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BR

MARÇO DE 2024 | ANO 25, N. 337

SUPERCOMPUTADORES
MAIS POTENTES
Com modernização e novas
máquinas, Brasil amplia seu poder
de processamento para
pesquisas científicas, previsão
do tempo e geração de energia

Epidemia de Consórcio Combustível Absorventes Profissionais Produção


dengue pode mapeia sustentável biodegradáveis dedicados ao excessiva de
ser a maior desigualdade de é alternativa se decompõem cuidado somam raios gama
da história, diz o gênero na ciência para reduzir em seis meses 24 milhões nos polos do
médico Maurício em 16 países emissões do e poluem de pessoas Sol intriga
Nogueira e propõe ações setor aéreo menos no país astrônomos
FOTO MATEUS SERRER

Grupo Coco de Roda


Novo Quilombo,
de Conde (PB):

337
influências múltiplas
(MUSICOLOGIA, P. 86)

5 CARTA DA EDITORA ENTREVISTA BOAS PRÁTICAS NEUROLOGIA


6 NOTAS 22 A brasilianista 38 Suspeita de coação 48 Estudo identifica casos
Barbara Weinstein analisou para obter amostras de Alzheimer decorrentes
CAPA o protagonismo comercial biológicas põe em xeque do uso de hormônio
12 O esforço do Brasil de elites regionais artigos de genética forense extraído de cadáveres
para ampliar e modernizar e trabalhadores no país
sua infraestrutura de DADOS ETNOBOTÂNICA
supercomputadores EQUIDADE 41 Participação feminina 51 Pesquisa em quilombos
28 Consórcio mapeia na docência superior cataloga uso medicinal
20 Frontier, a máquina desigualdade de gênero e artesanal de plantas
mais veloz do mundo, na ciência em 16 países ENTREVISTA
faz 1 quintilhão de e propõe ações 42 O virologista ZOOLOGIA
operações por segundo Maurício Nogueira fala 54 Gatos-do-mato
FINANCIAMENTO das características da andinos pertencem
32 Fundo quer mapear a epidemia atual de dengue à espécie distinta
filantropia que envolve dos felinos brasileiros
a população negra no país IMUNOLOGIA
46 Autorregulação do PALEONTOLOGIA
RECURSOS HUMANOS sistema imune facilita 56 Anfíbio anterior
34 Cursos de campo multiplicação do parasita aos dinossauros aponta
em ecologia sofrem com da malária conexão entre as faunas
Capa
falta de verbas brasileira e russa
Detalhe do interior
do Coaraci,
supercomputador
da Unicamp
FOTO LÉO RAMOS CHAVES /
REVISTA PESQUISA FAPESP MARÇO 2024 ›››
Gatos-do-mato, como WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
L. pardinoides, têm
espécies redefinidas
por ecólogos
(ZOOLOGIA, P. 54)
PODCASTS
As armadilhas das
revistas predatórias
Saiba mais sobre o avanço
dos periódicos científicos
com práticas desonestas.
E mais: espécies vulneráveis;
sensor de acetato; bioma
brasileiro
1

COMPUTAÇÃO ENERGIA MUSICOLOGIA VÍDEOS


58 Sistemas baseados 70 Pesquisadores do 86 Coleção de livros Aids: a história da luta
em IA podem monitorar Ipen desenvolvem protótipo explora diversidade musical contra a doença
travessia de animais de bateria nuclear das regiões do país Linha do tempo mostra
em rodovias por que resposta brasileira
INOVAÇÃO MEMÓRIA à epidemia se tornou
ASTROFÍSICA 72 Absorventes íntimos 90 Há 150 anos, um referência mundial
60 Em seu último pico biodegradáveis poluem astrônomo brasileiro foi ao
de atividade, o Sol menos o planeta Japão para ajudar a calcular
emitiu excesso inesperado a distância da Terra ao Sol
de raios gama 75 Os prejuízos Desbravando

FOTOS 1 JOHANNES PFLEIDERER 2 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP


econômicos e sociais ITINERÁRIOS DE PESQUISA a floresta de
62 Fusão de duas causados pela 94 O físico George árvores gigantes
estrelas de nêutrons gera pobreza menstrual Sand de França se divide Equipe de Pesquisa FAPESP
segunda maior explosão entre a ciência e a arte revela os bastidores da
de raios gama SOCIOLOGIA da palhaçaria expedição de pesquisadores
76 Com 24 milhões ao Amapá
SUSTENTABILIDADE de pessoas trabalhando RESENHA
64 Brasil quer ter no setor, governo 96 Admirável novo Este conteúdo está
papel de destaque na prepara o lançamento mundo: Uma história disponível no site
produção de combustível da primeira política da ocupação humana www.revistapesquisa.fapesp.br,
renovável de aviação nacional de cuidado nas Américas, que contém, além de
de Bernardo Esteves. edições anteriores, versões
68 Universidades e centros ARTES VISUAIS Por Cláudia R. Plens em inglês e espanhol
de pesquisa investigam 82 Vida e obra do crítico e conteúdo exclusivo
como elevar a produção Mário Pedrosa ganham 97  COMENTÁRIOS
de biocombustível novas análises 98 CLASSIFICADOS

George Sand de França:


na academia e no
picadeiro (ITINERÁRIOS
DE PESQUISA, P. 94)
CARTA DA EDITORA

Trabalho invisível
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

E
m uma sociedade cada vez mais depen- intensamente recursos computacionais, progra-
dente do processamento de dados, super- mam a modernização de seus equipamentos.
computadores se tornam crescentemente Ganhou bastante destaque na mídia, causando
importantes. Caracterizados por alta velocidade alarme, a notícia de que foram registrados casos
nas operações e grande capacidade de memória, de Alzheimer adquiridos por transmissão. O fato
realizam cálculos complexos em tempo ínfimo. de o achado ter sido publicado em periódico cien-
Esses instrumentos são utilizados em diferentes tífico de renome deu peso aos temores. Tipo mais
áreas de pesquisa, como modelagens climáticas, comum de demência, a quase totalidade dos casos
astronômicas e farmacológicas, e no apoio a mui- ocorre na forma esporádica, isto é, causada por
tas atividades em diversos setores da economia, fatores genéticos, ambientais e de estilo de vida.
como energia e saúde. Em reportagem esclarecedora, o editor de Ciên-
Além de custar ao menos algumas centenas cias Biomédicas, Ricardo Zorzetto, contextualiza
de milhões de reais, um supercomputador re- a descoberta, destacando que nos cinco casos re-
quer uma infraestrutura que sustentaria uma gistrados todos os pacientes haviam se submetido
pequena cidade: subestações de energia elé- na infância a um tratamento com um hormônio
trica, sistemas de refrigeração contínua que de crescimento que não é mais usado há quase 40
envolvem ar-condicionado e milhares de litros anos (página 48). Além de tranquilizar os alarma-
de água. A dimensão física de um instrumento dos, a reportagem descreve um mecanismo que
desses chama a atenção: podem pesar até 40 ajuda a explicar como a doença se espalha no
toneladas e ocupar uma área de centenas de cérebro, identificado por outros pesquisadores.
metros quadrados. A redação da prova do Enem realizada em no-
Na 62ª edição do ranking semestral Top500, vembro passado teve como tema a invisibilidade
com os maiores parques de supercomputadores do trabalho de cuidado realizado pela mulher no
comerciais em operação, o Brasil aparece em 11º Brasil. Um dos materiais de apoio para o desen-
lugar no agregado por país, com nove equipa- volvimento do texto pelos estudantes foi a capa
mentos, sua melhor colocação até agora. Os cinco de Pesquisa FAPESP de janeiro de 2021, sobre
primeiros são da Petrobras e, desses, a primazia o mesmo tema. A reportagem mostrava como o
é do Pégaso, que ocupa a 45ª posição no mundo aumento na expectativa de vida da população e
e conta com 20% da capacidade do 10º colocado. novos arranjos familiares ampliaram a demanda
O mais potente dedicado a pesquisa científica por serviços desse tipo.
está no Laboratório Nacional de Computação Nesta edição, a repórter Christina Queiroz
Científica (LNCC), do MCTI, mas não aparece retorna ao tema, relatando que o Brasil prepa-
na lista devido à sua arquitetura computacional. ra sua primeira política nacional de cuidados
A infraestrutura supercomputacional brasileira (página 76). Pesquisa expõe que, no país, são 24
está em processo de expansão, o que deve impac- milhões de profissionais dedicados a esse se-
tar positivamente a pesquisa científica, mostra tor, que engloba uma variedade de atividades,
a reportagem de capa desta edição (página 12). como trabalhadoras domésticas, enfermeiras,
O LNCC e o Inpe, cujas investigações utilizam cozinheiras e cabeleireiras.

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NOTAS

FOTOS 1 SERGE OUACHÉE / WIKIMEDIA COMMONS 2 GREGORY H. REVERA / WIKIMEDIA COMMONS 3 IGOR ALECSANDER / GETTY IMAGES
1

Milhares de filhotes mortos


Uma variedade altamente contagiosa do vírus da gripe Animal do governo argentino. Em um dos locais exami- A gripe aviária
aviária H5N1 devastou as populações de elefantes- nados, onde se esperava encontrar milhares de filhotes devastou as
populações de
-marinhos-do-sul (Mirounga leonina), na Argentina. Em desmamados, havia apenas 58. Essa perda equivale a
elefantes-
outubro de 2023, ao percorrerem a península Valdés quase uma geração inteira de elefantes-marinhos na -marinhos-do-sul
na região central do litoral do país, biólogos da Socie- região. Quando adultos, os machos dessa espécie são na Argentina
dade de Conservação da Vida Selvagem encontraram de três a quatro vezes maiores que as fêmeas. Os maio-
uma praia de 13 quilômetros coberta de cadáveres de res podem pesar até 4 toneladas e medir mais de 6
elefantes-marinhos: 70% dos 1.891 filhotes haviam mor- metros (m), mas em geral os machos têm cerca de 2
rido. No mesmo local, na mesma época do ano anterior, toneladas e 4 m, ao passo que a média das fêmeas é de
a mortalidade tinha sido de 0,8% para 3.135 filhotes 500 quilogramas e 2,70 m. Com esse episódio, subiu
nascidos. Resultados semelhantes foram encontrados para 345 o número de espécies conhecidas de aves e
em outras praias. A estimativa é de que mais de 17.400 mamíferos que o vírus da gripe aviária consegue infec-
filhotes – ou 96% do total – possam ter morrido por tar (Marine Mammal Science, 25 de dezembro de 2023;
causa do vírus, depois identificado no Serviço de Saúde ScienceAlert, 23 de janeiro).

6 | MARÇO DE 2024
A Lua está encolhendo
A exemplo de uma uva que se enruga ao virar uma
passa, a Lua está encolhendo e ganhando vincos.
Mas, por não ser feito de matéria flexível como
a fruta, o astro se deforma de modo mais violento.
As falhas geológicas se multiplicam e terremotos
e deslizamentos de terra se tornam mais comuns.
A circunferência da Lua diminuiu mais de 45 metros
nas últimas centenas de milhões de anos à medida que
seu núcleo foi se resfriando. Pesquisadores da Nasa, a
agência espacial norte-americana, e de universidades
e institutos da América do Norte verificaram que a
contração lunar provocou o surgimento de falhas
tectônicas no polo sul lunar. Algumas regiões afetadas
pelas deformações e instabilidades de terreno se
situam em áreas cogitadas como local de pouso da
missão Artemis 3, iniciativa da Nasa prevista para
2026 que pretende levar novamente astronautas para
a Lua. “Nossa modelagem sugere que terremotos
superficiais capazes de produzir fortes tremores
de solo na região polar sul são possíveis de ocorrer
a partir de eventos de deslizamento em falhas
existentes ou em novas que venham a se formar”, diz
o geólogo Thomas Watters, do Instituto Smithsonian,
autor principal do estudo, em comunicado à imprensa. O resfriamento do
Para ele, essas informações devem ser levadas núcleo fez o satélite
natural da Terra diminuir
em conta no planejamento da localização de
mais de 45 metros
eventuais postos avançados permanentes na Lua nas últimas centenas
(The Planetary Science Journal, 25 de janeiro). de milhões de anos

Abraços pela saúde cardíaca


O benefício do
carinho dos pais Tratar crianças de forma carinhosa, dando apoio emocional,
vai além do
tem efeitos positivos que vão além da saúde mental. Pessoas
bem-estar mental
que crescem com esse tipo de cuidado têm melhores chances
de uma boa saúde cardiovascular mais adiante na vida,
mesmo que tenham sofrido abuso na infância, de acordo com
estudo liderado por pesquisadores das faculdades de
medicina das universidades de Nova York (NYU) e Estadual
de Ohio (OSU), nos Estados Unidos. As análises incluíram
2 mil voluntários do estudo Cardia, que acompanha o risco
cardiovascular no longo prazo. Nesse caso, foram avaliados
parâmetros de saúde – dieta, tabagismo, atividade física,
peso, teor de lipídios, pressão arterial e glicose em jejum –
aos 25 anos e depois em intervalos de 7 e 20 anos. “Enquanto
ambientes familiares adversos na infância foram associados
a baixos índices de saúde cardiovascular na idade adulta,
nossos achados sugerem que o cuidado protetor e, o que
é essencial, estável, pode ter uma influência maior na saúde
cardíaca posterior do que a adversidade inicial”, resume
a pediatra Robin Ortiz, da NYU, em material para a imprensa
na plataforma EurekAlert (Circulation: Cardiovascular Quality
and Outcomes, 23 de janeiro).

PESQUISA FAPESP 337 | 7


Ouro escondido em um mineral
No leito de um córrego no município mineiro de Morro
do Pilar, os geólogos Alexandre Raphael Cabral, da
Universidade Federal de Minas Gerais, e Antônio Seabra
Gomes Jr., de uma empresa de exploração mineral,
recolheram um grão de ouro de cerca de 1 milímetro de
comprimento e, dentro dele, um mineral chamado sperrilita,
isto é, um arseneto de platina, com 2 a 10 micrômetros.
A surpresa veio depois. No grão polido pela geóloga
Stephanie Lohmeier, da Universidade Técnica de Clausthal,
Alemanha, os pesquisadores verificaram que, no mineral,
átomos de ouro poderiam substituir os de arsênio, ainda
que em uma proporção pequena: em 100 gramas (g)
de sperrilita, o ouro corresponderia a 3,4 g. “Havia ouro
suficiente e pouco arsênio para se ligar com a platina”, diz
Cabral. “A sperrilita aurífera comprova uma possibilidade
que já havia sido vista teórica e experimentalmente.”
A descoberta sugere outra fonte eventual de platina
e de ouro: os veios de quartzo formados sob baixas
temperaturas, próximas a 350 °C, em decorrência de
terremotos ocorridos há cerca de 500 milhões de anos,
como em uma área de 230 quilômetros de extensão
Sperrilita,
entre Ouro Preto e Diamantina (The Canadian Journal of fonte habitual
Mineralogy and Petrology, 18 de janeiro). de platina

Registros de arte
2

rupestre no Paraná
Maior unidade de conservação do Paraná, a Área
Pinturas rupestres de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana é
ressaltadas com filtro no conhecida por suas araucárias e seus afloramentos
abrigo Rio Quebra-Perna II
rochosos, com formação de cânions. Agora, entra
(em destaque), na região
que abrange o Parque dos na conta uma riqueza arqueológica: mais de mil
Campos Gerais (foto maior) figuras pintadas por povos originários há centenas
de anos, distribuídas em 277 painéis registrados
em 52 sítios arqueológicos. O inventário de pinturas
rupestres resulta do trabalho do Grupo Universitário
de Pesquisas Espeleológicas (Gupe) da Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Com registros
em mais de 14 mil fotografias em alta resolução,
torna-se possível estudar essas marcas, que
incluem – em ordem de mais para menos comum –
figuras incompletas ou manchas, formas geométricas,
pinturas de animais e, mais raramente, representações
de pessoas, plantas ou marcas de mãos carimbadas
na parede. “Conhecer esse passado é preservar
a nossa história mais primitiva, as raízes da ocupação
humana em Ponta Grossa e região e a história dos
primeiros povos que por aqui caminharam, viveram
e se desenvolveram”, afirmou a geóloga Laís
Luana Massuqueto, da UEPG, em comunicado da
3 universidade (Portal UEPG, 5 de dezembro de 2023).

8 | MARÇO DE 2024
A sonotinta, para Uma liana gigante

lesões internas (Entada puseatha)


de uma floresta
do Sri Lanka

E se fosse possível tratar a fratura de


um osso ou uma lesão em um órgão
interno com a simples injeção de um
líquido que aderisse aos tecidos
e pudesse ser moldado para assumir
a forma e o grau de rigidez desejados?
Engenheiros das universidades Duke
e Harvard, nos Estados Unidos, deram
um primeiro passo, com um líquido
compatível com tecidos biológicos
que aumenta de viscosidade e pode
assumir diferentes configurações
quando exposto a ondas de ultrassom.
Contendo hidrogéis e micropartículas
sensíveis a essas ondas sonoras
inaudíveis para os seres humanos,
4
FOTOS 1 MRRK / WIKIMEDIA COMMONS 2 GRUPO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS ESPELEOLÓGICAS (GUPE) 3 WELLINGTON SILVA NASCIMENTO / WIKIMEDIA COMMONS 4 LON&QUETA / FLICKR 5 CDC

o líquido foi apelidado de sonotinta.


Três testes em laboratório mostraram Trepadeiras avançam em florestas
a viabilidade da ideia. Em um deles,
os pesquisadores usaram um cateter Em florestas tropicais úmidas como a Amazônia e a Mata Atlântica, desmatamento, chuvas
para depositar a sonotinta em uma escassas e temperaturas altas favorecem o crescimento de lianas, um tipo de trepadeira
pequena cavidade do coração de lenhosa (com ramos de madeira) que cresce com rapidez sobre as árvores. Em florestas
uma cabra e depois aplicaram ondas degradadas, podem proliferar em excesso e prejudicar o crescimento das árvores. Lidera-
de ultrassom para alterar a rigidez da por pesquisadores da Austrália, com a participação do geógrafo alemão Christoph Geh-
do material e fazê-lo assumir a ring, da Universidade Estadual do Maranhão, uma equipe internacional analisou 651 amos-
configuração desejada. O restauro tras de vegetação representando 26.538 lianas e 82.802 árvores de 556 locais dos cinco
suportou as deformações impostas continentes, incluindo o Brasil. O estudo verificou que a entrada de mais luz causada pelo
pelos batimentos cardíacos. Uma corte de árvores e a elevação da temperatura média abrem caminho para a dominância
potencial vantagem dessa técnica por lianas. Temperaturas médias anuais acima de 27,8 graus Celsius (ºC) favorecem mais
é que ela permite moldar o material o crescimento das lianas do que o das árvores. Nos próximos anos, concluiu o trabalho, a
biocompatível em estruturas mais intensificação do calor e das intervenções humanas pode desregular a proporção entre
profundas do que estratégias que lianas e árvores, reduzir a absorção de carbono pelas matas e dificultar a recuperação de
usam a luz (Science, 7 de dezembro). florestas degradadas (Global Change Biology, 19 de janeiro).

Nariz eletrônico para candidíase


5
Um sensor detecta metano, outro propano, um terceiro aminas e odores
sulforosos. Em conjunto, seis sensores, durante 20 segundos, identificam Candida sp.,
os compostos orgânicos voláteis liberados por colônias supostamente do causadora de
infecção
fungo Candida que crescem em uma placa de Petri. Em seguida, as infor-
oportunista, vista
mações passam por um programa de computador que usa inteligência ao microscópio
artificial e indica se se trata mesmo do microrganismo responsável pela
candidíase, infecção oportunista relativamente comum em mulheres e
em pessoas com defesa imunológica baixa, que, antes de ser corretamen-
te diagnosticada, pode ser confundida com reações alérgicas, dermatites
ou herpes genital. Assim funciona um dispositivo desenvolvido na Uni-
versidade Federal de Pernambuco (UFPE) chamado de nariz eletrônico
– versões similares já são usadas para identificar gases tóxicos ou conta-
minação em alimentos (ver Pesquisa FAPESP nº 228). Em minutos, a téc-
nica diferencia sete espécies de Candida, enquanto as análises laborato-
riais hoje utilizadas demoram de três a sete dias. Os testes registraram
uma acurácia de 95,87% a 97,70% (Scientific Reports, 10 de janeiro).

PESQUISA FAPESP 337 | 9


Leão de um
parque nacional O valor econômico
da África do Sul
visto durante
um safári
da vida selvagem
Para estimular os investimentos públicos
em conservação ambiental e ecoturismo,

FOTOS 1 DAVID BERKOWI / WIKIMEDIA COMMONS 2 DAVID R. GONZALEZ, DEPARTAMENTO DE TRANSPORTE DE MINNESOTA / FLICKR 3 EUROFUSION / WIKIMEDIA COMMONS 4 GREGG DARLING
a Escola de Conservação da Vida
Selvagem da Universidade de Liderança
Africana (ALU) divulgou o primeiro
Índice de Investimento na Economia da
Vida Selvagem (Weii) para a África.
Com 280 indicadores em 34 conjuntos
de dados, o Weii avalia as práticas de
gestão da vida selvagem, facilidade de
fazer negócios, capacidade do setor
público e segurança do investimento nos
54 países do continente. Os mais
qualificados foram África do Sul, com
uma pontuação global de 63,12 em 100,
seguida por Seychelles (62,84) e Ilhas
Maurício (58,66), enquanto a Somália
obteve a pontuação mais baixa (22,19).
1
Tanzânia liderou em riqueza de espécies,
com 43,94 pontos, Marrocos se
destacou em gestão da vida selvagem
Mais sal no solo, no ar e na água (74,92), Ilhas Maurício obtiveram a
melhor pontuação em facilidade de fazer
Todo ano, os Estados Unidos espalham 44 milhões de toneladas de sal, o equivalente negócios (74,6) e Seychelles estiveram
a 44% do consumo anual, para derreter o gelo de estradas durante o inverno, aumen- na frente em eficiência do setor público
tando a salinidade de rios próximos a cidades. Essas e outras ações humanas, como (79,46). “Ao encarar a vida selvagem
mineração e práticas agrícolas, aceleram o ciclo natural do sal e o espalham na atmos- como um ativo para o desenvolvimento
fera, no solo e nos rios. Além de representar um risco para a manutenção da biodiver- econômico sustentável que merece
sidade e dificultar a obtenção de água doce potável, íons de sal podem gerar compos- investimento e conservação, os governos
tos nocivos ao se ligar a contaminantes do solo. Um levantamento liderado pelo geó- africanos podem aproveitar vastas
logo Sujay Kaushal, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, concluiu que oportunidades de emprego e negócios
uma área equivalente ao território desse país sofreu um processo de salinização nos ecológicos”, comentou Veda Sunassee,
últimos 50 anos. “Se pensarmos no planeta como um organismo vivo, acumular tanto diretor da ALU, à Nature Africa. As
sal pode afetar o funcionamento de órgãos vitais ou ecossistemas”, comentou Kaushal atividades econômicas ligadas à vida
em um comunicado da National Science Foundation (NSF). “Remover o sal da água selvagem representam um mercado
consome muita energia e é caro, e o subproduto da salmoura que se obtém é mais de US$ 250 bilhões por ano na África
salgado do que a água do oceano e não pode ser facilmente descartado” (Nature Re- (Weii, 20 de novembro de 2023; Nature
views Earth & Environment, 31 de outubro de 2023; Newsletter da NSF, 4 de janeiro). Africa, 26 de janeiro).

Caminhão
despeja sal para
derreter a neve
em estrada
de Minnesota,
Estados Unidos

10 | MARÇO DE 2024
O fim de um reator de fusão nuclear
Começou em dezembro de 2023 e deve terminar em 2040
a desmontagem do Joint European Torus (JET), um dos mais
importantes reatores de fusão nuclear do mundo. Em ope-
ração desde junho de 1983 no Centro Culham de Energia
de Fusão (CCFE), em Oxfordshire, no Reino Unido, o equi-
pamento foi o primeiro a fazer um experimento com deu-
tério e trítio (átomos de hidrogênio com um e dois nêutrons,
respectivamente) em 1991 e quebrou o recorde de quan-
tidade de energia criada por meio da fusão em 2022. Fun-
cionou pela última vez em dezembro de 2023. Sua desa-
tivação foi consequência da saída do Reino Unido da Co-
munidade Europeia da Energia Atômica (Euratom), que
financiava a pesquisa com o reator. Os engenheiros pre-
tendem reciclar as peças do reator, incluindo o trítio, que
poderia ser reutilizado como combustível. O JET é um tes-
te para o Reator Termonuclear Experimental Internacional
(Iter), um reator de fusão de US$ 22 bilhões que está sen-
do construído no sul da França com o propósito de demons-
trar a viabilidade da fusão como fonte de energia. Ambos
são reatores do tipo tokamak, que confina o gás em suas
3
cavidades em forma de donut. O JET usa ímãs para com-
Interior do JET,
primir um plasma de isótopos de hidrogênio, 10 vezes mais
com ímãs para
quente que o Sol, até que os núcleos se fundam (Nature, comprimir isótopos
22 de janeiro). de hidrogênio

Esta libélula voa


com menos
esforço do que
insetos menores

Viscosidade do ar atrapalha
o voo de insetos pequenos
A maioria dos insetos tem asas e voa. Mas as alterações anatô- nutas, como a vespa Encarsia formosa e o besouro voador Para-
micas e os mecanismos envolvidos nessa forma de movimenta- tuposa placentis, é um obstáculo considerável a ser vencido
ção alada são diferentes em razão do tamanho de cada espécie. para a locomoção aérea. “Um inseto-miniatura se move no ar
Os chamados insetos-miniaturas, com comprimento de asa en- como uma abelha se movimentaria no interior do óleo mineral”,
tre 0,3 e 4 milímetros (mm), contam com adaptações particula- compara Mao Sun, da Universidade Beihang, de Beijing, na
res para vencer a viscosidade do ar. Essa propriedade, que re- China, autor do estudo. As adaptações aerodinâmicas dos inse-
presenta a resistência de um fluido (líquido ou gás) a mudanças tos menores, ainda pouco estudadas, incluem desde a natureza
em sua forma, não afeta muito a dinâmica de voo de insetos de sua batida de asas até a própria estrutura desses membros.
maiores, como moscas, abelhas, mariposas e libélulas, cujo com- Algumas espécies contam com asas porosas ou com cerdas pa-
primento de asas varia entre 5 e 50 mm. Mas em espécies dimi- ra facilitar o voo (Reviews of Modern Physics, 12 de dezembro).

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CAPA

12 | MARÇO DE 2024
DE ALTO
DESEMPENHO
COMPUTAÇÃO

FOTO LABORATÓRIO NACIONAL DE COMPUTAÇÃO CIENTÍFICA


Expansão do supercomputador
Santos Dumont e aquisição de
novas máquinas por Inpe, Unicamp
e consórcio de universidades
paulistas ampliarão o poder de
processamento de dados no país

Domingos Zaparolli

O
Brasil projeta avanços significati-
vos em sua infraestrutura de super-
computadores, com impacto sobre
os recursos de computação de alto
desempenho (HPC) disponíveis para
a pesquisa científica. As principais
iniciativas são do Laboratório Na-
cional de Computação Científica
(LNCC), em Petrópolis, na região
serrana do Rio de Janeiro, do Instituto Nacio-
nal de Pesquisas Espaciais (Inpe), em Cachoeira
Paulista, no interior paulista, duas instituições
vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovação (MCTI), e do Centro para Computa-
ção em Engenharia e Ciências da Universidade
Estadual de Campinas (CCES-Unicamp).
Um supercomputador consiste em milhares
de pequenos computadores chamados nós. Cada
nó é equipado com sua própria memória e vá-
rios processadores. Atuando em conjunto, eles
são capazes de realizar cálculos extremamente
complexos em elevada velocidade, na casa dos
quintilhões (1018) de operações por segundo. Es-
sas supermáquinas são uma poderosa ferramenta
de pesquisa e também dão suporte a setores da
Santos Dumont, economia como defesa, energia e saúde. Equi-
do LNCC: upgrade
fará com que
pamentos mais potentes, explicam especialistas,
ele se torne o mais possibilitam que cientistas resolvam problemas
rápido do país complexos em menor tempo.

PESQUISA FAPESP 337 | 13


Esses equipamentos podem apoiar estudos em
diferentes áreas, como simulações da formação
do Universo para compreender sua evolução, mo-
delagem molecular na busca por novos fármacos
e previsão do tempo e ocorrência de eventos cli-
máticos extremos. Eles também são usados para
ampliação de fronteiras de exploração de óleo e
gás, pesquisa de novos materiais, desenvolvimen-
to de projetos aeroespaciais e elaboração do po-
tencial energético de fontes renováveis de energia.
“Com a incorporação da inteligência artificial
nas atividades econômicas e sociais, a necessi-
dade de supercomputadores capazes de lidar de
forma eficiente com grande volume de dados e
oferecer respostas rápidas às demandas será ca-
da vez maior”, avalia o cientista da computação
Paulo José da Silva e Silva, do Instituto de Ma-
temática, Estatística e Computação Científica

O
(Imecc) da Unicamp.

LNCC programa para este ano a


1
expansão do poder computacional
do Santos Dumont, máquina dedi-
cada exclusivamente à investiga- de supercomputadores (ver infográfico na página O técnico Ruy Marvulle
ção acadêmica, que deverá passar 21). A Petrobras é dona de seis dessas máquinas. Bueno configura
o supercomputador
a ocupar, com o upgrade, o posto As outras três pertencem à empresa de softwares Coaraci, da Unicamp,
de mais potente do país. Hoje, o MBZ – os equipamentos NOBZ1 e A16A, ambos para disponibilizá-lo
SDumont, como é mais conhecido, com arquitetura Lenovo – e à companhia de soft- aos usuários
tem capacidade computacional de wares e pesquisa SiDi – o supercomputador Iara,
5,1 petaflops. Com a atualização, chegará a algo com tecnologia Nvidia, voltado a investigações
entre 22 e 25 petaflops – flops é um acrônimo na área de inteligência artificial (ver infográfico
em inglês para operações de ponto flutuante ou na página 17). Por uma questão técnica, o Santos
cálculos por segundo. Dumont não foi avaliado. O ranking só considera
Cada petaflops equivale à capacidade de pro- equipamentos com arquitetura computacional
cessar 1 quatrilhão (1015) de operações matemá- homogênea, ou seja, dotados de nós computacio-
ticas por segundo. O SDumont processa 5,1 qua- nais com a mesma configuração. Não é o caso da

FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 FELIPE GASPAR / PETROBRAS INFOGRÁFICOS RODRIGO CUNHA
trilhões de operações matemáticas em apenas 1 máquina do LNCC, que tem quatro arquiteturas
segundo. Se a mesma operação fosse realizada distintas trabalhando em conjunto.
em computadores pessoais modernos, seriam O líder do ranking é o Frontier, primeiro su-
necessários 24,5 mil aparelhos trabalhando em percomputador na casa do exaflops, com capaci-
conjunto (ver infográfico na página 16). dade de processar 1 quintilhão de operações por
Hoje, o maior supercomputador da América La-
tina é o Pégaso, da Petrobras, adquirido em 2022
da empresa francesa Atos por R$ 300 milhões. Ele
entrou em operação em dezembro daquele ano O UNIVERSO DOS FLOPS
com poder para processar 21 petaflops. O equipa-
mento figura na 45ª posição no ranking indepen- Unidade de medida equivale ao número de cálculos
dente Top500, divulgado em novembro de 2023, matemáticos que um computador faz por segundo
que lista as máquinas mais potentes do mundo.
A 62ª edição do levantamento, lançado pela Megaflops = 1 milhão (106) de operações por segundo
primeira vez em 1993, foi elaborada por pesqui-
sadores da Universidade do Tennessee, do Labo- Gigaflops = 1 bilhão (109) de operações por segundo

ratório Nacional Lawrence Berkeley e do Natio- = 1 trilhão (1012) de operações por segundo
Teraflops
nal Energy Research Scientific Computer Center
(NERSC), todos nos Estados Unidos. Petaflops = 1 quatrilhão (1015) de operações por segundo
O Brasil tem nove supercomputadores na rela-
ção – o melhor desempenho desde 1993, quando Exaflops = 1 quintilhão (1018) de operações por segundo

o Top500 começou a ser elaborado – e ocupa a 11a


colocação entre as nações com os maiores parques FONTE WILLIAN WOLF (UNICAMP)

14 | MARÇO DE 2024
Pégaso, da Petrobras:
em operação desde
2015, é o maior
supercomputador da
América Latina e o 45º
mais rápido do mundo
2

segundo, do Laboratório Nacional de Oak Ridge, (Sinapad), composto por nove unidades de HPC
nos Estados Unidos (ver reportagem na página 20). vinculadas ao MCTI.
A Petrobras será a responsável pelo investi- Até dezembro de 2023, o SDumont já havia sido
mento orçado em cerca de R$ 100 milhões para utilizado em 430 projetos de pesquisa, que pro-
o upgrade do SDumont. “Nossa expectativa é de porcionaram 1.044 artigos científicos, 43 livros ou
que a instalação das atualizações seja concluída capítulos de livros, 398 dissertações de mestrado
entre julho e agosto”, diz o matemático Wagner ou teses de doutorado e 11 patentes. Hoje, ele tem
Vieira Léo, coordenador de Tecnologia da Infor- mais de 2 mil usuários ativos. “O Santos Dumont é
mação e Comunicação do LNCC. um marco na produção científica brasileira. Antes
dele, o pesquisador precisava buscar parcerias no
MARCO NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA exterior para realizar seus trabalhos”, afirma Léo.
O SDumont entrou em operação em 2015 e foi a Entre as contribuições recentes do equipamen-
primeira estrutura de computação do país com to, está o sequenciamento de 19 genomas do coro-
capacidade em petaflops – na época, 1,1. Em 2019, navírus, tarefa realizada em 48 horas por pesqui-
foi reconfigurado para 5,1 petaflops com apoio do sadores do LNCC e das universidades federais de
consórcio petrolífero Libra, liderado pela Petro- Minas Gerais (UFMG) e do Rio de Janeiro (UFRJ)
bras. Ele atua como nó central (Tier-0) do Sistema em março de 2020, um mês depois dos primeiros
Nacional de Processamento de Alto Desempenho casos confirmados de Covid-19 no Brasil.

FORTE EVOLUÇÃO
Quantidade de máquinas brasileiras listadas no
ranking Top500 é a maior nos últimos 10 anos* 9

5 5
4
3 3
2 2 2
1

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

* O SANTOS DUMONT NÃO FOI AVALIADO PELO RANKING TOP500 FONTE 62ª EDIÇÃO DO RANKING TOP500

PESQUISA FAPESP 337 | 15


ESPAÇO PARA GRÁFICOS E TABELAS
POR DENTRO DE UM SUPERCOMPUTADOR
Beatem ut exerspernam eatem sam faccus dit
faccum atioresequi sam faccabor
Dotado de milhares ou até milhões de núcleos de processamento de alto
desempenho, o equipamento pode pesar entre 20 e 40 toneladas

Alta velocidade de processamento e assim demanda três geradores de 750 Para realizar essa tarefa, essas
grande capacidade de memória são as quilovolts-ampère (kVA) cada um, sendo dois supermáquinas somam milhares ou milhões
duas principais características dos em funcionamento e um para substituição, de núcleos de processamento de alto
supercomputadores. Eles são formados por em caso de necessidade. É necessário desempenho, entre unidades de
um conjunto de máquinas que atuam de 1.500 kVA para manter o sistema processamento central (CPU) e unidades
forma integrada e pesam em média entre funcionando e a refrigeração contínua. de processamento gráfico (GPU). Com
20 e 40 toneladas. Os equipamentos são A velocidade de processamento de um capacidade computacional de 5,1 petaflops,
distribuídos em racks enfileirados e ocupam supercomputador é estipulada conforme o Santos Dumont tem 36.472 núcleos de
uma sala específica refrigerada. O Frontier, a rapidez que ele processa operações (flops). CPU e 1.134 nós computacionais.
mais potente supercomputador do mundo, Os aparelhos mais potentes da atualidade A memória volátil ou RAM (random access
conta com 74 racks que ocupam uma sala processam operações na faixa de dezenas memory) de um notebook comum varia entre 2
de 680 metros quadrados. ou centenas de petaflops – cada petaflops e 32 gigabytes (GB). Em um supercomputador,
O Santos Dumont, supercomputador do equivale a 1 quatrilhão (1015) de operações ela é medida em terabyte (TB, que equivale
Laboratório Nacional de Computação matemáticas por segundo – ou, na dimensão a mil GB). O Pégaso, da Petrobras, com 21
Científica (LNCC), fica na cidade serrana de de exaflops, 1 quintilhão (1018) de operações petaflops de capacidade de processamento,
Petrópolis (RJ), que tem clima ameno, e ainda matemáticas por segundo. tem uma memória RAM de 678 TB.

O
DIFERENÇA ABISMAL Santos Dumont também auxiliou
cientistas da Universidade Federal
Compare a diferença do poder computacional dos de Pernambuco (UFPE) e da Funda-
supercomputadores e de um notebook comum ção Oswaldo Cruz em Pernambuco
(Fiocruz Pernambuco) no desenvol-
vimento de uma candidata à vacina
contra o vírus zika. Ainda na área
Notebook 208 bilhões de médica, o equipamento permitiu que
(208 gigaflops) cálculos matemáticos equipes do Instituto do Coração (In-
por segundo Cor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP)
e do Laboratório de Modelagem em Hemodinâ-
Coaraci
(801 teraflops)
mica (HeMoLab) do LNCC criassem modelos
801 trilhões 3,8 mil vezes computacionais que simulassem o escoamento
de cálculos mais rápido do que sanguíneo em artérias coronárias para o diagnós-
por segundo o notebook tico de risco de infarto do miocárdio.
“Hoje, a computação de alto desempenho es-
tá presente em quase todas as áreas da pesquisa
científica. Até mesmo em humanidades se utiliza
Santos Dumont
(5,1 petaflops)
a análise avançada de dados no apoio à defini-
5,1 quatrilhões 24,5 mil vezes ção de políticas públicas”, exemplifica Silva, do
de cálculos mais rápido do que Imecc-Unicamp, que também é o coordenador
por segundo o notebook

Frontier
(1,19 exaflops)
1,19 quintilhão
de cálculos
por segundo

FONTE PAULO JOSÉ DA SILVA E SILVA (UNICAMP)

16 | MARÇO DE 2024
SUPERMÁQUINAS BRASILEIRAS
Nove dos 500 supercomputadores mais potentes do mundo estão instalados no país

Equipamento* Instituição Capacidade em petaflops** Posição no Top500

Pégaso Petrobras 19,07 45a

Dragão Petrobras 8,98 88a

Gaia Petrobras 6,97 111a

Atlas Petrobras 4,38 169a

Gemini Petrobras 3,86 197a

Iara SiDi*** 3,66 205a

NOBZ1 MBZ*** 3,55 217a

Fênix Petrobras 3,16 245a

A16A MBZ 2,09 475a

* O SANTOS DUMONT NÃO FOI AVALIADO PELO RANKING TOP500 ** A CAPACIDADE AFERIDA PELO TOP500 PODE VARIAR
EM RELAÇÃO AO VALOR DIVULGADO PELAS INSTITUIÇÕES *** EMPRESAS DE SOFTWARE E PESQUISA

FONTE 62ª EDIÇÃO DO RANKING TOP500

do Centro Nacional de Processamento de Alto e 737 usuários de todo o país. “A infraestrutura


Desempenho em São Paulo (Cenapad-SP), uma tem 100% de ocupação e ainda há uma grande
das estruturas HPC que compõem o Sinapad. demanda represada na fila de espera”, relata o
O principal equipamento do centro paulista pesquisador da Unicamp.
é o supercomputador Lovelace, adquirido em Léo, do LNCC, e Silva compartilham a visão de
2021 com recursos da Financiadora de Estudos que, após a atualização do SDumont, a principal
e Projetos (Finep) e expandido em 2023 com o prioridade da computação de alto desempenho no
apoio da FAPESP. Nomeada em homenagem à país voltada à pesquisa acadêmica é o upgrade da
matemática inglesa pioneira da computação, a infraestrutura das demais unidades do Sinapad,
máquina fabricada pela Dell Technologies apre- uma vez que todas apresentam demanda de uso
senta em sua configuração atual capacidade de maior do que a capacidade de processamento
processamento de 388 teraflops. Cada teraflops (ver box na página 18).
proporciona 1 trilhão de operações por segundo. Em janeiro deste ano, um primeiro reforço
O centro também é aparelhado com o Tyr, que uti- tornou-se realidade. O Coaraci, “mãe do dia” em
liza o sistema IBM Power 750, com capacidade de tupi, novo supercomputador do CCES-Unicamp,
37 teraflops. No total, os equipamentos do centro passou por testes em dezembro de 2023 e foi
INFOGRÁFICOS RODRIGO CUNHA

disponibilizam 425 teraflops de processamento. disponibilizado para a comunidade acadêmica


Desde 1994, quando foi constituído o Cenapad- no mês seguinte. É uma máquina Dell de 801 te-
-SP, até o final de 2023, as pesquisas feitas no raflops, adquirida com apoio do Centro de En-
centro geraram em torno de 4,4 mil publicações genharia e Ciências Computacionais (CECC),
acadêmicas, 294 teses de doutorado e 331 disser- um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão
tações de mestrado. Hoje são 221 projetos ativos (Cepid) financiados pela FAPESP.

5,7 milhões de vezes mais rápido do que o notebook

PESQUISA FAPESP 337 | 17


“É o computador mais potente dentro de uma O Inpe, instituição que também forma o Sinapad,
universidade brasileira e receberá pesquisas nas dará início ao processo de licitação que levará à
mais diversas áreas de interesse científico. Nossa compra de um novo supercomputador capaz de
avaliação preliminar é de que o Coaraci terá uma aprimorar a previsão climática no país. O inves-
ocupação intensa, 24 horas por dia, sete dias por timento programado é de R$ 200 milhões em re-
semana”, diz o engenheiro mecânico William cursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento
Wolf, assessor técnico do CCES. O equipamen- Científico e Tecnológico (FNDCT). O valor será
to foi instalado no Centro de Computação John empregado em equipamentos e infraestrutura
David Rogers, abrigado no Instituto de Física física nas instalações do instituto em Cachoeira
Gleb Wataghin da Unicamp. Paulista (SP) voltados a dar o adequado suporte
Para Wolf, que é coordenador do Laboratório à máquina.
de Ciências Aeronáuticas da Unicamp, o Coaraci “O investimento será executado em etapas,
irá viabilizar trabalhos que eram difíceis de ser iniciando-se este ano e com conclusão prevista
realizados por equipes brasileiras. As pesquisas para 2027”, detalha o doutorando em engenha-
aeroespaciais feitas na Unicamp, por exemplo, ro- ria e tecnologia espaciais Ivan Márcio Barbosa,
dam em supercomputadores nos Estados Unidos coordenador de Infraestrutura de Dados e Su-

A
e na França, um processo que leva em média seis percomputação do Inpe.
meses por conta das longas filas e da burocracia
com a preparação e a revisão de projetos interna- primeira fase tem orçamento pre­vis­to
cionais. Além disso, esses projetos precisam en- de R$ 47,5 milhões para a aquisição
trar em uma fila de espera global e muitas vezes de equipamentos que vão gerar poder
os resultados precisam ser compartilhados com computacional de aproximadamente
grupos estrangeiros antes de ser processados. 2 petaflops. Ao final do processo em
“Esses dados são extremamente difíceis de ob- 2027, o sistema de alto desempenho
ter, e nosso maior interesse é tratá-los. Em outros do Inpe deverá somar 8 petaflops –
casos, os dados são sensíveis mesmo, pois se trata capacidade cerca de 15 vezes superior
de inovação tecnológica”, explica Wolf. “Com o à da supermáquina atual do instituto,
Coaraci, vamos fazer as pesquisas localmente, o Tupã, adquirido em 2010, que oferece 550 tera-
de forma rápida e segura, sem a necessidade de flops (ver Pesquisa FAPESP nº 306).
compartilhar dados que, em muitos casos, podem Supercomputadores usam muita energia para
ser estratégicos para o desenvolvimento tecno- alimentação elétrica e refrigeração. O Tupã, in-
lógico no Brasil.” forma Barbosa, tem um custo anual de eletrici-

SÃO PAULO TERÁ NOVO CENTRO DE COMPUTAÇÃO DE ALTO DESEMPENHO


Consórcio formado por sete universidades contará com supercomputador de 5 petaflops

Em um ano, um novo supercomputador, da pesquisa feita aqui, precisamos de Tadeu Gomes, coordenador-executivo da
com capacidade em torno de 5 petaflops, máquinas competitivas.” proposta e pesquisador do LNCC.
deverá entrar em funcionamento no país. O C3SP é formado pelas três universidades Os recursos, da ordem de R$ 50 milhões,
A máquina equipará o recém-criado estaduais de São Paulo (USP, Unicamp mesmo valor destinado ao C3SP, serão usados
Centro de Supercomputação Científica e Unesp), pelas quatro federais (UFABC, na atualização de cinco unidades do Sinapad:
do Estado de São Paulo (C3SP), uma das UFSCar, Unifesp e ITA) e as privadas o Centro Nacional de Supercomputação, na
duas unidades contempladas com recursos FEI e Mauá. “Um edital para a compra do Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o
de uma chamada lançada pela FAPESP e equipamento e a seleção de um centro de Núcleo de Computação de Alto Desempenho,
pelos ministérios da Ciência, Tecnologia processamento de dados empresarial para na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
e Inovação (MCTI) e das Comunicações abrigá-lo será lançado em breve. Optamos o Instituto Metrópole Digital, na Universidade
(MCom) para apoio a centros de computação por um lugar neutro para não descaracterizar Federal do Rio Grande do Norte, e os Centros
de alto desempenho. o conceito de consórcio”, explica Dias. Nacionais de Processamento de Alto
“Essa é uma demanda antiga das A segunda proposta contemplada foi o Desempenho de Minas Gerais e do Ceará.
instituições de pesquisa do estado, Centro de Computação de Alto Desempenho O poder computacional agregado dos
responsáveis por cerca de 60% do uso do Sinapad, o Sistema Nacional de cinco centros hoje é próximo de 700
do Santos Dumont, o supercomputador do Processamento de Alto Desempenho. “Nosso teraflops. Com a revitalização, deverá crescer
LNCC”, diz o meteorologista Pedro Leite projeto insere-se em um contexto estratégico para algo entre 4 e 8 petaflops. “Essas
da Silva Dias, diretor-executivo do C3SP. para a supercomputação no país, que é a unidades apoiarão a pesquisa científica em
“Se quisermos ter um impacto maior revitalização do Sinapad”, afirma Antônio diferentes regiões do país”, destaca Gomes.

18 | MARÇO DE 2024
1

Supercomputadores são
fundamentais em pesquisas
que simulam a formação
do Universo (ao lado),
na previsão do tempo
e clima (à dir.) e no
desenvolvimento de projetos
aeronáuticos (abaixo)

casa dos 90%, para as próximas 48 horas. Passa-


dos sete dias, fica abaixo de 50%”, diz Barbosa.
O Tupã não será desativado. “Enquanto houver
peças de reposição disponíveis, a máquina será
dedicada a projetos de pesquisas científicas na
área de tempo e clima”, afirma o pesquisador.
Atualmente essa tarefa no Inpe é realizada em um
cluster de processamento de alto desempenho,
um conjunto de máquinas menores que alcançam
uma determinada capacidade de processamento.
O Egeon, o cluster do Inpe, tem poder computa-
cional de 200 teraflops.
3

A CHEGADA DE GAIA
A infraestrutura de alto desempenho voltada à
dade de R$ 4,8 milhões. Sua refrigeração, como pesquisa no Brasil também foi reforçada em 2023
na maioria dos supercomputadores, conta com com a aquisição por R$ 76 milhões pela Petro-
um sistema misto que envolve ar condicionado bras do supercomputador Gaia, de 7,7 petaflops,
e água – são 40 mil litros circulando em circuito montado pela Dell. O Gaia entrou em operação
fechado. Para receber o novo supercomputador, o em agosto do ano passado e é utilizado exclusiva-
Inpe implantará uma subestação de energia elé- mente pelo Centro de Pesquisas, Desenvolvimento
trica de 138 quilowatts de pico (kWp) e renovará e Inovação da Petrobras (Cenpes). Seu objetivo é
sua infraestrutura elétrica, de ar condicionado e desenvolver e aperfeiçoar tecnologias ligadas à
água tratada. Também implementará uma usi- geofísica, entre elas ferramentas de processamen-
na de geração de energia solar fotovoltaica com to de imagens sísmicas, que usam ondas sonoras
capacidade inicial de 300 kWp. refletidas para criar uma espécie de tomografia
FOTOS 1 THE COSMIC DAWN PROJECT 2 INPE 3 FORÇA AÉREA BRASILEIRA

A renovação do sistema de previsão climática computadorizada da subsuperfície da Terra.


incluirá ainda uma nova modelagem de previsão No final de 2022, a Petrobras somava uma capa-
numérica de tempo e clima, batizada de Monan cidade de processamento de 63 petaflops e anun-
(Modelo para Previsão dos Oceanos, Superfícies ciou a meta de alcançar 80 petaflops, sem especi-
Terrestres e Atmosfera), ainda em desenvolvimen- ficar a data em que planeja atingir esse objetivo.
to. Segundo informações preliminares divulgadas Além do Gaia, também entrou em operação em
pelo Inpe, além dos métodos tradicionais baseados 2023 o Gemini, dotado de 3,9 petaflops. Na área
em solução de equações físicas, o Monan usará de produção, os supercomputadores da petrolífera
inteligência artificial e aprendizado de máquina são utilizados principalmente nas atividades de
para prever o início e o fim de chuvas e eventos processamento sísmico e engenharia de reser-
climáticos extremos com antecedência de três dias vatórios. No primeiro caso, o objetivo é deter-
e a previsão das tendências climáticas com uma minar a presença de petróleo e a melhor área de
antecipação de três meses. “Hoje, nossas previsões perfuração de poços; no segundo, a finalidade é
são para até 15 dias, mas a precisão só é alta, na estudar o comportamento do óleo armazenado. n

PESQUISA FAPESP 337 | 19


O
Frontier, desenvolvido pela norte-
-americana Hewlett Packard Enter-
prise (HPE), foi o primeiro super-
computador em escala exaflops do
mundo. Um exaflops equivale à ca-
pacidade de realizar 1 quintilhão de
operações matemáticas por segundo.
Máquinas na escala de exaflops têm
poder computacional equivalente ao
de 5,7 milhões de notebooks.
Hospedado no Laboratório Nacional de Oak
Ridge, no Tennessee, instituição de pesquisa vin-

A ERA DO
culada ao Departamento de Energia dos Estados
Unidos (DOE), o Frontier entrou em operação em
maio de 2022 com 1,102 exaflops e foi atualizado
no fim do mesmo ano para 1,194 exaflops. Esse

EXAFLOPS
desempenho garantiu à máquina a liderança da
62ª edição do ranking Top500 dos equipamen-
tos mais potentes do mundo, divulgado em no-
vembro de 2023.
O vice-líder da lista é o também norte-ameri­
cano Aurora, da Intel e HPE, pertencente ao La-
Com poder para realizar boratório Nacional Argonne, em Lemont, nos Es-
tados Unidos, e administrado pela Universidade
1 quintilhão de cálculos de Chicago. Com 585,3 petaflops, foi projetado
para ter um total de 2 exaflops, o que fará dele o
matemáticos por segundo, mais potente do mundo. A máquina também in-
o Frontier inaugura novo patamar tegra a estrutura de pesquisas do DOE.
O supercomputador Eagle, da Nvidia, com
de processamento de dados 561,2 petaflops, usado pela Microsoft como sua
plataforma de computação em nuvem Azure; a
Domingos Zaparolli máquina Fugaku, de 442 petaflops, montada pela

20 | MARÇO DE 2024
OS LÍDERES DO TOP500
Estados Unidos e China detêm mais de 50% da capacidade
computacional de alto desempenho do planeta

País Supercomputadores Participação (%)

1 Estados Unidos 161 32,2

2 China 104 20,8

3 Alemanha 36 7,2

4 Japão 32 6,4

5 França 23 4,6

6 Reino Unido 15 3

7 Itália 12 2,4

8 Coreia do Sul 12 2,4

9 Holanda 10 2

10 Canadá 10 2

11 Brasil 9 1,8

FONTE 62ª EDIÇÃO DO RANKING TOP500

Fujitsu para o Centro Riken de Ciência Compu- generativa. Já se encontra em testes e deverá en-
tacional (R-CCS) em Kobe, no Japão; e o finlan- trar em operação comercial ainda este ano, quando
dês Lumi, instalado no data center da empresa o desempenho real do dispositivo será conhecido.
estatal CSC, em Kajaani, na Finlândia, com 379 O novo supercomputador da Tesla será usado para
petaflops, completam o top 5 do ranking. treinar os sistemas de direção autônoma da com-
A partir da 16a posição, os supercomputadores panhia. A empresa não divulgou quando deverá
têm menos de 50 petaflops, o que revela o abismo ser concluído e entrar em operação.
que existe entre as novas capacidades em exaflops
e o universo do atual parque instalado de com- ECOEFICIÊNCIA
putação de alto desempenho (HPC) no mundo. Os organizadores do ranking Top500 também
O projeto em desenvolvimento com maior ca- elaboram outra listagem, a Green500, com os su-
pacidade computacional é o Condor Galaxy, que percomputadores mais ecoeficientes do mundo,
pretende ser uma rede de nove supercomputado- aqueles que combinam elevado poder computa-
res interconectados com poder de processamento cional com maior eficiência energética.
total de 36 exaflops. A iniciativa resulta de uma A relação é encabeçada pelo Henry, equipa-
parceria entre as empresas Cerebras Systems, dos mento do Instituto Flatiron, de Nova York, volta-
Estados Unidos, e G42, dos Emirados Árabes Uni- do a pesquisas científicas com auxílio de métodos
dos, que atuam na área de inteligência artificial. computacionais. O supercomputador tem um
FOTO OAK RIDGE NATIONAL LABORATORY INFOGRÁFICO RODRIGO CUNHA

Os valores não são oficiais, mas a imprensa es- nível de eficiência energética de 65,40 gigaflops
pecializada norte-americana estima que o investi- por watt (Gflops/w) – essa medida relaciona a
mento para a construção de um supercomputador capacidade de fazer cálculos rapidamente com o
na categoria de exaflops situe-se na casa de US$ gasto de energia. A vice-liderança cabe ao Fron-
500 milhões. Estados Unidos, Japão e Coreia do tier Test & Development, na prática um rack do
Sul estão entre os principais fabricantes de su- gigante Frontier, com 62,68 Gflops/w.
percomputadores do mundo. O Brasil, por não Os seis computadores da Petrobras listados
ter uma indústria consolidada de computadores no Top500 figuram entre os 100 mais ecoefi-
de ponta, não tem presença nessa área. cientes do mundo, com destaque para o Pégaso,
Frontier: o mais poderoso A Nvidia e a fabricante de veículos autônomos na 46ª posição e uma eficiência energética de
supercomputador do Tesla também anunciaram projetos de supercom- 18,46 Gflops/w. n
mundo está hospedado
no Laboratório
putadores em escala exaflops. O equipamento
Nacional de Oak Ridge, DGX GH 200, da Nvidia, será empregado para Os projetos consultados para esta reportagem estão listados na
nos Estados Unidos desenvolver soluções com inteligência artificial versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 21


ENTREVISTA Barbara Weinstein

UMA
BRASILIANISTA EM
TRANSFORMAÇÃO
Parte do primeiro grupo de mulheres a se graduar na
Universidade de Princeton, historiadora norte-americana
analisou o protagonismo de elites regionais
e trabalhadores em dinâmicas comerciais no Brasil

Christina Queiroz | RETRATO Lela Beltrão

P
rofessora de história da América Latina e do Caribe na Universi-
dade de Nova York (NYU), nos Estados Unidos, a norte-americana
Barbara Weinstein nasceu em 1952, no Brooklyn, um bairro típico
da classe popular. Mais nova de três irmãos – seu pai era vendedor
e a mãe técnica de eletrocardiograma –, ela conquistou em 1969
uma bolsa integral para estudar na Universidade de Princeton, uma das mais
elitizadas e tradicionais daquele país. Weinstein fez parte do primeiro grupo
de mulheres, composto por 175 nomes, a ingressar na instituição. Naquele
momento, havia ali mais de 3 mil alunos homens e ela chegou a escutar de um
professor que a presença feminina poderia distrair a atenção dos discentes.
Durante a pesquisa de doutorado, quando os estudos sobre o ciclo da bor-
racha na Amazônia se centravam nas relações de dependência que o Brasil
mantinha com potências estrangeiras, Weinstein mudou-se para Belém. Era
1977 e ela tinha então 25 anos. Pesquisou em arquivos históricos para tentar
compreender o papel desempenhado pelas elites regionais e pelos serin-
gueiros nessa dinâmica comercial. Sua tese foi orientada pela historiadora
brasileira Emília Viotti da Costa (1928-2017), especialista em escravidão e
século XIX, que se tornou professora da Universidade Yale (ver Pesquisa
FAPESP nº 262) após ser aposentada compulsoriamente da Universidade
de São Paulo (USP) pela ditadura militar (1964-1985).
Weinstein, que também pesquisou movimentos operários, foi a primeira
especialista em história do Brasil a presidir a Associação Americana de His-
tória (AHA), a mais antiga dos Estados Unidos a reunir historiadores pro-
fissionais. Munida de um sorriso solar, de passagem por São Paulo e a cami-
nho de um congresso na Bolívia, ela conversou em português com Pesquisa
FAPESP durante uma tarde, no saguão de um hotel no bairro de Pinheiros.

22 | MARÇO DE 2024
IDADE 71 anos FORMAÇÃO
Graduação em história
ESPECIALIDADE
na Universidade de
História da
Princeton (1969-1973),
América Latina
mestrado (1973-1976)
INSTITUIÇÃO e doutorado (1976-1980)
Universidade em história na
de Nova York Universidade Yale

PESQUISA FAPESP 337 | 23


Vamos falar sobre a sua infância? Entrei na universidade para estudar me- de 1972. Foi minha primeira viagem ao
Eu nasci e cresci no bairro do Brooklyn, dicina, por pressão familiar. Mas, depois exterior. Cheguei ao país no meio de um
em Nova York, juntamente com meus de um semestre, percebi que aquela pro- declarado estado de guerra interna en-
pais e dois irmãos. Sou descendente de fissão não era para mim e pedi transfe- tre militares e guerrilheiros Tupamaro.
uma família que saiu de uma região que rência para o curso de história. Eu gos- Da experiência, resultou meu trabalho
hoje fica entre a Rússia e a Ucrânia e imi- tava de política e estava muito engajada de conclusão da graduação, em que pes-
grou para os Estados Unidos no século no movimento contra a Guerra do Vietnã quiso as raízes do colapso da democracia
XIX. Meu pai nasceu em Boston e minha [1959-1975]. Acabei me envolvendo com uruguaia naquele momento.
mãe no Brooklyn. Eles foram criados em a história do que chamávamos, naquela
bairros típicos da classe trabalhadora época, de países do “terceiro mundo”. Qual foi a primeira vez que ouviu falar
de imigrantes. Na minha infância, nin- No segundo ano da graduação, fiz uma do Brasil?
guém poderia imaginar que eu ganharia disciplina sobre a Revolução Cubana Não me lembro de pensar sobre o país
a vida como historiadora especializada [1953-1959]. Escrevi um trabalho sobre na infância. Intelectualmente, meu pri-
em Brasil. Em meados dos anos 1950, se o papel das mulheres nesse movimento meiro contato foi durante a graduação,
você era um bom aluno ou aluna, como e nos anos pós-revolução. Lembro que quando fiz um trabalho sobre escravi-
era o meu caso, se tornava professora meu professor gostou muito do texto e dão para comparar o contexto de dife-
secundária e, talvez, com muita sorte, me perguntou: “Você já pensou em fa- rentes países. Li em inglês o livro Casa-
médica ou advogada. Ser historiadora zer pós-graduação em história?”. Eu fui -grande & senzala, de Gilberto Freyre
era algo muito distante da minha realida- criada em uma família e em um bairro [1900-1987], e outras obras de autores
de e do mundo em que fui criada. Meus onde ninguém era professor universitá- brasileiros. Em suma, comecei a me in-
pais e vizinhos valorizavam a cultura e rio e eu mal sabia o que significava fazer teressar pelo Brasil motivada por ques-
a educação, mas ao mesmo tempo não mestrado. Mas o comentário do profes- tões envolvendo escravidão e racismo.
tinham muito dinheiro e enfatizavam a sor despertou minha atenção e comecei Costumava ouvir que o país era uma
necessidade de os jovens se engajarem a pensar na possibilidade de fazer car- democracia racial, mas logo descon-
em profissões pragmáticas, que lhe ga- reira acadêmica. Mudar para a gradua- fiei que a história era mais complica-
rantissem sustento. E ser brasilianista ção em história representou, ao mesmo da. Olhando em retrospecto, percebo
não se encaixava exatamente nessa ex- tempo, um compromisso político e uma que foi na graduação a primeira vez que
pectativa deles. opção pessoal, além de ter me aberto pensei sobre o Brasil como um possível
portas. Entre o terceiro e o último ano objeto de estudo. A minha visão sobre o
A senhora já gostava das humanidades de graduação, ganhei uma bolsa para fa- país ainda era vaga, mas comecei a fa-
na escola? zer pesquisa no Uruguai durante o verão zer cursos de português. Era raro que
Sim. Sempre fui uma leitora entusias- universidades norte-americanas ofe-
mada e estive mais ligada às línguas, às recessem cursos dessa língua naquele
humanidades e às ciências sociais. Lem- momento, mas em Princeton eles esta-
bro de sentir aquela clássica ansiedade vam disponíveis. Também comecei a me
por não saber bem matemática. Estudei interessar por movimentos operários,
no sistema público até entrar na univer- principalmente depois de ler o livro do
sidade, em 1969. Meus pais não tinham
dinheiro para arcar com as mensalida-
Quando a historiador britânico Edward Palmer
Thompson [1924-1993], A formação da
des de uma faculdade particular. Com
algumas exceções, as universidades de primeira turma classe operária inglesa [lançado no Bra-
sil pela editora Paz e Terra, em 2001].
maior prestígio na época eram privadas.
Incentivada por um professor da escola, de mulheres Quando começou a graduação em his-
resolvi estudar para conseguir uma bolsa tória, a senhora era uma das poucas
para entrar em uma instituição particular
que, no caso, foi Princeton. Sair de escola
entrou em mulheres da turma. Como foi essa ex-
periência?
pública e de um bairro modesto, como
era o Brooklyn naquele momento, para o
Princeton, Foi uma loucura. Em 1969, Princeton
resolveu admitir mulheres no corpo dis-
baluarte da elite norte-americana foi uma cente, mas ao mesmo tempo não queria
transição dramática e, às vezes, traumáti- um professor reduzir o número de homens. Então,
ca. Quando fiz o ensino básico, as escolas não tinha lugar para muitas alunas na
públicas de Nova York eram muito boas. disse que nós universidade, considerando seus limi-
Mas, obviamente, eu não contava com a tes de infraestrutura e docentes. Lem-
formação que muita gente de Princeton
tinha tido em escolas da elite. Além disso,
poderíamos ser bro também que havia poucas pessoas
com ascendência africana ou latina. Era,
faço parte da primeira turma de mulheres
a entrar naquela universidade. uma distração essencialmente, uma universidade de
homens brancos. Recentemente, estive
na instituição para um evento que cele-
Como foi a chegada em Princeton? para os homens brou os 50 anos do primeiro grupo de

24 | MARÇO DE 2024
mulheres graduadas. Nessa reunião, me Brasil entre os séculos XIX e XX. A his-
dei conta da importância que minha ge- tória de como me interessei pelo tema
ração teve para as mulheres mais jovens, é engraçada, porque minha ideia inicial
para aquelas que vieram depois de nós. para a tese era estudar a classe traba-
A identidade lhadora de São Paulo. Mas o historiador
Como os professores e alunos reagiram norte-americano Michael G. Hall, que
à novidade?
As atitudes foram variadas. Entre os es-
paulista foi naquela época era o principal professor
de história operária na Universidade
tudantes, muitos rapazes ficaram felizes
porque finalmente poderiam estudar
construída Estadual de Campinas [Unicamp], me
disse que conhecia um brasileiro que
com moças na sala de aula, enquanto estava pesquisando o tema no doutora-
outros não conseguiam se adaptar a vinculada do. Claro que o objetivo de Michael ao
essa nova realidade, mais diversa. Não falar isso era me incentivar a entrar em
me esqueço de um professor de quími- à ideia de um contato com o outro pesquisador para
ca que, logo no primeiro semestre, disse trocar ideias, mas na época entendi que
que aceitava a presença das mulheres na
universidade, mas achava que seríamos
Brasil moderno, devia buscar um assunto diferente para
estudar. Além disso, me preocupava com
uma distração para os homens. Falando
de um caso bem mais grave, uma colega adepto do a possibilidade de parecer uma norte-
-americana invadindo o território inte-
da nossa turma recentemente denunciou lectual de um brasileiro. Então, fui falar
que foi estuprada por um aluno da mes- progresso, e com a Emília, que me disse o óbvio: que
ma turma na época da faculdade. Depois havia espaço para muitas teses sobre a
desse anúncio, outras colegas relataram
ter passado pela mesma experiência com
relacionada com formação da classe trabalhadora paulista.
Mas ela aproveitou esse momento de in-
o mesmo rapaz. São mulheres de famí-
lias ricas e conhecidas, que talvez não
a branquitude decisão e me deu o seguinte conselho: “Já
que você se sentiu preocupada com isso,
tenham denunciado antes por se senti- por que não estuda o ciclo da borracha
rem culpadas e com vergonha. Naquela na Amazônia?”. Nos anos 1970, as insti-
época, pensar em estupro como um cri- tuições brasileiras já estavam formando
me praticado por uma pessoa próxima historiadores com mestrado e douto-
de seu círculo de convivência era algo rado, mas a maior parte das pesquisas
quase inimaginável. estava concentrada em São Paulo e no
Emília tinha um ar confiante e, de cer- Rio de Janeiro. Apesar de muita gente
Como avalia a presença de docentes mu- ta forma, até arrogante. Penso que ela investigar a região da Amazônia, poucos
lheres em universidades norte-ameri- adotava essa postura como estratégia pesquisadores estavam fazendo estudos
canas hoje? para enfrentar esse universo acadêmico históricos. Minha única dúvida era se eu
Estamos evoluindo. No meu departa- norte-americano tão masculino. aguentaria o calor da Amazônia. Afinal,
mento, por exemplo, quase metade dos minha única experiência na América
professores é de mulheres. Mas a maioria Ela aceitou orientar sua pesquisa? Latina havia sido em Montevidéu, on-
do corpo docente ainda é formada por Sim. Quando Emília chegou a Yale, qua- de a temperatura é mais tolerável para
pessoas brancas. tro ou cinco estudantes, inclusive eu, quem não está acostumado ao clima da
estavam começando projetos de pós- floresta tropical.
E quando o Brasil entrou em seu escopo -graduação sobre a América Latina, mas
de pesquisa? nenhum desses trabalhos era sobre o Mas a senhora acabou vindo.
No ano de 1973 ingressei na Universi- Brasil. Ela acabou chamando a atenção No final, decidi trabalhar com o tema
dade Yale para fazer pós-graduação. Es- dos alunos para a história brasileira. Eu sugerido por Emília e passei cerca de
perava ser orientada pelo historiador cursei as disciplinas do mestrado e en- 10 meses na região, principalmente em
Richard Morse [1922-2001], naquela trei no doutorado direto. Nos Estados Belém. Isso aconteceu entre 1977 e 1978,
época considerado o brasilianista mais Unidos, quando você entra no doutora- quando eu tinha 25 anos, depois de vi-
importante dos Estados Unidos. Entre- do, não precisa ter uma proposta clara ver sete meses no Rio de Janeiro fazen-
tanto, ele havia tirado licença de dois para a tese. Obviamente é necessário ter do pesquisas em arquivos históricos.
anos para dirigir a Fundação Ford, no ideia do que se pretende estudar, da área Eu era uma menina. Fui me adaptando
Rio de Janeiro. Por pura coincidência, de interesse, mas não um projeto for- com o tempo e, mesmo com o calor e a
em 1973, a historiadora Emília Viotti da mulado. A princípio, eu pretendia estu- chuva, eu gostei de Belém de imediato.
Costa chegou a Yale depois de ter sido dar a Argentina, mas Emília acabou me Vi que os arquivos, incluindo os anti-
aposentada compulsoriamente da USP convencendo a trabalhar com o Brasil. gos cartórios, tinham documentação
pelo regime militar. Ela marcou época. suficiente para que eu pudesse realizar
Quase todos os professores do Departa- O que estudou no doutorado? a pesquisa. A ideia inicial era estudar a
mento de História de Yale eram homens. O ciclo da borracha na região Norte do decadência do ciclo da borracha, mas

PESQUISA FAPESP 337 | 25


logo percebi que os estudos sobre a ex- mercial que limitava o que eles podiam analiso os programas elaborados por
pansão desse comércio feitos com base ou não fazer. Mas havia uma migração empresários a fim de reformar a classe
em arquivos históricos eram escassos. constante de seringueiros de regiões de trabalhadora. Um ponto interessante é
Então, não fazia sentido focar na deca- produção da borracha, que ficavam cada que ambos discutiam os avanços tec-
dência sem antes compreender o pro- vez mais esgotadas, para novas áreas. nológicos e mudanças que aconteciam
cesso de expansão. Lembro que Emília reagiu de forma um na Inglaterra, nos Estados Unidos e na
pouco negativa ao ler a primeira versão União Soviética, em meados da década
Como o ciclo da borracha costumava do capítulo inicial da minha tese. Ela de 1930, por exemplo. Os resultados da
ser analisado na época e o que sua tese considerou que eu estava enfatizando pesquisa estão reunidos em meu segundo
trouxe de novo sobre esse objeto? demais a mobilidade e a autonomia dos livro, (Re)formação da classe trabalhado-
A tese, que deu origem ao livro A borra- seringueiros e deixando de ressaltar a ra no Brasil – 1920-1964 [Cortez, 2000].
cha na Amazônia – Expansão e decadên- opressão e exploração que sofriam. De Nele, questiono o argumento, corrente
cia (1850-1920) [lançado no Brasil pela certa forma, ela tinha razão. Eu não re- naquela época, de que o Brasil não se
editora Hucitec, em 1993], começa sua jeitei totalmente sua crítica, mas insisti desenvolveu porque os empresários na-
análise em 1850, quando o ciclo do pro- que precisava construir os argumentos cionais não tinham uma visão suficien-
duto já dominava certas áreas da Amazô- de acordo com os meus achados. Ela aca- temente moderna.
nia, especialmente na província do Pará. bou concordando comigo.
Outros estudos que tinham olhado para Seu livro A cor da modernidade – A
a questão iniciavam suas investigações O que pesquisou em seguida? branquitude e a formação da identi-
em 1880 ou 1890, de forma que minha Fui do ciclo da borracha na Amazônia dade paulista [Edusp, 2022] é um des-
pesquisa trabalha com um período an- para os industriais e os operários de São dobramento desse estudo?
terior, quando as relações de produção Paulo entre os anos 1920 e 1964. Pode Quando terminei a pesquisa que mencio-
e troca eram mais fluidas. Além disso, o parecer uma mudança drástica, mas nos nei anteriormente, sobre os industriais
ciclo da borracha tinha sido analisado dois casos eu estava procurando enten- paulistas e a classe trabalhadora, fiquei
até então pelo viés de teóricos depen- der o protagonismo de trabalhadores em insatisfeita por não ter conseguido me
dentistas. Uma característica desse tipo diferentes sistemas econômicos. Nessa aprofundar na questão da raça no con-
de leitura é que ele coloca em países do pesquisa que realizei no início da déca- texto da industrialização paulista. Tratei
dito “primeiro mundo” o protagonismo da de 1990, investigo a participação de de classe e gênero, mas faltou entrar na
da economia global, como se o “terceiro operários e industriais brasileiros nos questão racial. Como não poderia refa-
mundo” fosse uma tábula rasa, sem in- debates internacionais, durante o desen- zer o estudo, decidi me dedicar ao tema
terferência ou influência alguma sobre volvimento industrial do país. Também em um próximo trabalho, que resultou
o comércio e outros processos. Isso me no livro em questão. Nessa obra, anali-
pareceu absolutamente errado no caso so documentos e notícias de periódicos
do Brasil, que não era uma simples ma- sobre a Revolução Constitucionalista de
rionete nas mãos dos ingleses, norte- 1932 e o IV Centenário da cidade de São
-americanos ou franceses. Essa aborda- Paulo, celebrado em 1954. Percebi que
gem é também complicada por não dar a construção da identidade paulista es-
voz aos trabalhadores, homens livres e
escravizados. É claro que eu reconhecia
Os estudos tava relacionada não apenas à ideia de
um Brasil moderno e adepto do progres-
a forte influência da presença estrangeira
em certas áreas da economia da borra- pós-coloniais so, como também aparecia vinculada à
branquitude.
cha, mas, ao mesmo tempo, me parecia
necessário considerar a atuação de elites trouxeram Quais são os impactos dos estudos pós-
regionais e dos próprios seringueiros ao -coloniais na pesquisa histórica?
longo do processo. Em meu estudo, não
quis negar os argumentos da escola de-
as mudanças São amplos e profundos e nos obrigam a
repensar diversas questões. Por exemplo,
pendentista, mas ampliar e deixar mais
complexa essa perspectiva, mostrar que
mais radicais apesar de minhas críticas à teoria da de-
pendência, foi muito difícil no doutorado
não é possível explicar o que aconteceu tomar distância da ideia de que há países
na Amazônia olhando apenas para a pre- na área de desenvolvidos e nações subdesenvolvi-
sença estrangeira. das, o que, inevitavelmente, evoca concei-
história desde tos de avanço e atraso. Hoje, os estudos
Qual foi o papel dos trabalhadores nes- pós-coloniais exigem que deixemos de
sa dinâmica?
Nem todos os seringueiros eram escra-
que atuo nesse lado noções de sucesso e fracasso, aban-
donemos discursos que sustentam que
vizados, conforme se pensava. Muitos
tinham autonomia e se consideravam campo do determinadas sociedades não vão para
frente porque têm mais defeitos do que
donos da borracha que produziam. Ob- as ditas bem-sucedidas. Além disso, o
viamente, faziam parte de uma rede co- conhecimento pós-colonial nos obriga a pensar na im-

26 | MARÇO DE 2024
portância da diversidade. Não se trata seus estudos. Ele tem apoiado minhas
apenas de criticar os países imperialistas, pesquisas de muitas maneiras.
mas de valorizar as sociedades – como,
por exemplo, as indígenas –, que antes Em que está trabalhando atualmente?
eram vistas como “objeto”. Acredito ser Várias vezes Pela primeira vez, estou pesquisando algo
essa a mudança mais radical ocorrida não exclusivamente ligado ao Brasil: a bio-
na área de história desde que atuo nesse
campo do conhecimento.
enfrentei grafia do historiador Frank Tannenbaum
[1893-1969]. Venho investigando sua traje-

A senhora já foi criticada pelo fato de


questionamentos tória em cerca de 100 caixas de documen-
tos que estão no arquivo da Universidade
ser uma pesquisadora branca norte- Columbia, em Nova York. Tannenbaum
-americana que estuda o Brasil, um país a respeito foi anarquista e passou um ano na pri-
do Sul global? são por causa de seu ativismo. Depois,
Várias vezes enfrentei questionamentos do meu direito virou jornalista e professor de história da
a respeito do meu direito de estudar e América Latina em Columbia. Sua obra é
falar sobre o Brasil. Meu livro que trata
do ciclo da borracha demorou 10 anos
de estudar ampla e sua vida muito interessante. Ele
foi amigo de Gilberto Freyre e íntimo do
para ser lançado no Brasil. Nele, incluí
um pequeno prefácio, onde escrevi que e falar sobre presidente mexicano Lázaro Cárdenas
[1895-1970]. Mas sua biografia evidencia
naqueles 10 anos poucas pessoas tinham os desafios de uma vida transnacional.
trabalhado com a história da Amazô- o Brasil Frank se casou aos 20 e poucos anos e teve
nia e que nenhum estudo havia muda- dois filhos. Mudou-se dos Estados Unidos
do as conclusões de minha pesquisa. para o México para fazer seu doutorado e
Veja bem, eu não disse que não havia começou a viver separado da mulher, que
uma historiografia antes do meu livro, acabou pedindo o divórcio. Isso aconteceu
eu estava abordando apenas os últimos no final da década de 1920. Na pesquisa,
10 anos. Uma historiadora do Pará come- fiquei chocada ao descobrir que ele abriu
çou a falar que eu estava desrespeitando mão da paternidade e seus filhos foram
trabalhos de brasileiros que já tinham adotados pelo novo marido da ex-esposa.
pesquisado o ciclo da borracha. Citou E, até onde eu sei, nunca mais teve con-
nomes de pessoas que, supostamente, tato com eles.
não eram mencionadas em meu estu-
do, dando como exemplo o economis- deles são brasileiros. Há também gente Que lacunas de pesquisa a senhora en-
ta Roberto Araújo de Oliveira Santos que viveu em vários outros países e tem xerga hoje na história?
[1932-2012]. No entanto, eu menciono uma visão transnacional da história. Não é bem uma lacuna, mas acho que
Roberto Santos ao menos 25 vezes, o muitos alunos de história no início da
que evidencia que ela não tinha lido o Como é a sua dinâmica familiar quan- carreira hoje estão trabalhando com
livro, mas aproveitou o momento para do precisa viajar a trabalho por muito uma divisão excessiva entre oprimidos
fazer uma declaração de cunho nacio- tempo? e opressores. Essa tendência traz certa
nalista. De todas as formas, quem vem Vou falar de um assunto que não costumo ingenuidade em sua leitura de mundo e
de fora para estudar determinado país abordar em contextos acadêmicos. Tenho uma preocupação exagerada com ser po-
precisa estar preparado para esse tipo um filho com autismo, que agora tem 35 liticamente correto. Em meu curso sobre
de situação. Mas é um pequeno preço a anos. Desde a década de 1990, quando ele história e cultura do Brasil, por exem-
pagar. Sinto que sou muito bem-vinda recebeu o diagnóstico, minha vida mu- plo, quando menciono que pessoas de
ao Brasil, porém ao mesmo tempo sei dou radicalmente. Antes de descobrir o ascendência africana, depois que foram
que não estou livre de críticas. autismo de meu filho, eu passava meses libertas, compravam escravizados, per-
ou até mesmo um ano no Brasil pesqui- cebo que os alunos ficam muito angustia-
Que mudanças a senhora observa em sando, mas desde então não consigo fi- dos. De repente, a linha entre oprimido
relação ao perfil dos brasilianistas? car mais do que cinco semanas fora. Ele e opressor fica um pouco menos clara.
A ideia de um brasilianista como sendo está cada vez mais independente, hoje Para mim, um dos objetivos principais da
um pesquisador estrangeiro, a exemplo até consegue morar sozinho, mas para pesquisa histórica é justamente desven-
do historiador norte-americano Thomas mim é muito difícil ficar longe dele. Não dar e entender o inesperado, e suspender,
Elliott Skidmore [1932-2016], mudou e, consigo levá-lo comigo a campo, pois não pelo menos brevemente, nossa tendência
talvez, acabou [ver Pesquisa FAPESP tenho a infraestrutura necessária, e ele de julgar. Certamente, daqui a 100 anos,
nº 323]. Hoje, a circulação das pessoas também pode perder a vaga nos progra- muitos vão olhar para nós, para algo que
pelo mundo é maior e mais complexa mas educativos e sociais que frequenta. fazemos ou toleramos hoje e dizer: “Co-
do que antigamente. Muitos dos que le- Tenho outra filha, que mora comigo. Meu mo eles podiam agir dessa forma?”. Cabe
cionam história do Brasil nos Estados marido é sociólogo, já está aposentado há ao historiador ter alguma humildade ao
Unidos têm ascendência latina e alguns muitos anos, mas continua publicando julgar os feitos das pessoas no passado. n

PESQUISA FAPESP 337 | 27


EQUIDADE

REMOÇÃO
DE OBSTÁCULOS
ESTRUTURAIS
28 | MARÇO DE 2024
Rede de pesquisadores de 16 países
mapeia a desigualdade de gênero
no ambiente científico e dissemina estratégias
para enfrentar o problema

Fabrício Marques | ILUSTRAÇÕES Mayara Ferrão

U
m consórcio internacional de pes- crescente, embora de uma forma desigual em
quisadores está reunindo dados países analisados. Nações como Canadá, Índia
comparativos de 16 países de qua- e África do Sul se destacaram pela incorporação
tro continentes sobre desigualdades de cláusulas favoráveis à inclusão de mulheres
de gênero no ambiente de ciência, em projetos de pesquisa ou pela participação
tecnologia e inovação (CTI) e vem direta de representantes femininas nas negocia-
compartilhando estratégias e boas ções diplomáticas que resultaram nos acordos
práticas para enfrentar o problema e de cooperação. Na Europa, Espanha e Finlândia
mitigar seus efeitos. Coordenado por também se distinguiram – quase 30% dos acor-
um grupo da Universidade Politécnica de Madri, dos celebrados faziam alguma menção à equi-
na Espanha, o projeto Gender STI teve início em dade de gênero.
2020 e já produziu diagnósticos que corroboram a Os acordos firmados por Brasil, Argentina e
sub-representação feminina em carreiras ligadas Portugal, entretanto, exibiram pouquíssimo con-
à ciência, tecnologia, matemática e engenharia teúdo relacionado a gênero. Foram analisados,
(Stem) em várias nações e mostram as dificulda- por exemplo, 11 acordos multilaterais envolven-
des encaradas por mulheres para ocupar postos do organizações de ciência e tecnologia do país
de alta hierarquia em instituições de pesquisa e nenhum deles fazia esse tipo de referência.
e na liderança de colaborações internacionais. Já em 33 acordos celebrados por agências de
A rede já se debruçou, por exemplo, sobre fomento do Brasil, 5% tinham alguma menção
o conteúdo de 528 acordos de cooperação na a questões de gênero. A análise dos dados cole-
área de CTI celebrados entre 1961 e 2021, que tados foi complementada com os resultados de
envolviam instituições ou governos de dois ou um questionário aplicado a 204 pessoas e de 80
mais países. Constatou que apenas 15% deles entrevistas com pesquisadores e gestores dos
fizeram menção a questões de gênero ou exibi- países que integram o consórcio.
ram preocupação com a equidade em projetos Um dos focos iniciais do Gender STI foi a cha-
de pesquisa apoiados. É certo que esse panora- mada diplomacia científica, que é o uso da ciên-
ma vem melhorando em anos recentes. Os dados cia como um dos braços da política externa. O
mostraram que, a partir de 2015, esse tipo de re- Horizonte 2020, principal programa científico
ferência passou a ser observada com frequência da Europa, que investiu € 80 bilhões de 2014 a

PESQUISA FAPESP 337 | 29


2020, estabeleceu entre suas prioridades apoiar observa que a discussão sobre a equidade de
projetos que promovessem a igualdade de gênero gênero na ciência não é nova, mas mudou de ei-
em universidades e organizações de pesquisa do xo em tempos recentes. “No lugar de enxergar
bloco europeu, em particular estimulando mu- a mulher como o problema principal e sugerir
danças na estrutura das instituições e na forma iniciativas para que elas obtenham qualificações
de financiá-las. Como esse tipo de iniciativa da necessárias, passou-se a uma compreensão de
União Europeia (UE) sempre tem um compo- que a diversidade é fundamental para a atividade
nente de cooperação entre países do bloco e de científica e uma mudança em estruturas institu-
fora dele, viu-se a necessidade de analisar even- cionais é a única forma de alcançar a igualdade
tuais assimetrias no combate a disparidades de de gênero na ciência”, disse em outubro do ano
gênero entre parceiros e buscar estratégias co- passado durante uma conferência que reuniu os

E
muns para enfrentar o problema. “A Europa é participantes do Gender STI, em Madri.
pioneira nessa temática. A inclusão de mulheres
em equipes negociadoras de acordos internacio- ntre os dados compilados sobre o meio
nais é mandatória na União Europeia”, explica a acadêmico brasileiro, há um estudo
cientista política Janina Onuki, da Faculdade de realizado pelo Conselho Nacional de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Desenvolvimento Científico e Tec-
e do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da nológico (CNPq), segundo o qual
Universidade de São Paulo (USP). Onuki lide- apenas 35,3% das 16.048 bolsas de
ra a participação brasileira no consórcio, por produtividade em pesquisa oferecidas
meio de um projeto temático financiado pela em 2021 eram destinadas a mulheres,
FAPESP desde 2020, no âmbito de um acordo de com uma diferença ainda mais acen-
cooperação com a UE. Do lado europeu, a rede tuada em cursos de ciências exatas e da Terra
tem participantes de instituições da Espanha, da (apenas 22,1% das bolsas para o sexo feminino)
Finlândia, da Itália, da Áustria, da França e de e engenharias (23,3%). Em ciências humanas e
Portugal. Eles dialogam com parceiros de paí- ciências biológicas, o equilíbrio parece próximo,
ses de outros três continentes: Canadá, Estados com, respectivamente, 48,7% e 45,8% das bolsas
Unidos, México, Brasil, Chile, Argentina, África para mulheres. As bolsas de produtividade são
do Sul, Índia, Coreia do Sul e China. uma modalidade de apoio que recompensa cien-
Outra tarefa assumida pelo Gender STI foi tistas com desempenho destacado (ver Pesquisa
reunir estudos e estatísticas sobre disparidades FAPESP nº 311). Outro dado importante é o tempo
de gênero disponíveis a fim de comparar a reali- que as mulheres demoram para concluir o dou-
dade dos países. A sub-representação feminina torado, também segundo o CNPq: 4,3 anos em
na ciência é um problema comum a praticamen- média para obter o título, enquanto os homens
te todas as nações. Dados de 2022 indicam que levam 3,8 anos. A maternidade e a dupla jornada
são mulheres menos de 30% dos pesquisadores de trabalho são explicações para o fenômeno.
em países da Organização para a Cooperação Em um dos trabalhos publicados, Janina Onuki
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que e Gabriela Ferreira, que faz pós-doutorado no pro-
reúne 38 nações entre as mais industrializadas. jeto temático, analisaram
Embora o interesse de estudantes do sexo femi- dados da FAPESP e cons-
nino em ingressar em carreiras das áreas Stem tataram que, nas primeiras
venha aumentando, o ritmo do crescimento é seis décadas de trajetória
muito baixo e incapaz de projetar um equilíbrio da Fundação, as mulhe-
em um horizonte próximo. res foram apenas 8% dos
A dificuldade de alcançar postos de lideran- membros do Conselho MATERNIDADE E JORNADA
ça em instituições científicas é outra realidade
palpável e resistente. “Me orgulho de trabalhar
Superior da Fundação –
atualmente, um terço do DUPLA FAZEM COM QUE
em um grupo de pesquisa em que os postos de
liderança são ocupados majoritariamente por
conselho, com 12 mem-
bros, é composto por
AS MULHERES DEMOREM
mulheres. Mas a maioria das reuniões e ativida-
des de que participo, tanto em projetos europeus
mulheres. Os conselhei-
ros são indicados por uni-
MAIS TEMPO QUE
quanto em comitês científicos e em conferências, versidades e instituições OS HOMENS PARA CONCLUIR
é desequilibrada em todos os aspectos”, afirmou
María Fernanda Cabrera, pesquisadora da Uni-
científicas e pelo governo
estadual e nomeados pe- O DOUTORADO NO BRASIL
versidade Politécnica de Madri e uma das coor- lo governador para cum-
denadoras do Gender STI, de acordo com o site prir mandatos fixos. Ou-
da universidade. tro dado foi o de menções
A socióloga Alice Abreu, professora eméri- a questões de gênero nos
ta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, textos de acordos interna-

30 | MARÇO DE 2024
disputar espaço com os homens, por considera-
rem o ambiente desfavorável ou que o esforço
não compensa”, afirma a cientista política, que
está entrevistando pesquisadoras no Brasil que
alcançaram o topo da carreira para compreender
melhor essas variáveis.
O consórcio identificou um conjunto de boas
práticas para promover a equidade. No caso dos
acordos científicos bilaterais e multilaterais, um
exemplo é o estabelecimento de cláusulas e a
definição de metas que persigam a igualdade de
gênero em projetos contemplados e na distribui-
ção de recursos, e exijam a presença de mulhe-
res nas negociações entre parceiros. A criação
de unidades de aconselhamento de gênero em
organizações científicas e acadêmicas também
está entre as recomendações – há instâncias co-
mo essa tanto na Comissão de Ciência e Tecnolo-
gia para o Desenvolvimento das Nações Unidas
quanto em entidades da comunidade científica,
como a União Internacional da Cristalografia.
Outro exemplo de boa prática é o compromisso
de produzir dados e indicadores desagregados
por gênero que ajudem a acompanhar e combater
disparidades – na 25ª Conferência das Nações
cionais celebrados pela FAPESP: houve referências Unidas sobre Mudança Climática, realizada em

N
desse tipo em 2% dos acordos analisados. 2019 em Madri, a equidade de gênero na parti-
cipação das delegações foi avaliada não apenas
o final de 2022, a Assessoria Cientí- pelo número de homens e mulheres presentes,
fica da FAPESP passou a contar com mas também pela contagem do tempo durante
uma Coordenação de Programa para o qual representantes dos dois gêneros puderam
assuntos relacionados à Equidade, Di- discursar. A oferta de programas de mentoria,
versidade e Inclusão (EDI), incumbida em que as mulheres possam aconselhar outras
de aperfeiçoar processos internos e mulheres na carreira científica, figura entre as
remover obstáculos, associados a gê- boas práticas – outra modalidade de mentoria
nero, etnia ou origem, que atrapalhem se destina a tomadores de decisão, para que se
o desenvolvimento de pesquisadores sensibilizem a buscar o equilíbrio de gênero. As
talentosos e qualificados. “Esse tipo de preocupa- políticas de ação afirmativa em universidades
ção vem se tornando comum no mundo inteiro brasileiras são mencionadas entre as boas prá-
e está presente em praticamente todos os países ticas, assim como o esforço de uma organização
estudados”, diz Onuki. “Muitas agências de fo- estatística não governamental da Argentina para
mento à ciência, tecnologia e inovação têm criado oferecer informações desagregadas por gênero.
comitês ou comissões em sua estrutura decisória A vigilância sobre a incidência de casos de as-
que abordam não somente a equidade de gênero, sédio sexual no ambiente acadêmico é, igual-
mas a diversidade de modo abrangente.” mente, um tema emergente. Países como França
Atualmente, o Gender STI está em sua segunda e Irlanda lançaram iniciativas para combater a
fase, na qual cada país participante, agora conhe- violência de gênero em instituições universitá-
cendo sua situação em relação aos demais, busca rias e de pesquisa.
produzir análises e reflexões sobre como melho- O conhecimento produzido pelo consórcio deu
rar a igualdade de gênero de forma mais ampla. origem ao Observatório Europeu de Gênero em
“A presença das mulheres, tanto na academia Ciência, Tecnologia e Inovação (www.gender-sti.
quanto na diplomacia, vem aumentando, mas é org), que também busca conectar iniciativas de di-
notável como elas ainda encontram entraves de ferentes instituições. “Nos próximos meses, vamos
ascensão na carreira”, observa Onuki. “Quere- inaugurar um observatório nos mesmos moldes
mos entender por que isso acontece e já sabemos aqui no Brasil com os estudos que produzimos
que o problema não se resolve apenas ampliando sobre a realidade do país”, diz Janina Onuki. n
oportunidades.” Segundo ela, há também compo-
nentes subjetivos. “Existem situações na carreira O projeto consultado para esta reportagem está listado na versão
em que as mulheres simplesmente abrem mão de on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 31


FINANCIAMENTO

FILANTROPIA E EQUIDADE RACIAL

O
fundo filantrópico Agbara, tempos da escravidão, quando surgiram de pesquisa é o Guia de boas práticas para
criado durante a pandemia redes de apoio para arrecadar recursos e promoção da filantropia negra.
para apoiar mulheres negras comprar alforrias e irmandades religio- “Se nos Estados Unidos existe uma
por meio de programas de sas de escravizados e libertos. filantropia negra bem estabelecida, aqui
geração de renda e de incen- De acordo com dados de uma pesqui- tudo precisa ser compreendido pratica-
tivo ao empreendedorismo, sa feita no ano passado pela Iniciativa mente do zero”, diz a coordenadora do
está montando um núcleo Pipa, entidade filantrópica sediada no núcleo de pesquisa, Luana Braga Batis-
de pesquisas para levantar Rio de Janeiro, 74,1% das pessoas que ta, a Lua, que é estudante de doutorado
dados sobre desigualdades atuam na linha de frente nos projetos em antropologia social na Universidade
sociais no Brasil e produzir estudos a na periferia são pretas ou pardas, assim Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela
respeito de temas ligados à população como 80,6% das pessoas beneficiadas destaca que, no Brasil, mesmo os insti-
negra, filantropia e inclusão. O esforço por esses projetos. O estudo “Periferias tutos criados por profissionais negros
deve custar R$ 2 milhões e prevê o recru- e filantropia – As barreiras de acesso aos bem-sucedidos, como artistas e joga-
tamento de 27 estudantes ou pesquisado- recursos no Brasil” entrevistou mais de dores de futebol, não costumam desen-
res, um em cada unidade da federação. 600 gestores de organizações e coopera- volver ações voltadas à temática racial.
O objetivo inicial é promover um cen- tivas. Outra informação relevante é que Em geral, são iniciativas sociais mais
so de entidades e ações coordenadas por 46% dos projetos liderados por pessoas abrangentes, que atingem um público
negros para apoiar outros negros no país, negras em periferias captam menos de majoritariamente composto por negros
que atuam dentro de um conceito defini- R$ 5 mil por ano. São, em geral, ativida- por conta da vulnerabilidade desse grupo
do como filantropia negra. Nos Estados des que as pessoas exercem em paralelo populacional, mas não são concebidas
Unidos, ele é bem disseminado. Em 2011, a uma atuação profissional remunerada. para combater a desigualdade racial. O
organizações dedicadas à promoção da Mas não há informações detalhadas so- Fundo Baobá para Equidade Racial, cria-
igualdade racial escolheram agosto como bre esses indivíduos e projetos. O censo do em 2011, é o exemplo mais conhecido
o mês da filantropia negra e, desde então, do Fundo Agbara tem o objetivo de en- de organização não governamental que
promovem atividades nesse período do trevistar essas pessoas e produzir um dispõe de um fundo patrimonial para
ano para refletir sobre seus desafios e diagnóstico sobre filantropia negra no apoiar especificamente projetos volta-
propor novas ações. No Brasil, essa mo- Brasil, a ser lançado até o final do ano. dos para a população negra e o combate
dalidade de filantropia tem origem nos Outra publicação planejada pelo núcleo ao racismo.

32 | MARÇO DE 2024
Fundo quer mapear organizações do país que apoiam a população negra e também são
coordenadas por negros Maurício Oliveira | ILUSTRAÇÃO Mariana Rodrigues

O núcleo do Agbara será apoiado por va de arrecadação de fundos cuja me- demandam mais investimentos sociais
instituições que já trabalham com inicia- ta inicial era ter 20 pessoas doando R$ do que as outras. Além da transferência
tivas do fundo, a exemplo do Global Fund 20 por mês durante um ano, o que lhe de renda, o trabalho evoluiu para o finan-
for Community Foundations, sediado na proporcionaria R$ 400 mensais para ciamento e a mentoria de pequenos em-
África do Sul, da Fundação Tide Setú- direcionar a mulheres negras em situa- preendimentos liderados por mulheres
bal, com trabalho voltado ao desenvol- ção de vulnerabilidade. A notícia se es- negras. O projeto Avança Preta já ofere-
vimento social das periferias urbanas, e palhou pela Universidade Estadual de ceu capacitação técnica para mais de 20
da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, Campinas (Unicamp), onde Odara faz iniciativas de geração de renda que mo-
que apoia principalmente projetos sobre mestrado em educação, e o número de bilizam mulheres negras. Há projetos pa-
saúde infantil. “Há um alinhamento de doadores saltou para 60 em cinco dias ra públicos específicos, como catadoras
objetivos entre as iniciativas do Agbara e para 300 em três meses, o que passou de recicláveis ou, para citar um exemplo
e a nossa fundação, que tem como um a gerar uma arrecadação mensal de R$ recente, a inserção de mulheres negras
dos pilares de atuação o apoio à estrutu- 6 mil. Com o aumento da escala, Aline, na cadeia logística e de suprimentos do
ração do setor filantrópico”, conta Ana hoje diretora-executiva do fundo, sentiu porto de Navegantes, em Santa Catarina.
Claudia Andreotti, analista de projetos necessidade de formalizar a iniciativa. Em três anos, o fundo captou mais de
da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, Agbara significa “potência” em iorubá – R$ 6 milhões e realizou 2,5 mil inves-
que vai aplicar R$ 160 mil na primeira idioma de parte expressiva da popula- timentos, tanto por meio de aporte fi-
fase do núcleo de pesquisas, com pers- ção da Nigéria e de vários outros países nanceiro direto em projetos quanto pela
pectiva de novos aportes. africanos, presente no Brasil por meio oferta de formação a mulheres negras. O
As características e a trajetória do das tradições culturais e religiosas de trabalho é feito por 10 funcionárias com
Fundo Agbara explicam seu interesse matriz africana. formações variadas, todas elas negras.
pela filantropia negra. A iniciativa surgiu Foi necessário estabelecer critérios “Quando uma mulher negra faz um des-
em Campinas, em 2020, sob a liderança para a definição de quem iria receber ses movimentos, carrega com ela várias
da socióloga e pedagoga Aline Odara. ajuda – mulheres negras que cuidavam outras pessoas. É a filha que pode ir para
Com experiência em organizar vaqui- sozinhas de pelo menos três filhos se- a escola, a irmã que ela passa a apoiar,
nhas para apoiar amigos e pessoas em riam prioridade. Outro parâmetro foi o impulso aos negócios da vizinhança
dificuldade, ela estruturou, nos primei- destinar 50% dos repasses às regiões dos quais ela se torna cliente”, conclui
ros meses da pandemia, uma iniciati- Norte e Nordeste, já que essas regiões Aline Odara. n

PESQUISA FAPESP 337 | 33


RECURSOS HUMANOS

ECOLOGIA
NA
PRÁTICA
1

34 | MARÇO DE 2024
Cursos de campo são importantes para
a formação de pesquisadores, mas sofrem
com falta de verbas no Brasil

Sarah Schmidt

F
undamentais para a formação prática 25% vieram da Coordenação de Aperfeiçoamen-
de futuros pesquisadores, os cursos de to de Pessoal de Nível Superior (Capes) e 5% da
campo em ecologia encontram dificul- pós-graduação em ecologia do Inpa. “Esses per-
FOTOS 1 E 3 INSTITUTO SERRAPILHEIRA 2 MIKAEL CASTRO

dades no Brasil e sofrem com falta de centuais variam bastante a cada ano”, observa a
verbas. Há, por isso, menos opções ho- pesquisadora. “Ele começou como um dos ramos
je para os estudantes de pós-graduação de capacitação de recursos humanos do PDBFF,
do que alguns anos atrás. Enquanto o concebido pelo [biólogo norte-americano Tho-
Ecologia da Mata Atlântica, da Uni- mas] Lovejoy [1941-2021] em 1978”, explica ela
versidade de São Paulo (USP), criado (ver Pesquisa FAPESP nº 230). Os alunos visitam
há 17 anos e pelo qual passaram cerca de 200 de três a quatro ambientes diferentes.
alunos, não tem previsão de retorno, a 28ª edição Somar fontes de recursos é também a estraté-
do Ecologia da Floresta Amazônica (EFA) – uma gia adotada pela coordenação do curso de campo
iniciativa do Instituto Nacional de Pesquisas da Ecologia e Conservação da Caatinga, vinculado
Amazônia (Inpa) – ainda não está confirmada. à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
“Estamos em busca de financiamento”, conta a que teve 223 alunos desde sua primeira edição
bióloga Flávia Delgado Santana, uma das coor- em 2008. Aberto também para estudantes que
denadoras do EFA, que já formou mais de 500 não estejam matriculados na instituição, assim
alunos. O curso integra o Projeto Dinâmica Bio- como o EFA e o da Mata Atlântica, ele é realiza-
lógica de Fragmentos Florestais (PDBFF-Inpa) e do no Parque Nacional do Catimbau, em Buíque
atualmente é também vinculado à Universidade (PE). Sua última edição durou duas semanas, em
Federal de Minas Gerais (UFMG). setembro de 2023, com um investimento de mais
O da Mata Atlântica foi interrompido por falta de R$ 100 mil.
de verba em 2019. “Com a pandemia da Covid-19, “Uma parte dos recursos vem da Capes e ou-
permaneceu suspenso e assim continua”, diz o tra da Facepe [Fundação de Amparo à Ciência e
biólogo Glauco Machado, da USP, coordenador Tecnologia de Pernambuco]. O curso é uma vi-
desde a primeira edição, em 2007. “Gerações de trine da pós-graduação e entra como um produto
ecólogos brasileiros passaram por esses cursos, de nossos projetos científicos”, conta uma das
Trabalho de campo:
que já se tornaram tradicionais na área e propor- coordenadoras, a bióloga Inara Leal, da UFPE.
busca por formigas-zumbi cionam uma imersão total na mata e no método O transporte até o parque é pago pela universi-
na Amazônia (no alto, científico”, diz ele, que foi monitor do EFA em dade, e fundos de projetos custeiam o transporte
à esq.), observação 2001. Machado estima que para realizar uma edi- de professores convidados. “Por conta do baixo
do ambiente na
Caatinga (à dir.)
ção, com os costumeiros 20 alunos por 28 dias orçamento, já houve ano em que tivemos que
e estudo com molusco em locais como a Área de Proteção Ambiental reduzir o tempo de pesquisa, abrir menos vagas
no litoral paulista Cananéia-Iguape-Peruíbe, no litoral sul paulis- e restringir a um único local.”
ta, o orçamento seria, no mínimo, de R$ 80 mil.
Como para os dois cursos não há verba perma- EXPERIÊNCIA MARCANTE
nente, mantê-los em pé requer malabarismo. Para Oferecidos uma vez por ano, com uma média
a edição de 2023 do EFA, que custou R$ 120 mil, de 20 participantes, o formato de imersão não
segundo Santana, cerca de 70% dos recursos vie- é apenas focado nas coletas de campo, mas pro-
ram de um financiamento do PDBFF, do Centro cura treinar os estudantes de pós-graduação no
de Biodiversidade da Amazônia Thomas Lovejoy próprio método científico, com foco no modelo
e da Fundação Paul & Maxine Frohring. Outros hipotético-dedutivo. Todos têm a mesma inspira-

PESQUISA FAPESP 337 | 35


ção: os cursos da Organização de Estudos Tropi- pisou na floresta amazônica pela primeira vez na
cais (OTS) na Costa Rica, um consórcio sem fins turma inaugural do EFA, em 1993. “Isso despertou
lucrativos criado em 1963 que congrega cerca de ainda mais meu interesse por seguir na pesqui-
50 instituições de pesquisa e universidades ao sa”, conta. “Atribuo ao curso minhas habilidades

M
redor do mundo. de fazer projetos e escrever artigos científicos.”
A pesquisadora destaca que o colega e biólogo
ergulhados no campo por até Erich Fischer, da Universidade Federal de Mato
um mês, os alunos desenvolvem Grosso do Sul (UFMS), estava na mesma turma.
projetos a cada um ou dois dias, “Depois ele criou o curso de campo Ecologia do
sugerem hipóteses com base em Pantanal, que tem mais de 20 anos.”
observações em campo, coletam O ecólogo Rafael Leitão, professor da UFMG,
e analisam dados, contam com foi da turma de 2004 do EFA. “Quando fiz o cur-
a mentoria de professores con- so, no segundo ano do mestrado, vi um mundo de
vidados e escrevem relatórios possibilidades se abrir ao enxergar como o método
que apresentam quando todos se científico realmente funciona, ao vivo. O proces-
reúnem após o jantar. Os alunos geralmente são so colaborativo é importante, com as discussões,
divididos em grupos nas primeiras fases do curso coletas e trabalhos em grupo”, diz ele, que hoje é
e, ao final, fazem projetos individuais. um dos coordenadores, ao lado de Santana.
Na edição de 2022 do curso da Caatinga, um O biólogo Guilherme Corte fez o curso da Ma-
grupo de estudantes tinha uma questão: como a ta Atlântica em 2008, quando estava no primeiro
densidade de folhas na copa da umburana-de- ano do mestrado em ecologia na Universidade
-cambão (Commiphora leptophloeos), árvore que Estadual de Campinas (Unicamp), e também
chega a 9 metros (m) de altura, está associada à tem a vivência em campo como um marco. “Foi
exposição dos caules verdes que também realizam uma das principais experiências que tive como
fotossíntese? Eles propunham a hipótese de que cientista”, comenta. “Nas caminhadas na mata,
a perda de folhas, principal órgão para a fotos- os professores diziam: ‘Aquela bromélia está em
síntese, seria compensada com ganho adicional cima da árvore, isso é um fato; elaborem uma hi-
de dióxido de carbono (CO2) por meio desses pótese’. Fazíamos uma tentativa e nos corrigiam:
caules. Por isso, os estudantes esperavam que ‘Isso não é uma hipótese’.” Ele segue o método
árvores com menor densidade de folhas tivessem com alunos de graduação em biologia e mestrado
uma área maior de caules verdes. em ciências ambientais na Universidade das Ilhas
“Mas eles obtiveram um resultado contrário”, Virgens Americanas, nos Estados Unidos. “Parece
conta Leal. Após as coletas e as análises, o gru- óbvio, mas não é. Por isso, essa é a primeira aula
po percebeu que, quanto maior a densidade de que dou. Os estudantes se dividem em grupos e
folhas, maior a área de caule verde. “Esse resul- saem pelo campus em busca de três observações,
tado indica que a espécie seja capaz de usar as três perguntas e três hipóteses.”
duas estratégias de aquisição de carbono para De fato, um estudo conduzido por ecólogos da
melhor manutenção das condições diante das Universidade Cornell, nos Estados Unidos, bus-
limitações do ambiente”, escreveram no relató- cou mensurar o impacto da experiência na car-
rio final. Segundo Machado, da USP, essa é uma reira acadêmica de estudantes de pós-graduação
forma eficiente de se fazer o conhecimento avan- em biologia e ecologia que participaram do Curso
çar, porque as ideias são descartadas conforme de Campo da Flórida, oferecido pela instituição
as hipóteses vão sendo rejeitadas. há 50 anos. Para isso, levantaram dados de 184
“Também tentamos mostrar que é preciso lidar alunos que participaram do curso e de 408 que
com a frustração e com os resultados negativos, não participaram, buscando suas publicações nas
além de discuti-los”, acrescenta Santana. Duran- plataformas Google Acadêmico e Web of Science.
te a pós-graduação em ecologia na Universidade Os primeiros publicaram 27% mais artigos cientí-
Estadual de Santa Cruz (Uesc), em Ilhéus (BA), ficos durante a pós-graduação do que seus colegas
ela participou do Curso de Campo em Ecologia que não participaram do treinamento em campo.
de Floresta no Sul da Bahia. “A experiência me Dez anos após concluírem a graduação, eles con-
instigou a seguir a carreira acadêmica. Fiquei tinuaram publicando 14% mais. Os que fizeram
totalmente imersa, treinando o uso do método curso de campo também foram mais propensos
científico”, conta. “Vi a mesma coisa nos alunos a se tornarem docentes universitários, embora
do curso da Amazônia, que dormem e acordam não tenha feito muita diferença na tendência a
discutindo ciência”, complementa, destacando seguir uma carreira científica.
que a experiência muda as trajetórias de pesquisa Por meio de um formulário, os pesquisadores
de uma parte deles. também questionaram 131 ex-alunos do curso de
Leal, da UFPE, também fez cursos de campo campo sobre quais habilidades foram aprimora-
durante a pós-graduação em ecologia e conta que das com a experiência. Entre as principais esta-

36 | MARÇO DE 2024
1

Parque Nacional do
Catimbau, Pernambuco
(acima); trabalho
noturno com opilião
e diurno com moluscos
em Peruíbe (à dir.)

Na primeira edição do curso de campo finan-


ciado pelo Serrapilheira, foram selecionados 16
estudantes de biologia, ecologia, física e mate-
3
mática do último ano da graduação ou início do
vam realizar pesquisa em campo (43%); pensar mestrado, entre 30 que fizeram a etapa teórica,
de forma abrangente sobre ciência, curiosidade para ir a campo colocar em prática o que apren-
ou descoberta (28%); e aprender observando a deram em sala de aula. Divididos em grupos de
natureza (25%). Os dados foram relatados em quatro alunos, cada grupo com dois orientadores,
novembro de 2022 na revista BioScience. eles desenvolveram um projeto na Mata Atlântica,
“Apesar dos benefícios documentados, o apoio ao longo de sete dias, e outro na floresta amazô-
das universidades para cursos e estações de cam- nica com a mesma duração. Os alunos também
po está diminuindo, de tal forma que gerações pensam em perguntas, criam hipóteses, coletam
futuras de biólogos provavelmente experimen- dados, desenvolvem modelos estatísticos e apre-
tarão a pesquisa em ciências biológicas de forma sentam resultados.

N
isolada de seu contexto ecológico”, alerta o artigo. O orçamento para o curso de campo de 2023 foi
de R$ 632 mil, para custear material de trabalho,
a contramão dessa tendência, em alimentação completa, hospedagem e transpor-
julho de 2023 o Instituto Serra- te para todos os alunos, além de 16 professores
pilheira decidiu investir em uma (alguns do exterior), três coordenadores e qua-
etapa de campo na Mata Atlântica tro tutores, que foram remunerados. “Estar no
(coordenada por Glauco Machado) campo acaba sendo transformador e uma mu-
e na Amazônia (pelo biólogo Paulo dança de paradigma para os alunos, pois mui-
FOTOS 1 MIKAEL CASTRO 2 FLÁVIA MARQUITTI / UNICAMP 3 AMANDA MACIEL

Enrique Peixoto, da UFMG) para tos nunca tinham nem sequer colocado o ‘pé no
alunos do Curso de Formação em mato’”, observa o diretor-presidente do Instituto
Ecologia Quantitativa, criado em Serrapilheira, Hugo Aguilaniu. “Há coisas que
2021 e coordenado pela bióloga e matemática não é possível imaginar que aconteçam caso não
Flávia Marquitti, da Unicamp. A formação é aber- sejam vistas.”
ta para estudantes de graduação e mestrado que Aguilaniu destaca que, embora a modelagem
tenham domínio da língua inglesa, idioma oficial matemática e a capacidade de analisar grandes
das aulas que contam com a participação de pro- quantidades de dados sejam fundamentais, elas
fessores de outros países. Marquitti foi aluna do precisam dialogar com o que os pesquisadores
curso de Ecologia da Mata Atlântica da USP em encontram na natureza. “Para o Serrapilheira,
2009. “Para mim foi muito marcante porque foi portanto, o curso de campo tem um papel essen-
a primeira vez que pensei em unir modelagem cial de completar esse ciclo”, conclui. n
matemática e trabalho de campo. Elaborei um
modelo no meu projeto e fiz os testes com os O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na
dados que coletei”, conta. versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 37


BOAS
PRÁTICAS

Sinais de O
esforço do geneticista e bioinformata Yves
Moreau, da Universidade Católica de Leu-
ven, na Bélgica, já levou à retratação de 30

consentimento artigos científicos desde 2019. Em comum, os estu-


dos cancelados utilizavam dados genéticos ou bio-

forçado
métricos de minorias étnicas e grupos populacionais
vulneráveis da China, cuja coleta foi realizada em
condições nebulosas. Em alguns casos, não foi pos-
Suspeita de que grupos étnicos sível assegurar que os sujeitos da pesquisa fornece-
foram coagidos a fornecer ram material biológico de forma voluntária ou que
o estudo foi aprovado pelo comitê ético de alguma
dados e amostras biológicas instituição científica reconhecida. Já outros papers
põe em xeque 96 artigos sobre estão lastreados por termos de consentimento in-
genética forense formado, nos quais os participantes declaram que
foram avisados sobre o escopo da pesquisa e que
aceitaram participar dela, mas há a possibilidade
FOTO PEETERV / GETTY IMAGES

de que a coleta de dados tenha sido forçada e os do-


cumentos de anuência obtidos sob coação, o que os
tornaria inúteis. Essa suspeita se baseia no ambiente
de repressão política em que as pesquisas foram fei-
tas e na presença de agentes de segurança do Estado
entre os coautores dos artigos.

38 | MARÇO DE 2024
Segundo Moreau, a polícia chinesa se vale de uma Sydney, na Austrália, coautor de um artigo apontado
base de dados nacional de DNA, de informações bio- como suspeito por Moreau. O trabalho em questão foi
métricas e de métodos de vigilância – tais como câ- publicado em 2018 na revista Scientific Reports e se
meras de vídeo e reconhecimento facial – para mo- baseava na análise genética de 1.842 pessoas de quatro
nitorar a minoria muçulmana uigur na província de grupos étnicos da China. O artigo segue válido, mas
Xinjiang, no noroeste do país. A mesma estratégia em 2022 a editora Springer Nature fez uma correção
vale para os habitantes das montanhas do Tibete, re- removendo dados (anonimizados) de participantes que
gião controlada pela China desde a década de 1950. constavam nas informações suplementares do paper,
“Isso faz parte da arquitetura do controle social e é porque não havia consentimento para divulgá-los.
uma ferramenta de pressão psicológica eficaz”, disse

O
Moreau ao jornal The Washington Post. engajamento de Moreau no combate ao que
Em fevereiro, a revista Molecular Genetics & Ge- ele chama de “vigilância genômica” de mi-
nomic Medicine anunciou a retratação de 18 artigos norias étnicas começou em 2016, quando o
apontados como suspeitos por Moreau, reconhecen- pesquisador soube que o governo do Kuwait lançara
do “inconsistências entre a documentação de con- um programa para coletar e catalogar perfis genéti-
sentimento e a pesquisa relatada”. Outra retratação cos de seus cidadãos e de visitantes. Ele levou o caso
recente envolveu um trabalho publicado em 2022 na à Sociedade Europeia de Genética Humana e pediu
revista PLOS ONE, em que pesquisadores chineses que se pronunciasse contra a medida. Com a reper-
coletaram amostras de sangue de centenas de tibeta- cussão negativa, o programa acabou revogado pelo
nos e concluíram que marcadores genéticos de seus Parlamento do país. No mesmo ano, foi informado
cromossomos X poderiam ser úteis para identificação de que um programa de catalogação de DNA estava
forense e testes de paternidade. Moreau alertou os sendo implantado como parte do processo de regis-
editores da PLOS ONE que forças de segurança chine- tro de passaporte em Xinjiang, onde os uigures têm
sas poderiam ter participado da coleta de dados, uma sido alvo de vigilância e detenções em massa. Ele fez
vez que organizações de defesa dos direitos humanos um levantamento da literatura científica e encontrou
haviam denunciado a existência de um programa de dezenas de artigos que descrevem o perfil genético
coleta compulsória de amostras de DNA de populações de grupos étnicos minoritários na China. Também
tibetanas. O pesquisador pediu que investigassem se observou que mais de 20% das pesquisas publicadas
houve mesmo o consentimento informado dos indi- sobre genética forense populacional na China entre
víduos que cederam amostras de sangue. O artigo foi 2011 e 2018 concentraram-se nos uigures, embora
retratado apenas três meses após o alerta. Segundo eles representem menos de 1% da população.
nota divulgada pelo periódico, documentos forneci- Em novembro passado, Moreau foi agraciado com
dos pelos autores não foram suficientes para afastar um prêmio da Fundação Einstein Berlim por defen-
dúvidas sobre a autenticidade do consentimento in- der “padrões éticos na utilização de dados de DNA
formado e garantir que o estudo recebeu aprovação humano”, de acordo com a instituição. Uma influên-
ética de comitê regularmente estabelecido. cia de seu trabalho pode ser notada em mudanças
A rapidez da PLOS ONE em analisar o caso não promovidas nas políticas de editoras científicas rela-
é um padrão entre as revistas científicas. Moreau e cionadas a grupos vulneráveis. A MDPI, embora não
seu grupo fizeram alertas semelhantes sobre mais de tenha retratado nenhum artigo questionado, instituiu
uma centena de artigos e ao menos 70 deles seguem em meados de 2021 a exigência de um escrutínio adi-
sendo investigados há mais de dois anos, sem que as cional em estudos que envolvam grupos vulneráveis.
publicações cheguem a uma conclusão sobre se de- A existência de artigos suspeitos levanta uma in-
vem ser retratados – o argumento é de que os casos dagação incômoda: até que ponto dados genéticos
são complexos. “A demora excessiva de editores em obtidos sem consentimento estão disponíveis em
proferir decisões equivale à má conduta editorial”, grandes repositórios internacionais e são utilizados
disse Moreau, em uma longa reportagem sobre seu por outros pesquisadores. Formalmente, registros
trabalho publicada em janeiro na revista Nature. oriundos de artigos retratados são removidos desses
Houve casos em que os editores consideraram a bancos. O Conselho Consultivo de Bases de Dados
suspeita infundada e encerraram as investigações. Forenses, vinculado à Sociedade Internacional de
A editora MDPI declarou não ter encontrado falhas Genética Forense, divulgou um relatório em fevereiro
éticas em sete artigos questionados por Moreau, pu- de 2023 sugerindo que o expurgo de dados poderia
blicados na revista Genes. Um dos artigos investigou ser ampliado e que os curadores de repositórios de-
as origens genéticas do povo Hui, outro grupo étnico veriam fazer uma avaliação caso a caso, descartando
muçulmano do norte da China. Vários autores traba- dados quando há uma chance concreta de não terem
lham para a Academia de Ciências Forenses de Xangai, sido obtidos com consentimento informado. Um ris-
que é parte do Ministério da Justiça da China. “Não co desse tipo de medida é tornar os bancos genéticos
é incomum que a polícia ajude a facilitar a pesquisa menos representativos, em prejuízo justamente dos
forense de genética populacional”, afirmou à Nature grupos étnicos minoritários que tiveram suas infor-
Dennis McNevin, da Universidade de Tecnologia de mações descartadas. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 337 | 39


Plágio derruba ministra norueguesa que
reprimia má conduta de estudantes

S
andra Borch, ministra da Pesquisa autoplágio, mas tinham sido absolvidos em um outro caso de plágio em seu gabi-
e do Ensino Superior da Norue- por um tribunal inferior. nete, Støre manteve no cargo a ministra
ga, renunciou ao posto em 23 de O autor da denúncia contra Borch foi da Saúde, Ingvild Kjerkol, que também
janeiro após ser acusada de plagiar ao um estudante de administração de Oslo, copiou trechos de textos sem atribuir a
menos 20% do conteúdo de sua disser- Kristoffer Rytterager, de 27 anos, que autoria em sua dissertação de mestrado.
tação de mestrado em direito, defendi- expôs em sua conta no X, o antigo Twit- O premiê alegou que cabia às universi-
da há 10 anos na Universidade Ártica ter, os resultados de uma verificação de dades, e não aos políticos, julgar delitos
da Noruega, sobre a legislação petrolí- similaridade da dissertação da minis- acadêmicos. De todo modo, instruiu os
fera do país. “Cometi um grande erro. tra. “Como alguns alunos estavam sendo demais ministros a procurar indícios de
Usei textos de outras pessoas sem in- punidos por autoplágio, pensei que se- plágio em sua produção científica pre-
dicar a fonte. Sinto muito”, reconheceu ria uma boa ideia verificar os trabalhos gressa, a fim de se antecipar ao escrutí-
Borch, de 35 anos, que estava no cargo da própria ministra”, disse Rytterager à nio de jornalistas, estudantes e políti-
havia cinco meses – antes, fora minis- agência Associated Press. Foram detec- cos de oposição. O substituto de Borch,
tra da Agricultura e Alimentação por tados trechos de seis diferentes autores Oddmund Løkensgard Hoel, graduado
dois anos. sem a devida atribuição, incluindo partes em letras e literatura nórdica e doutor
A situação da ministra ficou insus- de duas outras dissertações de mestra- em história, garantiu à rede de televi-
tentável porque ela liderava a repressão do. Até erros ortográficos contidos nos são pública NRK que seus trabalhos es-
à má conduta acadêmica nas univer- trabalhos originais foram reproduzidos tão isentos de plágio. “Sempre tomei o
sidades do país e era particularmente pela ministra. cuidado de fazer citações e referências
implacável com estudantes acusados O primeiro-ministro da Noruega, Jo- corretamente, seguindo as regras aca-
de plágio. Recentemente, recorreu à nas Gahr Støre, disse que as ações de dêmicas”, disse Hoel, que é professor
Suprema Corte do país para punir es- Borch “não eram compatíveis com a da Universidade de Ciências Aplicadas
tudantes que haviam reciclado textos confiança necessária para ser ministra do Oeste da Noruega e editor da revista
de sua própria autoria, o que configura da Pesquisa e do Ensino Superior”. Mas acadêmica Heimen.

Museu de universidade norte-americana


devolve peças pilhadas da Grécia CONTEÚDO EXTRA

A
Universidade Emory, na cidade de Atlanta, dos Estados Unidos, chegou a
um acordo com o Ministério da Cultura da Grécia para devolver três arte- Conhece a nossa
fatos da coleção do Museu Michael C. Carlos, vinculado à instituição. Um newsletter de
dos objetos é uma estátua de mármore de uma deusa, adquirida pelo museu em integridade científica?
2002 de um colecionador nova-iorquino, mas que foi encontrada em escavações
irregulares realizadas na década de 1990 e exportada ilegalmente. Outro artefato
é uma banheira, também adquirida em 2002, que o museu acreditava pertencer
a um colecionador desde a década de 1960, mas que foi levada aos Estados Uni-
dos pelo traficante de antiguidades Gianfranco Becchina, condenado em 2017 na
Grécia. O terceiro objeto é uma escultura de mármore de uma figura masculina
sentada, comprada de um negociante em 2003 e sem procedência conhecida, mas
que aparece em fotos de polaroide de uma escavação ilegal na Grécia em 1989. “Es- Entre no QR Code
tava bem documentado que esses objetos tinham sido exportados ilegalmente da para assinar
Grécia”, disse Lina Mendoni, ministra da Cultura da Grécia, ao assinar o acordo nossas newsletters
na universidade norte-americana, de acordo com o site ArtsATL. “Esperamos que
outras instituições do exterior sigam o exemplo do Museu Carlos, que procurou
resolver o problema por meio do diálogo e do espírito de cooperação”, afirmou. O
diretor do museu, Henry Kim, destacou que a devolução dos artefatos pilhados faz
parte de um acordo de cooperação, por meio do qual a instituição receberá peças
por empréstimo de museus gregos para compor futuras exposições.

40 | MARÇO DE 2024
DADOS Participação feminina na docência superior

A presença das mulheres na


DOCENTES EM EXERCÍCIO, POR SEXO (MILHARES)
docência superior vem se
Brasil – 2010-2022
ampliando de forma lenta,
mas constante, ao menos Masculino Feminino Feminino % do total
desde 2010. Em 2022, das 300
46,7 47,0 47,3 50
45,1 45,3 45,4 45,5 45,8 46,2 46,7
44,9 45,1 45,2
362 mil funções docentes
(em exercício) da educação
240
superior do Brasil, 171 mil 212 209
202 210 206 207 206 40
(ou 47,3%) eram exercidas 196 199 195 191
190 190
por mulheres. Apesar de o 180
número absoluto já ter sido 174 176 175 174 178 180 171
164 166 169 171
maior (180 mil, em 2019), 155 161 30

a participação feminina 120


manteve-se em elevação
e atingiu o maior patamar 20
da série histórica (gráfico 60

ao lado)

0 10
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

No mesmo período, houve


crescimento significativo
DOCENTES EM EXERCÍCIO (MILHARES), POR SEXO E CATEGORIA ADMINISTRATIVA – 2010 E 2022
no número de docentes n Feminino n Masculino
nas instituições federais
de ensino: entre os 2010 2022
homens, de 45,2 mil para 73,9
68,1 mil, e, entre as 68,1
mulheres, de 33,4 mil
60,7
para 53 mil. Com isso,
a participação feminina 53,0
50,6
entre os docentes dessas 47,1 46,1
45,2
instituições elevou-se 43,2 41,5
de 42,4% para 43,7% 36,7
33,4
26,4
24,1 23,0
21,0

3,2 3,9 3,1 3,3

Pública Pública Pública Privada Privada Pública Pública Pública Privada Privada
federal estadual municipal com fins sem fins federal estadual municipal com fins sem fins
lucrativos lucrativos lucrativos lucrativos

Nos sistemas estaduais, no mesmo período, Nas instituições privadas sem fins Naquelas com fins lucrativos, segmento
o aumento absoluto foi pequeno para homens lucrativos, houve queda significativa com maior crescimento no período (em
e mulheres, sem alteração da distribuição por no número de funções docentes número de matrículas1), o volume de
gênero: 53,4% para os homens e 46,6% para as (de 134 mil para 98 mil) e pequeno funções docentes passou de 80 mil para
mulheres. Nos municipais, a despeito de números aumento na participação feminina 98 mil e a presença das mulheres
absolutos relativamente pequenos, a presença (de 45,1% para 47,4%) superou a dos homens, passando de
feminina se ampliou de 44,8% para 48,2% 45,9% para 51,8%

NOTA (1) O NÚMERO DE MATRÍCULAS NAS INSTITUIÇÕES PRIVADAS COM FINS LUCRATIVOS PASSOU DE 2,1 MILHÕES PARA 5,6 MILHÕES, ENTRE 2010 E 2022. A RELAÇÃO ENTRE MATRÍCULAS E FUNÇÃO DOCENTE PASSOU DE 26,
EM 2010, PARA 58, EM 2022. COMO COMPARAÇÃO, OBSERVE-SE O VALOR DESSA RELAÇÃO PARA OS DEMAIS SISTEMAS, EM 2022 – FEDERAL, 11; ESTADUAL, 13; PRIVADA SEM FINS LUCRATIVOS, 20. NO CASO DESSE ÚLTIMO, O VALOR
É ALTAMENTE INFLUENCIADO PELO GRANDE PESO DAS MATRÍCULAS NA MODALIDADE A DISTÂNCIA (2/3 DAS MATRÍCULAS)

FONTES CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR – MICRODADOS, INEP/MEC (BAIXADOS EM 06/02/2024) ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA/GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

PESQUISA FAPESP 337 | 41


ENTREVISTA MAURÍCIO NOGUEIRA

O ANO DA
DENGUE
Virologista da Famerp fala das
características da epidemia atual e da
necessidade de o sistema de saúde
se preparar para receber os doentes
Ricardo Zorzetto

O
médico e virologista Maurício Lacerda Noguei- Em janeiro, foram registrados 232 mil
ra conhece bem a dengue. Há quase 20 anos ele casos suspeitos de dengue, 2,5 vezes o
estuda a evolução do vírus causador dessa doen- total de janeiro de 2023. O que se deve
ça que, de tempos em tempos, causa epidemias esperar para os próximos meses?
no país e deixa centenas de milhares de pessoas A expectativa é que os casos subam de
prostradas e com dores pelo corpo por dias. Ele próprio teve modo significativo até abril. Nos últimos
dengue três vezes. “Me sentia miserável”, conta. 20 anos, o pico de casos ocorre entre o
Nascido em Jaboticabal, no interior de São Paulo, Nogueira final de março e meados de maio. Em
formou-se em medicina na Universidade Federal de Minas seguida, eles caem abruptamente com a
Gerais (UFMG), onde fez mestrado e doutorado. Em 2004, primeira frente fria. Talvez 2024 se tor-
instalou-se em São José do Rio Preto, cidade do interior pau- ne o ano com o maior número de casos
lista onde a dengue e outras doenças transmitidas pelo mos- suspeitos, e provavelmente confirmados,
quito Aedes aegypti são endêmicas. da história do Brasil.
Lá, implantou na Faculdade de Medicina de São José do
Rio Preto (Famerp) um dos laboratórios da Rede de Diversi- No primeiro mês do ano, houve 15 mor-
dade Genética de Vírus, financiada pela FAPESP, e investigou tes confirmadas por dengue. Em janeiro
os fatores que levam ao desenvolvimento de quadros graves de 2023 foram 61. A dengue está menos
de dengue e como a imunidade evolui após a infecção. Mais letal este ano?
recentemente, ele coordenou na Famerp um dos centros que É difícil saber. O comportamento da den-
avaliou o desempenho da formulação candidata a vacina contra gue no Brasil é diferente, por exemplo,
a dengue desenvolvida pelo Instituto Butantan, a Butantan- daquele observado em Singapura, uma
-DV (ver “Vacina do Butantan contra a dengue reduz em 80% ilha. Lá uma epidemia se manifesta de
o risco de adoecer”, disponível apenas no site). modo mais homogêneo. No Brasil, ve-
Em uma entrevista concedida por videochamada em 31 de mos fenômenos distintos ocorrendo ao
janeiro, Nogueira falou do desempenho das diferentes vacinas mesmo tempo. Em Belo Horizonte, há
disponíveis contra a dengue e chamou a atenção para o risco uma circulação intensa dos sorotipos 1 e
de a epidemia atual ser a maior já vivida pelo país. A seguir, 2 do vírus da dengue. No interior de São
leia os principais trechos. Paulo, uma região muito populosa, além

42 | FEVEREIRO DE 2024
Maurício Nogueira, que
estuda a dengue há
quase 20 anos e já pegou
a doença três vezes

rendemicidade, que é a circulação si-


multânea dos quatro sorotipos do vírus.
Vivemos isso de 2007 a 2010, mas não
de forma agressiva, com cada um dos
sorotipos predominando em uma região
diferente e no máximo dois circulando
ao mesmo tempo. A exceção foi Manaus,
onde houve uma epidemia em 2010 ou
2011 com os quatro sorotipos.

Quais as consequências de um quadro


hiperendêmico?
Infecções sucessivas por sorotipos dife-
rentes favorecem a ocorrência da dengue
grave, antigamente chamada de hemor-
rágica. Nos primeiros seis meses após a
infecção por um sorotipo, o organismo
fica protegido contra todos, por causa
de anticorpos inespecíficos que perma-
necem no sangue. De nove meses a dois
anos após a infecção, o nível desses anti-
corpos cai e facilita infecções por outros
sorotipos. Esse fenômeno é chamado
de facilitação mediada por anticorpos,
ou antibody dependent enhancement, a
ADE, e contribui para a ocorrência de
dengue grave. Após dois anos, a infec-
ção prévia nem protege nem agrava a
seguinte. As consequências da circulação
dos sorotipos 1 e 2, temos muitos casos de partir dos sinais que o paciente apresen- simultânea dos quatro sorotipos depen-
chikungunya, que causa sintomas clínicos ta]. É tão difícil distinguir uma da outra dem de como será a dinâmica. Em São
semelhantes aos da dengue e contribui que a Organização Mundial da Saúde, José do Rio Preto, tivemos em 2019 uma
para deixar os dados confusos. Em algu- a OMS, recomenda que tanto os casos epidemia de dengue 2. Em 2022 e 2023,
mas regiões do país, o vírus do sorotipo suspeitos de dengue quanto os de chi- de dengue 1. Se o sorotipo 3 chegar este
2 em circulação é de uma linhagem cos- kungunya sejam tratados como dengue. ano, haverá um grande risco de ocorre-
mopolita, enquanto em São Paulo a varie- rem mais casos de dengue hemorrágica.
dade é asiática-americana. Temos ainda Por quê?
notícias da introdução do sorotipo 3 em Porque dengue mata. E mata rápido. Já O tratamento da dengue é paliativo,
alguns locais. Além dessa complexidade, a chikungunya evolui lentamente e rara- com hidratação e medicamentos para
preocupa o fato de que alguns estados da mente é letal. A mortalidade por dengue dor e febre. Por que é importante hi-
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

região Nordeste historicamente muito afe- cai muito se os casos forem identifica- dratar?
tados por dengue estejam relativamente dos no início e tratados. E o Brasil tem Por causa do extravasamento vascular.
silenciosos. Se o surto que está ocorrendo tradição em fazer isso bem. Uma conse- Com o aumento da permeabilidade dos
em parte do país chegar a esses estados, quência é que se acaba notificando tudo vasos sanguíneos, parte do líquido esca-
teremos a tempestade perfeita. como dengue. pa do sistema circulatório e se acumula
nos tecidos. Isso pode levar ao chamado
É possível distinguir os sintomas da den- O que a circulação simultânea de quatro choque hipovolêmico. Como o volume
gue dos da chikungunya? sorotipos da dengue pode significar? Po- de sangue é menor, o coração não conse-
Clinicamente, é quase impossível [o mé- dem ocorrer mais casos de dengue grave? gue bombeá-lo em quantidade suficiente
dico não consegue saber qual é a doença a Caminha-se para um quadro de hipe- para os órgãos, que entram em falência.

PESQUISA FAPESP 337 | 43


Os sorotipos causam doença com gra- vos para esperar que a proteção contra Este ano devem chegar 5 milhões de do-
vidade diferente? a dengue 3 e 4 seja pior. É uma hipótese. ses da Qdenga, o que daria para imuni-
Sim, a linhagem asiática-americana do Se as agências reguladoras vão aceitar os zar 2,5 milhões de pessoas. Qual seria
sorotipo 2, que circula no Brasil, é mais resultados, é uma questão que o Butantan o impacto na epidemia?
agressiva do que a linhagem americana, terá de enfrentar. Há o impacto pessoal, que é inegável. Os
que existiu aqui no passado. Normal- 2,5 milhões que receberem a vacina de-
mente, o sorotipo 4 é menos agressivo. Como avaliar a eficácia contra os so- vem ficar protegidos. Em termos de saúde
Esse é um quadro geral. Agora, se um rotipos 3 e 4? pública, no entanto, isso é 1% da popula-
indivíduo é infectado pelo vírus 4 logo Há duas saídas. A MerckSharp&Dohme, ção brasileira e não deve causar impacto
depois de uma infecção por dengue 2, que tem uma vacina quase idêntica à do na epidemia em curso. Me preocupa a fal-
pode ocorrer ADE e o caso ser grave. Butantan, está fazendo um estudo clí- ta de proteção da vacina da Takeda con-
Uma infecção pelo sorotipo 4 em uma nico de fase 3 na Ásia, onde circulam os tra a dengue 3. Eventualmente, podemos
pessoa obesa ou com diabetes também subtipos 3 e 4. Isso pode demorar. Outra ter uma situação semelhante à da Sanofi.
pode ser grave. Do ponto de vista da saú- saída são os experimentos de desafio hu-
de pública, é importante saber qual li- mano. Neles, a pessoa, depois de tomar O que pode ocorrer?
nhagem está circulando. Em termos de a vacina, é exposta ao vírus. O grupo da A Dengvaxia, da Sanofi, funcionava como
cuidado com o paciente, dengue é den- Anna Durbin, da Universidade Johns primeira infecção em crianças que nunca
gue. O médico deve atender seguindo os Hopkins, nos Estados Unidos, está fa- haviam tido dengue. Quando, em seguida,
protocolos de tratamento. zendo esse tipo de teste. Se as agências elas eram infectadas pelo sorotipo 2, de-
regulatórias aceitarem os dados, a vaci- senvolviam dengue grave. Por isso seu uso
A Butantan-DV protege contra os so- na do Butantan pode caminhar para um foi recomendado só para quem já teve a
rotipos 1 e 2, mas não sabemos como licenciamento rápido. doença. Nesse caso, ela é eficiente e fun-
funciona contra o 3 e o 4, que não circu- ciona como reforço. A Qdenga mostrou
laram nos últimos anos. Ainda é possí- A Butantan-DV vai complementar o sinais preocupantes na presença de den-
vel tentar medir a eficácia contra esses papel das duas vacinas em uso no país gue 3, com falta de eficácia e aumento de
sorotipos antes do fim do estudo? ou competir com elas? casos. Um comitê de especialistas da So-
Acredito que não. O número de pessoas Acho que não competem. Os dados dis- ciedade Brasileira de Medicina Tropical
em seguimento hoje é pequeno. Como poníveis até o momento sugerem que a [SBMT], do qual fiz parte, não recomen-
pesquisador, não vejo problema com os vacina do Butantan é superior às outras. O dou o uso da Qdenga no Sistema Único de
sorotipos 3 e 4. A vacina do Butantan foi Brasil é um país com 200 milhões de ha- Saúde [SUS] naquele momento. Quando a
formulada com vírus vivos atenuados. Os bitantes. Não se produz essa quantidade SBMT fez a recomendação, não sabíamos
vírus dos sorotipos 1, 3 e 4 usados nela de vacinas em um ano. A própria Takeda qual seria a estratégia de vacinação. O Mi-
sofreram deleções genéticas que prejudi- não teria condições de suprir. São neces- nistério da Saúde [MS] optou por aplicar
cam a capacidade de reprodução. Como sárias estratégias inteligentes para imu- a vacina em adolescentes, uma faixa que
a deleção não prejudicou a capacidade nizar o máximo de pessoas em um prazo não apresenta maiores problemas. É uma
de reprodução do sorotipo 2, recorreu- adequado e com os recursos disponíveis. estratégia inteligente. O problema ocor-
-se a outra estratégia: genes do sorotipo re com crianças. Um estudo publicado
2 foram introduzidos no vírus do soro- em 2022 sugere que, nelas, a vacina não
tipo 4, com baixa capacidade de repro- protege contra a infecção pelo vírus do
dução. Quando se olham os dados dos sorotipo 3. Mas, nesse estudo, o número
estudos em animais e em seres huma- de casos do sorotipo 3 foi muito pequeno,
nos, vê-se que os quatro componentes se assim como a proporção de pessoas que
multiplicam no organismo, estimulando não tinham tido dengue previamente.
o acionamento do sistema imunológico. Isso diminui a confiabilidade estatística
Isso não ocorre nas outras duas vacinas A grande mudança do resultado com relação a esse sorotipo.
aprovadas para uso no país. Na vacina O grupo de experts da OMS que avaliou a
da Sanofi, a Dengvaxia, apenas o com- no cenário da vacina não considerou isso um problema
ponente da dengue 4 se multiplica. Na e recomendou o seu uso em uma faixa
vacina da Takeda, a Qdenga, só o com-
doença deve etária mais alta, os adolescentes, a faixa
ponente da dengue 2 e, talvez, o da 1. O ocorrer se houver para a qual o MS indica o uso. A Qdenga
imunizante da Sanofi não protege con- é uma vacina boa, com um potencial de
tra os sorotipos 1 e 2, assim como o da o licenciamento da uso no sistema de saúde. A vacina da Sa-
Takeda não protege as crianças contra nofi também teria um potencial de uso.
o sorotipo 3 [provavelmente porque ca- vacina do Butantan,
da vacina usa uma tecnologia distinta]. Mas não foi aceita.
Voltando à Butantan-DV, o componente
por ela ser, Não foi. Ela foi aprovada para uso indi-
mais fraco seria o da dengue 2. Mesmo aparentemente, vidual por pessoas que já tiveram den-
assim, houve uma proteção excelente gue. Uma complicação adicional é que
contra esse sorotipo. Não existem moti- superior às outras ela é administrada em três doses. To-

44 | FEVEREIRO DE 2024
Técnico do rompida. Uma vantagem é que, quando
Laboratório de o mosquito se reproduz na natureza, ele
Pesquisa em
Virologia da Famerp
transmite a bactéria para a prole. Há um
realiza testes investimento grande do World Mosqui-
rápidos de detecção to Program, um programa mundial que
de dengue tem tentado utilizar o mosquito infec-
tado com Wolbachia. A Fiocruz [Funda-
ção Oswaldo Cruz] e o MS têm também
investido bastante. Há alguns dados de
estudos preliminares mostrando uma
boa efetividade, mas ainda não temos
os resultados de um grande estudo con-
trolado que está em desenvolvimento
em Belo Horizonte, Contagem e Betim.

Como é o estudo?
Dividimos os municípios de Belo Ho-
das essas vacinas têm potencial de uso Sem vacina para todos, a saída é con- rizonte, Contagem e Betim em 36 clus-
no SUS. Agora, o uso tem de ocorrer de trolar o vetor. O Brasil fez isso até mea- ters [conglomerados de pessoas] e em
forma inteligente, que não exponha as dos do século passado. É possível fazer alguns deles estamos liberando mosqui-
pessoas a um eventual risco. Não pode- de novo? tos com Wolbachia e fazendo o controle
mos aceitar risco. Hoje é impossível repetir a forma como usual do vetor. Em outros, apenas o con-
ocorreu a erradicação do vetor no pas- trole usual do vetor. Estamos indo para
Quantas pessoas teriam de ser vacina- sado. Dois processos que ocorreram até o quarto ano de acompanhamento, mas
das para se observar um efeito protetor meados do século XX não seriam acei- só liberaremos os resultados ao final do
em uma epidemia? tos. O primeiro foi a estratégia do “pé experimento.
Falta informação para saber. Há um im- na porta”, adotada em campanhas para
pacto fundamental que é o individual. erradicar os focos do Aedes aegypti. O É uma estratégia a mais.
As pessoas vacinadas terão risco 80% agente de saúde entrava na casa com vo- Não existe bala de prata. Se alguém me
menor de adoecer. Isso é maravilhoso. cê, sem você ou apesar de você. Pode-se perguntasse há oito anos se a dengue teria
Já tive dengue três vezes. É uma doen- discutir o mérito disso na saúde pública, controle, obteria uma resposta pessimis-
ça terrível. Não tive a forma grave nem mas não seria aceito hoje pela sociedade. ta. Hoje estou extremamente otimista.
fui internado. Mas me sentia miserável. O segundo era a utilização de inseticidas
Se pudesse ter tomado vacina na época, piretroides e outros produtos muitos tó- O que mudou?
teria sido bom. Evitaria uma doença que xicos, o que também não seria mais acei- Há hoje um tripé para combater a den-
causa um impacto pessoal muito grande to. Desde que retornaram as epidemias gue. Existem duas vacinas licenciadas
e tem um custo econômico indireto que de dengue em 1986 no Brasil, falamos de que, apesar das limitações, se bem uti-
não costumamos mensurar no Brasil. controle do vetor. Criamos várias estra- lizadas, são excelentes ferramentas. Te-
No mundo todo, são milhões de pessoas tégias, mas não conseguimos. Porém há mos uma terceira, talvez melhor, a ca-
afastadas do trabalho por até cinco dias algo que parece ter potencial: controlar minho. A segunda perna do tripé é o uso
todos os anos. a capacidade vetorial. de mosquitos infectados com Wolbachia,
que cumpre o papel de diminuir de for-
Não há vacina para todos no SUS, mas O que é isso? ma significativa a transmissão. A terceira
tem disponível no setor privado. Quem É a capacidade de o mosquito transmitir é que há ao menos três medicamentos
pode pagar deve tomar? a doença. Não é erradicar o mosquito, antivirais específicos para a dengue que
É uma decisão individual, que deve ser mas diminuir sua capacidade de trans- estão em testes clínicos de fase 2 e 3.
tomada consultando o médico. mitir o vírus. Isso tem sido tentado com
a liberação na natureza de mosquitos in- O que mais dá para fazer?
Um artigo de revisão publicado em 2022 fectados propositalmente com uma bac- A dengue é uma doença que se pega em
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

na revista BioDrugs enumerava sete téria do gênero Wolbachia. Essa bactéria casa. É papel nosso cuidar da nossa ca-
compostos candidatos a vacina contra a coloniza o trato digestório do mosquito sa. Não adianta esperar que o Estado
dengue. Os três mais promissores eram e impede que os vírus da dengue, zika, vá tomar conta do nosso quintal. Não
os da Sanofi, da Takeda e do Butantan. chikungunya e febre amarela infectem resolve tudo, mas diminui. Como não
Há outras no horizonte? as células dos intestinos e se multipli- é possível controlar uma epidemia de
Há várias, em estágios anteriores dos tes- quem. Como os vírus não conseguem se dengue, o que temos de fazer agora que
tes. Nesse momento, a grande mudança multiplicar, eles não chegam em gran- os casos estão subindo é preparar o sis-
deve ocorrer se houver o licenciamento de quantidade às glândulas salivares do tema de saúde para receber os doentes
da vacina do Butantan, por ela ser, apa- inseto, de onde são injetados durante a e conscientizar a população sobre como
rentemente, muito superior às outras. picada. Com isso, a transmissão é inter- evitar criadouro de mosquito. n

PESQUISA FAPESP 337 | 45


IMUNOLOGIA

QUANDO A
O
s principais sintomas
da malária – febre, can-
saço, mal-estar e dores

DEFESA
pelo corpo – costumam
aparecer de 10 a 15 dias
depois de o parasita cau­
sador da doença, o protozoário do gê-

FAVORECE O nero Plasmodium, ser injetado no corpo


pela picada de uma fêmea de mosquito
Anopheles infectada. Crianças, gestantes,

INVASOR
portadores do vírus HIV e pessoas que
nunca tiveram contato com o patógeno
correm risco mais alto de desenvolver
a forma mais grave da doença, que cau-
Mecanismo que impede sa 600 mil mortes por ano no mundo –
quase todas (95%) na África. Um estudo
ação exagerada do sistema imune liderado por pesquisadores brasileiros
e publicado em fevereiro na revista Cell
facilita multiplicação do Metabolism elucida um mecanismo de
agente causador da malária autorregulação que, na malária, evita uma
resposta exagerada do sistema imune.
Renata Fontanetto Ao fazer isso, o sistema de defesa evita
danos ao corpo humano, mas favorece a
multiplicação do protozoário e, com ela,
o agravamento da doença.
Em experimentos com um modelo ani-
mal que simula a malária humana, a equi-
pe do imunologista Ricardo Gazzinelli,
da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), verificou que a segunda fase
de ativação do sistema imune, na qual o
organismo se prepara para agir com força
total contra o invasor, não funciona como
o esperado. Na malária, um sinal químico
que induz o amadurecimento das células
dendríticas, responsáveis por amplificar
1 a resposta imunológica recrutando mais
componentes da defesa contra o invasor,
causa o efeito oposto ao desejado. Em
vez de preparar as células dendríticas
para recrutar outras com ação específica
contra o parasita, esse sinal desorganiza
o funcionamento dessas células e freia a
resposta imune. O resultado? O proto-
zoário ganha tempo para se reproduzir
sem ser perturbado, intensificando os
sintomas da malária.
“Essa alteração na atividade das células
dendríticas é uma forma de autorregu-
Exemplares de Plasmodium
falciparum (áreas escuras) em
lação imunológica”, explica Gazzinelli,
amostra de sangue analisada que também é professor na Universidade
ao microscópio comum de Massachusetts, nos Estados Unidos,
Fêmea de Anopheles stephensi, Testes com roedores geneticamente
um dos transmissores da alterados para não produzir Acod1 – e
malária, e células dendríticas,
não acumular itaconato – mostraram
cujo funcionamento está
alterado na doença, vistas que a ausência dessa enzima foi sufi-
2 ao microscópio eletrônico ciente para restabelecer o acionamento
dos linfócitos T CD8+. “Sem o itaconato,
-doutorado realizado em Massachusetts os camundongos combateram melhor a
sob a supervisão de Gazzinelli, ela infec- infecção e a quantidade de plasmódio no
tou camundongos com Plasmodium cha- sangue foi menor”, relata a pesquisadora.
baudi, uma espécie que causa malária em O acúmulo de itaconato observado
roedores, e analisou o comportamento nesse modelo experimental de malária
das células dendríticas do baço. parece ocorrer também na doença hu-
Ramalho observou que o interferon- mana. Os pesquisadores verificaram que,
-gama desorganiza o funcionamento des- em pessoas infectadas com Plasmodium
sas células. Inicialmente, o sinalizador falciparum, predominante no continente
induz algo previsível e até desejável em africano e causador da forma mais letal
células que desempenham uma ativi- de malária, as células dendríticas pro-
3 dade intensa: um aumento no consumo duziam mais Acod1. Algo semelhante foi
de glicose, a principal fonte de energia. constatado na infecção por Plasmodium

O
onde parte dos experimentos foi reali- vivax, o mais comum fora da África, em
zada com apoio da FAPESP. “Ela evita problema é que, na ma- geral associado a uma enfermidade mais
a hiperativação do sistema imune, que lária, o ciclo de trans- branda. Os níveis de itaconato estavam
pode ser danosa para o indivíduo. Isso formação da glicose em mais elevados no sangue de pessoas in-
protege o organismo do hospedeiro, mas energia não se comple- fectadas com essa espécie do parasita.
favorece a multiplicação do parasita.” ta. Nas células dendríti- Especialistas em malária que não
Assim como nas infecções por vírus ou cas, o interferon-gama participaram do estudo afirmam que
bactérias, também na malária o sinal de estimula a produção de uma proteína os achados são promissores e podem
amplificação da resposta imunológica é que interrompe o processo no meio do ajudar na formulação de novas terapias
dado por uma proteína chamada interfe- caminho. Essa proteína, a enzima aco- contra o plasmódio. “Tanto o itaconato
FOTOS 1 DIDIN MUHAMMAD HASYIR / GETTY IMAGES 2 JIM GATHANY / CDC 3 LABORATÓRIO DE RICARDO GAZZINELLI / UFMG

ron-gama, um mensageiro químico produ- nitato desidrogenase1 (Acod1), impede quanto a enzima Acod1 podem virar al-
zido por determinadas células de defesa que a digestão da glicose seja concluída e vo de possíveis intervenções clínicas”,
expostas ao invasor no início da infecção. transforma o açúcar parcialmente digeri- afirma a bióloga Cristiana de Brito, da
Liberado pelas células natural killers e pe- do em itaconato, um composto que passa Fiocruz. Na sua avaliação, o itaconato
los linfócitos T que tiveram contato com a se acumular nessas células e impede pode ainda se tornar um marcador da
o parasita na primeira onda da resposta o funcionamento das mitocôndrias, as doença. “Medir seus níveis no sangue
imune, o interferon-gama dispara no baço centrais energéticas. “Nas células dendrí- talvez permita identificar as pessoas com
a fase seguinte do combate. Nesse órgão ticas dos roedores infectados, os níveis maior risco de evoluir para um quadro
com o tamanho de um punho, que inte- de itaconato estavam 35 vezes mais ele- grave de malária”, explica.
gra o sistema imune e fica na parte supe- vados que o normal. No sangue, quatro A biomédica Silvia Boscardin, da Uni-
rior esquerda do abdômen, o sinalizador vezes mais”, conta Ramalho, primeira versidade de São Paulo (USP), compar-
estimula células de defesa em repouso autora do estudo. tilha da mesma visão. Para ela, o traba-
(os monócitos) a se transformarem em Capaz de impedir o crescimento de lho traz indícios convincentes de que o
células dendríticas, que eventualmente bactérias, o itaconato não tem o mesmo itaconato pode desempenhar um papel
envolvem o parasita, despedaçam-no e efeito microbicida contra protozoários, imunossupressor também nos seres hu-
apresentam esses fragmentos para outro organismos também formados por uma manos. “Isso cria a possibilidade de tes-
grupo de linfócitos, os T CD8+. Estes, por só célula, mas mais complexos. O aumen- tar, quando disponíveis para uso clínico,
sua vez, acionam outros componentes do to dos níveis de itaconato nas mitocôn- eventuais medicamentos que reduzam
sistema de defesa capazes de destruir as drias danifica essas organelas e dispara o acúmulo desse composto para avaliar
células infectadas. Isso, claro, quando tu- uma sequência de fenômenos nas célu- se poderiam melhorar a condição clínica
do sai como o imaginado. las dendríticas que as impedem de ati- dos pacientes”, afirma. n
Só que na malária parece ocorrer algo var os linfócitos T CD8+. “O parasita se
diferente, constatou a bióloga Theresa aproveita dessa situação e se multiplica O projeto e o artigo científico consultados para esta
Ramalho. Durante um estágio de pós- mais”, explica a bióloga. reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 47


U
NEUROLOGIA m artigo publicado em janeiro na
revista Nature Medicine apresen-
tou cinco casos humanos de uma
forma potencialmente nova – e ra-
ríssima – da doença de Alzheimer:
a enfermidade adquirida por meio
de procedimentos médicos (iatrogênica), algo que
ocorreria em situações excepcionais.
Os cinco pacientes chegaram entre 2017 e 2022
a um serviço especializado do sistema de saúde do
Reino Unido, encaminhados por outros hospitais.
Eles apresentavam sinais típicos da enfermidade,

UMA FORMA
como falhas recorrentes de memória, dificuldade
para organizar a fala ou planejar a rotina. Dois ha-
viam recebido previamente o diagnóstico clínico
de Alzheimer, apoiado por marcadores em exames

ACIDENTAL DE de sangue ou imagem, e um terceiro caso foi con-


firmado na autopsia, que identificou as lesões no
cérebro características da doença.

ALZHEIMER
Atendidos pela equipe do neurologista John
Collinge, do University College London (UCL),
coordenador do estudo, esses pacientes eram
mais jovens que o habitual. Tinham entre 38 e 55
Um estudo identifica casos decorrentes anos quando começaram a apresentar os sinto-
mas, enquanto a forma esporádica – responsável
do uso de hormônio extraído de cadáveres por quase 99% dos casos – costuma se manifestar
predominantemente a partir dos 65 anos. Além
e outros sugerem um mecanismo disso, eles não apresentavam as mutações gêni-
de espalhamento da doença no cérebro cas associadas ao Alzheimer hereditário – for-
ma que corresponde a cerca de 1% dos casos da
Ricardo Zorzetto doença – nem tinham pais com essas alterações.

Na ilustração,
peptídeos
beta-amiloide
(alaranjados) se
agregam em placas
ao redor dos
neurônios (azuis)

48 | MARÇO DE 2024
Todos, porém, apresentavam algo em comum.
Na infância, haviam recebido injeções intramus-
culares de hormônio do crescimento extraído
da glândula pituitária de cadáveres, para tratar
problemas de baixa estatura. Essa versão do hor-
mônio deixou de ser usada no mundo em 1985,
substituída pelo hormônio sintético, após surgi-
rem evidências de que levava ao desenvolvimento
de uma enfermidade neurológica fatal: a doença
de Creutzfeldt-Jakob, causada por uma proteína
infecciosa chamada príon.
Collinge dirige, no UCL, o Departamento de
2
Doenças Neurodegenerativas e, no sistema de
saúde britânico, a Clínica Nacional do Príon, es- evidências surgiram quando a neuropatologista Imagem mostra
pecializada no diagnóstico e no acompanhamento Zane Jaunmuktane, do UCL, identificou a depo- vesículas (vermelho)
com beta-amiloide
de pessoas com enfermidades causadas por esse sição de aglomerados de beta-amiloide no cére- injetadas no
agente infeccioso. Príons são versões defeituo- bro e nos vasos sanguíneos do sistema nervoso hipocampo (faixa azul
sas de uma proteína abundante na superfície dos central de quatro pessoas que desenvolveram a em forma de V)
neurônios e importante para o funcionamento doença de Creutzfeldt-Jakob depois de tratadas de camundongos

dessas células, responsáveis pelo processamen- com o hormônio contaminado com príon. Publi-
to da informação no cérebro. Eles podem sur- cados em 2015 na revista Nature, os resultados
gir espontaneamente ou serem adquiridos por não permitiam, no entanto, saber se as placas de
consumo de carne bovina infectada ou uso de beta-amiloide estavam lá antes dos príons ou se
instrumentos neurocirúrgicos e de implantes de haviam sido “semeadas” com eles.

A
tecidos contendo príons (ver Pesquisa FAPESP
nº 148). No sistema nervoso central, induzem a suspeita da transmissão ganhou
deformação das proteínas saudáveis, que se tor- força em 2018. A química Silvia
nam tóxicas e matam os neurônios, deixando o Purro, da equipe do UCL, analisou
cérebro poroso como uma esponja. frascos de lotes de hormônio apli-
“Nossos achados sugerem que o Alzheimer e cados em quem teve Creutzfeldt-
algumas outras enfermidades neurológicas com- -Jakob e constatou que, além de
partilham mecanismos de evolução semelhantes príon, eles continham beta-amiloide e tau-hiper-
aos da doença de Creutzfeldt-Jakob”, afirmou fosforilada. Purro injetou as amostras contamina-
Collinge, em um comunicado à imprensa. das no cérebro de camundongos e demonstrou,
Forma mais comum de demência no mundo, em outro artigo publicado na Nature, que elas
responsável por até 70% dos casos, o Alzheimer “semeavam” os peptídeos e causavam as lesões do
inicia com o acúmulo de fragmentos de uma pro- Alzheimer. Faltavam, agora, evidências de que o
teína da superfície dos neurônios, a proteína pre- mesmo poderia ter ocorrido com as pessoas que
cursora do amiloide. À medida que envelhece, o receberam o hormônio na infância.
corpo passa a processar essa proteína de modo A confirmação veio com o trabalho na Natu-
IMAGENS 1 JUAN GAERTNER / SCIENCE PHOTO LIBRARY / FOTOARENA 2 VICTOR BODART SANTOS / UFRJ

anormal e a quebrá-la em fragmentos chama- re Medicine. Parte dos pacientes com Alzhei-
dos peptídeos beta-amiloide, que tendem a se mer havia recebido hormônio de lotes contendo
agregar. Por aumento na produção ou deficiên- beta-amiloide e tau, inclusive de lotes que “se-
cia na eliminação desses peptídeos, eles passam mearam” a doença em roedores. “Descobrimos
a se acumular e formam placas no exterior dos que é possível que a patologia beta-amiloide seja
neurônios que disparam eventos nocivos e, com transmitida e contribua para o desenvolvimento
o tempo, fazem as proteínas tau em estado hi- da doença de Alzheimer”, contou a neurologista
perfosforilado se agruparem em emaranhados Gargi Banerjee, primeira autora do estudo, no
tóxicos. Estes, por sua vez, matam essas células e comunicado à imprensa.
ocasionam os sintomas clínicos da enfermidade. “Esse, no entanto, é um mecanismo raro. A
Nos últimos anos viu-se que os peptídeos beta- transmissão ocorreu por uma via muito espe-
-amiloide e as proteínas tau hiperfosforiladas cífica. Não é um agente contagioso, que possa
podem se propagar entre os neurônios por um passar de uma pessoa a outra, por exemplo, por
processo similar ao dos príons. contato ou troca de fluidos”, observa o neurolo-
Havia pelo menos uma década Collinge e seus gista Adalberto Studart Neto, membro do Grupo
colaboradores suspeitavam que, assim como os de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da
príons, os peptídeos beta-amiloide pudessem Faculdade de Medicina da Universidade de São
ser transmitidos de uma pessoa para outra, ini- Paulo (FM-USP), que não participou da pesqui-
ciando a “semeadura” da doença. As primeiras sa. Das 1.848 pessoas tratadas com hormônio do

PESQUISA FAPESP 337 | 49


crescimento de cadáver entre 1959 e 1985 no Rei- ções, elas poderiam atuar como um mensageiro en-
no Unido, só cinco (0,3%) teriam sido contami- tre as células, além de contribuir na disseminação
nadas com o peptídeo e desenvolvido Alzheimer. das lesões do Alzheimer. Em um artigo publicado

E
em 2012 no Journal of Biological Chemistry, o gru-
m um comentário publicado na mesma po da neurocientista Efrat Levy, da Universidade
edição da Nature Medicine, o neuro- de Nova York, nos Estados Unidos, isolou vesícu-
cientista suíço Mathias Jucker, da Uni- las produzidas no cérebro de roedores usados no
versidade de Tübingen, na Alemanha, estudo do Alzheimer e demonstrou que elas po-
e o norte-americano Lary Walker, da diam carregar cópias do peptídeo beta-amiloide.
Universidade Emory, nos Estados Uni- Mais tarde, o neurocientista Tsuneya Ikezu e
dos, foram cautelosos. “Por um lado, é prudente sua equipe na Universidade de Boston verificaram
considerar essas conclusões com certa dose de que as vesículas obtidas do cérebro de pessoas
ceticismo. Os casos apresentados são diversos e com Alzheimer continham bem mais beta-ami-
complicados; os indivíduos foram submetidos a loide e tau hiperfosforilada do que as de indiví-
uma variedade de intervenções médicas para vá- duos saudáveis, segundo artigo na Alzheimer’s &
rios distúrbios no início da vida e é difícil excluir Dementia. Em outro trabalho, publicado em 2021
uma contribuição dessas circunstâncias para os na Brain, o grupo de Boston constatou que as ve-
fenótipos complexos da doença que apareceram sículas contendo tau podiam disseminar as lesões
muitos anos depois”, escreveram. “Por outro la- do Alzheimer no cérebro de roedores.
do”, afirmaram, “há boas razões para levar a sério “Nessas situações, elas funcionam como um
as conclusões. Só os indivíduos que receberam cavalo de troia”, comenta o neurocientista brasi-
hormônio de crescimento cadavérico preparado leiro Victor Bodart Santos, que faz um estágio de
de uma maneira específica desenvolveram as ca- pós-doutorado no laboratório de Ikezu na Clínica
racterísticas da doença de Alzheimer.” Mayo, nos Estados Unidos.
Quase ao mesmo tempo que surgiam os indí- Em um estudo publicado em 2023 na revista
cios de transmissibilidade desses componentes, Alzheimer’s & Dementia, parte de seu doutorado
acumulavam-se evidências, algumas obtidas por realizado sob a orientação de De Felice, Bodart
brasileiros, da importância de um mecanismo Santos comprovou que, além de disseminar as le-
para o espalhamento dessas enfermidades no sões, as vesículas carregadas com beta-amiloide e
cérebro: a produção de vesículas extracelulares, tau induzem os sinais clínicos da doença
pequenas bolsas (do tamanho de um vírus) con- Ele injetou as vesículas com esses componentes
tendo proteínas, material genético e até organelas. no cérebro de roedores e os submeteu a uma série
“Por muito tempo elas foram consideradas o de testes. Nas provas que avaliaram a motivação
caminhão de lixo das células, que servia para eli- para explorar o ambiente, a capacidade de loca-
minar o que não funcionava mais”, conta a bioquí- lizar um abrigo e a de reconhecer objetos, esses
mica e neurocientista Fernanda De Felice, da Uni- animais se saíram bem pior do que os que rece-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que beram vesículas sem beta-amiloide e tau. Os pre-
investiga o papel dessas estruturas no Alzheimer. juízos foram mais intensos e surgiram mais cedo
A percepção de que esses pequenos pacotes quando os roedores eram geneticamente alterados
poderiam desempenhar outros papéis começou a para apresentar a versão humana da proteína tau.
mudar quando se observou que, em certas situa- “Embora as vesículas não sejam vistas como o
mecanismo principal de dispersão da doença no
cérebro, esse trabalho confirma que, sozinhas,
elas podem ser suficientes para causar o Alzhei-
mer”, comenta o neurologista Wyllians Borelli,
coordenador de pesquisa do Centro da Memória
do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre,
no Rio Grande do Sul.
“As vesículas parecem ser uma forma eficien-
te de disseminar os componentes da doença no
cérebro porque elas os protegem da deterioração
que poderiam sofrer no meio extracelular”, con-
IMAGEM VICTOR BODART SANTOS / UFRJ

ta Bodart Santos. “Elas foram capazes não só de


propagar as lesões como de fazer os animais mani-
Com o tamanho festarem os comportamentos típicos da doença”,
de um vírus, lembra De Felice. n
vesículas carregam
proteínas e ajudam
a dispersar as Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
lesões do Alzheimer na versão on-line.

50 | MARÇO DE 2024
ETNOBOTÂNICA

Dona Cida exibe


artesanato durante
gravação de
minidocumentário

QUILOMBO E
Q
uando começa a sentir a gar-
ganta arranhando, “querendo
inflamar”, o gestor ambiental

UNIVERSIDADE
Luciano Assunção entra no ma-
to atrás de folhas de pitanga. Em
casa, prepara uma receita que
sabe de cor: mergulha as folhas na água quente
Projeto de pesquisa participativa e faz um chá, que deve ser engrossado na panela
com açúcar, até virar um xarope. Para melhorar a
em comunidades registra conhecimento dor de garganta, tem que ser ingerido uma vez por
dia, de preferência à noite. “É só tomar que logo
de moradores sobre o uso de plantas passa”, diz Assunção, que aprendeu a fórmula
com os pais quando era criança. Ele mesmo é
Letícia Naísa pai de duas crianças pequenas e lhes administra
a beberagem quando é preciso.
A receita não é um tratamento milagroso nem
foi tirada de fontes duvidosas da internet, mas
FOTO AMANDA NAKADAIRA / UNIFESP

faz parte da tradição centenária de uso de plan-


tas medicinais pela comunidade do Quilombo da
Fazenda, que fica em Ubatuba (SP). Tanto essa
receita quanto outros 436 tipos de uso de 221
plantas foram registrados no livreto O uso das
plantas pelo Quilombo da Fazenda, feito pela pró-
pria comunidade com a ajuda de pesquisadores

PESQUISA FAPESP 337 | 51


do Centro de Estudos Etnobotânicos e Etnofar- foi implantado em cima da nossa comunidade, a
macológicos (CEE) da Universidade Federal de área de roça ficou mais restrita e precisamos de
São Paulo (Unifesp). um registro de como fazemos o manejo, mostran-
Desde 2015, uma equipe do CEE auxilia os mo- do que não é prejudicial ao ambiente”, explica
radores do Quilombo da Fazenda e do Quilombo o gestor ambiental. De acordo com o parque, as
do Cambury – ambos no litoral paulista – a regis- comunidades tradicionais localizadas na região
trar seus conhecimentos sobre o uso da vegetação podem usar os recursos naturais de forma sus-
local. Os saberes tradicionais dos residentes vão tentável desde que haja um plano de manejo para
desde fins medicinais até o uso de plantas em pe- cada espécie utilizada por elas.
ças artesanais e receitas culinárias. “É um conhe- A taboa é uma das principais matérias-primas
cimento passado de geração a geração, mas que para os artesãos do Quilombo da Fazenda. Trata-
está se perdendo”, comenta a cientista ambien- -se de uma planta aquática nativa do Brasil que,
tal Thamara Sauini, estudante de doutorado em nas mãos de pessoas habilidosas, se transforma
biologia química na Unifesp e integrante do CEE. em esteiras, bolsas, chapéus, tapetes, fruteiras,
Em oito anos de trabalho, o grupo produziu, com descanso de panela e até em porta-retratos. Para
a ajuda dos moradores de cada quilombo, cinco isso, colhem as folhas no taboal – preferencial-
documentários, dois livretos, um manual para mente na semana de Lua minguante, quando
manejo da taboa (Typha domingensis) – planta não há muitas pragas nas plantas – no período
usada para artesanato – e seis trabalhos acadê- da manhã e antes da floração. É preciso esperar
micos (artigos e dissertações). O artigo mais re- pelo menos três meses para uma nova colheita.
cente, publicado em novembro na revista PeerJ, As melhores folhas para o artesanato são as maio-
compara o uso de plantas nos dois quilombos com res, não amareladas e sem flores. Com a matéria-
base na etnobotânica participativa. Há também -prima em mãos, os artesãos secam o conjunto
vídeos com instruções para a produção de cos- de folhas ao Sol, o que pode levar até três dias.
méticos, disponíveis no YouTube. Depois, destalam a taboa, ou seja, separam as

A
folhas para mais um período de secagem, que
metodologia usada pelos pesqui- pode ser de quatro até oito dias, dependendo das
sadores para essa produção foi condições climáticas.
denominada etnobotânica partici- Quando secas, as palhas de taboa podem ser
pativa. “Quando me perguntam o guardadas por longos períodos, segundo o ma-
que eu, como cientista, pretendo nual Recomendações de boas práticas de manejo
devolver para a comunidade com para o extrativismo sustentável da taboa, produ-
esse trabalho, digo que não posso devolver algo zido pelo grupo do CEE com os moradores do
que já é daquela comunidade”, reflete a bióloga Quilombo da Fazenda. Os artesãos coletam as
Eliana Rodrigues, coordenadora do CEE e ideali- folhas de acordo com a demanda local de ven-
zadora da proposta de etnobotânica participativa. das dos artesanatos. Para fazer as peças de arte-
“Eles são protagonistas, atores e pesquisadores
do projeto”, conta Rodrigues. Na primeira fase
do trabalho, entre 2016 e 2018, os moradores
dos dois quilombos receberam oficinas sobre
métodos de antropologia cultural, botânica e
como fazer o levantamento etnobotânico em seus
territórios. De 2019 em diante, os pesquisadores
da universidade e da comunidade colocaram os
aprendizados em prática.
“A comunidade não tem recursos para fazer
um livro ou um filme”, afirma Assunção, que só
toma remédios alopáticos em casos de urgência.
“Prefiro sempre o remédio do mato”, diz. Por
muito tempo, a natureza era a única fonte de re-
médio que a comunidade conhecia. Foi no final
dos anos 1970, com a construção da rodovia Rio-
-Santos, que os moradores quilombolas passaram
a ter acesso a serviços de saúde e farmácias nas
cidades mais próximas.
No Quilombo da Fazenda, além do registro
Taboa (Typha
de saberes para futuras gerações, havia uma de-
domingensis) é
manda por um plano de manejo participativo da uma planta aquática
taboa. “Como o Parque Estadual da Serra do Mar nativa do Brasil

52 | MARÇO DE 2024
Artesã faz colheita
da taboa no
Quilombo da Fazenda,
no litoral paulista

sanato que são expostas e vendidas na Casa de “Esse diálogo é muito recente: por mais que
Artesanato do quilombo, as folhas são trançadas a antropologia e as ciências sociais nessa área
e amarradas à mão. existam há décadas, há resistência da academia
O plano de manejo foi uma demanda da comu- como um todo em aceitar que não existe uma
nidade para os pesquisadores e o manual sobre única ciência e que há muito o que aprender com
a extração foi produzido a partir do conheci- outros povos que já existiam muito antes da che-
mento local, e não pelo caminho inverso muitas gada da medicina e de outros conhecimentos”,
vezes praticado pela ciência. “É muito diferente avalia Benites, que nasceu e cresceu no muni-
de quando fazemos uma pesquisa e chegamos a cípio de Tacuru, na aldeia indígena Jaguapiré
determinado resultado para ser aplicado a uma (MS). “Nossos conhecimentos são de vivência
comunidade. A técnica participativa tem origem e de prática, não só de fala, mas de fazer. É uma
em um conhecimento que aquelas pessoas domi- ciência que a gente vive.” Para ele, a pesquisa
nam e aplicam no cotidiano”, explica a engenheira colaborativa é importante para que esses dois
florestal Sandra Pavan, doutora em ecologia pela lados comecem a se ouvir.
Universidade de São Paulo (USP) e consultora Em sua aldeia, Benites viu muitos pesquisa-
ambiental, integrante do projeto. “Por isso é im- dores irem e virem. Hoje, ele mesmo registra o
portante a participação dos moradores desde o conhecimento local e, às vezes, faz estudos de
começo do projeto”, avalia. campo em outras aldeias. “O papel da pesquisa

N
escrita é de deixar marcas da nossa resistência
o caso da taboa, só quem pratica a e da nossa existência, tanto para quem é de fo-
extração sabe a melhor forma de ra quanto internamente, para fortalecer nosso
fazê-la. “O taboal é alagado, tem espaço e nossa cultura”, explica o pesquisador,
lugar que afunda acima do joelho. que tem se concentrado em aprender a ciência
Mas sabemos exatamente onde ocidental, como ele classifica, para usá-la a fa-
atola”, diz Assunção, que também vor de sua comunidade.
é artesão e conhece muito bem a região – há mais Para Assunção, o registro na academia do co-
de 20 anos atua como monitor ambiental no par- nhecimento quilombola é importante para as
que estadual. “O conhecimento científico muitas comunidades locais e vai abrir muitas portas.
vezes ignora o conhecimento tradicional, embora “Temos outras áreas dentro do parque em que
eles se complementem. Essa união tem tudo para pessoas que fazem o manejo de taboa podem
dar certo”, opina o morador do quilombo. usar o nosso material de base para registrar tam-
FOTOS AMANDA NAKADAIRA / UNIFESP

A ponte entre a ciência formal, feita em univer- bém seus usos”, diz o gestor ambiental. Segundo
sidades e centros de pesquisa, e o conhecimento Rodrigues, do CEE, o plano de manejo da taboa
tradicional de comunidades quilombolas e indí- pode servir de inspiração e fonte de informação
genas não é fácil de ser construída nem é tão co- para comunidades do Brasil inteiro. n
mum, aponta o pedagogo e antropólogo Antonio
Carlos Benites Guarani-Kaiowá, da Universidade Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 53


O gato-nebuloso,
ZOOLOGIA
dos Andes, é
uma espécie distinta
das brasileiras

OS
MISTERIOSOS
GATOS-DO-MATO
Estudos da ecologia,
aparência e genética redefinem
a configuração do complexo
de espécies Leopardus tigrinus
Maria Guimarães

D
e longe, os gatos-do-mato L. t. guttulus. Em 2013 o gato-do-mato- Um momento marcante para o biólo-
parecem todos iguais. Me- -do-sul tornou-se uma espécie distinta, go na pesquisa sobre gatos-do-mato se
nos para o biólogo Tadeu L. guttulus, em consequência do estudo deu em 2011, quando a ecóloga norte-
de Oliveira, da Universida- da geneticista Tatiane Trigo, que mos- -americana Rebecca Zug, que estudava
de Estadual do Maranhão trou não haver intercâmbio genético com o urso andino (Tremarctos ornatos) no
(Uema). Ele já viu milhares as outras espécies. À época, ela estava doutorado, enviou-lhe centenas de fotos

FOTO JOHANNES PFLEIDERER INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP


de imagens e vídeos registra- em estágio de pós-doutorado na Uni- de felinos que tinham acionado suas ar-
dos por armadilhas fotográ- versidade Federal do Rio Grande do Sul madilhas fotográficas. “Passei a madru-
ficas, acionadas quando um (UFRGS) sob a supervisão de Thales de gada olhando as imagens e vi que eles não
animal passa por um sensor. Já observou Freitas, da mesma instituição, e Eduardo eram da mesma espécie que conhecia”,
os animais na natureza e em zoológicos. Eizirik, da Pontifícia Universidade Ca- relembra. Zug, atualmente na Universi-
Com o biólogo costa-riquenho Lester Fox- tólica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). dade São Francisco de Quito, no Equador,
-Rosales, à época pesquisador na Uema, e As divisões taxonômicas são baseadas é coautora do artigo da Scientific Reports.
mais 40 coautores, ele acaba de redefinir nos dados disponíveis, em geral insu- O resultado do trabalho que se seguiu
as fronteiras conceituais e geográficas da ficientes e provisórios. Oliveira expli- é uma reorganização de L. tigrinus, suge-
espécie Leopardus tigrinus com base em ca que um diferencial de seu trabalho é rindo o estabelecimento de uma espécie
características morfológicas, ecológicas o que chama, brincando, de algoritmo separada. Os animais andinos, até ago-
e geográficas, em artigo publicado em cerebral, mais treinado que os de pro- ra identificados como L. t. pardinoides,
janeiro na revista Scientific Reports. gramas de reconhecimento de imagem. revelaram-se completamente distintos
Descrita em 1777 com base em um ani- Com base no tamanho do animal e suas dos outros – tendo inclusive duas tetas,
mal coletado na Guiana Francesa, a espé- orelhas, o formato da cauda, o padrão de enquanto os outros tigrinus têm quatro. A
cie ao longo dos séculos foi dividida em manchas (rosetas) e a aparência geral, ele proposta é que as populações que vivem
quatro subespécies: Leopardus tigrinus bate o olho e reconhece com confiança na cadeia montanhosa sul-americana pas-
tigrinus, L. t. pardinoides, L. t. oncilla e os diferentes tipos de gatos-do-mato. sem a se chamar L. pardinoides. O felino,

54 | MARÇO DE 2024
que vive nas matas nebulares andinas, do norte dos Andes é um fenômeno mais Brasil e Amapá. Oliveira discorda des-
tem o nome popular de gato-nebuloso. recente, entre 61 mil e 453 mil anos atrás. sa separação, que vê como resultado de
Às conclusões do estudo dos animais Falta confirmar geneticamente onde dados insuficientes. Nascimento vê as
vivos somam-se os resultados genômicos se encaixa a população do Escudo das propostas de delimitação de espécies
do trabalho do geneticista belga Jonas Guianas (formação geológica no norte como hipóteses e mantém o suspense,
Lescroart, estudante de doutorado con- da Amazônia, incluindo o Amapá), uma aguardando que estudos de DNA eluci-
junto entre a PUC-RS e a Universidade região com pouca amostragem para o gru- dem a evolução desses gatos. “Com mais
de Antuérpia, com orientação, respecti- po. Essa falha, que o biólogo Fabio Nasci- evidências e uso de metodologias dife-
vamente, de Eizirik e do evolucionista mento, pesquisador do Museu de Zoologia rentes, será possível saber quais hipóte-
Hannes Svardal. Em artigo de dezembro (MZ) da USP, chama de lacuna amostral, ses serão corroboradas ou não”, pondera.
na revista Molecular Biology and Evo- também representou um problema em seu Oliveira defende passar da ciência à
lution, ele mostrou que L. pardinoides é trabalho, alguns anos atrás. Em 2017, ele prática. “L. tigrinus e L. guttulus são os
parente próximo de oncilla, da América publicou uma revisão taxonômica na re- únicos felinos brasileiros ameaçados de
Central. “Os dados genômicos, morfoló- vista Papéis Avulsos de Zoologia em parce- extinção a nível global, protegê-los tor-
gicos e ecológicos apoiam a mesma his- ria com o biólogo Anderson Feijó, à época nou-se uma missão de vida.” Ele inte-
tória”, diz Lescroart. “Do ponto de vista estudante de doutorado na Universidade gra a Tiger Cat Conservation Initiative
genético, não há dúvida de que o gato- Federal da Paraíba. “Usamos material dis- (TCCI), organização não governamental
-nebuloso seja uma espécie diferente.” ponível em coleções de museus, que con- que propõe ações de conservação como
“Os dados biogeográficos podem lan- siste majoritariamente de peles, crânios campanhas de vacinação para combater
çar luz sobre a história desses gatos, por- e esqueleto, com o objetivo de estudar a doenças de cachorros domésticos que
que sua distribuição atual é uma relei- variação morfológica e a taxonomia do infectam gatos-do-mato. Ele também
tura plausível da rota pela qual as várias complexo L. tigrinus”, conta Nascimento. planeja refazer o mapa de distribuição
espécies se espalharam pela América do do complexo tigrinus para a lista ver-
Sul a partir de um único ancestral co- LIMITES E HORIZONTES melha da União Internacional para a
mum que atravessou a partir da Améri- “No trabalho de taxonomia, usamos o Conservação da Natureza (IUCN). “Fiz
ca Central”, completa o belga. Por seus que está disponível”, explica o biólo- o mapa atual, e está todo errado: a área
resultados, os gatos-do-mato-do-sul e go do MZ-USP. As análises que fizeram é 80% menor.” As novas divisões devem
do-norte divergiram de um ancestral os levaram a reconhecer guttulus como ter impacto direto sobre as áreas de pre-
comum por volta de 1,46 milhão de anos espécie distinta. L. tigrinus estaria nas servação, que precisam contemplar cada
atrás, enquanto o nebuloso se destacou Guianas, no noroeste e oeste da América uma dessas linhagens felinas. n
desse ramo, há cerca de 2,39 milhões de do Sul, assim como na América Central
anos. A separação entre as populações (Costa Rica). Também revalidaram L. Os artigos científicos consultados para esta reportagem
de L. pardinoides da América Central e emiliae para a população do Nordeste do estão listados na versão on-line.

ONDE ESTÃO
AS ESPÉCIES
As cores mais escuras
representam a
distribuição atual; as n Gato-do-mato-do-norte

mais claras, a histórica (L. tigrinus)


• área 56% menor
• Cerrado e Caatinga
n Gato-nebuloso
• altitude < 1.300 m
(L. pardinoides)
• área 50% menor
n Gato-do-mato-do-sul
• temperatura média
(L. guttulus)
anual < 17 °C
• área 68% menor
• altitude 2.000-3.000 m
• temperatura do mês
mais quente < 24 °C
• altitude < 1.800 m

500 km
FONTE OLIVEIRA, T. G. DE ET AL. SCIENTIFIC REPORTS. 2024 ILUSTRAÇÕES RICARDO RIBEIRO

PESQUISA FAPESP 337 | 55


PALEONTOLOGIA

UM ANFÍBIO ANTERIOR
AOS DINOSSAUROS
Fóssil encontrado no Rio Grande do Sul
sobreviveu à maior extinção do planeta e revela
relação com a fauna da atual Rússia

Gilberto Stam

P
aleontólogos encontraram ram confundidos com répteis. “Entre as logo salvadorenho Juan Carlos Cisneros,
o fóssil de um anfíbio que características anatômicas que sugerem da Universidade Federal do Piauí (UFPI),
viveu há cerca de 250 mi- parentesco com os atuais anfíbios, alguns que não participou do estudo. Entre eles
lhões de anos, antes que temnospôndilos apresentam evidência estavam os cinodontes, ancestrais dos
existissem dinossauros. de estágio larval, como os girinos”, es- mamíferos, e os arcossauros, répteis que
Batizado de Kwatisuchus ro- clarece Pinheiro. deram origem aos dinossauros, aos cro-
sai, o animal, com cerca de O grupo sobreviveu à maior extinção codilos e às aves. “Todos tinham menos
1,5 metro de comprimento, do planeta, no final do período Permia- de 1 metro.”
era aparentado a espécies já no (299 milhões a 252 milhões de anos Ele descreve que K. rosai também caça-
descritas na Rússia. O achado confirma atrás), quando em torno de 90% das es- va em terra e contou com a vantagem de
a suspeita de que os animais da época pécies marinhas e 70% das terrestres de- uma dieta variada e a provável capacidade
circulavam pela Pangeia, massa de terra sapareceram. Em um mundo devastado de construir buracos revestidos de muco,
que unia os continentes atuais. onde os animais grandes foram elimi- onde se protegia da estação seca. Segundo
“Era um predador que vivia a maior nados, esse anfíbio era um dos maiores. ele, quase todos os animais desse período
parte do tempo em rios e lagos”, infere “Esses tipos de animais pequenos, re- cavavam túneis, para se proteger, e tocas
o paleontólogo Felipe Pinheiro, da Uni- sistentes e pouco diversificados, recolo- com esqueletos de outros anfíbios pareci-
versidade Federal do Pampa (Unipam- nizaram o planeta”, observa o paleontó- dos foram encontradas na África do Sul.
pa), no Rio Grande do Sul. O campus de
São Gabriel, onde atua, fica a uma hora
do local das escavações: uma fazenda no
município de Rosário do Sul, oeste do
estado. O animal, descrito em janeiro na
revista científica The Anatomical Record,
foi identificado a partir de ossos fossili-
zados do focinho, encontrados em 2022.
K. rosai fazia parte de um grupo de
anfíbios chamado temnospôndilos, pre- Ossos do focinho
fossilizados permitiram
dadores de água rasa de focinho com- descrever a espécie,
prido como o dos crocodilos, adaptado com representação
para a captura de peixes – por isso fo-
20 mm
artística acima

56 | MARÇO DE 2024
Benthosuchus gusevae

CAMINHOS Benthosuchus sushkini


Syrtosuchus samarensis

POR PANGEA Rússia


Syrtosuchus morkovini

Ura
Ancestrais de K. rosai

lides
podem ter atravessado China
2
o antigo continente Ponte
por diferentes rotas Europa
Cathaysian

entrais
O trajeto pelo centro do sC a
ha ange
América P Oceano

da an
continente seria mais curto, do Norte

t
M on
Paleo-Tétis
mas exigiria ultrapassar
montanhas consideradas
intransponíveis. Talvez Arábia
Saudita
não fossem. O mais longo América
do Sul
se daria pelo arquipélago África
Cathaysian, que
Índia
desapareceu, e seria mais 1
improvável devido ao Kwatisuchus rosai
Austrália

Go
desafio adicional de passar
nd
Antártida
wa
por trechos de mar (um
ni
de
problema para anfíbios) s

FONTE FELIPE PINHEIRO (UNIPAMPA)

Os temnospôndilos se tornaram do- “A conexão com a fauna da atual Rússia por plantas, como fizeram os macacos que
minantes no Triássico (252 milhões a aparece em sítios no Paraná, Rio Grande vieram para a América”, propõe Cisneros.
201 milhões de anos atrás), mas foram do Sul e Maranhão.” Segundo o pesquisador, é possível que
substituídos pelos crocodilos, que ocu- esses animais tivessem maior resistência
param o mesmo ambiente, mas eram A GRANDE MIGRAÇÃO à água salgada do que os anfíbios atuais.
maiores e punham ovos com casca. Por Segundo Pinheiro, animais como K. rosai Falta explicar, no entanto, por que K.
isso eram resistentes à estiagem, enquan- provavelmente migravam de um rio para rosai e outros animais coletados na San-
to os anfíbios dependiam da água para outro, como fizeram espécies de jacaré ga do Cabral não têm parentes na África
ILUSTRAÇÃO MÁRCIO CASTRO FOTO ALICE DIAS INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

se reproduzir. que colonizaram o Brasil. O pesquisador do Sul, localizada em uma região à época
O nome Kwatisuchus vem do tupi enfatiza que as falhas do registro fóssil colada àquela onde agora é o Brasil. “Não
kwati, que significa focinho comprido, tornam difícil dizer qual caminho os an- há indícios de barreira entre uma região
e do grego suchus, para crocodilo. O fíbios percorreram entre os territórios e outra”, afirma Pinheiro.
complemento rosai homenageia o pa- dos atuais Brasil e Rússia. Assim como a crise climática atual, a
leontólogo Átila Stock Da-Rosa, da Uni- Ele e sua equipe propõem duas rotas extinção do Permiano-Triássico foi cau-
versidade Federal de Santa Maria, que possíveis. Pela primeira e mais curta, sada pela emissão de gases de efeito estu-
ajudou a localizar, preservar e estudar os bichos teriam atravessado a região fa na atmosfera, resultado de uma intensa
a formação onde fica o sítio paleontoló- central da Pangeia. Essa trajetória con- atividade vulcânica na região onde hoje é
gico, conhecido como Sanga do Cabral. tradiz a ideia dominante de que grandes a Sibéria. “Um ecossistema diverso, com
O local é o único no Brasil que registra cadeias de montanhas isolavam o hemis- predadores e herbívoros de grande porte,
o período logo depois da extinção do fério Norte da Pangeia, conhecido como desapareceu”, ressalta Pinheiro. Segundo
Permiano-Triássico. Laurásia, do hemisfério Sul, chamado o paleontólogo, a recuperação foi lenta, já
“A equipe da Unipampa está reve- Gondwana. “Talvez essas montanhas não que qualquer variação climática em um
lando uma fauna importante e pouco fossem intransponíveis como pensáva- ambiente degradado podia causar novas
conhecida no Brasil”, reconhece o pa- mos, mas tivessem depressões por onde extinções. Vinte milhões de anos depois,
leontólogo Max Langer, do campus de os animais conseguiam passar”, sugere surgiram os primeiros dinossauros, que
Ribeirão Preto da Universidade de São o pesquisador da Unipampa. passaram a dominar ecossistemas cada
Paulo, que não participou do estudo. Ele A outra passaria por um arquipélago, a vez mais complexos. n
ressalta que muitos fósseis desse perío- ponte Cathaysian. Esse caminho exigiria
do foram encontrados em países como atravessar trechos de mar. “Eles podem O artigo científico consultado para esta reportagem está
China, Austrália, Rússia e África do Sul. ter feito isso em balsas naturais compostas listado na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 57


COMPUTAÇÃO

TRÂNSITO LIVRE
NAS ESTRADAS
Sistemas baseados em IA podem ser
treinados para monitorar quase em tempo
real a travessia de animais em rodovias

Giselle Soares

S
1

istemas baseados em inteligência tres que os algoritmos aprenderam a reconhecer: Cerca de 5 milhões de
artificial que detectam objetos em anta, jaguarundi (felino), lobo-guará, onça-par- animais de grande porte
são mortos anualmente
movimento podem ser adaptados e da e tamanduá-bandeira. Mas algumas versões nas rodovias brasileiras,
treinados para monitorar a travessia dos sistemas, como a Scaled-YoloV4, obtiveram segundo estimativas
de animais em estradas brasileiras. desempenho superior a 85% na maior parte das do Centro Brasileiro
Além de classificar automaticamente situações. “Estudos comparativos são importan- de Ecologia de Estradas

as espécies atropeladas com maior tes para determinar qual é o tempo de resposta
frequência, modelos desse tipo, se necessário para que esses sistemas funcionem
devidamente refinados e instalados de forma eficiente nas estradas, um cenário que
em dispositivos eletrônicos, poderiam emitir envolve veículos em alta velocidade, e avaliar sua
alertas quase instantâneos sobre a presença de viabilidade de implantação”, comenta o cientista
bichos em trechos vigiados das rodovias. da computação Rodolfo Meneguette, chefe do
Esses são os principais resultados de um traba- grupo de pesquisa.
FOTOS 1 PAULO BAQUETA / GETTY IMAGES 2, 3 E 4 BRA-DATASET

lho coordenado por pesquisadores do Instituto de Os testes foram feitos em computadores di-
Ciências Matemáticas e de Computação de São minutos, do modelo Raspberry Pi 4, que pesam
Carlos da Universidade de São Paulo (ICMC- cerca de 50 gramas e apresentam especificações
-USP), que analisou o desempenho de 14 versões modestas. Por ter tamanho reduzido e custar
de sistemas baseados na arquitetura Yolo (You only pouco, esse tipo de dispositivo poderia, teori-
look once), utilizada para identificar e delimitar camente, ser usado em sistemas instalados nas
a localização de objetos específicos (animais, no rodovias que tenham conexão Wi-Fi de internet.
caso) em uma imagem ou vídeo. O estudo foi pu- O microcomputador faria localmente a análise e
blicado em janeiro na revista Scientific Reports. a classificação das imagens captadas e transmi-
Nenhuma variante dos modelos desempenhou tiria pela internet apenas seu veredito (se há ou
com perfeição essas tarefas quando confrontada não um animal na pista) a um sistema mantido
com registros de cinco classes de animais silves- em nuvem. Essa estrutura externa é que teria a

58 | MARÇO DE 2024
missão de disparar, quase em tempo real, algum usados para classificar, com determinado grau de
tipo de aviso a motoristas circulando pela estrada. certeza, que tipo de objeto aparece na imagem e
Segundo estimativas do Centro Brasileiro de qual sua localização no registro.
Ecologia de Estradas (CBEE), ligado à Universi- No trabalho com os animais que atravessam
dade Federal de Lavras (Ufla), de Minas Gerais, estradas, os sistemas Yolo forneceram resultados
cerca de 5 milhões de animais de grande porte, como os que aparecem nas fotos menores desta
como capivaras, onças, macacos e lobos-guará, reportagem. Ele traçou linhas retas em torno da

P
são mortos anualmente nas estradas brasileiras. espécie reconhecida, formando um quadrado ou
um retângulo, e a classificou como sendo de uma
ara treinar os sistemas da arquitetura das cinco classes que aprendeu a reconhecer.
Yolo a reconhecer especificamente No final do processamento, aparece na imagem
esses cinco animais, os pesquisadores o nome do bicho que o modelo reconheceu, se-
criaram um banco de dados, denomi- guido de um número entre 0 e 1. Por exemplo,
nado BRA-Dataset, com 1.458 imagens a expressão “anta 0,90” significa que o sistema
das espécies. O banco é formado por tem 90% de certeza que o objeto delimitado na
registros dos bichos encontrados em imagem pertence a essa classe.
fontes gratuitas na internet com o em- “Testamos diferentes modelos da arquitetura
prego do buscador Google Imagens. Yolo para tentar entender qual deles poderia ser
Para testar com qual velocidade os modelos Yolo ideal para contextos específicos”, comenta o cien-
conseguiam reconhecer os animais, foram utili- tista da computação Luís Nakamura, do campus
zados vídeos das espécies feitos pelos autores do de Catanduva do Instituto Federal de São Paulo
estudo no Parque Ecológico de São Carlos, além (IFSP), coautor do artigo. Mesmo depois de te-
de filmagens gratuitas disponíveis na internet. rem sido treinados, os sistemas são imprecisos
A arquitetura Yolo mistura processamento para distinguir os animais em cenários desafia-
de imagens e inteligência artificial para formar dores, como quando estão encobertos por outros
redes neurais convolucionais, muito usadas na objetos, aparecem camuflados na paisagem ou se
área de visão computacional. “Essa abordagem encontram muito distantes.
permite que a máquina, ao receber novas imagens “Para entender os padrões dos pixels de uma
ou vídeos, compare as características aprendidas imagem, os modelos de redes neurais convolu-
com as classes predefinidas”, explica o cientista cionais escaneiam, em sequência, partes desse
da computação Gabriel Ferrante, primeiro autor registro”, explica Ferrante. “Se o ambiente inter-
do artigo, que, sob orientação de Meneguette, de- fere no reconhecimento de características visuais
fendeu dissertação de mestrado em 2023 sobre importantes, como bordas, texturas e cores, os
o tema no ICMC-USP. modelos apresentam dificuldade para classificar
Esse tipo de rede divide uma imagem parada e definir a área de um possível objeto.”
ou em movimento (vídeo) em partes menores, em Sistemas que trabalham com imagens no com-
conjuntos de pixels (pontos) que serão transfor- primento da luz visível não se prestam para vigi-
mados em dados numéricos. Por meio de cálcu- lância noturna ou em condições de baixa visibi-
los matemáticos e probabilísticos, tais dados são lidade. Nesses casos, talvez a adoção de câmeras
que operam no infravermelho e são capazes de
2 “ver” no escuro possa ser uma alternativa. Essa
abordagem, no entanto, não foi testada no trabalho.
Para o cientista de dados Alexandre de Siquei-
ra, que não participou do trabalho, um próximo
Três exemplos de passo desse tipo de pesquisa seria ampliar o nú-
resultados fornecidos mero de espécies animais cobertas pelo banco
pelos sistemas de
análise que delimitam
de dados usado para treinar os sistemas. “Se essa
e classificam animais tecnologia for instalada em câmeras estáticas, se-
silvestres em imagens ria possível observar, por exemplo, se há espécies
3 migrando entre as diferentes regiões do país”, diz
4
Siqueira, que atuou no Berkeley Institute for Da-
ta Science (Bids), da Universidade da Califórnia,
entre 2019 e 2022. “Também seria importante
testar redes com arquiteturas diferentes da Yolo
para avaliar qual a mais rápida ou a mais barata,
dependendo do propósito da aplicação.” n

O projeto e o artigo científico consultados para esta reportagem


estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 59


ASTROFÍSICA

Nesta montagem de
imagens do Sol com
cores falsas, as regiões
que aparecem em
branco, amarelo e
laranja são, nessa ordem,
as que mais emitiram
raios gama no pico
do último ciclo solar

ENERGIA
CONCENTRADA
P
Em seu último período de atividade máxima, or sua proximidade e importância
para a manutenção da vida na Ter-
o Sol emitiu um excesso inesperado de ra, o Sol é a estrela mais pesquisada
pelos astrofísicos. Esse status de
raios gama de alta energia em seus polos objeto de estudo preferencial não
significa que há pouco a se desco-
Marcos Pivetta brir sobre o astro. Ao contrário. Alguns tipos de
pesquisa, como as de longo prazo, só podem ser
realizados porque nosso planeta está, sempre, nas
vizinhanças do Sol. Assim, é possível observá-lo
de forma contínua e perceber detalhes que não
podem ser conferidos em estrelas mais distantes.
Foi justamente essa particularidade que per-
mitiu um achado recente. Artigo publicado pelo
brasileiro Bruno Arsioli e a italiana Elena Orlando
em fevereiro deste ano no Astrophysical Journal
relata que o Sol emitiu um excesso inesperado de ção, que abrangeram um ciclo solar inteiro, em
raios gama de alta energia em seus polos. A maior intervalos menores, de 400 a 700 dias. Em se-
concentração de radiação ocorreu durante seu guida, com o emprego de ferramentas de análise
último período mais ativo, o chamado máximo de dados por eles desenvolvidas, compararam as
solar, em junho de 2014. Como a Terra, o Sol gira emissões de raios gama com energia acima de 5
em torno de um eixo, cujas extremidades definem gigaelétron-volt (GeV) de cada subperíodo em
os polos. A rotação gera o campo magnético, de todas as regiões do disco solar. Dessa forma, no-
forma que os polos magnéticos coincidem com taram a concentração de produção de emissões
as pontas do eixo de rotação. de altas energias nas zonas polares durante o má-
Segundo os autores do trabalho, o esperado ximo solar. A constatação é amparada por testes
era que, quando houvesse variações no nível estatísticos, descritos no trabalho, que indicam

C
das emissões de raios gama, tais flutuações se a relevância dos sinais observados.
manifestassem com a mesma intensidade em
todas as áreas do Sol, de forma mais ou menos onsiderado um astro comum
homogênea – em vez de se concentrarem exage­ entre as mais de 100 bilhões de
radamente nas zonas de alta latitude. estrelas da Via Láctea, o Sol se
“Essa maior concentração de emissões de raios formou há cerca de 4,5 bilhões
gama foi observada no momento em que ocorreu de anos. Diferente da Terra e da
a inversão dos polos magnéticos do Sol”, expli- Lua, ele não é um corpo sólido.
ca Arsioli, autor principal do estudo. “Por isso, É uma bola de plasma quente (matéria ionizada,
suspeitamos que a reconfiguração magnética com partículas carregadas eletricamente), cons-
esteja relacionada com a produção excessiva de tituída pelos gases hidrogênio e hélio. O nível de
radiação gama nos polos.” A troca faz com que atividade solar (produção de energia) varia ao
o polo magnético do sul migre para o norte do longo do tempo de forma mais ou menos regular,
disco solar e vice-versa. Tal inversão ocorre em em ciclos. Ora a estrela está menos ativa, ora mais.
média a cada onze anos, durante o máximo solar. A duração média de um ciclo solar é de 11 anos,
Atualmente, Arsioli é pesquisador no Instituto de mas pode variar entre 9 e 14 anos.
Astrofísica e Ciências Espaciais da Universidade A formação de manchas solares, pontos pretos
de Lisboa, em Portugal, com financiamento do associadas a áreas mais frias na superfície, é um
programa europeu Marie Curie. termômetro da atividade solar. Ocasionalmente, Ilustração sobre
imagem real mostra
Segundo Elena Orlando, da Universidade de as maiores manchas são visíveis da Terra sem as linhas do complexo
Trieste, não há, por ora, uma explicação deta- a necessidade de recorrer a telescópios. Mais campo magnético
lhada sobre como a inversão do polo magnético manchas sinalizam que o astro está funcionan- na superfície do Sol
levaria ao excesso de emissão de raios gama nos
extremos do disco solar. “Achamos que o campo 2
magnético da estrela está de alguma forma envol-
vido nessa anomalia, mas não temos ainda uma
explicação física para isso”, comenta Orlando,
em entrevista a Pesquisa FAPESP. Arsioli iniciou
o estudo com dados do Fermi em 2021, quando
passou um ano associado ao grupo da italiana na
Universidade de Trieste.
IMAGENS 1 ARSIOLI E ORLANDO 2024 & NASA/SDO / DUBERSTEIN 2 NASA / SDO / AIA / LMSAL

Inédito, o resultado foi obtido a partir da análise


de dados referentes a 13 anos e meio de observação
do Sol, entre agosto de 2008 e janeiro de 2022, pelo
telescópio espacial Fermi. Operado pela Nasa (a
agência espacial norte-americana), em colabora-
ção com o Departamento de Energia dos Estados
Unidos e parceiros europeus, o Fermi é dedicado
a registrar emissões em frequências da radiação
gama, a porção mais energética do espectro eletro-
magnético. Recentemente foi usado também para
estudar uma misteriosa explosão de raios gama, a
segunda mais intensa que se observou no espaço,
ocasionada provavelmente pela rara fusão de duas
estrelas de nêutrons (ver reportagem na página 62).
O trabalho de análise das emissões do Sol foi
feito em etapas. Primeiramente, Arsioli e Orlando
dividiram os dados de quase 14 anos de observa-

PESQUISA FAPESP 337 | 61


do em ritmo acelerado. A dinâmica energética
do Sol também está associada a outros fenôme-
nos, como a ocorrência de flares (erupções) e
ejeções de massa.
Entre o momento de maior e o de menor ativi-
dade, a diferença de brilho – ou seja, de produção
de energia – do Sol é muito pequena, de no máxi-
mo 0,1%. Por isso, os climatologistas descartam
que variações na atividade solar possam influir
de forma significativa no aumento do aqueci-
mento global.
Segundo cálculos da Nasa, ao longo dos dois
últimos séculos, o peso acumulado das emissões
de gases de efeito estufa provenientes de ativi-
dades humanas sobre a temperatura média da
Terra é pelo menos 270 vezes maior do que a 1

possível influência de qualquer alteração de lu-


minosidade do Sol. Ainda assim, as alterações
em seu regime de funcionamento produzem
impactos evidentes na aparência e no compor-

UMA
tamento da estrela.

DISTÚRBIOS EM GPS

FÁBRICA
Além de gerar conhecimento básico sobre a fí-
sica estelar, os estudos sobre a atividade solar
são úteis para entender os impactos reais que o

DE TERRAS-
astro pode ter sobre diferentes aspectos da vi-
da cotidiana na Terra. Ao emitir mais radiação
e matéria na direção do Sistema Solar, a estrela

RARAS
pode afetar os sistemas de navegação terrestre,
como o GPS, e as telecomunicações no planeta.
Para o astrofísico Rodrigo Nemmen, do Insti-
tuto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmos-
féricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), Fusão de duas estrelas de
que não participou do artigo, os dados do artigo
de Arsioli e Orlando são importantes para me- nêutrons gera segunda maior
lhorar o entendimento sobre o funcionamento
da superfície do Sol. “A principal fonte de raios
explosão de raios gama
gama que o Fermi observa é o Sol”, diz Nemmen, e produz no espaço metais
que usa dados do satélite da Nasa para estudar
emissões desse tipo de radiação nos jatos de ma- do grupo dos lantanídeos
téria produzidos pelos buracos negros. “Alguns
grupos de pesquisa já tentaram usar o Fermi para Marcos Pivetta
estudar de forma sistemática emissões de outras
estrelas, mas não tiveram sucesso.”

A
Um dos desafios de Arsioli e Orlando é tentar
observar novamente o pico de emissão de raios rtigo na revista Nature em 21
gama nas regiões polares do Sol durante o próxi- de fevereiro deste ano, com
mo máximo solar, que deve ocorrer em 2025. Se a a participação de brasileiros,
estrela se comportar novamente como em junho fornece mais evidências de que
de 2014, a ideia de que a produção excessiva de uma explosão de raios gama
raios gama decorre da inversão periódica dos po- observada em março de 2023 deve ser de-
los magnéticos se torna mais robusta. “Não há ou- corrente de um evento cósmico raro: a fusão
tra estrela similar e tão próxima quanto o Sol em de duas estrelas de nêutrons ou de uma es-
que possamos testar nossa hipótese”, diz Arsioli. trela dessa classe e de um buraco negro. A
“Temos de repetir as observações nele mesmo.” n colisão e posterior união de objetos celestes
tão densos são denominadas kilonova. Con-
O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na siderada a segunda explosão de raios gama
versão on-line. mais luminosa e energética já registrada, a

62 | MARÇO DE 2024
GRB 230307A
kilonova

Esta imagem do
telescópio James Webb
mostra a kilonova que
gerou a explosão de raios
gama GRB 230307A
e a galáxia-mãe da qual
migraram as duas estrelas
de nêutrons que se
fundiram nesse processo.
Ao lado, ilustração retrata Galáxia vizinha da qual duas
a colisão das estrelas estrelas de nêutrons migraram

ocorrência do ano passado tinha sido alvo mas há liberação por dias ou semanas de os pulsos de raios gama mais duradouros
de um trabalho anterior, também publica- um brilho residual, o chamado afterglow, costumam ser produzidos por superno-
do na Nature, mas feito por outro grupo em outros comprimentos de onda, como vas. A morte de estrelas de grande massa,
de astrofísicos, que apresentou resultados no óptico e infravermelho. Por isso, mes- um processo que também gera uma forte
similares aos do mais recente estudo. mo telescópios que não operam nas fre- explosão, é denominada supernova. No
A explosão associada a uma kilonova quências de raios gama, como o Hubble entanto, os astrofísicos dos dois grupos
gera gigantescas emissões de luz, sobre- e o James Webb, podem ser acionados independentes que analisaram o GRB
tudo no comprimento de onda dos raios para acompanhar o afterglow de eventos 230307A não encontraram nenhuma
gama, que são invisíveis ao olho humano. extremamente energéticos. “Observamos estrela massiva moribunda no local em
IMAGENS 1 CLARA & SOFÍA LÓPEZ MARTÍN (FREEPIK) / ALBERTO J. CASTRO-TIRADO (IAA-CSIC/UMA) 2 NASA, ESA, CSA, STSCI, ANDREW LEVAN (IMAPP, WARW)

Outra assinatura decorrente da união de com o Soar essa kilonova em cinco épocas que ocorreu o evento.
duas estrelas de nêutrons é a produção de diferentes”, conta Navarete. Essa região é praticamente vazia de
elementos químicos do grupo das terras- A segunda mais intensa explosão de objetos e dista cerca de 130 mil anos-luz
-raras, também denominado lantanídeos, raios gama foi primeiramente registra- da galáxia mais próxima. Tal cenário de-
que são mais pesados que o ferro. No es- da em 7 de março de 2023 pelo satélite solador levou os pesquisadores a propor
paço, apenas a explosão associada a uma Fermi, da Nasa, dedicado a observações uma explicação para essa incômoda si-
kilonova seria capaz de atuar como uma nessa faixa de comprimento de onda. O tuação: um par de estrelas de nêutrons
fábrica de terras-raras. Os lantanídeos evento foi denominado GRB 230307A. teria se desgarrado da galáxia-mãe e mi-
são forjados a partir de um processo co- As três primeiras letras são um acrôni- grado para uma área vizinha. No meio do
nhecido como captura de nêutrons, que mo do nome do fenômeno em inglês, nada, as estrelas se fundiram e geraram
envolve decaimento radioativo e emis- gamma-ray burst (GRB). Os números se a espantosa explosão de raios gama de
sões de raios gama, a forma de luz (fóton) referem ao ano (23), mês (03) e dia (07) mais de meio minuto.
mais energética. em que o evento ocorreu. O “A” significa Segundo a astrofísica italiana Eleo-
“Encontramos evidências de que essa que foi a primeira explosão desse tipo nora Troja, nunca se observou uma ki-
kilonova teria produzido mais lantanídeos vista naquela data. lonova e seus desdobramentos por mais
estáveis do que esperávamos inicialmen- Além de sua enorme luminosidade, o de uns poucos dias. “É preciso observar
te”, diz o astrofísico Clécio De Bom, do fenômeno despertou o interesse imedia- por semanas e meses [como eles fize-
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas to na comunidade de astrofísicos devido ram] para descobrir quais metais foram
(CBPF). Ele é um dos três brasileiros que a outras duas peculiaridades: sua dura- forjados na explosão”, disse a pesquisa-
assinam o artigo, redigido por um grupo ção atípica e a região do espaço de onde dora, em comunicado à imprensa sobre
internacional de pesquisadores e coorde- partiu a explosão. O forte pulso de raios o estudo. Como no lugar associado ao
nado por Eleonora Troja, da Universidade gama se prolongou por cerca de 35 se- GRB 230307A há indícios da formação
de Roma Tor Vergata. Os outros dois são gundos, o que o situa, segundo a classi- de lantanídeos, os pesquisadores de-
Martín Makler, também do CBPF, e Felipe ficação da área, como uma explosão de fendem a ideia de que ali houve uma
Navarete, astrônomo que trabalha no te- longa duração. Os eventos desse tipo que fusão de dois objetos muito densos e
lescópio Soar, instrumento de observação duram menos de 2 segundos são consi- compactos, dos quais ao menos um era
instalado no Chile, operado pelo Brasil derados curtos; os que ultrapassam esse uma estrela de nêutrons. n
e por universidades norte-americanas. limite de tempo são tidos como longos.
Numa kilonova, as emissões de raios ga- O problema é que as kilonovas sempre O artigo científico consultado para esta reportagem está
ma decorrentes da fusão duram segundos, foram associadas a GRB curtos, enquanto listado na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 63


SUSTENTABILIDADE

A aviação é
responsável por cerca
de 2% das emissões
globais de dióxido
de carbono

NA TRILHA DO
COMBUSTÍVEL
RENOVÁVEL
Em meio ao esforço global para
descarbonizar o setor aéreo,
Brasil pode ter papel de destaque
na produção de alternativa ao
querosene fóssil
Frances Jones
N
o fim de 2023, um Boeing 787 da resolvido, mas que deverá ser superado com o
companhia aérea britânica Virgin tempo”, diz Catalano, destacando outros dois
Atlantic voou de Londres a Nova entraves para o emprego de SAF em ampla esca-
York movido 100% a combustível la no momento: a produção global, ainda muito
sustentável. O primeiro voo tran- pequena ante a demanda, e o custo, estimado en-
satlântico de uma grande aerona- tre três e cinco vezes o do querosene de aviação.
ve comercial a não usar uma gota A brasileira Embraer também tem realizado
sequer do querosene de aviação de ensaios com SAF em seus aviões. Em junho de
base fóssil ganhou manchetes e foi 2022, um jato comercial E195-E2 da companhia
chamado de histórico. Segundo a empresa, o voou com 100% do biocombustível em um de seus
combustível alternativo feito à base de óleo de dois motores. Mais recentemente, em outubro
cozinha usado e gordura animal, misturado a de 2023, dois jatos executivos da fabricante de
12% de querosene aromático sintético – de ori- São José dos Campos decolaram em um voo de
gem não fóssil –, proporcionou uma redução de teste apenas com o combustível sustentável de
até 70% nas emissões de gases de efeito estufa aviação em seus tanques.
(GEE), em comparação com um voo no mesmo
trecho usando querosene de aviação tradicional. DESAFIOS PARA DESCARBONIZAR
Para fazer o voo de demonstração, a Virgin O SAF é a grande aposta do setor aéreo para redu-
Atlantic obteve uma autorização especial. Hoje, zir de forma mais rápida a sua pegada de carbo-
as companhias aéreas podem misturar em seus no. A aviação é responsável por cerca de 2% das
tanques um máximo de 50% de combustível sus- emissões globais de dióxido de carbono (CO2),
tentável de aviação, mais conhecido pela sigla SAF lançando na atmosfera 800 milhões de tonela-
(sustainable aviation fuel), seguindo normas es- das do gás. Considera-se que esse seja um dos
tabelecidas pela Sociedade Americana de Testes setores mais difíceis de ser descarbonizado e o
e Materiais (ASTM) e pela Agência Nacional do avião uma das formas mais poluentes de viajar.
Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Os estados-membros da Organização da Aviação
O SAF pode ser obtido a partir de diferentes Civil Internacional (Oaci) aprovaram em 2022 uma
rotas tecnológicas e com matérias-primas que vão meta global de zerar as emissões de carbono do
de oleaginosas a etanol e resíduos sólidos urba- setor até 2050. No final de 2023, em uma reunião
nos. Em comum, todos os insumos têm carbono, nos Emirados Árabes Unidos, os estados-membros
que é o principal percursor dos hidrocarbonetos se comprometeram a reduzir as emissões de CO2
constituintes do SAF (ver box na página 69). da aviação internacional em 5% até 2030.
A ideia é que os aviões sejam abastecidos com Em 2023, foram produzidos mais de 600 mi-
querosene de aviação ou SAF – ou uma mistura lhões de litros de SAF, o dobro do ano anterior,
dos dois. Isso porque a molécula de SAF é prati- de acordo com a Associação Internacional de
camente idêntica à do querosene de base fóssil, o Transportes Aéreos (Iata). A produção deve tri-
que dispensa modificações nos motores dos aviões plicar este ano. Apesar do aumento, esse volume
e na infraestrutura de abastecimento. representará apenas 0,53% da demanda global por
A restrição a uma mistura de SAF superior a combustível de aviação. Estados Unidos, China,
50% se dá por questões de segurança. “Nem to- Japão, Singapura, Alemanha, Noruega e México
das as rotas de SAF produzem na sua composição já fabricam o insumo.
uma quantidade suficiente de hidrocarbonetos “Não há uma clareza ainda sobre quem serão
do tipo aromático, importantes para impedir os grandes fornecedores de SAF no futuro, mas
FOTO COSTFOTO / NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

uma mudança na viscosidade do combustível o mais sensato é que sejam as empresas petro-
ou o congelamento do líquido em grandes alti- líferas que produzem o querosene de aviação”,
tudes”, explica o engenheiro mecânico Fernando afirma Catalano, que também é membro do painel
Catalano, diretor da Escola de Engenharia de São independente de especialistas da Oaci que trata
Carlos da Universidade de São Paulo (Eesc-USP). do impacto ambiental da aviação.
O querosene fóssil é uma mistura de hidro- Com o esperado crescimento nos próximos
carbonetos de vários tipos e leva em geral entre anos do setor aéreo, que ainda se recupera do
10% e 25% de aromáticos, considerados poluen- baixo movimento do período da pandemia, as
tes, mas necessários. “É um problema ainda não reduções nas emissões trazidas por inovações

PESQUISA FAPESP 337 | 65


tecnológicas, novos modelos de aeronaves mais Virgin Atlantic, responde por
eficientes e otimização das operações não deve- mais de 80% do SAF produzi-
rão ser suficientes. Os combustíveis alternativos do hoje no mundo. A Europa
entram em cena para contribuir com essa meta. não considera que o óleo de O SETOR AÉREO
“A Iata estima que o SAF contribuirá com mais
de 60% das reduções para chegar ao net zero em
palma seja sustentável por-
que boa parte de sua produ- ESTABELECEU A META
GLOBAL DE ZERAR

E
2050”, informa Catalano. ção, notadamente em países
do Sudeste Asiático, ocorre de
m uma indústria global que ainda en-
gatinha, o Brasil tem uma oportuni-
forma predatória, com a des-
truição de florestas nativas.
SUAS EMISSÕES
dade de se colocar como ator central, Ainda não há produção em DE CARBONO ATÉ 2050
vislumbram especialistas – seja pela escala comercial do combus-
experiência do país com a produção tível no país, mas vários pro-
de biocombustíveis, seja pela quan- jetos começam a ganhar cor-
tidade de biomassa disponível para po. Em Natal, no Rio Grande
a fabricação de SAF. “Se há um lugar do Norte, o Instituto Senai de
no mundo em que a produção em Inovação em Energias Renováveis (ISI-ER) inau-
larga escala de SAF vai dar certo, é no Brasil”, gurou em setembro do ano passado uma planta-
pressupõe a bioquímica Glaucia Mendes Souza, -piloto para produzir SAF, o Laboratório de Hi-
do Instituto de Química da USP e membro da drogênio e Combustíveis Avançados (H2CA).
coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa O objetivo é aumentar a produção, ainda em
em Bionergia (Bioen). escala laboratorial, de 200 mililitros (mL) por dia
“Temos em abundância vários insumos para para cerca de 5 litros (L). “Hoje já produzimos
produzir esse combustível, entre eles o etanol. em laboratório o petróleo sintético, que contém
Mas, por enquanto, a rota de conversão do etanol SAF em sua composição, a partir de uma rota co-
para combustível sustentável de aviação, conhe- nhecida como Fischer-Tropsch [FT]”, informa a
cida como Alcohol-to-Jet [ATJ], não é economi- química Fabiola Correia, coordenadora do proje-
camente competitiva”, diz a pesquisadora. “Vale to no ISI-ER. “Estamos otimizando as condições
mais a pena adotar a rota do Hefa [Hydro-pro- do processo para elevar a eficiência produtiva.”
cessing of Esteres and Fatty Acids]. Nesse caso, Na planta-piloto, a matéria-prima principal é
o problema é a sustentabilidade, pois alguns paí- a glicerina resultante da produção de biodiesel.
ses, principalmente na Europa, não querem usar “No processo de transesterificação do óleo, 90%
o óleo de palma, que no Brasil é a oleaginosa de do volume gerado é biodiesel e 10% glicerina. Ela
maior produtividade.” vem suja, com contaminantes, produzindo um
Hefa e ATJ são duas das principais rotas de passivo para a indústria do biodiesel. Nossa ideia
produção de SAF já homologadas, sendo que a é converter a glicerina do biodiesel, juntamente
primeira, adotada no voo de demonstração da com os contaminantes presentes nela, em um

Aeronave da
fabricante europeia
Airbus é abastecida
com o biocombustível
de aviação

66 | MARÇO DE 2024
formações aos critérios de sustentabilidade do
Corsia. O portal inclui dados sobre biomassa de
seis culturas agrícolas (cana-de-açúcar, eucalipto,
soja, milho, óleo de palma e macaúba) e de dois
resíduos de biomassa (sebo bovino e gases de
siderurgia) em 13 estados brasileiros.
Já a Embraer participou dos testes para as ho-
mologações das tecnologias Hefa e SIP (isopara-
fina sintetizada a partir de açúcares fermentados
e hidroprocessados). A empresa também tem
Amostra de SAF projetos ligados a estudos sobre o impacto do
produzida no Instituto
uso do solo no país, ao mapeamento das opor-
Senai de Inovação em
Energias Renováveis, tunidades e dos desafios da cadeia de SAF no
em Natal (RN) Brasil e na Europa. Ela integra ainda a iniciativa
2
BioValue, coordenada pelo Laboratório Nacional
de Biorrenováveis (LNBR), do Centro Nacional
produto com grande demanda industrial, o SAF.” de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)
Hoje, quase todo o volume de glicerina gerada no (ver reportagem na página 68).
país é vendido para a China a preços muito baixos. Apoiado pela FAPESP, o BioValue é uma par-
Em outro projeto do laboratório potiguar, a ceria de 20 instituições científicas e tecnológicas
matéria-prima para fazer o gás de síntese – com brasileiras e empresas que trabalham com pes-
o qual se produz o SAF pela rota FT – é o CO2 quisadores europeus no desenvolvimento de bio-
capturado do ar e o hidrogênio verde – combus- combustíveis, em especial na aviação. Em 2023,
tível limpo gerado a partir da quebra da molécula FAPESP e Embraer inauguraram no Instituto
da água (ver Pesquisa FAPESP nº 317). “Hoje tra- Tecnológico de Aeronáutica (ITA) o Centro de
balhamos com esses dois processos diferentes, a Pesquisa em Engenharia para a Mobilidade Aé-
glicerina e o CO2 capturado do ar. Optamos pela rea do Futuro, visando aumentar a competitivi-
rota FT em função da sua versatilidade, uma vez dade da indústria aeronáutica nacional. Um dos
que podemos trabalhar com uma variedade de focos do centro é a redução de emissões de GEE.

A
matéria-prima”, ressalta Correia.
LEGISLAÇÃO
lém do ISI-ER, pelo menos quatro Especialistas na área consideram que o inves-
empresas já anunciaram planos de timento na produção de SAF deverá aumentar
produção de combustível susten- com a eventual aprovação do Projeto de Lei nº
tável de aviação no Brasil: Acelen, 4.516/2023, em tramitação no Congresso, conhe-
na Bahia; Petrobras, em Cubatão cido como PL do Combustível do Futuro, que
(SP); Brasil BioFuels, na Amazônia; prevê a criação do Programa Nacional de Com-
e Geo Biogás, no Paraná. A holding bustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV).
brasileira ECB Group informou que “Seu principal objetivo é fomentar a indústria
a sua subsidiária Be8 Paraguay vai de SAF no país”, diz Darlan Santos, da Agência
construir no país vizinho uma biorrefinaria para Nacional de Aviação Civil (Anac). O texto deter-
produzir 20 mil barris por dia de biocombustíveis mina que as companhias aéreas diminuam suas
avançados, incluindo SAF. emissões, a partir de 2027, principalmente por
Em meados de 2023, a Raízen, maior produtora meio do uso de SAF. No primeiro ano, a redução
de etanol de cana-de-açúcar do mundo, anunciou obrigatória será de 1% e chegará a 10% em 2037.
ter recebido uma certificação (ISCC Corsia Plus) “Da forma como está redigido, o PL possibilita
FOTOS 1 © AIRBUS / JANE WIDDOWSON / BEETROOT 2 RENATA MOURA

que permite o uso do etanol gerado em uma de a concentração do combustível em hubs – aero-
suas unidades para fabricação de SAF. O objetivo portos principais, como Guarulhos – perto dos
da certificação do programa Esquema de Redu- locais de produção. Isso também minimiza as
ção e Compensação de Carbono para a Aviação emissões decorrentes do transporte do líquido”,
Internacional (Corsia) mantido pela Oaci é ga- argumenta Santos. De acordo com ele, são ne-
rantir que os biocombustíveis sejam fabricados cessários por volta de quatro anos para que uma
de maneira sustentável. planta industrial de SAF fique pronta e inicie o
Assim como várias companhias aéreas, as fabri- fornecimento do combustível. Os empreendimen-
cantes de aeronaves no geral apoiam a pesquisa, o tos já anunciados devem começar a produzir a
desenvolvimento e a produção de SAF. A Boeing partir de 2025 e 2026. n
financia no Brasil a terceira fase do projeto SAF
Maps, liderado pela Universidade Estadual de Os projetos consultados para esta reportagem estão listados na
Campinas (Unicamp), que busca adicionar in- versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 67


ESTUDOS SOBRE O SAF
AVANÇAM NO PAÍS
Rotas, processos e matérias-primas para
elevar a produção do biocombustível e reduzir
seu custo são foco de investigações
em universidades e centros de pesquisa
Frances Jones

N
ão é apenas o setor produtivo que se sador, membro da coordenação do Programa Frasco contendo
mobiliza em torno do combustível FAPESP de Pesquisa em Bionergia (Bioen). combustível
sustentável de aviação
sustentável de aviação (ver reporta- O Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LN- produzido no
gem na página 64). O insumo tam- BR), que integra o Centro Nacional de Pesquisa Laboratório Nacional
bém atrai o interesse da academia. em Energia e Materiais (CNPEM), é outro cen- de Biorrenováveis,
Uma das principais iniciativas na tro brasileiro que se dedica, entre outros temas, em Campinas

área foi a criação no ano passado do à pesquisa do SAF. Lá são realizados estudos em
“Hub de SAF” na E-Renova, unidade duas frentes, ambas com apoio da FAPESP. Em
da Empresa Brasileira de Pesqui- uma delas, os pesquisadores avaliam os impactos
sa e Inovação Industrial (Embrapii) voltada à de sustentabilidade das rotas que já se encontram
inovação em energias renováveis, abrigada na mais maduras, observando, por exemplo, o po-
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). tencial de determinada biomassa para atender a
“A ideia é colocar em uma mesma mesa todos uma demanda regional ou global de SAF, consi-
os atores envolvidos na produção e uso do SAF, derando os efeitos da mudança de uso da terra e
entre empresas que detêm a tecnologia, univer- priorizando áreas com baixo risco de emissões.
sidades que estudam rotas tecnológicas, compa- Em uma segunda frente, busca-se desenvolver
nhias aéreas, Anac [Agência Nacional de Aviação novas tecnologias 100% brasileiras. Em artigo
Civil], ANP [Agência Nacional do Petróleo, Gás publicado em 2023 na revista Proceedings of the
Natural e Biocombustíveis]”, afirma o engenhei- National Academy of Sciences, a física Leticia
ro químico Rubens Maciel Filho, coordenador Zanphorlin, pesquisadora do LNBR/CNPEM, e
da E-Renova e professor da Faculdade de Enge- colegas descreveram uma enzima capaz de subs-
nharia Química (FEQ) da Unicamp. tituir catalisadores químicos tradicionais usados
Maciel sustenta que o Brasil é o país com a em vias termoquímicas para transformar ácidos
maior capacidade de fabricação do combustível graxos em hidrocarbonetos.
alternativo. “Devemos produzir aqui para não “É uma enzima interessante porque ela con-
precisarmos exportar etanol e depois comprar- segue fazer essa conversão e, ao mesmo tempo,
mos o biocombustível de aviação”, diz o pesqui- é capaz de desoxigenar a molécula”, explica o

68 | MARÇO DE 2024
engenheiro químico Edvaldo Morais, líder da
Divisão de Biorrefinarias e Recursos Naturais do TRÊS PERGUNTAS SOBRE
LNBR. “Em um processo convencional, é preci-
so uma etapa de reação a mais, com o uso de hi- O COMBUSTÍVEL SUSTENTÁVEL
drogênio para retirar o oxigênio das moléculas
provenientes da biomassa.” Outros dois artigos
sobre as pesquisas realizadas no CNPEM foram
divulgados nas revistas Chemical Engineering
Journal e Resources, Conservation and Recycling
no ano passado.
Na Unicamp, outro projeto financiado pela FA-
PESP investiga, por meio de simulações computa- 1. DE QUE É FEITO O SAF?
cionais, a viabilidade econômica de biorrefinarias É produzido a partir de resíduos agrícolas e florestais, oleaginosas,
usando a rota ATJ a partir de dois insumos: eta- resíduos sólidos urbanos, óleo de cozinha usado, entre outros
nol de segunda geração da cana-energia (varie- insumos. Pode ser sintetizado a partir de um processo de
dade com mais fibra e mais resistente a pragas) captura de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Misturado
e hidrogênio sustentável gerado a partir de um ao querosene de petróleo ou puro, dispensa modificações nas
produto do lixo urbano, o combustível derivado aeronaves atuais e na infraestrutura de abastecimento.
de resíduos (CDR). “A ideia é boa na ótica da sus-
tentabilidade, mas ainda precisamos avaliar se é
economicamente viável”, diz o engenheiro quí-
mico Adriano Mariano, responsável pelo projeto,
da FEQ-Unicamp.

O PAPEL DO HIDROGÊNIO
O hidrogênio é um insumo vital para a produção 2. QUAL É SUA PRINCIPAL VANTAGEM?
do SAF. É ele que reage com o dióxido de carbo- Com estrutura química igual à do querosene de aviação, o SAF
no (CO2), gerando os hidrocarbonetos de cadeia também libera CO2 quando queimado, mas emite menos gases
longa semelhantes aos do querosene de aviação. de efeito estufa (GEE). Dependendo da rota tecnológica e da
O Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de matéria-prima usada, reduz em até 80% as emissões de GEE.
Efeito Estufa (RCGI), um Centro de Pesquisa
em Engenharia (CPE) constituído com recursos
da FAPESP e da Shell, e o Grupo de Pesquisa em
Bioenergia (GBio) do Instituto de Energia e Am-
biente (IEE), da Universidade de São Paulo (USP),
desenvolvem um projeto para estimar o potencial
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

de produção de hidrogênio por diferentes rotas


pelo setor sucroalcooleiro (ver Pesquisa FAPESP 3. QUAIS AS VIAS TECNOLÓGICAS PARA SUA PRODUÇÃO?
nº 333). Os pesquisadores vão analisar os dados Oito rotas já foram homologadas pela Sociedade Americana
das quase 400 usinas produtoras de etanol no país. de Testes e Materiais e aprovadas pela ANP. As principais são:
“O hidrogênio verde é essencial para todas as
n Hefa (Hydro-processing of Esters and Fatty Acids): rota
rotas de produção de SAF”, pondera a analista de
mais madura, certificada em 2011. A produção se dá pelo
relações internacionais Laís Forti Thomaz, pro-
hidroprocessamento de ésteres e ácidos graxos. Utiliza como
fessora da Universidade Federal de Goiás (UFG)
matérias-primas óleos vegetais (soja, palma, macaúba, babaçu,
e integrante do Conselho Nacional de Política
algodão, mamona, girassol, entre outros), óleo de cozinha usado
Energética (CNPE), órgão de assessoramento da
e gordura animal, como sebo bovino. O processo de produção
Presidência da República.
demanda muito hidrogênio.
“As duas rotas das quais podemos aproveitar
mais pela abundância de matérias-primas são a n ATJ (Alcohol-to-Jet): certificada em 2016, emprega amidos,
ATJ, em relação ao etanol, e a Hefa, que usa soja, açúcares, biomassa celulósica, etanol de cana-de-açúcar
óleo de cozinha reutilizável ou gordura bovina. ou milho. Também há elevado consumo de hidrogênio.
Já temos uma cadeia do biodiesel muito forte que
n FT (Fischer-Tropsch): certificada em 2009, usa biomassa
pode ajudar na produção das matérias-primas”,
de resíduos urbanos e agrícolas e florestais (cana, eucalipto
sustenta Thomaz, destacando que o ideal é que
e outros). A matéria-prima é gaseificada, transformada
não se aposte em apenas uma via. “O melhor é
em monóxido de carbono e hidrogênio (gás de síntese), que
promover o desenvolvimento de todas as rotas.” n
é convertido no biocombustível.

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem


FONTES PROJETO DE LEI Nº 4.586/2023; ESTUDO “ANÁLISE ECONÔMICA DE DIFERENTES ROTAS
estão listados na versão on-line. DE PRODUÇÃO DE COMBUSTÍVEIS SUSTENTÁVEIS DE AVIAÇÃO” (PROQR); DARLAN SANTOS/ANAC; IATA

PESQUISA FAPESP 337 | 69


ENERGIA Pesquisador segura
módulo gerador
termelétrico, um
dos componentes da
bateria nuclear
projetada no Ipen

BATERIA
PARA TODA
A VIDA 1

I
Cientistas brasileiros magine um telefone celular cuja O Brasil tem estudos na área. Uma
bateria dure anos e não precise ser equipe do Instituto de Pesquisas Ener-
criam protótipo de plugado na tomada para recarre- géticas e Nucleares (Ipen), com sede em
gar. Ou um drone capaz de voar São Paulo, apresentou no fim de 2023
módulo nuclear capaz indefinidamente sobre a Amazô- o primeiro protótipo de uma bateria
de gerar eletricidade por nia, registrando focos de desma- nuclear termelétrica feito no país. O
tamento e de mineração ilegal. princípio de funcionamento do disposi-
centenas de anos sem Situações como essas poderão se tivo, também conhecido como gerador
tornar realidade, em algum tempo, termelétrico radioisotópico (RTG), é
necessidade de recarga com o início da produção comercial de diferente do sistema da Betavolt: uma
novos sistemas de armazenamento de corrente elétrica é produzida a partir
Yuri Vasconcelos energia que usam material radioativo pa- da conversão do calor gerado pela de-
ra gerar eletricidade ininterruptamente, sintegração de um isótopo de amerício
por dezenas ou centenas de anos. (Am-241) (ver infográfico ao lado). No
Uma das inovações foi revelada no co- módulo chinês, partículas beta (elé-
meço do ano pela startup chinesa Betavolt. trons) transformam-se em corrente elé-
A empresa desenvolveu uma bateria nu- trica por meio de um sistema conversor
clear que poderá gerar energia por 50 anos específico.
sem necessidade de recarga. O dispositivo, O processo de decaimento ou desin-
com 100 microwatts (µW) de potência e tegração radioativa ocorre quando o nú-
3 volts (V) de tensão elétrica, ainda é um cleo instável de um elemento químico
projeto-piloto e opera a partir da conver- se transforma no núcleo de outro ele-
são da energia liberada pelo decaimento mento, que tem menos energia. O pro-
de isótopos radioativos de níquel (Ni-63). cesso libera radiação eletromagnética e
A Betavolt planeja colocar no mercado em pode emitir partículas. Esse fenômeno
2025 uma versão mais potente da bateria, é caracterizado pela meia-vida, que é o
com 1 watt (W). Com função modular, tempo necessário para que metade dos
ela poderá ser empregada em série para átomos do isótopo radioativo presente
energizar drones ou celulares. em uma amostra se desintegre.

70 | MARÇO DE 2024
“Durante nosso desenvolvimento, Baterias nucleares começaram a ser
tivemos que dimensionar um módulo estudadas no início do século passado.
gerador termelétrico, responsável por Não há ainda fabricação comercial des-
converter a energia térmica em elétrica”, ses dispositivos. A produção, limitada,
explica o engenheiro químico e doutor é feita principalmente por governos de
em tecnologia nuclear Carlos Alberto países que dominam a tecnologia nu-
Zeituni. Ele é o gerente do Centro de clear – como Estados Unidos, Rússia,
Tecnologia das Radiações (Ceter) do França, China e Inglaterra.
Ipen, uma das unidades envolvidas no A tecnologia é empregada em dis- A bateria da Betavolt
mede 15 milímetros (mm)
projeto – a outra é o Centro de Enge- positivos situados em lugares de difícil de comprimento, por
nharia Nuclear (Ceeng). acesso, como faróis em ilhas desertas, 15 mm de largura e 5 mm
A principal vantagem das baterias cavernas e laboratório no Ártico e na de espessura
nucleares é a possibilidade de forne- Antártida. Na década de 1970, foi uti-
2
cer carga durante um longo período de lizada em marcapassos, aparelhos que
tempo. “Uma bateria química conven- monitoram e regulam os batimentos do de Estadual de Campinas (Unicamp) e
cional dura cinco anos, enquanto uma coração, implantados em mais de 300 coordenador de uma pesquisa que visa
de lítio chega a 10 anos. As nucleares pessoas. “Não houve nenhum relato de desenvolver uma bateria à base de sódio
podem ter duração de 50, 100 anos ou vazamento ou falha”, conta a engenheira (ver Pesquisa FAPESP nº 329), o trabalho
mais, dependendo do material radioa- química e doutora em tecnologia nuclear feito no Ipen é promissor, mas terá que
tivo utilizado. A nossa, estimamos que Maria Alice Morato Ribeiro, pesquisado- superar desafios para resultar em um
vá durar mais de 200 anos”, diz Zeituni. ra do Ceeng e líder do grupo. Os rovers produto comercial.
A pesquisa, iniciada há dois anos, vem da agência espacial norte-americana Na- “Em um momento que se discute co-
sendo financiada por uma empresa na- sa e a sonda Voyager, lançada ao espaço mo passar para uma sociedade 100% elé-
cional interessada em comercializar a em 1977, também usam essas baterias. O trica e baseada em fontes renováveis de
tecnologia. Por contrato, seu nome não módulo desenvolvido no Ipen será des- energia, que irão substituir os combus-
pode ser revelado. tinado a aplicações em locais remotos. tíveis fósseis, o armazenamento de ener-
Os pesquisadores do Ipen utilizaram “O uso dessa tecnologia é restrito por gia é uma tecnologia-chave. Por isso, o
11 fontes de amerício, originalmente em- causa do custo de fabricação, da disponi- desenvolvimento dos mais diferentes
pregadas em equipamentos de medição bilidade de matéria-prima e da dificul- tipos de baterias, inclusive essa do Ipen,
de espessura de chapas. Para eliminar o dade de produção”, informa Ribeiro. É é importante”, afirma.
risco de vazamento do material radioa- preciso muito cuidado para evitar vaza- “O longo tempo de operação sem re-
tivo, as fontes foram empilhadas e en- mento durante a fabricação e a operação carga das baterias nucleares é seu grande
capsuladas em um tubo de alumínio. “O do dispositivo. Outra dificuldade diz res- diferencial, mas elas precisam evoluir
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 BETAVOLT INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

parâmetro inicial de todo o projeto nu- peito ao fato de toda a parte elétrica estar para aumentar a tensão de saída”, res-
clear tem que ser a segurança. A bateria exposta à radiação, o que pode acarretar salva o físico da Unicamp. “Além disso”,
só será comercializada quando houver danos ao sistema. destaca, “irão enfrentar uma dura com-
garantia de que o risco de vazamento é petição com outras tecnologias avança-
nulo”, esclarece o engenheiro mecânico DURA COMPETIÇÃO das, mais baratas e já estabelecidas, como
Eduardo Lustosa Cabral, pesquisador do Para o físico Hudson Zanin, da Faculdade as baterias de lítio-fosfato-ferro (LFP) e
Ceeng que participa do projeto. de Engenharia Elétrica da Universida- de níquel-cobalto-manganês (NCM)”. n

COMO 1. O isótopo radioativo


FUNCIONA O amerício-241 é
encapsulado em

DISPOSITIVO um tubo de alumínio.


Seu decaimento libera Lado

BRASILEIRO radiação, que gera calor


quente 4. O sistema gera
uma diferença de
Protótipo de bateria 2. Um módulo gerador temperatura entre as
nuclear do Ipen termelétrico é ligado Lado duas faces do módulo
frio
transforma calor a esse tubo, a fonte
em corrente elétrica “quente” da bateria
-
3. O outro lado da 5. A ligação dos
peça é conectado a + dois lados em um
uma placa de alumínio, circuito produz uma
FONTE CARLOS ZEITUNI (IPEN) o lado “frio” corrente elétrica

PESQUISA FAPESP 337 | 71


INOVAÇÃO

ABSORVENTES
MENOS POLUENTES
Com decomposição em até seis meses,
produtos biodegradáveis visam
diminuir lixo plástico e poluição

Carolina Schwartz

M
enstruar é uma experiência fi- a empreendedora Patrícia Zanella, cofundadora Algodão orgânico
siológica ainda marcada por da startup baiana EcoCiclo. Para ela, é preciso e bioplástico
biodegradável
tabus e desigualdades, com conectar esse cenário com a falta de saneamen- são os ingredientes
consequências que permeiam to básico no país que impede a limpeza correta do absorvente
questões sociais, econômicas, das pessoas e dos produtos voltados à higiene da empresa amai
sanitárias, emocionais e eco- menstrual. No ano passado, a empresa venceu um
lógicas. A quantidade de lixo prêmio oferecido pelo Pacto Global da Organiza-
plástico gerado por resíduos de ção das Nações Unidos (ONU) pelos absorventes
absorventes descartáveis pres- biodegradáveis pioneiros que desenvolveu.
siona negativamente o meio ambiente. Apesar “Recorremos a matérias-primas que não cau-
de já existirem alternativas mais sustentáveis sam mal à saúde das usuárias e se degradam em
para conter o fluxo menstrual, como coletores até seis meses”, diz Zanella, que é formada em
ou calcinhas absorventes reutilizáveis, uma nova relações internacionais. A engenheira química
geração de designers, empreendedores e startups Adriele Menezes, diretora operacional da Eco-
aposta na criação de absorventes biodegradáveis Ciclo, foi a responsável pela pesquisa e o desen-
que poluam menos e, ao mesmo tempo, agradem volvimento técnico dos absorventes, que são pro-
o público consumidor habituado à praticidade duzidos por mulheres da periferia de Salvador a
dos produtos convencionais. partir de fibra de bambu, celulose e cola vegetal.
Muitas das iniciativas também colaboram para Segundo Zanella, pesquisas indicam que, mes-
o fim da chamada pobreza menstrual. Caracteri- mo conhecendo opções ecológicas e em condições
zada pela falta de acesso à educação e à higiene de comprar, as mulheres continuam utilizando
menstrual básica, essa condição afeta mais de absorventes descartáveis tradicionais. “A percep-
15 milhões de mulheres no Brasil, que precisam ção é de que o que é sustentável não é prático, e o
recorrer durante a menstruação a opções quase que é prático não é sustentável. Nossa inovação
sempre prejudiciais à saúde, às interações sociais foi pensada para ser confortável e ter a mesma
e ao comparecimento ao trabalho (ver reporta- espessura, cor e absorção dos produtos que as
gem na página 75). mulheres estão acostumadas a usar”, explica.
“Não há como falar de pobreza menstrual no O custo unitário de um absorvente biodegra-
Brasil e só pensar em produtos reutilizáveis, que dável da EcoCiclo é de cerca de R$ 3, até cinco
precisam ser devidamente higienizados”, afirma vezes mais alto do que o de produtos convencio- 1

72 | MARÇO DE 2024
nais vendidos em farmácias e supermercados. apontam estudos, podem demorar até 500 anos
“Ainda não chegamos a uma solução tecnológica para se decompor na natureza.
no país que permita aos absorventes sustentáveis “O plástico na composição do absorvente vai se
ficarem mais baratos do que os tradicionais”, re- transformar, depois do descarte, em microplásti-
conhece a designer curitibana Rafaella de Bona co, um pequeno fragmento polimérico prejudicial
Gonçalves, que trabalhou em um protótipo pró- ao ambiente”, observa Tocchetto (ver Pesquisa
prio de absorvente biodegradável, em parceria FAPESP nos 281 e 332). “Além disso, menos da me-
com a EcoCiclo. tade das cidades brasileiras tem aterros sanitários
Inicialmente elaborado como parte do trabalho urbanos projetados para receber e processar de
de conclusão de curso na Universidade Federal forma adequada resíduos como os presentes nos

U
do Paraná (UFPR), o modelo ecológico da de- absorventes descartáveis.”
signer conquistou prêmios nacionais e interna-
cionais, entre eles o vice-campeonato, em 2022, ma pesquisa desenvolvida na Escola
do concurso Jovens Inventores, promovido pelo Politécnica da Universidade de São
Escritório Europeu de Patentes (EPO). Gonçal- Paulo (Poli-USP) estimou o impacto
ves foi a responsável pelo design do absorvente ambiental causado por absorventes
e pela pesquisa do material – foram testados três menstruais no país. Seus autores re-
ingredientes: celulose, fibra de bananeira e es- velaram que, se as cerca de 60 mi-
puma de soja. O desenvolvimento do protótipo lhões de brasileiras que menstruam
coube à equipe da startup baiana. “Meu objetivo usassem produtos descartáveis du-
foi fazer uma prova de conceito. Queria mostrar rante o ciclo menstrual, em torno
a viabilidade de produzir um absorvente com es- de 15 bilhões de absorventes à base de plástico
sas características”, diz Gonçalves, destacando seriam descartados anualmente no Brasil. Se-
que o item não chegou ao mercado. gundo aponta o artigo “Análise de ciclo de vida
O absorvente foi projetado para servir tanto de coletores menstruais e absorventes externos
para uso externo como interno, inserido na va- descartáveis”, além de produzir muito lixo, com
gina. “Essa é a grande novidade do design desse frequência o absorvente externo é descartado
absorvente, porque uma peça pode ser única, dentro do vaso sanitário, podendo causar o en-
usada externamente, ou destacada em duas par- tupimento do encanamento.
tes, que são enroladas em formato cilíndrico para Já existem no exterior produtos que se prestam
gerar dois absorventes internos.” a esse tipo de descarte. O absorvente biodegra-
Para a química industrial Marta Tocchetto, dável da marca britânica Fluus pode ser jogado
professora aposentada do Departamento de Quí- diretamente no vaso sanitário. Ele se decompõe
mica da Universidade Federal de Santa Maria ao entrar em contato com a água e na rede de es-
(UFSM), no Rio Grande do Sul, e especialista em goto. De acordo com o fabricante, até o invólucro
sustentabilidade ambiental e gestão de resíduos da embalagem e as fitas que protegem a parte
industriais e águas, um aspecto extremamente adesiva podem ser depositados no vaso sanitário.
importante quando se tenta comparar o custo Feito a partir de fibras de plantas, biopolímeros e
de produtos é que raramente se leva em conta seiva de árvores, é vendido por £ 0,50 a unidade
a questão ambiental. Presentes na composição (cerca de R$ 3). Além do uso externo
da maioria dos absorventes convencionais, po- As empresas Srising, de Shangai, na China, e (à esq.), o absorvente
abaixo pode ser
lietileno e polipropileno são polímeros plásticos Niine, de Haryana, na Índia, também lançaram
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 MONYKE RUPPEL DE ALMEIDA

dividido em dois, enrolado


derivados do petróleo, um recurso fóssil não re- nos últimos anos absorventes biodegradáveis, e utilizado internamente
novável e poluente. Os absorventes de plástico, feitos com o biopolímero ácido polilático (PLA), (no centro e à dir.)

PESQUISA FAPESP 337 | 73


que pode ser produzido a partir de milho, beter- O incômodo físico e a vontade de construir
raba ou mandioca. Nos Estados Unidos, a Pee Safe algo de impacto fizeram com que Minami e To-
vende um absorvente feito com algodão orgânico mihama conduzissem pesquisas por conta pró-
e fibra de bambu. O preço final de todos eles é pria até chegar a um absorvente descartável
mais elevado do que o de produtos convencionais. que considerassem mais saudável e sustentável.
“Não há um produto de higiene menstrual in- “As especificações técnicas foram trabalhadas
dicado para todas as realidades. Quem pode lavar com o nosso fornecedor, um parceiro na China,
e esterilizar um coletor menstrual [copinho de responsável também pela fabricação. Duran-
silicone para coleta do sangue da menstruação] te o desenvolvimento, realizamos centenas de
deveria usá-lo”, pondera Tocchetto. Há situações testes com mulheres no Brasil”, conta Minami.
em que um item é mais conveniente que o outro. A amai destina 1% de suas vendas à doação de
“Por isso, temos que pensar em múltiplas solu- absorventes para a ONG paulista Fluxo Sem Ta-
ções, seja o absorvente biodegradável, o de pano bu, cuja missão é distribuir kits de higiene para
ou a calcinha absorvente. A opção mais adequa- populações carentes e difundir conhecimentos
da vai depender do padrão, da necessidade e do sobre menstruação.

F
momento de vida de cada pessoa.” “A parte de cima, que toca a vulva, é feita de
algodão, a parte central é constituída de celu-
oi para atender a uma necessidade lose sem tratamento com cloro, para não irritar
pessoal que a administradora paulista a pele, e a parte inferior, junto à calcinha, com
Luri Minami fundou a empresa amai bioplástico biodegradável”, informa. Esse último
com a empresária Erika Tomihama. A componente é um combinado de dois biopolíme-
amai é uma marca de absorventes fei- ros biodegradáveis, um feito à base de amido de
tos com algodão orgânico certificado e milho (PLA) e outro a partir de petróleo (PBAT).
bioplástico biodegradável, vendidos no Embora sejam uma opção menos poluente
site da empresa. “Há alguns anos, tive que um produto convencional, absorventes bio-
uma alergia aos absorventes comuns degradáveis também podem gerar impactos
e descobri que, ao contrário do que eu achava, a negativos no ambiente, que vão desde a forma
culpa não era minha, por não ter trocado o ab- de plantio, extração e produção das matérias-
sorvente com frequência ou algo do gênero. O -primas até o próprio processo de descarte dos
problema estava na composição do produto. A componentes neles presentes. “As alternativas
embalagem dizia que era de algodão, mas ele biodegradáveis não são soluções perfeitas, pois
não continha esse componente”, diz Minami. A pode haver desmatamento, uso indevido de agro-
recomendação dos médicos é trocar o absorvente tóxicos, exploração de mão de obra, entre outras
externo a cada quatro horas, em média, depen- coisas, associadas ao seu processo produtivo”,
dendo do fluxo. pondera Tocchetto. n

ALTERNATIVAS PARA UMA HIGIENE ADEQUADA


Compare alguns tipos de produtos produtos à disposição
no mercado
Tempo de Tempo
Composição decomposição Reciclável Reutilizável de uso

Absorvente Celulose, polipropileno, polietileno, Cerca de Não Não 4 horas


convencional adesivos termoplásticos, papel siliconado, 500 anos
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

poliacrilato de sódio e pigmento

Absorvente Celulose, fibra de bambu, Até 6 meses Não, mas Não 4 horas
biodegradável cola vegetal compostável
(EcoCiclo)

Coletor Silicone medicinal 50 a 500 anos Não, mas Sim Até 3 anos
menstrual compostável

Calcinha Poliamida, elastano, viscose, algodão até 3 anos Não, mas Sim Até 2 anos
absorvente compostável

FONTES ECOCICLO, FLEURITY, FLOW / HOPE E INTIMUS

74 | MARÇO DE 2024
O DRAMA DA
foco é a distribuição gratuita, pelo Sistema Único
de Saúde (SUS), de absorventes descartáveis para
mulheres carentes, em situação de rua e encarce-

POBREZA MENSTRUAL
radas. O programa irá contemplar 4 milhões de
adolescentes e mulheres de 3,5 mil municípios.
Os prejuízos econômicos, sociais e fisiológicos
ligados à pobreza menstrual são numerosos e,
Falta de condições para lidar adequadamente muitas vezes, irreversíveis. Quando não se con-
segue realizar a higiene íntima adequadamen-
com a menstruação causa prejuízos sociais te, perdem-se dias de trabalho e de frequência
à escola, meninas deixam de brincar e contatos
e econômicos a milhões de mulheres no mundo sociais são prejudicados.

O
A pesquisa “A relação das brasileiras com o pe-
ríodo menstrual e o fenômeno da pobreza mens-
relatório “Pobreza menstrual no trual”, elaborada pelo Instituto Locomotiva, de
Brasil, desigualdades e violações São Paulo, indica que, entre mulheres que tra-
de direitos”, elaborado pelo Fundo balham, mais de 5,5 milhões, ou 19% do total, já
de População das Nações Unidas faltaram ao emprego por falta de dinheiro para
(UNFPA) e pelo Fundo das Nações comprar produtos de higiene menstrual. Dados
Unidas para a Infância (Unicef ), da Unicef mostram que cerca de 321 mil alunas,
define pobreza menstrual como um 3% do total de meninas estudantes brasileiras,
fenômeno “vivenciado por meninas frequentam escolas que não têm banheiro em
e mulheres devido à falta de acesso condições de uso. Desse total, 121 mil vivem na
a recursos, infraestrutura e conhecimento para região Nordeste.
que tenham plena capacidade de cuidar da sua A enfermeira Mônica Maria de Jesus Silva,
menstruação”. professora da Escola de Enfermagem de Ribei-
A condição está relacionada à falta de água rão Preto da Universidade de São Paulo (Eerp-
encanada para se lavar, ausência de banheiro -USP) e coordenadora do projeto MenstruAÇÃO,
e privacidade para trocar produtos de higiene faz uma conta simples para traduzir o prejuízo
menstrual, carência de recursos para compra dos escolar causado pela pobreza menstrual. “Se du-
itens ou medicações para alívio de dor. Pessoas rante todos os ciclos, de aproximadamente cinco
que menstruam e estão em situação de vulnerabi- dias, pessoas que menstruam faltarem à escola,
lidade socioeconômica também são prejudicadas elas perderão cerca de 60 dias de aula no ano, o
pela falta de educação menstrual e reprodutiva equivalente a quase 30% do total.”
e pela insuficiência de políticas públicas volta-
Na escola municipal das ao entendimento e ao gerenciamento de um MEIA E MIOLO DE PÃO
Espaço de Bitita, aspecto central da saúde da mulher. Estima-se que em torno de 60 milhões de mulhe-
em São Paulo, projeto
No Brasil, apenas este ano entrou em vigor uma res menstruem no Brasil. De acordo com o levan-
contra pobreza menstrual
faz distribuição gratuita iniciativa do governo federal, o Programa de Pro- tamento “Livre para menstruar”, as que estão no
de absorventes teção e Promoção da Dignidade Menstrual, cujo grupo dos 5% mais pobres precisariam trabalhar
até quatro anos para custear os absorventes des-
cartáveis que usarão durante sua vida reprodutiva,
estimados em algo como 11 mil unidades.
Em grupos com acesso limitado a produtos
menstruais, é comum que as trocas desses itens
não ocorram com a frequência indicada e as usuá-
rias acabem sendo expostas a alergias, doenças
como candidíase, infecções urinárias de repeti-
ção e vaginoses bacterianas.
“Na ausência de absorventes, coletores ou tam-
pões, soluções para conter o fluxo são muitas
vezes improvisadas, com tiras de roupas, meias,
FOTO ROVENA ROSA / AGÊNCIA BRASIL

miolo de pão e saquinhos de areia ou espuma de


maquiagem envolvidos em jornal”, informa Sil-
va. Esse, contudo, não é um problema exclusivo
do Brasil ou de países pobres. Segundo o Banco
Mundial, pelo menos 500 milhões de mulheres
e meninas ao redor do mundo não têm acesso a
instalações para fazer sua higiene menstrual. n

PESQUISA FAPESP 337 | 75


SOCIOLOGIA

UMA MULTIDÃO
DE PROFISSIONAIS
DO CUIDADO
Com 24 milhões de pessoas atuando
nesse mercado, o Brasil prepara
o lançamento de sua primeira política
nacional dedicada ao tema

Christina Queiroz | ILUSTRAÇÕES Mariana Waechter


T
rabalhadoras domésticas, enfermeiras, Américas. Guimarães explica que, antes disso,
cuidadoras, médicos, cozinheiros, fa- a literatura acadêmica já vinha se dedicando
xineiros, motoristas, professores, ca- ao estudo do trabalho não pago desempenhado
beleireiros, entre outros profissionais por mulheres em ambientes domésticos, tema
do segmento do cuidado, somavam 24 prioritário na teoria feminista.
milhões de pessoas e respondiam por A reportagem de capa de janeiro de 2021 de
25,2% dos indivíduos ocupados no Pesquisa FAPESP abordou o assunto (ver Pes-
Brasil em 2019. Divulgado no momen- quisa FAPESP nº 299), que foi tema da redação
to em que o país prepara o lançamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
de sua primeira política nacional para o setor, o em 2023. “No Brasil, também se destacavam os
tamanho dessa força de trabalho era desconhe- estudos sobre o emprego doméstico, uma forma
cido e foi mensurado em estudo realizado por de inserção econômica de especial relevo para as
pesquisadoras do Departamento de Sociologia da mulheres mais pobres”, diz a socióloga. De acor-
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma- do com ela, essas pesquisas chamaram a atenção
nas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), não apenas para as necessidades de quem requer
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento cuidado, como crianças menores, idosos depen-
(Cebrap) e do Instituto de Pesquisa Econômica dentes e pessoas com necessidades especiais,
Aplicada (Ipea) entre 2022 e 2023. como também para quem provê cuidado, cujos
O conhecimento acadêmico sobre o cuidado direitos e necessidades tendiam a ser deixados
avançou desde o ano 2000 no Brasil em sin- em segundo plano.
tonia com o debate internacional, segundo a No Brasil, uma das lacunas de pesquisa so-
socióloga Nadya Guimarães, da FFLCH-USP bre esse mercado se relaciona com a escassez
e do Cebrap. Ela é uma das autoras da pesqui- de estatísticas oficiais sobre o segmento. Artigo
sa, financiada pela FAPESP e pela Plataforma publicado no ano passado por Guimarães e pela
Transatlântica, colaboração entre órgãos de socióloga Luana Simões Pinheiro, do Ipea, indi-
ciências humanas e sociais da Europa e das ca, por exemplo, que somente em 2002, a partir

PESQUISA FAPESP 337 | 77


da nova Classificação Brasileira de Ocupações em três dimensões. A primeira diz respeito ao
(CBO), passou a ser possível mensurar uma par- contexto em que o trabalho se estabelece. As-
cela importante da força de trabalho remunerada sim, ele pode ter lugar no espaço do domicílio,
do setor do cuidado: os cuidadores de idosos, de em uma relação de emprego doméstico, ou fora
pessoas com deficiência e indivíduos acama- deste. O segundo aspecto se refere à natureza da
dos. “Considerando esse panorama, assumimos relação com a pessoa cuidada, que pode ser dire-
o desafio de medir de forma mais abrangente a ta, caso de babás e cuidadoras, ou indireta, caso
quantidade de profissionais dedicados ao cuidado de faxineiras ou cozinheiras. Por fim, a terceira
no Brasil, sistematizando os diferentes tipos de dimensão abarca a recorrência da relação de cui-
serviço que circulam nesse mercado, de modo a dado, que será maior quanto mais dependentes
estabelecer os contornos e limites do trabalho forem os indivíduos cuidados. “Em situações de
remunerado de cuidar no Brasil”, esclarece Gui- autonomia muito reduzida, a recorrência assu-
marães, cujo artigo com Pinheiro foi publicado me caráter imperioso e qualquer descontinui-
na coleção Documentos de trabalho, do Cebrap. dade não apenas coloca em risco a qualidade
O artigo também faz parte da coletânea Cuidar, do cuidado e o bem-estar da pessoa que dele se
verbo transitivo, lançada pelo Ipea em 2023. A beneficia, como até mesmo sua própria vida”,

O
determinação dessas fronteiras é importante, enfatiza Guimarães.
por exemplo, para identificar quem são os pro-
fissionais de setores como saúde e educação que núcleo principal do setor de cuida-
efetivamente se dedicam ao cuidado. do abarca as ocupações exercidas
Alguns estudos precedentes procuraram medir em domicílio, que são divididas em
o tamanho da força de trabalho do cuidado, como duas categorias. A primeira envolve
é o caso de relatório de 2018 da Organização In- profissionais com relação direta e
ternacional do Trabalho (OIT). No documento, recorrente com a pessoa cuidada,
foram contabilizadas todas as pessoas ocupadas como as cuidadoras de idosos e as
em estabelecimentos do setor, incluindo indiví- babás. Em 2019, elas correspondiam
duos que não se envolvem diretamente com esse a 1,1 milhão de pessoas (ver gráfico
tipo de serviço, como são os casos de gerentes na página 79). O segundo grupo de ocupações do
de hospitais e funcionários administrativos de espaço doméstico desempenha atividades recor-
escolas. “Buscamos destrinchar as estatísticas rentes e se caracteriza pela relação indireta com
oficiais e ampliar a precisão das estimativas”, diz a pessoa cuidada, caso de faxineiras, empregadas
Guimarães. O estudo foi desenvolvido a partir de domésticas e cozinheiras. Em 2019, esse grupo
informações da Pesquisa Nacional por Amostra contabilizava 4,8 milhões de pessoas.
de Domicílios Contínua (Pnad-C), do Instituto “Os profissionais que atuam em ambientes
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cru- domésticos foram os mais impactados durante
zadas com as definições da CBO. a pandemia”, afirma a demógrafa Simone Wajn-
Com a proposta de compreender a diversidade man, da Universidade Federal de Minas Gerais
do segmento do cuidado, as autoras se apoiaram (UFMG). Em estudo finalizado em 2023 com

78 | MARÇO DE 2024
LEGISLAÇÃO EM PEDAÇOS
No Brasil, direitos e deveres relativos ao cuidado estão fragmentados em diferentes normas e leis

As normas jurídicas tratam de forma que mapeou a entrada e a circulação do horária de oito horas diárias, mais uma hora
fragmentada dos direitos e deveres relativos cuidado no universo jurídico do país. de intervalo. “Nesse tempo, ignoram-se
ao cuidado. Essa segmentação afeta tanto Dentre as normas que regulam direitos as responsabilidades familiares”, destaca
o direito privado, que regula deveres de e deveres relativos ao cuidado, estão, por a jurista. A Lei de Diretrizes e Bases da
cuidado no interior das famílias, como os exemplo, o Código Civil, o Código Penal, Educação Nacional determina que crianças
direitos sociais de trabalhadoras do cuidado a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), o a partir dos quatro anos devem frequentar a
e de pessoas que dependem dele. “Isso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), escola. Porém, normalmente, as instituições
significa que cada área do direito que trata o Estatuto do Idoso e a Lei nº 150/2015, públicas não funcionam durante todo
do cuidado, ainda que não utilize conhecida como Lei das Domésticas. “Cada o período que a família precisa trabalhar
explicitamente o termo, o faz a partir de área do direito trata a pessoa envolvida no para atender às exigências da CLT. “Esse
referências próprias. Na legislação brasileira, cuidado a partir de um só papel, como se na viés fragmentado impede que a legislação
as regras relativas ao cuidado não vida fosse possível ser apenas trabalhador, brasileira tenha um olhar global sobre
apresentam uma abordagem sistêmica”, provedor ou receptor de cuidado. Isso todos os direitos e deveres que as pessoas
explica a jurista Regina Stela Vieira, da revela a incapacidade de lidar com um tema envolvidas no cuidado têm em sua vida
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). que é multidimensional”, observa Vieira. cotidiana”, afirma a jurista. Ela espera que
Juntamente com o também jurista Pedro Tal incapacidade gera distorções e a Política Nacional de Cuidados, que está
Augusto Gravatá Nicoli, da Universidade conflitos, segundo ela. Por exemplo, em sendo elaborada pelo governo federal, passe
Federal de Minas Gerais (UFMG), ela é autora empregos por tempo integral, pais e mães a articular frentes jurídicas que atualmente
de pesquisa, realizada entre 2022 e 2023, são obrigados pela CLT a cumprir uma carga estão dispersas na legislação.

Mariana Almeida, que faz doutorado em demo- vivenciar maior sobrecarga de responsabilida-
grafia na instituição, ela constatou que esses em- des”, detalha a demógrafa.
pregos registraram queda de 20% a 30% logo no Além do grupo de trabalhadoras que atuam
primeiro semestre de 2020. No entanto, no final no espaço doméstico, em seu estudo, Guima-
de 2021, o mercado se recuperou, e a estrutura rães e Pinheiro também caracterizaram outro
de ocupações do setor voltou a ser a mesma de conjunto de ocupações que se desenvolvem fora
antes da Covid-19. “Nos trabalhos domésticos de dos domicílios. Nele, três grupos se destacam.
cuidados com pessoas dependentes, há evidências No primeiro, os profissionais têm relação direta
de que, apesar da recuperação das oportunida- e recorrente com as pessoas cuidadas, caso de
des de emprego, esses profissionais passaram a professoras de educação infantil e educação

POPULAÇÃO EMPREGADA NO BRASIL EM 2019


Distribuição de trabalhadores acima de 14 anos conforme setores econômicos

25,2%
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

18,6%
Cuidado Comércio

7,3%
Construção

27,3% 12,6%
Serviços Indústria
(outros, sem ser
de cuidado) 9,0%
Agricultura/pecuária

FONTES IBGE-PNAD-C (2019) / NADYA GUIMARÃES E LUANA PINHEIRO

PESQUISA FAPESP 337 | 79


especial, enfermeiras e cuidadoras que atuam grupos são as trabalhadoras do sexo, que foram
em instituições de acolhimento. Nessa catego- incorporadas à CBO em 2015 com a justificativa
ria, o país contava com 2,9 milhões de indiví- de que são profissionais que “cuidam de neces-

J
duos empregados. sidades sexuais e dão acolhimento”. Outro con-
junto inserido no levantamento é o de pessoas
á o segundo grupo abarca profissionais que atuam em instituições religiosas.
como esteticistas e cabeleireiros, que Além das diferenças em relação à natureza do
têm relação direta com a pessoa cuidada, serviço prestado, a pesquisa também mapeou
mas em condições de menor recorrência disparidades de raça e gênero em cada grupo
e dependência. Médicos, fisioterapeutas, de ocupações. Identificou que as mulheres estão
dentistas, nutricionistas, entre outros presentes em 75,3% dos 24 milhões de postos de
profissionais da saúde com nível supe- trabalho do setor do cuidado. No núcleo principal,
rior, também fazem parte desse mesmo ou seja, em profissões desempenhadas no espaço
grupo, que incorporava 7,3 milhões de doméstico, em relações de maior intimidade e re-
profissionais, segundo dados da Pnad de 2019 e corrência, a participação feminina alcança 98%
conforme contabilizou o estudo de Guimarães e das vagas. A análise revelou, também, que 45%
Pinheiro. Segundo a pesquisa, nessas duas cate- dos 24 milhões de postos de trabalho do segmento
gorias, em que estão concentradas as ocupações do cuidado eram ocupados por mulheres negras.
do setor de educação e saúde, o Estado responde De acordo com a pesquisa, de cada 100 mulhe-
por 40% e 50% das contratações, respectivamen- res empregadas no Brasil em 2019, 14 atuavam
te. Esse grupo é o único em que pessoas negras como trabalhadoras domésticas, desempenhando
não são maioria (ver gráfico abaixo). “Trata-se, funções de cozinheiras, faxineiras e cuidadoras.
justamente, do segmento de ocupações com ren- Nesse tipo de profissão, 63% das vagas são ocu-
dimentos mais altos”, informa Pinheiro. padas por pessoas negras. “Os números eviden-
Já o último grupo, que inclui atividades em ciam que o trabalho doméstico segue sendo um
que a prestação do serviço é indireta e não fre- dos principais caminhos para a entrada de mu-
quente, abarca profissionais como cozinheiros de lheres no mercado de trabalho, especialmente
restaurantes e trabalhadores da área de limpeza de mulheres negras com baixos rendimentos e
de edifícios. Esse contingente é o maior no seg- nível de escolaridade”, observa Guimarães. Es-
mento de cuidado e reunia 7,6 milhões de pes- tudo de 2018 da OIT indica que o Brasil tem a
soas, sendo que a maioria delas era empregada maior proporção de empregadas domésticas no
no setor privado. conjunto de sua força de trabalho entre os 187
“No total, temos cerca de 70 ocupações dedi- países-membros da organização.
cadas ao cuidado no mercado de trabalho bra- A economista Luiza Nassif Pires, da Universi-
sileiro, incluindo desde categorias mais óbvias, dade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretora
como por exemplo as enfermeiras, e outras que do Centro de Pesquisas em Macroeconomia das
não são vistas como provedoras de cuidado pelo Desigualdades (Made) da Faculdade de Eco-
senso comum”, comenta Guimarães. Um desses nomia, Administração e Contabilidade da USP,

TRABALHADORES 62,6 61,0 46,3 36,0 37,5 44,1

DO CUIDADO
CONFORME GÊNERO,
RAÇA E COR 13,5 26,3
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

7,0 14,8
37,4
Em 2019, mulheres
1,1
ocupavam mais de 75% 6,7 41,8 31,2
21,6
dos postos de trabalho 35,1
29,5
no segmento

13,1 14,6
n Mulheres negras 9,9
2,8 4,9
n Homens negros 1,2
n Mulheres brancas Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 Grupo 4 Grupo 5 Total
Empregos Empregos Empregos não Empregos não Empregos não
n Homens brancos domésticos, interação domésticos, interação domésticos, interação domésticos, interação domésticos, interação
frequente e direta frequente e indireta frequente e direta não frequente e não frequente e
direta indireta

FONTES IBGE-PNAD-C (2019) / NADYA GUIMARÃES E LUANA PINHEIRO

80 | MARÇO DE 2024
aponta que 92% dos trabalhadores domésticos Na perspectiva de Pinheiro, os dados mostram
do Brasil são mulheres e 63% delas negras. Se- que investimentos em políticas para criar ou apri-
gundo a pesquisadora, mesmo com a Lei Com- morar serviços públicos de provisão de cuidado
plementar nº 150, de 2015, que regulamentou o tendem a beneficiar especialmente as mulheres
direito dessas profissionais, sua situação laboral e, entre elas, as negras. Em 2023, a socióloga do
é marcada por precariedade, pouca proteção do Ipea foi cedida ao Ministério do Desenvolvimento
Estado, informalidade e baixos salários. e Assistência Social, Família e Combate à Fome
Assim, Pires calcula que mais de 70% das tra- para atuar como diretora de Economia do Cui-
balhadoras domésticas são informais no país e dado na Secretaria Nacional da Política de Cui-
mais da metade recebe menos de um salário mí- dados e Família. Hoje, é uma das coordenadoras
nimo (R$ 1.412,00) por mês. “Além do valor ser do processo de construção da Política Nacional
insuficiente para suprir necessidades básicas no de Cuidados e do Plano Nacional de Cuidados,
presente, o valor também implica uma contribui- previstos para serem anunciados pelo governo
ção previdenciária baixa, que pode comprome- federal neste primeiro semestre. As propostas
ter a aposentadoria delas no futuro”, pondera a de políticas que integrarão o plano estão sen-
economista, ao comentar os achados de pesquisa do elaboradas por um grupo interministerial,
elaborada por ela e outros integrantes do Made criado em março do ano passado, que envolveu
em 2022, em parceria com o Núcleo de Justi- 23 organizações do governo federal, além de re-
ça Racial e Direito da Fundação Getulio Vargas presentantes de governos estaduais, municipais,
(FGV). Os resultados foram publicados em artigo organismos internacionais e a sociedade civil.

A
no começo do ano passado. Pinheiro esclarece, ainda, que as políticas se-
rão direcionadas a quatro públicos prioritários:
inda sobre as diferenças de raça, crianças e adolescentes, com atenção especial à
Pinheiro, do Ipea, comenta que o primeira infância; idosos e pessoas com deficiên-
estudo realizado com Guimarães cia que precisam de apoio para realizar atividades
evidencia a existência de divisões básicas da vida diária; além dos indivíduos que
sexuais e raciais no trabalho de cuidam – de forma remunerada ou não remu-
cuidado. Tomando como exem- nerada. “Com o envelhecimento populacional,
plo o caso das enfermeiras e téc- a demanda de idosos por cuidados é cada vez
nicas de enfermagem, apesar da maior, assim como aumenta a carga sobre as mu-
prevalência feminina em ambas lheres que exercem esse cuidado no âmbito das
as categorias, há desigualdades entre elas: no famílias”, comenta. Segundo ela, a ideia é que o
caso de enfermeiras em postos que demandam Estado seja capaz de, ao mesmo tempo, prover o
formação de nível superior, as mulheres brancas cuidado que essa população necessita e reduzir a
eram maioria, enquanto na função de técnica de sobrecarga de trabalho de cuidadoras familiares. n
enfermagem, cuja atuação prevê salários mais
baixos e relações interpessoais intensas, as mu- O projeto, os artigos científicos e o relatório consultados para esta
lheres negras predominavam. reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 337 | 81


ARTES VISUAIS

AS VÁRIAS VIDAS DE
MÁRIO PEDROSA
Com trajetória que se confunde com a história
do século XX, crítico destacou a produção artística
de grupos marginalizados

Juliana Vaz

E
m outubro de 1970, o crítico de arte to, no Rio de Janeiro, que viria a se tornar uma
Mário Pedrosa (1900-1981) desembar- unidade da UFRJ. Filiou-se ao Partido Comunis-
cou em Santiago, no Chile, buscando ta em 1925. Dois anos mais tarde, saiu do Brasil
asilo político. No Brasil, ele havia sido rumo à União Soviética para estudar na Escola
acusado de difamar a ditadura militar Leninista de Moscou, mas adoeceu e mudou os
(1964-1985) por denunciar práticas de tortura de planos: ficou em Berlim, onde frequentou cur-
presos políticos. Na época, contava já 70 anos, o sos universitários de sociologia e filosofia, além
que não o impediu que continuasse trabalhan- de participar de atividades políticas contra os
do: “Não é cômodo um novo exílio na velhice. nazistas. É na capital alemã que adere às ideias
Mas aqui estou e recomeço uma vida que nunca da Oposição Internacional de Esquerda, grupo
parou de recomeçar. E assim é que recomeço, liderado por Leon Trotski (1879-1940), que se
inclusive, a levantar um museu de arte moderna opunha ao stalinismo.
e experimental que a vida batizou de Museu da Pedrosa já havia publicado diversos artigos
Solidariedade”, escreveu ao pintor mexicano políticos na imprensa brasileira quando, em
Mathias Goeritz (1915-1990). 1933, estreou na crítica de arte com um texto
O convite para liderar a criação da nova insti- sobre a gravurista alemã Käthe Kollwitz (1867­
tuição partiu do próprio Salvador Allende (1908­ ‑1945). “É o primeiro ensaio brasileiro sobre a
‑1973), então recém-eleito presidente do Chile. arte moderna com base sociológica. Ele expli-
Graças à sua ampla rede de contatos no mundo ca o fenômeno artístico com rigor científico e
da arte, Pedrosa mobilizou nomes como o ca- parte da dinâmica das estruturas sociais para
talão Joan Miró (1893-1983), a brasileira Lygia entender o que é uma manifestação artística
Clark (1920-1988) e o norte-americano Frank dentro de determinada sociedade”, aponta o
Stella, que enviaram obras para o novo museu, filósofo Marcelo Mari, do Departamento de Ar-
inaugurado na capital chilena em maio de 1972. tes Visuais da Universidade de Brasília (UnB),
“Era um museu com um acervo feito apenas de que organizou o livro Mário Pedrosa: Revolução
doações, com o objetivo de apoiar o governo so- sensível (Edições Sesc, 2023), com os historia-
cialista de Allende. Em um ano, recebeu mais dores Francisco Alambert e Everaldo de Olivei-
de 600 obras”, conta a socióloga Glaucia Villas ra Andrade, da Faculdade de Filosofia, Letras
Bôas, da Universidade Federal do Rio de Janei- e Ciências Humanas da Universidade de São
FOTO LUCIANO MARTINS / ARQUIVO DA FAMÍLIA PEDROSA

ro (UFRJ) e autora de Mário Pedrosa: Crítico de Paulo (FFLCH-USP).


arte e da modernidade (Editora UFRJ). Lançado Nos anos seguintes, o crítico escreveu ensaios
no ano passado, o livro se junta a outras publi- sobre o pintor Candido Portinari (1903-1962),
cações que saíram recentemente sobre a vida e defendendo uma arte engajada e libertária, mas
a obra do intelectual. não panfletária. “Pedrosa queria renovar a arte
Interrompido pelo golpe do general Augusto brasileira na segunda metade da década de 1940,
Pinochet (1915-2006), o exílio do brasileiro no que, em sua visão, estava engessada. Para ele, o
Chile ilustra o forte entrelaçamento entre arte realismo de Portinari e Di Cavalcanti [1897-1976]
Mário Pedrosa em
e política que marcou sua biografia. Nascido em servia de instrumento ideológico do Estado Novo
seu apartamento, Timbaúba (PE), Pedrosa entrou em contato com [1937-1945] e para a construção de uma brasili-
no Rio de Janeiro (s/d) ideias marxistas na Faculdade Nacional de Direi- dade oficial do governo Vargas”, explica Mari.

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Abertura da VI Bienal
de São Paulo, em 1961,
que teve Pedrosa
como diretor artístico

Nos Estados Unidos, onde se exilou após sofrer Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mun-
perseguição por sua militância política durante dial e da ditadura do Estado Novo, Pedrosa retor-
a ditadura do Estado Novo, Pedrosa aprofundou na do exílio nos Estados Unidos. No ano seguin-
suas formulações sobre a modernidade artística. te, cria uma coluna dedicada exclusivamente às
Em Nova York, foi impactado pelas esculturas artes visuais no Correio da Manhã e na década
do artista norte-americano Alexander Calder de 1950 intensifica sua atividade como crítico
(1898-1976), de quem se tornou amigo. “É uma na esfera pública. “Pedrosa não queria que sua
arte democrática porque pode ser feita de qual- reflexão sobre arte ficasse circunscrita a artistas
quer troço, cabe em qualquer lugar, a serviço de ou ao público frequentador de galerias e bienais.
qualquer condição, nobre, rara ou usual; e serve Ele queria ser ouvido numa esfera ampla, e na-
para revitalizar a alegria e o senso de harmonia, quele momento um espaço de grande circula-
ora embotado, dos homens”, escreve o crítico no ção e respeitabilidade era o jornal impresso”,
artigo “Calder, escultor de cataventos”, publicado acrescenta Araújo.
em 1944. A partir daí, Pedrosa se afasta da arte Com presença regular também no Jornal do
figurativa e se aproxima de expressões não re- Brasil, o pernambucano é hoje considerado por
presentativas, como o abstracionismo. especialistas um dos grandes renovadores da crí-
“Os primeiros escritos de Mário Pedrosa tica de arte no país. Até então, tratava-se de uma
expressam uma visão da arte com compromisso atividade realizada principalmente por literatos,
social. Aos poucos, ele sofistica essa visão e passa 2
a incorporar elementos da Gestalt, a psicologia da
forma alemã”, observa o jornalista Luiz Antônio
Araujo, professor da Escola de Comunicação, Ar-
tes e Design da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que prepara uma
biografia do crítico para a editora Record, ain-
da sem data de lançamento. “Pedrosa valoriza a
obra de Calder por recuperar objetos e materiais
do cotidiano. Muita gente não achava que seus
móbiles, estruturas suspensas que se movem,
podiam ser considerados arte. E é nessa mesma
direção que ele orienta a primeira geração de Com a mulher,
a funcionária pública
artistas concretistas no Brasil, como Ivan Serpa e tradutora Mary
[1923-1973], Abraham Palatnik [1928-2020], Lygia Houston, na Índia,
Clark e Hélio Oiticica [1937-1980].” em 1959

84 | MARÇO DE 2024
como Mário de Andrade (1893-1945), com quem
o pernambucano se correspondeu. Ao longo das
cinco décadas de atuação como crítico, Pedrosa
reelabora constantemente seu pensamento sobre
arte, sempre atento à cena internacional. Para
ele, todo e qualquer indivíduo seria um artista
em potencial, “independente de seu meridiano,
seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, ne-
gro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado
ou desequilibrado”, conforme registrou em ar-
tigo publicado em 1947, no Correio da Manhã.
É assim que volta sua atenção à “arte virgem”
produzida pelos artistas do ateliê do Engenho
de Dentro, no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no
Rio de Janeiro, ao qual dedicou diversos artigos O crítico e a psiquiatra
Nise da Silveira
no Correio da Manhã. Pedrosa frequentava o no Museu Nacional
espaço criado em 1946 pela psiquiatra Nise da de Belas Artes, no Rio
Silveira (1905-1999) na companhia de jovens de Janeiro, em 1980
FOTOS 1 ATHAYDE DE BARROS / FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO / ARQUIVO HISTÓRICO 2 AUTORIA DESCONHECIDA / CENTRO DE ESTUDOS DO MOVIMENTO OPERÁRIO MÁRIO PEDROSA (CEMAP) – ACERVO DO CENTRO

3
pintores como Serpa, Palatnik e Almir Mavignier
DE DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (CEDEM / UNESP) 3 AUTORIA DESCONHECIDA / ARQUIVO NISE DA SILVEIRA / SOCIEDADE AMIGOS DO MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE

(1925­‑2018). Estes, influenciados pelos artistas arte contemporânea tinha se tornado um objeto
internos daquela instituição e pelas ideias do de consumo acomodado ao status quo e era in-
crítico, pouco a pouco abandonavam a pintu- capaz de mudar a realidade. “Ele então aposta
ra figurativa e abraçavam a arte concreta que em outras experiências, como a arte indígena.
despontaria no Rio de Janeiro nos anos 1950. Foi um decolonial avant la lettre”, define.

S
Porém um incêndio em 1978 destruiu parte
egundo Villas Bôas, da UFRJ, a frieza do MAM Rio, frustrando a realização do even-
técnica e a racionalidade da socieda- to. Em seu lugar, o crítico propôs a criação do
de moderna tornaram-se alvos de Pe- Museu das Origens, que reuniria cinco institui-
drosa: “Ele achava que a arte tinha a ções: o próprio MAM Rio, além do Museu do
missão de ajudar o indivíduo a recu- Índio, Museu do Inconsciente, Museu do Ne-
perar a sensibilidade perdida em um mundo cada gro e Museu das Artes Populares. A iniciativa
vez mais veloz”. Sua concepção de modernidade, não avançou, mas hoje chama a atenção por ter
de cunho universalista, acrescenta a pesquisado- destacado de modo pioneiro a produção artís-
ra, difere da visão de Mário de Andrade, voltada tica de grupos historicamente marginalizados.
para a construção de uma identidade nacional. Confundindo-se com a história política e
Pedrosa enfatiza ainda o diálogo com o passado cultural do século XX, a vida agitada de Mário
e as diferenças culturais: em 1961, como diretor Pedrosa chegou ao fim em novembro de 1981.
artístico da VI Bienal de São Paulo, o crítico Vítima de câncer, ele morreu no Rio de Janei-
pernambucano causou repercussão ao reunir ro, aos 81 anos. Um ano antes, em São Paulo,
pela primeira vez no pavilhão do Ibirapuera havia assinado o livro de fundação do Partido
arte africana e aborígene australiana, caligrafia dos Trabalhadores, tornando-se seu filiado n° 1.
japonesa e obras de modernistas como o alemão Desde a publicação entre 1995 e 2000 dos
Kurt Schwitters (1887-1948). quatro volumes de seus Textos escolhidos
Em 1977, com o início do processo de abertu- (Edusp), organizados pela filósofa Otília Aran-
ra política no Brasil, Pedrosa retorna do exílio tes, da USP, é crescente o interesse de pesquisa-
em Paris, onde havia se refugiado após o golpe dores pela vida e obra do intelectual. Em 2015,
militar no Chile. Nesse período, constata que o o Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova
ciclo da arte moderna havia se esgotado e con- York, reuniu em inglês parte de seus escritos
cebe, com a artista Lygia Pape (1927-2004), uma na série Primary documents. No ano passa-
mostra sobre arte indígena para o Museu de Arte do, a editora Companhia das Letras lançou a
Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Intitu- coletânea de ensaios Obra crítica, vol. 1 – Das
lada Alegria de viver, alegria de criar, a exposição tendências sociais da arte à natureza afetiva
tinha como proposta “mostrar ao brasileiro que da forma (1927 a 1951), organizada pelo mú-
o fenômeno cultural de criatividade artística não sico Quito Pedrosa, neto do crítico. “Pedrosa
é um fenômeno de progresso, é de experiência, pensou não só a cultura, mas o Brasil. Não foi
vivência, homogeneidade e defesa das virtudes mero reprodutor de ideias europeias: formulou
das comunidades ainda vivas”, como escreveu o conceitos inéditos para entender nosso país.
crítico no Jornal do Brasil. De acordo com Mari, Por isso merece ser lido e estudado”, conclui
da UnB, Pedrosa percebe no fim da vida que a Andrade, da FFLCH-USP. n

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MUSICOLOGIA

OS
SONS
NO
O sambista João da Baiana no
Rio de Janeiro, entre as décadas de
1940 e 1950, com seu pandeiro:
instrumento foi alvo de perseguição
policial no início do século XX
PLURAL
Coleção de livros
dedicados à música
brasileira explora
diversidade musical
das regiões do país
Diego Viana

86 | MARÇO DE 2024
Q
uando um grupo se reúne em trouxe consigo a diversificação temática que, além
torno da mestra griô Ana do da análise da prática musical e das sonoridades,
Coco, na roda de coco Novo incorporou o estudo dos aspectos sociais, políti-
Quilombo, no município pa- cos, étnicos, econômicos e de gênero.
raibano de Conde, a música Ao longo do século XX, o estudo da música feita
que se toca ali é resultado de no Brasil se concentrou excessivamente no desen-
influências múltiplas. A so- volvimento da vertente erudita, segundo Egg. “No
noridade, a dança e o canto singular, a expressão ‘história da música’ remete
evocam fontes africanas, indí- a um jeito de pensar herdeiro do positivismo do
genas, árabes e europeias. Es- século XIX, que produz, sobretudo, estudos fo-
sa diversidade de referências cados em compositores e obras, principalmente
também ocorre no extremo clássicos”, diz o pesquisador. “A partir do final do
norte do Brasil: em Roraima, século XX, começou uma renovação metodológi-
estado com 640 mil habitan- ca, que consiste em pensar a música no país em
tes, festas cívicas e festivais de jazz apresentam relações históricas mais amplas.”
sons nascidos do encontro de ritmos caribenhos, De acordo com a musicóloga e historiadora Ana
cantos ameríndios e até mesmo tradições gaúchas. Guiomar Rêgo Souza, da Universidade Federal de
Já no samba, o pandeiro, instrumento considera- Goiás (UFG), apenas nos últimos 20 anos a pes-
do como um dos símbolos nacionais, reflete uma quisa em história da música se abriu de fato para
história tortuosa de conflito racial e nacionalismo a pluralidade das manifestações, além da matriz
populista juntamente com o ritmo que produz. europeia. “É claro que não é possível excluir as
Esses são alguns dos relatos presentes na cole- fontes europeias, portuguesas em particular, até
ção Histórias das músicas no Brasil, composta de primórdios do século XIX, da música brasileira.
cinco livros, cada um dedicado a uma das regiões Mas nosso objetivo é mostrar como ela sempre
do país. Editada pela Associação Nacional de esteve em contato com outras manifestações”,
Pesquisa e Pós-graduação em Música (Anppom), explica Souza, que organizou com a educadora
a série está disponível para download gratuito Flavia Maria Cruvinel, também da UFG, o volu-
no site da instituição (www.anppom.com.br/ me sobre o Centro-Oeste.
ebooks/). Ao colocar no plural tanto “história” Segundo Holler, a produção acadêmica em
quanto “música”, a coletânea ressalta a enorme história da música foi muito impulsionada pela
variedade de influências que determinam como tecnologia digital. A fonte mais evocada nes-
a música se faz em um país continental e mul- se campo é a Hemeroteca Digital da Biblioteca
tirracial como o nosso. Nacional, que desde 2012 disponibiliza on-line
Organizado pelos musicólogos Marcos Holler, os periódicos brasileiros publicados a partir de
da Universidade do Estado de Santa Catarina 1808, exceto os que ainda estão em circulação. É
(Udesc), e Mónica Vermes, da Universidade Fe- nesse amplo acervo que se encontram notícias
deral do Espírito Santo (Ufes), o projeto busca de apresentações, gravações e turnês, críticas e
FOTO JOÃO DA BAIANA (1940-1950) / FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / COLEÇÃO ALMIRANTE / ACERVO DO FMIS-RJ

dar visibilidade à produção acadêmica atual. “Um crônicas musicais, além de anúncios de instru-
dos nossos objetivos foi mostrar como a história mentos, discos e salas de concerto.
da música tem se enriquecido ao interagir mais Na introdução do volume dedicado ao Sudes-
de perto não só com a etnomusicologia, mas tam- te, as historiadoras Virgínia de Almeida Bessa,
bém com a sociologia e a antropologia”, afirma da Universidade Estadual de Campinas (Uni-
Vermes, diretora de publicações da Anppom. camp), e Juliana Pérez González, pesquisadora
“Há muita pesquisa em música sendo feita no independente, afirmam que o século XX tam-
Brasil, mas percebemos que a divulgação muitas bém testemunhou a tendência de procurar uma
vezes fica restrita à região onde ela é produzida”, música nacional, ou seja, a “brasilidade” nessa
acrescenta Holler. “Foi por isso que escolhemos manifestação artística. Mas, em se tratando de
dividir a publicação em cinco volumes, com re- um país continental, como falar em uma música
corte regional bem definido.” nacional única?
Esse campo de estudos vem crescendo no Bra- Essa questão é abordada pelo percussionista
sil desde a década de 1980 – a própria Anppom e musicólogo Eduardo Vidili, da Udesc, em seu
foi fundada em 1988. Neste século, a tendência artigo no mesmo volume. O pesquisador observa
se acelerou, acompanhando a expansão das uni- que diversas canções consideradas a quintessên-
versidades no país, de acordo com o músico e cia da brasilidade tratam o pandeiro como sím-
historiador André Acastro Egg, da Universidade bolo nacional: é o caso de Aquarela do Brasil, de
Estadual do Paraná (Unespar) e da Universidade Ary Barroso (1903-1964), com o verso “terra de
Federal do Paraná (UFPR), que editou, com a his- samba e pandeiro”, e Brasil pandeiro, de Assis
toriadora Márcia Ramos de Oliveira, da Udesc, Valente (1911-1958), que coloca a associação di-
o volume dedicado à região Sul. O crescimento retamente no título.

PESQUISA FAPESP 337 | 87


Contudo, esse pequeno instrumento de per- do rádio passaram a ter destaque na imprensa”,
cussão chegou a ser perseguido pela polícia nos prossegue o musicólogo.
primeiros anos do século XX: associado à vadia- De acordo com Vidili, nessa época, ganha força
gem, podia levar sambistas à cadeia. Músicos ho- uma formação musical comum até hoje no con-
je admirados, como João da Baiana (1887-1974), texto do choro: o chamado regional. Nele, o úni-
relataram em entrevistas anos mais tarde a re- co instrumento de percussão é o pandeiro. “Isso
pressão que sofreram. Na década de 1930, entre- acontece pela mesma razão que o leva a estar
tanto, o pandeiro já “era reverenciado, investido nas ruas, onde ocorre a perseguição policial: é
de uma chave de orgulho, como algo que nos portátil, produz sons variados e tem um alcance

N
representava como nação”, diz Vidili. Explicar sonoro pequeno em termos de volume, que se
essa transição rápida passa por circunstâncias adapta ao trio de violão, cavaquinho e flauta.”
como a interação entre ranchos carnavalescos
e jornalistas, a portabilidade do instrumento e o capítulo “A ‘ópera’ em
o esforço do governo de Getúlio Vargas (1882- Pirenópolis desde os oito-
1954), que transcorreu entre 1930 e 1945, para centos”, escrito em parceria
desenvolver um nacionalismo cultural no país. com o filósofo Geraldo Már-
“Foi a ascensão do rádio o fator decisivo para cio da Silva, da Secretaria de
consolidar a posição do pandeiro no imaginário Educação de Goiás, Souza,
nacional”, constata Vidili. Em 1932, Vargas regu- da UFG, mostra a relação
lamentou a exploração de publicidade no rádio, do teatro musical da cidade
o que permitiu a estruturação de emissoras co- de Pirenópolis (GO) com as
merciais, com destaque para a Mayrink Veiga, no formas de sociabilidade e as
Rio de Janeiro. “Versátil, o pandeiro se encaixou estruturas de poder local, so-
muito bem no esquema de produção das rádios, bretudo no século XIX e iní-
em que conjuntos musicais contratados tocavam cio do XX. A palavra “ópera”
ao vivo. Ocorreu ali uma espécie de domesticação é grafada entre aspas porque
da batucada. Ao mesmo tempo, os pandeiristas esse termo designava qual-
quer apresentação musical.
1
O eixo da sociabilidade musical na região eram
as Festas do Divino Espírito Santo, que reuniam
a população em torno de bandas que tocavam a
céu aberto, principalmente com metais. Essas
mesmas bandas se apresentavam em teatros, com
o acréscimo de instrumentos de cordas, o que as
tornava um pouco semelhantes às orquestras
sinfônicas. “As festas eram instituições muito
importantes em cada localidade, praticamente
uma matriz identitária”, diz Souza.
Nesse contexto, as bandas desempenhavam
um papel fundamental, segundo a historiadora
e musicóloga. Os conjuntos tinham diferentes
origens: formavam-se nas igrejas, nas instituições
militares e policiais, mas também por iniciati-
va de particulares. É o caso da banda Phoenix,
fundada no século XIX, em Pirenópolis, pelo
músico Joaquim Propício de Pina (1867-1943),
que até hoje permanece na ativa. “As bandas
dominaram a cena musical da segunda metade
do século XIX no Brasil, em um tempo sem te-
levisão ou rádio. Não é possível imaginar uma
festividade sem banda nessa época, porque só
havia orquestras nas cidades maiores e, assim
mesmo, eram poucas.” O tema das bandas e das
festas figura em vários artigos do volume dedi-
cado ao Centro-Oeste.
Integrantes Souza acrescenta que uma descoberta impor-
do grupo
de coco de roda
tante de estudos recentes foi o papel das mulheres
Novo Quilombo, na sociabilidade musical da região. “A alta socie-
da Paraíba dade se reunia em saraus, que eram organizados

88 | MARÇO DE 2024
fundamentalmente pelas mulheres. Elas tocavam
e cantavam até com mais frequência do que os
homens”, informa. As mulheres tinham papel
de organização e comando, inclusive na música
executada em catedrais. “Porém, quando vinham
padres visitadores do Vaticano, elas recuavam e
se afastavam discretamente dessa função.”
No volume dedicado ao Nordeste, os etnomusi-
cólogos Eurides Santos, da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), e Erivan Silva, da Universida-
de Federal de Campina Grande (UFCG), abrem
seu artigo afirmando que, a exemplo de outras 2

manifestações, “os cocos são, ao mesmo tempo, 3

gênero musical e evento popular envolvendo


música, dança e poesia”. Com base na conjunção
de sons, sociabilidade e relações raciais, os au-
tores analisam a presença e o significado dessa
prática, caracterizada por um canto na forma de
pergunta e resposta, acompanhada por palmas No alto, a banda
Phoenix, de
e dança em roda. Pirenópolis (GO),
De origem afro-brasileira, o coco se espalhou nos anos 1940,
por áreas rurais e urbanas de estados como Ala- e, ao lado, o
goas, Pernambuco e Paraíba, acompanhando a Trio Roraimeira,
em 2017, expoente
diáspora da população negra. É praticado em de movimento
muitos quilombos até hoje. Adotado por comu- musical do
nidades indígenas em cerimônias como o Toré Norte do Brasil
e o culto da Jurema, tornou-se “um símbolo de
resistência e um capital simbólico afro-indígena
em boa parte do Nordeste”, observa Santos, da da população oriunda do Nordeste faz com que
UFPB. Laudos antropológicos usados em proces- festas juninas sejam muito populares. Já em São
sos de demarcação de terras indígenas ou quilom- Luiz, desde a década de 1990 migrantes gaúchos
bolas chegam a apontar a manifestação do coco realizam festas tipicamente sulinas, como a Se-
de roda como sinal de ocupação antiga da terra. mana Farroupilha e a Vaquejada.
Já no Norte do país, a conjunção entre o pro- “No caso do reggae, o que chegou a Boa Vista
cesso histórico e a diversidade de sons se revela através do município de Bonfim, que faz frontei-
de maneira condensada em Roraima, segundo o ra com a cidade guianense de Lethem, foi uma
musicólogo Gustavo Frosi Benetti e o educador sonoridade particular, diferente daquela que
musical Jefferson Tiago de Souza Mendes da Sil- associamos a Bob Marley [1945-1981] e outros
FOTOS 1 MILENA MEDEIROS 2 ARQUIVO DA BANDA PHOENIX 3 REPRODUÇÃO / FACEBOOK / TRIO RORAIMEIRA

va, ambos da Universidade Federal do Maranhão nomes famosos do reggae original, que surgiu
(UFMA). Como escrevem em um dos capítulos na Jamaica”, acrescenta Silva. “Assim, formou-
do volume dedicado a essa região, a população -se na região um caldeirão musical que mistura
de Roraima tem um perfil diverso, que reflete as também o carimbó paraense, os elementos ca-
sucessivas ondas de ocupação da Amazônia pro- ribenhos vindos da Venezuela e outras referên-
movidas pelo governo brasileiro: das fazendas do cias. Esse cruzamento de sons é muito ouvido em
fim do século XIX à migração incentivada pelo ocasiões como o festival de jazz de Tepequém.”
regime militar (1964-1985). Mais recentemente, Um momento decisivo para a formação da so-
o avanço da fronteira agropecuária, o garimpo e noridade da região foi a década de 1980. Na épo-
a chegada de imigrantes venezuelanos também ca, por meio de festivais de música e encontros de
ampliaram o leque demográfico de Roraima. compositores, surgiu o Movimento Roraimeira.
Como resultado, uma grande variedade sono- “Esse é um fenômeno bastante estudado no esta-
ra se encontra hoje no estado. Os pesquisadores do. Era fortemente calcado na produção autoral
fizeram um levantamento dos estilos praticados e tinha a perspectiva de criar uma identidade
na capital Boa Vista e em 14 municípios do in- regional por meio das artes de forma geral, não
terior. Encontraram desde músicas de origem só a música. Nomes como Eliakin Rufino, Neu-
indígena, cujo primeiro registro foi feito pelo ber Uchôa e Zeca Preto se destacaram no perío-
antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg do e em suas composições é possível perceber
(1872-1924) entre 1911 e 1913, até o reggae ca- a variedade de matrizes, sejam europeias, dos
ribenho que vem da Guiana. Em cidades como povos originários ou de culturas afro-latinas”,
São João da Baliza e Amajari, a forte presença finaliza Benetti. n

PESQUISA FAPESP 337 | 89


MEMÓRIA

Vênus (círculo
escuro) sobre
o disco solar
em 9 de dezembro
de 1874

NO JAPÃO, E
m 9 de dezembro de 1874, em
Nagasaki, no Japão, aonde
chegou após uma viagem de
48 dias de navio, o astrôno-

PARA VER
mo e engenheiro carioca
Francisco Antonio de Al-
meida Júnior (1851-1928) descreveu des-
se modo a rara passagem de Vênus diante

VÊNUS
do Sol: “Às 10 horas e alguns minutos
assistimos à entrada triunfal de Vênus
nas regiões solares, e já havia decorrido
mais de um século que a formosa deusa
não se dignava permitir aos mortais tes-
Há 150 anos, um astrônomo brasileiro temunharem suas ardentes visitas ao rei
dos astros”. O relato integra seu livro Da
atravessou meio mundo para França ao Japão: Narração de viagem e
descrição histórica, usos e costumes dos
calcular a distância da Terra ao Sol habitantes da China, do Japão e de outros
países da Ásia, publicado em 1879.
Sarah Schmidt Considerado o primeiro astrônomo
brasileiro a acompanhar um trânsito de
Vênus e o primeiro cidadão do país a vi-
sitar o Japão, Almeida integrou uma das
equipes francesas, já que estudava em
Paris desde 1872. Uma equipe italiana

90 | MARÇO DE 2024
tinha ido à Índia, uma francesa à Nova
Zelândia e uma britânica ao Havaí, to- A equipe francesa
das com o mesmo objetivo: aprimorar ainda em Paris,
antes de viajar ao
os valores da paralaxe solar. Esse termo Japão, com Janssen
“indica alteração na situação aparente do (sentado, de barba)
astro a que se refere”, explicou Almei- e Almeida (em pé,
da Júnior no livro A paralaxe do Sol e as de terno claro)

passagens de Vênus, de 1878. Ou seja, é o


deslocamento aparente de um objeto ce-
leste – nesse caso, Vênus – sobre o disco
solar, visto de pontos distintos do globo.
Com os dados sobre o deslocamen-
to do planeta sobre o disco solar, os as-
trônomos calculavam a distância entre
a Terra e o Sol, a chamada unidade as-
tronômica. “Eles estavam em busca de
valores mais precisos das dimensões
do Sistema Solar”, explica o astrônomo
Rundsthen Nader, do Observatório do
3
Valongo e da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), que estudou a ros a fazer uma observação científica da to trânsito; o seguinte se dá 105,5 anos
participação brasileira nos trânsitos de passagem de Vênus diante do Sol, em 4 depois, também em dezembro.
Vênus de 1874 e de 1882 em seu douto- de dezembro de 1639. A ideia de usar a passagem de um pla-
rado, concluído em 2015. “Essa observação teve percalços e neta para calcular a distância entre a
O fenômeno de 1874 foi o oitavo re- Horrocks e Crabtree nem tentaram de- Terra e o Sol foi proposta em 1716 pelo
gistrado, na trilha aberta pelos astrô- terminar a paralaxe do Sol”, conta o as- astrônomo britânico Edmond Halley
nomos britânicos Jeremiah Horrocks trofísico Oscar Matsuura, professor apo- (1656-1742), depois de testemunhar um
(1618-1641) e William Crabtree (1610­ sentado da Universidade de São Paulo trânsito de Mercúrio em 1677 na ilha
‑1644). Separadamente, de suas casas, (USP) e organizador do livro História de Santa Helena. Sua hipótese era de
perto de Preston e de Manchester, ambas da astronomia no Brasil (Cepe, 2014). que seria possível calcular a distância da
no Reino Unido, eles foram os primei- “Depois, Horrocks, com base no diâme- Terra ao Sol por triangulação, medindo
tro angular [diâmetro aparente, medido a passagem de outro planeta a partir de
da Terra, em graus] de Vênus, estimou distintos pontos da Terra. “A posição do
a distância do Sol em 97 milhões de km trânsito de Mercúrio era mais difícil de
Capa do livro de Almeida [quilômetros], indicando que o Sistema observar, por fazer uma trajetória pouco
com descrições da passagem Solar era muito maior do que se acredita- acima do horizonte. Então, naquela épo-
de Vênus de 1874 e previsões
va na época.” O astrônomo e matemático ca, Vênus era a esperança”, diz Nader.

E
da seguinte, de 1882
italiano Giovanni Cassini (1625-1712), em
2 Paris, e seu assistente Jean Richer (1630­ m um capítulo do livro Epis-
‑1696), em Caiena, na Guiana Francesa, temología e história de la as-
observando a paralaxe de outro planeta, tronomía (Universidade de
Marte, obtiveram em 1672 a primeira me- Córdoba, 2023), os físicos
dida confiável da unidade astronômica, Maria Romênia da Silva e
de 138 milhões de km, que permaneceu André Ferrer Pinto Martins,
por cerca de um século. ambos da Universidade Federal do Rio
A observação da passagem – ou trân- Grande do Norte (UFRN), observam que
sito – de Vênus e Mercúrio, os dois pla- Almeida era um personagem-chave da
netas mais próximos do Sol, era então astronomia brasileira da época e “ex-
FOTOS 1 GUILLEMIN, A. LE CIEL. 1877 2 WIKIDATA 3 WIKIDATA

um dos principais meios para calcular a prime o desejo e o empenho de uma ge-
distância da Terra à nossa estrela mais ração de intelectuais interessados em
próxima. Mercúrio põe-se à frente do compreender melhor o país, com vias
Sol cerca de 13 ou 14 vezes a cada século, de fazê-lo avançar com base nos refe-
enquanto os trânsitos de Vênus ocorrem renciais europeus”.
em ciclos de 243 anos, que começam com Almeida chegou a Paris em 1872, com
uma primeira passagem, em dezembro; um colega do Imperial Observatório do
oito anos depois, de novo em dezembro, Rio de Janeiro, o astrônomo Julião de
há uma segunda; há um intervalo de 121,5 Oliveira Lacaille (1851-1926), ambos com
anos até a terceira, em junho; oito anos bolsas de estudo concedidas por dom
depois, também em junho, ocorre o quar- Pedro II (1825-1891). “Até então havia

PESQUISA FAPESP 337 | 91


Equipamentos usados pela
equipe brasileira para observar
a passagem de Vênus na
ilha de São Tomás, nas Antilhas,
em dezembro de 1882

mortos na cidade de Hong Kong quan-


do viajava para o Japão com a comissão
francesa”, conta Silva.

A
participação brasileira
foi mais relevante na ob-
servação do trânsito de
Vênus de 1882, dessa vez
visível na América do Sul,
América Central e no les-
te da América do Norte. Uma equipe fi-
cou no Imperial Observatório, agora sob
direção do astrônomo belga Luiz Cruls
(1848-1908), e outras foram a Olinda, em
Pernambuco, a Punta Arenas, no Chile, e
1 à ilha de São Tomás, nas Antilhas.
Os gastos com as expedições motiva-
uma astronomia utilitarista no Brasil, minuciosa da posição do planeta”, diz ram debates sobre o financiamento da
que servia para determinar horários e Nader. “A missão francesa em Nagasaki ciência no país. “Em 1874, houve algumas
ajudar nas medições geográficas para contribuiu muito pouco para o aprimo- críticas sobre o envio de um astrônomo ao
a construção de estradas, enquanto na ramento da paralaxe solar. De maneira Japão, mas em uma dimensão muito me-
Europa os pesquisadores já procuravam geral, os dados de 1874 não foram muito nor”, relata o historiador Jacques Pinto,
entender a composição química das es- diferentes do que já se tinha.” da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação
trelas”, observa Nader. Em 1875, ainda na Europa, Almeida Oswaldo Cruz (Fiocruz). Dessa vez, os
As mudanças na astronomia brasilei- recebeu a comenda brasileira de Cava- ministérios do Império e da Marinha fize-
ra haviam começado um ano antes, em leiro da Ordem da Rosa por sua partici- ram um pedido de 30 contos de réis, cada
1871, quando o imperador convidou o as- pação na comissão científica francesa e um, para a fabricação de lunetas, constru-

3 WIKIMEDIA COMMONS 4 GESTRGANGLERI / WIKIMEDIA COMMONS 5 NASA /WIKIMEDIA COMMONS 6 FLAMMARION, C. LA NATURE. 1875
trônomo francês Emmanuel Liais (1826­ voltou ao Rio de Janeiro no ano seguin- ção das casas de observação, transporte e
‑1900) para dirigir o Imperial Observató- te, como doutor em filosofia pela Uni- pagamento dos pesquisadores.
rio do Rio de Janeiro. Liais aceitou, sob versidade de Bonn, na Alemanha. “Ele Deputados e senadores dos partidos
duas condições: a instituição deixaria de fez uma tese sobre os movimentos do Liberal e Conservador votaram juntos
ser voltada para treinamentos de alu- ar, motivado pelo fato de ter saído ileso contra a liberação da verba. “Predo-

FOTOS 1 BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA 2 JANSSEN, J. BULLETIN DE LA SOCIETÉ DE PHOTOGRAPHIE. 1874
nos de academias militares e investiria de um tufão que deixou cerca de 8 mil minava uma visão utilitarista, de que a
em pesquisa astronômica, inclusive em ciência teria de se voltar apenas para a
ciência básica. “Não se pode negar que lavoura e para a agronomia”, observa a
O revólver fotográfico
o imperador preparou as condições pa- desmontado (abaixo) e em
historiadora Alexandra Aguiar, da Uni-
ra que o Brasil participasse de forma uso por Almeida em Nagasaki versidade do Estado do Rio de Janeiro
marcante no esforço internacional para (ilustração na outra página) (Uerj), que examinou o embate político
observar o trânsito de Vênus em 1882”,
destaca Matsuura.
Em Nagasaki, Almeida Júnior operou
um equipamento inovador, o revólver
fotográfico, desenvolvido pelo líder da
equipe francesa, o astrônomo Pierre Ju-
les Janssen (1824-1907). O aparelho fun-
cionava como uma filmadora rudimentar
e foi usado para gravar imagens do mo-
mento em que Vênus tocou o disco solar
em sequência com intervalos de tempo
muito curtos em placas de vidro com
emulsão de prata. O resultado, porém,
não foi o esperado. “As imagens ficaram
granuladas, o que impediu uma análise 2

92 | MARÇO DE 2024
3 4 5

Com precisão crescente, associados às medidas, como fizeram as Canadá, França e Escócia em 1882. “Ele
as passagens de expedições de outros países. “Nos meios dá a entender que esperava ser convida-
Vênus diante do Sol
em 6 de dezembro de 1882,
acadêmicos, os resultados da comissão do para integrar a comitiva brasileira”,
6 de agosto de 2004 brasileira foram bem-vistos”, diz Nader. ela concluiu. A seu ver, as tensões políti-
e 5 de junho de 2012 Lacaille, que também havia estudado cas da época poderiam explicar o fato de
na França, chefiou a equipe que montou ele ter sido deixado de lado: “Ele se ali-
um ponto de observação em Olinda, mas nhava com ideias liberais, e a atmosfera
não há registros da participação de Al- política em 1882 estava complicada para
em um artigo publicado em agosto de meida Júnior em nenhuma das expedi- dom Pedro II, como já haviam indicado
2017 na revista Temporalidades. Por fim, ções brasileiras em 1882. Sua ausência os embates pela verba para financiar as
em 30 de maio de 1882, apenas o pedido “parece até hoje inexplicável, mesmo comissões científicas”.

N
do Ministério do Império foi aprovado. considerando as opiniões de astrôno-
Doações particulares completaram o res- mos que não acreditavam na vantagem omeado diretor do Diário
tante da verba pedida para a missão das de observar as passagens de Vênus para Oficial em julho de 1891,
Antilhas, chefiada por Antônio Luís von determinar a paralaxe solar”, comentou Almeida foi exonerado do
Hoonholtz, o barão de Tefé (1837-1931). o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas cargo seis meses depois,
Cruls chefiou a comissão de Punta Mourão (1935-2014), do Museu de As- quando o presidente Deo-
Arenas e publicou as observações bra- tronomia e Ciências Afins (Mast), em doro da Fonseca (1827­
sileiras em dezembro de 1887 nos Anna- um artigo de 2005 na revista Navigator. ‑1892) renunciou. Depois, foi preso na
les de L’Observatoire Impérial de Rio de Ao analisar as 94 páginas do livro A gestão do presidente Floriano Peixoto
Janeiro. De acordo com Nader, o valor paralaxe do Sol, Silva verificou que Al- (1839-1895) acusado de participar de uma
final para a paralaxe solar obtido pela meida indicava os horários em que Vênus conspiração contra o governo em abril de
comissão brasileira foi de 147.826.661 provavelmente seria visível em cidades 1892. “Ele era crítico dos governos mili-
km, porque Cruls não incluiu os erros do Brasil, Chile, Peru, Estados Unidos, tares da Primeira República, conhecidos
6
por serem autoritários”, comenta Pinto.
No final do século XIX, em vez de es-
perarem outras passagens de Vênus, as-
trônomos começaram a calcular a para-
laxe solar usando asteroides, rochas de
diversos tamanhos que orbitam o Sol.
Depois, usaram radares e a velocidade
da luz. Em 1976, a União Astronômica
Internacional (IAU) fixou a distância
entre o Sol e a Terra em 149.597.870 km.
Em 2008 e 2012, Vênus cruzou mais
uma vez o disco solar. “Mas esses trânsi-
tos não acrescentaram muito mais infor-
mações sobre essas medidas. Assim como
os eclipses, hoje eles são mais eventos mi-
diáticos, que ajudam a divulgar a ciência”,
pondera Nader. O planeta mais facilmente
visível no céu deverá se postar novamente
diante do Sol em 10 de dezembro de 2117
e em 8 de dezembro de 2125. n

PESQUISA FAPESP 337 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

HOJE TEM ESPETÁCULO?


O físico George Sand de França se divide entre
a carreira acadêmica e a arte da palhaçaria

S
empre gostei de movimento. tivação foi uma lembrança do passado, o no açude Tucunduba, no Ceará – deixei
Na infância, praticava esportes terremoto que presenciei em 1986, aos 15 a companhia teatral dois meses antes da
e teatro, mas, por ser um bom anos. Lembro de estar no segundo andar estreia de A megera doNada, espetáculo
aluno em ciências exatas, tinha da escola no momento do tremor, senti- dirigido por Sávio Araújo que fazia uma
dúvidas entre cursar física, artes cênicas do por todos nós, colegas, professores e sátira ao clássico A megera domada, de FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 ARQUIVO PESSOAL

e educação física. Acabei optando pela demais funcionários. O terremoto de 5.1 William Shakespeare [1564-1616].
área de exatas. Entrei no curso de física de magnitude ficou conhecido como o Um pouco mais tarde, em 1999, in-
em 1992, na Universidade Federal do sismo de João Câmara, cidade a cerca de gressei no doutorado do Instituto de As-
Rio Grande do Norte [UFRN], e logo 80 quilômetros de Natal, onde eu morava. tronomia, Geofísica e Ciências Atmos-
comecei a trabalhar como bolsista do No final do segundo ano como inte- féricas da Universidade de São Paulo
Programa Especial de Treinamento da grante do Clowns de Shakespeare, quan- [IAG-USP], sob orientação do professor
Capes [Coordenação de Aperfeiçoamen- do apresentaríamos o primeiro espetácu- Marcelo Assumpção. Na pesquisa, estu-
to de Pessoal de Nível Superior]. No ano lo de maior envergadura do grupo, pre- damos a estrutura da crosta terrestre no
seguinte, paralelamente à graduação, cisei fazer a escolha entre ciência e arte. Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Em
ingressei no Clowns de Shakespeare, Era 1998 e meu orientador no mestrado, 2001, quando tive um ano relativamente
grupo de teatro de Natal. o físico Mario Koechi Takeya, me cobrou mais tranquilo no doutorado, participei
Depois de me graduar em física, pes- uma posição. Não o culpo por aquela de uma oficina no Teatro da USP, minis-
quisei sismologia no mestrado em geodi- atitude, mas em nome da minha pesqui- trada pelos atores Edgar Castro e Geor-
nâmica e geofísica da UFRN. Minha mo- sa – na qual analisamos dados sísmicos gette Fadel, dois mestres que marcaram

94 | MARÇO DE 2024
À esquerda, França no 2

campus do Butantã da USP,


onde leciona desde o ano
passado. Nesta página, como
Dr. Terremoto, ao lado da
Dra. Magnetita

minha trajetória. No mesmo período, in-


tegrei o Grupo de Teatro Movimento, de
São Paulo, onde atuei em três espetácu-
los ao longo de dois anos na companhia.
De volta a Natal em 2004, para um
pós-doutorado na UFRN, foi a vez de
frequentar a oficina Arte do Palhaço, ofe-
recida por Felícia Castro e Flavia Mar-
co Antônio, no Centro Experimental de
Teatro. Em 2006, passei no concurso
para professor do Instituto de Geociên-
cias da Universidade de Brasília [UnB]. abordagem de acordo com os ambientes Janine Araujo do Carmo, do Centro de
Como recém-contratado, tinha muito em que me apresentava, até encontrar Pesquisas, Desenvolvimento e Inova-
trabalho a fazer e me afastei dos palcos. uma forma de levar a mensagem do Dr. ção Leopoldo Américo Miguez de Mello
Voltei a fazer teatro, para valer, em 2015. Terremoto a um público mais amplo. [Cenpes-Petrobras].

A
No ano seguinte, cursei outra oficina de Desde fevereiro estou à frente da Ofi-
palhaçaria, dessa vez com o ator e diretor estreia do Dr. Terremoto, en- cina de Palhaçaria Científica, ao lado dos
José Regino, que considero meu grande tretanto, aconteceu um pouco atores Julia Bertollini, a palhaça Cata-
mestre. Foi ali que, de fato, me apaixonei antes, durante um congres- rina, e Pedro Caroca, o palhaço Seu Co-
pelo ofício e assim nasceu meu primeiro so da European Geosciences có. O objetivo desse curso de extensão
palhaço, que, entretanto, ainda não era Union [EGU] em Viena, na Áustria, na- universitária no IAG-USP, voltado para
o Dr. Terremoto. quele mesmo 2019. Fui caracterizado de professores de ensino médio e superior,
Naquele momento, teorias absurdas palhaço, entrei dessa forma no evento além de alunos de graduação e de pós-
como a da Terra plana ganharam força e aguardei a vez de me apresentar no -graduação de várias áreas, é ensinar a
nas redes sociais. Fiquei preocupado. Não chamado pico, aquelas sessões de cin- comunicar os conceitos científicos de
sabia como as pessoas seriam impactadas co minutos de explanação. Integrei um forma simples e envolvente.
por aquelas ideias esdrúxulas e logo tive bloco específico, com outros artistas e Como ator, palhaço e diretor fiz até ho-
a ideia de brincar com o assunto. Todo cientistas que se enveredam pela área je 17 espetáculos e um longa-metragem.
palhaço tem uma habilidade, um aspec- artística, para falar como a arte pode aju- Mesmo me dedicando o quanto posso às
to inusitado. No meu caso, é a ligação do dar a ciência e vice-versa. Estou acostu- artes cênicas, sou um cientista empe-
personagem com a ciência que causa a mado a expor meus trabalhos em eventos nhado, bolsista nível 1C de produtivi-
surpresa. O interessante é que na ciên- internacionais, mas esse foi, sem dúvida, dade em pesquisa do CNPq [Conselho
cia existe todo o cuidado para evitar o o de maior impacto em minha vida, com Nacional de Desenvolvimento Científi-
erro; por exemplo, na hora de publicar a maior atenção e plateia que já tive. co e Tecnológico]. Em sala de aula, sigo
um achado ou comunicar à imprensa so- No ano passado, me tornei professor o estilo tradicional, mas não abro mão
bre um abalo sísmico. Errar é uma coisa titular no IAG-USP. Por causa disso, mu- do bom humor. Gosto sempre de dizer
impensável para nós, cientistas. E, claro, dei para São Paulo com minha mulher, que a parceria entre ciência e arte é coi-
deve ser assim. Já o palhaço faz o contrá- que é administradora de empresas. Te- sa séria. Além de ser um importante ca-
rio: brinca com o erro e em cima dele cria mos dois filhos. Gabriel, de 23 anos, que nal de divulgação científica, a arte ajuda
situações que podem fazer o espectador gosta de música e cursa ciência da com- a quebrar o excesso de formalidade no
pensar no acerto de um jeito diferente. putação na UnB. Julia, de 17 anos, é bai- meio acadêmico. Tomara que essa ideia
Em cima dessa proposta, criamos A larina, participa de uma companhia de se espalhe. n
Terra é plana! E agora?, espetáculo para dança em Brasília, mas acaba de passar DEPOIMENTO CONCEDIDO A NEIDE OLIVEIRA
todas as idades que estreou em Brasília, em uma audição em São Paulo.
em 2019. Nas primeiras apresentações, já Atualmente integro o Observatório
como Dr. Terremoto, percebi que o públi- Companhia Teatral, grupo que surgiu
co era majoritariamente acadêmico, com- há cinco anos. Em novembro, fizemos SAIBA MAIS
posto por colegas de profissão e alunos. uma apresentação na festa de confrater- Instagram
Paralelamente a isso, notei que a peça não nização dos funcionários do IAG-USP Dr. Terremoto

rendia da mesma forma entre espectado- e familiares. Dividi a cena com a Dra.
res leigos. Fui mudando a linguagem e a Magnetita, palhaça criada pela geofísica

PESQUISA FAPESP 337 | 95


RESENHA

O povoamento das Américas


Cláudia R. Plens

Q
uem eram, como e quando chegaram os na em direção às Américas. Em seguida, o autor
primeiros humanos no último continente destaca dados das Américas do Norte e do Sul,
a ser alcançado pelas grandes migrações, especialmente do Brasil, como na serra da Capi-
a América? Esse é o cerne do livro escrito pelo vara (PI) e no sítio Santa Elina (MT), indicando
jornalista Bernardo Esteves, fruto de 10 anos de que a chegada dos humanos na América é muito
pesquisas a partir de literatura científica, entre- mais antiga do que se pensava anteriormente.
vistas com pesquisadores e visitas a instituições Outros capítulos exploram os desdobramentos
científicas e sítios arqueológicos. interdisciplinares dessa questão, especialmente
Entretanto, para além de tentar esclarecer na área de genética. O autor ressalta a importân-
quem eram os primeiros habitantes e as possíveis cia do estudo do genoma humano antigo, que
rotas de acesso, o livro tem por intuito historici- forneceu informações cruciais sobre os desloca-
zar como a academia constrói e legitima os dados mentos populacionais, preenchendo lacunas em
Admirável novo mundo: científicos a partir do “escrutínio acadêmico” e que o registro arqueológico era escasso.
Uma história da como os avanços metodológicos revolucionaram Com o avanço da pesquisa genética, o método
ocupação humana
nas Américas
a pesquisa arqueológica. tem sido amplamente utilizado para investigar
Bernardo Esteves O autor mostra que, desde o século XIX, ques- as migrações que deram origem às populações
Companhia das Letras tões políticas tentam legitimar a importância do americanas. O interesse crescente sobre o tema
504 páginas cenário da América do Norte em detrimento dos tem envolvido cada vez mais pesquisadores de
R$ 104,90
resultados apresentados por pesquisadores da diferentes formações acadêmicas e, por vezes,
América do Sul. Dessa forma, é possível aten- resultando em interpretações divergentes. Ape-
tar para uma competição no que tange à prima- sar disso, a interdisciplinaridade vem permitindo
zia dos sítios arqueológicos mais antigos, numa parcerias corroborativas e maior aprofundamento
disputa acirrada dos norte-americanos com os no conhecimento científico.
sul-americanos. O livro aborda também as questões éticas da
É sempre bom lembrar que há quem teça crí- pesquisa arqueológica, especialmente em relação
ticas para a corrida desenfreada pela descoberta aos povos originários. Historicamente associada
do sítio “mais antigo da América”, apontando que a contextos coloniais, a arqueologia frequente-
essas pesquisas acabam enviesando os debates e mente construiu seu conhecimento do passado
não tratando do ponto principal da questão: a com- humano sem consentimento das comunidades
preensão dos modos de vida, das relações humanas envolvidas. O autor demonstra que, no Brasil,
e ambientais envolvidas na ocupação da América. embora possa haver dissonâncias específicas, de
Os 22 capítulos que compõem a obra têm co- modo geral as relações entre acadêmicos e comu-
mo início o cenário brasileiro ainda no século nidades indígenas vêm sendo desenvolvidas no
XIX, a partir de Lagoa Santa, com as primeiras sentido de originar pesquisas mais colaborativas.
descobertas do naturalista dinamarquês Peter Admirável novo mundo é um livro denso, que reú-
Lund (1801-1880) que lançaram a hipótese da an- ne informações científicas bastante relevantes, com
tiguidade do povoamento da América por meio linguagem acessível ao grande público. Além disso,
de achados em Minas Gerais. traz uma grande contribuição aos arqueólogos pe-
Mas se diferentes pesquisadores elaboraram la riqueza de detalhes e histórias que medeiam as
hipóteses para o povoamento da América ao longo grandes pesquisas e debates dos resultados. Esses
do tempo, foi a partir de 1949 que houve a grande bastidores não costumam ser conhecidos a partir
inflexão pela acurácia científica. Naquele ano, foi da leitura de artigos científicos ou por aqueles
criado o método de datação por carbono 14, que que não acompanham todas as pesquisas no tema.
conferiu maior precisão às pesquisas arqueoló- Seguramente, a obra incitará novas interpretações
gicas realizadas no mundo. à luz de outras pesquisas e autores para além dos
A partir dos achados arqueológicos mais anti- contemplados em suas páginas.
gos datados pelo método do carbono 14, Esteves
discute essas descobertas no Velho Mundo que Cláudia R. Plens é arqueóloga e professora da Universidade Federal
fornecem informações sobre a dispersão huma- de São Paulo (Unifesp).

96 | MARÇO DE 2024
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Excelente o vídeo sobre a expedição.
Ronaldo Aloise Pilli Parabéns para todos os pesquisadores
CONSELHO SUPERIOR
Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Herman que aliam os conhecimentos científicos
Jacobus Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, ao saber dos guias. Todos aprendem.
Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug
Fani Adorne
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO
Marcio de Castro Silva Filho Reforma de 1933
DIRETOR ADMINISTRATIVO Com relação à reportagem “Uma no-
Fernando Menezes de Almeida
va organização para o ensino paulista”
(edição 335), Fernando de Azevedo foi
um dos meus inspiradores, o criador do
ISSN 1519-8774 Árvores gigantes Programa dos Parques Infantis, as atuais
COMITÊ CIENTÍFICO
Moro e trabalho na África do Sul e acabei Emei.
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente), Américo Martins Craveiro,
Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Anapatrícia
de voltar de uma viagem inesquecível ao Christian de Mello Sznick
Morales Vilha, Carlos Américo Pacheco, Carlos Graeff, Célio Haddad,
Claudia Mendes de Oliveira, Deisy de Souza, Douglas Zampieri,
Parque Nacional Montanhas do Tumucu-
Eduardo Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fernando Menezes
de Almeida, Flávio Vieira Meirelles, José Roberto de França Arruda,
maque, no Amapá. Agora li a reportagem
Jó Ueyama, Lilian Amorim, Liliam Sanchez Carrete, Marcio de
Castro Silva Filho, Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, “O mistério das árvores gigantes da Ama- Passado racista
Maria Julia Manso Alves, Marie-Anne Van Sluys, Marta Arretche,
Nina Stocco Ranieri, Paulo Schor, Reinaldo Salomão, Richard zônia” (edição 336), indicada por uma Reconhecer é importante, mas não o
Charles Garratt, Rodolfo Jardim Azevedo, Sergio Costa Oliveira,
Luiz Vitor de Souza Filho, Watson Loh amiga. No entorno das minhas amizades suficiente (“Luz nas sombras do passa-
COORDENADOR CIENTÍFICO e meus clientes brasileiros, todo mundo do racista”, edição 336). Que políticas
agora sabe do Tumucumaque. Antes, de reparação serão adotadas a partir
Luiz Nunes de Oliveira

DIRETORA DE REDAÇÃO
Alexandra Ozorio de Almeida poucos sabiam até do Amapá. Escrevi de agora?
EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin
um artigo sobre minhas experiências Joaquim Mendes da Silva

EDITORES Fabrício Marques (Política Científica e Tecnológica), para o maior jornal de negócios da África
Carlos Fioravanti (Ciências da Terra), Marcos Pivetta (Ciências
Exatas), Maria Guimarães (Ciências Biológicas), Ricardo Zorzetto do Sul. Esse lugar tem que ser preserva-
(Ciências Biomédicas), Ana Paula Orlandi (Humanidades),
Yuri Vasconcelos (Tecnologia) do. Se pudesse dedicar o resto da minha Artigos retratados
REPÓRTER Christina Queiroz vida à preservação da floresta amazônica, Percebe-se que o autor tem ideias reli-
ARTE Claudia Warrak (Editora), Júlia Cherem Rodrigues e Maria
Cecilia Felli (Designers), Alexandre Affonso (Editor de infografia)
deixaria a advocacia amanhã. giosas e não científicas (“Sete artigos de
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
Emile Myburgh pesquisador muçulmano que confun-
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues diam ciência com fé sofrem retratação”,
SITE Yuri Vasconcelos (Coordenador), Jayne Oliveira (Coordenadora Parabéns pela pesquisa retratada no ví- disponível apenas no site). Pesquisa se
de produção), Kézia Stringhini (Redatora on-line)

MÍDIAS DIGITAIS Maria Guimarães (Coordenadora), Renata Oliveira


deo “Expedição ao Tumucumaque”. E confundiu com opiniões próprias.
do Prado (Editora de mídias sociais), Vitória do Couto (Designer digital) um salve aos servidores do ICMBio que Toni Correa
VÍDEOS Christina Queiroz (Coordenadora)
trabalham na gestão e na manutenção
RÁDIO Fabrício Marques (Coordenador) e Sarah Caravieri (Produção)
desse e de outros parques pelo Brasil. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro
Joyce Moreira dos Anjos sumidas por motivo de espaço e clareza.
REVISÃO TÉCNICA Ana Maria Fonseca de Almeida, Anapatrícia
Morales Vilha, Célio Haddad, Deisy de Souza, Fernando Iazzetta,
Francisco Laurindo, Glaucia Mendes Souza, José Roberto Arruda,
Luiz Vitor de Souza Filho, Paolo Piccione, Maria de Fátima Morethy
Couto, Rafael Oliveira, William Wolf

COLABORADORES Carolina Schwartz, Cláudia R. Plens, Diego Viana,


ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Domingos Zaparolli, Frances Jones, Gilberto Stam, Giselle Soares,
Joana Santa Cruz, Juliana Vaz, Lela Beltrão, Letísia Naísa, Mariana
E MUDANÇA DE ENDEREÇO revistapesquisa.fapesp.br
Rodrigues, Mariana Waechter, Mayara Ferrão, Neide Oliveira, Sarah
Envie um e-mail para
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CIRCULAÇÃO Aparecida Fernandes (Coordenadora de Assinaturas)
OPERAÇÕES Andressa Matias
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2024
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NOVONO
NOPASSADO:
PASSADO:
o estado
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dada
arte
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dada
pesquisa
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arqueológica
arqueológicanana
Amazônia
Amazônia
2222MAR
MAR2024
2024
Eduardo
EduardoNeves
Neves das
das10h
10h
àsàs
11h30
11h30
Museu
Museu
de Arqueologia
de Arqueologia
e Etnologia
e Etnologia
da da
Universidade
Universidade
de São
de São
Paulo
Paulo
(MAE-USP)
(MAE-USP)

Professor
Professor
titular
titular
de Arqueologia
de Arqueologia
Brasileira
Brasileira
e diretor
e diretor
do do
Museu
Museu
de de
Mark Thiessen (National Geographic)

Mark Thiessen (National Geographic)

Arqueologia
Arqueologia
e Etnologia
e Etnologia
da da
Universidade
Universidade
de São
de São
Paulo
Paulo
(MAE-USP),
(MAE-USP),
pesquisador
pesquisador
1A 1A
do do
CNPq.
CNPq.
Graduado
Graduado
emem
História
História
pela
pela
FFLCH-USP
FFLCH-USP
e doutor
e doutor
emem
Antropologia
Antropologia
pela
pela
Universidade
Universidade
de Indiana.
de Indiana.
É coordenador
É coordenador
do do
Laboratório
Laboratório
de Arqueologia
de Arqueologia
dosdos
Trópicos
Trópicos
do do
MAE-USP.
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FoiFoi
professor
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visitante
visitante
da da
CAPES
CAPES
Harvard
Harvard
no no
Departamento
Departamento
de Antropologia
de Antropologia
da da
Universidade
Universidade
Harvard,
Harvard,
coordenador-adjunto
coordenador-adjunto
da da
área
área
de Arqueologia
de Arqueologia
da da
CAPES
CAPES
e presidente
e presidente
da da
Sociedade
Sociedade
de Arqueologia
de Arqueologia
Brasileira.
Brasileira.

MODERAÇÃO
MODERAÇÃO

Maria
Maria
de de
Fátima
Fátima
Morethy
Morethy
Couto
Couto
Universidade
Universidade
Estadual
Estadual
de Campinas
de Campinas
(UNICAMP)
(UNICAMP)

Inscrições
Inscrições
e mais
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informações,
informações,acesse
acesse
fapesp.br/conferencias
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EVENTO
EVENTO
PRESENCIAL
PRESENCIAL

Local: Auditório
Local: Auditório
FAPESP
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– Rua
– Rua
PioPio
XI,XI,
1500
1500
– Alto
– Alto
dada
Lapa,
Lapa,
São
São
Paulo,
Paulo,
SPSP
Inscrições abertas
para as mentes que
criam novos amanhãs.
Para cada nova pergunta da humanidade, existe alguém dedicado a encontrar
a resposta. Quem sabe esse alguém não é você? O Prêmio CBMM de Ciência
e Tecnologia está de volta em sua 6ª edição, reconhecendo trajetórias nas
áreas de Ciência e Tecnologia. Uma iniciativa da CBMM, líder mundial na
tecnologia do Nióbio, para valorizar aqueles que transformam o nosso amanhã.

Inscreva-se até 19 de abril e acompanhe as


etapas da premiação em premiocbmm.com.br.

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