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PESQUISA FAPESP JANEIRO DE 2021

JANEIRO DE 2021 | ANO 22, N. 299

DESAFIOS
DO CUIDADO
Aumenta o número de pessoas
que demandam serviços
de assistência, obrigando
os países a repensar
seus sistemas de atenção;
no Brasil, protagonismo
continua familiar

Covid-19: a complexidade Apenas 15% Rede de Pterossauros Cresce o número


Ano 22 n. 299

da distribuição das vacinas; dos filmes estradas podem ter de brasileiros


nacionais foram conectava se originado entre os
as startups que criaram os dirigidos por aldeias e culturas de pequenos pesquisadores
primeiros imunizantes aprovados; mulheres entre pré-colombianas répteis mais citados
o impacto das mutações do vírus 2001 e 2010 na Amazônia terrestres em 2020
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Estrelas submarinas
Quando perturbados – seja por um cutucão ou um
facho de luz –, os tunicados Pirosoma atlanticum
emitem luz azul-esverdeada. Pirosoma significa “corpo
de fogo”, e esses tunicados são colônias de minúsculos
organismos marinhos que flutuam nas profundezas
escuras, formando agregados esponjosos que chegam
a 15 metros de comprimento. Ainda não se sabe qual
o benefício do brilho, mas o mecanismo bioquímico
acaba de ser desvendado (Scientific Reports, 20 de
outubro). Eles produzem a bioluminescência a partir
de uma enzima luciferase, batizada como PyroLuc.

Imagem enviada pelo químico Anderson Garbuglio


de Oliveira, professor do Instituto Oceanográfico da
Universidade de São Paulo (IO-USP)
FOTO DAVID GRUBER / CITY UNIVERSITY DE NOVA YORK

PESQUISA FAPESP 299 | 3


299

3 FOTOLAB COVID-19 CAPA PALEONTOLOGIA


6 COMENTÁRIOS 18 Em meio a incertezas, 32 Aumento na expectativa 56 Grupo de pequenos
7 CARTA DA EDITORA São Paulo anuncia o plano de vida e novos arranjos vertebrados terrestres
estadual de vacinação familiares ampliam foram os parentes
8 BOAS PRÁTICAS a demanda por cuidadores mais próximos
Software aponta 20 Os desafios de dos pterossauros
conflitos de interesse distribuir a vacina 38 Na América Latina,
entre revisores e imunizar a população 47 milhões de pessoas ARQUEOLOGIA
e autores de artigos trabalham na área 60 Redes de estradas
24 Vacinas das empresas conectavam aldeias distantes

ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO FOTO PAULO CESAR MAURO / ARQUIVO PESSOAL ADELIA SAMPAIO
11 DADOS BioNTech/Pfizer e Moderna ENTREVISTA até 10 quilômetros na
Queda nos números resultam de investimentos 40 O cientista da Amazônia pré-colombiana
de ingressantes prévios na tecnologia computação Silvio Meira
e de concluintes de RNA mensageiro fala sobre as oportunidades BOTÂNICA
em engenharia da era digital no país 64 Árvores de clima
28 Mutações do Sars-Cov-2, tropical crescem
12 NOTAS como as verificadas BIBLIOMETRIA mais rápido, mas vivem
16 NOTAS DA PANDEMIA no Reino Unido, 46 Lista de menos que espécies de
preocupam cientistas pesquisadores altamente áreas frias
citados tem mais
brasileiros em 2020 ENTREVISTA
66 Formado no Brasil,
PUBLICAÇÃO CIENTÍFICA psiquiatra argentino
52 Plano de acesso Gustavo Turecki investiga
aberto entra em vigor as causas do suicídio
com ambições
e alcance reduzidos

JANEIRO 2021
ONCOLOGIA AUDIOVISUAL WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
70 Risco de câncer de 82 Estudos investigam
reto voltar é menos de 5% o papel das mulheres Leia no site a edição da revista em português, inglês
se paciente foi tratado em produções e espanhol, além de conteúdo exclusivo
apenas com rádio cinematográficas
e quimioterapia e se
manteve livre de tumores ARQUIVOLOGIA
por três anos 86 Cadernos de
pesquisa registram VÍDEO YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP
ASTROFÍSICA experiências e podem
72 Estrela e planeta se servir como fonte de
formam simultaneamente informações no futuro
em sistema alimentado
por nuvem de gás
91 MEMÓRIA
AGRONOMIA No final do século XIX,
74 Mapeamento mineral médicos começaram
do solo pode elevar a desenvolver a pediatria
produtividade da no Brasil
agricultura e reduzir seu Na construção de arcos de violino,
impacto ambiental 95 CARREIRAS cada madeira é única
Cientista de dados O biólogo Eduardo Longui e o arqueteiro
ENGENHARIA AERONÁUTICA é profissional Daniel Lombardi explicam que o uso
79 Primeiro drone em alta no mercado, para fins musicais depende das propriedades
militar de grande porte com múltiplas de cada espécie
feito no Brasil alça voo possibilidades de atuação bit.ly/igVArcos

Como a arquitetura pode auxiliar


no combate a epidemias?
Criar ambientes mais saudáveis, a fim
de reduzir o risco de contaminações,
tornou-se uma preocupação de arquitetos
e urbanistas no século XIX
bit.ly/igVArquiPandemia

PODCAST
1. Representação gráfica da
espícula do vírus Sars-CoV-2, Os impactos na biodiversidade
sujeita a mutação (COVID-19, P. 28)
2. Adélia Sampaio, apontada
do Pantanal de uma temporada de
Ilustração de capa como a primeira cineasta negra incêndios sem precedentes
LINOCA SOUZA no Brasil (AUDIOVISUAL, P. 82) bit.ly/igPBR20nov20
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br
CONTATOS

revistapesquisa.fapesp.br

redacao@fapesp.br
provável que os doutorandos sem bolsa sejam
profissionais liberais. Certamente eles são
PesquisaFapesp mais numerosos (na condição “sem bolsa”)
PesquisaFapesp que astrônomos, físicos teóricos ou cientis-
tas políticos. Por extensão, parece-me que
pesquisa_fapesp
estar na carreira universitária, buscar seu
PesquisaFAPESP caminho para a progressão no magistério são
fatores que favorecem a obtenção da bolsa.
pesquisafapesp
Gerson Ferreira Filho
cartas@fapesp.br Vídeo
R. Joaquim Antunes, 727 Um exemplo fantástico mostrando que, na
10º andar vida, todos os conhecimentos são comple- Cana transgênica
CEP 05415-012
mentares (“Arcos de violino”). Cana-de-açúcar resistente a glifosato só serve
São Paulo, SP
Camila de Lima Braga à indústria agrícola que planeja o alto mono-
cultivo da planta com uso de herbicida. In-
Que delícia a pesquisa desse vídeo. sustentável no longo prazo e para o ambiente
ASSINATURAS, Giovanna Cortese (“Nova cana transgênica”, edição 298).
RENOVAÇÃO E MUDANÇA Cesar Coelho
DE ENDEREÇO
Envie um e-mail para
assinaturaspesquisa@fapesp.br
Bolsistas e não bolsistas
Não me parecem justas as ponderações de Pesquisa na quarentena
Sérgio Salles-Filho sobre o desempenho in- Frutos da ciência bem planejada (“Foi uma
PARA ANUNCIAR ferior de doutores “não bolsistas” quando honra sermos os primeiros usuários externos
Contate: Paula Iliadis comparados aos bolsistas, em especial os da do Sirius”, depoimento de Aline Nakamura e
E-mail: FAPESP (“Impactos da pesquisa na socie- Andre Godoy).
publicidade@fapesp.br
dade”, edição 297). Há pontos que não fo- Olavo Motta
ram considerados. Muitos profissionais que
buscam o doutorado fazem-no às próprias
EDIÇÕES ANTERIORES
Preço atual de capa custas, simplesmente porque não precisam Yvonne Maggie
acrescido do custo da bolsa: não estão focados na carreira do- Interessantíssima a entrevista com Yvonne
de postagem. cente universitária, querem principalmente Maggie (“Antropóloga das religiões afro-bra-
Peça pelo e-mail: aprofundar conhecimentos. Publicam menos sileiras”, edição 295). Ela fala sobre carreira,
clair@fapesp.br
do que os bolsistas porque, para eles, importa ciência, fé e, claro, a polêmica das cotas.
menos do que para os que estão buscando a Grazi Silotto

LICENCIAMENTO progressão na carreira do magistério, e es-


DE CONTEÚDO crever em alto nível requer tempo que deve Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
Adquira os direitos de ser subtraído de suas atividades normais. É por motivo de espaço e clareza.
reprodução de textos
e imagens de Pesquisa FAPESP.
E-mail:
mpiliadis@fapesp.br Notícias que você lê no site de Pesquisa FAPESP bit.ly/igSertaoSaara
Mudanças no clima e na insolação nos últimos 10 mil anos devem ter moldado as
atuais paisagens na América do Sul e África
SOLON ALMEIDA NETTO

Caverna do Trapiá (RN),


onde pesquisadores
coletaram estalagmites
para reconstituir o clima
do semiárido

6 | JANEIRO DE 2021
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CARTA DA EDITORA
PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE

Cuidados necessários
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Ignácio


Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves
Ramos, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski,
Vanderlan da Silva Bolzani
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE

A
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO
cirurgiã Angelita Habr-Gama se ineficazes os imunizantes que começam
Luiz Eugênio Mello
dedica a desenvolver estratégias a ser aplicados. Reportagem à página 28
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida
de tratamento que poupem pa- mostra que as alterações genéticas nes-
cientes com câncer de reto das operações ses patógenos são bastante comuns e
para amputação do órgão. Resultados não necessariamente afetam a estratégia
ISSN 1519-8774 da pesquisa que seu grupo desenvolve imunológica, mas demandam atenção
CONSELHO EDITORIAL
Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo
desde os anos 1990 foram publicados e acompanhamento. A cobertura sobre
Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares
de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira
no mês passado, mostrando que o pa- a Covid-19 desta edição também inclui
COMITÊ CIENTÍFICO
ciente pode ser poupado da intervenção um panorama dos desafios logísticos a
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria
quando o tumor regride totalmente com serem enfrentados na distribuição das
Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Catarina Segreti Porto,
Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy das Graças de Souza, Douglas
rádio e quimioterapia (página 70). A mé- vacinas (página 20), a história das duas
Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi Zancul, Euclides de Mesquita
Neto, Fabio Kon, Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz
dica passou quase 50 dias internada em startups que produziram os primeiros
Filgueiras de Azevedo, José Roberto de França Arruda, José Roberto
Postali Parra, Leticia Veras Costa Lotufo, Lucio Angnes, Luciana
uma UTI com Covid-19, recuperou-se e, imunizantes aprovados contra a doença,
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Mariana Cabral de Oliveira, Marco
Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta
aos 87 anos, retomou sua rotina como usando uma tecnologia até então apenas
Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Richard Charles Garratt,
Roberto Marcondes Cesar Júnior, Rui Monteiro de Barros Maciel,
cirurgiã e pesquisadora (ver Pesquisa experimental (página 24), e o desenvolvi-
Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli
FAPESP no 298). mento da CoronaVac, que teve parte dos
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Henrique Lopes dos Santos Muitas pessoas mantêm longas carrei- seus ensaios clínicos realizados no Bra-
DIRETORA DE REDAÇÃO ras e vidas ativas. Mas, com o envelhe- sil e é a vacina mais próxima de chegar
cimento da população, cresce o número aos postos de saúde do país (página 18).
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin de indivíduos que demandam cuidados, *
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T),
Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência),
levando vários países a repensar seus Não é de hoje que os rankings permeiam
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais),
Maria Guimarães (Site), Yuri Vasconcelos (Editor-assistente)
sistemas de atenção a pessoas vulnerá- o fazer científico. Em meio à sua pro-
REPÓRTERES Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade
veis. Além da crescente longevidade, as fusão, é preciso uma análise detida dos
REDATORES Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
novas configurações domésticas, com critérios para entender exatamente o que
do Prado (Mídias Sociais)
mulheres chefiando lares e trabalhando está sendo mensurado. Pesquisadores
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), fora de casa, dificultam que sejam as fa- brasileiros apresentaram um avanço no
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital)
mílias a assumir os cuidados de parentes levantamento anual da Clarivate Analy-
sem autonomia. tics, que lista os cientistas com trabalhos
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves

BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues

RÁDIO Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil)


A reportagem de capa desta edição altamente citados. O Brasil é o 15º país
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro
apresenta o resultado de pesquisas que que mais produz artigos científicos, mas
COLABORADORES Aline Souza Ana Paula Orlandi, Anderson
identificaram arranjos organizados nos se encontra na 26ª posição em termos de
Garbuglio de Oliveira, Andrés Sandoval Bruno de Pierro, Eduardo
Geraque, Domingos Zaparolli, Frances Jones, Igor Zolnerkevic,
últimos 20 anos para amparar pessoas pesquisadores cujos trabalhos receberam
Patricia Brandstatter Renato Pedrosa, Sarah Schmidt, Sidnei Santos
de Oliveira, Tiago Jokura
com diferentes graus de dependência, muitas citações em 2020. Em 2015, cinco
REVISÃO TÉCNICA Adriana Valio, Claudia Mendes de Oliveira, como crianças, idosos e indivíduos com brasileiros estavam na lista; neste ano,
Célio Haddad, José Eduardo Corá, Mari a Beatriz Florenzano,
Rafael Oliveira, Walter Colli, William Roberto Wolf deficiência. Em alguns países, o Estado passaram a 19. A melhoria se deve a uma
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL
é o principal ator; em outros, o serviço mudança muito positiva, da perspec-
DE TEXTOS, FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS
SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
fica a cargo de instituições privadas; há tiva da ciência, nos critérios adotados:
TIRAGEM 29.850 exemplares também os arranjos familiares, que ain- foram incluídas as chamadas citações
da predominam no Brasil (página 32). extracampo, em que artigos são muito
IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica
DISTRIBUIÇÃO DINAP

GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À * citados por trabalhos de outras áreas do
As principais candidatas a vacina con- conhecimento (página 46).
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
tra a Covid-19 têm como alvo a proteí- *
Alto da Lapa, São Paulo-SP na S, ou spike, responsável pela entra- O Conselho Editorial, criado em 2011
SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, da do vírus na célula humana. Por isso, para apoiar o desenvolvimento da re-
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO mutações no genoma do Sars-CoV-2, vista, será reformulado. Pesquisa FA-
principalmente na parte que codifica PESP agradece a valiosa colaboração
essa proteína, levantam temores de que de todos os integrantes (ver expediente
novas variantes do vírus possam tornar à esquerda).

PESQUISA FAPESP 299 | 7


BOAS PRÁTICAS

Inteligência artificial
na revisão por pares
Software aponta possíveis conflitos de interesse envolvendo
autores de artigos e pesquisadores que avaliam sua qualidade
A
editora suíça Frontiers, que publi- Um caso típico de má conduta é escon- artigos científicos já publicados e apon-
ca mais de 90 periódicos científi- der que recebeu financiamento de uma tar erros estatísticos, mas a forma como
cos em acesso aberto, desenvol- empresa para realizar uma pesquisa em ela foi utilizada. Cinquenta mil artigos
veu um software que utiliza inteligência cujos resultados ela tem interesse econô- da área de psicologia foram analisados
artificial para examinar artigos e identi- mico. Foi o caso do oncologista José Ba- pelo software e os resultados desse es-
ficar até 20 diferentes problemas relacio- selga, que perdeu o cargo de diretor clíni- crutínio foram divulgados na plataforma
nados à sua integridade, como plágio ou co do Memorial Sloan Kettering Cancer PubPeer, expondo em público pequenos
imagens com sinais de manipulação. O Center, em Nova York, depois de reco- e grandes erros cometidos por milhares
programa chamou a atenção, no entan- nhecer que omitiu ligações com empre- de autores. Mais de 25 mil artigos apre-
to, por oferecer um serviço inovador: ele sas farmacêuticas em dezenas de artigos sentaram alguma inconsistência.
avisa quando os autores de um manus- científicos de sua autoria (ver Pesquisa Para a psicóloga Michèle Nuijten, pro-
crito e os editores e revisores que estão FAPESP nº 272). Também há situações fessora da Universidade de Tilburg e
apreciando o seu conteúdo já assinaram de conflitos de interesse que macularam uma das criadoras do Statcheck, ferra-
juntos outros artigos, em uma proximi- a objetividade da revisão por pares. Em mentas como o Aira podem ser valio-
dade que pode tornar a avaliação subje- 2017, a revista Scientific World Journal, sas na avaliação por pares. “Precisamos
tiva e configurar um conflito de interes- da editora Hindawi, anunciou a retra- buscar soluções inovadoras que ajudem
ses. Denominado Artificial Intelligence tação de dois artigos quando se soube a aumentar a qualidade e a robustez dos
Review Assistant (Aira), a ferramenta que o autor dos trabalhos, Zheng Xu, era estudos científicos, e a inteligência arti-
está sendo utilizada no processo de re- um colaborador frequente de Xiangfeng ficial tem um papel a desempenhar nis-
visão por pares de revistas da Frontiers Luo, editor do periódico e pesquisador da so”, disse, em reportagem sobre o Aira
com o propósito de fornecer um alerta Universidade de Shanghai. Eles assina- publicada no jornal The New York Times.
objetivo sobre interações prévias entre ram juntos dezenas de artigos e Luo foi Mas Nuijten adverte que essas ferramen-
quem produz e quem avalia o conheci- orientador de doutorado de Xu. tas devem ser usadas apenas no apoio
mento. Cabe a um juiz de carne e osso ao trabalho dos editores e que cabe ao

O
– o editor-chefe do periódico, em última objetivo do software Aira é detec- homem, e não à máquina, decidir se um
instância – arbitrar se esses contatos an- tar uma fonte potencial de confli- paper deve ou não ser publicado. “Fico
teriores afetam ou não a isenção da aná- to de interesses que poderia pas- preocupada com a ideia de que um artigo
lise. “É necessário ter apoio tecnológico sar despercebida. Mas seu alcance é limi- possa ser rejeitado apenas porque uma
para verificar em larga escala conflitos tado – ele só aponta problemas quando ferramenta de inteligência artificial iden-
de interesse entre autores e revisores”, há dados disponíveis para corroborá-los. tificou um problema, sem que se verifi-
disse o cientista da computação Daniel E parte desses conflitos ocorre em uma que realmente o que está acontecendo.”
Petrariu, diretor de Desenvolvimento de zona de sombras. Se o autor e o avaliador Agências de fomento também têm
Produtos da Frontiers, no lançamento receberem financiamento de um mesmo normas para prevenir conflitos de inte-
do programa, em julho. patrocinador e omitirem esse vínculo, resse na avaliação de projetos. A FAPESP
O Committee on Publication Ethics não é o software que irá revelar isso. há muito tempo solicita que assesso-
(Cope), fórum que discute temas rela- Um documento sobre o futuro da re- res escolhidos para analisar propostas
cionados à integridade na ciência, de- visão por pares publicado em 2017 pela declarem se têm interesses relacionados
fine conflito de interesses como uma editora BioMed Central mostrou que a a elas. Uma verificação prévia dos no-
situação em que pesquisadores ou ins- inteligência artificial vem sendo utilizada mes de potenciais assessores já descarta
tituições científicas têm interesses que de várias formas na avaliação de artigos os que têm vínculos como parentesco,
concorrem entre si, de caráter profissio- científicos. Há editoras que usam tais afiliação à mesma instituição e parti-
nal ou econômico, de modo que tomar recursos para rastrear a produção cien- cipação no projeto. Em maio, começou
partido de um deles pode comprome- tífica disponível on-line a fim de identifi- a funcionar um sistema automático de
ter a imparcialidade de suas decisões. A car pesquisadores com perfil para atuar identificação de possíveis revisores de-
existência de um conflito de interesses, como revisores de papers em suas disci- senvolvido pela Gerência de Informática
observa o Cope, não é determinante para plinas. Da mesma forma, a inteligência da Fundação, que sugere aos coordena-
a ocorrência de má conduta: a despeito artificial está municiando novos soft- dores de área uma lista de 20 pesquisa-
de tais circunstâncias, um estudo pode wares capazes de detectar plágio. Eles dores capazes de avaliar cada projeto. O
perfeitamente ter resultados válidos e identificam quando frases ou parágrafos sistema de busca compara parâmetros
fidedignos. Mas, quando isso acontece, foram reescritos para driblar algoritmos como títulos e palavras-chave dos pro-
é obrigatório lidar com o problema de que só conseguem captar cópias literais. jetos com uma base de perfis de asses-
forma transparente. Por isso, exige-se O exemplo mais polêmico foi o do sores e aponta, por ordem de relevância,
TOM KELLEY ARCHIVE / GETTY IMAGES

que pesquisadores assinem declarações software Statcheck, criado em 2015 por as melhores combinações. A tecnologia
de conflitos de interesse sempre que pesquisadores da Universidade de Til- responsável pela classificação das pa-
apresentar um projeto ou publicar um burg, nos Países Baixos (ver Pesquisa lavras utilizou recursos de inteligência
artigo. Fica a cargo do avaliador do pro- FAPESP nº 253), e hoje incorporado ao artificial. Além de tornar a seleção mais
jeto ou do leitor do paper ponderar os dia a dia de centenas de revistas. Uma objetiva, o sistema checa de modo auto-
resultados tendo em mente os interes- controvérsia envolveu não a tecnologia, mático se os revisores têm vínculos com
ses envolvidos. capaz de refazer os cálculos descritos em os proponentes. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 299 | 9


Paper de 1951 sobre homossexualidade sofre retratação

O
Journal of Nervous and Mental seu desprezo pelas pessoas como um ra explicar a leitura preconceituosa de
Disease, periódico de neuropsi- todo, nenhum sentimento nacionalista Benjamin Glover. LeVay reconhece que
quiatria que circula desde 1874, ou patriótico, um desprezo geral pelos autores da época, como Edmund Ber-
anunciou a retratação de um artigo cien- valores sociais da lei, da religião ou o gler, que lançou em 1956 o livro Homos-
tífico de quase 70 anos de idade. Apre- aperfeiçoamento da humanidade”. sexualidade: Doença ou modo de vida?,
sentado em 1948 em um evento de uma O editor da revista, John Talbot, definiu partilhavam as mesmas crenças. Mas
associação de psiquiatras e publicado na as opiniões de Glover como “crenças que observa que, em contraste, vários outros
revista em 1951, o trabalho descreve as consideramos abomináveis atualmente”, pesquisadores adotaram uma abordagem
observações sobre o comportamento de mas lembrou que não se tratava de um mais científica e objetiva. “Em 1958, por
estudantes homossexuais que receberam caso isolado e que os periódicos da época exemplo, o psiquiatra Mathew Ross e o
atendimento psicológico na Universi­ publicaram artigos defendendo conceitos estudante de medicina Fred Mendel-
dade de Wisconsin-Madison, nos Esta- igualmente inaceitáveis, como a euge- sohn publicaram um estudo com 133
dos Unidos, feitas por Benjamin Glover, nia. Por isso, determinou que o artigo de estudantes homossexuais que fizeram
professor de psicologia da instituição. No Glover, mesmo com o carimbo de retra- psicoterapia no serviço de saúde estu-
paper, Glover descreve os alunos como tação, continue disponível como um tes- dantil da Universidade da Califórnia, em
“uma paródia e um paradoxo emocional” temunho de seu tempo. Antecipando-se Los Angeles, juntamente a um grupo de
e diz que eles são “uma tragédia contínua às críticas de que estaria julgando o pes- controle de estudantes heterossexuais.
no fracasso para encontrar gratificação quisador sem considerar o conhecimento Ao contrário de Glover, esses autores
sexual”. Ainda de acordo com o autor, disponível da época, a revista publicou não expressaram opiniões negativas so-
os estudantes gays seriam “devotados também um editorial do neurocientista bre seus alunos homossexuais, fizeram
aos seus amores com uma paixão ex- Simon LeVay, famoso por estudos sobre pouco esforço para mudar a orientação
pressa; no entanto, eles têm pouco ou as origens biológicas e comportamentais sexual deles e descobriram que estu-
nenhum sentimento pelos pais e duvido da homossexualidade. Foi LeVay quem dantes homossexuais e heterossexuais
que ficariam chateados se a morte ou pediu a retratação do artigo. eram semelhantes em muitos aspectos
uma doença grave os atingisse”. Outra No texto, o pesquisador explicou que e igualmente receptivos à psicoterapia”,
amostra: “Há um egoísmo narcisista em o espírito do tempo não é suficiente pa- escreveu LeVay.

Ambições frustradas

U
m grupo de pesquisadores dos mas relacionados à má conduta. “Achei
Países Baixos dedicou-se, nos úl- que seria tendencioso”, disse à revista
timos meses, a preparar um gran- Science Henk Kummeling, presidente
de levantamento multidisciplinar sobre da Universidade de Utrecht, uma das
integridade científica em universidades e que se recusaram a participar. “Se você
instituições de pesquisa nacionais: mais perguntar apenas sobre práticas de pes-
de 40 mil pesquisadores foram convida- quisa questionáveis, já sabe de antemão
dos a preencher um questionário on-line o que vai ganhar como resposta.”
sobre tópicos como práticas questioná- O rol de perguntas foi ampliado para
veis e má conduta. Os resultados, contu- tentar deixar o estudo mais palatável,
do, ficaram muito aquém das ambições incluindo assuntos como compartilha-
iniciais, pois apenas 15% aceitaram par- mento de dados e ciência aberta, mas o
ticipar e enviaram respostas até a data- esforço não conseguiu derrubar as re-
-limite, 7 de dezembro. sistências. Jeroen de Ridder, filósofo da
De 15 universidades convidadas, ape- ciência da Universidade Livre de Ams-
nas cinco colaboraram com o estudo. terdã sem envolvimento com o estudo,
Lex Bouter, pesquisador da Universida- se disse desapontado com o boicote e a
de Livre de Amsterdã e idealizador da perda de oportunidade de analisar os
iniciativa, assegurou aos dirigentes de problemas relacionados à integridade
universidades que o levantamento não científica no país. Ele nega que a pes-
seria usado para abastecer nenhum ran- quisa tenha falhas metodológicas: “É a
king de mau comportamento, mas eles mais cuidadosa e completa que se pode-
se queixaram da ênfase excessiva em te- ria desejar”, afirmou.

10 | JANEIRO DE 2021
DADOS Cursos de engenharia: queda nos
números de ingressantes e de concluintes

INGRESSANTES (VAGAS NOVAS) EM CURSOS DE ENGENHARIA (EM MILHARES)*


n Privada n Pública
400

Número de novos alunos 350


332
caiu 17% entre 2018 e 2019 265
305
e 39% em comparação com 300 286 237
o pico de 2014 268 222
210
257
250 199 243 244
Entre 2014 e 2019, a queda 175 157

na rede privada foi de 48% 199 203


200 139
147
e na pública de 3,6%
161
150 112
131
114 89
100 94 80
81
72 63
87
52
46 67 67 68
64 65
50 52 57 58
49
42
Número de concluintes caiu 26 29 31 33

3,2% entre 2018 e 2019, 0


2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
primeira queda desde 1996

A queda foi maior na rede CONCLUINTES EM CURSOS DE ENGENHARIA (EM MILHARES)*


pública, de 8,6%. Na n Privada n Pública
200
privada, foi de 1,2%

Número de concluintes em 150


131 126
2019 (126.460) 112 95 94
100
98 83
representou 10,1% do total 82 72
61 68 57
de concluintes desse ano e 54
45 44
50 37 41 33
38
uma pequena queda em 26 30 32 32 26
21 24 36
13 16 16 17 29 33
relação ao percentual de 16 17 18 21 22 24 26 26
13 14 15 15
0
10,3% para 2018 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

CONCLUINTES/INGRESSANTES (DEFASAGEM DE CINCO ANOS) A razão entre o número de concluintes e o de


ingressantes, defasados em cinco anos, tempo
Privada Pública Total
típico da formação em engenharia, é um
0,80
indicador da eficiência do sistema

0,70
O gráfico mostra que esse indicador foi de 0,38
para todos os cursos, de 0,49 no setor público e
0,60
de 0,35 na rede privada, no ano de referência

0,50
2019 (razão entre o número de concluintes ao
longo de 2019 e o de ingressantes ao longo de
0,40 2014)

0,30 Na rede pública, houve queda, entre os anos de


referência 2005 e 2019, de 0,62 para de 0,49,
0,20 com valor de pico de 0,67 atingido em 2007 e
2013. Na privada, após atingir 0,54 em 2009,
0,10
houve queda para 0,35 em 2019. No geral, a
queda foi de 0,53 para 0,38, no período, com o
0
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 pico de 0,58, atingido em 2009

*OS VALORES PARA O TOTAL NOS DOIS PRIMEIROS GRÁFICOS PODEM DIFERIR DA SOMA DOS VALORES PARA AS REDES PÚBLICA E PRIVADA, POR EFEITO DE ARREDONDAMENTO

METODOLOGIA: FORAM CONSIDERADOS OS CURSOS NAS ÁREAS DE ENGENHARIA, STRICTO SENSU, OU SEJA, APENAS AQUELES COM PROGRAMAS RECONHECIDOS PELO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC) COMO ATRIBUINDO O GRAU
DE ENGENHARIA. NO CASO DE INGRESSANTES, FORAM CONSIDERADOS APENAS OS QUE UTILIZARAM VAGAS NOVAS. O INDICADOR DE EFICIÊNCIA UTILIZOU DEFASAGEM DE CINCO ANOS, OU SEJA, NO ANO DE REFERÊNCIA N, FOI
CALCULADA A RAZÃO ENTRE O NÚMERO DE CONCLUINTES AO LONGO DE N E O DE INGRESSANTES NO ANO N-5. PREPARADO PELA GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES, FAPESP.
FONTE: SINOPSES E MICRODADOS DO CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR, INEP/MEC.

PESQUISA FAPESP 299 | 11


NOTAS

1
Raízes tingidas de
pés de pimentão

Disputa subterrânea plantados próximos uns


aos outros: ramificação
concentrada perto
Uma equipe de pesquisadores dos Estados Unidos, da Espanha e do Brasil conseguiu explicar do caule
o comportamento geral do crescimento das raízes das plantas. Alguns experimentos sugeriam
que a concorrência por água e nutrientes do solo levava plantas vizinhas a promoverem um maior
crescimento de suas raízes. Outros indicavam que as plantas localizadas próximas umas às outras ge-
ravam raízes que ocupavam menos espaço. Um novo modelo teórico, desenvolvido com auxílio do físi-
co Ricardo Martínez-García, do Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR)
e do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), leva em conta ambas
observações. O modelo prevê que as raízes se espalham menos na presença de vizinhas, ao mesmo
tempo que compensam a perda de território aumentando sua ramificação próxima do próprio caule.
A previsão foi confirmada em um experimento com uma variedade de pimentão cultivada em estufa por
11 meses, mapeando a distribuição das raízes das plantas no solo (Science, 4 de dezembro).
Os pesquisadores esperam que essa constatação possa orientar melhorias na agricultura, permitindo a
otimização do plantio, e levar ao aprimoramento dos modelos de previsão de mudanças no clima, me-
lhorando a estimativa de quanto carbono as plantas armazenam em suas raízes.

12 | JANEIRO DE 2021
2

A maior e mais antiga cobra-cega


Paleontólogos do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP)
identificaram a maior e mais antiga cobra-cega, uma forma de serpente de hábitos
subterrâneos e olhos reduzidos. Encontrado no município de Taiaçu, no norte
do estado de São Paulo, o fóssil da nova espécie, batizada de Boipeba tayasuensis,
pertenceu a um exemplar que viveu há 87,8 milhões de anos e media cerca de
1 metro de comprimento, o triplo das cobras-cegas atuais (iScience, 19 de
novembro). “A descrição dessa nova espécie sugere que as cobras-cegas devem
ter passado por um processo evolutivo de miniaturização posterior”, comenta
a paleontóloga Annie Schmaltz Hsiou, da USP, coordenadora do estudo. Em
Escudo químico
FOTOS 1 CIRO CABAL / UNIVERSIDADE PRINCETON 2 WEISTEIN, S. B. ET AL. JOURNAL OF MAMMALOGY. 2020 3 JORGE BLANCO 4 JAXA

tupi-guarani, o termo boipeba significa cobra-achatada, uma referência à sua


vértebra (o único fragmento ósseo do animal encontrado) que apresenta essa
antipredadores característica. Tayasuensis remete ao local em que o fóssil foi coletado em 2009,
nos arredores de Monte Alto, município conhecido por abrigar fósseis de
Inofensivo à primeira vista, o rato-de-crista-africano dinossauros e crocodilos. Até essa descoberta, os mais antigos registros fósseis
(Lophiomys imhausi) guarda em sua pelagem uma de serpentes do grupo Scolecophidia, que reúne as cobras-cegas, tinham sido
ameaça letal. Quando encurralado por hienas achados na África e na Europa e vivido há 56 milhões de anos.
e cães selvagens, eriça os pelos do dorso e passa
a exibir entre o emaranhado de fios um veneno 3

poderoso o suficiente para derrubar um elefante


ou, dependendo da dose, matar um ser humano.
O grupo coordenado pela ecóloga Sara Weinstein,
da Universidade de Utah, nos Estados Unidos,
acompanhou o comportamento de 25 ratos-de-
-crista-africanos por meio de câmeras ocultas em
florestas da região central do Quênia, na África. Os
pesquisadores registraram vários desses roedores
mordiscando os galhos da árvore Acokanthera
schimperi, que contêm compostos altamente
tóxicos (Journal of Mammalogy, 17 de novembro).
Após mastigarem pedaços da planta, os animais os
espalhavam sobre a pelagem, criando uma espécie
de armadura química contra predadores. Esses
ratos são os únicos roedores tóxicos conhecidos
e um dos poucos mamíferos que usam venenos de
plantas para se proteger de outros animais.

Retorno bem-sucedido
A missão espacial japonesa Hayabusa2 conseguiu, com sucesso, coletar amostras
do asteroide Ryugu e trazê-las à Terra em segurança. Grãos negros do asteroide
estavam em um compartimento da cápsula, que se destacou da sonda Hayabusa2
e pousou em 6 de dezembro em uma região de deserto da Austrália. “Confirmamos
que os grãos negros supostamente de Ryugu estavam lá dentro”, escreveram
representantes da missão, comandada pela agência espacial japonesa (Jaxa), no
Twitter em 14 de dezembro. Eles ainda precisavam abrir a câmara para averiguar
se continha mais poeira do asteroide. A Hayabusa2 é a segunda missão espacial
a recolher amostras de um asteroide e transportá-las até a Terra. A primeira foi sua
antecessora, a Hayabusa, que trouxe amostras do asteroide Itokawa, rico em ferro
e silício, em 2010. O Ryugu é rico em carbono e minerais hidratados do período
inicial de formação do Sistema Solar. A análise de sua composição pode ajudar
Trajetória deixada a entender como a Terra se tornou um planeta banhado por água e, caso contenha
no céu da Austrália
materiais orgânicos complexos, como surgiram os compostos que formam os
pela cápsula
contendo amostra organismos vivos. A Hayabusa2 foi lançada em 2014 e, quatro anos mais tarde,
de asteroide alcançou o Ryugu para coletar amostras de sua superfície.

PESQUISA FAPESP 299 | 13


O peso da produção Trajetória projetada
de 40 mil estrelas da
humana Via Láctea nos
próximos 400 mil anos

Em pouco mais de um século, a massa total


de objetos produzidos pela atividade humana se
igualou à massa de todos os seres vivos existentes
no planeta. O grupo coordenado pelo pesquisador
Ron Milo, do Instituto de Ciência Weizmann, em
Israel, calcula que em 2020, com uma margem de
erro de seis anos para mais ou para menos, a massa
total dos objetos gerados pelos seres humanos –
a chamada massa antropogênica, constituída de
máquinas, edifícios, estradas e outros objetos –
tenha alcançado 1,1 trilhão de toneladas, o mesmo 2

valor que somam todos os seres vivos da Terra, de


plantas e animais a organismos microscópicos O céu daqui a 1,6 milhão de anos
(Nature, 9 de dezembro). Em 1900, a massa dos
produtos elaborados pelo homem correspondia Utilizando os novos dados do telescópio espacial Gaia, da Agência Espacial
a apenas 3% da massa de seres vivos, a biomassa Europeia (ESA), astrônomos projetaram como será o movimento aparente
do planeta. De lá para cá, a produção humana no céu de todas as 300 mil estrelas que se encontram à distância de até
cresceu em ritmo acelerado à taxa de 30 bilhões de 326 anos-luz do Sol no próximo 1,6 milhão de anos. Todas as constelações
toneladas por ano, e a massa antropogênica dobrou celestes atuais serão deformadas, resultado das diferentes velocidades
a cada 20 anos. Se continuar aumentando nos com que o Sol e as outras estrelas da Via Láctea giram ao redor do centro
níveis atuais, deve alcançar 3 trilhões de toneladas da galáxia. Divulgados em 3 de dezembro, os novos dados da missão Gaia
em 2040. Estima-se que a massa de seres vivos apresentam o resultado de três anos de observações de mudança na posição
do planeta já tenha sido de 2 trilhões de toneladas. e na velocidade no céu de 1,8 bilhão de estrelas. A terceira leva de dados da
Ela diminuiu à metade em cerca de três milênios missão aumentou a precisão de suas medidas de posição em 50% em relação
em consequência da agricultura e derrubada de à segunda, divulgada em 2018. Lançada em 2013, a missão Gaia deve
florestas – árvores e arbustos são responsáveis por continuar ativa até 2025, com o objetivo principal de medir a distância das
90% da biomassa do planeta. estrelas situadas a até 32.600 anos-luz do Sol com uma acurácia de até 10%.

Asfalto e concreto
compõem a maior
parte da massa de Microagulhas
material produzido
pelo ser humano contra o câncer
Um curativo formado por centenas
de agulhas microscópicas que
se dissolvem no organismo
promete aprimorar o tratamento
do câncer de pele com terapia 3

fotodinâmica, que usa luz para ativar


compostos que destroem as células destruídas, esse número era de
tumorais. As microagulhas permitem 83% nos animais tratados com
injetar ácido aminolevulínico em creme tópico (Journal of Biophotonics,
camadas mais profundas da pele 27 de setembro). “Para tornar
do que o uso de cremes à base do a técnica tão eficiente quanto a
composto. Ativado por um laser, cirurgia, precisamos melhorar
o ácido desencadeia a produção o índice de destruição do tumor”,
de compostos tóxicos para as afirma o físico Vanderlei Bagnato,
células doentes. Testes com animais da Universidade de São Paulo (USP)
de laboratório portadores de em São Carlos, coordenador do
uma forma humana de câncer estudo e do Centro de Pesquisas em
de pele indicaram que as Óptica e Fotônica, um dos Centros
microagulhas aumentaram para de Pesquisa, Inovação e Difusão
1 95% a proporção de células (Cepid) da FAPESP.

14 | JANEIRO DE 2021
Dez pessoas que fizeram
a diferença em 2020
A revista Nature divulgou em dezembro sua
tradicional lista de 10 personalidades que se
destacaram em 2020 na ciência. Tedros Adhanom,
diretor-geral da Organização Mundial da Saúde
(OMS), atuou para manter as nações unidas
e focadas em uma resposta efetiva contra o novo
coronavírus. A epidemiologista chinesa Li Lanjuan
agiu rapidamente ao reconhecer a ameaça da
Covid-19 em Wuhan, na China, articulando-se com Representação
o governo central para desacelerar a propagação tridimensional
do arranjo de
do vírus. O virologista uruguaio Gonzalo Moratorio
escamas da asa
criou um teste diagnóstico para a doença, de mariposas
evitando uma cascata de infecções e mortes em
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES 2 ESA / GAIA / DPAC 3 CEFOP 4 ITU / D.WOLDU 5 NEWZILD / WIKIMEDIA COMMONS 6 SIMON REICHEL, THOMAS NEIL, ZHIYUAN SHEN E MARC HOLDERIED 7 WIKIMEDIA COMMONSINS

seu país. Kathrin Jansen, chefe de pesquisa e


desenvolvimento da farmacêutica norte-americana
Pfizer, liderou a equipe que concebeu uma vacina Asas que absorvem o som
segura e eficaz em tempo recorde. Logo no início
do surto de Covid-19 em Wuhan, o virologista Estruturas microscópicas na escama das asas de duas espécies de
chinês Zhang Yongzhen e sua equipe sequenciaram mariposa – a chinesa Antheraea pernyi e a africana Dactyloceras
o RNA do Sars-CoV-2 e rapidamente divulgaram lucina – são capazes de absorver grande parte das ondas de ultras-
as informações. Anthony Fauci, diretor do Instituto som emitidas por seus principais predadores, os morcegos, cons-
Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos tataram pesquisadores da Universidade de Bristol, no Reino Unido
Estados Unidos, tornou-se a face pública da resposta (PNAS, 8 de dezembro). Em suas caçadas noturnas, os morcegos
do governo norte-americano à Covid-19, fornecendo emitem silvos e guinchos ultrassônicos. Essas ondas batem no
informações confiáveis à população e desafiando corpo das presas e retornam ao ouvido desses mamíferos alados,
as mentiras disseminadas pelo presidente Donald permitindo-lhes localizar o jantar. A equipe liderada pelo biólogo
Trump. A primeira-ministra da Nova Zelândia, acústico Marc Holderied, de Bristol, observou que as escamas das
Jacinda Ardern, recebeu elogios por sua ação rápida asas das mariposas vibram e abafam as ondas ultrassônicas – cada
contra a pandemia, que manteve seu país seguro. escama tem 1 milímetro de comprimento e 200 micrômetros de
A Nature também reconheceu outras três espessura. Combinadas, as dezenas de milhares de escamas ab-
personalidades: a cosmóloga norte-americana sorvem mais ultrassom que a soma de suas partes, abafando uma
Chanda Prescod-Weinstein, que liderou protestos faixa de frequências entre 20 quilo-hertz (kHz) e 160 kHz e crian-
de cientistas contra o racismo no ambiente do uma camuflagem sonora que dificulta a localização das mari-
acadêmico; a sanitarista Adi Utarini, da Indonésia, posas. A nanoestrutura descoberta pode inspirar o desenvolvimen-
por seu trabalho para tentar conter as infecções to de novos materiais redutores de ruídos.
por dengue; e a alemã Verena Mohaupt, chefe de
logística de uma missão no Ártico que manteve 6

cerca de 300 pesquisadores a salvo quando o navio Exemplar de


que os transportava ficou preso no gelo por um ano. Antheraea pernyi

4 5

Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, e Jacinda Ardern,


primeira-ministra da Nova Zelândia 7

PESQUISA FAPESP 299 | 15


NOTAS DA PANDEMIA

As vacinas e os tubarões
A produção dos bilhões de doses de vacinas para imunizar gripe”, contou a Pesquisa FAPESP a bióloga Stephanie Brendl,
a população mundial contra o vírus Sars-CoV-2, causador da Shark Allies. “Como a atual e as possíveis futuras
da Covid-19, poderá levar à pesca de 500 mil tubarões. O pandemias de coronavírus são um problema global, com
alerta é da organização não governamental (ONG) Shark bilhões de pessoas necessitando ser vacinadas ano a ano,
Allies, com sede nos Estados Unidos. Parte das candidatas a quantidade de esqualeno necessária para a produção de
a vacina contra o novo coronavírus emprega um ingrediente vacinas será significativa.” Há mais de duas centenas de
chamado esqualeno, cuja principal fonte é um óleo produzido candidatas a vacina contra o Sars-CoV-2 em desenvolvimento.
no fígado dos tubarões. O composto é usado pela indústria Cerca de 20 usam adjuvantes – cinco recorrem ao esqualeno,
farmacêutica na formulação de adjuvantes, agentes que segundo a Shark Allies. São as candidatas da farmacêutica
potencializam a resposta imunológica gerada pelas vacinas. francesa Sanofi Pasteur; da Universidade de Queensland e
O esqualeno também é encontrado em alguns vegetais, da biofarmacêutica CSL, da Austrália; da companhia chinesa
como azeitona e palma, mas a extração é mais dispendiosa. Clover Biopharmaceuticals; da canadense Medicago; e do
“Os laboratórios farmacêuticos têm tradicionalmente usado laboratório Farmacologicos Veterinarios SAC e da
o esqualeno de tubarões para produzir vacinas contra a Universidade Peruana Cayetana Heredia, ambos no Peru.

Composto extraído
do fígado de tubarões
é usado em cinco
candidatas a vacina
contra o coronavírus

Austrália descarta imunizante


O composto candidato a vacina desenvolvido pela Universidade de
Queensland e pela empresa de biotecnologia CSL, ambas da Austrália,
foi o primeiro dos mais de 200 em teste para uso contra a Covid-19
a ser descartado. Em 11 de dezembro, a CSL comunicou que não seguiria
adiante com os ensaios clínicos de fase 2 e 3, apesar de a formulação
ser segura, não ter causado reações adversas e ter ativado a resposta
imunológica nos participantes dos testes de fase 1. O desenvolvimento
foi cancelado porque algumas das pessoas que receberam o composto
passaram a apresentar resultados falsos positivos em testes para detectar
o HIV. Para aumentar a estabilidade da formulação, os pesquisadores
acrescentaram uma proteína do HIV. Ela não causa a doença, mas
estimula a produção de anticorpos contra o vírus da Aids. Para evitar
problemas de desconfiança, o governo da Austrália cancelou a compra
Pesquisador trabalha no desenvolvimento da vacina da de 51 milhões de doses e a universidade e a CSL interromperam
Universidade de Queensland e da empresa CSL o desenvolvimento da vacina.

16 | JANEIRO DE 2021
3
Butantan desenvolve soro
contra o novo coronavírus
O Instituto Butantan concluiu o desenvolvimento do processo de produção de um
soro contra o Sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19. Mais de 2 mil frascos
estão prontos para o início dos testes de segurança e eficácia em pessoas, informou
a bioquímica Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora de Inovação do instituto.
Resultado de cinco meses de trabalho, o soro é feito a partir de vírus inativado por
radiação aplicado em cavalos. Em resposta ao vírus, os animais produzem anticorpos
do tipo imunoglobulina G (IgG), que são depois extraídos do sangue e purificados.
Segundo Chudzinski-Tavassi, o soro mostrou resultados satisfatórios em testes de
neutralização em células e segurança em camundongos e coelhos. O Butantan
busca agora autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para
os testes de segurança e eficácia em pessoas. Se apresentar a eficácia esperada
na próxima etapa de testes, o soro poderá ser usado para tratar pessoas que
Acesso desigual apresentem os primeiros sintomas da doença, para bloquear o avanço da infecção,
segundo a pesquisadora. “O soro poderá ajudar bastante, já que ainda não temos
Antes mesmo de saírem os resultados de antivirais eficazes contra o vírus causador da Covid-19”, disse Chudzinski-Tavassi.
eficácia dos compostos candidatos a vacina,
tornou-se evidente que, ao menos no 4

próximo ano, não haverá imunizantes para


toda a população do planeta. Além disso,
a distribuição deve ser bastante desigual.
As empresas farmacêuticas com formulações
em fase mais avançada de testes afirmam ter
capacidade de produzir doses suficientes para
imunizar um terço da população mundial. No
entanto, os habitantes dos países mais pobres
possivelmente terão de esperar até 2024
para receber a proteção, segundo análise
apresentada em novembro pelo Centro de
Inovação em Saúde Global da Universidade
Duke, nos Estados Unidos. Coordenado por Equipamento usado
na purificação de
Elina Urli Hodges, o levantamento quantificou
anticorpos extraídos
as doses negociadas por diferentes países do plasma sanguíneo
em acordos bilaterais com empresas e países de cavalos
produtores de imunizantes. Até outubro,
os países mais ricos e alguns países de renda
média haviam contratado a compra de
3,8 bilhões de doses, com opção de adquirir Confirmados os primeiros casos
mais 5 bilhões. O Canadá e os Estados Unidos,
por exemplo, garantiram a aquisição de de reinfecção no Brasil
FOTOS 1 VOVA KRASILNIKOV / PEXELS 2 CSIRO 3 INSTITUTO BUTANTAN 4 PFIZER

doses suficientes para vacinar várias vezes


toda a sua população, enquanto apenas Em 9 de dezembro, foi confirmado pelas autoridades de saúde brasileiras o primeiro
250 milhões de doses estavam destinadas caso comprovado de reinfecção no país pelo vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19.
ao Covax, consórcio internacional que Uma médica de 37 anos de idade, moradora do Rio Grande do Norte, contraiu o vírus
pretende promover o acesso igualitário aos duas vezes em um intervalo de 116 dias. Realizados pela Fundação Instituto Oswaldo
imunizantes. “Um esforço ambicioso para Cruz (Fiocruz), exames de PCR, que detectam a infecção ativa, deram resultado
criar um sistema global de equidade de positivo em duas ocasiões: a primeira em junho e a segunda em outubro – entre uma
vacinas está sendo minado à medida que um e outra, houve um resultado negativo. No dia 16, o governo paulista confirmou um
punhado de países, alguns supostamente segundo caso: o de uma mulher de 41 anos, moradora de Fernandópolis, no interior
comprometidos com a igualdade, tenta do estado. Ela teve Covid-19 em junho e, depois, em novembro, segundo análises do
garantir o máximo possível de doses”, disse Instituto Adolfo Lutz. Os casos de reinfecção ainda parecem ser raros, embora
Urli Hodges em um comunicado à imprensa. possam ocorrer com o novo coronavírus (ver Pesquisa FAPESP nº 297). O primeiro
Segundo a análise, deve-se levar de três no mundo foi confirmado em 15 de agosto em Hong Kong. No Brasil, o primeiro caso
a quatro anos para produzir doses suficientes suspeito ocorreu em junho, mas não foi possível confirmar. Até meados de outubro,
para imunizar a população mundial. havia quase uma centena de casos em investigação no país.

PESQUISA FAPESP 299 | 17


E
COVID-19 m 14 de dezembro, o diretor do Insti-
tuto Butantan, Dimas Covas, anunciou
em uma entrevista coletiva o início da
análise primária de dados da terceira
fase dos testes clínicos de avaliação da
eficácia da candidata a vacina Corona-

ESTRATÉGIA
Vac, produzida pela empresa chinesa
Sinovac. O número de pessoas infec-
tadas com o vírus havia chegado a 151, mais do
que o mínimo estatisticamente requerido para

PARA
avaliar a capacidade da formulação em gerar
anticorpos contra a Covid-19.
O objetivo do início da análise dos resulta-
dos, antes de concluída a fase 3, era acelerar o
pedido de registro emergencial e definitivo da

APROVAÇÃO
vacina na Agência Nacional de Vigilância Sa-
nitária (Anvisa), etapa indispensável para sua
aplicação em larga escala. Em paralelo, a Sino-
vac enviaria os dados, com o mesmo objetivo, à
agência chinesa. “Confiamos na qualidade dos
Em meio a incertezas, São Paulo anuncia dados e na interlocução com a Anvisa, acredita-
mos na aprovação, mas se necessário usaremos
o plano estadual de vacinação o registro na China para solicitar o reconheci-
mento também no Brasil”, comentou Covas em
Carlos Fioravanti outra coletiva, no dia 21.

A CoronaVac começou
a ser envasada
em dezembro pelo
Instituto Butantan

18 | JANEIRO DE 2021
Em 23 de dezembro, em uma coletiva acom- 5.200 postos de vacinação dos 545 municípios
panhada pelo YouTube por 4.400 pessoas, ele paulistas, com a possibilidade de ampliação para
adiou a apresentação dos dados sobre a eficácia 10 mil pontos, incluindo terminais de ônibus e
da CoronaVac nos testes clínicos fase 3, com escolas”, disse a biomédica Regiane de Paula, da
12,4 mil participantes, inicialmente previstos Coordenadoria de Controle de Doenças (CCD)
para serem divulgados em outubro e, depois, da Secretaria de Estado da Saúde de São Pau-
em meados de dezembro. Declarou: "Atingimos lo (SES-SP). “O custo inicial da operação está
o limiar da eficácia que permite a solicitação estimado em R$ 100 milhões”, acrescentou.
do registro". Segundo ele, a Sinovac pediu para A campanha de vacinação deverá mobilizar
adiar a divulgação dos resultados por 15 dias pa- 54 mil profissionais da saúde e 25 mil agentes
ra que pudesse examinar os dados e unificar os de segurança e prevê o atendimento de qual-
resultados dos testes feitos em vários países. A quer pessoa que estiver no estado de São Paulo.
CoronaVac é uma das três vacinas experimen- “Não fecharemos as fronteiras para morado-
tais que o governo chinês adotou em um pro- res de outros estados”, afirmou Jean Gorinch-
grama de uso emergencial e está aplicando em teyn, secretário estadual da Saúde, na coletiva
cerca de 1 milhão de pessoas. Além do Brasil, em que anunciou o plano de vacinação em São
está sendo testada na Indonésia e na Turquia. Paulo. O plano prevê também o fornecimento
Havia uma grande expectativa pelos resul- de até 4 milhões de doses para outros estados
tados dos testes da fase 3 porque a CoronaVac que solicitarem.
poderia ser distribuída mais facilmente que as Em dezembro, pesquisadores do Observatório
vacinas da Pfizer e da Moderna, que exigem re- Covid-19, que reúne especialistas de universi-
frigeração, respectivamente, a -70 graus Celsius dades e centros de pesquisa do estado de São
(ºC) e -20 ºC. Desse modo, a vacina da Sinovac Paulo, lançaram o documento “Ainda não há
seria uma opção mais viável para países de bai- um plano nacional para vacinação contra Co-
xa renda por não exigir uma rede de freezers vid-19”, qualificando de “esboço rudimentar”
especiais (ver reportagem na página 20). o conjunto de medidas até então anunciadas
Em 8 de dezembro, a Sinovac já havia co- pelo ministério, prevendo o início da vacina-
municado que precisaria de mais tempo para ção para março.

N
determinar a eficácia da CoronaVac, refutando
os resultados anunciados por seu parceiro na o sábado 12, o advogado-geral da
Indonésia, a empresa estatal Bio Farma, de que União, José Levi, representando o
a vacina teria mostrado 97% de soroconversão Ministério da Saúde (MS), entregou
(capacidade de gerar anticorpos) em testes clí- um plano nacional de imunização
nicos de fase 3 em andamento, de acordo com a contra a Covid-19 ao ministro do
revista Fortune. A informação não seria válida Supremo Tribunal Federal (STF)
porque a Bio Farma obteve esse resultado com Ricardo Lewandovski, relator das
base em grupo pequeno de participantes, 1.600 ações judiciais que contestam as
(a Pfizer chegou aos 94% de eficácia com base medidas do governo federal para combater a
em dados de 43 mil participantes e a Moderna, epidemia. Nos dias seguintes, o plano foi criti-
de 95%, com 30 mil). Um porta-voz da empresa cado, entre outras razões, por não apresentar
indonésia disse que os resultados completos da uma data para iniciar a vacinação. Especialistas
terceira etapa de testes naquele país devem ser de universidades que haviam participado de
anunciados em janeiro de 2021. reuniões no ministério reclamaram que o nome
A despeito das incertezas, o estado de São deles constava no documento sem sua anuência.
Paulo anunciou no início de dezembro um plano O Ministério da Saúde prevê a compra de 150
para iniciar a vacinação com a CoronaVac em 25 milhões de doses de vacinas, produzidas pela
de janeiro, se aprovada pela Anvisa. A primeira AstraZeneca, Pfizer e Sinovac. Em novembro
fase abrangeria 9 milhões de pessoas, come- e dezembro, chegaram três carregamentos de
çando com funcionários da saúde, indígenas, CoronaVac – outros três estavam previstos para
quilombolas e pessoas com 78 anos ou mais, até chegar até 31 de dezembro –, totalizando 10,8
chegar às com 60 ou mais. Os integrantes desse milhões de doses, que começaram a ser envasa-
primeiro grupo deveriam, segundo o governo das no instituto paulista. Segundo Dimas Covas,
estadual, receber as duas doses da vacina até o estoque deverá atingir 46 milhões de doses até
o final de março. meados de janeiro e o governo paulista pretende
Um dos objetivos do plano paulista é evitar oferecer ao ministério a possibilidade de vacinar
NELSON ALMEIDA / AFP

a sobreposição com a campanha de vacinação também os moradores de outras partes do país.


contra a gripe, prevista para ser iniciada tam- Alguns estados e prefeituras, como a de Belo
bém em março, mesmo com o adiamento da di- Horizonte, estão fechando acordos para obter
vulgação dos dados. “A vacinação será feita nos a vacina diretamente com o instituto paulista. n

PESQUISA FAPESP 299 | 19


COVID-19

OS
DESAFIOS
DA
DISTRIBUIÇÃO
20 | JANEIRO DE 2021
Governos, farmacêuticas e empresas de logística
precisam superar obstáculos para iniciar
a campanha de imunização contra o Sars-CoV-2

Tiago Jokura

A
pandemia do novo coronavírus acome- da chinesa Sinovac, que tem um acordo de coo-
teu ao longo de 2020 mais de 80 mi- peração com o Instituto Butantan, de São Paulo.
lhões de pessoas no mundo e matou As vacinas da AstraZeneca, Pfizer e Sinovac
cerca de 1,8 milhão. Este ano, a huma- eram, até a conclusão desta reportagem, em 23
nidade espera contar com as vacinas de dezembro, as opções de compra do Ministério
para conter o vírus e a Covid-19, doença da Saúde. Um acordo já havia sido firmado com
causada por ele. Para isso, os imunizan- a AstraZeneca, contemplando a entrega de 100,5
tes precisam ser distribuídos para um milhões de doses no primeiro semestre de 2021.
contingente de pelo menos 5 bilhões de pessoas O entendimento compreendia a transferência de
ao redor do planeta, numa intervenção logística tecnologia para a Fiocruz produzir o imunizante
sem precedentes. Essa operação já tem tamanho no Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos
e duração estimados: 10 bilhões de doses devem (Bio-Manguinhos). As negociações com a Pfizer e a
ser aplicadas até o fim de 2022, segundo o estudo Sinovac, em andamento, previam a aquisição de 70
“Delivering pandemic resilience”, feito pela em- milhões e 46 milhões de formulações dos dois fabri-
presa de logística alemã DHL em parceria com a cantes, respectivamente – o lote da vacina chinesa
consultoria norte-americana McKinsey. poderia ser ampliado em 100 milhões de unidades.
Esse é o esforço necessário para imunizar 65% O governo federal também deverá receber 42,5
da população global, de 7,8 bilhões de indivíduos, milhões de vacinas no âmbito do programa Covax
considerando que a maioria das candidatas a va- Facility, da Organização Mundial da Saúde (OMS),
cinas já aprovadas ou em fase final de aprovação que prevê a aquisição de imunizantes por um gru-
preveem duas doses por pessoa. Com esse percen- po de 184 países a fim de garantir doses para aque-
tual de pessoas imunizadas, atinge-se a imunidade les com menor poder de compra. Tudo somado, o
coletiva, situação em que o espalhamento do vírus é Ministério da Saúde esperava receber mais de 300
contido por haver pouca gente suscetível a contraí- milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 em
-lo. Para alcançar a meta, a DHL projeta que serão 2021. O órgão, contudo, ainda não havia definido
necessários 15 mil voos e 15 milhões de traslados um cronograma de vacinação nem o início da cam-
com caixas refrigeradas contendo imunizantes. panha no país.
O desafio de promover uma campanha de vacina- Em São Paulo, o Instituto Butantan começou em
ção em massa em âmbito global passa por produzir, dezembro o envase dos primeiros lotes da Coro-
transportar, armazenar e aplicar os imunizantes naVac, com matéria-prima recebida da China. A
com velocidade, segurança e capilaridade. Tudo isso intenção do governo paulista é iniciar a vacinação
elencando grupos prioritários que devem receber no estado em 25 de janeiro. Até o fechamento desta
as primeiras doses, evitando favorecer indivíduos edição, os resultados da fase 3 de ensaios clínicos
e países mais ricos e minimizando o desperdício. da CoronaVac ainda não haviam sido divulgados, e
Dentre as mais de 200 candidatas a vacinas em a vacina ainda estava pendente de registro junto à
desenvolvimento, cinco encontravam-se em fase Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa
avançada na segunda metade de dezembro. São (ver reportagem na página 18).
os imunizantes BNT162b2, da farmacêutica norte- Governos de vários países se prepararam com
POOL / EQUIPE / GETTY IMAGES

-americana Pfizer e da empresa alemã BioNTech; antecedência para a vacinação, firmando acordos
mRNA-1273, da também norte-americana Moderna; de intenção de compra com as empresas farma-
Sputnik V, do laboratório russo Gamaleya; AZD1222, cêuticas ainda no início de desenvolvimento das
Vacina da Pfizer
sendo preparada
criada pela britânica AstraZeneca e pela Univer- vacinas, no primeiro semestre de 2020. Os Estados
para distribuição sidade de Oxford, que tem parceria no Brasil da Unidos, por exemplo, garantiram 100 milhões de
nos Estados Unidos Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); e CoronaVac, doses do imunizante da Moderna e outros 100 mi-

PESQUISA FAPESP 299 | 21


lhões do produto da Pfizer-BioNTech. Tão logo a minância de clima tropical, quente e úmido”, diz.
vacina da Pfizer foi aprovada no país em meados “Somos o país com maior desafio em termos téc-
de dezembro, teve início a imunização. O Reino nicos para manter temperaturas baixas ao longo
Unido contratou antecipadamente 40 milhões de de uma cadeia tão extensa.” Gandelman diz que
doses e também começou a vacinar sua população o país tem know-how e uma indústria capaz de
no fim de 2020, depois que a vacina obteve regis- oferecer as adaptações necessárias para viabilizar
tro das autoridades locais. A Rússia foi outro país o armazenamento e a distribuição de vacinas na
que iniciou a imunização na primeira semana de faixa dos ultracongelados, como requer a vaci-
dezembro – ainda que os testes de fase 3 de sua na da Pfizer. “Podemos aumentar a potência de
vacina, a Sputnik V, não tivessem sido concluídos. resfriamento ou melhorar a capacidade de isola-

D
mento térmico em centros de armazenamento e
o grupo de vacinas que inaugura o arse- nos meios de transporte.” Não se sabe, entretanto,
nal da ciência contra a Covid-19, a mais em quanto tempo isso seria possível ser feito em
complexa de distribuir é a da Pfizer, um país do tamanho do Brasil.
que precisa ser transportada e armaze- Para facilitar o uso das vacinas da Pfizer no
nada a -70 graus Celsius (ºC). A maior país, a Academia Brasileira de Ciências (ABC)
parte da estrutura logística brasileira, sugeriu a utilização de ultracongeladores dos
formada por galpões de armazenamen- laboratórios de pesquisa das universidades bra-
to, caminhões refrigerados e salas de sileiras. “Embora esses equipamentos estejam
vacinação contendo refrigeradores e freezers, em uso, sempre é possível liberar algum espa-
não está adequada para receber o imunizante. ço”, diz a física Márcia Bernardes Barbosa, dire-
Os equipamentos da chamada rede de frio para a tora da ABC e professora do Instituto de Física
distribuição de vacinas operam na faixa de 2 °C a da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
8 °C (para produtos que precisam ser conservados (IF-UFRGS).
sob refrigeração) ou entre -15 °C e -25 °C (para O grupo de pesquisa de Barbosa está exploran-
aqueles que devem ser mantidos congelados). do uma alternativa para o transporte do imuni-
Na tentativa de antecipar a dificuldade de adap- zante da Pfizer. “Hoje se usa gelo-seco, mas se ti-
tação da rede de frio de vários países, a Pfizer vermos um grande número de vacinas a produção
desenvolveu uma embalagem capaz de armaze- nacional de gelo-seco não dará conta. Estamos
nar sua vacina a -70 °C por até 30 dias, em meio explorando a possiblidade de um equipamento
a gelo-seco. Segundo a empresa, a BNT162b2 para transporte à base de nitrogênio líquido. Es-
também pode ser acondicionada por até cinco peramos ter um resultado positivo até o fim de
dias em refrigeradores comuns, em temperaturas janeiro”, afirma a pesquisadora.
entre 2 °C e 8 °C, sem prejuízo de sua efetividade. A rede de frio brasileira, de acordo com do-
Especialistas afirmam que é possível adaptar cumento do Programa Nacional de Imuniza-
parte da rede de frio brasileira para viabilizar o ções, está preparada para receber qualquer outra
armazenamento e a distribuição do imunizante. das vacinas em fase final de testes, incluindo a
O Brasil tem dezenas de milhares de Unidades mRNA-1273, da Moderna, cuja temperatura ideal
Básicas de Saúde (UBS) com salas de imuniza- de manejo está na casa dos -20 °C – e que pode
ção, segundo informa o engenheiro mecânico permanecer em resfriamento comum por 30 dias.
Ariel Gandelman, especialista em refrigeração A maior parte das vacinas que constam do ca-
e representante do Conselho Nacional de Cli- lendário nacional, como as contra influenza, tu-
Sputnik V: imunizante
matização e Refrigeração (CNCR). berculose (BCG) e difteria, coqueluche e tétano
russo já está sendo “As salas de vacinação estão espalhadas por um (DTP), deve ser mantida em temperatura de re-
aplicado em Moscou território de dimensões continentais com predo- frigeração, entre 2 °C e 8 °C. Já as vacinas para
febre amarela e paralisia infantil – a famosa go-
1 tinha – precisam de armazenagem e transporte
entre -15 °C e -25 °C.
Além das vacinas em si, as autoridades de saú-
de também precisam prover seringas e agulhas,
essenciais para a imunização. O Ministério da
Saúde lançou em dezembro edital para a aquisi-
ção de 330 milhões de kits, com entrega previs-
ta até o fim de 2021. Outros 40 milhões deverão
ser enviados até março ao país pela Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da OMS
para as Américas. O governo paulista também
realizou pregões com o objetivo de comprar 100
milhões de seringas e agulhas.

22 | JANEIRO DE 2021
Outro desafio importante a ser superado é a
identificação dos vacinados. Saber quem tomou
o imunizante importa tanto para garantir que as
duas doses foram aplicadas quanto para medir
a cobertura vacinal e a efetividade da vacina.
A epidemiologista Carolina Coutinho, pesqui-
sadora em estágio de pós-doutorado na Escola
de Administração de Empresas de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), destaca
que o Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC),
do sistema e-SUS Atenção Primária à Saúde (e-
-SUS APS) – que contém todas as informações
clínicas do paciente –, deveria ser utilizado para
o cadastramento e o acompanhamento dos par- 2

ticipantes da campanha de vacinação nos muni-


cípios que já implantaram o PEC. será um problema, pois a população de um mu- Funcionários do
Segundo Coutinho, embora o Brasil tenha ex- nícipio poderá buscar a vacina em outro no qual Instituto Serum, da Índia,
inspecionam frascos
pertise e infraestrutura necessárias para receber não reside, dificultando tanto a operacionalização contendo a vacina
e aplicar vacinas contra o Sars-CoV-2, os desafios como a avaliação da efetividade da campanha. É do laboratório britânico
logísticos são potencializados por dificuldades fundamental que o Ministério da Saúde assuma AstraZeneca
no planejamento e na comunicação do que está a liderança e coordene a estratégia nacional.”

T
sendo preparado para quando as vacinas che-
garem ao país. ão importante quanto a articulação entre
“Na década de 1980, nas campanhas contra o governo federal e os estados é a co-
a poliomielite, o SUS [Sistema Único de Saúde] municação entre essas autoridades e a
conseguia vacinar 15 milhões de crianças em um população, que, como ponta da cadeia
dia”, lembra a epidemiologista Carla Domingues, logística, é peça-chave para o sucesso ou
que coordenou o Programa Nacional de Imuniza- não da vacinação. “A comunicação é um
ções (PNI), entre 2011 e 2019. O governo já anun- grande desafio. Países de renda média e
ciou que não terá como vacinar toda a população baixa não costumam ter problemas de
brasileira em 2021. O PNI atende 212 milhões de confiança ou de hesitação sobre vacinas e, por
pessoas e é considerado um dos maiores progra- isso, apresentam cobertura vacinal alta, entre
mas de vacinação do mundo. 95% e 98%”, declara Elize Massard da Fonseca,
FOTOS 1 CENTRO NACIONAL GAMALEYA / FUNDO DE INVESTIMENTO DIRETO RUSSO 2 FRANCIS MASCARENHAS / REUTERS / FOTOARENA

Pesquisa FAPESP procurou o Ministério da Saú- especialista em saúde pública e professora da


de para saber detalhes da campanha de vacinação, FGV. “Mas a desinformação, transmitida muitas
mas não obteve retorno. A indefinição de uma es- vezes por agentes políticos, cria confusão. Tenho
tratégia nacional de vacinação, assim como a falta escutado, por exemplo, pessoas falando que não
de assertividade na tomada de decisões, segundo vão tomar a ‘vacina chinesa’, o que é preocupante.”
especialistas, comprometem o preparo logístico. Fonseca defende que a comunicação deve tran-
“Se o Brasil quiser vacinar o maior número de pes- quilizar a população sobre a segurança das vaci-
soas em curto prazo de tempo, terá que comprar nas. “É importante deixar claro que a Anvisa não
vacinas de mais de um fabricante. Isso embute vai aprovar um produto que não seja seguro”,
outro desafio. Fazer campanhas com diferentes afirma. Convencer os brasileiros a comparecer
imunizantes, que têm processos de armazenamen- aos postos de vacinação é outro desafio.
to e de aplicação distintos, vai exigir muito mais A informação também é peça importante para
da rede pública de saúde”, ressalta Domingues. o funcionamento da cadeia logística, como expli-
Uma eventual demora do Ministério da Saúde ca Prashant Yadav, especialista em logística de
em dar início à vacinação poderá criar uma situa- serviços de saúde da Harvard Medical School,
ção em que alguns estados, como São Paulo, co- dos Estados Unidos. “O fluxo da informação é
mecem a imunizar suas populações antes do go- um ponto crítico para gerenciar a distribuição
verno federal, criando um cenário inédito no país. da vacina. Dados sobre a localização dos imuni-
“A população está acostumada com o Ministério zantes – onde foram entregues, quem os devolveu
da Saúde adquirindo as vacinas e distribuindo-as etc. – precisam ser coletados regularmente a fim
nacionalmente. Pode ser a primeira vez que os es- de ajustar as entregas à demanda”, disse Yadav
tados farão a compra, com recursos próprios – o durante webinar organizado pela FAPESP, em
que está, inclusive, contemplado na normativa do dezembro. “Há chances de várias coisas darem
PNI”, pondera Domingues. “No entanto, se não errado e não conseguirmos atender aos grupos
houver uma ampla articulação entre os governos prioritários se não tivermos boas informações
estaduais e o Ministério da Saúde, essa estratégia sobre cada passo do processo.” n

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COVID-19

A VEZ DAS
VACINAS GÊNICAS
Os imunizantes da BioNTech/Pfizer e da Moderna
resultam de investimentos, feitos há anos, na tecnologia
de RNA mensageiro para criar novos produtos

Eduardo Geraque

A
expressão de alívio dos moradores do prever o impacto das vacinas no controle da pan-
Reino Unido ao receberem a primeira demia, a estratégia parece ter sido bem-sucedida.
dose de uma vacina contra o novo co- Agora, essas vacinas, e outras que estão chegando,
ronavírus no início de dezembro não é podem ser decisivas para ajudar a controlar uma
fruto apenas de uma corrida acelerada das maiores pandemias da história, que já atingiu
por uma forma de barrar o avanço da aproximadamente 70 milhões de pessoas e ceifou
pandemia que marcou 2020. Baseados a vida de 1,6 milhão de habitantes da Terra.
em uma tecnologia que se vale da ação Em seus primeiros cinco anos, a BioNTech –
de moléculas de RNA mensageiro sintetizadas em que foi fundada por Ugur Sahin, hoje com 55 anos,
laboratório para estimular uma resposta imunoló- e Ozlem Türeci, de 53 – privilegiou a produção
gica específica contra o vírus Sars-CoV-2, os dois de conhecimento científico. Nenhum produto foi
imunizantes com melhores resultados nos testes lançado no mercado, porém cerca de 150 artigos
em seres humanos, ambos com cerca de 95% de científicos foram publicados. A área prioritária
eficácia, inauguraram a era das chamadas vacinas dos esforços iniciais de pesquisa da empresa era o
gênicas. São produtos que se beneficiaram de anos desenvolvimento de uma medicina personalizada,
de trabalho científico, com acertos e erros, e de in- ancorada em tratamentos de base genética, contra
vestimentos em duas startups nem tão recentes da o câncer. Em 2013, o foco foi ampliado e outras
área de biotecnologia: a alemã BioNTech, fundada doenças entraram no planejamento estratégico
em 2008 por um casal de médicos de ascendência da companhia. A empresa da dupla de pesquisa-
turca, que se associou à gigante e centenária Pfizer, dores também passou a investir em plataformas
dos Estados Unidos, em sua vacina contra o Sars- biotecnológicas lastreadas no RNA mensageiro.
-CoV-2; e a norte-americana Moderna, criada em Desde 2018, a empresa alemã tem uma parceria
2010 em Cambridge, cidade do estado de Massa- com a Pfizer. A cooperação original visava criar
chusetts vizinha a Boston. em conjunto uma vacina contra a gripe baseada
Antes da eclosão dos primeiros casos de Covid-19, na tecnologia do RNA mensageiro. Com a eclo-
essas pequenas empresas ainda não tinham lançado são da pandemia, os esforços foram rapidamente
nenhum produto no mercado, mas já trabalhavam redirecionados para o desenvolvimento de um
com o emprego de RNA mensageiro em pesquisas imunizante contra a Covid-19. “A BioNTech tem
JACOB KING – POOL / GETTY IMAGES

para a criação de vacinas contra outras doenças. sido uma empresa deficitária desde nosso início,
Margaret Keenan, Com a pandemia, elas souberam redirecionar rapi- 12 anos atrás, e investimos mais de US$ 1 bilhão
de 90 anos, foi damente esses esforços e redobraram suas apostas para desenvolver nossa plataforma de tecnologia
a primeira pessoa
a receber a vacina
na tecnologia, dessa vez voltada para a busca de um de RNA mensageiro”, disse Ryan Richardson, chefe
da BioNTech/Pfizer imunizante eficaz contra a infecção causada pelo de estratégia da BioNTech, em uma conferência do
no Reino Unido novo coronavírus. Embora ainda seja cedo para jornal britânico Financial Times realizada em 2020.

PESQUISA FAPESP 299 | 25


A empresa alemã é pequena e conta atualmente tistas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças
com 1.300 funcionários. Até recentemente, era Infecciosas (Niaid), dos Estados Unidos. Com
relativamente desconhecida. Sua parceira no cerca de 800 funcionários, a startup de Massa-
desenvolvimento da vacina contra a Covid-19, chusetts, que hoje tem nove vacinas em desenvol-
a Pfizer, é responsável por conduzir os testes vimento contra várias doenças, conseguiu, ainda
globais e pela produção e distribuição em larga em março, começar primeiro do que a concorrente
escala do imunizante. O sucesso da vacina criada alemã os testes de fase 1, em humanos, de candi-
pela BioNTech, cuja sede fica na cidade de Mainz, data a imunizante contra o coronavírus. Na fase
às margens do rio Reno, pode ser ilustrado por 3, os testes também mostraram uma eficiência de
um número. Entre outubro de 2019, data em que 95%, similar à do produto da BioNTech/Pfizer.
as ações da companhia germânica entraram na “Tanto a Moderna quanto a BioNTech se va-
bolsa Nasdaq de Nova York, e outubro de 2020, lem de descobertas que foram feitas na estabi-
seus papéis subiram quase 260%. A startup está lização do RNA mensageiro e na diminuição da
avaliada hoje em US$ 3,4 bilhões. inflamação que ele causa quando é injetado em

A
seres humanos”, afirma o imunologista Jorge Ka-
ntes da BioNTech, a dupla Sahin e lil, da Faculdade de Medicina da Universidade
Türeci – ambos filhos de imigrantes de São Paulo (FM-USP). De acordo com Kalil,
turcos e que se conheceram na Uni- quando a Covid-19 surgiu, essas duas empresas
versidade do Sarre – já havia tido su- foram ágeis para usar a metodologia com que
cesso com outra companhia do setor já trabalhavam há algum tempo para produzir
biotecnológico, a Ganymed, criada candidatos a imunizantes contra o novo coro-
em 2001, ano em que se casaram. Se- navírus. “Elas juntaram conhecimentos, tiveram
gundo a imprensa alemã, logo após a astúcia e foram beneficiadas pela sorte. Viram
cerimônia de casamento, Sahin e Türeci voltaram que a metodologia funcionava e partiram logo
ao laboratório para trabalhar. O objetivo da com- para os testes clínicos”, afirma o imunologista.
panhia, cujo nome vem de uma expressão turca Outro fator também explica o sucesso das va-
que pode ser traduzida como “ganhos econômicos cinas de RNA mensageiro até agora, segundo o
por meio de trabalho duro”, era ser pioneira no pesquisador da USP: “Elas são mais rápidas de
desenvolvimento de terapias com anticorpos mo- serem feitas do que as produzidas pelos métodos
noclonais contra o câncer. Em 2016, a Ganymed, tradicionais. Isso porque o trecho relevante do
que a dupla de pesquisadores administrou por oito RNA viral é obtido por síntese química”. Não é
anos em paralelo com a BioNTech, foi vendida preciso manusear o vírus da doença, mas ape-
para a farmacêutica japonesa Astellas por US$ 1,4 nas produzir o trecho de RNA que expressa a
bilhão. A empresa era uma spin-off da Universi- proteína que desencadeia a resposta do sistema
dade de Mainz, na Alemanha, e da Universidade imunológico. No caso do Sars-CoV-2, a proteína
de Zurique, na Suíça. Os irmãos gêmeos Thomas e spike, que faz com que o vírus consiga penetrar
Andreas Strüngmann, conhecidos investidores do nas células do hospedeiro.
setor de biotecnologia, foram acionistas importan- Até o início do século, não se conseguia fazer
tes da Ganymed e posteriormente da BioNTech. com que o RNA mensageiro produzisse uma de-
Um caminho tecnológico similar foi trilhado terminada proteína quando era injetado em um
pela Moderna, que trabalha no desenvolvimento organismo vivo. A molécula com as instruções
da vacina contra a Covid-19 em parceria com cien- para a fabricação da proteína era instável e fácil

Sede da startup
Moderna, em
Cambridge, no estado
norte-americano
de Massachusetts:
vacina gênica da
empresa obteve eficácia
de cerca de 95%

26 | JANEIRO DE 2021
2

O casal de médicos de ser destruída pelas células de defesa animal.


Ugur Sahin e Ozlem Em 2005, uma série de artigos científicos come-
Türeci, fundadores
da BioNTech (prédio
çou a difundir conhecimento adquirido sobre
da empresa à dir.), mecanismos que deixavam a estrutura do RNA
que se associou à Pfizer mais estável quando a molécula era injetada na
e desenvolveu a musculatura de animais durante os testes de
primeira vacina contra
Covid-19 aprovada por
laboratório. O RNA mensageiro podia ser em-
3
autoridades sanitárias pacotado em pequenas partículas e, assim, não
era degradado na corrente sanguínea. Dentro do não foram lançados no mercado pela Moderna.
corpo humano, o fragmento de material gené- Nos últimos anos, uma política agressiva dos
tico sintético, agora estabilizado, faz com que o executivos da empresa atraiu milhões de dóla-
próprio organismo sintetize a proteína por ele res para os projetos da Moderna. Em 2020, por
codificada. Como essa proteína é idêntica à do meio da Operação Warp Speed, o governo norte-
vírus responsável pela infecção (no caso, o Sars- -americano investiu cerca de US$ 2,5 bilhões na
-CoV-2), o organismo deflagra a produção de vacina da startup contra a Covid-19.
anticorpos contra essa proteína. Assim, quan- “De fato, apesar de não conhecer em detalhes
do o coronavírus de fato invadir o organismo a BioNTech e a Moderna, podemos dizer que eles
vacinado, a pessoa terá um exército de células aproveitaram um determinado momento em que
de prontidão para enfrentá-lo. as coisas acabaram ocorrendo”, afirma o infecto-

N
logista Esper Kallás, da FM-USP, que, no Brasil,
a época, os resultados positivos com participa dos testes de uma vacina contra a den-
relação à estabilização do RNA men- gue desenvolvida pelo Instituto Butantan. “Para
FOTOS 1 JOSEPH PREZIOSO / AFP 2 HENNING KAISER / DPA / DPA PICTURE-ALLIANCE VIA AFP 3 BIONTECH

sageiro chamaram a atenção de alguns mim, foi mais do que simplesmente sorte. Há um
pesquisadores. Entre eles o casal da bom tempo essas empresas vinham trabalhando
futura BioNTech e o biólogo canaden- na plataforma de RNA, que, até recentemente,
se Derrick Rossi, que, em 2010, seria era apenas uma promessa.”
um dos criadores da Moderna (ele se Ao redor do mundo, existem vários outros gru-
desligou da empresa, por desenten- pos de pesquisa e startups voltados para o en-
dimentos com outros sócios, em 2014). Desde frentamento do coronavírus. Até agora, os dois
o início, o foco da startup norte-americana era imunizantes mais promissores, as vacinas da
a tecnologia do RNA mensageiro. Dois anos de- Moderna e da BioNTech/Pfizer, são mais uma
pois de ser estabelecida, a empresa recebeu um prova de que o investimento contínuo e prolon-
investimento de US$ 40 milhões de fundos de gado rende dividendos, ainda que, claro, o pro-
capitais voltados para a área de biotecnologia. cesso de maturação dos projetos possa ser longo
A gigante sueco-britânica AstraZeneca – que, no e estar sujeito a fracassos. “A própria vacina da
desenvolvimento de candidatas a vacina contra AstraZeneca/Oxford, que também ficou pronta
a Covid-19, optou por outra tecnologia (baseada rapidamente, usa como vetor um adenovírus de
no uso de adenovírus) e se aliou à Universidade chimpanzé. Essa tecnologia já estava sendo pes-
de Oxford, no Reino Unido – investiu US$ 240 quisada em vacinas contra outras doenças, como
milhões em 2012 na Moderna para a criação de zika e ebola”, afirma Kalil, da USP. Mas, assim
produtos biotecnológicos à base de RNA men- como no caso das pesquisas com o RNA mensa-
sageiro. Até agora, no entanto, esses produtos geiro, a pandemia mudou os planos de todos. n

PESQUISA FAPESP 299 | 27


COVID-19

O RISCO
DAS
MUTAÇÕES
Novas linhagens do Sars-Cov-2, como a identificada
no Reino Unido em dezembro, podem alterar
transmissibilidade e virulência do patógeno

Frances Jones

A
poucos dias do Natal, enquanto as notí- original, identificada em Wuhan, na China, sendo
cias sobre o novo coronavírus no mun- nove delas na proteína da espícula (spike), usada
do giravam em torno das recém-apro- pelo vírus para entrar nas células humanas. “Uma
vadas vacinas contra a Covid-19, uma das mutações é uma deleção [perda de um pedaço
nova informação sobre o Sars-CoV-2 do gene] na posição 69-70 da proteína spike”, afir-
causou inquietação global. Cientistas mou Faria. “No laboratório, essa mutação parece
e autoridades britânicas informaram à conferir aumento na carga viral, que por sua vez
Organização Mundial da Saúde (OMS) pode estar associado a maior rapidez da transmis-
que uma nova variante do vírus parecia estar asso- são.” Quanto maior a carga viral em uma pessoa,
ciada a um rápido aumento no número de casos da mais facilmente ela exalará o vírus, aumentando a
doença no sudeste da Inglaterra. A nova cepa, com sua capacidade de passar o patógeno para frente.
múltiplas mutações em seu genoma, estaria ligada, Segundo o virologista Fernando Spilki, da Uni-
conforme análises preliminares, a um aumento versidade Feevale, em Novo Hamburgo (RS), e
potencial de 70% na transmissibilidade do Sars- presidente da Sociedade Brasileira de Virolo-
-CoV-2, informou um relatório do Centro Europeu gia, nenhum dos exemplares brasileiros do vírus
de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC). Sars-CoV-2 que tiveram o genoma totalmente se-
“Dados preliminares sugerem que essa va- quenciado pertence à linhagem B.1.1.7. “Estamos
riante é mais infecciosa, mas ainda são necessá- buscando ativamente”, afirmou, referindo-se a
rios outros estudos para confirmar se ela real- uma rede de virologistas criada para monitorar a
mente é transmitida mais rapidamente que as evolução do novo coronavírus. Uma das mutações
outras”, disse a Pesquisa FAPESP o virologista da nova variante, identificada como N501Y, esta-
computacional português Nuno Faria, professor va presente em uma sequência apresentada por
de evolução viral da Faculdade de Medicina do pesquisadores brasileiros em abril, mas depois
Imperial College London e professor associado disso não foi mais encontrada por aqui.
do Departamento de Zoologia da Universidade A VUI 202012/01 não é a primeira mudança
de Oxford, no Reino Unido. Faria mantém um do Sars-CoV-2 que provoca preocupação entre
projeto conjunto com a médica Ester Sabino, pesquisadores e autoridades. No início de no-
do Departamento de Moléstias Infecciosas da vembro, o governo da Dinamarca, maior produ-
Faculdade de Medicina da Universidade de São tora mundial de peles de vison – um mamífero
Paulo (FM-USP), que sequenciou e analisou, em pequeno e pouco conhecido no Brasil, também
tempo recorde, os primeiros genomas do novo chamado de minque –, ordenou o abate de todos
coronavírus na América Latina a fim de analisar esses animais criados em cativeiro por causa de
os padrões de transmissão do vírus no Brasil. mutações no vírus identificadas nessas fazendas.
Em meados de dezembro, o número de casos Em poucas semanas, 11 milhões dos cerca de
confirmados de infecção pela nova variante – 17 milhões de visons do país haviam sido sacrifi-
identificada por VUI 202012/01 (Variant Under cados. O país nórdico também proibiu a criação
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO

Investigation, ano 2020, mês 12, variante 01) e dos minques até o fim de 2021. Tudo porque se
pertencente à linhagem B.1.1.7 – aumentava a verificou que o novo coronavírus saltava, ao lon-
Representação cada dia no Reino Unido. A cepa já havia sido go da pandemia, dos criadores e trabalhadores
gráfica da espícula identificada na Austrália, na Dinamarca e nos contaminados para os minques, espalhava-se ra-
viral, região do
Países Baixos. pidamente entre os animais, sem causar a morte
Sars-CoV-2 alvo
das vacinas De acordo com o relatório do ECDC, a nova va- deles, e depois pulava de volta para os humanos,
e sujeita a mutação riante tem 29 mutações em relação ao vírus da cepa com algumas alterações em seu código genético.

PESQUISA FAPESP 299 | 29


Pesquisadores do país identificaram pelo me- abordagens genômicas e metabolômicas no estudo
nos 170 variantes de coronavírus relacionadas aos da doença por chikungunya. De acordo com Faria,
minques. Uma variante em especial, chamada há mais de 800 cepas do Sars-CoV-2 identificadas
cluster 5, com quatro mutações na parte do geno- no mundo. Destas, pelo menos 40 foram detecta-
ma que codifica a proteína da espícula, chamou das no Brasil, mas o número pode ser maior, pois
mais a atenção. De acordo a OMS, achados pre- é possível que existam mais linhagens circulando
liminares sugerem que os anticorpos humanos que ainda não foram identificadas.
parecem ter mais dificuldade para neutralizar os Mutação se refere a qualquer mudança no códi-
vírus dessa linhagem. go genético, segundo o virologista Francisco Mu-
Até agora, não foi constatada nenhuma altera- rilo Zerbini, da Universidade Federal de Viçosa
ção em termos de virulência do Sars-CoV-2 de- (UFV), em Minas Gerais, e presidente do Comitê
corrente dessa ou de outras mutações verificadas Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV),
no patógeno, mas os cientistas estão atentos para uma organização formada por profissionais que
as possíveis consequências sobre a resposta imu- trabalham com classificação viral. Em humanos,
ne dada pelas vacinas. Os principais imunizantes animais em geral, plantas e microrganismos como
em desenvolvimento têm como alvo a proteína fungos e bactérias, as informações para a reprodu-
spike do vírus. ção e para o funcionamento do organismo ficam
“Ainda é cedo para sabermos quais são as pos- guardadas em moléculas de DNA. Os vírus são os
síveis implicações das mutações dos vírus em cir- únicos microrganismos que podem armazenar a in-
culação em relação às vacinas em produção que formação genética também em moléculas de RNA,
usaram sequências spike de vírus circulantes de que é o caso do Sars-CoV-2. Qualquer mudança
um ano atrás”, afirma Faria. “No momento, os da- na sequência de bases do genoma, que ocorre em
dos apontam que a evolução relativamente lenta geral durante a replicação, é chamada de mutação.
do vírus será uma benesse para essas vacinas. Há Mas enquanto os seres humanos levam anos
indícios, também, de que a resposta imune das para se reproduzir, os vírus se replicam na esca-
pessoas à infecção por diferentes variantes é idên- la de milhões ou bilhões ao dia. Nesse processo,
tica. O desfecho clínico depende mais de fatores algumas das sequências de nucleotídeos (unida-
demográficos e socioeconômicos, como idade, se- de química primordial dos genes) que formam as
xo, comorbidades e acesso a cuidados de saúde.” fitas de RNA ou DNA podem ser alteradas. “Is-

M
so é completamente aleatório. Como os vírus se
ilhares de mutações no Sars-CoV-2 replicam com muita velocidade e geram muitas
já foram identificadas, mas nem cópias, eles evoluem bem rápido, ao contrário de
todas são incorporadas ao genoma. nós”, explica Souza. As mutações podem ocorrer
Desde o fim de 2019, quando foram em qualquer lugar do genoma e ser vantajosas ou
registrados os primeiros casos de não para os vírus. A tendência, de acordo com
infecção em humanos, até dezem- Souza, é que as novas cepas se tornem mais in-
bro de 2020, o novo coronavírus fecciosas e menos letais – porque o vírus precisa Visons criados em
acumulou cerca de duas mutações se replicar e, para isso, precisa contar com as cé- cativeiro em
países europeus
fixadas por mês, informa o virologista. “Novas lulas do hospedeiro vivo. estão relacionados
variantes genéticas surgem e se espalham na O novo coronavírus é uma molécula de RNA, a mutações sofridas
população viral como resultado de uma intera- protegida por um invólucro de proteína (capsídeo), pelo Sars-CoV-2
ção complexa de deriva genética [mecanismo
evolutivo dos genes], seleção natural, processos
epidemiológicos e modos de transmissão. Algu-
mas dessas variantes seguem adiante, fixando-se
na população ao longo da pandemia”, declarou.
Segundo o pesquisador, a velocidade de evolução
do vírus, ou seja, o ritmo que novas variantes de
Sars-CoV-2 emergem, foi estimada em cerca de
30 mutações fixadas no genoma por ano.
Embora os termos “mutação” e “vírus mu-
tante” possam soar assustadores ao público lei-
go, eles são triviais entre virologistas e biólogos.
As mutações fazem parte do processo evolutivo
de todos os organismos, como plantas, animais
e microrganismos. “Os vírus sofrem mutações
como tudo o que está vivo”, atesta o biomédico
brasileiro William Marciel de Souza, que realiza
pós-doutorado na Universidade de Oxford sobre FONTE NONONONONO

30 | JANEIRO DE 2021
que por sua vez é en- “Análises laboratoriais indicavam que animais
volvida em um envelo- infectados com a variante D614G tinham um au-
pe de lipídio, derivado mento na infectividade celular”, disse a micro-
DAS MAIS DE 800 CEPAS da célula do hospedei- biologista brasileira Fabrícia Ferreira do Nasci-

DO SARS-COV-2 ro. Faz parte da famí-


lia Coronaviridae – dos
mento, pesquisadora do Imperial College Lon-
don. Infectividade é a capacidade de um agente

IDENTIFICADAS NO MUNDO, que têm no envelope a


proteína S, em forma
infeccioso de penetrar, alojar-se e multiplicar-se
dentro de um hospedeiro. Nascimento é coautora
PELO MENOS 40 FORAM de espícula, dando as-
pecto de coroa ao vírus
de um artigo publicado em novembro na revista
Cell que descreve um estudo com mais de 25 mil
DETECTADAS NO BRASIL – e do gênero Betaco-
ronavirus. Por ser um
sequências genômicas do Sars-CoV-2 feito no
Reino Unido que analisou os efeitos da mutação
vírus de RNA, é menos D614G sobre a transmissibilidade e a patogeni-
estável e está sujeito a cidade do vírus. “Já na população humana, os
mais mutações do que indivíduos infectados com essa variedade foram
os vírus de DNA. Estes associados a uma alta carga viral.”

N
geralmente têm longos genomas e moléculas que
fazem a correção em caso de erro no código ge- o Brasil, informa Spilki, as linhagens
nético durante a replicação. do novo coronavírus predominan-
“Um exemplo de vírus de DNA é o da herpes, tes até novembro eram as chamadas
que é muito estável e pode ter até 250 mil pares B.1.1.28 e B.1.1.33. Ambas carregam
de bases”, diz Souza. O Sars-CoV-2, por sua vez, consigo a mutação D614G. “Isso não
tem 30 mil bases. Entre os vírus de RNA, o coro- é só aqui, é no mundo todo. Ela pre-
navírus é o que tem um dos maiores genomas. “A domina na maioria dos países.” Spilki
grande parte dos vírus de RNA que causa doença está à frente de uma rede de cientis-
em humanos ou animais tem um genoma menor, tas que a partir de dezembro começaria a fazer
como zika, chikungunya, dengue e febre amare- em larga escala o sequenciamento genético das
la.” Todos possuem entre 10 mil e 12 mil bases. variantes do Sars-CoV-2 encontradas no país.
“Na verdade, o Sars-CoV-2 varia bem pouco. “Milhares de genomas do vírus serão sequen-
Comparado com outros vírus de RNA, chega a ciados. Queremos entender como funciona a
ser monótono”, destaca Spilki. “Quando falamos transmissão viral.”
de linhagens mutantes, as pessoas podem pensar Cientistas de 12 instituições, entre elas as uni-
que determinada linhagem tem o genoma com- versidades Estadual de Campinas (Unicamp),
pletamente diferente da outra; não é o caso do Estadual Paulista (Unesp), Federal do Rio de Ja-
coronavírus. Dos quase 30 mil nucleotídeos em neiro (UFRJ), USP e a Fundação Oswaldo Cruz
seu genoma, percebemos, às vezes, de uma linha- (Fiocruz), fazem parte da Rede Corona-ômica
gem para outra, quatro, cinco ou seis nucleotídeos BR, iniciativa da Rede Vírus, do Ministério da
de diferença. É um vírus com genoma bastante Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). “Um
estável.” De acordo com ele, isso ocorre porque dos objetivos da rede é trabalhar com a detecção
o Sars-CoV-2, embora sendo um vírus de RNA, de possíveis mutações para entender como o vírus
tem uma enzima que pode fazer a correção dos evolui e se dissemina, quais são as cadeias epi-
erros, quando eles ocorrem. demiológicas e como ele se desloca de um local
A maioria absoluta das mutações tem um para o outro, seja em hospitais, em uma família
impacto negativo para os vírus em geral, se- ou em um núcleo populacional”, conta Spilki.
gundo Zerbini. “Ele passa a se multiplicar com Os pesquisadores afirmam que o vírus, quando
menos eficiência e a tendência dessas muta- salta para a população de uma espécie diferen-
ções deletérias, dessas variantes, é desapare- te, passa por mutações até encontrar um equilí-
cer.” Porém, há as que têm impacto positivo – brio, adaptando-se ao novo ambiente. Por isso,
e nesse caso as variantes com essas mutações ten- a preocupação com as cepas vindas dos visons,
dem a predominar. Até agora, uma das mutações na Dinamarca. Para especialistas, o caso dina-
do novo coronavírus mais investigadas é a D614G. marquês assim como a linhagem identificada no
Ela surgiu na China em janeiro de 2020, rapida- sudeste da Inglaterra evidenciam a importância
mente se espalhou pela Europa e por Nova York de uma vigilância robusta, com sequenciamento
e, a partir de março e abril, tornou-se dominante das amostras dos vírus e compartilhamento des-
OLE JENSEN / GETTY IMAGES

em todo o mundo, inclusive nas Américas. Embo- ses dados entre os países e equipes de pesquisa. n
ra não tenha sido associada a desfechos clínicos
mais severos, alguns estudos apontam para uma
transmissão moderadamente mais rápida do vírus Os artigos e os projetos apoiados pela FAPESP mencionados nesta
com essa mutação entre os hospedeiros. reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 299 | 31


CAPA
ECONOMIA DO CUIDADO
Aumento na expectativa de vida da população e novos arranjos familiares
ampliam a demanda por cuidadores e desafiam a gestão pública

Christina Queiroz

C
resce, no mundo todo, o número de Conforme definição da OIT, o trabalho de cui-
pessoas que demandam serviços de dado, que pode ou não ser remunerado, envolve
cuidado. De acordo com o último dois tipos de atividades: as diretas, como alimen-
relatório da Organização Interna- tar um bebê ou cuidar de um doente, e as indi-
cional do Trabalho (OIT), esse uni- retas, como cozinhar ou limpar. “É um trabalho
verso deverá ser de 2,3 bilhões de que tem uma forte dimensão emocional, se desen-
pessoas em 2030 – há cinco anos, volve na intimidade, e com frequência envolve a
eram 2,1 bilhões. O envelhecimento manipulação do corpo do outro”, diz Guimarães.
da população e as novas configura- Ela relata que o conceito de cuidado surgiu como
ções familiares, com mulheres mais categoria relevante para as ciências sociais há
presentes no mercado de trabalho e menos dispo- cerca de 30 anos e, desde então, tem sido crescen-
níveis para assumir encargos com parentes sem te a sua presença em linhas de investigação em
autonomia, têm levado os países a repensar seus áreas como economia, antropologia, psicologia
sistemas de atenção a populações vulneráveis. e filosofia política. “Com isso, a discussão sobre
Partindo desse panorama, estudo comparativo essa concepção ganhou corpo. Os estudos iniciais
das sociólogas Nadya Araujo Guimarães, da Uni- do cuidado estavam presos à ideia de que ele era
versidade de São Paulo (USP), e Helena Hirata, uma necessidade nas situações de dependência,
do Centro de Pesquisas Sociológicas e Políticas mas tal entendimento se alargou. Hoje, ele é visto
de Paris, na França, identificou, nos últimos 20 como um trabalho fundamental para assegurar o
anos, o surgimento de arranjos que visam amparar bem-estar de todos, na medida em que qualquer
indivíduos com distintos níveis de dependência, pessoa pode se fragilizar e se tornar dependente
como crianças, idosos e pessoas com deficiência. em algum momento da vida”, explica a socióloga.
Enquanto em algumas nações o papel do Estado é Os avanços da pesquisa levaram à constatação de
preponderante, em outras, a atuação de institui- que a oferta de cuidados é distribuída de forma
ções privadas se sobressai. Na América Latina o desigual na sociedade, recaindo de forma mais
ILUSTRAÇÕES LINOCA SOUZA

protagonismo das famílias representa o aspecto intensa sobre as mulheres. Dados do relatório da
mais marcante. Recém-publicados, os resultados OIT sobre o tema, publicado em 2019, mostram
da pesquisa emergem em um momento em que que nos 64 países pesquisados elas dedicam, em
a temática do cuidado ganha relevância em dife- média, 3,2 vezes mais tempo do que os homens
rentes campos do saber. com trabalhos não remunerados de cuidado, ou

PESQUISA FAPESP 299 | 33


GASTO PÚBLICO Serviços e benefícios
assistenciais de cuidados
Benefícios assistenciais por
maternidade, deficiência, doença
Educação
pré-escolar

EM POLÍTICAS 10
de longa duração ou acidentes de trabalho

DE CUIDADO 9

Investimentos de 8
países no setor

Gasto público em % do PIB


7

FONTE EL TRABAJO DE CUIDADOS


Y LOS TRABAJADORES DEL CUIDADO 0
Suécia Colômbia Suíça França Alemanha Espanha Reino Itália Portugal Brasil Estados China África México Turquia Índia
PARA UN FUTURO CON TRABAJO
Unido Unidos do Sul
DECENTE/OIT (2019)

seja, 4 horas e 25 minutos por dia, em compara- presença do Estado. “A literatura científica tem
ção a 1 hora e 23 minutos despendida diariamente sublinhado a natureza familialista desse nosso
por homens (ver gráfico na página 35). regime de cuidado. Ele é característico de países
Ao refletir sobre esse desequilíbrio, a socióloga como Brasil, Argentina, Chile e Colômbia, que
Heidi Gottfried, da Universidade Estadual Way- estudamos em uma rede latino-americana de
ne, localizada em Detroit, no estado de Michigan, pesquisadores”, destaca Guimarães. Segundo ela,
nos Estados Unidos, explica que persiste, nas so- no Brasil, a importância das famílias evidencia-
ciedades, noção arraigada de que o trabalho de -se nos resultados da última edição da Pesquisa
cuidado seria uma manifestação de amor e, por de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do
essa razão, deveria ser prestado gratuitamente. IBGE. O levantamento mostrou que dos 57,2 mi-
Conforme Gottfried, a ideia decorre, entre ou- lhões de domicílios brasileiros, 17,6% têm algum
tros aspectos, de construção cultural a respeito tipo de despesa com o pagamento de serviços do-
da maternidade e de que cuidar seria um talen- mésticos e de cuidados. “Isso significa que 82,4%
to feminino. Por outro lado, Guimarães lembra dos lares atendem às suas necessidades de cui-
que a partir de 1970 as mulheres aumentaram dado sem acorrer ao mercado, prescindindo de

E
sua participação no mercado de trabalho. Em empregadas domésticas e cuidadoras”, ressalta.
cinco décadas, a presença feminina saltou de
18% para 50%, segundo dados do Instituto Bra- studo conduzido por Guimarães e
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Con- Hirata também identificou que no
sideradas provedoras naturais dos serviços de país o Estado atua como coadjuvante
cuidado, as mulheres passaram a trabalhar mais no processo de organização do cui-
intensamente fora de casa. Esse fato, aliado ao dado. Iniciativas pioneiras começa-
envelhecimento da população, gerou o que tem ram a ser desenvolvidas na década
sido analisado como uma crise no provimento de 1990, sendo marcantes os avanços
de cuidados que, em países do hemisfério Nor- normativos expressos no Estatuto
te, tem se resolvido com uma mercantilização da Criança e do Adolescente (ECA),
desses serviços, além de uma maior atuação do que entrou em vigor em 1990 (ver
Estado, por meio da criação de instituições pú- Pesquisa FAPESP nº 296), na Política Nacional do
blicas de acolhimento, expansão de políticas de Idoso, de 1994, e no Estatuto do Idoso, de 2003. A
financiamento, formação e regulação do trabalho antropóloga Guita Grin Debert, da Universidade
de cuidadores”, conta a socióloga. Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que a
Na América Latina, entretanto, o fornecimen- adoção da Política Nacional do Idoso e do Esta-
GRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

to de cuidados é tradicionalmente feito pelas tuto do Idoso representou avanços legislativos.


famílias, nas quais mulheres desempenham gra- “O problema é que nem tudo o que está previsto
tuitamente papel central como cuidadoras de nessas iniciativas foi efetivamente implementa-
crianças, idosos e pessoas com deficiência. Para do”, analisa. De acordo com Guimarães, da USP,
a minoria que pode pagar, o mercado oferece instituições públicas de longa permanência para
serviços de cuidado que compensam a escassa pessoas com mais de 60 anos ainda são escassas e

34 | JANEIRO DE 2021
TEMPO DIÁRIO Mulheres
Trabalho remunerado
Homens
Trabalho remunerado
DEDICADO 500
Trabalho não remunerado Trabalho não remunerado

AO TRABALHO 448 442


463 455

DE CUIDADO
450
417 423 417
404 399
400
378
366
Quanto mulheres 350
358
350
e homens gastam
Minutos diários
292
diariamente com 300

serviços de cuidado 250


remunerado ou
200
não remunerado
150

100

50

FONTE EL TRABAJO DE CUIDADOS


Y LOS TRABAJADORES DEL CUIDADO 0
Mundo África Américas Países Ásia Europa Países com
PARA UN FUTURO CON TRABAJO
árabes e Pacífico e Ásia Central baixa renda
DECENTE/OIT (2019)

atendem menos de 1% da população nessa faixa localizadas. É o caso, por exemplo, do Programa
etária. “Com isso, os cuidados de idosos são feitos de Acompanhamento de Idosos (PAI), criado em
pela própria família, ou mediante a contratação 2012 pela prefeitura de São Paulo com a finali-
de cuidadoras e instituições particulares, serviços dade de promover assistência integral à saúde
inacessíveis à população de baixa renda”, observa de pessoas com mais de 60 anos em situação de
Guimarães. Contabilizando mais de 28 milhões fragilidade clínica, vulnerabilidade ou exclusão
de pessoas acima de 60 anos, 13% da população social. “Existem também programas universi-
brasileira é considerada idosa, percentual que tários voltados à terceira idade, à prática de es-
tende a dobrar, nas próximas décadas, conforme portes e a grupos de convivência, mas a maioria
projeções do IBGE. Estima-se que um quarto se destina a pessoas que contam com autonomia
da sociedade estará nessa faixa etária em 2043. para se deslocar”, observa a antropóloga.
Debert, da Unicamp, também chama a aten- Análises comparativas da estrutura de cuida-
ção para o fato de o estatuto determinar que ca- dos de países que apresentam realidades distintas
da posto de saúde conte com um geriatra – algo permitem uma melhor compreensão das caracte-
impossível de ser colocado em prática, uma vez rísticas brasileiras. Coautora das pesquisas com
que o país não dispõe desses profissionais em Guimarães, Hirata, que integra o Centro Nacional
número suficiente. Além disso, as políticas pú- de Pesquisa Científica (Cresppa-GTM/CNRS) e
blicas existentes para esse público costumam ser a Rede de Pesquisa Internacional e Multidiscipli-

TEMPO QUE AS MULHERES


DEDICAM A SERVIÇOS DE
CUIDADO NÃO REMUNERADO
É TRÊS VEZES MAIOR
DO QUE O DOS HOMENS

PESQUISA FAPESP 299 | 35


nar “Mercado de Trabalho e Gênero” (Mage), na com mais de 65 anos, estejam elas internadas
França, investigou, além do sistema brasileiro, o em instituições ou sob a responsabilidade de
japonês e o francês. Sua pesquisa constatou que, cuidadores domiciliares. Estudos mencionados
nos três países, as mulheres são centrais na ofer- por Hirata indicam que 30% dos idosos no Ja-
ta de serviços de cuidados. Enquanto no Brasil pão viviam com seus filhos, em 2016. Na década
os homens ocupavam 4% dos postos de trabalho de 1960, eram 90%. “Com isso, a demanda por
nas instituições de longa permanência de idosos serviços de cuidadores ou instituições aumentou
pesquisadas, na França eles somavam 10% e, no bastante”, observa Hirata, que estima em 14%
Japão, 40%. o percentual de idosos japoneses acolhidos em
Segundo Hirata, o dado japonês reflete a polí- instituições – diante de 1% estimado para o Bra-
tica pública estabelecida em 2008 para frear os sil. “Hoje o principal desafio, no Japão, envolve
altos índices de desemprego ocasionados pela as crianças. O país praticamente não dispõe de
crise econômica. Pela iniciativa, desempregados creches públicas, em parte devido a uma con-
podiam participar de um programa de qualifica- venção social que pressupõe que elas deveriam
ção para atuar como cuidadores, com a garantia ser criadas pelas próprias mães.”
de que teriam emprego assegurado ao término Na França, o governo financia parte dos cui-
da formação. “Os trabalhadores japoneses não dados de pessoas com mais de 65 anos, ofere-
teriam ido para esse setor laboral, tão marcado cendo uma ajuda de custo que varia conforme o
pela presença feminina, por iniciativa própria. valor da aposentadoria e o nível de dependência
Mas preferiram migrar antes de ficar desempre- do idoso. Chamado de allocation personnalisée
gados”, afirma Hirata. A participação do Estado d’autonomie, o recurso pode ser destinado tan-
japonês no sistema de cuidados inclui a cobrança to para custear gastos com instituições de longa
de um imposto, equivalente a cerca de R$ 250,00, permanência quanto para o pagamento de cuida-
descontado do salário de todos os indivíduos com dores. “Com exceção do cônjuge, o auxílio pode
mais de 40 anos. ser usado inclusive para remunerar algum fami-
É esse imposto que permite financiar o atendi- liar do idoso. Ao contrário do Brasil, na França a
mento dos idosos. Por meio do sistema, o Estado família não é considerada a principal responsá-
arca com 90% dos custos do cuidado das pessoas vel pelos cuidados dos mais velhos”, contrasta

PANORAMA LATINO-AMERICANO
Características similares à situação milhões de idosos em 2018, número que histórico das políticas de cuidado na América
brasileira marcam a estrutura de cuidados deve chegar a 13 milhões, em 2050. Latina. De acordo com a socióloga Karina
na Argentina e no Chile. A socióloga No Chile, de acordo com a socióloga Batthyány, da Universidade da República,
argentina Natacha Borgeaud-Garciandía, chilena Irma Arriagada Acuña, pesquisadora em Montevidéu, que também forma parte da
pesquisadora do Conselho Nacional do Centro de Estudos da Mulher (CEM), rede latino­‑americana, pesquisas científicas
de Investigações Científicas e Técnicas em Santiago, e integrante de uma rede sobre o tempo investido pelas famílias em
(Conicet), na Argentina, e da Faculdade latino-americana de estudos sobre o cuidado, distintas atividades de cuidado serviram
Latino-americana de Ciências Sociais as primeiras leis voltadas ao cuidado de como ponto de partida para a elaboração
(Flacso), comenta que, em seu país, gestantes e crianças foram elaboradas no da política pública. As primeiras ações
a principal responsabilidade recai sobre século XIX, seguidas de iniciativas destinadas estabelecidas foram voltadas a crianças de
as famílias e, no âmbito das famílias, a idosos e pessoas com deficiência. até 3 anos de idade, idosos dependentes,
sobre as mulheres. “Isso significa que não Segundo ela, assim como no Brasil, pessoas com deficiência e cuidadores.
é possível analisar o sistema argentino atualmente a oferta de serviços de cuidado Exemplos dessas políticas de cuidados são
sem pensar no peso do trabalho familiar não para crianças é mais estruturada, se os serviços de assistência remota a idosos,
remunerado e nas desigualdades de gênero comparada com o sistema nacional disponível para ajudá-los na realização de tarefas
que essa atividade envolve”, diz Borgeaud- aos idosos. Em 2013, as instituições cotidianas, o estabelecimento de centros
-Garciandía, também editora de uma série públicas chilenas respondiam por 2,6% do de permanência durante o dia, cursos
de livros denominada Horizontes de total de organizações de longa permanência gratuitos de formação de cuidadores e a
Cuidado. Ela explica que, na Argentina, não para essa faixa etária da população. ampliação da licença-paternidade. “O sistema
há uma política nacional de cuidados “Além disso, o Chile enfrenta escassez de começou priorizando os setores mais
estabelecida. “O Estado entra apenas especialistas em idosos, incluindo geriatras críticos e vulneráveis. Um dos desafios que
para oferecer serviços para idosos e enfermeiras”, diz Acuña. enfrentamos hoje envolve a necessidade
dependentes, em situações em que eles O Sistema Nacional Integrado de de que ele passe a abarcar políticas de
não podem recorrer à família ou ao Cuidados, criado pelo Uruguai em 2015, cuidado para toda a população, adquirindo
mercado”, explica. O país contava com 5,7 é considerado um divisor de águas no caráter universal”, afirma Batthyány.

36 | JANEIRO DE 2021
ATÉ 2030, MAIS
200 MILHÕES DE IDOSOS
VÃO PRECISAR DE
SERVIÇOS DE CUIDADO

Hirata. De acordo com ela, o país europeu, onde mo, o financiamento da escolaridade dos filhos
metade das instituições de longa permanência e até de pequenos negócios”, observa. Em 2018,
para idosos é pública, discute atualmente a cria- essas remessas movimentaram, globalmente,
ção de um quinto ramo da Previdência Social, cerca de US$ 700 bilhões, informa.
para financiar os cuidados de idosos e pessoas Há cerca de quatro décadas desenvolvendo

N
com deficiência. estudos comparados sobre trabalho e emprego,
Hirata aponta as estatísticas oficiais disponíveis
os Estados Unidos a situação é bas- em cada país como um dos principais desafios
tante distinta. Segundo Gottfried, a metodológicos. Na vertente da pesquisa realiza-
marca mais significativa do sistema da com Guimarães, que comparou as atividades
vigente naquele país é seu nível de laborais de cuidadores no Brasil, na França e no
mercantilização. Lá, o Estado sub- Japão, constatou-se que alguns aspectos da eco-
sidia agências e entidades privadas nomia do cuidado só poderiam ser analisados a
com fins lucrativos para prestação partir de estudo qualitativo. Para tanto, foram
de serviços de atendimento a ido- entrevistados 300 cuidadores. “A opção por es-
sos, o que inclui centros de reabi- se caminho metodológico permitiu revelar, por
litação e assistência médica domi- exemplo, que entre populações periféricas brasi-
ciliar. “Essa estrutura é baseada no mercado e leiras a vida comunitária e a ajuda de vizinhos e
transfere os riscos e as responsabilidades para familiares constituem pilar central na estrutura
as famílias, que ficam encarregadas de encontrar de cuidados”, informa Hirata. “Como isso não
e contratar os serviços de cuidado”, informou a aparece nas estatísticas oficiais, esse aspecto da
socióloga em entrevista concedida por e-mail a realidade não teria sido captado se tivéssemos
Pesquisa FAPESP. nos limitado a análises quantitativas.” n
Ao justificar a importância do desenvolvimento
de estudos comparativos sobre o setor de cuida-
dos, Gottfried cita o fato de os imigrantes trans- Projetos
nacionais constituírem parte crescente da força 1. Desafios da velhice: Políticas públicas, gênero e relações entre gerações
de trabalho. Em 2019, os trabalhadores domés- (no 19/09742-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora
responsável Guita Grin Debert (Unicamp); Investimento R$ 91.767,57.
ticos migrantes em todo o mundo somavam 11,5 2. Trabalho, cuidado e políticas públicas: Formação, intermediação e
milhões, sendo 8,5 milhões de mulheres, indica acesso ao trabalho (no 15/08047-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa –
ela, ao lembrar que a economia do cuidado mo- Pesquisador Visitante – Internacional; Pesquisadora responsável Nadya
Araujo Guimarães (USP); Pesquisadora visitante Helena Sumiko Hirata;
vimenta, transnacionalmente, grande volume Investimento R$ 67.030,60.
de recursos. “A mãe que deixa os próprios filhos
Livro
em seu país de origem, sob a responsabilidade
GUIMARÃES, N. A. e HIRATA, H. (eds.). Care and care workers – A
de outras pessoas, para trabalhar com famílias Latin American perspective. Serie Latin American Societies – Current
alheias integra uma cadeia global cujo produto é Challenges in Social Sciences. Springer, 2020.
o cuidado. As remessas de dinheiro enviadas aos Os demais livros e relatório citados nesta reportagem estão listados
parentes viabilizam a compra de bens de consu- na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 299 | 37


MERCADO EM EXPANSÃO
Na América Latina, o trabalho remunerado de cuidados responde por
16% das vagas, com 47 milhões de pessoas atuando na área
P
rofissionais que atuam com serviços de Pós-graduação em Direito da Universidade do
de cuidado respondem por 11,5% do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).
emprego mundial, 19,3% do femini- A conquista de melhores condições de trabalho
no e 6,6% do masculino, segundo a foi acompanhada, no âmbito acadêmico, por uma
Organização Internacional do Tra- discussão em torno da necessidade de se estabele-
balho (OIT). Na América Latina, o cer a dimensão monetária do trabalho doméstico
trabalho remunerado de cuidados não remunerado – que, de acordo com a OIT, soma
responde por 16% das vagas, com 16,4 bilhões de horas diárias no mundo. Em tese
47 milhões de pessoas atuando na de doutorado defendida na Universidade Federal
área; destas, 36 milhões são mulhe- de Minas Gerais (UFMG) em 2018, a demógrafa
res, o que equivale a 31% do emprego feminino. Jordana Cristina de Jesus, da Universidade Fe-
“Em países como Brasil, Colômbia, Argentina e deral do Rio Grande do Norte (UFRN), aplicou
Uruguai são as trabalhadoras domésticas, mensa- uma metodologia para estimar o valor anual desse
listas ou diaristas, que se encarregam, em grande trabalho no Brasil, chegando a R$ 580 bilhões, o
medida, do cuidado infantil e de idosos”, informa equivalente a 11% do Produto Interno Bruto (PIB),
a socióloga Nadya Araujo Guimarães, da Univer- em 2013. “Para chegar a esse percentual somamos
sidade de São Paulo (USP). as horas anuais de tarefas domiciliares não pagas
No Brasil, as trabalhadoras domésticas somam e atribuímos a elas um valor monetário, com base
4 milhões, sendo a maioria migrantes internas, no salário médio de uma empregada doméstica”,
diferentemente do que acontece na Europa e nos explica a demógrafa, que atualmente desenvolve
Estados Unidos, onde elas costumam ser estran- pesquisa para calcular o valor total do trabalho
geiras. Apesar de o trabalho de cuidado ainda ser doméstico no país.
exercido, em grande medida, pelas empregadas O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
domésticas, a busca por profissionais que atuam (Ipea), por sua vez, está desenvolvendo um estudo
especificamente na área cresceu no Brasil, nos para dimensionar o setor de cuidados remunera-
últimos anos. “Os empregos para esse perfil pro- dos no Brasil. A definição aplicada é abrangente,
fissional aumentaram 275% no país entre 2012 e incluindo todas as atividades públicas e privadas,
2019”, destaca a pesquisadora, contabilizando a direta ou indiretamente relacionadas aos cuidados
existência de 1,5 milhão de cuidadores domici- (por exemplo, empregados domésticos e servi-
liares no país. ços de limpeza, assim como servidores públicos
Vital para assegurar o bem-estar da sociedade, que trabalham na área de saúde, profissionais
em todo o mundo a profissão de cuidador regis- que atuam na educação infantil e professores dos
tra condições precárias de trabalho. O mercado ensinos fundamental e médio). De acordo com a
caracteriza-se pelo pagamento de salários baixos socióloga Luana Pinheiro, pesquisadora da ins-
e pouca formalização, situação que é ainda pior no tituição, estimativas preliminares mostram que
Brasil, se comparada com países como França e cerca de 25% da força de trabalho do país está
Japão, conforme Helena Hirata, do Centro de Pes- ocupada no provimento desses cuidados. “As ati-
quisas Sociológicas e Políticas de Paris, na França. vidades de cuidado não só garantem bem-estar
Aqui não há uma lei específica regulamentando à sociedade como também são a base para que
a atividade, que se apoia na legislação vigente outras funções sejam desempenhadas no mundo
das empregadas domésticas para fazer valer seus mercantil. Ninguém trabalha na bolsa de valores,
direitos. “Segundo dados de 2019, 93% dos traba- por exemplo, se o banheiro não estiver limpo, se
lhadores domésticos do país são mulheres e 65% as crianças ou outros dependentes não estiverem
são negras. Essa categoria profissional foi excluída sendo cuidados e se os funcionários não estiverem
dos direitos trabalhistas durante décadas e somen- alimentados”, conclui. n Christina Queiroz
te em 2013, com a Emen- da Constitucional 72,
ILUSTRAÇÃO LINOCA SOUZA

que ficou conhecida como PEC das Domésticas,


conquistou direitos comuns a outras profissões, Projeto
como limitação da jornada laboral a oito horas O cuidado como trabalho: Uma conceituação do direito do trabalho
com base no gênero (nº 16/18865-6); Modalidade Bolsa de Doutora-
diárias e pagamento de horas extras e férias”, do; Pesquisador responsável Homero Batista Mateus da Silva (USP);
afirma Regina Stela Corrêa Vieira, do Programa Beneficiária Regina Stela Corrêa Vieira; Investimento R$ 107.595,42.

PESQUISA FAPESP 299 | 39


ENTREVISTA Silvio Meira

UM REALISTA
ESPERANÇOSO
Criador de um dos mais importantes ecossistemas
de inovação do país, cientista da computação
discute a emergência da era digital no Brasil

Bruno de Pierro | RETRATO Léo Ramos Chaves

É
recorrendo ao escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) IDADE 65 anos
que o conterrâneo Silvio Romero de Lemos Meira, de 65 anos, en-
ESPECIALIDADES
contra as palavras certas para falar de si mesmo. “Sou um realista
Programação computacional,
esperançoso”, diz o cientista da computação e um dos responsáveis
transformação digital,
pela criação do Porto Digital, um dos principais polos de tecnologia do
país, que completou 20 anos em 2020. Instalado no centro histórico do inovação, política
Recife (PE), o Porto Digital abriga 344 empresas de base tecnológica. tecnológica
O realista esperançoso, como descreveu Suassuna, é aquele que en- INSTITUIÇÃO
tende o problema e luta para resolvê-lo quando possível. Tal filosofia Universidade Federal de
de vida acompanha Meira desde a adolescência, quando desmontava Pernambuco (UFPE)
eletrodomésticos quebrados para descobrir os defeitos. Mais do que obs-
táculos, os desafios tecnológicos tornaram-se insumos de seu trabalho. FORMAÇÃO
Professor emérito do Centro de Informática da Universidade Federal Graduação em engenharia
de Pernambuco (UFPE), o paraibano de Taperoá sempre fez questão eletrônica no ITA (1977),
de ficar a par dos problemas reais que desafiam empresas. No início da mestrado em ciência
carreira, recusou ofertas de trabalho em multinacionais para se dedicar da computação na UFPE
a um projeto ambicioso: consolidar o setor de computação da UFPE e (1981) e doutorado em
um ecossistema de inovação no Recife. ciência da computação na
Membro do conselho de várias empresas, Meira, casado e pai de três Universidade de Kent,
filhos, dedica boa parte do seu tempo a pensar como tecnologias digi- na Inglaterra (1985)
tais e a inteligência artificial podem não apenas ajudar a elevar a pro-
dutividade desses negócios, mas também beneficiar a sociedade. Nesta PRODUÇÃO
entrevista, ele fala dos desafios para a consolidação do Porto Digital, 54 artigos científicos.
traça um panorama das oportunidades da era digital no país e diz como É autor, coautor ou
a pandemia do novo coronavírus impactou sua rotina. organizador de cinco livros

40 | JANEIRO DE 2021
PESQUISA FAPESP 299 | 41
No currículo Lattes, você se descreve do descobri que era possível programar te-americana DEC [Digital Equipment
como “um percussionista que se diver- uma máquina para ela executar o que eu Corporation], que na época tinha um me-
te muito como pesquisador”. Qual o desejasse, foi paixão à primeira vista. gacomputador para uso universitário.
impacto da cultura pernambucana na O professor Clylton me convidou para
sua carreira? Naquela época a programação era in- cuidar dos sistemas computacionais da
O Carnaval foi determinante para eu me cipiente no Brasil. universidade. O objetivo era que a nova
fixar no Recife. Em meados dos anos Sim, eram os primórdios da programa- máquina atendesse o campus e todas as
1980, ao voltar da Inglaterra, onde fiz ção. O IBM 1130 do ITA tinha apenas 16 disciplinas, incluindo a execução de ta-
doutorado, acabei me envolvendo com kB [kilobytes] de memória e era preci- refas burocráticas, como organização da
o ambiente cultural da cidade, principal- so fazer uma ginástica algorítmica para folha de pagamentos e matrículas. Fiquei
mente o Carnaval. Ajudei a fundar o Ca- conseguir programar algo. Basicamente responsável por montar esse sistema. Foi
bra Alada, um maracatu que completou se programava para resolver problemas um grande aprendizado, mas que custou
25 anos em 2020. Depois que isso entra de engenharia. Naquela época, minha o atraso da minha dissertação de mestra-
no sangue, não sai mais. Meu envolvi- fascinação era pensar como resolver pro- do em dois anos.
mento com o Carnaval é forte. blemas matemáticos do ponto de vista
computacional. Em 1978, durante o mes- Só no doutorado é que você resolveu
Como você foi parar no Recife? trado na UFPE, descobri que era pos- sair do Brasil?
Meu pai, paraibano de Taperoá, era fiscal sível pensar a programação como área Assim que terminei o mestrado, consegui
da Sanbra, uma divisão brasileira da mul- científica em si. Minha dissertação, sob uma bolsa do CNPq [Conselho Nacional
tinacional holandesa Bunge. O trabalho orientação do professor Clylton Fernan- de Desenvolvimento Científico e Tec-
dele exigia que a família mudasse de ci- des, foi sobre simulação de protocolos nológico] e optei por fazer o doutorado
dade a cada três anos. Cada um dos meus de redes. No mestrado, portanto, eu já na Inglaterra, porque queria um lugar
três irmãos nasceu num lugar diferente trabalhava com simulação de softwares diferente. Foi muito bom ter ido para a
do Nordeste. Cheguei no Recife para e tráfego de informações em protocolos Universidade de Kent. Tive um orienta-
fazer o segundo ano do ensino médio. de comunicação em redes digitais. dor fantástico, o cientista da computação
Antes da escola, quem cuidou da minha britânico David Turner, um dos líderes
alfabetização foi minha mãe, nascida em Você chegou a ajudar a instalar o pri- na pesquisa em programação funcional
Areia [PB], que era professora. Aprendi meiro computador de grande porte na na época. Fiquei lá entre 1981 e 1985. No
a ler um ano e meio antes de entrar no UFPE, não? retorno ao Brasil, decidi fixar-me nova-
colégio, com menos de 4 anos, graças Sim. No fim dos anos 1970, um conjunto mente no Recife.
a ela. Tornei-me um leitor contumaz e de universidades brasileiras, entre elas
ajudei a ensinar meus irmãos. Todos os a UFPE, adquiriu equipamentos da nor- Foi nesse período que você contribuiu
filhos se tornaram professores. com a consolidação da computação na
UFPE?
Sua relação com a capital pernambu- Quando voltei do doutorado, recebi uma
cana é profunda. carta do CNPq me dando as boas-vindas
Minha relação é profunda com o Brasil. e informando que eu era o 49º doutor
Sou um cara do interior e, para o povo do em computação no país. Até meados da
interior, o mundo é o país. Eu não tinha década de 1990, a computação brasilei-
planos de ir para São José dos Campos,
no interior de São Paulo, estudar no ITA Ao descobrir ra era muito rudimentar e não existia
como departamento autônomo nas uni-
[Instituto Tecnológico de Aeronáutica], versidades brasileiras, salvo exceções –
mas acabei prestando o vestibular in- que dava para a Unicamp [Universidade Estadual de
fluenciado por amigos. Fiz o curso tendo Campinas] criou em 1969 o primeiro ba-
em mente que voltaria para Pernambuco.
Comecei o mestrado na UFPE e pres-
programar charelado do país em ciência da compu-
tação e um departamento próprio, e a
tei concurso para professor auxiliar na
mesma instituição.
uma máquina USP [Universidade de São Paulo] de São
Carlos inaugurou o mesmo curso no fim
dos anos 1970. No geral, costumava ser
Quando despertou seu interesse pela para ela uma área vinculada a departamentos de
computação? estatística e informática, como ocorria na
Pouco tempo depois de entrar no ITA, executar o que UFPE. Havia dúvida, nas universidades,
em 1973, descobri que havia esse negócio se valeria a pena ter cursos de gradua-
chamado computador. Durante a gra-
duação tive contato pela primeira vez
eu desejasse, ção em computação, porque ainda não
se compreendia exatamente esse cam-
com um IBM 1130. Em pouco tempo, já
estava aprendendo a programar. Foi a foi paixão à po do conhecimento. Quando ingres-
sei na UFPE como professor, em 1985,
programação que me fez optar por não Clylton, Paulo Cunha, também docente
seguir carreira como engenheiro. Quan- primeira vista da UFPE, e eu resolvemos desenvolver

42 | JANEIRO DE 2021
Meira no escritório
de sua casa, no Recife

Como foi o começo do projeto?


O primeiro passo foi atrair as empresas.
O Cesar se dispôs a levar todo o seu pes-
soal para lá. Com o tempo, a economia
local começou a dar sinais de vida. Res-
taurantes, bares e cafés foram abertos.
Isso não havia sido planejado. Recife, po-
rém, ainda é uma cidade com carências,
uma desigualdade imensa, com enormes
desafios educacionais e de infraestrutu-
ra. Mas ao mesmo tempo tem uma cul-
tura muito forte. Temos programas de
formação no Porto Digital em parceria
um plano de longo prazo, para colocar Tínhamos de fazer alguma coisa para com várias universidades. Recife é a ci-
o Recife no mapa da computação em que esse capital humano tivesse impacto dade brasileira com o maior número de
15 anos. Na época, todos já recebíamos na economia do estado. Foi daí que sur- pessoas estudando computação por 100
ofertas para trabalhar em grandes em- giu a ideia de criar um centro de inova- mil habitantes. Esse é um dos impactos
presas, mas optamos, junto com muitos ção a fim de atrair problemas complexos do Porto Digital.
outros, por esse plano na universidade. que pudessem ser resolvidos no Recife.
Nossa ideia, portanto, foi incentivar a Houve resistência no ambiente acadê-
Era uma meta ambiciosa. criação de empresas de computação. O mico em relação ao empreendimento?
Sim. Fiquei encarregado de datilogra- Cesar começou a gerar spin-offs de em- Levou tempo para as universidades esta-
far o projeto, lembro como se fosse on- presas de computação pura. tais entenderem que era preciso formar
tem. Redigi tudo na máquina de escrever mais gente para o mercado. O ambiente
Olivetti Lettera 22 de meu pai. Encarei E quando foi criado o Porto Digital? acadêmico tem peculiaridades. Ouvi de
o plano como missão de vida. Naquela A combinação de esforços da UFPE, do professores que seria equivocado formar
época, a UFPE tinha quatro doutores Cesar e do programa Softex de apoio ao pessoas para o mercado. E olha que es-
em computação. A meta era chegar a 20 software brasileiro, lançado em 1992, tamos falando de áreas tecnológicas. O
até o ano 2000. Muita gente encarou o em conjunto com ações de associações Centro de Informática da UFPE tem 270
desafio e começamos a enviar dezenas empresariais e dos governos do Recife e vagas para estudantes. Isso significa que
de estudantes para fora do Brasil, para de Pernambuco, levou à criação do Por- todos devem se formar para atuar como
fazer doutorado em computação e re- to Digital em 2000. Tipicamente, polos professores ou pesquisadores? Grande
tornar para o Recife. Levou anos para tecnológicos são criados colados na uni- parte opta por trabalhar com problemas
formar uma massa crítica. Hoje, o Cen- versidade. No caso do Recife, a escassez práticos em empresas.
tro de Informática da UFPE tem perto de recursos nos levou a tomar a decisão
de 100 professores doutores e 250 pes- de criar um cluster fora da universidade, Como dimensionar a importância do
quisadores que desenvolvem projetos porque era inviável fazer tudo na UFPE. Porto Digital para a economia?
em parceria com empresas. Já formou Então a universidade juntou-se ao pro- Temos lá desenvolvedoras de algorit-
mais de 2,1 mil mestres e mais de 500 grama Softex, à prefeitura e a outras ins- mos para logística, saúde, finanças, lo-
doutores, e tornou-se uma referência, tituições da região para criar um polo calização. Há gente que cria tecnologias
porque também abriga incubadora e ace- que não fosse exclusivo de uma entidade. digitais para mobilidade urbana, segu-
leradora de empresas. Participar disso rança da informação, big data. Ou seja,
me deu a sensação real de construção Foi assim que vocês “invadiram” o cen- não é um cluster de propósito específico.
de futuro. Como deu certo, continuamos tro da capital pernambucana? O centro de inovação da Fiat Chrysler
investindo em metas ambiciosas e, em O objetivo foi ocupar e transformar o no Porto Digital, por exemplo, faz soft-
1996, fundamos o Centro de Estudos e local onde estava instalada a cracolân- wares de controle automotivo, que são
Sistemas Avançados do Recife, o Cesar. dia do Recife. Esse esforço, iniciado em programas que operam partes do motor
2000, resultou no espaço que hoje abriga do carro. Não é à toa que existem cursos
Qual era a ideia por trás do Cesar? o Porto Digital, o terceiro maior recolhi- no Recife se especializando nesse tipo
Os especialistas em computação forma- mento de ISS [Imposto sobre Serviços] de tecnologia. Também surgiram, nos
ARQUIVO PESSOAL

dos na UFPE não encontravam espaço da cidade. Em 2019, o faturamento foi últimos anos, graduações e especializa-
para atuar na economia local. Cerca de de R$ 2,5 bilhões, 24% superior ao do ções em jogos e marketing digital. Novas
60% deles iam embora de Pernambuco. ano anterior. demandas surgem no mercado e isso in-

PESQUISA FAPESP 299 | 43


centiva a criação de cursos específicos. O ensinando. Só sei algo quando consigo digital e se a forma de execução é digital.
primeiro mestrado profissional em com- explicar para alguém. Isso foi uma des- Se não for, você transforma aquele pro-
putação no Brasil foi montado no Porto coberta fundadora, porque de certa for- cesso para o mundo digital. Quando se
Digital, em 2006. O primeiro doutorado ma fez com que eu me interessasse por olha para o mundo digital, é preciso ob-
profissional em engenharia de software problemas fora da minha área e da uni- servar com olhos novos. Se você já tiver
do país também está lá. Essas especia- versidade. Deixei de ser um especialista estruturas competitivas para o mundo di-
lizações são oferecidas pelo Cesar, que em engenharia de software, campo em gital, mas que vêm do mundo analógico –
criou, dentro do Porto Digital, a Cesar que atuei como professor desde 1995. No isso é raro e exige adaptações –, aí sim é
School, com cursos de graduação e pós, fundo, admito, eu sou disperso. possível aproveitar essas estruturas no
em ciência da computação, engenharia processo de transformação. Normalmen-
de softwares e design. Em que sentido? te é preciso criar muita coisa do zero.
Tenho vários interesses simultâneos. Para
A classe política entende a importância dar conta de tudo, preciso trabalhar com Como avalia a implantação da indús-
do projeto? muita gente. Gosto de participar de dife- tria 4.0 no país?
Em Pernambuco, políticos de todos os rentes grupos, e isso definiu minha vida. Muitos empresários estão falando em
partidos entendem o papel do Porto Di- Sou professor extraordinário na Cesar digitalizar suas fábricas, mas não per-
gital para a economia do estado. É im- School e atuo como consultor. Partici- cebem que isso não é indústria 4.0, mas
possível falar sobre política econômica po de conselhos de várias companhias sim digitalização da indústria 3.0. Uma
em Pernambuco sem mencioná-lo. Ele é e instituições, como Porto Digital, MRV, indústria 4.0 é, por exemplo, desenvolver
responsável pela geração de empregos, Magazine Luíza e CI&T. São lugares que um motor que continua em comunicação
renda e impostos. São cerca de 11,5 mil têm problemas interessantes. Descobri com o fabricante, e o processo de manu-
postos de trabalho, com uma média sala- que posso contribuir para a solução des- tenção é feito a partir da fábrica. Na es-
rial quatro vezes maior do que a da Gran- ses desafios sem ser, necessariamente, a sência do termo, a indústria 4.0 não é um
de Recife. Além disso, é uma economia pessoa que vai resolvê-los na prática. O processo de dentro para fora da fábrica,
limpa e recupera uma região histórica único lugar para o qual dedico meu tem- em que os produtos se transformam em
que estava degradada. Nos últimos oito po na solução de problemas concretos serviços. É algo que vai muito além da
anos, motivada pela demanda do Porto é a The Digital Strategy Company, um mera robotização da linha de produção.
Digital por capital humano qualificado, pequeno negócio que ajudei a fundar no A robotização em si dos processos fa-
a prefeitura colocou laboratórios de in- Cesar focado em adaptação, evolução e bris não define a indústria 4.0, mas sim
formática e robótica em todas as escolas transformação digital de negócios de to- a capacidade de conectar objetos e fa-
da rede municipal. dos os tamanhos. Temos como clientes de zer análises em tempo real. No Brasil, o
startups a entidades gigantes, como a CNI problema é que, nos últimos 50 anos, o
A pandemia impactou o Porto Digital? [Confederação Nacional da Indústria]. ponteiro da produtividade em serviços
A vasta maioria das empresas ligadas ao não se mexeu, o que manteve a indús-
projeto desenvolve softwares. Assim, Como você ajuda empresas fazendo par- tria isolada, como indústria “pura”, sem
os funcionários seguiram trabalhando te de seus conselhos? agregar serviços. Ao menos a performan-
normalmente, só que de casa. Desen- Meu interesse é enfrentar desafios com- ce no espaço agrícola melhorou muito.
volvedores de software estão acostuma- plexos ou antever problemas que ainda Saímos de uma agricultura familiar com
dos a trabalhar remotamente, porque os não foram pensados pela empresa. No algodão sendo catado à mão para uma
processos de construção de sistemas de processo de criação do Porto Digital, prática baseada no uso de colheitadeiras
informação – principalmente aqueles acabei me envolvendo com centenas de modernas que já processam o algodão
associados a plataformas globais – são negócios. Isso me levou a interagir com no campo.
distribuídos e descentralizados. Infeliz- uma rede ampla de empreendedores e a
mente, os efeitos da pandemia são mais entrar em contato com desafios reais do O que falta ao país?
sentidos por prestadores de serviço que mercado. Orientando alunos ou aconse- Estratégia. Passamos mais uma década
dependem da circulação de pessoas no lhando empresas, minha preocupação é sem nenhuma. O país está perdido, do
Porto Digital, como bares e restaurantes. com o impacto da inovação e a melhoria ponto de vista das políticas industrial,
A estimativa é que 50% dos restaurantes de performances. de ciência, tecnologia, inovação e em-
do entorno do Porto Digital fecharam e preendedorismo. Não vejo rumo. Não
não vão reabrir após a pandemia. Trata-se de ajudar empresas a digitali- há sinais de que teremos estratégias pa-
zarem processos, na esteira da chamada ra inovação nos próximos dois, cinco, 10
Você optou por dar aulas logo no início indústria 4.0? anos. É um absurdo ver o Brasil entrar
da carreira. O que o atrai na docência? Não exatamente. Há uma diferença radi- numa guerra comercial que não diz res-
Para mim, o grande barato de ser profes- cal entre digitalizar e transformar. Digi- peito ao país. Refiro-me às disputas entre
sor não é ensinar, mas aprender. Desco- talizar é pegar o processo como existe e Estados Unidos e China em torno da tec-
bri que o que me encantava, como pro- botar uma capa digital, que automatiza nologia 5G. De repente, passamos a ter
fessor, era pegar um problema que eu a indústria. Já transformar é olhar para problemas que não tínhamos, problemas
não sabia resolver e tentar aprender so- o processo industrial ou de negócios, ver de diferenças científicas e tecnológicas
bre isso. A melhor forma de aprender é se ele está compatível com a competição com a China.

44 | JANEIRO DE 2021
Como assim? tes. Ao mesmo tempo, não penso que se
Não há nenhuma expectativa de que ve- deva impedir a inovação. Como, então,
nhamos a ter uma plataforma de 5G que regular? É um dilema: dar liberdade para
seja nossa. Não investimos nisso. Nos úl- que a pesquisa gere resultados poten-
timos anos, enquanto países nórdicos e É preciso cialmente benéficos para a sociedade e,
a China trabalhavam no desenvolvimen- ao mesmo tempo, evitar que a inovação
to de padrões e sistemas de softwares e
plataformas para aplicações de 5G, os
abordar crie condições para atividades delibera-
damente criminosas ou sem princípios
Estados Unidos não investiram em nada
disso. Optaram por criar aplicativos como
criticamente o éticos e morais. Posso escrever um códi-
go para sequestrar dados pessoais e pedir
Facebook, Snapchat e WhatsApp, deixan- bitcoins de resgate ou criar um algorit-
do em segundo plano investimentos em desenvolvimento mo para analisar imagens de pulmão e
infraestrutura das próximas gerações de identificar câncer por meio de inteligên-
conectividade digital. O governo brasilei- tecnológico, cia artificial. O princípio tecnológico de
ro deveria fomentar o casamento de polí- programação é o mesmo; o que muda são
ticas públicas, científicas e tecnológicas.
com todas as a educação ética e os valores por trás de
quem usa a tecnologia.
A iniciativa privada deveria se mobili-
zar para pensar o país no longo prazo? suas dimensões Pensar questões como bioética exige
Nenhuma empresa pensa o país a longo muita pesquisa nas ciências humanas.
prazo. Quem faz isso são seus foros mais filosóficas Sem dúvida. O físico inglês Charles Percy
altos, o poder constituído. Toda a revolu- Snow [1905-1980] argumentava que está-
ção de eletrônica nos Estados Unidos é
um esforço da Darpa [a Agência de Pes-
e regulatórias vamos perdendo a capacidade de inter-
pretar o mundo e entender o contexto no
quisa Avançada de Defesa]. Na Inglaterra, qual ciência e tecnologia estavam sendo
o substrato para a pesquisa farmacológica usadas. Penso que tecnologia é sempre
e de química fina são projetos de Estado. uma possibilidade: se dá para fazer, as
E como isso aconteceu? Entre as estra- pessoas fazem, mesmo que não haja uma
tégias está fomentar a interação entre ciência por trás. Mas é necessário pensar
universidades e empresas, para impac- como uma tecnologia funciona e quais
tar diretamente o PIB [Produto Interno são suas consequências na sociedade. O
Bruto]. Mas leva tempo e por isso precisa que incentivam, às vezes de maneira mesmo deve ser feito em relação à ciên-
ser uma política de Estado. A iniciativa subliminar, comportamentos nazifas- cia básica. Se amanhã descobre-se um
privada não pensa o Estado. Nenhuma cistas? Ou permitir mentiras explícitas planeta que tem vida, preciso imediata-
empresa definiu os rumos de uma nação. em propagandas políticas? Deveríamos mente começar a refletir sobre o nosso
responsabilizar o intermediário? A tese mundo, inclusive sobre o ponto de vista
Encomendas tecnológicas feitas pelo que levou à explosão das mídias sociais da religião. Essa reflexão sobre a nature-
Estado são importantes nesse sentido. é a seguinte: os intermediários, como o za humana é fundamental. Não se pode
Exatamente. Esse é um instrumento pou- Facebook, não têm responsabilidade. É relegar para as ciências humanas um pa-
co usado no Brasil. Nos Estados Unidos, como se a mídia social fosse apenas um pel secundário, como se elas devessem
a encomenda de produtos e soluções tec- fio telefônico que transmite informações. ficar com as sobras do investimento total
nológicas ocorre há décadas. A SpaceX, Mas o Facebook não é apenas um trans- em ciência. É preciso financiar grandes
empresa aeroespacial do bilionário Elon missor, ele é praticamente uma estação estudos nas ciências humanas.
Musk, deu certo não apenas por mérito de informação global e faz intervenção
próprio. Musk conseguiu um contrato de editorial. Deveria ser regulado. Faltam estudos capazes de refletir o Bra-
US$ 480 milhões com a agência espacial, sil atual de maneira interdisciplinar?
Nasa. Quando vemos países que fizeram Há quem trace paralelos entre genes e Sim. No passado, essa capacidade de
coisas admiráveis, como criar capacida- códigos de programas de computador. pensar o país surgiu, por exemplo, em
de tecnológica competitiva, percebemos Você concorda? figuras como Celso Furtado [1920-2004],
que eles estabeleceram desafios às vezes Sim. O grande problema da genética é Sérgio Buarque de Holanda [1902-1982]
perseguidos por décadas. que quem detém esse conhecimento nem e Gilberto Freyre [1900-1987]. No en-
sempre está pensando sobre as conse- tanto, a necessidade hoje é de articular
Quais os riscos de encarar a tecnologia quências dele. Trata-se de um espaço abordagens verdadeiramente interdis-
com muito entusiasmo? regulatório que merece atenção. Para ciplinares. Isso não significa que o ser
É preciso abordar criticamente o de- minimizar os riscos é preciso trazer o humano individual deva ser interdisci-
senvolvimento tecnológico, com todas fator social para a discussão. Por exem- plinar. O que deve ser interdisciplinar e
as suas dimensões filosóficas e regula- plo, permitir que só façam manipula- multidisciplinar são os times formados
tórias. Deveríamos permitir qualquer ção genética pessoas habilitadas e que por várias pessoas que dominam conhe-
propaganda no Facebook, inclusive as tenham passado por determinados tes- cimentos específicos. n

PESQUISA FAPESP 299 | 45


BIBLIOMETRIA

CIÊNCIA
DE IMPACTO
Lista de pesquisadores com trabalhos
altamente citados contém mais brasileiros em 2020

Rodrigo de Oliveira Andrade

C
resceu o número de pes- mos. Em 2018, esse número subiu para 13 e, em
quisadores brasileiros entre 2019, para 15. O desempenho do Brasil é tímido
os mais citados do mundo. quando comparado ao de nações como Estados
Foram 19 em 2020, quatro Unidos e China, mas se destaca na América La-
a mais que no ano anterior, tina. O país ficou à frente do México, com quatro
destacando-se em áreas co- pesquisadores na lista de 2020, e da Argentina,
mo epidemiologia e saúde com apenas um – desde que a Clarivate passou
pública. Os dados constam a fazer esse levantamento, em 2014, o vizinho do
de um levantamento divulgado em novembro pelo Brasil nunca emplacou mais do que três pesqui-
Institute for Scientific Information (ISI), serviço sadores na listagem.
de bases bibliométricas da Clarivate Analytics. O ponto de inflexão na participação do Brasil
Todos os anos a empresa lista os cientistas res- na relação da Clarivate coincide com a introdução
ponsáveis por 1% dos artigos mais citados em 21 da categoria “citação extra campo”, que destaca
áreas do conhecimento. O relatório de 2020 se pesquisadores cujos trabalhos foram muito cita-
baseou em trabalhos publicados em periódicos dos em estudos de diferentes áreas do conheci-
indexados na Web of Science (WoS) entre janeiro mento – nas demais categorias, o cômputo é feito
de 2009 e dezembro de 2019, e nas citações que apenas dentro da respectiva disciplina. David
receberam no período. Ao todo, 6.389 pesquisa- Pendlebury, analista de citações do ISI, explica
dores figuram na relação. que a ideia é reconhecer cientistas influentes
O Brasil, um dos 15 países que mais produzem em diversos campos do saber, mas que não têm
artigos científicos, ficou na 26ª posição no ran- artigos suficientemente citados em nenhuma
king das nações com mais cientistas altamente das áreas avaliadas para aparecer na lista final.
ILUSTRAÇÃO PATRICIA BRANDSTATTER

citados (ver tabela na página 50), consolidan- “Romper as paredes artificiais das disciplinas
do uma tendência de crescimento que ganhou convencionais significa manter a lista relevante,
força em 2018, quando a Clarivate adotou uma ainda mais em um contexto em que a ciência es-
nova metodologia para contabilizar o impacto tá cada vez mais global e interdisciplinar”, disse
dos pesquisadores. Até então, o contingente de Pendlebury a Pesquisa FAPESP.
brasileiros entre os mais citados restringia-se a, Dos 6.389 pesquisadores entre os altamente
em média, quatro nomes – nem sempre os mes- citados em 2020, 2.493 destacaram-se em cita-

PESQUISA FAPESP 299 | 47


Desempenho
Aumento do número de cientistas
brasileiros entre os mais citados
coincide com a introdução da

acima categoria “citação extra campo”, 1 Embrapa Agroindústria

19
que destaca aqueles cujos Tropical

da média
trabalhos foram muito
mencionados em estudos de
diferentes áreas do conhecimento NÚMERO DE CIENTISTAS
Resultado do Brasil ENTRE OS MAIS CITADOS
15
em 2020 foi POR INSTITUIÇÃO
o melhor de toda 13 A USP foi a
a série histórica universidade
brasileira com mais
pesquisadores
entre os mais
1 UnB citados do mundo
em 2020
5 5

3 1 IFRJ
2 1 Unicamp
1 Unesp 1 UFF

7 USP
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
1 Hospital
Oswaldo Cruz

Dos 19 brasileiros entre os mais citados, apenas 5 (26,3%) são mulheres 2 UFRGS
2 UFPel 1 UCPel

Os brasileiros mais influentes por área do conhecimento


2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
Medicina clínica
Economia
Engenharia
Geociências
Zoologia e Botânica
Física
Psiquiatria e Psicologia
Ciências sociais*
Ciências agrárias
Citação extra campo
Meio ambiente e Ecologia
Biologia molecular e Genética
Imunologia
* Classificação usada pela Clarivate Analytics; também reúne pesquisadores atuando em áreas como epidemiologia, nutrição e saúde pública FONTE CLARIVATE ANALYTICS

ções extra campo; quatro são brasileiros. Um dos com cientistas de outras áreas, de modo que é
nomes é o da bióloga Mercedes Maria da Cunha natural que nossa produção repercuta em vários
Bustamante, do Instituto de Ciências Biológicas campos do saber”, explica a pesquisadora.
da Universidade de Brasília (UnB). Suas pesqui- A relação da Clarivate sugere que universida-
sas tratam das respostas dos biomas brasileiros às des de qualquer tamanho podem ter pesquisa-
alterações ambientais globais, isto é, modificações dores entre os altamente citados, desde que pro-
nos períodos de chuva e estiagem desencadeadas duzam pesquisas de qualidade. Esse é o caso do
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

pelas mudanças climáticas, impactos da conversão Programa de Pós-graduação em Epidemiologia


de vegetação nativa em áreas de produção agrope- da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), “um
cuária, entre outros. “Para identificarmos os veto- dos melhores do mundo”, segundo o epidemio-
res dessas mudanças, analisar seus mecanismos de logista Pedro Hallal, reitor da UFPel e um dos
ação e ter uma visão ampla e integrada dos seus brasileiros entre os altamente citados em 2020.
impactos, precisamos lançar mão de abordagens Ele conta que o programa começou a se estru-
multidisciplinares. Cada vez mais colaboramos turar na década de 1980, a partir do trabalho de

48 | JANEIRO DE 2021
outros dois pesquisadores que há tempos figuram Embrapa Agroindústria Tropical, em Fortaleza,
na lista dos muito citados. Um deles é o pediatra todos os brasileiros entre os mais citados são vin-
Fernando Barros, da Faculdade de Medicina da culados a instituições do Sul e Sudeste. O desequi-
Universidade Católica de Pelotas (UCPel), no líbrio na produção desses estudos é visível mesmo
Rio Grande do Sul. Há quatro décadas ele es- entre as instituições dessas regiões. Dos 17 nomes
tuda o papel da amamentação na prevenção da brasileiros mais citados vinculados a universida-
mortalidade de recém-nascidos, além de atuar des e institutos de pesquisa do Sul e Sudeste, mais
no desenvolvimento de curvas de crescimento da metade está em São Paulo e no Rio Grande do

S
consideradas ideais durante a gravidez e logo Sul (ver mapa na página 48).
após o parto (ver Pesquisa FAPESP nº 225). “Es-
tudamos o perfil corporal e o estado de saúde de ete (41,1%) são da Universidade
recém-nascidos gestados nas melhores condi- de São Paulo (USP), dos quais
ções possíveis, comparando-os com o de crian- quatro fazem parte do grupo do
ças de famílias pobres”, esclarece Barros. “Esses epidemiologista Carlos Augus-
trabalhos têm implicações em diferentes áreas, to Monteiro na Faculdade de
da sociologia à economia, da medicina à ciência Saúde Pública (FSP) da USP. A
política, o que ajuda a explicar o fato de apare- epidemiologista Renata Bertaz-
cerem nas citações extra campo da Clarivate.” zi Levy, pesquisadora da Facul-
Ao lado do médico Cesar Victora, da Faculdade dade de Medicina da USP (FM-USP), parceira de
de Medicina da UFPel, Barros criou no país uma Monteiro e uma das brasileiras na lista da Clari-
das primeiras coortes de nascimento, nome dado vate, explica que o desempenho do time está as-
aos estudos que acompanham por longos períodos sociado a um conjunto de trabalhos publicados na
a saúde das pessoas nascidas em determinado ano última década com base em uma classificação de
e lugar. Iniciado em 1982, esse acompanhamento alimentos que propuseram há 10 anos. Chamada
gerou desdobramentos que tornaram o trabalho de Nova, ela agrupa os alimentos em quatro cate-
da dupla reconhecido no mundo, transformando- gorias de acordo com o grau de processamento: in
-os em referências na área. Desde 2018 Victora natura ou minimamente processados; ingredientes
também se destaca entre os altamente citados. culinários processados; processados; e ultrapro-
“A publicação de trabalhos produzidos a partir cessados (ver Pesquisa FAPESP nº 265). “Publi-
dessa coorte demonstrou a importância do alei- camos vários estudos associando o consumo de
tamento materno na redução da mortalidade in- alimentos ultraprocessados à qualidade da dieta
fantil e nos permitiu criar curvas de crescimento e ao desenvolvimento de doenças”, ela explica.
hoje usadas para avaliar o desenvolvimento de “Alguns envolviam parcerias com outros países,
fetos e bebês em mais de 140 países”, diz Victora. o que nos permitiu verificar que, independente-
“Esses trabalhos têm abrangência internacional mente do padrão alimentar de cada região, esse
e implicações diretas na prática pediátrica. Por grupo de alimentos sempre estava associado a uma
isso, recebem muitas citações.” piora dos indicadores nutricionais.” Os achados,
Dos 19 brasileiros entre os mais citados em 2020, segundo Levy, deram uma dimensão internacional
apenas 5 (26,3%) são mulheres. “Reconhecemos para essa classificação. “Vários grupos no mundo
que a lista, apesar de geo- passaram a usá-la. Hoje há mais de 500 artigos
graficamente diversa, ain- publicados com base nela.”
da é predominantemente Os estudos da equipe de Monteiro, somados
masculina. No entanto, no- aos dos pesquisadores de Pelotas, situam a epi-
tamos, com base em nomes demiologia e a saúde pública brasileiras entre
Lista da Clarivate comumente associados a as de maior impacto internacional. Na avaliação
mulheres, que o número de Victora, isso se deve ao engajamento dessas
Analytics situa de pesquisadoras entre áreas com questões ligadas às desigualdades
a epidemiologia os mais citados vem cres- socioeconômicas do país. “Diferentemente da
cendo desde 2014”, desta- epidemiologia praticada nos Estados Unidos,
e a saúde pública ca Pendlebury. A lista da a brasileira, historicamente, tende a ser mais
Clarivate também eviden- abrangente, conjugando aspectos econômicos e
brasileiras entre cia como a produção cien- sociais em torno de diferentes questões de saúde
tífica de alto impacto ainda para então identificar seus determinantes. Essa
as áreas de maior se concentra majoritaria- abordagem tende a enriquecer os trabalhos nes-
impacto internacional mente em poucos estados sas áreas, além de ampliar seu raio de intersecção
do país. Com exceção de com outros campos do saber, atraindo a atenção
Bustamante, da UnB, e da de grupos internacionais”, esclarece.
engenheira de alimentos Dois outros nomes se destacam na lista da
Henriette de Azeredo, da Clarivate. Um deles é o do físico Paulo Artaxo,

PESQUISA FAPESP 299 | 49


do Instituto de Física (IF) da USP, notadamente
Os altamente por suas pesquisas sobre os problemas ambien-
tais causados pelos aerossóis, finas partículas em
citados por país* suspensão na atmosfera, em cidades como São
Paulo e na região amazônica. Em 2014, Artaxo
O Brasil se destaca na América Latina, apareceu pela primeira vez entre o 1% da elite
mas segue distante dos primeiros colocados científica cujos artigos são os mais citados. Suas
pesquisas se tornaram referência internacional
Países nº de pesquisadores
sobre o papel dessas partículas na formação da
1º Estados Unidos 2.651 chuva e no controle dos níveis de radiação so-
2º China 770 lar sobre a grande floresta tropical. Outro nome
recorrente na lista é o do cardiologista Álvaro
3º Reino Unido 513
Avezum, diretor do Centro Internacional de Pes-
4º Alemanha 345 quisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São
5º Austrália 305 Paulo. Desde 2014 ele figura ininterruptamente
6º Canadá 195 entre os mais citados em medicina clínica. Nos
últimos dois anos, porém, passou a se destacar
7º Holanda 181
entre aqueles com mais citações extra campo,
8º França 160 reforçando uma tendência interdisciplinar no
9º Suíça 154 campo da saúde.
10º Espanha 103 Avezum esclarece que o alto impacto de sua
produção se deve, entre outras coisas, ao fato
11º Japão 91
de ele integrar grandes redes internacionais de
12º Arábia Saudita 89 pesquisas multicêntricas envolvendo doenças
13º Itália 85 de interesse. “Há pelo menos três décadas nosso
14º Singapura 81 grupo desenvolve trabalhos no âmbito de uma
rede de cooperação envolvendo 250 hospitais
15º Bélgica 70
e consultórios médicos do país, além de repre-
16º Hong Kong 60 sentar o Brasil em grandes estudos internacio-
Dinamarca 60 nais, como o Pure [Prospective Urban and Rural
18º Suécia 55 Epidemiological Study], que há quase 15 anos
acompanha cerca de 300 mil indivíduos para
19º Coreia do Sul 46
entender os determinantes de adoecimento”,
20º Áustria 39
destaca. “Tentamos sempre responder a questões
21º Irlanda 34 clinicamente relevantes. Para isso, debruçamo-
22º Israel 33 -nos em doenças estratégicas, aquelas altamente
prevalentes, complexas e de risco aumentado, e
23º Finlândia 21
que, portanto, incorrem em morte prematura e
24º Noruega 20
incapacitação dos indivíduos acometidos, como
Taiwan 20 no caso das doenças cardiovasculares, uma das

A
26º Brasil 19 principais causas de morte no mundo”, explica.
27º Nova Zelândia 18
s pesquisas de Avezum
28º Índia 15
congregam algumas das
29º Malásia 13 principais características
30º Grécia 11 compartilhadas por quase
31º Portugal 10
todos os brasileiros en-
tre os mais citados. Para
Rep. Checa 10
além do fato de atuarem
33º Tailândia 9 em assuntos associados
África do Sul 9 a algumas das questões mais prementes e com-
35º Irã 8
plexas do século XXI, seus trabalhos resultam
em dados abrangentes, aptos a serem inseridos
GRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

36º Macau 7
em sínteses globais, isto é, trabalhos de revisão
37º Estônia 6 ou observacionais empreendidos em diferentes
Rússia 6 países com o propósito de analisar os mesmos
39º México 4
fenômenos de maneira integrada. Não por acaso,
é comum esses pesquisadores estarem inseridos
*País-sede da instituição a qual os pesquisadores listados estão vinculados
FONTE CLARIVATE ANALYTICS em grandes redes de colaboração no Brasil e no

50 | JANEIRO DE 2021
em colaboração com pesquisadores de outros
Impacto dilatado países. “Há muito se debate se as colaborações
internacionais aumentam a visibilidade dos ar-
A lista da Clarivate, divulgada em novembro, soma-se a outro estudo, tigos e, por isso, eles recebem mais citações, ou
publicado em outubro na revista PLOS Biology. A partir de informações se eles recebem mais citações porque resultam
da base de dados Scopus, da editora Elsevier, um grupo internacional de colaborações envolvendo grandes grupos de
de pesquisadores, sob coordenação do médico John Ioannidis, do pesquisadores de elite”, pontua Pendlebury. “Sa-
Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública da Universidade Stanford, bemos que artigos com mais colaboração tendem
nos Estados Unidos, elaborou um ranking dos cientistas mais influentes a receber mais visibilidade e citações”, afirma
do mundo em 22 campos científicos e 176 subcampos. Fê-lo Brito Cruz. “O bioquímico Hernan Chaimovich
à luz de indicadores de citação múltiplos – citações, autocitações, número e a bióloga Jacqueline Leta estudaram isso, pa-
de artigos publicados, índice de coautoria e citações de artigos ra o caso do Brasil, em um artigo publicado em
em diferentes posições de autoria – contabilizados entre 1996 e 2020: 2002 na revista Scientometrics. Os dados que le-
161.441 pesquisadores foram contemplados, dos quais 853 são brasileiros, vantei mais recentemente mostram que o efeito
vinculados a diversas instituições de ensino e pesquisa. A USP, maior permanece quando há um número limitado de
universidade do país, novamente se destaca como a instituição com mais coautores. O que ainda não se sabe bem é se a
pesquisadores entre os mais citados, 164, entre eles o biólogo Jean Paul colaboração decorre da visibilidade ou se a visi-
Metzger, do Instituto de Biologia, na área de biologia evolutiva, Paulo bilidade decorre da colaboração.”
Artaxo, do IF, na de ciências atmosféricas, e Fernando de Queiroz Cunha, Não existe uma resposta cabal para essa ques-
coordenador do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias, um dos tão. É certo, porém, que o trabalho em colabo-
Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, ração tem um efeito virtuoso, ampliando, por
na área de farmacologia e farmácia. exemplo, o acesso a infraestruturas de pesquisa.
“Grande parte do trabalho de pesquisa em ecolo-
gia de ecossistemas exige análises de diferentes
propriedades e componentes do meio ambiente
e da biodiversidade, o que nem sempre é possível
fazer, dada nossa limitação de recursos. Não raro,
exterior. Um dos trabalhos mais citados de Barros para contornar esse problema, recorremos a es-
e Victora, o das curvas de crescimento fetal, deu- truturas de parceiros”, diz Bustamante, da UnB.
-se no âmbito de uma grande rede de colaboração, As colaborações também permitem que cientistas
o Consórcio Internacional sobre Crescimento brasileiros obtenham recursos de agências inter-
Fetal e de Recém-nascidos para o Século XXI. nacionais. Esse, aliás, é um dos principais dife-
“A capacidade dos pesquisadores de responder a renciais do grupo de Pelotas. “Mais da metade do
perguntas complexas e de produzir conhecimento total de investimento em pesquisa que recebemos
internacionalmente relevante necessariamente nos últimos 40 anos provém de fontes interna-
envolve o trabalho em colaboração com grupos cionais, como o Idac [International Development
altamente produtivos”, destaca o médico Luis Research Centre], do Canadá, e o Wellcome Trust,
Augusto Rohde, do Departamento de Psiquiatria do Reino Unido”, diz Barros, da UCPel.
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul O resultado desse esforço tende a resultar em
(UFRGS), um dos brasileiros entre os mais citados trabalhos publicados em revistas de prestígio e
de 2020. “A cooperação que mantemos há pelo recebem mais citações. Além disso, parte signi-
menos 20 anos com o grupo de Barros e Victora ficativa dos artigos de brasileiros altamente ci-
em estudos sobre mecanismos de genética mo- tados é assinada por mais de 10 pesquisadores,
lecular, epidemiologia, fenomenologia clínica e fenômeno que há algum tempo ganha força na
tratamentos farmacológicos e não farmacológicos ciência (ver Pesquisa FAPESP nº 289). Muitos são
para crianças com transtorno de déficit de aten- estudantes de mestrado, doutorado e pesquisado-
ção com hiperatividade [TDHA] foi fundamental res em estágio de pós-doutorado. “Esses profis-
para que nos destacássemos internacionalmente sionais constituem parte importante da rede de
na área de psicologia e psiquiatria.” apoio responsável por dar ritmo às atividades em
A relação entre colaborações internacionais e campo e laboratório e fazer avançar os trabalhos
o alto impacto científico encontra respaldo em de pesquisa”, lembra Henriette de Azeredo, da
estudos recentes. Um deles, realizado pelo físico Embrapa. Daí a preocupação com a diminuição
Carlos Henrique de Brito Cruz, da Universida- recente dos investimentos em ciência e tecnolo-
de Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor gia, e a redução das bolsas de pós-graduação. “Os
científico da FAPESP entre 2005 e 2020, envol- números da Clarivate refletem o investimento em
vendo artigos com até 10 autores publicados em pesquisa empreendido nas últimas duas décadas.
periódicos indexados na WoS entre 2015 e 2017, Ainda não temos noção do impacto que os cor-
verificou que o número de citações dos artigos tes dos últimos anos terão na produção científica
brasileiros tende a aumentar quando produzidos brasileira na década que se inicia.” n

PESQUISA FAPESP 299 | 51


PUBLICAÇÃO CIENTÍFICA

O
LABIRINTO
DO
PLANO S

52 | JANEIRO DE 2021
Em vigor a partir de 1º de janeiro, iniciativa de
acesso aberto reduz ambições e enfrenta incertezas
sobre seu alcance

Fabrício Marques

O
Plano S, iniciativa para expandir do plano transferiram a sua implementação de
o acesso aberto na comunicação 2020 para 2021 e suspenderam temporariamente
científica criada por instituições de uma série de restrições. O cOAlition S anunciou
fomento à pesquisa de 17 países, na que seguiria permitida a publicação em qualquer
maioria europeus, entrou em vigor modelo de periódico, até mesmo os de acesso
em 1º de janeiro com ambições mais restrito para assinantes, desde que a revista ga-
comedidas do que as programadas ranta a divulgação de uma cópia revisada do
em seu lançamento, em setembro trabalho em algum repositório de acesso aberto
de 2018. O conceito central man- logo após a publicação, onde possa ser consul-
teve-se intacto: se uma pesquisa é tada sem restrições. Mas a flexibilização só vai
financiada com dinheiro público – no caso, com beneficiar periódicos que celebrem os chamados
recursos de uma das agências signatárias–, os “acordos de transformação”, por meio dos quais
seus resultados deverão ser divulgados em revis- se comprometem a ampliar progressivamente
tas científicas ou em plataformas na internet às suas atividades em acesso aberto até alcançar
quais qualquer pessoa tenha acesso sem precisar 100% dos artigos em 2024. Em troca, ficam auto-
pagar por isso. Já os caminhos para alcançar rizados a manter o modelo antigo nos próximos
essa meta se tornaram mais flexíveis, a fim de quatro anos, podendo assim receber dinheiro das
conciliar interesses de pesquisadores, editoras agências públicas para custear a publicação de
e organizações de financiamento. artigos em acesso aberto.
Responsável pelo plano, o consórcio cOAlition S Embora o Plano S esteja saindo do papel, ainda
desistiu de banir modelos de negócio tradicionais não está claro o tamanho da mudança que será
de periódicos, como a venda de assinaturas ou a capaz de produzir. Em seu lançamento, houve
cobrança de taxas extras para divulgação de artigos um grande esforço para obter a adesão de agên-
na internet. No escopo original do plano, apenas cias de outros países e, assim, aumentar o po-
revistas integralmente de acesso aberto, aquelas der de negociação do cOAlition S, mas o plano
que disponibilizam todo o seu conteúdo livremen- continua sendo uma estratégia europeia, sem
te, poderiam ser adotadas por autores financiados envolver outros continentes. No labirinto de
pelas agências signatárias – e se cogitou até mesmo opções para publicar em acesso aberto, não se
patrocinar a criação de novos periódicos com esse sabe qual será consagrada. De acordo com Abel
modelo (ver Pesquisa FAPESP nº 276). Packer, coordenador da coleção de revistas de
Pesquisadores se queixaram de que o plano acesso aberto SciELO Brasil, o futuro do Plano
limitaria sua liberdade de escolher onde publi- S vai depender muito da ambição e da extensão
car. Também houve uma intensa resistência de dos acordos de transformação que vierem a ser
editoras e sociedades científicas, receosas de celebrados. Por ora, vem avançando outros tipos
perder receitas. Sob pressão, os organizadores de acordos, assinados entre editoras e países ou

PESQUISA FAPESP 299 | 53


universidades, que são incentivados pelo Plano O primeiro esboço do Plano S previa uma padro-
S, mas não vinculados à iniciativa. nização e um teto às taxas de processamento de
Tais acordos não determinam mudanças no artigos (APCs) cobradas dos autores. Os APCs
modelo de periódicos que trabalham com as- remuneram as editoras, cobrindo os custos de
sinaturas. Um deles, negociado entre a editora editoração e publicação de artigos, e oscilam hoje
Wiley e a plataforma Jisc Collections, permiti- entre US$ 1,5 mil e US$ 5 mil por paper. Os artí-
rá que os cerca de 9 mil artigos com autores do fices do Plano S chegaram a aventar uma faixa de
Reino Unido publicados anualmente em revistas valores entre US$ 1,5 mil e US$ 3 mil por APC.
da Wiley estejam com acesso aberto em 2022. Na versão atual do plano, propôs-se apenas que
Na Suécia, o acordo do Consórcio Bibsam com a as editoras sejam transparentes em relação aos
Elsevier, válido desde 1º de janeiro, dá a pesqui- critérios de definição das taxas.
sadores e alunos acesso a mais de 2 mil perió- De acordo com Abel Packer, há revistas de
dicos da editora e permite que todos os artigos acesso restrito que permitirão a divulgação ime-
de autoria sueca sejam publicados em acesso diata de artigos em repositórios públicos – mas
aberto. Em casos excepcionais, houve avanços apenas se o conteúdo for patrocinado por uma

A
mais abrangentes. agência signatária do Plano S. Os demais arti-
gos seguirão inacessíveis ao menos por algum
editora Springer Nature anunciou período de carência, de no mínimo seis meses.
que ampliará sua produção em Ele espera que a concorrência entre as revistas
acesso aberto. “Somos a maior obrigue as editoras a praticar taxas competiti-
editora mundial de artigos de vas. “Talvez algumas reduzam o valor dos APCs
acesso aberto. É para onde o em- e busquem um equilíbrio financeiro ampliando o
preendimento científico irá natu- número de artigos aceitos para publicação”, su-
ralmente”, disse à revista Science gere. “Mas a tendência será aprofundar o fosso
James Butcher, vice-presidente entre pesquisadores de países ricos, que terão
de periódicos. A empresa publica, acesso a periódicos de alto impacto, e os de paí-
hoje, 600 periódicos de acesso ses pobres ou em início de carreira, que terão de
aberto e outros 2.200 híbridos, que cobram assi- procurar outras opções”, explica.
naturas e oferecem publicação de acesso aberto O aumento dos custos foi o mote para uma
aos autores se pagarem uma taxa. Para o grupo, defecção na lista de apoiadores do Plano S. O
ficar fora do plano seria mau negócio. Em 2017, Conselho Europeu de Pesquisa (ERC), programa
35% dos artigos publicados em seu carro-chefe, a da União Europeia que apoia grupos de excelên-
revista Nature, tinham apoio de alguma agência cia, anunciou em julho que deixaria de apoiar
de fomento ligada ao Plano S. o plano, incomodado com a perspectiva de que
Mas a transição de um modelo para outro tam- pesquisadores em início de carreira e de países
bém revela um dos principais pontos vulneráveis fora da Europa perdessem opções para publicar
da iniciativa: o impacto que a mudança poderá seus trabalhos.
acarretar nos custos de publicação. Em novem- Os percalços do Plano S são atribuídos, em
bro, um grupo de 32 revistas da coleção Nature grande medida, ao temor que agências de fo-
apresentou uma estratégia para publicar artigos mento de vários países têm de desorganizar o
em acesso aberto baseada em uma cobrança de € processo de comunicação científica ao adotar
9.500 por artigo – o equivalente a US$ 11,5 mil ou mudanças radicais, quebrando abruptamente
a R$ 58 mil. Trata-se da quantia mais alta cobrada práticas arraigadas. “Há ampla concordância de
no mercado de periódicos científicos. que os custos do financiamento das publicações
Será oferecida em caráter experimental uma científicas não devem mais recair sobre quem lê,
opção mais barata de acesso aberto. Autores mas a forma adequada de fazer isso ainda está
que submetam artigos às revistas Nature Gene- em discussão”, explica José Roberto de França
tics, Nature Methods e Nature Physics pagarão € Arruda, professor da Faculdade de Engenharia
4.790 por artigo, se concordarem em participar Mecânica da Universidade Estadual de Campi-
da chamada “revisão guiada”. Nesse processo, se nas (FEM-Unicamp) e membro da coordenação
os editores das três revistas julgarem que o ma- adjunta de Ciências Exatas e Engenharias da
nuscrito é robusto o suficiente para ser enviado FAPESP. Um dos principais pontos de dissenso,
para revisão por pares, os autores deverão pagar segundo Arruda, envolve a definição de quanto
liminarmente uma “taxa de avaliação editorial” é razoável pagar para publicar um paper em um
de € 2.190 para cobrir os custos iniciais, sem ambiente em que os custos recairão integralmente
garantia de publicação. Se o artigo for aceito, sobre autores e agências financiadoras. “Imagi-
paga-se uma taxa adicional de € 2.600. Se não ne um auxílio à pesquisa no valor de R$ 200 mil,
for, o autor de todo modo poderá incorporar as que tem como resultado cinco artigos científicos
recomendações dos revisores ao seu manuscrito. por ano. Se cada paper custar US$ 1,5 mil, isso já

54 | JANEIRO DE 2021
Para publicar em acesso aberto,
revistas do grupo Nature propõem
cobrar dos autores uma taxa
de € 9.500 por artigo

consumiria boa parte do valor do projeto”, afir- As diretrizes mais recentes estabelecem que
ma. “Recomendamos hoje aos pesquisadores artigos que resultem, total ou parcialmente, de
que prevejam quanto vão precisar para publicar pesquisas financiadas pela Fundação deverão ser

U
os resultados na hora de apresentar o projeto.” divulgados em revistas que permitam o arquiva-
mento de uma cópia dos papers em repositórios
m problema adicional para o Brasil na web. O arquivamento da cópia deverá ser feito
é que esses custos crescentes se quando o paper for aprovado para publicação ou
sobrepõem a outros investimen- então nos prazos compatíveis com as restrições
tos feitos em acesso aberto, como de cada revista – algumas delas impõem perío-
o Portal de Periódicos da Capes, dos de embargo entre seis meses e um ano. Os
por meio do qual as universidades pesquisadores têm liberdade para selecionar os
brasileiras têm acesso – financia- periódicos aos quais querem submeter seus arti-
do pelo governo – ao conteúdo de gos, mas a recomendação é que a escolha recaia
milhares de revistas científicas sobre títulos que permitam o depósito de cópias
internacionais. “É importante que em repositórios.
os recursos hoje usados para financiar o acesso Um comportamento cauteloso também pode
às revistas por assinatura sejam gradualmente ser observado nos debates sobre acesso aberto
transferidos para o financiamento de APCs de do Global Reseach Council (GRC), um fórum que
revistas de acesso aberto. São recursos signi- reúne agências de fomento de todo o mundo. Há
ficativos e isso precisa ser equacionado pelas bastante tempo, a organização dissemina a adoção
agências públicas de fomento.” de mecanismos como a criação de repositórios ins-
A FAPESP apoia de forma assertiva o acesso titucionais de acesso aberto e compartilha expe-
aberto – desde 1997, financia a biblioteca SciELO, riências de sucesso dos países. “Desde 2013, o GRC
que reúne quase 300 periódicos com conteúdo formulou declarações de princípios e planos de
totalmente disponível na internet, que na maioria ação para incentivar a transição para o modelo de
não cobra taxas de publicação. Mas a Fundação acesso aberto, que nortearam políticas de muitas
evitou adotar modelos muito impositivos, como agências. Mas nem por isso um número expres-
os do primeiro escopo do Plano S. Em fevereiro sivo delas aderiu ao Plano S”, observa Euclides
de 2019, a FAPESP aperfeiçoou sua política para de Mesquita Neto, professor da FEM-Unicamp,
acesso aberto a publicações científicas, lançada membro da coordenação adjunta de Programas
em 2008 e que resultou na criação do Repositório Especiais e Colaborações em Pesquisa da FAPESP
da Produção Científica do Conselho de Reitores e um dos três representantes das Américas no
das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp), secretariado executivo do GRC. “Creio que mui-
abastecido com artigos, teses, dissertações e ou- tas estão esperando para ver como os dilemas se
tros trabalhos científicos. resolvem a fim de aperfeiçoar suas estratégias.” n

PESQUISA FAPESP 299 | 55


PALEONTOLOGIA

OS PRECURSORES DOS
PTEROSSAUROS

Reconstituição artística
do lagerpetídeo
Ixalerpeton polesiensis
(ao lado) e do pterossauro
Caelestiventus hanseni
(no alto), ambos tendo
vivido há mais de
210 milhões de anos:
grupos irmãos, embora
um não tivesse asas e o
outro fosse capaz de voar

56 | JANEIRO DE 2021
Estudo sugere que um grupo de pequenos
vertebrados terrestres extintos,
os lagerpetídeos, foram os parentes mais
próximos desses misteriosos répteis alados 2

Marcos Pivetta

N
unca foi fácil classificar pteros- de Hermann, classificou o intrigante ser como
sauros, os primeiros vertebrados um réptil voador. Deu-lhe ainda uma definição
com asas que dominaram os céus pouco lisonjeira ao dizer que ele era “produto
no tempo em que os dinossauros de uma imaginação doentia em vez das forças
perambulavam em terra firme, ordinárias da natureza”. A sentença se explica
entre 230 e 66 milhões de anos atrás. Tem si- por uma peculiaridade dos pterossauros, que se
do assim há dois séculos e meio, desde que foi extinguiram com os dinossauros e não deixaram
descrito seu primeiro fóssil, hoje atribuído à descendentes vivos: eles não se parecem muito
espécie Pterodactylus antiquus, que viveu no com nenhuma forma de vida que os antecedeu
final do período Jurássico, há 150 milhões de e aparentemente vieram ao mundo dotados de
anos. Em 1784, o florentino Cosimo Alessandro uma anatomia adaptada ao voo muito particular,
Collini (1727-1806) descreveu um estranho ani- cuja gênese é um enigma.
mal cujo esqueleto fora encontrado ao menos Um estudo recente de uma equipe interna-
duas décadas antes em uma pedreira de calcá- cional de paleontólogos, coordenada por Max
rio em Eichstätt, uma localidade da Baviera, na Langer, do campus de Ribeirão Preto da Uni-
Alemanha. Em meio ao conjunto de vestígios versidade de São Paulo (USP), deu um passo
ósseos, destacavam-se um longo bico com uma importante para entender melhor a origem dos
IMAGENS 1 RODOLFO NOGUEIRA 2 MICHAEL SKREPNICK / UNIVERSIDADE BRIGHAM YOUNG

dentição afiada e um misterioso quarto dedo da pterossauros. Segundo o trabalho, que recebeu
mão, ainda mais alongado. Curador do gabinete destaque de capa na edição de 17 de dezembro
de história natural da cidade germânica de Man- da revista Nature, um grupo de pequenos bípe-
nheim, Collini achava que se tratava de um ser des terrestres, pouco conhecido e relativamente
aquático, com nadadeiras, impressão reforçada raro no registro fóssil, os lagerpetídeos, são os
pela proveniência do material, oriundo de uma precursores dos pterossauros. Até recentemente,
coleção de peças de aparente origem marinha. a visão dominante entre os paleontólogos era a
Uns poucos anos mais tarde, o naturalista de que os lagerpetídeos, que devem ter surgido
Jean Hermann (1738-1800), de Estrasburgo, na no antigo supercontinente austral Gondwana
França, disse que esse animal seria um mamí- há pouco menos de 240 milhões de anos, eram
fero com asas sustentadas por uma membrana precursores dos dinossauros.
ancorada somente no avantajado quarto dedo, Os lagerpetídeos, que comiam essencialmente
um mecanismo com alguma semelhança, mas insetos e talvez animais menores, não voavam
não igual, ao que surgiria mais tarde nos mor- nem tinham algo similar a asas, mas suas patas
cegos. Na década de 1810, seu colega Georges dianteiras eram alongadas. “A anatomia das gar-
Cuvier (1769-1832), do Museu de História Na- ras de suas ‘mãos’ indica que eles usavam seus
1 tural de Paris, que recebera desenhos e escritos membros anteriores para outros comportamen-

PESQUISA FAPESP 299 | 57


tos que não o deslocamento junto ao solo, como 1

escalar, arranhar ou capturar presas”, comenta


Langer. Não por acaso na reconstituição artística
das formas e do hábitat do Ixalerpeton polesiensis,
espécie de lagerpetídeo encontrado na região de
Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que ilustra a
capa da Nature e cujos vestígios foram analisados
no artigo, os pesquisadores apresentaram esse
animal dando um salto de uma árvore.

O
artigo não advoga a ideia de que
os pterossauros tenham sido
descendentes diretos dos la-
gerpetídeos, cujo registro fóssil
conhecido mais antigo precede
em 18 milhões de anos o mais antigo vestígio dos
répteis alados encontrados até hoje. “Dizemos
que eles são grupos irmãos. É o mesmo tipo de
relação evolutiva que existe entre o homem e o
chimpanzé. Um não descende do outro. O que
os aproxima é o fato de suas linhagens terem se
originado de um ancestral comum”, explica Lan-
ger. Todas essas antigas formas de vertebrados –
dinossauros, pterossauros e lagerpetídeos – têm
algum grau de parentesco entre si e representam
linhagens que compõem um grupo ainda maior
e mais antigo de répteis, os arcossauros. Atual-
mente, as aves (que são representantes do grupo
2
dos dinossauros) e os crocodilos são os únicos
arcossauros vivos. Ezcurra, do Museo Argentino de Ciencias Na-
Até hoje, fósseis de apenas seis espécies de turales Bernardino Rivadavia, de Buenos Aires,
lagerpetídeos, que viveram entre 237 e 210 mi- primeiro autor do artigo na Nature, também as-
lhões de anos atrás, foram descobertos em qua- sinado por colegas dos Estados Unidos e Europa.
tro países (Brasil, Argentina, Estados Unidos e É justamente isso que intriga os paleontólo-
Madagascar). É um grupo de répteis extintos gos. No registro fóssil, mesmo as espécies mais
cujo conhecimento científico remonta a apenas antigas desse grupo de répteis, com idade apro-
cerca de 50 anos. Todas as formas conhecidas ximada de 220 milhões de anos, como Caeles-
desse animal são de porte modesto, com com- tiventus hanseni, já exibem uma anatomia to-
primento entre 10 centímetros e 1 metro (m) e talmente adaptada para voar. Não há formas

FOTOS 1 TOMMY / WIKIMEDIA COMMONS 2 LABORATÓRIO DE PALEONTOLOGIA DA USP DE RIBEIRÃO PRETO


peso máximo de 5 quilos. Inicialmente, foram intermediárias conhecidas, que poderiam ser
encontrados fósseis apenas dos ossos do quadril interpretadas como “rascunhos evolutivos” do
e das patas traseiras. Nos últimos 10 anos, foram que viria a ser um pterossauro. Todos os fósseis
achados vestígios ósseos de outras partes desses desses misteriosos animais parecem ter surgido
répteis, como crânio, coluna e patas dianteiras. prontos para alçar voo, o que dificulta estabele-
Assim foi possível ter um melhor entendimen- cer de que linhagem de répteis os pterossauros 3 STEVEN U. VIDOVIC, DAVID M. MARTILL, MATTHEW MARTYNIUK / PLOS ONE
to da anatomia dos lagerpetídeos e compará-la teriam surgido.
com a dos primeiros pterossauros. No estudo da Nature, os paleontólogos ana-
Os pterossauros são conhecidos há dois sécu- lisaram e reconstruíram os traços anatômicos
los e meio, como ilustra a história no início desta dessa meia dúzia de espécies de lagerpetídeos,
reportagem. Cerca de uma centena de espécies inclusive com o emprego de tecnologias avança-
foi descrita pela ciência, desde exemplares do das, como microtomografia computadorizada,
tamanho de uma galinha (geralmente os mais e montaram árvores genealógicas que os situa-
antigos) até espécimes com as dimensões de ram como o grupo mais similar aos pterossau-
um avião monomotor para quatro passageiros. ros. Embora não tivessem asas e, portanto, não
Todos os pterossauros conhecidos apresentam o pudessem voar, os lagerpetídeos tinham algumas
característico quarto dedo agigantado das patas características anatômicas, como a mandíbula, os
dianteiras. “Nunca foram encontrados fósseis de dentes, o cérebro e o ouvido interno, similares às
pterossauro que não tivessem esse mecanismo de dos pterossauros. “Nosso trabalho sobre a origem
voo”, comenta o paleontólogo argentino Martín dos pterossauros vai impulsionar uma nova linha

58 | JANEIRO DE 2021
3

alados foi encontrada perto da fronteira entre o


norte da Itália e o sul da Áustria.
“Ezcurra e seus colegas jogam luz sobre a
origem desse impressionante grupo [os pteros-
sauros]”, escreve o paleontólogo Kevin Padian,
da Universidade da Califórnia em Berkeley, Es-
tados Unidos, em um artigo, também publicado
na Nature, em que comenta a importância do
novo trabalho. “Os resultados apresentados não
traçam o caminho evolutivo completo que levou
um pequeno réptil terrestre a gerar o primeiro
vertebrado capaz de voar. Mas um dia um ances-
tral de pterossauro deverá emergir das rochas
do Triássico para preencher alguns dos espaços
em branco, da mesma forma que a descoberta
de Archaeopteryx forneceu as pistas centrais
para os primeiros estágios de voo das aves.” O
fóssil de Archaeopteryx foi o primeiro vestígio
de dinossauro descoberto que tinha penas e fi-
Na página ao lado, de pesquisa que tentará entender como esses gura como um exemplar de transição entre as
fóssil de pterossauro do animais se tornaram os primeiros vertebrados linhagens terrestres desse popular grupo de
gênero Eudimorphodon,
encontrado nos alpes
a adquirir a capacidade de alçar voo ativo e não répteis e as das aves.
italianos (imagem superior), apenas planar”, comenta Ezcurra. Para o paleontólogo Alexander Kellner, dire-

A
e do lagerpetídeo tor do Museu Nacional (MN), da Universidade
Ixalerpeton polesiensis, tualmente, duas hipóteses ten- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o novo estudo
descoberto em
São João do Polêsine,
tam dar conta do processo evo- traz uma contribuição muito importante para as
no Rio Grande do Sul. lutivo que levou ao surgimento e discussões sobre a origem dos pterossauros. “É
Nesta página, fóssil de irradiação dos pterossauros. Uma um trabalho excelente”, comenta Kellner, reco-
Pterodactylus antiquus, delas favorece a ideia de que es- nhecido especialista em pterossauros. Ele, no
primeira espécie
de pterossauro descrita
ses répteis alados teriam surgido há mais de 250 entanto, diz que essa questão ainda está longe de
na literatura científica milhões de anos, bem antes do que indica seu ser totalmente respondida. “O ideal seria encon-
há cerca de 250 anos registro fóssil. Segundo essa visão, apelidada trarmos no registro fóssil um animal que tivesse
de modelo Iceberg, os pterossauros teriam uma algo mais parecido com as asas dos pterossauros,
longa história evolutiva não registrada pelos fós- mas ainda não fosse um pterossauro”, pondera
seis e foram se espalhando paulatinamente pelos o paleontólogo do MN. “Ou seja, um quase pte-
continentes, a exemplo do ocorre com o deslo- rossauro que não voasse ou tivesse dificuldades
camento dos gigantescos blocos de gelo. O outro para voar.” Essa forma claramente intermediária
modelo, denominado Big Bang, defende o ponto entre um réptil terrestre e um alado é o sonho
de vista de que sua origem foi mais explosiva e de pesquisa de todo paleontólogo. Os lagerpetí-
concentrada em um pequeno período de tempo. deos não tinham uma anatomia que os permitisse
Por essa linha de raciocínio, os pterossauros te- voar ou mesmo planar. Mas, por ora, segundo o
riam aparecido de forma mais ou menos abrupta trabalho na Nature, eles foram o grupo animal
na história evolutiva, por volta de 220 milhões conhecido mais parecido com os pterossauros. n
de anos atrás, idade máxima que atingem seus
fósseis conhecidos mais antigos.
“A proximidade evolutiva com os lagerpetídeos Projeto
[cujos exemplares mais antigos não chegam a 240 A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico
– Eojurássico) (nº 14/03825-3); Modalidade Projeto Temático; Pesqui-
milhões de anos] reforça o modelo do Big Bang”, sador responsável Max Langer (USP); Investimento R$ 2.411.452,01.
diz o paleontólogo italiano Fabio Marco Dalla
Vecchia, do Museo Friulano di Storia Naturale, Artigos científicos
de Udine, coautor do novo estudo. Dalla Vecchia EZCURRA, M. D. et al. Enigmatic dinosaur precursors bridge the gap
to the origin of Pterosauria. Nature. 9 dez. 2020.
é um dos maiores especialistas em pterossauros. PADIAN, K. Close kin of the first flying vertebrates identified. Nature.
Boa parte dos fósseis mais antigos desses répteis 9 dez. 2020.

PESQUISA FAPESP 299 | 59


ARQUEOLOGIA

POVOS
INTERLIGADOS
DA AMAZÔNIA
ANTIGA
SANNA SAUNALUOMA

60 | JANEIRO DE 2021
Redes de estradas conectavam aldeias
distantes até 10 quilômetros e uniam culturas
em períodos pré-colombianos

Maria Guimarães

E
m 1887, um grupo de 35 pessoas, em estágio de pós-doutorado com Neves, concen-
liderado pelo coronel maranhense tra-se em resquícios de 18 povoados caracteriza-
Antonio Rodrigues Pereira Labre dos por uma grande praça central circular ou elíp-
(1827-1899), percorreu 200 quilôme- tica que tem entre 2 e 3 hectares (ha) de diâmetro.
tros (km) do rio Madre de Dios, na Em volta dela, de 15 a 25 montículos com cerca
Bolívia, até o rio Acre, atualmente no de 2,5 metros (m) de altura, e entre 10 e 25 m de
Brasil. O objetivo era traçar possíveis comprimento na base. Saindo dos povoados, ca-
rotas para escoamento da borracha extraída das minhos afundados delimitados por uma mureta –
seringueiras, mas a expedição também deixou um de terra, não há pedras disponíveis por ali – se
relato importante sobre as populações indígenas dirigem a cursos d’água próximos ou na direção
da época – e anteriores – nessa região amazônica. de outras aldeias. Em visão aérea, parecem sóis
“Desta maloca deserta seguimos para Canamary, com uns raios mais curtos e outros mais longos.
passando em caminho lugares de povoações anti- Usando drones, foi possível reconhecer padrões
quíssimas, muitas encruzilhadas e estradas, ora pa- proeminentes e construir modelos tridimensio-
ra a direita e ora para a esquerda”, escreveu Labre nais. Isótopos de carbono permitiram determinar
no relato publicado em 1888 na Revista da Sociedade que as estruturas foram construídas entre os anos
de Geographia do Rio de Janeiro. “Eles caminharam de 1300 e 1600. Aos poucos foi surgindo uma rede
por 20 dias pela floresta, o tempo todo relatando mais extensa do que se imaginava.
o uso de estradas”, ressalta o arqueólogo Eduardo A preocupação agora é entender o máximo
Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia possível dessas culturas do passado enquanto os
da Universidade de São Paulo (MAE-USP). vestígios ainda existem. “A região é uma fronteira
Cerca de 120 anos depois da passagem de La- do desmatamento pela atividade agrícola”, afirma
bre, uma avaliação de impacto ambiental na mes- Neves. “Os fazendeiros muitas vezes destroem
ma região, no leste do Acre, permitiu que uma sítios arqueológicos para evitar perder o direito
torre de linha de transmissão fosse instalada em de plantar.” Aconteceu no sítio Sol de Campinas,
cima de um trecho de uma antiga estrada indí- um dos principais estudados pelo grupo da USP.
gena. “Não foi reconhecido, porque não havia o “Metade dos montículos foi aplainada e recen-
entendimento de que os indígenas construíssem temente o geoglifo Fazenda Crichá foi também
estradas”, explica a arqueóloga Laura Furquim, destruído.”
estudante de doutorado no grupo de Neves. Em O sítio, hoje cercado por uma vegetação es-
2014, a equipe da USP foi contratada pelo Insti- parsa de bambus e palmeiras, até 50 anos atrás
tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ficava embaixo da floresta. Os vestígios arqueo-
(Iphan) para descrever as estruturas em processo botânicos sugerem um manejo pré-colombiano
de destruição. “Fizemos um sítio-escola com estu- de plantas comestíveis (ver Pesquisa FAPESP nº
dantes do Acre, de Rondônia e de São Paulo”, con- 253). Neves imagina um cenário em que as trilhas
ta Neves. Os resultados desenham uma paisagem eram cercadas por árvores e sistemas agroflo-
pré-colombiana repleta de povoações conectadas restais. “Seguimos por uma estrada boa e bem
por estradas bem mantidas, de acordo com artigo cultivada; passamos três aldeias com boas casas
Sulcos que cortam publicado em novembro no site da revista Latin e plantações”, contou Labre, cujo relato foi estu-
o solo entre geoglifos,
no leste do Acre,
American Antiquity (ver Pesquisa FAPESP nº 267). dado em 2017 pelo arqueólogo Cliverson Pessoa,
já foram caminhos O artigo, liderado pela arqueóloga finlandesa estudante de doutorado no grupo de Neves, na
bem mantidos Sanna Saunaluoma, que esteve no Brasil em 2015 revista Tellus.

PESQUISA FAPESP 299 | 61


O estudo, ainda em curso, busca reconstruir os há-
bitos alimentares daqueles grupos.
Ela atribui a desocupação da área à chegada
dos europeus à região, já no século XVIII, que
envolveu muita disputa pela riqueza da borra-
cha, gerando escravização e migração de povos.
Os sistemas agroflorestais consistiam em uma
combinação de plantas cultivadas como milho,
leguminosas e frutas – como maracujá – na praça
central dos povoados, além do manejo de árvores
ricas em alimento, como castanhas, açaí e tucumã.
Hoje essa prática biodiversa deu lugar a grandes
monoculturas de soja e milho transgênico, além
de pastos para o gado – caso da propriedade onde
está o sítio Sol de Campinas.
Os sítios monticulares fazem parte de um con-
junto maior de indícios de ocupação humana que
são os geoglifos – alterações no terreno feitas por
habitantes humanos. Mais de 500 foram registra-
dos na parte oeste da Amazônia ao longo dos úl-
timos 20 anos, desde que o paleontólogo gaúcho
Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre,
avistou um enorme círculo da janela de um avião
enquanto rumava a Rio Branco, capital do estado.
Com treinamento em geografia, o pesquisador
cronometrou o voo até chegar a um ponto de re-
ferência conhecido. Depois conseguiu um avião
emprestado e foi em busca do que tinha visto, pa-
ra fotografar – encontrou, onde sabia que estaria,
dentro da floresta. “Quando aprendemos a dirigir
o olhar, começamos a encontrar um geoglifo de-
pois do outro”, conta Ranzi.
Ele logo percebeu que a forma geométrica co-
berta por vegetação seria sinal de algo importante
e procurou a arqueóloga Denise Schaan (1962-
2018), que iniciou os estudos na área até então
inexplorada em termos de pesquisa arqueológica.
“Estamos longe de Marajó e longe de Cusco, no
Peru, que eram os sítios mais badalados”, brinca.
Hoje isso mudou. Schaan fez uma parceria com
1
pesquisadores finlandeses liderados pelo arqueó-
Modelos tridimensionais Os dados de pesquisa ainda não permitem deta- logo Martti Pärssinen e pesquisadores de outros
a partir de imagens lhar esse cenário, mas Laura Furquim, que trabalha países e do resto do Brasil – como Neves – foram
capturadas por drones
revelam configuração
na região desde 2014, está estudando o uso de vege- atraídos para a região, que se tornou um centro
tais pelos habitantes do sítio hoje conhecido como de investigação arqueológica. FOTOS 1 SANNA SAUNALUOMA E JUSTIN MOAT 2 EDUARDO GÓES NEVES / USP
de aldeias monticulares
Sol de Campinas, no município de Senador Guio- As escavações revelaram que geoglifos geomé-
mard. Com o enfoque da arqueobotânica, a pesqui- tricos do leste do Acre não eram locais de habita-
sadora analisa sementes e outros restos de vegetais ção, mas arenas cerimoniais para onde convergiam
utilizados pelos antigos habitantes. “Encontramos grupos que viviam em outros lugares. Mas mesmo
muitos grãos de milho”, exemplifica, sugerindo um essas estruturas mais antigas podiam ser conec-
intenso consumo e cultivo. Ela também analisa os tadas por estradas, como mostraram Pärssinen e
microvestígios vegetais que ficam aderidos à cerâ- Ranzi, em capítulo publicado em março de 2020
mica – como quando o arroz passa do ponto e deixa no livro (I)mobilidades na pré-história, a partir
marcas no fundo da panela. “Olhando os grãos de de escavações de geoglifos no Acre e no Amazo-
amido ao microscópio é possível identificar a espé- nas. “A amostra de radiocarbono mais antiga que
cie de plantas amiláceas, como tubérculos”, explica. obtivemos da fazenda Tequinho, no Acre, estava
Danos em alguns grãos de amido são reveladores claramente associada à estrada norte do sítio e ti-
do modo de processamento. “Encontramos sinais nha uma data entre 63 a.C. e 124 d.C”, afirmou o
de que o milho tenha sido torrado ou fermentado.” finlandês por e-mail. “É uma datação muito seme-

62 | JANEIRO DE 2021
lhante à obtida para a fazenda Atlântica, escavada na última década veio revolucionar a arqueologia
por Saunaluoma durante o doutorado, e as estradas é o Lidar (Light Detection and Ranging). A bordo
correspondentes – entre 200 a.C e 20 d.C.” Depois de algum veículo aéreo, o equipamento lança até
de publicado o capítulo, eles encontraram uma data 5 mil pulsos de raios infravermelhos por minuto,
ainda mais antiga, 750 a.C., em outro sítio da região. que batem na superfície e voltam, fornecendo
Para Pärssinen, o artigo recente de Saunaluoma uma medida de distância. Na Amazônia, a maior
e Neves traz informações novas e relevantes sobre parte dos raios não passa das copas das árvores.
o período mais recente dos geoglifos, quando apa- Mas alguns poucos chegam ao solo, o suficiente
rentemente algumas das estruturas geométricas para permitir um mapeamento detalhado do re-
anteriores ainda mantinham função puramente levo, como se a floresta não existisse.
cerimonial. “Para mim, a rede de geoglifos geo- O grupo do arqueólogo uruguaio José Iriarte,
métricos com um sofisticado sistema de estradas da Universidade de Exeter, no Reino Unido, em
pertencia a uma civilização multiétnica que tinha parceria com Ranzi e outros, fez em 2018 um teste
uma visão de mundo em comum e que comparti- da tecnologia com três sobrevoos a bordo de um
lhava traços culturais”, conclui. helicóptero no Acre, conforme descrito em 2020

O
na revista Journal of Computer Applications in
s estudos arqueológicos tam- Archaeology. O processo permitiu o mapeamento
bém permitem fazer corre- preciso de sítios monticulares, com dimensões e
lações entre o povoamento, inclinações do terreno, de maneira muito mais rá-
as suas práticas e o clima. pida do que seria possível com métodos tradicio-
Em artigo publicado em de- nais de topografia. Também mediram as estradas.
zembro na revista Antiquity, As principais tinham entre 3 e 6 m de largura, com
Pärssinen – em colaboração muretas laterais mais altas do que as secundárias.
com Ranzi e outros colegas – mostrou que não Os pesquisadores identificaram geoglifos mon-
há indícios de grandes mudanças no regime de ticulares debaixo da floresta, feições sobrepostas
chuvas por volta de 10 mil anos atrás, uma época e estradas conectando aldeias diferentes. “O Lidar
para a qual começa a haver indícios de ocupação revela coisas que não conseguimos enxergar”,
humana longe das margens dos grandes rios – os comemora Ranzi.
interflúvios. Escavações no geoglifo de Severino Em escala maior, o arqueólogo norte-americano
Calazans, no Acre, indicaram que cerca de 4 mil Chris Fisher, da Universidade Estadual do Colo-
anos atrás a população residente usava queimadas rado, pretende mapear a Amazônia inteira com
no manejo da paisagem, de maneira semelhante ao Lidar – em parceria com Neves. A ideia é começar
procedimento atual de povos indígenas da região. pela Amazônia principalmente pela urgência – a
Seriam essas práticas, e não mudanças climáti- pressão de desmatamento e destruição de sítios
cas, as responsáveis por manchas de vegetação arqueológicos pelas atividades humanas atuais –
Escavação no sítio savanizada que existiam por ali naquela época. em uma região repleta de indícios de civilizações
Sol de Campinas: Uma dificuldade no estudo dos geoglifos é, de antigas. “Em 45 minutos, consigo os dados que
cerâmicas e vestígios
maneira geral, eles só serem localizados em áreas a pé levaria décadas para obter”, explica Fisher.
vegetais indicam
datas de ocupação já desmatadas. Quando estão debaixo da floresta, Outra vantagem do Lidar é evitar a destruição
e modo de vida são virtualmente invisíveis. Uma tecnologia que dos registros arqueológicos. Para montar um sítio,
2
é preciso acesso. Abrir clareiras para helicópte-
ros, trilhas, estradas. Tudo isso danifica o terreno,
abre caminho para erosão e a perda do objeto de
estudo. Com a tecnologia aérea, é possível esca-
var apenas em pontos selecionados.
Para Neves, o mapeamento dos geoglifos dei-
xará claro que muita gente vivia nos confins da
Amazônia antes da chegada dos europeus. Já di-
zia Labre no final do século XVIII: “Pelos pontos
e lugares por mim visitados e pelas informações
ouvidas dos selvagens, concluo que pelos rios
Curykethê, Huaquery e Entimary e seus afluentes
até as cabeceiras, há muita população selvagem
aglomerada; e ainda mais esse juízo se confirma
pelas muitas estradas, caminhos e taperas que vi
em minha passagem”. n

Os projetos e os artigos científicos apoiados pela FAPESP


mencionados nesta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 299 | 63


U
BOTÂNICA m grupo de biólogos bra-
sileiros, em parceria com
colegas europeus e do
Chile, estudou a relação
ainda pouco conhecida

ÁRVORES
entre a longevidade e a
taxa de crescimento das árvores e o com-
portamento do clima em florestas espa-

TROPICAIS
lhadas pelo planeta. O trabalho analisou
dados de 3.343 populações de árvores
de 438 espécies, das quais 284 de áreas
tropicais e 154 de zonas temperadas, que

VIVEM formam anéis de crescimento, um parâ-


metro a partir do qual se consegue esti-
mar sua idade. Os resultados indicam que,

MENOS
em média, as árvores de regiões quentes
crescem duas vezes mais rápido do que
as de biomas temperados ou boreais. Mas
a vida nos trópicos, pelo menos para as
espécies avaliadas, costuma ser bem mais
Estudo com 438 espécies indica curta. Enquanto as árvores tropicais es-
tudadas duram, em média, 186 anos, os
que a longevidade média exemplares de regiões de latitude maior
vivem, também em média, 322 anos.
de exemplares de clima quente Em termos geográficos, os dados ana-
e de áreas frias é, respectivamente, lisados, que foram compilados em mais
de 200 estudos feitos previamente, en-
de 186 e 322 anos globam, no caso dos trópicos, espécies de
áreas como a Amazônia e as florestas afri-
Eduardo Geraque canas e asiáticas. As regiões temperadas

Em Madagascar,
uma estrada
pontuada por baobás,
árvore tropical
que chega a viver
mil anos

64 | JANEIRO DE 2021
dos dois hemisférios incluem a América O trabalho também analisou como a pode explicar os aumentos observados
do Norte, a Europa, a Ásia, a Argentina idade e a taxa de crescimento das espé- atualmente na mortalidade de árvores
e o Chile, além de áreas da Nova Zelân- cies arbóreas de planícies tropicais são em florestas tropicais, como a Amazônia,
dia e da Austrália, como a Tasmânia. “O influenciadas por mudanças na tempe- e os registros das mudanças na compo-
trabalho desmitifica um pouco a história ratura e na disponibilidade de água. Sob sição das florestas na África Ocidental”,
de que haveria muitas árvores milenares essa perspectiva, a principal conclusão é comenta Locosselli. Em climas futuros
nos trópicos”, comenta o botânico Marcos preocupante, sobretudo no cenário atual mais secos e especialmente quentes, os
Buckeridge, do Instituto de Biociências de aumento do efeito estufa que torna o resultados do artigo sugerem que as ár-
da Universidade de São Paulo (IB-USP), planeta progressivamente mais quente. “A vores com menor longevidade tendem a
coordenador do estudo, publicado em 14 longevidade das árvores tropicais diminui ganhar terreno nos trópicos. “Pode haver
de dezembro na revista científica PNAS. significativamente sob condições mais se- mudanças na composição das espécies
Isso não significa que elas não existam, cas e quentes nos trópicos, provavelmen- das florestas tropicais, mas não uma mor-
mas aparentemente estão presentes de for- te afetando a dinâmica da floresta e seu te generalizada”, opina o pesquisador do
ma menos frequente do que se imaginava. papel de retirar carbono da atmosfera e Instituto de Botânica.
Segundo o artigo, a espécie mais longe- estocá-lo como biomassa. Esse tipo de al- Apesar de classificar os resultados do
va das áreas tropicais é o baobá (Adanso- teração pode mexer com todas as cadeias novo estudo como muito interessantes,
nia digitata), a única conhecida de clima alimentares desses ecossistemas e tam- o ecólogo David Lapola, do Centro de
quente que é capaz de passar dos mil anos. bém das áreas temperadas”, diz Buckerid- Pesquisas Meteorológicas e Climáticas
“Essas árvores das savanas africanas têm ge. “Estamos em alerta vermelho, porque Aplicadas à Agricultura da Universidade
um tronco suculento que armazena muita nosso trabalho indica que a mortalidade Estadual de Campinas (Unicamp), pon-
água. Com essa estrutura, podem crescer das árvores mais velhas aumenta quando dera que mais observações de campo são
rápido e, ao mesmo tempo, atingir idades a temperatura média anual em seu am- necessárias para ter uma noção mais clara
muito elevadas”, comenta Giuliano Locos- biente ultrapassa os 25,4 °C.” do que pode vir a ocorrer com as florestas

P
selli, especialista em análise de dados ob- em razão do aquecimento global. “Exis-
tidos a partir dos anéis de crescimento de ara essa parte do trabalho, tem várias medidas feitas na Amazônia,
árvores e primeiro autor do trabalho, que os pesquisadores usaram o por exemplo, que mostram que o tempo
fez pós-doutorado na USP sob orientação modelo climático elabora- de vida das árvores vem, de fato, se redu-
de Buckeridge e agora está no Instituto de do pelo instituto britânico zindo. Mas os anéis de crescimento não
Botânica de São Paulo. “A água armaze- Hadley Centre, um dos em- conseguem registrar uma tendência im-
nada permite que elas atinjam dimensões pregados nas análises feitas portante que tem sido verificada in loco
gigantescas sem sofrer estresse hídrico. O pelo Painel Intergovernamental de Mu- e pode compensar a redução da longevi-
maior baobá conhecido tem pouco mais danças Climáticas (IPCC) da Organiza- dade: apesar de as árvores estarem mor-
de 9 metros de diâmetro.” ção das Nações Unidas (ONU). De acor- rendo mais cedo, elas estão nascendo em
Depois do baobá, as árvores mais lon- do com esse modelo, o limiar de 25,4 ºC maior quantidade”, afirma Lapola.
gevas nos trópicos vivem no máximo cer- em áreas tropicais deve ser atingido Para o pesquisador da Unicamp, ainda
ca de meio milênio. Encontrada na Amé- entre 2030 e 2050. Vários estudos já si- não é possível afirmar que, a longo pra-
rica Central, Hymenolobium mesoameri- nalizaram que a maior concentração de zo, daqui a 100 ou 200 anos, as florestas
canum pode durar 560 anos, de acordo dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, tropicais serão compostas por menos
com o estudo. Originária da Ásia, mas principal gás do efeito estufa, poderia biomassa e passarão por um processo de
plantada no Brasil, a teca (Tectona gran- atuar como uma espécie de fertilizante savanização. “A questão da longevidade
dis) oferece madeira dura de qualidade e para muitas espécies vegetais. Nesse tipo tem limitações e não é o único fator que
atinge uma longevidade de até 523 anos. de ambiente, as plantas cresceriam mais controla a dinâmica florestal”, pondera
Típica dos biomas brasileiros, mas pre- rapidamente e acumulariam mais bio- Lapola. “Podem ocorrer outras mudanças
sente em boa parte da América Latina, o massa, algo, em tese, bom para o clima. funcionais dentro das florestas, como o
guanandi ou cabreúva (Calophyl­lum bra- Dessa forma, os vegetais retirariam uma crescimento de espécies mais adaptadas
siliense) vive em média 490 anos. parte do excesso de carbono da atmosfe- às secas”, avalia. n
Os dados compilados para as florestas ra e ajudariam a combater o aquecimento
mais frias e secas da Terra revelam espé- global. O problema, segundo o novo es-
cies com idades bem mais avançadas. Nas tudo, é que as árvores cresceriam mais, Artigo científico
ROD WADDINGTON / FLICKR / WIKIMEDIA COMMONS

regiões extratropicais, as árvores mais mas morreriam mais cedo em razão das LOCOSSELLI, G. M. et al. Global tree-ring analysis reveals
rapid decrease in tropical tree longevity with tempera-
velhas, em média, ultrapassam com fol- temperaturas elevadas. ture. PNAS. 14 dez. 2020.
ga um milênio de idade. Entre as popu- Nas planícies tropicais quentes, por
lações de árvores analisadas no estudo, exemplo, onde as espécies arbóreas de Projetos
o pódio das mais longevas foi formado folhas largas dominam a vegetação, os re- 1. INCT 2014: Instituto Nacional de Ciência e Tecnolo-
gia do Bioetanol (nº 14/50884-5); Modalidade Projeto
por um trio de pinheiros da América do sultados do trabalho publicado na PNAS Temático; Pesquisador responsável Marcos Buckeridge
Norte: Pinus resinosa (2.006 anos), Pi- mostram diminuições consistentes na (USP); Investimento R$ 2.717.757,01.
nus longaeva (1.965 anos) e Taxodium longevidade das árvores em locais secos 2. Florestas funcionais: Biodiversidade a favor das cida-
des (nº 19/08783-0); Modalidade Jovem Pesquisador;
distichum (1.621 anos). A primeira espé- e quando o limite de temperatura média Pesquisador responsável Giuliano Locosselli (Instituto
cie pode atingir até 50 metros de altura. anual ultrapassa 25,4 °C. “Esse processo de Botânica); Investimento R$ 1.162.901,08.

PESQUISA FAPESP 299 | 65


ENTREVISTA GUSTAVO TURECKI

DETETIVE
DA
MENTE
Nascido na Argentina e formado
no Brasil, psiquiatra investiga
as causas do suicídio

Ricardo Zorzetto

B
em cedo na carreira, o psiquiatra Gustavo Turecki escolheu como foco de Suicídio é um tema tabu. Por que é tão
suas pesquisas um problema árido, sobre o qual muita gente evita falar: difícil falar sobre o assunto?
o suicídio. Um fenômeno social atraiu sua atenção para o assunto. No Porque ele foi sempre condenado histó-
início dos anos 2000, as taxas de morte autoinfligidas eram consideradas rica e socialmente. Nenhuma sociedade
fora de controle na província de Quebec, no Canadá, onde havia se estabelecido apoiou ou apoia o suicídio como méto-
fazia pouco tempo. “Eu estava iniciando minha atividade como psiquiatra e senti do de morte. Em todas as religiões, ele
a necessidade de tentar compreender por que algumas pessoas que desenvolvem é pecado. Em algumas, quem se suici-
depressão tiram a própria vida, enquanto outras não”, lembra o pesquisador. da não pode ser enterrado com as de-
Ele ainda não encontrou a resposta, mas em quase 20 anos de investigações mais pessoas. A morte por suicídio não
se tornou um dos principais estudiosos no mundo sobre o assunto, com mais é socialmente aceita. Em parte, porque,
de 500 artigos científicos publicados sobre os fatores biológicos, sociais e com- como organismos, fomos programados
portamentais associados ao suicídio. Turecki nasceu em La Plata, Argentina, e para viver, não para morrer. Em parte,
aos 10 anos imigrou para o Brasil com os pais – ele engenheiro argentino, ela porque é visto como um ato voluntário.
brasileira. Formou-se médico na antiga Escola Paulista de Medicina, atual Uni- Quando se passa a compreender que esse
versidade Federal de São Paulo (Unifesp), antes de seguir para um doutorado comportamento não depende de auto-
na Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, onde hoje dirige o Departa- controle, que a pessoa que o comete não
mento de Psiquiatria e o Centro de Pesquisa Douglas, destinado à investigação se encontra de posse plena de seu livre-
de problemas de saúde mental. -arbítrio, com exceção apenas dos casos
Em uma videochamada no início de novembro, Turecki, de 55 anos, conver- de suicídio assistido, o panorama muda.
sou sobre as causas do suicídio e como reduzir o problema. Em abril, ele planeja
retornar ao país para participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria e falar Pensar o suicídio como um ato volun-
de suas pesquisas mais recentes. tário é, de certo modo, preconceituoso.

66 | JANEIRO DE 2021
Turecki: “Os transtornos
psiquiátricos funcionam
como fator desencadeador
do comportamento suicida”

indivíduo para outro. As pessoas que se


suicidam têm certa predisposição, que é
influenciada por características genéti-
cas, experiências vividas e personalida-
de. Esses fatores interagem com outros
temporalmente mais próximos do ato,
que funcionam como desencadeadores
da crise suicida. A doença mental é um
desencadeador. A maior parte das pes-
soas que morrem por suicídio tem de-
pressão. Uma forma de entender o risco
suicida é pensar assim: as pessoas com
certa predisposição de cometer suicídio
em algum momento ficam deprimidas
e, com a depressão, começam a ter idea-
ção suicida, o que pode levá-las a atuar.
Esse modelo ajuda a entender o risco
principalmente entre os indivíduos mais
jovens. Nos idosos, o suicídio é mais as-
sociado com a patologia mental. Quase
100% das pessoas com mais de 65 anos
que se suicidam têm um episódio de-
pressivo associado à morte.
Exato. Entendo o suicídio como resulta- menor do que nos países ocidentais e
do de alterações cognitivas associadas à se debatem as razões dessa diferença. Como se chegou a esses números?
doença mental. Não se questiona que existe uma asso- Para estudar as razões associadas ao sui-
ciação forte com a doença mental, mas cídio, muitas vezes usamos um processo
Essa visão é aceita pelos profissionais o quanto do comportamento é explica- chamado autópsia psicológica. Entre-
da saúde? do por ela. Também não se pode reduzir vistamos parentes e outras pessoas bem
De modo geral, entende-se que não é tudo à doença mental. Ela é apenas um próximas à pessoa que morreu para ten-
uma questão ligada ao autocontrole. aspecto, um fator de risco. No modelo tar reconstruir o que aconteceu antes
Creio que hoje ninguém duvide que, em que desenvolvi, proponho que os trans- do óbito e verificar se havia sintomas de
boa parte dos casos, ele esteja associado tornos psiquiátricos funcionem como o doenças mentais. Alguns estudos usando
à doença mental. Há, porém, um debate fator desencadeador do comportamento essa técnica indicam que quase 90% das
na literatura acadêmica sobre qual o im- suicida, mas há outros fatores associados pessoas que cometem suicídio passa-
pacto da doença mental sobre o suicídio. à predisposição. ram por episódio de transtorno mental
imediatamente antes da morte. Entre as
Discute-se ainda qual seria o peso dos Poderia dar exemplos? pessoas com menos de 25 anos, a média
transtornos psiquiátricos sobre esse Primeiro é preciso compreender que é menor, em torno de 50%. A proporção
comportamento. não há uma explicação única de por que varia entre países. Nos Estados Unidos e
Alguns estudos mostram que a porcen- as pessoas se suicidam. O risco de sui- no Canadá, beira os 90%. Na China fica
UNIVERSIDADE MCGILL

tagem de pessoas que morrem por suicí- cídio resulta da interação complexa de em 60%. Uma possível explicação para
dio e teriam um quadro compatível com fatores biológicos, clínicos, psicológi- a diferença é que fatores socioculturais
o de doença mental pode variar muito. cos, sociais, culturais e ambientais. O podem dificultar o diagnóstico preciso
Na China e na Índia, essa proporção é peso relativo de cada fator varia de um de problemas de saúde mental.

PESQUISA FAPESP 299 | 67


Um dos seus trabalhos mais citados, adotivos, e por cuidadores. Essas pes- Suspeito que sim, embora não se saiba
publicado em 2009 na revista Nature soas não são abusivas o tempo todo. Elas ainda responder em qual idade. O cé-
Neuroscience, mostra que o cérebro costumam cometer abuso quando estão rebro é um órgão dito plástico, ou seja,
de quem sofreu abuso na infância res- alteradas emocionalmente ou sob efeito que se adapta de acordo com a experiên-
ponde de modo diferente ao estresse, o de drogas. No nosso entender, o cérebro cia. Essa capacidade de aprendizado e
que poderia facilitar o suicídio. Como da criança percebe que esse ambiente é adaptação é maior nas duas primeiras
chegou a essa conclusão? hostil e imprevisível e lida com a situa- décadas de vida. Processos negativos que
Um dos fatores de predisposição mais ção aumentando o nível de alerta. ocorrem durante esse período costumam
importante, que não é específico para ter um impacto maior na capacidade de
o suicídio, mas aumenta o risco de ma- Nessas pessoas a produção de cortisol lidar com o estresse e as adversidades.
neira significativa, é ter sofrido abuso facilmente sairia de controle?
na infância. Seja abuso físico, sexual ou A adição de radicais metil a esse gene Eles não são determinantes, mas au-
negligência parental. Na prática clínica, torna-o menos ativo e reduz a quanti- mentam a propensão.
observa-se que pessoas que sofreram ex- dade de receptores de glicocorticoides Em psiquiatria, nada é determinante.
periências abusivas no começo da vida no hipocampo. Isso prejudica a inibição Existem associações, que tentamos ex-
têm mais risco de manifestar comporta- do eixo HPA. Essas pessoas ficam mais plicar por meio de modelos teóricos. Ex-
mentos suicidas e morrer por suicídio. alertas, como resultado de uma adap- periências de vida negativas não deter-
Isso também está bem determinado na tação do cérebro a um ambiente que é minam que uma pessoa vá cometer suicí-
literatura científica. Nossos estudos su- hostil e imprevisível, ou seja, no qual não dio. Muitas sofrem traumas e se tornam
gerem que esse risco está relacionado se sabe quando pode ocorrer o abuso. resilientes. Mas a proporção de quem
com dificuldades na regulação de res- Do ponto de vista clínico, essas pessoas passou por situações abusivas é maior
postas emocionais e comportamentais. são mais ansiosas e hipervigilantes. Esse entre as pessoas que morrem por suicí-
Essas pessoas tendem a agir de maneira mecanismo molecular explicaria o au- dio do que entre as que não cometem o
mais impulsiva e agressiva. Em geral, são mento de risco, sobretudo quando essas ato ou que morrem por outras causas.
mais explosivas. Elas também tendem a pessoas ficam deprimidas e começam a
ser mais ansiosas. O trabalho da Nature ter ideação suicida. Como são feitos os estudos que permi-
Neuroscience foi o primeiro a mostrar tem identificar essas conexões?
que uma experiência psicológica e so- Há diferença de funcionamento entre o Para estudar esses fenômenos, é preciso
cial, como o abuso, provoca alterações cérebro de quem comete suicídio e o de ter acesso ao tecido cerebral. Essas al-
de nível molecular no cérebro. Deixa quem fica apenas na ideação? terações são específicas desse tecido e
uma espécie de marca química no cére- Estamos tentando responder a esse tipo não adianta procurar no sangue. Na Uni-
bro. O mecanismo pelo qual isso ocorre de pergunta. versidade McGill, temos um banco com
é epigenético. cerca de 4 mil cérebros de pessoas que
O abuso tem de ocorrer em alguma fase morreram por suicídio ou outras causas.
Isso significa que não causa modifica- específica da infância para gerar esse ti- Em alguns casos, nós as acompanhamos
ção na estrutura do gene, mas altera o po de alteração na resposta ao estresse? durante parte da vida e coletamos o cé-
seu funcionamento, certo? rebro após a morte. Em outros, temos
É precisamente isso. A adição de radi- acesso primeiro ao cérebro e depois fa-
cais metil (CH3) a um trecho específico zemos um trabalho de detetive, entre-
do DNA altera a atividade de um gene vistando maridos ou esposas, irmãos e
importante para regular a resposta ao pais, para tentar descobrir como foi a vida
estresse. Em situações estressantes, a delas. Também temos acesso ao prontuá-
glândula adrenal libera cortisol, um hor- rio médico, ao registro dos medicamen-
mônio potente com impacto sistêmico tos usados por elas e aos dados do órgão
no organismo. Tão logo é secretado, ele nacional de proteção à juventude, que
ativa os receptores de glicocorticoides Um fator de armazena o histórico de crianças que vi-
em uma região do cérebro chamada hi- veram em famílias com níveis diferentes
pocampo, desencadeando uma resposta predisposição de disfunção. Fazemos ainda estudos de
inibitória. O hipocampo envia sinais para acompanhamento de grupos representa-
o hipotálamo, que libera hormônios que
que aumenta tivos da população geral. Neles, porém,
suprimem a produção do cortisol pela o risco de suicídio investigamos os comportamentos e tra-
adrenal. Chamamos de eixo hipotálamo- ços de personalidade que aumentam o
-pituitária-adrenal, ou HPA, uma estru- de maneira risco de suicídio.
tura importante na regulação do estresse.
Nosso trabalho nos levou a supor que significativa Existem traumas que aumentam mais
esse mecanismo inibitório está alterado o risco do que outros?
no cérebro das pessoas que enfrentaram
é ter sofrido Não encontramos dados que permitam
abuso na infância. Normalmente o abu- abuso na infância essa conclusão. Nossos estudos indicam
so é praticado pelos pais, biológicos ou que os traumas são experiências muito

68 | JANEIRO DE 2021
O pesquisador e sua
equipe no Centro
de Pesquisa Douglas

maus-tratos e as experiências traumáti-


cas no início da vida por meio da adoção
de programas de intervenção populacio-
nal que identifiquem famílias em risco e
ensinem habilidades parentais. Outra é
reduzir o estigma sobre os problemas de
saúde mental, para facilitar sua identifi-
cação e tratamento. Também é importan-
te dificultar o acesso aos métodos, como
armas de fogo e pesticidas. Muitas vezes
a crise suicida é impulsiva e transitória.
mais subjetivas do que objetivas. Depen- tem um efeito desinibidor, que facilita às
dem da forma como são vivenciados. Ve- pessoas deprimidas colocar em prática Existe algum indício de que pandemias,
rificamos que a identidade do agressor é as ideias de autoaniquilação. O restante como a atual, aumentem a ocorrência
um moderador importante da relação en- das estatísticas apresenta muitas varia- de suicídios?
tre a história de abuso e o suicídio. Quem ções. As taxas de suicídio são maiores Há alguns artigos publicados sobre o
é abusado por alguém muito próximo, na Rússia e no Canadá do que no Bra- assunto, mas, até o momento, nada suge-
como um pai, apresenta risco maior de sil, mas, quando se olham os dados com re que a pandemia atual tenha causado
apresentar comportamento suicida do lupa, notam-se que esses índices variam um aumento na taxa de suicídio, embo-
que quem sofreu abuso cometido por ao longo do tempo e entre as regiões dos ra alguns trabalhos indiquem aumento
um desconhecido. países. Essa variabilidade é explicada por de ideação suicida em certas faixas da
oscilações de fatores sociais. população.
Qual a explicação para isso?
Acredito que o impacto psicológico da Nas últimas décadas parece que houve Você nasceu na Argentina e estudou no
experiência seja maior no primeiro caso. uma redução global nos índices de sui- Brasil. Como foi a sua passagem por
Também pode ter a ver com a repetição. cídio. Como está isso? aqui?
Diminuiu em grande parte do mundo. Trago muita influência da passagem pelo
Os índices de suicídio variam muito no Uma explicação para a queda é a facilita- Brasil. Minha mãe é brasileira. Eu mudei
mundo. Qual a razão? ção do tratamento da depressão ocorrida para o país quando tinha 10 anos. Estu-
Homens se suicidam mais do que mu- nos últimos 20 anos. Mas há exceções. dei na Escola Paulista de Medicina, onde
lheres, em especial homens na faixa dos Nos Estados Unidos, na Coreia do Sul e adquiri uma forte cultura inquisitiva e
35 aos 65 anos – a proporção pode va- no Brasil os suicídios aumentaram. No de valorização da pesquisa. Interagi de
riar de dois para um a cinco para um primeiro, possivelmente por causa do maneira muito próxima com duas pes-
em alguns países. A exceção são alguns aumento do acesso a armas de fogo e, soas fenomenais, o psiquiatra Jair Mari
países asiáticos, notadamente a China na Coreia do Sul, associado a modifi- e a geneticista Marília Cardoso Smith,
e a Índia, onde a taxa era mais elevada cações importantes na estrutura social, que tiveram grande influência em minha
entre mulheres, mas está mudando. De incluindo relações familiares. No Brasil, formação pessoal e científica. Hoje sou
maneira geral, mulheres tentam mais ainda não entendemos bem o que expli- chefe do departamento de psiquiatria
suicídio do que os homens, mas estes ca a variação. de uma universidade bem conceituada
usam métodos mais letais. Outra razão e diretor científico de um centro de pes-
que explica o suicídio de uma propor- O que pode ser feito para reduzir es- quisa importante. Aqui talvez haja mais
UNIVERSIDADE MCGILL

ção maior de homens em alguns países sas taxas? recursos financeiros, equipamentos e
é o uso abusivo de álcool e drogas. Isso Nunca iremos eliminar completamente autonomia para a pesquisa, mas a for-
é mais comum nas nações que integra- o risco, mas é possível reduzi-lo. Uma mação acadêmica e científica oferecida
vam a extinta União Soviética. O álcool forma de conseguir isso é diminuir os pela Paulista não fica atrás em nada. n

PESQUISA FAPESP 299 | 69


ONCOLOGIA

O TEMPO
QUE CONTA
A FAVOR Imagem de aplicação
de radioterapia em
paciente com tumor
no reto, tratamento
que, se bem-sucedido,
pode evitar a
necessidade de cirurgia

C
Risco de câncer de reto erta vez, em 1991, após nenhum vestígio do tumor. Ao contar o
operar uma paciente resultado para a paciente e informá-la de
voltar é menos de 5% se diagnosticada com cân- que estaria curada, foi questionada: “Se
cer de reto para a re- não havia mais tumor, por que a senhora
paciente foi tratado apenas moção da parte final do me operou?”. “Expliquei que, até então,
com rádio e quimioterapia órgão, inclusive o ânus, aquela era a norma”, recorda-se Angelita,
procedimento que obriga a criação de como prefere ser chamada. “A partir de
e se manteve livre uma saída das fezes por uma bolsa cole- então, passei a não operar mais, de ime-
tora no abdome (colostomia), a cirurgiã diato, os pacientes que não apresentassem
de tumores por três anos Angelita Habr-Gama, do Instituto Ange- mais tumor após terem realizado rádio e
lita e Joaquim Gama, em São Paulo, notou quimioterapia. Fui chamada de arrojada”,
Sarah Schmidt que a parte retirada não continha mais conta. A proposta ousada sofreu duras
críticas antes de passar a ser considerada mento em que a pessoa passa três anos a possibilidade de preservação do ór-
no meio médico. Agora, um estudo inter- sem o tumor, o risco de que a doença gão, deve ser levada em consideração
nacional publicado em 11 de dezembro volte é mínimo”, avalia o cirurgião Ro- sempre que possível. Hoje, mais de 30%
na revista científica The Lancet Oncology, drigo Oliva Perez, também do Instituto dos pacientes com esse tipo de tumor
que contou com a participação de Ange- Angelita e Joaquim Gama e autor prin- apresentam resposta clínica completa
lita, fornece mais evidência a favor dessa cipal do artigo. “Manter o reto sem si- à radioquimioterapia. As operações ra-
abordagem depois de analisar o histórico nal de câncer acaba sendo o fator mais dicais podem acarretar problemas de
de 793 pacientes tratados em 15 países e determinante para diminuir o risco de incontinência fecal e de ordem sexual,
não submetidos à cirurgia de imediato. Os reincidência da doença.” além da realização de colostomia tem-

A
resultados sugerem que aqueles que não porária ou definitiva. “Dados já con-
manifestaram reincidência do câncer nos segunda conclusão solidados em outros estudos mostram
três primeiros anos após o diagnóstico importante do estudo, que, em pacientes não operados, o risco
tinham menos de 5% de risco de que o destaca Perez, trata do de ocorrer metástase é de 10% no pri-
tumor voltasse a crescer e apenas 2% de grau de desenvolvi- meiro ano. Nos pacientes que sofrem
ocorrer metástase. mento do tumor pri- a operação radical, esse índice é igual
Os pesquisadores analisaram uma ba- mário diagnosticado e para o mesmo período. Então, por que
se de dados de 47 centros de saúde de o risco de que ele retorne com o passar não tentar preservar o órgão?”, reflete
pacientes tratados entre novembro de do tempo, quando adotado o protoco- a cirurgiã de 87 anos, que em maio se
1991 e dezembro de 2015. Os dados fo- lo não cirúrgico. Dependendo do nível curou da Covid-19 depois de 40 dias
ram coletados na International Watch de invasão na parede do reto, o tumor é internada na Unidade de Terapia In-
& Wait Database (IWWD), plataforma classificado em estágios que vão do T1 tensiva (UTI) do Hospital Alemão Os-
na qual estão armazenadas informações (mais superficial) ao T4 (mais avança- waldo Cruz, em São Paulo (ver Pesquisa
de pacientes submetidos à estratégia de do), um ranqueamento que os oncolo- FAPESP nº 298). De volta ao trabalho,
tratamento criada e batizada por Ange- gistas denominam estadiamento. “Após além da dedicação aos pacientes, An-
lita de Watch & Wait (“Observar & Es- o primeiro ano sem que o tumor volte a gelita prepara um levantamento sobre
perar”). Nela, a intervenção cirúrgica crescer, as chances de recidiva pratica- pacientes submetidos a Watch & Wait
radical não é feita de forma imediata se mente se igualam e deixam de ser tão na América Latina para a criação de
o paciente apresentar a chamada respos- relevantes, independentemente da dose uma base de dados regional.
ta clínica completa, a regressão total do de rádio e quimioterapia recebida ou do Apesar das críticas que recebeu no
tumor com rádio e quimioterapia. Se essa estadiamento inicial”, explica o cirurgião. passado, a opção de não necessariamente
situação é verificada, ele é acompanhado Angelita já suspeitava que cada ano operar de imediato após a resposta cli-
pelo médico de forma intensa, com exa- do paciente sob Watch & Wait teria nica completa do paciente, começa a ter
mes de toque, retoscopia e ressonância um papel crucial em sua resposta ao uma melhor recepção entre especialistas.
magnética e endoscopia realizados em tratamento. “Acompanhando meus pa- “Os dados atuais disponíveis já são ma-
intervalos de dois a três meses durante o cientes, percebi que as recidivas eram duros o suficiente para colocar a Watch
primeiro ano de acompanhamento. Ca- maiores no primeiro ano. Essa pesquisa, & Wait como uma das modalidades de
so o tumor volte a crescer, a indicação agora, reforça e dá números a essa ob- primeira linha de tratamento desse ti-
cirúrgica entra em pauta. servação clínica”, avalia. Para o cirur- po de câncer, particularmente para os
O destaque do novo artigo é a análise gião oncologista Samuel Aguiar Júnior, pacientes em que a amputação do reto
da chamada sobrevivência condicional, chefe do Núcleo de Tumores Colorre- seria indicada”, avalia Aguiar Júnior. No
na qual os pesquisadores observaram a tais do A.C.Camargo Cancer Center, de entanto, ele ressalta que a maioria dos
chance de o paciente continuar livre da São Paulo, que não participou do estu- pacientes com câncer de reto, em torno
doença para cada ano em que o tumor do, o principal impacto dos resultados de 70% a 75%, não tem resposta clínica
não voltou a crescer. Após 12 meses, a do trabalho recai sobre as recomenda- completa após a rádio e quimioterapia
probabilidade de o tumor não reapa- ções de acompanhamento do paciente e precisa da cirurgia para aumentar as
recer nos dois anos subsequentes é de a partir da decisão não cirúrgica. “Ao possibilidades de cura. “Por esse motivo,
88%. Depois de três anos, a chance de se demonstrar que o risco de recidiva do é importante determinar com precisão
manter por mais dois anos sem a doença tumor cai drasticamente após três anos, se houve uma resposta clínica completa
é de 97%. Ao completar cinco anos livre o artigo avaliza a ideia de que, passado somente com a rádio e quimioterapia.
WILLETT, C. G. ET AL. / CLINICAL CANCER RESEARCH 2007

de câncer, o risco de o tumor reaparecer esse período, o acompanhamento do Optar pela estratégia não cirúrgica exige
é de apenas 1%. paciente, por meio de exames de ima- discussões multidisciplinares e compar-
“A cada ano sem manifestação de re- gem e de consultas periódicas, pode ser tilhamento das informações e da decisão
cidiva da doença, as estatísticas de so- menos intenso. Isso é muito relevante, com o paciente”, conclui. n
brevivência aumentam. Isso é impor- pois ainda não há consenso sobre com
tante, porque, geralmente, fazemos um que periodicidade e por quanto tempo
acompanhamento intensivo, com muitos se deve seguir mais de perto esses pa- Artigo científico
exames,preocupados que a doença re- cientes”, explica Aguiar Júnior. FERNANDEZ, L. M. et al. Conditional survival in rectal
cancer after a Watch and Wait strategy – An Interna-
torne. No entanto, as conclusões desse Para Angelita, a qualidade de vida do tional multicentre registry study. The Lancet Oncology.
trabalho indicam que, a partir do mo- paciente que teve câncer de reto, com 11 dez. 2020.

PESQUISA FAPESP 299 | 71


ASTROFÍSICA

CONEXÃO
PERSISTENTE
Equipe internacional flagra inesperado desenvolvimento
simultâneo de estrela e planeta em sistema
continuamente alimentado por nuvem de gás
A Nebulosa do Cachimbo
e o aglomerado
Igor Zolnerkevic Barnard 59 (destaque)

I
magens de alta definição obtidas se originassem primeiro e os planetas Alemanha. Ele é o primeiro autor de um
recentemente pela rede de radio- só surgissem mais tarde, quando a nu- estudo publicado em novembro na re-
telescópios do Atacama Large vem de matéria que originou a estrela vista The Astrophysical Journal Letters
Millimeter/Submillimeter Array e seu disco protoplanetário já tivesse descrevendo o fenômeno.
(Alma), no Chile, estão revelando se dissipado. “A sensibilidade maior do Alves utiliza a rede de equipamentos
detalhes inéditos e inesperados Alma está nos obrigando a reinventar instalada no deserto chileno do Atacama
das etapas iniciais da formação de es- os modelos clássicos de formação dos desde 2015 para observar estrelas em
trelas e planetas: o desenvolvimento si- sistemas estelares”, afirma o astrofísico formação, as chamadas protoestrelas, e
multâneo dos dois tipos de astro em um brasileiro Felipe Alves, que faz estágio de agora identificou o nascimento do novo
sistema que permanece alimentado pela pós-doutorado no Centro para Estudos sistema estelar em uma região do espaço
nuvem-mãe de gás e poeira. Até então, Astroquímicos do Instituto Max Planck localizada a 530 anos-luz de distância da
as observações sugeriam que as estrelas para Física Extraterrestre, em Munique, Terra, na direção da constelação de Ofiú-

72 | JANEIRO DE 2021
Filamentos de matéria
(azul e vermelho) alimentam
o disco (no destaque)
que abriga uma estrela
e uma anã marrom
ou um planeta gigante

Estrela

Anã marrom ou
planeta gigante gasoso

co. Conhecido pela sigla [BHB 2007]1, o De acordo com a teoria clássica de for- de 220 unidades astronômicas (UA) –
par estrela-planeta está próximo a mais mação de estrelas, esses astros surgem uma unidade astronômica corresponde
de uma dezena de protoestrelas no aglo- em uma região mais densa e fria de co- à distância que separa a Terra do Sol.
merado Barnard 59, fragmento de uma lossais nuvens de gás e poeira. Nessas re- No interior desse disco, os astrofísicos
nuvem de gás e poeira muito maior, a giões, a força gravitacional vence a agita- observaram uma grande cavidade em
Nebulosa do Cachimbo. ção das partículas de matéria, fazendo-as forma de anel, com muito menos poeira,
A nebulosa é uma velha conhecida de se aglomerarem. À medida que o colapso localizada em uma faixa que vai de 20
Alves. Em 2008, ele mapeou os campos gravitacional comprime o material no UAs a 90 UAs do centro.

A
magnéticos da região utilizando os equi- centro da região, seus átomos passam
pamentos do Observatório do Pico dos a se fundir, gerando novos elementos s observações do Alma,
Dias, do Laboratório Nacional de Astro- químicos e a luz da futura estrela. Si- combinadas com as
física (LNA), em Minas Gerais, em traba- multaneamente, o colapso faz com que realizadas por outra
lho coordenado pelo astrofísico Gabriel o gás e a poeira que caem em direção ao rede de radioteles-
Franco, da Universidade Federal de Mi- centro da protoestrela girem cada vez cópios, o Very Large
nas Gerais (UFMG), com quem colabora mais rápido, criando o disco ao redor Array (VLA), nos Es-
em sua pesquisa atual. Alves e Franco da estrela – o disco circum-estelar. Até tados Unidos, indicam que no interior
já haviam observado no Barnard 59 um agora, os modelos consideravam que os desse anel existe um objeto com massa
FOTOS 1 Y. BELETSKY / ESO 2 INSTITUTO MAX PLANCK PARA FÍSICA EXTRATERRESTRE INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

curioso par de protoestrelas ligadas entre planetas só começavam a se formar após de 4 a 70 vezes maior do que a de Júpi-
si por filamentos, o objeto [BHB 2007]11 a dissipação completa da nuvem-mãe ter, o maior planeta do Sistema Solar. Os
(ver Pesquisa FAPESP nº285). que alimenta o disco um pouco mais pesquisadores ainda não sabem ao certo
Estudos de outros grupos já estimaram maduro, quando este já reúne as condi- se esse objeto é um planeta gigante ga-
que o sistema [BHB 2007]1 tenha apro- ções ideais para a formação de planetas soso, como Júpiter, ou uma anã marrom,
ximadamente 1 milhão de anos. Esse é o e recebe o nome de protoplanetário. As estrela que não tem massa suficiente
tempo que, segundo observações e mo- observações do Alma, no entanto, indi- para brilhar.
delos teóricos, uma estrela com massa cam que filamentos de matéria podem “Esperamos em breve observar outras
semelhante à do Sol levaria para organi- permanecer conectando a nuvem-mãe propriedades da protoestrela com o Alma
zar no seu entorno o disco de gás e poeira ao disco protoplanetário mesmo após o e talvez detectar sinais diretos do plane-
em cujo interior surgirão os planetas – o início da formação dos planetas. ta ou da anã marrom”, conta Alves, que
tal disco protoplanetário. Na maior parte “É uma grande novidade”, afirma suspeita de que a formação tanto da es-
dos sistemas protoestelares já observa- Othon Winter, físico especialista em di- trela principal quanto do gigante gasoso
dos, a formação dos planetas é mais cla- nâmica orbital da Universidade Estadual ou da anã marrom ainda deve estar sen-
ramente visível somente quando o disco Paulista (Unesp) em Guaratinguetá, São do alimentada pelo material da nuvem-
protoplanetário se encontra totalmente Paulo, que estuda a evolução do Sistema -mãe. “A maneira como o Sistema Solar
isolado da nuvem de gás e poeira que o Solar. “Os estudos de evolução de discos e a Terra se formaram”, supõe o pesqui-
originou. Não é o caso do [BHB 2007]1. protoplanetários deverão levar em con- sador, “pode ter seguido uma evolução
“Encontramos filamentos gigantes de gás ta o incremento de matéria oriundo da parecida com a dessas protoestrelas”. n
e poeira da nuvem-mãe caindo em dire- nuvem molecular, produzindo efeitos
ção ao disco desse objeto”, conta Alves, nunca antes considerados na formação
que fez as observações em parceria com dos planetas.” Artigo científico
pesquisadores dos Estados Unidos, da O disco do protoplanetário do objeto ALVES, F. O. et al. A case of simultaneous star and planet
Espanha, da França e do Chile. [BHB 2007]1 tem um diâmetro de cerca formation. The Astrophysical Journal Letters. 19 nov. 2020.

PESQUISA FAPESP 299 | 73


AGRONOMIA

MAPA
GENÉTICO
DO SOLO
Nova técnica de mapeamento
mineral pode ajudar os agricultores
a reduzir gastos com insumos
e o impacto ambiental da produção
Domingos Zaparolli

74 | JANEIRO DE 2021
U
m método inédito de mapeamento por água, ar, matéria orgânica e minerais, sendo
mineral de solo tem potencial de que os últimos respondem por aproximadamente
aperfeiçoar a agricultura em países 45% da composição total.
de clima tropical. Elaborada por pes- A mineralogia estuda o solo em suas frações
quisadores da Faculdade de Ciências nanométricas, as chamadas argilas, partículas
Agrárias e Veterinárias da Universi- minerais menores que 0,002 milímetro (mm). O
dade Estadual Paulista (FCAV-Unesp), campus de objetivo é entender a capacidade do solo de reter
Jaboticabal (SP), a técnica utiliza o mapeamento e tornar disponível para as plantas nutrientes co-
magnético para determinar as características agro- mo fósforo, nitrogênio, potássio, cálcio e também
nômicas e ambientais do solo. As informações obti- água. Os pesquisadores comparam a caracteri-
das são usadas para orientar os agricultores sobre as zação mineral do solo com o sequenciamento do
melhores áreas de plantio dos diferentes cultivares DNA de uma pessoa.
e a quantidade adequada de fertilizantes, corretivos “Assim como o DNA influencia as característi-
e herbicidas a serem empregados em cada fração cas humanas e de outras espécies, os diferentes
do terreno, o chamado talhão, reduzindo gastos tipos de minerais têm impacto sobre as carac-
com insumos e o impacto ambiental da produção. terísticas agronômicas e ambientais do solo”,
“Os solos não são iguais. Mesmo pequenas por- define o engenheiro-agrônomo Diego Silva Si-
ções de terra que estão muito próximas podem queira, que fez mestrado e doutorado no grupo
apresentar composições físicas, químicas, biológi- do CSME sob orientação de Marques Júnior. “A
cas e minerais diferentes”, explica o engenheiro- proposta é entregar ao agricultor uma espécie de
-agrônomo José Marques Júnior, líder do grupo mapa genético de sua área de plantio, que poderá
Amostras de solo de pesquisa Caracterização do Solo para fins de ser usado para diferentes práticas agrícolas.” O
para análise por
difração de raios X
Manejo Específico (CSME) da Unesp, responsável mapeamento realizado pelo CSME faz a leitura
em laboratório da pelo desenvolvimento da nova técnica. Os solos dos minerais magnéticos que compõem o solo.
Unesp de Jaboticabal de cultivo, informa o pesquisador, são formados Qualquer mudança na assinatura magnética da
GRUPO DE PESQUISA CSME / UNESP

PESQUISA FAPESP 299 | 75


Em sentido horário:
análise da composição do
solo por fluorescência de
raios X; amostras com
diferentes concentrações
de ferro; leitura de
magnetismo do solo com
uso de susceptibilímetros
1 2
3

terra, explica Siqueira, expressa uma variação de Minas Gerais e produtores de cana-de-açúcar
desses minerais e, consequentemente, de seu de São Paulo.
potencial agrícola e ambiental. Em setembro de 2019, Siqueira e dois outros
“É uma técnica que se adéqua aos solos tro- engenheiros-agrônomos, Gustavo Pollo, egresso FOTOS 1, 2 E 3 GRUPO DE PESQUISA CSME / UNESP 4 USINA SÃO MARTINHO

picais e subtropicais, que são abundantes em do CSME, e Renan Gravena, uniram-se na forma-
óxidos de ferro, alumínio e outros minerais com ção da startup Quanticum, que oferece serviços de
acentuada expressão magnética, funcionando co- mapeamento magnético para áreas agrícolas. Eles
mo uma espécie de nanoímã, mas não se adapta obtiveram financiamento do programa Pesquisa
tão bem ao solo de países de clima temperado, Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FA-
que têm uma menor concentração desses mi- PESP para um estudo sobre o mapeamento mag-
nerais magnéticos e uma composição maior de nético na cafeicultura tropical. “O Brasil é respon-
argilas silicatadas”, detalha Marques Júnior. A sável por um terço da produção mundial de café,
leitura magnética já é empregada há décadas mas não explora adequadamente o seu potencial
pela mineração e na indústria química, entre no mercado de grãos especiais”, justifica Siqueira.
fabricantes de tintas e na engenharia de mate- O mapeamento magnético despertou o inte-
riais sintéticos. O CSME ampliou a utilização resse da Federação dos Cafeicultores do Cerrado
da técnica para a agricultura em grandes áreas. Mineiro, entidade que reúne 4.500 produtores de
A solução está sendo adotada por cafeicultores Minas Gerais. “Ao longo do tempo aperfeiçoamos

76 | JANEIRO DE 2021
muito nosso conhecimento sobre os elementos tare gera por volta de 30 sacas de café e um fatu-
que influenciam o terroir do café, como clima, ramento na casa de R$ 15 mil. Em um ano ruim,
altitude e regime hídrico. O mapeamento vai nos R$ 10 mil. Fertilizantes e adubos levam 40% do
permitir aprofundar o entendimento do solo, que faturamento do produtor”, analisa.
é um fator essencial para o cultivo”, conta Juliano A caracterização mineral do solo reduz a quan-
Tarabal, superintendente da entidade. O terroir tidade das análises granulométrica, que indica os
é a soma das características específicas de uma teores de areia, argila e silte (fragmento mineral
região agrícola, que permite a produção de uma com tamanho intermediário entre areia e argila),
bebida única. “Um café produzido em um terroir e química, que determina a acidez e a disponi-
nobre pode alcançar R$ 100 o quilo no supermer- bilidade de nutrientes. “O mapeamento do so-
cado, cerca de oito vezes mais do que um café lo permite definir quais áreas são heterogêneas
convencional”, informa o executivo. e selecionar onde fazer a coleta para a análise
Segundo Tarabal, o mapeamento indicará as química, reduzindo o número de coletas”, diz o
características de cada talhão e, ao realizar novos engenheiro-agrônomo Alberto Vasconcellos In-
plantios, o cafeicultor poderá escolher a variedade da, coordenador do Programa de Pós-graduação
da planta que se adapta melhor em cada faixa do so- em Ciência do Solo da Universidade Federal do
lo. “Vamos garantir aos compradores as caracterís- Rio Grande do Sul (UFRGS).
ticas exatas do grão entregue e certificar a origem Outro ganho é a qualificação da investigação
da produção”, declara. Um primeiro produtor do química e física, permitindo a prescrição preci-
município de Patrocínio, em Minas Gerais, já ini- sa dos nutrientes necessários na fertilização da
ciou o uso da técnica. O café é uma cultura bianual área que receberá o plantio. “Quanto melhor a
e a avaliação é que se precise de pelo menos duas qualidade da informação, menor o risco do uso
safras para uma análise adequada da experiência. inadequado de insumos. A utilização excessiva
Na maior cooperativa de cafeicultores do mundo, de nutrientes na lavoura, como o nitrogênio, po-
a Cooxupé, que reúne 15,8 mil cooperados do sul de contaminar o lençol freático e os mananciais
de Minas e do interior de São Paulo, três associa- de superfície”, diz o agrônomo.

O
dos mineiros realizam a experiência. Mário Ferraz
de Araújo, gerente de desenvolvimento técnico da s estudos de caracterização do
cooperativa, projeta que o mapeamento magnético solo datam do fim do século
permitirá ao produtor fazer a dosagem correta de XIX. A técnica mais conceitua-
fertilização e uma aplicação de herbicidas de acor- da, a difração de raios X (DRX),
do com a necessidade real de cada área plantada. rendeu ao físico alemão Max
Segundo Araújo, atualmente o custo total de von Laue (1879-1960) o Prêmio
produção de cada hectare (ha) plantado de café Nobel de Física de 1914. O grau de precisão do
da variedade arábica está entre R$ 8,5 mil e R$ 10 DRX é de 95%, o que os mineralogistas classificam
mil. Desse total, por volta de R$ 4 mil são gastos como padrão ouro. Outros métodos empregados na
Amostras do solo com fertilizantes e corretivos do solo. “Um uso caracterização são a espectroscopia de Mössbauer,
da Usina São Martinho,
no interior paulista,
mais racional de insumos tem potencial de me- que utiliza a radiação gama, e as análises termo-
submetidas à análise lhorar significativamente o resultado financeiro diferencial (ATD) e termogravimétrica (ATG).
química convencional da produção”, destaca. “Em um ano bom, 1 hec- Essas quatro técnicas apresentam resultados
superiores a 85%. Todas elas, porém, têm três pro-
4
blemas em comum: são caras, demandam tempo
e exigem profissionais altamente qualificados na
operação dos equipamentos. Segundo Alberto Inda,
esses problemas dificultaram a ampla utilização des-
sas tecnologias na agricultura tropical e subtropical.
Cada teste de difração de raios X analisa apenas
um mineral por um custo médio de R$ 300, segun-
do levantamento mercadológico feito pela Quan-
ticum. Uma amostra de solo típica do Brasil con-
tém mais de 10 minerais que, mesmo em pequenas
quantidades, impactam o potencial agronômico da
terra. Considerando as metodologias tradicionais,
de acordo com Siqueira, são necessários mais de
R$ 2 mil para elaboração de um laudo que mostre
os tipos e as quantidades de minerais em um único
ponto amostral. O inventário de uma área agrícola
de mil ha, coletando-se uma amostra de solo por
hectare, não sai por menos de R$ 2 milhões.

PESQUISA FAPESP 299 | 77


Secagem de café
em Minas Gerais:
produtores do estado
já estão usando
o mapeamento
mineral do solo em
suas propriedades

A Quanticum realiza a leitura dos minerais por áreas da lavoura de cana com diferentes poten-
meio de sensores de medição de susceptibilidade ciais de compactação e assim orientar o manejo
magnética, os susceptibilímetros. Uma única lei- desses talhões.
tura verifica os principais minerais presentes na Teixeira explica que os solos podem ser com-
amostra. O custo do laudo técnico varia de R$ 5 pactados tanto por fontes naturais, como o im-
a R$ 30 por ha, dependendo do nível de detalhe pacto das gotas de chuva, quanto pela ação do
e de outras informações, como a recomendação homem no ambiente, como o tráfego de máqui-
de fontes de adubo. “Em relação às técnicas con- nas agrícolas. A compactação dificulta o desen-
sideradas padrão ouro, o resultado obtido tem volvimento das plantas, reduzindo o potencial
precisão 15% a 20% menor, mas custo bem mais produtivo da área. Por isso, é necessário realizar
acessível ao agricultor”, afirma Diego Siqueira. de tempos em tempos a operação de descompac-
O ideal é que o mapeamento magnético seja tação, com equipamentos subsoladores, que ge-
repetido nos anos seguintes, mas sempre com ralmente trabalham em uma profundidade fixa.
uma quantidade de amostra menor – por volta A leitura magnética auxilia na identificação da
de 40% menos. Depois desse acompanhamento profundidade da camada compactada. “A infor-
inicial, a indicação é fazer uma análise pontual, mação precisa gera ganhos em eficiência, com
com a coleta de uma amostra de terra direcionada redução de custos operacionais, em combustíveis
a atender alguma situação específica, como uma por exemplo, e uma melhor conservação do solo”,
área de plantio que vai receber um novo culti- relata o gerente da São Martinho.
var ou um talhão que sofreu forte compactação. José Marques Júnior cita dados da agência da

A
Organização das Nações Unidas para a Alimenta-
Usina São Martinho, uma das ção e Agricultura (FAO) para lembrar que o im-
maiores produtoras e proces- pacto econômico causado por manejo inadequado
sadoras de cana-de-açúcar do do solo apresenta um custo anual de US$ 70 por
mundo, foi a pioneira no uso da pessoa no mundo. Um valor que poderia, em sua
técnica no manejo da lavoura ca- análise, ser substancialmente reduzido com um
navieira, já tendo mapeado todos conhecimento detalhado das áreas agrícolas.
os 80 mil ha de sua unidade em Pradópolis, no A FAO também estima que a produção de ali-
interior paulista. O trabalho foi desenvolvido por mentos no mundo terá que aumentar em 70%
uma equipe de funcionários que foram graduan- para alimentar de forma adequada uma popula-
dos ou pós-graduandos na FCAV-Unesp de Jabo- ção estimada em quase 9,8 bilhões de pessoas em
ticabal e integravam o grupo de pesquisa CSME. 2050. O Brasil deverá ser responsável por 40%
Para o gerente agrícola da usina, Luís Gusta- do aumento da produção, segundo a FAO. Para
FEDERAÇÃO DOS CAFEICULTORES DO CERRADO

vo Teixeira, o mapeamento magnético permite Marques Júnior, o país pode atingir essa meta sem
conhecer o solo em detalhes e fazer um manejo a abertura de novas fronteiras agrícolas na Ama-
ainda mais eficiente e um uso ainda mais racio- zônia, no Pantanal ou na Mata Atlântica. “Hoje
nal dos insumos, contribuindo para os ganhos temos mais de 100 milhões de hectares que já
de produtividade e a sustentabilidade ambien- foram ocupados e depois abandonados por falta
tal da operação. A caracterização do solo obtido de conhecimento adequado do solo”, destaca. n
com o mapa magnético é usada não apenas para
determinar as características do solo. A técni- Os projetos apoiados pela FAPESP mencionados nesta reportagem
ca tem ajudado a São Martinho a identificar as estão listados na versão on-line.

78 | JANEIRO DE 2021
ENGENHARIA AERONÁUTICA

O ATOBÁ O
Brasil deu um impor­
tante passo para in­
gres­sar no grupo de
países que desen­

ALÇA VOO
volvem e produzem
veículos aéreos não
tripulados (vants), também chamados de
drones, de grande porte. A empresa Stel­
la Tecnologia, de Duque de Caxias, na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro,
Empresa fluminense desenvolve realizou com sucesso em julho de 2020
o primeiro voo do Atobá, uma aeronave
drone militar de grande porte destinado remotamente controlada de 500 quilos
(kg), 8 metros (m) de comprimento e 11
a forças militares e de segurança m de envergadura (a distância da ponta
de uma asa a outra). O vant, cujo nome é
Yuri Vasconcelos inspirado em uma ave marinha de grande
porte comum na costa brasileira, foi pro­
jetado para aplicações civis e militares e
é o maior já construído por uma empresa
brasileira a voar.
Há cerca de 10 anos, a Avibras, tradi­
cional fornecedora nacional de equipa­
mentos para a área de defesa, iniciou o
desenvolvimento de um vant da mesma
categoria do Atobá, chamado Falcão, mas
o projeto foi interrompido sem que tenha
FOTOS STELLA TECNOLOGIA

Após cinco anos de


desenvolvimento, o Atobá
fez seu voo inaugural
em julho de 2020

PESQUISA FAPESP 299 | 79


sido feito um voo – pelo menos R$ 85 los de potência e tem autonomia de 28 sua vez, está desenvolvendo um vant de
milhões foram gastos em seu desenvol­ horas (tempo de voo sem necessidade de caça, o Dark Sword [espada escura], que
vimento (ver Pesquisa FAPESP nº 211). reabastecimento). Seu alcance, de 250 deve voar a 2.400 km/h”, relata.
Atualmente, poucas nações do mundo, quilômetros (km), é limitado ao raio de Apesar da ressalva, Breternitz entende
entre elas Estados Unidos, China, Israel, comunicação com a estação de solo. O que é importante o país dominar o pro­
Rússia, Irã, França e Reino Unido, domi­ aparelho desloca-se a 150 km/h e pode cesso de fabricação de vants militares da
nam a tecnologia de fabricação de drones alcançar 5 mil m de altitude, o que o torna categoria do Atobá. “Sou um entusiasta
militares com esse porte. Essas aeronaves imperceptível a olho nu – para efeito de do desenvolvimento de soluções nacio­
têm sido cada vez mais utilizadas em ce­ comparação, os aviões comerciais voam nais não apenas para drones. Iniciativas
nários de guerra ou conflito, principal­ a cerca de 11 mil m. Embora não tenha como a da Stella fomentam a pesquisa
mente no Oriente Médio. sido projetado para levar armamentos, o no país, contribuem com a formação de
“O Atobá realizou dois voos, o primeiro Atobá pode ser adaptado para carregar mão de obra qualificada e ajudam a de­
de 20 minutos e o segundo de meia hora. mísseis e bombas, desde que sejam res­ senvolver nosso parque industrial”, diz.
Tudo correu como esperado. A estabili­ peitados seus limites de peso. Para o professor da Mackenzie, o ideal

V
dade e a previsibilidade da aeronave aos seria pensar a área de drones da mesma
comandos foram excelentes”, declarou ivaldo José Breternitz, forma que se fez com a indústria aero­
Gilberto Buffara Júnior, dono da Stella especialista em drones e náutica: encontrar um nicho e se apro­
Tecnologia. “Ele foi projetado para ser professor da Faculdade fundar nele para tentar ganhar mercado
um vant simples, não falhar e ser de fácil de Computação e Infor­ em termos globais. Ele se refere à expe­
operação e manutenção.” Os voos acon­ mática da Universidade riência da fabricante brasileira de aviões
teceram a partir de um aeródromo par­ Presbiteriana Macken­ Embraer. Depois de sua privatização nos
ticular no município fluminense de Ca­ zie, de São Paulo, destaca que o primeiro anos 1990, a empresa de São José dos
simiro de Abreu em 20 de julho, data do voo de uma aeronave, seja ela tripulada Campos (SP) apostou na produção de
aniversário do brasileiro Alberto Santos ou autônoma, é sempre importante – aeronaves voltadas a voos regionais, de
Dumont (1873-1932), pioneiro da aviação. pois revela que o projeto, até aquele curta distância, e hoje lidera esse seg­
O Atobá foi idealizado para ser usado momento, foi exitoso –, mas afirma que mento no mundo.
em operações de reconhecimento e de vi­ a empresa ainda precisará fazer grande O desenvolvimento do Atobá teve iní­
gilância de fronteiras e da faixa oceânica número de testes em voo para tornar cio há cinco anos e consumiu R$ 11,5
pelas Forças Armadas. Também pode ser o Atobá um vant operacional. “Há um milhões. “Não tive nenhum tipo de fi­
empregado em missões de busca e salva­ longo caminho a percorrer”, diz. nanciamento; tudo foi feito com recursos
mento e no monitoramento de grandes O drone da Stella, opina Breternitz, próprios, oriundos da venda da minha
eventos por forças policiais. A aerona­ é inovador no cenário aeronáutico bra­ primeira empresa de drones, a Santos­
ve tem capacidade para levar 70 kg de sileiro, mas menos sofisticado do que Lab, e de outros negócios na área imo­
equipamentos, como radares, câmeras alguns projetos existentes no exterior. biliária. Agora, estou à procura de inves­
de vigilância e sensores multiespectrais “O universo dos drones é extremamen­ tidores para concluir o trabalho”, conta
(que capturam imagens usando diferen­ te diversificado. A Força Aérea dos Es­ Buffara. Ele informa que o drone ainda
tes frequências de ondas do espectro ele­ tados Unidos está trabalhando em um precisa passar por ajustes finos, como
tromagnético, como o infravermelho). projeto, chamado Skyborg, que prevê a uma revisão de sua estrutura, que ficou
Comandado a partir de uma estação de construção de drones dotados de inteli­ pesada. Antes de iniciar o processo de
solo, o vant é propelido por um motor a gência artificial capazes de operar com certificação com as autoridades aeronáu­
gasolina de quatro cilindros e 60 cava­ aviões militares tripulados. A China, por ticas, deve receber um piloto automático

A construção do
drone consumiu
R$ 11,5 milhões
e contou com
a parceria de alunos
e professores UFRJ

80 | JANEIRO DE 2021
Como é o drone
PESO
500 kg

Maior vant já construído com sucesso no país pode voar CARGA ÚTIL

mais de um dia sem precisar reabastecer 70 kg


VELOCIDADE
ura 150 km/h
rgad
de enve
11 m AUTONOMIA DE VOO
28 h
ALCANCE
250 km*
MOTOR
A gasolina de 4 cilindros
e 60 cavalos de potência
MISSÕES
Vigilância de fronteiras,
reconhecimento tático,
8md
e com busca, salvamento
prime
nto
e monitoramento de eventos

FONTE STELLA TECNOLOGIA *LIMITADO AO ALCANCE DE


COMUNICAÇÃO COM A BASE

nacional – hoje, o drone é equipado com Em 2015, Buffara vendeu sua parte no capacitada para ser fornecedora de pro­
um equipamento importado. negócio, montou uma equipe com pro­ dutos e serviços para as Forças Armadas.
O projeto contou com a participação fissionais que já haviam trabalhado no Atualmente, a Aeronáutica opera pelo
da Universidade Federal do Rio de Janei­ desenvolvimento de aviões – basicamen­ menos três diferentes tipos de vants: os
ro (UFRJ). Estudantes de engenharia da te engenheiros mecânicos e de sistemas, modelos Hermes 450 e Hermes 900, fa­
instituição contribuíram com a iniciativa além de projetistas aeronáuticos – e fun­ bricados pela israelense Elbit Systems, e
por meio de um convênio de estágio aca­ dou a Stella com o objetivo exclusivo de Heron I, da Israel Aeroespace Industries
dêmico firmado com a Stella Tecnologia. construir o Atobá. Nos últimos cinco anos, (IAI). O drone Hermes 450 tem porte e
A UFRJ também cedeu laboratórios para contou com o apoio de vários consultores características operacionais similares ao
realização de testes, entre eles o de mate­ para avançar com a empreitada. Atobá; os outros dois pertencem a uma

N
riais que seriam usados na estrutura do categoria superior, de aparelhos com
Atobá. As asas e a fuselagem (o corpo do ei Brasil, coordenador mais de 1 tonelada.
vant) são feitas de material compósito, da área de aeronaves não “As aeronaves remotamente tripula­
mais leve e resistente do que o alumínio. tripuladas da Associação das da Força Aérea Brasileira são utiliza­
Um dos maiores desafios foi projetar e das Indústrias Aeroes­ das em missões de vigilância, provendo
construir o corpo do aparelho. “Foi uma paciais do Brasil (Aiab), as forças de solo e do ar com dados pre­
empreitada difícil, pois faltam informa­ avalia que a classe de cisos de inteligência e reconhecimento”,
ções técnicas sobre esse tipo de equi­ vants à qual o Atobá pertence é relevan­ informou o Centro de Comunicação So­
pamento. Só tivemos sucesso depois de te e tem boa procura no mercado global, cial da Aeronáutica. Pesquisa FAPESP
muita tentativa e erro”, relata Buffara. mas o sucesso do projeto vai depender questionou a FAB e o Ministério da De­
Outro obstáculo foi integrar os sistemas do interesse do governo brasileiro. “O fesa se haveria interesse do governo na
elétrico e de controle da aeronave e fazê­ que realmente importa é se o país-sede aquisição do Atobá, mas as duas insti­
-los funcionar corretamente. “Tivemos da empresa viabiliza o desenvolvimento tuições não se posicionaram.
que sanar problemas de interferência ele­ industrial do projeto, fazendo encomendas “A FAB pagou cerca de US$ 25 milhões
INFOGRAFIA ALEXANDRE AFFONSO FOTO STELLA TECNOLOGIA

tromagnética entre os diversos sistemas.” do aparelho”, destaca. “Já houve no pas­ por dois Hermes 450, enquanto duas uni­
Para superar os desafios, o empreen­ sado iniciativa semelhante de construção dades do Atobá, incluindo a estação de
dedor, dono de um diploma de adminis­ de um drone com esse porte, o Falcão, da controle no solo e o treinamento, custarão
tração de empresas, valeu-se de sua longa Avibras, mas o projeto foi descontinuado um terço desse valor”, declara o dono da
experiência no mercado de drones. Em por falta de interesse comercial no país.” Stella. Além de mais barato, o Atobá tem
2006, a SantosLab, criada por Buffara e Segundo Buffara, já há conversas em maior autonomia do que o drone israelen­
um sócio, projetou, construiu e vendeu andamento com a área militar do gover­ se – de 17 horas, de acordo com o site do
para a Marinha do Brasil um drone de no, mas não existe até o momento nenhu­ fabricante – e pode ser equipado com sen­
pequeno porte, batizado de Carcará, com ma negociação em curso. A Stella Tec­ sores e câmeras mais avançados, segundo
menos de 2 m de envergadura e 4 kg. “Foi nologia é acreditada pelo Ministério da Buffara. “Estamos otimistas com nosso
a primeira vez que as Forças Armadas uti­ Defesa como uma Empresa Estratégica drone. Esperamos concluir o projeto e
lizaram esse tipo de equipamento”, conta. de Defesa (EED), o que significa que está torná-lo operacional ainda este ano.” n

PESQUISA FAPESP 299 | 81


AUDIOVISUAL

O
CINEMA
DELAS

82 | JANEIRO DE 2021
Estudos investigam o papel das mulheres em
produções audiovisuais; no Brasil, apenas 15% dos filmes
tiveram direção feminina entre 2001 e 2010

Ana Paula Orlandi

A
cineasta brasileira é branca, de Martha Lauzen, professora de cinema e televisão
classe social abastada e vive da Universidade Estadual de San Diego, apontou
na região Sudeste, onde estão que 20% dos cargos de direção, roteiro, produ-
concentradas cerca de 80% das ção, edição e direção de fotografia nos 100 filmes
empresas produtoras de filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2019
no país. Os dados que ajudam a haviam sido ocupados por mulheres. Essa desi-
compor o perfil da diretora de cinema brasileira in- gualdade se reflete no Oscar. Criada na década de
tegram um de vários estudos recentes sobre o tema 1920, a tradicional premiação da indústria cine-
que, nas últimas duas décadas, vem despertando matográfica norte-americana só foi agraciar uma
interesse crescente de pesquisadores não apenas mulher na categoria de melhor direção em longa
da própria área do audiovisual, mas também da de ficção em 2010, quando Kathryn Bigelow levou
antropologia e história. Se entre 1961 e 1971 menos a estatueta pelo filme Guerra ao terror. “De ma-
de 1% das produções brasileiras eram dirigidas por neira geral, é muito difícil para as mulheres con-
mulheres, entre 2001 e 2010 esse número passou quistarem cargos de chefia e isso não é diferente
para cerca de 15%. “Mesmo assim, o índice continua no cinema”, relata a produtora Débora Ivanov, ex-
baixo”, constata Paula Alves, cineasta que anali- -diretora da Agência Nacional de Cinema (Ancine)
sou 3.455 filmes para investigar a participação de e hoje à frente do Mais Mulheres Lideranças do
mulheres em funções de destaque, como direção e Audiovisual Brasileiro, grupo criado no ano pas-
roteiro, em equipes de longas-metragens realizados sado que reúne 90 profissionais do setor. “É um
no Brasil entre os anos 1960 e 2010. círculo vicioso: os homens são mais contratados
Para a pesquisa, desenvolvida na Escola Nacional para dirigir e roteirizar longas-metragens porque
de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de são mais experientes, enquanto as mulheres per-
Geografia e Estatística (Ence-IBGE), Alves criou manecem em segundo plano por não terem tanta
um banco de dados a partir de fontes como o Di- experiência em direção.”
cionário de filmes brasileiros – Longa-metragem O quadro se revela mais complexo em relação
(edição do autor, 2009), de Antônio Leão da Silva às mulheres negras, como aponta a cientista po-
Neto, e o portal Filme B, especializado no mer- lítica Marcia Rangel Candido, pesquisadora as-
cado exibidor nacional. Nele reuniu informações sociada do Grupo de Estudos Multidisciplinares
sobre longas de ficção, documentário e animação, da Ação Afirmativa, da Universidade do Estado
FOTOS 1 SOPHIA PINHEIRO / DIVULGAÇÃO 2 PAULO CESAR MAURO / ARQUIVO PESSOAL ADELIA SAMPAIO

não necessariamente lançados em circuito comer- do Rio de Janeiro (Gemaa-Uerj). Desde 2014 o
cial. Criadora do Femina – Festival Internacional grupo mapeia a diversidade no cinema brasileiro.
de Cinema Feminino, a pesquisadora conta ter se O mais recente levantamento revelou que entre
surpreendido com alguns números revelados pelo os diretores dos 240 filmes brasileiros de maior
estudo. Um deles se refere ao cargo de direção de bilheteria entre 1995 e 2018 21% são do sexo fe-
fotografia. “É a área onde a participação feminina minino. Nenhuma das cineastas é negra. “Não é
é menor no cinema brasileiro: pouco mais de 1% possível explicar essa desigualdade pela falta de
no total do período estudado e apenas 3% na úl- profissionais no mercado do audiovisual brasi-
tima década.” O número de roteiristas também é leiro: as mulheres negras estão aí e relatam mui-
baixo: 13,7% dos filmes lançados entre 2001 e 2010 ta dificuldade em conseguir financiamento para
foram escritos somente por mulheres, de acordo produzir e distribuir os filmes”, avalia Candido.
com a pesquisa. “A pesquisa evidencia que o mercado cinemato-
A tímida presença de mulheres em cargos de gráfico brasileiro é dominado por homens brancos
Ao lado, a partir do alto,
comando no cinema não é exclusividade brasileira. e não representa nossa diversidade. A ideia é de
as cineastas Patrícia Em 2014, estudo encomendado pelo Geena Davis que esses dados possam ajudar a fomentar polí-
Ferreira Pará Yxapy, Institute on Gender and Media (EUA) e realizado ticas públicas mais preocupadas com igualdade
da etnia Mbyá-guarani, pela Universidade do Sul da Califórnia em 11 paí- de gênero e raça no país.”
e Adélia Sampaio,
apontada como
ses mostrou que 16,7% dos filmes foram dirigidos A historiadora Edileuza Penha de Souza, do Nú-
a primeira diretora de por mulheres na China e 8,3% na Austrália. Já a cleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade
cinema negra no Brasil pesquisa “The celluloid ceiling”, desenvolvida por de Brasília (UnB), concorda. Em 2012, durante

PESQUISA FAPESP 299 | 83


pesquisa de doutorado, percebeu que seu levanta- uma mulher. “No Brasil,
mento para um capítulo sobre cinema negro não o interesse pelo cinema
trazia o nome de nenhuma cineasta brasileira que feito por mulheres indí-
houvesse dirigido sozinha um longa-metragem genas é bem recente”, in-
de ficção. “Como negra fiquei muito angustiada forma Clarisse Alvarenga,
ao constatar aquela lacuna e, mesmo que esse da Faculdade de Educação da
não fosse o foco principal da pesquisa, resolvi Universidade Federal de Minas
fazer um mergulho mais profundo na história Gerais (FaE-UFMG). “Foi na última
do cinema nacional para tentar encontrar algu- década que elas assumiram um lugar de
ma realizadora negra”, recorda Souza, também protagonismo e realizaram um conjunto expres-
documentarista e professora do campus Recanto sivo de filmes.” Em pós-doutorado desenvolvido
das Emas do Instituto Federal de Educação, Ciên- no Museu Nacional, Alvarenga estudou a produ-
cia e Tecnologia de Brasília (IFB), voltado para ção fílmica de realizadoras brasileiras, entre elas
o ensino técnico audiovisual. Em um site sobre Ayani Huni Kuin, da etnia Huni Kuin, e Patrícia
mulheres no cinema nacional ela deparou-se com Ferreira Pará Yxapy, da etnia Mbyá-guarani, bem
a foto de Adélia Sampaio e, por meio de uma rede como da cineasta navajo Arlene Bowman, que vi-
social, entrou em contato com a cineasta mineira ve na Califórnia, Estados Unidos. Homenageada 2
radicada no Rio de Janeiro. na edição 2020 do Cabíria Festival – Mulheres &
De acordo com a pesquisadora, Sampaio é a Audiovisual, de São Paulo, Yxapy apresentou 11
primeira cineasta negra do Brasil. “Ela ingressou filmes no evento, como Teko Haxy – Ser imperfei-
no meio cinematográfico no final dos anos 1960 ta (2018), codirigido com a pesquisadora e artista
como telefonista da Difilm, distribuidora de fi- visual Sophia Pinheiro. “A maior interlocução das
tas do Cinema Novo fundada pelo produtor Luiz mulheres indígenas com pesquisadoras, curadoras
Carlos Barreto e, a partir daí, escreveu roteiros e outras realizadoras torna o campo do cinema
e dirigiu curtas-metragens. Em 1984 lançou em mais diverso, mais complexo, ao mesmo tempo
circuito comercial o longa-metragem de ficção que cria mais espaços de fala e condições de pro-
Amor maldito, algo inédito para uma mulher ne- dução para essas mulheres”, observa Alvarenga.

A
gra até então.” Desde 2016 Souza realiza, na UnB,
a Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia crítica acadêmica sobre a produ-
Sampaio. “O objetivo é dar visibilidade à produ- ção das mulheres no cinema flo-
ção de cineastas negras que sofrem resceu nos anos 1970 na Europa
ainda mais com a falta de apoio e nos Estados Unidos, impulsio-
para fazer seus filmes”, explica. nando investigações científicas
“Nesse sentido a trajetória de sobre o tema. “Isso ocorreu de
Adélia é inspiradora. Aos 76 forma paralela ao aumento do número de mulheres
anos de idade ela segue lutan- trabalhando no cinema, inclusive em cargos de
do para fazer suas produções”, direção”, aponta Karla Holanda, professora do
observa a diretora de Filhas de curso de Cinema e Audiovisual da Universidade
lavadeiras, eleito melhor curta- Federal Fluminense (UFF). Entre os motivos, avalia
-metragem brasileiro no festival a especialista, estão a instituição do Ano Interna-
internacional de documentários É cional da Mulher, em 1975, e da Década da Mulher Nesta página, cena
tudo verdade, em 2020. (1976-1985) pela Organização das Nações Unidas do curta-metragem
Filhas de lavadeiras (alto),
A presença de cineastas indígenas é ainda me- (ONU). “Ao incentivar a realização de produções de Edileuza Penha
nor. Em tese de doutorado sobre hierarquias de artísticas e culturais, essas iniciativas encorajaram de Souza; e as cineastas
gênero e raciais na produção cinematográfica con- o protagonismo feminino mundo afora, inclusi- Gilda de Abreu (acima)
temporânea, defendida em 2019 no Ence-IBGE, ve no cinema”, diz. “Outro ponto favorável foi a e Ana Carolina (à esq.).
Na outra página,
Paula Alves constatou que dentre 1.851 diretores criação de cursos de cinema em universidades Cleo de Verberena,
de 2.558 filmes analisados entre 1995 e 2016 oito brasileiras, como na Universidade de São Paulo, considerada a primeira
deles eram indígenas (0,4%), sendo sete homens e em 1967, e na UFF, em 1968.” cineasta brasileira

84 | JANEIRO DE 2021
Dos 240 filmes No Brasil, estudo pio- para a pesquisadora ao organizar o livro Mulhe-
neiro foi lançado em res atrás das câmeras: As cineastas brasileiras de
brasileiros de 1982: o livro As mu- 1930 a 2018 (Estação Liberdade, 2019) em parceria
sas da matinê, de Eli- com Camila Vieira da Silva. Além de 27 artigos,
maior bilheteria ce Munerato e Maria a obra, que nasceu dentro da Associação Brasi-
entre 1995 e 2018, Helena Darcy de Oli- leira de Críticos de Cinema (Abraccine), traz um
veira, publicado pe- dicionário com verbetes sobre 263 realizadoras
21% são dirigidos la Rioarte. Na obra, a que dirigiram pelo menos um longa-metragem
dupla de pesquisadoras lançado em circuito comercial ou em festivais de
por mulheres lista 21 longas-metra- referência no Brasil. “Muitas fazem apenas um fil-
gens realizados por mu- me e, por causa das dificuldades que encontram,
lheres e lançados comercial- abandonam a carreira.”
mente no país até 1979, como Uma dessas realizadoras é Cleo de Verberena,
O ébrio (1946), de Gilda de Abreu pseudônimo da paulista Jacyra Martins da Silveira
(1904-1979), e Mar de rosas (1977), de (1904-1972). Apontada como a primeira cineasta
Ana Carolina. Mais tarde, em 1989, a Escola de brasileira, ela dirigiu e atuou no policial O mistério
Comunicação da Universidade Federal do Rio de do dominó preto, lançado em 1931, no período final
Janeiro (UFRJ) e o Museu da Imagem e do Som do cinema mudo. “Nos anos 1930 as mulheres bra-
FOTOS 1 DIVULGAÇÃO / EDILEUZA PENHA DE SOUZA 2 ARQUIVO NACIONAL / WIKIMEDIA COMMONS 3 VANTOEN PEREIRA JR. 4 CINEARTE / WIKIMEDIA COMMONS

do Rio de Janeiro publicaram Quase catálogo 1: sileiras eram espectadoras ou no máximo atrizes
Realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988), or- de produções cinematográficas. Não por acaso, a
ganizado por Heloísa Buarque de Hollanda, atual- estreia de uma delas na direção foi vista como al-
mente professora emérita da UFRJ. go exótico por parte dos críticos”, conta Marcella

D
Grecco de Araujo, que investiga a trajetória da
e acordo com Karla Holanda, essas pioneira em seu doutorado no Programa
coletâneas foram fundamentais de Pós-graduação em Meios e Pro-
para nortear boa parte dos tra- cessos Audiovisuais da USP. Lan-
balhos acadêmicos sobre o tema. çada pela Epica-Film, produtora
“A maioria das pesquisas ainda é que a realizadora dividia com
feita por mulheres, mas percebo o marido, Cesar Melani (1903-
a aproximação crescente de homens sensíveis à 1935), a obra foi o único traba-
causa. E isso é ótimo, porque o reconhecimento da lho de Verberena como diretora.
participação feminina no cinema, boa parte omi- Três anos depois ela abandonou
tida pela história, deve ser de interesse de todos”, a vida artística. Segundo Araujo, o
defende. Em Mulheres de cinema (Numa Editora, filme não foi bem recebido e causou
2019), livro organizado pela especialista, dois dos “enorme prejuízo financeiro”. “Cleo de
22 capítulos são assinados por homens. Verberena foi esquecida já na década de 1930.
Na opinião da pesquisadora Luiza Lusvarghi, do Embora breve, sua trajetória como artista ajuda a
Grupo de Estudos sobre Gêneros Cinematográfi- entender o início do cinema nacional”, conclui. n
cos e Audiovisuais (Genecine) da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), o interesse pelo
assunto cresceria caso houvesse maior número de Projeto
disciplinas voltadas especificamente à produção Cleo de Verberena: A primeira cineasta brasileira (nº 17/13760-4);
cinematográfica de mulheres nos cursos de gra- Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Esther
Império Hamburger (USP); Bolsista Marcella Grecco de Araujo; In-
duação em audiovisual no Brasil. “É uma discussão vestimento R$ 162.702,54.
que precisa começar desde o início da formação
desses profissionais, independentemente do gê- Livros
nero”, diz, para completar: “Sabe-se muito pouco HOLANDA, K. (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.
LUSVARGHI, L. e SILVA, C. V. da (orgs.). Mulheres atrás das câme-
sobre as cineastas brasileiras. É difícil levantar ras: As cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação
dados sobre elas”. A questão tornou-se explícita Liberdade, 2019.

PESQUISA FAPESP 299 | 85


ARQUIVOLOGIA

NOS
BASTIDORES

DA CIÊNCIA
86 | JANEIRO DE 2021
Com status de documento, cadernos registram
os primeiros esboços de uma pesquisa
e podem servir de fonte para outros estudos

Ana Paula Orlandi

“É
como se espiássemos por cima de seu importante é que tais cadernos podem ajudar a
ombro enquanto ele projeta e execu- esclarecer eventuais questionamentos relativos a
ta experimentos que vão do trivial ao boas práticas científicas, como dúvidas quanto à
profundo.” Assim escreveu Gerald Gei- fabricação de dados e originalidade da pesquisa.
son (1943-2001), professor de história Desde 2016 Elian vem desenvolvendo, em 15
da ciência da Universidade Princeton no livro A dos 72 laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz,
ciência particular de Louis Pasteur (Contrapon- a pesquisa “As ciências biomédicas e a trajetória
to/Fiocruz, 2002), obra em que analisa mais de do IOC: Uma análise dos arquivos institucionais
uma centena de cadernos de laboratório e outros e pessoais”. “A ideia do estudo é tentar entender
manuscritos produzidos por Louis Pasteur (1822- a relação dos nossos cientistas com seus docu-
1895) e seus colaboradores ao longo de quatro mentos, cujo grau de envolvimento varia muito.
décadas de pesquisa. A pedido do próprio cien- Alguns deles têm muito mais interesse histórico
tista francês, os registros permaneceram ocultos e documental do que outros pela questão”, ob-
durante quase um século – só vieram a público serva. Um dos trabalhos é o vídeo Cadernos de
em 1971, quando foram doados por sua família Laboratório, concebido em 2019 pelo historiador
à Biblioteca Nacional de Paris. “É interessante e dirigido por Cristiana Grumbach. Na produção,
observar como essa documentação, sobretudo os historiadores, arquivistas e cientistas refletem
cadernos, pode ajudar a rever a mitologia em tor- sobre a importância desse documento, que não
no de Pasteur ao revelar não um gênio ou herói, apenas registra os primeiros esboços de uma
mas um personagem muito mais complexo, com pesquisa como também pode servir de fonte pa-
dúvidas, contradições e descaminhos”, aponta o ra outros estudos, inclusive voltados à memória.
historiador Paulo Elian, diretor da Casa de Oswal- Em meio ao vasto universo de documentos le-
do Cruz (COC), instituto de pesquisa histórica, vantados, chamaram a atenção de Elian as dife-
preservação do patrimônio e memória da Funda- rentes designações dos cadernos de laboratório.
ção Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Há “caderno de protocolo”, “caderno de pesquisas
Suporte utilizado pelos cientistas para regis- clínicas”, “caderno de amostras”, entre outras de-
trar os dados, os detalhes e as etapas de seus ex- nominações. “A função é quase sempre a mesma.
perimentos, o caderno de laboratório inspira O que essa variação de nomenclatura denota é que
há quase duas décadas as pesquisas de Elian. O não há um padrão absoluto de gestão dos cader-
historiador se aproximou do assunto durante o nos”, constata. A arquivista Maria Celina Soares
mestrado concluído em 2003, no Programa de de Mello e Silva, do arquivo histórico do Museu
Pós-graduação em História Social da Faculdade Imperial, em Petrópolis (RJ), vai além. “Faltam
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni- diretrizes e uma política nacional de preserva-
versidade de São Paulo (FFLCH-USP). Nele, in- ção da memória da ciência e tecnologia no país”,
vestigou os padrões de constituição e procedi- afirma. Por 34 anos Silva trabalhou no Arquivo
mentos de organização de arquivos pessoais de de História da Ciência do Museu de Astronomia
ACERVO CASA DE OSWALDO CRUZ / DIVULGAÇÃO

cientistas a partir da trajetória do sanitarista Ros- e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro, que
tan Soares (1914-1996), pesquisador da Fiocruz abriga mais de 50 acervos pessoais de pesquisa-
por quase cinco décadas. “É um arquivo vasto, dores com especialidades ligadas sobretudo à área
Observações de que está depositado na Casa de Oswaldo Cruz, e de exatas, como astronomia, química e matemá-
campo e de laboratório contém dezenas de cadernos”, conta Elian. “Em- tica. “Muitos dos acervos pessoais de cientistas
integram o caderno bora pouco investigados no Brasil, os cadernos que chegavam até nós continham documentos
produzido na década
de 1940 pelo
de laboratório podem ser fontes preciosas para o institucionais, que não deveriam estar na casa
cientista paraense historiador da ciência, por exemplo. Daí a impor- do pesquisador”, exemplifica. “Em geral, quan-
Leonidas Deane tância de preservar esse material.” Outro aspecto do isso acontece, é porque na instituição à qual

PESQUISA FAPESP 299 | 87


o cientista estava ligado não havia preocupação Desde então, os cadernos numerados e cataloga-
com a guarda e preservação daquele documento.” dos entregues a cada pesquisador permanecem no
Foi a partir de constatações dessa ordem que laboratório por cinco anos para depois ganharem
Silva coordenou no Mast, entre 2003 e 2006, um endereço definitivo na biblioteca da instituição.
estudo sobre a produção e preservação de regis- Na primeira página uma série de regras orienta
tros de ciência e tecnologia na cidade do Rio. Em os estudiosos acerca de seu uso. Estão destacadas
um ano e meio foram visitados 102 laboratórios lá a obrigatoriedade de indicar, com data e assi-
de sete institutos ligados ao Ministério da Ciên- natura, qualquer alteração em seu conteúdo e a
cia, Tecnologia e Inovações, como o Instituto de impossibilidade de ser levado para casa. “É um
Engenharia Nuclear e o Instituto de Matemática documento que pertence à USP, uma vez que a
Pura e Aplicada. A investigação se desdobrou em pesquisa se desenvolve dentro da universidade”,
tese de doutorado defendida por Silva em 2007, diz Bittencourt. “A medida reforça a questão da
na FFLCH-USP. “Como não havia uma política propriedade intelectual, além de aumentar a se-
institucional para preservar a documentação ge- gurança dos dados e do próprio autor, caso haja
rada nos laboratórios, nas instituições pesquisa- algum questionamento relativo à pesquisa. Além
das essa função ficava a cargo do cientista, que, disso, o caderno pode servir de fonte para quem
em geral, não tem expertise e tempo para cuidar está investigando algo parecido dentro do ICB.”

N
disso. O resultado é que muita coisa se perdia”,
recorda. “Em relação aos cadernos de laborató- ão é de hoje que os cientistas tomam
rio, evidenciou-se que alguns pesquisadores não nota de seus experimentos. “É difí-
sabiam distinguir se era um item institucional cil determinar quando essa prática
ou algo pessoal, que podia ser levado para casa.” surgiu, mas Leonardo da Vinci [1452-
Jackson Cioni Bittencourt, do Instituto de Ciên- 1519] e Galileu Galilei [1564-1642]
cias Biológicas (ICB-USP) e presidente da Agên- já tinham seus cadernos de anotação”, conta o
cia USP de Gestão de Informação Acadêmica, não historiador Gildo Magalhães do Santos Filho,
tem dúvidas. “Lugar de caderno de laboratório é diretor do Centro de Interunidades de História
no laboratório”, defende. Em 2017, quando o do- da Ciência da USP. “Entretanto, como protocolo
cente esteve à frente do ICB, foi criado o Escritó- de pesquisa, os cadernos surgiram com o apare-
rio de Boas Práticas Científicas daquela unidade, cimento dos primeiros laboratórios, no século
que passou a adotar um padrão para o caderno de XVIII.” Professora de história da ciência da USP,
laboratório de seus pesquisadores. O modelo foi Márcia Regina Barros da Silva chama a atenção
À esquerda, caderno
inspirado em um caderno utilizado por Bittencourt para as expedições científicas europeias realizadas de laboratório utilizado
em pesquisa de pós-doutorado no Centre National na América, África e Ásia a partir do século XVIII. por Carlos Chagas
de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. “Nessas viagens exploratórias havia o filósofo para anotações sobre
natural, só chamado de cientista nos primórdios experiências de inoculação
do Trypanosoma cruzi
do século XIX, que fazia anotações por meio de em cobaias. Abaixo,
textos e desenhos”, diz Silva, coordenadora do o sanitarista Oswaldo Cruz
laboratório de História, Tecnologia e Sociedade ao microscópio orienta
da FFLCH-USP, para completar: “É interessante o filho Bento e o cientista
Carlos Burle de Figueiredo
observar que a ideia de anotação vai sofrendo mu- em um dos laboratórios
tações ao longo da história, à medida que a ciência do Castelo de
se modifica”. Como exemplo, ela cita o caso do Manguinhos, em 1910

FONTE NONONONONO

88 | JANEIRO DE 2021
químico e físico britânico Robert Segundo Valentini, para garantir a privacidade
Boyle (1627-1691), que não des- das informações, alguns pesquisadores chegam
creveu os materiais que compu- a escrever em idiomas pouco conhecidos. Além
Os cadernos de nham a vedação de sua máquina disso, a caligrafia também pode contribuir para
de vácuo. “Era um detalhe que ele reforçar seu caráter privativo. Segundo o histo-
pesquisa não são não achou necessário na época, riador Everaldo Pereira Frade, do Arquivo de
mas hoje você precisa identificar História da Ciência do Mast, alguns cadernos
exclusividade todos os passos da prática”, diz. depositados na instituição apresentam trechos
das áreas de ciências Os cadernos não são exclusi- ilegíveis. É o caso das cadernetas do ornitólogo
vidade de cientistas das áreas de Helmut Sick (1910-1991), alemão naturalizado
exatas e da vida. ciências exatas e da vida. Pesqui- brasileiro, considerado o patrono desse ramo
sadores das humanidades tam- científico no país. Ou então do mineralogista
Pesquisadores bém lançam mão de algo pareci- austríaco radicado no Brasil Eugen Hussak (1856-
do, os cadernos de campo. “Para 1911), que trabalhou na Comissão de Exploração
das humanidades nós, antropólogos, o caderno de do Planalto Central e no Serviço Geológico e Mi-
utilizam os cadernos campo é a primeira ferramenta de neralógico do Brasil. “Em geral, são informações
análise, é onde escrevemos não anotadas em meio às expedições, em situações
de campo apenas as impressões pessoais, nem sempre favoráveis”, pontua Frade. “Mas em
como em um diário íntimo, mas alguns casos a grafia indecifrável é uma forma in-
principalmente as observações in tencional de ocultar os dados. A escrita se torna
loco, como o cenário e os atores incompreensível sobretudo quando se adotam
envolvidos na pesquisa”, esclare- idiomas e dialetos estrangeiros.”
ce José Guilherme Cantor Magnani, coordenador A geógrafa Larissa Alves de Lira, professora
do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urba- visitante do Instituto de Geociências da Univer-
na da USP. “É uma ferramenta antiga, mas ainda sidade Federal de Minas Gerais, deparou-se com
atual. E aqui no laboratório, mesmo em tempos um desafio dessa ordem durante pesquisa sobre
de smartphones, utilizamos cadernos de papel, Pierre Monbeig (1908-1987). Parte do acervo do
daqueles que cabem no bolso da calça”, conta. geógrafo francês, um dos responsáveis pelo esta-
“Hoje há colegas que registram o trabalho de belecimento da disciplina no Brasil, está deposita-
campo em aplicativos ou gravam áudios no celular, da no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros
por exemplo, mas muita gente ainda prefere o ca- (IEB-USP) e inclui duas cadernetas de viagem ao
derno de papel, que funciona em qualquer lugar e Nordeste do país na década de 1940. Elas foram
não precisa de bateria”, relata a antropóloga Luísa utilizadas pela pesquisadora como fontes da tese,
Valentini. No início de 2020, a pesquisadora defen- defendida em 2017 na FFLCH-USP. “Fiz tabelas
deu, na FFLCH-USP, tese sobre a documentação para entender as variações que as letras ganha-
de pesquisa dos etnólogos Lux Vidal (ver Pesquisa vam e assim tentar traduzir as notas, mas ainda
FAPESP nº 251), Pedro Agostinho e Rafael Me- restaram muitas partes ilegíveis”, conta Lira.

M
nezes Bastos. Desde o final dos anos 1960 os três
desenvolvem trabalhos de campo entre povos in- onbeig era amigo do intelectual
dígenas do país. “Na antropologia, o que não muda paulista Caio Prado Jr. (1907-
ao longo do tempo, a meu ver, é que os cadernos 1990), cujo arquivo também es-
de campo são instrumentos muito pessoais, que tá depositado no IEB. Durante
nem sempre são compartilhados.” A esse respei- quase 20 anos o historiador Pau-
to, Magnani conta o caso da publicação póstuma lo Teixeira Iumatti, que foi professor do IEB e
do caderno de campo de Bronislaw Malinowski hoje leciona na Universidade Sorbonne Nou-
(1884-1942), em 1967, por iniciativa da mulher do velle, na França, debruça-se sobre esse acervo.
antropólogo. “Escrito originalmente em polonês, Entre os cadernos de anotações de Prado Júnior,
língua materna do antropólogo, cobre parte de seu utilizados nos anos 1930 e 1940, um deles, em
período de trabalho de campo junto aos mailu e aos especial, destacou-se aos olhos do especialista:
trobriandeses, na Melanésia. Redigido na forma é aquele que reúne os relatos “Viagem a Ouro
ACERVO CASA DE OSWALDO CRUZ / DIVULGAÇÃO

de diário íntimo, consiste basicamente no regis- Preto” (1940) e “Viagem a Diamantina” (1941).
tro de seus estados de ânimo, preocupações com “Acompanhados de levantamento fotográfico,
a saúde, impressões e expressões sobre os nativos esses dois longos manuscritos que ocupam 84
e as condições do trabalho – a solidão, as leituras, páginas de um de seus cadernos de anotação
os encontros – e também sobre o mau cheiro, o documentam a fase de elaboração de Forma-
barulho, as tentações. Produziu o maior frisson ção do Brasil contemporâneo, de 1942”, afirma
no meio, provocando indignadas reações de ex- Iumatti, autor de História, dialética e diálogo
-alunos e muitas dúvidas quanto à oportunidade com as ciências: A gênese de Formação do Bra-
e validade da iniciativa.” sil contemporâneo (1933-1942), de Caio Prado Jr.

PESQUISA FAPESP 299 | 89


(Intermeios, 2018). “Há quem defenda que, ao quem documenta bem seus experimentos e os Caderneta registra
analisar a obra de um autor, os pesquisadores compartilha abertamente.” dados coletados
pelo mineralogista
devem se deter naquilo que foi publicado. Mas, A prática está alinhada aos preceitos da Ciên- austríaco naturalizado
na minha opinião, a leitura de manuscritos de cia Aberta, movimento internacional que vem brasileiro Eugen
forma geral pode trazer novos significados à crescendo no mundo inteiro graças à disponibi- Hussak, durante
produção. Os cadernos de Caio Prado Jr., por lização, por meio digital, dos produtos e resul- pesquisas no estado
de São Paulo, em fins
exemplo, são um canteiro de experiências, tra- tados de projetos científicos. Se a existência de do século XIX
zem uma série de formulações em curso, espe- bibliotecas, herbários ou museus são exemplos
lham uma evolução intelectual justamente por clássicos de ciência aberta, a definição no mun-
revelarem as hesitações do autor.” do digital envolve o acesso livre à informação e

D
à construção colaborativa do conhecimento no
epois de transcenderem o suporte de ambiente virtual. A forma principal de dissemi-
papel, hoje os cadernos de laborató- nação dessa proposta é a disponibilização, em
rio também podem ser encontrados repositórios digitais públicos, de artigos, dados,
em formato digital. A próxima eta- métodos e softwares relativos à determinada
pa aponta para os cadernos abertos. pesquisa científica. “Colaborar e compartilhar
Em sua perspectiva mais radical, o pesquisador são palavras-chave da ciência aberta, que, entre

ACERVO ARQUIVO DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA DO MUSEU DE ASTRONOMIA E CIÊNCIAS AFINS / DIVULGAÇÃO


disponibiliza na rede e em tempo real a íntegra outras coisas, busca democratizar o conhecimen-
dos dados brutos de estudo em andamento, para to e acelerar descobertas”, diz Claudia Bauzer
que as informações possam ser acessadas, anali- Medeiros, do Instituto de Computação da Uni-
sadas, interpretadas e reutilizadas por todos os versidade Estadual de Campinas e integrante da
interessados. Segundo a cientista da informação coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa
Anne Clinio, o termo open notebook science foi em eScience e Data Science. “Dessa forma, os
proposto em 2006 pelo químico Jean-Claude dados do caderno de laboratório de um cientista
Bradley (1967-2014), da Universidade Drexel, nos podem complementar o trabalho de outro pesqui-
Estados Unidos. “Bradley defendia uma ciência sador, por exemplo.” Na avaliação de Medeiros,
mais ágil e eficiente, baseada na abertura dos cada vez mais o compartilhamento precisa ser
cadernos de laboratório na medida em que ne- visto como compromisso ético, sendo associado
les estão registrados os procedimentos, etapas, a boas práticas em pesquisa, sobretudo em casos
insumos, protocolos, erros e acertos que carac- de estudos que recebem financiamento público.
terizam a produção de conhecimento”, diz a Isso não significa, no entanto, que todos os da-
pesquisadora independente. “De acordo com dos da pesquisa devem ser compartilhados. “Há
esse ponto de vista, é no caderno de laborató- restrições no âmbito da ética, confidencialidade,
rio, e não no artigo científico, que reside a real segurança ou propriedade intelectual”, conclui. n
possibilidade de escrutínio, validação, correção,
refutação, colaboração e aprendizagem. Para O livro e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão
Bradley, só é capaz de contribuir para a ciência listados na versão on-line.

90 | JANEIRO DE 2021
Médicos e seus
assistentes atendem
crianças no Ipai,
MEMÓRIA criado em 1899

O início da pediatria
No final do século XIX, médicos
do Rio de Janeiro se organizaram para
reduzir a mortalidade infantil

Carlos Fioravanti
ACERVO COC-FIOCRUZ

PESQUISA FAPESP 299 | 91


E
m um artigo de sete páginas publi­ tuições religiosas como a Santa Casa de Instituto Federal da Bahia, autora de
cado em 1875 na Revista Médica, Misericórdia adotavam a roda dos enjeita­ um artigo sobre Figueiredo publicado
o médico carioca Carlos Arthur dos, um cilindro de madeira giratório em na edição de abril de 2020 na História,
Moncorvo de Figueiredo (1846- que as mães, mantendo o anonimato, dei­ Ciências, Saúde – Manguinhos. Formado
1901) relatou o uso bem-sucedido de uma xavam os filhos recém-nascidos, depois na FMRJ em 1871, Figueiredo aprendeu
solução com cloreto de potássio para tratar entregues para adoção ou mantidos nos na prática a medicina de crianças nos
uma criança com diarreia, depois de uma conventos. A Santa Casa do Rio registrou dois anos seguintes, visitando hospitais
mãe ter lhe contado que havia ministrado a chegada de 47.255 mil crianças entre de Paris e outras capitais europeias. Em
o sal – não se sabe por qual razão – em vez 1738 e 1888, quando terminou a escravi­ 1874, reinstalado no Rio, publicou um ar­
da formulação que ele havia recomendado. dão no Brasil, ou 315 por ano, em média. tigo criticando o ensino médico no Brasil
Detalhado em um estudo de 42 páginas “A percepção da infância era muito di­ e propondo reformas, como a oferta de
publicado dois anos depois, esse trabalho ferente da de hoje”, observa a historiadora disciplinas sobre o parto e doenças das
marca o início da pesquisa de Figueire­ Gisele Sanglard, da Casa de Oswaldo Cruz crianças. Durante alguns anos ele aten­
do em pediatria – e da própria pediatria da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fio­ deu adultos e crianças com problemas
no Brasil. Moncorvo pai, como também cruz). Em razão da Lei do Ventre Livre, gastrointestinais, sua especialidade, em
era chamado, estabeleceu métodos de de 1871, filhos de escravos nasciam livres sua clínica e na Santa Casa, antes de dar
trabalho, construiu em sua casa uma e permaneciam com as mães até os 7 anos, prioridade à saúde infantil.
clínica para atender crianças, defendeu quando já estariam aptos a ganhar a vida Como nessa época, conta Sanglard, “o
a necessidade do ensino de pediatria na por si mesmos. “O trabalho de crianças Estado cuidava apenas das epidemias,
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro pobres, com ou sem família, era comum deixando que as próprias pessoas resol­
(FMRJ, hoje parte da Universidade Fede­ nas fábricas, oficinas mecânicas e arsenais vessem as doenças que tivessem”, em de­
ral do Rio de Janeiro) e formou médicos da marinha”, diz ela. “Acidentes de traba­ zembro de 1881 Figueiredo e um grupo
que fortaleceram essa especialidade no lho com crianças também eram comuns.” de médicos fundaram a Policlínica Geral
Rio, em São Paulo e Porto Alegre. Segundo Sanglard, como as mulheres do Rio de Janeiro, instalada inicialmente
Como os franceses em que se inspira­ ainda não tinham o hábito de amamentar em sua própria casa, no centro do Rio,
vam, os primeiros médicos dedicados à os filhos – as das classes baixas tinham para tratar adultos e crianças doentes.
saúde infantil no Brasil argumentavam de voltar ao trabalho logo após o parto e Seis meses depois ele inaugurou um es­
que a criança não era um adulto em mi­ as de classe alta pensavam que poderiam paço maior, cedido pelo governo, em uma
niatura e tinha peculiaridades que pre­ ficar com os seios flácidos –, ex-escravas cerimônia assistida por dom Pedro II e
cisavam ser respeitadas. Eles queriam ganhavam a vida como amas de leite. Os outras autoridades da corte, médicos e
reduzir a elevada mortalidade infantil: médicos alertavam para o risco de as estudantes de medicina. Nos dois espaços
no final do século XIX, de cada mil crian­ amas, cuja saúde não era acompanhada, crianças pobres eram atendidas de graça,
ças nascidas vivas, 460 poderiam morrer transmitirem tuberculose, sífilis e outras enquanto os pais das que tinham melhor
antes dos 7 anos, principalmente por doenças para os bebês. condição financeira pagavam a consulta.
diarreias e tuberculose. “A pediatria surgiu no contexto do

A
Para amenizar outro problema, o aban­ ensino prático e de uma elite médica”, Policlínica reuniu 12 médi­
dono de recém-nascidos nas ruas, insti­ diz a historiadora Virlene Moreira, do cos e um farmacêutico e se
tornou um espaço de atendi­
mento – com 8.375 crianças
tratadas de 1882 a 1894 –, ensino e pes­
quisa. Em 1882, Figueiredo identificou
e tratou em uma criança da Policlínica
um caso de coqueluche, à qual dedicou
os 10 anos seguintes. O trabalho dele e
de sua equipe ganhou projeção nacional
e internacional, com mais de 60 artigos
publicados na União Médica, criada por
Figueiredo, e em revistas especializadas
da França, Espanha, Itália e Estados Uni­
dos de 1883 a 1901.
“O argumento principal do primei­
ro grupo de médicos para reivindicar
a pediatria como área apartada da me­
dicina do adulto era de que as doenças
Moncorvo Filho eram as mesmas, mas evoluíam de modo
examina uma diferente, porque o corpo das crianças
criança em 1918,
durante a
tinha suas especificidades e exigiam ou­
epidemia de tra abordagem terapêutica”, diz Moreira.
gripe espanhola Em fevereiro de 1882, Figueiredo propôs

92 | JANEIRO DE 2021
Consultório com balanças pediátricas
e um puerímetro, usado para avaliar
o padrão de crescimento, e incubadora para
recém-nascidos no início do século XX

ao governo imperial a criação de uma Figueira (1863-1928) e Carlos Artur Mon­ atendimento a crianças e creches em
disciplina de doenças infantis. Seis meses corvo Filho (1871-1944), o pernambuca­ bairros do Rio e em fábricas.
depois um decreto autorizava a criação no Luiz Barbosa (1870-1949) e o gaúcho Figueira ajudou a fundar a Sociedade
de disciplinas sobre doenças e cirurgias Olympio Olinto de Oliveira (1866-1956). Brasileira de Pediatria em 1910 e, além
de crianças nas duas faculdades de me­ dos artigos médicos, escreveu o Livro

H
dicina do Império – além do Rio, havia istoriador amador, membro do das mães: Consultas práticas de higiene
a de Salvador, na Bahia. Instituto Histórico e Geográ­ infantil, publicado em 1920, respondendo
“A nomeação de Moncorvo de Figuei­ fico do Brasil e autor de poe­ a 107 dúvidas maternas. “Figueira criti­
redo para a cátedra de clínica de molés­ sias que publicava sob pseu­ cava tanto as amas de leite quanto o uso
tias médicas e cirúrgicas de crianças já dônimo em jornais do Rio, Fernandes de leite de vacas, cabras ou jumentas
estava acertada com o ministro Manuel Figueira mudou-se para Simão Pereira, para recém-nascidos e defendia a ama­
de Souza Dantas [1831-1894], que estaria Minas Gerais, por causa da saúde frágil, mentação pela própria mãe”, comenta
de acordo com a indicação sem necessi­ e continuou atento às crianças. Com ba­ Sanglard, autora do livro Amamenta-
dade de concurso”, observou o sociólogo se em suas observações, escreveu um ar­ ção e políticas para a infância no Brasil:
Luiz Otavio Ferreira, da COC-Fiocruz, tigo sobre doenças infantis publicado em A atuação de Fernandes Figueira, 1902-
em um trabalho apresentado em 2013 em 1895 e premiado pela Academia Nacional 1928 (Editora Fiocruz, 2016).
um simpósio de história. “Parece, contu­ de Medicina. Em 1903, lançou o livro O pernambucano Barbosa, por sua vez,
do, que outros interesses clientelísticos e Eléments de semiologie infantile, com criou a Policlínica de Botafogo, inaugu­
laços regionais impuseram a realização 632 páginas, em francês, que estabelecia rada em 1899 e mantida por filantropos.
de concurso, do qual Moncorvo de Fi­ as diferenças das doenças em crianças Na clínica, ele assumiu a coordenação do
gueiredo não quis participar por se con­ e em adultos e lhe valeu o convite para atendimento às crianças após sua filha de
siderar hors concours na especialidade voltar ao Rio. 6 meses morrer com uma doença aguda.
pediátrica.” A vaga na faculdade do Rio Como diretor da enfermaria de doen­ Como diretor da Saúde Pública do Distri­
foi ocupada pelo ortopedista e senador ças infecciosas de crianças no Hospital to Federal, criou o Pronto-socorro Mu­
baiano Cândido Barata Ribeiro, recém­ São Sebastião, na capital fluminense, Fi­ nicipal, atual Hospital Municipal Souza
-chegado da Bahia. gueira implantou uma inovação: as mães Aguiar, e, como professor concursado de
Figueiredo continuou independen­ deveriam permanecer ao lado das crian­ pediatria na FMRJ, participou do pla­
te, com um grupo crescente de adeptos. ças internadas. Por 14 anos, ele dirigiu nejamento da construção dos hospitais
FOTOS ACERVO COC-FIOCRUZ

Pelos cursos teóricos e práticos da Po­ um hospital para crianças criado com o da faculdade.
liclínica Geral passaram médicos que, apoio de comerciantes na Santa Casa do Herdeiro direto de Figueiredo, que
depois, ampliaram a pediatria no Rio e a Rio. Depois, como chefe da Inspetoria também expandiu sua obra, “Moncorvo
expandiram para outros estados. Desta­ de Higiene Infantil do Departamento Filho adorava estatística”, conta Moreira,
caram-se os cariocas Antônio Fernandes Nacional de Saúde, fundou postos de do IFBA. Em 1899 ele criou o Instituto de

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Comparações de natalidade Proteção e Assistência à Infância (Ipai),
e mortalidade infantil em 1899 e 1913 inicialmente em sua casa, para tratar
na cidade do Rio de Janeiro
crianças doentes e prestar serviço social,
fornecendo alimento às famílias pobres
e enfatizando a importância da higiene
e da amamentação materna. “Ele argu­
mentava que a prevenção era tão impor­
tante quanto o tratamento de doenças”,
diz. No Ipai, Moncorvo Filho implantou
o serviço de puerimetria, para obter o
que chamava de “índice de robustez da
criança brasileira”, com base em medidas
e pesagem de cerca de 5 mil crianças de
até 14 anos. Com base nesses registros,
ele inventou um aparelho, o puerímetro,
para ver se as crianças seguiam o padrão
normal de crescimento.
O pediatra baiano Alfredo Ferreira
de Magalhães (1873-1943), professor da
Faculdade de Medicina da Bahia que
também publicou artigos sobre doen­
ças de crianças, conhecia os colegas do
Rio, criou uma filial do Ipai para ofere­
cer serviços médicos a crianças caren­
tes de Salvador e construiu um hospital
para crianças. Em São Paulo, a pediatria
avançou com o fluminense Clemente
Ferreira (1857-1947), que combateu a
febre amarela e a tuberculose antes de
dirigir o serviço de proteção à primeira
infância do governo estadual.

P
or sua vez, o gaúcho Olympio
Oliveira criou um ambulatório
para crianças na Santa Casa
de Porto Alegre e ensinou pe­
diatria na Faculdade de Medicina da
capital do Rio Grande do Sul antes de
voltar ao Rio. No governo federal, ele
dirigiu o Departamento Nacional da
Criança, criado na década de 1940 pa­
ra combater a mortalidade infantil e
formar médicos nessa especialidade
no serviço público de saúde.
“Com base em seus estudos cientí­
ficos, os médicos eram convidados a
ocupar cargos públicos e implementar
Vitral do Ipai e armário
com garrafas de leite materno políticas de assistência à infância”, ob­
serva Moreira. Como resultado, a partir
de 1920 a necessidade da amamentação
materna exclusiva até os 6 meses de ida­
de se tornou consenso, as rodas dos en­
jeitados escassearam até se extinguirem
em meados do século passado, o trabalho
FOTOS ACERVO COC-FIOCRUZ

infantil foi proibido, o número de pedia­


tras no país cresceu até chegar aos atuais
40 mil e a mortalidade de crianças até 5
anos de idade caiu a 12,4 para cada mil
nascidos vivos em 2019. n

94 | JANEIRO DE 2021
CARREIRAS

Garimpeiro moderno
Preparado para interpretar grande volume de informações, cientista de dados
é profissional em alta no mercado, com múltiplas possibilidades de atuação

A
pontada como campo de o cientista de dados precisa ser “Os profissionais que já trabalham
pesquisa em ascensão, que curioso e gostar de resolver com ciência de dados vêm, em
conjuga conhecimentos problemas”, observa André Ponce de geral, de áreas correlatas, como
relacionados à computação, inteligência Leon Ferreira Carvalho, vice-diretor ciência da computação, física,
artificial, matemática e estatística, do Instituto de Ciências Matemáticas matemática, engenharia e estatística”,
a ciência de dados consiste na análise e de Computação da Universidade informa Carvalho. “O aumento na
de complexos volumes de informações de São Paulo (ICMC-USP), em demanda justifica essa formação
geradas em diferentes plataformas. São Carlos, e do Centro de Ciências mais direcionada.”
No Brasil, para atender a demanda Matemáticas Aplicadas à Indústria Desde 2018, a ênfase em ciência
crescente por cientistas de dados, (Cemeai), um dos Centros de de dados integra o currículo de
instituições de ensino superior têm Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) todos os cursos do ICMC-USP,
investido na criação de bacharelados apoiados pela FAPESP. A formação evidenciando sua relevância como
e cursos de pós-graduação. O objetivo é profissional envolve também a campo de estudos multidisciplinar.
formar profissionais aptos a interpretar, capacidade de identificar informações Em 2020, o bacharelado em estatística,
ILUSTRAÇÕES ANDRÉS SANDOVAL

estruturar e analisar conteúdos que valiosas em bases gigantescas de por exemplo, passou a ser denominado
podem chegar à ordem dos petabytes, dados, área que se tornou conhecida estatística e ciência de dados. “Essa
unidade de armazenamento que como big data. A instituição, que já é uma tendência mundial tanto nos
corresponde a 1.024 terabytes. forma cientistas de dados em nível de cursos de estatística quanto nos de
“Além de conhecimentos de pós-graduação, inaugura agora curso computação, que passaram a dar mais
computação, matemática e estatística, de bacharelado específico na área. importância para a ciência de dados”,

PESQUISA FAPESP 299 | 95


completa Carvalho. Dentre as surgiram, dentre elas as relacionadas o gerenciamento de dados regionais,
disciplinas que integram a matriz ao campo das tecnologias de essenciais para a formulação de
curricular do novo curso estão informação e comunicação, as políticas públicas.”
engenharia de software, inteligência chamadas TICs. Dados divulgados Um exemplo disso são as
artificial, computação de alto pela empresa de consultoria Bain metodologias e os modelos que vêm
desempenho, redes de computadores e & Company, com sede em Boston, sendo utilizados para aumentar
mineração em grandes bases de dados. nos Estados Unidos, estimam que em a eficiência de processos jurídicos
Além do quase imensurável volume 2020 aproximadamente 1 milhão de e sistematizar dados gerados no
de informações produzidas todos novos cientistas de dados tenha âmbito legislativo. Desde setembro de
os dias, inclusive pelo uso de se formado em níveis de bacharelado 2020 o ICMC-USP mantém com
smartphones, assistentes virtuais, e pós-graduação em todo o mundo. o Tribunal de Justiça do Estado de
fechaduras eletrônicas, relógios, Dados da Associação Brasileira São Paulo (TJSP) convênio para
geladeiras, aspiradores de pó, das Empresas de Tecnologia da criação de ferramentas de inteligência
aparelhos de ar-condicionado Informação e Comunicação artificial que possibilitem a formação
e televisores também já geram dados (Brasscom) indicam que, no país, de banco de dados analítico com
que podem ser utilizados para a busca por profissionais de tecnologia base nas informações constantes em
melhorar produtos e serviços ou não apenas segue em ascensão documentos processuais. “O objetivo
simplesmente facilitar o dia a dia. como pode sofrer com a falta de é analisar o conteúdo dos textos e
“As informações produzidas mão de obra qualificada. Até 2024, levantar os assuntos mais recorrentes,
pelos diversos sensores presentes a demanda anual prevista é de 70 mil além de apontar semelhanças
nos automóveis, como câmera de novos profissionais. entre processos”, explica Carvalho,
marcha à ré e medidores “Além das empresas que estão do ICMC-USP.
de temperatura e velocidade, são passando por transformações digitais O instituto também acaba de
armazenadas em bancos de dados ou que já nasceram com essa vocação, firmar contrato com a Câmara dos
e podem ser usadas para a realização há oportunidades em diversas áreas Deputados, em Brasília, para
de manutenção preventiva do veículo, da ciência, que cada vez mais desenvolver métodos de aprendizado
além de avisar o condutor que ele dependem de cientistas de dados para de máquina e processamento de
está em uma área sujeita a alagamento interpretar informações produzidas linguagem natural que visam analisar
ou com grande registro de acidentes”, em grande quantidade” afirma Bianca o conteúdo dos canais de participação
exemplifica Carvalho. Zadrozny, pesquisadora e gerente popular mantidos pelo órgão.
A ampla base de dados que sênior da área de Modelagem “Com isso, será possível identificar
possibilita a análise sistematizada Espaço-temporal do Laboratório de os argumentos da população
por parte dos cientistas divide-se, Pesquisa da IBM Brasil. A empresa em relação às propostas legislativas,
em geral, entre dados estruturados estima que, nos Estados Unidos, compilando posicionamentos
e dados não estruturados. Os o número de vagas abertas continuará contrários ou favoráveis a um
primeiros são aqueles que surgem de crescendo 5% ao ano, com 60 mil determinado projeto de lei.”
forma já organizada, tais como a postos de trabalho abertos só em 2020. Atenta ao aumento da demanda,
quantidade de acessos a determinado “O cientista de dados tende a ser uma a Pontifícia Universidade Católica
site ou aplicativo, número de usuários, das ocupações de maior destaque de Campinas (PUC-Campinas) dará
produtos mais consumidos e locais dentro das empresas, por sua início, também neste ano, a um curso
que apresentam maior movimentação capacidade de levantar hipóteses, de bacharelado na área. Intitulado
de pessoas. Os dados não estruturados projetar experimentos, avaliar ciência de dados e inteligência
reúnem textos e imagens publicados resultados e apresentá-los de forma artificial, o curso terá duração de
em redes sociais, sons captados compreensível”, completa Zadrozny. quatro anos, sendo os três primeiros
a partir de microfones que podem Ao avaliar o panorama nacional, ofertados no período matutino
estar instalados no oceano, em Luis Gustavo Nonato, coordenador e o último no período noturno. “Essa
florestas ou em ambientes urbanos, do novo curso do ICMC-USP, segue organização permite que ao final
por exemplo. Uma vez sistematizados, na mesma direção. “No Brasil existe do curso os alunos possam realizar
podem ajudar a prever fenômenos um déficit enorme. As empresas estágios nas diversas empresas de
climáticos como furacões, identificar tentam contratar cientistas de dados tecnologia presentes na região”,
queimadas ou a ocorrência de assaltos o tempo todo e, mesmo com explica Daniele Maia Rodrigues,
em determinada região. a diversidade de cursos, ainda faltam diretora da Faculdade de Engenharia
profissionais”, diz. Segundo ele, de Computação da PUC-Campinas.
DEMANDA CRESCENTE o crescimento da demanda ocorre Dentre os objetivos propostos pelo
Se no início o computador chegou em todas as regiões do Brasil, mas é no programa, Rodrigues destaca
a ser visto como uma ameaça a postos Sul e Sudeste que está concentrado a formação de habilidades técnicas
de trabalho, sendo a automação o maior número de vagas. “Além das e interpessoais dos cientistas de dados,
associada ao aumento do desemprego, empresas, governos e órgãos públicos que devem conjugar conhecimentos
a partir de seu uso novas profissões dão cada vez mais importância para sobre algoritmos e sistemas

96 | JANEIRO DE 2021
Requisitos de um
cientista de dados

1 Ter afinidade com a área de exatas,


principalmente matemática e estatística

2 Familiaridade com linguagens


de programação

3 Capacidade de solucionar problemas


e identificar oportunidades de inovação

4 Disposição para trabalhar em


equipes multidisciplinares

5 Boa capacidade de comunicação

computacionais, além da capacidade é indispensável para que o profissional Universidade Federal da Bahia
para trabalhar em equipes obtenha êxito”, explica Eduardo (UFBA) divide-se em três módulos,
multidisciplinares. Para que tais Barbosa, coordenador do curso cada um com quatro meses de
habilidades sejam desenvolvidas, de pós-graduação lato sensu em data duração, compreendendo disciplinas
os alunos precisam entender de science e decisão do Instituto de como estatística aplicada, álgebra
desenvolvimento de sistemas Ensino e Pesquisa (Insper). Voltadas matricial e métodos numéricos,
computacionais, programação, redes para a análise de bibliotecas de dados programação em R e Python,
de computadores, computação robustas, as linguagens Python e R aprendizado de máquina,
em nuvem, infraestrutura de sistemas, são amplamente usadas na fundamentos de big data, inteligência
inteligência artificial, aprendizado de programação de aplicativos. Com artificial e reconhecimento de padrões
máquinas e processamento de linguagem o propósito de formar cientistas de de imagem, som e vídeo. “Além de
natural, ou seja, a capacidade que um dados capazes de dar suporte estatísticos, matemáticos, cientistas
computador tem de interpretar a à tomada de decisões empresariais, da computação e engenheiros,
linguagem humana, por meio da escrita o curso baseia-se na aprendizagem de entre os matriculados estão também
ou da fala. “É importante observar que modelos estatísticos e aprendizagem profissionais de comunicação,
os cientistas de dados provavelmente de máquina, programação e design direito, administração, dentre outros”,
integrarão equipes relacionadas a outros thinking para ciência de dados, afirma Jalmar Manuel
campos do conhecimento, de acordo que envolve desenvolvimento da Farfan Carrasco, coordenador do
com áreas de negócio específicas”, capacidade para compreensão de curso oferecido pelo Departamento
completa Rodrigues. problemas e a proposição de soluções. de Estatística do Instituto de
“No exame de seleção buscamos Matemática e Estatística da UFBA.
PÓS-GRADUAÇÃO identificar se o candidato atende Para aproximar alunos de áreas
Para além da atualização de aos requisitos básicos para admissão tão distintas do conhecimento
conhecimento, profissionais sobretudo no programa. O objetivo é evitar e facilitar a compreensão de conceitos
da área de exatas têm visto na ciência a frustração de profissionais sem mais específicos, o programa de
de dados uma oportunidade de atuar afinidade com o campo das ciências pós-graduação tem investido em
em um campo de trabalho diferente. exatas”, informa Barbosa. Com atividades em grupo, reunindo,
Sendo o bacharelado em ciência duração de 20 horas divididas em sempre que possível, alunos formados
de dados uma alternativa de três dias, a instituição também oferece em estatística e computação e a
formação mais recente, empresas uma modalidade expressa, voltada profissionais de outras áreas, como
já vinham apostando na contratação à formação de executivos que direito, comunicação, psicologia,
de engenheiros, matemáticos, queiram utilizar os conceitos da dentre outros. “Ao observar um
administradores, economistas e físicos área para melhorar os resultados de mesmo problema de formas distintas,
que agora buscam complementar sua seus negócios. essa interação permite que cada
formação nessa área. Com primeira turma iniciada em integrante contribua de forma singular
“Ter noções de linguagens de 2018, o curso de especialização na busca por soluções”, completa
programação como Python e R em ciência de dados e big data da Carrasco. n Sidnei Santos de Oliveira

PESQUISA FAPESP 299 | 97


PERFIL

Genética
dos fungos
Pesquisador da Universidade
de São Paulo é reconhecido
internacionalmente
por contribuições no
campo da microbiologia
Gustavo Goldman é o vencedor da edição 2021 do ASM Moselio Schaechter Award
in Recognition of a Developing-Country Microbiologist

Com uma carreira voltada para Goldman graduou-se em biologia quando inalado. Isso porque é
pesquisas nas áreas da microbiologia pela Universidade Federal do resistente a temperaturas altas,
e biologia molecular, o carioca Rio de Janeiro (UFRJ) em 1983. de até 44 graus Celsius (ºC),
Gustavo Henrique Goldman busca, Ao concluir o curso, recebeu uma o que o caracteriza como um fungo
há mais de 30 anos, informações oferta para trabalhar no projeto de termotolerante. “Podemos dizer
genéticas para compreender melhor construção da usina hidrelétrica que 37 ºC é a temperatura que ele
a evolução e o comportamento de Tucuruí, no município homônimo mais gosta”, salienta Goldman.
dos fungos, mais especificamente de no estado do Pará. Lá criou um Doença que acomete pacientes
Aspergillus fumigatus, causador banco de germoplasma a partir de com déficit no sistema imune, a
da doença pulmonar conhecida espécies de árvores madeireiras e aspergilose pode causar pneumonia,
como aspergilose. frutíferas que ocupavam a área do bronquite e disseminar-se de forma
Professor e coordenador de reservatório. “Levávamos o material invasiva, levando inclusive à morte.
laboratório na Faculdade de Ciências para um viveiro e plantávamos em “Embora cause mais mortes
Farmacêuticas de Ribeirão Preto uma ilha próximo da usina”, conta. do que a malária e a tuberculose,
da Universidade de São Paulo “Com isso, conseguimos preservar infelizmente as doenças fúngicas
(FCFRP-USP), Goldman foi o uma amostragem da diversidade são hipernegligenciadas.”
vencedor, em setembro, do 2021 ASM genética daquela região.” Durante o Nos estudos realizados
Moselio Schaechter Award in mestrado em microbiologia na Escola no laboratório que coordena na
Recognition of a Developing-Country Superior de Agricultura Luiz de FCFRP-USP, Goldman e sua equipe
Microbiologist. Considerado um dos Queiroz (Esalq-USP), Goldman trabalham para entender como
mais importantes do mundo nessa concentrou-se no estudo de Aspergillus fumigatus responde
área, o prêmio é oferecido pela Aspergillus niger, com investigações ao estresse resultante dos processos
American Society of Microbiology sobre melhoramento genético do de defesa do sistema imunológico,
(ASM), sediada na cidade de fungo para produção de celulase, a partir das proteínas MAP quinases,
Washington, capital dos Estados enzima usada na produção de ração determinantes genéticos
Unidos. “Recebo a premiação como animal. No doutorado em biologia importantes para a compreensão
reconhecimento à profissionalização molecular, finalizado em 1993 da capacidade de sobrevivência e
da pesquisa em microbiologia que é na Universidade de Ghent, na Bélgica, multiplicação do fungo. “Já temos
realizada no Brasil, o que reforça estudou o fungo Trichoderma uma classificação funcional de
o prestígio de nossos cientistas harzianum, bastante utilizado diversos genes que codificam fatores
no restante do mundo”, observa no controle de outros de transcrição e isso é importante
Goldman, primeiro brasileiro fungos patogênicos de plantas. para entender diferentes estresses
agraciado pela instituição. A entrega Apesar de ser encontrado enfrentados pelo organismo ao
ARQUIVO PESSOAL

do prêmio está prevista para acontecer com maior frequência no solo, desenvolver resistência ou
em junho do próximo ano, durante o Aspergillus fumigatus também pode tolerância a drogas antifúngicas”,
encontro anual da associação. infectar animais e seres humanos conclui. n S.S.O.

98 | JANEIRO DE 2021
revistapesquisa.fapesp.br

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