— PANDEMIA —

O BRASIL ATINGE A INDECENTE MARCA DE 500 MIL MORTES

cartacapital.com.br

IMBECILIZAÇÃO
PROGRESSIVA
NO PROJETO DO HOMESCHOOLING,
FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO,
IDEOLOGIA E INTERESSES ECONÔMICOS
CAVALGAM JUNTOS

ANO XXVI N° 1162 R$ 19,90

23 DE JUNHO DE 2021

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CARTACAPITAL
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ANUNCIOS.indd 4 17/06/2021 09:50
 23 DE JUNHO DE 2021 • ANO XXVI • N° 1162

A cúpula do G-7 terminou com

poucos avanços para o meio
ambiente e as vacinas. Pág. 44

6 A SEMANA
9 MARCELO FREIXO Economia Nosso Mundo
32 C R I S E E N E R G É T I C A A cúpula evidencia
44 G -7
Os erros que arrastaram incômodo das potências
Seu País o Brasil para o ocidentais com o poderio

Plural
20 A R A S V S . M O R A E S racionamento e o risco crescente da China
A PGR barra investigações de novo apagão 46 ISRAEL
contra o governo

53
36 E M B R A E R Salva da venda O novo governo acena
e compra briga com
para a Boeing, a empresa a nacionalistas e mantém
ministro do STF
bate sucessivos recordes o cerco a Gaza A TERRA,
26 R I O G R A N D E D O S U L
Eduardo Leite prepara
de valorização na Bolsa 48 O B S E R V E R O HOMEM,
a privatização da Corsan 38 T U R I S M O Os surtos de Covid em A LUTA
As tendências fábricas ameaçam
28 CIRO GOMES
do setor durante e após trabalhadores no UMA NOVA BIOGRAFIA EXPÕE OS
29 MARCOS COIMBRA pandemia de Coronavírus Sudeste Asiático
Fabiano Santos
CONFLITOS DE EUCLIDES DA CUNHA

10
30 E L E I Ç Õ E S
fala sobre as federações
4 2 C A P I TA L S /A 5 1 J O S É S Ó C R AT E S
COM O MASSACRE EM CANUDOS
partidárias, a esperança E A EXPLORAÇÃO DA AMAZÔNIA
F O T O : D A N I E L L E A L- O L I V A S / A F P

das pequenas legendas

ILUSTRAÇÃO: PIL AR VELLOSO

HOMESCHOOLING
A QUEM INTERESSA LIBERAR A
Capa: Pilar Velloso. EDUCAÇÃO DOMICILIAR, HOJE
Foto: iStockphoto RESTRITA A 0,03% DOS ALUNOS?
56 P L U R A L R E C O M E N D A 61 M A R I A F L O R
62 R OX Y A luta para salvar o último cinema
de rua em Copacabana 64 A FONSINHO
65 S A Ú D E Por Arthur Chioro
66 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTR A L D E A TE N D I M E N TO D E SEG U N D A A SE XT A- FE I R A, DAS 9 ÀS 18 HO R AS, E XCE T O FE R I ADO S SP: 11 3512-9486 /

R J : 2 1 4 0 6 2 - 7 1 8 3 / M G: 3 1 4 0 6 2 - 7 1 8 3 / DF: 61 3181-0215 FALE CO NO SCO : WWW.ASSIN AN TE CARTACAPITAL .COM.B R

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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 CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Carlos Drummond, Mauricio Dias e William Salasar
REPÓRTERES: Ana Flávia Gussen, André Barrocal (Brasília),
Cleide Sanchez Rodriguez e Victor Calcagno (Rio de Janeiro) pelo agronegócio. É uma crise ambien-
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
tal de grandes proporções.
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis Luis Ribeiro
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub
COLABORADORES: Afonsinho, Antonio Delfim Netto, Celso Amorim, Claudio Bernabucci
(Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, Eduardo Nunomura, Esther Solano,
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Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes, Rogério Tuma e Walfrido Warde
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
SECRETÁRIA: Ingrid Sabino

CARTA ON-LINE
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITORES: Alisson Matos e Brenno Tardelli
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Getulio Xavier,
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VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
TAPETE DOURADO
VÍDEOMAKER: Natalia de Moraes Toda destruição promovida por es-
ESTAGIÁRIOS: Caio César, Camila da Silva e Natane Pedroso
REDES SOCIAIS: João Paulo Carvalho
te governo está sempre ligada a in- A FOTOGRAFIA
SITE: www.cartacapital.com.br teresses econômicos. Ingenuidade pen- Aprecio o modo didático de dis-
sarmos que é só por questões ideológi- correr sobre qualquer tema, de
cas. Parabéns à revista pela grande re- forma instigante e didática. Sem usar
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação 881, 10º andar. portagem, o cenário é estarrecedor. as palavras “perdedor” e “magnânimo”,
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150
Ricardo Dourado José Sócrates pinta FHC como
PUBLISHER: Manuela Carta
a direita democrática atropelada pela
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No fim das contas, “bandido bom é
GERENTE DE NEGÓCIOS: Anderson Ribeiro sua criatura e o centro-esquerda repu-
ANALISTA DE CIRCULAÇÃO: Ismaila Alves bandido amigo”.
blicano na figura de Lula, disposto à
AUXILIAR DE CIRCULAÇÃO: Júlia Maciel
Sayd Bueno
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: Lindberg Lima união na luta contra o celerado, gesta-
QUASE 500 MIL
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva
do no golpe de 2016 por essa
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: E o presidente andando de moto mesma direita.
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
sem máscara e rindo de todos. Inez Donati
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Tanta ignorância e banalidade, enquanto
PFIZER DISSE QUE
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto,
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
o povo quer apenas respeito, dignidade
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e saúde. Até agora não entendi essa RESSARCIRIA O BRASIL
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MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com convocação do presidente para partici-
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br
parem dessa caravana de motos. Qual é DOSES, GOVERNO
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda.
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. o sentido disso? BOLSONARO IGNOROU
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 Carlinhos Jardim Ele conseguiu exatamente o que
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se queria: muitas vidas perdidas pe-
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
Nas últimas manifestações contra la sua ineficiência e maldade extremas.
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel Bolsonaro, um amigo foi, provavel- Suzana Teixeira
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584, mente se contaminou e perdeu a vida
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
pelo Covid-19, mas sua luta não foi em PONTO DE NÃO RETORNO
acordo com a Lei de Imprensa.
vão. Há um mês, outro amigo padeceu PARA AQUECIMENTO
IRREVERSÍVEL PODE TER
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda (SPDL) desse vírus que lhe ceifou a vida. Espe-
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
remos para ver Bolsonaro, Pazuello e a SIDO SUPERADO
Capitã Cloroquina, dentre outros, no A ganância por riqueza e concen-
banco dos réus e que suas penas sejam tração de renda aprofunda a des-
severas, na proporção dos crimes que ti- truição do próprio planeta. A humani-
raram a vida de milhares de brasileiros. dade chegou a um ponto em que preci-
MISTO
Paulo Sérgio Cordeiro Santos, Curitiba sa parar de se autodestruir ou viverá
a destruição. Triste que em nome
DE VOLTA AO RACIONAMENTO do agora não conseguimos
A baixa dos mananciais está ligada assegurar o amanhã.
CENTRAL DE ATENDIMENTO também à destruição do Cerrado Luiz Carlos Casado
Assinaturas, sugestões e reclamações
São Paulo: (11) 3512-9486
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C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 5

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 A Semana
Cepa América
O Ministério da Saúde
informou, na terça-feira 15,
a existência de 53 casos
confirmados de Covid-19
entre jogadores, delegações
e trabalhadores contratados
para atuar na Copa América.
Nos exames, 27 atletas
e membros da comissão
técnica testaram positivo,
além de 26 prestadores de
serviços. Ao comentar os
dados em uma rede social,
Marcelo Moreno,
atacante da Seleção
boliviana e do Cruzeiro,
fez um agradecimento
irônico aos organizadores do
torneio: “Obrigado a todos
da Conmebol por isso.
A culpa é toda de vocês.
Se alguma pessoa morre,
o que vão fazer? O que
importa é somente o
dinheiro? A vida do jogador
não vale nada?” A Conmebol
ameaça punir o atleta.
6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCSemana1162-OK.indd 6
Pandemia/
500 mil mortes
Perto da trágica marca surgem novas
provas de que Bolsonaro priorizou
a cloroquina em vez das vacinas
N
o sábado 19, quando a oposição
sair às ruas para protestar con-
tra a desastrosa atuação de Jair
Bolsonaro no combate ao Co-
ronavírus, é possível que o Brasil terá supe-
rado a tenebrosa marca de 500 mil óbitos
acumulados desde o início da pandemia. A
perspectiva não é nada animadora. De acor-
do com um estudo do Imperial College de
Londres, divulgado na terça-feira 15, a ta-
xa de transmissão da Covid-19 voltou a cres-
cer no País e está em 1,07. Ou seja, cada cem
infectados transmitem o vírus a outros 107
brasileiros, que contaminam outros 114, e
assim por diante.
Com a pandemia fora de controle, surgem
novas provas de que o governo priorizou a
compra de cloroquina em vez de vacinas. Par-
te da história havia sido revelada pela CPI da
Covid, mas não custa rememorar. Em agos-
to de 2020, a Pfizer enviou ao Ministério da
Saúde três ofertas para o fornecimento de 70
milhões de doses de vacina. Todas elas pre-
viam entregas ainda no ano passado, mas fo-
ram ignoradas pelo governo. A indústria far-
macêutica colecionou dezenas de e-mails não
respondidos até novembro, quando, final-
mente, a equipe de Bolsonaro começou a se
mexer pelos imunizantes. O acordo só foi cele-
brado em março deste ano, sete meses depois.
Os executivos do laboratório talvez não sou-
bessem, mas, certamente, teriam mais aten-
ção se oferecessem outro produto. Ao negociar
com a chancelaria indiana a liberação de ma-
téria-prima para a produção da hidroxicloro-
quina, medicamento antimalárico comprova-
damente ineficaz contra o Coronavírus, a di-
plomacia brasileira chegou a responder men-
sagens em 15 minutos, mesmo à noite ou aos
fins de semana, um inegável exemplo de dedi-
cação a uma causa absolutamente inútil.
A série de 54 e-mails, trocados entre mar-
ço e junho de 2020, está em poder da CPI,
mas acabou revelada pela agência Fiquem
Sabendo, especialista em Lei de Acesso à In-
R E D E S S O C I A I S E M AT E U S B O N O M I /A G I F /A F P
formação, e pelo jornal O Estado de S. Paulo.
Nas mensagens, diplomatas brasileiros che-
gam a cobrar, de uma fornecedora da Índia,
EDILSON RODRIGUES/AG.SEN A DO,
a liberação de documentos para despachar
os insumos “na maior urgência possível”. Pe-
na que o governo não teve o mesmo zelo com
as vacinas. Até a terça-feira 15, apenas 11% da
população estava completamente imunizada
contra a Covid. Em compensação, os pacien-
tes com malária não têm do que se queixar.
Há cloroquina de sobra nos estoques do SUS.
16/06/2021 21:54
 23.6.21

O Santo Ofício
CPI da Covid/ do Democratas

República A Executiva Nacional do

DEM decidiu expulsar do

das milícias partido o ex-presidente da

Câmara dos Deputados
Em depoimento, Witzel acusa a PF Rodrigo Maia. Ao comentar
a decisão, anunciada na
de coagir o porteiro de Bolsonaro a segunda-feira 14, o deputado
mudar depoimento sobre Marielle comparou o presidente
da legenda, ACM Neto, ao
inquisidor espanhol Tomás de

E
Torquemada (1420-1498).
m depoimento na CPI da Covid, “O presidente Torquemada
o ex-governador do Rio de Janei- Neto está usando seu poder
ro Wilson Witzel bateu boca com para proibir críticas à sua
gestão”, afirmou à Folha
senadores e resolveu abandonar
de S.Paulo. O parlamentar
a sessão, quando parlamentares insinua- recorreu à Justiça Eleitoral
ram que houve corrupção em sua gestão no para não perder o mandato
estado. Antes disso, bateu boca com Flávio por infidelidade partidária.
Bolsonaro, o filho Zero Um do presidente, a
quem fez graves acusações.
Segundo Witzel, houve coação da Polícia
Federal contra o porteiro do condomínio Vi- Alvo de ameaças,
vendas da Barra, onde Jair Bolsonaro tem ca- Witzel diz evitar
sa, para que ele mudasse seu depoimento no até sair de casa

caso Marielle. Disse ainda que foi chantagea-

do, “a mando do chefe”, por Sergio Moro, en-
tão ministro da Justiça, a parar de dizer que
pretendia ser presidente. E acrescentou que
recebe ameaças de morte e evita sair de casa.
O ex-governador afirmou também que a
estratégia sanitária de Bolsonaro contra a
pandemia foi planejada para “fragilizar” go-
vernadores e que, constrangido a se retirar
da sessão por parlamentares, está pronto pa-
ra participar de uma sessão fechada, como
sugeriu a cúpula da comissão.

Obscurantismo/ A FOGUEIRA BOLSONARISTA

A FUNDAÇÃO PALMARES PROMOVE EXPURGO DE 5 MIL OBRAS DE SEU ACERVO
R E D E S S O C I A I S E M AT E U S B O N O M I /A G I F /A F P

Em uma caça às bruxas ideo- crianças, pela bandidolatria e H. G. Wells. O relatório foi pro-
lógica, um relatório publicado por um amplo material de estu- duzido por Marco Frenette,
EDILSON RODRIGUES/AG.SEN A DO,

pela Fundação Palmares em do das revoluções marxistas e coordenador-chefe do Centro

11 de junho aponta que meta-
de das obras no acervo da ins-
tituição não pertence ao esco-
po do órgão e deverão ser re-
tiradas dele. As 5,3 mil obras,
segundo o presidente da ins-
tituição, Sérgio Camargo, são
“pautadas pela revolução se-
xual, pela sexualização de
das técnicas de guerrilha”.
No documento, os livros fo-
ram divididos em grupos como
“sexualização de crianças”, “in-
tromissão partidária” e “livros
de/e sobre Karl Marx”. Entre os
autores banidos, figuram ainda
Caio Prado Jr., Celso Furtado,
Eric Hobsbawm, Max Weber e
Nacional de Informação e
Referência da Cultura Negra
e ex-assessor de Roberto
Alvim, demitido da pasta da
Cultura por apologia do nazis-
mo. Segundo a Palmares, as
obras não serão destruídas,
mas doadas para instituições O presidente da Palmares, Sérgio
que tenham interesse. Camargo, tem lenha de sobra...

C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 7

F•CCSemana1162-OK.indd 7 16/06/2021 21:54

 A Semana

Chile/ Guinada progressista

Abertura adiada
na Inglaterra
A centro-esquerda vence as eleições regionais e conquista a capital
Com receio de nova escalada
de casos de Covid puxada

N
pela variante delta do
a primeira vez que os chilenos expressiva da coalizão de direita Chile Va-
Coronavírus, o governo
da Inglaterra anunciou o puderam eleger governadores mos, apoiada pelo atual presidente Sebas-
adiamento do fim das medidas regionais, a coligação de centro- tián Piñera, que só conseguiu triunfar em
restritivas, programadas -esquerda Unidade Constituin- uma única região – a de Araucanía, marca-
inicialmente para o dia 21 de te saiu com os melhores resultados no se- da por conflitos com povos indígenas. An-
junho. Segundo o primeiro-
gundo turno do pleito, ocorrido no domingo teriormente, os cargos de governadores re-
-ministro britânico, Boris
Johnson, “é hora de tirar 13. Conquistando dez das 16 regiões do país, gionais eram escolhidos pelo governo. Com
o pé do acelerador”, uma a UC garantiu também o comando de San- a mudança, espera-se a descentralização do
vez que o número de novas tiago ao eleger Claudio Orrego, com 52,7% poder. O pleito também foi marcado pelo bai-
infecções aumentou 64% na dos votos, vencendo a adversária Karina Oli- xíssimo comparecimento, de 19,7%, por con-
última semana, além de fazer
va, da coalizão de esquerda Frente Ampla. ta do agravamento da pandemia no país nas
as internações crescerem
50% no mesmo período. As eleições também marcaram a derrota últimas semanas.
Para Johnson, é temerário
abrir totalmente bares e
restaurantes sem que haja
maior fortalecimento na
vacinação. A nova variante
é a principal na Inglaterra
atualmente, com 96% de
prevalência.

Orrego venceu
com 52,7% dos
votos válidos
em Santiago
CL AU DIO O RREGO/ M EDIA BA N CO E T H EG REENS/ EFA

Hungria/ ESTADO HOMOFÓBICO

LEI HÚNGARA PROÍBE A “PROMOÇÃO” DA HOMOSSEXUALIDADE PARA CRIANÇAS

O projeto de Viktor Orbán ainda
associa os LGBTs à pedofilia
Capitaneada pelo presiden-
te Viktor Orbán, uma lei que
proíbe materiais com temáti-
ca LGBTQIA+ para crianças
foi aprovada pelo Parlamento
da Hungria na terça-feira 15.
Segundo o texto, “conteúdos
que representem a sexualidade
ou promovam desvios da iden-
tidade de gênero, mudança de
sexo ou homossexualidade não
devem ser acessíveis a meno-
res de 18 anos”, o que causou
protestos de entidades de di-
reitos humanos.
A proposta entrou como
emenda de um projeto contra
a pedofilia, manobra que ga-
rantiu amplo apoio dos parla-
mentares, mas não os da opo-
sição, que boicotou a vota-
ção. Além de ligar a pedofilia
a questões LGBTQIA+, a lei
também proíbe a exposição
de pornografia para crianças
e adolescentes. Orbán pre-
para-se para disputar a sua
quarta eleição no próximo
ano, após vencer por três ve-
zes consecutivas, com uma
agenda ultraconservadora
que exclui imigrantes e apela
contra as minorias no país.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCSemana1162-OK.indd 8 16/06/2021 21:54

 MARCELO FREIXO
Engenheiros do caos
► Não basta vencer
as eleições em 2022.
Para derrotar Bolsonaro
e o bolsonarismo, é preciso
um projeto consistente
de transformação social
N
o livro Guerra Cultural e Re-
tórica do Ódio: Crônicas de um
Brasil pós-político, João Cezar
de Castro Rocha argumenta que o bol-
sonarismo é um movimento de extre-
ma-direita que extrapola Bolsonaro: as-
sim como antecedeu a ascensão do pre-
sidente ao poder, ele também não deixa-
rá a cena política brasileira após a sua
queda. A constatação impõe um desafio
muito mais complexo ao campo demo-
crático: não basta vencermos em 2022
para superarmos o bolsonarismo en-
quanto projeto de sociedade.
Mais do que construir uma frente elei-
toral para o ano que vem, precisamos for-
mar uma frente articulada em torno de
um projeto de desenvolvimento econô-
mico e social capaz de responder concre-
tamente aos problemas reais das pessoas
que estão desiludidas com o sistema de-
mocrático e, por isso, decidiram embar-
car nas promessas de um bufão autoritá-
rio que sempre se beneficiou desse mes-
mo sistema.
Precisamos, porém, entender melhor
o que esse fenômeno significa. O bolso-
narismo é a versão brasileira de um mo-
vimento mundial de extrema-direita que
o jornalista italiano Giuliano Da Empoli
definiu como a mistura do algoritmo com
a cólera no livro Engenheiros do Caos.
B A P T I S TÃ O
Ou seja, a revolta contra um sistema po-
lítico que não dá soluções adequadas às
F•CCFreixo1161.indd 9
demandas da cidadania é canalizada e
reforçada através da exploração das po-
tencialidades das redes sociais por agen-
tes políticos, os engenheiros do caos.
Aqui voltamos ao que Castro Rocha
chama de retórica do ódio, que é a con-
cretização da guerra cultural promo-
vida pela extrema-direita por meio do
discurso. Ela nos apresenta mais uma
questão crucial: o que mobiliza os âni-
mos para esta guerra? O medo. O bolso-
narismo emerge, assim como o trumpis-
mo e seus similares na Itália, Inglaterra,
Polônia e Hungria, como um movimen-
to reacionário e contracultural em opo-
sição a um perigo externo politicamen-
te produzido para encarnar a origem de
todos os males: podem ser os imigran-
tes, a “ideologia de gênero” ou a “cons-
piração comunista”.
Nesse jogo de sombras, que impres-
siona pela verborragia delirante ao jun-
tar no mesmo pacote anticomunistas de
almanaque, terraplanistas, movimentos
antivacina e monarquistas, há uma lógi-
ca social interna que acaba obscurecida
pelas doses de surrealismo, mas que pre-
cisamos compreender: a angústia provo-
cada pelo sentimento de aniquilação, seja
ela simbólica ou física, perante um mun-
do cada vez mais instável e ameaçador.
As pessoas saem para trabalhar e não
sabem se voltarão, por causa da violên-
cia; jovens entram na faculdade sem sa-
ber se conseguirão emprego; pais e mães
não sabem se no dia seguinte terão comi-
da para colocar no prato dos filhos.
Na minha infância, quando meu pai
falava sobre a família com os amigos,
ele costumava acreditar num futuro me-
lhor. Achava que eu e meus irmãos tería-
mos uma vida mais promissora do que a
que ele e minha mãe tiveram. Hoje é o
oposto, o futuro é lugar da incerteza e da
angústia. É o que o sociólogo Zygmunt
Bauman chamou de retrotopia: quando
o otimismo some do horizonte, surge o
culto de retorno ao passado, mesmo que
ele jamais tenha existido. O passado ideal
aqui nada mais é do que o desejo de res-
gate de uma ordem perdida.
Isso nos ajuda a entender a guerra de-
clarada pela extrema-direita, o que inclui
o bolsonarismo, aos valores herdados do
Iluminismo que sustentam a democra-
cia liberal – trato do liberalismo aqui
em seu caráter político, não econômico.
O bolsonarista se sente como um cruza-
do sitiado pela conspiração das forças do
mal, encarnadas no Brasil pelo chamado
“sistema”, que inclui desde a classe polí-
tica, passando pelas ONGs até chegar às
universidades e ao jornalismo. Estamos
diante de uma rebelião contra princípios
até então universais de autoridade.
Nesse sentido, se compreendemos que
o bolsonarismo é a canalização de uma
revolta popular contra as limitações de
um modelo de sociedade e que ele ga-
nha forma através de narrativas de ódio,
não basta operarmos somente no nível
do discurso para derrotá-los. Sem dúvi-
da, como escreveu Castro Rocha, preci-
samos substituir a retórica do ódio pela
ética do diálogo, mas para conseguirmos
fazer isso precisamos ouvir os insatisfei-
tos mais do que falar.
Da mesma forma, devemos oferecer
a eles um projeto de transformação
social que apresente respostas concretas
aos seus problemas imediatos: saúde e
educação públicas de qualidade, emprego
e salário digno, um teto onde morar,
igualdade de oportunidades e combate aos
privilégios. Tudo o que o bolsonarismo,
por sua lógica de guerra permanente e
destruição total, é incapaz de garantir. •
brunovilla@hotmail.com
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 9
16/06/2021 15:28
 CA PA
A IMBECILIZA ÃO NO
PAIS DO PLIM PLIM
DESINFORMADOS IMPUNEMENTE PELA GLOBO,
SOMOS VÍTIMAS DE UM LONGO PROCESSO
DESTINADO A NOS AFASTAR DA REALIDADE
O
mal que a Globo causou
ao Brasil é notório no
país que não é apenas da
casa-grande e da senza-
la, ou do futebol, mas é
também do Plim Plim.
Até hoje a tevê nativa em-
penha-se na operação,
de verdade bem-sucedida, de imbecili-
zar progressivamente os telespectado-
res. Se houve momentos em que o públi-
co se beneficiou com os programas ofe-
recidos no vídeo isso dependeu da qua-
lidade de alguns artistas, e apontaria em
primeiríssimo lugar Chico Anysio.
Recordo que, ainda mocinho, me en-
cantei com um programa intitulado Chi-
co Anysio Show, em que este espírito vul-
cânico criava personagens inesquecíveis.
Chico Anysio foi um Midas da televisão
brasileira, o que fez foi sempre de uma
qualidade mais única do que rara. Mas
houve outros, está claro, Jô Soares, por
exemplo, com sua veia às vezes influen-
ciada pela política de maneira sutil, a nos
obrigar a meditar sobre situações que in-
felicitavam o País.
10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCCapaMino1162-OK.indd 10
por MINO CA RTA
Não dispensaria personagens do vídeo
a seu modo muito eficazes, embora com
menores riscos, a exemplo de Ronald Go-
lias e José Vasconcelos, ou até o Zé Boniti-
nho. Sei que estou a esquecer outros, em-
bora no fundo lhes reconheça a origem em
um programa de rádio chamado PRK-30,
de Lauro Borges e Castro Barbosa, que di-
vertiu a minha adolescência. Eram boas
lições de humor e, portanto, de vida. No
Chico Anysio: o humor é lição de vida
mais, o noticiário sempre foi dominado
pelos interesses políticos dos donos dos
canais e, de forma preponderante na Glo-
bo, a partir da ditadura sob o comando de
alguém que passou à história como o ma-
go do vídeo, Walter Clark.
Um momento muito marcante do
período foi no tempo em que o minis-
tro da Justiça do ditador Ernesto Gei-
sel tornou-se Armando Falcão, autor de
um livro fatídico intitulado A Revolução
Permanente, a motivar a risonha obser-
vação do general Golbery: “Falcão é o
nosso Trotski”. O grande trunfo global
foram as telenovelas, adquiridas por inú-
meras televisões estrangeiras, dispostas
a contar um Brasil classe média coalha-
do de mucamas pretas. Lá pelas tantas, a
Globo tentou a transferência para a Eu-
ropa, contudo a aventura custou caro, à
época falou-se em um prejuízo de 150 mi-
lhões de dólares, derrotada pela concor-
rência de Silvio Berlusconi.
Muitos funcionários globais foram
transferidos para Roma, onde se torna-
ram frequentadores de trattorie que repu-
tavam restaurantes refinadíssimos. De
17/06/2021 12:19
 todo modo, serviam o Brasil com um car-
dápio especialmente pobre e ao cabo ad-
mitiram o malogro e voltaram para casa.
Aqui, no entanto, continuaram a favorecer
a desinformação em todos os campos da
sua atividade, sem com isso abalar o pres-
tígio junto aos telespectadores e aos políti-
cos inebriados pelo seu apoio. Um dos fei-
tos globais foi a manipulação do primeiro
debate entre Lula e Fernando Collor, obra
pessoal do doutor Roberto Marinho, que,
como sabemos, está agora trafegando pe-
las esferas do paraíso, conforme as felizes
análises dos seus biógrafos.
Hoje em dia, a situação consegue ser
pior, a bem da imbecilização já citada e
agora multiplicada. Um programa que
neste exato instante tem o poder de me
irritar é produzido pela emissora cult
da Globo que se abalou a evocar ao lon-
go deste ano o 125º aniversário do cine-
ma, desde o nascimento promovido pelos
irmãos Lumière e pela famosa viagem à
Lua organizada por Georges Méliès.
Ao chegar ao canal cult, pensei ter al-
cançado o reino da sabedoria. Obviamen-
te, me iludi. Poderia estar aí com uma his-
tória do cinema contada sem excluir as ori-
gens, Stan Laurel & Oliver Hardy, Buster
Keaton, Harold Lloyd, e muitos outros fi-
REDES SOCIAIS E T V GLOBO
xados com méritos ao longo do trajeto.
Imagino também lugares de honra reser-
vados a Vittorio De Sica, com quatro Os-
cars, o neorealismo italiano pós-Guerra e
as obras-primas de John Ford, desde No
Tempo das Diligências e As Vinhas da Ira.
Não faltariam outros enredos inspirados
F•CCCapaMino1162-OK.indd 11
A cultura global não vai além
desta monstruosa confusão
por John Steinbeck, sem omitir A Leste do
Éden. Mas não faltaria Mario Monicelli,
com suas atiladas evocações de prepotên-
cias patronais na Turim do fim do século
XIX, tampouco as delirantes aventuras de
L’armata Brancaleone.
N
ão há, porém, a mais pálida
intenção de produzir este gê-
nero de antologia, obviamen-
te destinado a lembrar gran-
des diretores estrangeiros
aportados a Hollywood, como
Ernst Lubitsch e Billy Wilder, sem olvi-
dar Minckwitz. Em contrapartida, de for-
ma a confundir o telespectador, a Globo
nos fornece bateladas de filmes interpre-
tados por Tom Cruise e sua mulher, sem-
pre inclinada a tirar a roupa, sem falar da
enorme quantidade de películas inúteis,
merecedoras do lixo. E sem omitir tantos
EUROCOPA:
NAS EVOCAÇÕES
DOS JORNALISTAS
SEMPRE APARECE
A PATRIOTADA,
SALVO HONROSAS
EXCEÇÕES
outros que marcaram profundamente o
cinema, a começar por Akira Kurosawa,
no topo da árvore genealógica da cinema-
tografia japonesa, e Ingmar Bergman,
autor, em minha opinião, de filmes ma-
gistrais como Morangos Silvestres e O
Sétimo Selo, entre muitos outros, todos
merecedores de menção.
Só não entendo por que Al Pacino, cer-
tamente bom ator, meteu-se a interpretar
Perfume de Mulher, filme italiano estrela-
do soberanamente por Vittorio Gassman.
É a história de um cego que se põe a dan-
çar com uma bela moça, sem tropeçar em
momento algum. O desempenho de Gass-
man é simplesmente majestoso, o de Paci-
no, francamente, caricato, inútil enfren-
tar um desafio íngreme demais.
A própria cobertura da Eurocopa é
sintomática das confusões reinantes. Di-
go apenas que tive a ventura de ouvir dois
comentaristas, jornalistas de respeito,
certamente, dispostos a pronunciar coi-
sa com coisa. Refiro-me a um conheci-
do pela sigla PVC, sempre muito didáti-
co e frequentemente baseado em estatís-
ticas, além de informações corretas. Ou-
tro é da Band, capaz de dissertações sérias,
sem inúteis patriotadas destinadas a su-
blinhar as diferenças entre o futebol bra-
sileiro dos anos 50 a 70 e o atual estágio eu-
ropeu. O máximo a cair nos meus ouvidos
foi a comparação entre o lançamento de
Modrić, ou outro jogador do mesmo porte,
e um remoto passe executado por Gerson
em determinado confronto de interminá-
veis anos atrás. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 11
17/06/2021 12:19
 CA PA
A QUEM INTERESSA
O HOMESCHOOLING?
A REGULAMENTAÇÃO DO ENSINO DOMICILIAR,
HOJE RESTRITA A 0,03% DOS ALUNOS DA EDUCAÇÃO
BÁSICA, ABRE AS PORTAS PARA EMPRESAS
EXPLORAREM O “MERCADO CRISTÃO”
O
Brasil possui 47 milhões
de alunos na Educação
Básica, segundo o últi-
mo Censo do Ministério
da Educação. A pasta foi
a que mais teve recursos
bloqueados pelo governo
federal neste ano, 2,7 bi-
lhões de reais. Com a pandemia, o abis-
mo social entre os estudantes brasileiros
cresceu: ao menos 4,3 milhões de estudan-
tes não possuem acesso à internet e, por-
tanto, não puderam acompanhar as au-
las remotamente. Em meio a esse apagão
educacional, Jair Bolsonaro e sua base no
Congresso têm aplicado energia em outra
pauta, absolutamente lateral nas discus-
sões da área, o chamado homeschooling.
Segundo dados da Associação Nacional
do Ensino Domiciliar, apenas 15 mil alu-
nos são educados em casa. O número re-
presenta 0,03% do universo da educação
pública e privada, mas o ex-capitão trata
o tema como essencial.
Cumprindo promessa de campanha fir-
mada com igrejas e “cristãos conservado-
res”, ele entregou ao Congresso uma lista
12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCCapaAnaFlavia1162-OK.indd 12
p o r A N A F L ÁV I A G U S S E N *
com 34 projetos prioritários. Da lista, ape-
nas um versava sobre educação, a regula-
mentação do homeschooling. Missão dada,
missão cumprida. A tropa de choque bol-
sonarista acatou o pedido do ex-capitão.
O primeiro passo foi dado pela Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara, que
deu aval ao Projeto de Lei 3262/2019, pa-
ra descriminalizar a educação domiciliar,
fora da rede oficial de ensino. Hoje, a prá-
tica pode ser enquadrada como crime de
ENQUANTO
BOLSONARO TRATA
O TEMA COMO
PRIORITÁRIO,
AS ESCOLAS
PÚBLICAS SOFREM
COM A ASFIXIA
FINANCEIRA
IMPOSTA PELO
GOVERNO
“abandono intelectual”, previsto no arti-
go 246 do Código Penal.
A proposta é de autoria das depu-
tadas bolsonaristas Bia Kicis, Chris
Tonietto e Caroline de Toni. Depois, a
turma pretende aprovar a regulamen-
tação do homeschooling, prevista no
PL 3179/2012, de autoria do deputado
Lincoln Portela, do PR. O projeto é re-
latado por Luísa Canziani, do PTB, que
deve apresentar nos próximos dias um
substitutivo. Caso seja aprovado, a prer-
rogativa de educar as crianças será dos
pais, que poderão optar por matriculá-
-las em escolas ou não. Diferentemente
do ensino a distância, nessa modalidade
não há salas virtuais com interações com
professores ou colegas de turma. Os pró-
prios pais ensinam seus filhos.
Como a interação será única e exclu-
sivamente familiar, as mães devem as-
sumir essa função, abrindo mão de atu-
ar no mercado de trabalho e obter a sua
própria renda. É o modelo dos sonhos do
patriarcado. Além disso, a proposta sub-
verte completamente a lógica do sistema,
explica Marcele Frossard, doutora em
17/06/2021 10:11
 O ensino público está sucateado, mais de 2,7 bilhões de reais do orçamento do Ministério da Educação para 2021 estão bloqueados pela equipe
econômica e o governo está preocupado em regulamentar o homeschooling, que hoje atinge apenas 15 mil alunos, de um universo de 47 milhões
ISTOCKPHOTO

C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 13

F•CCCapaAnaFlavia1162-OK.indd 13 17/06/2021 10:11

 CA PA
Ciências Sociais e assessora de políticas
sociais da Campanha Nacional pelo Di-
reito à Educação. “Se a educação é direi-
to da criança e do adolescente, esse direi-
to passará a ser dos seus pais ou tutores.”
O
ensino domiciliar é autoriza-
do em ao menos 63 países. O
maior exportador da práti-
ca são os EUA, onde se esti-
ma que 3% de famílias optam
pelo homeschooling, das quais
três em cada quatro são evangélicas. Por
outro lado, Alemanha e Suécia proibiram
a modalidade. As famílias alemãs e sue-
cas que não cumprem com a obrigatorie-
dade de matricular as crianças na rede
oficial de ensino estão sujeitas a perder
a guarda dos filhos. A despeito dos deva-
neios bolsonaristas, a enxergar nas esco-
las um polo de “doutrinação marxista”, a
legislação brasileira é uma das mais avan-
çadas do mundo na proteção aos direitos
das crianças e adolescentes. “Fala-se mui-
to dos EUA, mas eles têm um sistema jurí-
dico muito distinto. Eles não ratificaram,
14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCCapaAnaFlavia1162-OK.indd 14
por exemplo, a Convenção Internacional
dos Direitos da Criança nem o Pacto In-
ternacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais”, observa Salomão Xi-
menes, professor de Políticas Públicas da
UFABC. Mesmo nos países em que há al-
guma regulamentação sobre a educação
domiciliar, não se trata de uma autoriza-
ção geral, “como um direito de livre esco-
lha dos pais”, acrescenta o especialista.
Enquanto o governo desperdiça tempo
e energia com o tema, o sucateamento no
“EXISTEM OUTRAS
FORMAS DE
SOCIALIZAR, NA
FAMÍLIA, NOS
CLUBES, NAS
BIBLIOTECAS E ATÉ
MESMO NAS
IGREJAS”,DIZ O
MINISTRO RIBEIRO
Brasil segue à toda. Em 2020, o governo
nem sequer gastou em educação o que es-
tava previsto no orçamento. Foram desti-
nados 143 bilhões de reais ao Ministério da
Educação, mas apenas 81% foram de fato
aplicados, ou 116,5 bilhões. É o menor in-
vestimento desde 2011. Enquanto isso, as
portas do MEC estão abertas para os inte-
resses do “mercado cristão” de homeschoo-
ling nacional e internacional. “É claro que
a escola oferece a possibilidade de sociali-
zação, mas existem outras formas de so-
cializar, na família, nos clubes, nas biblio-
tecas e até mesmo nas igrejas”, declarou
recentemente o ministro Milton Ribeiro,
também pastor da Igreja Presbiteriana.
Um mês depois, a pasta lançou a cartilha
Educação Domiciliar: Um Direito Humano,
documento de 20 páginas que orienta as
famílias sobre a prática.
O MEC conta ainda com quadros de se-
gundo escalão que são conhecidos pela de-
fesa da pauta. No caso de Carlos Nadalim,
secretário de Alfabetização da pasta, ele
desenvolveu seu próprio conteúdo para
homeschooling, chamado Como Educar
17/06/2021 10:11

Seus Filhos. Movimentos internacionais
tapete vermelho para os empresários do setor.
como o Classical Conversations Brasil
também têm livre acesso ao gabinete. Em
fevereiro deste ano, um coral de crianças
homeschoolers cantou para o ministro da
Educação, que “pediu bis”. A Classical
Conversations classifica-se como um
grupo de “Educação Clássica Domiciliar
Cristã” e foi criada nos EUA em 1997.
Posteriormente, abriu filiais em outros
países, entrando no Brasil em 2017.
De acordo com a descrição de sua pá-
AL AN SANTOS/PR, AG. CÂMARA E WILLIAN MEIRA /MMFDH
gina oficial, eles oferecem grade curricu-
lar compatível com as diretrizes sugeridas
pelo MEC, “garantindo ensino domiciliar
com qualidade”. “Oramos para que a pró-
xima geração seja profundamente impac-
tada por esses materiais, que são bíblicos
e academicamente rigorosos.”
Outra entidade que tem força no
Planalto é a Associação Nacional de
Educação Domiciliar. Em sua página,
ela critica os governos que “por razões
ideológicas” nunca lhe abriram diálo-
go. A entidade viu as portas do MEC se
abrirem na gestão de Mendonça Filho,
F•CCCapaAnaFlavia1162-OK.indd 15
Damares Alves e Milton Ribeiro estendem
Autor do projeto de regulamentação, Lincoln
Portela é pastor da Igreja Batista Getsêmani
ministro de Michel Temer. Com a elei-
ção de Bolsonaro, a Aned tem realizado
sucessivas audiências com Ribeiro e com
a ministra da Mulher, Família e Direitos
Humanos, Damares Alves.
O presidente da Aned é Rick Dias, que
possui um site chamado Simedu, uma das
maiores plataformas de homeschooling
do Brasil. A página mantém uma loja
virtual que comercializa bíblias, mate-
rial didático e traduções de autores, co-
mo o norte-americano Ben Shapiro, que
assina títulos como Brainwashed: How
Universities Indoctrinate America’s Youth
(Lavagem Cerebral: Como asUniversidades
Doutrinam os Jovens da América).
E
m fevereiro, a Aned lançou o
Programa de Apoio à Educação
Domiciliar em parceria com
a Associação Nacional de
Juristas Evangélicos, conheci-
da pela sigla Anajure. O projeto
prevê, dentre outros serviços, dar assis-
tência às famílias homeschoolers que ne-
cessitem de apoio jurídico no Brasil e au-
xílio aos parlamentares na elaboração de
projetos de lei em todos os estados.
A Anajure tem como uma das fun-
dadoras a ministra Damares e foi cria-
da para ser o braço legal do “conserva-
dorismo”, atuando do STF às Câmaras
Municipais e Assembleias Legislativas,
sempre com o mesmo objetivo: destra-
var as pautas conservadoras.
Outro empreendimento que sonha em
lucrar com a pauta é a IP.TV, responsável
por criar o aplicativo Mano, desenvolvido
para a campanha de Bolsonaro e que tem
como objetivo driblar os vetos de redes so-
ciais às fake news, como revelou o site The
Intercept Brasil. Com a pandemia, a em-
presa, localizada no Rio de Janeiro e que
possui capital social de apenas 250 mil
reais, abocanhou contratos em cinco esta-
dos para criar aplicativos de EAD. Alguns
deles difundem mensagens ideológicas e
teorias da conspiração bolsonaristas aos
alunos. Ainda segundo a reportagem,
um deles teve acesso a dados pessoais de
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 15
17/06/2021 10:11
 CA PA

O movimento “Escola Sem Partido“

difunde a delirante tese de que os
estabelecimentos regulares de ensino
promovem “doutrinação marxista“

alunos menores de idade e professores.

Se tem um mercado pronto para lu-
crar, isso só é possível devido à atuação de
parlamentares bolsonaristas e da Banca-
da da Bíblia. Autor do principal projeto
que regulamenta o ensino doméstico,
Lincoln Portela também é pastor da Igre-
ja Batista Getsêmani e tem um filho que
exerce a mesma função, Leonardo Por-
tela, eleito deputado estadual por Mi-
nas Gerais com a bandeira do movimen-
to “Escola Sem Partido”. Nas eleições de
2018, os três usaram o bordão: “Uma fa- que levam os pais a fazerem essa esco-
mília em defesa das famílias. Se você é lha. Mas, nesses casos citados, dá para
Bolsonaro, você é Portela”. Uma das auto- MESMO NOS EUA, perceber que a educação perpassa por
ras do projeto que descriminaliza o aban- APENAS 3% uma cosmovisão religiosa muito especí-
dono intelectual, Chris Tonietto causou DAS FAMÍLIAS fica, muito fechada, e que exclui qualquer
polêmica ao associar o abuso de meno- chance de antagonismo a essa estrutu-
OPTAM PELO
res às escolas. “A pedofilia está relaciona- ra”, alerta Andréa Silveira de Souza,
da mais especificamente com a chama- HOMESCHOOLING. pesquisadora do Grupo de Pesquisas
da ‘teoria de gênero’ e a sua aplicação nos TRÊS EM CADA em Religião, Educação e Gênero do
ambientes escolares”, afirmou. QUATRO SÃO Programa de Pós-Graduação em Ciência

F
da Religião da UFJF.
EVANGÉLICAS
ora desse mercado e dos interes- Se, por um lado, pais defendem o direi-
ses políticos, famílias brasileiras to de escolher como educar seus filhos,
praticam o homeschooling, mes-
mo que proibido por lei. Dados
da Aned apontam que ao menos
15 mil crianças entre 7 e 17 anos
são educadas nesse formato. Famílias che-
gam a dar cursos para outros pais, além de
montarem e venderem seus próprios ma-
teriais pedagógicos. Ainda segundo dados
da associação, um quarto dos adeptos da
educação domiciliar no Brasil diz ter opta-
do pela prática por “princípios da fé fami-
liar”. Outros 9% falam em “doutrinação”
como razão e 23% discordavam do “am-
biente escolar”. Um terço diz que queria
“oferecer uma educação personalizada”,
motivo que pode englobar todos os outros.
“Não dá para generalizar os motivos

Na Alemanha e na Suécia, pais que

não matriculam as crianças na escola
podem perder a guarda dos filhos

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCCapaAnaFlavia1162-OK.indd 16 17/06/2021 10:11


especialistas apontam problemas que
vão além da socialização: o risco de inse-
gurança alimentar para famílias pobres,
novas demandas não dimensionadas pa-
ra conselhos tutelares e escolas, aumen-
to de gastos púbicos com serviços de fis-
calização e violência doméstica. Cerca de
70% dos agressores de crianças e adoles-
centes são integrantes da própria famí-
lia. Em 2020, durante o isolamento so-
cial e o fechamento de escolas, acarre-
tados pela pandemia, o Brasil atingiu o
maior número de denúncias de violência
contra crianças: foram 95.247, média de
260 novos casos a cada dia.
A relatora do substitutivo adicionou
novidades no texto, que passa a incluir a
exigência de matrícula anual do estudan-
te em instituição de ensino credenciada
pelo Poder Público e acompanhamento
por docente tutor da instituição em que
R E D E S S O C I A I S E M A R T I N W I P P E L / G R A Z- Ö S T E R R E I C H
estiver matriculado mediante encontros
semestrais. Por estarem matriculados, os
alunos passariam a fazer as provas nacio-
nais de avaliação. Dessa forma, a judiciali-
zação do acesso à universidade fica equa-
cionada, uma vez que o aluno teria um di-
ploma. Apesar dos avanços em relação ao
PL de 2012, especialistas ainda apontam
brechas, como critérios mais específicos
de quais instituições serão credenciadas
e como vai se dar a fiscalização. •
*Colaborou Ana Luiza Basílio.
F•CCCapaAnaFlavia1162-OK.indd 17
A FÁBRICA DE FAKE NEWS DE BIA KICIS
A deputada elegeu o educador Paulo Freire como “inimigo” e
incita os alunos a perseguirem os seus próprios professores
D
eputada federal
pelo PSL do Dis-
trito Federal, Bia
Kicis é parte da tropa de
choque bolsonarista no
Congresso. Atual presi-
dente da CCJ da Câmara,
é ela uma das peças-cha-
ve para o avanço das pau-
tas de costumes no Con-
gresso. Além de assinar o
PL 3262 que descrimina-
liza o abandono intelectu-
al, ela é autora do famige-
rado projeto do “Escola
Sem Partido”.
Sua militância contra
“seguidores de Paulo Frei-
re” tem, no entanto, outros
motivos além da ideologia.
Ela é parente de Miguel
Nagib, advogado e funda-
dor do movimento “Escola
Sem Partido”. Este, por
sua vez, se justifica com
uma teoria da conspiração
da década de 1990, que
agora virou bandeira bol-
sonarista. Trata-se do
“marxismo cultural”, cujos
defensores estariam infil-
trados nas sociedades pa-
ra destruir seus valores.
Nagib também fez parte
do Revoltados On-Line e
ambos são seguidores de
Olavo de Carvalho.
A deputada usa a sua
máquina de fake news pa-
ra deslegitimar a educa-
ção pública brasileira, inci-
tar estudantes contra pro-
fessores, espalhar menti-
ras contra LGBTs e finan-
ciar teorias da
conspiração. “Quem disse
que as crianças e jovens
não aprendem nada na es-
cola? São PhD em sacana-
gem. E viva Paulo Freire!”,
tuitou a parlamentar em
2020.
Kicis foi ainda uma das
principais articuladoras
de um movimento que pe-
dia aos alunos para filmar
os seus professores em
sala de aula, com o objeti-
vo de “provar” o ensino do
“marxismo cultural” na
educação pública. À épo-
ca, vários professores fo-
ram agredidos e uma ava-
lanche de ataques a servi-
dores foi registrada.
“O professor era do
PÇOL?”, escreveu ao retui-
tar a seguinte postagem:
“Em escola pública de Bra-
sília, professor de filosofia
do 1º ano do Ensino Médio
planeja fazer debate sobre
‘Legalização da Maconha’
(detalhe: é proibido o uso
de aparelhos eletrônicos)”.
A parlamentar hoje ocupa a presidência da CCJ da Câmara
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1
“Para trazer a educação
para o âmbito individual,
longe de qualquer fiscali-
zação da sociedade, do
Estado ou de qualquer ins-
tituição, você precisa des-
legitimar Paulo Freire, que
coloca o princípio da edu-
cação popular como coleti-
va. Ele coloca muito a im-
portância de ouvir o outro,
de dialogar e se a educa-
ção que você defende não
segue esses princípios,
uma das formas é atacar a
teoria de Freire”, explica
Andréa Silveira de Souza,
doutora em Ciências da
Religião e pesquisadora da
UFJF. “No fim, a pauta é
parte de um projeto de do-
mínio religioso-político de
longo prazo. O objetivo é
consolidar um sistema de
vida que pressupõe a cul-
tura, a economia, a educa-
ção, a moral, a política, o
direito, as artes, criando
um ethos que permita a
perpetuação no poder”.
17
17/06/2021 10:11
 CA PA
ISSO SIM É
DOUTRINAÇAO
TRATA-SE DE UM PROJETO PARA TIRAR DA SOCIEDADE
O PODER DA PRODUÇÃO E DISSEMINAÇÃO DO
CONHECIMENTO, DA CULTURA E DA CIÊNCIA
O
ensino domiciliar, ora em
discussão no País, é uma
forma de educação que
ocorre sob a responsabi-
lidade dos pais ou respon-
sáveis pela criança ou pe-
lo adolescente. Essa mo-
dalidade surgiu, na forma
atual, na parte final do século XX, espe-
cialmente nos EUA. Atualmente, nos vá-
rios países, sua situação vai da simples
proibição, como na Alemanha, nos Países
Baixos, na Suécia ou nas duas Coreias, a
uma ampla aceitação, como ocorre nos
EUA. Em um grande conjunto de países,
é legal, mas restrito a casos específicos,
como o de crianças doentes e impossi-
bilitadas de frequentar escolas. Com
frequência, não atinge mais do que um
milésimo da população escolar.
Os EUA são, talvez, o país em que a
taxa de matrículas dessa modalidade é
a mais alta, de cerca de 3,5% da popula-
ção estudantil. Esse porcentual é muitas
vezes superior ao australiano, que atin-
ge apenas cerca de 0,5% das matrículas,
18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCCapaArtigo1162-OK.indd 18
p o r O T AV I A N O H E L E N E *
apesar de ser esta uma nação onde o en-
sino domiciliar é legal e a distância é uma
barreira real para a população.
Um dos fatores que levam à opção por
esse tipo de ensino nos EUA é a qualida-
de das escolas. De fato, em comparação
com os demais países industrializados,
os estudantes dos EUA não apresentam
alto desempenho. Ao contrário, ele está
abaixo daquele que seria esperado levan-
do em conta suas possibilidades econô-
micas. Considerando aquela motivação,
concluímos que uma melhora do siste-
ma escolar faria com que menos famílias
O AMBIENTE
ESCOLAR É, EM
TODO O MUNDO,
O MELHOR A SE
OFERECER A UMA
CRIANÇA OU
UM JOVEM
optassem pelo ensino domiciliar. Assim,
ele não é alguma coisa que contribua pa-
ra melhorar a educação, sendo, de fato,
a fuga de um problema que tem solução.
Outra das principais motivações para a
opção pelo ensino domiciliar nos Estados
Unidos é a preocupação com a violência. A
solução para esse problema seria melhorar
o ambiente escolar e enfrentar os aspectos
sociais que levam a ela. Afastar as crian-
ças e jovens da escola não ajudará a resol-
ver ou reduzir o problema. O resultado po-
de ser mesmo o oposto, pois têm surgido
evidências de que o ensino domiciliar, nos
EUA, vem servindo para ocultar o abuso
de crianças e adolescentes. Em um siste-
ma social muito mais frágil como o nosso,
a situação poderá ser bem pior.
Um fator a motivar a opção pelo ensi-
no domiciliar é o religioso. Mas este não
deveria ser preocupação das escolas, de-
vendo ser deixado para as instituições re-
ligiosas, fora dos horários e dos espaços
escolares. Vale observar que o ambiente
escolar é, em todo o mundo, o melhor a
se oferecer a uma criança ou jovem. Em
16/06/2021 21:27
 qualquer país, qualquer que seja a reali-
dade social ou econômica da população,
as escolas tendem a ser o espaço mais ade-
quado ao convívio com outros e ao desen-
volvimento pessoal. Privar crianças e jo-
vens da rica vida social e das possibilida-
des de desenvolvimento oferecidas pelas
escolas é uma violência a ser combatida.
As propostas de ensino domiciliar ora
em tramitação no Poder Legislativo não
são fruto de estudos bem embasados.
Ao contrário, na justificativa que acom-
panha o Projeto de Lei apresentado pe-
lo Poder Executivo, o PL 2401 de 2019,
aparecem como consultadas três insti-
tuições privadas, uma delas dos EUA, e
todas envolvidas com a defesa do ensino
domiciliar. Não foram consultadas en-
tidades especializadas em educação ou
pesquisadores neutros quanto ao apoio
ou não àquela modalidade de ensino. Fo-
ram consultados apenas entidades e in-
divíduos que dariam a resposta desejada.
Um dos grandes problemas educacio-
nais do Brasil é a escassez de recursos fi-
nanceiros. Mesmo após o aumento ocor-
rido nas últimas décadas, a atual situa-
ção impede as escolas públicas de aten-
derem adequadamente seus estudantes,
sobrecarrega os professores, quer pelo
tamanho das turmas, quer pelas cargas
horárias que precisam assumir para com-
pensar uma remuneração muito abaixo
F•CCCapaArtigo1162-OK.indd 19
daquela recebida por profissionais que,
com o mesmo nível educacional, atuam
em outras áreas. Esse e outros problemas
fazem com que o Brasil seja um dos paí-
ses da América do Sul com os piores indi-
cadores educacionais. Dados divulgados
pela Unesco mostram que somos o segun-
do pior em analfabetismo adulto, melhor
apenas do que a Guiana. Embora o analfa-
betismo adulto reflita o sistema educacio-
nal de algumas décadas atrás, época em
que grande parte dos hoje adultos anal-
fabetos deveria ter sido alfabetizada, os
indicadores dependentes do sistema es-
colar mais recente nos colocam apenas
em posição intermediária nesse conjun-
to de países, mas ainda na metade dos paí-
ses em pior situação. O ensino domiciliar
não é uma solução para esses problemas,
ao contrário, será um problema a mais.
A
leitura dos Projetos de Lei
apresentados pelo Poder
Executivo ou por integrantes
de sua base parlamentar para
viabilizar o ensino domiciliar
revela o que se pretende. Um
desses, o PL 3262, de 2019, recentemente
aprovado pela Comissão de Constituição
e Justiça da Câmara dos Deputados, al-
tera o Código Penal e faz com que pais
ou responsáveis que ofereçam ensino
domiciliar não sejam mais obrigados
a matricular suas crianças em escolas.
Como não foi definido o que seria esse
ensino domiciliar, ele pode ser, enquan-
to continuar essa omissão, qualquer coi-
sa. O citado Projeto de Lei deixa claro que
o ensino domiciliar não precisa ser feito
no domicílio e pode ser ofertado por ins-
tituições não necessariamente escolares.
Isso significa, na prática, que qualquer ti-
po de entidade poderá virar instituição
educacional e qualquer um, por conse-
quência, ser professor ou professora, in-
dependentemente da formação.
O ensino domiciliar é parte de amplo
projeto do governo Bolsonaro na direção
de tirar da sociedade o poder da produção
e disseminação do conhecimento, da cul-
tura, da ciência. Entre as consequências
disso estarão o rebaixamento do Brasil
diante dos demais países, inclusive dos
nossos vizinhos, e o acirramento da tão
enorme desigualdade do nosso sistema
educacional. Continuando neste passo,
em pouco tempo não restará espaço pa-
ra o desenvolvimento do conhecimento,
do pensamento crítico e para a criação de
uma escola emancipadora voltada para a
promoção da cidadania e do desenvolvi-
mento social e cultural do País. •
*Otaviano Helene é professor no Instituto de
Física da USP, ex-presidente da Associação dos
Docentes da USP, ex-presidente do Inep/MEC.
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 19
16/06/2021 21:27
 Seu País
O escudeiro e a Corte
PODER Plano B de Bolsonaro para o STF, Augusto Aras
vive tensão inédita com o Tribunal e traça planos sucessórios
POR ANDRÉ BARROCAL
J
air Bolsonaro e o senador Da-
vi Alcolumbre conversaram
recentemente sobre a vaga
que se abrirá em 5 de julho no
Supremo Tribunal Federal,
com a aposentadoria de Marco Aurélio
Mello. Rolou um “climão”. O indicado do
presidente para a Corte terá de ser, como
de costume, sabatinado na Comissão de
Constituição e Justiça do Senado, co-
mandada por Alcolumbre. Este teria si-
do bem claro, conforme corre no círculo
presidencial em Brasília: não marcará
sabatina nenhuma se o escolhido for An-
dré Mendonça, advogado-geral da União.
Evangélico, Mendonça é um dos favori-
tos, o preferido de pastores governistas
como Silas Malafaia. Bolsonaro teria fi-
cado uma fera com Alcolumbre e mos-
trado que pagará para ver. Mas, por via
das dúvidas, teria mandado o “reserva”
se aquecer à beira do campo.
O plano B sonha com o Supremo dia
sim, outro também. Seu currículo de
serviços a Bolsonaro rivaliza com aque-
le de Mendonça, que é formalmente pago
(muito bem, por sinal, salário bruto de 45
mil reais) para advogar pelo governo. Sua
atuação é tão chapa-branca que juízes do
próprio Supremo, Alexandre de Moraes à
frente, o submetem a constrangimentos
sempre que podem e nunca se viu na rela-
ção da Corte com a Procuradoria-Geral
20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCSeuPaisBarrocal1162-OK.indd 20
da República. Sim, falamos de Augusto
Aras, cujo mandato na PGR acaba em se-
tembro. É ele o sujeito de sobreaviso.
Aras teria até preparado o terreno para
o presidente indicar uma auxiliar fiel dele,
Aras, como nova “xerife”. É a subprocura-
dora-geral Lindôra Araújo, uma bolsona-
rista tida como um perigo para a oposição
em 2022. Ela lidera investigações contra
governadores na pandemia, nomes que a
tropa presidencial na CPI da Covid quer
infernizar. Lindôra, comenta uma cole-
ga da ativa, pode eventualmente fustigar
a oposição, mas também terá trabalho in-
ternamente. “Ela, que critica a discussão
sobre a desigualdade de gênero, vai sentir
o quanto é difícil ser mulher procuradora-
-geral numa instituição masculina e ma-
chista”, diz a fonte. Talvez por isso corra
por fora, como alternativa à “xerife”, Hum-
berto Jacques de Medeiros, vice de Aras.
Se Aras não for para o Supremo
agora, iria em 2023, no lugar de Ricardo
O Senado torce
o nariz para André
Mendonça no
Supremo. Seria
a chance de Aras?
Lewandowski, em caso de reeleição
de Bolsonaro, arranjo que estaria
combinado. O procurador-geral, conta
um colega aposentado, tem dito nos
bastidores que paga um preço alto na
carreira por ter se alinhado a Bolsonaro. E
que, se não for para o Supremo, estaria, di-
gamos, lascado no Ministério Público e ao
alcance de perseguições. No tribunal que
cobiça, está mesmo “lascado”. O que mais
tem incomodado os ministros da Corte,
anota um conhecedor da casa, é a “mer-
cantilização” do cargo de procurador-ge-
ral em troca de uma toga. Tradução: Aras
protegeria Bolsonaro à espera de recom-
pensa. O tribunal, prossegue o observa-
dor, tem estado bem unido, e talvez ape-
nas nesse tema, quanto às investigações
dos chamados “atos antidemocráticos”, as
manifestações encabeçadas em 2020 por
SÉRGIO LIM A /A FP E M A RCOS OLIV EIR A /AG. SEN A DO
Bolsonaro, em 19 de abril, o Dia do Exér-
cito, com ameaças e ataques ao STF e ao
A N D R E S S A A N H O L E T E / G E T T Y I M A G E S / A F P,
Congresso. A abertura desse inquérito
foi solicitada pelo Supremo a Aras, que só
agiu, ao que consta, por pressão da Corte.
A mira do “xerife” não estava, no en-
tanto, apontada para o presidente, mas
para os financiadores dos atos e uns ba-
grinhos parlamentares que engrossa-
ram o coro golpista. Há cerca de um mês,
o ex-xerife Claudio Fonteles, três ex-sub-
procuradores-gerais (Álvaro Augusto
17/06/2021 13:10
 TAMBÉM pág. 30
NESTA Entrevista. Fabiano
SEÇÃO dos Santos analisa o projeto
das federações de partidos

Quando é para
atazanar Aras,
Moraes não perde
a viagem. Por isso, a
quebra do sigilo do
inquérito do “golpe”
SÉRGIO LIM A /A FP E M A RCOS OLIV EIR A /AG. SEN A DO
A N D R E S S A A N H O L E T E / G E T T Y I M A G E S / A F P,

C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 21

F•CCSeuPaisBarrocal1162-OK.indd 21 17/06/2021 13:10

 Seu País

Fakhoury, o rentista,
sonha com a
intervenção militar

Ribeiro da Costa, Paulo de Tarso Braz

Lucas e Wagner Gonçalves) e um ex-juiz,
Manoel Volkmer de Castilho, pediram a
Alexandre de Moraes, o relator do inqué-
rito, a inclusão de Bolsonaro no rol de in-
vestigados. Inclusive, por fatos posterio-
res aos atos, como ameaçar usar o Exérci-
to contra as medidas anti-Coronavírus de
estados e prefeituras. “Os fatos desse in-
quérito são gravíssimos, mas o procura-
dor-geral está inerte, só atua na periferia,
não vai ao presidente”, afirma Fonteles.
Segundo ele, “não resta dúvida, o qua-
dro é de absoluta omissão” de Aras. Mais:
“No radar, começa a soar uma possí-
vel prevaricação”. Prevaricar é crime de
agente público, descrito no artigo 319 do
Código Penal: “Retardar ou deixar de pra-
ticar, indevidamente, ato de ofício, ou pra-
ticá-lo contra disposição expressa de lei,
para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal”. Um subprocurador-geral na ati-
va acredita que, na pandemia, Aras retar-
dou ou deixou de praticar atos relaciona-
dos a Bolsonaro. Quando abriu inquérito
sobre a carnificina amazônica de janeiro,
mirou só o então ministro da Saúde, gene-
ral Eduardo Pazuello. E ainda divulgara
nota a declarar, em linguagem menos di- “poste-geral da República” e “servo do
reta, que não contassem com ele para fus- presidente”. “Ele processa para intimidar

L U L A M A R Q U E S / P T N A C Â M A R A , M AT E U S B O N O M I /A G I F /A F P
tigar o presidente. Só em fevereiro resol- a crítica. Acha que uma autoridade como
veu instaurar “averiguações prelimina- o presidente da República tem liberda-
res” a respeito de Bolsonaro. de de expressão para defender interven-
ção militar, e para violar a lei e não usar
Quem aponta omissão do “xerife” e máscara. Mas acha que um cidadão não
possível prevaricação toma processo. tem liberdade de criticar omissão de uma
Aconteceu com o professor de Direito da autoridade por meio de ironia”, afirma.
E Z A N O N E F R A I S S AT/ F O L H A P R E S S

USP Conrado Hubner, para quem “averi-
guações preliminares” seriam uma for-
ma de Aras dar satisfação à plateia. Em
maio, Hubner foi alvo de uma reclama-
ção na Comissão de Ética da USP e de
queixa por calúnia, injúria e difamação,
propostas por Aras. No Twitter e na Fo-
lha de S.Paulo, Hubner chamou-o de
Allan dos Santos, blogueiro e conspirador
Satanizado pelo bolsonarismo, presi-
dente do Tribunal Superior Eleitoral na
futura eleição, o ministro Moraes tem ex-
posto o governismo de Aras. É na condi-
ção de relator de processos delicados pa-
ra o governo, como o dos atos antidemo-
cráticos, o da interferência política de Bol-
sonaro na Polícia Federal, o da operação

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCSeuPaisBarrocal1162-OK.indd 22 17/06/2021 13:11

 contra o ministro do Meio Ambiente, Ri-
cardo Salles, e o das milícias digitais.
No inquérito que une o Supremo co-
mo nenhum outro, o dos atos antidemo-
cráticos, Moraes tirou o sigilo em 4 de ju-
nho. Foi no dia em que Medeiros, o vice
de Aras, pedira ao tribunal para arqui-
var a investigação sobre 11 parlamenta-
res bolsonaristas, entre eles a deputa-
da Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal,
defensora de retomar a idade de 70 anos
para aposentadoria dos juízes do STF, o
que facilitaria a vida de Bolsonaro para
aparelhar a Corte. No pedido de arquiva-
mento, Medeiros disse sem rodeios que a
Procuradoria estava insatisfeita com as
investigações feitas pela PF.
Ao tirar o sigilo, Moraes permitiu vir a
público um relatório da PF de 1.023 pági-
nas. O documento descreve, por exemplo,
as relações carnais com o Palácio do Pla-
nalto por parte de um blogueiro, Allan
dos Santos. Este fugiu do Brasil, quan-
do Moraes havia autorizado busca e apre-
ensão contra vários investigados, em ju-
nho de 2020. Autorizado contra a posi-
ção de Aras, registre-se. Segundo os fe-
derais, Santos teria sido um dos organi-
zadores dos atos pró-ditadura. A casa de-
le em Brasília seria uma espécie de QG
L U L A M A R Q U E S / P T N A C Â M A R A , M AT E U S B O N O M I /A G I F /A F P
E Z A N O N E F R A I S S AT/ F O L H A P R E S S
F•CCSeuPaisBarrocal1162-OK.indd 23
Claudio Fonteles:
“O quadro é de
absoluta omissão”
golpista. O blogueiro, inclusive, inter-
mediaria a nomeação em cargos fede-
rais. Tudo muito bem remunerado com
verba federal de propaganda.
Outro bolsonarista citado pela PF é o
empresário Otávio Fakhoury. Em conver-
sa com Bia Kicis em 22 de maio de 2020,
ele comentou, a propósito dos magistra-
dos supremos: “Canalhas. Olha, vai ser
muito difícil terminar esse governo sem
entrar de cabeça numa guerra institucio-
nal contra eles, porque eles é que invadem
o Executivo”. Em 10 de junho, Fakhoury
pediu a Moraes a volta do sigilo. Em vão.
O juiz ainda não aceitou arquivar o pro-
cesso, como quer a Procuradoria. Em 7 de
junho, cobrou de Medeiros esclarecimen-
tos sobre a vontade de engavetar. É como
se a Justiça pusesse em dúvida o trabalho
e as intenções da Procuradoria. “Medei-
ros é o longa manus de Aras”, diz Fonteles.
Tradução: executor de ordens.
No embate com Aras, Moraes conta
com delegados da PF inconformados des-
de a saída de Sergio Moro do governo. O
juiz cuida do inquérito sobre interferên-
cia política na PF, apuração nascida a pe-
dido de Aras após a queda de Moro do Mi-
nistério da Justiça, em abril de 2020. A in-
tenção de fundo do “xerife” não era, po-
rém, saber se Bolsonaro cometera crime,
e sim se Moro cometera, ao acusar o pre-
sidente de interferência. Moraes prorro-
gou a investigação por 90 dias em abril e
está pronto para levar ao plenário do Su-
premo a decisão sobre Bolsonaro depor
perante um delegado. O presidente que-
ria se defender por escrito, agora nem is-
so. Topa que a apuração termine sem que
ele fale. Claro, dá para imaginar qual será
a conclusão da Procuradoria. Detalhe: em
dezembro, Aras disse ao Supremo não ver
problema no silêncio presidencial.
A investigação a respeito de Salles é
outra com a qual Moraes fustiga Aras.
A operação da PF contra o ministro por
suspeita de corrupção pró-madeireiros
ilegais, a Akuanduba, foi a campo em
19 de maio sem que o procurador-geral
soubesse antes. Tudo fora acertado en-
tre Moraes e delegados. Aliás, a operação
surgiu em um processo que o ministro do
STF arquivara, a pedido de Aras, em ou-
tubro de 2020. Só após a operação, que
vasculhou endereços de Salles, é que de-
veria ser dada “imediata ciência à Procu-
radoria-Geral da República”, escreveu o
togado. Uma semana depois, o juiz tirou o
sigilo do caso, como logo faria no inquéri-
to dos atos antidemocráticos. Uma forma
de alimentar o noticiário e, assim, emba-
raçar o investigado e o “xerife”.
Graças a Salles, a ministra Cármen
Lúcia também expôs o governismo da
Procuradoria. A magistrada cuida de
outro processo a envolver o ministro
A depender de Aras,
o ministo Salles vai
continuar a sorrir
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 23
17/06/2021 13:11
 Seu País

Carmén Lúcia
também aperta
o procurador-geral

e madeireiros ilegais, surgido de quei-

xa-crime feita em abril pelo então che-
fe da PF no Amazonas, Alexandre Sa-
raiva. Mandou a queixa à Procurado-
ria, uma práxis, para providências. Em
31 de maio, recebeu resposta, assinada
por Medeiros: que fosse aberto inqué-
rito. Estranhamente, o longa manus de
Aras deixara de fora o presidente afasta-
do do Ibama, Eduardo Bim, atingido pe-
las acusações de Saraiva. Cármen Lúcia
autorizou em 2 de junho a investigação e
cobrou que a Procuradoria, “com máxi-
ma urgência, manifeste-se sobre a condi-
ção processual de Eduardo Bim”. Só en-
tão este virou alvo.

A juíza tinha cutucado o próprio Aras,

quando se viu diante de uma requisição
partidária para que se apurasse a existên-
cia de uma “Abin paralela” colocada a ser-
viço do senador Flávio Bolsonaro, aquele
das “rachadinhas”. Em despacho de 18 de
dezembro, tinha dado ao procurador-geral
30 dias para informar sobre as providên-
cias tomadas, um fato raro, para não dizer
inédito. Aras respondeu no fim do prazo.
Dizia ter notificado o jornalista autor de Ministério Público tem o dever institu- Os embates recentes entre a Procu-
reportagem sobre a Abin paralela pró-Flá- cional de controlar a polícia. Fachin di- radoria e o Supremo, comenta o sub-
vio, para que o repórter contasse o que sa- zia ver indícios de “execução arbitrária” procurador-geral aposentado Eugênio
bia. Só depois talvez ouvisse as advogadas e pedia providências ao “xerife”. “Solici- Aragão, ex-ministro da Justiça, mos-
do senador, as quais haviam conversado to que mantenha este Relator informado tram que Aras “perdeu completamen-
com Bolsonaro sobre o que o governo po- das medidas tomadas e, eventualmente, te a independência (em relação ao gover-
deria fazer pelo rapaz. O partido Rede viu da responsabilização dos envolvidos nos no)”, que há “tensão e desconfiança” no
uma “tentativa de intimidar jornalistas” fatos constantes do vídeo”, escrevera. tribunal em relação ao “xerife” e “total
por parte de Aras. Em 27 de maio, a minis- desprestígio” do Ministério Público Fe-
tra requereu explicações da Procuradoria. deral na Corte. “Isso vem também sendo
FÁ BIO RO D RIGU ES P OZ ZEBO M /A B R

Edson Fachin é mais um no Supremo observado dentro da Casa e os integran-

que tenta empurrar Aras ao trabalho. Foi tes (do MPF) temem um estrago de longo
o autor da liminar que suspendeu opera- O ministro Moraes prazo na capacidade de atuação do órgão,
ções policiais em favelas do Rio de Janeiro com seu desprestígio e dispensabilidade
durante a pandemia. Após a chacina poli-
deixou claro que não de sua intervenção em medidas sensíveis
cial no Jacarezinho, em 6 de maio, rece- pretende arquivar a direitos”, diz Aragão.
beu um vídeo do massacre. Encaminhou- o inquérito dos atos Em breve saberemos se o esforço de
-o a Aras, pois, além de ser fiscal da lei, o antidemocráticos Aras será recompensado por Bolsonaro. •

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCSeuPaisBarrocal1162-OK.indd 24 17/06/2021 13:11

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 Seu País
Estatais pelo ralo
RIO GRANDE DO SUL O governador Eduardo
Leite esmera-se na modelagem duvidosa
das privatizações no estado
POR RENÉ RUSCHEL
A
pós a morte do prefeito de
São Paulo, Bruno Covas,
o governador do Rio
Grande do Sul, Eduardo
Leite, tornou-se a única
esperança de renovação do combalido
PSDB. Há quem no tucanato defenda a
candidatura do gaúcho à Presidência e
Leite não se faz de rogado. Seu maior
26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCSeuPaisRene1162-OK.indd 26
objetivo é reavivar uma agenda antiga do
partido, a privatização agressiva. A 18
meses do fim do mandato, o governador
pretende acelerar a venda das empresas
públicas do estado, depois de se desfazer,
por 100 mil reais, do controle da Compa-
nhia Estadual de Energia Elétrica.
A próxima na fila é a Corsan, compa-
nhia estatal de saneamento, cuja venda
Estudos negam
que a companhia
dê prejuízo
ficou mais fácil, por causa da aprovação
do novo marco regulador do setor. No site
da empresa, um link está à disposição para
esclarecer os motivos e apresentar razões
técnicas, operacionais e financeiras para
a privatização. Só não esclarece o esfor-
ço pessoal de alguns na operação. O presi-
dente da companhia, Roberto Correa Bar-
buti, chega a ser um exemplo de dedicação
ao setor público. Com extenso currículo
no sistema financeiro, que inclui passa-
gem pelos bancos Safra, Bank of America
Merrill Lynch, Santander, UBS, Pactual
e Patrimônio, consultor especializado
em estratégias de finanças corporativas
e “em oportunidades relacionadas a pro-
cessos judiciais”, dispôs-se a receber salá-
rio bruto de 26,6 mil reais. Com os descon-
tos, embolsa mensalmente 19,8 mil. Ain-
da assim, o aluguel do apartamento que
ocupa na capital gaúcha é estimado em
33 mil reais. CartaCapital encaminhou à
16/06/2021 21:22
 assessoria de imprensa da empresa e-mail
com pedidos de esclarecimento. A res-
posta? “A Corsan não tem legitimidade
para responder a questionamentos sobre
informações pessoais de seus empregados
ou administradores”.
Segundo o deputado estadual Jeferson
Fernandes, do PT, o executivo foi contra-
tado para vender a Corsan. “Trata-se de
um profissional de confiança do siste-
ma financeiro, sem nenhuma experiên-
cia anterior em empresa pública de sane-
amento. Alguém que gasta mais com alu-
guel do que recebe como salário não pode
estar no Rio Grande por acaso.” Embo-
ra o processo legal de privatização nem
sequer tenha iniciado, os negócios com
consultorias e escritórios de advocacia,
contratados sem licitação, caminham de
vento em popa. Em dezenove contratos
firmados em 2020 e 2021, a maioria por
inexigibilidade, serão gastos mais de 32
milhões de reais. “Analisando o objeto
de alguns desses contratos, fica eviden-
te a desfaçatez da utilização de vultosos
recursos para atuar contra os interesses
públicos. É a certeza de que o crime com-
pensa”, afirma o parlamentar.
O desafio maior será justificar as ra-
zões para a venda da empresa. Uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade impe-
trada no Supremo Tribunal Federal e
que aguarda julgamento questiona a lei
que modificou o marco legal e aponta
ilegalidades nos modelos de privatiza-
ção nos serviços de saneamento. Segun-
do a ação, o decreto permite seletivida-
de no processo de privatização dos mu-
nicípios maiores, enquanto os menores,
deficitários, ficam sob responsabilidade
do poder público. O principal argumento
do governo gaúcho é a incapacidade de a
REDES SOCIAIS
companhia, até 2033, financiar e inves-
tir 10 bilhões de reais estabelecidos pelo
Novo Marco Legal. Dados do Sistema Na-
cional de Informações do Saneamento
F•CCSeuPaisRene1162-OK.indd 27
O valor de venda
da Corsan, empresa
de saneamento,
é menor do que
a receita líquida
indicam, no entanto, o contrário: a Cor-
san é superavitária, isto é, a receita ope-
racional é maior do que a despesa total
com serviços. O índice de liquidez geral
é positivo e possui capital superior ao de
suas obrigações de curto e longo prazo,
com grau de endividamento de 0,56.
Estudos da Associação dos Técnicos
Científicos da Corsan mostram que, em
2020, a receita da empresa foi de 4,8 bi-
lhões de reais e as despesas pouco supe-
riores a 2,9 bilhões. Sob o olhar meramen-
te contábil, a receita do exercício fiscal foi
60% maior que o preço de venda preten-
dido pelo governo, estimado em 3 bilhões
de reais. O patrimônio líquido é de 4 bi-
lhões. Quanto às possibilidades de cap-
tações financeiras, financiamento com
recursos do Banco Interamericano de
Roberto Barbuti, presidente da Corsan
Desenvolvimento, recursos próprios, Par-
cerias Público-Privadas da Região Me-
tropolitana, imunidades tributárias, en-
tre outras, somam 14,94 bilhões de reais.
Até 2040, a previsão é de 17,94 bilhões.
A Corsan, calcula a associação, tem 1,4
bilhão de reais a receber em precatórios
federais. Em caso de privatização, esses
valores serão revertidos à empresa pri-
vada, que nada fez para ter direito ao be-
nefício. A imunidade tributária pública
possibilita, até 2033, uma economia de
2 bilhões de reais sem o pagamento dos
impostos federais, ou seja, mais inves-
timentos no setor. Mesmo assim, diz o
deputado Fernandes, o governador Lei-
te insiste em querer torrar a empresa “na
grelha do capital” por 3 bilhões de reais.
“Você consegue dar conta do péssimo
negócio que isso representa para os co-
fres públicos? A quem realmente interes-
sa essa venda, quando o valor pretendi-
do em leilão é menor que a receita total
de um único ano?”, pergunta Fernandes.
Para o engenheiro civil José Homero
Finamor Pinto, vice-presidente da Aste-
cor, a população que vive nas cidades me-
nores será a mais prejudicada. No caso do
Rio Grande do Sul, a Corsan não atende
Porto Alegre. Isso implica custos e preços
da tarifa, que é calculada em uma espécie
de jogo contábil denominado subsídio cru-
zado, ou seja, o lucro dos grandes paga o
prejuízo dos pequenos. Um conceito inter-
nacional mostra que o saneamento básico
em cidades com menos de 50 mil habitan-
tes é deficitário. Dos 317 municípios aten-
didos pela estatal, apenas 39 têm popula-
ção acima de 50 mil. “Uma empresa priva-
da não tem consciência social. O que im-
porta é o lucro. Neste caso, o saneamen-
to público é apenas um negócio. Assim, os
278 municípios menores correm o risco de
ter tarifas mais altas.” Definitivamente, o
governador Leite tem um jeito muito par-
ticular de queimar o patrimônio público. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 27
16/06/2021 21:22
 CIRO GOMES
Como desenvolver o Brasil II
► É preciso enfrentar
o cartel que se formou no
País, onde cinco bancos
controlam 82% de todas
as transações financeiras
e acertam entre eles
as tarifas e taxas de juro
E
statísticas são um perigo se mal
lidas. Neste macunaímico país,
tanto mais. Cabeça na geladeira,
pés no forno, a temperatura média to-
mada à altura da barriga nada diz. Nun-
ca antes na história deste país precisa-
remos tanto saber disso quanto nos me-
ses próximos.
O PIB brasileiro vai “crescer” perto de
5% neste ano. No entanto, o nosso PIB
caiu monstruosos 25% em dólar, a mo-
eda que importa para a referência inter-
nacional, no ano passado. Caiu 4,1% em
real no mesmo período. Logo, esse “cres-
cimento” que será trombeteado de forma
ruidosa pela Igreja Bolsonarista é pouco
mais que um ajuste estatístico. É como se
tivéssemos descido uma escada de 25 de-
graus e agora voltamos cinco. Melhor que
nada, certamente, mas isso não é cresci-
mento, muito menos desenvolvimento.
No meu artigo anterior, vinha dizen-
do que o Brasil está proibido de crescer
pelo colapso do consumo das famílias,
do investimento privado, do investimen-
to público e por uma restrição estrutu-
ral nas nossas contas com o estrangeiro.
Também por fatores estruturais de lon-
go prazo, como a precariedade de nossa
produtividade decadente pela nenhuma
aposta em educação que preste, em ciên-
cia, tecnologia e inovação. Se nada dis-
so se alterou com Jair Bolsonaro e Paulo
28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCCiro1162.indd 28
Guedes, senão para muito pior, de onde
viria crescimento e desenvolvimento?
Lembro, por dever histórico, que ti-
vemos entre 2010 e 2020, a pior década
em matéria de crescimento econômico
dos últimos 120 anos! Foram seis anos
de PT, dois de MDB e dois de Bolsonaro a
provar de forma irrespondível que o nos-
so problema não é, como insisto, trocar
Chico por Mané ou Maria, mas trocar
definitivamente de modelo econômico,
o mesmo desde 1999. E operado pelos
mesmos cavalheiros!
É história comprovada que o PT
convidou Guedes para ser ministro da
Fazenda de Dilma Rousseff antes de no-
mear Joaquim Levy. Como chega a ser
engraçado que Henrique Meirelles te-
nha sido o líder da política econômica
de Lula, ministro da Fazenda de Michel
Temer, “o golpista”, e agora seja o secre-
tário da Fazenda de João Doria. Haverá
a hora para falar sobre a política e suas
contradições. Volto à questão de como
desenvolvermos o Brasil, trilhando a tá-
tica do curto para o longo prazo. Agora,
algumas ideias de como enfrentar o co-
lapso do investimento privado.
Afora outros tantos, dois fatores ini-
bem o investimento privado no Brasil:
uma ociosidade ao redor de 25% a 30%
há dez anos e um colapso no crédito pela
prática dos juros mais altos do mundo há
nada menos que 26 anos. É assim: o Brasil
tem capacidade de produzir mil geladeiras
e só dá conta de vender 750. Quem é louco
para abrir uma fábrica nova de geladeiras
se a que existe há dez anos não remunera
o capital empatado? Não há taxa interna
de retorno que se sustente com este nível
de capacidade instalada ociosa.
Alô, Guedes, você perdeu esta aula em
Chicago ou é intoxicação ideológica mes-
mo? Em 1980, a indústria instalada no
Brasil respondia por mais de 30% do nos-
so PIB. Hoje é menos de 10%. A ocupa-
ção de capacidade instalada ociosa vem
depois que se retoma o desenvolvimen-
to. Portanto, o único constrangimen-
to alcançável por uma política pública
competente é atacar o colapso do crédi-
to. Aqui, a providência número 1 é retirar
o Banco do Brasil e a Caixa Econômica
Federal do cartel de bancos que se for-
mou no Brasil. Entre nós, obra dos pro-
gressistas de goela que nos governaram
nas últimas décadas, os cinco grandes
bancos controlam 82% de todas as tran-
sações financeiras e acertam tarifas e ta-
xas de juro em jantares elegantes. Por is-
so pagamos até 300% de juros ao ano no
crédito pessoal ou cartões de crédito.
Hoje, mais de 6 milhões de empre-
sas estão constrangidas na Serasa, com
uma inadimplência recorde. A pandemia
agravou o problema, mas ele vem de bem
atrás e o estrondo foi produzido pela res-
saca do ciclo nacional consumista sem
base que implodiu no governo Dilma.
Estou estudando em detalhes uma so-
lução estratégica para isto na esteira de
um novo projeto nacional de desenvolvi-
mento: parte das reservas cambiais es-
tocadas sem nenhuma rentabilidade lá
fora será transformada em um fundo de
reestruturação de passivos, por meio de
um fundo soberano ou de uma unidade
do BNDES reaberta no exterior para esta
e outras finalidades. A vantagem, aqui, é
trocar juros e prazos estrangulados pe-
lo sistema financeiro nacional por juros
e prazos compatíveis com os prazos de
retomada do investimento permitidos
por uma janela de oportunidade rarís-
sima de estarem os juros internacionais
próximos de zero desde 2008 – vejam co-
mo os nossos dirigentes são cúmplices do
B A P T I S TÃ O
rentismo nacional! Continua... •
redacao@cartacapital.com.br
16/06/2021 18:45
 MARCOS COIMBRA
Só um golpe para salvá-lo
► Bolsonaro chegou
ao poder com elevadas
expectativas, mas colocou
tudo a perder. Não se cansa
de repetir os mesmos erros,
é um genuíno estúpido
V
ocê pode não ter consegui-
do ainda se resolver a respei-
to de Bolsonaro, se é um gênio
do mal ou um bufão autoritário, mas de
uma coisa não há dúvida: se tiver con-
dições, o ex-capitão dará um golpe. Não
porque o golpismo seja parte de sua na-
tureza e convicções (e é). Ele quer o gol-
pe porque percebe que as chances de
permanecer no poder pelo voto, que
não eram grandes, diminuíram signi-
ficativamente.
Depois da eleição e ao longo do pri-
meiro ano, metade do eleitorado aguar-
dou, com otimismo, que o governo co-
meçasse, sem que, com a ausência de Lu-
la, alguém lhe fizesse contraposição efe-
tiva. Mas as expectativas não se confir-
maram (como era previsível) e o apoio
caiu. Foi quando ganharam terreno as
conversas de golpe.
Veio a pandemia e o Auxílio Emer-
gencial, e muita gente passou a achar
que Bolsonaro tinha alta probabilidade
de se reeleger. Sem pesquisas adequa-
das, generalizou-se a impressão de que
estava com a bola cheia. Os bolsonaris-
tas acreditaram que bastava comprar o
Centrão, pois, no eleitorado, ele se garan-
tia. Mas Lula voltou e, com base em pes-
B A P T I S TÃ O
quisas benfeitas, as ilusões se acabaram.
Ficou claro que ele é o (grande) favorito.
F•CCCoimbra1162.indd 29
À turma do ex-capitão resta a opção de
cancelar a eleição, o que pode ser feito de
duas maneiras. Uma, digamos, clássica, é
o velho golpe militar, com tanques e me-
tralhadoras na rua. Pega mal, é démodé,
mas gente como Bolsonaro não se de-
tém por isso. É porque desconfia que não
consegue mobilizar o conjunto das For-
ças Armadas que não vai adiante.
A segunda é igualmente antidemo-
crática e foi usada em 2018. Consiste em
impedir a candidatura de Lula, por via
militar, judicial e midiática, pois, sem
ele, as esquerdas ficam mais frágeis, ain-
da que permaneçam competitivas. Bol-
sonaro precisaria de outra “facada” para
escapar da comparação com o adversário
e outra bandalha cibernética para enfra-
quecê-lo. Mas, se deu certo uma vez, por
que não tentar de novo?
Isso, no entanto, é puro déjà-vu. So-
mente na cabeça do ex-capitão é pos-
sível repetir a receita de 2018: o tem-
po passou, ele se revelou um desas-
tre, o povo não gosta dele. Do tripé de
que se utilizou só ficaram os militares,
desmoralizados pelo fracasso da aven-
tura em que enfiaram o País.
Bolsonaro sabe que não tem força
(pelo menos, por ora) para liderar uma
quartelada e foi desfeita a aliança que
tirou o ex-presidente da última eleição.
Por mais que queira fugir de Lula, pare-
ce que terá de enfrentá-lo.
Hoje, a sua esperança é que funcione
outra ferramenta imoral de seu arsenal:
torrar dinheiro público para aumentar
a aprovação popular. Sob o olhar com-
placente das mesmas elites que se es-
candalizavam com o “exagero petista”
na política social, o plano de Bolsonaro
é gastar o que for preciso para comprar
votos, rezando para que a demagogia dê
certo. Só que ela se funda no equívoco
característico dos reacionários brasilei-
ros, supor que basta uma grana para ga-
nhar o voto do povo. Ao contrário do que
pensam, o povo sabe votar e o bolso es-
tá longe de ser o único órgão que deter-
mina o que faz na urna.
Bolsonaro teve a chance de se tornar
uma liderança para valer na política bra-
sileira. Assumiu o governo com expec-
tativas elevadas e as jogou fora. O desti-
no ofereceu-lhe uma segunda oportuni-
dade, com o inesperado da pandemia, e
ele voltou a desperdiçá-la, tornando-se
pessoalmente responsável pela catástro-
fe sanitária brasileira. Hoje, insiste em
comportamentos ridículos para o chefe
de governo de um país sério. E acredita
que vai ganhar a eleição.
Há quem imagine que o capitão é um
craque da política, uma espécie de péro-
la que permaneceu escondida no fundo
do plenário da Câmara dos Deputados
por 20 anos. É o que acha seu público de
referência, os desqualificados de que se
cerca, recrutados pelo puxa-saquismo. A
verdade, no entanto, é que ele está mais
perto de ser aquilo que ensina o senso
comum, o verdadeiro estúpido, que tei-
ma nos mesmos erros depois de ficar
evidente que não funcionam. Como faz
agora, buscando o aplauso fácil da mi-
noria de idiotas e intimidando a maioria
de pessoas normais, com declarações e
comportamentos toscos.
É claro que é impossível vaticinar o
que vai ocorrer na eleição. Mas quem
apostar que Bolsonaro perde está mui-
to mais perto de ganhar a aposta do que
aquele que supõe que vence. •
redacao@cartacapital.com.br
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 29
16/06/2021 14:24
 Seu País
Tábua de salvação
ENTREVISTA Os pequenos partidos buscam
sobreviver com as federações, mas a sua
aprovação é incerta, avalia Fabiano Santos
A V I C TO R C A LC AG N O
C
om quase cem anos de his-
tória, o PCdoB corre sério
risco de ser incorporado
por outra legenda de es-
querda ou de perder as su-
as principais lideranças, caso o projeto
das federações partidárias não avance no
Congresso. O governador do Maranhão,
Flávio Dino, é um dos que aguardam o
resultado da votação para definir seu fu-
turo. Talvez, siga o mesmo caminho do
deputado federal Marcelo Freixo, que
acaba de migrar do PSOL para o PSB, vi-
sando fortalecer a sua candidatura ao go-
verno do Rio de Janeiro. Sem a estrela,
por sinal, os psolistas enfrentarão desa-
fio adicional para superar a cláusula de
desempenho, instituída em 2017, e o fim
das coligações proporcionais, em vigên-
cia desde as últimas eleições municipais.
Visto como tábua de salvação para os
pequenos partidos, o projeto que cria as
federações partidárias passou a trami-
tar em regime de urgência na Câmara. A
proposta permite a união de legendas em
mandatos conjuntos e nacionais duran-
te quatro anos. Em tese, a iniciativa con-
traria os interesses das grandes agremia-
ções políticas, mas para muitas delas pode
ser mais conveniente contar com aliados
do que incorporar as legendas menores,
avalia o cientista político Fabiano Santos,
professor do Instituto de Estudos Sociais
30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCSeuPaisVictor1162-OK.indd 30
e Políticos da Uerj e coordenador do Ob-
servatório do Legislativo Brasileiro. Com
Câmara e Senado divididos em relação ao
tema, o especialista diz, porém, ser “im-
possível prever” o destino do projeto.
CartaCapital: Os partidos pe-
quenos precisam das federações pa-
ra sobreviver, mas isso interessa às
legendas maiores?
Fabiano Santos: Existe um desali-
nhamento de interesses pelo tamanho,
não pela ideologia. Os partidos pequenos
se aproveitavam do quociente eleitoral
produzido pelos grandes, quando as co-
ligações eram permitidas e, dessa for-
ma, conquistavam suas cadeiras. Mas
o horário eleitoral na tevê
não é mais tão decisivo co-
mo foi no passado. Hoje, as
grandes agremiações não
precisam tanto das peque-
nas como antes. O único
modo que vejo de as gran-
des legendas ainda se in-
teressarem em coligações
com as pequenas e flexibi-
lizarem a cláusula de bar-
reira é a eleição para o Exe-
cutivo, da qual também po-
dem se beneficiar.
CC: Grosso modo, os Divisão. “No Congresso,
grandes partidos querem não há consenso algum”
menos siglas no sistema eleitoral para
terem mais poder. Ou não é isso?
FS: Não é tão unívoco assim. O PT, por
exemplo, se interessa pela existência de
um partido como o PCdoB porque são alia-
dos. Onde o PT não é tão forte, um parti-
do desses pode se tornar um aliado impor-
tante. Na pura contagem de votos, sabe-se
que os partidos maiores perdem algumas
cadeiras, caso não concorressem em coli-
gação. Mas isso é puramente numérico e
a política vai além disso, porque é feita de
alianças. Há certo dilema dos grandes par-
tidos: ao mesmo tempo que faz sentido nu-
mericamente existirem menos siglas, por
outro lado também faz sentido a sobrevi-
vência de aliados importantes.
CC: Caso as federações não sejam
aprovadas, a fusão é a única opção pa-
ra os partidos pequenos?
FS: Depende de alguns fatores. A situa-
ção do PCdoB não é a mesma do Avante,
do Patriota ou do Cidadania, partidos que
surgiram agora e têm outra inserção no
sistema político. O PCdoB pode tornar-
-se um segmento dentro de outra legenda
de esquerda, mas isso talvez não interes-
se a um partido da direita que surgiu ago-
ra, cujo destino pode ser outro. Importan-
te também lembrar que não há exemplos
internacionais mostrando o que aconte-
ceu com um sistema parti-
dário depois que certas co-
ligações foram proibidas, de
modo que não temos resul-
tados prováveis para os par-
tidos. Em 2020, tivemos a
primeira eleição sem as co-
ligações e os resultados são
muito ambíguos, até porque
os partidos diferem muito
de estado para estado.
CC: Caso as federa-
ções sejam aprovadas, o
que mudaria na prática?
Teríamos bancadas mais
fortes?
16/06/2021 19:31
 FS: Acho pouco provável que uma legis-
lação assim possa influenciar o compor-
tamento dos parlamentares desses par-
tidos no Legislativo, porque não há trans-
posição fácil. A maneira mais clara de
mudar o comportamento dos parlamen-
tares, por exemplo, seria adotar uma lista
fechada e um líder partidário que define o
critério de ordenamento das candidatu-
ras na lista. Aí estaria claro que os líderes
partidários concentrariam mais poder.
CC: Até que ponto reduzir o número
de partidos é bom para a democracia?
K A R L A B O U G H O F F / U J S E PA U L O B AT E L L I
FS: Não podemos dizer que a ausência
de federações ou partidos pequenos se-
ria antidemocrática. O que precisamos
encarar de frente é que o sistema propor-
cional, para funcionar da forma como foi
pensado, não pode ter coligações eleito-
rais. A federação partidária é uma for-
ma de desviar o que a proporcionalida-
de promete, que é dar a um partido o seu
real peso eleitoral. Falta uma reforma
F•CCSeuPaisVictor1162-OK.indd 31
que permita ao sistema puramente pro-
porcional funcionar por longo tempo, pa-
ra vermos os resultados na prática.
CC: A cláusula de desempenho não é
muito dura com os partidos ideológicos,
a exemplo do PCdoB?
FS: É difícil dizer qual partido tem
importância ideológica, merecendo ser
preservado, e qual não tem. Não há um
critério claro que possamos aplicar. Sou
contra a cláusula de barreira artificial,
um número mágico que define quem
pode ter representação a partir desse
“Para funcionar
como foi pensado, o
sistema proporcional
não pode permitir
coligações eleitorais”
Efeito. A cláusula de barreira ameaça
a sobrevivência do PCdoB, com
quase cem anos de existência
patamar e quem não pode, como é o
caso da cláusula de desempenho, a de-
finir que o partido deva ter 2% dos vo-
tos totais na eleição. Prefiro o quocien-
te eleitoral como patamar mínimo para
se alcançar a representação.
CC: A tramitação em regime de ur-
gência é um indicativo de que as fede-
rações devem ser aprovadas?
FS: Não diria isso. Parece que a Câmara
caminha para um lado e o Senado para
outro. Não vejo consenso algum. Na ver-
dade, noto uma grande confusão e pou-
cas chances de as federações passarem
como o Senado deseja. As Casas Legisla-
tivas precisam se entender e consultar a
sociedade para saber qual é o melhor sis-
tema para representá-la. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 31
16/06/2021 19:31
 Economia

A geração hidrelétrica predomina,

mas é preciso separar o que se deve
à natureza daquilo que tem a ver com
a imprevidência dos responsáveis

Apagaram o juízo
ANÁLISE O arranjo institucional e o planejamento inadequado
explodem hoje na crise estrutural do sistema elétrico,
com riscos ocultos e prejuízos inesperados
P O R R I C A R D O B U R AT I N I *, J O S É AU G U S TO G . R UA S * E LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCEconomiaBelluzzo1162-OK.indd 32 16/06/2021 21:41


O
nosso setor elétrico nova-
mente surpreende o País.
Graças ao trágico desem-
penho econômico no últi-
mo quinquênio, na virada
da última década o consumo de energia
permanecia no mesmo patamar de 2014.
Diante desse desempenho, como expli-
car o novo risco de racionamento? O pro-
blema não é insuficiência de capacidade
instalada. Para uma demanda de 70 GW,
temos mais de 170 GW de potência. Co-
mo o parque gerador é predominante-
mente hidrelétrico, a resposta apressa-
da aponta para a falta de chuvas. Contu-
do, é preciso separar o que se deve à na-
tureza e o que se deve aos homens.
A natureza vem nos alertando há anos.
Segundo o ONS, o déficit de precipitação
acumulado nos últimos dez anos em al-
gumas bacias supera o volume total das
chuvas médias anuais. Os meteorologis-
tas há tempo nos advertem: derrubem
árvores na Amazônia e as chuvas escas-
searão no Sudeste. A ausência de coor-
denação no uso múltiplo das águas, há
mais tempo ainda, tem mantido o volu-
me armazenado nas usinas do Nordeste
abaixo da sua média histórica. O princi-
pal alerta, porém, vem do próprio siste-
ma de planejamento, que há décadas rei-
tera deficiências.
Embalada pelo canto da sereia do Es-
tado mínimo e a promessa de farto inves-
timento privado, a reforma dos anos 1990
R E N AT O L U I Z F E R R E I R A E YA S U Y O S H I C H I B A / A F P
aboliu o planejamento, interrompeu os
inventários de novas usinas e amarrou
o investimento estatal. Imaginando a
energia elétrica como mercadoria co-
mum, os reformadores converteram a
geração em segmento concorrencial e
criaram o ramo da comercialização. Imi-
tando países de base térmica, ensaiaram
permitir a venda da energia a preços de
mercado, até descobrirem que, num mer-
cado com demanda garantida e grande
diferencial de custos, os preços subiriam
F•CCEconomiaBelluzzo1162-OK.indd 33
TAMBÉM
NESTA
SEÇÃO
A modernização
pretendida está
fora do lugar, pois
busca a transição
para um regime de
mercado abstrato
ao patamar do produtor menos eficiente.
O recuo não foi completo. No novo sis-
tema de comercialização, os saldos en-
tre a energia contratada e a efetivamen-
te despachada passaram a ser liquida-
dos por um Preço de Liquidação das Di-
ferenças (PLD). Esqueceram, contudo,
que o PLD não pode cumprir a missão
de ajustar as condutas e produzir efici-
ência porque o nosso sistema hidrelétri-
co não guarda qualquer semelhança com
o ideal da concorrência perfeita. Aqui, as
linhas de transmissão são vasos comuni-
cantes e é a coordenação (e não a compe-
tição) que permite o máximo aproveita-
mento dos recursos.
Para atingir a plena eficiência, no
O baixo crescimento da economia e do consumo de energia tem evitado o pior
pág. 36
Embraer. O fracasso
da venda para a Boeing
salvou a fabricante brasileira
Brasil há o imperativo do despacho cen-
tralizado e a inescapável interdepen-
dência entre produtores. Tais condições
obrigam o ONS a calcular o Custo Margi-
nal de Operação (CMO) de cada usina pa-
ra otimizar o custo total do parque gera-
dor. A especificidade dos ativos, porém,
torna o CMO tão incerto quanto as chu-
vas. E se a comercialização for entregue
à lógica mercantil, a forte oscilação do
CMO vai se refletir no PLD, favorecen-
do comportamentos curtoprazistas.
Embora o modelo de comercialização
tenha falhado, a causa principal do fra-
casso da reestruturação dos anos 1990
foi outra. Num contexto de contenção de
investimentos públicos e introdução da
competição na comercialização, a pers-
pectiva de privatização das lucrativas ge-
radoras estatais desestimulou os inves-
timentos privados, deixando o legado do
“apagão” e da explosão tarifária. Não res-
tou alternativa senão chamar o Estado de
volta e desenhar nova reestruturação.
Na tentativa de conciliar o inconcili-
ável, o setor foi, então, fatiado em dois:
um Ambiente de Contratação Regulada
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 33
16/06/2021 21:41
 Economia
(ACR) e um Ambiente de Contratação Li-
vre (ACL). Com o ACR, tentou-se retomar
o planejamento, mas no ACL, que perfaz
30% do mercado total, não há obrigação
de contratação no longo prazo.
O resgate do planejamento foi precá-
rio porque restrito ao ACR e apenas in-
dicativo. Com efeito, são as projeções das
distribuidoras que chancelam a expan-
são da geração, o que faz a oferta cami-
nhar sobre o fio da navalha da deman-
da esperada. Apesar de a instabilidade do
PLD estimular decisões de curto prazo,
confiou-se que, no ACL, as decisões iso-
ladas seriam sempre pela contratação no
longo prazo, o que não se verificou.
O baixo crescimento da economia tem
evitado o pior. Ameaças de racionamen-
to rondam o setor desde 2014, mas o au-
mento modesto do consumo nos salvou
dessa lógica arriscada e de atrasos na
construção de novas usinas e linhas de
transmissão. Metodologia arriscada e
atrasos de obras são problemas graves,
mas talvez a principal limitação tenha si-
do a incapacidade do modelo atual de an-
tecipar e enfrentar a crise estrutural do
sistema hidrelétrico.
Tendo abandonado os estudos de in-
ventários nos anos 1990, e contando com
um arcabouço de licenciamento incapaz
de trazer as partes interessadas para den-
tro das discussões desde o início, assistiu-
-se à implantação de usinas com reserva-
tórios pequenos. Paralelamente a isso, o
REDES SOCIAIS E T HOM AS MENDEL /A NIM A L EQUA LIT Y
mercado continuou crescendo a taxas ele-
vadas até 2015. O resultado foi a redução
brutal da capacidade de armazenamento.
A insuficiência do planejamento não
antecipou nem reagiu à presença cres-
cente de reservatórios menores e bai-
xas afluências. Os governos permitiram
que grande parte da capacidade adicio-
nal do sistema fosse atendida por térmi-
cas caras.
Contratar novas térmicas e manter
outras ainda mais caras na base foi um
equívoco. Mais da metade da capacidade
34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCEconomiaBelluzzo1162-OK.indd 34
A cada novo
problema, surgem
“puxadinhos”
regulatórios que
estão longe de
resolver o problema
térmica do País é composta de usinas com
custos variáveis superiores a 200 reais o
MWh. Quase 20% desse parque é forma-
do por unidades que têm custos iguais ou
superiores a 500 reais o MWh. Como al-
gumas hidráulicas antigas apresentam
custos na faixa de 75 reais o MWh, o ONS
opta com mais frequência pelo uso de hi-
drelétricas, para não acionar térmicas ca-
ras, o que agrava a crise hídrica.
A partir de 2014, o ONS precisou guar-
dar mais água e os geradores passaram a
produzir menos energia do que a negocia-
da em contratos. A diferença precisou ser
adquirida no mercado, mas, como o PLD
sobe às alturas quando térmicas mais
caras são acionadas, os prejuízos foram
enormes. O consumidor, que pagou ao
longo de décadas a amortização das usi-
nas e que não foi beneficiado quando a so-
bra de energia pós-racionamento gerou
preços baixos e lucros fartos, foi convo-
cado a pagar a conta. A Aneel calcula que,
entre agosto de 2013 e agosto de 2018, esse
problema, conhecido como problema do
GSF, custou 16,7 bilhões de reais ao consu-
midor. As tarifas, que haviam subido mui-
to nos anos 1990, cresceram 20,4% acima
da inflação de 2012 a 2018.
A inadequação do arranjo institucio-
nal e do planejamento setorial revela-
-se na crise estrutural do sistema, nos
riscos ocultos e nos prejuízos inespera-
dos. A cada novo problema surgem “pu-
xadinhos” regulatórios. A complexida-
de, as tarifas e os sustos seguem aumen-
tando em sintonia com a fé inabalável
16/06/2021 21:41
 no poder estabilizador das decisões des-
centralizadas.
Como não poderia deixar de ser, os inú-
meros problemas desencadearam refle-
xões e novas propostas. A Consulta Públi-
ca nº 33 (transformada em PL 1.917/15), a
mais abrangente proposta de reformula-
ção do setor, entende que a solução passa
por instrumentos adicionais de mercado.
Quanto ao preço, a ideia é abandonar
o PLD e introduzir um sistema de livre
oferta. Quanto ao ACL, a proposta é am-
pliá-lo. O pressuposto é que, estimula-
dos pelos “corretos” sinais de preços, os
agentes saberão avaliar os riscos e com-
prarão energia adequadamente, induzin-
do a expansão. Em relação à privatização,
os argumentos são os de sempre: maior
eficiência das empresas privadas, atra-
ção de investimentos e fuga das amarras
burocráticas das estatais.
A modernização em pauta está fora do
lugar. Ela confunde a transição para o fu-
turo com transição total para um regime
de mercado abstrato. Está fora do lugar
porque ignora que nossas especificida-
des tornam o planejamento e a coordena-
ção as principais vias de se atingir a efici-
ência e enfrentar a crise. Está deslocada
da realidade porque insiste em tratar a
energia elétrica como mercadoria qual-
quer, afastando-a dos princípios que de-
vem reger os serviços públicos prestados
por insumos universais. Como insumo
universal, a energia barata e acessível é
decisiva para o desenvolvimento futuro.
E se tornará cada vez mais indispensá-
vel numa sociedade digitalizada, tecno-
logicamente avançada e que ruma para
a transição energética.
Sobre essa transição, o desafio é enor-
me. Acelerar a participação das energias
renováveis, vencer os problemas relacio-
nados à sua intermitência e aumentar a
Com as térmicas,
as tarifas explodem.
Com a devastação,
as chuvas rareiam
F•CCEconomiaBelluzzo1162-OK.indd 35
resiliência do sistema vai exigir coorde-
nação e planejamento. Os problemas ve-
rificados recentemente na Califórnia, no
Texas e no Amapá deveriam bastar para
demonstrar a temeridade da estratégia
mercadista. O mercado de energia cau-
sa danos aos produtores que labutam nos
mercados de bens e serviços
Os investimentos em energia devem
antecipar o futuro, correr à frente da de-
manda. Foi isso que nos ensinou o desen-
volvimento brasileiro até o fim dos anos
70. Para tanto, precisamos de grandes em-
presas e não de uma anacrônica política
de desconcentração. As grandes empre-
sas comandam ampla reorganização no
setor energético mundial. Os atuais gran-
des grupos do setor são fruto da insisten-
te presença do Estado, seja diretamente,
no caso dos grandes grupos asiáticos, seja
indiretamente, no caso dos grandes gru-
pos europeus privados, mistos ou estatais,
que se concentraram e se internacionali-
zaram com suporte de seus Estados de ori-
gem: Alemanha, França, Espanha e Itália.
A privatização da Eletrobras enseja
muito mais riscos do que boas perspec-
tivas. A possibilidade de fracionamento
da empresa sinaliza deseconomias de es-
cala e de escopo. A perda de controle do
Estado pode trazer a primazia da lógica
da geração de valor para o acionista, com
evidente perda de protagonismo e capa-
cidade de coordenação.
J. K. Galbraith afirmou que a sabedo-
ria convencional não se adapta ao mun-
do que ela deve interpretar, mas à visão
que as pessoas têm do mundo. Por con-
veniência ou simplicidade, a visão que a
maior parte dos analistas tem do setor
elétrico brasileiro é a de que ele deve ope-
rar de acordo com um ideal concorren-
cial abstrato. Não deixa de ser intrigan-
te a incansável reedição dessa sabedoria
no caso brasileiro. •
*Professores da Facamp –
Faculdades de Campinas.
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 35
16/06/2021 21:41
 Economia
A Embraer
volta a voar
AVIAÇÃO Salva da desnacionalização por
sorte, a empresa lança novos produtos
e recupera terreno no mercado
P O R C A R LO S D R U M M O N D
Q
uando um plano do atual
governo não dá certo, isso
pode ser muito bom para
o País, mostra o desempe-
nho da estratégica Em-
braer desde o fracasso, em
abril do ano passado, da sua venda à
Boeing, operação que contou com o sinal
verde de Brasília. A brasileira, terceira
maior fabricante mundial de aeronaves
e principal empresa de alta tecnologia no
País, não teria salvação, diziam autorida-
des civis e militares, se não vendesse a sua
área mais lucrativa, a de produção de ja-
tos comerciais, para a maior indústria do
setor no mundo, transação apresentada
ao público de modo falacioso, como se fos-
se uma fusão ou joint venture. As menti-
ras hoje estão expostas, entretanto, pois
as boas notícias para a brasileira não pa-
ram de chegar desde a rescisão do acordo
por parte da Boeing, que se encontrava em
profunda crise após dois acidentes sem
sobreviventes com o seu principal produ-
to, o 737 MAX, entre outubro de 2018 e
março de 2019 e a paralisação global dos
voos com esse modelo.
O interesse mundial no carro voador
brasileiro, veículo elétrico de decolagem
e pouso vertical ou eVTOL, na sigla em in-
glês, a ser produzido pela Eve, controlada
da Embraer, em disputa acirrada com
36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCEconomiaEmbraer1162-OK.indd 36
similares chineses, estadunidenses e eu-
ropeus, destaca-se na retomada em curso.
Na quinta-feira 10, as ações da Embraer
subiram 15,6% após a confirmação de pos-
sível fusão da Eve com a Zanite Acquisi-
tion, empresa com propósito específico de
aquisição com sede em Ohio, nos Estados
Unidos. A união vai elevar o valor da Eve
para 2 bilhões de reais, segundo a Bloom-
berg. As novidades positivas incluem o
anúncio, no início do mês, de um pedido de
200 unidades do carro voador para os Es-
tados Unidos e o Reino Unido, a partir de
2026, em parceria com a Halo, do estado
de Illinois, nos EUA. A Eve firmou ainda
um acordo com a Helisul Aviação, do Pa-
raná, uma das maiores operadoras de he-
licópteros da América Latina, para a pre-
paração, no Brasil, do ecossistema de mo-
bilidade aérea urbana (UAM, na sigla em
inglês), que equivale à constituição de uma
rede de ruas e avenidas no espaço e pontos
de pouso e decolagem, além de um sistema
de tráfego para a sua utilização segura. O
A desistência da
Boeing tornou-se
ótima notícia para a
fabricante brasileira
negócio com a Helisul inclui a encomen-
da de até 50 carros voadores. No domin-
go 13, a Eve e a Ascent, de Cingapura, res-
ponsável pelo primeiro serviço tecnoló-
gico de UAM da Ásia, anunciaram alian-
ça para integrar o carro aéreo brasileiro
a uma plataforma tecnológica que per-
mite fretar aeronaves, comprar assentos
em voos fretados e organizar operações de
mobilidade aérea urbana.
A Embraer passa por um processo ge-
neralizado de retomada, confirma men-
sagem encaminhada a esta revista pe-
la área de comunicação corporativa da
companhia. “A Embraer tem um plano
estratégico em execução para voltar a
crescer nos próximos anos, aumentan-
do a receita e melhorando a rentabilida-
de, que começou a apresentar resultados
16/06/2021 21:32

positivos no quarto trimestre de 2020.
As áreas de aviação executiva, defesa e
serviços se recuperam mais rapidamen-
te e intensificou-se o esforço de venda da
nova geração de jatos comerciais E2, o
avião mais econômico e eficiente da ca-
tegoria e a melhor solução para clientes
que precisam de frota flexível.”
O economista Marcos Barbieri, coor-
denador do Laboratório de Estudos das
Indústrias Aeroespaciais e de Defesa, da
Unicamp, reforça: “A evolução da empre-
sa demonstra, antes de tudo, que aquela
operação era muito ruim para o País. Es-
távamos perdendo uma empresa que ti-
nha grande potencial, o que vem sendo
confirmado pelos dados. A Embraer con-
solida-se como a terceira maior fabrican-
EMBRAER
te de aviões comerciais do mundo”. É uma
das poucas brasileiras de alta tecnologia,
F•CCEconomiaEmbraer1162-OK.indd 37
diz, e isso significa que tem capacidade
de difusão tecnológica muito grande. “A
empresa tem uma área de pesquisa, de-
senvolvimento e inovação com mais de 4
mil engenheiros. Esse é o grande trunfo
da Embraer, e era o que a Boeing queria
comprar. Se levasse os 500 melhores en-
genheiros para a fábrica nos EUA, agre-
garia uma capacidade imediata de inova-
ção e dinamização.” O especialista acres-
centa: “Um dos principais motivos para a
Boeing adquirir a Embraer é que a capa-
cidade de engenharia da norte-america-
na está fragilizada por conta da financei-
rização da empresa”.
Por inverossímil que possa parecer,
portanto, a aquisição da brasileira pode-
ria ser um fator-chave para recuperar a gi-
gante dos EUA mergulhada, segundo no-
ticiou a mídia internacional, numa crise
O investimento contínuo
em inovação impulsiona
agora o “carro voador”
múltipla de financeirização radical, com
dedicação quase absoluta à maximização
de resultados para os acionistas, o que a le-
vou a capturar o órgão regulador setorial
e, em consequência disso, a relaxar os pa-
drões e a reduzir a inovação. Algumas cir-
cunstâncias conjunturais favoreceram a
fabricante brasileira. A Covid-19 trouxe
graves prejuízos à aviação comercial e re-
dução generalizada de encomendas de no-
vas aeronaves, mas a Embraer sofreu me-
nos que as demais fabricantes porque as li-
nhas regionais, que operam voos de curta
e média distância e utilizam aviões de até
150 lugares, não foram tão afetadas quan-
to as de longo curso, como mostram os da-
dos de recuperação de tráfego em ambos.
Além disso, a tradição de inovação e gera-
ção contínua de novos produtos permitiu
à empresa ter vários modelos prontos pa-
ra lançar assim que a economia começas-
se a reagir à pandemia, caso da nova versão
do jato executivo e do cargueiro militar.
Exceção à parte, a pesquisa, a inova-
ção e o desenvolvimento, assim como a
atividade científica em geral, passam
por crise inédita que avançou dos cor-
tes drásticos de recursos públicos para
a perseguição aberta a cientistas e pes-
quisadores, denunciou o presidente da
Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência, Ildeu Moreira, durante ses-
são da Comissão de Ciência e Tecnolo-
gia da Câmara dos Deputados. Censura
interna, ameaças e perseguições, demis-
sões, banimento, prisões, punições cole-
tivas, cerceamento da comunicação, in-
terferência de interesses privados e cam-
panhas anticiência fazem parte da nova
Idade das Trevas no Brasil. A recupera-
ção da Embraer é um pequeno alento. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 37
16/06/2021 21:32
 Economia
O vírus não
tira férias
TURISMO Um dos segmentos mais afetados
pela pandemia busca estratégias de
adaptação e crescimento no “novo normal”
P O R C L EI D E S Á N C H E Z R O D R I G U E Z E W I L L I A M S A L A S A R
A
agência de viagens Raidho
levou um violinista ao to-
po da Pedra da Catedral,
no Jalapão, para propiciar
experiência única aos seus
turistas. A CVC vai abrir um marketplace
para ser uma Magalu do turismo. O Se-
brae tem recebido demandas para forne-
cer treinamento em destinos até agora
inexplorados. A Associação Brasileira das
Operadoras de Turismo ensina operado-
res a inovar e melhorar o atendimento. A
Confederação Nacional do Comércio,
38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCEconomiaTurismo1162-OK.indd 38
Serviços e Turismo vai iniciar no fim do
mês uma ofensiva pró-turismo de olho
nas eleições de 2022. Esse é o “novo nor-
mal” do setor, um dos mais afetados pela
pandemia em escala global.
A CNTC calcula que, desde o início da
crise sanitária, em março de 2020, o tu-
rismo brasileiro perdeu 355,2 bilhões de
reais em receita e mais de 35 mil estabe-
lecimentos com vínculos empregatícios
ao longo do ano passado. O saldo negati-
vo corresponde à maior perda anual des-
de 2016, quando o Brasil ainda sofria os
efeitos da recessão, e representa um recuo
de 13,9% em relação aos números de 2019.
Neste momento, o turismo ainda opera
bem abaixo da sua capacidade, com apenas
48% da possibilidade mensal de geração de
receitas – e ainda enfrenta incertezas, da-
do o ritmo lento da vacinação. Pesquisa re-
alizada por Mariana Aldrigui, do Institu-
to de Estudos Avançados da USP, registra
perda de 202.952 vagas formais, com a re-
cuperação de 52,48% destas mesmas va-
gas entre setembro de 2020 e fevereiro de
2021, com a contratação de 106.517. Março
16/06/2021 21:51

e abril de 2021 registraram, no entanto,
saldo negativo de 8.031 vagas, o que tota-
liza 104.466 postos perdidos em 13 meses.
Com um adendo: os empregos formais re-
presentavam apenas 35% de uma força de
trabalho fundamentalmente informal,
lembra a pesquisadora.
O impacto mais devastador da pande-
JADE QUEIROZ /MTUR
mia deu-se, porém, sobre o chamado tu-
rismo de negócios – as viagens para reu-
niões, eventos e congressos. O aprendi-
zado quase imediato do uso do trabalho
remoto pelas empresas, que passaram
F•CCEconomiaTurismo1162-OK.indd 39
Perto de casa. Na retomada, os turistas
TENDÊNCIAS NO TURISMO
tendem a privilegiar destinos nacionais
NO PÓS-PANDEMIA
e contato com a natureza. A cearense
Jericoacoara é uma das rotas preferidas
a reavaliar os orçamentos de viagens, PREFERÊNCIA:
foi mortal para o segmento. As compa- Lazer ao ar livre
nhias suprimiram, entre outros, os des-
locamentos para reuniões de duas ou três
horas, facilmente substituíveis por con-
ferências online. O horizonte dos especia-
listas e profissionais para o retorno do tu-
+ VIAGENS
rismo de negócios é 2022, tanto no mun-
DE CARRO
do quanto no Brasil, a depender, é claro, - de avião
da velocidade da vacinação.
As dificuldades levaram a CNC a
lançar o projeto Vai Turismo – Ru-
mo ao Futuro, por meio de uma es-
pécie de “consulta pública”, segun-
do Alexandre Sampaio, diretor res-
ponsável pelo Conselho Empresa-
CHECK-IN
rial de Turismo e Hospitalidade da
100% online
CNC, do qual sairão propostas de políti-
cas públicas a ser encaminhadas aos can-
didatos à Presidência da República, gover-
nador e prefeito. Enquanto tenta reorga-
nizar sua agenda política, a cadeia se-
torial, das agências aos guias, corre
+ HIGIENE
para inovar e buscar alternativas
que miram, fundamentalmente,
os brasileiros acostumados a via-
jar ao exterior, hoje fechado ao Pa-
ís. “Quase 80% dos nossos opera-
dores associados tinham como mais TURISMO
forte o mercado internacional do que o de isolamento
O Novo Normal (Pós-Vacina) - Sebrae
Fonte: Estudo de Turismo:
FLEXIBILIDADE
Desde março
do ano passado, VOUCHERIZAÇÃO
o setor perdeu 355
bilhões de reais
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 39
16/06/2021 21:51
 Economia
nacional”, sublinha Roberto Haro Nedel-
ciu, presidente do Conselho de Adminis-
tração da Braztoa e proprietário da Rai-
dho. “Boa parcela dos viajantes que têm
poder aquisitivo compatível com a possi-
bilidade está mais consciente e opta por
viagens nas quais possa desfrutar expe-
riências autênticas e marcantes, gastro-
nomia regional, envolvimento com a co-
munidade local etc. Os serviços exclusi-
vos, que antes eram limitados ao segmen-
to de luxo, também são os mais procura-
dos por viajantes de outros nichos”, acres-
centa Sampaio.
As restrições às viagens internacionais
afetaram o mundo todo em 2020. Dados
da Organização Mundial do Turismo pu-
blicados em outubro passado apontam que
a chegada de turistas estrangeiros, em to-
do o trânsito internacional, decaiu 70%
somente nos primeiros oito meses, com o
índice geral de chegadas do exterior atin-
gindo baixa histórica de 79% em agosto.
Por esses índices, a perda de receita glo-
bal teria alcançado a cifra de 730 bilhões
de dólares no período apurado. Com o pro-
gresso da vacinação, a situação começa a
mudar. Segundo Aldrigui, também presi-
dente do Conselho de Turismo da Federa-
ção do Comércio de São Paulo, pelos ma-
pas de reservas da Espanha, da Grécia, da
Itália e aquelas originadas no Reino Uni-
do, os turistas voltaram a lotar os resorts
nos destinos liberados. Os brasileiros es-
tão, no entanto, fora da festa, proibidos de
entrar na maioria dos países, salvo raros
destinos na Europa, na Ásia e no Caribe.
“É questão de melhorar a imagem do Bra-
sil no exterior, porque a vacina que eu to-
mo é a mesma que o cidadão de Bangla-
desh recebe e ele é aceito e eu não. E ambos
estamos imunizados”, lembra Leonel An-
I S T O C K P H O T O E PA N R O TA S
drade, presidente da CVC, a maior agência
de viagens do País. “Penso que será neces-
sário um excelente trabalho de promoção
turística para recuperar a confiança des-
ses viajantes. Nossa imagem ficou muito
deteriorada na pandemia e vamos precisar
40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCEconomiaTurismo1162-OK.indd 40
“É questão de
melhorar a imagem
brasileira lá fora”,
diz Leonel Andrade,
presidente da CVC
de uma boa estratégia para reverter essa
situação, até mesmo com relação aos nos-
sos vizinhos”, reforça Sampaio.
Assim, na impossibilidade de viajar
para o exterior, aqueles 1,5 a 3 milhões de
brasileiros acostumados a passar férias fo-
ra têm sido obrigados a descobrir destinos
internos. “Estamos recebendo demanda
em locais onde antes não tínhamos cur-
sos, o que confirma essa tendência”, diz
Germana Barros Magalhães, analista da
Unidade de Competitividade do Sebrae.
“Mesmo em lugares antes não desbrava-
dos se percebe a busca pela reestrutura-
ção da oferta turística, ou seja, qualifi-
cação dos serviços, tanto a qualidade na
prestação quanto na oferta da experiên-
cia, o que eu vejo como tendência para o fu-
turo, essa experiência no turismo mesmo,
em si. Também estamos recebendo pedi-
dos para auxiliar nesse ponto.”
Para atender os novos visitantes, Ne-
delciu e a equipe da associação das opera-
doras investiram muito dinheiro, muito
tempo e muita criatividade na montagem
da Academia Braztoa de Excelência: ma-
pearam diferenciais, aspectos culturais e
comunitários, a fim de treinar agências,
operadores e receptivos a reinventar
não só as rotinas operacionais, a maio-
ria analógica, mas principalmente o mo-
do de pensar o turismo e como melhorar
o atendimento ao brasileiro que almeja
replicar, aqui, tratamento, qualidade e
experiências usuais no exterior. A ideia
é aproveitar o conhecimento acumulado
pelos operadores em sua vivência inter-
nacional para encontrar similaridades
16/06/2021 21:51

Adaptação. A segurança sanitária
vai restringir o fluxo. Andrade prepara
a CVC para virar uma Magalu do Turismo
nativas, como os cervejeiros que comer-
cializam mais a “experiência” de visitar
a cervejaria e provar de seus produtos do
que a venda direta do produto. “Ao do-
no de uma fazenda em Mato Grosso do
Sul, distante 250 quilômetros da cida-
de, aconselhamos uma parada no meio
do trajeto, que leva quatro horas, para
um piquenique, um show, visita à comu-
nidade, apoio a essa comunidade. Tem de
criar e agregar valor para a lojinha de ar-
tesanato”, relata Nedelciu, idealizador do
F•CCEconomiaTurismo1162-OK.indd 41
concerto do violinista no topo da Pedra
da Catedral destinado ao grupo que não
queria fazer meditação no centro do Ja-
lapão. “Um aspecto mudou e não tem vol-
ta, todos valorizamos mais as experiên-
cias, seja numa atração turística, hotel ou
mesmo um restaurante na nossa cidade.
É uma grande oportunidade para os des-
tinos e as empresas inovarem seus servi-
ços”, salienta Sampaio.
Estudos do Sebrae, assim como de
outras entidades, tanto nacionais quan-
to internacionais, apontam que, no
pós-pandemia – ou pós-vacinação – os
turistas vão preferir viajar para destinos
mais próximos de suas próprias cidades e
que ofereçam isolamento e contato com
a natureza, privilegiando o ecoturismo, o
turismo de aventura, a gastronomia, as-
sim como destinos e empresas que apre-
sentem diversos tipos de cuidados pesso-
ais, como alimentação saudável, massa-
gens, terapias. Os profissionais e pesqui-
sadores mapearam nos últimos tempos
um grupo expressivo de indivíduos que
reviu valores e está disposto a reduzir os
custos de viver em metrópoles e assim po-
der fazer mais viagens na vida, na medi-
da em que a fonte de renda permitir tra-
balhar de forma nômade, algo que se no-
tava bem antes de a Covid-19 aparecer e
que tende a se acelerar agora com a ado-
ção do trabalho remoto. “Daí vários des-
tinos, e eu destaco dois, Rio de Janeiro e
Ilhabela, estão investindo na divulgação
para serem base de viagens de nomadis-
mo digital, nas quais os clientes ficam in-
do e voltando para esses locais”, descre-
ve Aldrigui, que tem aconselhado prefei-
tos a prestarem mais atenção na infraes-
trutura de internet de suas cidades. “Is-
so é que vai contar. Se a cidade tiver vis-
ta linda, um lugar legal e os interessados
conseguirem trabalhar no local escolhi-
do, o perfil econômico do setor de servi-
ços das cidades mudará totalmente assim
que as coisas se normalizarem.” Será uma
revolução bem maior do que se imagina. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 41
16/06/2021 21:51
 Capital S/A
NEGÓCIOS E FINANÇAS EM PÍLULAS

Unidos
pela crise

EM VEZ DE LUTAR
COM UM DE alternativa para muitas empresas afetadas pe-
NOSSOS ALIADOS ► A pandemia impulsiona as la crise, conta Dell’Oso, enquanto empresas de
MAIS PRÓXIMOS, fusões e aquisições neste ano setores favorecidos pela pandemia aproveita-
ram para fazer aquisições e se fortalecer ainda
FINALMENTE mais. Contribuíram também o real deprecia-

A
ESTAMOS NOS UNINDO s fusões e aquisições anunciadas nos do, excesso de liquidez, juros baixos e os IPOs
CONTRA UMA AMEAÇA primeiros quatro meses de 2021 no (ofertas iniciais de ações) – cujos recursos cap-
Brasil somaram 451 transações, 60% tados serão em boa parte destinados a aquisi-
COMUM (A CHINA) acima do mesmo período do ano passado, se- ções no médio prazo. Um fato chama atenção
gundo levantamento da PwC Brasil. Leonar- do executivo: em abril, 91 transações foram fei-
do Dell’Oso, sócio da empresa, destaca a avidez tas entre empresas nacionais e apenas 27 fo-
desse mercado em razão da pandemia: foram ram de empresas nacionais compradas por es-
1.038 transações em 2020, acima até das 912 re- trangeiras. “Essa diferença nunca foi tão gran-

URSULA VAN DER LEYEN,
Presidente da Comissão
Europeia, na reunião do G-7
I S T O C K P H O T O , S G T. J E F F E C A R R / U . S . A I R F O R C E E J I M B A R C U S / G M
gistradas em 2019. A previsão é fechar 2021 com de e é característica desta crise.” As multina-
1,2 mil a 1,3 mil operações. Dividir participação cionais têm preferido investir nos seus países
societária ou vender todo o negócio foi a única de origem ou onde têm maior exposição.

ALTA COMPRESSÃO
Número de fusões e aquisições no ano

1.200
1.038
1.000 912
879
799 812
800 752 771 742
722
645 644 643 658
573 597
600
451
395 415 389
400 337

200

0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021*

Fonte: PwC Brasil, com base em informações divulgadas na imprensa. Não inclui acordos. *Até abril.

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCCapitalSA1162-OK.indd 42 16/06/2021 14:17

 compensação pelos subsídios,
que custou 11,3 bilhões de dó-
lares em trocas comerciais.
Mais importante é a guinada
da política externa promovi-
da pelo presidente Joe Biden,
de aproximação dos europeus
para confrontar o avanço da
China no comércio mundial.

Índice sustentável
A fintech de antecipação de
recebíveis Openbox.ai de-

A GENERAL MOTORS ACELERA senvolveu um Índice de

Ações Sustentáveis – IAS pa-
A GM, maior montadora dos EUA, que ra incentivar a sustentabi-
fechou várias fábricas e enfrentou uma greve lidade de seu nicho de mer-
de seis semanas que custou quase 3 bilhões cado, as pequenas e médias
de dólares durante a pandemia, deve comple- empresas. As PMEs que se
tar o seu melhor ano fiscal em mais de cem habilitam são auditadas pela
anos, informa a agência Reuters. Nos últimos certificadora internacional
três trimestres, a GM registrou lucro antes de Ecocert Brasil e, conforme a
juros e impostos (Ebit) de 13,4 bilhões de pontuação atingida, conver-
dólares, maior que o recorde de 12,5 bilhões
em 2016. A fabricante também ganha espaço
na indústria de carros elétricos. Segundo o
tem seus selos IAS em redu-
ções nos juros das operações
de crédito com a Openbox.ai.
NÚMEROS
70,4%
Morgan Stanley, em abril deste ano a GM ven- “Queremos oferecer crédito
deu mais carros elétricos ao redor do mundo mais justo, com taxas mais
do que a Tesla e a Volkswagen. baixas, para pequenas e mé-
dias empresas que praticam
ações sustentáveis em seu dia do superávit comercial brasileiro
é com a China, segundo a FGV
Os acionistas majoritários a dia”, diz a empresa.
Eduardo Carvalho e Fábio
Boeing vs. Airbus

Asdurian informam que têm
três inquilinos potenciais e
sondam aquisições em Nova
York, Londres, Hong Kong
e Lisboa. “Nossa moeda, o
Imóvel cripto D¥NS, vai ter uma relação
com o mundo real que as ou-
1.377%
Os EUA e a União Europeia
anunciaram, na reunião de
valorizou a ação da farmacêutica
cúpula bilateral em Bruxelas,
Orphazyne em um único
um acordo para resolver a pregão da Nasdaq
disputa sobre subsídios go-

A Dynasty Global Investments
acaba de comprar o terceiro
andar do Edifício Secullum
II, na Avenida Faria Lima,
por 27,695 milhões de reais,
para lastrear sua criptomo-
eda a ser lançada em julho.
tras não têm. A compra do
imóvel em São Paulo, numa
área nobre da cidade, é um
claro indicador do nosso pla-
no de negócios”, diz Carvalho,
fundador e CEO da Dynasty.
0,92%
vernamentais aos fabrican-
tes de aviões Airbus e Boeing,
que durava 17 anos. Pelo acor-
do, nos próximos cinco anos
Washington e Bruxelas sus- subiu a inflação das famílias
de renda muito baixa, em maio,
penderão as tarifas sobre im- segundo o Ipea, ante 0,49%
portação de produtos como das famílias de renda alta

C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 43

F•CCCapitalSA1162-OK.indd 43 16/06/2021 14:17

 Nosso Mundo
Adversário
em comum
G-7 O encontro explicita o incômodo das
potências ocidentais com o poderio chinês
P O R C L A R IS S A C A R VA L H A ES , D E N OVA YO R K
A
cúpula do G-7 mal havia
começado e, nos bastido-
res, todos sabiam que, pa-
ra além das pautas que
abordariam ações climá-
ticas e discussões sobre a pandemia que
afeta todo o planeta, o principal embate
seria outro, bem mais espinhoso.
Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália,
Japão e Reino Unido se reuniram para
discutir quais medidas poderiam adotar
em relação à China. O país mais populo-
so do mundo, com histórico de violação
aos direitos humanos, mas dono do in-
vejável PIB, que no primeiro trimestre
bateu recorde de crescimento de 18,3%
e que, ironicamente, há três anos nem se-
quer era mencionado nos encontros da
nata mundial, agora provoca apreensão
entre aliados históricos.
O encontro, realizado na Cornualha,
na Inglaterra, teve duração de três dias e
foi encerrado no domingo 13, com resul-
tados que evidenciam o incômodo causa-
do pelo crescente poder de Xi Jinping. O
presidente norte-americano, Joe Biden,
parecia o mais empenhado em desban-
car seu principal concorrente comercial.
Mas cada uma das potências ocidentais,
44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCNossoMundoG71162-OK.indd 44
em maior ou menor grau, está em saia
justíssima com a China.
A Alemanha, por exemplo, tem nela
seu principal mercado para automóveis
da Volkswagen e da BMW. A Itália, por
sua vez, recebeu da mesma China a do-
ação de máscaras e ventiladores no ano
passado, quando estava sendo arrasada
pela pandemia. Vale a pena arriscar rela-
ções diplomáticas, investimentos com ci-
fras a perder de vista e acelerar uma nova
Guerra Fria?
Para combater o Beltand Road, pro-
grama de 1 trilhão de dólares criado por
Xi Jinping para financiar projetos de in-
fraestrutura em todo o mundo – e, cla-
ro, angariar aliados nesse processo –, os
líderes do G-7 encontraram, segundo
A ideia de taxar
as multinacionais
também visa reduzir
a influência chinesa
nas nações em
desenvolvimento
Biden, uma “alternativa democrática”.
Decidiram taxar as empresas multina-
cionais, em acordo histórico para definir
uma alíquota mínima de imposto global
de pelo menos 15% – o que reduziria o in-
centivo para as empresas transferirem
seus lucros para paraísos offshore. Par-
te dos impostos das maiores corporações
será enviada para as nações onde a recei-
ta é obtida e há sedes corporativas.
Dessa forma, centenas de bilhões de
dólares serão oferecidas para financiar
nações em desenvolvimento, alternativa
direta ao Beltand Road de Pequim. “Es-
se imposto mínimo global acabaria com
a corrida para o fundo da tributação das
empresas e garantiria justiça para a clas-
se média e os trabalhadores nos EUA e em
todo o mundo”, afirmou, em comunicado,
a secretária do Tesouro norte-america-
no, Janet Yellen. Em resposta, também
por meio de nota, um porta-voz da embai-
xada chinesa em Londres alertou que “os
dias em que as decisões globais eram di-
tadas por um pequeno grupo de países se
foram”. E emendou: “Perseguir a política
do bloco e formar pequenas panelinhas
é impopular e está fadado ao fracasso”.
16/06/2021 19:25

Em outros fronts, o resultado da cúpu-
la do G-7 também ficou aquém do espe-
rado. Apontada como uma das mais im-
portantes pautas do encontro, a defini-
ção do cronograma para eliminar o uso
do carvão, um dos maiores contribuin-
tes para o aquecimento global, e a ado-
ção da energia elétrica, não foi definida,
porque o grupo não chegou a um consen-
so – resultado que torna incerto o desti-
no da Conferência Climática Global, pre-
vista para novembro.
A indecisão do grupo gerou uma en-
xurrada de protestos de ativistas. Em um
comunicado oficial do Greenpeace, Jo-
hn Sauven, diretor-executivo da organi-
zação no Reino Unido, lamentou o resul-
tado apresentado pelas lideranças. “Esta
cúpula parece quebrar o recorde de velhas
promessas. Boris Johnson e seus colegas
líderes enterraram suas cabeças na areia
da Cornualha, em vez de encarar o desafio
ambiental que todos enfrentamos”. Ao ser
confrontado durante a coletiva de impren-
G7 CORNWA L L 2021
sa, o premier britânico tentou minimizar
as críticas, de forma não muito convincen-
te: “Foram dias altamente produtivos”.
De concreto, apenas o compromis-
so dos líderes do bloco em doar 1 bilhão
F•CCNossoMundoG71162-OK.indd 45
TAMBÉM
NESTA
SEÇÃO
de novas doses de vacinas a países em
desenvolvimento, que deverão ser distri-
buídas por meio do Covax, consórcio glo-
bal de aquisição de imunizantes apoiado
pela Organização Mundial da Saúde. No
Twitter, o presidente da França, Emma-
nuel Macron, confirmou que o país es-
tava dobrando os compromissos, que re-
presentam 60 milhões de doses. “Vaci-
nar ao menos 60% da população mun-
dial até o próximo ano para obter imu-
nidade coletiva. Esta é a meta que assu-
mi com a União Africana. Esta é a meta
que nos propomos no G-7.”
Na mesma rede social, o diretor-ge-
ral da OMS, Tedros Adhanom, agradeceu
a doação, mas observou que a oferta está
aquém da necessidade. “Para realmente
acabar com a pandemia da Covid-19, nos-
sa meta deve ser vacinar pelo menos 70%
da população da Terra até o momento em
que o G-7 se reunir na Alemanha, no pró-
ximo ano. Para fazer isso, precisamos de
11 bilhões de doses. Saudamos os genero-
sos anúncios feitos sobre doações de va-
cinas, mas precisamos de mais e agora”.
Em artigo no jornal inglês The Guar-
dian, o ex-premier britânico Gordon
pág. 48
The Observer. Os surtos de
Covid-19 em fábricas ameaçam
operários do Sudeste asiático
Merkel se despede do
G-7, que pouco avançou
na questão ambiental
e do acesso às vacinas
Brown, que por meses apelou veemen-
temente para que as nações ricas custe-
assem toda a vacinação mundial, disse
que a cúpula do G-7 deste ano será lem-
brada como a “oportunidade perdida” e
que não houve o compromisso de vacinar
o mundo o suficiente – o que ele chamou
de “falha moral imperdoável”.
A cúpula do G-7 também será lem-
brada como o último encontro com a
participação da chanceler alemã An-
gela Merkel, que se aposenta após as
eleições de setembro. Mesmo com po-
pularidade oscilante na Alemanha, ela
não apenas foi a única representante fe-
minina da história do grupo, mas tam-
bém a responsável por defender pau-
tas até então negligenciadas pelo blo-
co e transformá-las em agendas de ur-
gência mundial. Desde a sua primeira
participação, pautou discussões sobre
igualdade de gênero, sustentabilidade e
clima, para citar alguns exemplos. Mui-
ta coisa avançou desde então, a exem-
plo do Acordo de Paris, celebrado em
2015. Outras nem tanto. Sem a menor
previsão de que o cenário mude, Merkel
continuará sendo a única líder femini-
na que passou pelo bloco. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 45
16/06/2021 19:25
 Nosso Mundo
Comemorar o quê?
ISRAEL O novo governo acena aos judeus
nacionalistas e mantém o cerco a Gaza
POR ARTURO HARTMANN
U
ma das primeiras medidas
do novo governo israelense
de Naftali Bennett e Yair
Lapid, confirmado pelo
Parlamento no domingo 13,
foi aprovar a Marcha da Bandeira de Je-
rusalém, manifestação que comemora a
reunificação das duas partes da cidade, ou
seja, celebra o que ainda é considerado
uma conquista ilegal de território pela Re-
solução 242. A marcha havia sido cance-
lada duas vezes, em maio e junho, no con-
texto dos confrontos de palestinos com a
polícia de fronteira e o Exército, tanto em
Jerusalém quanto na Faixa de Gaza.
Na terça-feira 15, forças israelen-
ses bloquearam as cercanias do traje-
to, fecharam comércios e restringiram o
acesso de palestinos à esplanada do Por-
tão de Damasco, entrada da Cidade Ve-
lha que olha para a Jerusalém Oriental
ocupada. De acordo com o Haaretz, cer-
ca de 3 mil judeus acompanharam a mar-
cha, empunhando bandeiras com a estre-
la de Davi e, segundo ativistas no local,
gritando frases como “morte aos árabes”
e “que a sua vila queime”. Opositores da
marcha com bandeiras palestinas ou que
empunhavam vassouras para limpar ru-
as e praças foram agredidos pela polícia.
Dezessete palestinos foram presos, afir-
mam diferentes fontes locais.
Em protesto à marcha em Jerusa-
lém, grupos palestinos lançaram ba-
lões incendiários para o lado israelense
46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCNossoMundoIsrael1162-OK.indd 46
do cerco à Gaza, causando cerca de 20
focos de queimadas, uma tática utiliza-
da nos protestos da Marcha do Retorno
palestina em 2018. Uma segunda medi-
da do governo Bennett-Lapid foi ordenar
o bombardeio de posições do Hamas no
território. O jornalista Omar Ghraieb
tuitou por volta das 7 da noite da ter-
ça: “Jatos israelenses bombardearam
as partes ocidental e sul de Gaza minu-
tos atrás, cessar-fogo de quem?” E, de-
pois, às 8 da noite: “Eu, literalmente, es-
tava quase dormindo quando escutei os
mísseis israelenses caindo lá fora. Pen-
sei que estava sonhando (pesadelo). Dro-
nes israelenses estão enchendo os céus
Mais do mesmo? Bennett assume
e zunindo alto demais”. Até o momento,
não há notícias de feridos.
O novo governo assume sob vigilância
da comunidade internacional. No contex-
to dos bombardeios israelenses a Gaza em
maio, 212 mortes de saldo, o Conselho de
Direitos Humanos da Assembleia-Geral
da ONU estabeleceu uma comissão pa-
ra investigar violações da lei humanitá-
ria internacional e da lei internacional
de direitos humanos “nos Territórios
Palestinos Ocupados, incluindo Jerusa-
lém Oriental, e em Israel”. A sugestão é le-
var em conta elementos estruturais “das
recorrentes tensões, incluindo discrimi-
nação e repressão baseada em identidade
nacional, étnica, racial e religiosa”. “Ve-
mos com bons olhos essa decisão”, afir-
ma Suad Bishara, do Departamento Le-
gal da organização Adalah. “É a primei-
ra vez que o Conselho de Direitos Huma-
nos dá mandato para que uma comissão
investigue as causas dessas violações, in-
cluindo aquelas que acontecem em Israel
contra os palestinos cidadãos do Estado.”
No início de junho, a Adalah publicou
um relatório em que denunciava o esfor-
ço sistemático de repressão israelense a
palestinos cidadãos, incluindo uma sala
de tortura na estação de polícia de Na-
zareth. Em reclamação oficial a autori-
dades israelenses, a organização regis-
trou que oficiais “levaram detidos para
um quarto (...), forçando-os a sentar no
chão algemados e baixar suas cabeças”.
Então, os policiais batiam em todas as
partes do corpo com chutes e bastões. De
acordo com testemunhos juramentados,
“o chão da sala estava coberto de sangue
dos espancamentos”.
Além do uso excessivo da força, des-
creve Bishara, ocorreram detenções ar-
bitrárias. “Quando a polícia anunciou
uma campanha de três semanas para
prender aqueles supostamente envol-
vidos em atos violentos (interétnicos),
16/06/2021 19:28

M O H A M M E D A B E D / A F P, J A C K G U E Z / A F P E M E N A H E M K A H A N A / A F P
vimos prisões em massa. Falo de cente-
nas.” O caráter político das prisões expu-
nha também uma discriminação étnica:
“Vimos a inação da polícia contra os ata-
ques de judeus a cidadãos palestinos”. Há
ainda uma investigação do Escritório da
Procuradora da Corte Internacional Cri-
minal em curso sobre crimes cometidos
nos TPO. Thassen Elayan, pesquisador
da área legal da organização palestina al-
-Haq, disse que agora o caso entra na fase
de apresentação de evidências. “Vítimas
F•CCNossoMundoIsrael1162-OK.indd 47
Dois lados. Gaza tenta se reorganizar
após os ataques recentes. Em Jerusalém,
israelenses celebram o fim da era
Netanyahu, mas há motivo para tanto?
eleitoral de 2019, expôs o desejo de re-
tomar relações com governos liberais,
como a França de Emmanuel Macron,
o que poderia ser entendido como indi-
cação de afastamento de governos co-
mo o de Jair Bolsonaro. Hoje, ainda que
o ministro das Relações Exteriores que
assume esteja na coalizão com Bennett,
poderia manter uma “margem de mano-
bra grande para lidar com assuntos ex-
ternos” e levar adiante tais políticas,
afirma Dahlia Scheindlin, analista po-
lítica e pesquisadora de opinião pública
em Israel. Bennett, se não mudar sua po-
sição nacionalista expansionista em re-
lação aos palestinos, tenderia a aceitar
um caminho mais pragmático no cam-
po externo como forma de oposição ao
legado de Netanyahu.
Vale, no entanto, prestar atenção na
ressalva de Scheindlin sobre os objetivos
do agora ex-primeiro-ministro no culti-
vo de tais relações. “Netanyahu fez isso
de forma consciente. Para ele, seria bom
diversificar os países com os quais Israel
se cercava porque não fariam críticas às
políticas do Estado, fosse em questões de
e testemunhas devem estar preparadas direitos humanos ou da ocupação dos ter-
para dar testemunhos à corte e às equi- ritórios.” No seu mandato, as operações
pes de investigação.” em Gaza em 2012, 2014, 2018 e 2021 dei-
Lapid, no contexto da campanha xaram 2.905 mortos. O ex-premier per-
mitiu ainda a expansão veloz dos assen-
tamentos. De acordo com a organização
Peace Now, em 2009, ano em que foi elei-
to, havia 490.437 colonos na Cisjordânia
Durante a Marcha e em Jerusalém Oriental. Em 2019, últi-
da Bandeira, mo ano contabilizado, o total se aproxi-
israelenses gritavam mava dos 667 mil. Por ora, não há sinais
“morte aos árabes” de mudança substancial nessa política. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 47
16/06/2021 19:29
 Nosso Mundo
Vidas calculadas
em centavos
No Sudeste Asiático,
os surtos de Covid-19 nas linhas
de produção ameaçam os operários
P O R R E B EC C A R ATC L I F F E , D E B A N G C O C ,
E V U T H A S R E Y, D E P H N O M P E N H
E
ra por volta de meio-dia quan-
do os trabalhadores da fábri-
ca Cal-Comp, em Phetchaburi,
na região central da Tailândia,
souberam que um pequeno
grupo de seus colegas havia testado posi-
tivo para Covid-19. Logo ficou claro que o
vírus tinha invadido as linhas de produ-
ção. Um núcleo associado à fábrica de pro-
dutos eletrônicos foi depois ligado a mi-
lhares de infecções.
Hwan Htet Paing*, um operário da fá-
brica, disse que não lhe revelaram o re-
sultado de seu teste, realizado em 19 de
maio. Apesar disso, ele foi instruído a fa-
zer quarentena em um grande salão den-
tro do local de trabalho. O piso estava co-
berto com lonas e redes contra mosquitos
para cada trabalhador. Todos receberam
um balde, um copo e lençóis para espalhar
pelo chão. Ventiladores foram entregues
para aliviar o calor, até que o grande nú-
mero de pessoas que testaram positivo fez
que não sobrasse nenhum.
Ele ficou ali 14 dias, com as mesmas
roupas que usava quando foi enviado pa-
ra a instalação. Em todo o Sudeste Asiáti-
co, países que conseguiram evitar o pior
da pandemia no ano passado enfrentam
novas ondas de Covid-19 alimentadas
48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCNossoMundoObserver1162-OK.indd 48
por variantes mais contagiosas. Em vá-
rios países da região, incluindo Malásia,
Vietnã e Camboja, focos de contágio co-
meçaram em locais industriais impor-
tantes. No Vietnã, que virtualmente er-
radicou o vírus no ano passado, os casos
totais triplicaram desde o início de maio,
alcançando quase 10 mil, impulsionados
por surtos nas fábricas.
A Malásia foi obrigada a impor bloqueio
neste mês, depois que os casos diários ul-
trapassaram 9 mil. Grande parte do se-
tor fabril do país foi autorizada a man-
ter as operações com capacidade limi-
tada, apesar das preocupações levanta-
das pelos ativistas. Em 11 de junho, des-
cobriu-se que mais de 800 trabalhadores
da fábrica de luvas WRP tiveram resulta-
do positivo. “Infelizmente, todo o siste-
ma das linhas de produção e fábricas não
favorece a prevenção da Covid-19”, disse
A maior parte dos
produtos destina-se
ao mercado europeu
Andy Hall, especialista em direitos dos
trabalhadores migrantes.
O aumento da demanda por certos
produtos durante a pandemia significou
maior pressão nas cadeias de abasteci-
mento. Muitos desses produtos se desti-
nam à Europa: equipamentos tecnológi-
cos e impressoras para pessoas que traba-
lham em casa, luvas médicas para profis-
sionais de saúde, atum em conserva para
os que estocam os armários.
Na Tailândia, trabalhadores de mais
de 130 fábricas foram infectados, segun-
do uma pesquisa do Ministério da In-
dústria. Isso inclui a Charoen Pokphand
Foods, maior empresa agrícola do país.
Suthasinee Kaewleklai, coordenadora
do grupo de defesa Rede de Direitos dos
16/06/2021 15:35
 Trabalhadores Migrantes na Tailândia,
disse que muitas fábricas afetadas no país
empregam trabalhadores do Camboja e de
Mianmar, que são especialmente vulnerá-
veis. “Eles não têm sindicatos como os tai-
landeses nem representantes para nego-
ciar o que os patrões devem fazer por eles.”
As condições no espaço de quarente-
na na fábrica Cal-Comp eram tão ruins
que os trabalhadores protestaram contra
A A RO N SA N TOS /ILO -ASI A PACIFIC
a falta de eletricidade e de comida. Eles
disseram que os problemas de alimenta-
ção e eletricidade nas instalações melho-
raram depois dos protestos.
Outros trabalhadores da fábrica per-
manecem isolados em casa. Chhuk
Sophal*, um operário cambojano da Cal-
-Comp, passou mais de duas semanas em
F•CCNossoMundoObserver1162-OK.indd 49
seu pequeno quarto alugado, contando
com doações para se alimentar. A fábri-
ca deixou pacotes de comida, ele acres-
centou, mas não suficientes. “É só arroz e
peixe enlatado. Eles nos dão apenas para
sobreviver”, disse ele.
A Cal-Comp e o gabinete do gover-
nador em Phetchaburi não responderam
a um pedido de entrevista. Os
trabalhadores disseram que a Cal-Comp
adotou medidas para reduzir o risco de
propagação do vírus, mas que, na práti-
ca, o distanciamento social é impossível.
Chhaeut SoPhally, um trabalhador
da confecção no Camboja, que também
viu um aumento recente dos casos, dis-
se que, mesmo que as pessoas consigam
Como robôs. Os operários têm pouca
proteção e são submetidos a abusos
trabalhistas para suprir a demanda
permanecer distantes na fábrica, seus
colegas ficam amontoados enquanto via-
jam para o trabalho e retornam, na tra-
seira de caminhões. Para alguns, a via-
gem pode levar horas.
O teste de Chhaeut deu positivo após
surto entre colegas em uma fábrica de
roupas em Kampong Chhnang, no cen-
tro do Camboja. Ele foi levado para uma
sala de isolamento para esperar pela am-
bulância que o levaria a um centro de qua-
rentena. Enquanto esperava, ligou para a
esposa, que chorou com a notícia. “Eu me
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 49
16/06/2021 15:35
 Nosso Mundo
preocupo com meus filhos. E se eles tes-
tarem positivo e forem tratados em outro
lugar? E se minha mulher testar positi-
vo? Quem vai cuidar dos nossos filhos?”
No dia seguinte, as autoridades colo-
caram cordas em volta de sua casa. Sua
mulher e os filhos foram instruídos a per-
manecer dentro da casa. Eles têm conta-
do com os vizinhos para deixarem comida
em sua porta. Ele não tem certeza se rece-
berá o salário integral neste mês.
Para muitos, as consequências econô-
micas do vírus são mais temidas do que
a própria doença. “Em parte, isso ocor-
re porque o Camboja não foi afetado pelo
vírus, em termos de saúde, no ano passa-
do, enquanto os efeitos econômicos foram
devastadores”, disse Patrick Lee, consul-
tor jurídico do grupo de defesa Central.
O Programa de Desenvolvimento
das Nações Unidas estima que a pobre-
za quase duplicará no país, devido à Co-
vid-19, atingindo 17,6% da população. O
setor de vestuário no Camboja entrou
em crise no início da pandemia, quan-
do as empresas cancelaram pedidos
abruptamente. Mais de cem fábricas fo-
ram fechadas no ano passado e mais de
400 outras suspenderam o trabalho,
Atraso. O acesso à vacina em vários países da região é limitado e desigual
50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCNossoMundoObserver1162-OK.indd 50
Apenas 2,5%
da população
da Tailândia
está imunizada
completamente
muitas vezes por meses seguidos, diz Lee.
Uma pesquisa da Central sugere que
a suspensão dos pedidos atingiu o pico
em julho do ano passado, mas os negócios
começaram a se recuperar à medida que
as marcas ocidentais aumentaram suas
vendas online.
O recente surto no Camboja, que co-
meçou em abril e provocou um bloqueio
severo, causou mais perturbações e no-
vamente colocou mais pressão sobre os
mais pobres. A lei cambojana não exige
que as empresas paguem o salário inte-
gral durante o bloqueio. Segundo pesqui-
sa da Central com trabalhadores de 120
fábricas, poucas o fizeram.
Como os casos aumentaram em mui-
tos países da região, o acesso às vacinas é
limitado. O Camboja vacinou totalmente
quase 14% de sua população, muito mais
que vários de seus vizinhos, graças às suas
relações estreitas com a China, que forne-
ce grande parte de seus imunizantes. A
Tailândia iniciou a campanha de vacina-
ção apenas em 7 de junho e inoculou to-
talmente menos de 2,5% da população.
No entanto, existem preocupações com
a escassez de doses. O país conta princi-
palmente com a Siam Bioscience, uma em-
presa de propriedade do rei que nunca pro-
duziu vacinas para guarnecer seu supri-
mento do imunizante da AstraZeneca. A
empresa deve fornecer doses para outros
oito países da região, mas recentemente
foi confirmado que os pedidos para as Fi-
lipinas, Malásia e Taiwan vão atrasar.
Os ativistas pedem que os governos
garantam aos trabalhadores migrantes
igual acesso às vacinas, incluindo os sem
documentos ou que estão sem emprego.
Embora o governo tailandês recente-
mente tenha permitido que os migran-
tes se registrassem no departamento de
trabalho, independentemente de sua si-
tuação, o prazo para fazer isso foi muito
curto, diz Suthasinee.
Muitos se preocupam com penalida-
des, caso se apresentem e não tenham
os documentos corretos. Temores se-
melhantes percorrem os trabalhadores
migrantes na Malásia, cujas autoridades
ameaçaram realizar batidas durante o
bloqueio e que recentemente anunciou
a deportação de milhares de indonésios.
Chhuk disse que costumava discutir
a possibilidade de uma vacina com ami-
gos. “A prevenção (da Covid) é impossí-
vel por causa dos agrupamentos”, disse.
“Se conseguirmos tomar a vacina, fica-
remos menos preocupados, pois estare-
mos mais protegidos.” Porém, se ele te-
M A DA REE TOHL A L A /A FP
rá ou não acesso à imunização é uma in-
cógnita, pondera. •
*Os nomes dos trabalhadores
foram alterados, a pedido deles.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
16/06/2021 15:35
 JOSÉ SÓCRATES
A imagem externa do Brasil
► Pandemia, meio
ambiente, politização
da Justiça e interferência
das Forças Armadas...
Eis as maiores manchas
A
s coisas evoluem, um problema
é substituído por outro, mas se
hoje tivesse de escolher eu diria
que o maior problema na imagem inter-
nacional do Brasil é a luta contra a pan-
demia. Na verdade, vimos um pouco de
tudo no mundo e não podemos hones-
tamente dizer que o governo brasileiro
foi o único a desvalorizar a doença, o uso
de máscara ou o distanciamento social.
Outros o fizeram (com destaque eviden-
te para o anterior presidente dos EUA),
usando o mesmo argumento de defesa da
economia e do emprego. Todavia, o que
torna o caso do Brasil singular é que é o
único país no mundo onde o seu presi-
dente fez tudo o que podia para desacre-
ditar não o uso de máscara ou o distan-
ciamento social, mas a vacina. A vacina.
É preciso, talvez, alertar o leitor bra-
sileiro de que o discurso presidencial so-
bre os possíveis efeitos indesejáveis das
vacinas, como pôr homens a “falar fini-
nho” ou cidadãos a “virar jacaré”, não é
visto pela comunidade internacional
como anedota, mas como problema sério
quando a prioridade mundial é vacinar
urgentemente toda a gente. Visto de
fora, parece que o Brasil se está a vacinar
contra a vontade do seu presidente. Para
usar a bela expressão do filósofo Vladimir
Safatle, o que vemos no Brasil é “a morte
sem lágrimas”. O aspecto mais trágico da
pandemia é o governo que se recusa a fa-
B A P T I S TÃ O
zer o luto dos seus mortos.
Depois, se tivesse que identificar um
F•CCSócrates1162.indd 51
segundo problema, eu apontaria o aqueci-
mento global. A principal razão da minha
opção é esta – há muito que esta questão
deixou de ser vista como política setorial
para representar hoje uma questão
de segurança internacional. É assim
que é vista na Europa e, felizmente, é
também assim que é agora vista pela
administração norte-americana. A des-
valorização política da conservação da
natureza no Brasil e o progressivo des-
mantelamento das instituições de pro-
teção ambiental são considerados pela
comunidade internacional séria ameaça
à biodiversidade e à proteção da Floresta
Amazônica. O recente episódio do envol-
vimento do ministro do Meio Ambiente
numa investigação policial de contraban-
do de madeira expôs perante as institui-
ções internacionais a vontade do governo
brasileiro de prosseguir uma agenda polí-
tica que considera as proteções ambien-
tais como entraves burocráticos ao desen-
volvimento. Ao contrário do que pensam
os governantes brasileiros, há muita gente
no mundo atenta à “passagem da boiada”.
Para terceiro problema escolho aquele
que foi o primeiro, a ideia consolidada na
comunidade internacional de que o apa-
relho judicial brasileiro é utilizado para
fins políticos. E talvez seja bom não con-
fundir as coisas. A política brasileira tem
uma cultura muito entranhada de recur-
so à Justiça para resolver as suas divergên-
cias políticas. Esse caminho é ruim por di-
versas razões que agora não vêm ao caso.
Mas do que estamos aqui a falar é de ou-
tras coisas: é de golpadas políticas, da uti-
lização da prisão como arma contra o ad-
versário, do uso do inquérito judicial e do
vazamento como instrumento político
que o costume tem normalizado. O gol-
pe parlamentar que afastou a presidente
Dilma Rousseff e a prisão do presidente
Lula lançaram um anátema de suspei-
ção sobre as instituições judiciárias que
custou caro à sua reputação internacional.
Finalmente, seleciono o problema
que para muitos dos meus amigos brasi-
leiros é hoje o primeiro e mais importan-
te, a participação de militares na políti-
ca. Esse comportamento foi um erro trá-
gico. Um erro para a democracia, eviden-
temente, mas um erro que terá como pri-
meira vítima o próprio Exército. Ao deci-
dir tomar partido nas questões políticas,
as Forças Armadas deixam de ser de to-
dos para serem de alguns – e contra os ou-
tros. Vejo aí muitos cidadãos preocupados
com golpes militares e vejo outros a so-
nharem com eles. Pois bem, o meu pon-
to de vista é muito otimista a esse respei-
to: o mundo não permitiria. O uso da for-
ça para tomar o poder político conduzi-
ria a um isolamento absolutamente insus-
tentável para o Brasil. Compreendo muito
bem a preocupação de quem viveu os hor-
rores da ditadura e de quem assiste de no-
vo a um ato consentido de insubordinação
por parte de um general que abertamen-
te descumpre as normas e os regulamen-
tos democráticos. Todavia, o que vejo no
episódio, sinceramente, é apenas a ruína a
que chegou a imagem do Exército e do go-
verno, os quais brincam com coisas sérias
até ao dia em que deixarão de ser levados a
sério. Os mais maquiavélicos são frequen-
temente os mais ingênuos.
Eis, portanto, o meu ponto. A principal
caraterística da política externa brasileira
é que seus problemas são, no essencial, de
política interna. Há outros, claro, intrin-
secamente diplomáticos e que têm a ver
com escolhas e alinhamentos políticos.
Mas os principais problemas que afligem
hoje a reputação do Brasil no palco inter-
nacional são de política interna – e, esses,
cabe ao povo brasileiro resolvê-los. •
redacao@cartacapital.com.br
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 51
16/06/2021 15:44
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ANUNCIOS.indd 5 17/06/2021 12:39

 Plural
“A mãe daquele garoto devia ter se
perguntado por que ele não tinha JOH N V E RC H E R
voltado, por que a polícia apareceu (Em À Cor da Pele, Trama)

na sua porta no meio da noite”

O Homem e a Luta
Uma biografia revê os conflitos do autor de
ILUSTRAÇÃO: PIL AR VELLOSO

Os Sertões diante do massacre em Canudos

e da exploração de indígenas na Amazônia
POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 53

F•CCPluralAbre1162-OK.indd 53 16/06/2021 15:38

 Plural
N
uma carta enviada a um cor-
respondente uruguaio em
1908, o escritor, jornalista,
engenheiro e militar flumi-
nense Euclides da Cunha
fez uma avaliação impiedosa sobre a pró-
pria obra literária, tratando Os Sertões
(1902) como “aquele livro bárbaro de mi-
nha mocidade, monstruoso poema de bru-
talidade e de força”. Gracejou com certo
amargor sobre o lugar que livro e autor po-
deriam vir a ocupar na história: “(Os Ser-
tões) é o primogênito do meu espírito, e há
críticos atrevidos que afirmam ser o meu
único livro… Será verdade? Repugna-me,
entretanto, admitir que tenha chegado a
um ponto culminante, restando o resto da
vida para descê-lo”. Ele tinha então 42
anos e se via emparedado pelo desafio de
construir o sucessor do “primogênito”, o
épico nordestino sobre a Guerra de Canu-
dos (1896-1897) que apresentou com gran-
de sucesso aos 36 anos.
O próximo livro se chamaria Um Paraí-
so Perdido, em comunicação íntima com
Paraíso Perdido, poema épico de guer-
ra entre céu e inferno publicado em 1667
pelo inglês John Milton. Trataria de mais
um sertão brasileiro, dessa vez o “deser-
to verde” chamado Amazônia. Na recém-
-lançada Euclides da Cunha – Uma Biogra-
fia, o cientista político, historiador e di-
plomata carioca Luís Cláudio Villafañe G.
Santos lança luz sobre Euclides para além
de Os Sertões e especula sobre o que viria a
seguir, por intermédio do esboço deixado
em À Margem da História, livro lançado
em 1909 (quando o autor havia sido morto
numa refrega passional) e hoje desconhe-
cido, ao contrário do célebre Os Sertões.
Villafañe retrata Euclides como escri-
tor em conflito e em progresso, a desco-
brir o sentido da própria obra à medida
que a erguia. Os Sertões nascera da co-
bertura jornalística de 15 dias na fren-
te de batalha em Canudos (BA), para O
Estado de S. Paulo. O jornal alinhava-se
54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCPluralAbre1162-OK.indd 54
a Prudente de Morais, primeiro presi-
dente civil da nascente República brasi-
leira, e nesse contexto Euclides ajudou
a construir a imagem dos sertanejos li-
derados por Antônio Conselheiro em
Canudos (ou melhor, no arraial de Belo
Monte, fundado por eles) como um ban-
do de jagunços e fanáticos religiosos em-
penhados na restauração da monarquia
no País. As artimanhas políticas conver-
tiam em guerra o extermínio de 20 mil a
25 mil nordestinos em nome da preser-
vação da República, mortandade menor
apenas que as provocadas pela Revolu-
ção Farroupilha (50 mil brasileiros mor-
tos) e pela Guerra do Paraguai (100 mil).
Cinco anos depois do fim da “guerra”,
Os Sertões corrigia a rota inicial do Eu-
clides jornalista, conferindo ares de de-
núncia ao extermínio de cidadãos po-
bres e mestiços de portugueses e indíge-
nas (mas também de afro-brasileiros, co-
mo a história demonstraria mais tarde).
“Os Sertões serviu de catarse, de instru-
mento para superar um mal-estar coleti-
vo”, escreve o biógrafo. Mas estava ainda
a meio de caminho a transformação do
autor, que no livro classifica Conselheiro
como “monstruoso”, “autômato”, “bron- decapitado pelas forças militares republi-
co” e “grande homem pelo avesso”, en- canas em comemoração da vitória.
tre abundantes adjetivos depreciativos. Euclides costumava referir-se a si
Sem provas de que o líder religioso de Be- mesmo como “caboclo” ou “bugre”, mas
lo Monte fosse pregador da monarquia ou nem por isso foi menos implacável com
do apocalipse, a historiografia posterior o povo mestiço de Canudos, documenta-
desmontaria o retrato pintado por Eucli- do n’Os Sertões como “raça inferior”. O
des. Morto por causas naturais durante a biógrafo observa que a hoje onipresente
“guerra”, Conselheiro foi desenterrado e formulação “o sertanejo é, antes de tudo,
um forte” continua na sempre esquecida
afirmação de que “não costuma ter o ra-
quitismo exaustivo dos mestiços neuras-
tênicos do litoral”.
Em 1904, o escritor seria enviado co-
Em Um Paraíso
mo primeiro comissário em expedição
Perdido, Euclides fluvial amazônica, na tarefa conflituosa
abordaria o sertão da demarcação brasileiro-peruana das
verde da Amazônia terras do atual Acre. Villafañe deixa
16/06/2021 15:38

entender que o póstumo À Margem da
História, editado originalmente em Por-
tugal, esboçava o desenvolvimento inte-
lectual de Euclides, nos escritos denomi-
nados Terra sem História (Amazônia). Ali,
Euclides denuncia o esquema de escra-
vidão por dívida adotado pelos senhores
da borracha amazônica. Haveria ainda o
texto Brutalidade Antiga, sobre a escravi-
zação e a matança de indígenas promovi-
das pelos colonizadores portugueses na
Amazônia. Segundo o biógrafo, a editora
portuguesa teria censurado esse capítu-
lo, e o manuscrito nunca foi recuperado.
Na ausência de Euclides, Ana Emí-
lia, sua esposa desde 1890, desenvolvera
uma relação amorosa com o aspirante a
F•CCPluralAbre1162-OK.indd 55
À esq., mulheres e crianças
aprisionadas pelo Exército em
Canudos, na Bahia, em 1897; acima,
Euclides da Cunha, que publicou
Os Sertões em 1902, aos 36 anos
que o marido “não era mais do que um
apaixonado pela sua reputação”.
A cobertura do escândalo passional se
sobrepôs a À Margem da História. O bió-
grafo observa que as denúncias em pro-
gresso sobre a Amazônia não tiveram
qualquer repercussão, em contraponto
com o clamor provocado pela exposição
do consumado massacre de Canudos. É
impossível especular que rumo tomaria
militar Dilermando de Assis, então ado- Um Paraíso Perdido, mas é fato que, em
lescente, e estava grávida de três meses Canudos ou no Acre, Euclides estivera
quando o marido retornou. Segundo o frente a frente com projetos genocidas
biógrafo, Euclides descreveu a crian- que constituíam o Brasil desde a escra-
ça, morta aos 7 dias de vida, como “um vização e continuam até hoje a constituí-
monstro, filho daquele monstro que -lo, invariavelmente sem qualquer puni-
traiu-me”. Mas o casamento prosseguiu, ção para os exterminadores. No forte ca-
e Ana engravidou mais uma vez, em 1907. pítulo de encerramento de sua crítica bio-
Sobre o bebê, disse Euclides: “É louro. Os grafia, Villafañe constrói paralelos entre
outros são morenos, caboclos como eu. projetos genocidas impunes de ontem e
(...) A mim ele causa a impressão de um de hoje, com sutileza e sem mencionar o
pé de milho num cafezal”. O termo. Não é demais lem-
romance com Dilermando EUCLIDES DA brar que a Covid-19 viti-
prosseguia, e o desenlace só CUNHA – UMA mou mais que o dobro de
aconteceu em 1909, quan- BIOGRAFIA. brasileiros mortos na Guer-
do Euclides tentou matar o De Luís Cláudio Villafañe ra do Paraguai, na Revolu-
rival a tiros e foi morto por G. Santos. Todavia, ção Farroupilha e na Guer-
432 págs., 90 reais.
ele. À polícia, Ana afirmou ra de Canudos, somados. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 55
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 Plural / Recomenda

QUA DR INHOS

Guernica
dos porões
O ROMANCE GRÁFICO DE ÁNGEL
DE LA CALLE JUSTAPÕE OS
QUESTIONAMENTOS DA ARTE
SOB REGIMES VIOLENTÍSSIMOS
A ATIVISMOS DE TODA SORTE

S
e o leitor aprova (perdão pela ou-
sadia), mesmo que indiretamen-
te (pelo voto, por exemplo), a tor-
tura, é imprescindível que leia ao menos
as 34 primeiras páginas do romance grá-
fico Pinturas de Guerra, do quadrinista
espanhol Ángel de la Calle, obra parcial-
mente bancada pela Fundação Rosa Lu-
xemburgo. Não é apenas um sentimen-
to de profunda rejeição a esse recurso in-
fame dos governos autoritários que vai
brotar de sua consciência, mas um mal-
-estar análogo a uma crise de labirinti-
te ou algo parecido.
epicentro de toda a história é a tentati- O trabalho do espanhol tem o
poder de provocar um mal-estar
A vida platonicamente burguesa sob o va de um alter ego do autor em escrever
análogo a uma crise de labirintite
regime pinochetista é o tema do primeiro a história da atriz estadunidense Jean
capítulo. De la Calle imaginou uma reu- Seberg (1938-1979) em uma tempora-
nião de ricaços numa mansão misterio- da em Paris. Em sua peregrinação, como emprestadas, desenrola-se a sarcástica
sa, com os agregados de sempre: críticos no filme Paris à Meia-Noite, de Woody viagem de De La Calle pelas fronteiras
de arte, excêntricos de vernissages. Um Allen, as interlocuções se dão com artis- entre o ativismo artístico e o político, en-
jovem crítico é levado por seu publisher tas de diversos quadrantes num ambien- tre a barbárie dos regimes sanguinários
ao encontro. A partir daí, o autor imagi- te febril de debate e postulações artísti- da América Latina e a busca desespera-
na o que aconteceria se, de forma análo- cas. “Jean Seberg? Sim, a conheci. Andava da pela independência e pela honestida-
ga ao que se sucede no clássico livro de com James Baldwin, o escritor americano. de de uma linguagem cultural. Guernica
Bram Stoker sobre Drácula, o convidado Depois se casou com o molenga do Romain em quadrinhos, Pinturas de Guerra en-
se desgarrasse por um momento da mun- Gary. Dizem que o FBI a matou. Era sedu- caixa-se numa dolorosa tradição nar-
danidade bem servida do piso de cima e tora e bela. Bebia quase tanto quanto eu… rativa da vergonhosa chaga antidemo-
se embrenhasse por acidente nos porões Como se fosse possível”, diz crática do mundo, ao lado,
da mansão que paira confortável na sua ao rapaz a primeira testemu- PINTURAS DE
por exemplo, de A Morte e a
bolha da isenção política. nha que encontra, o escritor GUERRA. Donzela, de Ariel Dorfman.
O efeito da HQ de De la Calle pro- Guy Debord, de A Sociedade O prefácio é do biógrafo de
REDES SOCIAIS

Ángel de la Calle.
vém de um absoluto talento de escritor, do Espetáculo. Tradução de Andréa Che Guevara e Pancho Villa,
Bruno, Editora Veneta,
mas não convém esquecer da arte, pri- Nessa espécie de tertú- 312 págs., 65 reais.
o espanhol Paco Ignacio
morosa em sua modéstia hachurada. O lia viva entre mitologias Taibo II. - Jotabê Medeiros

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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 CINEMA
TODOS CONTRA TODOS
TRAÍDOS PELA GUERRA ENCENA A ENTREGA DE JUDEUS
NORUEGUESES AOS NAZISTAS, POR SEU PRÓPRIO GOVERNO
O
pano de fundo é duro: em 1942,
o exército alemão ocupa a No-
ruega e, com cumplicidade e
cooperação do governo desse país, pas-
sa a prender em massa os judeus locais,
que acreditavam estar protegidos do
nazismo. Traídos pela Guerra, do no-
rueguês Eirik Svensson, conta essa his-
tória sob a perspectiva da família do bo-
xeador Charles Braude (Jakob Oftebro),
judeu e casado com uma não judia, a
partir de fatos e personagens reais.
O filme acompanha a escalada de
terror que varre a vida dos Braude, con-
forme são presos os homens judeus,
são confiscados os bens e proprieda-
des das famílias, enfim, são levadas
as mulheres e crianças. O tratamento
cinematográfico tende ao
soturno e ao convencional, TRAÍDOS PELA
mas a história contada é GUERRA.
dilacerante, desde o clima De Eirik Svensson.
de desconfiança e traição Noruega, 2020, 126
min. Nas plataformas
entre noruegueses (dos digitais.
governantes e policiais aos
Charles Braude
(Jakob Oftebro)
despede-se
dos irmãos
F•CCPluralRecomenda1162-OK.indd 57
vizinhos de rua) até as consequências
irreparáveis. O título em português,
desastroso (não foi a guerra que os
traiu), vem da versão em inglês, apenas
Traídos. Se fosse fiel ao original, o filme
se chamaria O Crime Maior, bem mais
direto ao ponto.
Em termos históricos, o episódio re-
sultou no embarque de 773 cidadãos
no navio SS Donau, em Oslo, rumo ao
campo de concentração de Auschwitz,
ao qual apenas 38 deles sobreviveram.
A retomada da história e a reflexão so-
bre até onde a crueldade humana pode
chegar são cruciais sempre, mesmo
que a volta cinematográfica
permanente à atmosfera de Auschwitz
adquira incômodos contornos maso-
quistas (e/ou sádicos). O
desconforto nasce tam-
bém, provavelmente, da
proximidade histórica en-
tre o mundo há quase cem
anos e os dias de agora.
- Pedro Alexandre Sanches
LIVRO
AS CARTAS SOCIOLÓGICAS
Correspondência Intelectual.
De Celso Furtado. Companhia das Letras,
2021, 440 págs., 100 reais.
Organizado por Rosa Freire d’Aguiar,
viúva do economista Celso Furtado,
Correspondência Intelectual é um com-
pilado de quase 300 cartas trocadas por
ele com mais de 80 interlocutores en-
tre 1949 e 2004. Professor e pesquisa-
dor que precisou deixar o País, persegui-
do pelo Estado autoritário, Furtado foi um
dos grandes intelectuais brasileiros, que
registrou, em mais de 15 mil cartas, seu
pensamento sobre o desenvolvimento do
Brasil e da América Latina.
Para Furtado, criador da
Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene), o Brasil só seria viá-
vel com a participação maior do Estado na
economia. Mesmo a distância, em várias
temporadas que viveu fora do País, ele re-
fletia sobre o “profundo anacronismo das
estruturas sociais”, como confidenciou a
Darcy Ribeiro, em 1970.
Ao também economista Roberto
Campos, em 1958, queixava-se da fal-
ta de “um verdadeiro plano a longo prazo
objetivando incorporar o Nordeste à eco-
nomia brasileira”. Em 1981, ele continua-
va a ver no imobilismo social secular bra-
sileiro, uma questão de difícil superação,
como escreveu ao sociólogo Florestan
Fernandes: “O maior problema que temos
a enfrentar no futuro é, certamente, o de
trazer a classe média para a realidade da
pobreza do País. Sei que isso é politica-
mente difícil ou custoso”.
Furtado correspondeu-se ainda com
nomes como Antonio Candido, Bertrand
Russell, Caio Prado Jr., Fernando
Henrique Cardoso, Hélio Jaguaribe, Lina
Bo Bardi e Luiz Inácio Lula da Silva. - EN
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 57
17/06/2021 09:50
 Plural / Recomenda

F E S T I VA L

O UNDERGROUND
EM FESTA
O 13º IN-EDIT BRASIL PRIVILEGIA
A MÚSICA EXPERIMENTAL
COM DOCUMENTÁRIOS
SOBRE ALZIRA E,
LUIZ MELODIA E MOBY

O
imaginário underground dá
forma à 13a edição do In-Edit
Brasil – Festival Internacional
do Documentário Musical, a partir do
delicado filme Aquilo Que Eu Nunca Per-
di, de Marina Thomé, que fica em car-
taz online e gratuito até o final do even-
to, no dia 27. Aquilo Que Nunca Perdi é
centrado na figura dissidente de Alzira
E, compositora e cantora sul-matogros-
sense umbilicalmente ligada à chamada
vanguarda paulista dos anos 1980.
Embora em geral ainda menos per-
cebida que o parceiro rebelde Itamar
Assumpção, Alzira expõe-se durante
84 minutos como alma gêmea artística
do compositor morto em 2003, inclusi-
ve nas ideias e frases afiadas, de gran-
de originalidade. “Não gosto de sonhar.
A diretora apresenta aos poucos os
preciosos pares musicais de Alzira, co-
mo Luhli e Lucina, Ney Matogrosso, a
irmã Tetê e toda a família Espíndola,
Almir Sater, Itamar, Arrigo Barnabé,
Anelis Assumpção, Alice Ruiz, Tiganá
Santana, a filha também compositora
Iara Rennó, Renato Teixeira, Benjamim
Taubkin…, e as potentes intervenções
musicais a confirmam como a mais ra-
dical e experimental entre todos eles.
Igualmente plurais, os cenários se al-
ternam entre palcos, circos, entrevis-
tas de tevê, São Paulo e, especialmen-
te, o Pantanal, onde a artista relem-
bra um episódio de agressão masculina
que acabou na delegacia, em 1984, “sem
Maria da Penha”.
Paulo César Pinheiro, Yamandú Costa,
o rapper Speedfreaks, o grupo setentista
Made in Brazil, a banda hardcore Gritan-
do HC e uma visita à música maranhen-
se guiada pelo conterrâneo Zeca Baleiro.
Na seara internacional, a toada é
parecida e variada, com filmes sobre
hip-hop, o pioneiro eletrônico Moby
(Moby Doc), as anárquicas roqueiras
Suzy Quatro e Poly Styrene e o grupo
pop feminino The Go-Go’s, mais fil-
mes sobre artistas e movimentos musi-
cais de países como Congo (The Rumba
Kings), Gana, Uganda, Chile, Filipinas,
Dinamarca e Finlândia. O documenta-
rista norte-americano D.A. Pennebaker
é o homenageado desta edição, com
a exibição dos históricos Don’t Look Ba-
ck (1967), sobre Bob Dylan, e Monterey
REDES SOCIAIS E IRMÃOS LEME

Para mim, todo sonho é pesadelo. Não O olhar do In-Edit sobre a música Pop (1968), além de curtas-metragens
gosto de saber dos sonhos dos outros”, brasileira mais sobre Little Richard
ela dispara logo no início. “Eu adoro underground expande- 13º IN-EDIT BRASIL.
e Alice Cooper.
matemática, para mim tudo é matemá- -se por documentários Os filmes do Panora-
Até 27 de junho, programação
tica”, afirma adiante, ao equiparar mú- sobre João Ricardo virtual, em www.in-edit-brasil.com.br ma Mundial poderão
sica e matemática. “Eu sempre fui in- (a parte perdedora da e nas plataformas Sesc Digital ser vistos online pelo
e Tamanduá. Grátis e 3 reais
quilina, já paguei muito aluguel”, cons- aventura Secos & Mo- (programa Panorama Mundial). valor simbólico
tata, aos 64 anos. lhados), Luiz Melodia, de 3 reais. - PAS

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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 TEATRO

DIÁLOGOS CORTANTES
SÉRIE DE DEZ MONÓLOGOS CURTOS ABORDA DIFERENTES
HISTÓRIAS GERACIONAIS DE MULHERES E HOMENS

C
enas curtas com personagens distin-
tos, não relacionados entre si e de di-
ferentes gerações. Mais exatamente
com mulheres e homens de 60 anos (Angela
Vieira e Leopoldo Pacheco), 50 (Denise
Fraga e Eucir de Souza), 40 (Pathy Dejesus e
Bruno Mazzeo), 30 (Chandelly Braz e Ícaro
Silva) e 20 (Luisa Arraes e Johnny Massaro).
Os monólogos de Dez por Dez, originalmente
escritos pelo cineasta e dramaturgo norte-
-americano Neil Labute, são uma viagem ex-
ploratória sobre as relações humanas.
De temas banais ao amor e à luxúria, do
sentido da vida ao encontro
anos e é homem? Ícaro Silva relata o inusita-
do voo ao lado de má companhia de poltro-
na, mas com quem ele devaneia ter uma re-
lação amorosa. É mulher? Chandelly Braz
narra com intrigante distanciamento a mor-
te de uma amiga que estava digitando pelo
celular para o namorado, enquanto dirigia.
As pequenas histórias imaginadas por
Labute são marcadas por diálogos ágeis, irô-
nicos, cortantes, às vezes hiper-realistas.
A personagem de Denise Fraga passou dos
50 anos e está cansada de sua vida solitária, AS PONTES CARDÍACAS
como “muita gente por aí” ou “alguém que Capô. De Georgette Fadel.
não tem mais idade, nem sexo, sem utilida- No site capo.art.br.

fortuito, as histórias de Dez por Dez são de”. Bruno Mazzeo relata como um estúpido A atriz e diretora Georgette
contadas por personagens em diferentes erro, por se sentir “invencível, imortal, fo- Fadel é um reconhecido nome
estágios e momentos. Os últimos episódios dão”, fez com que ele, aos 44 anos, das artes cênicas brasileiras, e
da série subiram ao ar na semana passada no tivesse de deixar tudo para trás. agora se embrenha como dra-
maturga em Capô. Intitulada
site do Teatro Unimed e permanecem Dez por Dez é composto de esquetes de
peça-site, que pode ser aces-
em cartaz até 11 de julho. dez minutos de duração, baseados na sé- sada em capo.art.br, a mon-
Agora, com a série na íntegra, pode-se es- rie Ten by Ten. Além dos monólogos, pou- tagem é uma obra audiovisual
colher a ordem de exibição. Tem 30 e poucos co alterados na versão brasileira, as grava- que, neste formato, dificilmen-
ções foram feitas no mes- te poderia subir aos palcos
e tampouco se enquadra
mo esquema de atores in-
numa típica narrativa roteiriza-
terpretando diretamen- da de cinema. Isso é algo
te para a câmera, sem cor- bom, porque fez Georgette
tes ou edições, e em tem- conceber um trabalho
po real. Os Irmãos Le- original, lírico e denso.
Capô usa a metáfora do
me, a dupla formada pelo
coração, que pulsa em todos
ator Guilherme e pelo ci- nós, para mostrar os difíceis
neasta Gustavo, mantive- caminhos para as três úni-
Denise Fraga ram também a concepção cas mulheres sobreviventes
representa de uma guerra que destruiu
a faixa etária
de cenário, com fotografia
o mundo. As cenas parecem
dos 50 anos em preto e branco
adotar o canovaccio, técni-
e câmeras paradas. ca em que as atrizes (Laura
- Eduardo Nunomura Fajngold, Luciana Fróes e
Sarah Lessa) conhecem a
trama da peça, o seu desen-
DEZ POR DEZ. volvimento e a, partir daí,
De Neil Labute. No site
partem para a improvisação.
do Teatro Unimed, No site, o público poderá co-
até 11 de julho. Grátis. nhecer como foi construído o
espetáculo. - EN

C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 59

F•CCPluralRecomenda1162-OK.indd 59 17/06/2021 09:50

 Plural / Recomenda
MÚSICA
RAUL DE SOUZA, TROMBONISTA
INSTRUMENTISTA REVOLUCIONÁRIO, O MÚSICO CARIOCA QUE
AMPLIOU A LINGUAGEM DO SAMBA E DO JAZZ MORRE EM PARIS
H
á uma combustão entre liris-
mo e groove (pelo senso de
abertura jazzística e o desblo-
queio dos cânones do samba) assom-
brosamente inovadora em À Vontade
Mesmo, a canção mais concêntrica do
compositor, saxofonista e trombonis-
ta Raul de Souza, abertura do seu disco
homônimo, gravado em 1965 pela RCA
(quando ainda assinava Raulzinho).
A grande janela que o músico carioca
abria ali para o mundo era ainda mais
arregimentadora do que a que artis-
tas importantes do período, como, por
exemplo, Dizzy Gillespie, promoveriam
60 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCPluralRecomenda1162-OK.indd 60
Ele tocou com meio
mundo, de Sarah
Vaughan a Gilberto Gil
rumo ao “jazz latino”, as aproximações
com o som afro-cubano ou a bossa nova.
Formado nas rebarbas da Turma
da Pilantragem, da gafieira e do sam-
balanço, parceiro de Ed Lincoln e ou-
tros bambas do ritmo do início dos anos
1960 (embora tivesse muita cancha des-
de meados dos anos 1950), Raul de Sou-
za internacionalizou o seu trombone a
partir de uma turnê e um disco com Sér-
gio Mendes, em 1963. Ao lado de Airto
Moreira, de 1973 em diante, iniciou um
longevo e sólido trabalho de expatriado
afirmando a excelência da música brasi-
leira em terras estrangeiras, missão que
levou adiante até o domingo 13, quan-
do morreu em Paris das decorrências de
um câncer na garganta, aos 86 anos.
Entre sua primeira partida e inú-
meros retornos, Souza tocou com meio
mundo: dos saxofonistas Sonny Rollins
e Cannonball Adderley às cantoras
Sarah Vaughan, Maria Bethânia e Flora
Purim, do baterista Jack DeJohnette e
o também trombonista Frank Rosolino
ao tecladista Chick Corea, aos cantores
Roberto Carlos e Gilberto Gil e ao som
visionário do Azymuth e à maestria de
Tom Jobim. Nas osmoses que a música
em movimento proporcionou, ele incor-
porou o funk norte-americano também
ao seu registro, noutra fusão inovadora.
Também ampliou as possibilidades
do seu instrumento ao criar um tipo
original de trombone, devidamente pa-
tenteado, o Souzabone, que descreveu
como “um trombone em dó de quatro
pistões, com dois gatilhos de correção
de afinação e um registro para mudan-
ça de tessitura para notas mais graves;
tem ainda um captador eletrônico e pe-
dais que permitem vários efeitos, como
wah wah, delay, chorus e oitavador”.
Raul de Souza gravou seu primeiro
disco em 1957, com Altamiro Carrilho e
a Turma da Gafieira (que contava, entre
outros, com Baden Powell, Edison Ma-
chado e Sivuca). Mas, vendo as dificul-
dades da profissão de instrumentista,
alistou-se na Força Aérea Brasileira, em
Curitiba, tentando ser sargento, mas
não conseguiu e desistiu.
Filho de pastor evangélico, seu no-
me de batismo era João José Pereira de
Souza, nativo de Bangu, em 1934. O no-
me artístico de Raul de Souza lhe foi
F E S T I VA L D E J A Z Z D O C A PÃ O
dado no programa de calouros de Ary
Barroso, pelo próprio Ary. Em 2019,
ele lançou pelo selo Sesc o disco Blue
Voyage. Em 2021, com a aposentadoria
anunciada, voltou a campo e, em maio,
lançou Plenitude, com 16 faixas.
- Jotabê Medeiros
17/06/2021 09:50
 MARIA FLOR
Reflexões sobre a morte
► Foi meu avô que contou
a história do presidente
que "saiu da vida para
entrar na história". O
que vovô diria de quem
entrará na história por
deixar o povo morrer?
Q
uando eu tinha 7 anos, meu avô
paterno me levava para passear
no Palácio do Catete. Gostava de
caminhar pelos jardins, ver os
gansos e patos nos lagos, comer pipoca
na saída. Um dia eu tive, sem muita
explicação, interesse pelo palácio em si.
Não era algo que me havia ocorrido an-
tes. Preferia correr pelo imenso gramado
e me esconder do meu avô em uma gruta,
na lateral do prédio. Mas, naquele dia, me
deparei com a entrada principal, as esca-
das, o tapete vermelho que as cobria, as
estátuas que pareciam pássaros enormes
com asas abertas. Pela primeira vez
reconheci a existência daquele edifício.
Perguntei ao meu avô quem morava
ali. Alguma princesa? Uma rainha? Ele
me contou que os presidentes do Brasil
tinham morado naquele endereço antes
de existir outro lugar, construído mais tar-
de: Brasília. E nessa cidade os presidentes
passaram a morar em outro palácio, o da
Alvorada. Achei tudo muito estranho. Por
que presidentes precisavam de palácios?
Por que construir uma cidade inteira só
para colocar presidentes?
Ele não soube responder, mas disse que
podíamos entrar no Palácio do Catete,
aberto para visitação. Achei bonito. As
B A P T I S TÃ O
paredes e os tetos eram pintados com
imagens de anjos, homens e mulheres,
F•CCMariaFlor1162.indd 61
lustres dourados. O mobiliário original
estava conservado e, entre um andar e
outro, nos deparamos com um quarto.
Nele, havia uma cama feita e um pijama.
Achei especialmente esquisito haver um
pijama em exposição. Então, meu avô me
contou a história de Getúlio Vargas, pre-
sidente e ditador brasileiro que cometeu
suicídio em 1954.
O suicídio não era novidade para mim.
Meu próprio avô, por parte de mãe, tinha
se matado quanto ela ainda era uma meni-
na e eu tinha acabado de saber da história.
A carta de despedida deixada por
Vargas estava emoldurada e podia ser li-
da. Minha capacidade de leitura era bem
primária, mas meu avô me ajudou e che-
gamos ao final trágico. “Saio da vida para
entrar na história”.
Fiquei intrigada e as perguntas ficaram
intensas nas semanas seguintes. Por que
ele tinha de se matar para entrar na histó-
ria? Se a gente se matar, entra na história?
Por que o pai da minha mãe se matou? Ele
era presidente? Eu também posso ser? Se
eu for, vou querer me matar? Alguma me-
nina ocupou esse cargo?
Meu avô não entendia a obsessão
com a morte e a ligação com o presidente.
Arrependeu-se de ter contado a história
de Vargas e me levado ao Catete, que vi-
rou o meu programa preferido. “Vamos
vovô, eu quero ver o pijama do presidente
que se matou.” Meus pais chegaram a pen-
sar em me levar ao psicólogo, mas desisti-
ram. A descoberta da existência da morte
faz parte da vida.
Nessa época, o presidente do Brasil
era Fernando Collor de Mello, e logo após
saber da história de Vargas a poupan-
ça do meu avô foi congelada pelo gover-
no. Diante dessa crise, perguntei: “Vovô,
ele também vai se matar?” Collor não se
matou, foi impichado e entrou para a his-
tória como o presidente que confiscou a
poupança da população.
Meu avô morreu antes do início da pan-
demia, no Carnaval de 2020, antes de to-
da a tormenta começar. Estamos em 2021
e o presidente é Jair Messias Bolsonaro. O
Brasil aproxima-se da marca de 500 mil
mortes por Covid-19. A televisão anuncia
o total de óbitos todas as noites, os jor-
nais estampam os números pela manhã.
A morte está mais presente do que nunca.
Meu enteado de 7 anos me disse outro
dia que gostaria de se mudar para qual-
quer lugar onde não houvesse nem Covid
nem o Bolsonaro. Ele não quer morrer
nem ver o presidente deixar as pessoas
morrerem. “Odeio ele”, esbravejou, sen-
tado no chão da cozinha, enquanto eu es-
quentava o pão de queijo. Um dia, o pai
atrasou-se para o almoço e eu me preo-
cupei. “Bem-vinda ao meu mundo”, dis-
se. “Agora você sabe como é estar sempre
achando que as pessoas vão morrer.”
Fico triste por uma criança tão pequena
estar com tanto medo da morte. Fico ain-
da mais triste por saber que essa é a rea-
lidade de muitas crianças, seja por terem
perdido entes queridos para a Covid, se-
ja por ver seus pais acompanharem com
desespero os números diários de mortes
no País. Ou ainda por viverem em comu-
nidades onde a violência é regra e a amea-
ça de morte, constante.
A morte não é mais uma descoberta, ela
é a ordem do dia. Se meu avô estivesse vivo
e eu pudesse sentar ao seu lado na cadeira
de balanço, gostaria de perguntar o por-
quê de tudo isso. Por que ele deixou as pes-
soas morrerem sem ar, sem vacinas, sem
leito? Por que, vovô? E, talvez, ele respon-
deria: “Ele negligencia a vida para entrar
na história”. •
redacao@cartacapital.com.br
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 61
16/06/2021 15:31
 Plural
Salve o Roxy
MEMÓRIA Aos 82 anos, o cinema é o único
sobrevivente da época de ouro do Rio
P O R V I C TO R C A LC AG N O
N
a primeira vez que Lahire
Marinho foi ao Roxy, em
1954, para uma sessão ma-
tinal de desenhos e varie-
dades infantis, ainda cur-
sava o primário e engatinhava na paixão
por filmes que dura até hoje, aos 74 anos.
À época, Copacabana tinha uma varie-
dade de cinemas que incluíam o Ritz, o
Metro e o Rian, todos de frente para a
praia, na Avenida Atlântica. Marinho
frequentava todos eles. Não existiam
shopping centers e as salas de exibição es-
tavam na rua, em palácios enormes, com
única tela e capacidade superior a mil es-
pectadores. Passar por um desses pré-
dios e ver o que estava em cartaz era
mais que um convite ao roteiro exposto
na sinopse. “Comecei a notar que eu gos-
tava do ritual de ir ao cinema, e não só
de ver o filme”, revela.
Foi no Roxy que Marinho viu seu últi-
mo filme na telona, em março de 2020,
quando a pandemia de Coronavírus es-
tava prestes a decolar. De lá para cá, salas
em todo o País fecharam por questões sa-
nitárias, reabriram aos poucos, suspen-
deram as atividades outras vezes e, atu-
almente, estão em sua maioria de volta
com algumas restrições. O mesmo não
pode ser dito do Roxy, que, após uma tí-
mida reabertura em outubro, permane-
ce fechado desde novembro e sem atu-
alizações da administradora a que per-
tence, a rede de exibição Kinoplex. A
62 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCPluralCinema1162-OK.indd 62
situação e o histórico recente dos cine-
mas de rua no bairro, do qual o Roxy é
o último sobrevivente, fazem com que
Marinho desconfie que a última vez que
viu um filme em uma de suas três salas
também pode ser a última.
Apesar de a empresa não confirmar
nem desmentir, a perspectiva de que o
cinema está à venda é cada vez mais for-
te e mobiliza centenas de pessoas que
desejam salvá-lo. De acordo com no-
ta publicada pelo jornal O Globo, o pon-
to na esquina da Rua Bolívar com a Ave-
nida Nossa Senhora de Copacabana es-
taria sendo negociado por 30 milhões
de reais, ainda que o prédio seja tom-
bado. Construído no estilo art déco, em
setembro de 1938, com uma sala única
de balcão e plateia com capacidade
para 1,7 mil espectadores, os pilares, a
galeria, as escadarias, os corrimãos, os
pisos, as luminárias, a cúpula sobre as
salas de projeção e o tradicional letreiro
luminoso vermelho foram reconheci-
dos como patrimônio cultural do Rio de
Janeiro em 2003. O documento fala em
Iniciativa popular
tenta impedir o fim
da última sala de rua
de Copacabana
“marco referencial na cultura cinemato-
gráfica” e “marco da arquitetura e enge-
nharia moderna na cidade”.
“Mas o tombamento não diz respeito
ao uso”, lembra Talitha Ferraz, especia-
lista em história da exibição e professora
da ESPM e do programa de pós-gradua-
ção em Cinema da UFF. Caso os aspectos
especificados no documento sejam pre-
servados por um novo comprador, o Roxy
pode se tornar o que seus proprietários
acharem melhor, de farmácia a templo
religioso – destinos replicados em uma
série de outros cinemas vendidos pela ci-
dade. Foi esse o caso do Cine Carioca, na
Tijuca, inaugurado em 1941 e fechado em
2000, para dar lugar a uma unidade da
Igreja Universal do Reino de Deus.
Para evitar que o último cinema do
bairro desapareça, Ferraz, que faz par-
te do coletivo de apoio a salas de exibição
CineRua, criou o grupo “Salve o Roxy!”
em uma rede social. Em menos de uma
semana, 800 integrantes reuniram-se
na empreitada, que tenta pressionar o
governo e a empresa responsável para
a criação de alternativas para o Roxy. A
perda de um cinema de rua tão antigo, se-
gundo a professora, vai além da falta de
telas por perto e muda o perfil histórico
da região. “O Roxy tem um valor identi-
tário, arquitetônico e cultural que se li-
ga ao patrimônio simbólico e afetivo das
pessoas”, diz ela. “Nós, da sociedade ci-
vil, não podemos mandar em negócios
alheios, mas podemos tentar exigir uma
resposta ao que nos interessa.”
Uma das alternativas possíveis, aponta
a professora, é a obtenção do cinema pelo
poder público, caso do São Luiz, no Reci-
fe, ou sua transformação em polo cultu-
ral que abrigue outras atividades além da
exibição de filmes. Parcerias que envol-
vam empresas privadas e políticas públi-
cas também são possíveis, como é o caso
do atual Petra Belas Artes, originalmente
16/06/2021 15:42
 Cine Belas Artes, em São Paulo – fechado
em 2011, foi reaberto em 2014 após pres-
são popular. O grupo de Ferraz prepara
uma carta a ser enviada para diversas en-
tidades, além do prefeito do Rio, Eduar-
do Paes, e seus secretários de Cultura e
da Casa Civil. A professora planeja ain-
da uma megaprojeção na fachada do Roxy
para chamar atenção de quem passa pela
rua e gerar conteúdo para a campanha.
Um ofício ao prefeito também faz par-
te dos planos da Sociedade Amigos de
Copacabana, que em 2003 conseguiu ar-
ticular o tombamento do Roxy. Horácio
Magalhães, presidente da associação, re-
lata que a iniciativa surgiu, à época, após
conversas de que uma igreja estava inte-
KINOPLEX BRASIL
ressada em adquirir o prédio, rumores
que o tombamento ajudou a dispersar. O
plano agora é pressionar a prefeitura pa-
ra que o cinema seja incluído no cadastro
F•CCPluralCinema1162-OK.indd 63
de estabelecimentos notáveis do municí-
pio, o que poderia garantir que a ativida-
de do imóvel continuasse a ser a exibição
de filmes. “Sem o Roxy, ficaremos órfãos
de cultura no bairro.”
Dos velhos tempos Marinho lembra
bem de várias sessões que marcaram
sua vida, como a de 2001: Uma Odisseia
no Espaço, em julho de 1968. Equipado
com a tecnologia Cinerama, o Roxy ti-
nha na tela larga e curva, adaptada para
exibições em 70 milímetros, um dos seus
maiores chamarizes, o que rendia con-
fusões numa época sem cadeiras mar-
cadas. “As portas abriam e as pessoas se
jogavam para pegar os primeiros luga-
res”, lembra ele. “O 2001 foi um divisor de
águas, porque todos queriam ver o filme
na tela do Roxy, e era tanta gente que não
consegui assistir da primeira vez. Assim
Alternativa. O grupo “Salve o Roxy!”
quer convencer o poder público ou
alguma empresa a encampar o cinema
mesmo, só achei lugar na segunda fileira,
bem perto da tela”, recorda.
Com histórico em lutar por cinemas
de rua em atos na porta das salas de exi-
bição, Marinho lamenta que a pandemia
dificulte a mobilização. Mas isso não é
motivo para ficarem parados, diz. Pro-
curada por CartaCapital, a Kinoplex dis-
se que não comentará a possível venda
do Roxy. Segundo uma nota emitida pe-
la empresa em novembro, quando o cine-
ma fechou pela última vez, a suspensão
das suas atividades está ligada ao alto nú-
mero de idosos que o frequentam, de mo-
do que seria temerário reabri-lo até que
a situação sanitária estivesse melhor. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 63
16/06/2021 15:42
 AFONSINHO
Que espetáculo é esse?
► Com a disputa
simultânea da Copa
América e da Eurocopa,
chama atenção a dureza
dos jogos truncados,
paralisados a todo
momento, coisas do
futebol “moderno”
É
impressionante como os torcedo-
res andam dissociados da Seleção
brasileira. Mesmo em dia de jogo,
na abertura da Copa América, muita gen-
te nem sequer sabia que o Brasil iria en-
frentar a Venezuela naquele domingo.
Durante a semana, acompanhei um de-
bate sobre o tema na ESPN. Djalminha
e companhia também notaram a apa-
tia dos brasileiros, um distanciamento
que se estendia aos jogadores, mesmo os
grandes “ídolos” do elenco.
De fato, é um caso para se pensar. Os
jogadores deveriam refletir sobre as cau-
sas desse alheamento. Afinal, os torce-
dores são a razão do espetáculo. Mas, tal-
vez, o principal acontecimento da sema-
na tenha ocorrido fora de campo, na co-
letiva de imprensa dada por Cristiano
Ronaldo, às vésperas de partida da Euro
2020. O astro da Seleção portuguesa re-
tirou duas garrafinhas de Coca-Cola na
bancada e pediu água. Um gesto simples,
coisa de segundos. E foi o que bastou pa-
ra a fabricante de refrigerantes perder 4
bilhões de dólares em valor de mercado
na Bolsa de Nova York.
Outro fato marcante, mas que de-
veria ser considerado normal no atual
64 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
F•CCAfonsinho1162.indd 64
contexto, foi a declaração de Marcelo
Moreno, atacante da Seleção boliviana e
do Cruzeiro, contra a realização da Copa
América no Brasil. Ao comentar em uma
rede social o elevado número de atletas
infectados pelo Coronavírus no evento,
Moreno fez um agradecimento irônico
aos organizadores do torneio: “Obriga-
do a todos da Conmebol por isso. A culpa
é toda de vocês. Se alguma pessoa morre,
o que vão fazer? O que importa é somen-
te o dinheiro? A vida do jogador não va-
le nada?” A ameaça de punição da Con-
mebol, além de inócua, só vai aumentar
a repercussão do caso.
A pandemia, por sinal, modificou os
planos de um tradicional restaurante de
Caruaru, a Soparia do Gordo, um reduto
de torcedores do Central. Todos os anos,
o dono do estabelecimento, fanático cen-
trista, promove uma festa no aniversá-
rio do clube, homenageando dirigentes
e jogadores que fazem parte da história
da agremiação. Neste ano, por conta da
crise sanitária, Gordo abriu mão do con-
vescote. Em vez disso, vai expor a exten-
sa coleção de camisas alvinegras que tem
do seu time do coração.
Por falar em alvinegros, os torcedo-
res do Botafogo prepararam a criação do
“Instituto Glorioso”, uma organização de
incentivo a ex-atletas de todos os espor-
tes que passaram pelo clube. O financia-
mento não virá do clube, e sim de simpa-
tizantes. Outra excelente iniciativa.
Com a disputa simultânea da Copa
América e da Eurocopa, o que mais tem
chamado atenção é a dureza dos jogos
truncados, paralisados a todo momen-
to, sem falar dos constantes choques de
cabeça com cabeça. Em um mesmo dia,
tivemos duas cenas aflitivas, o apagão
do dinamarquês Eriksen, ressuscitado
graças ao pronto atendimento da equi-
pe médica com os recursos adequados.
Entre nós, ficam registradas as convul-
sões impressionantes do jogador Caio
Cezar, do Bangu, depois de um choque
direto na cabeça.
O futebol “moderno” insiste em não
aproveitar os ponteiros autênticos, capa-
zes de levar a bola até a linha de fundo
com dribles espetaculares, abrir o jogo.
Onde andam esses dribladores? Os cam-
pos diminuíram, a preparação física evo-
luiu muito. Ainda assim, nos jogos entre
grandes equipes, quase ninguém passa
da intermediária. Os gols minguaram, os
choques aumentaram. Aqui é a terra de
Garrincha, Canhoteiro, Julinho Botelho,
Edu (Santos), Denílson... Deve haver uma
infinidade de herdeiros por aí.
Com a bola rolando, destaque para a
empolgação dos italianos, animados com
mais uma boa Seleção, a sinalizar o retor-
no do país ao Primeiro Mundo da bola. A
Azzurra ficou fora do último Mundial e
os times, mesmo os ricos clubes do Nor-
te, andaram recolhidos nos últimos anos.
Das confusões da CBF vem o anúncio
de um movimento de clubes da Série A
para constituir uma Liga e assumir a or-
ganização do Campeonato Brasileiro. Se-
ria uma oportunidade excepcional para
oxigenar o futebol brasileiro, embora a
lógica do momento indique mais do mes-
mo. Torço para que algo de novo brilhe no
horizonte sombrio.
Na Uefa, apesar das limitações da Fifa,
os clubes conseguem fazer prevalecer al-
gumas conquistas, nada a ver com o ble-
fe da anunciada Superliga. A CBF ficaria
com a administração das Seleções, exclu-
B A P T I S TÃ O
sivamente, o que não é pouco. Vejamos. •
redacao@cartacapital.com.br
16/06/2021 21:29

ARTHUR CHIORO
Luto pelos 500 mil mortos
► Com apenas 2,7%
da população mundial,
o Brasil é responsável
por 12,8% dos óbitos por
Covid em todo o planeta.
Eis a proeza de Bolsonaro
A
lguns governadores anuncia-
ram a intenção de vacinar 70%
da população maior de 18 anos
até setembro. Tal notícia encheu de es-
perança os que almejam o retorno à
normalidade. Será mesmo um fato al-
vissareiro, ainda que restem incertezas
quanto à capacidade do governo fede-
ral em garantir o cronograma de entre-
ga de vacinas, deliberadamente adqui-
ridas com muito atraso. Além disso, há
escassez de produção do insumo farma-
cêutico ativo, concentrado na China e
na Índia, países que ainda precisam va-
cinar suas enormes populações e aten-
der pedidos feitos com mais antecedên-
cia do que os destinados ao Brasil.
Teremos ainda o desafio de imunizar
crianças e jovens até 18 anos e torcer pa-
ra que as diferentes vacinas nos protejam
contra as variantes existentes e outras
que virão por aí. O mais provável é que
tenhamos a cobertura vacinal necessá-
ria apenas no fim do primeiro trimestre
ou em meados de 2022. Enquanto isso,
J OÃO PAU LO G U IM A R Ã ES /A F P
alcançamos a inaceitável marca de meio
milhão de mortos por Covid-19, fruto do
negacionismo criminoso de Bolsonaro e
seus seguidores, dentro e fora do governo,
que fez do Brasil um celeiro macabro da
doença. Com apenas 2,7% da população
mundial, somos responsáveis por 12,8%
F•CCPluralSaude1162-OK.indd 65
O negacionismo do ex-capitão transformou
o País em um celeiro macabro da doença
dos óbitos registrados em todo o planeta.
Somente 11% da população brasilei-
ra está protegida com duas doses de va-
cina. A taxa de transmissão, segundo o
Imperial College, voltou a subir, resul-
tando em aumento significativo da mé-
dia móvel de casos e óbitos. Há um claro
relaxamento das medidas de distancia-
mento físico por parte das autoridades e
da sociedade. O auxílio emergencial, li-
berado pelo governo após muita pressão
da oposição, é insuficiente para que a po-
pulação de baixa renda possa sobreviver
e aderir às medidas de prevenção. Além
disso, a chegada do inverno tende a favo-
recer os mecanismos de transmissão da
doença. Dessa forma, podemos esperar
que a situação se torne ainda mais críti-
ca. E é possível projetar que até setem-
bro ultrapassaremos os 700 mil mortos.
A CPI no Senado tem produzido ele-
mentos significativos para a comprovação
Plural / Saúde
da tese de que o governo federal adotou a
estratégia de imunidade de rebanho pa-
ra enfrentamento da Covid-19, orientan-
do sua conduta para expor, proposital e in-
consequentemente, a população brasileira
ao Coronavírus. Pouco a pouco vai ficando
evidente que faltou coordenação central
e que o governo obstruiu a ação de esta-
dos e municípios no combate à pandemia.
Mais, que o governo federal foi incapaz de
prover equipamentos e insumos estratégi-
cos para o enfretamento do Coronavírus.
Lançou mão da desinformação, acionando
a indústria de fake news. Boicotou delibe-
radamente as medidas de distanciamen-
to social recomendadas pela ciência e pe-
la OMS. Fez a distribuição e propaganda
irresponsável de medicamentos que não
funcionam para prevenção e tratamento
da Covid. Retardou o quanto pôde a aqui-
sição de vacinas de vários produtores.
Essas e outras ações resultaram na
ampliação e no descontrole da transmis-
são do vírus. São tantas as evidências
que a questão central não é mais saber
se os senadores vão ou não comprovar os
crimes contra a saúde pública, mas sim
que medidas serão adotadas contra as au-
toridades federais responsáveis por esse
genocídio, que só em 2020, quando foram
registrados mais de 195 mil óbitos, foi
responsável pela diminuição da expec-
tativa média de vida dos brasileiros em
2 anos, fato que não ocorria desde 1945.
É essa conduta que explica a morte de
500 mil brasileiros e que nos jogou numa
crise social, econômica e sanitária sem
precedentes. É a perpetuação dessa ina-
ceitável forma de governar que resultará,
ainda, na morte evitável de outras tan-
tas dezenas de milhares de brasileiros.
É preciso dar um basta a isso. •
C A R TAC A P I TA L — 2 3 D E J U N H O D E 2 0 2 1 65
17/06/2021 09:52
 VENES CAITANO

66 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

F•CCCharge1162.indd 66 16/06/2021 14:20

 Ou nós salvamos a Amazônia agora,
ou ela nunca mais vai nos salvar.

A Amazônia nos salva da falta de biodiversidade, da seca,

das mudanças climáticas e até da fome. Duvida?

Pois a floresta é a casa de milhões de espécies, protege

as nascentes dos rios, ajuda a estabilizar o clima e a irrigar
as plantações de alimentos do Centro-Sul.

Porém, a Amazônia nunca esteve tão ameaçada.

O desmatamento está batendo recordes.

O Greenpeace Brasil está lutando para manter a floresta

em pé há mais de 20 anos, monitorando o desmatamento,
protestando e denunciando crimes ambientais. Somos
independentes. Não aceitamos receber recursos de governos,
© Valdemir Cunha / Greenpeace

empresas ou partidos políticos. Precisamos de pessoas

como você para continuar a nossa luta.

Seja doador do Greenpeace

salveaamazonia.org.br
A doação poderá ser utilizada de acordo com as demandas do Greenpeace Brasil.

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ANUNCIOS.indd 5 a Amazonia-ANR Pagina Simples 202x266-20210527.indd 1 5/27/21 6:59
17/06/2021 PM
11:46
 ai162367391516_12dejunho-20,2x26,6cm-v1.pdf 1 14/06/2021 09:31:55

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