstitucionali- te de exceção, não se assume como tal. respeito à dignidade das vítimas. É o que
dade material da lei paulista, por impli- É através dos procedimentos preten- se espera do julgamento da Ação Direta
B A P T I S TÃ O

car enaltecimento do autoritarismo. Do samente democráticos, tais como a tra- de Inconstitucionalidade nº 7.430. •
mesmo modo, a Procuradoria-Geral da mitação de um Projeto de Lei, que a for- redacao@cartacapital.com.br

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Seu País

Unha e carne
Jair Bolsonaro, a relatoria da convocação
de um plebiscito sobre aborto. A consul-
ta popular foi proposta pelo líder da opo-
sição, o potiguar Rogério Marinho, tam-
CONGRESSO Rodrigo Pacheco e Davi bém do PL, a quem Pacheco derrotou na
Alcolumbre adulam o bolsonarismo eleição de fevereiro para dirigir o Sena-
do por 49 votos a 32.
para manter o controle do Senado
Na Casa, há quem veja os passos de
POR ANDRÉ BARROCAL Alcolumbre como reação a negociações
embrionárias entre o senador Renan

A
Calheiros, MDB de Alagoas, e Gilberto
Kassab, o chefe do PSD, para construir
construção arredondada 2025, de olho não em dois, mas em qua- uma candidatura a presidente do Se-
branca, uma meia-lua dei- tro anos no posto. Por trás da força de um nado em 2025 que quebre a hegemonia
tada, símbolo do Senado político oriundo do segundo menor esta- Alcolumbre-Pacheco. Kassab filiou Pa-
no prédio do Congresso do eleitoral, o Amapá, está o “orçamen- checo ao PSD, com pretensões de lançá-
Nacional, anoiteceu em 8 to secreto”, sepultado pelo Supremo em -lo à sucessão de Jair Bolsonaro em 2022,
de outubro iluminada com a bandeira de dezembro de 2022, mas em parte redi- e agora não se empenha pelo futuro do
Israel. Era um gesto de solidariedade em vivo pelo lulismo. “Alcolumbre é o pai do pupilo. Prefere fazer do líder do PSD na
razão dos ataques do grupo islâmico orçamento secreto”, diz um senador go- Câmara, Antônio Brito, da Bahia, o pró-
Hamas na véspera. Havia sido um pedi- vernista, é o líder do “Centrão do Sena- ximo comandante da Câmara, no lugar
do do senador Davi Alcolumbre, judeu, do”, acrescenta um articulador político de Arthur Lira, do PP de Alagoas. No Pa-
ao presidente do Senado, Rodrigo Pache- do governo. Para suceder a Pacheco, ele lácio do Planalto, avalia-se que Alcolum-
co. Do dia dos ataques até 16 de outubro, quer os votos da bancada bolsonarista e bre forçou Pacheco a entrar no jogo da su-
o apoio a Israel foi maciço nas redes so- para tanto usa a poderosa Comissão de cessão no Senado. E que se aproximou do
ciais brasileiras, 78% contra apenas 14% Constituição e Justiça. bloco bolsonarista por temer que o gru-
de menções pró-palestinos, segundo mo- À frente da CCJ, tem dado corda a po possa ter um nome mais competitivo
nitoramento da Quaest. Um resultado ideias que fazem a cabeça da extrema-di- que o dele na eleição, o da ruralista Tere-
explicado pela ação da direita nas redes, reita. Tome-se a sessão de 4 de outubro. sa Cristina, do PP de Mato Grosso do Sul.
diz a consultoria. No dia seguinte ao fim Alcolumbre liderou a aprovação de limi- O Planalto não ignora, claro, que o
do monitoramento, Pacheco saudou no tes aos poderes individuais dos juízes do amapaense também quer influenciar as
plenário a repatriação de brasileiros na STF e da permissão para o comércio de escolhas, por Lula, do novo procurador-
área do conflito. Citou o ministro da De- sangue humano. Botou para andar a cri- -geral da República e do substituto de
fesa, José Múcio, e a Aeronáutica. Ne- minalização da posse de qualquer quan- Rosa Weber no Supremo. As duas indi-
nhuma palavra sobre a ação de Lula. tidade de drogas (designou como relator cações terão de passar pela CCJ. À fren-
Os episódios mostram que Alcolum- o colega de partido Efraim Filho, da Pa- te da comissão em 2021, Alcolumbre fez
bre e Pacheco agem por esses dias como raíba). E entregou a um senador-pastor, um escolhido de Bolsonaro para a Cor-
se fossem um só, ambos dispostos a dar o capixaba Magno Malta, do PL, sigla de te, André Mendonça, esperar cinco me-
as mãos à extrema-direita graças a inte- ses antes de ser aprovado, demora impos-
resses e a sentimentos próprios. Um ca- ta para conseguir benesses do governo.
samento problemático para o governo e Pacheco, advogado, sonhava com a vaga
o Supremo Tribunal Federal. de Weber. Em julho, um senador petista
Enfrentar o STF
Filiado ao União Brasil, partido de três dizia a CartaCapital que o Planalto pre-
ministros de Lula, Alcolumbre presidiu e atazanar o governo cisava estar bem consciente das conse-
o Senado de 2019 a 2021, fez de Pache- Lula fazem parte quências para o governo, no caso de o
co seu sucessor e quer voltar ao posto em da estratégia parlamentar ser frustrado nessa ambi-

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EDILSON RODRIGUES/AG. SEN A DO

Eu e você, você e eu. Antecessor de Pacheco, Alcolumbre agora quer suceder ao colega na presidência do Senado

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Seu País

Mimo. A bandeira de Israel projetada


na cúpula do Senado foi um agrado
de Pacheco ao judeu Alcolumbre

ção. Outro senador petista conta ter ou-


vido do próprio presidente que ele (Lula)
teria acenado com outra opção a Pache-
co: o apoio à disputa ao governo de Mi-
nas Gerais na eleição de 2026. A última
vez que Lula e Pacheco estiveram juntos
foi em setembro, em Nova York. O sena-
dor fazia parte da comitiva presidencial
na Assembleia-Geral anual da ONU. No
dia do retorno ao Brasil, o Supremo con-
cluiu o julgamento que barrou a tese do
“marco temporal”, invenção ruralista
para dificultar a demarcação de terras
indígenas. Um dia depois, Rosa Weber,
que ainda não havia se aposentado e pre-
sidia a Corte, iniciava um julgamento so-
bre aborto e votava a favor de abolir a cri-
minalização de mulheres que se subme-
tem à cirurgia até a 12ª semana de gravi-
dez. Era a gota d’água de uma pauta ju-
dicial tida como progressista demais no
reacionário Congresso.

A ministra é apontada nos bastido-


res por Pacheco como culpada pela gui-
nada direitista da agenda do Senado. In-
flexão que ele próprio fez ao longo da car-
reira, desde a eleição para deputado pelo
MDB em 2014, em coligação com petis-
tas, seguida de uma candidatura a prefei-
to de Belo Horizonte em 2016 pelo MDB
e bem longe do PT até chegar ao Senado
em 2018 pelo antigo DEM. A criminaliza-
ção da posse ou porte de drogas em cur-
so na CCJ foi proposta por Pacheco em
15 de setembro, no embalo do inconclu-
so julgamento do STF a respeito do tema.
Cenários traçados por colaborado-
res de Pacheco indicam que ele parece
apostar que o governo Lula não colherá
sucesso econômico e que as próximas
eleições, a começar pelas municipais de
2024, serão influenciadas por questões
morais. Previsões da equipe econômi-

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ca e do “mercado” mostram que a eco- Pacheco aposta mineiros” como uma das razões para Pa-
nomia vai desacelerar no próximo ano. checo torcer o nariz para a tentativa do
O desemprego está nos menores índices,
no esfriamento Ministério da Fazenda de cobrar Impos-
mas o salário médio é o mesmo de dez da economia e na to de Renda sobre lucros de offshores e
anos atrás. A aprovação do governo Lu- predominância fundos exclusivos.
la em setembro, de 38%, é igual àquela da pauta moral Alcolumbre também tem empresá-
de Bolsonaro na eleição (37%) e na pas- no debate político rio de mídia e empreiteiro rico por trás,
sagem da faixa presidencial (39%), sinal e na condição de suplentes. Seu primei-
da persistente divisão política que nem ro suplente é o irmão Josiel, controlador
a máquina pública sob comando petista da TV Amazônia, o SBT do Amapá. O se-
há dez meses logrou mudar. gundo é Breno Chaves Pinto, dono das
Segundo os colaboradores de Pacheco, a vo João Doria Jr.” O dono do canal, Ru- firmas Rio Pedreira, LB Construções e
agenda reacionária e que mira o Supremo bens Menin, é um mineiro cuja família Construtora Chaves, todas do Amapá, e
andará. Na quinta-feira 19, dia da conclu- (rica) foi generosa com a campanha de de 8,5 milhões de reais em patrimônio
são desta reportagem, o plenário do Sena- Pacheco ao Senado em 2018. Menin e os declarado na eleição de 2022. Dois me-
do debateria o aborto e limites aos pode- filhos Rafael e Maria Fernanda doaram ses após o pleito, a Polícia Federal vas-
res individuais dos juízes do Supremo. Pa- 500 mil reais a Pacheco, 13% da arreca- culhou a casa de Chaves e apreendeu 792
checo tem defendido ainda mudar a Cons- dação total do competidor. Só quem deu mil reais em dinheiro vivo. Era a segunda
tituição para que os togados tenham man- mais foram o partido de Pacheco à épo- fase de uma operação, a Cândidus, sobre
dato. Hoje, aposentam-se aos 75 anos. ca (ex-DEM, 36%) e o próprio bolso do superfaturamento de obras de manuten-
candidato (20%). Menin é a maior fortu- ção de uma rodovia no Amapá, a BR-156.
O embate de Pacheco com a Corte na da construção civil na atualidade (7,7 A LB integrava um consórcio contratado
atravessou o Atlântico. Em Paris, o par- bilhões de reais, segundo a Forbes), gra- pelo governo estadual para o serviço. O
lamentar e o ministro Gilmar Mendes, do ças à sua MRV. Também é criador do ban- governador era Waldez Góes, do PDT. Na
Supremo, expuseram visões opostas du- co digital Inter e um dos donos do clube- antevéspera de deixar o cargo, Góes con-
rante um evento no dia 14. O togado ma- -empresa em que se transformará o Atlé- tratou outra empresa de Chaves Pinto, a
nifestou certa surpresa pelo fato de o tri- tico Mineiro. Não surpreende que, no go- Rio Pedreira, para tocar a obra rodoviá-
bunal ser alvo de propostas reformistas, verno Lula, há quem aponte “bilionários ria mais cara do estado, de 100 milhões
apesar de ter ajudado (na visão dele) a sal- de reais. É a pavimentação de uma rodo-
var a democracia brasileira ao conter Bol- via batizada em 2021 com o nome do tio
sonaro e de haver (também na visão de- de Breno, Josmar Chaves Pinto. Parte do
le) outras prioridades nacionais, como re- gasto dessa obra será paga com recursos
ver o papel das Forças Armadas. Se o STF inseridos no orçamento da Codevasf, es-
tomou decisões que aborreceram o Con- tatal federal, por Alcolumbre via “orça-
gresso, prosseguiu, foi por ter sido provo- mento secreto”. Foi o senador quem, em
cado por ações judiciais. Pacheco comen- 2020, conseguiu aprovar no Congresso
tou que o Legislativo também contribuiu uma lei para que a Codevasf, criada em
para preservar a democracia e que é pre- prol do Vale do Rio São Francisco no Nor-
ciso (palavras dele) “ser implementada a deste, atuasse no Amapá. Góes deixou o
limitação de acesso ao STF”, para que ha- poder estadual e foi direto para Brasília.
ja menos ações judiciais. Disse mais: que É hoje ministro do Desenvolvimento Re-
o poder emana do povo e que o Congresso gional, por indicação de Alcolumbre.
T RE /A P E PEDRO FR A NÇA /A FP

é a “síntese mais perfeita do povo”. Tra- O ministro sobreviverá no cargo dian-


dução: teria o direito de mandar mais. te do abraço do padrinho na extrema-di-
O evento parisiense foi organiza- reita? A julgar pelo silêncio de Lula dian-
do pelo Esfera Brasil, grupo de pres- te do namoro de Alcolumbre (e de Pache-
são patronal comandado pelo empresá- co) com a turma bolsonarista, os impe-
rio João Camargo, presidente-executi- Network. O empresário Chaves rativos da realpolitk parecem falar mais
vo da CNN Brasil e pretendente a “no- Pinto tem os amigos certos alto. Por enquanto. •

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Economia

Ganhos e perdas
CONJUNTURA Ações do governo e alguns acasos
impulsionam a economia, mas há desafios de peso
P O R C A R LO S D R U M M O N D

P
ela primeira vez desde 2020, to às perspectivas da economia brasilei- no radar desses agentes o efeito, no PIB,
a inflação deve encerrar o ra. Na direção contrária há as dificulda- tanto do aumento da renda das famílias
ano dentro da meta fixada des no Congresso para aprovação de no- quanto do gasto público, menos ainda o
pelo Conselho Monetário vas fontes de receita tributária com vista resultado da redução do pagamento de di-
Nacional – 4,75%, segundo a ao cumprimento das metas fiscais, consi- videndos e do aumento dos investimentos
projeção do mercado para o IPCA. O fei- deradas ambiciosas. É o caso das propos- e da produção por parte da Petrobras. Na
to, somado à previsão do FMI de que o tas de taxação dos fundos exclusivos, dos segunda-feira 16, a empresa informou ter
Brasil deverá se tornar a nona economia fundos offshore e do fim da isenção sobre atingido novo recorde trimestral de pro-
do mundo até dezembro, são trunfos de os Juros do Capital Próprio. Sobressaem dução de óleo e gás, no terceiro trimestre.
um governo próximo de completar o pri- ainda as manobras dos grupos privilegia- A alta dos derivados para corrigir a re-
meiro ano. Para dar continuidade à sua dos para manter seus benefícios na re- dução eleitoreira dos preços no ano passa-
estratégia econômica, o ministro da forma tributária, o que poderá resultar do empurrou a inflação para cima, mas o
Fazenda, Fernando Haddad, depende, em IVA acima de 25%, o que inviabiliza- movimento foi contrabalançado por que-
porém, do destravamento de projetos de- ria a reindustrialização, segundo alerta da significativa dos preços dos alimentos.
cisivos no Congresso, da evolução do ce- o economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha. “A gasolina e, indiretamente, o diesel, en-
nário internacional conturbado e do des- tre outros preços monitorados, puxam
fecho da disputa entre as políticas mone- A sistemática revisão das expectati- para cima o IPCA este ano. Os preços dos
tária e fiscal, marcada pela persistência vas de crescimento do PIB, para cima, e alimentos fazem um movimento no sen-
de taxas de juro inviáveis para investi- das projeções de inflação, para baixo, por tido oposto”, destacou a economista Julia
mentos de longo prazo e pela descapita- parte dos profissionais do sistema finan- Braga, professora da Universidade Federal
lização da indústria, sobretudo a de má- ceiro ouvidos semanalmente pelo Banco Fluminense, em apresentação sobre a con-
quinas e equipamentos. Central, deixa claro que muitos não de- juntura econômica do primeiro ano do go-
O governo acumula avanços e enfrenta ram o devido peso a fatores externos e a verno Lula organizada pelo Centro de Es-
obstáculos em profusão. A aprovação de causas internas determinantes no desem- tudos de Conjuntura e Política Econômi-
novo regime fiscal, a reforma tributária penho positivo da economia. Não entrou ca do Instituto de Economia da Unicamp.
em andamento, a renovação e a expan- A carne é um dos produtos com maior de-
são de programas sociais reconhecidos flação acumulada no ano. “Os preços dos
internacionalmente, como o Bolsa Famí- alimentos têm uma tendência de décadas
lia, a contenção da devastação da Ama- de crescimento, portanto, não se deve mi-
Mesmo com
zônia e o lançamento de ambicioso pla- nimizar o bem-estar gerado por um pro-
no de transformação ecológica, destaca-
endividamento cesso de deflação nos orçamentos fami-
dos por Haddad no recente encontro de elevado, houve liares, especialmente para a baixa renda,
representantes dos países do G-20, con- uma expansão que se beneficiou de uma queda maior de
tam ponto nas avaliações positivas quan- do consumo preços”, ressalta a economista.

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Cenário. A inauguração da fábrica da montadora chinesa BYD na Bahia talvez assinale uma mudança de tendência de investimentos.
A produção da Petrobras, o pagamento de dividendos e a distribuição de royalties do petróleo pesam nas contas do governo federal
M A NU DIAS/GOV BA E A RQUIVO/AGÊNCIA PE T ROBR AS

C A R TAC A P I TA L — 2 5 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 41

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Economia

Segundo a Carta de Conjuntura do O preço do barril Apesar do avanço significativo do PIB,


Ipea do terceiro trimestre, a inflação de surgiu um déficit primário que, segundo
de petróleo passou
alimentos foi de 3,79% para as famílias a expectativa do mercado, deverá atin-
de renda alta e de apenas 2,32% para as dos 100 dólares gir, no fim do ano, perto de 100 bilhões
de renda baixa, com um viés redistribu- com a guerra no de reais. A contradição, observa Braga,
tivo. A análise do Ipea chama atenção pa- Oriente Médio está muito associada à dinâmica das re-
ra o fato de que a expansão do consumo ceitas. A arrecadação tributária não ad-
no ano ocorreu apesar do endividamento ministrada pela Receita Federal é o que
das pessoas. Em junho, o serviço da dívi- cai mais, com destaque para a receita da
da comprometia 28% da renda das famí- exploração de recursos naturais, inclusi-
lias, e a taxa de juros era de 102,7% para discreto aumento das concessões de cré- ve royalties e participação especial. Essa
as compras feitas com cartão de crédito, dito para a aquisição de bens, em julho e arrecadação, na própria fórmula de cál-
a linha mais utilizada. O Desenrola Bra- ainda mais forte em agosto. culo, é influenciada pelo preço interna-
sil, programa de renegociação de dívidas Além do consumo das famílias, o con- cional do petróleo. Como houve queda
criado pelo governo, ajuda a aliviar esse sumo do governo, com alta de 2% no pri- desse preço, que no ano passado havia
peso. Lançado em julho, renegociou um meiro semestre em relação a igual período subido muito por conta do conflito da
total de 13 a 15 bilhões de reais em dívi- do ano anterior, contribuiu para a eleva- Ucrânia, essas receitas, já descontada a
das, grande parte de famílias com renda ção do PIB além das previsões. O núme- inflação do IPCA, caíram. É de se espe-
de até dois salários mínimos. ro é calculado com base nos indicado- rar, contudo, uma elevação dos preços da
Pela primeira vez em vários meses, res do serviço público, especialmente de commodity em consequência da guerra
houve redução do comprometimento da saúde e educação. Para o ano, o Ipea pre- no Oriente Médio. Na quarta-feira 18, o
renda das famílias, de 28,3%, em junho, vê expansão de 2,9% no consumo das fa- preço do barril ultrapassou 100 dólares.
para 27,6% em julho. Além disso, ocorreu mílias e de 1,8% no consumo do governo. O resultado das contas públicas foi

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Impactos. A bonança do agronegócio
também se deve a desastres climáticos
em países concorrentes. A carne foi o
alimento que mais barateou neste ano

dústria de transformação. Um possível


sinal de mudança nos investimentos in-
dustriais é a inauguração, na Bahia, da
fábrica da montadora chinesa BYD, a
ocupar o lugar da Ford, que decidiu dei-
xar o País devido à falta de perspectivas
no governo anterior.
Quanto à agropecuária, economistas
consideram improvável repetir-se, em
2024, a conjugação de fatores favoráveis
ocorrida neste ano, com problemas cli-
máticos nos EUA e na Argentina, que são
os principais produtores de soja além do
Brasil, e clima favorável no País.

A crise crônica da indústria é um dos


motivos da elevada incerteza das proje-
ções de crescimento econômico do próxi-
mo ano. “Em relação à indústria de bens
duráveis e de transformação, uma hipó-
afetado também por uma queda da recei- segue a dinâmica dos preços internacio- tese é de que ela tenha passado por um
ta de dividendos da Petrobras, em conse- nais das commodities. São preços que fo- processo de histerese, com perda de capa-
quência da distribuição, no ano passado, gem ao controle dos formuladores de po- cidade produtiva. (A histerese econômica
de dividendos muito acima do que seria líticas públicas e dificultam previsões so- é a dificuldade de retorno ao estado ori-
justificável a partir do aumento do pre- bre a arrecadação tributária. ginal após uma crise.) O indicador de es-
ço do petróleo. Cabe acrescentar que, se Um destaque no ano é o forte cres- toque de capital, calculado pelo Ipea, au-
não tivessem ocorrido privatizações de cimento das dotações orçamentárias mentava desde a década de 1980, portan-
refinarias a partir de 2016, boa parte do das despesas primárias, viabilizado pe- to, havia uma dinâmica de crescimento, e
petróleo hoje exportado poderia ser refi- la Emenda Constitucional 126 que, en- a partir de 2016, simplesmente parou de
nado para consumo interno, reduzindo a tre outras medidas, aumentou o teto de se expandir, algo inédito nas últimas dé-
necessidade de importação de derivados. gastos da União em 145 bilhões de reais cadas”, destaca Braga. Em especial, o es-
Os economistas do Ipea constataram em 2023 e definiu novas categorias de toque de máquinas e equipamentos não
também uma queda da receita de impos- despesas não sujeitas ao teto. A mudan- só parou de crescer, como também sofreu
tos sobre o lucro, tanto do Imposto de ça permitiu o reajuste do Bolsa Família e queda, ou seja, depreciou a uma taxa su-
SCR EMIN / P O R TOS D O PA R A N Á /G OV P R

Renda da Pessoa Jurídica como da Con- a expansão das despesas discricionárias. perior àquela dos investimentos que pro-
R E N AT O L U I Z F E R R E I R A E FÁ B I O

tribuição Social Sobre o Lucro Líquido. Essas medidas resultaram em um impul- vocaram o acúmulo de capital. “Está-se
A causa está no setor petrolífero, que no so fiscal que tende a acontecer também utilizando a capacidade produtiva sobre
ano passado teve um lucro extraordinário no segundo semestre e que foi um dos um estoque de capital menor e, quando
por conta do aumento do preço do petró- motivos que levaram o Ipea a reajustar isso acontece, perdem-se momentos co-
leo, que alcançou 140 dólares o barril. A as suas projeções de crescimento do PIB mo o atual, de transformação tecnológi-
conclusão é que a arrecadação tributária deste ano, de 2,3% para 3,3%, com avan- ca, de adoção de tecnologias mais limpas.
administrada pela Receita Federal, mes- ços de 15,5% na agropecuária, 2,5% no Perde-se também a capacidade de ingres-
mo já deflacionada pelo IPCA, também setor de serviços e de apenas 1,5% na in- sar nessa nova onda tecnológica.” •

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Nosso Mundo

Neofascismo pop
ARGENTINA Seguindo a cartilha de Steve Bannon, o ultradireitista
Javier Milei soube explorar os holofotes e desponta como favorito
P O R G I L B E R TO M A R I N G O N I

A
Argentina vive uma guer- indicadores para todas as torcidas. ria Atlas Intel apresenta outros números:
ra de pesquisas às véspe- A RDT Consultores aponta a diantei- Massa tem 30,6%, Milei 25,2% e Bullrich
ras do primeiro turno da ra de Javier Milei, líder da extrema-direi- 25%. A DC Consultores, por sua vez, per-
eleição presidencial, a con- ta abrigado na coalizão Libertad Avanza, fila Milei chegando a 35,6%, Bullrich com
trastar com a calmaria com 36% das intenções de voto. Logo 28,9% e Massa estacionado em 26,2%.
aparente nas ruas de Buenos Aires. Não atrás vem Patricia Bullrich, de Juntos Mesmo metodologias distintas não
há carros de som ou panfletagens, a não por el Cambio, ex-ministra de segurança conseguem explicar a disparidade das
ser espetaculosos atos de encerramento de Mauricio Macri, com 25% e em tercei- porcentagens. Todas convergem, porém,
das principais campanhas na disputa mais ro, somando 22%, chega o atual ministro em dois pontos. O primeiro é que nenhum
dramática observada desde a queda da di- da Economia Sergio Massa, do Unión por dos candidatos atingirá 45%, ou 10 pontos,
tadura militar, há exatos 40 anos. Existem la Patria, aliança peronista. Já a consulto- adiante do segundo, o que liquidaria a fatu-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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TAMBÉM pág. 46
NESTA Conflito. Os ucranianos
conseguem furar o cerco
SEÇÃO russo no Mar Negro

Cordeiro. Visto com desconfiança pelo Diferentemente de Bolsonaro, que sem- conceder um empréstimo de 57 bilhões de
mercado, o extremista se apresentou pre exaltou a própria ignorância, Milei dólares, o maior da história da instituição,
como um candidato normal nos debates
foi professor de Economia e exibe uma em 2018, penúltimo ano da gestão Macri.
carreira de ponta no mercado financeiro. Diante do desastre que derrete a moe-
Se a persona extravagante de Milei e da nacional, eleva o desemprego e provo-
ra na primeira volta. O segundo é que, em suas propostas simples para problemas ca empobrecimento generalizado, em es-
qualquer situação, Milei estará na disputa complexos, como no velho bordão, ser- pecial nas províncias, Milei e Bullrich en-
final, marcada para 19 de novembro. viram para alavancar a popularidade de contram discurso fácil, seguido de apelos
O candidato extremista, economista e um candidato sem máquina partidária, ao endurecimento da repressão à violên-
deputado eleito pela província de Buenos exageros precisaram ser contidos quan- cia crescente. Sergio Massa consegue um
Aires em 2021, irrompeu na cena nacio- do o mundo dos negócios começou a levar tento ao mostrar-se competitivo, exercen-
nal a partir das Paso (eleições Primárias, a sério um possível governo do interlocu- do a um só tempo o papel de comandan-
Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), re- tor de Conan. Há sérias hesitações empre- te e crítico da situação. Com certa licen-
alizadas em 13 de agosto. A partir daí to- sariais sobre suas vantagens numa situa- ça poética, pode-se comparar seu papel ao
mou gosto por declarações feitas sob me- ção econômica altamente instável. A per- de José Serra em 2002. Nas eleições pre-
dida para chocar o eleitorado, colocar ad- cepção expressou-se em quedas nas pes- sidenciais daquele ano, vencidas por Lula,
versários na defensiva e lacrar nas redes quisas em setembro. ele teve a árdua tarefa de apontar o dedo
sociais e na mídia. À dolarização da eco- Nos dois debates de campanha, ao con- contra a elevação do desemprego e da in-
nomia, à demolição do Banco Central e à trário de Bolsonaro, Milei, em impecável flação numa administração que integra-
extinção da maioria dos ministérios, entre terno azul-cobalto, tentou apresentar-se ra até as vésperas da campanha.
outras bizarrices, somaram-se petardos como um candidato normal. Não gritou,
ao papa Francisco: “Imbecil que defende pediu desculpas ao papa e moderou o tom Nas eleições de domingo estarão
a justiça social”, “representante maligno” após aparecer em comícios exibindo uma também em disputa os governos de 21
e “apoiador de ditaduras sanguinárias”. serra elétrica ligada, em alusão aos cortes das 23 províncias e da Cidade Autônoma
e privatizações que pretende fazer. de Buenos Aires. Na província de mes-
A figura de Milei, sempre cuidadosa- Milei é produto legítimo do caos pro- mo nome vivem 40% dos argentinos e, ao
mente despenteada, como o ex-primeiro- duzido pela crise inflacionária e descon- que tudo indica, o peronismo deve ven-
-ministro britânico Boris Johnson, segue trole cambial, aliado à impotência oficial cer tanto as eleições regionais quanto a
a cartilha de Steve Bannon, o ultradirei- para realizar intervenções em uma econo- nacional. As coligações de Massa e Bull-
tista ex-assessor de Donald Trump. Como mia endividada em dólar e com sérias di- rich têm mais chances de eleger governos
observou Jeffrey Alexander, professor de ficuldades de acesso ao mercado interna- provinciais, apesar da dianteira de Milei
Sociologia da Cultura na Universidade de cional de crédito. Em 12 de outubro, o Ban- na maioria delas. Serão também renova-
Yale, não existe espaço para cortesia ou co Central elevou a taxa de juros de 118% das 130 cadeiras da Câmara dos Deputa-
boas maneiras na cartilha de Bannon, que para 133% ao ano. Com inflação anual de dos e 24 do Senado.
se especializou em dizer o indizível sobre 138,3%, a taxa real permanece, por en- Qualquer que seja o resultado deste
minorias e populações vulneráveis, sem- quanto, pouco acima de 5%. Na raiz da primeiro turno, o certo é que as inten-
pre em busca de holofotes. A lição é segui- crise, entre outras causas, estão as condi- ções de voto mostram que a Argentina
da por gente como Bolsonaro e Milei que, ções draconianas impostas pelo FMI para se inclina para a direita. Se Massa passar
mais que lideranças, exercem o papel de para o segundo turno, a construção de
ídolos pop do neofascismo. uma ampla frente democrática, a exem-
O candidato argentino gaba-se de vi- plo do que fez Lula, será sua tarefa prin-
ver sozinho e de conversar em noites so- Se Massa passar para cipal a ser cumprida a partir da próxima
L A L I B E R TA D AVA N Z A

litárias com seu falecido mastim Conan, o segunda-feira, 23 de outubro. •


bárbaro dos gibis e dos filmes da Marvel. O
o segundo turno, sua
figurino de candidato de multidões de de- primeira tarefa será
*Professor de Relações Internacionais da
sesperados pela pobreza, pelo desemprego construir uma ampla UFABC e coordenador do Observatório de
e pela falta de perspectivas estava pronto. frente democrática Política Externa Brasileira (Opeb).

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Nosso Mundo

Furando o cerco
As forças ucranianas
conseguem afastar a esquadra russa
e manter o comércio nos portos ativo
P O R L U K E H A R D I N G , D E O D ES S A , E DA N S A B B AG H

O
que antes era o Hotel Odes- na província de Kharkiv, onde familiares – tem progredido lentamente. Revelou-
sa virou ruína. O edifício de e amigos estavam reunidos para se des- -se difícil e dispendiosa. As brigadas ucra-
19 andares no Boulevard pedir de um soldado morto em batalha. nianas equipadas com tanques de batalha
Primorskyi foi transforma- Os enlutados tornaram-se as mais re- ocidentais têm dificuldade para avançar
do numa concha enegreci- centes vítimas da guerra: 52 pessoas fo- pelos campos minados e as posições rus-
da. Os russos o atingiram em setembro ram mortas. Foi o ataque mais mortífero sas entrincheiradas. No Mar Negro, con-
com um míssil antinavio Oniks. O movi- numa região que tem sido alvo de bombar- tudo, Kiev fez progressos notáveis. Dro-
mentado terminal de passageiros tam- deios russos implacáveis. No dia seguinte, nes e mísseis Storm Shadow fornecidos
bém foi danificado, assim como silos de cedo, Moscou atacou o centro de Kharkiv. pelo Reino Unido destruíram alvos na
grãos, armazéns e uma igreja ortodoxa. As equipes de resgate retiraram o corpo Crimeia, incluindo baterias de defesa an-
Neste verão, a Rússia retirou-se de um de um menino de 10 anos dos escombros. tiaérea, um estaleiro e o quartel-general
acordo que permitia a Kiev enviar cereais Ele estava dormindo. Também foi morta da frota russa. Na semana passada, ima-
para o mundo todo. Desde então, pulveri- sua avó. Seu irmão de 11 meses ficou ferido. gens de satélite revelaram que a podero-
zou os portos da Ucrânia ao longo da costa sa marinha de Moscou deixou o porto de
do Mar Negro. Foram 13 ataques massivos, O cálculo cínico de Putin é de que o águas profundas de Sebastopol.
geralmente à noite. O som das sirenes po- Ocidente acabará por se cansar de uma Enquanto isso, os navios mercantes
de ser ouvido por toda Odessa. Depois vêm guerra sem final à vista. Ele aguarda voltaram a navegar. De acordo com Yurii
as explosões, que se espalham pela cidade. janeiro de 2025 e o retorno de Donald Vaskov, vice-ministro da Ucrânia respon-
Dezenove meses após a invasão, a es- Trump como presidente dos EUA. Isso, sável pelos portos marítimos, mais de 30
tratégia de guerra de Vladimir Putin é pensa Moscou, significaria um fim rápi- navios chegaram ou partiram de Odessa
evidente: bombardear a Ucrânia até a do da ajuda militar da Casa Branca a Kiev. e dos portos vizinhos de Chornomorsk e
submissão. Na semana passada, tropas A contraofensiva da Ucrânia em terra – Pivdennyi. Eles transportavam cargas de
russas lançaram dois mísseis Iskander. concebida para libertar o sul do país e di- grãos, óleo de girassol e metais, incluindo
Eles caíram num café na aldeia de Hroza, vidir ao meio as forças de ocupação russas uma remessa de minério de ferro.

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Até agora, o corredor de cereais da Ucrâ- Ainda assim, O novo secretário da Defesa britânico,
nia parece funcionar. Abrigada pelo antigo Grant Shapps, lançou no último fim de se-
poucos navios
acordo mediado pela ONU e pela Turquia, mana a ideia de que a marinha britânica
a Rússia conseguiu “inspecionar” contêi- mercantes se poderia escoltar navios no Mar Negro,
neres à medida que atravessavam o Mar aventuram no mas Londres logo descartou a possibili-
Negro, causando atrasos. Agora, os navios Mar Negro dade. Nos bastidores, os aliados da Ucrâ-
podem deslocar-se sem impedimentos. nia têm ajudado de outras formas. Alina
Sua rota atravessa as águas territoriais Frolova, ex-vice-ministra da Defesa ucra-
ucranianas antes de passar pela Romênia niana, disse que os EUA fornecem discre-
e a Bulgária, ambas integrantes da Otan. rá tão movimentado quanto o antigo. Ou- tamente a Kiev dados de satélite.
Ao Observer, Vaskov disse que a Ucrânia tros estão céticos. “Estávamos acostuma-
tem direito de exportar cereais para paí- dos com a Baía de Odessa cheia de bar- Apesar dos recentes reveses, a Rússia
ses da África e do Oriente Médio. Segundo cos e rebocadores. Isso parou”, lamenta tem muitos “recursos”, dizem especialis-
ele, a Rússia exporta de 13 milhões a 14 mi- Oleg Kostyuk, CEO da Global Transport tas. Eles incluem drones camicases, mís-
lhões de toneladas por mês através do Mar Investments, uma empresa de logística. seis de cruzeiro Kalibr e aviação. Andrii
Negro. “Por que deveria parar?”, inda- Kostyuk comparou a situação dinâ- Klymenko, chefe do grupo de monitora-
gou. O governo do presidente Volodymyr mica no Mar Negro à “teoria dos jogos”. A mento do Instituto de Estudos Estratégi-
Zelensky garantiu compensar os proprie- Rússia é capaz de afundar navios com des- cos do Mar Negro, avalia que Moscou pode
tários se algum navio for afundado. tino à Ucrânia, mas Kiev poderia furar os causar mais danos: “O agrupamento mi-
navios russos, observa. O Mar Negro foi litar na Crimeia ainda é muito poderoso”.
Na semana passada, o Ministério das fundamental para a sobrevivência econô- A visão do Porto de Odessa na semana
Relações Exteriores do Reino Unido disse mica da Ucrânia. A colheita de cereais di- passada era enganosamente calma. Dois
que Moscou realmente estava conspiran- minuiu de 100 milhões de toneladas an- navios, o Equator e o Maranta, atraves-
do para explodir navios civis. Um plano tes da invasão para 77 milhões no ano pas- saram a baía. “Costumávamos receber
“pernicioso” faria seus submarinos libe- sado, e são esperadas 50 milhões de tone- 2,5 mil remessas todos os anos”, refletiu
rarem minas no meio da rota marítima. “É ladas nesta temporada. “Ninguém inven- Kostyuk, o diretor de logística. “Agora es-
quase certo que a Rússia quer evitar afun- tou uma forma mais barata de transportar tá tranquilo demais.” •
dar abertamente navios civis, atribuindo, grãos do que o transporte marítimo. Você
em vez disso, falsamente a culpa à Ucrânia pode colocar 60 mil toneladas num navio.” Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
por qualquer ataque a navios civis no Mar
Negro”, afirmou o ministério.
Vaskov disse que os membros da tri- UCRÂNIA Região
anexada
pulação que usavam a rota não ficaram
assustados. “Eles já estiveram em outros Moldávia
Odessa
lugares do mundo em guerra. Seus barcos
não são alvos militares.” Se a Rússia ten- Kerson

tasse atacar o transporte marítimo civil,


isso aumentaria os custos de seguro para Porto de
MAR DE
AZOV
seus próprios navios, ressaltou. A Ucrânia Chornomorsk Yuzhnyi

também enviava cereais através dos por-


tos do Danúbio – que a Rússia bombar- Crimeia

deou – e por estrada, acrescentou. MAR NEGRO

Por enquanto, o número de navios de


carga que fazem essa arriscada viagem Sebastopol
ISTOCKPHOTO

é pequeno. Alguns acreditam que, com


a marinha russa no Mar Negro quase Território ocupado pela Rússia Área recuperada pela Ucrânia
confinada no porto, o novo corredor se- Fonte: Institute for the Study of War with AEI’s Critical Threats Project

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Plural

Mundo de imagens
CINEMA A Mostra de São Paulo, além de uma tradicional vitrine de
filmes, tornou-se o espaço em que ideias e projetos são gestados
P O R C Á S SI O S TA R L I N G C A R LO S

Q
uem nasceu com a Mostra estímulo para criadores, com discus- to combina mercado e formação, permi-
Internacional de Cinema sões sobre o funcionamento do merca- tindo viabilizar projetos e amadurecer
de São Paulo está hoje na do de cinema, no III Encontro de Ideias, e ideias num laboratório criativo. Três tí-
meia-idade. O festival, servindo de vitrine para projetos que fo- tulos maturados em edições anteriores
criado por Leon Cakoff ram gestados em incubadoras de proje- do BRLab serão exibidos na Mostra.
(1948-2011), em 1977, che- tos e em outros eventos do gênero. A conexão incerta entre corpo e espíri-
ga à 47ª edição abraçando, como uma Sim, porque, se o lema glauberiano to durante o despertar sexual de um me-
grande família, avós, tios e tias, mães e “uma câmera na mão e uma ideia na ca- nino está no centro de Almamula, estreia
pais e os bebês do cinema mundial. beça” teve algum sentido quando o cine- do argentino Juan Sebastián Torales. O
O evento, que foi aberto na quarta-feira ma era feito em modo de guerrilha, hoje realismo fantasmagórico dá as caras em
18 e segue até o dia 1º de novembro, ocupan- esse ideal deu lugar a formas mais efeti- O Estranho, filme da dupla Flora Dias e
do 17 espaços de São Paulo, reúne passado, vas de criação colaborativa. Juruna Mallon, no qual o arcaico emerge
presente e futuro, demonstrando como es- no presente de modo inquietante. A desco-
sas camadas do tempo não são sinônimos O brasileiro Tia Virgínia é fruto do Bra- berta de um passado submerso perpassa
de ultrapassado, moderno e promissor. sil CineMundi, evento de coprodução pro- as perambulações de um jovem que retor-
A retrospectiva completa do italiano movido pela CineBH, de Minas Gerais. O na às origens em Represa, de Diego Hoefel.
Michelangelo Antonioni, por exemplo, segundo longa-metragem do diretor goia- O Projeto Paradiso é outra iniciati-
permite identificar a atualidade de uma no Fabio Meira, depois do delicadíssimo va que, além de formação, amplifica pro-
obra do século XX. Já os exemplares do As Duas Irenes, retoma o universo da fa- postas e resultados por meio de uma rede
“slow cinema”, como Deriva (Anthony mília para sondar seus amores e rancores de parcerias nacionais e internacionais.
Chen), Ervas Secas (Nuri Bilge Ceylan) no reencontro de três irmãs vividas por Entre os títulos da Mostra que receberam
e Sonhando e Morrendo (Nelson Yeo), Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso. apoio do Paradiso está o aguardado Estra-
trazem em seu DNA modos de percep- O BRLab é outra iniciativa cujos fru- nho Caminho, do cearense Guto Parente,
ção que Antonioni injetou no cinema 80 tos alimentam o recorte da Mostra que se vencedor de quatro prêmios, incluindo o
anos atrás e ainda se mostram vitais. atenta ao novo. Nascido em 2011, o even- de Melhor Filme, no Tribeca Festival.
Reencontrar autores, obras e conheci- Também foram gestados no Paradiso
dos (nas filas) é um hábito que a Mostra e podem ser vistos na Mostra: Sem Co-
renova a cada ano. Descobrir novos no- ração, da dupla alagoana-pernambucana
mes, confirmar promessas e concordar Os festivais, hoje Nara Normande e Tião, que participou
ou discordar das premiações nos prin- do Festival de Veneza, e O Dia Que Te
cipais festivais é outro costume que o
em dia, tendem a Conheci, terceiro longa-metragem do
evento consolidou. funcionar também mineiro André Novais Oliveira, vence-
Como todos os grandes festivais, a como laboratórios dor do Prêmio do Júri no Festival do Rio.
Mostra tornou-se também espaço de para a criatividade O conceito de incubadora não é, exa-

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TAMBÉM pág. 52
NESTA Literatura. O novo livro de
SEÇÃO Bernardo Carvalho retrata
o País em suas contradições

Muitas mãos.
Os longas-metragens
brasileiros Pedágio
(à esq.) e Sem
Coração tiveram
bem-sucedidos
percursos
internacionais
antes de
desembarcar
por aqui

tamente, uma novidade. Ele surgiu como


estímulo à renovação, um aspecto que os
festivais incorporaram para assegurar
seu papel de identificar e promover ta-
lentos. O fundo Hubert Bals, um dos pio-
neiros, foi criado em 1988 pelo Festival de
Roterdã. Na esteira vieram o Torino Film
Lab, o Open Doors do Festival de Locarno,
o Talents Lab do Festival de Berlim, o
Tribeca All Access, e o Cinéma de Demain
do Festival de Cannes, entre outros.
Pedágio, segundo longa-metragem de
Carolina Markowicz, depois do impac- do formidável Água Salgada, assim como o no chileno A Memória Infinita; de outra
tante Carvão, foi desenvolvido em dife- controle imposto pela teocracia iraniana face do esquecimento no iraniano Aziz;
rentes etapas em Torino, Berlim e Tribe- torna criminosos mesmo os gestos inocen- de priapismo burlesco no peruano A Ere-
ca. Isso favorece não apenas a produção, tes dos personagens de Aquiles e de Parvin. ção de Toribio Bardelli.
mas também a circulação, pois os resulta- Prefere a sabedoria de antigos auto-
dos são exibidos no circuito internacional Embora a contaminação biológica res em plena forma? Wim Wenders con-
de festivais e adquiridos por distribuido- pareça estar sob controle, os protagonis- templa as ruínas como quem aprendeu
L U X B O X / P A R I S F I L M E S E M AYA D E V I C Q

res para exibição em múltiplos mercados. tas do argentino Conversas Sobre o Ódio demais com os desastres no retrato de
Além do passado e do futuro, a Mos- e do belga As Crianças Perdidas seguem Anselm Kiefer em Anselm – O Barulho
tra não deixa também de estar atenta trancafiados em casas-mausoléus, como do Tempo. Aki Kaurismaki indaga por que
ao presente. A seleção deste ano ecoa a se o temor do outro fosse a sequela mais nos debatemos tanto em busca de mais so-
sensação de perigo crescente nas fron- persistente da pandemia. frimento no amargoso Folhas de Outono.
teiras entre o humano e a natureza, en- O medo do envelhecimento, inter- E Victor Erice ressurge de um longo silên-
tre as identidades ensimesmadas. pretado como perda e degradação, apa- cio com Fechar os Olhos, filme que prome-
A relação inviável de Israel com os pa- rece na forma de fábula cruel no finlan- te proporcionar os mais intensos orgas-
lestinos sobrecarrega de tensão cada plano dês Palimpsesto; de cerimônia do adeus mos cinematográficos desta Mostra. •

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Plural

O mito recontado
por Scorsese
Os Assassinos da Lua das
Flores é um magnífico épico sobre como o
Oeste americano foi realmente conquistado
P O R X A N B R O O KS

O
destino sorriu para a na- Este é o primeiro filme de Scorsese
ção indígena Osage, em apresentado no Festival de Cannes des-
Oklahoma, no Centro- de Depois de Horas, de 1985. É também
-Sul dos Estados Unidos. o filme mais rico e forte que ele fez em
A reserva fica num oásis quase 30 anos. De volta da guerra, Ernest
de ouro negro e o povo da Primeira Na- Burkhart (DiCaprio) precisa de dinhei-
ção tornou-se multimilionário com o pe- ro, de um novo começo e, talvez, de uma
tróleo. Eles percorrem as estradas de ter- jovem esposa. Seu tio, William Hale (De
ra em Buicks com motoristas, jogam gol- Niro), providencia todos os três. Hale é
fe nas pradarias e pegam aviões particu- um barão do gado e, portanto, já é rico.
lares para dar umas voltas. Mas uma fortuna não é suficiente – tal-
Mas essa nova fortuna traz perigo: eles vez nunca seja – e, por isso, ele conduz Er-
precisam tomar cuidado para não serem nest na direção de Mollie (Lily Gladstone), Hale imediatamente ganharão o contro-
mortos. Como bem sabemos, a história que detém os direitos de propriedade so- le da propriedade. O que Mollie lucra com
do Ocidente é de exploração e massacres. bre os depósitos de petróleo em suas ter- o acordo é mais duvidoso.
Os assassinatos de Osages na década ras. Se Ernest se casar com Mollie, ele e
de 1920 deram origem ao best seller de “O Coiote quer dinheiro”, diz, sor-
não ficção Assassinos da Lua das Flores: rindo, Mollie, frustrando, de cara, o jo-
Petróleo, Morte e a Origem do FBI (Com- go de Ernest. Mas Scorsese mostra, de
panhia das Letras, 392 págs., 77,90 reais), modo efetivo, que a posição dela é frágil
lançado originalmente em 2017, que re- e que, apesar de sua riqueza, os Osages
velou centenas de mortes inexplicáveis. sabem que não podem abrir mão do apoio
MELINDA SUE GORDON E REDES SOCIAIS

O livro de David Grann, autor conhecido de seus patronos brancos. Além disso,
também por seu trabalho na revista The Mollie é diabética e precisa de doses re-
New Yorker, constitui a base do magnífi- gulares de insulina. As mulheres Osages,
co épico de Martin Scorsese. explica Hale gentilmente, parecem nun-
Assassinos da Lua das Flores, produ- ca chegar a uma idade madura.
ção da Apple e da Paramount, é uma saga De Niro está em ótima forma como o
de época sobre o gangsterismo industrial grande tio Bill Hale, que combina a autori-
nos vastos espaços abertos da América, in- História. O longa-metragem dade folclórica de Lyndon Johnson com o
terpretada vigorosamente por Leonardo é baseado no best seller brilho cruel de Bill Cosby. É um desempe-
DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone. de não ficção de David Grann nho tão poderoso que, num filme menor,

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poderia ter gerado certo desequilíbrio.
Scorsese, no entanto, transforma essa
presença em parte da receita. De Niro é,
para o diretor, mais um instrumento nu-
ma orquestra poderosa, complementada
por DiCaprio, Gladstone e Jesse Plemons
no papel de um rígido investigador federal.
Assassinos da Lua das Flores é
monumentalmente longo, com seus 206
minutos, e se move em ritmo lento. Mas
Scorsese, às vésperas de seus 82 anos, sabe
para onde está indo e quase não desperdi-
ça um segundo. O filme é sinuoso à moda
antiga, um clássico americano instantâ-
neo que, em sua atenção aos detalhes e sua
raiva justa e contida, remete a Steinbeck .

Nenhum homem, obviamente, se con-


sidera um monstro. Mesmo aqueles que
brincam de Deus afirmam fazê-lo por
amor. E o mesmo acontece com Bill
Hale, que diz se preocupar profunda-
mente com os Osages, enquanto eles lu-
tam contra o alcoolismo, a depressão e o
roubo das próprias terras, e enquanto os
corpos parecem se empilhar a cada dia.
“Eu os amo, mas da noite para o dia
Gangsterismo. O diretor (abaixo) às vésperas dos 82 anos, apresenta seu filme
mais rico e forte em três décadas. A saga é interpretada por De Niro e DiCaprio (acima) eles desapareceram”, suspira ele, no mo-
mento do filme em que as nuvens de tem-
pestade começam a se formar. O tempo
deles acabou, acredita Hale, enquanto o
seu está apenas começando.
A constatação de que o combustível fós-
sil subterrâneo é feito de muita matéria em
decomposição apenas aumenta a sensação
de que Scorsese quis aqui tecer um mito al-
ternativo a respeito da gênese da América.
Os Assassinos da Lua das Flo-
res desdobra-se como uma tragédia
musculosa e sombria sobre como o Oes-
te americano realmente foi conquistado,
reformulando o Éden como uma pasta-
gem árida na qual a única fruta é o pe-
tróleo bruto e o sangue no solo rega as
sementes do futuro. •

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

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Plural

Narrar o
mento pelo stablishment, Carvalho, aos 63
anos, não se vê como um escritor canônico.

contraditório
“Não dá para ser canônico em vida, é
preciso ter liberdade para fazer as coisas
que faço nos livros. Penso muito no Ru-
bem Fonseca, que morreu escrevendo o
LIVRO Trinta anos depois de sua estreia na que e como queria”, diz. “As pessoas co-
mentavam que seus últimos livros não
literatura, Bernardo Carvalho lança Os eram tão bons (quanto seus mais antigos).
Substitutos, no qual explora a Amazônia Mas e daí? Ele fazia o que queria. Ser ca-
nônico em vida é muito castrador.”
P O R A LYS S O N O L I V EI R A Graduado em jornalismo, o autor tra-
balhou na Folha de S.Paulo antes de es-

Q
trear na literatura. Sabe que, ao longo
desse percurso, foi conquistando leitores
uando Bernardo Carva- na literária. Foi em 1993 que ele publi- cativos, embora não seja “um escritor de
lho era criança, sua mãe cou o primeiro livro, a coletânea de con- massa”. “E acho isso até legal. Não tenho
gostava muito de ler tos Aberração, já então pela Companhia domínio do que as pessoas leem”, diz.
romances de gênero. En- das Letras, editora na qual se mantém.
tre eles, os de ficção cien- De lá para cá, seu nome sedimentou-se Seus romances variam muito nos te-
tífica eram os seus favori- como um dos mais respeitados da litera- mas, nas maneiras de narrar e até mesmo
tos. Sem ter com quem conversar sobre o tura brasileira. na geografia – O Filho da Mãe (2009) foi
que lia, ela contava as histórias ao meni- Nove Noites (2002), por exemplo, ga- escrito em São Petersburgo. O que há de
no. Assim, explica Carvalho, ele, até ho- nhador do prêmio Portugal Telecom, já comum em seus 12 livros é a força da his-
je, é incapaz de ler um livro desse gênero, foi adotado como leitura obrigatória para tória sobre a constituição do presente.
mas adora que lhe contem as histórias. o vestibular da Fuvest. Mongólia (2003), Mesmo quando boa parte da ação ocor-
Tal fato, assim como essa dinâmi- ganhou os prêmios APCA e Jabuti. A des- re no passado, o presente acaba por sur-
ca entre mãe e filho, é crucial para a es- peito dos vários prêmios e do reconheci- gir também. É esse o caso de Os Substitu-
truturação narrativa do recém-lança- tos, que começa nos anos de 1960, com a
do Os Substitutos. Na história, o perso- viagem rumo à Amazônia, e termina no
nagem principal é um garoto de 11 anos presente, com o protagonista adulto.
que viaja com o pai para a Amazônia. Vão Carvalho gosta de dizer que sua litera-
apenas os dois em um bimotor e o garoto tura é “ancorada no presente”. No novo ro-
se entretém lendo um romance de ficção mance, duas questões que ecoam muito em
científica. O autor conta, em entrevista nosso tempo são condutoras da narrativa.
a CartaCapital, que teve de lutar para A primeira delas tem a ver com a dizi-
manter esse segmento de seu romance. mação dos povos originários. Aos pou-
“Meu editor não queria. Ele acha- cos, tanto o adolescente quanto nós, lei-
va que deveria tirar toda essa parte por tores, percebemos que a missão do pai
ser ficção científica. Mas, para mim, ali na Amazônia não é das mais nobres.
não tinha como ser diferente. São duas A segunda questão vem à tona quan-
narrativas conectadas, é uma construção do a narrativa está no presente. O na-
orgânica”, conta, via Zoom, satisfeito por morado do protagonista, um jovem ator,
OS SUBSTITUTOS
ter vencido a batalha. acusa um diretor, com quem trabalhou
O lançamento de Os Substitutos coin- Bernardo Carvalho. Companhia das anos atrás, de abuso. Carvalho, como
Letras (232 págs., 69,90 reais)
cide com o aniversário de 30 anos do sur- bom provocador literário que é, não to-
gimento de Bernardo Carvalho na ce- ca nessa ferida – que está na ordem do

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Trajetória sólida. O autor, de 63 anos,
acumula prêmios, como APCA e Jabuti,
e já foi parar até em lista de vestibular,
com o romance Nove Noites, de 2002

outra maneira, e também pode ser algo


singular, uma contraposição ao discur-
so das massas”.
Os Substitutos começou a ser escrito
em 2017, quando o autor tomava notas
avulsas para um possível romance, pa-
ra falar de coisas que, em Nove Noites, fi-
caram para ele incompletas. Mas o pro-
jeto foi temporariamente interrompido
porque Carvalho foi dar um curso numa
universidade alemã.
Quando voltou a São Paulo, em março
de 2020, logo viu tudo fechar, por causa
da pandemia. Pouco depois, recebeu um
projeto de encomenda, que rendeu a no-
vela O Último Gozo do Mundo (2021). Foi
só a partir daí que pôde voltar às ideias
que resultariam em Os Substitutos.

Nesse meio-tempo, o Brasil e o mundo


passaram por grandes transformações,
com a pandemia, a extra-direita no poder
e o fortalecimento da literatura feita por
autores pertencentes a grupos até então
excluídos. Parte considerável do livro foi,
inclusive, escrita nos momentos de ins-
tabilidade política e obscurantismo atra-
vessados pelo País – uma contraposição
ao momento de euforia política e econô-
mica da época de Nove Noites e Mongólia.
“A literatura procura uma verdade,
cuja medida é o risco ligado ao presen-
te”, afirma. “Na literatura, como na polí-
tica, não adianta nada repetir. O que inte-
ressa é o incômodo. A verdade só vem na
dia – de forma maniqueísta. O que inte- situações pessoais para ganhar uma di- hora em que corremos riscos.” E, nova-
ressa a ele é, na verdade, o contraditório. mensão ampliada. Quando questionado mente, ele cita Rubem Fonseca: “Ao con-
PA B LO SA B O RID O

Daí a pergunta: não será o ato do rapaz se, nos seus livros, o pessoal é político, trário do cânone, quando você está vivo
fruto de oportunismo? ele assente com a cabeça, e complemen- é para levar porrada mesmo. Ele estava a
Os romances de Carvalho são assim: ta: “Acredito que a política seja o avesso ponto de destruir sua obra (com seus últi-
lidam com a micropolítica, partindo de da moda. A política é dizer o momento de mos livros), e isso é se sentir vivo”. •

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Plural

Embora inocentado
no “Mensalão”, não
se recuperou dos
danos morais e físicos

Luiz Gushiken,
Tribunal Federal em 2012, mas os danos
morais e físicos causados pelo processo

presente
eram irreparáveis e sua saúde não resis-
tiu. O STF não teve a justeza de anular o
processo, pois nenhum malfeito foi com-
provado, nenhuma testemunha ouvida, e
MEMÓRIA Coletânea de artigos relembra nenhuma prova jamais foi apresentada.
O descendente de pais imigrantes de
a trajetória e o legado do ex-ministro no Okinawa chegou ao banco Banespa nos
sindicalismo, no PT e no governo Lula anos 1970. Sua habilidade em liderar co-
mícios nas ruas estreitas do centro finan-
P O R F E R N A N DA OT E R O * ceiro de São Paulo mobilizava multidões,
que se aglomeravam para ouvi-lo. Ga-

S
nhou notoriedade e ficou conhecido co-
mo o “japonês” sindicalista que vestia pa-
etembro de 2013 marcou qualificava sua atuação política. letó e demonstrava eloquente capacidade
o tempo de despedida de Gushiken sobreviveu durante alguns de diálogo e persuasão. Desempenhou
Luiz Gushiken, figura his- anos às injustiças da famigerada batalha papel fundamental na fundação e orga-
tórica, reconhecido como judicial batizada de “Mensalão”, notória nização do Partido dos Trabalhadores e
uma das mentes mais bri- por ter deixado um rastro de estragos ir- foi encarregado da formulação da polí-
lhantes, respeitadas e influentes do reparáveis e dezenas de abusos cometidos tica sindical partidária. Após a funda-
Partido dos Trabalhadores. Suas ideias contra os direitos humanos fundamen- ção do PT, foi ativo na articulação e cria-
e ideais continuam de uma atualidade tais, os direitos políticos, a economia na- ção da Central Única dos Trabalhadores,
singular, beiram o misticismo que sem- cional e as garantias individuais. Foi o pri- em 1983. Elegeu-se presidente do Sindi-
pre o cercou, e nem por isso des- meiro réu a ser inocentado pelo Supremo cato dos Bancários e, em 1985, liderou

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a maior greve da história da categoria. tem, tamanha a atualidade e relevância. redução na sua taxa de conflito inaugu-
Sua eleição a deputado constituinte Em 1994, Gushiken questionava: “A rarão algo inédito na história, carregada
em 1986 foi um processo natural, pois democracia, amparada numa imprensa de imensas potencialidades para o pro-
sua liderança e habilidade de articula- livre e num poderosíssimo arsenal de co- gresso humano”. Material rico em aná-
ção o consagraram como um dos princi- municação de massa, não haverá de im- lise histórica e novas perspectivas revo-
pais líderes que atuaram na defesa dos por uma nova forma de relacionamen- lucionárias. A atuação do presidente Lu-
direitos da classe trabalhadora na Carta to entre o cidadão e a esfera pública?” E la e seu protagonismo de liderança global
Magna. Após três mandatos consecuti- prosseguia: “Este invento humano notá- refletem, em alguma medida, a inspira-
vos, Gushiken abdicou de uma fácil ree- vel rompe fronteiras, cria simultaneida- ção “gushikeniana”. Quem duvida pode
leição para se dedicar à organização dos des impensáveis no passado, altera hábi- reler o discurso do presidente na abertu-
fundos de pensão no Brasil, tornando-se tos e costumes, estimula ações, atravessa ra na Assembleia da ONU em prol do “de-
um especialista no assunto. Foi o mentor tempos e espaços, altera comportamen- senvolvimento sustentável e da reforma
da criação de diversos fundos pelo País, tos sociais, amplia o pequeno e diminui o das instituições de governança global”.
auxiliou municípios e estados a organi- grande, entorpece e também educa men-
zar e montar seus fundos de previdência. tes. Trata-se de um instrumento benéfi- Poucos dias antes de sua partida,
Ele não conseguiu, no entanto, se man- co e ao mesmo tempo perigoso, pois de- Gushiken foi chamado por Lula para co-
ter distante da política por muito tempo. pende de quem o manipula”. mentar sobre as trevas na qual estáva-
Seu retorno se deu pelo convite de Lula, Sua fascinante capacidade crítica nos mos metidos naquele fatídico 2013. Sua
que fez questão de chamá-lo para coor- convidava a criar novos paradigmas de preocupação inicial foi reafirmar a defe-
denar a campanha presidencial em 2002. cidadania participativa e deixar a prática sa incondicional do legado do PT e de seus
do “conflito como modus vivendi”, pois es- quadros. Apontava para as “três dimen-
Essas e outras histórias integram o se modelo “haverá de ceder espaços para sões” dos protestos daquele ano, identi-
livro A Nova Ordem Luiz Gushiken, obra um novo tipo de relacionamento entre as ficando “grupos novos se manifestando
coletiva que reúne 67 autores e autoras nações, que seja mais cooperativo e equâ- na sociedade” apoiados na “violência pre-
e foi organizado para marcar a data de nime em seus princípios”. Defendia ain- meditada e obscuridade de interesses de
dez anos de sua morte e recolocar em evi- da que “a introdução da solidariedade ati- alguns”. Tudo isso se confirmou na se-
dência sua contribuição intelectual. O tí- va entre as nações e, de outro lado, uma quência, com a Operação Lava Jato, o pro-
tulo do livro faz referência à sua tese de cesso de impeachment de Dilma Rousseff
1994, intitulada A Nova Ordem Mundial, e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
publicada pela Câmara dos Deputados. Se Gushiken tivesse resistido, teria
Ousado na defesa de um novo paradig- atuado com sua firmeza singular das du-
ma, mal compreendido entre seus pares, ras batalhas que ficaram ainda mais trá-
Gushiken propunha um novo modelo de gicas nos anos seguintes. Seus insights e
ESDR AS M A RTINS/A RQUIVO FUNDAÇÃO PERSEU A BR A MO

governança global. Entusiasmado com a sua visão continuariam a nos inspirar e


criação da Zona do Euro, afirmava que nos lembrar do poder da esperança e da
“o fanatismo religioso, acompanhado transformação, mesmo diante dos desa-
de um nacionalismo desenfreado, divi- fios mais duros. Seria aquele a apontar
de povos, sacode o mundo e dissemina os caminhos para combater a barbárie,
o terror nas áreas onde penetra”. Quan- propondo alternativas e dialogando in-
do identificou o perigo das ações dos cansavelmente, pois, antes de ser um so-
EUA contra a Líbia e indicou a necessi- litário samurai, era um brasileiro que ja-
dade de um Tribunal Internacional pa- mais desistiu e sabia que o melhor desta
ra mediar o conflito, suas palavras assu- A NOVA ORDEM terra será sempre o seu povo, a quem de-
miram um tom profético. Suas reflexões LUIZ GUSHIKEN dicou sua vida. A eleição de Lula em 2022
sobre ética e seus questionamentos so- Fernanda Otero (org.). Fundação Perseu também tem um tanto de seu legado. •
bre o domínio das redes de comunicação Abramo (288 págs., PDF gratuito)
de massa poderiam ter sido escritos on- *Jornalista, foi assessora de Luiz Gushiken.

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AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Todos perdidos

Ucrânia e, outra vez, no Oriente Médio. conhecimento da seleção venezuelana.


► O desastre diante do Volto aqui a dizer que, vencesse quem Conversa pra lá, conversa pra cá, e
tradicional Uruguai nos vencesse nesses conflitos, nada mudaria. todos ignoravam completamente o ad-
A vitória, nesses casos, demonstra ape- versário. Fico abismado ao ver como is-
jogos eliminatórios da nas quem foi mais forte em termos bé- so continua acontecendo a despeito das
Fifa mostra uma Seleção licos. Jamais prova qualquer vitória de tantas “zebras” que o futebol apresenta.
Brasileira desfigurada, eventuais demandas ou qualquer réstia Poucos dias antes, o Botafogo tinha
de razão. O resultado final serão sempre sido vítima do mesmo fato. Líder pra lá,
a viver do passado perdas. Prejuízos em todos os sentidos. Tiquinho artilheiro pra cá, e o Coritiba,
Chega a ser deprimente fazer parte na “lanterna”, nem era citado em meio
da humanidade ainda neste estágio de àquele oba-oba danado.

P
ode parecer e talvez seja mesmo barbárie e saber que ainda não funcio- Até o treinador Bruno Lage entrou de
muita inocência dizer simples- na a ideia de um organismo supranacio- gaiato, acreditando no que estava sendo
mente não à guerra, qualquer que nal que, no mínimo, fosse capaz de isolar falado. Poupou o Tiquinho, inventou o
seja ela, mas também não deixa de ser um qualquer país que tentasse usar da força Tchê Tchê de lateral, mexeu na defesa, no
esboço de reação ou de não aceitação des- para resolver suas diferenças. meio de campo e no ataque. Resultado: na
se fenômeno que atinge o humano des- De volta aos tempos do Vietnã e do segunda-feira estava de volta a Portugal.
de a sua individualidade até as mais com- Apartheid, me recordo dos hippies que, Mas, voltando às eliminatórias, na se-
plexas relações entre grupos e nações. inconformados com a inaceitável ideia de gunda partida, o desastre brasileiro foi
Me voltam à memória, nestes dias de serem mandados a uma guerra que era total diante do tradicional Uruguai. A
sangue na Faixa de Gaza, as ações não absolutamente incompatível com seus confiança não era a mesma do jogo con-
violentas de Mahatma Gandhi, Martin sentimentos humanitários – Mohamed tra a Venezuela e todo o desencontro do
Luther King e outros inconformados em Ali, por exemplo, se recusou a ir. nosso futebol ficou escancarado.
aceitar o confronto bélico como solução. O que vimos em campo foi um Uruguai
A guerra, de fato, jamais resolve qual- Das guerras bélicas ao esporte, é um todo arrumado, com marcação seve-
quer coisa. Quando encerrada, ela ape- salto. Quem não se lembra daquelas trans- ra, saída rápida – ou seja, com um jogo
nas joga para debaixo do tapete o ódio missões, especialmente no rádio, comen- simples e objetivo – contra uma Seleção
ampliado que vai, a qualquer momento, tando sobre as rivalidades entre brasilei- Brasileira desfigurada.
brotar como uma fístula ou um tumor de ros, uruguaios e argentinos como se fos- O Brasil conseguiu, no primeiro tem-
consequências imprevisíveis. sem espécies distintas de seres terrestres? po, não chutar uma bola sequer no gol ad-
Algo que me consola, e até alegra, ul- Embora devamos reconhecer que, de versário. Víamos jogadores perdidos em
timamente, é ver o ressurgimento fes- uns anos para cá, houve um avanço nas campo. O futebol brasileiro está, há mui-
tivo das cabeleiras enormes que volta- trocas entre os países, esse desconheci- to tempo, vivendo do passado, e recorro
ram a alegrar as ruas – principalmente mento dos nossos vizinhos ainda não te- mais uma vez à sabedoria popular: fute-
entre os negros, com seus lindos pentea- nha cessado completamente. Basta pen- bol é momento.
dos exuberantes. sarmos no que aconteceu nos dois jogos Muita coisa ao longo dos anos e hou-
Chego a pensar se não seriam o símbo- eliminatórios da última data Fifa. ve quem comentasse que Fernando Diniz
lo do desabrochar de manifestações in- Nos dias que antecederam o jogo não teria obrigação de ganhar – uma vez
controláveis da necessidade humana de com a Venezuela, meu inconformis- que é considerado interino. Mas o fato é
alegria diante das ameaças agora nova- mo foi aumentando à medida que os que ele buscou implementar sua filoso-
B A P T I S TÃ O

mente concretizadas nas duas supura- comentários, rigorosamente todos, de fia de jogo. E agora? •
ções mais evidentes neste momento: na toda a mídia, não tomavam o menor redacao@cartacapital.com.br

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DRAUZIO VARELLA
Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento
da Aids no Brasil. É autor, entre outras obras, de Estação
Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção em 2000

Efeitos indesejáveis

Há anos a medicina luta para contro- Os participantes foram divididos em


► A classe nova de drogas lar o apetite daqueles que precisam e pre- três grupos, dois dos quais receberam
para o controle glicêmico tendem perder peso. Com exceção da ci- um dos agonistas GLP-1 (liraglutida ou
rurgia bariátrica, os tratamentos dispo- semaglutida), enquanto o terceiro foi me-
em diabéticos tem níveis sempre apresentaram resultados dicado com duas drogas pertencentes a
causado problemas pífios. Os medicamentos desenvolvidos outras classes (bupropiona-naltrexona),
gastrointestinais em quem pela indústria farmacêutica nas últimas para funcionar como grupo controle.
décadas foram pouco eficazes e cheios de Na comparação com o grupo contro-
as usa para emagrecer efeitos indesejáveis. le tratado com bupropiona-naltrexona,
Agora estamos diante de uma nova os que receberam os agonistas do GLP-1,
classe de drogas, os agonistas do recep- liraglutida ou semaglutida, tiveram ris-

E
magrecer sem estar doente nun- tor GLP-1, desenvolvida para o contro- co de desenvolver pancreatite nove ve-
ca foi fácil. Restringir continua- le da glicemia em casos de diabetes, mas zes mais alto, de obstrução intestinal 4,2
damente o número de calorias capazes de provocar perdas que podem vezes maior e de gastroparesia 3,6 vezes
ingeridas é empreitada árdua que aba- chegar a 15% ou 20% do peso corpóreo. mais alto. O risco de apresentar cálcu-
te até os mais fortes. Essa ação paralela causou um aumen- los biliares foi o mesmo nos três grupos.
Quando os sensores existentes no cére- to vertiginoso nas vendas desses medi- Apesar do custo proibitivo dos agonis-
bro detectam a diminuição dos estoques camentos para pessoas sem diabetes, in- tas, da necessidade de aplicações sema-
de gordura no tecido adiposo, provocada teressadas apenas em perder peso. Ho- nais por tempo indeterminado e dos re-
pela redução do aporte calórico, o cérebro je, esse contingente representa a maioria latos de recuperação dos quilos perdidos
entende que a sobrevivência está amea- dos usuários, muitos dos quais compram depois da suspensão do tratamento, a po-
çada, caso o processo não seja detido. as medicações por conta própria e se tra- pularidade dessas drogas é grande entre
Aciona, então, diversos mecanismos: tam sem receber orientação médica. os que desejam emagrecer.
reduz a energia gasta em repouso, isto é, Entre eles estão aqueles em que a obe-
aquela consumida pelo corpo para exer- O uso indiscriminado dos agonistas sidade está associada ao risco de doen-
cer as funções vitais que são indepen- do GLP-1 permitiu documentar uma sé- ças cardiovasculares graves, como in-
dentes da nossa vontade (respirar, dige- rie de efeitos colaterais que precisam ser farto do miocárdio e acidentes vascula-
rir, fazer o coração bater, pensar etc.). Ao conhecidos por quem vai recebê-los. Os res cerebrais, além das limitações orto-
mesmo tempo, facilita a formação de gor- mais limitantes são os que acometem o pédicas que interferem com a mobilida-
dura (lipogênese) e reduz o processo de aparelho digestório (gastrointestinal). de e a qualidade de vida.
degradação dos lipídeos (lipólise), entre Estudos com pequeno número de pa- Os agonistas são medicamentos com
outras reações metabólicas. cientes com diabetes já haviam docu- efeitos colaterais geralmente limitados e
Esses mecanismos ocorrem em silêncio mentado um aumento do número de ca- uma relação custo-benefício que justifi-
nos subterrâneos do inconsciente. O úni- sos de pancreatite, cálculos biliares, obs- ca o emprego na clínica. O uso sem super-
co ao alcance de nossa percepção é a fome, trução intestinal e retardo do esvazia- visão médica, no entanto, deve ser enfa-
estratégia que o organismo engendrou pa- mento gástrico (gastroparesia). ticamente desaconselhado.
ra não ousarmos deixá-lo sem energia. Acaba de ser publicada no Journal Embora sejam eventos relativamente
A fome é um instinto mais poderoso of the American Medical Association raros, as pancreatites, as obstruções in-
do que a sede: é mais fácil resistir à de- (JAMA) uma pesquisa canadense rea- testinais e as gastroparesias podem evo-
sidratação do que à inanição. A dieta hi- lizada na Universidade de British luir com complicações graves que exigem
pocalórica adotada com o rigor mais es- Columbia, com 5.411 mulheres e homens diagnóstico precoce e tratamento espe-
B A P T I S TÃ O

partano tende a sucumbir diante da fo- sem diabetes, que faziam tratamento pa- cializado. •
me gerada por ela. ra excesso de peso ou obesidade. redacao@cartacapital.com.br

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