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PESQUISA FAPESP NOVEMBRO DE 2020

NOVEMBRO DE 2020 | ANO 21, N. 297

FOGO
E SECA
NO
PANTANAL
Incêndios em número recorde
consomem um quarto da
maior planície alagada
do planeta e agravam efeitos
de estiagem prolongada

Covid-19: a resposta de Insegurança Nova fórmula Ondas Pesquisadores


Ano 21 n. 297

alguns países; vacinas alimentar desafia calcula como gravitacionais buscam se


Brasil, um dos investimento revelam novos adaptar à Lei
avançam, apesar de percalços; maiores produtores feito em tamanhos Geral de
o enigma das reinfecções; agropecuários inovação se de buracos Proteção de
a transmissão pelas crianças do mundo multiplica negros Dados Pessoais
FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Dunas remotas
Os campos de dunas às margens do rio São Francisco, os mais extensos
do Brasil não litorâneo, começaram a se formar há mais de 20 mil anos.
Para investigar esse processo na região de Xique-Xique, Bahia, a geóloga
Patricia Mescolotti atribuiu cores a diferentes altitudes em imagens de
radar obtidas em missão da agência espacial norte-americana (Nasa).
Passando por uma gradação de tons entre 400 e 425 metros de altitude,
a imagem destaca em amarelo os rios Grande e São Francisco, e seus
depósitos em laranja e marrom. Junto a uma lagoa em verde-escuro
aparece um campo de dunas, com até 450 metros de altitude. As técnicas
de sensoriamento remoto permitem interpretar as formas do relevo e
escolher onde buscar amostras para datação.

Imagem enviada por Patricia Mescolotti, estudante de doutorado na


Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro

PESQUISA FAPESP 297 | 3


297
1

3 FOTOLAB COVID-19 CAPA LEGISLAÇÃO


6 COMENTÁRIOS 18 As diferentes 30 Incêndios e maior seca 46 Pesquisadores buscam
7 CARTA DA EDITORA estratégias dos países no em meio século assolam se adaptar à Lei Geral de
combate ao coronavírus um quarto do Pantanal Proteção de Dados Pessoais
8 BOAS PRÁTICAS
Projeto europeu reúne 23 Testes de vacinas 36 Água e fogo DESENVOLVIMENTO
iniciativas para aprimorar avançam, apesar de influenciam a distribuição 51 Economistas propõem
integridade científica interrupções pontuais por e a diversidade de plantas fórmula para calcular retorno
razões de segurança no bioma dos gastos com inovação
11 DADOS
Geração de energia 26 Reinfecções são novo AVALIAÇÃO
elétrica quase dobra de desafio para cientistas, ENTREVISTA 54 Análise de três programas
valor desde 2001 autoridades e população 40 O epidemiologista da FAPESP aponta
Naomar de Almeida Filho resultados positivos
12 NOTAS 28 Estudos sugerem que diz que a pandemia não
17 NOTAS DA PANDEMIA crianças e adolescentes não pode ser descrita só pela INDICADORES
são mais importantes que infecção que provoca 59 Metodologia mostra
adultos na disseminação do quem financia e quem faz
Sars-CoV-2 P&D no estado de São Paulo

NOVEMBRO 2020
ASTROFÍSICA POLÍTICAS PÚBLICAS WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
62 Ondas gravitacionais 80 Pesquisadores buscam
reforçam a existência caminhos para combater Leia no site a edição da revista em português, inglês
de buracos negros de todos a insegurança alimentar e espanhol, além de conteúdo exclusivo
os tamanhos no Brasil

GEOLOGIA HISTÓRIA
66 Metano liberado há 86 Imagem de Tiradentes
meio bilhão de anos pode ter superou a inexistência VÍDEO YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP
favorecido a diversificação de registros e se tornou uma
de formas de vida das mais populares

MATEMÁTICA
68 Duas pesquisadoras 90 MEMÓRIA
do Impa ganham prêmios Nos 100 anos de seu nascimento,
no exterior conceitos formulados por Celso
FOTOS 1 LUCAS NINNO / GETTY IMAGES 2 ARQUIVO NACIONAL / WIKIMEDIA COMMONS

Furtado seguem reverberando


BIOTA – 20 ANOS
70 Teia de aranha tem 95 RESENHA
toxinas que paralisam Lendo e relendo, Ocupação humana no México
e ajudam a matar presa de Walnice Nogueira Galvão. tem mais de 30 mil anos
Por Luiz Costa Lima Sítio arqueológico em caverna apresenta
INOVAÇÃO os indícios mais antigos da presença
72 Grandes companhias 96 CARREIRAS de pessoas nas Américas
adquirem startups apoiadas Biologia quântica requer bit.ly/igVHumanosMexico
pelo programa Pipe colaboração interdisciplinar

AGRICULTURA FAMILIAR
78 Tecnologia criada
pela Embrapa é opção de
alimentação para
comunidades rurais

Conheça o engenheiro que tornou


possível realizar as obras de Niemeyer
O recifense Joaquim Cardozo foi
o responsável pelos cálculos que
colocaram de pé edificações inovadoras
bit.ly/igVJoaquimCardozo

1. Leito de rio seco


em Poconé (MT):
pior estiagem em
50 anos no Pantanal
(CAPA, P. 30, 36)
2. Celso Furtado PODCAST
(MEMÓRIA, P. 90)
Série sobre a Covid-19 destaca o desafio
Foto de capa da volta às aulas, a importância da
Arredores da rodovia pesquisa colaborativa e o monitoramento
2 Transpantaneira,
Mato Grosso, em 13 de
de políticas públicas em resposta
setembro de 2020 à pandemia
Mauro Pimentel / AFP bit.ly/PBRpodcasts
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br
CONTATOS

revistapesquisa.fapesp.br

redacao@fapesp.br
Covid-19 em defesa dos povos indígenas ao longo dos
PesquisaFapesp Gostaria de parabenizá-los pela clareza da anos, chamou a atenção. Essa atuação será um
PesquisaFapesp reportagem de capa “Os efeitos da Covid-19” dos pontos de destaque das novas exposições,
(edição 295). O texto é muito elucidativo e que serão preparadas com muito diálogo com
pesquisa_fapesp
abrangente, ao mesmo tempo que sintetiza os respectivos representantes.
PesquisaFAPESP de modo acessível pesquisas em frentes muito Alexander Kellner
diversas. Excelente trabalho.
pesquisafapesp
Mariana Barcoto
cartas@fapesp.br Luiz Davidovich
R. Joaquim Antunes, 727 Com o tempo a ciência vai compreendendo Universidade significa integração dos campos
10º andar melhor a Covid-19. Apenas a lamentar que os de conhecimento e não um amontoado de
CEP 05415-012
danos causados pelos negacionistas acabem faculdades (entrevista de Luiz Davidovich,
São Paulo, SP
atingindo a todos. “Por uma convivência maior”, edição 295).
Fernando Kokubun Marcos Santos

ASSINATURAS,
RENOVAÇÃO E MUDANÇA Nobel da Paz Vídeos
DE ENDEREÇO
Fiquei contente pelo fato de o Prêmio Nobel Cada vez mais a chamada cultura Clóvis cai
Envie um e-mail para
assinaturaspesquisa@fapesp.br
da Paz ter sido ganho pelo Programa Mundial por terra (“Ocupação humana no México tem
de Alimentos da ONU, como mostrou o site de mais de 30 mil anos”). E também a arrogân-
Pesquisa FAPESP. O cenário futuro é catastró- cia da academia norte-americana, que tanto
PARA ANUNCIAR fico. A produtividade e a disponibilidade das insistiu em um povoamento mais recente.
Contate: Paula Iliadis culturas já não são suficientes. Soma-se à falta Fabius Graco
E-mail: de qualidade nutricional, o uso irrestrito de
publicidade@fapesp.br
fertilizantes e agrotóxicos, o colapso dos servi- A Amazônia tem uma diversidade imensu-
ços ecossistêmicos, os impactos das mudanças rável (“Matamatá, uma estranha tartaruga
climáticas e o crescimento populacional. da Amazônia”). Além de todo o potencial
EDIÇÕES ANTERIORES
Preço atual de capa Paula Bueno terapêutico-farmacêutico, o bioma possui
acrescido do custo espécies fundamentais para o equilíbrio desse
de postagem. sistema. Todos os ecossistemas mundiais já
Peça pelo e-mail: Museu Nacional foram destruídos demais, a lógica deve ser
clair@fapesp.br
Muito interessantes as reportagens sobre o outra, de reconstrução.
centenário da UFRJ (edição 295). O histórico Luís Gustavo Cardoso Rabelo

LICENCIAMENTO é bem interessante, particularmente no que


DE CONTEÚDO tange ao Museu Nacional, fundado em 1818
Adquira os direitos de e incorporado à UFRJ em 1946. Também a Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
reprodução de textos ação dos antropólogos brasileiros, atuando por motivo de espaço e clareza.
e imagens de Pesquisa FAPESP.
E-mail:
mpiliadis@fapesp.br
Notícias que você lê no site de Pesquisa FAPESP bit.ly/igPlantasFungos
Estudo indica que quase 40% das espécies conhecidas de plantas no mundo estão em perigo de extinção
VITOR MIRANDA / UNESP

A carnívora
Genlisea
hawkingii,
encontrada em
Minas Gerais,
foi descrita
este ano

6 | NOVEMBRO DE 2020
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CARTA DA EDITORA
PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Ignácio


Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves
Ramos, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski,
Vanderlan da Silva Bolzani

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO

A vez do Pantanal
Luiz Eugênio Mello

DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida

Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO


ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL
Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo
Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares
de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira

COMITÊ CIENTÍFICO
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria
O corpo do rio prateia pesquisas sendo conduzidas naquele bio-
Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Catarina Segreti Porto,
Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Claudio Santos Pinhanez, Deisy das
quando a lua se abre ma, os editores Marcos Pivetta e Ricardo
Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi Zancul,
Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Rafael Martins
Passarinhos do mato gostam Zorzetto fizeram um mergulho no tema
Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo, José Roberto de França
Arruda, José Roberto Postali Parra, Leticia Veras Costa Lotufo, Lucio
De mim e de goiaba para as duas reportagens que compõem
Angnes, Luciana Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Mariana Cabral
de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia
[…] a capa desta edição (página 30).
Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero,
Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Rui Monteiro
Era o menino e os bichinhos Celso Furtado, paraibano de Pombal,
de Barros Maciel, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do
Amaral e Walter Colli
Era o menino e o Sol é o economista brasileiro mais conheci-
COORDENADOR CIENTÍFICO O menino e o rio do internacionalmente. Nascido há 100
Luiz Henrique Lopes dos Santos
Era o menino e as árvores anos, ele propôs ou participou do desen-
volvimento de algumas das principais
DIRETORA DE REDAÇÃO
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE Cresci brincando no chão ideias associadas à industrialização e ao


Neldson Marcolin

EDITORES Fabrício Marques (Política C&T),


Entre formigas desenvolvimento econômico brasileiro
Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência),
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais),
Meu quintal é maior e latino-americano. Autor de livros im-
Maria Guimarães (Site), Yuri Vasconcelos (Editor-assistente) Do que o mundo portantes, traduzidos não apenas para
REPÓRTERES Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade
[…] espanhol, francês e inglês, mas também
REDATORES Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
do Prado (Mídias Sociais)
japonês, mandarim e persa, professor
ARTE Claudia Warrak (Editora), manoel de barros, em consagradas universidades da Eu-
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital) “O menino e o rio” ropa e dos Estados Unidos, Furtado foi
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves também um homem de ação, ajudando
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues a criar instituições como a Cepal (Co-
missão Econômica para a América La-

O
RÁDIO Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil)

REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro


Pantanal, imortalizado nos versos tina), a Sudene (Superintendência do
COLABORADORES Diego Viana, Domingos Zaparolli, Eduardo
Geraque, Frances Jones, Joana Velozo, Luiz Costa Lima, Patricia
de Manoel de Barros, é um dos Desenvolvimento do Nordeste) e, após
Mescolotti, Renato Pedrosa, Roger Marzochi, Sidnei Santos de Oliveira
biomas mais preservados do país, o fim da ditadura militar (1964-85), as
REVISÃO TÉCNICA Adriana Valio, Américo Craveiro, Celio Haddad,
Eduardo Zancul, José Roberto Parra, Luciana Hashiba, Paulo Artaxo, mantendo, até 2019, 84% de sua vegetação leis de incentivo à Cultura (página 90).
Rafael Oliveira, Ricardo Hirata, Walter Colli
nativa. É definido pelo regime de chuvas No Brasil, os casos de infecção pelo
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DE TEXTOS, FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS
e cheias dos rios, que mantém boa parte novo coronavírus e o número de mortes
SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
das terras inundadas por meses, e de se- dela decorrentes estão em clara trajetó-
TIRAGEM 29.750 exemplares
IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica cas, em que incêndios pontuais ocorrem ria descendente. Enquanto isso, a Europa
esporadicamente. Nada, entretanto, pare- sofre com a segunda onda. As diferenças
DISTRIBUIÇÃO DINAP

cido com as queimadas que devastaram entre os países quanto ao enfrentamento


GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
27% da área do ecossistema entre janeiro da pandemia são tratadas em reportagem
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
Alto da Lapa, São Paulo-SP
e outubro deste ano. As imagens da mata à página 18. Outros textos desta edição
em chamas, com animais carbonizados abordam a interrupção temporária de
SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO ou feridos, fugindo do fogo, mais uma testes de vacinas e tratamentos contra
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
vez correram o mundo, um ano após in- a Covid-19 (página 23), os casos de re-
cêndios também muito acima das médias infecção pelo Sars-CoV-2 (página 26)
históricas na Amazônia. À busca de uma e os riscos de crianças transmitirem a
visão abrangente do seu ecossistema e de doença (página 28).

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BOAS PRÁTICAS
Coleção de exemplos para
aprimorar a integridade científica
Projeto europeu analisa iniciativas de universidades e instituições
de pesquisa para propor estratégias mais abrangentes
U
m projeto coordenado por pesqui- precisam seguir – cada um deles tem de procedimentos de avaliação flexíveis,
sadores da Dinamarca e dos Países assinar um compromisso, concordando que acomodem particularidades de dis-
Baixos está reu­nindo conhecimen- em defender a integridade científica. ciplinas e das legislações de diferentes
to disponível sobre integridade científica Na Universidade de Oxford, no Rei- países. Na hora de investigar possíveis
e compilando experiências bem-suce- no Unido, um projeto que se propunha violações, devem existir procedimentos
didas de universidades e laboratórios inicialmente a oferecer treinamento pa- formais que protejam os denunciantes
para selecionar as melhores práticas e ra que pesquisadores gerassem dados de represálias, mas também preservem
multiplicar a sua disseminação. Deno- científicos confiáveis e reproduzíveis a reputação dos acusados enquanto a
minada Padrões de Procedimentos Ope- em outros estudos acabou dando ori- apuração está em curso.
racionais para Integridade em Pesquisa, gem a um centro que fornece orientação A fim de garantir o compartilhamento
a iniciativa é financiada pelo programa sobre o assunto para estudantes e cien- de dados de pesquisa, há consenso de
Horizonte 2020, da União Europeia, tistas e é vinculado à Rede de Repro- que é necessário fornecer treinamen-
e ao longo dos próximos dois anos irá dutibilidade do Reino Unido. As prin- to, incentivos e infraestrutura para os
analisar e sistematizar diretrizes, traba- cipais universidades dinamarquesas pesquisadores. Já no campo das cola-
lhos acadêmicos e estudos-piloto sobre reforçaram a formação de estudantes borações, sugere-se criar regras para
o assunto, com o objetivo de propor es- de doutorado, determinando que rece- que o trabalho com parceiros da indús-
tratégias abrangentes. bam capacitação em integridade cientí- tria e de instituições de outros países
Parte dos dados a serem coletados já fica. Pesquisadores em qualquer estágio seja realizado de forma transparente.
está disponível no site do projeto (www. da carreira podem procurar aconse- Outros pontos considerados essenciais
sops4ri.eu), em uma seção chamada lhamento com mentores, em caráter são tornar públicos eventuais conflitos
“caixa de ferramentas”. “As instituições confidencial, caso deparem com algum de interesse, tanto financeiros quanto
podem consultá-la quando estiverem comportamento estranho ou antiético pessoais, e respeitar diretrizes sobre a
desenvolvendo planos e políticas com no ambiente de trabalho. atribuição de autoria de trabalhos cien-
foco em integridade da pesquisa. Ela Já foram compiladas as principais de- tíficos, sendo também transparente na
contém recursos e dados baseados em clarações emitidas em congressos sobre divulgação de seus resultados.
evidências que poderão servir de inspi- integridade científica, além de centenas

O
ração para a construção de planos”, disse de artigos científicos sobre temas corre- objetivo principal do projeto é
o coordenador da iniciativa, o cientista latos, como os riscos da competitividade estimular transformações no am-
político Niels Mejlgaard, pesquisador da exagerada no ambiente científico, o uso biente de pesquisa de institui-
Universidade de Aarhus, na Dinamarca, abusivo de indicadores quantitativos pa- ções e universidades da União Europeia,
em um vídeo de apresentação no site. ra avaliar pesquisadores e relatos sobre ajudando-as a se adaptar ao Código Eu-
A seção continuará a ser alimentada à escândalos envolvendo plágio, fraudes e ropeu de Conduta para a Integridade em
medida que as análises ficarem pron- falsificação de dados. Os pesquisadores Pesquisa. O novo programa de financia-
tas. O consórcio de pesquisadores en- fizeram 23 entrevistas com especialistas mento à pesquisa e à inovação do bloco,
volvidos no projeto tem representantes em integridade científica, consultaram o Horizonte Europa, que vai investir € 81
de outros países da Europa, como Bél- um painel composto por 69 gestores e bilhões nos próximos sete anos, exigirá
gica, Grécia, Polônia, Itália, Áustria e formuladores de políticas públicas nessa dos pesquisadores financiados que res-
Croácia, e também dos Estados Unidos. área e organizaram 30 grupos de discus- peitem o código de forma rigorosa.
Zoë Hammatt, ex-diretora da divisão de são sobre o tema com representantes das Segundo os responsáveis pelo projeto,
Educação do Escritório de Integridade ciências naturais, biomédicas e sociais, há sinais animadores em várias institui-
de Pesquisa (ORI) norte-americano, in- e das humanidades. ções envolvendo mudanças na cultura
tegra a iniciativa. e no ambiente de pesquisa. A Univer-

E
Os primeiros frutos do projeto, que m uma análise preliminar, iden- sidade de Ghent, na Bélgica, alterou os
teve início em 2019, foram apresenta- tificaram nove ações em favor da critérios para contratar e conferir es-
dos em um artigo publicado na revista integridade da pesquisa sobre os tabilidade de carreira a seus pesquisa-
Nature no dia 10 de outubro. Entre os quais verificaram que há consenso. Uma dores. Reduziu o peso de indicadores
exemplos selecionados para aprimorar delas é a promoção de procedimentos de quantitativos, extinguindo metas asso-
a integridade científica, há casos como avaliação justos, associada ao comba- ciadas ao número de artigos publica-
o da Universidade Tecnológica de Delft, te à competição excessiva no ambiente dos, e adotou um tipo de avaliação de
ERLING LARSON / HULTON ARCHIVE / GETTY IMAGES

nos Países Baixos, que treinou voluntá- de trabalho e à pressão exagerada para caráter qualitativo. Já a Universidade
rios em todas as suas faculdades para publicar resultados. Outra é o estabe- de Glasgow, no Reino Unido, adotou o
a tarefa de estimular pesquisadores e lecimento de diretrizes sobre a relação critério de “colegialidade” na avaliação
alunos da instituição a gerenciar de for- entre pesquisadores e seus alunos de de docentes: para serem promovidos ao
ma adequada seus dados de pesquisa – doutorado, com o estímulo ao treina- topo da carreira, eles devem demons-
a universidade oferece financiamento mento de habilidades dos orientadores. trar que contribuíram com a carreira de
para quem se empenhar nessa missão. A oferta de treinamento e de aconse- colegas e assistentes, compartilhando
Já a Universidade Mahidol, em Nakhon lhamento sobre integridade a todos os dados, supervisionando e colaborando
Pathom, Tailândia, criou um código de pesquisadores também tem recomen- com projetos de pesquisa e produzindo
boas práticas que todos os funcionários dação ampla, assim como a criação de artigos em coautoria. n Fabrício Marques

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Remédios “milagrosos”
contra a Covid-19

U
m trabalho publicado na plata- é produzido por uma empresa de seu mais. Desde 2013, ele é dono de um spa
forma de preprints SSRN sobre irmão, Joel Huizenga, que também de- em Malibu.
um potencial tratamento contra positou um pedido de patente para ex- A oferta de drogas milagrosas contra a
o novo coronavírus chamou a atenção plorar o produto, propagandeado como Covid-19 não é incomum durante a pan-
da bióloga holandesa Elizabeth Bik, que uma “fonte da juventude”. O principal demia nos Estados Unidos. Um estudo
mantém um blog sobre integridade cien- composto do coquetel, o NMN, é um su- publicado em outubro na revista Thera-
tífica. O título do manuscrito resume plemento alimentar vendido na internet. peutic Innovation & Regulatory Science
uma promessa extraordinária: “Melho- “Não existem ensaios clínicos publi- mostrou que, entre os meses de maio e
ria clínica dramática em nove pacien- cados sobre a eficácia do coquetel, mas julho, a FDA enviou 98 cartas de adver-
tes idosos com doenças agudas conse- apenas um relatório envolvendo 12 ho- tência a empresas que vendiam produtos
cutivas com Covid-19 tratados com um mens que pagaram pelo tratamento e com suposta ação contra o novo coronaví-
coquetel de mononucleotídeo de nico- informaram que se sentiram mais jovens rus, mas eram falsificados ou não tinham
tinamida (NMN)”. Bik foi investigar e, e jogavam xadrez com mais acurácia”, aprovação de órgãos regulatórios. Entre
mesmo antes de entrar no mérito dos escreveu Bik. Embora se declare afiliado os compostos fraudulentos, havia chás,
resultados, encontrou indícios de má ao Cedars Sinai Medical Center, Robert desinfetantes de mãos, pastas de dente
conduta. O estudo foi feito sem o aval Huizenga, conhecido em Los Angeles, e até uma falsa vacina. O mais bizarro da
de um comitê de ética institucional, o Califórnia, como Dr. H, deixou o hospital lista foi um xarope de mel e frutas para
que é obrigatório nos Estados Unidos nos anos 1980 para se tornar médico do prevenir a Covid-19 em crianças apresen-
para tratamentos ainda não chancelados time de futebol americano Los Angeles tado como “cocô de unicórnio” e comer-
pela agência regulatória Food and Drug Raiders e, em anos recentes, trabalhou cializado pela internet. A FDA também
Administration (FDA). Mais: o autor, como consultor em reality shows da TV notificou um site que vendia “águas aben-
o médico Robert Huizenga, deixou de norte-americana como The biggest lo- çoadas, óleos essenciais, desinfetantes
informar na declaração de conflito de ser, gincana em que obesos mórbidos para as mãos, produtos homeopáticos e
interesses que o coquetel em questão disputam quem consegue emagrecer tinturas” para prevenir e tratar a Covid-19.

A resiliência de um artigo
após sua retratação

E
m 2005, a revista científica Chest, do paper fraudulento. Encontraram 35
do Colégio Americano de Médicos artigos com citações diretas ao trabalho
do Tórax, publicou um artigo do entre 2010 e 2019 e que não mencionam
cirurgião Wataru Matsuyama, da Uni- a retratação. Em seguida, mapearam o
versidade Kagoshima, no Japão, com que chamaram de “citações de segunda
os resultados de um ensaio clínico que geração” – menções aos efeitos benéfi-
apontava efeitos positivos da gordura cos do ômega-3 em doenças pulmonares
poli-insaturada ômega-3 em pacientes que não fazem alusões diretas ao tra-
com doença pulmonar obstrutiva crôni- balho de Matsuyama, mas sim aos 35
ca. Uma investigação sobre a produção papers que o citaram explicitamente.
científica de Matsuyama levou à retra- Acharam 152 referências em trabalhos
tação desse artigo em 2008 por falsifica- como artigos de revisão, guias nutri-
ção de dados – outros 17 papers do autor cionais, entre outros. Apesar de haver
também foram cancelados nos últimos um alerta explícito sobre a retratação
anos por má conduta. Pois 12 anos após na cópia arquivada do paper na revis-
a retratação, o artigo do ômega-3 conti- ta Chest, o comunicado não foi repro-
nua a ser citado na literatura científica duzido em vários bancos de dados que
como se fosse válido. trazem resumos do paper fraudulento.
Em um trabalho publicado no dia 14 “Embora limitado à avaliação de um
de outubro na revista Scientometrics, único caso, esse trabalho demonstra
pesquisadores da Universidade de Illi- como pesquisas retratadas podem con-
nois, nos Estados Unidos, e de Adelaide, tinuar a se espalhar”, conclui o artigo
na Austrália, investigaram a trajetória da Scientometrics.

10 | NOVEMBRO DE 2020
DADOS Geração de energia elétrica quase dobra de
valor desde 2001, mas mantém perfil limpo

A geração de energia elétrica anual do Brasil Geração de energia elétrica por tipo de fonte (TWh) e
passou de 329 terawatts-hora (TWh) em 2001 participação das fontes renováveis (%) – 2001-2019
para 626 TWh em 2019, crescimento de 90%.
% renováveis n Hidrelétrica n Eólica n Solar n Outras renováveis
Entre 2016 e 2019, a geração cresceu 8,1%, mais
n Gás n Carvão n Óleo n Nuclear
do que o dobro do crescimento da economia no
período, de 3,6% (PIB)
1.000 100

A participação de fontes renováveis, hidrelétrica, 87 88 89 87


900 87 90
84 83
eólica, solar e outras (no caso do Brasil, 79
800 77 80
majoritariamente biomassa) era de 84% em 2001 74

Geração anual de energia elétrica (TWh)

Participação de fontes renováveis (%)


e de 83% em 2019 700 70
625,6
Hidrelétricas responderam por 64% do total em 600 570,8 581,2 589,3 60
531,8
2019, em queda contínua ao longo do período. A
500 466,2 50
participação das demais fontes renováveis mais que 445,1
403,0
dobrou, atingindo 18,8%. Energia eólica respondeu 400 364,3 40

por 8,9%, energia solar, por 0,9%, e outras 328,5


300 30
renováveis (a maior parte biomassa) por 9,0%
200 20
A geração termelétrica a gás apresentou a
segunda maior participação no total (9,4%), 100 10

seguida da geração a carvão (4,1%), nuclear (2,6%) 0 0


e óleo (1,3%) 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

BRASIL É O SEGUNDO EM FONTES RENOVÁVEIS ENTRE OS MAIORES PRODUTORES DE ENERGIA ELÉTRICA


Geração de energia elétrica por fontes renováveis O Brasil foi o 7º país em volume de geração de
Participação sobre total gerado (%). Países escolhidos com pelo menos 100 TWh – 2019 energia elétrica em 2019, com 626 TWh. China
(7.445 TWh) e Estados Unidos (4.387 TWh)
n Hidrelétrica n Eólica n Solar n Outras renováveis
lideram, respondendo por 44% da energia
gerada mundialmente em 2019
Noruega 98,0
BRASIL 82,6
Entre os 35 países com pelo menos 100 TWh
Canadá 65,4 gerados em 2019, o Brasil, com 83% de sua
Suécia 58,9 energia elétrica gerada a partir de fontes
Alemanha 41,6 renováveis, está apenas atrás da Noruega, cujo
Itália 40,4 índice é de 98%
Reino Unido 37,8
A participação das fontes renováveis no total
Espanha 37,5
de energia elétrica gerado no mundo foi de
Argentina 32,5
26%, mesmo índice da China
China 26,9
MUNDO 26,3 Apenas cinco países, Noruega, Brasil, Canadá,
França 20,1 Venezuela (não incluído no gráfico) e Suécia,
Japão 19,6 entre os maiores produtores, têm fontes
Índia 19,0 renováveis respondendo por mais de 50% da
México 18,0 geração de eletricidade
Rússia 17,6
Globalmente, a fonte mais importante foi
EUA 17,3
carvão, gerando 9.824 TWh (37% do total),
Polônia 15,4
seguido por gás (6.298 TWh, 24%), hidrelétrica
Indonésia 11,8 (4.222 TWh, 16%) e nuclear (2.796 TWh, 10%).
Coreia do Sul 5,6 As demais fontes renováveis responderam por
África do Sul 5,4 apenas 10% do total gerado

FONTES PIB – IBGE. GERAÇÃO ENERGIA ELÉTRICA: OUR WORLD IN DATA, MANTIDO NA UNIVERSIDADE DE OXFORD. HTTPS://OURWORLDINDATA.ORG/GRAPHER/ELECTRICITY-PRODUCTION-BY-SOURCE (ACESSO: 12/10/2020)

PESQUISA FAPESP 297 | 11


NOTAS

Uma mandíbula a partir de células de gordura 1

A mandíbula é um dos ossos mais complexos do corpo da gordura dos próprios animais, cuja mandíbula se
humano e um dos mais difíceis de substituir. Em formato assemelha à humana. Por meio de uma cirurgia, eles
de “L”, ela se encaixa ao crânio, formando uma articulação extraíram a mandíbula dos suínos e, depois, enxertaram
revestida por cartilagem – a chamada articulação células-tronco na região. Parte dessas células havia sido
temporomandibular, ou ATM. É esse conjunto de osso e programada para se transformar em osso e a outra parte
articulação que permite abrir e fechar a boca para mastigar, em cartilagem. Poucos dias mais tarde, os animais já
falar e bocejar. Doenças congênitas ou acidentes, no conseguiam se alimentar normalmente, movimentando
entanto, podem comprometer o seu funcionamento e exigir a mandíbula como se nada tivesse acontecido (Science
a substituição por uma prótese. O grupo da engenheira Translational Medicine, 14 de outubro). O exame minucioso
biomédica Gordana Vunjak-Novakovic, da Universidade da mandíbula dos animais realizado seis meses depois
Columbia, nos Estados Unidos, espera mudar isso em alguns mostrou que a estrutura era indistinguível da original.
anos. Os pesquisadores conseguiram regenerar o osso e a O grupo espera testar em breve a nova estratégia em ensaios
cartilagem da ATM de porcos usando células-tronco obtidas clínicos com voluntários com defeitos congênitos na ATM.

12 | NOVEMBRO DE 2020
Princeton pagará US$ 1,2 milhão
para corrigir iniquidades salariais
A Universidade de Princeton, uma das mais antigas e prestigiosas
dos Estados Unidos, irá pagar pouco mais de US$ 1 milhão em
salários retroativos a um grupo de 106 professoras. A decisão
se deu no início de outubro após investigação do Departamento
de Trabalho daquele país ter identificado disparidades nos
valores pagos a elas entre os anos de 2012 e 2014, em comparação
ao montante pago a homens ocupando cargos equivalentes.
A universidade não admite ter cometido irregularidade, mas concordou
em ressarci-las em US$ 925 mil em salários retroativos, além de
US$ 250 mil em ajustes salariais no futuro, de modo a “evitar litígios 2

demorados e caros, bem como seus impactos no corpo docente


e na própria universidade”, disse Ben Chang, porta-voz de Princeton, Deputados
ao jornal The New York Times. A instituição também concordou
em se empenhar para identificar e corrigir outras disparidades paulistas aprovam
e, assim, garantir maior equidade entre seus funcionários. Dados
recentes divulgados pelo Chronicle of Higher Education indicam que ajuste fiscal
as professoras de Princeton receberam cerca de US$ 235 mil cada
uma em 2018, enquanto os professores auferiram US$ 253 mil. O Projeto de Lei nº 529/2020,

3
que estabelece medidas de ajuste fiscal,
foi aprovado em 14 de outubro pela
Assembleia Legislativa do Estado
de São Paulo (Alesp). Apresentado pelo
governador João Doria, o texto busca cobrir
um déficit de R$ 10,4 bilhões no orçamento
do estado em 2021, em decorrência da
deterioração econômica causada pela
pandemia. A lei dá permissão ao governo
para extinguir alguns órgãos, autoriza
o corte de benefícios fiscais na cobrança do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias
e Serviços (ICMS), entre outros pontos.
Também determina que autarquias
Um college e fundações deverão devolver ao Tesouro
da universidade,
ao final de cada ano eventuais superávits
que decidiu
pagar para evitar financeiros, mas o alcance dessa medida
litígios longos foi reduzido. O texto apreciado pela
Assembleia previa que valores que
FOTOS 1 DIGITAL ZOO / GETTY IMAGES 2 SERGIO GALDINO / ALESP 3 WIKIMEDIA COMMONS

restaram nos balanços de 2019 das


três universidades estaduais paulistas
Um centro para inteligência artificial e da FAPESP seriam deduzidos das
transferências a serem feitas a essas
Começou a funcionar em 13 de outubro, no campus da Universidade de São Paulo (USP) instituições pelo Tesouro em 2021. Esse
na capital paulista, o Centro de Inteligência Artificial (C4AI), um dos Centros de dispositivo, porém, foi rejeitado pelos
Pesquisa em Engenharia financiados pela FAPESP. O C4AI é resultado de uma parceria deputados, após negociação em que o
entre a Fundação, a universidade e a empresa de tecnologia IBM. O centro será governo também recuou da extinção de
dedicado à pesquisa de ponta em inteligência artificial com o objetivo de produzir órgãos como a Fundação para o Remédio
soluções para o país em áreas como diagnósticos e tratamentos em saúde, Popular (Furp). Estima-se que as
aprimoramento da cadeia de produção de alimentos, e desenvolvimento de tecnologias universidades de São Paulo (USP), Estadual
de processamento de linguagem natural em português do Brasil. FAPESP e IBM de Campinas (Unicamp) e Estadual Paulista
investirão anualmente R$ 2 milhões cada uma na implementação do programa (Unesp) e a FAPESP perderiam cerca de
do C4AI por cinco anos, enquanto a USP aplicará R$ 4 milhões ao ano em laboratórios, R$ 1 bilhão se fossem incluídas no projeto.
professores, técnicos e funcionários. “O início da operação do centro faz parte de um Tais recursos compõem uma reserva para
esforço contínuo da Fundação em promover parcerias em pesquisa entre universidades lidar com oscilações de receita causadas
e empresas”, disse Luiz Eugênio de Mello, diretor científico da FAPESP, no lançamento. por perdas de arrecadação tributária.

PESQUISA FAPESP 297 | 13


Os parasitas sanguíneos Reconstituição
artística do
de um dinossauro titanossauro
doente; a partir
da esquerda,
Paleontólogos brasileiros identificaram parasitas sanguíneos lesões na pele, no
fossilizados em um osso da pata traseira de um titanossauro que osso e parasitas
vasculares
viveu há cerca de 85 milhões de anos onde hoje é o noroeste do estado
de São Paulo. Até então, parasitas pré-históricos só haviam sido
encontrados em insetos preservados em âmbar ou em fezes fossilizadas,
nunca no corpo do hospedeiro. Aline Ghilardi, da Universidade 2

Federal do Rio Grande do Norte, notou que havia algo errado com
a fíbula do dinossauro ao observar protuberâncias esponjosas em sua
superfície, que poderiam ser lesões ou sinal de câncer. Por meio de
tomografia computadorizada e imagens de microscopia, o paleontólogo
Tito Aureliano, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
constatou que se tratava de uma infecção óssea (osteomielite).
Análises detalhadas revelaram a presença de 70 microfósseis de
formato alongado nos canais vasculares do osso (Cretaceous Research,
15 de outubro). Não se sabe se os parasitas causaram as lesões ou
se elas facilitaram a entrada deles.

Água no lado iluminado


da Lua
Existe água na Lua e não só no interior de crateras
escuras situadas próximo aos polos. Usando um
observatório de radiação infravermelha montado
em um avião, o grupo liderado por Casey Honniball,
FOTOS 1 JOHNY ISLA / UNESCO 2 NASA ILUSTRAÇÃO HUGO CAFASSO

pesquisadora da Universidade do Havaí, nos Estados


Unidos, identificou a assinatura química de moléculas
1 de água em regiões do satélite natural da Terra
banhadas pelo Sol, como na cratera Clavius (foto)
Um felino gigante no deserto do Peru (Nature Astronomy, 26 de outubro). Missões espaciais
lançadas a partir dos anos 1990 já haviam
Na planície desértica entre as cidades peruanas de Nazca e Palpa, arqueólogos identificado o elemento químico hidrogênio (H) nos
identificaram um novo desenho escavado (geoglifo) na encosta de uma polos da Lua, mas não era possível saber se o sinal era
colina. É a imagem com cerca de 36 metros de comprimento de um felino, de moléculas de água (H2O) ou de outros compostos
que lembra um gato descansando. Segundo especialistas, ela foi produzida contendo o radical hidroxila (OH). A concentração
entre 2.200 e 2.100 anos atrás e seria uma das mais antigas que integram encontrada é baixa: 340 gramas para cada metro
as chamadas Linhas de Nazca, patrimônio mundial da Unesco. No início cúbico de solo lunar (inferior à do Saara). A água pode
do ano, pesquisadores japoneses haviam identificado outros 142 geoglifos. estar aderida à superfície dos grãos de poeira.

14 | NOVEMBRO DE 2020
NOBEL
Um pouco menos desigual
Quatro mulheres foram homenageadas em três das seis categorias do
FOTOS 1 CHIACHI CHANG / NIH 2 UNIVERSIDADE ROCKEFELLER 3 UNIVERSIDADE DE ALBERTA 4 ALEXANDER HEINL / PICTURE ALLIANCE VIA GETTY IMAGES 5 WIKIMEDIA COMMONS

Prêmio Nobel neste ano, o que torna 2020 o segundo na história da


prestigiosa honraria com maior número de ganhadores do sexo feminino.
A francesa Emmanuelle Charpentier e a norte-americana Jennifer Doudna
compartilharam o de Química, enquanto Louise Glück e Andrea Ghez,
também norte-americanas, receberam, respectivamente, o de Literatura
e parte do de Física. A premiação criada pelo químico, inventor e filantro- Doudna
po sueco Alfred Nobel no final do século XIX tem, historicamente, favo- e Charpentier
(à dir.)
recido os homens. Dos 930 premiados em 120 anos, só 57 são mulheres. 4 4

QUÍMICA

Ferramenta para
1 2 3

editar genes
Descoberta em 2012, a ferramenta de
edição gênica Crispr-Cas9 tem várias
A partir
possíveis aplicações na produção de
da esquerda:
Alter, Rice alimentos e em medicina, com destaque
e Houghton para o potencial de tratar doenças genéticas.
MEDICINA Derivada da forma como bactérias
combatem vírus, a ferramenta consiste em
Um novo vírus da hepatite moléculas de RNA acopladas a proteínas
bacterianas (as Cas9) que funcionam como
O prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2020 agraciou dois norte-americanos uma tesoura molecular capaz de cortar
e um britânico por suas contribuições para a identificação do vírus da hepatite C, o DNA em pontos selecionados. Ela permite
que pode causar sérios danos ao fígado e levar à cirrose e ao câncer. Na década de inativar ou corrigir genes. Por aprimorar
1970, o médico Harvey J. Alter, de 85 anos, dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) essa ferramenta, a microbiologista francesa
dos Estados Unidos, identificou um novo vírus, diferente daqueles das hepatites A e B, Emmanuelle Charpentier, de 51 anos,
transmitido por transfusão sanguínea. Anos mais tarde, a equipe do virologista do Instituto Max Planck em Berlim, na
britânico Michael Houghton, de 70 anos, à época na empresa farmacêutica Chiron, Alemanha, e a bioquímica norte-americana
na Califórnia, usou novas estratégias moleculares para identificar o agente patológico, Jennifer Doudna, de 56 anos, da
batizado de vírus da hepatite C. Nos anos 1990, o virologista Charles M. Rice, de Universidade da Califórnia em Berkeley
68 anos, então na Universidade Washington em Saint Louis, confirmou que o vírus, e pesquisadora do Instituto Médico Howard
sozinho, era capaz de se multiplicar e causar a doença, que acomete cerca de Hughes, nos Estados Unidos, receberam
70 milhões de pessoas no mundo e mata 400 mil por ano. o Nobel de Química deste ano.

LITERATURA

Mitologia da intimidade
A poeta e ensaísta norte-americana Louise Glück levou o Nobel de Literatura de 2020.
Seus livros são inéditos no Brasil. Somente traduções esparsas de seus versos foram publicadas
em português, em revistas literárias e cadernos de cultura de jornais. Marcada por precisão
técnica e linguagem objetiva, sua poesia dialoga com mitos gregos e romanos para mobilizar
questões da vida pessoal da autora. Aos 77 anos, Glück publicou 12 coletâneas de poemas,
além de livros de ensaios. Professora da Universidade Yale, foi a primeira de uma família
de imigrantes húngaros de origem judaica a nascer nos Estados Unidos. Pouco
pesquisada no Brasil, a obra de Glück recebeu diversos prêmios nos Estados Unidos,
com destaque para o Pulitzer, em 1993, pelo livro The wild iris (Ecco, 1992).

PESQUISA FAPESP 297 | 15


1
FÍSICA

Os misteriosos buracos negros


O Nobel de Física reconheceu os trabalhos de um trio de
pesquisadores que estudou os buracos negros, regiões do espaço
extremamente densas e compactas, que, devido ao seu enorme
campo gravitacional, sugam a matéria ao redor. Nem a luz escapa
desses objetos (daí o nome). Metade do prêmio em dinheiro de
cerca de US$ 1,1 milhão foi para o físico e matemático britânico
Roger Penrose, de 89 anos, da Universidade de Oxford, “pela
descoberta de que a formação de buracos negros é uma
previsão robusta da teoria geral da relatividade” de Albert Einstein
(1879-1955). A outra metade foi dividida entre dois astrofísicos
Wilson
e Milgron da área observacional que lideram grupos de pesquisa rivais:
(à dir.) o alemão Reinhard Genzel, de 68 anos, do Instituto Max Planck
ECONOMIA de Física Extraterrestre, em Garching, Alemanha, e da Universidade
da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos; e a norte-americana
Estratégias para leilões Andrea Ghez, de 55 anos, da Universidade da Califórnia em
Los Angeles. Eles confirmaram a existência de um buraco negro
Os cientistas norte-americanos Robert B. Wilson, de 83 anos, supermassivo no centro da Via Láctea, apresentando mais
e Paul R. Milgron, 72 anos, ambos da Universidade Stanford, evidências de que a previsão de Penrose estava correta.
na Califórnia, foram agraciados com o chamado Nobel de
2 3 4
Economia – prêmio instituído pelo Banco Central da Suécia em

FOTOS 1 FACEBOOK DA UNIVERSIDADE STANFORD 2 BISWARUP GANGULY / WIKIMEDIA COMMONS 3 CHRISTOPHER DIBBLE / UCLA 4 M. ZAMANI /ESO 5 JACK TAYLOR / GETTY IMAGES
1968 – pelas contribuições à teoria dos leilões. “Os laureados
aprimoraram a teoria dos leilões e inventaram novos formatos
de leilões, beneficiando vendedores, compradores e pagadores
de impostos em todo o mundo”, justificou a Academia Real Sueca
de Ciências, destacando que todos os dias leilões distribuem
valores astronômicos entre compradores e vendedores.
Ao empregar a teoria dos leilões, os pesquisadores procuraram
compreender os resultados das diferentes regras de licitação
e preços finais a fim de achar o valor mais adequado do bem
ou serviço leiloado. Os estudos da dupla têm ajudado governos
de todo o mundo a vender bens públicos a preços mais altos. Penrose, Ghez e Genzel (à dir.)

PAZ

Alimentos O Nobel da Paz foi para o Programa Mundial de Alimentos (PMA), maior organização humanitária internacional
na área de segurança alimentar, criada em 1961 como um braço da Organização das Nações Unidas para a
para Alimentação e a Agricultura (FAO). A Fundação Nobel justificou a escolha com base no esforço do PMA “para
combater a fome, por sua contribuição para melhorar as condições para a paz em áreas afetadas por conflitos
prevenir e por atuar como uma força motriz nos esforços para prevenir o uso da fome como arma de guerra e conflito”.
Com 5.600 caminhões, 30 navios e 100 aviões, o PMA atendeu 97 milhões de pessoas em 88 países em 2019
conflitos e prevê que o número de pessoas com fome crônica deve chegar a 265 milhões em 2020.
NOTAS DA PANDEMIA
O impacto do vírus sobre
as universidades da Austrália
As universidades australianas devem receber uma injeção
de recursos para auxiliar na recuperação da economia do
país, abalada pela pandemia. O orçamento aprovado em
outubro prevê a destinação de US$ 710 milhões (cerca
de R$ 4 bilhões) para financiar a pesquisa nas universidades
australianas em 2021, enquanto a Organização da
Commonwealth para Pesquisa Científica e Industrial (CSIRO),
a agência nacional de pesquisas, deverá receber US$ 327
milhões (R$ 1,84 bilhão) extras pelos próximos quatro anos.
1 É um reforço bem-vindo para as universidades, que estão em
dificuldades financeiras por causa da pandemia. O dinheiro
O coronavírus e o cérebro “ajudará as universidades a lidarem com a crise imediata”,
disse Duncan Ivison, vice-reitor da Universidade de Sydney
Estudo realizado por pesquisadores de cinco instituições brasileiras (foto), à revista Nature. Ele afirma, porém, que não resolve
FOTOS 1 CLARISSA LIN YASUDA / UNICAMP 2 WIKIMEDIA COMMONS 3 KETUT SUBIYANTO / PEXELS

confirma que o novo coronavírus pode infectar diferentes tipos de o problema de financiamento para pesquisa. Nos próximos
células cerebrais e, possivelmente, causar danos diretamente ao cinco anos, as universidades podem perder até US$ 5,4
cérebro. Eles realizaram exames de imagens do cérebro de 81 pessoas bilhões (R$ 30,4 bilhões) em receita para aplicar em pesquisa
com a forma leve de Covid-19 e observaram alterações significativas por causa da redução de alunos pagantes. Estima-se que,
em diferentes áreas do córtex, a região mais externa do cérebro, com essa queda, cerca de 6,1 mil professores (11% da mão
responsável por faculdades como memória, atenção, consciência de obra de pesquisa) possam ficar sem o emprego.
e linguagem. Em testes feitos dois meses após a infecção, um terço
dessas pessoas apresentava sinais de problemas neurológicos (dor de
cabeça, alteração da memória, perda de olfato) ou neuropsiquiátricos
(ansiedade e depressão). Autopsias mostraram infecções pelo
Sars-CoV-2 no cérebro de 5 de 26 indivíduos mortos com Covid-19.
Em testes em laboratório, os pesquisadores confirmaram que o vírus
infecta as células cerebrais, em especial os astrócitos, que sustentam
e nutrem os neurônios (medRxiv, 13 de outubro). Falta, agora, confirmar
se as alterações no córtex e no desempenho neurológico são causadas
pela presença do vírus nas células cerebrais. O estudo foi realizado por
equipes das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), de São
Paulo (USP) em Ribeirão Preto e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do
Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). 2

Para monitorar a evolução da Covid-19


Os níveis de uma proteína presente no sangue podem indicar a gravidade da infecção
pelo novo coronavírus e orientar as ações da equipe de saúde. Pesquisadores da
Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar) verificaram que o aumento da concentração da proteína Trem-1 está
associado a desfechos desfavoráveis. Eles acompanharam a evolução do quadro de
Covid-19 em 44 pessoas em isolamento domiciliar e 47 hospitalizadas e compararam com
a de 30 indivíduos não infectados. O resultado permitiu estratificar a doença em quatro
graus: leve, moderado, grave e crítico (medRxiv, 23 de setembro). Outros marcadores
biológicos da gravidade da doença já foram identificados. “No entanto, nenhum desses
indicadores consegue estratificar tão bem os níveis de gravidade e predizer a evolução da
doença com tanta propriedade como a Trem-1”, afirmou à Agência FAPESP a biomédica
3 Lúcia Faccioli, da USP, que coordenou o estudo com o químico Carlos Sorgi.

PESQUISA FAPESP 297 | 17


COVID-19

O XADREZ
GLOBAL
DA PANDEMIA

Entre as diversas estratégias de combate


à disseminação da doença, resultados de
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO

alguns países chamam a atenção

Frances Jones
E
m um mundo que parece ainda distante clínico dos infectados. O lockdown foi instituído
de dar um xeque-mate no Sars-CoV-2, em 25 de março, quando apenas os serviços es-
o vírus causador da Covid-19, é notável senciais continuaram funcionando. Na semana
a diferença entre os países na forma anterior, as fronteiras haviam sido fechadas para
como são atingidos pela pandemia. En- os não residentes.
quanto alguns sofreram um colapso A OMS destaca a importância de uma comu-
temporário no sistema de saúde e mes- nicação pública clara e regular e medidas para
mo no serviço funerário, registrando suavizar o impacto econômico. “A Nova Zelândia
elevados índices de óbitos, outros não tiveram certamente se beneficiou por ser um país insular
baixas tão expressivas. As diferentes estraté- de alta renda, com um sistema de saúde avançado”,
gias de enfrentamento ao novo coronavírus, a destacou o médico Takeshi Kasai, diretor regional
quem se atribui a morte de mais de 1,2 milhão da organização para o Pacífico Ocidental, em nota
de pessoas ao redor do planeta em poucos me- divulgada pela OMS em meados de julho. “Mas
ses e a deflagração da pior recessão econômica eles não tomaram nada como certo. Trabalharam
mundial em décadas, têm sido objeto de análise em conjunto para limitar e conter a Covid-19 em
de epidemiologistas, pesquisadores de diversas seu território.” A abertura gradual começou no
áreas, autoridades e tomadores de decisão. Quais fim de abril e em junho o país foi para o nível de
fatores permitiram a um país adotar as medidas alerta 1, mais brando, suspendendo restrições de
mais acertadas? mobilidade, reuniões e serviços. Uma segunda on-
“Alguns países claramente se saíram bem e da foi declarada controlada no início de outubro.
outros foram mal, mas não é possível formular “A chave para uma boa resposta foi agir cedo
um ranking trivial”, disse a Pesquisa FAPESP o e ouvir as recomendações científicas e da área
médico Martin McKee, professor de saúde pú- da saúde”, afirmou a Pesquisa FAPESP o epi-
blica europeia na London School of Hygiene and demiologista Hassan Vally, professor de saúde
Tropical Medicine, na Inglaterra. “Seria preciso pública da Universidade La Trobe, na Austrália.
levar em conta, por exemplo, o risco enfrenta- Ele apontou também para Taiwan, Vietnã e a pró-
do a partir dos casos importados. Alguns países pria Austrália – onde se chegou a adotar toque de
com número reduzido de casos tiveram poucas recolher entre 20h e 5h em Melbourne – como
viagens até eles, como certas ilhas do Pacífico.” exemplos de nações bem-sucedidas no combate
Uma nação insular do oceano Pacífico, a Nova ao Sars-CoV-2.
Zelândia, costuma ser citada pelos especialistas “Uma boa liderança e a confiança da população
como um caso bem-sucedido. “É um exemplo de no governo são os fatores mais importantes para
um país que conseguiu atingir a Covid zero. Não o controle do vírus.” Vally ponderou, no entanto,
significa que não tenha casos, mas que não há que mesmo nesses países erros foram cometidos.
transmissão doméstica sustentada de infecção”, No caso australiano, segundo ele, um equívoco
pondera McKee. De acordo com o médico, na au- ocorreu na implementação da quarentena em
sência de medidas governamentais, o Sars-CoV-2 hotéis para pessoas que retornavam de viagem.
se espalha de forma exponencial e, por isso, há Por erros no processo, o pessoal que trabalhava
um forte argumento para reduzir a circulação do nesses estabelecimentos virou o foco de uma se-
vírus ao menor nível possível. Além disso, ressal- gunda onda de Covid-19 no país.
ta o pesquisador, é importante encontrar, testar,
rastrear, isolar e tratar os que estão infectados. RASTREAR O VÍRUS
“Os melhores sistemas encaram isso como uma Para o médico sanitarista Ivan França Junior, da
investigação; tentam identificar a fonte dos sur- Faculdade de Saúde Pública da Universidade de
tos e agem nesses locais.” São Paulo (USP), duas das principais abordagens
Com uma população de 5 milhões de habitan- de sucesso adotadas desde março são a testagem
tes, a Nova Zelândia havia registrado até meados agressiva e sustentada, com a busca ativa de infec-
de outubro, quando esta reportagem foi finaliza- tados e cuidados aos que tiveram resultados po-
da, 1.864 casos de pessoas infectadas e 25 mor- sitivos, e as políticas de distanciamento físico. “O
tes pela doença, segundo a Universidade Johns extremo do distanciamento físico é o lockdown”,
Hopkins, nos Estados Unidos. Com um sistema destaca. “Mas há medidas intermediárias, como
de alerta em quatro níveis, o país é lembrado pela manter 1,5 metro de distância entre as pessoas,
rapidez com que fez e faz as intervenções, pelo usar máscara e evitar o toque corporal e na área
fechamento das fronteiras e pela liderança firme T do rosto [olhos, nariz e boca].”
da primeira-ministra Jacinda Ardern. Com 51 milhões de habitantes, a Coreia do
De acordo com a Organização Mundial da Saú- Sul foi um dos primeiros países a registrar um
de (OMS), foram impostas medidas rigorosas de surto de Covid-19 e se destacou por ter contido
distanciamento físico e realizados com vigor a rapidamente o vírus sem fechar a economia nem
testagem, o rastreamento de contatos e o controle impor restrições de mobilidade à população. Cin-

PESQUISA FAPESP 297 | 19


co anos antes, em 2015, os sul-coreanos haviam BR, que reúne pesquisadores dedicados a estudar
enfrentado um surto da Síndrome Respiratória e entender a doença. “Vi no Brasil muita gente
do Oriente Médio (Mers), provocado por outro cometendo o erro de barrar a entrada de pessoas
coronavírus, com 38 mortes, 185 casos confir- que tiveram resultado positivo em teste rápido,
mados e perdas de US$ 2,6 bilhões em razão da sorológico, que detecta os anticorpos produzidos
queda no turismo. Com o registro de mais de 500 semanas depois da infecção, quando a pessoa já
novos casos diários de Sars-CoV-2 no começo de não transmite mais o microrganismo”, aponta
março, o país reduziu drasticamente o número Mori, atualmente em estágio de pós-doutorado
de infecções com testes e rastreio, isolando e na Universidade de Vermont, nos Estados Unidos.
tratando precocemente os infectados. Na Coreia do Sul, centenas de funcionários
Enquanto a epidemia ganhava intensidade, foram mobilizados para fazer o rastreamento
foram instaladas 600 clínicas de rastreamento, dos casos da doença. Transações de cartão de
que realizaram até 20 mil testes por dia. O go- crédito, que permitem identificar por onde os
verno trabalhou em parceria com o setor priva- compradores andaram, e monitoramento de
do e em sintonia com a comunidade científica. transeuntes foram usados como fonte de infor-
“A principal razão de sucesso da Coreia do Sul mações – medidas consideradas controversas
é a testagem massiva com exames moleculares pelo risco de violar direitos individuais e a pri-
RT-PCR, que detectam a presença do vírus no vacidade dos cidadãos. Até meados de outubro,
corpo da pessoa quando ela está no período in- foram registradas 430 mortes no país em decor-
feccioso, seguida do rastreamento de contatos rência da Covid-19.
e isolamento dos infectados”, pondera o físico Também na Ásia, dividindo uma fronteira ter-
Vitor Mori, integrante do Observatório Covid-19 restre de mais de mil quilômetros com a China, o

A ESCOLHA DA SUÉCIA
Ao adotar medidas menos restritivas, país nórdico tem impacto no PIB similar
ao dos vizinhos, mas um número de mortes muito mais alto
Uma estratégia menos agressiva que a Em abril, o epidemiologista da Agência sueca teve um preço muito alto, com taxas de
adotada pelos vizinhos na Escandinávia e um de Saúde Pública da Suécia Anders Tegnell, mortalidade próximas das dos Estados Unidos,
cientista-chefe fazendo declarações sobre arquiteto da estratégia de combate à com sua resposta vagarosa e ineficaz. Com
imunidade coletiva levaram a Suécia ao centro pandemia no país, concedeu uma entrevista mais de 8 milhões de casos e 220 mil mortes
dos debates sobre as abordagens a seguir à revista Nature explicando que a abordagem por Covid-19 em meados de outubro, a maior
para enfrentar a pandemia da Covid-19. se baseou mais na responsabilidade individual economia do mundo é vista por muitos como
As autoridades não fecharam o país totalmente, dos cidadãos e na recomendação de medidas, um antiexemplo no combate à pandemia.
mantiveram o comércio, restaurantes e bares em vez da imposição delas. “Todo país tem De falhas no desenvolvimento de um teste
abertos, e não interromperam as aulas de atingir a imunidade coletiva de uma forma diagnóstico para o vírus à postura anticientífica
presenciais para alunos abaixo de 16 anos – ou de outra e vamos alcançá-la de um modo e negacionista do presidente Donald Trump,
no ensino médio e nas universidades, o ensino diferente”, declarou Tegnell, quando ainda especialistas apontam uma série de erros que
passou a ser on-line. não se sabia ao certo sobre a disseminação do mergulharam o país nessa situação.
Os resultados não foram os melhores. vírus por pessoas assintomáticas e sobre A estratégia sueca não deu tão errado
Ao não limitar a mobilidade da sua população, a possibilidade de reinfecção. quanto a norte-americana, mas também
as pessoas puderam seguir basicamente “Embora Dinamarca, Noruega, Suécia recebe críticas. “As consequências para
com sua vida normal, com algumas restrições. e Finlândia tenham imposto restrições muito os mais vulneráveis foram chocantes. O vírus
Essa relativa normalidade, entretanto, mais duras durante a primeira onda, no fim de correu livremente nas casas de repouso, onde
não resultou em um melhor desempenho junho todos os quatro países tinham níveis perto de mil pessoas morreram em questão
econômico no período e ainda levou semelhantes de restrição, na medida em que de semanas”, diz o texto do Independent
a uma taxa de mortes per capita muito as regras de lockdown eram progressivamente Sage sobre a Suécia, referindo-se à fase inicial
superior à dos vizinhos. aliviadas”, escreveram em um relatório da pandemia. As políticas suecas, segundo
Em comparação com outras nações cientistas do Grupo Independente de o texto, estão se aproximando aos poucos
nórdicas, que impuseram lockdowns, a Suécia Aconselhamento Científico para Emergências das dos países vizinhos. Uma fonte diz
registra uma taxa bem mais alta de mortes (Independent Sage), do Reino Unido. “Na que as autoridades estão “silenciosamente
per capita pela doença, cerca de 10 vezes maior verdade, as restrições na Suécia foram até mudando de abordagem”, aumentando o
que a da Noruega e a da Finlândia e cinco mais severas que as da Dinamarca, da número de testes e retirando a recomendação
vezes superior à da Dinamarca. Já o impacto Noruega e da Finlândia durante o verão.” de não testar crianças entre 6 e 16 anos.
da pandemia sobre o PIB não foi muito Uma reportagem publicada na revista O uso de máscaras para a população, no
diferente dos seus vizinhos até agora. Science em outubro informa que a abordagem entanto, ainda não é recomendado.

20 | NOVEMBRO DE 2020
Cenas da pandemia: consumidores mantêm
distanciamento social em fila para entrar
em mercado de Auckland, na Nova Zelândia;
agentes desinfetam rua de Seul, na Coreia
do Sul; e estudantes usam máscara no
retorno às aulas em Montevidéu, no Uruguai

Vietnã, com seus 95 milhões de habitantes, regis-


trava somente 35 mortes pela Covid-19 até mea-
dos de outubro, com pouco mais de 1.100 casos.
A detecção precoce e a estratégia de contenção
2
implementada são apontadas por especialistas
como motivos para o sucesso sanitário contra o
Sars-CoV-2 até o momento, facilitada pela exis-
tência de um governo central forte e autoritário,
que possibilitou a tomada de ação rápida.
O premiê Nguyễn Xuân Phúc adotou uma re-
tórica de guerra contra o novo coronavírus, con-
vocando a população a lutar contra o “inimigo”.
Avisos em alto-falantes nos vilarejos, um sistema
de comunicação da época da Guerra do Vietnã
(1955-1975), orientaram os moradores sobre o
uso obrigatório de máscara, medidas de higiene
e a importância do distanciamento social para o
FOTOS 1 FIONA GOODALL / GETTY IMAGES 2 CHUNG SUNG-JUN / GETTY IMAGES 3 ERNESTO RYAN / GETTY IMAGES

combate ao vírus.
O lockdown nacional foi suspenso em 23 abril,
após uma política de rastreamento de contato que
ia além do que em geral se fez em outros países.
Enquanto a Alemanha, outro exemplo de com-
bate ao vírus, documenta os infectados e seus
3
contatos diretos, no Vietnã o rastreamento vai
até o segundo, terceiro e quarto níveis de con- de possuir um robusto sistema de saúde público e
tato dos contaminados. A adesão da população privado e ampla capacidade hospitalar, incluindo
foi expressiva. Um aplicativo para rastreamento leitos de unidades de terapia intensiva (UTI).
foi baixado por 20 milhões de pessoas em apenas O governo formou um grupo interministerial
quatro semanas. para gerir a crise e descartou um lockdown com-

O
pleto. O país investiu em testes gratuitos des-
s alemães registravam em meados de de o início e no rastreamento de contatos e deu
outubro quase 10 mil mortes em decor- atenção especial à população idosa, limitando a
rência da doença, mas com a França e transmissão nos abrigos de longa permanência,
a Itália contando o triplo de óbitos e o o que provavelmente contribuiu para a baixa le-
Reino Unido quatro vezes mais, o país talidade da doença em comparação aos vizinhos
também é visto como bem-sucedido no europeus. Os alemães também foram pioneiros
enfrentamento do vírus. Investindo 11% do seu no teste RT-PCR. As medidas de distanciamen-
Produto Interno Bruto (PIB) na área da saúde, a to físico implementadas em março começaram
Alemanha entrou na pandemia com a vantagem a ser relaxadas no mês seguinte, mas o governo

PESQUISA FAPESP 297 | 21


Em meio à segunda onda o sucesso no enfrentamento ao vírus. Segundo o
da pandemia, trabalhadores site Worldometers, o país apresentava em mea-
alemães saem às ruas para
exigir assistência do governo
dos de outubro um índice de 15 mortes por 1 mi-
lhão de habitantes, enquanto o Brasil tinha 709
mortes por milhão de pessoas e a Argentina 542.
A pesquisadora Elize Massard da Fonseca, do
Departamento de Gestão Pública da Escola de
Administração de Empresas da Fundação Getu-
lio Vargas (Eaesp/FGV), é coorganizadora de um
livro atualmente em edição pela Universidade de
Michigan (EUA) no qual especialistas comparam
as decisões de enfrentamento à pandemia toma-
das pelos países.
Quatro variáveis serão observadas pelos auto-
res: a política social para controle da crise, o tipo
de governo (regime democrático ou autoritário),
as instituições políticas formais e a capacidade do
Estado de controle sobre a administração pública.
“Talvez o livro possa explicar por que alguns paí-
ses optaram por responder de forma mais rápida
e por ter uma coordenação melhor”, diz Fonseca.
“Nosso propósito não é apontar o que é melhor
ou pior, mas explicar por que os países optaram
por tomar determinadas decisões.”
As lições poderão vir de lugares inesperados,
como de alguns países da África. Senegal, Libé-
ria e Ruanda estão entre os que se destacam no
voltou a impor restrições em outubro em razão continente, com taxas inferiores a 20 mortes por
de uma segunda onda de infecções que aumen- milhão. Mesmo que possa haver subnotificação
tou de forma exponencial o número de casos em de casos e de óbitos decorrentes da doença, não
toda a Europa. se viram nesses países cenas de horror como
Na América do Sul, salta aos olhos a diferença as ocorridas no Equador, em Manaus, em Nova
do Uruguai em relação aos seus vizinhos – Brasil York e na Itália.
e Argentina figuram entre os piores do ranking Uma população mais jovem, diferenças na res-
global de casos e de óbitos pela Covid-19. Em posta imune e fatores genéticos estão incluídos
artigo preprint (sem a revisão de pares), cien- nas hipóteses para a baixa mortalidade geral no
tistas uruguaios relatam o desenvolvimento de continente africano, mas não se exclui uma res-
um teste de diagnóstico molecular para detectar posta de saúde pública mais adequada de enfren-
o Sars-CoV-2 logo no começo da pandemia, cuja tamento à pandemia, como o uso de máscaras.
metodologia foi transferida para institutos de “Países que tiveram experiência recente com
pesquisa, hospitais públicos e laboratórios aca- o ebola podem ter colocado em prática algum
dêmicos ao redor do país, dando origem a uma sistema para controlar outras infecções e, em
rede nacional de laboratórios para diagnóstico. particular, ter atuado para mobilizar fortemente
Com isso, o país não padeceu da falta de testes o apoio da comunidade contra o novo coronaví-
para detecção do vírus como ocorreu no Brasil rus”, sugere McKee. A experiência recente de
e em outros lugares do mundo. combate a epidemias parece ser mais um fator a
“A estratégia uruguaia baseou-se em uma forte favorecer os países no intricado jogo disputado
sinergia estabelecida entre as autoridades nacio- contra o novo coronavírus. n
nais de saúde e a comunidade científica. Assim,
a academia respondeu rapidamente para desen-
Artigos científicos
volver testes RT-PCR nacionais”, destacaram os
MORENO, P. et al. An effective Covid-19 response in South America:
pesquisadores no artigo. Segundo eles, a rede de The Uruguayan Conundrum (preprint). medRxiv. 27 jul. 2020.
laboratórios para diagnósticos de Covid-19 reali- GREER, S. L. et al. The comparative politics of Covid-19: The need to
zou a maior parte dos testes moleculares no país, understand government responses. Global Public Health. v. 15, n. 9,
MAJA HITIJ / GETTY IMAGES

p. 1413-16. 20 jun. 2020.


o que ajudou a conter a transmissão doméstica. OH, J. et al. National response to Covid-19 in the Republic of Korea
O fato de o Uruguai ser um país pequeno, ter um and lessons learned for other countries. Health Systems & Reform.
sistema de saúde de acesso universal de quali- v. 6. 29 abr. 2020.
SHERIDAN, A. et al. Social distancing laws cause only small losses
dade e uma população de apenas 5,4 milhões de of economic activity during the Covid-19 pandemic in Scandinavia.
habitantes também é apontado como razão para PNAS. v. 117, p. 20468-73. 3 ago. 2020.

22 | NOVEMBRO DE 2020
COVID-19

AVANÇOS
COM
SOBRESSALTOS
Testes das vacinas em estágio
avançado contra a doença
prosseguem em ritmo acelerado,
apesar de interrupções pontuais
por razões de segurança
Eduardo Geraque
KAROLINA GRABOWSKA / PEXELS

PESQUISA FAPESP 297 | 23


I
nterrupções nos chamados testes mular uma resposta imunológica em publicada dois dias antes pela impren-
clínicos, feitos em seres humanos, de seus recebedores. sa: os trabalhos tinham sido suspensos
vacinas e remédios são vistas como Na fase 3 dos testes, enquanto um gru- porque um participante britânico do
percalços inerentes ao processo de po de voluntários recebe a droga que está estudo apresentou reações adversas. Ele
desenvolvimento de novos produtos. sendo testada, outra parcela é medica- adoeceu sem explicação e desenvolveu
Quando ocorre algum efeito colate- da com placebo, um composto inócuo. mielite transversa, uma inflamação que
ral grave que pode estar associado ao uso Para garantir a idoneidade do processo, atinge a medula espinhal. O imunizante
do imunizante ou da droga, ou a morte os promotores dos ensaios não sabem de tinha passado sem maiores percalços
inesperada de um participante dos expe- que grupo fazem parte os participantes pelas fases 1 e 2 dos testes clínicos. “A
rimentos, os promotores dos testes têm dos trabalhos. As reações adversas con- vacina de Oxford foi dada para um gran-
de avaliar se é seguro prosseguir com sideradas médias, como leves dores de de número de pessoas. Por isso, ocorrer
os trabalhos. Às vezes, as autoridades cabeça e no local de aplicação da vacina, esse tipo de situação, não obrigatoria-
sanitárias obrigam os desenvolvedores não são suficientes para paralisar um mente causada pelo produto em teste, é
a parar com os testes até que fiquem de- protocolo. Quando os desdobramentos bastante plausível”, afirma o virologista
monstradas a causa da intercorrência e são mais graves, como o surgimento de Celso Granato, da Universidade Federal
a segurança do produto. Caso as expli- inflamações no sistema nervoso ou até de São Paulo (Unifesp) e diretor clínico
cações mostrem não haver relação cla- risco de morte, a situação muda e um do Grupo Fleury.
ra com o fármaco testado, os trabalhos comitê independente é chamado para As explicações fornecidas pela As-
podem ser retomados. Do contrário, os analisar o caso. “Em testes clínicos gran- traZeneca, dissociando o problema de
testes podem ser abandonados. des sempre há intercorrências. Isso é saúde do emprego da vacina, foram con-
O público raramente fica sabendo normal e o comitê de especialistas ava- sideradas satisfatórias, com os testes
desses percalços. Mas, entre setembro lia a situação”, pondera o imunologista sendo retomados nos países, alguns de
e outubro, os testes clínicos de fase 3, a Jorge Kalil, da Faculdade de Medicina forma mais rápida e outros mais lenta-
última etapa antes da aprovação final, da Universidade de São Paulo (FM-USP) mente. No Brasil, uma semana após a
de duas vacinas contra Covid-19 — a e diretor do Laboratório de Imunologia notificação do incidente, os trabalhos
da empresa britânica AstraZeneca em do Instituto do Coração (InCor). “Os com o imunizante foram reiniciados.
parceria com a Universidade de Oxford problemas podem não estar diretamen- Nos Estados Unidos, o aval ocorreu
e a da farmacêutica Janssen, do grupo te relacionados com a vacina. Quando apenas no dia 23 de outubro. Em outro
norte-americano Johnson & Johnson — isso fica comprovado, o estudo segue. A episódio, o jornal O Globo divulgou no
sofreram interrupções que se tornaram esperança nas vacinas contra Covid-19 dia 21 de outubro a morte de um volun-
notícia. Em ambos os casos, os trabalhos continua alta.” tário que participou dos testes da vaci-
foram retomados, mas a divulgação da O primeiro contratempo veio a públi- na britânica no Brasil. Mas, segundo o
parada temporária nas pesquisas gerou co há cerca de dois meses. Um comuni- diário, essa pessoa fazia parte do grupo
preocupação. As duas vacinas usam di- cado da AstraZeneca, que testa sua can- de controle, que recebeu placebo e não
ferentes adenovírus (vírus que causam didata a vacina em 50 mil indivíduos do o imunizante. O caso não provocou a
problemas respiratórios em animais ou Reino Unido, Brasil, Índia, África do Sul suspensão dos testes.
humanos) para transportar material do e Estados Unidos, foi divulgado no dia O segundo candidato a imunizante
Sars-CoV-2 capaz, em teoria, de esti- 8 de setembro confirmando uma notícia em fase 3 que teve seus ensaios clínicos
temporariamente suspensos foi o da sub-
1 sidiária do grupo Johnson & Johnson. A
parada ocorreu nos Estados Unidos ofi-
cialmente no dia 12 de outubro. O motivo
da paralisação foi parecido com o que
afetou os testes da vacina da AstraZene-
ca: um voluntário teria tido um derrame,
cuja causa teve de ser investigada. Não
foi divulgado se o indivíduo que apre-
sentou a intercorrência era do grupo de
controle ou tinha recebido o imunizante.
No dia 23 de outubro, foi noticiado pe-
lo jornal norte-americano Washington
Post que a empresa teria recebido o si-
nal verde da FDA, autoridade sanitária
norte-americana, para retomar os testes.
Além das duas vacinas, testes conduzi-
dos pelos Institutos Nacionais de Saúde
(NIH) com um tratamento experimen-
tal contra Covid-19 foram igualmente
Aplicação da vacina da AstraZeneca durante teste clínico em andamento na África do Sul suspensos em razão de possíveis efeitos

24 | NOVEMBRO DE 2020
2 ma de saúde não tem muita importância.
Alguns pacientes de câncer já são diabé-
ticos e essa é uma doença que sabemos
controlar”, pondera o epidemiologista.
“Mas a situação muda se estamos dian-
te de uma vacina que, apesar de muito
eficaz, aumenta o risco de diabetes em
pessoas saudáveis, algo ruim.”
O fato de o fracasso ser mais comum
do que o sucesso nos testes de vacinas
é embasado por números. Um estudo
publicado em maio no repositório do
National Bureau of Economic Research
(NBER), a partir de trabalho de pesqui-
sadores do Massachusetts Institute of
Technology (MIT), mostra que a taxa
de aprovação de novas vacinas nos Es-
tados Unidos entre janeiro de 2000 e
janeiro de 2020 foi de 39,6%. Os pesqui-
sadores analisaram 1.838 testes clínicos
patrocinados pela indústria desde a fa-
se 1 e registraram que a maioria ficou
pelo caminho.
Outro relatório publicado em 2017
pela FDA mostra como a chegada à reta
final do processo de desenvolvimento de
uma droga não significa sua aprovação.
O estudo avaliou 22 casos que fracassa-
ram nos últimos anos. Desse total, cinco
eram vacinas – todas foram reprovadas
de forma definitiva na fase 3, principal-
Técnicos trabalham no laboratório da Janssen na Bélgica, que faz uma das candidatas a vacina mente por falta de eficácia.
de Covid-19 que sofreu breve interrupção em seus testes Os projetos farmacêuticos que nau-
fragaram buscavam vacinas específicas:
adversos. Foi o que ocorreu com o em- Devido à gravidade da pandemia, os contra herpes genital; para manter a pro-
prego do anticorpo monoclonal desen- testes com vacinas e medicamentos es- dução de insulina em pacientes com dia-
volvido pelo laboratório norte-americano tão sendo conduzidos a uma velocidade betes tipo 1; para tratar pacientes recém-
FOTOS 1 FELIX DLANGAMANDLA / BEELD /GALLO IMAGES VIA GETTY IMAGES 2 OLIVIER MATTHYS / GETTY IMAGES

Eli Lilly, medicamento feito a partir de sem precedentes e com grande cobertu- -operados de um tipo de câncer de pul-
glóbulos brancos de um dos primeiros ra dos meios de comunicação. “A exci- mão; contra tabagismo; e para prevenir
pacientes recuperados da infecção por tação e a ansiedade confundem muito a infecção por Staphylococcus aureus,
Sars-CoV-2 nos Estados Unidos. A inter- o público leigo”, afirma Paulo Lotufo, bactéria que pode causar pneumonia ou
rupção da terapia, similar a uma das que diretor do Centro de Pesquisa Clínica e infecção cardíaca.
teriam sido administradas ao presidente Epidemiológica da USP. “Normalmen- No caso do coronavírus, como as vaci-
Donald Trump durante sua internação por te, poucas pessoas acompanham testes nas têm como público-alvo boa parte da
causa do novo coronavírus, foi anunciada clínicos porque eles envolvem doenças população global, o número de pessoas
em 13 de outubro sem muitas explicações. específicas”, diz Lotufo. usadas na fase 3 precisa ser ainda maior.

C
De acordo com a empresa, houve uma Por isso, o risco de surgirem problemas
discrepância importante na condição clí- omo as vacinas têm como públi- também aumenta. Mas, em compensa-
nica dos participantes que receberam o co-alvo pessoas saudáveis, os cui- ção, o número elevado de imunizantes
placebo em comparação com a dos me- dados são redobrados. Segundo em fase de testagem avançada amplia
dicados com o anticorpo monoclonal, Lotufo, um exemplo hipotético as chances de algumas delas darem cer-
que também receberam outra droga ex- reforça a importância de testes to. Das 44 vacinas em desenvolvimento
perimental, o remdesivir. A situação le- com imunizantes serem feitos contra o coronavírus que estão sendo
vou à suspensão da pesquisa para uma com rigor. “Imagine um medicamento testadas em humanos, 10 estão na der-
reavaliação dos protocolos. Embora a Eli para câncer de pulmão com resultados radeira fase 3. “É preciso que se façam
Lilly esteja pleiteando a aprovação em muito bons. Ele aumenta em dois anos esforços para uma vacina segura e efi-
caráter emergencial de seu tratamento, a sobrevida dos pacientes, mas também caz, mas no menor tempo que os pro-
os testes patrocinados pelos NIH ainda eleva a incidência de diabetes em 50% cedimentos de segurança permitirem”,
não foram reiniciados. dos casos. Nesse contexto, o novo proble- afirma Granato. n

PESQUISA FAPESP 297 | 25


COVID-19

A
INCÓGNITA
DAS
REINFECÇÕES
N
Comprovação de que o fim de agosto, quando a Covid-19 Poucas semanas antes, pesquisadores da
já havia atingido 25 milhões de Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
o Sars-CoV-2 pode pessoas pelo mundo, cientistas da Universidade de São Paulo (FMRP-
de Hong Kong anunciaram o -USP) haviam relatado que uma técnica
infectar mais de uma primeiro caso documentado de de enfermagem de 24 anos testara positivo
vez a mesma pessoa reinfecção pelo novo coronavírus. para o vírus duas vezes em um interva-
No estudo publicado no periódico Clinical lo de 50 dias – a primeira em meados de
amplia o desafio Infectious Diseases, cientistas detalharam maio e a segunda no fim de junho. Nesse
a história de um homem de 33 anos que caso, não foi possível fazer a análise genô-
de compreender o vírus testou positivo em 15 de agosto para Co- mica porque o material colhido do nariz
vid-19 quatro meses e meio depois de ter havia sido descartado.
e enfrentar a doença sido diagnosticado pela primeira vez. A Nos últimos meses, começaram a surgir
reinfecção só foi comprovada porque os notícias sobre pacientes reinfectados pelo
Tiago Jokura vírus coletados no segundo exame posi- Sars-CoV-2, gerando preocupação na po-
tivo foram comparados geneticamente pulação e acendendo o sinal de alerta nas
com os primeiros que o paciente contraiu autoridades e na comunidade científica. A
FOTO LÉO RAMOS CHAVES

em abril – e eram diferentes. Essa obser- possibilidade de reinfecção poderia suge-


vação eliminou a suspeita de que o novo rir que as pessoas acometidas pela doença
resultado positivo fosse causado por vírus não desenvolveriam imunidade contra
que poderiam estar inativos no corpo do ela ou que essa imunidade teria prazo de
paciente após a primeira infecção. validade. Além disso, trouxe mais um ele-
mento para as discussões sobre a eficácia -clínico do Grupo Fleury e professor
das medidas de isolamento social e as va- da Universidade Federal de São Paulo
cinas em desenvolvimento para combater (Unifesp). “Então, não é estranho que as
o novo coronavírus.
Passados dois meses do caso de rein- AS REINFECÇÕES pessoas contraiam o Sars-CoV-2 mais de
uma vez. Em minha opinião, contudo, as
fecção em Hong Kong, o número de in-
fectados pela Covid-19 quase dobrou – já DEVEM SER VISTAS reinfecções devem ser vistas como exce-
ções e não como algo comum.”
são 45 milhões de casos no mundo – e os
pacientes reinfectados confirmados de que
COMO EXCEÇÕES Especialistas alertam para a proba-
bilidade de que a maior parte dos casos
se tem notícia mundo afora não chegam a
meia dúzia. Os casos suspeitos estão na ca-
E NÃO COMO ALGO de reinfecção jamais seja identificada,
já que a maioria dos que contraem Co-
sa de centenas. Houve registros documen-
tados também na Holanda, no Equador,
COMUM, DIZ GRANATO vid-19 é assintomática. Ou seja, muitos
indivíduos podem se contaminar com o
na Bélgica e nos Estados Unidos. Neste vírus sem saber até fazer o teste. Para os
último, um paciente de 25 anos foi aco- que desenvolvem os sintomas e testam
metido duas vezes pela Covid-19 em um positivo pela primeira vez, não é possível
intervalo considerado curto para doenças assegurar que não tiveram contato com
respiratórias causadas por vírus: 48 dias o novo coronavírus antes.
entre o primeiro e o segundo contágio. O Lopes conta que a investigação é traba- Se alguém diagnosticado tiver se cura-
caso tornou-se conhecido ao ser divulgado lhosa e que há pelo menos três maneiras do e for reinfectado, mas não tiver sin-
no periódico The Lancet. Na segunda vez de identificar um contágio reincidente. “A tomas, pode ser que nunca saiba a não
em que foi infectado, o paciente apresen- primeira é comparar os vírus coletados ser que passe por outro teste, apenas
tou sintomas mais severos, precisando de do paciente em momentos distintos por por rotina. Foi o que aconteceu com o
auxílio para respirar. O mesmo aconteceu meio de uma análise genética. Isso nem paciente de Hong Kong, de agosto, cujo
nas reinfecções holandesa – em que a pa- sempre é possível por falta de material segundo contágio só foi detectado por
ciente, fragilizada por uma quimioterapia, coletado nas duas ocasiões ou por algum acaso em um exame feito em aeroporto.
morreu – e equatoriana. defeito na coleta ou no armazenamento”, Em resumo, para haver um caso docu-
Especialistas afirmam que o mais prová- diz. Os laboratórios costumam guardar as mentado de reinfecção, o mais prová-
vel seria que os casos de reinfeção fossem amostras colhidas, mas diante do grande vel é que o paciente tenha apresentado
associados a quadros assintomáticos ou com volume de coletas realizadas nos últimos sintomas em dois momentos distintos e
sintomas mais amenos do que na primeira meses muitas vezes é preciso fazer des- tenha sido testado em ambos.
infecção. Dessa forma, sobreviver ao pri- cartes. “Também é possível entrevistar Qualquer que seja o real cenário por
meiro ataque do Sars-CoV-2 seria garantia o paciente para saber se houve transmis- trás de tantas incertezas, ele está longe
de tornar o sistema imune capaz de conter são da infecção para alguém próximo, de ser desolador. “Nossa maior preocupa-
os danos da Covid-19 de maneira perma- em casa, por exemplo, o que estabelece ção, no momento, não são as reinfecções.
nente. A ocorrência de casos reincidentes um vínculo epidemiológico. O terceiro Primeiro, porque é difícil comprová-las.
mais severos aponta para outras hipóteses: caminho é identificar o surgimento ou Segundo, porque estamos preocupados
a exposição a uma carga viral baixa no pri- o aumento na quantidade de anticorpos com a proteção primária das pessoas.
meiro contágio poderia gerar uma resposta relacionados à Covid-19 em alguém que A primeira onda de contágios no Brasil
imune fraca, incapaz de barrar uma nova já havia contraído o vírus.” ainda está evoluindo e não sabemos o
infecção. Outra possibilidade seria a de que O trabalho de detetive, entretanto, quanto vai crescer”, ressalta Granato.
a exposição a uma carga viral maior na re- nem sempre esclarece todas as dúvidas. Em termos práticos, isso significa que
infecção provocaria sintomas mais severos. Os infectologistas ainda não sabem se as as medidas de isolamento social e o uso
No Brasil, pelo menos 93 casos de possí- reinfecções são mais ou menos graves de máscaras para evitar o espalhamento
veis reinfecções por Covid-19 estavam sen- do que o primeiro contágio e se elas são do vírus continuam importantes mes-
do estudados no fim de outubro, segundo mais prováveis de ocorrer depois de um mo para quem já testou positivo, uma
levantamento divulgado em reportagem da período curto ou de um tempo mais lon- vez que reinfectados, assintomáticos
CNN Brasil. Vinte e oito desses casos são go. “Dos pacientes que avaliamos aqui no ou não, podem seguir transmitindo o
acompanhados pelo infectologista Max Hospital das Clínicas, 80% tiveram maior Sars-CoV-2. “É importante não confundir
Igor Lopes, que coordena um ambulatório gravidade de sintomas na segunda infec- flexibilização do contato social com um
dedicado exclusivamente a suspeitas de ção”, informa Lopes. afrouxamento nos cuidados de prevenção
reinfecção no Hospital das Clínicas (HC) A possibilidade de contrair Covid-19 contra o vírus. Pelo contrário: quando se
da Faculdade de Medicina da Universida- mais de uma vez, contudo, não era uma aumenta a liberdade das pessoas de ir e
de de São Paulo (FM-USP), em São Paulo. completa surpresa. “A reinfecção não é vir, aumenta a responsabilidade de cada
A equipe tenta descobrir como se dão as algo inesperado para vírus respiratórios, um de nós de proteger a nós mesmos e
reinfecções e quais informações elas po- como o influenza e os outros coronaví- aos outros”, alerta Granato. n
dem oferecer para melhor compreensão rus que circulam entre humanos. Isso é
do contágio, do controle e até do potencial conhecido e documentado”, explica o Os artigos científicos consultados para esta reportagem
das vacinas contra a Covid-19. infectologista Celso Granato, diretor- estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 297 | 27


COVID-19

TRANSMISSÃO
RESTRITA
Estudos sugerem que crianças
e adolescentes não são
mais importantes que adultos
na disseminação do Sars-CoV-2

Frances Jones

VOLANTHEVIST / GETTY IMAGES


E
ntre as questões sem respostas Outro artigo científico recente sugere
definitivas que pairam sobre o que ainda não há dados suficientes para
novo coronavírus, uma delas tem concluir se as crianças e os adolescen-
importância crucial para o retor-
no seguro das aulas: o papel de TRABALHO INDIANO tes transmitem mais ou menos o Sars-
-CoV-2. Publicado em 25 de setembro no
crianças e adolescentes na cadeia
de infecção e transmissão do Sars-CoV-2. INDICA QUE CONTATOS Jama Pediatrics, o trabalho coordenado
por pesquisadores do University College
Embora haja evidências na literatura mé-
dica e científica sustentando que os mais
ENTRE PESSOAS DA London, do Reino Unido, fez uma revisão
sistemática de 32 artigos produzidos até
jovens são capazes de transmitir o vírus, a
exemplo de qualquer indivíduo, seu peso
MESMA FAIXA ETÁRIA 28 de julho sobre a prevalência de Sars-
-CoV-2 no público infantojuvenil, sem,
na disseminação da Covid-19 parece, até
agora, pequeno. “No caso dos vírus in-
APRESENTAM MAIOR no entanto, chegar a um veredicto final.
De concreto, o estudo destacava que o
fluenza e sincicial respiratório, que cau- RISCO DE INFECÇÃO risco de as crianças pegar Covid-19 se-
sam infecções de vias aéreas superiores e ria 44% menor do que o de pessoas com
inferiores, as crianças são vetores impor- mais de 20 anos.
tantes da dinâmica de transmissão desses Diferentemente, um artigo publica-
patógenos na comunidade de uma forma do em outubro no Pediatrics feito com
geral”, afirma o pediatra Marco Aurélio Como os mais jovens adoecem menos, 57 mil cuidadores infantis nos Estados
Palazzi Sáfadi, da Faculdade de Ciên- a base populacional para estudos é me- Unidos, em sua maioria trabalhando du-
cias Médicas da Santa Casa de São Paulo nor entre a população em idade escolar rante a pandemia em programas para
(FCM-SCSP) e coordenador do Serviço e os resultados das pesquisas costumam crianças com menos de 6 anos, registrou
de Infectologia Pediátrica do Hospital ser conflitantes, afirma Simões e Silva. que eles tinham o mesmo risco de serem
Infantil Sabará. “Para Covid-19, isso não Uma pesquisa realizada em dois esta- infectados pelo novo coronavírus do que
ficou demonstrado. Elas participam, sim, dos do sul da Índia, segundo país em qualquer outro adulto.

N
podem transmitir o Sars-CoV-2, mas até número de casos confirmados, sugere
o momento não foram identificadas como que o maior risco de infecção se dá entre o Instituto da Criança e do Ado-
as grandes vilãs.” pessoas da mesma faixa etária. Segundo lescente do Hospital das Clíni-
O que não há dúvidas é que crianças o trabalho, publicado em 30 de setem- cas da Faculdade de Medicina
e adolescentes são os mais poupados bro na revista Science, foram analisados da Universidade de São Paulo
nessa pandemia. No Brasil, entre 0,6% e dados de mais de 575 mil indivíduos de (FM-USP), que de maneira geral
0,7% do total de óbitos por Covid-19 são todas as idades expostos a 84.965 casos atende os casos mais graves de
de menores de 20 anos, de acordo com confirmados de Covid-19. Covid-19, uma das prioridades agora é
Sáfadi, que também é presidente do De- De acordo com o primeiro autor do saber se os jovens de até 20 anos que
partamento de Infectologia da Sociedade estudo, o economista e epidemiologis- sobreviveram à fase aguda da doença
Brasileira de Pediatria (SBP). “Menos de ta Ramanan Laxminarayan, diretor do terão órgãos e sistemas afetados no longo
1% em um grupo que representa mais de Centro para Dinâmicas, Economia e Po- prazo. Dois terços das crianças e ado-
25% da população”, ressalta o pediatra. lítica de Doenças (CDDEP), com sede lescentes com a Covid-19 confirmada
“Há mortes, mas definitivamente ocor- em Washington, nos Estados Unidos, no instituto já tinham alguma condição
rem em um menor número.” essa tendência se manifestou principal- crônica antes de se infectarem. “Não
Além de morrer menos em razão do mente entre as crianças e adolescentes sabemos o que ocorre com os pacientes
novo coronavírus, crianças e adolescen- de até 14 anos (apesar de as escolas es- que saem da hospitalização ou têm Covid
tes, uma vez infectados, costumam apre- tarem fechadas) e indivíduos com mais mesmo moderada. Será que terão algum
sentar sintomas mais brandos, quando de 64 anos. “Adolescentes acima dos 10 impacto em outros órgãos, uma nova
apresentam, e têm menor risco de de- anos transmitem o vírus efetivamen- doença autoimune, problemas emocio-
senvolver a forma mais grave da doença. te; essa faixa etária transmite com mais nais?”, indaga o pediatra Clovis Artur
Alguns estudos apontam também que eficiência que as crianças mais novas”, Almeida da Silva, do Departamento de
são menos suscetíveis à infecção pelo disse Laxminarayan a Pesquisa FAPESP. Pediatria da FM-USP. “Essas são grandes
Sars-CoV-2. “Pesquisas indicam que as O trabalho apresentou outros dados: perguntas para o futuro. E só vamos ter
crianças se infectam um pouco menos 71% das pessoas infectadas que depois as respostas em 2021 ou 2022.” n
do que os adultos. Em geral, qualquer tiveram seus contatos rastreados não
virose dá mais em crianças, mas não é transmitiram o coronavírus para nin-
esse o caso da Covid-19”, afirma a nefro- guém; no entanto, 8% dos indivíduos Artigos científicos
logista pediátrica Ana Cristina Simões e infectados, cuja faixa etária não foi de- LAXMINARAYAN, R. et al. Epidemiology and transmission
dynamics of Covid-19 in two Indian states. Science. 30
Silva, da Universidade Federal de Minas talhada no estudo, foram responsáveis set. 2020.
Gerais (UFMG). “Há quem diga que, por por 60% das novas infecções. “Em tese, GILLIAM, W. S. et al. Covid-19 transmission in US child
serem pouco sintomáticas, elas poderiam as crianças poderiam atuar como super- care programs. Pediatrics. 1º out. 2020 (preprint).
VINER, R. M. et al. Susceptibility to Sars-CoV-2 infection
transmitir o vírus com mais facilidade, transmissoras, mas não temos evidência among children and adolescents compared with adults.
mas não temos provas disso.” disso”, pondera o epidemiologista. JAMA Pediatrics. 25 set. 2020.

PESQUISA FAPESP 297 | 29


CAPA

O
PANTANAL
PEDE
ÁGUA
30 | NOVEMBRO DE 2020
MAURO PIMENTEL / AFP

A maior seca em meio século


e uma temporada de incêndios
sem precedentes ameaçam a maior
planície inundável do planeta

Marcos Pivetta

E
m 18 de outubro passado, a régua da
Marinha que há 120 anos mede a al-
tura do rio Paraguai no município sul-
-mato-grossense de Ladário, vizinho
a Corumbá, marcou -33 centímetros
(cm) em relação ao zero. Foi o menor
registro desde setembro de 1971, quando atingiu
-51 cm, e entre os seis piores da história da escala,
a mais antiga das seis instaladas ao longo da bacia
do Paraguai, cujas cheias e secas ditam o pulso
periódico de inundação que faz o Pantanal ser
a maior província alagada do planeta. O recorde
negativo foi em 1964, quando a régua de Ladário
apontou -61 cm. Em 18 de outubro de 2019, um ano
não chuvoso, a marca da escala estava em 1,76 m
acima do zero, 2 metros mais alta.
Entre novembro e meados de março deste ano,
período que costuma concentrar o grosso das chu-
vas anuais sobre a região, a pluviosidade sobre a
bacia foi de apenas 350 mm, pouco mais de 40%
da média histórica, segundo levantamento da Em-
brapa Pantanal. “Neste ano, temos o menor nível de
inundação do Pantanal em meio século”, comenta o
biólogo José Sabino, especialista em peixes da Uni-
versidade Anhanguera-Uniderp, de Campo Grande.
O zero da régua de Ladário indica que o rio Para-
guai apresenta, naquele trecho, apenas 4 metros
de profundidade. Além de inviabilizar a navegação
na hidrovia, com prejuízos para o escoamento da
produção de soja e minério do Centro-Oeste, níveis
tão baixos atestam a gravidade da escassez hídrica.
A grande seca é o pano de fundo da escalada
atual de queimadas que assola o Pantanal, o menor
dos seis biomas terrestres brasileiros. No Brasil,
o Pantanal se estende por 150 mil quilômetros
quadrados (km2) dos estados de Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul, área equivalente a 1,8% do
território nacional. Uma pequena parte do bio-
ma, algo como 30 mil km2, encontra-se em áreas
adjacentes do Paraguai e da Bolívia, coladas à
Jacarés e aves sentem fronteira brasileira. A intensidade do fogo em
os efeitos das 2020 não tem registro histórico recente e con-
queimadas e da seca tribui para sufocar ainda mais o pulso das águas
nas proximidades da
rodovia Transpantaneira,
no bioma, causando destruição em sua flora e
em Mato Grosso, em fauna. Cenas de grandes labaredas consumindo
setembro de 2020 a vegetação — um misto de florestas, cerrados e

PESQUISA FAPESP 297 | 31


Escalada recorde dos incêndios
Número de focos de calor contabilizados até 25 de outubro de 2020
é maior que os registros dos anos inteiros da série histórica do Inpe

20.996

12.486 12.536

9.869 10.025
8.987 8.688
8.020
7.447
6.782
5.737 5.773
5.184
4.545 4.458
3.722 3.532 3.396
3.173
2.290
1.659 1.567 1.691

1
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020*
FONTE INPE *Até 25/10/2020

campos que ocupam 84% do Pantanal — e ima- apontam uma incidência sem paralelo do fogo no Incêndio em agosto
gens dramáticas de onças, jacarés e aves mortos bioma. Até 25 de outubro, haviam sido contabiliza- deste ano na
região de Poconé,
correram o noticiário nacional e internacional. dos 20.996 focos de incêndio no Pantanal, mais do em Mato Grosso
Entre janeiro e 18 de outubro de 2020, 27% da que o dobro de todo 2019, quarto pior ano da série
área do ecossistema tinha sido alvo de incêndios, histórica. A quantidade de focos nos 10 primei-
inclusive setores dentro de unidades de conser- ros meses de 2020 supera com folga os números
vação e terras indígenas, segundo dados do La- referentes aos anos inteiros desde 1998, quando

FOTOS 1 LUCAS NINNO / GETTY IMAGES 2 JOÃO PAULO GUIMARAES / AFP 3 MAURO PIMENTEL / AFP
boratório de Aplicações de Satélites Ambientais se iniciam os registros do programa no Pantanal.
(Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro Antes de 2020, o ano mais crítico para as queima-
(UFRJ). “Em média, a área do Pantanal brasileiro das na região tinha sido 2005, com 12.536 focos.
que sofre com queimadas não passa de 10%”, diz a A forte estiagem prolongada cria condições
climatologista Renata Libonati, uma das coordena- para que o fogo se mantenha e se propague mais
doras do Lasa, que acompanha o avanço das laba- facilmente, mas, sozinha, é incapaz de acender a
redas no bioma desde o ano passado. “O Pantanal faísca que inicia os incêndios. “São necessários
se desenvolveu com um certo grau de adaptação três ingredientes para que ocorra um incêndio
ao fogo e é capaz de se regenerar em parte, mas florestal”, explica Libonati. “Precisa haver o com-
não se mantivermos os níveis atuais de incêndios.” bustível, o comburente e a ignição do fogo.” O
Com o emprego de um algoritmo que reconhece material combustível é a vegetação, que em anos
automaticamente áreas de queimadas em meio às secos fica mais exposta e ainda mais suscetível ao
imagens captadas pelo sensor Visible Infrared Ima- avanço das labaredas. O comburente, aquilo que
ging Radiometer Suite (VIIRS) do satélite norte- reage com o combustível e alimenta o fogo, são
-americano S-NPP, o trabalho do Lasa consegue as condições meteorológicas, como estiagem pro-
identificar incêndios em áreas de pelo menos 25 longada, baixa umidade do ar, altas temperaturas
hectares, um quadrado com 500 metros de lado. e forte vento. O processo de ignição pode se dar
Dados do programa de queimadas do Instituto de duas formas, naturalmente, por meio de raios,
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também ou causado pelo homem.

32 | NOVEMBRO DE 2020
Diferentemente do que ocorre na Amazônia, da área do meio ambiente também tem sido tímida
um bioma muito úmido onde os incêndios natu- e descoordenada na prevenção e no combate aos
rais são considerados inexistentes, raios podem incêndios. No dia 21 de outubro, o Ministério do
iniciar focos de fogo no Pantanal, mas apenas em Meio Ambiente, por exemplo, determinou que os
condições muito específicas. A combustão da ve- brigadistas do Sistema Nacional de Prevenção e
getação sem intervenção humana ocorre somente Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) pa-
na transição entre a estação seca e a úmida e vice- rassem em todo o país seus esforços para conter
-versa, quando há produção de raios. No entanto, as chamas e voltassem a suas bases. Comunicado
esses incêndios causados por descargas elétricas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
costumam ser extremamente raros. “A estação Recursos Naturais Renováveis (Ibama) justificou a
chuvosa de 2019 tinha sido fraca no Pantanal. A medida alegando falta de recursos. Dois dias mais
de 2020 também foi menor do que o normal. Essa tarde, em 23 de outubro, segundo o site Poder360,
estiagem prolongada, somada ao ar seco e quen- o Ibama recebeu mais verba e ordenou a volta dos
te, favorece a ocorrência de queimadas de maior brigadistas ao trabalho de campo.

A
extensão”, explica o climatologista José Marengo,
chefe do setor de Pesquisa e Desenvolvimento do dinâmica que faz do Pantanal um
Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de bioma praticamente único deriva
Desastres Naturais (Cemaden). Em 2020, dois ter- de suas condições naturais mui-
ços dos quase 21 mil focos de queimadas se con- to particulares. Trata-se de uma
centraram em agosto e setembro, bem no auge da extensão de terra extremamente
estação seca, segundo dados do Inpe. plana, uma planície, com altitudes
Essa situação reforça a ideia de que a maior parte que raramente ultrapassam os 200 metros. Sua
dos incêndios do Pantanal tenha se iniciado por ação parte norte, no entanto, é ligeiramente mais elevada
humana. Usar o fogo para queimar excesso de ve- do que a sul. A cada quilômetro que se percorre no
getação e regenerar o solo para a agricultura é uma sentido meridional a altitude do terreno diminui,
prática antiga, usada em várias partes do mundo. em média, poucos centímetros. Essa diferença cria
Guaxinim morto
Além de eventuais benefícios para o plantio, esses uma suave inclinação e faz com que toda a água que pelas chamas;
incêndios, se pequenos e controlados, diminuem entra na bacia do Paraguai flua na direção Cáceres- bombeiro combate
a quantidade de biomassa que poderia ser usada -Corumbá-Porto Murtinho. O leito do rio Paraguai foco de incêndio
para provocar grandes queimadas. No Pantanal,
não é diferente. Embora polêmico, o procedimento,
quando feito dentro da lei e com critérios técnicos,
não tem potencial de gerar incêndios na quantidade
e na extensão verificadas neste ano.
É possível que, em um ano muito seco como
2020, alguns fogos intencionais que seriam facil-
mente administráveis tenham saído de controle
por uma combinação de fatores, como inexperiên-
cia de seus propagadores ou excesso de biomassa
(vegetação) disponível no solo. Resta também a
hipótese de fogo proposital, incêndios criminosos
com o objetivo de abrir novas áreas de pastagem
para gado, a grande atividade econômica do Pan-
tanal, e de agricultura. “Não se pode descartar o
dolo como causa de muitos incêndios”, comenta
Sabino. “Vemos que muitas queimadas se iniciam
2
fora de áreas protegidas e avançam pelo interior
das unidades de conservação.” Embora um decreto
federal de 15 de julho tenha proibido as queimadas
em propriedades rurais de todo o país por 120 dias,
e os governos dos estados de Mato Grosso e Mato
do Grosso do Sul também tenham adotado medi-
das semelhantes, o Pantanal continuou ardendo.
Diferentemente da Amazônia, onde há grandes
extensões de florestas públicas, mais de 90% da
área do Pantanal é propriedade privada. “É possí-
vel saber quem são os donos das terras em que as
queimadas ocorrem e responsabilizá-los na forma
da lei”, diz Libonati. A atuação de órgãos federais 3
e seus afluentes é o caminho natural para onde De acordo com o estudo descrito no livro, em
a água das chuvas se encaminha. Para o ciclo de janeiro de 2006 apenas um trecho modesto do
cheias e secas, é importante chover não apenas noroeste do bioma e sua parte central, em torno
localmente, mas também nas nascentes dos rios, do rio Taquari, estavam inundados. De março até
localizadas nos planaltos do entorno, que fluem maio, a cheia se intensificou nessas áreas e pene-
para áreas mais baixas da planície. “Pode demorar trou até em trechos do centro-leste do Pantanal,
até seis meses para as águas mais ao norte da bacia zona menos suscetível às cheias. Em junho e ju-
chegarem ao sul do Pantanal”, diz o geólogo Mario lho, no auge da estação mais seca, praticamente
Assine, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), toda a porção ocidental do bioma, de norte a sul,
campus de Rio Claro, que há 25 anos estuda a geo- estava sob as águas – um reflexo das chuvas que
morfologia da região. tinham caído em sua porção setentrional no início
A descida das águas fluviais é tão lenta porque do ano. Entre agosto e novembro, o oeste começou
o rio Paraguai, cuja extensão total chega a 2.700 a secar, mas setores da região central, em torno
km, apresenta em território nacional dois gran- do Taquari, permaneceram alagados, ainda que
des gargalos: um ao norte, quando o rio encontra de forma menos expressiva. “A existência dessa
a serra do Amolar; outro, cerca de 500 km ao sul, dinâmica de inundação é essencial para a manu-
em Urucum. Os estreitamentos de margem fazem tenção do Pantanal”, diz Assine. “Se ela se alterar,
as águas do rio transbordar em vários pontos da a planície se descaracteriza.”
planície e criam a paisagem sazonalmente inun- Estudos feitos antes da seca deste ano e da esca-
dada, pontuada pela cheia de várzeas e presença lada das queimadas indicam que o ciclo de inunda-
de lagos e áreas alagadas. Por meio de imagens de ções pode estar perdendo força. Artigo publicado
satélites de 2006, Assine e colaboradores acom- em setembro deste ano na revista científica Acta
panharam o caminhar das cheias e secas durante Limnologica Brasiliensia calculou uma redução de
um ano típico no bioma, conforme mostraram no 16% na extensão da área alagada no norte do Panta-
livro Dynamics of the Pantanal wetland in South nal no mês de agosto, que marca o pico de estação
America, editado em 2016. seca, em um período de 10 anos. Em 2008, a área
sob as águas chegava a 1.125 km2, segundo imagens
de satélites. Em 2018, era de 950 km2. “Isso ocor-
reu porque houve uma diminuição no número de
dias com chuva nessa área”, comenta o ecólogo
aquático Ernandes Sobreira Oliveira-Júnior, da
Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat),
de Cáceres, principal autor do estudo. No trabalho,
Oliveira-Júnior e seus colegas analisaram uma sé-
rie histórica da pluviosidade média mensal de 42
anos, entre 1971 e 2013. “Hoje o norte do Pantanal
tem 13% mais dias sem chuva do que ocorria há 50
anos”, compara o pesquisador da Unemat.
As previsões sobre o clima futuro no Pantanal
são de natureza incerta. “A maior parte dos mode-
los climáticos aponta para um aumento de tempe-
1
2

Vista aérea da fumaça


produzida pelos incêndios
em 14 de setembro
no Pantanal (acima)
e trecho em que
o rio Paraguai passa
ao lado da serra do Amolar,
na divisa de Mato Grosso
com Mato Grosso do Sul
Área queimada corta bioma Mato Grosso

de norte a sul
Levantamento do Lasa/UFRJ indica que, entre 1º de janeiro
e 18 de outubro deste ano, mais de um quarto do Pantanal
brasileiro tinha sido afetado por incêndios

Pantanal
BOLÍVIA
Unidades de conservação

Terras indígenas

Área queimada (1º/jan a 18/out)

27%
do bioma
PARAGUAI Mato Grosso
do Sul
Pantanal foi
consumido
pelo fogo 100 km

ratura nas próximas décadas”, explica Marengo. A. Koenig, em Bonn, e da Universidade Federal
“Ainda que não haja um consenso sobre qual seria de Mato Grosso (UFMT), principal autor do pa-
a tendência das chuvas, a maioria das previsões per. “Se o regime de chuvas entrar em colapso, o
indica um clima mais seco nesse bioma.” Por ter Pantanal, como conhecemos hoje, acaba.”
a Amazônia ao norte, fonte de umidade para todo Depois da segunda quinzena de outubro, co-
o país com seus “rios voadores” (ver Pesquisa FA- mo era esperado, as chuvas começaram a voltar
PESP nº 158), os níveis de pluviosidade do bioma ao Pantanal. Ainda não se sabe qual pode ser sua
são em parte influenciados pelo que ocorre na extensão. Elas devem contribuir para diminuir as
grande floresta tropical. Se cair menos água na queimadas, mas também causar um problema tí-
Amazônia, provavelmente o Pantanal receberá pico das temporadas pós-fogo: carregar as cinzas
menos umidade. Da mesma forma, se chover me- dos grandes incêndios e biomassa oxidada para os
nos nas nascentes dos rios da bacia do Paraguai, rios e lagoas e provocar a morte por sufocamento
que se situam em áreas próximas de Cerrado, a de peixes e seres aquáticos. Esse fenômeno anual
grande planície inundável se encolhe. e natural, conhecido como decoada, reduz a quan-

U
tidade de oxigênio disponível na água e aumenta
m artigo publicado no periódico a de dióxido de carbono. “É possível que ocorra
PLOS ONE em janeiro deste ano, uma decoada mais intensa do que o normal”, diz
antes do início das queimadas mais Sabino, que estuda os peixes do Pantanal. “Se,
expressivas de 2020, sugere que o após os incêndios recordes, a matéria queimada
Pantanal pode ser alvo no futuro não se infiltrar no solo, é provável que ocorra uma
próximo de uma das manifestações decoada sem precedentes.” n
mais típicas das chamadas mudanças climáticas:
o aumento dos eventos extremos. Nessa categoria
de oscilações exacerbadas do clima, são incluídos Projeto
FOTOS 1 MAURO PIMENTEL / AFP 2 JOSÉ SABINO

Mudanças paleo-hidrológicas, cronologia de eventos e dinâmica


tanto períodos intensos e prolongados de chuvas sedimentar no quaternário da bacia do Pantanal (nº 14/06889-2);
como de secas. No caso do Pantanal, haveria espe- Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável
cialmente, segundo o trabalho, uma tendência de Mario Luiz Assine (Unesp); Investimento R$ 253.715,39.

ocorrer reiteradas estiagens pronunciadas. “Essas Artigos científicos


secas seriam ocasionadas fundamentalmente pelo LÁZARO, W. L. et al. Climate change reflected in one of the largest
aquecimento das águas superficiais dos oceanos wetlands in the world: An overview of the Northern Pantanal water
Atlântico e Pacífico no hemisfério Norte”, disse a regime. Acta Limnologica Brasiliensia. 18 set. 2020.
THIELEN, D. et al. Quo vadis Pantanal? Expected precipitation extre-
Pesquisa FAPESP o biólogo alemão Karl-Ludwig mes and drought dynamics from changing sea surface temperature.
Schuchmann, do Museu de Pesquisa Zoológica PLOS ONE. 7 jan. 2020.

PESQUISA FAPESP 297 | 35


TERRA
MOLDADA
POR
CHEIAS
E QUEIMADAS
36 | NOVEMBRO DE 2020
Água e, em menor escala, fogo
influenciam a distribuição
e a diversidade de plantas no Pantanal

Ricardo Zorzetto

R
ios sinuosos atravessando pregui- uso controlado do fogo para eliminar o excesso
çosamente trechos de mata e lagoas de biomassa de gramíneas das formações abertas
frequentadas por garças, tuiuiús e ajuda a prevenir grandes incêndios.
jacarés logo vêm à mente quando Campos formados por gramíneas e arbustos
se fala em Pantanal. A presença da ocupam 7,9 milhões de hectares (52,4%) da pla-
água está intimamente associada à nície pantaneira, um terço deles temporária ou
paisagem desse ambiente, uma das áreas alagáveis continuamente alagados, segundo os dados do
mais extensas do mundo. Embora seja o menor MapBiomas. Concentradas ao longo dos rios e na
dos seis biomas brasileiros é mais vasto do que região mais úmida, a oeste, as florestas cobrem
a Grécia, a Inglaterra e uma centena de outros 19,6% do Pantanal. Outros 9,2% são compostos
países. Também é o mais bem conservado, apesar por vegetação típica de Cerrado, localizada a les-
da crescente conversão de seus campos naturais te. A diversidade da flora e da fauna pantaneira
em pastagens para o gado de corte nas últimas é menor do que a da Amazônia, do Cerrado e da
décadas. Em 2019, o Pantanal ainda mantinha 84% Mata Atlântica. São cerca de 2.500 espécies de
de sua vegetação nativa, segundo o levantamento plantas e 1.213 de vertebrados (580 de aves, 271
mais recente do projeto MapBiomas, que acom- de peixes, 174 de mamíferos, 131 de répteis e 57
panha o desmatamento e as alterações no uso do de anfíbios), das quais se estima que apenas 5%
solo nos ecossistemas brasileiros. A precipitação sejam exclusivas dali. O restante é compartilha-
é alta e não é homogênea, variando de mil a 1.500 do com o Cerrado e a Amazônia, ambos fonte
milímetros por ano, concentrada de outubro a importante da biodiversidade pantaneira, além
abril, mas a água que mantém até 80% de suas do Chaco e da Mata Atlântica.
terras inundadas por meses é levada para a região O número reduzido de espécies exclusivas do
pelos rios que se originam principalmente em Pantanal, no entanto, é compensado pela exube-
áreas mais altas próximas à Amazônia, ao norte, rância das populações de alguns animais. É ali
e no Cerrado, a leste. que se observam mais facilmente exemplares
A água, apesar de fundamental, não é o único de espécies compartilhadas com outros biomas,
elemento definidor da paisagem pantaneira. O como a onça-pintada (Panthera onca), a ariranha
fogo também influencia a distribuição e a abun- (Pteronura brasiliensis), o veado-campeiro (Ozo-
dância de espécies da vegetação, indicam estu- tocerus bezoarticus), a arara-azul (Anodorhyn-
dos de pesquisadores da Universidade Federal chus hyacinthinus) e o tuiuiú (Jabiru mycteria).
de Mato Grosso do Sul (UFMS). Diferentemen- “A alternância entre cheias e secas cria ambientes
te dos incêndios intensos e duradouros como muito diversos, que fornecem abrigo e alimento
os deste ano, capazes de deixar a terra arrasa- para a fauna”, conta a zoóloga Neiva Guedes, da
da por períodos ainda desconhecidos, aqueles Universidade Anhanguera-Uniderp, cujo traba-
esporádicos e de menor proporção reduzem a lho de preservação tirou a arara-azul da lista de
presença de espécies sensíveis ao fogo e favore- espécies ameaçadas de extinção.
cem o brotamento das resistentes, remodelando Desde que o clima na região se estabilizou há 18
a paisagem. “O Pantanal também depende do mil anos, a oscilação no nível das águas, determi-
fogo para ser como é”, afirma o ecólogo Danilo nada pelos pulsos anuais de inundação dos rios,
Bandini Ribeiro, da UFMS, que investiga o efei- atua como um modelador da paisagem. O nível
to de incêndios sobre a fauna e a flora da região. e a duração das enchentes, além da qualidade do
“A água e o fogo atuam de forma semelhante na solo, criam as condições para a existência de uma
CARL DE SOUZA / AFP

estruturação da vegetação. Tornam a paisagem diversidade de arranjos da vegetação. Lagoas e


Mosaico
de lagoas e rios
mais aberta”, explica o pesquisador, coordenador baías temporárias ou permanentes, habitadas
sinuosos em de um projeto na Terra Indígena Kadiwéu, em por plantas aquáticas submersas, emergentes e
Mato Grosso Mato Grosso do Sul, que vem mostrando que o flutuantes, existem ao lado de campos inundáveis

PESQUISA FAPESP 297 | 37


2

de gramíneas e próximo a ilhas (capões) e corre-


dores (cordilheiras) de mata fechada com espécies
do Cerrado e da Amazônia. “Com uma diferença
de uns poucos metros na altimetria do terreno,
mas o mesmo regime de chuvas, encontram-se
das formações de plantas aquáticas às florestais”,
relata o agrônomo e botânico Arnildo Pott, pro-

FOTOS 1 JEREMY WOODHOUSE / GETTY IMAGES 2 JUERGEN & CHRISTINE SOHNS / GETTY IMAGES 3 FREDERICO TAVARES / GETTY IMAGES 4 LUCAS NINNO / GETTY IMAGES
3
fessor visitante sênior da UFMS e estudioso da
paisagem e da vegetação pantaneira. rente à água e ao fogo e algumas se tornam mais Tuiuiús, araras-azuis
Foram Pott e o botânico Geraldo Alves Damas- frequentes em áreas mais altas após incêndios e ariranha, espécies
facilmente observadas
ceno Júnior, também da UFMS, que começaram repetidos, concluíram os pesquisadores em ar- no Pantanal
examinar detalhadamente há 20 anos a influência tigo publicado em 2016 na PLOS ONE. Plantas
da interação entre a água e o fogo na estruturação como o ingá ou o tucum (Bactris glaucescens),
e na regeneração das formações vegetais panta- uma palmeira, rebrotavam mais rápido e apre-
neiras. Em 2011, na região de Corumbá, no norte sentavam mais exemplares nas áreas que haviam
de Mato Grosso do Sul, o grupo coordenado por sofrido ação do fogo.
eles comparou a capacidade de rebrotamento de A interação entre fogo e água também se mos-
7 espécies de arbustos, 17 de árvores e 25 de ci- trou importante para preservar a estrutura de
pós (lianas) em áreas de mata que haviam sofrido um tipo de vegetação característico do Panta-
incêndios esporádicos na década anterior com nal: as formações monodominantes. Facilmente
o desempenho das mesmas espécies em regiões reconhecíveis, são áreas, algumas com dezenas
livres do fogo. Uma das conclusões, apresentada de quilômetros de extensão, em que predomina
em um artigo de 2014 na revista Forest Ecology uma espécie de árvore. Uma delas é o paratudal,
and Management, é de que cheias naturais do rio dominado por exemplares de paratudo (Tabebuia
Paraguai são determinantes para definir os am- aurea), uma árvore da família do ipê com flores
bientes e as espécies que vivem neles. “A inun- amarelas e casca usada para combater vários pro-
dação restringe o número de espécies porque a blemas de saúde. Damasceno e sua equipe ava-
água preenche os poros dos sedimentos no solo liaram recentemente a influência da ocorrência
e diminui a disponibilidade de oxigênio”, expli- de fogo e de inundações nos paratudais no sul
ca Damasceno. O fogo alterou a distribuição de de Mato Grosso do Sul, e concluíram que a al-
espécies, que diminuiu nas áreas inundadas e ternância de enchentes e incêndios favorece a
aumentou nas mais altas e secas. predominância do paratudo sobre as 35 outras
Em outra área próxima a Corumbá, o grupo espécies encontradas nesse ambiente. Segundo
analisou o efeito da água e do fogo sobre 39 espé- artigo a ser publicado em 2021 na Forest Ecology
cies de árvores. As matas da região são domina- and Management, parte delas era tolerante ao fo-
das por exemplares de ingá (Inga vera), pau-de- go e parte às inundações. Apenas Tabebuia aurea
-formiga (Triplaris gardneriana), canela (Ocotea saiu-se bem sob as duas condições.
diospyrifolia) e tapiá (Crateva tapia). De modo Um segredo da capacidade de recuperação das
geral, cada espécie responde de maneira dife- paisagens pantaneiras está no solo. Ele armazena

38 | NOVEMBRO DE 2020
uma grande quantidade de diminutas sementes Hoje as áreas mais secas, afastadas dos rios,
de plantas aquáticas, anfíbias e terrestres que so- abrigam cerca de 3,8 milhões de bois e vacas, cria-
brevivem a incêndios e inundações e germinam ao dos de modo extensivo e vendidos para a engorda
encontrar as condições adequadas. Em amostras principalmente nas áreas de planalto no entorno
de solo coletadas no fundo e ao redor de lagoas do Pantanal. Ampliar a quantidade dos animais
temporárias da região de Miranda, Pott e a bo- ali, como já se sugeriu, não é uma boa solução
tânica Francielli Bao encontraram sementes de para conter incêndios, afirmam vários pesquisa-
70 espécies de plantas. Na UFMS, submeteram dores. “A produção mais sustentável é criar gado
as amostras de solo a duas condições: três me- em pastos nativos com reduzido número de ca-
ses submersas em tanques de água e três meses beças por hectare, como os pantaneiros tradicio-
expostas ao ar, simulando a pós-inundação. Eles nais fazem”, diz a ecóloga Letícia Couto Garcia,
constataram que, na primeira condição, nasciam da UFMS, especialista em restauração ecológica
as plantas aquáticas e as anfíbias. Já as terrestres e conservação. De 1985 para cá, a área dedicada à
só germinavam com a diminuição da umidade. criação de gado com pastagens exóticas aumen-
“O solo do Pantanal tem um banco de sementes tou 4,7 vezes e alcançou 2,3 milhões de hectares.
flex, com espécies resistentes às duas condições, Adotar medidas contínuas que garantam a ma-
o que permite à vegetação sobreviver à cheia, ao nutenção da paisagem e evitem o acúmulo de
fogo e aos herbívoros”, diz Pott, que chegou ao biomassa seca é fundamental, segundo biólogos
Pantanal no início dos anos 1980 para trabalhar e ecólogos, para prevenir incêndios de grandes
como pesquisador da Embrapa. proporções ou de elevada frequência, que podem

E
causar estragos duradouros e consideráveis até
m um experimento que realizou em mesmo na vegetação resiliente ao fogo. Além disso,
1986, ele constatou que a presença do o efeito de incêndios sobre a fauna pode ser mais
gado não é necessariamente nociva à devastador. “Répteis e anfíbios geralmente não
paisagem da região, em especial aos conseguem escapar de incêndios de proporções
campos nativos. A fim de conhecer muito menores que os deste ano, em que estão
como seria a vegetação campestre sendo encontrados até mamíferos mortos pelo
pantaneira original, antes da introdução do gado fogo”, afirma Neiva Guedes, que também preside
no século XVIII, Pott cercou uma área de 600 o Instituto Arara-Azul. “O fogo pode causar ex-
hectares na fazenda Nhumirim, da Embrapa. tinções locais e os animais que sobrevivem vão
Um ano depois, o que era capim baixo virou uma enfrentar um ambiente mais hostil, com disputa
macega (capim alto). Dois anos mais tarde um acirrada por alimento e abrigo”, diz. Tem sido as-
incêndio consumiu toda a vegetação, que passou sim até para as araras, que em alguns refúgios fo-
a rebrotar dias mais tarde. “Notei que a ação do ram observadas consumindo alimento queimado. n
Gado criado em
pastagem com
gado poderia auxiliar na prevenção de incêndios
vegetação nativa e criei a expressão boi-bombeiro, que agora foi Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
pantaneira politizada”, afirma o botânico. na versão on-line.
4

PESQUISA FAPESP 297 | 39


ENTREVISTA Naomar Monteiro De Almeida Filho

AS DOENÇAS
COMO
OBJETOS
COMPLEXOS
Epidemiologista alerta que a pandemia
não pode ser descrita apenas pelo
vírus ou pela infecção que causa nas pessoas

Carlos Fioravanti | RETRATO Denise Coutinho

O
epidemiologista baiano Naomar de Almeida Filho apro- IDADE 68 anos
veitou a pandemia para avançar sua teoria geral da saúde,
formulada em 2000 para examinar distúrbios mentais. ESPECIALIDADE
Para ele, a pandemia da Covid-19, além dos elementos Epidemiologia e saúde
mais visíveis que a causam, envolve componentes ambientais e pública
simbólicos, todos em interação contínua. “Nenhuma dimensão de
análise, isoladamente, vai dar conta do todo”, diz. A versão mais INSTITUIÇÃO
recente de sua teoria saiu na revista científica Estudos Avançados Universidade Federal
de agosto deste ano. da Bahia (UFBA)
Com 68 anos, casado, cinco filhos e seis netos, Almeida Filho nas-
ceu em Buerarema, no sul da Bahia. Cresceu ali perto, em Itabuna, FORMAÇÃO
de onde saiu para estudar medicina em Salvador e epidemiologia Graduação em medicina
nos Estados Unidos. Foi reitor da Universidade Federal da Bahia (1975) e mestrado em
(UFBA) de 2002 a 2010 e voltou à sua região de origem para im-
saúde comunitária (1976)
plantar, de 2013 a 2017, a Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB). Para reduzir os efeitos da exclusão territorial, implantou pela UFBA, doutorado
colégios universitários em oito cidades, nos quais os alunos come- em epidemiologia
çavam seus cursos antes de irem para um dos três campi principais. e antropologia médica
Em 2019, ao se tornar professor visitante no Instituto de Estudos (1981) pela Universidade
Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), começou a
da Carolina do Norte,
revezar entre Salvador e São Paulo. Como diz, tornou-se um so-
teropaulistano, neologismo que funde o gentílico soteropolitano, Estados Unidos
natural de Salvador – também chamada de Soterópolis, cidade do PRODUÇÃO
Salvador em grego –, e paulistano. Ele cumpre a quarentena na
203 artigos científicos
ilha de Itaparica, alternando caminhadas e corridas na praia com
a participação em lives sobre a pandemia, universidades e as pos- e autor ou coautor
sibilidades de melhoria da educação no país. de 28 livros

40 | NOVEMBRO DE 2020
PESQUISA FAPESP 297 | 41
O que é a teoria geral da saúde? holística. Em cada lugar, a pandemia tem frentar epidemias, não foram ouvidos ou
Essa teoria é talvez a finalização de comportamentos diferentes, porque as até agora participam modestamente das
minha carreira como epidemiologista. sociedades, as realidades e as reações decisões. Perdemos a chance de contro-
Chamei-a de holopatogênese porque institucionais são diferentes. Tudo isso lar a epidemia antes que se espalhasse.
busca uma compreensão da origem das deveria ser considerado nas formas de A Coreia do Sul e o Japão implantaram
doenças no conjunto de suas relações e enfrentamento. Uma pandemia é uma sistemas de vigilância epidemiológica
efeitos, não só por meio de suas causas oportunidade para novas formas de pen- muito eficientes, usando uma lógica sim-
mais evidentes. Apresentei essas ideias sar e agir. Porque, por ser um evento crí- ples: identificar precocemente os casos,
em dois artigos na Revista de Saúde Pú- tico, a pandemia impõe a necessidade de mapear seus contatos e isolar a todos.
blica, em 2013 e 2014, e apliquei-as ini- um pensamento integrador, inter e trans- Negligenciar medidas de isolamento e
cialmente para entender a saúde men- disciplinar. Para um problema complexo, quarentena é uma forma de aplicar a
tal. Agora a usei para tratar a pandemia enfim, não há soluções simplificadoras. ideia de “imunidade de rebanho”, muito
como um objeto complexo em um artigo criticada no campo epidemiológico até
na Estudos Avançados. A teoria parte da Como vê a pandemia no Brasil? pela desumanidade nela implícita. Assim
concepção de multiplanos e interfaces Com muita preocupação. O Brasil vai en- terminam promovendo uma seletividade
hierárquicas, do filósofo argentino Juan trar para a história como um dos países social, atingindo a imunidade coletiva
Samaja [1941-2007], de quem fui amigo, que pior lidaram com o problema. Há pelo sacrifício de velhos ou de quem já
complementada com a contribuição de negacionismos, redundância de medidas, tinha outra doença, pobres e negros, que
pensadores latino-americanos como Mil- conflitos desnecessários e corrupção. foram os que morreram mais no Brasil.
ton Santos [geógrafo baiano, 1926-2001] Num primeiro momento, ainda no início Muitas dessas mortes poderiam ter si-
e Néstor García Canclini [antropólogo de fevereiro, estabeleceram um centro do evitadas.
argentino], além de Gilles Bibeau [an- de operações de emergência. Só que esse
tropólogo canadense]. A base é simples. centro convocou apenas especialistas de O que deveria ser enfatizado?
Como qualquer doença expressa inte- pesquisa biológica ou clínica. Os epide- Em um artigo no Le Monde Diplomatique
rações biológicas, ambientais, sociais e miologistas e sanitaristas, que têm co- de agosto, minhas colegas Gulnar Aze-
culturais, temos ocorrências simultâneas nhecimento sobre as estratégias para en- vedo, Claudia Travassos e eu mostramos
em vários planos: microestrutural, que que a visão epidemiológica correta seria
trata das reações moleculares e celula- o oposto do que está sendo feito. Aqui
res; microssistêmico, ligando metabo- acionaram o sistema de saúde pela lógica
lismo e tecido; subindividual, processos invertida, priorizando a atenção quater-
que ocorrem nos órgãos ou sistemas do nária, de altíssima complexidade – por
corpo; individual, representado pela ex- isso todo mundo só fala em leitos de UTI.
pressão médica casos clínicos, para de- O hospital deveria ser o fim da linha de
signar pessoas atingidas por uma doença; cuidados e não o foco principal do com-
epidemiológico, que abarca populações bate à pandemia. Deveríamos resgatar
sob risco de alguma doença; ecossocial, e valorizar a atenção primária à saúde,
que examina as eventuais alterações am- que vem sendo desmontada nos últimos
bientais ligadas à emergência de novas anos. Em uma pandemia, a atuação do
ou velhas doenças; e simbólico ou cultu- nível básico de saúde é fundamental para
ral. O desafio é articular planos, níveis,
dimensões e interfaces. Deveríamos monitorar nos bairros e vilas as pessoas
que desenvolvem sintomas. E, mesmo
sem sintomas, casos suspeitos devem ser
O que essa abordagem mostrou sobre resgatar vistos como um potencial transmissor do
a pandemia? vírus e precisam ser isolados, e as pes-
Não se pode dizer numa pandemia que
“isso causa aquilo”, porque nos sistemas
e valorizar soas com quem tiveram contato também.

complexos tudo se integra. Nenhuma


dimensão de análise, isoladamente, vai
a atenção Vamos falar de sua carreira de pesqui-
sador. O que destacaria?
dar conta do todo. Não se pode descrever Fiz graduação em medicina na UFBA de
a pandemia apenas pelo vírus ou pelos primária 1970 a 1975, em uma fase da reforma uni-
sinais clínicos da Covid-19. Uma pan- versitária que dava aos alunos liberdade
demia é um evento singular e comple- à saúde, muito para montarem seus currículos. Como
xo, como furacões, tsunamis e guerras, antecipei muitas disciplinas, no terceiro
que altera não só corpos humanos, mas
também o tecido social, relações econô-
importante ano tinha tempo livre e me matriculei no
coral e em cursos de alemão, espanhol,
micas, meios de comunicação, a política.
Para a compreensão de um fenômeno em uma antropologia, arqueologia, história, fol-
clore. Me aproximei dos departamentos
como esse, com tantas interfaces e tão de Psiquiatria e de Medicina Preventiva.
mutantes, é preciso uma concepção mais pandemia Já perto do final do curso fui enquadrado

42 | NOVEMBRO DE 2020
na lei de segurança nacional por denun- Por que a polêmica?
ciar as condições inadequadas dos asilos O Reuni de fato ampliou as vagas, mas
psiquiátricos. Fiz o mestrado em saúde não em número suficiente, e manteve
comunitária e depois consegui uma bol- o modelo de formação profissionali-
sa da Fundação Rockefeller para fazer Na UFBA, zante. No projeto Reuni da UFBA, o BI
doutorado na Universidade da Caroli- contestava esse modelo tradicional. Foi
na do Norte, em Chapel Hill, na época
um importante centro da epidemiologia
os alunos que visto como uma americanização ou eu-
ropeização da universidade brasileira.
psicossocial dos Estados Unidos. Para a
tese, estudei os efeitos de migração e de-
saíram dos Opositores defendiam que os recursos
fossem aplicados primeiro para sanar
semprego sobre a saúde mental. Quando problemas e carências antes de ampliar
voltei, em 1982, entrei como professor bacharelados o acesso, que qualquer expansão seria
colaborador no Departamento de Me- um empobrecimento do ensino. Estu-
dicina Preventiva da UFBA. Criamos e interdisciplinares dantes ocuparam o prédio da reitoria
consolidamos grupos de pesquisa e, em por 45 dias para impedir o Conselho
1994, organizamos o Instituto de Saúde
Coletiva da UFBA, com colegas forma-
são mais Universitário de votar o Reuni. Mesmo
com toda a reação, implantamos o pro-
dos no exterior e abordagens pioneiras
da pesquisa. maduros, jeto e a primeira turma do BI começou
em 2008.

O que propunham? responsáveis Como é o bacharelado interdisciplinar?


Um tema que permeava nossas pesquisas No BI, os estudantes podem entrar em
era a desigualdade em saúde. Meu inte-
resse maior era a determinação social
e autônomos uma das quatro grandes áreas – ciências
e tecnologias, humanidades, artes e saú-
da saúde mental. Com base em estudos de. São cursos de três anos, de formação
epidemiológicos, fomos um dos primei- geral. O primeiro ano tem componentes
ros grupos do país a mostrar os efeitos curriculares comuns da área e daí em
de gênero, classe, raça e racismo sobre diante os alunos montam sua trajetória
a saúde mental. Transtornos de com- curricular. Se aquela entrada não fizer a
portamento, agressividade e alcoolis- cabeça deles, o que acontece com mui-
mo ocorrem mais nos homens que nas ta frequência, podem mudar, porque a
mulheres; mas as mulheres sofrem mais base inicial é a mesma. Eles passam ao
de depressão e ansiedade. Verificamos curso de uma determinada profissão
que o casamento tem um efeito protetor como complemento de sua formação. A
para o homem, mas para as mulheres é indígenas e pobres, com o regime de co- proposta era que a universidade inteira
um fator de risco para a saúde mental, tas mais abrangente da época. Também adotasse esse formato, mas na UFBA o
provavelmente por causa do machis- houve ampliação e interiorização da BI tornou-se apenas mais uma entrada.
mo da sociedade latino-americana. Em universidade. A partir do meu segundo A universidade manteve todos os cursos
2004, mostramos que o fato de ser mu- mandato na reitoria, começamos uma tradicionais, acrescentou os quatro no-
lher, negra e pobre aumentava em nove transformação institucional mais pro- vos bacharelados e criou uma unidade, o
vezes o risco de depressão e ansiedade, funda na UFBA, com inovações que ins- Instituto de Humanidades Artes e Ciên-
em comparação com ser homem, branco piraram o Reuni [Programa de Apoio a cias Prof. Milton Santos, uma espécie de
e de classe alta. Há uma complexa siner- Planos de Reestruturação e Expansão minicollege, para receber esses alunos.
gia de efeitos entre machismo e racismo. das Universidades Federais]. No Reu-
ni, passamos na UFBA de 3.700 para Houve resistência?
Como foi a experiência como reitor da 8 mil vagas de graduação. A base desse Muita, de professores e dos estudantes.
UFBA? crescimento era a proposta de criação O Reuni foi concebido como um progra-
Em 2001, eu estava em Harvard como dos bacharelados interdisciplinares, os ma por adesão, no qual as universidades
professor visitante. Em um dos retor- BIs, para oferecer uma formação geral, apresentariam propostas, e terminou
nos a Salvador, numa reunião para dis- antes da formação específica. Era uma virando um fundo dividido por todas. O
cutir a próxima eleição para reitor na mistura tropicalista, ou tropicalizada, decreto do Reuni saiu em maio de 2007;
UFBA, lançaram minha candidatura. Eu das coisas mais interessantes do siste- houve a instalação de um grupo de tra-
vim direto da pesquisa e ensino, por is- ma de colleges do modelo universitário balho, com representantes do MEC, da
so busquei uma formação autodidata e anglo-saxão e do Processo de Bolonha, na Andifes [Associação Nacional dos Di-
rápida sobre história e missão social da Europa. Escrevi um livro que conta essa rigentes das Instituições Federais de
universidade, com foco em gestão e or- história, Universidade nova: Textos críti- Ensino Superior], dos sindicatos e dos
ganização institucional. Meu primeiro cos e esperançosos [Editora Universidade estudantes. Vários eventos foram feitos
mandato, entre 2002 e 2005, foi mar- de Brasília e EDUFBA, 2007]. Implanta- para discutir as diretrizes do Reuni, mas
cado por ações afirmativas para negros, mos os BIs em meio à enorme polêmica. os seis pontos que inicialmente deve-

PESQUISA FAPESP 297 | 43


riam ser seguidos por todos os projetos
perderam a coesão. Perdeu-se a articula-
ção entre eles, como a integração entre
graduação e pós, ações afirmativas, que
na época ainda eram polêmicas, muitas
instituições não queriam cotas. Uma di-
retriz que sempre valorizei foi a integra-
ção da universidade com o sistema de
educação, para reforçar a escola básica.

Os bacharelados deram certo?


Os professores agora dizem que os alu-
nos que vêm do BI são mais maduros,
responsáveis e autônomos. Mas a ideia
de tornar essa modalidade entrada-pa-
drão para a universidade não foi aceita.
Os cursos continuaram a receber alunos
diretamente e se criou uma entrada para
o BI. Abrimos inicialmente 1.600 vagas Em 2015, de Itabuna, Almeida Filho (de camisa xadrez) coordena a rede digital entre os campi da UFSB
do BI e os egressos teriam pelo menos
20% das vagas nos cursos de profissão. 600 km de Itabuna, por mais brilhan- mentar outras áreas. Um dos elemen-
Os cursos tradicionais resistiram. So- te que seja, se for pobre e não puder tos mais inovadores é a experiência do
mente direito e psicologia abriram áreas sair de lá, não tem a menor chance de sensível, uma sequência de atividades
de concentração no BI. Áreas de con- chegar à universidade. Depois de lon- pela qual passam todos os professores
centração são blocos de componentes ga imersão no território, desenhamos e alunos. No primeiro momento, o pro-
curriculares específicos de cada curso, soluções. Além dos três campi, abrimos fessor leva um memento mori, pequenos
como anatomia ou parasitologia para colégios universitários em oito cidades, objetos que o identificam como sujeito
medicina. Assim o aluno pode fazer no que funcionam como uma instalação e conta sua própria história. Depois, os
BI uma formação prévia antes do curso remota da universidade. É uma adapta- alunos são convidados a trazer coisas
de profissão. Universidades norte-ame- ção dos modelos dos community colle- de suas vidas, amostras de terra, água,
ricanas e europeias funcionam assim. A ges, usando espaços ociosos da rede de vegetação, sons ou imagens, e falam so-
faculdade de medicina ainda obriga os ensino médio. Os alunos entram com bre eles, com descobertas incríveis. Um
alunos que concluem o bacharelado a as notas do Enem [Exame Nacional do aluno do colégio universitário de Coa-
fazer o curso médico inteiro por con- Ensino Médio], mas a competição é na raci levou um frasco de água poluída
siderá-lo uma entrada ilegítima, sem prática local. No primeiro ano, todos os do rio Almada, que abastece Itabuna
passar pelo vestibular. Isso não faz sen- alunos compartilham a formação geral. e Ilhéus. Alguém perguntou “De onde
tido, ficar nove anos no curso, porque os Se têm bom desempenho, seguem para vem essa água? Do rio. Onde nasce o
alunos do BI já cumprem boa parte da um dos campi principais. Os cursos de rio?”. Viram que não sabiam onde nascia
formação. O curso de direito foi mais saúde estão em Teixeira de Freitas, os o rio; aí subiram o rio para descobrir a
acolhedor, logo viram que a qualidade de humanidades e artes em Porto Se- nascente. A partir da formação geral, o
dos alunos egressos do BI de humani- guro e os de ciências, engenharias e currículo é livre.
dades era muito boa e aumentaram as tecnologia em Itabuna. Esse modelo
vagas via BI para 30% no período diurno otimiza recursos porque não preci- Por que o senhor deixou a reitoria an-
e, no noturno, para 50%. sa multiplicar as especialidades dos tes de terminar o mandato?
professores. Para superar a exclusão O modelo de universidade que proje-
Como aproveitou essa experiência na territorial, tivemos de dar atenção às tamos previa uma cogestão ampla, não
UFSB? conexões digitais. O modelo que cha- apenas com professores, servidores téc-
A UFSB foi criada por uma lei de 2013, mamos metapresencial funciona muito nicos e administrativos e estudantes;
a partir do zero. Foi implantada numa bem. Cheguei a dar aula para 300 alu- queríamos incluir a sociedade real. Para
região sem oferta de educação federal. nos tendo 30 na minha sala e os outros isso, fizemos uma cartografia dos movi-
Em 2012, coordenei a comissão de pla- na rede de colégios universitários. mentos sociais e das organizações comu-
nejamento e fui nomeado o primeiro nitárias da região, identificando líderes
reitor. A lei estabelecia que a univer- Como é a formação geral? e mestres de saberes. Em 2015, fizemos
sidade teria sede em Itabuna e dois Os alunos iniciantes têm componen- um Fórum Social da região sul da Bahia.
campi em Porto Seguro e em Teixeira tes de língua portuguesa, território e Cada segmento se autoinstituiu, alguns
de Freitas. Porém a exclusão territorial sociedade, universidade e sociedade, com mais facilidade, como professores
ACERVO PESSOAL

é sério problema naquela região. Por computação e raciocínio matemático, do ensino fundamental, e outros com
exemplo, um jovem de Medeiros Ne- língua inglesa e introdução ao campo mais dificuldade, como marisqueiras,
to, município a mil km de Salvador e a escolhido, com incentivo para experi- artistas populares e quilombolas. As reu-

44 | NOVEMBRO DE 2020
niões preparatórias tinham em torno de tem um bacharelado interdisciplinar, a
2 mil pessoas cada uma. Cada segmen- Unifesp [Universidade Federal de São
to auto-organizado poderia eleger um Paulo] tem cursos interdisciplinares na
delegado para cada 100 pessoas. Esses Baixada Santista e em São José dos Cam-
delegados elegeram representantes para Discordo da pos. A própria história da Unicamp se fez
compor o Conselho Estratégico Social por iniciativas inovadoras. O atual rei-
da UFSB, com poder inclusive para par-
ticipar na eleição de reitor. Reconhece-
ideia de que tor, Marcelo Knobel, concebeu o Profis
[Programa de Formação Interdisciplinar
mos mestres de saberes populares da re-
gião como formadores na universidade.
massificar Superior, implantado na Unicamp em
2011], uma proposta inovadora de in-
O Assentamento Terra à Vista, do MST, clusão territorial cujo problema, a meu
em Arataca, cultiva um cacau orgânico o ensino ver, é a escala reduzida, uma centena de
de terroir que a Bélgica respeita. Os pes- alunos brilhantes da rede pública por
cadores da região têm uma sabedoria implica perda ano, numa universidade com capacidade
específica de clima e ventos. Os indí- muito maior. Muitos defendem a ideia de
genas Pataxó e os Tupinambá têm uma
rica cultura oral e uma retórica muito
de qualidade. que crescer e massificar o ensino impli-
ca perda de qualidade. Estou convenci-
sofisticada. Mas abrir a universidade
para uma governança compartilhada, Não precisa do de que não precisa ser pequeno para
ser excelente. Em um país como o Bra-
de verdade, não pode ser impune. Por sil, temos de ampliar a excelência para
mais cuidado que tivéssemos na seleção ser pequeno atingir mais gente.
de professores, avaliados também pela
adesão ao projeto da universidade, eles
vinham formados em caixas curricula-
para ser Além da Bahia e de São Paulo, alguma
coisa nova?
res e traziam uma tradição herdada de
outras instituições. Não conseguimos
excelente De 2007 a 2011, outras iniciativas ten-
taram trazer inovações curriculares e
construir um consenso. Pedi exonera- pedagógicas. Destaco as universidades
ção em outubro de 2017 quando vi que de integração regional ou internacional,
a maioria de professores, servidores e como a Unila [Universidade Federal da
parte dos alunos se alinhara contra o Integração Latino-americana, com sede
projeto. Vi que não tinha mais espaço, em Foz do Iguaçu, no Paraná] e a Uni-
pedi aposentadoria e me afastei. lab [Universidade da Integração Inter-
nacional da Lusofonia Afro-brasileira],
O que fez então? com metade de alunos africanos e me-
Em 2018, me aproximei da Academia tade brasileiros, em Redenção, no Cea-
Brasileira de Ciências e contribuí com a formação de professores ainda se dê rá, a primeira cidade a decretar o fim da
um documento indicando caminhos de em segmentos. Neste ano me convida- escravidão no país. O problema é que o
inovação da universidade brasileira. Fui ram a assumir a titularidade da cátedra. Brasil ainda não decidiu que modelo de
convidado a participar de um grupo de universidade quer seguir. Há uma mis-
trabalho sobre o futuro da USP, coorde- Como avalia as possibilidades de mu- tura, pouco virtuosa, de três sistemas:
nado por Luiz Bevilacqua, amigo que- danças nas universidades paulistas? o francês, com universidades criadas a
rido, o grande mentor da UFABC. Em A USP tem imensa energia criativa e já partir de faculdades, como USP e UFRJ
março de 2019 me tornei professor visi- realizou experiências interdisciplinares [Universidade Federal do Rio de Janei-
tante do IEA; fiquei um pouco na ponte inovadoras. A USP ministra, há 27 anos, ro]; o alemão, com ênfase em pesquisa;
aérea até me mudar para São Paulo. Na um curso interdisciplinar fantástico, o e o norte-americano, mais restrito à pós-
sala vizinha à minha estava a equipe da bacharelado em ciências moleculares, -graduação em certas áreas. Falta uma ar-
Cátedra de Educação Básica, financiada com uma concepção avançadíssima. Em ticulação interinstitucional, não há uma
pelo Itaú Social. Comecei a frequentar as São Carlos, existe uma licenciatura in- rede de instituições inovadoras, capazes
atividades da cátedra, com colegas mui- terdisciplinar com rica experiência de de intercâmbio verdadeiro, começando
to competentes e acolhedores. Ajudei-os integração com a rede básica, usando com os próprios docentes. Nos Estados
a montar um plano de trabalho. A ideia museus e espaços não convencionais de Unidos, na Inglaterra e mesmo na Europa
básica é que a formação em disciplinas ensino. Na linhagem de Anísio Teixeira continental, é comum um professor ser
não tem futuro, está superada em todo [1900-1971] e Darcy Ribeiro [1922-1997] orientador em vários lugares, até mesmo
o mundo. As licenciaturas interdiscipli- na UnB [Universidade de Brasília], a em instituições diferentes. Amartya Sen
nares implantadas nos colégios univer- UFABC abriu bacharelados em ciência [economista indiano, prêmio Nobel de
sitários da UFSB, em paralelo aos BI, e tecnologia antes da UFBA. Outro dia 1998] trabalhava seis meses em Harvard,
são uma solução possível para renovar a tive a ótima notícia de que a UFABC nos Estados Unidos, e seis em Cambrid-
base curricular comum, que organiza o abriu licenciaturas interdisciplinares. A ge, no Reino Unido. Essa possibilidade,
ensino médio em grandes áreas, embora Unesp [Universidade Estadual Paulista] entre nós, ainda não é possível. n

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LEGISLAÇÃO

ATENÇÃO
COM A
PRIVACIDADE

46 | NOVEMBRO DE 2020
Pesquisadores e universidades buscam se
adaptar à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais,
em vigor desde setembro

Rodrigo de Oliveira Andrade

O
Brasil passou a integrar o to e acesso aos dados. Tudo isso requer recursos,
rol de países com legisla- o que a maioria das universidades e institutos de
ções específicas para uso, pesquisa brasileiros hoje não tem.”
proteção e compartilha- Há também a preocupação com os dados admi-
mento de dados de seus nistrativos e institucionais, aqueles que constam
cidadãos. Em vigor desde em matrículas acadêmicas, registros de funcioná-
setembro, a Lei Geral de rios, prontuários médicos etc. Na Universidade
Proteção de Dados Pes- Estadual de Campinas (Unicamp), essas infor-
soais (LGPD) estabelece direitos dos indivíduos mações encontram-se espalhadas em estruturas
sobre seus dados e padroniza critérios e requisitos descentralizadas. Diante disso, a instituição criou
que empresas e órgãos públicos deverão seguir no início do ano o Comitê Gestor de Proteção de
para que haja maior cuidado com o tratamento Dados, formado por representantes de todos os
de informações pessoais e seu compartilhamen- seus departamentos. “Cada um está avaliando as
to com terceiros. A nova legislação prevê ainda informações em seus sistemas para identificar
multa diária de até R$ 50 milhões, além da proi- as que precisam ser protegidas”, explica Teresa
bição parcial ou total das atividades relacionadas Atvars, coordenadora-geral da Unicamp. Ela se
ao tratamento dos dados coletados, em caso de refere aos chamados dados sensíveis, aqueles
descumprimento. Isso tem gerado dúvidas entre sobre origem racial, étnica, genética, convicção
pesquisadores, sobretudo os que atuam em áreas religiosa e aos referentes à saúde ou vida sexual
das ciências humanas, sociais e da saúde, cujos registrados, por exemplo, em prontuários médicos
estudos envolvem a coleta, o tratamento e a análise do Hospital de Clínicas da instituição. “Uma vez
de informações pessoais de voluntários. identificadas, essas informações serão repassa-
As universidades, por sua vez, mobilizam-se pa- das a um gestor central, que decidirá sobre como
ra se adequar à nova lei. A necessidade de ampliar protegê-las. Trata-se de um trabalho complexo,
a infraestrutura e treinar equipes especializadas dadas as dimensões da universidade.”
em segurança da informação e curadoria de dados A Universidade de São Paulo (USP) também
representa hoje o principal desafio para que essas criou um grupo gestor para se ajustar à nova lei.
instituições consigam se adaptar à nova legislação. “A Superintendência de Tecnologia da Informação
“A gestão dos dados de projetos de pesquisa con- será a responsável pelo tratamento operacional
tinua sendo de responsabilidade do coordenador dos dados, enquanto os setores de recursos hu-
do estudo, mas o processamento de informações manos, graduação, pós-graduação, entre outros,
pessoais e sensíveis em ambiente seguro e contro- tomarão as decisões sobre quais dados precisam
lado para trabalhos científicos, com a LGPD, passa ser protegidos e a forma como isso será feito”,
a ser de responsabilidade dos órgãos de pesquisa”, diz João Eduardo Ferreira, superintendente de
esclarece a socióloga Bethânia de Araujo Almeida, Tecnologia da Informação da USP e coordena-
do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos dor do grupo de trabalho à frente do comitê ges-
para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cidacs-Fio- tor da instituição. A USP se preocupa ainda com
cruz), na Bahia. “Isso significa que essas instituições tentativas de violação dessas informações. Além
terão de investir em capacidade computacional e de investir em sistemas de proteção de dados,
treinamento de pessoal para garantir fluxos ade- criou o programa Hackers do Bem, em que estu-
quados de coleta, processamento, armazenamen- dantes de graduação e pós-graduação de ciência

PESQUISA FAPESP 297 | 47


Por dentro da nova legislação
Confira alguns dos principais pontos estabelecidos pela LGPD

ABRANGÊNCIA CONSENTIMENTO CONCEITOS EXCEÇÕES ALCANCE TRANSFERÊNCIA


Cria um cenário É a base para que Estabelece de Dispensa a Não importa se a TERRITORIAL
de segurança os dados possam ser maneira clara o que necessidade de organização ou o Permite o
jurídica válido para colhidos, tratados são dados pessoais consentimento para centro de dados estão compartilhamento com
todo o país e compartilhados e sensíveis cumprimento de no Brasil ou no exterior outros países que
obrigações legais também protejam dados

da computação utilizam técnicas de invasão de isso não aconteceu”, comenta o advogado. “Ainda
sistemas para testar a segurança das informações assim, é essencial que a agência seja transparente
protegidas. “A ideia é identificar eventuais vul- e, para isso, é preciso que ela seja independente,
nerabilidades. As que identificamos até agora são uma vez que produzirá regulamentações a serem
mínimas, mas significativas”, diz Ferreira. seguidas pelo próprio Executivo.”
A FAPESP também movimenta-se para se ade- Mesmo após a constituição de seu órgão regu-
quar à legislação. Em fins de setembro, criou uma lador, a LGPD deverá ter pouco impacto na ativi-
equipe composta por representantes de suas prin- dade de pesquisa no Brasil. Isso porque estudos
cipais áreas para discutir as medidas necessárias envolvendo seres humanos — e, portanto, a coleta
para o cumprimento da LGPD na instituição. As e análise de seus dados — já cumprem um conjunto
propostas de medidas a serem adotadas pela Fun- de regras que incorpora as principais exigências e
dação serão reunidas em um relatório previsto técnicas de proteção de dados previstas na nova lei.
para ser apresentado no início de novembro, in- “A preocupação com aspectos éticos relacionados
forma Fernanda Rizek, coordenadora técnica de ao manejo de informações pessoais no âmbito cien-
gabinete da Diretoria Administrativa da FAPESP. tífico antecede a atual legislação e, em muitos pon-
“As universidades estão em um momento de ava- tos, é ainda mais incisiva que a própria LGPD”, diz
liação e mitigação dos riscos”, comenta o advogado o advogado Danilo Doneda, do Instituto Brasileiro
Ivar Hartmann, professor da Escola de Direito da de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em
Fundação Getulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro. Brasília, membro do Conselho Nacional de Proteção
Esse processo se dá em meio ao debate acerca da de Dados e Privacidade e coautor do texto da LGPD.

O
organização da Autoridade Nacional de Proteção
de Dados (ANPD), criada para dar sustentabilida- advogado Eduardo Tomasevicius
de à aplicação da LGPD, cujas sanções se darão a Filho, da Faculdade de Direito da
partir de agosto de 2021. Hartmann esclarece que USP, vai além. “As leis de prote-
a principal dúvida em torno da ANPD diz respeito ção de dados pessoais em vigor no
à sua autonomia em relação ao Poder Executivo, mundo e agora no Brasil consti-
ao qual está vinculada. No dia 16 de outubro, o tuem desdobramentos de experiências bem-suce-
governo federal nomeou cinco diretores para a didas envolvendo regras para pesquisas com seres
nova agência. Três são militares. humanos estabelecidas após a Segunda Guerra
Um levantamento feito pela associação Data Mundial [1939-1945], primeiro com o Código de
Privacy Brasil com as 20 nações mais desenvol- Nuremberg, em 1947, depois com a Declaração de
vidas do mundo — segundo critérios do Fundo Helsinque, em 1964, e a Declaração de Bioética e
Monetário Internacional (FMI) — identificou a Direitos Humanos da Unesco [Organização das
presença de militares em órgãos responsáveis pela Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
ICONOGRAFIA ALEXANDRE AFFONSO

proteção de dados pessoais em apenas dois países: Cultura], nos anos 1990.” No Brasil, ele explica, a
China e Rússia, cujos governos são acusados de pesquisa com seres humanos é regulamentada por
violar direitos fundamentais, inclusive por meio resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
da legitimação de regimes de vigilância de seus Um dos principais pontos da LGPD refere-se
cidadãos. “Temia-se que, no Brasil, a ANPD ficasse à necessidade de consentimento do titular para
sob o guarda-chuva do Gabinete de Segurança Ins- coleta e tratamento de seus dados pessoais. A lei
titucional da Presidência da República. Felizmente, também estabelece que a qualquer momento o

48 | NOVEMBRO DE 2020
FISCALIZAÇÃO RESPONSABILIDADE GESTÃO DE TRANSPARÊNCIA PENALIDADES FINALIDADE
Ficará a cargo da Define os agentes RISCOS E FALHAS A ANPD e os Falhas de segurança E NECESSIDADE
Autoridade Nacional de tratamento A responsabilidade indivíduos afetados podem resultar São quesitos do
de Proteção de Dados de dados e suas é dos órgãos deverão ser avisados em advertências tratamento que devem
Pessoais, agência funções de pesquisa, quando no caso de vazamento e multa diária de ser previamente
a ser estruturada envolver ciência de dados até R$ 50 milhões informados ao cidadão

indivíduo pode revogar seu consentimento, bem esses dados”, explica Cendes. Cada pesquisador
como solicitar o bloqueio de suas informações ou armazena seus dados de acordo com a metodologia
mesmo sua exclusão, total ou parcial, dos repo- descrita no projeto e no termo de consentimen-
sitórios em que estão armazenados. Da mesma to submetidos ao Comitê de Ética em Pesquisa.

N
forma, a gestão dessas informações deve ser feita
com base nos objetivos da pesquisa, previamente a avaliação de Claudia Bauzer Me-
informados aos voluntários do estudo. “Ocorre deiros, pesquisadora do Instituto de
que esses dispositivos já são contemplados no Computação da Unicamp e mem-
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido bro da coordenação dos programas
[TCLE], conforme determinação do CNS”, afirma eScience e Data Science da FAPESP,
a neurocientista Iscia Lopes Cendes, da Facul- em um primeiro momento, a LGPD não introduz
dade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. novidades na rotina dos pesquisadores que cole-
O TCLE é usado pelos Comitês de Ética em tam e compartilham dados, mas existe o temor
Pesquisa das universidades para avaliar os pa- de que ela possa ser interpretada por juízes de
drões éticos de projetos com seres humanos, uma forma desfavorável à atividade científica.
independentemente da área do conhecimento. Por exemplo, para garantir que as informações
“Ele esclarece aos voluntários os detalhes do sobre um indivíduo não sejam identificadas em
estudo, seus objetivos, riscos, possíveis benefí- meio aos dados de um ensaio clínico ou de um
cios, entre outros pontos, de modo que o sujeito estudo em antropologia de que ele participou,
possa manifestar sua vontade em participar, ou a lei determina que sejam utilizados “todos os
não, da pesquisa de forma consciente. Nenhuma meios técnicos razoáveis” capazes de promo-
proposta de investigação científica envolvendo ver a anonimização. “Mas, suponhamos que um
dados de seres humanos é aprovada sem esse do- cientista da computação desenvolva um novo
cumento”, afirma Cendes, que integra o Comitê software e que este, após 20 anos rodando em
de Ética em Pesquisa da Unicamp. “O TCLE tam- supercomputadores, seja capaz de identificar
bém garante a preservação da confidencialidade uma pessoa específica, ou, por ter conhecimento
das informações pessoais dos participantes, de prévio de alguma informação confidencial, como
acordo com o que agora é estipulado pela LGPD”, uma radiografia, possa associar uma determi-
destaca Tomasevicius. nada informação àquela pessoa. Para mim, está
Os pesquisadores usam hoje duas técnicas para claro que situações como essa não se enquadram
garantir a privacidade dos dados dos voluntários nos limites da razoabilidade previstos na lei, mas
de suas pesquisas. Uma delas é a anonimização, sempre pode haver questionamentos na Justiça”,
por meio da qual são excluídas informações que afirma Medeiros. O risco, nesse sentido, é que a
possam levar à identificação do titular dos dados. LGPD enfraqueça os esforços de promoção do
A outra é a desidentificação (ou pseudoanonimi- compartilhamento e reutilização de dados de
zação). Nesses casos, desvinculam-se dos dados pesquisa, ou até mesmo comprometa a participa-
principais as informações que permitem a iden- ção do Brasil em colaborações internacionais. “O
tificação do sujeito da pesquisa, como nome, data que não pode acontecer é o pesquisador deixar de
de nascimento, cor etc. Essas informações não compartilhar seus dados para não correr o risco
são apagadas, mas mantidas sob posse do coor- de descumprir a lei. Isso seria péssimo para o
denador do estudo. “Só essa pessoa tem acesso a avanço da ciência”, ela diz.

PESQUISA FAPESP 297 | 49


Ferreira, da USP, esclarece, porém, que a lei é TCLE assinado pelo voluntário. “Não haverá pro-
clara ao dizer que sempre que um dado for pu- blema se o titular autorizar seu compartilhamen-
blicizado — ou compartilhado — ele necessaria- to e reúso sob determinados termos e condições
mente há de ser anonimizado. Isso se aplica tanto que visem garantir o processamento e uso ético,
a iniciativas internas, envolvendo o compartilha- legal e responsável de seus dados em pesquisas
mento de dados em repositórios institucionais, com finalidades convergentes.”
quanto externas, como no caso da plataforma A nova lei também permite o compartilhamen-
Covid-19 Data Sharing/BR, lançada em junho to de dados com outros países desde que esses
deste ano e que reúne informações laboratoriais, proporcionem grau de proteção equivalente à
clínicas e demográficas de cerca de 180 mil indi- LGPD. “A legislação, portanto, não deve afetar a
víduos submetidos a testes para diagnóstico da colaboração científica entre o Brasil e os países
Covid-19. “Os dados são anonimizados do ponto da Europa, uma vez que eles contam com uma lei
de vista pessoal, clínico e de localização georre- ainda mais robusta do que a nossa nesse sentido:
ferenciada, de modo que os pesquisadores que o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados,
os reutilizam não têm acesso às informações que aprovado em 2016, que inspirou a lei brasileira”,
possam levar à identificação do indivíduo ao qual esclarece a cientista da informação e do direito
os dados se referem”, diz. Medeiros, que coor- Adriana Carla Oliveira, da Universidade Fede-
denou a criação da Rede de Repositórios de Da- ral do Rio Grande do Norte (UFRN). Os Estados
dos da FAPESP, à qual o Covid-19 Data Sharing/ Unidos não dispõem de uma lei desse tipo. Em
BR é vinculado, observa que quaisquer dados de julho, a Justiça da União Europeia (UE) invalidou
pacientes que tenham características identificá- a transferência de dados pessoais entre os países
veis, como uma doença rara, por exemplo, não do bloco e os Estados Unidos por considerar que
são compartilhados. o pacto Privacy Shield não os protegia de forma
“Os pesquisadores não têm interesse nas infor- adequada, o que afetou empresas que operam na
mações pessoais dos indivíduos, mas em padrões UE, mas guardam seus dados no outro lado do
ou associações sobre grupo de pessoas, emanados Atlântico, como Google e Facebook. “A palavra-
do conjunto de dados analisados”, complemen- -chave quando se trata de compartilhamento de
ta Almeida, do Cidacs-Fiocruz. Ainda assim, ela dados em práticas científicas alinhadas à ciên-
reforça que, segundo a LGPD, a indicação de que cia aberta, mais do que nunca, é anonimização”,
os dados serão compartilhados deve constar no diz Ferreira. n

Proteção de dados pessoais no mundo


A situação do Brasil em relação a outros países após a aprovação da LGPD

GRAU DE ADEQUAÇÃO

País fortemente
adequado
País adequado
País parcialmente adequado
Autoridade nacional e lei(s) de
proteção de dados pessoais
Lei(s) de proteção de dados pessoais
Sem lei(s) específica(s) sobre o tema FONTE COMISSÃO NACIONAL DE INFORMÁTICA E LIBERDADE (CNIL/FRANÇA)

50 | NOVEMBRO DE 2020
DESENVOLVIMENTO

A
MULTIPLICAÇÃO
DO
INVESTIMENTO
U
Economistas propõem fórmula para m estudo publicado em setembro no
LOOK AND LEARN / BRIDGEMAN IMAGES / KEYSTONE BRASIL

repositório do National Bureau of Eco-


calcular os benefícios para a sociedade nomic Research (NBER), dos Estados
Unidos, propôs um método abrangente
gerados pelos gastos com inovação para calcular o retorno para a socieda-
de dos investimentos em inovação. Os
Fabrício Marques autores do trabalho, os economistas Benjamin
Jones, da Universidade Northwestern, em Evans-
ton, Illinois, e Lawrence Summers, que já foi
secretário do Tesouro dos Estados Unidos e rei-
tor da Universidade Harvard, basearam-se no
pressuposto de que investimentos em pesquisa

PESQUISA FAPESP 297 | 51


e desenvolvimento (P&D), aqueles que geram da qualidade de vida da população proporcionado
conhecimento novo e riqueza, são os principais pelos avanços nas tecnologias em medicina. Em
responsáveis pelos ganhos de produtividade na todos os modelos, tanto os que deprimem como
economia – e esses, por sua vez, estão vinculados os que multiplicam a taxa, o resultado é positi-
ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). vo. Na projeção mais cautelosa, o retorno seria
Apoiados nessa ideia, criaram uma fórmula re- de US$ 4 para cada US$ 1 investido. Já na conta
lativamente simples para mensurar o retorno que contempla os avanços na saúde e o impacto
social, pautada em alguns indicadores, como o de inovações em diferentes países ultrapassaria
aumento da taxa de produtividade, os recursos os US$ 20 por US$ 1 gasto.

C
empregados em P&D em certo período e a renda
per capita do país. alcular o retorno social da inovação sem-
A aplicação desse cálculo para os Estados Uni- pre foi uma tarefa desafiadora para os
dos, utilizando parâmetros como um investimen- economistas e os resultados obtidos são
to de 2,7% de seu PIB em P&D e juros muito bai- sempre aproximações. Na avaliação de
xos, chegou a uma taxa de retorno de 67%. “Se Renato Garcia, professor do Instituto de
um cidadão tivesse acesso a um investimento Economia da Universidade Estadual de
com retorno anual de 67%, poderia ficar muito Campinas (Unicamp), a principal dificuldade
rico rapidamente”, escreveram os autores. A ta- é computar todos os “transbordamentos” que
xa, eles ponderam, não está disponível para ca- inovações produzem em diferentes setores. “Um
da indivíduo. “Mas pode estar para a sociedade exemplo clássico é o efeito da construção de es-
como um todo. A questão é se, e como, a socie- tradas de ferro sobre a agricultura. As ferrovias
dade pode investir ainda mais para aproveitar ampliaram as fronteiras agrícolas e mudaram o
esse alto retorno.” perfil da produção, que deixou de atender apenas
A simplicidade do modelo descrita no artigo mercados locais e passou a ganhar escala. Mas
parece pôr de lado a enorme complexidade que não é trivial mensurar o impacto do investimen-
envolve a avaliação dos resultados da inovação e to de um setor em outro”, afirma. Ele também
os fatores que geram o crescimento econômico. observa que o processo de inovação é cumu-
Mas os autores também consideram no cálculo lativo e pode ter desdobramentos múltiplos e
situações com potencial para reduzir essa taxa de longo prazo, o que igualmente atrapalha a
de retorno. Uma delas é o longo tempo que um mensuração do retorno do investimento. “Muito
resultado de pesquisa básica, em geral financia- antes de se tornar uma aplicação comercial, o
da com recursos públicos, pode demorar para desenvolvimento de um equipamento que usa
alcançar aplicação comercial. A literatura aca- raios laser para tratamento dentário envolveu
dêmica fala em uma média de 20 anos, mas isso um investimento em ciência básica articulado
varia conforme a área do conhecimento – na de por físicos em diversas universidades e países,
computação, por exemplo, que mais tarde foi desenvolvido e aperfeiçoado
seriam 10 anos. Outra si- por engenheiros.”
tuação seria a dificuldade Em comum, os estudos sobre os benefícios dos
de mensurar de forma gastos com inovação apontam multiplicação do
precisa os custos da ino- investimento. Um pioneiro nesse tipo de pesquisa
vação, com tendência a foi Zvi Griliches (1930-1999), que em 1958, en-
subestimá-los. Também tão na Universidade de Chicago, mediu as taxas
Na projeção mais se considerou que ganhos de retorno de inovações no desenvolvimento do
conservadora, de produtividade podem milho híbrido nos Estados Unidos e concluiu que
surgir de modo inciden- cada US$ 1 investido em pesquisa gerou US$ 8.
cada US$ 1 gasto tal, por meio da contri- Esse estudo é citado nas referências do trabalho
buição dos trabalhadores de Jones e Summers.
em inovação que aprendem a aprimo- Griliches tornou-se um especialista em eco-
rar seus esforços, sem ha- nomia das mudanças tecnológicas e, em estudos
teve uma taxa de ver um investimento em posteriores, abordou os obstáculos para avaliar
retorno de US$ 4 P&D envolvido. Quando de forma mais completa os benefícios de inves-
tais fatores são computa- timentos em P&D. “Em um trabalho de 1994, ele
nos Estados Unidos dos, a taxa de retorno cai. apontou a dificuldade até mesmo de obter dados
O exercício seguinte foi precisos sobre o crescimento do PIB para calcular
levar em conta fatores ca- o retorno do investimento em um ambiente de
pazes de ampliar o retor- rápida mudança tecnológica”, diz o economista
no, mas que também são Eduardo da Motta e Albuquerque, do Centro de
difíceis de medir, como o Desenvolvimento e Planejamento Regional da
aumento da longevidade e Universidade Federal de Minas Gerais (Cede-

52 | NOVEMBRO DE 2020
plar-UFMG). “Computadores pessoais poderiam O estudo publicado no
custar mais ou menos o mesmo valor em 1980 repositório da NBER si-
e 1990, mas o que cada uma dessas máquinas mulou a taxa de retorno
conseguia fazer e seu impacto na produtividade social do investimento em
dos usuários eram muito diferentes. Isso, porém, inovação também em ou-
não era tangível na análise econômica que avalia tras economias. Se o cálcu-
o valor de um produto pelo preço.” Um estudo lo-base dos Estados Uni-
publicado pela National Science Foundation em dos foi de 67% ao ano, o Trabalho pioneiro
meados dos anos 1990 compilou os resultados de do conjunto de países do
27 estudos que estimaram taxas de retorno anual G7 (Alemanha, Canadá, de 1958 mostrou
de investimentos de P&D nos Estados Unidos, Estados Unidos, França,
alguns em empresas específicas e outros para o Itália, Japão e Reino Uni-
que a tecnologia
conjunto das indústrias. A maioria dos estudos do) alcançou 88% e che- do milho híbrido
chegou a resultados entre 10% e 20%. gou a 159% na média dos
A principal contribuição do trabalho de Jones 37 países da Organização gerou retorno
e Summers talvez seja a de criar uma fórmula que para a Cooperação e De-
contemple todos os setores e se aplique a qualquer senvolvimento Econômico de US$ 8 por
país. Que a métrica tenha sido proposta por um (OCDE). O estudo desta-
economista influente como Summers mostra co- cou que os benefícios da
US$ 1 investido
mo se tornou consensual na ciência econômica a inovação se espalham glo-
ideia de que o crescimento tecnológico tem papel balmente “tanto porque as
crucial no desenvolvimento. Na década de 1980, ideias se propagam quanto
esse conceito começou a ser defendido por uma porque são incorporadas
corrente de economistas heterodoxos que pro- em bens e serviços comer-
duziu estudos mostrando a primazia da inovação cializados além das fron-
no desenvolvimento e investigando os processos teiras”. As vantagens obtidas são de mão dupla.
socioeconômicos envolvidos. Como a principal Segundo os autores, a inovação produzida nos
inspiração teórica do grupo são as obras do aus- Estados Unidos multiplica seu impacto em outros
tríaco Joseph Schumpeter (1883-1950), a corrente países. Mas, ao atrair talentos do exterior para
tornou-se conhecida como neoschumpeteriana. suas empresas e centros de pesquisa e utilizar
“Diferentemente do que ocorre em outros temas conhecimento gerado em outras nações, os Esta-
importantes para a economia, nesse assunto não dos Unidos também se beneficiam das inovações
tardou muito para ocorrer uma convergência bá- que vêm de fora. Para Albuquerque, da UFMG,
sica entre diferentes correntes”, afirma o econo- uma linha de investigação que mereceria atenção
mista Marcelo Pinho, do Departamento de Enge- envolve a contabilidade do retorno dos investi-
nharia de Produção da Universidade Federal de mentos realizados por empresas multinacionais.
São Carlos (UFSCar), pesquisador nas áreas de “Muitos dos gastos em P&D das multinacionais
economia industrial e economia da tecnologia. são feitos e contabilizados nos países-sede, mas

S
produção no exterior não, o que pode gerar um
egundo Pinho, já no início dos anos 1990 descompasso no cálculo.”
economistas ortodoxos passaram a re- Se sobram evidências sobre o papel da inovação
conhecer a posição central do desen- como motor do desenvolvimento, Marcelo Pinho,
volvimento tecnológico no crescimento da UFSCar, alerta que é preciso cuidado ao plane-
econômico no longo prazo. “Por meio de jar e executar investimentos. “Não basta injetar
modelos econométricos, eles verificaram dinheiro no sistema de ciência, tecnologia e ino-
que o aumento na quantidade dos chamados fa- vação e achar que daí automaticamente resultará
tores de produção, como a acumulação de capital maior crescimento econômico”, afirma. Segundo
físico – máquinas, equipamentos e instalações ele, tão importante quanto formar e financiar pes-
produtivas –, e a expansão da força de trabalho quisadores aptos a fazer ciência de qualidade é
eram insuficientes para explicar boa parte do investir nas capacidades tecnológicas das empre-
crescimento econômico observado mundo afora”, sas. “O progresso depende de uma forte participa-
afirma. “A partir dos trabalhos de Paul Romer, ção de setores produtivos de maior intensidade e
foi desenvolvida no âmbito da teoria econômica dinamismo tecnológicos. Sem isso, o avanço das
convencional uma formulação que incorporasse instituições de pesquisa científica pode resultar
efetivamente a inovação tecnológica aos modelos estéril do ponto de vista econômico”, considera. n
de crescimento.” Romer, pesquisador da Uni-
versidade de Nova York e ex-economista-chefe Artigo científico
do Banco Mundial, foi laureado com o Nobel de JONES, B. e SUMMERS, L. A calculation of the social returns to inno-
Economia em 2018. vation. NBER Working Paper. n. 27863. set. 2020.

PESQUISA FAPESP 297 | 53


AVALIAÇÃO

IMPACTOS
DA
PESQUISA
NA
SOCIEDADE
Levantamento aponta resultados positivos
ILUSTRAÇÃO E INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

em programas da FAPESP de apoio


a pequenas empresas, colaborações internacionais
e formação de pesquisadores

Fabrício Marques
T
rês programas da FAPESP que usando como referência também a base çoamento de Pessoal de Nível Superior
dão apoio a pequenas empresas Scopus. No caso do mestrado, a compa- (Capes) e do Conselho Nacional de De-
inovadoras, colaborações científi- ração aponta uma medida cinco vezes senvolvimento Científico e Tecnológico
cas internacionais e formação de maior. “Boa parte das hipóteses testadas (CNPq) – eles pediram bolsas à FAPESP,
novos pesquisadores passaram para verificar a eficiência dos progra- mas suas solicitações não foram apro-
por um processo de avaliação pa- mas se confirmou, indicando que eles vadas. E o terceiro tinha 7,4 mil alunos
ra estimar o seu impacto. Os principais vêm cumprindo seu papel”, diz Sergio apenas de mestrado e de doutorado que
destaques foram positivos. No caso do Salles-Filho, coordenador do Grupo de depois de terem seus pedidos denegados
programa Pesquisa Inovativa em Peque- Estudos sobre Organização da Pesquisa pela Fundação fizeram a pós-graduação
nas Empresas (Pipe), que desde 1997 já e da Inovação (Geopi) da Universidade sem receber apoio financeiro.
apoiou mais de 1,5 mil startups e firmas Estadual de Campinas (Unicamp), res- Os bolsistas da FAPESP tiveram de-
de base tecnológica de até 250 empre- ponsável pela avaliação. sempenho mais destacado em quesitos
gados no estado de São Paulo, o balanço O trabalho analisou dados extraídos como número de publicações científicas,
mostrou que 80% dos projetos avaliados de fontes secundárias, como bancos de citações que elas receberam e volume de
se converteram em inovações, com efei- currículos e de patentes, indicadores so- colaborações nacionais e internacionais.
tos também na geração de empregos. As bre quantidade e qualidade da produção Também seguiram com mais frequência
empresas beneficiadas pelo programa científica, informações sobre emprego e a carreira de pesquisador. As diferenças
tinham em média 8,5 empregados cada salário, entre outros. Para confrontar o mais marcantes foram observadas na
uma antes de iniciarem os projetos e desempenho de empresas e de pesqui- amostra dos ex-bolsistas de doutorado:
chegaram a 11,1 após a conclusão. sadores financiados pela FAPESP com os da FAPESP publicaram 21% mais ar-
Já a avaliação das pesquisas feitas em equivalentes que não receberam apoio, tigos em periódicos do que os da Capes
colaboração internacional, no âmbito foi utilizada uma abordagem quase-ex- e do CNPq e 113% a mais do que os que
dos mais de 230 acordos de cooperação perimental, método estatístico que busca não receberam bolsa. “Os dados são con-
que a FAPESP mantém com agências e aproximar características de grupos de tundentes”, diz Salles-Filho. “As bolsas
instituições do exterior, mostrou que tratamento e de controle não diretamen- da FAPESP estão correlacionadas a um
seus resultados científicos tiveram 96% te comparáveis. salto em termos de citação de artigos
a mais de impacto, medido em citações No caso do programa de bolsas, essa entre os doutores, que foi de cinco a seis
de artigos registrados na base de dados metodologia foi usada para analisar a vezes maior do que quem não teve apoio.
Scopus, que projetos colaborativos com performance de três grupos diferentes. Publicações de ex-bolsistas de doutora-
atividade internacional também finan- Um deles era composto por 12,6 mil ex- do receberam nove vezes mais menções
ciados pela Fundação, mas não vincula- -bolsistas de doutorado, 15,8 mil de mes- em redes sociais, blogs, sites de notícias,
dos a esses acordos. Por fim, ex-bolsistas trado e 29,6 mil de iniciação científica. entre outros meios, do que os trabalhos
de doutorado apoiados pela Fundação Todos receberam apoio da FAPESP entre daqueles que não tiveram esse tipo de
apresentaram impacto científico medido 2003 e 2017. O outro, por 22 mil estudan- apoio. É uma medida de relevância da
por número de citações cerca de seis ve- tes das mesmas categorias, que ganha- produção científica para além dos limi-
zes maior que os que não tiveram bolsa, ram bolsas da Coordenação de Aperfei- tes da academia.”

O destino dos doutores Academia / pública Pesquisa em inst. privadas Governo


Academia / privada Empresas Outros
Onde trabalham a partir do término do doutorado

Doutorado com bolsa FAPESP Doutorado com bolsa Capes ou CNPq Doutorado sem bolsa
4 4 4
Proporção estimada

3 3 3

2 2 2

1 1 1

0 0 0
Anos 0 1 2 3 4 5 0 1 2 3 4 5 0 1 2 3 4 5
FONTES AVALIAÇÃO SISTEMÁTICA DE IMPACTOS DE AÇÕES E PROGRAMAS DE CT&I/ FAPESP

PESQUISA FAPESP 297 | 55


O uso apenas de fontes secundárias
Geração de empregos de dados impôs dificuldades. Uma delas
envolveu o recorte limitado dos grupos.
no programa Pipe Não se comparou quem teve bolsa FA-
PESP com quem foi apoiado pelo CNPq
Evolução do número médio de empregados ou a Capes, mas não solicitou o auxílio
nas pequenas empresas com projetos aprovados à FAPESP, ou quem não teve bolsa nem
recorreu à FAPESP, o que permitiria ter
Total de empregados 11,00 11,09 um panorama comparativo mais abran-
gente. Outra dificuldade foi observada
nos alunos de iniciação científica: não
8,47 havia estudantes na categoria dos sem
bolsa em número suficiente do ponto de
vista estatístico para fazer a comparação
com os demais grupos.
Empregados com 5,16
curso superior 4,69 Diferenças no desempenho também
podem ser atribuídas à formação que
3,16 tiveram antes de concorrer às bolsas, já
2,91 3,05
que os processos de seleção das agências
brasileiras utilizam critérios distintos.
1,80 P&D com curso superior
Para obter uma bolsa FAPESP, o perfil
do candidato é avaliado por assessores
Antes Durante Depois e ele precisa ter um histórico acadêmi-
FONTES AVALIAÇÃO SISTEMÁTICA DE IMPACTOS DE AÇÕES E PROGRAMAS DE CT&I / FAPESP co excelente, além de apresentar um

Contribuições afirma. Segundo ela, sem serem cooptados, vibroacústica, coordenado por Carlos de
artistas conseguiram influenciar políticas Marqui Jr., do qual participa seu orientador de
de ex-bolsistas de desenvolvidas. A bolsa da FAPESP permitiu doutorado, José Roberto de França Arruda,
que Jordão viajasse pelo país e pesquisasse da Faculdade de Engenharia Mecânica da
doutorado acervos em várias capitais. “Foi importante Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
para mostrar que havia redes de artistas A pesquisa do biólogo Andrew Maltez
Pesquisadores de São Paulo locais conectados com esse mesmo Thomas ganhou o prêmio ao investigar
tiveram teses premiadas movimento dos grandes centros.” a relação entre a microbiota intestinal
Outro exemplo é o engenheiro mecânico e a existência de tumores. Por meio do
Danilo Beli, que faz estágio de pós-doutorado sequenciamento de DNA e análises de
Vários ex-bolsistas da FAPESP estavam entre na Escola de Engenharia de São Carlos da bioinformática, ele identificou 16 bactérias
os ganhadores, em 2019, do Prêmio Capes USP. Sua tese foi reconhecida por trabalhar no intestino humano que indicam a presença
de Tese, que reconhece pesquisas de com um tema que aproxima a física da de câncer colorretal, abrindo caminho para
doutorado de destaque em 49 disciplinas. engenharia: os cristais fonônicos e novos métodos de diagnóstico da doença.
A doutora em artes visuais pela Universidade metamateriais, que têm comportamentos “Utilizamos abordagens estatísticas
de São Paulo (USP) Fabrícia Jordão, hoje incomuns, como índice de refração negativo. e de aprendizado de máquina para analisar
docente da Universidade Federal do Paraná, Essas estruturas possuem bandas proibidas: um grande número de amostras de várias
foi agraciada pela tese que analisou frequências em que a propagação de ondas é partes do mundo”, diz Thomas. O interesse
o momento histórico da abertura política bloqueada. “Essa característica permite a em investigar a relação entre bactérias
e da redemocratização (1974-1989) nas artes filtragem e manipulação de ondas com e câncer começou no mestrado em oncologia,
visuais. Uma das contribuições do trabalho aplicações em acústica e vibrações, como a concluído em 2012 no Centro de Pesquisas
foi mostrar que artistas de expressão, como criação de barreiras ou filtros acústicos, bem do Hospital A.C.Camargo, sob a orientação
Rubens Gerchman, Cildo Meireles e Carlos como sensores e materiais com capacidade de de Emmanuel Dias-Neto. Já o doutorado
Zilio, mantiveram canais de diálogo com invisibilidade acústica”. Durante o doutorado, em bioinformática foi orientado por João
instituições governamentais, ainda que se fez um estágio-sanduíche na Georgia Tech, Carlos Setúbal, do Instituto de Química
opusessem abertamente ao regime militar. Estados Unidos, em colaboração com da USP, com coorientação de Dias-Neto.
“Havia uma política cultural na época, Massimo Ruzzene. “Foi fundamental aprender A pesquisa teve um estágio sanduíche na
muito destinada à produção de símbolos o que estava sendo feito lá fora”, diz. Em Universidade de Trento, na Itália, no
e à manutenção do patrimônio, que era vista São Carlos, Beli está integrado a um projeto laboratório de metagenômica do cientista
como estratégica para o governo e ajudou temático que estuda materiais fonônicos e da computação Nicola Segata. Atualmente,
a fomentar uma produção experimental”, metamateriais com aplicações em Thomas faz estágio de pós-doutorado

56 | NOVEMBRO DE 2020
A
projeto de pesquisa sólido. Em outras os temas das publicações de um cientista avaliação sobre colaborações
agências, há práticas como a concessão ou de um grupo de pesquisa convergem internacionais envolveu a pro-
de bolsas por cotas para departamentos para os assuntos mais relevantes do mo- dução científica de pesquisa-
das universidades, que têm autonomia mento em seu campo do conhecimento. dores apoiados pela FAPESP
para distribuí-las a pós-graduandos. “O “Não chega a ser um índice que aponta entre 1990 e 2018. O interesse
efeito positivo dos critérios da FAPESP pesquisa na fronteira do conhecimento, era observar a evolução do de-
sobre o perfil dos bolsistas, além da prá- mas chega perto disso em muitas áreas”, sempenho principalmente a partir de
tica de revisão pelos pares, é reforça- explica Salles-Filho. meados da década de 2000, quando a
do pela exigência da apresentação de As publicações dos bolsistas da FA- Fundação passou a investir de forma
relatórios de pesquisa no decorrer do PESP tiveram proeminência maior que mais intensa em acordos de coopera-
projeto”, explica Salles-Filho. Ele tam- os demais grupos em quase todos os tó- ção com agências e universidades do
bém afirma que, em condições ideais, picos “quentes” analisados, com desta- exterior, em um esforço para ampliar a
deveriam ter sido comparados estudan- que especial para estudos no campo da internacionalização da pesquisa paulista.
tes com desempenho semelhante – os astronomia sobre planetas e galáxias, Tais acordos, que hoje são mais de 230,
denegados pela FAPESP que por pouco de células solares ou de imunoterapia vêm tornando as parcerias mais robustas,
não receberam bolsa e os apoiados pela sobre linfócitos T. Salles-Filho observa ao também financiar projetos de grande
Fundação que estiveram próximos do que é preciso cuidado ao considerar os porte desenhados e realizados em con-
limiar da rejeição –, mas não foi viável índices de proeminência. Existem temas junto e em igualdade de condições por
identificar tais perfis. em que a pesquisa brasileira tem grande pesquisadores do Brasil e colegas de ins-
A avaliação utilizou um instrumento influência, como produção de biocom- tituições estrangeiras. O primeiro instru-
que ajuda a medir a relevância do traba- bustíveis, mas a importância é regional. mento com tais ambições foi celebrado
lho dos bolsistas. É o índice de proemi- Nesses casos, a proeminência medida com os Research Councils (RCUK), do
nência, calculado pela plataforma SciVal, globalmente não será tão elevada, mas é Reino Unido, seguido pela agência de
da editora Elsevier. Ele mostra o quanto de grande importância para o país. pesquisa alemã DFG e a National Science

no mesmo laboratório, com financiamento desenvolvida no IQSC em parceria com a


da União Europeia. Embrapa ”, afirma.
O químico capixaba Flávio Kock também Entre os ex-bolsistas da FAPESP premiados,
está fazendo estágio de pós-doutorado no há um pesquisador iraniano, o geólogo Saeid
exterior, na Universidade de Toronto, Canadá, Asadzadeh, que fez doutorado no Instituto
com financiamento da FAPESP. Ele ganhou de Geociências (IG) da Unicamp e atualmente
o prêmio por uma tese sobre aplicações de é pesquisador de pós-doutorado da instituição,
ressonância magnética nuclear de baixa financiado novamente pela Fundação.
resolução (RMN-BR) que foi premiada na Em 2013, Asadzadeh procurava uma
categoria Química. O trabalho, realizado no universidade para fazer doutorado e um colega
Instituto de Química de São Carlos da USP canadense recomendou o professor Carlos
(IQSC) em parceria com a Embrapa Roberto de Souza Filho, da Unicamp, como
Instrumentação e o Centro de Imagem possível orientador. “Examinei a produção
Molecular, vinculado à Universidade de Turim, científica do professor, os laboratórios
na Itália, demonstrou como a RMN-BR pode do IG e fiquei interessado”, afirma. No primeiro
ser usada para estudar moléculas conhecidas ano, teve bolsa da Capes, mas insistiu em
como compostos de coordenação. Isso concorrer a uma bolsa da FAPESP, que obteve
permitiu, por exemplo, uma rápida avaliação a partir do segundo ano. “Fiquei motivado
da eficiência de um novo agente de contraste pelo prestígio que a bolsa confere.”
capaz de interagir com células tumorais da Em sua pesquisa, orientada por Souza Filho,
próstata, criando uma possível alternativa desenvolveu um método para detectar a
para o seu diagnóstico. Kock fez graduação e presença de hidrocarbonetos na superfície
mestrado na Universidade Federal do Espírito terrestre analisando imagens de sensoriamento
Santo. Em seu doutorado, foi orientado pelo remoto. Ele atribui o prêmio ao impacto O químico Flavio Kock (no alto) e o biólogo
pesquisador Luiz Alberto Colnago, da que a pesquisa alcançou – já publicou sete Andrew Thomas: depois do doutorado
com bolsa da FAPESP, ambos estão
Embrapa, com apoio da FAPESP. “A bolsa foi artigos sobre o tema em algumas
no exterior em estágios de pós-doutorado
FOTOS ARQUIVO PESSOAL

essencial para o desenvolvimento dessa das principais revistas da área de geociências.


pesquisa de alto nível e por possibilitar um No pós-doutorado, Asadzadeh analisa dados
intercâmbio com a Universidade da Itália, o sobre o comportamento termal de rochas
que proporcionou uma grande contribuição em imagens de satélite em busca
para a pesquisa que estava sendo de indícios da presença de petróleo.

PESQUISA FAPESP 297 | 57


que os instrumentos de cooperação inter- prietário da Vivax, de São Caetano do Sul,
Propriedade nacional geram maior produção tecnoló- que hoje tem 10 colaboradores. “Eu tinha
gica. Outras hipóteses encontraram lastro uma ideia promissora, mas sem o suporte
intelectual nos dados, como a que buscava mapear a do programa não teria chegado ao protó-
repercussão das pesquisas. “Analisando a tipo e ao mercado”, diz o empreendedor,
Pedidos de patentes depositados
base de dados Scopus, foi possível obser- que já teve cinco projetos apoiados pelo
no INPI por empresas beneficiadas
var que o número de citações de artigos programa. Em 2018, a Vivax lançou no
pelo programa Pipe e por
de projetos vinculados a acordos foi 96% mercado um robô portátil que auxilia a
empresas que pediram, mas maior do que o do grupo de controle”, ex- reabilitação de membros superiores em
tiveram o auxílio denegado plica Salles-Filho. pessoas que sofreram acidente vascular

N
73 cerebral. “Trabalhei em empresas da área
o caso do programa Pipe, foi anali- médica quando vivi nos Estados Unidos
59 sada a trajetória de pequenas em- e vi a oportunidade de criar o produto
presas inovadoras responsáveis quando voltei para o Brasil”, afirma. O
por 185 projetos aprovados entre equipamento custa US$ 80 mil e já foi
2006 e 2016 e comparada com a adquirido por 11 hospitais brasileiros.
de 296 empresas que apresenta- A equipe de Makiyama agora desenvol-
25 ram propostas ao programa e que foram ve um robô similar para fisioterapia de
rejeitadas. Firmas que nunca se interes- membros inferiores.
saram por participar do programa não Uma contribuição do processo de ava-
10
foram avaliadas. Um dos principais efeitos liação foi identificar quatro diferentes
Antes Depois Antes Depois observados foi a criação de empregos na grupos de empresas – entre as beneficia-
área de P&D: as apoiadas tinham duas das e as que tiveram projetos denegados –,
Empresas com Empresas com
projetos aprovados projetos denegados vezes mais pesquisadores empregados cujos perfis dão pistas sobre a dinâmica
dois anos após a conclusão dos projetos do ecossistema de inovação paulista. Dois
FONTES AVALIAÇÃO SISTEMÁTICA DE IMPACTOS DE AÇÕES
E PROGRAMAS DE CT&I / FAPESP em comparação com o outro grupo. En- dos grupos são compostos por empresas
tre os coordenadores de propostas apro- que tiveram o maior número de propostas
Foundation, dos Estados Unidos. Em en- vadas, a maior parte é de pesquisadores rejeitadas: um reúne firmas com indica-
trevista publicada em abril (ver Pesquisa que já realizaram pós-doutorado (37%) dores de performance apenas dentro da
FAPESP nº 290), o então diretor científi- e doutores (35%). “A avaliação mostrou média, na maioria sem produtos de alto
co da FAPESP, Carlos Henrique de Brito que alguns dos objetivos mais importan- valor tecnológico, enquanto o outro abar-
Cruz, explicou a mudança: “Trouxemos tes do programa estão sendo cumpridos, ca empresas em geral de softwares, com
os procedimentos deles para cá, como como consolidar competência técnica nas baixo investimento em P&D.
o modo de organizar reuniões, tipos de empresas e aumentar o número de fun- Os outros dois grupos restantes concen-
formulários, como trabalhar para ex- cionários envolvidos com P&D, além de tram mais empresas com projetos aprova-
trair dos nossos assessores pareceres gerar empregos”, afirma Sergio Queiroz, dos pelo programa. Um deles é composto
melhores e mais detalhados. Com isso, professor do Departamento de Política por firmas de base tecnológica já consoli-
nosso sistema melhorou como um todo”. Científica e Tecnológica da Unicamp e dadas, que investem recursos em P&D e
O resultado é que, entre 2008 e 2018, a membro da coordenação adjunta de Pes- costumam manter parcerias com univer-
participação dos projetos resultantes quisa para Inovação da Diretoria Cientí- sidades. E o segundo tem o perfil típico
de colaboração institucional passou de fica da FAPESP. das startups tecnológicas, com presença
0,12% para 9,77% do total de auxílios. A avaliação do Pipe, ao contrário dos marcante de coordenadores com título de
A estratégia adotada na avaliação foi demais programas, baseou-se em dados doutor ou com estágio de pós-doutorado
comparar dois tipos de projetos colabo- primários, para atenuar os efeitos da es- no currículo – e também de mulheres.
rativos entre pesquisadores de São Paulo cassez de bases de dados sobre pequenas Na avaliação de Queiroz, as duas cate-
e de outros países entre 1990 e 2018: os empresas no Brasil. As empresas que par- gorias enfrentam desafios bem diferentes.
resultantes de acordos internacionais ce- ticiparam da avaliação responderam a um As já estabelecidas frequentemente pre-
lebrados pela Fundação (572, ao todo) e os questionário on-line, que requisitava dados cisam de apoio para superar obstáculos
firmados diretamente pelos pesquisado- sobre suas características, desempenho técnicos, mas, como já detêm um lugar no
res, com apoio financeiro da FAPESP, mas e investimento em inovação. Tais dados mercado, conseguem lidar com o proble-
sem o suporte institucional dos acordos foram cotejados com informações sobre ma formando equipes de pesquisa. Para
(2.055). “A demanda da Fundação era sa- propriedade intelectual e emprego, entre as startups, é comum sobrar competência
ber se as pesquisas dentro desses acordos outras. Em mais de 60% dos casos, os em- técnica, mas há grande fragilidade na área
teriam ou não mais impacto do que fora preendedores estabeleceram uma relação dos negócios. “Criamos o Pipe Empreen-
deles”, diz Salles-Filho. Foram testadas de causa e efeito entre a aprovação do pro- dedor para combater essa deficiência”, diz
quatro hipóteses. Duas não se confirma- jeto Pipe e o desenvolvimento de inovação. Queiroz, referindo-se a um programa de
ram. Em número de artigos publicados, “Nossa empresa não existiria sem o treinamento para beneficiários de projetos
não houve diferença entre os dois grupos. apoio do programa”, afirma o engenheiro Pipe voltado para dar fôlego e sustentabi-
Da mesma forma, não foi possível afirmar Antonio Massato Makiyama, sócio-pro- lidade comercial aos projetos. n

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INDICADORES

Levantamento mostra quem


financia e quem faz
pesquisa e desenvolvimento
no estado de São Paulo
Fabrício Marques

U
ma nova metodologia para cal- seus resultados, o que mede os recursos dos de fontes primárias. As instituições
cular os investimentos em pes- aplicados em P&D por universidades, que realizam atividades de P&D respon-
quisa e desenvolvimento (P&D) institutos de pesquisa e hospitais ins- deram a questionários eletrônicos forne-
no estado de São Paulo produziu talados no estado, atingiu o valor de R$ cendo informações detalhadas sobre seu
um retrato mais robusto desse 12,87 bilhões, em 2018. O montante não quadro de pessoal, suas receitas e suas
tipo de esforço, que é associado se afasta muito dos R$ 12,12 bilhões aferi- despesas em 2018. Essas informações
à geração de conhecimento, inovação e dos no mesmo período pela metodologia foram complementadas e cotejadas com
riqueza. O desenvolvimento e a implanta- adotada anteriormente e divulgados no as originárias de fontes públicas sobre
ção dessa metodologia foram conduzidos relatório anual de atividades da FAPESP, orçamentos, agências de fomento, ensino
pela Gerência de Estudos e Indicadores mas a nova análise tem maior acurácia superior, pós-graduação, entre outras. A
da FAPESP, em parceria com a Fundação e permitiu construir várias outras esta- metodologia anterior era calcada exclu-
Seade. A abordagem adota critérios mais tísticas, como matriz de financiamento sivamente nessas fontes secundárias, que
próximos dos recomendados internacio- versus execução das atividades de P&D não permitem enxergar, na maior parte
nalmente, amplia a cobertura do universo no estado de São Paulo (ver quadro). dos casos, de onde vieram os recursos e
de instituições que realizam atividades A diferença entre os valores obtidos o montante de fato investido.
de P&D, permite a produção de novos segundo as duas abordagens se explica Em segundo lugar, o novo levantamen-
indicadores sobre o tema e refina méto- por três fatores principais. O primeiro é to é mais representativo que o anteces-
dos utilizados para produzi-los. Um de que o novo modelo utilizou dados obti- sor. O número de organizações contem-

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pladas é maior, pois houve a preocupação 47%. Em ciências da saúde, o índice é o de R$ 15,5 bilhões, que não se confirmou
de incorporar, além das universidades e mais baixo, de 40%. Ocorre que os pro- devido à recessão.
institutos estaduais e federais, também fessores da área médica dedicam tempo Uma das grandes contribuições da nova
instituições privadas dedicadas a P&D e significativo ao atendimento clínico, não metodologia é a possibilidade de calcular
hospitais públicos ou filantrópicos que, contabilizado como atividade de P&D. Os os dispêndios sob duas óticas: a da exe-
além de prestar assistência à população, percentuais obtidos foram aplicados às cução, mostrando as categorias de insti-
também fazem pesquisa. demais instituições de ensino superior tuições que fazem P&D de modo efetivo,

P
e adequados às respectivas distribuições e a do financiamento, mapeando a parti-
or fim, refinou-se a forma de esti- de seus professores por área de conheci- cipação dos governos federal e estadual
mar as atividades de P&D nas uni- mento. “A melhor segregação dos inves- e das empresas nos investimentos e as
versidades e outras instituições timentos em P&D nas universidades foi organizações que mais os utilizam. Quem
de ensino superior. Em parceria um ganho importante do levantamento”, mais patrocinou os esforços de P&D no
com a Pró-reitoria de Desenvolvi- explica a economista Sandra Hollanda, estado em 2018 foram as empresas (49%
mento Universitário da Unicamp, que é consultora do programa da FAPESP do total). Em seguida vem o governo, com
foi feito um estudo-piloto para calcular a voltado à construção de um sistema de 44% (ver quadro). E quem mais executou
parcela de tempo que os professores uni- Indicadores de Ciência, Tecnologia e esses recursos foram, novamente, as em-
versitários dedicam à pesquisa. A partir Inovação para o estado de São Paulo e presas (50% do total). As universidades
daí, estimou-se a proporção dos recursos trabalhou na elaboração do trabalho. realizaram 31% dos dispêndios; outras
executados pelas universidades que pode Já em relação aos dispêndios em P&D instituições públicas, 13%, e organizações
ser considerada investimento em P&D, do setor empresarial, ambas as metodo- sem fins lucrativos, 6%. “Essa matriz de
procedimento semelhante ao adotado em logias compartilham a mesma fonte: os financiamento e execução é semelhan-
muitos países. O estudo-piloto evidenciou dados agregados sobre empresas pau- te à da maioria dos países, onde a P&D
algo que já se sabia: a maioria dos docen- listas extraídos da Pesquisa de Inova- realizada nas universidades públicas é
tes trabalha em regime de dedicação inte- ção (Pintec), divulgada a cada três anos custeada sobretudo pelo governo e as em-
gral e sua jornada, além das atividades de pelo Instituto Brasileiro de Geografia presas são as principais patrocinadoras
pesquisa, também se desdobra em aulas, e Estatística (IBGE). Os investimentos da pesquisa que elas próprias fazem”,
projetos de extensão e tarefas de gestão. em P&D das empresas paulistas alcança- explica Hollanda.
Mas também constatou que a divisão do ram R$ 12,7 bilhões em 2018, de acordo Essa forma de analisar os dispêndios
tempo varia de acordo com o campo do com dados atualizados a partir da últi- segue as normas da Organização para a
conhecimento. Em ciências exatas e da ma edição da Pintec, divulgada em abril Cooperação e Desenvolvimento Econô-
Terra, os docentes dedicam em média passado (ver Pesquisa FAPESP nº 291). A mico (OCDE), que reúne 37 países en-
57% de sua jornada à pesquisa, enquanto estimativa feita no relatório de 2018, ba- tre os mais industrializados do mundo.
na área de humanidades a proporção é seada em projeções da Pintec divulgada “Os critérios que estamos adotando se
de 51% e em ciências sociais aplicadas há três anos, era de um dispêndio maior, baseiam no Manual de Frascati, criado

A comparação das duas metodologias


Os dispêndios em P&D no estado de São Paulo executados por tipo de
instituição, excluindo o investimento das empresas. Em R$ milhões

Com levantamento de dados primários, seguindo o Manual de Frascati, da OCDE*

3.544,1 7.769,4 1.540,5 24,6


Institutos de Instituições de Instituições de atendimento Outros
pesquisa ensino superior médico e hospitalar
12.878,6
Total (exceto
* os investimentos das agências de fomento já estão computados nos valores executados pelas instituições
empresas)

Com levantamento de dados secundários, publicado no Relatório de atividades FAPESP de 2018


INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

2.468,6 7.058,3 2.593,6


Institutos de pesquisa Instituições de ensino superior Agências de fomento
12.120,50
Total (exceto
empresas)
616,1 1.852,5 5.174,1 1.233,6 650,6 1.216,7 1.376,9
IP estaduais IP federais IES estaduais IES federais IES privadas FAPESP Agências
federais
(CNPq, Capes e Finep)

60 | NOVEMBRO DE 2020
Dispêndios em P&D no estado de São Paulo
Financiamento e execução de recursos em 2018, segundo a nova metodologia – em %

Participação dos setores na Participação dos setores no


EXECUÇÃO de P&D em SP FINANCIAMENTO de P&D em SP

13 50 44 49
Setor Setor Setor Setor
governo empresarial governo empresarial

1
Setor
exterior

3
31 6 Setor sem 3
Setor ensino Setor sem finalidade Setor ensino
FONTE GERÊNCIA DE ESTUDOS
superior finalidade lucrativa lucrativa superior E INDICADORES DA FAPESP

A
pela OCDE, que é referência para quem divulgação de indicadores de A Fundação Seade, centro de produ-
trabalha com estatísticas sobre P&D em esforços e resultados das ativida- ção de estatísticas socioeconômicas e de-
todo o mundo”, explica o economista Si- des científicas e tecnológicas no mográficas ligada ao governo paulista,
nésio Pires Ferreira, gerente de Estudos estado faz parte das atribuições deu apoio para a elaboração e execução
e Indicadores da FAPESP. Uma vantagem da FAPESP. Entre 1998 e 2010, a do levantamento. “Eles têm experiência
do trabalho é que os resultados são com- Fundação publicou quatro livros em obter dados primários como os que
paráveis com estatísticas internacionais, sobre o tema. Nos últimos anos, as es- queríamos apurar”, diz Ferreira, que já
já que boa parte dos países adota os prin- tatísticas passaram a ser divulgadas em foi diretor-adjunto do órgão. A parceria
cípios da OCDE. A desvantagem é que, boletins e na seção Dados, de Pesquisa envolveu a formulação de um questio-
seguindo esses critérios, os dados sobre FAPESP. Em anos recentes, a Fundação nário eletrônico inspirado em modelos
São Paulo não podem ser confrontados tem realizado mapeamento detalhado aplicados em outros países e adaptável
com os produzidos pelas outras unidades das organizações científicas e tecnoló- à realidade de cada instituição. “Há di-
da federação e pelo Ministério da Ciên- gicas e contabilizado, a partir da Pintec, ferenças na forma como universidades
cia, Tecnologia e Inovação (MCTI), que as empresas inovadoras em atividade no e institutos de pesquisa se organizam e
seguem usando informações secundárias estado. Segundo a última atualização, o registram suas atividades. O questionário
para medir o esforço público em P&D. “A sistema de ciência e tecnologia do estado permitiu extrair dados confiáveis e pa-
FAPESP está avaliando a possibilidade de São Paulo atualmente é composto por dronizados em meio a essas variações”,
de manter a divulgação dos dados tam- 73 instituições de ensino superior (19 pú- explica Ferreira. A expertise da Funda-
bém com a metodologia anterior, para blicas, inclusive quatro hospitais univer- ção Seade em trabalhar com regras que
não descontinuar a série histórica e ter sitários, e 54 privadas), 12.831 empresas envolvem a preservação do sigilo de da-
um indicador compatível com o adotado que fazem inovação (das quais 3.420 com dos fornecidos também foi importante.
nacionalmente, ainda que o MCTI não atividades internas de P&D), 40 institui- Cada participante declarou dados sobre
utilize exatamente os mesmos moldes que ções públicas de pesquisa, inclusive sete seus dispêndios e atividades em P&D, mas
a Fundação costumava usar”, diz Ferrei- hospitais, além de 24 institutos de pes- acertou-se que muitas dessas informações
ra. Os novos critérios foram apresentados quisa privados sem fins lucrativos, dos só serão divulgadas de forma agregada.
ao ministério. Em tese, o modelo poderia quais sete são de atendimento à saúde. “Várias instituições tinham receio de que
ter utilidade para o governo federal se o Esse mapeamento serviu como bússola suas informações se tornassem públicas e
Brasil ingressar na OCDE – o processo de para a coleta de dados sobre P&D em um nós garantimos que apenas o conjunto de
adesão está em curso – e precisar produzir conjunto de instituições mais abrangente dados seria divulgado, de modo que não
estatísticas alinhadas com as da entidade. do que se fazia anteriormente. fosse possível identificá-las”, afirma. n

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ASTROFÍSICA

DE T DOS S TAMANH S

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Ondas gravitacionais reforçam a existência
de buracos negros intermediários,
entre 100 e 100 mil massas solares

Marcos Pivetta

N
o início de setembro, os observatórios equipe que redigiu dois artigos científicos sobre
Ligo, nos Estados Unidos, e Virgo, na a descoberta. “Então percebemos que estávamos
Itália, anunciaram a mais intensa de- lidando com uma fonte [de ondas gravitacionais]
tecção de ondas gravitacionais desde excepcionalmente massiva.”
que esse tipo de emissão foi flagrada De acordo com o tipo de vibração gerada pelas
pela primeira vez, em setembro de 2015. A fonte do ondas gravitacionais, os pesquisadores inferem
novo e potente sinal, registrado em 21 de maio de características do evento que as produziu. “Em
2019, foi a fusão de dois buracos negros, um de 85 fusões de buracos negros, conseguimos estimar a
e outro de 66 massas solares. Ocorrida quando o massa dos objetos que se uniram e também do que
Universo tinha cerca de metade de sua idade total resultou”, diz o astrofísico Odylio Aguiar, do Ins-
de 13,8 bilhões de anos, a união desses dois obje- tituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que
tos extremamente densos e compactos gerou um coordena a participação de brasileiros no consór-
buraco negro ainda maior, de 142 massas solares. cio Ligo. O sinal GW190521 é o indício mais sólido
Nesse evento, a energia liberada na forma de on- de que buracos negros de tamanho intermediário,
das gravitacionais, perturbações na curvatura do com massa entre 100 e 100 mil sóis, existem. Antes
espaço-tempo previstas por Albert Einstein (1879- eram conhecidos somente buracos negros muito
1955), foi da ordem de 8 massas solares. Dotado de pequenos ou demasiadamente grandes.
um descomunal campo gravitacional, um buraco Ainda não se sabe se há pontos específicos do
negro não deixa nada escapar de seu interior, nem Universo que tendem a abrigar buracos negros
a luz, particularidade que dificulta seu registro. de tamanho intermediário ou se eles estariam es-
O sinal sonoro da fusão de buracos negros, de- palhados por diversas regiões de forma aleatória.
nominado GW190521, foi captado pelos dois de- “Eles poderiam se formar na periferia das galá-
tectores em solo norte-americano e seu congênere xias ou talvez estar no centro de galáxias anãs”,
europeu, instalado na Toscana. “Ao contrário das comenta o astrofísico holandês Roderik Overzier,
fusões de buracos negros que geralmente detec- do Observatório Nacional (ON), do Rio de Janei-
tamos, que reverberam como um chiado cada vez ro. “Ou ainda em aglomerados globulares [con-
Representação artística mais agudo, o GW190521 durou apenas um décimo centrações de formato esférico de até 1 milhão
de seis galáxias de segundo e era mais semelhante a um baque”, de estrelas muito antigas, surgidas há mais de 10
(pontos luminosos) disse, em material de divulgação, o astrofísico nor- bilhões de anos].” Desde os anos 2000, os astro-
ESO / L. CALÇADA

em nuvem de gás em
torno do buraco
te-americano Nelson Christensen, chefe do labo- físicos suspeitam que esse tipo de buraco negro
negro supermassivo ratório Artemis do Observatório da Côte d’Azur, poderia se formar no Cosmo, sem, no entanto, ter
de um quasar em Nice, na França, e um dos coordenadores da provas irrefutáveis de sua existência.

PESQUISA FAPESP 297 | 63


Até os registros do Ligo-Virgo havia evidências em que uma quantidade
da presença no Universo de buracos negros em de matéria descomunal se
duas escalas de grandeza: os estelares, com até 65 encontra comprimida em
massas solares, resquícios da morte de certas estre- uma área minúscula. Essa
las, e os supermassivos, entre 100 mil e bilhões de particularidade gera um
massas solares, presentes no centro da maioria das campo gravitacional tão
galáxias do Universo, senão de todas. “O processo forte que toda a matéria é
que levaria à formação de buracos negros interme- sugada para o seu interior Os buracos negros
diários ainda é uma incógnita”, comenta o astrofí- ao cruzar um certo limite
sico Rodrigo Nemmen, do Instituto de Astronomia, de proximidade em torno
supermassivos,
Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade do buraco negro, o chama- no centro de galáxias,
de São Paulo (IAG-USP). “Sabemos bem apenas do horizonte de eventos. A
como se originam os buracos estelares.” matéria capturada se con- têm entre 100 mil
Algumas estrelas chegam ao final de sua vida centra em um ponto cen-
por meio de uma violenta explosão, denominada tral dessa região, a singu- e bilhões de
supernova. Esse evento libera enormes quanti- laridade, de densidade in-
dades de matéria e radiação. Se os resquícios da finita, onde as leis da física
massas solares
supernova apresentam massa colapsada entre 1,4 conhecidas não valem.
e 2 massas solares, surge uma estrela de nêutrons, Por sua própria natu-
um corpo muito denso e compacto. Quando o reza, buracos negros não
núcleo remanescente da estrela que explodiu é emitem nenhuma forma
superior a 3 massas solares, a matéria continua a de radiação, a não ser, tal-
colapsar (a se acumular em uma pequena área), vez, a chamada radiação
gerando um objeto ainda mais denso e compac- de Hawking, fenômeno hipotético proposto pelo
to: um buraco negro. É comum os buracos negros famoso físico britânico falecido. A única forma
de menor dimensão apresentarem uma estrela segura de detectá-los é por meios indiretos, pela
companheira de cuja matéria se alimentam. Esse observação de perturbações que sua presença e
processo de contração gravitacional de uma úni- enorme campo gravitacional causam em seu en-
ca estrela, segundo os cálculos dos físicos, pode torno. Algumas anomalias podem indicar a exis-
gerar buracos negros de até 65 massas solares. tência desses gigantescos sugadores de matéria.
Para explicar buracos negros acima desse limite, Umas delas são fortes emissões de alguns tipos Representação artística
há várias hipóteses: eles poderiam se formar pela de radiação, como raios X e ondas de rádio, em dos dois buracos negros
captura progressiva de gás e de poeira do espaço; regiões do espaço onde aparentemente não existe com dezenas de massas
solares cuja fusão gerou
pela união de buracos negros menores; ou ainda nada. Essa produção de energia deriva do contato ondas gravitacionais
serem o produto da fusão de duas ou mais estre- da borda do chamado disco de acreção de matéria captadas em 2019 pelos
las muito massivas que colapsaram. com o horizonte de eventos, a fronteira que deli- detectores Ligo-Virgo
Apesar da enorme diferença de massa entre mita a área da qual a matéria não escapa do campo (abaixo, à esq.)
os buracos negros estelares e os supermassivos, gravitacional do buraco negro. No ano passado, o Ilustração reconstrói
esses objetos, independentemente de seu talhe, projeto Telescópio Horizonte de Eventos (EHT), aS2trajetória da estrela
em torno do
apresentam as mesmas características. São des- que usa dados coletados por oito observatórios de buraco negro no centro
critos pelos astrofísicos como regiões do espaço radioastronomia, obteve as imagens mais signifi- da Via Láctea

1 2

64 | NOVEMBRO DE 2020
de ondas gravitacionais foram flagradas pela coo-
peração Ligo-Virgo: 12 envolveram a fusão de um
par de buracos negros, 2 foram produzidas pela
junção de estrelas de nêutrons e 1 se deu pela união
de um buraco negro com um objeto compacto ain-
da não determinado. Algumas fusões chamam a
atenção pela diferença significativa de massa dos
corpos envolvidos (em geral, os objetos que par-
ticipam desses eventos têm tamanhos similares),
como as de “O Gordo e o Magro”, apelido dado à
união de dois buracos negros bastante assimétri-
cos, um de 8 e outro de 30 massas solares, regis-
trada no ano passado pelos detectores de ondas
gravitacionais. Evento ainda mais misterioso foi
a fusão de um buraco negro de 23 massas solares
com um objeto denso e compacto, de cerca de
2,6 massas solares, que os astrônomos não sabem
precisar se se trata de um pequeno buraco negro
ou de uma estrela de nêutron.
A descoberta de mais buracos negros super-
massivos e de tamanho intermediário reforça uma
questão cosmológica nos moldes do ovo e a gali-
3
nha: as galáxias surgiram antes desses grandes
Simulação computacional cativas do que seriam os arredores de um buraco sugadores de matéria, como a maioria das obser-
mostra como a gravidade negro supermassivo, com 6,5 bilhões de massas vações indica, ou é possível que tenham surgido
de buraco negro
supermassivo distorce
solares: um círculo colorido ligeiramente desfo- juntos ou depois? A galáxia mais antiga conhecida,
o espaço ao seu redor cado, ao redor de uma região enegrecida no centro a GN-z11, teria surgido entre 300 e 400 milhões
como um espelho de da galáxia M87. Não se trata de um flagra do bu- de anos depois do Big Bang, a explosão inicial que
um parque de diversões raco negro em si, mas do seu entorno ou sombra. teria dado origem ao Universo. Até agora, o mais

O
antigo buraco negro identificado teria se formado
utra pista da presença de buracos 690 milhões de anos depois do Big Bang. Ele se
negros é o registro de órbitas anô- encontra no centro do quasar Ulas J134208.10 e
malas e extremamente aceleradas sua massa equivale à de 800 milhões de sóis. “Os
de uma estrela ou de um conjunto quasares e as galáxias surgiram quase juntos no
de estrelas em torno de um ponto início do Universo”, comenta a astrofísica Thaisa
supostamente vazio. A observação contínua desse Storchi Bergmann, da Universidade Federal do
FOTOS 1 MARK MYERS / OZGRAV 2 ESO / M. KORNMESSER 3 NASA / ESA / D. COE, J. ANDERSON/R. VAN DER MAREL (STSCI)

segundo fenômeno em estrelas situadas em torno Rio Grande do Sul (UFRGS), estudiosa de buracos
do centro da Via Láctea, como a S2, provou que negros supermassivos. “Talvez os buracos negros
existe ali um buraco negro supermassivo, com intermediários sejam a semente dos supermassi-
cerca de 4 milhões de massas solares, denomi- vos. Mas isso é apenas uma hipótese.”
nado Sagittarius A*. O feito rendeu o Nobel de As novidades nessa área devem ser cada vez
Física de 2020 para o alemão Reinhard Genzel, mais frequentes. No próximo ciclo de observação
do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, de ondas gravitacionais, previsto para ter início em
e a norte-americana Andrea Ghez, da Univer- meados de 2022, a cooperação Ligo-Virgo vai in-
sidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). O corporar a participação do detector japonês Kagra,
terceiro agraciado com o prêmio deste ano foi o que passou a funcionar no início deste ano. “Com o
teórico britânico Roger Penrose, da Universida- Kagra, devemos observar por semana três eventos
de de Oxford, no Reino Unido, por seus estudos candidatos a serem emissões de ondas gravitacio-
que mostram a compatibilidade da existência de nais”, compara Aguiar. “Em nosso último período
buracos negros com a teoria da relatividade ge- de funcionamento, observamos em média um even-
ral de Einstein (ver Notas na página 15). Também to por semana.” No início da próxima década, está
no interior dos quasares, objetos extremamente previsto o lançamento de um observatório espa-
luminosos, com núcleos ativos, há evidências de cial de interferometria, o projeto Lisa, da Agência
buracos negros supermassivos. Espacial Europeia (ESA), que terá capacidade de
Desde 2015, quando os detectores do Ligo en- registrar as ondas gravitacionais provenientes da
traram em operação, o registro de ondas gravita- fusão de buracos negros intermediários de maior
cionais, como as emitidas pela fonte GW190521, porte e também de supermassivos, eventos ainda
tornou-se mais uma forma indireta de coletar evi- mais intensos que os detectores Ligo, Virgo e Ka-
dências de buracos negros. Até agora, 15 emissões gra conseguem observar da Terra. n

PESQUISA FAPESP 297 | 65


GEOLOGIA

P
1

O GÁS
aredões de 50 metros de al- Eles, no entanto, ainda não estimaram
tura cercam uma vasta planí- o volume de gás liberado nem o quanto
cie no interior dos estados de teria sido necessário para modificar o

DO
Minas Gerais, Bahia e Goiás. clima terrestre, informações importantes
Há cerca de 550 milhões de para fortalecer essa hipótese.
anos, quando a América do Sul, a Áfri- O geólogo Sergio Caetano-Filho, do

ANTIGO
ca e a Antártida ainda estavam ligadas Instituto de Geociências (IGc) da USP,
entre si, ali havia um mar interno, sem chegou a essa hipótese após examinar
conexões com um oceano. Sua área de 520 amostras de rochas calcárias e 198

MAR DO
cerca de 350 mil quilômetros quadrados de material orgânico extraídas em ou-
(ver Pesquisa FAPESP no 220) era similar tubro de 2017 de pedreiras de Januária,
à do mar Cáspio, igualmente fechado, norte de Minas, e Santa Maria da Vitória,

SERTÃO
entre a Rússia, o Azerbaijão e o Irã. sul da Bahia, às quais se somaram infor-
A bacia sedimentar do São Francisco, mações de materiais similares extraídos
onde ficava o chamado mar de Bambuí, de um poço de petróleo e de um furo
tinha uma peculiaridade: a água salgada de sondagem na região do município
liberava gás metano, um dos responsá- mineiro de Arcos. Esse trabalho é parte
Metano liberado por veis pela elevação da temperatura glo- de seu doutorado, defendido no início
bal, de acordo com estudos de geólogos de novembro deste ano. Concluídas em
lago de água salgada das universidades de São Paulo (USP) 2019, as análises registraram um predo-
e Federal de Minas Gerais (UFMG). Os mínio da forma mais pesada do carbono,
pode ter favorecido pesquisadores cogitam que o metano, ao o isótopo 13 (13C), em comparação com
a elevação da temperatura chegar à atmosfera, possa ter contribuído o isótopo 12 (12C), em uma proporção
para amenizar o clima do planeta, redu- até 15 vezes maior que a encontrada em
e a diversificação de zir a intensidade das glaciações e favo- rochas como as do grupo Corumbá, na
recer a diversificação de formas de vida região do Pantanal.
formas de vida no planeta entre 540 milhões e 520 milhões de anos Segundo Caetano-Filho, o excesso
atrás, com o surgimento de moluscos, de 13C pode resultar da atividade de um
Carlos Fioravanti esponjas, equinodermas e artrópodes. grupo de microrganismos primitivos,
as Archaeas, que transformam maté- Geólogos da USP
ria orgânica em gás carbônico (CO2) e coletam amostras de
rochas calcárias
metano (CH4). Em consequência, pode na região de Januária,
ter se formado um ambiente hostil para em Minas Gerais
outros seres vivos, pobre em oxigênio e (à esq.), e em Santa
rico em enxofre, na forma de gás sulfí- Maria da Vitória,
na Bahia (à dir.)
drico, muito tóxico para os seres vivos.
Segundo ele, as rochas das bordas do
antigo mar de Bambuí ainda exalam um
odor de ovo podre, característico do gás
sulfídrico. Essa composição explicaria a
escassez de fósseis marinhos incrusta-
dos nas rochas do mar de Bambuí – nas
rochas similares do grupo Corumbá, di-
ferentemente, os fósseis marinhos são
comuns. Ele e outros colegas da USP
e de universidades de Minas Gerais e
de Paris detalharam os resultados em
um artigo publicado em abril na revista
científica Geoscience Frontiers.
“O fato de o mar de Bambuí provavel-
mente ser um ambiente tóxico para os
seres vivos explica a extrema escassez
de fósseis na região”, diz Marly Babins-
ki, do IGc-USP e orientadora do douto-
rado de Caetano-Filho. Ela identificou
o predomínio das formas mais pesadas
de carbono em seu próprio doutorado,
há 30 anos, atribuindo-o inicialmente 2

ao acúmulo de matéria orgânica, uma


hipótese que não se sustentou. cesso de 13C nas águas; além disso, se- não descobrimos ou a relação gravita-
“O mar de Bambuí não deve ter sido dimentos de rios extintos poderiam ter cional entre a Terra e a Lua, que causa
um caso isolado”, sugere Caetano-Filho, alimentado o mar com carbonato, que as marés, era diferente há 550 milhões
“porque existem outros mares fechados pode formar metano ao se decompor. A de anos, resultando em marés mais altas
com a mesma idade geológica e sinais seu ver, a liberação de metano deve ter que as atuais dos grandes mares conti-
geoquímicos muito semelhantes”. Seria tido um efeito local. nentais, como o Cáspio”.
o caso, segundo ele, da bacia do Irecê, “Como Bambuí é uma bacia peque- “A distância entre a Lua e a Terra varia
na Bahia, que integra a mesma unidade na, em comparação com as dimensões constantemente e era diferente meio bi-
geológica, o cráton São Francisco, e da da Terra, ainda é incerto se poderia ter lhão de anos atrás”, comenta o geofísico
formação Hüttenberg, na Namíbia, sul da liberado metano em volume suficiente Eder Molina, do Instituto de Astronomia,
África, que poderiam reforçar a liberação para interferir no clima global”, diz ele. Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG)
de metano para a atmosfera. Caetano-Filho contra-argumenta: “O da USP. “Atualmente”, ele acrescenta, “a
Se a hipótese se mostrar correta, talvez mar de Bambuí provavelmente foi maior, Lua se afasta da Terra a 3,8 cm por ano,
esses mares fechados tenham sido a fonte antes de ser empurrado por montanhas e aproximadamente.” Há 400 milhões de
de metano que ajudou a elevar a tempe- se isolar. E, se outras bacias também pas- anos, a Lua girava mais rápido e estaria a
ratura e a reduzir o impacto das glacia- saram por uma fase de produção intensa uma distância da Terra 40% menor que
ções. Além da maior oferta de oxigênio e de metano, o impacto sobre a atmosfera a atual. Nesse caso, a maré subiria mais
FOTOS 1 JUAN CAMILLO GÓMEZ- GUTIERREZ 2 KAMILLA AMORIM

nutrientes, a temperatura mais alta que pode ter sido considerável”. do que hoje e o mês – definido como o

D
nas épocas frias dos períodos geológicos tempo necessário para a Lua realizar
anteriores pode ter contribuído para a esde 2019, Uhlein e sua uma volta completa em torno da Terra –
gradual diversificação de formas de vida. equipe têm coletado ro- teria apenas nove dias. n
“Não existem análogos modernos ao chas orgânicas, calcários
mar de Bambuí, o que dificulta muito as formados por cianobacté-
análises”, diz o geólogo Gabriel Uhlein, rias, cristais de sal e outros Projeto
da UFMG. Em estudo publicado em se- sinais de variação de maré nos paredões O Sistema Terra e a evolução da vida durante o Neopro-
tembro na revista Precambrian Research, rochosos de Januária e de Ubaí, no norte terozoico (nº 16/06114-6); Modalidade Projeto Temático;
Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trin-
Uhlein argumenta que a erosão dos ter- de Minas Gerais. Os achados levantam dade (USP); Investimento R$ 2.106.971,07.
renos elevados nas margens do mar de outras dúvidas: “Ou havia conexões do Os artigos científicos consultados para esta reportagem
Bambuí pode ter contribuído para o ex- mar de Bambuí com o oceano que ainda estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 297 | 67


MATEMÁTICA

Pesquisadoras do Impa
tiveram trabalhos
reconhecidos no exterior
e podem inspirar garotas
que sonham com uma
carreira nas ciências exatas

Roger Marzochi

DESTAQUE
INTERNACIONAL
2

Carolina Araujo (acima)


e Luna Lomonaco (à dir.):
únicas mulheres entre
os pesquisadores do
instituto; à esquerda,
imagem de fractal
de Mandelbrot gerada
1 por computador
E
m setembro, a brasileira Ca- gia molecular, na qual certas cadeias de responder é o que determina ocorrerem
rolina Araujo, de 44 anos, e reações químicas podem ser modeladas replicações fiéis ou alterações de forma.
a italiana Luna Lomonaco, por equações polinomiais. O estudo da Viana explica que os fractais permeiam,
de 34, pesquisadoras do Ins- geometria do conjunto de soluções dessas por exemplo, a história do cinema. “Os
tituto de Matemática Pura e equações permite obter informações qua- primeiros usos de computação gráfica em
Aplicada (Impa), venceram litativas sobre as reações químicas. “Em filmes, nos anos 1980 e 1990, foram com
prêmios internacionais de renome. O re- geometria birracional buscamos entender fractais. Alguns tinham montanhas lá no
conhecimento pode ser um bom incentivo quando dois objetos, possivelmente defi- fundo, por exemplo, mas as montanhas
para que garotas mergulhem nesse uni- nidos por equações muito diferentes, têm não estavam lá, eram fractais. Eles é que
verso ainda tão masculino. “É um pro- essencialmente a mesma forma e as mes- faziam essas paisagens.” Sistemas dinâ-
blema cultural muito sério, não apenas mas propriedades geométricas”, explica. micos que produzem conjuntos fractais
no Brasil, mas em todo o mundo. A escas- O fascínio da carioca pelo tema vem são utilizados também para estudos de
sez de modelos passa por uma necessária desde a graduação em matemática na mudanças climáticas, trajetórias de me-
conscientização nos ambientes da família Pontifícia Universidade Católica no Rio teoritos e pesquisas sobre câncer.
e do trabalho”, afirma o matemático Mar- de Janeiro (PUC-RJ), onde foi orientada Lomonaco e Araujo são as duas únicas
celo Viana, diretor-geral da instituição. por Ricardo Sá Earp em um projeto de mulheres em um instituto que soma 47
Carolina Araujo venceu o prêmio bati- iniciação científica. Araujo concluiu em pesquisadores ao todo. Para a italiana,
zado com o nome do matemático indiano 2004 o doutorado na Universidade de ser cientista tem alguns pressupostos
Srinivasa Ramanujan (1887-1920), reco- Princeton, nos Estados Unidos, e logo em que não se adéquam ao que a sociedade
nhecido por seu trabalho sobre a chamada seguida se instalou no Impa. Seu trabalho espera de uma mulher, como competi-
teoria dos números, que estuda a estrutura já foi reconhecido por prêmios como o tividade, uma certa dose de arrogância,
dos números inteiros a partir dos números Liftoff Fellow, do Instituto de Matemá- egoísmo e ambição. “Se criamos uma
primos. Aplicações dessa área são ainda tica Clay, nos Estados Unidos (2004), e o menina de forma diferente, não é de se
hoje as mais diversas, de softwares de L’Oréal para Mulheres na Ciência (2008). espantar que elas escolham carreiras
computadores à química de polímeros. A pesquisa de Araujo está no campo diferentes das dos meninos.” Ela lembra
Primeira brasileira e segunda mu- da matemática pura, mas ela explica que o relato de um colega que queria com-
lher a ganhar o Ramanujan desde que os objetos que estuda são aplicados em prar um presente para a neta. Na loja de
FOTOS 1 LAGUNA DESIGN / GETTY IMAGES 2 E 3 DIVULGAÇÃO IMPA

foi criado, em 2004, Araujo explica que áreas como criptografia, processamento brinquedos, buscou um kit do pequeno
sua área de atuação é a confluência da de dados em computadores e, até mesmo, químico. Ao não encontrar, questionou
álgebra com a geometria, na qual ob- na definição do espaço-tempo na teoria a vendedora, que respondeu: “Você está
jetos podem ser retratados não apenas das cordas, modelo físico-matemático na seção errada, esse brinquedo fica no
por equações matemáticas, mas também que representa um universo formado por setor de presentes para meninos”.
por suas propriedades geométricas. A objetos unidimensionais – semelhantes Nascida em Milão, ela cursou matemá-
geometria algébrica estuda objetos de- a cordas – e até 11 dimensões. “Esses sis- tica na Universidade de Pádua. Depois
finidos por equações – os polinômios temas polinomiais estão muito presen- fez parte dos estudos na Universidade
são as mais básicas funções da álgebra, tes nas ciências, como na compreensão de Barcelona, Espanha, onde cursou o
que envolvem apenas somas e produtos de reações químicas”, explica ela. Este mestrado e foi para a Universidade de
de potências das variáveis. ano a cerimônia de entrega do prêmio, Roskilde, na Dinamarca, para o douto-
Como exemplo de aplicação da geome- que inclui uma palestra da ganhadora, rado. Chegou ao Brasil em 2014 e se tor-
tria algébrica, a pesquisadora cita a biolo- se dará on-line. nou professora na Universidade de São
Também em setembro, a italiana Luna Paulo. Em 2019, foi a primeira mulher a
3
Lomonaco – no Impa desde janeiro des- vencer o Prêmio da Sociedade Brasileira
te ano – foi a primeira mulher laureada de Matemática.
pelo Prêmio de Reconhecimento União A pressão masculina é forte na área em
Matemática da América Latina e Caribe todo o mundo, ela conta. Na Universidade
(Umalca). Ela estuda uma das formações de Pádua, certa vez pediu para refazer
geométricas consideradas mais belas, uma prova na qual tinha tirado 5, algo
os fractais, que formam um conjunto permitido na Itália. Ao ouvir o pedido, o
de figuras geométricas que se replicam professor bateu algumas vezes a cabeça
dentro de si próprias de forma infinita. na mesa, alertando que seria impossível
Lomonaco obteve resultados importan- ela obter uma nota melhor.
tes a respeito do chamado Conjunto de Araujo, que é vice-presidente do Co-
Mandelbrot, no qual uma série de ra- mitê para Mulheres na Matemática da
mificações se expande a partir de uma União Internacional de Matemática, con-
imagem central. corda com a colega. Segundo ela, a parti-
Nessas ramificações, há fractais que cipação das mulheres em bolsas de pro-
copiam exatamente a figura central e dutividade em matemática no Conselho
outros que diferem. Uma das principais Nacional de Desenvolvimento Científico
questões que a pesquisadora conseguiu e Tecnológico (CNPq) é menor que 15%. n

PESQUISA FAPESP 297 | 69


BIOTA – 20 ANOS

TRAMA
VENENOSA 1

A
Teia de aranha comumente encontrada imagem de uma teia de aranha
pendurada em uma árvore passa
nas Américas é composta de toxinas normalmente a ideia de algo es-
tático. A estrutura parece estar ali
que paralisam e ajudam a matar a presa parada apenas esperando a chega-
da de uma presa mais desavisada que, nela, ficará
Eduardo Geraque mecanicamente enredada até que o predador ve-
nha terminar o serviço. Essa percepção de como
funciona a captura de alimentos não é totalmente
correta ao menos para um tipo de aracnídeo, as
chamadas aranhas construtoras de teias aéreas.
Um grupo de pesquisa do Instituto de Biociências
da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp),
do campus de Rio Claro, coletou evidências de
que a teia de uma espécie comum de aranha de
áreas quentes das Américas, Trichonephila cla- A abordagem do trabalho evidenciou a riqueza
vipes, contém toxinas que atordoam e reduzem de processos envolvidos na estratégia da aranha
os movimentos das presas, facilitando o trabalho para capturar presas. As análises indicaram que
posterior de aniquilá-las. O projeto foi realizado os compostos tóxicos podem ser letais ou parali-
no âmbito do Programa Biota FAPESP, iniciati- santes e que a presença de certos tipos de ácidos
va que celebra 20 anos de existência em 2020. graxos (gorduras) na teia potencializa a atuação
“A teia dessa aranha tem um papel ativo no dessas substâncias no interior das presas. “O uso
processo de paralisar e matar a presa por meio de um veneno letal para subjugar a presa, em
de uma série de neurotoxinas que identifica- combinação com a composição da teia, facilita
mos”, afirma o químico Mario Sergio Palma, do a captura e permite que a aranha tenha um gas-
IB, principal autor do trabalho publicado sobre to mínimo de energia durante todo o processo”,
o tema no Journal of Proteome Research, em ju- diz Palma. A ideia de que todas as aranhas lutam
nho. “Essas aranhas vivem sempre no alto das com as presas, portanto, nem sempre tem em-
matas, nunca descem ao chão e enfrentam um basamento científico. “As fêmeas de T. clavipes
desafio ecológico interessante. Fazem tudo na costumam ficar esperando a teia fazer o traba-
teia. Comem insetos vivos que ficam paralisados lho”, comenta o químico da Unesp. O processo de
nas teias por semanas ou até meses, por ação das secreção de toxinas envolvendo as estruturas de
neurotoxinas.” O alvo mais comum da teia en- fios de seda é feito de forma constante. A aranha
venenada feita pelas fêmeas de T. clavipes, que faz uma manutenção permanente da teia depois
medem entre 2,5 e 4 centímetros (cinco a seis de um vento ou quando um predador maior cai
vezes maiores que os machos), são insetos voa- sobre os fios e a danifica.

P
dores de pequeno porte, como cigarras, libélulas,
mosquitos e abelhas. ara o biólogo alemão Fritz Vollrath, da
As aranhas da espécie, comumente encontradas Universidade de Oxford, Reino Uni-
na Mata Atlântica brasileira, costumam montar do, que não participou do trabalho do
grandes teias circulares com fios amarelados e grupo da Unesp, estudos como os fei-
altamente resistentes. Enquanto um fio rígido tos com T. clavipes indicam como os
de seda é usado para estabelecer a moldura da caminhos adaptativos envolvidos nas interações
teia, outro, mais viscoso e espiralado, é usado na ecológicas são interessantes. “A evolução pode
captura da presa. Ele é formado por uma camada resultar nisso: processos verdadeiramente com-
externa de seda adesiva revestida por uma pelí- plexos e multimodais que usam regras muito sim-
cula oleosa. Dois tipos de glândulas das aranhas, ples”, diz Vollrath, especializado em entender a
segundo o estudo, são responsáveis pela produ- estrutura das teias de aranha a partir da zoologia
ção dessas estruturas. Os fios espiralados saem e pesquisador de compostos naturais de seda.
das chamadas glândulas flageliformes. A camada Palma resolveu estudar a estratégia de preda-
oleosa é depositada de forma simultânea pelas ção dessa espécie de aranha depois de ter obser-
glândulas agregadas, que produzem as gotícu- vado o efeito tóxico da trama de fios produzidos
las visíveis a olho nu, com neurotoxinas sobre por aranhas-tecedeiras em campos de arroz do
Teia da aranha
os fios das teias. Japão durante uma temporada de estudos nos Trichonephila
No total, os componentes tóxicos encontrados anos 1990. “Quando observava uma presa caída clavipes: armadilha
na trama são secretados por sete glândulas ab- na teia, percebia que ela lutava de forma deses- eficiente
dominais da aranha, também responsáveis pela perada para escapar, mas 2

produção da seda. “As toxinas são mantidas en- não conseguia”, conta o
FOTOS 1 CASPAR / WIKIMEDIA COMMONS 2 VICTOR PATEL / WIKIMEDIA COMMONS

capsuladas dentro de gotículas oleosas espalha- pesquisador da Unesp. “O


das por toda a estrutura da teia”, explica a bió- inseto ficava meio inebria-
loga Franciele Grego Esteves, que faz doutorado do, como se tivesse entra-
sob orientação de Palma e é uma das autoras do do em contato com alguma
estudo. Os pesquisadores determinaram a assi- droga. Havia sinais claros
natura genética das substâncias encontradas na de ações neurotóxicas.
teia e as associaram a estruturas da anatomia Suas pernas, por exem-
das aranhas. “Cada glândula desempenha um plo, não se moviam regu-
papel diferente no momento da montagem da larmente.” Desde então, o
teia por produzir fios para distintas finalidades”, químico, que estuda pro-
comenta o biólogo José Roberto Aparecido dos teínas da fauna e da flo-
Santos-Pinto, outro autor do trabalho, que faz ra brasileira em busca de
estágio de pós-doutorado no IB. Há fios destina- compostos com potencial
dos à proteção dos ovos depositados pela fêmea. de uso terapêutico, incluiu
Outros servem de auxílio para a aranha fugir de as teias das aranhas entre
eventuais predadores. seus temas de estudo. n

PESQUISA FAPESP 297 | 71


INOVAÇÃO

ESTRATÉGIA
PARA
CRESCER
Empresas apoiadas pelo programa
Pipe da FAPESP são alvo de aquisições
SCIPOPULIS
FOCO DA EMPRESA
Análise de dados
e soluções de
mobilidade urbana
FUNDAÇÃO
LÉO RAMOS CHAVES

2014
PROJETOS PIPE
RECEBIDOS
Domingos Zaparolli e Yuri Vasconcelos 3
EMPRESA
ADQUIRENTE
green4T
ANO DO NEGÓCIO
2019
Avenida Sumaré,
em São Paulo:
Scipopulis trabalha
com melhorias para
mobilidade

A
startup paulistana MVisia é especializa- suas soluções tecnológicas, tiveram seus con-
da em sistemas de inteligência artificial troles acionários adquiridos recentemente pela
aplicada à visão computacional indus- multinacional brasileira Weg, uma das maiores
trial. A PPI-Multitask, também de São fabricantes globais de motores elétricos indus-
Paulo, desenvolve plataformas de geren- triais e geradores de energia.
ciamento da produção conhecidas como “O negócio elevou a MVisia a outro pata-
MES, sigla de Manufacturing Execution Systems. mar”, atesta o sócio-fundador Fernando Lo-
As duas empresas, que receberam investimentos pes. “Passamos a contar com uma estrutura
do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas comercial que demoraríamos décadas para
Empresas (Pipe) da FAPESP para desenvolver constituir. Tínhamos poucos vendedores e

PESQUISA FAPESP 297 | 73


agora contamos com mais de 300 no Brasil e Cinco anos depois, a bra-
no exterior. Já até fizemos uma primeira venda sileira Akaer, provedora de
em Pernambuco”, comemora. sistemas e componentes
A empresa foi fundada em 2012 no Centro de aeroespaciais, incorporou
Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia da a Opto Eletrônica, de São
Universidade de São Paulo (Cietec-USP) e os Carlos, especializada em
quatro sócios foram favoráveis à transferência tecnologia optrônica, como
de 51% do capital para a Weg em junho último. câmeras para uso espacial. O interesse de
“Com a parceria, ganhamos também em gover- Em 2017, a empresa, com se-
nança, gestão e controle financeiro”, diz Lopes. de em São José dos Campos, grandes corporações
“Uau! Perfeito. Essa foi minha reação ao saber participante do projeto do
do interesse da Weg”, recorda-se Marcelo Pinto, jato militar Gripen (ver Pes-
por pequenos
um dos três sócios-diretores da PPI-Multitask, quisa FAPESP no 282), ad- negócios inovadores
fundada em 2000, que também teve 51% de seu quiriu o controle da Equato-
controle vendido para a Weg em setembro do ano rial Sistemas, desenvolvedo- deve ser visto como
passado. “Nosso propósito era ser protagonista ra de soluções tecnológicas
da indústria 4.0 no Brasil. Sabíamos de nossas para sistemas espaciais, de uma medida de
qualidades técnicas, mas também das limitações defesa e segurança.
financeiras e operacionais. A Weg tem robustez Quando se observa o
sucesso do Pipe
financeira, força de venda, gestão qualificada e o ecossistema de startups
mesmo propósito de ser relevante na indústria no país, percebe-se que a
4.0”, argumenta. troca de comando nas em-

O
presas é amplo e vem ocor-
interesse de grandes corporações na rendo em ritmo crescente.
aquisição de empresas de base tecnológi- Entre janeiro e setembro
ca como as apoiadas pelo Pipe-FAPESP deste ano, pelo menos 100
não é novo. Em 2005, o conglomerado startups tiveram o seu con-
aeroespacial francês Thales adquiriu a trole total ou parcialmente
fabricante de instrumentos para satélites negociado no Brasil, de acordo com estimativas
e radares Omnisys, com sede em São Bernardo do
Campo. Em 2011, a Embraer comprou a paulista-
da plataforma de apoio a inovação Distrito. Em
todo o ano de 2019, o número foi de 63 startups.
MVISIA
FOCO DA EMPRESA
na Atech, focada em gestão e controle de tráfego PPI-Multitask e MVisia mantiveram suas mar- Sistemas de
aéreo civil e militar, e a Bradar (antiga Orbisat), cas, equipes e sedes em São Paulo. Os sócios-fun- inteligência artificial
especializada no desenvolvimento de sistemas dadores continuam no comando do dia a dia das aplicados à visão
computacional
e sensores eletrônicos, como radares de defesa respectivas empresas. O que mudou na estrutura industrial
para vigilância terrestre e aérea. organizacional foi a presença de um represen- FUNDAÇÃO
2012
PROJETOS PIPE
RECEBIDOS
4
EMPRESA
ADQUIRENTE
Weg
ANO DO NEGÓCIO
2020

MVisia: sistemas
de IA aplicados
à indústria
1
2

PPI-MULTITASK
FOCO DA EMPRESA
Automação
industrial, sistemas
de gerenciamento
da produção (MES) e
soluções em internet
das coisas (IoT)
FUNDAÇÃO
2000
PROJETO PIPE
RECEBIDO
1
EMPRESA
ADQUIRENTE
Weg
ANO DO NEGÓCIO
2019

A startup PPI-Multitask tante da Weg no conselho das duas empresas e a no Brasil, como já ocorrem de forma intensa
apoia operação no necessidade de alinhamento à estratégia corpo- nos Estados Unidos. E essa é uma boa notícia.
chão de fábrica
rativa da multinacional. “A Weg não fez uma ocu- “É importante que o empreendedor tenha vá-
pação da PPI-Multitask. Mantivemos nossa in- rias oportunidades de obter retorno pelo seu
dependência operacional, e as decisões de longo esforço, seja financeiro ou de outro tipo. Isso
prazo são resultado de um sistema de governança fortalece o ecossistema de inovação”, destaca a
participativa, onde temos voz”, destaca Pinto. engenheira de alimentos Luciana Hashiba, vice-
A decisão da Weg de adquirir, em menos de -coordenadora do Centro de Inovação da Escola
um ano, a PPI-Multitask e a MVisia teve como de Administração de Empresas de São Paulo da
objetivo acelerar o desenvolvimento da divisão Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp).

P
de negócios digitais da companhia, criado há
um ano. Outras duas pequenas empresas de base ara o engenheiro químico Américo Cra-
tecnológica, a paulistana V2COM, especializada veiro, membro da coordenação adjunta
em conectividade e internet das coisas (IoT), e da área de Pesquisa para Inovação da
a BirminD, de Sorocaba (SP), atuante no mer- Diretoria Científica da FAPESP, o inte-
cado de inteligência artificial aplicada à análise resse de grandes grupos por pequenos
de dados industriais, também foram compradas negócios inovadores deve ser visto como
pela companhia com a mesma finalidade. uma medida de sucesso do Pipe. “Significa que o
“São empresas que complementam nosso port- empreendedor apoiado cumpriu bem o desafio
fólio de soluções digitais com tecnologias madu- técnico e validou sua proposta”, afirma.
ras e testadas”, reconhece Carlos Bastos Grillo, Hashiba, que também integra a coordenação
diretor de negócios digitais da Weg, cuja sede adjunta, e Craveiro julgam como secundário o
fica em Jaraguá do Sul, em Santa Catarina. “O fato de o produto desenvolvido com o apoio do
FOTOS 1 REPRODUÇÃO 2 VM / GETTY IMAGES

compartilhamento de conhecimento e recursos programa público de fomento à inovação não ser


entre a Weg e essas quatro empresas gera novas comercializado pelo idealizador, mas por ter-
oportunidades de inovação e a oferta de soluções ceiros, ou mesmo se a empresa for vendida. “O
mais completas aos clientes.” importante é que o esforço não morra no duro
Especialistas em inovação avaliam que a fu- caminho de transformar uma ideia em um em-
são, aquisição e outras formas de interação en- preendimento exitoso”, pondera Hashiba. “O
tre grandes empresas e novatas inovadoras são que vale é o resultado final. O apoio à tecnologia
situações que se tornarão cada vez mais comuns deve gerar valor para a sociedade e assegurar o

PESQUISA FAPESP 297 | 75


retorno econômico e social do investimento”, sobrevivência. As pequenas empresas têm uma
argumenta Craveiro. situação frágil e instável”, afirma.
Segundo César Costa, sócio-diretor da consul- Essa constatação se aplica ainda mais em um
toria em empreendedorismo e inovação corpora- país como o Brasil, onde historicamente o crédito
tiva Semente Negócios, o que motiva as grandes privado é caro e a variação anual do crescimento
corporações a adquirir startups é a decisão de econômico é abrupta, dificultando o planejamen-
acelerar alguma estratégia da empresa. “Pode ser to empresarial. Nas últimas duas décadas o país
entrar em novos mercados, diversificar portfólio mesclou 10 anos de crescimento modesto, seis
de produtos, incorporar novas tecnologias ou até anos de evolução significativa da economia, de
mesmo captar talentos”, avalia. 4% ou mais, com outros quatro anos de recessão –

E
2009, 2015, 2016 e agora no primeiro semestre
m um processo de aquisição tradicional de 2020, de acordo com os cálculos anuais do
o que está em jogo na maioria das vezes Produto Interno Bruto (PIB) do Instituto Bra-
é a participação mercadológica, um pro- sileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Neste
duto bem-sucedido ou a estrutura física ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplica-
da empresa adquirida. Em uma startup, da (Ipea) projeta um retrocesso no PIB de 5%.
geralmente, o principal ativo é a capaci- “As empresas procuram crescer para ter uma
dade inovadora dos empreendedores. situação mais sólida. Crescimento demanda capi-
Um dos grandes desafios na aquisição de uma tal, conhecimento, acesso a distribuição e clien-
novata inovadora, avalia Costa, é manter o co- tes. Uma pequena empresa sozinha, por meios
nhecimento e o ímpeto dos fundadores. “É co- próprios, demora para alcançar essa solidez”, diz
mum que no próprio contrato de aquisição se- Zancul. Existem poucas alternativas para ace-
jam inseridas cláusulas que estabeleçam que os lerar esse processo, avalia o pesquisador. Uma
empreendedores permanecerão trabalhando na é o pequeno empresário buscar o aporte de in-
startup por mais algum tempo, evitando que sua vestidores. Outra é a fusão com outras pequenas
saída impacte negativamente o rumo do negó- empresas, tentando formar um negócio maior.
cio”, relata o consultor. A terceira é a venda. “Ser comprada por outro
O engenheiro de produção Eduardo Zancul, grupo também pode ser um caminho para a pe-
da Escola Politécnica (Poli) da USP e também quena empresa crescer.”
membro da coordenação adjunta da FAPESP,
destaca as dificuldades para uma empresa pe- SUCESSO NA FERTILIZAÇÃO
Pesquisador da
quena se estabelecer. “Uma crise mais severa A InVitro Brasil (IVB), de Mogi Mirim, no in- InVitro realiza
ou mudanças nos parâmetros de concorrência terior paulista, foi criada em 2002 e alcançou cultivo de embrião
podem afetá-la ou até mesmo comprometer sua sucesso mercadológico expressivo. Antes de ser bovino em laboratório

INVITRO BRASIL
FOCO DA EMPRESA
Fertilização
in vitro de embriões
bovinos
FUNDAÇÃO
2002
PROJETOS PIPE
RECEBIDOS
4
CAMILA ZANITTI DE OLIVEIRA / IN VITRO BRASIL

EMPRESA
ADQUIRENTE
ABS Global
ANO DO NEGÓCIO
2015

76 | NOVEMBRO DE 2020
vendida em 2015 para a empresa de genética ABS mum o gestor da startup responder diretamente
Global, do grupo norte-americano Genus, já era ao CEO ou ao conselho do novo controlador.
a maior empresa de fertilização in vitro de em- Foi o que aconteceu com a paulistana Scipo-
briões bovinos do mundo – em 2013 foi responsá- pulis, startup especializada em análise de dados
vel por 45% da produção global de embriões – e e soluções de mobilidade urbana adquirida pela
referência na metodologia de criopreservação, o green4T em 2019. “Não queríamos transformar a
congelamento de embriões, um desenvolvimen- Scipopulis em green4T, mas sim manter a cultura
to tecnológico realizado com apoio do Pipe (ver inovadora deles”, diz Eduardo Marini, CEO da
Pesquisa FAPESP nº 231). green4T, empresa brasileira de soluções de tecno-
“Éramos os maiores em fertilização in vitro logia e infraestrutura digital com sede em São Pau-
de embriões, porém, numa comparação com as lo. “Em uma das primeiras rodadas de negociação
grandes empresas de genética, éramos muito pe- fizemos questão de garantir que eles manteriam a
quenos para competir sozinhos no mercado de marca e a independência operacional. Não teriam
reprodução”, explica o veterinário José Henrique um chefe de fora dando ordens”, relembra Marini,
Pontes, sócio-fundador da IVB e atualmente di- destacando que outra preocupação foi estabele-
retor global de Estratégia de Embriões da ABS. cer um ambiente propício para o acolhimento da
Segundo Pontes, a capacidade de investimen- nova equipe, formada por 10 pessoas.
to em pesquisa da Genus foi um fator decisivo “Tínhamos, sim, o receio de virar burocratas
para a venda. “O grupo investe mais de US$ 50 e cumprir ordens. O que definiu o negócio foi o
milhões anuais em pesquisa e parte significativa alinhamento de propósitos”, reconhece Rober-
é direcionada para biotecnologia e fertilização to Speicys, um dos quatro sócios-fundadores da
in vitro”, destaca. Até a aquisição da IVB, a ABS Scipopulis. O acerto previu a incorporação da
Global era uma empresa especializada em in- startup com os fundadores do negócio passan-
seminação artificial com uma técnica avançada do a deter ações da green4T e a manutenção de
de separação de sêmen sexado, permitindo ao Speicys como CEO da Scipopulis. Todos os fun-
criador a escolha do sexo do animal. dadores da startup foram favoráveis ao negócio,
“A aquisição de uma empresa de embriões co- mas dois preferiram partir para o desenvolvi-
mo a IVB era o passo que faltava para um portfó- mento de novos empreendimentos.

P
lio completo”, conta Márcio Nery, diretor-geral
da ABS Brasil. “A tecnologia de embriões con- ara Marini, a aquisição da Scipopulis
gelados é o futuro e foi decisiva para o interesse representou a oportunidade de a green4T
do grupo pela IVB.” A ABS possui seis laborató- ampliar seu portfólio de soluções ofere-
rios nos Estados Unidos, um no México e três no cidas às cidades. A startup foi criada em
Brasil. Os técnicos brasileiros, segundo Nery, são 2014 e o auxílio do Pipe foi fundamental
os responsáveis por proje- para ela desenvolver duas soluções: o
tos laboratoriais experi- aplicativo Coletivo, que informa em tempo real
mentais internacionais em aos usuários sobre ônibus e a rede de transpor-
embriões. “Temos equipes te público, e o painel web de monitoramento e
desenvolvendo trabalhos gestão de frotas de ônibus Trancity, voltado aos
na Rússia, no Vietnã e no gestores de frota e administradores municipais.
Chile. Talvez comecemos Por ora, as soluções só estão disponíveis na
Um grande desafio a operar também na Ín- cidade de São Paulo. “Uma startup tem dificul-
dia”, informa. Os técnicos dade de participar de licitações públicas e nego-
na aquisição em embriões brasileiros ciar com gestores municipais. Já a green4T tem
na ABS Brasil somam 120 expertise nesse processo”, reconhece Speicys. A
de uma startup pessoas, o dobro da equipe plataforma Trancity já está sendo empregada em
inovadora é manter original da IVB em 2015. Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Teresina, Forta-
Para o consultor César leza e Santiago, no Chile. As novas perspectivas
o conhecimento Costa, da Semente Ne- não se restringem ao setor de transportes. “Nosso
gócios, uma prática vis- negócio é desenvolver soluções tecnológicas com
e o ímpeto ta no mercado é a aqui- base na análise de dados. Já estudamos possibili-
sição parcial da startup, dades na área da saúde, segurança pública e ou-
dos fundadores mantendo o interesse dos tras aplicações em mobilidade urbana”, antecipa
empreendedores originais Speicys. “Fazer parte do portfólio da green4T
no sucesso da empresa e vai, sem dúvida, permitir que aceleremos esses
o estabelecimento de mo- novos projetos.” n
delos de governança que
permitam autonomia na Os projetos apoiados pela FAPESP mencionados nesta reportagem
tomada de decisões. É co- estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 297 | 77


AGRICULTURA FAMILIAR
Por dentro da tecnologia
Conheça os módulos que compõem o
Sistema Integrado de Produção de Alimentos

SISTEMA
Biofiltro
Sedimentador Habitado por
Acumula os bactérias, trata a
resíduos sólidos, água do viveiro
que são usados

CONTRA
na adubação
das plantas
4,4 10 mil
m
litros
0,7 m

A FOME
Tecnologia social desenvolvida
Tanque
de peixes

UNIDADES PRODUTIVAS

pela Embrapa e UFU visa dar opção


de alimentação para as
comunidades rurais e periféricas Tanque Ovos de Frangos Minhocas Vegetais Compostagem Ovos de
de peixes galinha de corte (legumes, codorna
Frances Jones verduras,
hortaliças,
frutas)

U
m tanque para a criação de 4,5 mil famílias em 11 estados brasilei- maior atenção e investimento no início,
peixes está no centro de um ros (Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, segundo o pesquisador da Embrapa, que
premiado sistema de produção Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, desenvolveu a solução durante doutora-
de alimentos que vem sendo Piauí, Rio Grande do Norte, São Paulo e do na Universidade Federal de Uberlân-
adotado por milhares de famílias, prin- Tocantins), além de sete países da África dia (UFU) e contou com o apoio da Fun-
cipalmente da região Nordeste, para (Angola, Camarões, Etiópia, Gana, Mo- dação de Amparo à Pesquisa do Estado
evitar a fome. Proposta pela Empresa çambique, Tanzânia e Uganda), adotem de Minas Gerais, detentora da patente.
Brasileira de Pesquisa Agropecuária o pacote de tecnologia modular que é No sertão nordestino, que sofre com
(Embrapa), a tecnologia utiliza a água e apropriado para áreas entre 100 e 1,5 mil a escassez hídrica, o pesquisador expli-
os subprodutos de um modelo de pisci- metros quadrados (m2). São 15 os mó- ca que a água para o tanque de peixes
cultura intensiva em pequenos espaços dulos propostos (ver infográfico acima) pode ser adquirida de caminhões-pi-
para organizar módulos que garantam que podem ser utilizados pelas famílias pa, comuns na região. O pacote indica
a segurança alimentar em comunidades segundo seu interesse. soluções relativamente baratas para a
rurais – e até mesmo em áreas urbanas. O pacote básico inicial indicado é construção de um filtro biológico para
“O Sisteminha é, antes de tudo, uma composto por cinco módulos: tanque aproveitamento da água, de uma bomba
ferramenta de combate à fome”, decla- de peixes, galinhas de postura, compos- de recirculação e de aeração do tanque
ra o zootecnista Luiz Carlos Guilherme, tagem, produção de minhocas e horticul- e de um sedimentador, que separa os
pesquisador da Embrapa Meio-Norte, no tura. Há ainda a possibilidade de criação resíduos sólidos do líquido.
Piauí, referindo-se ao Sistema Integrado de animais. Todos aproveitam de alguma “Primeiro, eu fiz o tanque mais ar-
de Produção de Alimentos, lançado em forma os resíduos ricos em nutrientes tesanal e barato possível, usando talos
2012. “O objetivo principal é tirar as fa- produzidos pela piscicultura. A ração da palmeira de babaçu, papelão e lona
mílias da linha da pobreza, permitindo industrial usada para alimentar os pei- plástica”, contou a Pesquisa FAPESP o
que tenham um aumento de até 300% na xes acaba deixando disponível no tan- professor e radialista aposentado Paulo
diversidade de alimentos para consumo que nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio Afonso Silva Santos, conhecido na cida-
próprio”, afirma (ver reportagem sobre e magnésio – aproveitados depois para a de piauiense de Esperantina como Pau-
segurança alimentar na página 80). “O irrigação e adubação das plantas. lo Brasil. Isso foi em 2013, quando ele
excedente e a sua comercialização podem É no tanque circular de 4,4 m de diâ- conheceu o projeto. De lá para cá, em
vir como consequência.” metro e 70 centímetros de profundida- todas as casas em que morou de aluguel
Responsável pelo desenvolvimento de, com capacidade para 10 mil litros construiu um tanque de peixes, dentro
do modelo, Luiz Guilherme calcula que de água, que as famílias devem dedicar do modelo do Sisteminha, e implantou

78 | NOVEMBRO DE 2020
encarrega da ração dos animais”, expli-
ca Guilherme. Segundo ele, a Embrapa
transfere a tecnologia e passa todas as
informações no início do programa para
os produtores ou gestores da política pú-
blica. “Depois do primeiro ano, usamos
muito a figura do multiplicador popu-
lar, pessoas que implantaram o sistema
e têm bom domínio dele, para apoiar os
participantes.”
A bióloga Adriana Miranda de Santa-
na Arauco, professora de microbiologia
do solo do curso de agronomia da Uni-
versidade Federal do Piauí (UFPI), no
O tanque para criação de peixes é o coração do sistema. Os resíduos ricos campus de Bom Jesus, no sul do estado,
em nutrientes produzidos pela piscicultura são reaproveitados pelos demais já manifestou interesse em levar a tec-
módulos de produção animal e vegetal
nologia social para a região. “Quando
há um bom manejo da terra, cultivando
hortaliças, vegetais e outras culturas no
mesmo espaço, é possível respeitar o
ciclo biológico do solo”, afirma. “É uma
forma de produzir sem agredir tanto,
bem diferente de desmatar e de ter mo-
Porquinhos- Aquaponia* Larvas de Ruminantes Suínos Biodigestor Sistema Carvoaria
da-índia moscas (caprinos, de água artesanal nocultura com uso de fertilizantes.”
ovinos, potável Entre os vários reconhecimentos re-
bovinos)
cebidos pela tecnologia, está o Prêmio
Celso Furtado de Desenvolvimento Re-
* SISTEMA QUE COMBINA CONCEITOS DA AQUICULTURA TRADICIONAL COM A HIDROPONIA FONTE EMBRAPA MEIO-NORTE

gional, concedido pelo Ministério da In-


tegração Nacional em 2017. O Sisteminha
os módulos de galinha de postura, cabra, “Cada família tem entre cinco e oito também é objeto de estudos em escolas
composteira e horta. pessoas, mas indiretamente acabamos e universidades. Uma unidade demons-
“Sempre tivemos em torno de 2 litros atendendo um número bem maior, por- trativa foi instalada na Escola Agrícola
de leite por dia”, afirma Brasil, que mora que a comunidade quer conhecer o Sis- de Jundiaí (EAJ), unidade acadêmica
com a esposa e três filhos, de 6, 10 e 17 teminha”, relata Cláudia. “Por conta da especializada em ciências agrárias da
anos. “E isso com uma cabra só.” Com pandemia, também houve muita procura Universidade Federal do Rio Grande do
em média 20 galinhas, ele diz produzir para compra de verduras e legumes.” Norte (UFRN) localizada em Macaíba,
por ano 5.500 ovos, além de obter a ca- “É interessante ressaltar que as uni- na Região Metropolitana de Natal. Ka-
da 100 dias entre 30 e 40 quilos de tilá- dades cujos trabalhos se destacam são rina Ribeiro, coordenadora de extensão
pia. “Como tenho limitação física, por tocadas apenas por mulheres”, comenta da EAJ/UFRN, e seus alunos também
ter contraído pólio, e uso muletas para Alba Leal. “Elas dão conta sozinhas. Os montaram uma unidade em uma escola
andar, acabei melhorando o processo e homens só ajudam de vez em quando, municipal em Lagoa de Pedras, no sudes-
adaptando para o mínimo trabalho e me- pois geralmente estão fora fazendo ou- te potiguar, como trabalho de conclusão
nor esforço.” O excedente de ovos e leite tros trabalhos.” de curso de um dos alunos da instituição.
de cabra é vendido aos amigos. De acordo com Luiz Guilherme, quan- Nos últimos meses, um projeto de
do o Sisteminha é adotado como política extensão para difundir o Sisteminha
REFERÊNCIA ALIMENTAR pública, o investimento feito pelo Es- em um assentamento de reforma agrá-
Dimensionado para atender as recomen- tado é de aproximadamente R$ 15 mil ria e em uma comunidade tradicional
dações nutricionais de uma família de por família. Um terço desse valor é para quilombola em Macaíba precisou ser
quatro pessoas, o pacote de soluções tec- custear as instalações necessárias como interrompido por conta da pandemia,
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO FOTO EMBRAPA

nológicas do Sisteminha foi adotado em o tanque de peixes e outras estruturas; mas Ribeiro ressalta a importância da
cidades, assentamentos rurais e comu- os dois terços restantes são divididos tecnologia como ferramenta social pa-
nidades quilombolas e indígenas como igualmente para o custeio no primeiro ra o desenvolvimento. “Primeiro ele
política pública. Desde março de 2018, ano de rações e insumos e de assistên- estabiliza uma situação de fragilidade
a técnica de enfermagem Cláudia Leal cia técnica, monitoramento e viagens. daquela família ou comunidade”, pon-
e a filha Alba, técnica de informática, “Os valores são dados pelo órgão pú- dera. “O sistema permite uma produção
atuam como replicadoras da tecnologia blico que fornece a tecnologia à família escalonada e exige a ligação do homem
na comunidade rural de Inajá, no sertão apenas uma única vez. A partir dos seis com a terra. Nós apresentamos ao pro-
pernambucano, onde 13 unidades foram ou sete meses, ela já começa a ter auto- dutor as possibilidades, mas cabe a ele
implementadas em sete comunidades. nomia na produção de alimentos e se o desenvolvimento.” n

PESQUISA FAPESP 297 | 79


POLÍTICAS PÚBLICAS

PARADOXO
A MESA Pesquisadores buscam caminhos para combater
a insegurança alimentar no Brasil, um dos principais
produtores agropecuários do mundo

TEXTO Christina Queiroz


FOTOS Léo Ramos Chaves

80 | NOVEMBRO DE 2020
R
econhecido com o Nobel da Paz em que somaram R$ 212,2 bilhões. Dados da Compa-
2020, o Programa Mundial de Ali- nhia Nacional de Abastecimento (Conab) indicam
mentos da Organização das Nações que o Brasil é o maior produtor mundial de soja,
Unidas (PMA-ONU) estima que, neste tendo exportado 74 milhões de toneladas em grãos,
ano, a fome atingirá 270 milhões de no ano passado, quase o dobro dos 43 milhões de
pessoas nos 88 países em que o orga- toneladas consumidos localmente. O país também
nismo internacional opera, um aumento de 82% em figura entre os principais exportadores de algodão,
comparação com 2019. No Brasil, um dos maiores milho, carne de frango e bovina. “Apesar de ser um
produtores de alimentos do mundo, em 2017 e 2018 dos maiores produtores de alimentos do mundo,
quatro em cada 10 famílias não tiveram acesso diá- cerca de 40% da área plantada é utilizada para o
rio regular e permanente a quantidade suficiente cultivo de soja e gado, gerando commodities que
de comida. No mesmo período, mais de 10 milhões não reduzem a insegurança alimentar no país”, ob-
de pessoas relataram ter passado fome – maior serva a sanitarista Denise Oliveira, pesquisadora
número dos últimos 15 anos, conforme a Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasí-
de Orçamentos Familiares (POF), divulgada em lia e coordenadora do Observatório Brasileiro de
setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Hábitos Alimentares.
Estatística (IBGE). A insegurança alimentar é um A condição de segurança alimentar envolve o
problema que requer soluções multidisciplinares. acesso regular e permanente a alimentos de qua-
Para reduzi-la, os caminhos apontados por pesqui- lidade e em quantidade suficiente. Em 2004, a
sadores ouvidos por Pesquisa FAPESP envolvem prevalência nacional de segurança alimentar in-
políticas de distribuição de renda e investimentos cluía 65,1% dos domicílios do país, crescendo para
em educação, assim como incentivos à agricultura 77,4%, em 2013. Conforme dados da análise mais
familiar que permitam ampliar a disponibilidade recente do IBGE, esse número caiu para 63,3% das
de alimentos para consumo doméstico e diminuir residências. Além disso, o levantamento mostrou
a fome no campo, onde a situação é mais grave. que, em 2017 e 2018, 36,7% dos 68,9 milhões de
Segundo o levantamento Produção Agrícola domicílios brasileiros apresentaram algum grau
Municipal (PAM), elaborado pelo IBGE, em 2019 de insegurança alimentar. A insegurança alimen-
o valor da produção agrícola do país cresceu 5,1%, tar grave, situação em que famílias não têm o que
atingindo R$ 361 bilhões, alta puxada pelos grãos, comer e, portanto, passam fome, aumentou 43,7%

PESQUISA FAPESP 297 | 81


entre 2013 e 2018, subindo de 7,2 milhões para 10,3 10 anos coordena o grupo que investiga os efeitos
milhões de pessoas. de políticas de transferência de renda no combate
Mulheres e pessoas pretas e pardas estão entre os à insegurança alimentar.
grupos mais vulneráveis. Das residências em con- Na avaliação do engenheiro-agrônomo José Gra-
dição de segurança alimentar, 61,4% são chefiadas ziano da Silva, diretor-geral da Organização das
por homens. Tal prevalência se inverte na medida Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação
em que o nível de insegurança alimentar sobe. Em (FAO) entre 2012 e 2019, o agravamento da insegu-
51,9% das casas com insegurança alimentar grave as rança alimentar no país decorre, em primeiro lugar,
mulheres são as principais provedoras. Já em 15,8% do baixo crescimento econômico observado desde
do total de domicílios com insegurança alimentar meados de 2008, com o consequente aumento no
grave, a pessoa de referência se autodeclarou pre- desemprego e piora nos níveis de renda. Outro fa-
ta, enquanto nas casas com segurança alimentar tor, na perspectiva de Menezes, do Ibase, envolve
o percentual equivalente é de 10%. Uma das cola- o enfraquecimento de políticas públicas de segu-
boradoras técnicas do relatório sobre Segurança rança alimentar, que vem tendo seu orçamento re-
Alimentar da POF, a nutricionista Rosana Salles- duzido sucessivamente, desde 2014. Um exemplo
-Costa, do Instituto de Nutrição Josué de Castro é o Programa para Aquisição de Alimentos (PAA),
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do governo federal, que adquire mantimentos da
explica que a insegurança em domicílios chefiados agricultura familiar e os destina a pessoas em si-
por mulheres ou por pessoas pretas e pardas está tuação de insegurança alimentar e nutricional, à
relacionada à desigualdade de renda e à dificuldade rede socioassistencial, aos equipamentos públi-
de acesso a condições estáveis de trabalho. cos de segurança alimentar e nutricional e à rede
No Brasil, a insegurança alimentar diz respeito pública e filantrópica de ensino. O programa, que
principalmente às condições de miséria da popu- chegou a contar com R$ 2 bilhões do orçamento
lação. “O número de pessoas na extrema pobreza, da União, hoje tem à disposição R$ 200 milhões.
ou seja, de famílias que vivem com menos de R$ Em texto publicado no site da ONG Federação
145 mensais, é muito próximo daquele que abarca de Órgãos para Assistência Social e Educacional
a população em situação de insegurança alimentar (Fase), a antropóloga Maria Emília Pacheco, que
grave”, avalia o economista Francisco Menezes, foi presidente do Conselho Nacional de Segurança
coordenador de projetos do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pesqui-
sador da organização não governamental (ONG)
ActionAid. A Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad), do IBGE, indicou que em 2017
e 2018 eram 12 milhões os brasileiros na extrema
pobreza, enquanto a POF relativa ao mesmo pe-
ríodo mostrou que a população em situação de in-
segurança alimentar grave envolvia 10 milhões de
indivíduos. “A insegurança alimentar grave atinge
famílias sem dinheiro para comprar comida. Por
Distribuição de comida
isso, políticas de transferência de renda, como o no centro de São Paulo
Bolsa Família, são fundamentais no combate à procura amenizar
fome”, sustenta Salles-Costa, da UFRJ e que há a fome da população

82 | NOVEMBRO DE 2020
Novo currículo
A preocupação com questões relacionadas à segurança alimentar tem gerado
mudanças nos currículos das faculdades de engenharia de alimentos. É o caso, por
exemplo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que reformulou a grade
curricular da graduação para incluir discussões sobre sustentabilidade e implicações
sociais no processo de produção e desenvolvimento de comida. Depois de dois anos
de preparação, o novo currículo começou a vigorar em 2020. “Uma preocupação
crescente tanto nos cursos de engenharia de alimentos como na própria indústria
alimentícia tem sido investigar tecnologias que permitam reduzir o desperdício de
comida, ampliando sua durabilidade sem causar danos ao meio ambiente ou
adicionar conservantes químicos nos produtos”, detalha o cientista de alimentos
Anderson de Souza Sant’Ana, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.
Segundo ele, em países em desenvolvimento como o Brasil, o desperdício de comida
Engenharia de alimentos
pode chegar a 30% de tudo o que é produzido, incluindo tanto a colheita quanto busca tecnologias para evitar
as sobras desperdiçadas em feiras, supermercados, restaurantes e nos próprios lares. o desperdício de comida

Realidade Alimentar e Nutricional (Consea) durante quatro reduzindo a área plantada de arroz e feijão, por
brasileira anos, calcula que entre 2011 e 2016 as compras exemplo, voltada ao consumo local”, diz.
Gráfico mostra públicas por intermédio do programa beneficia- De acordo com Lima, durante a primeira dé-
oscilação da
ram cerca de 730 mil famílias de agricultores, com cada dos anos 2000, o país apoiou simultanea-
segurança alimentar
a aquisição de 2,1 milhões de toneladas de alimen- mente o agronegócio e a produção de alimentos
tos, que permitiram atender a 104 mil entidades para o mercado nacional. “Nesse período, o bom
no país (% da
socioassistenciais em todo o país. “Em 2019, foram desempenho econômico e a criação de políticas
população)
desestruturadas instituições fundamentais para o de alimentação escolar, de aquisição da produ-
77,4 desenvolvimento e a execução de políticas públi- ção de agricultores familiares e da construção de
cas de segurança alimentar, entre elas o Ministério cisternas para o semiárido, além da ampliação
69,8 do Desenvolvimento Social, que foi incorporado de assentamentos rurais, permitiram reduzir a
65,1 ao Ministério da Cidadania, e o próprio Consea”, quantidade de famintos no país”, detalha o cien-
observa Menezes. tista político. Segundo ele, depois de 2016 o país

E
Segurança 63,3 passou a priorizar a exportação de alimentos, em
alimentar m um fenômeno aparentemente pa- detrimento do abastecimento local.
radoxal, a fome tem afetado de forma Em contraponto, o economista Felippe Serigati,
mais severa as populações rurais do da Escola de Economia de São Paulo da Fundação
que as urbanas, conforme identificado Getulio Vargas (FGV-Eesp), enfatiza a importância
pelo levantamento do IBGE. Entre do agronegócio no sentido de garantir o aumen-
2017 e 2018, a insegurança alimentar to da disponibilidade de alimentos nas últimas
grave atingiu 7,1% dos domicílios da área rural e três décadas. “Entre 1960 e 1980, a insegurança
Insegurança 4,1% das famílias que viviam nas cidades. A situa- alimentar no Brasil resultava da oferta restrita
alimentar
36,7 ção deriva principalmente do enfraquecimento de mantimentos. Havia falta de produtos e o país
34,9 das políticas de incentivo à agricultura familiar, tinha de importar itens básicos”, destaca Serigati,
na avaliação do cientista político Thiago Lima, do que coordena o mestrado profissional em agrone-
30,2
Departamento de Relações Internacionais da Uni- gócio da FGV-Eesp. De acordo com o economista,
versidade Federal da Paraíba (UFPB). Ele observa a partir da década de 1980, o desenvolvimento de
que desde meados dos anos 1990 o país optou por tecnologias permitiu ampliar a produção local,
se tornar um grande exportador de commodities o que colaborou tanto para a redução da insegu-
22,6 como soja, milho, arroz, carne, açúcar, em uma rança alimentar quanto para o fortalecimento das
estratégia de reversão da baixa reserva cambial. Ao exportações. Em relação ao cenário recente, de
mesmo tempo, o período foi marcado por um forte agravamento da insegurança alimentar, ele aponta
crescimento do leste asiático, que também passou a redução nos orçamentos domésticos como um
a adotar uma dieta mais ocidentalizada, rica em dos principais fatores explicativos.
GRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

carnes, laticínios e açúcares, aquecendo a demanda Serigati também argumenta que não é possível
do agronegócio brasileiro, que desde então vem estabelecer uma linha divisória precisa entre o
aumentando suas exportações. “Essa dinâmica afe- papel da agricultura familiar e do agronegócio na
2004 2009 2013 2017- tou o mercado doméstico, na medida em que cada segurança alimentar da população, na medida em
2018
vez mais produtores se adaptaram para atender ao que ambos estão relacionados. “Pequenos proprie-
FONTE PESQUISA DE ORÇAMENTOS
FAMILIARES/IBGE-2017/2018 mercado externo, investindo em monoculturas e tários de Santa Catarina, por exemplo, têm uma

PESQUISA FAPESP 297 | 83


produção diversificada de grãos e atuam com a alerta a pediatra Maria Paula de Albuquerque,
criação de frangos e suínos, mas compram milho gerente-geral do Centro de Recuperação e Edu-
cultivado por grandes produtores para alimentar cação Nutricional da Universidade Federal de São
seus animais”, observa. Além disso, ele ponde- Paulo (Cren-Unifesp). O Cren atende a famílias
ra que há pequenos agricultores que abastecem que vivem com menos de dois salários mínimos
tanto o agronegócio como o mercado doméstico. mensais e moram nos distritos da cidade de São
Um exemplo são os produtores de frutas do inte- Paulo com Índice de Desenvolvimento Humano
rior de São Paulo e do vale do Rio São Francisco. (IDH) muito baixo: São Matheus, São Miguel Pau-
Agricultores familiares são aqueles que pos- lista, Cidade Tiradentes, Lajeado, Jardim Ângela
suem até quatro módulos fiscais – unidade de e Brasilândia. Albuquerque observa que, entre a
medida agrária expressa em hectares que varia população desses lugares, a tendência é de piora
conforme cada município –, trabalham com mão em todas as formas de má nutrição. “Em 2019, 80%
de obra da família e têm sua renda familiar vin- das crianças que atendíamos tinham problemas
culada ao próprio estabelecimento. Segundo da- de obesidade. Agora, elas também estão chegan-
dos do último Censo Agropecuário, divulgados do com outras formas de má nutrição, incluindo
em 2017, 77% dos mais de 5 milhões de estabele- baixa estatura e magreza”, conta. Segundo ela, os
cimentos de produção agrícola do país perten- distúrbios podem estar relacionados ao consumo
cem a agricultores familiares, que respondem de determinados produtos industrializados ou
por 23% das áreas cultivadas. De acordo com o ultraprocessados, às vezes mais baratos se com-
sociólogo Fábio Alves, pesquisador do Instituto parados com a comida fresca e saudável.

A
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tal gru-
po responde por 70% da produção de mandioca, farmacêutica-bioquímica Berna-
48% da produção de banana, 60% da produção dette Dora Gombossy de Melo
de hortaliças, 64% da produção de leite e 51% da Franco, do Departamento de
criação de suínos, considerados produtos funda- Alimentos e Nutrição da Facul-
mentais na cultura alimentar do brasileiro. Alves dade de Ciências Farmacêuticas
comenta ainda que a agricultura familiar empre- da Universidade de São Paulo
ga dois terços da mão de obra no campo, gerando (FCF-USP) e coordenadora do Centro de Pes-
10 milhões de ocupações. “Além de produzir o quisa em Alimentos (FoRC), um dos Centros de
alimento que abastece a mesa dos brasileiros, os Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados
pequenos agricultores também criam empregos pela FAPESP, destaca que certos alimentos indus-
e produzem para o próprio consumo”, explica o trializados podem agravar o problema da nutrição
pesquisador, que integra uma equipe de trabalho errada ou da desnutrição e, por isso, devem ser
dedicada a análises de desenvolvimento rural. evitados. “Por outro lado, os alimentos industria-
lizados são importantes para erradicar a fome e
LIÇÕES DA PANDEMIA a insegurança alimentar, desde que o processa-
“Estamos observando aumentos na prevalência de mento garanta sua saudabilidade, funcionalidade
desnutrição entre a população que atendemos”, e segurança”, observa.

84 | NOVEMBRO DE 2020
Agricultores preparam De acordo com dados da FAO, lembrados por cação dos alimentos que podem estar associados
cestas de alimentos Graziano, no Brasil uma alimentação saudável ao vício alimentar é importante para o correto tra-
para vendê-las, a preços
reduzidos, para
chega a custar quatro vezes mais do que uma ali- tamento e prevenção da obesidade infantil, um dos
populações vulneráveis mentação básica, ou seja, algo em torno de R$ 12 maiores problemas de saúde pública do mundo.
À esquerda, trabalhador
por refeição, valor inacessível para grande parte Em relação às iniciativas governamentais para
em sítio em Parelheiros, da população. É considerada uma dieta saudável melhorar a segurança alimentar e nutricional das
na cidade de São Paulo aquela que prioriza o consumo de gorduras insa- crianças brasileiras, Albuquerque menciona como
turadas e dispensa gorduras trans industrialmente uma das mais importantes o Programa Nacional de
produzidas; inclui menos de 10% das calorias diá- Alimentação Escolar (Pnae), que prevê o repasse
rias provenientes de açúcares adicionados; garante de recursos suplementares a estados e municípios,
o consumo diário de pelo menos 400 gramas de destinados à alimentação escolar e ações educati-
frutas e vegetais e menos do que 5 gramas de sal, vas. “Com a iniciativa, muitas crianças passaram
além de uma pequena quantidade de alimentos a receber 70% de suas necessidades nutricionais
de origem animal. na própria escola”, detalha. Albuquerque comenta
“Pode parecer um paradoxo que pessoas com que os primeiros cinco anos de vida de uma crian-
falta de comida apresentem níveis de obesidade, ça são decisivos para condicionar seus hábitos
mas isso está relacionado com a baixa qualidade alimentares. Experimentar episódios frequentes
do produto ingerido”, destaca a nutricionista Se- de escassez de alimentos durante a infância pode
míramis Martins Álvares Domene, do Instituto causar danos irreversíveis ao desenvolvimento
Saúde e Sociedade da Unifesp, campus Baixada físico e cognitivo da criança.
Santista. Ela menciona estudo realizado entre 2015 Atento a esse fato, o Cren realiza visitas perió-
e 2017 por pesquisadores da Unifesp, que anali- dicas a famílias nos distritos em que atua. “Duran-
sou o consumo de alimentos ultraprocessados e te a pandemia, fizemos essas visitas para entender
sua associação com a dependência alimentar em como elas estavam usando os recursos do auxílio
crianças de baixa renda que apresentam excesso emergencial”, conta. A pediatra relata que as
de peso. Foram estudados 139 indivíduos entre 8 famílias que aderiram à proposta de alimentação
e 10 anos, matriculados em dois Centros Educa- baseada em produtos frescos e saudáveis estão
cionais Unificados (CEU) da cidade de São Paulo. registrando impactos positivos no peso e na al-
Conforme artigo publicado em 2019 na revista tura de suas crianças e reduzindo seus níveis de
Appetite e que apresenta parte dos resultados da insegurança alimentar. O consenso em relação
pesquisa, o principal achado entre crianças com à importância do consumo de produtos frescos
excesso de peso foi que o consumo frequente de não reduz o papel da indústria alimentícia. Deve-
biscoitos, refrigerantes e salsichas está associa- -se ao desenvolvimento científico e tecnológico,
do à ocorrência de vício alimentar, presente em incorporado pelo setor, a possibilidade de produ-
29% das crianças com excesso de peso. “O estu- ção e distribuição em grande escala de produtos
do constatou que essas crianças apresentam um consumidos em abundância no mundo todo como
comportamento de consumo excessivo em relação café, cacau, cevada, soja e trigo. n
a esses alimentos que se assemelha ao observado
entre dependentes químicos de drogas”, afirma a Os projetos, artigos científicos e livros consultados para esta
pesquisadora. De acordo com Domene, a identifi- reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 297 | 85


HISTÓRIA

Originalmente
intitulada Tiradentes
supliciado, a obra
Tiradentes esquartejado
foi produzida pelo
pintor Pedro Américo
em 1893

86 | NOVEMBRO DE 2020
REPRESENTAÇÃO DE UM
HERÓI
Figura de Tiradentes superou a inexistência de registros oficiais
e se tornou uma das mais populares da história nacional

Sidnei Santos de Oliveira

O
mais famoso dos inconfidentes, que acabariam por se tornar representa- ro, para a construção de obelisco dedicado
Joaquim José da Silva Xavier ções simbólicas de um dos maiores per- a Tiradentes no coração da cidade.
(1746-1792), o Tiradentes, tor- sonagens da história colonial do Brasil. “Apesar de ter sido o segundo coloca-
nou-se personagem emblemá- Em relatos de companheiros de conju- do, Cestari foi vencedor por comprovar
tico da história do Brasil. Sím- ração, como os do advogado e poeta ca- que poderia executar o trabalho de acor-
bolo da Inconfidência Mineira rioca Inácio José de Alvarenga Peixoto do com as orientações do projeto, algo
ao defender ideais de emanci- (1742-1793), há considerações deprecia- que o primeiro colocado não conseguiu
pação da capitania de Minas tivas: Tiradentes seria um homem feio, de fazer”, afirma Rodrigues. Para dar conta
Gerais em relação à Coroa portuguesa, olhos esbugalhados. O estalajadeiro João da tarefa, o escultor usou como referên-
que sacrificava a região com a cobrança da Costa Rodrigues (1748- ?) observa que cia esboço produzido em 1890 por um
de elevados impostos, sua popularidade ele tinha cabelos brancos. A ausência de conterrâneo, o desenhista Angelo Agos-
vai além dos livros didáticos e estudos registros visuais do herói da Inconfidên- tini (1843-1910), que se inspirou na obra
acadêmicos. Sua imagem é amplamente cia abriu espaço para a aproximação da Christ carrying the cross, do pintor belga
explorada em filmes, no teatro e Carna- imagem de Tiradentes à de Jesus Cristo. Antoon van Dyck (1599-1641), para pro-
val, em forma de samba-enredo, e seu Bastante conveniente, a interpretação se duzir a primeira imagem de Tiradentes.
rosto já estampou moedas, cédulas, selos, tornaria emblemática pela correspon- “Sem conhecer seu rosto, Agostini utili-
chaveiros e até embalagens de sabonete dência de elementos plausíveis para que zou as prerrogativas estéticas da época
e chocolate. a associação pudesse ser feita. “O fato de para representar Tiradentes com barba
“O que torna intrigante a multipli- ele ter sido traído por um de seus amigos, e cabelos compridos, com referências à
cidade dessa representação se dá pelo no caso Joaquim Silvério dos Reis [1756- imagem de Cristo”, completa Rodrigues.
fato de que não sabemos qual era a real 1792], e sua morte ser vista como símbolo Embora não tenha conseguido repro-
aparência de Tiradentes”, afirma André para a defesa de um ideal de coletivida- duzir fielmente o desenho de Agostini, in-
Figueiredo Rodrigues, do Programa de de levaram a uma cristianização de sua clusive pelas dificuldades que envolvem a
Pós-graduação em História da Faculdade imagem”, avalia Cabreira. Contribuíram transposição para a versão tridimensional,
de Ciências e Letras da Universidade Es- para isso, destaca a pesquisadora, os sig- Cestari acabou por se tornar o responsá-
tadual Paulista (Unesp), campus de Assis. nificados trazidos pela execução na forca, vel pela criação de uma de suas principais
Especialista em história da Inconfidência seguida de esquartejamento, e o fato de a representações dada a importância da es-
Mineira, o pesquisador acaba de lançar, cabeça de Tiradentes ter sido exposta em tátua para Ouro Preto, conhecida pela ar-
com a historiadora Maria Alda Barbosa praça pública. Tais acontecimentos seriam quitetura barroca e que anualmente recebe
Cabreira, o livro Em busca de um rosto – sucessivamente retratados por diferentes cerca de 500 mil turistas. “É uma imagem
A república e a representação de Tira- artistas e utilizados por políticos interes- imponente que pode ser vista de qualquer
dentes (Editora Humanitas), que conta, sados em dar novos sentidos à sua figura. ponto da cidade”, observa Rodrigues.
a partir de extensa análise documental, Dentre as peças esculpidas, destaca-se a Outra obra emblemática está instalada
como o alferes foi alçado a herói nacional que ocupa o monumento central da praça em frente ao Palácio Tiradentes, no Rio
e sua imagem construída de acordo com que leva seu nome, em Ouro Preto, Minas de Janeiro, local que hoje abriga a Assem-
os interesses de grupos republicanos da Gerais. Inaugurada em 1894 e produzida bleia Legislativa do estado. Esculpida em
segunda metade do século XIX. Resultado em bronze pelo artista italiano diplomado bronze por Francisco de Andrade (1893-
de trabalhos de pesquisa produzidos por em arquitetura e escultura Virgílio Cesta- 1952) e inaugurada em 1926, apresenta
REPRODUÇÃO

Cabreira e Rodrigues, o livro reconstitui ri (1861- ?), a obra foi selecionada em um um inconfidente “mais cívico e menos
cronologicamente a produção de imagens concurso organizado pelo governo minei- rebelde, sem a corda no pescoço”, avalia

PESQUISA FAPESP 297 | 87


Rodrigues ao citar representação mais As representações da imagem de Tira- também a habilidade de Tiradentes no
identificada com o símbolo da República dentes também se baseiam no contexto desenvolvimento de próteses dentárias a
do que com o insurgente da colônia. Tal em que ele vivia. Quarto de cinco filhos partir de ossos de animais, marfim e até
figura seria institucionalizada durante do casal formado pelo português Domin- mesmo ouro. No livro, Rodrigues e Cabrei-
períodos de estado de exceção, como os gos da Silva dos Santos (1698-1757) e pela ra apresentam elementos que desfazem o
ocorridos sob o governo de Getúlio Vargas brasileira Antônia da Encarnação Xavier estereótipo de que Tiradentes teria sido
(1882-1954), em 1930, e durante a ditadura (1721-1755), Tiradentes foi separado dos ir- um homem pobre. Sua família tinha boas
militar (1964-1985). No ano seguinte ao mãos por volta dos 11 anos. Com a família condições financeiras e era proprietária
golpe de Estado, o marechal Humberto dissolvida após a morte dos pais, passou a de uma grande fazenda localizada entre as
de Alencar Castelo Branco (1897-1967) morar com o padrinho, Sebastião Leitão. vilas de São José – atual cidade de Tiraden-
assinou a Lei nº 4.897 designando Tira- A habilidade para tratar problemas den- tes – e São João del-Rei, em Minas Gerais.

S
dentes patrono cívico da nação. Em 1966, tários foi logo percebida pelo padrinho,
a estátua de Francisco Andrade tornou-se que o incentivou a se dedicar a essa área. omam-se aos elementos que con-
a efígie oficial. “A partir daí, Tiradentes “Mesmo sem educação formal, Tira- tribuem para a construção da
passou a ser tema obrigatório nas aulas dentes acabou exercendo muito bem a imagem de Tiradentes como um
de educação moral e cívica. E até 1986 as profissão e passou a ser bastante requi- homem bom e que levava alívio
escolas públicas eram obrigadas a ter uma sitado por pessoas de diferentes estra- aos que padeciam de dor de den-
imagem sua”, afirma Rodrigues. tos sociais”, afirma Cabreira, que destaca te, as narrativas dos frades José
Carlos de Jesus Maria do Desterro (aprox.
1745-1825) e Raimundo da Anunciação
Penaforte, que acompanharam o alferes
em seus últimos dias na prisão. Ambos ca-
À esquerda, minharam com Tiradentes rumo à forca e
representação de
Jesus Cristo, de Antoon
enfatizaram a figura passiva e humilde do
van Dyck, que condenado em seus escritos. “Em linhas
inspirou a ilustração gerais, ele aparecerá como um homem de
de Angelo Agostini. olhar cândido, vestes brancas, com um
Abaixo, esculturas
de autoria de Virgílio
crucifixo no peito e cabelos soltos até os
Cestari e Francisco ombros”, diz Rodrigues. A representação
1 2 de Andrade do herói ganharia força por seu viés re-
volucionário, um mártir que se sacrificou
pela República. A primeira representação
de Tiradentes vestido como alferes viria
em 1940, em retrato produzido pelo pin-
tor paulista José Wasth Rodrigues (1891-
1957). Identificado como patriota jovem,
elegante e ao mesmo tempo austero, o
trabalho foi confeccionado para compor
a exposição sobre o 8º Centenário de Por-
tugal, realizado em Lisboa. “A proposta
era consagrar Tiradentes pelo seu tipo
humano, quando aparece vestido com o
fardamento de dragão do Regimento de
Cavalaria de Minas Gerais”, conta Ro-
drigues. Tiradentes foi aceito no serviço
militar em 1775, como alferes da 6ª Com-
panhia dos Dragões de Minas, posto que
ocupou até sua morte.
Foi com a obra Tiradentes esquartejado
(1893) – originalmente intitulada Tiraden-
tes supliciado –, do pintor Pedro Améri-
co (1843-1905), que a representação do
inconfidente ganhou seu capítulo mais
polêmico. Ao retratar o corpo do homem
dilacerado na forca, com a cabeça separa-
da do tronco e posicionada ao lado de um
crucifixo, a imagem está bem distante da
figura do herói que serviria de inspiração
3 4 para os novos tempos da República. Em

88 | NOVEMBRO DE 2020
A imagem de
Tiradentes estampou
quatro selos: em 1948, 9
1963, 1992 e 2008.
À direita e abaixo,
moedas e cédula
lançadas pela Casa da
Moeda em homenagem
5 6 7 8 ao inconfidente 10

11

grandes dimensões, a pintura escancara estético-políticos que pretendem ressig- na parte dedicada à efígie, surge a ima-
o desfecho da morte de Tiradentes, em nificar a figura histórica”, avalia Werneck. gem de Tiradentes também baseada na
cumprimento de sentença para o crime de A pesquisadora destaca, entre espetáculos representação de Agostini. Uma edição
lesa-majestade, sob a acusação de cons- de vários momentos do teatro brasileiro, comemorativa no ano de 1992 da moeda
pirar contra a Coroa portuguesa. a montagem do musical Arena conta Ti- também de Cr$ 5.000,00 trouxe gravura
Formado pela École des Beaux-Arts radentes (1967) – texto de Augusto Boal inspirada na obra do pintor e caricaturis-
de Paris, na França, antes de produzi-la (1931-2009) e Gianfrancesco Guarnieri ta Décio Rodrigues Villares (1851-1931).
Pedro Américo já havia sido contratado (1934-2006) –, em que o grupo faz uma Desde 1998 a moeda de 5 centavos traz
para retratar outros momentos históri- releitura cênico-narrativa da Inconfidên- representação adaptada da tela de Falco.
cos do país. A reação ao quadro do con- cia a partir de acontecimentos da década No campo da filatelia, Tiradentes es-
sagrado artista, no entanto, foi negativa. de 1960, exortando a figura de um Tira- tampa quatro emissões oficiais brasilei-
“Ao optar pela representação do corpo dentes capaz de cativar revolucionários. ras, sendo a primeira em 1948, na ocasião
abandonado aos pedaços sobre o cada- “O que podemos ver nesse espetáculo é do bicentenário de seu nascimento. Em
falso, Pedro Américo não só acentua o também uma forma de desmontagem das 1963, ele aparece na série Vultos célebres
poder da metrópole portuguesa sobre imagens do herói sacrificial, no cadafalso da história do Brasil. Em 1992 é a vez do
FOTOS 1 REPRODUÇÃO 2 REVISTA ILLUSTRADA 3 E 4 ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUES 5 A 11 ACERVO: ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUES

sua colônia na América, como revela a e do corpo punido pelo esquartejamento, bicentenário de sua morte. Por último, em
própria fragilidade de Tiradentes e da de forma a torná-lo um sujeito político 2008, integra a série de selos denominada
conspiração que foi acusado de liderar”, projetado na ação”, analisa. Heróis da pátria. Notas, moedas e selos são

N
escreve Maraliz de Castro Vieira Christo, oficialmente emitidos pela Casa da Moeda,
em artigo intitulado A fragmentação do otório por designar ruas, pra- no Rio de Janeiro. O famoso herói também
corpo do herói e a sensibilidade do final do ças, escolas e prédios públicos, ganhou projeção internacional com selos
século 19. Professora titular na Universi- a representação visual do herói lançados em Cuba (1988), Uruguai (1989)
dade Federal de Juiz de Fora, Christo é nacional ampliou a dimensão do e República Dominicana (2014).
autora de estudo que analisa a obra como personagem histórico por meio Ainda que a aparência de Tiradentes
uma espécie de desconstrução da imagem da numismática e filatelia. “Moe- tenha sido aproximada à imagem de Jesus
de Tiradentes, o que abala a integridade das, cédulas e selos foram alguns dos Cristo, documentos constantes dos Autos
de sua representação como herói. principais meios de difusão da imagem de Devassa – processo movido contra os
“O esquartejamento do corpo remete do inconfidente, que passou a circular inconfidentes – revelam que no momento
ao desmonte da figura épica individua- nas mãos das pessoas, ao mesmo tem- de sua morte ele estava sem barba e com
lizada do inconfidente”, observa Maria po que se estabelecia no inconsciente a cabeça raspada, para que seu suplício
Helena Vicente Werneck, professora do popular”, observa Cabreira. pudesse ser melhor observado pelo pú-
Programa de Pós-graduação em Artes Cê- A primeira representação veio com a blico presente. “É preciso ressaltar que
nicas da Universidade Federal do Estado cédula de 5 mil cruzeiros (Cr$ 5.000,00), as diversas representações de Tiradentes
do Rio de Janeiro (Unirio), que analisa em em circulação entre 1963 e 1974. A ima- surgem a partir da licença poética de au-
ensaio as representações do martírio de gem reproduz a pintura Tiradentes ante tores que estavam engajados na criação
Tiradentes tendo como base a apresenta- o carrasco (1951), de Rafael Falco (1885- de um mito, mas sua imagem seguirá em
ção ou o ocultamento da performance da 1967), e reconstitui a cena da manhã em constante construção”, finaliza Cabreira. n
morte em público. “Retratar o corpo ínte- que o condenado se preparava para re-
gro ou despedaçado numa representação ceber a veste branca, antes do cortejo Os artigos científicos e livro consultados para esta
artística nos remete a diferentes projetos que o levaria para a forca. Já no anverso, reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 297 | 89


MEMÓRIA

RAMIFICAÇÕES
DE UM
ESTRUTURALISTA
No centenário de seu nascimento, conceitos formulados pelo economista
Celso Furtado seguem reverberando em múltiplas áreas do conhecimento

Diego Viana

N
o livro autobiográfico expresso nos títulos de muitos de clássico Teoria e política do
A fantasia organizada (Paz seus livros, como Desenvolvimento desenvolvimento econômico”, compara.
e Terra, 1985), o economista e subdesenvolvimento (Fundo de Nascido em Pombal, na Paraíba,
Celso Furtado (1920-2004) Cultura, 1961), Subdesenvolvimento Furtado foi um dos economistas
relata um episódio curioso ocorrido e estagnação na América Latina brasileiros mais lidos, traduzidos
em 1951. Os primeiros resultados (Civilização Brasileira, 1966) e influentes do século passado.
de seu trabalho com o argentino Raúl e Teoria e política do desenvolvimento Formado em direito pela Universidade
Prebisch (1901-1986) acabavam de ser econômico (Editora Nacional, 1967). do Brasil, atual Universidade Federal
publicados na Revista Brasileira de “A geração de Furtado enfrentou do Rio de Janeiro (UFRJ), concluiu
Economia, com o título “Interpretação o período após a Segunda Guerra o doutorado na Universidade
do processo de desenvolvimento Mundial questionando as categorias Paris-Sorbonne em 1948, na França,
econômico”, e seriam apresentados tradicionais do Ocidente, em economia com uma tese sobre a economia
em um seminário no Rio de Janeiro, e nas ciências sociais”, observa Carlos colonial brasileira. A partir do ano
quando o canadense Jacob Viner Mallorquín, professor do Centro de seguinte, como chefe da Divisão de
(1892-1970), célebre macroeconomista Estudos do Desenvolvimento da Desenvolvimento Econômico da
da época, decidiu viajar ao Brasil. Universidade Autônoma de Zacatecas, Comissão Econômica para a América
A finalidade era explícita. no México. “Furtado entendeu bem Latina e o Caribe (Cepal) no Chile,
Desqualificar o principal conceito que uma ciência social que abstrai desenvolveu com Prebisch a teoria
introduzido pelos latino-americanos: questões de relações sociais de poder do subdesenvolvimento, cujas teses
o subdesenvolvimento. Segundo assimétricas, entre países, regiões, versavam sobre as relações entre
Furtado, Viner chegou a afirmar classes e a diversidade de agentes que centro e periferia do sistema
durante o seminário: “Não faz sentido constituem as formações econômicas econômico mundial.
falar em país subdesenvolvido”. na periferia, é, na melhor das De volta ao Brasil, presidiu o grupo
ALÉCIO DE ANDRADE / ADAGP PARIS

A despeito de Viner, nas décadas hipóteses, irrelevante.” Mallorquín conjunto de estudos da Cepal com
seguintes a expressão circulou chama a atenção para o fato de que o Banco Nacional de Desenvolvimento
amplamente e orientou teorias, os livros do economista brasileiro Econômico (BNDE, ainda sem o “S”
políticas públicas e plataformas não se denominam Teoria do de “Social”), cujos relatórios serviram
partidárias em diversas regiões do desenvolvimento ou Por que alguns de base para o Programa de Metas
mundo. O nome de Furtado ficou países alcançam o desenvolvimento. do presidente Juscelino Kubitschek
fortemente associado ao conceito, “Ele enfatizou a política, como no (1902-1976), a partir de 1955. Primeiro

90 | NOVEMBRO DE 2020
Celso Furtado
em Paris (1971)

PESQUISA FAPESP 297 | 91


em economia retomou sua posição
central após ser “encurralada pelo
pensamento estruturalista”.
Nem por isso sua obra caiu no
esquecimento. A influência de seus
livros é visível em áreas muito além da
economia. Décadas antes de programas
de pós-graduação que incentivam
pesquisas com múltiplos olhares,
Furtado já era um pensador que
transitava entre distintos saberes.
“Ele foge dos padrões limitados de
sua disciplina. A evolução de seu
pensamento transparece ao longo da
obra como uma trajetória cada vez
mais holística na percepção e
articulação dos processos sociais”,
analisa Costa Lima.
Por isso, o desenvolvimento, tema
Em registro de 1960 em torno do qual orbitavam suas
(da esq. para à dir.): reflexões, jamais poderia ser
o governador do meramente econômico. Na classificação
Ceará, Parsifal
Barroso, o presidente
do economista Ricardo Bielschowsky,
Juscelino Kubitschek, da UFRJ, o pensamento de Furtado
Furtado e João Goulart é como um edifício com um alicerce
1
e três pavimentos. O alicerce
titular da Superintendência do o passado colonial, as estruturas é o método histórico-estrutural,
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), agrárias, a desindustrialização, herdado de Prebisch e da Cepal,
entre 1959 e 1964, foi ministro do as desigualdades econômicas, mas com maior ênfase histórica.
Planejamento de João Goulart a estratificação social e os regimes O primeiro pavimento é a análise do
(1919-1976) e arquiteto de um plano de políticos. “Furtado enfatizou subdesenvolvimento, pelo qual ele
estabilização econômica, em 1963, que a importância das instituições, é mais conhecido e, de acordo com
não conseguiu apoio do Congresso e o papel crítico dos governos, a divisão Bielschowsky, onde Furtado demonstra
acabou sendo encerrado abruptamente. internacional desequilibrada do maior rigor analítico. O segundo
Exilado na França durante a ditadura trabalho e a natureza do capitalismo pavimento é socioeconômico e
militar (1964-1985), foi ministro da global”, destaca. sociopolítico, resultando de sua própria
Cultura no governo de José Sarney experiência no setor público. Por fim,

O
entre 1986 e 1988, criando a primeira conceito de o terceiro pavimento é a cultura, que
lei de incentivo à cultura no Brasil subdesenvolvimento ganhou peso à medida que se esgotava
(Lei Sarney). Foi casado duas vezes. perdeu espaço entre o processo de desenvolvimento.
Primeiro, com a química argentina economistas, substituído “Celso era um defensor do progresso
Lucia Piave Tosi, com quem teve dois por formas como “país em social, para o qual é obviamente
filhos, o economista André Tosi desenvolvimento” ou “mercado necessário o progresso material, mas
Furtado e o físico Mario Tosi Furtado. emergente”. Nos cursos de economia, ele não basta. Daí a importância da
Seu segundo casamento foi com a a maior parte dos estudantes tem cultura em seu pensamento”, resume
jornalista Rosa Freire d’Aguiar, em 1978. contato com a obra de Furtado graças Fernando de Mattos, da Faculdade
“Furtado foi um pioneiro”, afirma a um único livro: Formação econômica de Economia da Universidade
Deepak Nayyar, professor de economia do Brasil (Fundo de Cultura, 1959). Federal Fluminense (UFF). A ênfase
da universidade Jawaharlal Nehru, em Segundo Nayyar, foi por intermédio na industrialização estava subordinada
Nova Delhi, na Índia. “O estruturalismo desse livro que ele conheceu a obra do a esse progresso social, mediada
foi muito influente em todo o mundo brasileiro, ainda como estudante da pela importância da tecnologia, que
nas décadas de 1960 e 1970, com Universidade de Delhi, nos anos 1960. Furtado sempre enfatizou.
a premissa central de que não se “Como a economia se tornou mais Para Cesar Bolaño, do Departamento
pode analisar o subdesenvolvimento matemática, ele acaba sendo visto de Economia da Universidade Federal
e o desenvolvimento sem situar como historiador”, afirma Marcos de Sergipe (UFS), os escritos culturais de
as economias no contexto político Costa Lima, professor de Relações Furtado ajudam a conceber uma
e social, em que a história conta Internacionais da Universidade economia política da comunicação
muito.” Para Nayyar, a abordagem Federal de Pernambuco (UFPE). Para e da cultura mais ampla do que
estruturalista permitiu enfatizar Mallorquín, a metodologia neoclássica a abordagem habitual dos fenômenos

92 | NOVEMBRO DE 2020
culturais. No livro O conceito de da democracia”, enumera Gilberto pensador das relações internacionais,
cultura em Celso Furtado Bercovici, professor de direito “embora ele trabalhe com os mesmos
(EDUFBA, 2015), Bolaño mostra que econômico da Faculdade de Direito conceitos que alguns dos autores mais
o economista era influenciado por da Universidade de São Paulo (USP) estudados”. “É fundamental entender
autores da antropologia, a partir dos e fundador do grupo de pesquisa que Celso Furtado refletiu sobre
quais concluiu que a superação do Direito e Subdesenvolvimento: o campo da política internacional,
desenvolvimento não se limitava o Desafio Furtadiano. para ampliar o quadro dos problemas
a atingir o nível de consumo dos “Ele é um autor de referência que estamos tratando”, aponta. “Esse
países ricos. “Sua preocupação central para o direito econômico, que esforço faz parte de um conjunto de
não é com a geração de emprego estuda a organização do processo reflexões que estão associadas ao
e renda através da cultura. O que ele econômico e o planejamento, políticas pensamento pós-colonial”, observa.
FOTOS 1 ARQUIVO NACIONAL 2 WHITE HOUSE / JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LIBRARY AND MUSEUM 3 ARQUIVO 4 PUBLIUS VIRGILIUS / FOLHAPRESS

buscou foi garantir a autonomia industriais e agrícolas. É o direito Costa Lima enfatiza dois aspectos,
cultural de um projeto nacional de como modo de estruturar o processo na trajetória de Furtado: a constatação
desenvolvimento”, observa. econômico”, explica Bercovici. “O de que o desenvolvimento das nações
Para ilustrar a diferença de jurista Fabio Konder Comparato periféricas não poderia simplesmente
perspectiva, o pesquisador toma se refere ao direito econômico como reproduzir os padrões dos países
o exemplo das leis de incentivo. ferramenta para atingir as estruturas centrais e sua defesa do fortalecimento
“A Lei Sarney, concebida por Furtado, do sistema econômico. Isso era das relações entre os países
procurava disseminar as condições justamente o que Furtado se propunha subdesenvolvidos – frequentemente
de desenvolvimento da criatividade. a fazer”, completa. denominadas “Sul-Sul”.
Ele chegou a dizer que o objetivo Por outro lado, Costa Lima lamenta Em 1974, Furtado lançou O mito
era que o açougueiro da esquina que Furtado não seja abordado como do desenvolvimento econômico (Paz
financiasse o grupo de teatro de
seu bairro. As leis posteriores, 2 Em julho de 1961
ao contrário, se concentram em com o presidente
dos Estados Unidos,
financiar grandes produções”, John F. Kennedy
assinala. A exceção, segundo Bolaño,
Com Robert Sargent
é o programa dos Pontos de Cultura, Shriver, diretor
implementado quando Gilberto Gil da agência
ocupou o ministério da Cultura, norte-americana
entre 2003 e 2008. Corpos da Paz
(abaixo, à esq.)
“Furtado pode ser abordado
de inúmeras maneiras: intérprete Em 31 de outubro
de 1997, Celso
da formação do Brasil; Furtado tomou posse
historiador da economia brasileira na Academia
e latino-americana; teórico do Brasileira de Letras
subdesenvolvimento; pensador da (abaixo)

questão regional; interlocutor sobre


a mundialização do capital e as
possibilidades da periferia; pensador

3
4
e Terra), que aborda um tema, àquela do que determinado aumento na sobre o comércio internacional e
altura, pouco usual entre economistas: quantidade de insumos aplicados. chegou a resultados semelhantes.
o ambiente. Mais tarde, Furtado Na periferia estão os países “Nos padrões das redes complexas,
afirmou que foi alertado para especializados em produtos de baixa uma estrutura com centro e periferia
a importância da ecologia nos anos tecnologia, que têm, ao contrário, é o normal. Qualquer rede, em geral,
1960, em seu período na Sudene. retornos decrescentes de escala. tem um padrão de centro e periferia:
Ali, percebeu que a agricultura dos Hoje, não é comum o uso da o centro tem os nós mais conectados
indígenas protegia a floresta, ao distinção entre centro e periferia e a periferia os nós com poucas
contrário daquela que era praticada entre economistas. Mas ela reaparece conexões”, explica.
pelo maquinário moderno. No artigo de outras maneiras, aponta Paulo Gala, Gala aponta que cada uma dessas
“As ideias de Celso Furtado sobre da Escola de Economia da Fundação escolas chegou à relação entre centro
a questão ambiental”, os economistas Getulio Vargas de São Paulo (FGV). e periferia por um caminho diferente.
Renato Nataniel Wasques, Walter Gala cita os trabalhos de Paul Furtado e Prebisch faziam uma análise
Luiz dos Santos Júnior e Danilo Krugman, que recebeu o prêmio Nobel histórica e documental. Krugman
Duarte Brandão observam que em 2008, na área de geografia é um teórico puro da macroeconomia,
as reflexões suscitadas pela questão econômica. Segundo Gala, Krugman que emprega modelos abstratos. Já
ambiental, e desenvolvidas no livro mostra como economias em que há os teóricos da complexidade tomaram
de 1974, prefiguram abordagens que diferentes mercadorias, algumas com uma via estritamente empírica,
seriam fundamentais para o conceito retornos crescentes de escala e outras analisando dados volumosos sobre
de desenvolvimento sustentável. com retornos decrescentes, emerge o comércio mundial. “Todos
espontaneamente uma estrutura com atingiram um mesmo resultado: seja

A
o lado do subdesenvolvimento, centro e periferia. “Krugman deu um empiricamente, seja formalmente,
o principal conceito de salto formal no entendimento do a estrutura do comércio mundial
Furtado é a distinção comércio mundial, e o trabalho em forma um padrão de centro e periferia”,
entre centro e periferia que ele dá esse salto é recheado pela diz. “Por isso, os estruturalistas
da economia global, que constituiu ideia de centro e periferia”, afirma. latino­‑americanos estavam certos ao
um dos pilares do pensamento Gala chama a atenção também para dizer que não havia possibilidade de
desenvolvido na Cepal, com Prebisch. um fenômeno mais recente, em que desenvolvimento para os países mais
O “centro” designa os países ricos, um grupo de físicos e economistas pobres dentro do padrão que vinha dos
que dominam tecnologias avançadas dedicados ao tema da complexidade, mais ricos”, conclui. n
e produzem bens com retornos como os físicos Cesar Hidalgo,
crescentes de escala, ou seja, um chileno, e Albert-László Barabasi, Os livros e artigos científicos consultados para esta
rendimento proporcionalmente maior húngaro-americano, debruçou-se reportagem estão listados na versão on-line.

Celso Furtado
cumprimenta o
CÍCERO PR / FOLHAPRESS

arquiteto Oscar
Niemeyer, em
encontro ocorrido
em 1987. À mesa,
o antropólogo
Darcy Ribeiro

94 | NOVEMBRO DE 2020
RESENHA

Um livro plural
Luiz Costa Lima

D
ividido em quatro partes – “Figuras”, houve”, sobre Oswald de Andrade (1890-1954),
“Duo”, “Paisagens”, “Flagrantes” – Len- realce da “língua bífida” de um talento selvagem,
do e relendo comete o feito surpreendente estragado, como ele próprio reconhecia, por sua
de conter em suas 516 páginas a referência co- incontinência amorosa, o prefácio à tradução do
mentada a algumas centenas de obras. Como se- Finnegans wake, por Donaldo Schüler.
ria impossível ao tamanho desta resenha referir Ainda não me furto a ressaltar que Walnice não
seus artigos sequer de maneira aproximada, nos discrimina autores nacionais e estrangeiros. As-
concentraremos sobretudo na primeira parte. sim Castro Alves (1847-1871) tem lugar ao lado do
Walnice Nogueira Galvão principia com “Poe”, crítico Edmund Wilson (1895-1972), cujo desco-
originalmente publicado em 1999. O escritor Ed- nhecimento recente entre nós provoca frase quase
gar Allan Poe (1809-1849) é visto na confluência ao final: “[...] Aquilo que o fascismo e o nazismo
dos vários autores integrados no romance “góti- não conseguiram, ou seja, a submissão consentida
co”, numa linhagem que continua a estar presen- de todos, o consumismo (o conseguiu) pela paz”.
te em certo William Faulkner (1897-1962). Não Encerro as referências à primeira parte do livro
contente em assinalar esse filão, Walnice ainda pelo destaque das anotações de Gilberto Freyre Lendo e relendo
ressalta a presença de Poe no satanismo, principal (1900-1987) sobre Euclides da Cunha (1866-1909), Walnice Nogueira
Galvão
responsável pela repercussão que alcança Char- para acentuar um ponto em que discordo relati- Edições Sesc
les Baudelaire (1821-1867) e Stéphane Mallarmé vamente tanto de Walnice quanto de Freyre. Na São Paulo e
(1842-1898) e se prolonga a Walter Benjamin escrita de Euclides, Walnice destaca a afirmação Ouro sobre Azul
(1892-1940) e Jacques Lacan (1901-1981). do sociólogo: “A ciência serve ao drama”. Não é 516 páginas
R$ 90,00
Segue-se lhe a reflexão sobre a repercussão que assim não suceda, senão que me pergunto se
post mortem de Fernando Pessoa (1888-1935), não seria decisivo indagar-se sobre as diferenças
cuja primeira edição de seu acervo então conhe- entre o discurso científico e o literário, tratamento
cido saiu em 1960, no Brasil. Para muito leitor, que tem repugnado aos euclidianos. Das demais
será uma surpresa saber que sua divulgação aqui seções, quase nada mais direi.
se iniciara, em 1943, com o destaque de Patricia Em “Duo”, ressalte-se a homenagem a Antonio
Galvão (Pagu, 1910-1962) e Cecília Meireles (1901- Candido (1918-2017). Tivesse mais espaço, gos-
1964), estendendo-se a Adolfo Casais Monteiro taria de questionar a ênfase de Candido na ideia
(1908-1972), o crítico português que nos seria de “formação”. Mas entendo que não caberia na
doado pela ditadura salazarista. Paralelamente homenagem que era prestada a Walnice fazê-lo.
à meta do artigo, importa o destaque concedido Em “Paisagens”, o “Achegas ao imaginário do
à cidade de São Paulo, que, na década de 1950, sertão”, com o realce do “mascate libanês” que,
continha um exuberante centro cultural, pulve- nos anos 1930, filmou o bando de Lampião. E,
rizado, em 1968, pela ditadura militar, temerosa em “Flagrantes”, à presença relativamente rápi-
das manifestações estudantis. da de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em São
Sem nos obrigarmos a saltos, aqui ainda cabe o Paulo, quando suas incursões às comunidades
destaque do artigo sobre a vinda de Casais Mon- indígenas do Amazonas eram financiadas pelo
teiro, extremamente favorecida pela comemora- departamento cultural da cidade. Em suma, co-
ção do IV Centenário de São Paulo. Seus detalhes nhecida sobremaneira pela realização de edição
são fascinantes e, ao menos hoje, desconhecidos crítica de Os sertões e da correspondência de
no resto do país. Rapidamente acrescento: o pre- Euclides, assim como sua principal comentado-
sente resenhador deve a Casais, junto à delega- ra, com destaque para O calor da hora (1974), a
ção portuguesa e a Mário da Silva Brito, ter sua autora torna-se uma fonte obrigatória a quem
comunicação aceita no 1º Congresso de Crítica pretenda conhecer melhor como é e como se
e História Literária, sucedido em 1960, em Reci- pensa no Brasil contemporâneo.
fe, opondo-se ao veto que lhe havia sido imposto
pela direção do congresso. Destaco as contribui- Luiz Costa Lima é professor emérito do Departamento de História da
ções sobre “Proust e Joyce, um diálogo que não Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

PESQUISA FAPESP 297 | 95


CARREIRAS

Biologia quântica
Campo emergente do conhecimento requer colaboração
interdisciplinar e conhecimentos de química e física

B
aseada no uso de ferramentas da desenvolvem esse tipo de estudo”, descrição apenas pela física quântica.
teoria quântica para a investigação avalia Semião. A partir daí o número de artigos
de fenômenos envolvendo As primeiras menções à biologia científicos disparou. “É certo que
organismos vivos, a biologia quântica quântica remetem a meados do século o campo de estudos começa a se firmar
vem se constituindo em um campo XX. No livro O que é a vida? O aspecto a partir desse período”, completa Santos.
de pesquisa essencialmente físico da célula viva (Unesp, 1997), Desde a divulgação dos estudos do
interdisciplinar. A sustentação de publicado originalmente em 1944, do grupo de Fleming, a fotossíntese se
seus estudos se dá, sobretudo, pela físico austríaco Erwin Schrödinger tornou o primeiro fenômeno biológico
colaboração estabelecida entre (1887-1961), são apresentados conceitos a ser considerado resultado legítimo
profissionais da biologia, química importantes para a constituição da da mecânica quântica. O fenômeno
e física, tendo a mecânica quântica biologia quântica como campo de é descrito como um processo biológico
e a química teórica como elementos estudos, fundamentado principalmente em que certas bactérias, algas e plantas
centrais de sua produção científica. na complexidade da matéria viva. obtêm energia, a partir dos fótons, com
“A tentativa de entender e controlar “Os pesquisadores da época, no entanto, absorção de energia, que é transportada
aspectos estruturais de sistemas não estavam preparados para enfrentar por diversas proteínas e transformada
biológicos tem chamado a atenção de esse desafio”, afirma Carlos Alberto em energia química. “O transporte dessa
pesquisadores para o estudo de dos Santos, do Instituto de Física da energia acontece por meio de um efeito
fenômenos quânticos, ou seja, de Universidade Federal de Alagoas intitulado coerência quântica”, explica
eventos que não podem ser explicados (IF-Ufal). Ao expor possibilidades de Guilherme Menegon Arantes, do
pela física clássica do mundo estudo da termodinâmica de sistemas Instituto de Química da Universidade
macroscópico”, explica Fernando biológicos, a obra aos poucos passou de São Paulo (IQ-USP), que emprega
Semião, do Laboratório de Ciência e a mobilizar físicos e biólogos. simulação computacional para
Tecnologia em Informação Quântica da Na base Web of Science, o primeiro investigar fenômenos quânticos
Universidade Federal do ABC (UFABC), trabalho com as palavras quantum envolvendo biomoléculas. A eficiência
onde, além da biologia quântica, biology remonta ao ano de 1956. da conversão de energia solar em
também são realizados estudos sobre A produção seguiria pequena até energia química no processo da
informação quântica pura, o início deste século. A virada fotossíntese é algo que sempre intrigou
termodinâmica quântica e pesquisa aconteceu em 2007, com a publicação pesquisadores. Até então, os efeitos
experimental em óptica quântica. No do artigo “Evidence for wavelike energy quânticos eram caracterizados como
Brasil, estudantes de pós-graduação transfer through quantum coherence fenômenos ultrarrápidos que ocorrem
que decidem realizar pesquisas nessa in photosynthetic systems”, na Nature. apenas em ambientes controlados
área, no entanto, não dispõem de Nele, um grupo de pesquisadores e com temperaturas muito baixas.
caminhos institucionalizados, o que liderados pelo químico britânico Graham
requer mais empenho para a obtenção, Fleming, da Universidade da Califórnia INTERFACE E COLABORAÇÃO
geralmente de forma autônoma, em Berkeley, Estados Unidos, obteve A biologia quântica tem ganhado
desses conhecimentos. “Mesmo sendo evidências de que macromoléculas importância no campo da biomedicina.
um campo de pesquisa promissor, envolvidas na fotossíntese apresentam “Entender melhor como ocorrem os
aqui ainda há poucas instituições que oscilações eletrônicas passíveis de fenômenos quânticos pode impactar

96 | NOVEMBRO DE 2020
Rota de aproximação
• Comece aprimorando seu
conhecimento em funções matemáticas

• Procure programas de pós-graduação


em áreas da mecânica quântica ou
química teórica

• Troque informações com


pesquisadores de áreas relacionadas,
como biologia, física e química

• Acompanhe estudos publicados


por centros internacionais
especializados no assunto

• Participe de congressos sobre o tema

e influenciar o entendimento que por antenas de telefonia, telefones em temas como magnetorrecepção,
temos sobre mecanismos de doenças”, celulares e televisão, dentre outros, biofotônica quântica, tunelamento
considera Francisco Laurindo, do poderiam interferir em respostas quântico em DNA, efeitos quânticos da
Instituto do Coração da Faculdade adaptativas intracelulares. fotossíntese e decoerência e ruídos
de Medicina da USP (InCor), que em sistemas biológicos. No Center for
vê a possibilidade, no momento TRILHA DE PESQUISA Quantum Bio-Sciences do Instituto
ainda teórica, de integração de Quando decidiu realizar estudos no de Física Teórica da Universidade
conhecimentos entre biologia quântica campo da biologia quântica pelo de Ulm, na Alemanha, estudos de
e biologia redox, área de estudo já Instituto de Física da Universidade biologia quântica envolvem
consolidada e dedicada ao estudo Federal do Rio Grande do Sul fotossíntese e transporte de elétrons
de processos biológicos que (IF-UFRGS), a pesquisadora Nicole e estão entrelaçados com pesquisas
envolvem reações de troca de elétrons De March precisou convencer seus sobre tecnologias quânticas e ciência
em biomoléculas em seres vivos. orientadores sobre a relevância de sua da informação quântica, tais como
“Nossas investigações em biomedicina pesquisa. “Apesar de eu ser da área de mecânica estatística quântica
redox têm se concentrado em física, para avançar na pesquisa do e processamento de sinais quânticos.
estudar como células vasculares mestrado e do doutorado tive de Em sua 12ª edição, a conferência
respondem a diferentes tipos de lesão entender conceitos da biologia”, intitulada Quantum Effects in
e como os processos de oxirredução, explica. As descobertas decorrentes Biological Systems Workshops (QuEBS)
ou seja, de transferência de elétrons, dos avanços em biologia quântica congrega anualmente interessados
podem modular esses processos”, poderão, no futuro, aumentar sua em estudos de fenômenos da mecânica
explica Laurindo. proximidade com os campos da física quântica em sistemas biológicos de
Dentre as hipóteses trazidas pelos e química e o consequente áreas como física, química, biologia,
preceitos da biologia quântica está estabelecimento de disciplinas que ciência dos materiais e ciência da
a de que a alteração de spin – uma contemplem mais especificamente essa informação quântica. Prevista para
propriedade intrínseca das partículas temática. “O estudo dos fenômenos ocorrer em setembro, na Grécia, a
microscópicas como elétrons, prótons quânticos que surgem como ponto de edição deste ano teve de ser reagendada
e átomos – pode se relacionar com ligação entre essas áreas do em decorrência da pandemia da
processos redox. Laurindo destaca conhecimento pode transformar os Covid-19. Ao reunir em média uma
duas hipóteses advindas dessa currículos de graduação”, observa centena de pesquisadores em torno do
aproximação. A primeira está Sandra Denise Prado, do IF-UFRGS. assunto, a biologia quântica evidencia
relacionada a processos celulares Instituições europeias e dos Estados que, embora pequena, vem se firmando
usuais que geram minicampos Unidos já oferecem disciplinas que como campo de estudos emergente. n
magnéticos dentro da célula e podem favorecem o aprofundamento nesse Sidnei Santos de Oliveira
ILUSTRAÇÃO JOANA VELOZO

afetar sua reação a certos estímulos. campo. Na Universidade de Surrey, na


Nesse caso, o fenômeno quântico seria Inglaterra, por exemplo, um programa
Artigo científico
um mediador de respostas celulares. de pós-graduação do Leverhulme
ENGEL, G. e CALHOUN, T. et al. Evidence for wavelike
A segunda seria a de que campos Quantum Biology Doctoral Training energy transfer through quantum coherence in photosyn-
magnéticos externos como os gerados Centre (QB-DTC) permite a formação thetic systems. Nature. v. 446, n. 7137, p. 782-6. 2007.

PESQUISA FAPESP 297 | 97


PERFIL

Para entender os
sistemas biológicos
Cientista brasileira cria
laboratório em universidade
dos Estados Unidos

Foi durante as investigações de Tech (QuBiT) Lab, cujas atividades spin, propriedade quântica presente
doutorado em engenharia elétrica tiveram início em novembro de 2019 em partículas subatômicas, tais como
realizadas no Massachusetts Institute na Universidade da Califórnia em prótons e elétrons, investigando
of Technology (MIT), nos Estados Los Angeles (Ucla), nos Estados como interagem com campos
Unidos, que a pesquisadora Clarice Unidos, e que, nessa fase inicial, magnéticos. Com a construção do
Demarchi Aiello se interessou pelo deverão envolver pesquisas sobre inédito equipamento, Aiello e sua
estudo de fenômenos quânticos em fenômenos quânticos que ocorrem em equipe pretendem ir além da
sistemas biológicos. O entrelaçamento proteínas e células de animais. observação do comportamento dos
entre as ciências naturais e a física Constituída por pesquisadores de spins nos criptocromos, criando
ganhou destaque a partir de distintas áreas do conhecimento como também possibilidades de controle
pesquisas em torno da absorção da química, engenharia elétrica e física dessas atividades.
luz na fotossíntese e da orientação atômica, teórica e experimental, A trajetória acadêmica da
magnética de aves migratórias. a equipe do QuBiT trabalha atualmente pesquisadora é quase toda internacional.
“Eu já era fascinada pela mecânica na montagem de uma espécie de Dois anos depois de ingressar, em 2000,
quântica justamente pela microscópio que tornará possível no curso de graduação em engenharia
oportunidade que ela oferece de o acompanhamento de fenômenos elétrica na Escola Politécnica da
descrever processos que acontecem quânticos por intermédio da excitação Universidade de São Paulo (Poli-USP),
em escala bastante reduzida, como de elétrons, provocada por campos Aiello decidiu fazer um intercâmbio na
na proporção molecular”, explica magnéticos. “O equipamento será bem École Polytechnique de Paris, na França,
a cientista paulistana. A experiência diferente dos microscópios aos quais onde acabou migrando para a física.
acumulada no campo da biologia estamos acostumados”, explica Aiello. No mestrado, concluído em 2005 na
quântica a colocou à frente do “Trata-se de um equipamento mais Universidade de Cambridge, Inglaterra,
recém-criado Quantum Biology robusto, em formato de mesa óptica, Aiello investigou o processamento
com um complexo sistema de espelhos de informações quânticas em cristais
ligados a diversos componentes fotônicos. Já no doutorado, concluído
Clarice Demarchi Aiello: fenômenos
quânticos como objeto de pesquisa eletrônicos”, revela. em 2009 no MIT, estudou o controle
Desde que mergulhou no campo de elétrons acoplados a spins.
da biologia quântica, Aiello tem Desde então, a biologia quântica
se dedicado ao estudo de uma classe segue sendo tema de suas pesquisas.
de proteínas intitulada criptocromo. Em química, na Universidade da
Encontrada em algumas espécies Califórnia, Estados Unidos, e em
de animais, esse tipo de proteína bioengenharia, na Universidade
está associado à detecção de campos Stanford, quando investigou a biofísica
magnéticos de baixa intensidade, de sensores vivos. “A minha hipótese
como acontece no caso das aves é que a natureza está cheia de
migratórias que se valem desse microestratégias que podem nos
mecanismo para orientar seus voos, ajudar a desenvolver tecnologias nas
ARQUIVO PESSOAL

tendo como referência o campo mais diversas áreas. São investigações


magnético terrestre. A pesquisadora que pretendo levar para toda
também se aprofundou no estudo do a minha carreira”, conclui. S.S.O.

98 | NOVEMBRO DE 2020
VOCÊ
SABIA QUE
PESQUISA
FAPESP
TEM UM
CANAL NO MATAMATÁ, UMA ESTRANHA TARTARUGA DA AMAZÔNIA

YOUTUBE?
Desde 2012, quase 250 vídeos
foram produzidos com base
em reportagens de Pesquisa FAPESP

Disponibilizados quinzenalmente,
sempre às segundas-feiras PARA ALÉM DA SALA DE AULA

A partir de 2017, legendados


em português e alguns em inglês

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CONTRA A COVID-19

OCUPAÇÃO HUMANA NO MÉXICO TEM MAIS DE 30 MIL ANOS

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